Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Cor do Sangue / Brian Moore
A Cor do Sangue / Brian Moore

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Cor do Sangue

 

Capitulo1

            O carro que o conduzia de regresso à residência entrou na Praça da Proclamação entre as nove e as nove e um quarto. Não olhara para o relógio desde que saíra da reunião. Caía um aguaceiro de Verão. Na praça, as estátuas, telhados e edifícios estavam lustrosos de humidade e o pavimento reluzia. Acendeu o candeeiro de pilha sobre o dossier e leu não as notas que tirara mas um pequeno livrinho de Bernardo de Claraval.

            "Não pensais que um homem nascido com razão, mas que não viva, porém, de acordo com ela, não é pior, em certo sentido, do que os próprios animais? Porque o animal não se orienta pela razão e tem desculpa, já que este dom lhe é negado pela natureza."

            às vezes, ao ler S. Bernardo conseguia abstrair-se do mundo dos seus deveres e retirar-se para aquele silêncio, onde Deus espera e julga. Naquele momento, reparou num carro preto que avançava muito próximo do seu. Voltou-se para olhar. Ao volante ia uma mulher com um lenço de seda verde na cabeça. A seu lado um homem de barba, que segurava uma pistola, ergueu-a e apontou para ele. Nesse momento, Joseph, o motorista, rodou o volante, indo chocar propositadamente com o carro preto. Atirado de um lado para o outro, como se estivesse dentro de uma centrifugadora, foi sacudido, cuspido e lançado violentamente contra o pavimento molhado. Ficou bastante tempo estendido, num atordoamento doloroso, olhando fixamente a irresistível escuridão do céu.

            Soavam buzinas. Ouviu passos de corrida. Sobre ele, olhando-o, viu uma jovem de lenço de seda verde na cabeça e rosto a sangrar, salpicado de estilhaços de vidro. Ergueu-se até ficar sentado e viu-lhe uma enorme mancha escura na coxa, no sítio em que o sangue lhe repassara o vestido.

            - Está bem? - perguntou disparatadamente. - Está ferida?

            Ela não respondeu. Virou-se e afastou-se rapidamente, a coxear, em direcção da Rua do Mercado. O trânsito que entrava na praça abrandava e parava atraído pelo desastre. Pôs-se de pé e sentiu-se tonto. Quando a visão se tornou mais nítida viu um homem de meia-idade olhando-o, fixamente, de um carro.

            -Está... - o homem hesitou, como se procurasse um nome para lhe chamar. - Está bem... Reverência?

            Respondeu com um sinal afirmativo. Dirigiu-se para os destroços. Alguns homens estavam a tentar separar o carro preto do seu velho Mercedes. Um deles, um polícia, gritou:

            - Todos juntos! Um... dois... agora!

            Os carros separaram-se com um som feio.

            Olhou para os destroços. Estava habituado à morte. Fazia parte do seu dia-a-dia. Conhecia o momento exacto da sua chegada, o momento da partida da alma. O corpo de Joseph estava todo partido, com um braço mole a sair da manga da farda, uma perna torcida e um pé voltado para trás. Mas não tinha o rosto ferido. Estava pálido e composto, como se um hábil cirurgião lhe tivesse tirado a consciência. No momento em que os seus lábios murmuravam palavras de oração, soube que fora negado a Joseph aquilo que ele mais desejara: o conforto dos últimos sacramentos.

            A lanterna do polícia desenhou no chão uma linha irregular, lançando um clarão cor de laranja no espaço, enquanto se desviava do corpo de Joseph para o de outro indivíduo. O homem fora retirado dos destroços do carro preto e colocado no meio do foco dos faróis. Pequeninos estilhaços de vidro, brilhantes como jóias, cintilavam-lhe no rosto barbudo e no nariz ensanguentado. Ao inclinar-se sobre ele sentiu um forte cheiro a vodca.

            - Consegue ouvir-me? - perguntou.

            O rosto desfigurado voltou-se para ele, de olhos esbugalhados de fúria ou de medo e com a boca aberta, como se fosse falar. O moribundo virou em seguida a cara, bruscamente, como que a mandá-lo embora. Mas a bondade de Deus é infinita; Ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz e começou uma oração. Alguns dos presentes descobriram-se em sinal de respeito. Enquanto rezava, dois enfermeiros entraram no foco de luz, estenderam uma maca e agacharam-se para observar o homem de barba.

            - Está bêbado - disse um deles.

            O outro pôs-se de pé e olhou para os circunstantes:

            - Está despachado.

            Pegaram no corpo e puseram-no na maca e ele olhou novamente para o rosto barbudo e ferido. "Quem é ele? Porque tentou matar-me? Joseph salvou-me. Joseph."

            Um dos enfermeiros aproximou-se e segurou-o, levando-o até à luz dos faróis, e observando-o, como uma mãe examina um filho.

            - Como se sente, Reverência? O que lhe dói?

            - Não, não. Eu estou bem. Mas há outra pessoa ferida. Uma mulher.

            - Uma mulher? - O enfermeiro virou-se para os circunstantes à procura. Um homem de blusão deu um passo e entrou na luz dos faróis, um actor menor nas luzes da ribalta, cheio de si naquele momento, o seu momento.

            - Só houve três pessoas envolvidas nisto. Os dois mortos e Sua Reverência - disse o homem.

- Eminência - emendou uma voz lá do escuro. - Chame-lhe Eminência. É o cardeal.

            Quem dissera aquilo? Seria um dos "gabardinas", os seguranças que tinham por missão segui-lo? Eles deviam, certamente, ter visto o desastre, a mulher e tudo. Onde estão eles, os homens do Lada azul?

            Voltou-se para a escuridão para lá dos faróis e perguntou:

            - Está aí algum dos senhores?

            Ninguém respondeu. O enfermeiro que o tinha examinado pegou-lhe novamente no braço.

            - Está atordoado, não está? Venha. Vamos levá-lo na ambulância.

            Colocaram o corpo de Joseph na calha inferior. A maca em que estava o cadáver do homem de barba rangeu quando a enfiaram na calha superior. Ele sentou-se junto de Joseph. Enquanto os enfermeiros fechavam as portas, havia rostos a observá-los. A ambulância afastou-se, servindo-se da sirene para abrir caminho e calando-a depois, enquanto avançava velozmente pelas ruas desertas e molhadas. Rezou pelo descanso da alma de Joseph. "Dai-lhe o eterno descanso, Senhor, e fazei que sobre ele brilhe a eterna luz." Joseph, com as suas mãos duras como madeira, a preguear a faixa carmesim feita em Roma e depois a colocar-lhe cuidadosamente o barrete. "Eu, filho de um moço de estrebaria, fui instruído, no meu primeiro dia de cardeal, por Joseph, um camponês da província de Kripke. "Um cardeal tem de ser visto pelo povo, Eminência." Era o que dizia o velho cardeal. E dizia que as vestes cardinalícias eram purpúreas, em memória do sangue que Cristo derramou por nós. "Por isso use-as com honra, Eminência. Deixe-me ajudá-lo a compor a faixa." Joseph. Oh, Joseph!"

            A sirena da ambulância recomeçou novamente anunciando a sua chegada enquanto entravam no pátio. Conhecia aquele local: o antigo Hospital de Santa Cruz, que agora era o Hospital Marechal Konev, do distrito central. Os enfermeiros instalaram uma cadeira de rodas portátil e empurraram-na, abrindo as portas basculantes, que se escancararam para o receber. Numa sala bem iluminada, com um forte cheiro a desinfectante, esperava-o um grupo de pessoal médico. Alguém devia ter telefonado a anunciar a sua chegada. Um médico mais velho, de bata branca, avançou para ele, inclinando a cabeça respeitosamente, e teria beijado o anel episcopal se ele não tivesse retirado a mão. Conduziram então a cadeira para um pequeno consultório e fizeram-no sentar numa mesa de aço alta.

            - Se Vossa Eminência quiser fazer o favor de despir o casaco e a camisa...

            Fez o que lhe mandavam. Os enfermeiros cortaram a ponta das calças rasgadas, deixando ver um golpe que percorria a parte inferior da perna. Pediu-lhes que telefonassem para a residência e pedissem ao padre Malik ou ao padre Finder que passassem por lá com um carro. Um médico mais jovem, que começara a limpar o golpe, ergueu os olhos e disse que já se tinham antecipado. O médico mais velho examinou-lhe o peito e pôs-lhe tintura de iodo e adesivo num golpe feio que tinha abaixo da clavícula. Então brilhou-lhe uma luz no olhar. Os olhos do médico abriram-se mais e observaram-no atentamente.

            - Apenas um arranhão. Nada mais. Teve muita sorte, Eminência.

            - Era um condutor bêbado, não era? - perguntou o jovem médico, levantando os olhos para ele.

            - Era? - Observou o rosto do médico e achou-o inocente.

            - A bebida é a praga deste país - disse o médico mais velho. - É o nosso flagelo nacional.

            O médico mais velho disse ao enfermeiro que o levasse aos raios X.

            - Só para termos a certeza.

            O enfermeiro vestiu-lhe uma bata branca e voltou a sentá-lo na cadeira de rodas. Enquanto o empurrava pelo corredor, ia sendo seguido por uma mulher forte que levava um bloco-prancheta.

            -           Desculpe-me - disse ela. - Mas precisamos de alguns pormenores. O seu nome e apelido.

            - Bem... Stehpen Bem - respondeu.

            -           Que idade tem?

            -           Cinquenta e cinco.

            -           Local de nascimento?

            -           Nasci aqui. Na cidade.

            Enquanto falava viu Finder, o seu secretário para os assuntos diocesanos, vir a correr pelo corredor, ao seu encontro, gordo, pálido e assustado.

            -           Como está, Vossa Eminência?

            -           Estou bem. Mas Joseph morreu. Trouxeram o seu corpo para cá. Por favor, investigue o que vão fazer dele.

            Levaram-no na cadeira de rodas até à sala de raios X e fizeram-no deitar-se numa fria placa de aço.

            -           Respire fundo e contenha a respiração. - Ouviu o arranhar e o disparar da máquina. - Já pode expirar.

            Condutor bêbado? O homem de barba poderia estar bêbado, mas não era ele o condutor. Quem conduzia era aquela jovem de lenço verde, a que se aproximou depois para ver se ele morrera.

            -           Já acabámos. Pode vestir-se agora.

Enquanto abotoava a camisa, entrou na sala uma enfermeira magra e nervosa.

            -           Quer que lhe arranjemos alguma coisa, Eminência? Uma chávena de chá?

            Viu, pelo crucifixo que ela usava no uniforme, que era freira.

            -           Não, irmã, obrigado!

            -           Não se lembra de mim, claro - disse ela. - As Irmãs de Santa Cruz. Mas eu falei com Vossa Eminência nas celebrações do nosso jubileu, no ano passado.

            -           Sim, sim. Foi em Chernoya. Na Primavera passada.

As lágrimas vieram aos olhos da freira.

            - Graças a Deus que foi poupado, Eminência.

O país precisa de si.

            Avançou de repente para ele, pegando-lhe na mão

e fazendo uma vénia, enquanto lhe beijava o anel.

O radiólogo saiu de trás do biombo, parou e ficou

a olhar, como se uvesse presenciado um acto pornográfico.

            - Hoje em dia há demasiadas pessoas com carros - comentou o radiólogo, desabotoando o pesado avental de chumbo e pendurando-o. - Pessoas que não estão a fazer nada pelo país. - Percebeu que com estas palavras o radiólogo o estava a pôr de sobreaviso. A afirmação era uma declaração de fé. O radiólogo acreditava não em Deus, mas no Partido.

            Quando o trouxeram na cadeira de rodas, da sala de raios X, Finder estava à espera, no corredor, com o médico mais velho. Um bom homem, o Finder, mas alarmista. Não se podia confiar nele, nem discutir certos assuntos como com Kris Malik.

            - Tenho uns soporíferos para lhe dar - disse o médico. - Já preveni o padre Finder que tem de descansar nos próximos dias.

            - Nunca tomo comprimidos para dormir, doutor. E tenho muito que fazer nos próximos dias.

            - É consigo, claro. Mas deu um grande tombo. Foi um milagre ter escapado quase ileso.

 

Capitulo 2

            Não fora um milagre, fora simplesmente a vontade de Deus, pensou ao entrar no carro com Finder.

            - E Joseph? - perguntou enquanto o carro avançava pela ampla Avenida do Novo Mundo.

- Devolvem o corpo amanhã de manhã. É apenas uma formalidade.

            Olhou para trás. Eram seguidos por um Lada azul.

            - Quero o corpo de Joseph na catedral. Celebrarei uma missa pela sua alma. Quando podemos rezá-la?

            - Talvez amanhã de manhã, Eminência. Não temos qualquer compromisso entre as dez e as doze.

            - Já alguém falou com a mulher dele?

            - Não. Acho que não - disse Finder. - Quando eles telefonaram não disseram que o motorista ficara ferido.

            - Quem telefonou, sabe?

            - Não disseram. Aliás, telefonaram para o número do Secretariado. Foi o padre Krup quem recebeu o recado.

            O Secretariado, os gabinetes da arquidiocese e os gabinetes do Conselho Episcopal estavam todos situados na residência arquiepiscopal, na Rua Lazienca. O edifício, um antigo palácio principesco, fora, como o resto da cidade, arrasado pelos Alemães como acto de retaliação no final da Segunda Guerra Mundial e posteriormente reconstruído, pedra a pedra, num gesto de orgulho nacional. Esta restauração perfeita recriou o velho palácio, com todos os seus defeitos, os corredores escuros, as muitas salas de recepção inúteis e o pátio central que lhe fazia lembrar o recreio de uma prisão. De dia era barulhento e desorganizado, com os gabinetes e corredores ruidosos, cheios de requerentes religiosos e não crentes. A noite os portões estavam fechados: tudo era silêncio. Na enorme fachada que dava para a Rua Lazienca, as janelas iluminadas e isoladas brilhavam como estrelas num céu escuro.

            Mas agora, quando os portões da residência se abriam para lhes dar passagem e enquanto atravessavam o pátio direito à entrada lateral, todas as janelas estavam iluminadas. No átrio, para o cumprimentar, estavam os padres do Secretariado, as irmãs de Nazaré, que faziam a lida doméstica, os motoristas, os porteiros e os jardineiros. Rodearam-no, solícitos e aliviados, fazendo perguntas e oferecendo palavras de conforto, mas Finder anunciou em voz alta que Sua Eminência estava doente e ia directamente para a cama.

-           Espera - disse ele a Finder. - Teresa, está aí?

A mulher de Joseph saiu do grupo. Ao ver o seu

rosto, sentiu o alívio de um cobarde. Ela já sabia. Pôs-lhe a mão no ombro. O tecido do vestido da empregada era áspero ao toque e ele levou-a até à antecâmara que ficava ao fundo do átrio da entrada. Acendeu a luz e ficou imediatamente cara a cara com uma enorme imagem de Jesus que estava logo a seguir à porta. A mão da estátua, erguida no gesto tradicional de bênção, parecia avisá-lo que fosse discreto.

            Fechou a porta.

-           Já lhe disseram? - perguntou.

            Ela fez um sinal afirmativo. Estivera a chorar e tinha o nariz vermelho e húmido. Limpou-o, desajeitadamente, com as costas da mão.

            - Por favor, não se quer sentar um momento? - perguntou.

            - Oh, não, Eminência. Vossa Senhoria é que devia estar sentado.

            - Vai haver uma missa por alma do Joseph, amanhã de manhã na catedral. Celebrarei eu próprio a missa.

            Ela abanou a cabeça:

            - Joseph sentir-se-a... sentir-se-ia muito honrado, Eminência.

            - Ele salvou-me a vida, esta noite.

            Ela olhou-o com surpresa e depois fez um sinal afirmativo.

            - Sim, ficaria muito honrado - repetiu. Recomeçou a chorar e mais uma vez ele sentiu pena de não possuir aquele dom pastoral que é essencial: a habilidade de confortar e consolar os outros em momentos de desgosto.

- Sem ele sentir-me-ei perdido - disse, desesperado, olhando para a imagem de gesso, porque não era capaz de enfrentar as lágrimas de Teresa. A imagem, de mão erguida, parecia apiedar-se dele. De repente, chorou. E por fim, vendo-o chorar, Teresa esqueceu a deferência que sentia por ele.

            - Pronto, pronto - disse ela. - Oh, olhe para o seu casaco, está todo cheio de lama, Eminência. E as suas calças. O que diria Joseph se o visse nesse estado? Não se preocupe comigo, Eminência. Vá para a cama. E obrigada, obrigada pela missa.

            Os seus aposentos eram no quarto andar. Finder, que subiu com ele no elevador, insistiu em deixar-lhe os comprimidos que o médico lhe receitara. A irmã Agnes deixara o tabuleiro com a refeição habitual - carnes frias, leite quente e bolachas de aveia - ao lado da cama de solteiro, que, naquele quarto grande, mobilado no estilo de um quarto de um grande hotel da Europa Central, parecia tão deslocada como uma cama de criado num quarto de senhor. Mas ele trouxera a cama para ali e nela dormia, aliás, desde os seus tempos de padre, na longínqua província de Galím.

            Sentou-se na cama a desapertar os sapatos, inclinado para a frente, reflectindo no espelho do guarda-fato em frente à mancha da calvície no seu cabelo grisalho. Ao endireitar-se viu no espelho as calças rotas e a roupa manchada. Parecia um daqueles pobres bêbados que passavam a noite debaixo das pontes do Volya. Ao tirar o casaco tacteou à procura do relógio. Quando o tirou verificou que o mostrador estava esmagado e lhe faltavam os ponteiros. O relógio fora um presente dos seus alunos da Universidade de Wolna. Duvidou que tivesse conserto. Pô-lo na gaveta da mesa-de-cabeceira e tirou um outro par de óculos de ler, para substituir os que perdera no acidente. Levantou-se e atravessou o quarto, só de peúgas, à procura do pijama e do roupão que o Joseph sempre lhe deixara preparados todas as noites.

Enquanto procurava, alguém bateu à porta do gabinete que ficava ao lado do quarto.

            - És tu, Kris?

            O seu secretário particular, o padre Krystof Malik, um homem alto e de cabelo grisalho, entrou, com a sua pressa habitual e o seu ar abatido, trazendo uma grossa pasta com papéis.

            - Como está, Eminência?

            - Pensei que ainda estivesses em Gneisk, Kris.

            - Voltei num voo cedo, Eminência. Queria que soubesse da situação por lá.

            - Qual é a situação?

            - Bom, como lhe disse, tenho um amigo no gabinete do arcebispo em Gneisk. Foi ele que me telefonou. Parece que lhe pediram que dactilografasse um primeiro esboço de uma comunicação que o arcebispo Krasnoy tencionava apresentar, nas comemorações de Rywald, na próxima terça-feira. Tenho parte desse sermão comigo.

            - E depois?

            - É incrível. Parece pedir uma espécie de manifestação nacional contra o Governo.

            - Nesta altura? Está louco.

            Sentiu-se novamente tonto. Baixou a cabeça e, por um momento, apareceu uma aura amarela no olho esquerdo.

            - Sente-se bem, Eminência? - perguntou Malik.

            - Sim, sim - respondeu.

            - O que aconteceu esta noite? Finder disse que foi um condutor embriagado.

            - Não foi bem isso. Alguém tentou alvejar-me.

            Malik caiu, sem cerimónia, no sofá de cabedal gasto e ficou a olhar macambúzio para as biqueiras dos sapatos.

            - Meu Deus! Quem?

            - Eram dois. Um homem e uma mulher. Era ela que conduzia.

            - A Polícia apanhou-os?

- Ele morreu. Acho que a mulher fugiu.

            - Claro que fugiu, se eles estão por trás disto.

            - Quem está por trás disto?

            - A Polícia de Segurança, Eminência.

            - Não faz sentido. Porque havia a Polícia de Segurança de querer matar-me?

            O padre Malik abriu a sua pasta de cartão e remexeu nos muitos papéis que lá tinha.

            - Sei que pode parecer exagerado, Eminência, mas quem sabe o que podem fazer se pensarem que está a tentar incitar o povo à revolta?

            - De que é que está a falar?

            - Da comunicação do arcebispo Krasnoy, Eminência. Posso ler-lhe uma parte?

            Fez um sinal afirmativo de consentimento. As costas tinham começado a doer-lhe e sentia o ombro a latejar dolorosamente, onde fora ligado. Era como se até àquele momento o choque do acidente o tivesse mantido anestesiado. Viu Kris, atrapalhado com os óculos, pegar numa folha de papel escrevinhado. "A nação, nesta época crítica, é como uma floresta no final de um Verão de tremenda seca. Uma seca espiritual e moral. No chão dessa floresta estão milhões de agulhas de pinheiro. Basta uma faísca para as incendiar. E o que é essa faísca? Não será a recente prova de que aqueles que nos governam sentem o maior desprezo pela Igreja? Este comportamento insensível para com a chefia religiosa da nação podia ser a faisca que incendiará a floresta, com um fogo que limpe e purifique. Muito pode ser destruído, mas, no fim, a nação ficará mais forte e serão preservadas a sua fé e a sua liberdade. Devemos pedir a ajuda de Deus, na presente situação. Devemos unir-nos para mostrarmos a força da nossa vontade nacional. Aqui, neste lugar, neste dia, no Santuário dos Benditos Mártires, chamo-vos a apoiar a Igreja nesta hora de necessidade."

            - Tem uma prosa terrível - comentou.

- Receio que não seja para rir, Eminência.

            - E eu disse que era? Que horas são? Vamos tentar apanhar Krasnoy, pelo telefone.

            - Acha isso aconselhável, Eminência?

            - O que lhe quero dizer é que não vai haver sermão na próxima terça-feira, em Rywald, ou em qualquer outro lugar, aliás. Não me importa quem possa estar à escuta. Na verdade é até a forma mais rápida de passar a minha mensagem ao Governo.

            - É verdade, mas sabe como é o arcebispo Krasnoy. E se ele se recusar a obedecer?

            - Eu sou o primaz. Pode discordar de mim, mas não me provocará abertamente.

            Nesse momento ouviu um arranhar conhecido na porta do quarto. Dirigiu-se para lá e abriu-a. Bashar entrou, era grande como um pónei, aos saltos e a pôr-lhe as patas em cima.

            - Para baixo, para baixo! - disse ele, mas fez-lhe uma festa enterrando o rosto no pêlo espesso. O que faria Bashar sem Joseph? Joseph era, de facto, o seu verdadeiro dono. - Pobrezinho, pobrezinho - disse o cardeal. Voltou-se para Kris Malik: - Já te disse que o Joseph me salvou a vida, esta noite?

            - Não.

            - Quando os viu apontar para mim, chocou com o outro carro. - A luz dos faróis, o rosto de Joseph, branco, composto e sem vida. Olhou para Kris Malik.

            - Sinto-me perdido, sem ele.

            - Talvez o Tomas o possa substituir como seu motorista e camareiro - sugeriu Malik. - Posso então ligar para o arcebispo?

            - Pode. - Segurou a coleira de Bashar e levou-o até às bolachas de aveia. Deu uma ao cão, fez-lhe uma festa na cabeça e instalou-o no seu cobertor aos pés da cama.

            - Eminência?

            - Sim, Kris?

            - Tenho o arcebispo em linha.

Pegou no auscultador, reparando com desagrado no sorriso cúmplice de Kris Malik. "Aquele sorriso é por minha culpa. Não devia ter troçado da prosa de Krasnoy. Quando aprenderei a ser um chefe?"

            - Está? E você, Henry?

            - Stephen. - A voz alta e arrogante de Krasnoy trouxe-lhe imediatamente ao espírito a imagem do homem: o rosto corado e o lábio inferior grosso e descaído.

-           Como está?

            - Não estou bem. Acabei de ler o que parece ser parte de uma comunicação que tenciona apresentar na próxima semana, nas festividades de Rywald...

            - Como é que teve acesso à minha comunicação?

            - Não interessa. O que é que está a tentar fazer, Henrv, desencadear um banho de sangue?

            - Escrevi-o como um aviso, Stephen, apenas como um aviso.

            - Um aviso a quem?

            - Ao general Urban. A quem havia de ser?

            - Estou a perceber! Roma fez-lhe uma comunicação especial sobre a sua nomeação como primaz do país?

            - Desculpe, Stephen. Mas muitos bispos, e até clero menor, sentem o mesmo. Não podemos voltar as costas ao povo, neste momento.

            - Está a voltar as costas a mim, Henry.

            - Stephen, espero que isso não seja verdade.

            - Esperemos então que não seja verdade. A sua alocução, em Rywald, fará lembrar a fé dos Mártires de Setembro. Tem de ser uma alocução sobre Deus e não sobre política. Rywald é um lugar de peregrinação, não um terreno de acção política. Está entendido, Henry?

            No silêncio que se seguiu, ouvia a respiração de Krasnoy.

            - Perguntei se está entendido, Henrv. Está lá, Henry?

            Esperou. Por fim, ouviu dizer:

            - Sim, Eminência. Entendido.

Ouviu lá longe, na distante Gneisk, o auscultador ser colocado no descanso. Voltou-se para o sorriso demasiado exultante do padre Malik.

            - Rápido - comentou Malik. - E directo.

            - Boa noite, Kris - comentou ele e reparou na surpresa e num ligeiro mal-estar no rosto do secretário.

            - Desculpe, Eminência. Deve estar exausto.

            - Sim, estou cansado. Acho que não devemos referir isto a ninguém. No caso da morte de Joseph. Também não disse a ninguém que tinham tentado alvejar-me. Não acho aconselhável nas actuais circunstâncias. Nem sequer disse à mulher de Joseph. Está certo?

            - Claro, Eminência. Muito sensato. Bem, boa noite, Eminência. Espero que durma bem. Ver-nos-emos amanhã.

            - Boa noite.

            A porta fechou-se. No silêncio do quarto, o cardeal virou-se para a lareira. Ali, sobre o rebordo da chaminé estava uma velha fotografia a sépia de seu pai, tão familiar que há anos que não olhava para ela. Mas agora, surpreendentemente, a fotografia parecia ganhar vida. O pai olhava-o, com os olhos cheios de zanga e temor, co~ se houvesse um perigo qualquer dentro do quarto. Aproximou-se e pegou na fotografia. O pai, de rosto desfigurado pelo enorme bigode, que se usava na época anterior à guerra, encontrava-se em frente de uma fila de estábulos, na alameda principal da coudelaria do príncipe Rostropov, nos arredores da cidade. Vestia calções de montar, casaco de tweed e trazia na mão um pingalim, símbolo da sua promoção de chefe de coudelaria a treinador dos cavalos de corrida do príncipe. E, naquele momento, ao olhar para a fotografia, acudiu-lhe à memória o rosto ferido e barbudo do atacante daquela noite. Era, como o de seu pai, um rosto que pertencia ao passado, um rosto de nobreza menor, de nobre rural, que o seu pai teria saudado com um toque de deferência na aba do seu chapéu de montar. Seria possível? Voltou a poisar a fotografia no rebordo da chaminé. Agora tudo é possível. Voltou-se para a grande janela, sem cortinas, que dava, não para o pátio interior, mas para a Rua Lazienca. Lá estava, estacionado no seu lugar habitual, a um quarteirão dos portões da residência, o inevitável Lada azul. O turno da noite era fácil para os "gabardinas". Ele raramente saía depois de anoitecer. Muitas vezes se interrogara se eles dormiriam por turnos ou se se enroscavam e dormiam no carro, mal ele apagava a luz da mesa-de-cabeceira. Olhou para lá da rua, para as luzes da cidade, que cintilavam num labirinto vistoso. Mesmo no meio dessas luzes, estendia-se um grosso e coleante braço de total escuridão: o rio Volya. Pensou no rio Estige: o barqueiro da morte. Pensou em Joseph.

            No extremo do quarto havia um pequeno oratório. Uma vela vermelha ardia sob a litografia do rosto ferido de Cristo, encontrado no sudário de Turim. Ajoelhou-se em frente do oratório e baixou a cabeça.

            "Exame de consciência. Fui pouco humilde. Esta noite fui arrogante na forma de tratar com Henry Krasnoy. Permiti-me também entrar em conflito com o padre Malik, devido ao meu comentário malévolo. Levei-o a troçar de um dos vossos arcebispos. E Joseph? Aceitei a Vossa vontade? Não deveria ter-me alegrado por Joseph ter ido para junto de Vós? Devia também lembrar-me de que esta noite dois homens morreram por minha causa. Aquele homem que tentou matar-me, dai-lhe a paz, Senhor.

            Eu sou o Vosso servo, criado por Vós. Tudo quanto tenho veio de Vós e por Vós. Nada me pertence. Devo fazer tudo por Vós, apenas por Vós. Esta noite, na reunião, estava obcecado pela política. Pensava no perigo para o nosso país. Não pensei no sofrimento que Vos causamos com a nossa actuação. Minha culpa, minha máxima culpa."

 

Capitulo 3

            Um toque na porta, apressado e quase sub-reptício, arrancou-o à oração.

            - Eminência? - murmuraram.

            Era uma voz que ele reconheceu. Levantou-se e dirigiu-se para a pesada porta.

            - Sim?

            - É o Bujak.

            Abriu a porta. Bujak, o porteiro da noite, entrou atarantado, fazendo uma rápida vénia com a cabeça.

            - O padre Finder mandou-me dizer-lhe, Eminência. A Polícia de Segurança está lá em baixo.

            - A esta hora da noite? O que é que eles querem?

            - Vão subir, Eminência. Recebe-os?

            Enquanto o porteiro falava, viu os homens surgirem ao cimo da escada: três "gabardinas" e, atrás deles, Finder, a protestar:

            - Já disse que Sua Eminência está a dormir. Não têm o direito de entrarem aqui.

            Mas eles já o tinham visto. Avançaram determinantemente. Ouviu lá no quarto Bashar rosnar. O que vinha à frente trazia um chapéu de palha cor de coco que o fazia parecer um turista americano, mas o seu rosto era o de um membro da nomendatura, daqueles que consideravam a sua Igreja, a sua posição e ele uma afronta ao poder.

            - Cardeal Bem?

            - Sou eu.

            O homem estendeu-lhe um cartão plastificado. Por baixo da fotografia, lia-se: "Major. Polícia de Segurança Internacional." Normalmente não se davam ao trabalho de mostrar identificação. Por isso devia ser grave.

            -           Porque é que os portões estavam trancados? - perguntou o homem.

            -           Porque passa das oito horas. Fechamos os portões às oito horas.

            -           Os portões não deviam estar trancados aos representantes do povo.

            -           Ah, sim? Não fecha a porta de sua casa quando regressa à noite, major?

            -           O seu pessoal não queria receber-nos. Tentaram impedir-nos de entrar.

            -           Lamento esse facto. O que posso fazer pelos senhores?

            -           Tenho instruções para que nos acompanhe, imediatamente. Pode trazer uma pequena mala. São estes os seus aposentos?

            -           São, mas um momento. Vou convosco para onde? Se não se importam vou telefonar ao ministro dos Assuntos Religiosos.

            Nesse momento viu a fúria (ou seria medo) nos olhos do homem.

            -           Tenho instruções para não o deixar telefonar a ninguém.

            Olhou para lá do homem e viu que um dos outros tirara sub-repticiamente uma pistola do bolso. Apontou para a arma e perguntou:

            -           O que é que isso significa?

            -           Venha - disse o de chapéu de palha castanho. Estou a pedir-lhe delicadamente. Meta algumas roupas e artigos de higiene num saco. O suficiente para alguns dias, apenas. Mas despache-se.

            -           Apresentaremos queixa - disse Finder. - Queixar-nos-emos ao mais alto nível.

            O de chapéu de palha castanho recuou.

            -           Por aqui, se faz favor.

            Um dos outros "gabardinas" ficou no corredor e o terceiro, o da pistola, entrou no quarto, para se certificar de que não havia lá ninguém escondido. Bashar rosnou e ouviu-se algum barulho.

            - Merda! - gritou o homem. - Tirem-mo de cima!

            Correu para o quarto e surpreendido viu que Bashar encurralara o homem e estava de pé, nas patas traseiras, a mostrar os dentes.

            - Bashar! - exclamou surpreendido. - Não se assuste. Ele não morde. É inofensivo.

            - Ai é? - comentou o homem da Segurança e mostrou a mão que estava a sangrar. - Teve sorte por eu não lhe ter dado um tiro.

            - Peço imensa desculpa. Espere - disse ele e dirigiu-se à casa de banho com o do chapéu de palha castanho atrás dele.

            - O que é que está a fazer? - perguntou o do chapéu. - Espere aí.

            Mas ele ignorou o aviso. Abriu o armário dos medicamentos, tirou a tintura de iodo e uma ligadura, e depois voltou-se para o quarto e gritou:

            - Bashar, deitado! - Cabisbaixo e a abanar a cauda, Bashar voltou para o seu cobertor. Pegou no polícia pelo braço e levou-o até ao lavatório da casa de banho.

- Venha cá, vamos limpar isso. Lamento imenso. Pôs a água a correr para o lavatório e meteu a mão do homem lá debaixo.

            - Não temos tempo - disse o major da Segurança.

            - Claro que tem tempo - afirmou. Secou a mão do homem e fê-lo sentar-se na borda da banheira. Ajoelhou-se depois na sua frente e destapou o frasco de desinfectante. - O Bashar não tem raiva, mas acho que mesmo assim devia levar uma injecção antitetânica.

            O major voltou-se e saiu da casa de banho.

            - Onde está a sua mala? - perguntou e, em seguida, disse alto: - Tragam esse outro padre e digam-lhe que faça a mala do cardeal.

Quando aplicou a tintura de iodo, o polícia franziu os olhos.

            - Desculpe. Deve doer. Mas o ferimento não é fundo. Fique quieto.

            Ouviu Finder gritar lá de fora:

            - Quer que lhe faça a mala, Eminência? O que quer que ponha?

            - Espere. Não sei porque é que está tudo com tanta pressa.

            Acabou de ligar a mão do polícia, pôs-se de pé e voltou ao quarto.

            - Disse que era por alguns dias? Para onde me leva? Para a prisão?

            - Não, não - respondeu o major da Segurança. Fora até à janela e espreitara. Voltara-se e havia suor no seu rosto. Era uma noite quente de Agosto, mas mesmo assim o suor era excessivo.

            - Padre Finder, ligue-me para o gabinete do ministro.

            - O gabinete do ministro está fechado - afirmou o major. - Além disso, já lhe disse que tenho instruções para que não telefone a ninguém.

            - Posso perguntar porquê?

            - Por favor, quer começar a fazer a mala?

            Foi até ao guarda-fatos à procura das camisas. As batinas estavam lá penduradas. Era um traje pouco próprio para andar de um lado para o outro dentro de uma cela. Viu-se rapidamente no espelho triplo e reparou nas calças rotas nos joelhos.

            - Tenho de mudar de roupa - disse ao major.

            - Está bem, mude.

            Ficaram a olhar, enquanto ele se despia e enfiava um fato clerical de Verão. Vestiu-se e calçou com dificuldade uma peúga, cobrindo a perna que estava ligada. Sentou-se, apertou os cordões dos sapatos e quando acabou ergueu o olhar para o major da Segurança:

            - Posso perguntar aonde me levam?

-           Levamo-lo sob custódia - respondeu o major. Foi-nos dito que pedíssemos a sua cooperação e a do seu pessoal. Ninguém deve saber que saiu do edifício. São essas as instruções que tenho.

            -           Porquê?

            -           Porque houve hoje um acidente. Tem conhecimento disso?

            -           Tenho.

            -           Desculpe, Eminência - interrompeu Finder. Mas será que não percebi? A Polícia disse que foi um condutor embriagado. Isto é apenas um truque destes senhores, tenho a certeza.

            Ignorou Finder. Tirou uma pequena mala do fundo do guarda-fatos e meteu-lhe umas camisas. Abriu uma gaveta à procura de peúgas e roupa interior.

            -           Preciso do meu breviário. Padre, pode fazer o favor de mo trazer. Está em cima da minha secretária.

            -           Despache-se, se faz favor - insistiu o segurança. Tirou o chapéu de palha e começou a limpar o suor da fita interior.

            - Não respondeu à minha pergunta. O que é que quer dizer "sob custódia"?

            O major encolheu os ombros:

            -           É assim que se chama.

            O cardeal foi à casa de banho buscar o estojo de higiene.

            -           Como está a sua mão? - perguntou ao outro polícia.

            Ele não respondeu. Mal meteu os artigos de higiene dentro da mala, o major fechou-a e agarrou nela.

            -           Está bem, vamos.

            -           O seu breviário, Eminência - disse Finder, estendendo-lho. - Quer que telefone ao núncio apostólico?

            -           Acho que não. Aliás, parece-me que monsenhor Danesi está de férias. Deve estar provavelmente em Itália.

- Já lhe disse que não pode telefonar a ninguém insistiu o major.

            Desceram a escada. No átrio esperavam as irmãs de Nazaré e Bujack, o porteiro da noite.

            - Onde está o padre Malik? - perguntou.

            - Não sei, Eminência - respondeu uma das freiras.

- Acho que saiu depois de jantar.

            Junto à porta do átrio viu um quarto "gabardina", que fez um sinal afirmativo ao major.

            - Tudo pronto.

            Conduziram-no pelas cozinhas até à entrada de serviço nas traseiras do edifício. Esta porta não dava para a Rua Lazienca, mas para uma pequena rua lateral chamada Mokotowa. Na rua esperavam dois carros. Finder, esgueirando-se a seu lado, disse em latim:

            -           Contactarei com o bispo Wior e avisarei também o gabinete do núncio.

            Ele respondeu também em latim:

            - Não quero, por agora, preocupar Roma com isto. Primeiro tente saber para onde me levam.

            - Parem com isso - disse o major. - Isso é latim? É latim, não é? Eu frequentei a escola beneditina.

            Estavam agora à porta de serviço. Os homens da Segurança bloquearam a porta impedindo as freiras e Finder de o seguirem até lá fora. Em cada um dos carros estava um condutor à paisana. Os carros não eram os habituais Ladas azuis, mas uma carrinha velha e um Volvo vermelho. Deduziu que seriam carros-espiões, utilizados pela Polícia para vigilância. O major da Segurança levou-o até ao Volvo vermelho e instalou-o no banco de trás. O condutor do Volvo estava a limpar as janelas de trás com um produto que impedia de ver de dentro para fora e de fora para dentro. O major da Segurança sentou-se no banco da frente e o outro polícia atravessou a rua a correr e subiu para a carrinha, que arrancou à frente do Volvo. Os carros não viraram à direita na Rua Lazienca, continuaram pela Rua 28,

meteram por ruas secundárias até chegarem à Praça Velha.

            - Para que prisão vou? - perguntou ao major da Segurança. - Com certeza que não vou para a Cidadela.

            - Não vai para a prisão - respondeu o major. - Ficará bem instalado. Não somos seus inimigos. Vamos tirá-lo da cidade por uns dias. Apenas para o proteger.

            - Quem é que tentou matar-me?

            O major não respondeu.

Capitulo 4

            Não era um hotel nem uma prisão. Quando o levaram do carro só viu um vestíbulo comprido, um lanço de escadas sem passadeira, um corredor e um quarto. O quarto tinha uma cama de solteiro, dois cadeirões cobertos de pelúcia coçada, uma mesa e uma escrivaninha de pinho. Sobre a chaminé obstruída estava um par de chifres de veado. As janelas tinham portinholas. Mal o deixaram sozinho abriu imediatamente as portinholas. Lá fora tudo era escuridão. Ficou deitado, mas sem dormir. Muitas horas depois viu uma luz cinzenta espalhar-se pelo chão. Levantou-se sentindo os ombros a latejar de dor e foi novamente até às portinholas. Abertas, revelaram um pátio rodeado por um muro alto de pedra. Ali, algumas galinhas esgaravatavam furiosamente, num monte de sementes há pouco ali lançadas. Enquanto debicavam aqui e além, deitavam olhares amedrontados e nervosos. Irracionalmente, pensou: "Também elas são prisioneiras neste lugar."

            No extremo do pátio viu um tractor enferrujado. Do outro lado do muro um campo lavrado. Não havia outros edifícios no horizonte. Pelo campo lavrado vinha um homem a caminhar. Trazia um casaco de couro e um chapéu de caçador e uma espingarda preparada, para que de um momento para o outro a pudesse apontar e desfazer qualquer pequeno animal. Mas o homem não era um caçador. No outro extremo do campo surgiu outro homem, também de casaco de couro e trazendo uma espingarda. O segundo homem acenou ao primeiro e depois afastou-se, desaparecendo-lhe da visão. Eram da Polícia de Segurança. As galinhas, o tractor, o edifício, que pareciam ser a propriedade de algum nobre rural de antes da guerra, não passavam de disfarce para iludir os passantes. Aquele local era, muito provavelmente, uma daquelas casas secretas para onde o regime levava pessoas que haviam sido importantes e que, de repente, desapareciam.

            Apalpou-se à procura do relógio e lembrou-se que se partira. Levantava-se normalmente às seis e meia para dizer missa na capela da residência. Naquele dia teria adiado aquela missa para celebrar uma na catedral, por alma do Joseph. "Joseph. Espero que o Finder se lembre de tratar disso. Mas alguém se lembraria fosse do que fosse depois da noite anterior? O que farão os bispos quanto ao meu desaparecimento? Tentarão tornar público o facto de eu ter sido preso? Espero que não. Isso podia desencadear o "fogo" que Krasnov está a pedir."

            Olhou até ao extremo do campo vazio. O Sol erguia-se no céu por trás de uma diáfana neblina. Ia estar um dia quente, um daqueles dias de Verão em que as praças e as ruas da cidade ficam sufocantes e viscosas, em que os nervos ficam à flor da pele e as pessoas se sentam às varandas, semidespidas, a beber chá gelado e a queixar-se de que não há sítio onde se possa encontrar alívio para aquele calor. Dias em que as igrejas da cidade ficam vazias, escuras, frescas e calmas. Mas ninguém pensa em lá ir.

            Desviou-se da janela e, inclinando a cabeça, começou as orações da manhã. Ao fim de vários minutos ouviu passos lá fora no corredor. Virou-se na direcção do som e reparou, pela primeira vez, que havia um lavatório no quarto e que lhe tinham deixado sabão e uma toalha. Procurou o estojo de higiene e começou a fazer a barba. Quando abriu a torneira ouviu alguém tossir no quarto ao lado. A pessoa que tossiu caminhou então pelo quarto e abriu a torneira. A parede devia ser pouco espessa. Foi até lá, bateu hesitantemente e esperou.

            O seu toque foi correspondido.

            - Olá - disse ele, levantando a voz.

            - Fale baixo - respondeu um homem do outro lado da parede. - Quem é você?

            - Um padre.

            - Ai é? Eu também sou. Sou o padre Prisbek. Como se chama?

            - Bem.

-           O cardeal Bem?

            - Sim.

            - Então é verdade - disse a voz do outro lado da parede. - Trouxeram-no para cá ontem à noite?

            - Sim. Há quanto tempo está aqui?

            - Vêm aí - murmurou a voz. Ouviu novamente passos no corredor. Os passos pararam no quarto ao lado do seu e ouviu vozes a murmurar, o barulho de uma porta a abrir-se e passos a retirarem-se. Voltou à parede e bateu.

            - Está aí?

            Não obteve resposta.

            Ouviu gritos ao longe, como se alguém desse ordens. Depois, de novo passos. Desta vez dirigiram-se directamente para a sua porta. Uma chave rodou na fechadura.

            Naquela manhã o major da Segurança vestia uma camisola de malha e calças de bombazina verde. Trazia um tabuleiro com um copo de chá, uma colher, um pãozinho com manteiga e dois pequenos boiões, um com mel e outro com açúcar.

-           Bom dia - disse o major, entrando e pondo o tabuleiro em cima da mesa. - Não sabíamos se tomava seu chá com açúcar ou com mel, por isso trouxe as duas coisas.

            -           Obrigado - respondeu o cardeal. O major sorri de forma delicada e encaminhou-se novamente para a porta.

            -           Voltarei em breve.

            -           Espere. Gostava de falar com alguém com autori dade e já.

            -           claro - respondeu o major.

            -           É urgente.

            -           Sim - afirmou o major -, com certeza.

            A porta fechou-se. Reparou que o major não voltara a fechá-la à chave. Quando os passos se afastaram pegou no copo de chá e foi até à janela. Lá em baixo, no pátio caminhavam duas pessoas de um lado para o outro falando em voz baixa e acalorada. Um era padre, um homem alto e jovem de barba ruiva e espigada. A outra pessoa era uma mulher de meia-idade que usava un toucado curto e um hábito azul. Não reconheceu a que ordem pertência. Procurou os "gabardinas" que deviam estar a guardá-los. Mas não havia "gabardinas" no pátio. Olhou para lá do muro, na direcção do campo, ond< vira os dois polícias da Segurança disfarçados de caçadores, a patrulhar. Mas não se avistavam polícias da Segurança. Subitamente e sem pensar gritou lá para baixo:

            -           Oi! Vocês ai em baixo!

            A freira parou de falar e olhou para cima. Depoisdisse:

- Não tem havido notícias de que tenham sido presos padres. O ministro para os Assuntos Religiosos afirmou-me que até os padres mais à direita haviam sido libertados. Ou teria havido nova onda de prisões nas últimas vinte e quatro horas?"

            Afastou-se da janela e lembrou-se de que o major se esquecera de fechar a porta à chave. Poisou o copo do chá, abriu a porta e saiu para o corredor. O quarto ao lado do seu estava agora vazio e a porta escancarada. Olhou lá para dentro. Havia um lavatório e uma cama despojada de almofadas e de cobertores. Continuou a caminhar pelo corredor. Pelo silêncio sentia que não havia mais prisioneiros naquele andar. Ao fundo do corredor havia um lanço de escadas sem passadeira, de que se lembrava da noite anterior. Desceu. Na parede leu um aviso impresso, desbotado pelo tempo.

ESCOLA DE PECUÁRIA DO DISTRITO DE OSTROF

INSTRUçÃO: JAN. 4 - MAIO 30 SET. 1 - DEZ. 23

            Do lado esquerdo do vestíbulo havia uma enorme cantina. Estava vazia. Em cima das mesas de madeira encontravam-se boiões de picles e pratos sujos. Ao lado direito do vestíbulo viu uma sala com quadros verdes, carteiras e uma estante.

            Tudo estava vazio. Lá longe, no outro extremo do edifício, ouviu um pequeno som, que gradualmente se transformou no som de pessoas que se aproximavam. A porta verde que havia ao fundo do vestíbulo escancarou-se e apareceu o major da Segurança. Sorriu.

            -           Então encontrou o seu caminho pela escada, segundo vejo. Mas tenho boas notícias. Desculpe não ter ido ter novamente consigo, mas está toda a gente numa reunião.

            -           Quem é toda a gente? Que lugar é este?

-           Oh, o lugar não é importante - comentou o major da Segurança. - Mas tenho boas notícias para si.

O cavalheiro que quer ver está agora disponível. Por aqui, por favor.

            Passaram pela porta verde e entraram num corredor que ficava nas traseiras do vestíbulo e que ele calculou ir dar às cozinhas. Num dos lados do corredor havia uma pequena sala, uma espécie de gabinete, com avisos referentes a uma escola de agronomia, pregados num quadro de cortiça, e uma enorme escrivaninha com tampa corrediça atulhada de tabuleiros cheios de papéis. à escrivaninha estava um homem sentado a escrever. Levantou o olhar e indicou uma cadeira à sua frente. O major sorriu e retirou-se, fechando a porta.

            O homem que estava à escrivaninha vestia um fato de alpaca cinzento, que parecia ser o uniforme não oficial dos mais elevados cargos da Segurança. A partir da nuca tinha um cabelo ralo e levantado que parecia uma auréola. A pele era rosada e limpa, como se tivesse acabado de sair de um banho de vapor, e fumava um longo cigarro russo, metade filtro, metade tabaco. Expirou o fumo, sorrindo por trás dele, como se fosse uma máscara.

            -           Sou o coronel Poulnikov da Segurança Interna - disse. - Creio que queria falar-me.

            -           Desejava falar com o ministro para os Assuntos Religiosos imediatamente.

            -           Estou autorizado a falar pelo ministro.

            Olhou para o homem. Não havia sinais de hostilidade no rosto do coronel Poulnikov. Anteriormente, sempre que falara com os "gabardinas", o clima fora de excessiva civilidade de ambos os lados. Claro que nunca antes se passara nada de semelhante.

            -           Diga-me, coronel, a sua intenção é insultar-me?

            -           Não percebo.

            -           Sou o cardeal-primaz deste país, o chefe da Igreja. Antes sempre se me dirigiram usando o título de Eminência, os seus colegas, o ministro e até o próprio primeiro-ministro.

O rosado do homem passou a rubor, o que o fez parecer mais jovem do que anteriormente.

            -           Peço perdão, Eminência. Estava desatento. Peço-lhe que aceite as minhas desculpas. Receio ter tido pouca experiência no trato com cardeais.

            -           Está certo. Passemos adiante. Quer dizer-me, por favor, porque é que fui preso e trazido para aqui? E que lugar é este?

            -           É uma faculdade de agronomia, Eminência. De momento, não está em funcionamento, devido às férias de Verão. Por isso a tomámos como sua residência temporária. Não está preso, Eminência. Está sob custódia, apenas por uma semana, mais ou menos. Providenciámos para ter um padre que vos sirva de capelão, ajudante ou lá como se chama. Como disse, não estou familiarizado com a terminologia clerical. E temos uma freira, a irmã Marta, que vos servirá de governanta. Temos esperança de que a sua estada entre nós seja agradável e decorra sem incidentes. - Pegou numa cigarreira com inscrições em alfabeto cirilico. - Vossa Eminência não fuma?

            -           O senhor é russo?

            O coronel pareceu corar mais uma vez.

            -           Bom, surpreende-me ouvi-lo perguntar isso, Eminência? Creio que a sua mãe era da província de Kripke, tal como a minha.

            -           Desculpe. Não tinha o direito de ser mal-educado. Acho que estou um bocado confuso esta manhã. Quererá ter a bondade de me explicar a razão do Governo para explicar esta situação de "custódia"?

            -           Sim! Claro que sim! Alguém, suspeitamos que um fanático de algum grupo direitista... ainda não identificámos o homem que morreu, porque tinha papéis falsos... mas, como ia dizendo, alguém tentou matá-lo a noite passada. E temos razões para crer que a sua vida ainda corre perigo. Agora, é opinião do ministro que, se tal tentativa tivesse êxito, causaria grande instabilidade civil e poria em risco o Estado, de forma que...

O coronel não acabou a frase e, em vez disso, expeliu fumo como se imitasse uma explosão. - Por isso, achámos que até localizarmos este grupo terrorista é melhor que se desconheça o seu paradeiro, mesmo pelas autoridades da Igreja.

            -           Porquê, posso perguntar?

            -           Porque temos razões para acreditar, Eminência, que este grupo pode estar ligado a elementos reaccionários dentro da própria Igreja.

            -           Quer dizer que essas pessoas que querem matar-me são católicos?

            -           Na opinião do ministro, Eminência, isso é mais do que uma suposição, é um facto.

            -           Ridículo.

            -           É? - As bochechas cor-de-rosa do coronel Poulnikov coraram novamente, como se alguma coisa o tivesse chocado. A sua voz ergueu-se, ficando à beira da fúria. - Para eles, Vossa Eminência é o prelado que traiu a sua Igreja, o cardeal que se vendeu aos comunistas. Deu a César o que era de Deus.

            Ele ficou a olhar fixamente para o homem.

            -           É isso que dizem de mim?

                        O coronel, curiosamente embaraçado, fez um aceno afirmativo e riu-se:

            -           É, Eminência, é.

            -           E eram capazes de me matar?

            -           Alguns deles eram. A facção de lunáticos, creio.

            O silêncio que se seguiu no pequeno gabinete atabafado foi cortado pelo zumbido de uma varejeira contra os vidros. O sol matinal, com calor de Verão, espalhou-se sobre os enormes tabuleiros de correspondência que estavam na escrivaninha do coronel. Há autoridade no que afirma: todos os dias se banha numa torrente de palavras inspiradas pelo medo e a ambição, em relatórios secretos de conversas imprevidentes, em denúncias inspiradas pelo ódio, em palavras ditadas pela tortura. O papel do Estado é conhecer estas coisas. A Igreja não tem serviços de informação que se lhes comparem.

            -           Diz que não sabe quem são essas pessoas?

            -           Não, senhor, ainda não. Mas temos a esperança de que se permanecer aqui, como nosso hóspede, alguns dias, conseguiremos descobrir os responsáveis.

            -           Agora tenho de falar com o ministro.

            -           Receio que não seja possível, Eminência.

            -           Tem de ser possível! Tem conhecimento, claro que tem, que na próxima terça-feira é a festa do jubileu celebrada em Rywald? Tenho de assistir a essas cerimónias. Diga ao ministro que se eu não puder assistir a essas cerimónias, ele vai ter problemas entre mãos.

            -           Que tipo de problemas, Eminência?

            -           Não quero discutir isso consigo.

                        O  coronel levantou-se e fez uma vénia antiquada.

            -           Falarei com os meus superiores, logo que possa. Já tomou o pequeno-almoço?

            -           Já.

            -           Talvez queira ir dar agora um passeio. Está uma bela manhã.

            -           Um passeio? Onde? No pátio da prisão?

                        O coronel sorriu:

            -           Não, não. Isto não é uma prisão, Eminência. Foi até à porta e abriu-a. Lá fora, no corredor, o padre de barba ruiva estava sentado numa cadeira de fundo de palha e lia o breviário: - Padre Prisbek?

                         O  padre levantou-se.

            -           Sim.

            -           Sua Eminência gostaria de ir dar um passeio.

                        O  coronel voltou-se a sorrir e fez novamente uma pequena vénia.

            -           Contactá-lo-ei muito em breve, Eminência.

O         padre de barba fez um sinal de cabeça para que o seguisse, como se estivessem prestes a iniciar um passeio obrigatório de qualquer escola ou orfanato. Seguiu o padre ao longo do corredor e passou a porta verde entrando no vestíbulo da frente. Ali, sentada num banco, estava a freira, forte e de meia-idade, de mãos poisadas no colo. Olhou para ele timidamente e depois pôs-se de pé, baixando a cabeça num gesto de respeito.

            -           Esta é a irmã Marta - disse o padre de barbas.

Ela inclinou mais uma vez a cabeça. - E eu sou o padre

Prisbek. - Baixou a voz até se tornar um murmúrio. Nós já falámos. Pela parede.

            -           Vamos lá para fora? - perguntou a freira e olhou em redor com o ar furtivo do prisioneiro. Mas não havia ninguém no vestíbulo. Prisbek abriu a pesada porta da frente e saíram os três.

            Além das galinhas achavam-se no pátio quatro vacas frísias metidas em baias e perto do tractor enferrujado alguém amontoara vários sacos de adubo. Dirigiram-se a um portão que Prisbek abriu, levantando uma pesada barra de ferro que tinha atravessada. Lá fora caminharam cuidadosamente evitando um charco de esterco de vaca no sítio onde os animais se haviam reunido à espera de serem levados para dentro do estábulo.

            -           Por aqui, Eminência - avisou Prisbek e apontou para uma zona coberta de madeira. - Ali adiante está calmo. É um bom sítio para dar um passeio. - A freira, lançando um novo olhar furtivo, pôs-se a seu lado enquanto caminhavam pela vereda que ia dar ao bosque.

- Ficámos penalizados com o que ouvimos dizer sobre o motorista. Os inocentes, Eminência, esses é que sofrem.

            -           Quem é que lhe contou do meu motorista?

            Novamente ela olhou com ar furtivo, embora para grande surpresa dele não parecesse haver guardas em redor.

            -           Os "gabardinas", foram eles que nos disseram esta manhã.

            -           Então há quanto tempo cá está, irmã?

-           Há três dias, Eminência.

            -           E você? - perguntou a Prisbek, que ia um passo atrás.

            -           Há três dias também, Eminência. Fomos trazidos para cá os dois no mesmo dia.

            -           Porquê?

            Prisbek encolheu os ombros:

            -           Não sei. Disseram-nos que vinha para ficar e que tínhamos de ajudar a tornar a sua estada tão confortável quanto possível.

            -           Contudo, o acidente só se deu ontem à noite comentou o cardeal, parando a fIm de olhar para os dois. Mas eles continuaram a andar, como se ele não tivesse dito nada. Por fim, a freira disse na sua voz murmurada:

            -           Acho que nos trouxeram para cá porque lhe querem agradar, Eminência.

            -           O que é que quer dizer? Porque é que o Governo havia de querer agradar-me?

            - Porque o respeitam, Eminência. Sabem que está a ajudar, tanto quanto lhe é possível.

            Olhou para ela sub-repticiamente enquanto continuavam a andar. Tinha um grande sinal peludo na face. Havia algo na sua atitude furtiva que o perturbava e, recordando o que ela dissera, concluía que não estava ali presa. Ela e Prisbek eram provavelmente membros da Organização do Clero Patriótico, aquele grupo de religiosos católicos formado pelo padre Bialy, apadrinhado pelo Governo, porque haviam aceitado os objectivos e a legislação do Partido. Por isso não havia ali guardas. Aqueles eram os seus guardas.

            Voltou-se e olhou para o padre de barba.

            -           Que paróquia é a sua, padre Prisbek?

            -           Eu não tenho paróquia nenhuma a meu cargo.

            -           Então, onde é que está sediado?

            Viu o homem hesitar. Talvez não fosse sequer padre. Depois respondeu:

-           Sou professor de Matemática no Seminário de Majanow.

            Era mentira. Majanow pertência à diocese do bispo Bednortz e era tudo menos um alfobre de clero patriótico. No entanto, deviam ter preparado aquele homem para desempenhar o seu papel.

            -           Onde estão os guardas? - perguntou em latim.

            -           Estão a observar-nos do muro - respondeu imediatamente Prisbek.

            "Então, é padre."

            -           E quais foram os deveres de que os "gabardinas" o incumbiram, padre Prisbek?

            -           Devo agir como seu capelão. Devo providênciar para que possa celebrar missa aqui.

            -           E a si, irmã?

            -           Disseram-me que Vossa Eminência tem uma úlcera no estômago e que precisa de uma dieta especial. Devo supervisionar as suas refeições.

            -           Estão desactualizados.

            -           Como diz, Eminência?

            -           Já não tenho dieta especial. Aliás, isso é irrelevante. Sairei daqui logo que fale com o ministro para os Assuntos Religiosos.

            Viu-os trocar olhares.

            -           O ministro é seu amigo, Eminência? - perguntou a freira.

            -           Claro que não!

            -           Mas não é um inimigo - sugeriu a freira, com o seu estranho sorriso. - Ou seja, não o vê como um inimigo, pois não, Eminência?

            -           Não penso em ninguém como meu inimigo. Nem a irmã devia pensar.

            Tinham chegado ao bosque. Na sua frente viu, entre as árvores, um caminho que levava a uma pequena clareira, onde havia uma mesa de piquenique e bancos de madeira. Enquanto caminhavam pela vereda, ouviram um som ensurdecedor, por cima das suas cabeças.

Como uma sombra de morte, uma mancha escura tapou o Sol. A forma negra materializou-se então num enorme jacto de passageiros, qual charuto prateado, e que voava baixo sobre as árvores, como se se fizesse à pista. Ao olhar para cima viu de imediato as marcas nas asas e identificou-as como LOT, a insígnia das linhas aéreas polacas, que voava para a capital duas vezes por semana. Um avião de um voo internacional a passar tão baixo deveria querer dizer que não estavam longe da cidade. Como o barulho se mantivesse, olhou para Prisbek. Tinha na boca uma pergunta, que não ousava formular. Prisbek iria mentir. Prisbek e a freira podiam ter sido ali postos para lhe captar confidências, que ajudassem os "gabardinas" a conhecer as suas ideias. Não devia fazer perguntas.

            Pensou em Joseph. Quando entravam os três na clareira onde estava a mesa de piquenique, parou e virou-se para Prisbek:

            -           Disse que providenciou para que eu pudesse celebrar missa aqui.

            -           Sim, Eminência.

            -           Muito bem, então. Gostaria de celebrar missa esta manhã por alma do meu motorista. Poderá ser?

            -           Claro, Eminência.

            -           Vamos então tratar disso.

 

Capitulo 5

            O altar em que transformou o pão e o vinho no corpo

e sangue de Cristo era, na realidade, a secretária de um

qualquer professor virada para um quadro poeirento,

onde ainda havia vestígios de inscrições de giz. Durante

a missa, abstraira-se, como sempre, do que o rodeava,

mergulhado no mistério e no milagre do santo sacrifício. Mas, naquele momento, ao fazer a genuflexão perante este simulacro de altar e ao levantar-se, dizendo as palavras que indicavam à sua pobre audiência que a missa terminava, pensou naquelas missas celebradas em prisões e campos de concentração por padres como ele, muitos dos quais haviam morrido no cativeiro, durante os longos anos da ocupação alemã. Era um rapazito de quinze anos quando os primeiros tanques soviéticos chegaram às ruas da capital, fazendo recuar os Alemães, quarteirão arrasado a quarteirão arrasado. Enquanto outros rapazes da sua geração lamentavam ser demasiado jovens para entrar na luta, ele sentir-se-ia defraudado na honra de sofrer a prisão e a violência em nome de Cristo. Agora, ao recordar essa época, voltou-se para encarar os seus carcereiros, fazendo o sinal da bênção, e viu, entre as carteiras da sala de aula, o padre Prisbek, que ajudara à missa, e, ajoelhada a meio da sala, a estranha freira. Junto à porta, com as armas de caça penduradas ao ombro, estavam os dois homens de casacos de couro e a entrar vinha o major da Segurança. Este parecia perturbado. Olhava, não para o altar, mas para o quadro que estava por trás, e, reparando que era observado, fez um sorriso.

            -           É um estranho local para uma cerimónia religiosa, Eminência.

            -           Não muito. Também são celebradas nalgumas prisões, não são?

            -           Não sei - respondeu o major da Segurança, passando do altar improvisado para o quadro. Pegou no apagador. - Deviam-lhe ter limpo isto - disse com um sorriso falso. - Queremos mostrar todo o respeito por si.

            "O que é que está no quadro que ele quer esconder?" Observou o major enquanto ele apagava as garatujas. Apenas uma era decifrável e decorou-a. Segundos depois o apagador sumia-a.

-           Se tem vontade de demonstrar o seu respeito por mim, encontrará, com certeza, maneira de me pôr em contacto com o ministro Mazur.

            O major pareceu satisfeito ao ouvir isto.

            -           Com certeza. Vim mesmo dizer-lhe que consegui alguma coisa. Se quiser fazer o favor de me seguir.

            -           Padre Prisbek.

            O         padre de barba ruiva deu um passo em frente. Estendeu a estola a Prisbek e desapertou as fitas da casula, que Prisbek lhe arranjara. Depois seguiu o major por entre as carteiras espalhadas. Desta vez, quando chegaram ao vestl~ulo, não passaram pela porta verde, nem entraram no gabinete do coronel Poulnikov, mas subiram três lanços até ao topo do edifício.

            Ali, numa ampla sala vazia, como um sótão, com tecto esconso e chão poeirento, o homem chamado coronel Poulnikov estava sentado com outro homem, em cadeiras articuladas, ambos debruçados sobre uma comprida mesa, na qual estavam três telefones de campanha, um transmissor de onda curta e uma caixa de metal que continha material electrónico pouco vulgar. O coronel pôs-se de pé imediatamente e fez a sua vénia antiquada.

            -           Apreciou o seu passeio, Eminência? Lembre-se de que se tiver alguma queixa eu estou aqui para o ajudar.

            Ele ignorou o comentário e perguntou:

            -           Então, o ministro?

            -           Claro!

            O coronel fez sinal ao outro homem que estava por trás da mesa. Este calçava botas verdes de borracha, enlameadas nos saltos, perneiras de bombazina castanha e um casaco molhado como se acabasse de regressar do trabalho no campo. Deu à manivela do telefone de campanha, depois olhou para o pequeno monitor da caixa.

-           Está a entrar em contacto - disse, apontando uma cadeira articulada, junto ao segundo telefone de campanha. - Sente-se aí, por favor.

            Ouviu-se uma campainha. O homem de botas de borracha pegou no primeiro telefone de campanha, ouviu e depois apontou para o segundo.

            -           Atenda esse, Eminência.

            Fez o que ele lhe dizia. Normalmente, quando telefonava da residência para os gabinetes ministeriais da Rua Lubinova, os seus secretários falavam com os secretários ministeriais e depois, num gesto de respeito pelo Estado, ele decidia esperar, pronto para o momento em que o ministro atendesse o telefone. Mas, desta vez, quando pegou no auscultador, tinha alguém à sua espera.

            -           Está lá? - perguntou uma voz que não lhe era familiar.

            -           Está?

            -           Daqui fala o cardeal Bem.

            -           Eminência, sou Starin, o vice-ministro. O ministro está em Gudno e não podemos contactá-lo telefonicamente. Está a decorrer lá um encontro do Clero Patriótico. Foram-me dados poderes para agir na sua ausência.

            -           Starin? Já nos conhecemos?

            -           Já sim, Eminência, mas duvido que se lembre.

            Os três homens observavam-no - o coronel, o major da Segurança e o homem de botas de borracha - enquanto ele tentava recordar um rosto que se ligasse àquela voz.

            -           Foi na reunião de Abril?

            -           Não, senhor. Como se recorda, foi uma reunião particular entre Vossa Eminência e o ministro.

            -           Sim, sim, foi.

            -           Conhecemo-nos antes disso, Eminência. Mas, tal como disse, isso não é importante. Não se lembraria. Então, em que posso ser-lhe útil?

-           Não pedi que me trouxessem para aqui. Nem pedi para ficar sob "custódia". O meu desaparecimento nesta altura será uma ameaça maior para a estabilidade do que qualquer hipotética conspiração contra a minha vida.

            -           Não há nada de "hipotético" na conspiração contra a sua vida. Alguém tentou matá-lo e temos razões para crer que tentará novamente.

            -           Muito bem. Então, quem é que está a tentar matar-me?

            -           Não sabemos, Eminência. É possível que sejam católicos a quem desagrada a sua política.

            -           Mas isso é ridículo. Católicos a tentarem matar um padre católico. Acho que isso não faz qualquer sentido, senhor Starin.

            Enquanto falava, viu os três homens trocarem olhares. Não percebeu o significado daqueles olhares. A voz ao telefone disse então:

            -           Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Eminência. O que faria se dentro de três dias nas celebrações do jubileu, em Rywald, a Igreja anunciasse que já não existe concordata entre a Igreja e o Estado e que chegou a altura de o povo deste país desafiar abertamente o Governo, numa manifestação da vontade nacional?

            Ficou a olhar fixamente os rostos que o observavam. Percebeu que tinham ligado qualquer dispositivo que lhes permitia ouvir Starin do outro lado da linha. Também eles - o coronel, o major da Segurança e o homem das botas de borracha - esperavam a sua resposta.

            -           Se me dissessem isso responderia assim: sou o chefe da Igreja deste país e, como tal, sou a única pessoa com poder para apresentar um ponto de vista desses. E rejeitaria uma tal declaração publicamente e de imediato.

            Viu de novo os rostos perscrutadores trocarem olhares disfarçadamente. Starin respondeu então:

            -           É isso de facto o que pensamos, Eminência. Por isso, está a ver. Se existir uma tal conspiração, ou seja, uma conspiração para usar as festividades do jubileu para fins contra-revolucionários, ser-lhes-ia necessário afastá-lo primeiro.

            -           Matando-me? O vosso problema é que pensam que toda a gente utiliza os vossos meios.

            -           Não acabei, Eminência. Supondo que essa gente, esses fanáticos, não digo que representem a maioria dos católicos deste país, supondo que essa gente, esses fanáticos, como disse, o matam e arquitectam depois uma história falsa sobre essa morte.

            -           Que história falsa? - Aquela conversa parecia um sonho. Nos sonhos, as ameaças mais improváveis pesam com enorme plausibilidade. E, agora, a voz do outro lado do fio falou com uma força própria de um sonho.

            -           Uma história falsa dizendo que foi morto por nós, Segurança Interna, porque temíamos que o seu sermão apelasse à revolta declarada.

            -           Mas essas pessoas são católicas.

            -           Já disse isso, Eminência. E depois?

            -           Matar-me seria um pecado mortal.

            -           Não estou certo de que concordariam consigo comentou a voz. - A morte de um traidor é um crime ou um acto de patriotismo?

            Os três homens observavam-no. Os olhos azuis-claros do coronel Poulnikov estavam fixos nele, sem pestanejar, como se fossem os olhos de um retrato. "O que hei-de dizer? Como poderei convencê-los?"

            -           Mas eu não devo desaparecer. Sobretudo se o que diz é verdade. Como posso evitar derramamento de sangue, aqui fechado... nesta quinta, ou lá o que é isto?

            Quando ele disse isto os três homens voltaram-se uns para os outros e o coronel fez um sinal afirmativo, como que confirmando qualquer coisa. Nesse momento ouviu-se um estalido.

            -           Está? Está lá? - perguntou, mas a linha tinha sido cortada. O homem das botas de borracha pegou no outro auscultador, deu à manivela do telefone de campanha e voltou a poisar o auscultador no descanso.

            -           A chamada está terminada - disse sem se dirigir a ninguém em especial.

            -           Creio que terminou - comentou o coronel. - Não vale a pena voltar a ligar.

            -           Mas é importante. Não percebem que se vai haver uma revolta vão precisar da minha ajuda?

            -           Lamento, mas temos de nos contentar com isto até nova ordem - comentou o coronel. - Quer voltar para o seu quarto?

            Era inútil. Fez um sinal afirmativo e o major da Segurança levantou-se de imediato e veio ter com ele. Tinha um ar inexplicavelmente irritado.

            -           Então eu acompanho-o - sugeriu o major indo com ele até à porta. Ao sair, o coronel levantou-se e fez uma ligeira vénia de despedida. O das botas de borracha ligou a bateria da caixa electrónica.

            Quando começaram a descer a escada, o major, que ia à frente, voltou-se e disse:

            -           Quando eu era rapaz li umas coisas sobre maus padres... percebe, como aqueles papas, os Bórgias, gente muito corrupta, que era cruel e gananciosa. Perguntei ao meu pai coisas sobre isso e ele disse que era apenas propaganda maçónica... tudo mentira. Mas sempre me perguntei e ainda me pergunto: o que fará de um homem como o senhor corrupto? Poder?

            -           Está a querer dizer que eu sou corrupto?

            O major parou na escada e depois continuou a descer, enquanto respondia:

            -           Estou.

            -           E porque é que pensa isso?

            -           Acredito que fará seja o que for para manter o seu poder. Para se manter o chefe da Igreja, - aqui.

            Tinham chegado ao fim do primeiro lanço e iam entrar no segundo. Olhou para o cimo do cabelo do major, luzidio de brilhantina, um passo à sua frente.

-           Não admira que vocês, comunistas, não consigam entender a nossa gente. Vêem tudo no vosso espelho distorcido.

            -           Ah, sim? O que é que Vossa Eminência quer dizer com isso? - perguntou o major.

            -           Quero dizer que o poder é o que vos interessa. Não a mim.

            Chegaram ao fim do segundo lanço e o major precedeu-o pelo corredor que ia dar ao seu quarto. O major abriu a porta, que não estava fechada à chave, e ficou na soleira à espera que ele entrasse.

            -           Então não está interessado no poder - comentou o major. - Não posso acreditar. O que queria que eu pensasse? Que quer ser um santo ou um mártir, é isso?

            -           Estou aqui na terra para servir Deus. Isso e só isso.

            -           Tretas. A religião não está sequer metida na sua pele. É um carreirista, é o que o senhor é.

            -           Espero que esteja enganado.

            O major sorriu, com um sorriso furioso.

            -           Não, não me parece. - Voltou as costas e deixou a porta aberta. - O almoço é às duas horas. Vimos buscá-lo.

 

Capitulo 6

            Algures nas cozinhas, que não se viam, um rádio emitia música de dança, uma melodia de antes da guerra que ele recordava dos tempos de escola. O entrechocar de pratos indicava que estavam ali a trabalhar pelo menos duas pessoas. A uma enorme mesa, que era uma tábua montada num cavalete, na sala de jantar da escola, estava sentado sozinho com o padre Prisbek, enquanto que na outra extremidade os guardas, com as armas encostadas aos bancos, se iam servindo de couve-roxa. Noutra mesa igual, em frente da dele, estavam o coronel, o major da Segurança e o homem das botas de borracha, que se serviam de uma terrina de batatas cozidas que depois passaram a Prisbek. A freira veio da cozinha trazendo uma travessa com salsichas pequenas. Ao passar por ele disse:

            -           Queira aguardar um momento, Eminência, temos ovos cozidos para si. Sei que não pode comer coisas condimentadas e isto é condimentado.

            -           Eu sei que é condimentado. São salsichas Karamalinker, as minhas preferidas. Vou comer algumas.

            -           Tem a certeza de que quer?

            -           Claro! Já lhe disse que não estou a dieta.

            -           Salsichas Karamalinker. De primeira. Também são as minhas preferidas - comentou o coronel.

            -           Eu gosto das Dalancas - disse o homem das botas de borracha. - Aquelas que têm a pele rIja. Falam daquelas salsichas polacas, como é que se chamam... Debreciners... mas não têm semelhança com as nossas Dalanc as.

            -           É como o presunto polaco - afirmou o coronel.

- Não se compara com o nosso presunto, sobretudo com o produto sem sal, de Gaílina, que é conhecido dos especialistas.

            -           O melhor presunto do mundo? Não tenho razão, Eminência? - perguntou o major.

            Ele fez um sinal afirmativo, enquanto observava o homem das botas de borracha a espalhar abundantemente mostarda nas salsichas. "Porque será que as pequenas nações, como a nossa, se gabam de acontecimentos triviais: do presunto famoso em todo o mundo ou da equipa de hóquei no gelo?"

            -           E quanto à nossa música e literatura - disse olhando directamente para o coronel -, já fomos famosos nisso.

            -           E ainda somos - concordou o coronel. - Stanislaus Lork ganhou, em Viena, o Prémio Internacional de Literatura... Quando foi? No ano passado?... Há dois anos?

            Fez-se um silêncio súbito à mesa. Viu o major da Segurança baixar a cabeça, como se alguém tivesse falado na morte.

            -           Claro que ele não éo melhor exemplo - emendou o coronel. - A sua obra foi considerada decadente.

            -           Decadente? Isso não sei - lançou o homem das botas de borracha enquanto estendia a mão para o boião de picles. - Não leio ficção, nem poesia, nem nada dessas coisas. Mas sei que não gosto de gente que foge para o Ocidente quando as coisas se tornam difíceis.

            -           Lork não fugiu - disse acaloradamente o padre Prisbek. - Foi empurrado para fora.

            -           Bom, seja como for - comentou o homem das botas de borracha. - Ele agora não passa de um animalzinho de estimação do Ocidente. Como aqueles artistas no exílio que andam por Paris ou Nova Iorque a falar do seu sofrimento enquanto nós... - parou a frase a meio. - Como é que entrámos neste assunto? - perguntou irritado.

            O major da Segurança, que tinha estado calado, respondeu em voz baixa:

            -           Foi o cardeal quem puxou o assunto. Frequentou a escola jesuíta, não frequentou, Eminência?

            -           Frequentei e o vosso primeiro-ministro também.

            -           Ah, sim? - O coronel pareceu surpreendido. Nesse momento entrou a freira vinda das cozinhas.

            -. Quem quer ovos cozidos? Fi-los para Sua Eminência, mas se algum dos senhores...?

            O coronel abanou a cabeça e limpou a boca a um guardanapo de papel.

            -           São catorze e cinquenta - disse o homem das botas de borracha. Levantaram-se os dois ao mesmo tempo.

            -           Pode levá-lo a dar outro passeio, se ele quiser - disse o coronel a Prisbek. Depois ele, o major e o homem das botas de borracha saíram.

-           Bom, alguém quer estes ovos? - perguntou a freira.

            Um dos guardas armados levantou a mão.

 

Capitulo 7

            às quatro horas, quando terminou as vésperas, no seu quarto, que agora considerava uma cela, ouviu um motor de automóvel lá fora. Foi até à janela e viu lá em baixo, no pátio, o coronel e o homem das botas de borracha treparem para um camião enlameado, nas traseiras do qual estavam umas pranchas compridas, daquelas que usam os construtores. O coronel gritou qualquer coisa que ele não ouviu e alguns dos homens de casaco de cabedal abriram o portão da quinta. O camião saiu.

            Estivera a chover. Os paralelepípedos do pavimento do pátio estavam molhados. Lá por cima, rugindo sobre o edifício, um enorme avião descia das nuvens, baixando como se se preparasse para aterrar. Viu que era um avião de passageiros da companhia soviética Aeroflot. Quando o barulho do avião diminuiu, ouviu alguém bater à porta.

            -           Sim?

            A porta abriu-se. Era o padre Prisbek. Trazia um inpermeável amarelo do tipo dos que se usam em barcos à vela. Trazia outro, que lhe estendeu, dizendo:

            -           Deram-me isto. Quer ir agora dar um passeio?

            -           Fora dos muros?

            -           Sim. Não puseram qualquer objecção.

            -           Muito bem, então. - Pegou no impermeável e seguiu Prisbek pela escada. Não havia ninguém à vista no átrio nem nas salas adjacentes. Prisbek abriu a porta da rua e atravessaram o pátio, onde os homens de casaco de cabedal lhes abriram o portão como haviam feito ao camião do coronel momentos antes.

-           Acha que vai chover outra vez? - perguntou Prisbek a um dos homens, quando passavam pelo portão.

            -           Não se preocupe que não passará de um aguaceiro

- foi a resposta.

            Caminharam pela vereda que levava ao bosque. Ninguém parecia segui-los. Olhou disfarçadamente para Prisbek, reparando que ele tinha a cara manchada por um eczema, por baixo da esparsa barba ruiva. Lembrou-se da forma acalorada como Prisbek respondera, defendendo Lork, o escritor que preferira o exílio. "Poderei confiar nele?"

            -           Diga-me, por acaso pertence ao Clero Patriótico?

            Prisbek parou e voltou-se:

            -           Está com certeza a brincar, Eminência!

            -           Bom, essa ideia passou-me pela cabeça. Como sabe, o Clero Patriótico trabalha estreitamente com o Governo.

            -           São traidores - ripostou Prisbek. - Estou surpreendido por pensar, por um momento sequer, que eu pertência a essa escumalha.

            -           Então, porque é que está aqui?

            -           Fui trazido para cá. O meu papel é funcionar como seu capelão e eu concordei. Pensei que isso o ajudaria.

            -           Mas deve saber que sou eu que nomeio os meus capelães.

            Prisbek hesitou e respondeu:

            -           Claro, mas não se pode esperar que eles saibam isso, pois não?

            Olhou novamente para Prisbek enquanto continuavam a caminhar em direcção ao bosque.

            -           Há aqui uma coisa que me faz confusão - confessou o cardeal. - Porque é que nos permitem passear sozinhos fora dos muros? Há guardas, mas não estão a vigiar-nos. Porque pensa que será?

            Prisbek encolheu os ombros:

            -           Disseram-me que seria inútil tentar fugir. Estamos por aqui perdidos no meio de nenhures. Foi o que o coronel disse.

            -           Estamos? Há minutos passou um avião soviético a fazer-se à pista para aterrar. Não podemos estar longe da cidade.

            -           Acha? - perguntou Prisbek.

            -           Acho, e se é esse o caso, deve haver uma estrada principal aqui perto.

            -           Não sei. Olhe, Eminência, não quero ser pessimista, mas não vejo como poderíamos fugir. Por uma razão: não temos transporte.

            Haviam entrado no bosque e iam caminhando pela vereda que ia dar à mesa de piquenique abandonada.

            -           Contudo, tenciono tentar.

            Apressou o passo. Enquanto vestia o impermeável amarelo pensava: "Isto far-me-á parecer menos com um padre." Com Prisbek atrás de si, passou pela mesa de piquenique e, abandonando a vereda, debatia-se com a espessa vegetação baixa. Duas vacas a mugir, assustadas, surgiram debaixo das árvores, quando ele se aproximou. Ouvia Prisbek, ofegante, atrás de si. Incongruentemente, recordou-se de uma conferência que dera no Inverno anterior exortando o clero a fazer mais exercício e a manter o corpo em forma. Aquele homem tinha metade da sua idade. Continuou a caminhar. à sua frente viu a orla do bosque e para lá dela os campos arados. Entraram num desses campos e olharam em volta. Alguns melros levantaram voo dos sulcos e voaram para longe. Olhou todo o campo, depois voltou-se para Prisbek, que ali estava, ofegante, virando a cabeça para um lado e para outro, como se procurasse um inimigo.

            -           Então, Prisbek, o que acha? Damos uma corrida?

            -           Para onde? - inquiriu Prisbek com as palmas das mãos para cima num gesto de impotência. - Onde estamos?

            -           Olhe - disse, apontando. No extremo do campo havia uma pequena estrada secundária, não era uma vereda de quinta, mas uma superfície alcatroada. Começou a caminhar, quase a correr pelo campo arado, com os pés enterrando-se na terra mole. Ouvia Prisbek atrás de si. Continuou, ali em campo aberto, um pouco à espera dum tiro.

            -           Eminência, acho melhor voltarmos para trás.

            -           Porquê? O que é que você é? Um padre ou um polícia?

            -           Devíamos voltar para trás! - insistiu Prisbek. Parecia histérico. - Meu Deus, quer que o abatam?

            -           Se for essa a vontade de Deus, serei abatido. Entretanto decidamos. Que direcção vamos tomar?

            Tinham chegado a uma estrada secundária. Parou e olhou para o bosque, tentando perceber em que direcção o avião vinha a descer.

            -           Por favor, Eminência, oiça-me - pediu o padre Prisbek. - Vão descobrir-nos. E quando nos levarem de volta vão fechar-nos. Seria mais fácil se regressássemos agora.

            -           Faça como quiser - disse ele a Prisbek. - Eu vou por aqui. - Apontou para a estrada e começou a caminhar. Dali a um minuto ouviu passos atrás de si. "Virá ele atrás de mim como meu carcereiro ou como meu aliado? Por que razão estamos livres? Ou será que estamos mesmo livres?"

            Prosseguiu. Lá adiante, na encosta da colina, havia um pequeno edifício de cuja chaminé saía fumo e, no tosco pátio em frente, pastava um cavalo. Era o único vestígio de habitação humana em qualquer dos lados da estrada. Olhou para trás e viu Prisbek a caminhar apressadamente, a vários passos de distância. Tudo estava calmo, com aspecto rural e adormecido. Era uma quente tarde de Verão. De repente, houve uma certa agitação na sua frente, quando duas ovelhas de focinho preto saíram da estrada, lutando para conseguirem passar por um buraco na sebe, para um campo de trigo.

Havia pouco trânsito naquela estrada. Pensou no camião enlameado em que o coronel e o homem das botas de borracha haviam partido, um camião carregado de pranchas de madeira. "Porque viajava a Segurança num veículo daqueles a não ser para enganar a população da região? Não querem que ninguém saiba que eu estou aqui. Então, porque nos permitem caminhar por esta estrada?"

            - Eminência, Eminência!

            Prisbek, uns vinte metros abaixo da estrada, estava sentado à beira de um valado, agarrado à coxa, como se lhe doesse.

-           O que se passa?

-           O meu joelho. Torci qualquer coisa.

            "Será truque? Mas se está mesmo com dores é uma vergonha abandoná-lo." Voltou atrás, relutantemente, e foi ter com o padre de barba ruiva.

-           Consegue andar? Venha que eu ajudo-o.

            Prisbek tentou levantar-se desajeitadamente, mas, franzindo o sobrolho, voltou a sentar-se.

-           Vá, continue. Eu fico aqui.

-           Não me agrada deixá-lo.

            Prisbek levantou os olhos e disse num tom de amargura:

            -           Deixe-me, deixe-me. Isso não lhe interessa. Meteu-me nisto.

            -           Sim. Acho que sim. - Ficou ali por um momento a pensar. - Se não pode andar, vou ver se consigo arranjar ajuda.

            -           Ajuda? Que ajuda? Continue, continue, deixe-me. Adeus, Eminência.

            -           Farei o que puder - disse e voltou-se, afastando-se.

            A estrada estendia-se à sua frente, vazia e silenciosa. "Porque me sentirei como Judas, ao abandonar este homem, que pode, por sua vez, ser um bode expiatório, trazido para aqui para me armar uma cilada? A simples caridade exigiria que não condenasse Prisbek, sem conhecer o seu motivo. Ajudai-me, Senhor!"

Sempre que rezava e durante o acto da oração, tentava abrir aquela porta interior que dá acesso ao silêncio de Deus, de Deus que esperava, observava e julgava. Pensou nas festividades do jubileu que se aproximavam, na terça-feira seguinte, nos milhares e milhares de peregrinos que subiriam a montanha de Jasna até à igreja construída há já duzentos anos em honra dos Mártires de Setembro. Ali, num local dedicado a Deus, podia encadear-se uma série de acontecimentos que lhe viesse destruir as facilidades obtidas: o direito de ter escolas de catequese, o direito de publicar literatura religiosa, o direito à liberdade de culto e o direito de construir igrejas em novos territórios. Tudo isso desapareceria. Em vez disso, haveria tanques nas ruas, tortura em salas secretas, prisões a transbordar, espancamentos e mortes. "Ajudai-me, Senhor. Fazei com que eu esteja em Rywald nesse dia. Tenho de ser visto. Tenho de ser ouvido."

 

Capitulo 8

            No silêncio daquele local o único som existente fora o crocitar dos corvos e os seus passos na estrada. Mas um ruído, que ia aumentando de volume, fê-lo erguer a cabeça. Lá à frente, numa curva da estrada, surgiu um pequeno carro que avançava lentamente. Parou. O carro aproximou-se. No tejadilho viu um objecto redondo. Um holofote. Polícia. Não a Polícia de Segurança, que viajava em Ladas azuis, sem distintivo, mas a Polícia vulgar, cujo carro estava marcado simplesmente com a insígnia amarela, vermelha e azul do Estado. O tipo de carro de Polícia que se encontra em qualquer estrada. Começou novamente a caminhar, aconchegando o impermeável amarelo ao pescoço para esconder o seu cabeção eclesiástico. Vinham dois polícias fardados no carro. Apressou o passo. Deveria cumprimentá-los meneando a cabeça quando passasse?

            A uns vinte metros, o holofote do carro começou a funcionar, espalhando luz vermelha naquele final de tarde. O carro parou. Um dos polícias saiu, apontando para ele e fazendo-lhe sinal para ficar onde estava. Depois, o polícia aproximou-se, estendendo naturalmente a mão, com o ar de um homem habituado a mandar.

            -           Documentos?

            Tinha sempre no bolso do casaco uma carteira velha, com a fotografia da sua falecida mãe, um atestado médico com o seu tipo de sangue e a sua história clínica e o cartão plastificado que era emitido para todos os cidadãos. "Se já andam à minha procura é inútil resistir. Mas se é uma verificação polícial de rotina, o meu cartão não diz mais do que o meu nome próprio e apelido, local de nascimento e idade." Tirou o cartão da carteira, mas, ao fazê-lo, foi obrigado a abrir o impermeável amarelo, revelando o cabeção clerical ao olhar do polícia. Este verificou o cartão e devolveu-o dizendo:

            -           O que é que faz aqui?

            -           O meu carro avariou-se - respondeu, surpreendido por ter mentido tão facilmente.

            -           Onde?

-           Uns quilómetros atrás.

-           Onde vai?

-           Não sei. Estamos perdidos.

-           Estamos? Quem?

            Era demasiado tarde para encobrir o deslize. Além disso, Prisbek estava ferido e precisava de ajuda.

            -           Eu e outro padre.

            -           Onde está o outro?

            -           Um bocado lá mais em baixo. Magoou-se no joelho e não consegue andar.

            -           Entre no carro - disse o polícia. - Ali... para trás.

Fez o que lhe diziam. O polícia sentou-se à frente ao lado do motorista.

            -           Há um segundo lá em baixo, na estrada - disse o polícia ao condutor. O carro arrancou lentamente. Ele olhava para a frente. Prisbek estaria escondido na vala?

            -           Então? - gritou o polícia.

            -           Não sei - disse, voltando a apear-se. - Se calhar voltou para o nosso carro. Não sei.

            -           Entre - ordenou o polícia. Quando se instalou novamente no banco de trás ouviu o condutor dizer:

            -           São quatro e cinquenta. Se nos vamos pôr à procura do outro, faltamos à chamada para a mudança de turno.

            -           Tens razão - concordou o primeiro. - Vá, voltemos para trás. Vou lançar a mensagem pelo rádio.

            -           Não, espera aí. - O motorista virou o carro e a toda a velocidade afastou-se da zona do bosque. - Se lanças agora a mensagem pelo rádio, podem mandar-nos procurá-lo. Vamos esperar e mandar a mensagem já mais perto da cidade.

            -           Oh, óptimo - comentou o outro e, voltando-se para trás, sorriu maldosamente: - Você chama-se Stephen, eu também.

            -           Então temos o mesmo santo padroeiro.

            -           É verdade. A minha mãe costumava fazer um piquenique para os miúdos, nesse dia. Qual é o seu outro nome?

            -           Peter.

            -           Não. Refiro-me ao apelido. Estava no cartão, mas esqueci-me.

Sentiu a garganta apertar-se-lhe.

            -           Bem - respondeu.

            -           Bem? Oh, esse é o nome do cardeal. Do seu chefe.

            -           Pois é. É um nome bastante vulgar.

            -           Bem é do distrito de Biala, não é? - perguntou o condutor. - Acho que ele é do distrito de Biala.

Podia ser uma armadilha, mas não lhe pareceu. Eram polícias vulgares a patrulharem uma estrada vulgar. Ou talvez andassem a patrulhar para evitar que as pessoas se aproximassem daquela falsa escola de agronomia?

            -           Não, não é de Biala. É da cidade, tal como eu.

Continuaram em silêncio durante uns momentos. A certa altura o condutor disse:

            -           Está atolado até ao pescoço, padre.

            -           Porquê?

            -           Esta área é reservada. - O condutor voltou-se para o colega. - Não lhe disseste?

            -           Ainda não.

            -           Porque é que o outro fugiu, padre? - perguntou o condutor.

            -           Ele não fugiu.

            -           Vá dizer isso ao comandante Majewska.

- Já lhes disse. O nosso carro avariou-se e ele tinha o joelho magoado. Provavelmente voltou para trás e foi sentar-se no carro.

Mas os polícias pareceram desinteressados. Tinham começado a mexer no rádio e agora ouviu-se uma voz que anunciava: "Um a zero ao intervalo. As equipas regressam das cabinas. Danielski está de volta! Está recuperado!"

            -           Com que então o Danielski! Tem cuidado, Bélgica! - comentou o primeiro polícia.

            Futebol. Lembrou-me que a Taça do Mundo era naquela semana. O polícia ouvia o relato que recomeçara, enquanto ele pensava em Prisbek. "Então ele está do lado deles. Quando ele os avisar de que desapareci, será que me põem a Polícia local no encalço? Se assim for, quando estes entrarem em contacto pelo rádio será o fim."

            Quase no mesmo momento o condutor desligou o rádio. A voz do comentador calou-se. Os polícias puseram-se a olhar, subitamente, para a frente com toda a atenção. Aproximava-se um veículo. Um camião salpicado de lama. A princípio não teve a certeza, mas depois viu as pranchas de construtor a sair dele.

-           Quem são? - perguntou um dos polícias.

-           É o pessoal da Escola Agrícola de Ostrof- disse o outro. - São fixes.

            O camião aproximou-se. à frente vinha o coronel e o homem das botas de borracha. Instintivamente, baixou a cabeça, escondendo a cara, pondo a mão na testa. "Estão de volta. Não sabem nada a meu respeito. Não sabem nada."

            Quando o camião passou por eles, os polícias desinteressaram-se e ligaram novamente o rádio. O relatador gritava: "Kroch tem a bola e passa-a a Damon. Damon vem da esquerda."

            O camião passou muito rente, porque a estrada era estreita. Não o viu passar, porque voltou a cara para o outro lado da estrada. Parecia que o corpo lhe estremecia, mas não estava a tremer.

            "Danielski, em luta com Damon, rouba-lhe a bola. É um espanto este jogador! Domina a bola. Oh, bom trabalho de pés... passa um defesa belga, prepara o chuto... remata! Golo!"

            -           Ei, conseguiu! - gritaram os polícias em uníssono. Lentamente, como se estivesse a ser atacado, encolhendo-se, arriscou-se a olhar pelo vidro traseiro do carro da Polícia. O camião já ia a uns cem metros, dirigindo-se para a curva da estrada.

            "Que espectáculo!" dizia o relatador. "Os colegas de equipa abraçados. A multidão nas bancadas completamente louca. É um grande momento, aqui, no Estádio de Cherny!"

            Bruscamente um dos polícias baixou o rádio e comentou com voz preocupada:

            -           Merda! Estive a pensar. Se comunicarmos que apanhámos um padre e que ainda está outro na zona reservada, o Majewska vai lixar-nos. Devemos entrar em contacto, mal encontremos um estranho, e ficar à espera de ordens.

            - Certo - concordou o outro. - E mal nos apanhe em infracção é logo uma participação por escrito.

            -           Merda!

            Ligaram novamente o rádio e ouviu-se o rugido da multidão no estádio de futebol e o tom exaltado do relatador. Mas percebeu que os polícias estavam a servir-se do barulho para encobrir a conversa que mantinham em voz baixa. Depois, recostaram-se no assento.

            A paisagem, acidentada, vazia e sem outras estradas, começou gradualmente a mudar. Mais adiante, a estrada metia-se por uma série de curvas e, lá em baixo, num vale, viu uma pequena povoação, pouco maior do que uma aldeia, com algumas ruas, um largo, um campanário de igreja e uma rua principal que não conduzia a lado nenhum. O campanário era típico das igrejas mais pequenas da sua diocese e os telhados das casas eram do estilo alemão, vulgares naquela zona do país. Chegaram à primeira estrada, que cruzava com aquela, e abrandaram, enquanto um grupo de homens passava de bicicleta, levando marmitas de alumínio e capacetes com luzes incorporadas. Percebeu que eram mineiros. Ao chegarem às primeiras ruas, o carro da Polícia diminuiu a marcha, os polícias desligaram o rádio e avançaram, como se procurassem alguma coisa. O carro começou a subir uma alameda estreita e inclinada, dirigindo-se a um local que parecia uma lixeira. O condutor dirigiu-se para lá e estacionou à beira de uma pedreira escarpada. Ao fundo da pedreira havia grandes montes de lixo dispostos de tal forma que pareciam edifícios em ruínas. Gaivotas, volteando e rebuscando, moviam-se num bando inquieto sobre aquela pestilência. O polícia, que não ia a conduzir, voltou-se para trás e abriu a porta traseira do carro.

            -           Pronto, padre, Saia.

            Iriam abatê-lo? Porque haviam de o abater? Eram polícias vulgares de uma patrulha vulgar. Nada sabiam sobre ele.

            Mas hesitou. Subitamente sentiu medo.

            -           Porquê? - perguntou.

            -           Porque eu fui menino de coro - respondeu um dos polícias e o outro riu-se.

            -           Não, estou a brincar! Vamos dar-lhe uma oportunidade. Não pergunte porquê. Fazemos uma coisa por si e o senhor faz outra por nós. Nunca o apanhámos e o senhor nunca nos viu. Veio a pé até aqui para dizer que o seu carro se avariou. Não sabia que ia a atravessar uma zona reservada. Não estou a dizer que acreditamos em si. Mas isso agora não interessa.

            -           Espere - disse o outro polícia. - Se fosse a si, padre, não dizia que tinha deixado lá o carro. Não diria nada. Ia apenas tentar chegar a casa. Certo? Agora saia.

            Ele desenrolou-se do banco de trás e saiu. A porta do carro bateu com força. O automóvel girou numa curva em U e afastou-se alameda abaixo. Estava sozinho, com as gaivotas que volteavam, olhando para a pedreira, com a sua cidade de lixo e as ruas fantasmagóricas de detritos malcheirosos. Era como se tivesse sido exilado ali, abandonado, destituído do posto e de privilégios, que conhecera durante tantos anos. Agora, era um homem perseguido, procurado pelas forças do Estado, que haviam tentado prendê-lo. Olhou para o desfiladeiro assombrado pelas gaivotas. à sua mente, como uma velha fórmula mágica, semiesquecida, acudiam as palavras: "Pro nolflwe Jesu contumelias pati." Sofrer em nome de Jesus. "É esse agora o meu destino e tenho de agradecer por isso. A minha tarefa é servir-Vos. Por essa tarefa tenho de estar em liberdade."

 

Capitulo 9

Levou a mão ao cabeção e desabotoou-o, tirando-o depois. Tirou também o peitilho roxo que revelava o seu estatuto episcopal. Embrulhou o cabeção num lenço branco e atirou-o para o desfiladeiro do lixo e ficou a vê-los separarem-se e caírem entre as gaivotas que volteavam e comiam. Abotoou a gola do impermeável amarelo ajustando-a ao pescoço. Lembrou-se e tirou o anel episcopal e meteu-o no bolso das calças. Virou-se e começou a caminhar pela alameda estreita que levava à auto-estrada.

            "Tenho de encontrar um telefone. Mas os telefones do Secretariado devem estar sob escuta. Se telefonar é o mesmo que dizer à Polícia de Segurança onde estou. E, se como disse o coronel da Segurança, tenho inimigos dentro da própria Igreja e isso podia proporcionar-lhes oportunidade de me assassinarem, revelando-lhes o meu paradeiro."

            Pensou imediatamente em Jan Ley. "Com Jan não tenho necessidade de me identificar. Ele conhece-me a voz, os meus pensamentos, os meus temores e as minhas dúvidas. Talvez lhe possa telefonar deste povoado."

            Uns minutos depois alcançava a estrada e viu na sua frente uma garagem e um pátio cheio de bilhas de gás butano. A garagem estava fechada, as bombas de gasolina pareciam não estar a funcionar, mas, no pátio anexo, um rapaz carregava uma bilha de gás num carrinho de ferro enferrujado. Foi ter com ele.

            -           Desculpe. O meu carro avariou-se a uns quilómetros daqui. Acho que estou perdido. Como se chama este lugar?

            -           Este lugar? Ricany - respondeu o rapaz.

            -           Obrigado. Têm telefone?

            -           Não, não há telefone.

            -           Obrigado.

Continuou a andar. Tivera razão quando pensara nos mineiros. Ricany era uma aldeia de minas de carvão a uns duzentos quilómetros da capital. Tentou recordar-se se conhecia alguns nomes de membros do clero local, mas claro que não se lembrou. Sempre fora mau para fixar nomes e Ricany não era o tipo de local muito mencionado em assuntos diocesanos.

            Enquanto caminhava pela rua principal viu um dos novos mercados livres que o Estado concordara em permitir, um amontoado de bancas ao ar livre, que vendiam de tudo, desde roupa usada a cassetes de música rock. Mais adiante havia a praça da aldeia e a Câmara Municipal, um edifício renascentista, com um relógio de torre ornamentado, que marcava cinco e vinte. Na parte lateral da câmara havia um vistoso letreiro vermelho proclamando a Semana da Amizade Soviética e anunciando um circo russo, grátis para toda a gente. Reparou que a data coincidia com as celebrações de terça-feira em Rywald. Não ficou surpreendido. Fora planeado para que assim acontecesse. Era um sinal do desconforto que o Governo sentia. Naqueles dez anos de bispado e sete de cardinalato vira o poder do Estado ir-se desgastando enquanto que a Igreja, apesar dos seus erros, assumira uma influência cada vez maior no espírito das pessoas. O Partido fortalecera insensatamente esse poder, despojando a Igreja de todos os seus bens anteriores à guerra e deixando-a tão pobre como o próprio povo. E, no entanto, como ele sabia, este poder da Igreja não era real. Era o tipo de poder que ele, como cardeal, teria tido no século XVI. Nesses tempos, o cardeal tornara-se o chefe de Estado no interregno entre a morte de um rei e a coroação do seu sucessor.

            "Hoje governo num vazio semelhante. Não porque o povo ame Deus, mas porque teme os seus governantes. O reino de Deus não pode ser deste mundo. Por isso ando por estas ruas como um fugitivo."

            Naquele momento viu, erguendo-se por cima dos atarracados telhados alemães de cor vermelha, um estreito campanário encimado por uma cruz. Parecia um sinal. Apressou-se por entre as bancas do mercado apinhado de gente, baixando instintivamente a cabeça para não ser reconhecido. Mas enquanto passava pelos vendedores ambulantes que apregoavam, pelos homens e mulheres mal vestidos que remexiam nos poucos jeans americanos que estavam expostos, em casacos de Inverno usados, em sapatos búlgaros, em fotografias e posters de estrelas de cinema estrangeiras, em pistolas de brinquedo e em peças soltas de automóvel, ninguém olhou para ele, não houve nenhuma mulher idosa que lhe fizesse um respeitoso cumprimento de cabeça, com o qual essa geração saudava um padre. Ele, que como cardeal raramente andava sozinho, que estava habituado à ajuda dos seus assistentes para encontrar um lugar, para instalar uma tribuna, a ter um carro que o aguardava à saída, que já se habituara ao facto de a sua faixa carmesim atrair os olhares, olhava agora para rostos inexpressivos, como se, de repente, se tivesse tornado invisível.

            Continuou, de olhos postos no campanário à sua frente. Virou numa ruela estreita onde uma inscrição quase sumida numa parede incitava à solidariedade com a greve dos mineiros, que se havia dado dois anos antes. Viu dois polícias aproximarem-se. Parou, confundido. Mas os polícias passaram. Virou uma esquina e viu a igreja mesmo à sua frente, um edifício pequenino ao fundo da ruela. ''à entrada havia um aviso sobre as horas dos serviços religiosos e com algumas advertências da diocese. Parou a analisá-los. Por vezes aqueles avisos indicavam se o padre era membro do Clero Patriótico, quando divulgavam reuniões especiais do Governo e encontros organizados pelo Ministério para os Assuntos Religiosos. Não havia nenhum desses avisos no quadro, no entanto, ao entrar na igreja, sentiu um certo mal-estar. Mergulhou a mão na velha pia de mármore e empurrou a porta forrada a cabedal, que dava acesso à nave central.

Havia velas acesas no altar lateral. Fez uma genuflexão. Estava a decorrer uma espécie de novena e o Santíssimo Sacramento estava exposto no altar-mor. Havia mulheres a arranjarem flores nas jarras que iam levando para o altar. Cerca de umas vinte pessoas, incluindo jovens e alguns operários, estavam ajoelhadas em oração em frente das velas acesas, das flores e do Santíssimo na sua custódia de ouro e prata. Era uma cena que parecia ter sido preparada para o tranquilizar e, no entanto, ajoelhou-se ao fundo da igreja com uma sensação que nunca experimentara sob o telhado da casa de Deus. Era como se estivesse a ser observado e a qualquer momento lhe fossem poisar uma mão no ombro e o levassem lá para fora. Contudo, nada havia naquele ambiente que despertasse tal temor.

            De repente, ouviu passos a subirem pela coxia do seu lado esquerdo. Deitou uma olhadela. O homem que avançava pela coxia era bem constituído e vestia um grosso camisolão vermelho remendado nos cotovelos. Tinha o cabelo prateado e o rosto sulcado pelos anos. Viu-o avançar, atravessar a cancela que havia no gradeamento do altar e entrar na sacristia pela porta lateral, junto ao altar-mor. "Deve ser o sacristão. Ou então o padre. Se é o padre é pouco provável que seja do Clero Patriótico. Homens da sua idade encontram num local como este o seu refúgio. Não ambicionam maiores poderes. Arriscar-me-ei? Deverei segui-lo até à sacristia e falar com ele, dizer-lhe quem sou e pedir-lhe ajuda para contactar com o padre Ley?"

            Levantou-se, fez uma genuflexão e depois caminhou pela coxia até ao gradeamento do altar. As senhoras que estavam a arranjar as flores do altar, numa mesa lateral dentro da área do altar-mor, encontravam-se agora muito próximas dele. Uma delas atravessou os degraus do altar, fez uma genuflexão perante o Santíssimo e colocou uma jarra de gladíolos do lado esquerdo do altar. Esperou, não querendo perturbá-la na sua tarefa, entrando na área do altar antes de ela terminar o seu trabalho. Enquanto ela se movimentava reparou que coxeava ligeiramente. Depois, quando passou por ele, reparou no seu rosto marcado por pequeníssimos cortes. Susteve a respiração. Mas ela não olhou para ele. Foi direito à mesa lateral, pegou no papel de embrulho e nas folhas cortadas dos gladíolos, voltou-se e entrou na porta da sacristia, ao lado do altar.

            Ele fez novamente uma rápida genuflexão e encaminhou-se pela coxia para o fundo da igreja, abrindo a porta forrada a cabedal e esquecendo-se, ao sair da igreja, de mergulhar a mão na pia de água benta e de fazer o sinal-da-cruz. Sentiu suor na testa e viu de repente que tinha manchas de transpiração debaixo dos braços. Começou a caminhar depressa, sem reparar em que direcção. "Ela está ali, a enfeitar o altar, uma senhora da confraria, piedosa, solitária, devota e praticando obras de caridade. O coronel da Segurança tinha razão. São católicos. Católicos que querem matar-me."

 

Capitulo 10

O belo aroma a café expresso trazia-lhe de novo à memória a recordação daqueles cafés que surgiam, como pequenos milagres de luxo, nas ruas em ruína, dos primeiros anos do pós-guerra. Nessa altura era ele um seminarista pobretana, que inalava esse odor e olhava maravilhado para os tabuleiros frigoríficos, cheios de merengues, milfolhas, tartes folhadas, macarrons1 e para as mesas cheias de mulheres jovens e chiques, de botas de feltro e chapéus à homem, de oficiais russos e de estrangeiros das embaixadas ocidentais. Naquele momento, ao sol quente do fim de tarde e enquanto caminhava pela rua principal da pequena povoação, inalava aquele aroma esquecido e parou junto de uma porta aberta, recordando esses outros tempos.

            Mas, ao observá-la, reparou que aquela cafetaria era muito diferente das que recordava. Alguns bolitos secos e um insípido bolo de creme encontravam-se, solitariamente, em cima do balcão, enquanto por detrás dos tabuleiros vazios uma mulher de bata branca arrumava simples páes numa prateleira. O local estava quase vazio. Uma empregada colocou um copo de. água e uma minúscula chávena de café em frente de um único cliente, um homem careca, com uma camisa azul de manga curta e a fumar charuto. Algures, lá atrás, um gira-disco tocava uma valsa de Strauss.

            - Têm telefone? - perguntou à mulher que estava por detrás do balcão.

            - Lá atrás - disse ela, apontando.

            Enquanto ele passava pelo meio das mesas vazias, dirigindo-se para a cozinha e para as casas de banho, o homem do charuto voltou-se e fixou-o. Mas o homem estava sozinho e provavelmente aborrecido. Mesmo assim, quando levantou o auscultador na pequena cabina das traseiras, ao lado da cozinha, decidiu falar num murmúrio. Começou a marcar o número; depois, ao olhar para o aparelho, apercebeu-se do quanto estava desligado das realidades do dia-a-dia. Porque era, evidentemente, um telefone de moedas. Poisou o auscultador e voltou ao balcão da padaria. Enquanto apresentava uma nota de cem droschen e pedia à mulher que estava ao balcão que lhe arranjasse moedas, entraram dois jovens na loja. Andavam ambos pelos vinte anos e vestiam calças de ganga e T-shirts de algodão. O facto não o tranquilizou. Kris Malik dissera-lhe que a Polícia de Segurança recrutava rapazes e raparigas, informalmente vestidos, para deambularem pelos locais públicos e ouvirem as conversas. Os jovens olharam-no de relance e sentaram-se a uma mesa perto da porta. Pegou nas moedas e foi até à cabina. Discou o número tão seu conhecido e a telefonista disse-lhe quantas moedas devia meter na ranhura. Momentos depois ouviu o telefone tocar lá naquela casa cinzenta dos jesuítas que se encontrava na encosta da colina, junto ao rio Volya.

            -           O padre Ley está?

            -           Quem devo anunciar?

            Quase que lhe saiu o seu nome, sem dar por isso:

            -Diga-lhe... diga-lhe que é o Tonio.

            -           Tonio?

            -           Sim.

            Tonio fora a sua alcunha, nos tempos em que ele e Jan Ley estudavam teologia na "Greg", a Universidade Gregoriana de Roma. Jan era a única pessoa no país que o conhecia por esse nome. Esperou. Jan era coxo e o seu quarto ficava longe do telefone. Enquanto esperava pensou naquela pessoa que estava à escuta, naquele silêncio telefónico. Então ouviu um som vibrante, como se alguém, a tactear, tivesse pegado no auscultador que estava poisado.

-           Tonio, come stai? E dove stai?

            - Estou bem, padre - respondeu. Não achou sensato falarem italiano. Pareceria suspeito a quem escutava e a gravação depressa podia ser traduzida. - Tem notícias do cardeal Bem?

            - Notícias de quê? - perguntou Jan.

            - Da nossa petição, padre. Sabe, por acaso, se ele ainda está na cidade? Se calhar está fora. É por isso, talvez,, que não temos tido notícias dele.

            - É engraçado dizeres isso, Tonio. Não acreditas que os "gabardinas" me bateram à porta há menos de uma hora a perguntar quando foi a última vez que falei com o cardeal? Quando lhes perguntei porquê, responderam: "Bom, parece que desapareceu."

-           Desapareceu?

            -           Sim. É tudo muito estranho. Acabei de falar com o padre Finder, um dos seus secretários. Ele diz que os próprios "gabardinas" vieram à residência do cardeal ontem à noite e que o levaram "sob custódia", como eles dizem. Afirmavam que alguém queria matá-lo. O que é que achas disto, Tonio?

            -           Eu? O que eu hei-de achar dessas coisas? Tudo quanto sei é que se o cardeal foi preso, não vamos receber resposta à nossa petição.

            -           Isso é verdade. Bom, há mais alguma coisa que possa fazer por ti, Tonio?

            -           Sim, sim. Estava a pensar se poderia fazer-me um pequeno empréstimo. Talvez mil droschen. Se puder dispensar-mos...

            -           Claro! Para onde devo mandá-los?

            -           Espero ir à cidade amanhã. Ainda está a fazer confissões em Santa Maria?

            -           Todas as manhãs, das sete às nove.

            -           Bom. Talvez possa aparecer amanhã. E, padre, preciso do seu conselho sobre um assunto espiritual.

            -           Lá estarei, com dinheiro.

            -           Obrigado, padre.

- Ciao, Tonio. A domani.

- Ciao, Giannino.

            Mal poisou o auscultador no descanso, a porta da cozinha escancarou-se com estrondo e a empregada que vira anteriormente saiu de lá trazendo um tabuleiro cheio de copos de água gelada.

            -           Desculpe, o senhor vai desejar alguma coisa?

            -           Não, obrigado.

            Seguiu atrás da rapariga, que meneava as ancas, atravessando o café e, enquanto ela ia abrindo caminho por entre as mesas, pensou que seria melhor pedir informações a outra pessoa. Os jovens de calças de ganga estavam a jogar dominó. O homem de camisa azul seguiu a criada com o olhar, quando passou por ele.

Ao chegar lá fora à rua olhou para um lado e para outro, procurando um indício de que parasse ali algum autocarro interurbano. Não havia qualquer sinal. Ali ficou, indeciso; uma velhota vinha na sua direcção puxando um carrinho de compras de pano sujo. Quando chegou junto dele abriu-o, mostrando uma enorme quantidade de cerejas. A velhota lançou-lhe um sorriso de cumplicidade e disse:

            -           São da minha colheita. Acabadas de apanhar.

            Ele abanou a cabeça recusando a compra.

            -           Diga-me, há nesta cidade alguma estação de comboios ou de camionetas?

            -           A estação de comboios é na Kocharna. Na próxima rua. - Apontou para a transversal. - Estas cerejas, quero livrar-me delas hoje. Vendo-as baratas.

            -           Fica para outra vez, minha senhora, e muito obrigado.

            Subitamente o sorriso dela abriu-se, como a boca de um lagarto, mostrando que já não tinha a maior parte dos dentes.

            -           Parece-se com alguém... com um senhor. Com quem é que lhe dizem que é parecido?

            -           Oh, com 'ninguém.

            Acenou-lhe em sinal de despedida com um gesto que, já tarde, percebeu ser o seu gesto de bênção. O melhor era afastar-se das ruas e o mais depressa possível. Havia todas as hipóteses de que naquela altura o alarme já tivesse sido dado. Com certeza que o coronel e a sua gente já deviam andar pelas estradas à sua procura. Caminhou até à transversal que ela lhe indicara e viu em frente o que devia ser a estação, um edifício do princípio do século, do tipo germânico, construído em tijolo, com as suas cornijas e colunas outrora ornadas, parcialmente escondidas por uma entrada de segurança "modernizada" de painéis de madeira e vidro, construída de forma que pudessem ser levadas a cabo buscas, antes que os passageiros tivessem oportunidade de entrar na estação propriamente dita. Avançou cautelosamente, mas reparou que não havia ninguém de serviço na guarita. Ao entrar na estação viu dirigirem-se direito a ele dois soldados que traziam metralhadoras Kalashnikov. Parou, sentindo que começava a tremer. Então, no seu espírito surgiram as palavras que lhe acalmavam o tremor: "Não estou sozinho. Ele está comigo." Continuou a andar. Os soldados olharam para ele, mas não o mandaram parar.

 

Capitulo 11

            A estação parecia deserta. As plataformas de chegada estavam vazias, o quiosque fechado. As únicas pessoas que se encontravam na plataforma eram uma família de montanheses, com os seus trajos tradicionais, como se tivessem sido trazidos ali para algum festival de folclore. Os homens traziam chapéus de aba larga dos do tipo dos pastores, com fitas coloridas e compridas, fumavam enormes cachimbos de barro, cuspindo de vez em quando o líquido do tabaco para a via férrea. As mulheres, volumosas nos seus tradicionais corpetes e saias bordadas, puseram castamente os olhos no chão quando ele passou. Só estava aberta uma bilheteira. Aproximou-se dela. A rapariga que se encontrava por trás do guiché folheava uma revista a cores, que tinha fotografias de artistas de cinema. O texto era numa língua que ela obviamente não entendia. Era alemão. Teve tempo de reparar nisso, porque ela passou várias páginas antes de reparar na sua presença.

            Por fim, levantou o olhar.

            -           Sim?

            -           Quando é o próximo comboio para a cidade, por favor?

-           às dez horas.

            -           Não há outro antes? Talvez haja um autocarro, menina.

            -           Isto é uma estação de caminho de ferro. Não vendo bilhetes de camioneta. Quer um bilhete de comboio?

            -           Bom, é uma longa espera até às dez. Se pudesse informar-me onde posso saber se há autocarro, agradecia.

            -           Pergunte em frente da Câmara. - Virou a página da revista ilustrada. - A seguir, por favor.

            -           Desculpe.

            Voltou-se, apercebendo-se de que estava alguém atrás dele e, ao fazê-lo, a pessoa que se encontrava atrás disse rapidamente:

            -           Sim, há uma camioneta. Venha comigo que eu mostro-lhe - acrescentou tocando-lhe no ombro.

            Voltou-se. A pessoa era Prisbek. Já não estava vestido com a sotaina. Trazia um casaco cinzento, uma camisa desportiva e umas calças pretas, de padre.

            -           Por aqui - disse Prisbek, afastando-o do guiché. Olhou para a estação. A família de montanheses ainda lá estava sentada nas suas trouxas e os soldados continuavam a caminhar de um lado para o outro, à entrada. E, nessa altura, surgindo de trás do quiosque apainelado, entrou em cena uma nova personagem, com um chapéu de palha cor de coco, do tipo dos que usam os turistas americanos.

            -           Ah, aí está - disse o major da Segurança. - Boa tarde, Eminência.

            Tentou libertar-se da mão de Prisbek, mas não conseguiu.

            -           Então está a trabalhar para a Polícia de Segurança? É um dos do padre Bialy, não é?

            -           Bialy? - repetiu Prisbek. - Já lhe disse que nada tenho a ver com o Clero Patriótico. Se calhar o senhor está mais próximo de Bialy do que eu nunca hei-de estar.

O major da Segurança segurou-lhe no outro braço.

            -           Isso não interessa. Venha por aqui.

            Parecia tolo tentar lutar. Eram mais jovens e mais fortes do que ele. Conduziram-no, passando pela guarita, até à rua. Quando chegaram cá fora, um Volvo vermelho, que estava no quarteirão seguinte, arrancou e veio ao seu encontro. O condutor, que usava um casaco de cabedal, era um dos guardas da Quinta Ostrof.

            O major abriu a porta traseira do Volvo.

            -           Entre, se faz favor. - Hesitou. - Faz favor. Não vale a pena criar problemas.

            Entrou. Prisbek sentou-se à frente com o condutor.

            -           Vire à esquerda e depois novamente à esquerda - disse o major ao motorista.

            -           Então não vamos voltar para trás? - perguntou o motorista.

            -           Não, acho que não. Mandei chamar a Segunda Secção. à esquerda, sim. Agora novamente à esquerda e sempre em frente.

            O Volvo avançava agora devagar pela rua, passando pelas portas traseiras de pequenas habitações.

            -           Cá estamos nós - disse o major, apontando uma porta. - Pare aí.

            O Volvo parou. Olhando pelo vidro traseiro viu que não estavam longe da câmara e a cerca de um quarteirão do campanário da igreja. O major recostou-se e tirou um radiotransmissor do porta-luvas.

            -           Segunda Secção - disse para o rádio. - Estamos em cinco ponto, com o gado. Repito, cinco ponto.

            Voltou a arrumar o radiotransmissor.

            -           Diga-me lá. Como é que conseguiu chegar à cidade tão depressa?

            Olhou para o major. Com que então os polícias não tinham informado que o haviam apanhado.

            -           Vim a pé.

            -           Não, não, Eminência - contradisse o major. Alguém o trouxe. Pergunto-me quem. Mas não me vai dizer, claro. O padre Prisbek diz que quando voltava pelo bosque viu um carro da Polícia na estrada.

            -           Viu? - Voltou-se para Prisbek, que ia sentado, calado, no banco da frente. - Como está o seu joelho, padre? Melhor, estou a ver.

            -           Não devia ter tentado fugir - comentou Prisbek.

- Se o tivesse seguido, não teria sido diferente... Eu disse-lhe. Não podia fugir.

            O camião enlameado da quinta parara atrás deles. Era conduzido pelo homem das botas de borracha. O coronel Poulnikov saiu e veio ter com eles.

            -           Graças a Deus! Onde é que o encontraram?

            -           Na estação dos comboios. A tentar comprar um bilhete para a cidade - informou o major.

            -           Quem lhe deu boleia? - perguntou o coronel.

            -           Ainda não nos disse, pois não, Eminência?

            -           Nem direi - foi a resposta.

            -           Provavelmente telefonou a alguém quando chegou a Ricany. à sua gente, ou fosse lá a quem fosse. O que põe de lado a ideia de voltar para a quinta. É uma pena.

            -           Há Moldova - disse o major.

            -           Então terá de ser para lá.

            -           E a irmã Marta? - perguntou Prisbek.

            O coronel fez um sinal afirmativo.

            -           Tenho estado em contacto. Vêm a caminho.

            O coronel voltou então para o camião. Mas este não arrancou. Os dois veículos ficaram ali parados durante algum tempo. Por fim, uma carrinha entrou no beco. Reconheceu-a como sendo a mesma que o trouxera da Rua Lazienca. Quanto ao condutor não sabia: era um homem de cabelo grisalho, que vestia um impermeável brilhante da Polícia de Segurança. A seu lado estava sentado um homem de casaco de cabedal: o outro guarda da quinta. A freira de meia-idade encontrava-se no banco de trás. Mal a carrinha entrou no beco, o motor do camião do coronel começou a trabalhar. Então, a pequena coluna saiu do beco, com o camião do coronel à frente, o Volvo a seguir e a carrinha atrás. Subiram a rua principal e num cruzamento saíram de Ricany

            Estavam agora na estrada principal, mas não sabia em que direcção iam. Quando o condutor baixou o vidro da janela do seu lado, os fumos dos velhos e pesados camiões do Governo, a gasóleo, inundaram o ar. Os camiões, aos solavancos, a oitenta quilómetros por hora, à frente deles, faziam com que os seguissem aos ziguezagues, tentando ver se a estrada estava livre para ultrapassar. O major da Segurança tirara um corta-unhas do bolso e começara a cortar uma unha com um ar muito atento. Prisbek, no assento da frente, limpava o pescoço, que estava banhado de suor. Aproveitando a oportunidade, o camião do coronel, o Volvo e a carrinha tinham disparado de trás dos pesados veículos do Governo, alcançando os cento e vinte quilómetros por hora, antes de voltarem a entrar na sua mão. à frente, estendia-se uma longa faixa de uma estrada anónima, sem trânsito.

            Olhou novamente para o major, que acabara de cortar a unha e ia curvado no seu lugar, de braços cruzados no peito e com o chapéu de palha castanho descaído sobre o nariz. O major parecia estar a ver alguma coisa no chão e, apercebendo-se que estava a ser observado, disse, subitamente:

            -           Onde arranjou esses sapatos, Eminência? São italianos, não são?

            -           São.

            -           Calculo que muita da sua farpela vem de Roma, não é?

            -           Alguma. - Meteu a mão no bolso do casaco e tirou o seu solidéu, mostrando ao major o pequeno círculo de seda vermelho e pondo-o depois no alto da cabeça. - Isto, por exemplo. Não os fabricam aqui.

            O major corou, como se tivesse sido insultado.

            -           Tire isso - disse bruscamente. - Dê-mo cá.

-           Desculpe. Porquê?

            -           Dê-mo! Qual é o truque? Está a tentar anunciar que levamos o cardeal no carro? - O major arrancou-lhe o solidéu e, abrindo a janela, atirou-o ao vento.

            -           Não sei porque é que um bispo católico há-de usar esses barretes judeus, parece um rabino.

            -           Fico contente por me parecer com um judeu.

            -           O que é que está a tentar dizer-me? Que o Vaticano gosta de judeus?

            -           Não devemos odiar ninguém. Confesso que antigamente os nosso sacerdotes foram tão anti-semitas como o resto do nosso povo. Mas estamos a tentar modificar esse estado de coisas.

            -           Para quê? Toda a gente sabe como são os Judeus.

- Remexeu-se no assento. - E por falar nisso... fizemos mal em não o termos revistado. Sabemos lá que outros atavios do género não traz consigo? Vamos lá. Esvazie os bolsos.

            -           Major! - exclamou o motorista. O Volvo travou, quase embatendo no camião do coronel, que estava mesmo à sua frente. Agora, enquanto avançavam, a estrada apresentava uma pequena fila de veículos que esperava, numa barreira de estrada. Soldados com metralhadoras estavam a pedir os documentos. No meio da estrada encontrava-se um carro blindado, com um homem de metralhadora postado na torre.

            -           Raios partam isto! Dá-me o radiotransmissor - disse o major. Mas quando o motorista já estendia a

mão para o porta-luvas, o major mudou de ideias: - Deixa lá. Já estamos demasiado perto.

            Avançavam agora a pouco mais de dez à hora. O camião do coronel parou mesmo a cerca de uns trinta metros do último veículo da fila. O Volvo parou também. O major saiu e foi verificar. A carrinha, o terceiro veículo do seu comboio, parou atrás deles. O condutor, um homem de cabelo grisalho, de gabardina à Polícia de Segurança, saiu e veio ao encontro deles.

-           É uma operação stop? - perguntou ao condutor do Volvo.

            -           Parece-me que é mais do que isso.

            Nesse momento, o major deu meia volta e veio juntar-se a eles. Parecia agitado. Foi ter com o motorista da carrinha e murmurou-lhe qualquer coisa. O homem tirou imediatamente a gabardina da Polícia de Segurança e enrolou-a. Por baixo da gabardina trazia um grosso camisolão vermelho remendado nos cotovelos. Ao voltar para o veículo deitou um olhar furtivo ao banco traseiro como se quisesse ver qual era o aspecto do prisioneiro eclesiástico. Os seus olhos encontraram-se e o homem prosseguiu o caminho.

            A fila de veículos começou a avançar. Ao ver isso, o major voltou a entrar no Volvo.

            -           Então? - perguntou o motorista.

            -           Está bem. Avança. - Tirou o chapéu de palha e com a manga limpou a fita interior. Depois voltou-se e estendeu a mão. - Dê-me os seus documentos, Eminência.

            Hesitou, depois meteu a mão no casaco e entregou o bilhete de identidade. O major olhou para ele:

para a fotografia, o nome, Stephen Bem, os pormenores de altura, peso, cor de cabelo e local de nascimento.

            -           Afinal o seu bilhete de identidade não é nada de especial. E tem um nome vulgar. Muito comum.

            -           Deus deu-me um nome vulgar para me recordar de que não sou ninguém especial.

            O major devolveu-lhe o bilhete de identidade.

            -           Eles estão a verificar os bilhetes de identidade? - perguntou o motorista.

            -           Não, parece-me que estão apenas a verificar os veículos.

            A fila de carros avançou lentamente. O major tocou no ombro do motorista:

            -           Avança. Vamos passar à frente.

Obedientemente, o homem fez o Volvo sair da fila e passar à frente do camião do coronel, pondo-o em posição de avançar imediatamente. Os ocupantes do Volvo estavam agora tensos e silenciosos. Para sua grande surpresa viu Prisbek, que ia sentado à sua frente, fazer um apressado sinal-da-cruz e baixar a cabeça em oração. Claro, porque não? O Clero Patriótico devia achar-se servo de Deus e por isso invocava a Sua ajuda. Mas, nesse momento, reviu o rosto do condutor da carrinha, aquele que minutos antes tirara a gabardina da Polícia de Segurança, revelando o grosso camisolão vermelho que trazia por baixo. Sabia que já tinha visto aquele homem e, naquele momento, lembrou-se onde. Era o homem que avançara pela coxia da igreja, em Ricany, naquela tarde, aquele que ele julgara ser padre. O que entrara na sacristia.

            Depois de acabar a oração, Prisbek fez mais uma vez o sinal-da-cruz. Prisbek não era membro do Clero Patriótico: era o seu oposto. Agora rezava porque tinha medo de ser descoberto pelos soldados. Todos eles tinham medo. Todos eles eram impostores: o coronel da Segurança, o major, todos.

            à frente estava uma carrinha de padaria. Os soldados olharam para os documentos da carrinha e fizeram sinal para que seguisse. O condutor accionou as mudanças e avançou, parando no local da revista. Um soldado chegou junto da janela e disse:

            -           Documentos do carro. Para onde vão?

            -           Moldova - respondeu o motorista.

            O soldado pegou nos documentos, estendeu-os a um sargento e depois espreitou para dentro do carro.

            -           Viajam todos juntos ou alguém vem de boleia?

            Sentiu-se ficar hirto e respondeu:

            -           Eu venho. - Estendeu o braço para a porta do carro e saiu.

            -           Não tem de se apear - advertiu o soldado. - Pronto, mostre-me a sua identificação.

Ele estendeu-lha. O soldado mal olhou para ela, antes de lha devolver.

            -           Certo. Pode entrar outra vez.

            -           Não - disse ele. - Acho que vou esperar outra boleia. Estou enjoado. - Virou-se para o Volvo, onde o major estava a segurar-lhe a porta de trás. Fechou-lha na cara. - Continuem - acrescentou. - Obrigado, mas preciso de tomar ar.

            O major baixou rapidamente o vidro da janela.

            -           Entre.

            -           Não, obrigado. Obrigado pela boleia.

            O soldado, impaciente com a demora, deu de repente uma pancada no tejadilho do Volvo. O carro pôs-se em movimento e avançou ultrapassando o controlo. Viu o coronel e o homem das botas de borracha a olharem para ele, lá do banco da frente.

            -           Documentos do carro - ouviu o soldado dizer.

            Enquanto o sargento inspeccionava os documentos do camião, a carrinha que ia na retaguarda moveu-se até ao limiar do local de controlo. Olhou para o condutor de cabelo prateado, com o camisolão remendado nos cotovelos. Não havia engano. Voltou-se e observou atentamente a paisagem para lá da estrada. Lá em cima, na encosta da montanha, havia uma pequena casa de quinta. Em volta de ambos os lados do local de controlo era tudo campo aberto. Enquanto ele ali estava, observado pelo coronel e pelo homem das botas de borracha, passou um soldado, furioso e a correr. O Volvo, ignorando a ordem para avançar, parara e estacionara a uns metros do local de controlo. O soldado correu para o Volvo e bateu com a coronha da metralhadora no tejadilho.

            -           Siga, siga! - berrou. - Não pode estacionar aqui.

            O Volvo arrancou lentamente e, enquanto o via desaparecer na curva da estrada, o camião do coronel, já livre do controlo, avançou um pouco e ficou junto dele. O camião parou e o coronel perguntou:

-           Quer boleia?

            O coronel tinha os braços cruzados no peito. Ao virar-se, debaixo do braço brilhava o cano de uma pistola apontada para ele. Olhou para os soldados. Estavam ocupados com a carrinha, que avançara até ao local de controlo.

            -           Não seja tolo - disse baixinho o coronel. - Entre.

            Obedientemente, caminhou em direcção à arma apontada, mas, ao aproximar-se, mudou de direcção e avançou rapidamente, passando pela frente do camião, atravessou a estrada direito ao veículo blindado que estava estacionado na faixa central. Se o coronel era um fanático talvez jogasse tudo por tudo e disparasse.

            Chegou junto do blindado e parou, de costas tensas, à espera da bala.

            Sabendo que já não podia ser ouvido da carrinha, voltou-se para o homem da metralhadora que estava na torre blindada e perguntou em voz baixa:

            -           Que horas são, por favor?

            -           O que é que disse? - inquiriu o outro.

            -           As horas, por favor?

            -           São cinco e quarenta - respondeu o homem e, apontando para o camião, acrescentou: - Estão a empatar o trânsito, ali.

            -           Eu não estou com eles - disse, olhando para trás, para o camião, e vendo o rosto do coronel alterado pela tensão e o do homem das botas de borracha com um olhar comprometido.

            -           Vocês! - berrou o homem da metralhadora apontando a arma para o camião. - Avancem!

            Nesse momento, os ocupantes do camião pareceram entrar em pânico. O homem das botas de borracha pôs o veículo a trabalhar, virou e passou a toda a velocidade pelo local de controlo em direcção a Ricany. Surpreendidos, os soldados que estavam no local de controlo ergueram as armas como se fosse para disparar, mas não o fizeram. Olhou para o homem da metralhadora, que estava na torre do blindado, mas o homem tinha-se esquecido dele.

            -           Não eram suspeitos, pois não? - perguntou para os outros soldados.

            -           Suspeitos? Não.

            O da metralhadora encolheu os ombros. A carrinha passava agora lentamente pelo local de controlo e viu um medo incontido no olhar da freira e do motorista. Este hesitou e depois avançou, desaparecendo na mesma curva da estrada em que, minutos antes, desaparecera o Volvo.

            Voltou-se. Atrás de si havia campos vazios. Saltou para o valado e encontrou-se do outro lado a caminhar por um batatal, à procura de um lugar onde se esconder. Se voltassem a percorrer a estrada, não poderiam encontrá-lo. A meio caminho do campo havia profundos regos, onde as batatas tinham sido enterradas. Olhou para a estrada. O Volvo e a carrinha estavam a voltar em direcção ao local de controlo. Atirou-se para o chão, ficando escondido entre dois sulcos, enquanto os carros estacionavam na berma, a uns noventa metros do local de controlo. Saiu primeiro o major e depois Prisbek. A eles juntaram-se o condutor da carrinha e o homem de casaco de cabedal.

            Manteve-se estendido, espiando-os, enquanto eles observavam atentamente os campos. Outro carro atravessou o local de controlo e, quando passou por eles, o major correu para a estrada observando apressadamente o rosto dos seus ocupantes. Prisbek começou a caminhar de novo para o local da barragem. O homem de casaco de cabedal entrou no campo, do outro lado da estrada.

            Observou Prisbek. Não se atreveria a perguntar aos soldados se o haviam visto meter-se pelos campos ou se alguém lhe dera boleia. Prisbek tinha medo dos soldados. Viu-o ir até ao local de controlo e ficar por ali, à procura dele. Depois encaminhou-se novamente para o local de onde viera. O major continuava na estrada a olhar para cada carro que passava. O homem de casaco de cabedal já regressara à carrinha e estava agora a falar com o condutor. O major e Prisbek juntaram-se a eles e falaram todos por um momento. Depois voltaram a entrar nos veículos e dirigiram-se novamente ao local de controlo. Mais uma vez lhes verificaram os documentos e lhes fizeram sinal para que prosseguissem. Deram a volta e regressaram pelo caminho por onde tinham vindo, em direcção a Ricany.

 

Capitulo 12

            O céu tornou-se quase branco e pareceu estalar. Segundos depois o trovão fez-se ouvir sobre os campos desertos. A chuva desabou e, quando se pôs de pé, o impermeável pingava-lhe nas calças. Os regos das batatas, entre os quais estivera deitado, haviam-lhe sujado os joelhos e as mãos, e parecia agora um homem que estivera a trabalhar naqueles campos. Sob a chuva caminhava em direcção à estrada, bem longe do local de controlo. Ao chegar à estrada, ia a passar um pesado carro-tanque governamental. Trazia os faróis acesos e, quando ele tentou fazer-lhe sinal, dos seus pneus saiu um esguicho de água que lhe ensopou os sapatos italianos. O carro-tanque continuou o seu percurso. Esperou que passassem mais dois camiões até se aventurar a voltar à estrada e, quando o fez, manteve-se preparado para voltar a saltar para a vala, no caso de algum dos veículos do coronel aparecer à sua procura. Naquele momento, porém, viu aproximar-se uma carrinha velha e bastante danificada, que trazia de lado, toscamente pintadas, duas facas cruzadas. Era o tipo de carrinha que devia pertencer ao que a sua mãe chamava "gente itinerante", funileiros, que afiavam facas e arranjavam tachos de metal, que viajavam de terra em terra e estacionavam as suas carrinhas em desvios ou em terrenos abandonados.

            Não pensara que aquela gente tipo cigana parasse e, por isso, ficou surpreendido ao ver a velha carrinha parar imediatamente mal estendeu o braço. A porta corrediça abriu-se revelando uma loja de amolador. No banco da frente ia um homem com os seus trinta anos, moreno, com uma serpente tatuada no antebraço direito. A seu lado uma rapariga loira com um vestido coçado e longas fieiras de pérolas de fantasia. Pareciam ambos bêbados.

            -           Chega-te para lá - disse o condutor à rapariga.

            -           Ele que se sente entre nós. Vá lá, avozinho. Upa!

            A rapariga desceu para o deixar subir para o lado do motorista, depois voltou a entrar e puxou a porta de correr.

            -           Vai para a cidade? - perguntou o motorista.

            -           Vou.

            -           Não tem quarenta droschen?

            -           Tenho e muito obrigado por me ter dado boleia.

            -           É para a ajuda da gasosa - disse o condutor em voz grossa. - Ao preço a que está hoje a gasosa não se pode dar boleia de graça. Por acaso não tem mais uns dez droschen mais? Não se preocupe. Quarenta é o preço, mas se tivesse mais dez tomávamos um copo.

            Tirou o pouco dinheiro que tinha, separou cinquenta droschen e estendeu-os ao condutor.

            -           Tome lá, mas eu não quero beber nada, obrigado.

            -           Você fala como um cavalheiro. Ele fala como um cavalheiro, não fala?

            -           Ele é um cavalheiro - disse a rapariga. - Olha para os sapatos dele. Qual é o seu negócio, cavalheiro?

            -           Sou padre.

            -           Ah! - exclamou o condutor e soltou uma gargalhada. - Então estava a fugir ao controlo, era isso?

            -           Porque havia de fugir ao controlo?

            -           Por causa do que se passa.

            -           O que é que se passa? Desculpe, mas não entendo.

            -           Vamos molhar a goela. Vá lá, Magda. Eu sei que tenho outra garrafa por aí. Tira-a lá. O cavalheiro pagou.

            -           Já bebeste que chegasse - argumentou a rapariga. - Se bebes mais ainda acabamos na valeta.

            -           Valha-me Deus, queres que eu pare e te dê uma cinturada?

            A rapariga encolheu os ombros, puxou a saia para cima, revelando as coxas magras e as meias pretas e, entre as coxas, uma garrafa de slivovitz. Puxou a garrafa, deixando as saias arregaçadas e sorrindo enquanto o fazia. Havia um certo tipo de mulher que tinha prazer em atrapalhar ou excitar um padre. Ele fixou a estrada enquanto ela estendeu a mão pela sua frente e tirou três chávenas de plástico de um rebordo por cima do condutor.

            -           Tome - disse ela, estendendo uma chávena.

- Segure bem.

            Ele voltou a chávena ao contrário.

            -           Não, obrigado. - Olhou para o motorista.

- Conte-me lá, o que é que se passa? Porque é que havia ali aquele controlo?

            O condutor, que tinha agora meia chávena de suvovitz na mão, engoliu-a de um trago e respondeu:

            -           Ouvimos dizer em Ricany que o Exército está a montar barragens de controlo em todas as estradas principais. Andam à procura de carros roubados.

            -           Porquê?

            -           Dizem que alguém roubou uma quantidade de veículos de uma grande garagem do Governo, na cidade, na noite de anteontem.

            -           O Poder está assustado - comentou a rapariga.

            -           Pois está - comentou o condutor. - O Poder está com um cagaço de morte. Dizem que anda alguma coisa em grande no ar e dizem que os padres estão por trás disso.

            -           Os padres? Mas para que quereriam os padres roubar carros?

            -           Por causa dessa grande manifestação - respondeu o condutor. - Mas para que é que lhe estou a contar isto? Você é padre, deve saber tudo. Havia padres hoje a entregar panfletos em Ricany, sobre essa manifestação da semana que vem. Bolas, eles nunca fizeram isso, pelo menos às claras. Estão mesmo a pedir chatice a sério.

            Sentiu a boca seca.

            -           Que panfletos?

            -           Uma treta qualquer sobre a vontade nacional e os mártires de Rywald. Não dei atenção.

            -           Diz que vai haver uma declaração a vinte e sete de Agosto - disse a rapariga. - Isso é terça-feira, não é?

            De repente, o condutor teve um acesso de tosse. A carrinha desviou-se na estrada, quase indo parar à valeta.

            -           Cuidado, Vlady. Por amor de Deus, atenção.

            -           Está bem, está bem. - O condutor torceu o volante, fazendo com que o veículo voltasse ao meio da estrada com um solavanco.

            -           Se se referem a uma greve, garanto que não vai resultar. Nunca. O Poder porá nas ruas os camiões-tanques e vai ser o fim.

            -           Como os motins por causa da comida, no ano passado - lembrou a rapariga. - Puseram mais carne nas lojas por umas semanas e depois voltou tudo à mesma.

            -           Vão tapar-nos a boca com salsichas, como sempre fazem.

            -           Esse panfleto... disseram que andavam padres a distribuí-lo.

            -           Não. Eram miúdos que andavam a distribuir. Mas havia um padre com eles - esclareceu a rapariga.

- Trazia os papéis numa sacola.

-           Onde está a bebida? - perguntou o condutor, interrompendo-a. Nessa altura apareceram por trás da carrinha dois carros a alta velocidade, a piscarem as luzes. Ao ver os carros pelo retrovisor, o condutor fez guinar a carrinha para a faixa de relva. Os carros passaram. Eram Ladas azuis, sem letreiro. - Polícia de Segurança - disse o condutor. - Merda, pensei que vinham atrás de nós.

            Os velozes carros da Polícia de Segurança já estavam fora do alcance da vista. O condutor, com gestos de embriaguez, fez deslizar a carrinha novamente para a estrada, enquanto a rapariga tirou uma escova da mala e começou a escovar os caracóis louros. Ele continuava ali já sem ver a estrada que se estendia na sua frente. "Como é possível que eu não soubesse nada disto? Quem é que mo escondeu? Kris Malik, Finder, o bispo Cihon, Monsenhor Adamski, ninguém do meu pessoal sabia desses panfletos? Ou sabem, alguns deles, e têm esperança que isso aconteça? E quanto a Roma, quanto ao núncio? Monsenhor Danesi não terá sabido de nada? Ou terá sido a sua viagem a Roma uma ausência diplomática. O Santo Padre já não será meu aliado?"

            Num cruzamento, piscava uma luz amarela. Quando a carrinha lá chegou viu que estavam num subúrbio.

            -           Onde estamos?

            -           Em Moldova.

            -           Então não estamos longe da cidade.

            -           A meia hora, ou talvez um pouquito mais. Depende do trânsito. Onde é que o deixamos, padre?

            Ele olhou para o condutor.

            -           Vocês para onde vão?

            -           Nós vamos acampar debaixo dos arcos da ponte. Dormimos lá muitas vezes.

            Na noite anterior, depois do acidente, ficara nos seus aposentos a ver-se ao espelho, com o rosto magoado e as roupas rasgadas. Nessa altura pensara que parecia um daqueles bêbados que dormem debaixo da ponte do rio Volya. Naquela noite juntar-se-ia a eles.

 

Capitulo 13

            No cruzamento da Avenida do Novo Mundo com a estrada de Galím, a velha carrinha seguiu por um caminho sinuoso e lateral que levava até ao rio Volya. Não conhecia aquele caminho, com edifícios abandonados, um depósito de madeira vazio e vários terrenos cheios de maquinaria velha e ferrugenta, bidões de petróleo vazios e, como se fossem confettis sujos espalhados pelo chão, havia lixo de vagabundos que por ali acampavam. A carrinha avançou cautelosamente para um desses terrenos abandonados, enquanto o condutor procurava um sítio para estacionar. De súbito, lembrando-se do passageiro, parou bruscamente.

            -           Cá estamos, é aqui que dormimos. Se andar para baixo em direcção ao rio ainda pode apanhar um autocarro para a cidade.

            Agradeceu-lhes e apeou-se. No terreno baldio tinham acendido fogueiras e, enquanto se encaminhava para a estrada, viu gente sentada em volta delas, umas bebendo vodca e outras a preparar chá em chaleiras colocadas entre os carvões incandescentes. à frente viam-se os grandes arcos da Ponte Poniatov, a única ponte que os Alemães não tinham conseguido demolir, quando fugiram da cidade em ruínas no final da última guerra. Continuou a caminhar. A rua estava iluminada por uns candeeiros que lançavam uma luz azulada e feia. Não havia carros, mas, enquanto caminhava em direcção ao rio, riam passando por ele pessoas, algumas empurrando carrinhos de mão onde levavam roupas empilhadas, utensílios de cozinha e colchões, outros pedalavam em bicicletas carregadas dos dois lados com trouxas de farrapos e de sacos de velharias. Havia poucas famílias entre eles. A maior parte eram homens em grupos de quatro ou cinco, bêbados e a discutir. Alguns caminhavam com passo incerto e sozinho como se fossem a caminho da prisão. A maior parte das mulheres eram velhas ou prematuramente envelhecidas, tão embriagadas como os homens e igualmente quezilentas.

            Agora estava mesmo debaixo dos pilares da ponte, e, ao pôr-se sob a sua sombra, viu imensas pequenas fogueiras ao longo da margem e junto delas gente sentada e deitada, algumas dessas pessoas já a dormir. Ali havia crianças, figuras patéticas, que vagueavam sem destino entre os mais velhos. Sob a ponte o fedor a urina e vomitado era insuportável. Olhou para baixo, para o enorme veio que era o rio Volya, e para lá do seu negro abismo viu as luzes do subúrbio de Praga na outra margem.

            Prosseguiu a caminhada saindo de baixo da ponte. Chegou à beira do aterro e viu, estendidos no lodo da rampa inferior, banhada pelas águas sujas do rio, um homem e uma mulher que pareciam estar a copular. Voltou para trás, erguendo o olhar para as arcadas de pedra e para toda a extensão da ponte e para o trânsito que por ela passava. Pensou que era como se tivesse descido a um mundo inferior desconhecido dos que andavam lá por cima. à sua frente viu uma pequena fogueira acesa junto de um muro baixo. Encontravam-se ali três homens, homens da sua idade. Foi até ao muro e sentou-se junto da fogueira. Ninguém lhe dirigiu a palavra.

"Este é o reverso da medalha do nosso Estado. E, contudo, tenho de me lembrar de que esta miséria é menos predominante do que naqueles tempos de que falamos com falsa nostalgia. Talvez seja verdade aquilo que o amolador disse, que o Governo nos atafulha a boca com salsichas para não falarmos. Mas o que se passará no outro mundo, naquele a que Henry Krasnoy chama livre? Será que os pobres nesses países estão melhor?"

            Pensou nos velhos tempos. Não eram tempos de liberdade. Era a época em que o seu país era governado pelo príncipe Rostropov e os seus amigos. "Eu disse isso aos bispos. Disse que temos de reconhecer que houve grande benefício com esta modificação social. Claro que queremos a nossa liberdade. Mas o Ocidente não nos ajudará. O Ocidente nunca nos ajudou. Estamos sozinhos."

            Olhou para a escuridão do rio. Nas chamas crepitantes da pequena fogueira misturava-se o mau cheiro a pneu queimado. O homem que estava mais perto dele tirou um grosso rolo de papel de jornal e começou a meter papel entre o casaco e a camisa, para servir de isolante. Depois de acabar, espalhou mais papel sobre o parapeito e deitou-se. Então, olhando para ele, o homem apontou-lhe as restantes folhas de papel de jornal. Agradeceu, meteu o papel dentro da roupa, como vira o outro fazer, e deitou-se junto da fogueira. Ali, junto do fedor a borracha queimada e com um vento frio a soprar do rio, fez as suas orações e tentou adormecer.

 

Capitulo 14

            Acordou sob um céu turvo, mesclado pelos raios sanguíneos do sol. Lá por cima estava a grande ponte e ouvia-se o som do trânsito. Levantou-se, sacudiu a roupa e caminhou ao longo do aterro, passando pelas silhuetas contorcidas dos seus companheiros que ressonavam e foi à procura da paragem do autocarro de que o condutor lhe falara na noite anterior. Encontrou-a na junção da Avenida do Novo Mundo com a Rua Alameda da Redenção e ficou na fila à espera do autocarro interurbano. Depois de pagar o bilhete restava-lhe dinheiro à justa para comprar um páozinho a uma velhota que vinha pela coxia oferecendo páezinhos e café, num tabuleiro, aos passageiros madrugadores.

            A viagem até Kollin, nos arredores da cidade, levou pouco menos de uma hora. Quando se apeou na Praça Belnova, uma grande multidão saía de Santa Maria, do que ele julgou ser a missa das sete e meia. Seria aquilo indício da agitação actual? Reparara que, tal como um cata-vento, a frequência da igreja aumenta denunciando tempos de confrontação política. Ao atravessar a praça, o smo começou a bater as oito. Conhecia bem aquela igreja: na Páscoa anterior presidira a uma cerimónia do crisma, em que trezentas crianças, vestidas de branco, fizeram os seus votos de cristãos. Porém, enquanto o sino batia a última badalada das oito e ele se juntava à nova multidão de fiéis para assistir à missa, mais uma vez e pela segunda, em vinte e quatro horas, uma igreja lhe parecia, não um santuário, mas um local de possível perigo. E, ao chegar ao princípio dos degraus, um Lada azul surgiu de uma rua lateral e deu a volta à praça, mas, naquela altura, era normal vê-los passar no meio do trânsito. "Estarei a imaginar perigo onde ele não existe? Se a Polícia de Segurança não escutou a minha conversa com o Jan Ley, ele deve estar à minha espera agora na Igreja de Santa Maria, no confessionário, um sítio seguro para conversarmos."

            Hesitante, voltou-se e deu alguns passos em direcção à igreja, depois, pouco seguro, afastou-se novamente. Enquanto se afastava, três rapazitos de escola entraram na praça, com os seus bonés vermelhos aconselhados pelo regime. Cada um deles trazia ao ombro uma sacola de lona, porém as sacolas não continham livros, mas panfletos. Os rapazes avançaram estendendo os panfletos a quem quer que os aceitasse. Muita gente aceitava e parava para ler o que estava escrito. Seriam aqueles os panfletos que tinham sido distribuídos, na véspera, em Ricany. Começou a caminhar em direcção aos rapazes, olhando em volta para ver se havia "gabardinas" à vista. à sua frente, uma mulher que transportava um grande pão escuro estendeu a mão para receber um panfleto do rapaz que estava mais próximo. Seguiu-a. "Talvez ela o deite fora e eu depois apanho-o. Se alguém está a observar os rapazes é prudente esperar." Mas a mulher pôs o folheto na mala que trazia ao ombro e prosseguiu o seu caminho. Naquele momento ficou quase a par do rapazito, que lhe estendeu um panfleto.

            -           Em que escola andas? - perguntou, sem aceitar o panfleto.

            -           Santa Maria - respondeu, hesitante, o miúdo. - Não quer um?

            Pegou no panfleto, embora tivesse a certeza de que estava a ser observado. Deitou-lhe um olhar rápido tendo apenas tempo de ler o título "Apelo à Consciência Nacional" em grandes letras. Depois, como se não concordasse com o que dizia ou como se não estivesse interessado, deitou-o fora e continuou a caminhar. Chegou à esquina do lado nordeste do largo, que ia dar à Alameda Hanseática e à estação dos autocarros interurbanos, e ouviu passos que corriam atrás de si. Voltou-se. Dois "gabardinas" corriam pela praça atrás de um dos rapazitos. Os outros dois tinham sido apanhados por polícias à paisana. Três Ladas azuis estavam agora nas saídas da praça. Soou um apito da Polícia. Continuou a andar. Reparou que, enquanto uma ou duas pessoas pararam para assistir às detenções, a maior parte dos transeuntes ia apressadamente à sua vida como se nada se estivesse a passar.

            -           O senhor. -    Uma voz chamava atrás de si. Era um jovem de bigode louro espetado, que trazia vestidos um casaco de linho sujo e calças de xadrez. Tinha um sorriso hesitante e na mão um panfleto. -      O senhor deixou cair isto?

            -           Não - respondeu, olhando o rosto sorridente. - Aliás, nem li. Afinal, o que é isso?

            -           Eu também não li.

            O panfleto rejeitado caiu da mão do jovem e esvoaçou até ao chão. Mais uma vez soou o apito da Polícia. Virou a cabeça e olhou para a praça. Os rapazitos estavam a ser metidos nos Ladas azuis. O rapaz avançou então como se fosse agarrá-lo.

            -           Eminência - disse num murmúrio -, pediram-me que viesse ao seu encontro.

            -           Quem é você? - Enquanto falava reparou, pela primeira vez, numa pequenina cruz branca bordada na lapela do seu casaco. Os padres mais jovens, que se vestiam com roupas vulgares, usavam essas cruzes como uma insígnia. Porém, não havia qualquer garantia de que quem a usava não fosse da Polícia de Segurança.

            -           Isto é para si.

            Pegou no sobrescrito de papel barato que o jovem lhe estendia. Lá dentro estavam mil droschen em notas pequenas e um pedacito de papel. Na caligrafia inclinada, tão sua conhecida, e que pertência a Jan Ley, leu: "Tonio, para te apresentar Frederic Zaron, um antigo aluno. Giannino."

            Olhou para o rosto hesitante.

            -           Porque é que me estendeu aquele panfleto?

            -           Por causa das suas roupas, Eminência. Estava à procura de um padre. Não tive a certeza de que era o senhor, senão quando se virou e lhe vi o rosto. O padre Ley disse que seria arriscado vir à igreja.

            "Quem é ele e porque sorri? Será que anda pelos corredores da Rua Skoura, passando pelas salas onde as pessoas são torturadas? Ou pertencerá aos Jesuítas?"

            -           Foi aluno do padre Ley?

            -           Fui, Eminência.

            -           Diga-me, em que ano nasceu Inácio de Loiola e onde?

-           Em mil quatrocentos e noventa e um, no castelo de Loiola, perto de Azpeitia, Guipúzcoa, em Espanha, Eminência.

            -           Obrigado. Como posso encontrar-me com o padre Ley?

            -           Já tomou o pequeno-almoço, Eminência?

            -           Não, ainda não.

            -           O padre Ley sugeriu que o senhor e eu fôssemos tomar o pequeno-almoço ao café da Rua Marechal Nilsk. Depois irá para a secção da consulta externa do Hospital Central. O padre Ley vai lá às nove e meia, duas vezes por semana, para fazer a sua diálise. Como sabe é um antigo hospital religioso e as freiras ainda lá trabalham como enfermeiras.

            -           Muito bem. Vamos a pé até ao café. A propósito, acho preferível que as freiras não saibam quem eu sou. Diremos simplesmente que sou alguém com quem o padre Ley quer falar em particular.

            -           Não terá qualquer dificuldade, Eminência. O padre Ley aconselha muitas vezes pessoas enquanto está a fazer a diálise. Leva quatro horas a fazer a alteração dos fluidos do seu corpo.

            Começaram a carriliar. Viu Zaron olhar em volta ansiosamente, quando sairam da Alameda Hanseática entraram na Alameda do Mercado. Aceitara a história daquele jovem, mas podia ser uma armadilha. Subitamente, deixou de lhe apetecer conversar. "É assim que deve ser a vida dos que já não confiam uns nos outros", pensou.

 

Capitulo 15

            No café, quando a empregada trouxe o tabuleiro com os pãezinhos da manhã, Frederic Zaron inclinou-se para a frente em tom confidencial.

-           É muito simples, Eminência. Entra na sala principal dos doentes externos e vai à secretária à sua direita. Depois diz que vai à clínica de DV e dão-lhe um número.

            -           Disse DV?

            O jovem padre fez um sinal afirmativo e depois soltou uma risadinha de atrapalhação.

            -           Sim, Eminência. É a consulta de doenças venéreas aos domingos. Os doentes que fazem a diálise estão nas instalações mesmo ao lado da clínica de doenças venéreas.

            -           Então, dão-me um número? E depois?

            -           Perguntam-lhe com quem quer falar e diz que é com o padre Ley. - O jovem padre olhou para o relógio. Acho que agora pode ir andando quando quiser, Eminência. - Pôs-se de pé. Já pagara o café e os pãezinhos. Como sabe, o hospital é mesmo ao fundo da rua.

            -           Não vem comigo?

            -           O padre Ley acha mais sensato ir sozinho. - Estendeu a mão, hesitantemente, como se não soubesse se o gesto ia ser aceite. - Talvez nos voltemos a encontrar em melhores circunstâncias. Por favor, não se levante. Eu vou-me embora.

            Apertou a mão que ele lhe estendia e que estava húmida e fria. Observou o jovem padre ou o espião da Polícia, enquanto se afastava do café cheio de gente. A música mudara e ouvia agora os acordes do conhecido O Sole Mio. De imediato se viu em Roma, caminhando ao longo das margens do Tibre, com Jan Ley e o jesuíta holandês chamado Kiinghoffer, cantarolando os três desafinadamente. Como pareciam longínquos aqueles tempos, de uma felicidade e juventude como ele nunca conheceria. Pensou em Roma e perguntou-se:

"O que dirá o Vaticano a estes acontecimentos? O que dirá o papa? Não recorrer a Roma... pelo menos por agora. Estou sozinho aqui." O Tibre e o Volya eram rios diferentes.

Pôs-se de pé, aconchegou a gola do impermeável ao pescoço e atravessou o café, passando por entre as mesas cheias de gente e saiu para a Rua Marechal Nilsk. Enquanto caminhava em direcção à feia fachada de cimento do Hospital Central, reparou que os transeuntes lhe davam passagem, evitando-o, porque, com as calças sujas de lama e os sapatos estragados, tinha agora o aspecto daqueles desgraçados que mendigavam pelas ruas uns droschen para o vodca da manhã. à entrada do hospital olhou em volta à procura de polícias fardados, "gabardinas", Ladas azuis ou até do jovem Frederic Zaron à espreita para assistir à sua prisão. Duas semanas antes, depois da conferência episcopal, dissera tolamente a Kris Maiik que desejava não estar sempre no centro das coisas. "Como eu gostaria de caminhar sozinho pelas ruas, desconhecido, e ir para casa à noite, para uma casa vazia, vivendo uma vida solitária e escondida." Um desejo concedido é um desejo estragado. "Agora estou sozinho: não escondido, mas a esconder-me."

            Quando passou os portões do hospital não havia polícias, nem "gabardinas" à vista. Sentiu que Zaron dissera a verdade. Na sala principal dos doentes externos foi até à secretária da recepção, por trás da qual estava uma jovem de bata branca. Olhou-o desinteressadamente.

            -           Venho para a consulta de DV.

            Ela tirou uma ficha de plástico de um espeto.

            -           Sabe por onde tem de ir?

            -           Desculpe, não sei.

            -           Sala dois, à esquerda.

            -           Desculpe.

            Ela voltou a olhá-lo desinteressadamente.

            -           Sim?

            -           Esqueci-me de dizer que queria falar com o padre Ley.

            Ela soltou um suspiro de aborrecimento.

            -           Eu perguntei-lhe com quem ia falar?

- Não. Desculpe. Julguei...

            -           Sente-se. Será chamado quando chegar a sua vez.

            Foi pelo corredor à procura. A sala dois era uma grande divisão com chão de mosaico e seis bancos de madeira, compridos, virados para uma série de portas anónimas, com painéis de vidro fosco aplicados na madeira. Cerca de umas trinta pessoas esperavam sentadas nos bancos e, quando ele se sentou, algumas olharam-no e depois desviaram o olhar como que atrapalhadas por se verem na sua companhia. A princípio isso surpreendeu-o. Depois percebeu que há muito que aquelas pessoas tinham superado a atrapalhação de estarem ali. O desagrado que demonstravam em relação a ele era apenas devido ao facto de parecer um marginal, uma pessoa que podia ser sifilítica, enquanto que todos eles estavam respeitavelmente vestidos e não mostravam qualquer sinal da sua doença. Conversavam entre eles e, de vez em quando, levantavam os olhos quando uma rapariga com uma bata verde vinha da sala exterior e chamava um número. Olhou para o seu número. Era o dezassete.

            Dali a bocado a rapariga apareceu e, em vez de chamar um número, apontou para ele. Quando se levantou e se dirigiu a ela, a rapariga não disse nada e limitou-se a conduzi-lo, não passando por nenhuma das portas apaineladas, mas metendo-se por um corredor, onde lhe apontou uma pequena porta verde sem qualquer indicação.

            - Aqui, por favor. O médico já vem ter consigo.

            Entrou. Era uma casa de banho. Havia uma fila de sanitas e outra de bacias e, pendurados em cabides, várias batas e atavios verdes de sala de operações. Ficou ali desorientado. Um homem de bata de operar e máscara entrou e foi direito a uma das bacias, poisando em cima dela uma toalha que depois de aberta mostrou uma navalha, espuma de barbear e sabão.

-           Precisa de se barbear - disse. - Quer fazer o favor?

            No espelho, que estava por cima da bacia, viu um estranho de cara suja e barba de dois dias. A espuma ia saindo da lata, enquanto se barbeava. A sua cara no espelho olhava-o desconfiada, confirmando o seu mais antigo temor. "Não fui feito para líder: o Santo Padre, o colégio cardínalício, todos se enganaram ao avaliar as minhas capacidades. Falhei na liderança."

            Atrás dele, o homem pigarreou e fez um gesto de impaciência. Limpou rapidamente a cara.

            -           Acho melhor que deixe aqui a sua roupa e vista esta. Que número calça?

            -           Nove.

            Depois de ter despido a roupa suja que trazia e ter vestido uma bata de cirurgião e umas calças, o homem observou-o e, depois de remexer num armário, estendeu-lhe uma máscara de gaze e um par de sapatos de sola de borracha.

            -           Experimente estes sapatos.

            Serviam. Apertou os atacadores e pôs a máscara de cirurgião.

            - E este barrete também. Faça de maneira que lhe cubra o cabelo. Agora, se quiser fazer o favor de me seguir.

            Voltaram ao corredor e atravessaram a sala onde esperavam os pacientes das doenças venéreas.

            Desta vez os doentes levantaram os olhos para ele e para o outro "médico", com respeito e interesse. Meteram por um segundo corredor e chegaram junto de uma porta. O homem bateu levemente e depois fez-lhe sinal para que entrasse.

            Jan Ley estava numa cama de hospital, com o braço ligado à máquina de diálise. Tirara os sapatos e o casaco e, no braço, pulsava uma grande veia, negra e azul, a contrastar com a sua pele branca como cera, enquanto a máquina ia fazendo o seu trabalho.

-           Não queres sentar-te? - ofereceu Jan. - Acho que pode tirar a máscara, doutor. Não tenho doença contagiosa.

            Arrancou a máscara e, subitamente, já quase em lágrimas, beijou a testa do amigo. O cabelo de Jan tracejava-lhe finamente o crânio e tinha os olhos mortiços como se estivesse sob a acção de medicamentos.

            -           Como estás, Jan? Desculpa ter-te metido nisto.

            -           Sempre estive metido nos teus assuntos - respondeu Jan com um sorriso. - Não estive, Tonio?

            -           Desta maneira, não.

            Jan encolheu os ombros. Olhou em volta para as paredes nuas do hospital.

            -           Disseram-me que aqui estávamos em segurança, mas encontravam-se dois "gabardinas" lá fora, sentados com os doentes das doenças venéreas. Têm estado de olho em mim desde que me telefonaste ontem.

            -           Então estiveram a ouvir-nos.

            -           Acho que sim. Cerca de uma hora depois de me telefonares apareceram dois polícias da Segurança e levaram-me para a Rua Skoura.

            -           Oh, Jan, desculpa. Perdoa-me.

            -           Não, não me bateram. Foram delicados. No entanto, é um local de penitência, isso é verdade. - Jan Ley olhou para os mostradores da máquina de diálise.

- Fui interrogado por um VIP, o general Vrona. Ouviste falar nele?

            -           É o ministro da Segurança Interna, não é?

            -           É o chefe de operações da Polícia de Segurança, o que é mais impressionante ainda. Um jovem estranho. O certo é que parecia saber tudo a meu respeito. Há quanto tempo tu e eu nos conhecemos, que sou o teu confessor e tudo isso. Reparei que têm computadores lá na Rua Skoura. Muito modernizados.

            -           Que mais perguntou o Vrona?

            -           Queria saber onde é que tu estavas. Eu respondi-lhe: "Sabem muito bem onde ele está. Prenderam-no a noite passada." Ele disse que não era verdade e que tu tinhas desaparecido por tua livre vontade, porque estavas a planear uma acção qualquer contra o Governo. Eu respondi que isso era um disparate. Depois perguntou-me se conhecia um homem chamado Danekin.

            -           Danekin... o antigo primeiro-ministro? Agora vive em Londres, não vive? Ou vivia, da última vez que ouvi falar dele.

            -           Não é o Anton Danekin - informou Jan Ley. É o filho, Gregor. O corpo de Gregor Danekin está na morgue do Hospital Distrital de Konev. Segundo o general Vrona foi ele que tentou matar-te.

            -           Danekin. - Reviu o rosto ferido, barbudo e arrogante do homem que tentara matá-lo. "Por isso eu o julguei da antiga nobreza."

Conhecia-lo, Stephen?

            -           Não.

            -           E ao pai dele?

            Anton Daneidri era um aristocrata cheio de preconceitos próprios da sua classe: anti-semita, anti-russo, mas também antigermânico. E fora primeiro-ministro antes da guerra. Um herói na clandestinidade até os Russos chegarem.

            -           Nunca o conheci - respondeu ele. - Lembro-me de vê-lo, quando eu era rapaz. Ia num desfile oficial. Uma carruagem, a caminho do Parlamento, rodeada pela élite dos hussardos nacionais: Anton Daneliin com a farda negra dos Hussardos, com adornos e barretina de pena vermelha. Nessa altura tinha eu dez anos. Mas, afinal, porque quereria um filho do Danekin matar um cardeal?

            -           Este filho, Gregor, era da primeira mulher - explicou Jan Ley. - Foi educado aqui e tornou-se professor numa escola de agronomia perto de Ricany. E é estranho. Foi membro do Partido Comunista até há oito anos, quando foi expulso por embriaguez. A partir daí vivia com a irmã, numa comunidade religiosa. Há dois anos deixaram de ser vistos.

            -           Como é que descobriste isso?

            Jan Ley recostou-se nas almofadas. Parecia exausto.

            -           Já te disse, tenho uma pequena rede de amigos. Os sindicatos, sabes? Também são teus amigos, Tonio. Acho que precisas deles.

            -           Preciso de alguém. Estou só. Diz-me que mais te contou o general Vrona.

            -           Já lá ia. Mandou-me dar-te um recado do primeiro-ministro.

            -           De Urban?

            Jan Ley fez um sinal afirmativo.

            -           Urban quer que saibas que, se te apresentares neste momento, o Governo dar-te-á protecção. Claro que isto é um disparate. Se te prenderam antes, também te prendem agora.

            -           Eles não me prenderam, Jan.

            -           O quê? O Finder disse que sim.

            -           As pessoas que me levaram na noite de anteontem disseram ser da Polícia de Segurança. Isso faz parte do plano deles. Saiu alguma coisa na imprensa estrangeira sobre a minha prisão?

            -           Saiu. São os noticiários internacionais, claro. Houve protestos oficiais dos Governos britânico, americano e francês, e de Roma, claro.

            -           Era isso que receava.

            -           Porquê? O que se passa, Stephen?

            -           Ainda não tenho a certeza. - Sentiu, de repente, uma dor no fundo do olho direito. Baixou a cabeça. Tudo isto por minha culpa. Nunca deveria ter permitido que as coisas fossem tão longe. - Franziu o sobrolho. A dor penetrava como se fosse uma broca. - O problema é que agora não posso aparecer. O Governo não me prende, mas vão seguir cada um dos meus movimentos. E se o fizerem não posso agir para deter isto.

            Jan Ley inclinou-se e pegou nos cigarros.

-           Estaremos a referir-nos a um certo arcebispo?

            -           Acho que sim. Sei que a primeira coisa que tenho a fazer é falar com os dirigentes dos sindicatos. Não posso tratar disto através do meu secretariado. Por isso vim ter contigo.

            -           Sim, claro. Mas porque não através do teu secretariado?

            -           Porque, obviamente, alguns dos membros do meu secretariado me mentiram sobre o que se está a passar. O que significa que já não acreditam na minha política.

            -           Que dirigentes sindicais queres ver?

            -           O Jop. Mas tem de ser em segredo.

            -           O Jop está em Gorodov. Vais lá?

            -           Vou. Preciso de uma muda de roupa, de um bilhete de comboio ou de um carro, se alguém puder lá levar-me. Há alguém... - Mas depois pensou em Joseph e acrescentou: - Não. Vou de comboio.

            Enquanto falava acendeu-se uma luz numa reentrância da máquina de diálise. Jan Ley inclinou-se para a frente e carregou no interruptor de uma caixinha que tinha em cima da mesa-de-cabeceira.

            -           Sim?

            -           Secretária da entrada chama o doutor Zaron. Doutor Zaron à recepção.

            -           Obrigado - disse Jan Ley e desligou a caixinha.

- Tens de sair imediatamente, Stephen. Disseram-me que se fizessem este aviso tinhas de ir-te embora. Vai depressa.

            Foi até junto da cama. Abraçou Jan.

            -           Reza por mim.

            -           Rezarei. Agora, vai depressa.

            Saiu do quarto pondo a máscara. No corredor uma enfermeira de meia-idade esperava por ele.

            - Por aqui, doutor Zaron, por favor - disse e conduziu-o, não pelo caminho por onde viera, mas até a uma sala, onde havia o letreiro: "Doentes Externos". Ia apressadamente à frente dela e, enquanto caminhava, olhava para trás. Dois homens em trajos civis entravam no quarto de Jan Ley. A enfermeira empurrou uma porta basculante. Por cima havia um letreiro: "Clínica de Hematologia e Oncologia." Lá dentro, numa pequena zona de espera, estavam seis doentes em roupão de hospital. - Por aqui, doutor - disse ela.

            A enfermeira abriu uma pequena porta lateral e afastou-se para o deixar passar. Ele entrou e fechou a porta atrás de si. A princípio não conseguiu ver nada porque estava numa zona escura, mas depois apercebeu-se de que se encontrava num local cheio de vassouras e material de limpeza. Não ouvia nenhum ruído lá fora. A enxaqueca abrandara, deixando-lhe uma sensação de vertigem e náusea. Dali a momentos, sentindo que ia desmaiar, sentou-se num barril de desinfectante. Os seus olhos já se haviam habituado à escuridão. Pensou nos tempos da infância, quando, depois da morte súbita do pai, a mãe trabalhara como mulher de limpeza na casa de cidade do príncipe Rostropov, na Rua Perspectiva do Leste, enquanto o príncipe e a família passavam as férias de Verão na sua propriedade rural. Ali, nas quentes e longas tardes, vagueava pelos corredores da enorme casa vazia e, brincando às escondidas com os filhos do guarda, escondera-se num armário com a filha dele, que o beijara e lhe tapara a boca com a mão para não serem descobertos. Agora, ali às escuras, pensou brevemente naquela rapariga e veio-lhe à mente a imagem do rosto ferido e barbudo do filho de Danekin, com a boca de moribundo aberta para contar o seu segredo, mas deixando as palavras afogadas em sangue. "Porque é que ele tentou matar-me e quem era a rapariga que ia a conduzir o carro? Não faz sentido. Não se conjuga com o plano dos que me raptaram."

Rezou. "Oh, Senhor, escolheste-me para esta tarefa, tenho estado cego para muitas coisas. A minha mente é fraca. Não vi como era multifacetado este mundo em que me puseste num lugar de confiança. Não estou preparado para ser padre, quanto mais príncipe da Vossa Igreja, mas peço-Vos que me guieis agora, que me deis aquela força e inteligência que eu não consegui em mim encontrar."

            Chorava. Envergonhado, ao lembrar-se dos inocentes rapazitos que corriam pela Praça Belnova, com panfletos dados por padres que estavam sob a sua jurisdição, rapazitos presos pela Polícia de Segurança por actos de que, em última análise, era ele o responsável.

            Limpou os olhos à manga e tentou terminar a oração. Alguém deu uma pancadinha na porta do armário. Uma voz de homem murmurou:

            -           Está aí, doutor Zaron?

            -           Estou.

            -           Dentro de momentos trazemos-lhe roupa. Qual é a sua altura?

            -           Um metro e setenta e dois.

            -           Espere.

            Ela aguardou. Ao fim de alguns minutos, passaram-lhe um saco que continha roupas.

            -           Eu fico aqui fora - disse a voz do homem.

            Dentro do saco havia uma camisola de gola alta, sem forma, que lhe servia muito bem, porém as calças de algodão tinham as pernas curtas. Havia também uma canadiana demasiado grande e um chapéu velho de lona. Saiu de lá com o chapéu puxado para a cara. à sua espera estava um jovem, com capacete preto de motociclista e uma farda de mensageiro oficial. Ao ombro trazia um grande saco de mensagens.

            -           Por aqui, senhor - disse.

            Saíram da Clinica de Hematologia e Oncologia para o corredor, agora cheio de enfermeiras e funcionários que empurravam doentes em cadeirinhas e carrinhos de material, num cenário de azáfama matinal. O mensageiro de capacete ziguezagueava pelo meio da confusão, até que foram dar ao átrio principal, que ia desembocar na porta da frente do hospital.

-           Espere aqui, vou buscar a moto para a frente da porta. Quando eu aparecer, siga-me e monte na moto comigo. Certo?

            Ele fez um sinal afirmativo. Olhou em volta, mas o átrio pareceu-lhe não estar vigiado. Ali ficou, sem jeito, com as roupas que lhe assentavam mal, remexendo nervosamente os pés, tentando evitar os olhares dos passantes. Nunca se apercebera a que ponto a sua cara era conhecida do cidadão vulgar, porque embora tivesse aparecido frequentemente na televisão estatal e fosse fotografado milhares de vezes para os jornais e publicações religiosas, suspeitava de que as pessoas não viam o homem, mas os paramentos, a silhueta de barrete carmesim, que avançava na procissão ou se sentava na cadeira episcopal ao lado do altar. Alguém ao vê-lo naquelas roupas anódinas poderia imaginar que era ele o desaparecido cardeal-primaz do seu país?

            De repente, entrou pela porta giratória o rapaz do capacete, fez-lhe sinal e, voltando-se, saiu novamente. Quem seria e como é que Jan Ley o conhecia? O que era aquela rede de gente, que Jan parecia conseguir reunir, avisando-os com poucos minutos de antecedência? Começou a caminhar para a porta de entrada, olhando para a esquerda e para a direita, para ver se havia algum "gabardina" à espreita por ali. Saiu. Junto ao passeio, com o motor engasgado, estava uma motorizada do Estado do tipo das que via todos os dias nas ruas, umas maquinetas barulhentas, sujeitas a frequentes avarias. O mensageiro baixou a viseira de plástico, encobrindo um pouco o rosto, e fez-lhe sinal para que avançasse. Sentou-se agarrando-se bem à cintura do mensageiro, enquanto arrancavam ruidosamente pelo pátio e saíam para a Rua Marechal Nilsk.

E agora, com o vento no rosto, tonto, enquanto a motorizada ziguezagueava pelo meio do trânsito, pela Praça da União, pela Rua Nova e pelos Jardins Saxónicos até chegar à velha zona do mercado, onde, serpenteando, travando repentinamente para deixar passar gado, a pequena motorizada reduziu-se por fim, ao silêncio num velho pátio estreito, ao lado de um enorme camião-frigorífico, sujo de lama, que estava a descarregar carcaças de porcos. O jovem mensageiro puxou a viseira para cima e fez um aceno a um homem de bata branca salpicada de sangue, que avançou como se já estivesse à espera há algum tempo.

            Saltou do selim, com as pernas fracas devido às sinuosidades do percurso a que não estava habituado. O homem de bata de magarefe levou a mão ao boné em sinal de respeito.

            -           Pronto, padre, estamos quase a acabar. Quando acabarmos, salta para lá, para trás, para o camião. Deita um bocado de cheiro, mas arranjam-se cobertores. Embrulhe-se e não sentirá frio.

            O         motociclista baixou a viseira escura e voltou-se para ele, qual robô, sem rosto.

            -           Tudo bem, padre?

            -           Sim. Obrigado.

            -           O padre Ley disse-me para lhe dizer que ia tentar entrar em contacto com o seu partido em Gorodok.

            -           Obrigado. Muito obrigado.

            O mensageiro carregou no acelerador e a motorizada roncou. Seis homens atravessavam agora o pátio, usando grossos capuzes de serapilheira e transportando carcaças de porco às costas. O último homem a passar fez-lhe um aceno e apontou para as traseiras do camião-frigorífico. Foi até lá. Estenderam-lhe uma mão e puxaram-no para cima. Lá dentro estava um frio de rachar. O homem que o puxara para cima veio lá do interior do camião com vários cobertores sujos e pesados que acomodou no chão como se estivesse a construir um ninho.

            -           O frio já está desligado. Dentro de um minuto estará melhor. Vou ter de fechá-lo cá dentro. Certo?

            -           Sim, óptimo. Obrigado.

O homem saltou para a rua. As pesadas portas fecharam-se com estrondo e ouviu o som do fecho a correr. Novamente ficou no escuro. Caminhou a tactear até aos cobertores e sentou-se, pondo-os sobre os ombros. O camião estava impregnado do enjoativo cheiro a sangue. Momentos depois ouviu a porta da cabina bater. O motor começou a trabalhar. Ouviu as engrenagens da caixa de mudanças. A viagem começara.

 

Capitulo 16

            -           Dormiu?

            A cabeça e os ombros do condutor surgiram, de repente, em silhueta, no cenário da porta aberta. Ao fim de tantas horas de escuridão, de sono e de desconforto aos saltos por estradas más, olhou atordoado para o homem que lhe fazia a pergunta. Cheirou a frescura do ar da noite e viu o céu iluminado pelo clarão da lua cheia.

            -           Venha - disse o homem, e estendeu-lhe a mão para o ajudar a descer. Sem a aceitar, saltou, desequilibrou-se, mas aguentou-se sem cair. Doíam-lhe as pernas como se alguém lhe tivesse dado pontapés nos joelhos.

            -           Não, não - disse. - Eu estou bem, obrigado.

            O homem que tentara ajudá-lo trazia um dos tais capuzes de magarefe, parecido com os dos frades. Agora, ali estava à espera com um aspecto medieval.

            -           Isto é Gorodok?

            -           E, sim, senhor. Conhece este local?

            -           Conheço.

            Olhou em volta e viu tapumes de caminho de ferro e, como montanhas à distância, os montes de escória das minas de Gorodok, iluminados pelo luar. O camião-frigorífico parara em frente do que parecia ser uma fábrica. Uma luzinha brilhava numa casa de guarda à porta da fábrica e viu então o guarda, fardado, sair da casa trazendo uma lanterna.

            -           É o senhor Zaron? - perguntou.

            -           Sou.

            -           Venha até cá dentro. Talvez queira um copo de chá e alguma coisa de comer.

            -           Obrigado.

            O condutor de capuz voltou-se rapidamente para ele e, de forma desajeitada, mas afectuosa, pôs-lhe a mão no ombro.

            -           Deus o abençoe - disse e deu a volta, dirigindo-se para a cabina do enorme veículo, subiu e bateu com a porta. Meteu as mudanças e o camião afastou-se regressando à estrada.

            -           Que horas são? - perguntou.

            -           Oito e picos - respondeu o guarda.

            Olhou para a estrada, onde o camião se afastava sob as luzes flurescentes. Eram oito horas no meio daquela escuridão.

            -           Por aqui, senhor - disse o guarda, acendendo a lanterna para iluminar o caminho, embora o luar brilhante a tornasse supérfula. Caminharam em direcção à pequena casa junto do portão. Lá dentro, em cima de um bojudo fogão de ferro, estava a ferver o chá e, em cima da secretária do guarda, muito arrumadinha, viu ovos cozidos e presunto. Não comia desde o pequeno-almoço. Sentou-se sob o círculo de luz proveniente da janela e comeu. O guarda estendeu-lhe um copo de chá a ferver.

            -           O que é isto? É uma fábrica? - perguntou.

            -           Uma fábrica? Não, senhor, é a velha Mina Borodin. A número quatro. Agora está fechada, claro.

            A Mina Borodin. Via, como se fosse num ecrá de televisão, faixas com palavras de ordem, os mineiros aglomerados e ajoelhados no pátio em oração, os montes de escória ao longe, a fila de soldados de armas preparadas e rostos confusos. Na altura estava em Roma, onde fora convocado para uma reunião, e, no Colégio Espanhol, vira, na televisão, o momento de maior esperança dos sindicatos, o momento em que pareceu, romanticamente, que a vontade dos mineiros ia poder anular o alcance dos camiões-tanques. Anos antes a época era outra.

            -           Fechada? Porquê, por razões políticas?

            -           Não, não. Só porque o filão acabou.

            O guarda levantou-se e foi até à janela, como se procurasse qualquer coisa lá fora.

            -           Agora falam em transformá-la num museu mineiro. Não com aquelas coisas em caixas de vidro, velhos capacetes e lanternas. Não. Querem usar a própria mina. Viagens pelo poço abaixo. Vão mostrar os estábulos dos pequenos póneis lá em baixo e as gaiolas dos pardalitos que usavam para testar o ar contaminado. Vão mostrar os túneis. Sabe que os homens tinham de andar dois quilómetros até à boca do poço e só começavam a pagar a partir do momento em que eles levantavam a picareta para bater na rocha. Os bons velhos tempos. Tempos capitalistas em que um homem trabalhava dez horas por dia por quarenta droschen por semana. É o que dizem e vão fazer disto um museu. Espero que façam. Se fizerem já tenho prometido o lugar de guia.

            -           Você foi mineiro?

            -           Fui e já o meu pai foi. É desse tempo que estou a falar, do tempo do meu pai. Ah! - O homem espreitou, chegando-se mais ao vidro da janela. - Já aqui está a sua boleia. Quer mais chá?

            -           Não, obrigado.

            O guarda levantou a lanterna e acenou com ela como se fizesse um sinal. à luz do luar, um pequeno Fiat aproximou-se e parou em frente do portão, dando sinais de luzes. Apeou-se um jovem de camisa vermelha e capacete de plástico duro. Deixou o motor a trabalhar.

            -           Entre já. Ele não quer ficar por aqui muito tempo.

Saiu sob a luz do luar. O jovem já estava no lugar do condutor. Entrou e avançaram rapidamente em direcção à estrada de luzes amarelas.

            -           Como foi a viagem? - perguntou o rapaz.

            -           Aos solavancos.

            -           Então não vieram pela auto-estrada. Não, não me parece...

            Tinham chegado a um cruzamento. à frente deles e depois dos semáforos viu um emaranhado de ruas vazias. Não ficou surpreendido. Na província poucas pessoas saíam depois do escurecer. Das janelas sem luz brilhavam os ecrás azulados de televisão. O pequeno Fiat dirigia-se agora para uma zona de pequenos jardins e pátios traseiros cheios de cordas de roupa e com alpendres para guardar o carvão. O carro parou.

            -           Espere aqui, por favor - pediu o rapaz.

            Ficou sentado à luz do luar, a observar o rapaz, que abrira um portão de madeira e caminhava por um lote de terreno semeado de tomateiros, alface e renques de malmequeres. Parecia um local bem estranho para um encontro. Mas depois recordou-se de que Jop, nos tempos em que estivera em evidência, era sempre mostrado em fotografias como um homem de família, um homem dos trabalhadores vivendo na obscuridade.

            Um cão ladrou e outros imitaram-no, até se tornarem num coro dissonante. Viu o jovem vir apressado pelo carreiro do terreno, provocando ao passar nova inquietação entre os cães. Abriu então o portão de madeira e fez-lhe sinal para avançar.

            -           Vá directamente até lá abaixo. Vêm ao seu encontro. Depressa!

            Quase correu pelo carreiro. O coro desafinado dos cães assustou-o. Esperou que a porta das traseiras se abrisse e aparecesse o dono dos animais. A sua frente, no carreiro, sob a luz do luar, viu uma mulher forte à sua espera, com um lenço preto atado à cabeça à moda das antigas camponesas. Veio ter com ele e fez uma vénia que lhe deu a entender que sabia quem ele era.

            -           Por aqui, Reverência! Por aqui!

            Entraram num estreito pátio de paralelepípedos de basalto. Á frente havia uma porta aberta e nela, em contraluz, a silhueta de um homem que esperava. Passou pela porta, encadeado pela forte luz da cozinha. Era um homem de meia-idade, com uma camisa de flanela cinzenta, calças de moleskín1 e pesadas botas pretas. Não era Jop. Atrás dele, numa atitude de quase vénia, estava uma mulher muito velha, com a mão a tremer de entorpecimento enquanto lhe fazia sinal para passar.

            -           Por aqui, Eminência. Para a sala da frente.

            As divisões eram pequenas e acanhadas, com um cheiro omnipresente a couve cozida. Conhecia bem aquele tipo de casa. A sala da frente, a sala de estar, só era utilizada para os visitantes. Entrou e viu retratos do papa, imagens da Virgem Maria, um homem com a farda de soldado da Primeira Guerra Mundial e, incongruentemente, uma fotografia sua. E ali, a aquecer as costas a um lume de carvão, estava Jop.

            -           Eminência - disse Jop respeitosamente, mas sem deferência.

            Ao contrário dos outros, Jop estava habituado à presença de cardeais, de chefes russos, de ministros e de equipas de televisão. Avançou então apontando para uma das cadeiras de braços estofada de pelúcia verde e que fazia parte da mobília da suite.

            Sentou-se. Imediatamente entrou a mulher forte, agora apresentada como "Mila, a minha mulher". Estava nervosa e excitada, perturbada pela presença dele em sua casa.

            - Podemos oferecer-lhe qualquer coisa, Eminência? Vodca ou slivovitz, um copo de chá? Preparei uma ceia fria, nada de especial. Se nos quiser dar a honra?

- Não, obrigado.

            Sorriu para ela, habituado a recusar a hospitalidade que os camponeses acham seu dever oferecer a um estranho que entra em sua casa.

            -           Tem a certeza, Eminência? - perguntou a velha que era a mãe de Jop e que continuava à porta, como se esperasse a bênção.

            -           Acabei de jantar. Obrigado, mãe - disse a sorrir.

            -           Mas tome alguma coisa, Eminência - disse a mulher de Jop.

            -           Então, um copo de leite frio. Isso sabia-me bem.

            Sorriu para Jop, que esperava com uma impaciência mal disfarçada que aquelas civilidades acabassem. Se um pintor do realismo socialista fosse encarregado de pintar o retrato do trabalhador leal, talvez escolhesse Jop como modelo. Os seus ombros e os antebraços fortes pareciam feitos para segurar a pá e a picareta. A sua cabeça monumental era nobre com a de um busto de procônsul romano, caracóis grisalhos esculpidos, o maxilar erguido, a pele porosa como a pedra salpicada com a marca de honra da sua tarefa, o pó do carvão que nem anos de banhos tomados à saída da mina podiam lavar. E, contudo, ao recordar Jop, o Jop dos últimos oito anos, sabia que já não era o operário, nem nunca voltaria a ser: agora era Jop, o actor, condenado a desempenhar por toda a vida o papel de porta-voz não oficial dos trabalhadores daquele país, um homem sempre à espera nos bastidores, das luzes quentes e das câmaras de televisão, dos encontrões da multidão, das aclamações, das mãos que o agarravam ao passar pelo átrio cheio de gente do sindicato: um papel não completamente diferente do de um prelado de sedas carmesins.

            - Pronto, mãe - disse Jop, mandando-a embora.

- Fez sinal ao homem de calças de moleskin. - Tu, Mijal, guarda a porta.

            A porta da sala de estar fechou-se. De repente, a pequena sala ficou em silêncio. Por cima da lareira, um relógio inglês barato fazia o seu tiquetaque sonoro entre dois cães de louça branca e preta.

            -           Já andou na guerra, Eminência? Agora sabe como é - disse Jop a sorrir. - Para onde o levaram, para a Rua Skoura ou para a Cidadela?

            -           Então não sabe. Não foi a Polícia de Segurança que me raptou. Foi o contrário.

            -           Não foi a Polícia de Segurança? A imprensa estrangeira disse que sim.

            -           Ouça, Peter, não tenho tempo nem para contar nem para ouvir mentiras. Está a dizer-me que não sabe quem me raptou?

            -           Dou-lhe a minha palavra de honra, Eminência. Não sei nada disso.

            -           Está bem, Peter, acredito em si. Mas sabe disso da "manifestação da vontade nacional", ou lá o que é, que lhe chamam. Estão a planear uma greve geral: fábricas, centrais eléctricas, serviços, tudo. Não é verdade?

            Jop virou a cara e olhou para o pequeno fogo de brasas que ardia na lareira de azulejos verdes, baratos.

            -           Ouvi dizer que era uma coisa de um dia, uma greve geral, para mostrar ao Poder o que o povo é capaz de fazer. Mas é preciso que saiba, Eminência, que não estou de acordo. Não é a melhor altura. Manifestei-me contra isto no Conselho de Sindicatos. O Poder não vai encarar isto com uma greve. Vão ver nisto uma provocação a que não podem virar costas.

            -           Tem razão. E quando é que vai ter lugar?

            -           Esta semana, não é? Ouvi dizer que era na sexta-feira, três dias depois das festividades de Rywald. Alguém vai falar na missa de Rywald. Deve saber disso, Eminência.

            -           Não sei.

            -           De qualquer modo não fomos nós que começámos isto, foram os padres - comentou Jop.

            -           Que padres?

-           Disseram-nos que toda a Igreja estava por trás disto, incluindo Vossa Eminência.

            Ergueu o olhar. A porta da sala de estar abria-se e a mulher de Jop entrava com um copo de leite num tabuleiro.

            -           Muito obrigado - disse, esforçando-se por lhe sorrir.

            Sentiu tremer-lhe a mão ao pegar no copo.

            Desajeitada e deslumbrada, fez um sinal afirmativo e retirou-se.

            -           Eu não estava por trás disto. Por isso é que me raptaram. Peter, você disse que o momento não era o adequado. E pior do que isso. Se acontecer será um acto de suicídio nacional. Não aprendemos nada nos últimos vinte anos?

            -           Já disse que não me agrada, Eminência. Não é o estilo do Sindicato. Nunca forçámos o Poder a escolher entre eles e a Igreja. Eu estava contra isto.

            -           óptimo. Então tem de ajudar-me.

            -           Não é fácil, Eminência. Desculpe.

            -           Porquê?

            Lá fora, na noite, os cães começaram a ladrar outra vez. Aproximava-se alguém? Viu Jop olhar para o relógio, depois voltar-se para ele e dizer de cabeça baixa como se estivesse em confissão:

            -           As coisas são assim, Eminência: os sindicatos já não têm voto na matéria. Não podemos dar-nos ao luxo de falar contra a Igreja. Desde a greve de Borodin que temos de tentar mostrar ao povo que não o desiludiremos novamente. Se o povo quer esta manifestação e a Igreja está por trás dela, então temos de alinhar.

            Jop cerrou os punhos com força, como se fosse bater em alguém.

            Olhou para aquelas mãos de unhas enegrecidas para sempre pela permanência na mina.

            -           Peter, você é o chefe do sindicato - disse. - Os homens ouvi-lo-ão.

-           Não - respondeu Jop. - Estou no mesmo barco que o senhor. Não posso modificar os sindicatos. Já decidiram alinhar. E talvez o senhor não consiga modificar a Igreja.

            -           Eu sou a Igreja. E isso não acontecerá. Prometo.

            -           Espero que tenha razão, Eminência. Posso dizer aos outros aquilo que me disse?

            -           Com certeza. E agora tenho de chegar a Gneisk. Esta noite, se possível. Pode ajudar-me?

            -           Transporte? Claro. Se não se importar de viajar de camião, podemos tratar disso já.

            -           Obrigado. Sei que seja quem for que me leve corre riscos.

            Jop foi até à porta da sala e chamou:

            -           Mijal. Vai buscar o Janik. Diz-lhe que precisamos do camião de meia tonelada. E os outros venham cá que o cardeal Bem nos vai dar a sua bênção.

            Entraram, todos, a mulher de Jop, a mãe, dois adolescentes e outra mulher, que trazia uma criança ao colo. Entraram olhando para ele, com aquele misto de timidez e curiosidade que ele tão bem conhecia. Mas agora sentia-lhes a perturbação. Poderia ser aquele o mesmo cardeal que, de vestes carmesins, lhes sorria lá da fotografia que tinham na sala? Ajoelharam-se todos na sua frente, incluindo Jop. Fez o sinal-da-cruz e eles fizeram-no também. Fechou os olhos, tentando, mais uma vez, entrar nesse lugar de silêncio, onde Deus esperava, observava e julgava.

            -           Senhor, pedimos a Vossa bênção. Concedei-nos a paz.

 

Capitulo 17

O seu novo motorista apresentou-se-lhe como Janik. Era um homem de meia-idade e usava um boné de cabedal à aviador da Primeira Guerra Mundial. Era taciturno. Desde que saíram do quintal de Jop até chegarem à auto-estrada principal, quinze minutos depois, foi sempre calado. Só quando se aproximavam de um letreiro que dizia "Auto-estrada Norte-Sul" se voltou e dirigiu ao seu passageiro.

            -           Levamos um carregamento de briquetes de carvão. Se lhe perguntarem diga que vamos entregá-lo no armazém do Estado, em Gneisk. Tenho aqui uma nota de encomenda. - Ao dizer isto apontou para uns papéis presos por um elástico à pala que havia sobre o pára-brisas. - Procure no porta-luvas. Há-de encontrar um bilhete de identidade temporário. Está caducado, mas não interessa. Se perder o seu bilhete de identidade permanente, os estúpidos do Arquivo de Identificação dão-lhe um destes por um mês. Mas toda a gente sabe que leva seis meses a conseguir-se um novo.

            Estendeu a mão para o porta-luvas e descobriu lá dentro um bilhete de identidade provisório, gasto e sujo. Dizia que o nome dele era Stanislaus Wick, que tinha quarenta e seis anos de idade, media um metro e sessenta e sete, tinha cabelo castanho e olhos azuis. Tal como as roupas, também aquele novo bilhete de identidade não lhe assentava bem.

            -           Este tipo é muito mais baixo do que eu - comentou para o motorista.

            -           Não interessa. Eles nunca reparam. Por isso trazemos os briquetes. As pessoas sabem que quando se trazem briquetes num camião deste tamanho não se vai para nenhum armazém do Estado. Por isso quando os polícias nos mandarem parar é para tirarem uns briquetes para eles. É coisa difícil de arranjar, mesmo numa zona de carvão.

            -           E o Exército? Parece-me que são eles que andam a fazer a patrulha nas estradas.

            -           O Exército anda à procura de carros roubados e de armas. Não traz nenhuma arma, pois não?

- Não, não.

            -           Então está bem. A música incomoda-o?

            Abanou a cabeça. A música tão alta como um órgão no coro da igreja inundou a cabina do camião. Na mistura dos ritmos musicais, os seus pensamentos iam correndo por um labirinto de hipóteses desagradáveis. Recordava-se dos tempos em que as tropas do Pacto de Varsóvia se haviam reunido na fronteira, depois de um comunicado fabricado pelos Soviéticos anunciando que grupos contra-revolucionários haviam desencadeado uma confrontação aberta com o Governo. Podia voltar a acontecer. Só que esse comunicado não seria forjado. "Os panfletos são reais. Será possível que os Russos se sirvam deste incidente para se livrarem do actual Governo e instalarem outro mais adaptável às regras de Moscovo? E se assim é, será meu dever evitá-lo?"

            Estava cansado. A música e a fita de estrada que se estendia à sua frente, branca e deserta sob a luz dos faróis, agiu como hipnose para o mergulhar no sono. Acordou ao fim de mais ou menos uma hora e viu que o camião passava por uma aldeia de ruas desertas e casas escuras. Pararam nos semáforos e reparou nas frontarias das lojas com os taipais fechados, situadas numa praça e num gato que corria como um ladrão pela rua para se esgueirar por um beco. A luz mudou para verde. Enquanto o camião avançava, viu, do outro lado da aldeia, a luz vermelha intermitente de dois carros parados na rua. Voltou-se para o condutor:

            -           O que é aquilo?

            -           Não sei. E a hora má da noite - respondeu enigmaticamente o condutor.

Continuaram. Enquanto avançavam, a luz vermelha intermitente ficou fixa. Um polícia fardado estava de pé ao lado da luz, com uma arma automática. O camião parou. Imediatamente foi rodeado por três polícias. Um deles apontou uma lanterna para o carregamento de briquetes. Momentos depois alguém saltou para dentro do camião pela porta de trás. Janik, o condutor, voltou-se para ele e piscou o olho.

            -           Bem lhe disse - comentou.

            De repente uma luz muito forte brilhou apontada para a cabina.

            -           Identificação - disse uma voz.

            Ele estendeu o bilhete de identidade temporário. Janik entregou o seu ao polícia que estava do outro lado do camião. Ao fim de pouco tempo os bilhetes foram devolvidos.

            -           Têm a nota de encomenda para estes briquetes?

-           perguntou uma voz. Janik tirou os papéis que estavam na pala. Houve um momento de silêncio.

            -           Armazém de Scarnia - disse a voz. - Está bem, vamos lá levá-lo.

            -           O quê? - A voz de Janik soou alta e em tom de surpresa e ofensa.

            -           Temos ordem para verificar todas as entregas. Temos de telefonar para o armazém de Scarnia para saber se está tudo em ordem.

            -           Mas a meio da noite? - perguntou Janik.

            -           Então, vamos ter de esperar até de manhã - disse a voz. - Chegue-se para lá.

            De repente abriu-se a porta da cabina do lado dele e um polícia fardado subiu para o seu lado.

            -           Pronto - disse o polícia a Janik. - Vá em frente e depois vire na primeira à esquerda.

            Janik destravou o camião.

            -           Não me ralo nada com estes briquetes. Não vou passar uma noite numa esquadra da Polícia por causa da porcaria dos briquetes. Querem-nos? Fiquem com eles. Despejo-os na esquadra, se quiserem.

            O polícia não respondeu. O camião virou à esquerda.

            -           Até ao fundo da rua - indicou o polícia. - Agora volte aqui. Isso mesmo.

Os faróis do camião iluminaram um pátio, onde estava estacionado um carro da Polícia. Havia também outros dois carros.

            -           Não estou a brincar - disse Janik. - Até os descarrego, se quiserem.

            O polícia ignorou a frase.

            -           Pronto. Os dois venham comigo. E dêem-me a chave da ignição.

            Há muitos anos que não entrava numa esquadra. Quando era um jovem padre, algumas vezes entrara lá para arbitrar uma discussão de família ou tentar libertar, sob caução, um paroquiano bêbado. Mas agora, ao entrar na sala principal da esquadra, o polícia conduziu-os logo a uma espécie de jaula que havia numa divisão das traseiras. Lá dentro, vários homens e mulheres dormiam em catres, enquanto outros estavam de pé ou passeavam de um lado para o outro no chão entre um fedor a vodca e a vomitado.

            -           Espere aí, o que é isto? - protestou Janik. - Não fizemos nada, pois não?

            O polícia abriu a porta de barras de aço.

            -           Há camas lá dentro. Ainda são umas seis ou sete horas antes que possamos telefonar para o armazém, não são? Vá, lá para dentro.

            A porta fechou-se. O polícia deu a volta à chave. à secretária, na sala principal, estava outro polícia, todo enrolado a dormir com a cabeça apoiada nos braços. Na parede por trás do polícia havia um painel com fotografias de pessoas desaparecidas e criminosos procurados pela Polícia. Um dos papéis afixados era maior e estava exposto em evidência. Era diferente, na medida em que não tinha mensagem escrita. Era apenas a reprodução de uma fotografia e por baixo lia-se "PROCURA-SE". O rosto na fotografia era o dele.

            Desviou a cara como se o seu rosto na fotografia o tivesse reconhecido e o fosse denunciar, revelando a sua identidade. Nervoso, foi até junto de Janik, que acendera um cigarro e estava também a espreitar por entre as grades.

            -           Olhe, ali por cima do que está a dormir - disse ele.

            Janik deitou dois rolos de fumo pelas narinas e comentou:

            -           Bom, se eu fosse a si ia-me deitar.

            Foi até à fila de catres e, passando junto de um homem que ressonava num catre inferior, subiu para o de cima e estendeu-se no enxergão duro a cheirar a suor. Virou a cara para a parede. "Se ao menos não for reconhecido, tenho hipótese de que nos deixem sair amanhã de manhã. Mas os briquetes destinam-se ao mercado negro ou estarão mesmo programados para entregar em Scarnia? Tenho de perguntar ao Janik."

            Era demasiado perigoso sair do catre. Se um polícia ao passar o reconhecesse ou se um daqueles infelizes bêbados olhasse para a fotografia e depois para a cara dele? "Se fico aqui detido não posso deter o Krasnoy, nem impedir que aconteça o pior."

            Sentiu a pesada agonia do desespero. Acudiram-lhe à mente as palavras de S. Paulo: ""Quem conheceu os desígnios do Senhor ou quem foi Seu conselheiro? Como é insondável o Seu juízo e imperscrutáveis os Seus desígnios." Se for Sua vontade que eu seja reconhecido e preso, quem sou eu para questionar essa vontade? Tudo quanto posso fazer, tudo quanto devo fazer, neste momento, é rezar."

            Rezou. Enquanto rezava, um pobre diabo vomitou ali perto enquanto outro praguejava a dormir. Sofrer vitupérios em nome de Jesus não fora o que outrora desejara?

            Uma voz chamou pelo seu nome. A porta da cela abriu-se e um polícia foi direito a Janik.

            -           Está a dormir, ali em cima - disse este.

            Uma mão sacudiu-o pelo ombro.

            -           Vá. Desça daí.

O polícia levou-os até à sala principal da esquadra, onde, de pé, ao lado da secretária, estavam dois jovens de calças de ganga e com impermeáveis de imitação de pele. Um, que era muito alto, mascava um pau de fósforo que puxou para o canto da boca antes de falar.

            -           Qual de vocês é Janik Stryka?

            Janik levantou dois dedos fazendo uma continência irónica.

            -           Você é o cunhado de Peter Jop, não é verdade?

            -           E tenho muito orgulho nisso - respondeu Janik.

            O homem alto virou-se para o polícia que os detivera na barragem de estrada.

            -           Vínhamos a segui-los, mas a porcaria do carro avariou-se, por isso lhe telefonámos para os deterem. Revistaram-lhes o camião?

            -           Revistámos. Só trazem briquetes de carvão.

            O homem alto voltou-se novamente para Janik.

            -           Com que então vão para Gneisk. A meio da noite.

- Apontou e perguntou: - Quem é este?

            à sua frente, enquanto o polícia da Segurança falava, estava a sua fotografia, cabeça e ombros, vestido de sotaina e capa. Os polícias da Segurança estavam de costas para a fotografia.

            -           Documentos - ordenou o mais alto.

            Estendeu-lhe o bilhete de identidade temporário. O polícia olhou para o bilhete e depois para ele.

            -           Cresceu um bocado, não cresceu? - Voltou-se para o outro polícia de Segurança e ordenou: - Revista-o.

            O outro jovem avançou apalpando rapidamente ancas, nádegas, peito e abrindo-lhe depois o casaco largo.

            -           Esvazie os bolsos! Atire a porcaria do lixo que tem para o chão! Depressa!

            Não tinha outros pertences além do bilhete de identidade temporário, o anel e o dinheiro, que atirou para o chão.

            -           É tudo? - perguntou o mais alto.

-           É.

            Nesse momento, o outro começou a remexer-lhe nos bolsos virando-os do avesso. Tirou o verdadeiro bilhete de identidade e estendeu-o ao outro polícia.

            -           Está mais parecido - comentou o segundo, analisando-o. Olhou novamente para ele e depois ergueu o

olhar, excitado, como se acabasse de ganhar a lotaria. Bem. Cardeal Bem!

            Os polícias fardados e os outros dois da Segurança rodearam-no como se ele fosse um animal exótico. O segundo homem da Polícia de Segurança olhou para a parede e arrancou o poster do sítio onde estava colocado. Como um actor desempenhando uma pantomina, avançou a dançar toscamente e ergueu o poster acima da sua cabeça cantarolando.

            -           Olhem só o que está aqui!

            O polícia alto olhou para a fotografia com um interesse desesperado e soltou um berro que ecoou fantasticamente pela sala.

            -           Jesus Cristo de uma figa! Oh, desculpe, Eminência.

            Virou-se para o segundo homem da Segurança.

            -           Graças a Deus, Boychik, pela porcaria da tua banheira Fiat. Se não tivesse empanado iríamos atrás deles até Gneisk e deixávamo-los ser apanhados pelo pelotão de Gneisk. E não receberíamos qualquer louvor!

            -           Fui eu quem os deteve a vosso pedido - disse o polícia fardado.

            -           Ai isso é que foste. Eu me encarregarei de te arranjar um louvor. Agora põe-lhes uma corrente qualquer. Onde diabo está o telefone vermelho?

            -           Ali. - O polícia fardado apontou para uma sala lateral. Mais uma vez o homem da Segurança soltou o seu uivo fantasmagórico. - Vamos, rapaziada. Vamos dizer ao major.

            O polícia fardado apareceu com um conjunto de algemas. Janik e ele foram primeiro algemados e depois as mãos presas por uma corrente aos tornozelos, que estavam igualmente algemados. Enquanto fechava as algemas dos tornozelos o polícia olhou para ele e disse:

            -           Peço-lhe desculpa, Eminência. Sou um bom católico. Mas este é o meu trabalho.

            -           Não faz mal - respondeu.

            Com ar contristado, levando-os puxados pelas correntes, como se fossem à trela, o polícia conduziu-os a um banco ao lado das casas de banho. Ficaram sentados, algemados e de frente para a dependência onde era a prisão, cujos ocupantes vieram em magote pôr-se junto às grades a olhar para eles.

-           Meti-o num grande sarilho - disse ele a Janik.

- Não se preocupe, Eminência. Estou habituado a

ser hóspede do Governo. Para onde nos levarão, faz ideia?

-           Não sei.

            Nesse momento o polícia da Segurança mais alto saiu da divisão lateral seguido do seu colega. Foram até à secretária a sorrir.

            -           Serviço de VIP - disse o mais alto para o polícia fardado que estava à secretária. - Onde é o aeroporto de Mito?

            -           É uma base militar a uns dezassete quilómetros daqui.

            -           Certo. Precisamos de dois carros. Um para nós e outro para a escolta.

            -           Só temos dois carros - respondeu o carro.

- E um deles anda fora a fazer patrulha.

            -           Então toca a sirena e manda-o voltar. Vá!

 

Capitulo 18

Uma hora mais tarde, passando sob a lâmpada que estava à porta de uma barraca militar, ele e Janik caminharam desajeitadamente, devido às correntes, por um carreiro empedrado até a um bimotor que os esperava. Os homens da Polícia de Segurança que os acompanhavam pareciam nervosos. Mais perto do avião viu dois homens ao lado da escada dos passageiros. Um deles estava fardado de general do Exército, com listas verdes e cinzentas que o identificavam como membro do Estado-Maior. O segundo homem, muito mais novo, vestia um fato escuro, com uma camisa impecavelmente branca e uma gravata de lá vermelha. Tinha o cabelo colado à cabeça como se o crânio estivesse coberto de verniz preto. O rosto pálido em forma de pêra, de olhos grandes e distraídos, parecia mais um desenho mal acabado, feito por uma criança, do que um rosto humano. Foi aquela estranha criatura que chamou imediatamente a atenção dos polícias da Segurança.

            -           Quem é que pôs estas correntes? - perguntou numa voz sufocada de raiva. - Tirem imediatamente as correntes a Sua Eminência!

            O polícia da Segurança mais alto ajoelhou-se no cimento como se fosse um peregrino prestes a receber a bênção. Os dedos tremiam-lhe com a chave da corrente das pernas. O general fardado, um homem entroncado de cabelo grisalho e espesso como o pêlo de um terrier, aproximou-se e inclinou-se levemente.

            -           Sou o general Kor. Talvez se lembre do nosso encontro em Praga, quando eu fazia parte do estado-maior do ministro Scarzynski.

            -           Creio que não. E agradecia também que retirassem as correntes ao meu amigo.

            Indeciso, o general voltou-se para o homem de fato escuro.

            -           Creio que isso é uma questão que diz respeito à Segurança Interna. Por isso é consigo.

            O estranho rapaz aproximou-se.

            -           Segundo o nosso ponto de vista - disse na sua voz estrangulada -, a segurança dentro do avião seria melhor assegurada se o cunhado do senhor Jop fosse, pelo menos, algemado. Por isso, se não se importa...

            -           Mas importo-me. Se ele tem de ir algemado, então eu vou também.

            Os estranhos olhos do rapaz pareceram por fim fitá-lo. Depois deu um estalo com os dedos e imediatamente os polícias da Segurança se aproximaram de Janik e lhe tiraram as algemas.

            -           Como vê, queremos ser-lhe o mais agradáveis possível. Pedimos desculpa pelas correntes. Garanto-lhe que estes homens serão repreendidos. Agora, se quiser fazer o favor, por aqui... - apontou a escada dos passageiros.

- E tenha cuidado com a cabeça ao entrar no avião. Subiu a escada e entrou no avião, que era um aparelho militar desprovido de qualquer conforto. Um sargento ajudou-o com o cinto de segurança. O estranho jovem instalou-se à sua esquerda e o general à direita. Minutos depois elevavam-se no ar e o aeroporto de Mito era um pequenino oásis de luz na escuridão lá em baixo.

            O estranho jovem inclinou-se para ele e ofereceu-lhe um cigarro, elevando a voz para se fazer ouvir por cima do ruído dos motores.

            -           A viagem é só de meia hora, Eminência.

            Recusou o cigarro e perguntou:

            -           É da Polícia de Segurança?

            -           Sou.

            -           Como se chama?

            -           Não interessa, Eminência. Sou apenas a pessoa encarregada de escoltá-lo.

            -           Como se chama?

            -           Vrona.

            -           Então é o ministro da Segurança Interna, o general Vrona?

            O homem estendeu as mãos, de palmas viradas para fora, como se se rendesse, e respondeu:

            -           Sou, mas estes títulos militares parecem estranhos, quando somos polícias e não militares.

-           Mas mata pessoas.

            -           Os tribunais dão a sentença de morte - disse a voz estrangulada. - Não é a Polícia. O nosso interesse é a paz e a ordem dentro do país.

            O general Kor inclinou-se para a frente.

            -           Disse alguma coisa, Eminência?

            -           Não, nada.

            Pondo-lhe uma mão no joelho, como que para o acalmar, Vrona comentou:

            -           É difícil falar com este barulho, Eminência. Poupe o fôlego. Vai ter muito que falar depois.

            Lá fora, o céu clareava com uma palidez de pré-alvorada. Minutos depois desciam, lutando entre as nuvens para darem a volta ao rio Volya e irem aterrar numa pista muito afastada das utilizadas pelos voos comerciais. Eram esperados. Viu um camião ligeiro aproximar-se rebocando uma escada. Aguardando na pista estavam dois Ladas azuis e, por trás deles, surgindo de uma estrada secundária, vinha uma limusina preta, uma Zis, com os faróis nos máximos. Quando a porta do avião se abriu, o general Vrona saiu à frente dele, atencioso como um mordomo, avisando-o de que tivesse cuidado com o degrau, enquanto saía para a aragem fresca da madrugada. Ao fundo da passadeira de cimento, estavam postados soldados com armas automáticas a meio metro uns dos outros e o general fardado conduziu-o para a limusina, quando apareceu um capitão que, fazendo a continência, perguntou:

            -           É o general Kor?

            -           Sou, o que há?

            -           Foi sugerido que o prisioneiro viajasse no carro da Polícia de Segurança, dois veículos atrás deste. Por uma questão de segurança.

            -           Sua Eminência não é um prisioneiro - comentou o general, irritado. - Mas está bem, onde está esse veículo!

            E assim foi conduzido até um daqueles carros que tão bem conhecia, mas onde nunca tinha viajado, um anónimo Lada azul. Quando entrou para o banco de trás do carro, já Vrona lá estava. Este inclinou-se, observando a estrada que se estendia na sua frente, quando o Lada se pôs em movimento, com dois carros entre ele e a limusina. Os soldados que ladeavam a passagem viraram o rosto ao cortejo que se aproximava, olhando para a estrada como se por ela se aproximasse um inimigo nas sombras da alvorada.

            -           Para quê tanta segurança? - perguntou.

            -           Por causa da tentativa de assassínio da outra noite

- respondeu Vrona. - Claro que já sabe tudo sobre

isso. Tenho uma transcrição da sua conversa com os

médicos do hospital de Konev. Conhecia pessoalmente

o assassino, Eminência?

            -           Vi-o apenas uns momentos antes de morrer. Não era pessoa conhecida. Acho que estava bêbado.

            -           Sim - concordou Vrona. - Era um bêbado. Parece que não agia sob ordens de ninguém. Cremos que agia por sua conta. Concorda?

            -           Já lhe disse que não sei nada sobre ele.

            -           É pena. Por momentos, embora fosse tolice minha, provavelmente, cheguei a pensar que poderia esclarecer-me.

            -           Para onde me leva?

            -           Ainda não tomou o pequeno-almoço. Esse é o nosso primeiro objectivo.

Entravam agora nos arredores da capital. Os camiões do Estado eram os únicos veículos pesados que se viam àquela hora. Passavam por pessoas de bicicletas e lambretas e, de vez em quando, por compridas carroças de rodas de borracha que pareciam caixões sobre rodas e que ainda traziam os géneros das quintas e cooperativas dos arredores para o mercado central. Em breve se apercebeu de que estavam a contornar o centro da cidade e a entrarem pela Ponte Motowska, um caminho que pelos subúrbios norte os levava até à Avenida Lenine, que fora outrora a Avenida Konigsberg. Ao fundo da avenida, com as suas cores douradas devido a um céu avermelhado pela alvorada, viam-se as cúpulas curiosamente russas do velho Palácio Mallinek.

            Nesse momento, a limusina, os carros da escolta e

o veículo do Exército, que precediam os outros, separaram-se e voltaram na Avenida da Proclamação. O pequeno Lada azul prosseguiu sozinho, chegando aos portões principais do palácio, onde uma sentinela da Polícia saiu da sua guarita e com toda a naturalidade lhes fez sinal para passarem. Sozinho por uma larga alameda, resto de uma época mais formal, o pequeno carro virou à esquerda, no que ele reconheceu como sendo a entrada lateral que conduzia aos aposentos do primeiro-ministro. Esta alameda era de gravilha e as lascas de pedra solta iam batendo no châssis do Lada, até que chegaram a um alpendre fronteiro à porta. O homem da Polícia de Segurança que ia no banco da frente saltou de imediato, puxando o revólver e olhando atentamente em volta. Mas não havia ninguém à vista no jardim do primeiro-ministro, a não ser um soldado meio oculto por trás de um renque de loureiros, em frente da porta. Um criado esperava à porta, um homem idoso que noutros tempos devia ter sido mordomo. Trazia um casaco cinzento de camaroteiro e luvas de algodão também cinzentas, e curvou-se respeitosamente quando eles atravessaram o átrio.

            Chão de mármore de Carrara, bustos de mármore de príncipes, marechais e reis medievais davam ao átrio um ar fúnebre. Os passos deles soavam alto na escada de mármore nu, enquanto seguiam o velho criado até ao patamar do primeiro andar, onde dois soldados com a farda da Unidade de Blindados os esperavam de armas na posição formal de à-vontade, em frente da pesada porta com painéis de nogueira. Neste patamar havia também um homem da Polícia de Segurança com um walkie-talkie e, lá em cima num balcão, por trás do busto de mármore de um príncipe morto há muito, estava outro soldado, com a sua arma apontada aos visitantes. O walkie-talkie emitia estalidos ininteligíveis. Os soldados puseram-se em sentido. O homem da Segurança empurrou a pesada porta e Vrona fez-lhe sinal para entrar. Penetrou num soturno átrio, com as cortinas fechadas sobre a luz da manhã. Atrás de si a porta apainelada fechou-se. Ficou sozinho. Ali permaneceu, tentando penetrar com o olhar a escuridão, quando, de repente, se abriu uma porta à sua frente e nela se recortou uma silhueta: uma voz conhecida disse:

            -           Bom dia, Stephen!

            Avançou. Os aposentos particulares do primeiro-ministro pareciam, à primeira vista, terem sido mobilados como a biblioteca de um clube inglês. Um dálmata de manchas brancas e pretas veio até junto dele, cheirou-lhe a mão e afastou-se depois de o ter aceite como visita. Viu, para lá da biblioteca, uma segunda sala, onde uma elegante mesa de mogno, encravada num vão de janela, tinha em cima um serviço de café em prata, boiões de compota, mel e os tradicionais pãezinhos.

            -           Entre, entre - disse a voz sua conhecida. - Estamos sozinhos. Bom, é uma maneira de dizer. Há muito que deixei de me preocupar com essas coisas.

A luz da manhã, que vinha do vão da janela, iluminava o rosto do primeiro-ministro, que tinha vestido um velho camisolão militar, com remendos pretos de cabedal nos cotovelos, umas calças de bombazina e os sapatos e a camisa do mesmo tom do caqui. Parecia mais alto naquela manhã, ali de pé ao lado da mesa do pequeno-almoço. Sempre que se haviam encontrado, o primeiro-ministro estava sentado ou rodeado por um magote de ajudantes e guardas. Naquela manhã não parecia um militar, mas sim um professor com a cabeça aureolada por uma grinalda de cabelos alourados. Os óculos eram antiquados, de armação preta e pesada, e lentes por trás das quais os seus olhos pareciam maiores, desprendidos do rosto e indefinidos. O seu corpo era o de um soldado, forte, mas mais pesado devido à idade. "Modificou-se tal como eu. Estamos mais velhos." O primeiro-ministro fora seu condiscípulo em mais do que um local. Haviam ambos frequentado a Escola dos Jesuítas. Tinham ambos ganho o prémio para o melhor aluno de Latim, com um ano de diferença.

            Quando se sentaram à mesa, no vão da janela, o cão deitou-se aos pés do primeiro-ministro. Este, o general Francis Urban, parecia estar em sua casa, neste antigo palácio, e, na realidade, olhando para Urban, lembrou-se de que ele fora conhecido na escola como sendo um dos rapazes mais ricos, filho de um proprietário rural e descendente de uma família de militares distintos. Era natural que Urban se tornasse general e até primeiro-ministro. O que não era natural era o percurso que fizera até chegar a esse cargo.

            -           Café? - perguntou Urban, pegando no bule de prata. - Parece cansado.

            -           Sem leite, por favor. Sim, estou um pouco cansado.

            -           Tem fome? - perguntou o primeiro-ministro estendendo o cesto dos pãezinhos.

            Naquele momento viu-se reflectido no espelho de moldura dourada que ia do chão ao tecto e se encontrava ao fundo da mesa: era uma figura indescritível vestida de trapos. Como se o mesmo pensamento tivesse ocorrido ao primeiro-ministro, Urban perguntou:

            -           Conte-me lá, Stephen, o que é que lhe aconteceu? Porque é que está vestido como um vagabundo?

            -           É uma história longa e também confusa.

            -           Conte-ma.

            -           Não posso. Não sei sequer se conheço essa história.

            -           Stephen, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Não acha que é um grave pecado dos homens de Deus agirem como terroristas?

             -           O que é que quer dizer com isso?

            O primeiro-ministro levantou-se e foi até à biblioteca e regressou com uma grande pasta cheia de fotografias a preto e branco que espalhou em cima da mesa. Mostravam o que parecia ser uma explosão de um edifício.

            -           Sabia disto, Stephen?

            -           Disto, de quê?

            -           Isto são os aquartelamentos militares da zona de Praga. Ontem alguém lá colocou uma bomba de meia tonelada na camarata. Mas por aquilo que calculo que você classificaria de um milagre, houve apenas ferimentos leves quando a bomba rebentou.

            Olhou novamente para as fotografias e de súbito sentiu-se agoniado.

            -           Porque é que diz "homens de Deus"?

            -           Porque uma hora depois de isto ter acontecido interceptámos uma emissão clandestina, algures na província de Gneisk. Um grupo que se autointitulava de "Lutadores Cristãos" reivindicou a responsabilidade. E a emissão terminou com as palavras: "Vinde à nossa missa a Rywald. Recordai-vos dos Mártires Benditos."

            -           Os Lutadores Cristãos? Quem são eles?

            -           Quem? - Os olhos do primeiro-ministro rodaram rapidamente por detrás dos óculos como se quisessem detectar algum ardil oculto. - Acho que são os mesmos que o raptaram.

            Prisbek, o major, o coronel e a estranha freira. Olhou para Urban e disse lentamente:

            -           Talvez. Mas porque haviam de se querer fazer passar como sendo da Polícia de Segurança?

            -           Não sabe? - perguntou Urban com um toque de fúria na voz. - Era uma conspiração para o retirarem de circulação e fazer com que o mundo exterior pensasse que tínhamos sido nós.

            -Mas porquê?

            -           Porquê? Deve saber porquê! Pare com esses truques jesuítas, Stephen. Não tenho tempo para mentiras!

-           Não estou tão bem informado como você. - E continuou a perguntar: - porque haviam eles de querer culpar a Polícia de Segurança?

            -           Porque se você fosse preso pela Polícia de Segurança era sinal de que estava metido nesta conspiração. Como realmente é capaz de estar.

            -           Não sei nada sobre essa conspiração. Ninguém confiou em mim, nem sequer o meu pessoal.

            -           A sério? Então você é a parte inocente do caso. Assim sendo, porque é que quando fugiu daquela gente que pensava ser da Polícia de Segurança não foi para a sua residência? Porque é que foi encontrar-se secretamente com Jop? Quem é que o trouxe a Gorodok? Porque é que traz essa roupa e porque é que viajava num camião de carvão a noite passada, conduzido pelo cunhado do Jop até Gneisk? Não é o tipo de comportamento de uma pessoa inocente. E que me diz àquela espécie de panfletos que os seus padres andam a distribuir para incitarem a uma manifestação nacional? Quer uma confrontação connosco ou com o nosso poderoso vizinho? Há anos veio ter comigo e pediu-me que o ajudasse a estabelecer um acordo entre a Igreja e o Estado. Ajudei-o nesse acordo. Pus em risco a minha carreira política, nessa altura, lembre-se disso! Fi-lo para evitar mais conflitos. Fi-lo pelo bem nacional.

            O bem nacional. Olhou para aquele homem afogueado, de olhos furiosos por detrás das lentes grossas. Durante os anos que estivera no poder, Urban sobrevivera a greves, motins por causa de alimentos e uma mudança na chefia do Partido, sempre com aquela frase nos lábios: "O bem nacional." Para Urban não havia diferença entre a Nação e o Estado. Não era o bem nacional, mas a preservação do Estado o que ela servia. Era verdade que tornara possível a concordata entre a Igreja e o Governo, o que permitia à Igreja ter uma palavra a dizer nos seus próprios assuntos. Era também verdade que esse acordo fora sistematicamente quebrado. Mas não era altura para puxar esse assunto.

            -           Interessa-me tão pouco o conflito social quanto a si.

            -           Então, e isto? - perguntou o primeiro-ministro estendendo a fotografia do edifício destruído, com a mão trémula de fúria. - Está a perceber o jogo que os seus padres estão agora a montar? A fazerem olhinhos aos terroristas? Quer que este país se torne igual ao Ocidente, com terroristas a fazerem ir pelos ares aeroportos e a matarem gente? Sabe que não vamos tolerar uma coisa dessas... Já para não falar da reacção do nosso poderoso vizinho. Terroristas de direita em países do Leste. E apoiados pela Igreja!

            -           Isso é um disparate - retorquiu. - A Igreja nunca apoiaria o terrorismo.

            -           Então, o que diz a estes panfletos?

            -           Essas coisas foram feitas sem o meu conhecimento. Eu estava a tentar pôr cobro a isso. É por essa razão que fui encontrar-me com o Jop.

            -           Ele está por trás disto?

            -           Não, mas os sindicatos vão ter de apoiar as manifestações, se elas se derem.

            -           Então, quem é que está por trás disto? Vou dizer-lhe o que penso. Os Cristãos Lutadores são um grupo terrorista financiado pelo Ocidente... provavelmente pela CIA.

            -           É provável, mas nenhum pequeno grupo terrorista conseguiria controlar as forças necessárias para uma manifestação nacional de protesto.

            -           Exactamente! E quem é que tem poder para calar o país, Eminência? O senhor! Por isso isto está a acontecer na véspera da celebração religiosa em Rywald.

            -           Isso é verdade e cada minuto que aqui estou a falar consigo é um minuto perdido, se quero deter isto.

            O primeiro-ministro inclinou-se e acariciou o pescoço do dálmata. Ao fim de um longo momento ergueu o olhar e disse:

-           Por uma vez, creio, quero crer, que estamos do mesmo lado. Diga-me, quem julga que está por trás disto tudo? Pode influênciar a minha decisão em deixá-lo ir-se embora ou não.

            -           Em primeiro lugar não tem qualquer direito de me deter. Em segundo, nunca estaremos do mesmo lado. Há anos você foi para a União Soviética como prisioneiro, detido após uma manifestação de estudantes. Cinco anos depois era oficial soviético numa escola militar especializada. Você, cujos antepassados lutaram pela independência deste país. Repugna-me ouvi-lo falar do bem nacional. Sabe que o seu regime é odiado e temido pela maior parte dos seus compatriotas.

            -           Você não entende o patriotismo como eu. Lembre-se que, apesar do que possa pensar de mim, estou a tentar manter este país unido. E só eu posso fazê-lo, por isso estou preparado para que não gostem de mim.

            -           Está a tentar manter este país unido como um satélite de uma potência estrangeira. Por isso não é um patriota, mas sim um agente do poder.

            -           E Roma? - perguntou o primeiro-ministro. - Roma não é uma potência estrangeira? A sua fidelidade não vai para Roma e, afinal de contas, para o Ocidente?

            -           Não confio mais do que você no Ocidente. Sabemos ambos que para o Ocidente este país é apenas um peão num jogo mais vasto. O Ocidente não se importa connosco e não nos ajudará.

            -           Viramo-nos então para Roma - disse o primeiro-ministro em tom irritado.

            -           As minhas ordens não vêm de Roma!

            Ao dizer isto apercebeu-se de que estava a gritar. "Não sou talhado para ser um dirigente. Porque é que me descontrolei? Porque é que falei como se o odiasse?"

            -           Desculpe, Francis. Não devia tê-lo insultado. Amo este país e tenho a certeza de que, à sua maneira, o ama também. Talvez tenha razão. Por uma vez temos o mesmo objectivo. Dê-me vinte e quatro horas. Não me mande seguir. Vou ver o que posso fazer.

            O primeiro-ministro inclinou-se novamente e acariciou outra vez o cão atrás das orelhas. A cauda do dálmata bateu no chão quando o seu olhar se cruzou com o do dono. O primeiro-ministro disse então:

            -           Sei quem é o homem com quem vai encontrar-se.

            -           Sabe? Então sabe também que o tempo é escasso.

            O primeiro-ministro não falou. Ficou ali sentado a observar as chávenas e os pratos do pequeno-almoço, como se fossem peças de um tabuleiro de xadrez. Por fim disse:

            -           Não posso prometer-lhe que não será seguido. Mas os que o seguirem serão discretos.

            -           Não pode haver prisões.

            -           Não posso prometer-lhe isso. Se tivermos necessidade teremos de agir. Dou-lhe vinte e quatro horas. Como é que vai viajar?

            -           Posso ter um carro? E como motorista gostaria de escolher o homem que estava comigo ontem à noite.

            O primeiro-ministro pôs-se de pé, entrou no gabinete e pegou no auscultador.

            -           Vrona, quer fazer o favor de chegar aqui? Ouviu as portas exteriores abrirem-se. O dálmata rosnou e encolheu-se. O cabelo de Vrona, colado ao crânio, brilhou à luz do sol matinal, quando ele entrou deitando um olhar cauteloso ao cão.

            -           Calculo que esteja ao corrente do que foi dito - comentou o primeiro-ministro. Vrona hesitou, quase timidamente, e depois fez um sinal afirmativo e sorriu.

-           Bom, é possível organizar as coisas como o cardeal deseja?

            -           Claro, mas posso perguntar se temos de facto possibilidade de dispor de vinte e quatro horas?

            -           Vrona, durante anos a Igreja prosperou baseada em prisões e perseguições. Com a prisão de cada padre fortalecemos a posição daqueles que são inimigos do Governo e do Partido. Não direi que confio no cardeal Bem. Mas sei que certas forças dentro da sua Igreja o tentaram enganar. Portanto, deve caber-lhe ainda o poder de alterar o curso dos acontecimentos.

            -           Mas será que ele o alterará? - perguntou Vrona, voltando-se e exibindo o seu estranho sorriso provocador, como que tentando negar o insulto das palavras. Não tenho nada de pessoal, mas, na minha opinião, Sua Eminência é um reconhecido inimigo do socialismo, um agente do Ocidente e um fomentador de agitação. De modo nenhum poderei pensar o contrário.

            -           Não estou interessado naquilo que você pensa, Vrona - atalhou o primeiro-ministro. - Já disse que decidi dar vinte e quatro horas ao cardeal Bem. Depois disso faremos o que temos a fazer.

            -           Com o devido respeito, sugiro que não se espere mais. Devemos agir já. Temos provas suficientes - replicou Vrona.

            O primeiro-ministro virou a cara a Vrona e esclareceu:

            -           Estamos a falar da lei marcial, Eminência. Se a decretar não a levantarei senão dentro de uma semana ou um mês. Agiremos para defender o Estado. Se houver qualquer manifestação, obstrução, greve ou seja o que for mando as tropas avançar sobre os manifestantes. Haverá prisões, detenções e interrogatórios como este país nunca conheceu. Farei isto porque tenciono demonstrar que somos capazes de continuar a gerir os nossos assuntos sem interferência estrangeira. Agora é consigo. - Voltou-se para o chefe da Segurança. - Vrona, arranje, por favor, o carro e o motorista. Sua Eminência não tem muito tempo.

            Vrona saiu da sala. O primeiro-ministro foi até à secretária e abriu uma gaveta.

            -           Tome. Pode precisar de algum dinheiro para a viagem. - Tirou um maço de notas dizendo: - Deix-me apenas contar isto. - Mas em vez de as contar escreveu qualquer coisa na margem das notas. Depois estendeu-lhas, acrescentando: - Pronto. Deve chegar. Uma dádiva do Estado à Igreja.

            Ele olhou para a mensagem que estava escrita na nota, na caligrafia perfeita e pequenina de Urban.

Se precisar de mim, telefone para O 4708000.

É um número seguro. Mensagem aí deixada chegar-me-a.

            Enquanto metia o dinheiro no bolso, as portas exteriores abriam-se e Vrona entrou no gabinete do primeiro-ministro.

            -           O carro está pronto e o seu condutor vem a caminho. Quer descer, Eminência?

            O dálmata do primeiro-ministro começou, de repente, a ladrar a Vrona, e o dono ordenou, correndo a segurar o cão:

            -           Deitado, deitado! Adeus, cardeal Bem.

 

Capitulo 19

            No fresco da manhã erguia-se sobre a cidade uma neblina que toldava o sol, tornando soturno o brilho dourado das cúpulas do palácio. Ficou à porta da entrada dos carros, à saída dos aposentos do primeiro-ministro, observado pelos polícias fardados, o soldado armado, o mordomo e, caminhando de um lado para o outro, a figura atenciosa mas intimidante do general Vrona. Ao fim de alguns minutos viu aproximar-se pela avenida principal a limusina preta que o fora esperar ao aeroporto. Atrás vinha um Lada da Polícia.

            Quando o Zis chegou junto do alpendre, Janik saiu do banco traseiro e aproximou-se dele a rir.

-           Ouvi dizer que queria um motorista, Eminência.

            -           Sim, Janik, se não se importar. - Reparou que o Lada da Polícia parara atrás da limusina e que o seu motorista viera ter com Vrona, trazendo as chaves do carro.

            -           Vá no carro da Polícia - disse Vrona apontando para o Lada. - Vamos mandar a limusina à frente com dois homens, não vão estar à sua espera. Vai para Gneisk, segundo creio. - Ele olhou para Vrona. Bom, não vai? Bem pode dizer-nos. Afinal, vamos ter de segui-lo para sua protecção, claro.

            Não respondeu. Viu Vrona estender as chaves do carro a Janik e, de novo, se viu, desta vez na chapa brilhante da limusina. E ao ver aquele estranho de roupas estranhas, percebeu que no último momento todas as regras haviam mudado. Já não era um homem a fugir da Polícia e escondido dos inimigos. Não havia tempo para qualquer tipo de cautela. A partir daquele momento tinha de chamar a si o perigo.

            -           Não, não vamos para Gneisk - disse. - Mudei de ideias. Dê, por favor, a Janik a chave da limusina.

            -           Está louco - bradou Vrona. - Este carro chama a atenção. Não temos interesse em vê-lo morto. Acredite que precisa da nossa protecção.

            -           Nesse caso, terei muito gosto em aceitar a escolta da Polícia. Mas viajarei nesta limusina.

            -           Mas onde vai? Uma escolta para onde? - perguntou Vrona.

            -           Para a Rua Lazienca.

            -           Não vai a Gneisk?

            -           Não.

            -           Se o escoltarmos até à sua residência vai parecer que foi detido por nós e que é agora libertado.

            -           Não têm de me escoltar. Mas garanto que no momento em que chegar à minha residência tenciono fazer um comunicado público dizendo que não estive detido pelo Governo.

- Podemos ter isso por escrito, Eminência?

            - Não precisam de uma declaração escrita. Têm a minha palavra.

            Enquanto falava entrou para o assento traseiro da limusina e fez sinal a Janik para que o acompanhasse. A porta da limusina fechou-se. Pela janela viu Vrona levantar a mão fazendo um sinal e imediatamente a polícia motorizada iniciou a marcha. O Zis avançou pela avenida principal e passou o portão saindo para as ruas da cidade. Atrás e à frente iam os Lada da Polícia cheios de homens armados. A polícia motorizada ziguezagueava à cabeça, bloqueando o trânsito e os cruzamentos, enquanto o cortejo, que fazia lembrar o de um chefe de Estado, avançava. Desceram a Avenida da Proclamação e entraram na Praça da Proclamação passando sobre os paralelepípedos onde três noites antes Joseph fora morto.

            "De agora em diante tenho de atrair a mim o perigo. Como sempre sou Vosso servo. Fazei em mim segundo a Vossa vontade."

 

Capitulo 20

            Os criados e o pessoal ficaram a olhar a limusina estacionada no pátio da residência; os rostos vinham ao seu encontro e havia vozes e perguntas, enquanto se apressava em direcção ao elevador que dava acesso aos seus aposentos. O telefone a tocar, ele, nu no chuveiro, a dar instruções em voz alta a Kris Malik, que estava no gabinete ao lado. Mais tarde, com Tomas a servir-lhe de camareiro, vestiu-se com a farda da sua vocação: casula, faixa de seda carmesim, solidéu e cruz ao peito. Nos seus espelhos tripticos viu novamente essa outra pessoa, símbolo da Igreja e da sua autoridade, quando Tomas, dobrando-se, apanhou as roupas velhas que havia deitado fora.

            -           O que fazemos com isto, Eminência?

            -           Espera. - Foi ao bolso do casaco e tirou de lá as notas que o primeiro-ministro lhe dera. Arrancou a ponta onde estava o número de Urban e estendeu as notas a Finder. - Leva isto e mete-o nos fundos para a educação religiosa.

            -           Eminência - disse Kris Malik, que vinha do telefone. - Acabei de falar com a televisão estatal. Dizem que pode fazer uma emissão gravada e não em directo. Não podem permitir uma emissão directa, sem saberem com antecedência o que vai ser dito.

            -           Não tenho qualquer objecção a que seja uma gravação. Mas a equipa terá de vir aqui. E o chefe do Secretariado?

            -           Monsenhor Grabski? Vem a caminho.

            -           E o padre Ley?

            -           Mandámos um carro buscá-lo, Eminência.

            Voltou-se para Finder, que estava à espera, com as mensagens de telefonemas que haviam sido recebidos na sua ausência.

            -           Foi celebrada missa por alma de Joseph?

            -           Foi, sim, Eminência, na catedral. Foi oficiada por Monsenhor Jelen.

            -           óptimo. Kris, telefona, por favor, para a residência do arcebispo Krasnoy e vê se consegues que ele atenda.

            Viu que Kris Malik hesitou. "Será possível... não, Kris não pode estar entre aqueles que se me opõem."

            -           Desculpe, Eminência, não tive tempo de explicar. Quando no sábado foi anunciado que havia sido detido pelo Governo, o Conselho Episcopal convocou uma reunião para aqui, esta tarde. Neste momento, o arcebispo Krasnoy vem provavelmente a caminho de Gneisk.

            "Então Deus guiou-me. Não fui para Gneisk."

            -           Quantos bispos assistirão?

            -           Sete, Eminência. O bispo Ziemski está doente.

            -           Nenhum dos bispos sabe que eu regressei?

            -           Não, Eminência, ainda não.

            -           Bom, deixemos as coisas assim. Padre Finder?

            -           Eminência?

            -           Quando os bispos chegarem quero que sejam conduzidos à sala principal, como de costume. Mas não digam que eu voltei. Eles devem chegar por volta das duas horas?

            -           Sim, Eminência. A reunião é às duas.

            -           E se os criados ou o pessoal lhes disser? - indagou Kris Malik. - Ou se o Governo anunciar que regressou... com certeza que o interesse do Governo será dizer que está são e salvo, e que não o raptaram.

            -           Sim, tens razão. - Tirou a ponta rasgada da nota.

-           Telefona para este número e diz ao primeiro-ministro que preciso de falar com ele com urgência. Telefona já. Finder, quando o padre Ley voltar mande-o ter comigo.

            -           Sim, Eminência. - Finder estendeu o bloco de mensagens. - E quanto a estas chamadas e mensagens?

            -           Mais tarde, agora pode retirar-se.

            Viu Finder sair e depois dirigiu-se à porta do seu gabinete. Kris Malik estava ao telefone.

            -           Sim, o cardeal... Sim, eu espero.

            -           Kris? - disse e depois hesitou. "O que é que posso dizer a Kris? Sempre me foi leal. Não há razão para suspeitar dele."

            -           Eminência? - Kris estendeu-lhe o auscultador.

            Esperou pela voz familiar.

            -           Cardeal Bem?

            -           Primeiro-ministro, vai haver uma reunião dos nossos bispos às duas horas da tarde. Ficaria grato se pudesse adiar a comunicação do meu regresso, digamos, até às duas e meia. Não quero que os bispos saibam antecipadamente que já cá estou.

-           Ouvi dizer que pediu tempo de antena - comentou o primeiro-ministro. - Espero que não esteja a planear qualquer truque.

            -           O discurso vai ser gravado. Como sabe, primeiro-ministro, é o senhor e não eu quem controla os meios de Comunicação Social.

            -           Muito bem. Atrasaremos a comunicação. Mas as notícias espalham-se depressa, já sabe.

            -           Eu sei. Obrigado, primeiro-ministro.

            Desligou e, nesse momento, Tomas veio do quarto, trazendo Bashar preso pela coleira. O cão esticou-se para ele louco de alegria.

            -           Teve saudades suas, Eminência - disse Tomas.

- E também do Joseph. Tem estado deitado, muito triste, desde que o senhor desapareceu.

            -           Então, solta-o. - Mal se viu solto, o cão pulou, disciplinado como um cachorrinho. Pensou naquele outro cão, o dálmata, de olhos fixos nos do dono. "Urban não é casado e dizem que leva uma vida ascética. Temos isso em comum: um cão aos pés da cama." - Pronto, pronto - disse, lutando com Bashar. - Tomas estendeu-lhe uma bolacha que ele deu ao cão e depois pôs-se de pé sacudindo a sotaina. - Kris, o que me dizes àqueles panfletos que apareceram este fim-de-semana?

            -           Sim, vi-os. Parece que foram distribuídos aqui em Gallin e na província de Gneisk.

            -           Por quem? Quem é que autorizou?

            -           Disseram-nos alguns párocos que foram autorizados pelo bispo Charnowski e pelo arcebispo Krasnoy.

            -           Perguntou alguma coisa a Krasnoy e a Charnowski sobre isto?

            -           Perguntou Monsenhor Grabski. Ambos os bispos negaram saber fosse o que fosse sobre isso.

            -           Acreditas neles, Kris?

            -           Não sei em que devo acreditar, Eminência. Descobrimos que os panfletos foram impressos aqui, na cidade.

-           Onde?

            -           Por uma tipografia clandestina no distrito de Praga. Chama-se LC. No ano passado imprimiram uns poemas de Lork e, na altura dos motins por causa dos alimentos, imprimiram um panfleto incitando o povo à rebelião.

            -           LC?

            -           Lutadores Cristãos, Eminência. É um pequeno grupo, mas Monsenhor Grabski crê que haja ligação com Washington.

            -           Como é que ele sabe isso?

            Kris sorriu.

            -           Não creio que saiba, Eminência. Como é do seu conhecimento, Monsenhor Grabski confunde hipóteses com factos.

            -           Kris, por favor, se não estás do meu lado é altura de dizê-lo.

            -           O que quer dizer com isso, Eminência?

            -           Pensas que sou um carreirista, um aliado do Governo?

            -           Como pode perguntar-me isso, Eminência?

            -           Um momento. Se a Igreja conseguir levar este país a uma paralisação, por qualquer tipo de manifestação nacional, conseguiríamos obter concessões do Governo?

            Viu o secretário hesitar.

            -           É apenas um palpite, Eminência, mas acho que é possível. Acho que os Russos permitirão que o general Urban resolva isto à sua maneira.

            -           Disseste "permitirão". Isso é uma resposta? Fazes parte disto?

            -           Não, Eminência. Como pode pensar isso?

            -           Desculpa. - Pôs a mão no ombro de Malik. - Mas quem sou eu para acreditar? Como podem estas coisas ter acontecido sem meu conhecimento?

            -           Eminência. - Era Finder à entrada da porta. - O padre Ley está aqui. Mando-o subir?

            Desviou o olhar de Kris e olhou para Finder. Seria de fiar? De repente sentiu-se envergonhado. "Claro que tenho de confiar nele. Não faças aos outros o que não queres que te façam, faz-lhes o que gostarias que te fizessem."

            -           Não - respondeu. - Vou descer.

            No átrio principal viu Jan Ley, uma figura frágil, embrulhada num cachecol de lá, embora o dia estivesse quente. Foi ao seu encontro e abraçou-o.

            -           Giannino.

            -           Tonio. O que está a acontecer?

            Mas, nesse momento, dois padres do Secretariado, que caminhavam de um lado para o outro no átrio a conversar, quase pararam, observando-os disfarçadamente.

            -           Vem, Giannino - disse, e conduziu Jan para uma pequena sala, a mesma onde falara com a mulher de Joseph na noite em que ele fora morto. Mais uma vez enfrentou a enorme imagem pintada de Jesus, que estava mesmo à entrada da porta e, mais uma vez, a mão da estátua, erguida no tradicional gesto de bênção, parecia avisá-lo de que tivesse cuidado com o que dizia.

            -           O que é que está a acontecer? - perguntou novamente Jan, mal a porta se fechou. - Há polícias e homens da Polícia de Segurança aos montes, como se fossem abelhas aqui à volta.

            -           Eu sou objecto da protecção do Governo.

            -           Fico satisfeito por saber isso. Sabes que voltando te expuseste a um grande risco?

            -           Ouviste falar no quartel que explodiu ontem, em Praga?

            -           Oh, meu Deus! Então é verdade, estão a planear actos terroristas.

            -           Quem? Henry Krasnoy?

            -           Não me parece. Quem quer que esteja por trás disto é mais perigoso do que Krasnoy.

            -           Ouviste falar num grupo chamado "Lutadores Cristãos"?

Viu Jan olhar para a imagem, como se ela tivesse dito alguma coisa.

            -           Eminência, quem é que mencionou os Lutadores Cristãos?

            -           O primeiro-ministro. Esta manhã. Também me falou da bomba de Praga.

            -           Oh, meu Deus! - exclamou Jan Ley. Foi até à mesa e sentou-se numa das cadeiras que a rodeavam. Sim, é possível.

            -           Mas quem são eles?

            -           Lembras-te de Waldemar Keller?

            -           Não o conheci. Ele não fundou uma revista clandestina para a intelligentsia católica? Foi publicada em Londres, não foi? Acho que denunciava a nossa concordata com o Governo.

            -           Sim, ele vivia em Londres, o tio dele era o príncipe Radors-Keller, lembras-te... da velha Frente Nacional?

            -           Disseste que vivia em Londres? Está cá agora?

            Jan Ley encolheu os ombros.

            -           Se o quartel de Praga explodiu, suspeito que sim.

            -           Então há ligação com os panfletos?

            -           O que queres dizer, Tonio?

            -           Foram impressos por uma tipografia clandestina, aqui. A tipografia chama-se LC, Lutadores Cristãos.

            Bateu alguém à porta.

            -           Sim?

            Era Finder.

            -           Chegaram as pessoas da televisão estatal, Eminência. Onde as ponho?

            -           O que é que fizemos da última vez?

            -           Filmámos no seu gabinete, Eminência.

            -           Está bem. Leve-os para lá.

            Mas, por fim, ficou decidido que seria filmado a uma varanda da residência com uma vista nítida da cidade por trás dele.

            -           Para as pessoas verem que voltou e que não há truque - disse o realizador da televisão. - Está bem, Eminência?

            -           Sim, claro.

            Escrevera umas palavras numa folha de papel e decorou-as rapidamente. Enquanto as câmaras o focavam, uma das pessoas da televisão falava para um microfone portátil.

            -           Stephen, cardeal Bem entrevistado na sua residência na Rua Lazienca, hoje.

            O realizador fez um sinal afirmativo para ele começar. Olhando para a câmara ficou pouco à vontade, como se já se estivesse a ver na televisão, ouviu-se como se as palavras lhe tivessem sido ditadas.

            -           Meu amado povo. Nos últimos dias foi emitido um comunicado errado, dizendo que eu fora detido pelo Governo. Quero afirmar categoricamente que esse comunicado não era verdadeiro. Nunca estive detido pelo Governo. Saí da minha residência e fui para o local de descanso para me preparar para o jubileu de amanhã em Rywald. Assistirei a essas celebrações onde vamos honrar o bicentenário dos Benditos Mártires. Abençoo-vos a todos.

            O realizador aproximou-se.

            -           Desculpe, Eminência, mas hesitou um pouco no meio. Quer repetir?

            -           Não. Obrigado. Isto não será transmitido antes desta noite, pois não?

            -           Não, Eminência. Vai ser transmitido no noticiário da noite.

            Quando as pessoas da televisão saíram, ficou à varanda, olhando para o pátio central. Estavam dois carros estacionados e outros começavam a chegar. Viu as figuras conhecidas saírem, cumprimentarem-se, formal mas amistosamente, como se fossem chefes tribais a encontrarem-se em terreno neutro. Alguns daqueles bispos eram mais novos do que ele, mas a maior parte deles era da sua geração. Viu John Charnowski, alto, de rosto esfolado e bexigoso, e a tremer do lado direito: a doença de Parkinson. Era um dos dois bispos que podia ter autorizado à distribuição dos folhetos. Viu Charnowski olhar à sua volta e depois dirigir-se ao bispo Kott puxando-o de lado. Os outros bispos, a falarem entre si, iam sendo agora conduzidos para a sala principal por Finder. Enquanto os via entrar, entrou um último carro no pátio. Era um enorme Buick americano, deselegante entre os carros europeus mais pequenos. O motorista saltou para fora e abriu a porta de trás. O arcebispo Krasnoy apeou-se, olhando o pátio em volta, e depois voltou-se para observar as janelas da residência.

            Deu rapidamente um passo atrás e escondeu-se no seu aposento.

            A sala de estar do palácio, onde se realizavam habitualmente as conferências episcopais, era grande e escura, com as formais cadeiras douradas e, nas paredes, retratos a óleo de bispos e cardeais que agora olhavam lá de cima os seus sucessores. Ao aproximar-se da porta viu que os bispos ainda não se tinham sentado e que os criados iam oferecendo chá e bolinhos. Entrou, de repente, e disse:

            -           Irmãos, sede bem-vindos.

            Os rostos voltaram-se para ele. A sala ficou em silêncio devido ao choque da sua presença. Alguns vieram imediatamente ao seu encontro, como que para o confortar. Havia mãos que apertavam as suas e vozes que falavam numa confusão de cumprimentos. A sorrir e a acenar com a cabeça, olhou para Henry Krasnoy, que, do outro lado da sala, trocara um olhar com John Charnowski, que confirmou o seu receio.

            -           Irmãos, queiram sentar-se, por favor.

            Esperou, enquanto as cadeiras douradas eram puxadas para junto da grande mesa de conferências.

            -           Esta reunião foi convocada devido à minha ausência. Graças a Deus voltei e bem. Não fui levado preso pelo Governo, como foi dito. Fui detido por um outro grupo. Algum de vocês sabe quem poderá ser esse grupo?

            Fez-se silêncio. Ele prosseguiu:

            -           O que é importante é que durante a minha ausência circularam panfletos a convocar uma manifestação nacional na próxima sexta-feira, três dias depois das celebrações do jubileu em Rywald. Chamou-me a atenção o facto de esse folheto ter sido redigido de uma forma que sugere o conluio da Igreja com essa manifestação. Pergunto-vos agora: alguém sabe quem escreveu aquele panfleto?

            Fez-se mais uma vez silêncio. O velho bispo Kott disse por fim:

            -           Diabos me levem se sei. Não foi distribuído na minha diocese.

            -           Nem na minha - afirmou o bispo Wior.

            -           Nem na minha - repetiram outras vozes.

            -           Então, onde é que foram distribuídos?

            -           Em Gallin - respondeu John Charnowski.

            -           E em Gneisk - afirmou Henry Krasnoy.

            -           E na minha diocese - disse o cardeal. - Vi-os

serem distribuídos por rapazes da Escola de Santa

Maria. E os rapazes foram presos pela Segurança.

Agora pergunto: onde tiveram origem esses panfletos?

Disseram-me que foram impressos na cidade.

            O chefe do Secretariado, Monsenhor Grabski, falou então.

            -           Eminência, é verdade que foram impressos e distribuídos aqui e noutros locais desta diocese. Tenho estado a tentar descobrir quem o autorizou, mas lamento dizer que há alguma confusão no caso.

            -           E quem autorizou a sua distribuição na sua diocese? - perguntou voltando-se para o bispo Charnowski.

            O rosto esfolado olhou para ele, com ar frio e provocador.

-           Eu, Eminência.

            -           E na vossa? - perguntou a Henry Krasnoy.

            -           Eu escrevi o panfleto - respondeu este.

            Houve um murmúrio geral em torno da mesa, a que ele pôs cobro levantando as mãos.

            -           Obrigado, irmãos. Quero dizer agora que desaprovo os sentimentos expressos nesse panfleto. Não haverá manifestação de qualquer espécie contra o Governo, como resultado das comemorações de Rywald, amanhã. As festividades são em honra de Deus e dos Benditos Mártires, a quem rezaremos e que um dia serão canonizados. Como sabem, a Igreja tem grande poder neste país. Esse poder é-nos dado por Deus com o objectivo de salvar a alma das pessoas e não para aventuras políticas. Não preciso de vos lembrar isso, irmãos. Podem existir outros assuntos episcopais que talvez queiram discutir já que chegaram até aqui para se reunirem. Mas agora, se me dão licença, gostaria de falar com o arcebispo Krasnoy e o bispo Charnowski nos meus aposentos. Obrigado.

            Levantou-se, deu a bênção e saiu. No corredor ficou à espera de costas para a porta aberta até que ouviu alguém sair. Voltou-se. Henry Krasnoy, de rosto corado, encarou-o. Por trás dele, a segurar o braço tremente contra o corpo, estava John Charnowski.

            -           Se quiserem fazer o favor de vir por aqui... há um elevador.

            No pequeno elevador suíço, que havia sido instalado uns anos atrás, porque o seu antecessor se avariara, levou-os para cima. Ninguém falou até ele abrir a porta do seu gabinete e os mandar entrar. Bashar, que dormia no tapete, levantou o olhar e depois escondeu o focinho entre as patas. John Charnowski foi até à janela e olhou lá para baixo, depois voltou-se e perguntou:

-           Porque é que há tantos polícias lá fora? É verdade que alguém tentou matá-lo? É mesmo para acreditar?

            -           É.

-           Como é que ele tentou matá-lo?

            -           Ele? - Olhou para Charnowski. - Conhecia o homem?

            -           Claro que não - respondeu Charnowski irritado.

- Foi-nos contada a história pelo seu secretário, o padre Malik.

            -           Desculpe. Acho que me tornei exageradamente desconfiado nestes últimos dias. Desculpe, John. Perguntou-me pelo homem. Disseram-me que é filho de Anton Danekin.

            Viu mais uma vez os dois trocarem um olhar tão rápido como o fechar de uma tesoura.

            -           Sim, o Danekin - disse John Charnowski. - Foi um chefe da Resistência durante a guerra... um grande patriota.

            -           Talvez. Mas era filho dele, Gregor.

            -           Porquê?

            -           Posso estar enganado, mas creio que podem ter-me achado um obstáculo para o plano que vocês, meus senhores, podem ter em mente.

            O rosto corado de Krasnoy escureceu ao subir-lhe à cara um fluxo de sangue, devido à fúria.

            -           A que é que se está a referir, Eminência? Está a insinuar que o mandámos matar? Está louco?

            -           Espero que não. E mais uma vez peço desculpa pelas minhas suspeitas, se são infundadas. Mas Henry identificou-se hoje como sendo o autor do panfleto, que foi impresso por um grupo chamado "Lutadores Cristãos". Danekin era membro dos Lutadores Cristãos.

            -           Quem lhe disse isso? - perguntou Krasnoy em voz alta, num tom de desafio.

            -           Ninguém. É uma suposição. Sei que a irmã dele, que conduzia o carro naquela noite, é membro desse grupo.

            -           O quê? - Com o braço a tremer, devido à paralisia, Charnowski virou-se para Krasnoy. - O que se passa, Henry?

-           Não tive nada a ver com isso - afirmou Krasnoy.

- Sim, conhecia o Danekin. Conheço a família. Gregor, o filho, foi comunista e era um bêbado. Ele e a irmã são ambos fanáticos. Se tentou matá-lo estava a agir por sua conta... totalmente contra as ordens!

            Fez-se silêncio na sala.

            -           Contra que ordens? - perguntou o cardeal.

            Ninguém respondeu.

            -           As suas, Henry?

            -           Claro que não. Não sou membro dos Lutadores Cristãos.

            -           Mas conhece-os?

            Krasnoy não respondeu. O bispo Charnowski aclarou a voz.

            -           Sim, conhecemo-los. São um grupo patriótico, um grupo de católicos que não está satisfeito com a actual política da Igreja.

            -           A que nível?

            -Bom... - Charnowski hesitou. - Não acreditam na cooperação com o Governo como o senhor acredita.

            -           Colaboração! - exclamou Krasnoy em voz alta e agressiva. - Colaboração com aqueles cujo objectivo é destruir a nossa fé e escravizar o nosso país.

            Olhou para Krasnoy durante um longo momento.

            - Percebe o que está a dizer? Eu sou o primaz deste país, investido da minha autoridade pelo papa. Insultou a minha posição e desafiou a minha vontade. Quer esse pecado na consciência? Quer?

            Krasnoy olhou rapidamente para o bispo Charnowski, que desviou o olhar como se não quisesse falar com ele. Ao ver isso, Krasnoy caminhou até à janela e ali ficou de costas para os dois. Enquanto falava olhava para o pátio lá em baixo.

            - Apercebo-me da gravidade do que estou a fazer, Eminência. Mas estou a agir de acordo com os ditames da minha consciência. Foram postas em movimento certas forças e é impossível pará-las. Creio e acho que é também a opinião do bispo Charnowski de que neste país, actualmente, a Igreja não tem a chefia de que precisa.

            -           Chefia, Henry? A que tipo de chefia se está a referir?

            -           Estou a referir-me à nova chefia da Igreja noutros países. Na América do Sul, por exemplo. Sabe ao que me refiro.

            -           Não sei. Segundo entendo, também você reprova a presente chefia da Igreja na América do Sul. Mas em qualquer circunstância não somos um país da América do Sul, mas do bloco soviético. Aqui não há possibilidade de uma solução extrema. Podemos obter mais concessões do Governo. Podemos forçá-los a darem passos no sentido de melhorarem as condições em que vive o nosso povo. Mas só se agirmos responsavelmente e no momento preciso. É essa a posição do Santo Padre, como muito bem sabe.

            -           Mas este é o momento preciso - disse Krasnoy.

         -  O país segue-nos.

            -           Segue quem? Os sindicatos não querem esta manifestação. Não a instigaram. Foi você que começou, não foi? E não sabe absolutamente nada sobre como dirigir uma greve ou negociar com o Governo. Henry, estou a pedir-lhe. Não me obrigue a levar isto a Roma!

            -           Não estou a obrigá-lo a nada, Eminência. Deve fazer o que achar que está certo. E eu também. Agora, se me dá licença, volto para Gneisk para terminar os preparativos para as comemorações de amanhã.

            -           Espere - disse. - Essa mensagem que escreveu, aquela que estava a planear para amanhã. Disse-lhe que a rasgasse e escrevesse outra. Fez isso?

            Krasnoy não respondeu.

            -           Amanhã estarei em Rywald. Depois da missa eu dirijo a mensagem. Não você. Está entendido?

            -           Eu sou o bispo de Gneisk - afirmou Krasnoy. Rywald é da minha diocese.

         -  E eu sou o cardeal. Não se discute mais.

            -           Então, se me dá licença. - Krasnoy encaminhou-se para a porta e parou. - John, quer que lhe dê boleia?

            O bispo Charnowski, segurando o braço tremente contra o corpo, olhou para ele e respondeu:

            -           Não, obrigado. Tenho o meu carro.

            -           Então, vemo-nos amanhã em Rywald.

            A porta fechou-se. O bispo Charnowski disse:

            -           Posso sentar-me, Eminência? Esta malvada perna está a doer-me.

            -           Claro, John. Sente-se aqui.

            Tenso, Charnowski sentou-se no banco de couro, virado para a secretária atafulhada de papéis. A cabeça começou a tremer-lhe incessantemente, como se tivesse perdido o controlo dos movimentos.

            -           Henry disse-me que os Lutadores Cristãos o tinham afastado por alguns dias para evitar que detivesse aquilo que esperávamos. Não sabia nada sobre essa outra coisa. Nunca tomaria partido em nada que pudesse prejudicá-lo...

            - O que é que esperava, John? Diga-me.

            A cabeça trémula do velho parou de tremer, quando ele desatou a falar:

            -           Uma demonstração da vontade nacional. Um grande grito dizendo: "Não!"

            -           Responda-me, John. Acha que o Santo Padre quer que o país se transforme num campo de batalha?

            -           Já não sei o que Roma quer - comentou o velho.

- Onde está o papa esta semana? No Brasil? No Japão? Quem sabe?

            -           Ontem um quartel foi pelos ares por acção dos Lutadores Cristãos.

            -           Que quartel? - A cabeça do velho começou novamente a tremer.

            -           Em Praga.

            -           Mas ele disse que talvez fosse uma greve... uma manifestação pacífica...

            -           Quem, John? Quem?

            -           Keller - respondeu o velho. - Waldemar Keller.

            -           É ele o chefe dos Lutadores Cristãos? Charnowski baixou a cabeça e ficou por momentos calado, como que perplexo.

            -           Se pôs uma bomba num quartel... então mentiu-nos... tenho de falar com ele. Tenho de falar já com ele.

            -           Leve-me consigo, John.

            -           Não posso. Está rodeado pela Segurança e eles seguiam-nos.

            -           Onde está ele? Na cidade?

            A cabeça de Charnowski começou novamente a tremer.

            -           Responda-me, John.

            -           Está em Rywald à nossa espera. Estarei lá à noite e falarei com ele.

            -           Então, diga-lhe isto: se houver mais actos de terrorismo eu incitarei o nosso povo a denunciar os seus autores. Além disso, recusarei os sacramentos da nossa religião e excomungarei os que os apoiarem.

            O velho de cabeça trémula fixou nele o olhar, sem dizer nada.

            -           JoIm, diz-lhe isso?

            Lentamente, naqueles olhos cor de ardósia que estavam a fixá-lo viu surgirem lágrimas que o tremor do velho fez com que lhe escorressem pelo rosto.

            -           Sim, Eminência. E desculpe-me.

 

Capitulo 21

            às oito horas dessa noite celebrou missa na capela da residência. Quando acabou, ajoelhou-se novamente em frente do altar, na extensa sombra de uma noite de fim de Verão. Ainda estava de joelhos quando Finder entrou, excitado, a dizer que o tinha visto falar no noticiário da noite.

            Levantou-se e saiu da capela. Enquanto passava pelos corredores das instalações episcopais ouvia os telefones a tocar e, ao chegar aos seus aposentos, estavam lá Kris Malik, Monsenhor Grabski e Tomas.

            -           Houve vários telefonemas - disse Malik. - Da imprensa estrangeira, da televisão americana e de algumas embaixadas do Ocidente. O que devo fazer, Eminência? Com quem quer falar primeiro?

            -           Com ninguém. Monsenhor Grabski, quer fazer o favor de dizer à imprensa que não vou dar entrevista nenhuma? Diga que estou a preparar o sermão que farei amanhã nas celebrações de Rywald.

            -           E as embaixadas, Eminência?

            -           Diga-lhes a mesma coisa. Não tenho tempo. Lembrem-se de que quero partir cedo para Rywald.

            -           Sim, Eminência.

            -           Kris, lembras-te daquela parte da alocução que o arcebispo Krasnoy tencionava fazer na missa de amanhã? Trouxeste-ma na noite do acidente.

            -           Sim, creio que... tenho de ver nos arquivos.

            -           Tomas, por favor, arruma os meus paramentos para as cerimónias de amanhã? Deram de comer a Bashar?

            -           Sim, Eminência.

            -           Amanhã, levas-me, Tomas. Quero que faças o plano da viagem de maneira a chegarmos antes da missa solene, que começa ao meio-dia.

            -           Sim, Eminência.

            -           Agora agradecia que me deixassem sozinho.

            Quando ouviu as portas fecharem-se foi para o quarto. Bashar saltou-lhe e a lutar com este na brincadeira ficou ajoelhado no chão durante vários minutos. Depois foi até à janela e olhou para as luzes da cidade e para a escura veia do rio que serpenteava entre essas luzes. Bashar ladrou e viu Kris que entrava vindo do escritório.

            -           Encontrei, Eminência.

            Pegou nas folhas dactilografadas e corrigidas e sentou-se no sofá de pele coçada, lendo rapidamente.

            -           Ouve isto, Kris. - Leu alto: - "No chão dessa floresta estão milhões de agulhas de pinheiro. Basta uma faísca para as incendiar. E o que é essa faísca? Não será a recente prova de que aqueles que governam sentem o maior desprezo pela Igreja? Este comportamento insensível para com a chefia religiosa da nação podia ser a faísca... etc." A que prova recente está ele a referir-se?

            Kris ficou a olhá-lo, confuso.

            -           Este discurso foi escrito para ser lido amanhã, mas foi escrito antes de os Lutadores Cristãos me terem raptado. Portanto, Krasnoy sabia que iam raptar-me. Mais tarde eu julgaria que fora a Segurança que me raptara. Esta manifestação teria tido lugar e eu estaria na ignorância do que estava, de facto, a passar-se.

            -           Mas, Eminência? Se os Lutadores Cristãos tentaram afastar-vos do caminho antes, podem bem tentá-lo amanhã.

            -           Não creio. O homem que tentou matar-me não fazia parte do plano de Keller. Além disso, agora não vai ser tão fácil, esquece que a Polícia de Segurança se ofereceu como minha guarda especial.

            -           Se puder trazer-lhe algo ou fazer qualquer coisa por si, esta noite, Eminência...

            -           Sim, Kris. Reza.

 

Capitulo 22

         Enquanto o carro se dirigia para os arredores de Gneisk, nuvens de chuva lançaram um lençol de água que cobriu a estrada. à frente iam dois Lada da Polícia de Segurança, que se asseguravam de que a estrada estava livre nos cruzamentos. Atrás seguiam-no de perto dois outros Lada com polícias à paisana, armados. Antes de sair da capital informara a Polícia de Segurança do seu destino e agora guiavam-no e protegiam o seu carro como se fossem uma escolta oficial. Nos subúrbios da cidade de Gneisk avançavam lentamente e começaram a encontrar-se com o final da cauda de trânsito de peregrinos, autocarros superlotados com passageiros já no tejadilho, camionetas carregadas muito para além da lotação, e, ao deixarem a cidade em direcção à montanha de Jasna, surgiram os camiões e as carroças cheios de famílias de camponeses. Os camponeses que conduziam as carroças iam de pé por trás dos varais, chicoteando os cavalos com medo de não chegarem a tempo.

            Agora, na estrada, começavam a ver-se bandeirinhas papais nos pequenos oratórios à Virgem que havia ao longo da berma e que tinham sobrevivido a quarenta anos de regime comunista. à frente via-se o maciço da montanha e o pináculo na Igreja de Rywald. O seu carro, a que a Polícia abria caminho, foi reconhecido. Elevou-se um clamor de aplauso e, nos outros carros, as pessoas inclinavam-se em sinal de respeito, enquanto ele acenava num gesto de bênção.

            -           Há mais peregrinos do que nunca - comentou Kris espreitando pela janela do carro.

            -           Será religião ou política? Virão aqui para adorar Deus ou para desafiar o Governo?

            -           Com certeza para adorar, Eminência. Creio que a fé do povo está mais forte do que em qualquer outra época da nossa história.

            -           Acreditas mesmo nisso, Kris?

            Sentiu o mal-estar do seu secretário. Dali a um momento Kris perguntou:

            -           O que quer dizer com isso, Eminência?

            -           Acho que o nosso povo está a utilizar a religião como uma espécie de política. Para lhes lembrarmos que somos uma nação católica, enquanto que os nossos inimigos não são. Não nos lembrarmos de que continuamos a ser uma nação, mesmo quando o nome do nosso país desapareceu do mapa. Tudo faz parte da nossa memória colectiva e acalentamo-la. Mas o que tem isso a ver com o nosso amor a Deus?

            -           Talvez nos tenha aproximado mais de Deus, Eminência.

            -           Pergunto-me se assim será. Estamos a encher as igrejas porque amamos Deus mais do que antes? Ou fazemo-lo por nostalgia do passado, ou, pior, para desafiar o Governo? Porque se é por isso que o fazemos estamos a troçar de Deus.

            Os carros da Polícia começaram novamente a buzinar quando chegaram a um local onde tinham sido estacionados carros de ambos os lados de uma estrada estreita e cujos ocupantes se haviam juntado às centenas de peregrinos que prosseguiram agora a pé em direcção à encosta mais baixa da montanha, começando a trepar pelos carreiros gastos, passando por estações da via-sacra, em pedra feia. A única estrada estreita que subia a montanha até ao santuário de Rywald estava encerrada por barreiras de madeira. Ao reconhecê-lo, dois padres abriram as barreiras e, respeitosamente, fizeram-lhe sinal para passar.

            Os carros da Polícia precediam-no agora pela estrada estreita, deixando para trás os vendilhões que empunhavam estatuetas ordinárias, de plástico, rosários de madrepérola e bandeirolas coloridas que proclamavam o aniversário dos Benditos Mártires. Uns cem metros depois acabava a estrada. A seguir, no adro empedrado da igreja, viu uns trinta carros estacionados dos funcionários do Governo e dos padres que já estavam na igreja a prepararem-se para as cerimónias. Quando entraram no adro, meia dúzia de homens e mulheres dirigiram-se para o carro, uns com máquinas de filmar, outros com microfones e equipamento de som.

-           Nada de entrevistas - disse para Kris. - Nada de comentários. - Inclinou-se e apontou um caminho a Tomas. - Continua a conduzir. Estacionamos depois do adro, mesmo por trás da sacristia.

            Fugindo à gente da informação, o carro subiu uma ruela estreita que levava às traseiras da igreja. Atrapalhados, os homens da Polícia de Segurança puseram os carros novamente a trabalhar e seguiram-no. Na porta de trás estava à espera o bispo Cihon, secretário da Comissão das Festividades de Gneisk.

            -           Bom dia, Eminência. Bem-vindo a Rywald.

            Cihon, um homem alto e imponente, estava já paramentado para as cerimónias. Ao avançar para lhe dar as boas-vindas olhou nervosamente para os homens da Polícia de Segurança, que saltaram dos seus carros e formaram imediatamente um círculo em volta da porta lateral da igreja, olhando desconfiados para todos os lados.

            -           Passa-se alguma coisa? - perguntou Cihon nervoso.

            -           Não, não. Estes senhores vêm para me proteger. Um dos homens da Polícia de Segurança destacou-se dos outros e aproximou-se dele.

            -           Desculpe, Eminência, mas seria uma ajuda para nós se soubéssemos onde vai ficar sentado durante a cerimónia e o que vai fazer na próxima meia hora. O homem da Segurança olhou para o relógio. - A missa começa ao meio-dia, não é, Eminência?

            -           Sim, ao meio-dia. E até lá quero ficar sozinho. Agora vou para a sacristia mudar-me para a cerimónia. Vou ficar na sacristia, a rezar, até a missa estar quase a começar. Depois entrarei na igreja, integrado na procissão, e sentar-me-ei na minha cadeira do lado direito do altar-mor. Se entrar na igreja verá a cadeira e a posição em que está. No final da cerimónia irei até ao púlpito e farei uma pequena alocução, que será difundida por altifalantes para os que se encontrarem na montanha. Quando acabar de falar irei até ao gradeamento do altar para dar a comunhão. Isto será o início da administração da comunhão que será dada pelos sacerdotes aos peregrinos que se encontram nas encostas das montanhas. E depois? - voltou-se para Cihon.

            -           Depois das cerimónias religiosas dirigir-nos-emos à residência do arcebispo Krasnoy para almoçar - acrescentou Cihon.

            -           Muito obrigado - disse o polícia da Segurança.

- Posso pôr quatro dos meus homens no altar? Garanto que não serão vistos.

            O cardeal olhou para Cihon e perguntou:

            -           O que é que acha?

            -           Não sei do que se trata. Quem é que iria fazer-lhe mal, Eminência?

            O polícia da Segurança ignorou isto e disse:

            -           Por favor, Eminência. Eu sou responsável pela sua segurança perante o general Vrona. Agradecia que nos ajudasse.

            -           Muito bem, então, mas eles não podem ser vistos pela comunidade. Que horas são, Kris?

            -           Onze e trinta e cinco, Eminência.

            -           Entremos, pois, na sacristia. Quero rever o meu sermão, antes de mudar de roupa. Tomas, trazes as minhas coisas?

            -           O arcebispo Krasnoy apresenta as suas desculpas - informou Cihon. Caminhavam pelo corredor que levava à sacristia. - Parece que surgiu um problema de última hora com os altifalantes e ele foi a Gneisk falar com o electricista. Virá ter connosco antes do início das cerimónias.

            -           Quer que entre consigo, Eminência? - perguntou Kris Malik, ao chegarem à porta da sacristia.

            -           Não, não é necessário. Trate de ver com esses homens da Segurança onde é que vão ficar. Não devem ser vistos.

            -           Sim, Eminência.

            Tomas, que transportava uma pesada mala, abriu-lhe a porta da sacristia e esperou que ele entrasse.

            -        Deixo-o aqui, Eminência - disse Cihon. - Se me dá licença, tenho de falar com o coro.

            -           Com certeza.

            Ao entrar na sacristia ficou surpreendido por não ver mais padres lá dentro. Habitualmente, em situações semelhantes, havia uma certa aglomeração e confusão, quando vários padres se serviam da sacristia para mudarem de roupa para a cerimónia. Mas só estavam dois padres na sacristia, um de paramento azul-dourado e o outro com uma comprida sobrepeliz branca, que parecia estar a tentar arranjar um incensador avariado. Ambos se inclinaram respeitosamente e o padre paramentado disse:

            -           Bom dia, Eminência. Se quiser fazer o favor de vir por aqui, temos uma dependência onde pode descansar até começarem as cerimónias.

            O padre paramentado levou-o pela sacristia até uma salinha ao lado, mobilada com armários de pinho, onde estavam guardadas roupas e paramentos. Perto deles havia uma mesa onde se encontravam as patenas para a comunhão. Havia uma cadeira de pinho de costas altas e a um canto um genuflexório. O padre paramentado sorriu e, com uma vénia, deixou-os sozinhos naquela sala. Tomas abriu imediatamente a mala e começou a estender as suas vestes cardinalícias.

            Ergueu o olhar para a pequena janela. Tinha grades e um raio de luz caía como se fosse uma luz sagrada nos armários de pinho velho, onde os paramentos estavam guardados. Abriu a sua pasta e tirou algumas páginas já escritas que preparara na noite anterior, poisou-as no rebordo de um dos armários, pondo-as por ordem, e destapando a sua caneta Watennan. Enquanto o fazia, ouviu a porta abrir-se atrás dele e entraram dois padres de sobrepeliz de linho branco e sotainas pretas por baixo.

          -           Bom dia, Eminência - disse o primeiro. O cabelo ralo erguia-se como uma auréola em volta do crânio rosado. Sorriu e inclinou a cabeça respeitosamente. O outro padre era jovem, de barba vermelha e espigada. Era Prisbek. O primeiro "padre" arregaçou a sobrepeliz branca e tirou um revólver do bolso fundo da sotaina e com ele acenou a Tomas. Foi mais o revólver do que o seu rosto que o fez recordar-se daquele "padre". Era o mesmo revólver que ele lhe apontara há três dias no controlo de Ricany.

            -           Pouse isso, coronel. Não é preciso - advertiu.

            O rosto corado do outro contraiu-se.

            -           Na verdade, coronel Poulnikov era um nome de guerra. E tinha toda a razão, Eminência. Poulnikov é um nome russo. O meu nome verdadeiro é de origem alemã: Keller. Waldemar Keller. Creio que conhecia o meu tio. Era membro do Governo no exílio, em Londres, durante a guerra.

            -           Lembro-me do seu nome. Mas eu tinha quinze anos e vivia aqui. Ainda é vivo?

            -           Morreu há cinco anos, mas espero que os seus ideais ainda estejam vivos.

            -           Com certeza. Mas acha que o seu tio teria tentado assassinar um cardeal da Igreja Católica?

            -           Nós não tentámos matá-lo! - afirmou Keller, enquanto o rubor lhe subia do rosto rosado até à testa luzidia. - A pessoa que tentou matá-lo desobedeceu frontalmente às minhas ordens. Era um maníaco. Nunca foi nossa intenção fazer-lhe mal.

            -           Mas foi vossa intenção raptar-me e deter-me, enquanto conspiravam com o arcebispo Krasnoy para levarem este país a uma situação de insurreição geral. Acha que o seu tio teria aprovado métodos terroristas... fazendo ir pelos ares jovens inocentes, enquanto dormiam?

            -           De que é que está a falar? - perguntou Keller irritado. - Que jovens inocentes?

            -           Os jovens soldados que tentaram matar há dois dias, no quartel de Praga.

            -           São soldados do Governo. Os quartéis eram um objectivo militar. Para que é que pensa que esses soldados são utilizados senão para nos manterem sob o domínio comunista?

            -           Objectivos militares? Não sabia que estávamos em guerra. Eles são os nossos soldados, muitos deles recrutados com dezoito anos, seus compatriotas e meus. E quem é você para decidir que devemos entrar noutra década da violência, prisões e mortes? Prometeu ao bispo Charnowski e ao pobre Krasnoy, tanto quanto sei, que não haveria violência. Mas quer violência, não quer, Keller? Está a utilizar a Igreja como cobertura. E eu não tenciono deixar que isso aconteça.

            -           Se me permite que lhe diga, o assunto, Eminência, já está fora do seu controlo. Não vai assistir esta manhã às cerimónias. Infelizmente vai estar doente. Vamos ter de chamar uma ambulância e levá-lo para o hospital de Gneisk, onde vai ficar nos Cuidados Intensivos durante alguns dias. Quando se tiver restabelecido poderá sair. Poderá fazer as declarações que quiser. Espero que, nessa altura, seja visto como aquilo que realmente é, um carreirista, um aliado deste regime sem Deus.

            Voltou o olhar de Keller para Tomas, que estava ali com a faixa carmesim na mão, a contemplar os intrusos e disse:

            -           Tomas, vou vestir-me agora.

            Keller riu-se:

            -           Porque é que quer vestir-se? Vai para o hospital, não vai para a missa. - Levantou o revólver e ordenou:

- Sente-se.

            O cardeal ignorou a ordem e começou a tirar a roupa.

            -           Eu disse para se sentar! - berrou Keller.

            -           Porque havia de me sentar? Vai abater-me? Se me encontrarem morto isso não vai servir os seus planos. Depois da minha comunicação de ontem, duvido que alguém acreditasse que fora morto pela Polícia de Segurança.

            -           Padre Prisbek, por favor - pediu Keller.

Viu Prisbek atravessar a sala e ir até um pequeno lavatório que havia ao lado do armário dos paramentos.

            -           Pronto, Tomas, ajuda-me, por favor, a pôr a faixa.

            Enfiou a sotaina carmesim e abotoou-a até ao pescoço, enquanto Tomas lhe começou a enrolar a faixa à volta da cintura. Viu Keller sentado na mesa comprida a baloiçar a perna.

            -           O senhor é extraordinariamente arrogante, não é?

- comentou Keller. - No entanto, acho que isso lhe dá um toque de verdade, o facto de estar vestido com o traje cerimonial. "Acometido de doença súbita quando se paramentava." Porque não? Prisbek?

            Prisbek, dobrado sobre o lavatório, disse:

            -           Um momento. A sucção está...

            -           Depressa! - disse Keler. Pôs-se de pé e apontou o revólver para Tomas. - Vem aqui. Ajoelha-te.

            Nesse momento Prisbek voltou-se da bacia empunhando uma seringa. Tomas avançou titubeante para Keller.

            -           Ajoelha-te aqui - ordenou este. Assustado, Tomas levantou o olhar.

            -           Eminência?

            -           Não te ajoelhes, Tomas! - disse ele, de repente.

            Nesse momento Keller olhou para ele, depois deu um passo em frente e atingiu Tomas com uma pancada na base do crânio. Tomas caiu por terra.

            Sabia o que tinha a fazer. Correu para a porta, não estava trancada. Abriu-a e com Prisbek no seu encalço correu pela sacristia até ao corredor. Ouvia-os atrás de si, ganhando terreno. Deu a curva do corredor e abriu a porta que dava para a igreja propriamente dita.

            A igreja estava apinhada. Ao entrar quase tropeçou nas pessoas que estavam ajoelhadas na coxia lateral. Lá em cima, no coro, soava a música alta e triunfante do órgão. Os fiéis, surpreendidos, voltaram-se e ficaram a olhar para a sua figura paramentada de escarlate. As pessoas inclinavam-se reverentemente, abrindo alas para ele passar pela coxia, cheia de gente.

            Keller e Prisbek, de sobrepeliz branca e rostos transtornados, avançavam apressadamente atrás dele.

            -           Não está bem, Eminência - disse Keller baixinho. Estendendo a mão, segurou-lhe no braço, depois voltou-se para Prisbek que empunhava a seringa.

            -           A sua injecção, Eminência - avisou Prisbek. Nos bancos cheios de gente, as pessoas observavam a cena. Keller segurava-lhe o braço debatendo-se para conseguir levantar-lhe a manga. Na luta, que se transformou numa escaramuça vergonhosa, conseguiu arrancar a seringa da mão de Prisbek.

            -           Largue-me! - disse, mas um acorde de música triunfal abafou-lhe o grito. Naquele momento três porteiros avançavam rapidamente pela coxia.

            -           O que se passa? Vossa Eminência está bem? Olhou para o rosto congestionado de Keller e depois fez sinal aos porteiros:

            -           Vou ocupar o meu lugar.

            Viu Keller afastar-se e Prisbek curvar-se e apanhar a seringa.

            -           Venham - disse aos guardas. Acompanhado pelos guardas, passou da coxia lateral para a nave central, caminhando depressa e determinadamente em direcção ao altar. Do lado direito do altar estava uma cadeira episcopal de espaldar alto. As pessoas que se encontravam sentadas nos bancos apinhados e nos varandins tinham os olhos postos nele, confusos por vê-lo aparecer antes do cortejo oficial. Abriu a cancela do gradeamento do altar-mor e subiu os degraus, genuflectindo em frente do altar. Depois sentou-se na cadeira cerimonial e olhou para os fiéis. O suor corria-lhe pela testa, toldando-lhe os olhos. Inclinou a cabeça. Nesse momento, a música parou e lá em cima, no coro, uma voz pura de soprano começou a entoar a Ave-Maria.

            Olhou para trás de si. Lá estavam, discretamente por trás dos bancos do coro, um homem da Segurança à paisana, outro, também sem ser visto pelos fiéis, agachado por trás do altar. Quando se voltou novamente para os fiéis, Kris Malik genuflectiu frente ao altar, subiu os degraus e fez-lhe uma vénia.

            -           Está bem, Eminência?

            -           Estou. As cerimónias vão começar?

            -           Está a formar-se o cortejo. O bispo Wior celebrará

a missa coadjuvado pelo bispo Cihon e o padre Pruss.

O arcebispo Krasnoy fará a alocução depois da comunhão.

            Ao dar esta informação Kris olhou para ele à espera que objectasse.

            -           Então, diga que prossigam.

            -           Muito bem, Eminência.

            Surpreendido, Kris voltou a descer os degraus do altar e entrou novamente pela porta da sacristia.

            Olhou para o relógio que havia ao fundo da igreja. Faltavam seis minutos para as doze. Estava consciente de que a multidão o olhava espantada e que as pessoas se inclinavam umas para as outras murmurando. Subitamente, a voz aguda do soprano do coro foi apagada por estrépido vindo do céu por cima da igreja, um som que ele reconheceu como sendo o de helicópteros a aterrar. O som tornou-se ensurdecedor e depois abrandou. Mais uma vez a multidão se remexeu e olhou em volta. As portas principais ao fundo da igreja abriram-se e entraram cerca de vinte polícias fardados e homens da Polícia de Segurança em formatura, abrindo caminho entre os fiéis que estavam ajoelhados na coxia central. Atrás da Polícia vinha um grupo de homens e mulheres que reconheceu como sendo o contingente da imprensa estrangeira, que vira anteriormente no adro. Avançaram todos em direcção às duas filas de bancos, cercados de cordões e que ficavam imediatamente abaixo do gradeamento do altar-mor. Houve um certo tumulto e viu-se o brilho dos flashes enquanto a multidão se voltava toda nos seus lugares, num movimento de surpresa.

            Por um momento não teve a certeza do que se estava a passar. Depois, enquanto os fotógrafos avançavam de costas para o altar, viu aparecer na nave central, com a farda cinzento-esverdeada de general, o primeiro-ministro Urban. Atrás dele, pouco à vontade, como se caminhasse num campo de minas inimigo, vinha a figura pequena, obsequiosa e sinistra de Vrona, de fato escuro e gravata, camisa reluzentemente branca e cabelo colado ao crânio.

            O primeiro-ministro chegou aos bancos rodeados de cordões. Não olhou em volta, nem genuflectiu, mas sentou-se imediatamente no centro da fila. Logo a seguir, homens da Polícia de Segurança sentaram-se ao seu lado. Vrona tomou lugar na fila, mesmo atrás dele, enquanto a imprensa estrangeira se debatia para obter os melhores lugares que restavam. Nesse momento, o órgão ressoou. Pela porta lateral o cortejo de bispos e padres começou a desfilar direito ao altar, indo os bispos tomando lugar nos cadeirões do coro. Os três padres que iriam ser os celebrantes avançaram para o centro do altar e genuflectiram. Um deles, o bispo Wior, voltou-se então e saudou-o com uma vénia.

            Nesse momento ele ajoelhou-se no genuflexório que tinha ao lado da cadeira. A missa começou. A igreja parecia eléctrica de tensão e curiosidade. O general Urban, primeiro-ministro de um Governo marxista, a assistir a uma missa era caso sem precedentes. As cabeças voltaram-se para ver se ele ajoelhara, mas não. Estava sentado, de braços cruzados no peito, assistindo ao ritual como se presidisse á um julgamento.

            Nos cadeirões do coro, o primeiro estava ocupado pelo arcebispo Krasnoy, cujas feições coradas eram realçadas pelos paramentos brancos e dourados. Viu Rrasnoy fixar o general e depois perscrutar a igreja e a multidão de fiéis. Os outros bispos, igualmente alheados das suas orações, tinham um ar de susto e incerteza, como se já soubessem o que Krasnoy planeava dizer na sua alocução e agora, frente a frente com o inimigo, temiam o que pudesse acontecer. Apenas JoIm Charnowski, de cabeça trémula devido à doença, se inclinou para a frente, de olhos fechados, perdido, numa prece urgente.

            A grande massa de gente, nos lugares e nas coxias, fazia um barulho parecido com o arrastar de pés, como se fosse um gigantesco animal, quando se ajoelhava e se levantava. Na igreja escura o altar resplandecia com velas e focos. Raios de luz do sol passavam pelos vidros multicolores e, lá no alto, no coro, as vozes entoavam o Kyrie eleison. O som era difundido pelos poderosos altifalantes para a montanha, onde milhares de fiéis se ajoelhavam em oração, ao ar livre. Pensou nos helicópteros a aterrarem no adro da igreja, vistos por aqueles milhares de pessoas, e soube que, tal como um terramoto, a realidade daquele encontro se espalhava agora pela terra. Porque veio Urban aqui? O que é que ele ouviu? Pensará que a sua presença vai intimidar Krasnoy e evitar a manifestação? Qual será a sua ideia?

            Olhou lá do seu genuflexório para o rosto do primeiro-ministro. A missa aproximava-se do momento sagrado em que o pão e o vinho iriam ser transformados no corpo e no sangue de Jesus Cristo. Observou o primeiro-ministro enquanto tocava a sineta da consagração e o seu som débil era difundido pelos altifalantes para lá das paredes da igreja. Então, enquanto o padre erguia a hóstia para a adoração de todos, viu o primeiro-ministro hesitar ao lembrar-se do seu passado e, num gesto involuntário de reverência, baixou rapidamente a cabeça. Olhando para a cabeça inclinada de Francis Urban, recordou o rapaz que conhecera na escola, agora um homem calvo, fardado de general, e rezou pela salvação da sua alma imortal. Enquanto rezava viu o primeiro-ministro levantar a cabeça e olhar para ele, como se por telepatia tivesse adivinhado o conteúdo da sua oração.

A sineta da consagração soou pela segunda vez. O padre ergueu o cálice de prata no qual o vinho se transformara em sangue de Cristo. Toda a assistência inclinou a cabeça, salvo Vrona e os homens da Segurança, que aguardavam, a qualquer momento, o início do tiroteio. A sineta da consagração tocou mais uma vez. A missa prosseguiu.

            Viu, então, nas cadeiras dos bispos, as cabeças moverem-se e começaram os murmúrios à medida que se aproximava o momento da comunhão. No altar-mor o celebrante comia a hóstia e bebia o vinho que haviam sido transformados no corpo e no sangue de Cristo. Em poucos momentos, grande número, talvez centenas de pessoas, receberiam a comunhão. Viu Krasnoy levantar-se e vir dos bancos dos bispos, como se fosse proferir uma declaração, fazendo sinal aos comungantes para que se aproximassem. Mas, ao avançar para o púlpito, Krasnoy levava um grande maço de papéis na mão. Não era comunicação nenhuma, Krasnoy decidira ultrapassá-lo.

            Levantou-se da sua cadeira cardinalicia. Caminhou em direcção ao púlpito, que estava perto dele. Krasnoy, que tinha de atravessar o altar para chegar ao púlpito, foi apanhado a meio caminho e hesitou.

            Naquele momento crucial, tendo chegado ao púlpito, pousou a mão no microfone, reivindicando-o, e, depois, voltou-se e olhou o seu adversário. O rosto congestionado de Krasnoy escureceu como se fosse sofrer um ataque. Ficou a meio do altar, torcendo o maço de folhas na mão, depois voltou-se desequilibradamente, como se estivesse ébrio ou doente e voltou para o seu lugar.

            Esperou até Krasnoy estar sentado, depois, agarrando-se aos dois lados do púlpito, fixou a igreja em silêncio expectante. Na porta lateral viu Prisbek e Keller junto à parede, à espera da sua alocução. Mas já não os temia. "Cheguei por fim a este lugar. Deus me dê as palavras de que preciso!"

- Queridos irmãos, estou a dirigir-me a vocês agora, antes que a missa acabe, porque tenho esperança que depois de terdes tomado a sagrada comunhão rezeis e reflictais nas minhas palavras. Estamos reunidos neste santuário sagrado homenageando a memória de cento e dez homens e mulheres massacrados neste local devido à sua fé, há duzentos anos, neste mesmo dia. O seu destino entrou na História. É uma chamada de atenção para o facto de haver alturas em que a resistência, a violência e até a morte são preferíveis à tirania. Duzentos anos passaram e ainda vivemos sob a tirania: tirania de uma época em que as crenças religiosas se interligam de forma indecifrável com os ódios políticos, quando, dia após dia, em países à nossa volta, gente inocente morre devido a bombas, a ataques terroristas e de represálias e vinganças religiosas e políticas. Eu não sou um chefe capaz. Permiti que o meu povo chegasse ao limiar dessa violência, à confusão entre os males que nos foram feitos e aqueles que alguns defendem que temos de fazer. Suplico-vos que penseis na morte dos outros. Lembrai-vos de que o terrorista e o tirano têm isso em comum. Não pensam nessas mortes. Advirto-vos agora: não deve haver qualquer demonstração da vontade nacional, nem qualquer manifestação de outro tipo. Lembrai-vos disto: seja qual for o governo que nos dirija, mantemo-nos um povo livre, livre de espírito, livre num Estado não livre. É esse o maior heroismo que e exigido num dia como este, tão cheio de acontecimentos e de angústias. Peço-vos: ide em paz.

            Baixou a cabeça e depois ergueu a mão direita fazendo sinal ao coro. Quando o órgão atacou os primeiros acordes do hino nacional a multidão pôs-se de pé. Olhou para os rostos lá em baixo e sentiu no fervor das vozes que Deus lhe concedera o seu desejo. Os generais Urban e Vrona tinham-se levantado com os outros e estavam de pé, sem cantar, mas de olhos fixos na sua frente. Olhou para trás, para o arcebispo Krasnoy, que encontrou o seu olhar e baixou a cabeça em sinal de submissão.

            O hino estava a acabar. As vozes erguiam-se em clamor até aos tectos em abóbada, vozes que iam até à encosta da montanha, onde milhares de fiéis repetiam o refrão, vozes ondulantes, perdidas ao vento. "Deus fez-me atravessar estes tempos. Deu-me força para fazer a Sua vontade."

            Olhou para o outro lado da igreja, onde estavam Keller e Prisbek. Surpreendido, viu que ambos cantavam o refrão. As palavras de S. Paulo acudiram-lhe novamente ao espírito: "Como é insondável o Seu juízo e imperscrutáveis os Seus desígnios."

            A música parou. Ele fez sinal a um dos coadjutores. Desceu do púlpito e, pegando no cálice que o coadjutor trazia, conduziu a procissão até ao gradeamento.

            Retirou uma hóstia do cálice e ergueu-a para que todos vissem. Quando os primeiros comungantes se aproximaram para se ajoelhar junto do gradeamento ele desceu e foi ao encontro deles. A alegria inundava-o. Por fim, conhecia a paz. Pousou a hóstia na boca de uma jovem. Aceitou-a e fechou os olhos em reverência. Tirou nova hóstia do cálice de prata.

            Mas a comungante seguinte não abriu a boca. Fixou-o, de olhos dilatados, como que pelo medo, e ele viu nas suas faces feridas os pequenos golpes feitos pelo vidro, duas noites antes na Praça da Proclamação. Depois viu o revólver que ela tirou da mala e, nesse momento, soube que essa era a vontade de Deus. Porém, quando a irmã de Danekin levantou a arma, a tremer, e lha apontou ao peito, sentiu um momento de hesitação. Era como se estivesse à beira de um precipício escuro, incapaz de ver para o outro lado. O silêncio de Deus modificar-se-ia no momento da sua morte? Ergueu a hóstia como se fosse dar-lha. Viu o dedo dela contrair-se no gatilho.

            Ouviu aquele barulho terrível.

                                                                                            Brian Moore

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa