Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Dama de Branco / Barbara Cartland
A Dama de Branco / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Dama de Branco

 

A primeira corrida foi em Ascot, no sábado, dia 11 de Agosto de 1711, sob o patrocínio da rainha Ana. Neste romance, todas as descrições da Royal Ascot de 1822 são correctas, incluindo os donos dos cavalos de corrida, os jóqueis e os cavalos, à excepção do vencedor da Taça de Ouro. Esta foi ganha por Sir Huldibrand, pertencente ao senhor Rambsbottom. Hoje em dia, o vencedor recebe uma Taça de Ouro e vinte e cinco mil libras como acréscimo, desde 1975.

O pequeníssimo espaço à volta da Tribuna Real, no qual apenas os convidados de George IV podiam entrar, era o princípio do Recinto Real.

Até à última guerra, era uma zona de admissão restrita e mesmo hoje em dia só se conseguem bilhetes através do camareiro-mor.

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

- Demelza!

Demelza ergueu a cabeça do livro que estava a ler e escutou.

- Demelza! Demelza!

Precipitadamente, deu um salto e correu sobre o soalho rangente da galeria dos retratos em direcção ao cimo das escadas.

Lá em baixo, no vestíbulo, encontrava-se uma figura extremamente elegante, o rosto bonito virado para ela, a cabeça inclinada para trás, os lábios já formando de novo o seu nome.

- Gerard! - exclamou ela. - Não estava à tua espera.

- Isso sei eu, Demmy - disse ele, utilizando o diminutivo infantil que lhe dera quando ele tinha apenas quatro anos de idade.

Ela correu pelas escadas para atirar os braços à volta do pescoço do irmão.

- Cuidado! - avisou ele. - Atenção ao nó da minha gravata!

- Um novo estilo! Oh, Gerard, é muito elegante!

- Foi o que eu pensei - disse ele, complacente. - Chama-se "A Matemática.

- Não há dúvida que parece dificil de conseguir.

- E é! - concordou ele. - Gastei horas, e mais de uma dúzia de musselinas completamente destruídas.

- Deixa-me olhar para ti - disse Demelza.

Afastou-se para admirar a figura fogosa que ele apresentava, com as suas calças cingidas, cor de champanhe, casaco cortado e muito justo e colete requintado.

- O teu novo alfaiate trata-te magnificamente! - disse ela por fim, sabendo que ele esperava a sua opinião. - Mas estou aterrorizada com a conta que vai apresentar-te!

- É por isso que venho falar contigo - respondeu Sir Gerard Langston.

Demelza soltou um gritinho.

- Gerard!... Não são os credores!

- Quase tão mau como isso - respondeu o irmão. - Mas falemos disso na biblioteca, e estou a precisar de uma bebida. A multidão nas ruas está insuportável!

- Imagino - disse Demelza. - É sempre a mesma coisa antes da semana das corridas.

Os preparativos para as corridas de Ascot começavam bastante antes do seu início oficial. Os cavalos costumavam chegar primeiro para serem instalados nas numerosas cavalariças à volta da pista.

Visitantes da província partiam para a longa viagem muitos dias, e até semanas, antes do começo das corridas, e as pessoas de Londres começavam a mudar-se para os arredores de Ascot durante a semana anterior.

Ao entrarem na biblioteca, Gerard olhou à sua volta de um modo que surpreendeu a irmã, como se estivesse a avaliar a sala.

Geralmente, voltava a casa para buscar roupa, que fora lavada, passada a ferro e cosida por Demelza e pela velha ama, ou então porque tinha os bolsos tão vazios que se via forçado a abandonar por uns tempos a sua residência temporária em Half Moon Street.

- De que estás à procura? - perguntou finalmente a irmã. Os olhos de Gerard percorreram as cortinas de veludo debotado, a carpete gasta em certos sítios e os cadeirões, que havia dez anos já precisavam de ser estofados.

A sala talvez estivesse velha e gasta, mas ainda possuía uma certa dignidade e beleza, o que fez com que o irmão dissesse, por fim, quase com um suspiro de alívio:

- Não é assim tão mau... Afinal de contas, só os parvenus e os novos-ricos têm tudo impecável:

- De que estás a falar, querido? - perguntou Demelza com a sua voz doce.

- Trago-te novidades muito excitantes - respondeu Gerard. - Sustém a respiração, porque vais ficar espantada.

- O que é? - perguntou Demelza, um tanto apreensiva.

- Aluguei a casa durante toda a próxima semana! Fez-se uma pausa antes de Demelza dizer, incrédula:

- Alugaste a casa? Que queres dizer com isso?

- Exactamente isso - disse Gerard, atirando-se para o sofá, que rangeu sob o seu peso.

- Mas... porquê? Para... quê? A... quem?

As perguntas precipitaram-se dos lábios de Demelza e houve um silêncio significativo antes de o irmão lhe responder:

- Ao conde de Trevarnon.

Gerard viu os olhos de Demelza abrirem-se, e acrescentou rapidamente:

- Espera até saberes o que ele me ofereceu.

- Mas porque há-de ele querer vir para... aqui?

- Isso é fácil de responder - replicou Gerard. - A estalagem Crown and Feathers, em Bracknell, ardeu anteontem à noite.

- Ardeu? - exclamou Demelza. - Que horror! Alguém ficou ferido?

- Não faço ideia - respondeu o irmão, despreocupadamente -, mas o Trevarnon tinha alugado toda a estalagem para a semana das corridas.

- Por isso agora não tem para onde ir... - disse Demelza lentamente.

- Ele estava desesperado - respondeu Gerard. - Sabes tão bem quanto eu que não há um único quarto - nem uma cama

- disponível em todo o distrito.

Demelza sabia que aquilo era verdade.

Ao contrário das corridas de Epson, onde se podia chegar facilmente de Londres num dia, a pista das corridas de Ascot ficava a quase cinquenta quilómetros da capital.

Só alguns coríntios iam e vinham diariamente a uma...

' Coríntio - Durante a Regência, aplicava-se este termo a um grupo de desportistas que dedicava grande parte do seu tempo a praticar pugilismo e a corridas decavalos. (N. da T. )

...velocidade que implicava uma muda de cavalos. Para a maioria das pessoas correspondia a uma visita de cinco dias, o que significava ficarem as redondezas completamente apinhadas.

Como ela e o irmão sabiam, se uma pessoa tivesse a sorte de ser convidada para o Castelo de Windsor ou para uma das mansões rurais, pelas quais se pagavam rendas astronómicas, não havia problema.

De outro modo, significava ficar-se amontoado numa das extremamente desconfortáveis estalagens locais, que cobravam preços exorbitantes pelo privilégio. Nalguns casos, um hóspede de regresso das corridas descobria que tinha de dormir num sofá ou até aconchegar-se no tapete junto à lareira.

Demelza imaginava, sem que o irmão lhe dissesse, o problema que seria quando uma das melhores estalagens, como a Grown and Feathers, em Bracknell, ardia na sexta-feira anterior à semana das corridas.

Gerard contava-lhe o que tinha sucedido.

- Estávamos a beber no White's Club, ontem à noite, quando o Trevarnon soube as notícias e perguntou: "Que diabo posso fazer? " Ninguém respondeu, e ele continuou: "Tenho cinco cavalos inscritos para as corridas, sendo um deles o Crusader! Já vão a caminho de Bracknell. "

- O Crusader? - repetiu Demelza, quase num sussurro.

Tratava-se do cavalo que ela ansiava ver, pois já ganhara algumas corridas e todos os jornais tinham publicado elogios sobre a sua aparência e o seu passo.

- Exactamente, o Crusader! - repetiu o irmão. - E eu arrisco-me a perder muito dinheiro se ele não correr!

- Oh, Gerard, como pudeste fazer isso. - gritou Demelza.

- Bem sabes que me prometeste não fazer apostas até teres pago algumas das tuas dívidas.

- Mas o Crusader é uma certeza! - respondeu Gerard. O próprio conde apostou uma fortuna nele.

- O conde pode dar-se a esse luxo - disse Demelza em voz baixa.

- E eu também, agora que aluguei a casa.

- Queres dizer - perguntou Demelza - que vais mesmo deixar que o conde e companhia venham para cá?

- É isso que estou a tentar dizer-te, Demmy - respondeu-lhe o irmão. - E não sejas palerma a esse respeito! Ele paga esse privilégio a peso de ouro, e Deus sabe como precisamos desse dinheiro!

- Quanto é? - perguntou Demelza.

As palavras saíram um pouco trémulas dos lábios de Gerard.

- Mil guinéus!

Havia um tom inconfundível de júbilo na voz dele, mas a irmã olhou-o fixamente, como se não tivesse ouvido bem.

- Mil guinéus? - repetiu ela depois de um momento. É... impossível! Não podes... estar a falar a sério!

-Já te disse que ele se sentiu desesperado - respondeu Gerard. - A sala estava apinhada, e ele olhou em volta como se de repente se lembrasse que alguém presente pudesse ter uma casa na vizinhança. Depois pousou os olhos em mim. "Acho que me lembro, Langston, que você vive perto de Ascot", disse ele, lentamente. " verdade, senhor conde", respondi. "E a sua casa está cheia? " "Não, senhor conde", respondi. "Mas não me parece que seja adequada para as vossas exigências. " "Nestas circunstâncias, qualquer coisa que tenha um tecto é adequado, suponho que tenha estábulos? " "Sim, tem estábulos", respondi. "Para quantos? "

Gerard Langston estendeu as mãos.

- Eu disse a verdade, Demelza. Que mais podia fazer?

- Continua a história - suplicou a irmã.

- "Cerca de quarenta, senhor conde", respondi, e o conde atravessou a sala e puxou-me para um lado. "Tem alguma objecção a que eu seja seu hóspede? " perguntou. Claro que não! " "Então porque hesita tanto? " "A casa é velha, e como estou raramente em casa, temos poucos criados". "Isso não tem importância", respondeu o conde. "Eu levo o meu cozinheiro, o meu mordomo e todos os criados que sejam necessários. " Eu não disse nada, e depois de um momento ele acrescentou: "Mil guinéus parece-lhe aceitável como aluguer de uma semana? "

Gerard fez uma pausa, como se se lembrasse de como ficara de respiração cortada com a magnificência da quantia. Depois, antes de a irmã poder falar, disse:

- Está tudo combinado, e ele chega com os acompanhantes

amanhã. Os cavalos devem chegar hoje à noite.

- Mas, Gerard, como é que vamos fazer? Só cá estão a Nattie e a velha Betsy para tratarem de tudo!

- Se ficar mal acomodado, o conde não pode culpar ninguém senão a si próprio - disse Gerard com desenvoltura. - Mil guinéus, Demelza, pensa bem!

Olhou para ela pouco à vontade quando disse:

- Estava quase a vir para casa passar o resto do Verão. Isto significava, como a irmã bem sabia, que estava completamente sem dinheiro.

Ninguém sabia melhor do que ela que teria sido impossível para ele recusar uma oferta tão generosa, embora Demelza pudesse ver inúmeras dificuldades à sua frente.

A Mansão Langston pertencia à família Langston desde o reinado de Henrique VIII e a extinção das ordens religiosas.

Fora ampliada e alterada ao longo dos anos, mas ainda mantinha o telhado de empena, as chaminés torcidas, as janelas com vidros em forma de losango e o ar de mistério de outro mundo que Demelza atribuía ao facto de ter originalmente albergado dedicados monges cisterciences.

A fortuna dos Langston oscilara ao longo dos séculos: alguns membros da família tinham sido muito ricos, homens de Estado, de grande poder e prestígio, mas outros tinham sido perdulários que haviam malbaratado a fortuna da família.

Tanto o pai como o avô tinham pertencido a esta última categoria, e Gerard, na realidade, herdara pouco mais do que a casa e alguns hectares de bosque.

Gerard, é claro, desejava viver a maior parte do tempo em Londres e dar-se com os Bucks e Beaux que se tornaram notórios durante a Regência. Ainda eram o centro do mundo des portivo que rodeava o recém-coroado rei Jorge IV.

Se Gerard se divertia em Londres, Demelza era obrigada a viver muito sossegada em casa.

Nunca conhecera outra vida, por isso não sentia falta do rodopio da sociedade à qual teria direito se a mãe estivesse viva e se houvesse algum dinheiro.

Estava, na realidade, perfeitamente satisfeita, ajudando a velha ama a manter a casa em ordem, a cuidar do jardim, e dedicando muito tempo à leitura.

A sua verdadeira felicidade era poder montar os cavalos do irmão, que, felizmente, por falta de dinheiro, ele não podia manter nas cavalariças de Londres.

Ele tinha um cavalo de corridas, o Firebird, no qual depositara muitas esperanças. Deixara-o para ser treinado pela irmã e pelo velho Abbot, responsável pela estrebaria, que estava na Mansão desde que eles eram crianças.

Fora Abbot quem insistira para que o Firebird participasse numa das corridas, montado pelo seu neto, Jem Abbot.

Jem crescera na Mansão e começava a ser notado entre os jovens jóqueis que procuravam montada em todas as corridas conhecidas.

Foi através de Jem que Demelza òuviu falar da aparência incomparável e performances notáveis do Crusader, mas tinha sido pelo irmão que ouvira falar do conde de Trevarnon.

- Tudo o que tens de fazer agora - dizia Gerard - é deixares as coisas o mais limpas que possas. Arranja toda a ajuda que for possível e encontra um sítio para ficares.

- Encontrar... um sítio... para ficar? - repetiu Demelza, atónita.

- Não podes ficar aqui - respondeu ele. - É um grupo de homens, e de qualquer modo, como já te disse muitas vezes, o Trevarnon é um homem para viver entre homens. Admiro-o, mas não posso deixar que entre em contacto com a minha irmã!

- Mas. Gerard. para onde hei-de ir?

- Tem de haver algum sítio - respondeu ele, despreocupadamente.

- Mas se eu me for embora, a Nattie e a Betsy não darão conta do recado, e o velho Jacobs vai esquecer-se de trazer carvão para a cozinha e de limpar o chão. Está cada vez mais senil.

- Não podes ficar aqui e acabou-se!

O modo como Gerard falou fê-la compreender que o irmão

pensava no conde.

- Ele é assim tão mau? - perguntou.

Não era preciso explicar de quem estava a falar.

- É o diabo em pessoa, no que diz respeito às mulheres respondeu o irmão. - Nunca conheci um homem que soubesse montar melhor, que soubesse mais sobre cavalos, que tivesse melhor pontaria e que fosse um desportista tão completo.

- Já tens falado nele. Pensei muitas vezes que não era. bom companheiro para... ti - disse Demelza com suavidade.

- Companheiro! - exclamou Gerard. - Não posso aspirar a isso! São poucas as pessoas que ele considera como amigos íntimos. Ele é agradável para mim, inclui-me no seu grupo, e eu admiro-o, claro que o admiro. Ofusca qualquer outro coríntio que alguma vez nasceu. Mas, meu Deus, quando se trata de mulheres!.

- Nunca casou?

- Ele é casado.

- Não fazia... ideia. Nunca... falaste... da condessa.

- É louca, está fechada num manicómio há doze anos.

- Louca! Que horror! Deves ter... muita pena dele.

- Pena do Trevarnon? - riu-se Gerard. - Isso é a última coisa que qualquer pessoa sentiria! Possui mais propriedades do que qualquer outro homem em Inglaterra e é tão rico como Creso. Dizem que obsequiou o rei, quando este era regente, com enormes empréstimos que nunca serão pagos.

- Mas a mulher ser... louca!

- Não parece preocupá-lo, mas é certamente um obstáculo para todas as mulheres que querem subir com ele ao altar.

- Talvez ele gostasse de se casar.

- Não há possibilidade disso enquanto a mulher for viva, e asseguro-te de que se aproveita do facto de não ser um homem livre.

Gerard riu-se com uma certa amargura.

- Se Trevarnon deixa uma mulher chorosa e de coração  despedaçado, ela não pode culpá-lo, uma vez que sabia desde o início que ele não podia casar...

- Posso compreender... isso - disse Demelza.

- Não compreendes nada! - interrompeu ele bruscamente. Não vou admitir que tenhas o mínimo contacto com o conde, e acabou-se. Vais sair daqui esta noite e não há mais discussão.

- Mas para onde vou? Não posso pôr-me a caminho de Northumberland até casa da tia Elizabeth sem ninguém que me acompanhe, e se levar a Nattie comigo tenho a certeza que a Betsy vai recusar-se a fazer seja o que for!

- Meu Deus, estás a criar dificuldades desnecessárias! gritou Gerard.

- Não estou, juro-te que não estou, querido, mas temos de enfrentar os factos. Sabes muito bem que sou eu quem governa esta casa, que eu cozinho as tuas refeições quando cá estás, que eu trato das roupas da casa, da arrumação dos quartos e da limpeza do pó.

- Então paga a alguém que o faça enquanto estiveres fora! respondeu-lhe o irmão num tom desesperado.

- Pagar a quem? - perguntou Demelza. - Todas as mulheres da região já estão ocupadas a servir as pessoas que vêm assistir às corridas.

Isto era tão incontestavelmente verdadeiro que Gerard não encontrou nada para dizer.

- E, além disso - continuou Demelza, passado um pouco -, não posso ter criados estranhos a estragar as poucas coisas que ainda nos restam, como os lençóis de renda que a mamã usava sempre e as fronhas que ela bordou com tanta perfeição.

O irmão estava prestes a falar quando ela soltou um pequeno grito:

- Tenho uma ideia! Já sei o que vou fazer! Resolvi completamente o... problema.

- Para onde vais?

- Para o Aposento dos Padres!

- Para o Aposento dos Padres? - repetiu ele.

- Durmo lá - disse Demelza. - Ninguém saberá que estou em casa, e enquanto estiverem nas corridas eu limpo tudo e preparo as coisas para o vosso regresso.

Gerard olhou-a com ar pensativo. Depois disse devagar:

- Não me agrada a ideia. É muito perigoso.

- Perigoso? - interrogou Demelza.

Não estava disposto a explicar, mas foi como se visse a irmã

de um modo diferente pela primeira vez.

Estava tão habituado a ela que até agora não se apercebera de como era bonita, de uma beleza diferente das mulheres que ele conhecia em Londres.

Havia algo de muito jovem e quase infantil no seu rosto pequeno e oval e nos enormes olhos cor de amor- perfeito.

Era uma característica dos Langston terem olhos que pareciam roxos a certas luzes.

Gerard mantivera a tradição da família, mas Demelza, surpreendentemente, embora herdasse os olhos do pai, tinha o cabelo da mãe. Era de um louro tão claro que por vezes parecia prateado. Era uma combinação estranha, mas ao mesmo tempo tão cativante e invulgar que qualquer homem ficaria fascinado por ela.

Demelza era quatro anos mais nova do que o irmão, mas Gerard considerava-a uma criança, embora, de muitas formas, ela olhasse por ele como se fosse sua mãe.

Agora, convencera-se de que tinha de a proteger, especialmente de um homem como o conde de Trevarnon.

- Porque estás a olhar para mim? - perguntou Demelza. Ele sorriu, ficando com um ar atraente e juvenil.

- Estava a pensar que, vestida convenientemente, te fariam um brinde em Saint James.

- Espero que não! - exclamou Demelza. - A mamã sempre disse que era muito... vulgar falar-se sobre senhoras nos clubes. Na realidade, significava que elas não eram... senhoras.

- Bom, não vão falar de ti, por isso a questão nem se levanta - disse Gerard, com um repentino tom autoritário na voz.

- Se eu te deixar ficar no Aposento dos Padres, juras que não sais pelas passagens secretas enquanto o Trevarnon ou qualquer dos seus convidados estiverem dentro de casa?

Fez uma pausa antes de continuar:

- Estou a falar a sério, Demelza. Vais dar-me a tua palavra de honra; de outra forma, tu e a Nattie terão de ir para Northumberland.

- Claro que prometo - disse Demelza, em tom desarmante.

- Não pensas que eu quero conhecer homens como o conde de Trevarnon ou qualquer dos teus amigos libertinos, pois não? Embora me fascine ouvir- te falar deles, não gosto da maioria e desaprovo tudo o que fazem!

Gerard riu-se.

-Coisas sobre as quais não sabes nada, graças a Deus! Bom, confio em ti. Talvez esteja a fazer uma asneira, mas compreendo que toda a casa depende de ti.

- Isso foi a coisa mais simpática que alguma vez me disseste

- disse Demelza, sorrindo. - Mas, Gerard, agora que vais receber tanto dinheiro, dás-me algum para pagar os salários e a nossa alimentação quando não estiveres cá?

- Claro que sim - respondeu o irmão. - De muitas maneiras, Demelza, eu sou terrível para ti, mas tal como partilhas os tempos dificeis, é claro que partilharás os desafogados.

- Obrigada, querido, eu sabia que compreenderias, detesto ficar a dever aos comerciantes locais.

Beijou a face do irmão, e este disse:

- Ainda não levantei o cheque do Trevarnon, mas tens aqui um guinéu ou dois para ajudar.

Tirou algumas moedas de ouro do bolso e colocou-as na mão dela, e Demelza beijou-o outra vez.

- Agora tenho de ir preparar as coisas - disse ela. - Resta-nos muito pouco tempo, se os cavalheiros chegam amanhã, e é melhor tu ires às cavalariças dizer ao Abbot que esteja à espera dos cavalos. Estão todas em condições, excepto as três últimas, que têm buracos no telhado e deixam entrar a chuva.

- Não parece que vá chover - disse Gerard. - O céu mostrou-se muito limpo durante a viagem até cá e tanto o Rollo como eu estávamos estafados quando chegámos a Windsor.

- Montaste o Rollo durante todo o caminho? Oh, Gerard, como é que pudeste fazer isso!

- Descansou enquanto eu comia qualquer coisa e montei-o com cuidado durante os últimos oito quilómetros - respondeu o irmão. - Também vim pelos campos, o que é mais rápido, como sabes. Não tenho dinheiro para manter mais de um cavalo ao mesmo tempo em Londres.

- Sim, eu sei, mas é muito longe para ele.

- E para mim! - ripostou Gerard. - Posso tomar banho?

- Claro que sim, se não te importas de o tomar frio.

- Nada me daria mais prazer.

- Vou preparar-to - disse Demelza -, mas tens de ir tu buscar uma garrafa de vinho. Há muito pouco na adega, mas suponho que o conde trará o seu próprio vinho.

Gerard sorriu abertamente.

- Terá muita sede se sobreviver com o que nós lhe podemos oferecer.

Demelza parou ao chegar à porta.

- Não me disseste quantas pessoas vêm.

- Seis, a contar comigo!

- E tu vais estar cá para jantar?

Gerard abanou a cabeça.

- Vou visitar o Dysart em Winkfield para lhe dizer que o conde fica cá em casa. Vai jantar com ele na terça-feira depois do circuito de Grafton, que o duque de Iorque está completamente convencido de que vai ganhar porque apostou no Trance.

- Com o Trance, de certeza ganhará - disse Demelza, reflectindo. - Apostaram muito dinheiro nele?

- Milhares! - respondeu o irmão.

O modo como falou fez com que Demelza olhasse para ele rispidamente.

- Quanto é que arriscaste?

- Não existe risco no que diz respeito ao Trance ou ao Moses, como sabes - respondeu ele.

Demelza, embora quisesse discutir com Gerard, sabia que ele dizia a verdade.

O Trance era um cavalo excepcional e o duque de Iorque ganhara o Derby com o Moses no ano anterior.

À excepção do Crusader, o último era o animal mais notável entre todos os outros puros-sangues que se veriam nas corridas.

Enquanto Demelza subia apressadamente as escadas para abrir os quartos, muitos dos quais não eram usados havia muito tempo, pensava com interesse e excitação nos cavalos que veria dentro de dois dias.

Para ela, eram muito mais importantes do que as multidões de pessoas distintas que os viam correr, e pensar que o Crusader ficaria nos estábulos da Mansão era uma emoção muito maior do que qualquer outra que sentira havia muito tempo.

Ansiava por falar disso a Abbot, mas sabia que primeiro devia preparar a casa para o conde e os seus convidados e só esperava que ele não sentisse que o seu dinheiro fora mal gasto.

Para Demelza, os quartos grandes, mas baixos, com antiquíssimos painéis nas paredes e enormes camas de quatro colunas, cujos dosséis tocavam no tecto, tinham um encanto que ela adorava e faziam parte da sua vida e da sua imaginação.

Agora que corria as cortinas, muitas das quais estavam gastas, e abria de par em par as janelas de vidros em forma de losango, perguntava a si mesma se o conde, sendo tão rico, veria apenas como tudo estava velho. Talvez não reparasse na beleza das tapeçarias debotadas, na cor dos soalhos encerados, nem nos tons suaves dos tapetes estendidos no chão.

Para Demelza, havia beleza por todos os lados, tal como havia a história dos Langston em todos os quartos, em todos os quadros e em todas as peças de mobiliário.

Felizmente, pensou, devido ao tempo já estar tão quente, fizera misturas frescas de flores, e a maioria dos quartos já emanava essa fragância.

A sua mãe ensinara-lhe a receita, que tinha passado de mão em mão desde os seus antepassados isabelinos, assim como uma especial para a cera de abelhas com que encerava o chão e os móveis.

Também havia receitas de tónicos que ela dava aos aldeões quando estes se queixavam de um mal que o médico de Windsor considerava abaixo da sua competência.

Geralmente, tudo era muito calmo na Mansão. Erguia-se junto à floresta de Windsor, rodeada de árvores, e embora se encontrasse a apenas dois quilómetros da pista das corridas, o barulho das multidões não chegava lá.

Mas agora, de certa forma, pensou Demelza, era muito excitante que a Mansão fosse arrastada para dentro da emoção da semana das corridas.

Demelza sabia que não era apenas a ideia de a casa não ser bem cuidada que fizera com que ela lutasse para ficar, apesar de Gerard a querer mandar embora; a verdade era que a ideia de não assistir às corridas lhe era insuportável.

Assistira a elas desde criança e adorara cada momento. Sabia que à volta do recinto da pista as tendas e as barracas estavam agora a ser erguidas, tal como acontecia todos os anos.

Haveria todo o género de alimentos e refrescos para as pessoas com fome e com sede; diversões de todos os géneros - malabaristas, cantores, aberrações humanas, e uma profusão de tendas de jogo que, como Demelza bem sabia, extorquiam o dinheiro a todos os que eram suficientemente loucos para arriscar as suas poupanças, ganhas com tanta dificuldade.

Até Jem fora levado à certa no ano anterior pelos vigaristas, que eram sempre numerosos na charneca. Perdera mais de um guinéu tentando identificar o dedal que continha a ervilha, jogo que o seu avô denunciara como um "assalto"!

Chegavam também hordas de carteiristas e de ladrões. Demelza e Nattie, que sempre a acompanhava, ainda se riam do grupo que, num dia de calor, como provavelmente teriam esta semana, fugira com setenta sobretudos, roubados das carruagens e das tendas.

Mas, acontecesse o que acontecesse, era tudo extasiante para Demelza e algo de que iria falar e rir, durante o ano que se seguia, até à próxima época.

"Não suportaria perder as corridas", disse ela para si mesma,     "e este ano não vou ver só o Crusader a correr, vou poder falar-lhe e tocar-lhe enquanto estiver aqui nas nossas cavalariças. " Que maior felicidade, pensou ela, do que o facto de o seu avô, o gastador que perdera muitíssimo dinheiro em cavalos lentos e mulheres rápidas, ter também construído para os primeiros algumas cavalariças bastante boas?

"Talvez venham a estar todas a uso ao mesmo tempo", pensou Demelza.

Os seus olhos brilhavam enquanto corria ao armário da roupa de cama para ver se havia lençóis suficientes para os seis leitos necessários.

Os lençóis e as fronhas tinham saquinhos de alfazema que ela fizera no ano anterior.

Hesitou por um instante, ao olhar para um conjunto separado dos outros, debruado a renda. Este tinha sido a alegria e o orgulho da sua mãe.

Depois, quase num sussurro, Demelza disse:

- Está a pagar caro, merece-os!

Levou-os para o quarto senhorial, onde dormiam os Langstons donos da Mansão desde que o rei Henrique VIII dera a Sir Gerard Langston o Mosteiro e a propriedade.

Aí dormira o pai de Demelza, mas quando Gerard herdou preferiu continuar a dormir no seu próprio quarto.

O quarto de Gerard estava repleto das coisas que guardara amorosamente desde rapaz, e repleto de troféus que ganhara quando estivera em Oxford e montara os seus próprios cavalos em corridas de obstáculos e caçadas às raposas.

O quarto senhorial estava mobilado com carvalho escuro, e a enorme cama de dossel tinha o brasão dos Langston bordado em veludo vermelho.

As cortinas e as janelas estavam abertas quando Demelza entrou no quarto. Pousou sobre a cama os lençóis que trazia nos braços.

Como amara muito o seu pai, Demelza mantivera as suas coisas da maneira que ele gostara, as escovas de cabo de marfim por cima do toucador alto, e as botas de montar engraxadas ainda repousavam no armário.

"Tenho de as tirar daqui", pensou ela.

Pegou nelas, e estava prestes a levá-las para um dos armários do corredor, quando teve uma ideia melhor.

Dirigiu-se à lareira. À direita, onde o painel estava esculpido com delicadas flores, estendeu a mão e carregou numa das pétalas. Silenciosamente, uma secção inteira de painéis abriu-se.

No interior existia um lance de degraus para cima e outro para baixo.

Esta era uma das escadas secretas das quais Demelza falara ao irmão, e que conduzia à parte superior da casa, onde se encontrava o Aposento dos Padres.

Utilizada como capela durante o reinado de Isabel I, escondera muitos padres quando os católicos tinham sido perseguidos e queimados vivos, tal como os protestantes no reinado da irmã, Maria.

A Mansão Langston fora, de facto, um dos esconderijos mais notáveis dos padres jesuítas em toda a Inglaterra.

Demelza pensava que algumas das escadas secretas tinham sido construídas antes dessa altura, talvez pelos monges, que queriam vigiar os noviços, ou talvez por razões mais sinistras.

Mas durante o reinado da rainha Isabel, a casa tornara-se um labirinto de escadas e de passagens estreitas com portas que se abriam em quase todos os quartos principais da casa.

Gerard e Demelza sabiam que, desde que ela dormisse no Aposento dos Padres e usasse as escadas secretas, seria impossível a qualquer estranho adivinhar que ela estava em casa.

"Mesmo que me vejam", pensou Demelza, sorrindo, "pensarão que sou o fantasma da Dama de Branco".

Repetiu a si própria que devia lembrar-se de dizer a Gerard para se referir em tom jocoso ao fantasma de Langston, que era uma lenda famosa nas redondezas.

Os Langston, na época de Cromwell, declararam-se abertamente desinteressados dos destinos políticos do país. As tropas de Cromwell até tinham, de tempos em tempos, ficado aquarteladas na casa e nos campos.

Mas a filha do baronete apaixonara-se por um monárquico fugitivo e escondera-o no Aposento dos Padres.

Porém, num dia em que ela estava ausente, ele fora traído por um criado desleal.

Arrastado para fora da casa pelas tropas, fora executado ali mesmo e o seu corpo enterrado antes de ela regressar.

Contava a lenda que, enlouquecida por não saber o que acontecera, a dama morrera de coração destroçado, mas o seu fantasma continuara em busca do amante.

Demelza nunca vira a Dama de Branco, embora por vezes imaginasse que a sentira na galeria dos quadros, pela noite dentro, e ouvisse os passos dela atrás de si nas escadas em caracol que davam para o Aposento dos Padres.

Mas as criadas, especialmente as mais novas, gritavam continuamente que tinham visto o fantasma, e a própria Nattie, por vezes, admitira que sentira uma "sensação fria" entre as omoplatas e queixara-se de "arrepios e tremores".

"Sentir-me-ei como um fantasma, quando estiverem reunidos na sala de jantar", disse Demelza de si para si, "e estiver fechada sem poder participar. "

Depois riu-se, porque não se importava minimamente com o facto de não ser convidada para as festas do conde, desde que pudesse ir ver o Crusader e os outros cavalos às cavalariças.

"O Abbot vai poder dizer-me tudo sobre eles", pensou, sabendo que, na maioria dos casos, se eles tivessem corrido em qualquer prova importante, ela já saberia qual a sua raça e quem os tinha gerado.

- Haverá algo mais excitante? - perguntou ela em voz alta. Olhou para a grande cama e viu a colcha de veludo, que em tempos fora vermelho, mas que agora passara a um lindo tom rosado, pensando que o dono do Crusader dormiria ali.

- Amanhã - decidiu ela - vou apanhar algumas rosas do mesmo tom e pô-las no toucador.

Perguntou-se se o conde repararia.

Depois disse a si própria que era muito pouco provável que ele reparasse em qualquer outra coisa à excepção do facto de o tecto estar manchado de humidade e faltar uma das pegas douradas da cómoda.

- Porque havemos de nos desculpar? - perguntou Demelza com desprezo. - Estará certamente mais confortável aqui do que na Grown and Feathers, e se não gostar também não pode ir para outro lado.

Algum orgulho dentro de si fê-la quase ressentir o facto de terem de receber dinheiro de um homem tão rico, quando eles eram tão pobres.

- A nossa família é tão boa, senão melhor, do que a dele - disse ela, e ergueu o seu pequeno queixo.

Depois ouviu a voz de Gerard ecoando no vestíbulo, chamando por ela.

Percorreu rapidamente o corredor para se inclinar sobre o corrimão.

- O que é? - perguntou.

- Quero falar contigo - respondeu ele. - E então o meu banho?

Demelza parou, sentindo-se culpada.

Na sua ansiedade em abrir os quartos, esquecera-se de que Gerard desejava tomar banho.

- Estará pronto dentro de alguns minutos - prometeu ela. Dirigiu-se rapidamente ao quarto dele para tirar do armário o grande alguidar redondo de estanho no qual ele tomava banho quando estava em casa.

Pousou-o no tapete perto da lareira, colocou um tapete de banho e uma toalha ao lado e, ainda a correr o mais depressa que pôde, desceu pelas escadas secundárias.

Felizmente, àquela hora do dia, o velho Jacobs pensava que a maior parte das suas tarefas estavam feitas e encontrava-se, tal como ela esperava, sentado na cozinha a beber um copo de cerveja e a falar com Nattie.

Demelza precipitou-se para dentro da enorme cozinha, de chão de lajes e traves compridas, das quais, em dias mais prósperos, pendiam presuntos, toucinhos e fiadas de cebolas, mas que agora estavam lamentavelmente desimpedidas.

Quando ela entrou, Nattie olhou- a, surpreendida. Apesar de só ter cinquenta anos, o seu cabelo era grisalho. Com o avental lavado e o rosto um tanto severo, parecia exactamente o que sempre fora, uma ama de crianças, carinhosa e terna, mas ao mesmo tempo severa quanto à disciplina.

- O que foi, Miss Demelza? - perguntou, num tom de admiração. - Está toda despenteada...

- Sir Gerard está em casa, Nattie - disse Demelza, e viu os olhos da mulher mais velha brilharem.

Se havia alguém no mundo de quem Nattie gostasse mais do que de Demelza, que fora o seu bebé desde que nascera, esse alguém era Gerard.

- Em casa! - exclamou. - Suponho que deve ir a caminho da casa de algum fidalgo seu amigo.

- A Grown and Feathers ardeu na noite passada - relatou Demelza ofegante -, o que significa que toda a espécie de coisas emocionantes vão acontecer aqui.

- Aqui? - perguntou Nattie.

- Sir Gerard quer tomar banho, Jacobs - disse Demelza. Ela sabia que o velho, que era um pouco surdo, não a ouvira.

- Um banho, Jacobs! - repetiu ela. - Leva dois jarros de água para o quarto de Sir Gerard, sim?

Jacobs pousou o copo.

- Disse dois jarros, Miss Demelza?

- Dois jarros - repetiu Demelza com firmeza.

Jacobs saiu da cozinha arrastando os pés, e Demelza, com os olhos a brilhar, começou a contar a Nattie todas as coisas emocionantes que estavam para vir.

 

CAPÍTULO SEGUNDO

- Amanhã leva-me ao Castelo de Windsor?

- Não!

- Porque não? Eu pensei que ficasse lá quando soube que não poderia ir para Bracknell, como tencionava.

- Fiz outros planos.

- Sejam eles quais forem, deve ficar alojado perto de Ascot, certamente que, de caminho, me pode levar ao Castelo.

Era difícil imaginar qualquer homem recusar um pedido de Lady Sydel Brackford.

Recostada numa chaise-longue, estava muitíssimo encantadora, vestida apenas com um negligé diáfano de gaze, que se colava ao seu corpo perfeito.

Tinham-lhe dito tantas vezes que se parecia de rosto e corpo com a lindíssima princesa Pauline Borghese, irmã de Napoleão Bonaparte, de quem Canova fizera uma escultura, que se colocava quase instintivamente na mesma postura da estátua da princesa.

O seu cabelo dourado estava apanhado ao alto e os seus olhos azuis fixavam o conde por baixo das pestanas compridas e escuras, que deviam mais ao artifício do que à Natureza.

Na realidade, tudo nela era ligeiramente artificial, mas ao mesmo tempo ninguém duvidava da sua beleza ou do seu encanto sexual.

O conde, no entanto, recostado num cadeirão, e bebendo um copo de brandy, parecia, de momento, imune à sua beleza e à expressão de súplica nos seus olhos.

- Porque não fica no Castelo? - perguntou ela, amuada. O rei já o convidou muitas vezes para lá ficar, e sabe bem que ele gosta de o ter consigo.

- Prefiro estar sozinho - respondeu o conde -, especialmente na semana das corridas, quando quero pensar nos meus cavalos.

Ele não respondeu, e ela disse, quase zangada:

- Porque é que tem de ser tão irritantemente esquivo? Se não fosse tão habitual em si, pensaria que era pretensão.

- Se não lhe agrado, tem um remédio óbvio - comentou o conde.

Lady Sydel fez um gesto de desespero com as mãos, os seus dedos compridos quase demasiado frágeis para os enormes anéis que usava.

- Eu amo-o, Valient! - disse ela. - Eu amo-o, como bem sabe, e quero estar consigo.

- O meu grupo, como também sabe, é formado apenas por homens - respondeu o conde.

- E onde é que vão ficar, agora que não pode ir, como tencionava, para a estalagem em Bracknell?

- Aluguei a casa do Langston. Creio que fica muito perto da pista das corridas.

- Langston? Refere-se àquele rapaz bonito sem um tostão no bolso?

- Suponho que essa é uma descrição bastante correcta - respondeu o conde secamente.

Lady Sydel riu-se.

- O que significa que dará consigo numa velha mansão a cair aos bocados, extremamente desconfortável, com a chuva a entrar pelos buracos do telhado por cima da sua cabeça.

- Sem dúvida que isso lhe agradaria, se fosse esse o caso.

- Faria muito melhor se viesse comigo para o Castelo de Windsor.

A sua voz era suave e sedutora, mas o conde bocejou, e ela disse rapidamente:

- Sua Majestade está à sua espera para jantar na terça-feira.

- Disse-lhe que jantaria com ele na quinta-feira, depois de ter ganho a Taça de Ouro.

- Está muito seguro de si próprio!

- Estou seguro do meu cavalo, e isso é quase a mesma coisa.

- Faz-lhe muito mal, Valient, conseguir tudo o que deseja, seja cavalo ou mulher.

O conde pareceu meditar sobre isto por um momento. Depois, com cinismo, respondeu:

- Penso que as probabilidades recaem sobre a última categoria.

- Odeio-o! - exclamou Lady Sydel. - E se está a pensar na Charis Plymworth, juro que lhe arrancarei os olhos!

O conde não respondeu e, passado um momento, Lady Sydel disse:

- Acho que sei porque não vem ao castelo na terça-feira à noite. Vai jantar com o John Dysart, e a Charis Plymworth está em casa dele.

- Se sabe que eu já tenho um compromisso, porquê insistir para que aceite outro? - perguntou o conde.

- Nunca pensei que pudesse ser tão traiçoeiro, tão horrivelmente cruel para mim!

O conde ergueu as sobrancelhas e sorveu um golo de brandy antes de dizer:

- Minha cara Sydel, nunca andei agarrado às saias de nenhuma mulher, e que isto fique bem claro, de uma vez por todas, também não estou agarrado às suas!

- Mas eu amo-o, Valient! Significámos tanto um para o outro e eu pensava que me amava...

Havia um quebranto muito comovedor na sua voz, mas o conde limitou-se a pôr-se de pé e pousar o copo sobre o rebordo da lareira.

- O melodrama, como bem sabe, Sydel, aborrece-me. Vou despedir-me e espero vê-la na Tribuna Real, em Ascot.

Inclinou-se para lhe beijar a mão, mas ela estendeu os braços para ele.

- Beije-me, Valient, beije-me! Não aguento que me deixe, quero-o para mim! Quero-o desesperadamente! Matá-lo-ia antes de o deixar amar outra mulher!

O conde olhou para ela, para a paixão que brilhava nos seus olhos, para a cabeça atirada para trás e o convite no seu corpo arqueado e meio nu.

- É muito bonita, Sydel - disse ele numa voz que não conferia às suas palavras um tom particularmente lisonjeiro -, mas, por vezes, as suas manifestações de afecto tornam-se maçadoras! Vêmo-nos nas corridas.

Encaminhou-se devagar até à porta e, sem olhar para trás, saiu do quarto.

A sós, Lady Sydel soltou um grito de irritação pura. Depois, com o punho cerrado, bateu numa das almofadas de seda da chaise-longue até que, exausta, se deixou cair para trás, a olhar sem esperança o tecto pintado por cima da sua cabeça.

Por que razão o conde a deixava sempre frustrada e quase desesperada?

Pensou que, de facto, fora bastante estúpida. Por esta altura, já devia saber, tendo tido inúmeros amantes, que quando os homens estão saciados sexualmente querem ser lisonjeados e elogiados - não lançados em querelas como aquela que acabara de ocorrer.

Mas os seus ciúmes incontroláveis faziam-na entregar-se a cenas e amuos que, enquanto mantinham os outros homens de joelhos, deixavam o conde invariavelmente impávido.

- Maldito seja! - exclamou, em voz alta. - Porque é que ele há-de ser diferente?

Mas sabia a resposta bem de mais: ele era diferente! Por esta razão, jurara fazê-lo apaixonar-se por ela tão loucamente, como ela por ele.

No entanto, parecia que apenas conseguira fazê-lo seu amante quando lhe dava jeito a ele, e não tinha a certeza de que ele estivesse mais apaixonado por ela do que estivera por dezenas de outras mulheres.

Lady Sydel, de início, estava segura de que, no seu caso, tudo seria diferente.

Não era ela a beldade mais aplaudida em todo o Beau Monde? Não tinham a sua beleza e o seu fascínio sido louvados por todos os mulherengos e libertinos? Não era um facto que lhe bastava estalar os dedos para ter qualquer homem que lhe agradasse prostrado a seus pés?

No entanto ela sabia, incontestavelmente, que o conde se esquivava.

Mesmo quando faziam amor sentia que o espírito, e certamente o coração - se é que o tinha - do conde, não eram dela. Desesperadamente, pensava agora que, desde que Lady Charis Plymworth entrara em cena, ele não se mostrava tão atento como antes.

- Odeio-a! Meu Deus, como a odeio! - gritou Lady Sydel. Bastava-lh pensar em Charis Plymworth, com o seu cabelo ruivo-escuro e os seus olhos verdes e rasgados, para sentir instintos assassinos.

"Eu mato-a, e mato-o a ele! disse a si própria, falando com uma ferocidade que significava estar à beira de um dos seus ataques de fúria, que aterrorizavam o pessoal da casa e, por vezes, ela própria.

Deitada na chaise-longue, tentou imaginar-se a rasgar com uma faca afiada o sorriso do rosto enigmático de Charis Plymworth, e depois a virar-se para o conde.

A seguir disse a si própria que a vida sem o conde lhe seria insuportável, e de algum modo tinha de se assegurar de que ele continuasse seu amante.

- A Charis Plymworth não o terá!

A sua voz parecia ecoar pelas paredes do boudoir, misturar-se com o perfume exótico que habitualmente usava e o aroma das tuberosas, das quais, desde que alguém lhe dissera que soltavam a fragrância da paixão, sempre se rodeava.

Ergueu-se da chaise-longue e dirigiu-se a um espelho com moldura dourada colocado ao fundo do quarto.

Ficou em frente dele, observando as curvas do seu corpo, que os homens sempre descreviam como o de uma deusa grega, a coluna redonda e branca do seu pescoço, a paixão que ainda pairava nos seus olhos e nos seus lábios.

- Ele excita-me como nenhum homem alguma vez conseguiu - disse ela a si própria. - Não posso perdê-lo. Não vou perdê-lo!

O conde, conduzindo o seu faetonte, perguntava-se por que razão as mulheres sempre se abandonavam aos homens, mental ou fisicamente, depois de serem invulgarmente fogosas durante o acto de amor.

Parecia que algo se soltava dentro delas, que noutras alturas conseguiam controlar.

Decidiu que já estava farto do possessivismo pegajoso de Sydel e dos seus ciúmes quase desvairados.

Fui louco em envolver-me com uma mulher como ela", pensou ele.

Decidiu que quando regressasse de Ascot para Londres não voltaria a visitá-la na sua casa, em Bruton Street, onde a má-língua dizia, com desprezo, que os degraus estavam gastos pela passagem dos amantes, que entravam e saíam.

- Ela é linda - disse ele -, mas isso não é tudo. Ciente da banalidade do seu comentário, sorriu ao proferi-lo, e depois perguntou a si próprio o que desejava de uma mulher.

Houvera tantas na sua vida! Mas passado pouco tempo cansava-se, como sabia agora que estava cansado de Lady Sydel.

Mas Charis Plymworth estava à espera dele. Tornara isso bem claro na última vez que se tinham encontrado, e ele vê-la-ia na terça-feira à noite, quando fosse jantar com Lord Dysart. Seria provável que fosse um tanto difícil dizer algo muito íntimo naquela ocasião, pois ele tinha a impressão de que Dysart gostava bastante de Charis e, se assim fosse, não havia razão para que não se casasse com ela.

O conde sabia que Charis, tal como Sydel, procurava um marido.

Eram ambas viúvas, mas ao passo que o marido velho de  Sydel Blackford morrera de um ataque de coração deixando-a muitíssimo rica, Lord Plymworth desaparecera dois anos antes e Charis não vivia desafogada.

O conde, lembrando-se com um sorrisinho do cabelo ruivo e dos olhos verdes de Charis, pensou que seria divertido vesti-la.

A experiência tornara-o especialista no que ficava bem a uma mulher e pagara suficientes contas de modistas para elas respeitarem a sua opinião e porem rapidamente em prática as suas sugestões.

"Verde, pensou, "e naturalmente desejará esmeraldas para condizer. Azul-pavão também ficaria muitíssimo bem e diamantes brilhando nas suas pequenas orelhas e no seu cabelo.

Esperava que quando ela soltasse o cabelo ele fosse comprido, macio e sedoso.

O cabelo de Sydel era espesso, mas não particularmente macio.

Lembrou-se de uma mulher - como diabo se chamava? que tinha um cabelo como seda pura e que lhe chegava abaixo da cintura.

Cleo? - ou seria Janice? Nunca tivera grande memória para nomes.

Com um sobressalto, o conde apercebeu-se de que, mergulhado nos seus pensamentos, embora tivesse conduzido magnificamente ao mesmo tempo, chegara à Casa Trevarnon, em Grosvenor Square.

Grande e impressionante, fora restaurada pelo conde até ficar irreconhecível, depois de a ter herdado do pai.

O conde, tal como o príncipe de Gales, coleccionava quadros, que eram a inveja e a admiração de muitos peritos, e possuía uma série de retratos de família que eram, só por si, únicos.

Havia o primeiro conde de Trevarnon, pintado por Van Dyck, os que se lhe seguiram, pintados por Gainsborough e Reynolds, e um recente, dele próprio, pintado por Lawrence, porque o regente insistira que ele o fizesse.

O conde entrou no grande vestíbulo, onde se encontravam várias estátuas que ele também comprara criteriosamente.

O intendente aproximou-se dele rapidamente para lhe pegar

no chapéu alto e nas luvas.

- Trataste de tudo para amanhã, Hunt? - perguntou o conde.  

- De tudo, senhor conde.

- Como te disse, há poucos criados na Mansão Langston,

por isso temos de ser nós a compensar as faltas.   

-Já tratei disso, senhor conde. O cozinheiro vai levar dois 

ajudantes com ele, e os criados que escolhi são os mais indicados para dar uma ajuda na lida da casa, se for necessário.

- Obrigado, Hunt, e como tu vens comigo não preciso de

pensar mais nos preparativos.   

- Pois não, senhor conde. E certifiquei-me de que o cozinheiro leva a maior parte da comida que necessita. Na semana

das corridas, vai ser dificil comprar lá qualquer coisa.

- Tenho a certeza disso - respondeu o conde.

Enquanto falava dirigia-se para a biblioteca, afastando do

pensamento o problema de Ascot, tal como afastara o problema

de Lady Sydel.

Hunt trataria de tudo. Sempre o fizera.

Todavia, na manhã seguinte, o conde decidiu que chegaria à

Mansão Langston mais cedo, antes dos outros convidados.

Como todos os organizadores natos, não conseguia resistir,

nem com os mais experientes criados, mordomos e administradores, a verificar as coisas por si próprio.

Sendo, em grande parte, um perfeccionista, não via razão para sofrer qualquer desconforto desnecessariamente.

Se, durante os cinco dias que ia passar em Ascot, faltasse alguma coisa que ele não previra, mandaria um lacaio a Londres.

O administrador enviar-lhe-ia imediatamente o necessário.

Orgulhava-se de ter sido bastante esperto por conseguir encontrar no último momento uma alternativa para a Grown and

Feathers.

Sabia muito bem que não havia uma casa nos arredores de

Ascot, desde o Castelo de Windsor às mansões, próprias ou alugadas, dos seus amigos, onde não o recebessem como um hóspede bem-vindo.

Mas há muito que decidira que, no que dizia respeito a grandes corridas de cavalos, preferia estar com os seus cavalos e independente dos caprichos e desejos de outras pessoas.

Também achava que as mulheres eram uma distracção que não lhe fazia a mínima falta quando desejava concentrar-se nas corridas.

Pouco depois do pequeno-almoço, em que comeu sensatamente e bem, bebendo café e não álcool, partiu de Londres levando um tiro de cavalos castanhos que eram a inveja de todos

os coríntios de St. James.

Teria gostado de conduzir seis cavalos, como costumava fazer quando competia com o príncipe de Gales, que fora pintado num faetonte a caminho de Ascot com, é claro, uma mulher bonita ao seu lado.

Mas o conde aprendera, havia muito, que nas estradas cheias de lombas em redor de Ascot seis cavalos podiam ser um embaraço e limitariam o passo em que viajava, em vez de o apressar.

Estava um dia de sol e já extremamente quente, e a estrada, tal como o conde previra, cheia de carruagens, tilburis, coches, carretas e cabriolés.

medida que se aproximava de Ascot, depois de mudar duas vezes de cavalo no caminho para não diminuir o passo a que desejava viajar, reparou, divertido, nas carroças vagarosas, cobertas com ramos folhudos de árvores para proteger do calor do Sol um monte de camponeses.

Estes veículos iam tão sobrecarregados que o conde cerrou os lábios ao pensar no sofrimento causado aos desgraçados animais que os puxavam.

Via-se uma série de faetontes parecidos com o do conde e esplêndidas caleches com painéis pintados, exibindo as armas ou os brasões dos seus donos.

Havia, naturalmente, uma série de cavalos para os quais o conde olhava segunda vez, só para confirmar que não igualavam os seus.

Aproximou-se da pista e começou a procurar o desvio que, segundo Gerard Langston, o levaria à Mansão.

Os espessos abetos da floresta de Windsor flanqueavam ambos os lados da estrada até que, tão inesperadamente que quase não reparou, o conde viu um caminho de terra serpenteando pelo bosque.

Supôs ser este o caminho correcto, mas reduziu a velocidade dos cavalos, esperando não ser obrigado a voltar para trás, pois parecia-lhe impossível inverter caminho por entre os troncos das árvores.

Depois, à sua frente, viu duas casas antigas que pareciam desabitadas e umas grades de ferro que felizmente estavam abertas.

Isto deve ser a Mansão Langston", disse ele a si próprio. Pensou que o aspecto das casas e das grades não augurava nada de bom em relação ao estado em que se encontraria a mansão propriamente dita.

Se Sydel tivesse razão, seria certamente uma casa a cair aos bocados, com buracos no telhado e talvez demasiadamente pequena para o seu grupo.

Por um momento, à medida que avançava pelo caminho coberto de musgo, o conde lamentou não ter aceitado o convite do rei para ficar no Castelo de Windsor. Ali, pelo menos, teria uma cama confortável.

Depois, com um esgar nos lábios, pensou que se Sydel lá estivesse ele não passaria muito tempo na sua própria cama, e decidiu que, por muito incómodo que ficasse, preferia estar sozinho.

O caminho virou e, de repente, o conde viu à sua frente a Mansão Langston.

Não era minimamente o que ele esperava e era de facto muito mais bonita do que imaginara.

Erguia-se rodeada de árvores, e o conde viu imediatamente que não só era bastante velha mas também maior do que pensara.

Estendendo-se à sua frente, o sol cintilando nas janelas em forma de losango e os pombos pousados no telhado de empena, parecia ao conde ser algo saído de um conto de fadas.

Quase esperava que a casa desaparecesse e ele se encontrasse a olhar para as ruínas daquilo que em tempos ali se erguera.

Mas sabia que estava a fantasiar e que a casa era real, embora parecesse impossível ter vindo tantos anos para Ascot e nunca se ter apercebido da sua existência.

Também achou tudo muito calmo e sossegado, pois não parecia haver ninguém por perto.

Lembrou-se de que nos outros sítios onde ficara havia sempre o barulho das carruagens, dos lacaios e moços de estrebaria a correrem apressadamente de um lado para o outro, gritando, quando o viam aproximar-se.

Conduzindo devagar para poder avaliar a casa e as redondezas, o conde fez finalmente parar os cavalos em frente à porta principal.

O lacaio saltou da parte de trás do faetonte e, enquanto se dirigia à cabeça do primeiro cavalo, o conde disse:

- Temos de encontrar alguém que nos indique as cavalari ças, Jim.

- Devem ser ali, senhor conde - respondeu, Jim. Apontou enquanto falava, e o conde via agora um telhado um pouco atrás da casa.

- Vou perguntar - disse.

Entrou e deu consigo num vestíbulo com umas escadas esculpidas que subiam em curva para o primeiro andar.

Era muito agradável, e o conde apercebeu-se imediatament da fragrância a flores e reparou que provinha de uma jarra de rosas vermelhas e brancas dispostas numa mesa ao fundo das escadas.

Ficou animado ao ver que a casa era tão agradável por den tro como por fora. Sentiu-se numa casa de família, e perguntou

-se se o jovem Langston teria mãe.

Atravessou o vestíbulo e espreitou para o interior do que devia ser a sala de estar.

Mais uma vez, havia arranjos de flores sobre as mesas, através das janelas abertas, rasgadas até ao chão, viu um jardim que era uma profusão de cor, com grandes canteiros de rododendros carmesim entremeados com arbustos de lilás brancos.

Os olhos do conde voltaram novamente para a sala.

Notou que, a par da decrepitude, apresentava ao mesmo tempo um gosto perfeito.

Os quadros nas paredes apaineladas precisavam de ser limpos, mas teve um pressentimento de que, mais tarde, seria interessante olhar para eles com mais atenção.

Voltando para trás, deu consigo na biblioteca e soube logo que esta era a sala que ele faria exclusivamente sua.

Gostava dos cadeirões de couro confortáveis e da grande secretária de tampo horizontal colocada exactamente no local correcto em relação à luz.

Ainda não aparecera ninguém e, porque estava tão curioso em relação ao resto, não se dirigiu à zona da cozinha, onde tinha a certeza de encontrar os criados.

Em vez disso, subiu as escadas, reparando que cada pilar de madeira de carvalho fora originalmente coroado por uma figura esculpida, embora faltassem algumas ou estivessem danificadas.

Ao mesmo tempo, apreciava o facto de serem antigas e o modo como a madeira envelhecera.

Também havia quadros nas escadas e, como eram principalmente retratos, o conde deduziu que se tratava dos antepassados de Langston, pensando reconhecer neles algumas semelhanças com as bonitas feições de Gerard.

No cimo das escadas, podia ir para a direita ou para a esquerda. Escolheu a esquerda e, caminhando ao longo do corredor estreito e de tectos baixos, viu à sua frente uma galeria comprida.

Era o tipo de galeria que os isabelinos construíam sempre nas suas casas e para a qual, nos longos Invernos, mudavam as camas de dossel, colocando-as à volta da enorme lareira, correndo as cortinas das camas para terem alguma privacidade.

Numa das casas que possuía, o conde tinha uma galeria parecida com esta e imaginava frequentemente as famílias reunidas ali, encontrando-se o membro mais importante mais perto da lareira.

Chegou à porta da galeria e viu o sol a brilhar, através das janelas, como ouro no soalho encerado.

Então, na extremidade oposta, viu uma mulher com um vestido branco e pensou que encontrara finalmente alguém que poderia informá-lo do que ele queria saber.

Avançou, mas assim que o fez apercebeu-se de que ela desaparecera!

Por momentos, pensou que ela não o tivesse ouvido aproximar-se e que se sentara numa cadeira ou num sofá. Então, à medida que avançava pela galeria viu que estava de facto vazia.

Devo ter sonhado", pensou.

De pé, perto do local onde ela parecia ter estado, ouviu uma voz por detrás, dizendo:

- Boa tarde.

Voltou-se e viu uma mulher de idade, trajando um vestido cinzento e, por cima, um avental branco.

Quando a olhou, ela fez uma vénia e disse:

- O senhor deve ser o conde de Trevarnon, que alugou a casa para a semana das corridas. Sir Gerard disse-me que o esperasse, mas veio mais cedo do que o previsto.

- Espero não incomodar - disse o conde -, mas vim antes dos meus convidados para me certificar de que tudo está em ordem.

- Espero que esteja, senhor conde - respondeu Nattie -, mas temos pouco pessoal, como certamente Sir Gerard o informou.

- Certamente - respondeu o conde. - Mas o meu intendente vem a caminho com um grande número de criados para fazerem tudo o que seja preciso.

-Obrigada, senhor conde. Deseja agora ver os quartos?

- Com certeza! - respondeu o conde.

Nattie conduziu-o por um corredor na direcção oposta àquela que o levara à galeria.

Hesitou sobre se deveria mencionar o facto de ter visto uma rapariga de branco, mas em vez disso comentou:

- Talvez me possa dizer quem está nesta casa além de si?

- Só a velha Betsy, que pode ajudar na cozinha se for necessário, senhor conde - respondeu Nattie. - Depois há o  Jacobs, que faz vários serviços, traz o carvão e a lenha e leva a água dos banhos para o andar de cima.

O conde não disse nada, e Nattie continuou:

- Há o Abbot, nos estábulos, e o neto, Jem, que vai montar o nosso cavalo nas corridas.

Falou de um modo que deu a entender ao conde que estava determinada a não se deixar intimidar nem subjugar pelos cavalos dele.

O conde esboçou um leve sorriso ao dizer:

- E agora talvez possa dizer-me o seu nome e a sua posição nesta casa?

- Eu era ama do menino Gerard, senhor conde, e desde bebé que ele me chama Nattie, por isso o nome pegou.

- Então será Miss Nattie - disse o conde.

- Obrigada, senhor conde. Este é o quarto no qual pensámos que ficaria mais bem instalado. o quarto do dono da casa, mas Sir Gerard ainda prefere ficar no quarto onde dormia em rapaz.

O conde, ao contrário do que Demelza previra, gostou da grande cama de dossel, com as suas cortinas e colcha de veludo, a beleza dos painéis e a jarra de rosas em cima da mesinha do toucador.

- As flores por toda a casa são maravilhosas, Miss Nattie - disse ele. - É a si que devo agradecer o arranjo?

Houve apenas um momento de hesitação antes de Nattie responder:

- Eu arranjo as flores quando tenho tempo, senhor conde.

- Então esperemos que tenha tempo enquanto eu cá estiver - disse o conde.

Nattie indicou-lhe as cavalariças, e quando ele lá chegou descobriu que Abbot já mostrara a Jim onde guardar os cavalos.

O conde inspeccionou o resto das cavalariças.

Eram surpreendentemente espaçosas, muito melhores do que esperara, dignas de uma das grandes casas daquela região.

Enquanto estava nas cavalariças, os cavalos chegaram. Quando acabou de os ver instalados e se certificou de que o Crusader estava em excelente forma, já o seu pessoal se encontrava na Mansão e o intendente dirigia as operações como um general à frente de um exército.

Visto não haver nada que fazer enquanto os convidados não aparecessem, o conde foi até ao jardim para observar os rododendros, os arbustos floridos e os laburnos, que em criança chamava chuva dourada".

À medida que caminhava em direcção a eles, parecia-lhe que voltava ao passado e que estava numa terra habitada por gnomos e fadas, dragões e cavaleiros.

Em rapazinho, sempre imaginara dragões que cuspiam fogo ocultos nas florestas e que havia duendes escondidos por baixo das montanhas ou nos troncos de árvores enormes.

Havia anos que não pensava nestas coisas, mas agora, a casa misteriosa com o seu jardim coberto de vegetação dificilmente parecia pertencer ao mundo moderno em que ele vivia.

Não tinha certamente nada a ver com os homens e mulheres do Beau Monde que convergiriam em Ascot para passar uma semana não só nas corridas mas também em festas, bailes e, no que dizia respeito aos homens, bebendo e jogando desordeiramente.

Mas aqui só havia o arrulhar dos pombos-bravos nas árvores e o ruído de animais pequenos em movimento por baixo dos arbustos.

O aroma das flores era muito diferente dos perfumes exóticos usados por Sydel, Charis ou qualquer outra das mulheres que ele conhecia.

O conde embrenhou-se profundamente no bosque, e passado algum tempo regressou.

Quando voltou a ver a casa, arrebatou-o a mesma sensação de mistério e magia que sentira quando a vira pela primeira vez, do lado oposto.

Por um momento absurdo, desejou estar ali sozinho. Depois riu de si próprio e continuou a passo rápido, certo de que agora os seus amigos já teriam chegado.

Estavam de facto à sua espera na sala, estendidos  confortavelmente nas cadeiras, segurando copos de champanhe que mantinham cheios, servindo-se das garrafas colocadas em geleiras num dos aparadores.

- Disseram-nos que estavas aqui! - exclamou Lord Ghirn quando o conde entrou. - Mas ninguém sabia para onde tinhas ido.

- Estive a inspeccionar a propriedade - respondeu o conde. - Ainda bem que estás cá, Ramsgill, e tu também, Ralph! Como estás, Wigdon?

Falou em último lugar a Sir Francis Wigdon, um homem que ele conhecia havia pouco tempo, mas que achava divertido e que jogava tão bem às cartas como ele.

- Não há dúvida que encontraste uma casa muito bonita - respondeu Sir Francis - e, na minha opinião, inteiramente preferível à Grown and Feathers!

- Todos concordamos com isso - gritou o Honourable Ralph Mears. - É mesmo teu, Trevarnon, encontrares uma coisa tão rara e confortável. Qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias teria tido de acampar na charneca.

- Felizmente que isso não foi necessário! - respondeu o conde, servindo- se de um copo de champanhe. - Este ano, deve haver mais gente do que nunca!

- Todos os anos é pior - disse Lord Ramsgill - e os meus lacaios disseram que se registaram os acidentes do costume pelo caminho.

Os acidentes na estrada eram vulgares e, durante a semana de Ascot, quando os condutores despejavam litros de cerveja pela garganta para a lavar do pó que os engasgava, havia sempre mortes devido a erros de condução ou apenas porque o trânsito as tornava inevitáveis.

Por duas vezes, a carruagem real, regressando a Windsor depois das corridas, estivera envolvida em acidentes mortais. O primeiro dera-se com um postilhão que não ia sentado, e a roda da carruagem atropelou-o e matou-o.

No segundo caso, um membro da comitiva que servia o rei tinha atropelado e morto um pedestre.

Era uma coisa a esperar, mas infelizmente não fazia aqueles que conduziam mais cuidadosos no ano seguinte.

- Que conselhos nos dás, além de nos recomendares os teus cavalos, claro? - perguntou Lord Ghirn ao conde.

- Acho que devias perguntar isso ao duque de Iorque - respondeu este. - Disse-me anteontem que tenciona fazer sensação este ano em Ascot, e eu não me lembro de ninguém capaz de o impedir.

- Isso significa - disse Lord Ramsgill - que tu e ele vão apoiar o potro Cardenio, que ele inscreveu para o seu próprio Selling Plate, e o Moses.

- O Moses de certeza! - disse o conde. - A não ser que lhe batam com as tábuas dos Dez Mandamentos em cima da cabeça, não há nada que o impeça de sair dali com o Prémio de Albany.

Riram-se todos e o conde sentou-se com o copo na mão.

Lá em cima, no Aposento dos Padres, Demelza perguntava-se como podia ter sido tão estúpida ao ponto de quase ter sido apanhada pelo conde.

O som de passos a entrarem na galeria alertaram-na. Teve o vislumbre de um homem bonito, alto, de ombros largos e extremamente elegante, antes de se esgueirar através do painel, com uma ligeireza que se deveu ao medo, e fechar atrás dela a porta secreta sem fazer barulho.

Ela não fazia ideia de que o esperavam tão cedo e, na realidade, acabara naquele momento de arranjar as flores.

Depois dirigira-se à galeria para buscar o livro que deixara ali quando Gerard a chamara no dia anterior.

Já levara pelas estreitas escadas em caracol tudo o que precisava. Felizmente, o seu quarto não era necessário para nenhum convidado, por isso não foi necessário esconder os seus tesouros especiais.

Gerard voltara na noite anterior e partira outra vez de manhã cedo, com instruções de última hora para que ninguém soubesse sequer da existência dela.

- Porque haveria alguém de suspeitar que eu tenho uma irmã, quando nunca a viram em Londres? - perguntou ele.

Dirigindo-se a Nattie, disse:

- Tu e a Betsy cuidam de mim aqui, e quando eu volto para casa fico sozinho com vocês. Entendido?

- Entendido, menino Gerard - respondeu Nattie -, e acho que tem toda a razão. Não quero que Miss Demelza se envolva com esses seus amigos libertinos.

- Como sabes que eles são libertinos, Nattie? - perguntou Gerard.

-Já ouvi muita coisa sobre o que se passa em Londres para saber o que pensar acerca disso! - respondeu Nattie.

Gerard riu-se e chamou-lhe pudica, mas quando se despediu de Demelza disse:

- Obedece-me, senão fico muito zangado. Não quero que te cruzes com o Trevarnon nem com ninguém que esteja hospedado nesta casa!

- Parece-me a mim que se esses teus amigos são tão perversos devias encontrar outros! - comentou Demelza.

- São tipos impecáveis e excelentes desportistas - disse Gerard rapidamente.

Ela sabia que ele saltaria em defesa dos seus amigos e respondeu:

- Estou a brincar, querido, mas não bebas de mais. Sabes que te faz mal, e a mamã sempre odiou homens que bebiam de mais.

- O Trevarnon não bebe de mais - disse Gerard reflectidamente. - É demasiado bom pugilista para isso, além de ser campeão de esgrima neste momento.

Não era de admirar, sentiu Demelza, à medida que ele se afastava, que ele a tivesse deixado curiosa acerca do conde. Aparentemente, não havia nada em que o conde não se distinguisse, além de ser dono do cavalo mais magnífico de toda a Grã-Bretanha.

- O Crusader é melhor do que o Moses? - perguntou ela a Abbot.

- Ainda não correram um contra o outro, Miss Demelza - respondeu Abbot -, mas se correrem eu aposto o meu dinheiro no Crusader.

- Contra quem é que ele vai competir na Taça de Ouro?

- Contra o Sir Huldibrand. É o único que está verdadeiramente à sua altura - respondeu Abbot.

- Esse cavalo pertence ao senhor Ramsbottom - comentou Demelza. - Espero que não ganhe!

- É um bom cavalo - disse Abbot - e é o Buckle que o vai montar.

Frank Buckle era um dos melhores jóqueis da altura e Demelza, que o vira montar noutras corridas de Ascot, sabia que ele só pesava cinquenta e cinco quilos sem ser magro de mais.

Ele fora, na realidade, um dos seus heróis durante muitos anos, e ela ouvira alguém dizer: Não há nada de grande no Frank Buckle, excepto o seu coração e o seu nariz!

A sua integridade era famosa, bem como o último arranque no final da corrida.

Gerard disse-lhe que tinha sido escrita uma copla a respeito do jóquei:

Um grande Buckle era dantes o máximo;

Um pequeno Buckle enche agora a página desportiva.

Demelza achara graça e decorara a frase.

Agora, ele estava a ficar mais velho, e embora ela achasse desleal torcer pelo Crusader, queria que este último ganhasse a Taça de Ouro porque estava instalado nas suas cavalariças.

Ao regressar a casa, admitiu para si própria que não só pensava no Crusader mas também no seu dono.

Tudo o que Gerard lhe dissera sobre o conde, apesar dos seus avisos, tinha-a intrigado.

- Tenho de o ver! - exclamou ela, e lembrou-se que isto era fácil de conseguir, secretamente, sempre que quisesse.

Agora, lembrava-se de que quase o encontrara cara a cara, e sabia bem como Gerard teria ficado furioso com ela!

"Isto é um aviso", pensou ela. "Não devo voltar a correr este risco, e devo estar sempre alerta. "

Ao mesmo tempo, atraída de forma irresistível para o homem que desejava ansiosamente ver, desceu em silêncio a escada de caracol até ouvir o som de risos, confirmando que os cavalheiros estavam reunidos na sala de estar, tal como esperara.

Passou o tempo que pôde a arrumar a sala, a limpar-lhe o pó e a arranjar as flores.

Ficou por um momento às escuras, ouvindo as vozes dos diversos cavalheiros e tentando adivinhar quais pertenciam aos nomes que Gerard lhe dissera.

O irmão ainda não tinha voltado. Isso significava que havia cinco homens na sala de estar.

Estendeu a mão para encontrar a minúscula vigia que os monges ou os padres tinham feito nos painéis para poderem espreitar para todos os quartos.

Fora colocado ao nível dos olhos de um homem, por isso Demelza teve de se pôr em bicos dos pés para poder ver através do buraco.

Era tão pequeno e estava tão oculto na ornamentação, no centro de uma flor, que se tornava impossível a alguém na sala reparar na sua existência. Na realidade, Demelza esquecia-se muitas vezes da sua localização quando estava na sala.

Encostou o olho ao minúsculo buraco, e o primeiro rosto que viu foi o de um homem com cerca de trinta e cinco anos de idade.

Não era de todo bonito, mas tinha uma aparência bondosa e ria-se estrondosamente de algo que fora dito.

Adivinhou, embora não tivesse a certeza, que se tratava de Lord Ghirn.

Ao seu lado estava sentado um homem com olhos pequenos e escuros, um nariz pontiagudo e uma gravata ligeiramente exagerada.

Quando Demelza olhou para ele, alguém disse:

- Também deves pensar assim, não, Francis? - Quando ele respondeu, a jovem teve a certeza de que se tratava de Sir Francis Wigdon.

Havia algo nele de que ela não gostava, mas não tinha a certeza do que era. Pensou apenas que enquanto os seus lábios riam os seus olhos não.

Depois olhou de repente para o centro do grupo e soube imediatamente que estava a ver o conde de Trevarnon.

Era exactamente o que ela imaginara, antes de o ver na galeria. Extremamente bonito, com uma testa larga e inteligente, queixo quadrado, boca firme e tinha duas rugas profundas de cinismo, que desciam do nariz até aos cantos dos lábios.

Era um rosto libertino, cínico, e parecia-se vagamente, na opinião de Demelza, com o retrato de Carlos II, dependurado nas escadas.

Um dos seus amigos disse qualquer coisa que o divertiu, mas ele não sorriu; torceu apenas os lábios, mas ao mesmo tempo os olhos brilharam-lhe.

"Ele é magnífico! ", pensou Demelza. "O Gerard que diga o que disser... mas eu gosto dele! "

 

CAPÍTULO TERCEIRO

Assim que Demelza soube que os convidados tinham ido jantar, esgueirou-se pela passagem secreta até ao rés-do-chão e saiu por um painel da parede para um corredor que conduzia à porta do jardim.

Tomou a precaução de vestir uma capa escura sobre o vestido, no caso de alguém a ver no jardim.

Era improvável, mas como todos os seus vestidos eram brancos, ela sabia que sobressairia contra a folhagem verde-escura dos arbustos.

Nattie, que lhe fazia todos os vestidos, descobrira que o tecido mais barato que se encontrava nas pequenas lojas em Ascot ou Windsor era a musselina branca.

Confeccionava-os com um feitio muito parecido nos últimos cinco anos: caindo em pregas da cintura subida, como ela era muito esguia, não só lhe ficavam bem mas também lhe davam um ar etéreo, de uma graciosidade dificil de descrever.

Fechando atrás de si a porta dojardim, mas não a trancando para poder entrar depois, avançou pelos arbustos em direcção às cavalariças.

Tinha a certeza de que a esta hora os moços de estrebaria, jóqueis e aprendizes, depois de cuidarem dos cavalos, já teriam ido rapidamente para a charneca.

Aí, as barracas estariam bem iluminadas e a fazer um óptimo negócio antes de as corridas começarem, no dia seguinte.

Esperava, no entanto, que Abbot estivesse nos estábulos, certo de que ela aproveitaria a primeira oportunidade para ver os cavalos do conde.

Tinham dito a Abbot que ela estava escondida e que não mencionasse, em caso algum, nem o seu nome nem que ela vivia na Mansão.

Abbot era tão digno de confiança como Nattie e Betsy, e Demelza tinha a certeza de que da parte deles não haveria falatório, como seria de esperar noutras casas.

Chegou às cavalariças, onde tudo estava em silêncio. Depois, ao avançar pelo pátio calcetado, Abbot apareceu, trazendo uma lanterna na mão.

- Logo vi que não ia demorar muito a vir, Miss Demelza - disse ele com a familiaridade afectuosa de um velho criado.

- Sabias que eu quereria ver o Crusader - respondeu Demelza.

- Temos muito orgulho em ter aqui um cavalo como este - disse Abbot.

Algo na sua voz revelou a Demelza, que o conhecia muito bem, que ele estava extremamente bem impressionado com os famosos cavalos do conde.

Abbot seguiu à sua frente e levou-a para dentro do estábulo, onde as divisórias abriam todas para um corredor comprido de uma ponta à outra.

Abriu as grades da primeira divisória e Demelza distinguiu o cavalo que ansiava ver.

Negro azeviche com uma estrela na testa e dois topetes brancos nas patas, era um animal magnífico!

Ela sabia que ele descendia directamente do Godolhzn Arabia, o cavalo árabe que viera para Inglaterra em 1732 depois de muitas aventuras estranhas e infelizes.

Finalmente, tornara-se propriedade de Lord Godolphin, genro de Sarah, a famosa duquesa de Malborough.

Em segredo, o beduíno que era o seu companheiro constante deixou que Godolhin Arabia cobrisse Roxana, uma grande égua, de cujos potros descenderam muitos dos célebres puros- sangues das corridas de cavalos.

Demelza fez uma festa no pescoço arqueado do Crusader e, quando ele lhe encostou o focinho, viu os músculos enrugarem-se por baixo do seu pêlo escuro.

- Ele é maravilhoso! - disse ela numa voz tomada de respeito.

- Pensei que achasse isso, Miss Demelza - disse Abbot -, e confesso que nunca vi um garanhão mais bonito em toda a minha vida.

- Vai ganhar a Taça de Ouro... tenho a certeza! - exclamou Demelza.

Era difícil, depois do esplendor do Crusader, apreciar o valor dos outros cavalos do conde, mas ela sabia que todos eles eram excepcionais.

Quando finalmente se aproximaram do Firebird, sentiu vergonha por ver nele tantos defeitos.

Pôs-lhe os braços à volta do pescoço.

- Nós podemos admirar os nossos convidados, Firebirddisse, na sua voz suave -, mas é de ti que nós gostamos! Tu pertences-nos e fazes parte da nossa família.

- Lá isso é verdade - disse Abbot -, e lembre-se do que eu lhe digo, Miss Demelza, o Jem vai levar o Firebird à vitória no sábado.

- Claro que sim - respondeu Demelza -, e talvez o conde veja o Jem a ganhar e o deixe montar um dos seus cavalos.

- Pode ter a certeza de que é com isso que o Jem anda a sonhar - disse Abbot, sorrindo abertamente.

- Há algum cavalo importante na corrida em que inscreveste o Firebird? - perguntou Demelza.

Abbot coçou a cabeça.

- O Bard pode ser um perigo, miss, mas está a ficar velho e não gosto muito do jóquei que o vai montar.

Demelza voltou a abraçar Firebird.

- Eu sei que tu vais ganhar! - sussurrou ela, e sentiu como se o animal reagisse à confiança que depositava nele.

Teve de voltar à divisória do Crusader antes de sair do estábulo, mas primeiro observou o grupo de cavalos baios, todos magnificamente parecidos, com que o conde chegara à Mansão.

- É raro ver quatro cavalos tão semelhantes - disse ela, ao inspeccioná- los.

- O moço de estrebaria do senhor conde disse-me que os cavalos com que eles saíram de Londres são tão excepcionais que o senhor conde se recusou a vendê-los pelo dobro e até pelo triplo do seu valor.

- Quem é que não prefere cavalos a dinheiro? - disse Demelza, a rir.

Ao mesmo tempo, pensou que a Gerard calhavam bem as duas coisas, e compreendia como seria frustrante para ele estar com amigos que tinham tanto, enquanto ele só tinha um cavalo e precisava de contar todos os tostões.

Conversou longamente com Abbot sobre as corridas do dia seguinte e depois voltou a correr para casa, não fosse um dos moços de estrebaria do conde voltar cedo da charneca.

Não era tão tarde como ela pensava, e quando começou a subir as escadas secretas passou pelo lance que dava para a sala de jantar e ouviu risos.

Sabia que não conseguiria resistir a olhar outra vez para o conde e saiu para a galeria dos menestréis, que dava para uma das extremidades da grande sala de jantar, em tempos refeitório dos monges.

A galeria dos menestréis fora acrescentada depois da Restauração, quando, após o regresso do Alegre Monarca, Garlos II, todos queriam dançar e divertir-se.

Fora esculpida elaboradamente pelos grandes artesãos da época, e seria impossível a qualquer pessoa sentada lá em baixo, à mesa do jantar, saber que estava alguém escondido atrás.

Espreitando através do anteparo, Demelza viu que, por ser o anfitrião da festa, o conde estava à ponta da mesa, na cadeira que sempre fora ocupada pelo pai dela.

De costas altas e forrada a veludo, parecia um fundo adequado para o homem que estava agora lá sentado.

Nunca imaginou que um cavalheiro pudesse parecer tão magnífico nem tão elegante em trajo de noite.

Sempre admirara o seu pai quando este se vestia para uma ocasião formal, mas na sua opinião o conde sobressairia até numa festa real no Castelo de Windsor.

Quando olhou para ele, o conde estava a rir-se, e por um instante isto fê-lo parecer mais novo e suavizou as rugas cínicas que eram geralmente tão proeminentes no seu rosto.

Os criados já tinham saído da sala, e os cavalheiros falavam enquanto bebiam vinho do Porto. Alguns partiam nozes, que enchiam duas das travessas Crorn Derb que faziam parte dos objectos mais estimados pela sua mãe.

Raramente eram usadas, e Demelza pensou que devia dizer a Nattie para lembrar aos empregados do conde que tivessem um cuidado especial com elas.

Os candelabros que haviam pertencido ao avô tinham sido tirados do cofre e iluminavam a mesa, mas nem os enormes pêssegos de estufa nem os grandes cachos de uvas moscatel provinham, certamente, do que restava das estufas partidas.

Demelza estava menos preocupada com o que os cavalheiros comiam do que com o homem sentado à cabeceira da mesa.

Teve dificuldade em desviar os olhos dele. De início, a conversa era apenas um amontoado de palavras que ela não escutou, até que, com um pequeno sobressalto, ouviu o conde perguntar:

- Há fantasmas nesta casa, Gerard?

- Dezenas deles! - respondeu o irmão -, mas eu nunca vi nenhum.

- Quem são? - insistiu o conde.

- Há um monge que parece que se enforcou para expiar os seus pecados - respondeu Gerard. - Uma criança que foi queimada viva com os pais pela Inquisição da rainha Maria e, é claro, a Dama de Branco.

- A Dama de Branco? - perguntou o conde bruscamente.

- sem dúvida nenhuma, segundo a lenda e as superstições locais, o nosso fantasma mais famoso - disse Gerard, sorrindo.

- Conte-nos mais coisas sobre isso.

Gerard contou a história da Dama de Branco, à procura do seu amante perdido, e Demelza, ao ver o conde escutando atentamente, teve a certeza de que ele a vira, de facto, na galeria comprida, pois só isso explicava o seu interesse.

Perguntou-se se ele confessaria tê-la visto, mas quando Gerard acabou a história, o conde limitou-se a perguntar:

- Para aqueles que a vêem, a Dama de Branco significa boa sorte ou azar?

- Significa que aqueles que a virem - interrompeu Lord Ramsgill, antes de Gerard poder responder - procurarão eternamente um amor que sempre lhes fugirá.

Lord Ramsgill riu-se:

- Isso é uma coisa que nunca acontecerá contigo, Valient.

- Só te faria bem seres o caçador em vez de seres a presa, para variar! - interveio o Honourable Ralph Mears.

- Tão improvável como o Crusader não ganhar a Taça de Ouro - comentou Lord Ramsgill.

- Suponho que todos apostaram nele? - perguntou o conde.

- Claro que sim! - disse Lord Ghirn. - Apesar de termos feito umas apostas muito miseráveis. O problema, Valient, é que os corretores de apostas têm medo do teu sucesso inaudito e não estão muito ansiosos por aceitar as apostas nele.

Olhando à volta da mesa, Demelza reparou que Sir Francis Wigdon falava muito pouco.

Tinha o hábito de espetar o lábio inferior, o que lhe dava uma expressão sinistra e um tanto sardónica.

Não gosto dele!, pensou ela de novo. "Tem qualquer coisa de desagradável".

Pensou que ele contrastava com os outros convidados do conde, que pareciam ser pessoas decentes e de espírito desportivo, tal como os amigos do seu pai.

Sentiu-se segura de que Gerard não correria perigo com nenhum deles, excepto talvez Sir Francis.

Não percebia porque lhe ganhara uma tal antipatia, mas, talvez por passar muito tempo sozinha, era muito perspicaz em relação às pessoas.

Era como se sentisse a aura que emanava delas e, por vezes, quase soubesse o que estavam a pensar.

"Tenho a certeza", disse consigo, "que embora Sir Francis finja ser amigo do conde, tem ciúmes dele. Não é nada caloroso. "

Achou, então, que já era tempo de ir para a cama, e sabia que, assim que os criados se sentassem para jantar, Nattie levar-lhe-ia qualquer coisa para comer.

Com um último olhar para o conde, achando-o mais uma vez autoritário e imponente, atravessou o painel secreto e seguiu o seu caminho até ao alto da casa com a confiança de uma pessoa que se movimenta num local familiar.

Nattie já lá estava.

- Onde esteve, Miss Demelza? - perguntou ela, no tom de voz severo que sempre assumia quando estava assustada.

- Fui ver os cavalos, Nattie, e o Crusader é magnífico! O cavalo mais excepcional que alguma vez viste!

- Não tem nada que andar por aí às voltas depois do que o menino Gerard lhe disse.

- Não havia perigo - respondeu Demelza. - Só estava o Abbot na cavalariça. Toda a gente tinha ido para a charneca, e eu sabia que os senhores estavam a jantar.

- Quando eles estão em casa, tem de ficar aqui neste quarto, miss - disse Nattie com firmeza.

- Não te preocupes comigo, querida Nattie - disse Demelza, sorrindo -, e diz-me o que me trouxeste para o jantar, estou com uma fome terrível!

- Foi o que eu pensei, e consegui trazer-lhe um bocadinho de três dos variadíssimos pratos que eles tiveram para ojantar.

Demelza destapou as travessas de prata e soltou um grito de prazer.

-Que aspecto delicioso! Descobre como eles fazem isto, Nattie, para podermos tentar da próxima vez que o Gerard vier de visita.

- Foi exactamente isso que pensei - respondeu Nattie -, e agora é melhor eu ir andando.

- Não, espera e conversa comigo um bocadinho - pediu Demelza. - Estou ansiosa por ouvir tudo o que se passou. E assim escusas de voltar cá para buscar o tabuleiro.

Pela maneira como Nattie se instalou na cadeira de palhinha, Demelza viu que ela estava com muita vontade de falar.

- Tenho de confessar, Miss Demelza - começou Nattie -, que os criados do senhor conde são prestáveis e extremamente bem- educados.

Era o que seria de esperar", pensou Demelza. Enquanto comia, ouviu atentamente Nattie falar-lhe do senhor Hunt, o intendente, dos criados, que lhe tinham dito que a ajudariam a fazer as camas, e do cozinheiro, que estava com o conde havia muitos anos e que era, sem dúvida, um génio culinário.

- Só há um de que eu não gosto - continuou Nattie -, o senhor Hayes, o ajudante do mordomo.

- O ajudante do mordomo? - perguntou Demelza. - Queres dizer que há dois?

- Aparentemente, o velho mordomo, o senhor Dean, que já era do pai do senhor conde, sofre com o calor, e o intendente trouxe o ajudante. Mas há qualquer coisa nele de que eu não gosto, embora não perceba porquê. É bastante bem-educado.

Demelza pensou com um sorriso que Nattie tivera o mesmo instinto sobre o ajudante do mordomo que ela tivera sobre Sir

Francis Wigdon.

Sem dúvida que se alguém as ouvisse dizer estas coisas pensaria que elas estavam a ser sinistras porque viviam numa casa tão velha.

Transformamo-nos num par de bruxas, se não tivermos cuidado", pensou ela, mas em voz alta, disse:

- Suponho que faz o seu trabalho como deve ser e sabe os vinhos de que o senhor conde gosta.

- Garrafas não faltam! - exclamou Nattie. - A adega está quase cheia, acredite!

- O papá sempre disse que as corridas davam sede - afirmou Demelza, rindo - e eu e tu vamos ter sede amanhã, se o pó na charneca estiver tão mau como de costume.

- Estive a pensar, Miss Demelza, que pode ser um erro ir assistir às corridas... - começou Nattie.

- Não ir às corridas? - interrompeu Nattie. - Deves estar maluca, Nattie, claro que vamos! Sempre fomos, e podes crer que não há nada que me impeça este ano, que quero ver o Crusader a correr. E o Firebird, claro.

- Vai correr um risco... - murmurou Nattie.

- Porquê? - perguntou Demelza. - Vamos ficar na pista e toda a gente cá de casa estará no Recinto Real com o rei.

Isto era tão indiscutivelmente verdadeiro que Nattie não disse mais nada.

- Assim que os senhores saírem de casa e os criados acabarem de te ajudar a fazer as camas - disse Demelza -, vamos até às cavalariças.

Ouvia-se a excitação na sua voz à medida que continuava:

- O Abbot prometeu levar-nos no cabriolé e vai estacioná-lo bem atrás das cavalariças. No meio da multidão, digo-te que seria um milagre se alguém nos prestasse alguma atenção.

- Talvez tenha razão - admitiu Nattie, um tanto resmungona. - De manhã trago-lhe um vestido lavado, e agora vá imediatamente para a cama.

- É essa a minha intenção - respondeu Demelza. - Quero sonhar com o Crusader.

- Cavalos! Cavalos! Não pensa em mais nada! - disse Nattie. - Na sua idade já devia sonhar com outras coisas.

Demelza não respondeu!

Já ouvira tantas vezes estas palavras de Nattie que sabia que a sua velha ama lamentava profundamente o facto de não poderem receber em casa as pessoas que ela considerava "gente de bem,

Era quase impossível, vivendo sozinha na Mansão, sem uma dama de companhia, que Demelza conhecesse raparigas da sua idade ou fosse aos bailes que por vezes se davam nas casas de campo.

A maioria das grandes casas, na verdade, só estavam cheias durante a semana das corridas, ou quando se dava qualquer acontecimento importante no Castelo de Windsor.

Mesmo assim, se Lady Langston estivesse viva organizaria festas nas quais Demelza participaria.

Mas a mãe morrera quando ela tinha dezasseis anos e ainda estava a estudar, e, na altura em que Gerard partira para Londres, fora impossível para Demelza, sozinha, abrir a casa às pessoas que viviam à sua volta.

Na realidade, nem sabiam quem eram, visto muitas das casas terem mudado de dono desde o tempo em que o pai era vivo.

Para dizer a verdade, ela não queria mais nada senão viver sossegada na Mansão e montar os cavalos de Gerard.

Quando Gerard voltava para casa, nas alturas em que não tinha dinheiro para viver em Londres, ficava felicíssima por passear com ele a cavalo pela charneca e pela floresta, e ouvir ansiosamente as histórias da sua vida despreocupada no Beau Monde.

Por vezes, interrogava-se sobre o que aconteceria se Gerard se casasse.

Mas também sabia que, do ponto de vista financeiro, isso seria impossível neste momento, na realidade, em qualquer momento, a não ser que se casasse com uma mulher rica.

Reparou então na expressão de Nattie, e quando esta lhe deu as boas- noites, Demelza disse:

- Não te preocupes, Nattie, eu sou feliz. Bem sabes como sou feliz.

- Isto não é uma maneira natural de se viver, Miss Demelza, é tudo o que eu posso dizer! - disse Nattie com rispidez.

Sem esperar resposta, desceu as escadas e saiu pela primeira porta secreta que encontrou porque, conforme dizia: "Estas passagens secretas põem-me os cabelos em pé! "

A sós, Demelza riu-se carinhosamente porque gostava de Nattie, que trocava o seu coração e a sua alma pelos interesses dos seus "meninos".

Rapidamente, os seus pensamentos voltaram-se primeiro para o Crusader e depois para o seu dono.

Ajoelhada para as orações da noite, rezou para que o grande cavalo ganhasse, mas quando imaginava o cavalo, o conde estava junto dele e os dois pareciam inseparáveis.

No dia seguinte, a Mansão fervilhava de confusão e excitamento.

Era sempre a mesma coisa no primeiro dia das corridas. Todos estavam ansiosos por sair de casa e aparecia sempre uma dúzia de coisas esquecidas para fazer à última hora.

O conde e os convidados iam almoçar ao Jockey Club, ao passo que a charneca estaria coberta de gente de todas as classes a fazer piqueniques ao sol.

As carruagens que começaram a chegar desde manhã cedo tinham nos tejadilhos pilhas enormes de carne de veado, peixe e doçarias.

As tendas e barracas estavam cheias de comida e, devido ao calor, grandes pipas de cerveja de abeto já estavam a esvaziar-se desde manhã cedo.

Quando Demelza e Nattie chegaram à pista, o barulho era ensurdecedor, não só devido aos pequenos apostadores, aos apostadores profissionais e aos sinais que faziam entre eles, mas também aos artistas de circo.

No exterior de uma barraca de espectáculos, onde se podiam ver várias aberrações humanas, convidava-se o público a entrar por um penny.

Passaram pelo Boémio, que equilibrava rodas de carruagem no queixo, e viram uma série de mulheres que dançavam em andas com dois metros e meio de altura.

"Não só ganham a vida pondo em prática as suas habilidades", pensou Demelza, "mas também têm a vantagem de ver as corridas por cima das cabeças do resto das pessoas. "

Tinha especial interesse em ver a nova Tribuna Real, quando estivesse cheia de espectadores, sendo o mais importante, claro, o rei.

Fora começada em Maio e tinham-na acabado apenas na semana anterior, mesmo a tempo para as corridas.

O rei contratara como arquitecto o famoso John Nash, responsável pelas obras de beneficiação no Palácio de Buckingham  o plano de Regent Street e os chamados Terraços Nash, no Regent's Park.

A Tribuna Real fora construída no lado imediatamente oposto à meta, a imitar um pórtico grego, com pilastras caneladas a suportar a cobertura.

Era constituída por dois andares, sendo o superior apenas usado pelo rei. Durante a sua construção, Demelza visitara-a e vira que tinha sido dividida em duas salas que, no último momento, foram enfeitadas com cortinas de musselina branca. Naquele dia, ter-lhe-ia sido impossível entrar, pois à volta da Tribuna Real havia um pequeno recinto guardado por agentes da Polícia e guardas, e só eram admitidas as pessoas convidadas pelo rei.

Em ambos os lados da Tribuna Real havia outras nove tribu nas de vários tamanhos e pareciam já estar a abarrotar. Demelza e Nattie observaram-nas com interesse enquanto avançavam pelo outro lado da pista.

- Acho que é melhor ficarmos aqui, miss - disse Abbot, fazendo parar o cabriolé atrás de uma série de outras carruagens coches e carroças.

- Também acho - disse Nattie, antes de Demelza ter tempo de falar. - Se atravessarmos para o lado de lá, não podemos sair depressa, e é importante que nos vamos embora antes da última corrida.

Demelza sabia que Nattie estava preocupada em chegar a casa antes do conde e dos convidados.

Por isso aceitou que ficassem onde estavam, embora soubesse que não poderia ver a colocação das selas, coisa que sempre lhe interessara tanto.

Assim que tomaram os seus lugares, ouviram-se aplausos do outro lado da pista, anunciando a chegada do rei.

Abbot ouvira no princípio da semana que o rei talvez não pudesse comparecer, pois estava com um grave e perigoso ataque de gota".

No entanto, não havia dúvida de que ele chegara, mas não percorreu a pista, como o seu pai sempre fazia. Em vez disso, avançou por trás das barracas.

Demelza ouviu os aplausos que chegavam à Tribuna Real. Depois o rei apareceu àjanela e todos os cavalheiros no recinto inferior tiraram o chapéu.

Ficou por alguns instantes a receber os cumprimentos, que não eram muito efusivos, e Demelza via que ele trajava o uniforme de Windsor, com um único diamante em estrela no peito.

Perguntou-se se o conde estaria com ele.

Nattie, que desde sempre mostrara um grande interesse pela comitiva real, reconheceu o duque de Iorque e o duque de Wellington.

- Quem é a senhora ao lado do rei? - perguntou Demelza.

- Lady Conyngham - respondeu Nattie num tom de voz reprimido que indicou a Demelza que não gostava dela.

Assim que o rei chegou, começou a primeira corrida, depois da qual a sessão foi interrompida por uma hora, para o almoço.

Nattie tirou as sanduíches, mas Demelza olhou com um ar desejoso para os magníficos piqueniques expostos nas carruagens e na relva.

Estava muito calor, mas os aplausos que se elevaram quando o Trance ganhou a corrida de Grafton, como era de esperar, foram estrondosos e desinibidos.

- Lá se vão trezentos guinéus para o bolso de Sua Alteza Real - comentou Abbot.

Ele dissera antes a Demelza que o duque de Iorque apostara no Trance nesta corrida, contra um cavalo chamado The Duke.

Abbot deixara Demelza e Nattie sozinhas no cabriolé por momentos, antes da corrida, e Demelza tinha a certeza de que também ele apostara no Trance.

Depois de um dos cavalos do conde ter ganho a terceira corrida do dia, Nattie insistiu que se fossem embora, apesar de Demelza desejar ficar para ver a quarta e última corrida.

Tentou protestar, mas Nattie disse com firmeza:

- Cinco dias de corridas é suficiente para qualquer pessoa, e não vamos correr riscos. Venha daí, Miss Demelza, tenho trabalho para fazer em casa, como bem sabe.

Visto mais ninguém se ir embora tão cedo e as estradas estarem desimpedidas, chegaram à Mansão muito antes do que esperavam.

- Obrigada, Abbot - disse Demelza, ao entrarem no pátio.

- Foi emocionante, e adorei cada minuto!

- Vamos ver corridas muito boas amanhã e na quinta-feira

- respondeu Abbot. - Macacos me mordam se o Moses não ganha a corrida de Albany.

- De certeza que vai ganhar - disse Demelza, sorrindo. Depois Nattie apressou-a a dar a volta à casa e entrar pela

porta do jardim.

No corredor, abriu a porta secreta, enquanto que Nattie se dirigiu para a zona de serviço.

Fora tudo muito emocionante, pensou Demelza, ao subir as escadas estreitas, mas sentia calor devido ao sol escaldante e parou um momento para tirar a touca.

Ao fazer isto, para sua surpresa, ouviu uma voz de mulher a dizer:

- Visto o senhor conde não estar em casa, vou deixar-lhe um recado.

- Claro, M'Lady, tem aqui uma secretária - respondeu um criado.

Admirada por alguém esperar que o conde estivesse em casa àquelas horas da tarde, antes de as corridas terem terminado, Demelza avançou alguns passos para poder espreitar para a sala de estar através da vigia.

Demelza viu, a entrar na sala vinda do vestíbulo, a mulher mais linda que alguma vez encontrara em toda a sua vida.

Vestida com um fato azul-pervinca que condizia maravilhosamente com a cor dos seus olhos, o cabelo dourado apanhado por um chapéu alto coberto de penas de avestruz azuis, era de cortar a respiração.

Tinha diamantes à volta do pescoço e sobre as luvas curtas que lhe cobriam os pulsos.

Movia-se com uma graça sinuosa que deu a impressão a Demelza de ter algo de quase felino.

Chegou ao centro da sala, onde Demelza a podia ver  claramente. Depois, assim que o criado que a seguia fechou a porta, virou-se para dizer num tom de voz diferente:

- Tens alguma coisa a comunicar-me, Hayes?

Demelza lembrou-se de que Hayes era o ajudante do mordomo de quem Nattie falara.

- Não, M'Lady, só chegámos ontem e só há cavalheiros cá em casa. Não há nenhuma senhora.

- Não vivem cá em casa?

- Não, M'Lady. Só uma ama velha e outra criada.

- Lady Plymworth não veio cá?

- Não, M'Lady.

A distinta visitante ficou de pé por um momento, com um dedo enluvado contra o queixo, como se estivesse a pensar, e disse:

- O senhor conde janta fora esta noite?

- Penso que sim, M'Lady.

- Com Lord Dysart?

- O criado de quarto do senhor conde mencionou esse nome, M'Lady.

- Foi o que eu pensei... - murmurou a visitante, quase entre dentes.

Depois disse para o ajudante do mordomo num tom de voz autoritário:

- Ouve-me com muita atenção, Hayes. O senhor conde toma sempre um copo de vinho quando se está a vestir para o jantar. Quero que tu próprio vertas o vinho para dentro da garrafa de cristal e ponhas lá dentro o conteúdo disto, antes de a levares ao quarto dele.

Ao falar, tirou da bolsinha uma pequena garrafa com cerca de oito centímetros de altura e estendeu-a ao criado.

Este hesitou.

- Eu não queria, M'Lady, fazer nada que...

- Não vai fazer-lhe grande mal, idiota! - disse a senhora, com firmeza. - Vai apenas impedir o senhor conde de ir à festa esta noite e certamente terá uma dor de cabeça na manhã seguinte.

Olhou para a expressão no rosto de Hayes e riu-se.

- Não te preocupes. Não vais ser enforcado, prometo-te.

- Te... tenho medo, M'Lady! Imagine que outra pessoa bebe o vinho?

- Se assim for, quem sofre és tu! - ripostou a senhora, incisiva. - Arranjei-te este lugar, e paguei-te bem. Podes esperar ser ainda recompensado se o que fizeres for bem sucedido.

- Obrigado, M'Lady. É só que eu gosto do lugar e não quero deixá- lo.

- Deixá-lo-ás quando eu bem entender! - respondeu a senhora. - Percebeste exactamente o que tens a fazer?

- Sim, M'Lady.

- Então faz o que te mandei.

- Vou fazer o melhor que posso, M'Lady.

- É melhor que assim seja!

A visitante avançou em direcção à porta e, quando Hayes a abriu, disse:

- Pensando melhor, como talvez veja o senhor conde esta noite, não vou deixar-lhe recado. O que tenho para lhe dizer será surpresa; por favor, não lhe diga que eu estive aqui.

Demelza percebeu que aquelas palavras eram destinadas aos ouvidos dos criados de serviço que estavam no vestíbulo.

A senhora saiu da sala e Hayes seguiu-a, deixando a porta aberta atrás de si.

Demelza esperou.

Após um breve instante, ouviu o ruído de rodas e percebeu que uma carruagem se afastava da porta principal.

Respirou com dificuldade, apercebendo-se de que contivera a respiração durante a maior parte do tempo em que estivera à escuta.

Como era possível? Como podia uma senhora tão bonita querer prejudicar o conde? E, para o fazer, conspirava com um dos seus próprios criados contra ele.

Aturdida e desorientada, Demelza subiu as escadas até ao Aposento dos Padres e sentou-se na cama para pensar.

Não era nada de novo, recordou ela, as mulheres usarem drogas ou medicamentos para fazer mal a alguém de quem não gostavam ou que... amavam.

Demelza apercebeu-se de que essa era a razão por que a lindíssima senhora que viera à Mansão desejava impedir o conde de jantar naquela noite com Lord Dysart - amava-o.

Era por isso que tinha ciúmes de Lady Plymworth, a quem se referira.

Mas drogar o conde! Isso era levar o ciúme ao extremo! Demelza lembrava-se de ouvir o pai, anos atrás, discutir o comportamento de Lady Jersey, quando a princesa Carolina casara com o príncipe de Gales.

Lady Jersey, que, segundo parece, estava apaixonada pelo príncipe, fora uma das pessoas a quem mandara receber a sua noiva quando esta chegasse a Inglaterra.

Mais tarde, toda a gente soube que Lady Jersey pusera um vomitório forte na comida da princesa para estragar a noite de núpcias.

Embora Demelza não tivesse ainda nascido na altura em que isso acontecera, sempre sentiu que se tratava daquilo a que Gerard chamaria um golpe sujo". Na realidade, ela própria achava que era desprezível e indigno de qualquer mulher que se considerasse uma senhora rebaixar-se a semelhante estratégia.

E no entanto aqui estava uma pessoa, tão bela que qualquer homem que a visse deveria ficar enfeitiçado pelo seu lindo rosto, a comportar-se do mesmo modo em relação ao conde.

Demelza sentiu que não aguentava imaginar o conde a sofrer ou deitado inconsciente na cama.

Ele era tão forte, tão atlético e, como Gerard dissera, o coríntio dos coríntios", que seria como assistir à queda de um grande carvalho, imaginá-lo prostrado devido às mãos traiçoeiras de uma mulher.

Além disso, ela dissera que talvez lhe causasse uma dor de cabeça na manhã seguinte.

E se ele estivesse tão doente ao ponto de não poder ver Moses correr? Ou, mais importante ainda, o seu próprio cavalo, que ele inscrevera noutra corrida?

Isso não pode acontecer, disse Demelza para si própria.

Tenho de fazer qualquer coisa! Tem de ser!

A sua primeira ideia foi contar a Gerard, mas isto apresentaria uma série de dificuldades.

Primeiro, porque o quarto de Gerard era um dos poucos na casa que não tinha uma entrada secreta.

Isto porque um dos donos anteriores da Mansão retirara os painéis de madeira de carvalho e os substituíra por papel de parede, um papel-de-arroz muito bonito, que trouxera da China.

Era decorativo, mas também impedia Demelza de chegar ao quarto do irmão, a não ser que entrasse pelo corredor, o que seria impensável.

Além disso, tinha a sensação de que Gerard não quereria ver-se envolvido em semelhante situação explosiva, centrada numa bela senhora que amava o conde e que subornara um dos criados.

- Não, não posso contar ao Gerard - decidiu Demelza. Mas que mais podia fazer?

Ficou sentada a pensar durante muito tempo e, finalmente, tomou uma decisão.

O conde voltou das corridas com uma excelente disposição.

Desfrutara de um óptimo almoço com os outros membros do Jockey club e o rei confiara-lhe a colocação das suas apostas.

Ao fim do dia teve de entregar a Sua Majestade uma soma considerável, e ele próprio apostara em três vencedores sobre quatro, o que era sem dúvida uma boa percentagem.

Também lhe apetecia bastante ir ao jantar, onde veria Charis Plymworth outra vez.

Encontraram-se na Tribuna Real, e ela dera-lhe a entender muito claramente que estava tão ansiosa como ele por se verem de novo.

Estava extremamente bonita e a curva dos seus olhos verdes intrigou-o tanto como o sorriso de esfinge que lhe arqueava os lábios vermelhos.

Enquanto falava com Charis, estava consciente de ser observado por Sydel, mas era difícil para ela fazer uma cena na presença do rei, como o conde sabia que lhe apetecia.

- As mulheres ciumentas são uma maçada! - disse ele a Lord Ghirn, ao dirigirem-se para casa.

- Todas as mulheres são ciumentas! - respondeu-lhe o amigo. - Mas umas mais do que outras!

O conde não disse nada, e Lord Ghirn continuou:

- Tem cuidado com a Sydel Blackford! Correm rumores de que ela faz magia negra e murmura encantamentos sobre um galispo morto, ou lá o que é que eles fazem!

O conde riu-se.

- É possível que isso acontecesse na Idade Média, mas não acredito que alguma mulher fosse tão longe hoje em dia.

Lord Ghirn sorriu. Sentiu que não valia a pena contar ao conde que tivera uma relação curta, mas explosiva, com Lady Sydel, e que sabia bem do que ela era capaz para conseguir os seus fins.

Pensava, como muitos amigos do conde, que era uma pena ele não assentar e formar uma família.

A maioria dos homens querem um herdeiro, e o conde tinha tantos bens que parecia um crime contra a Natureza não ter um filho que os herdasse.

Fosse o que fosse que Lord Ghirn pensava, não estava, no entanto, disposto a exprimir os seus sentimentos em voz alta, e ao chegarem à Mansão já estavam a falar sobre as corridas.

Havia champanhe e sanduíches à espera, na sala de estar, mas o conde já tinha bebido o suficiente na Tribuna Real. Depois de conversar um pouco com os amigos, subiu ao quarto para se vestir.

Ele sabia que Dawson, o seu criado de quarto, já teria o banho preparado. Apetecia-lhe refrescar-se depois do calor do dia e livrar-se do pó, que, tal como ele previra, estava pior do que o costume devido ao tempo seco que havia dias se fazia sentir.

O criado de quarto ajudou-o a despir o casaco justo e de bom corte que fora a inveja do rei.

- Não percebo por que razão o Weston corta tão bem para si e tão mal para mim! - resmungara ele.

O conde sabia que a verdadeira resposta era que o rei tinha engordado de tal modo nos últimos anos que era impossível a qualquer alfaiate dar-lhe a figura elegante pela qual ele ansiava. Mas, em voz alta, disse:

- Acho que o vosso uniforme vos fica admiravelmente, Sire. Sua Majestade sorrira e ajeitara a roupa.

- Foi um bom dia nas corridas, Dawson - comentou o conde ao desapertar a gravata.

- Excelente, senhor conde!

O conde atirou a gravata para o toucador e ao fazê-lo reparou numa mensagem muito pequena apoiada nas escovas de cabo dourado.

Era-lhe dirigida e tinha escrito Urgente! numa letra que ele não conhecia.

- Quem deixou isto aqui, Dawson? - inquiriu. O criado de quarto virou-se para ver o que ele tinha na mão.

- Não faço ideia, senhor conde, não tinha visto.

- Estava aqui, no meu toucador!

- Ninguém trouxe isso enquanto aqui estive, senhor conde. O conde abriu a mensagem.

Continha apenas algumas linhas escritas com a mesma letra elegante mas desconhecida.

Não beba o vinho que lhe trouxerem quando estiver a vestir-se para o jantar. Vai fazer-lhe mal "

O conde ficou a olhar para o que tinha lido e, entretanto, alguém bateu à porta.

Dawson foi abrir.

Voltou trazendo uma salva com uma garrafa de cristal lapidado e um copo.

- Vai tomar o vinho antes ou depois do banho? - perguntou.

O conde olhou para o vinho.

- Quero falar com o Hunt - disse ele. - Antes de vir cá acima, pede-lhe que descubra quem veio aqui hoje e quem deixou um recado para mim.

Dawson pareceu surpreendido mas, pousando a salva de prata, saiu obedientemente do quarto.

O conde pegou na garrafa e cheirou o vinho. Não parecia ter nada de invulgar. Pensou que talvez a mensagem fosse uma brincadeira, uma partida que algum dos amigos lhe pregara.

Mas tinha a certeza de que a letra não era de ninguém que estivesse lá em cima.

Estava quase seguro de que fora escrito por uma mulher. Teve a percepção de um aroma subtil, no qual já tinha reparado antes.

Aproximou o papel do nariz e sentiu que cheirava muito levemente a uma flor que ele não conseguia identificar.

Agora, dava-lhe a sensação de que sentira o mesmo perfume no quarto e noutras partes da casa.

Pensara que vinha das taças e jarras de flores dispostas em todos os quartos, mas no seu quarto só havia rosas, e o papel não cheirava a rosas.

Era tudo bastante intrigante e pensou que fazia parte do mistério do qual a própria casa era um bom exemplo.

Bateram à porta, e o intendente apareceu.

- Mandou-me chamar, senhor conde?

- Quero saber quem veio cá a casa hoje, e quem deixou um recado para mim.

- Disseram-me, senhor conde, que Lady Sydel Blackford esteve aqui hoje ao fim da tarde, mas ela pediu que não se dissesse que tinha estado aqui, e eu não soube de nada até fazer as minhas averiguações há poucos momentos.

Lady Sydel Blackford!

- E deixou-me algum recado?

- Não, senhor conde. Ela disse expressamente que não deixava recado porque tinha uma surpresa para o senhor conde esta noite, e não a queria estragar.

- Parece-me incrível que não te tenham informado da sua

visita, Hunt.

- Foi mera incompetência, senhor conde, e eu já falei com o

Hayes.

- O ajudante do mordomo?

- Sim, senhor conde. Segundo parece, foi o Hayes quem

deixou entrar a senhora.

- E quem é que deitou o vinho na garrafa que me trouxeram esta noite?

O intendente pareceu surpreendido, mas respondeu:

- Não faço ideia, senhor conde, mas vou indagar.

- Acho bem - disse o conde, com rispidez.

Houve outro momento de espera. O conde despiu-se e tomou

banho, deliciando-se com a água quente. Pediu a Dawson que

lhe despejasse por cima a última bacia antes de sair da água, e envolveu-se numa toalha.

Ainda estava a secar-se quando o intendente voltou.

- Peço desculpa, senhor conde, por ter demorado tanto tempo - disse ele -, mas tive alguma dificuldade em descobrir

que foi o Hayes quem encheu a garrafa em questão e que ele

também a trouxe para cima. Depois entregou a salva ao Robert, que está ao serviço neste piso, que a trouxe para este

quarto e a entregou.

- O que sabes sobre o Hayes? - perguntou o conde.

- Veio com referências excelentes, depois de o senhor conde pensar que o Dean não aguentaria tantas festas durante esta época.

- Quais foram as referências que te deu?

- Duas, senhor conde. Uma do duque de Newcastle, que foi

excelente, e a segunda de Lady Sydel Blackford.

A expressão no rosto do conde era a de um caçador que con    segue apanhar o veado já na mira da espingarda.

- Lady Sydel Blackford! - exclamou ele. - E foi ela quem falou com o Hayes esta tarde! Mandem-me o homem cá acima dentro de cinco minutos!

Não foi dificil ao conde arrancar a Hayes toda a informação que queria.

Depois mandou chamar o intendente e ordenou-lhe que despedisse o ajudante do mordomo imediatamente e sem dar referências.

Vestido com o seu traje de cerimónia, tão magnificamente elegante como Demelza o achara na noite anterior, o conde dirigiu-se para casa de Lord Dysart com uma sensação de triunfo.

Achara o culpado e, no futuro, teria o cuidado de não deixar ninguém recomendado por Sydel Blackford passar o limiar de qualquer casa sua.

Mas mantivera-se uma questão por resolver.

Quem escrevera a mensagem a avisá-lo? Quem a pusera no seu toucador? E quem usava o perfume torturante que ele ainda não identificara?

Deu consigo a meditar sobre a resposta a estas três questões durante toda a noite.

Como consequência, achou a expressão enigmática dos olhos de Charis Plymworth menos misteriosa e intrigante do que esperara.

 

CAPÍTULO QUARTO

Ao regressar das corridas na quarta-feira, Demelza pensava que fora um dos dias mais emocionantes da sua vida.

Não só vira os mais soberbos cavalos mas também se sentia emocionada, de um modo inédito para ela, por ter conseguido salvar o conde.

Podia distingui-lo no pequeno recinto à volta da Tribuna Real e de vez em quando via-o à janela, ao lado do rei.

Observou-o no recinto onde selavam os cavalos depois de ter convencido Nattie, muito contra a vontade desta, a atravessar a pista com ela.

- O que dirá o menino Gerard? - perguntou Nattie.

- Se ele reparar em nós, o que é muito pouco provável, compreenderá que eu não podia deixar de ver os cavalos de perto.

Queria observar, especialmente, um cavalo chamado Cardenio competir com o Trance, do senhor Green.

Também sabia que um e outro eram favoritos em relação ao potro que o duque de Iorque inscrevera para a sua corrida de cinquenta libras.

Foi uma corrida de quatro mil metros e ganhou-a um poldro de Sua Alteza, um baio de três anos, filho do Election e de uma égua Sorcerer.

Boyce, um principiante que Abbot apontara como futuro jóquei famoso, montou-o extremamente bem.

Quando acabou a excitação, realizou-se a corrida de Albany, onde mais uma vez o duque de Iorque ganhou com o seu vencedor do Derby, Moses.

Moses fora criado por ele e era baio. Mas embora se tratasse de um animal soberbo, e Demelza estivesse ansiosa por o ver, decidiu que ele não estava de facto à altura do Crusader.

Ela tinha a certeza de que o conde estava a ganhar as apostas e quando o viu a falar com Gerard esperou que o irmão tirasse partido da sabedoria superior do conde em relação às corridas, antes de gastar o seu precioso dinheiro com os corretores.

Nattie levou-a para o fundo do recinto onde selavam os cavalos, o mais longe possível dos observadores que se amontoavam na outra ponta, mais perto das cavalariças.

Os cavalheiros da comitiva do rei estavam extremamente elegantes e levavam os chapéus altos inclinados sobre a orelha, como era moda.

Mas Demelza achou que nenhum deles tinha a elegância do conde, nem o seu ar importante, que parecia fazer parte dele.

Mais uma vez, Nattie insistiu que se fossem embora imediatamente depois da terceira corrida, e embora Demelza desejasse pedir para ficar um pouco mais, sabia que não era prudente arriscar-se mais.

Não falara com Gerard desde que o conde e os convidados tinham chegado à mansão, e sabia que o irmão estava a agir propositadamente como se pensasse que ela não estava em casa.

Não pôde evitar perguntar-se o motivo para tanta complicação, pois os convidados do conde portavam-se de modo perfeitamente decente.

Ninguém bebia em demasia, ao contrário do que tinham dito a Demelza ser tradicional entre os galãs de Saint James.

Além disso, não havia festas desordeiras, que, segundo ouvira dizer, aconteciam invariavelmente na maioria das outras casas, na semana das corridas.

Na noite anterior, o conde fora jantar fora, mas esta noite ia jantar em casa, e Demelza perguntou-se se entre os seus convidados se encontrariam algumas belas senhoras.

De uma coisa tinha ele a certeza, a senhora que mandara o ajudante do mordomo drogar o vinho do conde não estaria presente.

Nattie dissera-lhe que Hayes tinha deixado a casa na noite anterior, desacreditado.

- Salvei-o! - disse Demelza para si própria, em tom triunfante.

Perguntou-se se o conde estaria curioso quanto a quem teria escrito a mensagem. Ele nunca saberia, e achou que isto era um tanto desencorajante.

Chegaram à Mansão e Demelza entrou como de costume pela porta do jardim, para não ser vista por nenhum dos criados do conde que estivessem de serviço.

Ao subir pelas escadas secretas, não resistiu a espreitar para dentro dos quartos, para ver se as flores que arranjara logo de manhã enquanto estavam todos a dormir continuavam bonitas.

Apanhara-as no seu próprio jardim, que, rodeado por muros isabelinos de tijolo vermelho, não se via de nenhuma das janelas da casa.

Fora aqui que a mãe plantara um jardim de ervas medicinais, e Demelza esforçava-se imenso por cultivar as mesmas ervas, além das flores de que mais gostava.

Entre estas, encontravam-se as rosas que ela punha sempre no quarto do pai.

Subindo por um pequeno caramanchão ao fundo do jardim, havia uma profusão de flores de madressilva misturadas com rosas brancas de cheiro doce, que eram as favoritas da sua mãe.

Porque pensava que o conde talvez as apreciasse, as jarras de rosas na sala de estar eram maiores do que o costume, e quase não havia aparador que não tivesse uma.

Também mudara as rosas no quarto dele e achou que formavam uma mancha de cor perfeita contra os painéis escuros.

Depois pensou que o conde possuiria certamente tantos tesouros inestimáveis que não se podia esperar que ele se preocupasse com flores.

Mesmo assim, não se poupou a esforços no arranjo das flores sobre a secretária da biblioteca, onde, segundo ela se apercebera, ele escrevia as suas cartas e por vezes se sentava sozinho logo de manhã.

Ela sabia bem que seria errado e deselegante espiá-lo, por isso limitava-se deliberadamente a observá-lo na sala de jantar e, é claro, na pista das corridas.

Aí, ela não sentia que estava a intrometer-se, e era dificil desviar os olhos dele para observar os cavalos.

Não parava de se perguntar por que razão Gerard lhe dissera que o conde era tão mau no que dizia respeito a mulheres. Talvez por ele ser tão bonito, elas tinham comportamentos como o da senhora que o tentara drogar.

Queria saber se ele a teria amado muito e deu consigo a imaginar o que aconteceria quando um homem como o conde fazia a corte a uma pessoa tão bela.

Beijar-se-iam, certamente, e Demelza não podia deixar de pensar que isso seria uma experiência maravilhosa. Mas ela, no entanto, talvez nunca fosse beijada.

Nattie estava sempre a resmungar que ela devia conhecer "as pessoas certas", e Demelza sabia muito bem que ela se referia aos solteiros aceitáveis entre os quais pudesse escolher um marido.

"Talvez nunca me case", disse ela para si própria, e mais uma vez pensou como seria terrível para o conde ter uma mulher louca.

Quase lhe causava uma dor no coração pensar no que ele devia ter sofrido e rezava para que tal tragédia nunca acontecesse a Gerard.

Ao subir as escadas em caracol até ao Aposento dos Padres, Demelza decidiu deitar-se na cama a ler um dos livros que levara consigo para o esconderijo.

O quarto era tão bem construído que tinha, na realidade, bastante luz, embora as janelas de frincha estivessem muito perto do tecto baixo, escondidas sob os beirais da casa.

Demelza limpara-as, e a luz no quarto era difusa e dava-lhe um ar de frescura depois do calor do sol nas corridas.

Pegou no livro, mas achou dificil concentrar-se noutra coisa que não fosse as corridas - e o conde.

Na sua opinião, ele era tudo o que ela sempre imaginara que um homem devia ser: desportivo, gostando de cavalos e, sem dúvida, um excelente cavaleiro.

Ele parecia encarnar na perfeição todos os seus sonhos de infância: São Jorge, Sir Galahad e os heróis dos romances de Sir Walter Scott, livros que o pai lhe comprava sempre que eram publicados.

- Nessa altura - murmurou ela - nunca pensei chegar a ver o herói desses livros na vida real!

Demelza devia ter adormecido porque, quando acordou sobressaltada, descobriu que havia muito pouca luz no quarto, o que a fez pensar que o Sol já se tinha posto.

Nessa altura ouviu Nattie a subir desajeitadamente as escadas com o jantar.

Demelza sentou-se na cama.

- Estive a dormir, Nattie - disse ela. - Que horas são?

- Quase dez da noite - respondeu Nattie - e os criados já estão a comer.

Demelza quase exprimiu em voz alta a sua desilusão. Naquela noite, tencionava ver o conde na sala de jantar. Agora seria tarde de mais, e quando ela acabasse de comer de certeza que eles já teriam ido para a sala de estar.

- Esta noite houve uma festa - disse Nattie, quase como se soubesse o que Demelza estava a pensar.

- Estava presente alguma senhora?

- Não, só cavalheiros. Suponho que só falaram sobre corridas. Ninguém pensa noutra coisa nesta casa!

- E ninguém vai falar de outra coisa amanhã - disse Demelza com um sorriso -, quando o Crusader ganhar a Taça de Ouro.

- Se ganhar! - disse Nattie, com brusquidão.

- E vai ganhar! - respondeu Demelza. - Como pode o melhor cavalo não ganhar a melhor corrida?

A Taça de Ouro de Ascot fora introduzida em 1807. A primeira havia sido uma corrida de três mil e duzentos metros, mas aumentaram-na para quatro mil no ano seguinte.

Disseram a Demelza que a rainha e as princesas tinham assistido à corrida num pavilhão especial construído junto à curva da pista. No lado oposto à tribuna do júri, fora construída outra tribuna para o príncipe de Gales.

- Nattie, lembras-te da primeira corrida para a Taça de Ouro? - perguntou Demelza.

- Claro que me lembro! - respondeu Nattie. - A rainha e as princesas traziam mantilhas à espanhola, com chapéus a que eu chamaria chapéus à cigana.

Demelza riu-se.

Sempre arreliara Nattie a propósito do seu interesse pela família real.

- E quem ganhou a corrida? - perguntou Demelza. - Isso é muito mais importante!

Após um silêncio, Nattie disse:

-Quer acredite quer não, Miss Demelza, fugiu-me da memória!

Demelza riu-se de novo.

- Estavas a olhar para a rainha em vez de olhares para o Master, jacke

- Talvez achasse Sua Majestade mais interessante... - retorquiu Nattie com um ar quase provocador.

- Bom, amanhã podes esquecer o rei, e concentrares-te no Crusader! - disse Demelza. - Não me parece que o prémio de cem guinéus tenha alguma importância para o conde. Será a honra e a glória que contarão.

Lembrava-se de como todos os anos os proprietários e os jóqueis se esforçavam por ganhar aquilo que originalmente se chamava Taça do Imperador, porque, além do prémio em dinheiro, havia uma taça oferecida pelo czar da Rússia, Nicolau I.

O pai de Demelza sempre se interessara mais pela Taça de Ouro do que por qualquer outra corrida e incutira-lhe o seu entusiasmo.

No entanto, Nattie ainda estava a pensar nas figuras da realeza que vira no passado e contava que o rei Jorge III e a sua comitiva costumavam chegar montados a cavalo. Mas de repente, como se se lembrasse das horas, levantou-se para pegar no tabuleiro e disse:

- Agora vá para a cama, miss. Se não está cansada, devia estar.

- Estava cansada quando cheguei a casa - confessou De melza -, mas agora, como te disse, estive a dormir e sinto-me

bastante desperta.

- Não esforce os olhos a tentar ler pela noite dentro - aconselhou Nattie.

Nattie sempre achara que a luz das velas era demasiadamente fraca para ler, e Demelza ouvira-a dizer a mesma coisa, uma e outra vez, durante toda a sua vida.

- Boa noite, querida Nattie - disse ela -, e não te preocupes comigo. Lembra-te de que quero o meu melhor vestido

para amanhã.

Só podia ser outro vestido de musselina branca, mas era novo e, ao contrário dos outros vestidos de Demelza, era bordado com bonitas fitas que tanto ela como Nattie tinham considerado um gasto exorbitante quando as compraram.

A sós, Demelza despiu-se, vestiu a camisa de noite e por cima um robe também feito por Nattie. Fechava à volta do pescoço e tinha uma pequena gola assente, bordada com renda.

Escovou o cabelo até brilhar como a mãe lhe ensinara a fazer e, depois, ainda bem acordada, pegou num livro e tentou concentrar-se.

Antes de o fazer, acendeu duas velas, coisa que Nattie teria considerado, mesmo para não prejudicar os olhos, uma extravagância.

Depois, porque o livro começara a interessar-lhe, esqueceu-se de tudo até ouvir, surpreendida, o relógio da estrebaria dar a meia- noite.

Tudo tinha de ser guardado com cuidado naquele quarto, visto ser tão pequeno.

Depois, ao esticar os braços sobre a cabeça, combatendo as cãibras por estar parada tanto tempo, Demelza sentiu uma vontade repentina de respirar ar fresco.

Um dos defeitos do Aposento dos Padres era o facto de ser pouco arejado, e, pela primeira vez desde que ali dormia, Demelza sentiu-se abafada e oprimida.

"Vou lá abaixo para a porta do jardim", pensou. "Vou apanhar um pouco de ar e depois volto cá para cima. Nem a Nattie pode achar isso mal! "

Meteu os pés nas chinelas de cetim, sem salto, e começou a descer as escadas silenciosamente.

Desceu do andar de cima, chegou ao primeiro e estava prestes a continuar quando ouviu vozes no quarto vermelho.

Alguém falava com clareza, mas num tom de voz que parecia deliberadamente baixo e com algo de sinistro, como se as palavras saíssem num silvo.

Sem se aperceber de que estaria a intrometer-se na privacidade do ocupante do quarto, Demelza parou e, em bicos dos pés, espreitou pelo pequeno buraco incorporado nos painéis que forravam o quarto.

Ao fazer isto, lembrou-se de que Sir Francis Wigdon, o homem de quem ela não gostava, dormia ali.

Viu-o sentado na borda da cama. Ainda vestia o trajo de noite, mas desapertara a gravata à volta do pescoço.

- Trouxeste exactamente o que te disse? - ouviu-o dizer em voz baixa, num tom que fazia as suas palavras parecerem deliberadamente dissimuladas.

Mudou ligeiramente de posição para ver com quem ele estava a falar e, para sua surpresa, descobriu que havia dois homens no aposento.

Um parecia criado de quarto, vestido com um colete às riscas cujas cores ela pensava serem as de Sir Francis. O outro tinha um aspecto muito mais rude, grosseiro e com um lenço vermelho à volta do pescoço.

Segurava o boné na mão, que torcia nervosamente ao dizer:

- Está tudo tratado, patrão.

- Tens a certeza de que é suficientemente forte? - perguntou Sir Francis Wigdon, falando agora para o homem que parecia ser o seu criado de quarto.

- Prometo que quando o Crusader tomar isto não vai poder correr amanhã.

- Ainda bem! - proferiu Sir Francis.

Demelza susteve a respiração, como se não acreditasse no que estava a ouvir.

- Então ao trabalho! - ordenou Sir Francis. - Mas antes de entrarem na cavalariça certifiquem-se de que está toda a gente a dormir.

- Teremos cautela - respondeu o criado.

Demelza não esperou para ouvir mais. Agora sabia o que os homens tencionavam fazer.

Sempre se ouvira falar em cavalos serem drogados antes das corridas e que os proprietários tinham guardas para vigiar as cavalariças. Mas ela tinha a certeza de que nunca passara pela cabeça do conde, nem da de Abbot, que os cavalos não estivessem em segurança na Mansão.

A sua primeira reacção foi pensar que devia acordar Gerard, mas era impossível ir directamente ao quarto dele, e tinha medo de que se fosse pelo corredor encontrasse os homens com quem Sir Francis estava a falar, ou até o próprio Sir Francis.

Quase sem ter consciência disso, os seus pés levaram-na pela passagem que dava para o quarto senhorial.

Só ao descer os degraus que levavam ao painel secreto junto à lareira se perguntou se estaria a fazer a coisa mais acertada, e lembrou-se de como Gerard ficaria furioso com ela.

Mas depois convenceu-se a si própria de que nada importava a não ser salvar o Crusader.

Como podia ela assistir sem fazer nada, enquanto o cavalo era drogado e impossibilitado de participar na corrida do dia seguinte?

Não era só o facto de o conde sofrer o desprestígio de ter de retirar o cavalo, e de ele e Gerard perderem o dinheiro que  tinham apostado nele. Mas era também uma humilhação e uma ignomínia acontecerem tais coisas na Mansão.

Estendeu a mão sem sequer olhar através da vigia. A porta secreta abriu-se, e ela entrou no quarto que pertencera a seu pai.

Os cortinados estavam abertos e, à luz das estrelas e da Lua pálida que subia no céu, ela distinguia o suficiente para perceber que o conde estava na cama a dormir.

Inspirando profundamente, Demelza começou a falar...

O conde divertira-se ao jantar, onde, além do grupo da casa, tinham estado presentes seis dos seus amigos mais íntimos.

A comida estava excelente, o vinho excepcional e, embora a conversa tivesse naturalmente recaído sobre as corridas, toda a gente contou anedotas divertidas.

As piadas eram tão espirituosas que o conde lamentou que o rei não estivesse presente.

Uma das coisas que Jorge IV apreciava verdadeiramente era uma conversa espirituosa, para a qual contribuía com uma inteligência que poucas pessoas, além dos seus amigos mais íntimos, lhe reconheciam.

- Foi um serão óptimo, Valient! - disse um dos convidados para o conde, ao ir-se embora. - Não me lembro de alguma vez me ter rido tanto.

Quando foi para a cama, o conde achou que tinha sido sensato ao insistir que todos deviam retirar-se cedo.

Tal como o rei, detestava festas que se prolongavam, e não gostava que os homens bebessem ao ponto de se tornarem incoerentes.

Sendo ele próprio abstémio, achava que os bêbedos eram muito maçadores, e ele nunca se deixava maçar.

Quando se meteu na cama, concordou com Lord Ghirn que, ao subirem juntos as escadas, dissera:

- Esta é a melhor Ascot a que eu já assisti, Valient. Não só ganhei dinheiro como também nunca estive tão bem instalado.

E acho que a paz e o sossego desta casa me fazem dormir como

uma criança.

O conde também era dessa opinião.

Não havia criadas de quarto barulhentas nem os assobios dos

moços de estrebaria a acordarem-no de manhã, e o ar puro que entrava pelas janelas trazia o cheiro dos pinheiros e das flores.

Adormeceu praticamente assim que pousou a cabeça na almofada. Depois, a vigilância que lhe advinha da sua experiência como soldado fê-lo acordar.

- Vá ver o Crusader! Vá ver o Crusader!

Virou-se para o lado de onde vinha o som e, incrédulo, viu o fantasma da Dama de Branco.

Era a mesma imagem que vira quando chegara à galeria dos

quadros, e aqui estava ela outra vez, de pé em frente à lareira.

Via-a com bastante clareza, à luz que vinha da janela.

Depois, ao sentar-se, o conde ouviu-a falar novamente:

- Vá ver o Crusader! Vá já! É urgente!

O conde sentou-se na cama, mas, ao procurá-la, viu que a

Dama de Branco se esfumara!

Num instante estava ali e no outro desaparecera, e só restava

o contorno da lareira contra a tonalidade escura dos painéis.

"Estou a sonhar", disse o conde a si próprio.

Mas estava acordado e, devido à urgência daquela voz suave sabia que devia fazer o que lhe mandara, nem que fosse só para ter a certeza de que tudo aquilo não passava de imaginação.

Levantou-se da cama, vestiu uma camisa e um par de calças

justas a uma velocidade que teria incomodado Dawson, que

gostava de vestir o seu amo devagar.

Enfiou-se dentro do primeiro casaco que tirou do armário, pôs uma gravata mal apertada à volta do pescoço. Depois, enfiou uns chinelos de sola macia, abriu a porta do quarto e caminhou pelo corredor.

A casa estava às escuras, só uma vela brilhava no vestíbulo num candelabro de prata.

O conde pegou no candelabro e usou-o para lhe iluminar

o caminho ao longo de um corredor que ele sabia levar às cavalariças.

Só quando chegou a uma porta lateral antes da zona de serviço pousou a vela numa mesa, abriu os ferrolhos e saiu da casa.

Ao sentir o ar frio da noite no rosto pensou que estava a ser tolo por dar atenção a uma coisa que, sem dúvida, não passara  de um sonho muito vívido.

No entanto, se, tal como ele esperava, encontrasse Crusader em segurança, podia voltar para a cama e ninguém saberia que

ele andava a ter visões ou lá o que lhes poderiam chamar.

- Suponho que o vinho era mais forte do que eu pensava, e como estava com sede bebi de mais - decidiu o conde.

Ao mesmo tempo, a Dama de Branco parecera-lhe muito real. E falariam os fantasmas?

 Decidiu que era lamentavelmente ignorante a esse respeito. Depois, ao contornar os enormes loureiros por podar e ter uma primeira visão das cavalariças, viu algo a mover-se à sua frente.

Instintivamente, ficou parado.

 Vira algo a movimentar-se na sombra à entrada das cavalariças. Mais uma vez pensou que estava a imaginar coisas, mas algo se mexeu outra vez.

Apercebeu-se então de que se tratava de uma mão, e uma mão tinha de pertencer a uma pessoa.

Esperou.

 Alguns segundos mais tarde, distinguiu dois homens movimentando-se com mil cautelas, de uma maneira que anunciava bem de mais que estavam a tramar alguma, avançando furtivamente para as cavalariças.

Mantiveram-se na sombra do edificio e o conde compreendeu que o aviso da Dama de Branco fora bastante oportuno. Lembrava-se agora de que o seu lacaio lhe dissera que a fechadura da porta principal das cavalariças estava estragada.

Na altura, o conde mal ouvira o comentário. Não lhe pareceu ter grande importância.

Os lacaios estariam certamente a dormir por cima das cavalariças, mas, além disso, visto os seus planos terem mudado à última hora, era improvável que qualquer personagem suspeita soubesse onde ele estava hospedado.

Os homens abriram a porta da cavalariça e, quando desapareceram no interior, um atrás do outro, o conde começou a andar. Os chinelos não faziam ruído sobre as pedras do pátio e quando ele entrou na cavalariça como um furacão eles estavam

na divisória do Crusader, a abrir o portão de ferro.

Atingiu o primeiro homem que se virou para olhar para ele. Aprendera pujilismo com um dos melhores treinadores, um dos melhores profissionais da sua geração, Gentleman Jackson e o seu parceiro, Mendonza.

Quase não houve luta, pois deixou o seu adversário sem sentidos ao cabo de poucos segundos.

Só nessa altura o conde gritou, e os moços de estrebaria vieram a correr, entre eles Baxter, o chefe, e o velho Abbot.

Revistaram os homens desmaiados e encontraram o narcótico

com que tencionavam drogar o Crusader, e Baxter, segurando-o

na palma da mão, estendida para o conde, disse:

- Peço desculpa, senhor conde. Devia ter deixado alguém

guardar os cavalos, mas pensei que aqui estivéssemos em

segurança.

Enquanto o conde falava, Abbot, que segurava uma lanterna

por cima do homem mais pequeno soltou uma exclamação.

- O que é? - perguntou o conde.

- Eu já vi este homem, senhor conde, tem visitado os estábulos várias vezes desde que está cá na Mansão.

- Ele está cá na Mansão? - perguntou o conde, bruscamente.

- Sim, senhor conde. Disse-me que se interessa por cavalos

especialmente pelo Crusader.

- Quem é ele? - inquiriu o conde.

- Diz que é criado de quarto, senhor conde. E tem vestida

uma libré.

O conde olhou para baixo. À luz da lanterna viu os botões que apertavam a libré às riscas e reconheceu o brasão.

- Amarrem estes vermes - disse ele a Baxter. - Fechem-nos bem durante a noite, e amanhã de manhã entregamo-los à polícia do hipódromo.

- Muito bem, senhor conde, e obrigado, senhor conde. Só posso dizer como me sinto humilhado por uma coisa destas ter acontecido.

- Felizmente fui avisado a tempo - comentou o conde.

- Avisado, senhor conde?

Ao voltar para casa, o conde pensou que esta era uma pergunta a que não podia responder.

Subiu as escadas e, sem bater, abriu a porta do quarto vermelho.

Sir Francis estava meio despido e ainda levantado. A expressão no seu rosto, ao ver o conde entrar, era um misto de medo e de culpa.

- Dou-te dez minutos para saíres desta casa! - disse o conde, concisamente.

- O que... - começou Sir Francis, mas foi imediatamente interrompido pelo conde.

- Se fores sensato, tentarás sair do país. Os teus cúmplices vão certamente denunciar-te à Polícia, e vais ter um mandado de captura às costas.

Sir Francis ficou calado.

Por um instante, o conde esteve tentado a dar-lhe um murro, mas depois decidiu que isso não seria digno dele.

- Dez minutos! - repetiu, e saiu do quarto fechando a porta atrás de si.

Quando chegou ao seu quarto, a importância do acontecido fê-lo olhar, incrédulo, para o local onde tinha visto a Dama de Branco falar com ele.

Avançou nessa direcção, sentiu aquele perfume doce e fugidio, e soube quem lhe deixara a mensagem aconselhando-o a não beber o vinho.

- Primeiro eu, depois o meu cavalo - disse o conde, fazendo um esgar com os lábios.

Os fantasmas não escreviam recados, mesmo que, incrivelmente, fossem capazes de falar.

Ficou a olhar para o sítio onde vira a Dama de Branco. Depois estendeu a mão e começou a apalpar os painéis...

Muito distante, no fundo da sua memória, lembrou-se de quando estivera com os pais, em rapaz, numa casa em Worcestershire.

Era uma casa muito antiga e rodeada por um fosso que o

fascinara.

Os pais prestavam-lhe pouca atenção, e como não havia mais

crianças na casa, ele afeiçoara-se ao conservador.

Era um homem bondoso, que lhe mostrara os quadros das

batalhas e de outros acontecimentos dramáticos da história,

que abundavam naquela casa.

Então, por ele ser um rapazinho inteligente, o conservador

contara-lhe a história da Batalha de Worcester e de como o rei, em fuga, se ocultara num carvalho para escapar aos que o

perseguiam.

- Alguns dos seus seguidores esconderam-se nesta casa continuou o conservador.

Depois mostrara ao conde a passagem secreta onde os realistas se tinham mantido sem ser descobertos pelos soldados de

Cromwell.

O conde recordava-se de que para lá chegar havia na parede um painel que se abria e que tinha a largura suficiente para deixar passar um homem.

O conservador pressionara um certo local, e ele ainda via os

seus dedos a tactearem. Depois lembrou-se da emoção que sentira quando o painel se abriu.

Agora tacteava com os dedos por entre as folhas, os arabescos, as cabeças de milho delicadamente esculpidas, depois, chegou às flores.

Estava prestes a acreditar que a sua busca seria infrutífera, quando encontrou o que procurava.

Ao carregar, abriu-se uma porta no painel e, surpreendido, o conde viu do outro lado dois pares de botas de montar!

Voltou para o quarto e acendeu a vela que havia ao lado da sua cama, num candelabro de bronze.

Depois, segurando-a ao alto para iluminar o caminho, atravessou o painel sentindo que começava uma viagem de descoberta, mais emocionante do que qualquer outra que fizera na sua vida.

Andando muito devagar e sem fazer barulho o conde subiu as estreitas escadas de caracol.

Parava de vez em quando para ver onde a passagem se ramificava, mas continuou a subir até ver uma luz à sua frente e pensar que estava quase na parte mais alta da casa.

Um ou dois segundos depois, encontrou o que procurava. O Aposento dos Padres era muito pequeno, e o conde viu que tinha um divã contra uma parede e, na outra, uma imagem de Nossa Senhora rodeada de flores.

Por baixo, ressaltando da própria parede, havia uma pequena estante que obviamente fora no passado usada como altar, para os padres perseguidos dizerem a missa.

No estreito altar havia agora duas velas acesas e entre elas uma taça de rosas brancas.

Ajoelhada em frente, com as mãos postas na eterna atitude de uma mulher em oração, estava a Dama de Branco.

O cabelo que lhe caía sobre os ombros era tão claro que parecia quase prateado à luz das velas.

O conde viu que ela era tão pequena e esguia como uma criança, mas o robe branco abotoado à frente revelava a curva suave dos seus seios.

Estava de perfil, e o seu nariz pequeno era direito e aristocrático, as pestanas escuras contra as faces pálidas.

Havia muito tempo que o conde não via uma mulher ajoelhada a rezar, e não era certamente aquilo que esperara encontrar ao subir as escadas.

Então, como se instintivamente soubesse que não estava sozinha, a mulher que observava virou a cabeça.

O conde deu consigo a fitar os olhos maiores e mais estranhos que alguma vez vira, e que pareciam encher todo o seu pequeno rosto.

Por um momento, ela manteve-se muito quieta. Depois, com a voz suave com que lhe falara no quarto, disse:

- O Crusader?

Era uma pergunta.

- Está são e salvo! - respondeu o conde. - Fui ter com ele, como me disse para fazer.

Ela soltou um suspiro de alívio que parecia vir das profundezas da sua alma.

- Estava a rezar por ele? - perguntou o conde.

- Sim. Estava com medo... muito medo... que não chegasse a tempo.

- As suas preces foram ouvidas.

Então, enquanto ela se punha lentamente de pé, o conde perguntou:

- Quem é? Pensei que fosse um fantasma!

Ela sorriu, e a expressão de perfeita espiritualidade do seu rosto pareceu transformar-se em algo muito humano, mas, à sua maneira, igualmente belo.

- A Dama de Branco - disse ela. - Quem eu esperava que pensasse que eu fosse... quando me viu... na galeria dos quadros.

- Porquê? Porque tem de se esconder? - perguntou o conde.

O conde tinha a estranha sensação de ter entrado noutro mundo. Apesar do sorriso dela e do facto de estarem a falar um com o outro, sentia que ela não era real, mas tão etérea como o fantasma que fingira ser.

- O que é que... aconteceu... ao Crusader? - respondeu ela, como se continuasse preocupada com o cavalo.

- Estavam dois homens a tentar drogá-lo - respondeu o conde. - Pu-los sem sentidos. Ainda estão desmaiados.

- Esperei... que fizesse... isso.

Não havia equívoco na admiração expressa nos seus olhos, que pareciam ao conde quase roxos, embora estivesse seguro de que se enganava.

Ela olhou para a mão dele e soltou uma exclamação.

- Está a sangrar!

Pela primeira vez, o conde reparou que tinha ferido os nós dos dedos com a força com que tinha batido no criado e depois no homem mais forte, que não caíra ao primeiro soco.

- Não é nada - disse ele.

- sim! - insistiu Demelza. - Pode infectar e depois dói muito.

Abriu um armário que havia na parede e tirou uma pequena bacia de porcelana e uma jarra, com a mesma decoração.

Colocou-as numa cadeira e depois trouxe uma toalha de linho e uma caixa pequena.

O conde ficou a olhar para ela, parecendo anormalmente grande e de ombros largos naquele pequeno quarto, até que ela disse:

- Acho que o senhor conde se deve sentar na cama para eu poder tratar a sua mão convenientemente.

O conde estava tão intrigado que não foi capaz de outra coisa senão obedecer.

Pousou a vela acesa ao lado das outras no altar, e sentou-se. Demelza ajoelhou-se ao seu lado, verteu uma porção de água do jarro dentro da bacia e abriu a caixa, de onde tirou o que o conde pensou serem ervas medicinais, que juntou à água.

- Como se chama? - perguntou o conde, enquanto ela remexia a água com os dedos.

- Demelza.

- Da Cornualha!

- A minha mãe era da Cornualha.

- Eu também.

- claro! - exclamou ela. - Tinha-me esquecido que o nome de Trevarnon vem de lá... devia ter... adivinhado.

- É irmã do Gerard Langston?

Demelza acenou afirmativamente, enquanto tomava a mão dele entre as suas. Depois mergulhou-a em água fria e lavou-a com muito cuidado.

Ele perguntou-se se qualquer outra mulher lhe teria tocado de modo tão impessoal, mas Demelza estava completamente descontraída, embora ele estivesse vividamente consciente da presença dela.

- Cultiva ervas no pequeno jardim rodeado de muros de tijolo vermelho? - perguntou.

- Era o jardim de ervas de minha mãe.

Ele soltou uma exclamação repentina.

- Madressilva!

Ela olhou-o, surpreendida, e o conde disse:

- O perfume que usa e que me tem perseguido, sinto esse cheiro no seu cabelo.

- É da madressilva que cresce por cima do caramanchão, no meu jardim. A minha mãe ensinou-me a destilar o óleo das flores na Primavera.

- Não conseguia reconhecê-lo - explicou o conde -, embora o sentisse por toda a casa e especialmente no recado que me deixou.

- Não sabia... de que outra maneira... avisá-lo.

- Como sabia que o vinho estava drogado?

Ele viu que Demelza corava, e antes de esta poder responder, exclamou:

- É claro! Pode ver para dentro dos quartos...

- Só olhei... de vez em quando - disse Demelza. - Fiquei... admirada por ouvir uma senhora a falar... na sala de estar, quando voltei das corridas... e esta noite, ia descer... porque estava aqui muito calor e queria respirar... ar fresco.

- E ouviu Sir Francis falar - interpôs o conde.

- Ouviu-o falar... numa voz estranha que parecia um tanto dissimulada e... sinistra... não escutei nem olhei mais vez nenhuma, excepto na primeira noite... quando estavam na... sala de jantar.

Demelza ergueu os olhos, esperando que o conde compreendesse, e este disse lentamente:

- Ouviu-me fazer perguntas ao seu irmão a respeito da Dama de Branco?

- Sim... estava na... galeria dos menestréis.

- Talvez me tivesse apercebido, subconscientemente, da sua presença ali, mas intrigava-me já como uma pessoa podia desaparecer tão completamente na galeria dos quadros, se não fosse um fantasma.

Como se estas palavras lhe recordassem que Gerard ficaria zangado se soubesse que ela conhecera o conde, Demelza levantou-se para se dirigir outra vez ao armário. Voltou com um pano que rasgou em tiras.

- Vou pôr-lhe isto à volta da mão para não se sujar esta noite - disse ela -, depois... por favor... esqueça-se de que me... conheceu.

- Porquê? - perguntou o conde.

- Porque o Gerard fez-me prometer que... eu não entrava nesta casa... enquanto estivessem aqui. Se eu não prometesse... ele mandava-me embora... mas eu não tinha para onde ir.

- Faz alguma ideia da razão por que o seu irmão não quer que nos conheçamos? - perguntou o conde.

Ele percebeu a razão, pelo modo como Demelza baixou os olhos e, mais uma vez, o seu rosto branco corou.

- O seu irmão tinha toda a razão - disse ele. - Vamos manter isto em segredo, apesar de ser difícil para mim explicar como é que consegui salvar o Crusader.

- Podia ter sentido, por instinto, que se passava alguma coisa - disse Demelza, rapidamente. - Não quero que minta... mas o Gerard vai ficar tão... zangado comigo.

- Vejo que ele fez de mim um monstro! - respondeu o conde, num tom de voz zangado.

- O Gerard admira-o muito... como toda a gente - disse Demelza. - só...

- É só a minha reputação duvidosa no que diz respeito a mulheres - terminou o conde.

Não havia necessidade de ela confirmar que, de facto, aquilo era verdade.

- Porque lhe estou muito grato - disse ele -, por me ter salvado, a mim e ao Crusader, vou manter em segredo o facto de nos termos conhecido.

- Isso é... muito gentil da sua parte. Não quero... que o Gerard se preocupe... o que certamente aconteceria.

- Ficará na ignorância dos bem-aventurados sobre tudo o que aconteceu - prometeu o conde.

Levantou-se da cama e, estendendo a mão sã, tomou a de Demelza na sua.

- Obrigado! - disse ele. - Obrigado, minha pequena Dama de Branco, por tudo o que fez por mim. Se o Crusader ganhar amanhã, a vitória será sua.

Beijou-lhe a mão.

Pegando na vela, olhou mais uma vez para os estranhos olhos cor de amor- perfeito erguidos para os seus. Depois, lentamente, desceu as escadas estreitas.

 

CAPÍTULO QUINTO

Sentado à mesa cintilante de ouro, no Castelo de Windsor, o conde estava com grande dificuldade em concentrar-se no que diziam à sua volta.

Recebera os parabéns de todos os presentes, e sentia que de facto bem os merecia.

Crusader ganhara a Taça de Ouro, vencendo Sir Huldibrand, depois de uma das melhores e mais renhidas corridas de Ascot.

Sir Huldibrand determinara o andamento a um ritmo enérgico até aos canais, mas Crusader adiantou-se-lhe e correu mais depressa ao descer a encosta.

Na curva da pista, Crusader e Sir Huldibrand estavam lado a lado e, tal como o conde ouvira alguém dizer a seu lado: "A vitória foi uma questão de sorte.

Depois houve uma luta tremenda e devastadora entre os dois magníficos cavalos, e Crusader acabou por cruzar a meta por uma cabeça.

- Nunca vi uma corrida melhor, Valient! - dissera o rei ao conde, no fim da competição -, mas devíamos ter adivinhado que a sua habitual boa sorte lhe havia de permitir levar o troféu mais importante das corridas.

Soltou um pequeno suspiro porque, embora fosse de esperar, o seu cavalo fora desclassificado.

Mas como gostava sinceramente do conde, bebera à sua saúde várias vezes durante o jantar, no qual o vencedor da Taça de Ouro era sempre o convidado de honra.

O conde sabia que Lady Sydel o observava do outro lado da mesa com uma expressão que, na sua opinião, parecia ter algo de assassino!

Depois riu de si próprio por estar a dramatizar as coisas, e ficou determinado a não falar com ela a sós, por muito que ela tentasse manobrá-lo.

Durante toda a corrida, ele dera consigo a procurar por entre a multidão, com os seus binóculos, uma figura com enormes olhos cor de amor-perfeito e vestida, certamente, com um vestido branco.

Mas era impossível distinguir alguém na multidão agitada, que era maior para assistir à Taça de Ouro do que em qualquer corrida da semana.

Ao longo da pista, por cerca de mil e seiscentos metros, havia filas de carruagens estacionadas e, à frente delas, juntavam-se os espectadores que tinham sido expulsos temporariamente da pista, que usavam para passear no intervalo das corridas.

Em certos pontos, havia dez filas de carruagens, e era quase impossível para os que estavam atrás acompanhar o que se estava a passar.

Devido ao bom tempo, e talvez porque toda a gente esperava uma luta renhida, próximo da linha de chegada, entre os dois cavalos, nos quais se tinham apostado quantias enormes, foi mais dificil do que nunca desimpedir a pista.

O conde lembrava-se de esta tarefa ser, inicialmente, responsabilidade dos Yeoman Pickers, mas a estes sucedera a Polícia Montada.

A dificuldade de preparar tudo para a corrida, propriamente dita, ocasionava, como acontecera naquela tarde, um atraso na sua realização.

O conde, depois de mudar de roupa na Mansão, fora obrigado a dirigir-se ao Castelo a uma velocidade que fez Jim, que o acompanhava, suster de vez em quando a respiração, apreensivamente.

No entanto, chegaram sem contratempos, embora tivessem sabido, mais tarde, de alguns acidentes na estrada para Londres, onde pelo menos duas pessoas haviam perdido a vida e vários cavalos tinham ficado gravemente magoados.

O rei, apesar da gota, estava bem-disposto, e, na opinião do conde, fossem quais fossem as críticas em relação a Lady Conyngham, esta era uma mulher atraente e fazia Sua Majestade feliz.

O conde notou que a comitiva real e as outras pessoas convidadas para a ocasião eram amigos íntimos do rei.

Sempre gostara muito do duque de Iorque, que obtivera excelentes resultados nas corridas e que também recebia os parabéns pelas vitórias dos seus cavalos.

- Foram as melhores corridas a que assisti desde sempre - disse ele, ensonado, ao conde -, e os meus cavalos fizeram-me ganhar bastante dinheiro, no que se refere a apostas.

O duque de Iorque não era brilhante, mas compreendia as pessoas de um modo que lhe permitia evitar os erros em que os seus irmãos caíram, tornando-os impopulares e menosprezados.

Ele era, na realidade, respeitado e amado, e em muitas ocasiões o conde dissera confidencialmente aos seus amigos:

- Sua Alteza Real é, entre os príncipes, o único que tem os sentimentos e o comportamento de um cavalheiro inglês.

Durante o jantar, o conde esteve sentado à direita da encantadora princesa Esterhazy, que não se coibiu de namoriscar com ele, como fizera tantas vezes em ocasiões anteriores.

Mas naquela noite ele não conseguia esquecer a estranha aventura da noite anterior, e a imagem de Demelza ajoelhada no Aposento dos Padres, em frente ao altar, teimava em intrometer-se nos seus pensamentos quando ele menos esperava.

Sentiu um desejo urgente e súbito de voltar para a calma e mistério da Mansão e de abrir uma vez mais a porta secreta nos painéis do seu quarto.

Isto tornou-se tão imperioso que quando o rei se retirou imediatamente após o jantar, dizendo que estava cansado depois das corridas e que a gota era dolorosa, o conde saiu com ele.

Não se despediu de ninguém, pois sabia que, se o fizesse, seria retido durante muito tempo.

Em vez disso, seguiu o rei até à porta, e este, como se percebesse o que o conde tencionava fazer, pegou-lhe no braço, bem-disposto, e levou-o para fora do salão, apoiando-se nele enquanto caminhavam ao longo do corredor.

- Não tenciona ir-se embora tão cedo, pois não, Valient? disse-lhe.

-As festas perdem o seu sabor quando Vossa Majestade não está presente - respondeu o conde, lisonjeador.

- Quer dizer que tem outras atracções noutros sítios - comentou o rei com um brilho nos olhos.

O conde não respondeu, e o rei continuou:

- Lady Sydel pediu-me para interceder junto de si. Parece- me que implora o seu perdão.

- É pena, Sire - respondeu o conde -, Vossa Majestade não ter tido a oportunidade de falar comigo em particular.

O rei soltou um risinho.

- A fazer das suas, Valient? Nenhuma mulher gosta de ser deixada para trás.

O conde pensou que talvez Sua Majestade se recordasse de como Mrs. Fitzherbert se queixara amargamente quando ele a trocara por Lady Hertford. Assim, disse em voz alta:

- Eu sei que posso sempre confiar na vossa compreensão, Sire, e no vosso vasto conhecimento dos caprichos femininos.

O rei ficou deliciado, tal como o conde previra.

- Eu compreendo, Valient - disse ele. - Mas se quer o meu conselho, mexa-se rapidamente às escondidas antes de os cães lhe seguirem o rasto.

Riu-se da sua própria piada, deu uma palmada nas costas do conde e dirigiu-se aos seus aposentos privados.

Isto permitiu ao seu convidado descer rapidamente as escadas, chamar o faetonte e sair do castelo antes de as outras pessoas fazerem a mínima ideia de que ele se fora embora.

A caminho da Mansão, o conde estava determinado a ver novamente Demelza e a falar com ela.

Tudo a respeito dela o intrigava, e disse a si próprio que nunca conhecera uma mulher com uma beleza tão invulgar e espiritual.

Perguntava a si próprio como seria ela à luz do dia, e receava um pouco uma desilusão.

Podiam os seus olhos ter aquele tom de amor-perfeito que aparentavam na noite anterior? Ela teria mesmo uma graciosidade diferente das outras mulheres?

Recordou a suavidade das suas mãos quando tocaram nas dele e o modo como ela lhe atara a mão sem se sentir minimamente constrangida por ele estar sentado na sua cama e por estarem sós.

Não conhecia outra mulher que tivesse agido daquela forma em tal circunstância.

"É apenas uma criança, disse a si próprio.

No entanto, vira uma maturidade florescente nas curvas adoráveis do seu corpo, e achara-a também inteligente, coisa que não esperara de uma rapariga tão jovem.

- Tenho de a ver - declarou -, embora, é claro, possa ficar desiludido ao vê-la segunda vez.

Era como se estivesse a ser cínico apenas para se proteger a si próprio.

Sabia que não era apenas Demelza que ele achava tão intrigante, era também tudo o que a rodeava: a beleza e o mistério

da Mansão, a escada secreta e, é claro, o modo como ela salvara tanto ele como o Crusader.

- Vai estar à minha espera, esta noite - disse em voz alta, recordando que lhe dissera que se o Crusader ganhasse a Taça de Ouro a vitória seria dela.

Passava pouco das dez da noite quando chegou à Mansão, e como não tinha vontade de ficar com os seus convidados, que estariam a festejar, não se dirigiu à porta da frente, mas directamente às cavalariças.

Os moços de estrebaria vieram a correr. Saiu do faetonte e, depois de fazer uma pausa apenas para felicitar Baxter por outro dia cheio de êxito, entrou em casa pela porta lateral, que utilizara na noite anterior.

No corredor ouviu risos e vozes vindos da sala de jantar, e percebeu que a festa estava no seu auge e que as garrafas de vinho do Porto andavam à volta da mesa sem parar.

Subiu rapidamente a escada secundária que dava para o corredor onde se encontrava o seu quarto.

Pensou que Dawson, não esperando que ele voltasse tão cedo, estaria lá em baixo a jantar, e no seu quarto, de facto, as velas ainda não estavam acesas.

No entanto, havia ainda no céu um brilho ténue do Sol, que se pusera atrás do Castelo, numa explosão de glória dourada.

As estrelas começavam a aparecer debilmente, e havia uma

Lua pálida e tímida que, quando estivesse alta, lançaria a sua luz prateada sobre a Mansão, tornando-a mais encantadora do que já era.

Ficou uns instantes no quarto, a inalar a fragrância das rosas e procurando o cheiro de madressilva. Pensava que isto lhe diria se Demelza atravessara naquele dia a porta secreta, no caso de, tal como qualquer outra mulher faria, ter querido olhar para o sítio onde ele dormira e tocar nas coisas que ele utilizara.

Mas, de algum modo desiludido, não conseguiu distinguir o perfume a madressilva. O conde fechou silenciosamente a porta do quarto e dirigiu-se à lareira para procurar, como na noite anterior, o trinco secreto, entre as figuras esculpidas, que abria caminho para as escadas em caracol.

Encontrou-o, pressionou, mas não aconteceu nada! Pensou que devia estar enganado. Pressionou outra vez, mas o painel de madeira de carvalho continuava imóvel.

Por um instante, perguntou a si mesmo se qualquer coisa teria corrido mal e o trinco teria deixado de funcionar. Depois apercebeu-se de que a porta fora barrada.

Nunca nos anos em que perseguira mulheres, ou melhor, em que elas o tinham perseguido, o conde se lembrava de outra ocasião em que uma porta lhe tivesse sido fechada.

Na realidade, eram abertas antes de ele chegar, e a ocupante já estava nos seus braços antes de ser convidada.

Perplexo, o conde ficou a olhar para os painéis como se não pudesse acreditar que, de facto, a porta lhe fora fechada. Depois disse a si próprio que aquilo era um desafio, e isso era uma coisa que ele nunca recusara.

Ao mesmo tempo, perguntava-se desesperadamente o que havia de fazer.

Não podia bater na madeira, e mesmo que o fizesse seria improvável que Demelza o ouvisse, no topo da casa.

Achou, com uma súbita sensação de desespero, que não tinha outro acesso às escadas secretas que levavam ao Aposento dos Padres.

Recordou-se de que Demelza lhe dissera que o observara da galeria dos menestréis. Isso significava que havia aí uma entrada, mas ele não podia andar aos tropeções pela galeria, com os convidados no piso inferior, sentados, provavelmente, a ouvir os seus movimentos.

O conde sabia muito bem que na noite anterior tivera a sorte de encontrar o trinco secreto, simplesmente porque vira Demelza no seu quarto.

A pessoa que desenhara o labirinto de passagens e entradas fizera-o para salvar a vida de homens e tornar o seu esconderijo quase impenetrável, excepto se fossem traídos.

No seu quarto, o painel secreto abria-se ao lado da lareira, mas ele tinha a certeza de que nos outros quartos a sua posição seria muito diferente.

Assim, como podia ele passar horas, talvez dias e semanas, procurando outra entrada numa casa onde, como ele já reparara, quase todos os quartos eram apainelados?

"Que posso fazer? ", perguntou ele a si próprio.

Agora, o seu desejo de ver Demelza aumentara mil vezes, pelo simples facto de ela ser fugidia.

- Tenho de a ver! Vlou vê-la! - disse ele em voz alta, e jurou, num sussurro, que não seria derrotado.

Sem se aperceber conscientemente do que estava a fazer, visto estar tão concentrado no problema que o assediava, abriu a porta do quarto e caminhou lenta e pensativamente pelo corredor fora.

Estava na realidade a tentar perceber como a casa era construída e a adivinhar onde as paredes tinham largura suficiente para conter uma passagem.

Ao mesmo tempo, queria coordenar tudo isto com o caminho que tomara na noite anterior, subindo ao ponto mais alto do edifício.

Vira Demelza pela primeira vez na galeria dos quadros, mas a um certo ângulo da parte central da casa.

Os seus cálculos não pareciam estar a levá-lo muito longe quando, na outra ponta do corredor, atrás da escadaria principal, viu uma figura a transportar um tabuleiro.

Reconheceu Nattie e percebeu que ela tinha subido por uma terceira escada, vinda das cozinhas, que ficavam por trás das escadas que ele próprio utilizara.

Nattie virou à esquerda e afastou-se dele. Alerta e interessado, o conde seguiu-a a uma distância considerável encostando-se à parede do corredor.

As velas ainda não tinham sido acesas, e a passagem estava quase às escuras. Ele receava que Nattie desaparecesse e que a perdesse tal como tinha perdido a Dama de Branco na galeria dos quadros.

Depois ela parou e, equilibrando o tabuleiro com uma mão, abriu com a outra uma porta.

Desapareceu no interior e o conde apressou o passo e dirigiu-se rapidamente para a porta que Nattie, depois de passar, empurrara com o pé.

Mas não estava completamente fechada e, abrindo-a apenas o suficiente para poder espreitar, o conde viu a ama desaparecer através de um painel na parede do outro lado do quarto.

As cortinas estavam abertas e havia luz suficiente para ele ver que o quarto não estava a ser utilizado. A cama, as cadeiras e a cómoda estavam cobertas com panos-de- holanda.

O conde percebeu que a sorte estava consigo e, sustendo a respiração, viu que, embora Nattie tivesse entrado pela passagem secreta, não tinha fechado o painel atrás de si, porque tinha as mãos ocupadas com o tabuleiro.

Entrou rapidamente no quarto e atravessou-o até à parede oposta.

Esperou alguns segundos enquanto ouvia Nattie subir as  escadas com passos pesados. Depois, ligeiro e silencioso, entrou pela abertura e desceu as escadas até se encontrar a uma distância segura quando Nattie voltasse.

Ouviu o som ténue de vozes ao longe e, depois, encostado à parede, na escuridão, pensou que, mais uma vez, a sua estrela não o abandonara.

- Desculpe vir atrasada, querida - disse Nattie ao entrar no Aposento dos Padres.

- Não me admirei - respondeu Demelza, levantando-se para pegar no tabuleiro.

- É sempre a mesma coisa quando há uma festa grande e mais pratos do que o habitual - disse Nattie. - Os criados têm de esperar para jantar, e a menina também.

- Abriu-me o apetite - disse Demelza, sorrindo.

- Escolhi os seus pratos preferidos - disse Nattie.

- Estão com um aspecto delicioso! - gritou Demelza. Mas, fossem o que fossem, eu não seria esquisita.

Ficara demasiado excitada com as corridas para comer as sanduíches e os pastelinhos que Nattie lhe trouxera para o almoço, nem sequer uma musse deliciosa que Betsy furtara da cozinha quando o cozinheiro estava distraído.

Demelza só conseguira pensar em Crusader e rezar para que Sir Huldibrand não vencesse, embora soubesse que o cavalo do senhor Ramsbottom era um rival digno.

Quando Crusader atravessara finalmente a linha de chegada e se elevara um grande aplauso de excitação, sentira as lágrimas nos olhos, tal a intensidade da sua alegria.

Se ela não tivesse ouvido a conspiração contra ele, o cavalo talvez estivesse drogado e prostrado na cavalariça, e Sir Francis, que teria apostado em Sir Huldibrand, estaria agora na posse de uma fortuna ilícita.

- Ontem aconteceram umas coisas estranhas, Miss Demelza

- disse-lhe Nattie, de manhã cedo.

- O que é que aconteceu? - perguntou Demelza.

- Dois homens tentaram drogar o Cruzader - relatou Nattie

- mas o senhor conde ouviu-os e o Abbot disse que ele os tinha posto inconscientes, como um pugilista profissional!

- Que coisa terrível para acontecer, logo aqui nas nossas cavalariças! - exclamou Demelza.

- Uma vergonha! - concordou Nattie. - Os criminosos foram levados pela polícia do hipódromo e um dos convidados do senhor conde partiu com muita pressa.

- Quem foi? - perguntou Demelza, pois sabia que deveria mostrar-se curiosa.

- Sir Francis Wigdon - respondeu Nattie. - Custa a crer que um cavalheiro e amigo do senhor conde pudesse estar envolvido numa coisa tão vergonhosa.

- De facto... - murmurou Demelza.

A caminho da pista das corridas, Abbot não falou de outra coisa.

- A culpa é minha, Miss Demelza - disse, censurando-se a si próprio - devia ter mandado arranjar a fechadura da cavalariça há muito tempo, mas o que é que a gente lá tem que atraísse a atenção da malandragem?

- Devemos ter mais cuidado de futuro, Abbot - respondeu Demelza. - Imagina que alguém tentava impedir o Firebird de correr no sábado?

- Por cima do meu cadáver! - jurou Abbot.

Depois riu-se.

- mesmo a sorte do senhor conde, ter o instinto que salvou o Crusader para a corrida.

- Que instinto?

- Foi o que o senhor Dawson, o criado de quarto, me disse que ele teve.

Demelza sorriu disfarçadamente ao pensar que o conde dissera o que ela sugerira.

- O senhor conde é de facto um homem de sorte - interpôs Nattie.

- Sim, desde que é homem feito - respondeu Abbot. Mas o senhor Dawson disse-me que o velho conde era um tirano dos piores, e o filho, como toda a gente, sofreu com isso.

- Um tirano? - perguntou Demelza, com interesse. - Em que sentido?

- O senhor Dawson disse que todos os que eram empregados do conde tinham medo dos seus ataques de fúria, e que nem ele nem a condessa se interessavam pelo filho.

- Negligenciavam-no? - inquiriu Demelza.

- Ignoravam-no, mas é - respondeu Abbot. - Tem sorte, por ter tido um pai e uma mãe que gostavam tanto de si. Mui tos dos nobres e dos aristocratas não ligam nenhuma aos filhos.

- Lá isso é verdade - concordou Nattie. - Entregam-nos aos cuidados de criados ignorantes e desleixados e já ouvi casos em que as pobres criaturinhas quase são deixadas morrer à fome!

Demelza estava calada.

Parecia-lhe incrível que o conde, que era tão rico, invejado pelos seus contemporâneos por tudo quanto possuía e que parecia ser o homem com mais sorte no mundo, pudesse ter sofrido em criança.

Verdade ou não, tinha a certeza de que, por ele não ter nem irmão nem irmã, ao contrário dela, devia ter-se sentido muito só.

Sem uns pais carinhosos, como poderia ter sido a sua vida? Nem conseguia imaginá-la.

Ao mesmo tempo, sentisse o que sentisse por ele, por muita pena que tivesse dele por ter sofrido em criança e por causa da tragédia do seu casamento, ela sabia que não podia voltar a vê-lo.

As circunstâncias que a haviam levado a salvá-lo da vingança de Lady Sydel e depois a proteger o Crusader eram tão excepcionais que o facto de ter desobedecido às ordens de Gerard e de ter quebrado a promessa que lhe fizera era desculpável.

Agora, embora sentisse um enorme desejo de falar com o conde, de o observar, como já fizera, ela sabia que devia comportar-se como a mãe esperaria que fizesse.

Era o que ela própria achava correcto.

Assim, quando voltaram das corridas, pusera o ferrolho na porta secreta que dava para o quarto do conde.

Depois subira rapidamente as escadas, determinada a não voltar a descê-las até à manhã seguinte, não fosse ouvir qualquer coisa não destinada aos seus ouvidos.

No entanto, não lhe fora possível deixar de pensar no conde. Quando o vira levar o Crusader para o local de pesagem depois da corrida, achara que nenhum outro homem nem nenhum outro cavalo se lhes podiam igualar em todo o país.

Vibrara ao ouvir os aplausos que os acompanharam. Embora algumas pessoas devessem ter perdido muito dinheiro nas corridas, como desportistas aplaudiram o vencedor, porque este fizera uma corrida brilhante, numa das melhores tradições de Ascot.

- Obrigada por este delicioso jantar - disse Demelza a Nattie.

Pousou a colher e o garfo e deitou no copo um pouco de limonada de um jarro de vidro que estava no tabuleiro.

- Quem me dera poder dizer ao cozinheiro como aprecio os seus cozinhados - continuou.

- Pois isso é uma coisa que não pode fazer - disse Nattie.

- E se quer saber a verdade, Miss Demelza, estou ansiosa por que possa sair deste buraco abafado e voltar para o seu quarto.

- Depois de o conde e de os convidados se irem embora - disse Demelza em voz baixa.

- Exactamente! - concordou Nattie. - A mim, parece-me que já cá estão há um mês!

- Tem sido muito trabalho para ti? - perguntou Demelza.

- Não é o trabalho que me incomoda - respondeu Nattie.

- É isto de estar sempre em cuidado para ninguém perceber que a menina está cá em casa. A velha Betsy quase que se descaiu esta manhã. Depois olhou para mim e engoliu as palavras, mas foi mesmo a tempo.

- Não te preocupes, Nattie. São só mais dois dias - disse Demelza.

Ao falar, sentiu como se a sua própria voz soasse apagada e triste com a ideia.

Quando os cavalos se fossem embora, e o conde também,  como poderia ela assentar? Como poderia contentar-se com a vida tranquila e rotineira que conhecera antes?

- Vou voltar - dizia Nattie. - Agora não fique acordada toda a noite a ler. Na minha opinião já se excitou demasiado por um dia.

- Sem dúvida que foi um dia excitante! - concordou Demelza. - Boa noite, minha querida Nattie!

Beijou a face da ama e ergueu uma das velas acesas para lhe iluminar as escadas estreitas.

Manteve-a no alto até ver Nattie atravessar a porta secreta e ouvi-la fechá-la atrás de si.

Depois levou a vela para o altar, pousou-a e ficou de pé a olhar para a imagem sagrada que conhecia desde criança.

- Obrigada, meu Deus - disse ela. - Obrigada por ele ter ganho.

Ela tinha a certeza de que as suas preces não só tinham salvado Crusader como também o haviam levado à vitória. A sua mãe sempre lhe dissera que nunca se devia receber uma graça sem a agradecer.

- Obrigada! Obrigada! - disse Demelza novamente. Enquanto falava, não via apenas Crusader mas o conde, caminhando ao seu lado, com um sorriso nos lábios, ao tirar o chapéu em resposta aos aplausos.

A sua imagem era tão vívida no seu espírito que quando virou a cabeça instintivamente e o viu parado à porta não se assustou nem se surpreendeu. Parecia inevitável!

Olharam um para o outro durante muito tempo. Era como se se reencontrassem depois de uma separação de toda a vida e estivessem novamente reunidos.

Então o conde disse automaticamente, quase como se estivesse a pensar noutra coisa:

- Porque me fechou a porta?

- Como é que... conseguiu entrar?

- Segui a sua ama, ela deixou a porta entreaberta.

- Ela ficaria horrorizada, se soubesse que estava aqui!

- Quero falar consigo. Tenho de falar consigo!

Demelza susteve a respiração ao ouvir a insistência da sua voz. Como se sentisse que ela ia recusar o seu pedido, o conde disse:

- Compreendo que ache pouco convencional falarmos aqui, mas para onde podemos ir?

Por um instante, apercebeu-se de que ela não compreendia o que lhe estava a dizer, mas de repente, como se se lembrasse que o Aposento dos Padres era também o seu quarto, Demelza sentiu o sangue subir-lhe às faces e disse, um pouco envergonhada:

- Não tinha pensado nisso... mas não há outro sítio. Fez uma pausa e depois acrescentou.

- Podia... encontrar-me consigo no meu jardim. Posso ir lá ter... sem que ninguém me veja sair de casa.

- Ninguém sabe que eu já voltei, por isso vou já para lá. Ele fitou os olhos dela, erguidos para os seus, e disse:

- Vem? Não é apenas um truque para se ver livre de mim?

-Não... claro que não! Eu vou... se quiser... que eu vá.

- Quero mais do que tudo. Tenho de falar consigo. Havia um tom imperativo na sua voz, e ele sabia que ela reagia a isso.

- Eu vou! - disse ela com simplicidade. - Mas antes tem de voltar por onde veio.

- E vou encontrar o trinco?

- Se levar a vela, vê-se muito bem deste lado do painel. Entregou-lhe um candelabro enquanto falava e, sem outra palavra, o conde virou-se e desceu as escadas.

Tal como Demelza dissera, o trinco, que era invisível do lado do quarto, era fácil de encontrar do lado das escadas.

O conde pousou o candelabro num dos degraus, depois entrou no quarto e fechou o painel secreto atrás de si.

Como ainda não se via ninguém, desceu pelas escadas secundárias e saiu pela porta que dava para as cavalariças. Mas agora virou na direcção oposta, passando em frente da casa.

Na noite cada vez mais escura, encontrou o caminho para o jardim.

Sabia que Demelza esperaria que ele estivesse sentado no caramanchão, e a fragrância a madressilva que subia pelas árvores fê-lo sentir quase como se ela estivesse ali à sua espera.

Sentou-se no banco de madeira pensando que nunca na sua vida tivera um caso de amor com um começo tão estranho nem tão intrigante.

Enquanto esperava por Demelza, mal podia acreditar na sua própria excitação.

Parecia crescer dentro dele, fazendo o seu coração bater mais depressa. Podia ser um rapaz de dezoito anos à espera do seu primeiro amor, em vez de um cínico blasé que experimentara

pensava ele, todos os prazeres do amor e acabara sempre por os achar enfadonhos.

De repente, pensou que afinal Demelza não viria, e ele nunca mais poderia entrar na passagem secreta para chegar ao quarto dela.

Depois pensou que ninguém de aparência tão pura e tão honesta podia mentir. Se ela lhe tinha dito que viria, então seria fiel à sua palavra.

Achou que era natural que uma pessoa tão espiritual, com uma aura de santidade que nunca encontrara em nenhuma mulher por quem se sentira atraído, estivesse albergada num quarto santificado por aqueles que assistiam à missa dita por um padre ordenado.

Ainda estava sozinho, e agora começava a sentir medo. Talvez, no último momento, Demelza achasse que era um risco demasiado grande deixar o seu esconderijo.

Talvez alguém a tivesse visto sair de uma das portas que só

ela podia abrir e que mais ninguém descobrira.

Então, enquanto os seus medos e apreensões pareciam escarnecer dele, viu-a.

Vinha em direcção a ele como o fantasma pelo qual, de início, ele a tomara, caminhando tão silenciosamente e sem nenhum esforço pela vereda entre as filas de ervas que era dificil acreditar que ela era real.

Por fim, ficou a seu lado, e, quando ele se levantou, ela disse:

- Peço desculpa pelo... atraso. Os arbustos cresceram tanto à volta da porta secreta que dá para o jardim que foi dificil... passar.

- Mas já está aqui - disse ele - e a coisa que eu mais quero no mundo é falar consigo outra vez, Demelza.

- Eu queria dizer-lhe como fiquei contente por o Crusader ter ganho - respondeu Demelza -, mas suponho que já deve saber isso.

- Foi totalmente graças a si - disse ele - e tanto eu como o Crusader lhe estamos muito gratos!

- Foi a corrida mais emocionante a que eu alguma vez assisti.

- Também é essa a minha opinião - concordou o conde -, e para mim foi particularmente emocionante porque sabia que também estava a assistir.

Fora isto que Demelza também sentira, e ergueu os olhos para ele. Depois, como se se sentisse envergonhada, voltou a baixá-los.

- Quero oferecer-lhe uma coisa para comemorar a nossa vitória - disse o conde. - Mas é muito difícil saber o quê.

- Não! - respondeu ela rapidamente. - Não deve... fazer isso!

- Porque não? - perguntou ele.

- Porque eu teria de explicar. de onde. tinha vindo o presente, e isso... como sabe... é algo que eu não posso fazer.

O conde ficou em silêncio. Depois disse:

- Durante quanto tempo vamos continuar este fingimento? Eu sei, e a Demelza também sabe, que, devido às coisas que fizemos juntos, significamos mais um para o outro do que se fôssemos meros conhecidos.

Aguardou a resposta dela, mas Demelza não disse nada, e ele continuou:

- Acha mesmo que no sábado, depois de as corridas acabarem, ou talvez no domingo, eu posso ir-me embora da Mansão e esquecer tudo o que aconteceu aqui?

Demelza continuou calada e, após um momento, o conde perguntou:

- Vai ser capaz de me esquecer, Demelza, sabendo que eu não posso esquecê-la?

Então, ela disse em voz baixa:

- Nunca hei-de... esquecê-lo... e rezarei... por si.

- E pensa que isso é suficiente? Quero vê-la, quero estar consigo, Demelza, e, para ser honesto, o que eu mais quero nesta vida é segurá-la nos meus braços e beijá-la.

A sua voz parecia vibrar no ar entre eles. Depois, o conde acrescentou:

- Não me lembro, nunca na minha vida, de ter pedido a uma mulher para a beijar. Mas tenho medo de a assustar, medo de que desapareça e eu não possa encontrar, nunca mais, a minha Dama de Branco.

A sua voz tornou-se mais profunda ao perguntar-lhe:

- Posso beijá-la, meu adorável fantasma?

Estendeu os braços para ela. Demelza não se moveu, mas algo o deteve antes de lhe tocar.

- Acho que... se me beijasse - sussurrou ela - seria maravilhoso... mais maravilhoso do que qualquer outra coisa no mundo... mas não seria... correcto.

- Correcto? - perguntou o conde.

Esperou por uma explicação, e, depois de uma breve hesitação, Demelza disse:

- Hoje ouvi dizer como sofreu em criança... e pensei muitas vezes... em como deve ter sofrido por causa do seu... casamento... mas... embora eu gostasse de fazer... tudo o que me pedisse... não seria correcto... porque pertence... a outra pessoa.

- Está a dizer que eu pertenço à minha mulher? - perguntou o conde, incrédulo.

- É... casado. Fez um voto sagrado - disse Demelza, em voz baixa.

- Um voto que nenhum ser humano devia ser obrigado a cumprir, em tais circunstâncias! - respondeu o conde com brusquidão.

- Eu sei... eu compreendo. Mas mesmo assim... eu acharia que não... seria correcto... e isso estragaria o... amor que... de outro modo... lhe poderia dar.

O conde estava imóvel.

Mal podia acreditar no que Demelza dizia, e no entanto pen sou que aquilo não era mais do que o que esperava que ela sentisse, visto ser tão diferente de qualquer outra das mulheres que conhecera.

Em voz alta, disse:

- Que sabe do amor? O amor que talvez me desse se não pensasse que era proibido? Diga-me!

Era uma ordem e Demelza apertou as mãos uma contra a outra. Depois, afastando o olhar do dele em direcção ao jardim, respondeu:

- Tenho pensado no amor... e embora me possa achar muito... ignorante e tola... penso que é uma coisa... de que precisa... na sua vida.

- Acredita realmente que eu tenho falta de amor? - perguntou o conde, e era óbvio o cinismo na sua voz.

Demelza fez um pequeno gesto expressivo com as mãos.

- Penso, e de novo talvez ache que seja uma tolice da minha parte, que há tipos diferentes de amor... e o amor que conhece, aquele... que lhe daria a senhora linda que tentou drogar-lhe o vinho, não é o mesmo que...

A voz de Demelza esmoreceu, e o conde sabia que ela estivera prestes a dizer que o meu, mas se envergonhara.

- Fale-me do seu amor - pediu ele, ternamente -, o amor que daria a um homem a quem entregasse o seu coração.

- Eu sei - começou Demelza, suavemente -, que se amasse muito uma pessoa... nunca haveria de querer... magoá-la. Na realidade, gostaria de a proteger contra toda a espécie de dor...

não só... fisica, mas também... espiritual.

- Amor de mãe, na realidade - murmurou o conde, em voz muito baixa.

Mas não queria interrompê-la, e Demelza continuou:

- Haveria também o meu amor pelo... homem... com quem casasse e. esse amor é. na minha opinião. parte de Deus que... criou tudo o que é belo, tudo o que cresce e faz parte da. criação.

Olhou de relance para ele ao falar, perguntando-se se estaria a sorrir com cinismo para o que ela tentava descrever. Depois, porque estava nervosa, continuou rapidamente:

- Por fim... penso que se estivesse apaixonada... não quereria aprender apenas sobre... o amor, mas também... sobre tudo o que um homem como... o senhor pode ensinar porque tem tanta... experiência e inevitavelmente teria um horizonte mais... extenso do que o da... mulher que... o amasse.

Houve um silêncio, e após uns instantes, o conde perguntou:

- Seria possível encontrar o amor de mãe, mulher e criança numa só pessoa?

- Se fosse... amor verdadeiro... o amor que realmente... importa respondeu Demelza -, então, acredito que seria possível.

Olhou para ele antes de continuar:

- Seria como procurar. o Tosão de Ouro. o Santo Graal, e talvez... as Portas do Céu, mas seria o amor que foi prometido originalmente aos seres humanos no paraíso terrestre.

A sua voz era tão comovedora que o conde susteve a respiração antes de dizer:

- E a Demelza impede-me de aí entrar, como o anjo que protegia esse jardim com uma espada de fogo.

Adivinhou a dor nos olhos dela, e sabia, porque os seus dedos entrelaçados estavam tensos, que a tinha magoado.

- Não quero... fazer isso - gritou ela - mas... como posso... evitá-lo?

- Como pode ser tão cruel? Como pode negar-me aquilo que no seu coração sabe que me pertence?

Ela não respondeu.

- Olhe para mim, Demelza.

Obedientemente, ela ergueu a cabeça. O crepúsculo transformara-se em noite, e os primeiros raios prateados da lua caíam sobre o seu rosto.

O conde fitou os olhos preocupados de Demelza, que continham fé e inocência na sua profundeza roxa.

Demorou-se a olhar para os seus lábios macios e entreabertos,

e sabia que tanto para ele como para ela o tempo não tinha significado e isto era o que ele procurara toda a vida. Viu a expressão de dúvida no rosto de Demelza transformar-se.

Agora, havia um esplendor súbito, como se ela sentisse, tal

como ele, que se tinham encontrado na eternidade, e que já não eram dois seres, mas um só.

Não era apenas o que eles viam, estava ali na união dos seus corações e ainda com mais profundeza na agitação das suas almas, tentando alcançar o que fora perdido e que, no entanto, ainda não fora encontrado.

Era tão belo, de uma transcendência tão divina, que foram envolvidos por uma luz que vinha de dentro deles, mais vívida do que a luz do luar.

- Amas-me! - disse o conde com voz rouca. - Amas-me, meu adorável fantasma, e és minha.

- Sim, amo-te! Amo-te... de todas as maneiras que tentei inadequadamente... explicar... mas depois desta noite... não posso voltar a ver-te.

- Acreditas realmente que eu te deixaria sair da minha vida

- perguntou ele, revoltado - ou, melhor, que te fechasses longe de mim?

Ela ficou em silêncio, e ele continuou:

- Sabes que o que nos aconteceu é algo tão único e perfeito que mal posso acreditar que não seja fruto da minha imaginação, uma fantasia criada pelo mistério da própria Mansão.

- Não posso fazer... mais nada - murmurou Demelza.

- Nada!

- Isso não é verdade - disse o conde -, e convencer-te-ei do meu amor por ti, e do teu por mim.

Abriu os braços com resolução ao falar, determinado a quebrar o feitiço que o impedira, contra a sua vontade, de lhe tocar.

Ao fazer isto, sentiram os dois, de repente, que alguém entrara no jardim e estava na abertura entre as duas paredes, olhando em volta.

- Gerard... - sussurrou Demelza, em voz baixa.

- Não te mexas - disse o conde, de modo a que só ela o pudesse ouvir. - Deixa isto comigo.

Ergueu-se sem pressa do banco, ficando completamente de pé, escondendo Demelza atrás de si.

- Está aí, senhor conde! - exclamou Gerard. - Os criados disseram-me que voltara e que o tinham visto no jardim. Não percebi porque não veio ter connosco.

O conde caminhou em direcção a ele.

- Tinha calor e estava cansado de falar, depois de tanta conversa no Castelo - respondeu.

- Então se quer ficar só, e não... - começou Gerard.

- Não, claro que não! Tenho muito prazer em vê-lo - interrompeu o conde. - Voltemos juntos para casa. Há tempos que tencionava falar consigo. Estão dois quadros lá em casa que, se precisar de dinheiro, tenho a certeza de que lhe renderiam uma boa maquia em qualquer leilão.

- A sério? - perguntou Gerard, avidamente. - Não pensei que houvesse nada que valesse alguma coisa em toda a casa!

- Ambos precisam de ser limpos - respondeu o conde. Por acaso, eu sou perito em Rubens e não me importava de apostar uma grande soma em que o quadro no alto das escadas é um dos seus primeiros.

- E o outro? - perguntou Gerard.

- Num canto escuro da biblioteca há, sem dúvida, um pequeno Perugino autêntico.

- Fantástico!

Demelza ouviu a excitação na voz de Gerard, enquanto os dois homens se afastavam para o outro lado do jardim.

Se era verdade o que o conde dizia, pensou ela, então Gerard poderia ter os cavalos que quisesse, viver a vida como gostava, e talvez gastar algum dinheiro e renovar a Mansão.

Mas ela sabia que isto não alteraria a relação entre ela e o

conde.

Era verdade que o amava; amava-o com todo o seu coração,

e achou que ia lamentar, durante toda a vida, não o ter deixado beijá- la, como ele queria.

Não imaginava nada mais próximo do Paraíso do que sentir

os braços dele à sua volta e os seus lábios nos dela.

Mas, como ela dissera, não teria sido correcto.

Levantou-se do banco no caramanchão e, estendendo os dedos, arrancou uma flor de madressilva.

Metê-la-ia entre as páginas da sua Bíblia, e talvez aquilo fosse tudo o que tivesse para recordar durante o resto da sua vida; aquele momento em que perdera o coração, que deixara de lhe pertencer.

Aproximou dos lábios a flor da madressilva.

Depois olhou na direcção da casa, tentando ouvir a voz do conde. Mas só havia silêncio, à excepção de um grito de morcego a voar no alto.

- Adeus. meu herói. meu único. amor. - sussurrou ela, e a sua voz quebrou-se.

 

CAPÍTULO SEXTO

- Esta Ascot correu-lhe muito bem, senhor conde! - disse Gerard Langston, enquanto o conde conduzia os cavalos, através do trânsito, à entrada da pista.

O conde não respondeu, e ele continuou:

- Três cavalos vencedores, incluindo a Taça de Ouro, é o que qualquer dono de cavalos de corrida pode desejar.

Havia uma certa nota de inveja na sua voz que fez o conde dizer em tom consolador:

-A corrida em que o seu cavalo participou foi das mais emocionantes da semana.

- Não pode ser considerada completamente satisfatória - respondeu Gerard -, tomando em consideração que foi um empate.

Fez uma pausa para acrescentar:

- Isso significa que o dinheiro do prémio vai ser dividido por dois, e também as apostas que fiz no Firebird.

- Será certamente melhor no ano que vem - disse o conde. Falou automaticamente, como se os seus pensamentos estivessem noutro lugar.

Embora não se tivesse apercebido, vários amigos seus olharam para ele surpreendidos quando, na primeira corrida, depois de o seu cavalo cruzar a linha de chegada com um avanço de um comprimento e meio em relação aos outros concorrentes, o conde parecera curiosamente desinteressado.

De facto, para o conde, este fora um dia tão frustrante que lhe parecia quase impossível concentrar-se fosse no que fosse que lhe dissessem.

Não acreditara que Demelza tivesse falado a sério na noite de

quinta-feira e que, de facto, não tencionasse voltar a vê-lo. No dia seguinte, o conde voltara rapidamente para casa depois das corridas, sentindo uma ansiedade que não conhecia, seguro de que ela iria ter com ele ao jardim depois do jantar.

Assim, para surpresa dos seus convidados, insistira em jantar cedo e depois conseguira habilmente que todos jogassem às cartas excepto ele.

Isto deixara-o livre para ir passear, com um ar aparentemente casual, até ao jardim.

Sentado no caramanchão coberto de madressilva, esperara e esperara até finalmente perceber que Demelza não tencionava juntar-se a ele.

Foi nessa altura que, pela primeira vez, sentiu medo. Tinha a certeza de que seria impossível, se ela estivesse determinada a não o deixar entrar, descobrir uma forma de penetrar nas passagens secretas, e quando se deitou continuava a pensar, desesperado, de que maneira poderia comunicar com ela.

Ele sabia que dizer ao irmão ou a Nattie que se tinham encontrado pareceria a Demelza uma traição, que ela certamente não lhe perdoaria.

Mas que alternativa tinha ele?

Na sexta-feira, a multidão era tanta que lhe foi impossível distinguir qualquer pessoa.

Se Demelza quisesse esconder-se, descobri-la entre a multidão agitada à volta da pista de corrida seria como encontrar uma agulha em palheiro.

Além disso, o número de carruagens e carroças parecia ter aumentado desde o princípio da semana.

"Que posso fazer? Que posso fazer? perguntava ele, a si próprio, incessantemente.

Pensou que pela primeira vez na sua vida não só a sorte o tinha abandonado mas também a sua habilidade no que dizia respeito às mulheres.

Antes, o conde sempre achara muito fácil marcar encontro com qualquer mulher que o atraísse. Mas que aquela a quem declarara o seu amor o evitasse, era uma experiência nova e desagradável.

Com qualquer outra mulher, ele sabia que podia fazer-lhe a corte e teria a certeza de que mais cedo ou mais tarde ela sucumbiria aos seus encantos, mas Demelza era diferente.

Tão diferente, pensou, agora de regresso à Mansão, que se sentia mais preocupado do que nunca com a possibilidade de ser obrigado a ir-se embora e não voltar a vê-la.

Tivera a certeza, ao sair de casa naquela manhã, de que o único sítio onde não poderia deixar de a ver seria no recinto onde se selavam os cavalos, antes da segunda corrida, na qual o Firebird participava.

Vira Abbot, falara com o velhote, e desejara a Jem boa sorte. Mas quando olhou em volta para os que estavam a observar os cavalos, não viu ninguém com olhos grandes cor de amor-perfeito num rosto pequeno e oval.

Na noite anterior, quando Demelza não aparecera no caramanchão, como ele esperava, dissera a si próprio, bruscamente que estava a ser imbecil.

Como podia ter a certeza de não ter sido iludido pelo mistério da Mansão, as passagens secretas e a aparência fantasmagórica de Demelza, a ponto de a achar mais adorável e desejável do que era na realidade?

Mas sentiu que as suas dúvidas traíam o seu próprio coração e que Demelza significava mais para si do que qualquer outra mulher antes dela. Se tivesse de dedicar toda a sua vida a procurá-la, fá-lo-ia.

Era torturante saber que ela estava tão próximo e, no entanto, tão longe, lá no alto da casa, mas guardada pelo mistério de uma fortaleza inexpugnável.

Para todos os efeitos, ela poderia estar no Norte da Escócia,

ou nas vastidões da Cornualha.

Ainda era mais frustrante pensar que estavam separados apenas pelos degraus tortuosos de uma escadaria secreta. Achando que até os cavalos se tinham tornado de pouca  importância para ele, o conde decidiu ir-se embora depois da terceira corrida.

Ele sabia muito bem que, devido à multidão, a dificuldade para desimpedir a pista era sempre maior no último dia das corridas, e a quarta corrida podia atrasar-se até depois das seis da tarde.

Assim, não disse nada aos amigos e dirigiu-se, resoluto, ao seu faetonte, achando que pouca gente iria reparar na sua partida.

O rei não assistira às corridas desde quinta-feira, mas a Tribuna Real estivera à disposição dos seus amigos mais íntimos, e o champanhe correra com tanta abundância como se Sua Majestade estivesse presente.

O conde, porém, não bebera nada desde o almoço, pois tinha a sensação de que precisava de manter o espírito lúcido para poder resolver o que já começava a parecer-lhe um problema insolúvel.

Encontrou o faetonte, e estava prestes a subir quando Gerard Langston o saudou.

- Vai-se embora tão cedo, senhor conde?

O jovem tinha o rosto afogueado, pois estivera a celebrar a vitória parcial do Firebird, e o conde, de repente, achou que Demelza não gostaria que o seu irmão continuasse a beber.

Assim, com uma delicadeza invulgar, respondeu:

- Sim, vou-me embora para evitar a confusão. Não quer vir comigo?

Era um favor que até um homem mais velho e mais importante teria dificuldade em recusar.

Todos sabiam que o conde era tão exigente em relação aos seus companheiros, e especialmente aos que o acompanhavam em viagem, que Gerard, por um instante, teve dificuldade em responder.

Por fim, enquanto o conde subia para a carruagem, ele conseguiu gaguejar:

- Se... seria uma grande honra, senhor conde. O conde mal esperou que ele subisse para o assento ao seu lado, antes de fazer andar os cavalos e de, Jim ter saltado para o banco de trás.

Depois atravessaram os portões de ferro e saíram para a estrada, onde os camponeses, com os fatos de trabalho, conviviam com trapaceiros de rosto esguio, vindos de Londres.

Gerard, cumprimentando os amigos, que olhavam admirados para ele, sentado ao lado do conde, manteve-se em silêncio até terem saído da Estrada de Londres e entrado numa que dava a volta ao fundo da pista.

Depois, olhou para o conde e, vendo a sua expressão sombria, perguntou a si próprio se algo o teria aborrecido.

O conde estava, na realidade, a pensar numa maneira de abordar o assunto de Demelza.

Parecia-lhe um pouco tarde para perguntar a Langston se este tinha uma irmã, depois de estar na Mansão desde segunda-feira.

Era igualmente impossível dizer-lhe: "Conheci a sua irmã, e gostaria de a ver outra vez. "

Mas se não dissesse nada, sabia que esperariam que ele se fosse embora nessa noite, tal como os amigos, ou o mais tardar na manhã seguinte.

Lord Ghirn e Lord Ramsgill nem voltariam mais à Mansão e tinham-se despedido naquela manhã, antes de partirem para as corridas.

O Honourable Ralph Mears ia para Londres, e só voltaria à Mansão para buscar as malas.

O conde estava à espera que Gerard Langston, a qualquer momento, lhe perguntasse se ele se iria embora antes do jantar, e ele não sabia que resposta lhe dar.

"Tenho de ver a Demelza outra vez - tem de ser! ", pensou. E, contudo, tinha o pressentimento nítido de que, mesmo se ele traísse a sua confiança e mandasse o irmão buscá-la ao Aposento dos Padres, ela poderia recusar-se a vir.

"Meu Deus, que posso eu fazer? ", perguntou ele desesperado, em jeito de oração.

De repente, viu-a; viu-a à frente deles, num cabriolé antiquado.

Primeiro reconheceu Nattie, ao ver as costas direitas e o vestido de algodão cinzento que ela trajava sempre, com gola e punhos brancos. Na cabeça, tinha um chapelinho preto de palha que lhe escondia a cara, mas o conde achava que a reconheceria em qualquer lado.

E ao seu lado estava uma figura de sílfide.

Demelza vestia de branco, e o seu chapéu pequeno e fora de moda estava guarnecido com uma grinalda de flores brancas.

Imediatamente, o conde pensou que esta era a oportunidade que ele esperara. Só tinha de dizer ao jovem sentado ao seu lado: "Aquela senhora ali à frente é a sua ama, não é? Quem é a rapariga que está com ela?

Mais uma vez, pensou o conde com súbito contentamento, a sorte não o abandonara, e parecia erguê-lo do que julgara ser as profundezas do desespero.

Parecia-lhe que o Sol surgira subitamente na escuridão da noite, e apertou as rédeas com os dedos, fazendo abrandar o cavalo, não fosse a estrada alargar e ele ser obrigado a ultrapassar o cabriolé.

Então, aconteceu tudo muito depressa.

Da desembocadura de uma estrada lateral, escondida por uma sebe alta, saiu uma carruagem, puxada por dois cavalos, que vinha depressa de mais, conduzida por um homem de meia-idade, de face corada, que obviamente bebera em excesso.

Foi-lhe completamente impossível ultrapassar o cabriolé, que estava no meio da estrada na altura em que se encontraram.

Num esforço desesperado para evitar um acidente, virou os cavalos, mas a roda da sua carruagem encaixou-se no cabriolé, e este virou-se.

Tentando controlar os seus animais, o conde, horrorizado, viu o cabriolé virar-se para a berma da estrada e a passageira de branco ser cuspida.

Tudo aconteceu tão depressa que não houve tempo para gritar qualquer aviso, nem mesmo uma exclamação, perante o que ocorrera.

Conduzindo habilmente, o conde afastou os seus cavalos dos que vinham a puxar a carruagem a grande velocidade e que agora se empinavam e puxavam, subitamente bloqueados pelas rodas presas.

Enquanto o condutor da carruagem começava a gritar e a barafustar, o conde entregou as rédeas a Gerard Langston.

- Segure-se! - disse ele com brusquidão.

Saltou da carruagem e correu em direcção ao cabriolé antes de Gerard ou de Jim se terem apercebido completamente do que tinha acontecido.

Demelza fora lançada do cabriolé, por cima da erva da berma da estrada, e caíra numa vala seca, do outro lado.

Quando o conde se inclinou e a tomou nos braços, o chapéu de Demelza caiu para trás e ficou preso pelos laços, por baixo do pescoço.

Ao olhar para o seu rosto pequeno, as pestanas escuras contra a pele branca, o conde pensou, por um momento de horror, que ela podia estar morta.

Foi um medo que o atravessou como um punhal. Depois viu-lhe a testa pisada e percebeu que estava apenas desmaiada. Ele estava com um joelho no chão, amparando-a como a um bebé, quando Nattie se levantou da erva onde tinha caído e exclamou:

- Miss Demelza! Oh! minha querida, o que é que lhe aconteceu?

- Não é grave - disse o conde em tom consolador. - Deve ter batido com a cabeça numa pedra, mas não me parece que tenha nada partido.

Nattie, com o chapéu preto caído para um lado da cabeça grisalha, ficou a olhar desconcertada e, talvez pela primeira vez na vida, insegura.

Atrás dela, Jim tentava estabelecer a ordem no meio de todo aquele caos.

Mãos solícitas apareceram de todos os lados para ajudar a desprender as rodas dos dois veículos. O moço do homem de cara vermelha já tinha os cavalos sob controlo, e o velho cavalo que vinha a puxar o cabriolé já estava de pé e pastava, despreocupadamente, a erva.

O conde levantou Demelza nos braços e levou-a para a sua carruagem. Sem esperar instruções, Nattie seguiu-o.

Gerard, que segurava os cavalos do conde com alguma dificuldade, inclinou-se para a frente quando eles se aproximaram e perguntou, ansioso:

- Ela está ferida? Aquele maldito não tinha o direito de conduzir tão perigosamente.

O conde não respondeu. Em vez disso, perguntou a Nattie:

- Pode subir lá para trás?

- Penso que sim, senhor conde.

Conseguiu instalar-se no assento traseiro.

Segurando Demelza com muito cuidado, com o rosto dela contra o seu ombro, o conde sentou-se no lugar anteriormente ocupado por Gerard.

- Não está muito ferida, pois não? - perguntou Gerard. O conde apercebeu-se do tom de preocupação na sua voz, e respondeu:

- Acho que está com um traumatismo craniano. Assim que chegarmos à Mansão temos de chamar um médico.

- Gostava de dizer àquele idiota o que penso dele - disse Gerard entre dentes.

O conde pensava o mesmo, mas sabia que a condução irresponsável do bêbedo resolvera o seu problema pessoal e lhe colocara nos braços a rapariga que não o queria ver mais porque achava que o amor entre eles não era correcto.

Segurando-a como se ela fosse uma criança, o conde olhou para Demelza e achou-a ainda mais adorável à luz do dia do que à noite.

Desapertou-lhe os laços sob o pescoço com muito cuidado para poder retirar-lhe o chapéu.

Depois apertou-a contra o seu coração e pensou que o cabelo dela, de um louro tão pálido que parecia prateado, era a coisa mais bonita que alguma vez vira.

"Amo-te! ", queria ele dizer, e apertou-a nos braços instintivamente, sabendo que nunca voltaria a deixá-la partir.

Jim desimpedira a estrada, o cabriolé fora empurrado em direcção à berma, e o cavalo velho, solto do varal do carro, foi levado para casa pelo rapaz que vinha a conduzi-lo.

A carruagem do bêbedo tinha uma roda torta, mas se fosse conduzida devagar talvez pudesse chegar a uma aldeia, onde haveria certamente um carpinteiro para a consertar.

- Agora já pode passar - disse o conde.

Gerard fez avançar os cavalos, pensando que nunca na vida esperara ter a oportunidade de conduzir animais tão magníficos e esperando não fazer figura triste.

A Mansão estava próxima, e o conde sabia que, Jim os seguiria e que certamente iria por um atalho através das árvores, coisa que eles não poderiam fazer.

Contudo, estava preocupado apenas com Demelza, segurando-a nos braços como fora seu desejo e com uma vontade tão intensa de lhe beijar os lábios que o surpreendia a ele próprio.

Ao passarem pelos portões enferrujados, disse:

- Sugiro que enquanto eu levo a sua irmã lá para cima, vá imediatamente ao Castelo de Windsor. Encontrará aí o médico de Sua Majestade. Diga a Sir William Knighton que vai da minha parte e peça-lhe que venha aqui o mais depressa possível.

Gerard olhou para o conde de relance.

- Sabe que ela é minha irmã?

- Soube que tinha uma irmã... - respondeu o conde, evasivamente.

Algo na sua voz fez Gerard dizer, rapidamente.

- Chama-se Demelza, mas não podia aparecer enquanto a casa estivesse só com homens.

- Claro que não! - concordou o conde.

Gerard fez parar os cavalos em frente à porta principal.

- Quer mesmo que eu vá a Windsor? - perguntou, com o tom de voz de uma criança a quem foi oferecido algo perfeitamente impensável.

- É melhor levar um lacaio consigo - respondeu o conde.

- O Jim já deve ter chegado aos portões.

- Se não, espero por ele - disse Gerard.

O seu tom de voz teria divertido o conde, se não estivesse tão preocupado com Demelza.

Os criados aproximaram-se a correr para ajudar o conde a descer do carro, mas quando tentaram tirar-lhe Demelza dos braços, ele abanou a cabeça:

- Ajudem Miss Nattie - ordenou, e um lacaio apressou-se a obedecer.

Com Demelza nos braços, o conde entrou no vestíbulo.

- Houve um acidente, senhor conde? - perguntou o intendente.

O conde não se deu ao trabalho de responder e esperou por Nattie. Quando esta se aproximou, só com olhos para Demelza, ele disse-lhe:

- Mostre-me o quarto da sua patroa.

Sem desperdiçar palavras, Nattie começou a subir as escadas à sua frente.

Enquanto seguia atrás dela, o conde pensava que Demelza era tão leve, tão frágil, que poderia ser de facto, com a sua palidez, o fantasma pelo qual ele a tomara inicialmente.

Olhou para ela e reparou que a marca na testa, que devia ter sido causada por uma pedra, estava mais profunda na sua pele branca, mas o seu corpo estava quente e suave, e o conde, decidido, disse a si próprio que nunca a perderia.

És minha! Minha para todo o sempre! ", pensou ele, do fundo do coração.

Se o conde tinha passado uma sexta-feira terrível, Demelza também.

Quando acordou de manhã cedo doía- lhe a cabeça e tinha os olhos inchados de tanto chorar até adormecer.

Uma coisa era fazer o que considerava correcto e dizer ao conde que nunca o voltaria a ver, outra era caminhar sozinha na escuridão da passagem secreta.

Enquanto subia as escadas em caracol até ao Aposento dos Padres, sabia que estava a ocultar-se do mundo e do conde em particular.

- Eu amo-o! Amo-o! - gritou ela para a Imagem Sagrada por cima do altar.

Embora soubesse que estava a fazer o que considerava correcto aos olhos de Deus, o seu corpo ansiava pelo conde com uma intensidade que se tornava cada vez mais dolorosa.

Foi com a maior dificuldade que se coibiu de descer as escadas a correr e abrir o painel secreto que dava para o quarto de seu pai.

- Se, pelo menos, pudesse vê-lo mais uma vez! Se pudesse deixá-lo dar-me um beijo de despedida - rogava ela à sua consciência -, então teria algo de que me lembrar; algo que trazer junto ao coração para o resto da vida.

Mas sabia que se se deixasse levar pelo impulso que lhe fazia desejar os braços do conde à sua volta e os seus lábios nos dela, seria impossível negar-lhe qualquer outra coisa que ele lhe pedisse.

Nunca imaginara que o amor pudesse ser tão violento nem tão cruel.

Sentia-se dilacerada pelo desejo de um amor proibido. Como podia tudo isto ter acontecido? E contudo, apesar da dor terrível que sentia, não lamentava o que se tinha passado. O conde personificava tudo o que ela sempre sonhara num homem, e embora talvez não o voltasse a ver, sabia que a sua imagem ficara gravada para sempre não só no seu coração mas também ante os seus olhos.

Como poderia haver outro homem que o igualasse? Como poderia haver outro homem que a emocionasse como ele fazia de tal forma que, quando ele estava ao seu lado, ela se sentia palpitar de uma maneira até aí desconhecida?

- Isto é amor! - disse ela a si própria.

Depois, porque este amor era inatingível, porque ela se afastara deliberadamente dele, as lágrimas começaram a brotar.

De início, apenas se acumularam nos seus olhos, depois começaram a correr lentamente pelo seu rosto até que, subitamente, se atirou para cima da cama e chorou até molhar a almofada.

Mais tarde, naquela noite, torturou-se com a ideia de que o conde a esqueceria facilmente.

Tinha muitas mulheres bonitas dispostas a consolá-lo; mulheres tão belas como Lady Sydel e Lady Plymworth, de quem a primeira tivera tantos ciúmes.

Era óbvio que dentro de algumas semanas, talvez antes, ele esqueceria o fantasma que o intrigara por algum tempo.

- Mas eu nunca o esquecerei! - chorou Demelza. - Sou um fantasma que se apaixonou e por isso serei assombrada para o resto da vida.

Chorou até adormecer, e o único pensamento que iluminava a escuridão era saber que, embora o conde não a pudesse ver, ela podia, pelo menos, vê- lo a ele.

- Na minha opinião - disse Nattie, quando trouxe o pequeno-almoço de Demelza -, cinco dias de corridas é de mais para qualquer pessoa! Parece estafada, miss, e o menino Gerard está numa agitação terrível por causa do Firebird, e pediu brandy ao pequeno-almoço. Não sei o que diria a sua mãe se o ouvisse!

Não esperara pela resposta de Demelza e precipitara-se pelas escadas abaixo, para prestar assistência a Gerard, que sempre fora o seu favorito, enquanto Demelza, visto não querer que Nattie se preocupasse, fizera o possível por apagar as marcas das suas lágrimas.

Fosse o que fosse que sentisse pelo conde, era impossível não se preocupar com Firebird.

Afinal de contas, Abbot e ela tinham-no treinado, levado a dar voltas à pista de manhã cedo, fizesse sol ou fizesse chuva, e por vezes tinham dificuldade em arranjar dinheiro para o alimentar convenientemente.

- Sir Gerard ficará com o louvor se ele ganhar - dissera Demelza a Abbot uma vez -, mas a glória será nossa! Quem fez o esforço fomos nós.

- Lá isso é verdade, Miss Demelza - respondera Abbot -, e duvido que o menino Gerard alguma vez se aperceba do trabalho que tivemos para pôr este cavalo nas melhores condições:

-Achas mesmo que ele está nas melhores condições? - perguntara Demelza uma semana antes das corridas.

- Se não estiver, a culpa não é sua nem minha, Miss Demelza - respondeu Abbot. - Mas não se preocupe com ele, com um bocado de sorte, vai ver que ganha.

Demelza recordou estas palavras e achou-as reconfortantes no momento em que ela e Nattie partiram de cabriolé para assistir às corridas.

Nesse dia, porque Abbot estava com Firebird, foram conduzidas por um rapaz um tanto estúpido que estava empregado nas cavalariças, pois era mais barato do que qualquer outro.

- Não me agrada que seja só o Ben a conduzi-las amanhã Miss Demelza - dissera Abbot, quando regressaram das corridas na sexta-feira à tarde.

- O Ben serve perfeitamente - respondeu Demelza. - Tu vais ter muito que fazer com o Firebird para te preocupares conosco.

- Diz-lhe que fique ao pé do cabriolé e que não se meta no meio da multidão - disse Nattie, com secura. - Se o fizer, é bem capaz de se esquecer de nós e ainda temos de conduzir até casa sozinhas.

- Eu digo-lhe o que ele tem a fazer - prometeu Abbot, e Ben, de facto, ficou ao lado do cabriolé o dia todo.

Visto ter a certeza de que o conde estaria à sua procura, Demelza, para surpresa de Nattie, não insistira em ver o cavalo antes da corrida.

- Pensei que haveria de querer dar uma data de instruções de última hora ao Jem - disse ela.

- O Jem é um bom jóquei, e agora já é tarde para palavras

- respondeu Demelza.

Mas ao falar, sentia que todos os nervos no seu corpo ansiavam por ir ao recinto, não para ver Jem nem o cavalo, mas para ver o conde.

Sabia como ele estaria contente por um dos seus cavalos ter ganho a primeira corrida. Ao mesmo tempo, estava certa de que ele teria ido ver Firebird e talvez desejar boa sorte a Gerard.

Era a primeira vez que o nome de Gerard aparecia nos cartões como proprietário, e ela teria adorado estar ao seu lado para partilhar a sua excitação e o seu orgulho.

"Vai ficar muito orgulhoso quando o Firebird ganhar, pensou ela.

Sentiu uma súbita ansiedade ao pensar na possibilidade de o cavalo perder e de Gerard ficar com uma grande quantidade de dívidas de jogo em mãos e sem dinheiro para as liquidar.

Depois, lembrou-se dos mil guinéus que o conde pagara pelo aluguer da Mansão.

Havia tantas formas de aplicar esse dinheiro na Mansão, mas estava convencida de que Gerard o gastaria facilmente na sua vida em Londres.

Soltou um pequeno suspiro, e Nattie, ouvindo-a, disse:

- Não fique angustiada por causa do cavalo, Miss Demelza. Ele vai ganhar, está lá para isso, e se isso não acontecer, não há nada que possa fazer, miss.

As suas palavras forçaram um leve sorriso nos lábios de Demelza

- sempre tão reconfortante, querida Nattie - disse ela. Ao falar, pensou que, no futuro, precisaria de todo o conforto que a velha ama lhe pudesse dar.

Viu o conde às voltas no recinto em frente da Tribuna Real. Também o viu passar por entre os espectadores, em direcção aos cavalos.

Só com uma grande força de vontade conseguiu coibir-se de atravessar a pista a correr e juntar-se a ele, enquanto falava com Abbot.

De pé no cabriolé, Demelza viu-o a fazer festas no pescoço de Firebird e dizer a Jem palavras de ânimo.

Depois, com medo que ele a visse e fosse atraído em direcção a ela pela força do seu desejo, sentou-se e não voltou a olhar até a corrida começar.

Foi uma desilusão Firebird não ser o vencedor, mas Bard correra melhor do que se esperava e, pelo menos, na opinião de Demelza, Gerard ficaria satisfeito por o cavalo correr tão bem na primeira vez que participava numa competição.

Nattie ficara ainda mais entusiasmada do que ela.

- Acho que podemos dizer, Miss Demelza, que valeram a pena todas as vezes que entrou em casa enregelada até aos ossos, depois de montar com o vento de norte, ou com aspecto de rato afogado, depois de exercitar o cavalo à chuva.

- Sim, valeu a pena - concordou Demelza - e o Gerard vai ficar contentíssimo.

Viu os olhos de Nattie a brilharem de prazer, e acrescentou:

- Pelo menos, deve ter ganho algum dinheiro por ter apostado nos cavalos do conde, bem como no Firebird.

- Já lhe disse muitas vezes que nem sequer devia apostar - disse Nattie.

Mas não utilizou a voz de repreensão que tanto Demelza como Gerard tão bem conheciam.

Quando Nattie disse que eram horas de se irem embora, depois da terceira corrida, Demelza procurou o conde com o olhar, dizendo a si própria que esta era a última vez que o via.

Ela sabia, porque Nattie lhe dissera, que dois dos seus convidados já não voltariam à Mansão.

Ambos deram a Nattie uma gratificação generosa, e Demelza sabia que quando estivessem outra vez sós e Ascot voltasse a ser o local tranquilo e vazio de antes, o dinheiro seria gasto em comida.

Demelza revistou com o olhar a Tribuna Real e o recinto à sua frente em busca da figura alta e bonita que fazia sempre o seu coração bater mais depressa.

Mas não viu o conde, e embora dissesse a si própria que era absurdo, sentiu-se ainda mais desanimada do que antes.

Ben manobrou o cabriolé com alguma dificuldade entre os carros e carruagens dispostos em quatro filas ao longo da pista, e serpentearam através da charneca por entre barracas e tendas de jogo.

Quando chegaram à estrada principal, esta estava apinhada, mas menos do que estaria depois da última corrida, e todos os carros, coches e carruagens se moviam ao mesmo tempo em direcção a Windsor e a Londres.

- Vai saber-me bem uma chávena de chá quando chegar a casa, e suponho que a menina vai querer limonada, minha querida.

- Seria bem refrescante - respondeu Demelza.

- Ponho gelo lá dentro - disse Nattie. - O cozinheiro mandou vir hoje um bloco grande para refrescar o champanhe dos cavalheiros. É coisa que vemos raramente na Mansão.

Demelza não estava a ouvir.

Pensava no conde, de pé, na sala de estar, talvez pela última vez, e lembrava-se de como ela o achara atraente quando o vira pela primeira vez através do orificio do painel.

Até nessa altura o amava, embora não o soubesse. Com uma voz que dificilmente conseguiu fazer parecer casual, disse:

- O senhor conde... vai-se embora... esta tarde? Não chegou a ouvir a resposta à sua pergunta pois, nesse momento, os cavalos que puxavam a carruagem do bêbedo saíram do desvio e, um segundo antes de estes atingirem o cabriolé, enquanto Ben começava tardiamente a puxar o cavalo para a esquerda, Demelza percebeu que ia haver um acidente.

Quis soltar um grito de aviso mas, antes de o poder fazer, deu-se o impacte violento das rodas a chocarem e ela sentiu o cabriolé virar-se.

Depois, a escuridão. Demelza perdeu os sentidos...

Voltou a si com a sensação de atravessar um longo túnel em direcção a uma luz ténue ao fundo.

Sentia-se fraca e, de certo modo, separada do corpo. Teve dificuldade em mover-se e, no entanto, algo lhe dizia que o devia fazer.

Nattie estava junto dela, segurando-lhe a cabeça da maneira como sempre fizera desde que Demelza era pequena, aproximando-lhe qualquer coisa dos lábios.

- O... o que é... que aconteceu? - tentou Demelza perguntar, mas não conseguiu ouvir a sua própria voz.

Após um momento, como se soubesse o que ela queria, Natie disse:

-Já passou. Está sã e salva!

-Houve... um... acidente?

- Sim, um acidente - concordou Nattie - e bateu com a cabeça numa pedra, mas o médico diz que não tem nada partido, e que só teve um pequeno traumatismo craniano.

-Eu... estou... bem.

Era uma afirmação, mas Nattie pensou que fosse uma pergunta.

- Perfeitamente! O próprio médico de Sua Majestade veio vê-la, não uma, mas duas vezes!

- Duas vezes.

Demelza repetiu as palavras e depois perguntou:

- Há quanto. tempo?

- Veio primeiro ontem, quando o acidente ocorreu, e veio outra vez hoje. Disse que se precisássemos dele viria de Londres. Grande despesa havia de ser!

Demelza deve ter parecido preocupada, pois Nattie acrescentou rapidamente:

- Não se preocupe. Nós não pagamos nada. O senhor conde tratou de tudo.

-O... o senhor... conde?

- Sim, e foi muito amável, recusou-se a ir embora até Sir William a ver pela segunda vez.

- Foi-se. embora?

Nattie bateu nas almofadas para as afofar e pousou nelas,

suavemente, a cabeça de Demelza.

- Sim, foi-se embora esta manhã. Não há nada que o prenda aqui, agora que as corridas acabaram.

- Pois não... nada - repetiu Demelza, e fechou os olhos.

Horas depois, nessa tarde, Nattie insistiu que Demelza comesse qualquer coisa, e embora lhe fosse dificil comer, sentiu-se melhor.

- Onde está o Gerard? - perguntou, achando estranho que ele ainda não a tivesse vindo ver.

- Voltou para Londres com o senhor conde, e deixou cá o Rollo - respondeu Nattie. - E fez bem, na minha opinião. O cavalo precisa de descansar.

Demelza pensou na alegria de Gerard por viajar na companhia do conde. Mas tinham-se ido embora, e embora ela considerasse que era uma tolice, sentiu-se abandonada.

- O menino Gerard disse que voltava num dia da próxima semana - disse Nattie. - Por isso é melhor que se ponha boa. E o Abbot quer vê-la. Está muito preocupado, por o acidente ter sido culpa do Ben.

- Não lhe disseste que ele não podia fazer nada?

- O rapaz devia ter-se colocado mais à esquerda - disse Nattie - o cavalheiro da outra carruagem estava a conduzir como um louco! Eu cá digo sempre...

Nattie continuou a falar, mas Demelza deixara de a ouvir. Estava a pensar em Gerard e no conde de regresso a Londres e que agora a casa ficaria muito tranquila.

Não se ouviriam mais risos vindos da sala de jantar, e o quarto de seu pai estaria vazio. Já não seria preciso trancar o painel secreto perto da lareira.

Pensou em como conseguira salvar o conde da adorável senhora que o tentara drogar, e em como salvara Crusader da mesma sorte.

Estes seriam os fantasmas que a assombrariam, e sempre que fosse ao caramanchão coberto de madressilva pensaria no conde, ali, à espera dela.

Recordou que sentira algo vivo, emocionante, excitante, dentro dela, a atraí-la para ele, e embora nunca se tivessem tocado, sabia que estavam muito próximos.

Tinha lágrimas nos olhos. Mas já ultrapassara o choro. Agora tudo terminara, e o futuro era triste e sombrio.

Demelza desceu as escadas com muito cuidado pois sabia que se andasse depressa se sentiria ainda um pouco tonta. Na: opinião de Nattie, deveria ter ficado na cama.

- Qual é a pressa de se levantar? - perguntou Nattie com a sua voz de repreensão. - Não precisa de ir para lado nenhum

Isso era verdade, concordou Demelza. Mas por outro lado era pior ficar na cama, sem nada para fazer além de pensar, do que passear.

Assim, insistira em levantar-se e vestir-se depois de comer o almoço que Nattie lhe trouxera à cama.

Pôs um dos seus vestidos brancos e arranjou o cabelo. Ao espelho viu que estava muito pálida e que os seus olhos pareciam quase anormalmente grandes e escuros.

- Agora não se ponha a fazer coisas a mais - dizia Nattie.

- Vou estar ocupada na cozinha, e por volta das quatro da tarde trago- lhe uma chávena de chá. Depois volta para a cama.

Não esperou pela resposta de Demelza e foi-se embora apressadamente, resolvida a esfregar e a limpar, agora que os visitantes se tinham ido, embora não houvesse urgência em fazê-lo.

Demelza chegou ao vestíbulo e reparou que todas as rosas na mesa ao fundo das escadas estavam a largar as pétalas e que a jarra precisava de ser novamente cheia.

As flores da sala também estavam um pouco murchas, mas a sua fragrância ainda pairava no ar.

Ela dirigiu-se à janela pensando se estaria suficientemente forte para ir ao caramanchão.

Depois percebeu que ainda não conseguiria fazê-lo, nem enfrentar a intensidade do sentimento que isso evocaria.

Teria de resistir para se tornar forte. Só nessa altura poderia invocar e recordar a magia que acontecera ali e a maravilha vibrante da voz do conde ao dizer-lhe que a amava.

As suas recordações seriam uma tortura, pensou, mas que podia ela fazer?

Ficou à janela a olhar para o jardim, para o sol a brilhar nos rododendros, a sua beleza aliviando, de algum modo, o seu coração magoado.

Ouviu a porta da sala de estar abrir-se, mas não virou a cabeça, à espera de ouvir Nattie a ralhar por não estar sentada com os pés levantados, como lhe tinham dito para fazer.

Então, como só havia silêncio, coisa muito improvável em Nattie, virou- se e, de repente, o coração pareceu saltar-lhe no peito e foi-lhe impossível respirar.

O conde estava ali, de pé, e parecia tão irresistível, tão elegante e tão bonito como no espírito de Demelza desde o momento em que voltara a si.

Fitou-o de olhos muito abertos, achando que não podia ser verdade.

Só quando ele se aproximou, ela sentiu desaparecer a paralisia que a mantivera sem fala, e então pôde tremer.

- Estás melhor?

A sua voz era profunda, e ela sentiu-se vibrar ao ouvi-la.

- Estou... estou... bem.

- Tenho estado terrivelmente preocupado contigo.

- Por... porque estás aqui?

Ele sorriu.

- Trouxe o Gerard e um negociante de arte. Neste momento estão a examinar os quadros da galeria onde te vi pela primeira vez.

- Que bom... da tua parte.

As palavras pareciam sair-lhe dos lábios aos solavancos. Era tão difícil falar quando ele a olhava da maneira como o fazia agora.

- Vem sentar-te - disse o conde. - Quero falar contigo. Olhou para ele, intrigada, e porque algo nele a impeliu a fazê-lo, afastou-se da janela e sentou-se no sofá perto da lareira.

- Temos muito a dizer um ao outro - disse o conde -, mas, em primeiro lugar, o mais importante: quando queres casar comigo, meu amor?

Demelza olhou para ele, estupefacta. Mas como ele esperava uma resposta, conseguiu balbuciar:

- Eu... eu pensei... eu... percebi...

- Isso é algo que tenho de explicar - disse o conde -, e, de certo modo, pedir o teu perdão.

- O meu... perdão?

Ele estava sentado ao seu lado, mas levantou-se e ficou de costas para a lareira. Depois disse, com uma voz grave que ela desconhecia:

- Na realidade, enganei-te, embora não fosse essa a minha intenção. A minha mulher morreu há mais de cinco anos.

Demelza tinha os olhos postos nele, mas não conseguiu falar. Sentiu apenas que as brumas de infelicidade que a envolviam se dissipavam, e que as nuvens se abriam para deixar entrar um longo e dourado raio de sol.

- Não posso explicar o que sofri - continuou o conde -, quando, pouco depois do meu casamento, que fora combinado pelos meus pais alguns anos antes, a minha mulher enlouqueceu. Basta dizer que, quando fui finalmente obrigado a mandá-la para um asilo, jurei que nunca mais me deixaria humilhar em circunstâncias semelhantes.

Respirou profundamente como se se lembrasse dos horrores que nunca contara a ninguém, mas que tinham deixado cicatrizes que ele pensava nunca mais sararem.

- Mas descobri - continuou o conde -, quando entrei sozinho no mundo da sociedade, ostensivamente como homem livre, que não só podia esquecer mas também que a minha situação peculiar podia ter as suas vantagens.

Não precisou de explicar-se, pois Demelza compreendeu que embora as mulheres o achassem irresistivelmente atraente não se punha a questão de terem uma situação permanente na sua

vida, nem esperarem uma união legal.

- Não preciso de te dizer - disse o conde - que depois de descobrir que havia algumas compensações em ser um homem casado sem compromissos, quando a minha mulher morreu mantive a sua morte em segredo, até para os meus amigos mais íntimos.

Olhava para Demelza enquanto falava. Depois acrescentou, suavemente:

-Jurei que nunca voltaria a casar, e até te conhecer, meu amor, não tive vontade de me prender a ninguém.

- Eu... compreendo - disse Demelza em voz baixa.

- Mas quando me mandaste embora, percebi que não poderia viver sem ti.

Houve um silêncio momentâneo, e o conde prosseguiu:

- Estava decidido, fossem quais fossem os obstáculos que me pusesses à frente, a ver-te, a estar contigo. Mas quando te vi ser atirada do cabriolé à minha frente, percebi que se tu morresses eu não quereria continuar a viver.

Falava tão baixo que, por um momento, Demelza não se apercebeu completamente do impacte das suas palavras. Depois, ao compreender, moveu-se pela primeira vez desde

que o conde começara a falar, e apertou as mãos uma contra a outra.

- Foi por isso que voltei - disse o conde -, para explicar o que já devia ter explicado antes, e pedir-te para seres minha mulher.

Os seus olhos cruzaram-se com os dela, mas ele não se aproximou. Em vez disso, olharam um para o outro durante muito tempo.

Então, tal como ele, Demelza levantou-se e dirigiu-se, não para ele, mas para a janela.

- Eu... amo-te! Amo-te tanto que não aguentaria... que al guma vez te... arrependesses.

Os olhos do conde estavam postos nela, mas ele não falou, e após alguns instantes, Demelza murmurou, hesitante, como se procurasse as palavras:

- Agora que estás livre... não seria errado... do ponto de vista... de Deus... e não haveria ninguém para discordar... à excepção de Nattie e de Gerard... farei tudo o que... me pedires... mas não precisas de me fazer... tua mulher.

A sua voz esmoreceu, e pela primeira vez desde que se levantara, virou- se para olhar para ele.

Ela viu uma expressão no rosto dele que, por momentos, não compreendeu, depois ele aproximou-se e, com muita suavidade,  tomou-a nos braços.

Demelza encostou a cabeça ao ombro do conde, e ele olhou-a com uma ternura que parecia, de momento, alterar a sua expressão tão radicalmente que poderia ser outro homem.

A sua voz, muito profunda, denunciava comoção, ao dizer:

- Achas mesmo que é isso o que eu quero, minha querida,

meu amor, meu adorável fantasma? Quero-te para minha mu lher. Quero-te porque já me pertences; porque fazemos parte um do outro, e nunca voltarei a perder-te.

Apertou-a um pouco contra si, e disse:

- Tenciono ligar-te a mim com todos os laços e juramentos que existem, mas acho que nós já estamos ligados um ao outro e que nenhum voto de casamento poderá aproximar-nos mais.

Demelza ergueu a cabeça, e ele viu pelo resplendor súbito nos seus olhos que isto era o que ela queria ouvir.

Olharam um para o outro longamente, depois os lábios do conde procuraram os dela.

Parecia a Demelza que tudo o que desejara estava naquele beijo. O contacto com os seus lábios fez desaparecer a dor que sentira e, no seu lugar, ficou a maravilha e a glória que vinha do próprio céu.

Isto era o que ela pensava ser o amor - o amor de Deus, tão perfeito, tão divino que não parecia deste mundo.

E, contudo, a proximidade do seu beijo fê-la sentir como se estivesse a ser invadida por um esplendor ofuscante, tal a sua intensidade, e tão insistentemente maravilhoso que se tornava quase uma dor fisica.

Ela sentiu a pressão nos seus lábios aumentar, os braços dele apertarem- na, e agora beijava-a mais apaixonadamente, mais imperiosamente, mais possessivamente.

- Eu... amo-te! - queria ela gritar.

Mas não havia palavras para expressar o facto de que se tinham encontrado e que agora, como desde o início, não eram dois seres, mas um só.

 

CAPÍTULO SÉTIMO

O Sol que brilhava todo o dia enviando um calor agradável foi subitamente escondido por nuvens que trouxeram uma rabanada de vento.

Não era chuva fria, mas morna, e veio saciar a terra sedenta que o Sol secara durante o Verão.

O conde, conduzindo o seu tiro de cavalos, não abrandou a velocidade à medida que eles avançavam velozmente ao longo das estreitas estradas de província que serpenteavam em direcção ao mar.

De um vale verdejante erguia-se suavemente um monte e, quando chegaram ao alto, o conde olhou para o fundo e viu o azul vívido do Atlântico e, em baixo, aninhadas entre as árvores, as chaminés e telhados de uma casa comprida e baixa.

Pela primeira vez, fez os cavalos correrem mais depressa, e a expressão do seu rosto conferia-lhe um ar de ansiedade quase juvenil.

Ainda teve de andar um pouco até chegar finalmente à casa e vê-la à sua frente, os jardins ainda alegres com as cores do Outono.

Construída originalmente para um priorado, a Casa Trevarnon, que pertencia à família do conde havia mais de quinhentos anos, não era apenas bonita, mas irradiava também um calor suave e acolhedor para as pessoas que se aproximavam dela.

A chuva parara tão inesperadamente como começara, e o Sol estava outra vez esplendoroso e brilhava nas janelas de muitos vidros, tornando-as de um dourado cintilante, como se estivessem iluminadas do interior.

O conde fez parar os cavalos, levemente ofegantes devido à

velocidade que tinham mantido, em frente ao pórtico da entrada principal.

Os moços de estrebaria vieram a correr e ele largou as rédeas

e dirigiu-se ao vestíbulo.

Só lá estavam um mordomo muito velho e um jovem criado, que lhe pegaram no chapéu e nas luvas. Entretanto, Dawson apareceu e disse:

- A senhora condessa pediu-me que me certificasse que o senhor conde mudasse de casaco, pois o que traz vestido está

húmido.

- Choveu muito pouco - respondeu o conde.

Mas Dawson ficou à espera, e o conde, impaciente, despiu o casaco de montar cinzento e justo e desabotoou o colete.

Dawson segurou-os e ajudou-o a vestir um casaco ligeiramente mais confortável, que geralmente usava em casa. Então, o conde viu que o criado de quarto também tinha na mão uma gravata de musselina.

- Francamente, Dawson - exclamou ele -, isso não é necessário!

- A senhora condessa tem medo que o senhor conde apanhe um torcicolo.

- Alguma vez me viste com semelhante coisa? – perguntou o conde.

- Há sempre uma primeira vez, senhor conde.

O conde tirou a gravata que tinha no pescoço, e ao pegar na musselina que Dawson lhe estendia, disse:

-Suspeito, Dawson, de que estou a ser simultaneamente apaparicado e tiranizado.

Dawson sorriu abertamente.

- Sim, senhor conde, mas não queremos que a senhora condessa se preocupe.

O conde sorriu.

- Não, Dawson, não queremos que ela se preocupe.

Apertou a gravata com dedos hábeis, saiu do vestíbulo e caminhou pelo corredor para onde davam os graciosos quartos recheados de tesouros familiares que, até à vinda de ambos para a Cornualha, ele não via há muito.

Ele sabia que Demelza estaria na estufa das laranjeiras que o seu avô, em velho, transformara numa sala de estar que servia ao mesmo tempo de estufa e de onde também se podia avistar os jardins.

Parecia estar sempre cheia de sol, e, quando abriu a porta, a fragância das flores atingiu-o quase como uma onda do mar.

Não havia apenas as velhas laranjeiras trazidas de Espanha dois séculos atrás, mas também orquídeas, lírios exóticos, cactos floridos e pequenas azáleas anãs que em tempos floresceram nos sopés dos Himalaias.

Ao fundo da sala, reclinada numa chaise-longue junto à janela, estava Demelza.

Não ouvira o conde aproximar-se, e ele observou de perfil o seu rosto levantado, os olhos erguidos para o céu, como se estivesse a rezar, como na primeira vez que ele a vira, no Aposento dos Padres.

Dois saniels castanhos e brancos deitados aos pés dela ouviram-no primeiro e, ao correrem para ele, Demelza também se levantou e os seus olhos profundos e roxos pareciam conter o Sol.

- Valient! Já voltaste!

Foi um grito de pura alegria. Atravessou a sala a correr, e o conde abraçou-a.

- Estás... bem? Estás... a salvo? - perguntou ela, mas as palavras não pareciam importar.

Foi a expressão do seu rosto que atraiu a atenção do conde, e o saber que, porque se estavam a tocar, mais nada importava.

- Tiveste saudades minhas?

A sua voz era profunda.

- Foi um dia muito... muito... comprido.

- Também achei.

- Tive medo que... a chuva te atrasasse. Molhaste-te?

- Só choveu um bocadinho - respondeu ele - e como vês já mudei de roupa.

- Era o que eu... queria que... fizesses.

- Estás a tornar-me mole - queixou-se ele.

Ela riu-se suavemente.

- Isso era impossível, mas até para uma pessoa tão... forte como. tu, não vale a pena correr. riscos.

Ao falar, meteu as mãos por debaixo do casaco dele, dizendo:

- A camisa está húmida?

Os braços do conde apertaram-na com mais força quando este sentiu as mãos dela nas suas costas, apalpando os músculos fortes e atléticos por baixo do tecido macio, e os seus olhos brilharam.

Inclinou a cabeça, ao encontro dos lábios dela, e prenderam-se num beijo que varreu todos os pensamentos excepto a noção de que estavam juntos.

O beijo durou muito tempo, e quando o conde finalmente soltou Demelza, o rosto dela estava radiante e os seus lábios macios e entreabertos, com a insistência dos dele.

- Querido, tenho... tanto para... te dizer - murmurou ela numa voz ligeiramente trémula. - Mas primeiro tens de beber e comer qualquer coisa. Estiveste a viajar durante muito tempo.

Pegou-lhe na mão e levou-o para um lado da estufa, onde se via uma mesa sobre a qual estavam colocadas várias travessas de prata cobertas, aquecidas por baixo por velas acesas.

Havia também um balde cheio de gelo, dentro do qual repousava uma garrafa de champanhe aberta.

- Pastéis da Cornualha feitos como tu gostas - disse Demelza - e caranguejos apanhados esta manhã na baía.

- Tenho fome - confessou o conde -, mas não quero perder o apetite para o jantar.

- Ainda faltam duas horas para o jantar - respondeu ela -, mandei fazê- lo para tarde, não fosses atrasar-te.

O conde tirou um pastel da Cornualha de uma travessa de prata e encheu um copo de champanhe.

Depois, com os olhos na sua mulher, sentou-se numa cadeira confortável e ela voltou a sentar-se na larga chaise-longue coberta com almofadas de cetim.

- Agora conta-me o que fizeste - perguntou ela, ansiosa.

- Comprei duas éguas excepcionais em Penzance - respondeu o conde. - Tenho a certeza de que hão-de melhorar a nossa raça de cavalos e vão estar na idade certa para o Crusader quando o pusermos a reproduzir, depois de ganhar o Derby.

- Estás muito seguro de isso acontecer - troçou Demelza.

- Não posso pensar outra coisa, sendo aquele cavalo teu e meu - respondeu o conde.

- Ainda bem que a tua viagem foi... frutuosa - disse ela.

- Tive medo de teres ido tão longe para. no fim. voltares desiludido.

- Eu sabia que o Gardew tinha bons cavalos - respondeu o conde - mas estes são excepcionais.

- Também tenho... notícias para... ti - disse Demelza.

O conde esperou, a olhar para ela de frente, acariciando distraidamente com uma mão a orelha de um dos saniels, que tentava captar a sua atenção.

- Hoje, acabaram de construir os obstáculos.

Tratava-se obviamente de uma notícia que se revestia de alguma importância.

- Acabaram? - exclamou o conde. - Foi o Hewson que te disse?

- Ele quis fazer-te uma surpresa - disse Demelza - e eu também. São exactamente iguais aos que foram construídos na pista do Grand National.

Fez uma pausa para acrescentar:

- Agora tens possibilidade de ganhar o Grand National e o Derby.

- Não há dúvida de que é um desafio - disse o conde -, mas eu não estou habituado às corridas de obstáculos e talvez seja mais difícil do que treinar o Crusader para as corridas simples.

- Dar-te-á outro tipo de interesse.

Ele encarou-a de modo penetrante e perguntou:

- Estás a sugerir que preciso de mais interesses? Ela olhou-o de um modo que exprimia melhor os seus sentimentos do que se usasse palavras.

- Tenho sempre... medo - disse ela, suavemente - que comeces... a ficar aborrecido, sem festas... sem todas aquelas pessoas... divertidas e espirituosas que sempre... te rodearam.

O conde sorriu, como se algo secretamente o divertisse, depois perguntou:

- Achas realmente que eu sinto a falta delas quando tenho aqui contigo uma coisa que nunca tive na minha vida?

Viu a interrogação nos olhos de Demelza, mas antes de ela poder falar, ele acrescentou:

- Um lar! Isso foi uma coisa que todo o meu dinheiro nunca conseguiu comprar. O lar que não tive em criança, mas que encontrei aqui.

O conde pousou o copo de champanhe e levantou-se para ir àjanela e olhar a vista lindíssima que se estendia até ao horizonte.

- Londres parece que está muito longe - disse ele, após um momento de silêncio.

- Em breve as pessoas... vão regressar para passarem... o Inverno.

- Estás a tentar-me? - perguntou o conde, com um leve tom de divertimento na voz.

- Isso é uma coisa que eu não... desejo nada - respondeu Demelza. - Sabes que, para mim, estar aqui contigo é como... estar no Paraíso. Nunca fui tão feliz.

O conde aproximou-se da mulher e sentou-se na beira da chaise-longue, de frente para ela.

- É verdade que te tornei feliz? - perguntou.

Ele já conhecia a resposta antes de ela dizer, com uma intensidade muito comovedora na voz:

- Todos os dias penso que é impossível ser mais feliz ou amar-te mais. Mas todas... as noites percebo que estou enganada, e que me dás um... amor novo e arrebatador que eu não sabia... que existia.

O conde não respondeu, mas ficou a olhar para ela e, após

um momento, Demelza perguntou um tanto ansiosamente:

-Em que estás... a pensar?

- Estou sem saber o que é que tens que me enfeitiça todas as vezes que olho para ti. Acho que na realidade não és um fantasma, mas sim uma feiticeira.

Demelza riu-se.

- Podes ter a certeza que já não sou um fantasma - disse ela. - Eu é que estou... assombrada, como sempre estive desde o primeiro. momento que. te vi.

- Pensas que eu não estou assombrado também? - perguntou o conde com uma voz grave. - Assombrado não só pelos teus olhos, os teus lábios e o teu maravilhoso corpo, querida, mas também pelo teu coração, e principalmente pelo teu amor. Isso é uma coisa a que espero nunca poder fugir.

- E quererias... fazê-lo? - perguntou Demelza.

- Esperas que te responda a uma pergunta tão tola? - perguntou ele. - Se és feliz, como pensas que me sinto sabendo que és minha, sabendo que temos tudo o que realmente importa neste mundo.

- Oh, Valient!

Demelza estendeu os braços para ele, mas ele continuou sentado a olhá- la, examinando o seu rosto como se este fosse tão precioso, tão perfeito, que devesse fixar todas as suas linhas.

- Tenho mais uma coisa a dizer-te - disse ela. - Hoje recebi uma carta do Gerard.

- Estava à espera que ele dissesse qualquer coisa.

- Está tão contente por tu teres deixado que ele guardasse os seus novos cavalos de corrida nas tuas cavalariças em Newmarket... Isso foi... óptimo.

- Havia muito espaço - respondeu o conde, em tom despreocupado - agora que temos aqui tantos daqueles que interessam.

- E o Gerard sente-se à vontade financeiramente, agora que conseguiu tanto dinheiro com a venda dos quadros, aqueles que só tu reconheceste como tendo valor.

Voltou-se para o conde, semicerrando os olhos, ao dizer:

- Eu acho, diz a verdade, que tu... obrigaste o comerciante de arte a pagar mais dinheiro por ele do que ele... teria pago.

- Não há dúvida de que o fiz pagar o que eu considerei ser o seu justo valor, e recusei-me a deixá-lo tratar o Gerard como um simplório no que diz respeito à arte, coisa que ele é, de facto.

- Fizeste-o muito feliz - disse Demelza, sorrindo.

- Estou mais preocupado com os sentimentos da irmã dele

- respondeu o conde.

- Queres que te diga como te... estou grata?

- Eu gosto que estejas grata - disse o conde -, mas o meu interesse pelo teu irmão é completamente egoísta. Não queria que tu te preocupasses com ele, e te preocupasses só comigo.

Demelza riu-se.

- muito... possessivo.

- Não só possessivo - respondeu o conde -, mas fanaticamente ciumento. Não suporto, e isto é a verdade, Demelza, que penses em qualquer outra coisa ou qualquer outra pessoa que não seja eu. Quero possuir todas as partículas da tua pessoa.

A sua voz tornou-se mais grave enquanto continuava, apaixonadamente:

- Quero possuir-te como mulher. Quero que sejas minha da cabeça aos pés, mas também quero o teu espírito, o teu coração e a tua alma.

Tocou-lhe na face com os lábios.

- Aviso-te, meu amor, como já o fiz antes, que tenho ciúmes até do ar que respiras!

- Oh! Valient, já sabes que eu... te pertenço de todas as... formas possíveis. Faço parte de ti e eu sei que se tu... morresses, ou... te cansasses de mim, tornar-me-ia, de facto, o fantasma que em tempos... pensaste que eu era.

- Cansar-me de ti é uma possibilidade que nem sequer precisamos de considerar - disse o conde - e espero, se Deus quiser, que vivamos os dois até sermos muito velhos.

- Isso nunca será suficiente para mim - murmurou Demelza -, mas tens de tentar, meu querido marido, não ser demasiado. ciumento.

- Porque hei-de tentar ser o que não sou? - perguntou o conde. - O ciúme é uma emoção nova, no que me diz respeito, e embora ache doloroso, há uma compensação no facto de saber que tenho de lutar e de me empenhar para te possuir tão completamente como desejo.

- Lutar? - perguntou ela.

- Por vezes, dá-me a sensação de que tens algo de fugidio

- respondeu o conde -, algum segredo dentro de ti que não é completamente meu.

- Porque... hás-de... pensar isso?

Agora, Demelza tinha os olhos velados e as suas pestanas pareciam escuras, contrastando com a transparência da sua pele branca.

- Há qualquer coisa - disse o conde, quase como se estivesse a falar sozinho. - À noite, quando estás deitada nos meus braços depois de termos alcançado as asas do êxtase, sinto que estamos tão próximos, tão completamente unidos que os nossos corações batem em uníssono e que não temos vida separada. Depois, quando vem o dia...

- O que é... que acontece?

- Sinto que me escapas - respondeu o conde -, tal como agora sinto que há qualquer coisa que me escondes, mas o que pode ser, não faço ideia.

Estendeu as mãos subitamente e pousou-as nos seus ombros.

- O que é? - inquiriu ele. - O que é que escondes de uma pessoa que te quer possuir totalmente, o homem que te adora, mas que ao mesmo tempo é o teu conquistador?

Demelza mantinha-se muito suave e dócil sob a pressão das suas mãos e do tom quase violento da sua voz.

-Talvez seja porque... nós estamos... tão próximos, meu

amor - disse ela, após um instante - que conhecemos não só cada... inflexão na voz do outro mas também todos os segredos... todas as perturbações das nossas... almas, que estão tão enleadas que pensamos como... um únicopensamento.

- Não respondeste à minha pergunta - disse o conde. Tens um segredo! Eu sei! Sei, instintivamente! Ontem à noite pensei que havia qualquer coisa, e quando entrei aqui hoje, tive a certeza absoluta.

Agarrou-a com mais força.

- Não me vais manter na ignorância! - gritou ele. - Diz-me o que eu não sei, pois não permitirei que brinques comigo.

- Não estou... a brincar contigo, meu amado marido - respondeu Demelza. - É só que tenho... medo.

- De mim?

Demelza abanou a cabeça.

- Nunca poderia ter... medo de ti... mas talvez... um pouco dos teus... ciúmes.

O conde franziu o sobrolho.

- Que podias tu fazer que me causasse ciúmes? Demelza não respondeu, e após um momento, o conde perguntou:

- Que estás a tentar dizer-me?

Demelza olhou para ele de soslaio, depois desviou outra vez o olhar, e ele viu-a corar.

- Apenas - sussurrou ela - que talvez não... possa... ver-te ganhar... o Grand National.

Por um instante o conde não compreendeu; depois, quando lhe tirou as mãos dos ombros, perguntou:

- Estás a dizer, minha querida... será possível... tão cedo?

- Sim... é cedo - disse Demelza - mas como tu... também tenho... a certeza absoluta!

O conde abraçou-a e apertou-a contra ele.

- Porque não me disseste?

- Queria... ter a certeza.

- E também tinhas medo que eu tivesse ciúmes?

-Depois... do que tu... acabaste de dizer... muito medo!

- Terei ciúmes se tu amares os nossos filhos mais do que me amas a mim - disse ele. - Mas de uma coisa tenho a certeza:

nunca sofrerão como eu de abandono e indiferença, nem de falta de amor.

- Isso nunca - concordou Demelza. - Meu maravilhoso... excepcional marido... devemos ambos dar-lhes amor, mas tu estarás sempre à frente... com muito avanço... bem sabes.

A voz de Demelza palpitava de paixão e isto fez regressar o brilho aos olhos do conde, mas como se tentasse segurar o seu desejo dentro dos limites, disse a brincar:

- Será possível um fantasma ter um bebé?

- Não sou um fantasma - protestou Demelza. - Fizeste de mim uma mulher... uma mulher que te ama... que te ama tanto... e tão esmagadoramente que não consegue imaginar nada mais... perfeito do que ter uma pequena réplica de... ti.

- Se eu te vou dar um filho - disse o conde -, devo insistir em dar-te também uma filha, parecida contigo, minha querida, e que eu também possa amar.

- A casa é suficientemente grande para... todos os filhos que quisermos - respondeu Demelza - e o jardim é tão bonito, e o mar está tão perto, mas talvez.

Ela interrompeu de repente o que estava a dizer e o conde, que lhe acariciava a face macia com os lábios, ergueu a cabeça para perguntar:

- Talvez o quê?

- Talvez quando eles forem... suficientemente crescidos para gostar... destas coisas, tu queiras deixar a Cornualha para ires para uma das tuas outras... casas.

Sorriu para ela.

- Sei exactamente o que estás a fazer, minha querida. Estás a tentar proteger-te para não sofreres, pensando que não deves contar muito com a minha constância.

Pelo brilho nos olhos de Demelza, o conde viu que tinha adivinhado a verdade e, após um momento, disse:

- Queres que te jure que ficaremos aqui para o resto das nossas vidas?

- Não, claro que não! - gritou ela. - Sabes, desde a altura que me pediste para ser... tua mulher, que tenho tentado deixar-te... livre. Não quero aprisionar-te nem limitar-te como outras... mulheres tentaram fazer. Quero que faças sempre... exactamente o que... desejares.

O conde ficou em silêncio, e ela, após um instante, acrescentou timidamente:

- Isto é o que eu considero um amor verdadeiro. Dar e não exigir; não pedir promessas nem garantias excepto... aquelas que vêm... espontaneamente do coração.

Demelza olhou para ele antes de prosseguir:

- Vás para onde vás... desde que me leves contigo... eu ficarei feliz e contente. Não quero ficar ligada para sempre a um sítio... que possa tornar-se... um peso ou um obstáculo. Só quero... a tua felicidade.

A expressão do conde era de uma ternura intensa. Mesmo após três meses de casados, ela ainda o surpreendia com a profundidade dos seus sentimentos, com uma intuição tão em harmonia com a sua.

Haveria outra mulher no mundo, perguntou-se ele, que não tentasse segurá-lo e prendê-lo? Tentar de algum modo fazê-lo seu prisioneiro?

Sabia que por Demelza o deixar livre ele era completa e totalmente seu cativo. Tudo o que ela dizia e fazia obrigava-o a querê-la ainda mais.

Ela era o que ele procurara na sua imaginação e nunca encontrara; era, na realidade, aquilo que ele pensara ser impossível, mãe, mulher e filha numa figura pequena e etérea.

Só protestava ocasionalmente pela maneira como o amimava e cuidava dele, pois sabia que isso era o que a mãe dele nunca lhe dera.

Como mulher, dava-lhe tudo o que uma mulher profundamente apaixonada podia dar, e muito mais.

Achava a sua inocência tão excitante, tão fascinante, que quando lhe ensinava coisas sobre o amor, ela excitava-o espiritual e fisicamente como nenhuma mulher jamais conseguira.

Ele pensava que, embora viesse a ter alguns ciúmes dos filhos porque eles tomariam muita da atenção de Demelza, se orgulharia deles, como se orgulhava dos seus cavalos e dos seus outros bens.

Mas eles significariam mais e seriam mais absorventes porque eram uma parte real dele e dela.

Amava Demelza de tal modo e lutava tanto por a possuir, como ele próprio dissera, de corpo e alma, que até agora não pensara no facto de que a sua união poderia resultar em filhos.

Agora, sabia que isso a completaria como mulher; uma mu lher que ele amaria de um modo ainda mais profundo e talvez mais apaixonado do que amara a rapariga inocente e fugidia.

Demelza observava-o com um leve toque de ansiedade nos olhos.

- Estás... contente? Estás mesmo... contente, Valient, por eu estar à espera de... bebé?

- Estou contente, minha querida - respondeu o conde -, mas tens de ter muito cuidado contigo. Não admito que ninguém, nem o meu próprio filho, te incomode ou te force a correres riscos.

- Não deves... apaparicar-me.

- Isso é o que eu te digo, mas tu nunca ouves.

- Tudo o que quero é que... me ames - disse Demelza - mesmo quando não for tão... bonita, como me achas... agora.

- Serás sempre a pessoa mais bonita que eu já vi - afirmou o conde, categórico.

Mas Demelza não cheirava a rosas, mas a madressilva, e ele sabia-o porque a fragrância o acompanhava por todos os lados e era-lhe impossível não pensar nela a todo o momento, mesmo quando estavam separados, como tinham estado naquele dia.

Ela sabia que o marido queria continuar a conversar e, nesse momento, ele levantou-se para tirar o casaco. Atirou-o para o chão e sentou-se ao lado de Demelza na chaise- longue, estendendo as pernas, calçadas com as suas brilhantes botas Hessian, e puxou-a para si.

Ela pousou a cabeça no seu ombro e pôs o braço à volta dele para sentir, com os seus dedos compridos e sensíveis, os músculos das suas costas, como fizera antes.

- Tens mais alguma surpresa para mim? - perguntou, com os lábios no cabelo dela.

- Acho que é suficiente... por um dia - respondeu ela - excepto que quero dizer-te... que te... amo!

- Estranho - comentou o conde -, porque isso era exactamente o que eu ia dizer-te a ti!

Sentiu os lábios dela a beijarem-no através da camisa de cambraia macia e o pequeno estremecimento que a percorreu.

O fogo que sentiu por dentro atiçou-se e o conde perguntou:

- O que é que sentes, meu amor?

- Sinto-me muito... emocionada... excitada... porque estou junto de ti.

Ele pôs a mão por baixo do queixo dela e virou-lhe a cara para si.

O amor nos seus olhos e o convite nos seus lábios fizeram-no virar-se e, quando a cabeça dela caiu por cima das almofadas macias, ficou a olhá-la de cima, os seus corpos muito juntos.

- Não houve um momento hoje em que não pensasse em ti - disse ele -, e no entanto, de um modo estranho, estavas comigo.

- Senti isso... também - disse Demelza - mas eu... queria-te! Queria- te... desesperadamente... como estás... agora. Com a mão, o conde acariciou a linha curva da anca dela, depois subiu em direcção aos seus seios macios.

- Dizes-me que sou livre, minha adorada - disse ele - mas nunca poderia ser livre, mesmo que quisesse. Com um pequeno gesto que ele adorava, ela ergueu os lábios. Por um momento, ele hesitou, como se tivesse mais qualquer

coisa a dizer, mas as palavras tornaram-se desnecessárias. Os seus lábios juntaram-se aos dela, e ele sabia que por baixo daquela suavidade havia uma chama palpitante igual à sensação ardente que sentia dentro de si próprio.

O seu coração batia freneticamente contra o de Demelza à medida que a chegava a si, cada vez mais.

Então sentiu a fragrância a madressilva e o mistério obsidiante e a maravilha irrefutável do amor, que era tão livre como o vento, tão profundo como o oceano e tão alto como o céu.

 

                                                                                            Barbara Cartland

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

Planeta Criança                                                             Literatura Licenciosa