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VIZINHOS / Anton Tchekhov
VIZINHOS / Anton Tchekhov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VIZINHOS

Piotr Mikailich Ivashin sentia-se de muito mau humor: a irmã, uma rapariga solteira, fugira com Vlasich, um homem casado. Ao tentar afastar de si a profunda depressão que se apoderara dele, e não o largava nem em casa nem no campo, Piotr Mikailich procurou agarrar-se ao seu sentimento de justiça e às suas honradas convicções (porque sempre fora partidário da liberdade no campo!). Mas eram inúteis os seus esforços, e acabava sempre, contra sua vontade, por chegar à mesma conclusão: a de que a estúpida ama, ou antes a irmã, se conduzira mal e que Vlasich a havia raptado. E isto era horroroso.

A mãe não saía do seu quarto, a ama falava a meia voz e não parava de suspirar; e a tia manifestava constantemente o desejo de se ir embora, e as suas malas tão depressa eram colocadas na entrada como as levavam de novo para o quarto. Dentro de casa, no pátio e no jardim, reinava um tal silêncio que mais parecia haver alguém morto. Piotr Mikailich tinha a impressão de que a tia, as serviçais e até os mujiques o olhavam com uma expressão enigmática e perplexa, como se quisessem dizer "Seduziram a tua irmã, porque ficas de braços cruzados? ". Também ele se censurava a si próprio pela sua inactividade, ainda que, na realidade, não soubesse ao certo o que devia fazer.

Assim passaram seis dias. No sétimo um domingo, depois do almoço um homem a cavalo trouxe uma carta. A direcção Para Sua Excel. Ana Nikolaievna Yvashina estava escrita numa letra feminina que lhes era familiar. Piotr Mikailich julgou ver no sobrescrito, na letra e na palavra “Excel." meia escrita qualquer coisa de provocante, liberal. E o liberalismo da mulher é obstinado, implacável, cruel,...

"Preferirá a morte a fazer qualquer concessão à sua desgraçada mãe, a pedir-lhe perdão", pensou Piotr Mikailich quando ia à procura da mãe com a carta na mão.

Aquela estava na cama, embora vestida. Ao ver o filho ergueu-se impulsivamente e ajeitando os cabelos cinzentos, que se lhe tinham soltado da touca, perguntou secamente:

- O que há? O que há?

- Mandou... - disse o filho, entregando-lhe a carta.

O nome de Zina e até a palavra "ela" não se pronunciavam em casa. Falava-se de Zina de uma maneira impessoal: "mandou", "foi-se embora",... A mãe reconheceu a letra da filha e o seu rosto transtornado endureceu. Os cabelos soltaram-se novamente da touca. - Não - disse, afastando as mãos como se a carta lhe tivesse queimado os dedos. - Não, não, nunca! Por nada deste mundo!

A mãe rompeu em soluços histéricos provocados pela dor e pela vergonha; parecia sentir desejos de ler a carta; mas o orgulho impedia-a de o fazer. Piotr Mikailich entendia no seu íntimo que devia abrir e ler a carta em voz alta, mas sentiu-se subitamente dominado por uma cólera como nunca experimentara. Correndo para o pátio gritou ao homem que trouxera a missiva:

- Diz-lhe que não tem resposta! Não haverá resposta! Diz-lhe isto mesmo, imbecil!

E rasgou imediatamente a carta em pedaços. Depois, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos, e sentindo-se duro, culpado e infeliz, saiu para o campo.

Tinha apenas vinte e sete anos, mas já era gordo, vestia como um velho, usava os fatos muito folgados e sofria de dispneia. Já possuía todas as manias do fazendeiro solteirão. Não se apaixonava, não pensava em casar-se, e gostava unicamente da mãe, da irmã, da ama e do jardineiro Vasilich. Gostava de comer bem, dormir a sesta e falar de política e de temas elevados... Terminara em tempos os estudos na Universidade, e agora encarava-os como uma obrigação inevitável para os jovens entre os dezoito e os vinte e cinco anos. Pelo menos, os pensamentos que o atormentavam não tinham nada de comum com a Universidade nem com o que ali estudara.

O campo estava quente, com aquela calmaria que fazia prever chuva. O bosque exalava um ligeiro vapor e um cheiro penetrante a pinheiro e a folhas secas. Piotr Mikailich parava frequentemente para limpar o suor da testa. Revistou os seus trigais de Outono e Primavera, percorreu os campos de cevada; e por duas vezes, numa clareira do bosque, espantou uma perdiz com os seus perdigotos. Entretanto pensava constantemente que tão insustentável situação não podia prolongar-se eternamente e havia que pôr-lhe cobro de qualquer maneira. Fosse como fosse, mesmo de um modo estúpido, absurdo; mas era necessário acabar com aquilo.

"Mas como? Que fazer", perguntava Piotr Mikailich a si próprio, olhando o céu e as árvores como se implorasse a sua ajuda.

Mas o céu e as árvores guardavam silêncio. As convicções honestas não lhe serviam para nada, e o seu senso comum segredava-lhe que o dilacerante problema só poderia ter uma solução estúpida e que a cena com o homem que trouxera a carta não seria a última neste género. Sentia medo ao pensar no que ainda podia acontecer.

Voltou para casa ao pôr do Sol. Parecia-lhe nesse momento que o problema não tinha solução, Era impossível aceitar o facto consumado, mas também não era possível não o aceitar, e não existia qualquer solução intermédia. Quando, de chapéu na mão e abanando-se com o lenço, ia andando pelo caminho e lhe faltava um par de verstas para chegar a casa, ouviu uma campainha nas suas costas. Era um tilintar muito agradável de campainhas e guizos que lembrava um som de cristais. Só podia ser Mcdovski, o chefe da Polícia do distrito, antigo oficial de hussardos que perdera todos os bens e a saúde, um homem doente, parente afastado de Piotr Mikailich. Era muito amigo dos Ivashin e sentia por Zina grande admiração e carinho paternal.

- Vou a sua casa - disse aproximando-se de Piotr Mikailich. - Suba, eu levo-o.

Sorria jovialmente; era evidente que não sabia o que sucedera com Zina. Se por acaso lho tivessem dito, não teria acreditado. Piotr Mikailich sentiu-se numa situação embaraçosa.

- Ainda bem - balbuciou, corando ao ponto de lhe saltarem as lágrimas, sem saber como esconder a verdade. - Gosto muito - prosseguiu, esforçando-se por sorrir , - mas,... Zina saiu e a mãe está doente.

- Que pena! - disse o chefe da Polícia, fitando pensativamente Piotr Mikailich. - E eu que contava passar a noite com vocês...

Onde foi Zinaida Mikailovna?

- A casa dos Sinitski; depois parece que tencionava ir ao convento. Não tenho a certeza.

O chefe da Polícia acrescentou mais qualquer coisa é deu a volta. Piotr Mikailich seguiu para casa, e pensava horrorizado no que sentiria o chefe da Polícia quando soubesse a verdade. Fazia cálculos; e sob esta desagradável impressão entrou em casa.

"Ajuda-me, Senhor, ajuda-me...", pensava.

Na sala de jantar, a tomar o seu chá, estava apenas a tia. Como de costume, a sua fisionomia apresentava a expressão de alguém, ainda que débil e indefesa, que não permitia a ninguém que a ofendesse. Piotr Mikailich sentou-se do outro lado da mesa (não sentia grande afeição pela tia) e, em silêncio, principiou a tomar o chá.

- A tua mãe também hoje não comeu - disse a tia. - Tu, Petrusha, devias tomar cuidado. Morrer de fome não remedeia a nossa desgraça.

Piotr Mikailich achou absurdo que a tia se intrometesse em assuntos que não eram da sua competência e fizesse depender da partida de Zina a marcha dos acontecimentos. Sentiu desejos de dizer uma impertinência mas conteve-se a tempo, e ao conter-se apercebeu-se de que chegara o momento oportuno para agir, e de que se sentia incapaz, de sofrer por mais tempo; tinha de fazer qualquer coisa imediatamente, ou atirar-se ao chão gritando e dando cabeçadas. Imaginou Vlasich e Zina, liberais e contentes consigo próprios, beijando-se debaixo de um arco, e todo o peso e o rancor que acumulara durante estes sete dias se concentraram em Vlasich.

"Um seduziu e raptou a minha irmã, outro virá e degolará a minha mãe, um terceiro roubar-nos-á ou incendiará a casa... E tudo isto sob a máscara da amizade, das ideias elevadas e dos sofrimentos", pensou.

Não, não será assim! gritou de repente, dando um murro em cima da mesa.

Levantou-se de um salto e saiu a passos rápidos da sala de jantar. Na cavalariça estava selado o cavalo do feitor. Montou-o, e saiu a galope à procura de Vlasich.

Desencadeara-se no seu íntimo uma verdadeira tempestade. Sentia a necessidade de fazer qualquer coisa de tremendo e fora do comum, ainda que depois tivesse de arrepender-se a vida inteira. Acusar Vlasich de ser um miserável, dar-lhe uma bofetada e desafiá-lo em seguida? Mas Vlasich não era dos que se batem em duelo; e ao ser acusado de miserável e esbofeteado, a sua única reacção seria sentir-se mais desgraçado e retrair-se ainda mais. Este género de pessoas infelizes e submissas são os seres mais insuportáveis, os mais difíceis de tratar. Tudo neles permanece impune. Quando o homem infeliz, em resposta a uma observação merecida, olha com uma expressão em que se reflecte a consciência da sua culpa, sorri amargamente e inclina docilmente a cabeça, parece que a própria justiça é incapaz de levantar a mão contra ele.

- Tanto faz. Dou-lhe uma chicotada à frente dela e dir-lhe-ei umas quantas coisas desagradáveis - decidiu Piotr Mikailich.

Cavalgava através do bosque e das terras baldias que lhe pertenciam, e imaginava a maneira como zina, querendo justificar o seu acto, invocaria os direitos da mulher e a liberdade individual, afirmando que era exactamente igual o casamento religioso ou o civil. Discutiria como mulher as coisas que não podia compreender, e acabaria provavelmente por lhe perguntar: "Que tens tu a ver com tudo isto? Com que direito te intrometes?

- Sim, não tenho direito nenhum - resmungava Piotr Mikailich. - Mas ainda bem... Quanto mais grosseiro for e menos direito tiver, melhor.

Estava um calor sufocante. Nuvens de mosquitos voavam muito baixo, ao rés do solo, e nos terrenos baldios choravam dolorosamente as aves-frias. Piotr Mikailich atravessou o limite da propriedade, seguindo a galope através de um terreno completamente plano. Percorrera muitas vezes este caminho e conhecia cada matagal até à mais pequena vereda. Aquilo que de longe, entre duas luzes, parecia uma rocha escura era uma igreja vermelha; Piotr podia recordá-la no seu mais ínfimo detalhe, inclusivamente o estuque do portal; e lembrava-se dos carneiros que pastavam sempre no adro. Para a direita, a uma versta da igreja, avistava-se a mata do conde Koltovish. E para lá da mata começavam as terras de Vasilich.

Atrás da igreja e da mata do conde avizinhava-se uma nuvem enorme, que de vez em quando era iluminada por uns pálidos relâmpagos.

"Já está!", pensou Piotr Mikailich. "Ajuda-me, Senhor!"

O cavalo não tardou em dar sinais de fadiga, e o próprio Piotr Mikailich se sentia cansado. A imensa nuvem contemplava-o ameaçadora, como a aconselhá-lo a voltar para casa. Sentiu receio.

"Hei-de demonstrar-lhes que não têm razão! pensou, tentando ganhar coragem. Dirão que é amor livre, liberdade individual; mas a liberdade consiste na abstenção, e não na subordinação às paixões. Aquilo é depravação e não liberdade!"

Chegou ao grande lago do conde. O reflexo da nuvem dava-lhe um aspecto acinzentado e sombrio, e o lago emanava uma humidade densa. Junto ao dique, dois salgueiros, um velho e outro novo, inclinavam-se um para o outro, amparando-se carinhosamente. Por este mesmo caminho, duas semanas antes, Piotr Mikailich e Vlasich tinham passado a pé, cantando a meia voz uma canção estudantil: "Não amar e destruir a juventude..." Miserável canção!

Quando Piotr Mikailich atravessou a mata, soou um trovão e as árvores estremeceram, inclinando-se com a força do vento. Tinha de apressar-se, entre a mata e a fazenda de Vlasich tinha ainda de atravessar o prado, de cerca de uma versta. Em ambos os lados do caminho alinhavam-se os velhos ciprestes, de aspecto tão triste e infeliz como Vlasich, seu dono; assim como ele, eram esguios e tinham crescido desmedidamente. Nas folhas dos ciprestes e na erva tamborilaram grandes gotas; ao mesmo tempo caiu o vento e espalhou-se um cheiro a terra molhada. Apareceu a cerca de Vlasich, com a sua acácia amarela que era igualmente esguia e crescera mais do que o normal. Em determinado sítio onde a cerca caíra, via-se um pomar abandonado de árvores de fruto.

Piotr Mikailich já não pensava no bofetão nem na chicotada. Não sabia o que faria em casa de Vlasich. Acobardou-se. Sentia medo ao pensar na irmã e em si próprio, e horrorizava-se com a perspectiva de a ver. Como se comportaria ela? De que iriam falar? Não seria preferível regressar antes que fosse tarde? Com estes pensamentos, galopou em direcção à casa pela avenida das tílias, deixou para trás os grandes maciços de lilases e, de súbito, deu de frente com Vlasich.

Este, de cabeça descoberta, com uma camisa de percal e botas altas, curvado sob a chuva, caminhava da esquina da casa ao portão. Seguia-o um trabalhador com um martelo e uma caixa com pregos. Estivera decerto a consertar as madeiras das janelas batidas pelo vento. Ao ver Piotr Mikailich, Vlasich deteve-se.

- És tu? - perguntou sorrindo. - Óptimo.

- Sim, vim, como vês... - disse Piotr Mikailich suavemente, sacudindo a chuva com as mãos.

- Ainda bem, folgo muito - acrescentou Vlasich, sem estender a mão; não se decidia a fazê-lo e esperava que o outro o fizesse primeiro. - Esta chuva é muito boa para a aveia! - prosseguiu, olhando o céu.

- Sim.

Entraram em casa em silêncio. Do lado direito da entrada havia uma porta que conduzia à saleta e daí directamente à sala; do lado esquerdo havia uma pequena divisão que era ocupada no Inverno pelo leitor. Piotr Mikailich e Vlasich penetraram nesta última.

- Onde te apanhou a chuva? - perguntou Vlasich.

- Perto. Quando vinha a chegar a casa.

Piotr Mikailich sentou-se na cama. Agradava-lhe que a chuva fizesse aquele ruído e que o quarto estivesse às escuras. Era melhor assim: sentia menos receio e evitava encarar o seu interlocutor de frente. O seu sentimento de cólera desaparecera; e o que sentia agora era receio e irritação consigo próprio. Tinha a intuição de que começara mal e que desta sua iniciativa não resultaria praticamente nada.

Durante certo tempo permaneceram ambos em silêncio, simulando prestar atenção à chuva.

- Obrigado, Petrosha - principiou Vlasich pigarreando. - Agradeço muito teres vindo. É um acto generoso e nobre. Entendo-o e, acredita, dou-lhe grande valor. Podes crer. - Olhou para a janela e prosseguiu, de pé, no centro do quarto.

- Tudo isto se passou em segredo, como se fosse às tuas escondidas. A consciência de que podias sentir-te ofendido e estivesses aborrecido connosco tem sido durante estes dias uma nuvem na nossa felicidade. Mas permite que nos justifiquemos. Se guardámos segredo, não foi por falta de confiança em ti. Em primeiro lugar, tudo se passou inesperadamente, movidos por um súbito impulso, e não havia tempo para raciocinar. Segundo, tratava-se de um assunto íntimo, delicado... Era por demais desagradável, fazer intervir uma terceira pessoa, ainda que tão chegada como tu. O principal é que confiámos muito na tua generosidade. És um homem muito generoso e nobre. Fico-te infinitamente grato. Se alguma vêz, necessitares da minha vida, vem e toma-a.

Vlasich falava com voz suave e surda, monótona como um zumbido; e estava visivelmente emocionado. Piotr Mikailich sentiu que chegara a sua vez de falar e que escutar e calar-se significaria, efectivamente, fazer-se passar por uma pessoa generosa e nobre na sua boa fé. E não eram essas as suas intenções. Levantou-se rapidamente e disse, ofegante, a meia voz:

- Ouve, Grigori: sabes quanto te estimava e que não teria podido desejar melhor marido para minha irmã. Mas o que aconteceu é horroroso. Ainda tremo ao pensar nisso.

- Porquê? - perguntou Vlasich, com voz comovida. - Seria de tremer se tivéssemos procedido mal, mas não é o caso.

- Ouve, Grigori: sabes que não tenho preconceitos. Mas perdoa-me a franqueza: quanto a mim, procederam egoisticamente. É evidente que não o direi a Znu, ficaria aflita, mas tu deves sabê-lo; a nossa mãe sofre a tal ponto que nem te posso explicar.

- Sim, isso é muito doloroso - suspirou Vlasich. - Não foi nada que não pensássemos, Petrusha, mas que podíamos fazer? O facto de as nossas acções desagradarem aos outros não implica que sejam condenáveis. A vida é assim. Qualquer passo importante de uma pessoa tem forçosamente de desagradar a alguém. Se tu fosses combater pela liberdade; farias igualmente sofrer a tua mãe. Que havemos de fazer! Aquele que coloca acima de tudo a tranquilidade dos seus familiares deve renunciar por completo a viver segundo os seus ideais.

O clarão de um relâmpago resplandeceu no céu e o seu brilho mudou o rumo aos pensamentos de Vlasich. Sentou-se junto de Piotr Mikailich e principiou a divagar.

- E Petrusha, adoro a tua irmã - declarou. - Sempre que me dirigia a tua casa imaginava ir em peregrinação a fim de elevar as minhas orações a Deus, quando a verdade é que as minhas orações se dirigiam a Zina. Agora a minha adoração aumenta todos os dias. Zina ocupa, aos meus olhos, uma posição mais elevada do que se fosse minha mulher. Muito mais! - Vlasich ergueu os braços. É o meu santuário! Desde que ela vive aqui, entro nesta casa como se fosse um templo, é uma mulher excepcional, extraordinária, nobilíssima!

"Pronto, já começou com a sua ladainha!", pensou Piotr Mikailich. Mas a palavra "mulher" não lhe agradara.

- Porque não se casam legalmente? - perguntou. - Quanto pede a tua mulher para te conceder o divórcio?

- Setenta e cinco mil.

- Acho muito, e se tentasses que ela pedisse menos?

- Não baixará nem um kopek. É uma mulher terrível, irmão! - disse Vlasich suspirando. - Nunca antes te falara nela, porque me desagradava o assunto, mas visto que as coisas se encaminharam neste sentido, vou-te contar. Casei-me, honestamente, movido por um respeitável, ainda que fugaz, sentimento. No nosso regimento, caso te interessem os pormenores, havia um chefe de batalhão que se enamorou de uma jovem de dezoito anos; ou seja, falando claramente, seduziu-a, viveu com ela dois meses, e abandonou-a. A rapariga ficou numa situação muito embaraçosa. Tinha vergonha de voltar para casa dos pais, além de que não a aceitariam, e fora abandonada pelo amante: restava-lhe ir aos quartéis e vender-se. Os oficiais estavam indignados. Eles também não eram nenhuns santos, mas a infâmia era demasiado evidente. Para mais, no regimento ninguém gostava daquele chefe. Para lhe fazerem ver a sua patifaria, compreendes, os tenentes e capitães principiaram a reunir dinheiro para a desgraçada rapariga. E então, quando nós, os oficiais de patente inferior, havíamos feito uma colecta em que cada um dava entre cinco a dez rublos, a mim subiu-me o sangue à cabeça. A situação pareceu-me indicada para realizar uma autêntica proeza. Fui ter com ela e manifestei-lhe ardentemente a minha simpatia. E quando ia visitá-la e enquanto conversava com ela amava-a apaixonadamente, vendo nela uma mulher humilde e ofendida. Sim... daí resultou que uma semana depois a pedi em casamento. Os meus superiores e camaradas acharam que semelhante casamento era incompatível com a dignidade de um oficial. Foi como deitar achas na fogueira. Eu, compreendes, escrevi uma longa carta na qual afirmava que a minha acção devia ficar, na história do regimento, gravada com letras de ouro, etc. Mandei-a ao chefe e enviei cópias aos meus camaradas. Estava exaltado, é claro, e houve uma troca de palavras duras. Pediram-me que abandonasse o regimento. Tenho guardado o rascunho em qualquer sítio, hei-de dar-to para que o leias. A carta foi escrita com muita emoção. Poderás notar os honestos e sinceros sentimentos que me moviam. Solicitei a baixa ao quartel e para aqui vim com minha mulher. Meu pai deixara algumas dívidas, eu carecia de dinheiro; quanto a ela, contraiu desde o primeiro dia muitas amizades, começou a presumir e a jogar às cartas, e tive de hipotecar a propriedade. Portava-se mal, e foste tu, entre todos os meus vizinhos, o único que não foi seu amante. Ao fim de dois anos, dei-lhe, para que me deixasse em páz, tudo o que então possuía, tendo ela partido em seguida para a cidade. Sim... e agora dou-lhe dois mil rublos por ano. É uma mulher horrível! É uma mosca que põe a larva nas costas da aranha de tal modo que esta não a pode sacudir; e a larva agarra-se à aranha, chupando-lhe o sangue do coração. O mesmo faz esta mulher: agarrou-se a mim, chupa-me o sangue. Odeia-me e despreza-me porque tive a estúpida ideia de casar com ela. A minha generosidade parece-lhe uma coisa miserável. Um homem inteligente costuma dizer abandonou-me e

recolheu-me um estúpido. Pensa que só um desgraçado idiota podia ter procedido como eu. É isto, irmão, a mim causa-me uma amargura intolerável. Dir-te-ei, aqui para nós, que o destino me persegue. Persegue-me ferozmente.

Piotr Mikailich escutava Vlasich, interrogando-se perplexo: como terá podido agradar tanto a Zina? Já não é jovem, tem quarenta e um anos, e franzino, peito estreito, nariz comprido e alguns cabelos brancos na barba. Quando fala parece que zomba; tem um sorriso doentio e agita as mãos de modo desagradável. Não podia orgulhar-se de ser saudável nem de possuir belas maneiras viris, e carece de espírito mundano e alegria. Em resumo: a julgar pelas aparências, é um ser pusilânime e indefinido. Não tem gosto para se vestir, a sua expressão é triste, não se interessa por poesia nem pintura, porque "não correspondem às necessidades diárias", ou seja, porque não as compreende, e não é apreciador de música, e mau administrador. A herdade encontra-se no mais completo abandono e está hipotecada; pela segunda hipoteca paga doze por cento, além de que assinou letras no valor de dez mil rublos. Quando chega o momento de liquidar os juros ou mandar dinheiro à mulher, pede emprestado a toda a gente, com a expressão de quem tem a casa a arder; e, simultaneamente, sem reflectir, vende todas as reservas de lenha para o Inverno por cinco ruhlos, e a palha por três, e depois manda acender os fogões com as traves da cerca do pomar ou as velhas estacas do jardim de Inverno. Os porcos estragam a pradaria, e o gado dos mujiqucs come, no bosque, as árvores novas, enquanto as velhas vão morrendo todos os Invernos. No pomar e no jardim as colmeias estão ao abandono, sendo utilizadas para deitar os baldes velhos. Vlasich não tem qualquer aptidão e nem sequer possui a virtude comum e corrente de viver como as outras pessoas vivem. É ingénuo nos assuntos práticos, ingénuo e fraco, e qualquer pessoa o pode enganar facilmente, sendo por alguma razão que os mujiqucs lhe chamam "o Simples".

E liberal e no distrito tem fama de vermelho, mas isso só lhe causa enfado. Na sua livre maneira de pensar não existe qualquer originalidade ou ênfase; indigna-se, irrita-se e alegra-se sempre no mesmo tom, displicentemente, sem procurar tirar efeito. Não ergue a cabeça, nem mesmo nos momentos de grande exaltação, e permanece sempre curvado. Mas o mais maçador de tudo é que até os seus bons e nobres ideais são expressos de forma que parecem banais e ultrapassados. Dá a impressão de que está a falar de qualquer velho assunto, que leu há muito, quando com palavras lentas principia a falar, como se se tratasse de coisa muito profunda, das fases nobres e lúcidas da sua vida, e de anos melhores; ou quando se entusiasma com a juventude que sempre andou à cabeça da sociedade; ou, ainda, quando censura os Russos porque durante trinta anos vestem a mesma roupa e se esquecem de adquirir a sua alma mater. Quando passo a noite em sua casa, coloca, em cima da minha mesa-de-cabeceira, livros de Pisarev e Darwin. E, se lhe digo que já os li, sai e volta com Dobroliubov.

Naquele distrito, chamavam a isto livre-pensamento, e era considerado por muitos como uma extravagância ingénua e inocente; no entanto, tornava-o a ele profundamente infeliz. Significava para ele a larva de que falara antes: agarrara-se-lhe com toda a força e sugava-lhe o sangue do coração. No passado, o estranho casamento à moda de Dostoievski, as longas cartas e as cópias escritas com uma letra ilegível, mas com profundo sentimento; os eternos equívocos, explicações e desilusões; em seguida, as dívidas, a segunda hipoteca, o dinheiro que dava à mulher, novas dívidas que contraía todos os meses... e tudo isto sem proveito para ninguém, nem para ele nem para os outros. E presentemente, tal como antes, vive ansioso, toma iniciativas, e mete-se em assuntos que lhe são alheios; como noutros tempos, assim que uma ocasião se apresenta escreve grandes cartas com as respectivas cópias, mantém conversas fatigantes e triviais acerca da comunidade rural ou da necessidade de pôr de pé as indústrias de artesanato ou, ainda, da construção de uma fábrica de queijos: conversas muito semelhantes umas às outras, ao ponto de parecerem saídas não de um cérebro vivo, mas de uma máquina. E, finalmente, este escândalo de Zina, que não se sabe como terminará.

E entretanto Zina é jovem, tem apenas vinte e oito anos, é bonita, elegante e alegre; gosta de rir e conversar, agradam-lhe as discussões e é apaixonada por música; tem bom gosto para se vestir, para escolher livros e móveis; e em sua casa não consentiria um quarto como este, a cheirar a coiro das botas e a vodka barato. É igualmente liberal, mas na sua livre maneira de pensar adivinham-se a superabundância de energia, a vaidade de uma mulher jovem, forte e impulsiva, e a vibrante aspiração de ser melhor e mais original do que as demais... Como pôde enamorar-se de Vlasich?

"Ele é um Dom Quixote, um fanático obstinado, um maníaco”, pensava Piotr Mikailich, “e ela é tão suave, tão débil de carácter e conciliadora, como eu... Ambos nos rendemos depressa e sem resistência! Enamorou-se dele; ainda que eu próprio o estime, apesar de tudo..."

Piotr Mikailich tinha Vlasich na conta de um homem bom e honesto, se bem que de vistas estreitas. Nas suas emoções e sofrimentos, no conjunto da sua vida, não distinguia fins elevados, próximos ou remotos; via unicamente o tédio e a incapacidade de viver. O seu sacrifício e tudo aquilo que Vlasich denominava proeza ou impulso honrado pareciam-lhe um inútil desgaste de energia, desnecessários tiros sem bala em que se queimava muita pólvora. A circunstância de Vlasich estar fanaticamente certo da extraordinária honestidade e infalibilidade da sua maneira de pensar afigurava-se-lhe de uma ingenuidade quase doentia. E quanto ao facto de se haver esforçado a vida inteira para misturar o mesquinho com o sublime, de se haver casado estupidamente

considerando essa acção uma tacanha, e de logo haver procurado outras mulheres, vendo nisso o triunfo de uma ideia, tudo isto era simplesmente incompreensível.

Apesar de tudo, Piotr Mikailich sentia afeição por Vlasich, pressentia nele uma certa força de vontade, sendo por isso incapaz de o contrariar.

Vlasich sentara-se junto dele para conversar, ao som da chuva, na obscuridade, principiando a pigarrear e disposto a contar coisas intermináveis, no género da história do seu casamento. Mas Piotr Mikailich não conseguia prestar-lhe atenção, obcecado com a ideia de ir, dentro de instantes, encontrar-se com a irmã.

- Sim, não tiveste sorte na vida - disse suavemente. - Mas, perdoa-me, estamos a afastar-nos do ponto principal. Não era esse o assunto de que necessitávamos de falar.

- Sim, sim, tens razão. Vamos ao que interessa - aquiesceu Vlasich pondo-se de pé. - Escuta-me, Petrusha: a nossa consciência está limpa. Não nos casou um padre, mas o nosso matrimónio é perfeitamente legítimo. Não tentarei demonstrar-to, nem tens obrigação de me ouvir. As tuas convicções são tão independentes como as minhas e, graças a Deus, não pode haver entre nós discrepância neste ponto. Quanto ao nosso futuro, não te deve meter medo. Trabalharei dia e noite, incansavelmente; numa palavra, farei quanto esteja ao meu alcance para que Zina seja feliz. Terá uma vida agradável. Serei capaz, de o conseguir? Sim, conseguirei, irmão! Quando alguém pensa constantemente numa única coisa, não lhe é difícil conseguir o que pretende. Mas vamos ter com Zina. Temos que lhe dar esta alegria.

Piotr Mikailich sentiu um aperto no coração. Levantou-se e seguiu Vlasich até à saleta, e daí à sala. Nesta divisão enorme e sombria, não havia senão um piano e uma longa fila de velhas cadeiras, com incrustações de bronze, em que nunca alguém se sentava. Uma vela ardia em cima do piano. Da sala passaram em silêncio à casa de jantar, outra divisão ampla e pouco confortável, em cujo centro havia uma mesa redonda de dobrar, com seis pés grossos, e sobre ela luzia igualmente uma vela. O relógio, de caixa vermelha, semelhante à urna de um ícone, marcava as duas e meia.

Vlasich abriu a porta do quarto contíguo, dizendo: - Zinochka, chegou o Petrusha!

Ouviram-se passos precipitados e Zina entrou na sala de jantar. Alta, um pouco forte e muito pálida, tal como Piotr Mikailich a vira pela última vêz, em casa: vestida com saia preta, blusa vermelha e um cinto com uma grande fivela, Abraçou o irmão longamente, beijando-o no rosto.

- Que temporal! - disse. - Cirigori saiu e deixou-me sozinha em casa.

Não parecia perturbada, fitando o irmão com uma expressão sincera, diáfana, como dantes. Ao vê-la, Piotr Mikailich deixou de se sentir perturbado.

- Mas tu não costumas ter medo do temporal - disse, sentando-se junto da mesa.

- Sim, mas aqui os temporais são muito fortes, a casa é velha e, quando ecoa o trovão, estremece toda como um armário com loiça. À parte isso, é muito agradável - continuou, e sentou-se em frente do irmão. - Aqui, cada quarto tem a sua recordação. No meu (o que é o destino!) o avô de Grigori desfechou um tiro em si próprio.

- Em Agosto, receberei algum dinheiro e arranjarei o pavilhão do jardim - disse Vlasich.

- Não sei porque recordo o avô quando há temporal - prosseguiu Zina. - E nesta sala de jantar mataram um homem.

- É verdade - confirmou Vlasich, olhando Piotr Mikailich, com os olhos muito abertos. - Nos anos quarenta, esta herdade foi arrendada por um francês chamado Olivier. O retrato da filha ainda está nas águas-furtadas. Este Olivier, segundo contava meu pai, despregava os Russos pela sua ignorância e troçava constantemente deles. Assim, exigia que o sacerdote, ao passar junto da quinta, tirasse o chapéu meia verxta antes de casa; e quando andava pela aldeia com a família, queria que mandasse repicar os sinos. Com os criados e o pessoal menor ainda fazia menos cerimónias. Certa ocasião passou por aqui um dos elementos mais típicos da Rússia vagabunda, alguém no género do estudante Jorna Hrut, de Gogol. Pediu que o deixassem pernoitar, agradou ao pessoal, tendo-lhe sido permitido ficar na arrecadação. Existem várias versões. Uns dizem que o estudante revoltou os camponeses; outros, que a filha de Olivier se enamorou dele. Não sei bem, mas o certo é que um dia Olivier chamou-o aqui e ordenou, em seguida, que lhe dessem uma sova. Estás a ver? Enquanto ele permanecia sentado atrás desta mesa, bebendo como se nada fosse, os criados espancavam o estudante. Presume-se que o martirizaram. O estudante morreu na manhã seguinte, tendo o seu cadáver desaparecido. Dizem que o deitaram ao lago de Koltovish. Iniciaram-se investigações, mas o francês pagou vários milhões de rublos a quem de direito e partiu para a Alsácia. Chegara, muito a propósito, ao termo o prazo de arrendamento e assim acabou tudo.

- Que canalhas! - exclamou Zina, estremecendo. - Meu pai lembrava-se muito bem de Olivier e da filha. Dizia que era muito bonita e excêntrica. Penso que o estudante fez ambas as coisas: revoltou os camponeses e seduziu a filha. Talvez nem sequer se tratasse de um estudante, mas de uma pessoa que viajasse incógnita.

Zinochka ficou pensativa: a história do estudante e da bela francesa parecia ter levado os seus pensamentos para muito longe. Piotr Mikailich chegou à conclusão de que, exteriormente, Zina não mudara nada na última semana; apenas a achava um pouco mais pálida. O seu olhar era tranquilo, como se tivesse vindo em companhia do irmão visitar Vlasich. Quanto a si, Piotr Mikailich sentia-se ligeiramente mudado. Efectivamente, antes, quando Zina vivia em casa, podia conversar acerca de tudo, enquanto agora era incapaz de lhe perguntar sequer "Como vives aqui? ". Parecia-lhe uma pergunta torpe e desnecessária. Devia-se ter dado nela a mesma mudança. Não se mostrava desejosa de falar na mãe, na casa, na sua história amorosa com Vlasich; não procurava justificar-se, não declarava que o casamento civil era melhor que o religioso, não se mostrava receosa e permanecera tranquilamente meditando no caso de Olivier... E a que propósito principiaram, subitamente, a falar no francês?

- Têm ambos as costas molhadas da chuva - disse Zina sorrindo com alegria, afectada por esta pequena semelhança entre o irmão e Vlasich.

E Piotr Mikailich sentiu toda a amargura e todo o horror da sua situação. Recordou a casa vazia, o piano fechado e o quarto de Zina, cheio de luz, em que ninguém entrava agora. Recordou que nas áleas do jardim deixaram de se notar as marcas dos seus pequenos pés e que um pouco antes do chá da tarde já ninguém tomava banho entre risos de alegria. Aquilo que mais o atraía desde a sua mais tenra infância, que lhe agradava recordar quando sentado no sombrio ambiente do salão - claridade, pureza, alegria , tudo quanto enchia a casa de vida e de luz, fora-se para não mais voltar, desaparecera e misturava-se com a grosseira e torpe história de um chefe de batalhão, de um tenente generoso, de uma mulher corrompida, do avô que dera um tiro em si próprio... E principiar a conversa sobre a mãe ou imaginar que o passado podia voltar, significaria não entender o que estava bem claro.

Os olhos de Piotr Mikailich encheram-se de lágrimas e a sua mão pousada sobre a mesa principiou a tremer, Zina adivinhou os seus pensamentos e os seus olhos resplandeceram igualmente humedecidos de lágrimas.

- Vem cá, Grigori disse, dirigindo-se a Vlasich.

Retiraram-se para o vão da janela e principiaram a falar em voz baixa. Pela maneira como Vlasich se inclinava para ela e como ela olhava Vlasich, Piotr Mikailich compreendeu mais uma vez que tudo acabara para sempre e não valia a pena falar. Zina retirou-se.

- Verás, irmão - principiou Vlasich depois de um curto silêncio, esfregando as mãos e sorrindo, - dizia-te há pouco que a nossa vida era feliz, mas afirmava-o para me submeter, digamos, às exigências literárias. Na realidade, ainda não tivémos a sensação de felicidade, zina pensava constantemente em ti e na tua mãe e atormentava-se; isso significava um sofrimento para mim. Ela é um espirito livre, decidido, mas, como não está habituada, pesa-lhe esta situação, além de ser ainda jovem. Os criados chamam-lhe menina. Parece um facto sem importância, mas preocupa-a, é como te digo, irmão.

Zina trouxe um prato com morangos, era seguida por uma criadinha de aspecto submisso. A criada pousou uma caneca com leite em cima da mesa, fazendo uma profunda reverência antes de sair... Tinha qualquer coisa de comum com os velhos móveis, dava a sensação de espanto e aborrecimento.

A chuva parara. Piotr Mikailich comia morangos enquanto Vlasich e Zina o olhavam em silêncio. Chegara o momento da conversa desnecessária mas inevitável, e os três começaram a sentir o seu peso. Os olhos de Piotr Mikailich de novo se encheram de lágrimas; afastou o prato, dizendo que iam sendo horas de voltar, porque se fazia tarde e podia recomeçar a chover. Chegara o momento em que Zina, por decoro, devia fazer incidir a conversa sobre os seus e a sua nova vida.

- Como vão as coisas lá por casa? - perguntou em tom sacudido, ao mesmo tempo que o seu pálido rosto se crispava ligeiramente. E a mãe?

- Já a conheces... respondeu Piotr Mikailich, desviando o olhar.

- Petrusha, tu tens pensado muito em tudo o que sucedeu - continuou ela, agarrando o irmão pelo braço, e Piotr percebeu como lhe era penoso falar. - Reflectiste muito. Diz-me: podemos ter alguma esperança de que a mãe, um dia, se reconcilie com Grigori... e aceite toda esta situação?

Zina estava muito perto dele, olhando-o de frente, e Piotr admirou-se de a ver tão bonita, pensando que nunca antes se apercebera disso. E o facto de a irmã, tão parecida fisicamente com a mãe, delicada e elegante, viver em casa de Vlasich e com Vlasich, ao lado daquela criada, da mesa de seis pés, numa casa onde haviam morto um homem à paulada, e ainda o facto de já não voltar com ele para casa, e ficar ali a dormir, tudo lhe pareceu um incrível absurdo.

- Sabes como é a mãe... - disse sem responder à pergunta. Acho que devias pensar, fazer qualquer coisa, pedir-lhe perdão...

- Mas pedir perdão significa admitir que procedemos mal. Estou disposta a mentir para a sua tranquilidade, mas isso não resolverá nada. Conheço-a. Enfim, veremos! - acrescentou Zina, contente por o pior ter passado. – Esperaremos cinco anos, dez, aguentaremos, e seja o que Deus quiser.

Deu o braço ao irmão e, ao passar pela saleta sombria, encostou-se ao seu ombro.

Saíram a porta. Piotr Mikailich despediu-se, montou a cavalo e principiou, a passo, a viagem de regresso. Zina e Vlasich seguiram uns passos com ele para o acompanhar. Estava um fim de tarde aprazível e ameno e pairava no ar um maravilhoso cheiro a feno; no céu, por entre as nuvens, brilhavam as estrelas. O velho jardim de Vlasich, testemunha de tantas histórias dramáticas, dormia envolto na penumbra, e despertava na alma de quem o atravessava um sentimento de melancolia.

- Hoje, depois do almoço, passei com Zina momentos verdadeiramente maravilhosos - disse Vlasich. - Estive a ler-lhe um artigo muito bem feito sobre a emigração. Deves lê-lo, irmão! Vais gostar! É um artigo notável de seriedade. Não resisti e mandei uma carta à redacção para que a façam chegar ao autor. Apenas uma linha: "Agradeço-lhe e aperto a sua honrada mão."

Piotr Mikailich esteve tentado a dizer "Não te metas onde não és chamado", mas calou-se.

Vlasich caminhava junto ao estribo direito e Zina junto ao esquerdo. Davam ambos a impressão de haver esquecido que tinham de voltar para casa, apesar de estar muito húmido e já pouco faltar para chegarem à mata de Koltovish. Piotr Mikailich percebeu que esperavam qualquer coisa dele, ainda que não soubessem bem o quê, e sentiu por ambos uma profunda piedade. Neste momento, enquanto caminhavam junto ao cavalo, pensativos e submissos, teve a profunda convicção de que eram infelizes e de que não podiam ser felizes, parecendo-lhe o seu amor um erro triste e irreparável. A piedade e a consciência de que não podia fazer nada por eles produziam-lhe aquela sensação de mal-estar em que para evitar o penoso sentimento de compaixão se está disposto a qualquer sacrifício.

- Virei algumas vezes passar a noite convosco.

Mas isto soava como uma concessão e não lhe agradou. Ao parar junto à mata de Koltovish, a fim de se despedir definitivamente, inclinou-se para a irmã, pôs-lhe a mão no ombro e disse:

- Tens razão, Zina: fizeste bem!

E para não acrescentar mais nada e não romper em pranto, deu uma chicotada ao cavalo e desapareceu a galope por entre as árvores. Ao entrar na escuridão, voltou a cabeça e viu que Vlasich e Zina regressavam a casa pelo caminho, ele em grandes passadas e ela saltitando conversando animadamente.

"Sou um pateta”, pensou Piotr Mikailich. “Vinha para resolver este assunto e ainda o compliquei mais. Bem, que Deus os proteja!"

Sentia-se amargurado. Ao passar a mata meteu o cavalo a passo, parando depois junto ao lago. Precisava de se concentrar e pensar.

Nascera a Lua, que se reflectia como uma coluna alaranjada vinda da outra margem do lago. Ouviu-se soar ao longe o ruído do trovão. Piotr Mikailich fixava a água sem pestanejar, imaginando o desespero da irmã, a sua dolorosa palidez, e o firme olhar com que se esforçaria por ocultar a todos a sua humilhação. Imaginou o seu problema, a morte e o enterro da mãe, o horror de Zina... Porque a supersticiosa e orgulhosa velha não podia deixar de morrer. Os terríveis acontecimentos futuros desfilaram perante os seus olhos na superfície escura da água e entre as pálidas figuras das mulheres viu-se a si próprio, pusilânime, débil, com o semblante de quem se sente culpado...

A cem passos, no extremo direito do lago, notava-se qualquer coisa imóvel e escura: seria uma pessoa ou um tronco de árvore? Piotr Mikailich recordou a história do estudante que tinham lançado ao lago depois de morto.

"Olivier foi desumano, mas, no fim de contas, solucionou o problema, enquanto eu não resolvi nada, não fiz senão complicá-lo ainda mais”, pensou, olhando a silhueta escura que parecia uma aparição. - Ele dizia o que pensava, e eu não digo nem faço aquilo que penso. Nem sequer tenho a certeza do que na realidade penso..."

Aproximou-se da silhueta negra: era um velho tronco apodrecido, a única coisa que ficara de uma antiga construção.

Da mata e da propriedade de Koltovish chegava até ele um intenso perfume a muguet e ervas aromáticas. Piotr Mikailich prosseguiu o seu caminho à beira do lago, contemplando tristemente a água, e ao recordar a sua vida convenceu-se de que nunca até aí dissera nem fizera nada do que pensava e que os outros lhe tinham pago na mesma moeda. Isto fê-lo ver a sua vida passada tão sombria como aquela água em que se reflectia o céu da noite e se confundiam as algas. E pareceu-lhe que nada tinha já remédio.

 

                                                                                            Anton Tchekhov

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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