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A COR DA FELICIDADE / Wei Wei
A COR DA FELICIDADE / Wei Wei

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A COR DA FELICIDADE

 

Para que não seja rotulada de ingrata, manda a tradição que a noiva “chore sentidamente”, mostrando aos convidados a sua tristeza, por abandonar a casa paterna. Só após a “cerimónia das lágrimas”, ela será ajudada a subir para a liteira, que, também segundo a mesma tradição, deverá ser vermelha, a cor da felicidade.

É, com efeito, o vermelho que, apesar das vicissitudes dos homens e dos desastres naturais, irá estar presente no dia-a-dia de Mei-Li, essa jovem noiva que, casada à força com Meng-Yu, um cego paralítico, trairá o marido com Jing-Ming, por quem se apaixona no dia do seu próprio casamento. Desse adultério nascerá uma filha que, no entanto, e ao contrário da mãe, poderá escolher o seu destino.

Mais do que a história de uma vida que Mei-Li conta à neta, a cor da felicidade é principalmente a saga de uma família Chinesa que se estende dos anos vinte até à proclamação da república popular, hesitando entre tradições culturais e um pouco de modernidade trazidas pela “Revolução Cultural”, numa China marcada por convulções, conflitos, e... tons de vermelho.

 

O verdadeiro torna-se a ficção quando a ficção é verdadeira; o irreal torna-se o real quando o real é irreal.

CHAO XUE-QIN

 

A data? É engraçado, mas já não me lembro... já lá vai muito tempo... já sessenta e quatro anos... E depois, o antigo calendário lunar... Mas a Primavera já devia ir avançada, pois começava a ama­nhecer muito cedo e o tempo era agradável. Em todo o caso, era um dia propício, que os meus pais e os meus futuros sogros tinham esco­lhido depois de se terem debruçado, horas e horas, sobre as páginas amareladas de um velho livro poeirento.

Então, nesse dia propício de 1920, quando o velho relógio no salão tocou a meia hora das três horas da manhã, tiraram-me da cama por­que os preparativos seriam longos, segundo diziam, porque a cidade, Tien-Ma, o Cavalo Celeste, ficava longe e porque teríamos de partir muito cedo. Levaram para o meu quarto o único cadeirão da casa, e fizeram-me subir para ele. O cadeirão era de madeira preta e o ver­niz estava estalado nos ângulos. O seu encosto, muito finamente escul­pido, representava um veado dançando nos campos, e os seus braços, vários morcegos a voar. Como certamente imaginas, todos estes moti­vos têm significados especiais: a palavra «morcego» (fu) é o homó­nimo da palavra «felicidade» e a palavra «veado» (lu) é o homónimo de «carreira brilhante». Este cadeirão era o assento sagrado do meu pai para as cerimónias do Ano Novo. Ele herdara-o do seu pai, que o tinha herdado do seu avô, que o tinha herdado do seu bisavô. Na verdade, uma antiguidade.

Trouxeram água quente numa bacia de bronze. Lavaram-me a cara e os pés. Desfizeram a minha trança espessa, verteram, com abun­dância, óleo de flores de osmanto nos meus cabelos, depois friccio­

naram-nos insistentemente até que o óleo penetrasse nas suas raízes. Segundo se dizia, deste modo o perfume permaneceria mais tempo... - As minhas felicitações, minha filha!

A avó acabava de entrar no círculo amarelado da luz de uma grande lâmpada a azeite. Como era admirável ver o seu corpo maciço deslocar-se com tanta elegância sobre os pequenos pés ligados! Dizia-se que ela era a mulher com mais sorte da nossa vila. Casada aos treze anos de idade com um homem três vezes mais velho que ela, mas muito rico e sempre fiel, nunca conhecera a preocupação dos estômagos vazios nem a amargura das mulheres enganadas. Aliás, o seu marido tinha sabido dar-lhe sete filhos em dez anos, dos quais quatro filhas casadas continuavam a viver sob o seu tecto, que, por sua vez, lhe tinham dado sete netos. A sua cara sem rugas, mais redonda e mais larga que a bacia de bronze, sempre iluminada por um sorriso de Buda, era a própria imagem da sua vida sem sacri­fícios, do seu contentamento, da sua felicidade tranquila. É por isso que era solicitada como uma deusa sempre que uma família das redondezas casava a sua filha. Desde que a avó Wang penteasse os cabelos da noiva, acreditava-se que esta teria todas as possibilida­des de ter a mesma prosperidade, o mesmo número de filhos e de netos...

A avó Wang desdobrou, cuidadosamente, um pedaço de cetim ver­melho, que retirou debaixo da sua túnica, tirou de entre os seus dedos apertados um pente de madeira cujos dentes eram tão pontiagudos como agulhas. Ela trabalhou a minha cabeça com esse objecto durante meia hora, pelo menos, depois agarrou às mãos-cheias os meus cabe­los compridos, untou-os, torceu-os, atou-os no cimo da minha nuca e colocou alfinetes até que a pele da minha nuca e das minhas têm­peras me arrepelasse dolorosamente. Em seguida, colocou uma pequena flor vermelha de seda no meu carrapito. Depois, curvou-se diante de mim, o seu peito pesado ligeiramente levantado, e, para melhor jul­gar o resultado, deu às pálpebras dos seus olhos a forma de um bago de arroz. Ajustou a flor no meu carrapito, depois penteou-me a franja e pronto, eis-me bem penteada. Esfregou duas vezes o seu pente de madeira contra a parte da frente da sua túnica, embrulhou-o com cui­dado no pequeno quadrado de cetim vermelho e colocou tudo por debaixo do seu vestido.

De repente, inclinou-se sobre a minha orelha, com um ar misterioso.

- Tens de saber uma coisa, minha filha, é muito importante: o primeiro a falar no quarto nupcial será o primeiro a morrer. Portanto, deixa que seja o teu marido a dizer a primeira palavra. Compreendeste?

Depois, deixando-me boquiaberta, ergueu-se satisfeita e declarou, colocando as suas mãos no seu peito enorme como se cantasse num palco de ópera:

- Oh, Mei-Li, tu estás magnífica!

Estava de tal modo sufocada pela revelação fulgurante da avó Wang que me esqueci de lhe agradecer, quando se retirou do quarto. O seu chá e a sua remuneração tinham sido sem dúvida preparadas no salão por debaixo da escada.

Empoleirada no cadeirão, reflecti durante muito tempo nas pala­vras da avó Wang. Absurdo? Sim, sim, de acordo, também não que­ria acreditar, mas a avó Wang era alguém com tanta experiência que podia dizer-me sem exagerar: «As pontes que eu atravessei durante a minha vida são mais compridas que a estrada que tu já percorreste.» Aliás, a própria vida não está cheia de coisas absurdas, para as quais não se encontra explicação? Bom, dizia para comigo, avó Wang, não se preocupe que não será Mei-Li a primeira a falar.

Retocaram ainda as minhas sobrancelhas, já suficientemente finas, na minha opinião, mas diziam que era costume assim. Depilaram-me também a cara, o que se chamava kai-lian, «polir a cara». Julgas que tinha bigode, barba ou pêlos compridos na cara, como um macaco? ... É evidente que não, a minha pele era mais lisa que a seda, mas dizia­-se que era costume assim. Quando te diziam isto, nada mais podias fazer, a não ser calar e deixar fazer. O costume do antepassado, eis o máximo dos máximos. Como se depila, perguntas-me tu? Nada mais simples. Estica-se um fio de algodão, que se faz girar entre o polegar e o indicador, contra a pele da tua face com uma tal habilidade que o fio agarra os pêlos invisíveis; depois é energicamente afastado e tu sentes uma leve queimadura. Não, não, não te faz doer muito, mas é tão demorado, tão incómodo! Depois da sessão de depilação, havia ainda o pó nas faces e o vermelho nos lábios. Em seguida, trouxeram­-me os vestidos especialmente confeccionados para este grande dia: a túnica de estilo Tang, seda vermelha, gola alta, aberta do lado direito, cava e bainha finamente bordadas com motivos multicolores; calças largas, igualmente de seda vermelha, também bordadas; sapatos com sola de tela, sempre de seda vermelha, ornados na ponta com uma pequena borla de lã da mesma cor... Mas perguntas tu: porquê ver­melho dos pés à cabeça? Pois bem, porque é essa a cor da felicidade!

Quando esta toilette interminável, finalmente, ficou concluída, pas­saram-me um espelho para que visse no que me tinha tornado! Antes mesmo que eu pudesse reconhecer esta jovem mulher que me olhava fixamente, já estava impedida de ver por um grande pedaço de tecido vermelho lançado sobre a minha cabeça para me proteger dos olha­res insolentes. A partir deste momento o direito de colocar o primeiro olhar na minha face seria do meu marido.

Junto de mim, mas invisível, toda a casa se agitava. Subia-se, des­cia-se, entrava-se, saía-se, cochichava-se, era uma azáfama... Mas já ninguém me falava. Tinha a impressão de estar abandonada, esquecida, transformada numa estátua de pedra no cadeirão duro do meu pai... Quanto tempo durou isto? Já não me lembro. Uma eternidade, digo-te eu. Depois, de repente, ergueu-se à minha volta uma espécie de alarido e todos os passos se precipitaram para fora. Escutei durante um momento e, depois, levantei com prudência uma ponta do tecido vermelho: já não havia ninguém no meio do quarto. Então, levantei­-me suavemente e aproximei-me da janela na ponta dos pés. Habitávamos numa casa de primeiro andar. Era uma das maiores de He-Zheng, a Vila dos Grous, que devia o seu nome à colina por detrás da vila, que se chamava He-Shan, a Colina dos Grous. O meu quarto estava situado no primeiro andar e a janela dava para a rua. Empurrei, ligeiramente, os batentes de madeira: na suave luz matinal, cheia de pó de ouro-velho, um palanquim vermelho transportado por quatro homens, vestidos de azul, aproximava-se lentamente. O meu pai, com o seu fato de festa - uma longa camisa de seda azul-marinho, chapéu redondo encimado por um botão, também de seda azul-marinho -, mantinha-se de pé na rua, diante da porta da casa, o busto ligeira­mente inclinado, as mãos juntas no peito. Um passo atrás dele encon­trava-se a minha madrasta, ela também trajada com todo o rigor. Os vizinhos tinham saído para ver o espectáculo, um bando de crianças corria, saltitava, agitava-se à volta do palanquim, batendo palmas e gritando em coro: «Mei-Li, noiva, Mei-Li, noiva! ... » As minhas faces afoguearam-se e o meu coração batia, como se quisesse sair do peito.

Fechei rapidamente os batentes e apoiei-me neles. Respirava com dificuldade, a garganta ressequida, como se tivesse corrido três ruas inteiras de um só fôlego. Depois, um pouco mais calma, virei-me para me sentar, sensatamente, no velho cadeirão do veado e morcegos, cobrindo o rosto com o véu vermelho.

Passados dez minutos, vieram buscar-me. Pegaram-me pelos bra­ços, levantaram-me do cadeirão, ordenaram-me que saísse do quarto, que descesse a escada, que entrasse no salão perfumado de incenso queimado, e disseram-me que me ajoelhasse diante das placas de madeira, que continham o nome dos antepassados, e que me pros­trasse nove vezes até ao solo: «Que os espíritos dos antepassados me protejam...» Depois, levaram-me para o pátio, ordenaram-me, de novo, que me ajoelhasse e que batesse nove vezes com a fronte no solo: «Obrigado papá, obrigado mamã, por me terem criado e edu­cado bem...» Em seguida; disseram-me para chorar com grande ala­rido. Era também um costume dos antepassados, imaginas! A noiva tinha de chorar do fundo do coração para mostrar aos espectadores a sua enorme tristeza por abandonar o tecto paterno, caso contrário, revelaria aos olhos dos outros uma enorme ingratidão. Depois da ceri­mónia das lágrimas, ajudaram-me a subir para o palanquim vermelho. A cor da sorte. A cor da prosperidade. A cor da felicidade.

Depois, acompanhado pela música das trombetas, do estalar dos foguetes, ao ritmo do tambor e do gongo, o palanquim abanou sua­vemente. Viraram o palanquim para leste e permanecemos um momento assim para fazer a reverência ao génio da felicidade. Nesse dia, segundo o vaticínio do adivinho, um velho cego, o génio da felicidade devia encontrar-se para leste. Sim, era exactamente assim, os adivinhos eram, na maior parte das vezes, cegos... Eu nunca me interroguei sobre isso, mas penso que só os cegos, de olhos mortos, podem ver os génios invisíveis, evidentemente... Enfim, uma vez prestada a reve­rência ao génio da felicidade, virámos as costas ao Sol, que nascia, e partimos em direcção ao oeste, pois a família do meu futuro marido habitava numa cidade no Oeste a sessenta e quatro lis* da nossa vila. Foi nesse momento que um arrepio percorreu toda a minha espinha dorsal. Os meus dedos crisparam-se na madeira do palanquim como os de um náufrago agarrado aos destroços antes de ser aspirado para a profundidade insondável do abismo. Sentia-me oprimida, sufocada, paralisada por um peso invisível que não cessava de se avolumar sobre o meu peito. O que é que eu tinha. Medo, claro! Era, eviden­temente, o MEDO. O medo em toda a sua violência. O medo do des­conhecido. Imagina que vais partilhar, para o resto dos teus dias, a cama com um homem que nunca viste, quando tens apenas dezasseis anos! Oh céus! Gostaria de saber se tu também não terias medo!

É claro que havia uma intermediária. Ao ouvi-la, é sempre o melhor partido possível o que ela te propõe; tu não tens qualquer motivo de inquietação; tudo está perfeito; o teu futuro marido é jovem, belo e bem educado; é mais rico que o rei dos mares, mais meigo que um cordeiro, e nunca poderás encontrar, debaixo do céu, um melhor marido que ele, nunca conseguirás encontrar gente mais amável que os teus futuros sogros; e se no próximo ano fores capaz de lhes dar um descendente macho, tu farás certamente morrer de inveja todas as mulheres da cidade... Mas atenção! nunca acredites na palavra de uma intermediária de casamento. Nunca! Ela pode afirmar-te sem pestanejar que o branco é preto, o preto é branco, o vivo está morto e o morto está vivo. Será necessário esperar que o rio Amarelo se torne límpido, podes crer, para encontrar uma intermediária honesta. No ano anterior, Siu-Lan, uma jovem da vila, suicidara-se com uma tesoura na própria noite do seu casamento. Porquê? Correram rumo­res, depois da sua morte, que o seu marido era um grande idiota e que tinha feito chichi e cocó nas suas calças de noivo durante o ban­quete de núpcias, e o cheiro era tão forte que a sua mãe teve de o retirar da sala para o lavar e mudar de roupa, e que todos os convi­dados tinham rido ali nas suas barbas... Pobre Siu-Lan!... O quê? O que é que tu dizes? Divorciar? Estás a brincar! Nessa época, era possível ouvir dizer que o marido repudiava a sua mulher, mas nunca se ouviu que uma mulher se divorciasse do seu marido!

E não era tudo...

21 de Fevereiro de 1953:

A alvorada límpida penetrava através dos cortinados da janela. As paredes deixavam transparecer um frio glacial. Mei-Li voltou-se e puxou o seu cobertor. A cama rangeu. Passeou.o seu olhar pelo quarto modestamente mobilado: os perfis esbatidos de um aparador baixo, de uma mesa, de um lavatório e de uma cadeira. Depois, contemplou durante algum tempo o rectângulo pálido da janela. Esperemos que haja sol amanhã, dizia para consigo. Ergueu-se suavemente, ficando sentada no seu leito, e a cama rangeu horrivelmente, o que a deses­perou. Escutou um instante o quarto do lado. Nenhum ruído. Só os pequenos batimentos ritmados de uma-respiração tranquila. Pegou no seu pullover de lã grossa, que na véspera, introduzira por debaixo do cobertor para que ele não arrefecesse, e vestiu-o rapidamente. Atchim!. . . não tinha conseguido abafar um espirro que ecoou como um grande foguete no silêncio matinal. Pegou a sua túnica forrada de algodão em rama, que colocou pelas costas e abotoou até ao queixo. Em seguida, desceu da cama e, muito rapidamente, vestiu as calças e cal­çou as peúgas e os sapatos. Escutou, de novo, o quarto do lado. Um estalo fraco de um móvel de madeira. Um ressonar. Depois o silêncio.

Na penumbra matinal, Mei-Li pegou em dois termos no aparador e abriu, sem ruído, a porta do fundo. Um leve odor a fumo, deixado pelos foguetes, que tinham sido queimados nessa noite para acolher Q Ano Novo chinês, pairava no ar. Mei-Li aspirou uma grande bafo­rada. Ela gostava muito deste odor um pouco acre, era como reencontrar um velho amigo por ocasião de cada festa. Passou uma brisa fria, Mei-Li arrepiou-se. Apertou um pouco mais a sua túnica

 algo­doada e desceu o patamar.

A três passos, diante do bloco de duas assoalhadas, alinhava-se uma dezena de cabanas baixas, de telhados cinzentos. Em jeito de janelas, as paredes de tijolo vermelho tinham pequenas perfurações em forma de cruz, como olhos sem menina-do-olho. Era o bloco das cozinhas.

Nascia o dia. Por detrás das cozinhas, os bambus alongavam-se em grandes molhos, fazendo estalar as suas altas vértebras. Hastes compridas com mais de dez metros curvavam-se para o solo com a elegância das penas do faisão.

Mei-Li apressou-se, entrou na cabana nº 11, puxou um cordel pen­durado do tecto, junto à porta. A cozinha iluminou-se. Mei-Li colo­cou os termos na mesa, acendeu o lume e pôs a água a aquecer. Depois retirou uma tigela do pequeno aparador de madeira branca, onde pôs uma pitada de sal, tirou um pouco de água do pote colocado ao lado da porta e mexeu o líquido com um pauzinho para que o sal se dis­solvesse bem. Em seguida, colocou a tigela na mesa junto da faca de picar carne, que, na véspera, tinha afiado bem. Depois tirou debaixo da mesa um capão gordo com as patas atadas por um cordel de cânhamo. Com uma mão, Mei-Li segurava as asas e a cabeça do cas­trado e com a outra despenava-o por debaixo do pescoço, pegou na faca e cortou-lhe o pescoço de uma só vez. Por cima da tigela com água salgada jorrou o sangue vermelho a pequenas golfadas. Mei-Li limpou então ambos os lados da lâmina nas penas da ave e pegou o capão pelas patas, mantendo-o bem direito para que o sangue escor­resse mais depressa. Quando já só corria gota a gota, lançou o capão inerte para uma bacia, deitou-lhe água a ferver e virou-o e revirou-o durante dez minutos com pauzinhos. Depois de o capão molhado ter arrefecido num cesto de bambu redondo colocado sobre a bacia, Mei­-Li instalou-se no seu banco e começou a depená-lo.

Mei-Li tinha chegado à casa da sua filha há três dias e tinha come­çado imediatamente a preparação do jantar. Tinha passado um bom dia a fazer as compras, correndo de loja em loja. Com uma grande cesta no braço, deslocando-se mesmo até à Praça da Paz, na outra extremidade da cidade, onde estava localizado o grande mercado de peixes e de aves de capoeira vivas. Num dia tinha gasto as suas economias de seis meses. Bai-Lan quisera dar-lhe dinheiro, mas Mei-Li recusara. «Vamos lá, minha filha, um jantar não me vai arruinar», brincara ela. « O que é que tu nos vais fazer, mamã?», perguntara Bai­-Lan, sorrindo. «Essa agora! Será uma surpresa.» O Ano Novo e as bodas, eis duas razões para Mei-Li usar os seus talentos culinários. Ela faria um verdadeiro banquete, sim, um banquete que ia arregalar os olhos dos noivos e dos convidados. O casamento da sua filha única, pensava ela, vale bem isso.

- Queres uma ajuda? - perguntou Bai-Lan, surgida do vão da porta, com um sorriso encantador no canto dos lábios.

Era uma jovem com vinte anos de idade, de rosto liso, de um oval perfeito, olhos grandes de porcelana escura, sobrancelhas pretas e compridas numa curva enternecedora, uma boca de lábios cereja. Dir­-se-ia uma réplica de Mei-Li, mas mais jovem e mais fresca.

- Oh, não, querida - respondeu Mei-Li com uma voz ternu­renta. - Vai-te preparar. Hoje, é o teu grande dia, torna-te uma princesa.

Depois de ter despenado, limpo por dentro e lavado o capão, Mei­-Li estendeu a plumagem sobre uma folha de jornal. Ela poderia uti­lizá-la, mais tarde, para confeccionar um belo espanador. Depois colo­cou a frigideira ao lume, deitou uma boa colher de azeite, cortou duas fatias grossas de nian-gao (bolo grande, redondo, à base de arroz com goma e açúcar amarelo) e estendeu-as no meio da frigideira. Fumo branco. Crepitações alegres. Odor açucarado que enche a cozinha minúscula. O lume pegou muito rapidamente esta manhã, pensa Mei­-Li, eis um bom presságio. Ainda não há três meses que eu vi a minha Bai-Lan, e como ela mudou! O seu olhar tornou-se mais meigo, os seus gestos mais suaves e a sua própria voz menos grave. Sente-se nela uma espécie de segurança, de maturidade ou... de desenvolvi­mento. Sim, é isso, de desenvolvimento. É mágico. O amor trans­formou-a. Que ela seja mais feliz que eu. Aliás, não há qualquer razão para que não o seja. A minha Bai-Lan é bela. E doce como o pri­meiro raio de sol matinal. Ela canta ópera Gui há... quanto tempo já? Um, dois, três... sim, em breve, três anos. Como o tempo passa depressa! Ainda a vejo regressar a correr, apertada no seu uniforme de menina de colégio, demasiado estreito, saco a tiracolo. Como se fosse ontem... Ela vai completar os seus vinte anos este ano, e já criou um pequeno nome na região. Foi ela própria que escolheu aquele que hoje vai ser o seu esposo. Que sorte, poder escolher! Se eu tam­bém tivesse podido escolher quando era jovem... mas, não falemos mais disso, faz parte do passado... Nunca olhar para trás... já não se poderá alterar os dias passados... Há sempre demasiadas coisas a lamentar na vida... Bai-Lan disse-me que encontrou Hong na casa de uma amiga. Ela trouxe Hong à minha casa uma vez, em Ying­-Bing, para mo apresentar. Ela queria saber a minha opinião, esta pequena. Como dizer... ele não e o que eu poderia chamar um homem belo, também não é muito grande, mas ele gosta dela. E ela gosta dele. O amor, eis o que há de mais belo. De mais importante. Diga­-se, também, que ele é um rapaz muito conveniente. Meigo, atento, com muito espírito. Também bem educado. Regressou dos Estados Unidos logo a seguir à implantação da República Popular. Para cons­truir uma nova China, como dizia. Trabalha no Instituto de Investigação Científica de Guang-Ning. É um físico. Também dá aulas na escola normal. O que é que se pode pedir mais, hem?

O olho de Mei-Li brilhou com um sorriso interior.

Depositou quatro pauzinhos de incenso no lume e murmurou, ao vê-los arder:

- Que sejam felizes por mil anos...

- Mamã, mamã - chamou Bai-Lan à entrada da porta.

Esta manhã ela estava comoventemente bela: as ondas sedosas dos seus cabelos pretos apanhados em carrapito sobre a nuca; o seu rosto sem pinturas, como se saísse da água; e nas suas meninas-dos-olhos límpidas saltitava um sorriso de felicidade.

- Estás resplandecente - murmurou Mei-Li, beijando a filha com um olhar terno.

Se, pelo menos, Jing-Ming a visse..., pensava Mei-Li ao levantar-se. - Oh, mamã! - disse Bai-Lan com voz carinhosa, lançando-lhe os braços à volta do pescoço.

- Ah, já cá estás - acrescentou Mei-Li ao ver Hong.

O jovem cumprimentou Mei-Li com um grande sorriso e um movi­mento da cabeça.

- Agora vamos à festa, mamã - anunciou Bai-Lan.

- Vocês não comem? - perguntou Mei-Li. - Já vos aqueci nian-gao.

- Não, mamã, já estamos atrasados - respondeu Bai-Lan.. - Não é, Hong?

- Sim, porque a princesa passou demasiado tempo diante do espe­lho - respondeu ele, piscando o olho a Mei-Li.

- Oh, tu! - disse Bai-Lan, fingindo zangar-se.

Mei-Li sorriu, limpando as mãos ao avental atado à sua cintura, e abotoou o último botão da capa vermelha que a sua filha tinha vestida. - Lá fora está frio - disse suavemente. Como Bai-Lan e Hong partiam, Mei-Li acrescentou ainda: - Confio-ta, Hong. Trata bem dela.

- Não te preocupes, mamã - respondeu Hong, de rosto feliz. Ele tinha-lhe chamado mamã! E de um modo tão natural que dir­-se-ia que a chamava assim há muito tempo. Doravante, ela tinha não só uma filha, mas também um filho. Sim, ela já gostava dele como de um filho, o filho que ela nunca tivera.

Mei-Li pegou numa ponta do avental e limpou os olhos.

Mei-Li deitou quatro grandes tigelas de água numa caçarola de ferro que colocou na fornalha. Em seguida, pegou num saquinho de tecido branco, encheu de especiarias variadas: funcho, alcaçuz, canela, anis-estrelado, cravinho e pimenta-de-shichuan. Acrescentou-lhe ainda cinco frutos da azeroleira secos e um pequeno pedaço de gengibre antes de o fechar com um cordel de algodão. A água começava a bor­bulhar na caçarola, Mei-Li mergulhou nela o saquinho de especia­rias, juntou sal, açúcar, molho de soja, e regou o conjunto com um pequeno copo de aguardente.

Deixando o caldo ferver a lume muito brando, Mei-Li foi comer uma fatia de nian-gao para a entrada da cozinha. Nesse momento, as portas dos apartamentos vizinhos abriram-se umas a seguir às outras como por encantamento, e os votos explodiram como foguetes.

- Um bom ano! Um bom ano! - saudava Mei-Li à esquerda e à direita. - Não se esqueçam de vir cá a casa comer os doces da felicidade, com os meus filhos!...

A cozinha estava repleta de fortes odores a especiarias. Mei-Li pegou no capão e mergulhou-o no molho castanho-escuro. Para que ele ficasse bem impregnado, era necessário deixá-lo cozer lentamente durante muitas horas.

Mei-Li hesitou um instante. O que iria fazer agora? Ah, a benincasa recheada, evidentemente, uma grande abóbora alongada com a casca coberta por uma penugem poeirenta. A cucurbitácea pesava exactamente um quilo. É pena que não tenha conseguido encontrar uma menos grande: seria mais cómodo para a cozedura. Sentada à entrada da porta, Mei-Li eliminou a penugem empoeirada com as costas da faca de picar carne. A casca rija apresentava, agora, um verde tenro e liso. Depois de a ter lavado e secado, Mei-Li cortou a benincasa em duas, retirou à colher a parte central que continha as pevides, e, com a ponta do seu canivete, estilizou, cuidadosamente, a palavra «felicidade» na parte de cima de cada metade, de maneira que formasse uma «dupla felicidade» quando se unissem os dois bocados antes de serem servidos. Em seguida, Mei-Li mergulhou a benincasa na água a ferver durante uma dezena de minutos, depois enxugou-a no cesto de bambu. Só faltava preparar o recheio para encher as metades da abóbora. Bastaria cozer a benincasa ao vapor num cesto enorme.

Depois de ter acrescentado alguns pedaços de carvão na fornalha, Mei-Li foi espreitar o despertador no quarto de Bai-Lan. Já meio-dia! Tinha de se despachar, senão nunca teria tempo suficiente para terminar tudo antes do regresso dos filhos e da chegada dos convidados. Mei-Li trouxe o despertador para a cozinha e colocou-o na mesa. Habitualmente, ela não gostava da companhia do tiquetaque implacável, que lembra demasiado que o tempo passa e que não tem regresso. Nunca tinha necessidade de despertador para se levantar, nem relógio de parede ou de pulso para saber o momento de se deitar, comer, ir às compras, ir para o trabalho... sim, aliás ela nunca chegava atrasada ao trabalho. Sem dúvida que não poderia ser tão pontual, dizia para consigo às vezes, se usasse um relógio. Para ela, cada vida possuía a sua duração própria, o seu próprio ritmo, o seu itinerário próprio e as suas próprias surpresas - boas ou más - a cada um os seus caminhos. Estava tudo decidido antes do nascimento. Estava tudo escrito nos livros secretos, fechados nos grandes armários, na morada dos mortos. Então, porquê apressar-se no caminho da vida? Porquê submeter-se, perpetuamente, à pressão do tiquetaque assassino da paciência e do prazer? Simplesmente, hoje, era diferente. O grande dia de Bai-Lan, e fazer esperar os convidados..., isso não!

Mei-Li levantou o cesto grande de bambu colocado sobre um balde de madeira ao lado do pote e olhou. Uma carpa vermelha flutuava à superfície da água, de barriga para o ar, mas as suas guelras ainda mexiam fraquinho. Mei-Li tinha descoberto esta beleza no fundo do balde de um velho camponês abatido, acocorado ao longo de uma fila de balcões e de vendedores de peixe na Praça da Paz. O velho tinha pedido um preço de ouro, mas Mei-Li não hesitou um segundo, demasiado excitada por esta descoberta. Ela teria mesmo pago mais cinco fens* para comprar o pequeno balde de madeira. Deste modo; o peixe teria podido viver ainda mais dois ou três dias, como disse o vendedor. Era hábito haver um prato de peixe numa refeição de fim de ano ou numa refeição de núpcias, pois o peixe é o símbolo da abundância e da prosperidade. Uma região fértil e bem irrigada, na qual as colheitas são abundantes, é quase sempre denominada «região de peixes e de arroz». O peixe figura também, com muita frequência, nos nian-hua, imagens que se compram e se colam na parede ou na porta no mês de Dezembro para acolher o novo ano. «Porquê?» Mei-Li ainda se lembrava desta pergunta que Bai-Lan lhe colocara, quando a ajudava a escolher nian-hua. «Pois bem, minha filha», explicara-lhe Mei-Li, «talvez seja porque a palavra `peixe' se pronuncia da mesma maneira que a palavra `yu', superabundância. Nós, os Chineses, acreditamos profundamente na força mágica das palavras.» Mas uma carpa vermelha! Prosperidade mais felicidade! Que coincidência... A fim de conservar a cor preciosa, Mei-Li decidiu cozer a carpa no vapor.

* obs. : 1 yuan = 10 jiaos =100 fens, mas na língua chinesa falada substitui-se muitas vezes «yuan» por «kuai» e «jiao» por «mao».

 

Mei-Li deu uma olhadela ao despertador. Não tinha um minuto a perder. Ainda tinha vários pratos para preparar: almôndegas, pato com limão, omeletas de camarão, vaca salteada com rebentos de soja, sopa de raízes de lódão com costeletas de porco, sem falar da sobremesa: grãos de lódão «cristalizados»... e particularmente este último exige muito tempo... mas como imaginar a refeição do casamento da sua Bai-Lan sem sobremesa de grãos de lódão, símbolos de «filhos nume­rosos», um voto para noivos com mais de quatro mil anos?... Além disso, um verdadeiro manjar:para os gulosos...

Aos gritos de «Eis-nos, mamã!», um grupo de jovens irrompeu pelo apartamento nº 11, com Bai-Lan e Hong à frente.

- Hummm... cheira tão bem, mamã! Já tenho água na boca. Hogg exclamara ruidosamente, piscando o olho para Mei-Li. Depois, dirigindo-se aos convidados com uma voz jovial:

- Ao trabalho, camaradas, ponhamos a mesa, sentemo-nos e enchamos os nossos copos!

Mei-Li dirigiu-lhe um sorriso materno, regressou para a cozinha e aqueceu o óleo de amendoim numa frigideira, com açúcar amarelo e folhas de chá de jasmim. Logo que um fumo amarelado começou a sair, ela instalou uma grelha na frigideira, retirou o capão do molho e colocou-o na grelha, cobriu a frigideira e fumou o capão durante dez minutos.

Acabada a operação, Mei-Li trouxe solenemente para a sala de jantar, colocado sobre um grande prato oval, «o galo do senhor», dou­rado, temperado com especiarias e perfumado como se quer.

- Põe mais um prato para o avô Zhang - disse Mei-Li a Bai­-Lan.

- Quem é? - perguntou Hong, dando a volta à mesa para encher os copos.

- O mais velho dos vizinhos - respondeu Bai-Lan. - A sua mulher deixou-nos o ano passado, eles não tiveram filhos.

Se eu estava tão ansiosa nesse grande dia, era também por outra razão - talvez te vá fazer rir, eu sei -, os meus pés não estavam ligados. Hoje são considerados normais, mas nessa época pareciam diabolicamente desmesurados ao lado dos pequenos pés ligados de outras mulheres. Como os da avó Zhou. Era também um costume de tempos antigos, quando eu era uma jovem. A pequena dimensão dos pés era a prova de que se era uma mulher de boa família: quanto mais pequenos forem os teus pés, mais encantadora e virtuosa tu serás aos olhos dos homens. Os pés pequeninos eram então deno­minados «san-cun jing-lian», flores-de-ouro-de-lódão-de-três-pole­gadas, ou «xiang-lian», flores-de-lódão-fragrantes. Muito poético? Tu achas? Ah, ah, ah! A origem deste costume estranho não to sabe­rei dizer. Segundo alguns, muito idosos, isso remonta tão longe quanto a Dinastia Tang, há mais de oitocentos anos. Um sábio da Dinastia Manzhu consagrou um livro inteiro aos pés ligados das mulheres. No seu livro - imagina! - ele dividiu-os em cinco cate­gorias principais e em dezoito subcategorias. Segundo ele, dois pés bem ligados, ideais, deveriam ser simultaneamente carnudos, moles e elegantes. As mães que queriam que as suas filhas se casassem com boas famílias deveriam pois... O nome do autor? Não, já não me lembro, há tanto tempo... Mas tenho a certeza de que ele só contemplou flores-de-ouro-de-lódão-de-três-polegadas bem escon­didas nos pequenos sapatos pontiagudos, feitos à medida e fina­mente decorados com bordados. Se ele as tivesse visto nuas, teria lançado gritos de horror...

Como se faz para ter pés tão pequenos? Então, devo dizer que não há nada de poético nisto. Quando uma menina tem dois ou três anos, começa,se a apertar-lhe os pés com um par de faixas de tecido com­pridas. Aperta-se muito, muito forte, a partir os ossos. Oh não, tu não podes retirar as faixas de tecido durante a noite, tens de dormir com elas. Elas só podem ser retiradas quando tu te lavas. Mas as pessoas dessa época também não se lavavam com tanta frequência como hoje, por isso quando tu as desfazias, as faixas cheiravam mal a ponto de provocar náuseas. E será que dói? É evidente que faz doer! Dói muito, muito. É uma tortura, garanto-te. Imagina que caminhas sobre os dedos dos pés, dobrados à força na raiz em direcção à planta do pé. É como andares sobre os teus ossos quebrados. E os ossos dos teus dedos dos pés partir-se-ão, seguramente, com o tempo. Além disso, não é por um dia, por uma semana, nem por um mês, nem por um ano, mas até ao fim da juventude! Até ao momento em que os teus pés, completamente deformados, parem de crescer... E nessa altura, já não ousas retirar as faixas de tecido o resto da tua vida, pois, nus, os teus pés são tão feios que te fazem vomitar. Eis o preço para o desenvolvimento das sedutoras flores-de-lódão-fragrantes.

E a que preço!

Como consegui escapar a este suplício comum às mulheres da minha idade? Pois bem, deveu-se à falta dos meus pais, ou à vontade de Deus do céu. Quem sabe... A minha mãe morreu muito jovem, ao dar-me à luz. O meu pai ficou cruelmente angustiado com o desa­parecimento da minha mãe, que, segundo se dizia, ele amava muito; envelheceu dez anos num mês. Na minha memória de criança, mal o via em casa. Todas as manhãs, ainda eu dormia e já ele tinha saído para a sua loja, onde vendia a miúdo o arroz que tinha comprado em grosso aos camponeses. Almoçava ali e só regressava a casa ao cair da noite. Durante o jantar, o único momento em que eu o podia ver, ele quase não olhava para mim e falava como se eu não existisse. Porquê uma tal indiferença, para não dizer rejeição? O que teria eu feito para o merecer? Eis as questões dolorosas que eu viria a colo­car-me com frequência, quando cresci. Não, ele nunca me explicou, e isso era o mais terrível. Ele não deveria ter outra explicação excepto... excepto que ele via em mim um cometa maldito e que amaldiçoa, que só tinha caído na terra para lhe retirar a vida da mulher que ele amava... Absurdo? Mas eu sofria terrivelmente com este pensamento e, muitas vezes, tinha pesadelos nos quais via a minha mãe de pé no meio de um tanque vermelho-sangue, imóvel, por detrás de uma bruma que me impedia de me aproximar e de distinguir os traços do seu rosto... Nunca saberei como ela era, porque não havia qualquer retrato dela em casa. Enfim, não sei, era... é ainda muito duro pensar nisso.

Como já podes imaginar, o meu pai não teve nem tempo nem cora­ção para se preocupar com os meus pés, que cresciam todos os dias. Era a tia Huang, uma velha camponesa dos arredores, que tratava de mim. Durante o dia, eu via-a fazer as camas, varrer a casa e o pátio, lavar a loiça e a roupa, estender a roupa sobre as canas compridas de bambu, alimentar as galinhas e os patos, juntar ramos caídos, rachar lenha, escolher e lavar os legumes, preparar as refeições... Eu ia tam­bém ao mercado com ela, ouvia-a regatear, conversar ou discutir com vendedores, que eram quase todos camponeses dos arredores e fala­vam o mesmo dialecto que ela. Durante a noite, partilhava a sua grande cama no seu quarto junto à cozinha, e sucumbia ao sono, embalada pela sua cançoneta doce e mil vezes repetida com uma voz enternecedora. Era junto dela que eu encontrava um pouco da afei­ção maternal que, infelizmente, não tinha conhecido. A tia Huang não tinha os pés ligados. Para a sua família era, sem dúvida, muito mais importante ganhar com que encher o estômago que ter pequenos pés encantadores. Ela tinha uma grande boca e um coração enorme. Gostava de dizer chalaças e ria com todos os seus dentes escuros quando o meu pai não estava lá. Infelizmente, ela desapareceu, quando o meu pai, na esperança de ter um herdeiro macho, voltou a casar­-se. A minha madrasta era uma mulher escrupulosa e muito respei­tadora das tradições. Então, podes imaginar qual foi o choque quando, no dia seguinte à sua chegada a casa, se apercebeu dos meus pés livres.

- Olha-me para esta criança, ó Deus do céu - exclamou com voz escandalizada. - É incrível! Já é tempo de lhe ligar os pés, senão será demasiado tarde, nunca se poderá casar!

Mas já era demasiado tarde. Já tinha mais de seis anos, batia-me como a um animal indomável, chorava até inundar a casa, gritava até fazer tremer as paredes, berrava até acordar toda a vila... Além disso, quando estava só, desfazia e voltava a desfazer cada faixa, e com a tesoura que a tia Huang me deixara, cortava as faixas de tecido em mil bocados. A minha madrasta, ao fim de um mês de esforços herói­cos, dignos de a fazer entrar para a crónica das mulheres virtuosas .do país, desistiu. «Tu não podes deixar de me preocupar com isso?», tinha ouvido o meu pai dizer à minha madrasta na sala, quando ela se lamentava perante ele da minha resistência obstinada. «Vai para o diabo, miúda selvagem!», disse-me ela na manhã seguinte, depois da saída do meu pai para a loja. Doravante, ela considerava-me perdida. O seu rosto de cavalo alongava-se ainda mais quando eu entrava no seu campo de visão. Mais tarde, ela teve três filhas em três anos, para grande decepção do meu pai e sua preocupação...

No entanto, tenho de admitir que, se mais tarde eu me felicitava de não saltitar sobre flores-de-ouro-de-lódão-de-três-polegadas, tive vergonha dos meus pés livres no dia do meu casamento. Receava de tal modo o momento em que o meu futuro marido olharia para os meus pés enormes que pensava cair redondamente morta ao mínimo ar de gozo ou de desprezo no seu olhar. Fechada no meu palanquim vermelho, sentia que a angústia galopava nas minhas veias, sobre­tudo quando me lembrava do sorriso que a minha madrasta me diri­gira, na véspera, pela primeira, há mais de nove anos.

Só mais tarde compreenderia esse sorriso dissimulado. Demasiado tarde.

30 de Dezembro de 1957

O comboio entrou na estação de Guang-Ning. Mugidos da sirene. Chiadeira dos travões. Alguns safanões brutais. Antes mesmo que o comboio parasse completamente, os passageiros precipitavam-se para as portas, com essa febre que marca o fim de uma viagem.

Mei-Li permanecia imóvel no seu assento junto à janela. Olhava para fora. A última visita que fizera à pequena fanmília da sua filha fora há três meses. Tinha vindo dar um beijo a Fan-Fan, a neta que Bai­-Lan lhe dera a 31 de Agosto, três longos anos depois do nascimento do seu neto Ming-Ming, a 14 de Maio de 1954. Desta vez, Hong viera buscá-la à estação. Tinha-lhe parecido muito cansado, mas feliz como um rei. Ele não sabia ainda que, menos de quatro semanas mais tarde, o movimento para a criação de uma atmosfera mais democrática no país, «Que cem flores diferentes desabrochem, que cem escolas riva­lizem», movimento lançado pelo próprio Mao, se transformaria, de repente, num combate sem tréguas contra «os direitistas* contra-revo­lucionários», e que ele, Hong, um simpatizante sincero da causa so­cialista, se encontraria, bruscamente, como «inimigo» do Partido... Na sua carta, Bai-Lan tinha escrito também que o nome de Hong figura­ria, provavelmente, na lista dos que iam ser enviados para o campo de Lao-Gai para aí serem «remodelados» pelos trabalhos forçados...

* Cerca de meio milhão de chineses foi acusado de ser «direitista» por ter cri­ticado o Partido durante este movimento.

 

- O comboio chegou, toda a gente desce! - gritou uma voz muito aguda, por detrás de Mei-Li.

Mei-Li deu um salto, virou a cabeça e viu uma grande boca de lábios grossos.

- Quer passar a noite na carruagem? - dizia com ar de chacota a enorme boca.

Mei-Li abanou a cabeça, levantou-se, pegou na sua mala e no seu saco de viagem na rede, puxou debaixo do banco dois cestos redon­dos cobertos por lenços azuis e desceu.

O cais estava deserto, os últimos passageiros tinham saído. Hong não tinha vindo. Mei-Li poisou a sua bagagem, cobriu a cabeça com o seu lenço de quadrados e dirigiu-se para a saída.

Caía uma chuva miudinha, ou melhor, chuviscava. Só alguns passageiros passavam rente ao muro, de costas curvadas e mãos nos bolsos. Dois ou três riquexós esperavam ainda clientes do outro lado da rua, na luz amarelada dos candeeiros de ilumina­ção pública.

Mei-Li fez um sinal com a mão. Um riquexó atravessou a rua para parar diante dela. Colocou ali a sua bagagem e instalou-se no banco estreito.

- Para onde vai? - perguntou a voz rouca do condutor. - 123, Rua dos Bambus Novos - respondeu Mei-Li.

Tinha decidido logo que recebeu a carta de Bai-Lan. Falou com o director da farmácia e informou-o de que partia definitivamente. Ele tinha perguntado o motivo. Ela respondera que não tinha expli­cações a dar, que decidira parar, e parava. Mas tinha de esperar quinze dias para obter o acordo das autoridades locais, mais três semanas para efectuar as formalidades necessárias para a trans­ferência do seu hu-kou, a carta de residência, de Ying-Bing para Guang-Ning, onde vivia a sua filha, mais um dia para tratar dos seus assuntos, ir comprar uma centena de ovos frescos e dois fran­gos vivos aos camponeses, sem esquecer uma embalagem de bolos de noz de coco na loja da esquina, ainda outro dia para se des­pedir dos vizinhos e entregar a sua nova direcção aos amigos, depois, oito horas e dois minutos de viagem num comboio super­lotado.

- Chegámos - anunciou o condutor. - Quanto é? - perguntou Mei-Li.

- Dois maos e cinco fens- respondeu ele, já pronto para partir. Mei-Li descarregou a bagagem e pagou.

O riquexó arrancou, engolido, imediatamente, pela noite.

Mei-Li parou diante da porta do apartamento n.° 11, poisou a baga­gem, alisou os cabelos com os seus dedos, depois bateu duas vezes. - Entre - disse uma voz fatigada do interior.

Mei-Li empurrou a porta.

Duas cordas de cânhamo estavam esticadas paralelamente da ombreira da porta da entrada à da porta do fundo. Na corda flutua­vam pequenos pedaços de tecido de roupas velhas, cortados como bandeirolas multicolores.

Bai-Lan dava de mamar a Fan-Fan, sentada na beira da cama, com os pés assentes num banco. Os seus lábios começaram a tremer quando viu a mãe entrar.

Mei-Li libertou-se rapidamente da sua bagagem e, sentando-se junto de Bai-Lan, acariciou suavemente as costas da sua filha.

O corpo de Bai-Lan foi sacudido por soluços contínuos. - Chora, se quiseres... - disse Mei-Li, com ternura.

Grandes lágrimas caíram imediatamente, correndo ao longo dos dois sulcos cavados pela infelicidade até aos cantos da sua boca fechada... Mei-Li continuava a acariciar as costas da sua filha. Compreendera que Hong não estava lá.

De repente, o bebé agitou-se nos braços de Bai-Lan: engasgou-se e foi acometida por um ataque de tosse.

Bai-Lan colocou o bebé sobre o seu ombro e deu-lhe pancadinhas nas costas.

- Oh, oh, já é um grande bebé - disse Mei-Li, segurando Fan­-Fan nos seus braços. - Não é querida, hem? Olha estes olhos, este nariz, esta boca! Dir-se-ia a sua mamã muito pequena.

No rosto magro de Bai-Lan esboçou-se um sorriso. - Hong também diz que ela se parece comigo. - Quando partiu? - perguntou Mei-Li.

- Ontem.

- Como é que isso lhe pode ter acontecido?... sempre tão pru­dente...

Foi incitado a falar e disse o que pensava... E depois... - Que mais?

- Foi também acusado de espionagem, por causa dos seus pais e dos seus irmãos, que estão na América...

- Céus! Como conseguiram sabê-lo?

- O seu melhor amigo denunciou-o na reunião de autocrítica. - Mas porquê?

- Para se mostrar mais revolucionário que os outros, talvez para se proteger...

Houve um momento de silêncio. Depois Mei-Li perguntou: - Para onde o levaram? Ele não te disse?

- Sim, disse-me. Parece que o campo para onde foi enviado se encontra na província de Qing-Hai.

- Tão longe! Ele saberá quanto tempo lá vai ficar? - Quinze anos.

- O quê? Quinze anos!

- Sim. Enfim, foi o que eles disseram.

Oh, não! Isso não, não pode ser, pensava Mei-Li dolorosamente. Teria preferido cortar as orelhas a ouvir isto. Ela conhecia dema­siado bem o que é uma vida longe daquele que se ama. Quinze anos! Não, não será mais uma vida, mas um inferno... o que é que ela tinha feito, ela, Mei-Li, no seu passado para que a sua filha tivesse de passar pelos mesmos sofrimentos que ela sofria há tan­tos anos? Ela acreditara que a ferida do seu coração começava a cicatrizar, que a esperança se tornara um dos seus hábitos quotidia­nos... E eis que a ferida se abria de novo... se tornava mais profunda... Indignou-se. Mas contra quem? Aquele que tinha desen­cadeado o movimento? Aquele que incitou Hong a falar? Aquele que o denunciou por cobardia? O próprio Hong, que não tinha sabido calar-se? O destino ao qual ela se tinha resignado até então?... Indignou-se, tanto mais que nem sequer sabia sobre quem ou o quê deveria dirigir a sua indignação... A vida é um erro... Quem é que já dizia isto?...

De repente, uma voz infantil: - Avó!

Era Ming-Ming, de pé, na porta do fundo, chupando o seu pole­gar. Tinha três anos e sete meses, mas parecia muito pequeno para a sua idade. Tinha grandes olhos em amêndoa, como Bai-Lan, mas o seu nariz achatado e a sua boca larga de cantos salientes, vinham-lhe do seu pai. A sua cabeça era muito grande, demasiado grande para o seu corpo magro. Sinal de uma infância precoce, que cresceu menos rápido em físico que em inteligência.

Bai-Lan limpou rapidamente as suas lágrimas com as costas da mão.

- Avó, eu ouvi-te! - disse ele, aproximando-se timidamente. - Anda cá querido - disse Mei-Li, colocando o bebé nos braços de Bai-Lan.

Levantou Ming-Ming, colocou-o nos seus joelhos e beijou-o com ternura nas duas faces.

- Tu ainda não dormiste, meu grande? Vem ver o que a avó trouxe para ti.

- Tu não esqueceste?...

- É evidente que não! isto é a última coisa que uma avó pode esquecer!

Mei-Li levou Ming-Ming até à bagagem, retirou um lenço que cobria um cesto e tirou dele um embrulho colocado sobre os ovos que deu a Ming-Ming.

- Toma os teus bolos de noz de coco.

- É tudo para mim? - perguntou Ming-Ming, desfazendo o embrulho.

- É claro, meu querido, é tudo para ti. A tua irmã ainda é demasiado pequena para os comer....

- E os ovos também são para mim? - perguntou ainda Ming­-Ming pondo um doce na sua boca.

- Sim, para ti e para a tua mãe.

- Avó, o que é que está lá dentro? - perguntou o pequenino, que levantara de uma só vez o lenço que cobria o outro cesto.

Assustadas pela luz fortíssima, as duas galinhas cacarejavam estri­dentemente, batendo as asas.

- Estas galinhas também são para ti e para a tua mamã - disse Mei-Li, acariciando as duas aves, para as acalmar. - Já viste tudo, meu querido, agora vamos para a cama?

- Vai dormir comigo, avó?

- Sim, vou dormir contigo, mas ainda vou conversar um pouco com a tua mãe. Espera por mim na tua cama, está bem?

- Está bem! - disse a criança.

Mei-Li voltou a cobrir os cestos, depois levou-Ming-Ming para a cama, e, enquanto ajudava a arrumar os doces numa velha caixa de biscoitos, a criança perguntou-lhe, com voz tímida:

- Por que é que a mamã chora?

- Pois - respondeu Mei-Li após uma breve hesitação - por­que o teu pai partiu...

- O papá partiu para uma viagem, ele disse-me...

- Sim é isso, partiu para uma viagem muito, muito longa. E a separação é sempre muito triste... Compreenderás quando fores maior...

- Tu partirás amanhã, como o papá, avó?

- Oh, não, não partirei amanhã, nem depois de amanhã, nem mais tarde. Ficarei contigo, com a tua mamã e a tua irmãzinha.

- Que bom! Vais-me contar muitas, muitas histórias, não é? - Sim. Se te portares bem. Agora dorme, meu querido, dorme. Mei-Li beijou Ming-Ming na testa, depois voltou para o quarto de Bai-Lan, fechando suavemente a porta atrás de si.

Bai-Lan mudava o bebé. Os seus cabelos compridos deslizavam para o seu rosto. Retirou os cueiros molhados, pegou numa camisa de homem que dobrou e colocou nas nádegas da criança.

- Esses cueiros ainda não estão secos? - perguntou Mei-Li, designando assim os pedaços de tecido estendidos nas cordas.

- Não, lavei-os esta tarde.

Envolveu Fan-Fan num cobertor algodoado e deitou-a num berço de bambu colocado ao lado da sua cama. Depois, deitou-se e puxou o cobertor sobre ela até ao pescoço.

Mei-Li sentou-se na beira da cama.

- Ele deixou-me uma carta - disse Bai-Lan, com uma voz estra­nhamente calma. As suas faces secas estavam tão brancas como a fronha da almofada.

Mei-Li reparou então numa folha de papel amachucado que estava debaixo do cobertor.

- O que é que ele te escreveu, se acaso não for imprudente per­guntar-te...- gaguejou Mei-Li, possuída por um estranho pressenti­mento.

- Pediu o divórcio. - Mas porquê?

- Para não comprometer o futuro dos filhos...

Mei-Li colocou a mão nos cabelos da filha. Mais uma vez, não soube o que dizer. Sentia-se culpada de ser uma mãe incapaz de pro­teger a sua filha, culpada da sua impotência diante de tal dor.

Bai-Lan, virando-se para a parede, disse:

- Já está, mamã, é passado. Não te preocupes comigo. Vai des­cansar. Deves estar cansada depois de toda esta agitação...

- Tu também - disse Mei-Li com doçura - procura dormir um pouco.

- Sim, mamã.

Depois de ter arrumado os seus cestos na cozinha, Mei-Li deslo­cou-se, silenciosamente, para o quarto de Bai-Lan para juntar os cuei­ros estendidos nas cordas. Em seguida, voltou à cozinha, deitou arroz num pequeno copo e espetou dois pauzinhos de incenso, que acen­deu. Subiu um pouco de fumo branco, a sala encheu-se, imediata­mente, de um odor agradável de sândalo. Mei-Li ajoelhou-se, fechou as duas mãos sobre o peito e murmurou:

- Que o Muito-Venerável-Deus-do-Céu abra os seus olhos e pro­teja Hong. Ele nada fez de mal. Foi sempre um filho para mim, um bom marido para Bai-Lan, um bom pai para os pequenos...

Depois, Mei-Li pôs o copo na mesa, colocou o braseiro no meio da sala, juntou uma folha de jornal velho, alguns raminhos secos e acendeu. Quando o lume ateou, deitou uma pazada de carvão de madeira e abanou um pouco. Em seguida, com a ajuda de três ban­cos, instalou um cesto enorme de bambu com grandes buracos por cima do braseiro, estendeu, uma a uma, as faixas de tecido sobre o cesto. Assim, pensou ela, amanhã terá cueiros secos para o bebé.

Chegaram a Tien-Ma ao pôr do Sol. Um leve odor a azeite quei­mado pairava no ar. f-lavia lâmpadas acesas.

Antes de transpor a porta do quarto nupcial, colocaram a extre­midade de uma écharpe de seda vermelho-fogo na minha mão direita e a outra na sua mão. Eu observei, por debaixo do véu que continuava a esconder-me a cara, que era uma mão larga, quadrada, um pouco nervosa. E entrámos assim no quarto.

Porquê a écharpe vermelha, perguntas-me tu? Pois, é um outro costume da região, mais velho que a bisavó da bisavó da tua bisavó. Segundo a lenda, contada por antepassados, na Dinastia Tang havia um jovem belo chamado Wei-Gou. Uma tarde, quando passava pela cidade Song, viu à beira da estrada um homem tão velho cujas finas barbas brancas lhe desciam até à cintura. Sentado numa pedra, o vene­rável idoso estava a folhear, ao luar, um livro com três polegadas de espessura, com um pequeno saco de linho grosseiro, aos seus pés. Muito surpreendido, Wei-Gou perguntou-lhe que livro estava a ler, e ele respondeu que era o Livro dos Casamentos de Todos os Homens debaixo do Céu. Cada vez mais admirado, Wei-Gou perguntou-lhe o que tinha no seu saco, o velho respondeu-lhe que eram cordéis ver­melhos. Wei-Gou perguntou-lhe, então, o que fazia com eles, ao que ele respondeu serem para atar os pés dos homens e das mulheres. Wei-Gou perguntou-lhe ainda por que fazia isso, ao que ele respon­deu que um homem e uma mulher ligados pelo mesmo cordel ver­melho estavam destinados um para o outro e formariam um casal, por maiores que fossem as diferenças sociais ou a idade e a distân­cia geográfica que separassem um do outro, quer quisessem quer não. Wei-Gou perguntou-lhe, então, quem seria a sua futura esposa, o velho homem olhou no seu grande livro e respondeu-lhe que era a filha de uma velha vendedeira de legumes, cega e muito pobre, que habitava numa cabana à saída da cidade e que a menina acabava de comple­tar três anos. Wei-Gou, num acesso de cólera, enviou o seu criado de libré para matar a menina, mas o criado falhou o golpe e os dois homens tiveram de sair do país à pressa. Catorze anos mais tarde, Wei-Gou tornou-se um oficial brilhante do,,exército imperial. O seu general, Wang-Tai, que o estimava muito, deu-lhe a sua filha em casa­mento. Ela já era muito bela, mas ainda colava sempre uma pequena flor de seda na sua fronte entre as sobrancelhas. Wei-Gou perguntou­-lhe porquê, ao que ela respondeu ser para esconder uma pequena cicatriz que um assassino lhe tinha feito catorze anos antes, no tempo em que a sua mãe natural vendia legumes na cidade de Song. Wei­Gou ficou também a saber que, após a morte da velha vendedeira de legumes, a sua filha fora adoptada e criada pelo general Wang-Tai; que o seu casamento com esta rapariga estava predestinado e que não tinha tido razão quando se opôs à vontade de Deus do céu. Depois disto, começaram a ligar um cordel vermelho aos pés dos noivos durante a cerimónia, e este costume foi transmitido de geração em geração... O cordel vermelho tornou-se mais tarde, não sei por que via misteriosa, a écharpe vermelha que ele e eu segurávamos nesse dia, cada um por uma extremidade, ao transpor o umbral do nosso quarto.

A porta fechou-se atrás de nós e, então, eis-nos a sós.

Ele vira-se para mim. Eu sinto a sua respiração. E cada vez mais ansiosa, eu espero o golpe do destino...

Com um gesto, desesperadamente lento, ele retira o quadrado de tecido vermelho que me cobre o rosto. Os nossos olhos encontram­-se. Ele olha-me como se me conhecesse desde sempre. Embora me pareça um pouco pálido e muito grave, os seus olhos claros inspi­ram-me confiança, nem sei bem porquê.

«Ai, pisaste o meu pé!», queixou-se alguém em voz baixa por detrás da janela. As pessoas escondiam-se ali para nos olharem. Trocámos, ele e eu, um pequeno sorriso divertido. Ele não é surdo, ainda bem. Céus! Ele tem lábios grossos e belos dentes brancos. Não dissemos nada um ao outro mas tenho a impressão de que ele sabe tudo sobre mim, que ele vai proteger-me e amar-me para sempre. Doravante ele está lá, a bordo da barca da minha vida, ele guia e cuida: «Não te preocupes, minha menina, eu estou lá... », dir-me-ia ele, sem dúvida, em caso de tempestade...

Puxa uma cadeira debaixo da mesa e faz-me sinal para que eu me sente. Sento-me. Pega noutra cadeira e senta-se também ele diante de mim. Na mesa quadrada, coberta com uma toalha branca bordada com pequenas flores vermelhas, há duas pequenas tigelas vazias e uma chávena grande na qual vejo um coração de porco cozido ao vapor e meio mergulhado numa sopa acastanhada. Ele pega numa colher, divide o coração do porco em dois, coloca uma metade na pequena tigela diante de mim e a outra na pequena tigela diante dele. Depois faz-me sinal para comer. Comemos em silêncio.

Estranho costume, dizes tu? Sim, mas para nós, Chineses, o casa­mento tem um carácter sagrado, como tu sabes, e tudo é feito segundo os nossos ritos - quero dizer, os nossos antigos ritos matrimoniais - para o sublinhar: como o cordel ou a écharpe vermelha incarna a pre­destinação ou a vontade de Deus do céu (infelicidade para quem ousar traí-la, o coração de porco significa apenas a união do coração de duas pessoas ligadas pelo pacto do casamento até ao final das suas vidas...

Depois faz-me sinal para o seguir, e nós aproximamo-nos da cama, que se encontra no fundo do quarto. Diante da cama, vê-se um banco no qual há uma tigela com bagos de arroz, alguns pauzinhos de incenso, uma pequena taça de chá e uma pequena taça de aguardente. Ele ajoelha-se, acende os dois pauzinhos de incenso, aperta-os nas suas mãos juntas diante do peito e prosterna-se três vezes. Depois espeta os pauzinhos de incenso nos bagos de arroz, deita o líquido castanho pelo solo à volta do banco e, assim, foi feita a reverência ao Génio da Cama que adora o chá. Eu faço a mesma coisa e deito o líquido claro pelo solo, como ele, para fazer a reverência à Senhora, a Mulher do Génio, que é uma grande bebedora de aguardente. Acredita-se que, então, os noivos se encontram, daqui em diante, sob a protecção do Génio e só poderão conhecer noites de alegria e de sono tranquilo. Ha! Ha!...

Até agora, ele não tinha falado e eu penso que alguém lhe deve ter dito para não ser o primeiro a falar no quarto nupcial. Eu, como é evidente, não tenho vontade de ser a primeira a morrer, mas tam­bém não quero que ele morra antes de mim. Será que já o amo? Não sei... enfim... eu creio... Parece-me que o ideal é que se pronuncie, juntos, a primeira palavra e morrer-se-á juntos e no mesmo momento. Assim não se terá de esperar depois da morte para se juntar na outra vida. Mas como dizer-lhe tudo isto... sem, justamente, falar? E... talvez... será mudo?...

A porta rangeu nos seus gonzos, virámo-nos: uma jovem surgiu com uma bacia que fumegava nas mãos. Ela disse-me:

- Queira sentar-se, cunhada.

- É a minha irmã, Jing-Hua - disse ele. Salva!

Fechei os olhos e dei um grande suspiro de alívio. Ele não é mudo! E como nem ele nem eu pronunciámos a primeira palavra, a máxima da avó Wang deve ter perdido a sua força sinistra. Obrigado meu Deus! E pensar que eu estive para falar primeiro para verificar se ele era mudo ou não...

- Não se sente bem? - perguntou-me ele um pouco inquieto. - Nada, não é nada - procurei sossegá-lo.

- Jing-Hua traz-lhe água quente para a sua toilette da noite - expli­cou-me ele. - Deve estar cansada depois de uma jornada tão longa, isso far-lhe-á bem. É melhor que vá para a cama cedo esta noite por­que amanhã teremos de partir ao amanhecer.

Partir? Sim, era na verdade um costume dos antepassados: no dia seguinte ao casamento, os noivos iam em conjunto visitar os pais da noiva. As cerimónias do casamento só terminariam com esta visita ritual.

Ele tinha uma voz grave e doce. Com estas palavras retirou-se com Jing-Hua, fechando a porta atrás dele. Como é delicado, pen­sava eu, ele tem um ar um pouco embaraçado, mas deve ser o pudor.

Depois da toilette, coloquei a bacia sobre o lavatório que se encon­trava junto à porta, em seguida, depositei na bacia, segundo o cos­tume que me tinham explicado na véspera, uma moeda de prata em sinal de agradecimento e de boa cordialidade. A minha cunhada Jing­-Hua viria buscá-la na manhã seguinte.

Agora, o meu marido viria de um momento para o outro. Eu espe­rava-o prudentemente, sentada na beira da cama. No quarto havia também um armário de madeira lacada e na cabeceira da cama uma pequena biblioteca em bambu preenchida a três quartos. Ele também sabia ler !! Eis, qualquer coisa, nele, que me agradava. ,0 velho letrado da casa do meu tio só nos ensinara Confúcio e os seus discípulos, mas aqui nas prateleiras da biblioteca havia sobretudo obras taoistas: Taodejing'(Livro da Moral, escrito por"Lao-Tsê, o pai do taoísmo), Zhuangtse «palavras recolhidas de Zhuangtse, grande discípulo de Lao-Tsé).'E, o que mais me intrigou foi ver entre poemas de Tang e romances ditos históricos,: como; A História dos Três Reinos, À Beira da Agua Liang-Shang, -alguns 'títulos reputados perversos que nos tinham sido proibidos pelo velho letrado: As Histórias Estranhas Saídas de Uma Sala de Estudo, O Quarto Oeste, O Sonho do Pavilhão Vermelho, etc. Com isto, sonhava eu, não terei tempo para me enfa­dar...

Mas o que aconteceu para  que saiba ler e escrever? isso ,é outra história.

Depois do fracasso dos pés ligados, sabes, a minha madrasta deixou de se ocupar de mim, Portanto, muitas vezes, para se ver livre de mim, enviava-me para a casa do irmão mais velho da minha mãe. Que felicidade para mim, imaginas! Pelo menos o meu tio, a sua mulher e os seus filhos, duas raparigas e três rapazes, gostavam muito de mim. Habitavam, então, uma casa linda na outra extremidade da vila, junto à Colina dos Grous. Nada mais grosso que um cacete e já calvo no alto do crânio, este tio,fumador.de ópio orgulhava-se, mui­tas vezes, de ter feito fortuna com o suor do seu rosto. Depois de mais de vinte anos de trabalho, e de_noites muito curtas, tinha-se tor­nado patrão de uma pequena fábrica de cigarros, muito próspera na época, e as suas roupas cheiravam de tal modo a tabaco, dizia muitas vezes com um ar falsamente destilado, que isso lhe custava uma mina de ouro para amaciar a boca da-sua mulher que lhe dava cabo dos ouvidos com as suas queixas... Ele mesmo, pouco instruído, acre­ditava na força dos estudos, e albergava- em.casa, como preceptor dos seus filhos, um velho letrado arruinado que conseguiu alcançar gló­ria no tempo do exame imperial.

Um dia, o meu tio, que regressava mais cedo do trabalho, sur­preendera-me escondida por detrás da janela da sala de estudo. - Eh! - disse ele -- -eh!, meu pequeno pássaro. O que é que estás a fazer por aí?

- Estou a ver - respondi.

A ver? O que é que estás a ver?

- Ali – e apontava com o dedo para os meus primos que na sala pintavam seus cadernos.

- Então, o  que e que tu viste  ?

-'Vi isto - e desenhava com os dedos dois caracteres no solo. - Olha! olha! O que é isto?

Ele franziu o sobrolho.

- Mas o meu tio não sabe? - disse eu surpreendida.

No meu espírito de menina de sete anos; julgava que as pessoas crescidas sabiam mais que as crianças, mas nem sempre é verdade, sabes.

- Não... oh, sim, evidentemente; que sei --(.disse ;ele com o ar mais naturál do mundo. - Aliás, haverá alguma coisa debaixo do céu que o teu tio não saiba? Não. É claro que não. Vamos eu queria somente saber se tu conhecias bem  esses dois caracteres. Diz, o que é isso?

--É «Meng-Ke», o nome do melhor aluno, de (Confúcio! -`E num tom orgulhoso, repetia vocábulo por vocábulo a Palavra do velho letrado.

- Muito bem, muito bem minha pequena---dízia ele acariciando lentamente o seu queixo onde tremelicavam três ou quatro pelos. amar­elados. - Não tinha,pensado nisso, mas estás interessada emtgpren­der a ler e a escrever?

- Oh, sim, gostava muito.

- Muito bem... Então, eu falarei esta noite com o teu pai sobre isso. Se ele estiver de acordo...

Mas o meu.pai não estava de acordo. «A virtude de uma mulher reside na sua ignorância», respondeu ele.

- Vejamos, meu pequeno pássaro, pára de fazer essa cara de mise­rável ao teu velho tio, faz-me doer o coração. Certamente que encon­traremos um meio.... Ah! Tenho uma ideia, e desta vez, tu vais ver, vai tudo correr,bem. Faz-me um sorriso, vá, um pequeno sorriso, hem? Assim está bem!

Consegues atlivinhar o que o meu tio ia fazer? Ia falar com a minha madrasta. Ele ia falar com a minha madrasta com uma linda caixa que continha um lindo par de pulseiras em prata maciça. Ele expli­car-lhe-ia que se eu viesse todas as manhãs para as explicações, come­ria, evidentemente, na sua casa, ela não teria de me preparar as refei­ções, e teria assim menos trabalho e mais tempo para o seu trio, oque aliás lhe proporcionaria economias não desprezíveis, que não haveria qualquer perigo do lado do meu pai, uma vez que ele nunca regressava a casa antes do anoitecer, que tudo o que ela teria de fazer era fazer de conta que nada sabia, etc. Enfim, em resumo, o meu tio tinha utilizado tão bem o seu talento de melhor negociador da vila para fazer brilhar aos olhos da minha madrasta todas as vantagens que isso poderia representar, que a minha madrasta acabara por dar a sua palavra, sem esquecer, evidentemente, de ficar com o par de pulseiras em prata maciça. Estás a ver, é tão simples como isto.

Um relógio de parede, que se encontrava algures na casa, tocou a meia hora, o meu marido ainda não tinha regressado. Eu permanecia sentada na beira da cama e esperava, pacientemente. A nova vida que eu ia começar aqui parecia-me ter a mesma cor que este grosso carác­ter Xi, dupla felicidade, recortada em papel vermelho-vivo que tinham colado na porta.

O relógio de parede tocou uma outra meia hora, depois outra, e outra ainda... mas ele continuava sem regressar. O que é que se passa? Que horas são? Por que não voltou ele? Onde pode estar, Que faz ele? Comecei a ficar inquieta. É contudo bizarro... Mais um costume? Nunca ouvi falar dele antes? Sair para o procurar? Fora de questão. O que é que diriam se a noiva começasse a procurar por todo o lado na casa para encontrar o seu marido perdido na noite do casamento?... Mas... se... se ele não me amasse? Ideia louca! Olhei então para os meus pés não ligados que pareciam tão largos como pequenos ban­cos. A inquietação apoderava-se de mim. Ou se... se fosse por causa disso? Oh! O que eu não teria dado nesse momento para ter um lindo par de flores-de-ouro-de-lódão-de-três-polegadas! Fatalmente, o reló­gio de parede tocou uma outra meia hora, depois uma outra, depois uma outra, depois uma outra... Era preciso, sobretudo, não entrar em pânico. O céu não se abaterá sobre as nossas cabeças, repetia eu imi­tando a entoação do meu tio para me acalmar, o céu não se abaterá sobre as nossas cabeças...

De súbito, a cólera apoderou-se de mim. Deixar a noiva só no quarto nupcial na noite de núpcias! Sem explicação! Sem dizer nada! O que é isto!... Então decidi não esperar mais e deitar-me comple­tamente vestida. Mal a minha cabeça tocou na almofada, mergulhei num sono de chumbo. Estava, de facto, demasiado fatigada para pen­sar durante mais tempo no que quer que fosse.

No dia seguinte, foi Jing-Hua quem me veio despertar. - O que é que se passou?

.- Não sei - atalhou ela a meia voz. -- Onde estava...

- Ele espera-vos na sala de jantar. .- Mas...

- Despache-se, cunhada, o pequeno-almoço está pronto.

Com um gesto rápido, guardou a moeda de prata da bacia e, com um «obrigada!», desapareceu.

O primeiro raio de sol penetrava pela janela e desenhava um rec­tângulo luminoso sobre a expressão «dupla felicidade», tornando a sua cor vermelho-fogo ainda mais viva.

Partimos imediatamente a seguir ao pequeno-almoço, ele sobre um macho preto, eu no meu palanquim vermelho. De novo.

Como o tempo estava agradável nessa manhã: sol brilhante, céu azul, flores amarelo-douradas, flores branco-neve, flores violetas, flo­res carmim, flores cereja, flores vermelhas, zumbido de abelhas, can­tos de pássaros, folhas de bananeiras brilhantes de orvalho, lagos de verde-opaco onde nadam patos alegres, arrozais em socalcos nos quais trabalhavam camponeses quebrados em dois...

Ele manteve-se silencioso durante a viagem. Mais de uma vez pro­curei coragem para o interrogar sobre esta noite que acabava de pas­sar. Mas todas as vezes que o meu olhar se encontrava com o seu, toda a minha coragem se dissipava como o fumo levado por um sopro de vento. Havia muitas coisas nos seus longos olhos claros. Sobretudo sofrimento. Como se ele tivesse compreendido o que me ia na cabeça e que me tivesse suplicado: «Não, Mei-Li, por favor não me per­guntes nada, não...».

O meu pai e a minha madrasta, no mesmo trajo de cerimónia que na véspera, ofereceram-nos um almoço sumptuoso. Já nem me lem­bro quais os pratos que comemos, na minha boca tudo ficava sem gosto, como cera. O meu pai falava pouco, ouvia muito, sorria dis­cretamente. Parecia que ele agradava muito a meu pai, que se dignou mesmo a levantar o seu olhar para mim e os seus lábios murmura­ram qualquer coisa que se assemelhava a um ritual: «Que sejam feli­zes por mil anos! ... » Esqueci, então, durante um centésimo de segundo, esta inquietação que me atormentava desde a noite precedente e quase me senti feliz.

Depois da refeição e do chá tínhamos de regressar. Antes de subir para o meu palanquim, virei-me para ver mais uma vez a casa da minha infância. Um pouco de vento levantava a poeira amarela na rua deserta quando a minha madrasta, à entrada da porta, me dirigiu como na 'noite de núpcias, um sorriso singular.

Estávamos de novo a sós no quarto, finalmente!

Olhe... - disse-me o meu marido com uma voz hesitante - olhe, Mei-Li, eu... tenho de lhe explicar... Como dizer-lhe... Eu... eu não sou o seu marido...

O quê! Um raio não me teria atingido tão fortemente. Não compreendi.

- Pois é.... - balbuciou ele cada vez mais embaraçado. - O meu irmão mais velho... ele... É ele... É ele o seu marido...

Seguindo a direcção do seu braço, voltei-me e vislumbrei na luz fraca da lâmpada de azeite, na cama onde eu dormira só na última noite, .o rosto macilento e cavado de um homem meio sentado, com as .costas apoiadas contra uma grande almofada.

Bem... - disse ainda a voz evasiva que eu já não ouvia - agora 'tenho ‹de .partir... Deixo-vos.:.

Apertei as coxas com todas as minhas forças e senti uma dor forte: não era um pesadelo.

- Mei-Li, disseram-me que é tão linda como o seu nome* - murmurou o homem sentado na cama.

Fiquei como se estivesse pregada, sem gestos, sem pensamento, sem voz, sem lágrimas. Não compreendia ... não queria compreen­der.

- O meu nome é Meng-Yu - apresentou-se o homem num tom um pouco irónico - Meng, sonhador, Yu, o espaço.

Parece-me que todas as suas forças se concentravam nas meninas­-dos-olhos imóveis.

- Vou fazer trinta e dois anos este ano e não posso andar há quinze anos na sequência de uma doença...

Oh! não!

* Mei-Li  significa «belo», «beleza».

 

- E também não posso ver...- continuou a voz fraca, cruel­mente.

Não e não e não e não e não!

- Julgava que lhe tinham dito - recomeçou, após um profundo suspiro - pois eu insistia nisso.

Mentiroso!

- Oiça, Mei-Li, tenho de lhe explicar... Eu recuei.

- Venha, Mei-Li, por favor - disse ele num tom triste - tem de me ouvir...

Eu recuava mais. O lavatório virou-se com estrondo. A bacia rolou até aos pés da cama.­

Paralisado! Cego! Oh céus! Não me faltava mais nada! Como num relâmpago, revi o sorriso maquiavélico da minha madrasta. Tinha-se vingado bem, ela!... Mas meu pai, meu pai! O que é que tinha feito à sua filha, meu pai!... Esmaguei as palmas das mãos contra a minha cara; lágrimas de raiva, de humilhação, de desespero impotente, come­çaram a correr entre os meus dedos, sem barulho.

«Casada com um galo, segue-se o galo, casada com um cão, segue­-se o cão, é esta a sorte de uma mulher...» Quem é que me já me dissera isto?

23 de Agosto de 1964

A porta da escola primária da Fonte dos Pescadores estava escan­carada desde as sete horas menos um quarto. A entrada dava para um pátio quadrado de terra batida. O sol da manhã alongava, no pátio cuidadosamente varrido, as sombras de cinco eucaliptos de folhas verdes, largas, plantados em linha recta. Atravessando o pátio, viam-se duas construções compridas de tijolos vermelhos, recente­mente caiados; à direita, o gabinete do director, o gabinete dos pro­fessores, mais cinco salas de aulas. Depois, havia um minúsculo ter­reno rectangular de desporto com uma caixa de areia, uma barra fixa, um par de barras paralelas, duas mesas de pinguepongue em tijolos vermelhos com um tampo em cimento, e ao fundo as casas de banho.

A partir das sete horas e meia, os professores, os alunos e os seus pais ou avós começavam a chegar. Era o dia da apresentação dos tra­balhos de casa para os alunos que já frequentavam a escola e o dia da inscrição para os novos.

Mei-Li entrou com Fan-Fan e Ming-Ming por volta das nove horas. Grande e rechonchuda, num vestido novo com florinhas cor-de­-rosa que flutuava sobre ela, Fan-Fan parecia um verdadeiro monu­mento ao lado de Ming-Ming, o seu irmão mais velho de três anos e três meses, que parecia nunca ter crescido.

Pararam diante da sala de aulas em cuja porta um cartão indicava: «Inscrição para os novos alunos.»

- Fan-Fan e eu ficamos aqui na bicha - disse Mei-Li a Ming­_Ming - tu vais apresentar os teus trabalhos na tua sala de aulas. - Sim, avó - disse Ming-Ming, impaciente para se juntar aos seus camaradas.

- Se saíres antes de nós - acrescentou Mei-Li - regressa só. Não tens necessidade de esperar por nós, a bicha é demasiado comprida aqui. - Sim, eu sei, avó - gritou Ming-Ming, que se afastava - e irei ao mercado juntar as folhas das couves para os coelhos.

Mei-Li pegou na mão de Fan-Fan e colocaram-se na fila de espera. Uma meia hora mais tarde, Ming-Ming voltou a passar com um colega. Fez um sinal com a mão à sua irmã e à sua avó.

Havia ainda umas vinte pessoas à frente delas.

Quando, finalmente, chegou a vez de Fan-Fan, a suas faces esta­vam rosadas de calor e de excitação! Ir à escola significava para ela «tornar-se grande».

Ela estava impaciente ao ver chegar o seu próximo aniversário contando os dias pelos seus dedos; o tempo passava demasiado len­tamente. No momento exacto em que tinha transposto a entrada da escola, tinha lançado um olhar furtivo para o rosto magro do seu irmão que entrava para o quarto ano: a partir de hoje, acabou o teu privilégio de ser o «grande». Eu também conseguirei mostrar à mamã e à avó excelentes notas com tinta vermelha nas margens dos meus cadernos. Melhor ainda, eu serei a primeira da turma. Eu não sou estúpida e estou decidida a trabalhar muito... Fan-Fan já via a sur­presa e a alegria brilhar nos olhos da sua mãe e da sua avó ao lerem o sua primeira caderneta escolar...

Longe de partilhar o entusiasmo da sua neta, Mei-Li sentia-sé total­mente esgotada. A sua mão que segurava a de Fan-Fan estava húmida e fria.

- Como te chamas? - perguntou a Fan-Fan a mulher de óculos, com uma voz agradável.

- Fan-Fan - respondeu a menina. - Muito bem. Que idade tens?

- Sete anos dentro de uma semana.

- No dia 31 de Agosto de 1957?... Que sorte, minha menina? Um dia mais tarde e tinhas de esperar o próximo ano para te inscre­veres. Onde é que nasceste?

- Em Guang-Ning.

- Muito bem. Sabes contar?

- Sim.

- Até dez?... vinte?... trinta?...

- Até mil - respondeu Fan-Fan com orgulfm. - Muito bem! Então, conta~ de oitenta: a cem. Fan-Fan fê-lo de um fôlego.

- Excelente - disse a mulher de óculos. -  Sem dúvida que também sabes calcular?

- Sim - respondeu Fan-Fan curvando o peito. - Então, quatro mais três são...?

- Sete!

- Exacto. Nove menos seis são...? - Três.

- Bravo. Sabes escrever o teu nome?

- Sim e o nome do meu irmão, o nome da minha mamã, o nome da minha avó...

- Muito bem. Podes escrever o nome da tua mamã aqui?

A mulher de óculos deu um lápis a Fan-Fan e indicou-lhe um qua­drado no formulário.

De ar grave, Fan-Fan pegou bem no lápis, escreveu dois caracte­res sobre a folha.

- Bai-Lan?... Não é uma cantora da ópera) Gui?

Fan-Fan virou a cabeça e dirigiu um ar interrogativo  para a sua avó: - Era - disse Mei-Li - mas já não canta... devido... a uma doença na voz...

Esteve quase a dizer a verdade.

- Que pena! - disse a mulher de óculos. - Eu ouvia cantar Irmã Liu no teatro de Guang-Ning, há anos. Gostei muito dela. Mei-Li sorriu com um leve sorriso triste.

- O que é que ela faz agora? - perguntou a mulher com sim­patia.

- Eu sei - disse Fan-Fan, precipitando-se. - Num local onde fazem bolos!

A mulher de óculos sorriu.

- Ela queria dizer na padaria-pastelaria do Estado de Guang-Ning - explicou Mei-Li.

- Claro. Compreendo agora por que és um pouco forte, Fan-Fan, deves comer bolos todos os dias...

- Não, não é verdade! A mamã só traz bolos para casa nos dias de festa - replicou Fan-Fan num tom sério que as divertiu.

- Está bem! Então, diz-me o nome do teu papá. Ele chama-se Fan-Hong.

Fan-Hong, sim. - Onde trabalha? Aaah!..

Fan-Fan olhou de novo para a sua avó.

- Nós não sabemos - balbuciou Mei-Li. - Ele vive numa outra região... Divorciou-se da mãe de Fan-Fan há muito tempo... Fan-Fan fixou a sua avó como se ela já não a reconhecesse. - Ah! - disse a mulher de óculos com um ar de surpresa. - Estou desolada... Falta-nos ainda uma última questão: onde habitas, Fan-Fan? Fan-Fan continuava a fixar a sua avó como se ela não tivesse entendido a pergunta.

- 123, Rua dos Bambus Novos - respondeu Mei-Li forçando um sorriso. - Quanto é a inscrição?

- Um kuai e cinco maos.

Mei-Li retirou do seu bolso duas notas amachucadas.

- Perfeito - disse a mulher, arrumando as notas numa pequena caixa de cartão coberta de pó de giz. - Já está, Fan-Fan irá para a turma 1-1, a dos alunos avançados.

- É você a professora da turma? - arriscou Mei-Li. - Sim. O meu nome é Li. Ensino a língua chinesa. - Quantos alunos haverá na turma?

- Cinquenta e quatro no máximo. O início das aulas será dentro de oito dias, no dia 1 de Setembro.

- Muito obrigada - disse Mei-Li dando uma pequena cotove­lada a Fan-Fan. - Adeus, professora Li!

- Adeus, professora Li - repetiu Fan-Fan maquinalmente. - Adeus. Até para a semana, Fan-Fan. O seguinte!...

Mei-Li e Fan-Fan saíram da escola e subiram a Rua da Fonte dos Pescadores em silêncio.

O Sol brilhava num céu sem nuvens. O alcatrão da estrada tor­nava-se mole e escaldante.

Um carro de mão carregado com dois pedaços enormes de cimento armado rolava penosamente a dois metros adiante delas. As mãos crispadas na ponta dos varais, o corpo esticado como um arco à força de puxar a sua carga, o homem avançava passo a passo, com a fronte quase a tocar o solo, o crânio escondido por debaixo de uma toalha molhada, cuja cor de origem já não se adivinhava. O seu dorso nu e bronzeado reluzia com o sol e o suor. Mei-Li fixava os olhos no seu pescoço magro e sujo onde as veias azuis, grossas como cordas, pare­ciam rebentar de um momento para o outro. Ela sabia que Fan-Fan ia interrogá-la. Ela também conhecia as perguntas que a criança lhe ia colocar. Há três anos, quando Ming-Ming entrou para a escola, ela teve de enfrentar a mesma situação. Ela fizera tudo e tudo faria para proteger os seus netos, mas não podia substituir o pai. Mais cedo ou mais tarde, eles tinham de enfrentar a realidade. E que realidade?...

- Avó - disse Fan-Fan, - O papá e a mamã já se divorciaram há muito tempo?

- Sim, três meses depois de teres nascido. - O que é divorciar-se?

- Quer dizer que o teu pai deixou a tua mãe.

- Disseste-me que tinha ido para uma longa viagem!

- Sim, é isso. Para uma viagem muito longa. E ninguém sabe onde ele agora se encontra,

- Porque fez ele essa viagem muito longa? - Porque foi obrigado a isso.

- Por quem?

- Por uma coisa muitp poderosa... demasiado para que alguém lhe resista. Tu compreenderás quando fores maior.

Fan-Fan calou-se. Ela não ficou nada convencida com este «tu compreenderás quando fores maior». Ela detestava esta resposta que não respondia a nada. No entanto, sabia que era inútil insistir, a sua avó repetir-lhe-ia a mesma coisa, mais palavra, menos palavra, como todas as vezes que a evocação do seu pai surgia na conversa. Fan­-Fan não pensava que fosse uma coisa má ter um pai que fazia via­gens longas. Shiao-Wa, a Sua colega, que habitava no mesmo bloco de apartamentos, também tinha um papá que fazia, frequentemente, viagens longas. Isto é, era marinheiro e dava voltas ao mundo a bordo de um barco muito grande, Mas o pai de Shiao-Wa regressava, pelo menos, duas vezes por ano, e todas as vezes era uma festa: ele tra­zia para a sua filha montes de brinquedos que faziam crescer água na boca das crianças da vizinhança; colocava-a às cavalitas e levava­-a para todo o lado: ao zoo, ao cinema, ao restaurante, às lojas; com­prava-lhe bolos, biscoitos, gelados, jogos, belos vestidos; jogava às escondidas com ela, levantando-a para a beijar quando a descobria... enquanto o seu pai nem sequer regressou para a ver uma só vez desde a sua partida! Ela não guardava qualquer recordação dele. Só o tinha visto uma vez, numa fotografia.

- O papá gosta de mim? - perguntou Fan-Fan com uma voz

fraca.

Esta era uma velha questão que Fan-Fan já não sabia quantas vezes tinha colocado à avó, mas ela tinha necessidade de ter a certeza. - É claro que sim!- respondeu Mei-Li, apertando-lhe a mão com mais força. - Ele gosta de todos, da tua' mãe, do teu irmão e de ti.

- Então, por que é que nunca regressou para nos ver? - Ele voltará um destes dias... quando fores maior...

Ainda este «quando fores maior»! Fan-Fan calou-se de novo, tris­temente. Ela sentiu que o raio de sol que penetrava através do cha­péu de palha queimava os seus cabelos e os seus olhos. Ela fez uma careta dolorosa.

- Não estás cansada querida? - inquietou-se Mei-Li. Fan-Fan acenou negativamente com a cabeça.

- Então vamos ao serralheiro para te fazer uma chave da casa. Como a de Ming-Ming. Terás necessidade dela quando fores para a escola.

Mei-Li e Fan-Fan saíram da loja do serralheiro da Rua dos Velhos Poços. Viraram à direita, caminharam cerca de vinte metros e entra­ram numa barraca de tijolos cinzentos. Uma placa de madeira verti­cal pintada de fresco, a tinta branca, estava pregada à entrada com grandes caracteres vermelhos: «Estação de Recuperação de Resíduos».

No interior estava-se à sombra. Isso dava a impressão de frescura. Numa mesa perto da porta estava aberto um caderno enegrecido por impressões digitais. Caído sobre uma cadeira de madeira, um homem com cerca de quarenta anos, de rosto triangular e vestido com uma T-shirt branca com um buraco no ombro, cantarolava uma ária de ópera Gui, abanando-se com uma folha de jornal dobrada em quatro, de pés nus colocados na beira da mesa. Duas balanças romanas, uma grande e uma pequena, uma alavanca comprida de madeira reluzindo de uso, estavam por terra, no meio da casa. Sacos grandes de cânhamo, meio cheios, estavam amontoados num canto. Aqui, os objectos que se com­pravam e o seu preço estavam indicados a pincel com tinta preta numa grande folha de papel amarelada colada na parede. Tudo nesta peça, incluindo o homem sentado por detrás da mesa, exalava um odor a bolor.

Ao ver Mei-Li e Fan-Fan, o homem de rosto triangular retirou imediatamente os pés da mesa.

- Ah, ah, ah!... não é a avó Mei-Li? - disse ele com um sor­riso rasgado. - Bom dia! Como estão? Que calor está aqui! Parece que se está num forno. Nem um cliente desde que abri a porta. Já me perguntava se hoje iria ter algum. Quem é que pode vir com um calor destes, hem? Ah, ah, ah... O que é que me traz desta vez, avó Mei­-Li? Não é grande coisa? Mostre... Ora aí está. Então, a plumagem de um frango... ponha neste saco... isso vale um fen... E a pluma­gem de um capão... não, no mesmo saco não, naquele... isso vale dois fens... E cascas de laranja... Sim, estão limpas e bem secas... ponha-as no prato da pequena romana... sim, assim mesmo... Ora, isso pesa exactamente uma libra... Então, oito feras... E jornais velhos... Dê-os cá ... Cinco libras quatro... Então, só vos posso dar cinco feras... poderia dar-vos seis fens se isso pesasse cinco libras, cinco, mas... É tudo?... Então, vejamos, isso faz um mao e seis fens no total. Não é grande coisa, de acordo, mas é melhor que nada. Com isto já poderá oferecer uma pequena prenda à vossa neta pelo aniversário... um saco de bolos ou de biscoitos, por exemplo... Não? Ela não gosta disso? Então o que é que ela quer?... O Rei Macaco Shun-Wu-Kong?... É claro, é claro, todas as crianças adoram isso. Ah! ah! ah!...

O homem de rosto triangular arrumou o grande saco de cânhamo, tirou não sei de onde uma pequena caixa de lata, abriu-a, contou um mao e seis fens e deu-os a Mei-Li.

- Também compro objectos de bronze - acrescentou o homem - velhos tubos de pasta dentífrica feitos de metal maleável, bocados de vidro e he-shou-wu...

- Também quer he-shou-wu, Velho Huang? - perguntou Mei­-Li. - Qual é o preço?

- Dois maos a libra. Olhe, os preços estão indicados ali, na parede. - Dois maos a libra? Não é mau...

- Sim, é um bom preço. Mas tem de ser bem limpo e bem seco, como as tuas cascas de laranja...

Mei-Li pegou no seu cesto de bambu, agradeceu ao Velho Huang e saiu com Fan-Fan. Já na rua, Mei-Li perguntou:

- Fan-Fan, sabes o que é he-shou-wu? „.- Não - respondeu Fan-Fan.

- É uma planta cuja raiz pode ser utilizada como medicamento. Tem pequenas folhas verdes em forma de coração, flores brancas, uma haste vermelho-violeta, comprida, uma raiz tuberosa de cor cas­tanho-preta que lembra a batata-doce. Colhe-se somente a sua raiz. Lava-se, corta-se em fatias, secam-se as fatias em pleno sol e faz-se uma tisana com outras plantas para tratar a neurastenia, a hepatite crónica...

- Onde é que isso cresce? - perguntou Fan-Fan sem entusiasmo. - Há muitas nos arredores da cidade, sobretudo no sopé das coli­nas ou nas superfícies de muralhas antigas. Iremos procurá-las quando estiver menos calor, de acordo? Mostrar-te-ei... Se tivermos sorte, poderemos encontrar alguns quilos delas e ganharemos algum dinheiro... Há quanto tempo já sonhas com uma boneca que saiba abrir e fechar os olhos, como a de Shiao-Wa? Imagina que talvez tu possas oferecer-te esse luxo para o Ano Novo!

Fan-Fan não se mostrou particularmente excitada com esta ideia. - Ah, Fan-Fan - recomeçou então Mei-Li - sabes por que é que se chama he-shou-wu?

- Não. Porquê?

- He, é um nome de família, de acordo? Shou quer dizer a cabeça; e wu é a cor preta. Então, em conjunto, significa «He de cabelos pre­tos». Porquê este nome bizarro para uma planta? Porque há centenas de anos havia um velho vagabundo que se chamava He. He era muito pobre e muitas vezes não tinha nada para comer entre o nascer e o pôr do Sol. Um dia, saiu para mendigar, mas estava tão fraco que caiu desvanecido na estrada. Quando recuperou a consciência, viu ao lado uma planta que trepava junto de uma rocha. Colheu uma folha e levou-a à boca. Humm... não é mau!, pensou ele. No seu estado, teria achado delicioso um punhado de terra amarela. Puxou a planta para apanhar mais folhas... O que é que ele viu então? Algo como uma batata-doce, balançando na ponta da haste. Era simultaneamente acre e doce. Ele encontrou outras e devorou-as. He não morreu envene­nado nessa noite, e doravante a planta passou a fazer parte da sua ali­mentação quotidiana. E ao fim de um mês também não morrera, antes pelo contrário, sentia-se menos fraco e o seu apetite estava melhor que nunca. Vários meses mais tarde, quando He regressou às aldeias onde costumava mendigar, os aldeãos não queriam acreditar no que viam: em vez de um pobre vagabundo, que mal se segurava nas per­nas, hoje estava um velho rejuvenescido, que falava grosso, ria rui­dosamente, e dava grandes passadas... E mais incrível ainda, os seus cabelos já brancos tinham-se tornado pretos! É assim. Graças a He, ou ao acaso, descobriu-se uma nova planta fortificante e, desde então, é utilizada na nossa medicina... Daí o nome «He-de-cabelos-pretos».

Fan-Fan sorriu, pela primeira vez, desde que tinha saído da escola. Mei-Li deu um leve suspiro de alívio.

- Agora, vamos à livraria comprar o livro do Rei Macaco? - Não, não o quero comprar - respondeu Fan-Fan.

- Porquê?

- Ming-Ming disse-me que havia uma loja de livros de ocasião junto à escola. Lá em baixo, pode ler-se no local uma banda dese­nhada por um fen. Ming-Ming prometeu que me levava. Então, com um mao e seis fens, posso ler dezasseis livros...

Já passava do meio-dia quando Mei-Li e Fan-Fan regressaram ao 123 da Rua dos Bambus Novos. Mas a porta do apartamento n.° 11 ainda estava fechada. Surpreendida, Mei-Li disse:

- Por onde andará ele ainda com este calor? Ming-Ming? Talvez tenha ido tomar banho. - Tomar banho? Onde?

Mei-Li pegou na chave, abriu o cadeado e empurrou a porta. - Ora essa, no rio... - respondeu Fan-Fan, dirigindo-se para o aparador para tirar um copo de água.

- Como é que tu sabes?

Fan-Fan despejou o copo de um gole e encheu de novo. - Viu-o sair da escola com Jiang.

- Quem é Jiang?

Fan-Fan sentou-se num banco, bebeu um grande gole e limpou a boca com as costas da mão.

-. É o seu melhor amigo. Ele já veio várias vezes aqui a casa quando tu estavas no mercado...

- E então?

- Então, os pais de Jiang são pescadores, habitam numa sam­pana. Ele disse que Ming-Ming tinha de ir tomar banho com ele ao rio, uma vez, que é muito agradável no Verão...

- Mas, pelo menos, ele podia ter-me dito... Neste instante, uma voz chamou:

- Avó Mei-Li!

Mei-Li e Fan-Fan voltaram a cabeça e viram a tia Wang com a sua filha Shiao-Wa nos braços.

- Sente-se, tia Wang, sente-se - disse Mei-Li calorosamente, aproximando uma cadeira. - Que bom vento vos traz?

A tia Wang sentou-se e disse a Shiao-Wa: - Mostra a tua cara à avó Mei-Li.

Shiao-Wa retirou a sua mão que mantinha sobre a face direita. Estava inchada e muito vermelha por baixo da orelha.

Mei-Li aproximou-se.

- Mas isso é papeira! Oh, minha pobre...

- O que é papeira, avó Mei-Li? - perguntou a tia Wang com um ar muito inquieto.

- É assim que se chama uma inflamação das parótidas. Ming­-Ming e Fan-Fan tiveram isso o ano passado. Faz doer, mas não é grave. Não te preocupes. Vai ao mercado, imediatamente. Compra dois pedaços de cactos frescos. Ah, tu não sabes o que é?... Então, é uma planta com espinhos que também se chama mão-do-imortal... É isso. Compras dois grandes bocados, retiras os espinhos, cortas em fatias, esmaga-os em puré e aplica-os ali, sobre a parte inchada... assim. Mudas o cataplasma todas as meias horas. É mesmo muito efi­caz, posso garantir-te. Isso vai passar em dois dias, tu verás...

- Então, vamos imediatamente ao mercado. Obrigada, avó Mei­-Li - disse a tia Wang, levantando-se apressada.

Na soleira da porta, a tia Wang quase chocou contra alguém que entrava.

- Oh! Deus dos céus!- gritou a tia Wang, agarrando-se à ombreira da porta.

- Oh, não, céus! - gritou Mei-Li levando a mão à sua boca. - Mas o que é que passou?

Ming-Ming entrou, olhou a tia Wang e depois Mei-Li com um ar estranho. Ele tinha sangue por todo o lado, na cara, nos cabelos, nas mãos. O colarinho da sua camisinha branca estava completamente vermelho.

- Mas o que é que te aconteceu? - repetiu Mei-Li, colocando Ming-Ming numa cadeira.

Depois levantou-lhe a madeixa de cabelo para examinar a ferida na sua testa.

- Ah! Já deixou de correr... felizmente, não é muito profundo..., mas é necessário pôr óleo-de-dez-mil-flores para evitar que infecte mais tarde...

Ela pegou numa garrafinha minúscula, cheia de um líquido claro, e deitou um pouco de óleo-de-dez-mil-flores na ferida. Ming-Ming fez uma careta.

- Já está, meu grande, já está - disse-lhe Mei-Li com ternura - vamos lavar-te e mudar-te imediatamente...

Mei-Li levantou a cabeça e apercebeu-se de que a tia Wang ainda ali estava. Ela indicou-lhe a porta com um movimento do queixo. A tia Wang fez um primeiro sinal com a cabeça e saiu com a filha.

Mei-Li deitou água fervida arrefecida numa bacia e começou a limpar a cara do rapaz.

- Enfim, o que é que se passou, meu grande? - perguntou Mei­-Li com ternura.

- Andei à pancada com Lai-Fu. Ele bateu-me na cabeça com um tijolo...

Lai-Fu era o irmão de Shiao-Wa. Ele tinha menos um ano que Ming-Ming, mas era mais alto que ele. Era, aliás, robusto e de punhos de ferro, como o seu pai, o marinheiro. Quando Lai-Fu estendia a mão, todas as crianças do prédio lhe davam o que tinham sem ousar respingar: bolos, biscoitos, berlindes, piões, canivetes, dinheiro de bolso... Até os pequenos voyous do bairro não gostavam de conver­sas com ele. «Nunca se aproximem dele», avisava Mei-Li, com fre­quência. «Se o virem no vosso caminho, mudem de passeio.»

- Mas por que é que andaste à pancada com ele? - disse Mei­-Li - eu dizia-te sempre para...

- Eu sei, avó, mas ele vinha buscar-me ao mercado e dizia-me coisas sobre o papá...

- Lembras-te bem da história de Han-Xin?

- Sim, avó - disse Ming-Ming, baixando a cabeça. - Então, conta-ma.

- Ah!... era uma vez, há quase dois mil anos, um jovem cha­mado Han-Xin. Ele não tinha um tostão. Pedia esmola a toda a gente. As pessoas desprezavam-no. Um dia, um talhante colocou-se no cami­nho de Han-Xin, de pernas abertas: «Tu és um pobre diabo, Han­-Xin», provocou o talhante. «Se és um homem coloca aqui a tua espada, no meu peito; se tu és um cobarde, passa entre a minhas pernas!»

- O que fez, então, Han-Xin?

- Ah! ... olhou o seu provocador um instante, depois baixou-se, e passou entre as suas pernas. O talhante rebentou a rir, mas Han­-Xin afastou-se sem dizer nada.

- Por que é que Han-Xin não matou o provocador? Ele teve medo dele?

- Não, ele não teve medo de ninguém. Ele não quis matar o talhante, muito simplesmente porque... porque esse pobre canalha do talhante nem sequer merecia que alguém tire a sua espada...

- Sim, é isso, concordou Mei-Li. O mais forte é aquele que sabe colocar-se acima da humilhação por não ter tido medo de ser humi­lhado. Eis porque Han-Xin pôde tornar-se mais tarde general-em­-chefe do imperador Liu-Bang.

- Mas, avó, Lai-Fu dizia que o papá é um contra-revolucionário, que eu sou filho de um prisioneiro!...

A expressão de Mei-Li tornara-se grave. Ela olha ora o seu neto ora a sua neta, cujo olhar pesado de interrogação pesava sobre ela. - Então, meus filhos - disse Mei-Li lentamente - então, eu acho que é tempo de vos deixar saber...

Nesse tempo, os meus sogros possuíam uma farmácia onde se ven­diam remédios chineses tradicionais. Era pomposamente chamada Yong-Ji, «Eternidade», e situava-se na zona mais animada de Tien -Ma, entre todas as variedades de tendas, restaurantes, casas de chá, que se apertavam umas contra as outras dos dois lados da Rua das Sete Estrelas.

À esquerda, havia uma tenda onde se comiam massas de arroz - massas de arroz na sopa de legumes, massas de arroz salteadas com carne de porco ou camarões de água-doce, massas de arroz com molho de especiarias. Oh! como era bom, este molho picante, com ceboli­nhos, óleo de sésamo e sementes de soja fritas! É necessário prová­-lo ali para o conhecer... pica forte na língua e no palato, faz vir as lágrimas aos olhos e o muco ao nariz, e aquece-te o sangue quando está frio! A tia Liu, a dona da tenda, aliás, nunca poupava nem no molho nem nos conselhos de velha senhora. Tinha um grande cora­ção, transbordante de bondade. Ela era a única pessoa em Tien-Ma com quem eu podia confidenciar. Ela sabia tão bem aquecer-me o coração com as massas de arroz e os seus sorrisos maternais... Ó tia Liu!

À direita, havia uma mercearia, gerida pelo filho de um velhote enrugado, com a carne a fugir dos ossos e enrugado como seria difí­cil imaginar. O velhote permanecia sempre ali atento, no fundo da loja, olhando para cada cliente com as suas meninas-dos-olhos emba­ciadas pelo tempo, acocorado na sua cadeira baixa de bambu, um leque de junco na mão, durante o Verão, uma fogueira de carvão de madeira junto aos pés, no Inverno. Era ali que eu ia, frequentemente, buscar o molho de soja para a cozinha e o álcool de arroz para o meu sogro. Quando se entrava na farmácia dos meus sogros, era-se imediata­mente tomado por um odor muito especial, uma mistura insólita de aromas diferentes, de folhas, hastes, flores, raízes, frutos e caroços. Sabes, estas ervas e estas plantas tinham sido colhidas no campo, no fundo dos vales, no cume ou no sopé das montanhas, à sombra das árvores centenárias da floresta, nas margens dos ribeiros, que brotam das entranhas da terra, ao longo dos rios de água verde, amarela ou vermelha... Tinham sido cortadas em troços, fatias, lamelas, tiras ou pequenos cubos e depois secas directamente ao sol, no lume brando do carvão de madeira, ou à sombra; umas vezes eram pisadas num almofariz de pedra ou de madeira rija ou ainda de bronze, por vezes moídas em pó fino, passadas pela peneira e misturadas com mel para fabricar bolinhas pretas envolvidas em cera branca, outras vezes mace­radas no álcool com serpentes venenosas ou com bocados de ossos de tigre ou ainda com grandes lagartos das montanhas para tratar toda a espécie de doenças correntes ou estranhas. Era isso, estás a ver, que tinha sido arrumado ali em pequenas gavetas inumeráveis que cobriam completamente as paredes da loja. Não havia janela, mas uma porta enorme que deixava entrar a luz do dia e os clientes. Quando chovia ou estava mau tempo, acendia-se uma grande lâmpada de azeite. No balcão havia sempre uma pequena balança romana de bronze, um grande ábaco de madeira envernizada vermelho-escura, uma pilha de folhas de papel cortadas em quadrado, uma tesoura e um bocado de cordel de cânhamo para fazer os embrulhos. Uma porta estreita no fundo da sala dava para um pequeno pátio rectangular, lajeado, onde se punha a roupa a secar em duas canas compridas de bambu, sus­pensas paralelamente, onde no Verão, depois do pôr do Sol, se jan­tava, à volta de uma mesa de pedra, ao lado de uma romãzeira plan­tada num enorme vaso de barro cozido. Junto da porta da cozinha no fundo do pátio erguiam-se dois potes enormes nos quais se guardava a água para a cozinha e a casa de banho. Não havendo poço, nem no pátio nem nos arredores da casa, ia-se buscar água a quinhentos metros no Qing-Shui, Rio Límpido, cuja água, cheia de terra vermelha, nunca estava clara.

Não, a casa já não existe, infelizmente. Voltei lá, há anos, mas a cidade tinha mudado completamente. A Rua das Sete Estrelas tinhasido alargada, as antigas lojas dos dois lados tinham sido demolidas, substituídas por blocos de escritórios e de apartamentos. Eu nem con­seguia encontrar a localização da casa. O próprio nome da rua tinha sido mudado. Tinha-se transformado na Rua das Estrelas Vermelhas, parece-me, ou qualquer coisa como isso. É engraçado, nós, os Chineses, temos sempre uma preferência particular pelo vermelho. Os fatos e o palanquim do casamento são vermelhos, o cordel que liga os noi­vos é vermelho; o carácter «felicidade» ou «dupla felicidade», que se cola na porta e na janela do quarto nupcial, é recortado no papel vermelho, os ovos que se oferecem por ocasião do aniversário de uma criança são pintados de vermelho, o dinheiro de «boa sorte» que os pais dão aos seus filhos no dia de Ano Novo é embrulhado em papel vermelho, as lanternas com que se ornamentam os locais de festas são de papel ou de tecido vermelho, os foguetes que se lançam na chegada do Ano Novo ou em qualquer inauguração são, também, revestidos com papel vermelho... E as efígies do presidente Mao, ostentadas durante a Revolução Cultural, não eram todas de cor ver­melha? E as bandeiras vermelhas, e os pequenos livros vermelhos, e os adolescentes que se chamavam «guardas vermelhos»?

O vermelho, o eterno e misterioso símbolo da felicidade dos Chineses...

A minha sogra era uma mulher pequena de «cinco polegadas». Parecia tão débil que um sopro de vento facilmente a poderia levar. Mas por debaixo deste aspecto frágil escondia-se uma tigre fêmea. Autoritária, desconfiada e cruel. Diz-se, frequentemente, que a socie­dade chinesa é uma sociedade masculina, mas nem sempre é ver­dade no interior da família. Pelo menos entre os meus sogros. Contrariamente ao que Confúcio nos ensina - uma mulher deve obedecer ao seu pai antes do casamento, ao seu esposo quando se casa, ao seu filho mais velho após a morte do seu marido -, era a minha sogra que, na loja como na casa, fazia a chuva e o bom tempo. Surpreendente, não é?

Quanto ao meu sogro, dir-se-ia um boi sorridente. Meigo, fácil, conciliador e bom trabalhador, ele carregava às suas costas, um pouco corcundas, cestos cheios de paciência. Se duas pessoas em desacordo vinham pedir-lhe a sua opinião, ele respondia a uma «Tu tens razão» e à outra «Tu não deixas de ter razão». Quando a sua mulher se enco­lerizava - o que, infelizmente, acontecia muitas vezes -, fingia que nada via e continuava, calmamente, o trabalho no seu canto. Uma vez, na ausência da minha sogra, aconteceu que um cliente que não acreditava na lenda do bom carácter do meu sogro lhe perguntou se ele tinha medo da sua tigre fêmea. O quê? Medo da sua mulher? A questão era em si um insulto para um marido chinês. Mas o meu sogro, sorrindo com o seu sorriso lendário, semelhante ao Sol que a nuvem nunca chega a tapar, respondeu: «Medo porquê? Ela nunca me mordeu.»

Os meus sogros tiveram quatro filhos, uma filha e três filhos, tendo morrido o segundo com três anos de idade na sequência de uma diar­reia violenta que os meus sogros não conseguiram parar com os recur­sos da sua loja. Meng-Yu, o meu marido, era o filho mais velho, por­tanto o herdeiro por tradição da casa e da farmácia. Tinha sido uma criança muito alegre, segundo se dizia, cujas bochechas enormes esta­vam sempre inchadas de saúde e de felicidade de viver. Bom aluno na escola, bom filho, irmão mais velho, que velava e que protegia. Era também um bom trabalhador como o seu pai e começava já a ajudar na loja... Depois, um dia ficou doente - a família devia ser perseguida pela maldição pois um dos filhos já tinha morrido. Os meus sogros ficaram desvairados. Tendo perdido confiança na eficácia das plantas que vendiam, foram gastar os joelhos das suas calças diante da estátua de Buda no templo. Também lá depositaram uma fortuna, queimaram numerosos pauzinhos de incenso, e, desta vez, a estátua de madeira lacada parecia que, finalmente, os tinha ouvido: a febre desceu e Meng-Yu escapou por um triz à morte. Mas não podia andar nem ver... O adivinho tinha feito a predição que Meng-Yu recupe­raria a vista e a mobilidade das suas pernas se ele casasse com uma jovem nascida no ano do Dragão e com menos dezasseis anos que ele, entendes? Porque Meng-Yu nasceu no ano do Rato. Segundo o adivinho, o signo do Dragão é o mais compatível com o do Rato; o dragão é, aliás, o símbolo da força positiva, ele era capaz de elimi­nar os maus espíritos que torturavam Meng-Yu. Mas como deves cal­cular, encontrar uma tal jovem não era tarefa fácil. Foi após anos e anos de procurar, sem descanso, que os meus sogros acabaram por descobrir a feliz eleita na Vila dos Grous. E eis-me casada com o filho mais velho de uma boa família de Tien-Ma, apesar de não ter os pés ligados. No entanto, o milagre não se produziu e Meng-Yu ficou tão paralisado e cego como antes do casamento...

Jing-Ming, aquele que eu tinha pensado, primeiro, que era o meu marido, era o mais novo da família. O mais inteligente dos quatro e um rapaz muito belo; ele era o orgulho dos seus pais. Já tinha com pletado os seus estudos secundários e já estava noivo quando o palan­quim vermelho me trouxe a Tien-Ma. O seu casamento devia ser cele­brado no final do ano, depois do do seu irmão mais velho e do da sua irmã mais velha. É verdade que a noiva de Jing-Ming era quatro anos mais velha que ele; é verdade que ela não era uma jovem bonita e tinha na face esquerda algumas marcas muito desagradáveis dei­xadas por uma irupção de varíola; mas era herdeira única da pode­rosa família de Tien-Ma, a família Deng, que possuía, já sem falar de uma casa de fumar ópio e outra de chá, uma loja de arroz, uma loja de tecidos e algumas centenas de mous* de campos férteis nos arredores da cidade. Dizia-se que os pais da jovem tinham mesmo prometido financiar os estudos de Jing-Ming na universidade depois do seu casamento... O melhor partido que um filho de pequenos farmacêuticos algum dia poderia ter esperado. No entanto, um dia - um mês depois do meu casamento com Meng-Yu - Jing-Ming partiu sem prevenir, deixando atrás dele a sua mãe azul de cólera e de amor próprio apunhalado, o seu pai com rugas suplementares na fronte, a sua noiva de pequenos pés ligados inconsolável, inundada por torrentes de lágrimas, e os seus futuros sogros furiosos, cuspindo todas as porcarias do mundo como um dragão o fogo... Porque par­tira ele? Para onde tinha ido? Quando regressaria? E nunca mais vol­taria? Ninguém sabia...

* 15 mous = 1 hectare.

 

Mei-Li deslizou da cama sem ruído, vestiu-se na noite, alisou os seus cabelos com os dedos e depois inclinou-se para colar a sua boca na orelha de Fan-Fan.

- Acorda, Fan-Fan, está na hora.

Fan-Fan virou-se para a parede, emitindo um pequeno gemido. Mei-Li hesitou, dirigiu-se para a porta do quarto, mas antes de a transpor virou-se bruscamente para trás e veio junto da cama.

- Fan-Fan - chamou ela em voz baixa, abanando suavemente a criança pelos ombros - Fan-Fan...

- De pé, minha grande, é tempo de partir.

- Partir para onde?... - balbuciou Fan-Fan, esfregando os olhos. Mei-Li sorriu na sombra.

- Mas já te esqueceste? Vamos comprar a carne...

À palavra «carne», Fan-Fan ergueu-se, completamente acordada. Oh! É verdade, como poderia ela esquecer. Hoje, dia 31 de Agosto de 1967, é o seu aniversário, para os seus dez anos vamos comer ravioli com carne de porco e almíscares chineses. É a sua comida preferida, toda a gente sabe. Há quanto tempo ela não a vê à mesa familiar? Seis meses? Um ano? Ela não o saberá dizer. Mas, certa­mente, há muito tempo. Não é difícil preparar os ravioli com carne de porco e almíscares chineses, se, ao mesmo tempo, se conseguir encontrar a farinha de trigo, os almíscares e a carne de porco, bem entendido.

Farinha de trigo? Não se encontra na loja de cereais do Estado, a avó sabe bem onde a vai descobrir! Ontem, foi visitar os Velhos Zhou que, originários do Norte, não conseguem adaptar-se ao arroz, dema­siado pesado para os seus estômagos frágeis, embora já vivam há dezoito anos nesta cidade do Sul onde só se come arroz. Eles têm sempre num canto do seu quarto, segundo se diz, grandes talhas cheias de farinha de trigo, mas só o diabo sabe como conseguem obtê-la. Desde as primeiras palavras da avó, a Velha Zhou precipitou-se para o quarto e saiu um minuto depois para colocar nas mãos da visita uma grande taça de faiança cheia de farinha a transbordar.. «Não, não», diziam os Velhos Zhou em coro, «não queremos o teu dinheiro. Além disso, avó Mei-Li, a nossa farinha não se vende. Aliás, não somos vizinhos? Talvez um dia, quem sabe, nós também tenhamos qualquer coisa a pedir-te.»

Almíscares? Também não põe qualquer problema. Nesta época do ano encontram-se nos cestos de bambu de alguns, raros, camponeses dos arredores que ousam ainda vir vender os produtos das suas hor­tas nos passeios da cidade, de manhã, muito cedo, antes da saída da primeira patrulha de guardas vermelhos. Um molho de almíscares, comprado ontem a um preço elevado pela avó, bem escolhido, bem lavado, escorre neste momento no fundo do pequeno cesto redondo colocado sobre o balde de lata na cozinha.

Mas onde encontrar a carne de porco? Eis a coisa menos evidente. Imaginai que em todo o bairro só há um talho do Estado que ainda não fechou, e todos os dias na loja só há metade de um porco estra­nhamente magro para dividir! Então, para que o máximo possível de habitantes possa ter um bocado, foi decidido que cada cliente só tinha direito a uma meia libra de carne. Uma meia libra de carne seria muito pouco para fazer ravioli para quatro pessoas! É exactamente por isso que a avó e ela têm de se levantar muito, muito cedo, às duas horas da manhã, para estar entre as primeiras na bicha, que se estende, a olhos vistos, diante da loja, que não abre as suas portas antes das oito horas.

Lá fora estava muito claro. A lua cheia como uma lampião de prata estava agarrada como por uma mão invisível a um céu azul­-marinho. Via-se tão bem que era de perguntar se podia ler-se ao luar. O ar estava fresco e puro. De uma pureza palpitante. Casas baixas das quais se distinguiam os telhados de telha azul-cinzenta, ultra­passando muros de tijolos vermelhos, que ladeavam a Rua da Pesca Celeste, agora denominada Mie-Zi, Extermínio do Capitalismo, dor­miam um sono incrivelmente profundo. Sem as palavras de ordem e as pinturas a tinta vermelha que cobriam grandes superfícies de parede, ter-se-ia duvidado que se caminhava numa cidade inflamada pelo furor da Revolução Cultural, desde o último Outono. O barulho dos passos de Mei-Li e de Fan-Fan no passeio tornava ainda mais silen­cioso o silêncio da noite. De vez em quando, Fan-Fan virava a cabeça para ver se não eram seguidas por fantasmas mascarados. Na escola, a professora já tinha repetido centenas de vezes que não existiam nem almas nem fantasmas, que tudo isso não passava de superstição estú­pida, mas Fan-Fan sentia-se sempre observada e encarada por olhos invisíveis, desde que se encontrasse na noite silenciosa.

- O que é que há, Fan-Fan - perguntou Mei-Li.

- Nada - respondeu a criança, apertando mais forte a mão da avó.

Depois de terem passado diante dos correios e do armazém de tecido, fechados, desceram a Rua Fan-Xiu, Anti-Revisionismo, que outrora tinha um nome bem mais poético, «Fénix», por causa dos fla­mejantes colocados ao longo da rua que se coroavam de flores ver­melho-vivas todos os anos no mês de Maio, e que as pessoas da região denominaram «árvores-do-fénix». E aí, milagre! Algumas lâmpadas mantinham-se acesas nos candeeiros de madeira, embora a sua luz amarelada fosse demasiado fraca para rivalizar com o luar. A cerca de trinta metros mais longe, Mei-Li e Fan-Fan viam a silhueta com­prida e magra de um homem ligeiramente curvado. Caminhava com uma passada rápida na mesma direcção que eles, segurando na mão qualquer coisa que se assemelhava a um cesto.

- É um outro caçador de carne - murmurou Mei-Li, apres­sando-se.

- Avó - disse Fan-Fan. - Sim - disse Mei-Li.

- O nosso professor de Música foi fechado na sala de aulas do sexto ano.

- Ah, sim! Porquê?

- Os guardas vermelhos diziam que ele é espião e contra-revo­lucionário.

- Mas como? Espião e contra-revolucionário?

- Não sei, mas parece que ele tem algumas relações nos Estados Unidos ou em Taiwan. Os guardas vermelhos procuraram na sua casa e encontraram cartas.

Mei-Li teve um arrepio como se tivesse tocado a pele fria de uma serpente. Ela tinha pensado na velha fotografia escondida na bolsa da sua pequena mala.

- Os guardas vermelhos raparam-lhe metade do crânio - con­tinuou Fan-Fan - oh, como é horrível!... A filha dele está na nossa turma, já ninguém lhe fala. Alguns chamam-lhe «bastarda da espia» e cospem-lhe na cara...

- Não voltes à escola, Fan-Fan - disse Mei-Li. - Mas já não há mais escola! - disse Fan-Fan. - Não há mais escola?

- Não, a escola estará fechada a partir de segunda-feira, a nossa professora disse-nos. É para que se possa prosseguir mais à vontade a Grande Revolução Cultural.

Fez-se um momento de silêncio. - Avó - disse Fan-Fan.

- Sim.

- Tu vais contar-me muitas, muitas histórias, não é avó?... Tu contas melhor que a nossa professora!

Mei-Li passou a mão pela cabeça de Fan-Fan. Esboçou um pequeno sorriso nos cantos dos lábios.

- Evidentemente - disse ela - teremos muito tempo para isso... - Também me ensinarás a jogar xadrez, avó?

Sim, ensinar-te-ei, está prometido.

Vislumbraram finalmente a sombra maciça do baniano multisse­cular. Com a sua folhagem enorme cujo diâmetro media mais de trinta metros, e um verde envernizado tão brilhante no Inverno como no Verão, com o seu tronco que três adultos de mãos dadas não conse­guiam abraçar, com a sua casca na qual o tempo tinha escavado regos profundos como a tesoura do destino dos desenhos misteriosos, com

as suas raízes aéreas que caíam abundantemente dos seus ramos como a barba comprida do génio da longevidade, a silhueta atarracada da árvore, sentada diante da praça do mercado, assemelhava-se, pensava Mei-Li, à de um velho camponês calmo que, após toda uma vida pas­sada a trabalhar, descansa agora à entrada da sua casa, sob o seu imenso chapéu de folhas de bambu.

A silhueta comprida e magra do homem ligeiramente curvado desa­pareceu junto do grande baniano. Mei-Li apressou-se, Fan-Fan quase correu ao lado dela.

A praça do mercado, por detrás do velho baniano, na realidade, não passava de um impasse entre a loja de legumes do Estado, um talho do Estado, uma'mercearia do Estado, uma tenda de bolinhas de arroz, bazares e algumas casas de habitação. Antes, era um local ani­mado, pululando, da manhã à noite, de vendedores de quatro esta­ções e de camponeses dos arredores, de pé, acocorados, ou sentados num banco, num tijolo ou simplesmente no pano do saco estendido no solo sobre a poeira amarela, por detrás de gaiolas de bambu nas quais se amontoavam frangos, patos ou gansos, os seus baldes de madeira pesados com rebentos de bambu marinados, os seus grandes cestos redondos cheios, segundo as estações. Além da grande varie­dade de couves verdes, encontravam-se ali raízes de lódão beige-rosa­das, molhos de flores douradas de abóbora que se comiam recheadas ou cozidas na água, abóboras de muita lanugem que pesavam mais de cinco quilos, tubérculos de colocásia cobertos de pêlos castanhos, feijões-verdes finos e compridos, com mais de dois pés, melancias ovais sem sementes, ameixas vermelho-escuras ácidas a fazer tremer, toranjas em forma de pêra, jacas de pele espessa coberta de grandes dentes, lechias púrpuras, mangas amarelas, longanas castanho-claras, goiabas verde-pálidas... Quando Mei-Li vinha ali fazer as compras, Fan-Fan gostava muito de a acompanhar, feliz de passear entre as gaiolas e os cestos, ouvindo as pessoas interpelarem-se, discutir ou ralhar, respirando a frescura dos legumes, colhidos nessa manhã, o perfume dos frutos que amadureceram ao sol. Mas o seu maior pra­zer era olhar a sua avó regatear; na maior parte das vezes, esta apro­ximava-se apressadamente de uma bancada, examinava as mercado­rias com um ar de conhecedora requintada, lamentava que a qualidade não fosse satisfatória, no entanto perguntava o preço, depois decla­rava que era demasiado caro, fingindo partir; regressava, no entanto, quando o vendedor oferecia uma redução interessante, escolhia demo­radamente, gozava gentilmente quando o vendedor procurava roubar no peso, pagava somente depois de ter introduzido as suas compras debaixo da asa do seu cesto, afastava-se com a promessa de regres­sar na próxima vez... Mas agora, os vendedores e esses camponeses tinham desaparecido. E com eles esse bulício da vida. Só se manti­nham abertas as lojas do Estado, miseráveis, oferecendo menos mer­cadorias que citações de Mao escritas em grandes caracteres verme­lhos nas suas paredes caiadas e destinadas a encher os cérebros, mas não os ventres.

Quando Mei-Li e Fan-Fan chegaram à praça do mercado, uma dezena de pessoas já esperava diante do talho. Diante da porta fechada na qual se lia uma citação de Mao «A corrupção e o esbanjamento são dois crimes abomináveis», havia um corpo embrulhado num len­çol branco rasgado numa esteira de junco. Um crânio de cabelos compridos cinzentos, pouco densos, e um par de socos de madeira seguros aos pés por uma faixa larga de cauchu preto ultrapassa o lençol. Para estar em primeiro lugar, o homem que dormia devia ter­se deitado ali ontem à noite. Junto dele, um velho homem acoco­rado, com um cachimbo de tubo comprido de bambu entre os den­tes, envolvido por uma nuvem de fumo branco que, de tempos a tempos, era rasgada por uma tosse barulhenta. Em seguida, uma mulher com um grande carrapito preto, sentada num bocado de jor­nal estendido no chão, de rosto escondido nos seus braços dobrados sobre os joelhos. Depois, três velhas senhoras sentadas sobre os seus calcanhares, ocupadas a mastigar sementes de melancia torradas e salgadas enquanto tagarelavam. Junto a este trio, um homem sem idade, de mãos nos bolsos das suas calças, deixando cair o peso do seu corpo, ora sobre uma perna ora sobre a outra, com um ar enfa­dado, olhava à esquerda e à direita, como se esperasse alguém. Estavam ainda duas mulheres, sentadas em bancos redondos que cavaqueavam em voz baixa e, depois, o homem ligeiramente cur­vado, que Mei-Li e Fan-Fan tinham visto desaparecer junto ao velho baniano, fechava a fila. Era um homem comprido: o rosto comprido, o nariz comprido, o pescoço comprido, os braços compridos e as pernas compridas. Pois bem, não era ele que fechava a bicha, mas meio tijolo cinzento que alguém tinha colocado ali, de propósito. Sem uma palavra, Fan-Fan ocupou o lugar atrás do homem com

prido enquanto Mei-Li juntava o tijolo e colocava-o atrás dela. A neta e a avó trocaram um olhar cúmplice. O homem comprido nada disse. Mei-Li tirou do seu cesto de vime uma folha de jornal que ela esten­deu no chão, fez sinal a Fan-Fan para se sentar e instalou-se ela pró­pria ao lado da criança.

A noite estava clara. Incrivelmente calma. Não havia rufar de tambores. Nem o estrondo de gongos e de címbalos. Não havia gri­tos de jovens de braçadeiras vermelhas. Nem palavras de ordem gritadas pelos desfiles intermináveis. Nem cantos de marcha difun­didos pelos altifalantes pendurados por todo o lado na cidade. Só as vozes agudas de três velhas mulheres sempre a conversar e a mastigar uma a uma as sementes de melancia e o leve murmúrio contínuo das duas mulheres sentadas. Só a Lua silenciosa lançando a sua luz tão límpida e fresca como a água de uma fonte das mon­tanhas.

- Avó - disse Fan-Fan - o que é aquela sombra na Lua? - É o palácio Guang-Han, um palácio muito amplo e muito frio. - Quem habita lá dentro?

- A mulher mais bela do mundo. Chang-Er, e o seu coelho de jade. - Chang-Er e o seu coelho de jade?

- Sim, exactamente.

- Como conseguiu ir viver para lá? - Ah! isso leva muito tempo a contar...

Mei-Li tirou do bolso da sua túnica um pequeno pedaço de papel branco que colocou nos joelhos, depois um lenço com pequenas flo­res azuis que desdobrou.

- Avó? - disse Fan-Fan. - Sim - disse Mei-Li.

- Eu creio que te ouvi prometer à mãe que nunca mais...

- Que nunca mais fumava, não é? - disse Mei-Li pegando numa pitada de tabaco do seu lenço. Pô-la na ponta do papel e enrolou entre os seus dedos um cigarro em forma de trompete. - Mas, estás a ver, querida, não se abandona um velho hábito com mais de trinta anos como um par de sapatos usados. Ele está ligado a demasiadas recordações a que quero muito... Não vais dizer à mamã, hem?

- Não, avó - disse a criança com um pequeno sorriso cúm­plice. - Conta-me a história de Chang-Er.

Mei-Li colocou as suas mãos diante da boca em guarda-vento, acendeu o cigarro, deu uma fumadela, lançou, deliciosamente, uma rosca de fumo branco e começou:

- Ora bem, outrora havia um homem chamado Hou-Yi. Era grande, belo e forte. Um dia, ao atravessar um pequeno rio, viu um urso que perseguia uma jovem. Pegou numa flecha e ajustou-a ao seu arco, que esticou com todas as suas forças. A flecha lançada fez o barulho de um trovão e matou o urso imediatamente. A jovem, salva assim, era Chang­-Er. Depois, apaixonaram-se um pelo outro, casaram-se e levaram uma vida de felicidade tranquila. Mas uma manhã, na floresta, olhando-se no espelho da fonte, Hou-Yi apercebeu-se, com surpresa, que os seus cabe­los se tornavam cinzentos, e concluiu que o homem era mortal. Então, decidiu partir para as montanhas Kun-Lun à procura da poção da imor­talidade para ele e para a sua bem-amada. Atravessou não se sabe bem quantas florestas imensas e desertos infinitos, atravessou não se sabe bem quantos rios rápidos e montanhas de cumes nevados do Verão ao Inverno, matou não se sabe bem quantos animais ferozes e serpentes venenosas, e chegou, finalmente, às montanhas Kun-Lun. A deusa Xi­-Wang-Mu, que ali habitava, acolheu-o calorosamente: ordenou a um pássaro gigante de três patas, guardião dos remédios maravilhosos, que trouxesse uma cabaça, que ela colocou nas mãos do seu visitante. «Lá dentro há uma bolinha de imortalidade», diz-lhe a deusa. «Se comerdes uma metade, sereis imortal. Se a comerdes toda, tornar-vos-eis um deus e subireis para viver nos céus.» De regresso a casa, Hou-Yi deu a boli­nha maravilhosa à mulher, Chang-Er, e disse-lhe para a guardar em lugar seguro. Eles iam escolher um dia propício para a partilhar e viveriam felizes para sempre. No entanto, quando Hou-Yi partiu para caçar na floresta, um vizinho veio visitar Chang-Er. «Ouvi dizer que o seu marido regressou», disse-lhe ele, «e encontrou o que procurava?» «Sim, de facto, encontrou», respondeu Chang-Er que não sabia mentir. «Estou muito curioso em saber o que é uma bolinha de imortalidade», disse o outro, «poderia mostrar-ma?» «Não, estou desolada», respondeu-lhe Chang­-Er, «o meu marido disse-me para não a mostrar a ninguém.» Então o vizinho mudou de cara e de tom. «Dê-me a bolinha maravilhosa», disse, apontado uma faca bem afiada, «senão mato-vos.» Chang-Er entrou no quarto, pegou na cabaça que levou aos lábios e engoliu a bolinha. De repente, tornou-se tão leve que se elevou ao céu como um pedaço de nuvem, ela subia, subia, subia... até à Lua. Passaram-se milhares e milha­res de anos, e a bela mulher continua a viver na Lua, no Palácio Guang­-Han, na companhia de um coelho de jade. O palácio é enorme e frio. Chang-Er está só e triste. Falta-lhe a Terra, falta-lhe a sua casa, falta­-lhe o seu marido. Todos os meses, quando é lua cheia como esta noite, Chang-Er sai do seu palácio com o seu coelho de jade nos braços e olha para a Terra. O orvalho, que no dia seguinte se vê na erva e nas folhas das árvores são, segundo se diz, as suas lágrimas...

Mei-Li esmagou a terceira beata contra o pedaço de tijolo cin­zento, tirou-lhe o papel e meteu o resto do tabaco no lenço, que vol­tou a dobrar com cuidado.

- E o marido, o que é feito dele?

- Morreu há .muito tempo... o desgosto de ter perdido a sua mulher e o seu sonho matou-o.

Fan-Fan apoiou a sua cabeça contra o ombro de Mei-Li que a abraçou. - Dorme, minha menina - disse com ternura a avó - dorme um pouco.

Fan-Fan sobressaltou-se. Uma voz rouca tinha-a acordado. Quando abriu os olhos, a criança viu a luz e em contraluz uma pequena mulher magrota de pé diante dela.

- Este lugar é meu! - dizia a pequena mulher. - Sim, é aqui o meu lugar!

Mei-Li levantou-se energicamente, com a mão direita nos cabelos de Fan-Fan e os olhos nos olhos da pequena mulher magrota.

- Mas como? Nós estamos aqui há horas.

- Mas eu cheguei antes de vocês, coloquei um tijolo cinzento a seguir a este senhor - replicou a pequena mulher magrota, apon­tando para o senhor comprido levemente curvado. - Pergunte-lhe, pergunte-lhe, se não acredita em mim.

O senhor comprido olhou para a pequena mulher magrota, depois para a cara de Fan-Fan ainda inchada pelo sono, e virou a cabeça para o lado da loja sem dizer nada. Então Mei-Li, apon­tando com a ponta do pé a metade do tijolo cinzento, disse com voz irónica:

- Tome o seu tijolo. Chame-o, senhora, chame-o. Nós cedere­mos o lugar se ele vos responder.

- Mas... Mas... - balbuciou a pequena mulher com um ar deses­perado.

Com um pequeno sorriso de triunfo nos lábios, Mei-Li voltou a sentar-se ao lado da sua neta, que a olhava com admiração.

As pessoas da fila de espera aproximaram-se, com um ar, simul­taneamente, curioso e de gozo. Eis, finalmente, uma distracção gra­tuita para os recompensar da paciência de que deram provas tão heroicamente.

Deveríamos ter feito como ela, não é verdade?- gracejou uma das mulheres. - Não é mais agradável regressar de manhã ao seu lugar depois de ter passado a noite confortavelmente na sua cama, com o pretexto de lá ter colocado um tijolo antes da sua chegada, hem?

A pequena mulher magrota cerrou os lábios esbranquiçados e ocupou o seu lugar atrás de Mei-Li, resignada.

O homem que dormia à cabeça da fila - um homem de cinquenta anos, alto e seco, de fácies angulosa - levantou-se com o sol. Desenxovalhou o seu casaco preto com algumas varredelas com a mão, alisou os raros cabelos cinzentos com os dedos, dobrou o seu lençol branco às riscas violetas, enrolou a sua esteira de junco entran­çado, atou tudo com uma corda de palha que retirou do bolso das cal­ças pretas, enquanto a bicha diante do talho, sempre fechado, se alon­gava ao ritmo da canção O Oriente Vermelho, difundida pelo altifalante agarrado ao tronco do velho baniano:

O Oriente torna-se vermelho O sol levanta-se

Mao Tsé-Tung nasceu na China

Ele trabalha para a felicidade do povo Hu-er-hé-yo

Ele é o grande salvador do povo

Agora, havia pelo menos cinquenta pessoas e continuavam a che­gar novos clientes.

De repente, um murmúrio percorreu toda a fila. Os que estavam sentados levantaram-se imediatamente. Toda a gente estendeu o pes­coço na mesma direcção, como um bando de gansos famintos em direcção à mão que traz o milho, ao mesmo tempo que se apertavam uns contra os outros com medo que alguém aproveitasse a confusão para se intrometer na fila à sua frente.

A loja estava aberta.

Quando chegou a vez de Fan-Fan, só restava, lamentavelmente, uma pequena fatia com a espessura de dois dedos e com três quartos de gordura no meio do balcão de madeira gordurento, excessivamente largo, e coberto por uma nuvem de cicatrizes, deixadas por milhares de facadas.

- Que chatice - murmurou Mei-Li entre dentes por detrás de Fan-Fan.

- Não há outros bocados melhores que aquele? - perguntou ela à vendedeira por cima do ombro da criança.

- Não, é pegar ou largar - respondeu a vendedeira num tom seco, pousando a sua enorme faca de cortar.

Incrédula, Mei-Li ergueu-se na ponta dos pés e olhou para o grande cesto de bambu colocado aos pés da vendedeira. Num gesto brusco, aquela pegou no cesto e escondeu-o por debaixo do balcão:

- Então!

- Mas... é estranho... normalmente...

- Você quer ou não quer? - impacientou-se a vendedeira colo­cando a sua mão no cabo da faca.

Então, Mei-Li soube que não tinha escolha.

- Levamo-la - disse ela. Depois, inclinando-se para a sua neta: - É melhor que nada, hem?

- Esta criança está com você? - perguntou a vendedeira. - sim, sim.

- Então tem sorte, este bocado de carne pesa um pouco mais de uma libra.

Um barulho singular por detrás de Mei-Li fê-la rodar sobre os cal­canhares. Era a pequena mulher magrota. Tinha reprimido um soluço, ao abandonar a fila de espera. Mei-Li deu um passo rápido e agar­rou-a pelo braço. Fan-Fan olhava-as com espanto.

- Vejamos, isso não vale a pena por este bocado de...

O meu filho... o meu filho... espera-me... em casa... - gague­jou a pequena mulher, voltando a engolir um soluço.

- O vosso filho?

- Sim. Ele... ele está doente, ele quer comer um caldo de arroz e de carne.

- Mas, por que é que não o disse mais cedo? Venha - disse Mei-Li, empurrando a pequena mulher diante do balcão.

- Nós não queremos este bocado de carne - disse ela à vende­deira - pode vendê-lo a esta senhora.

- Eu não posso - respondeu, secamente, a vendedeira. - Mas porquê?

- Ela só tem direito a meia libra. - Então, dê-me uma metade.

A vendedeira cortou com uma facada a miserável fatia de carne em duas e lançou uma parte para diante de Mei-Li e a outra para diante da pequena mulher magrota. Mei-Li pagou, pegou na carne e saiu da loja com Fan-Fan.

- Esperemos aqui um minuto - disse Mei-Li a Fan-Fan quando elas se encontraram sobre a copa enorme do velho baniano. Alguns instantes mais tarde, a pequena mulher magrota chegou com um passo apressado. Mei-Li parou-a e introduziu no seu cesto o bocado de carne que acabava de comprar.

Depois puxou rapidamente por Fan-Fan para que a pequena mulher magrota não tivesse tempo de dizer o que quer que fosse.

- Avó? - disse a criança quando elas subiam a Rua Fan­-Xiu. - Hoje, não temos ravioli.

- Mas amanhã poderemos vir mais cedo - disse Mei-Li com ternura - e festejaremos o teu aniversário de dez anos e um dia! A neta sorriu apertando com mais força a mão da sua avó.

Bai-Lan já tinha saído quando Mei-Li e Fan-Fan regressaram a casa. Ela tinha dito, na véspera, que aproveitaria este domingo para visitar uma colega que acabava de sair do hospital.

Ming-Ming ainda dormia, com um braço pendurado fora da cama. Mei-Li pegou nesse braço magro, coberto de pequenos pontos ver­nielhos, deixados pelos mosquitos famintos, e colocou-o com doçura sob o mosquiteiro. Depois foi encher duas tigelas de sopa de arroz com ervilhas vermelhas e colocou nelas duas colheres de porcelana. Mas Fan-Fan já tinha adormecido no seu lugar, com a cabeça colo­cada sobre os braços cruzados. Sem a acordar, Mei-Li pôs, suave­mente, as tigelas na mesa e dirigiu-se em direcção à cama, para tirar, debaixo do colchão, uma pequena mala.

Era uma pequena mala de couro envernizada vermelho-escura, de cantos reforçados com placas de bronze e com um fecho igualmente em bronze. O tempo tinha-a estalado em inumeráveis pontos. Dir-se­-ia a pele das mãos de um velho camponês, cinzeladas pelas vagas de ventos frios.

Com a sua manga, Mei-Li limpou o pó acumulado na tampa. Tirou um molho de chaves do bolso das suas calças e abriu a mala com uma chave minúscula de bronze. Um pequeno bolso estava cozido na dobra de algodão da tampa. Mei-Li tirou de lá um quadrado de seda vermelho descolorido. Com mil precauções, desdobrou o quadrado de seda. Uma pequena fotografia amarelada estava ali deitada. Era o retrato de um jovem em farda do exército nacionalista. Mei-Li des­lizou o seu indicador sobre o rosto do jovem e o seu olhar turvou-se de ternura, comovido, como o de uma jovem de quinze anos ena­morada pela primeira vez. Mas isto durou só um instante, porque Mei-Li voltou a dobrar rapidamente o bocado de seda sobre a foto­grafia, depois arrancou da parede o grande retrato do presidente Mao, virou-o, desatou os cordéis da moldura, levantou um canto do cartão que suportava o retrato, introduziu a fotografia entre o cartão e o retrato, voltou a atar os cordéis e a pendurar o quadro na parede. Depois recuou um passo para admirar o seu trabalho. Assim, disse ela para consigo, tu estás em segurança.

Era um dia da nona lua, em 1932, lembro-me muito bem. O Sol já tinha desaparecido. Lancei vários baldes de água sobre as lajes do pátio para diminuir o calor que se mantinha junto ao solo. Depois, fui buscar um cadeirão de bambu para Meng-Yu e cinco bancos de madeira, que coloquei à volta da mesa de pedra. Nesse dia a minha cunhada Jing-Hua tinha vindo. Ela esperava, nessa altura, o seu quinto bebé. O pai do seu sogro tinha morrido na véspera e ela teve de sair, pois, segundo se julgava, os funerais teriam um efeito nefasto para a criança no seu ventre.

Em seguida, voltei ao quarto para ir buscar Meng-Yu. - Anda - disse-lhe eu, sentando-me na beira da cama.

Ele lançou os braços à volta do meu pescoço e de um golpe de rins coloquei-o às minhas costas. Estava tão magro que quase mal sentia o peso. Instalei-o, como habitualmente, no cadeirão de bambu, ao lado da mesa de pedra, diante da porta da cozinha. Enquanto eu colocava um banco por debaixo dos seus pés, ele abriu a boca: - Há quantos anos estás cá em casa?

Dir-se-ia que ele falava para si mesmo, de tal modo a sua voz era baixa.

- Há mais de doze anos. Porquê? - Nada, nada...

Pus os talheres na mesa.

- Parece-me que o tempo passa muito mais depressa desde que tu cá estás - disse ele. - É bom ter com quem falar quando não se pode andar nem ver...

Eu sorri. Com um breve sorriso triste.

- Tu não podes imaginar como me enfadava antes da tua che­gada. Sobretudo.... Ah! Sabes por que é que me chamo Meng-Yu? A mamã nunca te contou?

- Não. Porquê?

- Porque ela teve um sonho estranho na véspera do meu nasci­mento. Ela dizia que tinha visto um rapazinho nu sentado numa coluna de nuvem, fez-lhe muitos sinais para que ele descesse de lá, mas ele não lhe respondeu. E elevou-se com a nuvem, cada vez mais alto, no céu...

- Às vezes, os sonhos são engraçados...

Coloquei na mesa uma pequena bilha de huang jiu, álcool de arroz castanho, que eu comprava ao merceeiro, nosso vizinho. O meu sogro não podia passar uma noite sem o seu copinho...

- Após o meu nascimento, os meus pais foram consultar o melhor vidente da cidade para que ele interpretasse o sonho. Segundo ele, a criança que a minha mãe vira no seu sonho era eu; a coluna de nuvem que se elevou no céu era o símbolo de um futuro brilhante; mas para me proteger contra os maus espíritos tinham de ir ao tem­plo conjurar o bonzo que lhe desse um bebé de terra, que eles ata­riam à volta do meu pescoço com um pedaço de cordel vermelho; assim atado, eu estaria sob a poderosa e generosa protecção de Buda. Depois no templo, como os meus pais tinham pedido ao bonzo para me dar um nome, ele disse: «Meng-Yu, Meng, sonhador, Yu, o espaço.»

- É um lindo nome.

Coloquei na mesa de pedra um prato de feijões-verdes salteados, um prato de tufo com alhos-porros, uma pequena taça cheia de peque­nos peixes salgados, uma taça enorme na qual nadava um frango entre os cogumelos pretos e grandes cubos de benincasa, um prato minús­culo de alho e pimento-vermelho, picados e regados com molho de soja. «Pimento e alho abrem o apetite», dizia muitas vezes a minha sogra num tom sentencioso.

- Sonhar o espaço... - prosseguiu o meu marido, com pernas sem vida e olhos sem olhar. - Diz, Mei-Li, um pássaro que já não pode voar ainda é um pássaro?

Eu não respondi nada. Não sabia o que dizer. O destino... tudo está predestinado... também a minha própria miséria...

Coloquei ao lado da mesa de pedra uma marmita em ferro fun­dido cheia de arroz.

- Mei-Li, dá isso a Meng-Yu - dizia a minha sogra, indicando­-me com a ponta dos seus pauzinhos um bom pedaço de frango - é o mais tenro. Come isto, o teu bebé e tu precisam muito disto - dizia ela à sua filha, pondo-lhe o fígado do frango na sua tigela.

- Ó mamã, já comi de mais! - respondeu Jing-Hua com uma voz meiga.

- Mei-Li - recomeçou a minha sogra, enquanto mastigava len­tamente a cabeça de um pequeno peixe salgado - amanhã haverá feira, tu não irás lavar a roupa ao rio.

- Sim, mamã - respondi eu, de olhos baixos.

- Tu vais ajudar-nos na loja. Haverá muitos clientes.

Era assim, quando havia feira, eu ia ajudar na farmácia. Nem me desagradava, bem pelo contrário. Mudava um pouco aquela rotina mor­tal, permitia-me ver gente... Era sempre interessante ouvir clientes conversar, trocar novidades sobre a sua saúde, ou sobre a dos outros... Além disso, gostava muito de me banhar nesse perfume que me lem­brava o odor do campo e da liberdade...

- Tu encherás estes dois potes de água, a seguir ao jantar - con­tinuou a minha sogra.

- Sim, mamã. - Mas...

O meu sogro tinha engolido a continuação da frase, fulminado pelo olhar terrível que a sua mulher lhe lançara. - Amanhã não haverá tempo - quase ladrou.

O meu sogro já não dizia nada, com o seu nariz mergulhado na tigela de arroz. A minha sogra virou a cabeça para mim.

- Tu poderás lavar a roupa amanhã à noite a seguir ao jantar, não é verdade, Mei-Li? - disse-me ela num tom ríspido.

- Sim, mamã.

- Mas mamã!... - clamou Meng-Yu com uma voz suplicante -, eu terei necessidade de Mei-Li, tu sabes...

- Bom, bom - disse a minha sogra, lançando um olhar de piedade sobre o rosto pálido e chupado do seu filho mais velho - eu sei que tu não gostas de a perder de vista à noite. Bom, ela lavará a roupa depois de amanhã, quando a feira tiver terminado. Está bem assim, meu grande? - Diz, Mei-Li - interveio, de súbito, Jing-Hua - tu não mudaste nada, hem! Há quase dois anos que eu não te via. O que é que fazes para te manteres jovem, tão fresca? Como eu te invejo!

Que peste! Sempre que vinha lançava-me as mesmas flores enve­nenadas. Para me ridicularizar, para me magoar pela resposta cruel que a sua mãe não tardaria em dar-me. Com efeito:

- Mas, evidentemente, ela não mudou, minha pobre Mei-Li - disse a minha sogra num tom ácido - ela nunca teve um filho... Muito satisfeita, Jing-Hua juntou o seu sorriso ao da mãe. Um sor­riso palpitante de orgulho e de desprezo.

O meu sogro baixou os olhos. Meng-Yu mexeu-se no seu cadeirão.

Eu senti uma dor fulminante no coração como se lhe tivessem apli­cado um ferro em brasa. É verdade, eu não tenho filho ao fim de mais de doze anos de casamento, mas de quem é a culpa! de quem é a culpa!...

Terminado o jantar, levantei a mesa. Depois levei um balde de água quente para o nosso quarto onde, como habitualmente, eu lavava Meng-Yu numa grande bacia de madeira. A seguir ao banho, insta­

lei-o de novo na cadeira e levei-o para o pátio, colocando-lhe aí um banco debaixo dos pés e um leque na mão.

- Para enxotar mosquitos... - disse-lhe eu.

Quando voltei ao pátio, depois de ter lavado a loiça e arrumado a cozinha, Jing-Hua e os meus sogros já se tinham juntado a Meng-Yu para tomar ar. A minha sogra estava a contar pelos dedos os casos

da cidade como um bonzo desliza as contas do rosário. Eles não tinham acendido a lâmpada de azeite porque a luz atrairia os mos­quitos, para além de o azeite custar muito dinheiro. «Aliás, podemos entender-nos melhor na noite, não é verdade?», dizia, frequentemente, a minha sogra.

Sem participar na sua conversa, peguei nos baldes de madeira e no pau de bambu, fixados no gancho de talhante na cozinha e saí pela porta do fundo da sala.

Nessa época, o transporte da água fazia-se com dois baldes pen­durados nas duas extremidades de um bambu comprido. Como cada um dos potes podia conter seis baldes de água, era necessário fazer seis idas e voltas para as encher. Não era uma tarefa fácil, imaginas, subir seis vezes os cento e dois degraus com lajes da escadaria que conduzia ao rio com cerca de cem libras sobre os ombros. No Verão as gotas de suor caíam pelo teu rosto como se fosse uma chuvada; no Inverno, sopra-se tão forte como uma locomotiva em marcha. Quando os potes estavam finalmente cheios, era necessário juntar­-lhes um punhado de alúmen e mexer com um pau. Ao fim de uma hora ou duas a água avermelhada tornava-se clara, enfim, quase. Era necessário limpar os potes todos os dois dias porque a terra verme­lha se depositava nelas, formando rapidamente uma camada espessa. Normalmente só ia buscar água de manhã, depois do pequeno-almoço, mas desta vez...

Desço a pequena rua onde só circulam alguns passantes apressados. Sim, fará em breve dezasseis anos que aqui estou, recordo para mim, nesta casa, casada... E ainda não comecei a vida de uma mulher! Mais de quatro mil noites passadas junto de um marido, metade devo­rado pela doença... Sem amor. Sem filhos. Sem nada. A vida repete­-se, tristemente, todos os dias e o tempo passa. Levantar-me todas as manhãs, de madrugada, para preparar o pequeno-almoço para toda a família; acordar o meu marido, fazer a sua toilette e dar-lhe de comer; limpar as talhas e depois enchê-las de água; ir lavar a roupa de toda a família ao rio; dar massagens ao corpo inerte do meu marido; lavar a loiça, limpar o pó aos móveis, varrer o pátio; preparar o jantar; dar de comer ao meu marido; depois fazer a sua toilette de noite; lavar a loiça e arrumar a cozinha; de novo dar uma massagem e ler para o meu marido; depois... dormir ou ficar de olhos bem abertos até ao amanhecer... Sem vida de mulher. Sem vida de mãe. Quem sou eu? Não sou eu mesma, não. Não sou esta jovem que eu vejo tantas vezes no meu pequeno espelho oval, não. Quando muito, uma mulher de limpeza, uma carregadora de água, uma massagista, uma leitora, uma remendeira, uma lavadeira, uma cozinheira sem salário... O tempo passa e os dias repetem-se, desesperadamente, como este longo rio sem grandes redemoinhos que incha o seu dorso avermelhado só um bocadinho no mês de Julho depois das fortes chuvadas... Eu não me suicidei - creio que estive quase a fazê-lo uma ou duas vezes, mas não tive coragem para ir até ao fim, como a frágil Xiu-Lan. Não tinha sido suficientemente corajosa para espetar as pontas da tesoura no meu peito, não. Então, sobrevivi no dia-a-dia, e há algo em mim que ainda espera... Esperar o quê? Eu não sabia...

Todos os anos passava, por assim dizer, trezentos e cinquenta e nove dias para a chegada de um só: o Ano Novo chinês, o único dia do ano em que me tornava um pouco eu mesma. Preparam-se tantos pratos na véspera da festa que, em seguida, não se fazia comida durante dois ou três dias. Aliás, era formalmente proibido, para a nossa maior felicidade, lavar a roupa ou limpar a casa neste primeiro dia do ano porque, segundo se crê, a sorte deixaria a casa com a água suja e os lixos. Deste modo, nesta primeira manhã do ano em que levantar tarde não era um pecado, eu podia aconchegar-me nos lençóis quentes mais uma meia hora. Em seguida, logo que os meus sogros tivessem saído para ver amigos e enquanto o meu marido fizesse a sua sesta, eu estava livre. Verdadeiramente livre durante duas horas, fazes uma ideia disso! Saía para a rua; passeava entre a multidão em trajo de festa, de nariz no ar para melhor acolher o ar frio que arrastava o fumo dos foguetes, que tinham rebentado desde o primeiro segundo do ano. O meu bolso pesado com as duas moedas de prata de «boa sorte», dadas pelos meus sogros nessa mesma manhã, e com a pequena fortuna que tinha acumulado tostão a tostão durante os doze meses (quando o meu sogro me mandava buscar a aguardente, dava­-me sempre mais algum dinheiro que o necessário e recusava o troco que eu lhe queria entregar. «Isso é para ti», dizia ele), fazia-me sentir quase rica e contente. Pum! «Bom ano!» Pum! «Prosperidade para vocês!» «Que possam viver tanto tempo como o monte do Sul!» Pumpum! «Boa sorte!» Pum!.., pum!... Pum!...«Que a vossa feli­cidade seja sem limites como o mar de Leste!» Pumpum!... Pumpumpumpumpumpum!... Por todo o lado, as detonações de foguetes. Os votos de felicidade trocados, as saudações calorosas, por todo o lado os sorrisos radiosos.

Em seguida, ia visitar a minha boa vizinha, a patroa do pequeno restaurante de massas de arroz que a minha sogra não gostava nada de me ver frequentar. «Bom ano e bons negócios, tia Liu!», gritava eu à entrada. «Bom ano, Mei-Li, bom ano! Entra, entra depressa:» A tia Liu pegava-me pelas mãos e puxava-me para o interior, na sua sala estreita, mas bem aquecida. Sempre gorda e também sempre ale­gre, a tia Liu colocava-me à frente do nariz uma tigela enorme cheia de massas, fumegando como um lago de lódão nos dias de muito frio: «Come, minha filha, come enquanto está quente», repetia ela. E enquanto eu degustava lentamente esta delícia, a tia Liu estava ali, sentada diante de mim, olhando-me com os seus olhos ternos, sor­rindo-me com o seu sorriso materno. E quando ela começava a con­tar-me a sua vida, com o seu cachimbo de tubo comprido de bambu entre os dentes, o seu triplo queixo tiritava como uma folha com o vento da aurora... Também ela tinha vivido pesadelos, a tia Liu. Ela não era de Tien-Ma, mas de Shan-Dong, região longínqua onde as jovens fumam cachimbos de tubo comprido. Ela tinha feito um bom casamento e teve três filhos: um rapaz e duas raparigas. No entanto, aos vinte e três anos, perdeu o seu marido e os seus filhos e a sua felicidade num terrível tremor de terra. Fugindo da sua aldeia amal­diçoada pelo destino, ela chegara a Tien-Ma, onde um velho casal sem filhos a acolheu. Mais tarde, com a morte dos seus pais adopti­vos, herdou a sua loja de massas de arroz. «Sabes, Mei-Li», dizia­-me muitas vezes, «não há fronteira entre os homens e os animais. É o destino e o próprio comportamento no passado que decidem se tu és um homem ou um animal na vida presente. Se tu te portas mal nesta vida, na tua próxima vida tu serás um gato ou um cão, um porco ou um frango que se mata para festejar no Ano Novo. Se tu te por­tas bem e acumulas boas acções suficientes nesta vida, acredita na tua velha tia, minha filha, tu viverás melhor na tua vida futura.... Tu poderás mesmo tornar-te uma princesa ou uma imperatriz!... Enfim, por que não? A bondade dá felicidade, a maldade dá infelicidade. É assim... »

Como podia a tia Liu sobreviver e guardar intacta a sua boa fé depois de tudo o que ela sofreu, era isto que eu não compreendia. A esperança faz viver.

Quando eu acabava todas as minhas massas, a tia Liu vazava­-me uma chávena de chá perfumado de jasmim. Em seguida, ia bus­car por detrás da estátua de Buda, colocada na mesa ao fundo da sala, um cofrezinho lacado de vermelho, que ela abria. Segundo os anos, retirava um anel de jade ou uma pulseira de prata maciça ou um amuleto de ágata ou um minúsculo alfinete de ouro ou um par de brincos de pérola ou uma corrente revestida a ouro ou ainda um colar de grandes pérolas de jade: «Olha o que eu encontrei para ti desta vez.» Então, eu despejava o meu bolso contra um destes peque­nos tesouros, que ia juntar-se aos outros cuidadosamente guardados por debaixo da pilha de fatos no meu armário. Depois de ter arru­mado com cuidado o dinheiro no seu cofre, que ela voltava a colo­car, imediatamente, por detrás da estátua, voltava a sentar-se e punha­-me em voz baixa a imutável questão, batendo levemente duas vezes no seu ventre: «Ainda não?» Eu acenava negativamente com a cabeça. Ela suspirava: «Tu experimentaste bem o método que eu te disse na última vez?» «Sim, certamente que sim... mas também não deu resultado...» Oh minha pobre Mei-Li! Temos de encontrar outro método... Olha, tenho uma ideia: desta vez vai ao templo e supli­cas ao velho bonzo que te dê qualquer coisa. A cunhada Zhang disse-me que ele tinha dado uma folha de papel à mulher do ven­dedor de tufo que não tinha tido criança depois de três anos de caga­mento. Nesta folha havia muitos sinais incompreensíveis. A mulher do vendedor de tufo queimou a folha na sua casa e engoliu a cinza com água da chuva. Depois, ficou grávida. Eu via-a no mercado com o seu ventre arredondado. Não poderias fazer também o mesmo? Ele é tão simpático, o velho bonzo, não te faz mal nenhum... Estas práticas são muito eficazes, enfim, algumas... Não se pode baixar os braços, minha filha, nunca se sabe... » Todos os anos a tia Liu me dava um destes conselhos, uns mais surpreendentes que outros. No ano anterior, era de comer uma tartaruga de água-doce com cinco anos, cozida em lume brando na água de fonte tirada no décimo dia do mês de Outubro, às dez horas em ponto da manhã; no ano antes, era beber sangue frio de serpente misturada num pequeno copo de álcool de arroz, uma vez por mês após a menstruação; o ano... Enfim, já não me lembro... Mas a última vez, quando a tia Liu me contou a maravilha que tinha fecundado a mulher do vendedor de tufo, eu não consegui reter as minhas lágrimas e confessei-lhe tudo. Que eu nunca tinha experimentado nenhum dos métodos que ele me indicara. Que após estes longos anos de casamento, eu continuava virgem. Que o meu;'marido não era... capaz... Que isto ou aquilo não me podia salvar... A tia Liu permaneceu silenciosa por um longo tempo, depois voltou a carregar o seu cachimbo, acendeu-o e estendeu-mo. «Não te apetece uma cachimbada?» Também eu silenciosa peguei no cachimbo e levei-o aos lábios... Foi a partir desse dia que eu comecei a fumar.

Eu sigo a rua até ao fim: a grande escada de lajes desce diante de mim. Uma brisa ligeira sobe o rio, fazendo-me cócegas no rosto. A Lua, como metade de um prato quebrado, ergue-se necéu azul­-carregado. O ar é transparente como num sonho. Muito longe, uma sampana passa sem barulho. Um candeeiro de tempestade cintila na proa.

Eu desço, um a um, os cento e dois degraus que mergulham em direcção à água avermelhada do rio.

Chego ao último degrau. Lanço o balde na água. O refleico da Lua quebra-se. Eu choro.

«Casada com um galo segue-se um galo, casada com um cão segue­-se um cão...»

De repente, sinto a presença de alguém por detrás de mim. Limpo os meus olhos com as costas da mão e viro-me energicamente.

- Mei-Li - disse-me uma voz doce - sou eu, Jing-Ming.

Duas horas da tarde.

Vento frio. Sol pálido. Céu azul-claro

Um homem de cinquenta anos, grande, de fronte alta e lisa, cabe­los pretos penteados para trás, de pé na proa de um pequeno barco a vapor no rio Yang, olha para as margens que desfilam com um ar meditativo.

O barco pára no meio do rio. Uma sampana acaba de encostar ao barco. O homem sobe a bordo da sampana, seguido por um médico. Retira as suas roupas guardando só os seus calções. Pega na toalha branca que o médico lhe estende, mergulha-a na água gelada, deixa­-a flutuar alguns instantes, depois esfrega o peito e as costas. Contempla durante um momento a água amarelada com um sorriso misterioso e lança-se à água. Nadando ora de mariposa ora de crawl contra a cor­rente, ou deixando-se arrastar, boiando, o homem permanece cerca de meia hora na água gelada antes de subir para a sampana para fumar um cigarro. «Tem frio, Presidente?», pergunta o médico, lançando sobre os ombros uma toalha de banho seca. «Não, responde o homem, sorrindo. Não se sente o frio quando se está bem determinado.» Dez anos mais tarde.

No mesmo dia

O mesmo vento frio. O mesmo sol pálido. O mesmo céu azul­claro.

Na margem do mesmo rio.

Inumeráveis bandeiras vermelhas, grandes e pequenas, com ou sem franjas da cor do ouro velho, estalavam ao vento fresco da manhã. Na maior parte delas, palavras de ordem em grandes caracteres ama­relo-vivos misturavam-se com os nomes de escolas, de fábricas, de hospitais, de unidades de trabalho e de guardas vermelhos.

À sombra dos estandartes e das bandeirolas, oscilando como mastro de navio, ondulava um mar de gente escurecido por uma centena de milhares de cabeças. Homens, mulheres, velhos, crianças, todos em trajo à Mao azul, cinzento, preto ou verde-exército, cada um ostentando um medalhão vermelho do Presidente no peito, orgulhosamente cheio, afluíam da cidade e dos arredores rumo ao único ponto alcatroado, ligando, por cima da corrente rápida e terrosa do rio Yang, a parte industrial da cidade, situada no Sul, e a parte administrativa, comercial e cultural, do Norte.

'Na margem setentrional, algumas dezenas de adolescentes, de bra­çadeiras vermelhas, que, há uma hora, gritavam, empurravam, amea­çavam, conseguiram fazer recuar as multidões entusiastas a fim de deixar aproximar da água o desfile de nadadores que penetrava na Avenida Cais do Rio, entre uma dupla ala de espectadores curiosos e excitadíssimos, que se empurravam para ver, em carne e osso, esses heróis que iam atravessar o rio em pleno Inverno. Doze barcos, onde estavam amarradas as bóias de salvamento em cauchu preto, molhos de varas de bambu de seis metros de comprimento, pilhas de toalhas de banho brancas e garrafas de álcool de arroz de Sd°, já estavam posicionados, alinhando-se através do rio num espaço regular sobre mais de oitocentos metros, prontos a socorrer qualquer nadador em dificuldade durante a travessia épica.

Debaixo de aclamações ensurdecedoras da multidão, ao ritmo da música entoada por inumeráveis altifalantes agarrados aos candeei­ros de madeira, às árvores e ao cimo dos prédios:

A navegação no mar depende daquele que vai ao leme.

A vida e o desenvolvimento da Natureza dependem da luz do Sol. O crescimento das plantas de arroz depende da alimentação das chuvas. O prosseguimento da Revolução depende do pensamento de Mao Tsé-Tung.

A cabeça do desfile acabou por aparecer à beira da água: viu-se uma espécie de estrado construído sobre quatro pneus de camiões ligados por fios de ferro sobre um suporte de canas de bambu,, no qual sorria, a três metros de altura, o presidente Mao em uniforme militar, de braço direito levantado como que para mostrar a direção a seguir. Doze homens robustos transportavam-no, marchando ocom uma lentidão solene, as pernas lançadas energicamente, todas ao mesmo tempo. Seguia-se um cartaz horizontal de dois metros de largura por dez metros de comprimento, sustentado da mesma maneira por oito pneus de camiões e sobre os ombros de vinte carregadores: «A comemoração do décimo aniversário da natação do presid*ente Mao no rio Yang», em enormes caracteres vermelho-vivos.

As primeiras filas da procissão, unicamente compostas por sol­dados da força aérea da base situada a trinta quilómetros a oestes da cidade, começaram então a despir-se. Uma tempestade de aplausos explodiu quando estes rapazes de dezoito a vinte cinco anos, tendo como roupa apenas um fato de banho azul-marinho, deram os seus primeiros passos heróicos na água gelada. «Olha, meu menino», c$isse um homem ao seu filho com cerca de seis anos, encavalitado nos ;seus ombros, «que estes são corajosos!» «Mas papá», respondeu a criança de ar ansioso, «eles vão constipar-se.»

No cortejo, uma dezena de raparigas em caqui juntaram as roupas dos nadadores abandonadas no solo, amontoaram-nas dentro de bran­des sacos de tecido que guardaram em seguida a bordo de um barco a vapor, que fazia a ida e volta entre as duas margens.

O segundo segmento do desfile era formado por milicianos, cabe­los à escovinha, camisolas grossas, braçadeiras vermelhas. Atrás deles, apressavam-se os grupos dos operários de diferentes fábricas, os camponeses dos subúrbios, os médicos, os enfermeiros e emppre­gados dos hospitais, os trabalhadores dos transportes, os quadros ditos «revolucionários», os empregados de toda a espécie, os estu­dantes, os professores, as diferentes facções dos guardas vermelhos: «Os Pioneiros Vermelhos», «A Tempestade Vermelha», «A Nova Longa Marcha», « O Temporal da Revolução», «A Frente dos Rebeldes Revo­lucionários»...

Ming-Ming marchava no meio da sétima fila do grupo dos estudan­tes dos liceus. Ele enchia o peito mas isso não o aumentava muito: com treze anos e sete meses, dava a impressão de ter apenas dez. Apesar do ar grave que se dava, de bom grado, ele tinha visto todas as portas de todas as facções de guardas vermelhos se fechar, umas a seguir às outras, pela mesma razão: «Não aceitamos crianças», diziam com uma ironia quase amável. Então, como desafio, ele ia atraves­sar o rio em pleno Inverno, embora o seu record não ultrapassasse uma ida e volta numa piscina de cinquenta metros, no pino do Verão. Quando deu a conhecer a sua decisão de participar na travessia comemorativa deste ano, toda a gente pensava que estava louco. Mas como dissuadi-lo? Uma vez tomada a sua decisão, nem nove búfalos o poderiam reter. «Ele tem de apanhar uma lição», dissera a avó.

Fan-Fan tinha sido também enviada pela sua mãe e a sua avó como portadora das roupas do seu irmão. Ela marchava entre as outras portadoras de roupas, que fechavam a marcha do grupo dos

estudantes do liceu. Como é engraçado, pensava ela enquanto avan­çava lentamente, tanta gente na rua ao mesmo tempo como vindo não se sabe de onde! Dir-se-iam formigas desvairadas, cujos formi­gueiros tivessem sido esmagados por pontapés infantis. Ela teria gos­tado de ver um rosto familiar entre estes espectadores exaltados, mas como seria possível? A mamã trabalha desde ontem à noite na pada­ria-pastelaria do Estado para que não haja escassez de pãezinhos neste dia excepcional em que as donas de casa não têm tempo para cozinhar. E a avó? Ela deve encontrar-se nesse momento do outro lado do rio, tomando conta da tisana de gengibre num dos lumes entre as dezenas que foram acesos para acolher e aquecer os nada­dores gelados.

O cortejo avançava, depois parava e esperava, avançava de novo, depois parava e esperava ainda, depois... Como são lentos! pensou Ming-Ming, enchendo um pouco mais o seu minúsculo peito. Ah! até que enfim! Ming-Ming acabava de chegar à grande escada de lajes que descia para o rio. Vislumbrou, então, do outro lado da  cor­rente, nadadores tão pequenos como bagos de arroz a sair da água e ardia de desejo de estar entre estes felizes vencedores do frio e da vaga.

Céus! Como é largo! Fan-Fan sentia um arrepio ao chegar ao cimo da grande escada de lajes. «Quanto tempo será necessário para che­gar - ao outro lado a nado?», perguntou ela ao rapaz que marchava ao seu- lado. «Três quartos de hora, talvez mais.» Três quartos de hora! Permanecer na água gelada durante três quartos de hora! O coração de ]Fan-Fan apertou-se. Este Ming-Ming está mesmo louco! Ele nunca lá chegará. Sim, de acordo, ele nada melhor que eu, mas está longe de -ter arcaboiço para atravessar o rio. Para mais no Inverno! Ele que não passa um mês sem ter de ir ao médico: a gripe, a diarreia, o ioiô nas orelhas, o sarampo, a papeira... O que é que ele vai apanhar agora?...

Ming-Ming descalçou os sapatos de pano com sola de cauchu, as me ias de algodão, o casaco algodoado, o pull de lã, a camisa, as cal­ças: e lançou tudo para os braços de Fan-Fan. Um vento frio eriçou­

. -lhe os pêlos de todo o corpo. Conteve, à justa, um espirro e deu dois passos em frente para não mais cruzar os olhares inquietos da sua irmã. Depois de ter efectuado alguns movimentos para descontrair os músculos, dirigiu-se para o rio. No instante em que molhou o pé na água, quase gritou como um animal ferido. Ele não imaginava que a lâmina do frio pudesse ser tão cortante. Numa fracção de segundo, lamentou a sua loucura. No entanto, continuava a avançar, avançar... como um verdadeiro herói de pés nus que caminha sobre um tapete de brasas sem sequer franzir os sobrolhos. Quando a água chegou à cintura, lançou-se na corrente com todo o seu corpo como se tivesse abraçado o seu destino.

Em silêncio, Fan-Fan meteu as roupas do seu irmão no saco esco­lar em pano grosso verde, ela não tinha encontrado nada para lhe dizer. Qualquer palavra seria inútil. Ela tinha-o compreendido quando o olhar brilhante de Ming-Ming cruzara o seu. O seu irmão não é daqueles que desistem. Ele iria até ao fim. Ela sabia-o. Chatice! O casaco e o pull não entravam no saco. Atou-os à correia. Depois, com um nó no estômago, seguiu com o olhar o seu irmão, que mar­chava com passo determinado na corrente amarelada, e viu-o afastar­-se, lentamente, da margem até se tornar um pequeno ponto preto. De repente, sobressaltou-se. Acabava de se lembrar da sua tarefa ultra­-importante: levar as roupas de Ming-Ming para a outra margem para que tenha com que se cobrir quando tiver chegado. Se chegasse! Mas era demasiado tarde, o barco a vapor acabava de recolher a sua pran­cha e de deixar a margem. Como fazer? Oh! como fazer, Deus dos céus!

Ming-Ming sentia formigueiros desagradáveis na palma das mãos e na planta dos pés como se milhares de formigas tivessem per­corrido a sua carne em todos os sentidos. Receando ser afectado por cãibras, deixou-se flutuar um momento na corrente do rio, fric­cionando as mãos e depois os pés. Enfim, a sensação desagradá­vel desapareceu e recomeçou a nadar. A água parecia-lhe menos fria e o seu corpo leve. Começa a tornar-se muito fundo, pensou ele.

Fan-Fan não esperou o regresso do barco a vapor. Seria mais rápido ir pela ponte, pensou ela. Correu em direcção à escada, de saco a tira­colo, subindo os degraus dois a dois, empurrando com todas as suas forças as pessoas que a impediam de avançar, ignorando as repreen­sões e os gritos de cólera que a sua corrida a contra-relógio provo­cava. Mas quando chegou diante da ponte, compreendeu, imediata­mente, que estava perdida: a ponte com seis vias (duas para as viaturas, duas para bicicletas e duas para os peões) estava hermeticamente tapada por uma multidão compacta. Havia gente pendurada nos para­peitos ou agarrada aos candeeiros de bronze como macacos. A pas­sagem atrás dela tinha-se voltado a fechar. Fan-Fan soube que não tinha outra escolha que tentar o impossível. Então, enfiou-se pela multidão, com uma determinação de chinesa e uma força de deses

perada. Os maxilares cerrados, a mão esquerda apoiando fortemente o seu saco escolar contra a anca, passou, primeiro, a sua mão direita entre duas pessoas, em seguida o seu antebraço, depois o seu ombro e, num golpe de rins, a sua cabeça e o seu corpo. A brecha assim aberta fechava-se, imediatamente, sobre ela. Passo a passo, ganhava terreno. Na sua fronte formavam-se gotas de suor. A sua camisa molhada colava-se ao dorso. Onde estará Ming-Ming agora? No meio do rio? Já terá chegado? Se ele tivesse chegado!... Talvez suportasse melhor o frio do que ela imaginava...

Ming-Ming levantou a cabeça o mais possível por cima da água para medir a distância desesperante que lhe faltava transpor. Depois olhava para trás! Nem sequer tinha feito um quarto do caminho. As garras do frio tornavam-se cada vez mais finas. Furavam-lhe a pele, penetravam na sua carne, mordiam-na e rasgavam-na pedaço a pedaço. Começou a tremer com todos os seus membros. Bem se esforçou para tentar aquecer-se, batendo na corrente com os braços a um ritmo mais rápido; cansava-se em vão. Foi ultrapassado por outros nadadores. Olhou para o barco salva-vidas mais próximo, mas renunciou a pedir socorro.

Quanto mais Fan-Fan avançava, mais densa se tornava a multi­dão. De repente, Fan-Fan pareceu ter ouvido um leve barulho de metal. Olhou para o seu peito. O seu receio confirmou-se: o seu meda­lhão de Mao já não estava lá. Fan-Fan baixou imediatamente os olhos e viu-o, ao lado de um sapato de cauchu do tamanho de uma barca. Fan-Fan quis debruçar-se para o apanhar, mas era impossível, tão apertadas estavam as pessoas à sua volta. Dobrou os joelhos como pôde, estendendo a sua pequena mão o mais possível, bolas! o seu braço era demasiado curto. Fan-Fan tentou, então, esticar o pé para lá chegar. A ponta do seu sapato raspou-lhe quando um sapato enorme de cauchu se levantou e caiu exactamente em cima... «Oh, não!», gritou Fan-Fan tentando afastar a perna horrível. Foi em vão. Fan­-Fan estava quase a chorar. Coleccionar os medalhões de Mao estava muito em moda. Fan-Fan já possuía mais de uma dezena: o Presidente em uniforme militar rodeado por trinta corações, cujos sete maiores tinham cada um o carácter «Zhong» - lealdade: o Presidente à civil no meio do sol vermelho lançava os seus raios por cima de sete capí­tulos amarelos de girassol - o povo chinês seguia-o como as flo­res do girassol se orientam para o Sol; um modelo executado em bambu no qual o Presidente sorria por cima de um mar de aurifla­mas vermelhas cuja maior tinha gravado «Guardas Vermelhos» em caracteres dourados; uma série de três modelos em porcelana fina que representavam três períodos da carreira revolucionária do Presidente: jovem militante do movimento operário, em longa bata tradicional, chefe do Exército Vermelho, com boné militar, Presidente da República da China... Mas aquele que acabava de ser esmagado era a última aquisição. Para o ter, ela tinha trocado pela sua nova afiadeira e o seu dicionário a um camarada da turma, cujo pai tra­balha numa fábrica de bicicletas na qual a produção foi interrom­pida para só cunhar medalhões de Mao. Além disso, era um modelo concebido, especialmente, por ocasião desta travessia comemorativa, e único pela originalidade da sua forma: sobre um fundo de três ban­deiras vermelhas sobrepostas, a imagem de Mao, cor de ouro, numa auréola sagrada, sublinhado por dois versos extraídos de um poema de Mao e estilizados na sua escrita manuscrita: «Contra o vento e a vaga eu abria o rio, mais à vontade que na minha corte eu me pas­seio tranquilo»; por debaixo, a miniatura da ponte dominando as vagas do rio Yang, sempre de cor amarela; ainda mais abaixo, nove caracteres: «a comemoração da natação do presidente Mao no Inverno no rio Yang», seguidos dos números «1958-1968», desta vez, sobre um fundo branco...

O frio violento começava, agora, a atacar os ossos de Ming-Ming. Como tenazes que apertavam, depois esmagavam. Os seus braços e as suas mãos enregelavam. O seu corpo tornava-se pesado como se estivesse cheio de chumbo. A água ficou dura como um bloco de aço. Parecia-lhe que o sangue já não circulava, que ele estava gelado até à medula, que nele tudo gelara. Mesmo o pensamento. Mesmo a sua consciência. Como um autómato, ele continuava a fazer gestos para manter a sua cabeça fora da água, mas a um ritmo cada vez mais lento, cada vez mais lento...

De repente, buzinadelas furiosas explodiram atrás de Fan-Fan. Ela virou a cabeça: um jeep verde. O veículo tinha em cima uma pequena bandeira vermelha triangular na qual se liam três caracteres traçados a tinta amarela: «Equipa de controlo.» As pessoas empurravam-se para o deixar passar. A onda humana levantou Fan-Fan, afastando-a, apesar dos seus esforços, do seu precioso medalhão. Uma ideia atra­vessou o espírito da pequena num relâmpago. Ela limpou os olhos às costas da mão e esgueirou-se com todas as suas forças a contracor­rente em direcção ao jeep. O veículo passou a menos de cinco cen­tímetros do seu pé direito. Um único salto e já está, agarra-se à parte de trás da viatura, a mão direita no pára-choques, a esquerda aper­tando o saco escolar contra a sua anca. O veículo avançava solene­mente como um deus, buzinando como um diabo. A grande muralha de espectadores tremia e abria-se diante dele. Salva!, dizia para si Fan-Fan, esquecendo já a sua infelicidade. Tanto pior para a imagem do presidente Mao!...

Na margem sul, algumas dezenas de fogos crepitavam alegremente, rodeados por nadadores sentados por terra ou em bancos de madeira, de cabelos ainda molhados, pernas estendidas em direcção às cha­mas, as mãos ligeiramente trémulas, mastigando com belos dentes pequenos pães, bebendo grandes goladas de tisana de gengibre ado­çado, rindo tolamente com gracejos estúpidos.

Fan-Fan introduzia-se entre grupos de nadadores de olhar orgu­lhoso e de espectadores deslumbrados, que se erguiam à volta deles, procurando ver o seu irmão e a sua avó. Uf! Lá está ela, final­mente!

Junto do lume, Mei-Li estava ajoelhada diante de uma maca de ocasião, esfregando com força o corpo teso de um rapaz com uma toalha branca. Ajoelhada do outro lado da maca, uma outra mulher massajava as suas pernas e os seus pés. Os cabelos pretos do rapaz escorriam, o seu rosto estava lívido e as suas pálpebras fechadas, os seus lábios tinham uma cor azul-violácea, horrível, os seus dentes castanholavam com uma violência cómica. Fan-Fan aproximou-se, pôs-se de joelhos ao lado de Mei-Li que, sem interromper o seu tra­balho, contentou-se em dizer-lhe: «Ah! Já chegaste!» Quando a cor voltou de novo ao corpo do rapaz, Mei-Li envolveu-o num cobertor; depois, passando um braço pela sua nuca, levantou-o suavemente. «Dá-me a tigela», disse ela à sua neta. Fan-Fan recebeu das mãos de uma mulher uma grande tigela de tisana de gengibre a fumegar, que estendeu à sua avó. «Tenta beber um pouco, meu filho, isso vai-te aquecer», diz com ternura Mei-Li ao nadador que, a custo, levantava as pálpebras. Com a ajuda de uma colher de porcelana, forçou os maxilares cerrados do rapaz e deitou, gota a gota, o líquido quente na sua boca. Quando a tigela ficou vazia, havia um pouco de cor no rosto do adolescente. «Agora, descansa, vais comer um pequeno pão e, depois, sentir-te-ás melhor», disse-lhe Mei-Li com um sorriso ter­nurento.

- Então, onde está o teu irmão? - perguntou Mei-Li, virando­-se para Fan-Fan.

- Eu não o vi entre os nadadores à volta dos fogos.

- Vai esperá-lo à beira da água e trá-lo aqui quando o vires. Vai.

Os últimos nadadores emergiram da água, uns após os outros, tiri­tando, com mechas de cabelos coladas na fronte e no rosto com uma cor tão desagradável à vista como a do rio. No entanto, Fan-Fan con­tinuava sem vislumbrar a silhueta franzina do seu irmão. Talvez tenha chegado sem que eu o tenha visto, pensou Fan-Fan para se acalmar. Ela percorreu todos os braseiros na esperança de... Mas nem sequer a sombra de Ming-Ming. Onde diabo se pode ter metido? Possuída por uma espécie de pânico, Fan-Fan regressou para junto do fogo onde Mei-Li distribuía tisana aos nadadores diante de uma panela fumegante.

- Então? - perguntou ela.

- Ele não está lá - respondeu Fan-Fan com uma voz angus­tiada. - Procurei-o por todo o lado.

A concha de Mei-Li parou no ar.

- Vai depressa a casa. Fica com a tua mãe quando ela regressar do trabalho. Eu vou informar-me, de imediato, junto da comissão de controlo.

Há muito tempo que anoiteceu. Bai-Lan e Fan-Fan estavam sen­tadas como duas estátuas de pedra num círculo de luz amarela, difun­dida pela única lâmpada na ponta de um fio que descia do tecto. Na mesa desdobrável, o jantar aquecido várias vezes arrefecia. Nenhuma delas falava. Um silêncio mortal tornava-se cada vez mais pesado, entrecortada pelo tiquetaque implacável do despertador colocado sobre o aparador. Do alto do seu quadro de madeira envernizada de ver­melho, pendurado na parede do fundo, o presidente Mao olhava a mãe e a filha com um vago sorriso de benevolência.

Um barulho. Bai-Lan e Fan-Fan levantaram-se ao mesmo tempo. A porta abriu-se. Mei-Li apareceu de rosto profundamente alterado. - Então? - perguntou Bai-Lan.

- Eles disseram que havia três desaparecidos - disse Mei-Li com uma voz irreconhecível.

Fan-Fan caminha de pés descalços sobre uma ponte muito larga, muito comprida, estranhamente deserta. Não há peões. Não há bici­cletas. Não há viaturas. Ela espreita por cima do parapeito em falso mármore veiado. Nem barcos. Em baixo, uma corrente amarelada agi­tada por redemoinhos. Em cima, um céu-azul imaculado. O sol queima. O calor sufoca. Fan-Fan tem calor. O betão da ponte começa a quei­mar-lhe a planta dos pés. Ela tem sede. A sua garganta dói-lhe. Ela sente-se esgotada. Mas ela continua a caminhar como que empurrada por uma força exterior. De repente, a ponte abana debaixo dos seus pés, surge uma fenda a alguns metros diante dela. Depois, com uma lentidão terrível e num silêncio horrível, a fenda abre-se, alarga-se, aprofunda- se, aumenta, como um pedaço de toucinho que se abre pelo corte de uma lâmina invisível. Uma lufada de ar glacial, vinda da fenda, fez Fan-Fan estremecer profundamente. De repente, ela tem muito frio como se saísse de um braseiro para cair numa gruta de gelo. Mas o mais assustador é que ela não pode parar, as suas per­nas não são mais as suas, elas avançam por elas mesmas. Pouco a pouco, ela aproxima-se da fenda transformada em abismo escanca­rado. Aterrorizada, pede socorro, mas nenhum som sai da sua gar­ganta. «Voa» ordena-lhe uma voz junto à sua orelha no momento em que ela cai para o vazio. Ela abre os braços e, milagre!, ela voa em direcção ao céu. Alguém acaba de a ultrapassar. Ele corta o ar a uma velocidade vertiginosa. É Ming-Ming! Ele só tem vestido o seu cal­ção azul-marinho. Ela chama-o, mas mais uma vez ainda nenhuma palavra sai da sua garganta. Ele voa tão depressa que se transforma, rapidamente, num pequeno ponto preto no céu azul imaculado. «Espera por mim, espera por mim...», chora Fan-Fan desesperada.

- Fan-Fan, Fan-Fan - uma voz terna chamou-a.

Ela abriu as pálpebras e viu Mei-Li e Ming-Ming de pé junto à mesa de cabeceira. Ela esfregou os olhos, murmurando:

- Eu sonho?

- Tiveste febre, minha filha - disse Mei-Li, estendendo-lhe um copo de água. - Bebe um pouco, isso faz-te bem.

Fan-Fan abriu a boca mas os seus olhos procuravam o seu irmão por cima do copo.

- Eu não tenho nada, estás a ver - confortou-a Ming-Ming com uma voz fraca.

Ele tinha a cara de um esqueleto que acaba de ressuscitar.

- Vai dormir ainda um pouco, meu grande - disse-lhe Mei-Li --­estás com mau aspecto.

Ming-Ming forçou um pequeno sorriso e depois retirou-se.

- Sabes por que é que ontem não o encontrámos? - disse Mei­-Li à sua neta, pondo um prato de porcelana no banco ao lado dela. - Pois bem, ele foi repescado por um barco salva-vidas. Para o aque­cer, esses imbecis de salvadores deram-lhe a beber metade de uma garrafa de álcool de arroz, e ele mergulhou imediatamente num sono semelhante à morte. Os salvadores tiveram muito medo e transpor­taram-no, apressadamente, para o hospital do povo sem informar a comissão de controlo. O teu irmão só acordou esta manhã, mas o director preferiu guardá-lo em observação durante oito horas.

Enquanto falava, Mei-Li tirou do bolso um lenço que estendeu nos joelhos, pegou num ovo cozido que se encontrava na prata, descas­cou-o, abriu-o e deu a gema a Fan-Fan.

- Come, isto dar-te-á forças.

- A mamã está ao corrente? - perguntou a menina.

- Não te preocupes, querida, ela vai sabê-lo dentro de meia hora quando regressar do trabalho.

- Que horas são agora?

- Quase seis horas da tarde.

- Eu dormi durante todo o dia?

- Sim, sim, minha pequena, parecia que nunca mais acordarias - disse Mei-Li colocando a clara no meio do seu lenço. - Tiveste uma temperatura louca esta noite. Tive de dar-te um banho de gengibre e depois envolver-te num cobertor grosso para te fazer transpirar. Molhaste três camisas de dormir e a tua febre só desceu esta manhã.

Mei-Li pegou num punhado de cebolinhos do prato, cortou-os em dois, repôs no prato as longas tiras verdes, misturou os pedaços bran­cos da clara do ovo. Um aroma picante e suave penetrou nas narinas de Fan-Fan. Ela espirrou.

- Foi depois do meio-dia que tive a ideia de passar por todos os hospitais - prosseguiu Mei-Li - porque se o teu irmão tivesse tido a sorte de ser repescado, devia estar num deles. Comecei pelo hos­pital municipal, depois pelo dos operários, e foi no hospital do povo que o encontrei, obrigado céus, e não na morgue!

Mei-Li deu um profundo suspiro de alívio como quando tinha visto seu neto bem vivo deitado na cama do hospital.

- Deus queira que lhe tenha servido de lição - acrescentou Mei­-Li, retirando do seu dedo um anel de prata maciça que colocou no meio dos pedaços brancos dos cebolinhos.

Depois enrolou o lenço.

- Porquê o anel? - perguntou Fan-Fan.

- É para saber se há fogo ou vento e frio no teu corpo - res­pondeu Mei-Li com um sorriso terno.

- Como é isso?

- Tu vais ver. Agora fecha os olhos.

Fan-Fan fechou os olhos, docilmente. Mei-Li começou a friccio­nar-lhe a fronte entre os sobrolhos com o lenço, contando até trinta e seis. Depois as têmporas também até trinta e seis.

- Agora deita-te de barriga para baixo, e vou-te massajar a nuca. Depois da nuca, o dorso. Em seguida os braços, o meio da palma das mãos e as pernas. Quando Mei-Li atacou a planta dos pés de Fan­-Fan com a mesma energia, um riso irreprimível apoderou-se da menina.

- Oh! não, não te mexas como um diabo - disse Mei-Li, agar­rando fortemente os pés da sua neta. Um, dois, três, quatro,... trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco, trinta e seis, já está, acabou.

Fan-Fan esticou-se deliciosamente. Todo o seu corpo estava rela­xado. As dores de cabeça e a terrível dor nas articulações tinham desaparecido como por milagre. Fan-Fan via a sua avó desenrolar o lenço nos joelhos, remexer com um dedo um montinho de coisas esbranquiçadas sem forma. De repente:

- Está aqui! - gritou Mei-Li triunfalmente.

Ela acenou, diante do nariz da sua neta, o anel de prata que segu­rava entre o polegar e o indicador:

- Lembras-te da sua cor antes da massagem? - perguntou Mei­-Li com ênfase. - Olha como ele está agora!

Ela colocou o anel na palma da mão de Fan-Fan. - Mas... tornou-se azul!

- Sim, o anel tornou-se azul, minha pequena, é devido ao vento e ao frio que eu fiz sair do teu corpo através da massagem.

- Vento e frio no meu corpo? - Sim, é isso, eu adivinhei...

Fan-Fan fixou o anel. É estranho, é estranho, mas o anel de prata está verdadeiramente azul. Um belo azul. O vento e o frio visíveis. - Isto surpreende-te, hem? - disse Mei-Li com um pequeno sor­riso de gozo. - Ele também poderia passar para o vermelho... - O quê - disse Fan-Fan, cada vez mais surpreendida.

- Sim, o anel tornar-se-ia vermelho se tu tivesses fogo no interior. Mei-Li voltou a pegar no anel de prata, esfregou-o cuidadosamente com um pano da sua túnica e voltou a colocá-lo no dedo.

- Será necessário esfregá-lo com cinza para que recupere a sua cor normal. Queres comer qualquer coisa agora? Uma tigela de sopa de arroz?

- Sim, avó - disse Fan-Fan - tenho fome.

Jing-Ming só permaneceu três dias. E esses três dias foram os dias mais felizes da minha vida.

A partir do início do mês de Abril de 1968, os conflitos entre as diversas facções de guardas vermelhos tornavam-se cada vez mais frequentes e violentos, tendo os «combatentes revolucionários» tro­cado as suas armas primitivas, como punhos, pés e paus, por armas de fogo, terrivelmente mais eficazes. Anteontem, o Velho Zhou ficou sem metade de uma orelha, arrancada por uma bala perdida, quando ia buscar uma garrafa de molho de soja à mercearia. Ontem, uma gra­nada de morteiro atravessou o telhado das duas assoalhadas da Pequena Ma e explodiu na cama grande que ela partilha com o marido e o seu bebé de dois meses e meio, mas, felizmente, a família acabara de sair. Nessa manhã, Fan-Fan juntou à entrada da porta um jornal editado pelo organização «A Tempestade Vermelha»; catorze fotografias a preto e branco, acompanhadas de descrições e de comentários por­menorizados, mostram catorze cadáveres mutilados banhados num mar de sangue. Atingia-se o cúmulo do horror. Mei-Li queimou o jor­nal. Nessa mesma noite, a sua filha e ela decidiram fugir da cidade com as crianças.

No dia seguinte de manhã, muito cedo, Bain-Lan partiu de bici­cleta. Ela só regressará ao cair da noite, acompanhada por dois homens. - São o tio Wei e o tio Zhong - apresentou Bai-Lan ao trans­por  a soleira da porta.

O tio Wei era um primo afastado de Hong. Com vinte e oito anos, de ombros largos e de grande estatura, dois pequenos olhos trian­gulares muito vivos por debaixo de duas sobrancelhas azeviches, era professor de Matemática na escola preparatória de Guang-Ning, há mais de três anos, depois dos quatro anos de estudos universi­tários.

O seu colega e melhor amigo, o tio Zhong, era professor de Língua Chinesa, antigo aluno da Universidade de Pequim. Dez anos mais velho que Wei, tinha trabalhado durante dez anos numa editora em Pequim antes de se instalar em Guang-Ning. Magro e pequeno, com o alto do crânio desguarnecido, tinha um rosto pálido de traços finos, cabelos compridos, sempre sorridente, e um par de óculos de vidro espesso.

Era a primeira vez que voltavam a casa desde a partida de Hong para o campo de trabalhos forçados. Mei-Li tinha preparado massas de arroz e rebentos de soja salteados em óleo de sementes de camé­lias, temperados com molho picante.

- Amanhã partiremos com o tio Wei e o tio Zhong para a Escola Preparatória de Guan-Ning - anunciou Bai-Lan quando toda a gente já estava à mesa.

- Vamos permanecer lá muito tempo? - perguntou Ming-Ming. - Não fales com a boca cheia, Ming-Ming - murmurou Bai­-Lan.

- Ainda não sabemos, meu rapaz - disse Mei-Li - talvez um mês ou dois, talvez mais. Regressaremos quando isto aqui estiver um pouco mais calmo.

- Não há guardas vermelhos na vossa escola? - perguntou ainda Ming-Ming.

Felizmente, não - respondeu o tio Wei. - Todos os nossos alunos são crianças enviadas do estrangeiro pelos seus pais «chine­ses do ultramar» para preparar a sua entrada numa universidade chi nesa. A seguir ao eclodir da Revolução Cultural, os seus filhos, uns após outros, abandonaram todos o país.

- E a escola tornou-se uma ilha de verdura no meio de um oceano vermelho - continuou o tio Zhong, insistindo no contraste entre a «ilha verde» e a «ilha vermelha» e abanando a cabeça len­tamente como se ele tivesse recitado um verso célebre de um poema Tang.

O tio Wei sorriu.

- Sim, lá está tudo calmo.

- A vossa escola fica longe? - perguntou Fan-Fan com um fio­zinho de voz.

- Não, a uma dúzia de quilómetros da cidade - respondeu o tio Wei.

- Mas já fica em pleno campo - acrescentou o tio Zhong. - Conhecem o campo? Não? Então, lá, não se irão aborrecer.

- Não estamos tão seguros disso - disse Ming-Ming.

Bai-Lan lançou um olhar de reprovação que Ming-Ming fingiu não notar.

- Vão ver - disse o professor de Chinês com um ar conciliador. - Há carros para chegar lá? - perguntou ainda Ming-Ming. - Antes sim, duas vezes por dia, agora já não.

- Então, como...

- Iremos de bicicleta - interrompeu Bai-Lan já enervada.

Dois dias depois, a 14 de Maio de 1968, ao alvorecer, o pequeno grupo fez-se à estrada. À cabeça, o tio Zhong rodava na bicicleta preta, marca Eterno, mas já toda enferrujada, com um cantil cheio de água quente pendurado do guiador, e Mei-Li empoleirada atrás no porta­-bagagens, com um pequeno saco a tiracolo, que continha o farnel. As bicicletas da marca Eterno fabricadas em Xangai gozavam de uma reputação nacional pela sua resistência extraordinária. No meio, Bai­-Lan pedalava numa velha bicicleta, da marca Pombo Voador, estilo feminino, isto é, sem a barra vertical no quadro, também de cor preta, fabricada em Xangai, com dois enormes sacos de viagem de pano grosso, cheios a rebentar, no porta-bagagens, tendo em cima uma pequena mala em couro vermelho-carregado, coberta de pequenas rugas. O tio Wei rodava na parte de trás, na bicicleta comprada de ocasião, quinze dias antes, quase nova, marca Cinco Carneiros, fabrico cantonês, estilo «peso pesado», cujo quadro era reforçado por uma barra vertical dupla. Fan-Fan estava muito inconfortável, instalada na parte da frente, na barra vertical superior do quadro, de mãos agarra­das ao guiador, enquanto Ming-Ming estava montado a cavalo no porta-bagagens atrás, agarrado à cintura do professor de Matemática.

As ruas estavam desertas. A impressão de, sono profundo parecia tanto mais irreal quanto, desde o nascer do Sol, a cidade acordaria no seu pesadelo quotidiano, o furacão do ódio ressuscitaria e desen­cadearia as chamas da guerra civil, todos os dias mais mortíferas.

À saída da cidade, as três bicicletas avançaram por uma estrada alcatroada com cinco metros de largura, ladeada por uma fila dupla de mangueiras jovens. Por detrás das suas folhas reluzentes do orva­lho, estendiam-se arrozais até ao horizonte, onde plantas verdes ondulavam sob o efeito da brisa matinal. Nesta paisagem aprazível tinha-se a impressão de estar a milhares de léguas do sangue e da morte.

Os refugiados pararam a meio caminho, junto à entrada da Universidade de*Guang-Ning, para desentorpecer as pernas e ganhar alento. O sol começava a aquecer. Eles sentaram-se à sombra de uma árvore frondosa, cujas flores douradas riam entre as pequenas flores ovais de um verde fresco. Bebiam, cada um por sua vez, do mesmo cantil, mordiam com muito apetite nos bolos redondos preparados por Mei-Li com massa de arroz e açúcar de cana amarelo, delicada­mente perfumados pela folha da bananeira que os protegia.

- Que árvore é esta de flores amarelas?- perguntou Fan-Fan ao tio Wei sentado a seu lado.

- Não sei, não conheço nada de Botânica - respondeu o tio Wei. - Eh! Velho Zhong, sabes qual é o nome desta árvore?

- Chama-se «árvore da dor de amor». - Lindo nome! - exclamou o tio Wei.

- Sabem por que se chama assim? - perguntou o professor de Chinês.

Mei-Li e Bai-Lan trocaram um sorriso. O tio Wei e as crianças abanaram a cabeça.

- Conhecem a História da Poesia dos Tempos Antigos aos Tempos Modernos? Não? Então, segundo este livro, há muito, muito tempo, um soldado morreu na guerra, longe do seu país natal. A sua jovem mulher chorou-o todos os dias junto a uma árvore de ervilhas ver­melhas até que morreu de dor e de esgotamento.

Em recordação do amor da jovem mulher pelo seu marido, a árvore foi denominada «árvore da dor de amor». E as ervilhas vermelhas que a árvore dá receberam, elas também, o nome de «ervilhas da dor de amor». Mais tarde, durante a Dinastia Tang, um poeta chamado Wang-Wei escreveu um poema, A Dor de Amor.

- Ah! eu conheço esse poema - interrompeu-o Ming-Ming. - Também o conheço - disse rapidamente Fan-Fan - a avó ensinou-no-lo.

- Duvido, Fan-Fan - retorquiu o tio Zhong, piscando o olho a Mei-Li. - Foi graças a este poema que a árvore das ervilhas ver­melhas'se tornou o símbolo da dor do amor na nossa literatura e...

Nesse instante, três explosões de forte potência fizeram estremecer o solo debaixo dos seus pés. Um fumo preto surgiu de uma janela do edifício da química que se vislumbrava por detrás de uma sebe de hibíscos.

O pequeno grupo precipitou-se sobre as bicicletas e escapou-se a toda a velocidade.

Chegaram à escola preparatória por volta das onze horas da manhã. Quando, com o rosto a escorrer suor e as pernas entorpecidas, che­garam diante da escadaria de um longo edifício de um andar em tijolo vermelho, perdido nas ervas altas e nos arbustos, uma menina de uma dezena de anos correu ao seu encontro, com as suas duas tranças a saltar, alegremente, sobre os seus ombros. Vestia camiseta branca e uma saia de flores multicolores.

Usar saia, e de flores multicolores! Fan-Fan e Ming-Ming fica­ram de olhos arregalados. Era uma demonstração de audácia, quase de insolência, usar uma saia destas, enquanto toda a gente, homens e mulheres, se vestiam de azul, de cinzento ou de preto e a sobre­casaca curta do uniforme militar estava na moda para a juventude... Decididamente, tínhamos desembarcado num outro planeta... - Papá, papá - gritou a menina da saia florida.

- Esta é a minha filha, Bi-Zhu, a minha pérola esmeralda - apre­sentou o tio Zhong, com um grande sorriso. - Esta é a avó Mei-Li, a tia Bai-Lan, que tu viste ontem, Ming-Ming e Fan-Fan.

- Bom dia, avó Mei-Li, bom dia, tia Bai-Lan - saudou com delicadeza.

Depois foi dar as mãos a Ming-Ming e a Fan-Fan.

- Venham comigo - disse-lhes como se fossem amigos de longa data.

As crianças penetraram num longo corredor sombrio e de paredes nuas, iluminado pelas portas abertas das salas laterais

- Há dez apartamentos de cada lado - explicou Bi-Zhu - todos habitados por professores da Escola, mas a maioria está vazia, pois muitos professores partiram com as suas famílias logo no início da Revolução Cultural.

Ela parou diante de uma porta aberta.

- Este é o nosso alojamento. O papá e eu habitamos aqui desde que chegámos a Guang-Ning, há quatro anos.

Uma peça rectangular com cerca de quatro por cinco metros, so­briamente mobilada, servia de quarto, de sala de jantar, de sala de estudo e de sala de convívio; no fundo, entre duas camas simples sob mosquiteiros brancos, ambos apoiados na parede, uma secretária de duas gavetas e um cadeirão de vime diante da janela; à esquerda da porta, erguia-se uma biblioteca até ao tecto, dando a impressão que ia desmoronar-se de um momento para o outro, ao simples roçar de um rato ou de uma saia; à direita um pequeno aparador baixo, lade­ado de um lavatório em madeira com um espelho rectangular pen­durado por cima da bacia de ferro pintado, e de uma pequena mesa redonda desdobrável com duas cadeiras baixas de bambu.

A peça só tinha como decoração um vaso de argila esculpido, colo­cado. no parapeito da janela, uma caligrafia a tinta preta de um poema Tang na parede junto à biblioteca.

- Oh! tantos livros! - Fan-Fan, ficou maravilhada, lambendo os lábios secos, como alguém que estivesse privado de água há dias e que encontrasse uma chávena de chá perfumado de jasmim.

- Estes, nesta prateleira, em baixo, são meus - disse-lhe Bi-Zhu com uma ponta de orgulho - e o resto pertence ao papá. Tu gostas de ler?

- Sim, muito.

- Então, eu posso emprestar-te os meus, se quiseres, mas estes do pai, tens de lhe pedir.

- A tua mãe não vive convosco? - perguntou Ming-Ming, brus­camente.

Os olhos claros de Bi-Zhu entristeceram-se.

- Venham - disse ela sem responder à questão - eu vou mos­trar-vos o vosso quarto. - Antes de subir pela escada no meio do edifício, apontou com o dedo para o fundo do corredor: - Acolá, é a cozinha e os balneários comuns.- Depois subiu os primeiros de­graus. - O tio Wei habita aqui - disse ela parando diante da segunda porta à esquerda no cimo da escada. - E este é o vosso alojamento - acrescentou, empurrando a porta em frente, cuja fechadura tinha sido desmontada.

A peça tinha as mesmas dimensões que a de que dispunham Bi­-Zhu e o seu pai; uma luz brilhante penetrava na sala pela janela sem cortina, aberta na parede do fundo, uma cama grande e uma cama simples encostadas contra a parede da direita e contra a parede da esquerda, uma grande mesa rectangular, uma cadeira de madeira, um lavatório, dois bancos redondos de três pés.

- Era o alojamento do professor de Pintura Chinesa, Pequeno Zhang. Está vazio desde a sua partida, no ano passado. Ontem, quando soubemos que vinham passar algum tempo na escola, o tio Wei e o papá forçaram a fechadura para dar uma varredura e pôr estes móveis. - Não tem casa de banho? - perguntou Ming-Ming.

- Ah! esqueci-me - respondeu Bi-Zhu sem o olhar. - Não é no prédio. Venham, eu vou mostrar-vos.

As crianças cruzaram-se na escada com Mei-Li, Bai-Lan e os dois professores, que levavam as bagagens.

- Onde vão, meus meninos? - perguntou Mei-Li.

- Eu vou mostrar-lhes onde são as casas de banho, avó Mei-Li - respondeu Bi-Zhu sem parar.

- Não se preocupe, avó - disse o tio Zhong, sorrindo - Bi-Zhu conhece os cantos à escola como o seu bolso.

- A sua filha é muito linda - disse Mei-Li. - Que idade tem? - Onze anos.

- Para a mesa! - anunciou Mei-Li, colocando uma grande tigela no meio da mesa rectangular.

- O que é que se come hoje? - perguntou o tio Wei, ao entrar com duas cadeiras de madeira, seguido pelo tio Zhong de banco aos ombros.

- Arroz salteado com ovos e cebolinhos, dragões-verdes-atra­vessando-o-mar - respondeu Mei-Li que começava a distribuir o arroz pelas sete tigelas enquanto Bai-Lan colocava um par de pauzi­nhos de bambu diante de cada uma.

- O que é «dragões-verdes-atravessando-o-mar», avó Mei-Li - perguntou Bi-Zhu, sentando-se na beira da cama junto de Fan-Fan. - É simplesmente a ipomeia cozida na água - disse Bai-Lan sorrindo. - Chama-se também «legume de haste oca».

- Olha para estas hastes verdes que flutuam - acrescentou Mei­-Li, colocando a panela do arroz sobre uma folha de jornal estendida no banco - acaso não se assemelham um pouco aos dragões verdes banhados no mar?

- Eu acho que isto assemelha-se mais a serpentes - ironizou Ming-Ming, sentando-se no banco diante de Bi-Zhu, entre os dois tios.

- Mas as serpentes são pequenos dragões, tu não o sabias? - disse o tio Zhong. Deixou a expressão «pequenos dragões» o tempo de fazer o seu efeito e depois acrescentou: - É uma tradição culi nária chinesa que não só presta muita atenção à cor, à forma, ao odor e ao gosto de um prato, como gosta de lhe dar um nome poético. Pode chamar-se, por exemplo, «pérolas» aos ovos de pássaro, «pés de fénix» às patas de frango, «flor de prata» aos miolos de porco...

- Mas o que é aborrecido é, às vezes, ir comer a um restaurante - replicou o tio Wei, engolindo um pouco de arroz - e ser-se atraído por um nome extraordinariamente bonito e deparar-se-lhe um prato totalmente banal.

- Apesar de tudo não é desagradável encontrar-se com um pouco de poesia na realidade quotidiana, pois não? - defendeu-se o pro­fessor de Língua Chinesa.

- Eu prefiro chamar gato a um gato - retorquiu o professor de Língua Chinesa, com uma lentidão exagerada enquanto levava um dragão-verde à boca.

Toda a gente riu.

- Escutai, senhores professores - disse Mei-Li no canto da mesa - tenho uma proposta a fazer. A partir de hoje, se estiverem de acordo, comeremos em conjunto. Preparar uma refeição para sete não dá muito mais trabalho que preparar uma refeição para quatro.

- E será bom para as economias de toda a gente - acrescentou Bai-Lan, sentada diante de Mei-Li.

- Eu, eu sou o primeiro a aplaudir a proposta - declarou o tio Zhong, com um sorriso rasgado.

- Não sou eu que me oponho - disse o tio Wei. Eu detesto fazer comida.

- Mas há ainda uma outra coisa... aborrece-me um pouco pedir­-vos isso... - recomeçou Mei-Li, levantando-se para dar a volta à mesa com a panela do arroz. - Pois então poderíeis ocupar-vos dos estudos das crianças? Há já quase um ano que a escola está fecha­da... - disse Mei-Li com uma voz titubeante.

- Não há problema - respondeu o professor de Matemática, enchendo a sua tigela.

- Com muito gosto, avó - acrescentou o professor de Chinês. - Sabe, é uma sorte ainda ter alunos nesta altura.... Meninos o que é que vocês dizem?

Os seus olhos sorridentes interrogaram um a um Fan-Fan, Bi-Zhu e Ming-Ming, por detrás dos vidros espessos dos seus óculos.

As meninas dirigiram-lhe um pequeno sorriso de consentimento. O rapaz franziu o sobrolho.

- Para que serve fazer estudos agora. Quanto mais conhecimento se tem maior é o risco que se corre de se ser qualificado de reaccionário...

- Ming-Ming! - disse Bai-Lan num tom de voz murmurante. - Mas faz abrir os olhos para a realidade, mamã - replicou Ming-Ming.

- Não estou de acordo contigo, Ming-Ming - disse lentamente o tio Zhong. - Pergunta à tua avó, ela ouviu, viu e viveu muito mais coisas que nós. Pergunta-lhe se a Revolução Cultural poderá durar indefinidamente.

Todos os olhares se viraram para Mei-Li.

- As pessoas têm ou não necessidade de comer? - perguntou Mei-Li, pondo a tigela de arroz vazia na mesa e os pauzinhos na tigela. - Sim? Então. Para ter com que encher o estômago, o que é que têm de fazer? A Revolução Cultural? Penso que não. Mesmo as pessoas mais «revolucionárias» não poderão fazer a revolução com o estômago vazio. Quando se aperceberem de que já não há arroz nas tigelas as coisas mudarão.

- E tu, que idade tens? - perguntou Bi-Zhu por cima da parede de meia altura que separava os dois compartimentos dos WC.

- Quase onze - disse Fan-Fan. - E o teu irmão?

- Catorze.

- Ah! bom! Eu pensei que eras a mais velha...

- Muita gente também pensa assim. Isso incomoda-o muito. Ele não gosta que o tratem por irmão mais velho diante dos estranhos, porque não suporta o olhar que lançam .sobre ele. Então, chamo-o pelo seu nome quando a avó e a mamã não estão lá.

- O que é que o teu pai faz? - Porquê?

- Bom, suponho que esteja ocupado, porque não está convosco. Fez-se silêncio. E depois:

- Ah!... Bi-Zhu - disse Fan-Fan, com voz hesitante - se eu te disser prometes que não dizes nada a ninguém?

- Mas eu nunca escondi nada ao papá... enfim... sim, de acordo, eu não lhe direi nada.

- O meu pai é de «direita»... - De «direita»? O que é isso?

- É alguém que teve coragem de dizer a verdade em 1957, durante o movimento «Que cem flores desabrochem, que cem escolas rivali­zem», enfim, segundo o que nos disse a avó. Ele foi condenado no ano em que nasci a trabalhos forçados num campo muito longe...

- Mas como? Condenado por ter dito a verdade? Não compreendo nada...

- Eu também não. É um homem muito bom, segundo a avó nos diz muitas vezes. E a avó nunca mente.

Houve um novo momento de silêncio.

- Eu também, eu tenho um segredo... - disse Bi-Zhu, com uma voz apagada. - Se tu não disseres...

- Eu não direi nada a ninguém - prometeu-lhe Fan-Fan. - Juro-te.

- Olha, foi há quatro anos, em 1964, durante o movimento das Quatro Purificações. O papá foi criticado em público e depois expulso do Partido não sei porquê. A mamã divorciou-se dele. Em seguida, viemos para Guang-Ning, o papá e eu.

- Por que não vives com a tua mãe?

- Ela voltou a casar-se, pouco tempo depois, e o seu novo marido não gostava de mim.

As meninas calaram-se, de repente mais próximas.

Enquanto caminhavam em direcção ao edifício dos alojamentos, no crepúsculo que se adensava, Fan-Fan não parava de olhar para trás. - O que há? - perguntou Bi-Zhu.

- Eu sinto os fantasmas... - murmurou Fan-Fan acelerando o passo.

Chegada perto do átrio, Fan-Fan respirou fundo. - A erva cheira bem - disse ela.

- Amanhã vou mostrar-te o jardim do papá.

- Jardim? Há um jardim? Isto aqui é tão selvagem.

- Vais ver. Desde que os alunos deixaram a escola, o papá já não tem de dar aulas, nem cadernos para corrigir. Então ele arroteou uma parcela de terreno no meio das ervas bravas abundantes. O tio Wei ajudou-o. Plantaram toda a espécie de legumes e também flores, é muito bonito. Os cebolinhos no arroz salteado que comemos ao jan­tar, lembras-te? Eram do jardim.

- Qual jardim? - perguntou uma silhueta que surgiu da sombra esverdeada junto à escadaria exterior.

- Mas o que é que estás aqui a fazer, Ming-Ming? - disse Fan­-Fan. - Meteste-nos medo!

- Chiu! Escuto o silêncio do campo - respondeu ele. - Escutar o silêncio?

- Sim, é isso. O silêncio daqui é vivo. É evidente que não há altifalantes, mas está cheio de pequenos barulhos misteriosos... O que é aquilo lá em baixo? Quero dizer estes pequenos pontos luminosos que esvoaçam ali...

- São pirilampos. Aqui há muitos.

- Podem-se apanhar facilmente? - perguntou Fan-Fan.

- Sim, bastante - disse Bi-Zhu - mas não se deve ir sem uma cana de bambu.

- Porquê?

- Porque há muitas serpentes na erva. Há, por exemplo, aquela a que chamam «cinco-passos». Se tu fores mordido por uma «cinco­-passos», tu morres antes de dares o quinto passo. Há também a dos «anéis-de-ouro» e a dos «anéis-de-prata» porque têm círculos ama­relos ou círculos brancos no seu corpo. Há ainda as «folhas-de-bambu­-verde» porque são finas e verdes como uma folha de bambu...

- Eu creio que vi uma dessas na mercearia - disse Ming-Ming - macerada numa enorme garrafa de álcool de arroz branco. A vende­deira disse que era muito fortificante que bastaria beber um pequeno copo todos os dias para viver mais de cem anos...

- Mesmo durante o dia - continuou Bi-Zhu - é melhor bater a erva com uma cana de bambu antes de entrar nela. «Meter medo às serpentes batendo a erva», como diz o provérbio...

- Tenho horror às serpentes - murmurou Fan-Fan, apertando com mais força a mão de Bi-Zhu. - Vou entrar.

- Eu entro contigo - disse Bi-Zhu - vou procurar uma cana de bambu.

Cinco minutos mais tarde, Bi-Zhu voltou a aparecer com uma lâm­pada de bolso, uma cana de bambu, uma rede e uma pequena garrafa de vidro.

- Toma isso, é para meter os pirilampos - disse ela, estendendo a garrafa ao rapaz.

Ele rejeitou.

- Dá-me a lâmpada e a cana - disse ele - eu não tenho medo das serpentes.

Na realidade, ele tinha muito medo, mas mostrar que pudesse ter medo do que quer que fosse, diante de uma menina, era para ele ini­maginável. Para mais diante de Bi-Zhu, que tinha um ar frágil. Não era ele que deveria desempenhar o papel de protector? Deste modo, batendo, com furor, a erva que chegava ao seu estômago, como se quisesse varrer do seu coração o seu medo vergonhoso, e mantendo alta a lâmpada de bolso, cuja luz fraca mal conseguia furar a espes­sura da noite, caminhava rapidamente na frente, tropeçando, de vez em quando, contra uma raiz mais saliente, um bocado de pedra ou um relevo de terreno. Bi-Zhu seguia-o, repetindo em voz baixa: «Devagar, Ming-Ming, devagar, tu vais acordar todos estes pequenos animais que dormem por aí...»

A abóbada celeste cobria-se de estrelas. O silêncio da noite pare­cia atento a cada batida da cana e a cada rangido debaixo dos seus passos. Quanto mais se afastavam do caminho empedrado para penetrarem na erva alta, mais os pirilampos esvoaçavam à volta deles como meteoros minúsculos que rasgavam o céu em todos os sentidos.

- Apanhei-o! - gritou Bi-Zhu, agitando a sua presa diante do nariz de Ming-Ming.

O prisioneiro, do tamanho de uma mosca, deslocava-se com dificuldade no fundo da rede, arrastando uma pequena lanterna inter­mitente na parte inferior do ventre. Com mil precauções, Bi-Zhu pegou-lhe entre dois dedos e fê-lo deslizar para a garrafa.

Em pouco tempo, a garrafa encheu-se de faíscas. De repente, Ming­-Ming parou.

- O que é isto? - perguntou ele com uma voz inquieta. - O quê? - perguntou Bi-Zhu.

- Estes gritos estranhos...

- Tu não conheces? É o coro campestre que se ouve, muitas vezes, nesta estação do ano...

- O coro campestre?

- Sim. Escuta, estas vozes mais agudas são as das rãs. As gra­ves, que se arrastam um pouco, são as dos sapos. E estes gritos surdos e espaçados, que se repetem como ecos, são os dos sapos-búfalos. - O quê? Sapos-búfalos?

- Ah! chamam-se assim porque eles são enormes. As fêmeas são mais grossas que o punho do tio Wei.

- Há um lago aqui perto?

- Não, mas perto daqui, num nível inferior, há um local que, quando chove muito na Primavera e no Verão, se transforma numa espécie de pântano, no qual as rãs e os sapos encontram facilmente alimento. Chamam-lhe o paraíso das rãs. E, um pouco mais abaixo, há também o palácio das rãs...

- Ah! bom!...

- Era uma piscina. Uma verdadeira com uma prancha de saltos de três metros. Mas, como podes imaginar, desde o início da Revolução Cultural, ninguém mais se ocupou dela.

- Ainda se pode dar umas braçadas?

- Não, a água está demasiado suja. Tem uma cor verde-gordu­renta e está cheia de toda a espécie de pequenos animais. E até vi, uma vez, a cabeça de uma colúber-de-colar.

As crianças descobriram um crescente de lua no cimo de um rama­lhete de árvores. Contemplaram-no em silêncio, perturbados pela sua beleza palpitante e misteriosa. As rãs e os sapos tinham interrompido o seu canto como se também eles estivessem encantados por esta apa­rição prodigiosa...

- Entramos? - propôs, finalmente, Bi-Zhu, em voz baixa. - Espera, vamos apanhar aquele.

Ming-Ming deu a lâmpada e a cana a Bi-Zhu, deu dois passos em frente, mas no momento em que fechava as suas mãos à volta do ponto luminoso, que dançava diante dos seus olhos, caiu na erva segu­rando a perna. Sentiu uma dor súbita subir-lhe pela barriga da perna e o seu calcanhar endurecer. Bi-Zhu aproximou-se e focou a lâmpada para o pé de Ming-Ming. Ela viu duas pequenas marcas, como bura­cos deixados por picadas de agulhas grossas por baixo do artelho, que, instantaneamente, ficou vermelho e inchou. Bi-Zhu ficou pálida. Um arrepio percorreu-a dos pés à cabeça. A rede, a garrafa e a cana de bambu caíram das suas mãos.

- Ai! Ai!... - o rapaz gemia.

As mãos trémulas da menina procuraram um lenço nos seus bol­sos. Pô-lo na boca e com uma dentada rasgou-o em dois bocados, que atou. Em seguida, amarrou a perna de Ming-Ming por baixo do joelho e puxou as duas pontas do lenço com todas as suas forças para travar a subida do veneno. Depois, pegou na cana de bambu e pas­sou um braço por baixo dos sovaco de Ming-Ming.

- Ai! O que é isto?- perguntou ele.

- Anda, vamos, temos de entrar depressa - disse ela num tom de voz claro.

Logo que avistaram o edifício n.° 10, Bi-Zhu gritou: - Papá! Papá!

O tio Zhong desceu como um furacão, seguido por Bai-Lan, Mei­-Li e o tio Wei, que ainda tinha algumas cartas na mão.

- O que é que aconteceu? O que é que aconteceu? ... Toda a gente se debruçou sobre o pé de Ming-Ming. - Serpente! - murmurou o tio Wei entre dentes.

- Oh, não! - explodiu Mei-Li, pondo-se de joelhos diante do rapaz.

Pegou no pé inchado de Ming-Ming, colou a sua boca à morde­dura e começou a sugar com todas as suas forças. Depois virou a cabeça e cuspiu sangue preto no pó, voltou a colar a sua boca ao pé de Ming-Ming, sugou mais e cuspiu de novo... até que o sangue da ferida se tornasse vermelho fresco.

Ela ergueu-se e, retirando a lâmpada das mãos de Bi-Zhu, disse: - Depressa, transportai-o para o quarto, preparai uma bacia de água, eu volto já!

Sem lhes dar tempo para porem questões, lançou-se na noite, cor­rendo tão depressa quanto as suas velhas pernas lho permitiam, con­tornando o edifício, descendo o caminho estreito ao longo dos WC, atravessando o jardim encantador que o tio Zhong lhe fizera visitar durante a tarde; parou, a respiração curta, à beira de um fosso cheio de água da chuva e começou a escavar nervosamente na erva e no mato. Mas céus! Onde estão elas? Deve ser isto. Oh! Onde estão elas, céus! No entanto, eu vi-as esta tarde... Ah! já está, ela encontrara-as, essas pequenas plantas rastejando sobre o solo húmido, as suas folhas verdes tenras em forma de bagos de arroz compridos e as suas minús­culas flores violeta-pálidas de seis pétalas dispostas em semicírculo. Lançou-se sobre as plantas, arrancou um bom punhado delas e per­correu a toda a velocidade o caminho em sentido inverso, com a res­piração curta, até ao quarto do tio Zhong. Ming-Ming estava deitado, emitindo pequenos gemidos, sem parar. Bai-Lan tinha-lhe retirado as sandálias de plástico. Fan-Fan tinha descido, alertada pelos gritos de Bi-Zhu. Os dois professores mantinham-se de pé à sua cabeceira. Bi­-Zhu estava sentada na beira da sua cama. Todos os rostos estavam tensos. A angústia pairava no apartamento como um perfume lúgubre. Mei-Li lavou as plantas na bacia e depois deu metade à sua filha. - Ferve isto numa tigela com água durante dez minutos.

Pôs a outra metade na sua boca, mastigou durante um instante, cuspiu na sua palma da mão uma espécie de puré verde que aplicou cuidadosamente no pé de Ming-Ming à volta da mordedura.

- Dêem-me uma faca que corte bem - ordenou com uma voz que ela queria calma.

O tio Zhong foi procurar na gaveta da sua secretária um canivete que entregou a Mei-Li sem pôr questões.

- É para fazer sair o resto do veneno, querido - disse ela com ternura - vai-te fazer doer um bocadinho.

Ming-Ming desviou os olhos da lâmina brilhante. Mei-Li ajoe­lhou-se, com uma mão pegou no pé do rapaz e, com a outra, traçou com a ponta da lâmina uma cruz profunda sobre a ferida.

- Ai! Oi! Ai!... - berrava Ming-Ming, esticando-se.

O tio Zhong, tirando do seu bolso um lenço aos quadrados, lim­pava a fronte do rapaz enquanto o tio Wei ajudava Mei-Li a manter imóvel o pé do ferido. Mei-Li pressionava com todas as suas forças à volta da cruz. Corria sangue, que caía gota a gota na água da bacia colocada por debaixo e diluía-se lentamente. Bi-Zhu não podia des­viar os olhos dessas manchas escuras, que cresciam sem barulho como flores de nenúfares na superfície de um lago.

Mei-Li continuava a pressionar, apesar das queixas de Ming-Ming. Como Bai-Lan entrava com uma tigela esverdeada, Mei-Li pegou nela e inclinou-se sobre o rosto lívido de Ming-Ming.

- Vá, meu grande - dizia com ternura - é um pouco amargo mas isso neutraliza o veneno que permanece no teu sangue e protege o teu coração.

Ming-Ming franziu o sobrolho, hesitou um momento, pegou na tigela com as duas mãos, bebeu um gole, reprimiu um palavrão fazendo uma careta. E? seu olhar cruzava-se com o de Bi-Zhu. Ele leu nele muitas coisas: medo, arrependimento, encorajamento, súplica e ter­nura também... Lançou a cabeça para trás e, de uma só vez, esva­ziou a tigela.

Graças ao milagre das plantas da avó Mei-Li, Ming-Ming pôde voltar a pôr os pés no solo, três dias após o acidente. O tio Zhong, que nunca tinha levantado um só dedo contra a sua filha, deu-lhe duas palmadas muito fortes.

Pam! Pam! pampampampam! pampam! pampampam!... Esperara com grande impaciência o dia de Ano Novo de 1933. Finalmente, tinha chegado.

Mal tinha entrado na pequena sala bem aquecida da tia Liu e já ela me perguntava:

- Então?

- Então, espero um bebé!

Eu tinha imitado o seu gesto batendo, levemente, duas vezes no meu ventre.

Os seus olhos brilharam. - Tens a certeza?

- Oh! sim, tia Liu.

- Ó Mei-Li! Tu imaginas como eu estou contente!... O seu triplo queixo tremia.

Eu sorri; com um sorriso de felicidade

A tia Liu dirigiu-se para a cozinha e voltou alguns minutos depois com uma tigela enorme cheia de massas de arroz, generosamente regadas com o meu molho favorito.

- Come enquanto está quente... - disse-me, colocando a tigela na mesa. - Estás a ver minha filha, eu tinha razão. Nunca se deve desesperar... Eu sorri de novo; com o mesmo sorriso de felicidade.

- Tu tens sempre razão, minha boa tia Liu! Tão boa como o teu molho...

Ela puxou uma cadeira para junto de mim e encheu uma chávena de chá perfumado de jasmim.

- Quanto mais velho é o gengibre, mais forte - recomeçou ela, vendo-me comer. - Quanto mais idosa é uma pessoa, mais sábia é. Ah, ah, ah,... Desde quando, Mei-Li?

- Creio que depois da nona lua - respondi-lhe eu. - Fiz cál­culos... Sangrei somente um pouco no início da décima lua e depois não voltou. Mas só tive problemas com o coração durante duas semanas...

- Na verdade, tu tens sorte, Mei-Li. Eu, quando estava grávida, ainda me lembro, não pude engolir nada durante pelo menos umas três luas, e as três vezes foi exactamente a mesma coisa.

Ela tinha ar de se perder nas recordações. Depois, como se, subi­tamente, despertasse, perguntou:

- Foi depois da nona lua, disseste-me tu? Então, então foi exac­tamente depois do regresso de Jing-Ming?

Eu fiz sim com a cabeça, com a boca cheia.

- Mas ele não ficou muito tempo em casa? - perguntou ela, com um pequeno sorriso de malícia no canto dos lábios.

- Não, só três dias - disse eu, olhando para uma flor de jasmim que flutuava na chávena.

Só três dias. Foi isso. Mas foi a festa que eu nunca tivera. O primeiro porto que entrevi após doze anos de navegação no mar tormentoso do desespero. A primeira luzinha ao fim de mais de três mil dias e noites de apalpadelas na escuridão de um túnel infinito. Eu não teria hesitado uma milésima de segundo à sua primeira carícia, apesar de saber que eu tinha de a pagar durante o resto da minha vida, compreendes? Depois destes três dias, cada noite que eu fechava os olhos junto do meu marido, era em Jing-Ming que eu pensava, era a sua voz que eu ouvia, era a sua respiração e o seu odor que eu respirava, era a sua cabeça que eu via apoiada no meio peito, eram os seus lábios escaldantes que eu sentia sobre o meu corpo, era contra as suas ancas e as suas pernas molhadas pelo suor que eu tinha as minhas... Oh! céus como era escaldante, como era forte, como era inebriante, o seu amor! O nosso amor!

- Então não perderam o vosso tempo! Ah!, Ah!, Ah!...

A tia Liu deixara cair a cabeça para trás para rir mais à vontade, e eu só via o seu grosso queixo que tremia.

- Ó tia Liu! Mas tu sabes que já perdemos doze anos.

- Mas vejamos, minha filha - disse ela, limpando os seus olhos com a manga - cada coisa no seu tempo. O destino não se força. O que tiver de acontecer acontecerá.

A extremidade do lenço de seda vermelho-fogo, que a mão de Jing-Ming tinha segurado doze anos antes, voltou a passar diante dos meus olhos como o próprio destino.

- Ainda não é demasiado tarde para começar, Mei-Li - prosse­guiu a tia Liu, colocando, com ternura, a sua mão nos meus joelhos - vocês são ainda tão jovens... Qual é já a vossa idade?

- Ele trinta e três, eu vinte e nove.

- O melhor momento para amar - disse ela com uma voz sonha­dora - e para ser amada..

Levantou a minha tigela, já vazia, e encheu-me uma chávena de chá. Depois pegou no seu cachimbo de um tubo de bambu comprido e começou a enchê-lo com um tabaco amarelo-ouro.

- Foi pena que ele não tivesse podido permanecer mais tempo! - Infelizmente - suspirei eu - mas tinha de regressar ao bata­lhão. Ele só tinha cinco dias de licença, e necessitava de dois dias para fazer a viagem de ida e volta. Mas prometeu que me escrevia, e que voltaria para me levar com ele, que nós nunca mais nos sepa­raríamos...

A tia Liu acendeu o cachimbo e puxou uma longa baforada. - Ah, muito bem! Olha, Mei-Li, achaste-o modificado?

Bebi um pequeno gole.

- Sim, muito. Ele fez um pouco de tudo durante vários anos antes de encontrar um camarada de escola que o fez entrar no exército. No início foi muito duro, mas aprendeá muitas coisas sobre a vida, já não é aquele jovem de vinte anos que fugiu do país, ele sente-se um homem, um verdadeiro, para voltar e levar-me...

A tia Liu fumava, deliciosamente, o seu cachimbo sem falar. Eu bebi mais um gole e continuei:

- No entanto, há uma coisa nele que se mantém igual. É o seu olhar...

Sim,.esse olhar que penetrara no mais profundo da minha alma como um apelo...

- Então, o seu coração não mudou... - interrompeu a tia num tom grave. - Sabes que o olhar que um homem lança a uma mulher não pode permanecer o mesmo se o seu coração mudou? É que ele amou-te há doze anos e ainda te ama...

- Foi o que ele me disse na noite do seu regresso. Ele disse-me que me amou _no instante em que ele me viu ao retirar o tecido ver­melho, que ele só me amava a mim, que ele nunca tinha amado como ele me amava, e que me amaria assim até ao fim dos seus dias... - Então, eu compreendo... sim, eu compreendo... - repetiu a tia Liu, voltando a carregar o seu cachimbo.

- Mas compreende o quê, tia Liu?

Ela voltou a dar mais uma boa fumadela no seu cachimbo e a lan­çar uma grande baforada de fumo branco, que formou um círculo por cima da sua cabeça. Depois, disse lentamente:

- Então, eu compreendo porque abandonou o país... isso sur­preendeu toda a gente, se bem me lembro... tu também não sabias porquê?

- Não. Mas agora sim. Ele disse-me que não quisera casar com a menina Deng, mas que se ele rejeitasse o casamento publicamente... - ... os teus sogros teriam sido obrigados a fechar a farmácia, evidentemente. A família Deng era demasiado poderosa.

- E também por causa do seu amor por mim...

- Sim, sobretudo porque ele te amava, mas como tu eras casada com o seu irmão, ele tinha de pensar que o seu amor por ti não lhe dava qualquer esperança, e ele não o conseguiu suportar.

- Sim, foi o que ele me explicou. Ele não tinha outra escolha. - No entanto ele não falou disso a ninguém...

- Não, segundo ele, isso tornaria as coisas mais simples, assim a família Deng não poderia atacar ninguém. Tanto mais que ele con­siderava que, se a sua mãe estivesse ao corrente, ela ter-se-ia arqueado

sobre o umbral da porta, gritando, com um cutelo no pescoço: «Tu terás de passar sobre o meu corpo para transpor o limiar desta casa!» Tal era a convicção que a sua mãe tinha de que a menina Deng era o melhor partido para o seu filho.

- Isso não me surpreende. Mas, mais tarde, ele também não escre­veu para explicar...

- Não, ele disse-me que lutara como um louco para me esque­cer...

- Mas que sofrimento o dos teus sogros!...- suspirou a tia Liu, acrescentando água quente na minha chávena. - Eu ouvi dizer que eles tiveram de pagar uma grande soma aos pais da menina Deng? - Sim, quinhentas moedas em prata.

- Céus! - gritou ela. - Nem eu consigo ganhar tanto em cinco anos com o meu restaurante.

-- É verdade, os meus sogros fizeram os maiores sacrifícios. - Então, o que é que eles disseram quando voltaram a ver o seu filho?

- A minha sogra? Tau! Tau! Um estrondoso par de bofetadas. Uma pela sua partida e outra pela sua chegada.

A.tia Liu abanou a cabeça lentamente.

- Quanto ao meu sogro, ele - continuei eu - lembrou sim­plesmente que o filho pródigo que volta vale mais que o outro. - Ah! Ah!... isso não me surpreende, aquele! Ah! Ah! Ah! ... O queixo da tia tremia muito forte. De repente, parou de rir. Franziu o sobrolho como se, de súbito, se lembrasse de qualquer coisa impor­tante.

- E a tua sogra - perguntou ela - ela não se apercebeu do que se passava entre vós?

- Isso não sei... Às vezes tenho a impressão de que ela me olha de um modo estranho, mas não tenho a certeza. Ela não me pergun­tou nada...

- Tem cuidado com ela, Mei-Li.

Com este aviso, a tia Liu colocou o seu cachimbo na mesa e foi até ao fundo da sala para retirar, por detrás da estátua de Buda, o seu cofrezinho lacado vermelho. Ela abriu-o e retirou um amuleto em jade esculpido que tinha numa das faces o carácter «longa vida» e na outra o carácter «felicidade».

- Olha, Mei-Li. Isto é para o teu bebé - disse-me a tia Liu.

Mais tarde, quando regressava da tia Liu, ouvi vozes no meu quarto. O que me intrigou tanto mais quanto os meus sogros tinham apro­veitado o encerramento da loja para ir ver uns amigos. E eu tinha-os visto sair cheios de embrulhos nos braços. Então, quem poderia ser? A menos que tivessem entrado mais cedo que o habitual... Aproximei­-me suavemente do quarto e esmaguei a minha orelha contra o papel da janela.

- O que dizes mamã? - perguntava a voz surpreendida de Meng­-Yu.

- O que eu digo? A tua mulher está grávida! - recomeçou a voz terrível da minha sogra.

Silêncio. Sentia-me sufocada por detrás da janela como se tivesse toneladas de chumbo na garganta.

- E então, esta é uma boa prenda para o Ano Novo, não é? O meu marido tinha, finalmente, solto estas palavras num tom fal­samente alegre. Eu não sabia se ele zombava ou não.

- Sim, uma muito boa pren... - repetiu a voz tímida do meu sogro.

A minha sogra interrompeu-o brutalmente. - Sabes quem é o pai da criança?

A sua voz era sepulcral. O meu coração apertava-se cada vez mais. - Eu sei - disse Meng-Yu com uma voz calma.

- Então, quem é?

A minha sogra tinha rangido os dentes. Eu estava quase a desmaiar. - Eu - disse Meng-Yu com a sua voz sempre tão calma.

Eu não queria acreditar no que ouvia.

- Meu filho - disse a minha sogra com uma voz severa - eu não gosto desse género de brincadeiras.

- Mas eu não estou a brincar, mamã - protestou ele - Mei-Li traz consigo o nosso bebé.

- Uma vez que ele o diz... - murmurou a voz tímida do meu sogro.

- Bom, bom - a voz da minha sogra tornara-se ligeiramente suave - isso parece-me, contudo, um pouco estranho...

- Ó mamã - gemeu Meng-Yu - com podes tu pensar que eu não sou capaz...

- Não, não - interrompeu ela com paciência - não é isso que eu quero dizer. Vejamos... finalmente.... bem, não falemos mais disso.

Nessa mesma noite, após a sessão habitual de massagem, quando eu colocava uma grande almofada por baixo das costas de Meng-Yu e ia buscar à pequena biblioteca de bambu o livro que não tínhamos terminado na véspera, ele disse-me:

- Esta noite não há leitura, Mei-Li, quero falar contigo. Fez-me sinal para me sentar na beira da cama ao seu lado. Eu sen­tei-me. Pegou as minhas mãos com as suas. As suas mãos tremiam levemente.

- A mãe disse-me que esperas um bebé - disse ele.

- Sim - disse eu com a coragem daquele que se decide a arris­car tudo por tudo.

- O pai do bebé ama-te?

As suas mãos tremiam com mais força. Eu hesitei um momento. Por que não disse ele o nome do pai? Ele não o sabe ou não o quer dizer? Devo explicar-lhe? Mas eu acabei por lhe responder simples­mente:

- Sim.

- Ele tem certamente a intenção de casar contigo, suponho? - Sim. Foi o que ele me disse.

- Tu também o amas?

As suas mãos começaram a tremer com violência. Os seus traços fisionómicos contraíram-se, dolorosamente. As suas meninas-dos-olhos ternas pareciam sair-lhe das órbitas. O «sim, amo-o» que tinha che­gado à ponta da minha língua, tornou-se, de repente, tão pesado, tão difícil de sair...

- Mas... - balbuciava eu.

- Diz-me a verdade, Mei-Li, só quero a verdade. Então, eu disse-lha:

- Sim, eu amo-o. Mas...

- Não, Mei-Li, por favor, nada de explicações, ou de descul­pas - disse ele, largando as minhas mãos. - Podes tirar os meus quatro tesouros de trabalho?

Eu não sabia por que é que ele os pedia neste instante. Queria ele escrever uma carta de repúdio? Depois de tudo o que tinha declarado aos seus pais? E que faria eu se ele me repudiasse? Ir-me embora! Mas para onde? Como? Jing-Ming não deu notícias desde que par­tiu, nem sequer sei onde está acantonado o seu batalhão. Refugiar­-me na casa do meu pai? Eu jurei depois do meu casamento que nunca mais o veria. Eu já não tenho pai. Eu reneguei-o. Junto do meu tio? Mas o que é feito dele, passados todos estes anos? Será que me rece­beria repudiada, correndo o risco de desonrar o nome da própria famí­lia? E se apesar de tudo me quisesse receber, como poderia eu infor­mar Jing-Ming?...

Dirijo-me com um passo maquinal em direcção ao armário, abro a gaveta do fundo, tiro um pincel de pêlo de lobo, um pauzinho de tinta sólido feito de carvão de ramos de pinho, um rolo de papel branco, um tinteiro talhado num pedaço de pedra verde-preta, em cujo bordo se enrola um dragão em relevo esculpido na própria pedra. Coloco tudo na mesa. Em seguida, vou à cozinha buscar uma pequena chávena, encho-a de água, volto ao quarto e coloco-a também na mesa. Depois, sento-me de busto bem direito diante da mesa, deito algumas gotas de água na parte côncava do tinteiro e, com um gesto regular, fricciono, fazendo girar a ponta do pauzinho de tinta contra o fundo do tinteiro. Fricciono, fricciono... sempre no mesmo sentido, até que o líquido se torne preto e espesso. Estendo uma grande folha de papel Xun diante de mim, e molho o pincel de pêlo de lobo na tinta.

- Estou preparada - digo eu a Meng-Yu, que parece sempre fixar-me com os seus olhos vazios.

- Ouve bem, Mei-Li - disse ele - tu vais escrever cada pala­vra que eu te vou dizer. É muito importante.

Há na sua voz qualquer coisa de fatal.

- Mei-Li, minha mulher muito amada. À  linha. Há quase treze anos que tu entraste nesta casa, tu fizeste tudo para tornar a minha vida mais fácil e menos triste. Nunca poderei agradecer-te... não, não, não digas nada, Mei-Li, rogo-te.... nunca te poderei agradecer de teres sido a minha companheira durante estes longos anos. Como eu sou incapaz de... não. Mei-Li, deixa-me acabar... como eu sou incapaz de te dar a vida familiar normal que tu mereces, restituo-te a tua liberdade... mas não digas nada, Mei-Li, deixa-me terminar, Deus dos céus!... restituo-te a tua liberdade. A partir de amanhã dei­xas de ter qualquer dever em relação a mim, poderás abandonar-me quando quiseres e quando puderes para começar uma vida nova com aquele que amas. Mas entretanto, poderás permanecer aqui o tempo que desejares, o teu bebé. Podes passar-me o pincel e a folha de papel, por favor, Mei-Li?... Mas, choras... Oh! suplico-te, Mei-Li, não cho­res, não chores assim... Tu sabes bem que a tua felicidade é para mim mais importante que tudo o que me resta no mundo, Mei-Li... É aqui que eu devo assinar?...

Ele apalpa e escreve o seu nome na carta, que me estende em seguida com um pequeno sorriso melancólico.

- Guarda bem isso, Mei-Li - disse ele com doçura - é muito importante. Nem a minha mãe poderá o que quer que seja contra ti se tu mantiveres este papel.

Depois, ele deixa-se cair esgotado sobre a almofada, murmurando muito baixo como se falasse para si mesmo:

- Caso arrumado, o mal está reparado.

Ele, que já é pequeno, parece-me tornar-se ainda mais pequeno. Ó Meng-Yu! Ó Meng-Yu!

Compreendi que ele também me amava.

A tua mãe nasceu no oitavo dia da sexta lua desse ano. Nós cha­mámos-lhe Bai-Lan, Flor de Orquídea Branca.

Já tinham decorrido mais de dois meses sobre a desventura noc­turna de Ming-Ming.

Enquanto naquele Verão de 1968 o inferno da Revolução Cultural atingia o seu máximo, Ming-Ming, Bi-Zhu e Fan-Fan continuavam os seus dias felizes no seu ilhéu sossegado. Como lhes tinha dito o pro fessor de Chinês, eles não tinham tempo para se aborrecerem entre as sessões de jardinagem, as lições menos divertidas de Matemática e de Chinês, as partidas de cartas que duravam toda a noite, os jogos de xadrez mais excitantes, em que as meninas tinham de unir a sua inte­ligência para se bater de igual para igual com o rapaz mais dotado que elas, as conversas sem fim no banco de pedra à sombra das árvores à volta de um pequeno monte de amoras púrpuras ou de tomates selva­gens amarelos e transparentes, como grossos berlindes de súccino, as disputas, às vezes, muito violentas que, em vez de deteriorar, fortale­ciam ainda mais os seus laços, as galopadas através do campo, a caça aos ninhos, às borboletas, aos gafanhotos, às libelinhas e aos louva­-a-deus. Eram as férias grandes. Que elas nunca acabem!, diziam as crianças entre si. Cartazes com grandes caracteres pretos? Cabeças metade rapadas que os guardas vermelhos forçavam a baixar até ao solo? Vociferações vomitadas pelos altifalantes? Detonações de espin­gardas e de canhões? Gritos e gemidos dos torturados estendidos sobre os tijolos frios das salas escuras? Desfiles ao ritmo de tambores e de gongos? Não viam nada, não ouviam nada, ignoravam tudo ou esta­vam-se completamente nas tintas. Já parecia tão longe como recorda­ções de varicela, que apressadamente são varridas da memória logo que se está curado. Uma tarde, eles subiram ao alto do edifício da administração de cinco andares e tinham visto um paquete em cha­mas, gije acabava de ser atacado no porto de Guang-Ning. É evidente que tiveram medo, daquele que se tem quando se vê um filme de catás­trofe; depois, diz-se «não era a realidade» e vai-se para a cama tran­quilo. Eles, eles viviam num outro planeta. Fora do alcance.

Um dia que se anunciava como os outros, tranquilo, cheio de sol branco e embalado pelo canto monótono das cigarras, que dá von­tade de dormitar no fundo de um cadeirão de vime como aquele do tio Zhong, ou de estender por terra numa esteira de junco, com um romance e um copo de água gelada ali à mão.

Na véspera de manhã, Bai-Lan tinha partido para a cidade para pro­curar recuperar o seu salário e informar-se sobre o que realmente se passava. Recentemente, o presidente Mao tinha lançado um apelo para que cessassem as violências entre as organizações «revolucionárias» e recomeçasse o trabalho nas fábricas e nas escolas. Há três semanas que as rádios locais não falavam de outra coisa. Aparentemente, segundo numerosos testemunhos difundidos pelos meios de comunicação social, o apelo de Mao estava a ser bem seguido. Mais optimista que os outros, o tio Wei declarou que isso significava o fim do movimento.

Mas na tarde seguinte à partida de Bai-Lan, a Comissão Revo­lucionária Municipal de Guang-Ning pareceu lembrar-se, de repente, da existência da escola preparatória. Enviou um camião requisitar os homens que restavam para que eles fossem trabalhar no reforço dos diques para conter o rio Yang. Com efeito, na sequência das chuvas diluvianas que tinham caído nas regiões situadas a montante, o nível do rio, que atravessava a cidade, tinha ultrapassado a cota de alerta. Na escola só ficaram mulheres e crianças.

Uma hora depois do almoço, Ming-Ming pôs a cabeça no quarto onde, a servir de cortinado, um pano aos quadrados protegia da luz implacável do Sol.

- Tu não dormes, Fan-Fan? - Não, estou à tua espera. Ela saltou da cama e enfiou as suas sandálias. - Onde está Bi-Zhu? - perguntou ela.

- Nós esperamos em baixo.

Ele pegou em dois chapéus de palha pendurados em pregos atrás da porta, pôs um na sua cabeça e deu o outro à sua irmã.

Quando saíram do edifício, Bi-Zhu já lá estava, diante da escada­ria, com uma cana de bambu na mão. Um chapéu de palha dema­siado grande caía-lhe sobre a fronte.

O ar estremecia de calor, mesmo à sombra das árvores. Sentia-se através da sola fina das sandálias de plástico as pequenas pedras quen­tes como brasas. A estrada estreita minada dos dois lados por ervas bravas em abundância descia, primeiro, em declive do edifício nº 10, depois, subia até à curva onde se distinguia a prancha de saltos em betão da piscina; em seguida, virava para a direita, roçava um pequeno bosque de eucaliptos, afastando-se, serpenteando entre campos, peque­nos bosques de bambus, pés de bananeiras e lagoas de lódão floridos onde chapinhavam os patos.

Bi-Zhu conhecia-a de cor, esta estrada que levava ao pomar das lechias. Enquanto caminhavam, ela contava. Todos os anos, no meio do mesmo calor escaldante do Verão, o professor de Chinês e a sua filha calcorreavam as mesmas pedras escaldantes, encontravam nos mesmos desvios do caminho os mesmos perfumes um pouco acre dos crisântemos selvagens às eflorescências brancas, ouviam à volta das mesmas árvores os mesmos zumbidos invisíveis dos insectos, reviam o mesmo rosto bronzeado do velho guarda com o mesmo saco de pano azul-marinho às costas e a seus pés o mesmo cão magro de patas compridas e de pêlos curtos que ela chamava, orgulhosamente, Tigre­-Preto. Pagando dois maos por cabeça, pode passear-se entre as árvo­res durante o tempo que se quiser, respirando fundo o odor suave dos frutos maduros ao sol, escolhendo os maiores ou mais vermelhos, comendo-os até não poder mais... Mas atenção! era formalmente prgi­bido levar um só fruto à saída. Ora! Quem fosse suficientemente astu­cioso, e tivesse um lenço grande no seu bolso, soubesse atar as pon­tas sobre alguns frutos e colocar rapidamente a presa sobre a sua cabeça, por debaixo do seu chapéu de palha, poderia oferecer-se uma sobremesa maravilhosa para o jantar...

- Olha, está ali - disse Bi-Zhu, apontando com um movimento do queixo um grande quadrado de verdura que se estendia, de cima para baixo, a uma centena de metros de um charco coberto de lenti­lhas de água.

Dando gritos de alegria, as crianças lançaram-se através dos cam­pos, como corredores de cem metros, determinadas a bater o record mundial, em direcção aos cravos carmesins que os chamavam, dan­çando nas folhagens que a luz intensa do Verão prateava. Contornando o charco, Bi-Zhu bateu numa pedra e quase perdeu o equilíbrio. Ming­-Ming estendeu o braço para a segurar. Ela retribuiu-lhe com um pequeno sorriso. Fan-Fan, que corria menos depressa que eles, apa­nhou-os.

Já tinham chegado junto da primeira árvore. Pararam esgotados. Tranquilidade estranha. Nem latidos do Tigre-Preto. Nem o apelo rouco do velho guarda. Nem a tagarelice dos frequentadores dos locais que vinham aqui todos os anos reconfortarem-se. As crianças olharam-se um instante, intrigados pelo silêncio total que reinava no pomar.

- O que é que esperamos então? - disse, por fim, Ming-Ming, varrendo o ar com o braço como se tivesse enxotado uma mosca inoportuna - certamente que não vamos regressar de barriga vazia, pois não?

Puxou para si um ramo carregado de frutos, colheu uma lechia, descascou-a e mandou-a ao ar para o apanhar com a boca escanca­rada como um acrobata.

De repente, as crianças recuperaram a sua despreocupação. Não há guarda nem cão, ainda bem! Não há outros visitantes, ainda bem! O paraíso sorria só para eles.

Excitados pela ideia de uma expedição de pilhagem, as crianças atacaram os frutos com a impaciência e a avidez de um tigre esfo­meado. Bocados de casca dentada caíam numa chuvada púrpura, mos­trando no interior grandes jóias brancas, húmidas, pouco translúcidas, que palpitavam na palma da mão como carne viva. Estas lechias, somente estas, quando os dentes as atacam, estalam e fundem ao mesmo tempo, e libertam, desde a primeira dentada, a quinta essên­cia do seu gosto. Frescas, fluidas, subtilmente perfumadas, delicada­mente açucaradas, voluptuosamente tenras, ó pérolas enormes das árvores do paraíso.

- Mmmm... - fez o rapaz.

- Mmmm... - fizeram as meninas.

Só depois de terem espalhado dezenas de pequenos caroços cas­tanhos à volta deles é que os três amigos pararam um segundo para limpar o queixo com as costas da mão.

- Nunca comi tão boas! - declarou Fan-Fan puxando um ramo baixo para colher uma grande lechia, escondida por debaixo das folhas de um verde-gordo.

- Eu também não - disse Ming-Ming, cuspindo um caroço para a erva.

- Nós temos mais sorte que Yang Gui-Fei - disse Bi-Zhu, que acabava de descascar uma lechia vermelho-escura.

- Ah, bom? - disse Ming-Ming, tirando, de repente, a lechia de Bi-Zhu e metendo-a na sua boca.

- Oh! tu! - gritou Bi-Zhu, dando-lhe um terrível soco no meio do peito.

Surpreendido pela reacção enérgica da menina, o rapaz deu um salto para trás para evitar o soco, bateu numa raiz saliente, perdeu o equilíbrio e caiu aparatosamente de costas.

Fan-Fan torceu-se toda a rir e o seu riso degenerou imediatamente num violento ataque de tosse.

Com um pequeno sorriso de satisfação, Bi-Zhu retirou o seu cha­péu de palha, deixou-o cair por terra à sombra de uma árvore e sen­tou-se sobre o chapéu.

Fan-Fan veio juntar-se-lhe.

- Então, quem é Yang Gui-Fei? - perguntou ela, arejando a cara com o seu chapéu.

- Pois bem, era a concubina preferida do imperador Tang Xun­-Zhong - contou Bi-Zhu no mesmo tom com que o seu pai falava da história da literatura diante de uma centena de alunos num anfi teatro. —- As lechias eram os frutos preferidos de Yang Gui-Fei, mas não era fácil encontrá-las em Pequim, tu imaginas. Para lhe agradar, o imperador mandava vir, todos os anos, lechias da costa do mar do Sul para a capital. Ora as lechias, são frutos que têm de ser comidos frescos. Um dia depois, perdem o aroma. Dois dias depois perdem o seu sabor. Três dias depois já não são comestí­veis. Então tu interrogas-te como transportar lechias frescas de Cantão para Pequim, em três dias durante o grande calor do Verão, numa época em que nem sequer se sabia o que era um automóvel, um comboio, um avião?... Sim, tens razão, era a cavalo. Mas os cavalos cansavam-se depressa a galope. Também tinham de parar para comer. Portanto, para manter a velocidade máxima e ganhar tempo, os mensageiros encarregados de transportar frutos para a concubina imperial tinham de mudar de cavalos todos os cinco qui­lómetros... Era assim que se conseguia fazer chegar as lechias às mãos de Yang Gui-Fei antes do pôr do Sol pela terceira vez depois da colheita. Mas nós...

- Mas nós - interrompeu Fan-Fan - nós podemos comê-las no jardim da própria árvore...

- Compreendeste tudo - sorriu Bi-Zhu.

- Olha, olha, o professor ainda não terminou a lição? - per­guntou Ming-Ming surgido por detrás dos ramos baixos, segurando o seu chapéu de palha encimado por uma pequena pirâmide ver­melha.

Ele colocou o seu trofeu diante de Bi-Zhu e acrescentou num tom malicioso:

- Só te retirei uma pela mão direita e devolvo-te cinquenta pela mão esquerda. Estás contente, minha princesa?

Bi-Zhu reprimiu um pequeno sorriso, pegou numa lechia, descas­cou-a e meteu-a na boca sem responder.

Fan-Fan e Ming-Ming não esperaram que Bi-Zhu acabasse por atacar os frutos. A pirâmide vermelha desapareceu num piscar de olhos.

- Oh! já não posso mais - lamentou-se Ming-Ming acariciando o seu ventre.

- Se levássemos algumas para a avó? - propôs Fan-Fan.

- Por que não? - respondeu Bi-Zhu - uma vez que o guarda não está cá.

O rapaz foi o primeiro a levantar-se e, perante os olhos em bico das meninas, tirou as calças.

- Mas o que é que tu ainda vais fazer?... - balbuciou Fan-Fan. Sem lhes responder, Ming-Ming desatou o cordel do seu chapéu com o qual atou as pernas das suas calças.

- Já está, pode conter pelo menos dez libras de lechias, e a avó poderá passar muito bem sem jantar esta noite e nós sem pequeno­-almoço amanhã de manhã.

As crianças rebentaram a rir. Puseram os seus chapéus de palha e penetraram um pouco mais no pomar. Cachos da cor da púrpura caí­ram no seu alforge improvisado, e em pouco tempo encheram-no. Fan-Fan desatou o cordel do seu chapéu, apertou a abertura do alforge e atou-o. Bi-Zhu ajudou Fan-Fan a levantar a colheita para o ombro de Ming-Ming.

Mei-Li estava sentada no quarto, junto à mesa. Os seus cabelos colavam-se à nuca. O suor escorria pelo pescoço. Mei-Li tinha reti­rado o pano pendurado na janela na esperança de um pouco de vento. Mas ele não vinha. Era a altura do dia em que a luz e o calor se fazem mais sentir. Instalada no seu banco, com o corpo inclinado para diante, Mei-Li pespontava um par de solas de pano. Ela acabava de as recor­tar numa grande folha espessa feita de múltiplas camadas de tecido sobrepostas e coladas, que ela tinha fabricado e deixado secar, len­tamente, à sombra, durante quinze dias. Ela queria confeccionar um par de sapatos de Inverno para Bai-Lan.

Surpreendendo alguns olhares trocados entre esta e o professor de Chinês, Mei-Li compreendera que entre eles estava a nascer algo mais que a amizade. Seria uma boa coisa se um dia..., imaginava Mei-Li enternecida. Era demasiado duro para a sua filha, ainda jovem e bela, estes longos anos privados do amor de um marido! Era demasiado triste para os seus netos esta infância deformada pela ausência de um pai! Mei-Li sabia-o muito bem, mulher e mãe.

Diante de Mei-Li encontrava-se uma velha caixa de bolachas, de tampa aberta, onde estavam arrumados, além do necessário à costura, pinças de sapateiro e um punção de cabo de madeira encerado pelo uso. Na sua mão esquerda, segurava com firmeza a sola de pano entre os seus joelhos ligeiramente afastados, e com a outra, furava a sola de um lado ao outro com o punção e, em seguida, empurrava a agu­lha com um dedal de bronze, puxava a linha e recomeçava a mano­bra com o punção.

De vez em quando, Mei-Li dava uma olhadela inquieta pela janela. Os pássaros e as cigarras calavam-se. Os ramos das árvores perma­neciam imóveis num calor pesado e húmido. Formavam-se colunas de nuvens cinzento-ardósia, enchiam-se e dispunham-se no céu sobre­ postas umas às outras. O Sol tinha desaparecido. A tempestade vai rebentar, pensava ela, mas onde foram estes três pequenos loucos?

De repente, barulhos. Passos precipitados. Raminhos secos que­brados. Ming-Ming escondeu apressado as suas calças cheias a reben­tar no mato. E ergueu-se. Um bando de garotos assustados surgiu por detrás das árvores, correu em direcção a ales, mas ultrapassou-os sem parar. Ming-Ming agarrou pelo braço o mais pequeno que fechava a corrida.

- O que é que se passa? - perguntou ele. - Um morto, lá em baixo, à beira da água...

O moço esfalfado libertou-se com um gesto brusco e afastou-se a correr para se juntar aos outros.

Ming-Ming virou-se para as duas meninas com ar aterrorizado. - Temos de regressar - disse Fan-Fan em voz baixa como se tivesse medo de ser ouvida pelo morto.

Ming-Ming perguntou a Bi-Zhu: - Nunca viste um morto antes? - Não, mas...

Eu também não. Se fôssemos dar uma olhadela?

Bi-Zhu baixou os olhos. Ming-Ming virou-se para Fan-Fan. - Tu, tu esperas aqui.

- Não, não, também vou convosco - protestou Fan-Fan para quem o pior ainda era ficar só no meio das árvores, que poderiam transformar-se, de um momento para o outro, em monstros feios de braços torcidos...

- Então, vamos - disse Ming-Ming, dirigindo-se para o lado de onde tinham surgido os garotos.

Uma brisa entrou pela janela aberta, levantando os cabelos de Mei­-Li. Um estrondo longínquo ribombava no horizonte, que se tornara quase preto. Mei-Li não parava quieta. Levantou-se, mandou para cima da mesa a sola inacabada, foi fechar a janela, passou por cima da velha caixa de bolachas aberta e lançou-se pela escadaria, cha­mando as crianças com todas as suas forças. Ninguém respondeu. Avançou pela ala empedrada e continuava a chamar. Ninguém res­pondeu. Um relâmpago quebrava a monotonia do céu, seguido, um longo momento depois, por um estrondo surdo.

Mei-Li subiu então, rapidamente, ao apartamento que o tio Zhong e a sua filha partilhavam. A janela estava completamente aberta. Os dedos invisíveis do vento desfolhavam, febrilmente, um dicioná rio colocado na secretária. O vaso de argila esculpido já estava em mil bocados no solo de tijolos vermelhos no meio da sala. Mei-Li passou por cima dos destroços da catástrofe, fechou a janela, foi bus­car o impermeável e o guarda-chuva, pendurados nos pregos atrás da porta, voltou a fechá-la atrás de si e precipitou-se, novamente, para fora. Guiada por um instinto de avó, lançou-se na direcção da pis­cina. Uma grossa gota de chuva caiu na sua fronte. Mas céus! Onde poderão eles estar agora? repetia ela, acelerando o passo.

Ao sair do pomar, as três crianças descobriram o rio Yang, que corria com as margens cheias, com redemoinhos furiosos e estrondos secos, arrastando cascas, ramos quebrados, blocos de erva arrancada, detritos de móveis quebrados... e lá em baixo, a uma dúzia de metros, apertado entre um bloco de pedra ruiva e uma árvore meio desenrai­zada pela corrente rápida, uma massa escura.

Eles aproximaram-se a passos lentos, levados pela curiosidade irre­sistível e, ao mesmo tempo, por um medo instintivo.

Era um homem de fato preto rasgado, a face mergulhada no lodo, de crânio aberto onde rodopiava uma nuvem de moscas azuis. Aos seus pés sujos, de grandes tornozelos afastados, um pequeno saco azul-escuro coberto de lama e de sangue coalhado, o corpo de um cão preto, de cabeça esmagada como a do seu dono.

Ming-Ming apanhou na erva um ramo seco tão grosso como o seu antebraço e procurou virar a cabeça do cadáver. Em vão.

Bi-Zhu virou a cabeça para nunca mais ver a cena. Ela sentia-se mal. Ela queria fugir para debaixo das árvores, mas não conseguia mexer-se, pregada pelo terror. Cada contracção do seu estômago enchia-lhe os olhos de lágrimas. De súbito... ela enviou um longo jacto quente sobre os seus pés.

- Não te sentes bem? - perguntou-lhe Fan-Fan.

Bi-Zhu abanou a cabeça, com o corpo agitado por movimentos convulsivos. Fan-Fan batia-lhe suavemente nas costas. Um estrondo prolongado ribombou no horizonte como um enorme suspiro, vindo das entranhas da terra. As crianças estremeceram profundamente. Elas deram-se conta, então, de que o aspecto do céu tinha mudado radi­calmente.

- Temos de voltar depressa, Ming-Ming - gritou Fan-Fan com uma voz angustiada - vai desabar uma tempestade!

Uma gota grossa de chuva desfez-se no nariz do rapaz.

O solo fumava, absorvendo rapidamente as primeiras trombas de água. Mei-Li parou na curva da estrada de onde podia ver a prancha de saltos de betão da piscina. Entre os dois trovões, que pareciam cada vez mais próximos, gritava os nomes das crianças, um de cada vez. Uma vez, ela teve a impressão de ter ouvido, vagamente, um apelo de socorro. Calou-se, escutou durante um momento, chamou, calou-se de novo e escutou ainda. Nada. Nenhuma resposta. A chuva continuava a crepitar no seu guarda-chuva de papel impermeabili­zado. Formavam-se charcos de água aos seus pés. Espetada como uma cana de bambu no meio da ala, Mei-Li roía-se de inquietação. De repente, pareceu-lhe vislumbrar através da cortina opaca da chuva qualquer coisa que se movia pelo caminho perto do pequeno bosque de eucaliptos. Avançou, apressadamente, e uf!, finalmente, as silhue­tas débeis dos seus três tesouros!

- Onde diabo....

Mei-Li conteve na sua garganta o seguimento da frase ao ver o aspecto desolado das crianças. As calças cobertas de salpicos de lama de Fan-Fan tinham um rasgão enorme no joelho direito. Ela segu­rava Bi-Zhu, que tinha perdido uma das suas sandálias, e ambas coxea­vam ligeiramente, miseráveis, nos ribeiros e lama. Ofegando e tiri­tando sobre as suas pernas nuas, Ming-Ming arrastava penosamente uma espécie de embrulho atrás dele.

Mei-Li passou o guarda-chuva a Fan-Fan, embrulhou Bi-Zhu no impermeável, retirou o seu casaco que lançou sobre a cabeça de Ming­-Ming.

Depois acocorou-se diante de Bi-Zhu.

- Anda querida - disse ela com voz meiga.

Bi-Zhu lançou, docilmente, os seus braços à volta do pescoço de Mei-Li e subiu para as suas costas. A menina sentiu, imediatamente, através da sua camiseta molhada um grande calor sobre o seu ventre gelado, e, de repente, deu-lhe vontade de chorar.

Quando as crianças chegaram ao quarto, Mei-Li colocou Bi-Zhu no solo e pegou numa toalha que estendeu a Ming-Ming.

- Diante da porta, meu grande, seca os cabelos, despe a tua roupa molhada, põe-te na cama debaixo do cobertor.

Dizendo isto, começou a despir as meninas, esfregou-lhes os cabe­los, o corpo, os membros com um lençol seco que ela tinha tirado do saco de viagem. Depois fê-las subir para a grande cama e envolveu­-as num cobertor.

- Fiquem aí, eu volto já.

Mei-Li desceu, rapidamente, à cozinha e sala de lavagem comum, colocou raminhos secos na fogueira do fogão de madeira, juntou folhas de jornal, lançando-lhes fogo. Quando os raminhos já se encontravam bem pegados, juntou lenha miúda, abanou com um abanico em folha de maceta. Estalos, fumo, chamas alaranjadas que subiam. Dirigiu-se então à torneira, encheu uma pequena caçarola de água, que colocou ao lume. Depois retirou de uma velha caixa de ferro um bocado de gengibre, que conservava enterrado na areia, lavou-o na torneira, picou-o e meteu-o na pequena caçarola cuja água começava a borbulhar. Retirou uma placa de açúcar amarelo de uma garrafa de vidro e mergulhou-a na água, que deixou ferver durante alguns minutos. Quando a tisana ficou pronta, Mei-Li tirou do lume a pequena caçarola, colocou-a no solo de tijolos verme­lhos, juntou mais lenha miúda na fogueira, encheu uma panela enorme de água e pôs a aquecer. Em seguida, levou a tisana em três tigelas.

Quando as crianças se voltaram a deitar depois de terem bebido todo o conteúdo da pequena caçarola, Mei-Li desceu de novo para a cozinha, juntou ainda mais lenha miúda na fogueira e saiu para bater à porta do lado.

Uma mulher corpulenta com cerca de trinta anos apareceu à entrada. Chamavam-lhe a irmã Mo. O seu marido era professor de Desporto na escola preparatória. Na véspera, tinha sido também requisitado para proteger os diques no rio Yang. O casal ocupava com os seus quatro rapazes - dois gémeos de um ano e dois gémeos de três anos - as duas peças contíguas à cozinha e sala de lavagem comum.

- Ah! é a avó Mei-Li - disse a mulher sorrindo - entre depressa. - Não, obrigada, estou apressada - respondeu Mei-Li. - Tem bolinhas de levedura para o arroz?

- Sim, quer fazer arroz fermentado?

- Não, é para preparar um banho quente para os miúdos. Eles molharam-se até aos ossos na tempestade.

- Quantas quer?

- Duas, se faz favor.

A mulher foi buscar um pequeno pote de barro cozido. Os seus quatro filhos amontoados numa cama grande no fundo da sala empur­ravam-se para espreitar a visita.

- Cá está - disse a mulher, estendendo a Mei-Li duas bolinhas secas de cor creme desbotada - se tiver necessidade de qualquer coisa, já sabe onde me encontrar.

Mei-Li agradeceu antes de correr em direcção à cozinha. Esmagou as bolinhas com o cabo de madeira da faca, depois deitou o pó na panela grande. A sala encheu-se, imediatamente, de um bom odor a álcool de arroz açucarado. Quando a água começou a ferver, Mei-Li pegou pelas duas asas da panela com um pano da cozinha e despe­jou a água no balde, que levou para o quarto.

Bi-Zhu, depois Fan-Fan e finalmente Ming-Ming passaram pelo banho quente e saíram com a fronte brilhante de vapor e de suor e a pele escarlate como lagostas.

- Isto vai expulsar o frio e a humidade do vosso corpo - expli­cava-lhes Mei-Li, pacientemente - senão correis o risco de apanhar uma constipação ou mesmo reumatismos.

A noite já ia muito avançada. Chovia a cântaros. No apartamento n.° 11 da Rua dos Bambus Novos, estava muito escuro. O lume da vela saltitava no escuro como semente de soja.

Bai-Lan estava deitada na sua cama, de mãos cruzadas sob a cabeça. Ela tinha feito duas horas de bicicleta para ir da escola pre­paratória à padaria-pastelaria de Guang-Ning. Cinco ou seis empre­gados, os mais velhos da casa, ainda aí permaneciam, por hábito, como cães fiéis que durante a sua vida só conheceram um dono e não podem viver noutro sítio. O contabilista não estava lá, Bai-Lan não tinha podido receber o seu salário. «Quando é que regressará o contabilista?», tinha ela perguntado. «Não sei», tinha-lhe respondido alguém no escritório. «Passe amanhã. Com sorte... Talvez... Se... Nunca se sabe...» Com esta promessa incerta, Bai-Lan tinha dei­xado a padaria-pastelaria, mas voltaria amanhã. Não podia regressar assim, de mãos vazias, à escola preparatória. A sua mãe esperava esse dinheiro para comprar a alimentação. O stock estava quase esgo­tado. Bai-Lan tinha ido dar uma volta pela cidade. As novas pala­vras de ordem - fim às violências e recomeço do trabalho - eram agora maioritárias nos muros, mas ainda estalavam tiros de tempos a tempos, as barricadas não tinham desaparecido. Bai-Lan tinha regressado à Rua dos Bambus Novos por volta do fim da tarde, exac­tamente antes da tempestade. Tinha falado com vizinhos e todos a tinham aconselhado a permanecer ainda algum tempo na companhia das crianças. «É melhor esperar que isto esteja um pouco mais calmo», tinham-lhe eles dito.

Bai-Lan estava deitada na sua cama, de mãos cuzadas sob a cabeça. Estava esgotada, mas não conseguia dormir. O apartamento cheirava a bolor, apesar de ela ter aberto todas as janelas. Ouvia a chuva que batia no telhado e no vidro da janela. Olhava para o tecto onde tre­mia um vago círculo amarelo-pálido. Pouco a pouco, dois olhos pen­sativos apareceram no círculo amarelado, olharam-na através das len­tes espessas dos óculos.

Nessa manhã, quando ela retirava a sua bicicleta do edifício n.° 10, o professor de Chinês tinha surgido não se sabe donde. Ele tinha-se proposto acompanhá-la até à estrada principal. «É por segurança», explicara ele. Ela não dissera sim, mas também não dissera não. Durante todo o caminho, não tinham falado. Como se tivessem receio de perturbar o silêncio do alvorecer, que os seus passos ainda torna­vam mais sensível. Ela podia ouvir a respiração ofegante do seu acom­panhante e a sua não menos rápida. Olhava a direito para a frente dela. Com a luminosidade pálida do alvorecer, a faixa estreita e sinuosa do caminho desenrolava-se, esbranquiçada, entre as silhuetas cin­zentas dos bosques. Quando chegaram à estrada principal, ela sentiu­-se surpreendida pelo facto de o caminho ter sido tão curto e de já terem chegado. Tinham parado, de repente, face a face. Ela reparou que os lábios de Zhong mexiam. Ela tinha pensado que ele ia dizer­-lhe qualquer coisa e ela tinha esperado. Mas não, ele nada dissera. Ele olhava-a. Fixamente. Dos seus olhos pensativos, por detrás dos vidros espessos dos seus óculos. Pareceu-lhe, a ele, ter apercebido duas pequenas chamas no fundo dos seus olhos. O seu coração estre­meceu profundamente. Ela tinha-os contemplado e sentira-se triste. Ele olhava-a. Ela contemplava as pequenas chamas saltitando no fundo dos seus olhos. Quanto tempo tinham permanecido assim, de olhos nos olhos? Ela não o saberia dizer. Muito tempo, sem dúvida. Depois despertaram, bruscamente, como de um sonho doce, com a presença de um búfalo no qual estava sentado um filho de camponês com um enorme chapéu de bambu. E, sem dizer adeus, ele montara na sua bicicleta e partira. Na primeira curva, tinha virado a cabeça. Ela tinha visto a silhueta de Zhong que ainda lá estava, imóvel, no mesmo lugar...

A sombra de um rosto de traços esbatidos veio sobrepor-se aos olhos pensativos de Zhong. Bai-Lan fechou os olhos para expulsar esta sombra. Ela perseguiu o seu pensamento.

Nada se tinha passado entre eles, mas era como se muito já se tivesse passado. Assim como há pessoas que vivem debaixo do mesmo tecto há muitos anos e que permanecem estranhos para sempre, uns aos outros, há seres entre os quais é suficiente um olhar para se com­preenderem...

Bai-Lan abriu os olhos. A sombra do rosto de traços esbatidos vol­tou a aparecer no círculo traçado pela luz da vela. Bai-Lan fechou as pálpebras para afastar a imagem.

Será que está novamente enamorada? Impossível! O seu amor por Hong é demasiado forte, os sofrimentos causados pelo divórcio estão demasiado vivos, demasiado profundos para que ela possa ser sensí­vel ao encanto de um outro. Há anos que ela não olha para os homens. Ela só vê os seus filhos. Os seus. Ela só vive para eles. De novo ena­morada? «Não é possível! Não é possível!», Bai-Lan repetia-o em voz alta para se convencer. Mas se não estava apaixonada, qual a razão desta palpitação do coração esta manhã diante de Zhong? Porquê esta sensação de embriaguez diante das pequenas chamas no fundo dos seus olhos pensativos? Porquê?

Bai-Lan reabriu as pálpebras, o rosto de Hong voltou de novo diante dos seus olhos, desta vez muito nítido. Ele e ela tiveram qua­tro anos de vida em comum, quatro anos de felicidade e de preocupa ções partilhadas... Tudo isso foi interrompido, tão brutalmente, tão dolorosamente... Já há quantos anos que ela espera Hong? Quase onze. Porque Fan-Fan vai ter onze anos. Ela sabia - e hoje a sua certeza ainda é maior - que ele estava inocente. Ela espera-o. Tão desesperadamente. Esquecê-lo! Ela já tentou. Para não sofrer mais. Mas não conseguiu. Não o poder esquecer, é essa a sua tragédia. O Sol levanta-se e põe-se, a Lua vem e vai... Ela só recebeu uma carta dele, desde a sua partida. Apenas duas linhas para lhe desejar um bom ano, a ela e às crianças. Depois, mais nada. Ela escreveu­-lhe, pelo menos, uma dezena de cartas. Para lhe dizer que, apesar de tudo, ainda o ama. Mas ela não recebeu qualquer resposta. Ela enviou-lhe embrulhos de roupa e de leite em pó - a vida no campo de trabalhos forçados deve ser dura - mas todos voltaram para trás. Quanto tempo lhe falta ainda para chegar ao fim da sua prisão? Quatro anos e cinco meses. Isto é mil seiscentos e treze dias e noi­tes! Se, pelo menos, saísse na data prevista... E se ele pudesse vol­tar quando saísse...

Os traços de Hong tornaram-se esbatidos, o seu rosto afastando­-se, diminuindo, desaparecendo lentamente por detrás dos olhos pen­sativos de Zhong que aumentavam, aumentavam... até ocupar todo o tecto do quarto...

Estará apaixonada de novo? É provável. Zhohg é um homem formidável. Cheio de vida. Também meigo. As vicissitudes da vida não o tornaram miserável - ele é daqueles que sabem encontrar e dar alegria e felicidade nas circunstâncias mais difíceis. Como ficar-lhe indiferente? Fan-Fan e Ming-Ming gostam muito dele. As crianças são os melhores juízes de um carácter. Ele poderia ser um bom pai para elas... Mas, mas será que ele a ama? Como pode ela estar tão segura de não ter interpretado mal o seu olhar esta manhã?...

De repente, sobressaltou-se. Os altifalantes! Ela olhou para o seu relógio. 5 horas e 10 minutos da manhã. «Urgente! Urgente!...», repe­tiam os altifalantes. Bai-Lan ergueu-se e sentou-se na cama, escutou.

«Urgente! Urgente! O dique no rio Yang quebrou-se em vários sítios. Que toda a gente vá imediatamente para a primeira frente de salva­ção. Urgente! Urgente! O dique no rio Yang quebrou-se em vários sítios. Que toda a gente vá imediatamente para a primeira frente de salvação...»

- Oh, céus! - disse Bai-Lan, saltando da cama.

Eu tive muito medo de dar à luz uma filha. Um rapaz teria mudado muita coisa... A minha sogra tinha-se convencido de que era um rapaz e comprou, muitos meses antes do nascimento do bebé, um pequeno chapéu vermelho com cabeça de tigre. Embora tenha ficado muito desiludida, mostrava-se simpática com Bai-Lan. É espantoso, não é? Para ela que não acreditava, nem um segundo, que Meng-Yu fosse o pai da menina... Eis o que eu não compreendia.

Nessa manhã, havia ainda charcos de água nas lajes do pequeno pátio rectangular, mas o céu parecia limpo quando eu saí do quarto. A chuva que caía há uma semana tinha parado durante a noite. Tinha, portanto, uma montanha de roupa e de lençóis para lavar de manhã. Primeiro despejei a fornalha e pus as cinzas numa bacia de cobre. Acendi o lume e, para o pequeno-almoço, fiz uma sopa de arroz com enguias de água-doce. Depois pus dois ovos a cozer. Feito isto, acres­centei alguma lenha miúda no forno e coloquei a chaleira em cima. A lenha miúda produziu, de seguida, pequenos gemidos devidos à humidade. Enquanto esperava que a água aquecesse, lavei cuidado­samente uma dezena de folhas de hena, que eu tinha colhido debaixo de chuva no dia anterior. Esmaguei-as numa pequena tigela com a ajuda de uma colher de porcelana. Depois disto, rolei os ovos cozidos no puré de cor púrpura até a casca se tornar completamente vermelha. Porquê a sopa de arroz com enguias e os ovos vermelhos? Pois bem, é porque esse dia era o sétimo dia da sexta lua de 1940, o ani­versário da minha pequena Bai-Lan. A tua mãe tinha sete anos. Como o tempo passa depressa!

O que é que tu dizes? Novidades de Jing-Ming, o teu avô? Não, ainda não. Nem uma carta, nem um sinal de vida. Silêncio total. Eu esperava, de manhã à noite, do Verão ao Inverno, do Inverno ao Verão... Durante a noite, quando a hora já ia adiantada, quando toda a gente dormia em casa, era o tempo da fotografia. Então, eu descia da cama, acendia a vela, ia abrir o armário, retirava debaixo de uma pilha de roupa a minha caixa de tesouros, e de entre esses tesouros um minúsculo envelope em papel vermelho que eu tinha confeccio­nado... Retirava a fotografia e contemplava longamente a imagem querida à luz fraca da vela. Era a única fotografia que eu tinha do teu avó. Ele tinha-ma dado na véspera da sua partida. Está aqui. Olha. Olha-me estes olhos. Olha-me este olhar. Este olhar que me pene­trara no mais profundo das entranhas, na primeira vez que eu o encon­trei. Foi por isso que aguentei o período mais negro da minha vida... Como é que tu nunca te apercebeste que eu olhava esta fotografia? Pois bem, como dizer... eu, agora, já não necessito dela para me lem­brar dos seus traços, eu vejo-os melhor de olhos fechados... O tempo era muito longo e a espera muito dura. A nossa filha já tinha sete anos e o seu pai nem sequer sabia que tinha uma filha! Eu interro­gava-me todos os dias sobre o que é que lhe poderia ter acontecido para que ele não me escrevesse nem sequer uma palavra durante todos esses anos... Estaria doente? Estaria ferido? Ou pior ainda... estaria morto? Tudo podia acontecer nesses anos de guerra, sabes... No entanto, não sei bem porquê, nem sequer durante um segundo quis acreditar que ele pudesse esquecer a sua Mei-Li. E o nosso amor! Eu esperava-o, e esperava-o, com esta paciência de Buda que já tinha feito, uma vez, um milagre, o tempo que o Deus do céu quisesse. Mesmo que fosse até ao fim da minha vida.

Então, nesse dia do sétimo aniversário da tua mãe, eu fiz dois ovos vermelhos, que coloquei num pequeno cesto de bambu ao lado de uma moeda de prata, de um par de sapatos vermelhos bordados com flores e de um pacote de azeitonas verdes maceradas no sumo de alca­çuz. A moeda de prata tinha sido lá colocada pela minha sogra. Os sapatos tinha sido eu quem os confeccionou, deitando-me uma hora mais tarde todas as noites durante dois meses. O pacote de azeitonas tinha sido comprado pelo meu sogro, na véspera no mercado, Bai­-Lan deveria ter as bochechas inchadas de guloseima e de alegria ao vê-las. Ela adorava as azeitonas maceradas em sumo de alcaçuz.

Quando, por fim, a água começou a borbulhar na chaleira, deitei­-a na cinza que tinha juntado na bacia de cobre. Mexi a água com um ramo seco de eucalipto, depois, cobrindo metade da bacia com uma toalha em algodão como filtro, deitei água com cinza na roupa e nos lençóis sujos. Tu não sabias que se podia lavar a roupa com cinza de madeira? Pois bem, trata-se de uma invenção dos nossos antepassados, entre outras, que as escolas se esqueceram de te ensi­nar. A água com cinza de madeira contém soda e isso lava bem. Nós utilizamo-la muito, sobretudo depois da invasão japonesa, porque o sabão tornara-se uma pérola rara e custava os olhos da cara.

A seguir ao pequeno-almoço, os meus sogros apressaram-se para ir à loja. O negócio não estava a andar bem desde há algum tempo. A família Deng tinha aberto na mesma rua uma nova farmácia onde se podiam encontrar não só remédios chineses tradicionais, mas tam­bém medicamentos ocidentais importados do estrangeiro. Como con­seguiam eles obter esses medicamentos ocidentais nesta época de guerra? Eu não sei. Mas com o dinheiro e o poder nada é impossí­vel, tu sabes. Duas farmácias na mesma rua, tu imaginas!... E, mais terrível ainda, atraídos por alguns preços mais baixos, antigos clien­tes dos meus sogros dirigiam-se, cada vez mais, à loja dos Deng assim como a água corre para baixo...

Como habitualmente, limpei os dois grandes potes, e fiz as seis idas e voltas quotidianas para os encher de água avermelhada do rio. Depois, para atravessar o pequeno pátio para ir ao Quing-Shui, com os braços carregados com dois grandes cestos de roupa e de lençóis para passar por água, apercebi-me de que os botões da romãzeira desabrocharam todos durante a noite. As flores vermelho-vivas tre­miam como brasas na folhagem verde. De facto, o Verão tinha chegado! Quando saí de casa a voz doce da minha pequena Bai-Lan chegou­-me como a primeira luminosidade do alvorecer:

- Mais, papá, mais uma história...

Não, como tu supões, aquele a quem ela chamava papá não era Jing-Ming seu pai, mas Meng-Yu, o meu marido. Ele sentia-se muito feliz de me ver permanecer e ouvir a criança chamar-lhe .papá. Isto fazia-me sofrer ao pensar em Jing-Ming, mas que querias tu que eu fizesse? Eu nem sequer sabia onde ele se encontrava nem se estava vivo... Era preferível que a criança tivesse um pai para o amar e o adorar, mesmo se não era o verdadeiro, a nada ter. Órfã de amor paterno, já eu o tinha conhecido demasiado bem! Mas um dia, um quando ela for suficientemente grande para compreender, evidente­mente que eu lhe direi a verdade. Era uma dívida que eu tinha para com ela, não é verdade?         

Quando cheguei ao rio, algumas vizinhas já lá estavam, batendo a sua roupa, de pernas meio nuas na corrente avermelhada.

- Olha, lá vem mais uma! - anunciou a linda mulher de um vendedor de plantas quando me viu.

- Surpreende-te', minha pequena? - troçou a velha mãe descar­nada do gordo patrão do talho, endireitando as suas costas. - Com um tempo como este, encontrarás todas as mulheres de Tien-Ma à beira da água!

- Oxalá a sirene não toque - berrou a patroa da fábrica de malhas de nariz achatado. - Oh! como me doem as costas!       ,

O seu ventre era enorme, ela devia esperar gémeos ou, para a sua maior infelicidade, gémeas.

- A sírene, a sirene - chiou a velha mãe descarnada do gordo patrão do talho - tu não poderias falar de outra coisa!

Com efeito, na última lua a sirene de alerta tocou várias vezes. Isto tinha semeado o panico na cidade sem que, no entanto, se tenha detectado a sombra do mais pequeno avião japonês. Um velhote tinha partido uma perna quando descia demasiado rapidamente a escada da sua cave; uma velhota cujo coração era menos forte tinha sucumbido a uma crise cardíaca. Em caso de alerta, segundo todas as orienta­ções distribuídas, a população devia espalhar-se pelas quatro portas da muralha que cercava a velha cidade de Tien-Ma. Eram esses os locais mais seguros, segundo se dizia, no caso de bombardeamentos pesados.

- Irmã Mei Li, anda cá - chamou-me a nora do negociante de antiguidades.

Ela batia a sua roupa, afastada das outras, com um pau de madeira tão grosso como o seu braço nu. Eu coloquei os meus cestos sobre uma pedra plana ao lado dela. Tinha sido convidada para o seu casa­mento com os meus sogros dois anos antes, porque o seu sogro, o negociante de antiguidades, era um cliente da farmácia. Ela vinha, muitas vezes, buscar plantas susceptíveis de tornar as mulheres fecun­das, mas o seu ventre mantinha-se tão vazio como antes do casa­mento.

- Irmã Mei Li - segredou num tom confidencial. - Disseram­-me que tiveste uma filha dezoito anos depois do casamento...

- Sim, porquê?

- Ora, há mais de dois anos que estou casada e ainda não tive nenhum filho, tu sabes. Já experimentei toda a espécie de plantas... Ah! era isso, ela queria saber o que eu tinha feito para ter o mila­gre! Que poderia eu contar-lhe, Deus dos céus? Que eu comi uma tartaruga com cinco anos de idade? Que bebi sangue de serpente? Ou... que eu tenho um amante? Ela cairia desmaiada na água se eu lhe dissesse a verdade. De repente, ao ver a linda mulher de um ven­dedor de plantas, que subia penosamente a escada interminável com o seu cesto pesado, tive uma ideia. E contei-lhe que tinha ido ao tem­plo para solicitar ao velho bonzo uma folha de papel escurecida de sinais misteriosos, e que, uma vez entrada em casa, tinha queimado a folha e engolido a cinza com um copo de álcool de arroz açuca­rado. Nessa mesma noite tivera um sonho estranho, contava-lhe eu, no qual o Buda, de sorriso eterno, me colocava um bebé nos braços, mais tarde encontrei-me grávida, e a continuação ela conhecia-a! Tive de fazer esforços incríveis para conter uma vontade louca, que rolava na minha garganta, de rir, vendo os olhos espantados da nora do negociante de antiguidades. Ah! Ah! Ah!... Ainda hoje não posso conter o riso...

«Adeus!» «Adeus!» Toda a gente tinha partido. Só me faltava pas­sar por água um lençol. Começava a ficar muito quente. Devia ser quase meio-dia. A superfície do rio estava salpicada de sol. Eu agi­tava com esforço o último lençol na corrente, quando, de repente, a sirene rasgou a paz na cidade e em mim.

Não, não pode ser! Lanço o lençol, a escorrer água, por cima do monte de roupa, pego nos cestos, subo a escada a correr. Cento e dois degraus! Nunca a achei tão comprida, tão íngreme esta escada! Sopro como uma locomotiva... Depressa, depressa só falta uma dezena de degraus. Ai! Caio e bato com o joelho direito na aresta de um degrau, e um dos meus cestos cai aos trambolhões em direcção ao rio a uma velocidade desesperante. Tanto pior! Levanto-me e corro na direcção da casa, pegando no cesto restante.

Transpus a soleira da entrada quando a sirene começou a soar. Então, desta vez é a sério! Deixei cair o cesto que rola sobre as lajes -do pequeno pátio e eu corro como uma flecha para o nosso quarto. Eles estão lá, céus! Bai-Lan apoia a sua cabeça contra o peito de Meng-Yu. Este remexe os cabelos da criança. «Não tenhas medo, que­rida, não tenhas medo...», repete ele, meigamente. Ao ver-me, Bai­-Lan lança-se nos meus braços.

- Mamã! Mamã! - grita ela.

=- Onde estão o papá e a mamã? - gritei eu a Meng-Yu. Não sei - respondeu ele com voz calma.

-- Depressa, vamos para a muralha.

Segurando Bai-Lan pela mão e Meng-Yu sobre as minhas costas, saio da casa deixando a porta aberta, subo a Rua das Sete Estrelas deserta, viro à esquerda, atravesso a Praça do Mercado, avanço pela Rua do Templo, viro à direita, e a cerca de cinquenta passos, mais longe, fica a porta leste da muralha.

Uma mulher gorda corre ao meu encontro. Tia Liu! Ela tira-me Bai-Lan dos braços.

- Uf! Chegámos.

A muralha tem dez metros de espessura e cerca de doze metros de altura, e por baixo da sua porta tínhamos, pelo menos, cinco metros de terra e de pedra sobre a nossa cabeça. Dizia-se que *a maior bomba do mundo não os podia atravessar.

Quando voltei a tomar alento, apoiada de costas à pedra da qual brotava uma frescura agradável, eu distingui rostos de olhares ansio­sos. Estavam lá a família do merceeiro, a do vendedor de plantas, a do talhante, a da patroa da fábrica de malhas, a do negociante de anti­guidades... mas os meus sogros não estavam! Quando saí de casa tinha observado que a loja estava fechada. Onde poderão estar neste momento?

Toda a gente estava sentada no chão. Ninguém ousava falar, como se o mais pequeno sopro de voz pudesse atrair a catástrofe. Acariciava suavemente, com uma das mãos, as costas de Bai-Lan, acocorada nos meus joelhos, e, com a outra, apertava a de Meng-Yu, sentado contra mim. Uma mão reconfortante pôs-se no meu ombro. Tia Liu. Era bom ter uma tia junto de mim num momento destes. Ela que nunca perdia o sangue-frio, mesmo que, o céu caísse sobre o seu telhado...

Quanto tempo tínhamos permanecido escondidos lá em baixo; eu tinha perdido a noção do tempo. Tínhamos ouvido zumbidos de moto­res, tínhamos julgado ver a sombra dos aviões no chão, tínhamos esperado o fim do mundo de olhos fechados, de mãos nos ouvidos... e quando ao som da sirene anunciando o fim do alerta saíamos debaixo da muralha como ratos medrosos, ficávamos surpreendidos ao ver ainda o Sol brilhar no céu, as casas de pé, ao ouvir as cigarras estri­dular nas ervas reluzentes de luz branca...

Despedimo-nos da tia Liu, diante da porta da farmácia dos meus sogros, que continuava fechada. Entrámos em casa. E... adivinha o que nós vimos ao entrar. Minha sogra que chorava sozinha no pequeno pátio! A tigre fêmea chorava. Quem teria acreditado? Bai­-Lan murmurou um «Queridinha» sem ousar aproximar-se. Eu levei Meng-Yu para o nosso quarto, arrastando Bai-Lan comigo. Depois de ter instalado Meng-Yu na sua cama e dito a Bai-Lan que ficasse junto a ele, regressei ao pátio. A minha sogra continuava ali, com ar abatido.

- O que aconteceu, mamã? - perguntei com ternura. - Foi o teu pai, ele...

Ela limpou o rosto com a manga da sua túnica. - O papá. O que é que lhe aconteceu?

- Esta manhã, na Praça do Mercado...

Sentei-me junto dela e agarrei as suas mãos com as minhas. - Esta manhã - prosseguiu com uma voz fatigada - esta manhã...

... a seguir ao pequeno-almoço, os meus sogros tinham aberto a loja como de costume. Havia poucos clientes. Então, o meu sogro saíra para dar uma volta pela cidade. Meia hora mais tarde, o filho do negociante de antiguidades tinha-se precipitado para a farmácia para prevenir a minha sogra de que tinha visto o seu marido ser detido pela polícia na Praça do Mercado. Porquê? Ela não o sabia. A minha sogra tinha fechado, imediatamente, a loja e dirigira-se à subprefei­tura. O guarda não a tinha deixado entrar, apesar dos seus pedidos, das suas lágrimas e da sua cólera, mas ele parecia ter prazer ao dizer­-lhe que o seu marido tinha sido denunciado como comunista e que, por agora, ele estava a ser interrogado, mas que poderia ser fuzilado se não dissesse quem se encontrava por detrás dele. A minha sogra nada tinha a fazer senão regressar a casa. Ela tinha ouvido a sirene de alerta durante o caminho de regresso, mas tinha encontrado a sua casa vazia. Ela estava, então, à nossa espera no pequeno pátio debaixo da romãzeira em flor encarnado-viva.

O meu sogro comunista! O meu sogro fuzilado!

Eu olhei para a minha sogra durante um bom momento, incapaz de compreender o que ela me dizia. Depois, pouco a pouco, vieram­-me coisas à memória. Então, lembrei-me... «Sabes quem é o novo patrão da polícia? Tinha-me dito uma vez a tia Liu. O marido da senhora Deng! Aquela que Jing-Ming não quis aceitar como esposa. Ele comprou o seu posto com o dinheiro da sua mulher. É preciso ter cuidado com ele, Mei-Li. Ele é capaz de tudo. É um cara-de-buda­-coração-de-escorpião...» Abrir uma nova farmácia na mesma rua que a dos meus sogros, baixar os preços para desviar os clientes, agora, acusar o meu sogro de ser comunista, prendê-lo e ameaçá-lo de morte... São demasiadas coincidências para que não haja uma razão subjacente... O quê então?... Sim, só pode ser isso, tenho a certeza, é o rancor de uma família humilhada, o rancor ruminado durante vinte anos e que hoje assumiu o rosto terrível da vingança...

A minha sogra estava imóvel no seu banco, de costas vergadas pela fadiga e pela infelicidade. Já muito afectada pelo fraco volume de negócios da loja, ela parecia completamente arrasada por este último golpe da sorte. De repente, descobri que a tigre fêmea tinha envelhecido. A velhice tinha-a tornado menos terrível e mais humana.

- Comunista ou não - disse-lhe - é necessário tirá-lo de lá. E o mais cedo possível.

Mas como? Não fazia a mínima ideia.

A chuva que tinha rufado com furor contra os vidros durante toda a noite parou ao amanhecer.

Por volta das seis, Mei-Li foi bruscamente acordada por pancadas precipitadas na porta.

Na soleira da porta apareceu a irmã Mo, de pés nus, cabelos des­grenhados, olhar aterrorizado, um bebé adormecido em cada braço e os dois mais velhos agarrados às pernas.

- O que é que vos está a acontecer? - perguntou Mei-Li. - Água, água... - gaguejou ela.

- Qual água? - Mei-Li não compreendia.

- Sim, a água, há água por todo o lado... no quarto, no corre­dor...

Oh! céus, aconteceu! - Mei-Li levou as mãos ao peito, como se o seu coração fosse incapaz de suportar só o peso da notícia.

Os mosquiteiros das duas camas rasgaram-se ao mesmo tempo, deixando passar as cabeças desgrenhadas de Fan-Fan, Bi-Zhu e Ming­-Ming.

- O que é avó? -perguntou o rapaz.

- O rio saiu do leito - respondeu Mei-Li.

A inundação! As três crianças precipitaram-se completamente exci­tadas para a janela.

Lá fora, a paisagem estava completamente diferente daquela que conheciam. A erva alta, os arbustos, os caminhos, tudo tinha desa­parecido debaixo de um mar amarelo agitado. Os pequenos bosques de árvores tornaram-se ilhas lúgubres. Aqui e ali, um poste telegrá­fico inclinava-se, tremendo, em direcção à água cor-da-terra, como um velho camponês se inclina sobre a sua colheita perdida.

Mei-Li, lançando um olhar rápido sobre os bebés nos braços da irmã Mo, encontrou, de repente, o seu sangue-frio. Ela pegou nos dois garotos pelas mãos, que se escondiam por detrás da sua mãe, e puxou-os para dentro.

- Entre, entre depressa, irmã - disse ela, à mulher do professor de Ginástica.

Depois, afastou o mosquiteiro da cama grande.

- Pode deitar aqui os bebés - disse ela, batendo de novo as almofadas.

Ao mesmo tempo que ajudava a pôr na cama os gémeos de um ano, Mei-Li diz às meninas para tratarem dos gémeos de três anos. - E eu avó? - perguntou Ming-Ming, com ar de quem tem cons­ciência de ser, desde agora, o único homem da tribo.

- Tu, tu vens comigo, vamos dar uma olhadela lá em baixo. O corredor estava escuro, a electricidade tinha sido cortada.

À luz fraca da lâmpada de bolso, aperceberam-se que os primei­ros degraus já tinham desaparecido debaixo da água amarelada. A água parecia continuar a subir.

- Dá-me a lâmpada de bolso - disse Mei-Li - eu vou tentar ir até à cozinha.

- Não, eu vou contigo - protestou Ming-Ming. - Não, tu esperas aqui por mim.

Deixando atrás dela o rapaz frustrado na sua vaidade de homem, Mei-Li descalçou os sapatos de pano, arregaçou as pernas largas das suas calças pretas até ao meio das coxas e desceu os degraus inun­dados às apalpadelas.

A água chegava-lhe quase à cintura.

- Tu podes vir, Ming-Ming - disse, avançando com prudência no dilúvio, erguendo a lâmpada com a mão esquerda e apoiando-se, com a direita, contra a parede.

O dia entrava pela janela larga sem cortinado da cozinha e sala de lavagens comuns. Mei-Li apagou a lâmpada de bolso. Um grande crivo de bambu flutuava majestosamente como um porta-aviões entre os seus navios, cestos de bambu e bancos de madeira, rodeados de sampanas de ramos delgados e de lenha miúda. Mei-Li dirigiu-se, imediatamente, para o jarro colocado num suporte de cimento, no fundo da peça. Uf! Mei-Li suspirou profundamente de alívio: a água ainda não tinha entrado nele. Havia cinco libras, aproximadamente, de arroz, e com as duas abóboras enormes em forma de perna de boi, trazidas do jardim anteontem, seria possível aguentar durante alguns dias.

- Vem ajudar-me, Ming-Ming - disse Mei-Li ao rapaz que apal­pava à procura das caçarolas e das panelas. - Anda, primeiro, leva­mos o arroz.

A seguir ao arroz, transportaram as abóboras para o andar de cima, depois a lenha miúda, utensílios, o pote do sal, a garrafa do azeite, a garrafa do açúcar, a garrafa de soja e, finalmente, tijolos vermelhos para construir um fornalha provisória - como cozinhar sem isso? Quando tudo o que podia ser salvo foi mudado, Mei-Li mandou Ming-Ming mudar de roupa. Ela desceu, em seguida, para o aloja­mento do tio Zhong. A água já lhe chegava ao peito. Ela empurrou a porta com dificuldade. Os livros da parte inferior da biblioteca já se encontravam na água. «Estes estão perdidos», disse Mei-Li. Ela pegou então nos livros arrumados exactamente acima do nível da água e amontoou-os como pôde por cima dos livros das prateleiras supe­riores. Oxalá que a água cesse de subir, pensou Mei-Li. Já está. Mei­Li deu uma última olhadela, satisfeita, sobre os livros salvos, mas quando deixava o quarto, a biblioteca, desequilibrada, desmoronou­-se num barulho infernal, arrastando para a água suja o resto do tesouro do professor de Chinês. Mei-Li não pôde conter um grito de partir o coração.

A água continuava a subir, mas mais lentamente. E lentamente, inundava as janelas e as portas do rés-do-chão. Depois, por volta do meio-dia, finalmente, parou ali. As nuvens rasgaram-se, descobrindo um Sol radioso no meio de um céu azul-claro.

Eis o momento de preparar o almoço. É neste instante que a pequena tribo se deu conta com terror de que não tinha água potável.

Quando saía do apartamento n.° 11, Bai-Lan reencontrou os Velhos Zhou.

- Mas o que vamos fazer? Mas o que vamos fazer?... - balbu­ciavam com um ar aterrorizado.

Bai-Lan montava a sua bicicleta.

- É preciso não entrar em pânico, Velho Zhou - dizia-lhes eu. - Voltem para buscar o necessário e depois dirijam-se ao bloco de escri­tórios lá em baixo. Subi ao segundo andar e estareis em segurança. Tendes, pelo menos, dez minutos antes de a água chegar aqui.

- Onde vais tu? - perguntou a Velha Zhou.

- À padaria-pastelaria - respondeu Bai-Lan, afastando-se a toda a velocidade.

Nem sequer uma „gota de água! Como foi possível esquecer isto!

No edifício nº 10 só havia uma cozinha e sala de lavagens comum, a do rés-do-chão, e que estava inundada.

Os bebés da irmã Mo começaram a chorar. A sua mãe pôs-lhes os seus pequenos dedos na boca. Eles calaram-se, chucharam um ins­tante, depois largaram os dedos e choraram novamente. Por simpa­tia, os gémeos de três anos juntaram-se ao coro dos jovens irmãos. - Eles têm fome - disse a mãe.

Todos os olhos se viraram para Mei-Li.

Mei-Li, por sua vez, olhou para Ming-Ming, Bi-Zhu, Fan-Fan, irmã Mo e o seu quarteto.

- É necessário fazer qualquer coisa - murmurou Mei-Li.

Era necessário fazer qualquer coisa. Toda a gente estava de acordo. Mas o quê? Ninguém sabia.

Os pequenos continuavam a chorar. A sua mãe tentava acalmá­-los. De repente, Bi-Zhu exclamou:

- Eu creio que existem dois termos no quarto do tio Wei! Levantaram-se todos ao mesmo tempo. Um raio de esperança passou pelo seu olhar. Mei-Li pegou na chave que o professor de Matemática lhe tinha confiado e saiu seguida pelo pequeno grupo.

Com efeito, existiam dois termos na mesa de cabeceira. Um azul e outro verde.

Mei-Li pegou no azul.

De pescoço esticado e boca aberta, os outros seguiam com um ar ansioso o mínimo gesto das suas mãos, como se ela mantivesse seguro o cordel do qual está suspensa a sua vida.

Mei-Li retirou a rolha de madeira e deu uma olhadela, depositou o termo sem dizer nada.

Todos tinham compreendido. Mei-Li pegou no verde, abanou-o. Todos ouviram um pequeno barulho de água. Mei-Li tirou a rolha.

- Nem dá para encher um copo.

Mei-Li tinha falado com uma voz sumida, mas as suas palavras soavam nos ouvidos de cada um como um trovão. As cabeças bai­xaram-se como folhas das árvores sobre o calor do Sol.

Eles regressaram em silêncio para o compartimento onde o quar­teto tinha deixado de chorar, adormecido pelo esgotamento na cama grande.

Ming-Ming, ao entrar, quase perdeu o equilíbrio quando bateu con­tra uma abóbora enorme colocada junto à porta. Furioso, deu-lhe um pontapé, praguejando em voz baixa.

Os olhos de Mei-Li iluminaram-se. As abóboras podem ser cozi­das sem água!

- Um pouco de paciência, meus filhos - disse Mei-Li, batendo sobre a abóbora maior, vamos comer dentro de uma hora.

Comer? O quê, abóbora crua?

Mei-Li respondeu a todas estas questões com um sorriso misterioso. - Anda comigo - disse ela a Ming-Ming.

Em cinco minutos construíram no corredor uma cozinha improvi­sada com tijolos.

Enquanto Ming-Ming acendia o lume, Mei-Li furava de um lado ao outro a abóbora com uma barra de ferroe colocava-a sobre a chama.

- Roda isto constantemente, Ming-Ming - disse Mei-Li ao seu neto. - O lume não pode estar demasiado forte, senão vais queimar tudo, e só teremos carvão para engolir.

Um quarto de hora mais tarde, o odor apetitoso, semelhante ao das batatas-doces assadas, começou a espalhar-se pelo corredor. As crianças vieram acocorar-se à volta do lume.

- Vão, vão brincar para o quarto - disse-lhes Mei-Li - não fiquem aqui. Está muito quente.

Quando, finalmente, a abóbora ficou cozida, Mei-Li agarrou-a com um pano da loiça e levou-a para cima de uma tábua para cortar.

- Meninas, ponham a mesa - disse Mei-Li a Fan-Fan e a Bi­-Zhu.

Foi retirada a barra de ferro, a abóbora cortada em fatias, as semen­tes retiradas, duas pitadas de sal, uma colherada de açúcar amarelo, um pouco de molho de soja, três colheres de óleo de sésamo, e a refeição ficou preparada!

Para os bebés, a irmã Mo escolheu fatias muito tenras, esmagou­-as com as costas da colher e acrescentou duas pitadas de açúcar. Eles comeram tudo e depois pediram mais.

No pátio da padaria-pastelaria do Estado de Guang-Ning, Bai-Lan rolou até ao entreposto. Cerca de vinte empregados tinham chegado depois de terem ouvido o apelo pelos altifalantes, deixando atrás deles os seus objectos pessoais; formavam uma fila que se prolongava até ao cimo da escada. À cabeça encontrava-se o contabilista que Bai­-Lan não tinha encontrado na véspera, um homem magro, de pequena estatura, a chegar à idade da reforma. Era com dificuldade que ele levantava com as duas mãos um saco de vinte quilos, estendia-o com esforço ao guarda do entreposto, que o passava, em seguida, ao chefe da pastelaria... Assim, um a um, os sacos de farinha e de açúcar eram erguidos, de mão em mão, até ao último andar. Bai-Lan deixou a sua bicicleta junto à entrada, colocou-se no seu lugar, ao lado do conta­bilista. Eles trocaram um pequeno sorriso, levantaram de uma só vez um saco pesado e passaram-no ao guarda.

Por volta do fim da tarde, no edifício n.° 10 na escola preparató­ria, todos acordavam da sesta com um fogo na garganta. A sede! Era pior que a fome.

A água do termo verde tinha sido dada aos bebés.

Lá fora, continuava o mesmo calor escaldante, sempre o mesmo mar amarelado sob o mesmo sol branco que não tinha pressa em desa­parecer.

Bi-Zhu lembrou-se que havia uma cisterna junto dos balneários. - Lá dentro podia haver água não poluída - disse ela.

Com efeito, diante dos WC, havia uma fila de dez cabinas de du­che - cinco para os homens, cinco para as mulheres. A cisterna de que falava Bi-Zhu encontrava-se ao lado, construída ao mesmo nível com tijolos vermelhos e cimento, com cerca de três metros de altura, com duas grandes torneiras de bronze de cada lado; ali se conservava a água para a toilette, a lavagem da roupa e a cozinha, no caso de a água corrente ser cortada - o que acontecia com muita frequência, sobretudo no Verão.

- Eu não sei nadar - suspirou a irmã Mo, abanando com um cartão os seus quatro pequenos que ainda dormiam.

- Eu posso lá ir - propôs-se Ming-Ming, dando uma olhadela pela janela.

Mei-Li e Fan-Fan trocaram olhares. As más recordações da tra­vessia comemorativa do início do ano estavam ainda frescas. De acordo, aqui, não era o rio Yang. Era muito menos profundo - somente dois metros, aproximadamente - e não havia corrente. Mas todos os arbustos, todos os fios de ferro que tinham sido esticados entre os troncos das árvores para estender a roupa, todas essas coisas, agora invisíveis, poderiam representar um perigo, se elas vos agarram, podem levar-vos a afogarem-se.

- Eu posso ir com ele, eu também sei nadar - disse Bi-Zhu, lambendo os seus lábios secos.

Mei-Li hesitava.

- Seria mais pudente levarem bóias salva-vidas - sugeriu a irmã Mo.

- Mas, agora, onde é que estão? - replicou Ming-Ming.

- O que é que vocês dizem a uma grande bacia em madeira? - gracejou Fan-Fan.

Ninguém riu.

Mei-Li levantou-se, levada por uma inspiração. Ela apontou para a porta e para as camas, dizendo:

- O que é que vocês dizem a uma jangada? Poderíamos fazer uma com tudo isto, não!

Rapidamente, a porta de madeira foi retirada dos gonzos, os pequenos que dormiam, reinstalados na esteira de junco estendida no quarto do tio Wei e as tábuas das camas foram retiradas e liga­das solidamente.

- Não se esqueçam dos baldes - disse a irmã Mo.

De seguida, foram atados dois baldes de alumínio com uma corda de cânhamo ao meio de uma pequena jangada improvisada.

- Aí está. Serve perfeitamente - disse Mei-Li.

Bi-Zhu retirou a sua saia, guardando a sua camiseta e as suas cue­cas, e Ming-Ming o seu calção.

A irmã Mo e Mei-Li ergueram a jangada, fizeram-na sair len­tamente pela janela, e deixaram-na descer, abruptamente, sobre a água.

Primeiro, desceu Ming-Ming, em seguida, Bi-Zhu.

- Sejam prudentes, meus filhos - disse-lhes Mei-Li, debruçada à janela.

- Já se sabe - respondeu Ming-Ming.

- Não te preocupes, avó, eu tomarei conta dele - gracejou Bi-Zhu. Depois, empurrando diante deles a jangada, eles nadaram lenta­mente do lado da cisterna.

Um minuto, dois minutos, três minutos... A espera tornava-se para Mei-Li e Fan-Fan uma tortura insuportável. Cada segundo assumia a dimensão de um ano. O Sol começava a deslizar para baixo. Mas o calor como o silêncio faziam sentir cada vez mais o seu peso. No quarto do tio Wei, os gémeos da irmã Mo começaram a chorar. Fan­-Fan não retirava os olhos do local onde tinham desaparecido Ming­-Ming e Bi-Zhu. Com uma mão no ombro da sua neta, Mei-Li olhava, imóvel, um raminho que flutuava à superfície da água suja, junto à janela. Elas esperavam, esperavam, esperavam...

- Olha, avó, eles estão ali! - gritou Fan-Fan.

Os nervos de Mei-Li descomprimiram-se bruscamente. Ela quase se deixou cair no soalho. «Obrigado céus», murmurava ela, agar­rando-se ao parapeito da janela.

Ming-Ming e Bi-Zhu aproximaram-se lentamente, empurrando a jangada diante deles. Só restava um balde, vazio.

- Não há água na cisterna? - interrogou ansiosamente a imã Mo, que tinha acorrido aos gritos de Fan-Fan.

- Está poluída - acrescentou Mei-Li.

- Sim, ainda há - respondeu Ming-Ming - e não está poluída mas não conseguimos chegar-lhe.

- Descemos o balde atado à corda, conseguimos enchê-lo até metade, mas o cânhamo não aguentou e perdemos o balde. Vimos buscar uma corda mais sólida.

-- Mas não há mais - disse Mei-Li.

- Eu creio ter visto uma no alojamento do tio Wei - disse Bi­-Zhu.

- Não fiquem na água, meus filhos - disse Mei-Li. - Subam, subam para descansar um pouco. Eu vou procurar a corda.

- Não, avó, estamos bem - respondeu o rapaz - esperamos-te. Mei-Li correu ao quarto do professor de Matemática, procurou durante um momento e acabou por encontrar uma corda grossa de palha entrançada sobre a cama.

Mei-Li regressou a toda a velocidade com a corda, que ela pas­sou pela janela a Ming-Ming, Fan-Fan gritou por detrás das costas da sua avó:

- Não te deixes cair na cisterna, meu irmão. Bi-Zhu nunca te conseguirá tirar de lá com isso!

Três dias mais tarde, o dragão amarelo do rio Yang decidiu, final­mente, voltar a deitar-se no seu leito, também ele cansado.

Os arbustos, a erva, os caminhos, as portas e as janelas do rés-do­-chão voltaram a aparecer. Mostrando a marca amarelada deixada pelo dilúvio e o seu odor nauseabundo.

As torneiras recomeçaram a correr, primeiro, uma água lamacenta, depois, cada vez mais clara. Mas serão ainda necessários dois dias para encontrar a sua cor e o seu gosto habituais.

Bai-Lan foi a primeira a regressar à escola preparatória.

Com todos os que tinham conseguido salvar uma grande parte do stock da padaria-pastelaria, ela tinha lá ficado bloqueada durante três dias. Depois, uma vez retirada a água, ela regressara à Rua dos Bambus Novos. Que surpresa encontrar a casa tal qual ela a tinha deixado! A Rua dos Bambus Novos, traçada na parte mais elevada de Guang­-Ning, tinha sido poupada por pouco a esta catástrofe, como não se tinha visto outra desde 1917.

À saída da cidade, Bai-Lan comprou um molho de couves ver­des de talo comprido, um pato grande e três limões verdes. Pôs tudo na sua cesta de bambu, que atou no porta-bagagens da sua bicicleta. O pato com limão, pensava ela, agradará a todos. Voltar a ver os seus filhos, a sua mãe e o olhar pensativo de Zhong, enchia-a de alegria. Só havia ainda três dias que não os via, mas que falta lhe faziam!

Quanto mais Bai-Lan se aproximava da escola preparatória mais as estradas se tornavam impraticáveis. Ela teve de levar, muitas vezes, a sua bicicleta ao ombro para transpor as zonas de estrada abatidas. A lama tinha penetrado nas suas sandálias de plástico. Os seus pés deslizavam. A parte de baixo das calças molhadas de lama colava­-se às barrigas das pernas a cada passo. Era muito desagradável. E a paisagem causava dó: casas e muros derrubados, árvores e postes telegráficos arrancados, viaturas viradas, arrozais destruídos... Na última curva, antes que ela entrasse no caminho que conduz à escola, Bai-Lan vislumbrou 'o corpo de um grande porco afogado entre os ramos de uma árvore abatida. Uma ligeira brisa trouxe um odor repugnante. Bai-Lan virou a cabeça e apressou-se. A inundação tinha feito muitos prejuízos por aqui, mas ela não se preocupava dema­siado com a segurança da sua família. Com Wei e Zhong, dois homens tão desenrascados... Ela sabia que eles teriam tratado de tudo e de todos.

A irmã Mo estava ocupada com o seu quarteto no primeiro andar. Ming-Ming ajudava Bi-Zhu a tirar os livros, que estendiam com pre­caução ao sol, sobre os bancos de pedra da ala, esperando assim sal­var alguns. Com a cozinha e sala de lavagens lavada e arrumada, Mei­-Li e Fan-Fan limpavam o corredor do rés-do-chão. Mei-Li enchia o balde de água na torneira e despejava-o todo de uma vez no corre­dor, enquanto Fan-Fan com uma vassoura de sorgo, empurrava a água lamacenta para a saída.

Bi-Zhu descia a escadaria, com uma pilha de livros nos braços. Ao primeiro toque de campainha da bicicleta de Bai-Lan, sobressal­tou-se e os seus olhos brilharam de alegria.

- A tia Bai-Lan já regressou! -gritou Bi-Zhu, apressando o passo ao seu encontro.

- Mamã! Mamã!..

Fan-Fan surgiu atrás de Bi-Zhu, erguendo a sua vassoura. Empurrada por Fan-Fan, Bi-Zhu deu um passo em falso, e os livros que ela levava caíram aos pés de Bai-Lan, num charco de água. Ming­-Ming, que acorria atrás de Fan-Fan, baixou-se para juntar os livros com Bi-Zhu.

- Tu não podes prestar atenção! - gritou ele em cólera à sua irmã.

- Olhai o que eu comprei! - disse-lhes Bai-Lan com um sor­riso, mostrando a cesta de bambu no porta-bagagens.

- Oh!, vamo-nos regalar esta noite! - disse Ming-Ming, reti­rando o pato da cesta.

- Não, não o podemos matar antes do regresso do papá e do tio Wei - replicou Bi-Zhu, retirando o animal das mãos do garoto. Surpreendida, Bai-Lan perguntou:

- Onde estão eles?

- Eles foram enviados para a defesa do dique, na tarde da tua partida - respondeu Mei-Li, que tinha chegado há momentos.

- Oh, não! - exclamou Bai-Lan, com uma voz apagada, lar­gando a bicicleta. Mei-Li agarrou o guiador à justa.

- O que há? - perguntou ela, assustada com a palidez repentina da sua filha.

Bai-Lan não respondeu, como se nada tivesse ouvido. Mei-Li disse então às crianças:

- Vão arrumar isso tudo na cozinha, meus pequenos. Vá.

- A mamã está doente? - perguntou Fan-Fan com uma voz inquieta.

- Não, é o cansaço - respondeu Mei-Li. - Não te preocupes, querida, isso vai passar... Vai com o teu irmão e Bi-Zhu.

Depois de as crianças terem entrado no edifício, Mei-Li reiterou a sua questão.

Bai-Lan também não respondeu, mas começou a soluçar.

Mei-Li deitou a bicicleta na erva, pegou em Bai-Lan pelo braço e arrastou-a para o banco de pedra.

- Ouviste alguma coisa sobre Zhong e Wei? - perguntou Mei­-Li, fazendo-a sentar-se.

- Não exactamente - respondeu Bai-Lan fungando - mas dis­seram que havia bastante gente no dique e que muitos foram levados pelas águas quando ele se quebrou...

Mei-Li abraçou Bai-Lan.

- Ó minha filha! Ó minha filha!...

Oito dias depois, um jeep trouxe o tio Wei.

«Eu agarrava-me com força a um poste telegráfico», contava ele. «Passaram sobre mim toneladas de água. Eu já não podia respirar. Já não podia ver nada. O poste quebrou-se e foi levado pela corrente como uma palha. Mas eu não o largava. Agarrando-me a ele como um prego cravado, e rodava, corria, saltava, pulava, rodopiava, subia, caía, voltava a subir, voltava a cair com ele e como ele. Sempre com ele e como ele, eu chocava sem parar contra mil coisas... A minha cabeça, os meus ombros, as minhas costas, os meus braços, as minhas pernas, enfim, tinha muitas dores em todo o meu corpo. Dores que cortam a respiração. Olhem para isto, para todas estas nódoas negras e arranhaduras no peito e nas costas e este olho negro - felizmente que não o perdi! E esta perna partida - o médico garantiu-me que eu poderei andar de novo dentro de seis meses. No entanto, eu nunca largava o meu poste. Agarrava-me a ele com todas as minhas forças. Abraçava-o como se fosse a primeira amante. As pessoas que me sal­varam disseram-me que tiveram muita dificuldade para arrancar o poste ao meu abraço. O que é que me deu esta força? Eu não sei... o medo da morte... ou o instinto da vida... »

Mas o marido da irmã Mo e o tio Zhong eram dados como desa­parecidos.

Determinada a salvar o meu sogro mas sem saber como agir, dirigi­-me à subprefeitura da polícia. A porta toda aberta. Guarda em uni­forme de tecido cinzento. Espingarda de baioneta brilhando ao sol. Avancei, olhando a direito para diante de mim. «Stop!» a ponta da baioneta no meu coração.

- Venho ver o vosso chefe - disse-lhe eu, afastando a baioneta com um gesto.

Creio que a minha calma o desconcertou e ele perguntou-me, reti­rando a sua espingarda:

- Conhece o patrão?

- Pergunte-lhe se eu o conheço - respondi eu sem reflec­tir.

- Tem um encontro marcado? - insistiu ele.

- Mas ele não o preveniu? É pelo menos incrível! - repliquei eu simulando um espanto exagerado - e vou dizer-lhe que acolhi­mento me foi reservado.

O guarda parecia desorientado.

- Desculpe, senhora - disse delicadamente, mostrando o pavi­lhão branco no fundo do pátio. - O patrão está no seu gabinete com o general Wu, no primeiro andar.

- Eu sei - disse eu friamente.

Sem dúvida que me tomou por uma das concubinas do seu patrão, conhecido como «apreciador» de lindas mulheres. O general Wu? Tanto melhor se houvesse como testemunha um alto oficial do exér­cito do Partido Nacionalista!

Diante do pavilhão estava estacionado um jeep preto, à sombra de uma velha longana. O motorista, em uniforme militar, dormia ao volante, com o seu boné colocado no assento do passageiro.

Depois de ter contornado o jeep entrei no pavilhão. Vi nesse andar uma porta fechada por uma esteira de bambu. Vozes no interior. Risos. Parei um instante para retomar a respiração. Depois, de repente, levan­tei a esteira.

Dois homens enterrados no seu cadeirão de vime. Entre eles, uma mesa pequena, duas chávenas de chá, um prato de aperitivos, dois cachimbos de ópio de tubo comprido de bronze. No tecto um venti­lador - era a primeira vez que eu via um na minha vida.

Um dos dois homens apresentava uns quarenta anos, em bata com­prida de seda castanha, cabeça completamente redonda já calva no cimo, de lábio sorridente sob o brilho de um enorme dente de ouro. Era o marido da menina Deng.

O outro parecia mais jovem, cerca de trinta e cinco anos, em uni­forme caqui cinzento, uma cara com maçãs do rosto salientes ani­mada por dois pequenos olhos brilhantes. O general Wu, sem dúvida. Ao ver-me entrar, este disse ao seu interlocutor:

- Não me informou que esperava uma visita.

- Eu não esperava ninguém para além de si, meu general - disse­-lhe o marido da menina Deng com um sorriso lisonjeiro.

Depois, virando-se para mim, perguntou: - Quem é você? Como conseguiu entrar?

- Eu venho ver-vos por causa de uma pessoa que os seus homens prenderam por engano esta manhã - disse-lhe sem responder às suas questões.

- Ah, bom! Então quem é? - disse ele, bebendo um gole de chá.

- O dono da farmácia Eternidade.

O seu sorriso desapareceu. O seu rosto tornou-se comprido.

- Você vem, então, por um comunista! - exclamou ao mesmo tempo que colocava vagarosamente a sua chávena na mesa.

Dei uma olhadela para o lado do general Wu. Ele parecia ouvir­-nos com muita atenção.

- Ele não é comunista - repliquei. - Ele só sabia vender as suas plantas medicinais na sua loja. Todos os habitantes do bairro vos dirão a mesma coisa.

- Como é que você sabe? - Eu sou a sua nora.

- Ah, sois a sua nora, estou a ver. Quem pode saber se você não está a mentir para o libertar, e se você não é a sua própria cúmplice? O seu lábio fazia trejeitos horríveis por baixo do seu dente de ouro. - O seu segundo filho Jing-Ming poderá dizer-vo-lo - respondi­-lhe eu. - Ele é oficial no exército do Partido Nacionalista.

Eu tinha martelado cada palavra da minha última frase.

O general Wu franziu o sobrolho. O marido da menina Deng ficou com ar incomodado.

- Ah! eu não sabia disso. Até poderia ser um erro, com efeito - disse ele, deitando um olhar furtivo para o general. - Eu verifico imediatamente. Se o que disse é verdade, o vosso sogro será liber­tado imediatamente.

A sua voz baixa deixava adivinhar uma raiva mal controlada. Durante toda a conversa, o general Wu não pronunciara uma pala­vra. Saudei-o com um olhar, dei meia volta e saí.

Nessa mesma noite, o meu sogro foi libertado. Mas tivemos de o transportar para casa numa porta- arrancada às suas dobradiças. Ele fora torturado durante o interrogatório. Tinha uma perna partida e vomitava sangue. Muito sangue. Ele morreu quinze dias mais tarde, repetindo: «Eu não sou comunista...»

A minha cunhada Jing-Hua não pôde vir ao funeral do seu pai, ela esperava então o seu sétimo bebé.

Início do mês de Julho de 1970 Meia-noite

Uma lâmpada fraquinha baloiçava na ponta de um fio por cima da mesa. Diante da janela, um cortinado azul, coçado pelos dentes da tábua de lavar durante dezasseis anos e amarelado pela luz do dia do Sul.

Mei-Li mordiscava a ponta do lápis, as meninas-dos-olhos fixas nas manchas do uso do tecido. Na sua frente, uma lista de provisões estava inscrita num caderno escolar. Cinco pessoas a viver do magro salário de Bai-Lan, era com dificuldade que cada mês se fazia che­gar de uma ponta à outra; então onde poderia encontrar dinheiro para fazer as compras necessárias para este jantar especial?

Mei-Li deslocou os olhos do cortinado para o caderno de contas familiar. De sobrolho franzido, olhava as formigas das palavras sem as ver. Depois suspirou, esfregando as suas pálpebras, baixou um pouco mais a cabeça, olhou de novo a lista. Azeite, óleo, sal, vina­gre, açúcar... Mei-Li parou o seu olhar na palavra «açúcar», sim ainda temos duas ou três colheres no fundo da garrafa, deveria chegar para depois de amanhã, tanto pior para o mês seguinte, privar-nos-emos... Num gesto seco, Mei-Li riscava «açúcar». Molho de soja, legumes e carne... O olhar de Mei-Li poisou um segundo sobre «carne». Já só se come carne duas vezes por semana, e somente algumas fatias muito finas perdidas num grande prato de legumes. Pois bem, para a. ter­mos neste jantar de depois de amanhã, teremos de passar sem ela durante o próximo mês. Com um traço a lápis, Mei-Li riscou cruel­mente a palavra «carne». Carvão, renda, água, electricidade... Aqui não é possível fazer economias... Os olhos de Mei-Li encontraram a palavra «roupas». O seu lápis permaneceu suspenso no ar. Mei-Li hesitou. Parecia-lhe ouvir de novo a voz tímida de Fan-Fan: «Bi-Zhu teve uma camiseta nova pelo seu aniversário...» Sim, com efeito, Bi­-Zhu teve uma linda camiseta com ervilhas frescas no último mês. Foi Mei-Li quem a comprou. Bi-Zhu faz parte da família desde que o seu pai desapareceu no dique dois anos antes, durante a inundação de Guang-Ning. A sua mãe veio buscá-la, mas Bi-Zhu preferiu ficar. Bai-Lan cumpriu todas as formalidades necessárias para a adoptar oficialmente. No próximo mês, Fan-Fan terá, ela também, treze anos. Mas dir-se-ia uma menina de quinze anos. Ela irá como Bi-Zhu à escola secundária a seguir às férias. A sua velha camiseta já repas­sada em vários sítios tornou-se tão estreita que o tecido parece pres­tes a rebentar ao mínimo gesto. Mei-Li quer comprar um pedaço de tecido e confeccionar, ela mesma, a camiseta para Fan-Fan - assim fica menos caro. Mei-Li viu um retalho muito lindo, no outro dia, na loja ao lado da estação dos correios, mas agora... Não, não, ela não pode... mas ela tem de... Não, não, ela não pode... Fan-Fan tem muita necessidade desta nova camiseta. Ah, não é tudo. Mei-Li revê então Ming-Ming nas suas calças demasiado curtas. O garoto cres­ceu, repentinamente, uma cabeça neste ano, como um rebento de bambu depois da chuva da Primavera. Ele não se sente nada inco­modado de ser chamado «grande irmão» por Fan-Fan diante dos outros. É um verdadeiro jovem. É absolutamente necessário comprar­-lhe umas calças novas. Então, como fazer para o jantar? Mei-Li deu um suspiro de impotência, abanando a cabeça. Como é difícil! De lápis no ar, o olhar de Mei-Li caiu maquinalmente sobre a palavra «sapatos». Ela fixou a palavra durante um bom momento, como se a não tivesse reconhecido. Ela mesma tem necessidade de um novo par de sandálias. Quantas vezes, já depois do início do Verão, as correias das suas velhas sandálias de plástico foram cortadas e recortadas?

Na verdade ela está farta de as reparar todos os dois ou três dias com uma ponta em ferro aquecido no lume do carvão. Mas... tanto pior! Comprarei sandálias neste próximo Verão, suspirou Mei-Li ris­cando a palavra «sapatos». Anteontem, Bai-Lan regressou a casa, tra­zendo a sua bicicleta aos ombros - o pneu de trás tinha rebentado, de novo. Há dois dias que ela vai a pé para o trabalho, sob o sol escal­dante. Minha pobre filha!... suspirou Mei-Li de novo, levantando a cabeça. É indispensável um pneu novo para a bicicleta... Mas isso é muito caro... Onde poderá ela encontrar o dinheiro necessário? E para este jantar? É também necessário dinheiro para comprar provisões. O olhar de Mei-Li chocou com a palavra «sabão». Desta vez, sem hesitação, riscou com um traço. Para lavar a roupa utilizar-se-á cinza de carvão de madeira como no tempo... Mei-Li fez rapidamente o cálculo. As economias não serão suficientes para pagar um frango. Mas um frango não será suficiente para uma refeição de uma tal importância...

Mei-Li poisou o lápis sobre o caderno, massajou as têmporas, empurrou a cadeira, levantou-se para ir vazar um copo de água fria. Bebeu a grandes goles, encheu de novo o copo e colocou-o na mesa.

Da cama que ela partilhava com Bi-Zhu, Fan-Fan chamou suave­mente:

- Tu não dormiste, querida? A luz incomoda-te? - perguntou Mei-Li, fechando o caderno.

- Sim, dormi - respondeu Fan-Fan. - Mas eu tive um sonho estranho, eu tive medo, e acordei. O que é que estás a fazer, avó? - Cálculos. É necessário encontrar dinheiro para o jantar de depois de amanhã.

- Qual jantar? Queres dizer que nos vamos regalar? -- Teremos um convidado muito importante.

- Ah bom! Quem é?

-- O chefe da equipa de controlo operário da tua escola. - Mas porquê?

- Pois bem, tu sabes que o teu irmão completa o primeiro ciclo de estudos secundários* este ano. A tua mãe e eu queremos que ele possa entrar no segundo ciclo, caso contrário, ele será obrigado a ir para a divisão de produção. Nós achamos que o teu irmão ainda é muito jovem...

* Na China, os estudos secundários = seis anos: o primeiro ciclo ou o ciclo ele­mentar = três anos; o segundo ciclo ou o ciclo superior = três anos.

 

- O que é a divisão de produção?

- Segundo dizem as pessoas é uma espécie de quinta do Estado, criada recentemente em Dong-Xing, muito perto do Vietname. Pareceque vão recrutar milhares de jovens para ali plantar a árvore-da-bor­racha. Ouvi dizer que todos os diplomados do primeiro ciclo que não completem os dezasseis anos antes de 31 de Julho irão automatica­mente para o segundo ciclo. Mas o teu irmão já completou o seu décimo sexto aniversário há mais de um mês. Como vês, a situação é delicada... Quer dizer que eles podem permitir-lhe que prossiga os seus estudos, se tivermos sorte, ou então enviá-lo para a divisão de produção se... Há dias falei nisso com o Velho Zhou. Foi ele quem sugeriu que eu convidasse o chefe da equipa de controlo operário para um bom jantar. «Tudo se poderá discutir e resolver à mesa, com uma boa refeição bem regada», disse ele. «Não são os professores, mas a equipa de controlo operário que decide quem poderá continuar os seus estudos, e quem deverá ir para a divisão de produção.» Eu não gosto muito desta ideia, mas que outra coisa se poderá fazer? Aliás, o Velho Zhou conhece vagamente o chefe da equipa de con­trolo operário, porque este trabalhava na mesma empresa que a sua mulher. O Velho Zhou ofereceu-se para lhe dirigir o nosso convite. Ontem, finalmente, o Velho Zhou disse-me que já estava feito e que o chefe da equipa aceitou o nosso convite. Ele virá jantar aqui em casa depois de amanhã à noite....

- Foi por isso que fizestes cálculos durante toda a noite?

- Sim, foi por isso. Não é fácil, sabes. A tua mãe não ganha muito, e...

O silêncio abateu-se. Mei-Li arrumou o caderno na gaveta e diri­giu-se para a sua cama.

- É melhor que eu me deite também, o sono será um bom con­selheiro... - disse ela, enxotando os mosquitos do interior da sua mosquiteira às cacetadas com o leque de bambu.

- Avó - disse Fan-Fan.

- Não te preocupes, querida, encontraremos um meio... - disse Mei-Li, suavemente, subindo para a cama.

Ela deixou cair os cortinados do mosquiteiro, puxou o fio atado à madeira da sua cama para apagar a luz, e deitou-se de costas.

- Talvez se pudesse vender... Mirim... Quero dizer... - gague­jou Fan-Fan com uma voz hesitante.

- Vender? Ming-Ming? Bi-Zhu? Tu? - gracejou Mei-Li, pondo­-se de lado. - Eu não darei nenhum de vocês três a ninguém, mesmo em troca de uma estátua de ouro tão grande como tu...

- Ó avó, pára - disse Fan-Fan num tom grave. - Eu estou a falar a sério. Eu penso que se poderiam vender os coelhos.

- O quê! - exclamou Mei-Li. - Não, não, não penses mais nisso... Dorme, minha grande, dorme...

Não, não, será a última coisa a vender, esses dois coelhos angoras de olhos de rubis, de longos pêlos brancos e sedosos. O antigo conta­bilista da padaria-pastelaria deu-os ainda bebés à Bai-Lan em Dezembro último como prenda de Ano Novo. Já deu grandes discussões em casa. Fan-Fan quis trocá-los, com um camarada da turma, por um par de patinhos, Ming-Ming quis dá-los ao seu melhor amigo como prenda para o seu aniversário, mas Bi-Zhu quis guardá-los e propôs-se ocupar­-se deles. Finalmente, Bi-Zhu ganhou e os coelhos continuam em casa. Ming-Ming ocupou um fim-de-semana para lhes fabricar uma coelheira de madeira. Mas é Bi-Zhu quem os alimenta todos os dias com ervas tenras que ela corta nos terrenos ao abandono ou à beira dos lagos junto à escola. Quando janta, deixa muitas vezes um pouco de arroz no fundo da sua tigela, depois procura um pretexto para sair e deposita-o na malga dos coelhos. Todas as noites, antes de se ir deitar, passa pelo menos uma hora com eles, limpando a coelheira, vendo-os brincar, pen­teando-os... Conta-lhes também como passa os seus dias, confia-lhes as suas preocupações ou as suas alegrias...

- Avó - insistiu ainda Fan-Fan - eu também gosto muito des­tes coelhos, mas...

- Não, não, não falemos mais disso, Fan-Fan - disse Mei-Li, virando-se para o outro lado - dorme...

No dia seguinte de manhã, a seguir ao pequeno-almoço, Bi-Zhu pediu a Fan-Fan que a esperasse um momento, depois foi procurar Mei-Li à cozinha. Mei-Li estava a lavar a loiça.

- Avó - disse-lhe Bi-Zhu com uma voz calma. - Tu poderás vender os coelhos, eu expliquei-lhes porque devem deixar a casa e já me despedi deles.

Mei-Li poisou a tigela que estava a lavar, secou as mãos ao seu avental e apertou os ombros de Bi-Zhu.

- Mas o que é que tu dizes, minha linda? Quem te disse que os venderíamos?

- Eu ouvi tudo, esta noite - disse Bi-Zhu, fixando Mei-Li com os seus grandes olhos claros. - É muito importante que Ming-Ming possa permanecer connosco, não?

A voz impaciente de Fan-Fan fez-se ouvir:

- Mas o que é que estás a fazer, Bi-Zhu? Depressa! Vamos ficar atrasadas!

Mei-Li empurrou Bi-Zhu para a porta.

- Não te preocupes, querida, vamos procurar guardar Ming-Ming e os coelhos, prometo, vai para a escola, vai.

Sim, vamos tentar guardar Ming-Ming e os coelhos. Mei-Li tinha reflectido muito durante a noite. A venda dos coelhos de Bi-Zhu está fora de questão - a vida já lhe é suficientemente cruel. Também não está em questão vender o anel de prata - teremos necessidade dele quando as crianças estiverem doentes. Então como fazer para encon­trar dinheiro para a refeição especial? Ir pedir emprestado! A quem? Mei-Li tinha pensado na mãe de Shiao-Wa. O seu marido, o mari­nheiro, tem um bom salário, segundo ele se vangloria muitas vezes, melhor que um professor universitário. Além disso, como o mari­nheiro permanece dez meses por ano no barco e aí tem as refeições gratuitas, a família pode fazer economias consideráveis. Mei-Li irá, pois, pedir à mãe de Shiao-Wa que lhe empreste dez kuais - a mãe de Shiao-Wa emprestar-lhos-á, certamente, porque não quererá ficar mal vista perante uma velha vizinha como ela. Depois, terá de pen­sar em reembolsá-los, como é evidente. Mei-Li também tinha reflec­tido muito sobre isso. Dentro de dois meses, seria a festa do meio do Outono e começavam já a preparação dos bolos,de lua. Segundo o costume, os empregados da padaria-pastelaria podem trazer para casa as sementes de melancia para descascar. Retira-se a casca às semen­tes uma a uma, à mão, sendo pago a dois kuais e cinco maos por cinco quilos. Este ano, se ela e as crianças conseguissem descascar vinte quilos de sementes de melancia, calculava Mei-Li, poderia reem­bolsar o dinheiro emprestado dentro de dois meses. É evidente que conseguirão.

A mãe de Shiao-Wa cortava um grande pedaço de costelas de porco, de mangas arregaçadas sobre os braços gordos e luzidios de água e de suor, quando Mei-Li parou diante da porta da sua cozinha, com um cesto de bambu na mão.

- Olá, como estás linda hoje! - disse Mei-Li com um sorriso. - Ah, estás a falar da minha camisa nova, avó Mei-Li? - disse, orgulhosa, a mãe de Shiao-Wa.

Ela poisou, imediatamente, a sua faca de picar carne sobre a tábua, pegou numa ponta do avental atado à sua cintura, limpou as mãos e estendeu um banco à visita.

- Senta-te, avó Mei-Li - disse ela, solícita. Mei-Li pegou no banco e instalou-se junto à porta.

A mãe de Shiao-Wa colocou-se diante dela para que admirasse, de perto, a sua camisa cor de céu.

- Olha para isto, já viste um tecido assim tão fino! É... Ó, como lhe chamam? O pai de Shiao-Wa disse-me várias vezes, um nome bizarro... Ah, poli... poli quê?... Não, já não me lembro... Enfim, isso não tem importância. É um produto novo que se encontra uni­camente no maior armazém de Guang-Ning. É mais fimo, mais leve que o algodão de melhor qualidade, mas é muito mais resistente e não tens necessidade de o passar a ferro, isto não ganha pregas fal­sas. Quanto custa cada pé? Adivinha. Oito maos? Um kuai? Não, mais do que isso. Um kuai, seis maos e oito fens! Três vezes mais caro que um algodão de muito boa qualidade... Eu paguei oito kuais e quatro maos pelo tecido, um kuai e oito maos para o alfaiate... Que achas tu da cor? Fica-me bem, não achas?...

A mãe de Shiao-Wa virou-se para a direita, depois para a esquerda, a fim de permitir que Mei-Li admirasse melhor a camisa.

- É magnífica... - disse Mei-Li para lhe agradar.

A mãe de Shiao-Wa sorriu orgulhosamente e virou-se satisfeita diante da tábua de cortar carne.

Mei-Li sentiu que era chegado o momento de expor à sua inter­locutora a razão da sua visita, mas antes que ela tivesse tempo de abrir a boca, a mãe de Shiao-Wa deu um «ah!», poisando de novo a sua faca.

- Olha, esqueci-me de te mostrar uma maravilha - disse a mãe de Shiao-Wa, estendendo o seu pulso esquerdo diante do nariz de Mei-Li.

Mei-Li viu um pequeno relógio oval, revestido a ouro, com uma pulseira de couro preto.

- É muito bonito... - gaguejou ela com ar distraído. Desiludida pela falta de interesse de Mei-Li, a mãe de Shiao-Wa retirou o relógio do seu pulso, deu-lhe corda e encostou-o à sua ore­lha para o ouvir.

- É um suíço autêntico, garanto-te.

- Certamente - disse Mei-Li, levantando-se.

- Como? Vais-te embora? - perguntou a mãe de Shiao-Wa, que voltou a pôr o relógio no seu pulso.

- Sim, tenho muita coisa a fazer hoje - respondeu Mei-Li com voz um pouco incomodada. - Posso pedir-te um favor?

-Tudo o que eu puder fazer por ti, avó Mei-Li - disse a mãe de Shiao-Wa com um largo sorriso.

- Ora bem, eu tenho necessidade de dez kuais, e pensei que tu mos poderias emprestar...

O sorriso tinha desaparecido, repentinamente, dos lábios da mãe de Shiao-Wa.

- Seria para mim um prazer emprestar-tos, avó Mei-Li - disse ela com ar desolado. - Nós habitamos no mesmo imóvel há mais de dez anos. Tu és sempre tão simpática com os vizinhos e estás sempre presente quando há necessidade de ajuda. Toda a gente gosta muito de ti. Pode-se confiar em ti, eu sei. Somente... Estás a ver... Somente, nós somos muito menos ricos do que se pensa. O meu marido ganha mais que muitos outros, é verdade, mas nós também gastamos mais que os outros. Em alimentação, por exem­plo. Com quinze anos, o meu Lai-Fu come mais que dois adultos. Três grandes tigelas de arroz em cada refeição, tu nem poderás imaginar. Há dias, fez-me uma cena terrível porque eu não fiz o prato de carne. Ó, ó, nem te conto o resto... E tudo isso sem falar das roupas e do calçado - eles crescem tão depressa, é necessá­rio comprar-lhes peças novas todos os quatro meses ... Temos tam­bém de enviar dinheiro aos meus sogros todos os meses, eles são muito velhos e já não podem trabalhar... A cada família o seu livro difícil, como diz o provérbio. Gostaria muito de ajudar-te, sabes, mas infelizmente...

Pela sua voz, Mei-Li tinha compreendido, desde a primeira palavra, que tinha batido à porta errada. Ela teria preferido partir imediata­mente, mas ficou até ao fim do longo discurso que a mãe de Shiao­-Wa lhe impunha com tanto tacto e gentileza. Tudo isto era por deli­cadeza. Um hábito enraizado nas tradições. Um hábito que Mei-Li detestava. No entanto, ela submetia-se sempre a ele, como um opió­mano à sua droga. Era mais forte que ela.

- Não é grave, não te preocupes - disse Mei-Li ao sair. - Eu encontrarei outro meio...

- Sinto-me verdadeiramente desolada, avó Mei-Li - repetiu a mãe de Shiao-Wa, acompanhando delicadamente a sua visita até à porta. Quando ela viu Mei-Li desaparecer na curva da rua, a mãe de Shiao-Wa fez um trejeito de desprezo e regressou para diante da sua tábua de cortar carne. Só idiotas lhe emprestarão alguns tostões, pen­sava ela enquanto continuava a cortar as costeletas de porco em peque­nos cubos. Quem sabe se ela será capaz de os reembolsar, hem?

Com o seu cesto de bambu na mão, Mei-Li dirigia-se, lentamente, para o mercado. É estranho, imaginava ela ao olhar para a correia da sua sandália meia rasgada, como se pode ser prisioneiro dos seus hábitos. É completamente irracional. De nada vale lamentar, amar­gamente, depois de cada má experiência e jurar nunca mais voltar a fazer segundo o seu hábito, e repeti-lo sempre, desesperadamente, como o comboio não pode rolar a não ser sobre carris.

Quando passava diante dos correios, Mei-Li ouviu alguém que a chamava. Parou e viu o Velho Zhou que saía de lá apressado, com uma alegria evidente.

- Olha, onde vais, avó Mei-Li? - perguntava ele, metendo, cui­dadosamente, um envelope amachucado no bolso da sua camisola. - Vou ao mercado - respondeu Mei-Li com um breve sorriso. - Por que vais tu, assim, de cabeça baixa? - gracejou o Velho Zhou. - Dir-se-ia que procuras ouro na calçada.

- Assim eu o tivesse encontrado! - replicou Mei-Li, sempre sorridente.

- Como - perguntou o Velho Zhou - tens necessidade de dinheiro?

- Sim. E ainda não sei como vou fazer para o jantar de amanhã. - Por que não mo disseste mais cedo? Olha, a minha filha que está em Tiang-Jing enviou-me vinte kuais para o meu aniversário. Eu empresto-te dez. Toma. Chega-te assim?

O Velho Zhou retirou do bolso da sua camisola o envelope ama­chucado, abriu-o, retirando duas notas de dez kuais e estendeu uma a Mei-Li.

- Não, Velho Zhou, eu não posso... - disse Mei-Li, afastando a mão do idoso.

- Mas sim! - disse o Velho Zhou, enfiando a nota na mão de Mei-Li. - Toma lá. Somos velhos amigos, não? Pagarás quando puderes.

Ele colocou a nota no envelope e acrescentou com um ar miste­rioso ao ouvido de Mei-Li:

- Eu vou dizer à minha mulher que perdi dez kuais na estrada. Ela vai pensar que eu os escondi para comprar álcool branco. Ah! Ah! Ah!...

Às seis da tarde, em ponto, o Velho Zhou acompanhou um homem ao apartamento n.° 11.

- Permitam-me que vos apresente o Pequeno Wang - disse o Velho Zhou com um gesto cerimonioso - o nosso jovem chefe da equipa de controlo operário da Escola Secundária n.° 4 de Guang­-Ning. A mãe de Ming-Ming. E a sua avó.

O Pequeno Wang tinha vinte e oito anos, aproximadamente. De estatura média, com um rosto quadrado, grandes olhos um pouco redondos, as sobrancelhas muito espessas, cuja extremidade se erguia ligeiramente para as fontes, parecia ter saído do cartaz de propaganda, tantas vezes colado nas paredes de Guang-Ning. Vestia uma camisa branca de colarinho engomado, mangas arregaçadas até aos cotove­los, umas calças azul-marinho de vinco acentuado e um par de san­dálias castanhas de plástico.

Depois de alguns apertos de mão e de uma troca de cumprimen­tos, o Velho Zhou foi-se embora.

- Tenha a bondade de se sentar aqui - disse Mei-Li ao Pequeno Wang, indicando a cadeira diante da porta de entrada.

Wang acenou com a cabeça e sentou-se.

Bai-Lan instalou-se à sua esquerda. Mei-Li à sua direita. Fan-Fan e Bi-Zhu em frente.

- Onde está Ming-Ming? - perguntou Bai-Lan a Fan-Fan. - Não sei - respondeu ela com voz tímida.

- Não é grave - interveio Mei-Li, deitando, abundantemente, álcool de arroz, marca Três Flores, no copo de Wang. - Começamos sem ele, ele vai chegar de um momento para o outro.

- Sirva-se, Pequeno Wang - disse Bai-Lan, pondo um grande pedaço de frango no prato do convidado.

- Um momento - disse aquele, tirando do bolso da sua camisa um pequeno livro vermelho.

Embaraçada, Bai-Lan poisou os seus pauzinhos na mesa. Enquanto Bi-Zhu guardava, bem comportada, a sua tigela na mão, Mei-Li levan­tou-se de imediato e foi buscar à estante quatro pequenos livros ver­melhos que distribuiu. Mas Fan-Fan, que era mais rápida que os outros, já tinha na boca uma grande posta de peixe. Não se atrevendo a cuspir a espinha que se encontrava no peixe, nem a engoli-la, Fan­-Fan teve de passar o que tinha na boca de uma bochecha para a outra, enquanto emitia silenciosos «bolas».

- Abram na página 35 - disse Wang num tom grave. - O pre­sidente Mao diz-nos: «A ditadura democrática do povo tem necessi­dade de ser dirigida pela classe dos operários. Porque esta é a mais previdente, a mais desinteressada, a mais revolucionária. Toda a his­tória da evolução demonstra o seguinte: a revolução não terá êxito sem a direcção da classe operária; a revolução triunfa sob a direcção da classe operária.»

Toda a gente, excepto Fan-Fan, tinha lido com Wang. Ele lançou sobre ela um olhar severo, voltou a pôr o seu livro no bolso e pegou nos pauzinhos. Mei-Li juntou rapidamente os pequenos livros ver­melhos, que foi colocar na estante.

Wang, apontando com os seus pauzinhos para os diferentes pra­tos na mesa, perguntou a Bai-Lan:

- Vocês comem disto todos os dias?

- Oh, não - respondeu Bai-Lan - é especialmente preparado para si.

- Ah, bom! - disse Wang com uma admiração fingida. - Porquê especialmente para mim? Querem-me corromper, hem? Mas eu sou incorruptível, estão prevenidos.

Bai-Lan e Mei-Li trocaram um olhar inquieto.

Wang ergueu o seu copo, bebeu um pequeno gole, lambeu os lábios e disse:

- Bom álcool!

Depois poisou o seu copo, mergulhou os pauzinhos na terrina, colocada no meio da mesa, remexeu, pegou numa pata de pato, meteu­-a na boca e mastigou ruidosamente.

Fan-Fan desviou os olhos para não o olhar, procurando conter uma enorme vontade de rir que lhe inchava a garganta. Mas, infelizmente, o seu olhar cruzou-se com o olhar de gozo de Bi-Zhu e o seu riso explodiu tão violentamente que lhe lançou o arroz que tinha na boca em plena figura.

- Malcriada! - resmungou Bai-Lan com um ar incomo­dado.

- O que é que se passa - interrogou Wang, franzindo o sobro­lho depois de ter engolido com esforço um bocado enorme de porco grelhado.

- Não faça caso, sirva-se -respondeu Mei-Li, metendo uma fatia de vaca salteada na tigela de Wang. - A minha neta é sempre um pouco louca.

Fan-Fan escapou-se para a peça do lado para rir mais à vontade. Bi-Zhu escondeu a cara na tigela.

- O último a rir é o que ri melhor - murmurou Wang entre dentes.

De repente, a porta da entrada abriu-se bruscamente. Ming-Ming entrou esgotado.

- Onde estiveste tu, Ming-Ming? - perguntou Bai-Lan num tom de reprovação. - Não sabias que hoje tínhamos um convi­dado?

- Vamos, senta-te, Ming-Ming - disse Mei-Li com um sorriso conciliador. - Ele explicar-se-á mais tarde. Eis o chefe da equipa de controlo operário da tua escola. Já o conheces?

- O número um da escola, quem não o conhece? - respondeu Ming-Ming sentando-se junto de Bi-Zhu.

Wang acenou ligeiramente com a cabeça, esboçou um sorriso de orgulho.

Mei-Li encheu-lhe o copo.

Wang bebeu um pequeno gole, arrotou e perguntou, olhando Ming­-Ming nos olhos:

- Em que ano estás?

- No fim do primeiro ciclo - respondeu Ming-Ming. - O que é que farás a seguir?

Antes mesmo que Ming-Ming tivesse tempo de responder, Mei­-Li disse:

- Ele gostaria muito de continuar no segundo ciclo. Não é Ming­-Ming?

- Ah! não sei - disse Ming-Ming com uma voz indiferente. Bi-Zhu deu-lhe um pontapé por debaixo da mesa.

- Ai! - disse Ming-Ming, lançando um olhar rápido sobre Bi­-Zhu. - Sim avó, eu gostaria muito.

- Já tens dezasseis anos? - perguntou Wang, mastigando lenta­mente uma fatia de rebentos de bambu.

- Há seis semanas - respondeu Ming-Ming.

- É ainda um pouco jovem para ir para o campo, não é verdade, Bai-Lan - acrescentou Mei-Li à pressa.

Baí-Lan acenou afirmativamente com a cabeça. - É ainda uma criança.

- Eu, eu comecei a trabalhar aos treze anos de idade - disse Wang, fazendo girar lentamente entre os dedos o seu copo erguido ao nível dos olhos, como se tivesse admirado o jogo da luz através do álcool. Depois lançou um olhar significativo para Ming-Ming. - Ainda não pensaste em ir para a divisão de pro­dução?

Mas, mais rápida que Ming-Ming, Mei-Li respondeu:

- Certamente, já pensou. Mas será para mais tarde. Ele tem ainda muito a aprender na escola...

- Ele aprenderá mais no trabalho manual que na escola - repli­cou Wang friamente.

Bai-Lan poisou a sua tigela e os seus pauzinhos na mesa. - Você quer dizer que... - balbuciou ela.

Fan-Fan veio sentar-se ao lado do seu irmão.

Wang lançou a cabeça para trás, esvaziou o seu copo de um só gole. Depois, olhando os convivas um por um, afirmou:

- Sim, está decidido. Ming-Ming foi escolhido para pronunciar um discurso na assembleia dos jovens-instruídos que irão para a divi­são de produção.

Mei-Li e Bai-Lan ficaram pálidas.

Fan-Fan pegou na mão de Bi-Zhu por debaixo da mesa.

- Eu? Fazer um discurso diante de uma assembleia? - gague­jou Ming-Ming estupefacto.

- Sim, tu - disse Wang sempre tão friamente. - É uma grande honra ter sido escolhido.

- Mas porquê eu? -perguntou ainda Ming-Ming.

Wang deu uma olhadela sobre o rosto pálido de Bai-Lan, um pequeno sorriso cruel deslizou sobre os seus lábios reluzentes de óleo. - Porque o teu caso é muito particular - respondeu escandindo as suas palavras. - O pai tornou-se inimigo do povo há treze anos, mas o filho revolucionário partirá voluntariamente para o campo ao apelo do presidente Mao. O que é que poderá ser mais significativo? Bai-Lan levantou-se, abandonou a mesa e fugiu para a cozinha. Fan-Fan levantou-se também e correu atrás da sua mãe.

Mei-Li permaneceu pregada ao seu banco, sem palavras.

Bi-Zhu torcia as mãos por debaixo da mesa, de lágrimas nos olhos. - Mas eu não tenho nada a dizer - disse Ming-Ming com uma voz aterrorizada.

- Como nada a dizer? - disse Wang, olhando-o fixamente. - Tu dirás a tua lealdade para com o presidente Mao, a tua vontade inflexível de ir trabalhar para a divisão de produção, a tua resolução inabalável de te consagrar inteiramente à construção do socialismo...

Wang parou por ali, depois começou a devorar um bocado de frango. Fumou ainda um cigarro antes de se levantar.

- Obrigado por me terem convidado, os pratos estavam delicio­sos - disse ele com uma ironia sinistra, e saiu.

- Um nojo! - cuspiu Mei-Li. - Porco! - gritou Bi-Zhu.

O saco dos vinte quilos de sementes de melancia para descascar, que Bai-Lan tinha trazido nessa tarde, esperava num canto da peça, atrás da porta.

Após a morte trágica do meu sogro, a minha sogra mudou com­pletamente. Dir-se-ia outra pessoa. Ela não já saía de casa, como se tivesse medo de ver o mundo. Todas as manhãs, à hora da passagem do carteiro, instalava-se num banco por detrás do cortinado da janela e permanecia assim durante horas, de costas curvadas e mãos juntas nos joelhos, com o ar de um pássaro que espreita na ponta de um ramo num dia de muito frio. Durante o resto do dia, fechava-se no seu quarto, acocorada na sua cama, com uma lâmpada a óleo na sua mesa de cabe­ceira. Outrora incapaz de manter a sua boca fechada mais de cinco minutos, passava agora, frequentemente, vários dias seguidos sem dizer uma só palavra. Do seu rosto, reduzido à pele e aos ossos, erguia-se um nariz comprido e afiado como a lâmina de uma faca. Lembrava­-me a cara de um morto perdida num punhado de palha cinzenta. Toda a sua vida se concentrava no olhar estranho com o qual me seguia em silêncio. Será que procurava ler os meus pensamentos?

Então, como deves imaginar, era eu que tinha de fazer viver toda a família. Levantar-me ainda mais cedo e deitar-me ainda mais tarde a fim de me ocupar da casa, da loja, da minha sogra, da minha pequena Bai-Lan, do meu marido, mais doente que nunca. A tua pobre mãe tinha apenas nove anos, e ela já me substituía na toilette de Meng­-Yu. Procurei aguentar, assim, durante cerca de dois anos. Era muito duro. Depois, como praticamente já não havia clientes, nem dinheiro para renovar o stock da loja, fomos obrigados a vendê-la. Custou-nos muito, mas... Tu não perguntas quem aproveitou com isso? A famí­lia Deng, evidentemente.

Nesse dia, estávamos num dia de Outono de 1942. Eu ajudava a tia Liu a preparar as massas de arroz na sua tenda - dava-me um pouco de dinheiro para manter a casa. A nora do comerciante de anti­guidades chegou com uma novidade terrível: o exército japonês apro­ximava-se. Era necessário deixar a cidade para nos refugiarmos no campo, dizia ela, porque os demónios japoneses esmagavam tudo o que encontravam pelo caminho. Queimavam as casas, fuzilavam os homens, enterravam os idosos vivos, degolavam as crianças, viola­vam as jovens e depois estrangulavam-nas, esventravam as mulheres grávidas com a ponta das baionetas... Ela tinha um primo, a nora do negociante de antiguidades, que era um rico proprietário de terras. A sua família ia habitar na casa deles durante algum tempo. E se nós quiséssemos, propunha ela, poderíamos acompanhá-los.

No dia seguinte, o nosso pequeno comboio partiu ao amanhecer. À frente ia o carro do negociante de antiguidades, puxado por um cavalo: Toda a sua família se amontoava nele. A sua criada caminhava atrás, de ombro curvado sob um pau de bambu de cujas extremidades pendiam cargas pesadas. Eu arrastava, penosamente, um carro alugado no qual a tua mãe ia sentada sobre um fardo de roupas e de cobertores, entre o meu marido e a minha sogra deitados. Eu tinha trocado todos os meus tesouros por quinze moedas de prata. Tinha-as cozido numa faixa de tecido, que cin­gia à cintura da tua mãe sob a sua túnica. Uma criança podia passar des­percebida mais facilmente. A tia Liu trotava a meu lado, com um pacote redondo embrulhado num xaile azul no fim do seu braço.

Nós chegámos ao pôr do Sol e fomos instalados numa granja enorme. Já se encontravam lá várias famílias. Certamente, familiares do rico proprietário.

Durante quatro ou cinco dias, dormimos na palha e alimentámo­-nos de sopa de arroz e de batatas-doces, generosamente oferecidas pelo nosso hóspede, e só saíamos para o pequeno bosque ao lado para satisfazer as nossas necessidades.

Depois, a tua mãe ficou doente. Uma diarreia esvaziou-a literal­mente em dois dias. Era horrível. As plantas que normalmente se uti­lizavam para parar as diarreias não tinham qualquer efeito nela. Eu tinha de a mudar vezes sem conta por dia, e todas as vezes tinha de empurrar para o interior o seu ânus saído, vermelho de sangue. Mais tarde, como eu não podia lavar e secar, depressa, o nosso stock de rou­pas, fui obrigada a deitá-la nua directamente na palha e a cobri-la com a túnica da tia Liu. Oh, minha pobre Bai-Lan! Ela já só tinha a pele sobre os ossos. O nosso hóspede mandou vir um velho médico da aldeia, mas este abanou a cabeça depois do exame. Compreendi então que ele já não tinha esperança. Era horrível. Para uma mãe, não há nada de mais dilacerante que ver, impotente, o seu filho morrer diante dos seus olhos. Oh, minha pobre filha! Como poderia sobreviver sem ti?...

Depois, nessa tarde, após a visita do médico, um homem sem idade surgiu à entrada da granja. As suas roupas em farrapos estavam cober­tas de lama. Mal se mantinha sobre as pernas, os seus pés nus esta­vam envolvidos em trapos mal atados por um cordão de palha trançada. Ele pediu com voz fraca:

- Podem dar-me qualquer coisa para comer? Já há vários dias que não engulo nada.

- Entre e sente-se - disse-lhe a tia Liu. - Está ali um caldo de arroz que foi deixado para a pequena, mas ela já não consegue comer. Pobre pequena!

O homem deixou-se cair junto da tia Liu e pegou com as duas mãos na tigela que ela lhe estendia, esvaziou-a de uma só vez com sons ruidosos.

- De onde vem? - perguntou a tia Liu.

- De além - respondeu com um gesto vago - da cidade Zheng. É longe? - insistiu a tia Liu.

- Há oito dias que caminho. Lá foram todos mortos. Homens, mulheres, idosos e crianças. Todos...

- Mas como? - perguntou o negociante de antiguidades que se sentou junto dele.

- Eles estavam escondidos numa gruta - disse o homem num tom sinistro. - Os soldados japoneses descobriram o esconderijo e lançaram gás. Eu tinha saído para procurar algumas plantas medici­nais porque o meu filho mais velho torcera o calcanhar. Quando regres­sei, estavam todos mortos. Como ratos. Toda a minha família. Toda a aldeia. Tapei a saída da gruta para que os corpos não fossem comi­dos pelos animais... e fugi do local. Não podia permanecer ali. Tornar­-me-ia louco.

O homem abriu as suas mãos, olhou os seus dedos cobertos de pó e de sangue coalhado. À sua volta, ouviram-se suspiros profundos. De repente, como um sonâmbulo que foi acordado, perguntou:

- Qual pequena? Falou-me de uma menina doente? Onde está?

A tia Liu mostrou-lhe o corpo inerte da tua mãe retorcido num feixe de palha.

Meng-Yu e eu estávamos sentados ao lado da nossa filha, segu­rando as suas pequenas mãos geladas e descarnadas.

O homem aproximou-se, inclinou-se para pegar no braço direito da tua mãe, apalpou demoradamente o pulso, pegou no outro braço e apalpou de novo. Em seguida, abriu os maxilares da tua mãe, pres­sionando as suas bochechas com os seus dedos, e olhou a língua. Depois, levantou uma ponta do cobertor para examinar os seus excre­mentos. Era uma espécie de coisa sem forma, de cor vermelho-clara, viscosa e fedorenta a provocar vómitos. Levantou-se.

Lancei-me aos seus pés e supliquei-lhe, batendo com a cabeça contra o chão.

- Salve a minha filha! Salve a minha filha, se faz favor... Ele levantou-me e suspirou:

- Bom, vou tentar, mas não posso prometer nada...

Depois de ter devorado três batatas-doces para recuperar um pouco de forças, enfiou as sandálias que o filho do negociante de antigui­dades lhe passara e saiu coxeando, ligeiramente, com um enxadão emprestado.

Só regressou ao cair da noite, com um bom punhado dessas plan­tas mágicas chamadas «bolso-do-fel-da-terra»: folhas verdes com muita lanugem, bolinhas minúsculas de flores violeta-pálidas, raízes espessas e curtas da cor da terra. Fez com elas um chá acastanhado, adicionou uma boa colher de mel e forçou Bai-Lan a bebê-lo, primeiro, quatro vezes ao dia, e, mais tarde, quando a diarreia foi estancada, duas vezes por dia, antes de uma pequena tigela de caldo de arroz. Durante uma dezena de dias, o homem saía todas as noites à caça de rãs nos arrozais dos arredores e, todas as manhãs, Bai-Lan encon­trava, pelo menos, um cacho na sua tigela...

Foi assim que a tua mãe se restabeleceu pouco a pouco. Eu não sabia como agradar ao salvador. «Não me agradeça», dizia-me ele. «Foi graças a ela que eu não me suicidei. Ao salvá-la, salvei-me a mim mesmo.»

Dois meses mais tarde, regressámos a Tien-Ma. O homem - desde então nós chamávamos-lhe tio Zheng - ficou connosco. Depois casou-se com a tia Liu.

O Verão ressoava como uma forja neste primeiro dia de Setembro de 1974.

Três dezenas de oficiais cintados nos seus uniformes à Mao esta­vam sentadas no estrado que dominava a Praça do Oriente Vermelho. No seu quadro ornado de seda escarlate, o presidente da República sorria a três metros de altura. As bandeiras vermelhas estalavam. Os altifalantes entoavam os acordes lancinantes de uma marcha. Alguns milhares de adolescentes de dezasseis e dezassete anos, todos «jovens­-instruídos», como lhes chamavam, estavam alinhados em filas ver­ticais, cabeça nua ao sol, esperando sem murmurar o momento da partida. Eles iam deixar Guang-Ning e os seus pais, imediatamente a seguir à assembleia, dispersos pelos quatro cantos do imenso campo chinês. Murmurando sob os seus chapéus de palha de aba larga, as massas que vieram para lhes dizer adeus enchiam as ruas à volta.

Fan-Fan mantinha-se de pé nas fileiras dos jovens-instruídos, a cerca de cinco metros do estrado, perto de Da-Lin e de Yu-Feng, seus camaradas de classe.

Na antevéspera, o ar tinha estado igualmente quente, tremendo de calor e de cólera. Na mesma praça, a mesma multidão tinha assistido ao julgamento e à condenação em público de sete homens. Dois ladrões, dois contra-revolucionários, três violadores, entre eles dois violadores de crianças. Todos de joelhos. De braços atados às costas e o cartaz ao pescoço: os seus nomes em grandes letras pretas, ris­cadas com uma enorme cruz vermelha em X. Agarrando-os pelos seus cabelos mal penteados, os soldados tinham-nos forçado a curvar a cabeça até ao solo. A acusadora pública, uma jovem de vinte anos, tinha pronunciado o veredicto que os altifalantes difundiam em directo por toda a cidade. Três condenados, respectivamente, a dois anos, sete anos e quinze anos de prisão; um a prisão perpétua; três à pena capital. Decidido a nada perder da cerimónia macabra, um grande número de espectadores tinha seguido, até ao terreno da execução, o camião que levava os três condenados à morte.

- Um condenado tentou gritar qualquer coisa, talvez um protesto - contou Yu-Feng, que estava lá com o seu pai - mas cobriram-no com cal viva. O camião parou no sopé do monte Verde. Fizeram os conde­nados descer. O mais velho não podia andar, arrastaram-no e sentaram­-no contra uma grande rocha. Os outros dois foram colocados de pé ao lado. A uma dezena de metros, soldados apontavam as suas espin­gardas para eles. «Fogo!», gritou uma voz. Os três homens caíram... - Como são os mortos? - perguntou Da-Lin.

Um arrepio percorreu a espinha de Fan-Fan. O crânio despeda­çado do guarda do pomar de lechias surgiu, de repente, diante dos seus olhos. Ela ficou com pele de galinha.

- Eu não consegui olhar para as suas caras - respondeu Yu­-Feng - não devia ser agradável à vista. Eu só vi as bolinhas de algodão com as quais taparam os buracos das balas. Todas vermelhas como flores vistas de longe.

- Eh!... - Da-Lin fez uma careta com repugnância.

Fan-Fan cerrou os dentes para conter um vómito, que inchava a sua garganta e as faces.

- Depois - prosseguiu Yu-Feng - chegou uma ambulância... - Ambulância? - gracejou Da-Lin. - Para quê? Para tratar os mortos?

- Eu não te julgava tão ignorante - disse Yu-Feng, lançando um olhar de desprezo para o lado de Da-Lin. - Há famílias que não têm coragem para vir buscar os corpos, então levam-nos para o Instituto de Medicina Legal para serem utilizados em cursos de anatomia...

- Uaaa!... - Fan-Fan lançou todo o seu pequeno-almoço sobre as gordas nádegas de um rapaz que se encontrava diante dela.

- Porca! - o pobre rapaz virou-se e levantou o punho. Da-Lin agarrou-lhe, prontamente, o punho:

- Tu não viste que ela está doente?

O rapaz olhou um momento Da-Lin, uma meia cabeça mais alto que ele, e baixou o braço. Com uma mão sempre na boca para impe­dir que vomitasse de novo, Fan-Fan, com a outra, retirou do seu bolso um lenço que estendeu ao rapaz. Este, enquanto praguejava, agarrou­-o e limpou-se lentamente.

- Estás melhor? - perguntou Da-Lin a Fan-Fan. - Chiu! - faz alguém atrás.

O presidente da comissão revolucionária de Guang-Ning levan­tou-se e falou. A sua voz rouca, exageradamente amplificada pelo microfone e os altifalantes, ressoava e pairava sobre rostos tensos como uma ave de rapina que procura a sua próxima vítima. Mas Fan­-Fan não o escutava. O seu olhar passou por cima do estrado para parar nas folhagens espessas das árvores. Ela tinha esquecido o crâ­nio repugnante do guarda e esquecera as bolinhas de algodão ensan­guentadas. Tinha mesmo esquecido onde se encontrava...

Acabava de completar os seus estudos secundários e de come­morar, na véspera, o seu décimo sétimo aniversário. Há quatro anos que sonhava fazer estudos de medicina e de trabalhar, mais tarde, num hospital como pediatra, ou talvez como cirurgiã. Enfim, por que não? Ela tinha sido tão brilhante na escola: primeira em Chinês, primeira em Matemática, primeira em Química e, também, primeira em Física - a matéria mais temida pela maior parte das raparigas. Um único ponto fraco: tinha feito desesperar, sem excepção, todos os professores de Ginástica. Ah! Ah!... Fan-Fan ri interiormente, revendo os seus traços deformados pela irritação. Isso, era pura e simplesmente por culpa deles. Eles tinham querido fazer dela a melhor basquetebolista da equipa da escola. «Uma aluna com um metro e setenta e cinco», diziam eles «é rara no Sul do país.» Mas Fan-Fan não se interessava absolutamente nada pelo basquetebol e, aborrecida com a sua teimosia, decidiu detestar todos os desportos. Não tinha necessidade de fazer esforços para agradar aos seus pro­fessores e ter boas notas, pois ela sentia-se em plena forma para fazer o que queria.

- Olha - sussurrou Da-Lin à orelha de Fan-Fan.

Fan-Fan levantou os olhos e viu uma jovem que subia para o estrado com um passo hesitante. A rapariga ia pronunciar o discurso em nome de três mil e quatrocentos jovens-instruídos, reunidos nesta praça no coração da cidade, para exprimir em voz alta o seu desejo ardente de ir trabalhar para os campos ao apelo do presidente Mao, para dizer adeus aos seus professores, amigos, vizinhos, pais, avós, e também para lançar um apelo aos seus irmãos e irmãs mais novos a seguirem o seu exemplo quando tiverem a sua idade.

Este ano adoptaram uma nova política, mais humana, segundo a opinião de toda a gente, em relação ao envio de jovens da cidade para o campo. Não se era obrigado a ir trabalhar para os campos, se por sorte se era filho único, a menos que, evidentemente, se quisesse ir de sua livre vontade, e no caso de serem vários irmãos e irmãs, os pais podiam guardar um filho da sua escolha em casa, isto é, na cidade. Fan-Fan tinha sabido, muito cedo, que a sua mãe e a sua avó guar­dariam Bi-Zhu em casa e ela compreendia-as perfeitamente. Foi por isso que uma noite, quando Mei-Li e Bai-Lan lhe queriam explicar, Fan-Fan tinhas-lhe dito que não valia a pena, que sabia e que ela gos­taria de conhecer a vida no campo, e que já era bastante crescida para tomar conta de si...

A jovem no estrado começava a falar para o microfone. Ela devia estar intimidada pela presença de tanta gente. A sua voz era tão fraca que tiveram de subir o som dos altifalantes. Era uma jovem de fraca estatura, de bochechas redondas de boneca, com duas tranças com­pridas que lhe caíam até à cintura. Fan-Fan julgava que já a tinha visto em qualquer lado.

- Imagina que ela tem só quinze anos! - disse Da-Lin em voz baixa.

- Ah, bom! Como é que sabes? - admirou-se Fan-Fan.

- Bah, ela habita a três portas da minha casa - respondeu o rapaz.

- Mas por que não continua os seus estudos, se ela tem menos de dezasseis anos? - perguntou ainda Fan-Fan cada vez mais curi­osa.

- É que ela tem um irmão de dezoito anos - explicou Da-Lin com uma careta. O irmão acaba de completar o segundo ciclo. Os pais preferiram guardar o filho na cidade. E eles pediram um sacri­fício à sua filha que terminava o seu primeiro ciclo. Como ela não sabe fazer senão aquilo que lhe dizem os pais, desde o seu nasci­mento, ela apresentou um pedido ao chefe de equipa do controlo ope­rário da escola. Este, o mais estúpido de todos os estúpidos, tu conhece­-lo, fez com que a escolhessem como representante dos jovens-instruídos este ano. Só quinze anos! Onde se poderia encontrar um exemplo mais comovente! A pobre! Tenho a certeza de que o seu pedido foi escrito pelos estúpidos dos pais! E pelo seu irmão também. Eu nunca deixaria a minha irmã mais nova fazer uma coisa dessas...

- Quantas irmãs tens? - perguntou-lhe Fan-Fan com um pequeno sorriso malicioso.

Da-Lin coçou a cabeça, depois balbuciou: - Bah... só tenho irmãos. Cinco, ao todo.

Fan-Fan não conteve o riso. Ela tinha adivinhado que Da-Lin não tinha irmãs.

A jovem, com cara de boneca, terminou o seu discurso com pala­vras de ordem que ela gritou, de punho erguido. A multidão repetiu. Quatro anos antes, Fan-Fan já se tinha encontrado nesta praça. O sol era igualmente esmagador, o ar igualmente sufocante. A mul­tidão, que rodeava pelos três lados o quadrado de dois mil e oito­centos jovens-instruídos, era igualmente densa e arrebatada. Uma dife­rença: nesse dia, Fan-Fan estava no lado dos espectadores. Ela vira Ming-Ming subir ao estrado, de passo lento, e colocar-se diante do microfone. O seu irmão tinha dezasseis anos, um ano a mais que a pobre menina com cara de boneca. Ele vestia a sua melhor camisa azul-clara apertada na cintura por um cinto de pano azul-carregado e as suas calças novas azul-marinhas, que a sua avó lhe confeccionara. Ele tinha o ar um pouco mais seguro que a oradora de hoje, e falava com uma voz um pouco mais forte. Ming-Ming tinha sentido muita dificuldade para preparar o seu discurso: ele teve de o modificar sete ou oito vezes, rasurando, acrescentando, suprimindo, alterando... até que a comissão revolucionária municipal o aceitasse por unanimi­dade. Ming-Ming teve também de saber o seu discurso de cor, a fim de dar a impressão que tudo aquilo vinha do fundo dele mesmo.

O presidente da comissão revolucionária dirigia-se, agora, em direcção à jovem oradora, com uma gigantesca flor em papel ver­melho na mão. Ele pendurou-lhe a flor no coração. A assistência aplaudiu. As faces da jovem tornaram-se tão vermelhas como as péta­las que cobriam o seu peito plano. Por causa do calor ou da emoção? Ou não seria senão um simples reflexo da flor?

Quatro anos antes, sobre o mesmo estrado, tinham oferecido a Ming-Ming, igualmente, uma enorme flor vermelha em papel. Flor de honra, como lhe chamavam. Ming-Ming manteve-a no peito durante toda a mesma exibição patética. Este ano, tinham distribuído na escola, a cada um dos jovens-instruídos, uma flor de honra que eles deviam pendurar no peito no dia da assembleia. Fan-Fan baixou os olhos para olhar para a sua. A dela era menos grande que a de Ming-Ming, mas igualmente vermelha e igualmente brilhante ao sol. Fan-Fan sabia que os carros já esperavam nas ruas junto à praça. Dentro em pouco, ela embarcaria com os seus camaradas. Destino? Tinham-lhe dito que seria levada para a comunidade popular Aurora, que ela não conse­guiu encontrar no mapa. Em que aldeia? Só lhes seria dito à sua che­gada à sede da comuna.

Uma mulher de quarenta e cinco anos, aproximadamente, subiu então para o estrado com um passo vivo. As suas maçãs do rosto sa­lientes estavam como que inflamadas por uma febre interior. Representante dos pais dos jovens-instruídos, colocou-se diante do microfone, limpou ruidosamente a garganta e iniciou a leitura de um folheto com uma excitação evidente. Fan-Fan não gostava da sua voz. Demasiado aguda. Como a ponta de uma lâmina fria que raspa no fundo da panela. «Malvada garganta!», repetia Da-Lin, com ar abor­recido.

Estará a ser sincera, interrogava-se Fan-Fan, quando ela se apre­senta como uma mãe heróica gritando a sua maior alegria ao ver os seus quatro filhos enviados, um a seguir ao outro, para o campo? Fan­-Fan abanou a cabeça.

O calor aumentava. O sol esmagava-se num pó ofuscante que rede­moinhava por todo o lado, cegando e sufocando. Fan-Fan tinha sede. Doía-lhe a cabeça. Fechou os olhos e, sob as suas pálpebras fecha­das, viu três caras familiares à volta da mesa: Bi-Zhu, a mamã e a avó. Uma refeição de aniversário, copiosa e silenciosa. Ninguém tinha vontade de falar. Depois da partida de Ming-Ming, a mamã tinha ficado doente e fechara-se no seu quarto a chorar durante três dias. Quanto à avó, impôs-se toda a espécie de trabalhos duros para acal­mar os nervos e impedir-se de pensar... O que é que acontecerá, desta vez, a seguir à sua partida?... Fan-Fan preferia não pensar nisso. «Tu vais escrever-nos?», tinha-lhe pedido a mãe antes de ir trabalhar. Sim, ela escrever-lhe-á, nessa noite, logo a seguir à chegada... Há já qua­tro anos que Ming-Ming trabalha na divisão de produção. Ele não escreve com muita frequência. E escreve só à Bi-Zhu. Durante estes quatro longos anos, só esteve três vezes a Guang-Ning.

A primeira vez, foi quatro meses depois da sua partida. Segundo o que ele tinha contado, Fan-Fan compreendeu que foi graças a uma

intoxicação alimentar que quase o tinha enviado para as «Fontes Amarelas», morada dos mortos. «Imaginem», dizia ele, «mais de dois mil comilões de arroz desembarcados, de repente, numa região mon­tanhosa em que os próprios camponeses não têm o suficiente para encher o estômago! O Inverno chuvoso nas montanhas tornou as estra­das impraticáveis e o reabastecimento da divisão extremamente difí­cil. Houve dias em que nos deitámos de estômago vazio. Uma manhã, fui enviado com cerca de trinta camaradas para abrir buracos a fim de plantar héveas na encosta de uma colina. Por volta do meio-dia, durante a pausa, desci ao vale para procurar água. Imaginem o que descobri junto de um ribeiro! Um campo de mandioca selvagem. Apanhei a maior, arranquei-a com todas as minhas forças. O que é que eu vi? Meu Deus! Bocados de raízes grossas como pernas de bebé. A alegria que sentiu Colombo no momento em que vislumbrou a linha cinzenta do Novo Continente tenho a certeza que não era maior que a minha. Gritei como um louco e os meus camaradas vie­ram. Nessa mesma noite, levámos para o acampamento vários cestos de raízes de mandioca. Fomos aclamados como heróis. Não podendo esperar até ao dia seguinte, acendemos o lume imediatamente, e colo­cámos o trofeu numa dezena de caçarolas com água da fonte. E antes mesmo que estivessem cozidas, toda a gente se precipitou sobre elas como lobos esfomeados. Mas, pouco depois, surgiram os primeiros sinais de envenenamento e o mal-estar generalizou-se rapidamente. O alarme foi dado por Shiao-Niu, o condutor do tractor, chegado da Vila do Galo de Ouro, demasiado tarde para participar no banquete. Um grupo de três médicos e cinco enfermeiras foi enviado de urgên­cia ao acampamento pelo hospital da comuna. Todos os que tinham comido mandioca foram forçados a engolir uma taça de tisana hor­rível feita da casca de criptoméria, tisana que provocou vómitos vio­lentos, mas que nos salvou a vida. Na sequência do incidente, os into­xicados mais afectados foram contemplados pelas autoridades com um mês de férias junto dos seus pais para recuperar. E eu tive a sorte de estar entres os felizes escolhidos.»

- Bolas! - disse Da-Lin em voz baixa.

Fan-Fan abriu os olhos, olhou-o e depois olhou para o estrado. A representante dos pais cedera o microfone a um rapazinho. Uma criança de onze ou doze anos. Um oficial saiu do seu lugar para bai­xar o microfone. O jovem orador, de boné do exército levantado sobre a sua testa de ar sério, a braçadeira vermelha no braço esquerdo: «Pequeno Guarda Vermelho», em grandes caracteres amarelos, apru­mou-se ali, direito como uma vara de madeira.

- Bolas! - disse Da-Lin de novo.

- O que foi, Da-Lin? - perguntou Fan-Fan.

- É o meu terceiro irmão mais novo - respondeu Da-Lin entre dentes.

De peito orgulhosamente inchado, o jovem orador começou a evo­car, com voz infantil, a sua admiração pelo «ardor revolucionário» com o qual os seus «irmãos e irmãs mais velhos» respondiam ao apelo do presidente Mao, e a boa-vontade de todos os seus «irmãos e irmãs mais novos» de, mais tarde, seguir o seu exemplo...

- Se ele soubesse o que diz! - murmurou Da-Lin com um ar abatido.

Fan-Fan deu um suspiro. Sobretudo se ele soubesse o que o espera lá em baixo... pensou ele.

A segunda vez foi há dois anos, foi tão inesperada como a pri­meira. Ming-Ming chegou a casa numa noite do mês de Março com o braço esquerdo ao pescoço. Tinha um ar tão triste que ninguém ousou perguntar-lhe o que tinha acontecido. Mei-Li, no dia seguinte, foi ver o velho dono da loja de ervas medicinais moídas. Ming-Ming devia mergulhar o seu antebraço partido num líquido preto e quente, três vezes ao dia, durante uma hora. Toda a gente tinha notado que Ming-Ming tinha mudado muito. Fisicamente e sobretudo mental­mente. Acontecia-lhe ficar deitado muitas horas na sua cama, de olhar fixo. Depois, no dia  5 de Abril, dia de Qing-Ming-Jie, Ming-Ming acompanhou Bi-Zhu à margem do rio Yang onde ela se desloca todos os anos para a festa dos mortos, desde o desaparecimento do seu pai. Queimaram pauzinhos de incenso e dinheiro em papel. Bi-Zhu leu um poema de Li-Po, poeta preferido do seu pai. Permaneceram horas sentados num rochedo sobranceiro ao rio, a olhar a corrente tranquila da água amarelada. Foi nesse momento que Ming-Ming contou o que lhe tinha acontecido. Lá em baixo, na divisão de produção, era atri­buído um salário irrisório de quinze kuais por mês, do qual eram reti- " rados nove kuais para pagar uma alimentação sempre tão pobre em qualidade como em quantidade. Então, cada primeiro domingo, a seguir ao pagamento, todos os jovens se precipitavam para o único restaurante da Vila do Galo de Ouro, situada a cerca de dez quiló­metros do acampamento, para acalmar as crises persistentes dos seus estômagos. Nesse dia, Ming-Ming tinha saído do acampamento, com o seu magro tesouro apertado no fundo do bolso. Tinha encontrado Shiao-Niu, o seu melhor amigo, que se preparava para partir para a Vila do Galo de Ouro a fim de comprar provisões. Quando viu Ming­-Ming convidou-o a subir para o reboque do tractor, denominado «jeep dos jovens-instruídos». Já lá estavam cinco rapazes e três rapa­rigas, todos muito contentes por não ter de arrastar os pés na lama de uma estrada em ziguezague nas montanhas. Mas, numa curva, um bocado da estrada amolecido pelas chuvas afundou-se por debaixo das rodas do tractor. O veículo caiu no vale. Dois mortos e oito feri­dos graves. Shiao-Niu, com o peito trespassado pelo tronco de uma árvore quebrada, sucumbiu, imediatamente. Ming-Ming foi o que teve mais sorte entre os que escaparam; safou-se só com algumas arra­nhadelas na cara e um braço partido.

Uma tempestade de aplausos sobressaltou Fan-Fan. Ela ergueu os olhos para o estrado. Era o jovem irmão de Da-Lin que terminava o seu discurso. Desceu do estrado com um ar orgulhoso. Foi a vez de subir para lá um jovem com uns vinte anos de idade. Ajustou o micro­fone à sua altura.

- Nós trazemos - gritou ele com uma voz enrouquecida - nós, os operários de Guang-Ning, o nosso apoio sem reservas à acção revolucionária dos jovens-instruídos. Nós esperamos sinceramente que eles ultrapassem todas as dificuldades que encontrarão inevita­velmente no seu caminho, e que se enraízem no campo...

A voz do orador era tão forte que Fan-Fan levou, instintivamente, as mãos às orelhas. Depois, tomando consciência de que o seu gesto poderia ser interpretado como um perigoso sinal de rejeição, baixou rapidamente as mãos.

No estrado, o representante dos operários prosseguia o seu dis­curso, uma lengalenga enfadonha de morte que os oradores repetiam todos os anos.

Fan-Fan tinha muita sede. As gotas de suor percorriam-lhe o pes­coço como lagartas. Baixou a cabeça, olhou a ponta das suas sandá­lias de tiras...

A terceira vez, foi a avó que conseguiu fazer regressar Ming-Ming. Não era nada fácil, evidentemente, porque na divisão de produção era quase impossível obter, sem «motivo válido», uma licença de regresso, nem que fosse por um só dia. Nesse ano, em finais de Junho, quando a partida de Fan-Fan para o campo já estava decidida, a mamã escreveu a Ming-Ming para lhe pedir que viesse passar uns dias a casa. «Senão, não se sabe quando é que a tua irmã e tu se poderão voltar a ver...», dizia ela na sua carta. Duas semanas mais tarde, a resposta de Ming-Ming chegara: as autoridades da divisão tinham recusado deixá-lo sair, a razão não lhes parecia «válida». Então, depois de uma noite em claro, a avó deslocou-se aos correios para enviar duas mensagens: «Acidente na estrada. Avó gravemente ferida. Regresso imediato.>» Dois dias depois, Ming-Ming apareceu à soleira da casa. Ele tinha conseguido, graças à artimanha da avó, obter cinco dias de licença: dois dias para a ida e volta e três dias para permanecer junto da ferida. Ao fim de três dias, a mamã e a avó pediram a Ming-Ming para nunca mais voltar para o inferno da divisão de produção. «Tu podes ir esconder-te na casa do tio Wei», diziam elas, «ninguém des­confiará. Depois. Logo se verá... » Mas Ming-Ming não queria colo­car em perigo o futuro de Bi-Zhu. «Se eu, agora, não regressar à divisão», dizia ele, «Bi-Zhu corre o risco de perder a sua hipótese de permanecer na cidade. De qualquer modo, eu deixarei a divisão, está prometido, mas mais tarde.» Mas Ming-Ming não disse como a aban­donaria...

- Olha, Fan-Fan - disse Da-Lin, dando-lhe uma pequena coto­velada.

Fan-Fan abriu os olhos e viu diante do microfone um velho ves­tido exactamente como os camponeses nos filmes. Da-Lin deu um longo suspiro.

- Até que enfim, o representante dos camponeses para nos dar as boas-vindas. A assembleia vai terminar.

No Verão de 1945, os Japoneses capitularam. Os alunos do pri­mário e do secundário de Tien-Ma desceram à rua tocando tambores e gonzos para celebrar a rendição. Toda a cidade veio aplaudir o des­file. Lágrimas e risos misturados, foram horas passadas a gritar e a lançar foguetes.

Nesse ano, a tua mãe fez doze anos. A vida era cada vez mais difícil. O pequeno pátio rectangular estava agora cortado por um muro de pedra cinzento. Mas a romãzeira continuava lá, anunciando as suas flores mais vermelhas que nunca, a cada regresso do grande calor.

Junto à escola, havia uma pequena sala de teatro - a única em Tien-Ma. A tua mãe ia lá muitas vezes a seguir à escola para assis­tir aos ensaios. Eu não estava ao corrente até ao dia em que uma mulher veio ver-me ao restaurante da tia Liu. Uma mulher elegante, com cerca de quarenta anos, ligeiramente maquilhada, ainda bela, apresentou-se como a esposa do professor do pequeno teatro, e pediu­-me autorização para deixar Bai-Lan aprender a cantar. «A vossa filha tem uma bela voz», disse-me ela, «e os seus grandes olhos são muito expressivos. Com trabalho, ela será um dia uma nova estrela da ópera Gui.» Mas eu não queria que a minha filha única se tornasse uma actriz. Sim, de acordo, cantar ópera é hoje uma profissão respeitável, e uma actriz com êxito é uma artista. Mas, nessa época, isso não era uma profissão para uma rapariga de uma família honesta. Apesar dos êxitos, o destino de uma actriz de ópera era, na maior parte dos casos, o de uma concubina ou de uma das numerosas concubinas de um homem rico ou poderoso. Não, não, eu não deixaria a minha Bai-Lancair na armadilha, ela merecia ter uma vida melhor que isso. Ela iria estudar, eu apoiá-la-ia o que pudesse, nem que tivesse de fazer tra­balhos de escrava. Ela seria professora ou enfermeira ou outra coisa qualquer, mas não comediante, não! «Reflicta um pouco, apesar de tudo, minha senhora», disse-me a directora do teatro. «Vossa filha é apaixonada pela ópera. Ela ficará muito desiludida quando souber que a sua mãe é contra...» Não, não, eu não tenho necessidade de reflectir. Eu tinha dito não e não mudaria de opinião...

A mulher foi-se embora. Ela tinha um ar frustrado. Quando ela saiu, a tia Liu aproximou-se

- Desta vez, Mei-Li - disse-me ela, juntando água quente na minha chávena de chá - foi a tua vez de não teres razão. Não, não tens necessidade de me explicar, minha filha, eu ouvi a vossa con­versa, eu compreendo muito bem as tuas preocupações de mãe. Mas o que poderás tu fazer para abafar uma paixão, hem? Nada, digo-te. A paixão é como um rio em enchente que procura uma saída. Ele enche mais depressa diante de uma barreira, e acabará por transbordar ou até quebrá-la. Os estragos serão então irreparáveis. Mas se, pelo contrário, tu escavas um canal para conduzir a água, será muito dife­rente, tu verás... Aliás, nem todas as actrizes têm o mesmo destino.

Tendo reflectido, admiti que ela tinha razão, a minha tia Liu. À noite, estava eu a escolher os legumes na cozinha quando Bai­-Lan entrou para beber um copo de água. Notei que os seus olhos estavam vermelhos e inchados. A directora deve ter-lhe falado da nossa conversa e a minha pobre filha tinha chorado. É necessário ter um coração de pedra para não ceder às lágrimas da sua filha, sabes... Coloquei então a tua mãe nos meus braços e disse-lhe ternamente: - A directora do teatro falou comigo esta manhã...

A tua mãe não me olhava. Ela olhava para a ponta dos seus sapa­tos. E nada dizia.

- Depois de ter reflectido muito - continuei - decidi.

A tua mãe mantinha-se imóvel e silenciosa, de olhos baixos. Prossegui depois de um pequeno suspiro:

- Estou de acordo...

A tua mãe pôs os seus olhos surpreendidos nos meus, olhou-me como se não acreditasse nos seus ouvidos..

- Tu queres dizer que eu poderei aprender a cantar, mamã?... - perguntou com uma vozinha hesitante.

- Sim, querida, com a condição de que tu trabalhes na escola e que recites um poema de Tang todos os cinco dias...

- Ó mamã!...

Com estas palavras, ela lançou-se porta fora. -Onde vais? - gritei eu atrás das suas costas. - Vou dizer ao pai!

Ao vê-la tão feliz, sorri. Mas menos de um segundo depois, eu ouvi-a gritar a catástrofe no pátio:

- O fogo! Mamã, o fogo!

Precipitei-me para fora da cozinha. Oh, céus! Vejo as chamas ver­melhas e o fumo preto sair da janela do quarto da minha sogra. Volto à cozinha, pego numa bacia, mergulho-a no pote, retiro-a cheia de água e corro para a porta do quarto da minha sogra. Mas está fechada por dentro. Furiosa, tentei forçar a porta a pontapé, mas ela resiste. Ao apelo de Bai-Lan, a tia Liu e o tio Zheng vêm a correr. O tio Zheng pega num pequeno banco e perfurou a porta. Pum! A porta abre-se bruscamente. O tio Zheng recua, empurrado pelo calor e o fumo. Eu despejo a bacia de água para o interior. A tia Liu lança um balde de água para a janela de onde saem chamas altas. He!... Tio Zheng levanta um jarro e despeja-o na entrada do quarto. O fogo parece ceder. O tio Zheng levanta então um outro jarro e entra no quarto. Ele sai de lá com um corpo nos braços. É a minha sogra. Ele deita-a nas lajes do pátio. A tia Liu vaza um balde de água sobre as suas roupas que ainda fumegam. A minha sogra geme levemente. «Depressa, óleo de amendoim!», grita a tia Liu. Eu corro para a cozi­nha para ir buscar a garrafa. A tia Liu tira-me a garrafa das mãos, vaza-a abundantemente na cara, nos braços e nas pernas, vermelhos e pretos, da minha sogra.

Junto de nós, Bai-Lan, apoiada contra a romãzeira, tremia com todos os seus membros. Apertei-a nos meus braços e levei-a para o nosso quarto, onde Meng-Yu se encontrava num estado de muita angús­tia. Chamei o melhor médico da cidade, mas, quando ele saiu, não quis que eu lhe pagasse: «É melhor preparar o funeral», disse ele.

A minha sogra agonizou durante toda a noite. Morreu na manhã do dia seguinte, antes do amanhecer. Não nos pôde dizer o que tinha acontecido.

Era necessário enterrá-la depressa por causa do calor. Nós tive­mos de pedir dinheiro emprestado para lhe mandar fazer um caixão no próprio dia. Servi-me do lençol menos usado da nossa casa para a envolver. Ela foi inumada nessa mesma noite, ao lado do meu sogro. A minha cunhada Jing-Hua não assistiu à cerimónia fúnebre, porque estava, de novo, grávida.

Depois do funeral, entrei no quarto da defunta para arrumar o resto das suas coisas. Mas não havia nada a arrumar. Tudo estava quei­mado. Tudo. O mosquiteiro, o cobertor, o lençol, o colchão, a cama, a mesa de cabeceira, o suporte de bacia, o cadeirão de vime, o grande armário; a roupa, a janela, o tecto... Tudo estava reduzido a cinzas e a carvão deploráveis entre superfícies de paredes enegrecidas.... De repente, o sol que penetrava pelo buraco preto do telhado fez brilhar qualquer coisa. Debrucei-me sobre os destroços negros deixados pelo armário grande e descobri... adivinha o quê... uma caixa!

Era uma caixa de ferro pintada cuja decoração tinha sido devo­rada pelas chamas. Juntei-a. Era muito pesada. Limpei-a com a minha manga. Tilintava no seu interior. Quis abri-la mas estava fechada à chave. A chave!... Onde está a chave?...

Revolvi a cinza durante uma boa meia hora sem nada encontrar. De repente, veio-me a ideia de que a chave devia estar debaixo do corpo da minha sogra e já a seis pés debaixo da terra. Fui à cozinha e, com uma machadada, rebentei o cadeado.

Quando a caixa se abriu, primeiro, vi um rolo de tecido verme­lho. Ele desfez-se em pedacinhos ao primeiro toque, deixando apa­recer uma pilha de peças de prata que reluzia do seu brilho intacto. As economias da minha sogra, sem dúvida. Contei duas vezes. E elas eram vinte cinco. Uma fortuna inesperada que nos permitiria viver durante, pelo menos, um ano, depois de ter pago as dívidas. Por debaixo das moedas de prata, encontrei um par de brincos em ouro e um anel de prata maciça. Os brincos foram vendidos, alguns anos mais tarde, para o funeral do meu marido. Mas o anel de prata ainda o guardo... É este. Eu utilizei-o algumas vezes, lembras-te? Para vos fazer massagens quando tínheis febre, o teu irmão e tu...

E por debaixo das moedas de prata havia também uma caixa de bronze minúscula, muito plana, escondida pelo resto do tecido ver­melho. Abri-a. Era uma fotografia acastanhada pelo calor do incên­dio. Mas ainda se podia distinguir um rosto de boné militar... Oh, céus! Não é outro senão o de Jing-Ming! Sim, era exactamente ele. Tê-lo-ia reconhecido mesmo se a fotografia estivesse em cinzas. Com mil precauções, virei a caixa e deixei cair a fotografia na palma da mão. No verso da fotografia, algumas palavras um pouco fluidas tra­çadas a tinta preta: «Para Mei-Li, minha querida. 6 de Junho de 1938.»

Portanto, era uma fotografia que me fora enviada. Era uma foto­grafia assinada no próprio dia do primeiro aniversário da nossa filha Bai-Lan. Era uma fotografia interceptada pela minha sogra. E com esta fotografia, uma carta ou cartas dirigidas a mim também. As car­tas! Onde estão essas cartas que Jing-Ming me tinha escrito! Que eu nunca tinha recebido! Onde estão essas cartas! Oh, onde estão elas!

Como uma louca, corri através do quarto queimado. Revolvi todos os escombros. Vasculhei todos os recantos, os mais obscuros. Fui até sondar as paredes para ver se havia um esconderijo em qualquer parte... Escavei também com os meus dedos no sítio da cama... na esperança de descobrir um pote enterrado. Oh, se ao menos eu pudesse encontrar as suas cartas! Se pelo menos eu pudesse saber o que ele me tinha escrito!...

Só muito tempo depois da tragédia é que eu pude aceitar esta rea­lidade cruel: as cartas de Jing-Ming estavam perdidas para sempre. Elas foram, de facto, destruídas pelo incêndio, se não muito antes pela minha sogra. Foi a partir desse momento que o meu sofrimento se tornou mais doloroso. Como um ferido que no momento do aci­dente nada sente mas que mais tarde sofrerá mil mortes.

Não, não, eu nunca pensei, nem um segundo, que a minha sogra se pudesse ter suicidado. Imagina. Se ela leu as cartas que Jing-Ming. me tinha escrito, ela devia adivinhar que Bai-Lan era filha de Jing­-Ming, portanto sua neta. E se ela não me tinha entregue essas car­tas, é porque ela queria impedir-me de abandonar Meng-Yu para me juntar a Jing-Ming. E impedir-me de escrever a Jing-Ming para lhe dar a conhecer o nascimento da sua filha. Ele teria corrido todos os riscos para nos vir buscar se ele tivesse sabido que já tinha uma filha. Portanto, ela deveria sobreviver o máximo de tempo que pudesse, teria sem dúvida pensado a minha sogra, para o bem de Meng-Yu. Mesmo que ela não tivesse vontade de viver, após o desaparecimento do meu sogro e da venda da loja, ela devia permanecer junto do seu filho deficiente, como o deus guardião, para vigiar a sua mulher, que era ainda perigosamente jovem e bela. Enquanto ela estivesse lá, eu não poderia receber a mais pequena notícia de Jing-Ming, nem con­ceber qualquer ideia de fuga com Bai-Lan.

Sim, é isso, eu pensava que este incêndio teria sido, certamente, um acidente. Lembras-te do que eu te disse? A minha sogra passava muito tempo na sua cama com uma lâmpada de azeite acesa à cabe­ceira da cama. Se por acaso ela adormecesse, de repente, o que te parece que poderia acontecer? Um simples gesto da mão no seu sono, a lâmpada de azeite virada, a chama correndo com o azeite, depois o fogo, o incêndio... Enfim, era assim que eu via as coisas. Mas a verdade ninguém a saberá, nunca.

E, não sei porquê, era incapaz de rancor para com a minha sogra. Foi por Meng-Yu, o seu filho doente, que a minha sogra tinha feito isso. Tinha somente tristeza no coração. Eu não podia senão chorar sobre a minha sorte... E portanto não, nem sequer este remédio mise­rável. Nem sequer o direito de perder o meu tempo a lamentar-me: tinha três bocas a alimentar...

Querida avó, querida mamã:

Eis, finalmente, um dia de descanso desde Maio último! Quando há pouco acendi a minha lâmpada a petróleo, colocada no banco ao lado da minha esteira de junco estendida no chão, toda a aldeia já dormia à minha volta, reagrupada por família numa grande eira de terra batida, rodeada em três lados pelo celeiros e no outro por um muro baixo de tijolos cinzentos. Reina, por todo o lado, um silêncio imenso, só perturbado, de tempos a tempos, por uma pieira de alguém que dorme ou pelo ladrar de um cão ao longe. Queimaram trapos velhos para afastar os mosquitos e o odor picante do fumo paira ainda no ar. Costume curioso este de se amontoar na eira no Verão para passar a noite em conjunto ao ar livre, pensais vós? Certamente que não! E eu vou-vos explicar porquê. No momento em que vos escrevo, o céu tem uma profundidade infinita, de um azul-escuro insondável, em que as estrelas cintilam com um brilho frio. e molhado como inu­meráveis meninas-dos-olhos melancólicas. O crescente da Lua torna­-se um barco de ouro com as extremidades pontiagudas de onde Chang-Er olha para a Terra, através das suas lágrimas eternas... Eu esperei este momento de paz universal para vos contar o que se pas­sou aqui durante estes últimos quatro meses, longos, o período mais pesado e mais negro da minha vida.

Nunca fez tanto calor, diziam os idosos da aldeia, é bom para o arroz, mas mau para o homem. A colheita, de facto, nunca foi tão abundante, os arrozais em socalcos eram como escadas gigantescas

cobertas por um tapete de ouro que se desenrolava em direcção ao céu. Todos os aldeões, das crianças de seis anos aos idosos de setenta, afiaram cuidadosamente as suas foices na pedra azul-cinzenta na mar­gem do lago. Mesmo as famílias mais pobres compraram dois ou três grandes bocados de toucinho, que penduraram, orgulhosamente, à parede escurecida da cozinha: para grandes trabalhos, grandes boca­dos de carne. Toda a gente espera o momento da ceifa com uma ale­gria e uma impaciência tão grandes como o calor. Ora, no dia 31 de Maio, o primeiro dia da ceifa, que este ano começou muito mais cedo que o habitual, a mulher do chefe da aldeia morreu durante um parto. Uma crise cardíaca. O casal já tem quatro filhos, três raparigas e um rapaz. O médico da clínica da comuna, que acompanhava a mulher, tinha-a aconselhado a não voltar a engravidar por causa do seu cora­ção doente. Mas o casal não fez caso no seu desejo absoluto de ter mais um filho, a qualquer preço. É essa a sua tragédia. No campo, o nome da família e os velhos dias dos pais só são assegurados pelos descendentes machos. Por isso, faz-se tudo para ter mais um filho, ou melhor, dois, por razões de segurança: ficará um, se por infelici­dade o outro for levado por algum azar antes da idade da maturidade. O próprio chefe da aldeia é o mais novo de treze filhos, os primei­ros doze são raparigas. Morta a sua mulher, o seu bebé - uma menina prematura, muito pequena - não teve melhor sorte que a sua mamã. Oh, pobre pequena! Foi envolvida num pedaço de um lençol velho e colocaram-na sobre o ventre gelado da sua mãe, antes de fechar o caixão. Ela, assim, terá frio no túmulo no flanco da montanha quando os ventos do Inverno se levantarem de novo, não é?

Desde a minha chegada que estava alojada na casa do chefe da aldeia, mas, depois do drama, não suportei mais permanecer nesta casa onde todas as noites me parecia ouvir o roçar da mortalha con­tra os batentes de madeira da minha janela. Agora, partilho o quarto de Lian-Hua, a filha do professor da aldeia. Lian-Hua vai fazer dezas­sete anos dentro de um mês. Ela é aberta e alegre, às vezes, um pouco indiscreta. Tão bela como o seu nome, «Flor de Lódão», ela atrai os olhares ávidos ou ciumentos por todo o lado onde passa e diverte-se com isso! Eu dou-me muito bem com ela e com o resto da família. O pai, dotado de uma modéstia adorável, é a pessoa mais educada da aldeia. Ele é o único que sabe falar o mandarim, enfim, mais ou menos, e com um acento que, às vezes, me faz morrer a rir. A mãe, que não sabe ler nem escrever, tem um respeito quase religioso por algumas dezenas de velhos livros do seu marido, ela só vive para ele e para os filhos. O irmão mais novo está em sistema de internato na escola secundária da comuna, e só vem a casa ao domingo, orgulhoso e mimado como um pequeno imperador. O irmão mais velho, um autêntico moinho de palavras, esteve no exército durante três anos e só regressou à aldeia há três meses. Enfim, o avô, mais sólido que uma rocha, apesar dos seus setenta e oito anos, ainda trata dos búfa­los da aldeia como há mais de vinte anos e recebeu o apelido de «General dos Búfalos».

Só depois do funeral da mulher do chefe da aldeia se iniciou real­mente a ceifa. Foi necessário todo o mês de Junho para cortar, bater, secar e armazenar os trezentos e sessenta e dois mous de arroz; depois o mês de Junho para transplantar as novas plantas para os arrozais, imediatamente lavrados e limpos após a colheita. Saíamos, todos os dias, com a primeira claridade do alvorecer e só entrávamos ao cair da noite. Ao meio-dia, engolíamos à pressa duas grandes tigelas de arroz, debaixo de um sol escaldante, ou à sombra de uma árvore se, por sorte, se encontrasse alguma junto do arrozal; questão de ganhar uns vinte minutos de ida e volta.

No dia 29 de Julho ainda terminámos mais tarde, porque não que­riamos deixar a última parcela do arrozal para o dia seguinte. Por isso, entrámos mais tarde nessa noite. Mas mal tínhamos acabado de esvaziar a primeira tigela de arroz já ouvíamos as pancadas baru­lhentas do gonzo, seguidas pela voz rouca do chefe da aldeia: «Reunião de urgência! Reunião de urgência! Que toda a gente se junte na eira imediatamente! ... » Mas ninguém tinha vontade de se mexer. Finalmente, o pai de Lian-Hua dirigiu-se para lá, só, como represen­tante da família. Ele regressou a correr, cinco minutos depois, preci­pitou-se sobre o seu velho posto de rádio e acendeu-o imediatamente. Habitualmente, o professor ouvia-o todos os dias, quando tomava o seu pequeno-almoço e depois do jantar, mas esta rotina tinha sido perturbada, neste momento, pela grande fadiga da ceifa. Há algumas semanas que não tocava no seu rádio.

Primeiro, o aparelho só emitiu ruídos parasitas. Depois uma voz de homem, muito fraca, que mal se distinguia. Insuficiência de bate­rias, sem dúvida. O professor colou uma orelha ao rádio. Lian-Hua, a sua mãe, os seus irmãos e eu trocávamos olhares divertidos, enquanto continuávamos a comer a nossa sopa despreocupados. De repente, o professor ergueu-se e disse-nos num tom apocalíptico:

- Anteontem de manhã houve um grande tremor de terra em Tang-Shan*. Parece que a cidade foi totalmente destruída.

- Onde fica Tang-Shan? - perguntou Lian-Hua.

- Muito, muito longe - respondeu o irmão mais velho.

- A quase dois mil quilómetros daqui, no Norte - precisei eu. - Houve muitos mortos? - perguntou a mãe.

- Parece que sim - respondeu o pai. - Imaginem um pouco, se já não há nem um imóvel, nem uma casa de pé nesta grande cidade com mais de um milhão de habitantes, quantos mortos e feridos deve haver? Centenas de milhares, pelo menos!...

- As pessoas de lá devem ter ofendido o deus da terra... - mur­murou o velhote, que acendia o seu cachimbo.

Centenas de milhares de uma só vez!

É horrível! Isto ultrapassa toda a imaginação. Imaginem que algu­mas dezenas de milhares de aldeias semelhantes à nossa (dezasseis lares, cento e doze cabeças) sejam riscadas do mapa com uma pin­celada, desta maneira, com os seus habitantes... Não, não é possí­vel. É impensável. É inconcebível. Eu não queria acreditar. Ora, desde o dia seguinte, de manhã, correram rumores que, aqui tam­bém, se tinham registado numerosos sinais precursores de um sismo que poderia ser comparado em todos os pontos com o de Tang-Shan: a água sempre límpida de um poço multissecular tinha-se tornado turva; uma fonte inesgotável tinha deixado de correr; bandos de ratos tinham saído para a rua em pleno dia; galos tinham arrulhado como as galinhas e as galinhas cacarejado como os galos; os bois e os búfalos tinham-se recusado a voltar ao estábulo; um pinheiro mile­nar tinha secado num piscar de olhos, etc. Pânico geral. Já ninguém se sentia em segurança na sua própria casa. Já ninguém queria nem podia dormir debaixo de um telhado. Não ficareis surpreendidos se, desde esse dia, homens e mulheres, idosos, crianças, todos se acumu­lam na eira comum da aldeia para passar a noite, apesar dos ataques ferozes de legiões de mosquitos impacientes para acorrerem a este banquete inesperado.

* Segundo os números publicados depois da catástrofe, houve mais de duzentos e quarenta mil mortos no sismo.

 

Depois, a 23 de Agosto, o chefe da aldeia deu-me uma outra má novidade. Desta vez, é o meu futuro que está em causa. Seis meses antes eu tinha feito, lembram-se, um pedido para entrar para o Instituto de Medicina de Guang-Ning. Eu estava tão excitada com a perspec­tiva de... Mas a minha candidatura foi recusada. A razão? O pro­blema «histórico» do papá. A mamã divorciou-se dele há quase deza­nove anos! Eu não o voltei a ver desde os meus três meses! Tudo isso não altera nada: o papá é um direitista contra-revolucionário e o seu sangue correrá sempre nas minhas veias. É tudo. Eu tive um pequeno vaso de terra cozida que era tão vermelho como o sangue, tão belo como um sonho; um dia, coloquei-o por imprudência sobre a ponta do cortinado; uma corrente de ar levantou o cortinado, o meu vaso caiu por terra e desfez-se em mil bocados. Não, nem por isso tinha chorado. Desta vez também não chorei. Debruçando-me sobre o meu velho sonho desfeito, fiquei mais surpreendida que entriste­cida. Como a vida é absurda!

Não é tudo.

Uma noite, Da-Lin veio aqui.

Sim, é verdade que Da-Lin habita em Quatro Lagos, numa aldeia a menos de três quilómetros daqui, e que ele vem muitas vezes beber uma chávena de chá comigo ou buscar-me para um passeio à feira. Mas nunca veio depois do cair da noite: para vir, ele tem de passar por um bosque de pinheiros denominado «Bosque dos Fantasmas» pelos camponeses, e não é seguro atravessá-lo de noite sozinho.

Portanto, antes mesmo que Da-Lin abrisse a boca, eu já sabia que se tinha passado algo de terrível. Mas eu nunca pensei a... Oh! como teria eu podido pensar nisso!

- LU,,Lu morreu - disse-me Da-Lin, num tom fúnebre que me fez tremer dos pés à cabeça.

Lu-Lu, lembram-se sem dúvida dela; uma jovem tímida de rosto redondo de boneca da qual vos falei na minha primeira carta? Sim, é ela, a jovem oradora de quinze anos que tinha pronunciado um dis­curso diante da assembleia dos jovens-instruídos há dois anos, na Praça do Oriente Vermelho em Guang-Ning. Ela também trabalhava em Quatro Lagos.

- Tu vens comigo? - pediu-me Da-Lin. Eu seguiu-o sem uma palavra.

A última vez que eu tinha visto Lu-Lu foi antes da ceifa, por volta do fim de Abril. Eu tinha ido à feira para comprar duas libras de petróleo para o meu candeeiro. No campo não há electricidade, utiliza-se o candeeiro a petróleo. O petróleo para candeeiro vende-se nas lojas à libra.

Mas o vendedor só me deu uma libra, «Uma libra por cabeça», dizia ele. Não faz mal, pensava eu ao sair. Em seguida, tinha ido aos correios comprar dois selos de oito fens. «Não tem trocado?», perguntou-me o único empregado. Não, eu só tinha uma nota de dois maos. Nesse momento, ouvi uma vozinha por detrás de mim: «Olha, eu tenho.» Eu viro-me, era Lu-Lu. Ela esten­deu-me um mao e seis fens. Como eu hesitasse, ela disse-me com um sorriso tímido: «Mais tarde tu podes restituir-mos, sabes...» Depois fomos comer uma tigela de massas de arroz num pequeno restaurante do canto, e prometemos que nos voltaríamos a ver em breve.

E agora, Lu-Lu estendida numa cama, coberta com um lençol branco de riscas vermelho-claras. Tinham retirado a mosquiteira. Uma lâmpada a petróleo colocada numa mesa de madeira rústica mal ilu­minava o quarto. Eu aproximei-me. Levantei uma ponta do lençol. Reconheci esse rosto redondo de boneca, atingido por uma lividez horrível. Deixei cair o canto do lençol. Recuei. Choquei contra um banco e caí. Da-Lin veio sentar-se ao meu lado.

Segundo o que ele me contava, eu compreendi que Lu-Lu tinha começado a sentir-se mal, quatro ou cinco dias antes. No início, pare­cia uma constipação banal, e o «médico de pés descalços» deu-lhe alguns medicamentos. Mas os sintomas persistiram e depois agrava­ram-se. Lu-Lu quis regressar a Guang-Ning. «Eu quero a mamã», repetia ela. Ora, para regressar a Guang-Ning, é necessário, primeiro, chegar à sede da Comissão Revolucionária da comuna que se encon­tra a mais de doze quilómetros - lá, há um carro que se desloca a Guang-Ning nos dias ímpares. Então, Da-Lin pediu uma bicicleta e instalou Lu-Lu no porta-bagagens. Mas ainda não tinha andado mais de um quilómetro e já Lu-Lu não tinha força para se manter sentada. Depois de ter escondido a bicicleta na erva à beira do caminho, Da­-Lin trouxe Lu-Lu às costas até à aldeia, deitou-a na sua cama e depois correu a procurar o médico de pés descalços. Mas o que é que ele viu quando chegou como médico? Lu-Lu acocorada por terra! O san­gue corria-lhe do nariz, da boca, das orelhas... Era horrível. Ela mor­reu pouco depois, «Gastrópode», dizia o médico abanando a cabeça com um ar de impotência. (Por «gastrópode» ele designava uma doença muito perigosa, espalhada pelos arrozais pela família dos Gastrópodes, que só atacava os estrangeiros. Os nativos nunca foram atingidos.) A camponesa que albergava Lu-Lu lavou-a e mudou-a. Da-Lin foi à sede da comissão revolucionária para enviar uma men­sagem à família de Lu-Lu. Depois veio buscar-me.

No dia seguinte, por volta das duas da tarde, o pai e o irmão mais velho de Lu-Lu chegaram de ambulância, acompanhados por um mem­bro da comissão revolucionária da comuna. Eles partiram imediata­mente com o corpo de Lu-Lu atado a uma maca.

Depois desse dia tive insónias incríveis. Sempre que fechava os olhos, revia o rosto de Lu-Lu, o seu sorriso tímido. Ela tinha dezas­sete anos no momento em que desapareceu, como uma gota límpida de orvalho se evapora, silenciosamente, ao nascer do Sol. O seu nome revela o seu destino: Lu-Lu, o orvalho. A sua morte afectou-me, não sei porquê, mil vezes mais que as centenas de milhares de pessoas mortas no tremor de terra de Tang-Shan. Será porque eu a conhecia? Porque eu falei e comi com ela? Porque vínhamos da mesma cidade? Ou simplesmente porque ela e eu somos, ambas, o que se chama «jovens-instruídos»? E que ela morreu a 31 de Agosto, no dia do meu décimo nono aniversário e na véspera do segundo aniversário da nossa chegada aqui? E que o fim trágico da sua vida curta poderia muito bem ser a de Da-Lin, por exemplo, ou a minha?

Passado o primeiro choque, eu reflecti longa e dolorosamente sobre a razão da nossa presença aqui. Não encontrei nenhuma resposta satis­fatória. Nenhuma. Existiria essa resposta em algum lugar?...

As estrelas geladas desapareceram em silêncio. O céu esverdeou­-se ao aproximar-se da Terra. O dia vai nascer. Os aldeões vão acor­dar. Um novo dia vai começar.

Para me consolar, eis algumas notícias menos tristes: eu consegui aliviar por acupunctura Li-Xian das suas dores nas costas com mais dez anos; e sempre por acupunctura e massagem, eu procurei ajudar Wang-Ming, uma criança de oito anos, a recuperar parcialmente o uso das suas pernas mortas há três anos após um ataque de poliomie­lite, e já tem alguns sinais animadores; Gui-Hua, a recém-casada de Chang-Fan, acaba de lhe dar um lindo bebé - é um rapaz! Foi anun­ciado o noivado de Lian-Hua com Zhong-Ge, o jovem colega do seu pai; Fu-Shen, o irmão mais velho de Lian-Hua, vai casar-se dentro de quinze dias e pediram-me para recortar os três grandes caracteres «dupla felicidade» em papel vermelho - um será colado na porta do pátio, um outro na porta da casa e um outro ainda na porta do quarto nupcial.

Aí por casa, toda a gente está bem? Têm novidades do meu irmão Ming-Ming? Ele nunca me escreveu uma só palavra e por isso, às vezes, tenho muita inveja de Bi-Zhu, vocês sabem. Enfim, amo-vos muito. Penso muito em vocês.

Fan-Fan

9 de Setembro de 1976, ao amanhecer.

 

Fan-Fan poisou a sua caneta, dobrou a carta em quatro, introdu­ziu-a num envelope de papel castanho, escreveu rapidamente algu­mas palavras, arrumou tudo debaixo da sua almofada e soprou na sua lamparina.

Uma hora mais tarde, a mais de trezentos quilómetros para leste, no número 123 da Rua dos Bambus Novos, em Guang-Ning, Mei-Li estava sentada num banco de cozinha. Segurava uma tigela de sopa de arroz com a mão esquerda e uma colher de porcelana com a mão direita. Com um gesto lento, Mei-Li encheu uma colher de sopa, soprou-lhe duas vezes, levou-a aos lábios e depois bebericou com um ar pensativo. Esta noite, Bi-Zhu tinha chegado à sua cabeceira da cama para lhe revelar um segredo terrível: Ming-Ming há oito meses que estava na prisão!

- O quê? O que é que tu dizes? - perguntou ela, erguendo-se e ficando sentada na cama.

Bi-Zhu pegou nas suas mãos.

- Eu disse que Ming-Ming está preso, mas não te preocupes, avó, ele vai sair em breve.

- Mas porquê na prisão? Ele cometeu algum crime? - pergun­tou ela ainda, perturbada.

- Não, ele não cometeu nenhum crime - disse Bi-Zhu, man­tendo as mãos dela nas suas. - Tu lembras-te que ele nos prometeu que abandonaria a divisão de produção quando eu tivesse o meu esta­tuto de residente em Guang-Ning e um trabalho estável? Pois bem, ele cumpriu. Ele não era o único a querer deixar a divisão de produ­ção, imagina. Eram seis, quatro rapazes e duas raparigas. Para con­seguir o seu golpe, escolheram a véspera do Ano Novo chinês. Lá também há um banquete nessa noite, seguido por uma noite de dança e de canções. É o momento ideal para escapar à atenção dos outros. Portanto, eles decidiram o itinerário e cada um preparou a sua pequena bagagem. E, depois do banquete, fingiram ir à casa de banho e aban­donaram a sala um após outro. Depois pegaram na sua bagagem e encontraram-se debaixo de um grande rochedo na primeira curva à saída do acampamento. Até ali, tudo andava sobre rodas. Mas como nessa noite estava muito escuro e eles evitavam a estrada principal para maior segurança, enganaram-se na direcção. Caminharam toda a noite, e ao amanhecer chegaram à margem de um pequeno rio. Decidiram parar uma meia hora para descansar e comer. Mas, logo que se sentaram, encontraram-se cercados por uma dúzia de solda­dos vietnamitas: sem o saber, estavam em território do Vietname. Foram presos e entregues, ao fim de alguns dias, ao exército de defesa das fronteiras chinesas, mais tarde foram condenados a quatro anos de prisão por tentativa de traição à pátria.

- Então, é desde o início do ano? - Sim, é isso.

- Mas tu não me tinhas dito nada...

- Porque Ming-Ming não o queria. Tu conhece-lo melhor que eu. Ele tinha medo que a tia Bai-Lan e tu se preocupassem com ele... - Ele vai sair em breve, disseste tu?

- Sim, é isso. Tu vê-lo-ás dentro de uma semana, se tudo correr pelo melhor.

- Como é que estás tão segura?

- Porque fui eu que tratei da sua libertação. Eu conheço alguém no meu trabalho que conhece alguém cujo pai é o irmão do presi­dente da Comissão Revolucionária de Guang-Ning...

Mei-Li levantou-se, colocou a tigela vazia na bacia onde já se encontravam duas tigelas e duas colheres. Deitou um pouco de água. Depois de lavar, secar e arrumar a loiça, Mei-Li retirou da parede o cesto de bambu e saiu, fechando suavemente a porta atrás dela. Tinha muitas dores nas costas, subia-lhe até aos ombros e descia até aos joelhos. A dor tinha começado pouco depois da partida de

Fan-Fan. Mei-Li experimentara dezenas de plantas medicinais dife­rentes, mas continuava a agravar-se. Havia alguns dias em que tinha dificuldade em pôr-se em pé de manhã. É que eu agora sou velha, a minha coluna foi roída pelos dentes dos dias, pensava ela, batendo nos joelhos, nas costas e nos ombros. Sem tristeza. É normal por­que as crianças cresceram. O meu Ming-Ming completa vinte e dois anos este ano. Que Bi-Zhu e ele estejam apaixonados um pelo outro já não é segredo para ninguém. Que belo casal constituirão dentro de dois ou três anos! Meí-Li ri interiormente à ideia de ser promo­vida ao estatuto de bisavó pelo nascimento dos seus filhos... Oxalá que ela se possa agarrar à vida até lá. É evidente que ela tentará, como sempre o fez. De repente, lembrou-se de qualquer coisa: pareceu-lhe ver um pouco de tristeza nos grandes olhos claros de Bi-Zhu nessa noite depois da conversa. Porquê essa tristeza, uma vez que Ming-Ming vai regressar em breve? Não, pensava Mei-Li, abanando a cabeça, devo ser eu que me enganei, como poderia Bi­-Zhu estar triste?...

A porta ao lado abriu-se nesse momento. A mulher do Velho Zhou saiu.

- Tu vais ao mercado, avó Mei-Li? - perguntou ela com um sorriso.

- Sim, queres que te traga alguma coisa?

- Olha... sim - disse a Velha Zhou descendo os degraus. - Seria muito bom se tu me pudesses comprar um bocado de gengibre e um molho de alhos-franceses.

Ela aproximou-se de Mei-Li e disse-lhe à orelha:

- O meu marido não anda muito bem desde o tremor de terra de Tang-Shan. Os seus pais e o seu irmão mais velho habitavam lá. Desde que anunciaram a catástrofe na rádio já lhes enviou várias mensa­gens. Nenhuma resposta; então, tu podes imaginar...

Ela suspirou e depois acrescentou em voz baixa:

- Os cadáveres contavam-se aos camiões. E ainda não juntaram todos os corpos. Por debaixo dos destroços não deve ser fácil. E com um calor destes, decompõem-se como blocos de toucinho...

Na janela levantou-se um canto do cortinado e surgiu a cabeça do Velho Zhou.

- Tenho de entrar - disse rapidamente a Velha Zhou. - O meu marido deve precisar de qualquer coisa. Até logo, avó Mei-Li.

- Até logo - respondeu Mei-Li. - Diz-lhe que não se preo­cupe.muito. A falta de novidades não quer dizer nada neste momento, deve estar tudo paralisado por lá...

Mas Mei-Li sabia que a situação era extremamente inquietante. Há mais de um mês que tanto na rádio como nos jornais,- nas ruas como nas casas, só se falava desta catástrofe que parecia a mais mor­tífera da história da humanidade. As pessoas contavam que centenas de milhares de soldados tinham sido enviados para procurar sobre­viventes, ou cadáveres. Que dezenas de milhares de médicos tinham sido chamados dos hospitais de toda a China para ir em socorro dos feridos. Que camiões cheios de corpos, que não tinha havido tempo para identificar, tinham convergido para fogueiras, onde se amon­toavam e queimavam os cadáveres para reduzir os riscos de epide­mia. Mesmo em Guang-Ning, a quase dois mil quilómetros do local do desastre, o pânico era total. Uma noite, um homem matou-se ao saltar pela sua janela do terceiro andar. As pessoas contavam que ele julgou ter ouvido o alarme de um sismo quando ouvia o alarme do seu despertador. Uma outra noite, os habitantes da Rua Lago do Sul foram acordados por gritos: «Tremor de terra! Tremor de terra!... » e todos se precipitaram para fora das casas, gritando de terror e cor­rendo em todas as direcções, enquanto vadios aproveitavam a con­fusão geral para assaltar as casas com toda a tranquilidade. O serviço de segurança pública de Guang-Ning reagiu, prendendo em dois dias o bando de vadios e executando o chefe no local. «Matar um galo para meter medo aos macacas», como diz o provérbio. A estratégia dissuasiva da polícia mostrava-se aparentemente eficaz, pois este tipo de tentativa não se voltou a produzir. Os mortos já estão mortos, pen­sava Mei-Li, enquanto caminhava, eles não sofrem mais. Mas para os que estão vivos, para as famílias tão brutalmente destruídas, para os que perderam os seus pais, os seus companheiros, os órfãos, o inferno ainda apenas começou... Só a sua própria morte lhes fará esquecer um tal drama.

Mei-Li entrou na antiga Rua do Fénix. Uns vinte operários esta­vam a escavar os passeios a golpes de picareta, para arrancar as raí­zes grossas das flamboaiãs, recentemente abatidas. Havia terra e boca­dos de tijolos por todo o lado. Que estupidez!, pensava Mei-Li, passando ao lado destes homens que trabalhavam, tronco nu, e des­tes buracos de terra vermelha como feridas frescas. É assim, eles já tinham substituído o nome da rua e agora retiram-lhe a sua identi­dade. Estas flores escarlates, que se inflamam por cima da calçada todos os meses de Maio, vão desaparecer para sempre...

- O que é que vão plantar aqui? - perguntou Mei-Li a um velho operário que fumava um cigarro, sentado no cabo da picareta.

- Oliveiras albanesas - respondeu com indiferença.

Um homem ainda novo, de farda verde, passou de bicicleta. - Bom dia, avó Mei-Li! - disse ele.

Mei-Li reconheceu o carteiro do bairro.

- Ah, bom dia Xiao-Ning - disse ela sorrindo. - Não há carta para mim?

Xiao-Ning desceu da sua bicicleta, vasculhou no seu grande saco de pano.

- Não, avó Mei-Li, hoje não - disse ele.

Depois, vendo o ar desiludido de Mei-Li, acrescentou montando a sua bicicleta:

- Não te preocupes, avó Mei-Li, a carta que tu esperas talvez já esteja a caminho. Logo que eu veja um envelope com o teu nome, correrei para a tua casa, imediatamente, sem esperar a hora da dis­tribuição.

Mei-Li sorriu de novo. Que rapaz simpático!, pensava ela, olhando a silhueta familiar que desaparecia no canto da rua. Quantos são hoje? 9 de Setembro, já? Como o tempo passa depressa! Já há quatro meses que eu não recebo cartas de Fan-Fan. Não me surpreende que Ming­-Ming não escreva durante quatro ou mesmo seis meses, mas Fan­-Fan...

O céu estava cheio de sol, como as ruas e as casas. E a poeira escaldante e ofuscante. Via-se mal no apartamento, tão forte era a luz. Mei-Li puxou o cortinado. Estava um pouco melhor. Ela pôs na mesa uma grande tigela de sopa de couves verdes, uma pratada de tufo com porco, dois pares de pauzinhos de bambu e duas tigelas cheias de arroz.

Bai-Lan, que acabava de entrar, olhou para o despertador no apa­rador baixo.

- Quase meio-dia e vinte - disse ela - Bi-Zhu está atrasada.

- Ela, hoje, não come em casa ao meio-dia - explicou Mei-Li sentando-se. - Foi convidada.

- Ah, bom! - disse Bai-Lan pegando na tigela. - Esta já é a terceira vez em menos de duas semanas.

- Ela faz amizades, é próprio da sua idade - disse Mei-Li, metendo um bocado de porco na tigela da sua filha. Já te esqueceste como tu eras com a sua idade?

Bai-Lan teve um sorriso sonhador. Como se de repente se lem­brasse dos seus anos de jovem.... Sim, certamente, ela também tinha sido jovem... Subitamente, como se acordasse, ela perguntou:

- Não há correspondência das crianças?

- Não - respondia Mei-Li, mastigando um bocado de tufo. Mei-Li tinha pedido a Bi-Zhu para não falar a Bai-Lan do regresso próximo do seu filho. Se tudo vai pelo melhor, tinha pensado Mei­-Li, que surpresa quando ela o vir! E se por infelicidade as coisas correm mal, pelo menos ela não será mais infeliz por ter ficado desi­ludida...

- Preveniram que haveria uma declaração muito importante da comissão central do Partido pela rádio às três horas desta tarde - disse Bai-Lan, que enchia a sua tigela de sopa de couves verdes.

- O que é que poderia ser? - perguntou Mei-Li, enquanto con­tinuava a comer.

- Alguns dizem que deve ser... Bai-Lan hesitou.

- Deve ser o quê? - perguntou Mei-Li com impaciência. - Não me deixes no escuro.

- Pois bem. Alguns dizem que deve ser... a morte do presidente Mao - disse Bai-Lan, baixando a voz como se pronunciasse um sacrilégio. - Parece que ele está muito doente há algum tempo...

Céus! Mei-Li esperava tudo menos isso. Há tanto tempo que Mei­-Li gritava com os outros: «Viva o presidente Mao!», ela tinha aca­bado por esquecer que ele também era um homem, que podia enve­lhecer, que podia estar doente, que podia morrer um dia... como qualquer outro. Mei-Li estava perturbada. É um deus, o presidente Mao, para toda a gente. E um deus é imortal. Ou eterno. Ora, agora, o deus morreu. Portanto o deus não é um deus... Mei-Li também tinha muito medo. Não por ela - ela já tem setenta e dois anos, quan­tos anos ainda lhe restarão para viver? Ela pode contá-los pelos seus dedos. Mas para as crianças, para Bai-Lan, para Min-Ming, para Bi­-Zhu e para Fan-Fan. Independentemente do que fez, o presidente Mao dirigiu o Partido e o país durante vinte e sete anos. O seu desa­parecimento provocará um sismo social que, desta vez, abanará toda a China. Mudanças inevitáveis. Para melhor? Para pior? Ninguém o saberia dizer. E é isso que é assustador.

Mei-Li não deu pela partida de Bai-Lan para o trabalho. Ela man­tinha-se sentada à mesa, diante dos restos da refeição, olhos fixos nos ponteiros do despertador. Uma hora. Uma e meia. Duas horas. Duas horas e trinta. Duas horas e quarenta. Duas horas e cinquenta. Duas horas e cinquenta e cinco. Duas horas e cinquenta e seis. Duas horas e cinquenta e sete. Duas horas e cinquenta e oito. Duas horas e cin­quenta e nove. Três horas! Mei-Li acendeu o pequeno rádio: uma música solene. Fúnebre.

Mao Tsé-Tung morreu às zero horas e dez minutos do dia 9 de Setembro de 1976.

No meio de uma noite glacial do Inverno de 1948, o meu marido Meng-Yu apagou-se suavemente, como uma lâmpada a azeite que se consumiu até à última gota da sua energia.

Bai-Lan chorou-o muito. Ele tinha sido um bom pai para ela.

 

4 de Julho de 1979

Às 7 horas da manhã, o sol dourava com uma luz doce os telha­dos e os vidros virados a leste. Buzinadelas impacientes. Campainhas de bicicletas alegres. O ranger de portas e de janelas que se abrem. Vozes familiares de vizinhos que se interpelam aos berros.

Ming-Ming arrumou a sua escova de dentes, pendurou a sua toa­lha, deu o lugar a Bai-Lan e veio sentar-se à mesa. Mei-Li tinha pre­parado um pequeno-almoço copioso: uma tigela de leite de soja, uma omeleta com cebolinhos e três baozi, pequenos pães recheados cozi­dos ao vapor.

Esse dia era o primeiro dia do concurso nacional para entrar nas escolas superiores. O concurso tinha sido restabelecido dois anos antes. Fan-Fan tinha participado neles em 1977, com resultados bri­lhantes, que lhe tinham aberto a porta do Instituto de Medicina de Wuhan. Ming-Ming, azarento, tinha saído da prisão em 1976, três semanas depois do casamento de Bi-Zhu com o sobrinho do presi­dente da Comissão Revolucionária de Guang-Ning. Fulminado pela dor, de cabeça perdida, olho seco, cabelo eriçado, Ming-Ming correu para a casa de Bi-Zhu para pedir explicações. «Pelo menos deixem­-me saber porquê!», gritava como um louco. Mas Bi-Zhu não abriu a boca. Mais tarde, demasiado tarde! Mei-Li tinha-lhe explicado que tinha sido para o fazer sair da prisão que Bi-Zhu, desesperada, tinha sacrificado o seu amor. O seu primeiro amor. Perder Bi-Zhu aos vinte e três anos, depois de ter perdido o pai aos três anos! É esta a minha sorte? Tinha havido noites em que bateu com a cabeça na parede até sangrar. Depois o êxito de Fan-Fan tinha-lhe aberto, de algum modo, os olhos: ele também poderia deixar Guang-Ming pelo mesmo caminho. Para enterrar para sempre o passado no túmulo do pas­sado. Para encontrar uma nova identidade. Para renascer. Algures. Longe daqui. Longe de todas as recordações. Tinha então voltado a pegar nos seus velhos livros e nos seus velhos cadernos da escola e tinha-se barricado no seu quarto durante dez meses. Tinha-se apre­sentado ao concurso em Julho de 1978, mas fracassou por poucos pontos. Tinha chorado. Tinha de ter êxito. Ele desejava-o absoluta­mente. Tinha limpo as lágrimas e tinha-se fechado de novo no seu quarto durante doze meses. E, desta vez, ele ia conseguir. Ele sabia-o. As duas disciplinas de hoje - a Política e o Inglês - são os seus pontos fracos, mas ele tem a certeza de que, pelo menos, atingirá a média: trabalhou-as tanto desde o último Verão... As disciplinas de amanhã - Matemática e Chinês - também não lhe causarão gran­des problemas. Quanto às disciplinas do último dia - a Química e a Física - ele crê que já estão no papo: é nelas que ele é mais forte. Depois de ter engolido o último pedaço de baozi, sob o olhar terno de Bai-Lan, verificou, uma vez mais, se a borracha e as duas cane­tas novas, que ele pôs no seu saco de pano esta noite, continuam lá. No ano passado, ele nunca mais se esquece, a sua única caneta acabou vinte minutos antes do fim da última prova e isso tinha-lhe custado muito caro.

- Não te esqueces do relógio? - perguntou-lhe Bai-Lan. - Não, mamã - disse o rapaz mostrando o seu pulso.

Tinha pedido emprestado o relógio de Bai-Lan na véspera, assim já poderia saber a todo o momento que horas eram.

- E o papel para rascunho?- perguntou-lhe ainda a sua mãe. - É proibido levar qualquer folha de papel para a sala de exame - respondeu Ming-Ming.

- Olha, toma o teu almoço - disse Mei-Li, estendendo-lhe a marmita de alumínio e uma garrafa de chá de azarola.

Ming-Ming introduzi-os no seu saco de pano e foi-se embora asso­biando.

- Sobretudo não bebas água da torneira! - recomendou ainda Mei-Li atrás deles.

- Ele tem ar confiante - disse Bai-Lan, que acabava de comer.

- Ele vai conseguir - afirmou Mei-Li, olhando pela janela o seu neto, que se afastava com passada enérgica.

- Eu não venho almoçar ao meio-dia - disse Bai-Lan, levan­tando-se. - Irei ver uma colega. Ela teve um parto prematuro e o bebé morreu.

- Oh, céus, deve ser terrível - disse Mei-Li com compaixão. Retirou do armário um cesto de bambu redondo, que estendeu para Baí-Lan.

- Bi-Zhu trouxe-me, ontem, duas dezenas de ovos frescos, leva­-os à tua colega.

Bai-Lan pegou num jornal velho, que rasgou em pequenos boca­dos, e embrulhou os ovos um a um antes de os colocar no saco. - Como está Bi-Zhu? - perguntou ela. - Há já algum tempo que não a vejo.

- Ela espera uma criança - anunciou Mei-Li com um sorriso rasgado. O olho de Bai-Lan brilhou de alegria.

- Então, em breve, serei avó! É para quando? - Fevereiro.

- Oh! Já não posso esperar mais. - Eu também não.

Elas riram em conjunto.

Bai-Lan puxou pelo fecho éclair do seu saco. Mei-Li perguntou: - Sabes que já começaram a reabilitar os «direitistas» de 1957. Bai-Lan empalideceu.

- E então? - disse ela com um tom de falsa indiferença.

- O marido da irmã Ma, lembras-te? - disse Mei-Li, espreitando pelo canto do olho a mais pequena mudança no rosto da sua filha. - Ele tinha sido enviado para o campo de trabalhos forçados pouco depois de Hong. Foi reabilitado e regressou ontem a casa...

Bai-Lan mordia os lábios até sangrar. Mei-Li continuou, pruden­temente.

- Tu não pensaste... por exemplo ... escrever a Hong? Talvez... que ele também... tenha saído. Ele estava inocente, toda a gente o sabia... Bai-Lan permanecia em silêncio, de olhos baixos. Depois, brus­camente, ergueu a cabeça e disse de lágrimas nos olhos:

- Não, mamã, eu não lhe escreverei.

- Mas porquê? - perguntou Mei-Li com uma voz meiga, per­turbada pela reacção da filha.

- Se ele ainda se lembrasse de mim, se ainda se lembrasse dos seus filhos, saberia onde nos encontrar, não?

Com este «não», Bai-Lan desviou a sua cabeça, como que para esconder as suas lágrimas. Pegou no seu saco.

Mei-Li teve um gesto impulsivo para abraçar a sua filha, mas Bai­-Lan escapou-se-lhe, e saiu quase a correr.

Mei-Li suspirou e levantou a mesa. Compreendia-a, quase vinte e dois anos de separação. Carreira de cantora arruinada. Dificuldades quotidianas. Incompreensão e desprezo da parte dos outros. Morte de Zhong. Desilusões amargas. Solidão. Monstruosa solidão... Mei-Li suspirou de novo.

Deixou os talheres sujos no lava-loiça, de repente demasiado can­sada. Voltou a sentar-se na sala de jantar e pôs as mãos na mesa. Eram mãos descarnadas e com rugas, inchadas nas articulações, onde grossas veias azuis se torciam como vermes da terra sobre uma pele salpicada de manchas escuras. Eu estou velha, repetia Mei-Li, con­templando as suas mãos como que fascinada pela sua fealdade dolo­rosa. Eu não sabia que se podia chegar a tão feio quando se é velho. O tempo fez um bom trabalho...

Sentiu-se, subitamente, só, com vontade de falar a alguém. Passeava o seu olhar pela sala e os seus olhos encontraram os do presidente Mao, que lhe sorria do alto da parede com o seu sorriso bonachei rão. Não é certamente a si que eu posso falar dos nossos problemas, hem?, pensou Mei-Li, desviando o seu olhar. Fan-Fan, a sua neta que­rida, era a única pessoa no mundo a quem ela podia verdadeiramente falar, mas encontrava-se a mil quilómetros... Mei-Li retirou uma carta do seu bolso. Era a última carta de Fan-Fan. Tinha-a recebido há cerca de vinte dias. Ela não tinha necessidade de a abrir: tinha-a lido e relido, não sabia quantas vezes, que já a sabia de cor. Fan-Fan dizia que regressaria para as férias de Verão, a 14 de Julho. Ainda dez dias, como é longo!, pensava Mei-Li, metendo a carta no seu bolso. Levantou-se e foi deitar-se na sua cama, diante da biblioteca de madeira. As três prateleiras superiores estavam ocupadas por gran­des volumes cobertos por uma camada espessa de pó. Eram os livros de Hong. Ninguém queria ali tocar, excepto Mei-Li, que lhes limpava o pó uma vez por ano, na véspera do Ano Novo. Mais em baixo, havia duas dezenas de livros amarelados, amachucados, que guarda­vam a marca do dilúvio. Eram os de Zhong, os sobreviventes da grande inundação de 1968. Bi-Zhu não os tinha levado quando se casou. «Não há lugar para eles na minha nova casa», disse ela, «o seu lar é aqui.» Mais em baixo ainda estavam os manuais escolares, do primeiro ano de escola primária ao último ano da escola secundária. As suas prateleiras inferiores estavam cheias de obras literárias, poe­mas de Tang, romances clássicos, autores modernos, e muitas tradu­ções de romances estrangeiros. Estes pertenciam a Fan-Fan. Um dia, por curiosidade, Mei-Li tinha pegado num volume intitulado Guerra e Paz. Ao fim de uma hora, tinha-o fechado e colocado no seu lugar. Ela não conseguiu suportar os nomes das personagens e algumas des­crições psicológicas. Com esses nomes estrangeiros tão compridos! Pensava ela. Nós, os Chineses, temos nomes com dois ou três carac­teres, muitas vezes sugestivos e fáceis de reter. E nunca se encontram essas descrições intermináveis entre os nossos autores clássicos: um gesto, uma palavra, um sorriso, uma olhadela, bastam para traduzir os caracteres como se as personagens agissem debaixo dos nossos olhos. É muito mais vivo. Desiludida por esta primeira experiência, Mei-Li nunca mais se aventuraria pelo terreno da literatura estrangeira - russa, americana, inglesa ou francesa -, preferindo fechar-se com O Sonho do Pavilhão Vermelho, Os Três Reinos, À Beira da Água e uma chávena de chá verde... De repente, Mei-Li bateu na cabeça, levada por uma súbita inspiração: escrever a Fan-Fan! Dizer-lhe o que se passou. Quem sabe se ela não quereria escrever ao seu pai?

Mei-Li levantou-se, rapidamente, a fim de pegar em algo com que escrever. Descobriu um lápis, mas não havia papel de carta. Mei-Li folheou o caderno de contas familiar: sem página virgem. Abriu a gaveta da secretária de Ming-Ming. Um pequeno frasco arrumado num canto atraiu a sua atenção. O que é isto?, pensou ela. Soníferos! Mei-Li franziu o sobrolho; ela não imaginava que Ming-Ming tomasse. Colocou o pequeno frasco no lugar e arrancou, cuidadosamente, a última folha de um caderno de notas, depois fechou a gaveta. E come­çou a sua carta.

A Escola Secundária n.° 5 tinha sido transformada em centro de exame temporário: muros altos de tijolos caiados de branco, uma porta pesada de ferro pintada de verde, um pequeno pátio rectangu­lar com duas mesas de pinguepongue de cimento à sombra de duas velhas mangueiras, um edifício cinzento de quatro andares fechando o terreno de basquetebol por três lados.

Às oito horas menos um quarto, Ming-Ming entrou na sala de exame do primeiro andar. Muitos candidatos já tinham chegado. Uns cinquenta. Ming-Ming passeou um olhar nervoso pelos rostos desconhecidos, na sua maioria muito mais jovens que o seu. Tenho de fazer melhor que eles para ter êxito, pensava ele. No último ano só um em vinte teve a sorte de ser admitido numa escola superior. Este ano, segundo se diz, a concorrência é ainda mais terrível: um em trinta, aproximadamente. Pouca sopa de arroz para muitos bonzos...

Como os outros, Ming-Ming colocou o seu saco numa mesa no fundo da sala, encontrou em seguida o lugar n.° 9, o seu, na primeira fila junto à janela que dava para o corredor. No momento em que Ming-Ming se instalava, apercebeu-se de que se tinha esquecido das canetas. Precipitou-se para o fundo da sala para os procurar. Uma voz atrás chamou-o:

- Ming-Ming!

Era um rapaz com uma cicatriz no canto do olho direito. Parecia­-lhe tê-lo visto em algum lado, mas onde? Ele não conseguia lem­brar-se.

O rapaz da cicatriz sorriu.

- No ano passado tu estavas sentado atrás de mim.

Ah, é isso! Ming-Ming agora lembrava-se. O rapaz... como se chama ele? Li-Ping? Sim, é isso, chama-se Li-Ping. Ele era também candidato ao concurso. Eles tinham mesmo trocado algumas palavras simpáticas. Ele está cá de novo, o que quer dizer que não teve mais sorte que ele....

- Sim, sim, lembro-me - disse Ming-Ming como se tivesse encontrado um velho amigo, que coincidência!

- Eu chumbei em Matemática e em Física, no ano passado - disse Ping num tom confidencial. - Os meus pais não estavam nada contentes. E as minhas irmãs gozam comigo... Tenho interesse em conseguir este ano...

- O teu papel, se faz favor - disse uma voz rude junto de Ming­-Ming.

Ming-Ming virou-se: um homem com cerca de cinquenta anos mantinha-se ao lado da sua carteira.

- O teu papel, se fazes favor - repetiu o vigilante.

-- Ah, desculpe-me - disse Ming-Ming, procurando no bolso da sua camisa.

Ming-Ming estendeu o seu certificado ao vigilante.

Este lançou um olhar desconfiado sobre a fotografia e depois sobre o rosto de Ming-Ming, deu-lhe o certificado, inclinou-se, em seguida, para ter a certeza de que não havia nada na gaveta, e foi-se embora sem dizer uma palavra.

Ming-Ming fez uma careta de desagrado nas suas costas. Campainha. Silêncio. Todos estavam nervosos, à espera. O outro vigilante, mais novo, começou a distribuir as cópias.

- A partir de agora têm uma hora - preveniu o velho vigilante, aprumado diante do quadro preto.

Ming-Ming poisou a sua caneta e levantou a mão. O velho vigi­lante aproximou-se.

- O que se passa? - perguntou.

- Tenho necessidade de ir à casa de banho - disse Ming­-Ming.

O velho vigilante franziu o sobrolho. - Vai - disse num tom seco.

Depois, fez sinal ao seu jovem colega para seguir Ming-Ming. Ming-Ming desceu a escada quatro a quatro, atravessou rapida­mente o campo de basquetebol e o pequeno pátio e entrou nas casas de banho. O jovem vigilante esperou do lado de fora.

Ao abotoar as suas calças, Ming-Ming observou no chão um pedaço de papel coberto por uma escrita fina. Debruçou-se e juntou-o. Ele ouviu, então, o jovem vigilante que tossia do lado de fora. Lançou, imediatamente, o pedaço de papel como se tivesse queimado os dedos. Saiu da casa de banho e correu para a sala do exame. O jovem vigi­lante correu atrás dele.

Um quarto de hora mais tarde, Li-Ping, por sua vez, pediu auto­rização para ir à casa de banho. O velho vigilante seguiu-o.

- Agora, já só têm meia hora - advertiu o jovem vigilante, cur­vado diante do quadro preto.

Ming-Ming já só tinha uma questão para responder. E percorreu­-a rapidamente: «Porquê só o socialismo pode salvar a China?» Questão fácil. Ming-Ming deu um pequeno suspiro de alívio: bastaria repetir o que ele tinha aprendido de cor. Mas, no momento exacto em que ele ia escrever a palavra «resposta», sentiu uma mão pesada no seu ombro. Levantou a cabeça e viu a figura furiosa do velho vigilante. - Sai - rangia entre os seus dentes.

Ming-Ming seguiu-o. Li-Ping estava de pé no corredor, lívido, de cabeça baixa e ombros descaídos.

- O que é que se passa? - perguntou Ming-Ming.

- Tu não sabes de nada? - disse o velho vigilante em tom iró­nico.

- Mas do que é que está a falar? - disse Ming-Ming com impa­ciência. - Eu ainda não termi...

- Tu reconheces isto, não é verdade? - interrompeu o velho vigilante, acenando o pedaço de papel diante dos seus olhos.

Era o bocado de papel que Ming-Ming tinha visto na casa de banho. - Não - respondeu ele.

- Estás a gozar comigo ou quê? - disse o velho vigilante, de rosto azul de raiva.

Ele apontou o dedo para Li-Ping.

- Surpreendi-o quando ele estava a ler isto na casa de banho. Ele disse que o tinha juntado. Foste tu quem foi à casa de banho antes dele, não?

- Mas isso já lá estava quando lá entrei! - gritou Ming-Ming, vermelho de indignação. - Primeiro, deixe-me terminar o meu exame, em seguida, poderá interrogar-me durante o tempo que quiser!

A boca do velho vigilante retorceu-se.

- Volte para a sala! Mas não sairá, facilmente desta - prometo­-lhe!

Ming-Ming foi sentar-se e pegou na sua caneta, mas as suas mãos tremiam de cólera. Ele não conseguia concentrar-se. Respirou pro­fundamente, procurando acalmar-se. Mas em vão. Ele não se lem­brava nem de uma palavra do que aprendera de cor.

- Só têm mais cinco minutos - advertiu o jovem vigilante.

Mei-Li assinou «Avó» no fundo da folha, colocou a data por baixo da assinatura, releu a carta, rasurou algumas palavras, acrescentou outras, depois dobrou a carta e introduziu-a num pequeno envelope branco. Retirou da panela alguns bagos de arroz cru. Ela preferia isto a qualquer cola. Apercebeu-se mais tarde que não tinha selo. Tinha de ir aos correios. Como os correios não estavam próximos, e tinha dificuldades em andar, Mei-Li decidiu, primeiro, almoçar.

Ming-Ming e Li-Ping saíram da sala de exame e dirigiram-se para uma mesa de pinguepongue, onde se instalaram. Quatro raparigas vie­ram sentar-se na outra mesa de pinguepongue para o seu piquenique. Ming-Ming pegou na garrafa de chá de azarola, bebeu um grande gole e passou a garrafa a Li-Ping.

- Mas o que é que se passou? - perguntou Ming-Ming. Li-Ping lançou a cabeça para trás, levou o gargalo da garrafa aos lábios e inclinou-a com precaução.

- Tu nem podes imaginar que velho sacana é este vigilante! - disse ele, entregando a garrafa a Ming-Ming. - Ele disse-me que me esperava lá fora, depois entrou como um ladrão. Então, tu sabes... - Tu leste-o? - perguntou ainda Ming-Ming.

- Algumas linhas somente - respondeu Li-Ping abrindo a sua marmita.

- O que é que lá estava escrito? Notas sobre a história do Partido.

- Então, estamos feitos - afirmou Ming-Ming num tom triste. - Não sejas pessimista, Ming-Ming - confortou-o Li-Ping, que se pos a comer. - Basta que eles comparem a nossa escrita com a do papel e tudo será claro. Aliás, não fomos só nós que fomos à casa de banho esta manhã.

- Na verdade, não tivemos sorte - disse Ming-Ming, deixando escapar um suspiro. - Este velho sacana não nos vai deixar tran­quilos...

Ming-Ming abriu a marmita. Ela tinha duas postas de peixe sal­gado, um bocado de tufo frito, arroz salteado com feijões-verdes. Estava tudo delicioso, mas Ming-Ming não tinha fome. Engoliu dois ou três pedaços e depois fechou a caixa.

Como estava demasiado calor para ficar lá fora, os dois rapazes entraram para a sala de exame logo a seguir ao almoço. Para sua sur­presa, até às duas horas menos um quarto ninguém os tinha vindo buscar. Os candidatos começavam a entrar uns a seguir aos outros.

Aparentemente, pensava Ming-Ming um pouco mais aliviado, Li-Ping tem razão. Sem dúvida que eles compararam as letras, encontraram o batoteiro e largaram-nos... Ming-Ming saiu para o corredor, esti­cou-se fazendo estalar os ossos dos seus ombros e dos seus braços. Um bem-estar percorreu todo o seu corpo como o fluxo provocado por uma picada de acupunctura com êxito. Desceu, a toda a veloci­dade, à casa de banho para passar a cara por baixo da torneira. A água fria fez-lhe bem. Sentia-se de novo totalmente fresco. Olhou para o seu relógio, .ainda cinco minutos, o tempo de encontrar o seu lugar antes da distribuição das cópias.

Numerosas nuvens cinzentas amontoavam-se. O Sol desaparecera. O vento levantara-se. Já estava menos calor. Preparava-se uma bátega, ainda bem, para a prova desta tarde!, pensava Ming-Ming enquanto subia a escada quatro a quatro.

Os dois vigilantes estavam colocados diante da entrada da sala do exame, como os deuses da porta dos quais ainda se vê o ícone sobre os batentes das cabanas nos campos perdidos.

Quando viram Ming-Ming, o velho vigilante avançou um passo, bloqueando-lhe o caminho.

- Tu estás excluído do concurso - disse friamente. - Vai para casa.

- Mas esse bocado de papel não é meu - protestou Ming-Ming num tom de cólera reprimida.

- De acordo - disse o velho vigilante irónico - mas leste-o. - Não! Não é verdade! - replicou Ming-Ming com indignação. - Ah, bom! Eu não sabia que tu eras tão honesto a esse ponto! - disse o velho vigilante com uma ironia fúnebre.

- Eu posso jurar por... - comprimiu-se Ming-Ming.

- Não vale a pena insistir - interrompeu-o o velho vigilante com um sorriso cruel. - Vai para casa agora. Poderás voltar para o próximo ano, se te apetecer. Mas, sobretudo, não vás à casa de banho durante a prova. Ah! Ah!...

Ele desatou a rir. O jovem vigilante e os outros candidatos que se continham por detrás das janelas enfureceram-se.

Ming-Ming lançou um olhar pela sala: o lugar de Li-Ping estava vazio, ele também tinha sido expulso.

O velho vigilante continuava a rir, esfregando as mãos. Na sua impotência desesperada, Ming-Ming explodiu. Desferiu um soco con­tra o nariz do velho vigilante, que caiu como um bloco. Então, deu meia volta sobre os calcanhares e saiu da escola sem olhar para trás.

As nuvens negras carregadas faziam sentir o seu peso sobre a cidade. O céu aproximava-se tanto da terra que parecia que se podia tocar-lhe, levantando o braço. Às duas e meia da tarde dir-se-ia que era o crepúsculo. Os ventos dobravam sem piedade as jovens olivei­ras albanesas nos lados da antiga Rua do Fénix. Algumas janelas mal fechadas batiam ruidosamente. Os peões precipitavam-se para as lojas, de onde os clientes hesitavam em sair, escrutando o céu sobre o pata­mar com um ar inquieto. Vários homens e mulheres passaram de bici­cleta, vergados sobre os seus guiadores, rolando a toda a velocidade como para uma competição. Um autocarro parou diante da entrada do posto de saúde pública de Guang-Ning, depois partiu lentamente, levando cerca de quinze pessoas, que olhavam para fora com o ar alegre de um espectador que se sente no abrigo.

Mei-Li atravessou a rua com esforço. Apoiando-se numa cana de bambu, caminhava a pequenos passos de tartaruga, arrastando as per­nas. Ela tinha as costas curvadas mas a cabeça direita. O vento levan­tava os seus cabelos brancos, enchia a sua túnica e as suas calças de algodão pretas. Ela franzia os olhos por causa das rajadas e do pó que elas levantavam. A sua mão esquerda crispava-se no pequeno envelope com medo que o vento, de repente, o levasse.

Chegada! Mei-Li subiu penosamente a escadaria dos correios. No interior, três ou quatro pessoas empurravam-se diante do guiché. Ela colocou-se atrás delas, esperando a sua vez com uma paciência de velho buda. Quando, finalmente, as outras saíram, Mei-Li pôs duas notas de dois maos no guiché.

- Cinco selos de oito fens, se faz favor.

- Tome - disse a empregada, depositando os selos na sua palma da mão.

Mei-Li dirigiu-se lentamente para uma mesinha colocada num canto da sala, pegou com o seu indicador no pouco de cola que res­tava no fundo de um pequeno prato de ferro fixado na mesinha e colou um selo no envelope branco. Guardou os outros no bolso da sua túnica, saiu dos correios e parou diante da caixa do correio. Antes de introduzir a sua carta, ela verificou, mais uma vez, a direcção escrita no envelope: Província de Hubei, Wuhan, Instituto de Medicina de Whuan, Residência dos Estudantes, edifício 8, quarto 217, Fan­-Fan. Estava tudo certo, não faltava nada. Fan-Fan recebê-la-ia den­tro de quatro dias.

Um relâmpago brilhou. Chovia a cântaros.

As palavras do velho, embora pronunciadas em voz baixa, soaram como um sino de bronze, vindo do fundo da imensidão. O seu olhar paternal era de uma profundidade infinita. Toda a sua- pessoa irra­diava uma serenidade sobrenatural. Ming-Ming não se perguntou quem era ele, nem para onde iam. Segui-o docilmente, como num sonho.

Ming-Ming estava de pé na margem do rio Yang. Imóvel na tem­pestade. Como um poste de madeira. As chicotadas de vento e de chuva flagelavam-lhe o rosto com violência. Estava cego. Estava sufocado. A sua camisola branca e as suas calças azuis molhadas estavam coladas ao seu corpo, como uma segunda pele, os seus pés mergulhados em charcos de lama que desabava das ribanceiras para vir engrossar a força da corrente. Céu e rio informes, decompu­nham-se numa massa de nevoeiro. Cego, Ming-Ming viu aproxi­mar-se um rosto sorridente. Não conseguiu distinguir os seus tra­ços, mas soube que era o rosto do seu pai. Este pai que tanta falta lhe fazia. E que nunca o vinha visitar nos seus sonhos. Ming-Ming levantou os braços para ele, simultaneamente tão perto e tão longe, mas o rosto desapareceu de seguida. Ming-Ming experimentou então as mesmas sensações que onze anos antes, durante a travessia come­morativa do rio, no momento em que se entregava ao frio e aos caprichos da corrente, onde ele ia submergir-se no abismo sombrio da água...

Alguém olhava para Ming-Ming.

Era um velho sem idade. O seu crânio rapado, salpicado de cica­trizes redondas de feridas. Olhava-o fixamente, especado num charco, debaixo do seu grande guarda-chuva de papel encerado com cola de peixe. A chuva pingava do seu guarda-chuva como de um telhado de telhas de um templo, enlameando a parte de baixo da sua blusa com­prida de pano cinzento. Segurando uma parte da sua blusa com uma mão e agarrando o guarda-chuva com a outra, o velho dirigiu-se para Ming-Ming. Parou a um passo atrás do rapaz. Ele contemplou-o durante um bom momento, depois avançou o guarda-chuva por cima da sua cabeça. Ming-Ming virou-se lentamente.

- Anda comigo, rapaz.

Em finais Setembro de 1949, fortes chuvadas desabaram sobre a região. Disse-se que o Rio do Céu rebentou os seus diques e se tinha despejado sobre Tien-Ma. O Quing-Shui saiu do seu leito e invadiu os bairros da parte baixa da cidade. Só se retirou dois dias mais tarde, deixando nas ruas uma camada de lama avermelhada espessa com mais de cinco polegadas, e sobre os escombros das casas desmoro­nadas, algumas dezenas de corpos horrivelmente inchados...

Felizmente, a tenda da tia Liu resistiu ao dilúvio, assim como o resto da nossa casa. Foi verdadeiramente por sorte que não perdemos nem a nossa tigela de arroz - o meu trabalho na casa da tia Liu - nem o telhado que nos abrigava.

Nesse dia, uma semana após a catástrofe, a tia Liu e o tio Úheng ofereciam sopa de arroz aos sinistrados no seu pequeno restaurante. O casal andou numa azafama toda a noite na cozinha. As pessoas que tinham perdido tudo vinham da cidade e dos arredores. Eu distribuía a cada um uma concha de sopa de arroz. Já ali estava há meio dia, e as grandes panelas despejavam-se rapidamente sem que eu pudesse vislumbrar o fim da bicha. Era terrível, como podes imaginar, ver tantas mulheres, tantos homens e tantas crianças sofrerem de fome. Apesar de já termos os olhos habituados à miséria nestes anos de guerra civil entre nacionalistas e comunistas.

De repente, uma cara familiar emergiu dos sinistrados: o  correio que já não via desde a inundação.

Habitualmente, ele passava diante da tenda todas as manhãs por volta das onze horas. Como a tia Liu e o tio Zheng já não tinham família, nem relações neste mundo, eles nunca recebiam correio. O correio dizia-nos, simplesmente, bom dia ao passar. De tempos a tempos, depois da sua volta, ele entrava para nos pôr os cabelos em pé com histórias sobre os horrores da guerra em troca de uma tigela de massas de arroz.

Mas o que vinha ele fazer hoje? Não era certamente o momento para nos vir contar a miséria humana, quando tínhamos os olhos cheios...

Pois não, desta vez era para me entregar uma carta. Uma carta de Jing-Ming! Eu reconheci, imediatamente, a sua letra no envelope ama­chucado. Os rostos dos famintos desapareceram, momentaneamente, eu não via mais nada que este envelope na sua mão. Devo confessar que estava verdadeiramente egoísta, uma carta de Jing-Ming podia fazer-me esquecer todos estes infelizes à minha volta. «Tia Liu! Tia Liu. .. », gritei como uma louca. Pus-lhe a concha na mão e corri para me esconder em casa como um pequeno rato no seu buraco. Não podia esperar para abrir a carta. Não o conseguia. As minhas mãos tremiam como folhas de bambu na altura do grande frio. O sangue batia violentamente nas minhas artérias. Eu pensei que ia morrer.

Uma carta de Jing-Ming, tens consciência do que é! Depois de todos estes anos de espera. Depois da descoberta do segredo horrí­vel da minha sogra. Depois de todas estas esperanças enganadas. E, subitamente, uma carta de Jing-Ming. Caída do céu.

Que tinha ele escrito na sua carta? Pois bem, coisas que tu podes adivinhar: preocupava-se com o meu silêncio persistente; ele pensava que as suas cartas anteriores se tinham perdido - nestes anos de per­turbação tudo pode acontecer, sabes. Ele tinha sido ferido duas vezes em combates contra o Exército Vermelho e tinha perdido um olho; depois, tinha tentado por várias vezes regressar a Tien-Ma para me procurar, mas não tinha conseguido, primeiro, por causa da guerra contra os Japoneses, depois, devido à guerra contra o exército comunista; os Japoneses tinham capitulado, mas a guerra contra os comunistas tinha sido perdida; tiveram de recuar para a ilha de Taiwan, esperando um dia o grande contra-ataque que lhes permitiria reconquistar o seu território... Pois bem, como tu sabes, este grande contra-ataque nunca se efectuou, e nunca se efectuará, eu penso... Enfim. Ele queria que eu fosse ao seu encontro em Xia-Men, a capital da província de Fu-Jian. Ele esperar-me-ia ali, no máximo, até ao dia 15 de Outubro.

 

15 de Outubro! Já estávamos no dia 3 e Xia-Men encontrava-se a mais de mil quilómetros de Tien-Ma. A carta de Jing-Ming tinha demorado mais de um mês para me chegar. Quanto tempo seria, então, necessário a Bai-Lan e a mim para chegar a Xia-Men? Hoje, de com­boio, tu podes fazer o mesmo percurso em dois dias. Mas, na época, Tien-Ma não passava de uma pequena cidade sem importância. O caminho de ferro não chegava até aqui. Primeiro, era necessário subir o Quing-Shui de barco até Liu-Zhou. O que demorava cerca de um dia. Depois mudar de comboio lá em baixo. Mas como não havia comboio directo de Liu-Zhou para Xia-Men, tinham de se fazer enor­mes desvios e mudar de comboio várias vezes... Isso demoraria quan­tos dias? Não fazia nenhuma ideia. Imagina que já em tempo de paz não era fácil, quanto mais em tempo de guerra, com conflitos que eclodiam por todo o lado, em qualquer momento!

No entanto, eu decidi tentar a minha sorte. Mesmo que tivesse sido necessário transpor montanhas eriçadas de facas afiadas eu teria ido... Primeiro, corri ao porto para me informar sobre o horário do pró­ximo barco para Liu-Zhou. E, uma vez lá em baixo, aconselharam­-me a não apanhar o comboio: «Os carris foram cortados em todos os lados pelos combatentes. Nunca chegareis a Xia-Men. Por barco, talvez tenhais mais sorte...» Mas era necessário passar também por Liu-Zhou. Depois, de Liu-Zhou, descer o rio Liu, o rio Qian e o rio Xun para chegar a Wu-Zhou. Em seguida, seguir o rio Xi para ir a Guang-Zhou. E de lá apanhar um outro barco para chegar a Xia-Men pelo mar do Sul. «Quantos dias me serão necessários?», perguntei. «Quanto a isso, ninguém sabe», responderam-me.

Mas para me juntar a Jing-Ming eu faria tudo, mesmo atravessar oceanos em chamas...

Dando têmpera à minha coragem no fogo do nosso amor, regres­sei a casa. Peguei nas minhas economias, contei-as e voltei a contá­-las. Nem sequer metade de uma moeda de prata. Nem chega para um bilhete de barco de Tien-Ma a Liu-Zhou. Como fazer?... Se eu vendesse o anel de ouro maciço e os móveis velhos? Isso daria algu­mas moedas, mas nunca mais de cinco. E se eu vendesse a casa? Com sorte isso poderia render-me até trinta e cinco... Então, faria um total de quarenta. Sim, isso poderia ser suficiente para a viagem... Mas como vendê-las em menos de um dia? E a quem?...

Desesperada, comecei a chorar.

Um toque leve na porta. Enxuguei as lágrimas e fui abrir. A tia Liu encontrava-se no patamar. Tinha um ar inquieto.

- O que é que se passa, Mei-Li? - perguntou-me ela. - Há pouco saíste como uma louca.

- A carta... é a carta...

Eu falava sem continuação, como um gago.

- O que é que tu dizes? Uma carta? Recebeste uma carta? - Sim uma carta dele...

Tu queres dizer uma carta de Jing-Ming?

F - Sim, é isso. Ele quer que eu vá ter com ele a Xia-Men... - Mas Xia-Men é muito longe...

- Eu sei isso.

- E com a guerra... - Eu sei isso.

-- Então, como vais fazer para lá chegar?

- Pelo barco. Já me informei. Amanhã à tarde haverá um barco para Liu-Zhou.

- E Bai-Lan? - Irá comigo. - Ela já sabe?

- Ainda não. Dir-lhe-ei quando ela chegar da escola. Eu não par­tirei sem ela.

- De acordo. Mas eu vou, imediatamente, prevenir o tio Zheng e preparar-vos alguns refeições leves para a viagem.

Ela já tinha saído quando se lembrou de alguma coisa. Voltou para trás para me perguntar se eu tinha dinheiro suficiente para a viagem. Confessei-lhe que não, que queria vender a minha jóia, os móveis e a casa, mas não sabia como, nem a quem.

- Não te preocupes, Mei-Li - disse-me com a sua voz calma. Eu dou-te o dinheiro. Não deves vender nem a casa nem os móveis. Se por acaso vos acontecer alguma coisa na viagem e fordes obriga­das a regressar a Tien-Ma?...

- Não, tia Liu, eu não posso - disse-lhe eu. - Se tem algumas economias, é porque trabalha muito no seu restaurante, é porque aperta muito o cinto...

- Escuta, Mei-Li, nós já somos velhos, nós, a tia Liu e o tio Zheng. Nós não vamos levar o nosso dinheiro para o túmulò, pois não? Os tostões que se conseguem ganhar é para serem utilizados onde forem necessários. Não te deves sentir incomodada comigo. Tu és sempre como minha filha, tu sabes...

Ó minha tia Liu! Ó minha tia Liu!

Depois de a tia Liu ter saído, pensei em fazer as malas. Os meus dedos ainda tremiam desta febre de impaciência misturada de inquie­tação que se conhece antes de uma grande aventura com a qual se sonha há muito tempo... Mas, com efeito, eu não tinha grande coisa para pôr dentro da mala. Há quantos anos eu não tinha podido man­dar fazer uma túnica ou umas calças novas. Já nem sei. A vida tinha aumentado tanto nestes últimos anos, era enlouquecedor. Para falar verdade, era com dificuldade que eu ainda conseguia pagar os estu­dos da tua mãe. E se a tua mãe podia ir à escola com roupa mais ou menos decente, era graças à directora do pequeno teatro que lhe dava de vez em quando alguns vestidos que ela já não usava e que eu pró­pria reajustava.

Procurei durante um bom momento no armário, só encontrei rou­pas muito usadas, passajadas no colarinho, nos cotovelos ou nos joe­lhos. Rever Jing-Ming com estes trapos miseráveis? Impensável!... Com uma mão furiosa, limpei todas as prateleiras do armário e, de repente, por debaixo de pilhas de velhos vestidos, os meus dedos roçaram qualquer coisa sedosa... Ah!, enfim, uma coisa apresentá­vel, um vestido de seda a que o tempo não murchou a cor vermelho­-viva... Sim, é mesmo isto - tu já adivinhaste sem que eu o di­ga - era o meu vestido de núpcias, que só tinha usado uma vez... Meti-o imediatamente na mala. Escolhi ainda uma túnica e um par de calças de linho, as menos usadas, como roupa para mudar durante a viagem, e juntei também alguns vestidos de Bai-Lan, depois fechei a mala. Foi então que me coloquei a questão: poderei ainda usar este vestido de seda vermelha?...

Muito rapidamente, voltei a abrir a mala, retirei o vestido e come­cei a passá-lo... Oh, não, impossível. Demasiado pequeno e dema­siado estreito, forçosamente. Imagina que era um vestido talhado para uma jovem de dezasseis anos e que eu já ia nos meus quarenta e cinco.

Como foi possível que eu não pensasse nisso mais cedo.

O vestido de seda vermelho deslizou pelas minhas mãos como uma cobra fria. Lentamente, fui-me sentar diante do espelho e, mais lentamente ainda, levantei as pálpebras, tal era o medo de me encontrar diante do meu reflexo. Há tantos anos que me fechava nas minhas recordações e nos meus sonhos, nos meus deveres filiais para com a minha sogra, nos meus deveres de esposa para com Meng-Yu e nos meus deveres de mãe, que me esquecera que pos­suía um rosto.

Que diferença! Entre a mulher no espelho, que me olhava, e aquela que Jing-Ming tinha encontrado na margem do Quing-Shui, dezas­sete anos antes! O sol pálido das três Pioras da tarde no Inverno, eis como eu era...

A perspectiva de reencontros felizes ensombrou-se, de repente. Seria sem dúvida para nós dois uma grande aventura da qual se igno­rava o desfecho, se eu tivesse a coragem de ir ao seu encontro. Vamos a isso, Mei-Li, dizia eu, coragem. Se recuas passarás o resto da tua vida a lamentar-te. Tu mudaste muito, de acordo, mas ele também, ele deve ter mudado, e sentir-se também ansioso por te voltar a encon­trar... Se por acaso as coisas já não puderem funcionar entre vós, pelo menos tu terás tentado, pelo menos ele terá conhecido os teus sentimentos por ele, pelo menos ele terá podido ver a sua filha, e Bai­-Lan o seu pai... Depois tu poderás viver ou morrer em paz...

Juntei o vestido de seda vermelha, dobrei-o cuidadosamente, colo­quei-o ao lado da mala fechada de novo e esperei calmamente o regresso de Bai-Lan. Ela ia experimentá-lo, deveria assentar-lhe per­feitamente...

Estava a acender o lume para preparar o jantar quando Bai-Lan entrou como um furacão. As suas maçãs do rosto estavam comple­tamente vermelhas.

- Mamã! Mamã! - gritou ela com voz excitada. - Tenho várias notícias boas para ti!

Ah, bom!, dizia para comigo, todas as boas notícias se juntaram num dia.

Bai-Lan inclinou-se à minha orelha e interrogou-me em voz baixa: - Mamã, sabes o que se passou anteontem em Pequim?

- Não. E então?

- O presidente Mao declarou ao mundo inteiro o nascimento da República Popular da China! Que doravante o povo chinês está de pé!

Bai-Lan tinha dito tudo isto de uma só vez, num tom solene, escan­dindo cada palavra. Eu não compreendia muito bem o que ela aca­bava de dizer. Mas olhando para o seu ar grave, percebi, de repente, que a minha filha já não era uma criança. Certamente, ela acabava de completar dezasseis anos, mas continuava uma criança aos meus olhos até há um segundo.

- A segunda grande notícia, mamã: a família Deng foi hoje liber­tada, porque o Exército de Libertação do Povo aproxima-se. Liu-Zhou vai ser libertada em breve.

- Ah, bom! - disse eu com um ar surpreendido.

Esta tarde tinha visto no porto que os criados da família Deng transportavam embrulhos, malas e baús, mas isso não me levou a pensar fosse no que fosse. A minha cabeça estava demasiado cheia.

- A última grande novidade: eu fui admitida nas Juventudes Comunistas da escola - anunciou Bai-Lan, orgulhosa e comovida. - Ah, bom! - disse eu cada vez mais surpreendida. - O que é que é isso? Tu não me tinhas dito nada...

- Pois bem! Há mais de dois anos que eu participo no movi­mento, mas era clandestino, não se podia dizer a ninguém...

- Nem à sua mamã?

- Não, nem à sua mamã. É a disciplina.

Eu sentia-me ferida. Eu nunca teria imaginado que a minha Bai­-Lan pudesse esconder-me o que quer que fosse, mas eu já não tinha tempo para pedir explicações. Eu também tinha uma grande novidade a anunciar-lhe. Então, aclarei a garganta e disse-lhe:

- Escuta, minha filha, eu também tenho qualquer coisa muito importante para te dizer. Senta-te, primeiro. Olha. Recebi uma carta esta manhã. É uma carta do teu pai. Não, não, não é isso. É do teu pai verdadeiro... Não, Meng-Yu não é o teu verdadeiro pai, eu expli­car-te-ei isso mais tarde... O teu verdadeiro pai chama-se Jing-Ming. É o irmão mais novo de Meng-Yu. Ele abandonou a casa antes do teu nascimento. Com efeito, ele não sabia, nem sabe ainda, que eu estava grávida. É por isso que tu nunca mais o viste. Por que é que ele não voltou depois? Bem, é porque ele não pôde. Passaram-se tan­tas coisas... Demora muito a contar... Mas tu vê-lo-ás em breve. Amanhã à tarde, partiremos para uma longa viagem. Iremos ter com ele a Xia-Men. Talvez seja a nossa última possibilidade de o encontrar... Mas como? Ele partirá, em breve, para Taiwan... Porquê Taiwan? Porque ele é um oficial do Exército Nacionalista...

Parei aqui, apanhada subitamente por um sentimento de desastre. O rosto da minha filha empalidecia à medida que eu falava. Os seus lábios tornavam-se brancos de tanto os apertar. Pai nacionalista, filha comunista... o encontro era demasiado brutal...

Abracei a minha filha e disse-lhe Crnamente:

- Oh, perdoa-me querida, perdoa-me, eu sei que deveria ter-te dito a verdade mais cedo, mas...

- Desculpa-me, mamã - interrompeu-me ela com uma voz fraca, mas determinada, libertando-se do meu abraço - mas eu não posso ir contigo.

- Mas porquê?

- Eu não conheci outro pai a não ser Meng-Yu. É ele o meu «ver­dadeiro» pai.

- Mas é o sangue de Jing-Ming que corre nas tuas veias... - De acordo, eu tenho o seu sangue nas minhas veias, mas é de Meng-Yu que eu tive o amor paternal, não?

Ela deu meia volta e saiu correndo, de mão na boca. Eu soube que ela ia chorar. Escondendo-se.

A minha filha renegara Jing-Ming, o seu pai natural. Ela tinha re­cusado ir comigo ter com ele. Ela tinha partido. Eu não fiz um gesto para a reter. A sua palavra tinha-me trespassado de um lado ao outro como uma espada de gelo. Eu estava paralisada. Que fazer? Eu já não sabia...

Olhei durante muito tempo o lume por debaixo da panela. Pareceu­-me ver durante um momento os olhos do olhar claro de Jing-Ming nas chamas dançantes. Depois, o lume apagou-se, a fornalha arrefe­ceu, não havia mais que cinzas...

Passei assim a noite na cozinha, sentada no meu banco. Quando amanheceu, voltei para o quarto. A mala estava ainda na cama. O ves­tido de seda vermelho ainda estava ao lado da mala. Bai-Lan não tinha regressado para dormir esta noite. Acendi a lâmpada de azeite. Retirei a carta de Jing-Ming e queimei-a.

Será que nunca tive pena de não ter ido procurar Jing-Ming? Como dizer... Não se deve esperar muito da vida. Tinha voltado a ver Jing­-Ming, nós passámos três noites juntos, três noites inesquecíveis; depois tinha tido Bai-Lan - ela era a razão e a alegria da minha vida... Se eu tivesse perdido Bai-Lan, seguindo Jing-Ming para Taiwan, ter-me-ia arrependido para o resto da vida? Eu era a mãe. Os nossos antigos sábios diziam muitas vezes que se é feliz quando se sabe con­tentar com o que se tem. Não achas?

Eram cerca de duas horas da tarde do dia 13 de Julho de 1979. O céu flamejava. O ar era espesso e viscoso. A meteorologia tinha anunciado 39° C. Isso, era à sombra. Ao sol podia-se fritar um ovo sobre uma pedra. Diante da entrada do Instituto de Medicina de Wuhan, vários estudantes esperavam o autocarro à sombra de um pequeno bazar. A alguns passos de lá, junto a um plátano do Oriente de folhas largas, uma velha senhora de cabelos brancos de neve dormitava sobre um banco de madeira, de cara escondida entre os seus braços dobra­dos, apoiados na caixa de chupa-chupas gelados.

Uma jovem de um metro e setenta e três, blusa bordeaux, calças pretas, saco de pano ao ombro, aproximava-se da paragem do auto­carro com grandes passadas. Tinha um rosto oval, grandes olhos cas­tanho-sombra, cabelos compridos, apressadamente apanhados em rabo de cavalo. Era Fan-Fan. Deu uma olhadela na direcção de onde o autocarro deveria aparecer. Nenhum sinal do veículo. Tirou um lenço do bolso das suas calças, limpou a testa e dirigiu-se para a velha mulher.

- Um chupa-chupa gelado, se faz favor - disse Fan-Fan.

A velha mulher levantou com dificuldade as suas pálpebras e per­guntou:

- Qual o aroma? Ervilhas vermelhas, ervilhas verdes, kiwis.... - Kiwis, se faz favor.

- Cinco fens.

Fan-Fan colocou três moedas na mão estendida da velha mulher. Esta contou-as cuidadosamente, meteu-as num pequeno saco azul atado à sua cintura e depois mergulhou todo o seu braço na caixa de onde retirou um chupa-chupa gelado envolvido em papel branco com pequenas flores amarelas.

Fan-Fan voltou para a paragem do autocarro. Quando ela retirava o papel, puf! O chupa-chupa gelado desfez-se. Fan-Fan, com o pau­zinho sem nada entre os seus dedos e o chupa-chupa já derretido no pó, não conseguiu evitar o riso. Mas ela não tinha tempo para ir com­prar outro, o autocarro surgia no virar da rua. Não faz mall, disse Fan-Fan para consigo, passando a língua pelos lábios secos.

O autocarro parou e alguns passageiros desceram pela porta da frente. Outros bateram furiosamente contra a porta de trás, que per­manecia fechada. «Abra! Abra!», gritavam eles. A cobradora, impas­sível, junto à porta da frente, repetia com uma voz monocórdica: «Toda a gente desce pela porta da frente! Mostre o seu bilhete!» Quando o último passageiro descia, a cobradora agarrou, de repente, o seu braço: «Você fica!» Este, um verdadeiro atleta de um metro e oitenta e com mais de cem quilos, berrou com ar ameaçador: «Tira daqui a pata, senão eu ...» Mas a cobradora franzina não o largou: «Primeiro, compre o seu bilhete», disse ela num tom firme. O con­dutor do autocarro fechou a porta, virou-se para o sem-bilhete, acres­centando com voz calma: «Porte-se bem, jovem, senão irá explicar­-se à polícia... » O rapaz cuspiu um palavrão e mostrou o seu bilhete amachucado. O condutor abriu a porta para o deixar descer. A cobra­dora trocou um pequeno sorriso cúmplice com o seu colega, limpando a testa.

Fan-Fan foi a última a subir, comprou o seu bilhete, depois colo­cou-se por debaixo da pequena janela aberta no tecto do autocarro na esperança de uma corrente de ar. Mas só havia lufadas tórridas com gosto a pó.

Fan-Fan recebeu uma carta da sua avó mesmo no meio do «período de exames». Ela estava perturbada pelo que Mei-Li lhe tinha dado a conhecer e, sobretudo, pelo que lhe tinha pedido para fazer. Escrever a um pai que te abandonou em bebezinha. E de quem não guardas qualquer recordação. E que nem sequer sabes se está vivo ou morto... Enfim, esperemos que esteja vivo e que a sua antiga direcção ainda seja a mesma. Mas o que é que tu lhe vais dizer? Contar-lhe a tua vida? A vida de Ming-Ming? A vida da mamã. A vida da avó. Como sabes que a nossa vida lhe interessa?... Bom, suponhamos que ele

ainda espera novidades nossas. Mas por onde começar? Quase vinte e dois anos, todas estas coisas, todas estas pessoas, todos estes cho­ros, todos estes risos, todos estes percursos de vida cheios de altos e baixos, todas estas recordações, simultaneamente amargas e doces... isto poderia dar um romance. Um grande... Absorvida pelos seus pró­prios pensamentos, Fan-Fan estava decidida a tratar este assunto a seguir aos seus exames. Mas tornou-se difícil a concentração nos seus livros e nas suas notas. Ela, sempre calma e bem-humorada, tinha tido uma discussão violenta com uma camarada a propósito de nada. Tinha ido à loja do Instituto e tinha trazido para o seu quarto um bloco grande de papel de cartas. Ela tinha escrito, rasgado, recome­çado, rasgado ainda, recomeçado de novo... E no fim do dia, quando já todo o bloco estava no cesto dos papéis, Fan-Fan tinha escrito algu­mas linhas numa folha arrancada do seu caderno de notas:

«Querido papá.

Ming-Ming, a avó, a mamã e eu, nós estamos todos bem e conti­nuamos a morar em Guang-Ning, na mesma rua. Esperamos que pos­sais regressar a casa muito em breve. Nós pensamos em si.

A vossa filha: Fan-Fan.»

Uma vez introduzido o envelope na caixa do correio, Fan-Fan tinha respirado. Ela sentira-se aliviada, sem a carga de um fardo invi­sível. Tinha podido, finalmente, concentrar-se nos seus livros. Agora, no autocarro que a conduzia à estação de Wuchang, Fan-Fan lem­brava-se dessa carta enviada ao seu pai, uma semana antes. O papá já deve tê-la recebido se a direcção estava exacta, pensava Fan-Fan enquanto descia do autocarro na paragem de Dadongmen. Ela queria comprar especialidades de Wuhan para Ming-Ming, a mamã e a avó. Atravessou a rua, desceu uma grande escada e ei-la num dos maio­res mercados livres de Wuchang. Fan-Fan passou diante dos cestos cheios de legumes verdes, das prateleiras de carne, das gaiolas cheias de frangos ou de patos, parou diante de um enorme alguidar de madeira meio de água: sete grandes jia-yu, tartarugas de carapaças moles, pas­seavam-se ali. O vendedor pegou imediatamente na sua balança.

- São as mais lindas jia-yu de Wuhan - elogiou ele, orgulho­samente - quantas quer?

Fan-Fan olhou os animais durante um momento e depois pergun­tou:

- Qual é o seu preço?

- As duas maiores, três kuais a libra. As outras, dois kuais e seis maos.

- É demasiado caro.

- Se conseguir encontrar menos caro e com esta qualidade, eu cortar-me-ei a cabeça!

Fan-Fan sorriu.

- Eu pergunto-me quantas vezes já cortou a cabeça - brincava ela. O vendedor riu, coçando a cabeça.

- Vamos - disse ele - eu vendo-vos isso a dois kuais e nove maos a libra para as maiores e dois kuais e cinco maos para as peque­nas. É pegar ou largar.

Nesse momento, aproximou-se um homem com cerca de trinta anos. - Qual é o preço das suas jia-yu? - perguntou ele.

- Bom, se você as quer - respondeu o vendedor com um ar de respeito - dois kuais e cinco maos por...

- Guarde as maiores para mim - interrompeu-o o homem com impaciência - eu volto daqui a pouco.

Quando o homem se foi embora, Fan-Fan perguntou ao vendedor: - Por que é que lhe fez um preço diferente?

- Porquê? porquê? - disse o vendedor mal-humorado. - Ele trabalha para a comissão de controlo municipal dos mercados. Ele pode­ria obrigar-me a pagar uma multa se não estivesse bem disposto...

- Mas se você tiver razão - disse Fan-Fan com simpatia - você pode queixar-se junto do...

- Está a brincar ou quê, minha jovem - disse o vendedor, aba­nando a cabeça. - Quem é que seria tão estúpido que fosse partir a pedra com um ovo, hem?

Fan-Fan, então, não disse mais nada. Foi-se embora.

- Eh, mdnina - chamou-a o vendedor de jia-yu - se levar três pequenas, eu dou-lhas por um kuai e oito maos a libra.

Fan-Fan parou. O vendedor pegou habilmente em três jia-yu, que lançou no prato da sua balança.

- Três libras exactas, então, são cinco kuais e quatro maos. Fan-Fan pagou. O vendedor tinha recuperado o seu bom-humor enquanto ajudava Fan-Fan a pôr os jia-yu numa rede de malhas em plástico, brincava:

- Se eu tivesse uma filha tão bela como você casá-la-ia com um rapaz que trabalhasse para a comissão de controlo dos mercados.

Deste modo, ela comeria sempre as coisas de melhor qualidade ao melhor preço.

- É por isso que não tem uma filha como eu - respondeu Fan­-Fan sorrindo.

Como ela se afastava, o vendedor acrescentou:

- Não se esqueça de lhes dar um pouco de água de tempos a tem­pos!...

Fan-Fan comprou ainda dez libras de raízes de lódão cor-de-rosa, como bochechas de bebé, e uma pequena melancia antes de deixar o mercado.

Às quatro horas chegou à estação de Wuchang. A sala de espera estava cheia de malas,-de sacos, de embrulhos de roupas, de passa­geiros que falavam, gritavam, interpelavam-se, fumavam, dormita­vam, suavam, comiam, bebiam, dormiam no chão... Fan-Fan deitou um olhar apressado e passou para a sala das reservas. Lá também zumbia como num cortiço. A mesma multidão, as mesmas bichas de espera morosas e resignadas diante de cada guichê. De nada serviu a Fan-Fan estar na bicha durante mais de três horas, na véspera; o expresso 5, o único comboio directo de Pequim a Guang-Ning, parando dezasseis minutos em Wuchang, há dois dias que estava cheio. Fan-Fan só tinha voltado para ver se, por acaso, havia alguém que desistisse e vendesse o seu bilhete. Não. Pouca sorte. Então, Fan-Fan saiu da sala das reservas para ir comprar um bilhete de cais. Quatro horas e meia, ainda faltava cerca de uma hora para a che­gada do comboio. Fan-Fan dirigiu-se para a saída da estação. Se me interrogarem, pensava ela lançando um olhar às suas compras, eu responderei que vou dizer adeus ao meu tio e que isto são prendas para ele...

Uma multidão incrível apertava-se à saída. Fan-Fan estava à espera disto. É certamente um comboio que acaba de chegar, pensou ela, obser­vando ao longe as duas jovens controladoras que verificavam os bilhe­tes dos passageiros que saíam. Um quarto de hora mais tarde, a calma tinha voltado, as controladoras falavam entre elas. Fan-Fan esperou ainda alguns minutos, depois aproximou-se da saída com o ar mais natural do mundo. Ela passou, milagre! Nenhuma das controladoras tinha pestanejado. Fan-Fan esboçou um pequeno sorriso de alívio e penetrou na passagem subterrânea que dá para o cais n.° 1. O comboio n.° 5 pára habitualmente neste cais. Colocou o seu saco e a sua rede junto de uma torneira que estava contígua a um terraço florido, deixou que jorros de água fria acariciassem, deliciosamente, o seu rosto, os seus braços, os seus pés... Depois colocou a rede debaixo da torneira durante um bom momento. Os jia-yu entorpecidos pelo calor mexe­ram-se, repentinamente, como se tivessem reencontrado a vida. Depois de ter enchido um cantil, foi sentar-se à sombra da única loja; pegou no seu canivete e cortou a melancia, que devorou toda em menos de cinco minutos.

O altifalante anunciou a chegada para breve do comboio n.° 5 no cais n.° 4.

Bolas! Fan-Fan juntou, rapidamente, a sua rede e o seu saco, vol­tou a descer a passagem subterrânea, correu até ao fim, virou à direita e subiu uma dezena de degraus. Ela chegou ao mesmo tempo que o expresso.

O comboio parou lentamente. As controladoras foram as primei­ras a descer e colocaram-se ao lado do estribo. Saíam passageiros de braços a abarrotar de bagagens diversas, outros empurravam-se para serem os primeiros a subir. Os empregados verificavam os seus bilhe­tes um a um. Fan-Fan aproximou-se da carruagem n.° 11, deu o seu bilhete à controladora.

Esta impede-lhe a passagem.

- Isto é um bilhete de cais - disse ela.

- Sim, é isso - explicou Fan-Fan - eu vou ver o meu tio. - Onde está o seu tio? - interrogou a empregada de ar desconfiado. - Ali, à janela? - respondeu Fan-Fan com um gesto vago. - Qual janela? - insistiu ainda a empregada.

Então Fan-Fan teve de arriscar tudo por tudo.

Na quarta janela um homem de cinquenta anos olhava para fora com um ar pensativo, refrescando-se com um leque de papel. Através da janela toda aberta, Fan-Fan colocou os jia-yu e as raízes de lódão na mesinha em frente do homem.

- Cá estou, tio - disse ela em voz alta para que a empregada pudesse ouvir. - A mamã disse-me que tu estarias à minha espera na carruagem nº 11. Um instante, eu subo já a seguir.

Ela acrescentou, rapidamente, em voz baixa: - Ajude-me, se faz favor.

Depois, deixando o homem mergulhado numa terrível perplexi­dade, Fan-Fan voltou em direcção à controladora.

- É ele o meu tio - disse com voz tranquila. A empregada deixou-a subir.

A carruagem estava a abarrotar. Tanto no corredor como no fole. Fan-Fan esgueirou-se entre amontoamentos de bagagens e de passa­geiros que mal se afastavam. «Ai! Mas tu és cega ou quê!», gritou subitamente uma voz rude. Fan-Fan sobressaltou-se e viu dois pés sujos e nus atravessados no corredor. Um homem estava deitado no banco, Fan-Fan tinha-lhe passado por cima dos pés. «Desculpe-me, não o tinha visto», desculpou-se ela, dando as passadas com precaução. Uf! Cá está, enfim. Fan-Fan reencontrou o seu homem. Este lançava sobre ela um olhar de intensidade perturbante. Fan-Fan dirigiu-lhe um pequeno sorriso de embaraço, desculpando-se.

- Peço-lhe desculpa pelo que aconteceu há pouco. Eu não tenho bilhete, mas tenho de viajar. Regresso a Guang-Ning para ver a minha família.

O homem continuou a olhar para Fan-Fan com o seu olhar estra­nhamente intenso. Um pouco incomodada, Fan-Fan acrescentou: - Estou-vos muito agradecida.

O homem parecia acordar. - Agradecer-me? Porquê?

- Bom - disse Fan-Fan - por não me ter rejeitado como vossa «sobrinha».

- Mas o que é que vai fazer se for apanhada? - perguntou o homem num tom simpático.

Fan-Fan sentiu-se mais descontraída.

- Não, não me apanharão - respondeu ela sorrindo - porque eu pedirei para ver o chefe do comboio logo que o comboio se mexa. Pagar­-lhe-ei o meu bilhete, com um pequeno suplemento, como é evidente. - Como sabe que ele o venderá?

- Bem, ele será obrigado a fazê-lo! Ele não poderá, no entanto, lançar-me pela janela!

Os outros passageiros escutavam a sua conversa com uma enorme curiosidade.

- Então já não é a primeira vez que faz isto? - perguntou o homem com um sorriso divertido.

- Não - confessou Fan-Fan, que juntava os seus jia-yu e as raí­zes de lódão. - Mais uma vez obrigada, vou percorrer o comboio para procurar um lugar sentado...

- Inútil - disse o homem - está assim por todo o lado.

- Eu vou descer em Yue-Yang, dentro de duas horas, aproxima­damente - propôs o rapaz sentado em frente. - Poderá ocupar o lugar se se mantiver aqui.

- Tem razão - disse o homem.

- De acordo, fico aqui - concordou Fan-Fan.

Duas horas de pé não era nada para ela. A última vez teve de per­manecer de pé quase seis horas e os seus pés estavam terrivelmente inchados quando, finalmente, teve um lugar sentado em Gui-Lin.

- Passe-me os vossos jia-yu e as raízes de lódão - disse-lhe o homem. - Eu ponho-as aqui no banco, ainda há espaço.

- Um momento - respondeu Fan-Fan.

Ela pegou no cantil e despejou um pouco de água sobre os ani­mais antes de lhos dar.

O comboio pôs-se em marcha. Os rostos, depois as árvores, as pare­des borradas de publicidade, as casas baixas diante das quais as velhas mulheres lavavam legumes, os blocos de edifícios em betão, cujas varan­das bem como os telhados planos estavam decorados com vasos muito diversos, os postes telegráficos e as pequenas hortas desfilavam dos dois lados da via, primeiro, muito lentamente, depois, cada vez mais depressa...

A empregada da carruagem apareceu. Passeava um olhar circular. A sua figura endireitou-se quando viu Fan-Fan.

- Ah, ainda cá está!

- Sim, sim - respondeu Fan-Fan, com um pequeno sorriso nos lábios - eu decidi partir com o meu tio. Poderia informar o chefe do comboio que eu quero comprar um bilhete?

Zangada, a empregada virou-lhe as costas sem uma palavra. Fan-Fan fez uma careta. Ela sabia que o chefe do comboio ia pas­sar em breve.

O comboio entrava, lentamente, na estação de Yue-Yang. Na carrua­gem n.o 11, dois passageiros precipitavam-se para descer; pela janela total­mente aberta, viam-se dezenas de pessoas precipitarem-se para o comboio.

O rapaz sentado diante do homem tirou da rede um grande saco a rebentar e puxou debaixo do banco por um cartão cheio de bura­cos. Ouvia-se o cacarejar da criação.

- Bem, vou descer aqui - disse ele, cedendo o lugar a Fan-Fan sob os olhares invejosos dos que se apertavam de pé no corredor. - Deixe as suas bagagens aqui - aconselhou-o o homem - nós passamos-lhas pela janela.

O rapaz avançou pela multidão à cotovelada até à porta, empur­rou com todas as suas forças vários passageiros que lutavam para subir e saltou para o cais. Fan-Fan ajudou o homem a passar-lhe o saco e o seu cartão de galinhas através da janela. «Obrigado e boa viagem!», saudou-os o rapaz antes de se afastar.

Quando a silhueta do rapaz desapareceu no meio da multidão de pas­sageiros, que se encaminhavam para a saída, Fan-Fan virou-se. O seu olhar surpreendeu o do homem que a contemplava com um ar sonhador.

O homem, incomodado, esboçou um pequeno sorriso. Ele retirou de um saco de pano verde pendurado ao lado da janela duas peras enormes cuja casca amarelo-dourada estava ornada com pequenos pontos castanho-carregados.

- Quer uma pêra? - propôs ele a Fan-Fan. - Não, obrigada - recusou com delicadeza. Mas o homem insistiu:

- Sim, sim, tome, é muito boa. Açucarada, estaladiça e cheia de sumo. Chamam-lhe «flor-de-neve». Um fruto ideal para acalmar o fogo interior no Verão.

Fan-Fan sorriu, porque a palavra do homem lembrou-lhe a avó. Ela aceitou a pêra para não o desiludir.

- Pode comê-la como está, já foi lavada - acrescentou o homem com entusiasmo.

Fan-Fan meteu-lhe os dentes. O fruto era verdadeiramente deli­cioso e ela tinha calor, sede e fome.

Ao vê-la trincar a sua pêra com tanto prazer, o homem esboçou um sorriso de satisfação.

- Anda aqui a estudar? - perguntou ele.

- Sim - respondeu Fan-Fan entre duas dentadas - no Instituto de Medicina de Wuhan. Entro para o terceiro ano depois das férias. E você, tio, permite que eu o trate assim?

- Por que não? - disse o homem, de sorriso rasgado até às orelhas. - Você já era minha sobrinha antes mesmo de nos conhe­cermos.

Fan-Fan sorriu.

- Eu ensino no Instituto de Tecnologia de Qinghai - prosseguiu o tio - sou professor de Física. Disse-me que regressava a Guang­-Ning para ver os seus pais?

- Sim, é isso - respondeu Fan-Fan. - A minha avó, a minha mãe e o meu irmão mais velho.

O tio empalideceu.

- Ah, tem também um irmão mais velho! - disse ele com voz trémula.

- Sim - continuou Fan-Fan, que não se apercebia de nada. - Ele tem mais três anos que eu, ele...

- Desculpe, mas como se chama? - interrompeu-a o tio. Fan-Fan hesitou um instante e disse-lhe.

O tio deu um grito doloroso, levando a mão à sua testa. - Sente-se mal? - preocupou-se Fan-Fan.

- Não, não, não é nada, não se preocupe, isto vai passar.

É curioso, pensava Fan-Fan. Ela começou a olhar o homem que tinha na sua frente com a atenção de um médico que examina um doente. Cabelos grisalhos, testa alta, molhada, gravada de pequenas rugas inumeráveis, de grandes sulcos cavados pelo tempo... - ou pelas vicissitudes da vida? - que desciam dos seus olhos fechados até à boca, lábios esbranquiçados descaídos nos cantos, queixo largo e quadrado coberto de barba nascente e empoeirada, como um campo de trigo que acaba de ser cortado... Que idade terá? Cinquenta? Cinquenta e cinco? Não, mais do que isso... pelo menos cinquenta e sete... ou mesmo mais... Ele tem um ar muito cansado. Abatido. Parece-se sempre mais velho que a sua idade quando se está fatigado. Veste camisa branca de manga curta, amarelada pelo suor e a poeira. E um velho relógio de prata de pulseira de couro preto. As suas mãos de dedos compridos devem ter sido belas na sua juventude. Ele diz que trabalhava em Qinghai. É muito longe, Qinghai. Ele já deve estar em viagem há dois ou três dias. Com um calor destes. Onde vai ele? Porquê? Ele tem uma pronúncia curiosa, muito misturada, difícil de dizer se é do Norte ou do Sul...

O comboio chegou a Chang-Sha. Aqueles que iam descendo eram sempre menos numerosos que aqueles que tentavam subir. Passavam­

-se as bagagens e as crianças pelas janelas. As carruagens estavam tão cheias que era impossível que as empregadas circulassem no corredor. A distribuição de água fervida fazia-se, então, a partir do cais. Igualmente pelas janelas. Antes mesmo que o comboio parasse completamente, copos de toda a espécie e de todas as cores já esta­vam acumulados na mesinha atrás de cada janela. Quando, final­mente, surgia a empregada com uma grande chaleira na mão, todas estas pessoas, privadas de água há mais de duas horas com um calor tórrido, se apertavam às janelas, estendendo copos que a empregada só enchia até ao meio. Uma menina passou com uma caixa de chupa-chupas gelados, e dezenas de braços estenderam­-se para fora das janelas: «Três chupa-chupas gelados!» «Dois para mim!» «Quatro, se faz favor!» «Seis! Eu quero seis!»... O com­boio abanou os seus rins sólidos e voltou a partir. «Eh! O meu dinheiro! ... », gritou um homem para a vendedeira, que não tivera tempo de lhe dar o troco.

A noite caía. O oeste escarlate escurecia. Arrozais, aldeias, ondu­lações musicais de colinas longínquas, tudo se fundia ao afastar-se. A rádio difundia uma música alegre de Guang-Dong: O Regresso dos Pescadores ao Pôr do Sol. Fan-Fan tocava piano nos seus joelhos com a ponta dos dedos, de pálpebras fechadas. Ela gostava muito desta música, descontraía-a. Mas, de repente, a música foi interrom­pida brutalmente. Fan-Fan abriu os olhos.

«A vossa atenção, por favor! A vossa atenção, por favor!», anun­ciou a rádio. «Uma passageira está a ter um parto. Todo o passageiro que seja médico ou enfermeiro é favor de se apresentar imediata­mente no gabinete do chefe do comboio, entre a carruagem n.° 7 e a carruagem n.° 8... »

Fan-Fan levantou-se.

- Vai lá? - perguntou o tio. Fan-Fan fez sinal que sim.

- Poderia guardar este lugar para mim? - pediu-lhe ela. - Eu ponho aqui este livro, assim sabe-se que o lugar está ocupado.

- Não há problema - prometeu o tio.

Ele deu uma olhadela ao livro. Era a tradução de A Peste. Ela gos­tava de literatura estrangeira, pensava ele, eu poderei enviar-lhe alguns como prenda de aniversário. Ela completará vinte e dois anos dentro de um mês e dezoito dias.

Quando Fan-Fan chegou, finalmente, ao gabinete do chefe do com­boio, depois de ter atravessado três carruagens à cotovelada, viu um homem em uniforme do exército numa azáfama junto da cama onde uma mulher se torcia como um animal ferido. Uma empregada do comboio parou Fan-Fan à porta.

- Eu sou estudante de Medicina - explicou-lhe Fan-Fan. - Já assisti a partos.

O homem em uniforme do exército disse sem se virar: - Deixem-na entrar.

O tio retirou o último cigarro da caixa e virou-se contra o vento para o acender. Esta tarde, na estação de Wuchang, quase deu um grito quando viu Fan-Fan dirigir-se para ele. Num instante, pareceu-lhe ter visto Bai-Lan. Jovem e bela como ele a tinha encontrado pela primeira vez. Das palavras que Fan-Fan lhe dissera ele nada tinha entendido. Ele não tinha procurado compreender. Tinha posto toda a sua energia no seu olhar. Não tinha conseguido desviar os olhos do rosto da jovem. Eu estou louco, pensou ele, é simplesmente uma jovem que se parece com ela. Depois, quando soube que ela habitava em Guang-Ning com a sua avó, a sua mãe e o seu irmão mais velho, ele tinha adivinhado... O nome Fan-Fan tinha confirmado o seu pressentimento. Ela mesma, a sua filha que estava diante dele. Uma vaga de imagens de um pas­sado longínquo invadiram-no, subitamente. Como se num milésimo de segundo o tempo tivesse recuado vinte e dois anos.

O expresso parou em Heng-Yang. Uma ambulância já esperava na estação. A mãe e o bebé foram transportados imediatamente para o hospital.

O comboio voltou a partir.

Esgotados, mas contentes, o Dr. Luo e Fan-Fan estavam sentados na beira da cama do gabinete do chefe do comboio, comendo com apetite as massas que este lhes tinha mandado trazer.

- Para onde vai? - perguntou o médico militar à jovem que o tinha assistido tão bem.

- Para Guang-Ning - respondeu Fan-Fan. - E o Dr. Luo? - Para Gui-Lin, ver um velho amigo. Eu fui enviado para Guang­-Ning no ano passado, durante a guerra contra o Vietname.

- Ah, bom! Eu estava, então, em Wuhan, mas ouvi dizer que não era fácil...

- É verdade que não. Os Vietnamitas não são tigres de papel. Imagine! Eles expulsaram os Franceses e os Americanos também. São soldados excelentes. Mesmo as crianças sabem lançar granadas nas vossas costas!

- Eu ouvi dizer que os hospitais de Guang-Ning estavam cheios de feridos transferidos da frente...

- Era a guerra...

- Contaram também que as armas utilizadas pelos Vietnamitas tinham sido fabricadas na China. Será verdade?

- Sim, é verdade, infelizmente. Os sacos de arroz que os nossos soldados encontraram nas trincheiras dos inimigos tinham também os caracteres seguintes: «Fabricados na China.» Que ironia!

O médico militar calou-se por um momento. Depois, incenti­vado pela atenção que a jovem prestava às suas palavras, acres­centou:

- Na verdade era muito penoso. Houve muitos mortos entre os soldados vindos do Norte, eles não estavam habituados nem ao ter­reno nem à guerrilha. Alguns deles foram mortos pelo fogo da nossa artilharia de campo...

Os olhos de Fan-Fan esbugalharam-se.

- Mas como é possível? - perguntou ela incrédula.

- Pois é, a falta de coordenação e a incompetência do comando... O médico calou-se imediatamente ao ver entrar o chefe do comboio. - As massas estavam boas? - perguntou este, com um sorriso rasgado. - Eu disse ao cozinheiro para pôr nelas os melhores boca­dos de carne...

- Sim, estavam deliciosas - respondeu o doutor, delicadamente. - Eu regalei-me - acrescentou Fan-Fan, mostrando a sua tigela vazia.

O chefe do comboio esfregou as mãos de contente. - Agradeço-vos imenso a vossa ajuda...

- Não tem de quê - interrompeu-o o doutor. - É o que todo o médico teria feito no nosso lugar.

- Eu volto para a minha carruagem -disse rapidamente Fan­-Fan, que tinha horror a este tipo de formalidades. - Adeus e boa noite!

Ao ver Fan-Fan, o tio esmagou o seu cigarro no cinzeiro de ferro fixado por baixo da janela. O cinzeiro abarrotava de beatas.

- Correu tudo bem? - perguntou o tio, que acabava de emergir do seu combate secreto.

- Sim, a mãe e o bebé estão bem - respondeu Fan-Fan, dei­xando-se cair em peso no banco. - Foram retiradas na estação de Heng-Yang. Esperava-as uma ambulância.

- Quer um pouco de chá? - perguntou o tio, enquanto empur­rava um copo na direcção da jovem. - Já arrefeceu.

- Obrigada - disse Fan-Fan. Ela bebeu um grande gole, depois poisou o copo na mesinha. - Estou estoirada - disse ela. - Que horas são?

- Uma hora da manhã.

- Já uma hora? Por que é que não dorme? - Não consigo.

O tio hesitou um instante e depois lançou-se: - Estava à sua espera.

- À minha espera? Porquê? - perguntou Fan-Fan surpreendida. - Gostaria de lhe falar.

- Falar-me? De quê? - perguntou Fan-Fan cada vez mais sur­preendida.

- De alguém... de um amigo...

Fan-Fan retomou o chá frio e bebeu a pequenas goladas. - Estou à espera - disse ela.

- Então... Aí vai... É a história de um homem. Ele fez um dis­parate na sua juventude. Um erro que lhe custou muito, muito caro. Mas ele era jovem, ingénuo, animado por um entusiasmo ardente. Acreditou no que lhe diziam e disse o que pensava. Por isso, foi punido. Enviado para um campo de trabalhos forçados, a milhares de quilómetros da sua família, longe da sua mulher e dos seus filhos. Durante três anos, foram-lhe impostos trabalhos cada vez mais duros para se transformar numa «nova pessoa», como se dizia. Ao fim de quatro anos, conseguiu evadir-se do campo. Mas algumas horas mais tarde foi capturado pela polícia. Esta tentativa frustrada custou-lhe mais dois anos de pena suplementares. Ele ficou no campo dezassete anos no total. Quando saiu, já velho, com quarenta anos, trabalhou, primeiro, numa fábrica de produtos químicos. Ali, encontrou uma viúva com três filhos. Ela compreendia-o e cuidava dele. Casaram-se. Mais tarde, após a reabilitação, ele retomou, finalmente, a sua profissão, que tinha sido forçado a abandonar vinte e dois anos antes. Mas há qualquer coisa que, desde então, o atormenta. Quer voltar a ver a mulher e os filhos que deixou há mais de vinte anos, ele sente-se tão culpado em relação a eles, compreende? Em relação à sua mulher que ele amava, e ainda ama, mas que foi obrigado a deixar só a educar os seus filhos num mundo doravante hostil. Socialmente perdida. Em relação aos filhos que crescem órfãos de pai, tão longe dele, social­mente perdidos também... Eles teriam tido uma vida melhor se ele não tivesse cometido este disparate imperdoável... Ele morre de desejo de saber como eles estão agora, de os ver, de os abraçar, mas...

O tio não conseguiu continuar. As lágrimas sufocavam-no. Fan­-Fan olhava-o em silêncio. Será ele o meu pai?, repetia ela para si. Ela tentou encontrar neste rosto devastado o que restava do homem brilhante que ela viu uma vez numa fotografia ao lado da sua mãe igualmente jovem, bela e feliz... Mas... Nada. Tudo foi apagado. Tudo. Fan-Fan sentiu-se triste.

-Se... se você fosse a sua filha - prosseguiu o tio com esforço, levantando para Fan-Fan os seus olhos de choro e de angústia - o que é que lhe diria se ele regressasse?

Fan-Fan olhou nos olhos que a esperavam, sorriu com o sorriso que teve ao receber das mãos do Dr. Luo o bebé recém-nascido. - Eu - disse ela - perguntar-lhe-ia se tinha sede e se queria um chá de azarola.

O tio emitiu um longo soluço.

Fan-Fan colocou as mãos dele entre as suas e chamou-lhe terna­mente:

- Papá!

Ao alvorecer, o comboio chegou a Gui-Lin. Desceram passagei­ros. Subiram passageiros. Fan-Fan dormia, com a testa poisada nos seus dois braços cruzados na mesinha, sob os olhos acariciadores do seu pai.

Às onze horas e trinta, o expresso passou por Liu-Zhou. Fan-Fan continuava a dormir. O seu pai contemplava-a com um olhar sonhador. Às três horas e seis minutos da tarde, o expresso entrou na esta­ção de Guang-Ning. Término. Os passageiros desciam. A carruagem esvaziava-se. Fan-Fan ainda dormia. Hong esperou que o último pas­sageiro saísse para a acordar.

- Fan-Fan, chegámos - disse ele, batendo suavemente no seu ombro.

- Avó! Avó - chamou Fan-Fan empurrando a porta.

Mei-Li estava a ler um jornal, confortavelmente instalada num cadeirão de vime que Bai-Lan lhe tinha comprado no último Janeiro, dois dias antes do Ano Novo chinês. O seu rosto iluminou-se com o aparecimento da neta

Fan-Fan colocou os jia-yu e as raízes de lódão aos pés da sua avó. - Há tanto tempo à tua espera! - disse Mei-Li pegando nas mãos que a sua neta lhe estendia.

- Olha o que eu te trago! - disse-lhe Fan-Fan, afastando-se um pouco. Mei-Li franziu os olhos para ver melhor o homem de pé por detrás de Fan-Fan.

- Mas não és tu, Hong? - disse ela com emoção. - Eu sabia que tu virias. Porquê permanecer de pé? Senta-te. Eu vou servir-te uma chávena de chá de azarola...

- Não te incomodes, avó - disse Fan-Fan retirando as suas mãos. - Eu vou fazer.

Ela foi ao aparador baixo, tirou uma chávena, encheu-a de chá frio, estendeu-a a Hong com as duas mãos.

- Toma, papá.

Hong pegou na chávena com as suas mãos trémulas e esvaziou-a de um longo gole.

Fan-Fan trocou um pequeno sorriso com a sua avó.

- Onde está a mamã? - perguntou Fan-Fan servindo uma chá­vena de chá?

- No trabalho - respondeu Mei-Li. Ela tem uma melancia enorme na cozinha. Está mergulhada em água fria desde ontem à noite. Vai buscá-la.

- Deixa-a para esta noite. Primeiro, vou buscar a mamã. Até já, papá! Até já, avó!

Ela partiu a correr.

- Podes pedir uma bicicleta à Velha Zhou! - gritou Mei-Li pela janela.

Hong passeou pela sala um olhar de nostalgia misturada com ternura. Os longos anos tinham mudado muitas coisas: os cortinados azul-claros tinham sido substituídos por cortinados verde-vivos com desenhos de bambus; o cadeirão de vime onde estava Mei-Li erguia-se no lugar da pequena cama de Ming-Ming; os dois termos de ferro pintado novinhos em folha tinham substituído os velhos; colocado sobre um banco alto coberto por uma toalha branca, um vaso de terra cozida cinzelado com uma orquídea trémula junto a um rochedo chamava a atenção pela sua forma e pela sua cor originais. Alguns móveis, que ele conhecera muito bem, ainda lá estavam, o aparador baixo, a pequena mesa desdobrável, o lavatório em madeira, os bancos, o despertador de Bai-Lan, o apare­lho de rádio que eles tinham comprado juntos, pouco antes do casa­mento... Só que estes objectos estavam muito usados. Como ele... - Tu recebeste a carta de Fan-Fan? - perguntou Mei-Li.

- Não. Eu mudei de direcção várias vezes. Nós encontrámo-nos no comboio ocasionalmente. Um caso de sorte.

- Era impossível que não a reconhecesses. É o retrato de Bai­-Lan com a sua idade.

- Excepto que Fan-Fan é maior. Mei-Li limpou os olhos.

- Tu mudaste muito, Hong. - Eu envelheci, mamã.

- Eu também envelheci. Faço setenta e cinco anos este ano. Eles olhavam-se em silêncio. Depois, Mei-Li perguntou:

- Tu ficarás connosco?

- Não, mamã, não poderei. - Voltaste a casar?

- Sim. Ela tem três filhos.

- Compreendi. Quando é que partes? - Dentro de quatro ou cinco dias. - Assim tão apressado?

- Sim. Senão ela vai ficar inquieta. Bai-Lan não encontrou nin­guém em todos estes anos?

- Não, sim. Mas ele morreu na inundação há onze anos. Fez-se um novo silêncio. Hong perguntou:

- Onde está Ming-Ming? - Desapareceu.

- Desapareceu? Quando?

- Há dez dias. Ming-Ming foi ao centro de exames de manhã, mas não regressou à noite. Desvairada, Bai-Lan foi informar-se junto da comissão municipal dos exames. Eles disseram-lhe que Ming-Ming tinha copiado...

- Copiado? Ele?

- Nós não acreditamos. Ming-Ming é demasiado orgulhoso para ter feito isso. Enfim. Disseram também que ele tinha sido desquali­ficado do concurso, que tinha batido num vigilante, e que tinha dei­xado o centro dos exames no início da tarde. Mas ninguém o voltou a ver depois. Nós estávamos mortos de inquietação. Procurámos por todos os bairros, alertámos a polícia. Mas...

A sua voz afogava-se nas lágrimas.

- Achas que ele se suicidou? - perguntou Hong ao fim de um momento.

- A esperança existe sempre, enquanto o corpo não for encon­trado... - murmurou Mei-Li, como se falasse para si mesma. Hong baixou a cabeça.

- Se eu não tivesse cometido esse erro há vinte e dois anos... - disse em voz baixa.

- Tudo o que tem de acontecer acontece - disse Mei-Li com ternura. - Tu não tens a culpa.

A porta abriu-se com estrondo. Fan-Fan entrou, seguida por Bai­-Lan.

Mei-Li juntou as jia-yu e as raízes de lódão.

- Fan-Fan - disse ela à sua neta - vem ajudar-me a preparar o jantar.

Fan-Fan acompanhou a sua avó para a cozinha, fechando, sem barulho, a porta atrás delas.

Liu-Zou caiu em poder do Exército de Libertação do Povo em finais de Novembro de 1949. Em pânico, todas as famílias ricas de Tien-Ma fugiram. Cinco dias mais tarde, os soldados entraram na cidade. A população desceu à rua para os aclamar. Não à guerra civil! Feudalismo nunca mais! Gritava-se, cantava-se, batia-se nos tambo­res e nos gonzos, lançavam-se foguetes. Era a festa.

Depois, Bai-Lan partiu com a equipa de propaganda que acom­panhava o Exército até Guang-Ning, libertada em 17 de Dezembro. Mais tarde, a tua mãe foi para o campo para participar na reforma agrária antes de se juntar, no início de 1950, à companhia da ópera Gui de Guang-Ning.

Como foi que eu me tornei contabilista? Pois bem, com a par­tida da minha Bai-Lan, encontrei-me só e comecei a debruçar-me sobre a minha vida, a reflectir sobre o que eu ia fazer do resto dos meus dias. Até lá, posso dizer, tinha sempre feito o que me diziam para fazer ou o que as circunstâncias me forçavam a fazer, eu tinha vivido sempre para os outros. Mas, de repente, com qua­renta e cinco anos de idade, a possibilidade de escolher tinha-me surgido, numa sociedade em plena mudança, onde os pontos de referência de outrora já não serviam para nada. Era horrível, sabes, porque não me tinham deixado escolher antes e eu nunca tinha imaginado que o mundo pudesse mudar assim, de um dia para o outro. Eu olhava à minha volta e tinha vertigens. Fechava os olhos para os voltar a abrir ainda mais e, então, apercebi-me de qual­quer coisa!

Após a conquista do poder, houve uma necessidade urgente de novos funcionários e surgiram escolas de formação rápida como cogu­melos após as chuvas da Primavera. Então, fui apresentar-me numa dessas escolas.

- Você? Na escola - disse-me um rapaz de vinte anos que se encontrava na recepção.

- Acha-me demasiado velha, jovem? - disse-lhe eu. - Mas eu ainda não sou avó. E sei ler e escrever.

Nessa época, como sabes, a maior parte da população era analfa­beta, saber ler e escrever era um trunfo.

O jovem recepcionista hesitou e foi consultar alguém. Voltou cinco minutos mais tarde e deu-me um formulário para preencher.

À noite, quando eu disse à tia Liu que ia deixar o restaurante, ela disse-me, limpando os seus olhos: « O teu tio Zheng e eu tínhamos pensado deixar-te o restaurante quando fôssemos demasiado velhos para trabalharmos nele, mas agora... é melhor não possuir nada...» A seguir, acrescentou, chegando a sua boca à minha orelha: «Nunca se deve dizer a ninguém que Jing-Ming é o pai de Bai-Lan e que ele foi para Taiwan.»

Depois de ter passado um ano na escola de formação rápida, fui enviada para Ying-Bing para trabalhar como contabilista numa far­mácia do Estado. Foi assim.

O que foi feito da tia Liu e do tio Zheng? O seu pequeno restau­rante foi colectivizado em finais de 1951. A tia Liu morreu de uma crise cardíaca quatro meses mais tarde. Ó minha tia Liu! Após o desa­parecimento da sua mulher, o tio Zheng deu a casa ao Estado e veio morar comigo para Ying-Bing. Morreu no Outono de 1952. Mandei­-o enterrar nos arredores de Tien-Ma, ao lado da tia Liu. A 5 de Abril de cada ano, eu vinha a Tien-Ma, arrancava as ervas daninhas dos seus túmulos, juntava mais terra, queimava para a tia Liu uma dezena de folhas de tabaco tão amarelas como o ouro, derramava para o tio Zheng uma garrafa de Três Flores de que ele tanto gostava. Mas, depois de o teu pai ter sido enviado para o campo, eu tive de parar o meu trabalho para vir viver convosco, a tua mãe, o teu irmão e tu. Já não tinha os meios para ir a Tien-Ma. Depois o teu irmão desa­pareceu, o teu pai voltou a partir para Qing-Hai e tu para Wuhan... Eu desejava tanto falar com a tia Liu que voltei lá. Mas tinham cons­truído uma barragem no rio Quing-Shui, os túmulos da tia Liu e do tio Zheng encontravam-se por debaixo de toneladas de água de um reservatório... Sim, é por eles que eu queimo, todos os anos, a nota de dinheiro no dia da Festa dos Mortos. Lembras-te destas folhas de dinheiro que eu própria fabricava durante a Revolução Cultural? Elas não eram tão bonitas como as que tu podes encontrar, agora, nas lojas, mas com isso no seu mundo a tia Liu e o tio Zheng já podiam com­prar um maço de tabaco ou um copo de aguardente de tempos a tempos.

1984. A Primavera chegava cedo este ano a Guang-Ning. Os habi­tantes já não podiam esperar mais para sair em família: era necessá­rio aproveitar os primeiros dias bons antes que as longas chuvas pri­maveris viessem entorpecê-los de novo entre quatro paredes.

No caminho de lajes, que aflorava na margem do lago do Sul, Fan-Fan marchava a passos lentos, empurrando diante dela uma cadeira de rodas novinha. Usava um vestido preto com pequenas flo­res vermelhas e um colete de fina lã branca. O sol suave de Março brilhava nos seus cabelos castanho-escuros que caíam em cascata até à cintura. O vento norte encrespava ligeiramente a superfície pra­teada do lago que se estendia pela sua direita como um imenso espe­lho de prata. À esquerda, pequenos bosques de bambus gigantes esta­lavam de seiva nova, bananeiras abanavam os seus largos leques lacados de um verde-fresco, rosas selvagens ostentavam as suas flo­res amarelo-pálidas, murtas perfumavam o ar com a sua floração branca, volúveis de corolas violetas enrolavam-se à volta dos tron­cos de eucaliptos, borboletas e libelinhas esvoaçavam alegremente sobre um tapete de erva tenra, brilhante de orvalho e constelada de violetas e de pequenos cogumelos castanhos... Tudo, mesmo a doçura do ar, cantava as sinfonias de uma Primavera gloriosa. De tempos a tempos, Fan-Fan tinha de levantar o braço para afastar um ramo que se vergava demasiado sobre o caminho. Com todo o ouvido e todo o olhar bem despertos, Mei-Li, sentada na cadeira, bebia até se ine­briar estes sabores, estas cores, estas luzes, estes odores e estas vibra­ções da vida.

Era a primeira vez que ela transpunha a entrada da casa desde que estava paralisada das pernas. A cadeira de rodas tinha-lhe sido ofe­recida por Fan-Fan pelo seu octogésimo aniversário.

- Eu nunca te poderei agradecer o suficiente, Fan-Fan - mur­murou Mei-Li.

Fan-Fan sorriu então, com um sorriso que não se dirigia a ninguém. Ela tinha obtido o seu diploma em 1982. Tinham-lhe oferecido um posto interessante em Wuhan, mas ela tinha preferido regressar a Guang-Ning, para junto da sua mãe e da sua avó. Ela trabalhava, desde então, no hospital do povo de Guang-Ning, a menos de quinze minutos de casa de bicicleta. Tinha uma cama reservada no dormi­tório do pessoal, mas quando não estava de serviço comia e dormia sempre em casa.

- Olha, avó! Olha este grande peixe, ali, ao lado desta folha de lódão - disse Fan-Fan, em voz baixa, empurrando a cadeira junto à margem do lago.

- Mmm... - disse Mei-Li semicerrando os olhos para ver melhor - pesa pelo menos dez libras.

O peixe apanhou uma presa, abanou a cauda com satisfação, depois afastou-se, majestoso, pelas profundidades do lago.

- É melhor dirigirmo-nos ao parque por este lado - disse Fan­-Fan - a paisagem é mais bela e não há o engarrafamento das bici­cletas.

- Podemos parar aqui um momento, se quiseres, estás um pouco esfalfada - sugeriu Mei-Li, mostrando com um movimento de queixo um banco de pedra junto a uma velha goiabeira.

- Não, isso não - disse Fan-Fan continuando a empurrar a cadeira.

- Diz-me, o que pensas da proposta do teu pai? - perguntou Mei-Li, que punha a mão sobre a sua testa como protecção para melhor distinguir o outro lado do lago.

Fan-Fan não respondeu imediatamente. Há mais de uma semana que estava bloqueada nas suas reflexões. Tinha recebido uma carta do seu pai que tinha perturbado a sua tranquilidade interior como uma pedra lançada num lago calmo. Após várias tentativas, Hong tinha conseguido retomar o contacto com o seu irmão, que ele já não via há trinta e quatro anos e que vivia nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, tinha sabido que a sua mãe morrera há dez anos e que o seu pai, falecido em Dezembro último, lhe deixara metade dos seus bens. É evidente que Hong gostaria muito de regressar à América para ver o seu irmão. Mas passar ali o resto dos seus dias? Deixar ali os seus ossos já roídos por uma velhice precoce? Estava fora de questão. Ele estava muito agarrado a esta terra chinesa, a dos seus antepassados e dos seus filhos, esta terra à qual ele tinha dado os mais belos anos da sua vida. Apesar dos enormes sofrimentos por que tinha passado, ele pensava que pertencia sempre a esta terra pela qual estava pronto a consumir-se como uma vela até à última gota de cera. Então, o que poderia ele fazer do património herdado do seu pai? Nada mais sim­ples! Ele utilizá-lo-ia para enviar a sua filha aos Estados Unidos, para que ela pudesse aperfeiçoar-se na medicina numa das melhores esco­las do mundo... Prosseguir os seus estudos no estrangeiro! Todos os seus camaradas de aulas no Instituto de Medicina de Wuhan estavam mortinhos de inveja. Nos Estados Unidos! Todos os seus jovens cole­gas do hospital do povo de Guang-Ning sonhavam com isso. Aliás, alguns deles já tinha saído para a Europa ou para a América, inclusive a sua melhor amiga Kong-Hua. Fan-Fan também teria gostado muito de ir ver outro mundo, descobrir uma outra civilização, encontrar pes­soas diferentes e conhecer técnicas mais modernas de medicina. Mas eis que a ocasião se apresentava e ela hesitava... A idade avançada da sua avó paralisada, a saúde frágil da sua mãe que não parava de se degradar desde o desaparecimento misterioso de Ming-Ming e do reen­contro breve e doloroso com o seu pai, preocupava-a mais do que qual­quer outra coisa por agora. Se ela partisse, quem trataria deles.

- Por que não queres falar, Fan-Fan? - insistiu Mei-Li, virando a cabeça para olhar para a sua neta.

- Tenho necessidade de reflectir - respondeu Fan-Fan num tom evasivo.

- É preciso saber aproveitar as ocasiões, quando a vida tas apre­senta, minha filha - disse Mei-Li ternamente.. - O teu futuro é mais importante que os nossos velhos dias.

Fan-Fan abanou a cabeça sem dizer nada.

- A propósito - prosseguiu Mei-Li, que se lembrava, subita­mente, da visita que a neta adoptiva lhe fizera na véspera - sabes que Bi-Zhu vai pedir o divórcio?

- No seu lugar - respondeu Fan-Fan -já o teria feito há muito tempo.

- Se tivesses uma criança pequena como ela, pensarias de outra maneira.

- Talvez...

Fan-Fan inclinou-se, apanhou uma rosa, cujas pétalas delicadas estavam ainda molhadas pelo orvalho, retirou cuidadosamente os espí­nhos, e colocou a flor nos cabelos brancos da sua avó.

- O que é que estás a fazer - perguntou Mei-Li. - Nada - respondeu Fan-Fan, sorrindo.

Bai-Lan, esfalfada, colocou o seu cesto no chão diante do aparta­mento n.° 11, Rua dos Bambus Novos. Regressava do mercado. Para celebrar o aniversário da sua mãe ia preparar um prato especial: flo­res de abóboras recheadas. Bi-Zhu vinha jantar a casa com o seu filho. Bai-Lan abriu o cadeado e empurrou a porta. Dois envelopes tinham sido introduzidos por debaixo da porta.

A primeira era dirigida a Mei-Li. Era uma carta enviada do estran­geiro. O nome e a direcção do remetente estavam escritos em inglês. O pouco de inglês que Bai-Lan tinha aprendido na escola secundá ria, exactamente antes da conquista do poder pelos comunistas, há trinta e quatro anos, tinha sido totalmente «devolvido» ao professor, como se diz, e desde há muito tempo. Depois de muitos esforços, ela só conseguiu decifrar o nome do país onde a carta tinha sido posta no correio: o Canadá. Quem poderia escrever à sua mãe do Canadá. Os cantos do envelope estavam muito gastos. Havia umas quinze vinhetas coladas na parte da frente e de trás, emitidas pelas diferentes estações de correio, que revelavam o número de tentati­vas infrutíferas efectuadas pelos carteiros para, finalmente, encon­trar o destinatário.

Bai-Lan colocou esta carta misteriosa na mesa, depois olhou para a segunda. À primeira olhadela, a sua mão pôs-se a tremer violenta­mente: é a sua escrita! Ele está vivo!

Agora, o caminho afastava-se do lago, subia numa suave inclina­ção, corria direito através de um pequeno bosque de pereiras em flor, depois chegava à estrada principal ladeada de eucaliptos de folhas largas, conduzindo ao Parque do Lago do Sul.

- Chegámos - disse Fan-Fan, parando a cadeira ao lado de uma mesa erguida diante da guarita da entrada.

Fan-Fan comprou dois bilhetes ao velho guarda sentado num banco de madeira por detrás da mesa.

O guarda trocou um sorriso de simpatia com Mei-Li. - Que belo tempo para sair!- disse ele.

- A minha neta leva-me ao Jardim das Plantas Medicinais do parque - disse Mei-Li.

- Que idade tem?

- Faço hoje oitenta anos.

- Então, os meus parabéns! Que viva até aos cem anos! - Muito obrigada, é muito simpático.

- Tem mais sete anos que eu, como a minha irmã mais velha. - Já tem setenta e três anos? Ninguém diria.

- É simpático dizer-me isso. Estou reformado desde 1971. Hoje, substituo a minha filha mais nova. Ela foi convidada para o casa­mento da cunhada.

- Quantos filhos e netos tem?

- Hein!... três filhos, cinco filhas... sete netas e quatro netos. - Tem muita sorte!...

- Quando os meus filhos nasceram, ainda não havia a política de um filho por família. Então, sabe... Ah! Ah! Ah!...

Fan-Fan ouviu, sorrindo, a conversa entre o velho guarda e a sua avó. Ela não tinha pressa. Compreendia-os. Quanto mais idoso se é, mais necessidade se tem de ser escutado. De sentir o calor humano. Que pena que a minha avó já não possa sair sozinha, mesmo com a ajuda da cadeira de rodas, ela que gosta tanto de encontrar pessoas.

Chegavam outros visitantes. Fan-Fan e Mei-Li despediram-se do velho guarda e entraram no parque. Uma grande ponte em forma de dorso de burro leva-os, primeiro, a uma ilhota coberta por arbustos no meio do lago. Havia famílias sentadas na erva, as crianças salta­vam entre os grupos, jovens posavam nas escadarias do pavilhão ou diante do rochedo para tirar uma fotografia. Fan-Fan e Mei-Li atra­vessaram a pequena ilha, abrindo caminho entre os visitantes, cada vez mais numerosos. Fan-Fan empurrou, em seguida, a cadeira sobre outra ponte de pedra que conduzia, através de numerosos zigueza­

gues até ao outro lado do lago. Tanto no terraço sombreado por pal­meiras gigantes, como entre os aquários do Pátio dos Caracinos Dourados, debaixo dos telhados amarelo-dourados de arestas agudas em forma de mastros dos pavilhões do Lago dos Lódãos, no interior como no exterior do Restaurante dos Peixes do Lago do Sul, por todo o lado, os mesmos grupos de excursionistas de todas as idades. Mas, uma vez nas cercas de hibiscos, com três metros de altura, do Jardim das Plantas Medicinais, Fan-Fan e Mei-Li tiveram a sensação de desembarcar noutro mundo. Tranquilo. Pequenas ruas de tijolos ver­melhos, cujas fendas se escondiam por debaixo do musgo verde, esten­diam-se entre milhares de vasos de terra cozida colocados no chão ou sobre uma pedra..

Nestes vasos rústicos, por vezes rachados ou em parte desfeitos, mas sempre muito ensoalhados, estavam misturadas ervas e flores de toda a espécie utilizadas na região como fortificantes ou medica­mentos de gerações em gerações.

- Olha! uma «flor-por-cima-de-sete-folhas» - explicou Mei-Li à sua neta. - A planta só tem sete folhas verdes à volta de uma só haste violácea como a roda do moinho de água. Mas o mais curioso e que a haste termina com uma flor amarela de sete pétalas também. A sua raiz é um antídoto muito activo. Os caçadores de serpentes nunca saem sem a levar no bolso... Ah!, olha esta, este grande cipó, chama-se «sangue­de-galinha», porque se tu o partires corre dele um suco vermelho vivo. É utilizado como fortificante... E esta é a «planta-das-pérolas». Porquê este nome? Porque dá pequenos frutos redondos e vermelhos debaixo das folhas no Verão e no Outono. Tu podes utilizá-la para tratar as doenças dos rins... Tu não conheces esta? Esta é a «erva-das-mulhe­res». Alivia as dores dos períodos menstruais... E esta...

Fan-Fan, de repente, deu meia volta.

- Eh! Fan-Fan! - disse Mei-Li agarrando-se aos braços da sua cadeira - ainda não acabei...

- Eu sei, avó - soprou Fan-Fan ao ouvido de Mei-Li. - Dois apaixonados abraçam-se ali, por detrás deste arbusto. Não os quero assustar. Vamos por outra rua.

- Pois então - murmurou Mei-Li - souberam escolher bem o seu lugar...

Um sorriso de gozo apareceu nos lábios da jovem. Mei-Li virou a cabeça para a olhar.

- A propósito, Fan-Fan - perguntou ela - por que é que nunca convidas rapazes lá para casa? Não há no teu trabalho?

- Sim, avó, há muitos - respondeu Fan-Fan, rindo - até de mais. Como as abelhas.

- Não há nenhum que te agrade?

- Oh!, porquê apressar-me tanto, avó? Eu ainda não sou velha... - Ainda não és velha... de acordo. Mas vais fazer vinte e sete anos este ano. Com a tua idade, a tua mãe já vos tinha tido, ao teu irmão e a ti...

- Outros tempos, outros costumes, avó. Agora estamos na década de 80. Como se chama esta planta?

Antes de transpor o limiar da casa, Fan-Fan foi, de repente, pos­suída por um pressentimento trágico. Mei-Li moveu-se nervosamente na sua cadeira de rodas.

Com efeito, logo que entraram na sala de jantar, ficaram assusta­das com a palidez de Bai-Lan. Sentada num banco, de costas contra a parede, tinha a respiração curta, os olhos desvairados e a mão cris­pada sobre uma folha de papel branco.

- Estás a sofrer, mamã? - perguntou Fan-Fan pegando nos ombros de Bai-Lan.

Bai-Lan curvou-se nos braços da sua filha, murmurando num soluço:

- Ele está vivo!

Agarrando com todas as suas forças os braços da cadeira de rodas, Mei-Li inclinou-se para a frente como se fosse descer.

- Quem?... Ming-Ming?... -interrogou ela, esfalfada.

- Sim - disse Bai-Lan com uma voz fraca. - Está aí a sua carta.

Fan-Fan tirou a carta da mão de Bai-Lan, passou-a a Mei-Li, depois instalou a sua mãe numa cadeira de vime.

Na folha de papel só havia um desenho que se assemelhava a uma porta e no meio da porta um só carácter, escrito a pincel: «Vazio.» Sem assinatura. Sem data.

- Dá-me o envelope, Fan-Fan! - gritou Mei-Li com impa­ciência.

Fan-Fan juntou o envelope caído aos pés da mesa e colocou-o nas mãos de Mei-Li.

Também não tinha a direcção do remetente.

Mei-Li virou e revirou o envelope e a folha de papel com um ar pensativo. Após um longo momento de silêncio, disse:

- Ele quebrou os laços com o mundo cá debaixo.

- Queres dizer que ele se tornou bonzo? - perguntou Fan-Fan. - Sim - explicou Mei-Li. - O desenho e a palavra significam kong-men, «a porta do vazio», doutrina da vacuidade de todas as coi­sas do budismo. A mensagem quer dizer que já se converteu a ele. Fan-Fan virou a cabeça para interrogar a sua mãe com o olhar. Bai-Lan fez sinal que sim.

- Então, por que é que não tem direcção? - perguntou Fan-Fan, que ainda se recusava a acreditar.

- Porque ele não quer que o procurem - respondeu Mei-Li. - Eu, eu irei procurá-lo - disse Fan-Fan totalmente comovida. - não se deixa assim a sua mãe e a sua avó. Eu revistarei todos os tem­plos do país. Eu não acredito...

- Não, Fan-Fan - interrompeu-a Mei-Li com uma voz calma. - Deixa-o tranquilo onde ele quiser estar. A cada um o seu destino. Fan-Fan virou-se para a sua mãe como que para a chamar em seu socorro. Bai-Lan esboçou um leve sorriso, abanando a cabeça.

- A tua avó tem razão, Fan-Fan - disse ela. - É muito difícil, eu compreendo-te, esse sentimento de ter reencontrado e voltado a perder, ao mesmo tempo, alguém que se ama. Mas não se deve for­çar o destino.

- É a sua maneira de também procurar no seu interior o que ele não encontrou no exterior - acrescentou Mei-Li. - Tira a minha garrafa de Três Flores, Fan-Fan, eu quero beber um gole.

- Eu também - disse Bai-Lan.

Fan-Fan abriu o aparador, pegou na garrafa e  em três pequenas chávenas de porcelana. Ela nunca bebia álcool, mas hoje, tinha razões para isso.

Fan-Fan deu uma chávena de porcelana cheia até acima a Mei-Li, que ela sabia capaz de beber uma meia garrafa e manter as ideias cla­ras, uma chávena meia para Bai-Lan, cujo coração não estava muito brilhante. Depois, vazou para si um terço, que bebeu de uma só vez, fechando os olhos. O fogo caiu-lhe na língua, desceu pela sua gar­ ganta e queimou-lhe o estômago. Mei-Li e Bai-Lan trocaram um olhar. Fan-Fan colocou a sua chávena na mesa.

- O que é isto? - disse ela, juntando o envelope.

- Ah!, já me tinha esquecido - disse Bai-Lan - é uma carta para a tua avó.

Fan-Fan deu uma olhadela às vinhetas coladas no envelope.

- Olha, fez um longo caminho para cá chegar - disse ela, dando­-o a Mei-Li. - O selo é muito bonito.

Ao primeiro olhar, Mei-Li empalideceu. Com as mãos trémulas retirou várias folhinhas do envelope e desdobrou-as. À medida que as lia, a sua fronte desenrugava-se, os seus olhos inflamavam-se. Dir­-se-ia que ela bebia a vida na fonte de Juventude.

Surpreendida pela mudança que ela observava em Mei-Li, Fan­-Fan perguntou:

- De quem é, avó?

Mei-Li hesitou, deu uma olhadela em direcção da sua filha, que fazia também incidir sobre ela o seu olhar interrogativo.

- Pois... é... de um amigo - gaguejava ela. - Um amigo que vocês não conhecem.

Fan-Fan ia colocar uma outra questão quando alguém bateu à porta. Foi abri-la.

Bi-Zhu apareceu à entrada, de cabelos em desordem, um olho negro, com o seu filho de quatro anos nos braços.

- Mas, o que é que se passa? - perguntou Fan-Fan, afastando­-se para os deixar entrar.

Bi-Zhu diz, soltando o filho:

- Nunca mais regressarei para lá. Acabou entre mim e ele. Bai-Lan levantou-se para pegar a criança nos seus braços.

- Anda, Hua-Hua, a avó vai mostrar-te uma coisa - disse ela ao levá-lo para o seu quarto.

- O que é que passou, Bi-Zhu? - perguntou Mei-Li arrumando a carta no seu bolso. - Anda, aproxima-te, deixa-me ver o teu olho. Bi-Zhu pegou no banco que Fan-Fan lhe estendia e sentou-se diante de Mei-Li.

- Não te preocupes, avó - disse ela - o preto desaparecerá dentro de dias. Não é a primeira vez que ele me faz isso. Esta manhã, disse-lhe que pedia o divórcio, que seria melhor para cada um de nós. Furioso, quebrou todas as porcelanas. Rebentou os termos contra as paredes. Bateu-me. Chegou mesmo a ameaçar que matava Hua-Hua. Quando eu consegui escapar-me com Hua-Hua, gritou da janela que ele nunca assinaria o papel e que eu não me poderia ver livre dele assim. Mas quer ele assine ou não, eu nunca mais regressarei.

Ela passeou um olhar circular pela sala e acrescentou: - Poderíamos ficar aqui convosco, avó?

- É evidente que sim! - exclamou Mei-Li acariciando-lhe os cabelos. - Tu és nossa filha para sempre, tu sabes.

Bi-Zhu repousou a cabeça nos joelhos de Mei-Li e chorou. Fan-Fan serviu-lhe uma chávena de chá.

- Vamos encontrar-te um bom advogado.

Dois meses mais tarde, num belo dia de Maio, Fan-Fan empurrava, de novo, Mei-Li sobre o caminho de lajes que ladeava o Lago do Sul. - Podemos parar aqui - disse Mei-Li, apontando com o dedo para o banco de pedra junto à goiabeira centenária.

Os ramos da árvore estavam carregados de pequenos frutos muito rijos, brilhando de um verde-sombra. Fan-Fan retirou algumas flores secas que estavam no banco e sentou-se.

Silenciosas, contemplavam o lago. As flores de lódão oscilavam desabrochadas e as rosas por cima de folhas enormes, onde grandes gotas de água brilhavam ao sol como pérolas enormes. Mais longe, no meio do lago, quatro ou cinco pequenas barcas flutuavam. De tem­pos a tempos, risos e fragmentos de palavras chegavam até elas.

- Então, estás decidida a partir para a América? - perguntou Mei-Li sem desviar os olhos das flores de lódão.

- Sim, avó - respondeu Fan-Fan, olhando as pequenas barcas que se afastavam lentamente. - Bi-Zhu convenceu-me. Ela tratará da mamã e de ti até ao meu regresso.

Mei-Li deslocou os seus olhos do lago para o rosto radioso da sua neta.

- Parte tranquila, Fan-Fan - disse ela. - A tua mãe só faz cin­quenta e um anos este ano e eu estou tão rija como esta goiabeira torcida, apesar das minhas pernas mortas. Nós esperamos-te.

- Eu voltarei o mais cedo possível - disse Fan-Fan segurando as mãos dela com as suas - prometo-te, avó.

Mei-Li sorriu. Retirou o envelope do seu bolso e estendeu-o a FanFan.

- O que é isto? - perguntou Fan-Fan. - A carta do teu avô.

- Meu avô?

- Sim, teu avô, pai da tua mãe. - Mas no outro dia...

- No outro dia eu disse que era de um amigo. Por causa da tua mãe. Ela já teve bastantes emoções com tudo isto.

- Mas... Já não compreendo nada... A mamã disse-me que o seu pai tinha morrido quando ela era muito jovem...

- Aquele que morreu foi o meu marido, pai adoptivo da tua mãe. Aquele que me escreveu de Taiwan foi o meu amante, o irmão mais novo do meu marido. É ele o pai natural da tua mãe...

- Ele não vive no Canadá?

- Não, ele vive em Taiwan. Mas como não há comunicação directa entre Taiwan e a China Meridional, ele entregou a carta a um amigo que pôs no correio no Canadá.

- A mamã estava ao corrente?

- Ela só sabia que tinha um outro pai, o seu pai natural, que ela nunca viu e que continua a rejeitar.

- Porquê?

- Isso é uma longa história. É necessário recuar ao dia do meu casamento, há sessenta e quatro anos...

Há já quantos anos que Jing-Ming e eu não nos voltámos a ver? Espera... cinquenta, cinquenta e um, cinquenta e dois... sim, em breve, cinquenta e dois. Voltaremos a ver-nos? Quando? No dia da reunificação do país? Não, não acredito que possamos ver esse dia chegar. Já somos todos demasiado velhos. Às vezes penso que talvez seja melhor assim. Eu tinha uma dívida enorme para com o teu avô, é verdade, mas eu tive a sorte de a ter podido honrar antes que fosse demasiado tarde. Através da extensa carta que eu lhe escrevi depois de ter recebido a sua. Revermo-nos já não é tão importante para mim, nem para ele, sem dúvida. Não seria melhor que morrêssemos guardando em nós a mais bela imagem um do outro?...

No entanto, se no estrangeiro tu conseguisses obter um visto para Taiwan, seria bom que pudesses ir ver o teu avô. Ele ficaria completamente satisfeito.

Pronto. Eu respondi a todas as tuas questões, e a minha vida para ti não tem segredos. Tu conheces a minha história de amor. E todas estas pessoas que não cessam de percorrer o meu coração pela noite fora. Sim, eu sou muito rica, como tu dizes. Rica pelo que eu vivi, rica pelo amor que eu conheci, rica por também te ter, tu, minha neta querida e a minha melhor amiga. O que é a felicidade, perguntas-me tu? Eu não sei. Nunca me pus a questão. Mas de uma coisa tenho a certeza: eu conheci-a. Ou mais exactamente, eu vivi momentos de felicidade. Para mim, a felicidade não é qualquer coisa de abstracto, mas a acumulação de momentos felizes que a vida me reservou e me reservará, inumeráveis. A questão é de não os deixar cair, e vivê-los plenamente. Quando revi o teu avó Jing-Ming, fiquei feliz; quando soube que estava grávida, fiquei feliz; quando saboreava as massas de arroz da tia Liu, ficava feliz; quando a tua mãe nasceu, fiquei feliz; quando vi os seus primeiros dentes, fiquei feliz; quando a via grande, bela e alegre, ficava feliz; quando preparei a refeição de núpcias no dia do seu casamento, fiquei feliz; quando ouvia a ópera Gui, ficava feliz; quando encontrava uma bela frase na minha leitura, ficava feliz; quando regressava a casa, após um dia de trabalho, ficava feliz; quando entrei, pela primeira vez na vida, numa sala de cinema, fiquei feliz; quando tomei conhecimento do nascimento de Ming-Ming, fiquei feliz; quando beijei as tuas pequenas bochechas rosadas de bebé, fiquei feliz; quando trouxeste o teu pai a casa, fiquei feliz; quando o teu sonho de seres médica se tornou realidade, fiquei feliz; quando passeávamos pelo caminho à beira do lago e no Jardim das Plantas Medicinais, ficava feliz; quando, finalmente, tivemos notícias do teu irmão, fiquei feliz; quando recebi a carta do teu avô, fiquei feliz... São estes momentos luminosos e tantos outros, às vezes muito bre­ves, mas sempre tão reais, tão palpáveis e tão essenciais como o sal e o arroz, que adoçaram os rudes golpes do destino e que me fize­ram sentir que, apesar de tudo, a vida vale a pena ser vivida...

Tu partirás quando? Logo que tenhas obtido o teu visto... Sim, agora é muito mais fácil que antes. Olha, põe isto no teu dedo. Assim, este anel de prata acompanhar-te-á por todo o lado onde tu fores como um amuleto. Mas lembra-te disto, Fan-Fan: se, por acaso, já não me encontrares quando regressares, não chores. Põe no meu túmulo uma flor de romãzeira tão vermelha como a felicidade, e eu saberei que já cá estás...

                                                                                            Wei Wei

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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