Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
SEM TITULO
No século V, como ainda hoje, o Sol nascia todas as manhãs e punha-se todas as noites. De madrugada, quando os primeiros raios de sol trocavam beijos com a aurora, a terra despertava, o ar enchia-se de sons de alegria, de êxtase e de esperança; e quando caía a noite a terra sossegava e mergulhava no melancólico crepúsculo. Todos os dias e todas as noites se assemelhavam.
De vez em quando aparecia uma nuvem e ouvia-se soar o trovão, ou uma estrela distraída caía do céu. Ou então aparecia um frade pálido, a segredar aos outros irmãos que acabara de ver um tigre perto do convento. E era tudo. Depois, os dias e as noites voltavam a ser iguais.
Os monges trabalhavam e rezavam. O superior tocava órgão, compunha música e escrevia versos em latim. Esse admirável velho possuía um dom extraordinário: tocava órgão com tamanha arte que mesmo os velhos frades, cujo ouvido com o decorrer da vida se tornara mais apurado, não podiam conter as lágrimas, quando lhe chegavam os sons do instrumento, vindos da sua cela.
Fosse qual fosse o assunto de que falasse, mesmo coisas muito banais - as árvores, os animais, o mar -, não era possível ouvi-lo sem sorrir ou chorar, e mais parecia que na sua alma vibravam cordas semelhantes às do órgão.
Quando se zangava, ou se se entregava a uma grande alegria, ou falava de qualquer coisa terrível e grandiosa, era dominado por um sentimento de paixão. Lágrimas brotavam-lhe dos olhos brilhantes. Corava. A sua voz ecoava; e ao ouvi-lo os monges sentiam a inspiração invadir as suas almas. Em momentos tão belos e maravilhosos, o seu poder não tinha limites. Se desse ordem aos seus frades para se lançarem ao mar, todos, até ao último, se teriam precipitado com prazer a fim de executarem a sua vontade.
A sua música, as entoações, os versos de louvor a Deus, ao Céu e à Terra, eram para os seus irmãos em Cristo uma fonte incessante de júbilo. Acontecia que em razão da uniformidade das suas vidas, as árvores, as flores, o Verão, o Outono, os exasperavam. O barulho do mar fatigava-lhes os ouvidos, o canto dos pássaros tornava-se-lhes desagradável; mas os talentos do seu superior eram para eles tão indispensáveis como o pão de cada dia.
Decorreram dezenas de anos. Os dias e as noites eram semelhantes. À excepção dos pássaros e dos animais selvagens, nenhum ser vivo se aproximava do convento. A casa mais próxima ficava longe e, para a alcançar, era necessário transpor a pé, em pleno deserto, uma centena de verstas. Apenas se decidiam a transpor esse espaço as pessoas que tinham desprezo pela vida, fugiam dela, e se acolhiam ao convento como num túmulo.
Foi imenso o espanto dos monges quando, uma noite, lhes bateu à porta um habitante da cidade, simples pecador que amava a vida.
Esse homem, antes de pedir a bênção do superior e rezar, ordenou que lhe servissem vinho e comida. Quando lhe perguntaram como viera da cidade até ao deserto, narrou uma longa história de caça. Partira para a caça, depois de ter estado a beber, perdendo-se pelo caminho. Quando lhe propuseram que entrasse para o convento a fim de salvar a sua alma, respondeu sorrindo:
- Não sou o vosso homem.
Depois de ter comido e bebido, olhou atentamente os monges que o serviam, abanou a cabeça com ar reprovador, e disse:
- Vocês levam uma vida ociosa, monges. Não sabem senão comer e beber. É assim que se trabalha para a salvação? Pensem que enquanto estão aqui a repousar, comendo, bebendo e sonhando com a beatificação, o vosso semelhante perde-se e vai para o Inferno. Vejam o que se passa na cidade! Enquanto uns morrem de fome, outros não sabem que fazer ao seu ouro, e afundam-se na libertinagem como moscas no mel. Não existe entre os homens nem fé nem verdade. A quem pertence a obrigação de os salvar e lhes pregar? É a mim, que bebo de manhã à noite? Vós recebestes uma alma dócil, um coração cheio de amor e a fé, para ficarem entre' quatro paredes sem fazerem nada?...
Apesar de insolentes e inconvenientes, as palavras do cidadão bêbado agiram de estranha maneira no superior do convento. O ancião olhando os seus monges empalideceu e disse:
- Irmãos, mas ele tem razão. Os pobres mortais perdem-se, efectivamente, no vício e impiedade, no disparate e na1 fraqueza, enquanto nós continuamos impassíveis como se isso não nos dissesse respeito. Porque não hei-de ir eu à cidade para lhes fazer lembrar o Cristo que eles esqueceram?
As palavras do homem da cidade haviam seduzido o velho monge. Logo no dia seguinte agarrou no seu bastão e partiu para a cidade. Os frades ficaram privados de música, de sermões e de poesia.
Um mês, dois meses, pareceu-lhes longo o tempo, sem que o ancião voltasse. Finalmente, no princípio do terceiro mês, ouviu-se o ruído familiar da sua bengala. Os monges correram ao seu encontro e sufocavam-no com perguntas. Mas, ao vê-los, em vez de se regozijar, o abade principiou a chorar amargamente, sem dizer uma palavra.
Os monges notaram que ele emagrecera e envelhecera muito. O seu rosto cansado exprimia profunda aflição e, quando principiou a chorar, tinha o ar de um homem que fora insultado.
Os frades começaram também a chorar e trataram-no com solicitude. Porque chorava e tinha uma cara tão lúgubre?
Mas, sem responder, o superior fechou-se na sua cela. Ali ficou sete dias sem beber nem comer; nem tocar órgão; apenas chorava. Quando lhe batiam à porta e os frades lhe pediam que saísse e lhes contasse o seu desgosto, guardava profundo silêncio.
Por fim, saiu. Agrupando todos os seus frades à sua volta, a face vermelha de chorar, com uma expressão de dor e desalento, principiou a contar o que lhe sucedera durante esses três meses.
A sua voz estava calma e o olhar sorridente, quando descreveu a viagem do convento à cidade. Pelo caminho, os pássaros ofereciam-lhe os seus cânticos, os ribeiros corriam, e doces e jovens esperanças enchiam a sua alma. Caminhava, sentindo-se um soldado que vai para o combate, já seguro da vitória. Caminhava sonhando e compondo versos e hinos, sem se aperceber de como tinha chegado. Mas quando principiou a falar da cidade e dos seus habitantes, a voz tremeu-lhe, os olhos brilharam, e a cólera apoderou-se dele.
Nunca vira, nem ousara imaginar, o que encontrou quando chegou à cidade. Foi só no declínio da vida que descobriu e compreendeu quanto é poderoso o demónio, quanto é belo o mal, e quão fracos, pusilânimes e nulos são os homens. A primeira casa em que entrou foi, por azar, uma casa de deboche. Uma meia centena de pessoas, com muito dinheiro, comiam e bebiam sem medida. Bêbedos, cantavam e proferiam provocantemente palavras horríveis, repugnantes, que não ousaria pronunciar um homem temente a Deus. Profundamente independentes, fortes e felizes, não temiam Deus, nem o Diabo, nem a morte. Diziam e faziam tudo o que lhes apetecia. Iam até onde a luxúria os levava. O vinho que bebiam, transparente como o âmbar, semeado de centelhas de ouro, era sem dúvida extremamente doce e perfumado, porque ao bebê-lo todos sorriam de beatitude, querendo beber mais. Ao sorriso do homem, o vinho respondia com um sorriso, e quando o bebiam cintilava com alegria como se soubesse o encanto diabólico que emanava da sua doçura.
O ancião, cada vez mais excitado e chorando de cólera, continuava a descrever o que vira. Em cima da mesa, entre os convivas, estava uma pecadora seminua. É difícil imaginar e encontrar na natureza nada mais belo e cativante. Essa jovem devassa, de cabelos compridos, morena, olhos negros, lábios carnudos, impudente, cínica, mostrava os dentes, brancos como a neve, e sorria parecendo dizer: "Vejam como sou descarada e bela." A seda e o brocado caíam em sedosas pregas dos seus ombros, mas a sua beleza não desejava esconder-se sob as vestes; como a erva nova brotando do solo primaveril, essa beleza emergia avidamente através dos refegos. A impudente mulher bebia vinho, cantava e oferecia-se a quem a desejava.
Em seguida, o velho monge, agitando colericamente os braços, descreveu corridas de circo, combates de touros, teatros, ateliers de artistas onde se pintam ou modelam em gesso mulheres nuas. Falava com eloquência, descrevendo ao vivo, como se tocasse música em cordas invisíveis; e os frades petrificados escutavam-no avidamente, sufocados de êxtase. Depois de ter descrito todos os atractivos do diabo, a beleza do mal e a graça compassiva do corpo feminino, o ancião amaldiçoou o demónio, e partiu desaparecendo atrás da porta...
No dia seguinte, quando saiu da sua cela, não havia um único monge no convento. Tinham fugido todos para a cidade.
Anton Tchekhov
Carlos Cunha Arte & Produção Visual
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