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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PATRIARCAS DE YAHVEH / Albert Paul Dahoui
OS PATRIARCAS DE YAHVEH / Albert Paul Dahoui

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS PATRIARCAS DE YAHVEH

 

Prólogo

Capela-3.700 a.C.

A estrela de Capela fica distante quarenta e dois anos-luz da Terra, na constelação do Cocheiro, também chamada de Cabra. Esta bela e gigantesca estrela faz parte da Via Láctea, galáxia que nos abriga e a distância colossal entre Capela e o nosso sol é apenas um pequeno salto nas dimensões grandiosas do universo. Nossa ga­láxia faz parte de um grupo local de vinte e poucos aglomerados fantásticos de cem a duzentos bilhões de estrelas, entre as quais o nosso sol é apenas um pequeno ponto a iluminar o céu. Capela é uma bela estrela, cerca de quatorze vezes maior do que o sol, com uma emanação de calor levemente abaixo de nosso astro-rei. E uma estrela dupla, ou seja, são dois sóis, de tamanhos diversos, que gravi­tam um em torno do outro, formando uma unidade, e, em volta de­les, num verdadeiro balé estelar, um cortejo constituído de inúme­ros planetas, luas, cometas e asteróides.

Há cerca de 3.700 a.C., num dos planetas que gravitam em torno da estrela dupla Capela, existia uma humanidade muito pare­cida com a terrestre, à qual pertencemos atualmente, apresentando notável padrão de evolução tecnológica. Naquela época, Ahtilantê, nome desse planeta, o quinto a partir de Capela, estava numa posi­ção social e econômica global muito parecida com a da Terra do sé­culo XX d.C. A humanidade que lá existia apresentava graus de evolução espiritual extremamente heterogêneos, similares aos ter­restres do final do século XX, com pessoas desejando o aperfeiçoa­mento do orbe enquanto outras apenas anelavam seu próprio bem-estar.

Os governadores espirituais do planeta, espíritos que tinham alcançado um grau extraordinário de evolução, constaram que Ahtilantê teria que passar por um extenso expurgo espiritual. Deveriam ser retiradas do planeta, espiritualmente, as almas que não tivessem alcançado um determinado grau de evolução. Elas seriam levadas para outro orbe, deslocando-se através do mundo astral, onde conti­nuariam sua evolução espiritual, através do processo natural dos re­nascimentos. No decorrer desse longo processo, que iria durar cerca de oitenta e quatro anos, seriam dadas oportunidades de evolução aos espíritos, tanto aos que já estavam jungidos à carne, como aos que estavam no astral - dimensão espiritual mais próxima da materi­al - através das magníficas ocasiões do renascimento. Aqueles que demonstrassem endurecimento em suas atitudes negativas perante a humanidade ahtilante seriam retirados, gradativamente, à medida que fossem falecendo fisicamente, para um outro planeta que lhes seria mais propício, possibilitando que continuassem sua evolução num plano mais adequado aos seus pendores ainda primitivos e egoísticos.

A última existência em Ahtilantê era, portanto, vital, pois ela demonstraria, através das atitudes e dos atos, se o espírito estava pronto para novos vôos, ou se teria que passar pela dura provação do recomeço em planeta ainda atrasado.

A última existência, sendo a resultante de todas as anteriores, demonstraria se a alma havia alcançado um padrão vibratório sufici­ente para permanecer num mundo mais evoluído, ou se teria que ser expurgada.

Os governadores espirituais do planeta escolheram para coordenar esse vasto processo um espírito do astral superior chamado Varuna Mandrekhan que formou uma equipe atuante em muitos se­tores para apoiá-lo em suas atividades. Um planejamento detalhado foi encetado de tal forma que pudesse abranger de maneira correta todos os aspectos envolvidos nessa grave questão. Diversas visitas ao planeta que abrigaria parte da humanidade de Ahtilante foram feitas, e, em conjunto com os administradores espirituais desse mun­do, o expurgo foi adequadamente preparado.

Ahtilantê era um planeta com mais de seis bilhões de habitan­tes e, além dos que estavam renascidos, ainda existiam mais alguns bilhões de almas em estado de erraticidade. O grande expurgo abrangeria todos, tanto os renascidos como os que estavam no astral inferior, e, especialmente, aqueles mergulhados nas mais densas trevas. Faziam também parte dos candidatos ao degredo os espíritos profundamente desajustados, além dos assassinos enlouquecidos, os suicidas, os corruptos, os depravados e uma corja imensa de elemen­tos perniciosos.

Varuna, espírito nobilíssimo, que fora político e banqueiro em sua última existência carnal, destacara-se por méritos próprios em todas as suas atividades profissionais e pessoais, sendo correto, justo e íntegro. Adquirira tamanho peso moral na vida política do planeta que era respeitado por todos, inclusive por seus inimigos políticos e adversários em geral. Este belo ser, forjado no cadinho das experi­ências, fora brutalmente assassinado por ordem de um déspota que se apossara do império Hurukyan, um dos maiores daquele mundo.

Ahtilantê era um planeta muito maior do que a Terra, e apresentava algumas características bem diferentes do nosso atual lar. Sua gravidade era bem menor, assim como a sua humanidade não era mamífera e, sim, oriunda dos grandes répteis que predomina­ram na pré-história ahtilantê. A atmosfera de Ahtilantê era bem mais dulcificante do que a agreste e cambiante atmosfera terrestre. Tratava-se de um verdadeiro paraíso, um jardim planetário, com­plementado por uma elevada tecnologia.

As grandes distâncias eram percorridas por vimanas, apare­lhos similares aos nossos aviões, assim como a telecomunicação avançadíssima permitia contatos tridimensionais em videofones com quase todos os quadrantes do planeta, além de outras invenções fantásticas, especialmente na área da medicina. Os ahtilantes esta­vam bastante adiantados em termos de viagens espaciais, já tendo colonizado as suas duas luas. Porém essas viagens ainda estavam na alvorada dos grandes deslocamentos que outras civilizações mais adiantadas, como as de Karion, já eram capazes de realizar.

Karion era um planeta do outro lado da Via Láctea, de onde viria, espiritualmente, uma leva de grandes obreiros que em muito ajudariam Varuna em sua árdua missão. Todavia, espiritualmente, os ahtilantes ficavam muito a desejar. Apresentavam as deficiências comuns à humanidade da categoria média em que se encaixam os seres humanos que superaram as fases preliminares, sem ainda al­cançarem as luzes da fraternidade plena.

Havia basicamente quatro raças em Ahtilantê, os azuis, os ver­des, os púrpuras e os cinzas. Os azuis e verdes eram profundamente racistas, não tolerando miscigenação entre eles, acreditando que os cinzas eram de origem inferior, podendo ser utilizados da forma como desejassem. Naquela época, a escravidão já não existia, mas uma forma hedionda de servilismo econômico persistia entre as na­ções. Por mais que os profetas ahtilantes tivessem enaltecido a ori­gem única de todos os espíritos no seio do Senhor, nosso pai amantíssimo, os ahtilantes ainda continuavam a acreditar que a cor da pele, a posição social e o nome ilustre de uma família eram corolári­os inseparáveis para a superioridade de alguém.

Varuna fora o responsável direto pela criação da Confedera­ção Norte-Ocidental que veio a gerar novas formas de relacionamento entre os países membros e as demais nações do globo. A cul­tura longamente enraizada, originária dos condalinos, raça espiritual que serviu de base para o progresso de Ahtilantê, tinha uma influência decisiva sobre todos. Os governadores espirituais aproveitaram todas as ondas de choque: físicas, como guerras, revo­luções e massacres; culturais, como peças teatrais, cinema e livros; e, finalmente, telúricas, como catástrofes que levassem as pessoas a modificarem sua forma de agir, de pensar e de ser. Aqueles, cujo so­frimento dos outros e os seus próprios não os levaram a mudanças interiores sérias, foram deportados para um distante planeta azul que os espíritos administradores daquele jardim ainda selvático cha­mavam de Terra.

Esse processo, envolvendo quase quarenta milhões de espíri­tos degredados, que foram trazidos à Terra por volta de 3.700 a.C., foi coordenado por Varuna Mandrekhan e sua equipe multissetorial. Os principais elementos de seu grupo foram Uriel, uma médica especializada em psiquiatria, a segunda em comando; Gerbrandom, uma alma pura que atingira a maioridade espiritual em outro plane­ta e viera ajudar o degredo em Ahtilante; e Vartraghan, chefe dos guardiões astrais que, em grande número, vieram ajudar Varuna a trazer os degredados. Além desses personagens, havia Radzyel, Sandalphon, Sraosa e sua mulher Mkara, espíritos que muito ajudariam os capelinos, e também a belíssima figura de Lachmey, espírito do mundo mental de Karion, que, mais tarde, rebalizada como Phannuil, seria o espírito feminino mais importante para a evolução da Terra, coordenando vastas falanges de obreiros em permanente labuta para a consecução dos desígnios dos administradores espiri­tuais.

Os capelinos foram trazidos em levas que variavam de vinte mil pessoas até grandes transportes de duzentas e poucas mil almas. Vinham em grandes transportadores astrais que venciam facilmente as grandes distâncias siderais, comandadas por espíritos especialis­tas sob a direção segura e amorosa dos administradores espirituais.

A Terra, naquele tempo, era ocupada por uma plêiade de espíritos primitivos que serão sempre denominados de terrestres para diferenciá-los dos capelinos, que vieram degredados para aqui evo­luírem e fazerem evoluir. Uma das funções dos capelinos, aqui na Terra, era serem aceleradores evolutivos, especialmente no terreno social e técnico. Mesmo sendo a escória de Ahtilante, eles estavam à frente dos terrestres em termos de inteligência, aptidão social e inte­lectual e, naturalmente, sagacidade. Os terrestres, ainda muito embrutecidos, ingênuos e apegados aos rituais tradicionais, que passa­vam de pai para filho, pouco ou nada criavam de novo; cada geração repetia o que a anterior lhe ensinara, de forma muito similar à que vemos entre nossos silvícolas que repetem seus modos de vida, há milhares de anos, sem nenhuma alteração.

Havia entre os exilados um grupo de espíritos que, em Ahti­lantê, se intitulavam de 'alambaques', ou seja, 'dragões'. Esses espíri­tos, muitos deles brilhantes e de inteligência arguta e afiada, eram vítimas de sua própria atitude negativa perante a existência, prefe­rindo serem críticos a atores da vida. Muitos deles se julgavam injustiçados quando em vida e, por causa desses fatos, aferravam-se em atitudes demoníacas perante os maiores. Esses alambaques tinham desenvolvido uma sociedade de desregramentos e abusos, sendo utilizados pela justiça divina como elementos conscientizadores dos seres que cometiam atos cujo grau de vilania seria impossível de des­crever.

Essa súcia, todavia, era filha do altíssimo e, mesmo sendo candidata à deportação, deveria ser a artífice do exílio. Como eles do­minavam vastas legiões de espíritos embrutecidos na prática do mal, era-lhes mais fácil comandá-los do que os guardiões astrais, que não existiam em número suficiente para uma expedição expiatória des­sa envergadura. Por causa disso, Varuna e seu guardião-mor Vartraghan foram até as mais densas trevas, numa viagem inesquecível, para convidar os poderosos alambaques a unirem-se a eles e ajuda­rem as forças da evolução e da luz a triunfarem.

Varuna, através de sua atitude de desprendimento, de amor ao próximo e de integridade e justiça, foi acolhido, após algum tem­po, pela maioria dos alambaques, como o grande mago, o Mykael, nome que passaria a adotar como forma de renovação que ele mes­mo se impôs ao vir para a Terra. A grande missão de Mykael era não apenas a de trazer as quase quarenta milhões de almas capelinas para o exílio, porém, principalmente, fundamentalmente, levá-las de volta ao caminho do Senhor totalmente redimidas.

No grande renovação que Varuna e Lachmey promoveram, muitos foram os que trocaram de nome para esquecerem Ahtilantê e se concentrarem no presente, na Terra. Varuna tornou-se Mykael, o arcanjo dominador dos dragões. Lachmey passou a se chamar de Phannuil, a face de Deus. Gerbrandom de Raphael, Vartraghan, também conhecido entre os seus guardiões como Indra, tornou-se Kabryel, o arcanjo. Vayu, seu lugar-tenente, passou a se intitular de Samael, que foi, muitas vezes, confundido como o mítico Lúcifer, o portador do archote, o carregador da luz.

O início da grande operação de redenção na Terra foi na Suméria, quando Nimrud, espírito capelino renascido, conseguiu, en­tre atos terríveis e maldades tétricas, implantar a primeira civilização em Uruck. Os alambaques, entretanto, que tinham não só a missão de trazer os degredados como também de guiá-los, estavam excessivamente soltos, o que faria com que Mykael ordenasse a alte­ração dos padrões de comportamento dos dragões para fazê-los ser não somente guias de lobos - chefes de matilhas - como também mo­dificarem seu íntimo para tornarem-se cordeiros de Deus.

No grande planejamento, ficou estabelecido que a Suméria seria o primeiro lugar, devido às enormes facilidades para se desenvolver uma sociedade onde a agricultura seria a pedra angular, devi­do ao fértil vale criado pelo transbordamento dos dois rios irmãos, o Tigre e o Eufrates. Outros locais também foram programados de forma que a vinda dos capelinos influenciasse várias regiões do glo­bo, tais como a Europa, inicialmente através dos celtas; a Índia, atra­vés do vale do Meluhha; mais conhecido, no futuro, como o rio Hin­du ou Indo e, posteriormente, outros povos indo-europeus; e, no extremo oriente, na Tailândia e na China.

Uma das regiões que se tornaria de suma importância para o desenvolvimento da cultura, tecnologia e civilização mundial viria a ser o Egito, outra região que fora escolhida para a imersão na maté­ria dos espíritos capelinos. Seria nessas longínquas plagas que essas almas conturbadas viriam a estabelecer uma civilização monumental de proporções absolutamente grandiosas.

Usaremos os nomes antigos, como eram conhecidos pelos próprios egípcios. O Egito era chamado de Kemet, ou seja, terras negras. O rio Nilo era conhecido como Iterou. A palavra Nilo deri­vou da palavra hamita nili, que significa cheia do rio. Nili é, portan­to, um dos estados do rio Iterou.

Por volta de 3.600 a. C., os espíritos superiores determinaram que os alambaques levassem para aquelas plagas, com o intuito de desenvolver o Kemet, vários grupos de sumários. Alguns desses gru­pos foram dizimados pelo caminho, e outros foram desviados, indo parar em outros lugares; no entanto, três deles chegaram no vale do Iterou e implantaram, gradativamente, sem violência ou conquistas sangrentas, a civilização. Um dos grupos se localizou em Ahmar, perto de onde hoje é a cidade do Cairo. Os outros dois se instalaram no Sul, vindo a fundar Nubt, conhecido hoje como Naqada.

Durante um largo período de tempo, conhecido como a Era dos Deuses, os capelinos implementaram alterações estruturais, tecnológicas e, sobretudo culturais que, fundindo-se com os milenares e primitivos costumes hamitas, vieram a constituir a famosa civiliza­ção egípcia. O grupo de Ahmar fundou as cidades de Perouadjet, também conhecida como Buto, e Zau, conhecida como Saís. En­quanto isto, no Sul, os dois grupos fundidos de sumérios fundariam a cidade de Ouaset, também conhecida pelo nome grego de Tebas.

Muitos dos capelinos degredados tornaram-se famosos pelos seus atos, que viraram lendas dessa época. Um deles foi Aba Harakty, mais conhecido como Rá ou Ré, e seu pai Ptah, que se tornou famoso pelas suas obras de contenção e desvio do rio Nilo. Além de­les, um enorme grupo de capelinos degredados tornou-se conheci­do como deuses da antigüidade, entre eles Amon, o lugar-tenente de Rá. No entanto, ninguém se tornou mais conhecido e amado pelo povo de Kemet do que Osíris.

Ele foi rei do Kemet e, durante sua profícua administração, o povo pobre e abandonado, os felás, tiveram a oportunidade de possuir um pedaço de terra para cultivarem, além de receberem subsídios, ensinamentos e investimentos, na primeira grande refor­ma agrária do mundo. Era um capelino que viera em missão sacrificial junto a sua eleita do coração, que se tornaria a sua esposa e rai­nha, conhecida como Ísis. O amor desses dois seres seria conhecido no mundo inteiro como a lenda de Osíris e Ísis. Entretanto, esta bela história de amor terminou tragicamente com a vilania do meio-irmão, Seth, o terrível, que na tentativa de assassinar Osíris, levou-o à tetraplegia, após um golpe desfechado na nuca. Seth, sob a influên­cia de uma alambaque chamado Garusthê-Etak, e seu braço-direito Aker, tumultuariam o reinado com uma guerra civil sangrenta, que terminaria por esfacelar o Kemet em três reinos, sendo dois no del­ta, chamado de Baixo Egito, com capitais em Perouadjet e Djedu, e um no Alto Egito, com capital em Teni.

Os administradores espirituais estabeleceram que o Kemet se­ria coordenado por Kabryel e que os alambaques teriam um papel preponderante no desenvolvimento daquela civilização. Deste modo, a cultura foi implantada no Kemet através de muitas lutas, marchas e contramarchas. Muitos capelinos renasceriam para se tornarem deuses como Rá, Ptah, Sakhmet, Tefnu e Osíris, o mais doce dos seres daquela conturbada era dos deuses. Após terríveis momentos de guerra fratricida, o Kemet desmembrou-se, tornan­do-se as Duas Terras.

Seria preciso que aparecessem heróis truculentos como Zekhen, o Rei Escorpião, e Nârmer, seu filho e sucessor, para unifi­car novamente aquilo que, Tajuparlak, ex-alambaque, na existência de Aha, unira. Aventuras repletas de guerras, combates, traições e ardis, finalmente, levaram a união do Kemet - o Egito - numa gran­de nação de monumentos tão portentosos que nem o tempo foi ca­paz de apagar.

Os espíritos superiores tinham, entretanto, outros planos para implementarem a civilização na Terra e seria através de grandes migrações que isso iria se processar.

 

Prefácio

Terra, 1850 a.C.

Limites do mundo mental com o astral superior

Mitraton e Mykael estavam confabulando com uma equipe vasta, composta de mais de uma centena de coordenadores. Eles haviam recebido instruções de seus superiores, os administradores do globo, para alterarem a face da Terra.

- Realmente nossos superiores têm razão. Temos tido uma excessiva concentração de civilizações que se desenvolveram com pou­co ou nenhum contato entre si.

O comentário de Mitraton retratava uma dura realidade. Ha­via centenas de anos que capelinos e terrestres estavam se misturando, no entanto, cada civilização estava relativamente fechada em seus próprios arcabouços e tradições, fechadas em suas carapaças.

Raphael, o magnífico Gerbrandom, comandante de extensas falanges de obreiros do mundo astral, coordenador da evolução das tribos indo-européias das planícies euro-asiáticas, complementou os dizeres de Mitraton.

- Realmente, temos que ter um cadinho onde possamos mes­clar as várias civilizações, transformando-as em povos mais fortes culturalmente.

- Isto sem falar na necessidade de mesclarmos as raças fisicamente falando. O excesso de parentesco de alguns grupos pode for­mar espécies defeituosos.

O comentário de Mykael era válido, pois já existiam casos de desvios entre alguns grupos. O maior problema era que estas tribos eram excessivamente fechadas em si próprias.

- A única solução é fazer os grupos se movimentarem, mesclarem-se, porquanto teremos miscigenação tanto racial como cultural.

A bela Phannuil, que fizera o último comentário, sabia o que isto significava, porque logo complementou o assunto:

- No entanto, isto significa falar de invasões, mortandade, cri­mes e guerras.

Mitraton, avesso como todos à violência, concordou com o fato.

- Realmente, mestra Phannuil tem razão. As migrações trarão um cadinho cultural e físico que mesclará as diversas civilizações, mas também trará violência. No futuro, poderemos conseguir esta mesma mescla através dos meios de comunicação, da migração pací­fica, mas agora estamos lidando com personalidades bugres, selva­gens e excessivamente chauvinistas.

Mykael comentou:

- Realmente. Os ahtilantes continuam, na maioria dos casos, ainda extremamente violentos e degenerados, e para complicar ain­da mais nossa conturbada sociedade, os espíritos terrestres seguem os mesmos caminhos de crime, desvario e ignomínia. E o ponto mais baixo da civilização. Portanto, faz-se urgente uma mudança, e, infe­lizmente, terá que ser através do sofrimento e da dor, pois só ela acorda o imprevidente.

Os chefes dos obreiros e dos guardiões escutavam os deuses vi­vos falando. Mykael era mais conhecido entre os arianos como Varu­na, considerado como o deus da justiça e coordenador da ordem do universo. Mitraton, também conhecido corno Metatron ou Mitra, era também um deus universal, confundindo-se com Varuna. Para completar, Vartraghan, também conhecido como Indra, era o prin­cipal deus dos arianos. Neste instante, Mitraton, dirigindo-se para a platéia de coordenadores, mostrou, numa imensa tela, um mapa do mundo que era a reprodução de sua imagem mental, os diversos povos que deviam sofrer modificações através de várias migrações de outros povos.

Os nômades das estepes eurasiáticas deviam migrar para o subcontinente indiano, outros deviam deslocar-se para o planalto do Irã, empurrando outros povos, e assim por diante. Na Europa, outras tribos deviam se deslocar para vários lugares dando origem a uma miscigenação necessária para a fusão das culturas e das raças.

Os fatos deviam, no entanto, ser provocados, pois esta era a constatação de Mykael.

- Para que isto aconteça será necessária uma série de ações conjuntas. Os povos nômades que estão situados nas estepes eurasiá­ticas devem ser forçados a saírem de seus habitats. Eles não sairão de bom grado, já que estão acostumados com sua forma de viver.

- Bem dito, caro Mykael, teremos que provocar fatos que os levem a saírem de seus costumes e que os levem para outras paragens. Para tal, será necessário o concurso de nossos obreiros. Temos que trazer a seca para as extensas pradarias da Eurásia. Com a seca, eles terão que procurar outros sítios e os conduziremos para ocuparem lugares onde poderão prosperar.

Mitraton havia exposto a linha básica de ação. Mykael, sem­pre avesso à violência, complementou:

- Isto não significa dizer que estas migrações devam ser violen­tas. Muitos desses povos poderão pacificamente conviver com os povos e coabitarem as terras férteis, consolidando amizades, estabele­cendo fraternas alianças e fundindo-se para constituírem novas sociedades.

Mykael não era um espírito romântico que se deixava levar pelas vibrações do coração. O que ele tentava era mostrar que era possível que povos diferentes convivessem em paz. A guerra era a última das soluções, mas, no atual estágio da evolução humana, seria usada de modo superlativo.

Ficaram estabelecidas, durante o grande concilio angélico, diversas diretivas que viriam a culminar, no decorrer dos séculos, com a invasão dos arianos à Índia, a conquista do Egito pelos hicsos e grandes movimentos na Europa que levariam os gregos ao ápice da civilização e depois deles, os romanos.

Além disso, vários movimentos de povos americanos iriam culminar com grandes civilizações astecas, toltecas, incas e outras, que construiriam templos magníficos e pirâmides colossais. A maio­ria dos líderes era constituída de capelinos renitentes, sendo que grandes alambaques foram aprisionados e levados à força para re­nascimentos reparadores. Lá ficariam os traços da distante Ahtilan­te.

Naqueles distantes tempos, os capelinos e os terrestres haviam alcançado um tal grau de envolvimento que já não se diferenciava quem era quem. Os ahtilantes haviam se dividido em dois grupos: o primeiro era constituído pela corrente de Abel, aqueles que superaram suas deficiências e puderam voltar para Ahtilante com os louros dos vitoriosos. O segundo grupo era chamado pelos espíritos superiores de corrente de Set, sendo constituída pelos espíritos trevosos que não evoluíram o suficiente e, por isto, tiveram que ser confinados à Terra. Este grupo havia se permeado com espí­ritos terrestres que aprenderam os piores vícios, as mais maléficas atitudes perante a vida e, agora, eram tão terríveis quanto os própri­os alambaques.

A civilização de Harapa tinha se estabelecido mil anos antes do conclave angélico com povos indo-europeus, que haviam vindo do planalto do Baluquistão e foram fortemente influenciados por pequenos grupos fugidos da Suméria, em história muito parecida com a do Egito. Os dois grupos fundiram-se numa civilização muito rica, mas que tinha um grave defeito: era imobilista. Repetiam com assiduidade o que haviam apreendido e não modificavam nada.

Os primeiros sumérios, capelinos por excelência, haviam construído suas cidades em lugares altos do vale do Indu, com a fi­nalidade de fugirem das cheias do poderoso rio. Por várias vezes, o rio ultrapassara o limite e destruíra as cidades de Harapa, Mojenho-Daro e várias outras daro - elevação - e os harapenses a reconstruí­ram exatamente como era, sem alterar o que fosse. A primeira cida­de a ser construída foi Harapa e as demais seguiram o mesmo mode­lo arquitetônico sem nenhuma mudança.

Os harapenses estabeleceram próspero comércio com os sumérios, persas, kemetenses e vários outros povos, através das carava­nas terrestre e da navegação. Eram agricultores e aproveitavam as cheias dos sete rios - Sapta SMeluhha - da região para fazerem suas extensas plantações. Usaram irrigação extensiva e diques, canais e outras obras que não ficam a dever aos sumérios e aos kemetenses.

Após mil anos, suas terras começaram a apresentar forte acidez devido ao uso intensivo da terra e uma série de catástrofes climáticas fez com que, durante dez anos, as colheitas caíssem a níveis intoleráveis. Houve pragas, pestes e famélica situação que levou quase toda a população a um êxodo, deixando as cidades em estado lastimável. Naqueles dias, os brancos indo-europeus de Harapa fo­ram substituídos pelos negros dravídicos que invadiram as cidades desérticas e transformaram-nas em grandes favelas. Lugares onde uma família vivia com conforto e dignidade, oito a dez famílias dravídicas se estabeleciam com sujeira e desconforto.

A aldeia de Chanhu-Daro tinha sido pouco atingida no início da desolação que atingira a região, e os shindis, como era chamado esse povo, ainda habitavam aquelas plagas. A região acima onde fi­cava Mohenjo-Daro e Harapa havia sido invadida pelos povos escu­ros.

Shiva havia abandonado o povo de Shindi e não havia nada que pudesse fazer a divindade voltar a sorrir. Os sacerdotes eram os depositários do poder, e, aos poucos, viam sua força desaparecer. Algumas pequenas aldeias teimavam em continuar a longa saturação do solo e a fome já grassava nos arredores. A pequena aldeia de oito mil habitantes, em tudo réplica perfeita de Harapa, que já che­gara a ter trinta e cinco mil pessoas, tinha quatro sacerdotes impor­tantes e Gundha era o sacerdote secundário, com uma filha bem-dotada de poderes psíquicos. Desde os oito anos, Kalantara conseguia ver o futuro, predizer acidentes e desastres e curar pessoas.

Um dia, quando tinha cerca de dezoito anos e já tinha o casamento marcado com um jovem sacerdote, filho do mais importante homem da aldeia, ela teve uma visão horripilante. Isto foi em pleno culto quando o deus Shiva teve a complacência de possuir sua men­te, e disse para toda a assistência:

- Fujam para o norte, pois estão chegando as hordas dos gran­des brancos. Não deixarão nada e possuirão tudo. Fujam hoje se prezam por suas vidas!

Todas as pessoas presentes, e não eram poucas, ficaram horrorizadas. Que mais desgraças estavam sendo preditas? Será que não haveria a possibilidade de o deus Shiva tornar-se mais amorável com mais presentes e oferendas? Será que deveriam abandonar sua cidade como já o haviam feito há mais de trinta anos os seus irmãos de Harapa e outras cidades? De que eram feitos estes seres? Onde estavam?

Kalantara ficou profundamente envergonhada. Nunca isso lhe acontecera. Sempre tivera suas possessões em quartos apropriados e sob orientação sacerdotal. Ela não era sacerdotisa. Era uma au­xiliar e agora tivera aquele acesso em público. O deus a possuíra com violência e não lhe dera oportunidade de se defender. Jogara seu corpo de um lado para outro como se fosse um demônio, e, fi­nalmente, quando a dominara, falara aquelas palavras tão impró­prias para uma assembléia tão insigne. Fora sua primeira manifesta­ção e por isso, o espírito tivera dificuldades em se adaptar à mente de sua medianeira, pois as primeiras vezes as incorporações, quase sempre, são difíceis e agitadas.

É claro que ninguém lhe deu atenção a não ser seu pai, que a conhecia como ninguém. Naquela noite, ele lhe disse:

- Confio em você e faremos o seguinte: amanhã de manhã sairemos da cidade e iremos até o noroeste por dois dias. Se não hou­ver nada voltaremos sem que ninguém se dê conta. Se realmente mais uma desgraça nos afligir, estaremos protegidos.

No outro dia, antes que o sol se levantasse, Guhdha e a família de cinco pessoas saíram da aldeia com todo o cuidado para não acor­dar as pessoas. Andaram dois dias e Kalantara, escutando um baru­lho estranho, pediu para que todos se escondessem nos arbustos perto do secular caminho. Em alguns minutos, o barulho se fez mais alto e uma matilha de cachorros vinha pulando pela estrada en­quanto que se ouvia o ranger de carroças. Esses cães eram desconhe­cidos dos shindis que não os criava. Subitamente, na curva do cami­nho, surgiam finalmente os mais terríveis seres que o grande deus Shiva havia previsto. Eram homens altos, brancos, armados até os dentes, grossos casacos de lã, usando capacetes estranhos e falando uma língua desconhecida.

Kalantara e sua família escaparam por caminhos secundários e nunca souberam como eram afortunados de terem saído daquela aldeia a tempo. As tribos arianas varreram o vale do rio Indu, tendo vindo das estepes asiáticas, passando pelas altas montanhas do Meluhha Kush e destruindo todas cidades onde encontraram os drávidas, exterminando as populações e derrotando as poucas que ousa­ram resistir.

Kalantara seria aprisionada dois anos mais tarde quando ten­tava atravessar o deserto de Thar ao nordeste da Ilha de Cutch. Fora capturada no norte do extenso vale quando tentava atingir o seu povo, que havia se espalhado por aquela área. A tribo que a aprisio­nou não era a mesma que destruíra sua aldeia, mas era da mesma nação de tribos arianas. Fora levada para o chefe da tribo e o seu sa­cerdote, que a poupara, pois via nela poderes psíquicos de grande feiticeira.


Durante dois anos, ela foi usada como escrava do sacerdote e aprendeu a língua sânscrita, e, em contrapartida, ensinou-lhe o sindi. Aprendeu que os deuses dos arianos eram Indra, Mitra e Varuna, sendo que quando ouviu falar neste nome, pela primeira vez, seu co­ração disparou, pois parecia conhecê-lo. Quem era este poderoso Varuna que tanto lhe infundia medo?

O sacerdote explicou-lhe que Indra, também chamado de Vartraghan, era um deus terrível, que mandava no tempo, dono dos raios e tempestades, sendo temido e muito humano. Indra, que bebia e comia de forma desbragada e somente obedecia a Varuna, o deus da ordem cósmica, disse-nos, certa feita:

- Quando o mundo dos devas foi destruído pela cobiça dos homens, Varuna, deus da justiça do universo, reuniu todos os faltosos e os levou através dos céus até este lugar. Disse-lhes: "Ouçam, filhos do desespero, e saibam que enquanto forem guiados pelas almas dos espíritos satânicos não poderão voltar a habitar os mundos felizes. Libertem-se dos demônios interiores e viverão na luz eterna.

Kalantara quis saber a razão de os homens se despirem de suas roupas e pintarem seus corpos de azul. O jovem sacerdote disse-lhe:

- Minha jovem, nosso povo veio de um lugar onde todos eram azuis. Éramos altos e gigantescos e nosso mundo era feliz. Éramos capazes de voar, de ver através do espaço, de falar com pessoas a imensa distância, e lá a morte só vinha quando éramos muito velhos. Portanto, para reviver estes dias magníficos, é que ficamos nus, pois o corpo é sagrado e precisa ser mostrado em toda a sua exuberância. Além disso, deve ser pintado de azul, pois é esta a nossa verdadeira cor.

Kalantara aprendeu com aquele jovem sacerdote, que nunca a tocara, os motivos de terem vindo para estas plagas.

- Nosso grande deus Mitra nos deu ordens através de Indra, o inigualável. Disse-nos para irmos para o sul, atravessarmos as altas montanhas e que encontraríamos o vale dos sete rios - Sapta SMeluhha - e nele deveríamos fazer nossa pousada. A nossa terra foi avassalada por uma seca terrível, um calor abrasador no verão e um frio no inverno, que nos enregelava até os ossos. As pastagens morreram e junto com ela a nossa riqueza, o gado, e a nossa força, o cavalo. Foi, portanto, num dia de grande desespero, que vi Indra em sua glória e ele me disse que me levaria para uma terra onde corre a doce água da bonança. Eu, Rhama, lhe obedeci e vim para estas plagas, lide­rando meu povo, pois sou alto sacerdote de Indra e só obedeço aos deuses.

Kalantara, vez por outra, tinha visões e as confiava ao belo sacerdote pelo qual tinha se apaixonado. Era o único que a tratava com bondade e a escutava, falando-lhe com blandícia.

Numa certa época, houve um grande conclave das doze tribos de arianos e os duzentas clãs principais. Cada chefe de tribo trouxe seu sacerdote e cada um deles levou seu ajudante. O jovem sacerdo­te levou Kalantara, que ficou atrás de todos os homens.

Discutiram durante horas se deviam ou não sair do vale do Indu e espalhar-se pelo norte do subcontinente indiano. Rhama, o jovem sacerdote, mestre de Kalantara, escutou e finalmente falou alto para que todos o escutassem.

- Ouçam, meus amigos, o que eu tenho a lhes dizer. Ontem eu bebi o soma sagrado para que ele me dissesse o que fazer e apare­ceu-me um deus desconhecido que me disse: "Sou Shiva, o deus dos sindis e lhe falarei pela boca de minha sacerdotisa. Ouçam-me, se­não grandes e pesarosos débâcles cairão sobre todos."

Neste momento, Kalantara, que estava no fundo da sala, deu um grito abafado, quase imperceptível, e foi arremessada para fren­te por uma força ignota. Com dois ou três puxões, ela se viu no meio do espaço onde discutiam os chefes e os sacerdotes, e com uma voz forte, pouco feminil, falou em samskrta - a linguagem perfeita conhe­cida como sânscrito - a língua dos árias:

- Sou Shiva, deus deste vale e se permiti que entrassem nas minhas terras, foi para deixá-los passar. Amaldiçoei o Sapta SMiduhha por mais mil anos, e durante este tempo, todos os que viverem aqui estarão igualmente amaldiçoados. Ouçam a minha voz e partam imediatamente para o vale do grande rio sagrado e usufruam dele enquanto podem.

Os sacerdotes, num total de doze, sabiam que Shiva estava falando através de Kalantara, mas os chefes ficaram revoltados com o fato de que uma mulher falasse em seu conselho, quanto mais uma fêmea sindi. Um deles levantou-se e, bramindo, ergueu sua espada e a levou com rapidez até o pescoço de Kalantara, que não pestanejou e nem se mexeu. Alguém gritou:

- Não! Não a mate. Atrairá a vingança de Shiva sobre nós.

O homem parou a espada no alto da cabeça de Kalantara e a poupou. Olhou-a bem nos olhos e disse-lhe:

- Não há deuses a não ser os nossos. Shiva não é nada já que foi incapaz de defender seu povo. Ninguém se compara a Vartraghan.

Indra também era conhecido como Vartraghan, o matador dos demônios, o exterminador de Azi-Dahaka - grande dragão.

Rhama desviou o olhar daquele chefe imprudente e, com profundo ódio e despeito, disse-lhe:

- Partiremos amanhã. Aqueles que quiserem ficar para desafi­ar o deus dos sindi que fique. Levarei meu povo para o nordeste e procurarei o rio que o deus falou.

- Então vá, Rhama, leve seus arianos que ficarei com minha tribo neste vale. Ele nos pertence de agora em diante.

No outro dia, a tribo de Rhama partiu com mais oito grandes agrupamentos para conquistar o vale do Ganges e ele entrou para a história daquele povo como um grande deus, um mensageiro de Brahman, uma reencarnação de Vishnu, um avatar.

O chefe, que quase matara Kalantara, estabeleceu-se perto de Harapa e na primeira grande cheia do rio, morreu afogado, levado pela corredeira. Nunca foi sepultado e sua carcaça foi comida pelos peixes e tartarugas do rio.

Kalantara andou durante quinze anos com Rhama e amou-o em silêncio sem nunca ter sido dele. Ela muito ajudou os arianos a assumirem os deuses dos shindis. Aos trinta e sete anos, foi morta, flechada nas costas, num combate onde a tribo de Rhama foi atacada por outros arianos, numa luta típica por gado: a grande riqueza daqueles grupos de povos indo-europeus. O grupo de Rhama saiu vencedor, mas Kalantara morreu trespassada por uma flecha, tendo falecido virgem como convinha a uma sacerdotisa. Rhama levou sua tribo e várias outras para o vale do Ganges, tendo formado uma civilização de grande impacto no oriente.

 

Capítulo 1

Cidade de Ur - Mesopotâmia - 1.820a.C.

A cidade de Ur era cercada por dois amplos canais que a liga­vam com o rio Eufrates. Um outro canal atravessava a cidade, indo desembocar num lago artificial, totalmente cercado e murado, dan­do para um porto fluvial, onde muitos navios - grandes para a época - estavam atracados. A cidade, totalmente cercada por altas mura­lhas, tinha ruas estreitas, tortuosas e sujas que davam para uma pra­ça central onde um gigantesco zigurate - um templo em forma de pirâmide - dominava o local.

Na planície que cercava Ur, o templo ao deus da lua, Nanna, podia ser visto a quilômetros de distância. As casas, feitas de tijolos de barro cozido em fornos, tinham uma cor levemente ocre, cor de barro, determinando uma certa monotonia geral.

Os elamitas, tantas vezes dominados pelos sumérios, desta vez, atacaram Sumer com um exército muito bem-montado e articulado. Destruíram Ur e mataram o rei Ur-Nammu. Depois disso, abandonaram a área como se estivessem satisfeitos em terem apenas aniquilado aqueles que os tinham vilipendiado no passado.

Poucos anos depois, os amoritas foram chegando. Eram semitas, pastores provenientes dos desertos da Arábia. Instalaram-se na região da Babilônia, introduzindo-se na região norte de Sumer, com seus rebanhos de carneiros e bois. Ao encontrarem uma região de­vastada por guerras fratricidas, os amoritas instalaram-se e se forta­leceram. Viriam a ser conhecidos como os babilônios, pois tomaram a cidade da Babilônia e de lá partiram para a conquista da região.

O sexto rei amorita, Hamurabi, foi um grande conquistador. Por volta de 1.800 a.C., os babilônios dominaram através das armas toda a região, inclusive a cidade de Ur. Esse monarca notabilizou-se também por ter mandado escrever numa esteia uma série de leis que passaram para a história como o código de Hamurabi.

Alguns anos antes de Hamurabi tornar-se rei, ainda no tempo de seu pai, Amarpal, em Ur, existia uma população nômade, da mesma raiz racial dos amoritas, conhecida como os caldeus, que se aliou aos babilônios. Em torno da grande Ur, já não tão imponente e importante como em época anterior, existia uma série de aglomera­dos nômades, quase todos de pastores de carneiros e de alguns bovi­nos. A maioria pertencia à mesma família, formando pequenas greis. Um desses clãs era conhecido como Tareh, devido ao nome do seu líder.

Tareh era um pastor de ovelhas e cabras, na região de Ur. Ele tinha três filhos: Arão, Nacor e Avram. Além deles, havia mais de dez filhas. Fora casado com cinco mulheres que lhe deram mais de quinze filhos, mas nem todos sobreviveram. Arão era o mais velho de todos, seguido de Nacor, e, finalmente, Avram, entremeados de irmãs das mais variadas procedências maternas. Arão, Nacor e Avram eram filhos de mães diferentes e existia unia diferença de cinco anos aproximadamente entre eles.

Tareh atendia o grande zigurate de Ur, construído em homenagem a Nanna, o deus da lua, com suas ovelhas, que eram compra­das especialmente para os sacrifícios aos deuses. Havia um mercado perto do templo onde se podiam comprar animais e muitos outros objetos para serem doados no templo. Tareh, assim como seu pai e avô, comerciava suas ovelhas no templo. Além disso, havia as com­pras normais que os habitantes de Ur adquiriam para consumo pró­prio. Os negócios eram rentáveis e funcionavam bem.

Naqueles tempos, os amoritas faziam reides tanto ao sul como ao leste da grande capital amorita. A cidade de Ur foi escolhida para uma dessas incursões, onde os soldados não chegavam a atacar os lo­cais, mas, com brutalidade e grande rudeza, exigiam pagamentos polpudos. Naturalmente, não pouparam ninguém e todos tiveram que pagar algum tipo de imposto, taxa ou resgate. Tareh e seus fi­lhos foram incluídos e tiveram que pagar com ovelhas e cabras o que lhes era devido. Tareh fora cuidadoso, escondendo grande parte da manada no deserto próximo, e, desta forma, tiraram-lhe somente a metade do que estava visível.

Tareh e seus filhos tinham um aspecto bem oriental, bem diferente dos sumérios. Na realidade, pertenciam a uma tribo caldéia, um dos muitos grupos semíticos de então, a maioria nômades, e, portanto, pastores, que haviam se infiltrado na Suméria durante sé­culos. Vinham dos desertos vizinhos ou do norte, sendo aceitos por serem pacíficos e relativamente ordeiros.

Uns quinhentos anos antes, ancestrais de Tareh tinham vindo com Sharuken, mais conhecido como Sargão, o grande. Eram, por­tanto, semitas do mesmo grupo racial dos amoritas, tendo uma parecença física com estes últimos, inclusive no vestuário e na língua.

Os sumérios assim como os kemetenses eram basicamente agrícolas, portanto suas criações tinham o aspecto mais doméstico, para uso quase caseiro. Já as tribos nômades eram basicamente pastoras, não produzindo alimentos outros que não a carne e derivados do seu rebanho. Os sumérios vinham aceitando-os por serem úteis, mas, com a última invasão amorita, sua fúria virou-se contra todo e qualquer tipo de estrangeiro, especialmente se tivessem os mesmos traços fisionômicos e lingüísticos. Era o caso de Tareh e seus filhos.

Na primeira vez em que foram ao mercado, levando parte do seu rebanho para vender, depararam-se com um ambiente extremamente hostil. Os sumérios, que já tinham sido grandes senhores da região, e agora estavam nas mãos dos amoritas, os receberam com acerbas críticas e reservas. Arão, que nunca tivera papas na língua, começou uma discussão com um outro mercador, e, quando se de­ram por conta, estavam em sério entrevero.

A luta acabou por atrair várias pessoas que entraram em cho­que com os pastores de Tareh. A confusão nascera em função do ataque dos amoritas e da acusação dos sumérios de que Tareh, Arão e os demais pastores eram aliados dos babilônios, sendo traidores de Ur e espiões de Babilônia. Com a chegada dos guardas do templo, a confusão desfez-se. No entanto, Arão jazia morto, degolado, numa poça de sangue.

O horror estava estampado no rosto do jovem Avram, que ti­nha apenas quinze anos. Uma parte do rebanho fora roubado du­rante a confusão, e para complicar o quadro, um pastor estava gravemente ferido, com parte da testa afundada por um golpe de clava. Estava vivo, mas em estado de coma, do qual nunca sairia, vindo a morrer em poucas horas.

O retorno à casa foi melancólico e Avram foi responsabilizado pelo histérico pai ao ver Arão - o seu dileto filho - morto. Obvia­mente que o rapaz nada podia ter feito. Não passava de um adoles­cente enquanto que seu irmão era um homem feito de vinte e cinco anos, já tendo um filho de dez anos chamado Lot. No entanto, a dor pungente ensandece o ser e, num acesso de loucura, Tareh, injusta­mente, acusou Avram.

Menos de uma semana depois desse fato, o velho homem, arrasado e senil, reuniu a tropa de pastores, seus rebanhos, mulheres e filhos, netos e mulheres, e filhos de pastores, e partiu para Haran, ao encontro de familiares que pretensamente estariam no norte da Mesopotâmia. Era uma viagem de mil e poucos quilômetros que espe­ravam fazer em duas a três luas.

A viagem foi longa, cansativa e cheia de percalços. Os amori­tas levaram, novamente, a metade do rebanho, raptaram uma filha de um dos pastores e mataram a cacetada um outro pastor, que se interpôs. Tudo isso foi martirizando o infeliz Tareh, que, de forma irracional e insana, jogava a culpa em Avram. Passava o tempo intei­ro a atacar o filho com palavras ofensivas e impondo pesadas corvéias. Avram aceitava muito mal tais acusações e mantinha com o pai um ambiente tenso e nocivo. Nacor, agora guindado a irmão mais velho, com a morte de Arão omitia-se, e, providencialmente, coloca­va-se o mais longe das vistas paternas.

Chegaram em Haran com duas mil e poucas cabeças variegadas de rebanho, assim como trinta e poucas famílias de pastores, filhos e filhas de Tareh.

Haran era uma cidade de vinte mil almas, situada a algumas centenas de quilômetros dos Montes Taurus. Tareh encontrou fi­lhos de seu irmão, que havia migrado para aquelas plagas há mais de trinta anos. Em pouco tempo, as colinas suaves em volta de Ha­ran apascentaram o rebanho de Tareh.

Seiscentos anos antes do degredo de Capela, ainda na fase medieval do planeta, havia um homem, um púrpura, que se chamava Mokutreh, sendo um chefe de uma pequena tribo nômade. Ele havia herdado a chefia da tribo em parte por ser um dos filhos do chefe, e em parte por ter exterminado todos os irmãos que lhe ti­nham precedência na linha sucessória. Sua crueldade era ini­gualável. Nada se comparava a Mokutreh em combate singular, em astúcia e imaginação. No entanto, era profundamente religioso, acreditando num Deus único que lhe daria o paraíso se ele morresse em combate. Sua religião abominava os ídolos, a veneração de pes­soas que haviam santificado sua vida através de exemplos dignificantes, e de deuses subalternos. Deus era único e não admitia inter­mediários, mas, para eles, a divindade era discricionária, escolhen­do quem iria coroar com bênçãos e relegando outros com total aban­dono e amaldiçoando com doenças, pestes e infortúnios.

Mokutreh tomou a chefia através de vários assassinatos profundamente brutais para demonstrar que ele não estava ali para brincar e que devia ser levado a sério. Os conselheiros de sua tribo interpuseram pouca resistência, especialmente depois que Moku­treh entrou no cenário, trazendo a esposa do mais importante dos conselheiros e a degolou, sem uma única palavra, na frente dos de­mais, e jogou a cabeça da esposa em cima do aparvalhado marido. Saiu sem dizer uma palavra da tenda, apontando o indicador para cada um dos conselheiros, numa ameaça direta a cada um deles.

Mokutreh fazia isso com extremo desassombro porque os jo­vens guerreiros o apoiavam e desejavam cobrir-se de glórias. Com tal formidável apoio, ele reuniu vários tribos e lançou-se à conquista de ricos reinos que lhe faziam fronteiras.

Ele era um guerreiro de grande valor, mais do que isso era um excepcional estrategista, tendo ganho batalhas de modo impressio­nante, e se tornado uma lenda viva em Ahtilantê. Sua história pesso­al encontraria paralelo na existência turbulenta de Timor, o coxo, mais conhecido como Tamerlão, na Terra.

A morte o encontrou com idade avançada, cheio de esposas, filhos, netos e um império imenso que foi logo retalhado pelos seus descendentes, e, após alguns séculos, nada restaria a não ser tristes lembranças. No entanto, a morte é apenas um estágio, pois assim que morreu, Mokutreh foi arrebatado, não para o paraíso que ele tanto almejava e acreditava ter direito pela sua guerra santa contra os infiéis de seu credo, mas para as furnas mais tenebrosas que se pode imaginar.

Naquelas plagas interiores do planeta, no mundo astral, entre abismos insondáveis, grutas intermináveis e uma escuridão aluci­nante, ele foi torturado, escorraçado, vilipendiado por todos os es­píritos que ele matara e torturara. A vingança dos maltratados foi completa quando ele foi transformado num monstro hediondo por um tenebroso alambaque que dominou sua mente em fogo.

Mokutreh, contudo, era um espírito de uma vontade de ferro. Poucos anos de inferno não dobraram sua cerviz, mas, pelo contrá­rio, o fizeram ainda mais odiento. Acreditava que fora enganado por Deus. Através de seus atos, de sua guerra santa, de suas conquistas, ele havia elevado o nome de Deus acima de todos, e, como paga, fora relegado a uma posição de total abandono e descaso. Se ele já era cruel, vingativo e caliginoso, agora tornara-se ainda mais abomi­nável, pois queria vingar-se do desaforo de ter sido traído por Deus.

Sua predisposição de ânimo o levou a fácil ingresso numa fa­lange de alambaques. Eram os piores, pois pertenciam a um grupo que se intitulava filhos da revolta. Eram todos ex-religiosos, ou as­sim supunham terem sido, que usaram o nome de Deus para roubar, matar, seviciar, saquear e outros crimes nefastos. Seu líder havia sido um chefe importante de uma das maiores e mais importantes igrejas do planeta, com centenas de milhões de adeptos, que havia lançado uma cruzada contra a bruxaria, os feiticeiros e, no fundo, Iodos aqueles que lhe eram contrários. Deste modo, instituiu uma pantomima de julgamento onde os religiosos de outras correntes, curandeiros e inimigos políticos eram levados às barras desta pretensa corte e condenados às piores torturas e à ignominiosa morte.

Junto a esta coorte de pervertidos, ele foi aprendendo as téc­nicas de persuasão, de mentalização e de magia mental. Mokutreh especializou-se em insuflar a discórdia entre religiosos, políticos, governos, gerando guerra, morticínios e todo tipo de atentado. Ele tornou-se um mestre do engano, da decepção, do engodo. Ele mani­pulava as mentes despreparadas com rara maestria, levando-os sem­pre à guerra, ao crime mais hediondo e de tal modo estavam subju­gados por sua poderosa mente, que achavam que estavam fazendo tudo isso para maior grandeza de Deus.

Quinhentos anos se passaram e encontraram Mokutreh, como chefe de um formidável exército de aleijões mentais que atua­vam em todo tipo de fascinações e obsessões. Ele havia crescido aos olhos dos demais chefes. Muitos o achavam a representação perfeita de Razidaraka, o grande dragão, o mal personificado.

Varuna iniciou sua pregação chamando os alambaques para um grande processo de regeneração, crescimento espiritual onde eles seriam mais do que simples participantes, tornando-se artífices de um grande movimento migratório. No entanto, Mokutreh era avesso a todo tipo de acordo com os espíritos superiores. Para ele, Varuna não passava de um lambe-botas de um Deus, que ele sabia existir, mas que ele desprezava de sobejo.

Ele foi um dos mentores da grande revolta e conseguiu deto­nar a grande guerra que Katlach, o ditador hurukyano, declarou so­bre a metade de Ahtilantê. Uma certa etapa de sua vida, Tajupartak chegou a ser um dos seus pares, mas o tenebroso alambaque resol­veu mudar de lado, vindo a se tornar futuramente um deus do Egito na figura de Rá Harakty.

Quando as bombas destroçaram Tchepuat, a capital hurukyana, Mokutreh, não tendo mais em quem atuar, pois Katlach não mais existia entre os renascidos, enfurnou-se nas mais densas trevas, escondendo-se. Seu exército de aleijões psíquicos fora igualmente pulverizado pelas armas superiores dos guardiões, trazidas de Ka­rion. Deste modo, ele se resignou com a derrota que lhe fora impos­ta, mas já planejava a formação de um novo exército quando sentiu O lugar em que estava incendiar-se e iluminar-se como se fosse em pleno dia. Sentiu um forte repuxão pela frente, uma dor aguda no peito e um atordoamento na cabeça, e tendo sido tomado do maior terror de que já fora possuído, desmaiou.

Ele fora capturado nas trevas pela grande lua negra. Os raios tratores fizeram imenso mal à sua constituição espiritual, pratica­mente desintegrando seu corpo astral. Entrara em profundo coma. Acordou na Terra após doze anos de coma profundo onde tivera pe­sadelos escabrosos, revivendo os seus crimes, tanto como homem quanto como espírito, durante o sono, e vendo-se como vítima de si próprio. Assim que recuperou sua consciência, já na Terra, ele refez lentamente seu corpo astral, e plasmou-o numa mistura de grande réptil ahtilantê e ser humano. Os espíritos que planejavam os renas­cimentos convidaram-no a uma transformação interna para que pudesse renascer. Ele fugiu espavorido para as densas trevas, pois não aceitava tal possibilidade em nenhuma hipótese.

Sua revolta o fez endurecer ainda mais. Seu espírito, já em extrema confusão, o fez ficar ainda mais odiento, enclausurando-o nas reminiscências de um passado longínquo. Ele se lembrava de seu tempo de existência carnal quando fora um importante líder de ho­mens, tendo sido um comandante de guerreiros.

Os seus captores o haviam tratado com cortesia, oferecendo-lhe um renascimento a ser estudado, mas ele recusara toda e qualquer ajuda. Mokutreh homiziou-se nas trevas do astral inferior e foi conhecendo os grandes movimentos que estavam sendo encetados. Nimrud na Suméria já dominava há mais de dez anos, tendo conse­guido feitos notáveis em Uruck, antiga Erech. Vários grupos de su­mérios já haviam partido para o Iterou (rio Nilo), a Ásia Menor e o Baluquistão.

Ele ficou perambulando durante décadas. Sentia-se profun­damente infeliz, olhando para as estrelas longínquas, desesperando-se de estar longe de sua amada e odiada Ahtilante. Alguns espíri­tos capelinos aproximavam-se dele, nolando-lhe a vigorosa figura, mas eram rechaçados a golpes de clava. Ele não queria ninguém por perto, pois nada o empolgava, mas quando viu que muitos capelinos estavam renascendo entre tribos nômades das imensas planícies da Eurásia, ele passou a se interessar. Afinal, ele também fora um gran­de chefe nômade. Ele fora atraído pelas grandes pradarias do vale de Kuban que margeava o mar Negro.

Ele se aproximou de uma tribo de indo-europeus que se inti­tulavam de goromitas, e nesse grupo, ele passou a viver como um es­pírito agregado. De certa forma, o tempo em que estivera em coma lhe fizera bem, pois já não estava tão odiento e cheio de rancor. En­tendia que não estava mais entre os ahtilantes, e sim, junto a uma raça de humanos estranhos, mas belos, cujas mulheres se diferencia­vam dos homens ainda mais do que sua própria raça.

Aos poucos tornou-se mais dócil e desejou viver entre aqueles nômades. Aproveitando a boa disposição de alma, os guias espiri­tuais o levaram a renascer e, desta forma, Mokutreh deixou de exis­tir para, após cinco longas e sofridas existências, tornar-se Avram.

Durante o período que estivera em Ur, até os quinze anos de idade, Avram fora um rapaz taciturno e meditativo. Era um excelen­te trabalhador, mas não se misturava com os demais. Observava mais do que falava, e, no fundo do seu ser, detestava a existência pa­cata de pastor. Como todo ser humano era contraditório, porquanto odiava os ricos, mas invejava seu modo de vida. Achava que apascen­tar ovelhas e afastar chacais era uma atividade subalterna, e que ele, sobranceiro, tinha vindo ao inundo com propósitos mais nobres. Nos campos, enquanto seu olhar atento não perdia de vista nenhu­ma ovelha, sonhava com situações de riqueza, e, especialmente, de poder, que colocassem os reis e os nobres em sua mão. Inteligente como era, sabia que era preciso mais do que simples vontade; era preciso ter um plano para tornar-se rico e importante.

O destino, sempre essa abstração, teceu suas emaranhadas teias em torno do jovem Avram. Com a morte do irmão, o jovem deslocou-se para Haran, sendo fustigado pela insânia paterna que o culpava pela morte de Arão. Desse modo, foi-se tornando cada vez mais agressivo. O garoto quieto foi substituído pelo jovem hostil e descontente que argüia com o pai, discutindo até os gritos e impro­périos, que enchiam a tenda de Tareh. Não baixava a cerviz às acu­sações destemperadas que o pai lhe fazia, nem tanto mais sobre a morte de Arão - já que esse assunto nunca era mencionado para não perturbar o espírito do morto - mas sobre uma centenas de coisas minúsculas que Tareh sempre encontrava para achincalhar o filho. Avram, entretanto, ao reagir com altivez, ia adquirindo o respeito do pai.

Situação estranha! O pai amava o filho, mas implicava com ele pelas menores coisas. Reconhecia nele unia força que os demais não tinham. Provavelmente, pensava ele, se ficar junto com o irmão Na­cor, o dominará com seu gênio irascível e se não o matar, deverá transformá-lo no seu pelego. Por sua vez, Avram amava o pai e irri­tava-se com sua perseguição. Aos poucos, foi notando que a impli­cância do pai era sempre voltada para alguma deficiência que ele efetivamente tinha. Com seu jeito rude, o pai o estava preparando para ser melhor e maior do que os demais. Desta forma, pai e filho, amando-se, iam vivendo às turras.

Haran, ao noroeste da Suméria, era uma cidade bastante cos­mopolita. Mesmo sendo pequena, conviviam razoavelmente bem, sem maiores atritos, povos de raças diferentes, que aos poucos, mes­claram-se, formando agrupamentos humanos inextricáveis. Havia amoritas e os acadianos, ambos de raiz semítica, e os hurritas. Esses últimos, indo-europeus, tinham vindo do Cáucaso, tendo sido ex­pulsos de suas terras pelos hititas, e se espalhado por toda a região do oriente.

Avram admirava os guerreiros. Gostava de ver como os ricos os tratavam bem. Como os poderosos dependiam deles e sabia que todos os grandes reis, até aquela época, eram bravos guerreadores. Ele fez amizade com alguns soldados hurritas que eram exímios combatentes e aprendeu com eles técnicas de esgrima, além de escu­tar as histórias de combates, que viriam a ser importantes no decur­so da vida do jovem pastor.

Os hurritas eram lutadores valorosos, que sabiam atrair o ini­migo para uma emboscada e não lutavam apenas de frente. Sabiam contornar o adversário, atraindo-o para um bolsão e flechá-lo até a morte.

Naquele lugar tranqüilo, onde raças estranhas se confraterni­zavam sem alarde, existia um deus da guerra e da vingança, podero­so e ciumento, cruel e terrível, cuja sanha e façanha eram cantadas e decantadas, que os habitantes locais, independentes de serem amo­ritas, acadianos ou hurritas, chamavam de Yahveh. Ele era um deus militar, que se expressava nos trovões, nas lutas, nas emboscadas e na dor, visto que era implacável com seus opositores e benevolente com seus adoradores.

Nas fogueiras acadianas, à noite, enquanto contavam-se histó­rias picantes e licenciosas, vez por outra, falava-se dos deuses, especialmente de suas aventuras na Terra, seus amores e suas libertina­gem com as filhas dos homens. Naquela noite especial, após mais um sério entrevero com o pai, Avram, com o espírito fervendo de rancor e ódio, escutou todas as diabruras dos homens e deuses com certo desprezo, até que num momento quase mágico, alguém pro­nunciou, reverentemente, o nome de Yahveh. Tinham apenas fala­do de mais uma estripulia sexual de algum deus, quando um dos presentes, meio risonho, quase debochado e meio sério, disse:

- Com Yahveh nunca. Ele jamais faria isso.

Todos ficaram subitamente calados. Yahveh era por demais cruel, insensível e severo para que se pudesse brincar com ele. Era um feitor sem coração, mas que na guerra era insuperável. O súbito silêncio chamou a atenção de Avram. Quem é este deus a quem to­dos se calam em respeito? Não era respeito, era medo. Todos ti­nham medo de Yahveh, pois ele representava a guerra, a luta, o so­frimento indizível, as pernas cortadas, as mãos decepadas e os olhos vazados.

Logo a conversa retomou o ímpeto anterior, falando-se de ou­tros deuses e, com os olhares fesceninos, cada um contava suas próprias aventuras libidinosas. Avram acercou-se do guerreiro que fala­ra em Yahveh e pediu-lhe mais detalhes daquele ignoto deus que tanto fizera tremer a audiência. O velho lutador hurrita, ao encon­trar um alento ouvinte, passou a contar-lhe as aventuras de Yahveh, misturando-a com as histórias de Sharuken, o acadiano, mais conhe­cido no ocidente como Sargão, o grande.

O guerreiro contou-lhe, durante duas horas, como Sharuken, um homem inteligente e astucioso, foi morar em Uruck e Lagash, saído de sua terra natal, a lendária cidade de Agadê, na média Mesopotâmia, no lado ocidental do Eufrates. Narrou-lhe com riquezas de detalhes como Sharuken infiltrou-se em Uruck e aprendeu as técni­cas guerreiras sumérias, além de aprender a ler e contar com grande maestria. Retornando a Agadê, matou o rei local após ter-se empre­gado como servo do monarca, e tomou o poder. Após tal feito, mon­tou um exército fortíssimo, atacou e dominou toda a região, ampliando-se para várias outros pontos no Elam, na Síria, nos sopés dos montes Taurus na Ásia Menor.

O velho guerreiro hurrita contou que foi nessa época que um poderoso deus, Yahveh, comandou a guerra e guiou Sharuken, e, posteriormente, Naram-Sin, seu neto, a grandes vitórias. Yahveh era um deus magistral na guerra, mas muito ciumento na paz.

Washogan era um guardião astral ainda bastante primitivo, subordinado à falange de Vayu, braço-direito de Indra Vartraghan. Há muito tempo ele havia sido um alambaque da pior qualidade e, no tempo do expurgo, ele havia alcançado uma certa projeção como guardião. No entanto, era um espírito ainda do astral inferior que estava em vias de regeneração. Se não fosse um obreiro, teria sido expurgado de qualquer modo por estar ainda convivendo com as vi­brações do astral inferior.

Ele renasceu por quatro vezes nos últimos mil anos, tendo melhorado bastante. Na última vez em que ele havia tido uma exis­tência física, ele progredira bastante, tendo retornado à pátria es­piritual com certo progresso. Após recuperar-se no astral médio, ele ingressou nas falanges de Vayu, sendo um obreiro do bem, tendo ainda, contudo, alguns vícios tipicamente humanos. Apreciava o odor da carne fumegante, ficava fascinado em ver um casal fazendo sexo, apreciava de sobejo uma boa luta e vibrava com o sangue a cor­rer de um ferimento, deleitando-se com os odores do álcool e dos incensos. Era um espírito benfazejo, mas ainda primitivo, necessitan­do de orientação e fiscalização dos espíritos superiores.

Vayu o apreciava pela sua força magnífica e sua disposição em enfrentar a adversidade. Quando os espíritos superiores constata­ram a necessidade de que deveria haver mutações no orbe terrestre, Vayu, obedecendo ordens, colocou sob a égide protetora de Washo­gan uma pequena tribo nômade denominada de goromitas.

Vayu sabia que somente um espírito do jaez de Washogan poderia proteger os goromitas, pois eles estavam no caminho de uma confederação poderosa de tribos indo-européias chamadas de hititas, que passaria pelas pradarias expulsando a pequena tribo de go­romitas.

Os hititas eram um grupo de homens brancos, pequenos, com cabelos castanho-escuros, grossos, levemente anelados. Os homens tinham a tendência de ficar carecas na frente, aumentando em mui­to a testa. Eles usavam os cabelos longos, amarrados com uma tira de couro na altura da nuca, o que os protegia de ataques naquela área, pois formava um verdadeiro capacete.

Eles faziam parte de um grupo de indo-europeus que havia se mudado para o planalto da Analólia, há mais de seiscentos anos, tendo passado pelo estreito dos Dardanelos, no mar de Másmara. Eles haviam conseguido manter contato com seus irmãos, tendo um frutuoso comércio.

Naquele tempo, trezentos anos antes do concilio angélico que concluíra pela necessidade dos grandes movimentos migratórios, as estepes estavam secas e tórridas e os hititas preferiram imigrar e partirem para a Anatólia para se reunirem com seus irmãos. Deste modo, agora eles iam por um outro caminho, passando pelos mon­tes Cáucasos e indo para a Ásia Menor.

No caminho ficavam os goromitas e numa fria madrugada das estepes caucasianas, no vale de Kuban, eles foram dizimados por uma força mais compacta, disciplinada e guerreira de hititas. Os go­romitas foram quase que totalmente mortos, tendo escapado apenas alguns poucos homens mais jovens que fugiram para uma pequena ravina. Washogan os seguiu, insuflando-lhes bom ânimo.

Quando o dia renasceu, os poucos homens - uns trinta - se reuniram para decidir o que fazerem. Washogan influenciou um dos líderes, chamado de Hurri a contra-atacar em momento oportuno. Os hititas haviam atacado para tomarem mulheres e especialmente gado. Deste modo, as mulheres estavam vivas, e o gado também, sendo ambas as riquezas daquela tribo.

Washogan influenciou Hurri a seguir o grupo de guerreiros hititas, que marchavam em direção aos montes Cáucasos. Hurri era Um capelino de forte caráter e de vontade indômita e, sem consciên­cia de que estava sob o domínio mental de um poderoso espírito, seguiu as recomendações de Washogan.

Os hititas pararam perto das quatro horas da tarde para descansar e comer. Todas as tribos em deslocamentos chegavam ao expressivo número de cem mil pessoas. Washogan sabia que aqueles poucos goromitas não tinham força para destruir mais de dez mil guerreiros bem-armados e treinados. Deste modo, ele intuiu em Hurri que devia atacar a ala esquerda, mais fraca, constituída de ho­mens jovens, mas inexperientes. Eram eles que estavam protegendo as mulheres e Washogan sabia que não se pode viver sem mulheres.

De noite, quando eles se recolheram, alguns hititas mais jo­vens foram molestar as mulheres e alguns conseguiram manter um conúbio sexual forçado. Neste instante, sob o comando de Hurri, agora totalmente dominado por Washogan, os goromitas atacaram silenciosamente uma ponta do lado esquerdo do acampamento.

Washogan havia influenciado mentalmente Hurri para que comandasse seu pessoal em completo silêncio, e assim procederam atacando os hititas com violência, mas calados, sem alarde. Retira­ram a maioria das mulheres e abandonaram o gado, pois o rebanho os retardaria em demasia na fuga.

Washogan os fez partir rapidamente por um caminho nas montanhas, pois as pedras esconderiam o rastro deles.

Os goromitas passaram a noite em fuga, andando sob o luar o mais rápido que podiam. De madrugada, o acampamento hitita fi­cou em polvorosa quando descobriram os vinte guerreiros mortos e a perda das mulheres. Decidiram partir atrás deles, mas quando vi­ram que o grupo devia estar há mais de meio-dia de distância, decidiram que mandariam um grupo de cem homens persegui-los en­quanto que o restante do grupo viria mais lentamente, já que havia mulheres e crianças em grande número.

Os cem homens eram rápidos, mais do que os goromitas que estavam andando com mulheres e crianças. Washogan havia se des­locado no astral e vira quando o grupo de hititas estava marchando a passos rápidos.

Ele volitou, elevando-se a grande altura, e pôde ver para onde os goromitas estavam se deslocando e simultaneamente podia notar o grupo de hititas, fortes e experientes, andando de modo veloz. Ele concluiu que em um dia eles os alcançariam. Neste instante, Washo­gan ficou com medo. Seus amigos, quase seus filhos, iriam ser truci­dados pelos hititas.

De forma quase inconsciente, ele pensou fortemente, sob in­tensa comoção e falou alto:

- Ó, meu Deus! Será que nada poderá proteger meus meni­nos?

Sua mente estava em torvelinho. Pela primeira vez em cente­nas de anos, ele vibrava de amor, quando, subitamente, uma luz for­te se fez presente ao seu lado. Washogan assustou-se, mas recuperou logo sua calma, sabendo que um espírito mais evoluído estava se 'materializando' em seu plano. A luz tomou forma e Washogan pôde ver, com nitidez, Orofiel, um dos belos e poderosos operadores as­trais subordinados à falange de Mitraton.

- Salve, Washogan. Sou Orofiel e vim em seu auxílio, pois vejo que você está aflito pelas suas crianças.

- Poderoso Orofiel, como pode me ajudar a salvá-los?

- Posso e quero ajudá-lo. Sou guardião de segredos poderosos e os hititas poderão ser levados em confusão a seguir outra trilha.

- Salve-os, então, ó poderoso Orofiel, e me tornarei seu escra­vo.

- Eu os salvarei, mas demando outra coisa de você do que sim­ples escravidão.

- Peça o que quiser que eu farei.

Orofiel olhou o espírito ainda primitivo com extremado amor e disse-lhe:

- Lembre-se bem, pois você ficará me devendo este favor para ser pago no futuro, mas agora quero que você leve o seu povo para Outro lugar. Eles devem passar pelas montanhas e irem para o ori­ente, enquanto eu conduzirei os seus inimigos para o ocidente.

- Eu os levarei para onde você determinar.

Orofiel explicou-lhe como chegar ao norte da Mesopotâmia e o que deveria fazer para fortalecer a sua tribo. Eles se separaram e Orofiel cumpriu o que prometera, desviando os hititas para as mon­tanhas Taurus onde lutaram contra os gutos, enquanto Washogan levava os goromitas, através de Hurri, para o norte da Mesopotâmia.

Washogan resolveu se apresentar a tribo que ele salvara e foi reconhecido pela primeira vez por uma mulher vidente da tribo que se assustou imensamente com a visão. Ela contou aos demais e Hurri resolveu matar um terneiro para o espírito para que ele se identifi­casse.

Washogan recebeu bem a oferenda e se mostrou com toda a sua estranha majestade, meio capelina, meio humana, e a mulher, atemorizada, dirigiu-lhe a palavra, perguntando quem ele era. Ele respondeu:

- Eu sou - Yahveh - Washogan, o deus da guerra e da vingan­ça, grande justiceiro e juiz implacável.

A mulher não entendeu tudo, mas compreendeu que ele era um deus da guerra e repetiu palavra por palavra à tribo que, atemorizada, prestou-lhe ainda mais homenagens. Ela o chamou de 'Eu sou', nome excelente para um deus, pois um deus não deve ter nome próprio. Washogan disse-lhe que fora ele que os trouxera para aque­las plagas, livrando-os das garras dos hititas.

Washogan gostou de ser chamado de Yahveh, pois não gosta­va de si próprio. Conhecia suas limitações e preferia ser conhecido por um cognome. Yahveh que significa 'Eu sou', tornou-se sua alcu­nha, quase sem querer, sem grandes batismos e pompas, pois ele se rebatizara involuntariamente.

Yahveh passou a ser endeusado junto com outros deuses, mas era um deus secundário, no entanto, temido e adorado.

Quando alguém achava-se injustiçado clamava por ele, pedin­do justiça, e Yahveh, muitas vezes, cego e colérico, destruía o crimi­noso com doenças terríveis e pragas tenebrosas. Yahveh continuava a se comportar como um alambaque, bebendo o sangue do injusto, secando o corpo do pecador e tornando impotente o fornicador.

A tribo crescia e Hurri havia se tornado o principal chefe. Al­gumas lutas tiveram que ser encetadas para que a tribo encontrasse seu lugar e Yahveh dirigia a mente de Hurri para grandes vitórias. Ele aproveitava seu próprio conhecimento para dirigir as batalhas e com isso os hurritas, pois este era o novo nome do clã de Hurri, tor­naram-se poderosos na região.

Os hurritas tomaram muitas mulheres locais e geraram exten­sa descendência. Hurri morreu com idade madura, tendo deixado dois filhos principais que se dividiram, sendo que o mais importante e mais forte chamava-se Mitan e levou seu grupo mais para dentro da Mesopotâmia, vindo a gerar, alguns anos depois, o império mitânio.

Os hurritas, especialmente os mitânios, tornaram-se sedentá­rios, visto que copiaram os costumes dos povos que lá existiam. Haran já era uma pequena aldeia que logo cresceu sob influência hurrita. A capital dos mitânios, Washshukanni, tornou-se em poucos anos uma cidade de cinqüenta mil habitantes com largas avenidas, belos palácios e floridos jardins. No entanto, os hurritas foram perdendo seu próprio estilo de vida, sua cultura e assimilando os conhecimen­tos superiores dos habitantes do local, que por sua vez haviam sido moldados pelos sumérios.

Yahveh, que para uma geração fora um deus importante, pois ele é que os levara das estepes caucasianas para a segurança dos morros do norte da Mesopotâmia, tornara-se um deus esquecido, que só era lembrado em tempos especiais. Seu altar era pouco fre­qüentado, pois ele era por demais temido.

O tempo passou inexoravelmente e Yahveh tornara-se taciturno. As guerras haviam se tornado endêmicas, mas Yahveh não era lembrado em tempos de paz. Ele linha que dividir as adorações do seu povo com uma plêiade crescente de deuses estranhos. Eles adoravam Anu, mas o alambaque Oanes já havia renascido após seu aprisionamento. Estava em vias de redenção, mas Anu era cultuado, enquanto Yahveh era esquecido.

Vinham as guerras e as desgraças se sucediam, e, neste instan­te, Yahveh era lembrado, pois ele era o deus da guerra, da vingança e da destruição. Desta forma, ele se tornava temido. Mas não era mais ele que provocava a guerra, nem a destruição e nem a vingan­ça. Os séculos o haviam modificado, assim como o lento e laborioso trabalho de conscientização que Orofiel fazia. Esta influência era fei­ta de mente a mente, pois o guia espiritual o acompanhava de longe, vivendo em outra dimensão espiritual.

Orofiel convocou Washogan, que agora era conhecido como Yahveh, para se encontrarem nos limites do astral superior. O gran­de espírito baixou sua alta vibração e 'materializou-se' perto de Wa­shogan, e iniciaram uma conversa de suma importância.

- Amado Washogan, há mais de duzentos anos que nós nos encontramos nas alturas das montanhas do Cáucaso. Muito você tem mudado. De um demônio de egoísmo tornou-se um espírito-guia de um poderoso clã.

Washogan meneou a cabeça em concordância.

- Contudo, é chegado o grande momento de sua existência. É preciso pensar em renascer novamente.

Aquilo foi um choque na mente de Washogan. Como pensar em renascer se ele havia evoluído tanto? Não era ele um deus? Não tinha alcançado os cumes da espiritualidade, tendo se tornado um guia de homens? Orofiel leu seus pensamentos.

- Meu caro irmão Washogan, não existe ninguém que não te­nha que passar pelo renascimento. Isto é uma lei de que somente o verdadeiro Deus está isento. Os demais seres, desde o mais ínfimo dos protozoários ao mais poderoso dos logos universais, que co-criam universos inteiros, estão ou estiveram sujeitos ao renascimen­to. Você evoluiu muito, mas ainda não atingiu os cumes dos grandes espíritos dos quais nem eu faço ainda parte.

Orofiel fez uma pequena pausa e depois prosseguiu, com um tom quase paternal.

- Você, em eras prístinas, tornara-se um deus de ódio. Depois você se remodelou e resgatou, em parte, através de duro trabalho no astral, o seu passado nebuloso. Aos poucos, você foi personificando o conceito de um deus universal como um guia espiritual. Esta obra foi se destacando de você, tornando-se viva pela lembrança dos ho­mens. Agora você irá se divorciar de sua obra, tornando-se um ser humano e vivendo tudo o que você construiu. Yahveh tornou-se desassociado de você, pois transformou-se numa idéia, num conceito monoteísta, só que ainda imensamente longe do único e verdadeiro Deus. Mas o espírito imortal, que também o representava, precisa evoluir, crescer e tornar-se verdadeiramente um deus.

Washogan estava tomado da mais viva emoção, com os olhos em lágrimas. Sim, era preciso renascer. Todos o faziam, mais cedo ou mais tarde. Tajupartak renascera para se tornar um deus - Rá - e outros renasceram para se tornar o escárnio de outros homens. O que ele, o Yahveh das lendas, o deus da guerra, da vingança e da destruição, teria que passar? Nasceria para ser um rei, um profeta, um miserável, ou um canalha?

Orofiel escutando sua mente em torvelinho, cortou-lhe os pensamentos desvairados:

- Washogan, não se esqueça de que todos renascem para ca­minhar para o verdadeiro Deus.

Neste momento, sobrepujado pela emoção, Washogan aquiesceu. Sim, ele também iria renascer.

Havia homens em volta de uma fogueira e um homem falava de Yahveh e de Sharuken, e um jovem que escutava empolgado pela lua figura. O jovem tinha uma enorme força interior, emanando uma grande energia em sua aura. Yahveh se interessou pelo jovem Aviam.

Avram, um rapaz simples, pastor, ainda ingênuo, ficou mara­vilhado com as aventuras de Sharuken, as lutas e conquistas e mais do que tudo, o apoio de um deus tão poderoso. Com um deus desse, quem não seria vencedor?

Algumas noites depois, influenciado pelas histórias de Ya­hveh, ele sonhou com um poderoso touro alado que lhe predizia um grande destino. Puro devaneio de adolescente que não se dava com o pai.

O jovem mal tinha alcançado os dezesseis anos e acordou, sobressaltado, sentindo-se um novo e invencível homem. Fora eleito por um poderoso deus guerreiro, e, desta forma, tudo o que fizesse para enaltecer a figura daquela divindade seria bem visto.

A partir daquele dia, Avram, que sempre fora calado e tímido, tornou-se mais falante e decidido. Esta mudança de atitude levou-o a cuidar melhor dos rebanhos paternos, a comandar com mais vigor e determinação os vários pastores que estavam subordinados a ele, e, finalmente, a ser um negociador muito mais hábil e destemido. Se Yahveh estava com ele, quem ficaria contra? Com esta mentalidade determinada, sustentada pela crença cada vez mais forte de que Ya­hveh o apoiava em todas as decisões, fez de Avram um homem bem mais corajoso, destemido e audaz.

Por conta disso, a vida tornou-se melhor para Avram. Os resultados de seus esforços, a maior determinação em conseguir o que queria, fizeram com que fosse mais respeitado, e no mercado lo­cal, em Haran, ele sempre conseguia os melhores preços. Por outro lado, Avram via seu crescente sucesso, não como algo conseguido pela sua atividade profícua, mas pela atuação de Yahveh. Se ele conseguia dobrar a vontade de um comerciante pela sua intensa argumentação, com isso conseguindo melhores preços e escambos mais interessantes, fora Yahveh quem havia obtido a façanha. Interessante concepção humana: ele era humilde o suficiente para achar que só conseguia as coisas porque um deus o beneficiava, mas era suficientemente arrogante para achar que uma divindade iria preocupar-se com ele nos menores detalhes. No entanto, ele estava certo, pois Yahveh havia se tomado de estranho amor pelo jovem, acompanhando-o e vivendo a sua vida como se fosse a sua própria.

O costume determinava que o filho mais velho herdava tudo e que o pai, em vida, daria presentes para os demais, se assim o quises­se. Isso criava situações conflitantes e aflitivas quando o pai morria subitamente, seja de uma morte natural ou acidental, não tendo do­ado, em vida, os seus bens. Os irmãos acabavam lutando, matando-se, e, muitas vezes, terminavam escravos de outros grupos que se apossavam de seus bens devido às lutas intestinas do clã. Tareh, por sua vez, com o passar dos anos que viveu em Haran, foi vendo que fora injusto com o filho mais moço e que Avram era até mais digno do que Nacor, um pouco preguiçoso e mulherengo.

A lei era a lei. Se ele destinasse os bens ao filho mais moço, es­taria decretando a morte de algum dos dois ou até mesmo a desgra­ça total da grei. O ideal era repartir o rebanho ainda enquanto resta­va-lhe vida, pois não queria Avram perto de Nacor. Sentia que pode­ria haver traição e morte entre os irmãos, e por isso estabeleceu que Avram partiria de Haran para as terras de Canaã, de que ouvira falar por viajantes que era bela e próspera, tendo sido anexada ao impé­rio do Kemet, por um grande faraó, Senusret III, cujo filho agora reinava com grande tranqüilidade e prosperidade, sendo conhecido como o terceiro faraó a portar o nome de Amenemhet. Decidiu tam­bém que Lot, filho de seu querido Arão, deveria partir com Avram, pois era outro que poderia ser atraiçoado pelo tio Nacor.

O tio Avram e o sobrinho Lot tinham pequena diferença de idade, o que os tornava próximos de dois bons irmãos. Lot, influen­ciado por Avram, também havia adotado Yahveh como seu único deus e ambos, especialmente Avram, não perdiam uma oportunida­de de fazer proselitismo. Muitas vezes, esse ardor arrebatado por Yahveh criara dissensões perigosas, e Tareh sempre aparecera na hora certa para apaziguar os ânimos com rudes palavras e bordoa­das com seu cajado, o qual, mesmo sendo manejado por um velho enfraquecido, ainda produzia dores nos lombos desavisados. Mas Tareh sabia que seria um grave perigo deixar que dois jovens, tão cheios de fé e crença num deus perigoso e ciumento como era Ya­hveh, continuassem juntos com Nacor e seu bando de pastores. A morte seria o preço de tal temeridade.

Avram era tão fervoroso com seu deus Yahveh que, num certo dia, ele entrou na tenda do pai e destruiu os deuses que estavam so­bre o altar de ídolos, dizendo que somente Yahveh devia ser cultua­do e não aqueles terubins idiotas. Tareh nunca vira o filho tão enfu­recido, e com certo receio daquele ataque súbito de fervor, resolveu ficar quieto enquanto passava a fúria divina de que Avram parecia estar possuído. O conceito de um deus superior aos demais chama­do Yahveh, cada vez mais, dominava a mente do jovem Avram.

Aquela cena não passou despercebida ao mundo espiritual. Um guia espiritual havia presenciado o ataque de santa ira do jovem Avram e comentou com seu superior, quase que em tom jocoso, pois de achou extrema graça do ímpeto do moço. No entanto, o chefe dos guias havia recebido ordens superiores de ficar alerta para per­sonalidades fortes que pudessem guiar homens. Era chegada a hora das grandes movimentações e era preciso encontrar líderes renasci­dos entre os homens.

A mensagem subiu do astral médio até o astral superior e Avram foi perscrutado pelos superiores. Ali estava um homem de grande fibra, um líder poderoso que fora mal-utilizado como Moku­treh, mas que podia ser bem conduzido agora que se aprimorara.

O caminho que a mensagem percorreu foi curto. O chefe dos guias daquele setor falou com Vayu, que comentou com Kabryel, e este com Mitraton, que era o coordenador das migrações e Orofiel, chefe da região, foi chamado para investigar o jovem.

Na conversa com Mitraton, Orofiel perguntou-se:

- Então ele é um adorador de Yahveh?

- Tudo indica que sim.

- No entanto, o espírito guardião que tinha o cognome de Ya­hveh está renascido. Atualmente é uma bela mulher, chamada Talantara, sendo filha de um monge no vale do rio Indu. A última in­formação que eu tive é que ela está agregada às forças de um pode­roso sacerdote ariano chamado Rhama.

-Você não precisa usá-lo. O que você deve fazer é estabelecer um grupo de espíritos que irão supervisionar e guiar o nosso jovem eleito, Avram. Devemos traçar um plano de ação para fortalecê-lo e levá-lo ao sucesso, reunindo unia forte tropa de nômades e que pos­sam se miscigenar com os de sua região.

- Seria interessante que eles pudessem ser levados para o Ke­met. Lá existe a florescente civilização e eles poderiam aprender muita coisa. Em Haran, ele já está mesclando sua cultura caldéia com os hurritas e mitânios. No Kemet, eles aprenderão outros costu­mes que ajudarão a formar um novo povo.

- O que me agrada neste rapaz - disse Mitraton - é que ele tem uma devoção a um único deus. Isto irá facilitar em muito a divulgação de um único deus, com uma cultura mais monoteísta. - Assim procederemos, mestre Mitraton. Estabelecerei um grupo de guias que irão se apresentar como a falange de Yahveh e que irão impregnar o jovem de bons exemplos, retirando alguns costumes bárbaros trazidos pelos alambaques, como a matança de crianças, e implantando alguns aspectos salutares e profiláticos para o povo.

- Quero que você estabeleça um guia-chefe e que ele fique sob seu comando direto.

- Creio já ter a pessoa certa para esta missão.

-Você é livre para decidir a melhor pessoa. Só desejo que este rapaz possa dar início a uma nova cultura. No entanto, não devemos depositar todas as nossas esperanças num único ser. Procurem por outros para que, se um falhe, o outro o consiga.

- Sim, mestre Mitraton. Isto continuará a ser feito. Já existem outros candidatos, em vários lugares do orbe. Cada um terá uma missão especial, mas que irá confluir para uma única humanidade superior em alguns milênios.

- Sim, meu caro Orofiel, em alguns milênios...

Sansavi havia se tornado o chefe de extensa legião de guardi­ões que incorporava médicos, obreiros de renascimentos, assim como especialistas em desencarnações.

Orofiel falou-lhe de Avram e disse quem ele era, desde sua existência como Mokutreh, que era muito conhecido em Ahtilante, até sua atual existência como Avram. Os dois volitaram até a tenda de Avram e o observaram, perscrutando-o detidamente. Con­cluíram que se tratava de um espírito de impressionante força de vontade, mas ainda muito amoral, podendo passar por cima de qualquer um para atingir seus objetivos. Era, portanto, dentro das atuais condições, a pessoa ideal, pois a civilização é feita também de heróis destemidos e egoístas.

- Sansavi, você deve se manifestar ao jovem e tomá-lo sob sua guarda. Ele é um adorador de Yahveh, um deus de guerra e vingança dos hurritas. Você está autorizado pelos nossos superiores a se apresentar como Yahveh, e incutir na mente de nosso protegido e de sua descendência, que ajudaremos a ser farta, a idéia de um único deus. Todos os seus obreiros serão batizados de falange de Yahveh, podendo se apresentar como tais em condições especiais que você decidirá.

Dando uma pequena pausa, Orofiel, perguntou:

- Você vê formas de se comunicar com ele?

- Sim, mas pelo que pude notar nele, ele só me ouvirá pela in­tuição e através de sonhos. Terei que aparecer para ele durante a noite e motivá-lo ainda mais.

- Que assim seja feito, faça como lhe aprouver.

Orofiel olhou para Sansavi. Era uni bela e imponente figura, que tinha uma excelente experiência. Viera de Ahtilantê, não como degredado, mas por amor a uni filho que caíra em total desgraça. Conseguira recuperar o filho e agora este fazia parte de sua falange de obreiros. Não quiseram voltar para Ahtilantê enquanto os demais irmãos capelinos não haviam se regenerado.

A primeira aparição de Sansavi a Avram foi durante o sonho, mas o jovem não lhe registrou plenamente todas as feições e pala­vras. Ficou, contudo, no ar, um sonho forte do qual ele se vira arre­batado às alturas. A partir daquele dia, Sansavi passou a acompa­nhar realmente as atividades de Avram. Algumas vezes de perto, ou­tras vezes, de longe, e na maioria dos casos, através de seus obreiros.

Depois da destruição dos seus ídolos pelo furioso filho, Tareh, pressentindo a morte a chegar, com o enfraquecimento geral de seu organismo, decidiu que Avram deveria partir de Flaran, estabelecendo-se em outro lugar, para segurança geral. Ao tomar sua deci­são, falou a todos, estabelecendo as regras a partir daquele instante, dizendo-lhes:

- No sétimo dia após minha morte, você se apartará deste rebanho, levando consigo sua mulher Sarai, meu neto Lot que passará a ser sua responsabilidade, assim como a viúva de Arão, os seus servos e mais quatrocentas cabeças de rebanho, que é a minha dádiva a você e ao meu neto, filho de Arão. Você deverá partir para as terras de Canaã, que ouço falar que são fecundas e dadivosas. Irá procurar uma aldeia chamada Siquém, onde o povo é pacífico e atencioso. Lá você se instalará e assim que Lot tiver idade para se defender na vida, você lhe dará metade de tudo o que você adquiriu.

Avram concordou e jurou por Yahveh que cumpriria o dever de proteger Lot com sua própria vida. Naquela noite foi festejado o acordo e Tareh mandou levantar uma pedra, lixá-la e inscrever nela sua descendência, seus desejos e os deuses que honrou durante sua vida. A estela de Tareh, daquela noite em que foi levantada em diante, tornou-se um marco de uma nova existência para Avram.

 

Capítulo 2

Alguns meses depois, Tareh faleceria, tranqüilamente, duran­te o sono, com falência geral do seu organismo combalido por longo sofrimento moral, com a perda do seu amado filho Arão. Após a morte do pai, sete dias decorridos do funeral, Avram e seu grupo movimentaram-se em direção a Siquém, em Canaã. O jovem, com apenas vinte e um anos, recém-casado com sua meia-irmã Sarai, de quatorze anos, estava mais preocupado com as quatrocentas cabeças de rebanho do que com qualquer outra coisa. Na véspera de partir, os dois irmãos quase se desentenderam por causa da seleção, pois cada um queria os melhores espécies, porém Avram, gritando mais alto conseguiu reunir um rebanho melhor do que deixaria com Nacor, que ainda assim conseguiu ficar com mais de três mil cabe­ças.

A caravana deslocou-se lentamente pelas colinas, andando poucos quilômetros por dia para não forçar o rebanho a perder mui­to peso. Um dos pastores, um homem de Damasco, pequena cidade da Síria, dominada pelo Kemet, chamado Eliezer, fora contratado por Avram, pois conhecia a região como ninguém, tendo sido caravaneiro por toda a região. Desse modo, Avram colocou-se em suas mãos para ser guiado até Siquém, em Canaã.

Durante meses, o grupo deslocou-se, passando pelas cidades de Carchemish e Aleppo, essa última perto de Ebla, nos montes Amanus. Ficaram em Aleppo por três semanas, recuperando o peso do rebanho, e depois rumaram em direção a Ugarit, no mar Medi­terrâneo. Em Ugarit, contrataram mais alguns servos que conheci­am a língua dos cananeus e dirigiram-se ao sudoeste para Byblos.

Durante meses, o grupo foi serpenteando, andando devagar; Avram não queria perder os terneiros, obrigando-os a irem no colo dos pastores. Passaram por Sidom, Sarepta e Tiro sem maiores em­bargos. Em Tiro, abandonaram o litoral e subiram em direção a Hazor, uma aldeia perdida na região do lago Merom.

No caminho aconteceu um grave entrevero entre os quase trinta homens que Avram conduzia e um grupo de rústicos e carrancudos cananeus. Eles exigiam um pedágio exagerado para cruza­rem seu território. Era normal que o grupo pagasse ao rei local um certo tributo que não passava de uma cabeça para cada duzentas. Entretanto, eles queriam trinta em cada cem, o que não era possível.

Uma luta encarniçada e renhida se fez entre Avram e seus pas­tores e os cananeus. Yahveh foi conclamado por Avram e demons­trou sua força ao derrotar um número pouca coisa superior aos dos pastores. Houve dois feridos, sendo um deles gravemente, mas que não morreria, e outro, Avram, teve um leve corte na perna, que o obrigou a ser levado de carroça, o restante do caminho, até Hazor.

A higiene pessoal, naqueles tempos, era descurada. Os ho­mens não se lavavam, passando vários dias sem sequer abluir as mãos antes das refeições e era normal que, após os atos sexuais, nenhum dos dois sequer se lavassem, deixando que os fluidos corpo­rais secassem naturalmente. Avram, ao ser ferido, nada fez a não ser estancar o pouco sangue que saía da ferida com um pano tão imun­do quanto ele próprio, que não via água há mais de dez dias, desde que saíram de Tiro.

No outro dia da vitória contra os bandidos da região, Avram acordou com uma febre alta, um mal-estar geral, suando frio, com calafrios a percorrer-lhe o organismo e uma dor latejante na testa, que ardia em febrão. Uma sede terrível o assaltava e Sarai teve difi­culdade em ampará-lo; estava fraco e tonto. A espada infectada e suja do cananeu fizera bem seu trabalho lento de septicemia. Tudo estava a indicar que sua perna estava gangrenada e logo a notícia acabrunhou a caravana, acreditando que seu valoroso chefe estava liquidado.

Era uma questão de horas. No final da tarde, Avram já não reconhecia ninguém, tendo entrando em estado comatoso. Um silêncio caiu sobre o acampamento e todos oravam para que o chefe não viesse a falecer.

Um homem enorme, alto e forte, pele alva levemente bronze­ada, com uma longa barba branca, aspecto severo, olhava atentamente para Avram. Era Sansavi, pois já fazia muito tempo que per­dera a forma capelina, tendo tomado a forma humana. Agora ele parecia ter mais de setenta anos e deslocava-se com rara agilidade. Vestia uma túnica longa, drapeada na cintura, tendo na cabeça um barrete alto, parecendo uma mitra. Seus braços, musculosos, saíam por cortes laterais da vestimenta, demonstrando que o ser, mesmo aparentando ser velho, era, na verdade, muito jovem, não tendo uma ruga sequer a lhe cobrir os braços e o rosto. Ele esticou a destra e praticamente arrancou Avram do leito, levantando-o com extrema facilidade. Essa rápida operação foi de extrema leveza, sem a menor brutalidade. Avram estava entorpecido, vendo aquilo tudo com sur­presa e certo receio. Quem era aquele gigante que devia ter perto dos dois metros, e que o levantava como se ele fosse uma criança?

- Eu sou Yahveh, o seu protetor.

O gigante falou, sem mover os lábios, e sua voz explodiu no Interior da mente de Avram. Nesse instante, ele olhou para os lados e só teve tempo para notar que estava voando nos braços da gigan­tesca figura. Sua cabeça girou, estonteado, quis gritar e nenhum som saiu de sua boca. Olhou mais uma vez para os lados e viu o acampa­mento pequeno, cabendo na palma de sua mão, afastando-se, tor­nando-se ainda menor. Deu um longo hausto e fechou os olhos, sentindo-se seguro nos braços do amigo espiritual. Pela primeira vez, ele pôde ver Yahveh em todos os seus detalhes e como de fato ele era.

Nesse ínterim, dois espíritos aproximaram-se do corpo esten­dido na carroça, e trabalhando velozmente, deram passes longitudi­nais ao tronco de Avram. Envolveram o ferimento de sua perna com uma espécie de gelatina verde, que vibrava em suas mãos, e que, em poucos segundos, entranhou-se na ferida, sendo absorvida incontinenti. Logo após essa operação, um outro espírito, que não tinha participado da primeira intervenção, apareceu, trazendo em suas mãos, um tecido branco e longo, e cobriu o corpo de Avram com aquela alva mortalha.

As três almas, em conjunto, impuseram as mãos sobre o corpo estendido, completamente coberto por aquele diáfano tecido, e, aos poucos, a mortalha começou a emitir uma luz toda própria. Parecia que aquele tecido estava se transformando em milhares de minúscu­las gotas de orvalho que emitiam uma luz safirina, levemente azula­da, e um som baixo, quase inaudível, porém melodioso: um acorde longo, prolongado e pleno.

A operação espiritual não durou mais do que dez minutos e, assim que terminou, o gigante protetor espiritual daquela caravana de homens trouxe o seu líder para perto do seu corpo ainda ador­mecido. Quando viera, encontrara o espírito de Avram já quase to­talmente liberto dos liames carnais, ligado apenas por tênue laço fluidal ao debilitado organismo. Agora, após rápida e eficiente in­tervenção dos médicos espirituais, o corpo estava em condições de proporcionar ao ocupante ainda excelentes oportunidades evoluti­vas.

Esta fora a primeira vez em que Sansavi solicitara ajuda dos espíritos mais evoluídos para tratar de alguém. Orofiel, sempre acompanhando os passos de Sansavi, outorgara-lhe a chefia de um pequeno grupo de espíritos médicos que puderam fazer seu traba­lho com maestria. Tudo isso fora motivado pelo seu amor paternal por Avram, e, principalmente, pelo amor que o jovem lhe dedicava.

Avram acordou no seu corpo físico, algumas horas depois, quando o sol nascia. A algazarra foi geral, pois todos estavam felizes por sua recuperação. A perna que apresentara quadro mórbido de gangrena estava curada, desinchada e apta para caminhar. Sua tem­peratura voltara ao normal e seu apetite tornara-se voraz. Bebeu mais de um litro de água e comeu um quarto de pernil de carneiro, acompanhado de duas tigelas de cevada e legumes cozidos.

- Yahveh esteve comigo. Tomou-me nos braços como se fosse uma criança e voou até os céus. Voltei curado. Ele me disse que nos levará em segurança para uma terra generosa de farturas ilimitadas.

O grupo exultou. Tinha que ser verdade. Ninguém fica bom da noite para o dia sem a ajuda de um poderoso deus.

Após duas semanas de andanças, tendo subido por escarpas montanhosas, o grupo chegou a um extenso vale verdejante, bem próximo da lagoa Merom. O grupo mergulhou nas águas do rio Jor­dão com intensa alegria. Estavam em Canaã num lugar chamado Hazor. Ficaram alguns dias naquele local, no entanto, a terra não era propícia para criarem carneiros.

Andaram ainda mais duas semanas, descendo o rio Jordão até encontrarem o lago de Genesaré, mais tarde chamado de mar da Galiléia ou lago de Tiberíades, que não passava de um extenso lago de águas doces. Continuaram sua marcha passando rapidamente por pequenas aldeias de nome estranhos, como Betson, e na altura de Jabes-Galaad, meio caminho entre o lago de Genesaré e o mar Morto, o grupo desviou-se para o noroeste, deixando as margens do Rio Jordão.

Finalmente, no décimo-quinto dia depois de terem deixado Hazor, oito meses após terem saído de Haran, chegaram à ambicio­nada Siquém, que era incrustada entre dois morros suaves, num vale amplo. Ao entrar no vale de Siquém, Avram mandou levantar uma pedra e matar um carneiro em louvor a Yahveh, que o havia salvo da morte iminente e que o trouxera até o seu destino. O deus de Avram era poderoso e o elegera, levando-o são e salvo até o destino.

Siquém não era o que todos esperavam. Efetivamente era um local verdejante, com muita pastagem, água limpa em abundância, mas só que fortemente ocupado. Os cananeus, povo semita, de cos­tumes ainda primitivos, adoradores de Baal Hadad e de Moloch, eram cruéis e muito pouco dado a amizades. Quando o grupo che­gou à aldeia, à procura de terras para seu rebanho, foram logo cer­cados por estranhas figuras, seminuas, barbudas e mal-encaradas. Avram, ainda deitado na carroça, não pôde deixar de se preocupar, enquanto Eliezer, o damasceno, tentava parlamentar com o grupo de cananeus. Falavam línguas similares, mas sutilmente diferentes, e só a muito custo, conseguiram entender-se.

Não havia terras disponíveis e os cananeus não queriam dis­por de nenhuma. A situação ia tornando-se tensa. Mais cananeus iam aparecendo. Chegavam curiosos e procurando investigar, mas logo mudavam de feição quando entendiam que os intrusos deseja­vam se situar naquelas paragens. Em poucos minutos, estabeleceu-se uma situação estranha e peculiar àqueles tempos: os dois grupos ficavam face a face, começavam a gritar impropérios, a rosnar uns para os outros e a brandir suas armas. Quem cedesse seria atacado pelo outro e, provavelmente, morto.

O grupo de Avram, menos numeroso, começou a retroceder, sempre encarando a malta cananéia, empunhando suas armas, pro­curando sair da aldeia. O restante dos aldeões os seguia, falando sua língua estranha e gutural, enquanto apontavam para longe, num convite inamistoso, para que saíssem daquele lugar.

O grupo de Avram moveu-se de volta para a planície e eles andaram o suficiente para ficarem longe da aldeia. Naquela noite, com todos postando guarda, reuniram-se para decidir o que fazer. A má vontade do povo de Siquém deixara Avram bastante prostrado, e como golpe de misericórdia, a quase luta o deixara com os nervos em frangalhos.

- O que faremos agora, mestre Avram?

- Este não é o único lugar do mundo, Eliezer. Procuraremos por terra e nos instalaremos.

- Mas Avram, como pretende ficar aqui? Você não viu como fomos recebidos?

- Não ficaremos aqui. Iremos mais ao oeste.

- Quem nos diz que não haverá mais terras ocupadas ao oeste?

- Não sei, mas teremos que ir cada vez mais ao oeste. Não podemos voltar a Haran. Não podemos ficar aqui. Confiemos em Ya­hveh que haveremos de encontrar uma terra fértil.

Não havia muito o que discutir. Era preciso confiar e seguir adiante. Avram dirigiu-se para o oeste e seu pequeno grupo de pes­soas era enxotado de cada lugar a que chegava. Dirigiam-se cada vez mais para fora da terra de Canaã, enfrentando o desprezo e a des­confiança dos habitantes daquela terra.

No oitavo dia, tendo perdido, dado ou trocado várias de suas cabeças do rebanho, chegaram a um local relativamente deserto, perto do Negeb. Pararam por dois meses, naquelas terras amarelas, onde a areia do deserto vizinho teimava em invadir a cada lufada de vento. O rebanho sofria com o calor, a falta de comida abundante e com a água relativamente insalubre do local. Não podiam ficar ali por muito mais tempo. Avram tomou a decisão após uma noite agitada de sono.

Fora dormir de barriga quase vazia, apenas tendo tomado uma caneca de leite de cabra. Estava exausto. Passara o dia tomando conta do rebanho contra um grupo de chacais que avistara a alguns quilômetros. Eram mais de dez animais adultos. Ele tinha medo de que aqueles estranhos cães viessem em sua direção e atacassem seu rebanho. Entretanto, para seu sossego, até de noite, ele não os tinha avistado mais, parecendo que tinham se embrenhado no deserto. Fora dormir atormentado com chacais e falta de água, comida e fu­turo.

Avram tinha sido escorraçado em todos os lugares da Ganâ­ncia por que passara. Em Silo, Betel, Betsames, Zif, Maon, Arcer e Tamar, a população local deu demonstrações patentes de que não eram bem-vindos. Em Betel, Avram teve uma visão de Yahveh enquanto dormia, e, no outro dia, mandou levantar uma pedra, outra esteia, e sacrificou outro carneiro em louvor a Yahveh. Em Tamar, houve algumas pedras jogadas contra as últimas carroças, ferindo de leve uma criança, o que quase ocasionou um sério entrevero, logo contornado pela argúcia de Avram.

Desse modo, ele passou a cobiçar essa terra. Inicialmente por­que era fértil e bela, e, depois, por ter sido expulso pelos cananeus. O ódio aos cananeus apossou-se de Avram, que voltava a demonstrar ódio e desprezo pelos poderosos e por todos que o menospreza­vam. Os espíritos capelinos estavam renascendo em muitos lugares, e os mais atrasados, belicosos e endurecidos no mal, estavam vindo para Canaã e Assíria.

No meio da noite, voltara a sonhar com Yahveh que, desta vez, de forma mais incisiva e direta, deu-lhe uma mensagem que o reconfortou.

- Nada temas, Avram, pois sou Yahveh, teu protetor. Darei esta terra a ti e nela edificarás tua descendência. Entretanto, antes que isso aconteça, deveras tornar-te digno de nela peneirar. Tira teu povo desta terra e dirige-te para o oeste até encontrares um grande rio e uma terra que os homens chamam de Kemet. Estabelece-te na­quelas paragens e faças o que melhor sabes fazer para viver digna­mente. Serás comerciante e pastor. Tornar-te-ás imensamente rico e voltarás para Canaã com muitos homens armados, muitos pastores e um tesouro incalculável. Vai e confia em Yahveh, pois eu sou teu ex­clusivo deus.

Logo após a aurora, uma gritaria se fez ouvir no campo, acor­dando o pequeno acampamento. Avram acordou sobressaltado, e, pouco depois, tomou consciência do inusitado fato: os chacais havi­am atacado na aurora. Fora a gota d'água. Lembrando-se vagamen­te do sonho, entrevendo o deus Yahveh, deliberou partirem incontinenti para o oeste. Os homens, seus servos, e seu sobrinho Lot estra­nharam, mas quem eram eles para discutirem com uma figura tão imponente como Avram?

O grupo perdeu algumas ovelhas, cabras e bois ao atravessar o deserto de Sur, parte do Sinai, que ligava a terra de Canaã às terras negras, o Kemet. Tiveram que caminhar quase trezentos quilôme­tros, levando dezesseis dias de marcha forçada. Entretanto, ao che­carem ao Kemet, tinham mais de mil cabeças de rebanho, pois a via­gem lenta e os cuidados extremados com o rebanho Fizeram com que, além de viverem dele, pagassem tributos. Mesmo assim, o reba­nho multiplicou-se razoavelmente.

Chegaram em Tjel, no Kemet, e Eliezer, com grande dificul­dade em se comunicar, acabou descobrindo que, mais ao sul, existia uma grande cidade, que necessitava de incomensuráveis manadas de animais. Partiram, então, para a cidade de On.

Avram estava sendo guiado, pois, naquela cidade, onde existia o famoso templo da ave benu, mais tarde chamada de fênix pelos gregos, havia uma enorme carência de ovelhas. Havia dois templos importantes na cidade, sendo um o santuário da ave benu, e o outro de Rá Harakhty. Ambos consumiam grandes quantidades de cordeiros, sendo, portanto, o local ideal para um pastor ganhar a vida honestamente.

Yahveh, por sua vez, recebia sugestões de Orofiel, aceitando-as de bom grado, pois fora o grande espírito que o induzira a encaminhar Avram para o Egito, pois sabia que naquela florescente civilização, Avram teria maiores oportunidades de progresso material e espiritual.

Avram, um completo estranho na cidade, assentou-se numa das entradas, já que a cidade não era fortificada. Visitou-a demoradamente e descobriu o templo. Mesmo contra seus princípios, en­trou no imenso templo e andou pelas colunatas cuidadosamente. Durante alguns dias foi descobrindo como e onde se vendiam os car­neiros, e a que preço de troca, já que as moedas não eram difundidas no Kemet. A primeira coisa que se esforçou em fazer foi aprender a língua, e, depois, divulgar seu produto. Estava muito bem provido de terneiros que podia vender. Trouxe os melhores, cerca de trinta, para perto do templo e os vendeu em menos de uma hora.

Os meses se passaram, e Avram e seu grupo conseguiram melhorar em muito sua vida e davam graças ao senhor Yahveh publica­mente. No Kemet, a criação de animais nunca fora uma atividade permanente e exclusiva. O que contava era a agricultura e com exce­ção de algumas celebrações para o boi Ápis, paradigma do bovino, as criações de animais sempre foram privadas, apenas para atender às necessidades caseiras.

O rebanho de Avram já não conseguia crescer à velocidade que ele desejava, já que a maioria de suas ovelhas estava velha e mal dava um filhote sadio. Era preciso buscar melhores espécies fora do Kemet, pois, localmente, as raças eram pobres. Avram sabia que na Cananéia e na Fenícia havia belos animais, muitos deles originá­rios do planalto da Anatólia, na Ásia Menor. Para ir até lá era preciso organizar uma expedição, com muitos pastores, exigindo muitos re­cursos. Dinheiro era a chave do negócio.

Durante uns dias, Avram e Eliezer discutiram bastante sobre o assunto, até que Avram teve uma intuição vinda de Yahveh. O maior beneficiário das oferendas era o templo e, mais do que isso, os sacer­dotes. Grande parte dos carneirinhos oferecidos aos deuses era pou­pada, e depois revendida para famílias ricas que pagavam bom pre­ço. Dos que eram sacrificados, eram cortados as patas dianteiras e traseiras, o rabo, a cabeça e alguns miúdos, como coração, fígado e o miolo, dispostos em cima de um altar e queimados durante alguns minutos. O restante da carne era consumida pelos sacerdotes e arte­sãos do templo da ave benu.

Se os sacerdotes também se locupletavam com os carneiros, por que não poderiam emprestar os recursos a Avram para adquirir o que lhe faltava em Byblos? Com essa idéia na cabeça, Avram, agora com vinte e cinco anos, falando fluentemente a língua copta - já es­tava a três anos em On - foi conversar com o sumo-sacerdote do santuário da ave benu. Na primeira vez, não foi atendido diretamente por ele, mas por um sacerdote de razoável importância que o escutou calmamente, dizendo-lhe que levaria sua petição ao sumo-sacerdote, devendo aguardar a resposta por alguns dias.

Dois dias depois, Avram foi chamado pelo mesmo sacerdote, que lhe fez uma série de perguntas, sendo perguntas e respostas anotadas por um escriba presente. Avram aguardou a resposta por unia semana, até que recebeu a ordem de ir conversar diretamente com o hierofante.

Chegou ao templo na hora marcada e foi conduzido aos salões de audiência do sumo-sacerdote. Era uma sala ampla, com um mo­biliário rico em enfeites, incrustações de pedras e desenhos de baixo e alto relevo. Dois escravos e uma escrava serviam cerveja tão gelada que Avram assustou-se com o impacto na sua boca. Absolutamente deliciosa!

Avram esperou o sumo-sacerdote terminar uns assuntos de somenos importância e dirigir-lhe a palavra.

- Então você é o famoso Avram que todos falam.

Avram riu. Quem não gosta de ser elogiado? O sumo-sacerdote era um homem de quarenta e poucos anos, finório, sagaz e de família nobilíssima. Tinha mandado seus olheiros levantarem a vida de Avram e ele estava a par das menores coisas, até mesmo da adoração de Avram por um único deus e não por uma multidão, como era comum na época.

- Sou seu humilde servo, grande sumo-sacerdote - disse Avram, fazendo uma especial reverência, como vira outros fazerem. Na realidade, o fizera com maestria e elegância, pois ensaiara para esse momento por muitos meses. O sumo-sacerdote, Seankhtaui, gostou dos maneirismos de Avram.

- Estudamos muito sua oferta e só temos uma dúvida.

O olhar de Seankhtaui era de puro sarcasmo. A raposa estava paia dar o bote. Avram, ansioso para fazer o negócio, perguntou, aflito, quase não escondendo sua ansiedade:

- Qual é a sua dúvida, meu nobre senhor?

- As garantias, meu amigo, as garantias. Você compreende que o que nos pede é uma fortuna, além de exigir que destaquemos guardas e escravos em número bastante grande para organizar sua caravana de compra. Desse modo, nós temos que ter uma certa ga­rantia de que não irá levar meus homens para um ardil, aprisioná-los, vendê-los como escravos, e apossar-se do ouro e das jóias, tor­nando-se um homem rico, além da conta.

Avram fez cara de espanto como se aquilo não tivesse passado por sua cabeça. Antes que pudesse objetar, o sumo-sacerdote foi mais rápido, e, com um gesto, a mão espalmada, disse-lhe:

- Conheço-lhe os sentimentos. Sei que não faria tal coisa, mas as boas maneiras de se fazer um negócio exige que o tomador do empréstimo nos dê algo em garantia. Pensamos muito e queremos saber quem é aquela formosa mulher que vive em sua tenda.

Seankhtaui era um comerciante. Queria ficar com a esposa do tomador do dinheiro como uma garantia de que o homem não iria fugir ou fazer alguma vilania. Seus olheiros lhe disseram que a mu­lher era de uma beleza estonteante, e isso seria uma garantia sufici­ente. Por outro lado, Avram sempre fora um estrangeiro vivendo em terras estranhas. Desconfiava dos kemetenses, crendo que todos eram seus mortais inimigos.

Estavam, pensava ele, à espreita para assassiná-lo e tomarem seus bens e sua mulher. Sarai estava agora com vinte e quatro anos, na flor de sua beleza, tendo um tipo físico totalmente diferente dos kemetenses. Era alta - acima de um metro e setenta e cinco centíme­tros - esguia, com pernas longas e delgadas, cabelo liso e sedoso, de um castanho dourado e com olhos cor de mel. Seu busto, alto e farto, era a coroação de um corpo escultural, de cintura fina e quadris ar­redondados. A mulher era uma deusa de chamar atenção de qual­quer um. Isso fazia com que Avram vivesse sobressaltado, achando que poderia ser morto por causa dela. Por outro lado, o sumo-sacerdote não tinha más intenções para com ela, apenas desejava uma ga­rantia real de que o homem não fugiria com o dinheiro. Nada mais justo!

- É minha irmã Sarai.

O sumo-sacerdote franziu a testa e cruzou os dois braços no peito.

- Pensamos que fosse sua esposa.

Avram deu um risinho nervoso e disse, com a voz levemente trêmula:

- Não, meu nobre senhor. Trata-se da única irmã que tenho e cuja guarda me foi confiada pelo meu falecido pai.

Seankhtaui pensou rapidamente e concluiu que tanto fazia uma esposa como uma irmã. Uma irmã, pensando bem, falando para consigo mesmo, é até melhor do que uma esposa.

- Entendo. Bem! O que desejamos é que ela fique conosco enquanto você estiver fora. Será nossa mútua garantia. Aqui nós a pro­tegeremos contra os vilões, já que você estará fora, e ela será nossa garantia de que você voltará. Quero que entenda que se você não voltar, sua irmã será vendida como escrava e permitirá que consiga­mos nos ressarcir das perdas. Por conta, posso lhe assegurar que ninguém a molestará enquanto estiver sob nossos cuidados.

Seankhtaui estava testando Avram. Os kemetenses, especialmente os nobres, casavam-se com suas meias-irmãs para manterem a fortuna em suas próprias residências. O sumo-sacerdote acredita­va que, se fosse sua esposa, ele diria que tal coisa não era possível e o negócio não seria concretizado, mas se fosse mesmo sua irmã, ele não se importaria tanto. Para Avram, no entanto, mais importante do que Sarai, era fazer um negócio longamente ansiado que o possi­bilitava não só tornar-se um homem rico e poderoso, mas amealhar recursos suficientes para sair do Kemet e voltar à Canaã, local que o cativara pela beleza e o angustiara pelo fato de ter sido de lá vilmente enxotado.

- Não vejo nenhum problema em colocar minha irmã sob sua guarda. Tenho confiança de que cuidarão dela com desvelo e aten­ção, devolvendo-a sã e salva.

Realmente deve ser irmã desse homem, pensou o sumo-sacerdote.

Continuaram discutindo detalhes, datas e demais itens da expedição, decidindo que sairia de On em vinte dias, ficando fora por três meses, retornando em tempo para as grandes festas do hetbenben, dentro de seis meses, quando esperava-se mais de cem mil peregrinos na cidade. Nessa época, o faraó viria em pessoa de Hauara, sua nova capital, onde fizera um magnífico palácio, para oficiar as cerimônias sagradas do benbenet. O faraó, naqueles tempos, era Amenemhet III, filho de Senusret III, sendo o sexto faraó da XII di­nastia.

O primeiro faraó da XII dinastia, Amenemhet fora um lati que usurpara o trono e estabelecera um governo forte, terminando com os heseps e os nobres hesepianos. Seu filho Senusret, mais co­nhecido pelo nome grego de Sesóstris, ampliou os domínios do Ke­met e transferiu a capital de Ouaset para Itj-Towy, nas margens oci­dentais do Iterou, pouco acima da planície de Gizeh, onde as três maiores pirâmides já tinham sido construídas há mil anos atrás por Khuíu, Khafre e Menkaré, respectivamente conhecidos como Queops, Quefrem e Miquerinos, que são os seus nomes gregos.

Sarai era filha de Tareh com uma outra mulher, que não a mãe de Avram. Ele tivera três mulheres sendo que uma morrera de parto e ele ficara com duas. A mãe de Sarai era suméria, tendo uma descendência de uma tribo indo-européia de cabelos castanhos alourados, o que lhe dera a bela cor dos cabelos e os olhos dourados. Quando fizera quatorze anos, Tareh a destinara a Avram, seu meio-irmão, um homem que demonstrara uma certa rudeza no leito, com unia pressa em terminar, o que não a fizera conhecer o que era o prazer. Ela mantinha-se calma e calada na maioria das vezes, mas era um tufão quando irritada. E naquele dia, em que foi avisada de que ficaria no templo enquanto o marido estivesse fora, ela foi ao paroxismo da irritação. Nunca Avram a vira tão furibunda e fora de si.

-Você me trata como se eu fosse uma reles prostituta. Logo eu que sou sua irmã e esposa. E esse o tipo de amor que você me dedi­ca?

Avram procurava apaziguá-la com explicações racionais.

- Sarai, minha esposa e irmã, você precisa compreender a po­sição em que eu me encontrava. O sumo-sacerdote teria me matado se soubesse que eu era seu marido. Como irmão, ele me manteve vivo em sua homenagem. Além disso, eu não a estou repudiando. Apenas, estou colocando-a na segurança do templo enquanto eu es­tiver fora.

- Mentira. Tudo não passa de mentiras. O sumo-sacerdote irá dispor de mim como se fosse uma qualquer. Irá me convidar para seu leito e que devo fazer? Devo aceitar? Devo me tornar a prostituta para que você alcance seu objetivo?

Avram fechou o cenho e disse-lhe, saindo da tenda em segui­da:

- Faça o que sua consciência julgar que deve ser feito.

Sarai estava por demais irritada para chorar. Naquele instan­te, se pudesse, teria esganado Avram com suas próprias mãos. Não que ela tivesse amor ou carinho especial por aquele homem rude, mesquinho e egoísta, mas a forma como fora tratada, ia além de qualquer decência. Era óbvio que seria constrangida a dormir com o sumo-sacerdote e sabe-se lá mais quem, e essa falta de respeito de Avram por ela é que a irritava. Estava sendo tratada como unia sim­ples mercadoria de troca, e teria que aceitar resignada.

Vinte dias de intensos preparativos foram levados a cabo. Avram reuniu doze escravos, além de trinta soldados, que vigiariam os tesouros. Fora-lhe permitido levar apenas um dos seus servos, além do sobrinho Lot, que agora estava com vinte e um anos.

A caravana saiu silente de On na data marcada, enquanto que, na véspera, Sarai fora levada para o templo, sendo entregue na ala das mulheres com toda a pompa que a circunstância merecia. Fora-lhe dedicado um aposento amplo e, para cuidar dela, destinaram-lhe uma escrava chamada Agar, uma kemetense, mescla de belíssi­ma núbia, negra como uma noite sem luar, com um hamita de pele marrom. Agar era uma mestiça bela que mantinha os traços faciais suaves dos hamitas e as formas vigorosas e generosas dos núbios. Sua cor de pele era um marrom escuro, de cabelo encaracolado, denso como uma mata, que ela mantinha cortado curto, quase tonsurado. Vestia-se como todas as escravas, com uma tanga a cingir-lhe a cintura, apenas escondendo os pelos púbicos.

As duas mulheres tão diferentes, e, ao mesmo tempo, tão iguais em sua falta de direitos, deram-se muito bem de imediato. Agar era calma e quieta, só falando quando lhe era dirigida a pala­vra, e Sarai, estando em lugar desconhecido, só tendo a escrava como amiga, afeiçoou-se a ela.

Dois dias depois que Avram saiu, Seankhtaui fez seu movi­mento para com a bela prisioneira. Mandou chamá-la para janta­rem juntos em seus aposentos íntimos. Sarai foi preparada por Agar, com banhos perfumados, roupas de linho fornecida por sacerdoti­sas do templo e seus cabelos penteados com pentes de osso e presos com flores, para enfeitar aquilo que não precisava de embelezamen­to. A túnica era tão transparente que se podiam ver as curvas de seu corpo generoso.

O sumo-sacerdote a recebeu como se fosse uma deusa vindo do Duat. Foi cortês, gentil e amável. Acumulou-a de presentes e mandou que os escravos a servissem como se fosse uma das esposas principais do faraó Amenemhet III.

A noite foi perfeita. O vinho doce mas forte fez seu trabalho junto a Sarai, relaxando-a para o bote final do sacerdote. A comida, as músicas tocadas por um harpista escondido em aposento contí­guo, a luz, e, finalmente, a forma gentil e delicada de ser tratada por Seankhtaui fizeram com que Sarai se entregasse sem grandes difi­culdades.

Mais tarde, no outro dia, refeita das emoções da véspera, re­cordando cada momento, ela chegou à conclusão de que fora a me­lhor coisa que lhe acontecera em toda a sua existência. Aquele ho­mem, suave e cheiroso, banhado e perfumado, de mãos sedosas, quase feminis, a amara com tanto arrebatamento, levando-a aos cu­mes do prazer.

Sarai tornar-se-ia amante deste homem que a fizera retirar de dentro de si o máximo de feminilidade possível. Avram passou a ser uma pálida imagem a importuná-la em certos acessos de moralismo, que, pouco a pouco, tornavam-se cada vez mais remotos e entressachados.

O absurdo da situação é facilmente inteligível. Um homem apaixonado, que ama e é amado, jamais colocaria sua esposa em tal posição. Entretanto, Avram não amava Sarai. Ela era apenas uma empregada doméstica mais qualificada. Os nômades precisavam li­berar rapidamente as pessoas de suas tendas. Uma mulher era um peso, um fardo a ser carregado, nutrido e de baixo retorno, especial­mente se fosse uma filha. Uma esposa era valiosa; podia cozinhar, lavar e remendar roupas, além de catar certos alimentos no mato e buscar água nos córregos. Servia também para gerar filhos, prefe­rencialmente homens. Desse modo, após dez anos de casamento, um homem com três mulheres podia gerar mais de quinze filhos, e formar, no decorrer dos evos, um poderoso clã. Ao alcançar os ses­senta anos, teria mais de cem pessoas no seu grupo, e isso era segu­rança, poder e realeza, principalmente para os nômades.

Sarai, no entanto, demonstrava ser estéril, não tendo tido fi­lhos desde que casara com Avram. Na realidade, ele não estava muito preocupado com filhos; o que desejava era poder, riqueza e reconhecimento social entre os mais ricos.

Sua viagem a Byblos foi um sucesso acima da expectativa. Avram precisava comprar matrizes e maréis. Um bom marel podia cobrir uma infinidade de matrizes, mas após certo tempo, ele estaria cobrindo suas próprias filhas e netas, e assim depauperando a raça. Os terneiros nasceriam cada vez mais enfraquecidos, não atingindo um peso ideal, necessitando de muito mais cuidados e com uma mortalidade muito alta. Adquirindo um grande plantei de reprodutrizes e padreadores, Avram pretendia aumentar grandemente sua comercialização de animais. Chegara ao Kemet com perto de mil animais e não conseguira progredir além dos dois mil, já que tinha que vender os filhotes. Por outro lado, só tinha vinte padreadores, o que não era bom para efeitos de consangüinidade. Com a compra de duas mil matrizes e cem maréis, Avram tornar-se-ia o maior for­necedor da cidade. A viagem foi estafante, mas Avram conseguira voltar de Byblos a tempo, com suas matrizes e maréis.

On recebia, nas festas do benbennet, mais de cem mil peregri­nos, que vinham à cidade para fazer suas oferendas à barca de Rá, assim como verem e serem vistos pela alta sociedade do Kemet. O faraó, seguindo longa tradição, recebia o espírito de Rá, após vestir-se como Amon-Rá. On encheu-se de gente de todos os lugares do império, desde fenícios, sírios, cananeus, núbios, gente do baixo e alto Kemet e líbios. Os estrangeiros vinham mais para tratar dos as­suntos do Estado assim como fazer bons negócios.

Na terceira noite, o sumo-sacerdote convidou os principais do reino para assistirem ao culto secreto do benben, do qual somente os iniciados poderiam participar, porém a todos seriam facultada a es­tada no átrio monumental, onde seriam oferecidos acepipes diver­sos com saborosos vinhos do Líbano, cervejas geladas, e vários gru­pos de dançarinos dariam um belo espetáculo.

Sarai, desde a volta do marido, só o vira uma única vez, já que ela morava quase que de forma definitiva no templo, tendo se torna­do amante de Seankhtaui. Avram parecia não estar incomodado com essa situação, muito pelo contrário; estava tirando grandes proveitos dela. Desconfiava da situação, mas não se importava, já que adiara sine die diversos pagamentos a serem feitos ao templo com to­las desculpas, aceitas complacentemente por Seankhtaui. Por outro lado, Sarai tornara-se exímia amante, tendo aprendido com o sacer­dote uma variedade de posições e inúmeras técnicas de dar e receber prazer, que a colocavam entre as mais bem reputadas cortesãs de seu tempo.

Avram foi convidado à festa, muito mais por homenagem à Mia meia-irmã do que ao seu status social. Chegou na hora marcada e ficou perto do fundo, em lugar demarcado pela sua posição social. Suai aproximou-se dele e ambos, sem demonstrarem antipatia, ficaram juntos, trocando alguns dedos de prosa. A festa já tinha começado há certo tempo e os convidados estavam entretidos com um grupo de dança, quando, no final do número, entrou o faraó acom­panhado de seu séquito e do sumo-sacerdote. Estavam vindo da ce­rimônia secreta do benben.

O faraó Amenemhet III era um homem de sessenta e quatro anos, que se dedicara à construção e à reconstrução de canais, do ai erro de pântanos e da ampliação da agricultura e da pecuária. Infelizmente, sua vida particular não era tão feliz como o era a sua excelente e pacífica administração. Tinha uma série de esposas e concubinas que lhe proporcionavam o máximo em termos de desenten­dimentos familiares. Esse era um dos problemas de ter se casado com meias-irmãs que achavam que tinham preferência sobre as de­mais.

Seu filho e herdeiro que subiria ao trono como o quarto a portar o nome de Amenemhet era um negligente, sendo casado com uma mulher terrível, sua meia-irmã, Sebekneferurê, uma serpente que, mais tarde, o envenenaria, subindo ao trono como faraó e faria um governo deplorável, dando fim à XII dinastia. Sebekneferurê também seria conhecida como Nefrusobk e Sebekkaré.

Amenemhet, por sua vez, era um homem ansioso por amor. Sentia-se só e circundado de pessoas nas quais não tinha confiança.

Acreditava que era constantemente adulado por razões vis e mesqui­nhas pelos seus ministros, nobres e esposas. Gostaria de mudar o ce­rimonial que obrigava as pessoas a colocarem o seu rosto no chão para falarem com ele, mas os sacerdotes shem achavam que isso seria uma temeridade, podendo colocar em risco a segurança do reino. Os hierofantes diziam que, ao se curvarem e prostrarem-se ao solo onde ele pisava, estavam apenas reverenciando a figura divina, filho de Amon-Rá, o Hórus, filho de Osíris, deus do outro mundo.

O faraó entrou lentamente no vasto átrio, enquanto todos se prostraram reverentemente, inclusive Avram e a bela Sarai. Após sentar-se numa magnífica cadeira, esculpida no melhor cedro do Lí­bano, Amenemhet ordenou que todos ficassem de pé. Foram trazi­dos, aos poucos, à sua presença, após ter sido servido vinho num copázio de ouro, cravejado de pedras preciosas, os convivas mais im­portantes. Subitamente, num relance, Amenemhet viu Sarai. Ela es­tava conversando, afastada, com Avram. Ela estava de perfil para o faraó, que pôde notar a proeminência dos seus seios, a fartura de seus quadris e a suavidade de seus traços. Foi um impacto fulminan­te no coração combalido do faraó. Terá sido amor ou apenas luxúria? De qualquer forma, quis conhecê-la imediatamente.

O faraó chamou um dos seus assistentes que se encarregou de descobrir que ela era a meia-irmã de um pastor estrangeiro chamado Avram e que vivia no templo de On, como sacerdotisa convidada. O faraó chamou o sumo-sacerdote, e, em poucas pala­vras, disse-lhe o que desejava. Seankhtaui era um homem prático. Sabia que se discutisse com Amenemhet estaria conseguindo o mais perigoso inimigo, mesmo que o faraó tivesse fama de cordato. E, fi­nório como só havia de ser, redargüiu:

- Majestade, a bela Sarai é uma sacerdotisa do templo. No entanto, podemos estudar uma forma para que ela possa ser substituí­da.

Amenemhet olhou-o com um sorriso nos lábios e perguntou-lhe:

- Quanto isso irá custar-me?

- Uma bagatela, considerando a peça única, de beleza esplendorosa e de conhecimentos valiosos. O maior problema é o dote que Mossa majestade deverá dar ao irmão.

- Abomino tratar de dinheiro. Veja quanto ele deseja, incluin­do um estipêndio mensal para a moça em questão e um prêmio para

o templo, pela perda da sua sacerdotisa. Não meça esforços, nem despesas.

O faraó era o dono de tudo no Kemet, especialmente depois que Amenenhet I e Senusret I exterminaram o poder dos heseps e centralizaram tudo em suas mãos de ferro. Portanto, um pouco mais ou um pouco menos para o gozo do monarca era bagatela a não ser considerada.

Mais difícil foi convencer Sarai a se tornar concubina do faraó e ir com ele para seu palácio em Hauara, do outro lado do Iterou, no lago Sheresy, chamado pelos gregos de Moeris, na região chamada ciclos gregos de Fayum. A bela revoltou-se e, se não fosse a atuação forte de Avram, ela não teria ido.

Para Avram, o que lhe fora proposto era uma fortuna incontá­vel; daria para pagar o templo e ainda assim sobrariam recursos para adquirir alguns escravos. Para o sumo-sacerdote, os recursos eram de tal monta que o que foi dado a Avram era a quinta parte do que ele recebeu em jóias, móveis e casas, quase todas arrestadas de inimigos do Estado e incorporadas ao patrimônio faraônico.

A bela Sarai, por sua vez, além de levar sua escrava kemetense, Agar, receberia mensalmente o suficiente para viver sua velhice confortavelmente, além de uma casa bela e confortável, ao lado do palácio real, onde ela entreteria o faraó. Ele, prudentemente, não a desejava misturada com a camarilha real; era conhecedor do ambiente degradado de seu harém.

Antes de partir para Hauara, o faraó conheceu intimamente Suai, e viu que tinha feito um excelente negócio, porquanto jamais se sentira tão viril, entusiasmado e apaixonado, como quando estava com a bela estrangeira. No outro dia, a caravana real partia de barco para o sul levando Sarai para seis anos de agradável convívio com um monarca extremamente espirituoso, afável e culto. Tratava Sarai ainda melhor do que o sumo-sacerdote, não tendo, entretanto, os mesmos arroubos sexuais, mas, o que fazia, deixava-a satisfeita.

Avram nunca fora chamado para visitá-la, e, durante os seis anos em que Sarai viveu com o faraó, ele não a viu, até que um dia ele foi chamado ao templo de On pelo sumo-sacerdote que desejava falar com ele urgentemente.

- Quero que você seja honesto pelo seu deus. Sarai é sua espo­sa ou sua irmã?

Avram sentiu na voz do sumo-sacerdote o perigo. O Homem estava pasmado. Sua voz traduzia uma forte ansiedade. Seria a hora de mentir ou de ganhar tempo, questionava-se Avram.

- Por que você me pergunta algo que já sabe?

O sumo-sacerdote colocou a mão na cabeça e disse:

- Então, só pode ser um embuste para desestabilizar-me.

- Meu amigo, o que foi que lhe aconteceu?

Avram era sincero. Se o sumo-sacerdote fosse trocado por ou­tro, como esse iria se comportar com ele? Cobraria as antigas dívidas que foram perdoadas na época da venda de Sarai, ou mandaria ar­restar seu rebanho para pagamento?

Seankhtaui sentou-se, serviu-se abundantemente de vinho e bebeu quase tudo de uma talagada. Passou a mão na cabeça tonsurada para retirar o suor que lhe empapava a testa e a calva, mostrou o vinho para Avram num convite para servir-se, o que ele fez preocu­pado e vagarosamente, enquanto o outro começava a falar.

- Sarai conquistou o coração e a mente de Amenemhet, de tal maneira que ele passou a viver mais na sua casa do que no palácio. Lá, naquele antro de víboras, as mulheres do faraó passaram a açular os ministros e o tali para que derribassem o rei, entronizando seu filho. Nada conseguiram, mas o rei vem sofrendo de grave moléstia e as mulheres voltaram à carga, especialmente a filha do faraó, casa­da com o sucessor do trono. Sebekneferurê é sagaz, age como um chacal - que Anubis me perdoe - e vomita insídias e destila veneno como uma naja - que a deusa naja Uadjit seja condescendente comigo.

Avram, acomodado em almofadas, as quais preferia aos mó­veis, que julgava incômodos, escutava atentamente a narrativa.

- Deste modo, Sebekneferurê foi até o templo de Amon-Rá em Ipet-Isout, aquele poço de devassidão que ousam chamar de santuário, e conseguiu, mediante sabe-se lá que artifícios, que alguma pitonisa vaticinasse contra sua irmã e você mesmo.

Avram olhou estarrecido para o sumo-sacerdote.

- E, meu amigo, até você está envolvido nesse fementido episódio. Dizem que Sarai é sua mulher e que por causa desse grave cri­me - o de ter relações com uma mulher casada - os deuses atacaram

faraó com uma rara doença, que o faz defecar sangue, emagrecer a olhos vistos e prosterná-lo de fraqueza. Dizem que você é um terrível bruxo, cujo deus de vingança que você tanto alardeia, dominou a mente de nosso faraó, e que eu, pasme a cadela Mainat que carrega as almas dos réprobos ao inferno, sou seu sectário, lendo transfor­mado esse templo de esperança num covil de ladrões e oportunistas.

Havia lógica que o templo de Amon-Rá em Ipet-Isout quisesse desmoralizar o templo da ave benu em On, já que esse último recebia muito mais gente do que o templo de Ouaset. Destruir Sarai era uma atitude tipicamente feminina de acabar com a concorrência, mas atacá-lo, ele Avram, não tinha lógica.

- Por isso, volto a lhe perguntar se você algum dia conheceu intimamente sua irmã.

Avram coçou a barba. Não era hora mais de mentir. Tanto ele como o sumo-sacerdote estavam metidos na mesma enrascada.

- Serei seu confidente. Ela é minha legítima esposa, dada pelo meu pai. Ela realmente é minha meia-irmã, filha do mesmo pai, só que de mãe diferente. Conheci sua intimidade por diversas vezes.

- Por Herichef, por que não me disse isso logo?

- Tive medo de que não faria o empréstimo. Pensei que man­daria me matar.

O sumo-sacerdote olhou para o teto, como se procurasse a resposta, e, sem o que dizer, olhou consternado para Avram, que o relaxou um pouco da tensão da confissão, e perguntou-lhe:

- Grande Seankhtaui, como soube de tudo isso?

- Avram, tenho espiões em todos os templos, nos palácios dos reis e dos nobres, e, até mesmo, entre os pastores ricos da cidade. Nada me escapa. Tudo sei. Fui informado por um monge amigo do templo de Amon-Rá. Estranho que eu saiba de tudo, e que, mesmo assim, você me tenha enganado com tamanha facilidade. Que iro­nia, eu, o homem mais bem-informado do reino, ser enganado por um simples pastor de ovelhas.

Avram já estava senhor de seus nervos. Estivera tenso no início da conversa, mas agora era ele que sentia-se mais calmo.

- Quando soube disso?

- Há poucos instantes.

- Será que a víbora já chegou em Itj-Towy?

- Provavelmente, sim.

- Então, só me resta uma coisa a fazer. Ir até lá, tirar Sarai das garras de Sebekneferurê e sair do país.

- E você irá para onde?

- Para onde Yahveh, meu deus, levar-me.

E dizendo isto, Avram levantou-se e partiu celeremente.

Levou quase meia hora para chegar ao seu acampamento, que já era algo de portentoso, pois havia cerca de seiscentas tendas espa­lhadas por quase um quilômetro, com dezoito mil cabeças de rebanho, mil e poucos pastores e duas mil pessoas entre mulheres e cri­anças.

Foi à procura de Lot e juntos foram até a tenda de Eliezer, que já estava dormindo. O damasceno foi acordado no meio da noite, mais não estava de todo aborrecido por ter sido retirado do seu sono.

Em poucos minutos, Avram explicou a situação e deu as or­dens:

- Na primeira hora da manhã, Eliezer e Lot levantarão acampamento, dirigindo-se para Tjel, na entrada do deserto de Sur. An­darão lentamente; não quero que os terneiros morram, ou as matri­zes sofram e nem os padreadores fiquem estressados. Os homens mais fortes deverão ser divididos em dois grupos. Um na frente com Kliezer, que conhece o caminho, e o outro defenderá a retaguarda sob o comando de Lot. Eu estou indo buscar Sarai e levarei comigo dois dos mais fortes guerreiros, e depois de fazer o que devo fazer, me encontrarei com vocês em Tjel.

- Não vá, meu tio. Sarai não merece esse devotamento de sua parte.

A história que corria é que Sarai o havia abandonado para ser concubina do faraó. Somente o sumo-sacerdote e ele conheciam a verdade.

- Cale-se, Lot. Não julgue o que não conhece. Saiba que Ya­hveh ordenou-me, e, portanto, irei buscar minha mulher sem discutir.

Avram fez uma pequena pausa e disse:

- Em Tjel, vocês me esperarão por quinze dias. Se eu não che­car nesse tempo, dividam entre si o rebanho e os homens, e um par-in.i para o sudoeste e o outro, para o nordeste. Ficarão apartados um do outro para que o rebanho não se misture e advenham sérias contendas por causa dos animais. Ficarão em contato, para que um defenda o outro, no caso de algo grave ou algum ataque externo. No caso de minha morte, você, Eliezer de Damasco, será meu herdeiro, já que me ajudou a construir o que tenho hoje. Tenho dito e partirei agora para Hauara com meus dois guarda-costas.

Avram saiu da tenda e sumiu na escuridão. De manhã, junto com seus dois guerreiros, tomaram um barco em On e subiram o Iterou em direção a Ouaset. No final da tarde, atracaram em Menefer, onde se alimentaram e repousaram. No segundo dia, compraram três camelos e seguiram os poucos quilômetros no lombo dos ani­mais até Itj-Towy, onde o magnífico palácio de Haura podia ser visto de longe.

O faraó eslava muito doente, praticamente em estado agoni­zante. Já não estava indo mais para a casa de Sarai. A sua filha, Sebekneferurê, chegara na véspera, tendo contado a todos no palácio o que descobrira no templo de Amon-Rá em Ipet-Isout. A maioria não prestava atenção à víbora. De que adiantavam intrigas palacia­nas se todos sabiam que o faraó, que reinara por cinqüenta anos, es­tava à morte? Com isso, parte do plano de acabar com a pretensa influência de Sarai na corte acabaria junto com a morte do pai.

A casa de Sarai foi fácil de encontrar. Era uma mansão opu­lenta, com guardas à porta, quase em frente ao grande palácio de Hauara. Avram não teve dificuldades em entrar ao ser anunciado como irmão de Sarai. Ela o recebeu com certo distanciamento, en­quanto que Avram procurou levá-la para um aposento escondido para que pudessem falar sem serem molestados. Em poucas pala­vras, Avram contou o risco que Sarai corria, e ela lhe confirmou par­te de suas suspeitas de que o faraó estava à morte, e que, realmente, existia muito ódio contra ela no palácio.

- Pensei que jamais iria vê-lo de novo - disse Sarai, num rompante de ternura.

Avram olhou-a e sorriu, meio sem jeito.

- Por que veio me buscar? - Sarai perguntou, esperando um mínimo de carinho do marido.

- Jamais deixaria você em perigo. Você foi colocada em mi­nhas mãos por nosso pai.

Então, se era por obrigação que Avram vinha buscá-la, pensou Sarai, que seja então, concluiu, resignada. Deu ordens a Agar e mais duas escravas núbias para empacotarem tudo. Na estrebaria da casa, havia dois burricos que serviram muito bem para carregarem quatro baús cheios de jóias, roupas, utensílios domésticos importantes e raios, e alguns pedaços de ouro, prata e marfim.

Sarai era uma mulher riquíssima. Não poderia vender a casa, visto que pertencia ao faraó. Entretanto, o que tinha era suficiente para viver às largas em qualquer lugar do Kemet. Mas agora, com a iminente morte do monarca e a ascensão ao trono de seu filho, cuja primeira esposa era sua mortal inimiga, permanecer naquelas terras seria um suicídio.

No início da tarde, o grupo movimentou-se, sobre camelos e burricos, para fora de Itj-Towy. Com sorte, chegariam no início da noite à aldeia de Hira, onde poderiam dormir e seguir viagem no outro dia, de barco, até On. Em um dia, estariam de volta ao Hetbenben de onde tomariam camelos e burricos que os esperavam, poden­do chegar em Tjel no terceiro dia de viagem.

Tudo correu como previsto e Avram, seus dois guarda-costas, Sarai e suas três escravas alcançaram o grande grupo em Tjel, como fora marcado. A partir daquele ponto começava o forno do deserto de Sur.

Avram, Eliseu e Lot abraçaram-se como se não se vissem há muitos anos, e no outro dia partiram para Canaã. Uma nova fase da aventura de Avram iria iniciar-se. O Kemet o fizera riquíssimo e agora poderia usar esse poder para estabelecer-se num local pró­prio.

 

Capítulo 3

O grande grupo dirigiu-se inicialmente para Betel, onde já es­tiveram alguns anos antes, e quinze dias depois, tendo andado tre­zentos quilômetros, a caravana chegou ao seu destino. Havia vários grupos de cananeus e outro povo de raça parecida chamado de fereseus que logo vieram antipatizar-se com Avram. Seus chefes vieram fortemente armados com alguns guerreiros e postaram-se perto do acampamento, tendo sido convidados a entrar e não aceitando. Exi­giram a presença do chefe, e Avram, com mais de quinhentos guer­reiros, que também eram pastores, foi ter com eles.

A discussão foi tensa e Avram notou que teria que tomar aque­la terra à força ou então retroceder. Pensou bem e discutiu o assunto com Eliezer e Lot, após terem tido a reunião com os chefes cananeus da região.

- Para ficarmos aqui, teremos que lutar. Eles, além de serem em número superior a nós, poderão nos atacar à noite, tomando nossas ovelhas. É preferível retrocedermos até Quiriat-Arbé, que é uma área menos populosa do que aqui.

E assim foi feito. Foram doadas cem cabeças de ovelhas para os cananeus e o grupo começou a voltar pelo caminho que viera até Quiriat-Arbé, que seria mais tarde chamado de Hebron.

O caminho para Quiriat-Arbé foi repleto de problemas. Hou­ve acidentes fatais, uma briga entre dois homens por causa de uma mulher, e, finalmente, quando o rebanho alcançou uma pequena la­goa, os pastores começaram a discutir e brigar pelo direito de beberem primeiro. Realmente, quem bebe depois, encontra a água tur­va, imprópria para o consumo.

Avram chamou Eliezer e Lot. Discutiram a situação e decidi­ram: - Somos demais para ficarmos juntos. Lot, você já é adulto e obedecendo às ordens de meu pai Tareh, você se apartará com me­tade de tudo, inclusive famílias. Escolha para onde quer ir, pois fica­rei aqui em Quiriat-Arbé.

Os anos que passara no Kemet fizeram de Lot um homem completo, tendo se casado com uma bela kemetense, que aceitara a fé em Yahveh. Ele era absolutamente alucinado pela mulher, sendo monógamo por opção.

- Meu tio, apartarei de vocês pela manhã, indo em direção ao rio Jordão e lá encontrando uma terra que me seja generosa. Avisa­rei onde eu vou lixar morada com meu grupo.

No outro dia, cerca de três mil cabeças de rebanho foram se­paradas de forma aleatória e pouco menos de quinhentas famílias se juntariam a Lot e sua mulher. Tomaram o caminho para o sudoeste, em direção ao Jordão e ao vale de Sidim, onde existia o mar salgado.

Cinco dias depois, Lot alcançou o local, contornou lentamen­te o grande lago, chamado de mar Morto, e desceu em direção ao sul, estabelecendo-se perto da cidade de Sodoma, onde foi bem aceito pelo rei do local, já que Lot era riquíssimo. O local era aprazí­vel, um pouco quente do vento que vinha do deserto de Negeb, não sendo muito longe da pequena aldeia de Gomorra. Lot enviou um mensageiro ao seu tio Avram para informar-lhe que estava bem e lo­calizado em Sodoma. O tio, ao receber a mensagem, mandou erigir uma estela e matou um carneiro em louvor a Yahveh. A paz reinava entre os descendentes de Tareh.

Avram, ao se instalar em Quiriat-Arbé, procurou logo os principais mandatários da região. Encontrou três chefes de clãs que do­minavam a região. Eram Aner, Escol e Mambré, originários de tri­bos cananéias e suas greis eram formadas por agricultores e peque­nos rebanhos. As terras não eram extremamente férteis, mas eram mais do que suficientes para apascentar as ovelhas de Avram. Ao se lixar em Quiriat-Arbé, ele fez um acordo com os três clãs para que se protegessem mutuamente, que não houvesse estado de beligerância entre eles e que houvesse o pagamento anual de uma parte da safra e do rebanho para cada um deles, gerando tributos comuns para se defenderem contra bandidos e tribos inimigas.

Os anos correram quietamente, vendo ovelhas e crianças nascendo, o sol causticar aquela terra e as nuvens semearem a chuva mansamente nos vales de Canaã. Os cinco anos que se passaram des­de a precipitada saída do Kemet fizeram ver também outras coisas. Avram, com trinta e seis anos, ainda não tinha filhos e não mantinha mais relações sexuais com Sarai. Literalmente, viviam como irmãos.

Avram sempre fora calmo em matéria de mulheres. Vivera com Sarai, mantendo conjunções carnais em que chegava ao clímax com rápidos movimentos. Depois, durante o tempo em que sua es­posa tornara-se a favorita do faraó, ele mantivera raros e fortuitos casos com mulheres do Kemet. Com a volta de Sarai, ele se abstivera de tocá-la e se interessara por Agar. Mas como ela era a escrava da esposa, não ousara dirigir-lhe a palavra ou aproximar-se dela. Te­mia ser repudiado e se havia algo que o enervava ao extremo era ser repudiado.

A mulher observara que o marido não a procurava, demonstrando inusitado interesse pela escrava kemetense. Desse modo, Sa­rai resolveu oferecer Agar ao marido, até como unia forma de con­tentá-lo. Numa noite, Sarai entrou na tenda do marido, trazendo Agar pela mão. A escrava estava esplendidamente vestida, mostran­do mais do que escondendo, e com um sorriso envergonhado, vinha dócil e solícita. Sarai, cordial e muito afável, falou com um surpreso Avram.

- Não sei por que razão não consigo ter filhos, mesmo os querendo muito. Desse modo, pensei que seria uma grande bênção do nosso deus Yahveh se você pudesse gerar um filho em Agar, minha escrava, e, através dela, eu me tornaria mãe. Você me faria esse imenso favor?

Avram, tonto e aturdido com a proposta, meneou a cabeça positivamente, enquanto Sarai saía da tenda, deixando Agar em pé, à disposição do homem. Ele não se mexeu. Estava por demais assom­brado para agir. Então, Agar aproximou-se dele e sensualmente ofe­receu-se para ele. Aos poucos foi passando a mão no peito de Avram, descendo até o baixo ventre. Avram despertou de seu estupor e aca­riciou-a demoradamente, como nunca tinha feito com Sarai. Depois de um certo tempo, ele a possuiu febrilmente, chegando rapida­mente ao clímax. Avram sofria de ejaculação precoce e acreditava que isso era normal, pois não conhecia a extensão do seu mal.

Durante meses, Agar tornou-se a verdadeira mulher de Avram, dormindo o tempo todo em sua tenda. Sarai, no entanto, não estava satisfeita com esse novo arranjo. Ela queria instigar Avram para que ele a procurasse e seu ardil não dera certo. Imagina­ra que, ao levar Agar para satisfazê-lo, ele a procuraria para alguma forma de entendimento, e, desse modo, poderia seduzi-lo. Contu­do, Avram dormia com Agar e não a procurava.

Agar engravidou de Avram e comunicou o fato a Sarai. Desse modo, ela, astuta, combinou com Agar que não deveria ir mais à ten­da de Avram, para forçá-lo a procurá-la. E, se assim o fizesse, deveria dizer que fora proibida de fazê-lo por Sarai, pois já estava grávida, não podendo mais submeter-se aos seus desejos.

Avram estranhou que Agar não o procurasse e mandou buscá-la através de um dos seus servos. Agar mandou falar aquilo que Sarai combinara, e assim que soube que ia ser pai, Avram esqueceu-se de Agar e exultou-se com o fato. Nada podia ser mais agradável para um homem do que mostrar aos demais que era viripotente, poden­do gerar filhos igual aos demais. Alguns meses depois, Avram colo­caria o filho Ismael nos braços.

Durante todos os seis primeiros anos passados em Canaã, Avram administrara sua riqueza, repartindo-a com seus principais aliados e colaboradores. A cidade de Quiriat-Arbé, mesmo tendo um rei próprio, era, na realidade, de Avram, tamanha a sua riqueza e influência. Cada dia crescia mais a devoção de Avram por Yahveh, mesmo que, em seu coração, ele se ressentisse do fato de não ter tido filhos. A chegada de Ismael o fez sentir-se recompensado pelo tem­po todo em que esperou por um rebento.

Avram tinha trinta e sete anos quando uma guerra eclodiu de forma nefasta e terrível. Naquele tempo, as terras de Canaã estavam sob jugo do faraó. Não era, no entanto, um jugo severo onde guar­das armados do Kemet estivessem permanentemente de vigília, achacando o povo e recolhendo impostos vultosos. A dominação do Kemet não tinha alcançado a sofisticação que os romanos iriam impor no futuro. Os kemelenses haviam conquistado a Cananéia, que não era uni país, uma nação, e sim, unia colcha de retalhos de pequenos reinos independentes, que faziam alianças eventuais e as rompiam de acordo com o sabor dos novos acontecimentos. Os kemetenses colocaram governadores que comandavam as principais cidades e cobravam impostos delas. Os poderosos daquela cidade, os reis locais, cobravam impostos de outras cidades com as quais ti­nham alianças e por serem mais poderosos, as dominavam. Com essa forma engenhosa, os kemetenses recolhiam grandes somas sem grandes esforços.

Os babilônios eram dados a reides onde pilhavam a região atrás de escravos, jóias e utensílios que pudessem enriquecer os líde­res guerreiros através de butins de guerra. Aniarpal, pai de Hamurabi, enviou um dos seus generais, Codorlaomor, que era também um dos seus reis tributários, para cobrar os tributos da região orien­tal do rio Jordão. Amarpal sabia que o lado ocidental estava sob o domínio kemetense e ele não acreditava ser suficientemente forte para enfrentar os soldados das Duas Terras. Preferia, pois, fazer um ataque para se fortalecer e ampliar futuramente seus poderes.

Naqueles tempos, alguns tributários da banda oriental do Jor­dão, incluindo as cidades de Sodoma e Gomorra, não estavam pagando tributos, nem aos kemetenses e nem aos amoritas. Desse modo, Codorlaomor, com aquiescência de Amarpal, atacou a região, devastando-a e enfrentando os refains em Astarot-Carnaim, grupo pequeno e mal-armado, destroçando-os sem grandes dificul­dades.

Continuou sua marcha, atacando e destruindo os zusins, em Ham. Emboscou os emins na planície de Cariataim e, finalmente, os horreus, um povo um pouco mais aguerrido, nos sopés da monta­nha de Seir e os perseguiu até El-Farã, próximo do deserto, quando os remanescentes penetraram a terra árida do deserto e os amoritas não quiseram segui-los.

Os babilônios preferiram dar a volta e subir para o norte, já no território comandado pelos kemetenses e atacaram os amalecitas em Kadesh-Barnea e os amorreus, em Asason-Tamar. Desceram em direção ao pé do mar Morto e entraram no vale de Sidim. Os reis de Sodoma e Gomorra, cientes de sua vinda, uniram-se, colocando-se em defesa de suas cidades.

O vale de Sidim era o fundo de uma atividade vulcânica, onde várias salsas-ardentes, verdadeiras bocas por onde saíam betume e gases, e vários gêiseres espocavam, tornando o lugar inadequado para um combate a céu aberto. Os soldados de Sodoma e Gomorra foram facilmente derrotados e os seus reis jogados vivos nos poços de betume quente, que afloravam à superfície, tendo morte horrível. As cidades de Sodoma e Gomorra foram pilhadas e muitas pessoas foram aprisionadas, inclusive Lot, sua mulher e suas duas filhas, além de dois mil habitantes de ambas as cidades. Lot, como era rico, iam levá-lo para pleitear um resgate fidalgal.

Um dos pastores de Lot fugiu e, indo até Quiriat-Arbé, avisou Avram do ocorrido. Imediatamente ele chamou seus aliados e expli­cou-lhes a situação, mas sabendo que eles não iriam â guerra apenas para resgatar um parente de Avram, propôs que ficassem com tudo o que pudessem recuperar do butim de guerra dos amoritas. Nesse caso, seus aliados, Aner, Escol e Mambré, esse último o irmão mais velho e chefe do clã, reuniu dois mil e quatrocentos guerreiros e Avram juntou-os com mais de setecentos pastores habituados a se defenderem e a lutarem por suas vidas.

O grupo era bastante expressivo, pois Mambré tinha manda­do chamar amigos entre os remanescentes dos amalecitas de Kadesli-Barnea, amorreus em Tamar e hurritas em Gaza. Todos vieram dispostos a enriquecerem com os despojos dos amoritas. O gru­po de amoritas - babilônios - chegava a cinco mil homens, bem-armados, treinados e motivados. Depois do saque de Sodoma, os amoritas partiram para o norte em direção a Damasco, onde pretendiam descansar, dividir a pilhagem, e, depois, partirem para a Babilônia. Estavam indo lentamente, pois agora tinham carroças cheias de jói­as, rebanho, homens, mulheres e velhos aprisionados e amarrados para que não fugissem, e, para completar, estavam cansados de uma campanha que já durava mais de um mês.

No primeiro dia, Avram reuniu-se com Mambré e seus irmãos, e, diplomaticamente, conduziu uma conversa que foi importante para o desenrolar da guerra.

- Meu aliado e irmão Mambré, devemos eleger você o nosso chefe geral, já que foi você quem trouxe o maior número de homens e aliados. Entretanto, gostaria de saber quem será o seu general para que pudéssemos traçar um plano de guerra imediatamente.

Mambré e seus irmãos eram homens ricos, reis e príncipes locais, que não estavam acostumados a lutar. Não iriam querer comandar os homens na luta, mas sendo Mambré o chefe-geral, a sua face estava salva.

- Você será o meu general - disse Mambré, cheio de empáfia.

Avram curvou-se, repleto de mesuras e falsa humildade. Deste modo, ficou determinado que Avram lideraria os homens no com­bate.

Lembrando-se das técnicas dos hurritas, que tantas vezes escutara nas fogueiras de Haran, Avram dividiu seus homens em grupos de trinta e colocou um chefe para cada uma dessas falanges. Os grupos foram divididos de forma aleatória, não seguindo nenhum padrão especial. Puseram-se em marcha, andando muito mais rápi­do do que os amoritas, que nesse ponto estavam chegando perto de Dã nas nascentes do Jordão.

Avram, estimando o ponto em que deveriam estar, cortou caminho, saindo de Quiriat-Arbé, indo por Betel, Siquém, Jesrael, Hazor e Quadesh, alcançando Dã em cinco dias de marcha forçada, co­brindo duzentos e trinta quilômetros nesse espaço de tempo.

O exército amorita iria acampar entre as rochas das colinas, perto das nascentes onde os pequenos córregos se formavam. A água pura e fresca iria desalterar a sede dos homens naqueles dias quentes de julho. Avram investigou pessoalmente o local e viu que era ideal para uma emboscada. As várias pedras do local, junto com os pequenos vales e grotões, eram próprias para assaltar a tropa, obrigando-os a se separarem.

Avram fora rápido demais e os amoritas ainda não tinham chegado àquele local. Os vigias de Avram avisaram-no de que os amoritas estavam a caminho, devendo chegar no final da tarde, pro­vavelmente descansando perto dos regatos. Seria nesse local que ele armaria sua emboscada.

Os amoritas chegaram no final da tarde e passaram algum tempo armando as barracas dos chefes, indo buscar água e ali­mentando os animais. Eles ocupavam uma área bastante grande, especialmente por causa dos prisioneiros - quase dez mil pessoas - e das carroças, quase trezentas repletas de jóias, ouro, móveis preciosos e roupas de tecidos exóticos.

Avram deu ordem para que o ataque se concentrasse às cinco horas da manhã, quando o sol ainda estava para se levantar. Ele divi­diu sua tropa em três grupos. O primeiro, não mais do que cem ho­mens, atacaria a frente do acampamento. Obviamente que cem ho­mens não poderiam fazer frente a cinco mil amoritas, portanto, as­sim que fizessem bastante barulho, deveriam recuar, correndo como loucos, atraindo o grosso dos amoritas para uma emboscada, num movimento tipicamente hurrita que Avram escutara os soldados se gabarem de terem feito. Os amoritas, ainda sonolentos e meio ler­dos da noite dormida ao relento, deveriam cair, sem maiores problemas, na tocaia que Avram armara. Os cem homens atrairiam os amoritas para dentro de uma ravina onde seriam atacados por fle­chas e lanças - nada de combates corpo a corpo ou lutas singulares - até que recuassem.

Nesse ínterim, quando os amoritas saíssem para atacar os cem audaciosos, um outro grupo atacaria as tendas dos chefes e do co­mandante Codorlaomor, tentando infligir-lhe ferimento fatal. Com essa tática, Avram distribuiu os grupos, explicou o que desejava, es­colheu os chefes dos chefes de falanges e aprontaram-se para o atalue matinal.

O ataque saiu melhor do que esperavam, pois os amoritas, ainda sonolentos, saíram atrás dos cem atacantes com ganas de matá-los. Caíram na cilada com rara felicidade, pois as flechas arremes­sadas contra eles atingiram o alvo com maestria. Os pastores, além de saberem apascentar o rebanho, eram bons caçadores, sempre so­mando alguma carne de animal selvático à sua nem sempre tão farta mesa. Desse modo, as flechas foram cravar-se nas carnes amoritas sem armaduras, ferindo de morte muitas centenas.

Nesse momento, enquanto um grande grupo de amoritas es­tava sob uma chuva de flechas, lanças e dardos, Avram lançou-se contra a tenda de Codorlaomor, junto com seus setecentos homens. O combate no campo amorita foi rápido, pois, por sorte, o general saiu de sua tenda, sem nada entender, e foi abatido de modo fulmi­nante por uma clava de um dos pastores de Avram. Os amoritas, ao ver que seu chefe fora morto, estando estendido com a cabeça aberta e os miolos esparramados na terra, fugiram espavoridos. Durante algumas centenas de metros, os homens de Avram correram atrás dos amoritas, que fugiram, deixando os feridos e os mortos no terre­no e todo o butim que haviam amealhado durante a campanha.

Avram voltou para Sodoma, junto com seu sobrinho Lot, sua mulher e filhas e mais todos os habitantes que haviam sido feito pri­sioneiros e que seriam vendidos como escravos. Quando chegou ao vale de Savé, o novo rei de Sodoma, junto com Melquisedeque, um ancião, sacerdote de grande sabedoria e fama da localidade, que vi­via em Shalaim, cidade-fortaleza que tomaria o nome de Ierusha-laim no futuro, vieram encontrá-los e festejaram a recuperação das pessoas e dos despojos. Melquisedeque era o suserano da região e todos tinham que lhe pagar impostos, os quais ele recolhia e enviava uma parte ao faraó do Kemet. E assim fez Avram para continuar nas boas graças do ancião, que tinha uma forte tropa de cananeus em sua cidade fortaleza.

O novo rei, um jovem, filho do antigo, humildemente pediu que devolvessem somente os homens e as mulheres e que ficassem com os despojos, entretanto, Avram negou-se em ficar com todo o butim, devolvendo um terço, que era a sua parte, porém astutamen­te, ficara com grande parte das ovelhas e do rebanho bovino que fora recapturado aos amoritas. Afora isso, ficou com duzentos escra­vos amoritas, que vendeu posteriormente aos kemetenses por exce­lente preço, passando a ter grande lucro na empreitada.

Avram cumpriu a palavra com Mambré, deixando para ele o grosso do butim, o que consolidou ainda mais a amizade com eles. Lot recebeu unia pequena parte de suas ovelhas, o suficiente para recomeçar, sendo mais do que a maioria recebera. Era hora agora de retornar ao acampamento principal e festejarem a vitória sobre os inimigos amoritas.

O retorno às tendas foi amplamente festejado. Até mesmo a distante Sarai demonstrou uma exultação que comoveu Avram. To­dos vieram recebê-lo de forma alegre, e somente aqueles que perde­ram algum parente estavam tristes. A alegria da vitória os tinha dei­xado felizes, a ponto de esquecerem os amargurados com a perda de seus guerreiros.

Sarai recebeu Avram como jamais o fizera, demonstrando carinho, respeito e devoção. Desse modo, duas noites depois da chegada, Avram recebeu a visita de Sarai e de suas duas escravas. Elas tra­ziam uma larga tina de cobre, água em profusão e essências raras do oriente. Avram estranhou a visita e, antes mesmo que pudesse dizer algo, Sarai foi logo o interrompendo, dizendo-lhe:

- De nada adianta suas lamúrias, mas hoje você vai tomar ba­nho.

Avram quase teve uma síncope. Um banho? Uma coisa totalmente fora de propósito para nômades como eles que viviam em lendas. Isso era coisa daqueles kemetenses efeminados e de mulheres ricas que nada tinham a fazer, de acordo com a concepção de Avram. Contudo, nem suas esquivas e nem suas tentativas de evadir-se resultaram em sucesso. Ele teve que tirar a roupa perante as três mulheres e entrar na água fria.

O primeiro impacto com a água não foi agradável. Seu corpo recendia um cheiro acre de quem não se banhara por muito tempo. Havia crostas de sujeiras, especialmente nas costas, nas pernas e nos pés. As virilhas e axilas trescalavam aromas nauseabundos e extre­mamente ativos, mostrando que o homem não tinha hábitos higiê­nicos. As mulheres, docemente, começaram uma verdadeira faxina, esfregando uma espécie de pedra-pomes nas côdeas, enquanto ou­tra colocava líquidos balsâmicos, levemente oleosos, que facilitavam a retirada das espessas placas de imundície, que estavam impregna­das por meses no corpo de Avram.

Durante mais de meia hora, as moças trabalharam esfregando o corpo, retirando a sujeira. Por duas vezes, Avram saiu da grande tina para que trocassem a água. Na última vez, o líquido já não saiu barrento, permitindo antever que a atividade teria êxito. Nesse ins­tante, Sarai, que também ajudara lavando as partes mais íntimas, pediu para que Avram deitasse em confortáveis coxins que mandara trazer, onde lhe esfregaria óleos aromáticos, cortaria parte dos seus revoltos cabelos e apararia, cuidadosamente, sua desgrenhada bar­ba. Avram, enlevado, com o corpo exsudando odores mais civiliza­dos, deitou-se de frente, pondo-se a observar Sarai a trabalhar.

Ela dispensara as duas ajudantes que saíram risonhas, levan­do consigo os utensílios não mais necessários. Com cuidado, Sarai cortou inicialmente os longos cabelos encaracolados, ainda negros, mas com pequenas mechas brancas, e, depois, aparou a sua barba. Pegou os óleos e suavemente passou entre os cabelos e barba, penteando-os com os dedos. Avram nunca fora tratado com tamanho cuidado e esmero. Fechara os olhos de prazer, deliciando-se com os dedos macios e longos, suaves e ágeis da mulher. Terminada essa parte, que não tomou mais do que vinte minutos, Sarai iniciou uma longa e repousante massagem no corpo do musculoso varão. Ence­tou suas atividades pelas pernas do marido e foi subindo pelas suas coxas. Avram, cativado, estava excitado, porém fazia força para con­trolar-se.

Passado alguns instantes, Sarai colocou o dedo em riste na sua boca, em sinal de silêncio, e recomeçou sua faina. Lentamente, du­rante mais de quinze minutos, tendo colocado Avram de costas, massageou seu dorso, sempre colocando óleos finos para fazer os dedos deslizarem com cuidado. Passou as mãos lambuzadas de fragrâncias pelas costas de Avram, que estranhou, e quis se virar. Sarai foi firme com ele e mandou-o ficar quieto, no que foi obedecida de forma relutante. Quando sentiu que ele eslava pronto, virou-o e ob­servou com cuidado.

Sarai era um mulher de razoável experiência, tendo tido dois amantes, sendo que Seankhtaui, o sumo-sacerdote, era um engenhoso e hábil aniásio, que a ensinara quase tudo o que sabia. Entre os seus conhecimentos, aprendera com Seankhtaui como controlar um homem com ejaculação precoce. Desse modo, quando Sarai viu que Avram estava excitado, praticamente pronto para ejacular, ela começou a adotar várias técnicas que houvera aprendido para que o homem pudesse dominar-se.

Obviamente que numa única sessão, Sarai não o havia curado, mas, seguindo aquele retorno à cama de Avram, ela foi capaz de, aos poucos, com calma e carinho, transformá-lo num amante bastante capacitado a também dar prazer a uma mulher. Com essas modifica­ções que surgiram em sua existência, Sarai e Avram tornar-se-iam cada vez mais próximos um do outro, iniciando um amor que nunca é tardio para começar entre dois seres tão díspares.

Sarai era um espírito capelino em fase final de redenção. Muito mais sagaz do que Avram, tolerara-o, no início do casamento, odi­ara-o quando foi empurrada nos braços de Seankhtaui, desprezara-o quando fora vilmente vendida ao velho faraó, espantara-se com sua audácia e coragem em resgatá-la em Itj-Towy e admirara-o como fizera tamanha riqueza e tornara-se um respeitado rei pastor. Por outro lado, ainda não o amava, mas já o respeitava como ho­mem, o que era um bom início para o verdadeiro amor.

Avram adormeceu numa certa noite e sonhou. Yahveh aproximou-se e intuiu-lhe que um grande cataclismo estava para acontecer. O próprio Yahveh fora advertido por um dos espíritos que tra­balhavam na falange de Orofiel de que este fato estava para aconte­cer.

- Ouça minha voz, Avram. Uma grande desgraça está para acontecer nas terras de Canaã.

O espírito adormecido de Avram, questionou-o:

- Grande Yahveh, que desgraça é esta que cairá na minha casa?

- Não cairá na sua casa, e sim, na casa de Lot e seus amigos. Avram colocou as mãos na cabeça e caiu de joelho em atitude típica dos desesperados, com uma dramaticidade característica dos orientais.

- Oh! Grande Yahveh, salve-os. Não permita que caia sobre eles vossa fúria.

Yahveh sabia que não era hora de explicar que não havia fúria divina, apenas um fenômeno telúrico, previsível para os espíritos do astral superior. Avram, desdobrado como estava, não teria intelecto suficiente para entender estes aspectos complexos da vida espiritu­al. Portanto, Yahveh foi direto ao assunto.

- Caberá a você salvá-los. Mande imediatamente um mensa­geiro a Lot e avise que a terra tremerá, devendo engolir as cidades de Sodoma e Gomorra. Diga a Lot para que avise todos os habitan­tes de Sodoma e Gomorra para que saiam imediatamente, indo para as terras mais altas, pois as águas do mar Morto poderão devastar aquelas regiões. Vá e acorde. Não há tempo para perder. Acorde e aja.

Avram acordou sobressaltado. Seu corpo suava em bicas. Seus olhos quase saíam das órbitas, devido ao medo da fúria de Yahveh. Lembrava-se vagamente do sonho e o comando final do deus estava claro em sua mente: avisar Lot para sair de Sodoma, com todos os seus.

Eram poucas horas passadas da meia-noite e o acampamento estava dormindo. Avram vestiu uma túnica caseira e saiu para a noi­te fria de inverno. Entrou na tenda de Shymon, um homem forte, robusto como um touro, e conhecido por ser um corredor portento­so, conseguindo recuperar onagros fugidos. Ele estava dormindo sob grossas cobertas, com sua mulher e dois filhos pequenos.

Avram o acordou intempestivamente e mandou que se vestis­se rapidamente. O homem, meio sonolento, obedeceu, enquanto Avram o esperava do lado de fora da tenda. Assim que saiu, o chefe explicou o que devia fazer e que partisse velozmente para Sodoma.

Entre Quiriat-Arbé e Sodoma havia uma distância de quaren­ta quilômetros a ser percorrida, subindo e descendo por vales e mor­ros nem sempre suaves. Shymon correu durante a noite de forma compassada e constante. Após quatro horas, ele chegou a Sodoma, indo procurar Lot. Já há muito que Lot esquecera as tendas, prefe­rindo viver em confortável casa. Seu rebanho e seus pastores ficavam estacionados a alguns quilômetros de Sodoma, entre essa e a aldeia de Gomorra.

Avram nunca gostara de nenhuma das duas aldeias, pois dizia que não se podia esperar nada dos jabuseus, pois todos eram cananeus. Avram detestava os cananeus por ter sido repudiado e expulso de Siquém e Betel. Desse modo, ao dar ordens a Shimeon, disse que somente Lot e seus amigos e pastores deviam ser avisados da fúria de Yahveh. Ninguém mais. Para Avram, as cidades de Gomorra e Sodoma representavam o mal, pois cultuavam Baal e Moloch, deu­ses que exigiam, vez por outra, um sacrifício humano.

Shimeon correu como nunca correra e, duas horas depois, es­lava contando para Lot, palavra por palavra, o que Avram mandara falar. Yahveh, furioso com os povos de Sodoma e Gomorra, iria des­truir as duas cidades, e que, como tal, Lot e seus familiares deveriam fugir da cidade, escondendo-se nas cidades mais perto ou no campo aberto.

Lot acreditava piamente em Avram. Já havia visto predições do tio se realizarem sem nenhuma margem de erro. Não era hora de duvidar. Se Yahveh estava enfurecido, não era hora de discutir os porquês ou os comos. Lot chamou seus amigos, mandou sua mulher arrumar tudo e juntou suas duas filhas. Em poucos minutos, todos estavam em volta de Lot, que repetiu o que Avram falara. Natural­mente, ninguém, afora Lot, nem mesmo a mulher dele, aceitou a palavra de Yahveh. Era um absurdo acreditar que um deus desco­nhecido fosse ser mais forte do que Baal, El ou Moloch. Enquanto fi­caram conversando e debatendo, Lot deu uma ordem direta e objetiva para sua mulher para se apressarem, chamando dois servos, mandando aprontar duas carroças e mais três burricos para levar tudo o que era de valor.

A mulher, contrariada, arrumou tudo, especialmente as jóias, enquanto a história espalhava-se pela cidade. Sodoma era uma al­deia de oito mil habitantes e sua irmã Gomorra, a pouco mais de dois quilômetros abaixo, era levemente menor. Muitos habitantes de Sodoma, mesmo não sendo amigos de Lot, procuraram-no para entenderem o que estava se passando. Ele explicava que Yahveh, um deus desconhecido dos presentes, estava furioso com eles - não se sabe a razão - e iria destruir a cidade. E mais do que natural que os presentes ficassem enraivecidos com Lot. Quem é este deus audacio­so e insolente que ousava atacar os prosélitos de Baal? Qual é poder colérico que esse deus desconhecido tem? Será ele um deus ou um demônio?

Lot começou a ficar com medo da reação da turba. Ele sabia que, desde o início, era um estrangeiro mal-aceito. Sua situação em Sodoma melhorara um pouco desde que se implantara, mas havia muito gente que dizia que Avram enriquecera ilicitamente com os despojos de guerra que tomara dos exércitos de Codorlaomor. Lot, por ser sobrinho do usurpador, era tão culpado quanto ele, quanto mais que jamais fazia sacrifícios para El e Moloch, não se curvando perante o ídolo de Baal. Um herege! Agora, vinha com essa conver­sa alucinante de que um deus - como é mesmo o nome dele? - estava para destruir a cidade. Risível!

Lot saiu pelos fundos enquanto a turba reunia-se na frente da casa, discutindo sandices e toleimas, esbravejando e amaldiçoando Lot e os seus. A mulher de Lot, que fora apressada a sair, acabou es­quecendo em esconderijo bem guardado dentro de casa, um belíssi­mo colar de ouro e pedras preciosas. Todos saíram ligeiros, percutindo fortemente nos animais, acelerando-lhes a marcha, agora mais para fugir da fúria do populacho do que tia pretensa sanha ho­micida de Yahveh. Lot tinha determinado que iriam para uma al­deia vizinha chamada Segor, porquanto ela ficava num plano mais elevado do que o restante do vale.

Sodoma e Gomorra estavam situadas numa espécie de depressão do terreno que parecia um vale. Na realidade, há alguns milhares de anos atrás - sessenta mil anos - fora o local de um vulcão. O que era o mar Morto havia sido a boca do vulcão do tipo largo, de paredes pouco altas, cuja cratera podia alcançar até seis a sete quilômetros de diâmetro. Com o final das erupções vulcânicas,

0 rio Jordão passou a despejar toneladas de água que fizeram dele um grande lago. Entretanto, o calor ambiente e a enorme salinização das terras por onde passava o rio, fizeram daquele lugar o lago de maior salinidade do mundo. Naquele tempo, o mar Morto era le­vemente menor, parando nas suaves encostas, que logo após davam para a depressão onde estavam situadas Sodoma e Gomorra. O que separava o mar das cidades irmãs era um pequena encosta, que for­mava um dique natural.

Lot estava subindo as encostas em direção ao norte para a al­deia de Segor, que ficava perto. Quando ele estava quase saindo do vale, a sua mulher lembrou-se do colar e resolveu ir buscá-lo. Como ela sabia que o marido não a deixaria ir, esgueirou-se para fora do grupo e retornou a Sodoma, que estava a menos de dois quilôme­tros. Quando já tinha percorrido mais da metade do caminho, ou­viu-se um estranho rugir. Os animais, que estavam indóceis desde a manhã, começaram a dar sinais de terror. Os burricos escoicearam, ameaçaram morder os tratadores, e, subitamente, dispararam coli­na acima sem que ninguém pudesse segurá-los. Os carneiros, que ti­nham sido retirados às pressas dos apriscos e levados para fora do vale, mugiam aterrorizados. Os animais pressentiam uma grave ca­tástrofe.

Subitamente, o chão começou a ondear como se fosse um mar. Um barulho ensurdecedor ouviu-se em toda a parte. Um pequeno tremor foi seguido de grandes ondulações do chão. Novos estrondos, e a caravana que alcançara o topo da elevação caiu derribada pela força do terremoto. Lot e os seus estavam completamente atávicos. Foi nessa hora que uma das filhas viu a mãe no meio do vale e gritou por ela. Naquele momento, ela destacava-se com seu vesti­do avermelhado sobre a relva verde. Tinha caído com a força dos primeiros tremores. Lot, então, a viu e quis ir até ela, sendo impedi­do pelos seus homens.

Uma nova vaga de tremores começou a acontecer. Durante três minutos, a terra tremeu de forma extremamente forte, parando vez por outra, enquanto parecia descansar. Durante o tempo intei­ro, a terra rangia e um som sepulcral, grosso, cavo e indistinto pare­cia vir do fundo. Subitamente, houve uma explosão de estarrecer e, como se a tampa de uma panela fosse subitamente retirada, um jor­ro de gazes subiu da terra, perto das encostas que separava o mar Morto do vale onde estavam Sodoma e Gomorra. Misturou-se com poeira e terra, e subiu às alturas. Lot e os demais sentiram um cheiro de enxofre e de gases estranhos como se tivessem vindo diretamente da fornalha do inferno. A fina camada que separava o mar Morto da depressão fora rompida, e a água, seguindo seu natural curso, fluiu para dentro do vale. No princípio, a água encontrou o vulcão de lama, a salsa-ardente, e transformou-se em vapor, elevando ainda mais os jorros extraordinários que saíam das inúmeras pequenas crateras.

A mulher de Lot parecia estar chumbada no chão pela força dos tremores e pelo pavor das explosões. Ela estava coberta pelas cinzas do vulcão, provavelmente morta ou gravemente queimada. Sodoma e Gomorra tinham se transformado num monte de pedras e ruínas, soterrando todos os que ainda permaneciam na cidade. Com a explosão e os gases que subiam, poucos podiam movimentar-se, e, finalmente, a água fez o seu derradeiro serviço. Tendo final­mente vencido a encosta que fora derrubada e as pequenas crateras, a água do mar Morto avançou rapidamente sobre o vale, engolfando tudo e todos, num abraço mortal.

Lot, horrorizado, viu quando o corpo da mulher foi arrastado pela fúria das águas até que desapareceu no torvelinho do novo e ampliado mar Morto. Sodoma e Gomorra fora destruída em um áti­mo. Ele ficou completamente aturdido com a morte da esposa, que ele adorava acima de tudo. Grande era a fúria de Yahveh!

Avram, em Quiriat-Arbé, sentiu o chão tremer, e ele tremeu forte em toda a região. Assustado, assim como estavam, Avram dirigiu-se para uma colina, e, com o peito amargurado, viu a grossa co­luna de gases do vulcão subindo aos céus. Não teve dúvidas. Yahveh havia punido o povo de Sodoma e Gomorra. Não existia mais nada naquele local.

Dois dias depois, Lot, completamente encanecido, melancóli­co, pungido, alcançava Quiriat-Arbé com seu rebanho, amigos, pas­tores e duas jovens filhas, ainda donzelas. Vinha ver o tio e prestar homenagens a Yahveh, o grande deus, que o havia poupado. Avram recebeu-o com carinho. A terra, contudo, já não estava melhor para pastagem. As cinzas vulcânicas, trazidas pelos ventos, haviam coberto os verdes campos com um manto esbranquiçado. Era preci­so sair daquele lugar com o rebanho, indo em direção às pastagens verdejantes nas terras dos hurritas. Mais uma vez, o rebanho de Lot, cm muito menor número, unia-se com o de Avram, e ambos dirigi­ram-se novamente para perto do deserto de Sur.

Seu grande rebanho e seus pastores, agora novamente fundi­dos e sob a égide de Avram, já que Lot andava atoleimado desde a morte da sua mulher, deslocou-se lentamente, passando por Kadesh-Barnea e localizando-se perto de Gerara, domo sempre fazia quando chegava a localidade estranha, Avram dirigiu-se ao chefe do lugar. Descobriu que o rei de Gerara, uma pequena cidade de oito mil habitantes, chamava-se Abimelec e tentou prestar suas homena­gens ao monarca local.

No momento em que Avram e seu pequeno cortejo de ho­mens iam entrar na casa real, uma mansão bastante ampla e guarnecida, fora informado de que o rei saíra para caçar e só voltaria den­tro de alguns dias. Não havia data certa para seu retorno. Avram, portanto, voltou para o acampamento, esperando que aquilo tudo não lhe trouxesse maiores complicações. Sempre era desagradável pastar o rebanho na terra de outrem sem sua permissão, pois ele po­dia pedir uma indenização. A discussão do arrendamento de pasta­gem era cansativo e demorado, e, algumas vezes, motivo de corrimento de sangue.

Quando chegou ao acampamento, viu que estava em polvoro­sa, com as duas escravas de Sarai vindo correndo esbaforidas, falar com ele. Estavam tão aturdidas, não falando coisa com coisa, que foi preciso um par de gritos de Avram para que se acalmassem e falas­sem o que havia acontecido. Uma delas, mais velha, começou a dissertar:

- Quando chegamos a esse local, minha senhora Sarai desejou banhar-se no córrego que passa aqui próximo. Dessa forma, leva­mos os utensílios e essências, e subimos o córrego para não sermos vistas pelos pastores e nem nos banhar em água turva pelo rebanho.

A escrava fez uma pausa; agora ela era importante para Avram, que estava se roendo em angústia.

- E daí? - perguntou irritado Avram.

- Bem, meu senhor. Estávamos todas nuas tomando banho quando chegou um grupo de homens desconhecidos e levaram mi­nha senhora com eles.

- Quem eram?

- Não sabemos. Porém, um dos homens disse que a minha senhora seria uma grande presa para seu rei.

Então era isso, Sarai fora seqüestrada por homens do rei de Gerara. Avram, se fosse algum tempo atrás, pediria um pagamento alto por sua irmã e deixaria o caso resolvido. Agora a situação muda­ra de figura, Sarai não era mais uma esposa arranjada pelo seu pai. Ela era o seu amor; a razão de sua existência. Rei nenhum a levaria embora e a usaria como se fosse uma simples escrava.

Com o sangue a lhe subir à cabeça, Avram reuniu a sua tropa -mais de setecentos pastores que tinham demonstrado serem bons guerreiros - e dirigiu-se a Gerara.

Nesse ínterim, os homens de Abimelec levavam Sarai de en­contro ao rei. Ela havia se vestido com suas roupas e, ainda molhada, andava cabisbaixa. Chegaram, após duas horas de andanças, a um acampamento de caça, onde o rei estava acampado. Sarai lhe foi tra­zida à presença e Abimelec a questionou:

- Quem é você e o que faz nas minhas terras?

Sarai eslava com medo de ser tomada como uma qualquer e ser incorporada ao grupo de escravos. Por outro lado, se dissesse que era esposa de um homem rico, proprietário de um imenso rebanho, poderia colocar todo o grupo do marido em perigo, assim como aquele desconhecido monarca provincial, de caráter ignoto, poderia querer cobrar alto tributo ou resgate. Entretanto, se dissesse que era irmã de um pastor, mesmo que importante, todos viveriam; o rei tentaria fazer alguma aliança com Avram para obter as boas graças da irmã.

- Sou irmã de Avram, que é pastor de ovelhas de Quiriat-Arbé, que, desde a destruição de Sodoma e Gomorra pela ira do Se­nhor, deslocou seu rebanho para suas terras.

Abimelec olhou-a atentamente. Era uma mulher de trinta e poucos anos, de uma beleza que jamais tivera visto. Todavia, Abime­lec não era um rude campesino, proprietário de terras e que só linha interesses concupiscentes. Pelo contrário, era um homem fidalgo, de trato gentil, capelino de procedência, em fase final de recupera­ção. Era um típico gentil-homem da época, mesmo que fosse circun­dado de boçais e beócios. Vendo que se tratava de mulher de fino trato, imediatamente destacou duas escravas, uma tenda e farta ali­mentação. Despediu-se dizendo:

- Iremos à procura de seu irmão para discutirmos com ele a sua volta. Enquanto isto, considere-se minha hóspede e, desde já, peço-lhe que releve as atitudes bruscas e indelicadas dos meus solda­dos. São bons homens, mas não sabem reconhecer uma rainha quando a vêem.

E, assim fazendo, despediu-se de Sarai e saiu apressado com seus amigos à procura do pastor. Preferia encontrá-lo imediatamen­te do que esperar que fosse encontrado. Avram não era totalmente desconhecido, e, desde a guerra contra os amoritas, sua fama circu­lava a região.

Não foi muito difícil que as duas forças se encontrassem e Avram, cautelosamente, levantou a destra em sinal de paz e tanto ele como o rei encontraram-se na planície onde estava situada Gerara.

- Sou Avram Ben Tarefa. Minha mulher foi raptada por seus homens e está sob sua guarda.

O rei estranhou.

- Mas ela me falou que era sua irmã!?

- Como de fato. Somos meios-irmãos por parte de pai, entre­tanto ela é minha mulher de fato e de direito. Gostaria de saber qual será o resgate que o grande rei irá me cobrar.

Abimelec, sagaz e previdente, aproximou-se de Avram e disse-lhe, em tom baixo, para que os outros nada ouvissem.

- Avram, você pretende estabelecer-se nesta região?

- Esta era minha intenção. Fui inclusive procurá-lo para dis­cutir seus termos, mas o senhor não se encontrava em seu palácio.

Avram tratava o rei com respeito, mas seu cenho fechado mostrava que estava disposto a qualquer coisa para reaver sua mulher.

- Ótimo! - exclamou o rei. - Estamos precisando de mais gen­te e bem mais empreendedora do que os que aqui habitam. Você é bem-vindo e quanto a sua irmã e esposa, desejo reparar um grave erro. Meus homens a raptaram, mas não a molestaram, assim como eu não ousei tocá-la antes de saber quem era e quanto me custaria. Portanto, este lamentável incidente deve ser esquecido e para que selemos nossa amizade e sua definitiva permanência aqui em Gera­ra, a devolverei sã e salva. Aceita fazer essa aliança comigo?

Avram estava estupefato. Yahveh tinha que estar com ele. Re­cuperara Sarai sem ter que lutar, sem nenhum resgate. Só lhe restou aceitar. Naquela noite, para selarem a aliança, Abimelec devolveu Sarai, junto com um maravilhoso colar de ouro e prata, magnificamente trabalhado, duas caixas de marfim ricamente entalhados e um tecido magnífico que ela jamais vira, tendo vindo de um lugar tão distante que a caravana levara um ano para chegar por uma via denominada de Estrada da Seda, que também era o nome daquele pano.

Avram mandou matar trinta terneiros que foram assados e servidos junto com trigo sarraceno, uma espécie de kuskus delicioso, regado a vinhos finos do Líbano e cervejas do Kemet.

Naquela noite, Avram e Sarai tomaram real consciência de que estavam apaixonados um pelo outro. Até então, ela conseguira melhorar o desempenho sexual dele, mas não havia mais nada do que amizade e atração sensual. Quando voltaram a se encontrar, dentro da tenda de Avram, eles trocaram juras de amor como nunca tinham feito antes, abrindo seus corações a tal grau de profundida­de como poucos casais já o tinham feito. Não dormiram naquele noite, pois a possibilidade de um perder o outro fez com que senti­mentos profundos, que nunca tinham sido sequer conscientizados, despertassem e possibilitassem um entendimento harmonioso.

Avram, desta forma, instalou-se na terra dos hurritas, um povo indo-europeu que viera de Hurri, no Caúcaso, entre o mar Cáspio e o Negro, tendo sido enxotado de suas terras pelos hititas, que haviam vindo das estepes do Guirkuizes. Algumas tribos haviam migrado e Abimelec era rei de Gerara, uma pequena cidade perto da atual Gaza.

Avram, mesmo tomando banho unia vez ou outra, para agra­dar Sarai, continuava tendo os mesmos hábitos higiênicos, não la­vando seu pênis após as relações sexuais. Numa certa manhã, obser­vou que sua glande estava intumescida, e muito dolorida. Uma secreção esbranquiçada estava em volta de seu membro e ele ficou muito assustado com tal fato. Eliezer, além de ser o braço direito de Avram, sendo seu dileto amigo e confidente, também era uma espécie de médico, usando ervas medicinais para curar certas feridas e dores estomacais. Vinha há muito tempo preocupado com um assunto que não lhe saía da mente, que era o prepúcio dos homens. Muitos pastores tinham tido infecções que os tinha levado à morte, devido à su­jeira que se infiltrava entre a glande e a pele que a recobre. Os ho­mens eram ignorantes e sujos, mantendo relações sexuais com mu­lheres menstruadas, e, mesmo assim, não se lavavam depois do ato. O sangue e outros sucos físicos ficavam ali expostos até que se dete­rioravam, causando inflamações sérias.

Avram o chamou para que fosse tratado por ele e após as devi­das lavagens e emplastros feitos de ervas medicinais, Eliezer expôs sua opinião.

- Sabe, caro Avram, o ideal seria cortar o prepúcio dos ho­mens, especialmente dos recém-nascidos, pois com essa medida evitar-se-iam conseqüências funestas futuras.

Ora, naqueles dias, Avram estava tomado de tamanho fervor religioso que não via mais nada do que a obra de Deus em tudo. Sú­bito e de forma intuitiva, decidiu-se por mandar cortar o prepúcio de todos os seus, inclusive de si próprio e de Eliezer.

-Acho sua idéia perfeita, mas devemos fazer isso com um pro­pósito maior. Temos que fazer deste ato, uma forma de adoração para com Yahveh. Devemos ligar este fato sangrento a uma espécie de pacto que fazemos com o nosso deus, como uma marca de que fa­zemos parte de seu rebanho.

- Como assim, mestre?

- Ora, meu caro Eliezer, tudo o que fazemos, deve ser feito para maior glória de Deus. Desde a menor das coisas até as obras mais fabulosas devem visar à satisfação desse Pai que nos vela do céu.

Eliezer cocou sua barba. Nunca tinha pensado nisso. Acredita­va em Yahveh mesmo sem tê-lo visto, apenas porque via os resulta­dos em Avram. Conhecia-o desde que saíra de Haran, quando ainda argüia com Tareh, sendo impulsivo e destemperado. Via nele agora um homem tocado pela graça dos deuses. Ficara rico e poderoso. Suas propriedades espalhavam-se pelo Canaã e os reis o recebiam com tal deferência que só era sobrepujada quando recebiam o faraó em suas raras vindas até Byblos, seus domínios preferidos devido ao cedro, madeira nobre.

- Só não entendo como faremos para associar um problema de saúde a uma situação religiosa.

- Não separe as coisas. Tudo pertence a Deus. Não há nada que não lhe seja abrangente.

- Mas mestre Avram, estamos falando dos órgãos sexuais dos homens!

- Nada mais justo. Quem fez os homens senão Deus? Obvia­mente colocou neles pênis, assim como preferiu outra coisa para as mulheres. Não há nada de errado em sexo e amor. São coisas que Deus determinou. Ele não iria deliberar algo errado. Concorda?

Eliezer meneou, um pouco contrariado, sua cabeça e redargüiu.

- Se Deus fez tudo, por que razão fez o prepúcio, sabendo que poderia infeccionar e matar os homens?

- Ora, meu amigo, não é o prepúcio que é o culpado da infecção, e sim, os homens que não se lavam.

- Lá vem você com essas histórias de banho novamente. Você aprendeu isso através de Agar, a kemetense.

- Não só dela como de Sarai, que viveu no Kemet também. Limpeza do corpo é muito salutar.

As mulheres haviam mudado a mentalidade de Avram. Agora era um adepto do banho, mas sem muitos exageros, preferindo tomá-los no verão e abstendo-se no frio invernal. Eliezer fez uma care­ta de desagrado e Avram riu de seu amigo, que desprezava o banho.

- De qualquer forma, Eliezer, veja que sua idéia de cortar o prepúcio é ótima. Usaremos isso como símbolo da aliança que Deus fez conosco.

Eliezer, um capelino, arguto e um pouco safardana, comen­tou quase consigo mesmo:

- Deus poderia ter escolhido um símbolo menos sangrento.

Avram, que o escutou, replicou com humor:

- Deus não escolhe símbolos. O homem, sim. À Deus, o que vale são os sinais que o coração humano externa. Já para o homem valem símbolos que atinjam seu coração. Nada melhor do que um pênis para que seja a aliança com um deus másculo e viril como o é Yahveh.

Eliezer respirou fundo e disse, resignado:

- Que assim seja!

Os dias que se seguiram foram de muita dor. Avram instituiu a circuncisão obrigatória para todos os seus pastores e os filhos. Hou­ve poucos casos de fugas; alguns não queriam ser colocados à postectomia forçada. No entanto, a maioria aceitou, relutantemente. Avram, ele mesmo, foi um dos primeiros e sangrou abundantemen­te até que conseguiram estancar a falorragia. Dois dias depois, ele já estava andando sem problemas. Dizem que o arcanjo Raphael, em pessoa, viera curá-lo. Um óbvio exagero! No entanto, o sucesso des­se processo ficou restrito aos seus pastores e sua descendência, já que os cananeus não quiseram se submeter aos processos postectômicos profiláticos de Avram.

Dias depois desses fatos, Avram dormiu de tarde, depois de um lauto almoço, e Yahveh, seguindo os conselhos de Orofiel, lhe falou com sua voz tonitruante:

- Avram, farei uma aliança contigo e com todo o teu povo. Eu te darei todas essas terras e a todos os teus descendentes, de tal for­ma que tu irás te tornar o pai de muitas nações. A partir de hoje, tu serás chamado de Avraham e tua mulher de Sara, ao invés de Sarai. Eu a farei ter um filho, um único filho, que lhe custará sua vida, di­minuindo em muito seus dias. A esse filho seguirás os novos costu­mes e tu o circuncidarás, pois muito me agradou tal prática. Usarei este ato de sangue para selar minha aliança contigo e teu povo. Atra­vés da circuncisão, saberei quem me ama e quem me repudia.

Orofiel aproveitara sua influência sobre Yahveh para que este implementasse uma medida profilática através de uma prática reli­giosa, como, aliás, faria inúmeras vezes, no futuro.

Avram, assim que acordou, chamou todos e contou o sonho e as ordens de Yahveh.

Todo recém-nascido do sexo masculino deveria ter prepúcio cortado conforme os novos costumes instituídos. Deveria ser feito no oitavo dia. Seria o brit milá, o pacto da circuncisão. Informou todos que deveriam chamá-lo de Avraham e Sara era o novo nome de sua esposa. Princesa, pois isso é o que significa Sara em idioma dos cananeus. Os pastores e suas mulheres estavam mais do que cientes do poder de Avram, pois ele não vaticinara a destruição de Sodoma e Gomorra? Yahveh não enviara seus exércitos para destruir aquele lugar de perdição e maldade, avisando previamente ao eleito Avram? Desse modo, o povo rústico e inculto aceitou as ordens sem sequer questioná-las.

- Como Avraham poderá ser pai de povos se só teve um único filho, Ismael, que agora está com três anos de idade? - perguntavam seus detratores.

- Este é um dos grandes mistérios que só Yahveh pode deci­frar - respondiam seus seguidores.

Sara acolheu a idéia de trocar de nome como mais uma excentricidade do marido. Se ele queria, por que não? Uma extravagância a mais ou a menos, pouco lhe importava, enquanto Avraham continu­asse o amante devotado e o marido amoroso.

Agar, sua escrava, tinha um filho dele e aquilo, agora parecia incomodá-la. Até então, o menino tinha sido criado pelas mulheres como se fosse filho de duas mães. Mas agora, Sara queria um filho seu, como nunca desejara anteriormente. Desde pequena, Sara so­nhara com um filho que pudesse ser a alegria dos seus dias, mas o destino não lhe fora favorável. No início, imaginara que poderia su­prir a falta de amor do marido com filhos e eles não vieram. Depois, pensou em ter um filho do faraó para fortalecer sua posição na corte e também alegrar-lhes os dias monótonos e vazios enquanto espera­va que Amenemhet se dignasse vir à sua casa.

O tempo passara e Sara já estava com trinta e cinco anos e nada acontecera. Numa época em que as pessoas tinham filho aos quatorze anos e aos trinta já eram consideradas velhas, vindo a mor­rer aos quarenta, a idade de Sara comprovava que já não teria mais filhos, pois ela era considerada velha para ter filhos.

Sara dormia na sua tenda quando três espíritos entraram. Um deles começou a dar passes longitudinais em Sara, cujo espírito logo desprendeu-se do seu corpo, sendo levado por um dos presentes. Estava sendo levada para conhecer o seu futuro filho, um espírito capelino não totalmente malévolo, parcialmente recuperado, mas com alguns débitos a serem quitados com a justiça divina. Enquanto isso, dois médicos espirituais e quatro enfermeiras estavam operan­do o corpo espiritual de Sara, pois era lá, nos centros de força da re­produção, que estava um nó górdio que obstaculizava qualquer re­nascimento. No corpo físico, esse nó, nos dois ovários, manifestava-se como um endurecimento que não permitia que os óvulos se for­massem adequadamente. A equipe médica removeu os nós do corpo espiritual, massagearam o local onde deveria estar os ovários bem formados e impregnaram de fluidos esverdeados toda aquela regi­ão.

Quinze dias depois, quando sobreveio a menstruação, Sara sangrou como nunca sangrara antes. O mesmo fato repetiu-se du­rante cinco menstruações, como se organismo estivesse expulsando de seu corpo tudo o que fora nocivo até aquele momento. A sexta menstruação não veio e ela ficou sem seu fluxo mensal por três me­ses, quando começou a notar as mudanças extraordinárias da gravi­dez; seios intumescidos e doloridos, início da dilatação do ventre e as indefectíveis náuseas. Sara estava grávida.

Detalhar a alegria de Sara e Avraham seria desnecessário, mas a felicidade só não foi completa porque a gestação foi complicada cheia de peripécias, e não chegou a termo. Itzchak, o novo filho de Avraham, nasceu fraco, com sete meses, e tendo enormes dificulda­des respiratórias. Para complicar, Sara não tinha leite e tiveram difi­culdades em encontrar uma ama-de-leite que de nada serviu, pois a criança não tinha força ou apetite para sugar o seio.

Agar, lembrando-se de um fato similar no Kemet entre filhos de consangüinidade muito próxima, mandou buscar uma cabra, tirou-lhe o leite, ferveu-o, esperou esfriar e, num pano limpo, molhou o precioso líquido e pingou lentamente na boca do infante, torcen­do lentamente a fazenda. Desse modo, a criança foi alimentada du­rante dez dias, enquanto que, mais forte, pôde ser levada aos seios de Sara, agora enormes e repletos de leite. Itzchak sugou com avi­dez, mas qualquer esforço o assoberbava, fazendo com que se tor­nasse lastimoso e parasse de mamar. Revezaram as mamadas com a técnica do pano que funcionou até que ele alcançasse os três meses, quando começou a pegar o peito com um pouco mais de força e de­terminação.

Itzchak sobreviveu, o que trouxe alegria a toda a tribo. Avra­ham mandou matar carneiros e assá-los para que todos participas­sem de sua felicidade.

Sara ficara muito enfraquecida com a gravidez, e a délivrance a fizera perder muito sangue, mais do que seria normal. Durante a amamentação que durou mais de seis meses, Sara manteve-se forte, como se o ato produzisse, em seu organismo, uma energia sobre-hu­mana. Entretanto, com o desmame, Sara tornava-se cada dia mais debilitada, tendo sangraduras intermitentes que a preocupavam. Avraham começou a sentir sua mulher cada dia mais magra e seu viço parecia estar indo embora. Uma febrícula visitava-a diariamen­te, à tardinha, e, com o passar dos dias, tornava-se cada vez mais in­tensa. Seu baixo ventre começou a apresentar um inchaço muito grande. Todo o local demonstrava ter uma sensibilidade muito agu­da. As relações sexuais tornaram-se impossíveis de serem mantidas, enquanto que a sangria recrudescia, acompanhada de grande pros­tração.

Sara durou dois anos nesse martírio, demonstrando uma grande ruína física, emagrecendo a ponto de ficar pele e osso. No fi­nal, deu ordens a uma das escravas que não deixasse Avraham en­trar em sua tenda, pois não queria que a visse desta forma. Avraham entrava de qualquer forma, forçando a entrada e rudemente empur­rando a escrava, e sentava-se no chão, ao lado de sua mulher, fican­do horas a fio segurando sua mão e falando-lhe sobre os projetos que tinha quando ficasse boa. Ambos sabiam que aquilo era mero so­nho, pois ela estava morrendo.

Alguns meses depois do nascimento de Itzchak, quando esse já não mais dependia do pano molhado que Agar pingava em sua boca, Sara, já começando a ficar em estado fortemente adoentado, teve a premonição de que iria morrer. E por um desses pensamentos irracionais que atacam os doentes, imaginou que, com sua morte, Agar, que já fora mulher de Avraham, poderia voltar a ter um lugar de predominância no coração do pastor. Ismael, um belo e taludo garoto de cinco anos, forte como o pai, destacava-se dos demais com suas traquinadas e brincadeiras infantis, enchendo o coração pater­no de orgulho e júbilo. Sara inferiu que Agar se tornaria a esposa de Avraham, e, como tal, sua própria imagem iria empalidecer-se com o passar do tempo.

Os homens esquecem as mulheres com facilidade, substituindo-as por outras, pensava Sara. Desse modo, com o coração cheio de fel, atormentada pela doença e pela morte que cria iminente, Sara pede, quase ordena, que Avraham mande Agar embora. Avraham muito pensou e, premido pelas circunstâncias, decidiu então desfa­zer-se de Agar sem perder o adorado Ismael.

A discussão com a escrava kemetense foi cruel; Avraham que­ria recompensá-la regiamente, mas não desejava abrir mão do filho, pelo qual tinha fascinação. Agar chorou e implorou, ameaçou e ju­rou, em suma, fez de tudo o que estava a seu alcance para que não a mantivesse longe de seu filho. Avraham foi irredutível. Partiria de manhã sem o filho.

De noite, com o acampamento em silêncio, Agar saiu sorratei­ramente levando - como era de se prever - o seu querido filho Isma­el. De manhã, a fuga foi descoberta e Avraham alcançou a infeliz num poço chamado Gahai-Roí, entre Kadesh-Barnea e Barad e, ten­do se arrependido de sua crueza da véspera, reconheceu os direitos de Agar sobre Ismael e convidou-a a retornar ao acampamento.

Durante alguns dias, Avraham atormentou-se com esse fato, e, finalmente, chegou a uma conclusão. Sabedor, através de Eliezer, que a escrava Agar tinha um amante entre os pastores, homem sim­ples, mas zeloso e viúvo, chamou-os e estabeleceu o seguinte crité­rio:

- Malaleel, eu coloco meu filho Ismael sobre sua custódia até que tenha idade para decidir por si seu destino. Você levará Agar, podendo casar-se com ela. Levará também seus amigos pastores em número de duas dúzias, assim como as famílias deles. Cada família terá o direito de levar um jumento, uma parelha de bois e cinqüenta ovelhas. Tudo isso pertencerá ao meu filho Ismael. A você, caberá um em cada cinco cabeças que vier a acrescentar ao rebanho e deve­rá dividir entre seus amigos, sendo um para você e um para eles. Se você vier a ter filhos com Agar, eles herdarão o que é seu e não, da parte de Ismael. Vocês deverão partir dentro de cinco dias, levando aquilo que determinei e irão morar em Madian, ao sul do Negeb, no deserto de Sin. Uma vez por ano, ou quando assim eu determinar, mandarei meus inspetores verem se você está cumprindo meu acor­do. No caso de estar rompido, responderá com sua vida. No caso de estar procedendo com lisura, eu lhe darei um prêmio anual de mi­nha conveniência.

Tendo tudo entendido, alguns dias depois, o grupo partia com Malaleel em comando e formando uma nova grei: o clã de Is­mael. Avraham, anualmente, mandava um grupo armado investigar se o seu filho e Agar estava sendo bem-tratados; não tendo motivo para arrependimentos, ele próprio os visitou por várias vezes no de­correr de sua longa vida, tendo fundado um poço que se tornaria sa­grado em futuro distante.

Quando Sara morreu, Avraham estava no campo, vendo as suas ovelhas. Era cedo, de manhã, e, normalmente, dedicava esse horário ao trabalho, deixando o fim da tarde para Sara. Uma das es­cravas veio avisá-lo de que ela morrera. Ele viu a escrava ainda ao longe e soube que Sara morrera. Dirigiu-se, pois, para a escrava, a passos leves, e quando estavam frente a frente, viu o rosto banhado em prantos da mulher.

- Não diga nada, mulher. Apenas confirme. Sara morreu?

A escrava quase engasgou-se com o choro, confirmando com a cabeça o lastimoso fato. Avraham olhou para os céus e disse baixi­nho para si mesmo:

- Obrigado, meu deus Yahveh. Obrigado por ter levado a mi­nha Sara. Se ela ficasse mais, com o sofrimento que estava tendo, eu não suportaria tamanha dor e poderia cometer um crime contra a sua lei. Obrigado por ter me dado um filho da mulher que sempre amei, mesmo quando não sabia o que era amor.

Avraham chorou o caminho todo e rasgou suas vestes. Passan­do por uma fogueira apagada da véspera, pegou nas cinzas e jogou em sua cabeça, e assim, completamente sujo dos restos do lume, com roupas transformadas em molambos e os pés descalços, ele entrou no acampamento, assustando as crianças e estarrecendo os adultos.

Sara estava morta e como todos a amavam, choraram. Ela pe­dira para ser enterrada em Quiriat-Arbé, onde vivera alguns dos melhores anos de sua vida, tendo descoberto o amor e feito do mari­do um bom amante. Os próximos dias foram dedicados ao enterro, onde Sara fora levada. Uma caverna em Machpelá fora adquirida, e, finalmente, a defunta devidamente sepultada. Sara morrera com a idade de trinta e sete anos e Avram, seis anos mais velho do que ela, alcançara os quarenta e três anos, cheio de força e vigor, tendo au­mentado ainda mais suas ovelhas.

O filho de Avraham, Itzchak, estava com dois anos e era uma criança adoentada, apresentando um estado crônico de asma e do­enças pulmonares. A criança parecia ser fraca do pulmão, e, como conseqüência, era magra e frágil. Afora esse fato, era esperta e viva, falando quase tudo e dando enorme alegria ao pai, que via nele o se­guidor de sua fortuna.

Com a morte e o subseqüente sepultamento de Sara, Avraham voltou a tocar sua vida, ampliando ainda mais seus rebanhos com excelentes compras de carneiros, indo, desta vez, buscar sangue novo não só na Anatólia, como também comprando de mercadores que iam para o Kemet, rebanhos inteiros provenientes do planalto do Irã. A miscigenação deu excelentes resultados, revigorando em muito o seu rebanho, tornando-o mais forte e salutar.

 

Capítulo 4

Oito anos se passaram desde a morte de Sara, e, naquele tem­po, Avraham mandara construir um poço numa localidade próxima de uma de suas áreas de pastagem. A região era propícia, só que a água era escassa. Os homens armados de Abimelec, sem ordem do rei, vieram e expulsaram os pastores de Avraham, tendo matado um deles. Os pastores correram e avisaram Avraham, que logo enfure­ceu-se. Reuniu seus pastores guerreiros em número de mais de mil e dirigiu-se para Gerara, disposto a enfrentar a tropa de Abimelec.

No meio do dia seguinte à morte do pastor, a cidade de Gera­ra estava cercada e Abimelec soube do fato e chamou seu general Ficol.

- O que houve para que Avraham nos cerque e nos ameace dessa forma? Sempre foi nosso aliado. Descubra logo. Não quero guerra com este homem. Sinto-o poderoso e acompanhado de um deus que lhe satisfaz todos os desejos.

Ficol saiu e falou com alguns de seus soldados. Descobriu o in­cidente no poço. Nesse instante chegou uma comissão de três pasto­res de Avraham que traziam uma mensagem para Abimelec. Os ho­mens foram levados à presença do suserano, que escutou a arenga dos plenipotenciários de Avraham. Entre eles estava o tartan de Avraham, seu braço direito, Eliezer, o damasquino, que passou a fa­lar com Abimelec, na sala do trono.

- Nosso mestre Avraham envia-lhes suas saudações e pergun­ta-lhe que mal lhe fez para que seja tratado com tamanha crueldade e desleixo. Não lhe tem pago os impostos com regularidade? Não tem engrandecido a sua terra com uma tropa de valorosos homens? Não tem proibido e coibido qualquer abuso de seus homens contra Gerara? Deseja, pois, saber por que é penalizado por ter cavado um poço que dará de beber não só ao seu rebanho e pastores como tam­bém a qualquer homem da região. Um dos nossos melhores e mais esforçados pastores foi morto por seus soldados, e esta não é a pri­meira vez que um incidente desta natureza acontece. No passado, outros dos nossos homens foram feridos gravemente, sem morte, no entanto, por seus homens, que os expulsam da cidade, das tavernas e da casa das mulheres fáceis. Contudo, são esses pastores de modos rudes e de coração transbordante de zelo que, ao fazer aliança com meu mestre Avraham, você jurou proteger.

Abimelec, já a par do assassinato e da forma como fora prati­cado - por um bêbado e sua malta descomedida - levantou o braço pedindo que cessasse a alocução e disse:

- Caro Eliezer. Eu, Abimelec, rei de Gerara, sou amigo de Avraham e desejo-lhe todo o bem do mundo. Não desejo altercações com meu mais caro vassalo, e, para tal, desejo que o convide a vir em meu palácio para conversarmos não como rei e súdito, mas como dois irmãos.

Eliezer, já prevenido contra essa possibilidade, respondeu ao rei:

- Ó, grande Abimelec, rei de Gerara, líder dos valorosos hurritas, meu amo e senhor Avraham montou uma tenda e mandou tra­zer os mais novos terneiros, as mais doces tâmaras, as uvas mais rubras e os vinhos mais doces e gelados. Mandou preparar pães e confeitou doces apenas para rejubilar-se com sua presença. E repetirei palavra por palavra e que me disse: Diga ao meu suserano e senhor Abimelec que o espero com seu general e o seu tartan para conferenciarmos sobre esse grave incidente. Diga que por enquanto o vinho é doce e a conversa será amena. Mas que, como todo vinho, poderá se transformar em vinagre de gosto ácido e que antes que isso aconteça é importante que ele compareça a minha tenda de paz. Ninguém le­vantará a mão, e digo isso em nome de Yahveh, meu mui poderoso deus.

Abimelec tinha duas opções. Aceitar e discutir os termos de um novo acordo ou lutar. Ele tinha perto de três mil soldados, só que mais da metade estava fora e os que tinham permanecido em Gerara eram gordos e mal-armados. Os mil pastores de Avraham eram mais potentes do que o dobro de seus homens. Além disso, a cidade estava mal-protegida. As muralhas ofereciam brechas que não iriam atranqueirar um ataque. Por outro lado, Abimelec temia o deus de Avraham, pois vira que era poderoso, fazendo nascer crian­ças de uma mulher estéril, sarando as feridas de Avraham com rapi­dez e dando-lhe uma fortuna incalculável. Avraham, antes de ser um patriarca, era um ricaço.

- Diga ao meu mui amado súdito Avraham que aceito seu amável convite e estarei lá na hora em que o sol começar a cair. Irei com pequena guarda, sempre confiante na promessa que me foi fei­ta pelo seu poderoso deus Yahveh.

Na hora marcada, Abimelec compareceu, acompanhado de Ozocat, seu tarlan e Ficol, seu general. Avraham, um homem que já tinha alcançado os cinqüenta anos, barbas v cabelo quase todo bran­cos, parecendo mais velho do que era, estava na entrada da tenda. Recebeu os três com especial deferência, introduzindo-os na enor­me barraca.

No seu interior, coberto de finos tapetes, vindos do Kemet, Suméria e Pérsia, além de mobília requintada, com mesas baixas onde estavam depositados e arrumados copos de ouro e prata, co­xins de tecidos lustrosos e de desenhos bizarros estavam espalhados por todos os lugares. Havia quatro mulheres madianitas, seminuas, escravas vestidas com roupas exóticas que estavam lá para atender aos menores desejos dos convivas.

Sentaram-se em volta de uma mesa baixa e iniciaram as conversas. Como bons jogadores falaram um pouco de tudo; do tempo, da seca permanente, dos impostos kemetenses e da distante terra dos hurritas. A conversa, regada a vinhos suaves e doces, já ia às altas horas, quando Abimelec entrou no assunto propriamente dito.

- Avraham, sua presença nas minhas terras sempre foi cheia de percalços e acidentes. Primeiro, meus homens tomaram sua mulher, e, por pouco, não teriam feito dela uma escrava. Segundo, você defendeu essa terra contra os amoritas de Cordolaomor, com vitóri­as que serão cantadas em prosa e verso por todos os séculos. Aqui teve o seu almejado filho com a bela Sara de tão doce recordação - que os deuses a guardem. E agora, esse terrível incidente.

- Como de fato, meu rei e senhor, protetor de Gerara e amado Abimelec. Aqui me estabeleci para ser feliz e próspero e o sou, em parte graças à generosidade de seu reino de paz. No entanto, há sempre uma nuvem a empanar o brilho do sol, e esse brutal e des­temperado assassinato de um leal súdito não deve ficar impune. Se­ria um convite a que os demais se achassem no direito de fazerem o que bem desejarem.

- Avraham, meu irmão. Não prolongue esse assunto que já foi resolvido. - O rei, virando-se para o general, meneou a cabeça. O soldado levantou-se e voltou em poucos segundos trazendo algo envelopado num pano sangrento. Colocou o pano sobre uma mesa ad­jacente, e Ficol disse, cheio de pompas e mesmas:

- A justiça de meu senhor Abimelec será conhecida pelos sécu­los. Uma morte infamante deve ser paga com a mesma moeda.

Destampando o pano, mostrou a cabeça decepada do preten­so assassino. Avraham olhou-o com desdém e virou-se para o rei, que o impediu de falar.

- Sim, já sei o que irá dizer. A família do pastor receberá todos os bens do assassino e seu filho mais velho será escravo por sete anos na casa da vítima. Isso lhe satisfaz, meu caro Avraham?

O patriarca assentiu com gestos de humildade e quando ia começar seu parlatório, mais uma vez Abimelec o interrompeu, dizen­do-lhe, enquanto tocava o seu braço com extrema amizade: - Não diga nada, meu amigo e irmão. A justiça foi apenas feita nesse caso. No entanto, há mais coisas a serem feitas entre nós. É de meu desejo que seja firmada nova aliança entre nós.

- Será para mim motivo de orgulho e felicidade. Não há nada que desejo mais do que viver em paz na terra do meu rei.

- Eu é que desejo viver em paz com você, que tem sido um fiel súdito e um vassalo acima de qualquer repreensão. Só que quero mais do que uma simples aliança onde mataremos um carneiro para comemorar. Aspiro a que o meu sangue corra junto com o seu nas veias de descendentes comuns. Quero que seus filhos sejam meus fi­lhos e que eu possa colocá-los no meu colo e beijá-los, já que terão meu sangue também.

Avraham espantou-se. Como isso iria se processar? Abimelec falara em sentido figurado? Esses hurritas têm hábitos estranhos e não os conheço todos - pensou cautelosamente.

Abimelec, vendo a confusão estampada na cara de Avraham, sorriu e disse-lhe:

- Selemos nosso pacto com um casamento. Você ainda é um homem forte e viril, mesmo que suas cãs estejam brancas e por isso, desejo que você se case com minha irmã mais moça. Ela é uma vir­gem radiante, de nome Cetura.

Avraham não podia estar mais abestalhado. Sua boca estava aberta de forma grotesca e seus braços haviam caído sobre suas per­nas cruzadas. Como recusar uma aliança dessa natureza? Tornar-se-ia um nobre, por afinidade, dos hurritas. Seus filhos teriam sangue hurrita e caldeu. Que melhor mistura poderiam querer?

Eliezer, que participava da reunião desde o início, intercedeu rapidamente. Temia que seu senhor não aceitasse o pacto, recusan­do casar-se com Cetura. Seria guerra, sem dúvida. Até onde ia o amor do homem pela sua defunta mulher?

- Ó! Grandes senhores, meu mestre Avraham não poderia querer melhor e mais duradoura aliança com o magnânimo rei de Gerara, pai dos poderosos hurritas, o imorredouro Abimelec. Que os séculos futuros lhe cantem a glória e saibam que aqui, na terra de Canaã, houve um rei que preocupou-se mais com a paz do que com as sangrentas conquistas da guerra. Que o doce e amável Abimelec entre na história como sendo mais do que um rei, e sim, verdadeira­mente, um pai para seu povo.

Nada como a lisonja para consolidar uma amizade. Abimelec era astuto, porém não gostava da guerra. Era um intelectual que preferia as discussões acadêmicas do que as campanhas. Uma boa mesa com vinho gelado, uma cama macia com uma mulher quente e uma infindável discussão sobre os deuses, seus caprichos e a existên­cia humana, isso, sim era Abimelec.

A intervenção de Eliezer foi providencial. Com seu discurso deu tempo de Avraham refletir sobre a situação. Sim, sua meiga e adorada Sara era um obstáculo em sua mente. Sua primeira idéia se­ria declinar de tamanha honra. Jamais sua mulher aceitaria que se casasse com outra. No início de sua vida conjugai provavelmente sim, pois não havia amor entre eles. Mas após passarem por tudo, a separação no Kemet, a descoberta do sexo ardente e temperado com um inexcedível amor, aquele casamento com uma virgem hurrita era impensável. Teria que recusar, mas o astuto e fidelíssimo Eliezer já aceitara por ele. Como recusar? Com guerra? Mau para os negócios. Afinal, possuir fisicamente uma linda jovem e gerar-lhe fi­lhos não era nada tão terrível assim.

Avraham falou. Sua voz estava embargada pela comoção in­terna de ter que aceitar uma nova esposa e sepultar em definitivo a estonteantemente bela Sara.

- Grande rei, amigo, irmão e agora cunhado. Nada mais pos­so dizer a não ser que pertencer à sua família é motivo de inexcedí­vel honra para qualquer homem.

Os dois homens abraçaram-se. O astuto rei conseguira mais do que imaginara. Avraham deu-lhe, como compra da noiva, duzen­tos carneiros e selou o acordo com mais trinta novos terneiros, que foram sacrificados no dia do casamento. O poço, pomo de discórdia, foi batizado como beer-cheba, ou seja, poço do juramento, e, para tal, sete outros cordeiros foram mortos em volta para apaziguar o espíri­to do assassino e da vítima, que as pessoas diziam vê-los sempre em volta, lutando e discutindo infindamente.

O casamento foi feito três luas depois e vários príncipes cananeus e hurritas vieram de longe para homenagear Abimelec, e, prin­cipalmente, Avraham. Por que tanto rapapé para um simples pastor de ovelhas? Porque era imensamente rico e a riqueza é poder. Com uma única palavra, Avraham podia levantar um exército de cinco mil homens, marchar contra qualquer reizete e esmigalhar sua cida­dela. Além disso, seus carneiros, uma tropa enorme de cabeças, ali­mentavam milhares de seres em Canaã, Kemet e Síria. O homem tornara-se um poder inconteste na região. Melhor que fosse bem-tratado e que fosse permitido que pagasse seus impostos que parecia não ter pejo em quitar anualmente de forma branda, gentil e gene­rosa.

Cetura chorou durante alguns dias antes do casamento. Casar com um velho de barba branca! Que horror! Quem se incomodou com suas lágrimas? Suas aias e amigas de palácio, provavelmente. No dia do casamento, ela estava imperturbável e calma, como se es­tivesse possuída de uma fleuma indevassável. A cerimônia, com sua pompa hurrita, tão atlante na origem, cheia de mesuras e grandiosi­dade, arrastou-se cansativamente por grande parte da noite.

Cetura dormiu virgem, naquela noite.

Dois dias depois, Avraham entrou em sua tenda, após se fazer devidamente anunciar e trouxe-lhe presentes e tecidos tão lustrosos que jamais vira nada parecido. Era seda que viajara de terras de nome estranho para paramentar a gentil donzela. E ouro. Ouro em profusão, em colares, brincos e anéis. E a cada presente de beleza ímpar, a jovem Cetura vibrava, acedendo seus belos olhos, admiran­do cada peça e gostando do oferecimento e do presenteador.

Avraham soube acalmá-la com belos presentes e palavras ain­da mais belas, e, aos poucos, levou-a ao leito nupcial. Cetura era de uma beleza diferente de Sara. Tinha os cabelos castanhos dourados com laivos de cobre, os olhos de um azul profundo e uma pele bran­ca com sardas dispostas de forma agradável. Ela tinha seios peque­nos de bico rosado, que Avraham jamais havia visto.

Avraham levou um longo tempo beijando-a e regalando seus olhos com a visão de tamanha formosura. Cetura fechou os olhos, e, tremendo, foi se submetendo às carícias do homem. Sentiu aos pou­cos uma ternura e um carinho que ninguém jamais lhe houvera dado. Era meia-irmã de Abimelec, e, por pouco, não fora parar na sua cama como mais uma concubina de seu palácio. Por sorte ou azar, viera parar nos coxins macios daquele homem estranho, de barba branca, que, aos poucos, a estava seduzindo com carícias e pa­lavras doces, brandas e macias como as sedas com que lhe presentea­ra.

Cetura transformou-se numa mulher completa naquela mes­ma tarde e por uma dessas coisas do estranho destino, Avraham apaixonou-se por ela, com um amor doce, meigo, quase de uni pai por uma (ilha. Por sua vez, nos meses que se seguiram, Cetura aprendeu o significado da palavra prazer, de tanto que aquele ho­mem imponente a levava ao clímax. Para cada explosão que seu cor­po sentia, Cetura devotava um pouco mais de amor por aquele incomparável amante, até que descobriu que não poderia mais viver sem sua presença, sua voz grave e seu cheiro acre-doce de suor e fragrâncias exóticas dos óleos canforados que usava para suavizar sua tez no afã de agradar a jovem esposa.

Cetura tinha filhos com uma facilidade impressionante, sendo cada um mais forte do que outro. Era uma mistura de pele azeitonada e moreno cujos olhos azuis e cabelo acobreados pareciam predo­minar sobre a genética de Avraham. Não eram os filhos de Avra­ham, eles eram os rebentos de Cetura; mil vezes mais fortes e belos do que o frágil, doente e débil Itzchak. Afora as quatro meninas que Cetura tivera, a vigorosa mulher lhe daria mais Zamrã, Jecsã, Madã, Madian, Jesboc e Sué, num total de dez filhos em doze anos. E se não fosse pela morte de Avraham, estaria ainda enchendo o mundo de filhos robustos e bonitos, como ela mesmo o era.

Para Avraham, esses filhos eram a luz de seus olhos, a alegria de viver enquanto que seu coração se confrangia com Itzchak e tudo isso se devia ao fato de ser o único filho de Sara - sua paixão - e tam­bém a um fato estranho na sua vida que o faria recrudescer ainda mais sua inabalável fé em Yahveh.

No período entre a morte de Sara e seu novo casamento com Cetura, Itzchak e ele tornaram-se muito aconchegados. Onde o pai ia, lá ia o filho de oito anos. Numa dessas andanças durante o dia, perto da hora de o sol recolher-se, caiu uma tempestade que pegou pai e filho desprevenidos. Ficaram completamente ensopados. O vento frio, cortante, que acompanhava a borrasca, enregelou-os até os ossos.

Chegaram ao acampamento principal, com mais de duas ho­ras de atraso. Itzchak, enfraquecido por um longo dia de andanças e mais a procela, tiritava de frio e já demonstrava os primeiros sinais de uma pneumonia dupla. Durante a noite, a criança, apartada do pai, piorou sensivelmente com um lebrão de queimar a testa. Avra­ham só foi avisado de manhã cedo por uma das aias que seu filho es­tava muito doente.

Naquelas épocas remotas, onde a medicina ainda não encon­trara seu caminho científico, ela era praticada por curadores e feiticeiros. Contudo, nenhum feitiço ou encantamento foi capaz de acor­dar a criança que tinha entrado em estado de choque devido à altís­sima febre. Sempre fora frágil, provavelmente fruto de um casamen­to consangüíneo e de mãe relativamente idosa para ser primípara. Em suma, a criança era propensa a febres, especialmente ataques asmáticos. Com a chuva e o vento frio da tempestade e a queda da temperatura, o menino adoecera gravemente. Estava inelutavelmente a caminho da morte.

Durante o dia inteiro, Avraham não saiu do lado do garoto, segurando-lhe a mão, vendo-o se tornar cadavérico, quase gelado, enquanto não havia cobertas de peles de carneiros suficientes para esquentá-lo enquanto badalejava os dentes de intensa friagem que o invadia. Gemia baixinho e não respondia aos apelos paternais.

No final do dia, Avraham convenceu-se de que o filho iria morrer. Eram os desígnios de Yahveh. Não havia o que discutir ou chorar. O Senhor dá, o Senhor tira. Avraham, nessa hora, convicto da fatalidade que se aproximava e crendo ser um castigo divino, ini­ciou uma longa oração ao seu deus Yahveh.

Ele lembrara que Yahveh exigia de tempos em tempos sacrifí­cios sangrentos. Em Hurri, lhe haviam oferecido um recém-nasci­dos, do qual ele teve horror em aceitar, mas alguns alambaques renitentes aceitaram de bom grado. No entanto, este tempo já se havia passado. Os fluidos vitais de animais ou homens já não lhe eram mais agradáveis. Ele mudara. O amor de Avram o fizera mudar. O apoio de Orofiel o transmudara. O sofrimento o transformara.

Avram não sabia disso, pois ele pensava que Yahveh ainda era o deus colérico e facinoroso das lendas hurritas. Portanto, crendo que o deus desejava o espírito de seu filho, ele começou rememoran­do tudo o que lhe acontecera e de como o deus entrara em sua vida. Lembrou-se de Haran, das discussões com seu pai e viu nisso motivo de pecado, e por isto, agora o deus o estaria punindo. Não devemos discutir com pai e mãe; é a conclusão que Avraham tirou. Porém, sob o impacto do momento, com a mão pequena e quase translúcida do filho adorado - já não tem mais Ismael perto de si para amá-lo - continuou a atormentar-se.

Seu ato de contrição deve prosseguir e vê o fato de ter coloca­do a própria mulher na alcova do faraó como um crime contra Yahveh. Sim, é verdade, pecara gravemente contra a instituição do ca­samento. Usara a mulher em beneficio próprio. Fora um crápula e arrependia-se profundamente. É verdade que havia a leve atenuan­te de ter ido buscar a mulher na casa do monarca, recomeçando uma nova vida com ela.

Avraham continuou seu exame de consciência, encontrando inúmeras falhas. Via em todos os seus atos, por menores que fossem, motivos para que Yahveh o punisse. Subitamente, a criança come­çou a arfar pesadamente, apresentando uma dispnéia e baixos ge­midos estertorantes.

- Oh, poderoso Yahveh, meu filho morre. Por minha causa, pelos meus pecados, pela minha insânia de me tornar poderoso a qualquer preço. Oh, doce Yahveh, meu deus, meu Senhor, seja mi­sericordioso e permita que meu filho se vá sem sofrimento. Entendo que sou responsável pela sua morte. Não mereço tal criança e con­cordo que, para ter um filho doce como ele, seria preciso que eu fos­se um homem puro e generoso, e não, um ser egoísta e inescrupuloso como eu sou. Leve-o já, sem fazê-lo sofrer mais do que já padeceu. Ele não merece sofrer. Mas faça recair sobre mim toda a dor e a ig­nomínia de meus pecados e meus erros, pois, mesmo assim, conti­nuarei a ser seu humilde servidor.

Na tenda, no meio da noite fria, um pai desesperado, ajoelha­do ao lado de seu miúdo filho, que está praticamente morto, segurando-lhes as mãos geladas e já levemente azuladas, se vê subita­mente deslumbrado por uma intensa luz, que invade o ambiente. Avraham assusta-se com a aparição e ajoelha-se, tendo o moribundo filho ao seu lado. Do meio da luz aparece apenas a parte superior de um ser ao mesmo tempo estranho e belo. Seu corpo é dourado, enorme - uns três metros de altura - seus cabelos longos são casta­nhos, com raias de fogo como se estivessem em combustão. Seus olhos são azuis claros, diáfanos e está aparentemente vestido com uma túnica branca, coberta com uma couraça feita de escamas de ouro. A parte inferior de seu corpo desaparece numa espécie de nu­vem e não pode ser percebida. A sua cabeça é coberta por um barre-te branco, do qual saem cabelos brancos como a neve. E Orofiel pro­jetando sua magnificência.

Avraham sabe que não é Yahveh, pois eleja o tinha visto an­tes, e intuiu que se trata de um emissário do seu deus. O que não pode ver é que a tenda está completamente cheia de espíritos que trabalham para recuperar a saúde debilitada do infante. Uma série de aparelhos espirituais de tecnologia avançadíssima está sendo fi­xadas na criança. Os espíritos superiores têm planos mais elabora­dos para Itzchak do que apenas a sua prematura morte.

A imagem do arcanjo fala a Avraham:

- Yahveh, teu deus, não deseja a morte de teu filho pelos peca­dos que cometeste no passado. Nosso deus é um pai de bondade e de amor que jamais pune os filhos pelos erros dos pais. A cada um é dado de acordo com sua obra e seu mérito. Ouve a voz do Deus que te tirou de Ur na Caldéia e trouxe-te a estes rincões.

E, como se uma voz tonitruante explodisse no interior da ca­beça de Avraham, ele escutou:

- Avraham, Avram filho de Tareh, tenho te cumulado com mi­nhas benesses e só tenho te cobrado lealdade à minha pessoa. Dese­jo que, de hoje em diante, jures sobre o corpo de Itzchak, teu adora­do filho, que irás divulgar a todos a grandeza de uma única divinda­de e todos os que adorarem esse Deus tornar-se-ão teus filhos. Para esta descendência, a farei ser próspera e possuidora da Terra. Aos que adorarem estranhos deuses e trevosos demônios, os levarei para outra paragem, onde estrebucharão de ódio e rancor, de dor e superlativo sofrimento até que, não suportando mais, volverão ao ca­minho espinhento que leva ao todo-poderoso.

Subitamente, tudo ficou calmo e tranqüilo e uma voz fina, mi­úda e melodiosa, disse baixinho:

- Papai, quero água.

Avraham despertou de seu êxtase e viu seu adorado Itzchak, sentado na cama, olhando-o com seus belos olhos negros, como se não tivesse tido absolutamente nada.

Ó, inefável alegria. Quantas lágrimas foram derramadas de intenso júbilo pela recuperação do menino. Avraham levantou-se, abraçou o filho, de tal modo convulsionado por lágrimas e soluços, que assustou o rapagote e, tomado de uma ensandecida alegria, co­meçou a gritar, chamando por servos e amigos, despertando todo o acampamento.

Naquela noite, os pastores de Avraham foram possuídos da mais viva explosão de alegria. Um Avraham tresloucado de alegria distribuiu graciosamente mais de mil e seiscentos cordeiros entre seus amados pastores e mandou matar uma centena para festejar a vitória de Yahveh sobre a morte, mostrando que o poder de Deus é maior do que qualquer doença na Terra.

A vida de Avraham mudou muito depois daquele fato. Se an­tes já cria em Yahveh, agora tornara-se o mais fanático dos prosélitos. Começou a divulgar a doutrina da superioridade de seu deus a todos os presentes. Inúmeras vezes, para impressionar os ouvintes, ele falava de Yahveh, exagerando suas potencialidades, e seus feitos o que deixava todos estarrecidos. Era um deus ou demônio? Pelos exageros e até certas mentiras de Avraham, seu deus se tornara mais parecido com um alambaque do que com uma divindade. Não era ele capaz de matar sem pestanejar? Não era ele capaz de distribuir benesses a um e maldições a outro? Não era ele capaz de secar um poço e matar uma comunidade inteira da qual ele odiava, enquanto salvava da morte certa um terneiro, apenas para contentar um aficionado? Ele não destruíra as cidades de Sodoma e Gomorra apenas porque naquelas cidades não existiam adoradores de seu imenso poder? Mas não salvara Lot de morte certa apenas porque ele se cur­vava humildemente e lhe oferecia as melhores pombas e as belas fru­tas da região? No entanto, os espíritos da falange de Yahveh não fa­ziam nada disso, mas Avraham, com o intuito de demonstrar paten­temente que seu deus era mais poderoso, mais forte e mais terrível do que os demais, imputava características a Yahveh que ele não ti­nha. Sem o saber, ele estava transformando Yahveh num demônio de tétricas maldades que só o tempo e muitos profetas iriam desfazer, dando-lhe a verdadeira feição de amantíssimo pai.

Avraham ia de cidade em cidade, sendo ouvido com atenção, por ser poderoso e também porque em sua voz havia tamanho fer­vor religioso, um amor desmesurado e destemor por tudo e todos que até os reis das terras achavam por bem não o impedir de falar o que bem entendesse, mesmo quando os sacerdotes locais iam quei­xar-se acerbamente de seu comportamento destemido.

Algumas vezes, Avraham era dominado mentalmente por Yahveh, que falava através de sua boca. Desse modo, mesmo sem co­nhecer o vilarejo a que chegava, começava a contar os problemas que afligiam os moradores, tirando espantadas e assombradas ex­clamações de surpresa dos presentes. Avraham tornara-se mais do que um simples medianeiro entre os espíritos e os homens, tornara-se o pai da região, aquele de quem os pobres e desvalidos iam procu­rar ajuda contra a insídia dos poderosos. E ele tomava as dores dos infelizes como se fosse a sua e ia enfrentar os chefes de cidades com tamanho destemor e petulância que não podia se encontrar em seu comportamento nenhuma outra explicação a não ser de que tinha tamanha fé em seu deus, sabendo que nada lhe aconteceria.

Os poderosos locais tremiam, pois tinham medo da insânia daquele homem majestoso, de modos imperativos, de voz cortante e que apontava o dedo desassombradamente para eles. Os menos cré­dulos, por sua vez, o temiam; sabiam que podia levantar um exército com um simples aceno de sua mão e com sua fortuna poderia trazer militares mercenários de Hitta, Sumer, Hurri, Madian e Assur.

Após o casamento com Cetura e a enxurrada de filhos saudá­veis que começaram a vir, Avraham, sempre preocupado com a saú­de de Itzchak, sentindo que se aproximava a idade fecunda do jo­vem que beirava os dezoito anos, veio conversar com seu confidente e amigo Eliezer, o damasceno.

- Estou sempre preocupado com a saúde de Itzchak. Passa­ram-se quase dez anos quando Yahveh, meu grande deus, colocou-me à prova, exigindo meu filho em holocausto. De lá para cá, tenho-o observado atentamente. Comparo-o com meus outros filhos e vejo que é menos robusto. Cetura me dá filhos enormes e fortes. Ficarão maiores do que Itzchak. Tenho medo da descendência dele. Será que serão fracos como ele?

Eliezer olhou-o e lentamente desviou o olhar, procurando in­ternamente a resposta. Após alguns instantes, respondeu cuidado­samente, como se procurasse palavras que não ofendessem seu mes­tre e amigo Avraham.

- Há muito tempo atrás, nossos rebanhos estavam fracos e só davam rebentos que andavam com dificuldade. Sua carne era magra e morriam com facilidade. Nesses tempo, ainda no Kemet, meu mestre teve a idéia de buscar carneiros em outro lugar que fortalece­ram a raça e devolveu-lhes o perdido vigor. Os homens são o mes­mo. Receio dizer-lhe que a mistura do seu sangue com o de Sara produziu um inteligente, arguto e esperto Itzchak, mas que não é uma fortaleza de saúde. No entanto ...

- Se eu misturasse com sangue novo, teria rebentos mais for­tes - Avraham interrompera a explanação de Eliezer. Claro! Era tão óbvio que não sabia como não pensara nisto antes.

Os dois pararam de falar por um instante. Eliezer, satisfeito em não ter melindrado Avraham; qualquer alusão desairosa a Sara era sempre mal-recebida. Avraham pensando em onde encontrar tal sangue bom. Após pensar um pouco, sentados à frente da tenda, no final de mais um dia pachorrento, Avraham recomeçou a falar com seu amigo.

- Eliezer, vou incumbi-lo de uma grave missão. Quero que encontre uma noiva para meu filho. Eu mesmo iria; no entanto, se fos­se, criaria mais problemas do que solução.

- Entendo, meu mestre. Há muitas belas mulheres aqui em Canaã e não...

- Não, absolutamente não. Não quero em nenhuma hipótese que Itzchak se case com uma mulher de Canaã. Não deve ser hurrita e muitos menos uma cananéia com olhar brejeiro que existem tantas por aqui.

- Mas por quê? São robustas e dão ótimos filhos. Veja seu caso. Seu filho Zamrã é um touro de forte com apenas nove anos. Seus ou­tros filhos não ficam atrás.

Avraham queria um filho de sua própria descendência. Se pudesse teria casado Itzchak com uma meia-irmã, mas a sua filha com Cetura tinha apenas dois anos e temia que Itzchak jamais vivesse tanto para esperar que se tornasse núbil. Pensando, Avraham, arti­culou um plano. Com o olhar esfogueado por ter tido uni insight, co­meçou a dissertar para um Eliezer aturdido:

- Você irá a Haran e procurará pela descendência de Nacor, meu irmão. Lá chegando, deverá encontrar uma mulher de beleza rara, daquelas que obscurecem a luz da manhã, e trazê-la para casar-se com meu filho Itzchak.

- Mas mestre, e se a moça não quiser vir comigo?

- Ora, isso não deverá acontecer.

- Por que não?

- A razão é simples. Você irá com uma escolta de duzentos e cinqüenta dos meus melhores pastores-soldados e mais doze came­los, lotados de objetos de ouro e prata, tapetes de beleza jamais vista, móveis de Byblos e linhos finos de Kemet. Além disso, levará um dote de mil e quinhentos carneiros para a família dela.

Elizeu, quase pulando da cadeira que o abrigava, vociferou:

- Mestre, isso é um absurdo inqualificável. O que quer que leve como dote é uma fortuna equivalente a de um tati de um faraó. Nem certos reis de Canaã tem tanto. Por esse preço podemos comprar duzentas mulheres em Ur, em On, em Ouaset, em Damasco, minha terra. Será que uma mulher vale tanto quanto isso?

- Ora, Eliezer, isso é apenas dinheiro. Ainda me sobrará mui­to mais do que estou enviando. Conheço a minha raça. Somos todos gananciosos e isso eliminará qualquer resistência da moça ou do pai, ou eventualmente, de meu irmão Nacor, se ainda estiver vivo. Quem não iria vender a filha por esse tesouro?

- Não o compreendo, meu mestre e amigo. Você aceita consorciar-se com uma filistéia e lhe enche a barriga de filhos. Cada um que nasce é mais forte e belo do que o outro, e sei que é sua alegria de viver. Já para seu filho Itzchak, que só tem lhe preocupado com doenças e debilidades, quer gastar o que qualquer homem levaria várias vidas para construir.

- Eu passaria minha vida a lhe explicar e mesmo assim você não entenderia.

-Tente, quem sabe se não sou tão limitado assim - disse Elie­zer, com certa jactância.

- Não se ofenda, amigo Eliezer. Não se trata de inteligência, pois sei que nesse ponto você é até mais dotado do que eu, mas de sentimento. Tenho por Itzchak uni amor que não tenho pelos ou­tros, que me dão até mais alegria. Itzchak é sofrimento, é a amálga­ma de minha vida com Sara. Ela foi minha mestra, minha luz, minha guia. Foi com ela que descobri o que é o amor. Foi com ela que me humanizei e foi através do amor que tive por ela, e depois por It­zchak, que o grande Yahveh consolidou sua escolha sobre mim. Sin­to que estou destinado a ser o patriarca de uma grande raça. - E, inflamando-se ainda mais, Avraham arrematou - e mais do que um aglomerado de pessoas, pois isso é perecível, serei o patriarca de um conceito, uma idéia - que é imorredoura - a de termos todos um único Deus como origem comum.

Eliezer olhou-o mais uma vez admirado. O homem transfigurava-se sempre que falava em Deus. Resolveu mudar de assunto an­tes que Avraham começasse seu proselitismo.

- Como encontrarei essa prendada virgem em Haran?

- Yahveh enviará um emissário, um anjo que o guiará e que lhe apontará a mulher certa para meu filho.

Eliezer sabia que era inútil discutir com Avraham quando esse se tomava de fervor religioso. Nem o fogo dos infernos, nem as trombetas do céu seriam capazes de trazê-lo à Terra naqueles ins­tantes. Eliezer pensou e, antes que pudesse formular a questão, Avraham, parecendo ter lido seus pensamentos, respondeu-lhe:

- Se a mulher não quiser vir de livre e espontânea vontade, você estará livre do seu juramento para comigo, devendo trazer ou­tra que esteja dentro de seu julgamento, desde que seja originária de Haran ou da terra de Tareh, meu pai.

Eliezer levantou-se para preparar a caravana para partir den­tro de alguns dias e ainda escutou Avraham vaticinando:

- Mas isso não acontecerá.

Alguns dias depois uma longa e bem-armada caravana come­çou a deslocar-se de Beer-Cheba, onde ficava o acampamento prin­cipal de Avraham, e dirigiu-se para o nordeste. Passaram por Quiri-at-Arbé, desviaram-se da fortaleza de Shalaim, dirigiram-se para Jope e margearam o mar durante vários dias, e o abandonaram na altura de onde seria construída a futura cidade de Antióquia, diri­gindo-se para Haran.

A longa e estafante viagem levou pouco mais de dois meses e nada aconteceu de excepcional. O rebanho foi conduzido por mãos experientes que o tangiam gentilmente para não cansá-lo e fazê-lo definhar em excesso. Chegaram em Haran inteiros e acrescidos de alguns filhotes. Eliezer e sua tropa logo chamaram a atenção da po­pulação de Haran pela quantidade de pessoas fortemente armadas, pelo luxo extraordinário das tendas e pela figura diferente que era Eliezer.

Ele era um homem alto, magro, levemente curvado, de nariz adunco pronunciado, tez azeitonada bem escura, olhos pretos de cílios pronunciados e uma vasta cabeleira anelada negra e caída sobre os ombros. Tinha uma das orelhas furadas onde um brinco de ouro lhe adornava o semblante. Usava uma longa túnica de algodão dra­peado com fios de seda multicolores, com um cinto de couro, grosso, onde repousava uma adaga recurva numa bainha de couro com pe­quenas pedras incrustadas. Assim como os orientais de então, não tornava banhos de forma assídua e compensava seus odores com perfumes exóticos cuja amálgama com suas fragrâncias naturais ti­nha um aroma agridoce insuportável. No entanto, as mulheres o achavam estranhamente belo e interessante, exatamente pela sua forte transpiração. Tinha uma fala macia, podendo conversar em várias línguas da região. Seu raciocínio era especialmente arguto do momento em que se tratava de negócios. Avraham deixava que ele fizesse todas as negociações; sempre conseguia preços melhores com condições de pagamento mais elásticas. Tornara-se imensa­mente rico, já que o generoso Avraham sempre destinava-lhe exce­lentes percentuais de todos os assuntos comerciais. Tinha um pe­queno harém onde quatro beldades dedicavam-lhe toda a atenção, locupletando-o de todos os desejos que porventura tivesse.

Eliezer foi procurar o chefe do Conselho dos Anciões e explicou-lhe que representava o nobre Avraham, alto dignitário das ter­ras de Canaã, amado do deus Yahveh, o poderoso, que procurava pela sua família, mais especialmente pelo seu irmão Nacor. Todos o conheciam lendo extensa descendência, no entanto, havia perecido alguns anos antes de misteriosa doença. Sua mulher, Melca, ainda vivia e podia ser encontrada na casa de seu filho mais moço, de nome Batuel.

Após pegar a direção da casa, Eliezer dirigiu-se para lá e feita as devidas apresentações, a velha o recebeu com certa restrição.

Melca nunca fora muito amiga de Avraham, vendo no cunhado um inimigo, um leão a espreitar nos arbustos. Temia que matasse seu marido e se apossasse de todos os bens, transformando-a em escrava ou concubina. Ficou aliviada quando foi embora, e agora que ele es­tava de volta na Figura deste homem de pele azeitonada, o que será que o traste desejava?

Eliezer, alertado por Avraham, conhecedor do gênio irascível e dominante daquela mulher, tornou-se melífluo e contou-lhe parte da história. Disse-lhe que Avraham tinha um filho de beleza ímpar, rico como um faraó e que desejava uma noiva de finíssima proce­dência. Eliseu agradou-a com um camelo e tudo o que havia nele, com a condição de que a ajudasse a encontrar a esposa ideal para seu mestre Itzchak.

A astuta matriarca logo definiu em sua mente uma estratégia. Dispensou Eliezer com o intuito de pensar e voltarem a se ver den­tro de um dia ou dois. Assim que ele saiu, ela mandou um servo de Batuel investigar o quanto havia de verdade na história daquele des­conhecido que se dizia falar por Avraham. O servo esgueirou-se até o acampamento e viu a imensa quantidade de cordeiros, camelos, cavalos e onagros que faziam parte da caravana. Antes, contudo, de voltar para contar para Melca, aproximou-se em demasia do acam­pamento para espiar melhor e foi feito prisioneiro por um dos guar­das. Levado à presença de Eliezer, não foi necessário que fosse tor­turado para que contasse sua missão. Eliezer, sagaz e astucioso, viu nisso uma oportunidade de obter informações e, oferecendo algu­mas jóias de real valor, fez com que o espião se transformasse em ex­celente informante.

O servo contou que Melca estava praticamente proscrita do restante dos seus filhos, só sendo aceita por Batuel. A megera era tão tinhosa que conseguira brigar com noras, netos e filhos, sempre por causa de dinheiro. O servo contou detalhes da vida de todos, especi­almente de Batuel e de sua mãe. Mesmo sendo o filho mais moço de Melca, Batuel tinha trinta e seis anos, tendo dois filhos, Labão, um belo rapaz de dezoito anos e Rebeca, uma jovem de quinze anos, de uma beleza estonteante. A mãe morrera no parto de Rebeca e Batuel não se casara novamente, mesmo tendo várias concubinas e muitos outros filhos bastardos.

O servo, um homem maduro, trabalhava para Batuel desde que era pequeno, amando o patrão e detestando a velha, que vivia implicando com ele. Eliezer articulou com o espião uma série de mentiras que deviam ser ditas. Sabia que se revelasse toda a riqueza que estava trazendo, a biltre iria demandar muito mais, complican­do sua vida. Portanto, naquela mesma noite, Eliezer mandava Ofer, o seu mais leal e aguerrido pastor, dividir todo o rebanho, os came­los e os demais itens pela metade e partir para o meio de caminho entre Haran e Aleppo, devendo apascentar a tropa às margens do Eufrates. Enquanto isso, o espião, devidamente instruído por Elie­zer, reportaria à megera a quantidade de coisas vistas, ou seja, pela metade.

No outro dia, Melca mandava chamar Eliezer e apresentava-o a Batuel, um homem cansado, com olhos fundos e rosto encovado, fisionomia depauperada.

- Pensei muito e concluí que a moça ideal para seu mestre Itzchak, filho de Avram ou como o chamam agora de Avraham, é Re­beca, minha nora. Trata-se de moça robusta, prendada e virgem, que poderá ter filhos saudáveis do seu primo Itzchak.

- Tenho certeza de que a sua escolha deve ter sido a mais sábia possível. No entanto, seria interessante conhecermos as demais mo­ças em idade nubente para que quando meu amo perguntar-me como foi feita a escolha, eu possa-lhe dizer que o critério foi de ana­lisar todas as candidatas e tê-la escolhido pela formosura, disposição para ter filhos saudáveis e inteligência.

- Você não está comprando um camelo, meu caro Eliezer. Trata-se de uma moça prendada de família nobre.

Eliezer riu. Ora, a velha não estava lidando com um qualquer. Ele tinha uma longa experiência em negociar com os mais caliginosos comerciantes do oriente.

- Se fosse um camelo seria bem mais fácil e em conta. Não de­sejo ser grosseiro e devo ser insistente; meu mestre Avraham é muito severo. Disse-me ele antes de partir e repito suas palavras assim como foram ditas: "Com o tesouro que estou enviando, Eliezer, você pode comprar uma princesa síria, uma guerreira hurrita, uma dama suméria e uma sacerdotisa do Kemet. No entanto, se meus parentes não tiverem ou não quiserem nos fornecer uma noiva, compre-a do primeiro rei que encontrar ou do sultão que quiser me acolher como parente."

Eliezer tinha a propriedade de falar as coisas mais terríveis com um sorriso encantador e um tom de voz tão doce que até o pior impropério soava como excelsa poesia. A velha entendeu que a rea­lidade era nua e crua: aquele homem viera comprar a sua neta, e era correto e de praxe que isso acontecesse. As mulheres eram mercado­rias e a matriarca deveria se dar por feliz, que tivesse duas netas em ponto de casar. Preferia se ver livre de Rebeca, que tinha um gênio tão miserável quanto o seu, do que a doce Miriam, filha de Feldas, ainda muito menina, com apenas doze anos. As demais já eram casa­das, algumas até com filhos pequenos.

- Se insiste tanto assim, posso chamar as duas para que as avalie.

- Faremos ainda melhor, minha lady. Daremos uma festa onde as mais belas filhas de Haran virão, e, deste modo, poderemos escolher uma com calma.

- Para que isso, meu amigo? Uma festa dessa irá custar uma fortuna!

- Meu amo é rico e não se importa de gastar para ter o que há de melhor.

- Bobagens! Faça uma festa aqui na casa de meu filho Batuel e lhe mostrarei as minhas duas jovens com idade de casar.

Eliezer fez uma cara de triste como se fosse uma criança que tivessem impedido de comer um doce, e disse:

- Está bem! Faremos uma festa íntima. Para quando pode ser? Melca olhou para o filho, que lhe respondeu com um levantar de ombros, como se não se importasse com qualquer coisa. Batuel era um homem carcomido por um neoplasma maligno no fígado e que morria aos poucos cada dia.

- Façamos amanhã à noite. Fornecerei os cordeiros e o vinho, e vocês fornecerão a casa.

Eliezer respondera quando vira que Batuel era um alienado. Sua expressão demonstrava que pouco se importava com o casamento.

As notícias correram, pois Eliezer as fez correr, e algumas ho­ras depois, toda a Haran sabia que iria haver uma festa, onde o enviado de um mercador mui rico iria escolher uma noiva para um nobre príncipe de Canaã.

No outro dia, ao anoitecer, mais de seiscentas pessoas estavam se aglomerando à frente da casa de Batuel. Todas traziam moças ricamente vestidas, ou seria melhor dizer que estavam seminuas, e se acotovelavam para mostrá-las a Eliezer.

A velha quase teve um acesso de raiva quando viu aquele mun­do de gente na porta, querendo entrar e participar de uma festa que era para ser privada. Labão, filho de Batuel, um capelino de maus bofes, desejava sacar da espada e afastá-los a golpes de terçado. Mel­ca o refreou, já que Batuel estava prostrado, lívido de dor, vomitan­do bílis e sangue escuro, não devendo ser incomodado, além da con­ta.

Eliezer viu desfilar mais de oitenta moças, cada uma mais bo­nita do que a outra. Havia algumas feias e gordas, outras excessivamente jovens, e algumas que haviam passado da idade, porém, no seu conjunto, o tartan de Avraham fora atraído por duas que eram de uma beleza estonteante.

A primeira era uma jovem de quinze a dezesseis anos, loura como um trigal, de olhos azuis, doces e levemente tristes. Tinha estatura mediana, por volta de um metro e sessenta, de quadris largos, de coxas grossas e de seios pequenos. Um tipo indo-europeu, prova­velmente proveniente da Ásia Menor, da Anatólia.

A outra era uma moça alta, esbelta, de corpo lançado, de qua­dris largos, cintura fina, pernas torneadas, cabelos fartos em madeixas plenas, de cor castanho avermelhado. Os olhos eram verdes e a tez rosada, quase branca, se não fosse levemente tostada pelo sol. Ti­nha seios fartos e empinados, prenunciando que não faltaria leite para seus filhos. Tinha um trejeito feminil, e, ao mesmo tempo, in­fantil. Uma virgem que só pedia para se tornar mulher.

Eliezer soube que as duas eram a loura Nina, filha de pai sumério e mãe de raça desconhecida capturada por hititas, no Cáucaso, e Rebeca, filha de Batuel, prima de Itzchak. Perfeito, tudo corria perfeitamente. Guardaria Rebeca para Itzchak e levaria Nina para si próprio.

A negociação do preço com Melca foi longa e cansativa. Ela sa­bia o que ele tinha, ou imaginava saber, já que metade fora escondi­da longe dali. Eliezer oferecera a metade do que estava visível e a mulher queria tudo. Durante quatro dias, concluíram e Melca ficou com três quartos de tudo o que estava visível. Eliezer economizara mais da metade da compra. Ele mesmo comprou Nina por um belo preço e a possuiu ali mesmo em Haran, deliciando-se com a jovem loura que não se fez de rogada em agradá-lo. Ela chegaria em Gera­ra com dois meses de gravidez, dando um lindo menino sarará a Eliezer.

A volta foi tranqüila e os maiores perigos residiam em não permitir que os pastores, há tanto tempo afastados de suas mulhe­res, atacassem pequenas aldeias à procura de fêmeas disponíveis.

Eliezer sabia que isso lhe traria desgraça e foi fixado um édito deter­minando que o pastor que violasse uma mulher seria degolado. Após tal mandato, a tropa seguiu calma até Gerara.

Itzchak estava em sua tenda, descansando do almoço e protegendo-se da intensa canícula. A caravana chegou, sendo recebida com estardalhaço por todos, vindo a incomodar o jovem no seu re­pouso da tarde. Desde que quase morrera, Itzchak era tratado como uma bolha de sabão prestes a estourar. Tudo lhe era feito, não só para agradá-lo, como também para que não fizesse força e não se altercasse. Era a jóia rara do nobre Avraham.

Com a barulheira infernal que se estabeleceu, Itzchak levantou-se e foi ver o que estava acontecendo. Depois de descerem dos camelos e se aprumarem, ele foi apresentado à noiva. Itzchak era franzino e macilento, mais baixo do que Rebeca. Ela era alta, perto de um metro e setenta e cinco centímetros, enquanto que Itzchak, devido a toda a sua fraqueza, alcançava um metro e sessenta e cinco.

Rebeca olhou-o com frieza, mesmo tendo sido prevenida por Eliezer que lhe contara a história de Avraham e do filho. Ela não pode deixar de sentir um certo sentimento de rejeição por esse ho­mem tão pouco varonil, enquanto que o moço deleitou-se com sua rara beleza.

A festa de casamento foi uma cerimônia que durou dias. Vie­ram reis de Canaã, e, até mesmo, altos sacerdotes de On. Além de príncipes de Madian, Iduméia, Moab, Síria, Mitani e beduínos do deserto do Faran, em pleno Sinai. Ismael, já adulto, veio com sua co­mitiva, tendo sido recebido pelo pai e irmão com grande pompa. Afinal, ele era o rei de Madian, chefe de uma tropa de mais de cinco mil homens. Os demais irmãos, filhos de Cetura, estavam lindos como um despertar do sol numa manhã sem nuvens. Receberam o irmão mais velho com alegria e algazarra, e Ismael apresentou seus próprios filhos e juntos brincaram, para extrema alegria de Avra­ham.

Foi Ismael quem anunciou a Avraham que sua mãe, Agar, morrera há alguns meses de velhice. Avraham confrangeu-se realmente; gostava da escrava que lhe abrira o coração e o caminho para uma paternidade magnífica; Ismael era de unia beleza máscula impressionante, com seus olhos negros, seus cílios extremamente longos, e uma altura e força muscular inigualáveis.

Cada convidado célebre recebeu um presente nababesco de Avraham, que não mediu esforços e nem poupou recursos para que a festa fosse perfeita. Tudo correu a contento e os jovens nubentes celebraram o casamento em grande estilo oriental.

A primeira noite foi um desastre.

Itzchak havia mantido fugazes relações sexuais com algumas escravas. Ele as agarrara, quase selvagemente, e passara-lhes a mão, muito mais sob o domínio da curiosidade do que sob a concupiscência. Com uma delas, mais frenética, masturbara-se e descobrira o prazer solitário. Tinha o mesmo defeito que o pai tivera: ejaculação precoce.

Na primeira noite, sob o efeito da emoção e da visão do corpo escultural de Rebeca, ele nem chegou a penetrá-la, alcançando o ápice antes de consumar o ato. Meia hora depois, sob intenso frene­si, após ficar novamente excitado, ele a desvirginava, para imediata­mente após, atingir o clímax, tombando exausto sobre os coxins, e dormir a sono solto. Rebeca não sabia se chorava ou ria do ridículo da situação. Pensou em tudo o que sonhara como moça e dormiu com o coração confrangido.

Os meses foram passando e a situação com o casal não melho­rara. Os homens davam pouca atenção às mulheres, e Itzchak via em Rebeca um brinquedo para seu prazer. Ela, por sua vez, procurava distração com suas damas de companhia, visitando todo o acampa­mento.

Havia um homem no acampamento principal, pastor de Avraham, viúvo, estranho aos olhos de Rebeca. Era muito alto, superando os dois metros, fortíssimo, de tez branca, extremamente peludo, parecendo um urso. Sua barba hirsuta, desgrenhada e revolta, assim como seu cabelo ruivo eram tão espessos que só permitia vis­lumbrar nariz e olhos. Andava seminu, apenas coberto com uma tanga, cingindo-lhe os quadris. Tratava-se de um ser estranho que viera atravessando, há muitos anos atrás as montanhas da Ásia Me­nor, provavelmente um mushki, um myceano ou um frígio, raças indo-européias, que estavam situadas na Europa, e vieram paulatina­mente para a Ásia Menor.

Rebeca viu-o de soslaio e achou-o inicialmente estranho e depois, virilmente atraente. Em comparação com o franzino Itzchak, Nuwanza era o oposto.

Os meses se passaram e, diariamente, Rebeca e suas amigas, no passeio matinal, passavam pelo peludo homem e a esposa de Itzchak olhava-o cada vez de forma mais detida. Nuwanza a percebia e sempre que as moças passavam perto do seu posto, ele as cumpri­mentava gentilmente, cheio de reverências e solicitude. Sempre ti­nha uma fruta fresca ou uma coalhada com mel, ou, na pior das hi­póteses, um ramalhete de flores selvagens para dar às moças. Rebe­ca sentia exsudar masculinidade daquele homem aparentemente rude, porém gentil e amável.

Os nômades gostam de se sentarem em torno de fogueiras e conversarem sobre fatos e lendas. Itzchak não fugia à regra. Não era incomum que fosse até a tenda de sua mulher, tendo um rápido intercurso sexual, e depois, ia para as fogueiras, ficando até altas horas da noite, conversando e contando lendas de deuses e demônios.

Nuwanza observara esse ritual quase diário e concluindo que seria bem aceito por Rebeca, entrou às altas horas da noite, na ten­da, quando as damas de companhia já estavam recolhidas na tenda ao lado. Encontrou a bela dama dormindo nua, apenas coberta com uma manta fina de linho.

A tenda estava às escuras e a lua cheia permitia que se pudesse ver na penumbra. Nuwanza esgueirava-se com um tigre, olhando cuidadosamente, até encontrar quem procurava. Era o máximo de audácia de um simples servo. Se fosse pego seria morto. Descobriu a bela presa e deitou-se completamente nu ao seu lado, abraçando-a gentilmente. Rebeca dormia tão profundamente que não sentiu quando Nuwanza colou-se a ela. Ele começou a passar a mão nos seus seios, e depois, entre suas pernas. Nesse momento, Rebeca co­meçou a despertar e se assustou com aquele homenzarrão ao seu lado. Nuwanza, rapidamente, tapou sua boca para que não gritasse e disse-lhe baixinho:

- Sou eu, Nuwanza.

As coisas se passaram na cabeça dela com uma velocidade surpreendente. Ela reconheceu Nuwanza, aquele pastor peludo, que sempre a acumulava com petiscos e gentilezas. Não havia o que te­mer; era um homem conhecido. Mas o que fazia deitado nu ao seu lado? Que cheiro bom! Que pelo macio e que mãos gostosas! E assim pensando, a mulher entregou-se à volúpia daquele homem, ela pró­pria cheia de concupiscência.

Noite após noite, Rebeca esperava por Nuwanza, com verda­deira impaciência. O homem a introduziu no sexo cheio de carícias e gentilezas, onde variavam de posição, trocavam afagos, tornando-a uma mulher completa.

A vida é cheia de surpresas e, da maioria delas, nós nem nos damos conta. Rebeca vinha de uma família onde as mulheres, even­tualmente, emitiam dois óvulos por vez. Em tal circunstância, fican­do grávidas, tinham tendência de ter filhos gêmeos não-univitelinos, portanto diferentes. Ela estava em seu período fértil, e Itzchak, com sua costumeira rapidez, ejaculou e foi embora para suas conver­sas de fogueira. Seu esperma subiu por dentro da mulher, encon­trando um dos óvulos e fecundou-o.

Mais tarde, Nuwanza entrou na tenda da mulher, possuiu-a com paixão, e também ejaculou, fecundando o outro óvulo que des­cia pelas trompas. Rebeca fora engravidada por dois homens simultaneamente.

A gravidez foi muito bem-recebida por todos, especialmente por Avraham, que temia morrer e não ver a descendência de seu filho predileto. Com o aumento do volume, Rebeca ficou ainda mais ansiosa em ter sexo, e Itzchak afastou-se dela porque acreditava que poderia machucá-la. Nuwanza, por sua vez, tornara-se ainda mais assíduo, não faltando uma noite sequer. Tornara-se, entretanto, descuidado. Ao invés de esperar que o acampamento caísse no sono, preferia ir mais cedo porque Rebeca queixara-se de um acachapante sono às altas horas da noite.

Nuwanza fora visto por um dos pastores, exatamente na hora em que passara por baixo da tenda. O pastor o esperara e depois, conversou longamente com ele, descobrindo o romance secreto en­tre Nuwanza e Rebeca. O pastor reportou o fato a Eliezer que cha­mou Nuwanza, e dando-lhe, de sua fortuna pessoal, uma grande quantidade de peças de ouro e prata e mais cinqüenta cordeiros, mandou-o embora incontinenti. O pastor que tudo descobrira tam­bém foi agraciado com uma quantia ainda maior, mas teve que par­tir naquela mesma manhã com sua família. Eliezer não queria que o assunto se alastrasse, temendo que, se Avraham suspeitasse do ocor­rido, não reconheceria o filho de Rebeca, obrigando-a separar-se de seu amado filho.

Nuwanza partiu com o coração condoído; amava a deusa. Le­vou seus filhos e instalou-se na Síria. O outro pastor não foi tão afortunado, já que seria assaltado no caminho para o Kemet, e degolado por bandidos beduínos.

O parto foi uma agradável surpresa para todos; ninguém es­perava gêmeos. Eram dois meninos bonitos e fortes que logo chora­ram e mamaram avidamente. O que nasceu primeiro, o primogêni­to, foi chamado de Esaú - o peludo - pois nasceu com um cabelo rui­vo e uma leve plumagem que lhe cobria o corpo. Era um bebê rosa­do, forte, robusto, belo e vigoroso. Dava para notar que tinha ossos fortes e pesados. O outro foi chamado de Yacob e também era bem-constituído sendo, no entanto, de compleição mais leve e esbelto.

Esaú era um espírito terrestre, rude e limitado. Tinha se de­senvolvido durante séculos nas savanas africanas, nas florestas euro­péias e nas estepes eurasiáticas. Yacob era um capelino de primeira hora. Fora sumério, harapense de Mohenjo-Daro e kemetense. Es­tava longe de estar em fase final de evolução de sua longa purgação terrestre, não estando ainda pronto para vôos maiores, seja em Ahtlantê, seja em outro planeta habitado por uma humanidade mais fraterna.

Avraham encantou-se com seus dois netos, e, à medida que cresciam, mostrando suas diferenças físicas, o velho foi estranhando e desconfiando que algo estava errado. Yacob era o rosto de sua ado­rada Sara, mas Esaú era diferente de todos. Eliezer desconfiara da possibilidade de Esaú ser filho de Nuwanza, pois as cadelas no cio cruzam com vários cães, apresentando mais tarde filhotes diferentes que lembram seus genitores. O velho damasceno jamais contaria para ninguém que desconfiava dessa possibilidade.

Por sua vez, Itzchak mudara muito com a chegada dos filhos. Tornara-se um pai afetuoso e um marido mais dedicado. Rebeca so­frerá com a perda do amante, que sumira sem deixar traços e nem sequer se despedira. Com isso, só lhe restara voltar-se para o marido e, intuitivamente, com a experiência adquirida com Nuwanza, co­meçou a ensinar, dissimuladamente, como deveria amá-la. O mes­mo caminho que Sara trilhou para domar a rapidez amorosa de Avraham, o mesmo fez Rebeca, e com sucesso.

Itzchak nunca chegou a ser o amante ideal como fora Nuwan­za, porém melhorara em muito seu desempenho. Rebeca teria mais duas filhas, sendo que na última teve uma séria infecção que quase a matou e a esterilizou para sempre.

À medida que os meninos se tornaram adolescentes, ficava cada vez mais evidente que eram totalmente diferentes um do outro. Esaú era alto, robusto e lerdo. Sua inteligência era bovina e sua ativi­dade principal era dedicar-se à caça. Sua função era importante para exterminar os animais selvagens que atacavam os rebanhos de Avraham. Yacob, por sua vez, era pastor por obrigação e um poeta por natureza. Aprendera a ler e escrever com Eliezer, e entre outras coisas que sabia fazer, uma delas era tecer tapetes. Era uma ativida­de feminina que aprendera com a mãe e que adorava fazer, pois re­laxava sua mente atarantada e, de certa forma, delirante.

Os dois adolescentes transformaram-se em homens feitos e mal conversavam entre si. Tinham temperamentos tão diferentes que se davam bem, mas não se importavam um com o outro. Não era desamor ou ódio, era apenas indiferença.

Esaú conheceu algumas mulheres de uma tribo de hititas, nômades que passavam grande parte do tempo perto da torrente do Kemet, um rio que nasce e cruza o Sinai. As mulheres de cabelos ne­gros encaracolados, pele branca e jeito esfogueado eram muito be­las, e Esaú acabou casando-se com duas delas, após adquiri-las de seus pais com cordeiros, camelos e pedras preciosas.

Judile e Basemat, duas hititas de beleza ímpar, foram motivo de escândalo para Rebeca e Itzchak. Avraham também se aborreceu e comentou com Itzchak que deveria persuadir Yacob a casar com mulheres de Haran, preferencialmente com parentes de Labão ou descendentes de seu irmão Nacor. O velho Avraham, com idade aci­ma de oitenta anos, estava muito alquebrado, como não poderia dei­xar de ser, devido à vida cáustica que levava, contudo tinha uma mente lúcida e chamou, certa feita, seu filho Itzchak e disse-lhe:

- Itzchak, você não é meu primogênito, porém é fruto do grande amor de minha vida. Seu irmão Ismael, que vejo sempre, está pelas bandas das Arábias, onde tornou-se imensamente rico e poderoso. Tem filhos e netos. E feliz e eu o sou por ele.

Itzchak tomou, displicentemente, de uma tâmara seca, colocando-a na boca enquanto olhava o pai falar.

- Estou velho, e Yahveh, meu poderoso deus, cumpriu o pro­metido e deu-me tudo o que desejava. No entanto, os tempos mu­dam e a minha morte se aproxima a passos largos. Por isso, muito meditei e decidi fazer como meu pai Tareh fez comigo. Ou seja, re­partirei minha fortuna com meus filhos, ainda em vida, para que não lutem depois da minha morte e amaldiçoem meu nome.

Itzchak empertigou-se mais; o assunto o interessava. Avraham prosseguiu:

- Darei dois mil cordeiros para cada filho homem e o mesmo a cada filha mulher casada e deverão apartar-se desse lugar, indo para acima de Betel ou abaixo da torrente do Kemet. Para você sobrarão mais de doze mil cordeiros, o que é, convenhamos, mais do que re­cebi de meu pai. Sugiro que fique aqui em Gerara, já que Abimelec, que Yahveh guarde seu espírito, e seu filho e sucessor, e seu povo nos amam, tendo feito reiteradas alianças com nossa casa.

Itzchak não era um indivíduo avarento. Aceitou bem as idéias paternas e meneava a cabeça em assentimento. Avraham, deitado nos tapetes, levantou um pouco a cabeça e chamou-o mais para per­to, olhando de um lado para outro para ver se ninguém o escutava. Itzchak, intrigado, aproximou-se ligeiro.

- Meu filho, o que vou lhe contar irá ferir-lhe os sentimentos, mas como pai devo lhe falar de minhas dúvidas.

Itzchak preocupou-se, franzindo os cenhos.

- Seus filhos são como água e fogo. Não devem permanecer juntos. Se assim o fizerem, irão traí-lo e se matarão mutuamente. Nossa descendência irá cessar aqui, e isso não pode acontecer. Ya­hveh disse-me em sonhos que serei o dono dessa terra e assim o se­rão meus descendentes.

Yahveh assim como Avraham não apreciava os filhos de Itzchak. O ruivo Edom, também chamado de Esaú - peludo – era rude e excessivamente limitado intelectualmente, para manter uma conversa de dez minutos. Era monossilábico, grunhindo como se fosse um urso e lerdo, a ponto de não entender um chiste. Yahveh sabia que ele era filho de Nuwanza, pois fora ele que despertara o pastor e acabara com aquele amor impudico que podia terminar em derramamento de sangue. Yahveh já não era mais o deus de vingan­ça.

Yacob era o contrário; excessivamente inteligente, na opinião de Avraham, não se sujeitando a nada e a nenhuma lei ou ordem. Sempre fugia do trabalho pesado e, como bom capelino que era, mentia com terrível desfaçatez, inventava histórias com uma viva imaginação, além de ser um larápio, pois era dado a pequenos fur­tos e imbróglios. Itzchak não lhe prestava atenção, mas Avraham, sa­gaz e observador, via na atitude do neto um perigoso precedente que poderia tornar-se crítico numa sociedade tão primitiva quanto aquela.

- Que sugere que faça, meu pai?

- Mande Yacob embora. Não lhe dê nada a não ser um anel que o distinga dos outros e envie-o à casa do seu tio Labão, que é um homem muito rico e poderoso em Haran.

Itzchak ficou absorto com as palavras do pai. Por que não enviá-lo com rebanho, ouro e prata, se tinham tanto?

Avraham, pare­cendo ler seus pensamentos, respondeu-lhe:

- O homem deve ser forjado na fornalha do sofrimento. Ya­cob tem tudo e nada faz para ganhá-lo. É moroso e tem um caráter ambíguo. Usa sua inteligência com excessiva astúcia, enganando os simples e desfrutando dos humildes. Yahveh apareceu-me em so­nho e deu-me ordens estritas sobre Yacob. Disse-me que será um grande homem e sobre sua descendência irá fundar uma nação, to­davia terá que ser lapidado através do trabalho duro, do sofrimento e da contrariedade.

- E quanto a Esaú? Acho-o tão estranho. Nem parece meu fi­lho.

Yahveh não queria que Avraham soubesse do filho espúrio, pois temia que seu eleito se tornasse iracundo e mandasse matá-lo, cometendo grande desatino. Portanto, Avraham jamais soube que Esaú era filho de um detestável mushki, um myceano ou quiçá, um frígio.

- Claro que é. Tem a cor das pessoas da mãe de Rebeca. Assim como os carneiros, deve ter puxado um avô, enquanto que Yacob puxou a Sara, sua mãe. Você fará o que estou lhe pedindo?

- Claro que sim, meu pai.

- Muito bem, e quando fará isso?

- Quando você quer que eu faça isto?

- Que seja o mais rápido possível. De preferência, antes das grandes chuvas para que ele possa viajar em paz e atravessar os grandes rios com facilidade.

Itzchak preocupou-se com Rebeca; Yacob era seu preferido. Teria que usar de astúcia para que a mulher não o impedisse de agir. Contou-lhe tudo com muito cuidado e dizendo que eram ordens ex­pressas de Yahveh, não podendo ser desobedecidas. Rebeca admo­estou o marido, dizendo-lhe que, desta forma, Yacob não poderia comprar uma noiva do tio.

Yacob tinha vinte e cinco anos, já sendo tio de vários filhos de Esaú, que agora já tinha comprado mais duas outras mulheres de origem cananéia, dando ainda mais desgosto aos pais, além de ter conseguido uma mulher adamita, neta de Ismael, portanto sua pri­ma em segundo grau.

Yacob já tivera contatos sexuais com servas e escravas, no entanto, sempre que falava em casar, a mãe o dissuadia, dizendo que ninguém era bom o suficiente para ele. Sexualmente, Yacob era um apaixonado amante que não devia nada a ninguém. Longe de ser apressado como o pai e o avô, tomava-se de gosto pela atividade amorosa, demorando bastante nos prolegômenos e transformando o ato em si, numa rapsódia amorosa. As servas e escravas que lhe caí­ram nas graças comentavam suas proezas sexuais com certo exage­ro, transformando-o numa espécie de campeão da arte.

Mesmo com todas as reclamações maternas, cinco dias depois, Yacob, junto com mais dois servos que o iriam acompanhar parte do caminho, partiu com a missão de ir até Haran conhecer o tio Labão e encontrar uma noiva. Não levava riquezas e nem dote; viajava como o mais pobre dos homens. Só era rico em astúcia.

 

Capítulo 5

Yacob saiu do acampamento acabrunhado. Sabia o que lhe aguardava. Não era uma missão de compra de uma noiva, pois on­de estavam os camelos cheios de tecidos, de jóias e ouro? Onde esta­vam os jumentos cheios de tesouros de presentes? Nada, ele tinha sido mandado embora com nada, apenas um anel que não valia grande coisa aos olhos dos outros e que apenas lhe conferia a digni­dade de ter nascido na mesma família do tio Labão. Sua mãe, entre­tanto, lhe havia dado quatro minas, o que era bastante, se fosse es­perto. Ele saiu com o dinheiro costurado na roupa.

Sua mente hiperexcitada não o deixava descansar. Havia an­dado o dia inteiro, e, quando a noite caiu, resolveram montar um pequeno acampamento. Estavam perto de Betel e os dois servos que o acompanhavam já dormiam, há mais de meia hora. Estava encos­tado numa pedra que não lhe dava maiores confortos. A noite era negra como azeviche. Não havia lua. A pequena fogueira havia se apagado, porquanto lhe haviam negado lenha suficiente.

Yahveh não tinha particular afinidade com Yacob, mas, numa das conversas com Orofiel, este lhe dissera que, um dia, Avraham morreria e que, se ele não cuidasse de Yacob, o seu culto terminaria. Para Orofiel, o culto a Yahveh era importante, porquanto represen­tava a possibilidade de se implementar um monoteísmo verdadeiro. Portanto, Yahveh passou a se interessar por Yacob, mas vendo que era um crápula, resolveu colocá-lo em seu lugar. Orofiel orientou-o como devia agir e assim foi feito.

Yacob estava pensativo, quando subitamente, como se a negridão do céu fosse rasgada de alto a baixo, apareceu uma fenda de luz intensa que lhe ofuscou os olhos. Levou alguns segundos para se re­compor do susto e aclimatar a vista à fulgurante luz que amainou para deixar ver uma passagem, como se fosse um túnel suficiente­mente largo para passar quatro pessoas juntas e levemente oblíquo de forma ascendente. Dava a impressão de ser uma ligação entre a terra e o céu. Apareciam vários espíritos que entravam e saíam do longo túnel. O que era tudo isso? Para Yacob, um caminho para o céu. Na realidade, apenas uma visão formulada por Yahveh. Não existia nada a não ser uma imagem, uma forma-pensamento, que o deus estava lhe formulando para insuflar-lhe esperança, fortaleza íntima e determinação.

Um belo espírito, com asas brancas - sempre a mesma forma-pensamento de Yahveh - enviou-lhe uma mensagem que explodiu em sua mente.

- Eu sou Yahveh, o deus de Avraham e Itzchak. Olhe bem para essa passagem, pois é por ela que descem e sobem as almas dos homens. Sobem aos céus e lá encontram a mansuetude de uma cons­ciência tranqüila, e descem aqueles que ainda portam o fogo do re­morso em seus corações. Vá para Haran e trabalhe duro. Que de tua boca não saia um vitupério, uma lamentação e um ai de dor ou fadi­ga. Ficarás naquelas plagas pelo tempo que eu determinar. Nem um dia mais ou um dia menos. Quando tiveres que sair de teu degredo, eu o indicarei, com sinais irrefragáveis. Obedece-me e far-te-ei imensamente rico e poderoso. Desobedece-me e te farei sofrer agru­ras tamanhas que os teus dentes cairão, teus dedos murcharão e tua língua secará. Se me fores fiel e lídimo trabalhador, multiplicarei tua descendência e dela farei uma nação. Se me contrariares, reduzir-te-ei a menos do que pó das estradas onde todos pisam e os ani­mais defecam e urinam. Transformarei, por meio de doenças terrí­veis, teu corpo numa carcaça imprestável, que terás que arrastar pe­los caminhos do mundo. Teu cérebro queimará em fogo de um arre­pendimento tardio que não aceitarei, e terás que voltar à Terra em corpo tão deformado que até tua mãe terá nojo e te rejeitará. Farei tudo isso, pois sou Yahveh, o deus todo-poderoso de Avraham e It­zchak.

Assim dizendo, Yacob totalmente tomado do mais completo terror, urinou-se de medo e desmaiou, só acordando cedo de ma­nhã, quando o sol iniciava sua viagem pelo céu.

Muitas vezes, um pai é obrigado a oferecer prêmios magnífi­cos a um filho tinhoso, e, como contrapartida, ameaçá-lo de castigos inomináveis. Se a criança não fosse um pervicaz infrator das normas paternas, o pai não seria obrigado a ser tão severo. O medo, muitas vezes, é um instrumento excelente de persuasão, especialmente quando o espírito é renitente.

Martuky era uma mulher de beleza excepcional para uma cin­za. Sua raça era considerada inferior pela maioria dos azuis e dos verdes. No entanto, ela era linda. Tinha olhos negros enormes, em contraste com a maioria dos azuis dos demais ahtilantes. Nascera pobre numa das muitas favelas de um país chamado Liamer, a mes­ma que abrigara Ken-Tê-Tamkess, que viria se tornar Osíris. Sua mãe, pobre, não lhe deu estudo e educação, tendo se criado na rua, aprendendo com os mais velhos. O pai lhe era um desconhecido.

Martuky havia sido, em existência anterior, uma nobre, uma mulher de rudeza, que abusara dos cinzas, quando ainda existia es­cravidão. Agora, como cinza, pagava pelos abusos cometidos contra a nobre raça que fora inferiorizada por preconceito e por ter um desenvolvimento cultural diferente dos azuis e verdes. Todavia, sua beleza era notável e quando se tornou adulta, a prostituição foi o ca­minho mais lógico e inevitável.

Os púrpuras adoravam as mulheres cinzas e muitas eram leva­das, seja em casamento, seja em bordéis de alto luxo em Tay-Bhu-Tan, capital da Confederação Norte-Ocidental de Ahtilantê. Mar­tuky foi convidada para ser prostituta num bordel de alto luxo, onde somente pessoas ricas e bem-situadas freqüentavam.

Neste lupanar, ela conheceu um rico empresário chamado Rhamador, que se encantou com ela, tendo lhe feito uma proposta irrecusável: tornar-se sua esposa. As bodas foram quase secretas, pois o empresário não fez questão de muitos convidados, mas, sagaz como era, fez um contrato onde a ex-prostituta continuaria sendo pobre no caso de declarada infidelidade, da morte do empresário ou de um repúdio do marido. A jovem e inexperiente mulher não se importou com a quantidade de papéis que teve que assinar, por­quanto ainda era ignorante e iletrada.

O tempo passou e o casal vivia em perfeito idílio. Martuky não amava o marido, mas tinha por ele um carinho, uma dedicação toda especial. Afinal das contas, fora ele quem a tirara de uma vida incer­ta para uma vida de luxo e riqueza. Ele tivera o cuidado de lhe con­seguir professores de etiqueta que lhe ensinavam todos os detalhes da complicada forma de se comportar em sociedade.

Martuky não era estúpida. Em pouco tempo viu que era ape­nas uni bibelô de luxo do marido que a apresentava como se fosse a sua mais recente aquisição. Mas isto teria um preço, pois ele era um homem velho, desprovido de beleza e de charme, enquanto a intro­duzia numa sociedade de belos homens, viçosos e na espreita por um caso de amor inconseqüente.

Bhuytan era um espécie raro de beleza púrpura. Ele trazia sangue verde nas suas veias, sendo, portanto alto e forte como um verde. Sua pele era uma mescla do sangue púrpura do pai e do san­gue verde da mãe, sendo de um marrom quase escuro, com olhos verdes. Para completar seu tipo fascinante para as mulheres de en­tão e daquele lugar, ele era charmosamente amoral.

Bhuytan, quando viu a beleza fascinante de Martuky, numa festa dada por um magnata da alta sociedade, resolveu que ela seria sua, custe o que custasse. Não era amor e sim, um misto de concupiscência e vingança. Resolveu, a todo custo, conquistar a bela presa.

Rhamador nascera rico. Fora criado de forma amoral. O pai, um rico empresário, achava que o dinheiro era tudo, podendo ser conseguido de qualquer forma, honesta ou não. Aliás, parte o fora através do comércio ilegal de armas, do jogo que era proibido e da venda de favores na área política. Rhamador tornou-se ainda mais requintado do que seu pai, que fora seu mestre e paradigma. Ele du­plicara a imensa fortuna do pai, tornando-se um agiota de fama in­ternacional, tendo levado várias famílias notáveis à falência, seja fundindo empresa, seja fazendo movimentos agressivos em bolsas de valores para tomar empresas.

Bhuytan fazia parte de uma família que fora destroçada por Rhamador. Não fora um movimento voluntário, mas as articulações políticas do magno empresário, assim como suas obras no mercado de ações, levaram o pai de Bhuytan à bancarrota e, daquele estado financeiro ao suicídio foi um passo. Bhuytan odiava profundamente Rhamador, culpando-o pela morte e desonra do pai. Em parte era verdade, mas no fundo não o era, pois o genitor era um ser inescrupuloso e também havia jogado todas as suas fichas numa jogada que deu errado. Suicidou-se não porque perdera a fortuna conseguida honestamente, pois enriquecera ilicitamente, mas porque a pobreza lhe era intolerável.

Se Bhuytall e sua mãe não foram parar na rua da amargura fora graças à previdência da genitora, que sempre guardara dinhei­ro que lhe sobrara nos tempos das vacas gordas. Não era uma fortuna, mas dera para continuar freqüentando a alta sociedade, porquanto a família da genitora era proveniente da mais alta estirpe so­cial.

Bhuytan desejou a bela Martuky não só por sua rara beleza, mas como uma forma de atingir o seu adversário. Ele se aproximou dela com todas as mesuras e com voz melíflua, cheia de contrastes, quase assobiando, o que era considerado de bom tom entre os púrpuras. Martuky não se animou com tal aproximação, pois era esper­ta o suficiente para saber que correria graves riscos. Não tinha pai­xão pelo marido, mas não queria ser apanhada em flagrante adul­tério e voltar a ser acachapantemente e ignobilmente pobre. Tudo menos a pobreza. Tudo menos o dignificante trabalho.

Ela o tratou, durante uma festa, com recato e procurou fugir-lhe ao contato. Sentira o perigo no ar. Não queria enredar-se com homens belos, pois esta fora a desgraça de sua mãe, e a ela fora ensi­nado que os homens excessivamente bonitos são vazios, egoístas e vaidosos. Eles só amam a si próprios, repetia amargamente a mãe.

Bhuytan viu, durante a festa, que seria uma forma de atingir o seu desafeto e insistiu em aproximar-se da bela mulher. Quanto mais ele se insinuava, mais ela se afastava, mas o jovem era sagaz, pois aproximava-se quando o marido não estava presente.

Que o jovem era belo, disto não tinha dúvida, pensava Martuky, mas existia algo de maligno em seu olhar. Ele podia fazer olhares lânguidos, mas por debaixo de seu charme existia um tigre à solta. Martuky não estava de todo errada, pois o jovem era quase sempre acompanhado do espírito daquele que fora seu pai. O suici­da passara alguns anos nas trevas expiando seu crime, mas ao invés de tentar se aprimorar, estava à procura de vingança, tendo, num mecanismo de transferência, colocado a culpa de seu infortúnio na figura de Rhamador. Os dois, unidos pela mesma idéia de vingança, viram em Martuky o caminho para destruir o mega-empresário.

Nos dias que se seguiram à festa, Bhuytan fez de tudo para conquistar a bela Martuky, mas todos seus esforços redundaram em seguidos fracassos. Não porque a bela fosse de uma enorme pureza, mas porque era esperta o suficiente para não trocar a segurança da riqueza pelas delícias do sexo.

Se fosse em outras condições o galanteador teria desistido, pois esta é a técnica do sedutor: lançar seus olhares fesceninos para o maior número possível de mulheres e conseguir obter os favores daquelas que se interessarem por ele. Contudo, a recusa de Martuky só excitava mais, nem tanto para conseguir seu intento de possuí-la sexualmente, mas, principalmente, de destruir o velho empresário. Ele acreditava que, se conseguisse fazer com que a mulher abando­nasse Rhamador, ele ficaria profundamente ferido em seu orgulho de macho, abrindo uma brecha para sua vingança. Neste ponto, filho e o defunto pai estavam certos, porquanto Rhamador não amava a sua mulher, sendo ela um bibelô que ele levava a tiracolo para mostrar sua masculinidade aos demais.

Martuky fugia dele. Não havia, portanto, como conquistá-la. Mas, ele tinha que alcançar seu intento e, sob a influência nefasta de seu pai, arquitetou um plano diabólico.

Bhuytan, sempre atento, viu que a bela Martuky ia diariamen­te fazer suas abluções rituais nas águas santificadas do templo da deusa-mãe Naqued, pois ela queria ter um filho de Rhamador para assegurar sua posição futura. Um filho lhe daria a segurança de her­dar a rica mansão e tudo o que nela houvesse, pois tinha receio do fi­lho mais velho de Rhamador, imaginando que ele poderia deserdá-la, caso o pai morresse.

Martuky conversou longamente com a pitonisa, e Bhuytan, escondido atrás de um biombo, escutou todas as palavras. Tudo o que desejava era o filho de Rhamador. No outro dia, por uma dessas coincidências do destino, o magnata Luken veio fazer as suas ofe­rendas a Naqued, já que estava com casamento marcado para den­tro de uma lua.

Na mente criminosa de Bhuytan, o magnata Luken era a pes­soa ideal para se obter o resultado almejado. Ele era o mais feroz, concorrente de Rhamador e uma pessoa muito mais notável do que ele. Deste modo, pensou que seria melhor que o escândalo estouras­se sobre a cabeça do rival de Rhamador do que sobre a dele, pois ele era ninguém na sociedade, a não ser o filho de um falido e desgraça­do suicida.

Ele aproveitou os dias seguintes para preparar detalhada­mente seu plano, tendo feito todas as articulações de modo minucio­so. Bhuytan aproveitou a primeira festa em que eles puderam falar. Luken tratou Bhuytan com profunda arrogância. Bhuytan sabia ser melífluo quando lhe interessava, e aproveitando um instante a sós com o magnata, disse-lhe:

- Ávida é interessante. Ontem mesmo, uma bela dama, a mais bela da cidade, se ouso lhe dizer, esteve aqui e confidenciou à sacerdotisa que sentia um imensa atração por ninguém menos do que Luken, mas que não era correspondida e nem sequer notada. Escu­tei, quase sem querer, as suas lamúrias, que me cortaram o coração.

E assim falando, fez um gesto como se fosse se afastar e disse:

- Por Naqued, eu não deveria comentar isso.

O empresário segurou-o pelo braço e, fazendo-se de gentil, perguntou-lhe, mordido da mais viva curiosidade:

- Não se vá assim tão rápido. Você precisa me dizer o nome dessa dama para que eu possa reverenciá-la com todo o meu respei­to.

- O meu amigo sabe que não posso comentar essas coisas. Tudo o que é dito no templo, passa a ser sagrado.

Luken segurou-lhe o braço e perguntou, em tom de confidên­cia:

- De um homem para outro, quem é a criatura?

Bhuytan disse-lhe, baixinho:

- Trata-se da senhora Martuky, esposa de Rhamador.

O empresário abriu os olhos surpreso e, logo depois, sorriu satisfeito. Martuky era uma deusa. Bhuytan percebeu aquela mu­dança de expressão: o peixe beliscara a isca. Faltava agora fazer com que caísse no anzol.

Luken voltou a segurar o braço de Bhuytan e aproximou-se do ouvido, perguntando-lhe:

- Tem certeza disso, homem? Ela me pareceu sempre tão cir­cunspecta.

- Você não ia querer que se jogasse nos seus braços na frente do marido?!

Luken riu da insinuação. Realmente, não poderia desejar tal ato, e agora que sabia, aquela bela mulher tinha que ser dele. Seus olhos brilhavam e sua mente vagava em delírios românticos e, sobre­tudo, sexuais. A voz de Bhuytan trouxe-o de volta.

- Terei o maior prazer em ajudá-lo, meu amigo. Poderei mar­car um encontro secreto com a dama numa das casas de minha propriedade e, onde, estando a sós, poderão encontrar a felicidade jun­tos. Ninguém os importunará. Estarão completamente a salvo.

Os homens, especialmente, os mais jovens, perdem a cabeça frente a uma bela mulher que lhes oferece seus carinhos. O jovem empresário, incitado em seus brios de macho, assentiu e mordeu a isca.

Dois dias depois, a jovem Martuky foi chamada por um ho­mem, que se apresentou como serviçal subalterno do templo, para visitar a pitonisa, pois havia recebido uma mensagem da grande deusa. A jovem retirou-se do seu lar, logo após o marido ter saído para fazer sua ronda vespertina. Um outro homem, intitulando-se também um serviçal do templo, chamava o empresário Luken, le­vando-o para uma casa escondida em bairro de operários, onde en­controu Bhuytan, que lhe disse para entrar e esperar que a sua deusa não tardaria.

Bhuytan mandou um serviçal personificar um monge do tem­plo, recepcionar Martuky e, explicar que a pitonisa teve que sair para ajudar num parto difícil, e que lhe pedia que o acompanhasse até um local próximo. A moça não teve nenhuma suspeita, já que a sacerdotisa era sua particular amiga. Desse modo, seguiu o homem até a casa onde Luken a esperava.

A casa era medianamente grande, com oito cômodos. Luken esperava num deles e Bhuytan entrou silenciosamente, colocando Martuky num outro aposento. Disse-lhe para esperar já que a pito­nisa eslava na sala ao lado e que tomasse a beberagem que lhe ofere­ceu, seguindo as instruções da sacerdotisa.

Como a religião era cheia de rituais complexos, poções mági­cas, oferendas dentro e fora dos templos, a moça bebeu o líquido, acreditando que isso lhe daria o tão desejado filho de Rhamador. Em alguns minutos estava sedada e dormindo no catre. Bhuytan ti­rou-lhe facilmente a roupa, despindo-a com cuidado e colocou-a estirada, de forma lânguida e sensual na cama. Saiu do quarto e foi de encontro a Luken que, impaciente, andava de um lado para outro.

- Onde está Martuky?

Bhuytan disse-lhe que tinha se atrasado, e já estava tomando um banho para que estivesse bela e cheirosa para seu deleite. O empresário fremia de júbilo e impaciência. Bhuytan, diabolicamente, disse-lhe para ingerir uma poção mágica que estava trazendo, pois lhe daria o vigor de dez homens. Luken bebeu-a avidamente, deleitando-se com seu gosto acérrimo e antegozando as delícias que ima­ginara ter com a bela morena. Sentiu um leve torpor nos membros e sua cabeça rodou levemente. Apoiou-se em Bhuytan e, com a voz engrolada, perguntou:

- É assim mesmo? Estou meio tonto.

Bhuytan disse-lhe que o primeiro efeito é um sono reparador de cinco minutos, depois acordaria com uma disposição descomunal. Luken adormeceu em poucos instantes sob o efeito da poderosa sedação. Bhuytan ergueu-o e levou-o para o quarto onde dormia profundamente Martuky. Tirou-lhe a roupa, os sapatos e colocou-o na cama com a bela adormecida. Ajeitou o corpo do empresário de forma a parecer que estavam se abraçando e colocou-se na porta da casa. Resfolegou do esforço feito e passou a mão em sua testa suada. Tinha ido longe demais para voltar atrás.

Na hora marcada, um amigo de Bhuytan, também mancomu­nado na trama, falou para Rhamador que sua mulher tinha pedido para ir até uma determinada casa, pois lá lhe faria a maior surpresa de sua vida e culminaria com uma alegria inexcedível. O mega-empresário seguiu o amigo até a casa estabelecida e entrou, já chaman­do por sua bela amada. Um serviçal, o mesmo que trouxera Mar­tuky, o acolheu, cheio de mesuras, dizendo que sua mulher estava repousando e que ele a levaria até onde se encontrava a bela diva.

Rhamador o seguiu e ele abriu uma porta, permitindo que o velho empresário entrasse. O quarto estava escuro, já era fim de tar­de, e a pesada cortina tampava completamente a luz do sol. Os olhos do marido levaram alguns segundos para se adaptarem à súbita es­curidão e não queria crer no que seus olhos lhe mostravam. Sua mu­lher, nua, deitada e abraçada com um outro homem. Quem era esse canalha? Esses segundos de dúvida e embaraço foram terríveis para o infeliz. Ele levou um golpe forte na nuca e desacordou.

Rhamador acordou com uma dor de cabeça lancinante e ensopado de sangue. Segundos depois, não sabendo como, entraram dois policiais que o prenderam na hora, enquanto ele gritava quem ele era. No entanto, os policiais haviam encontrado Luken morto, com um punhal nas costas. Nenhum sinal da mulher, mas sua bolsa, com seus documentos de identidade, estava jogada num canto. Ela desaparecera.

A polícia levou o empresário para a delegacia onde ele foi indiciado como assassino do empresário Luken. O motivo era claro, pois o falecido era amante da esposa que estava desaparecida e o marido havia surpreendido o casal em conúbio carnal e, portanto, o havia assassinado, enquanto a mulher fugia espavorida.

Martuky acordou algumas horas depois com uma terrível indisposição. Sua cabeça doía horrivelmente e ela não reconhecia o lu­gar onde estava. Era um quarto pobremente mobiliado. Ela tentou abrir a porta, mas estava fechada. Ela começou a esmurrar a porta e gritar por socorro. Alguns instantes depois, o forte portão se abriu e entrou ninguém menos do que o asqueroso Bhuytan, junto com dois asseclas. Ela recuou com medo. Obviamente havia alguma coisa ter­rivelmente errada.

Bhuytan sentou-se numa cadeira e contou-lhe como ela fora flagrada pelo marido com o amante, e o velho empresário, num ar­roubo de ódio, matou com uma punhalada nas costas nada menos do que o famoso Luken. Martuky entendeu tudo num átimo e arriou-se na cama, desesperada. Ela achava que seria morta.

As semanas se passaram com Martuky presa em seu cárcere privado, onde era alimentada e tratada convenientemente. Bhuytan entrara numa certa noite e a possuíra com vigor. Ela permitira, pois sentia-se perdida e não via razão para resistir a tão vil personagem, que poderia matá-la sem dó e piedade. Depois daquela noite, ele vi­nha quase sempre a mesma hora e a possuía com paixão e vigor. No início, ela se entregava de forma desgostosa, passiva e sem troca de carinho. Depois de algumas vezes, ela passou a colaborar com o novo amante e chegou ao clímax por diversas vezes. Havia uma dicotomia em sua alma: sentia medo e concupiscência pelo belo ho­mem.

Enquanto isto, toda a sociedade de Tay-Bhu-Tan ficou estarrecida com o crime e o desaparecimento da mulher só comprovava o fato. Para complicar, a casa onde ocorrera o crime fora alugada pelo assassinado, confirmando portanto a tese de crime passional. A jus­tiça proclamou o acusado como culpado do crime e condenou-o à morte, e ele foi executado após dois anos de longas demandas judi­ciais. Afigura do jovem empresário assassinado, entretanto, era ex­celente e todas as vozes ficaram contra o mega-empresário que to­dos sabiam ser ardiloso e ganancioso nos negócios. No final, uma forma de guilhotina decepou-lhe a cabeça e a morte se consumou. Seu enterro foi melancólico, só comparecendo o filho, que não acre­ditava na acusação.

Com a morte de Rhamador, Bhuytan achou que a mulher de­veria morrer também. Era muito perigoso ela permanecer viva, pois sabia de tudo. Só a mantivera viva por achá-la bela e desejável, mas agora já se cansara dela e, numa noite, ao invés de ele entrar no quarto, entraram três esbirros e chacinaram-na a cutiladas. Despe­daçaram seu corpo e o levaram para uma pirra funerária onde o fogo a consumiu rapidamente, fazendo-a desaparecer completa­mente. A vingança de Bhuytan estava completa.

Ávida, todavia, continua no mundo espiritual. O empresário, ao morrer, foi colhido pelas forças positivas do astral e encaminha­do a um hospital, onde se recuperou de sua traumática morte. Em poucos meses, tendo sido orientado pelos seus guias espirituais, abandonou completamente a idéia de vingança, pois disseram-lhe que devia deixar isto a cargo da justiça divina.

Martuky também foi ajudada pelas mesmas forças de amor do astral, mas sua reação foi completamente diferente. Havia desenvol­vido uma perigosa mescla de amor e ódio por Bhuytan, e sua terrível morte a fizera desenvolver uma ira caliginosa. Seu estado de espírito a fez fugir do hospital e se embrenhar nas trevas, onde rapidamente os alambaques a aprisionaram.

O alambaque-mor daquela região ficou fascinado pela sua be­leza, assim como pela sua disposição tenebrosa de vingança e a fez sua amante. Martuky aceitou de bom grado a proteção do perigoso Bokgajet, pois naquelas paragens, quem não é dos alambaques tor­na-se prisioneiro deles e é levado à mais ignominiosa loucura.

Bokgajet, ao se inteirar da história de Martuky, resolveu que iria empresariar pessoalmente tal empreendimento. Chamou um dos melhores chefes de obsessores, que eles chamavam de mijigabak - piolho de dragão - e mandou-o investigar detidamente a futura vítima.

Alguns dias depois, o mijigabak voltava com um relatório deta­lhado. Bhuytan era egoísta, vaidoso ao extremo, amoral e facilmen­te conduzido, através de sugestões mentais. Seu falecido pai havia se incrustado ao filho e ambos viviam uma vida mental entrelaçada. Bastava sugerir coisas ao semi-inconsciente pai que o filho logo obe­decia. Bokgajet resolveu que iriam levá-lo ao vício da miridina, que estava se espalhando pelo mundo, e dali à queda final.

Os anos se passaram lentamente. Bhuytan foi levado a todos os vícios simultaneamente: miridina, bebidas alcoólicas e jogo. Seus recursos, que não eram tão poucos assim, foram consumidos e, quando os vícios se tornaram parte de sua personalidade, Martuky e os mijigabaks de Bokgajet haviam levado o imprevidente à ruína. Ele não era nem sequer a sombra do belo Bhuytan. Agora era um farra­po humano, sendo evitado por todos. Vivia sujo. Perdera todo o di­nheiro e as propriedades, andava perambulando pelas ruas, mendi­gando algum dinheiro para sua dose de miridina. Agora, sem di­nheiro para um vício tão caro, caíra em vícios mais pobres e degra­dantes. Os mijigabaks, seguindo ordens de Bokgajet, o estavam le­vando à loucura e à devassidão de forma lenta, gradativa, de tal modo que ele não notaria e nem poderia resistir. Se fosse feito al­gum movimento mais rápido, a vítima poderia se dar conta de que o demônio estava atrás dele e procurar ajuda nos templos especializa­dos. A gradativa e lenta viciação não deixava margem à reação. Bhuytan estava inevitavelmente sendo levado à loucura completa, que chegou, finalmente, após dez anos de vícios, degradações mo­rais e ruína física, moral e financeira.

A polícia o internou num manicômio judicial, pois se tornara perigoso. Lá, sem a miridina, sem a bebida, sem os demais vícios que o embriagavam, ele sofreu com os sintomas de abstinência de tal or­dem que os médicos tiveram que injetar doses imensas de tranqüili­zantes que o deixavam completamente abobado. Após alguns me­ses, ele tornou-se catatônico e morreu num incêndio acidental, jun­to com alguns infelizes.

Sua ruína não chegara ainda ao fim, pois pai e filho que havi­am se tornado uma unidade, foram logo aprisionados pelos mijiga­baks e levados à presença de Martuky, que aproveitou para transmudá-los, a ambos, em duas ferozes mesclas de animais e enfurná-los em abismos tenebrosos onde puderam curar suas feridas morais.

O Grande Exílio chegou e Bokgajet aceitou fazer parte dos alambaques de Varuna e partiu para a Terra, levando Martuky e seus mijigabaks. Martuky partiu sem sequer notar as grandes diferen­ças que estavam acontecendo em Ahtilantê, pois sua mente estacio­nara na vingança e agora, que havia enchido sua taça de fel, não lhe restava mais energia para viver. Ela se tornara apática e embrutecida. A ida à Terra foi uma bênção, porquanto lá poderia haver o reco­meço.

Por sua vez, Bhuytan viera exilado de Capela junto com ou­tros trinta e poucos milhões de almas empedernidas há cerca de mil e oitocentos anos. Viera e renascera seis vezes antes de vir a ser Yacob. Ao invés de melhorar, empiorara. Nas primeiras existências na Terra, esse espírito empedernido, fizera tudo o que lhe aprouvera fazer, infrene e facinoroso. Matara, roubara, enganara, estuprara, colocara a culpa de crimes em outros, testemunhara em falso. Em suma, sem consciência e endurecido no mal tornara-se um demônio de loucura e malvadeza.

Expiara seus crimes em furnas infernais em companhia de al­mas tão envilecidas quanto ele próprio. A atuação desgastante do mal sobre o mal levou-o ao paroxismo da loucura, e a pleitear, em preces ardentes, uma nova oportunidade que lhe foi outorgada, após certo tempo. Renovou-se gradativamente vida após vida, co­metendo um ou outro deslize, mas nenhum de gravidade. Veio fi­nalmente a se tornar Yacob.

Renasceu no seio de uma família de pastores nômades que tinham uma estrutura hierárquica muito sólida. Avraham, o patriar­ca, era um homem de personalidade forte que conduzia seu povo, pastores e rebanhos com uma crueza que, muita vezes, beirava a per­versão. Não que fosse mau, pelo contrário, era apenas rudeza e um fanatismo pelo seu deus que deixava qualquer um exasperado.

Quando Yacob renasceu, Orofiel, que visitava de tempos em tempos Yahveh, explicou-lhe a importância de desenvolverem um trabalho de conscientização no jovem. Era preciso lapidar sua men­te com trabalho duro e honesto, e mais do que simplesmente colocá-lo como um escravo, deviam prepará-lo para ser a semente de uma nação muito especial. Mitraton já tinha planejado que um dia o mundo iria precisar de uma cultura monoteísta e Yacob era um dos duzentos candidatos espalhados pelo mundo devido ao henoteísmo exacerbado do avô. Orofiel, como operador principal de Mitraton, não era capelino, tendo alcançado a maioridade espiritual num dis­tante planeta, ainda desconhecido para nós.

Yacob levou algumas semanas para chegar sozinho em Haran - seus servos voltaram a meio caminho - e alcançou a casa do tio, so­mente com a roupa do corpo. Labão o recebeu com desconfiança e Yacob contou-lhe a verdade.

- Meu tio, sou o segundo filho de meu pai, Itzchak, casado com sua irmã Rebeca. Na realidade, meu irmão gêmeo nasceu al­guns minutos antes de mim. Vim tão rápido atrás dele que, brincan­do, dizem que estava segurando o calcanhar dele. Por isso, meu nome ser Yacob, aquele que segura o calcanhar.

- Sim, mas também significa aquele que leva vantagem. Qual é a vantagem que você quer levar sobre mim? - perguntou-lhe o ma­treiro Labão.

- Eu, meu senhor? Nenhuma, vim aqui para servi-lo e estou disposto a qualquer sacrifício para agradá-lo.

- Sim, sim, conheço a arenga. Deixe eu ver se entendi bem o que você me disse. Como você é o segundo filho não tem direito a nada e Avraham, seu avô, ordenou que viesse até aqui para casar-se. Com que dote?

Yacob olhou-o nos olhos e disse-lhe, calmamente:

- Posso trabalhar para meu tio até conseguir dinheiro sufici­ente de modo a ter um dote.

- Ouça bem o que vou lhe dizer. Não creio que você tenha aptidões para o trabalho duro. Pude observar que suas maneiras são por demais fidalgais e suas mãos são excessivamente finas, mostran­do que nunca pegou numa corda para amarrar um burro bravo. Suas sandálias são novas demais, mostrando que seus pés andaram pouco tangendo rebanhos. Além disso, vejo, pela cor de sua pele, que protegeu-se demais do sol inclemente e que não andou em in­termináveis pradarias ou subiu escarpadas montanhas atrás de ove­lhas desgarradas, carregando terneiros e afugentando chacais e lo­bos. Não vejo por que deveria dar emprego a um homem cuja expe­riência esteja mais para tocar uma lira e cantar belas músicas do que trabalho de homem macho na lide do rebanho bravio.

Yahveh havia feito um belo trabalho, porquanto, se não tives­se ainda sob o impacto da aparição, Yacob teria levantado a voz com o tio, tendo uma séria altercação de resultados imprevisíveis. No en­tanto, Yacob engoliu o orgulho e disse-lhe com um tom de voz mei­go e gentil:

- Meu tio, o senhor é um observador notável. Descobriu num átimo a razão de ter sido enviado para longe de minha casa. Não que eu seja um preguiçoso, longe de mim tal defeito de caráter. O que acontece é que temos servos a não mais poder e sempre fui excessi­vamente mimado. Minha mãe não me permitiu esforços exacerba­dos para não ferir minha gentil compleição. Toda vez em que ia fa­zer algo que exigisse maior esforço, um dos meus servos corria e o fazia por mim. O que desejo é deixar esse tempo para trás, pois é de minha exclusiva vontade ter minha própria riqueza e família.

A forma mansa e autoritária como falara impressionara bem Labão, que lhe respondeu:

- Que seja então, dar-lhe-ei um trabalho duro e veremos como se comporta.

E com isso combinou um determinado salário do qual descontaria casa, comida e roupa. Quanto a casamento nada foi falado e Yacob nem sabia se Labão tinha ou não filhas. Mais tarde, ele conhe­ceu os filhos de Labão, três troncudos e mal-encarados homens, que estavam apascentando um rebanho de ovelhas e cabras. Foi apre­sentado pelo pai e olhado de esguelha pelos homens.

Deram-lhe como primeira missão ir até um dos morros vizi­nhos encontrar um rebanho de ovelhas e trazê-lo para poderem desalterar a sede. Desincumbiu-se bem da primeira missão.

Labão colocou-o num estábulo onde iria viver. Neste local, no final do primeiro dia de trabalho de sua vida, ele conheceu a filha mais velha de Labão cujo nome era Lia, que veio lhe trazer cobertas, um tapete remendado que serviria de piso e duas roupas velhas e cerzidas de seus irmãos. A moça sorriu-lhe simpaticamente, e ele re­tribuiu, observando-a. Seu rosto era comum, seus olhos embaçados, sem vida, sua pele levemente macilenta. Sua estatura não era alta, mas era um pouco gorda para o tamanho. Parecia não ler seios ou se os tinha deviam ser achatados. Por outro lado, se tinha um traseiro devia estar escondido; a mulher parecia uma tábua. Já o seu sorriso era agradável e não era de toda desprovida de algum charme, quiçá, interior. Não lhe apeteceu tê-la como esposa. Para uma noite de amor, no entanto, qualquer fêmea era atraente.

No outro dia acordaram-no tão cedo que o sol não tinha se­quer levantado. Não reclamou e correu para fazer seu labor. Trabalhou de forma insana, procurando mergulhar na labuta de tal modo que sua mente não podia ser ocupada com outras coisas. Yacob po­dia ter sido, em Gerara, um relapso e preferir a ociosidade ao traba­lho, no entanto, em Haran, tornara-se um obreiro sério. Por outro lado, em Gerara, mesmo sendo um tapeceiro diletante, entendia muito bem de caprinos e ovinos. Escutava atentamente Eliezer, Avraham e os seus tios, entre eles Zamrã e Jecsã, discutirem a mistu­ra dos sangues dos caprinos e dos ovinos. Entendia, dentro de sua vi­são limitada, pragmática, de genética. Esse conhecimento lhe seria de grande utilidade em futuro próximo.

No segundo dia, na hora do jantar, uma nova moça veio lhe trazer a comida, já que não jantava com todos os filhos e filhas de La­bão. A moça era esbelta, não muito alta, de uma beleza delicada, fina e quase diáfana. Não devia ter mais do que doze anos, se muito. Ain­da moçoila, tímida e insegura, depositou a comida no chão e partiu sem muito falar. Descobriria mais tarde que era a filha mais nova de Labão chamada Rachel. Sua primeira impressão de Rachel fora me­lhor do que a que teve de Lia, mas seu corpo cansado não lhe deu idéias lascivas.

Rachel revezava-se com Lia para trazer-lhe a comida e algum conforto adicional. No inverno, deram-lhe uma coberta de carneiro toda remendada e tão mofada cujo cheiro era insuportável. Cada dia que passava, a jovem Rachel transmudava-se de uma adolescen­te sem graça para uma mulher esplendorosa, e o olhar acostumado de Yacob não perdia um detalhe sequer desta transformação. Ele ia se enlevando com a jovem, mesmo que suas conversas se restringis­sem a um mínimo necessário.

Os dias tornaram-se meses e quando iria completar um ano, ele foi entreter-se com Labão.

- Prezado tio, tenho lhe servido com dedicação, dando-lhe conta com justeza de todos os meus atos. Desejo, no entanto, mais do que tenho hoje, e mesmo sendo agradecido pelo que tenho obtido em sua casa, preciso pensar em amealhar recursos para ter um dote e gerar descendência.

- Muito bem, mas o que sugere?

- O senhor tem uma filha chamada Rachel que me interessa de sobejo. Ela tem o coração puro, a alma limpa e eu a desejo para minha esposa.

Labão cocou sua barba, fez uma pequena pausa e depois, fa­lou, pausadamente:

- Muito bem, mas só há um único problema. Nossa tradição não permite que casemos a filha mais nova antes da mais velha. Só posso casar Rachel se você se comprometer em casar com a mais ve­lha, primeiro.

- Será que não há ninguém em Haran ou Ebla que possa ser digno de Lia?

Labão cocou a barba e colocou o braço no ombro de Yacob, dizendo-lhe:

- Uma boa ovelha pode parir muitos filhotes. Alguns são belos e outros são feios. Lia está no rol das que não levaram sorte na vida. Não há pretendentes para ela e bem que eu a daria para um moço que fosse trabalhador desde que...

- Sim...

- Bom, sejamos honestos. Ela vale muito pela ascendência que tem, pois, assim como eu e você, ela tem sangue de Tareh nas veias. Desse modo, faço um trato com você. Trabalhe sete anos apenas por casa e comida e lhe darei Lia.

- Creio que o senhor não me entendeu. O que desejo é Ra­chel. E a ela que desejo dar meu coração.

- Bobagens infantis! Não existe nada disso. O que há são ho­mens e mulheres copulando por prazer e poder.

- Poder?

- Claro, cada filho homem que levar seu nome é seu soldado. Cada um deles irá virar um chefe de família, aumentando o poder do clã. Poder é o que importa, o resto é insignificante.

- Se tudo isso é verdade por que meu tio não aumentou ainda mais seu poder?

- Ora, na nossa família quem tem o verdadeiro poder é Hus, primogênito de Nacor, e que mantém todos os rebanhos de todos os irmãos e descendentes. O rebanho que você pastoreia é parte meu e parte de Hus. Ele sim, recebeu o poder de Nacor, assim como It­zchak receberá de Avraham e seu irmão Esaú também, em tempo devido. Você assim como eu temos pouco. O que tenho ganhei de meu pai e de minha avó Melca com o casamento de Rebeca, minha irmã.

Os pensamentos de Yacob voaram em sua mente atribulada: "Que interessante! Então, durante esse ano, eu pastoreei o fruto do casamento do meu pai com minha mãe. São frutos assim como eu o sou.”

- Então, meu caro Yacob, posso considerá-lo como meu futuro genro?

O velho estava aflito. Sua voz tremia. Queria livrar-se de Lia e fazer um grande casamento para Rachel, que a cada dia que passava tornava-se mais bela. Yacob sentiu a sua pressão e respondeu-lhe:

- Não, sinto muito. Não posso casar-me com Lia se amo Ra­chel.

Labão se irritou com a negativa.

- Mas isso é uma besteira sem nome, rapaz.

- Pode ser que seja. Mas o que eu quero é Rachel. Poderia até fazer um esforço e levar Lia junto.

- Como contrapeso.

O comentário de Labão era de um homem furibundo.

- Claro que não. O casamento seria com Lia, já que é a primei­ra e Rachel seria a segunda esposa.

- Você tem idéia de quanto vale Rachel no mercado de casamentos. Posso conseguir dez camelos cheios de ouro, prata e teci­dos, além de tapetes e coxins de seda.

- Que infelicidade pensar que tudo isso está reprimido devido à tradição de ter que casar a filha mais velha, primeiro.

- É verdade!

- Labão olhava o moço que parecia tão contrito em suas afirmativas. Será que era sincero em sua asserção? Pensou Labão.

- Há, no entanto, uma solução que antevejo como sendo a mais perfeita de todas.

Labão era todo ouvidos. No oriente, casar uma filha era livrar-se de um peso inútil. Yacob iniciou seu pensamento.

- Proponho que me faça noivo de Lia gratuitamente e que trabalhe durante sete anos por Rachel.

Labão olhou e disse-lhe:

- Desde que mande vir dez camelos de ouro e prata de sua ter­ra.

- De lá não virá nada a não ser notícias fúnebres. Proponho melhor. Tenho quatro minas que correspondem a duzentos siclos de prata. Com esse dinheiro, comprarei oito ovelhas malhadas, para não confundir com suas brancas. O senhor me permitirá pastorear as minhas ovelhas junto com as suas, e pelo fato de elas serem ma­lhadas, não haverá motivo para confusões. As suas serão sempre brancas e as minhas serão sempre as malhadas ou riscadas.

- Sim?!

- Bem, neste caso trabalharei por três anos sem nada receber, para você, e terei direito a Lia. No final desse período lhe darei trin­ta talentos por Rachel e casarei com as duas no mesmo dia.

- Isso é irregular. Terá que existir sete dias de diferença entre os dois casamentos.

- Que seja. Casarei com Rachel ...

- Não, não, não. Primeiro com Lia.

- Sim, é claro, e depois, sete dias após, terei direito a Rachel.

- Está bem, desde que pague os trinta talentos.

- Sim, claro.

Labão fez umas contas na mão e depois, falou:

- Escute bem, Yacob. Você entende que trinta talentos representam noventa mil siclos, ou seja, três mil e seiscentas ovelhas.

- Plenamente!

E assim acordados, Yacob teria que trabalhar três anos de gra­ça por Lia e poderia comprar Rachel por três mil e seiscentas ovelhas.

No outro dia, Yacob ausentou-se de casa por vários dias indo até a Armênia onde adquiriu oito carneiros machos de grande vitalidade, junto com um amigo, trouxe-os até Haran. Misturou-os com os rebanhos brancos de Labão e esperou que a natureza fizesse seu trabalho.

Ora, cada vez que uma ovelha branca entrava no cio, o macho malhado, mais alto e forte do que o macho branco, corria para co­brir a fêmea. Se o macho branco se enfurecesse, levava uma surra do malhado que não esqueceria tão facilmente. Em poucos meses, co­meçaram a nascer centenas de animais malhados que Yacob e seu novo amigo, Zarek de Ugarit, apartavam do rebanho fazendo novos rebanhos que só se misturavam entre si. Usara de um ardil que faria jus ao seu nome Yacob, aquele que suplanta os demais. Ao invés de constituir um rebanho com machos e fêmeas, esperando que as ma­trizes reproduzissem à velocidade da natureza, Yacob acelerou o processo, colocando somente machos e usando as fêmeas dos ou­tros. Um macho cobria de três a quatro fêmeas por dia, gerando uma multidão de filhotes em poucos meses.

No final do segundo ano, quando Avraham morreu, Yacob já não era tão pobre assim, tendo mais de cinco mil cabeças de reba­nho malhado que comercializava em Haran, Ebla e Emal. Seu tio Labão e seus filhos só notaram o fato muitos anos depois e nunca ti­veram comprovação do ardil de Yacob. Quando perguntavam a Ya­cob porque seu rebanho multiplicara-se a velocidade tão imprevista, recebiam como resposta que era a vontade do senhor Yahveh, deus de Avraham, Itzchak e Yacob.

O mensageiro, enviado por Itzchak, para avisar da morte de Avraham, encontrou Labão, que o despachou com a mensagem de que Yacob estava ausente em Mitani, negociando uma grande parti­da de rebanho. O estafeta voltou deixando a mensagem que Avra­ham morrera. Yacob soube do fato alguns dias depois e usou luto por um ano, só não se penalizou e se descabelou porque não tinha grande amor pelo avô.

Passaram-se os três anos e Yacob não só tinha as três mil e seiscentas ovelhas para comprar Rachel, como tinha muito mais. Torna­ra-se um dos homens mais ricos do lugar, rivalizando-se com Hus.

Usara de expedientes os mais diferentes para enriquecer, sendo um dos preferidos o de cruzar à noite as fêmeas brancas com os machos malhados e rajados, e no nascimento dos filhotes, levava-os para longe, misturando com sua espécie. Sempre existia uma ovelha dis­posta a dar de mamar aos terneiros. Considerando que havia mais de duas mil ovelhas no cio por mês, conseguira aumentar seu reba­nho em quatro mil cabeças sem fazer muita força.

O povo desconfiava de tal artimanha só que não havia como provar. Yacob, que caíra nas graças de Labão, marcou o dia do casa­mento, casando-se com Lia, e sete dias depois, levava Rachel para o leito nupcial. Lia trouxera sua serva, de nome Zelfa, uma morena muito mais bela e apetitosa do que ela. Rachel trouxe sua escrava Bala, uma cativa hurrita de cabelo castanho e de pele branca como o leite.

Yacob passou de um simples homem, que não tinha nenhuma mulher, mantendo eventuais relações com viúvas e escravas em Ha­ran, a um verdadeiro chefe de harém. Não se fez de rogado e possu­iu Lia, Zelfa, Rachel e Bala, com diferença de poucos dias entre elas.

Os anos continuaram e Yacob cada vez mais satisfeito. Enriquecera a ponto de ter uma guarda pessoal de mais de cinqüenta ho­mens. A quantidade de rebanho que tinha era maior do que a soma dos demais. Sua tenda era forrada com tapetes vindos de lugares distantes, com móveis típicos dos fenícios, com jóias incrustadas e desenhos exóticos. Diversificara suas atividades em muitas frentes. Tinha, além de ovinos e caprinos, rebanho de corte e leiteiro, co­mércio de artigos de ouro e prata, cobre e bronze, além de tecidos e tapetes. Negociava com fenícios, hurritas, hititas, sumérios, acadianos e kemetenses. No entanto, sua atividade principal continuava a ser pastorear suas milhares de cabeças de animais que ocupavam os morros e os vales da alta Mesopotâmia.

Sua vida familiar era conturbada. O fato de dar maior prefe­rência para Rachel trazia-lhe dores de cabeça com Lia, que, por sua vez, reclamava que ele havia possuído Zelfa, sua escrava, sem seu consentimento. Yacob, docemente, respondia que amava a sua pri­meira mulher mais do que as outras e se ficava mais tempo com Ra­chel era para ver se ela conseguia engravidar. Não que ela fosse esté­ril, só que o ovo não conseguia se fixar muito tempo no útero, sendo expelido com facilidade por um forte fluxo sangüíneo. Yacob jamais saberia que a sua enorme fixação sexual por Rachel não era somente pela rara beleza de sua mulher, mas era, antes de mais nada, uma atração de alma para alma, pois Rachel não era mais do que Mar­tuky.

Já por seu lado, Lia era prolífica como uma coelha. Em sete anos, tivera Reuben, Simeão, Levi, Iehudá, Yshacar, Zabulon e uma moça que ganhou o nome de Dinah, num total de sete filhos. Zelfa teve Gad e Aser, além de dois meninos, ambos natimortos. A escrava Bala teve dois filhos chamados Dã e Neftali. Bala gerou mais três moças que permaneceram na casa do pai até o casamento com prín­cipes da região de Canaã.

Rachel continuava a não ter filhos até que conseguiu levar a termo a gestação de Yozheph. Quando esse menino nasceu, Reuben tinha doze anos e Dinah tinha dois. Yozheph Ben Yacob era o mais belo de todos os filhos que nasceram da geração de Yacob. Seu sem­blante era dourado, com uma pele alva, levemente rosado. O cabelo era castanho dourado e seu porte, majestoso, desde pequeno. Nas­cera para ser príncipe.

Estávamos por volta do ano de 1.715 a.C., e Labão, cada dia que passava, ouvia mais os detratores de Yacob. Que ele tinha feito isso e aquilo, enganando não se sabe mais quem e assim por diante. Num dia, numa festa dada por Yacob, Labão, tendo bebido além da conta, falou rispidamente com o genro, acusando-o de verdades e mentiras.

Realmente, Yacob era sagaz e astuto nos negócios, levando vantagem sempre que negociava, no entanto não era um ladrão na acepção da palavra. No início de sua carreira como dono de rebanhos, usara de expedientes baixos como cruzar machos com fêmeas e não dar o direito de barriga ao dono da ovelha. Não deixa­va de ser um roubo. É verdade que a ovelha continuava viva, só que o dono não iria usufruir de uma barrigada.

Yacob sentiu nas palavras do sogro mais do que ódio ou uma bebedeira ocasional. Percebeu que ele era o porta-voz da população local e que sua vida corria perigo. Estava com quarenta e cinco anos, com uma fortuna enorme, e era hora de voltar para casa. Ele sentiu que era chegado o momento. Que sinais mais irrefragáveis poderi­am ser do que o perigo de morrer nas mãos de seus desafetos. Pre­parou sua partida para dentro de uma semana e despediu-se dos principais amigos, inclusive de Labão.

A despedida do sogro foi uma das piores situações que Yacob pôde vivenciar. Foi acusado de tudo, desde roubo até as mais grossas patifarias. Yacob escutou tudo impávido e altaneiro, e, no final, an­tes de partir, disse-lhe com a voz firme e coragem de quem tem cem guerreiros atrás de si.

- Se sou tudo isso que você me imputa, deveria estar feliz por eu partir.

E assim falando, partiu. Havia também outra razão para Ya­cob querer partir, pois a região estava em polvorosa com grupos de hititas, hurritas e citas, que passavam em largos contingentes. Yacob negociava com todos e resolvera acompanhá-los em direção à Canaã, porquanto, desta forma, teria segurança em viajar com tantos homens. Eles se deslocariam devagar, tendo crianças e muito reba­nho, exigindo cuidados maiores do que uma tropa de guerra. Esses homens estavam se deslocando para Canaã, e de lá, quem sabe para onde iriam.

A enorme caravana com mais de duas mil pessoas, cerca de cem guerreiros e quatrocentos pastores atravessou lentamente as terras do Oriente em direção a Canaã. Yozheph tinha pouco mais de dois anos de idade e Yacob passara mais de vinte anos em degredo.

Sua preocupação era saber como o irmão o receberia. Não ha­via disputa entre eles, como muitos diziam, pelo fato de ter partido apressado e sem nada. Quase ninguém soubera que fora desterrado para Haran por ordem do patriarca Avraham e as histórias de lutas e disputas entre os irmãos eram grandes. Seu pai Itzchak morrera há mais de cinco anos, e agora Esaú era o chefe do clã. Devia-lhe respei­to e obediência, e, se Esaú quisesse, poderia tomar-lhe parte do re­banho, dos servos e escravos pelo direito à primogenitura. Algo to­talmente insuportável à mente de Yacob. Ele passou meses imagi­nando as piores vilanias no sentido de se esquivar de qualquer paga­mento ao irmão e ainda lucrar com isso.

Três meses depois, a caravana aproximou-se de Gerara e instalou-se em Betel, no mesmo lugar onde Yacob tivera sua visão ex­traordinária. Nessa noite, sonhou novamente e viu Yahveh. Não o discernia bem. Via um ser gigantesco acompanhado de uma multi­dão de seres alados, brilhantes e parecendo estar suspensos no ar. Não passava de uma imagem mental enviada por Sansavi, no senti­do de comovê-lo e fazê-lo lembrar daquele instante para sempre.

- Sou teu Senhor Yahveh, deus de Avraham e Itzchak. Não es­tou totalmente satisfeito com teu comportamento e venho te dizer acres palavras.

Yacob, desdobrado do corpo físico, prostrou-se perante a aparição, que continuou a lhe falar.

- Tu cumpriste em parte aquilo com que te comprometeste comigo, nesse mesmo lugar, há vinte anos. Trabalhaste duro e foste proficiente, no entanto usaste de ardis e enganaste teus amigos, as­sim como fizeste de tudo para enriquecer. Para atingir teus objeti­vos, nem sempre claros e corretos, foste tenebroso e pérfido. O que me dizes disto, Ó Yacob?

- Não matei nem roubei. Usei de ardil porque todos que co­nheço enriqueceram através de astúcias e artimanhas. Meu avô Avraham alugou sua mulher Sara ao faraó. Meu tio Labão herdou do pai e da avó a riqueza da venda de Rebeca. Todos enriqueceram por meios de estratagemas. Por que não eu também?

- A justificativa de que os outros cometem vilanias não nos faculta essa liberalidade. A execração dos atos humanos não é uma obrigatoriedade. É possível viver-se em paz e com respeito fraterno aos homens sem ter que enganá-los e amesquinhar a relação huma­na. Para que Yahveh possa calcar uma nação sobre os ombros de um homem é preciso que este eleito seja impoluto.

- Oh, grande deus Yahveh, deus de Avraham, Itzchak e Ya­cob, seja condescendente e fira-me de morte se cometi uma vilania, mas em meu julgamento, tenho sido reto com todos. Se tenho leva­do vantagem em meus negócios é devido à fé que tenho no meu Se­nhor Yahveh.

- Não mistures teus negócios mesquinhos e escusos com a mi­nha pessoa. Sê reto de caráter e assume teus erros.

- Assumo tudo o que tenho feito, seja de bom, seja de ruim. Veja, no entanto, no meu coração, na minha mente, se não mudei, se não me aprimorei a ponto de obter as graças do meu poderoso Senhor?

- Em parte sim, Yacob, mas em parte não. Vejo que no teu coração já maquinas estratagemas para burlar teu irmão. Por que não usares de verdade para com ele?

- Tenho medo que ele me mate e tome tudo o que é meu.

- Existe alguma razão para isso? Por acaso, tu o enganaste em alguma transação no passado? Tem ele ódio por ti?

- Não. Meu irmão é um homem simples.

- E por causa disso tramas o seu envenenamento. És pior do que a serpente que inocula seu veneno para defender-se. Não satis­feito em seres ardiloso, anelas agora ser fratricida?

Yacob começou a chorar. Seu espírito escutava as duras pala­vras do deus. Sansavi representando Yahveh segurou-lhe os ombros convulsionados pelo pranto e disse-lhe acerbamente:

- Estive ao teu lado mesmo quando usaste de ardileza para com Labão, mesmo quando fizeste o mesmo contra os rebanhos de Hus e compraste tapetes e tecidos de negociantes tão manhosos como ti. Mas em hipótese alguma permitirei que cometas a suprema vilania de matar teu irmão, indefeso, sob tua tenda, sob o signo de tua hospitalidade.

Yacob chorava e ajoelhado disse-lhe:

- Arrependo-me só de ter pensado na morte do meu irmão. Peço-lhe que me abençoes sem o que sentir-me-ei o último dos ho­mens. Tem sido minha fé no Senhor que me fez crescer e ficar forte.

- Não! Foi a fé em ti próprio que te fez crescer e tornar-te rico. Se tivesses real fé em mim, jamais cometerias uma vilania ou pensa­das numa, não só por medo de minha ira como também por amor à minha augusta figura. Infelizmente os homens cometem as mais he­diondas vilanias no nome do Senhor.

- Peço-lhe que me perdoe e que me abençoe nesse momento. Prometo não levantar nunca a mão para meu irmão.

- Todo e qualquer ser humano é teu irmão.

- Que seja então, abençoe-me e considerarei todos os seres humanos como meus irmãos.

- Não creio em tua honestidade de propósitos.

- Creia-me, poderoso Yahveh, e abençoe-me. Juro pelos céus que jamais levantarei a mão contra um ser humano enquanto viver.

Um silêncio opressivo se fez entre os dois. Yahveh havia sido alertado por seus amigos espirituais de que Yacob maquinava a mor­te do irmão, o que seria imperdoável. Ele deveria ser duro e severo para com o recalcitrante Yacob, ferindo-o com uma doença que o lembraria para todo sempre de sua vilania, pois só imaginar a morte de alguém já é um crime. Neste instante, Yahveh falou:

- Abençoar-te-ei com uma doença que te deixará seqüelas que portarás o restante de tua vida. Lembrar-te-ás desse momento e des­te juramento enquanto viveres.

Yahveh tocou-lhe na fronte, reintroduzindo-o no corpo físico. Yacob entrou com um leve estrebucho e um dos espíritos da comiti­va do deus apalpou seu cérebro, na parte posterior, onde fica locali­zado o cerebelo. Sua mão luminosa penetrou a parte dura do crânio e lançou um minúsculo jato de luz que atingiu um lugar específico do cerebelo, e Yacob estremeceu fortemente, acordando incontinenti.

Sentiu uma dor forte na articulação da coxa e tentou mexer-se, levantando-se, e descobriu que estava coxo. Sua perna esquerda não dobrava mais. Um micro-derrame no cerebelo o fizera ficar alei­jado. Lembrou-se da disputa que tivera com o deus e sob a forte co­moção do momento se intitulou aquele que luta com Deus - Israel. Daquele instante em diante, tendo sido feito coxo pelo poder do seu deus, Yacob passaria a se chamar de Israel, sendo assim conhecido pelas futuras gerações.

Naquela manhã dourada, levemente fria, Israel enviou seu tartan, Zarek de Ugarit, para conversar com seu irmão Esaú em Ge­rara. O amigo tomou cinco fortes soldados hurritas, mercenários que viviam para proteger o rebanho de incursões de povos selva­gens, e dos leões e chacais do caminho, e alcançou o acampamento principal de Esaú em dois dias.

O irmão não estava, tendo ido caçar além da torrente do Kemet. Demorou mais dois dias para voltar e quando chegou foi con­versar com Zarek, que trazia presentes em ouro, prata, jóias e muitas outras coisas. A conversa não podia ter sido mais amistosa, e Esaú fi­cou tão feliz com a volta do irmão que, no outro dia, junto com seus filhos, pastores e amigos da região foram em grande comitê para o receber.

Israel estava preocupado. Imaginava sempre o pior. Cada um julga o próximo tomando a si próprio como parâmetro. Deste modo, no terceiro dia, tomado de pavor, dividiu sua imensa tropa em duas e fez uma delas afastar-se de volta até Siquém. Alias, o gros­so desta tropa foi para lá sob o comando de Reuben, o filho mais ve­lho.

Colocou no caminho para Gerara dois olheiros que teriam como função informá-lo de qualquer movimento estranho na estra­da. No quarto dia, sexto desde que Zarek partira, os vigias avistaram uma grande coluna de homens aproximando-se e correram para avisar Israel. Contaram que Esaú se aproximava com quatrocentos homens, o que deixou Israel apavorado. Imaginou defender-se, mas a dor na perna o alertou para o juramento que fizera a Yahveh e pensou:

- Yahveh não irá permitir que Esaú, meu irmão, me mate.

A tropa chegou pouco depois do almoço e Zarek vinha ao lado de um homem ruivo, rotundo e rubicundo, que arfava com o esforço de andar. Zarek adiantou-se e falou alto:

- Mestre Yacob, este é seu amado irmão Esaú.

Os dois irmãos precipitaram-se nos braços um do outro e abraçaram-se vigorosamente. Havia quase vinte e um anos que não se viam.

Israel convidou o irmão a entrar na sua larga tenda, onde esbanjavam-se luxo e sofisticação. Sob os coxins e tapetes de procedências diversas, os dois irmãos conversaram longamente.

Iniciaram falando de suas conquistas mútuas, já que ambos ti­nham enriquecido ainda mais. Falaram de filhos e mulheres, assim como de concubinas e aventuras, a maioria exageradas ou inventa­das sob o efeito do doce vinho fenício, que corria às largas, junto com pães, tâmaras, uvas, mel e outros acepipes.

Esaú falou de sua longa descendência, apresentando os seus filhos Elifaz, Rauel, Jeus, Yelon, Koré, além de uma meia dúzia de mulheres que não foram contadas e apresentadas, pois mulher é peso morto para o pai, a não ser quando é bela e pode dar bom dote. A maioria dos habitantes do local era pobre e só podia dar um carneiro ou duas ovelhas por uma fêmea, e o pai preferia vê-la infeliz nos braços de um bugie do que ficar pendurada na sua casa.

Israel falou de seus filhos e apresentou a todos menos Reuben, que estava em Siquém.

Esaú passou dois dias conversando com Israel. O irmão, mais moço por alguns minutos, vendo que Esaú nada queria de seu, aca­bou por contar-lhe que parte do seu rebanho estava em Siquém, com o filho mais velho. Esaú riu-se do infundado medo do irmão, di­zendo-lhe que seria a penúltima coisa que faria. Israel perguntou qual seria a última e Esaú respondeu-lhe sério, que caso ele cometes­se o desatino de matar o próprio irmão, a última coisa que faria seria matar-se, pois não poderia viver um minuto com tamanha ignomí­nia em seu coração. Eles se abraçaram novamente em sinal de eterna fraternidade.

- Fico feliz em vê-lo de volta, mas há um grave problema. Só com o rebanho que você tem aqui, fora aquele que ficou para trás em Siquém, não cabe na região em que estamos. O rebanho deixado por Itzchak, nosso pai, multiplicou-se e agora dobrou. Naquela épo­ca, já não dava para apascentá-lo em Gerara, e agora ficou ainda pior. Eu próprio serei obrigado a expandir minha área de pastoreio até Seir, muito em breve.

- Onde você crê que seria melhor para meu rebanho?

Esaú também conhecido como Edom - o ruivo - olhou-o longamente, ajeitou os ombros largos e peludos, e, depois, respirou fundo e falou:

- A situação é muito complicada. Explicarei com detalhes. Não desejo ficar mais em Gerara. O filho do falecido Abimelec tem sido um estorvo e as pradarias estão sempre secas. Não sei se é um bom lugar para você também. No entanto, você não pode ir para lá às pressas. O ideal é ficar em Siquém por dois ou três meses até que eu complete minha mudança para o Seir. Aí, depois disso, você po­derá ir para lá, se lhe apetecer.

- Mas se não é bom para você por que deverá ser bom para mim?

- A terra está seca há muito tempo. Lembra-se de que já houve secas, e até Avraham, nosso avô, teve que partir para o Kemet. Deste modo, seca existirá tanto em Gerara como em Siquém. Em Gerara, quem sabe você não consiga fazer uma aliança melhor com o filho de Abimelec do que eu. Pessoalmente, não o suporto e nem ele a mim. Consigo, a história pode ser diferente. Você é mais político e consegue levar as coisas com mais calma do que eu.

- Então, sua sugestão é que eu fique dois a três meses em Si­quém e redondezas e depois me mude para Gerara?

- Creio que é o melhor. Estaremos perto e poderemos fazer aliança contra inimigos comuns.

- Que assim seja.

Os dois irmãos continuaram juntos, festejando por mais um dia quando então seguiram seus caminhos. Israel recuou sua tropa, unindo-se com o restante do rebanho que ficara em Siquém.

As coisas não seguiram conforme planejado. A terra de Seir estava ocupada por violentas tribos nômades e Esaú sentiu dificulda­des em tomar a terra e lá instalar seu rebanho. Para tal levaria mais de seis anos, e, nesse período, Israel acampou em Siquém e alterna­va, indo no inverno para Betel, onde fazia sua oferendas a Yahveh na esteia que mandara erigir desde que ficara coxo. Aliás, ter ficado aleijado, foi uma das melhores coisas que lhe acontecera. Com medo de ser cada vez mais atingido pela ira de Yahveh, Israel parará de pensar em estratagemas para enriquecer, ludibriando o próximo. Dedicou-se ao comércio com ímpeto renovado, e, sagazmente, ga­nhando ainda mais dinheiro sem enganar ninguém. No entanto, as coisas iriam complicar-se para sua grei graças a um caso de amor.

Dinah, a bela filha de Lia com Yacob, costumava passear com suas amigas pela região. Desde o início de sua chegada que Israel comprara de Hemor, rei de Siquém, uma grande propriedade onde colocara seu acampamento principal. Hemor tinha um filho pouco mais velho do que Dinah e encantou-se com a moça e ela por ele. Começaram a se encontrar em segredo, devidamente apoiados pe­las amigas inconseqüentes. Dinah tinha quatorze anos e o príncipe de Siquém, cujo nome era Harak, não alcançara os dezessete anos.

Resolveram que iriam se casar, mas Dinah sabia que jamais se­ria desposada por um heveu de tez muito escura, quase marrom como um hamita, e que sua família iria opor resistência completa. Explicando isso ao doce Harak, que não pensava mais nada do que casar-se com a mocinha, concluíram que deviam fugir e num rapto consensual, ele a desposaria. E assim foi feito.

O escândalo tomou proporções inesperadas. Reuben, o irmão mais velho, uma raposa de astúcia e um coração empedernido, inci­tou os irmãos a uma traição medonha. Para todos os efeitos, a famí­lia aceitaria o fato como consumado e não se deveria guardar rancor sobre nada. No entanto, como reparação, além do dote normal exi­gido, a cidade de Siquém deveria pagar e participar de uma grande festa em homenagem ao casamento. E assim foi feito.

Durante uma semana, foram feitos os preparativos para a grande festa de casamento entre Dinah e Harak, príncipe de Siquém. Israel estava satisfeito, pois representava uma aliança importante que lhe daria uma base de ação no território de Canaã, pois já estava quase desistindo de se mudar para Gerara devido à de­mora de Esaú partir para Seir.

Aparentemente tudo estava a contento, Israel estava satisfeito com o generoso dote, os noivos radiantes e a pequena aldeia feliz com o desenlace da escabrosa história. A noite do casamento foi fes­tiva, com músicas, danças e muita bebida, especialmente fornecida pela família de Israel. O patriarca ainda mantinha luto pela morte de sua adorada Rachel durante o último parto quando ela lhe dera o filho mais moço chamado de Benjamim, mas sucumbira durante a délivrance, e por isso, ainda pesaroso, recolheu-se cedo, logo após a celebração do casamento.

Às altas horas da noite, muitos dos convidados da aldeia, completamente bêbedos, recolheram-se às suas casas enquanto que ou­tros ainda festejaram por mais algum tempo. Na fria madrugada de dezembro, Reuben e seus irmãos mais velhos, acompanhados de du­zentos pastores, entraram nas casas dos infelizes aldeões e os mata­ram enquanto dormiam. Foi uma carnificina brutal com mais de dois mil e quinhentos mortos. O noivo e o pai do noivo foram chaci­nados com requintes de crueldade. Harak foi castrado sob intensa dor, esvaindo-se em sangue. Finalmente, um dos esbirros de Reu­ben enfiou-lhe uma lança nas costas, terminando com seu suplício. O pai, Hemor, foi morto após ter sua língua extirpada e seus olhos vazados.

Os espíritos guias nada puderam fazer. Reuben e seus irmãos, sustentados por uma malta de espíritos obsessores, todos terrestres, nenhum capelino, estavam desvairados, estando fora de controle. Mataram e cometeram atrocidades com um prazer fora do normal. Os espíritos guias tentaram influenciar mentalmente os irmãos, mas eles estavam vibrando com tamanho ódio que suas admoestações caíram em coração seco. Eles informaram Sansavi e este a Orofiel da desgraça que ocorrera e, imediatamente, eles começaram a tomar medidas para punir os culpados e salvar a tribo de Israel da fúria vingativa dos parentes das pessoas trucidadas em Siquém.

De manhã, Reuben informou Israel, seu pai, do acontecido, sem poupar nenhum detalhe escabroso sequer. Reuben, um espírito capelino, de evolução ainda lerda, vingativo e repugnante, achava que havia feito algo de maravilhoso.

- Trataram nossa irmã como se fosse uma prostituta e, deste modo, mereceram o que tiveram.

Israel estava enregelado de pavor. Mal conseguia falar. Balbuciou com extrema dificuldade.

- E Dinah?

- A imbecil tentou salvar seu noivinho e acabou se machucan­do na contenda. Vá entender as mulheres!

- Está viva?

Reuben fez um ar de contrariedade, e disse-lhe com um ar desfeito.

- O ferimento era muito extenso e tivemos que sacrificá-la.

Israel estava tomado de tamanho medo que quase não se me­xia. Yahveh saberia que ele era inocente. Não fizera nada contra o doce príncipe e sua própria filha. Era óbvio a qualquer um que a me­nina estava radiante com o casamento. Não era bem o que ele, Isra­el, desejara, preferindo vê-la casada com alguém de sua própria fa­mília, porém a consorciara com um homem rico e bem situado.

- Você matou sua irmã como se ela fosse uma ovelha ferida?

- Ora, meu pai. Na hora em que foi aviltada pelo heveu pas­sou a não ser mais nossa irmã.

Israel foi-se tomando de uma forte ira, despertando do estu­por de que fora possuído.

- Você é de uma imbecilidade extraordinária. Com essa vin­gança idiota e despropositada, você nos colocou como proscritos em toda a Canaã. Não haverá um único lugar que irá nos receber depois que souberem que atacamos cruelmente, de surpresa, covardemen­te, toda uma aldeia. Os parentes dos heveus virão atrás de nós, fa­zendo alianças com outros povos e tentarão se vingar da morte de seus parentes. Você pensou nisso, seu idiota sanguinário?

Reuben nunca vira o pai tomado de tamanha raiva. Ele estava só com seus irmãos e seus esbirros, que eram minoria, pois nem todos os pastores e soldados de Israel haviam tomado parte do massa­cre de Siquém. Quando começaram a ver Israel tomado de fúria inaudita, prepararam-se para o pior. No entanto, Israel sabia que te­ria que matar todos os filhos de Lia, o que lhe seria impossível.

Reuben estava aterrorizado com a reação do pai. Covarde e traiçoeiro, o primogênito de Israel estava acometido de um medo que o levou a ajoelhar-se para implorar clemência. Israel parou de falar, pensou por alguns segundos e concluiu:

- Devido ao seu ato desprovido de sentido e de motivo, você e nenhum dos filhos que participaram dessa vilania jamais poderão ser líderes do meu clã.

Reuben empalideceu. Perdera o direito à primogenitura, e, como conseqüência, à imensa fortuna do pai, além do poder bélico que Israel tinha para se proteger.

- O senhor não pode fazer isso. Seu herdeiro passará a ser Yozheph, filho de Rachel.

- Que assim seja!

- Mas não passa de um menino de dez anos.

- E daí? Ele me sucederá quando eu morrer. Com dez anos, Yozheph demonstra ser mais inteligente e responsável do que você e seus irmãos.

- Ele não passa de um alcagüete que está sempre a lhe trazer notícias de nossas falhas.

Israel olhou-o nos olhos. Reuben nunca vira o pai com tama­nho ódio estampado na face. Calou-se, pois sentiu que falar do filho adorado de Israel era atrair ainda mais a ira paterna.

- Cale-se e escute bem o que tenho a lhe dizer. Você não passa de um energúmeno que não sabe usar os dons que nosso deus lhe deu. Eu lenho direito de vida e morte sobre todos vocês, e nunca mandei açoitar nenhum dos meus pastores, dos meus guardas e dos meus filhos. Quando a vida me fazia ser inimigo de alguém, eu lhe dava as costas, e preferia ceder do que lutar. Assim fiz com os filhos de Hus e assim fiz com Labão, meu sogro. Minha mão nunca se le­vantou para ferir ou matar, e estou impedido, por votos celestiais, de matar ou mandar matar quem quer que seja. No entanto, se eu fosse agir corretamente, deveria chamar os parentes de todos os que você chacinou inutilmente e entregá-los para sua sanha vingadora.

Os guardas pessoais, leais a Israel, já cercavam os recalcitrantes, prontos para entrarem em ação sob as ordens de Israel.

- Só que Fiz um juramento ao meu Senhor Yahveh, de que não levantaria a mão contra nenhum ser humano e não o farei em mo­mento algum contra vocês. No entanto, ficarão confinados em suas tendas até que eu decida o que fazer com vocês. Graças a este ato de suprema ignomínia, nós nos tornamos insuportáveis para esta terra. Teremos que fugir a não ser que fiquemos e lutemos contra toda Ca­naã. Fomos expulsos pelos nossos próprios atos, por nossas infâmi­as. O sangue destes inocentes há de cair sobre nossas cabeças, transformando-nos numa raça de degredados, obrigados a ir de um lugar para outro, sem eira, nem beira. Fomos desgraçados pelo ato abomi­nável que vocês cometeram. Malditos sejamos!

Israel tomou das cinzas que estavam frias da fogueira da noite e jogou sobre sua cabeça. Rasgou suas vestes e retirou-se, cabisbaixo, com os olhos cheios de lágrimas. Zarek comandou os guardas e Reu­ben e os irmãos que haviam participado, que eram todos menos Yozheph por ter dez anos e Benjamim por ter pouco mais de um ano, foram levados a quatro tendas onde foram confinados, com guarda permanente à porta.

Israel, quando se viu a sós, começou a pensar sobre a situação. Chamou quatro homens e conversou longamente com eles. Man­dou-os às aldeias vizinhas para espionarem e descobrirem o que os aliados de Siquém já sabiam e o que tramavam. Deveriam reportar-se o mais depressa possível.

Israel continuou pensando enquanto lhe era servida a refei­ção do meio-dia. Era um homem bem-informado para a época e sa­bia o que estava acontecendo. Sempre que caravaneiros passavam, ele lhes dava acolhida e nos opíparos repastos que lhes serviam pas­sava a conhecer um pouco de tudo o que acontecia naquele contur­bado mundo.

Orofiel encontrou se com Sansavi e sua vasta equipe e mantiveram uma importante conversa.

- Sansavi, você e sua falange de obreiros fizeram um trabalho notável nestes quase dois séculos. No entanto, agora, após os terrí­veis acontecimentos de Siquém, os nossos superiores desejam que eles sejam levados para o Efemet, junto com os grupos de citas, semitas, hititas e hurritas, que estão partindo para aquela terra. Lá, os descendentes de Avram irão abrigar grandes contingentes de capelinos degredados e muitos deles ainda estão em estado de profunda enfermidade mental, alimentando ódios seculares dos quais não sa­bem nem mais do que se trata. Essas turbas terão que passar por du­ras provas em terras estranhas que os tratarão com desprezo. Assim como no passado, eles também foram sumérios, harapenses e outros povos e trataram com rudeza seus irmãos menores, os terrestres, agora serão tratados da mesma forma. É a lei.

Sansavi entendia perfeitamente e abaixou a cerviz em assentimento. Mas Orofiel, cada dia mais majestoso e belo, prosseguiu:

- Agora é também chegado o tempo em que eles terão que vi­ver apenas pela fé em Yahveh. Não deveremos mais nos manifestar com tanta intensidade. Apenas os guias espirituais normais devem fazer seu trabalho de conscientização a conta-gotas, gradativo e len­to, mas profundo. O povo deve cultuar Yahveh como sendo o con­ceito do grande inefável, do pai amantíssimo, do próprio Deus.

Sansavi olhou-o surpreso e, quando pensou em falar algo, Orofiel, lendo-lhe o pensamento, disse-lhe:

- Não pergunte nada. Você continuará sua ascensão aos pla­nos mais evoluídos, recebendo novas missões. Os superiores querem que você seja levado para outros planos, onde a espiritualidade se encontra em estado adiantado. Neste plano existencial, o mundo mental, existem espíritos que alcançaram as luzes da fraternidade plena. A justiça, a moral e, sobretudo o amor divino norteiam todos os atos destes espíritos. A tecnologia espiritual é tão evoluída que ex­plicá-la seria quase impossível. Eles fazem viagens entre as estrelas, governam o seu sistema solar e visitam outras civilizações tão evoluí­das quanto eles, e se relacionam com grande amizade e fraternida­de, sob a égide do mesmo único Deus, criador, doador e mantene­dor da vida.

Sansavi estava com os olhos em lágrimas. Não era tristeza, era extrema felicidade. Ele havia ganho o prêmio pelos excelsos traba­lhos realizados. Orofiel o abraçou como a um irmão, despediram-se de todos e ambos volitaram a grande velocidade em direção ao mundo mental, desaparecendo das vistas dos demais, que haviam escutado a conversa e estavam em estado de puro deleite, com os olhos marejados de lágrimas.

Quatro dias haviam se passado desde o massacre de Siquém e dois dos quatro espiões retornaram com más notícias; o morticínio havia sido muito mal-recebido e as aldeias vizinhas estavam forman­do um pequeno exército para atacar Israel. O terceiro espião voltou com notícias semelhantes e o quarto nunca voltou, tendo sido prova­velmente detectado e morto.

Israel sentiu que era hora de partir daquele lugar. Pensou primeiro em ir até Gerara, mas soubera que o filho de Abimelec tinha sido morto por um dos seus próprios soldados, e agora o novo gene­ral, filho do falecido Ficol, queria partir para o Kemet. A seca casti­gava demais aquela região, e até Esaú estava partindo para Seir às pressas, invadindo com grande força armada a região.

O caminho era o Kemet. Iria unir-se ao filho de Ficol, que ha­via, por sua vez, feito aliança com uma tribo de hititas que tinham uns carros de combates extraordinários. Enviou um emissário que voltou no mesmo dia, dizendo que o filho de Ficol o receberia com prazer. Afinal das contas eram mais três mil pessoas para fortalecer o grupo.

Israel deu ordem de unir todas as pessoas de sua larga tropa, seu rebanho e seus filhos. Após passar-lhes outra descompostura, os fez jurar fidelidade a ele e a Yozheph, o que fizeram relutantemente, especialmente em relação ao irmão mais novo.

A grande tribo de Israel deslocou-se e dirigiu-se, junto com hurritas e cananeus de Gerara, para o Kemet. Israel foi transportado numa carroça especial, que o patriarca trouxera de Haran, e que fora construída seguindo os moldes dos antigos sumérios. Dava-lhe conforto e comodidade até alcançar a terra de Misraim, o Kemet, como era chamado por Israel e os seus.

 

Capítulo 6

Na Ásia Menor, no planalto da Anatólia, uma série de feudos de um povo indo-europeu, que se denominava de hititas, estava pas­sando por grandes reformas. Havia algumas décadas que estavam acontecendo conflitos entre as várias tribos e clãs, de tal forma que algumas dessas tribos menores haviam abandonado o grande pla­nalto indo em várias direções. Um desses grupos tinha estado em Haran, Ebla e mesclaram-se com os hurritas, pois tinham línguas muito parecidas.

Mais ao nordeste, havia tribos de mitânios que também esta­vam passando por problemas com estrangeiros. Uma tribo de ori­gem uralo-altaico, que tinha vindo além do mar Cáspio, havia sido expulsa pelos arianos, de suas planícies, perto dos Urais. Eles tinham cavalos pequenos tipicamente mongóis e usavam um arco fa­buloso que conseguia arremessar uma flecha, a mais de cinqüenta metros. Eles haviam invadido o norte da Mesopotâmia e guer­rearam com os mitânios que conseguiram expulsá-los mais para o sudoeste. Essa tribo da grande nação de citas aliou-se com os hititas e hurritas, e Israel os conhecia, pois negociara com eles quando ain­da morava em Haran.

Essas tribos coligaram-se, e como não encontraram pasto para seu rebanho, desceram em direção a Canaã. Eram mais de cem mil pessoas em três grandes grupos: hititas, hurritas e citas. Encontra­ram tribos semitas em Canaã e se associaram. Em outros lugares, en­frentaram resistência local e os dominaram com rara facilidade.

A terra de Canaã estava seca demais, exigindo que fossem mais para o oeste. Os caravaneiros falavam do Kemet, especialmen­te do delta, rico em terras férteis, e isso atraiu a cobiça dessa federa­ção de tribos que passou a incluir cananeus.

Havia muitos anos que esses grupos, aos poucos, de forma quase imperceptível, estavam entrando no Kemet. Os primeiros a entrar foram os próprios cananeus, que já conheciam a região, le­vando os rebanhos para regiões do delta onde havia grandes exten­sões de terras para pastagens. Avraham fora ele mesmo um desses que visitaram o Kemet atrás de bons pastos e riquezas. Eles iam e vi­nham, e Israel acompanhara essas andanças.

Os hititas, hurritas e citas, em menor número, foram se deslocando para o delta já havia mais de vinte anos, instalando-se num lo­cal onde apascentavam seus extensos rebanhos. Chamavam esse lu­gar de Auwariyash, ou seja, posto avançado. Não passava de simples aldeota incrustada no delta, a alguns quilômetros do Mediterrâneo.

Alguns anos antes de Israel mudar-se para o Kemet, enquanto ainda estava em Haran, os estrangeiros tinham entrado pacificamente no delta e se instalado. Auwariyash seria chamada pelos gre­gos de Avaris e pelos kemetenses de Djanet, era a cidade do chefe dos povos estrangeiros - Héqa-Ksasut.

Cada dia vinham mais estrangeiros. Mais de quinhentos mil estrangeiros haviam penetrado na região do baixo Kemet e nela se instalaram. O faraó sentiu que a parte oriental do delta estava prati­camente tomada e resolveu que iria colocar aqueles intrusos sob sua lei e impostos.

Os chefes estrangeiros foram contactados por um oficial do faraó Khutauiré Ugaf, que lhe dissera que o rei desejava que todos os chefes estrangeiros fossem até Ouaset sob sua escolta, que depusessem as armas e jurassem fidelidade ao monarca. A maioria ficou muito desconfiada de ter que ir até um lugar longínquo e entregar suas armas.

Salatis, naquela época, não era o comandante em chefe e dis­cutiu junto com mais vinte e dois chefes o que deveria ser feito. Recusaram o jugo kemetense e elegeram Salatis o grande chefe das tro­pas estrangeiras.

O oficial retornou a Ouaset e contou o que vira. Sanguissedento, o general convenceu seu faraó que tal incursão seria uma fácil manobra para ativar suas tropas e que nada o impediria de ter uma retumbante vitória para seu soberano. Khutauiré Ugaf rejubilou-se. Uma vitória para ser clamada e declamada em prosas e versos. Libe­rou suas tropas, que levaram dois meses se organizando, e desceram em direção a Auwariyash.

Enquanto isso, os estrangeiros haviam se preparado e estavam plenamente senhores de quase todo o baixo Kemet, sem lutas e mor­ticínios. Com essa manobra, impediram que o Norte pudesse forne­cer víveres e, especialmente homens para o exército do Sul.

Os kemetenses tinham uma força militar de uma fraqueza extraordinária e estavam, além de mal-aparelhados, mal-informados. Acreditavam que os estrangeiros não passavam de uns dez mil seres quando já passavam de meio milhão. Pensavam que sua força seria a união de várias tribos, cada uma falando sua língua, e com isso não haveria união no comando e nem unidade no combate.

Os estrangeiros - hicsos - mesmo que não fossem uma raça, uma tribo ou um povo, vinham desde a Ásia Menor, das estepes rus­sas, nórdicas, das tundras siberianas e do planalto do Irã, cada um de uma procedência, tendo sido escorraçadas, por tribos mais for­tes, a maioria de seu próprio povo. Desse modo, ao encontrarem o pacífico Kemet, ali resolveram instalar-se e viverem com tranqüili­dade. Salatis soube unir todos os estrangeiros em torno do seu co­mando e fortalecer o exército hicso com contingentes cananeus.

O arco kemetense era muito frágil e não havia sido alterado desde o tempo de Nârmer, enquanto que o arco hicso era o arco cita, forte, flexível e de temível eficiência. O kemetense só acertava alvos a menos de trinta metros, enquanto que o arco cita trespassava um homem a cinqüenta metros. As flechas kemetenses tinham ponta de madeira, um afinamento da própria haste. As flechas dos hicsos ti­nham ponta de metal. Os kemetenses tinham, no máximo, um escu­do feito de couro de boi enquanto que os hicsos tinham armaduras feitas de placas de cobre, costuradas numa capa de couro e capace­tes. A metalurgia dos indo-europeus permita a fabricação de pu­nhais e espadas, moldadas numa única peça que lhe dava solidez e mais maleabilidade. A espada hicsa cortava dos dois lados e os sa­bres dos hititas eram armas tenebrosas que cortavam muito mais do que as armas feitas de pedra e madeira do antigo Kemet.

Os hicsos, também chamados de amu pelos habitantes do Ke­met, tinham duas armas que os kemetenses não conheciam: a cavalaria e carros de combate. Os carros de combate eram basicamente hititas, enquanto que a cavalaria era cita, que atirava suas flechas de costas no cavalo e galopava a grande velocidade e com rara destreza.

A batalha foi uma dura derrocada para o Kemet, pois as suas forças, cerca de cinco mil homens, foram rápida e eficientemente envolvidas por vinte e poucos mil hicsos que os trucidaram, soldados e oficiais, deixando-os mortos no campo de batalha. Um combate que não levou mais de uma hora para terminar. Não houve mais de cem mortos do lado dos hicsos.

Salatis fortaleceu Auwariyash e a banda oriental como se esperasse um ataque dos seus irmãos hititas a qualquer momento. Cui­dou de dominar, com muita gentileza, o delta e colocou seus chefes em Perouadjet, Zau, Djedu, Perbastet, On, Banebdjedet e muitas outras pequenas aldeias. Não se preocupou com o restante do Ke­met. Afinal das contas, eleja tinha a parte mais rica, para que se pre­ocupar com as migalhas do Sul?

Israel e sua turma eram chamados de habirus, aqueles que atravessaram o rio. Para os kemetenses, como Israel e sua turma não tinham um nome de tribo como os demais, passaram a ser chama­dos de aqueles que atravessaram o rio que os separava do resto do mundo: um rio que cruzava o Sinai e desembocava no Mediterrâ­neo, chamado de torrente do Kemet.

Israel escolhera ficar num lugar chamado terra de Cessem, perto do acampamento dos fenícios, hurritas e arameus. Aos pou­cos, os próprios integrantes dos habirus - os pastores de Israel - fo­ram se intitulando de habreu, e depois de hebreu, uma corruptela de habiru.

Quando estavam no Kemet há cerca de cinco anos, Israel foi visitar a cidade de On, onde negociava o seu rebanho para as oferen­das da ave benu e do grande Rá. Fora, naquela viagem, especifica­mente com seu tarían, Zarek de Ugarit, e mais seu filho Yozheph, agora com quinze anos, não só para conhecer o importante templo, mas também porque tivera uma visão onde o deus o enviava para lá com seu filho.

Entraram no templo da ave benu e foram recebidos por um escriba que contabilizava tudo o que entrava e saía. Conversaram lon­gamente enquanto que eram secretamente observados por um dos sacerdotes escondidos atrás de uma monumental pilastra. Após bre­ves instantes foram chamados por um sacerdote que os conduziu por longos corredores até uma grande ante-sala. Sentado numa ca­deira maravilhosamente trabalhada estava um homem moreno de pele marrom escura, olhos negros penetrantes e vestido com um saiote de linho alvo, cingido à cintura, por um cinto largo de couro e com uma pele de leopardo caindo-lhe pelos ombros. Sua cabeça es­tava nua, devidamente tonsurada e sua idade regulava em torno dos quarenta e cinco anos. Sua aparência era majestática, mais parecen­do um rei do que um alto sacerdote.

Foram introduzidos na sala e o sacerdote que os acompanha­va, pediu, em língua aramaica, com certa dificuldade, que se apre­sentassem ao grande Putifar, sumo-sacerdote do templo Helbenben, intitulado de O Maior dos Videntes e o Filho do Corpo do rei Rá.

Israel, agora beirando os sessenta anos, adiantou-se e cheio de mesuras, dentro das possibilidades de seu aleijão, falou em perfeito kemetense.

- Sou Israel, Filho de Itzchak, filho de Avraham, filho de Tareh. Este é meu filho Yozheph que adquiriu direitos à primogenitura e este é o meu tartan, Zarek de Ugarit.

Os dois homens reverenciaram o sumo-sacerdote, e ele, sem despregar os olhos de Yozheph, falou de forma imponente em per­feito aramaico.

- Yozheph Ben Israel, eu lhe aguardava há bastante tempo. Foi-nos dito que deveríamos ensinar-lhe as artes dos antigos e que você teria uma missão importante para nossos povos.

Voltando-se para Israel, que estava abismado, disse-lhe em voz amistosa:

- Sente-se aqui e refresque sua garganta com cerveja gelada e reanime seu corpo com um pedaço de pernil de cordeiro. Você, meu nobre Zarek de Ugarit, leal servo de Israel, sirva-se também e con­versemos.

Olhando para o sacerdote que estava ao lado, fez-lhe um sinal com a cabeça e o monge segurou o braço de Yozheph, e gentilmente o levou para o interior do templo.

- Não se preocupem. Vamos banhá-lo com ervas aromáticas e vesti-lo com roupas apropriadas para fazer o grande teste.

- Que teste, nobre Pulifar? - perguntou Israel, preocupado com seu filho.

- O teste do benbenet. Se ele passar, ficará. Se não passar, vol­verá com vocês para Gessém.

- Sofrerá alguma coisa?

- Claro que não, Israel. Não somos um povo sanguinário. Ali­ás é por isso que estamos sendo dominados pelos estrangeiros.

- Não somos dominadores, grande Putifar.

- Ora, ora, meu caro Israel. Você pode não ser, pois sei que fez votos de não matar nenhum ser humano ao seu deus, mas os demais são homens sem vísceras e coração. Já estão dentro do país e o novo faraó do Sul, Neferhotep, faz de conta que não existem. Imagina que fechando os olhos irão desaparecer. É um tolo que prefere escu­tar os afeminados sacerdotes de Ipet-Isout do que nós, que sempre fomos o principal e maior oráculo do mundo, repositório das verda­des eternas e fiel depositário da ave benu.

Israel perguntava-se como aquele estranho sabia de seu juramento a Yahveh. Putifar parecia tê-lo escutado pensar e respondeu-lhe, em tom melodramático:

- Não sou sumo-sacerdote à toa. Todos os deuses são filhos do Deus único, não importa que nome nós lhe demos. Seu deus fala com meu neter, que fala comigo, e eu apenas repito, humildemente, o que ele me manda. Sou o porta-voz de meu deus, assim como você é o porta-voz do seu. Bendito, louvado seja!

Zarek de Ugarit entrou na conversa, atrevendo-se a uma per­gunta:

- Grande Putifar, o que acontecerá à terra dos kemetenses?

- Já está dominada pelos estrangeiros e será reconquistada no final. Eu sou um homem muito prático e vejo em tudo o dedo do ine­fável. Se os amus estão aqui, devemos ensinar-lhes nossas ciências e a nossa arte. Por outro lado, temos que aprender com eles, suas artes guerreiras, seu manejo de rebanho, suas técnicas agrícolas e sua es­tranha cultura. Já era hora de o Kemet corresponder-se com o resto do mundo e não se fechar em sua concha. E por isso que iremos fa­zer o teste com Yozheph. Seu filho é um eleito do destino para se tornar o traço de união entre os hicsos e os kemetenses.

Naquele momento, entrou Yozheph, com um curto saiote kemetense, com o corpo luzidio de óleos e perfumes que haviam sido esfregados em corpo jovem.

- Venha comigo, Israel.

Putifar, virando-se para Zarek, disse-lhe, gentilmente.

- Você terá que esperar aqui, meu caro Zarek.

Andaram por longos corredores e chegaram a uma grande porta de madeira que dava para um quarto pequeno. Putifar, Israel e Yozheph entraram, enquanto que o sacerdote adjunto ficou do lado de fora. A porta se fechou atrás deles enquanto os três homens se acostumavam à penumbra.

No meio da sala, que não era muito grande, havia uma pirâ­mide de cerca de dois metros de altura, com um bico avermelhado e o restante negro.

Putifar aproximou-se do moço e lhe disse em copta, a língua vulgar usada pelos kemetenses:

- Tsafenat-Paneac, olhe e diga-me o que você está vendo.

Se os presentes tivessem olhos espirituais aguçados veriam, ao lado de Yozheph, um espírito de grande luz que iluminou seu cére­bro com um forte jato de luz. Yozheph ficou tonto, apoiando-se em Putifar, que olhou para Israel e o acalmou com um olhar. De repen­te, o moço começou a tremer, levantou os dois braços para os céus e começou a falar numa língua estranha, tão gutural e cheia de agluti­nações que o próprio órgão da fala era incapaz de articular direito as palavras.

Putifar ordenou-lhe:

- Em arameu. Em arameu.

Yozheph desandou a falar em sua língua natal, sendo acom­panhado pelo pai e pelo sumo-sacerdote. Falou durante mais de quinze minutos, e, subitamente, desmaiou, pois o esforço mental fora demais.

Putifar olhou para Israel e disse-lhe:

- Minha visão estava certa. Estou esperando por ele desde que meu avô Seankhtaui dissera-me que tivera a visão de que um descen­dente de um pastor chamado Avram viria para dirigir nossos povos para um futuro melhor.

Putifar chamou o sacerdote e mais dois ajudantes, levando o moço para um outro quarto onde lhe foram friccionadas fragrâncias finas nos pulsos e na fronte, até que voltou a si. Foi lhe dado um copo de vinho e ele sentou na cama.

Israel, vendo seu filho melhor, voltou-se para Putifar e lhe perguntou:

- O que era tudo isso que meu filho falou?

- Sim, seu filho é um grande vidente. O deus que se comunica através dele é poderoso e sábio.

- Só pode ser nosso deus Yahveh.

- Que seja!

- Só não entendi o que ele falou.

- Disse-me o significado da barca de Rá, da ave benu, de Ahtilantê e dos atlantes. De como viemos parar aqui e da razão por que os deuses nos deserdaram do paraíso.

- Não entendo nada disso, mestre Putifar.

- Deveria, pois vocês dois vieram de lá - respondeu-lhe enigmático.

O jovem gemeu e o pai foi ver o que estava acontecendo. Ven­do o moço sorrir, ficou mais calmo.

- Falemos de negócios, meu caro Israel. Quero seu filho aqui para ser treinado para ser o sacerdote do seu deus Yahveh, e, em troca, lhe darei a primazia de vender suas ovelhas para o Hetbenben. Se muito me engano foi aqui que começou sua riqueza com seu avô, Avram, e aqui você prosperará ainda mais.

- Mas meu filho...

- Estará em mãos seguras. Aprenderá os assuntos de Estado além de todos os assuntos profanos. Tornar-se-á um sábio e sua inteligência, que já é rara, tornar-se-á luminosa. Seu nome será famoso entre os kemetenses e os estrangeiros do baixo Iterou. De hoje em diante, será chamado de Tsafenat-Paneac.

E assim foi feito. O rapaz ingressou na mais célebre escola de profecias, magias e mistério do mundo, e o pai enriqueceu ainda mais, vendendo seus terneiros para o mosteiro.

Os anos se passaram, e Tsafenat-Paneac, o antigo Yozheph, fi­lho de Israel, atingiu vinte e cinco anos. Nesses anos todos, estudou os mistérios da magia, da história e da escrita dos sábios sempre sem esquecer a aliança que o bisavô, o avô e o pai fizera com Yahveh. Tsafenat-Paneac aprendera a desenvolver seus dons de intuição e a conhecer o futuro através de inúmeros processos divinatórios.

Visitava sua família de tempos em tempos, observando como seus irmãos o tratavam de forma rude e cheios de maledicência. O que corria entre eles é que Yozheph era o adamado de Putifar, e que o pai o havia vendido pela primazia de comercializar as ovelhas no templo. No entanto, o templo era um ambiente de meditação e não havia nada que o desabonasse. Tsafenat-Paneac era um rapaz sério e que não se imiscuía com ninguém. Aprendera a dominar seus senti­mentos e sua intuição altamente aprimorada era um guia certeiro contra a insanidade dos irmãos, que só esperavam um senão para matá-lo.

O tempo passara inexorável. Israel estava há vinte anos em Gessém, e tornara-se cada vez mais rico. Tsafenat-Paneac tinha ago­ra trinta anos e havia se casado com a filha de Putifar, a bela e exóti­ca Asenet, que já lhe dera dois filhos: Manasses e Efraim. Com Efraim, tivera uma febre puerperal, e por pouco não morrera. So­brevivera, mas ficara estéril.

Os hicsos não alteraram a vida dos kemetenses de forma radi­cal. Os pobres felás continuaram suas vidas miseráveis, pagando agora aos novos amus. As várias tribos eram representadas pelos seus diversos chefes e Israel era um deles. Sua riqueza e seus gados o fazi­am ser bem-visto entre os vários caudilhos da região. Até mesmo al­guns governadores hesepianos do Kemet eram bem-recebidos e, por uma dessas estranhas concepções, os hicsos assimilaram os cos­tumes kemetenses mais rapidamente do que os autóctones apro­priaram-se dos deles. Essas reuniões eram mais festivas do que qual­quer outra coisa, todavia alguns assuntos sérios eram tratados, e, num deles, Tsafenat-Paneac foi com o idoso pai já que o ancião de­sejava passar o comando do clã ao seu filho.

Salatis havia passado o comando a um homem sagaz e astuto chamado Khian. O hitita morrera e o novo chefe que agora se intitu­lava de faraó fora eleito pela maioria hurrita apoiada pelos cananeus entre eles, Israel. Tsafenat-Paneac fora apresentado pelo pai ao fa­raó, durante a festa, realizada em Djedu.

A figura tonsurada de Tsafenat-Paneac chamara a atenção do faraó hicso, que mandou que investigassem quem era tão nobre fi­gura. Descobriu que além de ser filho de Israel com direito a primogenitura, portanto herdeiro de imensa fortuna era também monge do famoso mosteiro do Hetbenben de On, sendo casado com a filha do sumo-sacerdote Putifar.

- Este homem conhece segredos fabulosos, pois tenho certeza de que é um grande oráculo. Traga-o para mim no final da festa. Quero vê-lo no meu palácio em Auwariyash.

Os três dias de comemoração transformaram-se em cinco, e, no final, Tsafenat-Paneac recebeu o convite para ir à cidade-fortaleza de Auwariyash falar com o faraó Khian. Israel o encheu de reco­mendações e o enviou, levando jóias e presentes para agradar ao so­berano.

Auwariyash era uma cidade-fortaleza, totalmente cercada de muros altos, com guardas fortemente armados e uma guarnição de dois mil soldados em permanente estado de alerta. Além disso, os hicsos, assustados com possíveis expansões vindas da Ásia, tinham feito fortalezas inexpugnáveis em Canaã.

O palácio de Khian era uma praça fortificada dentro da cidade-fortaleza. No seu interior, imperavam o luxo e a ostentação. A ala das mulheres tinha trinta e cinco recintos com mais de duzentas concubinas. O piso era de granito vermelho e negro trabalhado e poli­do, a ponto de se pode ver o rosto refletido no chão.

Tsafenat-Paneac foi conduzido nos longos corredores até a sala do trono onde seu escravo núbio depositou os presentes mandados por seu pai. Khian já o esperava e o recebeu muito bem. Havia simpatizado com o homem calmo e digno, de uma beleza estranha, misto de arameu e caucasiano, com olhos grandes e cílios longos, que lhe davam um ar dócil e tranqüilo.

- Então você é um monge do Hetbenben?

- Em parte sim e em parte não. Conheço os segredos do mos­teiro, mas nunca serei monge por não ter nascido de família nobre do Kemet. Além disso, fui mandado para lá como uma troca de cul­turas entre nosso povo e os kemetenses. Para completar, não creio nos deuses do Kemet, pois tenho um deus único chamado Yahveh o qual creio que seja o verdadeiro.

- Yahveh? Creio já ter ouvido falar nesse deus. Se não me fa­lha a memória, foi em Ebla ou em algum lugar próximo.

- Pode ser de Haran?

- Quem sabe! Eu também creio num único deus que chamo de Sutekh.

- Ah?!

- Deixemos os deuses e suas vidas atribuladas e preocupemo-nos com o dia-a-dia. Chamei-lhe, inicialmente, mais por curiosida­de, mas creio que possa ser mais útil do que eu esperava. Com seu vasto conhecimento da história desta terra, dos seus costumes e de seus deuses, você poderá ser de grande utilidade para resolver um problema que vem me aborrecendo.

Tsafenat-Paneac meneou a cabeça de um lado para outro, como a dizer que a assertiva do faraó podia estar certa. Khian gostou do modo calmo como Tsafenat-Paneac se comportava. Podia-se ver doçura, integridade e firmeza. Não era um daqueles guerreiros es­quentados que queria resolver tudo com violência. Aquele homem conhecia os costumes dos heseps, sabia como comandar os kemeten­ses, por ser praticamente um monge do Hetbenben.

Khian explicou-lhe que eles tinham dificuldade em comandar os heseps. Tudo era administrado pelos escribas, e os amus tinham di­ficuldade em entender aqueles símbolos e as formas como eles regis­travam todos os eventos contábeis. Sentiam-se espoliados e Khian precisava de alguém que conhecesse bem, não só a escrita e os regis­tros, como também a alma kemetense.

Os escribas kemetenses que tomavam conta dos heseps eram escorregadios e finórios. Khian pensara em substituí-los por gente de sua confiança, mas além de não encontrar ninguém apto entre os hicsos, tinha medo de perder a memória da administração. Ao tra­zer Tsafenat-Paneac, que conhecia bem os kemetenses, para sua ad­ministração, ele transferia o problema hesepiano para ele, e se livrava de um problema de complicado feitio do qual não tinha aptidão para tratar.

Um certo dia, após o despacho da tarde, Khian, relaxando de um dia de trabalho, estava conversando com alguns aliados, entre eles Tsafenat-Paneac. A conversa discorria sobre sérios problemas havidos na fronteira de Canaã. Havia um forte hicso em Sharuhen e que fora atacado por uma horda de cananeus famélicos. A grande seca já grassava há mais de trinta anos e os remanescentes daquele lugar haviam tentado entrar no forte hicso para alimentar-se, pois aquele bastião era servido por comida vindo do Kemet.

- Se bem me lembro, vocês vieram de Canaã, fugindo da terrí­vel seca. Não é verdade?

- Sim, meu senhor. É uma seca terrível que assola aquelas ter­ras de vez em quando.

- Ainda bem que esta seca não atacou o Kemet - afirmou Khian, mais tranqüilizado.

- Sinto muito alarmá-lo, meu senhor - disse Tsafenat-Paneac - mas a história deste vale registra inúmeras secas. Algumas foram tão brutais que os homens se mataram para comerem uns aos ou­tros.

- Não me diga, Tsafenat-Paneac! Será que isso pode aconte­cer conosco?

- Por que não, meu senhor!? Esses períodos de seca nunca avi­sam com antecedência.

- O que poderíamos fazer para minorar os efeitos de tal seca?

- Basta ser previdente. Houve governadores dos heseps que sempre mantinham trigo estocado em suas casas para suprir sua fa­mília e seus amigos. Houve casos, em passado longínquo, que estes lordes ficaram riquíssimos ao vender o excedente de trigo a preços exorbitantes.

Khian olhou para Tsafenat-Paneac, com os olhos brilhando e disse:

- Sabe que você me deu uma excelente idéia. Se nós construíssemos armazéns por todo o reino para guardar trigo, cevada, carne salgada de carneiro, boi e peixes, poderíamos estar preparados para os anos de seca. O que você acha, Tsafenat-Paneac?

O jovem homem olhou com admiração para Khian, e disse-lhe, agora com uma pequena chama de entusiasmo nos olhos e na voz:

- Se houver anos de grande abundância, poderemos comprar todo o excedente, estocá-lo e distribuí-lo quando vierem os anos famélicos. Para tal, isso exige um projeto amplo e de repercussões po­líticas extraordinárias do qual o meu sire poderá tornar-se o legítimo faraó das Duas Terras, sem ter que lutar batalhas sangrentas e domi­nar o povo do Sul pela força. A fome fará este trabalho por nós.

Khian olhou-o com os olhos brilhando de satisfação. Entende­ra a extensão de tudo o que Tsafenat-Paneac lhe dissera. Era uma chance única e lhe seria dada numa bandeja de prata.

O faraó fez uma pequena pausa, pensando nas palavras de seu conselheiro. Depois de alguns instantes de inquietante mutismo, ele sorriu e falou, pausadamente:

- Realmente, você tem razão, meu caro Tsafenat-Paneac. Para tal, dê-me alguns dias de tempo para pensar e costurar algumas ali­anças e lhe darei uma resposta sobre o projeto de que estamos falan­do.

Tsafenat-Paneac recolheu-se aos seus aposentos, quase uma ala inteira, onde morava com sua família. O local era agradável, ten­do muitas outras pessoas para conversar. Eleja estava há mais de um ano com Khian, descobrindo que sua influência crescia dia a dia. No início, ficara calado na maioria das reuniões, escutando e familiarizando-se com a estrutura de poder do faraó dos hicsos. Depois, aos poucos, ele era consultado por Khian na frente dos demais e suas respostas foram lhe granjeando a fama de ser um sábio, além de ser um profundo conhecedor da estrutura dos heseps e do pensamento kemetense.

Os dias se passaram morosamente até que foi chamado para uma cerimônia pública na corte de Khian.

- Adiante-se, Tsafenat-Paneac.

A voz de Khian era forte e firme, ribombando pela grande sala do trono. Estavam presentes ali mais de oitenta chefes, chefetes, do­nos de imensas fortunas como Israel e os ministros do rei. Além de­les tinham sido convidados mais de trinta sumo-sacerdotes dos cul­tos maiores e sacerdotes de cultos menores para que ouvissem o que o faraó tinha para falar. Tsafenat-Paneac adiantou-se, com sua rou­pa de linho branco, um cinto de couro e sua cabeça tonsurada.

- Ouçam todos aqui presentes as minhas palavras.

A assistência estava calada e ajoelhada perante o faraó Khian, que estava sentado no seu trono.

- Nomeio agora Tsafenat-Paneac como meu tati, meu segun­do em comando. Não haverá homem nenhum no reino que não lhe deva obediência a não ser este trono.

A cerimônia não causou espanto a ninguém. Khian vinha preparando a mente de todos nas últimas semanas e conversara longa­mente com seus aliados hititas, hurritas e citas, e quando conseguira convencê-los de que Tsafenat-Paneac era o homem certo para o grande projeto, eles aceitaram e se curvaram.

A aliança que constituíam os hicsos era muito frágil, podendo ser destruída de uma hora para outra. Salatis fora um hitita, e após sua morte, só não houve guerra porque Khian fora rápido em conse­guir alianças que o fortaleceram. No entanto, não era segura e fir­me, podendo a qualquer minuto ser desfeita. Khian aproveitara o momento de paz para se estruturar, sabendo que não era o homem certo para a burocracia do estado. Gostava de comandar e de fazer grandes obras. Drenara grandes regiões alagadas do delta, amplian­do em muito as áreas de plantação. Refizera alguns canais que havi­am sido abertos por faraós anteriores e, como não haviam sido cui­dados convenientemente, tinham ruído. Ajudara a refazer alguns templos que estavam prestes a cair, assim como ampliara as docas de vários lugares para permitir a atracação de embarcações maiores. Estabelecera novamente comércio com Byblos, Tiro e Sidom, além da ilha de Creta. No entanto, os vinte heseps do Norte eram de difícil administração e somente Tsafenat-Paneac conseguia resultados com os escribas dos heseps.

Durante meses, Tsafenat-Paneac visitou os heseps e com gran­de paciência e treinamento foi colocando a administração em dia. Foi com gentilezas e amabilidades que ele foi moldando os escribas ao seu modo e jeito. Nada lhe escapava do olhar arguto e repreendia mansamente, elogiando sempre que possível. Durante o primeiro ano, construiu vinte e dois fortes, bem-murados, com grandes arma­zéns e área externa que possibilitassem reunir as pessoas de forma ordeira. Essas construções receberam guarnições de soldados dife­rentes. Era uma das primeiras vezes na história que um administra­dor separava as funções do exército e da polícia. Tsafenat-Paneac instituíra uma força policial que tinha como incumbência exclusiva fiscalizar os grandes depósitos de alimentos.

Levaram quase um ano para construir os depósitos, terminan­do no momento da colheita. Os governadores dos heseps receberam ordens de comprar o máximo possível da colheita de grãos e leva­rem para os grandes depósitos. Nesse momento, eram contabiliza­dos e enviados relatórios para a Auwariyash. Os grãos eram moídos, e, depois, cozinhados em fornos e ensacados em sacos de linho fino, para serem colocados em linhão rústico e grosso, e empilhados até o teto.

Começaram a empilhar de frente para trás de tal forma que o primeiro a entrar tivesse que ser o primeiro a sair.

Grandes quantidades de rebanho bovino, caprino e ovino fo­ram comprados por preços irrisórios e abatidos nos pátios internos. O sangue era retirado através de cortes longitudinais no pescoço, e os animais retalhados com grande maestria, e, finalmente, as carnes eram salgadas e deixadas a secar no sol. Depois disso eram enrola­das em linho fino e levadas para o interior dos depósitos onde eram novamente ensacadas em linhão. O azeite, o vinho, a madeira fina eram estocados e guardados a sete chaves. Tudo era contabilizado e devidamente preparado para ser comercializado em futuro próxi­mo.

Tsafenat-Paneac, muito esperto, avisou ao pai, que mantivera os rebanhos em local aprazível e que, segurando a venda dos terneiros, viria a ganhar muito mais no futuro. Desse modo, Israel multi­plicou seu rebanho, não vendendo as fêmeas e ampliando o número de matrizes.

O período de anos normais não foi totalmente livre de problemas. A paz interna reinava e as fronteiras orientais e ocidentais esta­vam asseguradas, porém, internamente, havia as mais diferentes si­tuações que exigiam a atenção de Tsafenat-Paneac, obrigando-o a extensas viagens e muita atenção para controlar tudo e não ser rou­bado.

Do momento em que Tsafenat-Paneac fora promovido a tati até os primeiros sinais de que o rio Iterou não encheu como deveria ter transbordado, passaram-se quatro anos excelentes, em que se fez de tudo para adquirir todo o excedente da produção. Milhares de marrecos foram mortos e salgados, assim como houve a caça siste­mática a animais ferozes, cuja carne também foi preparada para a conservação. Tudo correu bem até que o Iterou não encheu tanto quanto os outros anos.

O primeiro ano ruim não foi tão terrível quanto se esperava, e Khian e Tsafenat-Paneac acreditavam que ainda haveria anos bons. Notaram que o Iterou quase não transbordara. Ora, sem enchente, não haveria o depósito de húmus, logo a terra não ficaria fértil. A co­lheita foi fraca, mas ainda deu para as necessidades. Alguns lugares necessitaram de complementos alimentares, o que não causou pro­blema.

No segundo ano, não houve inundações do Iterou e, para pio­rar a situação, os meses de plantio foram secos, quentes e abafados. Tempestades que vinham do oriente traziam areia do deserto arábico, soterrando as lavouras. Aos poucos, apareceram as pragas que atacaram os vegetais, mostrando que a natureza estava em desequilíbrio. A partir daquele ano, as coisas começaram efetivamente a acontecer.

A fome atacou não só o norte como também o sul. As pessoas vinham e compravam a preços cada vez mais extorsivos a carne sal­gada, as farinhas e os azeites. Nesse momento, Israel conseguiu ven­der quase todo o seu rebanho a preços estratosféricos, tornando-se ainda mais rico.

Os sacerdotes recebiam uma cota semanal gratuitamente e alguns, os mais importantes, recebiam cotas extras que lhes eram en­tregues na calada da noite. Os pobres, e, até mesmo os ricos, passa­vam fome ou comiam o que lhes restara de seu rebanho pessoal, suas farinhas e outros alimentos.

O terceiro ano foi fatídico. Não houve inundações, houve tempestades de areia o tempo todo, acrescidas de pragas de pulgas, percevejos e gafanhotos. Os ratos andavam nas cidades, pois os homens haviam comido os gatos. Houve casos de canibalismo e a polí­cia de Tsafenat-Paneac teve que intervir em vários lugares. Os depó­sitos podiam sustentar ainda dois anos e nada mais.

Nesse período, os preços foram tão escabrosamente aumenta­dos que muitos pobres venderam seus terrenos ao faraó e a Tsafenat-Paneac para poderem comer. Além disso, muitos transforma­ram-se em escravos, vendendo a si próprios. Nada impediu que os hicsos também se curvassem ao poder do faraó e que ele pudesse do­miná-los através da fome. Nessa época negra, Khian desfez-se de vá­rios inimigos através do assassinato, no qual ninguém prestava aten­ção, pois estavam preocupados com a fome. Pequenas revoltas acon­teceram aqui e acolá, logo debeladas pela polícia de Tsafenat-Pane­ac que, bem-alimentada, não teve dificuldade em colocar ordem na matula infrene.

Nessa época, para justificar a rapacidade com a qual Tsafenat-Paneac e Khian, especialmente este último, lidavam com a venda dos bens, os sacerdotes, mancomunados com o poder central, justifi­cavam tudo, contando uma lenda que entraria para a história, falan­do dos sonhos do faraó e como Yozheph os havia decifrado, preven­do a calamidade. A lenda transformava os vilões em heróis. Um por receber a mensagem premonitória dos deuses e o outro por tão bem decifrá-la e ser tão precavido, salvando o povo da morte hedionda.

Quando o Iterou transbordou no outro ano, Tsafenat-Paneac mandou vir de Byblos, como fizera Osíris há mil e setecentos anos, sementes de trigo, cevada e sorgo e deu ordens aos governadores dos heseps para arrendar as terras produtivas aos seus antigos donos, desde que pagassem pelas sementes com um quinto de tudo o que produzissem. Deste modo, Tsafenat-Paneac estabelecera o uso do imposto sobre a produção no Kemet, fato este que já fora costume anteriormente, mas que caíra em desuso devido ao desgoverno da II dinastia, por volta de 2.600 a.C.

Khian estava satisfeito porque conseguira dominar o Alto Ke­met, o sul, pela fome. O faraó e os nobres do sul juraram vassalagem a Khian e passaram a lhe pagar uma taxa anual. Dentro de seu cadi­nho de nações, clãs e greis, Khian conseguira um domínio quase completo, já que as terras passaram a ser sua propriedade e tudo o que nela existia, incluindo homens, rebanho e plantas. Era o senhor irrefragável de tudo no Kemet. E isso graças à astúcia, ao tino admi­nistrativo e comercial de Tsafenat-Paneac, o tati do Kemet.

O período negro de fome e miséria foi superado, e, aos pou­cos, o generoso Iterou foi devolvendo a fertilidade às terras e, com isso, a vida pôde prosseguir sem grandes sobressaltos. Khian era um homem astuto e sabia que sua aliança com o sul era meramente tem­porária. Em alguns anos, os sulistas, longe demais para serem vigia­dos, teriam sua independência e se tornariam uma perigosa ameaça ao poder dos hicsos. Tsafenat-Paneac sabia disso também e se preve­nia, colocando como governadores dos heseps, no sul, homens de sua confiança. Durante seu governo e no de Apopi I, filho de Khian, os hicsos mantiveram sua dominação, especialmente através da econo­mia. Nada entrava ou saía do alto Kemet que não passasse pelo bai­xo Kemet, totalmente controlado pelos amus.

Israel tinha alcançado uma idade provecta para aqueles tem­pos, onde a média de vida era de quarenta e cinco anos. Estava com oitenta e dois anos e já apresentava vários sinais de senilidade avan­çada. Tinha ordenado a Yozheph que, assim que morresse, seus res­tos fúnebres deviam ser enterrados em Canaã, e assim foi feito logo após sua morte, após passar pela técnica de embalsamação do Ke­met.

Khian ainda viveu mais algumas décadas e Tsafenat-Paneac perderia sua importância no palácio, tornando-se um tati mais ad­ministrativo do que com regalias e poderes.

Com a morte de Khian, seu sucessor Apopi I manteria Tsafenat-Paneac no seu status quo, pois era um homem acostumado a caça­das e viagens pelo reino. Tornou-se, no entanto, um bom governan­te, sabendo sustentar a paz entre os vários grupos de estrangeiros e mantendo Tsafenat-Paneac até que alcançasse a idade de sessenta e três anos, quando veio a falecer

A época que se seguiu foi de paz e de prosperidade consegui­da, principalmente, graças ao poder das armas e da dominação econômica. Os hicsos introduziram vários avanços tecnológicos na me­talurgia do bronze e na agricultura, mesmo que tenham assimilado mais coisas da cultura kemetense do que tenham introduzido. Sua passagem no Kemet foi particularmente útil para tirar o país do ma­rasmo de si próprio.

Os hicsos só foram capazes de entrar no país graças ao enfraquecimento geral do poder no Kemet. Cento e cinqüenta anos de­pois seriam expulsos por uma nação muito mais organizada, dinâ­mica e enérgica.

Com a morte de Tsafenat-Paneac, a sua tribo, que havia au­mentado grandemente, continuou espalhando-se pelas terras do baixo Kemet.

Os hicsos foram expulsos por um jovem faraó do sul, Ahmés, fundador da XVIII dinastia de faraós, mas os habirus continuaram, porquanto nunca fizeram parte da nobreza importante dos hititas, hurritas e citas, que dominaram o Kemet. Ahmés, o faraó, os perse­guiu até Canaã onde os derrotou perante a cidade-fortaleza de Sharuhen.

Os habirus foram considerados forasteiros que vieram depois, o que é verdade, e que não tiveram maior influência nos aconteci­mentos - que não era a realidade já que Tsafenat-Paneac foi de grande importância durante o reinado hicso. Para completar, para os kemetenses, Tsafenat-Paneac não passava de um nome esqueci­do, e muitos até achavam que era um kemetense renegado que aju­dara os hicsos a governar o país nos tempos distantes de um faraó chamado Khian.

Enquanto tudo isto acontecia, o espírito que fora Washogan, o deus Yahveh dos hurritas, que já houvera renascido como Kalantara, a sacerdotisa de Shiva, agora prosseguia em sua nova existência como um hitita. Ele tomaria o nome de Pusarma, renascendo como homem na Ásia Menor, numa pequena aldeia perto de Hatusa, a ci­dade capital dos hititas. Seu pai era um moleiro, e ele, sexto filho de oito crianças, ajudava a família trabalhando na moenda. Ao comple­tar quinze anos, visitou a capital hitita e ficou encantado com todo o luxo, as pessoas e as belas mulheres, e logo seu espírito ferveu, anelando viver em Hatusa.

Seu pai, que precisava dele, proibiu-o e, mesmo assim, por dois anos, o jovem não pensava em mais nada a não ser tornar-se parte daquela nobreza. No entanto, a família de onde provinha era extremamente pobre. Cada mão era absolutamente necessária e, mesmo ciente deste fato, ele fugiu da casa paterna onde recebia cari­nho e aconselhamento, e ingressou no exército hitita.

Hatusa era uma cidade que ficava no planalto da Anatólia, en­tre montanhas cobertas de neve e sujeitas a tempestades. Os hititas eram um povo indo-europeu, sendo baixos, atarracados, de nariz adunco, usavam brincos e seus cabelos eram tão bastos que eles amarravam-nos em rabos de cavalo que chegavam a protegê-los de golpes na nuca. Tanto os homens como as mulheres usavam túnicas, sapatos de ponta levantada e longos mantos de lã quando fazia frio.

Mesmo sendo um povo guerreiro, eles tinham um código de leis extremamente humano, sendo os pioneiros na diplomacia e preferiam estender seus domínios por meio de negociações e trata­dos, em vez de usar a força bruta.

Pusarma era um homem dotado de grande inteligência e abominava a pobreza da vila do pai, preferindo os ricos sítios de Hatusa. Com dezessete anos, ingressara no exército de Mursili, que estava montando uma grande força militar para tomar de assalto nada me­nos do que a Babilônia. Ele ingressara no exército, contrariando a vontade paterna que necessitava dele na família pobre, onde seu tra­balho era base de sustentação junto com dois outros irmãos. Ser o condutor de um carro de guerra hitita era, no entanto, muito mais empolgante do que ser moleiro.

O carro de combate hitita era uma poderosa arma de guerra e Pusarma conseguiu adaptar-se magnificamente bem. Alguns meses mais tarde, o exército de oitenta mil homens de Mursili saía de Hatusa, atravessava montanhas, morros, planícies, rios e riachos e des­cia a alta Mesopotâmia, atacando com sucesso a cidade de Babilônia. As forças se digladiaram nas portas da cidade e a vitória de Mursili foi completa.

Sempre preferindo tratar bem os inimigos, os hititas não ata­caram a cidade e nem a destruíram. Entraram ordeiramente na ci­dade, trataram os velhos, mulheres e crianças como se fossem seus parentes e cultuaram seus deuses, não impondo as suas estranhas di­vindades como Hurri, Seri, Teshub e Shauska.

O império hitita não estava ainda formado - só o seria com o rei Suppiluliuma em 1353 a.C. - e, naquele tempo, as intrigas palacianas eram costumeiras e inúmeras vezes, um rei era deposto atra­vés de golpes de estado, esfaqueado ou envenenado. Mursili rece­beu a notícia de que seu cunhado havia dado um golpe de estado e, deixando uma pequena guarnição local, voltou às pressas para Hatusa onde encontrou a morte nas mãos do usurpador, que lhe prepa­rou uma exímia emboscada.

Pusarma havia ficado na pequena guarnição de Babilônia, e, durante quase dois anos, teve a oportunidade de conhecer os deu­ses, a cultura, as leis e as lendas babilônicas. Relacionou-se com uma mulher mais velha, da alta sociedade babilônica, viúva, que lhe deu excelente guarida em seu pequeno palácio às margens do Eufrates, e, todos os dias, as escravas lhe davam banhos de ervas aromáticas e a dama o possuía com vigor redobrado.

No final daquele período idílico, a guarnição hitita sai de Babilônia e Pusarma despede-se da dama com os olhos cheios rasos de lágrimas, pois afeiçoara-se grandemente àquela nobre companhia.

No entanto, povos indo-europeus, vindos do planalto iraniano oci­dental, estavam entrando na Anatólia e demandavam toda a ajuda necessária.

Pusarma é o protegido de um comandante de esquadrão hiti­ta chamado Zidanta, que vê no jovem, características excelentes, e por isso sempre o mantém perto de si. Zidanta abomina Hantili, que fora o cunhado de Mursili e seu assassino. Não que tivesse tido algu­ma consideração pelo falecido monarca, pois não o tinha, porém ti­nha ainda menos pelo usurpador e traiçoeiro Hantili, que havia sido o escanção do rei - um cargo de proeminência - aquele que segura o copo do monarca - e que só era dado a pessoas de grande confiança.

Zidanta dá a idéia de fortificar Hasuta como pudera ver em Uruck, cidade da antiga Suméria, murada por Nimrud. Zidanta consegue convencer Hantili e recebe a incumbência de murar a ci­dade e usa o poder aglutinador e de liderança do jovem Pusarma, para coordenar a construção da poderosa muralha.

Hatusa é fortalecida a tempo de rechaçar um vigoroso ataque cassita que, depois deste fato, não voltam mais a incomodar. Zidanta destaca-se na sociedade hitita como grande inteligência e brilhante estrategista, e galga a escala social, guindando Pusarma consigo.

Pela primeira vez, Pusarma participa da corte e está embeve­cido. É parte do poder e, com isso, ganha muito dinheiro - Zidanta e ele desviam grandes somas na construção da muralha - e é reconhe­cido pela plebe. Não esquece, no entanto, o pai e a sua família e ao visitá-los os tira da miséria, instalando-os em lugar de proeminên­cia, especialmente seus dois irmãos mais velhos.

Eles abrem um grande comércio de grãos, ovelhas e artigos lanígeros, tais como tapetes, roupas e outros produtos. Mas seu relaci­onamento com o pai é turbulento e não consegue estabelecer amiza­de. O velho ressente-se do fato de o filho ter abandonado a família quando esta mais precisava dele e de ter voltado com poses de gran­de senhor, e do alto de sua soberba tê-los abrigado como se fossem mendigos.

Zidanta convence-se de que é preciso eliminar Hantili. Ele soube que o monarca temia seu poder e sua influência entre os no­bres hititas, governadores dos vários feudos que constituíam o reinado. Prepara o assassinato do rei, junto com outros nobres, sem inclu­ir Pusarma neste esquema por achá-lo excessivamente fidalgo de alma para participar de tal conluio, e Zidanta mata, no mesmo dia, Hantili e o príncipe herdeiro Piseni com toda a família, incluindo tios, tias, primos e irmãos. Vinte e oito pessoas são trucidadas sem dó, nem piedade. Zidanta é o novo rei dos hititas e Pusarma passa a ser um dos seus ministros. No entanto, ele teme a loucura de Zidan­ta.

Pusarma está cativo de sua própria ambição e da eficiência que sempre demonstrou em cumprir ordens. Faz parte do poder, mas este o revolta e angustia. As intrigas palacianas, as maledicências, os complôs o contristam e não tem como evitá-los. Quando demonstra vontade de se afastar, Zidanta o retém, dando-lhe outras atribuições, e, aos poucos, o próprio monarca, assustado com as coi­sas que provocara, só confia em Pusarma.

Tinha razão, o infeliz Zidanta, pois é o seu filho Ammuna que o mata e assume o reinado.

Pusarma foge para uma província, pois sabe que Ammuna o odeia gratuitamente, tendo inveja de seu relacionamento com o pai que sempre o tratou com reservas, crendo estar criando não só uma serpente - o que se confirmou - como também um idiota.

Zidanta conhecia bem o filho que tinha. Seu reinado de doze anos foi um desastre. Houve numerosas revoltas nas províncias que coincidiram com uma terrível seca que devastou a agricultura e a cri­ação, Pusarma foi caçado pelas tropas de Ammuna, e, com trinta e oito anos, foi degolado pelos sequazes do novo rei.

Ammuna morreria carcomido por um terrível câncer e seus filhos Titti e Hantili foram executados por outro traiçoeiro usurpa­dor, Huzzija, que governou por pouco tempo. Ele arquitetou a mor­te de sua irmã Istaparija e do marido dela, Telepinu. No entanto, Telepinu, sagaz e ardiloso, conseguiu descobrir a tempo a trama pa­laciana e matou Huzzija, afastando todos os possíveis rivais, tirando suas fortunas e relegando-os à classe dos camponeses, obrigando-os a trabalhar para ganhar o sustento de cada dia. Não os matou e com isto não trouxe mais desgraças sobre sua cabeça. Convocou os pankus - a assembléia de nobres e anciãos importantes dos hititas - e conseguiu que aprovassem uma nova lei de sucessão ao trono. Conseguiu fazer um reino reparador.

Os habirus haviam se multiplicado grandemente, estando em todos os estados da civilização do norte, já que alguns eram pastores, outros comerciantes, outros financistas e havia, como só poderia acontecer em qualquer lugar, o rebotalho de miseráveis que forma­vam uma incontável maioria.

O fato principal que gerara uma multidão de pobres era que toda a riqueza ficava com o primogênito. Os demais recebiam dádi­vas de seu pai e muitos, nem isso. Esses infelizes, sem encontrar emprego, tornaram-se escravos e servos, e, finalmente, havia uma mul­tidão de pedintes, ladrões e escória da sociedade que formavam uma péssima figura dos habirus.

Já os ricos intitulavam-se de Israel, ou beni Israel - filhos de Is­rael - dizendo que descendiam diretamente de Yacob. Tinham uma legião incontável de pastores sob seu comando que continuavam a apascentar enormes rebanhos que incluíam carneiros, cabras e bois em profusão. Dominavam o mercado de carnes e faziam os preços variarem de acordo com seu bel-prazer. Esses ricos haviam abando­nado a vida nômade, estabelecendo-se em confortáveis casas de esti­lo kemetense, dos quais procuravam copiar o estilo de vida, sem, no entanto, se intrometerem na vida religiosa e não permitindo casa­mentos fora do seu fechado círculo.

Naturalmente, os kemetenses não os recebiam em suas casas, só fazendo negócios com eles quando necessitavam de muito dinhei­ro e não eram capazes de conseguir em outro lugar. Os israelitas eram pessoas abastadas, verdadeiros financistas do reino, onde mui­tas falcatruas eram feitas e apoiadas por eles, e cobravam caro por sua ajuda.

O tempo havia passado celeremente e nesse tempo, faltando mil e trezentos anos para Yeshua ben Yozheph nascer em Beit Lechem, o faraó Ramsés II, também conhecido como Usermaatre-Setemperê, fazia suas inúmeras construções que o tornariam famoso. Ele resolvera construir uma cidade em louvor a si próprio, Perramsés - a casa dos Ramsés. E, para tal, estava empregando a mão-de-obra fartamente disponível, os habirus. Desse modo, foi concentrada per­to de Djanet, antiga Auwariyash dos hicsos, uma grande quantidade de pessoas da mesma origem que se intitulavam os hebreus.

Mais tarde, em outro lugar, construiriam uma cidade fortale­cida chamada Tjeku onde a mão-de-obra hebréia seria fartamente utilizada. Tjeku seria conhecida pelos gregos como Piton, corrupte­la de Peraton - domínios de Aton. No entanto, o que era para ser um aproveitamento de pessoas desempregadas através de grandes obras públicas, tornou-se, com o decorrer do tempo, uma forma de escravidão.

Os hebreus não eram escravos de direito, mas o eram de fato. Tinham corvéias para serem feitas e metas para serem atingidas sem as quais ficariam sem a magra remuneração. Essa paga era parcial­mente dada em comida o que fazia com que, na maioria das vezes, o empregado não tivesse nada para receber.

Uma minoria, mesmo assim expressiva dos habirus, era com­posta de pastores, subordinados aos israelitas, que apascentavam os rebanhos das ovelhas e cabras nas extensões vizinhas do delta, sendo mal aturados pelos kemetenses, que os achavam sujos em demasia e invasores de suas terras. Os hebreus levavam suas ovelhas às planta­ções kemetenses e os animais destruíam a lavoura, o que deixava os donos fulos de raiva. Houve alguns casos de morte entre pastores e agricultores, e muitos governadores dos heseps instigavam a popula­ção contra os habirus. Eram estrangeiros, sujos e desordeiros, crimi­nosos comuns numa terra extremamente xenófoba.

Qual seria o destino dos habirus? Ficariam eles presos numa terra que os desprezava, mas que eles amavam? Ou os espíritos superiores iriam se condoer com sua situação? Tudo isto viria a ser resolvido em episódios futuros da saga dos capelinos.

 

                                                                                            Albert Paul Dahoui

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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