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O8/15 - A GUERRA / Hans Hellmut Kirst
O8/15 - A GUERRA / Hans Hellmut Kirst

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O8/15 - A GUERRA

 

08/15 é a referência de uma espingarda-metralhadora utilizada pelo exército alemão

 

Um camião desconhecido estava parado no meio da estrada, monte esquecido de chapas de ferro, borracha e lona. Colava-se-lhe às rodas uma mistura pastosa de neve e lama esmagadas pelas colunas de viaturas.

 

Chegado a este obstáculo, o primeiro-sargento Asch olhou para o seu motorista e levantou a mão. O outro travava já o tractor. O canhão que lhe estava ligado oscilou um momento e imobilizou-se.

 

Quem foi o idiota que deixou aqui a carripana? perguntou o motorista.

 

Já se vai ver isso  respondeu Asch enquanto  saltava do assento.

 

Sobre o tractor, os soldados, envolvidos nos seus capotes como se estivessem metidos em sacos, pouca atenção deram ao incidente. Abrir a boca parecia-lhes absolutamente supérfluo. Contentavam-se em esperar. Já estavam habituados a isso.

 

Asch arrastou-se até ao blindado. Visto de perto, este montão de ferro velho era um carro de comando Mercedes. O capot estava ainda quente. As portas encontravam-se fechadas, mas a capota tinha buracos. Asch pôde ver no interior duas malas e um saco de lona de velas bem cheio.

 

O condutor buzinou uma vez mais; depois parou bruscamente o motor. Inclinando-se sobre o volante, perguntou:

 

Será preciso empurrar para a vala esse piolho rastejante?


Divertia-te, hem?

 

Se me deres ordem, faço-o com prazer  respondeu o motorista sem hesitar.

 

Asch olhava em volta. O que nele se notava primeiro era a barba mal feita. O seu olhar era frio, irónico, um pouco fatigado.

 

A aldeia, situada a alguns quilómetros da frente, parecia abandonada. Mas por detrás das casas escondiam-se viaturas militares. Aqui e além o fumo escapava-se das chaminés.

 

A guerra dormia o seu sono de Inverno e era evidente que ninguém por estes sítios desejava incomodá-la. Mas a Primavera aproximava-se; ia sacudi-la e dizer-lhe: «De pé!» Este verdadeiro sono de Inverno russo não podia durar.

 

Perto do camião abandonado erguia-se uma cabana que parecia prestes a afundar-se na terra. Suspenso da porta via-se um bocado de lona onde tinham pintado toscamente um T.

 

Os tipos devem ter ido dar uma telefonadela  disse o motorista, que sabia, como. toda a gente, que aquele T pintado  de amarelo  indicava um  posto  de ligação telefónica.  Talvez estejam a combinar um encontro.

 

Riu, pois a sua frase pretendia ser um gracejo.

 

Asch riu também. Depois encaminhou-se para a cabana, em cuja parede estava desenhado a giz outro T. com um encontrão abriu a porta calçada, que foi bater contra a parede, fazendo cair cal.

 

O local onde penetrou estava empestado do cheiro de peúgas e de tabaco. Um calor de curral saltou-lhe ao rosto. Uma penumbra sonolenta envolveu-o. Precisou de alguns segundos para reconhecer onde se encontrava.

 

Fecha  a porta,  meu velho  disse  uma voz rude e simpática.  Não estás em tua casa, aqui.

 

Asch empurrou a porta atrás de si. Houve um estrondo e novamente caiu cal. Depois examinou o que o rodeava, como se tivesse intenção de comprar.

 

A casa estava abarrotada de soldados estendidos no chão. Estavam deitados, fumando, matutando, aborrecendo-se, jogando às cartas, gritando uns com os outros. E nenhum parecia preocupar-se com o que faziam os mais. Asch teve a impressão de haver sido introduzido à força numa lata de sardinhas.

 

Perto da porta, exactamente por baixo duma das janelas, encontrava-se um pequeno posto de dez cavilhas. Pouco distante, um soldado coberto de um capote de pele coçada encostava-se a um prumo de madeira. Diante dele estava um outro indivíduo vestido com um capote de tecido ofensivamente novo, esforçando-se por conseguir ligação. Fazia-o com tal energia que o boné lhe escorregou da cabeça. Era um boné de oficial.

 

Asch não se preocupou com o oficial, que gritava ao telefone. Perguntou, no meio da algazarra:

 

A quem pertence a carripana que está lá fora? Ninguém   respondeu.   Ninguém   mostrou   ter   reparado nele. Uma vez dentro da lata, era uma sardinha como as outras.

 

Asch elevou o tom:

 

Perguntei  repetiu  a quem pertence a carripana que está lá fora!

 

É provável que seja a minha  respondeu finalmente o soldado do capote de pele roído pelas traças, sem mudar, pouco que fosse, de posição.

 

Então, fazes favor de sair e de arrumá-la a um lado da estrada. Impede-nos de passar.

 

A estrada é bastante larga. Toda a gente pode passar.

 

Um tractor não pode  disse Asch, e a sua voz tornou-se   mais   enérgica.   Vamos!   Vamos!   Desimpede   o caminho.  Tenho  pouca vontade  de  derrapar para  a vala só porque tu és demasiado mandrião para mudares de sítio a tua trotineta.

Não é uma trotineta. É um carro de comando Mercedes  disse o homem sem se mover um centímetro.

 

Ou  sais,  ou  atiro-o  para  fora  da estrada.

 

O oficial, que ainda não obtivera a ligação, sentiu-se tocado:

 

Cale a boca, peço-lhe  disse com bastante secura, mas também com um certo bom humor de chefe e de camarada.  Não vê que estou a telefonar?

 

Sim, vejo.

 

Então não esteja constantemente a incomodar-me.

 

Asch fez um gesto de assentimento. Depois, aproximando-se do motorista do Mercedes, tão perto que o outro lhe sentiu a respiração e tentou recuar, perguntou:

 

Então,   rapazinho,   vens  ou  não  vens?   Ou  quererás que te ensine a correr?

 

Não  tem  de  dar ordens  ao  meu  motorista   disse o oficial num tom arrogante.  Se alguém lhas pode dar, sou eu.

 

Então dê-as.

 

O oficial deixou cair o auscultador e olhou Asch sem compreender.

 

Que significa esse tom? perguntou. Não vê que tem diante de si um oficial?

 

Vejo perfeitamente.

 

Sou capitão.

 

Sim, meu capitão.

 

Pouco a pouco os outros soldados começavam a interessar-se pela discussão. É certo que, como telefonistas, estavam habituados a conversas deste género, sobretudo em dias críticos, mas nesses casos havia sempre alguns quilómetros de fio entre os antagonistas, o que, como é sabido, dá coragem. Ao contrário, esta explicação, por assim dizer de olhos nos olhos, era muito mais extraordinária e merecia interesse.

 

Meu capitão  disse o sargento com serenidade, com o desejo de dar tão amavelmente quanto possível as lições que não podia evitar, as nossas baterias estão instaladas a quatro quilómetros da frente.

 

Pertence à artilharia?

 

Exactamente.

 

Talvez ao regimento Luschke?

 

Exactamente.

 

Não esqueça que sou capitão.

 

Não, meu capitão.

 

Muito  bem!   exclamou o  oficial, e no  seu  rosto liso,   embora   um   pouco   ossudo,   passou   um   clarão   de triunfo. É da 3.ª bateria? Precisamente da 3.ª bateria? É formidável!

 

Sim, meu capitão  respondeu Asch, impassível. Presentemente   apenas   temos   três   peças   em   bateria.   A quarta estava há dois dias em reparação. Tenho de conduzi-la.   E   o   seu   carro   está   mesmo   no   meio   do   caminho.

 

Se a bateria esteve dois dias sem esse canhão, pode esperar ainda dez minutos, até que eu acabe a minha conversa.

 

Mas o motorista, meu capitão...

 

Eu irei  ver isso  decidiu o capitão.  Quero ver pessoalmente se a sua reclamação, apresentada de maneira absolutamente  contrária  à  disciplina, é justificada,  ou  se se tratará afinal de incapacidade, indolência e mau carácter.

 

Mas o motorista só tem de...

 

Dei-lhe uma ordem, sargento.

 

E se, entretanto...

 

Tenho o costume de assumir inteira responsabilidade pelas ordens que dou. Tome nota disto, sargento. Virá sem dúvida a ser-lhe ainda necessário.

 

Asch achou preferível calar-se. O motorista, por sua vez, ria. agora sem constrangimento.  com energia e tenacidade o capitão gritava outra vez diante do telefone, a fim  de bter a ligação.

O sargento Asch deu meia volta, abriu a porta de par em par e gritou aos soldados que tinham ficado no tractor:

 

Desçam e venham para aqui. A questão parece que vai arrastar-se.

 

O  quê?  O  quê?  perguntou  o motorista,  em voz rude.  Haverá por acaso algum palerma a  levantar  dificuldades?

 

Não respondeu Asch, irreverentemente, ninguém levanta dificuldades.   Contentam-se   em   ensinar-nos   a   disciplina.

 

É alguém que caiu da Lua, não?

 

Também me parece que vem direitinho da terra dele. Os soldados que vinham com o sargento abandonaram

 

o canhão e introduziram-se, resmungando, no estreito pardieiro. Os outros apertaram-se um pouco mais. A atmosfera estava que podia cortar-se à faca. Ao fundo, alguém gemia, esforçando-se por lançar um peso. Os telefonistas resmungavam, furiosos: não conseguiam nada.

 

O capitão, que continuava sem a ligação, enxugou a testa e perguntou num tom azedo:

 

Esses homens não podem esperar lá fora?

 

Não    replicou   o   sargento.    Bem   sabe   que   lá fora faz frio.

 

O capitão não teve tempo de responder. Conseguira enfim a ligação; imediatamente a sua voz tornou-se quase amável:

 

«Ligue-me, se faz favor, ao comandante Baer.»

 

Este, que pertencia, evidentemente, ao Comando Supremo do Exército, respondeu logo, e o capitão, encantado por ter encontrado o seu camarada de bebida, o seu amigo, exclamou:

 

«Como vai isso, Richard? Aqui, Witterer, o capitão Witterer, Paul Witterer. Estás admirado, hem? Já cheguei.»

 

E Witterer, diante das duas dúzias de soldados expandiu-se em expressões de afectuosa camaradagem:

 

«Uma    confusão    pavorosa!»,    exclamou    jovialmente.

 

«Aliás, não se podia esperar outra coisa. Mas nós vamos meter isto na ordem. Esperemos que não haja nada de mais grave. É que o que eu vi até agora é bastante. Era tempo de rejuvenescer tudo isto. Mas deixemos estas bagatelas. Que faz Lisa, a pequena Lisa? Também já vem a caminho?»

 

Os soldados arrebitaram a orelha. Sentia-se que estavam interessados na conversa. Só este nome ’feminino fora bastante para os acordar. E esperavam sinceramente que este «Lisa» não fosse uma camuflagem, uma remessa de munições, por exemplo, mas uma verdadeira mulher de autêntica carne.

 

O próprio Asch estava impressionado: esta Lisa de quem se falava no fundo da Rússia, exactamente por detrás da linha imobilizada da frente, recordava-lhe a sua Elisabeth: Lisa, Elisabeth! Para a maior parte, um nome, nada mais; para ele, um mundo. E, se tal coisa dependesse dele, o único mundo existente. Mas não dependia dele. Aos soldados não se lhes pede a sua opinião. Há-os até que antes querem assim. Preferem que os sangrem por completo a fazerem trabalhar as meninges.

 

Os berros amistosos do capitão ao telefone arrancaram Herbert às suas reflexões. Não tinham elas qualquer sentido, porque poucos eram os que pensavam como ele. É preciso contentar-se cada um com o que tem e tirar daí o melhor proveito. Imediatamente Herbert achou-se solidamente assente sobre a terra batida da cabana.

 

«É formidável!», lançava alegremente Witterer numa voz de trombeta. «Exactamente no nosso sector. E tão depressa. Podes ter a certeza, meu caro, de que é com satisfação que me vou deixar amimar por essa pequerrucha. com Lisa, sempre. E agora até à vista, meu caro amigo. Depressa terás notícias minhas.»

 

O capitão entregou o auscultador ao telefonista. Estava radiante. A conversa que acabara de ter ao telefone melhorara-lhe visivelmente o aspecto. Mas, sem transição, voltou à realidade.

 

É sempre assim aqui?  perguntou ao telefonista.

 

Quase.

 

Pode-se morrer antes de se conseguir ligação.

 

Ninguém cá morreu ainda  respondeu  o soldado, acrescentando, num tom um pouco menos distinto: Infelizmente.

 

Witterer não deu atenção. Endireitou atrevidamente o boné, aprumou-se e olhou Asch com ar provocador. Depois, após uma pausa propositada, disse:

 

Agora nós, sargento.

 

Asch deu meia volta e saiu com o capitão atrás. O motorista seguiu-os, indolentemente, sem que lho tivessem ordenado. Os serventes da peça juntaram-se a eles.

 

Asch deteve-se diante da cabana e com um gesto vago apontou o camião, o tractor e a peça. O capitão aproximou-se dos veículos, examinou-os longamente e fez: «Hum!> Os soldados entreolharam-se, sorrindo.

 

O capitão verificou imediatamente que o sargento tinha razão. A viatura estacionada no meio do estreito caminho constituía um obstáculo que não era possível evitar. Esta rua, calcada durante os meses de Inverno por milhares de veículos, era coisa completamente diferente duma auto-estrada.

 

Chegue o carro para o lado  ordenou de má vontade ao motorista.

 

Porque não o mandou fazer  logo?   perguntou o sargento.

 

O capitão repuxava o cinto. Postou-se diante de Asch. Este admirava-lhe o flamante equipamento novo e regalava-se à vista do capote quase sem nódoas e forrado de pele. Achava admirável tudo isto.

 

O seu comportamento está abaixo de tudo  declarou o capitão, com severidade.

 

O sargento ficou calado. Olhou a paisagem desolada, contemplou por um momento uma chaminé donde o fumo subia para o céu em turbilhão e não disse uma palavra.

 

Como se chama?

 

Asch.

 

E pertence à 3.ª bateria do regimento de artilharia de Luschke?

 

Sim, meu    capitão.

 

E sabe quem é o chefe da sua bateria ?

 

Perfeitamente. É o primeiro-tenente Wedelmann.

 

Aí  é que  está  o  seu  engano   diss  Witterer,  sorrindo  com suficiência.  O seu  chefe  de bateria sou eu. A partir de hoje.

 

Cada vez que contemplo o seu fiel rosto de alemão tenho   a   certeza   de   que   a   guerra   será   longa   disse   o coronel   Luschke  com sarcástica  amabilidade.  Mas  sente-se, mesmo assim.

 

O tenente Wedelmann esboçou uma continência e murmurou as palavras convencionais.

 

Dar-se-á o caso de que nós estejamos na messe?  perguntou  Luschke  com  uma  ironia  benigna.  Estamos  na Rússia,   meu   caro!   Este   abrigo  não  é  maior  do   que   as retretes que me estavam reservadas na guarnição.

 

O tenente sorriu discretamente. Mas este sorriso não tinha o objectivo de cair em graça. Não era o sorriso dum subordinado. Toda a gente sabia que Luschke levava isso terrivelmente a mal. Wedelmann venerava o homem; não era ao superior que fazia a corte.

 

Temos  de  falar  de  vários assuntos  disse o coronel .  Ponha-se à vontade.

 

Wedelmann puxou um banco de madeira de bétula, toscamente fabricado, para junto do coronel, que se sentava numa antiga e gemente cadeira de balanço. Ambos se comprendiam bem, em grande parte porque um e outro tinham pouca compreensão para o heroísmo, qualquer que fosse a forma como este se apresentasse. Para eles a morte não trazia auréola. Era apenas acerca da Alemanha que as suas opiniões diferiam consideràvelmente.

 

A casa que Luschke habitava havia alguns meses era pequena e baixa. Apenas se viam nela os móveis indispensáveis: um leito de campanha, algumas cadeiras e uma mesa comparativamente desmedida para os mapas. Nas paredes, caiadas, estavam dependurados outros mapas, mas a finalidade destes era mais higiénica do que estratégica: ocultavam as manchas de sangue do tamanho de cabeças de fósforos que os percevejos esmagados tinham deixado.

 

Que fazem os seus homens?  perguntou o coronel, como que acidentalmente.

 

Tanto   quanto   sei,   meu   coronel,   tudo  está   em   ordem  disse Wedelmann,  inquieto. Ou...?

 

Não tem a consciência absolutamente tranquila, não é verdade, Wedelmann?

 

No que me diz respeito...

 

Também eu não. Há muito tempo que já não tenho a consciência tranquila  disse o coronel  negligentemente e   quase   com   naturalidade,   como   se  falasse   da   temperatura.  Sempre pensei ser o defensor nato da Pátria. Mas a  Pátria, Wedelmann,  é  uma história  com  piada.  Muitas vezes   me   parece   ser   uma   casa   comercial   em   perigo   de abrir falência.

 

Wedelmahn quis protestar; o coronel deteve-o com um gesto indolente.

 

Todos nós somos  continuou Luschke , mais ou menos,  bodes  expiatórios.  É  para  salvar a  pele  que  obedecemos. E é quando mais a arriscamos que somos mais corajosos.  Alguns  só  o  são  quando  não  há  perigo.  Mas não  há  um  sequer  que  possa  dispor  de  si  mesmo.  Para nadar contra a corrente é preciso ter uma coragem imensa ou uma pasmosa imbecilidade. Esta comunhão que nos une aos idealistas e aos idiotas é o que, muitas vezes, ’me faz desesperar.

 

Wedelmann observava em silêncio o seu superior. O coronel, de nariz em forma de batata e olhos de raposa, estava imóvel, enterrado na sua cadeira. O uniforme, sempre abotoado conforme o regulamento, fazia rugas em volta do seu corpo emagrecido. Os pés resguardavam-se em botas de feltro guarnecidas de pele.

 

Não  sou   agradável   de  ver,  hem?  perguntou  Luschke docemente.

 

Wedelmann estava desconcertado. O coronel conseguia sempre perturbá-lo. Diante de Luschke os homens mais sólidos derretiam-se como pedaços de gelo sobre um forno em brasa.

 

Não  use  nunca  uma  máscara, Wedelmann,  porque um dia viria em que se arrependeria amargamente.

 

Sim, meu coronel  respondeu o tenente, dócil, mas sem saber como devia interpretar esta observação.

 

Por   outro   lado   disse   Luschke,   mudando   subitamente de assunto , um dos seus subalternos parece ter-se permitido algumas fantasias.

 

Soeft?

 

Naturalmente.   Quem,   senão   ele?   É   evidente   que Soeft  recebeu  abastecimentos de um  grupo  que não  pertencia ao nosso sector.

 

Vou imediatamente...

 

Não vai fazer nada, meu caro Wedelmann. Em primeiro lugar porque não está provado que tenha sido outra vez  Soeft  quem  enrolou  os  bonzos  graúdos  do  Comando Supremo.   E,   depois,   porque  não  vejo   razão   para   serem sempre as tropas da frente a pagar as faltas dos idiotas da  retaguarda.  Contudo, se  apanhar o  seu  Soeft em flagrante delito...

 

Creio que é quase impossível, meu coronel.

 

Também eu. Mas nunca se pode saber se não chegará a hora em que os próprios estados-maiores da retaguarda se porão a reflectir. E se o inesperado acontecer e o seu Soèft se deixa apanhar, então, Wedelmann, não espere que eu feche os olhos...

 

Vou ocupar-me de Soeft, meu coronel, e apelar para a sua consciência.

 

Luschke teve um riso quase imperceptível. A pretensa consciência do segundo-sargento Soêft e a prontidão de Wedelmann em apelar para ela divertiam-no.

 

O coronel agarrou no telefone de campanha, girou um momento a manivela e disse docemente: «Lenha e chá. E depois deixem-me em paz durante meia hora.»

 

A ordenança do coronel trouxe o que lhe fora pedido e desapareceu sem ruído, como viera.

 

Sirva-se,   Wedelmann.   Beba   para   ganhar   coragem. Talvez   tenha   precisão   dela.   E   não   seja   moderado   em demasia. A minha situação permite-me oferecer-lhe mesmo metade de meio litro de rum. E se beber mais Soeft terá de arranjar-se para compensar o gasto.

 

Wedelmann encheu o seu copo. Luschke despejou algumas gotas de rum na sua água quente. Depois, levantando à saúde do tenente a chávena rachada, pôs-se a beber em pequenos sorvos. Por fim disse:

 

Estamos aqui a dormir há alguns meses de Inverno. É provável que isto mude por estes dias. A frente já começa a sentir a aproximação da Primavera. Daqui por algumas semanas a guerra recomeçará.

 

Não será cedo de mais, meu coronel.

 

Suspira por novas aventuras, não?

 

Não quero envelhecer aqui, meu coronel. Nada mais. Luschke fez um gesto de assentimento.

 

Não  envelhecerá  aqui,  Wedelmann.  Pode  acreditar no que lhe digo.

 

Aproveitámos bem os meses de Inverno. As armas, o material e os veículos foram revistos. Os homens repousaram. Há munições em abundância.

 

Bravo, tenente!  exclamou Luschke, com uma expressão  irónica.  E enquanto  fazia tudo  isso  os  Russos estiveram a  dormir.  É  que Hitler é um génio e Estaline um idiota. Do nosso lado só há heroísmo, do outro nada mais  a  não   ser  beberrões.   A  Alemanha   acima   de  tudo; todo o resto abaixo! Meu caro Wedelmann, dê-me ao menos   a   satisfação   de   o   ver   conservar   o   seu   bom   senso. Mesmo quando se tratar da Grande Alemanha, Wedelmann. E sobretudo quando dela se tratar!

 

Wedelmann ficou calado. Um pouco desconcertado, segurava o copo com as duas mãos. Lamentava não encontrar nunca em Luschke a absoluta confiança na vitória. Mas respeitava de mais aquele homenzinho de olhos astutos para pensar em censurá-lo abertamente.

 

O   abastecimento   continuou   o   coronel   num   tom mal  humorado  esteve abaixo de tudo. É certo que nos enviaram toda  a  espécie  de  reforços.  Mas no  meu  sector não dei por nenhum esforço para melhorar o nosso valor combativo,   para   aumentá-lo,   restabelecê-lo,   modernizá-lo.

 

Outras   armas   devem   ter   tido   a   preferência,   meu coronel.

 

A   preferência  é,   muitas  vezes,   para   os  tipos  que estão  perto  da  origem.

 

Luschke piscou o olho para o tenente surpreendido.

 

O   seu   chefe   surpreende-o,   Wedelmann?   Não   está habituado, não é assim?  Não tinha imaginado semelhante coisa, hem? Um coronel que não está contente e que ainda por cima o diz.

 

Tem decerto as suas razões, meu coronel.

 

E quantas! Dúzias e dúzias! Por exemplo: há meses que  tento   inutilmente  obter  material   de  rádio.   Sabe   que foi esse o nosso ponto fraco no combate elástico:  o contacto directo era deplorável. Muitas vezes fiquei dias inteiros   sem   qualquer   comunicação   com   as   minhas   baterias, embora as ouvisse disparar à minha volta. Os cabos telefónicos não bastam para assegurar as comunicações, quer de bateria para bateria, quer de peça para peça, quando tudo está empenhado numa batalha de blindados.

 

Talvez o material ainda venha.

 

Virá, Wedelmann. Mas nós não ficaremos à espera dele. Vamos muito simplesmente buscá-lo.

 

Buscá-lo, meu coronel? Mas onde?

 

À  retaguarda,  directamente.  A não  ser  daí,  donde podia ele vir? Na retaguarda, Wedelmann, nos depósitos de reserva, há tudo o que é preciso: material de rádio e homens para o manejar. É preciso transportá-los para aqui. E equiparemos a nossa 1.ª secção, à qual também pertence, Wedelmann.

 

Sim, meu coronel  respondeu Wedelmann, sempre submisso quando estava na presença de Luschke.

 

Este sorriu enquanto olhava o seu tenente com ar superior. Lentamente fez balouçar a cadeira, que rangia terrivelmente, A Cruz de Ferro de 1.ª classe brilhava no seu peito estreito.

 

É muito simples  declarou o coronel.  Um dos meus camaradas é o chefe do aeroporto do corpo de exército. Neste momento os seus Junkers transportam material fabricado na retaguarda. E lá tenho outro dos meus amigos. O meu camarada daqui está disposto a deixar partir um dos meus homens, alguém digno de confiança, até ao aeroporto do nosso comum amigo, na retaguarda. Esse homem deverá  organizar no  depósito  de  reserva  o material  e  o pessoal  treinado. Quando  tiver concluído  regressará  aqui por avião.

 

Muito   bem!exclamou   Wedelmann,   sinceramente admirativo.

 

Escolha portanto um dos seus homens.

 

Será uma prova de estima  disse Wedelmann, após um instante de reflexão.

 

Exactamente. E, ao mesmo tempo, uma bela responsabilidade. Nada que se pareça com o Teatro do Exército. Então,  vejamos...   Quem?   É   assim  tão   difícil   escolher?

 

Não   vai   com   certeza   pedir   a   opinião   do   seu   sargento-ajudante. Não me faça isso, Wedelmann.

 

Proponho o melhor dos meus homens: o subalterno Vierbein.

 

Luschke não respondeu. Parou de se balouçar. O seu rosto mal talhado mostrava-se impenetrável. Cruzou as suas pequenas mãos e esperou.

 

O   segundo-sargento   Vierbein    disse   o   tenente é  o  nosso  melhor  artilheiro.  com  os  seus  serventes  destruiu sete blindados. Tem a Cruz  de Ferro de  1.ª classe.

 

Sei tudo isso  disse o coronel, e calou-se outra vez.

 

É ele  quem mais merece  uma  prova  de  confiança deste género. Sem contar que há mais de um ano que não lhe é dada licença para a retaguarda.

 

Certamente  disse Luschke num tom pensativo. Tudo  isso  é bem possível. Mas não esqueça que  a  linha de fogo é muito diferente da selva das nossas repartições.

 

Ponho as mãos no fogo por Vierbein.

 

Isso honra-o  disse o Batata com um sorriso irónico, mas sem deixar ver se estava ou não de acordo. Se tivesse de começar a servir como simples soldado, era a  sua  bateria  que  escolheria,  de  preferência  a  todas  as outras, Wedelmann. Ainda é um rapaz, mas possui claramente qualidades de pai.

 

Wedelmann procurou proceder como se não tivesse ouvido esta observação do seu superior.

 

Meu   coronel    disse ,   se   não   aceita   a   minha sugestão, proporei, em vez de Vierbein, o primeiro-sargento Asch. Este saberá impor-se com certeza.

 

Asch?   Em  nome  do  Céu, Wedelmann!   Não  posso pensar   em   complicações   para   esta   delicada   missão.   Se alguma coisa correr mal, será o diabo e toda a tralhoada. Terei meia dúzia de generais às costas. E nesse caso não seria seu chefe por muito tempo. Em caso algum, portanto, esse rapaz. É preferível Vierbein.

 

Muito bem  disse o tenente com prazer.

 

Se faz questão... respondeu Luschke rindo. Depois acrescentou:    Mas  não   tente   muitas  vezes   apanhar-me assim.   Gosto  pouco   de   ser  batido   pelos   meus  próprios métodos.

 

Wedelmann ria de vontade. O coronel bebeu à sua saúde. Compreendiam-se às mil maravilhas.

 

Todas as nossas chatices nos aproximaram um  do outro.  disse Luschke.  É  a  guerra. Ou  se confraterniza ou se foge uns dos outros como da peste.

 

O telefone retiniu. Luschke levantou o auscultador e respondeu. Tornara-se subitamente grave.

 

«Está bem», disse. «Daqui a cinco minutos.» O   coronel   pousou   o   telefone.   Pensativo,   examinava Wedelmann  com  um  ar  interrogador,  como  se  estudasse o valor dum canhão de novo modelo. Depois disse:

 

Está lá fora um tal capitão Witterer.

 

Sim, meu coronel.

 

Este capitão Witterer chega adiantado oito dias. É evidente que estava com pressa. Mas agora está aqui e não há nada a fazer. Lamento, Wedelmann.

 

Sim, meu coronel  respondeu o tenente, desconcertado.

 

Para tornar as coisas mais claras: o capitão Witterer é o novo chefe da 3.ª bateria.

 

A minha bateria.

 

Justamente. O novo chefe da bateria que até agora era sua.

 

E eu?

 

Tomarei mais tarde uma decisão quanto às suas futuras funções. Será avisado oportunamente. Até lá, entregue a bateria ao novo chefe e deixe-se ficar até que o capitão Witterer se tenha posto ao corrente, em todos os pontos de vista.

 

Wedelmann não encontrou nada para dizer. Pousou bruscamente na mesa o copo ainda meio cheio. Empalidecera. Aprumou-se.

 

A lenha crepitava no fogão de ferro fundido. O calor era abafado e seco. Diante do alojamento do coronel um carro de bagagens arrastava-se pelos sulcos deixados por outras rodas.

 

Profundamente enterrado na cadeira, com as pernas oscilando, Luschke olhava o seu tenente com uma expressão encorajadora:

 

Vamos, Wedelmann!  Desperte.

 

O tenente abanou a cabeça. Era fácil ver que se sentia ofendido. Mas o sentido de disciplina, nele sempre vivo, não lhe permitia o menor comentário  sobretudo em relação a Luschke.

 

Este recostou-se para trás.

 

Meu  caro tenente  disse, satisfeito ,  sei em  que está a pensar. Se pudesse fazer o que deseja, experimentaria  dar  um  pontapé  no  traseiro  do  seu  velho  chefe  e atirar   com   tudo   ao   ar.  Ou   não?   Nem   sequer  protesta, Wedelmann ?

 

Meu coronel, eu sempre...

 

Bem sei, Wedelmann, bem sei. Não tenho os ouvidos tapados,  nem  trago  os  olhos  na  algibeira.  É,   de   longe, o melhor chefe de bateria do meu regimento. Um filho de herói e um partidário do Fíihrer. A primeira coisa é uma honra  para  si;   a  segunda,  perdoo-lha.   Em  todo  o   caso, há algo de positivo: sem si o regimento Luschke não sairia da média; graças a si, é um regimento de escol. Sei tudo isto.  Até a minha Cruz  de Ferro é em  grande  parte  ao trabalho da sua bateria que a devo. Tudo isto sei...

 

Mas então, meu  coronel,  permita-me  que  diga  que ainda  compreendo  menos...

 

Meu   caro   Wedelmann    disse   Luschke,   interrompendo-o  com  um  gesto ,  poderá  saber  o  que  projecto para si? Não tem qualquer ideia do motivo por que precisarei   de  si?   Que  imagina  que  acontecerá  ainda?   Meu bom amigo,   acredite  no   seu  velho   coronel:   esta   guerra safada ainda não começou.

 

Meu coronel, se o Fiihrer...

 

Não se entusiasme, meu velho. Quando eu falar de safado  não  tem necessidade  de pensar logo  no  nacional-socialismo!  Mas deixemos este delicado assunto. Diga-me antes o que fazem as raparigas.

 

A quem se refere, meu coronel ?

 

Vamos! Não se faça de novas, meu rapaz! exclamou Luschke cordialmente.  Há alguns dias, atravessava eu a aldeia, vi Soeft a conversar justamente com um belo exemplar. E houve qualquer coisa que me desagradou: os dois não eram da mesma classe. A rapariga parecia inteligente. Desde quando é que Soèft se diverte com raparigas desse género?

 

Meu coronel, essas coisas não me interessam.

 

Deviam interessar-lhe, Wedelmann. Sabe-se lá quanto tempo lhe  resta  para isso!  No fim de contas, esta coisa aqui pode ir ao ar mais depressa do que todos nós julgamos.

 

O segundo-sargento amanuense da 3.ª bateria saltou como um cometa para fora da barraca onde estavam alojados o sargento-ajudante e os seus registos. Precipitou-se para o centro da bateria, até à choupana de madeira na qual estava escrito em grandes letras a giz: «A. S.», o que significava: «Abastecimento Soeft.»

 

O sargento amanuense abriu a porta e penetrou numa casa onde dois homens de fato-macaco cortavam em cubos enormes salsichas, que pesavam de maneira aproximada e embrulhavam.

 

Soeft está cá ?  perguntou  o sargento, deitando às salsichas um olhar cobiçoso.

 

Os ajudantes de Soeft abanaram a cabeça negativamente.

 

Sabem onde ele está? Novo gesto negativo.

 

O sargento amanuense, a quem o espectáculo das salsichas fazia sofrer, retirou-se e ficou em frente da porta sem saber que fazer. Tinha frio e esfregava as mãos.

 

Da cozinha vinha um forte cheiro de cubos Maggi. Na sua forja de campanha o sargento mecânico berrava com um motorista que não era capaz sequer de endireitar uma chapa amolgada.

 

És uma autêntica lavadeira!  gritava.

 

Esta palavra foi para o sargento amanuense, que não se atrevia a reaparecer diante do sargento-ajudante sem ter cumprido a sua missão, um verdadeiro clarão. Trotou na direcção duma casa em forma de cogumelo situada um pouco à parte.

 

Tal como esperava, achou aí Soeft, despedindo-se duma rapariga russa. O sargento ficou de boca aberta ao vê-la. Parecia vestida de sacos de café. No entanto, o seu corpo, sólido mas elegante, não podia passar despercebido. O sargento amanuense contemplou-a como se tivesse na sua frente um documento duma importância excepcional.

 

Então,   é   mesmo   impossível   fazer   negócio,   Natachá?perguntou Soeft.

 

A rapariga abanou a cabeça, energicamente, em pequenos e bruscos movimentos.

 

Não faço negócio  disse  ela em  bom  alemão  de escola,   muito   devagar,   acentuando   a  primeira  sílaba   de cada palavra.  Consigo, não, Sr. Soeft.

 

Não quererá fazer-se cara, Natacha?

 

Mande-me o seu oficial, Sr. Soeft. Talvez faça negócio com ele.

 

Soeft estava descontente. Virou-se para o sargento amanuense e apostrofou-o:

 

Que   vens   tu   fazer   aqui ?   Vens   transtornar-me   as operações.

 

Uma questão urgente, Soeft.

 

Antes  do  almoço  não...   Daqui  por  um  quarto  de hora.

 

Dizendo isto, pôs-se a caminho sem olhar para Natacha. Queria mostrar-lhe até que ponto ela lhe era indiferente. Mas antes de virar a esquina voltou-se. A rapariga dirigiu-lhe um sorriso irónico. E isto mortificou-o profundamente.

 

Em passos largos, através da neve derretida, viscosa, Soeft afastava-se sem dar atenção a coisa alguma. Um camião que subia penosamente a rua teve de parar para não o atropelar. O motorista largou uma praga, Soeft não lhe deu a menor atenção. Estava ocupado. Fazia contas.

 

Dirigiu-se ao seu alojamento e deitou, como sempre, um olhar ao «A. S.» escrito na porta. O sargento amanuense queria entrar também, mas ele deu-lhe com a porta na cara.

 

Depois de ter esperado pacientemente alguns minutos, o subalterno decidiu-se a entrar no abrigo de Soeft. Os dois homens, sempre ocupados a cortar salsichas em bocados, apontaram-lhe com o dedo uma porta na qual estava escrito: «Bater antes de entrar.» Hesitou um momento e, depois de ter chocado com a porta como por acaso, abriu-a.

 

O segundo-sargento Soeft almoçava: atum, torradas e vinho de Tarragona, dispostos, com um grande bocado de manteiga, sobre uma toalha de provocante brancura. Soeft, sentado, mastigava lentamente.

 

Tens de ir falar ao sargento-ajudante  disse o amanuense.  E já. Há mais de meia hora que ando a correr atrás de ti.

 

Serve-te  disse Soeft, continuando a comer sem se perturbar.

 

O subalterno não hesitou um instante sequer. Agarrou numa fatia de pão torrado e estendeu-lhe em cima uma espessa camada de manteiga, que cobriu de atum. Depois, com dificuldade, meteu o conjunto na boca. Soeft não se mexeu: continuava a calcular. E esta era uma ocupação em que ele não se deixava perturbar por nada, nem por ninguém.

 

Lentamente chegou ao fim dos seus cálculos: nem todas as raparigas tinham o mesmo preço... e esta Natacha valia bem um oficial. Tê-lo-ia, uma vez que fazia questão disso. Porque, bem vistas as coisas, nesta aldeia perdida os intérpretes valiam o seu peso em ouro. E ainda por cima esta intérprete era uma mulher, o que tornava o negócio mais sedutor. Era quase como em França.

 

Que  quer de mim o brigadas? perguntou finalmente.   Tenho  pouco  tempo,   rapazinho.  Preciso  ainda de inspeccionar a padaria...  Tenho de encomendar pãezinhos   frescos   para   domingo   que   vem  acrescentou,   fascinado. «

 

com  mil  raios!exclamou  o  outro,  lambendo  os dedos.

 

Bem   vês   que   não   posso   permitir-me   perdas   de tempo. Diz isto ao brigadas.

 

Vem comigo, Soeft. Diz-lho tu mesmo. Mas olha que desta vez vale a pena.

 

Porquê?

 

Não   quero   dizer   nada    respondeu   o   subalterno misteriosamente.  Mas trata-se de mulheres.

 

Que espécie de mulheres? perguntou Soeft, a quem o assunto começava a interessar.

 

O sargento-ajudante te dirá o resto  disse o amanuense retirando-se, apressado, não sem ter feito antes desaparecer  uma  lata  de  atum  de  meio  quilo,  na qual  se podia ler: «O atum é bom para a saúde.»

 

Soeft não se apressou. No entanto, a sua curiosidade estava desperta. Bebeu o café  do autêntico, bem entendido  bastante mais rapidamente que de costume, verificou o trabalho dos seus cortadores de salsichas e dirigiu-se ao escritório do amanuense.

 

O sargento-ajudante Rock, todo ele energia e trabalho, recebeu-o com alguma impaciência:

 

Era   tempo,   Soeft   disse,   mostrando   deste   modo cautelosamente que estava disposto a repreendê-lo.  Era mais que tempo. Mas mesmo mais que tempo!

 

Não para mim  respondeu o subalterno deixando-se cair num dos caixotes do escritório, depois de o ter espanejado  com um lenço  de excepcionais dimensões  cortado em seda de pára-quedas.

 

Olharam-se. Não precisavam de o fazer, pois conheciam-se e sabiam exactamente o que deviam pensar um do outro. Aliás, não pensavam mal, uma vez que cada um deles estava convencido de que tinha a bateria na mão.

 

Despojado do esplendor da caserna, o brigadas era o pára-choques causticado sem cessar entre as peças e a linha de fogo. Mas, se perdera influência, nada perdera de presunção. O subalterno do abastecimento, que dispunha, por assim dizer, de relações fabulosas, podia permitir-se quase tudo o que quisesse. Porque era ao seu valor pessoal que a 3.ª bateria devia o ter atingido um nível de vida comparável ao dos estados-maiores particularmente desembaraçados.

 

Que se passa?  perguntou Soeft.

 

Como sabe, vamos ter novo chefe.

 

E   depois?   O  tempo   irá  mudar  por   causa   disso? Os meus salsichões  de fígado  terão  gosto  diferente? Um novo nome, mas a mesma caranguejola. Esses sujeitos são todos   iguais.   Fabricam-nos   em   série.   Aqueles   que   têm pequenos defeitos de fabrico são sempre os mais interessantes.  E se  o  próximo não é comparável  a Wedelmann, o que é fácil de imaginar, conseguiremos domesticá-lo. Ou não?...

 

O sargento-ajudante fez de conta que não ouvira os comentários de Soeft. Era um homem de experiência. Sabia que valia mais ignorar o que dizia um tipo como Soeft. Repreendê-lo seria tempo perdido. Soeft conhecia a situação   excepcional   que   ocupava  e   aproveitava-se   dela   com insolência.

 

Só falei um  instante com  o novo chefe,  o  capitão Witterer. Há pouco, pelo telefone. Chega com certeza amanhã. Esta tarde tem que fazer no regimento.

 

O   coronel   Luschke   deve   querer   apalpá-lo   disse Soeft  num   tom  compreensivo.   Conheço-lhe   os  hábitos.

 

Em todo o caso, o capitão Witterer perguntou-me se tínhamos   um   graduado   particularmente   digno   de   confiança.

 

Está   com   pressa,   esse  disse   Soeft,   rindo   com gosto.

 

É claro que foi você quem eu indiquei.

 

Claro. E em que sector deverei fazer brilhar a minha competência?

 

Trata-se de uma missão de natureza privada.

 

É a minha especialidade  assegurou Soeft simplesmente.

 

Esta  tarde,   pelas  três  horas,   desembarca  no   aeroporto  da  nossa  etapa  um  grupo  do  Teatro  do  Exército.

 

Quantas «pegas»?

 

Três senhoras e um homem  redarguiu o sargento-ajudante sem reagir à expressão.  Entre eles vem uma senhora que se chama Lisa Ebner.

 

E essa dama é que é o fulcro do caso, não?

 

O capitão Witterer deseja disse  Bock com autoridade,  servindo-se  da  charuteira  que  Soeft  abrira  diante dele que a menina Lisa Ebner seja bem instalada e que seja  posto  à sua  disposição  tudo  o  que  possa tornar-lhe mais agradável a sua estada entre nós.

 

Bem,  bem.  Porque não? E indicando  o charuto que   o  sargento-ajudante já  trincara: Não  quererá  por acaso também lume?

 

Disse já ao capitão que se podia confiar em si.

 

Há mais alguma coisa?

 

Por mim, nada mais.

 

E que se passa em relação ao camião de oito toneladas?

 

Meu caro Soeft, já lhe repeti várias vezes que esse camião devia ser deixado no serviço das munições.

 

Parece   evidente    respondeu-lhe   Soeft   com   uma calma irritante que as munições se lhe afiguram mais importantes do que o abastecimento. Tomo nota.

 

Seja   sensato,   Soeft.   O   tenente  Wedelmann   não   é decerto mesquinho...

 

Só sei o que Wedelmann não é neste momento: chefe. E o novo  ainda não  chegou. A ocasião  é portanto  mais favorável que nunca. Dê-me o oito toneladas para o abastecimento e em troca impinjo-lhe o meu Ford.

 

Essa   chocolateira?

 

O chefe dos mecânicos está de acordo.

 

Sim, mas o sargento Asch não o está com certeza, Soeft. E enquanto estiver encarregado  aqui  de funções...

 

Os olhinhos do sargento de abastecimento fizeram-se ainda mais pequenos. Disse:

 

Asch  não  ficará  aqui  sempre.  Se  o  tenente  se vai embora, o sargento também irá, provavelmente. Ou  julga que ele é uma instituição definitiva? Se o novo chefe não é  um   Wedelmann   e   a   ordem   que   acabo   de   receber prova-o , não ficará satisfeito com um tipo como Asch.

 

O sargento-ajudante tinha dificuldade em decidir-se. Era evidente que Soeft tinha razão. O momento era particularmente bem escolhido para modificações de toda a espécie.

 

Se julga disse ter absoluta necessidade do oito toneladas,  e  se  o  chefe  dos  mecânicos  está  de  acordo...

 

Pronto. Vou tratar imediatamente do assunto. E, outra coisa  disse  ele  aproveitando  a  ocasião  com  o  seu habitual    atrevimento ,    que    se    faz    do    primeiro-cabo Kowalski? Precisaria imenso dele.

 

Impossível  respondeu  Bock sem  hesitar.  Tem de continuar a ser o motorista do chefe. Está tudo muito bem, mas a minha complacência em relação a si não chega a esse ponto.

 

Soèft aquiesceu. Previra a recusa e previra que ela seria dada brutalmente. O brigadas adivinhava que estava ameaçado. Soeft já era todo-poderoso. Mas com Kowalski seria o absolutismo.

 

O segundo-sargento resignou-se por agora. Conhecia o provérbio: adiar não é esquecer. Tinha já a certeza de receber o oito toneladas. Graças a isto a sua capacidade de carregamento ficava consideràvelmente aumentada, o que se tornara urgente, pois nestes últimos meses de repouso as suas provisões, por mais generoso que tivesse sido, tinham aumentado espantosamente.

 

Agora  disse o sargento-ajudante  temos de trabalhar de colaboração. Se o fizermos, o novo chefe reconhecerá que está numa unidade em que pode confiar.

 

E se não é completamente desprovido de miolos compreenderá o que esperamos dele.

 

Antes de se dirigir à etapa, a fim de tratar da recepção das damas do Teatro do Exército, Soeft julgou oportuno assegurar-se da propriedade do camião de oito toneladas. Tinha demasiada experiência para não adivinhar que a coisa não se faria sem dificuldades.

 

Decidiu proceder com todo o método. Dirigiu-se primeiro ao seu alojamento, encheu a cigarreira, meteu nos bolsos charutos, entre os quais se encontravam alguns duma qualidade superior. Depois foi ter com o sargento mecânico.

 

Até aqui tudo ia bem. Comunicou ao mecânico que o sargento-ajudante lhe atribuíra a ele, Soeft, o camião de oito toneladas. O outro contentou-se em fazer um gesto de assentimento. Importava-lhe pouco saber para onde iam os seus carros, desde que fossem em bom estado de marcha. O sargento-ajudante, prudentemente, como sempre, permanecia em segundo plano: desaparecera muito simplesmente.

 

A dificuldade estava, em parte, nos motoristas. Soeft sabia-o. Um deles, o que conduzia o oito toneladas, ficaria naturalmente encantado por passar a transportar abastecimentos. Em compensação, o outro, o condutor do Fordr ia esbravejar. Quem gostaria de andar a passear com munições espoletadas e ainda por cima em tempo de guerra? Tanto pior! Se ele se contentasse em praguejar... Mas se, o que era bem possível, se lembrasse de apresentar queixa, a coisa podia trazer complicações.

 

De acordo  disse sem hesitar o motorista do camião.  Estou  disposto. E já. Onde largo as munições?

 

Descarrega-as,   simplesmente    disse   Soeft.   Em qualquer parte. Cobrir com um encerado e pronto.

 

Não peço mais  disse o motorista, que logo solicitou gente para o ajudar.

 

Quanto ao condutor do Ford, Soeft, esperto como era,, nada lhe disse. Para ele o principal era ter o novo carro; quanto ao velho, seria sempre tempo de entregá-lo. E depois  nunca se sabe  podia haver uma súbita mudança de posição. Por outro lado, os dois chefes, que nada sabiam um do outro. E antes que um deles tivesse a ideia de se pôr a reflectir Soeft teria ainda, não só a nova viatura, mas também a antiga. Era preciso ser idiota para se desfazer de qualquer coisa que ninguém reclamava.

 

Concedeu a si mesmo um grande copo de beneditina. «Se fechasse os olhos», pensou, «julgaria estar em França.» Mas não os fechou: era demasiado esperto para isso não queria correr o risco de se deixar surpreender.

 

Ouviu portanto a tempo os passos que se aproximavam. Aliás, era impossível não ouvir o barulho que o recém” -vindo fazia à entrada. Soeft não teve dificuldade em adivinhar quem se apresentava assim tão grosseiramente.

 

Também  queres  um   copo?perguntou   quando   o seu visitante se aproximou.

 

O primeiro-sargento Asch viu, sem fazer a menor observação, o quadro que se lhe oferecia aos olhos.

 

Que se passa com o oito toneladas? perguntou. O sargento condutor de munições está furioso. Tu não podes assim sem mais nem menos apropriar-te do nosso melhor meio  de  transporte!

 

Ah, isso é que posso  respondeu  Soeft piscando o olho.

 

O   oito   toneladas   deve   ficar  no   serviço   das  munições.

 

Soeft olhava o seu camarada como um bom tio sentado pacificamente ao pé da árvore de Natal.

 

Asch  disse , sempre pensei que eras um rapaz absolutamente   normal.   Mas   às   vezes   tenho   a   impressão de que és um guerreiro convicto. Preferes  as munições  à paparoca. Em suma, antes queres abater tipos que encher a pança.

 

Ouve,  Soeft.   Não  fui  eu   quem  inventou   a   guerra, mas meteram-me nela. Tenho de defender a pele.  E para isso, aquilo de que em primeiro  lugar necessitamos é  de munições.

 

Por princípio.  Wedelmann não  combate  senão  pela Grande  Alemanha  e  pelo  Ocidente.   E  tu   és  a  sua  alma danada.

 

Soeft!   Se  eu  tiver  de  escolher  entre  um  estômago vazio e um buraco na  cabeça,  escolho  o  estômago  vazio. Percebes?

 

Porque não se preocupa Wedelmann um pouco mais com as raparigas e um pouco menos com a guerra?  Não é normal. E eu podia oferecer-lhe qualquer coisa de especial.  Natacha,  chama-se  a  pequena.   Uma   russazinha  com uma alma!...

 

As suas mãos desenhavam curvas audaciosas:

 

Uma alma assim!

 

Vamos!   Não   brinques   aos   proxenetas.   Devolve-me o oito toneladas e  depois  poderás  continuar  a  beberricar descansadamente.

 

Asch, aqui tens a minha última proposta: uma «pega» para Wedelmann e uma caixa para ti, conteúdo à tua escolha. Em troca, o oito toneladas à minha disposição,

 

Levanta-te  disse Asch duramente Já para que eu possa dar-te um pontapé no rabo.

 

É a tua última palavra?

 

Se não te  despachas,  Soeft,  tu  é que  terás  dito  a tua última palavra.

 

Era  o  que eu  queria  ouvir-te  dizer,  Asch  disse Soeft,  tentando   mostrar   indiferença.   Isso   e  não   outra coisa. Agora sei com que posso contar.

 

Já não era sem tempo.

 

E  quanto   ao   oito   toneladas...   ordem   do   chefe   de bateria.

 

Não sabes o que dizes. Soeft. Sei muito bem o que Wedelmann ordenou e o que não ordenou.

 

Mas quem te fala ”de Wedelmann? O novo chefe da bateria chama-se Witterer.

 

Mas ele ainda não chegou, meu velho.

 

Soeft concedeu a si mesmo outro copo de beneditina. Precisava muito de se fortalecer, porque o que se aproximava agora ia exigir coragem. Lambeu os lábios e acrescentou:

 

Para o  caso  de tu  o  ignorares,  Asch...   existe  um aparelho que se assemelha a um telefone, E eu já recebi pelo   telefone   algumas   instruções   especiais   de  Witterer.

 

Vou verificar  isso   disse  o  sargento.   E  ai  de ti se não é exacto o que dizes!

 

Soeft viu Asch afastar-se. Depois esfregou energicamente o nariz e o queixo. Acabou a beneditina, mas não a achou particularmente boa.

 

«É bastante complicado», pensou, sem contudo perder a coragem por um segundo que fosse. Sentia-se seguro...

 

Asch, esse.  era  praticamente  refugo.  Mas  claro  que  seria terrivelmente  imprudente  desprezá-lo.

 

Resolveu, portanto, convencer Witterer de que a personagem mais importante da 3.ª bateria era ele, Soeft.

 

Mandou preparar o seu carro particular. Era uma limosina apanhada em qualquer parte, cujo lado de trás, segundo as suas instruções, fora transformado em caixa para mercadorias. Neste carro, também marcado com um «A. S.», deixou a aldeia.

 

A etapa, situada dezoito quilómetros à retaguarda, estava movimentadíssima. Nas antigas igrejas ouvia-se o ruído das oficinas de campanha. Os numerosos estados-maiores tinham-se instalado  como podiam nos edifícios do Partido. Os estados-maiores menos importantes preferiam as casas particulares e, se possível, aquelas onde eram recebidos como família.

 

Veículos de toda a espécie e de todos os tamanhos apertavam-se contra as casas. Alguns militares munidos de pastas procuravam os seus carros. Dois reservistas tinham o ar de saírem a passeio. Todas as chaminés fumegavam.

 

Soêft decidiu dar, «sempre metodicamente», uma prova das suas particulares capacidades. Sabia muito bem como se haver, pois estava em condições de dominar com um olhar a selva administrativa das competências. Tudo o que via não era mais que adestramento. Quanto ao resto, o que era preciso era sorte, uma boa ocasião e sólida quantidade de impertinência.

 

Em primeiro lugar fez-se conduzir ao Comando Supremo. Procurou o oficial da administração militar de quem dependia o Teatro do Exército. Declarou-lhe tranquilamente e com um ar convincente que pertencia à Kommandantur. Declarou pretender conversar uma vez mais acerca do grupo que chegaria nesse dia. Sem respingar, aceitou as injúrias, o que lhe permitiu obter as informações desejadas.

 

Depois dirigiu-se à Kommandantur. Aí, muito logicamente, apresentou-se como fazendo parte do Comando Supremo, encarregado do Teatro do Exército. O oficial responsável começou por injuriá-lo. Ele não pestanejou e obteve as últimas informações que lhe faltavam ainda.

 

Vocês   são   sempre   assim    declarou   o   oficial   da Kommandanlur.  O Comando Supremo manda vir as pessoas e nós é que temos de alojá-las.

 

Posso  ver  esse  alojamento?perguntou  Soêft  sem’ cerimónia.

 

O oficial autorizou-o de má vontade. Deu ordem a um primeiro-sargento para acompanhar Soêft até uma antiga escola. No andar de cima havia um quarto bastante asseado, ocupado por três camas de campanha.

 

Para   as   mulheres   disse   o   sargento.   Instalamos   até  um  lavabo  à  parte.  INão  foi  fácil.   Somos   obrigados sempre a improvisar. Alegre-se por não fazer serviço numa   Kommandantur.   Quanto   ao   homem,   dormirá   em baixo  com  dois  oficiais.

 

O  homem   pode   dormir   onde   quiser,   estou-me   nas tintas   para  ele   respondeu  Soêft com toda  a  dignidade de um membro do  Comando Supremo. Seja como for. não é possível fazer dormir as três senhoras juntas. Uma delas tem de ter quarto separado.

 

Ora essa! Tem de ter?... -perguntou o sargento. Mas nós não  estamos em  França!

 

Infelizmente!   exclamou   Soêft,   suspirando   como sempre  fazia  quando  pensava  na  sua  França  bem-amada. Um sentimento sincero.  «Ah. sim!  Foi uma alegria fazer a  guerra  em  França.   Meu  Deus!   Como  amo  esse  país!» O   paraíso   para   um   subalterno   dos  abastecimentos   como ele  era.  Jamais  se  sentira  assim  tão  feliz,  tão   completamente feliz. Suspirou outra vez. Depois disse:

 

Uma das senhoras terá quarto separado. É o próprio general   quem   o   exige.    E  discretamente,   acrescentou piscando o olho: Uma parente, sem dúvida...  ou qualquer coisa do género.

 

Mais   chatices   para   nós    disse   o   sargento,   mal humorado.  Sempre as protecções! Como se estivéssemos em Saint-Moritz  ou  numa  estação  turística  assim.  Enfim, faremos o que pudermos.  Esperemos que  o  general   compreenderá. E se isto não for doutra maneira...

 

A senhora  chama-se  Lisa  Ebner.  Mande  pôr  flores no quarto.

 

E  que  mais?  Um  dossel,  não?perguntou   o  sargento com uma ironia mordaz.

 

Se puder arranjar um...  Porque não?

 

Uma vez levado a bom fim este assunto, Soèft fez-se conduzir ao aeroporto, direito a casa do comandante, a quem, obedecendo a uma discreta alusão de Luschke, seu amigo, tivera ocasião de fornecer algumas pequenas especialidades. O comandante recebeu Soéft com a amabilidade que convinha e deu-lhe todas as indicações desejadas.

 

Pouco depois das cinco horas chegou o avião de transporte anunciado para as três horas. Saíram alguns soldados, mas principalmente oficiais. Depois saltaram quatro paisanos: três mulheres e um homem.

 

Soèft, antes de se aproximar, examinou-os com atenção. O homem tinha o aspecto de um reservista de licença. .”Não se interessou mais por ele. As mulheres eram todas aceitáveis. Só por si, os cabelos faziam boa impressão. E as pernas valiam a pena. A viagem longa murchara-a-; um pouco, é certo, e gravara nos seus rostos pálidos algumas rugas de suor ou de sujidade, mas os chassis eram notáveis, conforme Soèft reconheceu.

 

Uma delas, a mais velha, trazia uma mala de mão e uma pasta. O seu olhar claro, enérgico, fazia pensar numa sufragista prestes a iniciar uma conferência. A segunda, dum louro-palha, com os lábios pintados de vermelho vivo, saltitava na pista com ar conquistador e dava a Soèft a impressão de querer «revigorar» um < exército inteiro.

Quanto à terceira, pequena, delicada e morena, com olhos grandes e um andar apressado em passinhos miúdos, trazia ao peito, um peito bastante banal, um estojo de guitarra. Soeft aproximou-se das senhoras e disse:

- Ora  então,  cá  chegaram  e   dirigiu-lhes  um   gesto benevolente.

 

O oficial da Kommandantur que falara antes com o segundo-sargento avançou, gaguejou uma alocução relativamente longa, em que por três vezes repetiu: «Sede bem-vindos!» O paisano olhava em volta com ar decidido. As senhoras batiam discretamente os pés para aquecer. A loura remexia as ancas sem constrangimento, o que fez parar durante alguns minutos o tráfego no aeroporto inteiro.

 

Faz frio aqui, hem?perguntou Soêft,  rindo.

 

É  para   isso   que   estamos   na  Rússia  declarou   o civil com certa desenvoltura, ao mesmo tempo que a loura ria estupidamente, mas de maneira encantadora.

 

O oficial rogou então aos «respeitáveis convidados» que subissem para o carro que os esperava. Ele próprio se transformou, num abrir e fechar de olhos e com absoluto êxito, em entusiástico carregador de bagagens. Contudo, quando o paisano pretendeu carregá-lo também da sua mala, repeliu-o com aspereza e friamente.

 

Soêft perguntou:

 

Qual das senhoras é Lisa Ebner?

 

A delicada morena que trazia a guitarra dirigiu para ele os olhos grandes como pires e disse num tom interessado e encantador:

 

Sou eu.

 

Venha  declarou Soêft.  Estou encarregado de si pessoalmente.

 

O oficial da Kommandantur pousou no chão as duas pesadas malas que transportava. Abriu a boca, decerto para fazer uma observação, que, a julgar pela sua fisionomia, não devia ser lisonjeira.

 

Mas Soêft limitou-se em dizer: «Ordem do general», e afastou-se, seguido, gentil e complacentemente, pela rapariga.

 

Empilhou no seu carro as bagagens de Lisa Ebner. com os seus grandes olhos, ainda infantis mas já ávidos, ela seguia cada um dos seus movimentos. Soêft sentiu que ela o admirava:

 

Está  espantada,  liem?

 

Porque é isto?  perguntou  a  rapariga  docemente.

 

Vai  ver.  E  vai  ficar   espantada.   Garanto-lhe.   Confie em mim.

 

O segundo-sargento Vierbein, aprumado como uma estaca, com os seus bons olhos de criança e o queixo esticado para o tenente Wedelmann, estava sentado à mesa com este. A sua mochila já pronta, uma trouxa de lona bem cheia, estava no chão, perto da porta. O capacete de aço estava dependurado, assim como a espingarda e a máscara de gás. Todos estes objectos pareciam ter sido dispostos com cuidado, como se se tratasse de os fotografar para qualquer revista ilustrada.

 

Wedelmann sorriu para o corajoso e embaraçado sargento e disse-lhe:

 

Tenho absoluta confiança em si, meu caro Vierbein. Sempre tive confiança em si.

 

Vierbein acenou a cabeça com uma energia quase solene. Respirava gravidade e decisão. Dir-se-ia que apurava o ouvido para apanhar uma ordem qualquer que lhe fosse dirigida. Sobre o seu casaco usado, mas duma perfeita limpeza, brilhava a Cruz de Ferro de 1.ª classe.

 

Wedelmann acenou a cabeça também. Sabia que Vierbein nunca o desiludiria, pois um idealista não trai jamais outro idealista. E Vierbein, como o seu tenente, pertencia à raça daqueles que têm fé.

 

Wedelmann escutava. A noite caía; a frente estava silenciosa, como quase sempre a esta hora, de há algumas semanas para cá. Era um silêncio desagradável, hipócrita, à espreita.

 

Dos dois lados, os soldados, a quem ainda não empurravam para a frente, encarniçavam-se em não se tornarem mutuamente difícil a existência ou, pelo menos, o que delas lhes restava ainda. No entanto, cada um deles sabia quão ridiculamente vãos eram os seus esforços nesse sentido. O silêncio pesado da frente espreitava-os como um animal feroz. Era como se ele estivesse à espera diante da porta da cabana onde Wedelmann se alojava com Asch. Até o lume no fogão parecia arder sem ruído.

 

Nenhum rumor de carros se ouvia. Há quinze dias que não se via um único avião no céu. Nas primeiras linhas da frente, a três quilómetros dali. estendia-se um silêncio de cemitério.

 

Wedelmann fez ainda um sinal ao segundo-sargento. Bateu com força na coxa e olhou Asch, que, de joelhos diante do fogo, contemplava o brasido e parecia esperar com indiferença que a água fervesse.

 

Ainda  não  acabou?perguntou  o  tenente  em  voz alta. Parecia ter prazer em ouvir-se.

 

Temos   tempo  -respondeu   Asch.   Muito   tempo. Wedelmann   deslocou   ruidosamente   o   caixote   que   lhe servia de a«sento e dirigiu-se de novo a Vierbein:

 

ENão esqueça nunca:  a sua  missão é delicada.

 

Asch lev’antou-se devagar, agarrou na caldeira e aproximou-se da mesa. coberta de papel de embalagem, à maneira de toalha.

 

O   nosso   rapazinho   saberá   fazer   as   coisas  disse, piscando o olho a Vierbein.

 

É garantido -apressou-se a dizer o tenente. Garantido e certo.

 

Wedelmann olhava o subalterno com afabilidade. Este homem pálido, ainda tão novo, de submissos olhos de menino de coro, era um dos mais valentes soldados do regimento. Calmo e reservado  como se podia esperar dum idealista. E contudo era ele quem, quatro anos antes, mal podia correr, e menos ainda, pensar, de tal forma o haviam, atormentado. Mantinha-se direito como uma bétula perto da sua peça, dava ordens com a segurança dum sonâmbulo e, apenas num quarto de hora, fazia saltar três blindados inimigos. E na- semana seguinte a mesma coisa. E meia hora mais tarde, outro.

 

Se  dependesse  apenas  de  mim  disse Wedelmann num  tom  afectuoso ,  já teria  a  Cruz  de  Cavaleiro.  De qualquer  modo,  ninguém  mais  do   que   você   merece   esta licença.

 

-Obrigado, meu tenente  disse polidamente o segundo-sargento.

 

Asch resmungou quaisquer palavras incompreensíveis, mas que não pareciam muito amáveis.

 

Que   borrada!      exclamou,   dirigindo-se   aparentemente à rolha duma garrafa de rum, que se recusava a sair. com  algumas  outras  expressões   enérgicas  conseguiu   desrolhar duas garrafas, que pôs na mesa com uma série de copos.

 

Para  que   é  todo   este   luxo?   Somos   apenas   três... Desconhecia que  ia haver recepção.

 

Teremos   visitas,   meu   tenente    declarou   Asch. Permiti-me   convidar   o   sargento-ajudante   e   o   subalterno Soêft. Um traz a guia de  marcha, o outro fornece os víveres   a   Vierbein.   Além   disso,   preciso   de   apalpar   Soèft para outra questão. U sexto, finalmente, é o primeiro-cabo Kowalski,  que  deve  conduzir o  nosso  rapazinho  ao  aeroporto  amanhã,  de madrugada.

 

Wedelmann acolheu estas explicações como se se tratasse da distribuição de munições, que, de há algum tempo para cá, era a mesma todos os dias. Havia muito tempo que deixara de admirar-se das medidas tomadas pelos subalternos à sua disposição. Asch tinha o hábito de agir quase sempre por si mesmo e, como conhecia perfeitamente a maneira de pensar de Wedelmann, as suas decisões eram, quase sem excepção, as que o tenente teria tomado. Eram, portanto, boas.

 

E  tem  cuidado   contigo,   rapazinho  disse  Herbert ao amigo.

 

Não  tenhas  medo,  meu  velho.  A  minha  missão  é clara. Cumpri-la-ei o mais depressa possível.

 

Para quê? perguntou Asch sem constrangimento. Quem  é que  te  empurra?   Demora-te.  Vê   descansadamente o que há lá pela terra. Aproveita a ocasião.

 

Vierbein, um pouco inquieto, olhou Wedelmann. Mas este fazia de conta que não ouvira. Preparava um grogue farto, misturando em partes iguais, com toda a precisão, a água e o rum. E esta ocupação parecia absorvê-lo por completo.

 

Descansa em sossego durante alguns dias. Ainda que seja  difícil,  procura   esquecer   que   não   se  pode   fazer  a guerra sem ti. O meu pai que te dê um quarto. Deixa-te amimar pela minha irmã, mas não faças tolices com ela. E  vai  também,  uma  vez  por  outra,   passear  com  minha mulher. E diz a toda a gente que nos encontramos maravilhosamente bem.

 

Não deixarei de o fazer  assegurou Vierbein. Asch deitou um olhar em volta, mirou a chama torva

 

do  petróleo,  o  soalho  sórdido,  o  monte  de palha  a  um canto e os cobertores desdobrados, e disse:

 

É preciso demonstrar aos nossos que vivemos aqui como príncipes. Temos tudo;  não necessitamos,  portanto, de coisa alguma. Temos um só desejo: fazer ajoelhar os Russos, para que a retaguarda possa dormir em paz.

 

Direi  respondeu  Vierbein.

 

Capaz disso és tu  disse Asch examinando o camarada e piscando o olho.

 

Vv’edelmann, que provara o grogue e o achara muito apreciável, meteu-se outra vez na conversa:

 

Não se apresse, Vierbein. Cumpra a sua missão com

 

cuidado. Não se precipite.

 

.  que quer dizer em bom alemão: «Não sejas idiota,

 

Vierbein. Uma ocasião destas não voltará tão cedo.»

 

Wedelmann teve um sorriso aprovador. Mas não explicou o que este sorriso queria dizer. Era com satisfação que via Vierbein aproveitar esta licença. E sabia muito bem que Vierbein, que, mais do que qualquer outro, merecia esta licença, não tiraria dela todo o proveito possível.

 

Lá fora era a neve lívida. Diante das janelas sujas espalhava-se, pálida, a noite que começava. Asch colocou os cartões destinados à ocultação das luzes. O candeeiro vacilou preguiçosamente e dir-se-ia que isto aquecia a casa.

 

Ao longe ouvia-se o rumor abafado de um motor que se aproximava. Depressa o ruído dominou o crepitar do fogão. Asch apurou o ouvido um momento. Depois disse:

 

Aí   vêm   os   nossos   convidados.

 

O primeiro-cabo Kowalski contornou dois profundos buracos de obus e, depois, pisando o travão, parou o carro exactamente diante da entrada da cabana do tenente.

 

Uma auto-estrada  nada é  ao  lado  disto  disse  ele contemplando  com  satisfação  o  caminho  intransitável  por onde viera.

 

O sargento-ajudante, com uma pasta debaixo do braço, saltou do carro e avançou, tropeçando, até à porta. Soeft demorava-se. Desembaraçou-se meticulosamente do cobertor que enrolara em volta de si. Depois, em harmoniosos movimentos, tirou as luvas forradas, após o que ordenou a Kowalski:

 

Traz  o caixote.

 

Serei   eu   teu   criiado? perguntou   Kowalski,   mostrando-lhe  de  maneira  provocadora  o  traseiro,  ao  mesmo tempo  que  de~cia  do  carro.

 

Soêft rogou-lhe algumas pragas que Kowalski, evidentemente, simulou tomar por gracejos, uma vez que riu de vontade e durante bastante tempo. Quanto ao caixote de Soêft. continuou provisoriamente no automóvel.

 

Os três homens, envolvidos nos seus capotes, que arrastavam pelo chão  Soeft vestira o seu pesado capote de peles, à aproximação da noite , penetraram na casa. Wedelmann acolheu-os com um gesto amigável, gritando:

 

Sejam bem-vindos ao castelo!  O sargento-ajudante tentou endireitar-se e fazer a continência  impecavelmente.   Mas  o  tecto  era  baixo  de  mais e   a   continência   saiu   bastante   mal.   Soêft,   atrás,   esboçou apenas o gesto. KowalsKki nem sequer pensou nisso.

 

Trouxe   um   caixotinho   de   produtos   de   cantina anunciou Soêft.

 

Magnífico!   disse   Wedelmann.  Não   será   considerado um luxo.

 

Está   lá   fora,   no   meu   carro.  E   como   ninguém reagia da maneira que ele esperava acrescentou:  É preciso  que  alguém  vá  buscá-lo.

 

Dê   ordem  respondeu   o   tenente.

 

Soêft  deitou  um  olhar  imperioso  a  Kowalski  e  disse:

 

Kowalski...   o   caixote!

 

O primeiro-cabo devia estar surdo. Esgaravatava os ouvidos, ao mesmo tempo que mirava com respeito as garrafas- de rum já desarrolhadas.

 

-De que é que está à espera?  perguntou-lhe Wedelmann.

 

Kowalski   parou   lentamente   de   remexer   nos   ouvidos Deu   meia   volta   com   uma   lentidão   exasperante,   deslizou para fora e voltou logo, dizendo num tom calmo: Não vejo  nenhum  caixote.

 

Soeft, perdendo o sangue-frio  o que só raramente lhe acontecia, saltou para a rua. Kowalski abriu-lhe a porta com solicitude. Pouco depois o segundo-sargento voltava todo esbaforido, vermelho, trazendo o caixote.

 

Ora aí está! disse Kowalski. imperturbável:

 

Porque não fizeste isso logo?

 

Asch rebentou a rir. As pálpebras de Soêft franziram-se mais ainda. Fulminou com um olhar o subalterno, o que não inquietou este pouco que fossse.

 

Wedelmann cumprimentou todos os seus visitantes, apertando-lhes a mão. Convidou-os amavelmente a sentarem-se. Kowalski foi o primeiro a obedecer ao convite: antes que os outros tivessem tirado os capotes já ele saboreava com satisfação visível o seu grogue, que, como se fosse apenas por acaso, se compunha apenas de rum. O sargento-ajudante apresentou ao tenente a guia de marcha de Vierbein. Asch, debruçando-se com curiosidade por sobre o ombro de Wedelmann, observou com surpresa:

 

Porque  não  recebe  Vierbein  uma  guia  de  licença?

 

Porque de há algum tempo para cá todas as licenças estão suspensas no sector da frente  respondeu o sargento-ajudante  num   tom   desagradável.

 

Mas  na  retaguarda  não  sabem  disso.

 

Mas sabemos nós  respondeu o sargento-ajudante. E devemos conformar-nos.  Estava de mau humor e não o   ocultava.   Não   gostava   de   que   se   metessem   nos   seus assuntos.

 

Wedelmann simulava ler com atenção os papéis. Mas não lia. Estava inclinado para a frente e escutava.

 

De pé, atrás do tenente, Asch olhou o brigadas e disse:

 

Não sei se tens razão para fazer isto.

 

Seja como for, está de conformidade com as prescrições actualmente em vigor. Espero que não tenhas dúvidas.

 

Kowalski bebia à saúde de Vierbein; Soêft chupava voluptuosamente um charuto; Wedelmann parecia ler: Bock e Asch observavam-se com expressão agressiva.

 

Se  dás  ao  rapazinho  apenas uma  guia  de  marcha, ele terá de se apresentar na secção de reserva. E aí poderão fazer dele o que quiserem, durante o  tempo que quiserem, 

 

De qualquer modo, ele tem de apresentar-se na secção de reserva. Sem i>so não poderá cumprir a missão.

 

E  na  secção  de   reserva   disse   Soeft,  não   menos voluptuosamente  está  o  nosso   quirido   antigo  brigadas Schulz.  Primeiro-tenente  e  chefe   de  bateria,   

 

Isso   é   verdade    disse   Wedelmann   levantando   a cabeça, inquieto.  Mas não e razão para  que  o assunto corra mal. A  guerra fez  desaparecer  muitas coisas e  não poupou ninguém. Quatro anos é muito tempo.  Que diz a isto, Vierbein?

 

Não vejo nenhum inconveniente, meu tenente disse Vierbein com energia.

 

No entanto, o melhor seria  disse Asch acenando lentamente   a   cabeça    fornecer   ao   rapazinho   todos   os meios de ir pelo  seguro e de  lhe permitir aproveitar um pouco  da  sua   viagem.   Dá-lhe   a   ordem   de   missão   e,   ao mesmo tempo, uma guia de licença.

 

As  duas  ao  mesmo  tempo?

 

Porque não?  Julgas por acaso que por causa disso o teu furriel vai sucumbir ao peso do trabalho?

 

Duas   espécies   de   papéis!   exclamou   o   sargento-ajudante desorientado.  Isso não se pode fazer.

 

Pode-se tudo quanto se quer. Disse-o o nosso Fiihrer. O  sargento-ajudante   olhava   o   tenente,   para   que   este lhe acudisse. Não havia que duvidar: Asch dizia o que o tenente pensava, mas num caso como este era necessário ter o seu assentimento formal. Se as coisas corressem mal  o que não era impossível , era sempre bom ter uma ordem precisa: «Se acha, meu tenente...»

 

Wedelmann tamborilava com o lápis no papel de embalagem que cobria a mesa. Não podia tomar uma decisão: havia gente de mais. o que é sempre perigoso quando se dá uma  ordem  irregular.  O  seu  sentido   de  disciplina   proibia-lho.

 

Qual é a sua opinião, Vierbein?

 

Este compreendeu que o seu superior considerava desagradável a situação e, como sempre, quis mostrar-se condescendente. Respondeu:

 

Creio que uma ordem de missão bastará, meu tenente.

 

Como  quiser  disse  Wedelmann,   aliviado.  E   assinou.

 

Amanhã a tarde estarás na terra, rapazinho. Não me custa imaginar o que farás amanhã à noite.

 

Toda a gente começou a rir. E os risos aumentaram quando, lentamente, se viu Vierbein a corar.

 

Ouve cá, rapazinho  disse Soêft como  se fosse  a coisa mais natural deste mundo , importavas-te de levar um  embrulhinho  meu?

 

com  todo  o  gosto.   O  que  não  pode  é  ultrapassar cinco quilos.

 

Cinco quilos! Para Soeft é o peso duma carta ordinária.

 

Kowalski engoliu ruidosamente o seu grogue e disse: -Quem sabe o que se passa agora no Bismarck? É possível que os recrutas estejam a regalar-se. Sabem? Quando esta porcaria desta guerra tiver acabado proponho que organizemos no Bismarck todos os sábados serões só para antigos combatentes. Antigo combatente será quem tiver morto, pelo menos, um homem, o que se saberá pela caderneta militar. Tu é que vais preparar tudo, Vierbein. Exijo que dances lá uma valsa de honra.

 

Durante   a   guerra   não   se   dança  disse   Vierbein com gravidade.

 

Durante a guerra marcha-se, e é tudo. Disseste bem, meu  velhinho.  Não há  amor,  não  há   raparigas,  não  há cama... Apenas a Pátria e o inimigo. E também os heróis como tu, meu rapazinho, para quem a guerra é qualquer coisa de sagrado.

 

Mais cuidado com a língua, Kowalski  disse Wedelmann com bastante  severidade.  Mais  decência. Para motorista bebe de mais.

 

Aqui   não   sou   apenas   motorista    respondeu   Kowalski sem se impressionar. Sou também um homem, e não me interesso só pela guerra. Não é fácil modificar isto, meu tenente.

 

Seja como for, estás bêbado  disse Asch, tentando endireitar  a   situação,   que   parecia   um   pouco   comprometida.

 

E  tu  estás um primeiro-sargento   respondeu  Kowalski em tom agressivo.  Nota-se isso com bastante frequência.

 

Todos bebiam para não serem obrigados a falar. Sentiam o descontentamento de Wedelmann e conheciam-lhe o motivo. Mas não procuravam fazer-se valer. O nacional-socialismo do tenente chegava para todos.

 

Terão  vocês  intenção  de dormir  aqui?  perguntou Asch quando a última garrafa foi esvaziada.

 

Os visitantes despediram-se de boa vontade, depois de terem recebido a garantia de que não havia mais nada para beber, pois Wedelmann achara preferível não abrir o caixote trazido por Soeft.

 

Levaram Vierbein, que se despedira já dos serventes da sua peça e se encaminhava agora para casa do sargentoajudante, donde, no dia seguinte de manhã, o conduziriam ao aeródromo. Algumas horas mais tarde estaria em casa.

 

O sargento Asch bateu no ombro do amigo.

 

Faz o que te pedi  disse-lhe.  Conta muitas coisas a minha  mulher.   Diz-lhe  que  eu  vou   maravilhosamente: diz-lhe  que  a  erva  ruim  não   a  cresta  a   geada  e   outras frioleiras deste género.

 

Depois afastou-se. A penumbra viscosa do fatigado candeeiro de petróleo obscurecia-lhe o rosto. Asch deixou Vierbein ao tenente, que dizia:

 

Acompanho-o até ao carro.

 

Saíram. Sob a luz brumosa da lua estendia-se, cinzenta, a neve. A noite estava fria e húmida. Nas nuvens baixas insinuava-se já a tepidez da Primavera.

 

Vierbein  disse o tenente , faça o que tiver a fazer e faça-o completamente. Não se deixe aborrecer. Regresse de saúde e traga material  de  rádio e pessoal competente.

 

Sim,  meu  tenente.

 

Outra coisa ainda, Vierbein. Coisa  particular.

 

U’edelmann puxou-o de parte. Hesitava e estava visivelmente embaraçado. Depois disse, com uma precipitação que não lhe era habitual:

 

Mandei meter há pouco na sua bagagem duas garrafas de bom conhaque. Uma é para si. Beba-a com gosto, meu  caro Vierbein.  Beba-a   em  boa  companhia.  A  outra dè-a  da  minha  parte...   sim,  dê-a  à  Sr.a  Schulz.  A  Lore Schulz. Conhece-a. E diga-lhe...  Não, não lhe diga nada. Diga-lhe só que lhe envio os meus cumprimentos. E que lhe desejo todas as coisas boas possíveis. Nada mais. Espero que tudo se passará bem, Vierbein.

 

O tenente afastou-se, visivelmente aliviado, antes que Vierbein pudesse responder-lhe. Esfregava as mãos como se tivesse tocado num ferro em brasa. Depois as trevas engoliram-no.

 

É o que eu sempre disse  observou Soeft.  Ele precisava  duma  mulher.  O   idealismo   não   chega  para   o fazer feliz. Que dizes, Asch? Tenho de lhe arranjar uma Natacha.

 

Ainda estás aí? perguntou o sargento. Se dentro de dois minutos não tiverem desaparecido, corro-os à bala.

 

Até à vista  disse mais uma vez Vierbein. Depois  subiu  para   o  carro  de  Kowalski,  onde  já  se

 

encontravam o sargento-ajudante e Soeft. Kowalski fez rugir o motor e, contornando afoitamente os primeiros buracos de obus, lançou-se no meio da noite.

 

Este rapaz conduz como se tivesse fogo no rabo disse Weddelmann, de pé, atrás de Asch.

 

Podemos   ter   confiança   no   rapazinho    respondeu Asch,  que   adivinhava   o   pensamento   do   superior.   Era preciso que o Diabo se intrometesse na questão.

 

Nos tempos que correm não seria impossível. - E Wedelmann pousou a mão no ombro do seu sargento, ao mesmo tempo que escutava o ruído do motor afastando-se na noite. Depois o silêncio hipócrita da guerra envolveu-os de novo durante alguns instantes.

 

Faz frio  disse Asch para romper este silêncio que os invadia.  Frio e húmido.

 

Dir-se-ia que o universo inteiro estava silencioso. Parecia que já não havia frentes de batalha entre as quais jazessem cadáveres gelados. Já não havia soldados respirando debaixo dos seus cobertores sujos. Já não havia etapa ignorando o repouso e não sabendo exactamente o que era a guerra. E já não havia mulher sobre a Terra a que um homem pudesse agarrar-se. O universo não seria mais que um cemitério?

 

O sargento Asch disse:

 

Se ao menos se soubesse o que o mundo está chocando numa noite como esta!

 

O capitão Witterer, o novo chefe, subiu num passo ágil para o carro da 3.ª bateria que o esperava diante do estado-maior do regimento.

 

O motorista estava indolentemente sentado ao volante. Na retaguarda empilhavam-se as bastante importantes bagagens do oficial. O sol, pálido, parecia ter convidado o motorista para uma pequena sesta, pois este não se mexia.

 

Para a bateria!   exclamou Witterer num tom de audácia.   Mas  depressa, peço-lhe.

 

Linha de fogo? Posição avançada? Posição recuada? perguntou  o motorista,  enumerando  estes termos como um criado de restaurante apressado recita a ementa.

 

Primeiro, às  repartições disse  Witterer num  tom pouco  amável. A atitude deste motorista desagradava-lhe, como muitas outras coisas que vira até aí. Quase todos os soldados, pelo menos os da sua bateria, lhe pareciam desleixados. Era preciso remediar isto  tão depressa  e tão seriamente quanto possível.

 

Como se chama?perguntou  ao motorista.

 

Kowalski.

 

General Kowalski?

 

Não, apenas Kowalski  disse o soldado pisando o acelerador e metendo direito a um buraco de obus. O carro enterrou-se, atravessou, saltou brutalmente. Instintivamente, Witterer agarrou-se aos lados; o boné escorregou-lhe.

 

O   meu   posto   é   primeiro-cabo  disse   então   Kowalski.

 

O capitão não respondeu e pôs-se a observar a estrada. Esta 3.ª bateria», pensava, lamentando ter de o pensar, «parece realmente uma bela porcaria. Aliás, como muitas outras coisas aqui!» Mas não era homem para se deixar desencorajar. «O prazer aumenta na proporção da resistência», pensou ainda, ao mesmo tempo que se consagrava a conservar o equilíbrio, apesar da velocidade louca. Transformar esta pocilga numa coudelaria modelo era uma tarefa que valia a pena para um homem como ele.

 

O capitão Witterer vinha em linha recta do Grande Quartel-General. Era ali o homem de confiança dum dos generais encarregados da organização dos transportes. Não tardaria a ser indispensável. Mas uma coisa lhe faltava para fazer uma carreira brilhante: a experiência da frente. Ora, para ele, que até aí dominara todas as dificuldades como se fossem brincadeiras, isto não era um problema. Ocupava-se já em remediar estas pequenas imperfeições. Dentro de dois ou três meses este intermédio estaria acabado e haveria na frente mais uma unidade de que se podia ter orgulho.

 

O carro deixara a etapa e saltava na estrada arruinada. Neve cinzenta, árvores mortas, cabanas enterradas na terra tudo parecia fugir à sua passagem. A gasolina cheirava mal, o motor rugia, uma atmosfera fria e húmida chicoteava-lhe o rosto. O motorista guiava com dois dedos da mão esquerda; a direita estava mergulhada profundamente na algibeira do capote.

 

Witterer pôs-se a examinar o homem de mais perto. Não se podia considerar limpo o capote: dando às coisas os nomes devidos, estava sujo, nojento. Estava coberto de nódoas de óleo e de salpicos de lama provenientes ainda do Outono precedente. Além disso, o sujeito não estava barbeado. Dele vinha um cheiro bolorento, adocicado, de álcool, que subia às narinas, tal como o que se respira de manhã nas tabernas mais modestas. E as mãos, as barbatanas, para melhor dizer, estavam de tal modo sujas que dir-se-ia que ele as enterrava no chão todas as noites. Não era um soldado, pelo menos não era um soldado que conviesse à sua bateria  era um pobre diabo. É certo que sabia guiar. Guiava como um demónio. Sempre era alguma coisa.

 

Ainda é longe ?  perguntou Witterer.

 

Não muito  disse o primeiro-cabo.

 

Kowalski aproou à aldeia onde estava a posição recuada. Quase não moderou a marcha, embora os homens e os veículos parecessem barrar-lhe o caminho. Lançava-se sobre eles com risco da vida e os ameaçados fugiam tão depressa quanto podiam. Witterer admirava-o sinceramente. Mas ia observando com uma crescente desconfiança o seu novo centro de actividades.

 

Um pouco por toda a parte havia blindados. Numa miserável forja ouvia-se o ruído duma oficina de reparações: camiões desmanchados viam-se aqui e além. O hospital da frente estava instalado numa escola. Na casa mais importante da aldeia alojava-se o estado-maior de um regimento de infantaria. Em volta da casa mais importante depois daquela a 3.ª bateria estabelecera a sua posição recuada.

 

Kowalski apontou sobre a administração. Exactamente diante dela travou tão bruscamente que Witterer quase foi projectado contra o pára-brisas. Antes que o capitão pudesse dizer o que precisava de dizer a porta da cabana abriu-se e o sargento-ajudante Bock precipitou-se para fora.

 

O primeiro-cabo Kowalski pôde então admirar com um entusiasmo crescente o raro espectáculo que se lhe apresentava aos olhos: o brigadas envergara o grande uniforme, segundo todas as regras da caserna: até mesmo o seu caderno de notas estava no lugar ad hoc. Trazia a sua fiada de condecorações e a sua Cruz de Ferro de 1.ª classe com espadas resplandecia de limpa-metais. Até o cinturão era um modelo do género. E nas suas botas reflectia-se a neve suja. Kowalski estava deliciado: não sabia que tal coisa pudesse existir ainda.

 

O sargento-ajudante pôs-se em sentido, fez a continência regulamentar e apresentou energicamente o seu relatório: «3.ªbateria: 2 oficiais, 23 subalternos e 138 soldados, dos quais 2 subalternos e 9 soldados no hospital, 1 subalterno e 4 soldados no comando, 1 soldado em detenção preventiva, 1 soldado preso.»

 

Witterer sentia-se sinceramente feliz. Finalmente aqui estava um homem da sua bateria que produzia boa impressão. Um veterano: via-se logo ao primeiro olhar. A coluna vertebral do exército. Nestes homens podia-se ter confiança ; era destes que havia necessidade  exactamente destes.

 

O capitão desceu do carro no seu passo sempre ágil. Energicamente, dirigiu-se para o seu sargento-ajudante e estendeu-lhe a mão, o que tornou o subalterno visivelmente orgulhoso. Ao mesmo tempo olhavam-se no branco dos olhos, como para exprimirem os seus votos. Kowalski divertia-se como um deus.

 

O sargento-ajudante virou-se então apressadamente para o seu alojamento e abriu a porta de par em par. Witterer curvou-se, embora não fosse necessário, e entrou. Encontrou lá dentro o tenente Wedelmann, que lia os documentos confidenciais.

 

Os dois oficiais saudaram-se com reserva, apresentaram-se e esconderam sob uma exagerada cordialidade a sua curiosidade. Depois de alguns cumprimentos banais, ao mesmo tempo que se examinavam como dois alquiladores, sentaram-se.

 

Cheguei anteontem de manhã, mas o coronel Luschke julgou  útil  fazer-me  primeiro   conhecer  todo   este   sector da frente.

 

É um dos métodos do coronel  respondeu Wedelmann,   deitando   um   rápido   olhar   ao   sargento-ajudante. Ambos sabiam que um desses métodos consistia em «aquecer» os novos oficiais durante pelo menos vinte e quatro horas no estado-maior do regimento. Se não eram completamente estúpidos ou não estavam cansados de viver, compreendiam de que lado soprava  o vento e adaptavam-se.

 

O   coronel   é   um   homem   notável  disse   Witterer cautelosamente.

 

Weddelmann  aprovou.

 

É quase impossível subtrair-se alguém à vontade dele. É bom sabê-lo.

 

Até agora a  3.ª bateria  teve  muitos êxitos,  não  é verdade?

 

Assim se pode dizer.

 

Espero  que  não  tenha  sido   com   prejuízo   da   disciplina.

 

A força combativa é mais importante  que  a  disciplina  disse Wedelmann num tom breve.

 

Contudo, uma é condição da outra.

 

As teorias desse género soam sempre bem, meu capitão. Mas na prática as coisas são diferentes. Ou pensa que alguma vez haverá um regulamento indicando de que modo convém morrer?

 

Witterer sorria com uma expressão obstinada e superior. Wedelmann não lhe parecia ser o oficial ideal que o coronel Luschke continuamente se esforçara por pintar-lhe. A maneira como estava sentado era, aos olhos de Witterer, pouco própria de um oficial. Era evidente que a estada numa frente imóvel não lhe fizera bem. Em casos assim os ossos enferrujam-se, a energia paralisa-se, o espírito põe-se a ruminar ideias. As primeiras linhas tinham realmente necessidade de sangue novo. Fora por isso, aliás, que viera.

 

Preparou tudo para me entregar a bateria, tenente?

 

Que é que havia  a preparar?  respondeu  Wedelmann.  Entrego-lhe a bateria tal como está. Entrego-lhe uma bateria experimentada no combate e que muitas vezes foi louvada. O que fizer dela é consigo.

 

Naturalmente  disse o capitão com frieza.  Contudo,  não  pode  dispensar-se  uma  transmissão  escrita   de poderes.

 

Não temos livro de bordo  disse Wedelmann cada vez mais contrariado.  O relatório de cada dia dá a conta exacta  do  pessoal,  dos  veículos,  das  munições,  da   gasolina  se é nisto que pensa, meu capitão.

 

O sargento-ajudante, esforçando-se por proceder com tacto, interveio:

 

- O relatório escrito acerca dos documentos secretos do comando está pronto.

 

Muito bem  disse Witterer, levantando-se.  Vamos primeiro examinar as coisas de mais perto.

 

Pois   sim    disse   Wedelmann   levantando-se   também.  Comecemos pela linha de fogo.

 

Witterer, que se dirigia já para a porta, parou como se uma ideia acessória, sim, mas importante também, lhe tivesse acudido, e perguntou:

 

Antes de nos dirigirmos às peças, ainda outra coisa: onde é que eu vou morar?

 

Wedelmann pensou: Morar não é a palavra própria nas circunstâncias em que nos encontramos.» Disse:

 

Pode residir, comigo, meu capitão. Há ainda espaço, vendo bem. Estou alojado na posição avançada.

 

De começo, a fim de me pôr ao corrente de tudo, prefiro ficar na posição recuada.

 

Perfeitamente, meu capitão  disse o brigadas, conseguindo com dificuldade esconder quanto esta perspectiva lhe era pouco  agradável.  Estava  em  sua  casa.  Nem  por sombras queria ver instalar-se ali alguém com o poder de se meter nos seus negócios e que estava mesmo decidido a fazê-lo.

 

Witterer fez um gesto com a cabeça ao seu sargento-ajudante e dirigiu-lhe ainda por cima um sorriso, que depressa lhe deixou adivinhar que devia esperar outras surpresas.

 

Aliás, antes que ele compreendesse o que se preparava, o capitão dizia já:

 

Bem entendido, é você,  Bock,  quem tem  o  melhor alojamento da posição recuada.

 

Wedelmann sorriu, agradavelmente surpreendido. O sargento-ajudante estava mudo, em sentido. Um e outro sabiam que não era o sargento-ajudante quem tinha o melhor alojamento, mas sim, como era natural, Soeft, o imperador dos abastecimentos. Mas Witterer não podia ainda saber estas coisas.

 

Sim  continuou o capitão, deleitando-se com a sua superioridade, eu sei, meu caro.  É sempre o brigadas quem tem o melhor alojamento. Toda  a  gente  sabe isto. Mas você deixará o seu alojamento para o seu capitão, não é verdade?

 

Sim  respondeu Bock com a voz estrangulada.

 

Então desobstrua isto aqui  acrescentou Witterer. Quando eu tiver voltado da linha de fogo verei o que é capaz de fazer pelo seu novo chefe.

 

Sim, meu capitão  disse o sargento-ajudante num tom cheio de amargura.

 

Proponho-lhe que vá, com a sua repartição, instalar-se em casa de Soeft  disse Wedelmann divertido. com a condição, claro, de que se não oponha, meu capitão.

 

Muito bem  disse  Witterer.  Instalar-se-á com  a sua repartição em casa de Soeft.

 

O sargento previa terríveis complicações. Não só perdia um alojamento muito aceitável, mas ainda por cima tinha Soêft às costas. Que imaginava, no fim de contas, o novo chefe? Ele não podia meter-se com Soeft logo ao princípio. E justamente com Soeft! Se não se acudia a repor tudo em ordem, o resultado podia ser reduzir toda a gente a pão e laranja. O novo comandante não tinha ideia nenhuma do que se passava.

 

Quem   é   o   meu   motorista   habitual ?  perguntou Witterer.

 

O primeiro-cabo Kowalski  respondeu Bock, solícito.   Dizer   isto  tranquilizava-o.   Ripostava   assim.   Porque Kowalski  era  o  condutor   ideal   para   quem   desejasse   ser seriamente sacudido.

 

Exactamente   ele?-perguntou   Witterer   sem   entusiasmo.

 

É o melhor motorista da bateria  observou Wedelmann.  Desembaraça-se em todas as circunstâncias. Também se sentia satisfeito por ver Kowalski ao serviço do capitão. O primeiro-cabo, quando queria, entendia meias palavras. Adivinhar o que se pensava e, quando isso lhe desagradava, precaver-se com antecipação era uma das suas especialidades.

 

Admitamos, então -concluiu Witterer. Conseguiremos domesticá-lo.

 

Aparentemente de acordo, Witterer e Wedelmann saíram da repartição e, conduzidos por Bock, dirigiram-se para o pequeno Mercedes. Kowalski não estava: foi preciso procurá-lo. Não demoraram a encontrá-lo perto da cozinha rolante, onde verificava se a carne estava cozida em condições.

 

Numa velocidade louca conduziu os seus chefes à linha avançada. Daí os dois oficiais encaminharam-se a pé para as peças dispostas em bateria na orla da aldeia.

 

Witterer, que, de conformidade com o regulamento, procurava todos os abrigos naturais, pôs o capacete de aço e, encostado a uma árvore, inclinado para a frente, concentrado, examinou o terreno com o seu binóculo. Pouco se via das linhas inimigas.

 

Só duas das nossas peças podem atirar directamente

 

explicou   Wedelmann.   As   outras   duas   dominam   as colinas situadas diante de nós para cá da nossa linha de infantaria e destinam-se sobretudo a defender-nos dos blindados.

 

E para o tiro indirecto?

 

Wedelmann tirou do canhão da manga um mapa bastante estragado, todo riscado de traços de lápis de cor, e desdobrou-o.

 

Indirectamente, as nossas quatro peças dominam em toda a extensão o sector da frente diante de nós.

 

com gestos breves da mão indicou pontos de referência, mostrou a posição das baterias vizinhas no mapa e no terreno e esforçou-se por tornar visível, depois, a linha pouco profunda do inimigo.

 

E regam muitas vezes os camaradinhas do outro lado?

 

Nestas últimas semanas tem havido  aqui o silêncio mais completo.

 

Ora essa! Não lhes desejam os bons-dias? Não lhes dizem «boa noite»?

 

Meu capitão  respondeu Wedelmann  amavelmente

 

nós utilizamos as nossas munições na medida em que a situação o exige. Não temos necessidade de fazer exercício de tiro. A nossa bateria já tem. bastante experiência de guerra.

 

Witterer, sempre abrigado, não julgou dignas de comentário estas explicações. A opinião crítica que tinha do tenente Wedelmann afigurava-se-lhe cada vez mais justificada. Wedelmann estava cansado da frente. E os seus homens seguiam-lhe automaticamente o exemplo. Faltava-lhes centelha.

 

Após ter verificado o absoluto silêncio neste sector, Witterer passou em revista as posições e encorajou com palavras bem escolhidas os soldados, as sentinelas e os serventes das peças. Ouviram todos uma série de termos bem conhecidos, tais como «activar», «não deixar criar ferrugem», «mostrar com que lenha se aquecem», e assim por aí fora. Wedelmann conservava-se em silêncio, mas não estava surpreendido. Os soldados, esses, estavam surpreendidos e conservavam-se calados como ele. Witterer interpretava isto como uma prova de respeito.

 

Os dois oficiais, cujos pensamentos eram para o futuro muito diferentes e mesmo opostos, dirigiram-se depois para o alojamento do tenente. Encontraram ali o sargento Asch. O capitão teve um sobressalto ao vê-lo. Depois sorriu com frieza.

 

com um pouco mais esquecia-me de si  disse.

 

Sabia que pensaria em mim, meu capitão.

 

O  sargento  Asch  é  o  subalterno-adjunto   da  nossa bateria  disse Wedelmann.  Não sabia que já se conheciam.

 

Sim, já  travei  conhecimento  com  ele.  E  conheço-o mesmo bem, parece-me.

 

Instalaram-se e Asch sentou-se, mesmo sem ser convidado. Witterer achou preferível tolerá-lo sem nada dizer. Mais tarde as coisas mudariam. E de que maneira!

 

Há alguma coisa de especial na linha  de fogo? perguntou  o tenente.

 

O terceiro canhão deve ser afinado. Se o transportarmos hoje para a oficina, estará pronto depois de amanhã.

 

Está de acordo, meu capitão ?

 

Os armeiros não poderão vir à linha de fogo? perguntou Witterer.  Ou têm demasiado medo para isso?

 

Não   há   razão   para   medos,   meu   capitão    disse Asch.  Se o exigirmos, os armeiros podem afinar a peça na linha de fogo. Mas o trabalho na oficina é mais rápido e mais seguro.

 

É o que você diz. E se acontece alguma coisa aqui, entretanto, sargento?

 

Nada pode acontecer aqui de um dia para o outro, meu capitão. Actualmente não há no sector em frente nenhum blindado, nem, por assim dizer, artilharia. Os nossos batedores não anunciaram nenhum reforço digno de nota, quer  em  material,  quer  em  homens.   Daríamos  por   isso horas antes...

 

De futuro, sargento, deixar-me-á o cuidado de ajuizar dessas coisas. Witterer disse  isto  num tom  compassado e como se se tratasse simplesmente de dar um conselho. Mas era impossível não ver que não admitia qualquer discussão sobre este ponto, nem mesmo sobre qualquer que fosse.

 

Asch verificou-o imediatamente e calou-se. Deitou um olhar a Wedelmann, que o evitou.

 

Procederei nesse sentido  disse o sargento.

 

A porta abriu-se bruscamente e Kowalski entrou. O seu ensebado bivaque estava posto para a nuca e o colarinho do casaco largamente aberto debaixo do capote.

 

Que vem aqui fazer?  perguntou Witterer.

 

Venho aquecer-me  disse Kowalski, aproximando-se do fogão. Estendeu as mãos e riu voluptuosamente. Depois sacudiu a neve das botas.

 

Há mais alguma coisa?-perguntou Wedelmann  a Asch.

 

Não deveríamos dar a peça de Vierbein a Krause. O capitão quis saber quem era esse Vierbein. Wedelmann informou-o.  Então Witterer  quis  saber porque não estava Vierbein na linha de fogo. Wedelmann deu-lhe igualmente as explicações necessárias. E depois quem era Krause. E porque não devia este ter a peça de Vierbein.

 

-O sargento Vierbein  está  em  relações particularmente boas com os seus serventes. Krause é um tipo de género completamente diferente. Os homens terão dificuldade em habituar-se a ele. É provável que destrua todo o trabalho  de Vierbein.

 

Vou    examinar    esse    Krause  disse    Witterer,    ao mesmo tempo que pensava que, se o sargento Asch se lhe opunha tão  violentamente,  Krause devia  ser  um  soldado muito diferente dele. E isto era interessante.  Porque este Asch...

 

Não   têm   nada   que   se   beba?  perguntou   Kowalski sem se constranger e gritando como se estivesse numa cervejaria.

 

É isso o que o satisfaz, não?  perguntou Witterer ironicamente.

 

Mais ou menos  disse Kowalski.  Que é que nos resta? Do que eu mais gostava ainda era de que se pudessem meter as mulheres em garrafas.

 

O capitão tinha a intenção de exercitar-se outra vez na ironia, imaginando erradamente que Kowalski era um objecto perfeitamente apto para isso. Mas a palavra «mulheres» serviu-lhe de ponto de partida para desenvolver uma das suas ideias preferidas.

 

Quando   esteve   aqui   pela   última   vez   o   Teatro   do Exército?  perguntou  amavelmente.

 

Aqui?   perguntou    Wedelmann,    surpreendido. Aqui, na nossa posição? Está a gracejar.

 

Mais um  domínio  que  foi  descurado   disse Witterer com convicção.  É evidente que há falta de iniciativa. Claro que ninguém aqui virá por si mesmo; é preciso que se trabalhe. E eu não hesitarei em fazê-lo. O meu carro está pronto, cabo?

 

Para isso, sempre  disse Kowalski com um zelo que excitou a admiração sincera de Wedelmann e Asch.

 

O motor crepitou com violência como um cavalo detido bruscamente após um galope furioso. Depois soprou ainda uma vez e ficou silencioso. O primeiro-cabo Kowalski sorriu calmamente, olhando o capitão Witterer, que estava ainda impressionado pela corrida furibunda que acabara de fazer.

 

Cá  estamos  disse   o   primeiro-cabo.

 

Estavam na etapa, diante da escola onde se encontravam instaladas as senhoras do Teatro do Exército. Witterer examinou a granja, relativamente sólida, onde estava alojado o seu grupo, agarrou na pasta e desceu. Kowalski preparava-se para fazer o mesmo.

 

Espere aí  disse o capitão.

 

Kowalski, sem dizer palavra, olhou o seu chefe com uma expressão comovedora, como se fosse um bravo carneiro. Mas o capitão não reparou no seu motorista, que teria sido observado com inquietação por aqueles que o conhecessem. Witterer desapareceu num passo ágil e rápido na escola onde estavam instalados os membros da Kommandantur.

 

Ficando só, o primeiro-cabo enterrou-se profundamente no assento, levantou as pernas, repousou as botas, notavelmente enlameadas, no couro gasto do assento vizinho e enfiou de mau humor as mãos nas algibeiras do capote. Sem se impressionar, olhava todos os soldados que passavam perto dele.

 

É realmente um nojento velhaco!  disse, por fim, com convicção e tão alto que um tenente que passava supôs que o  chamavam e voltou-se. Kowalski não lhe concedeu sequer a honra de um olhar e suspirou com ar de desprezo.

 

As ruas intransitáveis obliquavam, torciam-se, serpenteavam através da aldeia. Algumas antigas igrejas boas para demolir deixavam escapar nuvens azuis-negras de fumo: havia oficinas trabalhando lá dentro; nalgumas delas queimava-se gasolina. As casas semiconstruídas de madeira amontoadas em volta das igrejas a distâncias irregulares, tinham o ar de montes de lenha abandonados para queimar. Sobre tudo isto jazia a neve húmida, viscosa.

 

«Parece-me», pensava Kowalski de mau humor, olhando a grande escola sarapintada de ferrugem onde Witterer desaparecera com a pasta, «que este chefe me toma por um motorista de táxi.»

 

E perguntava a si mesmo, com o rigor de que por vezes era capaz, se devia rectificar ou não esta maneira de ver. E como era sempre por aquilo a que chamava «clareza», hesitava em fazê-lo «já ou agora mesmo».

 

O aparecimento do subalterno Soeft arrancou-o a esta profunda meditação. Soeft, de nariz no ar, saía orgulhosamente da escola, esfregando prazenteiramente as mãos antes de as enfiar quase cerimoniosamente nas suas luvas forradas. Parecia dar-se pouco ao trabalho de esconder que acabara de ter uma experiência agradável. Teve para Kowalski um sorriso cúmplice, piscou o olho e preparava-se para passar sem se deter.

 

Eh, lá! Subalterno! Chegue-se aqui. Foi abandonado pelo Céu e pelo Fiihrer, hem? Já não sabe que um segundo-sargento deve ser o primeiro a saudar um primeiro-cabo?

 

Soeft voltou atrás, parou diante da trotineta de Kowalski, examinou uma e outro e disse:

 

Porque gritas dessa maneira, pedaço de asno ? Tens frio, hem? Mas isso não te pode fazer mal, alma de lacaio!

 

Estou aqui porque quero estar  respondeu Kowalski profundamente vexado, mas conseguindo disfarçá-lo.

 

Tens mesmo o ar disso  disse Soeft com um sorriso de satisfação.  O homem nascido para impor a sua vontade!

 

Se eu quiser, murcho-te o focinho  respondeu Kowalski mansamente. Mas no fundo sou um ser pacífico. com uma garrafa de aguardente  uma garrafa de litro, entenda-se  tu próprio serias capaz de me tornar manso como um cordeiro.

 

Pode-se arranjar disse Soéft, balançando-se sobre os joelhos. Agora mesmo, se quiseres. Porque tu vais ter necessidade de coragem.

 

Porquê, meu velho?

 

Já viste as bonecas, motorista?

 

O primeiro-cabo engoliu o «motorista» e, com uma indiferença conseguida  dificilmente,  perguntou:

 

De categoria?

 

De primeira... De categoria excepcional.

 

Quase  como em  França, então?

 

-Vejamos, pedaço de burguês sem educação...  Como podes comparar as coisas daqui com a França?

 

Os  teus   olhos   engelham-se   cada   vez   mais,   Soeft. Comes demasiado. É isso que te dá mau parecer.

 

Vai  ver  tu  mesmo,   carroceiro.  Vai   lá,   motorista! A não ser que não seja permitido aos motoristas!

 

Desaparece da minha vista, porco! - rugiu Kowalski, furioso.  Senão transformo-te em picado.  Depois, sem transição, perguntou:Onde é que as bonecas asilam?

 

Andar de cima, à esquerda, última porta. Quando o chefe te tiver atirado pela porta fora, o que podes ter como certo, vai ter comigo à messe da Wehrmacht. Sala do fundo. Pergunta pela enfermeira Betty.

 

Podes  esperar  muito   tempo  disse   Kowalski,  seguro de si.  A mim ninguém me põe fora. Quem o tentar é porque está farto de viver.

 

Virás dentro de um quarto de hora. Sei o que digo. Dou-te um certificado de garantia, se quiseres. Dentro de um quarto de hora estarás na messe ou aqui na rua, como aliás  convém a um  motorista.

 

Dito isto, Soeft afastou-se. Rangendo os dentes, Kowalski saiu do carro e escalou os degraus da granja-escola, semelhante a uma caixa de fósforos. Um cartaz do tamanho duma ardósia escolar anunciava que os membros da Kommandantur estavam reunidos. Por baixo, um cartaz mais pequeno, mas mesmo assim impossível de passar despercebido, declarava que o acesso era rigorosamente interdito aos que não tivessem autorização. Como sempre em casos semelhantes, Kowalski considerou que tinha autorização.

 

Entrou e trepou até ao andar superior. Depois de se ter assoado aos dedos, virou à esquerda. Ao fim da tripa a que se podia dar o nome de corredor parou para escutar. Ouvia vozes de mulher. Ouvia-as deliciado. Tinha a boca aberta. Automaticamente, esfregou o queixo. Fazia-lhe bem ouvir tais sons.

 

Contudo, estas vozes não vinham, conforme esperava, do último quarto, mas de detrás da penúltima porta da esquerda. Kowalski aproximou-se e a sua delícia aumentou ligeiramente. Abriu a porta e introduziu a cabeça pela abertura.

 

Viu primeiro uma mulher sentada perto da janela, ocupada a escrever, uma mulher que lhe pareceu severa. Ela interrompeu o trabalho, mas sem levantar os olhos. Dir-se-ia que esperava qualquer coisa pacientemente.

 

Depois o olhar curioso de Kowalski foi mais longe. com a boca novamente aberta, contemplou a outra mulher que se encontrava no quarto. Estava estendida na cama, indolente, gorducha, de carne polida; ela olhava-o sem constrangimento, mas também sem amabilidade.

 

Nessa altura a mulher sentada perto da janela olhou o intruso. Perguntou:

 

Por acaso  não bateu?

 

Não  respondeu Kowalski, surpreendido. E apurou o ouvido a esta voz, que lhe parecia habituada a dar ordens.

 

Nunca ouviu dizer que é assim que se faz?  perguntou ela.

 

Ouvir dizer ?  Sim  disse  Kowalski,  observando  a rapariga deitada na cama. Abriu a porta e introduziu-se no quarto. Simplesmente, perdi por completo o hábito. Há mais de um ano que não sei o que seja uma porta à qual seja necessário bater. E portas atrás das quais haja raparigas menos ainda.

 

Nesse caso, é tempo de ganhar de novo o hábito disse  a mulher  de  aparência severa,  sorrindo um pouco. E que poderemos nós fazer por si, Sr....

 

Kowalski  disse ele,  simulando um sorriso embaraçado.

 

Então, o que deseja o Sr. Kowalski?

 

Esta mulher da janela tinha uns olhos bons, uns olhos que olhavam a direito... e agora uma voz! Vinte deuses! Óleo e seda! Kowalski estava impressionado e deixava-o transparecer.

 

Procuro o meu capitão  disse, por fim.

 

Não há aqui nenhum capitão  disse a mulher, sorrindo.

 

Talvez ele esteja comigo, na minha cama  disse a loura. Teve um pequeno  riso  abafado,  violento  e breve.

 

Eu posso talvez ver  disse Kowalski, solícito.

 

Então, Sr. Kowalski perguntou a senhora de cabelos castanhos e curtos, que quer mais?

 

Posso facilmente imaginar o que ele quer  disse a loura numa voz aguda.

 

Nem toda a gente quer o que tu pensas, Viola  disse a mulher da janela num tom de censura; a loura tapou as ancas com o cobertor.

 

Claro que não  acrescentou Kowalski num tom convicto e inquietante.  Claro que não. Não sou perigoso.

 

Dizendo isto, teve a penosa sensação de corar. A mulher que escrevia afastou a carta e sorriu. A loura, na cama, riu outra vez. O sorriso perturbava Kowalski; o riso irritava-o.

 

Teve de fazer um esforço para readquirir a sua habitual insolência. E disse:

 

Uma vez  que me  pergunta  o que  quero,   desejava saber como se chamam. O meu nome é Kowalski, como já sabem; Bruno para as senhoras. Como se chamam, então?

 

Hem ! Estás a ver? disse a loura. É sempre a mesma coisa. Por enquanto, quer conversar.

 

Pertencemos ambas a um grupo do Teatro do Exército. O meu nome é Charlotte. Toco piano, recito versos e procuro encontrar as palavras de ocasião para ligar os diversos números do programa. Essa aí é Viola. Vilma é o seu verdadeiro nome, se não me engano. Dança. Em todo o caso, está inscrita no passaporte como bailarina.

 

Eu sou mesmo bailarina.

 

Não é difícil imaginar  disse Kowalski piscando o olho. Estendeu a mão e levantou o polegar, gesto que exprimia admiração.

 

E agora  disse a mulher da janela numa voz em que deixara de haver amabilidade  a representação particular terminou. Até à vista!

 

E onde encontrarei eu o capitão? Ele deve estar aqui. Não há mais nenhuma da vossa espécie?

 

Sim,  há   ainda  um   exemplar   disse   Charlotte. Chama-se Lisa e mora ao lado. Nas suas relações há um capitão.  Ela  ficará  com  certeza  tão  encantada  de  o  ver como nós.

 

Se querem continuar a estar encantadas, fico de boa vontade  declarou Kowalski pressurosamente.

 

Neste  momento   disse  Charlotte   não   é  necessário.  Levantou-se e dirigiu-se para Kowalski, e este verificou que era alta e bem feita.  Talvez mais tarde  disse ela, mas os seus olhos eram pouco amistosos.

 

Kowalski deixou-se empurrar para o corredor sem resistir. Afagou a manga na qual a mão dela pousara. Sentiu o uniforme empestado de suor, de humidade e de palha. Tinha ainda sensibilidade para achar que isto era pouco sedutor.

 

com mil milhões de diabos!exclamou, e dir-se-ia um camponês ao ver o seu trigo destruído pelo granizo.

 

Mas Kowalski não era homem para se deixar levar por ideias romanescas. Aceitava a vida como ela vinha. Não fazia nada para apressar as coisas; pelo contrário, travava-as. E tentava convencer-se de que o que acabava de passar-se era simples curiosidade. As mulheres  ele dizia as «frangas» tinham destas reacções, sobretudo nas circunstâncias em que se encontravam.

 

De melhor humor, bateu à última porta e entrou sem esperar. Era evidente que incomodava, embora a situação em que irrompia não fosse particularmente delicada. As duas pessoas que tinha na sua frente guardavam as distâncias. Sentados a uma mesa, bebiam café. Do autêntico, que lembrava Soeft.

 

Que quer daqui?  perguntou Witterer contrariado. A jovem Lisa,  de  olhos  espantosamente grandes,  que

 

absorviam todas as coisas, conservou-se num silêncio digno. Estendeu a mão e aflorou a todo o comprimento a borda da mesa.

 

Queria   perguntar   quanto   tempo   terei   de   esperar ainda.

 

Deixe-se lá estar que o saberá.

 

Se ainda leva muito tempo  disse Kowalski, olhando sem embaraço a rapariga dos olhos grandes, eu podia talvez ir até à messe dos soldados e beber um copo.

 

Vá à messe, se isso lhe apraz. Mas não lhe darão de beber. Chá, quando muito.

 

Kowalski achou admirável o dedo de Lisa que parecia acariciar a beira da mesa. Num tom particularmente afável’ respondeu: «Muito bem», ao mesmo tempo que pensava: «Pois seja o chá... como quiserem. Chá com rum. Ou antes, rum com chá.» E num tom benevolente acrescentou:

 

Pode procurar-me lá em baixo quando tiver acabado aqui.

 

Que ideia é essa?perguntou Witterer furioso. Na sua angulosa cara de robot os músculos das maxilas tornaram-se salientes. Kowalski achou que esta reacção tinha também interesse e deixou ao seu capitão o tempo necessário para encontrar outras palavras.

 

Contudo,  é muito simples  disse Lisa  com uma amabilidade  acentuada.  Às. cinco horas  temos um  ensaio de programa. Resta-nos até lá uma hora. Não seria uma solução prática vir o seu motorista buscá-lo aqui às cinco menos um quarto?

 

Acho bem  disse Witterer com um ar desagradável, mas  esforçando-se   visivelmente   por  evitar   qualquer  discussão suplementar.

 

Kowalski observou: «Ainda não está muito adiantado com ela. Ainda não se tratam por tu. Mas a coisa pode mudar depressa, sobretudo na época em que estamos. A pequena não escapará. É pena, porque ela é bonita! Mas é a guerra...»

 

Tenciona instalar aqui os seus quartéis de Inverno? perguntou  Witterer  num tom  irónico,  persuadido da sua infinita superioridade.

 

Kowalski esteve quase a responder: «E porque não?» Mas reteve-se a tempo, esboçou uma continência e afastou-se.

 

Dirigiu-se à messe e penetrou, como se fosse numa sala de espera, na sala reservada ao Teatro do Exército. Atravessou esta e dirigiu-se para um compartimento do fundo.

 

O camarada Soeft estava ali, à vontade, como sempre. Acabara de concluir com a enfermeira Betty um negócio interessante e bebia um copo ao êxito.

 

Você é um pulha  dizia a enfermeira Betty em tom enérgico.  Mas,  como  se  trata  da minha messe,  pouco me importa quem me entregue as melhores mercadorias. Os meus soldados sempre poderão aproveitar.

 

Kowalski tomou lugar à mesa. Estendeu os braços, apoiou a cabeça nas mãos e pôs-se a rir suavemente.

 

Você também é do género dele?

 

Nunca  respondeu  Kowalski  calmamente.  Contento-me em beber de vez em quando à sua custa, e é dar-lhe muita honra.

 

A enfermeira riu, acenou a cabeça e afastou-se. Vista de costas parecia ainda mais maciça do que de frente.

 

Como a minha mãe  disse Soeft, seguindo-a com os olhos, com uma ternura estranha e muito surpreendente nele.  Tão teimosa como a minha mãe, tal qual. Quando ela me bate no ombro, meu velho, isso vale mais para mim do que um camião de conserva de carne.

 

Queres  um   lenço?   perguntou   Kowalski,   impassível.  Não vás imaginar que eu tenha algum.

 

Soeft recuperou o sangue-frio, o que não lhe foi particularmente difícil.

 

E então?  perguntou, lambendo os beiços. Que tal, as miúdas?

 

Formidáveis!  disse Kowalski solenemente.  Absolutamente de primeira ordem!

 

Que te tinha eu dito?!

 

Uma delas estava  doida por mim. Não me queria deixar sair. Que holofotes!  E o  resto?  E uma voz,  meu velho! É de...

 

Não digas asneiras  respondeu Soeft num tom convicto.  Eu conheço essas senhoras. Isso não conta. Bastou-me um olhar. Um número como tu não entra na corrida.

 

Se eu te digo, Soeft, que ela está doida por mim, é porque está mesmo  doida.   Compreendes?  Doida varrida.

 

Pois bem!  Tu  podes  ouvir-me  a  mim,  pedaço  de idiota. Conheço os preços actuais, porque sei onde estão a oferta e a procura.

 

Tu não sabes nada de nada, vil comerciante!

 

Kowalski,  pedaço   de   idiota  disse   Soeft  sem   se melindrar,   com  certeza   não   quererás  mijar   contra   o vento. Uma delas, a Charlotte, a que toca piano, é bastante cautelosa. Quer de certeza o anel no dedo antes de ir para a cama. Seja como for, sabe muito bem que os preços neste sítio são terrivelmente altos. Ela não se deixa levar abaixo de oficial  do estado-maior, e isto  com a condição de que ele seja, na vida civil, director-geral. Podes ter confiança no que te digo. Um primeiro-cabo nem sequer chegaria ao buraco da sua fechadura.

 

É o que veremos.

 

. Pobre cabeça-de-vento  disse Soêft com desprezo. Quanto à outra, a essa Viola esbranquiçada, o teu género é menos ainda o que ela deseja. Essa garota que saracoteia o traseiro diante dos soldados reunidos é uma miúda de categoria  para um bordel de oficiais. E quando se tem um focinho como o teu é preciso ser, pelo menos, comandante para ser metido na lista. Quanto à terceira... A terceira, meu rapazinho!

 

Nada a fazer quanto a essa. Não é o meu  género. Precisa de sentimento, e eu deixei o sentimento no depósito de fardamento quando me enfiaram esta farda. Mas também não queria deixá-la para esse Witterer.

 

Se julgas que  ele  se  preocupará  em  saber  se  lhe dás ou não  a tua bênção...   Imaginas talvez  que  ele  irá procurar-te para te dizer: «Senhor primeiro-cabo, quer dar-me autorização para fazer alguns exercícios de flexibilidade?»

 

Mesmo assim, pode-se-lhe atrapalhar o negócio, Soêft.

 

Para isso, podemos pensar! disse Soêft, tornando-se, de súbito, pensativo. Para levantar dificuldades  aos outros, bem entendido! estava sempre pronto. Em geral isso trazia algumas vantagens. Em primeiro lugar, desviava as  atenções;   depois,  podia-se  ajudar  a  suprimir  as  dificuldades, o que provocava, automaticamente, provas de gratidão. E destas podia-se sempre tirar proveito.

 

Soêft tirou do estojo um dos seus charutos para’oficiais. Kowalski agarrou um sem esperar a oferta. Deram-se lume e puseram-se a fumar gravemente.

 

A pequena  disse Kowalski  seria boa para Wedelmann.

 

Wedelmann tem já pouco tempo para se ocupar dela disse Soêft.  Vai ser com certeza encarregado da bateria e será obrigado a estar quase constantemente na linha de fogo. O novo chefe parece ser coisa diferente de um filantropo.

 

Meu  velho  Soeft  disse  Kowalski,   despejando   o copo de aguardente do companheiro, quando penso que Wedelmann se bateu connosco todos estes anos e nem sequer  olhou  para  dentro dum  decote  de mulher!...   Nem mesmo em França! E esse Witterer está aí só há um dia e já tem uma boneca para trincar!

 

É a vida  disse Soêft num tom perspicaz.  Quanto a Wedelmann, Soeft já tratou de lhe arranjar alguma coisa. Vou atrair-lhe a atenção para Natacha.

 

Quem é Natacha? Pedaço de alquilador! Não é, decerto, uma das tuas mulheres da cozinha. com o teu gosto vulgar...  Wedelmann  é um  cretino,  isso  é verdade,  mas é também um tipo fino.

 

Tu hás-de vê-la, motorista, e abrirás as tuas fatigadas queixadas. Para mim, Natacha é um bocado de categoria.

 

Sabes muito bem, meu velho Soêft, que não é fácil fazer-me perder o equilíbrio. Não me deixo impressionar facilmente.

 

Vamos  ver  isso  agora  mesmo  disse  Soêft   rindo, com os olhos fitos na porta.

 

Ágil como sempre, o capitão Witterer fazia a sua entrada. Dir-se-ia o anjo da vingança. Espumava; o seu rosto estava vermelho-vivo. Parou diante de Kowalski e disse com uma calma assustadora:

 

Que pensa você que é?  Como se permite isto? Há meia hora que o espero, ao frio, e você aqui a embebedar-se! Devia ir buscar-me às cinco menos um quarto... e já são cinco e meia, cabo!

 

Kowalski puxou do relógio e disse:

 

É boa! É isso mesmo!

 

Depois de algumas horas de voo, o Junker 51  vulgarmente chamado Tia Ju, uma imensa ave de lata e camuflagem, aterrou com a segurança de um sonâmbulo.

 

Término! Chegámos a casa! gritou um soldado alegre e nervoso.  Toda a gente desce.

 

O segundo-sargento Vierbein abotoou o capote regulamentarmente, devagar e como que contra vontade. Parecia hesitar em dar os passos que iam ser necessários. Pensativo, pôs a espingarda a tiracolo e agarrou na mochila.

 

De pé, esperava sem saber o quê. Deixou passar todos os soldados vindos com ele. Empurravam-no e chocavam uns com os outros, para sair. Foi só depois deles que Vierbein desceu a escada e, quase com solenidade, pôs o pé na pista de chegada.

 

Olhou em redor, como um viajante que se vê no alto duma colina até aí desconhecida. A noite caía já. O aeródromo da sua cidade alongava-se sob a luz pálida do crepúsculo. O sol poente esforçava-se ainda por desenhar no horizonte riscos de um vermelho-vivo. Mas o universo já não possuía qualquer força luminosa.

 

Um camião surgiu da penumbra, arrastou-se por detrás dos abarracamentos e dirigiu-se, bamboleando, para a Tia Ju. Explodia, gemia e cuspia. Carregaram-no de alguns caixotes e alguns sacos. Depois, como um bêbado, afastou-se cambaleando.

 

A voz metálica de um alto-falante ouviu-se; a voz que dele saía voou pelo vasto campo. «Os soldados que acabam de chegar devem apresentar-se na Kommandantur. O pessoal de voo apresenta-se ao oficial de serviço. Atenção! Evacuar a pista!»

 

O subalterno Vierbein afivelou solidamente a mochila. E pensava: «Cá estou em casa. Há mais de um ano...»

 

Os livros tinham-lhe ensinado que este era um grande momento. Mas verificou com surpresa que nenhum sentimento elevado ou nobre enchia o seu coração. Pelo contrário, sentia-se estranhamente angustiado. Chegara... E depois?

 

Avançou atrás dos outros e apresentou na Kommandantur do aeródromo os seus papéis. Um sargento deitou-lhes um olhar, achou-os «em ordem», aplicou-lhes um carimbo e assinou. Vierbein pediu então, numa atitude extraordinariamente perfeita e que surpreendeu, para falar com o comandante em pessoa: tinha uma carta para ele.

 

O sargento encarregado de receber os soldados era bom tipo. Estava sempre pronto a satisfazer qualquer desejo, desde que não lhe causasse pessoalmente nenhum aborrecimento particular. Mandou Vierbein para o furriel, que o encaminhou para o oficial ordenança, que, por sua vez, o anunciou ao comandante.

 

O chefe da Kommandantur do aeródromo, um sujeito idoso e calvo, cuja careca brilhava mais ainda do que as lunetas, parecia ter êxito em espalhar benignidade à sua volta. Recebeu a carta que Vierbein lhe entregava, viu o nome do remetente e convidou Vierbein a sentar-se.

 

Depois começou a ler. A leitura parecia diverti-lo; por várias vezes riu, passando a mão pela cabeça.

 

Seguidamente disse:

 

- Antes de tomar o avião para o regresso, apresente-se a mim. Dar-lhe-ei dois embrulhos: um para o comandante do vosso aeroporto e outro para o coronel Luschke.

 

Sim,   meu   comandante  disse   Vierbein   respeitosamente.

 

Ficava a saber que devia esta viagem à terra a uma tripla amizade entre oficiais do estado-maior. Estava em condições de seguir um desses canais famosos que permitiam alcançar êxito muito mais depressa, e com muito mais segurança, do que os transbordantes rios, e os seus inumeráveis diques, das competências.

 

Se   tiver   por   acaso   a   menor   dificuldade,   peço-lhe que   se   dirija   imediatamente   a   mim,   sargento   Vierbein. Mesmo que não possa ajudá-lo directamente, poderei, graças às facilidades de que disponho, pôr em doze horas o coronel Luschke ao corrente do que se passar. O meu oficial ordenança vai  dizer-lhe  como  poderá  pôr-se  directamente em contacto connosco.

 

Muito bem, meu comandante. Agradeço-lhe.

 

O que faço é natural.  Depois, olhando o relógio, acrescentou:  Não  é  difícil   imaginar  que   deseja  chegar a casa hoje. Vai-se providenciar. Tem ainda trinta e dois quilómetros, não é verdade? As comunicações ferroviárias são más, mas. sempre se arranjará algum camião  para  o levar. E, se assim não for, irá um transporte especial.

 

Depois desta conversa Vierbein estacionou uma hora na cantina, decorada de grinaldas amarrotadas que tinham sido coloridas e estavam agora cinzentas ou negras. Sentado modesta e silenciosamente num canto, contemplava o fumo que os soldados lançavam, ao mesmo tempo que faziam barulho, riam, sem a menor convicção. Infatigável, uma telefonia berrava.

 

Ao fim desse tempo apareceu um motorista de capote de borracha. Dirigiu-se a Vierbein e informou-o de que tinha ordem de conduzi-lo. Era um cabo muito novo, curioso, serviçal. Levou a mochila de Vierbein e depô-la no seu side-car.

 

Vem directamente da Rússia, meu sargento?  perguntou.

 

Directamente  respondeu    Vierbein    com    amabilidade.

 

Já esteve em contacto com o inimigo?

 

Sim, quando foi necessário.

 

Deve ser uma bela porcaria, hem?

 

Depende do ponto de vista.

 

O cabo acelerou e, para mostrar que maravilhoso motorista era, partiu a toda a velocidade.

 

Enquanto rolavam, pensava: «É um subalterno qualquer: um da etapa, possivelmente; com boas relações; decerto não viu nada e vem aqui apenas fazer recados. É por isso que lhe dão esta motocicleta. Mais um que vem da Rússia.» E acelerou.

 

Não é preciso ir tão depressa  disse Vierbein.

 

Acha que isto é depressa?  respondeu o cabo com desprezo. «É mesmo um tipo da etapa: lentamente, prudentemente, sem entusiasmo.»

 

Contudo, afrouxou o andamento. Estava provado que não fazia bom cabelo desagradar aos queridinhos da Kommandantur. Podia ter consequências deploráveis. Quinze dias antes fora transferido um direitinho para a Rússia, e quase para a frente de batalha, por uma coisa que valia tanto como recusar gasolina para um isqueiro.

 

Vierbein não tinha a menor ideia destas reflexões. À medida que se aproximava do fim o sangue começava a ferver-lhe nas veias.

 

Ainda uma dúzia de quilómetros  disse o cabo. Estaremos lá dentro de vinte minutos, o máximo.

 

Vierbein aprovou automaticamente com um gesto de cabeça. Não desejava conversar, mas a sua delicadeza impedia-o de o dizer ao camarada.

 

Conhecia perfeitamente a estrada, o empedrado, as valas que a marginavam, as árvores e os carreiros, um dos quais levava a um lago tranquilo. Percorrera muitas vezes esta estrada. A última com Herbert Asch e a mulher, Elisabeth, e com Ingrid. com Ingrid Asch. A sua Ingrid.

 

Era um dia feito de seda. Cheio de sol e de felicidade. Um dia entre a campanha da França e a campanha da Rússia. A guerra escondia-se. Vierbein procurara esquecer tudo.

 

Pouco a pouco a cidade surgia diante deles na penumbra. As casas eram mais largas e mais altas. Mas sem luz. Um enorme edifício ocultava o céu, onde a noite subia.

 

Não é com certeza já a caserna!--disse Vierbein.

 

É a fábrica de hidrogénio  respondeu o cabo, acrescentando com orgulho:  Fizemo-la surgir do chão de um dia para o outro, por assim dizer. Os abarracamentos em volta são dos operários.

 

O cabo abrandou mais:

 

Espanta-o,   hem?   disse.   De   um   dia   para   o outro. Como se tivesse saído do chão.

 

Foi então que apareceu diante deles, como se uma cortina se tivesse afastado, a caserna, grande, ameaçadora, inesperada. E Vierbein teve a impressão de vê-las à luz do dia. Conhecia cada edifício, cada sala, cada álea,- cada janela, cada porta... Conhecia cada pedra.

 

Quer ir para a caserna, sargento?

 

Não   disse  Vierbein,   apressadamente.   Não! Corou, e as suas mãos agarraram com mais força a cobertura de lona que lhe protegia os joelhos.

 

Então para onde quer ir, sargento?

 

Conduza-me ao centro da cidade. Praça do Mercado. Sabe onde é o Café Asch? Então... para aí.

 

O cabo acelerou outra vez. A cidade parecia morta. O ruído do motor repercutia-se contra as paredes e parecia ser engolido por elas. Sem provocar um eco. Não havia nenhuma luz na pequena cidade.

 

A motocicleta parou diante do Café Asch. O subalterno Vierbein desceu. Agarrou na mochila, no capacete de aço e na máscara de gás. Depois despediu-se do cabo. Este apertou-lhe a mão com moleza, fez rugir o motor e desapareceu.

 

A Praça do Mercado, às escuras, espreitava Vierbein. Este tinha a impressão de que tudo se tornara mais pequeno, mais acanhado, mais triste. Permanecia ali quase imóvel. A mochila, as armas e o equipamento pendiam-lhe das mãos. Olhou em redor, um pouco embaraçado. Há meses que não se sentia tão solitário como nesse momento.

 

Pensava: «Que faço eu aqui? Devia ter ido para a caserna e apresentar-me.» Depois acrescentou: «É aqui que mora o Sr. Asch, o pai do meu único amigo; é aqui que mora Ingrid, a rapariga que amo e com quem quero casar. É aqui que estou em minha casa.»

 

Lentamente, com o andar pesado dum carregador, Vierbein avançou até ao café. Empurrou a porta com o ombro e afastou os panos suspensos atrás. A luz e o barulho envolveram-no. Deteve-se um instante, cego e aturdido.

 

Tudo estava diferente, muito diferente do que havia imaginado. O próprio café se modificara. Parecia a Vierbein que as suas recordações o tinham enganado: não era já um local de cantos tranquilos e conversas discretas. Estava muito mais cheio do que antigamente e tudo era barulhento. O fumo arrastava-se em nuvens espessas sobre as mesas. Cheirava a cerveja azeda. Um alto-falante aberto ao máximo encerrava todas as conversas na sua algazarra.

 

Ninguém pareceu reparar em Vierbein. Os criados corriam a todo o comprimento da sala. No balcão trabalhavam duas raparigas que não conhecia. O Sr. Asch não estava ali; Ingrid também não. Ninguém a quem ele conhecesse.

 

Um grupo de recém-chegados introduziu-se pela porta e empurrou Vierbein. Este deixou-se empurrar, chocou com uma cadeira perto da entrada e sentou-se sem nada dizer.

 

Alguns minutos mais tarde levantou-se, pôs a mochila num canto, pendurou o equipamento num gancho e despiu o capote. Depois tornou a sentar-se, um pouco acanhado, paciente e silencioso.

 

Contudo, as pessoas a cuja mesa se sentara começavam a prestar-lhe atenção. Viam-lhe as condecorações numerosas e, entre elas, a Cruz de Ferro de 1.ª classe. Estava-se ainda na época luminosa dos heróis.

 

Então,   como  vai  isso  lá  pela  frente?  perguntou alguém em voz sonora.

 

Bem...  como sempre  disse precipitadamente Vierbein.   Não   tinha   muito   talento   para  se  apresentar  como defensor da pátria.

 

Dirigiu-se ao balcão e pediu para falar com o Sr. Asch.

 

Não  está  disse  uma  das criadas  sem  levantar  a cabeça.

 

E a menina Ingrid?

 

Também  não  respondeu  a  rapariga,  que, vendo a Cruz de Ferro e nada mais do que ela, acrescentou: Quer um copinho de aguardente? Posso dar-lhe um. Para os soldados da frente estou autorizada.

 

Não,   obrigado  disse   Vierbein.   Afastou-se,   viu   o empregado principal, Anton, e, feliz por encontrar alguém conhecido, dirigiu-se a ele. Mas também aqui teve de ajudá-lo a reconhecê-lo.

 

Ah, sim!   Naturalmente. Sr.  Vierbein.  Emagreceu e está  mais  pálido.   Mais  viril,   digamos.   É   a  guerra.  Nós conhecemos   isso.   Também   nós   servimos,   bem   vistas   as coisas. Quando chegou? Quer tomar alguma coisa?

 

Onde está o Sr. Asch?

 

Sabe-se lá ?  Quase nunca está no café. Já não precisa. O negócio marcha sozinho.

 

E a menina Ingrid ?

 

Está  também  aí em  qualquer  parte.  Provavelmente numa manifestação. Ou talvez na Obra da Assistência. Ou no hospital. Tudo pelos nossos soldados, pela vitória final, etc. Compreende?

 

Claro.   Claro   que   compreendo.  Nesse  caso,  espero.

 

Muito bem. Beba o que quiser. Por conta da casa, escusado seria dizer. É uma questão de honra para o patrão.

 

Muito bem  disse Vierbein regressando à mesa. com cuidado pôs-se a examinar as pessoas com quem

 

se achava. Sorriu-lhes amavelmente. As duas raparigas corresponderam ao sorriso, a que estava ao lado dele mais cordialmente ainda do que a outra. Os homens contentaram-se em fazer um gesto de cabeça.

 

Os dois rapazes pareciam ser operários especializados com salários altos. Tinham as mãos calosas, mas os fatos eram de boa qualidade. Bebiam vinho. Tentaram travar conversa com Vierbein; mas este, como se tratava de perguntas isoladas, mal respondia.

 

Por fim a amável rapariga que estava ao lado dele tornou-se mais amável ainda. Ria sem constrangimento olhando-o, abria muito os olhos e, por baixo da mesa, a sua perna aproximava-se da de Vierbein. Este, embaraçado, levantou-se e, para se libertar, foi ter com Anton:

 

Tem alguma ideia, Sr. Anton, do sítio onde se encontrará o Sr. Asch?

 

É difícil dizer. O caso é que ele devia estar a chegar, pois são quase dez horas. Talvez esteja em casa do grande   amigo,   o   contramestre  Freitag.   Quando   assim  é volta sempre tarde.

 

Vierbein agradeceu a informação. Pediu a Anton que se encarregasse das suas armas e do equipamento e saiu, dizendo:

 

Vou ver se o encontro.

 

Uma vez fora, respirou: o ar parecia-lhe melhor. «É bem o ar da terra», pensou.

 

Errava pelas ruas da sua guarnição de outrora. As paredes devolviam-lhe o ruído dos passos. Isto agradava-lhe. Parecia-lhe que já não estava só.

 

Encontrou pouca gente: a maior parte eram soldados, sobretudo graduados. Alguns passeavam com as suas amiguinhas. Outros pareciam satisfazer-se com o álcool. Havia artilheiros e soldados de infantaria, como em tempo de paz. Os antigos destacamentos e batalhões tinham-se tornado em destacamentos e batalhões de reserva.

 

Acrescentavam-se a eles os regimentos de operários, os estados-maiores de engenheiros e de funcionários. A caserna alargara-se e transformara-se num acampamento. Mas a retaguarda estava ainda mergulhada no sono.

 

A cidade dava uma impressão de lassitude e calma aparente. Sempre tivera o ar de estar um tanto adormecida. Mas agora, com a ocultação das luzes, o seu sono parecia ter-se tornado de chumbo. As fachadas olhavam-no como se tivessem olhos mortos.

 

Vierbein estremeceu. Acelerou o andamento. Passou diante do Bismarck: também aqui um ruído abafado vinha das janelas camufladas. Depois, quase imprevistamente, a caserna surgiu de novo diante dele, vasta e ameaçadora. Estendia-se ali como um animal à espreita. Vierbein cortou rapidamente para o lado da colónia dos pequenos jardins, onde se erguia a casa do contramestre Freitag.

 

Chegado ali, atravessou, após uma pequena hesitação, o jardim e, discretamente, bateu à porta.

 

Pouco depois abriram. Vestido apenas com uma camisa e as calças, o contramestre apareceu à entrada. E a lâmpada, colocada atrás dele, aumentava-lhe a sua pequena estatura.

 

Boa  noite,  Sr.  Freitag  disse Vierbein.  O  Sr. Asch está cá?

 

O contramestre semicerrava os olhos. Ligeiramente inclinado para a frente, apurava o ouvido.

 

Não,   não   está  disse.   Depois   acrescentou:  Mas estarei   enganado?   A  sua  voz  parece-me   conhecida.  É   o Sr.   Vierbein?

 

Sim, sou... Mas não queria incomodá-lo...

 

Ora essa! Entre! Entre, entre!  exclamou o contramestre num tom cordial, abrindo a porta de par em par.

 

Depois, virando-se, gritou:

 

Venham todas!  Temos uma visita. O Sr. Vierbein!

 

Mas eu  queria  apenas...A cordialidade  que  lhe dispensavam, e a que não estava habituado, desconcertava-o.

 

Entretanto, Freitag agarrara-o pelas duas mãos e só as largou quando Vierbein chegou à casa de jantar. Verificou à pressa as cortinas das janelas e acendeu a luz.

 

Contemplou Vierbein afectuosamente e perguntou:

 

Quando?

 

Há pouco. De avião. Ontem à noite ainda dormi na bateria.

 

E... como vai ele?

 

Se é no seu genro que pensa...  Herbert está bem.

 

Tanto melhor  disse Freitag, aliviado.  Isso dá-me prazer. Por causa da minha Elisabeth.

 

A Sr.” Freitag apareceu e olhou-o com uma expressão maternal. Depois foi Elisabeth, um pouco nervosa, ainda meio adormecida. Imediatamente o pai contou que Herbert estava bem.

 

Ele   está   bem.   E   o   Sr.   Vierbein   ainda   ontem   à noite estava na bateria...  Imaginem que ainda há apenas vinte e quatro horas esteve com ele!

 

Obrigada!  disse   Elisabeth   em   voz   baixa,   apertando a mão a Vierbein.

 

Então foi preciso contar. Depois, comer. Depois, beber. E, depois, foi preciso ver o pequeno de Elisabeth, o filho do seu amigo Herbert. E no quarto da rapariga ele contemplou um bebé rosado que dormia profundamente. Contemplou-o durante muito tempo, pois queria dar conta do que vira ao amigo.

 

Por volta da meia-noite despediu-se. Escusado será dizer que teve de prometer voltar, voltar muitas vezes. Prometeu. Quando retomou o caminho para o Café Asch o contramestre acompanhou-o até à entrada da cidade.

 

O empregado principal, Anton, estava ocupado a acabar com os últimos clientes. Fazia as contas e verificava a caixa.

 

Lamento    disse ,   mas   o   Sr.   Asch   não   voltou ainda. E a menina Ingrid também não.

 

Não tem  importância  disse Vierbein  procurando ocultar a sua decepção.  Ficará para amanhã.

 

Lamento    disse   Anton.    Mas   é   mesmo   assim. A guerra desorganiza tudo. Eu sei o que digo, fiz o meu tempo. Que vai fazer agora?

 

É muito simples  disse Vierbein vestindo o capote. Afivelou   o   cinturão,   pendurou   nele   a   máscara   de   gás, agarrou na espingarda e atirou a mochila para o ombro. É   mesmo   muito   fácil     repetiu.    Vou   dormir   à caserna.

 

Uma das primeiras decisões que o capitão Witterer tomou, ao assumir o comando da bateria, foi muito simples: «Não quero ver esse indivíduo.»

 

O «indivíduo» era o primeiro-cabo Kowalski, que, sem pestanejar, abandonou o Mercedes e trepou para o assento de um oito toneladas Henschel. O sargento-ajudante tentou inutilmente, fazendo alusões cheias de tacto aos hábitos da bateria, impedir esta mudança. O capitão não vacilou.

 

Duas horas mais tarde o novo motorista do chefe patinou numa estrada coberta de gelo e foi acabar direitinho à única árvore que existia na região. Houve um estalo surdo e metálico. E depois houve um estalo ainda mais forte, quando o capitão deu com a cabeça no pára-brisas. Witterer rugiu como um casal de leões.

 

Furioso, ameaçou com o conselho de guerra o novo motorista, que permanecia completamente aturdido diante do seu montão de ferro-velho. Além disso, declarou-lhe que o considerava definitivamente incapaz de transportar seres humanos e menos ainda superiores. «Quando muito, munições!», gritou Witterer.

 

Chegado ao local das peças, foi ter com o sargento-ajudante e afirmou:

 

Os  motoristas   desta  bateria   são   todos  uns  incompetentes.

 

Escusado será dizer que o sargento-ajudante não protestou. Teve contudo força de carácter bastante para não dar razão ao superior.

 

De há quatro meses para cá é o primeiro acidente declarou.

 

Durante   os  últimos  quatro  meses  a  bateria  esteve a dormir aqui... Isto explica tudo.

 

Sim, meu capitão.

 

Seja como for, Bock, há uma velha regra que determina que o melhor motorista da bateria esteja ao serviço do chefe. Dê, portanto, as suas ordens para que me seja atribuído o melhor motorista.

 

O  melhor  motorista  da bateria,  reconhecido  assim por toda  a  gente,  é  o  primeiro-cabo  Kowalski,  meu  capitão.

 

Não me fale desse sujeito.

 

O sargento-ajudante dizia consigo mesmo: «Isso também eu queria: ter o menos possível que fazer com ele; não o posso ver aqui, e, sobretudo, ao lado de Soêft. Mas, pondo isto de parte, o melhor motorista que há nos arredores é ele.»

 

Meu capitão, esse Kowalski, quando está ao volante, possui uma espécie de sexto sentido. É precioso. Nunca se engana no caminho; é capaz de remediar uma avaria, qualquer que ela seja; não há terreno que o possa embaraçar. Além disso, não sabe o que é fadiga. Seja para avançar, seja no combate, pode-se ter confiança absoluta nele.

 

Ah! exclamou Witterer, cuja atenção despertara. É verdade, isso? Seja como for, é um rapaz que não tem maneiras.

 

Ele  melhorará  certamente,   meu   capitão.  Tornou-se um tanto selvagem nestes últimos tempos.

 

É possível  disse o capitão com expressão pensativa. Depois acrescentou, após ter reflectido um instante: Isso é verdade para toda a bateria.

 

O sargento arriscou-se a passar por alguém de reacções lentas. O que ouvira era, evidentemente, um pontapé baixo dirigido ao tenente Wedelmann e um convite muito claro para uma aprovação. Ora Wedelmann era um chefe com quem era possível entender-se. Mas Witterer era o novo chefe e com ele é que devia contar.

 

O tenente Wedelmann  disse o sargento  tem os seus métodos próprios.

 

E eu os meus  disse Witterer com energia.  E aqueles que não se conformarem com eles sofrerão as consequências.

 

Claro, meu capitão.

 

Bock notou com surpresa a fogosidade do capitão. Perguntou a si mesmo em que momento travaria ele. E com a prudência que dois anos de guerra lhe tinham ensinado perguntou também quem seria o mais apto para ajudá-lo a travar.

 

Witterer pediu o relatório da transmissão de poderes, redigido segundo as suas instruções. Depois, aprovando com um gesto de cabeça, disse:

 

Pode ir assim. Um original e três cópias. Hoje, se possível.

 

Bem, meu capitão. E quanto a Kowalski?

 

Pode voltar a conduzir-me. Mas previna-o. Mais uma asneira e eu o farei transferir.

 

O coronel Luschke perguntou já por várias vezes se podia tê-lo no estado-maior do regimento.

 

O  coronel  interessa-se muito  pela 3.ª bateria, não é verdade?

 

Assim se pode dizer, meu capitão.

 

Há  relações  pessoais  entre  o  coronel   e  o  tenente Wedelmann?

 

Parece.  Seja como for,  os êxitos  da nossa bateria deram muito relevo ao regimento.

 

É necessário que as coisas não mudem.

 

Decerto.

 

E não mudarão  disse Witterer, convicto.  Ou, antes, vamos fazer o  que  é  preciso  para  que  continuem assim, pelo menos. Compreendido?

 

Sim,   meu   capitão!exclamou   Bock,   ao   mesmo tempo que pensava:  «E para cúmulo quer ser um herói. À custa de quem?»

 

Quando foi que tiveram o último exercício de alerta?

 

Exercício de alerta?

 

Sim.

 

Não sei... Uma coisa dessas... É certo que na linha de fogo...

 

Aí está justamente do que eu desconfiava. A bateria parece  ter  tido  uma  hibernação  prolongada.  Ora   isto   é perigoso. A energia da tropa sofre com isso. Não concorda?

 

Sem  dúvida  respondeu  o sargento-ajudante arrastando as sílabas.

 

Que acontece, por exemplo, quando baixam aviões?

 

Aqui,  meu  capitão,  não  vêm  aviões.  E  se viessem abrigávamo-nos.

 

Witterer abanou a cabeça, de mau humor. Contudo, o triunfo brilhava-lhe nos olhos. Logo à primeira apanhara-os em falso.

 

Isto é mesmo vosso  disse.  Já ouviram falar de D. C. A., de espingardas e de metralhadoras? E se saltarem pára-quedistas?  Se formos  atacados por bandos de guerrilheiros? Se os soviéticos passam bruscamente ao ataque e tivermos de mudar de posição? Então?

 

É claro que nós estamos sempre em estado de alerta. Escusado   seria   dizer.   Mas  não   preparámos   planos   para esses casos.

 

Era o que eu esperava. Acrescente ao relatório  de transmissão   de   poderes:   «23.  Nenhum   plano   especial está previsto em caso de alerta.»

 

O sargento-ajudante  escreveu.  Fazia-o   contra  vontade, mas   muito   conscienciosamente.   «A  minha  função   não   é criticar», ia pensando, a fim de se sugestionar. Repetiu-o várias vezes. E, bem entendido, ísto queria dizer: «criticar em voz alta.» Quanto àquilo que pensava, era consigo.

 

Antes que esqueça  disse então o capitão com um movimento enérgico do queixo, tire-me o processo pessoal do primeiro-sargento Asch.

 

O sargento-ajudante tomou nota: «Asch... processo pessoal.» E pensa: «com certeza não quererás...» Mas, aparentemente, não está a pensar em coisa alguma... pelo menos nesse momento.

 

Que indivíduo é esse Asch?

 

Está aqui na qualidade de subalterno-adjunto, meu capitão.

 

Eu sei. É subalterno-adjunto do tenente Wedelmann. Mas é possível que isso não dure muito tempo: o tenente não precisa de um subalterno-adjunto. Que outras funções lhe poderíamos dar?

 

Seria decerto um bom oficial de bateria.

 

Mais tarde,  talvez...  Muito  mais tarde, é possível. De momento é o tenente Wedelmann quem vai ocupar esse posto, até deixar a bateria.

 

Desta vez o sargento não conseguiu esconder completamente a sua surpresa. Deixa cair o caderno de notas e abre muito os olhos: «Isto é uma malandrice!... É uma verdadeira degradação. O homem que há um ano comanda a bateria... e como ele a comandou!... deveria durante os seus últimos dias... Esta é forte!»

 

Que diz, sargento-ajudante, se dermos o escalão das munições ao sargento Asch?

 

O sargento Asch é um excelente subalterno-adjunto disse o sargento-ajudante cautelosamente, hesitando muito, e com algum receio de ver Asch encarregado do escalão das   munições,   quer   dizer,   na   sua   imediata   vizinhança. Está à altura de qualquer circunstância que seja e é, na verdade, indispensável na linha de fogo. Não há, por assim dizer, função que ele não seja capaz de desempenhar perfeitamente. Pode ser utilizado em tudo.

 

Mesmo   como   sargento-ajudante?  perguntou   Witterer docemente.

 

Bock fica um momento silencioso. É um tiro no alvo. Depois, corajosamente, responde:

 

Se eu viesse a desaparecer, sim.

 

Está bem  disse Witterer, tenaz. - Se esse rapaz é  assim   tão  bem   dotado   para  tudo,   será   absolutamente capaz de se ocupar das munições.

 

E quem será subalterno-adjunto, meu capitão?

 

Dê ordem para que o segundo-sargento Krause venha   à  minha   presença.   Tão   depressa   quanto   possível. E traga-me o seu processo pessoal.

 

Por acaso o segundo-sargento Krause...

 

Deixe-me  a  mim  o  cuidado   de   decidir,  sargento-ajudante.

 

Bock, ligeiramente chocado, mas não muito prejudicado, foi procurar uma consolação em casa de Soêft e junto do seu entreposto de mercadorias. Krause apresentou-se. Adivinhou a sua sorte. Não era nada de extraordinário: adivinhava sempre.

 

Era um homem enérgico e ambicioso. Mas o seu peito estava virgem de condecorações. No entanto, participara nos mais violentos combates da bateria, mas sem nunca conseguir distinguir-se. A razão estava em que não se podia ter confiança na sua maneira de servir as peças, em terem -lhe faltado as boas ocasiões e, finalmente, em ser alvo da malevolência dos camaradas e dos superiores. Em resumo: a atmosfera da 3.ªbateria não lhe fora favorável. Até aí.

 

De acordo com a ordem recebida, apresentou-se ao novo chefe da bateria, o que bastava para o tornar simpático a ”Witterer. Além disso, o seu uniforme estava cuidadosamente escovado. Barbeara-se bastante bem, atendendo às circunstâncias. Os cabelos ainda húmidos, bem separados por uma risca, pareciam laçados. ’

 

Witterer regozijou-se com este aspecto. Amava a correcção, porque ela implicava o respeito, a preparação visível, a evidência duma atitude íntima em relação aos chefes. Estava convencido de que o fato, em particular, revelava o homem inteiro. Ora era este, justamente, um ponto que na sua bateria fora descurado de maneira espantosa.

 

O capitão não se demorou muito tempo nas fórmulas convencionais e nas perguntas banais. Apenas decorridos alguns minutos, atacou directamente a questão:

 

Que pensa do primeiro-sargento Asch?

 

Um excelente soldado  respondeu Krause sem hesitar e sem se mostrar surpreendido por ver que lhe pediam bastante energicamente a sua opinião acerca de um dos seus superiores.  Apenas um pouco difícil.

 

Difícil?... Para quem?

 

Para toda a gente. Conforme as circunstâncias. A sua maneira de se comportar pode ser considerada pouco conciliadora.

 

Krause deu estas subjectivas informações sem a menor hesitação, pois no seu foro íntimo preparara-se para elas. Era-lhe fácil imaginar o que estava em jogo. Um pouco por toda a parte falara-se do violento conflito que tivera lugar entre o sargento e o capitão. Durante uma noite inteira se rira por causa dele na bateria. E dois bêbados haviam, com grande regozijo de todos, representado «Asch e Witterer». Mais tarde repetiram o número um pouco por toda a linha de fogo.

 

Sabe, Krause, que o sargento Asch não é seu amigo ?

 

Sim,   meu   capitão.   Lamento-o,   porque   se   trata   de um excelente soldado. Por outro lado, acho natural, pois somos   de   temperamentos   diametralmente   opostos.   Além disso, eu sou aluno-oficial.

 

Witterer procedia como se soubesse tudo isto e acenava a cabeça. Deixava perceber claramente que conhecia a fundo a sua função. E Krause notava-o perfeitamente. Começavam a agradar um ao outro.

 

Witterer fez então algumas perguntas sobre as origens de Krause, a sua formação, a sua profissão na vida civil. As respostas foram-lhe dadas exacta e completamente, satisfazendo-o plenamente. Pouco a pouco, o perfil de Krause tornava-se mais nítido. Era, aos olhos de Witterer, um rapaz inteligente, instruído, de boas famílias. Um aluno-oficial! Era com certeza por esta razão que era mal visto nesta bateria, coisa bem característica. Sim, Witterer notava-o agora, Krause era um soldado muito aproveitável.

 

Quer ser meu subalterno-adjunto?

 

Decerto, meu capitão  respondeu Krause, esforçando-se   por   esconder   qualquer   emoção   pessoal,   mas   sem conseguir camuflar inteiramente a sua alegria.

 

Voltarei ao assunto  anunciou Witterer, fazendo um sinal amistoso para despedir o subalterno.

 

Pouco depois fez-se conduzir por Kowalski ao alojamento do tenente Wedelmann. Kowalski sorriu calmamente e ganhou uma velocidade tal que o automóvel rangia por todos os lados, os guarda-lamas oscilavam e o motor ameaçava explodir. Witterer teve no entanto de reconhecer que ele conduzia com espantosa segurança.

 

Wedelmann estava, como sempre, perto das peças e Asch teve de ir procurá-lo. Entretanto o capitão desdobrava sobre a mesa mal aplainada o auto de transmissão de poderes: um original, três cópias, tudo em papel branco, espesso, como convém para documentos. Quando Wedelmann chegou o capitão saudou-o rapidamente, com um gesto onde havia ainda camaradagem, mas também uma certa reserva de superior. Depois mandou sair Asch.

 

A sua assinatura, se faz favor.

 

Wedelmann assinou sem ler. Depois afastou as folhas com um só gesto.

 

De   acordo   com   tudo?   perguntou  Witterer   surpreendido. Não tem observações a fazer?

 

É   apenas   um   bocado   de   papel  respondeu   Wedelmann com ar desprendido.

 

Como queira, tenente.

 

O capitão dobrou os relatórios assinados e agora válidos, com excepção do exemplar que entregou ao tenente.

 

Posso  vir  a  precisar  dele  disse  Wedelmann,  fazendo desaparecer na algibeira as quatro páginas de texto cerrado.

 

Feito isto  declarou Witterer, que amava as cerimónias, acabo de tomar conta da 3.ª bateria  do regimento Luschke.

 

Depois estendeu a mão, agarrou a do tenente e apertou-a com uma energia viril. Era para ele um grande momento.

 

E agora?perguntou Wedelmann.

 

- Sim  respondeu Witterer, aparentando formular de momento as suas ordens, quando a verdade é que reflectira durante horas no que queria proclamar.  O coronel Luschke deseja que permaneça ainda alguns dias na bateria. A decisão acerca das suas próximas funções não está, decerto, tomada ainda. Seja como for, é muito generoso da parte do coronel deixá-lo comigo, como assistente, ainda que seja inútil. Creio que o melhor é que tome o comando da linha de fogo, como oficial de bateria.

 

Já há um oficial de bateria.

 

Pois bem,  ele trabalhará  de momento  sob  as suas ordens.

 

É uma ordem?

 

É   uma   ordem.   E  já   que  falámos  nisto:   não  tem necessidade de subalterno-adjunto. Por mim,  não  preciso do  seu.  O  primeiro-sargento  Asch  é  destituído  das  suas funções e passa para o escalão das munições.

 

Dito isto, Witterer saiu num passo ágil. Wedelmann ficou sem achar uma palavra para dizer. O sargento Asch regressou e perguntou:

 

Então?...   O  elefante  já  entrou  na  loja  da  louça?

 

Em cheio  disse Wedelmann, tentando rir.

 

Já não nos resta muita louça  disse Asch, piscando o olho ao tenente. Mas este não o viu. Aproximara-se da janela suja da cabana e olhava para longe, como um camponês obrigado a olhar o  granizo  que lhe estivesse  destruindo a colheita.

 

O primeiro-cabo Kowalski entrou sem embaraço. Wedelmann voltou-se. A voz de trombeta de Kowalski lançou uma saudação jovial, quase de paisano. Trazia debaixo do braço um embrulho, que depôs diante de Wedelmann, ao mesmo tempo que ria intencionalmente.

 

Que é isto, Kowalski?

 

Da parte do subalterno Soeft... com os seus cordiais cumprimentos.

 

Paparoca?

 

com certeza, meu tenente. Mas não é para si. É para uma senhora.

 

Repita isso, Kowalski.

 

Parece que a pequena mora na aldeia, na casa n.º 17. Um busto assim, meu tenente. Garantido! Natacha é como se chama a beleza. Soêft disse que o tenente devia ir lá uma vez para verificar. Vale a pena.

 

Por quem me toma, Kowalski?

 

Por   alguém   que   tem,   finalmente,   tempo,   meu   tenente. Que podia ser senão  isto?  E é preciso que aproveite esse tempo.

 

Kowalski  interveio Asch , se não desapareces já, o teu capitão vai cortar-te em bocados.

 

Mais   devagar!  disse   Kowalski   afastando-se. Que espere! É preciso que aprenda a esperar.

 

Lá fora Witterer chamava o seu motorista em altos gritos. Kowalski parecia sentir prazer em ouvir esta voz.

 

Tem  uns  belos  pulmões,   hem?   disse,   rindo. Uns bons  pulmões  é  metade   de  um  soldado.  Sim,   mas somente na caserna.  Quanto ao que precisamos aqui, vai ser necessário fazer-lho compreender.

 

Kowalski saiu. Mas antes de desaparecer ainda disse:

 

Um chassis assim... garantido sobre factura!

 

O pequeno embrulho destinado a Natacha, a «bela pequena» que morava na aldeia, no n.º 17, estava no meio da mesa. Wedelmann e Asch olhavam-no, enquanto reflectiam.

 

O   que   este   Soêft   se   permite!  disse   devagar   o tenente.   Depois  acrescentou:  É   certo   que   agora  teria tempo.  Sorriu constrangido, pois lhe parecia ser vergonhoso   ter   de   repente   tempo...   e   sobretudo   tempo   para coisas deste género.

 

. Aqui tem o capote.

 

É para já disse o tenente, que, de súbito, se tornara ousado.  Sim, é para já. Mas, antes, ainda quero fazer um telefonema rápido para o coronel Luschke.

 

O sargento Asch não gostava de complicações. Preferia em todas as circunstâncias a «linha recta», porque não só era a mais fácil de ver, mas também geralmente a mais proveitosa. O que tinha era que punha os nervos à prova, e quando Asch estava metido nas questões os nervos dos outros é que sofriam em geral.

 

Não considerava todas as ordens como coisa sagrada. Permitia-se ter as suas ideias. E quando queria era capaz de usar daquela obstinação prodigiosamente elástica que, em geral, só é admitida nos primeiros-cabos.

 

Por isso mesmo fingiu ignorar a ordem do seu novo chefe de passar para o escalão das munições. Não passou. Não abandonou nenhuma das suas antigas actividades. Esperava.

 

Estendeu-se na sua cabana, contemplou as traves negras de fumo do tecto baixo e pensou em Elisabeth, a sua jovem mulher, e no filho, que não vira ainda. Sorriu; não conseguia considerar-se pai. O candeeiro de petróleo lançava sobre ele uma luz pálida e doce e amolecia-o. Mas Asch não conseguia dormir.

 

Mais tarde o tenente entrou com grande ruído. Quando viu Herbert estendido, imóvel, aparentemente a dormir, os seus passos tornaram-se mais prudentes. Baixou a luz e começou a despir-se.

 

Acendeu uma lanterna de bolso e apagou o candeeiro. Depois deitou-se perto do sargento. Embrulhou-se cuidadosamente nos dois cobertores e cobriu-se ainda com o capote. A palha estalava. Wedelmann apagou a lanterna. A sua respiração era calma e regular.

 

Mas não dormia. Ouvia as trevas. Asch mexeu um braço. Também ele não dormia ainda.

 

É esquisito disse Asch, há noites em que procuro ver o que se esconde na escuridão.

 

É a Primavera que se aproxima devagar  respondeu o tenente.  Sinto-a em todos os meus ossos. E sinto que se aproximam centenas de noites em que não poderemos fechar os olhos.

 

Asch calou-se. Wedelmann tomava parte nesta guerra com entusiasmo; para o seu vizinho ela era antes um mal inevitável. Wedelmann confundia o nacional-socialismo com a Alemanha e considerava Hitler um homem de honra. Asch via as coisas tais como eram e pensava no que delas poderia sair. Um acreditava que era preciso transformar o mundo; o outro procurava apenas salvar vidas humanas.

 

Wedelmann tirou do bolso um cigarro meio esmagado. Asch deu-lhe lume.

 

Depois de algumas fumaças, o tenente passou o cigarro ao sargento, que lho devolveu, depois de ter puxado também algumas fumaças. Após um longo silêncio, Wedelmann disse:

 

Esquisita rapariga!

 

Mais uma das protegidas de Soêft?

 

Não, não é uma rapariga qualquer. É notável. No embrulho que lhe levei havia víveres. Em troca ela tinha lavado roupa. Até aqui tudo parece normal e tipicamente Soêft.

 

Soêft é o traficante nato, meu tenente. Para ele tudo se paga. Dar um presente não é com ele.

 

É  possível  disse Wedelmann,  pensativo.

 

Para ele a própria guerra não é mais do que uma espécie de negócio. Soêft fará tudo o que lhe der lucro. E para ele, penso eu, não há frentes de batalha, mas sim centros comerciais, não há inimigos, mas, muito simplesmente, concorrentes.

 

A rapariga é extraordinária. É uma  estudante que a guerra fez vir parar aqui. O nome dela é Natalia, mas chamam-lhe Natacha. Fala muito bem o alemão.

 

Teve uma longa conversa com ela.

 

Senti-me satisfeito. É uma mulher, Asch. Há meses que não falava com uma mulher.

 

Uma dama muito acolhedora, decerto...

 

Ah, não!

 

Recebeu-o mal?

 

Também   não.   Compreendemo-nos   muito   bem.   Foi tudo.

 

E quando tenciona prosseguir essa...  compreensão?

 

Sempre desconfiado, Asch. Conversei com ela. Nada mais. Não quero mais nada, bem sabe. E ela também não é uma pessoa com quem...

 

com quem... o quê?

 

Creio que devíamos tentar dormir.

 

Pois bem, repousemos sobre os nossos louros.

 

Boa noite, chefe das munições.

 

Boa noite, oficial de bateria.

 

Riram em silêncio. Depois tentaram adormecer. Passou ainda muito tempo antes que conseguissem fechar, finalmente, os olhos.

 

Levantaram-se muito tarde: tinham tempo agora. Quando, por fim, se levantaram, o primeiro-sargento Asch era outra vez subalterno-adjunto da 3.ª bateria e o tenente Wedelmann deixara de ser oficial de bateria.

 

Pela primeira vez, o coronel Luschke pusera, pelo telefone, o capitão Witterer «na grelha». Para este último o método de «trabalho a distância» do coronel era novidade. A voz doce e sibilante que penetrava nas pessoas de maneira inquietadora não tivera qualquer dificuldade em fazer perder as estribeiras ao próprio capitão que tão seguro se sentia.

 

«Gosto das pessoas com iniciativa», disse Luschke, «mas o que eu aprecio mais são as pessoas inteligentes. A energia é uma bela coisa e é tida em consideração. Mas é necessário que tudo seja feito com ponderação e método.»

 

«É exactamente o meu sistema, meu coronel.»

 

«Respeito o seu sistema», acrescentara Luschke. «Mas não esqueça, quando o aplicar, que ainda tem um superior e que este também tem o seu próprio sistema, se não vê inconveniente. E, embora talvez isto o surpreenda, esse superior conhece com bastante exactidão a 3.ª bateria.»

 

«Sem dúvida, meu coronel.»

 

«Conheço mesmo a 3.ª bateria um pouco melhor do que o senhor neste momento, capitão. No entanto, isto não depende das qualidades que possuímos, é unicamente uma questão de experiência. E a experiência da 3.ª bateria parece faltar-lhe ainda, meu caro Witterer, a não ser que seja um génio, o que não posso crer a priori. Precisa de um certo tempo. E foi para facilitar-lhe as coisas que deixei aí provisoriamente o tenente Wedelmann. Wedelmann deve trabalhar consigo, mas não sob as suas ordens.»

 

«Muito bem, meu coronel.»

 

«Por agora, desejo que não haja nenhuma modificação na 3.ª bateria durante o tempo que o tenente Wedelmann se conservar nela. Isto refere-se também à mudança do subalterno-adjunto. Fui bem compreendido?»

 

«Perfeitamente, meu coronel», respondeu Witterer, assaz consternado. Largou o auscultador no descanso logo que o coronel desligou. Passeou em volta um olhar e era fácil ler-lhe no rosto o que pensava: «Isto é uma casa sem rei nem roque!»

 

Mandou vir sem demora o sargento-ajudante Bock, a quem o soldado das transmissões tinha imediatamente informado acerca da forma e do fundo desta edificante conversação. Bock esfregava as mãos enquanto se dirigia ao alojamento do chefe da bateria, o que não tinha somente o frio por razão.

 

Sargento-ajudante   disse  Witterer  tomando   novamente o ar do improvisador de génio, é preciso proceder metodicamente.  Reflecti  profundamente  na  questão. É claro que todas as minhas decisões se mantêm em vigor, escusado seria dizer.  Contudo, desejo  que a transição se faça com inteligência.

 

Perfeitamente, meu capitão.

 

O   subalterno   Krause   continua   sendo   subalterno-adjunto.

 

Mas,   nesse   caso,   ficamos   com   dois   subalternos-adjuntos.

 

Nós  continuamos   a   ter   um   só   subalterno-adjunto, sargento-ajudante. É o que determina o regulamento, como sabe. Uma vez o outro posto ao corrente, ele será substituído.

 

Compreendo, meu capitão  afirmou Bock.  compreendo   perfeitamente.    Enquanto   falava   regozijava-se secreta  e  cordialmente  com  a  situação  maravilhosamente embrulhada que via aproximar-se. <Dois subalternos-adjuntos no mesmo sítio, e ainda por cima estes dois  ó senhores, a coisa era bem achada! Witterer ver-se-ia aflito para digerir este bocado.»

 

No entanto, Witterer não estava, no caso presente, completamente cego, como supunha o sargento-ajudante. Previra possíveis dificuldades. De alguma coisa lhe valera ter, durante longos anos, alcançado incontestáveis vitórias nas batalhas de repartição. Sabia bem que era preciso dividir para evitar choques prematuros. com efeito, na sua actual situação a conversa telefónica com Luschke demonstrara-lho não podia permitir-se tais extravagâncias.

 

Tenho uma missão especial para o sargento Asch disse.

 

O sargento-ajudante apurou o ouvido. Este jogo regozijava-o extraordinariamente. Quanto mais os outros disputassem, mais a sua situação se consolidaria.

 

O  sargento  Asch  deverá organizar  um  espectáculo do Teatro do Exército no sector da linha de fogo.

 

O  sargento  Asch?  perguntou Bock,  céptico.

 

Quem mais o podia fazer? Trata-se duma ocupação para um subalterno-adjunto. Ou supõe que Asch não seja capaz?

 

Capaz é, meu capitão. Mas isso  não pode fazer-se em poucas horas. Em certos casos pode, até, exigir muito tempo.   E   durante   esse   tempo   nós   estaremos   aqui   sem subalterno-adjunto.

 

Mas  quem   disse  isso,  sargento-ajudante?   Não  percebeu ainda?  Enquanto o sargento Asch estiver ocupado com o Teatro do Exército, e terá de ocupar-se dele a sério, o subalterno Krause substituí-lo-á aqui.

 

Perfeitamente  disse   Bock,   que   começava   a   adivinhar.

 

Asch aceitou as suas novas funções como teria aceitado qualquer outra missão. Nada o poderia surpreender já. Era especialista para as ordens inesperadas.

 

No decorrer desta esquisita guerra conduzira tropas de assalto, tratara de feridos e cavara sepulturas; pusera em estado de funcionar automóveis apanhados ao inimigo e abatera blindados; fizera requisições na retaguarda e cavara poços, organizara uma oficina de alfaiate e transformara jornais velhos em ersatz de agasalhos. Agora ia organizar uma representação do Teatro do Exército perto da linha de fogo. Porque não?

 

Pediu uma motocicleta e dirigiu-se imediatamente à etapa. As instruções de Witterer eram bastante precisas: devia organizar um grupo de actores actualmente alojado na escola, entre os quais se encontrava uma cantora de nome Lisa Ebner. Até aqui tudo era claro.

 

Asch encaminhou-se para o seu objectivo sem rodeios. Informou-se acerca de Lisa Ebner e achou-a sem dificuldades. Entrou no quarto dela sem avisar.

 

A rapariga, de grandes olhos ingénuos e ávidos, indignou-se, pois não estava completamente vestida.

 

Espere lá fora, se faz favor  gritou , até que eu esteja pronta.

 

Não   tenho   muito   tempo  disse  Asch,   firmemente decidido a cumprir sem delongas a sua missão.

 

Também não tem maneiras.

 

Não posso dar-me a esse luxo, menina.

 

Não vê que ainda não estou vestida?

 

Por princípio, não reparo nessas coisas. Além disso, sou casado, se lhe interessa saber.

 

Não me interessa nada disse Lisa, furiosa. Volte-se, pelo menos.

 

Ainda   bem   para   mim  respondeu   Asch,   voltando-se.

 

Atrás dele a rapariga remexia agora na roupa. Estava fora de si, como o indicava a precipitação dos seus movimentos. Uma pantufa caiu, depois a outra.

 

Foi o capitão Witterer quem o mandou ?  perguntou Lisa.

 

Adivinhou.

 

Um   cavalheiro   distinto...   Não   é   da   minha   opinião?

 

Não posso ajuizar dessas coisas. As minhas relações com o capitão são, sem  dúvida,  absolutamente  diferentes das suas.

 

Pode  dispensar-se   de  falar   de   relações   disse   a rapariga batendo o pé, decerto para melhor calçar o sapato.  Não se trata disso.

 

Asch examinava o puxador da porta que tinha na sua frente. A parede, ao lado, fora noutros tempos pintada de verde; agora estava decrépita, o estuque começava a desfazer-se. Era numa barraca que se encontrava esta rapariga vinda da terra. Porque viera ela?

 

Porque está aqui, realmente?

 

E você?

 

Eu tenho de estar.

 

E eu sou voluntária.

 

E sente-se orgulhosa por isso, não?

 

O nariz delicado de Lisa Ebner fungou furiosamente.

 

O capitão ”Witterer podia bem ter-me poupado  um sujeito como você.

 

Custa-me a crer. Sujeitos como eu é o que não falta por aqui. Ainda o descobrirá... Já acabou?

 

Não se volte.

 

Então dê-me uma cadeira.

 

Ela hesitou. Depois empurrou até ele um banco. Asch sentou-se, de rosto voltado para a porta estragada. Esperava.

 

Atrás de si ouviu outra vez um rumor de roupas. Depois um objecto duro, uma garrafa provavelmente, raspou numa superfície de madeira. Quase imediatamente Asch sentiu um perfume violento... Aspirou profundamente.

 

Está  a  precipitar-se  nas  despesas  disse.

 

’É apenas para não sentir o seu cheiro.

 

Desapareço  daqui logo  que tiver  recebido  algumas informações exactas.

 

Quais ?

 

Quando, em que dia e a que hora pode vir com toda a familória?  Quantas pessoas virão?  Será preciso  vi-los buscar ou têm carro particular? Quanto tempo dura a representação? Que desejos especiais têm?

 

Nada  disso me  diz  respeito,  senhor.  Deve  discutir essas coisas com o nosso director. É o ilusionista. Mora no andar de baixo com os oficiais.

 

Asch levantou-se.

 

Podia ter-mo dito logo, em vez de me ter virado para a parede durante uma hora. Até à vista!

 

Espere! Agora já pode virar-se.

 

Devagar, ele voltou-se. Depois teve um sobressalto. Os seus lábios’ cerrados entreabriram-se com admiração.

 

A rapariga dos olhos grandes era bonita. Mas não foi apenas isto que lhe provocou a surpresa. com aquele vestido, um vestido simples, azul-escuro, ligeiramente apanhado nas ancas, a rapariga assemelhava-se espantosamente a Elisabeth. Também ela trazia de preferência vestidos deste género. E não se chamava ela também Lisa?

 

E então ?

 

Notável  disse Asch, com sinceridade.  Lembra-me vivamente uma pessoa.

 

Quem ?

 

Uma pessoa a quem eu amo.

 

Lisa Ebner fitou-o com os seus grandes olhos. Depois disse, sem insistir:

 

Isso não é novo. É o que todos dizem. É uma ilusão de óptica. O motivo está em terem esquecido, entretanto, a que uma mulher se assemelha.

 

Herbert acenou a cabeça com ar pouco convencido.

 

É  possível   disse.   Mas também é possível  que não seja isso.

 

A caserna reapossara-se de Vierbein. A sua surda actividade tirou-o do sono. Ficou durante muito tempo acordado, antes que chegasse para ele a hora do levantar.

 

Fora ter a um quarto qualquer de subalterno. O oficial de serviço mandara-o para ali na noite anterior, quando se lhe apresentara. «Durma primeiro um bom bocado. Amanhã se tratará do resto.»

 

Os dois outros subalternos, em cujo quarto se encontrava, fizeram-lhe compreender imediatamente que aquele quarto era deles. E que só o suportavam ali como hóspede de passagem:

 

Ou terás sido transferido para a reserva?

 

Venho   apenas   buscar   reservistas.   Desaparecerei   o mais depressa possível.

 

É gentil da tua parte  disse um dos dois subalternos. O outro acrescentou:

 

E fica sabendo que nós não somos reservistas; contentamo-nos em fornecê-los.

 

Estes dois indivíduos chamavam-se Bartsch e Ruhnau. Qualificavam-se a si mesmos de «bombas», de «canhões» ou de «couraçados», conforme a disposição. Na cidade alcunhavam-nos de «irmãos siameses da etapa», pois não havia nada que não fizessem juntos.

 

Tratava-se apenas, contudo, duma aliança ofensiva e defensiva baseada na amizade, ou, antes, na camaradagem. Fora do serviço eram extraordinariamente ousados. Cada um deles, sozinho, poderia ter-se deixado apanhar facilmente; juntos, protegiam-se um ao outro.

 

Quanto tempo cá estarás, Vierbein ?

 

Alguns dias.

 

Não há grande coisa a fazer nesta terreola. Se tens uma garrafa de aguardente, poderás juntar-te a nós.

 

Vierbein fardou-se para se apresentar ao sargentoajudante da bateria. Tentou inutilmente dar um pouco de brilho às botas.

 

Não é necessário  disse Bartsch.  O principal é que a tua Cruz de Ferro brilhe.

 

Aqui    têm    um    fraco    pelos    heróis  acrescentou Ruhnau.

 

- E, demais, o brigadas é um idiota. Desde que não te deixes apanhar, podes fazer tudo o que te apetecer.

 

Mas não te inquietes. O tenente Schulz tem  agora muito que fazer. Em suma, é ele quem dirige tudo.

 

Quem?

 

O tenente Schulz. Conhece-lo? Ele foi brigadas aqui noutro tempo.

 

Ainda o é. Mas agora para todo o destacamento. Vierbein acenou a cabeça. Conhecia Schulz. E de que

 

maneira o conhecia! Fora ele quem o «rodara» antigamente, até lhe «fazer ferver a pele das nádegas». De acordo com todas as regras da arte. Contudo, Vierbein não lhe queria mal. Schulz fizera o seu dever e mesmo mais do que o seu dever.

 

Dirigiu-se à repartição da bateria do estado-maior e apresentou-se ao sargento-ajudante. Este percorreu os papéis de Vierbein e disse:

 

Sim, sim!...

 

Depois, alguns minutos mais tarde, acrescentou:

 

Cá por mim...

 

De pé, perto ’do armário, Vierbein esperava.

 

Pode ficar na bateria do estado-maior até ter desempenhado a sua missão.

 

Sou dispensado do serviço, meu ajudante?

 

O quê? O quê? perguntou o brigadas, erguendo bruscamente a cabeça.  Não faz empenho em divertir-se, julgo!

 

Não,  meu  ajudante.

 

Faz   o   que   quiseres.   Arranja-te  para   descobrir   os truques todos. O resto não é contigo. Antes de partir apresenta-te   de  novo   aqui.  À   parte   isto:   de   licença   até   à alvorada.

 

Obrigado.

 

Ora essa! ”É o que há de mais natural. Sempre se quer viver. Ou tu não queres?  Então, já vês. E quando precisares dalguma coisa vem ter comigo.

 

Vierbein recebeu os seus papéis e despediu-se do sargento-ajudante da bateria. Parecia ser bom tipo, um sargento-ajudante de ouro. Viver e deixar Viver. E cheio de compreensão para o soldado que chegava da frente.

 

O segundo-sargento Vierbein reflectia: devia ir à cantina e telefonar ao Sr. Asch? Acabou por decidir deixar isso para mais tarde. Em primeiro lugar queria desempenhar a sua missão, tão bem e tão depressa quanto possível.

 

Dirigiu-se ao estado-maior do destacamento, onde Luschke estava quando era ainda comandante. Pediu autorização para se apresentar ao oficial ordenança. Depois de ter esperado muito tempo entre processos que cheiravam a mofo e escriturários que se aborreciam ou faziam telefonemas particulares, fizeram-no entrar no gabinete do oficial.

 

Este, um tenente de reserva, fabricante de licores na vida civil, pareceu-lhe muito excitado e logo de entrada lhe declarou que tinha pouco tempo:

 

Muito pouco tempo, sargento.

 

Vierbein expôs o que o regimento pedia: material de rádio, assim como pessoal competente. Era o que o coronel Luschke reclamava. Este pedido era aprovado pelo G. Q. G.

 

Nós temos isso  disse o tenente.  Nós temos tudo. Mas não neste momento. Neste momento vai por aqui a mais completa confusão. O  comandante  da praça  casa-se dentro dalguns dias.

 

Vierbein, que não conseguia perceber logo à primeira que relação podia haver entre o casamento do comandante da praça e o que o seu regimento pedia, respondeu:

 

Há excepcional urgência.

 

Também aqui há, meu caro  disse o oficial, afundando os seus dois quintais no  encosto bem estofado  da cadeira.

 

O  coronel  Luschke  estava  convencido  de  que  não poderia haver a menor dificuldade, meu tenente.

 

Também não há dificuldades. Quem é que fala de semelhante  coisa?   Ninguém  pode  acusar-nos  de  levantar dificuldades,  sobretudo ao  pessoal  da  frente de batalha. Não, meu velho!  Pelo contrário, pelo contrário!   Apenas terá de esperar algumas horas.

 

Decerto, meu tenente  disse Vierbein aliviado.

 

Vai ver. O regimento esperou seis meses. Você pode bem  esperar uma tarde.

 

Perfeitamente, meu tenente.

 

Você não faz ideia nenhuma do que se trata aqui. O comandante casa-se daqui por alguns dias...  mas creio que já lho tinha dito! Está a ver se arranja maneira de se libertar durante um certo tempo, mas sem entrar de licença. Nós temos demasiado que fazer para nos permitirmos isso. Mas  o  substituto  dele estará cá  esta  tarde e  o  seu  caso será resolvido em primeiro lugar. Mantenha-se à nossa disposição.

 

Estarei na bateria do estado-maior.

 

Ainda   uma   palavra  acrescentou   o   tenente   cheio de  benevolência:  parabéns  pela   Cruz   de   Ferro   de   1.ª classe.

 

Obrigado  disse   Vierbein,   saindo.

 

Mal regressou à bateria, Vierbein viu-se chamado novamente à repartição. O sargento-ajudante, tão amável ainda há pouco, estava agora sensivelmente mais frio. Olhava Vierbein como se o visse pela primeira vez.

 

Tem    de   apresentar-se   imediatamente   ao   tenente Schulz disse o brigadas. Fez alguma malandrice?

 

Ainda nem’tive ocasião para isso, meu ajudante.

 

com vocês nunca se sabe. Ainda não há uma hora que  está  aqui  e  já  arranjou   meio   de   imaginar  alguma idiotice. Ultimamente houve aí um que em vinte minutos esfaqueou  um homem e quase violou uma  rapariga.  Mas entre nós essas coisas não se fazem; aqui há ordem.

 

Na  frente  também  isso  não  se  faz,  meu  ajudante. Na frente também há ordem.

 

O brigadas, que tremia sempre pelo seu tranquilo posto, engoliu isto sem pestanejar. Levantou-se e disse:

 

Então vou anunciá-lo.

 

Encaminhou-se para a porta do chefe, bateu discretamente e esperou. Ao cabo de alguns segundos ouviu-se gritar: «Entre!» O sargento-ajudante introduziu-se no gabinete do seu superior.

 

Ouviu-se um berro e o brigadas voltou a sair.

 

Espere!  declarou  brutalmente.

 

Vierbein esperou. De resto, conhecia estas reacções em cadeia. Ele era o último anel; aceitou os berros com o coração submisso e sem surpresa. Pelo menos a este respeito, a guerra trouxera-lhe a indiferença.

 

Perguntava a si mesmo o que iria acontecer. Recordava todos os pormenores das últimas horas, desde que descera do avião até ao momento presente. Esperava. Via a espinha toda curvada do sargento amanuense. Observava o sargento-ajudante, que folheava papéis, atarefado, ao mesmo tempo que se mantinha pronto a saltar.

 

«Schulz parece ser sempre o mesmo», pensava. «Impõe-se e, se preciso for, pelo...»

 

Neste momento a porta abriu-se bruscamente e foi bater contra a parede. À entrada estava o tenente Schulz, largo e imponente, mais largo e imponente do que antigamente. O seu uniforme era magnífico. Todos os presentes se puseram’ em sentido-. A voz de Schulz era como uma fanfarra, tal como dantes.

 

Então!  exclamou.  Cá está o nosso- Vierbein!

 

O   segundo-sargento  Vierbein   acenou   afirmativamente.

 

Aproxime-se, pobre inocente.

 

Vierbein aproximou-se, pôs-se em sentido e, tão correctamente quanto era possível, disse em voz alta:

 

Subalterno  Vierbein,  3.ª bateria  do   regimento  Luschke,  enviado  ao   destacamento   de  reserva   de  artilharia para conduzir pessoal e material de rádio.

 

Schulz teve um sorriso viril:

 

A  minha  escola!   exclamou.  Absolutamente   a minha escola! Não é verdade, Vierbein?

 

Sim, meu tenente  disse este.

 

Parecia  que  Schulz  ia  rebentar.  Relinchou  como  um cavalo  de  tiro.  Depois,  batendo  no  ombro  de  Vierbein, disse:

 

Sempre o espírito de antigamente? O bom e velho espírito!   Mas,  entretanto,  meu  caro,  subimos  alguns  degraus.

 

Sim, meu tenente  disse Vierbein, ainda estupefacto com a benevolência que lhe era assim manifestada.

 

Olhe  para ele,  sargento-ajudante.  Ainda  há  pouco tempo era o tipo mais torto da minha bateria. E agora é subalterno. E que subalterno: já tem a Cruz de Ferro de 1.ª   classe!

 

É alguma coisa, meu tenente  disse o brigadas fazendo cara de quem admirava.

 

Por que razão a recebeu, Vierbein?

 

Por ter destruído blindados, meu tenente. Sete.

 

-É a minha escola! gritou o tenente. Pode verificar, sargento-ajudante. Era o rapaz mais azelha. E, agora, sete blindados. E subalterno. Entre para aqui, Vierbein.

 

Sempre bastante perturbado, Vierbein seguiu o tenente. Schulz deixou-se cair na sua poltrona e indicou uma cadeira a Vierbein. Este sentou-se docilmente.

 

Um charuto?perguntou Schulz.

 

Não, obrigado, meu tenente.

 

Sempre   o   mesmo   bebé   doutros   tempos,   não   é? disse Schulz sorrindo com arrogância.  Mas não importa!  O principal é que mostre às pessoas que fizemos de si um homem.

 

O tenente acendeu um charuto. Depois observou:

 

Continua a não ter um ar muito viril. Mas isso não é defeito, vendo bem. A Cruz de Ferro de 1.ª compensa muitas coisas. E os galões de subalterno igualmente.

 

Schulz não esperava que Vierbein confirmasse as suas opiniões. Considerava isso supérfluo. E estava convencido de que Vierbein o venerava.

 

Mesmo nos seus sonhos mais audaciosos, nunca esperou vir a estar sentado assim diante de mim?

 

Não, meu tenente. Nunca esperei.

 

O seu velho brigadas não era, afinal de contas, um monstro disse Schulz, cujo rosto liso brilhava de contentamento.  Devo confessar  acrescentou  que o seu aspecto exterior me satisfaz. Mais uma vez se vê que nada se perdeu.  Aplainámo-lo bem, Vierbein.  E fizemos de si o que agora é. O êxito dá-nos razão.

 

Polidamente, Vierbein conservava-se em silêncio.

 

Não é verdade?

 

Sim, meu tenente. com certeza.

 

Talvez   o   apresente  um   destes   dias  na  messe   dos oficiais. Eles ficarão espantados ao ver tudo o que sai da minha  escola.   Ficarão   espantados,   garanto-lhe.   E   agora conte-me a história dos seus blindados.

 

Não há muito que contar, meu tenente.

 

Nada   de  falsa  modéstia,  meu   caro.   E  quando  eu digo: conte é para contar mesmo. Compreendeu?  com todos os pormenores.  A voz de Schulz retumbava como antigamente,   semelhante   ao   som   duma   trombeta,   e   era perigosamente benévola.

 

Perfeitamente,   meu   tenente  disse   Vierbein,   obediente.

 

Muito   bem   disse   Schulz,   satisfeito.   É   assim a vida. Os melhores impõem-se. Veja o meu caso. Quando a guerra começou tornei-me aspirante. Entrei para a Escola de Guerra, donde saí com menção. Era escusado dizer. Fui promovido a tenente. E acabei por vir ter aqui, onde me confiaram a bateria do estado-maior. Agora substituo o comandante, que vai casar-se. Praticamente, o destacamento é meu.

 

A   Sr.a   Schulz   deve   sentir-se   orgulhosa,   meu   tenente  disse Vierbein com ingenuidade.

 

Em que é que minha mulher lhe interessa?  Ladrou Schulz.

 

Eu julgava, meu tenente...

 

A   minha   mulher   não   lhe   diz   respeito,   Vierbein.

 

Tome bem nota. Aqui estamos em serviço. Vá mijar as suas lábias para outro sítio.

 

Sim, meu tenente.

 

Sem o saber, Vierbein tocara no ponto mais doloroso. A benevolência de Schulz rebentou como uma bola de criança. Tratava-se de um assunto tabo. Era uma verdadeira provocação lembrar-lho. É que a mulher era a sua cruz... Hoje mais do que antes. Isto fazia-o sofrer profundamente, até ao fundo da alma, ou, pelo menos, onde supunha que residia a alma, quando se falava dela.

 

Schulz esmagou o charuto.

 

Que vem fazer aqui?  perguntou.

 

Vierbein comunicou-lho. Expôs tudo o que já havia exposto ao oficial ordenança do destacamento. Insistiu mais uma vez na urgência da missão e no desejo pessoal do coronel Luschke de ver este assunto despachado sem dificuldades.

 

Como sou eu quem, actualmente, representa o coronel   disse  Schulz   com  dignidade ,   o  caso  será  submetido à minha apreciação. Verei nessa altura.

 

Se posso permitir-me pedir-lhe, meu tenente...

 

Enquanto o assunto estiver a ser tratado, Vierbein, você pertence  automaticamente  à  bateria  de  que  eu  sou o chefe. Compreendido?

 

Sim, meu tenente.

 

E,  bem entendido,  dentro  do  antigo  espírito.  Nãoesqueça: a minha escola!

 

O capitão Witterer estava bem abrigado atrás da segunda peça e examinava a linha da frente inimiga. Atrás dele mantinha-se o subalterno Krause, que se treinava, nesse momento, nas funções de subalterno-adjunto e olhava o seu chefe com solicitude. A sentinela, que deambulava não longe  deles,  batendo   os  pés,   parecia  desinteressar-se  de tudo o que via.

 

Muito notável  disse Witterer com importância, depois de ter baixado o binóculo.

 

Exactamente  ecoou  Krause,   sem   mesmo   saber  o que, podia  haver  ali   de  «notável».  Procedeu como  se  o soubesse,  o  que  não  podia  prejudicá-lo.  Quem  quer  que tenha a consciência de ser um chefe fica sempre satisfeito por ver-se compreendido pelos seus subordinados.

 

As linhas inimigas estavam diante deles, nas colinas, a descoberto. Provocadoras, na opinião de Witterer. Reconheciam-se distintamente alguns abrigos e algumas trincheiras. O adversário também tinha «apoiado» certas partes das suas posições nas casas duma aldeia. Vários homens passeavam sem medo pelo terreno.

 

É quase inacreditável  disse Witterer.  Uma verdadeira emigração. E chama-se a isto guerra!

 

Além  de que eles não têm artilharia. É ainda melhor  disse   Krause,   desempenhando   o   papel   de   Mefistófeles.

 

A sentinela nada dizia, mas nem por isso deixara de pensar. Continuava a pensar. Continuava a tentar aquecer os pés. De resto, a única coisa que lhe interessava era saber que daí a meia hora seria rendido. Os seus parceiros do jogo das cartas deviam esperá-lo já com impaciência, e isto lisonjeava-o. Pensar noutra coisa parecia-lhe supérfluo.

 

Quando teve lugar a última escaramuça?  perguntou o capitão à sentinela.

 

Escaramuça? repetiu o outro, e dir-se-ia que ignorava o que vinha a ser isto. com quem?

 

Que desorganização!murmurou Witterer. E Krause acrescentou, pressuroso:

 

Uma verdadeira desorganização!

 

Witterer examinou a peça, céptico, pois via no cano os riscos brancos que indicavam os tiros disparados. Olhou em seguida o monte de munições coberto por um encerado perto da peça. Depois disto sondou o horizonte do lado do inimigo  com maior atenção ainda do  que antes. Krause olhava como ele. Por fim disse:

 

Todos os chefes de secção reunidos para uma conferência comigo. Dentro de meia hora, digamos. Na aldeia da primeira linha. No alojamento de Wedelmann.

 

Krause repetiu a ordem recebida, palavra por palavra. Repetiu-a exactamente, o que foi para Witterer uma nova prova de que ele era o arvorado especial ideal. Lisonjeava-o verificar uma vez mais que não se enganara.

 

Enquanto Krause corria ao telefone para convocar todos os chefes de secção ou os seus representantes o capitão inspeccionava a linha de fogo. Notara que o inimigo lhe permitia fazer uma inspecção séria. Toda a gente o notou logo também: os serventes das peças e da metralhadora, os observadores, os encarregados dos telémetros e os batedores.

 

Estava ocupado na contagem das munições da quarta peça, a verificar as espoletas e ao mesmo tempo a ver se as cápsulas estavam ligeiramente engorduradas, de acordo com as instruções, quando Krause veio anunciar que os chefes de escalão tinham sido convocados, conforme as suas ordens.

 

Witterer agradeceu, desembaraçou os serventes da sua presença e num passo firme dirigiu-se para o alojamento do tenente. Este, sentado à mesa, mal levantou a cabeça. Tinha ao lado uma gramática russa, um caderno e um lápis.

 

O   contrário   seria   sem   dúvida   preferível    disse Witterer  com  petulância.   É  tempo   de  a  gente  daqui começar a aprender o alemão.

 

As  pessoas  daqui  não  estão  na  Alemanha  disso Wedelmann pouco amavelmente.

 

Witterer tomou esta observação por um gracejo e teve um riso breve. Fazia questão de estar sempre de bom humor, tanto quanto lho permitiam as circunstâncias. Acrescentou :

 

É uma maneira de ver, evidentemente  e riu outra vez.

 

Wedelmann era por de mais bom oficial para contrariar um capitão, que, ainda por cima, era o seu chefe de bateria. Continuava, com efeito, a acreditar na força da disciplina e no valor da obediência.

 

Witterer convidou Krause a deixá-lo só com Wedelmann e a impedir que fossem perturbados. Só deviam preveni-lo quando todos os chefes de secção estivessem reunidos.

 

E, enquanto Krause, bastante habilmente, recebia os subalternos diante da porta e os fazia entrar noutra cabana, Witterer punha o seu tenente ao corrente da situação, tal como a via. E estava decidido a não permitir que a justeza da sua maneira de ver fosse posta em dúvida.

 

Meu   caro   Wedelmann    dizia   ele ,   daqui   por pouco tempo as linhas actualmente imobilizadas irão despertar e regressaremos à guerra de movimento.

 

Tem razão, meu capitão  disse Wedelmann esforçando-se por responder sem ironia.  Isso pode acontecer.

 

E crê que as tropas estejam prontas?

 

Que podiam elas fazer senão isso?

 

Bem, meu  caro Wedelmann,  admita  que as tropas estejam prontas. Pergunto agora: estarão igualmente preparadas?

 

Mais ou menos para tudo, penso eu.

 

Mas terá essa preparação sido metódica?

 

Seja   como  for,  nós   já  fizemos   a  guerra   durantealguns meses com todas as dificuldades possíveis.

 

De   acordo.  Mas   depois  dormiram  durante   alguns meses de Inverno e esqueceram tudo de novo.

 

Na minha opinião, um dia bastará para nos prepararmos.  Perto  de  noventa  por cento  dos nossos  homens têm já experiência de combate.

 

Até mesmo isso se pode esquecer. Se já não sabem fazer meia volta à direita, terão esquecido igualmente como se parte o focinho ao inimigo. Não lhe parece evidente?

 

De certo ponto de vista, sim  disse o tenente com prudência.  É preciso, contudo, não ter demasiada pressa. A frente não é um campo  de manobras.  Não  alcançará nada pela força. Os regulamentos são, muitas vezes, bons para servirem de papel higiénico, quando muito.

 

Sr.  Wedelmann,   a  guerra   não  é  uma  brincadeira de crianças.

 

A quem o diz!  respondeu o tenente num tom algum tanto resignado.

 

O   que   me   importa   disse   Witterer,   martelando cada sílaba é isto: conto com o seu concurso, ou, pelo menos,   com  o  seu  acordo,  neste  momento,  em  que  me preparo para pôr novamente as tropas em estado de combater.

 

Krause apareceu para anunciar que todos os chefes de escalão estavam reunidos. Fez a participação rapidamente e em alta voz. Wedelmann ficou estupefacto.

 

Nesse  caso,  vamos  começar   disse  Witterer  com entusiasmo.  Que entrem.

 

Krause fez continência, mas não se retirou.

 

O primeiro-sargento Asch também?  perguntou com uma correcção acentuada.

 

Está aí, esse? Julgava que estava a organizar o espectáculo do Teatro do Exército.

 

Já   regressou,   meu   capitão.   Só   tem   de   lá   voltar amanhã.

 

Que acha, tenente ?  perguntou Witterer, acomodatício, mas deixando entrever nitidamente que esperava uma recusa.

 

O   sargento   Asch   é   subalterno-adjunto   da   bateria. Até nova ordem, pelo menos. É costume o adjunto tomar parte nas conferências dos chefes de secção.

 

Se  assim pensa...  disse o  capitão, arrastando  as palavras.  Não  conseguia  compreender  que  o  seu  tenente desperdiçasse com tanta facilidade uma ocasião para acertar as suas opiniões com as do seu superior.

 

À parte isso, o sargento Asch é um soldado cheio de       experiência. É sempre aconselhável conhecer a sua maneira de ver.

 

Então, de que está à espera?  perguntou Witterer,

 

agastado,  a Krause.  Vamos começar ou não? .

 

Os chefes de secção introduziram-se no estreito alojamento;  chefes  de peças, de metralhadoras, telegrafistas e telefonistas, municiadores e abastecedores, o sargento-ajudante e o armeiro, os subalternos-adjuntos Asch e Krause.      O primeiro-cabo Kowalski deixou-se arrastar no meio deles

 

com toda a naturalidade.

 

A um gesto do capitão, toda a gente procurou sentar-se. Alguns, e entre eles Soéft, apoderaram-se de cadeiras;  os      outros   deixaram-se   escorregar   para   o   chão,   coberto   de     palha. O  reduzido espaço estava agora atulhado e carregado do cheiro do suor e das roupas. |

 

Abra a janela, Krause  ordenou Asch.

 

Krause hesitou um momento e deitou um olhar interrogador ao capitão, que mergulhara nas suas notas.

 

Deu agora em surdo, sargento Krause?

 

Krause,   resmungando,   abriu   a   janela.   Kowalski   ria, encantado.  Os chefes  de secção seguiam a cena com umcerto interesse.

 

O capitão Witterer levantou a cabeça:

 

Há   já   bastante   tempo   que   nós   repousamos declarou.

 

Em que pensará ele realmente quando diz «nós»?

 

perguntou Kowalski a meia voz.

 

Dentro de pouco tempo isto será aqui um caso sério e é preciso que estejamos preparados para ele e decididos a tudo.

 

Pode-se fumar?  perguntou Soeft, movido por um certo sentido da disciplina. As grandes frases tinham sempre por efeito, nele, dar-lhe um sentido de solenidade, sem que isto, todavia, tivesse consequências práticas.

 

Claro   disse  Wedelmann.   Não  faça   perguntas idiotas.

 

Soeft fez circular o seu estojo, repleto, como sempre. Ofereceu igualmente um charuto ao capitão, que recusou redondamente. Alguns minutos mais tarde espessas nuvens de fumo saíam pela estreita janela.

 

O que é preciso agora  disse Witterer com energia  é tornar a pôr o carro em movimento. E isto dentro do mais curto prazo. A partir de hoje vou fixar um exercício  de  alerta  para  o  conjunto  da bateria.  Amanhã  de manhã a mesma coisa, até que estejamos prontos a pôr-nos em marcha. com todo o material. Sem excepção.

 

Impossível  disse Soeft num tom convicto.  Para isso teria de suprimir o meu kolkhoz.

 

Que   é   que   tem   de   fazer?   perguntou   Witterer, supondo  ter  percebido  mal.  Suprimir  o  seu  kolkhoz? Que é isso?

 

O segundo-sargento Soeft explicou Wedelmann criou, no decurso do Inverno, uma espécie de herdade privada para  a 3.ª bateria. Por esse meio, no  que  respeita aos abastecimentos, somos de certo modo autárquicos.

 

Soeft balançava  a  cabeça,  não sem  orgulho. Witterer contemplava-o como a um fenómeno.

 

Falemos   disso  em  pormenor  quando  chegar  a  altura  disse.

 

com todo o gosto, meu capitão  disse Soeft, solícito. O capitão, que não conseguia recompor-se da surpresa,

 

teve dificuldade em reencontrar o fio do discurso.

 

Teremos, então explicou, um exercício de alerta até nos  encontrarmos  em estado  de  marchar.  E  repetilo-emos duas, três vezes, tantas quantas forem necessárias para o conseguirmos fazer em meia hora. Creio que é disto que necessitamos.

 

Asch dispunha-se a fazer uma objecção, mas Wedelmann, que estava sentado defronte dele, abanou a cabeça. Asch encolheu os ombros e deixou-se ficar calado.

 

Tratemos  agora  do  gasto  normal  quotidiano continuou Witterer.

 

Desculpe-me,   meu   capitão    objectou   Wedelmann com a maior correcção e perfeitamente consciente  de  dar assim um exemplo aos seus subordinados, essa expressão é-nos totalmente  desconhecida.

 

Mas certamente calcularam a média diária de utilização do material?! Ou não?

 

Qualquer cálculo desse género  respondeu Wedelmann com imperturbável correcção  seria inexacto. Decerto quer referir-se às quantidades médias de equipamento.

 

Não nos prendamos com palavras! exclamou Witterer  com  uma  largueza  de  ideias  não  habitual  nele. Para quanto tempo chega o nosso carburante?

 

À volta de duas semanas.

 

As munições?

 

Um mês.

 

Os abastecimentos?

 

De dois  a três meses  respondeu  Soêft  tranquilamente.

 

Witterer teve um novo sobressalto e fitou durante um momento Soeft. Depois recuperou a presença de espírito e disse:

 

A  ajuizar  pelas  minhas  informações,  o  reabastecimento funcionou bem, de uma maneira geral. É inútil ter reservas superiores a um período de duas semanas. Consequentemente, temos munições em demasia.

 

Os subalternos presentes calavam-se, curiosos do que ia seguir-se. Wedelmann parecia inquieto. Asch avançava o queixo.

 

A atmosfera, aqui, está mesmo de se cortar à faca disse por fim o sargento-ajudante Bock.  Além disso, tenho muito calor.  E tirou o capote.

 

Alguns outros seguiram-lhe o exemplo. Witterer igualmente. O seu uniforme, sem rugas nem nódoas, não trazia condecorações nem insígnias. Era assombroso.

 

Onde tínhamos ficado?  perguntou o capitão.

 

Nas munições  disse Krause.  Segundo  os  seus cálculos, meu capitão, temos duas semanas a mais.

 

Mais vale ter de mais do que não ter bastantes disse Wedelmann, para travar.

 

Verifiquei hoje que as munições apodrecem. Assim mesmo.

 

Contudo, nós conservamo-las regularmente, meu capitão  declarou Asch num tom de exasperante calma.

 

Não são os objectivos que nos faltam. Convenci-me disso pessoalmente ainda agora. Porque não atiramos em cima deles? Não são as munições que nos faltam.

 

Além  disso  disse Krause ,  o  inimigo não tem artilharia neste sector.

 

Asch olhava Wedelmann, que o evitou. Parecia examinar os seus dedos, que repousavam nos joelhos.

 

Meu capitão  disse Asch, de súbito , há semanas que não se dá um tiro neste sector da frente... abstraindo dos  exercícios   regulares   das   metralhadoras  e   de   alguns tiros de espingarda contra cães vadios.

 

Isso  prova  muito  simplesmente  que  se  dorme  profundamente ’aqui  disse Witterer.  Tanto  de um  lado como do outro.

 

A  poucas  centenas  de  metros  disse  Asch   encontra-se   a   infantaria.   Geralmente   em   ignóbeis   tocas. Quando são rendidos, esses soldados vão-se abrigar numas barracas perto. Em frente da infantaria pode distinguir-se o inimigo nas mesmas condições. Também ele tem as suas barracas. A nossa infantaria entende que escaramuças numa situação destas são insensatas.

 

Desde quando é insensato infligir perdas ao inimigo, sargento Asch?

 

Sempre que o inimigo pode fazer-nos sofrer perdas iguais, meu capitão.

 

Possivelmente  nunca   ouviu   dizer   que  essas   coisas acontecem todos os dias em tempo de guerra, sargento?!

 

Meu capitão, qualquer operação militar deve ter um sentido.   Ou   se  é  forçado   a   defender   a   posição   que   se ocupa, ou se tem a intenção de desalojar o inimigo da sua posição.  Aqui  nada  de semelhante se justifica. Na  nossa situação qualquer acção isolada é insensata. A infantaria compreendeu-o perfeitamente. Não dispara contra os russos que vão buscar o  rancho e os russos, por sua vez, não disparam contra os nossos.

 

Afinal, estamos em guerra  perguntou ironicamente Witterer ou andamos a brincar simplesmente aos quatro cantinhos?

 

- Evitamos verter sangue por coisa nenhuma e nada mais.

 

E enquanto assim procede, filantropo, esquece que a nossa artilharia é superior à do adversário.

 

Isso   pode   modificar-se   de   um   dia   para   o   outro respondeu   Asch’ sem   se   deixar  confundir.   Se,   por acaso, deitarmos abaixo os abrigos do inimigo, ele tratará de trazer artilharia e derrubará os nossos. E os soldados deverão  então permanecer exclusivamente nas suas tocas, cheias de lama.

 

Sargento Asch  disse Witterer duramente , vejo que não tem o coração bastante sólido. Além disso, parece faltar-lhe espírito combativo. Considero esse facto inquietante no mais alto grau. Não fazemos a guerra para comer as nossas refeições com toda a tranquilidade.

 

Recomendo expressamente  declarou Wedelmann que não se empreenda qualquer acção isolada sem se ter consultado primeiro o comandante de infantaria do nosso sector.

 

«Desforrar-me-ei deste tipo o mais depressa possível», prometeu Witterer a si mesmo, enquanto olhava os seus subalternos e se afligia sinceramente por descobrir neles tão pouco entusiasmo para o combate. E repetiu de si para consigo: «Que desorganização!» Jurou a si mesmo remediá-la bem depressa.

 

E  quanto  ao  sargento  Asch?...   Ah,  sim...  Quanto a esse senhor, gostaria de saber até que ponto o espectáculo do Teatro do Exército está já preparado.

 

As questões de princípio encontram-se já combinadas disse Asch com uma indiferença ostensiva.  Há ainda pormenores de organização a afinar.

 

Pois afine-os, sargento. E o mais depressa possível. A execução rápida e conscienciosa das ordens recebidas parece-me muito mais importante do que os discursos demagógicos acerca de certos hábitos muito quiméricos da frente. Tome nota disto, peço-lhe.

 

Tomo nota  respondeu Asch com uma calma exasperante.  Perfeitamente.

 

Levando um pequeno embrulho debaixo do braço, o tenente Wedelmann dirigia-se para a casa onde habitava Natalia, a quem chamavam Natacha. Alguns soldados que encontrou riram à socapa; os que o conheciam sorriam complacentemente. Os habitantes da aldeia que tinham ficado fingiram não o ver.

 

Uma vez chegado, e depois de ter atravessado um local parecido com um curral, trepou por uma escada que rangia desagradàvelmente e que não tinha corrimão, caminhou com cuidado pelo frágil soalho e bateu, por fim, a uma porta estreita.

 

Um momento!  gritou a voz de Natacha.  Espere um pouco, por favor. Não demoro.  Era uma voz cheia, quente, um pouco gutural.

 

com todo o prazer  disse Wedelmann.

 

Tinha a impressão de ouvir, através da porta bastante delgada, o que a rapariga fazia. Era evidente que ela empurrava de lado um objecto bastante pesado, um caixote, provavelmente. Depois ouviu-se um ruído como de papel rasgado.

 

Wedelmann sorriu levemente da precipitação da rapariga. «As mulheres são assim mesmo», pensava. «Arrumam, fazem-se bonitas; a aproximação de um homem, qualquer que seja o seu género, põe-as logo em estado de alerta. São assim mesmo.»

 

O aparecimento de dois olhos curiosos sob uma loura cabeleira despenteada arrancou-o às suas reflexões. Estes olhos, que o observavam, com intensidade, da escada, pertenciam a uma criança. Era o rosto duma rapariguinha de cerca de dez anos.

 

bom dia, pequena!  disse Wedelmann, gentilmente,

 

Schweinçhund!   («Porco-sujo»)respondeu a rapariguinha, em alemão, não menos gentilmente.

 

Que quer isso dizer? perguntou ele. Que queres tu?  Eu disse-te «bom dia».

 

E Wedelmann repetiu, insistente e da maneira mais cordial:

 

bom dia!

 

bom   dia,   Schweinehund!repetiu   a   criança   com igual cordialidade.

 

Wedelmann abanou a cabeça com força, verdadeiramente irritado. «Que se passará?», perguntava a si mesmo. Mas era incapaz de encontrar uma resposta para esta pergunta. «É a Rússia, claro», pensou, e bateu outra vez à porta.

 

Vou  já!   gritou  Natacha.  Não  se  impaciente, peço-lhe.

 

«Quer fazer boa impressão», pensava ele, «uma vez que não deseja que eu a surpreenda. Estas mulheres! Mas porque faz isto, afinal? Não tem sentido prático. No fim de contas, ela é quase inacessível.» Quanto a si, podia considerar as suas próprias intenções como honestas, em comparação. Ela explicara-lhe muito claramente que não se podia tratar doutra coisa senão duma pura amizade, duma amizade de certo modo intelectual, dando-se à palavra «amizade» um sentido muito amplo. «E, no entanto!... Que poderá ela querer com toda esta técnica de fazer esperar? Só pode ser simples garridice», concluía Wedelmann.

 

Natalia abriu a porta. Parecia ofegante e os seus olhos estavam ardentes, o rosto bochechudo ligeiramente corado. Os cabelos caíam-lhe um pouco em desordem sobre a testa.

 

Wedelmann ficou francamente desiludido: ela não se fizera bonita para ele. «Mas, então, se ela não estivera a preparar-se... que fizera, pois?»

 

Natalia convidou-o a entrar para o quarto. Ele conhecia os raros objectos que ali se encontravam: uma cama, uma mesa e alguns livros, cadernos, uma cadeira oscilante, um fogão. A um canto, um caixote baixo, coberto de jornais cuidadosamente cortados. Tudo isto era primitivo; tudo estava extraordinariamente limpo. Um asseio que fazia bem ao coração.

 

Sente-se  disse ela.

 

Ele sentou-se, com cuidado, na cama. Era o assento que ela lhe indicara na sua primeira visita, ao mesmo tempo que explicava  o que era bastante plausível  que a cadeira não suportaria o peso.

 

Quer chá ?  perguntou.

 

Ele acenou afirmativamente e observou com atenção a sua maneira de tratar a chaleira e o fogão. Natalia tinha os ombros largos e era, como Wedelmann notou, bem fornida de carnes. «Mas isto não me diz respeito», pensou, correcto como sempre.

 

Eu   tinha   um   autêntico   samovar...  começou   ela.

 

Bem  sei   confirmou Wedelmann  rapidamente,  satisfeito, no fundo, por poder pensar noutra coisa , bem sei.  Tinha um  autêntico  samovar,  mas os Alemães requisitaram-no.   E  tinha   também   algumas   chávenas   e   alguns copos. Também isto foi requisitado pelos Alemães. E, agora, apenas tem uma chávena e um copo. Sei tudo isso.

 

Está descontente  disse Natalia, examinando-o com ar   crítico.    Está   aborrecido.   Está   aborrecido   consigo mesmo? Ou tem algum desgosto? Que foi que se passou?

 

Que   quer  que   se  passe  com  um   «porco-sujo?» respondeu Wedelmann, esforçando-se por sorrir.

 

Ah!   exclamou   Natacha.   Encontrou   a   nossa pobre pequena? Encontrou-a no caminho?

 

Não, correu atrás de mim.

 

Não deve estar zangado com a criança. Alguém lhe ensinou essa palavra feia.

 

Alemães,   sem   dúvida?

 

com certeza. Quem mais poderia ser? A criança não sabe o que diz. Conhece só essa palavra de alemão. E repete-a   a   cada   alemão.   Não   deve   estar   zangado   com   a criança.

 

Os Alemães mataram-lhe, decerto, os pais?!

 

Assim foi  declarou Natalia,  com força.  Exactamente assim.

 

Sem responder, Wedelmann agarrou na chávena que ela lhe estendia. E, contra vontade, observava a rapariga com prazer.

 

Natalia era de altura mediana. Tinha as formas bastante cheias e bem desenhadas. As suas mãos longas traíam um nervosismo que dificilmente dominava. Nos seus olhos brilhavam, ao mesmo tempo, a ternura e a frieza.

 

Vocês odeiam-nos a todos, não é verdade?

 

Ela abanou a cabeça, sem que, por assim dizer, os seus cabelos ficassem mais despenteados.

 

Isso não. Mas como poderia eu amá-los?

E compreender-nos?... Nem mesmo isso? Porque foi que Vieram aqui?

 

Deixemos esse assunto  disse Wedelmann.  É inútil falar dele. Falemos doutra coisa.

 

Não há outra coisa...

 

Wedelmann depôs com cuidado a chávena e tirou do bolso do capote o pequeno embrulho que Soèft pusera à sua disposição. Estendeu-lho.

 

Ela hesitou. As suas mãos tiveram um gesto mais nervoso. Disse:

 

Nada dei para isso. Que devo fazer em troca?

 

Nada   disse   Wedelmann.   Absolutamente   nada. «Ela não compreende quanto lhe sou dedicado», e, segundo acreditava,   de   maneira   desinteressada.  Aceite-o.   Assim mesmo. Como um presente. É chocolate.

 

Apenas  um  presente?  perguntou  ela, estendendo a mão. Sem obrigações da minha parte?

 

Ah, não! exclamou Wedelmann, sinceramente espantado   da  pergunta.  Também  recebo   de  si  um  presente. Não o nota?

 

Eu, dar-lhe um presente?! Como?

 

Pela sua presença. Por me consentir que aqui esteja. Perto de si sinto-me num mundo diferente. Esqueço o que está diante da casa onde mora. Penso doutra maneira. Respiro  doutra  maneira.  Sou  outro homem.  Isto é  o  maior presente que me podia dar.

 

Natalia agarrou na chávena que ele pusera sobre a mesa, inclinou-se para ele e, quando lha estendeu de novo, Wedelmann julgou sentir-lhe o hálito aflorar-lhe o rosto. Natalia disse:

 

Obrigada.

 

Wedelmann entornou um pouco de chá. Ela largou a rir. Ele riu também. Depois, subitamente, Natacha corou. Dir-se-ia que estava assustada de si mesma.

 

Bateram à porta com hesitação e muito levemente. Natália levantou-se com rapidez, dirigiu-se à porta na ponta dos pés e abriu-a cautelosamente. Depois, tranquilizada ao reconhecer o visitante, disse, num tom agradável, algumas palavras em russo e abriu a porta completamente.

 

À entrada estava a rapariguinha dos olhos curiosos. Observava Wedelmann com surpresa. Natalia fê-la entrar.

 

com um vestido em forma de saco, a criança apoiava-se alternadamente, ora numa perna, ora na outra, infinitamente perturbada, sem deixar de olhar Wedelmann. Depois sorriu, com uma expressão confiante e profundamente comovedora. Os seus lábios abriram-se e disse com singeleza:

 

Schweinehund!

 

A pequena gosta de si  disse Natalia.

 

Estou vendo  declarou Wedelmann, perplexo. Natalia abriu o embrulho que o tenente lhe trouxera,

 

partiu um bocado de chocolate e deu-o à criança. Esta, encantada, agarrou-o, provou-o febrilmente e balbuciou algumas palavras. Depois trincou-o com avidez.

 

Natalia empurrou-a para Wedelmann enquanto lhe pedia qualquer coisa em russo. E, por duas vezes, ele pôde ouvir-lhe pronunciar: «Danke!» («Obrigada.»)

 

A pequena estendeu a mãozinha e disse delicadamente: «Danke, Schweinehund!» («Obrigada, porco-sujo.»)

 

Wedelmann deu um salto. Olhou Natalia com uma expressão desorientada e descontente. Ela acenou a cabeça amavelmente. Wedelmann agarrou a mão da criança, esforçando-se por fazê-lo com gentileza.

 

Depois a pequena saiu a correr, feliz.

 

Em certas ocasiões é muito agradável ser um «porco-sujo»  disse Wedelmann cheio  de amargura.

 

Não  se  aborreça - disse  Natalia,   pousando   delicadamente a sua mão na dele.

 

Ele agarrou-lhe os dedos, as suas mãos subiram até ao pulso e ao longo do braço. Ela teve um gesto violento de recuo. A chávena caiu e partiu-se.

 

Não!   exclamou   ela.   Isso  não.  Peço-lhe,   isso não!  E em voz muito baixa, mal perceptível, repetiu: Peço-lhe.

 

Wedelmann, desorientado, levantou-se e recuou.

 

Perdoe-me.   Não   queria   ofendê-la.   Portei-me   como um...

 

Bateram energicamente à porta. Wedelmann ficou embaraçado. Não dera pela aproximação, apesar do barulho que os degraus faziam.

 

Também Natalia ficou outra vez perturbada. Nervosamente, as suas mãos puseram em ordem o vestido, embora este não estivesse desalinhado. Corou um pouco. Antes que tivesse podido dizer uma palavra, a porta abriu-se cautelosamente.

 

O sargento Asch meteu a cabeça:

 

Venho incomodar?  perguntou.

 

Absolutamente nada! exclamaram Natalia e Wedelmann ao mesmo tempo.

 

Lamento    disse   Asch,   sorrindo   amavelmente. Mas não  podia fazer  outra  coisa.  O  coronel   quer ter  o prazer de o ver, meu tenente. E o mais depressa possível.

 

Imediatamente  disse   Wedelmann,   com   prontidão. Levantou-se. Estava encantado por ver desta maneira pôr-se termo a uma situação que lhe era extremamente penosa.

 

Entretanto, Asch instalara-se  com familiaridade.

 

Não  há  assim  tanta  pressa   como  isso   disse. Mas se faz questão... não o retenho. O seu automóvel está à porta. Trouxe-o.  Substituí-lo-ei  aqui  dignamente.

 

Escusado seria dizer, Asch, que sairá comigo  retorquiu Wedelmann imperiosamente.

 

É preciso?  perguntou Asch, olhando Natalia com benevolência.

 

Permite-nos que apresentemos as nossas despedidas, menina  Natalia?  perguntou   Wedelmann,  muito   grande-senhor,  conseguindo, com alguma  dificuldade, ignorar os olhares surpreendidos do seu sargento.

 

Volte cedo, peço-lhe  disse Natalia, a meia voz.

 

Até  à  vista,   Natacha  disse   Asch,   rindo.   Espero-o em baixo!  gritou ao tenente, enquanto saía.

 

Wedelmann seguiu-o. À entrada da porta, aberta, da casa estava a pequena russa. Contemplava Wedelmann com uns olhos radiosos.

 

Auf wiedersehen,   Schweinehund!   («Até  à  vista,  porco-sujo»)  disse ela afectuosamente.

 

Até   à   vista,   pequena   ranhosa!  respondeu   Asch, sem se impressionar.

 

Wedelmann esperou que o sargento se tivesse afastado. Depois subiu para o automóvel e fez-se conduzir ao coronel Luschke.

 

Enquanto o carro rolava os pensamentos de Wedelmann demoravam-se junto dessa Natalia a quem Asch chamara simplesmente Natacha.

 

Ao fim de cinco minutos... Como este rapaz era tão pouco complicado!

 

Primeiro ao estado-maior do regimento ou imediatamente  ao  coronel ?  perguntou  o motorista. Teve  de repetir a pergunta, pois não recebeu resposta.

 

Já  ao  coronel  respondeu  Wedelmann.

 

O céu estava baixo, pesado de neve, duma neve pesada e molhada de Primavera. Wedelmann continuava a pensar em Natacha.

 

Cá estamos  disse o motorista.

 

Espere-me   no   estado-maior   do   regimento    disse Wedelmann,  saltando  do  automóvel.  Quando  tiver terminado aqui irei chamá-lo.

 

Penetrou na isbá onde o coronel tinha o quarto. Achou-o sentado à mesa dos mapas.

 

Aproxime-se,  Wedelmann.   Tenho   aqui   o  mapa   do nosso sector. Que vê nele?

 

O mesmo que há três meses, meu coronel.

 

Cada vez mais espirituoso, Wedelmann. O seu cérebro parece congelar-se lentamente. Mas aproxima-se o degelo,  meu  amigo.  Isso  dá-me  esperança,  no  que  lhe  diz respeito.

 

Wedelmann dirigiu ao seu superior um sorriso discreto. O outro sorriu-lhe ironicamente. Compreendiam-se bem, mas julgavam inútil falar nisso.

 

Que vê realmente, Wedelmann?

 

Sempre a mesma estupidez,  meu  coronel. Do nosso lado a frente forma uma bossa. O exército meteu aqui uma cunha  obtusa  nas  defesas  inimigas  e  nós  encontramo-nos ffuase na extremidade da cunha. Se tivéssemos recuado a frente no nosso  sector,  este teria ficado normal.  E,  automaticamente, as linhas estariam mais à vontade.

 

Vai   ficar   surpreendido,   Wedelmann...   O   alto   comando  também  compreendeu  isso.

 

Estou surpreendido, meu coronel.

 

O alto comando reconheceu que seria preferível  começar a ofensiva da Primavera com forças tão concentradas quanto possível  e sem protuberâncias inúteis na  linha da frente.

 

Regulariza-se, portanto, um sector da frente.

 

Exacto,   Wedelmann    disse   o   Batata,   encantado. Dirigiu um gesto de satisfação ao seu aluno preferido. Antes que recomece aqui o rebuliço, vamos cortar o contacto e ocupar, um pouco mais atrás, uma nova linha da frente

 

Wedelmann examinava o mapa com uma expressão pensativa.

 

Uma vez que somos nós os mais avançados, somos nós também que devemos recuar maior distância. Pouco mais ou menos quarenta quilómetros, se me não engano.

 

Pouco mais ou menos isso. Procuraremos novas posições na retaguarda... Quando as acharmos receberá outras instruções. Recuaremos, então, numa noite:  absolutamente de surpresa, sem que o Russo dê seja pelo que for.

 

Uma   brincadeira   de   crianças  disse   Wedelmann, convicto.

 

Para si talvez, Wedelmann  respondeu Luschke, piscando  o olho.  Mas será também assim para o capitão Witterer? Ele parece-me muito inexperiente.

 

Compensa isso com a energia, meu coronel.

 

Esperemos que  sim  continuou  o  coronel, pensativo.  De qualquer modo, enquanto você estiver na bateria não podem acontecer muitos desastres. Seja como for, trata-se de um segredo do comando, Wedelmann. De momento só nós dois conhecemos, no regimento, este projecto. Pense nisto sem cessar enquanto fizer os seus preparativos com a maior’prudência. A sua bateria será a última a evacuar as posições que ocupa com a infantaria.

 

A minha bateria?  Quer dizer a bateria do capitão Witterer, meu coronel?

 

Meu caro Wedelmann  disse Luschke, sorrindo com ar sarcástico, não faça de amuado. Quando eu estiver convencido de que a 3.ª bateria pode passar sem si verá então ao que o destino. E nessa altura terá ainda um ar mais pateta do que agora, se é possível. Mas até esse momento,  Wedelmann,  dê-me o  gosto  de puxar  a  corda  o melhor que puder. Confio plenamente em si.

 

Os subalternos Bartsch e Ruhnau, os dois «irmãos siameses» da etapa, dignaram-se tomar Vierbein sob a sua protecção, quando este lhes pagou um tributo sob a forma de uma garrafa de aguardente. Durante o almoço iniciaram-no nos segredos principais da frente da retaguarda.

 

Tens de tornar-te indispensável  disse Bartsch.

 

E,   tanto    quanto   puderes,   invisível  acrescentou Ruhnau.

 

Vierbein tragava o seu prato único e acenava a cabeça sem se interessar muito pelo que lhe diziam. Não queria ofender os dois camaradas.

 

Eu ocupo-me das máscaras de gás  dizia Ruhnau. É um negócio de absoluta segurança.

 

E eu vigio os armazéns disse Barts:h. Enquanto a caserna estiver de pé estarei tranquilo.

 

E   se   há   um   bombardeamento?  perguntou   Vierbein.

 

Um bombardeamento! exclamou Bartsch, um pouco assustado.  Nesse  caso, estou   lixado.

 

Se ao menos nos atirassem bombas de gás... acrescentou Ruhnau, sonhador.

 

De repente sentiu o espírito iluminado: começou a compreender que um ataque com gases seria para ele uma esplêndida oportunidade.

 

Mas, nesse caso, meu velho, seria a afluência no meu trabalho. Eu teria mesmo de mandar ampliar. Era até possível que toda a caserna se tornasse num depósito único de máscaras de gás. Em qualquer caso, tu, Bartsch, terias que fazer até mais não.

 

Eu não quero uma ocupação, quero um posto.

 

Era isso mesmo o que eu queria dizer.

 

Bartsch fez sinal a um criado e, sem dizer palavra, meteu-lhe o seu prato nas mãos, com um gesto de encorajamento. O homem desapareceu, mas voltou logo e depôs na mesa um prato cheio até cima. Aparentemente era o mesmo prato único que toda a gente comia. Mas quando o subalterno começou a remexer o conteúdo, para verificar, grossos bocados de carne emergiram.

 

O  cozinheiro  desconfia  disse Ruhnau  a Bartsch, que respondeu com um aceno de cabeça. Também aqui estavam absolutamente de acordo.

 

Vierbein,   surpreendido,   permitiu-se   fazer   uma   observação :

Estou   vendo   que   vocês   tem   influência!

   Para   um guarda de máscaras de gás e um vigilante de armazém!... Como se arranjam vocês?

 

Tu não ficas cá, de certeza?

 

Não.   com  certeza.

 

E não queres ocupar-te de máscaras  de  gás  nem  de armazéns? Nem agora nem mais tarde?

 

Nunca. Palavra de honra.

 

Então, está bem.

 

Nós somos aqui  disse um deles  os «homens de confiança». Compreendes?

 

Não  respondeu Vierbein,  sinceramente.  Nunca ouvi falar disso.

 

Conheces o comandante da praça?

 

Não. Apenas sei que se casa por estes dias.

 

com um pouco mais já não seria capaz  disse dos dois aquele que tinha nesse momento a boca  disponível. Ambos se olharam, rindo.

 

Isto  aqui  é  como  estás  vendo.   O  comandante   não sabe nada de nada.

 

E o oficial ordenança sabe tanto como ele.

 

E aí está a razão por que o comandante precisa de ter alguém que faça o trabalho todo por ele.

 

E esse é o nosso tenente Schulz.

 

Compreendo  disse Vierbein, que começava a adivinhar.

 

E, como Schulz não pode fazer tudo sozinho, precisa que o ajudem.

 

E quem o ajuda somos nós.

 

Vierbein acenou afirmativamente. Compreendera. O «irmãos siameses» não se contentavam em guardar o material; eram ao mesmo tempo os espiões, os cães de guarda os bufos de Schulz. Tinham-se procurado e encontrado.

 

Aqui está como as coisas se passaram  recomeçou Bartsch.  Quando isto aqui se tornou território de guerra, com fábrica de hidrogénio, D.  C. A.,  centro  de  reserva, campo de prisioneiros, etc., foi preciso também uma Kommandantur local.

 

E quem é digno de ser o comandante local ? Neste caso o comandante da tropa mais antigo da guarnição.

 

O nosso camaradinha.

 

E, por consequência, praticamente,  o nosso Schulz, sobretudo agora, que o grande trouxa não pensa senão no casamento.

 

Vierbein esvaziou o seu copo de cerveja, bebendo de través.

 

Não é fácil disse Baitsch, mas, mesmo assim, consegue-se.

 

Não podem passar sem nós disse o outro. Além disso, sabemos imensas coisas.

 

Vierbein começava lentamente a compreender que- para onde quer que deitasse os olhos encontrava o seu antigo brigadas. Esta perspectiva não tinha nada de divertida, mas era inevitável. Tinha de aceitar Schulz como se aceita um cataclismo. «É muito complicado», pensava, preocupado.

 

Os dois «irmãos siameses» eram de opinião completamente diferente:

 

É  muito  simples  afirmaram.   Cuspas  tu   onde cuspires, é sempre em cima dele que irá cair.

 

Contra Schulz  acrescentou   Bartsch   ainda  não se encontrou remédio.

 

O  comandante  da  praça   disse  o   outro,   condescendente é um reservista imbecil. Não percebe nada de escola de soldado. Schulz’ conhece isto como a palma das mãos.

 

Além disso,  ele  não  faz  a  menor ideia  do  que  é a  guerra  sobre  o  papel,  ao  passo  que  Schulz  a  conhece como nenhum outro.

 

Acrescente-se  afirmou logo Ruhnau  que o comandante não é daqui. Não  conhece nada  da  região. Ao passo que o nosso Schulz meteu o nariz em todas as retretes.

 

Junta-lhe ainda que o triplo idiota quer casar: para isso precisa de Schulz mais do que nunca. Não me admiraria se o primeiro miúdo do comandante tivesse as orelhas grandes de Schulz e o seu focinho largo.

 

Vierbein achava-se suficientemente informado. Acolhia com presença de espírito as observações impertinentes dos dois sargentos. Não aprovava, mas também não deixava transparecer qualquer desaprovação. No decorrer dos seus anos de serviço, prolongados graças às campanhas do Fiihrer, acabara por compreender que há muitas coisas, entre a caserna e a frente, acerca das quais é preferível guardar silêncio.

 

Mandou servir uma terceira rodada e retirou-se, a fim de se apresentar «ao princípio da tarde», conforme a ordem expressa que recebera, no estado-maior do destacamento de reserva. Esperou com paciência uma boa hora e, ao cabo, foi autorizado a fazer de polichinelo diante do tenente.

 

Este, em toda a sua dignidade, estava sentado à mesma mesa e no mesmo gabinete donde, noutro tempo, o chefe do destacamento, o comandante Luschke, governara a caserna até aos mais pequenos recantos. Dir-se-ia que Schulz tinha plena consciência de estar ali no lugar que merecia mais do que ninguém.

 

Vierbein fez o seu relatório em voz alta e precisa, exactamente conforme prescrições que pouco tinham mudado desde os tempos do falecido Guilherme II.

 

Schulz escutava com prazer este número de music-hall militar; fez um. gesto de aprovação e disse, num tom elogioso:

 

Não  esqueceu   nada!   Mas   eu   não  esperava   outra coisa. Vierbein. Quem quer que tenha passado pela minha escola mantém-se em sentido mesmo na vala comum, ou então não será digno de vestir a mesma farda que eu.

 

Depois de assim ter exprimido o que considerava absolutamente indispensável, o tenente, após ter folheado papéis e procedido como se reflectisse profundamente, embora soubesse muito bem o que queria dizer, declarou:

 

- Os pedidos do regimento Luschke estão formalmente em ordem.

 

Depois fez uma pausa intencional, olhou Vierbein com severidade, deitou um olhar pela janela, estudou de novo os papéis. Quem o observasse e não tivesse a menor experiência de chefes teria sido obrigado a acreditar que ele lutava para tomar as suas decisões definitivas.

 

Formalmente   repetiu   Schulz,   arrastando  a  palavra  tudo está  regular.  Teoricamente,  portanto,  poderia proceder-se imediatamente à entrega dos homens e do material. Mas eu, Vierbein, sou um homem da prática.

 

O sargento não se atreveu a protestar. Schulz era incontestavelmente um homem da prática. Contudo, nem toda a gente compreendia esta fórmula da mesma maneira que ele.

 

Nesse caso  disse Vierbein  devo informar o coronel Luschke de que...

 

...de que tudo está perfeitamente em ordem  cortou Schulz.

 

Desta vez o sargento não percebeu nada e tomou a liberdade de o dizer.

 

Schulz teve um sorriso dominador, mas nada cordial.

 

Na minha qualidade de homem da prática declarou,  ruidosamente ,  não  posso  contentar-me  em  pôr  à sua disposição homens e material. Quero expedir homens experimentados e material verificado. Está a acompanharme, Vierbein?

 

Creio que  sim  disse este,  sem procurar esconder a surpresa.

 

O tenente Schulz simulou não ter notado a resposta incorrecta de Vierbein.

 

Sargento  declarou ele com uma lógica inexpugnável , ensinaram-lhe a esperar; portanto, esperará. A formação dos soldados e a verificação do material de T. S. F. devem  concluir-se  antes que eu  possa tomar  a  responsabilidade de os pôr à disposição das nossas tropas da frente.

 

E quando estarão prontos, meu tenente?

 

Daqui por quatro ou cinco dias. Nessa altura realizar-se-ão os exercícios de tiro. Vinte e quatro horas mais tarde o regimento receberá tudo o que precisa.

 

Vou comunicar ao coronel Luschke  disse Vierbein, não hesitando, assim, em insinuar que podia ser perigoso fazer chegar ao coronel uma informação deste género.

 

Schulz, que ignorava os excelentes meios de comunicação de que o coronel dispunha, recebeu esta declaração com indiferença. Dizia consigo tranquilamente: «Comunica-lho, meu porquinho. O correio para a Rússia leva, pelo menos, oito dias, e daqui até que o Batata faça uma ideia do que preparo a Vierbein as coisas passar-se-ão como eu quiser.»

 

Durante   estes   dias   disse   Schulz,   esfregando   as mãos fará serviço aqui. Não lhe fará mal nenhum. No fim de contas, foi posto à disposição do destacamento de reserva  até ao  desempenho  da sua missão.  E o  destacamento de reserva, neste momento, sou eu.

 

Vierbein mantinha-se direito como uma estaca. Achava-se incapaz de pensar logicamente. Olhava Schulz a direito, o que este interpretava como uma prova de dedicação.

 

Acharemos uma ocupação conveniente para si  prometeu o tenente.  Você não é Completamente um imbecil.

 

Posso pedir-lhe, meu tenente, que me dispense esta tarde?  perguntou   Vierbein,   com   a   mais   perfeita   correcção.

 

Ora essa!  Porque não? exclamou Schulz tumultuosamente.  Nós não somos nenhuns monstros. Chegou da frente, quer   fazer  umas  estroinices.  Compreendo  isso perfeitamente. Mas seja prudente, amiguinho. Não apanhe aí  uma  blenorragia  ou  qualquer  coisa  do  género.  com essas coisas não brinco, Vierbein. Por princípio, aqui, trata-se de um caso muito sério. Considero isso uma mutilação voluntária. Percebeu?

 

Por fim Schulz deixou Vierbein retirar-se, não sem ter observado ainda, baseando-se na sua experiência prática, que era preciso ser prudente «até mesmo com as mulheres casadas e as noivas», pois ninguém podia saber exactamente onde a guerra não teria «cuspido».

 

Vierbein, que supunha ser uma sorte escapar, de momento, a Schulz, apressou-se a deixar a caserna. Quase a correr, dirigiu-se ao Café Asch. Não se preocupava com as pessoas que encontrava. Não se preocupava sequer com a jovem Primavera que se instalara nas árvores.

 

No Café Asch esperavam-no já com impaciência. Ingrid, que da cabeça aos pés se comportava como uma «noiva de guerra», precipitou-se para ele, abraçou-o com força e cobriu-o de beijos. Depois afastou-o um pouco, contemplou-o com os olhos brilhantes. Quando viu a Cruz de Ferro abraçou-o de novo.

 

Sinto-me   muito   orgulhosa   de   ti  disse-lhe,   ternamente.

 

E eu alegro-me de o ver aqui  disse o Sr. Asch, estendendo-lhe  a mão.  O facto  de você ser um herói não me perturba nada.

 

Depois, atravessando o estabelecimento, que, a essa hora, não era muito frequentado, Vierbein foi conduzido ao 1.º andar, à habitação particular. Ingrid segurava-o pela mão; o velho Asch pusera o braço por sobre os ombros do seu convidado.

 

Conta-me  disse Ingrid assim que se sentaram.

 

É preciso que ele coma  disse o Sr. Asch.  Que coma e que beba. Conheço isso.

 

Devo partir imediatamente declarou Vierbein, zeloso, convencido de que ia produzir grande impressão. Tenho de enviar uma comunicação importante.

 

Oh!  exclamou o Sr. Asch, abrindo uma caixa de charutos.  A guerra não acabará hoje.

 

Sim, mas esta comunicação não pode esperar  declarou Vierbein.  Apenas quis vir falar-lhes.

 

Vamos!  Vamos!  respondeu o Sr. Asch. Neste momento está aqui e aqui ficará. O Fiihrer pode esperar. Não foi ele, também, soldado? É o que se diz, pelo menos. Sendo assim, aprendeu a mandriar como a gente.

 

Mas, se a comunicação é importante..,  observou Ingrid, cheia de compreensão.  Tu não podes impedi-lo de fazer o seu dever, pai.

 

O  seu   dever?   Que  terei   de   ouvir  mais?  Mas  ele também tem deveres para connosco.  O Sr. Asch desarrolhou uma garrafa. Como soldado, em todo o caso, ele fez  o seu  dever,  e  desconfio mesmo  de que fez mais do que o seu dever;  agora tem o direito de beber um copo.

 

Oh, papá, não tens mesmo nenhum entusiasmo!

 

É um defeito de que me orgulho bastante. Bebamos em sua honra.

 

Chocaram os copos, sorrindo um ao outro. Sentiam-se muito felizes por estarem tão perto. No seu olhar havia alegria e ternura.

 

Vierbein falou um pouco de Herbert. Prometeu falar mais longamente quando estivessem mais tranquilos.

 

Em todo o caso  disse , passamos bem, o nosso moral é excelente, o abastecimento suficiente. Não há motivo para inquietação.

 

É  um  pouco   o  que  se  lê  nos  jornais  disse  o Sr. Asch.  Ainda há pessoas que acreditam.

 

Vierbein apertou, com ternura mas firmemente, a mão da rapariga sentada junto dele. Estava no auge da felicidade, sentindo-a perto de si; era uma alegria vê-la;  uma marav’ilha ouvir-lhe a voz.

 

Meus filhos! Meus filhos!  disse Asch, depois dum longo silêncio, contemplando-os com surpresa.

 

Precisas de papel ?  perguntou Ingrid.  De tinta e papel?

 

Vierbein acenou afirmativamente. O velho Asch abanou a cabeça com força e concedeu a si mesmo um copo cheio.

 

Se isto  assim continua  declarou ,  tenho  a impressão de que vamos ganhar a guerra.

 

Ingrid e Vierbein não se preocupavam com ele. Juntos, preparavam a comunicação com solenidade. A rapariga trouxe a tinta e o papel... Vierbein sentou-se à vontade e experimentou a caneta. Depois começou a escrever.

 

Fê-lo com lentidão, quase cerimoniosamente. Ingrid estava de pé, perto dele; encostava-se-lhe levemente ao ombro e olhava-o com interesse.

 

Depois de ter acabado o seu relatório ao comandante Luschke, Vierbein releu-o com atenção. Em seguida assinou-o.

 

O   relatório   é  enviado   directamente  ao   coronel diisse  Ingrid  com  um  ingénuo  orgulho,  piscando  o  olho ao pai.

 

E   depois?   perguntou   este.   Olha   a   grande coisa!  No meu  correio há várias cartas para um verdade’iro  general. Era  representante de uma  marca de  automóveis  antes  de  a  guerra  o  ter feito  avançar,  pouco  a pouco, até à patente de general.

 

Seja como for, é general agora, papá.

 

E eu escrevi-lhe. Mais do que uma vez. E até intimações. É que, imagina tu, não  só  ele é general,  como também tem dívidas como um general.

 

Vierbein permitiu-se um leve sorriso. Asch acolheu-o com surpresa e satisfação. Ingrid teve o tacto de nada ver.

 

Já   está!   exclamou   ela,   satisfeita,   depois   de   ter ajudado o noivo a dobrar duas vezes o papel. E, agora, vamos os dois levar a carta ao correio.

 

Não basta  disse Vierbein.  Esta comunicação é urgente. Tenho  de a levar ao  comandante  do  aeródromo próximo, que a enviará directamente para a Rússia.

 

É,   realmente,   necessário?   perguntou   Ingrid,   incapaz   de   dissimular   o   seu   desapontamento   Perdemos uma tarde inteira.

 

Tem   de   ser    respondeu   Vierbein,   sinceramente desolado por não poder satisfazer a alegre expectativa de Ingrid. Acrescentou: Infelizmente.

 

O  velho  Asch  repeliu  bruscamente  a.  garrafa   do  conhaque.

 

Que  tempo  este!   exclamou. Desde  que voltámos a ser mais uma vez um povo de heróis, poucos são os que não têm macaquinhos no sótão. Ganha-se bastante dinheiro,  mas  vive-se  como  cães.  Em  cada  canto  se  encontra um à espera de nos ver obedecer ao seu toque de apito. E que fazemos nós, realmente? Obedecemos. Temos isto  no  sangue.  O  açaimo,  o chicote,  o biscoito  de  cães.

 

Mas é a guerra, papá.

 

É o que eu digo. Metam-se na minha camioneta e desapareçam ambos. Preciso de levedura de cerveja para isso a que chamam tortas.

 

Obrigada, papá.

 

Obrigado, Sr. Asch.

 

Agradeçamos ao nosso Fiihrer  disse o Sr. Asch. Aliás, é a ele que devemos tudo.

 

O capitão Witterer, correndo ardorosamente para o seu objectivo, convocara o subalterno Soeft para o seu alojamento. Este obedecera sem excessiva demora, o que os iniciados acharam surpreendente. Apenas o tenente Wedelmann se podia gabar de ser tratado assim, de maneira tão privilegiada, pelo rei do abastecimento.

 

Soeft entrou, fez uma continência bastante incorrecta e procurou um assento. Krause, que devia e queria ser subalterno-adjunto de Witterer, e que, portanto, seguia este como a sua sombra, adiantou uma cadeira imediatamente a Soeft.

 

Tentou mesmo dirigir-lhe um sorriso de familiaridade. Soeft retribuiu-lho, mas menos familiarmente. «Este fraldiqueiro do Krause», pensou, «deverá puxar ainda muito tempo ao varal antes que eu lhe conceda a primeira fatia de pão com manteiga.»

 

Krause não era, contudo, um fraldiqueiro. Era um homem de ambição ardente, mas oculta, e que queria, furiosamente, fazer uma carreira tão brilhante e rápida quanto possível. Abjurara o catolicismo em 1938 porque ele parecia prejudicar o seu avanço; estava pronto a voltar a ser católico se os tempos viessem a mudar, coisa que ninguém podia saber. Fizera também um ensaio com o Partido Nazi, que não soubera apreciar-lhe o valor. Mas desde que a Wehrmacht possuía um Witterer a guerra e a sua carreira de oficial haviam tomado um aspecto diferente. Tudo isto nada tinha que ver com as suas convicções ou os seus sentimentos íntimos. Era unicamente um homem de acção, um homem de realidades.

 

Krause viera para a 3.ª bateria na qualidade de subalterno de fresca data e aluno-oficial de futuro. Tratavam-no ali como um caloiro. É que se encontrava num grupo que, no decorrer das duas campanhas da Polónia e da França, tivera ocasião de se conhecer a fundo.

 

Esta 3.ª bateria, tal como o capitão Witterer muito justamente declarara, era uma «balbúrdia». com êxitos, com muitos êxitos até, mas pouco entusiasmada pela disciplina. Logo ao princípio os serventes da sua bateria tinham experimentado tratá-lo por tu, a ele, subalterno Krause.  Mas  mostrara-lhes logo com  que  lenha  se  aquecia. Podiam fazer isso com Vierbein;  com ele, não!

 

É-me  indiferente  que  sejas  subalterno-adjunto  aqui, Krause  disse  Soeft,  sem que a presença  do  capitão  o perturbasse , mas no meu serviço de abastecimentos ninguém tem o direito de meter as patas.

 

Nem mesmo eu, Soeft?  perguntou Witterer, divertido.

 

Meu capitão  respondeu Soeft com toda a dignidade   de  que  era  capaz ,   depressa  verificará  que   tudo corre bem no meu serviço. Deixar-me-á as mãos livres, tal como estou habituado.

 

Se trabalhar de acordo com as minhas ideias, Soeft, porque não?

 

O segundo-sargento Soeft  disse Krause, com bastante habilidade, procurando jogar com um pau de  dois bicos  é, na verdade,  capaz  de abastecer um  regimento inteiro.

 

Como se arranja você para isso, Soeft?

 

Este  fez  um  gesto  modesto   de   defesa,   levantou   para o céu o seu potente nariz e piscou o olho.

 

Tudo  depende  das  relações,  meu  capitão.

 

Já teve sarilhos?  perguntou Witerer com alguma desconfiança.

 

Constantemente  respondeu Soeft sem se inquietar.  Fazem parte do ofício.

 

E o tenente Wedelmann? Ajudou-o a sair deles?

 

Seria  absolutamente inútil,  meu  capitão.  O  tenente Wedelmann  não   se  ocupou  sequer   deles.   Sabia  perfeitamente que eu seria capaz de safar-me sozinho, desde que, bem entendido, me deixassem as mãos livres.

 

Só o primeiro-sargento Asch é que tentou meter o nariz  insinuou Krause do fundo da casa.

 

Mas não se saiu muito bem  declarou Soeft com uma calma superior.  Pu-lo simplesmente a meia ração e ele recuperou imediatamente o equilíbrio.

 

Esse   indivíduo  parece   querer  meter-se  em   tudo disse Witterer.

 

Até aqui ninguém o reteve  disse Krause, atiçando o fogo.

 

Soeft deixava correr e esperava. Podia, sem dificuldade, ter a sua parte nestes mexericos, mas não via nenhuma razão para isso. No lume onde aqueles dois esperavam poder aquecer-se não tardaria ele, Soeft, a ferver a sua sopa. De resto, não era inimigo de Asch, muito antes pelo contrário.

 

Pondo de parte Wedelmann, Soeft, na 3.ª bateria, apenas tinha respeito por si mesmo e por Asch  exactamente por este. É certo que considerava Asch um cabeça de porco, mas reconhecia que este possuía como ele um sexto sentido, Soeft farejava, a sete léguas de distância, onde havia abastecimentos. Asch adivinhava com grande antecedência como a guerra ia evoluir. Pôr-se de mal com ele era quase um suicídio.

 

Olhe-me para esta barraca - disse Witterer a Soeft.

 

Soeft olhou. Era uma casa como todas as outras, talvez um pouco mais ampla, talvez um nada mais limpa. Mas, tal como as outras, cheirava a humidade, a couro secado ao lume, a fatos que apodreciam, a suor de homem e a tabaco.

 

É uma cavalariça e não o alojamento de um capitão  declarou Witterer energicamente.

 

Soeft fez um gesto afirmativo. Não lhe foi difícil calar o que desejaria dizer: «Esperava com certeza um palácio!» Não era homem para arriscar sequer meio quilo de manteiga por um gracejo. Sabia calar-se quando queria. E neste momento queria-o.

 

O sargento Krause pensa que você poderia ajudar-me neste caso, se quisesse.

 

Ah! O sargento Krause pensa isso?

 

Se alguém o pode fazer, és só tu  declarou Krause, com ardor. com as relações que tens...

 

Soêft deixou-se ficar calado. A situação apresentava-se-lhe com bastante clareza. O capitão queria embelezar a barraca. Porquê? Tratava-se duma questão secundária. Era fácil ver que era partidário da elegância a domicílio. «Não é caso para rir.» Também era possível que quisesse receber senhoras. «Porque não?» A ratinha do Teatro do Exército, aquela dos olhos grandes, talvez quisesse experimentar uma vez o amor sob o fogo da artilharia inimiga. «Deve ter um gosto diferente.»

 

Que diz a isto, Soêft?

 

Tudo   é   possível   aos   Prussianos,   ao   Fiihrer   e   a Deus  respondeu ele.

 

Para   começar    disse   Krause ,   precisamos   de algumas  folhas  de  papel.   Do  branco.  Para  substituir  os papéis pintados.

 

Estou  a perceber  disse Soêft.  Papel  de embalagem, daquele que serve para as provisões. bom, eu arranjarei três rolos. Para começar, bastará.

 

E cola, Soêft. Cola de estofador.

 

Uma   idiotice,   Krause    disse   Soêft   num   tom   de experiência.    Fornecerei   umas  caixas   de   percevejos.   É muito mais prático. Fixas com eles os papéis nas paredes. Para   que   queres   colar?   Não   vamos   ficar   aqui   eternamente.

 

Colado é mais limpo.

 

Se  os fixares convenientemente,  será mais que bastante. E quando mudarmos de posição só terás de enrolar os papéis. Até ao próximo salão do chefe.

 

De acordo  disse Witterer.  Faça como ele  diz, Krause. Que me poderá oferecer ainda, além disso?

 

Em que  tinha  pensado,  meu  capitão?  perguntou, curioso, o rei dos abastecimentos.

 

Eu  tinha  pensado  disse  o  capitão,  apalpando  o terreno    talvez   num   samovar,   alguns   cobertores,   duas cadeiras.  Aspirou   profundamente,   dando   assim   a  Soêft tempo para interrompê-lo, coisa que este não fez.

 

Witterer interpretou o silêncio como um consentimento e prosseguiu o inventário das suas pretensões:

 

Talvez ainda uma espécie de cama de abrir e fechar e um colchão, em vez desta palha apodrecida. E preciso também de chávenas, copos, pratos, dois de cada. E que diria ainda de uma almofada?

 

Concedido  declarou Soêft, generoso.

 

Witterer soltou um suspiro de alívio. Este Soêft era verdadeiramente inestimável e uma fonte absolutamente inesgotável. Não era um chefe de escalão, mas sim um director de grandes armazéns. E, aproveitando o momento favorável, aventurou-se até mais longe:

 

Tem também um tapete, Soêft ? Um, pequeno ?

 

Vou dar-lhe um dos meus. » Krause deitou  a Witterer um olhar de triunfo;  o capitão balançou a cabeça com satisfação.

 

Outra coisa ainda, meu caro Soêft. Como sabe, mandei fazer preparativos para um espectáculo do Teatro do Exército.

 

Sei o que se passa  disse Soêft, com visível interesse.  Tanto quanto estou informado, pôs lá Asch como jardineiro.

 

Witerer teve um sobressalto. Mas não se deixou desviar da sua ideia.

 

Seja como for  disse , gostaria de dar uma pequena festa depois do espectáculo. Que diz a isto?

 

É coisa que se pode fazer  disse Soêft, sonhador. Sempre tive um fraco pelo Teatro do Exército.

 

Evocou os dias felizes da França. Nunca pensava neles sem comoção. «Ah! com mil diabos! Que tempo! Isso é que era verdadeiramente Teatro do Exército. Como se chamava ela, aquela garota? Yvonne, com as suas longas pernas e as nádegas rijas!»

 

Pensava   numa   pequena   ceia    disse   Witterer  nuns bons refrescos.

 

Soeft arrancou-se às suas recordações de França, o que nunca lhe era fácil, e disse:

 

Sim, caviar e champanhe da Crimeia.

 

Witterer apurou o ouvido. O seu rosto, habitualmente tão sereno, manifestou sinais de entusiasmo.

 

Não estaria mal disse. Seria mesmo espantoso. E  estará  em  condições   de   pôr   isso   à  minha   disposição,

 

Soêft?

 

Tanto  quanto  quiser, meu  capitão  disse  o  outro, com   indiferença.    Aqueles   que   ainda   não   conhecem   o caviar e o champanhe da Crimeia acharão bom. Para mim não   contam.   Prefiro   o   presunto   cozido   e   o   champanhe francês.   Champanhe   seco!   Nada   de   coisas   adocicadas   e coloridas!  Além disso, a temperatura deve estar no ponto exacto. Tenho na minha bagagem pessoal um termómetro de champanhe.

 

Witterer guardou um silêncio respeitoso; Krause balançava a cabeça com ar de triunfo. «Tinha ele prometido de mais? Não! Nem tanto! Este homem não era um génio do abastecimento; era o único!» E Krause tinha a impressão de terem sido postos por ele próprio o caviar nas latas e o champanhe nas garrafas.

 

Ah,   a  França!   suspirou   Soeft.  Como   ela  me faz  falta!   Tinha  três  caves   a  meu   cargo,   além   de   uma cooperativa   de  mercearias  finas  que   eu   mesmo   inventei. E já não falo do meu armazém. Isso sim, era a França! Lá podia uma pessoa mostrar a sua capacidade.  Aqui o meu talento enferruja.

 

Vamos,  vamos,  Soêft!   exclamou  Witterer,   divertido.  O que consegue tirar deste país basta-me.

 

Isto   não   é   nada   em   comparação   com   a   França disse  Soeft,  num  tom  quase  solene.   O  meu   capitão compreenderá, porque conhece a importância do Teatro do Exército.

 

Escusado   seria   dizê-lo.  O   soldado  tem  necessidade de distracções; é preciso dar-lhas.

 

Que o Fiihrer ouça as suas palavras!  Foi em vão que eu esperei ouVi-las durante todo o ano passado.

 

O Teatro  do Exército  é uma  questão  algum  tanto descurada neste sector, não é verdade?

 

Completamente  descurada  disse  Krause  como  um eco.

 

Incompreensão   absoluta    declarou   Soeft.   Infelizmente. Quando eu quis instalar aqui um lupanar...

 

Um  quê?...perguntou   Witterer,   verdadeiramente surpreendido.

 

Um lupanar  repetiu Soeft, como se apresentasse uma reclamação honesta e mesmo patriótica.  Um bordel, pois então! Uma casa de toleradas. Palavras diferentes para designar a mesma coisa.

 

Estou a perceber  disse o capitão, um pouco desconcertado.

 

Quando   nos   fixámos   aqui,   antes   do   Natal,   compreendi  logo  que  se  passariam  meses  antes  que  recomeçássemos  a  mexer-nos.  Era  nesse  momento  que  se  deveriam ter organizado  as horas vagas. Em  suma, eu  estava disposto a organizar um lupanar.

 

Ah! Ah!exclamou Witterer, ainda aturdido.

 

Não teria sido tão fácil como isso  afirmou Soeft, com um ardor pouco habitual.  Imagine as minhas dificuldades. Num país como este!  Apenas garotas e velhas. Se interrogar alguma sobre a sexualidade, ela julgará que está  a  falar-lhe  numa  linha  de  iluminação  eléctrica,   de tal maneira aqui estão atrasados. Nada que se pareça com a França. Apesar de tudo, eu teria conseguido. Eu teria.

 

Decerto  disse Witterer.

 

É verdade que o material  não era abundante, mas teria  chegado  para   unidades  pequenas.   Reconheceram-no bem, nestes últimos tempos, nos estados-maiores pequenos. Conheço   algumas   unidades   que   contam   meia   dúzia   de «pegas»  na lista de  pagamentos.  Ora,  sendo  assim,  porque não será possível  também na frente?  É  aqui que há

 

mais precisão.

 

E quem foi que sabotou os projectos dessa vez? perguntou   Krause,   à   espreita.   Irradiava   satisfação,   pois conhecia a resposta.

 

Foi   Asch,   naturalmente    disse   Soèft,   com   desgosto.  O primeiro-sargento Asch é, na verdade, um bom organizador,   isso  é   indiscutível,  mas  não   tem   o   sentido duma organização deste género.

 

É  casado  disse  Witterer.  Vi  o  processo  dele. Parece  mesmo  que  está  solidamente  casado.  E,  em  segredo, o capitão felicitava-se por ter encarregado de Lisa, dessa pequena bastante ousada, um homem assim tão solidamente casado. Tratava-se, pensava, duma boa ideia, para não dizer de uma ideia genial.

 

Isso   também  não  é  assim   disse  Soeft.   Asch, tem de se reconhecer, é um rapaz como não há melhor. Não tem nada contra as mulheres. Mas é pela  liberdade absoluta e, por princípio, recusa-se a qualquer organização neste domínio.

 

Interessante  disse Witterer, pensativo.

 

Na França  continuou  Soeft,  deixando-se  arrastar outra   vez   pelas   suas   recordações    era   completamente diferente.  Lá   podia   eu   impor-me   sem   custo.   O   próprio Weddelmann  fechou   os  olhos.   E,  embora  não  me  tenha frequentado a casa, Asch também não me causou aborrecimentos. Era tudo o que eu queria.

 

Como disse?  perguntou Witterer,  com estupefacção. A bateria em França tinha o seu bordel privativo?

 

Claro.  E  era  quase  exclusivamente   graças   a   mim, isto sem diminuir os méritos do sargento-ajudante. As suas disposições administrativas eram perfeitamente úteis. E ninguém pôs em  dúvida a utilidade  de tal  empreendimento.

 

Salvo Asch  interveio Krause.

 

Soeft fez  um  gesto  desdenhoso.  O  seu  assunto  preferido arrastava-o.

 

Creia   disse   que  um  bordel  é  uma   instituição boa para manter o moral do exército.

 

Que   quer   dizer   com   isso ?  perguntou   Witterer, para quem uma conversa deste género era coisa nova.

 

Em   primeiro   lugar,   as   raparigas   mantêm   o   bom humor  dos  soldados  explicou  Soeft,  sinceramente  convencido.    Quando   se   ama   bem   anda-se   bem   disposto. Depois,  há   do  lado  dos  homens,   de  cada  soldado,  uma espécie  de necessidade  física.  Esta  necessidade,  que sobe automaticamente  na  guerra  de  posições  ou  aumenta,  até, na proporção  do afastamento  da frente,  deve  ser tomada em consideração. Tenho ou não tenho razão?

 

Hum!  rosnou Witterer, pensativo.

 

O  chefe  que  tem  a  consciência  das  suas  responsabilidades  continuou Soeft,  como se ditasse um  regulamento  não  tem  o  direito  de  subtrair-se  a  tais  problemas.  O  corpo  também  tem  as  suas  exigências.  As naturezas primitivas têm, neste estado, tendência para os actos de violência. Os delicados, mais raros, procuram o amor. Os indiferentes,  pelo contrário,  precipitam-se para a primeira mulher que se lhes apresenta E é justamente aí que reside o problema. Há, com efeito, o perigo das doenças venéreas,  que,   automaticamente,  põem  o  soldado fora  de combate.   É   indiscutível   que   isto   é   atentatório   da   força combativa. E para o evitar é preciso instalar um bordel.

 

Parece lógico  disse Witterer, hesitante.  Parece muito lógico.

 

E é  disse, energicamente e com convicção, o sargento.  Ou julga, meu capitão, que as poucas frangainhas do Teatro do Exército chegam para substituir isto, mesmo de longe?

 

Mais devagar, Soeft, mais devagar! Nada de comparações desse género. São arriscadas. Bem vistas as coisas, trata-se de senhoras da sociedade.

 

Porque  me  diz  isso  a  mím,  meu  capitão?  perguntou Soeft, rindo sem se melindrar. Diga-o antes ao sargento Asch. Ele precisará mais do que eu. Porque, no fim de contas, é ele quem está nos primeiros camarotes. ( E foi o meu capitão quem lá o pôs.

 

Podia muito bem ter ido procurar-me  disse Lisa Ebner,  olhando  em volta  com uma expressão  de  descontentamento.  Ou  julgará,  por   acaso,  que  me  pode  dar ordens como aos seus soldados?

 

Não dou ordens aos soldados  respondeu Asch, em tom pouco amável.  Deixo isso a outros.

 

Isso é com o capitão Witterer?       

 

Pergunte-lhe se ele se sente atingido. Mas isso fica para mais tarde. Por agora, sente-se.

 

Lisa Ebner olhava Asch como se este fosse um animal curioso e contagioso ainda por cima. Depois contemplou de novo o que a rodeava. Fungou, outra vez, descontente, franzindo o seu gentil narizinho.

 

Encontravam-se na sala principal da messe dos soldados, na etapa. Assemelhava-se ela até certo ponto a uma sala de espera, muito arruinada, de 3.ª classe, numa guarnição longínqua. Só faltavam ali os horários dos comboios. Em compensação, havia alguns cartazes publicitários, todos ornados, é certo, de frases patrióticas. O Fiihrer também não fora esquecido.

 

Apenas alguns soldados estavam presentes, pois a hora das verdadeiras distracções não chegara ainda. A ração de vinho baptizado, muito apreciada e que aumentava a força combativa, nunca era distribuída antes do cair da noite. Os iniciados renunciavam todos, magnânimamente, ao chá da tarde ou à sopa de pão. Os que se encontravam ali eram, portanto, na sua maior parte, extraviados.

 

A um canto berrava sem parar um alto-falante. Ninguém o ouvia. Os mugidos contínuos da rádio eram tão indispensáveis a esta guerra como o ar para respirar.

 

Lisa Ebner sentou-se num banco, em frente do sargento Asch. Automaticamente, sacudiu o vestido, pois tinha a algum tanto penosa impressão de saber que todos os seus movimentos eram observados. Esforçava-se por olhar Asch de cima, o que não parecia incomodá-lo muito.

 

- Eu não sou sua empregada  disse ela.

 

- Ainda ninguém o disse.

 

Sendo assim, queira tratar-me doutra maneira.

 

Como? Como a um ovo?

 

O senhor é impossível!  exclamou Lisa, lançando-lhe olhares indignados.  É, nem mais, nem menos, um insolente.  Outros  sentir-se-iam felizes  por  se  encontrarem aqui   sentados,  comigo.   Mas  o  senhor  ainda  é  capaz  de acreditar que me está a fazer um favor. Que está a pensar, afinal de contas?

 

Não me faça essa pergunta.

 

Será por acaso uma táctica sua?

 

Minha   querida   menina   Lisa   Ebner    respondeu Asch, mirando as mãos , eu sou casado.

 

Já mo disse. Mas pode mudar de disco. Ou será também uma táctica?

 

Como mulher  respondeu Asch, inclinando-se sobre a mesa e olhando-a fixamente  não me interessa nada. Nem tanto como isto. Para mim é unicamente uma pessoa com quem trato dum assunto, tal como faria com o representante do depósito de abastecimento ou do armazém de caixões. Tenciono discutir consigo uma questão de serviço, e é tudo. Para os assuntos particulares não tenho competência. Não sou eu quem a tem.

 

Essa graça é outra vez com o capitão Witterer? Asch   abanou   lentamente   a   cabeça,   insinuando   assim

 

que a considerava «dura da cachimónia».

 

Mandei um dos meus camaradas ao alojamento do seu   grupo    disse   ele    para   que   me   enviassem   aqui alguém  em condições  de tratar  comigo.  Quem?  Estou-me nas  tintas  quanto   a   isso.  Não  quis  ir  a   sua   casa   com receio de perturbar qualquer idílio. Supus que fosse O vosso parceiro macho, o ilusionista, quem aparecesse. Na verdade, não tinha imaginado que viria você em pessoa. De resto, é-me indiferente.

 

Ora vejam!

 

Perfeitamente indiferente.

 

Está  bem   disse  Lisa   Ebner,   procurando   tomar uma decisão.  Também não peço outra coisa. Seja como for, o nosso grupo dividiu o trabalho de organização. Sou eu quem deve preparar o espectáculo extraordinário para os senhores. Portanto, quer lhe agrade, quer não, tem de contentar-se comigo.

 

Contento-me  consigo,  como  está vendo  respondeu Asch, fleumàticamente.

 

Depois procurou com o olhar a criada Betty. Ela aproximou-se, sem se apressar muito. Asch olhou-a com amabilidade.

 

É com certeza a menina Betty?  perguntou, observando   com  crescente   cordialidade  esta   mulher  pesada  e maternal.

 

Como sabe, sargento?

 

De   acordo   com  a   descrição   que  me  fizeram,  não pode deixar de ser a senhora.

 

Fizeram-lhe   uma   descrição   de   mim?  perguntou ela, assustada.

 

Cumprimento-a da parte do subalterno Soeft. Estou na mesma bateria.

 

Então são assim os amigos desse pulha, desse vendedor ambulante? Imaginava-os doutra maneira. Você tem um ar mais ou menos normal.

 

Por vezes a gente engana-se  disse Lisa, num tom convicto.

 

Também me enganaria  declarou a criada, fazendo um sinal de assentimento a Lisa.  Mas, uma vez que está aqui, não quero causar uma decepção a Soeft. Então que quer beber?

 

Se tenho o direito de escolher  disse Herbert, de bom humor, queria uma cerveja. Mas daquela que faça «pschi!». Há meses que a não bebo.

 

Terá o que quer  disse Betty num tom ao mesmo tempo brusco e cordial.- E a menina?

 

Um café?!

 

Porque não? Tê-lo-á. O gangster do Soeft se arranjará para o substituir.

 

A criada afastou-se.

 

Faz-me lembrar a minha sogra  disse Asch.

 

Também isso é uma ilusão de óptica  disse Lisa Ebner,  agastada.  As  mulheres,  perto  da  frente,  nunca são   mais   que  ersatz.   Fazemo-vos   sempre   lembrar   outra mulher   qualquer.   Quando   somos   novas,   a   vossa   noiva; quando somos velhas, as vossas mamãs. E, pouco a pouco, isso deixa de ter graça.

 

Você   dá-me   a   impressão   de   ter   coleccionado   um bom número de experiências. Há quanto tempo anda metida nesta história?

 

Na frente?  Estou  aqui pela primeira vez.

 

Não está na frente, mas sim atrás da frente  corrigiu  gentilmente  Asch.  E,  antes  disto,  onde  exerceu   o seu talento?

 

Nos hospitais.

 

Isso   estava   bem.   Estaria   mais   no   seu   lugar.   Mas não foi lá com certeza que encontrou o seu  capitão Witterer!...

 

Ele não é meu capitão. Não lho disse já ? Conheço-o, e nada mais.

 

Conhece mais alguns da mesma maneira ?

 

Ainda que isso o inquiete, conheço uma quantidade deles. Por exemplo, o comandante Baer. E também o capitão Runge e o comandante Von Falckenstein. E ainda...

 

Já me chega  interrompeu Asch num tom desagradável.

 

Nomes assim podia citar-lhe dúzias deles.

 

Elabore, uma lista,  mande tirar  cópias  ao  duplicador  e  distribua-as  por  todos  aqueles  a   quem  interessar, como, digamos assim, certificado de capacidade, como certificado de rendimento ou outros deste género.

 

Lisa Ebner olhava-o com os olhos dilatados, muito abertos. Olhos sombrios e tristes. Eram olhos de criança, tal como Asch pôde verificar. Que lentamente, muito lentamente, se enchiam de lágrimas.

 

Porque me  diz essas coisas?  perguntou  ela, em voz baixa, como se se sentisse desamparada.  Por quem me toma? Porque supõe que eu... que eu...

 

E Lisa começou a chorar. Grossas lágrimas rolavam-lhe pelo rosto e caíam na mesa mal limpa. Ela chorava sem ruído e os seus ombros mantinham-se imóveis.

 

Não chore, vamos  disse Asch, muito aborrecido. Porque está a chorar?

 

Lisa  continuava  a  chorar.  Sem  ruído.  Sem  se  mover.

 

Vamos, domine-se. Meu Deus, se toda a gente aqui quisesse pôr-se a chorar!...

 

Betty aproximou-se lentamente da mesa. Depôs sobre ela o café, que desprendia um aroma intenso, e colocou diante de Assch uma caneca de cerveja. Depois examinou a rapariga e o sargento com um descontentamento crescente.

 

É,   realmente,   um   amigo   íntimo   desse   patife   do Soèft  disse, por fim, com convicção.  Vê-se. Mas não se rale, menina. Não é com certeza o único homem que existe neste sítio.

 

Era   só   o   que   faltava,   que   começasse   também   a chorar, menina Betty.

 

Pode   esperar   por   isso   enquanto   a   guerra   durar, rapaz.  E depois de ter assim falado a criada afastou-se, resmungando.

 

A torrente de lágrimas de Lisa não se esgotara ainda. Asch não sabia já o que fazer. Instintivamente puxou pelo lenço, mas teve presença de espírito bastante para não o oferecer à rapariga, pois estava muito longe de se encontrar limpo.

 

Acalme-se,   vamos.   Não   quis   ofendê-la.   Creia   que não quis.

 

- Quis, sim  disse Lisa, fogosamente.

 

Pois bem.  Se faz  questão  disso,  desculpe.  Peço-lhe que   me   desculpe.   Não   tive   intenção   de   ofendê-la.   Desculpe-me. Peço-lhe.

 

Lisa não respondeu. Mas as lágrimas já não corriam. Acumulavam-se nos seus grandes olhos, que brilhavam agora docemente.

 

- Sabe, menina Lisa Ebner  acrescentou Asch, vivamente , nós aqui não estamos aquilo a que se pode chamar estragados com mimo. E esquecemos muitas coisas. Conhecemos apenas os camaradas, e, a eles, apenas para comer e morrer.

 

Não tenho nada que ver com isso.

 

Lisa fez desaparecer com as costas da mão os sinais das lágrimas. A sua pele, Asch verificou-o com prazer, não tinha qualquer vestígio de pó de arroz. Brilhava um pouco vermelha agora, mas era lisa e saudável.

 

Lisa tirou um espelho da malinha. O que nele viu pareceu tranquilizá-la. Soprou duas vezes para cima, em direcção ao seu gracioso nariz. Depois tentou outra vez olhar Asch com uma expressão provocadora.

 

Não deixe arrefecer o café  disse ele.

 

Lisa, obediente, bebeu em movimentos um pouco bruscos. Era uma rapariga encantadora. Muito nova e quase ingénua ainda.

 

De súbito, Asch sentiu um vivo desejo de que ela se mantivesse tal como era agora. Foi nisso que pensou enquanto bebia uma boa golada de cerveja. E este pensamento não o deixou mais.

 

Deve tentar, de uma vez para sempre, saber o que nós pensamos   disse  depois.   Vejamos, por exemplo, o  eterno  assunto  número  um:   as  mulheres.  Muito  bons pensamentos, expressos em milhões de cartas. Mas não há só estes bons pensamentos. Há também as ilustrações dos jornais militares, os magazines, as canções equívocas da rádio para os soldados. E depois as conversas das retretes e da noite e os devaneios provocados pelo álcool. De repente, eis que aparecem verdadeiras mulheres cruzando o nosso caminho. Elas misturam-se connosco: mais ou menos, uma para cem mil. De vez em quando passa-se qualquer coisa, não quererá negar com certeza! E a ocasião favorável só existe para aqueles que têm ainda um quarto e uma cama. Mas a coisa sabe-se depressa. E, para muitos, elas são, por princípio, prostitutas para oficiais. E o desejo sexual é, como o desejo de comer, particularmente desenvolvido aqui. Conte com isso. Nada se pode fazer em contrário com indivíduos que pensam dessa maneira não queremos quaisquer relações.

 

Mas você não pode escolher os que a olham.

 

Felizmente   ainda   há   homens   em   quem   se   pode confiar.

 

Não   me   sinto   ofendido  por  verificar  que   não  me inclui no número desses  disse Asch, indiferente. Depois perguntou:- E  o  capitão  Witterer?   Pode  confiar  nele?

 

- Conheci-o na Alemanha. Foi muito delicado para comigo, muito bem educado. E como ele tinha altas relações  o comandante Baer é seu amigo íntimo  pedi-lhe que me ajudasse a obter um contrato para espectáculos na frente.

 

Porquê?   Os   contratos   desse   género   interessam   do ponto de vista pecuniário?

 

Também.  Mas  não  era  isso  que  me  atraía.  Queria estar metida na questão. Queria ver alguma coisa. Conhecer bem as coisas deste mundo. Não me compreende?

 

Não  respondeu Asch sinceramente.  Sou absolutamente  incapaz de a compreender. Mas, ora bem:  já cá está. E que está vendo?  Que conhece  do mundo?  Menos que nada. Está aqui sentada, com um pobre diabo dum sargento, e deixa arrefecer o seu café. Representa em barracas de tábuas e em herdades, admirada por alguns reservistas, para os quais é, como você mesma o disse, um ersatz de noiva. E o capitão Witterer toma conta de si.

 

Nem tudo é assim tão feio como diz, Sr. Asch. Talvez tenha tido experiências desagradáveis, e isso tornou-o injusto.  Mas  também   a  guerra   tem  dois   rostos:   alguns aniquilam-se nela,  outros elevam-se acima de si mesmos. Há decerto homens que conservaram a honestidade do seu coração.

 

É muito possível. Mas o que é preciso é que saiba escolher os bons. Não é talvez tão difícil como isso.

 

Lisa Ebner abriu muito os olhos. Ia dizer qualquer coisa, mas não teve tempo. O subalterno Krause, com o capote completamente aberto, dirigia-se para eles. Deitou um olhar a Asch. Depois mirou a rapariga longamente.

 

É a menina Lisa Ebner?perguntou.

 

Ela acenou que sim, um pouco surpreendida, um pouco curiosa também, porque adivinhava que o sargento Asch estava ainda mais embaraçado do que ela.

 

Esperam-na  disse Krause.

 

Tenho  ainda  diversas  coisas  a  discutir com  a  menina Lisa Ebner  declarou Asch num tom arisco.

 

O capitão Witterer  disse Krause, como se o sargento não existisse para ele  está já no seu quarto, menina Lisa Ebner.

 

Isso   não   impede   que   terminemos  a   nossa   conferência.

 

Vem, menina Lisa Ebner?  perguntou Krause, com obstinação.

 

Ela olhou Asch, que acenou a cabeça negativamente. Este gesto causou-lhe satisfação.

 

Irei mais tarde  respondeu.

 

Está bem,  esperarei  declarou  Krause,  sentando-se também à mesa e gritando: «Eh! Você aí!»

 

Betty aproximou-se e olhou-o sem nada dizer.

 

Então?  perguntou  ele. Que  diria  a  um  café?

 

Não há.

 

E esta senhora?

 

Você é uma senhora?

 

Então traga-me uma cerveja.

 

Terá   chá   ou   nada    disse   a   criada.    Estamos numa messe para soldados e não num estabelecimento de diversão. E se julga que vai ter cerveja só porque o sargento bebeu uma está muito enganado. Aqui sou eu quem manda e mais ninguém.

 

Estupefacto, Krause olhou a criada, que se afastava. Depois virou-se para Lisa Ebner e Herbert Asch e julgou vê-los piscar o olho com uma expressão de cumplicidade. E isto era uma situação que devia ser qualificada pelo menos de inquietante. Reflectiu durante algum tempo no que convinha fazer.

 

Por fim disse:

 

Sargento, quer então impedir a menina Lisa Ebner de obedecer a uma convocação do capitão?

 

Segundo-sargento, eu ignorava que o capitão tivesse o  direito  de  dirigir  convocações  de  qualquer  ordem  que fossem à menina Lisa Ebner.

 

Portanto, está a sabotar um desejo expresso do chefe

 

da bateria?

 

Não se podem sabotar desejos. Devia reflectir sempre, Krause, antes de ceder à sua preferência pelos lugares-comuns. Recomende isto igualmente ao capitão Witterer.

 

Não   deixarei   de   o  fazer  respondeu  Krause   com

 

energia.

 

Agora desaparece-me daqui. Ou então dar-te-ei tantas nos dedos que ficarás em estado de não poder escrevinhar as tuas participações.

 

Todas as ordens eram sagradas para o subalterno Vierbein; qualquer desejo de um chefe era para ele uma ordem, sobretudo quando esse chefe se chamava Wedelmann. Mas, na sua infinita ingenuidade, deixou-se cair em pedir informações acerca de Lore Shulz aos seus camaradas de quarto, Bartsch e Kuhnau.

 

Os dois irmãos siameses desconfiaram de qualquer maroteira e ficaram encantados. Entreolharam-se e compreenderam-se imediatamente. Logo que a conversa recaía nas «gajas», os seus cérebros pareciam harmonizar-se completamente.

 

Camaradinha!   exclamou  Bartsch.  Estás  a  pedir-nos os nossos melhores endereços. Tens de pagar isso.

 

Se  quiseres   riu  Ruhnau ,  fornecer-te-emos,   ao mesmo tempo, a maneira de te servires dele.

 

Tenho   simplesmente   uma   incumbência   a   desempenhar  declarou Vierbein,  em  tom  reservado.  O  resto não me interessa.

 

Está bem!  berrou Bartsch, entusiasmado. Está mesmo  muito  bem.   É   uma  táctica  que  nós  conhecemos. «Apalpa-me o pulso», diz a dama, «mas não te enganes no sítio.»

 

Ruhnau achou isto extremamente cómico e insistiu, por seu lado:

 

Ainda ontem disse a uma mulher: «Mete-te na cama. Quero apenas ver se ela não é demasiado curta para ti.»

 

Por fim, Vierbein, depois de ter prometido solenement? largar uma garrafa de bagaço, obteve com os melhores votos, o endereço de Lore Schulz. E «muita coisa de uma cama para a outra».

 

Vierbein não compreendia esta espécie de finezas. Para ele Lore Schulz era uma mulher casada, e, o que mais importância tinha ainda, a mulher de um superior, a quem devia respeito. Era, portanto, sagrada. Nenhum pensamento inconveniente acompanhava esta convicção.

 

Além disso, Vierbein conservava por Lore Schulz um sentimento escondido, mas sincero, de veneração: ela sempre lhe provocara um pouco de piedade, tal como houvera um tempo em que sentira piedade por si mesmo. Fora boa para ele e estava-lhe reconhecido por isso.

 

Enquanto se preparava para sair, os dois farsantes estabeleciam o seu plano de campanha para a noite seguinte. Estava prevista uma festa com damas na messe dos oficiais, e o tenente Schulz encarregara-os de organizarem os divertimentos particulares.

 

Mas sê mais prudente desta vez  disse Bartsch ao amigo.  Não se deve enfiar no pescoço do primeiros-sargento, quando ele estiver perdido de bêbado, uma tábua de retrete à laia de coroa de louros. Pode acontecer que a bebedeira lhe passe  cedo  de mais e  que  ele  não  compreenda a piada.

 

E quem é que ultimamente fechou  com o ferrolho a porta  do toucador  das  senhoras,  de  modo  que  Schulz foi obrigado a mandar passar uma ordenança pela janela de ventilação?  Se ele te tem apanhado, podias preparar as bagagens e fazer o testamento. Exactamente para a dama aferrolhada é que ele tinha deitado as vistas.

 

Vierbein fazia o possível para nada ouvir desta conversa. Embrulhou cuidadosamente, sob o olhar interessado dos dois subalternos, a garrafa de conhaque que o tenente Wedelmann lhe confiara.

 

Esperemos que essa chegue  disse um deles.

 

Para   uma   vez   chega   com   certeza  assegurou   o outro.

 

Se quiserem saber o que vai passar-se  declarou Vierbein com um ar de contrariedade , dir-vos-ei que vou apenas entregar esta garrafa.

 

Acreditamos na tua palavra.

 

Esta noite estou convidado para o Café Asch. Não me   demorarei   nem   mesmo   um   minuto   em   casa   da Sr.a Schulz. Tomem nota.

 

Afastou-se, mostrando não ouvir as palavras de encorajamento que lhe eram dirigidas. Deu com o n.º 12 da Ritterstrasse e leu uma placa:

 

TENENTE SCHULZ

(1.º andar)

 

Para o serviço, tocar uma vez; para outros assuntos, tocar duas

Subiu até ao 1.º’”andar e, após uma pequena hesitação, tocou duas vezes. Esperou um momento. Depois tocou de novo. E, outra vez, duas vezes. Logo após ouviu passos. E a porta abriu-se, lentamente.

 

Vierbein respirou fundo ao ver Lore Schulz. Visivelmente aliviado, cumprimentou e disse:

 

Posso falar-lhe?

 

Sr.   Vierbein!   exclamou   Lore,   surpreendida. Ainda está vivo?  Que surpresa!  Este gentil  Sr. Vierbein, que vem assustar-me agradavelmente à noite. Donde é que vem?

 

Se   me   permite   disse   Vierbein,   apressado ,   eu queria...

 

Mas   porque   não   entra?   Ou   ainda   julga   que   eu mordo? Não vai ficar aqui de pé, neste corredor!

 

Sim...   Porque   não?   Queria   apenas...   Não   queria incomodá-la.

 

Entre    disse   Lore,   sorrindo   para   ele.    Nunca incomoda. Sobretudo a mim.

 

Abriu a porta completamente e Vierbein decidiu-se a transpor a soleira, tropeçando.

 

Lore Schulz riu com gosto:

 

O primeiro passo em falso! disse, divertida. Sempre teve um talento especial para isso.

 

Vierbein murmurou algumas palavras que se assemelhavam a uma desculpa. Recusou-se a deixar as suas coisas no corredor. com o bivaque na mão, o cinturão estreitamente apertado, entrou na sala de jantar. Depois, e após ter sido convidado por duas vezes, sentou-se na borda de uma cadeira e olhou discretamente em redor.

 

Se por acaso procura o meu marido disse Lore, não terá hoje nenhuma desventura. Ele está ausente, como de costume.

 

Admiro a sua mobília  disse Vierbein, desastradamente.

 

Se é só isso que admira, está bem. Como está vendo, alcançámos agora um nível mais elevado. É mesmo assim que se  diz?  Agora somos oficiais.  Subimos na escala  de patentes.

 

Foi só então que Vierbein achou ocasião para examinar Lore Schulz. Mudara pouco. Estava, é certo, um pouco mais forte, mas a sua boca estava mais delgada e os olhos mais fundos. Apesar disto, era tão bonita como antigamente.

 

Envelhecemos, não é verdade, Sr. Vierbein?

 

Amadurecemos  respondeu este, tentando falar com decisão.

 

Se assim prefere  disse ela. Tinha um ar resignado, mas, ao mesmo tempo, parecia troçar desta resignação. Pois  seja. Você  amadureceu e eu  envelheci. Mas,  apesar disso, faremos tolices diferentes das de outro tempo?

 

Vierbein não encontrou resposta. Agarrou o embrulho que pousara nos joelhos e estendeu-o a Lore:

 

Para si. com as lembranças mais cordiais do tenente Wedelmann.

 

Os olhos da rapariga tiveram uma cintilação. E nesta cintilação não havia qualquer maldade.

 

Meu Deus! exclamou ela, com uma alegria ingénua.    De  Wedelmann.  Mas  não   é  possível!   Que  bom rapaz!   Continua  a pensar em  mim.  Em  mim!  É quase incompreensível. Como está ele?

 

Bem, naturalmente  respondeu Vierbein.  Como as circunstâncias o permitem.

 

E ele não me esqueceu?

 

Não  disse o subalterno, que esteve tentado a acrescentar: «Como vê.»

 

Resolvido a não fazer nada que o pudesse atrasar, fez menção de se levantar.

 

com certeza não se quer ir já embora?!

 

É preciso. Além disso, queria evitar...

 

Que meu marido o encontre aqui ?  Ela riu um pouco ironicamente.  Meu caro Sr. Vierbein, não é preciso ter medo disso. O tenente Shulz é um homem muito ocupado. Comparado com ele, o sargento-ajudante Schulz estava, por assim dizer, sempre de licença.

 

Em todo o caso, esta noite, na messe dos oficiais, a senhora estará com certeza...

 

Como  sabe justamente  o  senhor  o  que fazem  as pessoas finas? Quem lhe contou isso?

 

Dois subalternos da minha bateria. Durmo no quarto deles. Chamam-se Bartsch e Ruhnau.

 

Ah!  disse Lore com amargura.  Conhece esses dois cavalheiros. E foi deles que recebeu essas informações?

 

Até certo ponto.

 

Informaram-no também a meu respeito ?

 

Um pouco.

 

Aí está porque...  disse Lore num tom de desprezo.  Assim já percebo muitas coisas. É por isso que está com tanta pressa. Pois bem. Não o quero demorar.

 

É claro  disse Vierbein, levantando-se  que não acredito em nada do que se diz. Nem uma palavra acrescentou, bastante desastradamente.

 

Achava-me capaz?

 

De modo algum  respondeu  Vierbein  com sinceridade.

 

Creio no que diz  disse Lore, sorrindo  com gratidão.  A si creio-o sem dificuldade. O senhor não é um artigo em série. E isso agrada-me.

 

Vierbein tentou fazer uma reverência, o que quase conseguiu. Neste momento venerava sinceramente Lore Schulz e ela notava-o perfeitamente.

 

Quero   ser  sincera   consigo   disse  Lore,   acompanhando-o à porta.  Escusado seria dizer que não irei esta noite à messe. Nem esta noite nem nunca. Não estou lá no meu lugar. E fizeram-mo compreender por várias vezes.

 

Quem?

 

Meu marido, Sr. Vierbein.

 

Ah, sim!exclamou Vierbein, desconcertado.

 

Quando ainda morávamos na caserna eu tinha, apesar de tudo, alguns amigos. Ou, para falar com mais exactidão:  alguns conhecidos. Mas as coisas mudaram muito. Nessa época a minha conduta só era inadmissível em certos dias  hoje   sou   muito   simplesmente   indigna.   Bem   vê: meu marido está convencido de que se foi elevando constantemente. E mais convencido está ainda de que eu fiquei para trás.

 

Vierbein não sabia que responder... Abriu a boca, mas não falou. Contudo podia-se-lhe ler no rosto que protestava lealmente.

 

Não quero demorá-lo  disse Lore.  Tem, decerto,  amigos que se preocupam consigo. Invejo-o, mas sinto-me feliz por si. Por si, Sr. Vierbein, sinceramente.

 

Obrigado  respondeu ele, perturbado.

 

Tenho um pedido a fazer-lhe. Satisfaça-o, se for possível. Se, durante os próximos dias, tiver uma hora, ou meia hora, ou mesmo alguns minutos, livres, chame-me, peço-lhe. Encontrar-nos-emos em qualquer parte e contar-me-á então como vai isso lá por baixo, o que vocês fazem. E falará também do tenente Wedelmann. Quer?

 

Decerto. com certeza.

 

É verdade, Sr. Vierbein?

 

Absolutamente. Sem qualquer dúvida.

 

Encaminhou-se então para o Café Asch, onde o esperavam. Subiu à pressa a escada que levava à habitação. Ingrid veio abrir-lhe a porta e, como uma corajosa noiva de guerra que era, estendeu-lhe os lábios para um beijo: sabia o que se deve a um soldado que chega da frente.

 

Podias ter vindo mais cedo  disse-lhe ela.

 

Tinha ainda uma incumbência a cumprir  respondeu ele, dignamente.

 

Estás desculpado  disse Ingrid, que não manifestou qualquer   desejo   de   conhecer   os   pormenores   da   incumbência.

 

Na sala grande, o Sr. Asch estava sentado à mesa, coberta por uma toalha branca. Estava também o contramestre Freitag e a filha Elisabeth, a mulher do sargento. A mamã Freitag não viera. Desculparam-na: tinha de vigiar o bebé Asch.

 

Vierbein recebeu o lugar de honra. Empertigado e orgulhoso, pontificava no meio de todos, que esperavam agrupados em volta.

 

Quisemos até decorar a sua cadeira com uma grinalda de flores, Sr. Vierbein  assegurou o pai Asch, piscando o olho.  No entanto, desistimos, apesar dos enérgicos protestos de Ingrid. O único resultado que teria era impedi-lo de sentar-se comodamente. É muitas vezes o caso das condecorações. Um dos meus parentes afastados recebeu a Cruz de Cavaleiro. Desde então para cá recusa-se a abrir o colarinho, a não ser para se deitar. Conserva-o fechado, mesmo para se lavar. De tal forma são, por vezes, rigorosos os costumes.

 

Riram. Mas tinham vindo para ouvir Vierbein e convidaram-no a falar. Mas Vierbein não era um narrador. Era evidente que se lhe tornava penoso ver-se centro do interesse geral.

 

O Sr. Asch depressa o notou e começou a fazer-lhe perguntas. Isto agradava muito mais a Vierbein. Respondia conscienciosamente e dificilmente. Os dois pais, unindo os seus esforços, conseguiram arrancar-lhe alguns factos que, na verdade, os impressionaram desagradàvelmente.

 

O decorrer da guerra depende, no fim de contas, do material  disse o Sr. Freitag.  Se os exércitos já têm, agora, veículos desmantelados, nos quais não se pode ter completa confiança, a lama da Primavera prejudicá-los-á ainda  mais  e,   dentro  de  um  ano,  estarão  bons  para   o ferro-velho.

 

Sou absolutamente incapaz de dar informações positivas sobre o que se passa fora da nossa bateria  disse Vierbein, que, honestamente, se recusava a causar o mais pequeno mal-entendido. É certo que os nossos veículos estão muito estragados, mas deve dizer-se também que foram utilizados duma maneira extraordinária.

 

Âsch afirmou que só o Fiihrer tinha uma visão do conjunto. Freitag era de opinião que o desenrolar das operações começava a exasperar os soldados que estavam na frente.

 

Ingrid e Elisabeth aproveitaram a ocasião favorável para puxarem Vierbein de parte. Mas não conseguiram satisfazer a curiosidade porque um barulho formidável ergueu-se da escada.

 

Quase imediatamente, o criado Anton apareceu, desesperado, no vão da porta. Atrás dele riam Bartsch e Ruhnau. Já estavam «cheios>. Os olhos deles brilhavam, as vozes grasnavam, tinha-se a impressão de sentir a vaga de álcool que flutuava diante deles.

 

Viemos  visitar  o  nosso  querido  Vierbein  mugiu Ruhnan.

 

Porque queremos aliviar a nossa consciência  rosnou Bartsch.

 

Eu  julgava  que  vocês tinham muito  que fazer na messe  disse Vierbein, para quem esta cena era extremamente desagradável.

 

Estivemos lá. Mas içámos as velas. Schulz pôs-nos na rua.

 

£ agora temos absoluta necessidade de nos consolar. É a altura de nos dares a tua garrafa de aguardente. Fá-la sair dos alforjes do teu sogro. Tu prometeste.

 

Não vos prometi nada  declarou Vierbein, consternado.  Apenas disse que falaria ao Sr. Asch.

 

Então fala-lhe. Ele está aí.

 

É inútil  disse o Sr. Asch.  Não levarão uma gota de álcool. Vocês já estão redondos como duas barricas.

 

Então  declarou Ruhnau, teimoso  vamos ter com a Sr.” Schulz.

 

Perfeitamente,   é   o   que   vamos   fazer    anunciou Bartsch. E ela será obrigada a dar-nos a garrafa que Vierbein lhe levou há bocado.

 

Que   é   que   tu   fizeste ?  perguntou   Ingrid,   secamente.

 

Levou-lhe uma garrafa de aguardente. Porque não havia de levar? Outros já o fizeram.  E, dito isto.  os irmãos siameses eclipsaram-se. A algazarra que faziam ouviu-se ainda durante muito tempo.

 

O novo dia subia lentamente por sobre a sentinela, que se apoiava ao cano da peça.

 

A sentinela achava que se tratava de um dia como centenas de outros. Espessas nuvens tinham engolido o sol. O gelo enterrava, lentamente, os dentes no chão.

 

«Talvez vá nevar», pensava a sentinela. «Talvez não neve também. O principal é que não chova. Se começa a chover, o Inverno desaparece. Será a água, e a água traz-nos a guerra.»

 

A sentinela olhava para além das depressões do terreno, até ao alto da colina em frente. E viu, a alguns quilómetros de distância, um homem que abria caminho através da neve. Uma sentinela, igualmente.

 

«E aquele soldado», pensava o alemão, «tem um rosto asiático e fala russo; a cabeça tem-na rapada e o seu uniforme é castanho... mas faz a mesma coisa que eu. Exactamente a mesma coisa.»

 

«É estranho», pensava a sentinela. «Ele faz a mesma coisa que eu.»

 

Soeft, o madrugador, passara a noite na etapa, o que lhe acontecia com frequência. Tinha sempre várias camas à sua disposição.

 

Enquanto se barbeava mantinha com um dos seus amigos, o principal empregado de um campo de abastecimentos, uma conversa particular. O outro, ainda deitado na sua enxerga, espiava o sócio.

 

Este creme de barbear é bom  disse Soêft.  Precisava de cinco tubos dele.

 

Que é que isso vale para ti?

 

Um ganso gordo.

 

Temo-los  de  conserva  disse  o  sargento,  tomando um ar desinteressado.

 

De   conserva!   exclamou   Soeft   com   desprezo. Para que seja bom tem de ser acabado de matar, de preparar. Não são poucos os que lamberiam os cinco dedos da mão.

 

Três tubos por um ganso gordo  disse o outro. O caso é que não podes fazer grande coisa com os teus animais vivos.

 

Porquê, seu usurário?

 

Porque nós vamos, com certeza, mudar de posição.      |

 

Pelo menos, é o que parece. O intendente do estado-maior começou já a transferir secretamente as suas reservas.

 

Soeft pousou a navalha.

 

Temos de falar disso com vagar  acrescentou.

 

A ordenança que todas as manhãs levava água a Luschke para este se lavar viu-o, nessa manhã, já sentado à mesa dos mapas. Parecia que tinha adormecido ali. Uma delgada camada de suor cobria o rosto fatigado do Batata.

 

Não me olhe dessa maneira  disse o coronel. Nunca viu um homem antes de ele se barbear?

 

A ordenança apressou-se a deixar a água e a desaparecer.

 

Luschke agarrou nos telegramas da manhã e pôs-se a folheá-los. Boletim meteorológico: «Temperatura provavelmente sem alteração.» Reserva de munições: «Sem alteração.» Ordens especiais do Comando Supremo: «Notada maior actividade dos agentes. Verificar as medidas de precaução; eventualmente, aumentá-las.» Perdas: «Nada.»

 

O coronel repeliu os papéis e contemplou o mapa. Como todas as manhãs. E, como todas as manhãs, disse: «Merda!»

 

Depois dirigiu-se para a bacia colocada sobre um banco, e mergulhou nela a cabeça. Várias vezes.

 

Na retaguarda o mesmo dia erguia-se, como um rapaz robusto após um longo sono. O Sol apareceu de repente e -iluminou a pequena cidade.

 

Imediatamente também a caserna acordou.

 

Como durante todos os anos anteriores, os soldados escorregaram para fora da cama. Um toque de apito pusera fim ao sono. O subalterno de serviço berrava.

 

Os soldados pareciam ter envelhecido. Alguns tinham barriga e os ombros desiguais. Muitas das pernas eram tortas e delgadas.

 

Contudo, tratavam-nos como jovens recrutas. E eles deixavam. Muitos acreditavam que assim devia ser.

 

O subalterno Vierbein estava no meio deles, nos lavatórios. Despira-se da cintura para cima e fazia correr a água sobre o tronco. Os soldados observavam-no com desconfiança.

 

O que estava ao lado dele, um homem de rosto enrugado e cujas mãos longas e delgadas pareciam tremer de frio, disse-lhe:

 

Quando era novo como você também isso me fazia bem.

 

Mas ainda não está um velho!  exclamou Vierbein

 

Sou soldado. Tenho varizes, um pé chato, úlceras no estômago, dois filhos que, pouco a pouco, se corrompem e uma mulher que anda com outros homens!...  Mas sou soldado.

 

Vierbein não respondeu.

 

O sargento Asch escrevia uma carta à mulher. E, como sempre, dizia-lhe que tudo ia bem. que os seus pensamentos estavam com ela e que ela não tinha necessidade de se preocupar. «Tudo se arranjará bem», assegurava.

 

Entretanto, Wedelmann almoçava. Comia devagar e sem grande prazer. De vez em quando engolia a água quente e castanha a que chamavam café.

 

É caso para o invejar  disse Wedelmann.  Sabe onde é o seu lugar.

 

Mas o meu tenente também o sabe muito bem.

 

Você tem mulher e um filho.

 

E o senhor tem a Alemanha e o Fiihrer.

 

Não  esteja  com  brincadeiras,  Asch  disse Wedelmann, severamente.

 

Já viu a Alemanha, meu tenente?  Já olhou  realmente para o Fiihrer?

 

Não falo dessas coisas consigo.

 

com  quem há-de falar então, meu  tenente? com o coronel Luschke? com o capitão Witterer? Ou com o subalterno Vierbein? Não há muito por onde escolher para tão altos assuntos.

 

Escreva a sua carta e deixe-me tranquilo disse Wedelmann, descontente.  Não é mau rapaz, Asch, mas nunca virá a ser um bom alemão.

 

Talvez sim, quando houver uma boa Alemanha.

 

O primeiro-cabo Kowalski começou por fazer greve quando o subalterno Krause se permitiu, logo ao amanhecer, isto é, por volta das oito horas, tirá-lo do mais profundo sono.

 

Desaparece daqui  disse-lhe, ou então... Krause   adoptou   o   tom   mais   estritamente   oficial   e  Kowalski virou-lhe as costas.

 

Vou fazer uma participação ao capitão Witterer.

 

Não farás nada disso. Não te atreverias a apresentar-te ao teu  capitão como um pobre papa-açorda. Um subalterno que não é capaz de se impor a um cabo! Isso não é possível... pelo menos para o capitão Witterer.

 

Krause, vendo que Kowalski sabia exactamente do que se tratava, tomou um tom de camaradagem e afectou uma atitude de protector:

 

Tu não podes fazer-me isso, meu velho.

 

Não posso?  perguntou Kowalski, enfiando a cabeça debaixo dos cobertores.

 

Kowalski  disse Krause, dando à voz, contra vontade,  um  tom  ainda  mais  adocicado ,  trata-se  de  um caso excepcional!  Uma coisa que tu não podes ver todos os dias.

 

O que é?  perguntou Kowalski, cuja curiosidade despertara.

 

Ficarás espantado. Não te digo mais: um caso excepcional.

 

Então, vá lá!  disse Kowalski, levantando-se lentamente. Não quero ser um empata.

 

Ingrid estava sentada diante do seu café. Na sua frente, o pai lia o Vôlkischer Beobachter 1 e divertia-se.

 

A guerra torna-se cada vez mais total  disse. O nosso próprio Fuhrer só dorme numa cama de campanha. Que dizes a isto?

 

Ingrid não respondeu. Mexia o café, e isto durou muito tempo.  Não  dera  a  menor  atenção  ao  que  o  pai  dizia.

 

Reflectia.

 

Dorme numa cama de campanha!  repetiu o Sr. Asch num tom provocador.  Gostava de saber quem acreditava nisto. O general que eu conheço  aquele que me deve dinheiro fez-se fotografar um dia perto duma cozinha rolante. Legenda: «O general partilha da alimentação dos seus soldados.» É o partilhas! Quando muito, eles com ele, mas não ele com eles. Por acaso, sei que é doido por empadas de foie gras, trufadas, bem entendido. Quando esteve pela última vez de licença abarbatou duas caixas.

 

Ingrid   continuava   a   pensar  e   nem   sequer   ouviu   as

 

alusões ao seu Fuhrer bem-amado.

 

Estás doente, pequena?

 

Papá respondeu a rapariga, achas que Johannes me engana?

 

Vierbein?   Claro  que  não. E  ainda  que  fosse  verdade,  só  te enganaria   com esta  marafona  desta  guerra. E isso permitiste-lho tu expressamente.

 

Não fales dessa maneira, peço-te.

 

Minha   querida   pequena    disse   o   velho,   gravemente, se eu estivesse no teu lugar, saberia o que era preciso fazer para não ser enganada. Mas, como sou teu pai, digo-te:  «Espera até que tudo tenha acabado. Ainda és muito nova. Daqui até lá não te transformarás em solteirona.»

 

A jovem Natacha estava sentada à janela do seu quartinho. Tinha sobre os joelhos uma tábua e, em cima, uma folha de papel, onde ia desenhando grandes letras. Fazia-o com gravidade, concentrando-se, como uma criança que aprende a escrever.

 

Escrevia: *W’edelmann, 3º bateria, 4 canhões, 32 viaturas.* Depois apagou tudo isto, violentamente. E novamente escreveu: *Wedelmann.*

 

Na sua testa, habitualmente lisa, formara-se uma longa ruga, que se cavava cada vez mais. Inclinava a cabeça; os seus ombros largos eram redondos e iguais. Tinha a respiração opressa.

 

Depois escreveu à frente do nome de Wedelmann as seguintes palavras: altura, 1,78 m; peso, 70 quilos; olhos, azuis; cabelos, castanhos; nariz, direito; boca, delgada; dentadura, completa.»

 

Teve  um  riso breve  e foi  com  alguma  surpresa  que se ouviu  rir.  Depois,  subitamente, tornou-se  séria.  E  rapidamente riscou tudo o que escrevera até aí. Num gesto decidido, virou a folha de papel. E escreveu então: 1.” regimento de artilharia: comandante, coronel Luschke; 3 regimentos de infantaria: comandantes, Hanke, Nieckisch, V on Behringer; l regimento de blindados, armado de blindados IV: comandante, Schwaiger.»

 

Escreveu assim durante muito tempo, até que a folha ficou coberta de números e nomes. Depois olhou-a longamente.

 

De súbito, ergueu-se, abriu a porta do fogão e atirou o papel para o lume. E, como que fascinada, contemplou as chamas intensamente.

 

O capitão Witterer estava de pé, perto de um dos seus camaradas, capitão da polícia militar. __ Encontravam-se numa colina diante da etapa. Atrás deles, a distância conveniente, mantinham-se Krause e Kowalski.

 

Diante deles dois homens cavavam uma cova. Cavavam devagar, mas em movimentos regulares. Dois polícias militares, indolentemente encostados às espingardas, olhavam-nos.

 

Não   chegará   ainda?  perguntou   o   capitão   da polícia.

 

Um dos dois polícias aproximou-se dos homens que cavavam e examinou a cova. Depois fez um gesto afirmativo de cabeça e disse:

 

Já chega.

 

Porque esperamos então ?  perguntou o capitão. Um polícia  dirigiu-se  aos dois homens, tirou-lhes as pás e lançou-as para o lado. Depois carregou a espingarda. O outro polícia fez o mesmo.

 

O capitão Witterer aproximou-se da cova. Os homens tinham ajoelhado; viu-lhes as nucas inclinadas.

 

Os meus homens explicou o capitão da polícia militar apontam, sempre à nuca. Um tiro basta, geralmente.

 

Um tiro bastou. A nuca dos homens da cova rebentou. O cérebro jorrou de lado, e sangue misturado com soro saiu da ferida... Eles encolheram-se e tombaram no chão.

 

Cobrir de terra  ordenou o capitão.

 

O primeiro-cabo cuspiu para o chão e afastou-se.

 

O tenente Schulz sentou-se na cama, bocejou largamente, abriu os braços e distendeu o tórax. Depois examinou a mulher, que piscava os olhos, ensonada.

 

Gostava de saber  disse Schulzporque estás sempre tão fatigada.

 

Não é por tua causa  disse Lore, com uma expressão equívoca.

 

Bem sei  declarou Schulz severamente.

 

Já é alguma coisa  disse Lore.  Talvez até te censures por isso...

 

Lore  disse o homem, observando-a com tristeza , eu represento actualmente o comandante da praça. Tenho, portanto, funções de coronel.

 

Nesse caso, eu sou a... coronela.

 

Tu nem sequer sabes como devem ser comidos os espargos.

 

Mesmo assim, acho-os bons.

 

Leste a Enciclopédia,  tal como te ordenei? Sabes agora o que é uma «excelência», o que significa a palavra «conversar» e o que se entende por «etiqueta»? Tu não sabes nada.

 

Mas há uma coisa que eu sei: que tu és um telhudo.

 

És  a minha desgraça  disse Schulz. Levantou-se e ergueu-se diante dela, metido na sua longa camisa de dormir.

 

Não tens o formato necessário para seres mulher de um oficial, e menos ainda de um coronel. E, o que é mais grave ainda,  é que não fazes qualquer esforço... Não queres, é o que é.

 

Tu e a tua messe podem fazer-se empalhar.

 

Hás-de arrepender-te disto  um dia  disse Schulz, profundamente  vexado.  De  resto,  se bem  considerarmos as coisas, é já motivo para divórcio.

 

Dar-te-ei   motivos   para   divórcio   muito   diferentes declarou   ela,   malignamente.   E   não   há-de   tardar muito...

 

Venho pôr-me à sua disposição  disse Soêft a Lisa Ebner, fazendo-lhe olhos bonitos.

 

Lisa mirou, estupefacta, o estranho visitante matinal que, com uma sem-cerimónia inconcebível, penetrara no seu quarto e aí se instalara. Comparado com este, o comportamento do sargento Âsch era quase o de um cavalheiro.

 

Disponha de mim  disse Soeft num tom aliciante, ao mesmo tempo que os seus olhos lançavam centelhas.

 

Foi o capitão Witterer quem o mandou?

 

Claro. Ou  julga  que eu  viria  por  minha  própria conta?

 

Seria bem capaz disso.

 

Para  mim,  não.  Não   tenho   nenhuma   necessidade. Neste domínio tenho numerosas ofertas. À escolha não é muito difícil quando se conhecem as origens. E eu conheço-as. De resto, você não é o meu tipo.

 

Que quer de mim, afinal?

 

Satisfazer  os  seus  desejos.  De  que  precisa?   Sabonetes? Meias? Calçado forrado? Mercearias finas? Umas boas garrafas?

 

E que quer por isso?

 

O capitão Witterer lhe apresentará a factura  disse Soèft, sorrindo de maneira inconveniente.

 

Saia!  gritou Lisa Ebner.

 

Mais devagar! Mais devagar! exclamou Soeft para a acalmar. Está prestes a deixar perder uma riqueza.

 

Compreendo   agora   disse  ela,  indignada.  Foi o sargento Âsch quem o mandou aqui, para me ofender. Vocês são amigos. Disse-mo a criada da messe dos soldados. Vem da parte dele. É evidente.

 

Agora é que me vou embora  disse Soêft ligeiramente   perturbado.  Parece   desconhecer   completamente quem eu sou. Nunca tal coisa me tinha acontecido.

 

A sentinela da linha de fogo foi rendida. A que a substituiu era semelhante a ela: fazia os mesmos movimentos e tinha pensamentos idênticos.

 

«Talvez vá nevar», pensava. «Mas também pode ser que não neve. O principal, em todo o caso, é que não chova. Porque, se começa a chover, o Inverno desaparecerá e a guerra voltará. A guerra acordará e começará outra vez a caminhar.»

 

Por cima das depressões da planície a sentinela via na sua frente as colinas onde o inimigo se tinha enterrado.

 

E agora o soldado pensava: «Aqueles porcos! Aqueles pobres porcos! E tu, também, não és mais do que um pobre porco, Há muitos pobres porcos neste mundo!»

 

Uma vez por semana, em geral à quinta-feira, o subalterno Soeft visitava pessoalmente a linha de fogo. comportava-se então como um general, e muitos eram os que lhe testemunhavam tanto respeito como se de um general se tratasse. Nesses momentos poder-se-ia crer, até, que ele, o rei do abastecimento, recolhia as homenagens dos seus súbditos.

 

Na realidade, Soeft nada mais tinha em vista, no decurso dessas visitas, do que conhecer o grau de glutonaria e os gostos daqueles a quem devia abastecer.

 

Habituado a levar companhia, Soeft convidara, desta vez, Krause, o candidato ao posto de subalterno-adjunto, a fazer com ele essa visita de inspecção. Krause compreendeu logo que se tratava de uma distinção excepcional e apressou-se a dar a conhecer que estava ao dispor.

 

Diz-me apenas onde devo esperar-te  disse.

 

Podes   vir   ter   comigo  respondeu,   rapidamente, Soeft, que nunca deixava de explorar ao máximo todas as provas de solicitude que lhe eram dadas.

 

Krause apresentou-se cedo no «local de armazenagem e administração» do grupo de abastecimento da bateria; esperou pacientemente na «antecâmara», onde um dos criados russos de Soeft empilhava pães. Entretanto, no «gabinete principal», o rei do abastecimento fazia engraxar o seu segundo par de botas por uma das suas ajudantes russas de cozinha, enquanto discutia com o auxiliar do cozinheiro a preparação do lombo de vitela.

 

Um quarto de hora mais tarde Krause foi admitido a participar desta conversa. O aspirante subalterno-adjunto preconizou, seguindo uma subtil indicação de Soêft, a compra de um segundo fogão de grandes dimensões. Mas quando Soêft reclamou, além da cozinha rolante, que lhe fosse entregue uma viatura destinada a acompanhar aquela, Krause absteve-se de qualquer comentário sobre este ponto, incontestavelmente delicado.

 

Uma viatura de acompanhamento  disse Soeft ajudará a resolver, como se fosse uma brincadeira, todas as complicações resultantes de um novo avanço ou de uma retirada a direcção, aqui, é indiferente. Porque, se eu pretender manter no seu alto nível actual o abastecimento quente, precisarei de uma viatura deste género.

 

Talvez tenhas razão  disse Krause, prudentemente, supondo ter mostrado muita diplomacia.

 

Tenho razão  respondeu Soeft, com simplicidade. Destes assuntos percebo eu. Admitamos, por exemplo, que se devem servir escalopes. É claro que não se pode andar a passear com eles de um lado para o outro. Praticamente, para  fazer  entrega  de  vários  pratos   a  toda   a  bateria preciso de duas viaturas, pelo menos: uma viatura para frigir que fabrica, sem parar, escalopes em várias séries e uma viatura de transporte que  distribui os escalopes, igualmente por séries, pelos diversos grupos de serventes e escalões.

 

Parece-me evidente  declarou Krause.

 

Soêft possuía, no que respeitava aos seus domínios particulares, uma florescente imaginação, e não era recomendável, a não ser que se tivesse a intenção de fazer greve da fome, opor-se aos seus vastos projectos. É que, abstraindo dos indiscutíveis êxitos que Soeft alcançara, todos os homens tinham compreendido, num abrir e fechar de olhos, que miraculoso génio culinário possuíam nas suas fileiras. Seria, decerto, exagero pretender que o adoravam, mas não se podia contestar que fosse objecto duma certa veneração.

 

É preciso, portanto disse Soêft a Krause, que tu prepares lentamente o chefe para admitir que é necessário fazer qualquer coisa, se não quiser sofrer no decurso da guerra uma perda de peso importante.

 

Claro  respondeu Krause, apalpando o terreno. Farei o possível, porque, no fim de contas, não sou como Asch.

 

Soêft fez uma careta cheia de  suficiência. Esta careta fazia pensar logo no coronel Luschke, o que não era por acaso, porque fora dele que o «marechal de campo das cozinhas» a copiara. E, tal como Luschke não se esquivava  um certo respeito por um tipo como Soêft, assim também o rei do abastecimento não se negava a deixar que lhe ditassem, na altura própria, o preço das suas exigências.

 

Procedeu como se não tivesse ouvido o nome do primeiro-sargento.

 

Os dois subalternos dirigiram-se então à linha de fogo e passaram em revista os canhões, onde o alerta para o tabaco e para a paparoca já fora dado. Parecia que ninguém faltava, Soêft distribuiu primeiro alguns cigarros suplementares, tirados das suas reservas pessoais; e não esqueceu os fumadores de charuto. Depois escutou um relatório sobre algumas lacunas de alimentação. Mais uma vez havia falta de fósforos. Soêft prometeu remediar o caso dentro de vinte e quatro horas. Para os soldados era como se já tivessem no bolso os desejados fósforos.

 

Depois o consolador dos estômagos anunciou ao auditório que estava disposto a mandar servir, uma vez mais, um banquete especial de domingo  «à escolha do freguês». Extraiu da algibeira o caderno de notas e perguntou:

 

Então? Que desejam vocês?

 

Fígado!  gritou   a   primeira   equipa   de   serventes, que se apertava em volta dele, entre o paiol das munições e o buraco do vigia. Já sentiam água na boca, viam já o fígado, cheiravam-no, provavam-no, metiam-se dentro dele para melhor o saborearem.

 

Soêft olhava-os com uma expressão desolada. O seu nariz colossal erguia-se, enquanto os olhos estreitos pareciam amortecidos, como se acabasse de ser profundamente ofendido.

 

Que significa isso?  perguntou, em tom de censura.

 

Nós queríamos fígado!  exclamaram  os soldados, já inquietos pelo assado dominical.

 

Tu mesmo agora disseste...

 

Mas   que   espécie   de   fígado?   perguntou   Soeft, dolorido. De porco ou de vitela? Assado ou cozido? com que espécie de molho?

 

Uma vez mais os homens olharam com estupefacção o seu Soéft, como se este fosse algum animal da fábula, uma espécie de rinoceronte do abastecimento-, uma baleia branca da mercearia fina. Acenavam a cabeça, olhando uns para os outros, e piscavam o olho, confiantes, para este génio do reabastecimento. Mais ou menos, todos sabiam que se tratava de um traficante do «mercado negro», mas ninguém lhe tinha rancor por isso, porque traficava para eles ao mesmo tempo. «Viva Soeft! É graças a ele que também nós vivemos.»

 

Por fim os serventes da primeira peça uniram-se para reclamar fígado de vitela cozido com alhos, a fogo lento, o que Soeft anotou, tranquilamente, no seu canhenho.

 

A segunda equipa reclamou carne de porco salgada com couve fermentada; a terceira manifestou apetite por carneiro guisado com batatas. Quanto ao chefe da quarta equipa, esse, encostado à sua peça, olhou os camaradas, sorrindo, e, com ar atrevido, disse, fazendo um largo gesto:

 

Para nós... caviar!

 

Sem pestanejar, Soeft escreveu «caviar» e virou as costas aos soldados, absolutamente pasmados.

 

Daqui   a   pouco   disse  Krause  quando   deixaram para trás a linha de fogo esses tipos dar-se-ão ao prazer de te reclamar coisas impossíveis.

 

Para mim não há coisas impossíveis  respondeu Soêft. Neste sector também possuo espírito desportivo.

 

Mas tu, assim, estraga-los.

 

Meu caro amigo, deixa-me esse cuidado. O soldado tem o direito de comer carne de porco salgada, enquanto as minhas rolantes estiverem em condições de fabricar acepipes. De momento estamos aqui deitados de barriga e esperamos.  O quê?  Combater e morrer com peso insuficiente?

 

Mas é a guerra, Soêft.

 

Importa-me bem a guerra  disse Soeft, com simplicidade.  Neste momento o que  quero é comer bem. Viver e deixar viver os outros. E é por isso que faço tudo o que valer a pena para tornar a nossa vida tão agradável quanto possível. Quem não me embaraçar neste trabalho terá sempre a barriga cheia. Ou dar-se-á o caso de que tu vejas nisto algum obstáculo?

 

Claro que não  apressou-se Krause a aprovar.

 

Ganharias pouco com isso. Aquele que não tem a digestão normal, ou, pelo menos, a não deseja ter, é meu inimigo pessoal.

 

Dirigiram-se em seguida para os telegrafistas, donde foram postos em comunicação com os observadores; permaneceram bastante tempo na oficina provisória do armeiro; depois Soeft tomou notas dos desejos da equipa das munições. O sargento enfermeiro foi autorizado a escolher o grupo a que se juntaria no domingo para almoçar.

 

E que deseja a equipa de reconhecimento?

 

Talvez    pato    assado?perguntou    prudentemente Krause.

 

Porque não?

 

Se  não   vês   inconveniente,   vou   perguntar   ao   capitão o que ele quer.

 

De acordo. Mas depressa. Todas as encomendas devem estar em meu poder até amanhã ao meio-dia, o mais tardar. O camarada do matadouro não esperará mais tempo.

 

Até essa altura terás, com certeza, notícias. Devo informar-me também acerca do que o capitão quer beber?

 

Se fazes questão disse Soêft, com um gesto generoso. E, uma vez em que estarás em maré de lhe pedir informações,  podes  também  procurar saber,  como  quem não quer a coisa, o que há a respeito do recuo.

 

Do   recuo?    perguntou   Krause,   surpreendido. Que é que te leva a dizer isso? Estamos solidamente aferrados aqui, pelo menos enquanto não vier o grande degelo e a inevitável lama da Primavera.

 

Talvez sim disse Soêft e talvez não. Seja como for, ouvi uns rumores no Comando Supremo. O major, que me deve alguns favores, faz preparativos para transportar a sua tralha para a retaguarda.

 

É a primeira vez que ouço falar nisso. É provável que o próprio capitão Witterer de nada saiba.

 

Basta que eu  saiba. Mas o teu Witterer sabê-lo-á também na devida altura, e esperemos que com outros pormenores. Portanto, abre-me bem esses olhos e previne-me a tempo, logo que tiveres informações práticas acerca da nova frente. Porque, no fim de contas, não é só as minhas provisões que tenho de mudar, mas também o meu kolkhoz inteiro.

 

Krause acenou a cabeça e pôs-se a reflectir. Soêft parecia estar bem informado, como sempre. Um recuo? Não era possível. Nada é impossível; é assim durante a guerra. E um tipo como Soêft, graças às numerosas relações que tinha em toda a parte, estava mais bem informado do que um chefe de bateria.

 

O meu kolkhoz  disse Soêft  é um objecto de valor excepcional. Por nenhum preço o podemos abandonar. Se as coisas correrem mal, ofereço-o por troca, à divisão dos blindados. Eles acabaram de receber conservas de primeira qualidade.

 

O kolkhoz do subalterno estava situado a cerca de doze quilómetros à retaguarda e fora declarado no Comando Supremo como objecto de valor. Soêft arranjou letreiros originais que diziam «Verboten» l e colocara-os bem à vista. Depois pusera a herdade sob a vigilância de um subalterno e de três soldados cujos documentos eram mais ou menos decentes. O tenente Wedelmann fechara os olhos e atirara toda a responsabilidade para o Pai do Céu e para o «génio do abastecimento».

 

Nesta altura havia ainda no kolkhoz quatro vacas, nove porcos, dezassete carneiros, dezanove patos e vinte e oito galinhas, algumas das quais a pôr. Todo este inventário, vivo ou morto, servia a Soêft em parte para as suas trocas com outras unidades, em parte para suplementos de alimentação em proveito da bateria. Daí provinham também alguns dos pequenos presentes que como se sabe mantêm as amizades, o que para Soêft significava relações comerciais.

 

É preciso  insistiu ele  que, pouco a pouco, o capitão Witterer descubra a extensão da sua bateria.

 

Ele  sabe-o,  com  certeza,  mesmo  que  não  queira saber tudo... Compreendes?

 

Não é com isso que lhe poderei fornecer um assado especial de pato  disse Soêft, num tom significativo. O papel do subalterno-adjunto é ir avançando, docemente, estes pequenos pormenores. Mas se ele não é capaz de se sair bem...

 

Nós faremos bom trabalho juntos, Soêft... Podes ter confiança em mim.

 

Conto com isso. Se tu comprenderes de que lado sopra o vento, saberás dirigir a tua barca. Mas tem cuidado, não escolhas o lado mau.

 

Não te inquietes, Soeft.

 

Quem te diz que me inquieto? No entanto, se eu estivesse no teu lugar, esperaria que o vento desse em cheio na popa.

 

Estou  convencido  de que Witterer conseguirá irnpor-se.

 

Soêft riu durante bastante tempo e a sua testa cobriu-se de rugas. Depois disse:

 

Quem viver verá. Portanto: o kolkhoz e a viatura auxiliar para a cozinha. De momento é o que me interessa. Vê o que serás capaz de fazer. Se levar muito tempo, sempre poderei meter no circuito o sargento Asch.

 

Não é preciso  apressou-se Krause a responder. Vou ver a melhor maneira de tratar do caso. E depois acrescentou:  De resto, Asch não seria capaz de o fazer.

 

Queres que experimente?

 

Soêft! Era quase uma súplica. Temos de contar com oposições. Mas se eu dispuser do teu apoio, neste e noutros casos, conseguiremos impormo-nos. Simplesmente, é preciso que tu te decidas, se assim posso falar.

 

Decidir-me? Por quem?

 

Por Asch ou por mim.

 

Soêft irradiava, como um bebé triunfante. Mas os seus olhos lançavam relâmpagos maliciosos.

 

Meu amado cisne, eu sou comerciante. Tens de meter isto na cabeça. Estou sempre com quem me permitir melhores negócios.  Sendo  assim,  faz por  ajudar...  e o jogo está feito.

 

Bateu com o dedo no peito de Krause e afastou-se. Resolvera proceder imediatamente ao carregamento das provisões, que era preciso salvar a todo o custo.

 

Por seu lado, Krause decidiu que chegara o momento de consolidar rápida e definitivamente a sua situação. Não tinha desejo algum de criar bolor como o subalterno. Queria vir a ser oficial. Para que serviria a guerra, sem isso?

 

Aproximou-se tão correctamente quanto possível do capitão Witterer, que estava no seu alojamento, sentado perto do telefone e, aparentemente, muito melancólico.

 

Acabo de acompanhar o segundo-sargento Soêft a todos os escalões  disse, com o zelo familiar do aluno que sempre procurou conservar a simpatia do professor.

 

Está bem  respondeu Witterer com a mais perfeita indiferença.

 

Soeft organiza, para cada grupo de serventes, um almoço de domingo extra.

 

Perfeito.

 

O que ele faz é único. Mas quer fazer ainda mais. Tem ideias notáveis, mas para as realizar precisa, entre outras  coisas,  de  uma  viatura  especial  auxiliar para  a cozinha.

 

Uma quê?...

 

Uma viatura auxiliar para a cozinha rolante, meu capitão.

 

Isso é novo para mim. Nunca li nas instruções o que quer que fosse sobre uma viatura desse género. E eu conheço  o assunto. Elaborei  até algumas instruções importantes, como decerto tem conhecimento.

 

O sargento Soêft quer fazer uma experiência, de que espera bons resultados.

 

Na  minha bateria?  Meu  caro Krause,  tome  nota disto: para mim o que decide, quando há qualquer ponto obscuro, é sempre o que se encontra nas instruções. É o meu   princípio.   As  instruções  são   a   Bíblia   do  soldado.

 

É só por meio delas que se pode chegar à concentração de forças que devem esmagar qualquer adversário que não siga um plano metódico.

 

Krauze conservou-se calado, esforçando-se, ao mesmo tempo, por exprimir pelo silêncio a sua concordância. Quase o conseguiu. Os seus traços fisionómicos revelavam uma sólida dedicação. É certo que o primeiro ataque falhara. Era lamentável, mas não se deixava desanimar por este fracasso.

 

Witterer, sempre sob a impressão da conversa telefónica que acabara de ter com o coronel Luschke, perguntou, de súbito:

 

Quem é esse segundo-sargento Vierbein?

 

O ai-jesus do sargento Asch.

 

Ah! Ah!exclamou Witterer, sem notar que perguntara quem era Vierbein e não o que ele era. Fingiu igualmente não reparar em que a resposta de Krause era completamente   diferente   duma   informação   objectiva   e, sobretudo, completa.

 

Está em missão ou de licença?

 

Ninguém o sabe exactamente, decerto  respondeu Krause,  convencido de que fora extraordinariamente esperto. Oficialmente, e segundo os documentos oficiais, está em missão.

 

Quem foi que o designou?

 

O sargento Asch, provavelmente;  oficialmente, por consequência, o tenente Wedelmann.

 

Esse Asch começa a implicar-me com os nervos.

 

É fácil de compreender.

 

O capitão não esqueceu o caso particular para que tinham chamado a sua atenção. E a conversa que acabara de ter pelo telefone com o coronel não contribuíra para lhe facilitar uma visão de conjunto.

 

«Por que motivo», perguntava agora a si mesmo, «Luschke ligava tanta importância a que Vierbein fosse munido de papéis suficientes? Que é que devia ser considerado suficiente aos olhos do coronel Luschke? E para que deviam esses papéis bastar?»

 

Ligou para o sargento-ajudante Bock e teve por resposta que Vierbein recebera, unicamente, papéis de «missão», e não de licença. Quanto à missão especial de que esse subalterno fora encarregado por ordem do coronel, Bock apenas tinha informações incompletas. Dito isto, o sargento-ajudante berrou algumas palavras como «transporte de material» e «missão secreta», o que vivamente excitou a desconfiança do capitão.

 

Witterer tentou, então, alcançar Wedelmann pelo telefone. Impossível. Responderam-lhe que estava na aldeia, mas ninguém sabia exactamente em que local. As investigações revelaram que Wedelmann metera um pequeno embrulho debaixo do braço e partira, dizendo: «Dentro de duas ou três horas.» Que desorganização!

 

Após outras buscas absolutamente infrutíferas, Witterer viu-se forçado a interrogar o sargento Asch quanto ao género de missão que Vierbein recebera e quanto à sua extensão. Mas Asch desaparecera também. Responderam que se encontrava na etapa para «executar as ordens especiais que recebera».

 

Isto é verdadeiramente uma trapalhada!exclamou o capitão.

 

Não se pode esperar outra coisa do sargento Asch afirmou Krause.  Está, com certeza, uma vez mais, com as senhoras do Teatro do Exército. Ele tem todo o ar de gostar de lá estar. Porque, depois do que eu vi...

 

Que viu você?

 

Aproveitando a ocasião que finalmente lhe aparecia para dizer tudo o que tinha no coração acerca de Asch, Krause contou em pormenor, mas num estilo militar perfeito, o seu encontro com ele na messe dos soldados; falou da influência considerável que, na sua opinião, ele tentava exercer em Lisa Ebner.

 

Seja como for, meu capitão, a atitude dele era tão provocadora que perguntei a mim mesmo se não deveria queixar-me.

 

Escreva-me tudo isso em forma de participação. Talvez venha a ser útil mais tarde. E, agora, trate de encontrar o tenente. Ele substituir-me-á. Depois mobilize-me Kowalski. Vamos à cidade ver um espectáculo do Teatro do Exército.

 

A primeira representação pública dos Quatro Pinguins, na frente, realizou-se na antiga Casa da Cultura soviética da cidade.

 

A sala de conferências, de teatro e de cinema estava já cheia meia hora antes do começo. Um alegre zunzum e densas nuvens de fumo subiam para o tecto. Os polícias militares, a quem tinham alcunhado de «cães de guarda», estavam encarregados da arrumação dos espectadores e cumpriam a sua tarefa com energia. Um deles gritou:

 

É proibido fumar! Um soldado respondeu:

 

Quero ver isso por escrito.

 

Estados-maiores, oficinas, colunas de abastecimento, todos tinham enviado numerosas delegações. Havia mesmo alguns representantes dos destacamentos da frente de batalha. E desta vez os graduados estavam em maioria.

 

As duas primeiras filas eram reservadas aos oficiais de estado-maior. Esperava-se até que viessem três autênticos generais com os seus mais íntimos colaboradores. Uma banda militar pôs-se a tocar músicas ligeiras e quando o bombo fazia «pum, pum, pum» alguns soldados batiam os pés a compasso e regozijavam-se com o barulho que faziam.

 

Um dos «cães de guarda» gritou outra vez:

 

É proibido fumar!

 

E um outro instalou um letreiro no qual se podia ler: É proibido fumar. O Comandante local.

 

Imediatamente, um soldado exclamou:

 

É ao comandante local que é proibido fumar!

 

O capitão Witterer fizera-se conduzir até diante da entrada lateral. Dispensou generosamente o segundo-sargento Krause e o primeiro-cabo Kowalski «enquanto durasse a representação». Virou-lhes as costas e pôs-se à procura do vestiário.

 

Vamos, entremos  disse Krause.

 

Eu estou dispensado  respondeu Kowalski.  Consequentemente, faço o que quero.

 

Krause afastou-se, resmungando. Mostrou, à entrada, o cartão que o capitão lhe dera. Disposto a deixar-se distrair, sentou-se na penúltima fila, aguardando os acontecimentos.

 

Kowalski olhou o relógio e verificou que ainda dispunha de algum tempo. Dirigiu-se, pois, ao vestiário pela entrada de que Witterer se servira. Procurou nas portas o nome de Charlotte, bateu e entrou a rir. Charlotte estava sentada diante de um espelho, em vestido de noite.

 

Tem   muita   imaginação?   perguntou   o   cabo. Se tem, imagine que lhe trago um ramo de flores.

 

As  minhas  flores  preferidas  são   os  cravos  respondeu Charlotte, mirando-o friamente.

 

Tal qual!  exclamou Kowalski, estendendo as mãos vazias.  Três dúzias!

 

É realmente generoso! Um perfeito cavalheiro!

 

Posso vir buscá-la depois do espectáculo? Que diria duma ceia íntima?

 

Também sabe o que é uma ceia?

 

Ora, ora! É qualquer coisa que se coma.

 

Sem bater, Egon, o prestidigitador, abriu a porta e meteu a cabeça no estreito camarim.

 

Tudo pronto? perguntou, apressado. Começamos daqui a cinco minutos.

 

Já estou pronta há muito tempo  disse Charlotte.

 

Isso vê-se  declarou Kowalski, convencido de que dizia uma galantaria.

 

Sempre    estas    visitas    nos    camarins,    Charlotte! exclamou Egon, contrariado. No entanto, nós tínhamos decidido...

 

Não sou bastante forte para atirar lá para fora esta espécie de guarda-vestidos.

 

O ilusionista mediu com o olhar Kowalski, erguido diante de si. Pareceu primeiro querer provocá-lo, depois pensou que era inútil expor a sua preciosa pessoa.

 

Você também não é bastante forte  disse o primeiro-cabo amavelmente.  Quer experimentar?

 

Isto parece um pombal  disse Egon, furioso, encaminhando-se para a porta.  Metade do corpo de oficiais de todo o exército parece ter-se reunido no camarim de Viola. E acaba de ser expulso um do camarim de Lisa. com perdas e danos. Contudo, era isto que nós queríamos evitar a todo o custo.

 

Charlotte encolheu os ombros. Kowalski fez o gesto de arregaçar as mangas. Egon abandonou o camarote, abanando a cabeça, e bateu com a porta atrás de si.

 

Há concorrência, hem? É evidente que isto lhe caiu mal. Mas, bem sabe, o prestígio do uniforme... Se os civis descobrem, não saberemos o que fazer dos voluntários.

 

Se não se retira depressa  disse Charlotte , já não encontrará lugar.

 

Não se inquiete. Para mim há sempre lugares reservados.

 

Nesse caso, Kowalski, se não sai agora, sou eu que me vou embora.

 

Não quereria jamais ter isso na consciência  disse, pateticamente,   Kowalski,   fazendo   uma   reverência   quase medieval e retirando-se.

 

Dirigiu-se para a entrada, arranjou um bilhete e penetrou na sala. Começou por examinar a situação. Depois encaminhou-se para a primeira fila de cadeiras e sentou-se bem ao centro.

 

Um «cão de caça» precipitou-se para ele e declarou:

 

Esses lugares estão reservados.

 

Isso é espantoso  disse Kowalski, inclinando a cabeça em sinal de aprovação.

 

Estão reservados para o coronel.

 

E depois?perguntou Kowalski, recostando-se para trás.

 

Será você surdo, por acaso?

 

Absolutamente nada. Está  tudo em ordem. Venho agora do general. Eu é que lhe devo guardar o lugar.

 

Kowalski cruzou as pernas e dirigiu um sorriso amigável e protector ao polícia. Este acolheu a familiaridade com ar desolado e afastou-se.

 

O cabo cruzou os braços. Sabia com quem lidava. Tratava-se duma brincadeira velha como Herodes, mas sempre eficaz. Ninguém queria expor-se por prazer a ter aborrecimentos com um verdadeiro general.

 

Kowalski olhou a cortina, depois o relógio, e verificou que a hora marcada para o começo estava já gravemente ultrapassada. Abanou a cabeça para exprimir o seu descontentamento. Depois examinou a sala.

 

Havia ainda alguns lugares vagos exactamente atrás dele. Um pouco mais longe estavam «autolagartas», ou oficiais de estado-maior, e, entre eles, não poucos graduados dos serviços sanitários e da administração. Mais longe, apertados uns contra os outros, subalternos e soldados rasos. E ao fundo, encostado à parede, o sargento Asch.

 

O primeiro-cabo chamou com um gesto o polícia encarregado de vigiar as duas primeiras filas. Estupefacto, este hesitou primeiro e acabou por obedecer.

 

Está a ver aquele sargento lá ao fundo?perguntou, designando Asch.

 

Sim  disse o «cão de guarda».

 

Traga-o aqui  disse Kowalski com o ar mais natural. E, como o polícia se preparava para protestar energicamente, declarou:  Bem vê, é o filho do general.

 

Ah,   bem!respondeu   o   polícia  militar,   que  se dirigiu logo para Asch e o trouxe para a primeira fila.

 

Senta-te, meu palerma  disse Kowalski, sorrindo. Põe-te à vontade. Aqui somos filhos de generais.

 

És   completamente   doido    disse   Asch,   sentando-se. Mas não quero saber. O mais que nos podem fazer é tirar-nos daqui para fora. E disso já eu tenho experiência: acabo mesmo agora de fazer um ensaio.

 

Ah, eras tu? Eu devia ter calculado. Foi Witterer quem te fez sair do camarim da miúda dos olhos grandes como pires.

 

Como sabes tu isso também?

 

Tenho   as   minhas   relações  respondeu   Kowalski, muito  misterioso.   Depois  olhou   outra  vez   o   relógio  e abanou a cabeça mais tempo ainda do que antes.

 

Chamou novamente, com um gesto ainda mais breve, o polícia. Este aproximou-se logo.

 

Diga ao oficial de serviço que mande começar  ordenou. Já é tarde. O general só virá daqui por algum tempo.

 

Lutando com uma sensação de desconfiança escondida, mas que constantemente renascia nele, o polícia desapareceu. Não podia supor que se tentasse sequer troçar assim dele. Isto era impossível, sobretudo no exército.

 

Dirigiu-se, portanto, de má vontade, ao .oficial de serviço e comunicou-lhe que «o filho do general prevenia que seu pai só viria mais tarde e que supunha que se podia começar já».

 

O filho do general pode ir-se...  disse o oficial, dando contudo ordem de começar.

 

A sala escureceu lentamente e os soldados gritaram: «Ah!» Alguns assobiaram. Um descarnado oficial de estado-maior virou-se, descontente.

 

Isto começa!  disse Asch, dando uma cotovelada a Kowalski.

 

Tu realmente reparas em tudo  respondeu o outro. A  cortina   abriu-se,   os  soldados  gritaram   outra   vez:

 

«Ah!», e Charlotte, em vestido de noite, apareceu, docemente iluminada pelos projectores. Sorriu para a multidão e deixou-se admirar com desenvoltura.

 

É inacreditável!exclamou um soldado, cheio de sincero entusiasmo.

 

Alguns riram ruidosamente. E o mesmo oficial descarnado que se voltara já com um gesto de descontentamento levantou-se e, do alto da sua estatura, examinou severamente o grupo jovial de soldados.

 

Hu!  fez um deles, bem abrigado no meio da multidão.

 

Hu!  repetiram vários homens.

 

Visivelmente, mesmo na obscuridade, o oficial corou. Preparava-se para falar, mas, antes que o conseguisse, Charlotte começou.

 

Meus caros amigos  disse ela, e a sua voz quente, maternal, um pouco trocista, impôs-se sem dificuldade, vamos   hoje   divertir-nos   um   pouco,   tentar   esquecer   a guerra.

 

Já está  esquecida  murmurou Kowalski,  mas tão alto que Charlotte o ouviu no palco.

 

Ela piscou os olhos para a sala e reconheceu o primeiro-cabo, que lhe fazia um gesto amigável. Sorriu também e continuou:

 

Todos nós vos trazemos as recordações da terra. Estamos aqui para substituir todas as mulheres que se sentiriam felizes de estar convosco. As vossas mães e as vossas irmãs.

 

E as nossas namoradas!gritou alguém com entusiasmo.

 

É também por elas que estamos aqui. Mas apenas simbolicamente as substituímos.

 

Que pena!exclamaram vários soldados. Um deles suspirou com tanta força que toda a sala o ouviu. O oficial magro deu um salto.

 

Charlotte anunciou então Lisa Ebner. Enquanto ela falava, o capitão Witterer entrou na sala na ponta dos pés, mas fazendo ranger as botas, e sentou-se numa extremidade da segunda fila, numa cadeira para ele especialmente reservada.

 

O chefe acaba de chegar disse Kowalski. Que achas? Devo mandar dar-lhe um lugar a meu lado?

 

Ele está bem onde está  respondeu Asch.

 

Lisa Ebner trazia um vestido negro, liso mas ligeiramente franzido nas ancas. Os olhos pareciam ainda maiores do que habitualmente. As suas mãos, longas e finas, afagavam nervosamente a guitarra ainda antes de começar a tocar.

 

A pequena está com medo  disse Kowalski, em tom de conhecedor. Devia  antes ter bebido um copo da rija.

 

Talvez se tenha esquecido. É preciso ser-se um cavalo para suportar a vista dum tipo como tu.

 

Ela cantou primeiro uma canção popular onde se falava de amor e de murchas flores campestres...

 

Esta é de atirar uma pessoa a terra disse Kowalski. Flores campestres? Serei eu alguma vaca?

 

Exactamente respondeu Âsch. Aos meus olhos sempre foste qualquer coisa como um vitelo.

 

Lisa cantou outra canção, não menos sentimental do que a primeira. Witterer, de pé, aplaudia conscienciosamente, o que levou Asch a deixar bruscamente de o fazer.

 

Charlotte anunciou Viola, a bailarina. Em termos breves e precisos: «É proibido tocar-lhe», disse, e um surdo rumor de expectativa encheu a sala. Um soldado lançou um assobio agudo. O oficial descarnado estremeceu de novo. Um polícia militar precipitou-se como um abutre, mas quando quis prender o culpado esbarrou com uma oposição indignada.

 

Charlotte sorria, ironicamente. Esperava estas manifestações. E, antes de se retirar, olhou Kowalski com uma expressão sarcástica. Ele endireitou-se imediatamente, muito polido e também surpreendido com este reflexo.

 

Viola fez a sua entrada e pôs-se em posição. A luz dos projectores diminuiu. Trazia um trajo de aparência húngara, balcânica em todo o caso, e botas vermelhas.

 

Não se vê grande coisa disse Kowalski,  ligeiramente desiludido.  Mas ainda se verá com certeza. Ela tem outras danças.

 

Viola saltava freneticamente no palco, agitava os braços e as pernas, rolava os olhos. Os seus cabelos turbilhonavam. Quando chegou ao fim os espectadores romperam em aplausos. Ela atirou beijos para a sala. Ao fundo foi preciso reter à força um dos espectadores.

 

Depois dela foi a vez de Egon, o ilusionista, que se exibiu durante meia hora. Depois Charlotte recitou alguns poemas, Lisa cantou alegres canções e Viola dançou, cada vez mais sumariamente vestida. O êxito, mesmo nas primeiras filas, tornou-se semelhante a um furacão.

 

Asch arrancou-se ao tumulto e, passando pelo palco, dirigiu-se aos camarins. Foi encontrar Lisa Ebner diante do espelho. Ela estava a pentear-se e deitou-lhe um olhar.

 

Então?   perguntou,    com   curiosidade.   Agradei-lhe?

 

Absolutamente     respondeu    Herbert,    sincero. Absolutamente. Mas agora tem de voltar para casa.

 

Tenho de voltar? Mas nós estamos convidadas.

 

Já suspeitava. Mas eu não quero isso. Seria pena.

 

Fala a sério?

 

Venha. Eu acompanho-a.

 

Se me acompanha, eu vou  disse Lisa, dirigindo-lhe um sorriso.

 

Vestiu o casaco, pareceu perder um pouco o equilíbrio, tropeçou e agarrou-se a ele.

 

Cuidado!  disse Asch.  Deixe-se estar onde está.

 

Você é forte.

 

Não mais do que isto. Mas, em todo o caso, bastante forte para não fraquejar a seu lado.

 

Verdade?

 

Vamos!

 

Mal tinham deixado a Casa da Cultura, fez o capitão Witterer a sua aparição nos camarins. Procurou Lisa Ebner, mas não a encontrou. Esbarrou com Kowalski, que estava furioso porque o polícia tivera a ideia de lhe fazer algumas perguntas embaraçosas.

 

Viu a menina Lisa Ebner?perguntou Witterer.

 

Kowalski, com pressa de entrar no camarim de Charlotte, muito rodeada, olhou-o sem compreender e, sempre furioso, respondeu:

 

Porque me pergunta isso a mim? Dirija-se antes ao sargento Asch.

 

Ah! exclamou o capitão. Acha que?...

 

Vierbein seguia com um olhar claramente desaprovador os movimentos fatigados dos irmãos siameses.

 

Estamos tramados  disse Bartsch.    Éo fim de tudo. Entalámos o rabo de um cão na porta dos lavabos. E era o cão da noiva do coronel. E foi ele quem descobriu. Compreendes?

 

Não completamente.

 

É bem  simples,  contudo.  A noiva  choramingou,  o coronel estava furioso e Schulz pôs-se a berrar o melhor que  pode.   Jurou   descobrir  os  culpados.   E  descobriu-os.

 

E é por isso que nós estamos em apuros.

 

A vocês é bem feito.

 

Se não nos tivéssemos enganado no cachorro, Schulz teria rido até mais não. Ele gosta destas paródias. E, nesse caso, não teríamos ido ao Café Asch...

 

E se Schulz continua como ontem à noite acrescentou o outro  vão passar-se coisas terríveis.

 

Esperemos que ele não vos expeça para a frente disse Vierbein.

 

É vergonhoso disse o capitão Witterer que eu seja obrigado a dar semelhantes ordens. Não posso, contudo, deixar de o fazer.

 

Sim,  meu  capitão.  Não  pode  respondeu  o  sargento-ajudante Bock.

 

Se isto continua, vou ser obrigado a regulamentar as horas em que os homens poderão ir às latrinas.

 

Lá  chegaremos  disse Bock com  uma ironia  surpreendente nele e de que, portanto, Witterer não suspeitou. Empurrou o papel que o capitão devia assinar, como se se tratasse de um cheque sem cobertura.

 

Witterer segurou o lápis de cópia e assinou.

 

Pronto  disse.  Esperemos que isto agora ande. Tratava-se da ordem 18/42, que prescrevia, uma vez

 

mais, aos soldados da 3.ª bateria, que «trouxessem sempre consigo a máscara de gás» ou, pelo menos, quando dormiam, iam à retrete ou se lavavam, a tivessem sempre «perto de si e pronta a servir».

 

Bock sabia como esta ordem seria acolhida pelos soldados da bateria. Mas ele lhes explicaria que fora Witterer quem imaginara isto. E levando-o ao conhecimento dos soldados não deixaria de rir, pelo menos em presença dos graduados. Era uma coisa que tinha o direito de fazer. É que ordens deste género eram pura chicana. Nenhum soldado normal, nem sequer um Vierbein, andava por toda a parte com a máscara de gás.

 

Mas Witterer, nesse dia, estava cheio duma extraordinária energia. Estava evidentemente decidido a transformar o seu mau humor da véspera em espírito militar havia sem dúvida qualquer coisa que não marchara bem com as «frangas» do Teatro do Exército.

 

Depois  disto vai preparar-me uma ordem  de equipamento de combate para a bateria.

 

Sim, meu capitão  disse o sargento-ajudante, arrastando as palavras.

 

Quero   que,   de   futuro,   todo   o   soldado   da   minha bateria   esteja   pronto  a   entrar  em   combate   a   qualquer momento.  Isto  significa  que  deve  trazer  sempre  consigo uma  arma,  seja  a  espingarda,  seja  a  pistola,  mas  esta última  só pode  ser permitida aos  subalternos, e,   destes, apenas aos que tenham direito à dragona. com isto, munições, pelo menos dois carregadores cheios. Além disso: capacete  de aço, pacote individual de penso, medalha de identificação   e   caderneta  militar,   esta  última   com   indicação do grupo sanguíneo, que todos deverão conhecer de cor...   Ameace-os   com   revistas   inesperadas.   E,   ainda,   a baioneta.

 

Sim, meu capitão  disse o sargento-ajudante, arrastando ainda mais as palavras.

 

E depois vigie-me por que as baionetas não sejam afiadas   ou  transformadas  em  serras.   Se  apanho   alguém da minha bateria a cortar o pão ou a rachar madeira com a baioneta, meto-o na prisão. Para mim, sargento-ajudante, tudo deve estar de conformidade com as instruções. Exactamente de acordo com as instruções. Só assim poderemos triunfar.

 

Sim, meu capitão.

 

Conhece   a   instrução   de   transporte   17-C   para   o carregamento   dos   cavalos,   sua   alimentação   quando   em transportes   prolongados,   quer   dizer,   de   mais   de   doze horas?

 

Provavelmente, meu capitão  disse o sargento-ajudante sem hesitar. É claro que a não conhecia. Para quê, aliás?  A  sua  bateria   era  inteiramente   motorizada.   Mas quando não sabia qualquer coisa respondia  com  regularidade:  «provavelmente», o que significava:  «não faço a menor ideia.»

 

Aí tem um modelo de instrução disse Witterer. Devia decorá-la. Há nela reflexão, meu caro, até à última vírgula. Poderá dar-se conta do que significa, na realidade, uma instrução. Trabalho do cérebro, meu amigo, trabalho do cérebro. E sabe quem elaborou essa instrução? Fui eu.

 

Sim, meu capitão  disse Bock, arremedando o mais descarado entusiasmo.

 

Pronto!exclamou o capitão, encerrando o assunto. Olhou em redor, mas nada achou de momento em que pudesse ocupar-se.

 

O meu carro está aí?  perguntou.

 

Em frente da porta.

 

Em frente da porta ? Porque não veio esse animal avisar-me?

 

O meu capitão apenas deu ordem para o vir esperar.

 

E prevenir-me. É automático, sargento-ajudante. Pelo menos,  para mim. Faça-o compreender ao seu bando de vadios. Se preciso for, por meio de uma «ordem à bateria».

 

Bock permitiu-se não responder. O risco não era grande, pois Witerer preparava-se para partir, absolutamente de acordo com a sua «ordem». Muniu-se da pistola, da máscara de gás, do porta-mapas e do capacete de aço. Depois apalpou a bainha do casaco, onde, de conformidade com as instruções, estava cosido um pacote individual de penso. Em seguida pôs-se a caminho em passo ágil, como sempre.

 

Lá fora o subalterno Krause anunciou que o carro estava pronto. Também ele estava completamente arreado. Kowalski, sentado ao volante, piscou o olho ao contemplar estas duas máquinas de guerra. Comparado com eles, tinha o ar de um civil pacífico.

 

Onde está a sua máscara de gás? perguntou Witterer.

 

Lá atrás, dentro do carro  respondeu Kowalski com vivacidade, se bem que  soubesse que não havia máscara de gás no automóvel.

 

Porquê não a traz consigo?

 

Porque é demasiado embaraçosa. Incomoda. Ou conduzo esta carroça, ou ponho uma grossa máscara de gás em cima da barriga e sento-me ao fundo  de duas, uma.

 

Se bem compreendi a ordem dada à bateria  interveio Krause, que não podia deixar de tentar pôr-se de bem com Kowalski , basta que a  máscara de gás esteja ao alcance da mão, isto é, perto.

 

. Bem, sigamos  disse Witterer.  E mostre-me do que é capaz. Às peças.

 

Não estava ainda sentado e já Kowalski partira. O capitão foi atirado para trás e teve, durante um segundo, a sensação esmagadora de que o seu coração ameaçava explodir. Depois o carro deu um salto e lançou-se para a frente, fazendo jorrar atrás de si a lama, como se fosse um jacto de água. Kowalski parecia ter decidido não evitar nenhuma poça. Lançava-se através da neve derretida e cobria de lama Krause, sentado atrás.

 

Quando Kowalski fez menção de se lançar a descoberto em pleno campo Witterer pôs-se a berrar:

 

Perdeu completamente a cabeça?

 

Porquê, eu?

 

Abrigue-se! Vamos, abrigue-se! Não o alistaram para servir de alvo.

 

Kowalski dirigiu-se para uma árvore, pisou o travão de pé, depois puxou o travão de mão e parou precisamente a dois centímetros da árvore.

 

Sai toda a gente! gritou. Término! Witterer perguntava a si mesmo se devia enfurecer-se ou rir. «Rir seria decerto mais viril», pensava. «Que outra reacção se podia ter em relação a um bruto como este Kowalski?» Mas os seus pensamentos estavam muito longe de ser cor-de-rosa, o que nada tinha de surpreendente depois do total falhanço da noite anterior. Achou, portanto, preferível adoptar uma atitude de esfinge. Extirpou-se do automóvel, tomando a precaução de manter-se abrigado. Krause, semelhante ao reflexo num espelho, imitava cada um dos seus movimentos.

 

Vá abrigar-se  ordenou o capitão a Kowalski. Este fez um gesto de assentimento e fez recuar o carro com um terrível ruído do motor. Balançando-se através do terreno, desapareceu atrás de uma casa. Aí parou o motor.

 

Witterer, com Krause nos calcanhares, corria agora para a segunda peça. Sentindo a secreta alegria dos postos de alerta, saltavam como duas lebres pelo terreno. Chegado à bateria, Witterer pulou para uma trincheira. Krause saltou logo atrás e quase caiu em cima dele.

 

Guerreiro de rosto decidido a tudo, Witterer agarrou no binóculo e, debruçado na borda da trincheira, com as precauções do estilo, pôs-se a observar atentamente o inimigo. «Era agora», pensava, «que entrava finalmente na guerra»; gozava este minuto sublime e comparava-se mentalmente a um cirurgião que brande o escalpelo pela primeira vez e sabe perfeitamente que executará bem mesmo a mais difícil operação. Decidiu que relataria esta situação numa carta ou mesmo em várias.

 

Estavam, portanto, ali, as linhas inimigas. Trincheiras torcidas, semelhantes ás do seu lado. Alguns buracos isolados na cadeia de colinas que se erguiam docemente diante dele. Numerosos carreiros sulcavam o terreno. E tudo parecia dormir.

 

De súbito, Witterer exclamou:

 

Mas não é possível! Olhe-me para aquilo, Krause! Krause agarrou com prazer o binóculo que Witterer lhe estendia.

 

Então? Não vê nada?

 

Nada de extraordinário, meu capitão. Pelo menos, nada que me surpreenda.

 

Veja bem, vamos!  A três mil metros. O grupo de árvores. Cinco linhas para lá do bosque. Já está a ver?

 

Estou  a ver,  meu  capitão.

 

E então?... O que é que se desloca da direita para a esquerda?

 

Um homem. Provavelmente um homem do  rancho. Dirige-se para as trincheiras da colina da esquerda.

 

E esse animal anda assim a passear diante de nós? É uma verdadeira provocação!

 

Realmente  disse  Krause,   que  começava   a   compreender e perguntava a si mesmo se devia travar ou deixar correr.  Realmente, meu capitão. É sem dúvida uma provocação. Mas de há umas semanas para cá fazem isto todos os dias ao meio-dia. E acrescentou, não sabendo ainda claramente que  atitude devia  adoptar:  Do  nosso  lado faz-se a mesma coisa.

 

com uma certa brutalidade, Witterer tirou o binóculo a Krause. Olhou outra vez com atenção. A vista do copeiro» inimigo passeando tranquilamente fê-lo ranger os dentes. O inimigo! A provocá-lo desta maneira em pleno campo! O tipo passeava com toda a tranquilidade diante da boca das peças da sua bateria  a bateria Witterer! Era de mais!

 

E, sem levantar os olhos do binóculo, comandou:

 

Alerta para o fogo!

 

Krause teve um sobressalto. Foi para ele um segundo difícil. Depois, todo entregue ao seu papel de agente de transmissão, gritou à sentinela:

 

Alerta para o fogo!

 

O quê? respondeu o soldado. Que é que se passa?

 

Alerta para o fogo!

 

A sentinela encolheu os ombros. «Porque não? com certeza o chefe quer fazer um exercício de alerta. É uma chátice, claro, mas não há nada a fazer.» Pôs a funcionar a pequena sereia de som rouco e começou, tal como estava determinado em casos destes, a destapar as munições.

 

Witterer não se preocupava com estes preparativos, que, decerto, lhe pareciam naturais. Continuava a vigiar o inimigo e, friamente, sorria.

 

A segunda equipa de serventes apareceu pouco depois. É que a visita de Witterer não passara despercebida. O ruído do carro de Kowalski arrancara-os brutalmente à sesta. Depois a aparição de Kowalski em pessoa tirara-os definitivamente do sono.

 

Preparem-se   para   surpresas,   rapazes    anunciara Kowalski.  O novo está com comichões na pele.

 

Os serventes ocuparam os seus lugares e prepararam a peça. O chefe de peça, o segundo-sargento Rauch, dirigiu-se para Witterer:

 

Às ordens, meu capitão.

 

Vê o objectivo ?  perguntou Witterer, após ter dado alguns pormenores.

 

Objectivo à vista.

 

Então, vamos a isso. Dê as primeiras ordens.

 

A sério ?  perguntou o chefe de peça, sem ver os gestos que Krause fazia para o advertir.

 

Terá perdido a cabeça? gritou Witterer com uma indignação que lhe pareceu absolutamente militar.  Desde quando é a guerra uma brincadeira?

 

O subalterno cerrou os lábios e dirigiu-se, correndo, para a sua equipa. A explicação do alvo que ele deu pareceu a Witterer correcta, mas demasiado complicada.

 

Com mais ardor! gritou. Um pouco mais de azeite na lamparina!

 

Alça a três mil metros!  disse o segundo-sargento, tranquilamente; depois tirou do canhão da manga a sua tábua de tiro e começou a folheá-la.

 

Objectivo à vista!anunciou o artilheiro.

 

O chefe de peça indicou a alça. Depois, ao mesmo tempo que os serventes, olhou Witterer, que, da trincheira, seguia rigorosamente todos os movimentos do inimigo. A febre do caçador empolgara-o.

 

Isso vem?  perguntou.

 

Fogo!gritou o chefe de peça.

 

Uma detonação seca, violenta, rasgou o silêncio do meio-dia. O tubo, empurrado para trás, cuspiu a cápsula vazia. Depois, lentamente, deslizou, assobiando, e retomou a sua posição de repouso. O obus rompeu a atmosfera.

 

Sempre sorrindo friamente, Witterer permanecia no mesmo sítio com a boca ligeiramente aberta. A mão que segurava o binóculo estava ligeiramente crispada. Recuara o pé esquerdo, que se movia na lama.

 

Ao longe, sobre a colina, na região onde se encontrava o homem que transportava a sopa, a uns cinquenta metros deste, ergueu-se uma nuvem azul-negra. O soldado inimigo, profundamente surpreendido  Witterer notou-o pelo binóculo , ficou ao princípio petrificado. Olhou em redor, como louco. Depois pôs-se a correr nervosamente na direcção oposta à da explosão.

 

Curto de mais! exclamou Witterer. Outra vez!

 

Mais quatro  ordenou o chefe de peça, resignado. E quando ouviu:  «Rectificado», comandou:  Fogo!

 

Desta vez o tiro ultrapassou o alvo. O copeiro» inimigo mudou imediatamente de direcção e pôs-se a saltar como um  canguru. Tropeçou,  caiu  ao  comprido,  levantou-se e continuou a fugir com o seu fardo através da neve prófunda.

 

Já tem as cuecas cheias! exclamou Witterer, radiante.  Apostemos!

 

Com certeza, meu capitão  disse Krause, perto dele. Continuem. É preciso suprimi-lo, muito simplesmente. Para formar o enquadramento o chefe de peça só tinha de ordenar:  «Mais curto»,  e teria sido quase impossível falhar o alvo. Mas aquele tipo, lá ao longe, com o seu caldeirão às costas, correndo como doido, já sem fôlego, fezlhe pena. E, depois, toda esta história lhe parecia demasiado estúpida. Dava-lhe vontade de vomitar.

 

Ordenou: «Outra vez! Fogo!» Nem sequer olhou para ver o resultado. Sabia que o alvo não fora atingido. Era para ele o principal.

 

Falhado!   exclamou  Witterer  com  decepção,  batendo os pés.  Grande porcaria!

 

Mais?perguntou o chefe de peça.

 

Até que tenha destruído o seu objectivo. Até que esse palhaço esteja reduzido a paus de fósforos.

 

Mas antes que o segundo-sargento Rauch tivesse podido dar as suas novas ordens, o telefone começou a tocar furiosamente. Rauch inclinou-se, encantado com esta interrupção, e segurou o auscultador. Respondeu e, franzindo os lábios, anunciou:

 

É para o meu capitão. O comandante da infantaria.

 

Que é que esse quer?  perguntou Witterer, irritado.

 

De acordo com a ordem recebida, o segundo-sargento informou-se do que desejava o comandante. Depois de ter recebido a resposta, cerrou ainda mais os lábios para não rebentar a rir. Em seguida disse em alta e bem perceptível voz:

 

O comandante da infantaria manda perguntar quem é o idiota que dispara tiro sde canhão no sector. Proíbe energicamente que o façam.

 

bitterer, que olhava com atenção os serventes da peça, ficou furioso e berrou:

 

Diga a esse indivíduo que se vá lixar!

 

«O capitão manda-lhe dizer que se vá lixar», repetiu o chefe de peça, tão alto e tão lentamente como antes. Depois pousou o auscultador com cuidado e, por assim dizer, com amor.

 

Witterer lutou heroicamente consigo mesmo. Depois, com uma brutalidade inútil, ordenou:

 

Cessar fogo!

 

Num salto exageradamente ágil e ousado pulou para fora da trincheira e gritou aos serventes da peça:

 

Não  se  pode   dizer  que  tenha   sido   deslumbrante! Mas nós tornaremos a exercitar-nos!  Um  só  tiro  deverá bastar para varrer o alvo do tapete.

 

Depois, vollando-se para Krause, disse, num tom bastante alto, para que todos o ouvissem:

 

E agora vamos ajustar as contas com o camaradinha da infantaria.

 

Mas não foi para a infantaria que se dirigiu. Decidiu, pelo contrário, ter uma conversa preventiva com o coronel Luschke. E, para ali preparar conscienciosamente o seu espírito, fez-se conduzir por Kowalski à retaguarda.

 

Enfim  disse, enquanto se deixava sacudir pelo seu motorista, hoje sempre se fez alguma coisa.

 

Pode-se  dizer  respondeu,  rindo,  o  primeiro-cabo, que estava sempre ao corrente de tudo.

 

O processo que experimentámos hoje  disse Witterer,  que parecia verdadeiramente  orgulhoso  do  que fizera será denominado o «salto do cavaleiro».

 

Há-de   falar-se   disso   ainda   durante   muito   tempo disse o outro com convicção.  Pode ter a certeza.

 

Como é que uma pessoa se arranja aqui para se fazer amimar pelas  «frangas»  da  terra?perguntou  Witterer, a quem a sua primeira aventura da frente parecia ter excitado bastante.

 

Informe-se com o  tenente Wedelmann  disse Kowalski.  hipocritamente. Talvez ele esteja em condições de o informar sobre esse ponto.

 

O eco do arranhão feito por Witterer nas linhas inimigas, que pusera em perigo o equilíbrio cuidadosamente mantido entre as frentes, foi registado pelos ouvidos do coronel Luschke. Este anotou no seu caderno de notas, em pequenos caracteres elegantes, todos os rumores que até si chegaram. De momento nada mais fez.

 

O primeiro a arrancar Luschke à leitura de um romance russo para o conduzir à mesa dos mapas foi o próprio capitão. Permitia-se, disse, «por sua própria iniciativa, e sem a isso ser convidado», vir dar’conhecimento. Tratava-se de um processo, acrescentou gracejando virilmente, a que se poderia chamar «o salto do cavaleiro». Deixou adivinhar que supunha ter um certo direito a orgulhar-se do seu acto.

 

Luschke deixou-se cair na sua cadeira de bétula.

 

«Um momento», disse, pousando o auscultador. Depois tirou do bolso um gigantesco lenço azul e branco, desdobrou-o com cuidado e assoou-se com força. Várias vezes. Entretanto, puxava para si o bloco, com a mão esquerda.

 

Passou-se um certo tempo até que Luschke tivesse dobrado o lenço e o tivesse feito regressar ao, bolso, e disposto diante de si o bloco e o lápis. Tudo isto não tinha outro fim senão dar-lhe tempo para reflectir. Depois agarrou outra vez no auscultador e seguidamente perguntou:

 

«A que horas? Qual o objectivo? Resultado? Quantidade de munições utilizadas?»

 

«Apenas três tiros», respondeu Witterer, que, pouco a pouco, começava a desconfiar de que a questão era mais complicada do que imaginara. «Não mais que três.»

 

«Capitão Witterer», disse Luschke, com uma mansidão exasperante, «fiz-lhe algumas perguntas que julgo claras. Não espero explicações, mas sim respostas claras. Quer dar-se, se faz favor, ao trabalho de me responder?»

 

Witterer esforçou-se, pois, por dar satisfação a Luschke com brevidade e de maneira completa, com a concisão que convém a um chefe. Estava persuadido de que o conseguiria... «no fim de contas, fizera bastantes experiências com todas as espécies de chefes.»

 

Julgou poder respirar quando ouviu Luschke exclamar: «Ah! Ah!» Mas respirou durante pouco tempo, porque logo a seguir o coronel declarou, numa voz perigosamente doce:

 

«Ainda ouvirá falar de mim.»

 

Luschke conhecia a temerosa acção da incerteza. Nada fez, portanto, para acelerar, duma maneira ou doutra, a questão. Escreveu três ou quatro palavras no bloco, sublinhou uma, depois regressou à sua cadeira. Pegou no romance e esforçou-se por continuar a leitura.

 

Pouco depois, o que ele já esperava, o comandante da infantaria chamou-o ao telefone. Desta vez não era já o chefe de batalhão, mas sim o coronel que protestava furiosamente.

 

«Surpreende-me», disse Luschke. «Supus que fosse pôr imediatamente a divisão em movimento.»

 

«Vamos arrumar este assunto entre nós», disse o da infantaria, «se é que ainda é possível.»

 

«Que complicações espera mais meu caro camarada?»

 

O coronel da infantaria não ficou surpreendido por se ouvir assim chamar: «meu caro camarada.» Luschke habituara-o a isso, Respondeu:

 

«Depois da porcaria que a sua 3.ª bateria se permitiu fazer, o Russo mandou-nos granadas. Três dos meus soldados foram feridos, um deles gravemente.»

 

«Que é que espera de mim?», perguntou Luschke numa voz rouca. «Tenho de apresentar-lhe as minhas condolências?»

 

«Dê uns açoites a esse triplo idiota, se é possível. Ele devia estar bêbado.»

 

«Bêbado?», repetiu Luschke, pensativo. «Talvez tenha razão. Mas, se o estava, não era de álcool.»

 

«Não percebo, coronel Luschke.»

 

«Se é essa a única coisa que não percebe nesta guerra, meu caro camarada, felicito-o.»

 

«Não me posso dar ao luxo de o perceber», disse o coronel da infantaria. «A única coisa que actualmente me interessa é saber se procederá de maneira a que estas porcarias não tornem a acontecer. Não se pode tolerar, seja qual for o pretexto, que uma unidade qualquer empreenda acções individuais de que não se falou antes. Isto, coronel Luschke, parece-me muito mais importante que considerações de ordem geral acerca da guerra.

 

«Meu caro camarada», disse Luschke, com uma amabilidade untuosa que tocava as raias da ironia sangrenta, «este caso pode ser examinado por dois lados. Um deles é o seguinte: um dos meus oficiais descobre um objectivo inimigo e manda fazer fogo contra ele. E é tudo. São coisas que acontecem durante a guerra.»

 

«Defende esse homem, coronel?»

 

«Dou uma certa importância, meu caro camarada, a ter no meu sector toda a liberdade de acção. Até mesmo no caso presente.»

 

A pálpebra direita de Luschke piscou ligeiramente quando ele notou que o comandante da infantaria tinha interrompido brutalmente a comunicação. Houve um estalido violento na linha e, depois, tudo ficou silencioso. Sem outro indício de emoção, o coronel pousou o auscultador.

 

Depois puxou para si um dossier e folheou um certo número de papéis. Por fim encontrou o que procurava: um relatório do subalterno Vierbein, que acabara de receber por intermédio do seu amigo, o comandante do aeroporto da etapa.

 

Luschke releu com atenção tudo o que Vierbein escrevera. Sublinhou cuidadosamente duas frases. Depois pediu ligação com o tenente Wedelmann. Este, que esperava a chamada, respondeu imediatamente.

 

«Como vai isso, meu caro?», perguntou Luschke, com uma amabilidade inquietadora.

 

Wedelmann supunha saber onde o coronel queria chegar. Respondeu:

 

«Esta manhã, quando o incidente se produziu, meu coronel, eu estava...»

 

«Mas de que está a falar, Wedelmann? Qual incidente? Não há nenhum incidente que me interesse. Perguntei-lhe simplesmente como passa.»

 

«Bem, meu coronel, muito obrigado», respondeu Wedelmann, estupefacto.

 

«Então? Era isso que eu queria saber. Quando quiser saber outra coisa, permitir-me-ei perguntar.»

 

«Sim, meu coronel.»

 

«Tenho notícias do seu Vierbein, meu caro Wedelmann.»

 

«Boas notícias?»

 

«Adivinhe.»

 

«Aconteceu qualquer coisa, meu coronel? Custa-me a imaginá-lo. Mas, se é esse o caso, não posso acreditar que seja por culpa de Vierbein!

 

«Talvez a culpa seja sua, Wedelmann...»

 

Este conservou-se em silêncio. O seu pensamento, desorientado, procurava a falta, a falta que ele pudera ter cometido, mas, à primeira vista, nada encontrava. Era sempre difícil conservar a lucidez na presença de Luschke.

 

«Apenas deu a Vierbein ordens de missão. E agora aí o tem pegado à secção de reserva. Uma licença em regra, junta a uma ordem especial de transporte, teria sido mais simples.»

 

«Deverá enviar-se-lhe uma licença, meu coronel?»

 

«Isso depende», disse Luschke, arrastando as palavras. «Depende de Vierbein ter entregue os papéis ou os trazer consigo no bolso. Se é este o caso, a asneira é fácil de reparar. Mas se não for, isso só servirá para complicar as coisas.»

 

«Quais são as suas ordens, meu coronel?»

 

«As minhas ordens? Ordeno-lhe que não faça tolices.»

 

«Sim, meu coronel... Mas, quanto ao resto...»

 

«Isso não me interessa. Demomento não me interessa.

 

Por outro lado, lembro-lhe uma coisa: aos meus olhos é você o responsável pela 3.ª bateria. Você só, enquanto o não tiver substituído.»

 

Wedelmann teria desejado protestar mansamente. Teria querido falar das circunstâncias desfavoráveis, da pouca precisão das atribuições, dos regulamentos de duplo sentido. Mas não o conseguiu. Luschke achou bem interromper a conversa.

 

Wedelmann estava furioso contra o coronel, a quem, por outro lado, tanto venerava. Cheio de vagos pensamentos que se contradiziam uns aos outros, deixou o telefone. O sargento Asch, que, entretanto, penetrara no quarto, perguntou :

 

Que  queria  o coronel?  Felicitou-nos pelo  acto  de bravura da nossa bateria?

 

Nem uma palavra a esse respeito. Vierbein está bloqueado no depósito de reserva.

 

Por causa da ordem de missão?

 

Não mostre outra vez esse ar de triunfo, Asch. Por acaso  acontece  que  tem  razão  uma  vez  mais.  Assim  é, realmente. Fizemos uma tolice. Mas pode-se repará-la. Mandamos-lhe imediatamente o certificado de licença por avião. Vierbein poderá tê-lo em seu poder amanhã.

 

E julga que o capitão Witterer assinará?

 

A data da passagem dos papéis será naturalmente a mesma da ordem de missão. E nessa altura ainda eu comandava aqui.

 

Muito bem  disse Asch.  Vou mandar tratar do caso.

 

Vá.

 

E que é que se passa com Witterer?

 

Que quer que se passe com ele? Deixe-me em paz com isso, peço-lhe.  Tenho  a cabeça  cheia  doutras preocupações.

 

Meu tenente  disse Asch, com obstinação , o capitão Witterer mandou muito simplesmente disparar tiros de canhão ao acaso, a ver o que dava.

 

Não disparou ao acaso, visou um objectivo.

 

Fez correr um homem da sopa. A tiros de canhão!

 

Claro! Não disparou com pedras... Porque se excita você com este assunto?

 

Porque é uma verdadeira  pulhice,  meu  tenente.  É quase um assassinato.

 

Wedelmann endireitou-se bruscamente:

 

Recuso-me a ouvir o que acabou de dizer.

 

Parece-me  que  nestes  últimos  tempos  se  recusa   a ouvir muitas coisas  disse Asch, corajosamente.

 

Que quer dizer com isso?  perguntou Wedelmann, levantando-se lentamente. Que  significa  isso, Asch?  O caso é que eu não sou o chefe do capitão Witterer.

 

Mas também não é um títere que ele maneje. Weddelmann, tenso, vermelho, deu um passo. Asch não

 

recuou. Ficaram um momento diante um do outro a observar-se. Quase lhes parecia que se viam pela primeira vez. De súbito, Wedelmann largou a  rir. Empurrou Asch, que não reagiu, e disse:

 

Vamos, vejamos  as coisas como elas  são. Witterer é que é o chefe. Devemos ter isto em consideração. Não podemos dar-lhe conselhos, é a ele que compete tomar as decisões. E nós prevenimo-lo.

 

Mas isso não chega.

 

Que quer que se faça então? Quer impedi-lo de fazer asneiras pela força?

 

Se não houver outro meio...

 

Meu   caro  Asch  disse  Wedelmann,   abanando   a cabeça com inquietação , que sabemos nós do que realmente se passou? É possível que tudo esteja em perfeita ordem. Talvez ele devesse agir como o fez e não doutra maneira, tendo em atenção a situação. E,  depois, é possível também, dada a completa ignorância das coisas em que se encontra, que ele, de boa fé, tenha apreciado mal a situação. Não deve até pôr-se de parte a ideia de que tenha recebido uma ordem, instruções que nós ignoremos completamente. É preciso respeitar as decisões dos chefes, meu amigo. Aonde iríamos nós parar se fizéssemos a guerra à nossa maneira, passando por cima de Witterer?

 

Com certeza, não à vala comum.

 

É cabeçudo como um burro. O capitão Witterer é, para si, como um pano vermelho para o touro. Que tem contra ele? Isso é quase doentio.

 

Meu   tenente   respondeu  Asch  tranquilamente , no fundo,  o senhor pensa exactamente  como  eu. O que acontece, porém, é que não consegue desembaraçar-se facilmente dos seus princípios. Ou antes, não os quer discutir... pelo menos com os seus subordinados. Mas, na verdade, o senhor não respeita um indivíduo pela simples razão de que ele é, por acaso, seu superior.

 

Deixemos isso, Asch  respondeu Wedelmann com secura.  Esta conversa não leva a coisa nenhuma.

 

Vejamos, meu tenente, não andemos sempre em volta do poço. Sabe, tão bem como eu, que sujeito é esse Witterer. É um tipo que merece que lhe dêem um tiro pelas costas. Ora veja. O coronel faz a guerra pelo seu país, mas já não sabe onde está exactamente esse país. O senhor, meu tenente, acredita no Fiihrer e na Grande Alemanha e, ao mesmo tempo, quer que a guerra se mantenha decente. Mas esse Witterer é de calibre totalmente diferente. Faz a guerra pela guerra. Quer que isto rebente. Quer abater pessoas e receber condecorações. E eu entendo que não devo sacrificar-me por semelhante indivíduo. E como eu, meu tenente, noventa por cento da nossa bateria.

 

Acabe, Asch  disse Wedelmann numa voz brusca. Acabe  imediatamente,  ou  o farei   comparecer  perante   o conselho de guerra.

 

Depois do capitão Witterer  respondeu Asch, que não queria largar a questão  Ou, então, ao mesmo tempo que ele!

 

Wedelmann observava Asch com surpresa, desorientado. Tinha a impressão de haver empalidecido. As suas mãos, assim lhe parecia, tremiam terrivelmente. Deu meia volta, agarrou no bivaque e no cinturão e saiu à pressa. Depois começou a errar sem destino. De súbito, com grande surpresa sua, reparou que se dirigia para a casa onde se alojava Natacha.

 

A rapariga vira-o aproximar-se, sem dúvida. Deitara um xale pelos ombros e mantinha-se diante da porta. Sorria-lhe, ligeiramente embaraçada, mas com incontestável delicadeza.

 

Como é amável em ter vindo ver-me  disse.

 

Dá-me licença?

 

Decerto.  Estendeu-lhe, ainda tímida, a sua mãozinha, sólida e roliça. Wedelmann apertou-lha com força. Depois ela afastou-se para o deixar passar e convidou-o, com um gesto quase gracioso, a precedê-la.

 

Em casa sentou-se, como sempre, em frente dele. Examinava-o. Sentia-lhe o embaraço, a inquietação, e isso tornava-a generosa.

 

Está   aborrecido ?  perguntou.

 

Vê-se?

 

Nós, as mulheres, vemo-lo.

 

É  uma  mulher?   Julgava  que,  na  minha  presença, era exclusivamente uma russa soviética.

 

Devo sê-lo?

 

Não!  respondeu Wedelmann, quase violentamente. Faz-me bem saber que se preocupa com os meus aborrecimentos. Tenho-os. E mesmo mais do que isso. O serviço trá-los fatalmente. Se dependesse apenas de mim, ficaria aqui sentado, perto de si, o tempo todo. Mas não depende de mim.

 

Vai ser forçado  a  partir?  perguntou  ela,  cautelosamente.

 

Que é que a leva a pensar isso? Wedelmann achava esta pergunta estranha. Que queria ela dizer? Partir!  Ia haver um recuo bem cedo, mas ela não o podia prever. Repetiu a interrogação:

 

Porque me pergunta isso?

 

Não ficarão aqui sempre  disse ela, evitando responder directamente.  É sempre assim na guerra. Ninguém pode evitá-lo.

 

Wedelmann observava-a com atenção. Longos segundos se escoaram. Verificou que ela se tornava nervosa. Achou que não devia perguntar porquê.

 

Teria pena se eu partisse, Natacha ?

 

Sim  respondeu ela com simplicidade. A sua  voz parecia  sincera.

 

Tentou segurar-lhe a mão. Ela não a retirou. Sentia o calor que emanava dela. Apertou-lhe a mão. Ela consentiu.

 

Porque terá de haver guerra?  perguntou ela.

 

Sem ela nunca nos teríamos encontrado.

 

Diz isso dessa maneira... respondeu ela, bruscamente, retirando a mão.  É uma desculpa fácil, e má, ainda por cima. Podíamos ter-nos encontrado numa manifestação   desportiva,   durante   uma   viagem   de   férias,   no teatro, num museu. Será sempre necessária a guerra para que dois seres de países diferentes se encontrem?

 

Fui eu quem inventou a guerra, Natacha?

 

Não. Isso não. Mas é o senhor quem a faz.

 

No dia seguinte àquele em que foram roubados uma carroça e um cavalo a secção de reserva recebeu uma carta de ameaças e agradecimentos do respectivo cocheiro.

 

O desafortunado cocheiro lamentava-se, mais uma vez, em termos amargos, do roubo da sua propriedade, reclamava o castigo do culpado, ameaçava com represálias do chefe do grupo local do Partido, que era parente, e até muito chegado, de sua mulher. No entanto...

 

«No entanto», continuava, «não podia deixar de lembrar elogiosamente, neste momento, a intervenção benevolente de um tal sargento Bartsch. Este, não só lhe testemunhara afabilidade, como ainda o ajudara. Se alguém fortificara em si a fé, seriamente abalada, na generosidade da Wehrmacht alemã, fora o subalterno Bartsch e ninguém mais. Contudo...»

 

«Contudo», lia-se mais adiante nesta carta, em cuja redacção certamente colaborara o chefe do grupo, «não se podia esperar que esquecesse esta questão. Contava, pois, com uma severa punição do culpado. Senão...»

 

Senão? perguntou o tenente Schulz, furioso, depois de ter lido. Senão, o quê?

 

O oficial ordenança do comandante, quase em sentido, sugeriu que «talvez então o parente, esse chefe de grupo, entrasse em acção.»

 

Mesmo que o chefe do distrito em pessoa se apresente  gritou Schulz, pronto para o combate , não recuaremos!  É claro que nem por sombras pensava o que dizia.

 

Claro, claro! disse o oficial ordenança. Mas também ele sabia que Schulz  dissera  coisa  diferente do  que realmente pensava. »E acrescentou: Mesmo assim, é preciso ter cuidado com esse chefe de grupo do Partido...

 

Um momento... disse Schulz com ar dominador. Pediu ligação para a sua bateria. Como já esperava, o sargento-ajudante não  sabia nada,  absolutamente nada.

 

«Quem é que não chega a brigadas nos tempos de hoje?», berrou Schulz ao telefone. «Você quer com certeza mudar de ares!»

 

Satisfeito, apesar da resposta negativa que acabara de ouvir, Schulz bateu uma palmada na mesa e disse:

 

Se não fosse essa carta, que prova claramente que foi justamente Bartsch quem ajudou o cocheiro, eu diria que foram Bartsch e Kuhnau os autores da partida. Está mesmo a calhar-lhes.

 

Absolutamente. Mas é de facto a Bartsch que cabe o mérito de nos ter poupado a ’um escândalo.

 

As nossas relações com as sumidades locais do Partido são excelentes, parece-me  disse Schulz, após reflexão.

 

Exactamente. Excelentes. E o coronel, que o senhor presentemente substitui, deseja, decerto, que as coisas assim continuem.

 

Muito bem. Há, portanto, apenas duas soluções: ou conseguimos achar os dois culpados e os causticamos segundo todas as regras da arte, ou regularizamos nós próprios a questão e nos desembaraçamos com os meios de bordo.

 

Muito justo.

 

Chame,  então,  o subalterno Bartsch  ao  meu  gabinete.

 

O oficial ordenança apressou-se a comunicar as ordens dadas por Schulz. Não teve de esperar muito tempo para anunciar que tudo estava executado. Bartsch espreitava este momento. E, como era natural, levou Ruhnau consigo.

 

Schulz não pareceu surpreendido. Era evidente que contava com isto.

 

Examinou-os demoradamente. Depois deitou um olhar à carta do cocheiro e observou outra vez os dois farsantes.        Estão bem servidos  disse por fim.

       Sim, meu  tenente  responderam  eles.  Podia  dizer  tudo o que quisesse: dar-lhe-iam sempre razão, de tal maneira o conheciam  

 Vou mandar pendurá-los pelos pés.

 

Sim, meu tenente.

 

Mas quero perdoar-lhes ainda uma vez.

 

Sim, meu tenente.

 

Arranjaram bem isto com o cocheiro.

 

Desta vez enganaram-se completamente. Julgaram que ele sabia tudo e até que se divertia com o que se passara. Sorriram e, às escondidas, tocaram-se com os cotovelos.

 

Porque está a rir, Ruhnau?  Não esteve metido no caso. Tanto quanto sei, foi Bartsch, sozinho, quem acalmou o cocheiro.

 

Ah, bom!

 

Que significa isso?  perguntou Schulz, subitamente desconfiado.

 

Nada, meu tenente respondeu Bartsch rapidamente.

 

Espero, meus farsantes, que não tenham feito outra vez...

 

-Oh, não, não, meu tenente! Claro que não...

 

Nunca, meu tenente. Nós...

 

Schulz tinha demasiada experiência para não suspeitar de qualquer coisa. Pôs-se a pensar.

 

Temos um alibi, meu tenente. Estivemos quase toda a tarde a jogar as cartas com o segundo-sargento Vierbein.

 

Como? Vierbein joga as cartas?

 

Não é grande jogador, meu tenente. Perdeu quase as cuecas. Na frente não consegue gastar o soldo. Fomos forçados a ajudá-lo. Por pura filantropia, já se deixa ver.

 

Bem.  Quero  acreditar  que  seja  verdade.  Talvez  eu jogue também algumas partidas com ele. Mas a única coisa que me interessa, Bartsch, é o seguinte: pode arrumar esta questão com o cocheiro? Definitivamente?

 

com toda a facilidade, meu tenente. Vamos arrumar isso, meu tenente, uma vez que assim o quer,  e  arrumá-lo-emos mesmo com requintes. Vou falar com o cocheiro e pagar-lhe-ei tudo o que ele quiser. Por fim ficará persuadido de que fez um Bom negócio.

 

Muito bem disse Schulz, procurando não mostrar quanto se sentia aliviado.  Dentro de três horas quero um relatório.  Assunto  arrumado.   Definitivamente.  Destroçar!

 

Eles desapareceram e Schulz disse ao oficial ordenança:

 

Aqui está como deve governar a loja. Estes dois são uns pulhas, é certo, mas, no fundo, são impagáveis. Que temos mais ainda?

 

O sogro do coronel.

 

É  verdade!    E,   como  obedecendo a   uma  súbita inspiração, Schulz exclamou: Vierbein!

 

O segundo-sargento Vierbein? perguntou o oficial ordenança, um tanto céptico.  Acha realmente que nos podemos arriscar?

 

Eu posso. Mande vir Vierbein. Vou mostrar-lhe como se procede.

 

Enquanto procuravam Vierbein, Schulz dava ao camarada um resumo do seu talento de improvisador.

 

Creia-me  dizia.  A minha experiência basta para todos os casos. O sogro do coronel cairá de surpresa em surpresa e, no fim de contas, acreditará firmemente que a filha fez um casamento espantoso e que o genro é um coronel como só se encontram nas revistas militares científicas. E, para alcançar este resultado, Vierbein é exactamente o que é necessário. A minha escola!

 

O subalterno Vierbein, acompanhado até à porta pelos dois irmãos siameses, que apelavam ardentemente para o seu espírito de camaradagem, foi conduzido imediatamente ao gabinete do coronel, onde se encontrava Schulz.

 

Olá,  seu batoteiro!  exclamou  o  tenente  no  seu tom mais cordial.  Chegue-se cá. Sente-se. Mas sente-se, Vierbein! É uma ordem. Ali. Como vai isso?

 

Meu tenente, a minha missão...

 

Ah, é verdade, antes que me esqueça! Não se deixe enrolar  por  esses  dois   camaradinhas.   Quero   dizer,   nas cartas...

 

Não,   meu   tenente  respondeu  Vierbein  encantado por não ter de mentir.

 

bom! E agora vamos aos assuntos sérios. Como sabe, o nosso coronel casa-se por estes dias...

 

Sim, meu tenente.

 

Bem. Para isso, Vierbein, preciso de si.

 

Para o  casamento?

 

Schulz pensou que se tratava dum gracejo. Largou a rir:

 

Convinha-lhe, hem?  Então, sempre o’ mesmo, Vierbein? com certeza, não ia querer, logo com a mulher do coronel...

 

Vierbein corou até às orelhas, o que encheu Schulz de satisfação. Soltou outra gargalhada. Gostava deste género de brincadeiras, quando se tratava dos outros...

 

Sejamos sérios. O sogro do coronel também cá estará. Chega esta  noite e  safa-se  depois  de  amanhã,  quando  a cerimónia  acabar. E  agora  dê muita  atenção,  meu  rapazinho. O sogro é almirante...  Almirante  de quê não sei. Mas é almirante mesmo. Um da outra guerra. Percebeu?

 

Ainda não percebi bem, meu tenente.

 

É você que irá ocupar-se dele. Ora aqui está.

 

Quer, meu tenente, que lhe sirva de ordenança?

 

Vierbein  respondeu Schulz com um tom de severidade na voz , parece que esqueceu parte do que eu pude ensinar-lhe. Como pode falar de ordenança? Quanto maior for a patente maior deve ser também a patente da ordenança.  Para  servir  de  ordenança  teria   de  ser  primeiro-sargento.   Está  a  perceber?   Compreende  agora  a  honra que lhe dou?

 

Sim,  meu tenente  disse Vierbein,  desconcertado. Uma vez mais se deixava esmagar pelos métodos charlatanescos de Schulz, que conseguia sempre fazer ’aceitar como factos indiscutíveis as suas bizarras concepções das coisas. Mas a minha missão, meu  tenente...

 

Vai   andando.  Que   imagina   você,  por   acaso?   Enquanto você passa as tardes a jogar as cartas, nós trabalhamos a todo o vapor para reabastecer a frente da batalha em homens e material. E para que não seja forçado a jogar todo o tempo as cartas, e perder assim o seu dinheiro, eu esmero-me por lhe arranjar algumas horas agradáveis

    Sentado na borda da cadeira, com uma expressão resignada, Vierbein dizia consigo mesmo que era lógico que o fizesse trabalhar, mas não compreendia bem porque devia servir de tampão a um almirante.

 

Ou julgará  perguntou Schulz, à espreita  que o vamos tratar como a uma ave rara por causa da sua Cruz?

 

De modo algum, meu tenente.

 

Satisfeito com esta resposta, Schulz fez sinal ao oficial ordenança, que se mantinha modestamente ao fundo. Este desdobrou uma folha de papel já preparada e anunciou:

 

«O almirante Jacoby...»

 

Como se chama ele? interrompeu Schulz num tom de superioridade. Jacoby? E o nome próprio? Nathan, se calhar? Podia muito bem ter-se feito rebaptizar.  Riu, contente de si mesmo, e o tenente ordenança fez-se eco discretamente.

 

«O almirante Jacoby chega às dezassete horas e trinta e oito minutos. O coronel e a sua futura esposa vão recebbê-lo à estação. A ordenança, idem. O almirante fica hospedado no Hotel da Alemanha. Preparar-lhe um automóvel de serviço.»

 

Etc.,   etc.!   exclamou   Schulz.  Dê   o   papel   a Vierbein.  É  ele  quem  tem  agora  a   responsabilidade  de fazer marchar as coisas.

 

Vierbein recebeu o bilhete, introduziu-o no canhão da manga do casaco e fez menção de se retirar. Mas Schulz deteve-o:

 

Ainda uma palavra, Vierbein. Como fala você a um almirante?

 

Digo «almirante», meu tenente.

 

É falso! exclamou Schulz, encantado com a estupefacção dos presentes.  Perfeitamente falso. Os oficiais do antigo exército imperial, a partir da patente de general e de almirante, eram sempre tratados por «Excelência». Repita, Vierbein.

 

Excelência, meu tenente.

 

Bem... São coisas que é preciso saber. E nós vamos exercitar-nos um pouco, para que você não faça asneiras.

 

Schulz, de pé, empertigou-se, semelhante a uma estátua, e disse:

 

Imagine  que  eu   sou   Sua  Excelência   o   Almirante. É capaz de imaginar?

 

Sim, meu tenente  respondeu Vierbein, estupefacto.

 

Bem.   Aqui    continuou,   apontando   o   tapete   é o   cais.   Você   está   além,   esperando   Sua   Excelência.   Ponha-se ali.

 

Vierbein, resignado, colocou-se no lugar que lhe foi indicado.

 

Aqui é o comboio, o rápido em que chega Sua Excelência.   E,  agora,  muita  atenção.  Vierbein.  O  comboio entra  na estação,  o  almirante aparece à janela, você reconhece-o e...

 

Permita-me uma observação  interrompeu o oficial ordenança.  É provável  que o almirante não venha em grande uniforme, mas simplesmente à paisana...

 

E  depois?   perguntou  Schulz  em  tom  grosseiro, profundamente vexado  pelo  reparo.  Fardado  ou à paisana,   é   almirante   à   mesma.   E   é   como   tal   que   se   lhe deve   falar.   Parece-me   claro.   Ou   julgará  que   alguém  se atreveria a dizer-me «Sr. Schulz» mesmo que eu estivesse em fato de banho?

 

O oficial, vexado, calou-se. Compreendeu que não era aconselhável esclarecer que apenas quisera falar da possibilidade de reconhecer a personagem.

 

Schulz estava de novo cheio de si mesmo:

 

Vamos,  Vierbein.  Vo’ce está  na  estação,  o  comboio está aqui, o almirante está à janela... Que faz você?

 

Dirijo-me ao almirante...

 

Mas, meu pobre rapaz... Aí, Vierbein, é o cais. Eu estou aqui... o almirante sou eu, à janela. Vamos.

 

Faço o meu relatório.

 

Pois faça.

 

Vierbein, de pé no meio do tapete, olhou Schulz com resignação e pôs-se a berrar:

 

Segundo-sargento   Vierbein,   destacado   como   ordenança junto de-Vossa Excelência!

 

Continue.

 

O  subalterno Vierbein  roga a Vossa Excelência se digne entregar-lhe as bagagens.

 

Muito bem, meu velho. Assim é que é. Berrar sempre o «Excelência». Fará impressão ao velhote, eu bem sei. Vamos mostrar à marinha o que somos capazes de fazer.

 

Dito isto, despediu complacentemente Vierbein, não sem antes ter afirmado, uma vez mais, ao oficial ordenança:

 

Aqui  está,  meu  caro  camarada,  a  minha escola. É difícil  encontrar qualquer   coisa   como  este   tipo.  Quando penso no que ele era antigamente...

 

Vierbein  saiu,  ainda  um  pouco  ofuscado.  Os  irmãos siameses esperavam-no à porta.

 

Então,  que se passou ?  perguntou  Bartsch, muitoexcitado.

 

Espero  que tudo  se tenha arranjado!  disse Ruhnau, inquieto.

 

Vierbein, preocupado com o seu encontro com o almirante, teve a audácia de os evitar. Eles seguiram-no.

 

Se  este  animal  nos  denunciou  disse Bartsch  em tom ameaçador , pregamos-lhe uma partida que, comparada com ela, as suas aventuras da frente não serão mais do que brincadeiras de criança.

 

O  melhor será  dar a  entender  a  Schulz  que  este Vierbein anda a ver se o...

 

Lore, estou a ouvir os teus sapatinhos.

 

E se dá mau resultado?

 

”É preciso que não dê mau resultado.

 

Contudo...

 

Pois bem!   Partiremos  os três  para  a  frente. Mas, entretanto, teremos rido.

 

Eh!   Eh!   Camaradinha!   Receio  bem  que  se  acabe lá a paródia.

 

A granja que o sargento Asch descobrira era bastante espaçosa e absolutamente própria para um espectáculo do Teatro do Exército.

 

Havia apenas um inconveniente, e esse era, na verdade, muito sério: é que Soeft depositara ali uma parte dos seus abastecimentos. Era também ali que estavam reunidas as suas viaturas. E um terreno ocupado por Soeft devia, em princípio, ser considerado como se estivesse perigosamente minado.

 

Asch calculou que, sem dúvida, o subalterno se recusaria expressamente a evacuar a granja e que era, por consequência, inútil falar-lhe previamente no caso. Decidiu-se a empregar os processos fortes.

 

Convidou o capitão Witterer a inspeccionar o local escolhido para o próximo espectáculo do Teatro do Exército. Ao mesmo tempo, foram convidados a tomar parte na visita o chefe dos mecânicos, o «guarda-traças», o chefe das munições e o sargento-ajudante.

 

Ao princípio da tarde todos se encontravam em frente do escritório dos furriéis, que, desde há algum tempo, se situavam num dos locais atribuídos aos serviços de Soeft, de tal modo que o chefe dos furriéis adquirira, de um dia para o outro, o aspecto de um homem bem alimentado.

 

Soeft, que não fora convidado, o que lhe parecia inquietante, olhava pela sua janela e rebentava de curiosidade.

 

Finalmente, no minuto exacto, Witterer apareceu, seguido, como pela sua própria sombra, do subalterno Krause, e a visita começou.

 

Ora   mostre-me   lá   o   que   vale   a   sua   imaginação, Asch  disse Witterer em tom céptico.

 

Por este lado  disse Asch, indicando a granja de Soeft. Pôs-se a caminho. Os outros seguiram-no, curiosos.

 

Soeft não acreditava no que estava vendo. Esticou o pescoço para fora da janela e quando viu, claramente, para onde Asch e os outros se dirigiam enrubesceu de cólera. Bastante excitado, correu atrás deles.

 

Que se passa  aqui ?  gritou,  quase sem dar por isso, ao ver Asch parar diante da porta da granja.  A entrada é proibida. Rigorosamente proibida.

 

A mim também, não ?  perguntou Witterer, divertido.

 

Na minha companhia, bem entendido, não o é. Mas fora disso ninguém aqui pode entrar, se eu não lho permitir formalmente. Senão, temos barulho.

 

Esta granja  declarou o sargento Asch tranquilamente e sem dar a menor atenção a Soeft  é o único local, no sector da  nossa bateria,  onde é possível  organizar um espectáculo do Teatro do Exército.

 

Julgo que não pretendes passar por cima de mim quanto à  utilização a  dar aos  locais que ocupo  interveio Soeft, erguendo o nariz.

 

Porque não ?

 

Podias ao menos pedir-me licença.

 

Vamos. Dê-lhe essa satisfação  disse Witterer, que se afligia vendo os seus subalternos encolerizados.

 

Seja   disse  Asch,   de  mau  modo.   Pergunto   a Vossa Majestade se se opõe a que uma representação do Teatro do Exército se realize neste local...

 

Nem  por  sombras    respondeu   Soeft,   com   geral surpresa.  Foi uma excelente ideia a que tu tiveste, meu caro. Uma das tuas melhores ideias.

 

A porta foi aberta. Na eira estavam reunidas as viaturas de Soeft. Atrás delas amontoavam-se caixotes, sacos, garrafões revestidos de palha. Alguns utensílios agrícolas estavam empilhados num compartimento pegado.

 

Tiro isto daqui  disse Soeft com importância, parecendo  querer  ele  próprio  tomar  a  direcção  da  expedição. Conduziremos  estes camiões para fora  da  granja, perto da pequena porta do fundo. Poderemos instalar neles os camarins dos artistas.

 

Aí está!  exclamou Asch, rindo. Queres encarregar-te de velar pelas artistas?

 

Ora essa!  respondeu Soeft, tentando repudiar esta suposição.  Isso não me interessa nada. O que não posso é permitir que venham intrusos vadiar nos meus camiões. Tenho de velar por eles pessoalmente. Fora  disto,  desinteresso-me de tudo.

 

Muito bem  disse Witterer.  Mas para os camarins só pode utilizar-se um local susceptível  de ser aquecido.

 

A sua habitação, meu capitão ?  propôs Asch.

 

Estou pronto a sacrificá-la pela boa causa.

 

Estás   a   ver?  perguntou   Asch,   dando   uma   palmada no ombro de Soeft, que dificilmente escondia a sua decepção.  Ambos  tiveram  um  riso  muito  significativo,  e os que estavam atrás riram igualmente.

 

E agora, Asch, vamos ao essencial  disse Witterer, em tom pouco amável.

 

Já  estamos  no  essencial,  e  em  cheio  respondeu o  sargento.   Aqui é a  granja que  o  amigo  Soeft  pôs generosamente, e de maneira desinteressada, à nossa disposição.  Além, encostado à parede principal,  será necessário construir um pequeno estrado.

 

Isso é comigo  disse o chefe das munições.  Na vida civil sou carpinteiro.

 

De acordo. Depois precisamos de uma cortina e, à direita e à esquerda, de qualquer coisa que se assemelhe a uns bastidores.  Para tanto precisamos de cobertores e de fazenda.

 

Ah! Ah!  exclamou o «guarda-traças».

 

Adivinhaste  disse Asch, desdobrando uma espécie de desenho.  Aqui estão as dimensões aproximadas.

 

E eu, que posso fazer?  perguntou o  chefe  dos mecânicos.  Não poderei encarregar-me de endireitar os chassis das senhoras?

 

Houve uma risada geral, em que apenas não comparticiparam o capitão e, bem entendido, Krause.

 

Tu,  meu   caro  mecânico,  ocupas-te ’da  iluminação. Faróis de automóvel, alimentados por baterias.

 

E não esquecer as luzes esbatidas  disse Soêft, que, pouco  a  pouco,  voltava   a  interessar-se  pelo  assunto. Luzes vermelhas também não deixavam de calhar.

 

O mecânico acenou a cabeça:

 

Regularei a luz metendo resistências. Quando houver necessidade de luz vermelha acenderei uma ribalta especial.

 

Tu nasceste para te ocupares da iluminação  disse Asch.  Witterer  aprovou.  Krause  aprovou   mais  energicamente ainda.

 

E eu, que esperam de mim ?  perguntou o sargento-ajudante, pressuroso.

 

Serás encarregado da organização.

 

De quê, vamos a saber?

 

Bem... da distribuição dos bilhetes de entrada.

 

(É inútil  disse Witterer.  Há lugares suficientes para toda a gente.

 

Meu  capitão   retorquiu  Asch,  sem procurar  disfarçar a sua aversão por Witterer, esta granja,  uma vez  desocupada,  pode  receber aproximadamente  duzentos a duzentos e vinte espectadores. A nossa bateria, que tem de ficar em estado de alerta, não pode fornecer, quando muito, mais do que setenta a oitenta pessoas. E nós teremos de distribuir os outros lugares pelas baterias vizinhas, pela infantaria, pelos batedores.

 

Sim,  é  preciso   fazer   isso   disse   o   sargento-ajudante, solícito. Vou elaborar um plano de distribuição.

 

Não   sei  bem   contrariou  Witterer.    Afinal   de contas,  nós  não  somos  nenhum  estabelecimento  de  caridade.

 

Isso trar-nos-á amigos  observou o brigadas.  E a infantaria, que está presentemente fula de raiva a nosso respeito...

 

É recíproco  declarou Krause.

 

Estamos, pois, de acordo proclamou Asch. O sargento-ajudante  põe  cerca  de cento e trinta bilhetes à disposição das unidades vizinhas. O amanuense poderá encarregar-se da fiscalização das entradas. O mecânico tratará ainda de arranjar um local para os carros. Os assentos serão fornecidos pelo nosso carpinteiro.

 

E eu  acrescentou Soeft, sonhador  farei instalar um toucador para as senhoras.

 

Um quê?

 

Um toucador para as senhoras.  Pensaste em tudo, Asch, mas não pensaste nisto. E é um erro de organização. Isto mostra uma vez mais com que atenção se deve proceder em semelhantes casos. Já o notei em França.

 

Creio que, de momento, é tudo, meu capitão.

 

Sim, mas como é possível esquecer isto?... É extremamente   importante.   Imaginem:   as  senhoras,  para   aqui chegarem, apanham mau caminho, vêm desarranjadas; depois põem-se bonitas e, no momento de entrarem no palco, dá-lhes o medo e...

 

Está bem, Soeft  disse Witterer.  Organize você isso, se faz questão.

 

Assim se fará. E com todos os requintes. No meu alojamento.

 

Agora  é  que  está  mesmo  tudo    disse   Asch. Sessão amanhã à noite, por volta das oito horas.

 

O capitão aprovou:

 

Bem organizado. Parece realmente que tudo foi previsto. Escusado será dizer que não é a nossa opinião que conta. Ao grupo de artistas é que compete dar a opinião definitiva.

 

Procurei saber os desejos deles, meu capitão. Creio que sei o que esperam de nós.

 

”É   possível,   Asch.   É   absolutamente   possível.   Contudo,  gostaria  de  que  um  membro  do grupo,  a  menina Lisa Ebner, por exemplo, nos desse  o seu  parecer.  Proponho que convide esta senhora a vir aqui hoje, à tarde. Convidá-la-ia eu mesmo se não estivesse à espera de telefonemas importantes.

 

Suponho que é inútil, meu capitão.

 

Meta-se no meu carro, Asch  continuou o capitão, fazendo de conta que não ouvira a objecção , e faça-se conduzir por Kowalski à cidade. Daqui a pouco são três horas... Espero-o por volta das cinco com a menina Lisa Ebner.

 

Witterer saiu, seguido dos soldados. Asch foi procurar Kowalski. Este, assim que soube o objectivo da saída, ficou sobre brasas. Cinco minutos mais tarde o seu carro abria passagem a toda a velocidade através da neve lamacenta.

 

Lisa Ebner lia, estendida na cama, quando o sargento se apresentou. Endireitou-se, pôs o livro de parte e encorajou-o com um sorriso.

 

A   que   devo   a  honra   da   sua   visita ?  perguntou ironicamente.

 

Asch estendeu-lhe a mão e, sem esperar que o convidassem, sentou-se na cama, perto dela. Lisa abriu muito os olhos, mas não se afastou. A sua pequena boca parecia esperar qualquer coisa.

 

Que quer fazer de mim, sargento?  perguntou. E, como ele não respondia, disse a meia voz:

 

Estou à espera, sargento.

 

De quê?

 

Não importa de quê. Talvez de que me beije.

 

E que faria nesse caso, Lisa?

 

Ainda não sei. Experimente para ver.

 

Não   sou   cobaia    respondeu   Asch.    Sobretudo para si.

 

Mas eu  gosto  muito  das cobaias.  De  resto,  adoro todos os animais.

 

Asch endireitou-se.  Estava resolvido a pôr fim a este idílio.

 

Ouça-me  disse.

 

Sim.

 

Tente manter-se prática, Lisa.

 

Mesmo se for difícil?

 

Sim, mesmo se for difícil. Não estou aqui para lhe dizer tolices.

 

Não?

 

Não. Tenho uma ordem a cumprir. Devo levá-la até à nossa unidade, quer dizer, ao local onde se encontra o capitão Witterer. Oficialmente. Para que dê a sua opinião sobre os preparativos da festa.

 

E oficiosamente?

 

Não diga disparates. Seja como for, vim e executei a ordem recebida. Agora posso ir-me embora.

 

Sem mim?

 

Naturalmente. Recusou. Recusou-se a aceitar o convite. Por razões fáceis de compreender.

 

E quais são, na sua opinião, essas razões?

 

Ainda o pergunta?  disse Asch, levantando-se bruscamente. com certeza não quererá brincar com o fogo, rapariguinha?

 

Às vezes tenho muito frio  disse Lisa Ebner com garridice.    E   nessas   ocasiões   gostaria   muito   de   me aquecer.

 

É tão nova... É ainda tão nova...

 

E você?... ”É velho, talvez?

 

Vale demasiadamente para essa  profissão.

 

Lisa sorria. Disse com ternura:

 

Gosta de mim?

 

Em que está a pensar? perguntou Asch com rudeza.  Apenas me preocupo por sua causa. Não quero vê-la deitar-se aos cães.

 

E que acontecerá se eu gostar de si?

 

Tente provar-mo.

 

Como ?

 

Como?  Fique  aqui, feche  a  porta  e  escreva   uma carta a sua mãe.

 

E que recebo eu em troca?

 

Não terá rugas antes da idade. O seu corpo permanecerá fresco e a sua consciência limpa.

 

Lisa Ebner deixou-se cair na cama, devagar. O seu corpo distendeu-se, respirou profundamente. Os seus pequenos seios duros erguiam-se e baixavam-se regularmente. Asch contemplava-a com atenção; quando ela o notou, o seu sorriso acentuou-se mais.

 

Bateram à porta com violência e imediatamente Kovvalski entrou, alegre. Atrás dele, Charlotte, a conferencista do grupo, deitou um olhar para o quarto. Lisa não mudou de posição. Asch, um pouco embaraçado, endireitou-se.

 

Avante!   exclamou  Kowalski. Tomei  a  liberdade de contratar um pau-de-cabeleira.  E, dizendo isto, piscou o olho, com ar atrevido, na direcção de Charlotte.

 

Calculo  disse  esta  que  não  estaria bem  que ela fosse sozinha.

 

Aliás, não é Bom que o homem esteja sozinho! clamou Kowalski, alegre e ruidoso.

 

A menina Lisa Ebner não vai  declarou Asch.

 

O quê?... o quê ... protestou Kowalski. Cantar apenas canções Decentes e, ainda por cima, não deixar que os outros se divirtam?

 

É verdade que não queres ir connosco?  perguntou Charlotte com curiosidade.

 

Não   quer     repetiu   Asch.    E   eu   compreendo-a muito bem.

 

Lisa Ebner não se mexia. Olhava Herbert Asch: os seus bonitos olhos, sempre um pouco ávidos, pareciam tornar-se cada vez maiores. Mas não disse uma palavra.

 

Raios me partam! exclamou Kowalski com o seu vozeirão.  Que  significa  isto?  Teria  a  menina  perdido a língua?

 

O que ela tinha a dizer já o disse, Kowalski.

 

Isto é mesmo teu. Vais escangalhar o passeio a um digno primeiro-cabo, não é?

 

Senhor   Kowalski    disse   Charlotte   com   delicadeza , que entende exactamente  por escangalhar o  seu  passeio? Espero que isso nada tenha que ver comigo?

 

Kowalski aproximou-se do amigo e pôs-se a falar-lhe com animação:

 

Tu não podes meter-me assim num sarilho!

 

Podia dizer-te outro tanto, Kowalski.

 

Falei como um anjo. Fiz valer a nobreza dos meus sentimentos.  E isto impressionou, meu velho.  Eu próprio tinha a sensação de ser um tipo espantoso. E agora deitas tudo a perder. Vamos, Asch, se és meu amigo...

 

E então?  Quando é que acabam  de  conspirar? perguntou Charlotte em tom decidido.

 

Palavra de honra!exclamou Kowalski.

 

Não queres realmente vir connosco, Lisa?

 

Esta, continuando a olhar Asch, respondeu firmemente:

 

Não!

 

Bem    disse   Charlotte ,   nesse   caso   não   partiremos.

 

com mil raios! berrou Kowalski, furioso. Arrancou  o bivaque  e  atirou-o  ao  chão.  Isto  é sabotagem. Tu  sabotas  as  decisões  do  teu  capitão.  Percebes  o  que estás a fazer? Das outras vezes estou-me nas tintas, mas desta vez fico danado. Intimo-te uma vez mais...

 

Ele é sempre assim tão vulgar?  perguntou Charlotte em tom irónico.

 

Não. É  o amor  que  o  põe  dessa  maneira  disse Asch, amavelmente, fazendo um gesto a Lisa.

 

O tenente Wedelmann escapou à inquietação que ameaçava estender-se, de um dia para o outro, sobre todo o seu sector, refugiando-se em casa de Natacha. Não podia suportar ficar inactivo, à espera, sentado na sua barraca, sem quaisquer funções, enquanto à sua volta se preparava uma tempestade.

 

Como sempre, Natacha recebeu-o delicadamente. Pareceu-lhe que ela estava mais amável que de costume. Recebeu o chá obrigatório, elogiou-o, se bem que ele fosse mau... mau de qualidade, mas deliciosamente preparado. Depois observaram-se longamente, com olhos um pouco tristes, um pouco ternos, um pouco sonhadores.

 

A   tranquilidade   acabará   bem   depressa,   com   certeza  disse Natacha, contemplando com expressão pensativa o chá que se evaporava lentamente na sua chávena.

 

A guerra não conhece a calma;  quando muito, a pausa temporária.

 

É  realmente pena  acrescentou  a  rapariga,  como se falasse do tempo que a pausa de que beneficiamos pareça dever terminar em breve.

 

Não devia preocupar-se com isso, menina Natalia.

 

Pode chamar-me Natacha, se lhe agradar.

 

Obrigado, Natacha.

 

Quer   tranquilizar-me...   Os   homens   gostam   de   o fazer. E, ainda por cima, crêem que isso agrada às mulheres. Mas nós não queremos ser consoladas... queremos saber a verdade. Já não somos o sexo fraco.

 

A verdade? O que é a verdade? Porque deveria eu conhecê-la, exactamente eu? Não posso sequer pensar mais longe que o que vejo. Cada vez mais tenho a sensação de não ser senão uma bola com que se brinca, uma pena, um grão de areia.

 

Natacha abanou lentamente a cabeça.

 

Acho  que  agora  está  a   diminuir-se   disse.   O indivíduo pode, quando tem espírito de decisão, fazer mais do que a massa, que tudo aceita sem reagir.

 

Quer   dar-me   coragem   com   o   que   diz,   Natacha? Quer fazer-me acreditar em qualquer coisa? Mas em quê? E com que fim?

 

Inquieto-me, e é tudo. Para isso ainda sou bastante inteligente. E há alguns dias que ouço falar em movimentos na frente. Não são apenas as metralhadoras, que experimentam todos os dias, mas também os canhões, os obuses, e novamente os canhões. Isto atormenta-me.

 

Onde  aprendeu  a  diferença  entre  as  armas,  Natacha?  perguntou Wedelmann, estupefacto. Fala dessas coisas como um soldado.

 

Natacha corou um pouco, o que encantou Wedeimann, excelente rapaz, incapaz duma suspeita.

 

É   a   guerra   que   nos   ensina    respondeu   ela. Antes da guerra era estudante, queria ser professora. Depois   a   guerra   tirou-me   a   minha   escola.   Ensinou-me   a roubar batatas, a fazer chá com ervas da planície, como se mugem vacas e se distinguem as armas umas das outras.

 

Seja como for  disse Wedelmann, a quem a agressividade  de  Natacha  sempre  desorientava,  sobretudo  porque julgava em perigo a feminilidade que nela havia, pode estar tranquila,  Natacha.  A agitação que  notou no nosso sector  proveio  de um mal-entendido. A verdadeira razão é uma garotice estúpida.

 

Tem a certeza ou julga-o apenas?

 

O   acaso   permitiu   que   o   soubesse.   Houve   alguém que  perdeu   a  cabeça e organizou   um  exercício  de  tiro. Do outro lado apressaram-se a fazer o mesmo. Mas para que  falamos   destas   coisas?   Há,   afinal,   outros   assuntos para conversar!

 

Outros, além da guerra? Quais?

 

O amor, por exemplo.

 

O amor durante a guerra, não? Que é isso? Ama alguém na Alemanha?

 

Não.

 

E quer que eu acredite?

 

Tem   mesmo   de   acreditar.   Nunca   houve   ninguém para mim. No meu país um oficial está mais ou menos isolado. Há todas as espécies de classes sociais donde ele é excluído. Há  outras onde ele deve procurar a mulher que   desposará.  Mas  se   não  existir  ninguén   com   quem ele deseje casar?

 

Quer realmente casar-se?

 

com   certeza,   Natacha.   Conhecer   uma   mulher   a quem se pertence, ter um filho que levanta os olhos para nós,  possuir  em  qualquer  parte  uma   casinha   onde  nos podemos refugiar... isto é que é a vida.

 

E  nunca  houve   nenhuma   mulher   com   quem   gostasse de casar?perguntou Natacha numa voz doce. Os seus olhos cintilavam com um brilho sombrio.

 

Sim. Houve uma mulher com quem eu desejaria ter casado. Houve mesmo duas, na realidade. Uma era criada na nossa messe de subalternos: um coração quente, uma inteligência lúcida. Casou com um subalterno que é agora primeiro-sargento na minha bateria. Têm um filho e são felizes, pelo menos tanto quanto tal coisa se pode afirmar hoje. E merecem sê-lo.

 

E a outra?

 

A  outra?  Foi  uma história estranha...   Chamava-se Lore. Nasceu numa casa pobre. Ao princípio tive piedade dela. Era infeliz no casamento. Depois começou  a  agradar-me cada vez mais: ela tinha uma necessidade pueril de saborear a vida e esta necessidade nunca se satisfizera. E. contudo, tinha aquilo a que na nossa terra se chama «um coração cheio de sol»;  podia ser tão natural  como um animal; como uma gata, por exemplo.

 

Era com certeza uma mulher muito sensual  disse Natacha involuntariamente.

 

Wedelmann não teve dificuldade em ignorar este indício muito claro de ciúme.

 

Não falemos disto declarou. Esta conversa não leva a coisa alguma. E eu também não lhe perguntei se houve já alguém no seu passado.

 

Pode  perguntar  disse  Natacha  em  voz  rouca. Estive até noiva. O homem que eu amava foi morto. Logo aos primeiros dias da guerra. Quem sabe se não foi você quem o matou?

 

Talvez respondeu Wedelmann, olhando-a como se ela fosse uma estranha. Nada é impossível.

 

Sim  respondeu Natacha, não menos rude.  Há uma coisa que é impossível: é que eu ame os assassinos daquele a quem amei.

 

Wedelmann não respondeu; pousou bruscamente a chávena. Natacha também se conservava em silêncio; olhava a cama onde o tenente, todo empertigado, estava sentado. E parecia-lhe ver o caixote cheio de aparelhos que se encontrava debaixo dessa cama. Esta ideia provocava-lhe uma alegria crescente. Teve de fazer um esforço para desviar os olhos.

 

A conversa não recomeçou. Wedelmann dispôs-se várias vezes a despedir-se, mas de cada vez adiou a partida. Natacha, por seu lado, estava firmemente decidida a não o reter se ele quisesse ir-se embora; mas sempre procedia de maneira que este diálogo doloroso e desagradável não se interrompia completamente.

 

Ambos ficaram aliviados quando, por fim, o sargento Asch apareceu à procura ’do oficial.

 

Tenho de o levar, meu tenente  disse.  O coronel Luschke anunciou-se...

 

Nesse caso, é claro... Desculpe-me, peço-lhe.

 

Ora essa!  respondeu Natacha.

 

Mal apertaram as mãos e evitaram olhar-se. Não trocaram qualquer palavra mais. Natacha, adiantando-se-lhe, abriu a porta, sem falar.

 

Muito frio  disse Asch, enquanto desciam a escada.

 

Se faz alusão à temperatura, sou obrigado a ser da sua opinião.

 

O   tempo   também  está  frio   disse   Asch.   Há muita neve no ar.

 

Deixaram a casa sem serem saudados ’desta vez, coisa estranha, por um amigável «Schweinehund>. Wedelmann notou-o com alívio, Asch com pena, pois preparara algumas injúrias salgadas que queria ensinar à garota.

 

O coronel  telefonou ?  perguntou Wedelmann. Que tenho eu com isso? É o capitão Witterer quem comanda a bateria.

 

O coronel  exigiu expressamente vê-lo a si.  Vem à linha de fogo.

 

Todo   esse   zelo   é   inquietante    disse  Wedelmann, saltando por cima duma poça ’de lama.

 

É  natural    replicou   Asch.   Depois  do   que   se passou, já estava à espera de Luschke.

 

Wedelmann não respondeu. Caminhava a passos largos. Asch tinha dificuldade em segui-lo.

 

Tenha dó de um velho chefe de família  disse.

 

Tem notícias de casa?

 

Não,  só  há  notícias  da  infantaria.  Os  camaradas lá da frente estão fulos. Para eles somos agora como um trapo vermelho para um touro. Quando se pronuncia o nosso nome há logo um que escarra para o chão.

 

Infantilidades    disse   Wedelmann   com   brusquidão.  Deixe-me em paz com essa história.

 

Se me der ordem, dar-lhe-ei esse prazer. Por causa da nossa velha amizade, se assim se pode falar. Mas julga, sinceramente, que o coronel Luschke se irá ocupar doutra coisa?

 

Você não é o coronel.

 

Às vezes tenho pena de o não ser, meu tenente. Mas há outros momentos em que me sinto muito satisfeito por não lhe estar na pele.

 

Wedelmann acelerou de novo a marcha, tanto quanto era possível.

 

O automóvel de Luschke estava já parado em frente do alojamento de Wedelmann. Luschke urinava, encostado a um monte de lenha. Witterer, acompanhado de Krause, mantinha-se a respeitosa distância.

 

Enquanto se abotoava, o coronel dirigiu-se para os seus homens, que lhe fizeram uma continência mais ou menos regulamentar. Luschke acenou a cabeça, fazendo uma careta:

 

Se fizessem tão bem a guerra como fazem de manequins, podia eu ficar a ler ao pé do meu fogão.

 

Sim,  meu  coronel  respondeu Witterer,  que  supunha, com justa razão, ser ele o visado.

 

O nariz em forma de batata de Luschke virou-se, cheio de ameaças, para os que chegavam.

 

Vem  bastante  tarde,  tenente   disse.  É   preciso andar  à  sua  procura?   Se  estava  com  alguma   rapariga, desculpo-o.

 

Nesse caso, estou desculpado, meu coronel.

 

com prazer  disse Luschke, rindo. Depois virou-se para Witterer:

 

Capitão, saiba que eu admito com muita facilidade as pequenas asneiras. Os santinhos horrorizam-me; os patifes, também. A boa dose é que importa.

 

Compreendo-o muito bem, meu coronel.

 

Quando, por exemplo, há um que não bebe, isso inquieta-me. Aquele que se embebeda não existe para mim. Mas um copinho uma vez por outra... acho bem. A mesma coisa quanto às raparigas.

 

Isso   corresponde   à   minha   maneira   de   ver,   meu coronel.

 

Este levantou as sobrancelhas.

 

É muito possível, capitão, que tenhamos as mesmas ideias acerca das «frangas». Mas, no que respeita à guerra, meu Bom amigo, as nossas maneiras de ver parecem afastar-se consideràvelmente uma da outra. Mas muito consideràvelmente.

 

Witterer encaixou esta censura directa com muita elegância, o que lhe foi facilitado pela circunstância de o coronel se ter já voltado e se dirigir em passinhos curtos para a linha de fogo.

 

O mapa  ordenou Luschke.

 

O capitão Witterer apressou-se a estender o seu mapa ao coronel. Este, com um olhar seguro, orientou-se no terreno, sem diminuir a marcha pouco que fosse. Dirigiu-se a direito para o segundo canhão.

 

Abrigue-se, meu coronel, peço-lhe!exclamou Witterer.

 

O coronel fez de conta que nada ouvira. Colocou-se perto da peça, a cerca de dez metros dela, na direcção do inimigo, sobre um pequeno cômoro. Os que o acompanhavam não puderam fazer outra coisa senão agrupar-se à volta dele.

 

Luschke examinava o terreno do adversário. Depois olhou o mapa. Finalmente, disse:

 

Sabe, realmente, capitão Witterer, de que género são os méritos que adquiriu com os seus tiros de canhão?

 

Não, meu coronel  disse Witterer, de acordo com a verdade e bastante satisfeito por ver que Luschke empregara a palavra «méritos», que no seu vocabulário pessoal  desempenhava um papel  importante e sempre lisonjeiro.

 

Indica-me um relatório  acrescentou Luschke, sem deixar de olhar ao longe que o  inimigo fez vir artilharia durante a última noite.

 

Era de esperar  disse Asch.  Sabe-se de quantas unidades se trata?

 

Não   respondeu  Luschke.   O  adversário tomou a liberdade de não no-lo comunicar.

 

Poderemos experimentar o reconhecimento  propôs Wdtterer, pressuroso.

 

Porque   meio,   capitão ?  perguntou   Luschke   num tom interessado.

 

Podíamos mandar uma patrulha, meu coronel.

 

Luschke mantinha-se imóvel sobre o montículo. Enterrou a cabeça entre os ombros e pareceu pôr-se à escuta de qualquer coisa. De súbito ouviu-se um silvo por cima dele. Um ruído surdo enterrou-se no chão. Depois alguns estilhaços de obus espalharam-se, zunindo.

 

Witterer baixara a cabeça e correra a abrigar-se. Parecia que queria acocorar-se numa retrete.

 

Terá a intenção de nos deixar, capitão?  perguntou Wedelmann, quase em voz baixa. Luschke ficara aprumado como uma estaca.

 

Um  lança-granadas de calibre  médio  disse  Asch, tranquilamente.   Depois  deu  meia  volta,  caminhou  lentamente  uma   dezena   de  passos  e  desapareceu  numa  trincheira.

 

O novo obus chegou logo a seguir. Também demasiado curto. Luschke voltou-se e, sem nada dizer, examinou à sua roda. Witterer estava ali, agora, imóvel. Krause, ao lado dele, estadeava uma postura igualmente irrepreensível. Wedelmann parecia desinteressar-se de tudo.

 

Luschke deitou um olhar para a trincheira, donde emergia o rosto tranquilo do sargento Asch. O coronel pôs-se a rir. Depois, sem mudar de expressão, olhou o capitão.

 

Este interpretou  o olhar como um convite a mostrar as suas qualidades de chefe.

 

Sargento   Asch    gritou ,   não   foi   dada   ordem para se abrigar!

 

Não  é  necessário   respondeu   o   outro.    Desde quando se dão ordens desse género?

 

Siga o nosso exemplo, peço-lhe.

 

Para   quê?   perguntou   Asch   amavelmente.   O espectáculo que estão a dar não tem nada de espantoso, aos meus olhos.

 

Esta    é   forte!...    exclamou   Witterer,    olhando Luschke, que continuava a rir, e depois Wedelmann, que não se mexia.  Que diz a isto, tenente ?

 

O  mesmo  que o  sargento  retorquiu  Wedelmann, que, por sua vez, se desligou do grupo e desapareceu no abrigo enquanto o terceiro obus explodia.

 

Luschke largou a rir e Witterer teve a penosa impressão de ser o motivo desta alegria.

 

Não fiquem assim em monte! exclamou o coronel, de excelente humor. Caminhou apressado para a trincheira e desapareceu.

 

Witterer e Krause, desconcertados e sozinhos um momento no terreno, apressaram-se a seguir o exemplo do seu chefe. O quarto obus, caindo a distância perigosa, deu-lhes asas, e foi quase de mergulho que se precipitaram no abrigo já cheio.

 

Sempre entusiasta!  disse Luschke docemente. Sob o olhar crítico do coronel Witterer sentou-se, pondo no seu lugar o capacete, que tinha escorregado.

 

O  cinturão,  meu   capitão  advertiu  Asch  amavelmente.

 

Witterer endireitou o cinturão, cuja fivela se encontrava sobre a algibeira esquerda do casaco.

 

Que me dizia há pouco, capitão? perguntou Luschke, com uma amabilidade pérfida.  Falava em enviar uma patrulha.

 

Com  a  condição,  claro,  de  que  esteja  de  acordo, meu coronel.

 

Com essa condição  disse Luschke.  E quem, na sua  opinião,  devia  assumir o  comando  dessa  patrulha? Seria, por acaso, o senhor?

 

Talvez um graduado experiente, meu coronel.

 

Por exemplo?

 

O sargento Asch, por exemplo.

 

Não sou voluntário  disse este em voz resoluta.

 

E porque não, sargento Asch?  perguntou Luschke com ar curioso.

 

Não sou um herói à força.

 

Como  as coisas são!   disse  o coronel,  com  um sorriso cordial.  Também eu não.

 

Sua Excelência o Almirante Jacoby, sogro do comandante do depósito de artilharia, junto de quem Vierbein fora colocado na qualidade de ordenança, mostrou ser um ente verdadeiramente humano.

 

Uma vez chegado ao hotel, onde lhe haviam reservado dois quartos, e depois de se ter despedido da filha e do futuro genro, o coronel Pança, achou-se sozinho com Vierbein. E logo se tornou familiar.

 

Deixe isso  disse, ao ver Vierbein, de acordo com as  ordens   recebidas,  pôr-se  a  desafivelar-lhe  a  mala. Julga que sou demasiado velho para o fazer?

 

Não,   Excelência  respondeu,   corajosamente,   Vierbein.

 

E deixe o  «Excelência»  descansado quando estivermos entre nós.

 

Sim, Excelência.

 

Entre velhos camaradas de guerra essas coisas não se usam.

 

Vierbein bateu os tacões e continuou a desempacotar. O almirante fez questão de o ajudar. Um quarto de hora depois puxavam ambos o lustro às numerosas condecorações do almirante.

 

São bastantes, hem?  perguntou o almirante, batendo-lhes como se fossem um xilofone.  Quando se chega a   almirante   recebem-se   estas   coisas   pela   patente.   Nem todas, claro. Esta condecoração, por exemplo, recebi-a de Sua Majestade em pessoa.

 

Vossa Excelência  conheceu Sua Majestade ?  perguntou Vierbein com respeito e surpresa.

 

Sua Majestade e eu  respondeu o almirante, desatacando os sapatos éramos bons amigos, se me é permitido empregar uma expressão tão ousada. Tive a honra de lhe dar conselhos sobre as questões marítimas e creio poder afirmar que Sua Majestade os apreciava tanto como os do grande-almirante.

 

Este velho de cabelos grisalhos, com cara de quebra-nozes, era um homem como os amava o coração de criança de Vierbein. E ver que este grande chefe de batalha podia ser tão amável enchia-o de felicidade.

 

Depois de se ter informado acerca das condecorações de Vierbein e dos actos que as tinham precedido o marinheiro Jacoby anunciou:

 

E agora, meu caro camarada, vamos beber um copo à glória da marinha cristã...

 

Vierbein, que tinha Ingrid à sua espera, atreveu-se a uma objecção prudente:

 

Permita-me Vossa Excelência lembrar que o apagar das luzes vai...

 

Não  se  preocupe, meu  valente.  Enquanto  eu  aqui estiver  encontra-se  sob  a   minha   protecção   especial.   Se chega atrasado, se quer deixar o serviço mais cedo, se tem não importa  que  desejo, nada  de falsa  modéstia.  Diga apenas: «Ordem do almirante.> Respondo por tudo. Entre velhos camaradas de guerra é preciso apoio mútuo.

 

Entretanto o almirante chamara o criado:

 

Três garrafas e dois copos. Vamos beber um «vitral».

 

Um   «vitral»?  perguntou  o  criado,  surpreendido.

 

Você não é do litoral do mar do Norte, pois não? não serviu na marinha? Nunca fez qualquer travessia, nem mesmo como criado de bordo? Nunca foi convidado para caçar na Prussia Oriental?

 

O criado acenou a cabeça negativamente.

 

Isso surpreender-me-ia  disse o almirante.  Pois bem, um «vitral» compõe-se de rum, araca e vinho tinto, em partes iguais. As cores diferentes destas bebidas lembram os vitrais das igrejas. Daí vem o nome.

 

Muito bem, Excelência  respondeu respeitosamente o criado, que daí a pouco regressava com as três garrafas bem cheias.

 

O subalterno evitou olhar o relógio. Não tinha coragem para desiludir o amável velho. Ingrid tinha de esperá-lo; ele ia sacrificar-se com convicção à glória militar. Sentia-se cheio de gratidão; espe’rara encontrar um superior semelhante a um deus e deparava-se-lhe um protector paternal.

 

Por seu lado, o almirante sentia-se feliz pela sincera veneração que lhe testemunhava Vierbein.

 

Este escutava-o respeitosamente e bebia corajosamente, em pequenos sorvos. O almirante compôs o quarto «vitral» e engoliu-o com satisfação. Depois disse:

 

Não tenho nada contra esta guerra, se bem que ela me pareça um tanto inquietante... Dá-se pouca atenção ao domínio do mar. E isto pode ter consequências desfavoráveis... No entanto, desperta todas as forças nacionais...

 

Com a filha as coisas não eram diferentes. Estivera em casa, à espera; depois a guerra viera. E agora ia casar com um coronel. Não era extraordinário, este coronel, é certo, e ainda por cima tratava-se de um reservista, mas era, apesar de tudo, um coronel.

 

Depois do quinto «vitral» Vierbein foi autorizado a retirar-se. Embora ligeiramente tocado, conseguiu manter o aprumo. Apesar da hora tardia, gostaria de ir ter com Ingrid, mas aquela mistura infernal de rum, araca e vinho tinto abatera-o de tal maneira que se dirigiu para a caserna e atirou-se para cima da cama.

 

Quando acordou era dia claro. Diante dele estava o subalterno de serviço, que, ao mesmo tempo que ria como um conspirador, lhe murmurou:

 

Não nos estragues o nosso prazer. Schulz nunca te perdoaria.

 

Passou-se algum tempo antes que Vierbein conseguisse compreender exactamente o que se passava no seu quarto.

 

Já tirei  o espelho  disse o subalterno de serviço, bufando de riso.

 

Então Vierbein reconheceu com dificuldade Ruhnau, que estava deitado, com a cara preta como graxa. Bartsch estava também besuntado de preto.

 

É  uma paródia!  sussurrou o subalterna  Untámo-los  assim   esta  noite  quando  eles  entraram,  bêbados como polacos, depois de terem tentado penetrar em casa de Lore Schulz. Mas o mais engraçado é que cada um deles crê que é o outro o único assim besuntado. Enquanto não se virem a um espelho não perceberão.

 

Vierbein observou os rostos dos irmãos siameses e achou a situação bastante cómica.

 

Schulz está à espera com algumas pessoas, no corredor. O espectáculo não tardará a começar. Mas não tenhas  a   ideia   de  os  prevenir:   nestas  coisas  Schulz  não admite brincadeiras.

 

Vierbein, não sem dificuldade, arrancou-se ao leito e encaminhou-se para a bacia de rosto, onde mergulhou várias vezes a cabeça.

 

Entretanto, o subalterno de semana abrira a porta de par em par. Lá fora estava Schulz com os seus camaradas. O subalterno agarrou no apito e pôs-se a soprar com toda a força:

 

Alerta! gritou. Alerta!

 

Os dois farsantes deram um salto, esbugalharam os olhos e contemplaram-se, estupefactos. Lentamente acudia-lhes à memória o que se passara na noite anterior. Depois começaram a rir à gargalhada.

 

Alerta!gritava o subalterno de serviço.

 

Mas os irmãos siameses continuavam a rir, cada um deles persuadido de que era o único a ter o direito de rir assim. Ele só... porque o «preto era o outro.

 

Não ouviram gritar «alerta», selvagens? perguntou Schulz.  Vamos! Mostrem-nos como sabem correr. Assim falou Schulz, e os seus pequenos olhos vivos brilhavam com uma alegria completa.

 

Um pouco cambaleantes, os dois subalternos enfiaram à pressa o uniforme, agarraram no capacete e precipitaram-se para fora. Schulz e a sua roda relinchavam: parecia que iam explodir.

 

Lá fora ergueu-se um alegre tumulto. Uma dúzia de homens rodeavam os subalternos de cara preta, que, pouco a pouco, começavam a desconfiar do que lhes sucedera. Correram para o espelho dependurado no corredor e lançaram-lhe um olhar com uma surpresa sem limites.

 

Depois, praguejando como carroceiros, meteram-se no quarto, perseguidos por uma tempestade de risos.

 

Ainda furiosos por terem sido troçados de tal maneira, apresentaram-se a Schulz. Os rostos assemelhavam-se a horríveis máscaras. Sentiam um intenso desejo de filar o tenente pela garganta, mas não eram bastante loucos para o fazerem.

 

Schulz, esse, procurava recobrar o fôlego e limpava os olhos. Havia muito tempo que não ria com tanto gosto. Isto, sim, era uma verdadeira brincadeira de homens.

 

Mas, de súbito, sem transição, tornou-se grave. Olhou fixamente os dois subalternos. Depois, em voz baixa e ameaçadora, disse:

 

Aqui está o que acontece quando se pretende deitar as patas sujas a mulheres que não lhes dizem respeito.

 

Enganámo-nos na porta  disse  Bartsch,  de orelha murcha

 

Não tornaremos  declarou Ruhnau.

 

Mas que garrafa de aguardente era essa que vocês iam procurar em minha casa?

 

Era para si, meu tenente.

 

Só pensámos em si, meu tenente.

 

Que garrafa era essa, grandes crápulas? Estavam ali, pretos e estúpidos, e produziam uma impressão na verdade deplorável.

 

Vamos! Falem!... E se não quiserem responder-me malandros, vou arranjar-lhes outro chefe de bateria  bastante longe daqui!...

 

Parecera que os dois homens haviam empalidecido por baixo da camada de graxa. Ficaram imóveis, lançando olhares idiotas. Depois Bartsch disse:

 

Era a garrafa que Vierbein trouxe para sua mulher.

 

Sim,   meu  tenente  disse,  corajosamente,  Vierbein, do fundo.

 

Schulz ficou alguns segundos como se tivesse ganho raízes. Depois deu meia volta e saiu.

 

Imbecis! disse Vierbein num tom de desprezo.

 

Não   fiques   aborrecido,   camarada.   Bem   vistas   as coisas,   é   pela   nossa   vida   que   lutamos  disse   Bartsch, encolhendo penosamente os ombros.

 

Sim  disse o outro.  A guerra deve ser terrível.

 

Tu não tens nada a perder. Duma maneira ou doutra, regressas à frente. Para nós é diferente.

 

Compreendes,  não  é verdade?  Sim  ou  não?  Onde está, afinal, a famosa camaradagem da frente?

 

Vocês   dão-me  vontade  de  c....!exclamou  Vierbèin com uma brutalidade inesperada nele.

 

Que maneiras!  disse Bartsch, desolado.

 

E   pretende   isto   defender   a   Pátria!  acrescentou Ruhnau.

 

Uma hora mais tarde o subalterno de serviço reapareceu e disse a Vierbein:

 

Ao tenente Schulz, imediatamente.

 

Já esperava esta ordem e estava disposto a não se deixar amachucar. Fosse como fosse, tinha uma missão a cumprir.

 

Verificou com surpresa que o tenente estava sereno e não parecia pensar em fazer uma das suas cenas célebres.

 

Vierbein  disse Schulz , hoje vai participar nos preparativos de tiro.

 

Peço-lhe,  meu tenente,  que me  desculpe,  mas Sua Excelência o Almirante deu-me ordem para ir ter com ele.

 

Precisamos de si aqui.

 

Não sei se Sua Excelência...

 

Vou destinar-lhe outro graduado. Bartsch ou Ruhnau, ou mesmo os dois...

 

Mas Sua Excelência ordenou-me expressamente que estivesse no hotel às dez horas em ponto...

 

Está bem. Faça isso. Mas esta tarde quero vê-lo nos preparativos de tiro. Só lhe pode ser útil. Por outro lado, é para isso que aqui está. Utilizaremos para o tiro os aparelhos pedidos pelo coronel Luschke. Verá como eles funcionam.

 

Sim, meu tenente.

 

Talvez se encarregue amanhã de uma peça. Atiraremos sobre blindados de exercício. O general estará presente. E você poderá mostrar-lhe o que valemos.

 

Vierbein compreendia. O general anunciara, sem dúvida à última hora, que assistiria ao tiro. Era a melhor oportunidade para Schulz, que representava o coronel, de mostrar o tipo estupendo que era. E Vierbein, que percebia do assunto, ia ser-lhe útil. Claro que Vierbein compreendia. As suas longas relações com Asch tinham-lhe, até certo ponto, aberto os olhos,

 

Quanto ao outro assunto  disse Schulz , custa-me a conceber que um excelente soldado como você se permita fazer asneiras que poderiam custar-lhe a vida.

 

Schulz calou-se. Vierbein conservava-se em silêncio. Cada um deles esperava que o outro começasse, mas ambos esperaram em vão.

 

O tenente levantou-se e fechou o assunto energicamente.

 

Vierbein  disse , pode provar-me, ao menos uma vez, que é realmente um Bom soldado. Sentir-me-ia feliz se fosse bem sucedido.

 

O coronel estava de pé diante da igreja, com os olhos fitos na placa de ferro que as chamas envolviam. com os olhos protegidos por espessos óculos, os soldados trabalhavam activamente. A presença do coronel acelerava notavelmente o ritmo do trabalho.

 

Ágil como sempre, o capitão Witterer dirigiu-se para ele, parou na sua frente, levantou elegantemente a mão até ao boné e disse:

 

Capitão Witterer, às ordens.

 

O coronel aflorou a pala do seu boné com dois dedos e continuou a fitar a chuva deslumbrante de faíscas. No fundo tinha pena dos soldados. Sabia que estavam furiosos com ele, porque andava muitas vezes por estas paragens e a sua presença bastava para lhes aumentar a actividade. Em nenhum outro lado o encontravam tantas vezes como aqui.

 

O capitão Witterer apresentou-se de novo.

 

Julgará que eu sou surdo?  perguntou o coronel, sem levantar a cabeça.

 

Witterer apressou-se a dizer que não. Ficou ainda um momento em sentido, depois resolveu-se a esperar.

 

Luschke, sempre mergulhado na contemplação das chamas que saíam do metal assobiando, sorria quase imperceptivelmente. Os homens da oficina não podiam adivinhar porque se aprazia tanto entre eles. O que o atraía, com uma força mágica, era a velha igreja em ruínas. Permanecia nela um reflexo de grandeza e de silêncio, em relação com a paisagem calcada, dilacerada, cavada pelos sulcos da morte.

 

O coronel levantou lentamente a cabeça. Por cima dos homens olhava as ogivas sem janelas que se erguiam no céu aberto e trágico. Tinha a impressão de ver as mãos gigantescas de um morto estendendo-se para Deus, em vão.

 

Depois, bruscamente,  deu  dois passos para Witterer e perguntou-lhe:

 

De  quanto tempo  precisa a sua bateria para estar pronta a marchar?

 

Quarenta e dois minutos  respondeu o capitão, sem hesitar.

 

Como o sabe assim com tanta exactidão?

 

Fizemos ensaios, meu coronel. Há três dias a bateria necessitava  de mais ou menos uma hora. Ontem cumprimo-lo em quarenta e dois minutos. Mas eu quero chegar ao máximo de trinta minutos.

 

Está convencido de que os seus homens não troçaram de si?

 

Decerto, meu coronel. Segundo os relatórios que me foram feitos...

 

Verificou-os pessoalmente?

 

Em parte, sim.

 

Em parte!...  Luschke teve um riso breve e satisfeito.  Nunca  conseguirá frustar  as  partidas  destes  rapazes, pelo menos por agora. O seu Soeft, por exemplo, só  para  o  depósito  de mercadorias  precisa  duma  coluna de transporte inteira.

 

Contudo,  o  subalterno  Soeft  comunicou-me  ao  fim de vinte e cinco minutos que a sua secção estava em ordem de marcha. Disse-mo pessoalmente, ou, mais exactamente, ao sargento-ajudante.

 

Pois  continue assim e chegará, em teoria,  aos  dez minutos  disse Luschke com uma expressão afectada. Apesar disso, capitão, deverá tentar pôr a sua bateria em estado   de  marchar  em  duas  ou  três horas.  Depois  dum longo   repouso  é  sempre  um   pouco   difícil   ganhar   novo impulso, mas quando a máquina de guerra está em marcha o mais difícil é fazê-la parar.

 

Sim, meu  coronel  disse Witterer como se  tivesse compreendido   tudo   o   que   o   seu   superior   acabara   de dizer-lhe.

 

Este afastou-se para o fundo, seguido de Witterer.

 

Capitão  disse-lhe Luschke , prepare a sua bateria  para  uma  mudança  de  posição dentro  de  três dias. O objectivo está a trinta e oito quilómetros à retaguarda.

 

À retaguarda, meu coronel?

 

Surpreende-o isso? com certeza não vai acreditar que só marchamos em frente!  Em  Dezembro passado todo o exército recuou, e foram algumas centenas de quilómetros. Desde Tuia até aqui. E foi exactamente depois de o nosso Fíihrer ter declarado que a campanha do Leste estava terminada.  Tinha-se  muito  simplesmente...   hum!,  digamos: enganado.

 

Sim, meu coronel.

 

Agora,  antes  da  ofensiva  da  Primavera,  vamo-nos reagrupar a fim de criarmos uma base de partida. Também se pode dizer que corrigimos, finalmente, os erros cometidos há três meses. Chame a isto uma retirada, capitão.

 

Sim, meu coronel  disse Witterer, contrariado como o  está   um  guerreiro  que   anseia  por  lançar-se  sobre   o inimigo.

 

Portanto, dentro de três dias. Reconheça com Wedelmann a nova posição. Para os pormenores fale com o meu oficial ordenança. Mas tudo isto sem dar à língua! O assunto mantém-se secreto. Quando chegar o momento pôr-nos-emos em marcha durante a noite, desligar-nos-emos do inimigo ao abrigo da escuridão. De surpresa. No dia seguinte, de manhã, os Russos apenas deverão ver diante deles o vazio.

 

Sim, meu coronel  disse Witterer, que largou a rir ao  imaginar  o  rosto  estúpido  do  adversário.  Era  quase como nos romances de aventuras de Karl May.

 

Luschke olhava-o com interesse: as suas reacções provocavam-lhe sempre um secreto prazer; via nelas a confirmação do que sempre pressentira, isto é, que haveria motivos para divertir-se com ele. Oxalá que não passasse de diversão.

 

Que vai fazer esta tarde?

 

Meu coronel, se não precisa da minha presença...

 

Procuro  dispensá-la  disse  Luschke  docemente.

 

Nesse caso vou verificar os últimos preparativos do espectáculo do Teatro do Exército, que, como sabe, deve realizar-se na secção das peças...

 

O coronel ficou calado. Esperava.

 

Suponho que considerará oportuno, meu coronel, dar, apesar de tudo, o espectáculo anunciado... ao menos para camuflar a situação!

 

Agradam-me todas as distracções concedidas aos soldados. Mas acho que o senhor é o último a necessitar de distracções desse género.

 

Como devo compreender essas palavras, meu coronel?

 

Como convém.

 

Mas uma vez que aqui estou, meu coronel...

 

Acho excelente que os meus oficiais se preocupem com o bem-estar intelectual e espiritual dos seus homens. E o interesse que o senhor dá ao Teatro do Exército impressiona-me muito. O que me desagradaria seria ver que as suas preocupações são demasiado unilaterais.

 

Sim, meu coronel.

 

E Luschke perguntou numa voz sibilante e rude:

 

Quando esteve no hospital?

 

Witterer ficou desconcertado alguns segundos. O olhar de serpente de Luschke inquietava-o. Teve dificuldade em responder:

 

Nunca estive, meu coronel. Sinto-me bem de saúde.

 

No nosso hospital de campanha  declarou Luschke, numa voz  agressiva,  apesar  da sua  doçura há vários soldados  da sua bateria, três, segundo a participação  de hoje:   ferimentos,  membros  gelados,  congestão  pulmonar. Já alguma vez lhe ocorreu a ideia de procurar também distraí-los?

 

Sim, meu coronel  balbuciou Witterer.-,Eu queria.»

 

Então não o detenho.

 

Witterer afastou-se a toda a pressa. Krause esperava-o diante da igreja. Abriu-lhe a porta do automóvel. Witterer entrou sem dizer palavra. Krause saltou atrás dele. Kowalski pisou o pedal de arranque.

 

Em  frente,  para  casa  das  senhoras!exclamou  o primeiro-cabo,  de Bom  humor, enquanto engatava a  primeira   velocidade.

 

Ao hospital  gritou Witterer. Verdadeiramente surpreendido, Kowalski embraiou tão brutalmente  que  o  automóvel  se  pôs  a  saltar  como  um doido. Dominou-o e disse:

 

Não é possível!

 

Poupe-me, peço-lhe, às suas estúpidas reflexões, primeiro-cabo! exclamou violentamente Witterer.

 

Não    são    tão    estúpidas    como    isso  respondeu Kowalski pacificamente.

 

Cale a boca!  berrou o capitão.

 

Kowalski encolheu os ombros e acelerou. Mais uma vez parecia justificada uma das suas experiências fundamentais. Era ridículo discutir com superiores.

 

O automóvel dirigiu-se para uma longa barraca de tábuas, por cima da qual pendia o emblema da Cruz Vermelha. Witterer desceu, disfarçou os vincos do capote e disse a Krause:

 

Dirija-se ao alojamento da menina Lisa Ebner. Apresente-lhe  as  minhas   desculpas   e   diga-lhe  que  estarei  lá daqui por uma hora.

 

Mal a última palavra foi pronunciada, Kowalski acelerou e afastou-se a toda a velocidade para ir implicar com Charlotte.

 

Entretanto, Witterer penetrava no átrio do hospital, onde esbarrou com uma enfermeira, a quem a sua patente não pareceu produzir grande impressão.

 

Por favor  disse Witterer, exagerando a sua amabilidade, depois de ter esperado alguns segundos sem que lhe dessem atenção , desejava visitar os meus soldados.

 

Os nomes? A sala onde estão?

 

Sinceramente indignado por esta falta de respeito, Witterer exprimiu o seu descontentamento quanto a esta «maneira incorrecta de interrogar». A enfermeira replicou não menos energicamente. Gritaram um com o outro.

 

Não  esqueça  onde  está!exclamou  a  enfermeira.

 

com mil raios!  respondeu Witterer.  Estaremos aqui na frente por vossa causa ou vocês por nossa? Quem é que teria feito uma espelunca destas?

 

Esta palavra «espelunca» teve por efeito fazer surgir um médico militar, que, ao princípio, deu a impressão de querer reagir com energia. Mas ao dar pela patente de Witterer tratou-o como camarada, e dez minutos mais tarde o capitão estava exactamente informado quanto aos seus soldados.

 

Dou   grande   importância   ao   restabelecimento   dos meus homens  disse.  E isto o mais depressa possível. Temos necessidade de toda a gente na linha de combate. Sobretudo agora.

 

Compreendo  disse o médico.

 

Também Witterer julgava ter compreendido o que queria o coronel mandando-o ali. Era preciso que os seus subordinados imediatos lhe fornecessem uma tropa em estado de combater. O período das licenças, das missões, das doenças, estava terminado. Witterer sabia agora porque ali estava.

 

Um homem envolvido em cobertores, pálido e resignado, olhava-o. Era evidentemente alguém da sua bateria. Witterer dirigiu-se a ele e fez-lhe algumas perguntas de ordem geral.

 

Como se sente?

 

O homem, que fora atingido por uma congestão pulmonar, respondeu:

 

Muito melhor agora, meu capitão.

 

Ora, vê? Daqui por alguns dias estará outra vez connosco... Está satisfeito, não é verdade?

 

Sim, meu capitão  disse o soldado, em voz fraca.

 

Witterer olhou o relógio de pulso, pronunciou ainda algumas palavras de encorajamento e despediu-se.

 

A visita ao soldado que tinha a mão gelada passou-se da mesma maneira. Aqui também Witterer supôs descobrir a vontade de combater, embora notasse pouco optimismo. A mão esquerda do soldado, que examinou, estava envolvida em espessas camadas de algodão. Um unguento cinzento-esverdeado, de cheiro intenso, atravessava os pensos como se fosse pus.

 

O principal  disse o capitão  é que a mão direita esteja em condições. Ou é canhoto, por acaso?

 

Não, meu capitão.

 

Já vê!  exclamou o capitão, enquanto deitava novo olhar ao relógio.

 

Parou no corredor para respirar vigorosamente. O fedor das chagas produzidas pelo frio agoniava-o. Os doentes repugnavam-lhe. «Sobretudo não apodrecer desta maneira», pensava, revoltado. «Isto é Bom para velhotas. Os heróis morrem jovens e gloriosos ou não morrem. Mas, sobretudo, não cheiram mal.»

 

Quase a seguir pensou em Lisa e no seu encanto; depois, durante menos tempo, no coronel e na habilidade com que este impingia aos seus subordinados as tarefas mais repugnantes. Finalmente, e durante mais tempo, no dever de camaradagem dos soldados da frente. Agora, que estava desembaraçado dos doentes, tinha de ocupar-se dos feridos.

 

Vendo no soalho uma mancha escura, parou diante dela. Sangue. Enchia-o de uma estranha satisfação encontrar ali sangue que tinha corrido. Isto aproximava-o de novo da guerra: sentiu um estremecimento de volúpia.

 

Todo empertigado, entrou na sala n.º 8, onde se encontravam os feridos no ventre. A violenta vaga de mau cheiro que o assaltou cortou-lhe a respiração e fê-lo recuar. Cheirava a «excrementos cozidos». Por sobre isto planava o lamento de um homem, sem dúvida sacudido pela febre. «Este rapaz podia, apesar de tudo, dominar-se», pensou Witterer virilmente.

 

Girou em volta dalguns enxergões à procura do soldado da sua bateria cujo nome, número e boletim de doença estavam pendurados. «Ruptura do epigastro» era a indicação.

 

Sou o seu chefe, o capitão Witterer.

 

O ferido sorriu timidamente. Os olhos, profundamente encovados, brilhavam de febre. A boca não era mais do que uma fenda.

 

Como vai isso, meu valente?

 

O soldado afastou os cobertores. Witterer viu-lhe em volta das ancas grossos pensos, através dos quais se filtrava um líquido sangrento. Inclinou-se para a frente, com o ar de quem entendia alguma coisa do que via.

 

Vá lá! disse, por fim. Podia ser pior.

 

Sim, meu capitão  respondeu o soldado.

 

Um momento  disse Witterer, voltando-se, pois acabavam de abrir a porta. Krause estava à entrada e Witterer  dirigiu-se  para ele.  E então?  perguntou.

 

A menina Lisa Ebner lamenta...

 

Lamenta o quê?

 

Infelizmente não pode esperar, meu capitão. Está de serviço

 

Witterer reflectiu. Reflectiu sobre as mulheres, sobre o desejo que elas excitam e que hesitam em satisfazer, e, enquanto reflectia, ouvia os gemidos agudos, sibilantes, febris, do homem que estava ao canto. E pensava: «Este rapaz podia, apesar de tudo, dominar-se um pouco.»

 

Depois disse a Krause, olhando o relógio:

 

E para conseguir saber isso precisou de quase uma hora?

 

Peço-lhe que me desculpe, meu capitão. Não pude fazer mais  depressa. Não  conseguia encontrar Kowalski.

 

Foi outra vez vadiar ?

 

Estava   no   quarto   duma   senhora   que   se   chama Charlotte.

 

Que   desorganização!    exclamou   Witterer,   chocado. Isto não pode realmente continuar assim!

 

Virou as costas a Krause e o olhar que lhe dirigiu permitia-lhe adivinhar quão grande era o seu descontentamento. Primeiros-cabos que bebiam e pegas que se recusavam, eis com que tinha de perder o seu tempo. E, no entanto! Esta ostensiva recusa de Lisa Ebner podia ser a prova de que ela receava não poder mais desligar-se dele. A pequena tinha medo dele! «Eh! Eh! Em certos pontos era compreensível!»

 

Witterer regressou ao ferido da sua bateria. Inclinou-se outra vez sobre o penso e meneou a cabeça. De momento não podia contar com este homem. Dirigiu-lhe algumas palavras de encorajamento e saiu, apressado, seguido por uma vaga de mau cheiro.

 

Chegado ao automóvel, e antes de subir, disse:

 

Precisamos de todos os homens, Krause. De todos. Temos de utilizar tudo o que puder ser utilizado.

 

Mesmo o segundo-sargento Vierbein ?

 

Toda a gente. Trate disso. E você, Kowalski, já não é meu motorista.

 

Sim, meu capitão  respondeu Kowalski, preparando-se para descer.

 

Que foi que lhe deu?

 

Executo  a  ordem  recebida respondeu Kowalski, estendendo ao capitão as chaves do carro.  E com prazer.

 

Suba imediatamente! gritou Witterer, quase sufocado de cólera.  E quando chegarmos ao nosso destino apresente-se a mim para ser punido.

 

com todo o gosto, meu capitão!

 

A notícia do castigo que ia ser infligido a Kowalski espalhou-se com a habitual velocidade na 3.ª bateria, onde provocou uma alegria discreta. O próprio Kowalski se divertia mais do que ninguém e informava, com todos os pormenores, os que o queriam ouvir acerca das notáveis qualidades do chefe da bateria. E dizia:

 

É um bezerro!

 

Tendo tal qualificativo sido pronunciado diante do sargento-ajudante, este correu ao alojamento do capitão e permitiu-se perguntar se era verdade, o que ele aliás se recusava a acreditar, que fora prevista uma punição para o primeiro-cabo Kowalski.

 

É  perfeitamente  verdade  disse Witterer,  em tom de mau humor.  E ele será punido.

 

Meu capitão, dê-me licença que não lho aconselhe.

 

É inútil, sargento-ajudante. O que eu disse será feito.

 

Permito-me chamar a sua atenção, meu capitão, para a  circunstância   de  que  uma   punição  não  tem   qualquer sentido para Kowalski. É absolutamente inútil. Não lhe causará a menor  impressão.  Permita-me  que  lho  diga,  meu capitão, mas ele está-se nas tintas para as punições.

 

Pois  eu  lhe  mostrarei  com  que  lenha  me  aqueço disse   Witterer,   espumando   de   raiva.    Aprenderá   a conhecer-me.  Não  me  deixarei  tratar  por  esse  indivíduo como um... esfregão molhado.

 

Meu capitão  disse o sargento-ajudante, nervoso , está  provado  que  é  sempre  preferível  não   ouvir  o  que Kowalski diz. Além disso, é um rapaz de ouro, o verdadeiro combatente da frente. Na batalha é inestimável.

 

O que eu não posso é deixar-me zombar constantemente por um porco como ele.

 

Ele notou, com certeza, que o meu capitão se irritava com as observações que ele fazia, e é por isso que as faz. Geralmente é, até, taciturno.

 

Cumprirá pena de prisão.

 

Bock encolheu os ombros irrespeitosamente e, pela primeira vez na sua vida, tomou uma atitude descuidada em presença de um superior.

 

Não servirá de nada.

 

Nesse caso, fá-lo-ei passar pelo conselho de guerra.

 

Toda a gente sabe que o que ele diz não basta, em geral, para isso.

 

Basta   de   advertências!    disse   Witterer   brutalmente.  Traga-me esse animal.

 

O sargento-ajudante encolheu outra vez os ombros e retirou-se, após uma continência menos perfeita que de costume. Abanava a cabeça, contrariado. A experiência ensinara-lhe que não era assim que se podia conduzir esta bateria. «Assim, não.»

 

Procedeu devagar. Dirigiu-se à sua repartição e expulsou de lá o amanuense. Depois tratou de obter comunicação com o tenente Wedelmann. Em vão. Ninguém sabia onde estava Wedelmann. Asch igualmente. Pensou em ligar para Luschke. Mas retirou logo a mão do aparelho.

 

Uma hora mais tarde, Witterer, furioso, chamou-o ao telefone. Queria Kowalski, morto ou vivo. Bock foi procurar Kowalski.

 

Este estava de excelente disposição. Parecia que tinha bebido: não era possível provar que assim era, mas podia-se ter a certeza. Só Soèft lhe podia ter fornecido álcool, Soêft, que se regozijava sempre com todas as situações complicadas.

 

Bock mostrava-se pessimista. Antes de se meter a caminho com Kowalski, tentou pô-lo em disposições conciliatórias.

 

Kowalski    disse-lhe,    amigavelmente ,    não    vá agora fazer asneiras.

 

Em que está a pensar, meu ajudante? com certeza não iria eu próprio estragar o meu prazer!

 

Mantenha-se correcto.

 

Mas eu sou-o sempre.

 

É o desejo formal de Wedelmann  disse Bock, mentindo afrontosamente.

 

Palavrinha?  perguntou  Kowalski.

 

Bock, habilmente, fez de conta que não notara que a sua veracidade era incontestavelmente posta em dúvida. Disse:

 

Tive há pouco uma longa conversa com Wedelmann. Ele deseja que você segure a língua...  durante ”cinco minutos, pelo menos.

 

Durante    dez    minutos    prometeu    generosamente Kowalski. - Por se tratar de Wedelmann.

 

Bock fez entrar Kowalski à sua frente no alojamento do capitão. Apresentou-se quase regularmente. O capitão, cingindo-se estritamente ao regulamento, apertou o cinturão, pôs o boné e colocou-se em sentido.

 

Depois agarrou num papel  e leu:

 

«Castigo o primeiro-cabo Kowalski com três dias de prisão, por ter dado, frequentemente, ao seu chefe de bateria e a outros superiores, respostas impertinentes, provocantes e mesmo contrárias à disciplina.»

 

«Merda!», pensava o sargento-ajudante. «Tudo isto não é mais que merda! Isto não é um motivo, é conversa fiada. Luschke exige que se descreva um facto concreto; não nos podemos contentar com considerações de ordem geral.»

 

Já não é motorista  do chefe da bateria  declarou Witterer.  A partir deste momento transportará munições. Então? Que diz a isto? ’

 

Muito obrigado, meu capitão.

 

Desapareça   da  minha  vista!   berrou  Witterer. Que eu o não veja mais na minha frente!

 

com todo o prazer,  meu capitão  disse Kowalski. Depois, lembrando-se das pretensas recomendações de Wedelmann, fez uma continência correcta e desapareceu.

 

Bock seguiu-o sem esperar a ordem de Witterer. Continuava a ver as coisas negras, mas desta vez eram-no também para o capitão. Quando Luschke recebesse a participação seria o diabo. Witterer não teria mais do que aquilo que merecia; simplesmente, ele, Bock, arriscava-se também a apanhar com alguns estilhaços.

 

Ajudante    perguntou   Kowalski,   curioso ,   onde e quando deverei cumprir a minha prisão?

 

Mais devagar. Não há pressa.

 

De acordo com os regulamentos  disse o primeiro-cabo, zeloso , qualquer punição deve ser cumprida logo que possível. E eu já estou com um desejo doido dela.

 

Deixe-se  dessa  arrogância,  vamos.  O  capitão  talvez apenas tenha querido gracejar.

 

Ah! Mas comigo não!  disse Kowalski com um ar de presunção.

 

O sargento-ajudante, sem responder, entrou no seu escritório. Kowalski seguiu-o como a sombra. Divertia-se como um rei.

 

Que mais quer você?  perguntou  o brigadas, irritado.

 

Cumprir o meu castigo, nada mais.

 

Vejamos, Kowalski, tu és realmente tão teimoso como um burro vermelho.

 

Quero  cumprir  o  meu  castigo  declarou   o   outro, satisfeito,   sabendo   exactamente   as   complicações  que   isto ia causar.

 

O sargento-ajudante deixou Kowalski onde ele estava. Despendurou o seu impermeável e saiu. Depois pôs o seu side-car em posição de marcha.

 

Kowalski seguiu-o. Colocou-se junto dele e disse:

 

No   seu   lugar,   mandava   rever   as   válvulas.   Fazem barulho.

 

Tire-se do meu  caminho, maçador.  Bock pisou  o pedal   do   arranque,   a   máquina   pôs-se   em   movimento   e depois calou-se.

 

Gasolina a maisdeclarou Kowalski.

 

Bock diminuiu a gasolina, empurrou outra vez o arranque, e o motor tornou a pôr-se em movimento. Bock deixou-o aquecer, enquanto olhava o primeiro-cabo com uma expressão descontente.

 

Este aproximou-se e disse:

 

Ouça as válvulas... fazem barulho. Depois, rindo, com vontade,  acrescentou:  O motivo que aquele vitelo arranjou era realmente uma asneira perfeita, hem!  Sei do que falo. Mas se modificam a mais pequena palavra que seja queixo-me a Luschke.

 

Arreda!  gritou o sargento-ajudante, que embraiou e partiu a toda a velocidade.

 

Dirigiu-se ao posto de tiro para procurar Wedelmann. Não o encontrou nem perto das peças nem no alojamento dele. Asch também desaparecera. Soltou uma praga e continuou a procurar. Por fim, um primeiro-cabo teve piedade dele e di«se-lhe a palavra secreta: Natacha.

 

Wedelmann e Asch, sentados no estreito quarto da russa, tomavam chá em copos iguais, toscamente acabados, que o tenente fornecera. Falavam da guerra: em casa de Natacha era impossível falar doutra coisa.

 

Na   guerra   dizia   Asch   é   como   nas   retretes: toda a gente é obrigada a lá ir, mas há apenas uma categoria de pessoas que se acham lá bem.

 

Deveria   empregar   termos   um   pouco   mais   escolhidos  disse   Wedelmann,   com   uma   expressão   desaprovadora.

 

Não para uma porcaria como esta.

 

Para nós  disse Natacha -, esta guerra, que não começámos, é uma guerra patriótica.

 

Também nós  disse Wedelmann,  com não menor sinceridade  consideramos esta guerra um dever patriótico.  O  nosso   ataque  não  foi  mais  do  que  uma   defesa antecipada.

 

Havia  na  nossa  terra   declarou   Asch,   com  uma expressão cáustica  um assassino que rezava sempre antes de cometer os seus crimes. Estava, na verdade, convencido de que Deus o quisera tal como era.

 

Natacha e Wedelmann conservaram-se em silêncio e este silêncio queria claramente dizer: «Não nos compreendes.» Estavam sentados perto um do outro, bastante perto, no pequeno leito de Natacha. As suas mãos tocavam-se por vezes e eles não o evitavam.

 

Sentado em frente, na única cadeira existente, que gemia a cada movimento, Asch parecia divertir-se. Nos seus olhos brilhavam a ironia e a simpatia.

 

Quando os vejo assim diante de mim  disse , sei o que isso quer dizer.

 

Se quiser ir-se embora, Asch, não o deteremos.

 

Ambos caminham para tempos novos. Mas cada um em direcção diferente. Cada um de vocês está convencido de que a sua concepção do mundo é a única justa.

 

Devia ir-se embora, Asch. Parece que não está bem.

 

Eu ouço-o  disse Natacha.  O que ele diz interessa-me. Nada pode modificar a minha opinião.

 

Nem   a   minha    declarou   Wedelmann   com   entusiasmo.  É, portanto, inútil querer dar-me lições.

 

Mas eu não estou a dar uma lição  disse Asch com amigável  indiferença.  Não  estou  a  tentar esclarecê-los. Deve ser impossível, quer para um, quer para outro. Vermelhos ou castanhos, ambos são partidários. Suponho que se amam, mas o amor, para pessoas do vosso mundo, é apenas uma  coisa  secundária.  Em primeiro  lugar está  a União Soviética ou o Reich, e ambos querem fazer a felicidade do universo. Mas, pergunto eu, com que fim fabricam  os humanos  crianças?   Para  produzir  defensores  da Pátria? Ou para sobreviverem na sua progenitura?

 

Você não  sabe  o  que é a  Pátria   disse Natacha orgulhosamente.   Eu   defendo-a   para   poder   viver   nela tranquilamente.

 

E não conseguirá nunca compreender, Asch  acrescentou   Wedelmann   com   não   menor   orgulho  ,   que   o povo  é  tudo  e  que  cada  um  de  nós  nada  é  sem  o   seu

 

povo.

 

Um caso desesperado  disse Asch, levantando-se.

 

Temos o mesmo Deus. O amor pode unir-nos. Todos os homens poderiam ser irmãos. Nada há neste mundo que justifique a guerra. Nada!

 

Asch afastou-se sem lhes dirigir mais um olhar sequer. Um silêncio esmagador reinava no quarto. Ao longe, na frente, uma espingarda-metralhadora crepitava.

 

Não nos compreende disse Wedelmann, entristecido.

 

Talvez um dia também ele nos compreenda.

 

Não. É um caso desesperado.

 

Natacha agarrou a mão do tenente com simpatia. Ele olhou-a. Nos olhos dela liam-se a expectativa e o receio. Eram olhos doces, brilhantes e sombrios. Wedelmann pousou a boca sobre eles. Sentiu que se fechavam. As mãos de Natacha, que apertava, começaram a tremer. Mas a cabeça não se moveu.

 

Por muito tempo ficaram assim, sem que um ou outro se mexesse. O hálito da rapariga aflorava o rosto ardente de Wedelmann. Os lábios deste foram deslizando. Wedelmann sentiu que ela lhe oferecia a face. Tocou-lhe nos lábios. E ela estremeceu.

 

Os seus rostos estavam muito perto um do outro. com uma expressão selvagem e terna, os seus olhos percorriam a face que tinham na frente. Mal respiravam.

 

Depois esses  rostos precipitaram-se um  para  o  outro. A pele que tocaram estava ardente e secos os lábios. Respiravam com dificuldade. Amo-te  disseram.

 

Separaram-se e olharam-se perturbados. Longos segundos passaram sem que fizessem um movimento. Tiveram um sobressalto ao ouvir, outra vez, na linha de fogo, a espingarda-metralhadora cuspir.

 

Vem disse Wedelmann. Vem connosco.

 

Para onde?

 

Temos   de   ficar   juntos   tanto   tempo   quanto   for possível.

 

Mas nós estamos juntos.

 

-Não por muito tempo  disse Wdelmann, abanando a cabeça. Devemos partir. Dentro de poucos dias.

 

Natacha recuou. Parecia um cadáver. Desprendeu as mãos das de Wedelmann e disse numa voz áspera:

 

Não fales nisso. Peço-te. não me fales nisso.

 

Temos de falar.

 

Não.

 

Será preciso  que  eu  te  deixe

 

Não.

 

Então,  tens  de vir comigo.

 

Não.

 

Sim...   Temos   tão   pouco   tempo   nosso,   tão   pouco tempo. Temos de o prolongar o mais possível. Tens de vir connosco. Dentro de dois dias já não estaremos aqui.

 

Havia tristeza nos olhos da rapariga e ele julgava que era inquietação. Inquietação por ele, por ambos, pelo seu amor. E isto tornava-o feliz. «Nunca», pensava, «fui tão feliz. Não sabia que tal coisa existisse. Meu Deus. eu não o sabia!»

 

Amo-te  disse.

 

Natacha fechou os olhos. O rosto estava pálido, a boca mais pequena e estreita. Respirou profundamente. As pestanas tiveram um movimento rápido, como se sentisse alguma dor. Depois respirou outra vez profundamente.

 

Abriu os olhos e fitou Wedelmann intensamente. E perguntou :

 

Quando partem?

 

Depois de amanhã, à noite.

 

Apenas vocês?

 

Não, todas as tropas que estão aqui. Ninguém fica. A. linha da frente recua toda no nosso sector.

 

- Longe?

 

Perto de quarenta quilómetros.. Vem connosco. Arranjar-te-ei um alojamento. Passarão ainda algumas semanas antes que a guerra  de movimento  recomece em todos  os sectores  da  frente.  E  estas  semanas  pertencem-nos,  Natacha.   Têm   de   pertencer-nos.  Vês?   Tu   és   a   única   aqui. A guerra atirou-te para aqui por acaso. Pouco te importa o lugar onde habites. O principal é que estejamos juntos.

 

Depois  de amanhã, à noite  disse Natacha,  como se estivesse ausente, evitando olhá-lo.

 

Virás connosco?

 

Eu   amo-te   realmente!    exclamou   ela   perdidamente.  Tens de acreditar em mim.

 

Sim  respondeu ele.  Acredito em ti.

 

Ela  lançou-se  contra Wedelmann:   parecia  que  queria esconder o rosto no peito do seu amigo.

 

Aconteça o que acontecer  disse, ofegante, cingindo-se a ele.  Aconteça o que acontecer.

 

O tenente Schulz fazia de furacão. A passos largos, percorria o gabinete do seu coronel. De vez em quando soltava um berro. O oficial ordenança aceitava-o, resignado, como se aceita um cataclismo.

 

Schulz pensava: «Agora acabou-se; agora a minha paciência chegou ao fim.» A sua autoridade estava em perigo. É que, enquanto ele ali estava na sua dupla qualidade de representante do coronel e de chefe de bateria, tinham-se dado acontecimentos que não deveriam dar-se... em todo o caso, enquanto fosse ali o senhor indiscutido.

 

Os exercícios de preparação para o combate tinham fracassado claramente. Até o primeiro alarme contra os aviões devia ser considerado um desastre, não só do ponto de vista militar, mas também, em grande parte, porque o letreiro humorístico que ele imaginara, e que estava concebido nos seguintes termos: «Roga-se que não façam nas calças», havia sido dependurado mesmo por cima do lugar reservado ao coronel. Fora uma sorte o comandante ter-se sentado sem de nada desconfiar e não conseguir perceber porque toda a gente o olhava.

 

Mas isto ainda não fora suficiente. Os seus irmãos siameses haviam sido deploráveis. As suas brincadeiras medíocres não tinham feito rir ninguém.

 

Mas o cúmulo fora, indiscutivelmente, Vierbein. Tinha o ar de se haver instalado solidamente perto do almirante. Este hipopótamo não se fazia servir constantemente como se deveria esperar, mas parecia visar à camaradagem. Que borrada eram estes marinheiros! Se ele, Schulz, não tivesse tanta necessidade de Vierbein para os exercícios de tiro do dia seguinte, ter-lhe-ia mostrado com quem lidava.

 

E, agora, para fazer transbordar o copo, vinha esta história, verdadeiramente inacreditável, da violação.

 

É de não perceber nada! gritava Schulz ao oficial ordenança.    É   uma   coisa   impossível,   sobretudo   numa secção que eu dirijo. Não é normal.

 

Infelizmente, é verdade  disse  o outro.

 

Serão  uns horrores, essas mulheres?  São  de  tapar-lhes a cara com uma toalha?

 

Não. Pode dizer-se até que pertencem a uma média razoável.

 

Nesse caso, já não percebo nada do mundo em que vivemos.

 

Efectivamente, Schulz, depois do que se passara, deixara de compreender certos aspectos deste mundo. Na noite anterior três telefonistas do seu sector haviam atraído, com um pretexto ridículo, o subalterno das transmissões a uma cave e aqui juntas, tinham-no violado. Violado!

 

Schulz ainda conseguiu imaginar a técnica. Podia ter sido complicado, mas, com uma certa energia, era possível chegar ao objectivo. Mas o que Schulz já não conseguia explicar a si mesmo claramente era que tal incidente pudesse ter-se dado. A caserna estava repleta de soldados e as pouco numerosas raparigas que nela trabalhavam deviam encontrar nela satisfação. Deviam! Bastava quererem. E estas três queriam, isso era incontestável. Por que motivo então não tinham elas...?

 

Aqui é que está o problema  -   dizia Schulz,  meditando.    E   só   é   possível   resolvê-lo   concluindo   que   os rapazes que hoje usam uniforme são uns verdadeiros pichas de  açorda.  Semelhante  coisa  nem  sequer  seria  imaginável no  nosso  tempo.   Não   teríamos   deixado   chegar  as  coisas a este ponto.

 

Estou convencido  disso  declarou  prudentemente o oficial ordenança.

 

Sabe  o  que é  isto?  Sabe  o  que isto  mostra  claramente? Falta de espírito combativo. Ora aqui está!

 

Que se há-de fazer?  perguntou o outro.

 

É   muito   simples    disse   Schulz,   com   ar   dominador.  O subalterno das transmissões vai ser enviado para a frente em virtude da sua notória incapacidade, e as três desgraçadas raparigas serão  destinadas ao serviço de Bartsch  e   Ruhnau.   Relatório   de   execução   dentro   de   quatro dias.

 

Perfeitamente.

 

E às três horas da tarde todos os sargentos-ajudantes do depósito reunidos. Na sala de ginástica. Fardamento de campanha. Vou chegar-lhes o fogo ao rabo. Sei o que vou fazer, acredite! Quando faz vento entre os subalternos há tempestade entre os soldados.

 

O oficial ordenança acenou a cabeça e escreveu num papel. Também ele estava convencido de que Schulz percebia do assunto. Sabia como proceder para fazer galopar mais depressa, e com mais segurança, os brigadas.

 

Os  preparativos   para   esta  noite   estão   concluídos?

 

O oficial ordenança tirou da pasta uma folha de presenças e, a seguir, uma segunda folha com um plano cuidadosamente desenhado, indicando os lugares para o jantar dessa noite. Havia na messe dos oficiais uma festa em honra do coronel e da noiva.

 

Tenho  uma  ideia   disse  Schulz,  como  se  tal   lhe tivesse ocorrido naquele mesmo instante: vamos destinar Vierbein ao serviço exclusivo do almirante. Este ficará impressionado.   Vierbein   deverá  manter-se   constantemente   à retaguarda de Sua Excelência e segui-lo por toda a parte, três  passos  atrás.   Apenas  servirá  o  almirante  e   ninguém mais.

 

Muito bem  disse o oficial ordenança, aproveitando a primeira  ocasião para se retirar.  Este Schulz contentava-se  em  traçar planos;  era ele  quem  os  devia  executar. Uma  guerra  deste género não era,  realmente, coisa fácil.

 

Começou por dar ordem para que enviassem cinquenta garrafas de champanhe. Depois preveniu o sargento amanuense de que devia convocar os sargentos-ajudantes: «Às três horas, sala de ginástica, fardamento de campanha.» Feito isto deu ordem ao sargento-ajudante da bateria do estado-maior para convocar Vierbein para a noite, anular a convocação de Bartsch e Ruhnau, escolher outras cinco ordenanças, três raparigas suplementares e dois soldados, para substituírem, se fosse preciso, os auxiliares.

 

Depois dirigiu-se à messe para vigiar os preparativos como o teria feito um maitre d’hotel. Os seus dois anos de messe davam-lhe uma certa experiência.

 

Foi Schulz quem se apresentou em primeiro lugar, trinta minutos antes da hora fixada para o início oficial. Estava sozinho, claro: considerava a mulher indigna de ser admitida na sociedade. Toda a gente o sabia e se conformava. Schulz suportava como um pesado fardo esta decisão, que tomara sozinho, mas suportava-a com naturalidade e sempre com a mesma boa disposição. Nesse mesmo dia tivera com a mulher uma discussão acerca deste delicado   assunto,   que   ele   supusera   decisiva.   Ela   continuava a não o compreender.

 

Logo a seguir chegou o pessoal auxiliar. Para verificar a temperatura das bebidas Schulz fez-se servir um conhaque duplo e, de copo na mão, passou revista ao que ele denominava «a coluna dos carregadores da paparoca», sob o comando de Bartsch e Ruhnau.

 

Depois provou as comidas e os vinhos. Mas o seu Bom humor não durou muito tempo. Desceu de repente para o zero quando viu o almirante,  que Sua Excelência apareceu sem Vierbein.

 

com ousadia, girou duas vezes em volta do almirante e teve a honra de sacudir a mão do conselheiro do imperador, que, pela segunda vez, lhe perguntava onde estava a mulher. A pergunta surpreendeu e perturbou muito Schulz. Pensou que Vierbein, enquanto executara as suas funções oficiais, tivera o descaramento de se ocupar de questões não oficiais. Isto irritou-o profundamente. Enfureceu-o e desconcertou-o.

 

A tal ponto que não se atreveu  ele, Schulz  a fazer a Sua Excelência a pergunta decisiva: «Onde está esse Vierbein?» Seria demasiadamente ousado, talvez mesmo demasiado estúpido. Porque, se Sua Excelência fosse um Luschke, teria podido responder-lhe com outra pergunta: «Não sabe onde se encontram os seus homens?>

 

Não. Isto não. Assim, não! Schulz precipitou-se para a cozinha, onde Barstch e Ruhnau provavam conscienciosamente os pratos ingleses, e disse-lhes:

 

Vamos!  Vocês!  Tragam-me imediatamente Vierbein.

 

Sim,  meu  tenente  responderam,  pouco  satisfeitos.

 

E  rápido!   Se não mo trouxerem  rapidamente, não respirarão por muito tempo o ar da terra.

 

Os dois rapazes eclipsaram-se, furiosos. Acharam bastante depressa aquele que buscavam. Estava sentado, de mãos dadas, com a noiva, Ingrid, no canapé do salão do Café Asch. O pai afastara-se discretamente, com o pre-

 

texto de ir ver o seu amigo Freitag, para não estorvar os namorados.

 

Bartsch   e   Ruhnau   contemplaram-nos,   rindo;    depois soltaram um suspiro e um deles disse:

 

Tens de vir já ao Schulz. São nove horas. Que pagas tu para não te encontrarmos até às dez?

 

Três garrafas de vinho  respondeu Ingrid, que, lentamente, se habituara à linguagem da época. Três garrafas até às onze horas.

 

Isso não  disse Bartsch.  Procurar durante duas horas é muito arriscado.

 

Uma hora, ainda vá lá  disse o outro.  Podíamos tomar a responsabilidade.

 

Vou já, se assim é preciso  disse Vierbein.  Embora não goste muito de me ver constantemente incomodado durante a minha licença.

 

A tua licença? Ouço-te sempre falar da tua licença! Tu estás aqui em missão.

 

Vierbein pousou a mão no peito, onde se ouvia estalar a folha de licença que um motorista do comando do aeroporto lhe trouxera na véspera à noite, direitinha da frente.

 

Estou   de   licença   repetiu.    No   fim  dela   devo conduzir os rapazes da rádio e os novos aparelhos.

 

Era uma explicação clara, que dava aos dois siameses pouquíssimas possibilidades de lucro. Fingiram, portanto, nada ter ouvido e recomeçaram a regatear. Por fim estavam a ponto de se entenderem com Ingrid sobre três garrafas para noventa minutos de buscas. Mas Vierbein declarou:

 

Prefiro  ir já.  Ficará  a  questão  arrumada uma  vez por todas.

 

Mas para que são essas pressas, visto que estás de licença ?

 

É   provável   que   Schulz  não   o   saiba.   Além   disso, ordens são ordens.

 

Ah!   exclamou   Ingrid,   aborrecida.   Tudo   isto é tão complicado e tão pouco agradável!

 

Vierbein pousou-lhe a mão no braço, a fim de apaziguá-la, e levantou-se com ar decidido:

 

Voltarei  depressa  prometeu.

 

Eu não sou um albergue onde se possa entrar e sair à vontade  respondeu ela, encolerizada.

 

Tratarei de me despachar.

 

E eu vou tratar de me deitar.

 

Dentro de meia hora estou  de volta. Não vai  levar muito tempo. Está tudo claro.

 

Partiu acompanhado de Bartsch e de Ruhnau. Schulz precipitou-se para ele:

 

Porque não executou as minhas ordens?

 

Peço-lhe perdão, meu tenente, mas eu executei-as.

 

Devia   acompanhar   Sua   Excelência.   Porque   não   o fez?

 

Apresentei-me   a   Sua   Excelência,   que   me   declarou não ter necessidade de companhia.

 

Quem é que comanda aqui, Vierbein? É o almirante ou sou eu?

 

Vierbein não soube que resposta dar. O tenente, encantado, fez-lhe sinal com um dedo para se dirigir à sala da messe. Vierbein hesitou um momento. Depois obedeceu, o que satisfez ainda mais o tenente. Mas quando, dez minutos mais tarde, este penetrou na sala, onde se tinha começado a dançar, viu, no canto reservado ao coronel, o subalterno Vierbein sentado, com uma taça de champanhe na mão. E ao lado dele estava sentado o almirante. Sua Excelência, aquele velho palerma!

 

Foram-lhe precisos não poucos segundos para acalmar o furor que refervia dentro de si. Esta intimidade de beberrões entre um subalterno e um almirante horripilava-o. Aproximou-se e chamou com um gesto Vierbein. Este desculpou-se ao almirante e seguiu Schulz até um pequeno corredor.

 

Você é convidado,  aqui?   perguntou  Schulz com um olhar pérfido.

 

Sua Excelência o Almirante convidou-me a sentar-me ao lado dele, meu tenente.

 

E  você  teve  realmente  a  impertinência   de  pousar as nádegas na poltrona do coronel ?

 

Depois de a isso ter sido convidado duas vezes seguidas, sim, meu tenente.

 

E quem é que comanda aqui ? Um pescador de arenques do tempo de Guilherme II ou um tenente da Grande Alemanha?

 

Vierbein teve a coragem de ficar calado.

 

Volte imediatamente para a caserna.

 

Meu  tenente, permita-me que  lhe  observe que  não ficarei na caserna esta noite.

 

Schulz ficou atordoado.  Era  Vierbein quem estava na sua frente? Impossível!

 

Respire! disse. Quero verificar se está bêbado. Não continuou, sempre estupefacto, não está bêbado. Que se passa? Está doente?

 

Estou de licença.

 

Idiota!  Está em missão.  Ou terá perdido a cabeça na frente de batalha?

 

Permita-me,   meu   tenente.    E   Vierbein,   desabotoando a algibeira da esquerda, extirpou de lá os papéis que lhe tinham chegado às mãos algumas horas antes.

 

Schulz, que caía de surpresa em surpresa, recebeu-os automaticamente e pôs-se a folheá-los. Por fim disse:

 

Eu é que devo estar bêbado.

 

Depois entregou-os a Vierbein e virou-lhe as costas. O outro afastou-se da messe a passos largos, torturado pelo pensamento de que Schulz. uma vez recobrado da surpresa, ”vmandaria procurar.

 

Não se enganava. Mal tinha saído, já o tenente chamava Bartsch e Ruhnau e lhes dizia:

 

Encontrem-me esse Vierbein imediatamente. Se não não estarão muito tempo na retaguarda.

 

Enquanto eles o procuravam, Vierbein tentava em vão reunir-se a Ingrid. Esta deitara-se realmente. E o Sr. Asch deu-lhe o conselho de ir, muito simplesmente, onde tivesse a certeza de ser acolhido àquela hora e de encontrar o que lhe recusavam ali.

 

E foi assim que Vierbein, depois de ter errado durante muito tempo dum lado para o outro, foi fazer uma visita de amizade a Lore Schulz, que o recebeu de braços abertos.

 

O correspondente de guerra B. M. Eberwein, Sonderfiihrer 1, apresentou-se no regimento Luschke com a missão de explorar para a imprensa a retirada preparada antecipadamente  «essa nova página de glória». O coronel mandou-o, sem o ter visto, para a 3.ª bateria, onde chegou ao princípio da tarde.

 

Eberwein considerava-se o ás dos correspondentes de guerra e muitos eram os que nele acreditavam. Possuía uma grande imaginação e ignorava os escrúpulos. Ninguém podia competir com ele na rapidez das suas informações. Nos métodos que empregava para obter estes records estava o seu segredo profissional.

 

O capitão Witterer saudou o grande Eberwein com a mais viva cordialidade; sentia-se honrado. A circunstância de ser a ele que Luschke honrava enviando-lhe este homem competente tornava-o orgulhoso e confiante. Supunha ter de futuro todas as razões para pensar que Luschke lhe queria bem. Assim o enganavam as aparências.

 

 Pessoas que, durante a guerra, eram empregadas como oficiais em virtude dos seus conhecimentos técnicos, qualquer que fosse, de resto, a sua capacidade militar, e que dispunham de toda a autoridade no domínio em que eram competentes. (N. do T.)

 

-Depois   de   ter   engolido   um   Bom   copo   em   sinal   de boas-vindas, Eberwein perguntou, com o ar mais positivo:

 

Então, quando começa a mudança?

 

Amanhã, durante a noite. Eberwein pôs-se a fazer contas:

 

Amanhã à noite, já. Se quiser que as fotografias e a reportagem estejam amanhã em Berlim, tenho de me despachar. O melhor será pôr-me a isto já.

 

Witterer emendou o seu visitante, com prudência:

 

Amanhã à noite, somente. Antes, não.

 

Eberwein viu  logo que estava metido com um principiante. Juntou pacificamente as mãos rosadas e disse:

 

A improvisação é tudo. Mesmo entre nós.  E, além disso, a inspiração. Pensamos com antecedência. Reflectimos no que acontecerá e construímo-lo antes que se realize.

 

Ah!   Ah!  exclamou Witterer,  começando  a  compreender. Trata-se então de «poses»?...

 

Os profanos empregam muito essa expressão. Nós, os especialistas, chamamos-lhes antecipações.

 

Compreendo   disse Witterer,  pressuroso.   Claro que estou às suas ordens.

 

Muito bem, meu capitão. Mas, por agora, não quero incomodá-lo.  Basta  que  ponha  à  minha  disposição,  para começar, alguns subalternos enérgicos. Prepararei tudo com eles.  Quanto  ao   resto,   as fotografias  propriamente   ditas, será trabalho de um quarto de hora.

 

Ajudá-lo-ei com todo o gosto  assegurou Witterer com ar de camaradagem.  Em todo o caso, peço-lhe que se considere meu convidado esta noite para o nosso espectáculo do Teatro do Exército.

 

Eberwein agradeceu em termos cordiais. A sua riquíssima imaginação começou imediatamente a trabalhar. Os títulos formavam-se já no seu cérebro rápido e cheio de audácia: Uma bateria pesada assegura o recuo... A 3.ª bateria recomeça a pulverizar os blindados... Dum espectáculo do Teatro do Exército os nossos soldados passam directamente ao combate.

 

Witterer começou por confiar Eberwein a Soeft, que foi. igualmente, convidado a velar pelo bem-estar material do correspondente. Além dele, foram também do grupo o «guarda-traças» e Krause. O próprio Witterer, muito interessado, ficou ao lado de Eberwein. Parecia estar absolutamente disposto a arredar do caminho do seu distinto hóspede todos os eventuais obstáculos.

 

O correspondente de guerra e o seu zeloso colaborador dirigiram-se no automóvel do chefe da bateria para perto da linha de fogo. Um segundo-cabo ocupava o lugar de Kowalski e, ao fim de três quilómetros, atirou-os para dentro dum fosso de altura de um homem, com tal força que Eberwein teve a impressão de ficar com todos os ossos partidos. Witterer tinha um lanho de quatro centímetros na testa e praguejava como um possesso. O segundo-cabo perdera o lugar de motorista do chefe.

 

Depois dele foi um primeiro-cabo. Tinha este o hábito de cuspir por cima do capot. Mas nunca o conseguia enquanto conduzia: as cusparadas eram projectadas para trás pelo vento, parte contra o pára-brisas, parte contra o rosto do passageiro da frente, isto é, Witterer. Depois de ter ouvido sérias descomposturas, passou a cuspir apenas de lado. Mas nesse mesmo dia teve uma avaria no carburador e Witterer e Eberwein foram obrigados a caminhar dois quilómetros a pé.

 

À tarde Kowalski voltara a ser motorista do chefe da bateria.

 

Entretanto, o correspondente mostrara ser um pequeno tirano. Tal como muitos semi-soldados, queria que o tomassem por um verdadeiro soldado. Entrou em luta com os homens da 3.ª bateria, que se deixavam levar passivamente, porque Witterer os vigiava com severidade.

 

Primeira fotografia: O momento decisivo. O capitão Witterer, chefe da gloriosa bateria, mantinha-se de pé, junto de uma peça, binóculo na mão, examinando o inimigo de toda a sua altura. Houvera o cuidado de escolher o terceiro canhão, que, colocado, como estava, atrás duma colina, se encontrava fora das vistas do adversário. O subalterno encarregado das munições organizara, a uma distância que não punha em perigo nem o fotógrafo nem os heróis que eram fotografados, uma pequena explosão. Mas foi somente à terceira explosão que Eberwein se declarou satisfeito.

 

Segunda fotografia: Incidente perigoso. Um tractor ameaçava escorregar para um fosso. Mas os soldados precipitavam-se a tempo e, num audacioso impulso  fotografia , empurravam o veículo, empregando todas as suas forças: rostos contraídos, capacetes à banda, botas enterradas na lama.

 

Terceira fotografia: Um blindado inimigo esmagado em combate directo. Um colosso russo de aço em chamas: apenas a alguns metros, num abrigo à flor da terra, um soldado lançando contra um blindado uma carga concentrada. Este blindado encontrava-se perto da aldeia da posição avançada havia quatro meses. Não era mais do que uma carcaça de aço desmantelada, fora de combate, sem lagartas. O «guarda-traças» regara-o de gasolina e ele ardia às mil maravilhas. O subalterno armado da carga concentrada não era outro senão Soeft, que desempenhava o seu papel magnificamente.

 

Tem   homens   muito   capazes   na   sua   bateria,   meu capitão  afirmou Eberwein, sinceramente, quando se apanhou com duas dúzias de boas fotografias no saco.

 

Não é mau material.

 

Não é de surpreender, com um chefe assim  acrescentou Eberwein.

 

Witterer encaixou sem cerimónia este cumprimento exorbitante. Conhecia o seu próprio valor e nunca duvidara de si mesmo. E pensava no que diriam os seus amigos da retaguarda quando o descobrissem talvez na primeira página do yõlkischer Beobachter ’. À frente da sua bateria. Rodeado de estilhaços de granadas. Olhos fitos no inimigo.

 

O primeiro-cabo Kowalski apresentou-se, de acordo com a ordem que recebera. Witterer mirou-o com um olhar descontente. Estava profundamente desgostoso por ter de conservar este indivíduo, que. infelizmente, era um excelente motorista.

 

Kowalski   disse-lhe ,  vá  buscar as  senhoras.   O sargento Asch,  que  deve transportar as bagagens, já está à sua espera.

 

E   quando   deverei   cumprir   a   minha  pena?  perguntou Kowalski amavelmente.

 

Ficará   para   mais   tarde,   quando   estivermos   mais tranquilos. E pode ter a certeza de que esses três dias não lhe serão poupados.

 

Também    não    o    pedi,    meu    capitão  respondeu Kowa’lski com uma correcção exasperante.

 

Witterer pensou um momento, perguntando a si mesmo se não se trataria outra vez duma observação impertinente. Mas a sua conclusão foi negativa, dada a maneira e o tom com que fora proferida. Apesar disso, a sua aversão por este tipo mal desbastado aumentou ainda mais. Era já quase ódio o que sentia por este indivíduo que lhe sorria com uma benevolência inquietante. Jurou a si mesmo arranjar na primeira ocasião um motorista capaz de servir.

 

Pouco depois teve com Wedelmann uma pequena controvérsia, que, no entanto, lhe pareceu bastante significativa. Depois de ter visitado a posição para onde retirariam, Wedelmann declarou-lhe que não tinha nenhum desejo de assistir ao espectáculo dessa noite.

 

1 Jornal oficial do Partido Nacional Socialista. (N. do T,)

 

«Nós, oficiais, devemos ser sempre modelos para os soldados», proclamou Witterer.

 

<Decerto>, respondeu Wedelmann, «mas não necessariamente neste domínio.»

 

«Nesse caso, quer alterar todo o meu programa? Foi para contar com a sua presença que o dispensei do serviço na linha de fogo.»

 

«Agradeço-lhe. Mas tenho já em que ocupar o tempo.»

 

«Dou muita importância», disse Witterer, e tratava-se duma ordem, não havia que duvidar, «a que assista ao espectáculo. Depois espero-o no meu alojamento, onde encontrará as artistas.»

 

«Está bem», disse Wedelmann, pousando o auscultador com uma expressão de mau humor.

 

Witterer sabia bem porque fazia tanta questão da presença de Wedelmann. Chamou o sargento ajudante e disse-lhe:

 

Às oito horas exactas. Nesse momento apresentará os assistentes ao tenente Wedelmann, que, por sua vez, me apresentará à bateria.

 

Bock também sabia o que Witterer queria: forçar o antigo chefe da bateria a anunciar diante de todos que não era mais do que o segundo do verdadeiro chefe. E isto desagradava a Bock. Retirou-se, descontente. Não só com Witterer, mas também consigo mesmo. Não fazia o bastante para conter o recém-chegado dentro das suas atribuições. E este recém-chegado fazia na verdade demasiado estrago.

 

Entretanto, Witterer preparava-se. Um olhar atento ao espelho convenceu-o da elegância da sua pessoa. Tinha a certeza de que Lisa lhe iria cair nos braços.

 

Em seguida mandou arrumar o seu alojamento. Uma quantidade de cobertores novos foram estendidos na mesa, nas cadeiras, no leito. A um canto, sobre um caixote rectangular, instalou-se uma espécie de bufete: um Bom número de garrafas fornecidas por Soeft, copos, uma taça cheia de bolos, uma outra contendo doces. Wilterer provou de tudo, fez um gesto de satisfação e prometeu felicitar Soeft.

 

Depois procurou em que lugar poria Lisa Ebner. A sua conclusão foi de que ela devia, naturalmente, sentar-se perto dele, na cama. Via-a já ali: pequena e delicada, flexível como uma gata e sempre com o seu ar de espanto. Que doce rapariga! Duas ou três horas mais tarde os convidados ir-se-iam embora. E ele ficaria só... com Lisa Ebner.

 

Começaram a chegar os primeiros convidados, que se espalharam através da granja. Soldados da infantaria e artilheiros estavam sentados pacificamente perto uns dos outros; acolhiam-se mesmo ali, sem reparo, graduados dos serviços de saúde. Num aparelho semelhante a um piano um subalterno batucava canções ligeiras. Por vezes os soldados acompanhavam-no, cantando, sobretudo quando era possível juntar à melodia um texto bem grosseiro.

 

Diante da granja e do pátio o sargento-ajudante Bock fazia de polícia de trânsito:

 

Não empurrem, camaradas! gritava, se bem que não se visse ninguém que, de perto ou de longe, empurrasse. - Todos os que têm bilhetes encontrarão lugar.

 

Mas depois teve de entrar na granja para acalmar um conflito entre os motoristas da sua bateria e soldados das transmissões. Em seguida recebeu um comandante de infantaria e conduziu-o às primeiras filas. Logo após vieram quatro oficiais superiores, e entre eles um capitão de blindados, acompanhado do seu cão. Bock opôs-se à admissão do animal. Mas o capitão Witterer aproximava-se, rescendendo a água-de-colónia a três metros de distância. E o cão foi autorizado a entrar.

 

Enfim, à hora exacta apareceu o grupo de artistas. Num pequeno automóvel, Asch transportava as bagagens e o ilusionista, a quem o receio de constipar-se torturava.

 

Mas era Kowalski quem transportava as senhoras. Ao lado dele estava sentada Charlotte, sorridente. Atrás, Lisa Ebner. com os seus grandes olhos emergindo duma capa de peles feita para um gigante. Ao lado dela, a dançarina Viola parecia dormir, de tal maneira os seus olhares eram insensíveis e indiferentes.

 

Kowalski e as suas passageiras foram imediatamente rodeadas por uma multidão de soldados que manifestavam o seu interesse. Kowalski parecia acreditar que era exclusivamente a ele que se dirigiam os olhares admirativos e perscrutadores dos soldados. Toda a gente se desvelava a ajudar as senhoras. E o próprio Kowalski se mostrou disposto a levar o saquinho de Charlotte, o que provocou a surpresa geral. Mas, por fim, deixou a Krause a alegria de se exibir como carregador.

 

Witterer abriu caminho e, com um sorriso cordial, exclamou:

 

Bem-vindas  sejam,  minhas  senhoras!

 

Apertou-lhes a mão, a de Lisa com mais energia que as outras, e perguntou:

 

Um licorzinho, talvez, para aquecer?

 

Mas Charlotte, que, sem discussão, tomara o comando do grupo, abanou a cabeça:

 

-Não disse. Primeiro, o trabalho. Depois, talvez, o prazer.

 

As senhoras quererão  talvez preparar-se?...   Talvez no meu alojamento?...

 

Já  estamos  prontas  respondeu   Charlotte.   Não precisamos de nada.

 

Além disso  acrescentou o sargento Asch , existe ao lado do estrado uma pequena sala que bastará, provavelmente.

 

-Quererão as senhoras passar rapidamente pelo lavabo?disse Soêft.

 

Charlotte largou a rir. Os olhos de Viola tornaram-se, de súbito, pequeninos e fitaram Soeft como o fazem as rapariguinhas aos papões dos seus livros de contos. Lisa corara. Olhou Witterer, que pareceu contrariado.

 

Terei  o  maior   gosto  em  indicar  o  caminho às  senhoras  assegurou Soeft.

 

Parece-me  que,   realmente,  pensou  em  tudo  disse Charlotte com uma  doce  ironia.

 

-Começamos? perguntou Asoh, interrompendo o silêncio incómodo. Ou vamos continuar a conversar?

 

Partiu adiante. As senhoras seguiram-no, assim como Witterer. Mas Soèft, adiantando-se-lhes, abriu a porta lateral da granja e, levantando o cobertor que estava pendurado atrás, fez um gesto de encorajamento.

 

Quando a guerra acabar  disse-lhe Asch  devias empregar-te como porteiro duma casa de passe.

 

É o meu sonho  respondeu Soeft com um sorriso de bem-aventurado.  E, se possível for, em Paris.

 

Witterer despediu-se  provisoriamente , dirigiu-se para a entrada principal e entrou na granja. Ninguém veio apresentar-se-lhe. Wedelmann ainda não tinha chegado e Bock esquivara-se. Isto foi para o capitão uma profunda ferida.

 

E foi para ele mais profunda ferida ainda ver o comandante da infantaria, ao pescoço do qual estava suspensa, provocante, a Cruz de Cavaleiro. Nesse momento Witterer sentiu-se como se estivesse completamente nu. E, para cúmulo, o comandante em questão disse-lhe:

 

Ah, é você que dispara granadas?E isto foi dito de tal maneira que dava a impressão de se ouvir uma injúria grosseira.

 

Fosse como fosse, Witterer ficou encantado quando a representação começou. E enquanto, tal como se podia esperar, o Bom humor não parava de crescer na sala, enquanto a Cruz de Cavaleiro do comandante da infantaria ofendia cada vez mais Witterer com o seu brilho, enquanto o correspondente de guerra, a quem Kowalski denominava, interpretando livremente o nome, «Urina de porco»a, tirava algumas das suas famosas fotografias, Lisa Ebner era confiada aos bons cuidados do sargento Asch.

 

Este conhecia os preparativos feitos no domicílio do capitão. Os olhares com que o oficial perseguia a rapariga durante os seus números não deixavam lugar a dúvidas. Aos olhos de Herbert Asch, Witterer era detestável em demasia para ela e Lisa demasiado boa para ele.

 

Quando o espectáculo chegou ao fim, sob os gritos de alegria do público, enquanto Viola, bonita e com ar de enfado, tinha de apresentar-se em frente da cortina e deixar-se admirar interminavelmente, Witterer considerou oportuno convidar o comandante da infantaria a tomar no seu alojamento um copinho de reconciliação.

 

Também pode ser um copo grande, seu lançador de granadas! exclamou o outro. Nunca se sabe se amanhã ainda seremos capazes de levantar o cotovelo.

 

Witterer encarregou Krause de ocupar-se das senhoras e de as conduzir a sua casa quando estivessem prontas. Feito isto, içou-se para o lugar ao lado do comandante e dirigiu-lhe um sorriso amigável, que o outro aceitou tranquilamente.

 

Uma delas tem um traseiro como uma égua  disse o comandante.  E eu gosto muito de cavalos.

 

Também  eu  gosto  de  montarrespondeu  Witterer com um riso viril.

 

Sentiu evidente satisfação ao ver o da infantaria juntarse a esta risada máscula. Mas não houvera nele o menor indício de alegria.

 

Meu caro lançador de granadas, deve-se sempre ir à frente quando não se quer ficar atrás. Isto é uma frase feita da infantaria.

 

Depressa haverá ocasião, e até mais do que se desejaria, de mostrar o que se vale.

 

Quanto  a  isso,  estou-me  nas  tintas.  Se  dependesse apenas de mim, acabaria a guerra deitado na minha cama.

 

Não é difícil. Já tem a Cruz de Cavaleiro.

 

Este bocado de lata? Custou-me sessenta e dois soldados,  uma  bala  nos  testículos   e   remorsos  para   toda   a vida  disse  o  comandante  numa voz  seca.  Julga  que o que me resta para viver bastará para apagar tudo isto?

 

A guerra  pode  ser terrivelmente dura  disse Witterer, procurando, o melhor que podia, disfarçar o seu embaraço.

 

Dura, nojenta, ignóbil. Merda, muito  simplesmente. Uma vez chegado ao seu alojamento com o seu singular convidado, Witterer examinou todas as coisas discretamente e pensou de novo que tudo estava em condições. com um olhar rápido e satisfeito, inspeccionou outra vez o canto onde devia sentar-se Lisa Ebner.

 

Convidou o comandante a instalar-se, o que este fez gemendo. Tinha um ar um pouco Surpreendido e disse:

 

Parece um bordel  da frente.

 

Witterer teve um riso embaraçado. Perguntava a si mesmo o que poderia fazer para desembararçar-se deste hóspede pouco divertido. Krause apareceu, nervoso.

 

Então? perguntou Witterer. As senhoras já aí vêm?

 

Meu capitão, as senhoras foram-se  embora.  com  o sargento Asch.

 

com mil raios! exclamou Witterer. Que quer dizer essa história?

 

Não será  realmente um bordel?  perguntou  o  comandante, com ar sonhador.

 

O   meu   carro    ordenou   o   capitão.    Imediatamente.

 

Meu capitão, Kowalski foi com elas.

 

Não se entusiasme, meu bravo lançador de granadas recomendou o da infantaria.  Suprima, muito simplesmente,   as   mulheres   para   os   próximos   anos.   Habitue-se, pouco a pouco, à ideia de que há mais pessoas mortas numa guerra do que crianças trazidas ao mundo. Por mais trabalho que se tenha.

 

O sargento Asch fez sinal ao motorista para ir mais devagar. Chegavam à cidade. O ilusionista, sentado atrás, sobre a sua mala, cansado e aborrecido, e sempre torturado pelo receio de um resfriamento, soltou um suspiro de alívio.

 

Kowalski seguia tranquilamente com as suas três damas. Não evitava uma única cratera de obus. O automóvel rangia e gemia. Estava convencido de que isto divertia consideràvelmente as suas três viajantes.

 

Cá  estamos!gritou-lhe  o  sargento.

 

E agora é que vai começar  disse Kowalski.

 

Asch saltara já do automóvel e descarregava as bagagens do grupo. O ilusionista ajudava-o, embora de má vontade. Kowalski observava-os.

 

Vamos despedir-nos  disse Asch.

 

Tu estás completamente chalado, com certeza  disse Kowalski,   sinceramente   aturdido.    Cá   por   mim,   estou muito longe de dar-me por satisfeito. Além disso,  acabo de extorquir três garrafas de champanhe a Soeft. Só por si isto já é um acontecimento, e deve ser festejado.

 

Asch evitava olhar Lisa, que não deixava de o examinar. Abanou a cabeça e disse:

 

Não devemos reter estas senhoras por mais tempo.

 

Além disso, eu tenho ainda um outro encontro  disse Viola, que gostava de começar à meia-noite o seu trabalho do dia.  Levem para cima as minhas coisas com as vossas, meus filhos. Tenho pressa. E até amanhã!

 

Ela deve ganhar bem a vida! exclamou Kowalski. seguindo-a com um olhar de espanto.  Como ela se balança! disse,   em   tom   de   admiração.  Deve   ter   sido camelo na sua vida anterior.

 

E   não  só   nessa!   disse   Charlotte,   secamente. Então, jovens heróis,  que  resolvem?  Querem  gelar aqui. desaparecer, ou subir connosco para beber um copo?

 

Já   lá   estou   em   cima  disse  Kowalski.   agarrando algumas bagagens.

 

E você, Asch  perguntou Charlotte, ironicamente . quer ficar aqui à espera do seu querido amigo?

 

-Verdadeiramente, não sei para que servirá isto.

 

Para   cumprir   as   promessas   que   se   fazem  disse Lisa Ebner, e na sua voz tão doce adivinhava-se uma certa irritação.

 

Quais promessas?

 

Se voltássemos imediatamente para a cidade, depois do espectáculo, um tal sargento Asch ficaria muito satisfeito. E,  acrescentou-se,  podíamos  conversar um  pouco  e beber uma garrafa de champanhe.

 

Quem  foi  que  disse  isso?  perguntou   Asch,   realmente surpreendido.

 

Eu disse Kowalski. Quem querias tu que fosse? Não disse efectivamente o que o teu coração pensava?

 

Abstraindo  mesmo   da  circunstância  de  eu   ignorar disse Charlotte num tom de  surperioridade  se  qualquer de vocês sabe o que vem a ser um coração, foi apenas em virtude dessa promessa que regressámos logo.

 

Exactamente   declarou  Lisa  Ebner num  tom  decidido.  Sem isso teríamos ficado com o capitão Witterer. E eu já lamento não o ter feito. Não gosto que façam pouco de mim... sobretudo nestas coisas.

 

Isso   não  é  comigo   disse   Kowalski.    Eu   digo sempre exactamente o que os outros pensam.

 

Dito isto, pôs-se a caminho, seguido de Charlotte, que ria. Lisa abandonou também Herbert, apertou a guitarra contra o peito e seguiu os outros.

 

Asch ficou algum tempo hesitante. Depois, num gesto enérgico, agarrou nas bagagens que o rodeavam e entrou, por sua vez.

 

Empurrou a porta que dava para o quarto de Charlotte e de Viola. Kowalski estava já de joelhos diante do fogão e soprava o lume, que fumegava. Entregou os embrulhos a Charlotte, que lhe disse, com um sorriso muito significativo:

 

Quanto a essa mala, queira levá-la aqui ao lado. Fez um sinal a Kowalski, que ria, saiu, fechou a porta e dirigiu-se e, sem bater, para o quarto de Lisa. Colocou a mala no chão.

 

E agora  perguntou ,  quer mais alguma  coisa ? Lisa olhou-o com os seus grandes olhos. Depois, como se ele ali não estivesse, lentamente, em movimentos pausados, desabotoou a capa, tirou-a e lançou-a para cima da cama.

 

Porque julga   que   não  fiquei   com   o   capitão   Witterer?  perguntou.

 

Porque é sensata. Muito mais sensata do que eu pensava.

 

Ela não respondeu. Deitou-lhe de novo um olhar breve, perscrutador, interrogativo. Em seguida deixou-se cair na cama e descalçou os sapatos sem os desatar. Inclinou-se, agarrou num par de pantufas e calçou-as, uma após outra, levantando a perna.

 

Depois disse:

 

Estou farta de ser sensata.

 

Durma bem  disse Herbert.  E sinta-se feliz por poder   dormir   sozinha.   Amanhã   apetecer-lhe-á   novamente uma vida honesta.

 

Lisa Ebner levantou-se rapidamente e, como se acabasse de tomar uma decisão, olhando sempre Herbert, agarrou o pull-over, passou-o por cima da cabeça e tirou-o. Deixou-o cair no próprio lugar onde estava. Tinha os cabelos despenteados e os olhos brilhantes.

 

Que significa isso. Lisa?  perguntou  Asch  calmamente.

 

Posso fazer  o  que  quero.

 

Vai apanhar frio  disse ele, inquieto.

 

Ela olhava-o outra vez. E o seu pequeno corpo nervoso endireitava-se, provocador. Ele distinguia-lhe o princípio dos seios, os ombros brancos, os braços macios e delgados.

 

Asch caminhou para ela, pôs-lhe as mãos nos ombros e fê-la sentar-se na cama. Ela não pôs a menor resistência. Deixou-se cair, enquanto o olhava.

 

Herbert sentou-se perto dela e disse gravemente:

 

Lisa,   você   é   uma   das   que   merecem   ser   amadas; inúmeras são aquelas com quem nos contentamos para dormir.  Mas  há  muitos  que  quererão  passar  a  vida  inteira consigo. Até agora apenas encontrei duas mulheres a quem podia dizer isto e a quem o disse.

 

Quem é a outra?

 

Asch  sorriu.  E continuou:

 

Não se prostitua, Lisa. Vale de mais para isso.

 

Mas eu amo  disse ela com convicção.

 

Se  por  acaso julga  amar Witterer,  então  não  sabe o que é o amor.

 

Não  é  Witterer!   exclamou   ela   violentamente. É a ti!

 

Lisa!

 

Num impulso selvagem, ela lançou-se-lhe contra o peito. Parecia que queria nele enterrar a cabeça. As suas pequenas mãos nervosas agarraram-se-lhe aos ombros. Os cabelos cheiravam bem, o seu hálito era ardente. Todo o corpo de Lisa parecia de fogo.

 

É  a  ti  que  eu   amo!disse  ela,  numa   voz   quase imperceptível.

 

Herbert aspirava o perfume que se desprendia dela. As suas mãos, que repousavam ainda nos ombros nus de Lisa, apertaram-se. Inclinou devagar a cabeça; os seus lábios afloraram os cabelos dela.

 

Depois afastou-a e disse:

 

Não pode ser, Lisa.

 

Ela olhou-o, desamparada, e perguntou:

 

Porque não?

 

Tu não sabes o que queres.

 

Sim, sei  disçe ela energicamente, enquanto os seus olhos se enchiam de  lágrimas,  e  estas lágrimas,  rápidas, irresistíveis, corriam pelo estreito rosto terno e ávido. Sei   o   que   quero  repetiu.  E   não   quero  fazer   outra coisa. Sou assim. E é assim que quero continuar a ser. E tu deves aceitar-me como sou.

 

Não esqueças que sou casado.  Sentia que tinha de defender-se  com  todas as forças de que era capaz,  duramente, brutalmente, se não fosse possível  doutra  maneira.

 

Desprendeu-se dela. Levantou-se, recuou até que a pequena mesa ficasse entre ambos. Fez como se a olhasse fixamente; na realidade, fitava a parede perto do rosto dela.

 

Que   ideia   é   essa,   Lisa?   perguntou   numa   voz dura,  Portas-te como uma gata. Como uma gata no cio. Não terás vergonha?

 

O pálido rosto de Lisa reflectia o assombro. As lágrimas já não corriam. Os lábios tremiam e Herbert viu que ela cerrava os dentes.

 

Como tu me falas! exclamou Lisa, soluçando ainda.

 

Como tu mereces. Esta guerra durará ainda três ou quatro anos. Quando tiver acabado terás vinte e três anos. Apenas vinte e três anos. Quererás nessa altura não ser mais do que uma velha prostituta?

 

Vai-te embora. Já!

 

Amanhã  disse Asch  já não estarás aqui. E eu também  estarei   a   algumas  dezenas   de   quilómetros   mais longe e mais perto uma noite do fim desta guerra nojenta.

 

Não quero voltar a ver-te mais. Nunca mais!

 

É o que acontecerá com certeza  disse Asch. Dirigiu-se devagar para a porta, curvando os ombros.

 

Antes de sair voltou-se ainda e disse:

 

Tem cuidado, não te deixes esborrachar. Seria pena. Abriu a porta rapidamente, tropeçou lá fora e fechou-a.

 

Deixou-se ficar imóvel um momento. Depois levantou a mão e fê-la deslizar lentamente por aquela porta atrás da qual Lisa Ebner estava estendida.

 

Tinha de ser  disse em voz alta.

 

Dirigiu-se para o cartaz onde estava escrito: «Requisitado pela Kommandantur local. Ocupado por duas mulheres.»

 

Bateu e esperou. Após uma breve pausa, bateu outra vez. A porta abriu-se e Kowalski apareceu. Estava em mangas de camisa.

 

Vamos?  perguntou   Asch,   convencido   de   que   a pergunta era inútil. Kowalski não conhecia complicações, sobretudo em amor.

 

Mas o primeiro-cabo respondeu imediatamente:

 

Sim, claro. E já.

 

Desapareceu e voltou apenas cinco minutos depois. Estava silencioso. Desceram a escada e saíram.

 

Pararam à entrada. Asch ergueu os olhos para o céu, que descia sobre eles, cinzento, pesado, baixo.

 

Está   a   preparar-se   uma   boa   porcaria   de   tempo disse o sargento.  Amanhã teremos uma péssima noite.

 

Também Kowalski parecia absorvido na contemplação do céu, cheio de neve e água. Parecia que respirava para examinar o ar frio e húmido. Depois disse, como num sonho:

 

Esta mulher é um verdadeiro perigo.

 

Asch, que logo compreendeu tratar-se de Charlotte, respondeu :

 

No entanto, não tinha aspecto disso.

 

Sim  afirmou Kowalski.  Sim.  Depois  acrescentou, com bastante hesitação:  Mais alguns dias com ela e eu tornar-me-ia num indivíduo decente. Não, isto é inacreditável!

 

Tu, um  indivíduo decente?   Não  acreditas  no  que estás a dizer, Kowalski.

 

Até   esta   noite   não   acreditava    afirmou.    Mas estive em grande perigo.

 

Não estarás a confundir-te com  ela?

 

Nem por sombras. Imagina, meu velho, que eu queria trabalhá-la seriamente, como convinha.

 

E não conseguiste? Estarás a chegar lentamente à velhice ?

 

Não me conheço a mim mesmo  disse Kowalski com um fundo suspiro.  A culpa é da guerra. E também desta mulher. Queria trabalhá-la, como te disse. E ela também estava disposta a isso. Mas quando eu me punha ao trabalho eis que ela me pergunta o que pensava eu do casamento. «O melhor possível», digo-lhe eu.  <Sobretudo para os outros.»

 

E ela pregou-te uma bofetada?

 

Pior do que isso, meu velho. Achou graça. Largou a rir. E agora pergunto a mim mesmo se terá sido de mim que ela riu.

 

Havia mais alguém no quarto?

 

Tu não me tomas a sério  disse Kowalski desolado. E ela também não me toma a sério. Tenho um pouco a impressão de ser um palhaço.

 

Bebeste com certeza em demasia.

 

Deve ser isso  disse Kowalski, aliviado.  Tem de ser isso. Estou completamente bêbado. Porque se não fosse isso nunca tal  coisa me poderia ter acontecido. Nunca!

 

Vamo-nos embora, valentão. É provável  que Witterer te espere com impaciência. E a mim também.

 

Esse Witterer  disse Kowalski , um dia virá-lo-ei como a um coscorão na frigideira, até que ele estale. E todos os Witterers que há no mundo.

 

Queres, então, um emprego estável?

 

Todos os Witterers! gritou Kowalski, pronto para brigar.  Porque são eles os culpados de que eu não tenha podido esta noite pôr-me em boa  disposição.  E  eu  não tenho razões para consentir que me façam semelhante coisa. Tu verás, quando eu estiver num carro com esse azelha!

 

A noite, que oprimia a frente de batalha, estava pesada

e molhada. No horizonte o céu e a terra pareciam colados um ao outro. A neve que a sentinela pisava aderia as botas como massa de pão.

 

A sentinela dava voltas à peça. Mexia-se para aquecer. Tinha as mãos profundamente enterradas nos bolsos do capote. O rosto, embuçado na gola levantada, parecia uma massa cinzenta e sem consistência.

 

O homem parou e apurou o ouvido. A noite parecia parar também para o ouvir respirar. Teve a impressão de distinguir ao longe um roncar de motores.

 

«É idiota», pensou. É que este rumor surdo, que parecia abafado por cobertores, vinha das linhas russas. E os Russos dormiam, disso estava convencido.

 

Que os deixem dormir!» ’

 

Felicíssimo, Soeft fechava os olhinhos e escancarava a boca. O seu enorme nariz apontava para o tecto. Berrava a canção das raparigas amorosas, tão quentes que não precisavam de roupa de baixo:

 

Como o Bom Deus as fez Todos os soldados as festejaram. E depois o ilustre comandante Gritou: «Outra vez

 

com Soeft cantavam os seus amigos íntimos: o sargento-ajudante e o «guarda-traças». Estava presente também o sargento enfermeiro.

 

Espessas nuvens de fumo enchiam o quarto. A mesa estava toda molhada de aguardente entornada. E Soeft declarou :

 

Vale mais beber do que não ter mulheres. E o brigadas acrescentou:

 

Se há cadáveres, mais vale que sejam garrafas. Soeft aprovou e disse:

 

Amanhã, durante a noite, a guerra recomeça. Mas eu digo-vos uma coisa boa: o reabastecimento é sempre melhor do que as munições. E o que há de mais importante é Soèft.

 

Experimenta fazer compreender isso a Witterer.

 

A guerra lho fará compreender melhor do que eu. Ela já fechou a boca a tipos que berravam melhor do que ele.

 

A noite sobre a retaguarda parecia serena e silenciosa. A Primavera deslizava, antes de tempo, através das nuvens azuis-negras. Nas ruas da pequena cidade a guerra apagara todas as luzes.

 

O subalterno Vierbein estava sentado em frente de Lore Schulz. Estava resolvido agora a mostrar-se corajoso. E Lore parecia disposta a não pôr muito tempo à prova este heroísmo tão recente.

 

Sr. Vierbein  disse, enquanto a lâmpada lançava uma luz doce sobre o seu rosto inquieto, eu faço também, para si, parte do depósito?

 

Creio, Sr.a Schulz respondeu Vierbein, surpreendido com a sua audácia , que pertence, antes, à frente de batalha.

 

Quem sabe? perguntou ela, devagar. Gosto bastante de me deixar vencer.

 

Depois acrescentou, mais lentamente ainda:

 

Não quer experimentar uma vez?

 

O coronel Luschke estava deitado, todo vestido, no seu leito de campanha. Não conseguia adormecer. O seu rosto irregular estava coberto de suor. Tinha as mãos cruzadas sobre os cobertores, mas não rezava.

 

Afastou a roupa, deixou-se escorregar do catre, dirigiu-se em passos firmes para a mesa onde estavam os mapas e inclinou-se para eles.

 

Tinha o aspecto de um anão fatigado, esgotado pelo trabalho. Sabia-o. Examinava os traços delgados que representavam as estradas por onde, na noite seguinte, as suas baterias recuariam.

 

As preocupações tinham-lhe marcado o rosto.

 

Agarrou nos relatórios chegados à noite à sua mesa: Movimentos de tropas inimigas no sector eram prováveis. A meteorologia não tinha alteração. Havia-se localizado um emissor inimigo no sector da divisão. Os meios de transporte para o hospital eram insuficientes. Estado das estradas, sem alteração. Proibição absoluta de movimentos de tropas antes do cair da noite.

 

Luschke apagou a lâmpada. Aproximou-se da janela, correu a cortina e perscrutou as trevas. Flocos de neve turbilhonavam, isolados, no céu. Caíam contra os vidros e derretiam-se.

 

Está a preparar-se uma bela porcaria  murmurou o coronel numa voz azeda.

 

O Sr. Asch, que vinha do quarto da filha, percorreu cautelosamente o corredor que levava à sala de jantar. O velho Freitag estava sentado diante duma garrafa de vinho e piscou o olho ao vê-lo.

 

Dorme  disse Asch.  E está só.

 

Não o lamentas, julgo.

 

Eu compreenderia  disse o velho com uma expressão pensativa, porque eu tê-lo-ia feito.

 

Freitag bebeu um trago de vinho e disse:

 

Segundo Vierbein, parece que há sectores da frente onde tudo está tranquilo. Quase tão tranquilo como aqui.

 

Porque não haveria? Ou imaginas que os rapazes são embalados pelos tiros de canhão?

 

Não pedem a opinião deles.

 

Mas são eles que fazem a guerra. E se eles não quisessem ela não se faria.

 

Quisemos   nós  a   primeira  guerra   mundial ?  perguntou Freitag.

 

Claro que não.

 

Nesse caso, não houve guerra.

 

Asch cortou a ponta doutro charuto e depois de o ter acendido  cuidadosamente  interrogou  o  amigo:

 

Por que motivo, afinal de contas, obedecemos nós quando o Fiihrer ordena?

 

É uma característica nacional, meu caro. Na nossa terra todas as ordens são sagradas. Todas as ordens. Pouco importa que sejam dadas por pessoas honestas, por idiotas ou por criminosos.

 

Natacha apertava-se contra o tenente Wedelmann. Os seus seios fortes apoiavam-se nele. Wedelmann julgava senti-la tremer.

 

Não te vás embora  disse ela, Wedelmann desprendeu-se docemente.

 

Tenho de ir Amanhã será um dia fatigante para nós. E depois virá uma noite em que não nos veremos. Mas, depois, teremos outra vez tempo um para o outro...

 

Não te vás embora  repetiu ela como se fosse, ao mesmo tempo, um rogo e uma exigência.

 

O tenente debruçou-se para ela e os seus lábios procuraram a boca da rapariga. O seu beijo era pudico e terno, como se fosse o primeiro.

 

É preciso  disse.

 

Ela abanou violentamente a cabeça.

 

Tu não devias deixar-me. Nunca. Devias ficar ao pé de mim... E acrescentou baixinho: Não quero estar mais sozinha.

 

Amo-te disse ele como nunca  amei ninguém.

 

Oh!   Como  eu  odeio  esta  guerra!gritou  ela  de súbito.

 

Também eu a odeio  disse Wedelmann sem saber já o que dizia. Acariciou docemente as mãos trémulas de Natacha e saiu sem rumor.

 

Ela seguiu-o com o olhar. Muito tempo depois de ele ter saído ainda ela olhava a porta fechada. Apurava o ouvido, como que desorientada.

 

Depois pousou as palmas das mãos no rosto. Fê-las deslizar até aos cabelos. Por fim ajoelhou-se: parecia que caíra.

 

Inclinou-se. Puxou o caixote que estava debaixo da cama, abriu-o com rapidez, tirou algumas roupas, um lenço de pescoço, meias, um vestido amarrotado. Depois retirou uma pequena caixa, abriu-a e pousou-a na mesa.

 

Era um emissor de ondas curtas.

 

A algazarra no alojamento de Soêft, algazarra que era considerada um canto, crescia de novo. Tratava-se agora da rapariga de Hamburgo que, por dinheiro, consentia tudo. Todos berravam com animação:

 

Ela não quebrou meu coração

 

Nem escangalhou o seu parceiro;

 

Contudo, os seus olhos sedutores

 

Foram amáveis para com o seu adversário...

 

Era mais ou menos isto, porque, no texto, modificado por Soeft, certas palavras parceiro, olhos sedutores haviam sido substituídas por outras cujo sentido era muito mais preciso.

 

Quando se entregavam assim às recordações da terra natal entraram Asch e Kowalski, que logo se puseram a cantar em uníssono.

 

Então vocês ainda estão vivos?  perguntou Soêft, quando a berraria chegou ao fim.

 

Não vejo por que motivo estaríamos mortos  respondeu Asch num tom desprendido.

 

E nós  disse Kowalski, rindo  que até trabalhámos para a posteridade!...

 

Convidaram-no imediatamente, em altos gritos, a contar as suas aventuras, mas um olhar irónico do amigo impediu-o de dizer o que se passara.

 

Em todo o caso disse, uma coisa é certa: onde eu me deito o Witterer já não tem nada que fazer. Quando muito podia segurar-me a vela.

 

Ele vai chegar-te o fogo ao rabo  disse-lhe, convicto, o subalterno enfermeiro.

 

Lore Schulz brincava outra vez com as mãos de Vierbein. Amava sempre as mãos que lhe pareciam belas. E amava, sobretudo, as que haviam sido ternas para ela.

 

A minha vida é muito solitária  disse.  Podes acreditar em mim.

 

Acredito em ti  respondeu Vierbein. Era capaz de acreditar em tudo quanto ela dissesse.

 

De resto, será isto vida? perguntou ela. Guardam-me fechada aqui. Não tenho o direito de ir à messe. Dizem-me que não sou digna dos oficiais. Quanto aos subalternos, estão demasiado abaixo de mim. Já não falamos dos soldados rasos. E os civis são uns palermas. Que me resta, se assim é?

 

Eu tenho um amigo  disse Vierbein, pensativo. E ele é almirante.

 

É verdade?  perguntou Lore, levantando-se.

 

E esse amigo, esse almirante, foi Bom para mim como o não foi jamais alguém que usasse farda. Se eu pedir qualquer  coisa  a  esse   almirante,  ele  faz-ma   certamente. Tenho a certeza.

 

E que poderia ele fazer?

 

É o sogro do coronel. Veio de propósito para o casamento. Vou falar-lhe de ti. Vou dizer-lhe quanto és bela, e boa, e alegre. E vou pedir-lhe que te exija como vizinha de mesa.

 

Farias isso por mim?  disse Lore, excitada.

 

Fá-lo-ei  com todo  o  gosto.  Porque tu  o  mereces. E, numa voz mal perceptível, acrescentou:  Ele também o mereceu.

 

Nessa mesma noite chegou à estação de correio da pequena cidade um telegrama urgente, concebido nos seguintes termos: «Subalterno Vierbein Stop Interromper imediatamente licença Stop Pôr-se imediatamente em marcha Stop Witterer, capitão, chefe de bateria Stop.»

 

O capitão Witterer, já muito tocado, estava sentado em frente do comandante da infantaria. O estômago deste parecia um buraco imenso que se não conseguia encher. Bebia, bebia, e era como se não produzisse qualquer efeito.

 

Durmo muito pouco  disse o comandante.

 

Os soldados não precisam de dormir muito  disse Witterer, que morria de fadiga. E Krause, sentado ao lado dele, acenou a cabeça a custo.

 

Merda!    exclamou   o   comandante.    Se   durmo pouco, é porque não posso dormir mais. Quem é que poderia dormir nesta porcaria em que estamos? Mas um destes dias vou-me abaixo  estarei maduro para o manicómio. Regozijo-me só de pensar nisso.

 

Na noite que vem isto vai recomeçar disse Witterer,  procurando sempre  desembaraçar-se do  seu  convidado.  Nessa altura teremos necessidade de todas as nossas energias.

 

Na noite que vem recuaremos em ordem, ao menos uma vez. Se o Russo não nos perseguir, será um passeio.

 

Receia complicações, meu comandante?  perguntou Witterer, cuja atenção despertara subitamente. Krause, como a sombra do seu chefe, esticou a orelha.

 

A guerra é feita só de complicações  disse o comandante, indiferente.

 

Em todo o caso, os nossos chefes saberão...

 

Merda! disse o da infantaria, convicto, engolindo um   copo  cheio  de  aguardente.  Fazer  a   guerra  sobre mapas é coisa completamente diferente de estar na lama. O sangue não é lápis encarnado. Aqui rebenta-se; lá apaga-se com  uma borracha. Um vomita  na neve  os pulmões estoirados;  o outro vomita porque bebeu vinho tinto em demasia.

 

E se o Russo nos perseguir realmente?

 

Nesse caso divertir-se-á outra vez a disparar tiros de canhão, meu amiguinho.

 

Devias estar contente por não o teres feito  dizia Charlotte a Lisa Ebner, sentada ao lado dela na cama.

 

Foi ele que o não fez!

 

Então escreve-lhe uma carta amanhã, para lhe agradeceres.

 

Eu ter-lhe-ia mostrado quanto o amo. E ele não o esqueceria nunca mais.

 

Minha pobre pequena! disse Charlotte, sorrindo, Que vem a ser nunca mais? Três dias? Um ano? Enquanto a guerra durar? Épocas como esta tornam a minha memória doente. Todos nós sofremos disso. Meu marido morreu na Polónia... Permaneci-lhe eu fiel?

 

Já passaram dois anos.

 

Fazia exactamente dez meses quando me deitei com outro...

 

Se tu o amasses...

 

Dois meses depois deitava-me outra vez com outro. Nos dois meses que se seguiram com três ou quatro outros...

 

Porquê?

 

Porque estava no declive  respondeu Charlotte sinceramente. Já não podia travar... Mas agora não quero mais.

 

Que pretendes tu, realmente, Charlotte?

 

Casar-me  respondeu  com simplicidade.  Quero saber finalmente onde é o meu lugar. E estes indivíduos que me despem com os olhos metem-me nojo. Se a guerra tivesse rosto, era aí que eu cuspiria.

 

O tenente Schulz gracejava com a noiva do coronel. A menina estava ainda muito desperta, mas o seu futuro esposo dormia já e ressonava harmoniosamente na poltrona.

 

Schulz fazia aquilo a que chamava «encanto»:

 

Minha senhora, o seu futuro esposo poderá confiar em mim em todas as circunstâncias. Mas mesmo em todas as circunstâncias.

 

Nós apreciamo-lo muito, Sr. Schulz...

 

É uma honra para mim  respondeu ele, numa voz sonora. E com um pouco mais fazia olhos bonitos.

 

Estou   encantada  disse  ela   cordialmente.

 

Era uma mulher delgada, quase seca. Era pálida e de um louro deslavado; e a sua vida interior parecia ser igualmente pálida e de um louro deslavado. No entanto, os olhos brilhavam-lhe numa expectativa amimada. Para Schulz tratava-se duma dama, e não só porque ela ia casar com o seu coronel; e Schulz tinha um fraco pelas damas.

 

Dorme  disse  ela   inclinando   a  cabeça   levemente para o coronel, que ressonava, ao mesmo tempo que sorria para Schulz. A sua amabilidade de ombros largos agradava-lhe. Para ela Schulz era um acessório importante do soldado com quem ia casar.

 

Dá-me licença? disse Schulz. Tocou a campainha.

 

Apareceu uma ordenança. Schulz deu uma ordem rápida: Os dois siameses aqui.

 

Quase a seguir apareceram Bartsch e Ruhnau, que, um pouco cambaleantes, se puseram em sentido.

 

Vamos, beberrões  disse Schulz.  Vocês vão transportar o Sr. Coronel a casa. E tratem de não fazer tolices, seus farsantes. Amanhã é o exercício de tiro e quero que estejam em condições.

 

Os dois irmãos siameses riam, satisfeitos, porque tinham compreendido.

 

Se me dá  licença,  minha  senhora  disse Schulz, dando-se ares de homem de sociedade, acompanhá-la-ei.

 

Parei diante da porta dela

 

Mas já não quis ir-me embora.

 

Foi então que ela disse: «Vamos, entra!’»

 

E eu meti a chave na algibeira.

 

Soeft e os seus camaradas berravam com as suas últimas forças esta canção, que o chefe dos abastecimentos dirigia com grandes gestos de braços, ao mesmo tempo que se esforçava por conservar o equilíbrio.

 

O sargento enfermeiro canta como um porco empiteirado  disse Kowalski numa voz tremelicante.

 

O «guarda-traças», cheio de álcool até cima, levantou-se cambaleante, escorregou, levantou-se outra vez e berrou:

 

Foste tu, seringa de blenorragia, que me fizeste cair de cu. Percebes? Vamos, canta, caça-piolhos!

 

Tu dás-me vontade de ir à pia  respondeu o enfermeiro.

 

Tu  vais cantar!bramiu  o  «guarda-traças».

 

Se   não   me  deixas   em   paz   disse   o   outro,   furioso, faço uma participação ao capitão e digo-lhe que fazes pouco de mim constantemente em presença dos soldados.

 

Uh!exclamou Herbert Asch.

 

Uh!  gritaram todos os outros.

 

Quando   ele  fala   de   soldados  tartamudeou   Kowalski  é de mim que quer falar, esse idiota. Ele não sabe que estou um grau acima dos oficiais do estado-maior. E até, em certas camas, mais acima que os generais.

 

Eu  vou-te   dar   o  capitão!exclamou   o   «guarda-traças», puxando pelo cinturão. Sacou a pistola do coldre e apontou-a ao enfermeiro:

 

Patas acima,  Witterer!gritou.

 

O enfermeiro olhava o seu adversário com olhos vítreos. O pânico fizera empalidecer o seu rosto lunar.

 

Fogo!comandou  o sargento-ajudante.

 

O «guarda-traças» disparou. O enfermeiro deu um salto. O «guarda-traças» disparou outra vez. O enfermeiro atirou-se ao chão. O «guarda-traças» disparou terceira vez. O enfermeiro soltou um urro.

 

Estou ferido!  gritou.

 

Asch precipitou-se para ele. Kowalski fazia caretas de desprezo. Soeft inclinou-se, interessado. O sargento-ajudante não se mexeu. O «guarda-traças» estava especado como uma estaca.

 

Um arranhão no traseiro  afirmou Asch.

 

Foi   aí   justamente   que   eu   apontei   declarou   o «guarda-traças».  Eu  lhe darei o Witterer.

 

Então Kowalski precipitou-se para o sargento enfermeiro, que não parava de gemer. com a ajuda do sargento Asch, pô-lo sobre a mesa e puxou-lhe as calças para baixo. O traseiro escuro luzia sob a claridade da lâmpada. Quanto ao sargento-ajudante, esse declarou:

 

Farei amanhã de manhã uma proposta para a medalha por ferimentos. Na luta com os guerrilheiros.

 

Asch acrescentou:

 

O primeiro da nova lista de feridos. Depressa haverá outros.

 

A noite, sobre a frente, afastava-se devagar. O céu e a terra pareciam unidos. Nevava.

 

Os flocos caíam, semelhantes a gotas de água. Delgados. Isolados. Mal perceptíveis.

 

A sentinela, postada perto dos canhões, agachara-se sob um bocado de lona. Olhava para o lado dos inimigos. Escutava com todas as forças, de olhos quase fechados.

 

O rumor longínquo dos motores aproximara-se mais. Eram motores potentes, de rumor surdo. A sentinela imaginava os veículos inimigos abrindo caminho através da lama.

 

Seriam viaturas? Ou tractores pesados? Ou blindados?

 

«Estúpido!», pensou, então, o soldado. Que poderia ser aquilo? Sabia que de noite os ruídos são quatro vezes mais fortes do que durante o dia. Isto tranquilizou-o. Agora apenas estava fatigado, a cair de fadiga, morto de fadiga... «Por que razão não o estariam também os Russos?»

 

E a neve continuava a cair. Sem rumor. Depois transformava-se em gotas de água. . Delgadas. Isoladas. Mal perceptíveis.

 

Quando, lentamente, a guerra recomeçou, o primeiro a desaparecer foi o correspondente de guerra. O Sonderfiihrer Eberwein não precisava de ver a batalha de perto para poder descrevê-la em termos inflamados... Deixava aos seus confrades menos imaginativos as experiências da frente.

 

O segundo a safar-se foi Soeft. É certo que este contava regressar. Dava-se muito simplesmente ao luxo de efectuar, doze horas mais cedo do que os outros, o recuo geral, preparado em grande segredo e camuflado de todas as maneiras. Antes do cair da noite todos os movimentos de tropas eram proibidos. Mas logo ao princípio da tarde Soèft começou a deslocar as suas.

 

Escusado será dizer que não pediu autorização a ninguém. Começou por carregar no seu camião de oito toneladas a mercearia fina, os vinhos espirituosos, o tabaco, e aproveitou a ocasião para expedir pelo último comboio de mercadorias três caixotes para um endereço fictício da retaguarda.

 

Se queres expedir três caixotes disse-lhe o sargento-ajudante  da  estação,  tens  de entregar-nos cinco. Quarenta por cento para o patrão é a nova taxa.

 

Vocês cada vez estão mais usurários  disse Soeft, descontente.

 

Se não queres, não queiras disse o tipo do caminho de ferro, imperturbável.  Nesse caso, desimpede ao menos a rampa, para que outros possam passar.

 

Soeft examinou o monte de caixotes, sacos e malas no cais das mercadorias com um desagrado crescente. A brigada de embarque estava sentada aqui e além, fumando e passando pelo sono, e aguardava o penúltimo comboio de transporte. O comandante da estação passeava de um lado para o outro como um galo na estrumeira.

 

Um caixote para três, como de costume disse, por fim, Soêft , e, além disso, um pacote de mercearia fina só para ti.

 

Com caviar?  perguntou  o  sargento-ajudante friamente.

 

Com duas libras de caviar.

 

Vá lá! disse o outro, fazendo cara de quem lhe custava esta decisão.  Não quero recusar-te. Faz-se o que se pode, bem vistas as coisas, tendo em atenção a nossa velha amizade...

 

Podes mudar de disco, velho intrujão disse Soêft em tom amistoso. Estamos sozinhos.

 

Depois de ter concluído esta transacção Soeft pôs-se a preparar o seu automóvel privativo, o oito toneladas e o Ford para o carregamento. Não fez caso dos protestos do sargento-ajudante Bock, que receava complicações.

 

Uma hora mais tarde o coronel chamava Witterer ao telefone.

 

«Ele que ligue para mim imediatamente. E não esqueça, sargento-ajudante: eu disse imediatamente.»

 

O capitão fazia executar exercícios de carregamento aos soldados do escalão das munições.

 

Um soldado chegou correndo. Ofegava, se bem que não se tivesse esforçado muito. Tratava-se -duma hábil imitação.

 

Meu capitão, queira ligar imediatamente para o nosso coronel.

 

O capitão, seguido do seu «lambe-cu» Krause, dirigiu-se para o telefone mais próximo. Depois de, prudentemente, ter expulsado todos os que poderiam ouvi-lo, pediu ligação com Luschke, cuja voz, como de costume, era doce e velada.

 

«Aqui o capitão Witterer. Recebi ordem de ligar para si ,meu coronel.»

 

Luschke começou por tossicar. Depois, com a mesma voz doce, perguntou:

 

«Para que julga que são dadas as ordens, capitão?»

 

«Para serem executadas», respondeu prontamente Witterer.

 

«Como isso foi bem dito, capitão! É preciso que o diga igualmente e o mais depressa possível aos seus homens.»

 

«Sim, meu coronel.»

 

«É que os seus princípios, que me são extremamente preciosos, capitão, não parecem ser ainda bem conhecidos da sua bateria. Sabe, de maneira precisa, onde se encontra actualmente o bravo Soeft?»

 

«No armazém dos abastecimentos, suponho eu, meu coronel.»

 

«Supõe, capitão? Eu preferia que o soubesse. Porque se soubesse o que Soêft está a magicar agora saberia também que a sua bateria se importa tanto com as suas ordens como com a primeira camisa que vestiu. Soeft está a transferir abastecimentos para a retaguarda com um comboio de viaturas como se tivesse de abastecer três generais.>

 

«Meu coronel, vou imediatamente... Se isso é exacto, meu coronel, prenderei imediatamente esse indivíduo.»

 

«Se isto é exacto, capitão? Porá em dúvida as minhasafirmações, capitão? Não? É tão amável! E quer prendê-lo? Meu caro Witterer, trate de estabelecer a ordem no seu sector, mas não comece já a atirar granadas. Alguma vez ouviu falar de confiança? De colaboração? Ouviu? Já vê! Mas é provável que não saiba com muita exactidão o que seja? Ou saberá?».

 

«Sim, meu coronel.»

 

«Muito bem. Mas seria bem melhor se não se contentasse em sabê-lo e agisse como tal. Pergunte a Wedelmann. Informe-se junto do sargento Asch. Não tenha medo de pedir conselhos aos seus soldados. Todos eles tiveram ocasião de ver donde vinha o vento quando cheirava mal aqui. E, por acaso, eu sei que o próprio Soeft nunca se pôsao fresco sem ter primeiro prevenido o seu chefe. Isto devia fazê-lo pensar.» »

 

«Sim, meu coronel.»

 

«Capitão Witterer», acrescentou Luschke em voz baixa e ameaçadora, «se me deita abaixo a minha 3.ª bateria, que Deus tenha piedade de si, se é que Deus tem ainda alguma coisa a fazer na Alemanha de hoje. Tem consigo um punhado de excelentes soldados; deverá fazer a guerra com eles, mas não contra eles. Se surgirem dificuldades, Witterer, se se provar que foi você quem as provocou!... Então conhecerá o Batata, mas nessa altura conhecê-lo-á a fundo.»

 

O coronel cortou a comunicação. Witterer conservou ainda durante alguns segundos o auscultador na mão, enquanto fixava o sombrio reduto. Estava perplexo e mesmo impressionado, mas não esmagado.

 

O capitão Witterer interrompera os seus exercícios de treino e dirigira-se para o seu alojamento. Chegado lá, fez um balanço provisório. A sua conversa telefónica com o Batata fazia erguer ainda dentro de si enormes vagas.

 

Eu sou o chefe  disse para Krause. E exijo que tenham confiança em mim.

 

É absolutamente natural  disse Krause, afectando confiança.

 

Acima de tudo, o mais importante é a colaboração.

 

Perfeitamente, meu capitão  disse Krause, todo disposto a colaborar.

 

Espero acrescentou Witterer poder contar sempre consigo.

 

Krause olhou o seu chefe com uma expressão’ dedicada, e esta dedicação parecia autêntica. Era uma profissão de fé sem palavras. Witterer meneou a cabeça, de perfeito acordo.

 

Depois disse:

 

Espero também, Krause, que veja que o posto para que o propus é um posto de confiança.

 

Sem dúvida, meu  capitão  assegurou Krause em tom quase solene.

 

Muito bem  disse Witterer.  Nós veremos.

 

Em seguida pôs-se a caminhar de um lado para o outro, para dominar a crescente inquietação que dele se apoderara depois da conversa telefónica com Luschke.

 

De súbito estacou, olhou Krause com uma expressão perscrutadora e interrogou-o:

 

Conhece bastante bem o coronel Luschke? Que género de homem é ele?

 

Não há ninguém que conheça bastante bem o coronel Luschke  disse o outro com a prudência que se impunha.

 

Nem o tenente Wedelmann?

 

Não é muito admissível, meu capitão, embora o coronel pareça  incontestavelmente  estimar muito  particularmente o nosso antigo tenente Wedelmann.

 

Como homem?

 

Sobretudo como chefe de bateria, provavelmente, em virtude dos êxitos que alcançou. Os triunfos conseguidos pela bateria foram sem dúvida o motivo convincente.

 

Ah! Ah! exclamou   Witterer,   nada  constrangido por discutir tais assuntos com um subordinado. Sentia que se estava aproximando do ponto crucial. E pensava: «Witterer, tu já experimentaste muitas tempestades. Tiveste generais como chefes directos. Saíste-te bem com os mais difíceis estrategas da administração: também te sairás bem com um Luschke; talvez não às primeiras, mas pouco a pouco.>

 

O coronel  acrescentou, como para si mesmo  dá muito valor à colaboração e à confiança. Glaro que isto não é mais do que conversa fiada, mas há-de tê-las.

 

A coragem também o  impressiona  disse Krause muito calmo e com uma voz quase imperceptível.

 

Também a terá!  E em quantidade!

 

Então Krause acrescentou, convencido de que atirava a Witterer o mais formidável engodo:

 

O que o coronel ainda não tem é a Cruz de Cavaleiro.

 

Ora ai está! exclamou Witterer espantado e satisfeito. Aí é que bate o ponto!

 

O coronel esteve quase a ter a Cruz no Outono passado. Mas o general de divisão estava antes dele na lista.

 

Witterer acenou a cabeça, pensando: «Aí está donde o vento sopra. O velho convenceu-se, com certeza, de que a Cruz de Cavaleiro estava garantida se os êxitos das suas tropas, e, em particular, da 3.ª bateria, não diminuíssem. E enquanto Wedelmann comandou esses êxitos pareciam-lhe garantidos para o futuro. Logo: colaboração! Logo: confiança! Pois tê-las-á. Terá tudo.» E depois de ter rido, acrescentou:

 

Peça   ao   tenente  Wedelmann  que   venha   falar-me. O sargento Asch igualmente.

 

Sim... Se acha, meu capitão...

 

Antes disso ligue para a Kommandantur local da etapa. E trate de chamar a menina Lisa Ebner ao telefone.

 

Sim, meu capitão.

 

Enquanto Krause telefonava, Witterer pôs-se a estudar no mapa as indicações assinaladas: Posição actual  Nova posição  Caminho a seguir. E logo voltou a saborear o fenómeno guerra, que os sarcasmos telefónicos haviam consideràvelmente murchado.

 

O telefone tocou com violência. A desejada comunicação com Lisa Ebner fora estabelecida. Witterer mudou rapidamente de disco, e de herói sedento de aventuras tornou-se num taful homem de sociedade.

 

«Lamento sinceramente», disse, «que não tenha ficado ontem à noite.»

 

«Também eu lamento.»

 

«O sargento Asch fez-lhe, ao menos, companhia agradável?»

 

«Pu-lo na rua.»

 

«Verdade?»

 

«com perdas e danos.»

 

«Bravo!»

 

«Não acho assim tanta graça, capitão.»

 

«com certeza. Em todo o caso, teria passado connosco um serão agradável.»

 

«Não duvido. É pena que não nos possamos desforrar esta noite. Estamos a fazer as bagagens.»

 

«Talvez eu possa estar consigo um momento esta tarde. Decerto não partirão antes da noite!»

 

«Ficarei encantada», respondeu Lisa, num tom assaz distante.

 

«Também eu me regozijo», disse Witterer, sorrindo como se ela estivesse diante de si.

 

Recebeu Wedelmann e Asch de pé, mas deu, contudo, dois passos para eles e estendeu-lhes a mão, o que divertiu o tenente e excitou vivamente a desconfiança do sargento. Krause postou-se ao fundo.

 

Meus  senhores   disse   o   capitão ,   convoquei-os para discutir rapidamente algumas questões de ordem geral.

 

Mas sentem-se!

 

Wedelmann e Asch sentaram-se. Witterer ficou de pé:

 

Meus senhores  continuou , os preparativos para a retirada estão quase terminados. Mas, como os senhores não  têm  funções  definidas na bateria,  permiti-me  destinar-lhes ocupações especiais.

 

Que entende por ocupações especiais, meu capitão?

 

perguntou Wedelmann.

 

É muito simples. Como nem um nem outro comandam, irão fiscalizar.

 

Estaremos nós nos caminhos de ferro?  perguntou Asch a Wedelmann, que se contentou em encolher os ombros.

 

Witterer, fazendo de conta que não ouvira e bem decidido a não tolerar mais observações insolentes daquele sargento, prosseguiu:

 

A vossa tarefa consistirá, em  primeiro  lugar,  em apoiar-me na minha actividade de chefe de bateria. O senhor, tenente, irá para a nova posição ao cair da noite e vigiará a chegada da bateria. Você, Asch, acompanhará de motocicleta todos os grupos da bateria, primeiro a retaguarda, depois a linha de fogo.

 

Como uma espécie de cão de guarda, não?

 

Mais ou menos, sargento. Se houver algum acidente, de qualquer espécie que seja, terá de resolvê-lo. Ou não se julga bastante sólido para isso?

 

Bastante sólido? Sim  disse Asch, desprendido mas não com ar bastante estúpido.  Isso de que me quer encarregar, meu capitão, é já uma das tarefas de cada chefe de escalão e, se preciso for, do fiel de armazém.

 

E que acontecerá, sargento Asch perguntou Witterer, muito alto, se se derem aborrecimentos imprevistos?

 

Desde quando  perguntou Asch, voltando-se outra vez para Wedelmann  existe um sargento para os casos imprevistos?

 

A questão, contudo, é clara disse o tenente, sem se dar ao trabalho de esconder quanto estava descontente. Não está a ver ainda?

 

Sou por vezes duro da cabeça, e creio que deve haver outros que são tão estúpidos como eu.

 

Meus senhores  disse o capitão em tom persuasivo, depois de ter logrado uma vez mais não dar conta das observações do sargento. há duas coisas a que eu dou uma importância excepcional: a confiança e a -colaboração.

 

Já ouvi isto  murmurou Asch.

 

É para elas que eu apelo: para a vossa confiança e para a vossa colaboração. A isto acrescentam-se a disciplina e a coragem. É que, meus senhores, eu quero ver finalmente uma bateria que marcha. As suas qualidades guerreiras devem manifestar-se agora. E conto com os senhores para dar o Bom exemplo.

 

É tudo? perguntou Wedelmann, levantando-se.

 

Oficialmente, sim. Por outro lado, tenho ainda uma coisa a dizer, e isto é consigo, sargento.

 

De que se trata?

 

As suas qualidades de homem  disse Witterer com um certo  desdém  não me  interessam particularmente. Organizou adequadamente o espectáculo do Teatro do Exército e felicito-o por isso. Se não se conduziu muito correctamente como homem, tal como a menina Lisa Ebner acaba de me informar, lamento-o, mas não lhe quero mal. Espero que mostre nas horas que se aproximam a sua capacidade militar, de que tanto se fala. Compreendeu?

 

Perfeitamente  disse   Asch,   levantando-se   devagar.

 

Quanto à disciplina, falaremos mais tarde em pormenor.

 

com todo o prazer  disse Asch num tom de enfado.

 

Depois Witterer fez-se conduzir com Krause à linha de fogo, pôs em alerta os serventes de duas peças, indicou-lhes apenas três minutos mais tarde os seus objectivos e ordenou:

 

Tiro de surpresa!

 

Os obuses foram explodir na colina, no meio das casas, donde brotou uma labareda, logo seguida de fumo negro.

 

Continuem!exclamou Witterer, bem disposto, do seu abrigo.

 

E dirigindo-se a Krause, que se encolhia a seu lado, disse:

 

Agora podemos partir. Agora pouco importa.  Ivan pode trazer a artilharia que quiser. Antes que cheguem já nós teremos desaparecido.

 

Mas eis que, de súbito, pesados obuses começaram a cair em volta. Mugiam numa voz surda e ameaçadora... O capitão desapareceu completamente no abrigo. A terra parecia ter sido rasgada em vários pontos. com um zumbido agudo passavam estilhaços.

 

Eles têm artilharia!  exclamou Krause, estupefacto. Perto da  segunda  peça  um  homem  soltou  um  grito.

 

Outro, a poucos metros de Witterer, parecia petrificado. Do pescoço saltava-lhe um jacto de sangue: a carótida estava com certeza cortada.

 

Abriguem-se!berrou   Witterer.

 

Pela segunda vez os obuses inimigos roncaram e cravaram-se na terra, perto deles, projectando lama e estilhaços de ferro fundido.

 

Um maqueiro! gritava um soldado, soltando gritos semelhantes ao ruído duma sereia.

 

Que porcaria!  exclamou Witterer depois de ter recuperado  a  presença  de espírito.  Que história  é  esta? Ordem aos observadores: localizar a bateria inimiga. Depois destruiremos o arranjinho a esses porcos.

 

Um ferido passava transportado num pano de tenda. Um outro rastejava pelo terreno em movimentos precipitados, gritando como um animal. O chefe de peça correu para ele para tentar fazê-lo voltar.

 

Ele podia muito bem dominar-se um pouco  disse o capitão brutalmente.

 

É possível que tenha um estilhaço de obus na cabeça disse o chefe de peça esforçando-se por segurar o ferido, que parecia um doido furioso.

 

Witterer saiu do abrigo e dirigiu-se, seguido de Krause, para o automóvel.

 

Gostava bem de saber como é possível ter o Russo agora canhões. Não é normal.

 

Porque não havia de tê-los? perguntou Kowalski, pondo o motor a trabalhar.  Verá como ele sabe servir-se deles. Isto é apenas o começo.

 

O exercício de tiro, marcado para as nove horas da manhã pelo tenente Schulz, na qualidade de representante do coronel, não tinha, às onze horas, começado ainda.

 

Desde as sete horas que os homens estavam nos seus postos. Às oito horas foi ordenada a disposição em bateria. Às oito e um quarto os aparelhos de rádio declararam-se prontos a entrar em acção. Por volta das nove horas chegaram Schulz, o oficial ordenança e Vierbein.

 

Às dez horas anunciaram que todas as medidas de segurança tinham sido tomadas. Quase ao mesmo tempo o oficial verificador da Kommandantur informou que os objectivos móveis, em número de quatro, estavam prontos para marchar. Às dez e meia a chegada do general foi anunciada pelo telefone como provável para as onze horas.

 

Schulz resolveu aproveitar o tempo que lhe restava até lá. Ordenou exercícios de partir tudo. Mantinha-se ali, de relógio na mão, e vigiava cada movimento dos seus reservistas.

 

Eu vos ensinarei, cambada  de azelhas!    gritava, animado. Já me passaram outros pelas mãos. Vamos! Outra vez!

 

O subalterno Vierbein estava um pouco afastado, sobre uma elevação. Esquecera por momentos que Schulz o trouxera com ele como cavalo de parada do destacamento. O doce sol da Primavera sorria-lhe, aquecia-o agradavelmente, demorava-se no seu jovem e melancólico rosto. Vierbein sonhava.

 

Mais uma vez, imbecis! berrava Schulz. Aprendam duma vez, ou eu lhes aplainarei as nádegas. Já está? Em posição?

 

Os homens dos quatro serviços apertavam os dentes. Manejavam os tubos, levantavam as travessas, colocavam os foguetões, deslocavam os reparos com grande ruído... O metal chocava com o metal, o suor corria,- Schulz ria brutalmente, com desdém.

 

Cinco segundos além do tempo normal. E pretendem vocês ser artilheiros! Formados sobre a minha direcção? Merda é o que vocês são. Que são vocês?

 

Merda,  meu tenente  berravam  os serventes.

 

Outra vez! Mudança de posição!

 

Vierbein parecia nada ouvir. Via diante de si a planície como um tapete. E sobre este tapete, muito perto dele, parecia-lhe ver Lore Schulz de joelhos. A sua boca parecia sangrenta. E depois esta mancha alargou-se; o verde da planície empalideceu, tornou-se cinzento, branco, cada vez mais branco, e, finalmente, transformou-se em neve. Neve como na Rússia.

 

Estremeceu. Levou a mão ao peito. Ouviu o ruído dum papel: o telegrama dum capitão Witterer que o chamava para a frente de batalha..

 

Aí vem o  general  gritou  uma  sentinela  postada para esse efeito.

 

E agora tratem de se aguentar, seus palermas! berrou Schulz.  mostrem ao general que são capazes de fazer mais alguma coisa do que receber víveres. E digo-lhes uma coisa, cambada de cretinos: se isto não correr como eu quero, farão exercício de tal maneira que morrer será para vocês uma alegria.

 

O general apareceu com a sua comitiva amontoada em dois automóveis. Era um homenzinho atarracado, um pouco rechonchudo: o seu rosto lembrava o de um representante geral, a sua maneira de andar a de um gerente. Seguia-o um baixote castanho, que correu para Schulz e fez menção de levantar a pata para as botas dele.

 

Schulz, após as vozes de comando iniciais, fez o seu relatório numa voz tonitruante. Os oficiais saudaram. Os homens estavam em sentido. Duma igreja longínqua chegavam as doze badaladas do meio-dia.

 

bom dia, soldados!  gritou o general.

 

Fez um gesto benevolente, estendeu a mão a Schulz e disse:

 

Vamos! Mostre-nos do que é capaz!

 

O tiro e os exercícios de rádio anunciados para as nove horas podiam começar: era já meio-dia e um quarto. Mas nada começou.

 

Primeiro foram os objectivos que não estavam nos seus lugares. E quando passaram a estar verificou-se que não tinham sido tomadas as medidas de segurança. Quando o foram descobriu-se que o aparelho de pontaria duma das peças fora avariado por munições. Mudaram-no. Mas depois já não havia segurança. Por fim, depois de se ter anunciado que a segurança estava restabelecida, o cabo que servia para puxar os objectivos partiu-se.

 

O general, que, ao princípio, conversava familiarmente com a sua roda, acabou por conservar-se em absoluto silêncio. Procurava olhar com severidade, mas apenas conseguia olhar estupidamente. Por fim pôs-se a fungar com ar descontente, ao mesmo tempo que com as suas luvas de cabedal batia o compasso nos seus calções de montar duma maneira provocadora.

 

O tenente Schulz estava a ponto de rebentar.

 

Finalmente, após três quartos de hora absolutamente desagradáveis, o primeiro tiro partiu e foi dar a alguns quilómetros do alvo. O segundo aproximou-se, mas também não atingiu o objectivo. Nenhum dos oito primeiros tiros alcançou o alvo e este foi levado absolutamente intacto.

 

Completamente falhado!disse o general. Schulz corou e cerrou os dentes. Mas quando o segundo objectivo se afastou, por sua vez, sem ter sido atingido, os seus punhos crisparam-se. O general disse:

 

O mais perfeito falhanço!

 

Então, Schulz, adiantando o que ele julgava ser o seu trunfo invencível, gritou:

 

O subalterno Vierbein assume a direcção do próximo tiro.

 

Vierbein aproximou-se da peça que devia fazer fogo e observou os serventes. Nada podia fazer com estes homens e eles nada podiam fazer consigo. Não existia o menor contacto entre eles: separavam-nos mundos.

 

Vierbein deu as ordens regulamentares. Nenhum tiro atingiu o alvo.

 

Um colossal falhanço!  disse o general.

 

Um incapaz! E vem isto da frente!  vomitou penosamente Schulz.

 

O mais colossal dos falhanços!disse o general, muito   contrariado.  Absolutamente   incapaz.   Abaixo   de qualquer crítica.

 

E deitando a Schulz um olhar exterminador acrescentou:

 

Sem dúvida, este posto não lhe convém, tenente. Depois retirou-se, acompanhado da sua comitiva.

 

Schulz ficou especado, rodeado dum silêncio esmagador. De súbito, berrou:

 

Vierbein!

 

E quando o subalterno se apresentou continuou a berrar:

 

Nunca lhe perdoarei isto! Atirou como um porco só para me prejudicar. Mas você mas pagará, seu olho do cu! Está acabado. Liquidado. Desaparecido. Enterrado...

 

Meu tenente...

 

Dirija-se imediatamente para a caserna. A pé. E fará os nove quilómetros em noventa minutos. As três horas apresente-se-me.   E  daqui   até   lá  faça   o   seu   testamento, grande porco!

 

Vierbein deu meia volta perfeita e pôs-se a caminho. Às duas horas e trinta e cinco minutos chegava à caserna. Lavou-se e às três horas exactas apresentou-se, em uniforme de serviço, ao tenente Schulz.

 

Ah! exclamou este. Agora é que vamos ver!

 

Meu tenente, previno-o de que devo ir ter imediatamente com Sua Excelência.

 

Bartsch e Ruhnau irão no seu lugar.  Mas os dois irmãos siameses não estavam ali.  Está bem. Vá. As quatro horas na igreja. Mas às cinco a comédia está terminada. E vinte minutos mais tarde estará de regresso, seu crápula! Nessa altura...

 

Meu tenente, peço-lhe que me diga se os telegrafistas e os aparelhos de rádio estão em condições de partir.

 

Desapareça da minha vista!  gritou o tenente.

 

Schulz deitou um olhar ao relógio de parede. Era tempo. Fez ainda algumas assinaturas, informou-se cautelosamente se o general já tinha talvez... Não, não tomara ainda qualquer decisão. Um pouco mais tranquilo, fez-se conduzir ao hotel, onde os convidados se reuniam antes de se dirigirem à igreja.

 

Ao chegar ali foi como se tivesse tido uma congestão.

 

Não acreditava nos seus próprios olhos. Via Lore, sua mulher, em vestido de noite. E, perto dela, Sua Excelência o Almirante.

 

Teve a impressão de que devia desaparecer pelo chão abaixo. Lore, esse monstro de preguiça e de estupidez, essa mulher indisciplinada, sem sombra de dignidade. Essa cabra! E, para cúmulo, com o almirante!

 

Incapaz de se dominar, chamou-a de parte:

 

Que fazes tu aqui, porcalhona?

 

Baixa as patas! respondeu ela. Não estás em casa.

 

Como vieste aqui parar?

 

Pela porta.

 

Ele não achou graça. Tinha a sua cara de cão de quartel. Abriu a boca e parecia pronto a descompô-la, a despejar em cima dela as mais porcas injúrias da caserna.

 

Meu caro tenente disse então Sua Excelência, invejo-o por ter uma mulher assim.

 

Ah!  exclamou o outro, perplexo.

 

Porque a escondeu até agora? Se o meu caro camarada de guerra Vierbein  não me tivesse...

 

Vierbein!    disse   Schulz,   verdadeiramente   aterrado.  Sempre Vierbein!

 

Então, ferido no mais íntimo do seu ser, Schulz deixou-se arrastar pela cólera. Virou costas ao almirante, pôs-se à procura de Vierbein e quase em voz baixa, porque a ira ameaçava sufocá-lo, disse-lhe:

 

Agora a festa acabou. Vamos voltar à caserna.

 

Meu tenente  respondeu Vierbein com energia , estou de licença. E regresso esta noite de avião. Peço-lhe que mande entregar os radiotelegrafistas e os aparelhos de rádio.

 

Você pode ir c....! berrou Schulz, tão alto que os convidados ficaram estupefactos.

 

Ao cair da noite a frente alemã começou a desagregar-se para ir reconstituir-se após uma marcha nocturna de uns quarenta quilómetros para a retaguarda. Ao princípio as coisas desenrolaram-se conforme o plano. A organização parecia, uma vez mais, funcionar perfeitamente.

 

De entrada só o tempo pareceu não se comportar de acordo com o plano. Nevava. Nevava sem parar. Mas a neve não era ainda bastante espessa nem suficientemente molhada para causar complicações sérias.

 

E Witterer disse:

 

Uma ligeira camuflagem. Absolutamente de acordo com o plano...

 

Fosse como fosse, a frente pôs-se em marcha. Primeiro partiram os estados-maiores; os mais importantes, em primeiro lugar. Depois deles marcharam, tranquilamente, os respectivos serviços, a secção topográfica, a meteorologia, os carros da rádio, os arquivos e os mapas, os veículos que continham as bagagens pessoais e as unidades de abastecimento.

 

Postado sobre uma elevação, o capitão Witterer apurava o ouvido aos ruídos da noite que começava... De todos os lados se ouvia um roncar de motores. As viaturas formavam longas filas, balançando-se por entre as trevas. Lentamente, os caminhos enchiam-se, todos os caminhos da frente.

 

Witterer imaginava estar mais perto do que nunca do grande acontecimento que é a guerra. Parecia-lhe, nestes minutos, poder dar-se conta de tudo quanto se passava. Estava pronto empoleirado num montículo, de orelha fita a tomar-se por um chefe de exército.

 

Ouça  disse a Krause. E apurou de novo o ouvido com entusiasmo mudo. A guerra põe-se em marcha.

 

Efectivamente ela retomava a marcha. As ruas das aldeias e os caminhos por entre os campos onde as bichas de veículos se punham em movimento assemelhavam-se a riachos e valas. Alimentavam as ribeiras das estradas próximas. E, destas, todo o material de guerra se escoava para os rios das estradas principais.

 

Depois dos grandes estados-maiores e dos seus serviços vinham os estados-maiores secundários; depois as oficinas, as companhias de padeiros e de carniceiros, os hospitais, serviços de transmissões, a polícia militar, as colunas de munições.

 

Atrás não ficava mais do que a delgada linha das unidades de combate: infantaria, artilharia e, entre elas, a defesa contra os blindados.

 

Somos  nós  disse   Witterer   com   orgulho   que temos a responsabilidade de centenas de milhares de homens.

 

Sim, meu capitão  disse Krause , é um sentimento grandioso.

 

A noite parecia cheia até à borda pelo rumor dos motores. E o seu rugido parecia vir de todos os pontos do céu... Estendia-se ao longe, para lá dos horizontes.

 

O sargento-ajudante Bock estava de pé no meio do seu relógio: fizera já muitas vezes este gesto nessa noite. Era perto das onze horas. Acenou a cabeça, desceu da elevação e dirigiu-se ao posto dos canhões. Krause, o «lambe-botas», seguia-o.

 

Todos os veículos estavam amontoados ali. Silenciosos ainda e imóveis. Os motoristas e os seus companheiros estavam apoiados aos capots ou agachados nos assentos. A maior parte deles fumavam. Quase não falavam.

 

O sargento-ajudante Bock estava de pé no meio do pátio com o sargento Asch. Também eles fumavam sem pronunciar uma palavra. Olhavam os flocos de neve que caíam lentamente.

 

Está tudo pronto?  perguntou Witterer em voz sonora.

 

Sim, meu capitão  respondeu o brigadas.

 

Soeft já voltou?

 

Sim, meu capitão. Há uma hora. Mas tornou a partir logo.

 

Com esse ajustarei as contas em particular. Ficará admirado.

 

Witterer ’deitou de novo um olhar ao ’relógio.

 

Mais três minutos  disse.  Depois partiremos.

 

Seria melhor disse Asch tranquilamente e em voz alta, no meio da escuridão  não, partir senão daqui a três horas.

 

Witterer, estupefacto, encaminhou-se para o sargento. O sargento-ajudante encolheu-se, pressuroso. Os soldados apuraram o ouvido.

 

É você que comanda aqui, Asch? Ou quem é?

 

Devia comandar quem dominasse a situação. Os planos imaginados em volta do pano verde são quase sempre merda.

 

Sargento Asch  disse Witterer com o tom de alguém que se julga muito superior, não se pode fazer a guerra sem organização.

 

Mas também não se pode fazê-la sem improvisação.

 

As ordens de marcha para esta noite foram elaboradas pelos nossos mais eminentes chefes. O que aqui se desenrola é uma obra-prima de estratégia.

 

O ovo que esses homens ditos tão eminentes puseram é, antes, aos meus olhos, um bom pedaço de diletantismo. Por exemplo, não tiveram em conta nos seus cálculos o tempo e outras coisas mais.

 

Você não está autorizado’ a criticá-los.

 

É proibido pensar?

 

O sargento-ajudante, que procurava sempre evitar o mais possível as complicações, exclamou;

 

Meu capitão, são onze horas em ponto I

 

Em frente!  disse Witterer numa voz dura.

 

Mas antes que Bock tivesse podido dar ordem de marcha ouviu-se de novo a voz do sargento Asch:

 

Meu capitão dizia, as estradas estão atravancadas. Desde esta manhã que caá neve. Todos os caminhos estão difíceis. É impossível, nestas condições, manter uma velocidade normal.

 

De que está à espera ainda, sargento-ajudante? perguntou Witterer, furioso.

 

O que o sargento Asch acaba de afirmar disse Bock numa voz prudente não é completamente inexacto.

 

Se  partirmos  agora  acrescentou  Asch  imediatamente, vamos ficar entalados ao fim de poucos quilómetros. Ficaremos bloqueados nas estradas e os nossos motores aquecerão. Ao passo que se esperarmos aqui que o trânsito esteja facilitado...

 

Basta!  gritou Witterer.  Cale a ’boca, se faz favor! E você também, sargento-ajudante! Para mim uma ordem continua a ser uma ordem. Tome nota. E quando a ordem diz «Partida às onze horas» é às onze horas que eu parto. Mesmo que chova merda.

 

Muito bem  disse o sargento-ajudante gravemente. E Asch acrescentou:

 

Vamos, então! Mas se não estivermos imobilizados daqui por três quilómetros, quando muito, passo a chamar-me «Olho do cu».

 

Aos seus lugares!  gritou o sargento-ajudante. Embraiar! Em frente, marche!

 

Lentamente, os veículos saíram do pátio e dirigiram-se para a rua da aldeia. Pesadamente carregados, avançavam sem luzes. Só quando um dos motoristas puxava a alavanca do travão as luzes da retaguarda se acendiam. Os motores, roncavam e gemiam. O sargento Asch fechava a marcha na sua motocicleta.

 

Admiro a sua paciência, meu capitão  disse Krause.

 

Chegou o fim, agora.

 

Seguia com o olhar a coluna que se desenrolava ao longe. Depois dirigiu-se para o seu automóvel, onde Kowalski dormia, ronronando como um gato satisfeito.

 

Estamos em guerra  disse o capitão  e este indivíduo dorme. Acorde, vamos!

 

Que se passa? perguntou Kowalski, imediatamente acordado.  Há alguma distribuição suplementar de víveres?

 

Todas as bagagens estão no automóvel?

 

Carregaste tudo, Krause?  perguntou, por sua vez, Kowalski.

 

Sim. As bagagens de assalto do capitão estão atrás do carro. Quanto às bagagens particulares, é Soeft quem as transporta.

 

As   bagagens   de   assalto?     perguntou  Kowalski, curioso.  Que vem a ser isso? Nunca ouvi falar em tal coisa.

 

Aí está uma coisa que eu lhe ensinarei - respondeu Witterer, verificando as suas bagagens. Ainda tem muito que aprender.

 

Nunca se acaba de aprender resmungou Kowalski, tranquilamente,  entre  dentes.   Mesmo   as  altas patentes não garantem contra a asneira.

 

Witterer não teve tempo de escutar os monólogos do seu motorista. Ouvia o ruído de um motor que se aproximava, ofegante.

 

Era o sargento Asch. Encaminhou-se para Witterer, parou mesmo na frente dele e cortou a gasolina:

 

A bateria está imobilizada  disse.  A menos de dois quilómetros daqui.

 

Está contente, não?  perguntou Witterer num tom agreste.

 

-Não há de quê. As estradas estão totalmente engarrafadas. Era de prever. A neve que caiu eleva-se a perto de dez centímetros. As viaturas devem rolar pelos sulcos. Não há um centímetro livre nos caminhos. As colunas amontoam-se umas sobre as outras.

 

E você faz discursos ao povo.

 

Estou simplesmente a informar.

 

Desapareça. Ocupe-se das equipagens. Vá à estrada principal e veja o que embaraça a passagem.

 

Já lá estive.

 

E então?

 

As colunas que deviam estar em plena marcha desde as nove horas seguem-se umas às outras. Tiveram portanto de esperar mais de duas horas.

 

Pois faça como elas. Duas horas igualmente. E, se preciso for, vinte horas. E se você é totalmente inútil espere lá até que tenha apodrecido ou que a guerra tenha acabado. Mas comigo todas as ordens são cumpridas.

 

Todas,   realmente?  perguntou   Kowalski,   devagar.

 

Cale-se!

 

Asch pôs-se em marcha e afastou-se.

 

Escreva, Krause. Escreva palavra por palavra  disse Witterer, furioso.

 

Krause sentou-se ao fundo, acendeu uma lanterna de algibeira e escreveu. Witterer ia e vinha no pátio. Sem pressas, Kowalski acendia um cigarro.

 

Já não se pode ter confiança em ninguém  disse, por  fim,  Witterer.  É  uma  cambada  absolutamente  imbecil.  Esperemos  ao  menos que  o  tenente  Wedelmann  já tenha chegado ao local  da nova posição.

 

Deve ter chegado  disse Krause.  O tenente partiu, como estava previsto, há três horas. Num side-car com a sua intérprete.

 

Com quem?

 

Com  a  sua  intérprete.  Foi  pelo  menos, assim  que Wedelmann qualificou a senhora que o acompanha.

 

Ele tem uma intérprete!

 

É  claro - disse  Kowalski,  arrastando  as  palavras. Dirigia-se   aparentemente   a  Krause.  Porque  não  havia de tê-la?  Todas  as unidades  as têm.  Soêft,  pessoalmente, tem duas do mesmo género. Designa-as por auxiliares de cozinha. Nunca  ouviste,  realmente, falar nisso?

 

Witterer perguntou:

 

É  uma  pessoa  decente,  essa  intérprete?

 

Se é!  Mas a questão está em saber se ela aceitaria servir toda a gente.

 

Seja como for  disse Witterer, rindo com um riso rápido e viril , um  chefe tem direito a isso.  E sentando-se ao lado de Kowalski colocou o capacete de aço.

 

Onde   vamos?   perguntou   Kowalski.   À   nova posição?

 

Não passará.

 

Eu passo por toda a parte.

 

Vamos   para   a   linha   de   fogo,   evidentemente.   No fim de contas, deixámos lá uma quantidade de munições supérfluas.

 

Mal acabara de dizer isto, o céu pareceu rebentar. Uma labareda violenta varreu o horizonte. com curtos intervalos brotaram outras chamas. Depois a atmosfera pareceu rasgar-se em pedaços que se reuniam num único estrondo. Os obuses faziam no meio da noite como que um canto de órgão.

 

Eles  também  parecem  dispor  duma  quantidade  de munições supérfluas  disse Kowalski secamente.

 

Quem é que lhes forneceu, assim de repente, artilharia? perguntou Krause.

 

Provavelmente   o   Pai   Natal  respondeu   Kowalski.

 

Vamos    disse   Witterer   num   tom   de   superioridade.   Que   significa   isto?   Estes   atrevidos   querem  tomar-nos  por  imbecis.  Fazem barulho.  Notaram  qualquer coisa e agora disparam por todos os buracos. Mas dentro de  dez  minutos,  quando  muito,  terão  perdido  a  respiração.  E  dentro  duma  hora  meter-nos-emos  à  estrada.  De acordo com o plano.

 

De novo o céu se iluminou brutalmente. Várias vezes seguidas. Os obuses miavam, gemiam em tons agudos e roncavam selvàticamente. A alguns quilómetros diante deles a terra parecia inflamar-se em vários pontos, como se um vulcão entrasse em actividade.

 

Vamos lá então à linha de fogo  disse Kowalski tranquilamente.

 

Mais devagar  respondeu Witterer.  Não me faça asneiras. O melhor será, sem dúvida, dirigirmo-nos primeiro ao estado-maior do regimento.

 

O coronel estava já debruçado sobre os mapas ainda antes de começar a mudança da frente. Parecia encolhido, como um bêbado que já não tivesse forças para se mover. Mas os seus olhos agudos e astutos não paravam de correr pelo mapa.

 

Havia três horas que a etapa estava a caminho da retaguarda. Luschke e o seu estado-maior não a acompanhavam: não faziam parte dela. Aproximava-se a meia-noite. Ele esperava. O quê? Nem ele o sabia. Mas decidira não se desligar do inimigo enquanto as tropas da frente não se pusessem em movimento.

 

Chamou o oficial ordenança, que apareceu logo. Tudo pronto para a partida. O oficial não se pôs em sentido. Luschke não admitia que os seus serviços fossem transformados em campo de manobras.

 

O tempo?  perguntou Luschke.

 

A neve torna-se cada vez mais espessa. E o termómetro aproxima-se lentamente do zero.

 

A situação nas estradas?

 

Tudo engarrafado.

 

O coronel acenou a cabeça. Era de esperar. Uma porcaria de tempo e todos os caminhos aferrolhados. Esta migração nocturna era pura doidice: uma ideia escapada do cérebro de pássaro de qualquer pseudo-estratega. A surpresa? Uma guerra como esta não era mais, afinal de contas, do que um longo cálculo. Mas os fantasistas sempre foram maus calculadores.

 

Notícias das baterias?

 

Nenhuma  de importância.  Até agora tudo  caminha conforme o programa.

 

Que mais há?

 

Está  lá  fora  um  subalterno  da  contra-espionagem que pede autorização para lhe falar.

 

Um subalterno da contra-espionagem quer falar comigo? Mas essa corporação não se safou com os outros?

 

A corporação, com  certeza, meu  coronel...  Mas o subalterno que está aqui não tem o ar de lhe pertencer.

 

Então, está bem... É tudo?

 

O comandante do aeroporto chamou-o ao telefone. Há  notícias  do   segundo-sargento  Vierbein.  A  secção  de reserva levanta dificuldades.

 

Dificuldades?... Ao subalterno que eu enviei?

 

Parece que sim, meu coronel.

 

A linha está muito carregada?

 

Está   livre   como  nunca   esteve.   Os  estados-maiores estão em marcha, mas as linhas ainda funcionam. Quase já ninguém telefona.

 

Então arranje-me imediatamente comunicação com o coronel que comanda a reserva da artilharia. Comunicação urgente do comando. Se quiser, comunicação ultra-rápida... De que está à espera ainda?

 

-Meu coronel, se...

 

Se a guerra recomeça aqui, meu caro, preciso dos novos  aparelhos.  E  a   guerra  já  começou   a   mexer-se... Sinto-o nos ossos.  Sendo assim, e enquanto for possível ainda,  administremos  uns pontapés no  rabo  aos  escrevinhadores da retaguarda. Ou toma-me por um sentimental?

 

O oficial ordenança desapareceu. O subalterno da contra-espionagem entrou e deixou-se ficar modestamente junto da porta.

 

Aproxime-se    disse   o   coronel.    Por   enquanto ainda não mordo.

 

O subalterno aproximou-se. Assemelhava-se a um professor míope e parecia quase desculpar-se de estar no mundo.

 

Como é possível  que você esteja na contra-espionagem?  perguntou Luschke com doçura.

 

Na vida civil era engenheiro electricista em Conisberga. Além disso, conheço a língua russa a fundo.

 

E porque  não  recuou  com  os  outros para  a  retaguarda?

 

A esta hora, meu coronel, há aqui uma espécie de calma. A maior parte dos estados-maiores estão a caminho, o  que é  favorável:   não  preciso  de  passar  por  cima  de quem quer que seja.  E o estar aqui,  meu  coronel,  justamente o senhor, é para mim um agradável  acaso.

 

Vamos ver  daqui  a  pouco  se  será assim  tão agradável. Para quem trabalha, realmente? Para a Gestapo ou para a contra-espionagem?

 

Não  tenho  nada  que  ver  com  qualquer  polícia  do Estado   disse   o   subalterno,   olhando   Luschke   francamente. E nada quero com ela.

 

Isso torna-o ainda mais simpático...

 

Bem   sei,   meu   coronel   disse   o   subalterno   tranquilamente.   Depois   citou:   «As   chaminés   ainda   fumegam.»

 

Escutarão   por  acaso   as   minhas   conversas?  perguntou Luschke em voz baixa e ameaçadora.

 

Escutam-se   muitas   conversas   telefónicas.   E,   de  futuro, cada vez mais. É a tendência evidente.

 

Obrigado pela informação.

 

Dei-a com prazer.

 

Luschke parecia ainda mais encarquilhado diante dos mapas. Mas os seus olhos brilhavam. O seu rosto em forma de batata iluminou-se com um clarão temerário. Disse:

 

Em suma, ambos perseguimos a mesma caça.

 

Enquanto  as nossas chaminés fumegarem  disse o subalterno, acenando a cabeça.

 

Luschke riu silenciosamente, sacudindo os ombros. Parecia um quebra-noze« irritado. Havia mais da sua espécie do  que  supunha,  mais  do  que  ousara  esperar.  Fazia-lhe bem sabê-lo.

 

Era tudo quanto queria dizer-me, sargento?

 

Não tudo. Mas era sem dúvida o mais importante. O telefone tocou brutalmente. Luschke levantou o auscultador e disse:

 

Uma   comunicação   ultra-urgente  da   retaguarda.  Se quer escutar uma vez mais...

 

Já não é preciso.

 

«Quem está ao telefone?», perguntou Luschke numa voz sonora. «Você, Schulz? Não acredito no que ouço. Será já, por acaso, coronel ?»

 

Luschke ouvia com visível prazer. A voz de Schulz, geralmente tão segura, estava excitada. Era evidenfe que sofria por saber que continuava a existir um Luschke.

 

«Absolutamente inacreditável. O seu coronel casa-se e é você quem o substitui. Nasceu para substituir.»

 

Na outra extremidade do fio, Schulz suava sangue e água. Quando lhe haviam anunciado que um tal coronel Luschke estava ao telefone tomara isso por uma farsa bem achada. Mas a voz afiada como uma lâmina de barbear, que ele conhecia tão bem, fê-lo compreender num segundo que o caso era sério. Terrivelmente sério.

 

«Tenente Schulz», disse o coronel, «parece ter-me esquecido por completo. Isso aflige-me profundamente. Mas estou disposto a refrescar-lhe a memória.»

 

«Meu  coronel,  quanto  ao  que pediu,  eu  vou  imediatamente...» ;       «Tenente   Schulz,   se   nos   causa   aborrecimentos   aí...»

 

«Nunca, meu coronel.»

 

«Se me levantar aí a mais pequena dificuldade, é a mim que provocará para um duelo. Compreendeu?»

 

«Perfeitamente», murmurou Schulz.

 

«E se eu o provocar, sou eu quem ferirá.»

 

«Nesta mesma noite tudo o que deseja será posto a caminho. Esta mesma noite.»

 

«Não há assim tanta pressa.»

 

Luschke desligou rindo. Agradava-lhe verificar que a sua voz bastava para fazer galopar, à distância de algumas centenas de quilómetros, um cavalo de guerra... da retaguarda. Virou-se para o seu visitante:

 

Vamos...   Parece-me   que   estou   a   ver   um   grande obus no seu canhão.

 

Meu  coronel, havia neste sector três  emissores  soviéticos. Captámos quase todas as suas emissões,  decifrámos a maior parte e suprimimos dois deles.

 

Falemos, então, do terceiro.

 

Não foi possível, até agora, descobri-lo. Foi só esta manhã  que  pudemos  fazer  uma  localização  aproximada.

 

Que quer dizer por aproximada?

 

Pode haver desvio até uns dois quilómetros.

 

E onde se encontra, ou se encontrava, na sua opinião, esse emissor?

 

Mais ou menos onde se encontra a posição atrasada da sua 3.ª bateria.

 

Luschke fechou os olhos. Finalmente, disse:

 

Na   posição  atrasada   da  3.ª  bateria  podem  encontrar-se muitas unidades: infantaria, D. C. A., transmissão, bombardeiros, blindados.

 

Claro, claro disse o subalterno. Claro, mas...

 

Mas?

 

Meu coronel, foi só para o fim da tarde que consegui decifrar as emissões deste terceiro aparelho. E verificámos que ele estava muito mais bem informado do que os  outros.  Anunciou  já  há  quatro  dias  a  retirada  para uma posição à volta de quarenta quilómetros.

 

Começo a compreender.

 

Ora, meu coronel, foi só há cinco dias que a retirada foi levada ao conhecimento de um pequeno círculo, incluindo o comandante-chefe. Foi apenas três dias depois que  a  ordem  foi  comunicada   aos  chefes  de  companhia, como ordem secreta do comando.

 

Luschke olhou o subalterno intensamente:

 

A sua pergunta é,  portanto, esta:  «Falou da  retirada  a algum  dos seus  oficiais, e,  provavelmente,  a  um oficial da 3.ª bateria, há quatro dias?»

 

Já fiz  essa  pergunta ou  uma  pergunta semelhante esta noite a dois comandantes de regimento.

 

E as respostas foram negativas, claro.

 

Claro. Mas já é outra questão saber se as respostas resistiriam a uma verificação.

 

-E se eu também disser que não?

 

Por favor,  meu  coronel,  compreenda-me bem.  Não lhe faço qualquer pergunta a si. É preciso que as chaminés   continuem   a   fumegar.   Mas  talvez   ache  conveniente arrumar esta questão o senhor mesmo. Para se defender, para ter uma prova, ou o que quer que seja que julgue dever encontrar.

 

Você é quase esperto em demasia para ser honesto disse Luschke após um longo silêncio.

 

Talvez  não  seja  mais  do  que  um  cretino  disse o subalterno num tom em que se podia adivinhar resignação.  Ou talvez os idiotas sejam os soviéticos.

 

Encontrará desse género em todos os campos. Que é que o leva a supor isso?

 

Não  está  acontecendo  nada,  meu  coronel.  Os estados-maiores  estão  a  caminho  e  engarrafam  todas  as  estradas. E nada acontece na frente. É por isso que eu pergunto a mim mesmo se não serei um cretino. Os soviéticos sabem já há alguns dias que vai haver uma retirada. As comunicações   pela   rádio   do   lado   deles   tornaram-se   de repente mais animadas. Agentes nossos informaram-nos de que havia movimentos de tropas. É igualmente sabido que o  adversário trouxe  reforços de  artilharia. E nada  acontece !

 

O  coronel  levantou-se e fez  um  sinal  ao  subalterno:

 

Venha  disse.  Vamos farejar um pouco a guerra.

 

Luschke, curvado, caminhava à frente, em passos rápidos. De vez em quando a sua lâmpada lançava um relâmpago. Uma sentinela interpelou-os, mas ao reconhecer o coronel pôs-se em sentido.

 

Dirigia-se para a igreja, a que chamava em segredo a «sua» igreja. A neve caía agora em flocos espessos e transformava-se em água logo que tocava o uniforme. No entanto, a noite estava clara. É que a Lua iluminava as nuvens e a neve brilhava como seda molhada.

 

O coronel alumiou os degraus arruinados que levavam à torre. Depois, de pé sobre uma plataforma, olharam pelos buracos enormes das ruínas.

 

Escute    disse   o   coronel.    Além.  É   ali   que   se acha a frente. Que ouve? Nada.

 

Nada!  disse   o   subalterno,   e   a   sua   voz   parecia desesperada.

 

Agora escute deste lado. O ruído dos motores. Além as   estradas   que   conduzem   à   retaguarda.   Engarrafadas... Há  duas  ou  três  horas  já  que  as  viaturas  se  amontoam ali,  umas  sobre  as  outras.  E  quase  de  minuto  a  minuto o perigo aumenta.

 

E  os Russos sabem-no,  não é assim, meu  coronel?

 

Todos os que conhecem a frente o sabem. Mas para utilizar  este   conhecimento   no  melhor  momento  é  preciso ter nervos.  Deixar o adversário chegar ao ponto  onde se pretende apanhá-lo como alvo ou esperar que ele se tenha completamente espetado, isto dá cabo dos nervos. Os nervos! Uma coisa que não se adquire no gabinete. E se acontece realmente o que você supõe, se o adversário acumulou realmente tropas para nos perseguir, então, sargento, que Deus tenha piedade de nós!

 

O subalterno não respondeu. Sondava a noite, luminosa mas opaca. Parecia que tinha dificuldade em respirar.

 

Se eu estivesse no  lugar deles  disse Luschke . esperaria.

 

Quanto tempo?

 

Até por volta da meia-noite. Quer dizer, ainda uns quinze minutos.

 

Desceram e regressaram ao alojamento do coronel. Luschke observava com ar pensativo o mapa, que retirou da mesa. Dobrou-o brutalmente, sem cuidado.

 

Chamou o oficial ordenança. Deu uma ordem.

 

O  tenente Wedelmann que venha falar-me.  Imediatamente.

 

Depois virou-se para o subalterno da contra-espionagem e disse:

 

Sinto-me  feliz  por conhecê-lo.  E  espero  que  continuemos em relações.

 

A   fim   de   que   as   chaminés   fumeguem  disse   o outro, sorrindo timidamente.

 

Dentro duma hora, o mais tardar, veremos se você é realmente idiota ou não. Mas receio bem que não.

 

Se faz disso questão  disse o chefe do aeroporto a Vierbein , pode ir.

 

Peço que me permita tomar este avião  disse Vierbein com a mais perfeita correcção.

 

O comandante, amigo íntimo do chefe do aeródromo da frente, que, por sua vez. era íntimo amigo do coronel Luschke, observava Vierbein com benevolência paternal.

 

Escutava os rumores longínquos. O seu crânio rapado brilhava sob a luz do gabinete. Lá fora, na pista, rugiam alguns motores de avião. Dos hangares vinha o eco das montanhas. Era cerca da meia-noite.

 

Sargento   disse   o   comandante,   em   tom   amigável ,  lembro-lhe que ainda não é obrigado a  partir. Se quiser,    pode   ficar   tranquilamente    alguns    dias    mais... Faça-o  sem preocupações.  Estou  até disposto  a confirmar por   escrito   que   não   havia   qualquer  meio   de  transporte disponível...

 

Obrigado. Mas há um telegrama que me chama.

 

Um telegrama do coronel Luschke?

 

Não.

 

Se  não   vem   directamente  do   coronel,  eu,  no   seu caso, considerá-lo-ia  inexistente. Muito a sério, meu  caro Vierbein, escusado será dizer que lhe arranjaria lugar em qualquer avião, mesmo, se preciso fosse, num avião especial. Faço-o, com prazer, pelo coronel Luschke. Mas, aqui entre nós, o momento é particularmente mal escolhido. A frente recua esta noite. Vai talvez chegar em plena mudança de posição.

 

Talvez tenham necessidade de mim  disse Vierbein ingenuamente.

 

Da sua secretária, o comandante ergueu lentamente os olhos para Vierbein. Mirava-o com surpresa sincera.

 

Necessidade? perguntou, arrastando a palavra. Para quê? A guerra sempre poderá passar sem si durante algumas horas.

 

E o comandante pensava: «Necessidade! Ele ainda acredita que precisam de si. Não sabe que os generais só contam agora por divisões. Não imagina que há noites em que são mortos milhares de Vierbeins, sem que por essa razão o sono de um só chefe de unidade seja perturbado. Deixou-se convencer de que edifica a história do mundo. São necessários milhões de litros de sangue para escrever um pequeno capítulo da história do mundo. Que representa um Vierbein em tudo isto?»

 

Talvez   disse,   devagar,  o  comandante  vá  cair exactamente  num formidável  caos.  Será  decerto  obrigado a permanecer inútil no meio de tudo aquilo e a esperar que as coisas tenham acalmado.

 

Encontrarei  certamente o meu  destacamento  disse Vierbein  com  segurança.  Recebera  uma  ordem;   cumpria as ordens que recebia, com prontidão e exactamente como o prescreviam os regulamentos.

 

Pois bem!  Faça o que julga dever fazerdisse o comandante para conclusão. Tocou, mandou chamar o oficial  ordenança, que logo se apresentou. Este parecia que acabara   de   tomar   parte  num   importante  acontecimento, mas ninguém mostrou tê-lo notado.

 

O   subalterno   Vierbein   disse   o   comandante parte para a frente num dos próximos aviões. O melhor seria um «zinco» que chegasse de manhã.

 

Muito bem, meu comandante  disse o oficial, sem, contudo, se retirar e dando a impressão de esperar febrilmente que o interrogassem.

 

Que tem você? Passa-se alguma coisa de extraordinário?

 

Lá fora respondeu o outro, como se revelasse um estranho segredo , diante da entrada, está um almirante, um almirante mesmo.  Provavelmente  da outra guerra.  E está com uma senhora.

 

Vamos!   Vamos!   exclamou   o   comandante,   surpreendido. Não estará enganado? Se não soubesse que é  inimigo  do  álcool,  seria  obrigado  a  admitir que  está embriagado. Um almirante! Como poderia ele chegar aqui?

 

Dê-me   licença    disse   Vierbein,   correcto.    Foi Sua Excelência quem me trouxe.

 

Os meus cumprimentos respeitosos  disse o comandante. É seu tio ou qualquer coisa desse género?

 

Não. Sua Excelência é o sogro do coronel de artilharia que casou hoje. Fui-lhe destinado como plantão.

 

Isso é alguma coisa! Tenho de o ver...

 

Em companhia de Vierbein, o comandante dirigiu-se para a entrada. O oficial ordenança, que, por curiosidade, queria segui-los, recebeu ordem de se ocupar da partida dos aparelhos.

 

A noite, que se estendia por sobre o aeródromo, estava fresca e clara. As estrelas pareciam muito baixas no céu, que lembrava um pedaço de veludo escuro.

 

Diante do portão do hangar n.º 1 Sua Excelência passeava com Lore Schulz, a quem dava o braço como um homem de sociedade dos velhos tempos. Conversava com vivacidade e Lore escutava-o com uma expressão de recolhimento.

 

O comandante do aeroporto dirigiu-se ao almirante e pediu licença para se apresentar. O almirante estendeu-lhe a mão. O comandante apertou-lha e declarou, ao mesmo tempo, que se sentia feliz por poder saudar nos seus domínios Sua Excelência. Pôs-se à disposição do almirante, enquanto Lore Schulz e Vierbein olhavam com espanto esta cerimónia.

 

Mas,  por  favor,   meu   caro  camarada   respondeu o  almirante,  muito  cordialmente,  está  de  serviço  e  o seu  tempo é precioso.  Vim  unicamente  para  dizer  adeus ao  meu  caro e jovem camarada  de artilharia.  Ele precisava urgentemente de um carro e eu sugeri ao meu genro, o coronel, que pusesse o seu  próprio carro à nossa disposição. Devíamos isto ao nosso amigo.

 

Sem dúvida, Excelência  disse o comandante, que achava   extremamente   simpático   este   velho   lobo-do-mar, um   pouco   reinadio,   mas   gentilmente   familiar.   Acho admirável   que   Vossa   Excelência   tenha   acompanhado   o nosso subalterno.

 

Tive  muitas   ocasiões   de   despedir-me   de  tropas,  e todas  as  vezes  que  mo  permitiu   o  meu   serviço   pessoal junto  de  Sua Majestade foi para mim  um  dever inspeccionar os navios de guerra antes da  sua partida e falar com os oficiais, com os subalternos e com os marinheiros.

 

Seria   uma   honra   para   mim   se   Vossa   Excelência quisesse  inspeccionar  o  aeródromo  e  as  suas  instalações.

 

O velho lobo-do-mar estava radiante:

 

Já era oficial no Império?  perguntou.

 

Aviador de caça  afirmou o comandante, não sem orgulho.   Não   era   completamente   verdade:   apenas   fora oficial de sinalização; mas a frase caía bem.

 

Aviador de combate! repetiu o almirante. No tempo de Sua Majestade. Vê-se bem. Também não o esquece, meu caro camarada. Porque, nessa época, o comandante supremo  do exército...  Ao passo que hoje...  Mas deixemos isto.

 

Estou absolutamente de acordo com Vossa Excelência, em particular nesse ponto.

 

Dá-me muito prazer, dá-me um grande prazer. Depois, dirigindo-se a Lore Schulz, o almirante disse, com o seu ar mais galanteador:

 

Se me permite, gostaria de conversar um quarto de hora com o meu camarada da aviação...

 

Ora   essa  disse   Lore,   pressurosa.   Sentia-se   feliz por   ver-se   respeitada   como   uma   verdadeira   dama.   Esta noite,   tão  rica  de  acontecimentos  exaltantes,  pelo  menos ela assim os julgava, fora para si a mais agradável que conhecera havia longo tempo.

 

Entretanto fará companhia ao nosso jovem combatente, não é verdade, minha querida senhora?

 

A «querida senhora» corou até às suas encantadoras orelhas.

 

Decerto!  respondeu  apenas.  E  sentiu-se  satisfeita ao verificar que a iluminação não era bastante intensa que permitisse ver quanto ela estava confusa.

 

Sua Excelência e o chefe do aeroporto desapareceram, contentes, no hangar n.º 1.

 

Lore seguiu-os com um olhar entusiasta. Vierbein observava as trevas que se estendiam sobre as largas faixas da pista, que parecia tornar-se cada vez mais estreita e perder-se, por fim, no azul-negro da noite. Muito alto, por cima deles, rodava um projector de balizagem.

 

Um alto-falante rugiu: «O subalterno Vierbein ao oficial ordenança.»

 

Vierbein fez um gesto de cabeça, como para confirmar a ordem gritada. Eu Despachar-me-ei depressa  disse a Lore Schulz.

 

Não é preciso  respondeu ela, piscando o olho. Podes ter a certeza de que não fugirei, meu pequeno.

 

Vierbein sorriu-lhe com ternura e também com um pouco de melancolia.

 

Como foi Bom disse teres vindo connosco!

 

Se   fosse   outra   que  estivesse   no   meu   lugar,   seria ainda melhor, não é verdade?

 

Tu és boa e sincera  disse ele, um pouco embaraçado.   Eu  sei-o.  E  não  o  esquecerei  nunca.   Não  te esquecerei nunca mais.

 

Ah! exclamou Lore. Eu sei que sou uma doidivanas, mas contigo nunca o fui.

 

O alto-falante esmagou impiedosamente este diálogo. Continuava a exigir Vierbein. E este correu para o gabinete do oficial ordenança.

 

A sua partida será daqui por uma hora  disse o oficial. Não irá no terceiro avião, mas no nono...

 

Posso saber?...

 

A secção de artilharia ligou para cá. Um tal tenente Schulz  estava   ao  telefone.  Não   partirá  sozinho.   Consigo irão  dois  subalternos e  dez  soldados. Um  camião  carregado de soldados e material vem a caminho.

 

São   os   aparelhos   de   rádio  disse   Vierbein   num tom de satisfação.

 

O oficial acenou a cabeça: estava outra vez estupefacto. Esta noite parecia-lhe cheia de coisas maravilhosas.

 

Está tão contente como se tivesse recebido uma condecoração.

 

Cumpri a minha missão.

 

Hum!   Cá   por   mim...E   o   oficial   encolheu   os ombros.

 

Ainda está vivo  disse o coronel, áspero, mirando Witterer com uma expressão de inquisidor. Sinto-me encantado.

 

O capitão, completamente arreado para o combate, tentou fazer a continência regulamentar, mas não o conseguiu de todo. Embaraçou-se na correia da máscara de gás e foi com dificuldade que a sua mão chegou ao capacete.

 

Um   guerreiro   modelo    disse   Luschke.    Se   se mostrar aos Russos assim em pleno dia, eles vão apanhar um susto.

 

Meu coronel, eu queria...

 

Um momento  disse Luschke, que travou a pressa do capitão estendendo o braço como um sinaleiro. Estava a   telefonar.   Pedia   comunicação   com   o  estado-maior   da divisão, mas não a conseguia. A sua mão esquerda tamborilava no mapa estendido diante de si e estes movimentos breves  e  precipitados  pareciam  revelar  um  certo  nervosismo.   No   entanto,   a   sua   voz   estava   calma   como   de costume.

 

«Preciso do general», disse Luschke. «Por agora não quero discutir com criados.»

 

Lá fora a frente de batalha refervia furiosamente. As labaredas que se escapavam dos canhões sucediam-se com tanta rapidez que a vista não conseguia segui-las. O horizonte estremecia de clarões intensos. Sob os choques dos obuses que se aproximavam a cabana do coronel começava a tremer seriamente.

 

O coronel atirou com o auscultador. Depois desapertou o colarinho, inclinou-se sobre o mapa e soprou com desdém:

 

Vem da frente  disse para o capitão Witterer. Como vai isso por lá?

 

Meu  coronel,  permita-me  dizer-lhe  que  preferi  vir directamente aqui.

 

Não esteve na frente?

 

Vigiei a partida das minhas peças à hora exacta e, mais tarde, os primeiros movimentos quando o fogo  do inimigo...

 

Estou vendo  disse o coronel num tom breve.

 

Meu coronel, se acha que...

 

Não estou a censurá-lo, capitão. É possível que tenha agido perfeitamente. Conheço um certo número de coisas acerca do que se passa na frente. O senhor não poderia modificar nada, pelo menos por agora.

 

Queria perguntar-lhe, meu coronel, se há modificações importantes.

 

O coronel desabotoou o casaco. Passando pela frente de Witterer, entreabriu a porta e gritou: «Café e um charuto!»; depois regressou aos mapas.

 

Onde está o tenente Wedelmann?  perguntou.

 

Na nova posição.

 

Que tem ele consigo?

 

Um camião, um automóvel e cinco homens.

 

Mais  ninguém?  E  como   Witterer  tardava   intencionalmente a responder e mantinha um silêncio verdadeiramente enervante, o coronel repetiu em tom seco:  Mais ninguém, Sr. Witterer?

 

Uma  intérprete  respondeu  o  outro,  devagar. Luschke sentou-se, engoliu  um  sorvo de café e cortou

 

a ponta do charuto, fazendo de conta que não via o fósforo que Witterer se apressara a oferecer-lhe, e pôs-se a chupar o charuto sem o acender. Depois disse:

 

A situação  está  ainda absolutamente  indecifrável  e verdadeiramente caótica. A partir da meia-noite o inimigo fez entrar em acção fortes elementos de artilharia e unidades de bombardeiros. O que vai seguir-se é incerto. A sua opinião, se faz favor?

 

É... provável que se trate de um bluff, meu coronel. Ivan...

 

Diga o inimigo, peço-lhe.

 

O inimigo, meu coronel, notou os nossos movimentos de tropas e, para os embaraçar, atira tudo o que dispõe de munições. Depressa se terá esgotado.

 

Lembro-me, capitão, dos seus exercícios de tiro de há alguns dias,  a que com tanto espírito chamou  «salto de cavaleiro».  Nessa  altura  o  adversário não  tinha,  por assim dizer, artilharia neste sector da frente. Um dos seus sargentos qualificava então o seu acto, e eu acho perspicaz a expressão, de «convite à valsa>. Pelo que vemos, eles estão a aceitar o convite.

 

Meu coronel  disse Witterer, felicitando-se no íntimo pelo seu engenho, a artilharia que o inimigo pôs em acção no nosso sector deve tê-la retirado de outro. Há, portanto, uma compensação, se considerarmos todo o conjunto.

 

Capitão  disse Luschke, sorvendo  o seu  café, ao mesmo  tempo  que  a mesa  a  que estava  sentado  tremia ligeiramente ,  isso  a  que  chama   o   «conjunto»  não  é, muitas  vezes,  mais  do  que  uma  ilusão.  Seja  como for, aqui, no nosso pequeno sector, temos o Diabo à solta... Quanto ao conjunto, esse continua a dormitar tranquilamente.

 

Mas  quando  o  fogo  da  artilharia  inimiga  parar, quando ele tiver esgotado as munições, nessa altura...

 

O coronel ergueu a mão e apurou o ouvido. Witterer inclinou-se também para diante, mal se atrevendo a respirar.

 

O coronel apagou a luz e foi à janela. Afastou a cortina e abriu. À parte os ruídos longínquos dos motores, nada ouviram.

 

A frente estava silenciosa.

 

Bem vê, meu coronel  disse Witterer aliviado.

 

Até agora  disse  o  coronel, aspirando  à janela o ar frio  o inimigo apenas bombardeou as nossas posições avançadas. As perdas da infantaria mantêm-se dentro dos limites normais e pode-se afirmar, como tão belamente se diz, que as nossas perdas são mínimas. O movimento de recuo realizou-se nas estradas, não segundo o plano previsto, mas, pelo menos, sem contratempos graves.

 

A  disciplina  durante  a  marcha  é satisfatória  e  não foi comprometida.

 

Logo, as tropas que estão na frente vão recuar igualmente conforme o plano.

 

A menos que...

 

Luschke calou-se. Ouviu-se de novo o fogo da artilharia. Novamente os jactos de chamas subiam acima do horizonte.

 

Fraco  disse Witterer.  Pouco convincente. Esgotam-se cada vez mais.

 

Isto    disse   Luschke,   quase   imperceptivelmente é a nossa artilharia. E ao meio, como está a ouvir, é o fogo da nossa infantaria.

 

É verdade  disse Witterer, surpreendido. Luschke  fechou   a   janela,   puxou   a  cortina,   dirigiu-se à mesa dos mapas e acendeu a luz. Uma delgada camada de suor parecia estender-se sobre o seu rosto duro. Disse:

 

Isto significa que o inimigo passa ao ataque.

 

E   então?   Agora?  disse   Witterer,   quase   desamparado e incapaz de o disfarçar.

 

Se o inimigo ataca de verdade  disse Luschke , nunca há mais de duas hipóteses: ou aguentamos o choque ou somos varridos.

 

E o movimento de recuo determinado?

 

Será necessário, provavelmente, anulá-lo. Ou apenas detê-lo...  Ou então, se o inimigo nos perseguir, o que é de  supor,  teremos  de   recuar  combatendo.  O   sistema  da gaveta.  Uma espécie  de  salto  de  cavaleiro, capitão...

 

Compreendo, meu coronel.

 

Isso satisfaz-me  disse este, com rudeza.  E ainda ficaria mais satisfeito se pudesse falar-me daqui a pouco tempo da sua posição, na linha de fogo, e se tivesse a bondade, nessa altura, de dizer-me como as coisas se passam lá.

 

Perfeitamente,   meu   coronel  disse   Witterer,   desaparecendo logo com  o seu passo sempre ágil  e elástico. Uma vez mais tinha a impressão de que ia soar para ele uma hora memorável.

 

Sozinho no seu quarto, Luschke acendeu o charuto. Este ardia de lado e tinha mau sabor. Pô-lo sobre a mesa e deixou-o apagar-se.

 

O oficial ordenança entrou com as primeiras comunicações da rádio: «O inimigo ataca na cota 234, perto da linha do caminho de ferro, não longe da pequena lagoa praticamente, portanto, numa grande extensão. Unidades de infantaria de importância média. Por enquanto, quase nenhum ganho de terreno. Por enquanto, nenhum blindado. Por enquanto, as nossas perdas são pouco importantes.»

 

«É sempre a mesma coisa», pensava Luschke, «no princípio dos sintomas da loucura furiosa. O demente precipita-se de cabeça contra a parede, que cede um pouco porque é de borracha, mas que regressa logo ao seu antigo lugar. O demente atira-se outra vez e a parede de borracha danifica-se. Se o crânio é de ferro e defeituoso o material contra o qual ele se lança, virá o momento em que passará através da parede.»

 

Não conseguimos encontrar o comandante da  divisão   anunciou   o   oficial   ordenança  e  o  substituto...

 

O substituto  do general  é, na vida particular,  um excelente  homem   e,   no   gabinete,   o   papagaio   do  chefe. Faço-lhe presente dele.

 

O tenente Wedelmann está aqui.

 

Que entre o filho pródigo. Entretanto procure apanhar ao telefone o meu excelente colega da infantaria.

 

O tenente acenou a cabeça. Tinha sempre o porte dum civil. Ia e vinha sem se pôr em sentido. Não falava como um militar. Era isto exactamente que Luschke desejava. «Preciso de pessoas que me ajudem no meu trabalho e não de palhaços», declarava.

 

Wedelmann apareceu, alto, esbelto, sisudo como sempre. Como estava de cabeça descoberta, fez a saudação hitleriana.

 

Não  se  desengonce   disse  Luschke.  Neste  momento não há aqui nenhum congresso do Partido. Sente-se. E trate de sentar-se bem.

 

O tenente obedeceu. Pareceu-lhe que o coronel estava um tanto nervoso. Wedelmann compreendia: a situação estava longe de ser rósea; adivinhava-o.

 

Porque julga que o mandei vir, Wedelmann?

 

Deverei   retomar   o  comando   da   3.ª   bateria,   meu coronel ?

 

Convinha-lhe, hem? Vou fazê-lo passar pelo conselho de guerra.

 

Wedelmann conservou-se calado, muito ajuizadamente, à espera do que viria. Supunha que o que acabara de ouvir era uma das brincadeiras rebarbativas de Luschke. Uma brincadeira pouco engraçada, aliás, o que nada tinha de surpreendente na situação em que se encontravam.

 

Vem das novas posições, Wedelmann?

 

Sim,   meu   coronel.  Numa  motocicleta.   Passar  com outro meio de transporte era praticamente impossível. Fiz trinta e cinco quilómetros em noventa minutos apenas.

 

É uma velocidade razoável. Se adivinhasse o motivo por que o mandei chamar, teria, provavelmente, vindo mais devagar. Como vai a disciplina?

 

Por enquanto, tudo em ordem. É certo que se nota incontestável nervosismo. Se o inimigo se lembrar de nos mandar aviões...

 

Wedelmann  disse o coronel, recostando-se na cadeira, mandei-o vir aqui para lhe contar uma história. O   seu   passeio   de   moto  foi   apenas  uma   ligeira   fadiga. É provável que o faça mais duas vezes esta noite... Mas a minha história vale a pena.

 

Com o espírito tenso, Wedelmann conservou-se em silêncio. Sentia-se francamente curioso e a sua tensão de espírito era real. Não tinha a menor ideia do que Luschke lhe queria contar.

 

É a história dum aparelho de rádio que não era alemão e que, no entanto, se encontrava exactamente no sector ocupado pela posição de artilharia onde prestava serviço um dos fiéis do Fiihrer. E esse aparelho de rádio contava tudo o que esse filho querido do Fiihrer conhecia. Wedelmann empalidecera.

 

É impossível, meu coronel.

 

A prova está feita, tenente.

 

Não!

 

A pessoa que utilizava esse aparelho sabia tudo o que, além do herói amigo  do Fiihrer, apenas um idiota com cara em forma de batata conhecia.

 

Não!  repetiu  Wedelmann.

 

O coronel Luschke torceu os lábios como se tentasse rir. Mas o seu rosto, à parte esta careta, ficou imóvel. Nos seus pequenos olhos havia melancolia e frieza.

 

Se   isso  é  exacto   disse   Wedelmann,   abatido , saberei deduzir todas as consequências.

 

Uma só  disse  o coronel.  As  outras  deixe-me a mim o cuidado de deduzi-las.

 

Wedelmann levantou-se, hirto.

 

O que acabo de dizer-lhe a propósito das outras consequências  disse-lhe o  coronel  é uma  ordem.  Uma ordem minha, Wedelmann.

 

O sargento Asch sabia o que ia passar-se. Vira-o já uma vez, havia alguns meses, em Dezembro de 1941, em muito maiores proporções.

 

Nessa altura, com o objectivo, conforme se dizia, de meter Moscovo na algibeira, um exército inteiro avançara demasiado: as vanguardas chegaram a Tuia. E depois todo este exército tivera de retirar. O comunicado da Wehrmacht anunciou: «Retirada para posições preparadas de antemão.»

 

Nessa altura, durante cerca de quinhentos quilómetros, as estradas transformaram-se em longas filas de túmulos para os homens e para os veículos. E espalhou-se o boato de que Hitler fizera uma cena medonha a um general em chefe. Os soldados nada tinham achado que censurar neste processo, mas a circunstância de todos os generais se terem posto, então, em sentido, sem nada mais fazerem, deu que pensar.

 

A partir desse dia as tropas da frente tinham criado um estribilho assim concebido: «Até os generais têm um traseiro que só está a pedir pontapés.»

 

Pela quinta vez nessa noite, Asch percorria a coluna do sargento-ajudante Bock, a qual durante as duas últimas horas apenas avançara dois quilómetros Os veículos, pesadamente carregados, rolavam com dificuldade na estrada arruinada. As rodas enterravam-se na neve lamacenta, que se tornava cada vez mais profunda. Os radiadores ferviam e os flocos de neve, ao cair sobre eles, produziam um ligeiro silvo.

 

Novamente a coluna estava detida. Alguns motoristas desembraiavam. O sargento-ajudante Bock dormitava na sua limosina. O ruído longínquo da frente não o incomodava.

 

O sargento Asch insinuava-se quase sem custo com a sua motocicleta. Parou junto do automóvel do brigadas. Bateu no vidro fechado. Bock teve um sobressalto e perguntou, depois, por um pequeno respiradouro:

 

Queres aquecer-te?

 

O teu rum vale alguma coisa?

 

Parece que é autêntico rum da Jamaica. Tem quase o mesmo gosto. O que é certo é que me custou uma caixa de cigarros.

 

O sargento agarrou a garrafa e bebeu. Depois disse:

 

Não  está  mau.  Quando  eu  daqui  a bocado  mijar fará um grogue.

 

Parece assente  disse Bock  que vamos passar a noite na estrada.

 

Sempre  é  melhor  que  numa  cova  ou  numa  vala comum.

 

Logo  que estivermos na estrada  principal   disse o  brigadas,  afectando   estar  convencido   do   que  dizia, faremos   em   duas  horas   os   trinta   quilómetros   que   nos faltam.

 

És   realmente   um   grande   corredor.   Simplesmente, não esqueças que não se pode ir mais depressa  do que a viatura  mais  lenta.  com a  condição,  ainda  por cima, de que nos deixem caminhar. Mas há o tempo, que não obedece  ao Fiihrer,  os soviéticos,  que não  têm a  menor consideração  por nós, e  os nossos generais,  nenhum  dos quais ainda deixou gelar as mãos e os pés.

 

Vou dormir  disse o sargento-ajudante.  A noite ainda é comprida.

 

Tu não vais dormir  respondeu Asch.  Tu vais mas é dar atenção às tuas viaturas. Eu vou à frente ver o que se passa.

 

Que mania, estas viagens de recreio! exclamou o brigadas contrariado.  Uma destas vezes partes a cabeça e eu depois direi: «Foi bem feito!»

 

Dito isto, Bock desceu do automóvel e foi inspeccionar a coluna, viatura por viatura. Os soldados estavam de mau humor, mas não muito fatigados. O barulho que vinha da frente de batalha inquietava-os.. Queriam rolar, rolar, chegar às novas posições. Ficar imóveis, engarrafados na estrada, era perigoso, e eles sabiam-no.

 

Asch abandonou a sua coluna e passou diante duma fila interminável de camiões. Viam-se poucos automóveis particulares. Eram raros os homens fora dos carros. Numa extensão de cerca de três quilómetros os veículos estavam imóveis. Este caminho de acesso parecia a entrada para uma garagem.

 

No ponto em que o caminho bifurcava para a estrada reinava uma viva agitação. Ali estavam os gendarmes da polícia militar, «os cães de trela» armados até aos dentes, fazendo de polícias de trânsito. Dirigia-os um comandante.

 

Asch aproximou-se tão perto quanto possível. A situação pareceu-lhe imediatamente muito clara. O comandante bloqueava com as suas unidades de circulação todos os caminhos que iam dar à estrada principal, à excepção de um só, aquele por onde avançava a sua própria divisão. Logo que as colunas que não pertenciam a essa divisão faziam a mais pequena tentativa para se introduzirem na corrente o comandante parecia explodir.

 

Era um homem de meia-altura, todo em ângulos... O seu rosto, erguido sobre a gola de pele, era brutal. Quando se julgava provocado berrava ordens numa voz cortante.

 

Este homem era enérgico. Teria sido capaz de matar. Asch conhecia este género de homens. Impunha-se. Se esbarrasse com uma resistência séria, puxaria da pistola. E faria mesmo uso dela.

 

Enquanto este homem fosse senhor do ponto de cruzamento, as colunas poderiam criar bolor, mas não passariam. Era preciso, portanto, fazê-lo desaparecer, pensava Asch. Mas como consegui-lo?

 

Asch dirigiu-se para o ponto de bifurcação com a intenção de virar para a estrada principal. Foi imediatamente detido. Um gendarme da polícia militar fê-lo parar com os dois braços estendidos: «Alto!», gritou, e, imediatamente, como atraído por um íman, o comandante precipitou-se para o local.

 

Agente de transmissão!  disse Asch, que conhecia perfeitamente os usos.

 

Passe!   disse o comandante.

 

Asch acelerou e partiu pela estrada fora. As viaturas que ia ultrapassando rolavam devagar. Três quilómetros mais adiante pareciam já chocar umas com as outras. A estrada estava de novo bloqueada.

 

Em redor de um camião moviam-se soldados. Praguejavam e gritavam. Um oficial interveio.

 

Que se passa?  perguntou Asch.

 

Um eixo partido disse  um soldado. Provavelmente um camião de provisões para um estado-maior qualquer.

 

Empurrem-no para a vala  ordenou o oficial.

 

O motorista do camião avariado recusou-se a cumprir a ordem. Outros motoristas cobriram-lhe a voz com os seus gritos. Um outro camião tentou ultrapassar, derrapou à esquerda e foi esmagar-se contra uma árvore.

 

Empurrem os dois camiões para a vala!  ordenou o oficial.

 

Um grande oito toneladas Henschel avançou lentamente, aproximou-se do camião cujo eixo se partira e, com o pára-choques, empurrou-o na sua frente, até que ele rolou para fora do pavimento e tombou por um pequeno talude.

 

Estrada livre!  gritou o oficial.  Em frente!

 

Asch prosseguiu o seu caminho, evitando algumas motocicletas. Só estas podiam passar com absoluto à-vontade nos dois sentidos. Os carros grandes, quando queriam fazer ultrapassagem, estavam perdidos. As colunas, estreitamente juntas, eliminavam-nos automaticamente. E podia-se ter a certeza de que chegaria o momento em que a estrada seria demasiado estreita para elas.

 

Dois gendarmes de motocicleta, muito próximos um do outro, passaram a toda a velocidade ao longo das colunas que vinham em direcção oposta. «Todas as viaturas o mais à direita possível. Desimpedir a estrada. Desembraiar. O general quer passar.»

 

Docilmente, os pesados camiões chegaram-se para a direita da estrada. Asch meteu-se atrás duma pequena camioneta de passageiros. Ouviram-se sereias. Um automóvel para todos os terrenos, bem fechado, passou uivando.

 

Um soldado inclinou-se para fora do seu camião para seguir com o olhar o general. Depois disse a Asch:

 

Parece que lá à frente estão bastante enroscados!

 

A coisa não deve ser assim tão grave  respondeu Asch , uma vez que um general autêntico vai para lá.

 

És capaz de ter razão  disse o soldado, olhando para a frente e apenas preocupado já em avançar com a maior rapidez possível. Mas a estrada continuava aparentemente bloqueada.

 

Asch meteu a primeira velocidade e preparou-se para ultrapassar a pequena camioneta. A estrada, neste ponto, estava menos desimpedida que em qualquer outro sítio. Acendeu os faróis e na estreita faixa de luz distinguiu bagagens que lhe pareceu reconhecer. Travou, apagou os faróis e desembraiou.

 

Abriu a portinhola do lado do passageiro e gritou na escuridão do pequeno carro:

 

Olá, filhas de heróis! Como passam?

 

Não será por acaso o Sr. Asch?  perguntou uma voz profunda que neste momento parecia um tanto fatigada e que pertencia, sem sombra de dúvida, a Charlotte.

 

É o meu fantasma  respondeu o sargento, subindo para a camioneta.

 

Você!   exclamou Viola, enfastiada. Embrulhou-se mais na capa de peles e meteu-se a um canto.  Só nos faltava isto!

 

Não a si. com certeza. Além disso, sempre supus que seria transportada pessoalmente por oficiais do estado-maior.

 

Pode ajudar-nos,  Sr. Asch?   perguntou o ilusionista, que parecia ter esquecido completamente todas as antigas controvérsias. Afectava não ter rancor. Na realidade, o que tinha era medo.

 

Estamos parados aqui e não podemos avançar. Isto não é cruel?

 

-Vejamos! Vejamos! exclamou Asch com alegria.  Decerto não pensou nunca que a guerra era uma coisa gentil!

 

Sr. Asch  disse o ilusionista com uma alta dose de cordialidade, se nos ajudasse a sair daqui...

 

No  seu  lugar disse Lisa  Ebner, dirigindo-se ao único membro masculino do grupo , eu suplicaria a qualquer pessoa, mas não a esse cavalheiro.

 

Sinto-me   encantado   por  vê-la  ainda  tão  acordada, Lisa.

 

Temos frio  disse Charlotte.  E também temos fome.

 

Não têm sede? perguntou Asch. No meu cantil há conhaque.

 

Dê cá!  exclamou Charlotte.

 

Saia daqui!  exclamou Lisa Ebner.

 

Se nos ajudasse!...  suplicava o ilusionista.

 

Silêncio!  ordenou Asch. Fez-se silêncio imediatamente.  Não ouvem nada ?  perguntou numa voz calma. Ao princípio nada ouviram.

 

Saiam todos, já!  gritou Asch com uma tal autoridade que os passageiros da camioneta desceram rapidamente. À frente de todos o motorista, que fugiu a correr.

 

Estavam cá fora, de pé, e escutavam. Perto dos carros parados os soldados olhavam também o céu. Muito alto, por cima deles, na mesma direcção, planava um zumbido. O rumor aproximava-se cada vez mais.

 

Um avião!disse o ilusionista, alarmado.

 

Uma máquina de costura  explicou Asch.  Uma das velhas passarelas dos soviéticos. Para lançar as bombas daquelas maquinetas ainda se servem de pás de carvão

 

Lisa Ebner estava junto de Herbert. Tentava adivinhar o que se lhe reflectia no rosto. Mas, sob o capacete, aquele rosto era escuro, vago, sem contornos.

 

A «máquina de costura» ronronava agora mesmo por cima deles. E, de súbito, ouviu-se no ar um ruído sibilante e agudo. O ilusionista desapareceu na vala. Lisa Ebner agarrou-se ao braço do sargento; as suas pequenas mãos apertaram-no violentamente.

 

Não há perigo para nós  disse Asch.

 

A bomba desceu, uivando, e explodiu a cerca de trezentos metros à frente deles, ao lado da estrada. Como um projector que ilumina tudo em redor e se apaga para sempre. Depois uma detonação surda. Um homem soltou um grito selvagem.

 

Meu Deus! disse Lisa.

 

Asch desprendeu-se dela energicamente.

 

Os gritos no sítio onde a bomba rebentou pareciam multiplicar-se e foram substituídos por gritos onde já não se reconhecia a dor. Ouviam-se gritar ordens na escuridão. E o céu parecia cheio de murmúrios que vinham de todos os pontos do horizonte...

 

Depois foi outra vez o roncar dos motores de algumas centenas de camiões. As colunas queriam continuar a marcha, queriam deixar para trás esta estrada, onde a neve se colava às rodas, queriam libertar-se da ameaça dos aviões que rodavam por cima.

 

«Mais alguns assim», pensava Asch, «mais como agora e, depois da ruptura da frente, será o pânico.»

 

Talvez ainda venha cá uma vez  disse, enquanto caminhava para a motocicleta.

 

Não ficas connosco?  perguntou Lisa Ebner, que o seguira.

 

Não posso  respondeu Asch.  Precisam de mim. Os meus homens.

 

Cavalgou a motocicleta, embraiou, acelerou e afastou-se. Dirigiu-se ao comandante, que continuava a regular o trânsito no cruzamento por meio de gritos selvagens.

 

Meu comandante disse, a dois quilómetros daqui está um general empanado.

 

Raios me partam! exclamou o comandante. Qual general ?

 

Não sei. Mas deu ordem para que o meu comandante fosse  ter  imediatamente  com ele.  com três dos seus homens.

 

Eu?

 

O comandante que está na bifurcação, foi o que o general disse.

 

Raios me partam! Depois o comandante chamou três dos seus seis gendarmes, deu as suas ordens em termos violentos e retumbantes aos três que ficavam e partiu a toda a velocidade.

 

Asch virou para a estrada lateral, onde se encontrava bloqueada a coluna do sargento-ajudante Bock. Procurou o primeiro oficial que se encontrasse perto da bifurcação. Não tardou a encontrar um tenente, que praguejava tanto quanto podia.

 

Meu tenente disse, a ocasião agora é favorável. Neste momento não há superiores na bifurcação.

 

O oficial compreendeu. Precipitou-se para o cruzamento e assumiu o comando. Fez parar as colunas da divisão do comandante e deu passagem aos seus homens.

 

Quando, meia hora mais tarde, o comandante regressou, espumando de cólera, as viaturas da 3.ª bateria tinham já penetrado na estrada principal. Os que chegaram depois encontraram diante de si o cano da pistola ”dum homem doido de fúria.

 

Quanto ao sargento Asch, esse, continuava o seu caminho na direcção da linha de fogo da sua bateria.

 

Sua Excelência o Almirante e o seu caro camarada, o comandante do aeroporto, antigo oficial do imperador, haviam terminado a sua inspecção nocturna.

 

O que acabei  de  ver,  meu caro camarada  declarou Sua Excelência num tom quase solene  , produziu em mim uma perdurável impressão, que só posso comparar à minha inspecção dos primeiros submarinos de Sua Majestade, após uma expedição vitoriosa.

 

Era uma época feliz  afirmou o comandante.

 

Para nós, soldados, certamente  disse Sua Excelência acenando a cabeça.

 

Dirigiram-se lentamente, em passo certo, para o hangar n.º 1, conscientes agora do seu valor. Viram ao longe, sob a luz dos projectores, a Sr.a Lore Schulz com o subalterno Vierbein.

 

O nosso jovem camarada da artilharia  disse Sua Excelência com convicção  é um verdadeiro símbolo do tempo presente, um verdadeiro soldado alemão  modesto e corajoso.

 

E sempre obediente  disse o comandante em tom ambíguo.

 

Personifica,   com  efeito,   os  verdadeiros  valores  do espírito militar  declarou o almirante.  Obedece. E isso é que é importante.

 

Mesmo assim  perguntou, cautelosamente, o comandante , se uma vez ou outra lhe dessem ordens exigindo dele um crime?

 

Isso,   meu   caro  camarada    disse  com  solenidade Sua  Excelência , não  é,  na  verdade,  um  problema. Na Alemanha   semelhante   coisa   não   existe.   Nunca  existiu  e nunca existirá.

 

O comandante achou preferível conservar-se calado acerca deste ponto. O velho lobo-do-mar era um magnífico soldado e um honrado homem. Duas qualidades que não se encontram todos os dias. A sua alma era duma ingenuidade cheia de nobreza. Teria sido cruel destruir-lhe as convicções.

 

Para mudar de assunto, o comandante disse:

 

É  notável a  senhora que trouxe consigo, Sr. Almirante.

 

Aquela   dama  é  a  encantadora  esposa  dum  oficial eminente que substitui  presentemente meu genro, o coronel.  É  na verdade encantadora, como disse, e  delicada... Claro que não vem da antiga escola das nossas mulheres de oficiais. Não foram apenas os métodos de guerra que se modificaram ligeiramente, mas também os costumes e os hábitos das messes.

 

Assim   se   ,pode   dizer  afirmou   o   comandante, olhando Víerbein e Lore Schulz, que lhe pareciam juntos de maneira inquietante.

 

Uma dama que dá, na realidade, o exemplo  disse o almirante com uma certa comoção.  Nem sombra de pretensão  ou de falso orgulho  em virtude  da  actividade notável do marido. Antes o justo sentido das necessidades e pesares dos subordinados. Lembra-se,  decerto, de como Sua Majestade a Imperatriz visitava e tratava dos soldados feridos e como Suas Altezas Imperiais as Princesas faziam serviço regular nos hospitais ’militares.

 

Sem dúvida que me lembro  disse o comandante. Infelizmente, não posso citar nenhum exemplo análogo nestes tempos. Nem entre as mulheres dos chefes da terra nem entre as dos chefes de distrito.

 

Mas, por favor, meu caro camarada, ora veja esta simpática dama, a Sr.” Schulz!  Que faz ela senão isso? Deixa uma festa para vir despedir-se dum soldado que parte para a frente. Acho que é uma atitude exemplar.

 

O comandante não foi capaz de fazer mais que acenar a cabeça. Quando Sua Excelência e ele próprio se aproximaram de Vierbein e da sua companheira o subalterno pôs-sem sentido. Lore Schulz sorriu.

 

E então?... Em que ficamos?

 

Partida dentro de vinte e cinco minutos  respondeu Vierbein.  Mas os homens e os aparelhos de rádio ainda não chegaram.

 

Eles   virão    disse   o   comandante.    Se   houver atraso, irá num avião que parta mais tarde.

 

Sua Excelência sorria cordialmente:

 

Não se amofine, meu amigo. A guerra não faltará ao encontro. A si não faltará.

 

Lentamente, um novo avião saía do hangar. Arrastou-se, estremecendo, para a pista de partida. Uma vez ali, parou, e os seus flancos começaram a tremer.

 

O altifalante berrou: «Aparelho Siegfried n.º 18. Destino: 279. Carga habitual. Mais o capitão Lehmann. Mais o médico militar Dr. Winter e dois soldados. Partida dentro de vinte e dois minutos.»

 

Precisão extraordinária  disse o almirante.

 

Eu já tinha introduzido isto na minha esquadrilha durante a outra guerra  disse o comandante.

 

Um camião aproximou-se a toda a velocidade, vindo dos abarracamentos da administração, na direcção da pista. Parou -perto do avião de transporte. Os travões rangeram. Um homem vestido com um capote de oficial saltou.

 

E este homem ordenava, como se estivesse na parada da caserna:

 

Descer!   Alinhar!

 

Meu marido!  disse Lore, surpreendida.

 

Um homem muito competente  afirmou Sua Excelência, sinceramente entusiasmado.  Um homem eminentemente capaz.

 

Também tenho essa impressão  disse o comandante. Vierbein, esse, não disse nada.

 

O tenente Schulz, grande e largo, mantinha-se no meio da pista e parecia ter plena consciência de ser o ponto de mira de muitos olhos. Para ele tratava-se de dar aos semi-soldados da aviação um espectáculo e estava convencido de que o contemplavam com respeito.

 

O motorista do camião, -perseguido pelos olhares do tenente, saltou em redor da sua viatura, correu o fecho do taipal e desceu-o. Os soldados saltaram para o chão, puxaram as mochilas e alinharam-se diante de Schulz.

 

Dois subalternos e dez soldados!

 

com grande surpresa de Vierbein, era o subalterno Ruhnau que fazia este relatório. E o outro «irmão siamês», o sargento Bartsch, estava ao lado, em sentido.

 

O tenente Schulz tocou levemente na pala do boné, berrou: «Obrigado!», disse: «Descansar!» Depois acrescentou:

 

Espero que não me envergonhem, nem a mim nem ao meu destacamento, quando estiverem na frente. E agora para o avião!

 

Deu meia volta, enquanto os soldados transportavam as mochilas para o avião. Procurava alguém. E Vierbein viu logo que era a si que ele procurava. Mas Schulz fingia não o ver. Olhava fixamente a mulher, cujos olhos, sorridentes, estavam fitos para além dele. Depois viu o almirante e o comandante do aeroporto.

 

Dirigiu-se a eles, saudou-os, foi autorizado a apertar-lhes a mão. Disse:

 

Permiti-me fazer entrega pessoalmente dos soldados e do material Este assunto não só é urgente, mas também muito importante.

 

A isto é que eu chamo ter o sentido da responsabilidade  disse Sua Excelência.

 

Se o coronel Luschke o soubesse, ficaria extraordinariamente satisfeito.

 

Também o espero  disse o tenente Schulz, com a maior seriedade deste mundo.

 

Depois aproximou-se da mulher e parou diante dela:

 

Quem te trouxe aqui?  perguntou, desconfiado.

 

Sempre Vierbein, claro  respondeu ela.

 

Ele fungou bruscamente. No seu olhar interrogador havia desprezo e ameaça. Automaticamente, apalpou o cinturão com as duas mãos, como se quisesse desfazer rugas. Mas o capote estava perfeitamente ajustado.

 

Subalterno Vierbein  disse então.  Aquele  a  quem se dirigia aprumou-se logo diante dele.

 

O almirante escutava, cheio de interesse e de simpatia: considerava o tenente Schulz um grande soldado, o subalterno um guerreiro corajoso e grandiosa a época em que vivia. Só o comandante supremo das forças armadas não lhe agradava completamente. Não obstante, a Alemanha acima de tudo.

 

O comandante mostrava ocupar-se do avião que ia partir. Lore Schulz aproximou-se do marido, como se tivesse a intenção de tomar parte na explicação entre ele e Vierbein. O subalterno permanecia ali, erecto, como uma árvore que estivesse predestinada a ser fulminada pelo raio.

 

A luz dos projectores inundava a noite. Os motores do» aparelhos roncavam com uma irregularidade fatigada. Os homens que procediam ao carregamento trabalhavam devagar. O piloto conversava em altos berros com um mecânico. Contudo, não se tratava duma conversa técnica: trocavam simplesmente endereços.

 

Subalterno   Vierbein    dizia   o   tenente   Schulz , apesar das maiores dificuldades, foi possível pôr à disposição do regimento da frente dois subalternos, dez soldados e seis aparelhos de rádio.

 

Sim, meu tenente  respondeu maquinalmente Vierbein.

 

A despeito das maiores dificuldades  repetiu Schulz com insistência, como se quisesse incutir esta ideia na memória do segundo-sargento.  Você próprio, Vierbein, viu como são grandes as dificuldades com que aqui lutamos. com o meu espírito de decisão rápida forneci-lhe todas as ocasiões possíveis de  conhecer  essas  dificuldades e  creio que as ficou conhecendo.

 

Sim, meu tenente.

 

O material humano posto à nossa disposição é mau e torna-se pior de mês para mês.  Isto dificulta  naturalmente cada vez mais a formação. E faz com que os melhores instrutores sejam  indispensáveis.  Deve tê-lo  notado,  Vierbein. Não é assim?

 

Sim, meu  tenente.

 

Schulz acenou a cabeça gravemente. Dir-se-ia que reunia agora todas as suas forças para atravessar o último obstáculo, o maior e o mais perigoso.

 

Fazendo  isto,   claro  que  só  pretendo  alcançar  um objectivo: enviar para a frente de batalha o material humano mais bem formado que for possível arranjar. Espero que o tenha reconhecido.

 

Sim, meu tenente  disse Vierbein.

 

Se o reconheceu, tal como acaba de afirmar, espero que não deixará... aqui Schulz respirou profundamente e, logo a seguir, deixou ver o fundo do seu pensamento , que não deixará de o fazer compreender ao coronel Luschke.

 

Antes que Vierbein pudesse responder-lhe, Schulz inclinou-se para ele e com toda a intimidade, como de camarada para camarada, disse:

 

Se o coronel Luschke desejar qualquer coisa especial, dar-lhe-emos sempre completa satisfação. Fico pessoalmente por fiador. Ainda que,  como desta vez, tenha de vencer grandes  dificuldades.   Mas  não  hesitei,   e   envio   até  dois dos meus melhores subalternos, dos mais dignos de confiança. É com muita pena que me separo deles. Mas fi-lo pelo  coronel  Luschke.  Pode  dizer-lho.

 

Vierbein, que ainda não conseguira dominar a sua comoção, conservou-se em silêncio. Não conseguia perceber exactamente o que Schulz acabava de perpetrar. Não era sequer capaz de imaginar o que podia ter levado o tenente a separar-se dos irmãos siameses.

 

O alto-falante gritou: «O aparelho Siegfried n.º 18 parte dentro de cinco minutos. Todos os passageiros nos seus lugares.»

 

O segundo-sargento Vierbein pediu licença para despedir-se.

 

O comandante disse: <Ainda fumegam as chaminés», e pediu a Vierbein que saudasse da sua parte com aquelas palavras o coronel Luschke e o comandante do aeroporto da frente.

 

Invejo-o, meu jovem e bravo camarada disse Sua Excelência,  supondo,  sem  dúvida, estar a  despedir-se de grandes unidades da marinha imperial. Tem a possibilidade de combater pela Alemanha. Honre a sua pátria em todos os aspectos.

 

Diga da minha parte ao coronel Luschke: «As suas ordens foram executadas.»

 

Lore avançou para Johannes Vierbein, olhou-o fixamente, inclinou-se rapidamente e beijou-o nos lábios. «Pobre pequeno!», murmurou. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

 

Vierbein correu para o avião. Deitou um olhar rápido ao rosto pálido dos soldados. Os dois irmãos siameses estavam particularmente lívidos. Tentou agarrar-se a uma das vigias. Mas não viu mais nada além do turbilhão da hélice.

 

Lentamente, o aparelho começou a rolar, estremeceu com violência, ganhou velocidade e, titubeando, levantou voo com dificuldade.

 

Aquilo a que Vierbein chamava a «sua terra» desapareceu nas trevas.

 

O sargento Asch aproximava-se da linha de fogo da

3.ª bateria. À medida que se ia aproximando, o movimento diminuía. Atrás das posições avançadas desaparecia por completo. Apenas se viam circular na lama viaturas sanitárias e camiões carregados de munições.

 

Na frente ouvia-se o rumor da guerra, mas duma guerra que tinha dificuldade em abrir os olhos. Ao longe ribombavam os canhões, como cães fatigados. As metralhadoras esvaziavam-se, monótonas, do seu conteúdo. O choque das bombas ressoava como carvão despejado num fosso.

 

Os olhos tinham-se habituado à escuridão. E a neve molhada, que caía em flocos cada vez mais numerosos, parecia agora um véu. Depressa se transformaria em chuva.

 

Asch penetrou na aldeia situada atrás da frente, onde se conservava ainda a posição avançada da 3.ª bateria. Na linha de fogo, a algumas centenas de metros dali, esfalfava-se um tractor; quando o motor parecia querer ir-se abaixo ouviam-se vozes pronunciando violentas pragas. À parte isto, a guerra, que acabava de ser libertada outra vez, parecia preocupar-se pouco com este sector.

 

O sargento viu o automóvel do tenente parado diante da cabana que ele e Wedelmann haviam ocupado. Encostou a motocicleta à parede e entrou. Diante do fogão estava sentado o primeiro-cabo Kowalski a secar as peúgas.

 

Que fazes tu aqui ?  perguntou Kowalski.  Está-se mesmo a ver que suspiravas por nós.

 

Queria  ver apenas se já tinham  desaparecido  definitivamente.

 

Nunca. Deixam-nos simplesmente de parte. Witterer está mais vivo do que nunca.

 

Era o que Asch supusera. Primeiro, um ataque a toda a largura do sector, depois, formação de pontos de ataque principais. E nem um só destes pontos tocava o terreno ocupado pela 3.ª bateria.

 

O nosso Witterer  disse Kowalski  começa a acreditar que os soviéticos têm medo dele.

 

Grande gasto de munições?  perguntou Asch.

 

Assim, assim. O nosso herói  começou  a fazer economias. Acabou por descobrir que os soviéticos atiravam com uma precisão perfeita quando ele começava a disparar. Fazia-lhe mal aos nervos.

 

Asch sentou-se no chão, junto de Kowalski, e disse:

 

Os soviéticos vão tentar romper a linha  da frente.

 

Não aqui. Não iam fazer uma coisa dessas a Witterer.

 

Não, mas em qualquer parte, à nossa esquerda ou à nossa direita. E então ficaremos com eles no flanco ou atrás de nós.

 

E, claro, tu sentes-te com enorme curiosidade de ver essa grande porcaria. Queres ver o Witterer meter o rabo entre as pernas e fazer nas cuecas. Porque estarias tu aqui se não fosse isso?

 

Asch pôs-se a rir.

 

Pus em segurança uma parte da bateria  disse. Agora tenho de ocupar-me da outra metade.

 

No entanto, não esqueças que Witterer está em número um na lista daqueles que tenho de abater.

 

Não faças asneiras.  Podias pôr em perigo toda a bateria.

 

Quero simplesmente apalpá-lo  disse Kowalski, furioso.  Se ele  é podre,  descobri-lo-emos mais  cedo  ou mais tarde. Vale mais que o saibamos o mais depressa possível.

 

Asch aqueceu-se ainda um momento, depois partiu outra vez. A situação estava absolutamente igual. Dos dois lados do seu sector a frente rumorejava; na parte situada diante dele tudo estava quase calmo. A dois ou três quilómetros dali uma metralhadora crepitava... Dois ou três tiros de espingarda ouviram-se em seguida.

 

Na linha de fogo da 3.ª bateria o tractor continuava a esfalfar-se. Tentava arrancar uma peça do seu sítio, mas as rodas enterravam-se no chão e as próprias lagartas escorregavam a cada esforço. Havia homens a empurrar, mas,, como Asch logo notou, sem fazerem grande força. Witterer estava ali, de pé, dando ordens.

 

Asch colocou-se perto dele e pôs-se a olhar.

 

Não fique aí sem fazer nada! gritou-lhe o comandante.  Empurre como os outros.

 

É  inútil.  O  chão  está  profundamente  remexido.  É como sabão.

 

Peço-lhe que me deixe o cuidado de ajuizar isso gritou-lhe Witterer.

 

É uma questão de simples experiência  respondeu Asch.  Deixe-me tratar do caso.

 

E, sem esperar o consentimento do capitão, Asch tomou o comando, como se fosse a coisa mais natural.

 

Desembraiar.  Três homens  para  irem  procurar  ramos.

 

Evidentemente  disse  o  motorista.  Só  assim  é que é possível. Já há meia hora que eu o disse.

 

Como veio aqui parar, Asch ?  perguntou Witterer, furioso.

 

Com a minha motocicleta.

 

Não devia estar com a coluna de Bock?

 

Já lá estive.

 

Ah!... E então? Já atingiu as novas posições?

 

Está  bloqueada   na  estrada.  Por enquanto  não   há nada a fazer.

 

Como está vendo,  nós ainda estamos  longe de  nos metermos a caminho.

 

Eu   tinha  razão   para   desconfiar  de  que   todos  os planos iriam ao ar. Teoricamente, os canhões já deveriam estar em marcha.

 

É   assim   tão   tarde?  perguntou   Witterer   sinceramente surpreendido. Depois, alumiado por Krause, olhou o relógio.  É verdade!  exclamou.  Fique aqui, Asch. Tenho de ir telefonar ao coronel.

 

Enquanto Witterer corria para o abrigo onde se encontrava o telefone, situado a trinta metros dali, Asch pôs a peça em movimento. Mandou colocar ramos de árvore debaixo das lagartas e arrastar pelo lado de trás as caixas de munições vazias.

 

Andar devagar!ordenou.

 

O motorista acelerou, as lagartas patinaram ainda um pouco e depois firmaram-se. Lentamente o tractor -avançava e puxava o canhão. Finalmente, um e outro encontraram solo relativamente seguro.

 

-Já está!disse Asch.

 

Fez um gesto amigável aos soldados e foi ter com Witterer, que estava a telefonar no abrigo.

 

«Sim, meu coronel», dizia Witterer.

 

Repetiu a frase três vezes. Depois gritou a Krause:

 

O mapa!

 

Krause desdobrou o mapa, acendeu a lanterna e apresentou um lápis. Witterer agarrou-o e fez no mapa uma cruz num ponto que se encontrava, como Asch pôde ver, a meio caminho entre a antiga posição e a actual.

 

Depois disse uma vez mais:

 

<Sim, meu coronel.»

 

Saiu do abrigo com o ar de um comandante de exército. O capote cobria, sem uma ruga, o seu corpo aprumado. Um pouco de terra que permanecia colada às mangas e aos ombros dava-lhe o aspecto de um elegante temerário.

 

Os chefes de secção!ordenou.

 

Parecia extraordinariamente satisfeito com a conversa que acabara de ter ao telefone. Olhava com uma expressão quase provocadora as colinas em frente onde se encontravam as posições do inimigo. E, nesse momento, lamentava sinceramente que o adversário não tivesse, como era notório, força para descer ao ataque.

 

Claro que serão mais uma vez os regimentos vizinhos que poderão servir-se dos melhores bocados.

 

Oxalá   não   se   engasguem  disse   Asch   tranquilamente.

 

Ora, ora! exclamou Witterer com ar superior. Ivan procura atacar por todo o lado,  mas não  consegue furar em parte alguma.

 

Até aqui  emendou Asch  nunca ninguém conseguiu furar uma  frente  de batalha  ao  primeiro  impulso.

 

Nós metralhámo-los que foi um1 gosto  disse Witterer.  Se as coisas correram tão bem com os outros como connosco, dentro de uma hora, quando muito, já não haverá um único Ivan para dizer «Uf!» neste sector da frente.

 

O sargento alinhou entre os chefes de secção que se reuniam em volta de Krause. Este fazia a chamada e cada um respondia: «Pronto!» Parecia estar-se numa classe infantil. Só o primeiro-cabo Kowalski respondeu: «com todos   os seus homens», o que alguns tomaram por brincadeira, de que riram baixinho.

 

Depois de terem feito o relatório oficial, que Witterer  acolheu indolentemente, este começou a dar as suas ordens.

 

 Em primeiro  lugar mandou  que os chefes de secção  lhe mostrassem os mapas. Depois disse:

 

Espero que também saibam ler uma carta topografica.

 

Os chefes de secção acolheram esta suspeita quase insultuosa  em  silêncio   e  com  uma   certa   reserva.  Apenas Kowalski disse:

 

 As únicas cartas que me interessam são as de jogar.

 

Witterer lançou-lhe um olhar severo e carregado de censura, que todos notaram, apesar da semiobscuridade. Kowalski foi talvez o único a nada notar.

 

Procurem nos vossos mapas  ordenou Witterer a nossa posição actual. Já encontraram? Mostrem cá.

 

Docilmente, embora  contrariados, os chefes de secção mostraram os mapas. Haviam posto o dedo no ponto onde estava  marcada  a  posição.   Tinham   a   impressão  de  ser  tratados como recrutas a quem estivesse a ser passada révista de equipamento.

 

E o seu, Asch?

 

Não tenho, meu capitão. Não preciso. Conheço o terreno de cor.

 

No prazo máximo de doze horas tem de se me apresentar com um mapa. Arranje-o onde quiser, é-me indiferente. Mesmo que tenha de o ir procurar debaixo das nadegás dum general.

 

Kowalski rebentou a rir e Witterer ficou encantado ao ver que o seu gracejo fora compreendido, e especialmente por Kowalski. Mas este acrescentou:

 

O que o general põe em cima do mapa não são asnádegas, mas sim uma coisa parecida.         Se alguém aqui diz piadas, Kowalski, sou eu.

 

Perfeitamente  disse o  primeiro-cabo.   Já  sabemos.

 

Pois   bem    disse    Witterer,    continuando    a    dar ordens, sabem agora onde se encontra no mapa a nossa posição actual. Andem então com o dedo indicador dezoito quilómetros,   quer   dizer,   dezoito  centímetros,   para   oeste, isto é, para a esquerda. Há aí uma aldeia, Nikolski, ou qualquer  coisa  assim...   Estão  vendo?

 

Sim  responderam alguns chefes de escalão, de mau modo.

 

Há aí uma elevação, a cota 175... Quem é que está a rir?

 

Asch respondeu:

 

Na Grande Exposição de Arte Alemã havia um quadro que tinha o número 175 e nele estava escrito: «É o nosso S. A.»

 

Escreva isto, Krause. É quase um atentado contra a honra do Estado.

 

Asch já não precisa disso, meu capitão  disse Kowalski com uma careta.

 

Do que ele precisa  disse Witterer energicamente sei-o eu melhor do que vocês, e ele o terá quando a festa tiver acabado. Mais adiante. Cota 175. Toda a gente está a ver? É a nossa nova posição, a nossa posição provisória. É aí que nos devemos instalar solidamente. Depois veremos. Fui claro?

 

Fora claro. Assim o proclamaram os chefes de secção. O próprio Kowalski não achou nada para acrescentar. Asch declarou:

 

Dezoito quilómetros. Isso exige entre quatro a cinco horas de marcha, se nada de  grave acontecer entretanto.

 

1 Abreviatura que designava as tropas de assalto  (Sturm  Abtei lungen)  do Partido Nacional-Socialista.  (N. do T.)

 

Nós temos prioridade sobre as outras colunas  disse Witterer.

 

Foi o que eu supus e já contei com isso nos meus cálculos.

 

Partida  imediata.  Exijo uma  disciplina  perfeita no decorrer desta marcha. Ai de quem sair das fileiras!  Que Deus  perdoe  a  quem  perder  a   cabeça!   Quem   quer  que fraqueje ou destrua a sua viatura será levado a conselho de guerra!

 

Meu velho  disse Kowalski  ao  sargento ,  talvez ele  componha  máximas.

 

Esperemos   que   não   sejam   apenas   máximas  respondeu Asch.

 

Você, sargento, fica junto da bateria  ordenou  o capitão.  Eu parto para a frente.

 

Ele  deve  estar enganado  na  direcção   disse  Kowalski num tom seco.  Quando diz em frente é retaguarda que quer dizer.

 

O que só deve agradar-te, motorista.

 

Tem confiança em mim. Eu  saberei fazer-lhe  compreender o  que vem  a  ser em frente,  absolutamente em frente.

 

Preciso falar-te  disse o tenente Wedelmann, afastando Natacha, que queria beijá-lo.

 

Que Bom que tu estejas aqui outra vez  disse ela.

 

Não ficarei.

 

Fizera de motocicleta, em menos de duas horas, trinta e cinco quilómetros, pelo meio da noite. Cruzara a toda a velocidade as colunas, que se bloqueavam cada vez mais umas às outras, introduzira-se por entre elas, evitara-as, ficara várias vezes enterrado na neve profunda, mas sempre conseguira escapar-se, mais carregando a motocicleta do que conduzindo-a.

 

Disse:

 

Presentemente   tenho   tudo:   veículos   que  de  futuro apenas servirão para ferro-velho, homens que berram uns com os outros e, entre eles, feridos que gritam. No meio da estrada estava estendido um cadáver com quem ninguém se preocupava. Os carros pesados passavam-lhe por cima e transformavam-no em papa.

 

A guerra é uma coisa terrível  disse ela.

 

Sem tirar uma única peça do seu equipamento, Wedelmann deixou-se cair numa cadeira, no quarto que imprudentemente arranjara à rapariga, a fim de a conservar perto de si. Estava extenuado e não o escondia.

 

Chá?perguntou ela com timidez.

 

Não  respondeu ele brutalmente.

 

Ela ficou diante dele, de pé, encostada à parede. Não se mexia. Mas os seus olhos estavam cheios de inquietação. O tenente continuou:

 

Sei qual é a situação na frente. Em vários locais o fogo da artilharia é violento. A infantaria ataca. Há perdas dum lado e doutro. A pressão aumenta de hora a hora. Se uma ruptura mais importante se der esta noite, nada poderá já deter a catástrofe.

 

Não  deves pensar nisso constantemente  disse ela numa voz insinuante.

 

Pensarei enquanto viver  disse Wedelmann. E numa voz quase imperceptível acrescentou:  E neste momento desejo sinceramente não ter que viver muito tempo.

 

Não deves dizer isso... Nem mesmo o deves pensar.

 

Centenas de mortos. Milhares. Nenhuma consciência pode suportar  isto.

 

De que estás a falar?

 

Vi morrer soldados em grande número. Estão mortos e eu mantinha-me ao lado deles, pronto a morrer também. Mas  a  minha  consciência  estava  pura.  Agora  acabou-se. Agora sou um cão imundo.

 

-Nunca!disse ela. Eu sou um cão imundo.

 

Que se passou?

 

Pela primeira vez desde que se tinham encontrado nessa noite Wedelmann a olhou de frente. No rosto dele lia-se o desespero  e também a angústia e a decisão”. Era como se tivesse sido apanhado por uma febre perniciosa. Mas os seus movimentos eram duma calma inquietante. Eram lentos, como ao retardador. Davam a impressão de que o faziam sofrer.

 

Wedelmann tirou a pistola do bolso de trás e colocou-a diante de si, sobre a mesa.

 

Desmancha a tua cama.

 

Ela olhava-o, profundamente perturbada. Não se mexia; mas nos seus olhos havia medo, um medo sem disfarce.

 

Disse-te que desmanchasses a tua cama.

 

Ela fez um movimento rápido, como se tivesse sido empurrada para a frente. Arrancou os cobertores, atirou as almofadas ao chão, puxou o colchão da armação da cama.

 

Abre o colchão.

 

Ela obedeceu e espalhou o conteúdo pelo quarto. ’O armário.

 

Ela atirou as roupas para cima da palha, depois a roupa branca e ainda um par de sapatos.

 

A mala.

 

Ela ficou imóvel, no sítio onde se encontrava e na posição em que estava: um pouco inclinada para diante, um lenço na mão, a cabeça baixa.

 

Não  disse.

 

É, então, verdade! disse Wedelmann, sentindo que as três palavras que acabara de pronunciar equivaliam a uma condenação. Gritou: A mala!

 

Está  bem!   Está bem!  exclamou  ela,  tão  furiosa quanto ele e como ele igualmente decidida a tudo.

 

Levantou com violência a tampa da mala, inclinou-se, rebuscou furiosamente nas roupas e nos tecidos e arrancou lá de dentro uma pequena caixa de tamanho duma caixa de sapatos.

 

Depois colocou-a diante de Wedelmann, sobre a mesa em que estava colocada a pistola.

 

O tenente mal podia respirar. O seu rosto parecia branco como a neve acabada de cair. Uma das mãos aproximou-se, tacteando, da caixa e abriu-a. Um emissor de rádio.

 

Dir-se-ia que Wedelmann ficara incapaz de se mexer. As maçãs do rosto incharam. As mãos começaram a tremer-lhe.

 

Depois, lentamente, como se o atraísse qualquer coisa, levantou-se. As suas mãos pousaram na caixa que continha o emissor e agarraram-na convulsivamente. Levantou-a, primeiro até ao peito, depois mais acima, até à altura da cabeça, mais acima ainda, por sobre a cabeça. E com toda a força atirou-a ao chão.

 

Houve um estrondo surdo. Os vidros que se estilhaçavam e as partes metálicas rolaram pelo chão. Natacha não se mexia; tinha os olhos fechados. Dum ferimento da perna esquerda corria sangue.

 

Wedelmann deixou-se cair na cadeira.

 

Sim  disse então.  É verdade. Ela, após uma longa pausa, disse:

 

É verdade. E eu amo-te.

 

Wedelmann fechou os olhos, como para se impedir de olhá-la contra vontade.

 

-Mentiste-me. Enganaste-me. Serviste-te de mim. Não recuaste diante de nada.

 

Ela abanou lentamente a cabeça.

 

Como tu me conheces pouco!  disse.

 

Como eu te conhecia pouco!  disse ele numa voz dura.

 

Nunca te menti. Nunca. Também não te menti quando disse que te amava. Amo-te! Não amei nunca nenhum homem antes de ti e não amarei nunca ninguém tanto como a ti.

 

E transformaste o homem que amavas num ser mais desprezível  que um cão.

 

Nunca te escondi que amava a minha pátria, que a amava pelo menos tanto como tu a tua.

 

Eu sou soldado, bato-me por ela.

 

E eu não posso ser soldado, mas bato-me pelo meu país. Tanto quanto as minhas forças o permitem. Não quero disparar tiros, não posso alistar-me nos guerrilheiros. Tenho de fazer o que sou capaz de fazer. Se o não fizesse, então poderias desprezar-me.

 

Eu queria amar-te, nada mais.

 

Como se fosse possível nada mais fazer além de amar! exclamou Natacha. Animara-se, a sua voz era sombria e forte. Parecia ser ela quem tinha o direito de acusar.

 

Nada mais fiz senão amar-te.

 

Mataste russos soviéticos. Sim ou não ?

 

Lutei  abertamente  e  lealmente com  o meu  adversário. Durante os combates houve mortos, evidentemente. E dos dois lados, claro. Censuras-me por ainda estar vivo? Também eu me censuro. E sou eu o único que tem esse direito.

 

Está bem  disse Natacha.  Fizeste sempre o que  consideraste ser teu dever. E eu fiz igualmente e exacta! mente a mesma coisa.

 

A guerra tem as suas leis  disse Wedelmann , as  suas regras, as suas convenções fixadas há séculos.

 

A guerra de hoje, não!

 

É uma guerra como todas as outras guerras.

 

Não. A guerra de hoje, não. Fomos atacados de im-

 previsto. Vocês pilharam-nos. Fuzilaram os nossos, deportaram-nos.

 

Eu não pilhei nem deportei ninguém. Combati.

 

Se nós tivéssemos atacado a Alemanha de imprevisto, que julgas que teriam feito as vossas mulheres? Ficariam a olhar? Ou ajudar-vos-iam no vosso  combate?

 

As mulheres nada têm que ver com a guerra.

 

Ah, sim!  Mas a guerra veio ter com as mulheres. Obriga-as a tomar parte nela. Umas torneiam obuses, outras tratam dos feridos, outras, ainda, transmitem ordens. Pois bem!  Eu recolhi informações.

 

De mim.

 

Onde as podia arranjar. Sim, mesmo de ti. Amo-te como nunca amei ninguém. Mas tu és ao mesmo tempo um alemão e, como  tal,  um soldado de Hitler  e todos os soldados de Hitler são nossos inimigos.

 

Wedelmann bateu com as duas mãos na mesa, de tal maneira que a pistola saltou.

 

Basta!  gritou.

 

Basta! repetiu ela em voz baixa.

 

Wedelmann avançou a mão direita e assentou-a sobre a pistola. A arma estava fria, fria como gelo. Puxou-a para si.

 

Natacha examinava o quarto devastado. Inclinava-se levemente para a frente, como se tivesse perdido o equilíbrio. Uma madeixa de cabelos caía-lhe para o rosto. Disse:

 

Faz  o  que  quiseres  agora.  Não  pude  agir  doutra maneira.  Podes  matar-me...   Aqui,   imediatamente.   Talvez seja o melhor. Podes também entregar-me aos teus, e então serão eles que me fuzilarão. Talvez me interroguem e torturem antes. Tudo me é indiferente. Mas, aconteça o que acontecer, sei que é pela minha pátria que morrerei. E repetirei sempre: amei-te.

 

Esta pátria disse Wedelmann numa voz quase imperceptível  é, às vezes, uma cadeia.

 

E nós nunca pensaremos decerto em libertar-nos dela.

 

Wedelmann continuava de pé. Engatilhou a pistola energicamente e sopesou-a na mão. Uma vez mais olhou Natacha com uma expressão interrogadora. Ela não desviou o olhar. E ambos leram os seus pensamentos nos olhos um do outro.

 

Não quero voltar a ver-te nunca mais disse Wedelmann.  Nunca te conheci. Nunca exististe para mim.

 

Também eu te amo, mais que a tudo  disse ela. Então Wedelmann correu, desapareceu  na  noite,  para esconder que também ele chorava.

 

O avião abria caminho por entre as trevas na direcção da frente. O piloto, diante dos seus comandos, bocejava, de mau humor. Estava farto deste ofício de cocheiro.

 

Os dois homens que algumas horas antes usavam orgulhosamente a alcunha de «irmãos siameses» estavam agora sentados, tristes e mudos, num canto do paiol das bagagens e olhavam na sua frente, a direito.

 

Perto deles estava sentado Vierbein, com a cabeça ligeiramente pendida para trás, como se estivesse a contemplar o céu. Mas para onde quer que dirigisse os olhos apenas via paredes de metal ondulado. E, contudo, o céu, assim lhe parecia, estava por toda a parte. até mesmo debaixo dos seus pés.

 

Isto começou  dizia Bartsch, consternado  com o cão dessa futura coronela.

 

Não devíamos ter afixado o letreiro à porta da caserna.

 

Qual  letreiro?  perguntou Vierbein.

 

Um cartaz inofensivo e ainda por cima com as cores nacionais. Dizia assim: «A entrada no território da caserna é rigorosamente proibida aos cães de raças vulgares, fraldiqueiros ou rafeiros.»

 

Consideraram logo isto um insulto pessoal.

 

Na frente  disse Vierbein, consolador  isso não aconteceria. Comparada com Schulz e a caserna, a linha de fogo é para todos nós o melhor sanatório.

 

Ora, enquanto Vierbein dizia isto, a frente, a algumas centenas de quilómetros dali, rebentava como se fosse tão delgada como uma caixa de fósforos.

 

Unidades de infantaria russa penetraram nas linhas e ali ficaram, no meio das posições alemãs, com o rosto coberto de sangue. Outras unidades avançaram em seguida tropeçando nas primeiras vagas que jaziam agora no terreno como lenha para queimar lançada ao acaso na floresta.

 

Depois os blindados entraram na batalha, atacaram a artilharia alemã, encarniçaram-se contra ela até se tornarem num monte de sucata. Outros blindados, por sua vez, dilaceraram o flanco posto a descoberto. Na linha de fogo de alguns quilómetros abria-se agora uma fenda pouco mais larga do que o leito dum rio. Mas este rio era feito de sangue.

 

O avião parecia precipitar-se para esta fenda. O piloto sabia de cor as suas cotas de navegação. Fixara o leme e fumava um cigarro.

 

E, depois  disse Bartsch com ar pensativo , nunca devíamos ter começado essa história com Lore Schulz.

 

Foi essa mulher que nos perdeu.

 

Que ilusões nós tínhamos!

 

Sim, o que ela nos fez foi uma verdadeira vigarice.

 

A Sr.a Lore Schulz  disse Vierbein  é uma pessoa de absoluta honestidade.

 

É justamente o que temos estado a dizer.

 

Foi isso justamente que nos deu o golpe de misericórdia.

 

Não compreendo  disse Vierbein,

 

São sempre as honestas que nos arranjam sarilhos assegurou Bartsch.

 

São elas que fazem a nossa desgraça  acrescentou Ruhnau.

 

E, no entanto, tínhamos-lhe dado todas as garantias. Oferecemo-nos até para lhe fornecer uma agenda exacta das actividades do marido, e isto com vinte e quatro horas de antecedência,  pelo  menos.  Quando  uma  mulher não vai nestas condições é porque há qualquer coisa que não pega.

 

Ela não tinha Bom gosto: não nos achava simpáticos. E isto é sempre perigoso. Meu velho Vierbein, as mulheres deste género são capazes de deitar abaixo um exército inteiro. Ou se lhes dá ordens concretas ou então tudo corre mal.

 

Já te contaram a história do sargento Reitter? Como? Ainda não?... Então, ouve. Reitter dormira com a filha do capitão tesoureiro. Como este era, sabe-o toda a gente, o fornecedor encartado do general, Reitter foi enviado rapidamente para a frente. Mas nessa altura descobriu-se que a encantadora filha do capitão tesoureiro estava grávida e o sargento foi transferido para a retaguarda, para se tratar do inevitável casamento. Mas como a questão deu num parto prematuro, o sargento, agora inútil, foi outra vez enviado a toda a velocidade para a frente. Agora o Bom da história: na licença seguinte o sargento arranjou-se de maneira  a fornecer nova  posteridade...

 

Na frente  disse Vierbein  essas coisas não acontecem, graças a Deus!

 

Ora, enquanto o subalterno Vierbein afirmava isto, o subalterno Soeft, numa aldeia da retaguarda, vendia em leilão, duma só vez, três mulheres do Teatro do Exército. Em troca emprestaram-lhe por vinte e quatro horas um tractor.

 

Soèft, excelente comerciante em todos os aspectos, garantia a entrega em Bom estado, assim como a superior qualidade da mercadoria, mas não a atitude e o rendimento. Isso era com o ou os destinatários.

 

Fosse como fosse, os seus preços eram razoáveis e se tudo corresse bem  isto é, como ele desejava  a 3.ª bateria contaria nas suas fileiras, em menos de vinte e quatro horas, com um homem rico.

 

De minuto a minuto o avião aproximava-se mais desta caldeira fervente. O piloto determinou a sua posição, mas mesmo antes dos cálculos necessários já conhecia os seus números.

 

A  guerra  disse  Bartsch,   melancolicamente  é, contudo, para os homens. Para que permitem que as mulheres se metam nela?...

 

Em conclusão disse Vierbein com uma certa ironia, surpreendente nele, só vos resta tornarem-se heróis!

 

Vocês nunca têm que cheguem, não?

 

Todos os que se batem na frente são heróis  disse Ruhnau. É o que os jornais dizem. Para onde quer que se deite os olhos, só se vêem heróis. Pois tanto  melhor: também nós somos heróis.

 

E enquanto esta conversa transbordava sobre a cabeça de Vierbein a ferida perigosa da linha de fogo alargava-se.

 

Outros blindados se introduziam nela, dirigidos para lá a marchas forçadas vindas doutros sectores. Deslocavam a terra e esmagavam os homens que tentavam barrar-lhes o caminho. O fogo, o sangue, a água, a neve e a terra  tudo isto se misturava para formar uma massa de guerra.

 

Era como se um dique tivesse rebentado. A morte escoava-se como uma vaga na direcção da retaguarda. Varria as estradas obstruídas e passava-lhes por cima. Veículos esmagados, queimados e pilhados ficavam pelos caminhos como montões de ruínas.

 

Muitos eram os que queriam fugir, acreditando ainda na salvação. Era o pânico. Lançava-se sobre as colunas em marcha, que estremeciam como atacadas por febre intensa.

 

E, no meio disto, agitava-se o subalterno Soeft com o seu tractor. Era difícil não consentir que o requisitassem, como muitos oficiais parecia quererem fazê-lo... Soêft negava-se decididamente a todas as pretensões deste género e afirmava que a sua actividade lhe era recomendada directamente pelo general comandante em chefe. Primeiramente dirigia a pequena camioneta que transportava as damas do Teatro do Exército e fazia-as sair da zona perigosa, para as entregar em seguida ao seu associado.

 

O capitão Witterer recuperava o fôlego numa cabana de camponês. Esta pequena «pausa» destinada a «recuperar o fôlego» durava havia já duas horas, o que Kowalski considerava incontestavelmente demasiado. Bem propusera ele, por várias vezes, que voltassem a visitar a linha da frente. Witterer tratara-o rispidamente, de cada vez com mais energia e da maneira mais convincente, ao que julgava. Kowalski decidiu, portanto, agir, uma vez mais, por sua iniciativa.

 

O avião percorria os últimos cem quilómetros. Um clarão começava a despontar. O piloto notou-o com certo espanto.

 

Olhou o relógio. «Ainda é cedo para o nascer do Sol», pensou. «Talvez um depósito de gasolina, ou uma aldeia, ou uma reserva de munições, que está a arder.» Bocejou. Na verdade, esta guerra de cocheiro de praça era o mais perfeito soporífero.

 

Contudo, na frente  observou Bartsch  deve haver com certeza umas garotas enfermeiras. Elas são recomendáveis?

 

Sabê-lo-ás quando tiveres sido ferido com gravidade.

 

E como são  as auxiliares  do  estado-maior?perguntou Ruhnau.

 

Onde nós estamos não há estados-maiores com mulheres.

 

E as damas do Teatro do Exército? Não serão uma espécie de bordel da frente?

 

Ainda não reparei. respondeu.

 

E as raparigas da terra? Que tal?

 

Nunca as vi.

 

Mas, afinal, meu velho perguntou Bartsch, verdadeiramente desorientado, tu estás mesmo a falar a sério?

 

Se é realmente assim  disse Ruhnau , já sei porque são vocês heróis. Não vos resta mais nada que fazer.

 

Lentamente, o avião iniciava a descida. Acabavam de atingir o novo aeroporto da frente. O piloto bocejou uma vez mais, quase desconjuntando as mandíbulas; depois cerrou os lábios e esticou o queixo para diante. Voar era apenas uma brincadeira de crianças; levantar voo, uma questão de hábito. Mas descer! Aterrar era trabalho para homens!

 

O avião vibrava no solo. Depois os motores calaram-se. O subalterno Vierbein foi o primeiro a saltar para a ’pista. Quando sentiu debaixo dos pés a terra firme sentiu-se feliz à sua maneira.

 

Bem-vindo sejas à tua terra!gritou-lhe uma voz alegre.

 

Diabos te  levem!   Soêft!exclamou  Vierbein,  correndo para ele e dando-lhe um abraço.

 

Então que é isso? disse o outro. Transformei-me por acaso em mulher durante a noite?

 

Oh,  Soêft!   exclamava  Vierbein,  encantado.  É espantoso que tu estejas aqui!  Vieste buscar-me?

 

Terei eu aspecto bastante estúpido para isso? Apenas quis reconhecer um pouco a situação e, se possível, receber uma nova carga. Não há industrial de transportes que viaje com as mãos a abanar.

 

Nós é que seremos a tua carga.

 

Bem parvo seria eu. Chegarás a tempo para a festa. Leva os teus rapazes e vai primeiro beber um copo. Depois dorme uma boa soneca. Em seguida apresentas-te com a tua pequena classe no primeiro centro de escolha da frente. Até lá o pior terá passado.

 

Que se passa?

 

Tudo o que é possível.

 

Leva-nos até à bateria.

 

Julgas que eu sou cangalheiro? Meu velho, deixa-te estar   onde   estás   e   fica   contente.   As   pessoas   normais não  aspiram  à  sua  própria  participação  de falecimento.

 

Todos os chefes de secção aqui! exclamou o capitão, saltando, ágil como sempre, para fora do carro. Kowalski, sorrindo, soltou um pouco os travões, as rodas avançaram ligeiramente e Witterer tropeçou.

 

Dê atenção ao que faz!  gritou  ele.

 

Foi  isso  mesmo  que  eu  fiz  respondeu  Kowalski. Depois de vários telefonemas e uma nova «pausa» para «recuperar o fôlego», o capitão chegara finalmente, de manhãzinha, à linha de fogo da 3.ª bateria. Era aquela que ele tinha marcado com o n.º 2, a dezoito quilómetros a oeste da antiga, que tinha o n.º 1.

 

Witterer, a quem desta vez Krause não acompanhava porque o precedera no novo alojamento, olhou em redor com uma expressão perscrutadora. Os canhões pareciam-’lhe demasiadamente próximos uns dos outros. Claro que a potência de fogo da bateria aumentara, mas a sua vulnerabilidade aumentara também. O que ele não apreciava era a coordenação perfeita da eficácia e da segurança. «Mas os subordinados não podiam conhecer estas subtilezas.»

 

O terreno estava bastante desimpedido diante deles: nem o menor sinal de infantaria por toda a parte. As peças, dispostas em bateria atrás duma pequena elevação que os canos ultrapassavam como narizes curiosos, estavam prontas a fazer fogo.

 

O sargento Asch anunciou os chefes de secção. com a maior naturalidade, assumira o comando da bateria de combate. Witterer agiu como se não tivesse reparado. «A situação é terrivelmente séria», pensava o capitão, «e dizem que este rapaz é um excelente soldado. E, depois, é preferível que ele trabalhe aqui a chatear-nos noutro sítio com a sua presunção.»

 

Há alguma coisa de novo?

 

Até agora nenhum contacto com o inimigo.

 

É pena  disse o capitão, sinceramente. Teria achado mais divertido poder anunciar nas «altas esferas»  alguns notáveis tiros ao alvo.

 

Ainda pode vir  disse Asch.

 

Espero bem que sim  disse Witterer.

 

Instalei   um   observador   a   três   quilómetros   daqui disse Asch com indiferença.  Ele informou que se aproximava mais ou menos um batalhão de infantaria inimiga.

 

Quando foi isso? Onde?

 

Mesmo agora. Direcção: exactamente para aqui. Dentro de meia hora terá o contacto com o inimigo que tanto deseja.

 

Witterer ficou calado e pôs-se a pensar. «Infantaria inimiga, está bem. Mas um batalhão é de mais, incontestavelmente de mais. E, depois, quem sabe o que virá a seguir? E há uma nova ordem do coronel Luschke que é preciso executar.»

 

Disse, portanto:

 

Lamento muito ter de nos privar, a si e a mim, desse prazer. Vamos mudar de posição.

 

Mas somente depois, julgo eu?

 

Não, já. Os mapas! Nova posição: nove quilómetros mais  longe,  exactamente   a  oeste.  Há  um   kolkhoz.  Três casas indicadas no mapa. A nossa posição será mesmo atrás da terceira casa. Compreendeu?

 

Claro  disse Asch.

 

Não há perguntas a fazer?

 

Não. Para mim tudo é claro  disse Asch deitando um olhar a Kowalski.

 

Então vamos! Cuspam nas mãos e façam força. Ainda alguns grupos de granadas, para deter o inimigo, e, depois, a caminho.

 

Quantos grupos?

 

Não faça perguntas constantemente como um garoto. Asch. Três, quatro ou cinco. Toda a bateria.

 

Regozijava-se de antemão com a troca de tiros que ia dar-se. Calculou rapidamente: a infantaria inimiga a cerca de quatro quilómetros, portanto trinta minutos para chegar até ali; tiros de surpresa de toda a bateria, dez minutos; mudança de posição, quinze minutos. A coisa ia.

 

Deixe-me tratar disso  declarou.

 

Deu as vozes de comando preparatórias do tiro como se estivesse num campo de manobras. Aprendera-as bem; eram perfeitas, mesmo quanto à ordem por que eram dadas. E a sua voz era sonora e marcial.

 

O sargento telefonou ao observador avançado, soube qual a posição exacta do inimigo e indicou-a no mapa, que colocou debaixo do nariz de Witterer.

 

Este compreendeu e perguntou, numa voz muito menos marcial que antes:

 

Qual é a alça a usar, na sua opinião?

 

Asch escreveu um número na borda do mapa e respondeu :

 

Começar por isso.

 

Witterer acenou a cabeça afirmativamente. Berrou as ordens permanecendo quase firme. Kowalski observava-o, piscando os olhos. Depois Witterer abriu a boca e gritou:

 

Fogo!

 

E antes que o sargento pudesse saber do observador o resultado do tiro para mandar fazer as correcções necessárias Witterer gritou de novo: «Fogo!» E mais uma vez: «Fogo!» E novamente: «Fogo!» E sempre, sempre: «Fogo! Fogo!»

 

Os seus olhos brilhavam. Disse:

 

Aqui está uma  coisa  que eles não  esquecerão tão cedo!

 

Depois ordenou:

 

Mudança de posição!

 

Ficou de pé onde estava, profundamente satisfeito com a grande emoção que acabara de proporcionar a si mesmo. Vigiava o trabalho da sua bateria e não achava nada que criticar.

 

Ficou ainda no mesmo sítio quando os primeiros veículos se puseram em marcha. O sargento Asch reuniu a bateria a quinhentos metros dali, na estrada. Depois afastou-se.

 

Alguns instantes mais tarde o belicoso capitão estava sozinho na vasta planície.

 

Agora  vamos  nós  disse  a  Kowalski,   que   estava tranquilamente junto do automóvel com os olhos fitos na direcção do inimigo.

 

E já não é nada cedo  disse Kowalski.

 

Deixe-me a mim o cuidado de saber se é cedo ou não.

 

Como queira. Mas talvez possa, se quiser dar-se a esse trabalho, olhar  aqui deste  lado...  disse Kowalski, apontando com o polegar na direcção do vale.

 

Lá em baixo a infantaria inimiga, largamente desdobrada, dirigia-se para a colina. Eram homens vestidos de castanho. Alguns deitaram-se no chão e começaram a disparar.

 

Cavemos!exclamou Witterer, saltando para o automóvel.

 

Kowalski sentou-se ao volante, deitou um olhar ao capitão, que, ligeiramente excitado, se inclinava para trás. Depois fechou a torneira da gasolina.

 

Despache-se, vamos!

 

Kowalski pisou o pedal de arranque. O motor respondeu, para logo a seguir parar. Kowalski pisou outra vez o pedal.

 

Que se passa ?  perguntou Witterer, furioso.

 

Nada   disse  o   primeiro-cabo.   Parece   que  ele não quer andar.

 

Os soldados inimigos tinham-se atirado para a lama. Alguns disparavam, mas a distância era ainda demasiada para alcançarem o alvo. De todos os lados as balas assobiavam na direcção do automóvel.

 

Arranje   isso   depressa,   seu   malandro!berrou   o capitão.

 

Kowalski respondeu: «Perfeitamente», e desceu com lentidão exasperante. Abriu a parte esquerda do capot, levantou-a, prendeu-a e observou o motor com interesse.

 

Despache-se depressa!  berrava Witterer.

 

Calma!respondeu Kowalski tirando a  tampa do distribuidor.

 

A infantaria inimiga, supondo ter de haver-se com forças importantes, desdobrava-se e avançava por lanços. De novo alguns homens fizeram fogo, mas a distância era ainda muito grande para as suas armas.

 

Animal!  gritou Witterer. Se não arranja isso depressa, levo-o a conselho de guerra!

 

Sabe-se lá se ainda terá ocasião para isso  respondeu o outro, fazendo cócegas nas válvulas.

 

Já há muito tempo que o merece. É um porco-sujo, um Judas.

 

E quer que eu lhe diga, duma vez por todas, o que é?  perguntou Kowalski, aprumando toda a sua estatura.

 

Deixe-se de conversas!  Ponha o carro em marcha. Senão, está perdido.

 

Ambos, meu capitão. Estamos ambos perdidos. Outra vez as balas assobiaram em volta deles, num tom

 

mais alto agora, cortante, perigosamente próximo. Uma bala furou o pára-choques da retaguarda, produzindo um som claro e duro. Witterer saltou do carro e abrigou-se.

 

Como está a terra ?  perguntou Kowalski, abrindo o lado direito do capot.

 

Agora Kowalski, esperto, tinha toda a viatura para proteger-se. Vigiava com atenção a infantaria inimiga. Ela aproximava-se, mas não estava ainda bastante perto para ser realmente perigosa. Kowalski tivera ocasião para várias experiências deste género.

 

Vejamos!   disse  Witterer,   agora   mais  macio. Ponha-me esse moinho a trabalhar.

 

A visão das cabeças dos cilindros parecia fascinar Kowalski. Puxou da baioneta e bateu-lhes em cima. Witterer enganou-se no ruído e estremeceu.

 

Kowalski, meu velho  disse , mas você é um Bom motorista, o melhor...

 

Toma! E eu que julgava que era um porco-sujo, um Judas.

 

Kowalski! exclamou Witterer numa voz suplicante. Uma descarga de metralhadora varreu o terreno a menos

 

de vinte metros. A lama ressaltou. Parecia que o capitão era especialmente visado. Estava estendido por terra, perto do automóvel, o rosto convulsivamente enterrado no chão, e as suas mãos, em movimentos nervosos e desordenados, procuravam um ponto onde agarrar-se.

 

Kowalski!  Camarada!  gemia Witterer.

 

Eles  continuam  a  aproximar-se,  camarada  Witterer disse o primeiro-cabo.  Agora podem ver mesmo o teu grande traseiro, camarada itterer. E fora isso não vêem mais nada de ti, camarada Witterer.

 

Novamente a metralhadora varreu o terreno. Algumas balas atravessaram a parte de trás do carro. Witterer tentou levantar-se. Ergueu-se, cambaleante. Depois começou a correr, sem direcção, perdida já toda a elegância.

 

Kowalski saltou para o carro, rodou a torneira da gasolina, embraiou. O motor começou imediatamente a trabalhar. Kowalski correu atrás de Witterer e puxou-o para o carro. O capitão ofegava, aferrado à portinhola.

 

Sim  declarou Kowalski com satisfação , a guerra pode ser realmente uma coisa grandiosa.

 

O coronel estava parado ao lado da calçada. Cruzara as mãos atrás das costas e avançava furiosamente o queixo. Estava ali, de pé, como na parada da caserna, e não no centro dum caldeirão de bruxas. com uma expressão fatigada piscava os olhos na calma do sol da manhã.

 

Ninguém parecia dar por ele. Mas nada lhe escapava. Observava os veículos que tinham derrapado, os soldados que gritavam, os automóveis que fugiam a toda a velocidade pela planície.

 

O tenente Wedelmann aproximou-se do seu coronel, travou mesmo na sua frente e, ainda sentado na motocicleta, fez a continência. O coronel retribuiu-lhe a saudação quase com solenidade. Depois disse:

 

bom dia, tenente. Espero que tenha passado bem a noite.

 

Bom   dia,   meu   coronel  respondeu   Wedelmann, olhando fixamente o seu chefe.

 

Ponha essa caranguejola de lado, tenente, e venha fazer-me um pouco de companhia.

 

Wedelmann encostou a motocicleta a uma casa próxima. Depois voltou para junto do coronel, parou diante dele e conservou-se calado.

 

Temos ainda uma questão a arrumar, Sr. Wedelmann. Mas não vamos começar pelo que julga. Como encara a situação?

 

Meu coronel, até agora ainda não tive oportunidade...

 

Bem sei. Mas, mesmo assim, faço-lhe a pergunta. Wedelmann procurou reflectir e olhou a estrada engarrafada.

 

Começo de pânico  disse.  Se o inimigo atinge as nossas novas linhas, tudo se desmoronará.

 

Luschke aprovou com um gesto breve.

 

As nossas baterias recuam por lanços de dez quilómetros. Até agora tudo tem corrido mais ou menos bem. Não há perdas importantes. Também não há êxitos extraordinários.

 

O ponto crucial não chegou talvez ainda, meu coronel. Os ataques desta noite foram, sem dúvida, apenas manobras destinadas a espalhar a desordem. A experiência tem demonstrado que são os ataques de dia que podem ser utilizados para a formação de centros de gravidade decisivos.

 

Como soldado  disse Luschke, contemplando o céu cinzento, pesado de neve , você tem qualidades.

 

Wedelmann compreendeu e ficou imóvel e calado.

 

Por outro lado, recebi uma informação da sua bateria, a 3.ª Dizem terem entrado em contacto com o inimigo, a infantaria, uma força à volta de um batalhão. Perdas, nenhumas, mas êxitos do nosso lado. Uma dúzia de russos morderam o pó, parece. Vejamos, aqui entre nós, Wedelmann, acha que este Witterer nos estará a contar histórias?

 

-Meu coronel, eu sou tenente e o capitão Witterer é o chefe da minha bateria.

 

Luschke virou para Wedelmann o seu rosto de batata, semicerrou os olhos e disse friamente:

 

Sr. Wedelmann, não preciso  de  lições.  Quero  uma resposta.

 

O coronel atravessou uma sala grande onde o oficial ordenança estava ocupado com soldados do seu estado-maior. Depois, entrando num quarto pequeno, atirou o boné para cima da mesa  nunca o tinham visto sem boné.

 

Não tire qualquer conclusão do facto de não o ter convidado a sentar-se  disse.  A cama está cheia de percevejos. A cadeira vai-se abaixo na primeira ocasião. Quanto à mesa, sou eu que me sento nela, quando me apetece sentar-me.

 

Sim, meu coronel.

 

Não é porque seja coronel. Mas os meus ossos endurecem,  o  meu  sangue  torna-se  mais  espesso.  Quanto   ao cérebro, ainda não sei bem.

 

O tenente ficou calado. Luschke observava-o com atenção, como se quisesse avaliá-lo.

 

Aí está, Wedelmann, outra coisa que me agrada em si. Outro qualquer teria dito agora: «Meu coronel, o senhor é a vida personificada», ou qualquer pachochíce do mesmo género. Mas você não é um lambe-botas. E se realmente o é, o que eu não acredito, é também bastante esperto para compreender que, na situação em que se encontra, não se pode dar ao luxo de fazer acrobacia no traseiro dos outros.

 

É exacto, meu coronel.

 

Luschke aproximou-se dele, assentou as duas mãos sobre a mesa oscilante e, com os olhos atentos, perguntou:

 

Tudo acabou? Wedelmann endireitou-se e disse:

 

Era verdade. Havia um emissor.

 

E que mais, Wedelmann?

 

Assumo toda a responsabilidade, meu coronel.

 

Conselho de guerra?

 

Sim, meu coronel.

 

Luschke levantou os braços e bateu com as duas mãos na mesa, que gemeu; depois perguntou, em voz baixa:

 

Uma rapariga?

 

Sim.

 

Compreendo.

 

Deu alguns passos na direcção da janela, virou-se bruscamente e voltou para Wedelmann.

 

Vê bem o que isto pode significar?  

 

Meu coronel, estou pronto a suportar” todas as consequências do que fiz.

 

Está pronto  a suportar todas  as consequências,  tenente. Olhem-me para isto: ele está pronto. Pronto a deixar-se prender, a passar por um conselho de guerra, a deixar-se encostar ao muro ou ser atirado como soldado raso para uma companhia disciplinar para enterrar cadáveres ou desenterrar minas. Está pronto para tudo!  Como é nobre! É de vomitar! Mas você não está sozinho no mundo!

 

Lamento sinceramente, meu coronel...

 

Não me chateie com os seus lamentos  exclamou o coronel brutalmente.  Não preciso disso. Eu conseguirei conformar-me.

 

Eu não, meu coronel  disse Wedelmann resignado. Nunca.

 

Que quer isso dizer? Significará que não poderá mais olhar de frente, nos seus olhos de chefe supremo, o seu bem-amado Fiihrer?

 

É mais ou menos isso  disse Wedelmann em voz baixa.

 

Se faz questão de sabê-lo, dir-lhe-ei que nunca desejei mergulhar os meus olhos nos olhos de vitelo do seu Fiihrer. Porque a guerra que eu faço não é a dele. E se não tem outra preocupação que não seja a benevolência dele, Wedelmann, bem gostaria eu de ter essas preocupações.

 

Não compreendo, meu coronel.

 

Vai ser obrigado a compreender. E como me parece ser bastante duro da cabeça, pelo menos neste ponto, tenho de ser mais claro. Ouça-me bem, Wedelmann. Esta guerra é repugnante!

 

Não, meu coronel. Não é possível,

 

Não, Wedelman, não é possível. Mas é assim mesmo. E quanto mais isto me parece evidente mais me sinto desprezível.

 

Meu coronel!

 

Sinto-me desprezível, Wedelmann.  Luschke  levantou  os braços e deixou-os cair,  e este  gesto  desesperado comoveu o tenente.

 

Eu venero-o  disse Wedelmann numa voz mal perceptível.

 

Sou um Luschke. Mas o que é ser um Luschke? Existiam algumas dezenas deles no mundo. Gente de pouco, pastores, funcionários, oficiais.  Pessoas honestas.  Viviam decentemente, traziam ao mundo crianças capazes, morriam silenciosamente. Eu sou o último. E não vivo com decência. Não tive filhos e morrerei silenciosamente.

 

Wedelmann sentia-se imensamente perturbado. Os seus sentimentos entrechocavam-se como poderosos rios, misturavam-se e não conseguiam acalmar-se. Amava este homem, mas não o compreendia. Sentia-se atraído para ele, mas receava-o.

 

O último Luschke traiu o seu país! Para quem faço eu o meu dever, Wedelmann, para quem? O homem que provocou esta guerra é desonesto. E é por isso que esta guerra é desonesta.

 

Não, meu coronel.

 

Sim, Sr. Tenente. É uma guerra sem honra. Uma guerra feita de  caso  pensado.  com  métodos  de  rufião. Cheia de desprezo pela vida humana, pela própria como pela dos outros. Inflamada por uma demagogia embriagadora. Sustida pela lengalenga da glória. O heroísmo dos loucos e uma pátria para megalómanos. E é esse o veneno que envenenará a humanidade inteira. Sem que a salvação seja possível.

 

Não compreendo nada de tudo isto  disse Wedelmann, desamparado.

 

Já é tempo de aprender a compreender, Wedelmann. Ainda não vê, então, o que se passa aqui? A porcaria que espalhamos pelo mundo emporcalha-nos. Uns matam mil homens, os outros dois mil; depois, outra vez, uns matam cinco mil, e os outros, em contrapartida, dez mil. Aqui pilha-se, ali viola-se. Primeiro são as casas que ardem; depois, ruas inteiras esmagadas pelas bombas; por fim, cidades fumegantes. Primeiro, cadáveres de homens; depois, de mulheres; depois, de crianças. Isto já não é uma guerra de soldados, Wedelmann. É preciso ser-se um animal feroz para achar isto grandioso.

 

Também eu odeio a guerra.

 

Bem sei. Odeia a guerra, mas ama a sua pátria. E o pai desta pátria, para si, chama-se Hitler. Um homem que diz ter estado na frente. Esqueceu-a bem depressa. Os soldados batem-se, não atacam de surpresa, não enganam, não odeiam. Mas você, Wedelmann, fuzila judeus, arrasa países inteiros? Obriga civis a fazerem a guerra? Executa reféns em série?

 

Nunca tomarei parte em tais actos, meu coronel.

 

Acredito em si. Acredito na sua palavra. Mas ninguém lhe pede a sua opinião, não precisam de si. Os cúmplices são uma multidão.  Criminosos por instinto,  assassinos que se baseiam na sua concepção do mundo. E num ambiente  assim,  Wedelmann,  os  soldados  desaparecem  e surgem   os   criminosos.   Quando,   em   Dezembro   passado, a primeira vaga de pânico assaltou as nossas tropas, os criminosos começaram já a tomar o passo aos soldados. Motins, pilhagens, traficâncias, ataques à mão  armada e até assassinato de camaradas com a alegação de legítima defesa. Reflicta, vamos!   E reconheça finalmente até que ponto o mundo em que vivemos está podre. Embrutecido pelos   alto-falantes,   os   berros;   cego   pela   tinta   de   imprensa. Imagina estar falando com um homem e, na realidade, mete-se nas mãos de um delator. E eu, Wedelmann, que penso estar falando neste momento com um camarada, será um denunciante que tenho diante de mim?

 

Meu coronel!

 

Não faça caso, meu filho.

 

Que se deve fazer agora, meu coronel ?

 

Luschke respirou profundamente. Parecia esgotado. Mas os seus olhos brilhavam:

 

Tenente Wedelmann  disse, e era outra vez o coronel Batata, o inacessível, o astuto, o transcendente.  Sempre o estimei como soldado; como homem nunca me foi indiferente.   Deduzo   do   seu   relatório   que   descobriu   um emissor inimigo; o agente que o possuía conseguiu, infelizmente, escapar.

 

Meu coronel!

 

Elaboraremos   os  dois  esse   relatório,   quando  toda esta balbúrdia aqui tiver acabado. E agora não me faça essa cara de cão fiel, com mil diabos!

 

Wedelmann sentia-se perturbado. Não conseguia compreender o que lhe acontecia. Havia nele um sentimento: a gratidão. E ainda outra coisa: a dedicação. Mais ainda: o afecto.

 

Além   disso    continuou   Luschke ,   tenho   ainda que  dar-lhe  a  conhecer  o  texto  dum  telegrama.  Poderá pedi-lo ao meu oficial ordenança.  O coronel começou a sorrir   maliciosamente   e   acrescentou:  Tenente   Wedelmann, felicito-o. Foi promovido a capitão. A partir de hoje assumirá o comando do primeiro grupo do meu regimento.

 

Wedelmann olhava o seu coronel sem acreditar no que ouvira. Foi só pouco a pouco, lentamente, que teve a noção nítida do que se passava. Estava prestes a enternecer-se agora, como uma criança.

 

Luschke não lhe deu tempo. Disse:

 

Aconselhar-lhe-ia   agora,   capitão,   que   se   ocupasse da sua secção, especialmente da 3.ª bateria.

 

O capitão Witterer mostrou ter esquecido muito depressa e bem o desaire que lhe tinha infligido nessa manhã o primeiro-cabo Kowalski  por felicidade, sem testemunhas.

 

Lançou-se para a guerra com entusiasmo e esperançado em êxitos numerosos. O seu ardor, contudo, traía um certo nervosismo. Fez-se conduzir por Kowalski ao posto n.º 1. Na estrada cruzaram com um subalterno que, ao ver o carro do chefe da 3.ª bateria, saltou do camião que abria penosamente caminho no lamaçal.

 

Pára, Kowalski, pára!gritou o subalterno.

 

Só   cá   faltavas   tu  resmungou   Kowalski,   continuando a andar.

 

Pare, não ouviu?! ordenou Witterer.

 

O subalterno correu para o capitão, pôs-se em sentido e anunciou:

 

Subalterno Vierbein, de regresso de missão junto do destacamento de reserva da artilharia.

 

Ah, você é que é o subalterno Vierbein?!exclamou Witterer, cheio de interesse, sabendo que o homem que ali via pela primeira vez era o mais brilhante chefe de peça  do  regimento Luschke.  Se  havia  alguém capaz  de colher  louros  para  a  sua bateria, era  exactamente  este rapaz  modesto.   Sabe,  decerto,  quem  eu  sou ?   perguntou.

 

Sim, meu capitão.

 

Pôde desempenhar a sua missão?

 

Sim, meu capitão  disse Vierbein com orgulho. Dois subalternos e dez soldados, mais seis aparelhos de rádio. Estão actualmente à sua disposição, meu capitão, no aeródromo.

 

Agrada-me... por si. Por outro lado, chega em boa altura. Temos urgente necessidade de chefes de peça experientes. Suba.

 

Mas não tens de apresentar-te primeiro ao coronel Luschke?  sugeriu Kowalski.

 

Suba! - repetiu Witterer.

 

Mas ele tem de apresentar-se antes ao coronel  disse Kowalski, obstinado.

 

Suba!

 

Vierbein apressou-se a obedecer, sem mesmo pensar em discutir. Espantou-o, no entanto, o tom adoptado pelo camarada para falar ao chefe. Sabia-se quem era Kowalski, claro. Mas com Wedelmann, se, por vezes, fora ousado, nunca se permitira impertinências nem, sobretudo, insolências.

 

Sem se apressar, o primeiro-cabo conduziu Witterer à nova posição. As estradas estavam agora vazias; uma boa parte dos veículos bloqueados durante horas escapara, de momento, à pressão directa dos soviéticos. As tropas de combate dominavam o terreno.

 

É encantador! exclamou Kowalski. Por agora, paro   aqui.

 

A posição formava um quadro verdadeiramente pacífico. A região onde acabara de ouvir-se o fragor da batalha estava a alguns quilómetros de distância. Algumas sentinelas apenas se mantinham perto das peças. Os outros soldados tinham-se posto à vontade nos alojamentos: alguns jogavam as cartas, a maior parte dormiam, dois barbeavam-se. Um cortava as unhas com recolhimento. Tudo isto desagradou fortemente a Witterer.

 

Onde está  o sargento  Asch?  perguntou.  E  como este   se   aproximava   sem   se   apressar   muito,   gritou-lhe: Estará você de licença? Que é que se passa?

 

Olha, o Vierbein! exclamou Asch, surpreendido. Como estás tu aqui, rapazinho?  Depois acrescentou imediatamente :  Podias bem ter ficado onde estavas. Cá nos arranjaríamos sem ti.

 

Claro disse Witterer. Para descansar não há, evidentemente, necessidade de chefes de peça experientes.

 

Asch apresentou com muita solicitude a posição:

 

Uma região saudável, meu capitão. A guerra parece andar a rodar em volta de nós.

 

Não  há  contacto  com  o  inimigo?  Não  há êxitos?

 

Não há êxitos, uma vez que não houve contacto com o inimigo. A guerra desenrola-se a cinco quilómetros daqui. Pouca sorte!

 

Descontente, Witterer conservou-se em silêncio. A situação desagradava-lhe completamente. A guerra estava acesa e a sua bateria estava longe da luta. Como podia ele mostrar de que eram capazes os seus soldados?

 

Que se passa lá à frente?

 

O  rebuliço habitual. Segundo os observadores, é a infantaria que está a fazer saúdes. com alguns blindados.

 

Blindados?

 

Witterer espetara a orelha.

 

Posso  retomar  a  minha  peça,  meu  capitão?  perguntou Vierbein.

 

Pode,  sim  respondeu  Witterer  em  tom  protector.

 

Cá estão eles! disse Kowalski em voz alta, olhando para Asch.  Já não é possível deter os heróis.

 

Segundo-sargento  Vierbein  -exclamou  Witterer pode mostrar-nos imediatamente o que é capaz de fazer! Descansou o bastante. Agora, mãos à obra!

 

Que   quer   isso   dizer,   meu   capitão?  perguntou Asch numa voz calma.

 

Uma  vez  que  os blindados  não  vêm  até nós,  sargento, iremos nós ter com eles. Três ou quatro quilómetros não é nada. Prepare a sua peça para partir, Vierbein. Ivan tem de saber com quem está metido.

 

Sim, meu capitão  respondeu Vierbein. pressuroso. Correu para a sua peça e ordenou:

 

Mudança de posição!

 

Enquanto os seus camaradas se punham ao trabalho, saudou-os com uma palavra rápida e cordial. Os soldados responderam-lhe com um aceno de cabeça, um deles deu-lhe uma palmada no braço, todos manifestaram a sua alegria por voltar a vê-lo.

 

Isto alegrava-o. Sorriu aos camaradas; os seus olhos de criança resplandeciam. Parecia-lhe que era agora, finalmente, que estava em sua casa.

 

- Vou com vocês  disse Asch como se se tratasse duma coisa natural, dirigindo-se para a peça de Vierbein.

 

Claro que o senhor não vai, meu capitão?!  disse Kowalski em tom de provocação.

 

Dirigirei  a acção pessoalmente  declarou Witterer.

 

Kowalski acenou a cabeça. «Este Witterer é sem dúvida alguma um malandro, mas não é imbecil. Sabe bem onde as calhandras caem já assadinhas e tudo... Um passeio na frente com Asch e Vierbein pode tornar-se um caso garantido e que valerá o trabalho.»

 

Sargento Asch  disse Witterer , aqui está o que irá fazer com o subalterno Vierbein, sob a minha orientação pessoal: avançar até ao terreno onde se combate; pôr a peça em bateria e entrar na batalha. Objectivos principais: os blindados.

 

Compreendo perfeitamente, meu capitão.

 

Sargento Asch, tem algumas objecções a fazer, algumas sugestões?

 

Não, meu capitão. Está perfeitamente em ordem. Já executámos  missões  desse género  com  o  tenente Wedelmann.  É  possível   que  tenham   realmente  necessidade   de nós lá à frente.

 

Então, porque esperamos?

 

Asch fez um sinal na direcção do tractor. Vierbein vigiava a manobra. Witterer, conduzido por Kowalski, seguia-os.

 

Então as coisas correram bem por lá?  perguntou Asch a Vierbein, sorrindo.

 

Mais tarde. Tenho muitas coisas para te contar.

 

Regozijo-me de antemão, Johannes.

 

Depois Asch concentrou-se no estudo do terreno. Apenas alguns camiões isolados desfilavam por baixo das árvores e por entre o mato. O fragor do combate aproximava-se.

 

Após ter percorrido três quilómetros a corta-mato, Asch mandou fazer alto perto dum pequeno bosque. Saltou do tractor e correu para o cimo duma colina para se orientar. Depois, voltando-se, fez um sinal ao motorista, descrevendo com os dois braços um largo círculo.

 

O motorista acelerou e subiu a colina. Parou a alguns metros do cimo.

 

Está bem assim  disse Asch.

 

Em bateria!ordenou Vierbein.

 

À ordem do sargento, o tractor recuou para o pequeno bosque onde Kowalski instalou também a sua viatura.

 

O capitão Witterer subiu para olhar com o seu binóculo o terreno que se estendia diante dele. A região a seus pés parecia cuspir fogo e terra. Não se viam, por assim dizer, homens, mas ouviam-se. As máquinas de guerra dilaceravam o horizonte.

 

Meio   à   direita!   A   três   mil   metros!    ordenou Asch.  Entre a árvore e a granja.

 

Com mil  raios!  disse Witterer numa voz pouco natural.

 

Objectivo reconhecido!  gritou Vierbein, que, afastando o soldado apontador, se pôs ele próprio a regular o aparelho de pontaria.

 

Cinco blindados  disse Witterer,  quase sem  acreditar nos seus olhos.

 

Oito  corrigiu Asch.

 

Então, rapazes, vamos! exclamou Witterer numa voz aguda e excitada. De que estamos ainda à espera?

 

Podemos começar, Vierbein?  perguntou Asch. Obuses de ruptura!  ordenou Witterer.

 

Não temos outras munições, meu capitão  disse o sargento.  De resto, quem comanda agora é o segundo-sargento Vierbein.

 

Vierbein informava o apontador. Depois pronunciou as vozes de comando preparatórias do fogo, levantou a tábua de tiro e indicou a alça. Então exclamou:

 

Fogo!

 

Muito   curto!   Curto   de  mais!   exclamou  Witterer.  Muito   longo!   gritou   após   o   segundo   tiro. Longo de mais!

 

O terceiro tiro  disse Asch, sem desviar os olhos do objectivo será um tiro no alvo. Conheço Vierbein.

 

O terceiro tiro foi realmente em cheio. Perto da árvore um blindado começou a arder, lançando para o céu nuvens de fumo azul-negro.

 

Aí   está!   exclamou   Witterer.   Assim   mesmo. É assim mesmo que se deve fazer. Continuem.

 

Vierbein observava os seus serventes e Asch observava Vierbein. Amava este rapaz pálido, insignificante na aparência, corajoso; amava-o como se fosse seu irmão.

 

O blindado da esquerda  disse Vierbein.

 

Vamos a isso!  disse o apontador.

 

Fogo!

 

O último blindado da esquerda parecia ter levado um forte encontrão. Parecia que ressaltara duma parede invisível. A torre deu um salto de alguns metros no ar. Depois pareceu que uma chama de gás acabara de erguer-se e fora imediatamente abafada com um pano molhado.

 

Isso! Isso!berrava Witterer.

 

Agora,   cavar,   Vierbein!  disse   Asch,   que   sabia o que ia acontecer. Não existia um grupo de blindados que se deixasse destruir sem reagir. Neste momento,  rapidez significava prolongamento de vida. Daqui para diante aquele que tivesse reacções mais lentas seria o primeiro a morder o pó.

 

Um terceiro blindado sucumbiu. Mas, nessa altura, os cinco blindados restantes puseram-se em marcha. De qualquer parte um lança-granadas tentou regular o tiro. De súbito, os cogumelos das explosões começaram a erguer-se em volta da colina.

 

Vierbein e os seus serventes abateram ainda mais um blindado. Depois, apenas a vinte metros da sua peça, explodiu um pesado obus, que cobriu os soldados duma vaga de lama, neve e estilhaços de ferro.

 

Agarrem tudo o que puderem  disse Asch.  E, depois, desfraldar velas!E, rancoroso, pensou: «Perdeu o pio, o Witterer!» Mas não teve tempo para voltar-se para ele. Agora era uma questão de segundos.

 

O canhão cuspia obus após obus na direcção do inimigo, depois recuou, estremecendo, expelindo a última cápsula. Os artilheiros abriram os cestos e atiraram as granadas ao carregador. Este empurrava-as para a culatra como se se tratasse de pães no forno.

 

O quinto blindado ficou parado em chamas. Os três que restavam e que se aproximavam disparavam por todos os canos. Os obuses inimigos rugiam em volta deles de todos os lados como uma chuva formidável.

 

Só há doze tiros  disse Vierbein.

 

Vamos a isso! exclamou Asch. E depois, mudança de posição. Vou buscar o tractor.

 

Asch olhou em volta. Witterer não estava ali. Desaparecera. O sargento riu com desprezo. Depois precipitou-se pela colina abaixo, na direcção do pequeno bosque, para ir buscar o tractor.

 

Mas o tractor também ali não estava. Apenas o carro de Kowalski, abandonado. À parte isto, nada mais.

 

Asch soltou um grito. Kowalski saiu do bosque, abotoando as calças. Parecia satisfeito.

 

Onde está o tractor?

 

Foi-se. com o Witterer. Chamou por mim como um bebé pela mamã. Mas eu estava nessa altura muito ocupado. Então meteu-se no tractor para substituir o automóvel.

 

Em frente! gritou Asch. Corramos atrás dele. Kowalski  compreendeu logo. Saltou para o automóvel e pô-lo em marcha.

 

Vierbein já não tem munições  disse Asch.  Vai ser cercado. Se não conseguir mudar imediatamente de posição, está perdido, com todos os seus serventes.

 

Malandro!  exclamou    Kowalski,    carregando    a fundo no acelerador.

 

Depois de um quilómetro de corrida louca viram o tractor. Três centenas de metros adiante Kowalski apanhou-o. Ultrapassou-o e pôs o automóvel de través.

 

Asch saltou e correu para o tractor.

 

Meia  volta!  Imediatamente! gritou.

 

Tire-se daí!  gritou Witterer como resposta.  Vou buscar reforços.  E dirigindo-se ao seu motorista deu-lhe ordem para prosseguir.

 

Meia volta!

 

Continue!

 

Sem reflectir mais tempo, Asch puxou da pistola. E apontando-a ao capitão saltou para o tractor, agarrou Witterer, ergueu-o e atirou-o para fora.

 

Volta!  ordenou ao motorista.

 

Mas quando chegou ao local do combate o subalterno Vierbein estava morto.

 

O sol esforçava-se em vão por brilhar. O céu estava baço. Já não nevava; já não chovia.

 

As estradas não eram mais do que montes de detritos, por entre os destroços de madeira, de chapa e de ferro havia cadáveres estendidos. E ninguém se preocupava com eles.

 

Ambos os inimigos estavam esgotados. As perdas de um lado e doutro eram grandes. Mas dará a guerra importância a estes pormenores?

 

Outra vez as sentinelas patrulhavam. O objectivo, assim se afirmava em termos enfáticos, fora alcançado. Fosse o que fosse que se tivesse alcançado, era sempre o objectivo. As sentinelas sabiam-no, mas não pensavam em tal.

 

Tudo estava como antes: dum lado os canhões, do outro o inimigo. O que apenas acontecera é que milhares de veículos tinham sido transformados em sucata. Alguns milhares de homens tinham deixado de viver. E entre eles havia um que se chamara Johannes Vierbein e era segundo-sargento.

 

com o auxílio do tractor que arranjara, o subalterno Soeft rebocara e pusera em segurança três camiões alheios.

 

Estava satisfeito com a sua presa: um dos camiões continha mercadorias de cantina; o segundo, roupas; o terceiro, um equipamento completo de dentista.

 

Que queres tu fazer disto?  perguntou o sargentoajudante Bock.

 

Posso ter dores de dentes.

 

Não é fácil de trocar.

 

Isso  depende sempre  daquele que troca  e  daquele que recebe. Tenho um amigo que vendeu nos Balcãs um submarino completo. Um outro é proprietário duma vivenda nas margens do Atlântico. Além disso, o preço do ouro dentário é muito alto actualmente. E garanto-te que ainda subirá mais.

 

O chefe dos mecânicos poderá depois desmanchar os camiões?

 

Sim, dois, com a condição de me entregar o terceiro em boas condições. Preciso ainda de um camião...

 

Meu velho, a tua equipagem aumenta, enquanto  o número de soldados vai diminuindo.

 

Essas perdas não contam. E são os reforços em homens os que continuam a chegar com mais regularidade.

 

O nome de Vierbein e os de sete outros soldados estavam já riscados das suas listas.

 

Asch e Kowalski cavavam uma cova profunda. Perto deles, envolvidos em panos de tenda, jaziam os cadáveres dos soldados.

 

Toda a bateria devia estar aqui  disse Kowalski. E eu gritaria diante de toda a gente o que sei.

 

Não  disse Herbert.  O funeral é apenas para os mortos.

 

E o culpado?

 

Pedir-lhe-ão contas noutro sítio.

 

Kowalski abanou a cabeça. Não estava de acordo. Depois pôs-se ao trabalho com mais encarniçamento ainda. Outros soldados chegaram e, sem nada dizerem, começaram a cavar também.

 

Eu o arrastarei até aqui  disse Kowalski.  É preciso que ele veja o que fez.

 

Falas de mais  disse o sargento.  Não poderás arrastá-lo aqui. Já cá não está. Foi tirar partido da sua vitória.

 

Continuaram a cavar, em largos e graves movimentos.

 

Um dia -disse Kowalski cavarei também a cova dele e hei-de cavá-la sozinho. Será a mais bela ocupação de toda esta guerra.

 

Pronto  disse Asch, deitando um olhar em volta. O enterro será daqui por uma hora. Todos os que quiserem tomar parte que venham.

 

As ’damas do Teatro do Exército estavam deitadas, uma perto da outra, no seu novo alojamento. Tinham passado uma boa noite. Algumas horas de sono haviam bastado para restituir-lhes o contentamento.

 

Os   nossos   soldados   são   realmente   fortes  disse Viola.

 

Tu  deves  sabê-lo disse  Charlotte. com a tua experiência!...

 

O Sr. Asch é que morreu para mim  declarou Lisa Ebner.  Abandonou-nos.

 

Devia ter mais que fazer  do  que brincar às  amas respondeu Charlotte.  Aliás, parece que foi a unidade dele que teve principalmente o mérito de deter o inimigo.

 

O que não quer dizer que tenha sido Asch.

 

Parece que destruíram seis blindados.

 

Deve ter sido com certeza o bravo capitão Witterer. Viola, a bailarina, apurou o ouvido.

 

Um homem corajoso disse. Mas será também um homem forte?

 

Gostavas de experimentar, não?

 

Não é má ideia.

 

Arranco-te os olhos!gritou Lisa.

 

Ciumenta,  minha  filha?

 

Furiosa!

 

Por causa das numerosas ocasiões falhadas?

 

Deixa-te   estar   quieta,   sujinha!   exclamou   Charlotte.  Mais  algumas dezenas como tu e a frente toda não será mais do que um chiqueiro de porcos.

 

O capitão Witterer mantinha-se orgulhosamente muito direito diante do coronel Luschke, que, por sua vez, estava encolhido na sua cadeira de bétula. Parecia que sofria de violentas dores no estômago. Mas os seus olhos eram vivos e frios.

 

Repita, peço-lhe, capitão.

 

Bombardeámos algumas unidades de infantaria. Impossível   verificar   de   maneira   indiscutível   os   resultados.

 

Trinta a quarenta homens do outro lado, assim como duas ou três metralhadoras.

 

E depois ?

 

Abatemos seis blindados.

 

E isso tudo sob o vosso... Como disse há pouco?

 

Sob o meu comando.

 

E as nossas perdas, capitão?  perguntou o coronel, à espreita.

 

Apenas um subalterno e sete soldados.

 

Mortos ?

 

Mortos... Sim. Era inevitável.

 

Apenas   um   subalterno   e   sete   soldados!    Apenas isso!    E,   de   súbito,   Luschke   gritou   em   voz   forte: Apenas um subalterno e sete soldados mortos!

 

Witterer teve um sobressalto e disse:

 

Podia  ter  sido  mais.   A  situação  era  extremamente perigosa. Mas os resultados justificam.  ’

 

Os mortos estão já enterrados?

 

Sim... Foi dada ordem.

 

As famílias prevenidas?

 

Sim...    Foi   o   sargento-ajudante   quem   redigiu   as cartas. Além disso, será enviado um telegrama aos pais do subalterno.

 

«Morto pelo Fiihrer e pela Grande Alemanha»?

 

Decerto, meu coronel...  É a fórmula habitual, suponho eu.

 

Luschke olhou Witterer duramente. Depois disse:

 

Desapareça da minha vista. Vá apresentar-se ao seu chefe de grupo, o capitão Wedelmann.

 

A quem?  perguntou Witterer, não acreditando nos seus ouvidos.

 

Ao capitão  Wedelmann. E que eu não o veja mais na   minha  frente!   Quanto  à   Cruz   de   Ferro,   atirar-lha-ei quando for altura.

 

Os soldados estavam reunidos em volta da vala. Eram trinta e oito... trinta e oito que restavam de cento e vinte Tinham posto o capacete e afivelado o cinturão.

 

Desçamo-los à cova  disse Asch.

 

Sem falar, os soldados agarraram nos mortos e transportaram-nos para a vala, onde se encontrava Kowalski para os receber. Alinhou-os cuidadosamente, uns ao lado dos outros.

 

Quando acabou, os soldados aproximaram-se. Asch tomou a palavra e disse:

 

Enterramos o subalterno Vierbein e os serventes da sua   peça.   Ninguém   sabe   exactamente   como   morreram. Quando  os  encontrámos  já  não  viviam.   Há  apenas  uma coisa certa: é que não morreram de vontade. Podem dizer que eles morreram corajosamente. Mas nenhum de nós sabe com  exactidão  o  que  é  a  coragem.  É  talvez  o  silêncio diante da morte, a resignação ao que se dá o nome de destino. Não ouvi gritar nenhum destes oito camaradas. Não vi chorar nenhum deles: a guerra fazia demasiado barulho. Johannes Vierbein era meu amigo; durante estes dois anos e meio alguns outros cruzaram o meu caminho; outros, mal os  conheci.  Mas  nós  podemos  morrer  como eles, e isto liga-nos todos uns aos outros.

 

Asch calou-se; os homens que o rodeavam estavam silenciosos. Os rostos imóveis. Nenhum deles chorava. E o céu cinzento e indiferente olhava-os.

 

Esse   Vierbein    disse   Soeft,   abrindo   outro   caixote  sempre foi um pobre diabo.

 

Um bravo rapaz  disse Bock em voz brusca.

 

Era o que eu  dizia. Não podia acabar doutra maneira. Estava marcado. Muitas vezes perguntei a mim mesmo como ele esticaria.

 

Escrevi à família, por ordem de Witterer, dizendo que ele fora um herói. E se há, realmente, heróis, ele era um deles.

 

E se existem  malandros, esse  Witterer é um deles. Vierbein está morto  disse Bock  e Witterer está

 

vivo e comanda a bateria. Estás a ver a diferença?

 

Tens razão. Não se pode ressuscitar ninguém. Os que vivem aproveitam.

 

Seja como for, aquela morte não foi a que conviria a Vierbein. Devia ter ido, por exemplo, ocupar um posto onde  o  esqueceriam.   Morreria   de  frio,   de   preferência   a abandonar o seu posto.

 

Absolutamente  justo, em teoria.  Só o que ele não podia era abandonar o posto. O seu capitão não lhe deixou possibilidade de o fazer.

 

Wedelmann e Witterer estavam de pé, diante do túmulo, e olhavam a cruz donde pendia um capacete esburacado de balas.

 

Havia uma inscrição: «Aqui jaz o segundo-sargento Vierbein com os serventes da sua peça. Eram sete.» E por baixo podia-se ler: «Estão mortos porque eram soldados.»

 

Tombaram   disse  Witterer  pelo Fiihrer e pela Grande Alemanha. O senhor, capitão, é capaz, mais do que ninguém, de compreender o que isto significa.

 

Eu amava muito o subalterno Vierbein.

 

Como a todos os soldados da bateria.

 

Como a nenhum outro.

 

Sim... Mas os sacrifícios são necessários.

 

Vierbein  era  o  homem  mais   leal   que  eu  conheci. Agora, que ele está morto, tenho a impressão de que, sem ele, a guerra já não é decente.

 

 Por favor, meu caro camarada!

 

Não   sou   seu   camarada!respondeu   Wedelmann. e afastou-se.

 

O coronel Luschke olhou longamente o sargento Asch. Depois olhou Wedelmann, que se encontrava perto dele, de pé. Ouvira os relatórios e conservava-se calado.

 

Nós   vivemos    disse,   finalmente    numa   grande época. E nas grandes épocas passam-se muitas coisas extraordinárias.  Podem  ler todos os dias quão  grande é o tempo em que vivemos.  Agarrou num monte de ordens do dia que estavam sobre a mesa e percorreu-as uma a uma. Leu na primeira:  «Fiihrer e comandante supremo: Voei até vós a fim de mandar utilizar todos os meios de aliviar a  vossa  luta defensiva e de transformá-la em vitória. Se cada um de vós der a sua ajuda, conseguí-la-emos uma vez mais com o auxílio do Todo-Poderoso.»  Leu ainda, na segunda:  «General   em   chefe:   Dias   de   acontecimentos históricos acabam  de decorrer. Quando o Fiihrer, no seu quartel-general, nos disse que a nossa corajosa defesa ultrapassara as suas esperanças e me apertou a mão nas suas duas mãos, recebi este gesto como um testemunho de reconhecimento por vós, soldados.»  Citou ainda algumas linhas da terceira ordem do dia:  «Chefe da divisão: A divisão   alcançou   em  muitos  combates   difíceis   outros   tantos êxitos de que pode orgulhar-se... Isto só foi possível porque cada um no seu lugar agiu sem condições. Que assim seja de futuro.» ’

 

O coronel empurrou os papéis e, com os olhos fitos em Asch, declarou:

 

Aqui estão algumas amostras da nossa grande época. Que pensa disto?

 

Será preciso dizer-lho, meu coronel ?

 

E o senhor, capitão Wedelmann?

 

A mesma coisa, meu coronel.

 

Apenas com algumas modificações, estas citações são autênticas.

 

Mais uma amostra, fornecida pelo marechal de campo: «Exijo categoricamente de todos vós, soldados e membros das tropas colocadas sob as minhas ordens, uma vontade fanaticamente consciente e ilimitada de vencer. Como sinal exterior desta vontade, ordeno que a cada palavra de ordem seja acrescentada a fórmula: Nenhum soldado deve ser o melhor. E eu  acrescentou o coronel, aqui está a minha palavra de ordem: «Desembaracem-nos desse Witterer e deixem de trabalhar para canalhas!»

 

O telegrama anunciando que Vierbein tombara «pelo Fiihrer e pela Grande Alemanha» chegou às mãos do Sr. Asch.

 

Depois de o ter lido pô-lo sobre a mesa a que Ingrid estava sentada. Ficou muito tempo sem falar. Depois empurrou o papel para ela.

 

Ingrid empalideceu e a sua respiração deteve-se. Por fim disse:

 

Era um soldado corajoso.

 

Sim. Agora é um soldado morto. E há centenas de milhares como ele.

 

«Exemplar, corajoso e generoso até ao seu último suspiro»  leu Ingrid.

 

E   disse  o  Sr.   Asch   antes  de   morrer  gritou: «Viva o Fiihrer e a Grande Alemanha!»

 

Há  muitos  que   morrem   assim  disse   a   rapariga, com uma tristeza orgulhosa.

 

É o que se lê  disse o pai, duramente.  É o que se lê a toda a hora, nos telegramas, nas cartas e nas reportagens. A acreditar no que dizem, a frente deve estar cheia desses gritos. Mas eu não acredito!

 

Papá!

 

Tem de haver alguns que o amaldiçoem, a ele e à sua Grande Alemanha. Tem de os haver. Se não, rebentaremos todos.

 

Alguém chorou Vierbein. Foi Lore Shulz. Não havia mais ninguém por quem ela pudesse chorar.

 

Eu   não   quero   morrer   por   esta   Alemanha  disse o sargento Asch.

 

Quem to pede?  respondeu Kowalski.

 

Deve haver  uma  outra  Alemanha  por  quem  valha a pena morrer.

 

Mas,   meu   velho    disse   Kowalski ,   talvez   seja mesmo, um dia, uma Alemanha por quem será um prazer viver!

 

                                                                                            Hans Hellmut Kirst

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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