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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESPADA FLAMEJANTE / Christian Jack
A ESPADA FLAMEJANTE / Christian Jack

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Serie A Rainha da Liberdade

Volume III

 

A ESPADA FLAMEJANTE

 

O matrícula 1790 desmoronou-se.

 

 Com o nariz na lama, Pés Grandes já não tinha qualquer desejo de viver. Depois de tantos anos passados no campo de concentração de Charuhen, na Palestina, tinham-se esgotado as suas últimas forças.

 

 Charuhen, a base recuada dos Hicsos que ocupavam o Egipto há mais de um século e tinham implantado a sua capital em Auaris, no Delta. O seu chefe supremo, o Imperador Apopis, não se contentava em fazer reinar o terror graças ao seu exército e à sua polícia. Aprovando uma ideia sedutora do grande tesoureiro Khamudi, o seu fiel braço direito, criara um campo de concentração junto da fortaleza de Charuhen, numa zona pantanosa e insalubre. No Inverno, soprava um vento glacial; no Verão, dardejava um sol assassino. O local era infestado de mosquitos e de moscardos.

 

 Levanta-te suplicou o matrícula 2501, um escriba de cerca de trinta anos que, em três meses, perdera dez quilos.

 

 Já não posso mais... Deixa-me.

 

 Se renunciares, Pés Grandes, vais morrer. E nunca mais reverás as tuas vacas.

 

 Pés Grandes queria morrer, mas mais ainda rever o seu rebanho. Ninguém sabia tratá-lo como ele.

 

 Como muitos, acreditara na propaganda hicsa: ”Venham pôr a pastar as vossas vacas demasiado magras nas terras verdejantes do Norte, propunham eles. Quando estiverem de novo vigorosas, regressareis a vossas casas.”

 

  Os Hicsos tinham roubado os rebanhos, matado os vaqueiros que protestavam com veemência e lançado os outros no campo de morte de Charuhen.

 

 Pés Grandes nunca lhes perdoaria terem-no separado das suas vacas. Teria aceitado tarefas suplementares, trabalhos forçados, marchas penosas nas terras inundadas, um salário menor, mas aquilo não.

 

 O matrícula 1790 levantou-se.

 

 Tal como os seus companheiros de infortúnio, sofrera a horrível marcação do seu número de condenado na presença da totalidade dos prisioneiros, obrigados a olhar. Quem desviasse os olhos ou os fechasse era imediatamente executado.

 

 Pés Grandes sentia ainda a dor atroz provocada pelo cobre ao rubro. Quanto mais gritavam, mais o suplício durava. E vários feridos tinham morrido de infecção. No campo de concentração de Charuhen não havia nem médico nem enfermeiro e não eram prestados os mínimos cuidados. Sem uma constituição robusta, uma magreza natural e o hábito de se contentar com pouco, o vaqueiro teria sucumbido há muito tempo. Em Charuhen, os grandes comilões não duravam mais do que alguns meses.

 

 Toma, come um pouco de pão seco.

 

 Pés Grandes não recusou o sumptuoso presente do amigo, condenado por ter conservado em casa um hino ao Faraó Senuseret. Denunciado por um vizinho, fora considerado um perigoso conspirador e imediatamente deportado. O Imperador Apopis, autoproclamado Faraó, não suportava a menor referência ao glorioso passado do Egipto.

 

 Uma garota aproximou-se dos dois homens.

 

 Não têm de comer? Tenho fome!

 

 Pés Grandes sentiu vergonha por ter engolido demasiado depressa o bocado de pão.

 

 Os guardas não te deram a tua ração hoje?

 

 Esqueceram-se de mim.

 

 A tua mãe não os chamou?

 

 A minha mãe morreu esta noite.

 

 A garota afastou-se e dirigiu-se para junto do cadáver da mãe. Ninguém podia fazer nada a seu favor. Se alguém se encarregasse dela, a garota ser-lhe-ia imediatamente arrancada e lançada aos mercenários da fortaleza.

 

 Um novo comboio avisou o escriba.

 

 A pesada porta de madeira do campo de concentração acabava de se abrir.

 

 Armada com um pau, uma mulher grande, de mãos enormes, espancava os velhos que avançavam com dificuldade.

 

 Com o crânio fracturado, um deles caiu. Os outros apressaram o passo na esperança de evitarem as pancadas, mas os torcionários hicsos não pouparam nenhum.

 

 Espantados por ainda estarem vivos, os mais sólidos levantaram-se muito lentamente, receando novas sevícias. Mas os seus carrascos contentaram-se em olhá-los com ar sombrio.

 

 Bem-vindos a Charuhen! exclamou a dama Aberia. Aqui aprendereis finalmente a obedecer. Que os vivos enterrem os mortos e limpem este campo. Está uma verdadeira pocilga!

 

 Na boca de um hicso, que nunca comia carne de porco, não podia haver pior insulto.

 

 Pés Grandes e o escriba precipitaram-se, porque Aberia gostava que os deportados demonstrassem boa vontade. Ter falta de entusiasmo nas tarefas conduzia ao suplício.

 

 Com as mãos, escavaram as covas nas quais meteram os cadáveres, sem poderem celebrar o mínimo ritual. Como era seu hábito, Pés Grandes dirigiu uma oração muda à deusa Hathor que acolhia no seu seio a almas dos justos e incarnava numa vaca, a mais bela das criaturas.

 

 Amanhã é Lua nova anunciou Aberia com um sorriso cruel antes de sair do campo.

 

 Um velho que acabava de chegar com o último comboio aproximou-se de Pés Grandes.

 

 Podemos falar?

 

 Agora que ela se foi embora, podemos.

 

 Porque se preocupa esta demónia com a Lua?

 

 Porque de cada vez que a Lua renasce, escolhe um prisioneiro e estrangula-o lentamente diante dos outros.

 

 Alquebrado, o velho sentou-se entre os matrículas 1790 e 2501.

 

 O que são esses números nos vossos braços?

 

 Os nossos números de forçados respondeu o escriba. A partir de amanhã, tu e os novos serão marcados.

 

 - Isso quer dizer que... mais de dois mil desgraçados foram deportados para aqui?

 

 Muitos mais considerou Pés Grandes. Tantos prisioneiros morreram ou foram torturados antes de serem reduzidos a  um número...

 

 O velho cerrou os punhos.

 

 É preciso manter a esperança declarou com um vigor inesperado.

 

 Por que razão? interrogou o escriba, desencorajado.

 

 Porque os Hicsos estão cada vez menos seguros de si. Nas cidades do Delta e em Mênfis a resistência organiza-se!

 

 A polícia do Imperador acabará com ela.

 

 Podes crer que trabalha cada vez mais!

 

 Há tantos delatores... Ninguém escapa às malhas da rede.

 

 Eu matei com as minhas mãos um vendedor de papiros que denunciara uma mulher à milícia hicsa porque ela se recusava a ele. No entanto, era jovem e muito mais forte do que eu. Mas arranjei a energia necessária para suprimir aquele monstro e não lamento nada. Pouco a pouco, a população compreende que curvar a cabeça a conduz ao matadouro. O que o Imperador deseja é o extermínio dos Egípcios, que substitui pelos Hicsos. Roubam os nossos bens, as nossas terras, as nossas casas, e querem também destruir as nossas almas.

 

 É essa a finalidade deste campo constatou o escriba em voz cansada.

 

 Apopis esquece que o Egipto tem uma verdadeira razão para esperar entusiasmou-se o velho.

 

 O coração de Pés Grandes bateu um pouco mais depressa.

 

 A Rainha Liberdade, continuou o idoso. É ela a nossa esperança. Nunca renunciará a lutar contra Apopis.

 

 As tropas tebanas não conseguiram apoderar-se de Auaris lembrou o escriba e o Faraó Kamés morreu. A Rainha Ah-hotep está de luto e encerra-se na sua mansão. Mais cedo ou mais tarde, os Hicsos apoderar-se-ão de Tebas.

 

 Enganas-te! A Rainha Ah-hotep já fez tantos milagres... Nunca renunciará.

 

 Não passa de uma lenda. Ninguém conseguirá aniquilar a potência militar hicsa e ninguém sairá vivo deste campo cuja existência os tebanos ignoram.

 

 Eu, disse Pés Grandes tenho confiança. A Rainha Liberdade há-de permitir que eu reveja as minhas vacas.

 

 Enquanto esperamos recomendou o matrícula 2501 limpemos a nossa prisão. Caso contrário, seremos espancados.

 

 Entre os recém-chegados, quatro tinham sucumbido durante a noite. Pés Grandes acabava de os enterrar quando a dama Aberia franqueou a porta do campo.

 

 Anda depressa disse o camponês ao velho. Temos de nos reunir e pôr em fileiras.

 

 Dói-me tanto o peito... Não me posso mexer.

 

 Se não estiveres de pé, Aberia espancar-te-á até à morte.

 

 Não lhe darei esse prazer... Acima de tudo, amigo, acima de tudo... mantém a esperança.

 

 O velho exalou um estertor angustioso.

 

 O seu coração acabava de ceder.

 

 Pés Grandes correu a juntar-se aos outros, bem alinhados em frente da dama Aberia que ultrapassava de uma cabeça a maior parte dos prisioneiros.

 

 Chegou o momento de nos distrairmos declarou ela e sei que esperam com impaciência o número do feliz eleito que será o herói da nossa pequena festa.

 

 Encarou cada deportado com avidez. Aqui, Aberia dispunha do direito de vida e de morte.

 

 Como se não estivesse satisfeita, passou pelas fileiras e depois parou em frente de um homem ainda jovem que não conseguiu impedir que todos os seus membros tremessem.

 

 Tu, matrícula 2501.


Banhada pela claridade da madrugada, a Rainha Ah-hotep ergueu as mãos para o deus oculto, em sinal de veneração.

 

 O meu coração é orientado pelo teu olhar. Graças a ti, somos saciados sem comer e desalterados sem beber. És o pai de quem não tem mãe e o marido da viúva. Como é doce contemplar o teu mistério! Tem o gosto da vida, dá a sensação de um tecido delicado ao que o enverga, é um fruto túrgido de sol.

 

 A bela jovem de trinta e nove anos estava só a oriente de Karnak para celebrar a cerimónia da ressurreição da luz, vitoriosa da noite.

 

 Mas não era uma ilusão, naquele Egipto cujas províncias do Norte sufocavam sob o jugo do Imperador dos Hicsos? Depois de ter perdido o marido e o filho mais velho, que tinham combatido corajosamente o ocupante, a que desempenhava a função de Esposa do Deus não sentia outro amor senão o da liberdade, essa liberdade que parecia fora de alcance devido à superioridade do exército inimigo.

 

 Como esquecer o formidável impulso que arrastara as tropas tebanas até Auaris, a capital do Imperador das Trevas? Mas quebrara-se de encontro a uma fortaleza inexpugnável e os egípcios tinham tido de bater em retirada.

 

 Depois do desaparecimento do Faraó Kamés, digno sucessor de seu pai, Seken, a regente retirara-se para o templo a fim de recuperar forças no silêncio. No interior do recinto, no belo mas modesto santuário, meditara sob a protecção de Amon e de Osíris. Amon, o senhor de Tebas, o criador do bom vento, o detentor do segredo das origens, cuja capela só se abriria por si própria no dia da vitória total sobre os Hicsos. Osíris, assassinado e depois ressuscitado, o juiz do Além, o senhor da confraria dos ”de voz justa” à qual pertenciam agora Seken e Kamés.

 

 Morto em combate, Seken caíra numa cilada.

 

 Quando se preparava para lançar um novo assalto contra Auaris, Kamés fora envenenado e regressara para morrer em Tebas, junto da mãe e face à montanha de Ocidente.

 

 Em ambos os casos, um só culpado: o espião hicso que se infiltrara no estado-maior tebano. Por duas vezes acertara na cabeça.

 

 No entanto, a Rainha Ah-hotep estava rodeada apenas de companheiros insuspeitos que tinham provado o seu valor e arriscado a vida a lutar, cada um à sua maneira, contra os Hicsos: Qaris, o intendente do palácio, especialista de informação; Herai, o Superintendente dos Celeiros, verdadeiro ministro da Economia; Emheb, o governador de Edfu, que mantivera a frente de Cusae num período desesperado e recebera diversos ferimentos; Neshi, o portador do selo real, tão ligado a Kamés que apresentara a sua demissão, recusada pela Rainha; Ahmés, filho de Abana, um archeiro de elite, grande exterminador de oficiais hicsos; o Afegão e o Bigodes, dois resistentes nomeados para a chefia de regimentos de elite e condecorados pelas suas façanhas; Lunar, o almirante da frota, de competências excepcionais e constante bravura.

 

 Como imaginar, mesmo por um instante, que um deles pudesse ser o espião a soldo do Imperador das Trevas?

 

 Era evidente que se tornava necessário procurar noutro lado e permanecer em constante alerta. Apesar da sua diabólica habilidade, o espião acabaria por trair-se.

 

 Nesse instante, Ah-hotep deveria agir com a rapidez da cobra-real.

 

 A Esposa do Deus contornou o pequeno lago sagrado onde, todas as manhãs, o Faraó deveria recolher a água fresca proveniente do Nun, o oceano de energia, a fim de proceder às purificações e criar assim um novo dinamismo, indispensável a todas as formas de existência, da estrela à pedra.

 

 Mas o jovem Faraó Kamés morrera aos vinte anos e o sucessor, o seu irmão Ahmés, tinha apenas dez.

 

 Pela segunda vez, Ah-hotep se tornava regente e devia pilotar de novo o navio do Estado.

 

 Longe de estar vencido, o Imperador não conseguia no entanto triunfar. Competia à Rainha Liberdade provar-lhe que não reinaria nunca sobre as Duas Terras.

 

 Com uma evidente alegria, Risonho, o Jovem, reencontrou a dona. Esquecendo o seu peso, o molosso ergueu-se e poisou as duas enormes patas sobre os ombros da Rainha, que teve alguma dificuldade em manter o equilíbrio. Depois de lhe ter conscienciosamente lambido as faces, o cão precedeu Ah-hotep que se dirigia para o palácio da grande base militar instalada a norte de Tebas.

 

 Fora no coração de uma zona árida que o jovem Rei Seken formara os primeiros soldados do Exército de Libertação, em condições particularmente rudes. Depois, fora construída uma caserna, casas, uma fortaleza, uma residência real, uma escola, um hospital e capelas. Os recrutas aprendiam ali a sua profissão de soldados, sob o comando de instrutores de pulso que não lhes ocultavam nada dos terríveis combates que os esperavam.

 

 À entrada do palácio, Risonho, o Jovem, imobilizou-se e farejou o ar. Mais do que uma vez, à maneira de seu pai, Risonho, o Velho, o seu faro lhe permitira detectar o perigo e salvar assim Ah-hotep, que nunca negligenciava os seus avisos.

 

 O intendente Qaris surgiu no limiar.

 

 Volumoso, de bochechas redondas, com uma calma imperturbável, era a gentileza personificada. No ponto mais forte da opressão hicsa, não hesitara em desempenhar o papel de agente de ligação entre os raros resistentes e em reunir as informações, com risco de ser denunciado e condenado à morte.

 

 Majestade, não vos esperava tão cedo! As equipas de limpeza ainda estão a trabalhar e não tive tempo de supervisionar a refeição.

 

 Tranquilizado, com um sorriso no olhar, Risonho, o Jovem, lambeu a mão do intendente.

 

 Convoca os responsáveis para a sala do conselho.

 

 A obra-prima do intendente Qaris era uma maqueta do Egipto na qual se podiam ver as partes do território libertadas e as ainda ocupadas pelos Hicsos.

 

 Quando a jovem Ah-hotep descobrira pela primeira vez esse segredo de Estado, apenas Tebas beneficiava de uma relativa autonomia. Hoje, graças às façanhas dos Faraós Seken e Kamés, os Hicsos já só controlavam o Delta e o seu aliado núbio, o príncipe de Kerma, permanecia isolado no seu distante domínio do Grande Sul.

 

 A ”Balança das Duas Terras”, Mênfis, ponto de passagem e de equilíbrio entre o Alto e o Baixo Egipto, fora de facto libertada, mas por quanto tempo? As tropas do almirante hicso Jannas não se contentariam eternamente em defender Auaris e já não tardariam a lançar uma ofensiva.

 

 Os dignitários curvaram-se diante da regente. A sua expressão transtornada traduzia inquietação e desencorajamento.

 

 Magro, de crânio rapado, o chanceler e intendente do exército Neshi tranquilizou os seus colegas tomando a palavra.

 

 As notícias não são boas, Majestade. Se queremos defender Mênfis, o que se anuncia particularmente difícil, deveremos instalar ali o grosso das nossas tropas. Em caso de derrota, o caminho de Tebas estaria livre.

 

 Em geral tão incisivo, Neshi parecia esmagado sob o peso da realidade.

 

 - O que pensas tu, Emheb? perguntou a regente.

 

 Por ter combatido durante tanto tempo na primeira linha, o bom gigante, de regresso a Mênfis, estava autorizado a emitir uma opinião que alguns considerariam decisiva.

 

 O governador Emheb exprimiu-se com entusiasmo.

 

 Ou atacamos de novo Auaris para quebrar os rins de Jannas, ou estabelecemos uma linha de defesa na qual os seus homens quebrarão o nariz. Como a primeira solução me parece demasiado arriscada, preconizo portanto a segunda. Mas, nesse caso, Mênfis seria uma muito má escolha. Fora do período da cheia, os hicsos podem utilizar as suas armas pesadas, carros e cavalos, e nós não teremos tempo para edificar muralhas em redor da cidade.

 

 Isso significa que a abandonamos a si própria concluiu a Rainha.

 

 Os dignitários baixaram a cabeça.

 

 Que sejam entregues armas à sua guarnição ordenou Ah-hotep e que os pombos-correio nos informem da evolução da situação. Estabeleceremos a nossa linha de defesa por altura de Faium, a uma centena de quilómetros para sul de Mênfis, no lugar dito ”o Porto-de-Kamés”, em homenagem ao meu filho mais velho. Que Neshi organize lá imediatamente um acampamento militar e que a engenharia construa cais de pedra. O almirante Lunar agrupará ali a maior parte dos nossos navios de guerra e o governador Emheb tomará as disposições necessárias para quebrar um eventual assalto dos carros hicsos. Que os nossos estaleiros navais redobrem de esforços a fim de aumentar o número das nossas unidades.

 

 Todos aprovaram as decisões da Rainha. O conselho dispersava-se quando um oficial da guarda irrompeu na sala.

 

 Majestade, é muito grave! Centenas de soldados acabam de desertar!

 

 Louco de raiva, o Imperador Apopis tornou a colocar a coroa vermelha do Baixo Egipto na casa-forte da cidadela de Auaris, de onde nunca mais sairia. Uma vez mais tentara usá-la; uma vez mais ela lhe causara insuportáveis dores de cabeça e lhe queimara os dedos.

 

 Esquecendo aquele emblema de uma época passada, o Senhor dos Hicsos subiu lentamente ao topo da mais alta torre da monumental cidadela que dominava a sua capital, transformada num gigantesco campo militar.

 

 Grande, de nariz proeminente, faces moles, ventre volumoso e pernas grossas, o Imperador, de setenta anos, era de uma fealdade assustadora que utilizava muitas vezes como uma arma para subjugar os seus interlocutores.

 

 Apopis retirou a corrente de ouro que usava ao pescoço e à qual estavam presos três amuletos incarnando a vida, a prosperidade e a saúde. Aos olhos dos ingénuos, permitiam-lhe conhecer os segredos do céu e da terra. Na hora da guerra total contra os tebanos e a sua maldita Rainha, já não suportava aquela fancaria.

 

 O Imperador das Trevas esmagou os amuletos e lançou os restos no vazio.

 

 Com os nervos mais calmos, contemplou os seus domínios, os duzentos e cinquenta hectares de Auaris, a maior cidade do Próximo-Oriente, implantada no nordeste do Delta, na margem este do ramo pelusíaco do Nilo, que os egípcios chamavam ”as águas de Ré”.

 

 Ré, a luz divina... Há muitos anos que os hicsos a tinham substituído pela força armada! Com as suas muralhas com contrafortes e as torres de ameias, a fortaleza, considerada inexpugnável, era bem o perfeito símbolo disso.

 

 Desde o assalto abortado do Faraó Kamés, envenenado pelo seu espião, o Imperador só deixara o seu covil uma única vez para se dirigir ao templo de Set, o senhor da trovoada e das perturbações cósmicas, fiel protector de Apopis. Quem era alimentado pela sua violência ignorava a derrota.

 

 Outrora dominado por uma intensa actividade, o porto comercial de Auaris apenas recebia agora alguns barcos de carga, sob a vigilância da marinha de guerra. Ninguém esquecera a façanha dos marinheiros de Kamés, que se tinham apoderado de trezentos cargueiros carregados de riquezas que Tebas herdara.

 

 Esse abrandamento do negócio com os navios do Império era apenas passageiro; logo que a revolta tebana fosse esmagada, enormes quantidades de ouro, prata, lápis-lazúli, madeiras preciosas, óleo, vinho e outros produtos chegariam de novo à capital hicsa. A fortuna do Imperador e dos seus próximos continuaria a aumentar, ainda mais depressa do que antes.

 

 Apopis detestava o Sol e o ar livre. Voltou portanto para o seu palácio, instalado no interior da fortaleza. Pequenas aberturas deixavam passar um mínimo de luz.

 

 Graças à sua equipa de pintores vindos de Creta, o Imperador cobrira as paredes com frescos em voga em Cnossos, a capital da grande ilha. Destruidor de grande número de obras-primas do Império Médio, Apopis gabava-se de ter apagado na sua cidade qualquer vestígio de arte egípcia. Todos os dias, na sua casa de banho, no seu quarto, nos corredores e na sala do conselho, admirava as paisagens de Creta, labirintos, grifos alados, bailarinos de pele amarela ou acrobatas saltando por cima dos cornos de um touro.

 

 Nota: Pelusíaco referente a Pelusa, antiga cidade do Egipto sobre cujas ruínas está construído Porto Said.

 

 Quando tivesse conquistado o Alto Egipto e arrasado Tebas, o Imperador desencadearia um processo de imigração massiva a fim de erradicar a antiga população, da qual nada devia subsistir. A velha terra dos Faraós tornar-se-ia verdadeiramente uma província hicsa de onde a própria noção de Maet, a frágil deusa da verdade, da justiça e da harmonia, teria desaparecido.

 

 Apopis gostava de vaguear durante horas pela cidadela pensando na extensão do seu Império, o mais vasto jamais criado, que se estendia do Sudão às ilhas gregas, passando pela Siro-Palestina e pela Anatólia. Os insensatos que tentavam revoltar-se eram implacavelmente massacrados. O exército hicso supliciava os agitadores e as famílias, queimava-lhes as casas e as aldeias.

 

 Assim reinava a ordem hicsa.

 

 Uma ordem que apenas a Rainha Ah-hotep ousava ainda desafiar! Depois de a ter considerado uma louca e uma intriguista, o Imperador tivera de admitir que era uma adversária de peso. O seu ridículo exército de camponeses fora-se tornando aguerrido com o correr dos anos, e Kamés, o intrépido, conseguira mesmo conduzi-lo até aos pés da cidadela de Auaris!

 

 Esse fulgor mal arranhara o poderio hicso. Obrigados a recuar, os tebanos já não tinham capacidade para retomar a ofensiva, mas eram excelentes na arte de armar ciladas devido ao seu perfeito conhecimento do terreno. O Imperador também não cedia à precipitação, tanto mais que tinha de resolver um conflito evidente entre os seus dois principais dignitários, o grande tesoureiro Khamudi e o almirante Jannas.

 

 Khamudi, depravado, cruel, pronto a tudo para enriquecer, mas fiel executante das decisões do Imperador.

 

 Jannas, o comandante-chefe dos exércitos hicsos, o herói que salvara Auaris e cuja popularidade não cessava de aumentar.

 

 Para agradar à casta dos oficiais superiores, Apopis deveria ter sacrificado Khamudi; mas, agindo assim, teria feito do almirante Jannas uma personagem demasiado poderosa, que muitos soldados consideravam já como o futuro Senhor dos Hicsos.

 

 Alimentado pela força de Set, Apopis reinaria ainda muito tempo. Por sorte, Jannas era um verdadeiro soldado que respeitava escrupulosamente as ordens e não considerava nunca a hipótese de conspirar contra o Imperador. Competia ao grande tesoureiro compreender que o almirante garantia a segurança do Império e que devia satisfazer-se com os seus numerosos privilégios.

 

 O Imperador não visitou a esposa, a dama Tani, à qual não concedera o título de Imperatriz porque o verdadeiro poder não se partilhava. Egípcia de origem modesta, conduzira à tortura e à morte inúmeras mulheres de posses, denunciando-as como resistentes. Aterrorizada pela visão dos soldados egípcios aquando do ataque de Kamés, permanecia de cama.

 

 Quando Apopis saiu dos seus aposentos, o grande tesoureiro Khamudi curvou-se profundamente.

 

 Com os cabelos negros colados sobre um crânio redondo, olhos ligeiramente fendidos, ossatura pesada, mãos e pés gorduchos, Khamudi era um bom garfo, apreciador de vinhos capitosos e de jovens egípcias às quais infligia as piores sevícias em companhia da sua esposa Yima, tão perversa como ele. Não dissimulava ao Imperador nem as suas torpezas nem as suas fraudes financeiras, e não tomava qualquer iniciativa sem o seu consentimento.

 

 Está tudo pronto, Majestade.

 

 Chefe da guarda pessoal de Apopis, Khamudi seleccionara piratas cipriotas e líbios que não hesitariam em matar quem quer que esboçasse um gesto de ameaça para com o Imperador. Envergando túnicas com motivos florais, cabelos entrançados de comprimento médio e braços tatuados, esses cérberos formavam uma muralha intransponível em redor do Senhor dos Hicsos quando este aparecia nas ruas da capital. Principescamente pagos, podiam ter qualquer mulher. Como os tribunais tinham sido suprimidos, Apopis era o único juiz e nunca desautorizava os seus servidores.

 

 O cortejo atravessou o cemitério do palácio onde os oficiais hicsos mortos durante os combates tinham sido inumados em túmulos sumários, com as respectivas armas. Devido à falta de espaço e ao número de cadáveres a enterrar, o Imperador tomara uma decisão que horrorizava os egípcios: em vez de arranjar uma nova necrópole, os mortos eram enterrados nos jardins e mesmo nas casas.

 

 Não era estúpido ocupar lugar com restos mortais que em breve estariam reduzidos a ossadas?

 

 Há protestos contra a minha política? inquiriu Apopis com a sua voz rouca que gelava o sangue.

 

 Alguns respondeu Khamudi, meloso mas fiz o que era necessário. Considerando que o campo de concentração de Charuhen está por agora cheio, achei necessário abrir outro em Tjaru. Os revoltosos foram deportados para lá.

 

 Perfeito, Khamudi.

 

 Com a cabeça coberta por um gorro às riscas em forma de cogumelo, de estatura média, quase franzino, de palavras e gestos lentos, o almirante Jannas tinha uma aparência enganadora. Os que o tinham julgado inofensivo já não eram deste mundo.

 

 Depois de também ele se ter curvado diante do Senhor dos Hicsos, o almirante assistira aos rápidos funerais dos seus homens, mortos devido a ferimentos infligidos durante o combate feroz com os egípcios no porto comercial de Auaris. Jannas podia gabar-se de ter repelido Kamés, morto pouco depois, mas a Rainha Ah-hotep continuava a ser um perigo real.

 

 Perante a indiferença geral, mais de cem burros foram degolados e lançados nas covas com os cadáveres dos militares.

 

 Depois, o Imperador inspeccionou o dispositivo de segurança instalado por Jannas para que um novo ataque fluvial dos tebanos não tivesse qualquer hipótese de êxito.

 

 Belo trabalho, almirante.

 

 Majestade, quando retomaremos a ofensiva?

 

 Contenta-te em obedecer, Jannas.

 

Nota:  Tjaru-Silé, no Delta, sobre o istmo formado entre o lago Ballah e o lago Menzala.

 

Em menos de um dia, o boato espalhara-se por toda a base militar de Tebas: a Rainha Ah-hotep retirava-se definitivamente para o templo de Karnak, o seu filho Ahmés renunciava a reinar e o Exército de Libertação depunha as armas.

 

 Dentro em pouco, as hordas hicsas precipitar-se-iam sobre a cidade de Amon e massacrariam quem tentasse resistir-lhes.

 

 Nariz Achatado fora o primeiro a desertar, logo seguido por Vigoroso, um tenente de infantaria que combatera em Auaris e conhecia a violência do adversário. Convencidos pelas suas explicações, centenas de soldados de infantaria tinham-se decidido a abandonar a base o mais depressa possível.

 

 Um único oficial tentara lembrar os seus deveres aos soldados de Ah-hotep, mas a sua voz rapidamente se perdera num concerto de vociferações e tivera de se afastar para não ser espezinhado.

 

 Temos de prevenir os nossos camaradas da fortaleza preconizou Vigoroso.

 

 Os guardas juntaram-se à multidão de fugitivos, em breve seguidos pela maioria da tropa residente no edifício.

 

 Por onde passamos? perguntou Nariz Achatado.

 

 Pelo norte não respondeu Vigoroso. Esbarraríamos com os regimentos de elite do Afegão e do Bigodes.

 

 E então? Podem ser os melhores, mas com certeza que não têm mais vontade de morrer do que nós!

 

 Pode haver barulho! Eu vou pelo sul.

 

 Na mais completa confusão, os desertores dispersaram. Sob a direcção de Nariz Achatado, uma massa ululante avançou para o  norte.

 

 Pés de uma delicadeza excepcional, pernas longas e elegantes, nádegas de linha perfeita, umas costas que se ofereciam às carícias... A seguir a Ah-hotep, Felina era a mais bela mulher do mundo. E ele, o Bigodes, tinha a sorte insensata de fazer amor com ela! Quando a encontrara, durante a campanha da Núbia, apaixonara-se imediatamente por ela, embora recusasse uma ligação duradoira, incompatível com a sua existência de soldado. Mas Felina escondera-se no navio que partia para o Egipto e o Bigodes não tivera coragem de lhe resistir.

 

 A bela núbia não se contentara em tornar-se uma esposa maravilhosa. Especialista em poções, drogas e talismãs, ocupara-se dos feridos nos campos de batalha e salvara numerosas vidas. Nomeada para chefiar o serviço médico de intervenção rápida, Felina era considerada como uma heroína da guerra de libertação.

 

 O Bigodes beijou-a ternamente no pescoço.

 

 O grande conselho eterniza-se lamentou ela.

 

 Que importância tem isso? A Rainha perde o seu tempo a tentar persuadir dignitários que, como é hábito, desaprovam decisões que ela mesmo assim porá em acção. Não deverias pensar noutra coisa...

 

 Bateram pancadas repetidas na porta do quarto.

 

 Ah, não! protestou o Bigodes. Também tenho direito a uma hora de intimidade!

 

 Abre depressa exigiu a voz grave do Afegão.

 

 O que é agora?

 

 Uma espécie de motim informou o Afegão, um sólido barbudo com turbante. Os soldados desertam em massa e tentam desencaminhar os nossos homens.

 

 Isso não pode ser assim! rugiu o Bigodes, bruscamente alerta. Os nossos rapazes não se comportarão como cobardes!

 

 O Bigodes estava enganado.

 

 Convencidos pelo boato, os membros dos regimentos de elite deixavam-se arrastar pela corrente.

 

 O Afegão tentou agarrar um fugitivo, mas o Bigodes bloqueou-lhe o braço.

 

 Estão como loucos, não os podemos reter.

 

 E os que se dirigem para o palácio?

 

 Não vão apesar de tudo ser capazes de atacar a Rainha! Superexcitado, Nariz Achatado e mais de duzentos desertores

 

 marchavam sobre a residência da regente, decididos a pilhá-la.

 

 Talvez sejamos só dois comentou o Afegão mas não os deixaremos passar.

 

 Acima de tudo, não deveis sair, Majestade recomendou o chanceler Neshi. Os nossos soldados perderam a cabeça! Passemos pelas traseiras do palácio e refugiemo-nos no deserto.

 

 O intendente Qaris aprovou. Se a guarda pessoal da Rainha se opusesse à horda, seria uma carnificina. E Ah-hotep não escaparia à fúria das suas próprias tropas.

 

 Partam todos e regressem a Tebas para proteger a minha mãe e o meu filho ordenou Ah-hotep.

 

 Mas vós...

 

 Não discutas, Neshi.

 

 Como poderíamos abandonar-vos?

 

 Só interessa a segurança de Ahmés. Dirige-te a Tebas sem perder um instante.

 

 O tom da Rainha era tão imperioso que dignitário e guardas não lhe resistiram mais.

 

 Adornando-se com um fino diadema de ouro, a majestosa morena de olhos verdes foi ao encontro dos amotinados.

 

 Estupefactos, estes imobilizaram-se.

 

 Aproveitando esse momento de hesitação, o Bigodes e o Afegão colocaram-se de um lado e de outro da Rainha. Mesmo de mãos nuas, eliminariam um bom número de agressores.

 

 Nariz Achatado avançou.

 

 Disseram-nos que iríeis retirar-vos para o templo, Majestade... E estais aqui! Não é possível... Sois um fantasma!

 

 Porque deste ouvidos a esse boato?

 

 Porque os hicsos estão a chegar e já não temos chefe!

 

 Sou a regente e comando o exército. Não foi assinalada nenhuma vaga de assalto. E se fosse esse o caso, fá-la-íamos parar.

 

 Sois verdadeiramente... real?

 

 Toca na minha mão e saberás. Nariz Achatado hesitou.

 

 Combater os hicsos fazia-lhe medo, mas tinha uma minúscula hipótese de se safar. Em contrapartida, tocar na Esposa do Deus era cometer uma tal ofensa que seria fulminado!

 

 Curvou-se então até tocar com o nariz no chão. E os seus camaradas imitaram-no.

 

 Mentiram-vos declarou Ah-hotep e vocês comportaram-se como crianças assustadas. Quero esquecer este incidente. Que cada um regresse ao seu posto.

 

 Os soldados levantaram-se e aclamaram a Rainha Liberdade. Nunca mais dariam qualquer crédito a um boato.

 

 Foi um Neshi dominado pela inquietação que alertou a soberana.

 

 Majestade, desertores arrastados pelo tenente Vigoroso tentam apoderar-se de vários navios para abandonarem a base.

 

 Seguida pelo Bigodes, o Afegão e soldados recém-conquistados para a sua causa, a soberana dirigiu-se com rapidez para o embarcadouro onde o confronto entre os archeiros da marinha, comandados por Ahmés, filho de Abana, e os partidários de Vigoroso acabaria inevitavelmente em desastre.

 

 A Rainha! gritou um desertor. A Rainha está viva! Ah-hotep colocou-se entre os dois campos, só e sem armas. O tenente Vigoroso compreendeu que acabava de cometer um erro  irremediável. Espalhando um falso boato e incitando numerosos soldados a fugir, condenara-se a si próprio à morte.

 

 Lamento, Majestade, mas não tenho opção. Preciso de partir daqui de barco e matarei quem tentar impedir-me de o fazer.

 

 Não utilizes as armas a não ser para combater o inimigo e libertar o teu país.

 

  Não podeis perdoar a um desertor!

 

 Preciso de ti, preciso de todos vocês para vencer o Imperador das Trevas. Matarmo-nos uns aos outros fá-lo-ia triunfar, mas quebrei esse malefício. Formemos de novo uma só alma e confia apenas na minha palavra.

 

 Vigoroso voltou a meter a espada na bainha. Sob o olhar luminoso de Ah-hotep, os soldados confraternizaram.

 

 Almirante, um navio comercial não referenciado chega pelo canal do norte.

 

 Interceptem-no.

 

 Apriori, não podia tratar-se de um ardil de Ah-hotep. Mas desde o inesperado ataque de Auaris, Jannas levava a sério o mínimo incidente. Todos os acessos fluviais à capital estavam guardados dia e noite e a mais pequena embarcação era severamente controlada. À menor sensação de perigo, os archeiros da polícia tinham ordem para disparar. Mais valia cometer um lapso do que pôr em perigo a segurança da capital.

 

 Perfeccionista, o almirante inspeccionava todos os dias vários navios de guerra e ele próprio verificava o estado do material. Cada unidade devia estar permanentemente pronta para o combate. Ou a frota egípcia tentava uma nova ofensiva, ou Jannas receberia ordem para partir para o sul e aniquilar os tebanos. Tanto num caso como no outro, tinha de garantir as condições da vitória.

 

 Durante a sua curta pausa do meio-dia, o almirante contentava-se com uma refeição frugal composta por um filete de tainha grelhado e lentilhas.

 

 O seu ajudante-de-campo avisou-o da visita do grande tesoureiro Khamudi.

 

 Está muito nervoso e exige ver-vos imediatamente, almirante.

 

 Diz-lhe que espere. Estou a acabar o meu almoço.

 

 Jannas não se apressou. Como Khamudi o humilhara antes do ataque de Auaris, pagava-lhe na mesma moeda. Aqui, no navio-almirante, o civil podia esbravejar à vontade. Nenhum marinheiro o deixaria aceder à sua cabina.

 

 Ao contrário do que era seu hábito, Jannas saboreou romãs e figos, que lhe souberam muito bem. Em determinadas circunstâncias, sabia apreciar as coisas doces. Depois lavou as mãos, pôs o seu gorro às riscas e saiu para a ponte onde Khamudi andava de um lado para outro.

 

 Rubro de cólera, o grande tesoureiro precipitou-se em direcção ao almirante, que o fez parar com um gesto.

 

 Nada de movimentos precipitados no meu navio, Khamudi. Aqui, tudo é regulado e preciso.

 

 Sabeis o que acabais de fazer, almirante?

 

 Depois de uma manhã de inspecção, almocei. Outras perguntas?

 

 Acabais de interceptar um navio que me pertence!

 

 O do canal do norte? Não figurava na minha lista de embarcações autorizadas a penetrar no porto comercial.

 

 Podemos ir para a vossa cabina? Ninguém nos deve ouvir. Jannas abanou a cabeça afirmativamente.

 

 Considerando a excitação de Khamudi, a conversa arriscava-se a ser interessante.

 

 Quero admitir que essa embarcação vos pertence, Khamudi, mas por que razão o seu capitão, um cipriota, não nos disse isso?

 

 Porque a sua missão é confidencial, tal como a sua carga, que me deveria ter sido entregue directamente.

 

 Esqueceis que estamos em guerra e que tenho a obrigação de controlar todas as mercadorias à entrada de Auaris?

 

 Aquelas não, almirante. Entregai-mas e não falemos mais no caso.

 

 Gostaria de vos fazer a vontade, mas é impossível. Colocai a hipótese de vós próprio terdes sido enganado... Sem o saberdes, faríeis penetrar na capital produtos perigosos, ou seja, armas destinadas a eventuais resistentes.

 

 O grande tesoureiro fico rubro.

 

 Ousais acusar-me, a mim!

 

 Não vos acuso de nada. Receio apenas que a vossa boa-fé tenha sido iludida, e é a razão pela qual devo conhecer a natureza do carregamento que esperais.

 

 Quereis fazer-me crer que não o haveis examinado! Jannas fingiu reflectir.

 

 Não tinha outra solução, admito, mas estou perplexo e impaciente por ouvir a vossa versão dos factos.

 

 Khamudi espumava.

 

 Trata-se de droga, almirante. Dessa droga que consomem os dignitários e os oficiais superiores.

 

 Eu não.

 

 Cada um se distrai como entende. Em períodos como este, é um remédio que muitos consideram indispensável. E tenho o dever de lhes garantir esse pequeno prazer. Além disso, tenho o pleno acordo do Imperador, que ficaria muito descontente de saber que vos intrometeis no meu território.

 

 Longe de mim essa ideia, grande tesoureiro!

 

 Então, fazei com que me entreguem de imediato essa mercadoria!

 

 Visto que foram dissipadas as zonas de sombra, é essa a minha intenção. A fim de evitar um novo incidente, arranjai maneira de que a vossa próxima entrega seja feita de acordo com as regras de segurança.

 

 Khamudi bateu com a porta da cabina.

 

 Descontraído, Jannas concedeu a si próprio uma taça de cerveja morna. Há muito tempo que estava informado do lucrativo tráfico de droga organizado por Khamudi. Uma excelente ideia, de resto, visto que aquele género de produto acalmava as angústias.

 

 O importante era ter feito compreender ao grande tesoureiro que não era o único senhor a seguir ao Imperador. Qualquer operação comercial, a partir de agora, deveria ser aprovada pelo almirante. Nenhuma informação lhe escaparia e a influência de Khamudi iria diminuindo.

 

 No fim de um dia extenuante, o ardor do Sol enfraquecia finalmente. Em breve o astro ia desaparecer no Ocidente.

 

 Insensível àquele espectáculo magnífico, o almirante Jannas repreendia asperamente um tenente cujos marinheiros eram pouco disciplinados. Não haveria segunda advertência. Nova falta daquele género e o culpado acabaria no labirinto do Imperador, de onde ninguém até agora saíra vivo.

 

 Almirante, um aborrecimento avisou um responsável da polícia fluvial.

 

 De que género?

 

 Detivemos um suspeito num armazém do porto comercial. Tem revelações a fazer-vos e só aceita falar convosco.

 

 Vamos.

 

 O carregamento de droga fora desembarcado e entregue ao grande tesoureiro. Os carregadores transportavam agora pesadas jarras de óleo de iluminação destinadas ao palácio, onde as lâmpadas brilhavam sempre.

 

 Um cargueiro cheio de cobre esperaria até ao dia seguinte. Extraído por forçados de limitada duração de vida, o metal servia para o fabrico das armas.

 

 Jannas apenas autorizava um único canal de acesso, estando os outros obstruídos por barragens flutuantes. Se Ah-hotep aplicasse a mesma estratégia que o seu defunto filho Kamés, sofreria um pesado fracasso.

 

 Mas que projecto insensato podia ainda conceber aquela Rainha de incrível teimosia? A morte de um marido e de um filho teriam quebrado qualquer mulher, e no entanto ela teimava em acreditar numa vitória que sabia impossível. Nem mesmo a execução sumária de civis e o aniquilamento de aldeias inteiras a tinham podido convencer a renunciar à sua loucura.

 

 Por aqui, almirante.

 

 Dois polícias estavam de guarda diante de um velho armazém que merecia ter sido demolido.

 

 No interior, caixas partidas e tecidos velhos.

 

 Sentado de encontro ao muro, um homem jovem, mal barbeado, com algemas nos pulsos.

 

 Sois o almirante Jannas?

 

 Sou eu mesmo.

 

 Quero falar-vos a sós.

 

 Porquê?

 

 Tem a ver com a segurança do Imperador.

 

 O prisioneiro falava entrecortadamente, o seu olhar vagueava. Com um gesto, o almirante ordenou aos polícias que se afastassem.

 

 Agora, fala.

 

 Rápido como um felino, o homem levantou-se e apertou o pescoço do almirante entre os antebraços com intenção de o sufocar.

 

 A diferença de peso e de estatura era tal que Jannas parecia vencido de antemão.

 

 Mas o almirante não tinha perdido nada dos seus reflexos de lutador. Tirando um punhal da bainha, cravou-o no ventre do agressor que, fulminado pela dor, largou a sua presa.

 

 Depois de se ter libertado, Jannas cortou-lhe o pescoço.

 

 Um drogado, pensou. Um drogado enviado por Khamudi para me assassinar.

 

 Apesar dos anos de guerra, a modesta cidade de Tebas, que parecia votada à decrepitude, desenvolvera-se. Aqui e além tinham sido construídas pequenas casas brancas onde viviam jovens casais. Desafiando o destino, tinham filhos que talvez fossem o futuro do Egipto.

 

 De acordo com as exigências de Ah-hotep, o mais belo compartimento do palácio real, reconstruído à pressa, era o amplo quarto da sua mãe, Teti, a Pequena, Muito velha, parecendo cada vez mais frágil, continuava a maquilhar-se e a vestir-se com grande cuidado. Afectada pelos desaparecimentos do genro e do primeiro neto, a idosa senhora ocupara-se da educação do segundo com tanto rigor como doçura. Alternando jogos e ensino, transmitira ao pequeno Ahmés o mel das antigas sabedorias. É certo que devia aprender a bater-se, a manejar o arco e a espada, mas também a praticar os hieróglifos a fim de se tornar um escriba exemplar.

 

 A morte do irmão fizera amadurecer brutalmente o rapaz de dez anos, a idade em que cada um se tornava plenamente responsável pelos seus actos. Em vez de minimizar a provação, a Rainha-Mãe falara-lhe como a um adulto cujo caminho seria semeado de obstáculos.

 

 Como te sentes hoje? perguntou Ah-hotep à mãe, sentada diante de uma janela que dava para um jardim onde saltitavam inúmeros pássaros.

 

 Um pouco mais fatigada do que ontem, mas tão orgulhosa de ti! Parece que aniquilaste uma espécie de revolta dos nossos soldados.

 

 Eram vítimas de um falso boato. No futuro, o chanceler Neshi comunicar-lhes-á todas as semanas informações oficiais e eu intervirei tantas vezes quantas for necessário.

 

 Te ti, a Pequena agarrou ternamente na mão da filha.

 

 Sem ti, Ah-hotep, o Egipto já não existiria.

 

 Sem ti, eu não teria passado de uma inútil revoltada. Ensinaste-me tudo com a tua atitude. E és tu que preparas Ahmés para os rudes combates que o esperam.

 

 Embora a sua maturidade seja espantosa, não é ainda mais do que uma criança. Tanto quanto Kamés era vivo e entusiasta, Ahmés é prudente e comedido. Precisa de tempo para assimilar uma noção. Melhor seria não o pressionar e deixá-lo crescer ao seu próprio ritmo, mas terás essa possibilidade?

 

 Ah-hotep partilhava a análise da mãe. Seria necessário uma vez mais, com efeito, que os hicsos não precipitassem os acontecimentos desencadeando uma ofensiva geral.

 

 O intendente Qaris trouxe a Teti, a Pequena, bolos de mel e sumo de alfarroba fresco.

 

 O médico gostaria de vos examinar.

 

 Não é necessário protestou a idosa senhora. Prepara-me antes um bom jantar.

 

 Vendo a expressão embaraçada de Qaris, Ah-hotep despediu-se da mãe e saiu do quarto em companhia do intendente.

 

 O sumo sacerdote de Karnak acaba de morrer, Majestade. A vossa mãe vai ficar a saber em breve. Como se entediam bem e eram da mesma idade, receio que esta notícia a desmoralize.

 

 Tens razão. E que mais?

 

 O assistente do sumo sacerdote, que se considera como seu sucessor inevitável, não é o homem para a situação.

 

 Por que razões?

 

 A personagem é ambiciosa, não tem um grande coração e confundiu o serviço dos deuses com um plano de carreira.

 

 Tendo tendência para minimizar os defeitos dos outros, Qaris raramente se mostrava tão crítico.

 

É  necessário que tenhais uma total confiança no sumo sacerdote de Amon, Majestade. Quando partirdes de novo para o combate, será ele que garantirá, em Tebas, a ligação com o invisível. Este assistente não desempenhará essa função e pensará apenas em intrigar a fim de aumentar o seu poder temporal.

 

 Quem é o teu candidato?

 

 Não tenho nenhum, Majestade, e confio na clarividência da Esposa do Deus.

 

 Com a tua experiência, Qaris, não serias um sumo sacerdote perfeito?

 

 Oh, não, Majestade! O meu lugar é aqui, neste palácio.

 

 Reúne sacerdotes, escribas e administradores no pátio a céu aberto do templo de Karnak.

 

 Incluindo Herai? Ah-hotep sorriu.

 

 Não, porque não encontrarei um ministro da Economia melhor.

 

 Quando a Esposa do Deus entrou no pátio, os olhares convergiram para ela.

 

 O assistente do sumo sacerdote avançou.

 

 O inventário dos bens deste templo está à vossa disposição, Majestade, tal como os documentos referentes à sua gestão.

 

 Antes de os consultar, devo prestar homenagem do defunto.

 

 Repousa na sua morada oficial. Posso conduzir-vos lá?

 

 Sei onde fica.

 

 O rosto do assistente ensombrou-se.

 

 A Rainha passou lentamente diante dos homens que o intendente Qaris seleccionara. Um deles impressionou-a. Recolhido, com um olhar grave, não tinha mais de uns trinta anos.

 

 Que função desempenhas? perguntou-lhe ela.

 

 Sou portador de oferendas.

 

 Conheces as palavras dos deuses?

 

 No intervalo das minhas horas de serviço, estudo os textos hieroglíficos.

 

 O que sabes de Amon?

 

 É o escultor que se esculpiu a si mesmo, o modelador da eternidade cuja acção perfeita foi o nascimento da luz. É o Único que permanece em tudo criando a multiplicidade. O seu verdadeiro nome é para sempre secreto, porque é a própria vida. O seu olho direito é o dia, o seu olho esquerdo a noite. Bom pastor, é igualmente o piloto do navio. Senhor dos silenciosos, dá à luz os deuses.

 

 Esses discursos não nos conduzem a lado nenhum protestou o assistente. Karnak necessita de um administrador sério, não de um pensador perdido nas suas abstracções.

 

 Não compete à Esposa do Deus escolher o novo sumo sacerdote?

 

 Com certeza, Majestade, mas suplico-vos que reflictais! Trabalho há muitos anos ao lado do meu superior e ele não me escolhera por acaso.

 

 Por que não te propôs ele claramente como seu sucessor? O assistente pareceu embaraçado.

 

 A doença enfraquecera-o muito... Mas ninguém duvidava das suas intenções. E não será o portador de oferendas Djehuti que poderá substituí-lo!

 

 Djehuti... O nome do deus Tot, o senhor da língua sagrada sobre a qual assentamos a nossa civilização. Não será um sinal do destino?

 

 O assistente permaneceu de boca aberta.

 

 Escreve o teu nome num pedaço de papiro e que Djehuti faça o mesmo exigiu a Rainha. Colocá-los-ei no nãos da deusa Mut e será ela que tomará a decisão.

 

 No fim da velada fúnebre, colocada sob a protecção de ísis, iniciar-se-ia a mumificação do sumo sacerdote. Depois de se ter recolhido diante dos restos mortais de um fiel servidor e de ter pronunciado as fórmulas de glorificação, a regente penetrou na capela de Mut, abriu o nãos e retirou dele os documentos. Depois, regressou ao grande pátio.

 

 O assistente tinha os punhos apertados, Djehuti parecia estranhamente calmo.

 

  Um dos papiros foi queimado pelo fogo da deusa Mut revelou ela, lançando os fragmentos calcinados ao solo. O outro está intacto.

 

 Devemos aceitar a vontade do invisível afirmou o assistente, que reconhecera o seu pedaço de papiro na mão de Ah-hotep.

 

 Esta mostrou-lho.

 

 O nome preservado era o de Djehuti.

 

 Alto, esguio, com o olhar profundo e severo, o jovem príncipe Ahmés franqueou o limiar do templo de Kamak. Contemplou demoradamente a porta axial de granito rosa antes de descobrir um pórtico de pilares quadrados cuja austeridade lhe dilatou o coração. Era assim que concebia a necessária rectidão de qualquer ser perante os acasos do destino. E qual não foi o seu deslumbramento face ao segundo pórtico, cujos pilares eram Osíris em pé, com os braços cruzados sobre o peito e as mãos segurando os ceptros do julgamento e da ressurreição.

 

 Diante de cada colosso estava um sacerdote de Amon.

 

 Olha-os bem, meu filho exigiu Ah-hotep e designa o que te parece capaz de desempenhar a função de sumo sacerdote.

 

 Em que consiste?

 

 Em servir o princípio oculto, celebrando quotidianamente os rituais para que ele consinta em não abandonar esta terra.

 

 Ahmés cravou o seu olhar no de cada um dos ritualistas, sem arrogância nem precipitação. Deixava penetrar na sua alma as palavras pronunciadas pela mãe e tentava perceber se correspondiam ao ser que encarava.

 

 Designo aquele disse o príncipe em voz firme, fixando Djehuti a direito nos olhos.

 

 O assistente do sumo sacerdote defunto tocou com a fronte no solo diante da Rainha.

 

 Perdoai a minha vaidade, Majestade. Obedecerei a Djehuti e realizarei o melhor que puder as tarefas que ele me confiar.

 

 Depois de ter entronizado o novo sumo sacerdote entregando-lhe a bengala do Verbo e enfiando-lhe no dedo maior da mão direita um anel de ouro, a Rainha levou Ahmés até ao oriente do templo.

 

 Em frente da capela de Amon, sobre um altar, estava a espada de luz que tinha sido manejada pelos Faraós Seken e Kamés.

 

 A porta desta capela só se abrirá por si própria no momento da vitória definitiva sobre os Hicsos lembrou Ah-hotep. Mas antes, será necessário derramar muito sangue e lágrimas e saber manejar esta arma sem desfalecer. Sentes-te capaz, Ahmés?

 

 O príncipe aproximou-se do altar, tocou no punho e passou o dedo pela lâmina.

 

 A espada de Amon é demasiado pesada para mim. Mas no dia em que o meu braço for suficientemente forte, manejá-la-ei.

 

 Tens apenas dez anos e perdeste o teu pai e o teu irmão mais velho, que morreram para libertar o Egipto. Apesar da sua coragem, esta tarefa está longe de estar terminada. Aceitas continuá-la, com risco da tua vida?

 

 Viver sem liberdade é pior do que a morte.

 

 O Egipto não pode sobreviver sem a presença de um Faraó, Ahmés, e foi a ti que o destino escolheu para exercer essa função suprema, como acabas de provar. Até seres realmente capaz de a desempenhar, assumirei os meus deveres de regente.

 

 Porque não vos tornais Faraó, mãe? Nunca vos igualarei.

 

 Quando a minha tarefa estiver terminada, quando o Egipto puder respirar livremente, será necessário um grande Rei, jovem e possuído pelo espírito de Maet, para reconstruir um mundo em harmonia com as forças criadoras. A energia de reinar deve animar o teu coração.

 

 Ah-hotep e o filho dirigiram-se para o novo sumo sacerdote Djehuti.

 

 Prepara as cerimónias da coroação ordenou-lhe a Rainha.

 

 No momento exacto em que Ah-hotep pronunciava aquelas palavras, o Imperador Apopis foi dominado por um violento mal-estar quando fazia a sesta no seu quarto iluminado por numerosas lâmpadas que ardiam de dia e de noite. Os lábios e os tornozelos incharam, a garganta apertou-se e ele sentiu-se sufocar.

 

 Nunca haverá outro Rei senão eu resmungou com uma raiva que lhe devolveu a energia.

 

 Apoderando-se da sua adaga de punho de ouro incrustado com uma flor de lótus de prata e lâmina de bronze triangular, cravou-a no local da parede onde o pintor cretense representara uma palmeira.

 

 Tudo me pertence, mesmo esta imagem!

 

 O Imperador abriu a porta do seu quarto diante da qual dois guardas estavam de sentinela.

 

 Vão buscar o grande tesoureiro e preparem a minha cadeira de transportadores.

 

 Como vos sentis, Majestade?

 

 Para o templo de Set, depressa.

 

 Abandonando o cálculo do lucros obtidos com a venda da droga, Khamudi acorrera ao palácio para ajudar Apopis a instalar-se na magnífica cadeira de transportadores que fora utilizada pelos Faraós do Império Médio.

 

 Vinte vigorosos rapagões ergueram-na e adoptaram um ritmo rápido, evitando baloiçar o Senhor dos Hicsos. Cinquenta soldados garantiam a segurança e Khamudi, adepto da boa mesa, tinha dificuldade em seguir o ritmo.

 

 À passagem do cortejo, os raros transeuntes afastavam-se. Mulheres e crianças entravam precipitadamente em casa.

 

 Mas um rapazinho deixara cair um brinquedo de madeira no meio da rua. Um brinquedo que representava um crocodilo com maxilares articulados. Largou a mão da mãe para o recuperar.

 

 Parem! ordenou o Imperador.

 

 Com grandes olhos espantados e curiosos, o rapazinho olhava os soldados com capacetes e couraças negras.

 

 Sem a intervenção de Apopis, teria sido espezinhado. Junto ao peito, mantinha bem apertado o seu crocodilo de madeira.

 

 Leva-o, Khamudi!

 

 Louca de inquietação, a mãe precipitou-se para os milicianos.

 

 É o meu filho, não lhe façais mal!

 

 A um sinal do Imperador, o cortejo retomou a marcha. O rapazinho não viu um oficial cortar o pescoço à mãe.

 

 Os sacerdotes de Set e do deus sírio da trovoada, Hadad, não paravam de recitar fórmulas de esconjuro a fim de impedir que o céu se enfurecesse. Desde o início da manhã, estranhas nuvens ameaçavam Auaris. Um vento furioso, vindo de sul, fazia gemer os castanheiros plantados em redor do altar principal. As águas do canal mais próximo erguiam-se em vagas furiosas.

 

 O Imperador está a chegar! exclamou um sacerdote. A cadeira foi suavemente poisada no solo.

 

 Muito pálido, sem fôlego, Apopis levantou-se com dificuldade.

 

 Este mau tempo é anormal, Majestade, e estamos muito inquietos confessou o sumo sacerdote de Set.

 

 Tu e os teus colegas, afastem-se e continuem a recitar as fórmulas.

 

 Os sacerdotes afastaram-se. A voz rouca e o olhar glacial de Apopis estavam ainda mais aterradores do que era habitual.

 

 Contemplou o céu enlouquecido, como se só ele fosse capaz de o decifrar.

 

 Traz a criança, Khamudi.

 

 O grande tesoureiro arrastou até ao altar o rapazinho, que não largara, o brinquedo.

 

 Preciso de me regenerar revelou Apopis porque a Rainha Ah-hotep acaba de conceber uma nova agressão contra mim. O que ela prevê não se deve realizar. É por isso que Set exige um sacrifício que me devolverá a saúde, um sacrifício que desencadeará uma trovoada monstruosa contra Tebas. Coloca a criança sobre o altar, Khamudi.

 

 O grande tesoureiro julgou perceber as intenções do seu senhor.

 

 Majestade, quereis que eu próprio trate disto?

 

 É a mim que pertence agora o seu alento, só eu o posso arrancar do seu corpo.

 

 Indiferente aos gritos e às lágrimas, Khamudi quebrou o brinquedo do rapazinho e colocou-o sobre o altar. O Imperador tirou a adaga da bainha.

 

 Um trovão acordou Teti, a Pequena.

 

 Como se acabasse de reencontrar o vigor da juventude, a idosa dama saltou para fora da cama, vestiu uma túnica azul-escura e avançou pelo corredor que conduzia ao quarto de Ah-hotep.

 

 A porta abriu-se antes que a Rainha-Mãe tivesse tempo de bater.

 

 Ouviste?

 

 Vários relâmpagos zebraram o céu da madrugada.

 

 Não tenho memória de trovoada semelhante disse Teti, a Pequena.

 

 Não tem nada de normal considerou Ah-hotep. A única explicação possível é que seja o Imperador a desencadear a fúria de Set.

 

 - É impossível celebrar a cerimónia da coroação!

 

 É impossível, tens razão.

 

 Até mesmo os maiores dorminhocos tinham sido arrancados ao seu descanso. As pessoas agitavam-se no interior do palácio e o intendente Qaris não conseguia acalmar os espíritos.

 

 Ah-hotep entrou no quarto do filho.

 

 Em pé diante de uma janela, Ahmés contemplava a fúria dos céus.

 

 Estarão os deuses encolerizados contra mim? perguntou com gravidade.

 

 

 Não, Ahmés. O Imperador das Trevas percebeu as nossas intenções e quer impedir-te de subir ao trono dos vivos.

 

 Uma chuva de incrível violência abateu-se sobre Tebas e as trevas mascararam o Sol.

 

 É a obscuridade dos infernos! gritou uma criada, enquanto uma colega, igualmente assustada, fugia a gesticular.

 

 Acende as lâmpadas ordenou a Rainha a Qaris. O rosto do intendente alterou-se.

 

 O óleo não arde, Majestade.

 

 Um ruído enorme fez sobressaltar toda a gente da casa.

 

 Sob o efeito de um vento enraivecido, o telhado da caserna próxima do palácio acabava de levantar voo e esmagar-se sobre um celeiro.

 

 Dominados pelo pânico, os tebanos saíam de casa e corriam em todas as direcções. Os cães uivavam à morte, com excepção de Risonho, que não abandonava a dona.

 

 As paredes de uma casa dos subúrbios abateram, matando crianças soterradas no seu quarto.

 

 Vamos morrer todos! profetizou um cego. O Nilo, por sua vez, encolerizou-se.

 

 Um barco de pescadores, que tentava afastar-se para sul, foi levantado por uma vaga e voltou-se. Apesar de serem excelentes nadadores, cinco homens morreram afogados.

 

 No porto, as embarcações quebravam-se umas contra as outras. Nem mesmo o navio de guerra que transportara Ah-hotep da base militar à cidade de Tebas conseguiu resistir à tempestade. Os mastros desmoronaram-se sobre os marinheiros de guarda e o capitão foi esmagado pela barra de um leme que se tornara incontrolável. Em menos de um quarto de hora, a embarcação afundou-se.

 

 E a trovoada não parava de atroar.

 

 Uma bola de fogo incendiou uma oficina de carpinteiro, cujas labaredas se propagaram às casas vizinhas. O vento atiçou as chamas, anulando os esforços dos transportadores de água.

 

Nota:  Estas perturbações do cosmos são evocadas numa esteia de calcário com a altura de 1,80 m e a largura de 1,10 m que foi exposta no templo de Karnak.

 

 Ah-hotep, impotente, assistia ao desastre.

 

 Em breve, Tebas não seria mais do que uma ruína, tal como a base militar. Utilizando a força de Set, Apopis reduzia a nada vinte anos de esforços.

 

 Sem marinha, com algumas centenas de soldados que tinham escapado, a Rainha não poderia fazer outra coisa senão implorar a clemência do tirano, que mandaria executar os sobreviventes do cataclismo.

 

 Mais valia morrer em combate.

 

 Com o filho refugiado no deserto na companhia de alguns fiéis, Ah-hotep enfrentaria sozinha o Senhor dos Hicsos. Não teria outra arma senão o punhal de sílex que manejara, em rapariga, tornando-se a primeira resistente ao ocupante.

 

 Vinte anos de luta, de sofrimento e de esperança, vinte anos no decurso dos quais conhecera o amor e intensos períodos de felicidade, vinte anos de recusa da opressão que terminavam por uma derrota de que o Egipto não se recomporia.

 

 Prepara-te para partir, Ahmés.

 

 Desejo ficar convosco, mãe.

 

 A cólera de Set só se aplacará com a destruição de Tebas e tu deves sobreviver. Um dia, retomarás a luta.

 

 E vós, mãe, o que tencionais fazer?

 

 Reunir os soldados em estado de combater e atacar Auaris. O rapazinho permaneceu imperturbável.

 

 Não se trata de um suicídio?

 

 Apopis deve crer que a sua vitória é total. Eu desaparecida, tu morto em Tebas, o que poderia ele ter ainda a recear? Terás de partir do nada, Ahmés, como eu própria fiz. Sobretudo, nunca renuncies. E se a morte interromper a tua obra, possa o teu ka animar outro coração.

 

 Ahmés precipitou-se nos braços da mãe, que o apertou demoradamente contra si.

 

 Pensa apenas na rectidão e no respeito de Maet, meu filho; são as únicas forças de que o Imperador nunca disporá.

 

 A tormenta redobrava. Numerosas casas tinham sido devastadas, as vítimas não tinham conta. Os ueds tinham-se transformado em torrentes que arrastavam pedras e destroços. Na margem do Ocidente, as antigas necrópoles eram invadidas por enxurradas de lava.

 

 Apressa-te, Qaris exigiu a Rainha. Parte com o meu filho para o deserto do Este. Que Herai te acompanhe, se o encontrares.

 

 Majestade, deveríeis...

 

 Fico junto da Rainha-Mãe.

 

 Ah-hotep beijou Ahmés uma última vez e confiou-o ao intendente, com a esperança que escapariam à tempestade.

 

 Ao voltar-se, a Rainha descobriu um aliado inesperado: Vento do Norte, um burro monumental de pelagem cinzenta, com o focinho e o ventre brancos, largas narinas e orelhas imensas. Com os olhos onde brilhava uma viva inteligência, fixava a soberana.

 

 O que tentas fazer-me compreender?

 

 O burro deu meia volta, Ah-hotep seguiu-o.

 

 Quando saiu do palácio, a Rainha ficou encharcada em poucos segundos.

 

 Vento do Norte levantou a cabeça e apontou o focinho para as nuvens de um negro de tinta que continuavam a ser rasgadas pelos relâmpagos.

 

 Sim, temos de tentar! disse-lhe ela, acariciando-o. Ah-hotep correu até à capela do palácio onde era conservado o ceptro  em ouro cuja parte superior tinha a forma do animal de Set, uma espécie de ocapi. Incarnação da força, fora confiado à Rainha pela deusa Mut.

 

 E outro animal de Set, o burro, acabava de abrir um caminho: visto que o Imperador se dirigia ao deus da trovoada, porque não o imitar?

 

 Ah-hotep subiu ao telhado do palácio e brandiu para o céu o ceptro de ouro.

 

 Tu, que manejas o raio, revela-te! O que tens a recear de mim? Manejo o teu símbolo, possuo esta luz que não destrói mas ilumina a terra! Obedece-me, Set, ou mais nenhum culto te será prestado! Não, o Imperador das Trevas não é o teu único senhor. Porque te ergues contra o meu país e contra o teu irmão Hórus, o Faraó do Egipto? Mostra o teu verdadeiro rosto, que a tua energia penetre no teu ceptro!

 

  As nuvens afastaram-se para deixar aparecer, a norte do céu, a figura de uma pata de touro, onde residia a força misteriosa que os humanos nunca dominariam.

 

 E um novo relâmpago, mais violento e mais intenso do que os outros, brotou do fundo do cosmos para se precipitar em direcção ao ceptro de ouro que a Rainha Liberdade segurava com mão firme.

 

Nota:  A Ursa Maior, local de força de Set.

 

O grito de raiva de Apopis ressoou em toda a cidadela, gelando de terror os que ali se encontravam.

 

 O Imperador acabava de sentir na carne uma dor atroz.

 

 Uma queimadura que significava que o fogo de Set se voltava contra ele.

 

 Sobre o seu templo de Auaris amontoavam-se nuvens negras provenientes dos quatro cantos do espaço à velocidade de um cavalo a galope. Delas brotaram rajadas de raios, uns atingindo as habitações dos sacerdotes, outros a álea de carvalhos que conduzia ao altar. Os galhos incendiaram-se e o vento atiçou o incêndio.

 

 Uma chuva de tempestade abateu-se sobre Auaris com tal violência que os soldados se refugiaram nos postos de guarda e nas casernas, escondendo a cabeça nas mãos para tentarem escapar à cólera de Set.

 

 Estamos amaldiçoados! gritou Tani, a esposa do Imperador, de pé sobre a cama, com a baba a escorrer dos lábios.

 

 Duas criadas obrigaram-na a deitar-se.

 

 São os tebanos, estão de volta! A Rainha Ah-hotep, com uma espada... As vagas submergem a capital, o fogo destrói a cidadela!

 

 Enquanto Tani delirava, o Imperador subia lentamente a escada que conduzia à torre mais alta.

 

 Sob o dilúvio, apontou a sua adaga para o céu de tinta. Tu és meu aliado, Set, e deves atacar os meus inimigos!

 

 Houve um relâmpago ainda mais deslumbrante do que os anteriores e, com um estrondo que rebentou os tímpanos, o raio caiu sobre a torre.

 

 Desde a tentativa de assassinato à qual tinha escapado por pouco, o almirante Jannas gozava dia e noite de uma apertada protecção. Assim, Khamudi nunca mais teria oportunidade de o atingir de surpresa.

 

 O almirante não ficara espantado ao saber que o grande tesoureiro tomara idênticas disposições. Sabia que Jannas sabia e receava ser suprimido. Entre os dois homens iniciava-se uma luta de morte.

 

 A reunião do conselho supremo mantêm-se, almirante confirmou-lhe o seu ajudante-de-campo.

 

 Notícias do Imperador?

 

 Segundo uns, morreu fulminado; segundo outros, agoniza. E alguns afirmam que perdeu o uso da palavra. Almirante...

 

 O que há mais?

 

 A maioria dos hicsos está pronta a obedecer-vos.

 

 Esqueces Khamudi!

 

 Tem os seus partidários, é verdade, mas são muito menos numerosos do que os vossos. Quando for preciso...

 

 Esperemos pelo conselho supremo decidiu Jannas.

 

 Apesar das pinturas cretenses, brilhantes e coloridas, a sala do conselho continuava fria e sinistra. Todos os grandes dignitários do Império estavam presentes, Jannas e Khamudi encontravam-se frente-a-frente, próximo do modesto trono de pinho do Imperador.

 

 Quando o médico do palácio anunciasse oficialmente a morte de Apopis ou a sua incapacidade para governar, o que se iria passar? Alguns pensavam que Khamudi usaria o pretexto da sua posição de grande tesoureiro para garantir um interregno que tornaria definitivo, mas Jannas, o chefe das forças armadas, recusaria sem dúvida essa solução.

 

 Apenas um banho de sangue resolveria o inevitável conflito entre os dois pretendentes ao poder. E, nesse jogo, o almirante seria o mais forte.

 

 Era por isso que Khamudi, sofrendo de comichões que as pomadas não conseguiam acalmar, não evidenciava a sua habitual segurança. Embora tivesse comprado um máximo de oficiais superiores, receava não sair vivo da cidadela.

 

 De repente, Apopis apareceu.

 

 Envergando um manto castanho-escuro, com passo pesado, o Imperador poisou o olhar glacial sobre cada um dos dignitários antes de se sentar.

 

 Todos se sentiram culpados por terem duvidado dele e Khamudi recuperou o sorriso.

 

 Set infligiu terríveis danos a Tebas declarou Apopis com a sua voz rouca que fazia estremecer o mais corajoso. A cidade está semidestruída, o exército de Ah-hotep dizimado e a sua marinha de guerra aniquilada.

 

 Majestade perguntou Jannas dais-me ordem para atacar os revoltosos, desferir um golpe fatal e trazer-vos aquela Rainha, morta ou viva?

 

 Cada coisa a seu tempo, almirante. Primeiro, sabei que o meu protector, Set, fez de mim um novo Hórus. Nos documentos oficiais passarão a chamar-me a partir de agora ”O que tranquiliza as Duas Terras”. Depois, Set revelou-me as razões da sua cólera contra Auaris: esta cidade, a minha capital, abriga traidores, conspiradores e pusilânimes que ousam criticar e desaprovar as minhas decisões. Vou portanto eliminar essa podridão. A seguir, almirante Jannas, ocupar-nos-emos de Ah-hotep.

 

 O harém de Auaris era um inferno. Ali eram encerradas as mais belas mulheres da ex-aristocracia egípcia. Em qualquer momento, deviam satisfazer os desejos dos dignitários do Império. Se uma delas tentava suicidar-se, os membros da sua família eram torturados e deportados. Algumas agarravam-se portanto à sobrevivência, recordando que, outrora, uma conspiração fomentada no interior do harém por pouco não resultara. E não diziam que o Imperador estava agonizante? Talvez o seu sucessor fosse menos desumano.

 

 Foi sonhando com uma sorte menos cruel que uma magnífica jovem morena de vinte anos abriu a porta da sala onde as suas companheiras e ela própria se maquilhavam, esperando os visitantes.

 

 O seu grito de terror ficou na garganta, porque o soldado hicso lhe esmagou o crânio com um golpe de maça.

 

 Exterminem esta escória ordenou o oficial aos seus homens, com capacetes e couraças como se fossem travar um feroz combate. O Imperador decidiu fechar este harém onde murmuram contra ele.

 

 Os assassinos lamentaram não poder aproveitar aquelas soberbas mulheres antes de as massacrarem. Mas as ordens de Apopis eram rigorosas.

 

 Com o coração trespassado por um punhal, o jumento de olhar doce morreu sem compreender o que lhe censuravam. Era o centésimo burro que o sumo sacerdote de Set sacrificava a fim de apaziguar o furor do deus. Coberto de sangue, mudava de roupa quando viu avançar na sua direcção um esquadrão comandado por Khamudi.

 

 Segui-nos, sumo sacerdote.

 

 Mas ainda tenho animais para matar e...

 

 Segui-nos.

 

 Onde me conduzis?

 

 O Imperador quer ver-vos.

 

 O Imperador! Devo lavar-me...

 

 Não é necessário. Sabeis que o Imperador detesta esperar. Apopis exibia-se sobre o estrado instalado por cima das suas duas  distracções favoritas: de um lado o labirinto, do outro a arena onde imperava um touro de combate. Desde o início da depuração, passava várias horas por dia a ver morrer aqueles e aquelas que tinha condenado. Uns acabavam trespassados pelos cornos e espezinhados, outros esfacelados ao caírem numa das múltiplas armadilhas do labirinto.

 

 O sumo sacerdote prostrou-se diante do Imperador.

 

 Não cessamos de prestar homenagem a Set, Majestade! As vossas directrizes são fielmente executadas.

 

 Perfeito, sumo sacerdote. Mas não perdeste a confiança em mim durante a trovoada?

 

 Nem por um momento, Majestade!

 

 Mentes muito mal. Tendo em consideração as tuas elevadas funções, dou-te à escolha: o labirinto ou o touro.

 

 Majestade, a minha obediência é total, e garanto-vos que...

 

 Duvidaste de mim cortou Apopis. É uma traição imperdoável, um crime que merece a morte.

 

 Não, por piedade!

 

 Exasperado pelos soluços do condenado, o Imperador empurrou-o com um violento pontapé que o fez cair na arena.

 

 O sumo sacerdote correu, voltando as costas ao monstro, que o trespassou com um único golpe de um dos cornos.

 

 O Imperador interessou-se pela sua próxima vítima, uma cozinheira do palácio. A impudente ousara afirmar que Apopis estava gravemente doente.

 

 Aquela acabaria no labirinto.

 

 Seguí-la-iam soldados, negociantes e funcionários da administração hicsa que também tinham duvidado da grandeza de Apopis. Quanto aos egípcios suspeitos, eram deportados em massa para Tjaru e Charuhen, sob a responsabilidade da dama Aberia, cuja competência fazia maravilhas.

 

 A operação demorava tempo, mas Auaris acabaria por ser depurada.

 

 Toucada com um disco solar e de olhos flamejantes, a estátua da deusa Mut contemplava a Rainha Ah-hotep que lhe vinha agradecer ter protegido o templo de Karnak durante a tempestade devastadora de que Tebas se recompunha com dificuldade.

 

 Logo que o raio se aprisionara no ceptro de ouro da regente, as nuvens tinham-se dissipado, a chuva cessara e o vento baixara. Pouco a pouco, o céu reencontrava a sua serenidade, novamente iluminado por um sol triunfante.

 

 Herai reunia voluntários para apagar os vestígios do cataclismo. A única arma eficaz face à desgraça era a solidariedade. Tradição quotidiana da deusa Maet, devolvia esperança às vítimas e decuplicava a eficácia dos que vinham em seu auxílio.

 

 Enriquecida já com mil histórias, a lenda da Rainha embelezava-se com a sua capacidade para encantar Set, o violento, e capturar o seu fogo; mas Ah-hotep permanecia indiferente aos louvores pois queria ouvir o julgamento de Mut. Simultaneamente Pai e Mãe, Vida e Morte, aceitaria a esposa de Amon que o jovem Ahmés se tornasse Faraó?

 

 Sem o seu consentimento, até mesmo os milagres seriam inúteis.

 

 Sempre me mostraste o caminho a seguir, Mut. Ahmés não é apenas meu filho, é também o futuro Faraó. Se assim não fosse, eu teria procurado outra pessoa para desempenhar essa função. Estou persuadida de que a fúria de Set foi desencadeada pelo Imperador das Trevas a fim de impedir a coroação e não porque Ahmés seja incapaz de reinar sobre as Duas Terras. Mas talvez esteja enganada... O teu olhar saberá trespassar a obscuridade, tu nunca me mentiste. Ahmés deve subir ao trono dos vivos?

 

 A estátua inclinou a cabeça para a frente.

 

 Herai deixou os seus cem quilos desabarem sobre um sólido assento baixo. A sua habitual alegria de viver parecia alterada.

 

 Os prejuízos são consideráveis, Majestade. Precisaremos de vários meses para pôr tudo em ordem e reconstruir o número de casas necessário, sem esquecer a construção urgente de alojamentos provisórios.

 

 O Tesouro ajudará os mais necessitados prometeu Ah-hotep.

 

 Infelizmente, há mortos, entre os quais várias crianças.

 

 Cada defunto será inumado ritualmente e nomearei sacerdotes do ka para os fazer reviver todos os dias.

 

 A base militar foi gravemente afectada revelou o intendente Qaris. Apesar dos esforços dos nossos marinheiros, mais de metade da frota foi destruída pelo furacão.

 

 Que os carpinteiros se lancem imediatamente ao trabalho e que contratem o máximo de aprendizes. Até dispormos de uma quantidade suficiente de navios, as licenças serão suprimidas mas o pagamento duplicado.

 

 É inútil taparmos os olhos afirmou o chanceler Neshi. Se os hicsos atacarem, seremos aniquilados.

 

 Terão primeiro que ultrapassar o obstáculo constituído pelas nossas tropas reunidas por altura do Faium.

 

 Bem sabeis, Majestade, que não conseguirão deter uma verdadeira ofensiva. E reconstituir as nossas forças exigirá tempo, muito tempo.

 

 O mais urgente decretou Ah-hotep é a coroação do novo Faraó.

 

 Durante alguns dias, Tebas decidiu esquecer os seus ferimentos, não pensar no provável ataque maciço dos hicsos e consagrar-se às cerimónias da coroação, cuja parte secreta se desenrolou no templo de Karnak. O novo sumo sacerdote Djehuti e a Esposa do Deus presidiram ao correcto desenrolar do ritual que viu Ahmés purificado por Hórus e Tot e depois proclamado soberano do Alto e do Baixo Egipto pelas deusas abutre e cobra.

 

 O seu primeiro acto de Faraó consistiu em oferecer uma estatueta da deusa Maet ao deus Amon, o princípio oculto, e em jurar observar durante toda a sua vida a rectidão e a justiça a fim de que os laços entre o divino e o humano não se quebrassem.

 

 Reconhecido Rei por aclamação, Ahmés saiu do templo para ir ao encontro do seu povo. Precediam-no os portadores de insígnias simbolizando as províncias do Egipto das quais ele deveria ser o unificador.

 

 A voz de Ah-hotep proclamou os nomes e os deveres do novo Faraó que sucedia a Kamés.

 

 Ahmés é o que reúne as Duas Terras, o filho de Amon-Ré saído do seu ser, o herdeiro ao qual o Criador deu o seu trono, o seu verdadeiro representante na terra. Corajoso, desprovido de mentira, transmite-nos o sopro da vida, faz cintilar a realeza, instala firmemente Maet e espalha a alegria. É o suporte do céu e o leme do navio do Estado.

 

 Pela noite dentro, quando a Lua cheia brilhava na vertical do templo e a cidade ressoava ainda com os sons da festa, um rapazinho de dez anos rememorava cada uma das palavras pronunciadas pela mãe. Oscilando entre o receio e o orgulho, acabava de compreender que a sua existência não se assemelharia à dos outros homens e que, pouco a pouco, a função real se apoderaria de todo o seu ser.

 

 Depois das esteias e estátuas egípcias destruídas ou desfiguradas, Apopis gozava plenamente as pinturas de Minos, o artista cretense que acabava de convocar, mergulhando Ventosa na angústia. Temível sedutora, a jovem irmã do Imperador atraía para o seu leito os dignitários suspeitos de não aprovarem sem reservas a política de Apopis. Depois de ter obtido confidências de travesseiro, Ventosa denunciava-os. E os traidores eram condenados ao labirinto.

 

 Devoradora de homens, a soberba eurasiática sofrera uma verdadeira revolução ao apaixonar-se por Minos. Sem cessar de desempenhar o seu papel de espia, permanecia enamorada do cretense do qual conhecia no entanto o inconfessável segredo: disposto a tudo para regressar ao seu país, conspirava contra o Imperador.

 

 Ventosa por pouco não revelara a verdade ao Senhor dos Hicsos, mas teria sido condenar o seu amante a uma morte atroz.

 

 Pela primeira vez, ela recusava servir o Imperador.

 

 Mas não acabaria ele por descobrir? Quando a olhava, sentia a impressão de estar prisioneira de uma teia de aranha onde se debatia em vão. Quando o decidisse, Apopis devoraria as suas presas, Ventosa e o seu amante cretense.

 

 De momento, falava com Minos.

 

 Angustiada, a jovem receava o pior. O Imperador podia mandar torturar o pintor, deportá-lo, lançá-lo no labirinto! A seguir, seria a sua vez. Aquele ”irmão”, muito mais velho do que ela, sempre a aterrorizara, embora Ventosa fosse uma das raras pessoas, se não a única, a poder dirigir-se a ele com uma certa desenvoltura. Mas Ventosa não tinha quaisquer ilusões: no dia em que deixasse de ser útil a Apopis, este oferecê-la-ia de bandeja aos seus oficiais ou, pior ainda, às duas mulheres que a odiavam: a ”imperatriz” Tani e Yima, a esposa do grande tesoureiro.

 

 Ventosa seria incapaz de justificar o seu silêncio. Como conspirador, Minos deveria ter sido executado. E não era falando de amor ao Imperador que podia esperar a mínima clemência.

 

 Era impossível imaginar uma vida sem Minos. No mundo cruel e perverso em que ela mergulhava, ele incarnava a inocência e a verdadeira paixão, desprovida de sombras e de cálculos. Pintor de génio, amante sincero, proporcionava-lhe uma felicidade inesperada.

 

 Fossem quais fossem as consequências da sua atitude, protegeria Minos. Mas estaria ainda vivo?

 

 Ventosa desprezava a droga que circulava na capital e fazia a fortuna de Khamudi, esse arrivista pretensioso cuja ganância só se podia comparar à crueldade. Tão depravado como a esposa meia louca, apenas se distraía infligindo as piores sevícias a jovens escravas. Mas continuava a ser o braço direito do Imperador.

 

 A porta do quarto abriu-se.

 

 Minos, até que enfim! Estás tão pálido... O que te pediu Apopis?

 

 Grifos... Quer que eu pinte grifos de um lado e de outro do seu trono, como no palácio de Cnossos! Assim, tornar-se-á invulnerável.

 

 À beira do desmaio, o pintor não podia confessar à sua amante que julgara chegada a sua última hora.

 

 Mesmo nos braços de Ventosa, que se lhe oferecia com entusiasmo, o cretense sentia-se ainda prisioneiro do olhar glacial de Apopis.

 

 Ele sabia.

 

 O Imperador sabia, divertia-se com a sua presa. Os grifos seriam provavelmente a última obra de Minos.

 

 Minos começara a desenhar os grifos e estava decidido a bater recordes de lentidão. Enquanto a obra não estivesse terminada, teria a vida salva e talvez descobrisse um meio de eliminar o Imperador.

 

 Apesar da sua diferença de idades, o cretense sentia-se incapaz de enfrentar Apopis de mãos nuas. Ser-lhe-ia necessário um punhal, mas ninguém, nem mesmo Ventosa, se apresentava diante do Senhor dos Hicsos sem ser revistado.

 

 De repente, um vento glacial contraiu-lhe os músculos das costas.

 

 O teu trabalho não avança muito depressa, Minos, e os meses passam fez notar a horrível voz rouca do Imperador.

 

 Como era seu hábito, aparecera como um demónio surgindo das trevas. Ninguém o ouvia aproximar.

 

 Majestade, apressar a minha mão poderia estragar a obra.

 

 Preciso o mais depressa possível desses grifos, meu jovem amigo. Sobretudo, que eles inspirem medo e que o seu olhar seja aterrador.

 

 Apesar dos repetidos pedidos de Jannas, Apopis não lançaria nenhuma ofensiva enquanto os dois grifos não estivessem em condições de defender o seu trono. O almirante batia os pés de impaciência, afirmando que não era conveniente dar tempo a Ah-hotep para reconstituir as suas forças, mas tinha vistas demasiado curtas. O Imperador sabia que os prejuízos infligidos aos tebanos só seriam apagados daí a alguns anos. Logo que os olhos dos grifos lançassem fulgores de destruição, logo que o seu poder ficasse fora do alcance de qualquer conspirador e a depuração terminada, Apopis resolveria definitivamente o caso da Rainha e dos resistentes. Minos não ousava voltar-se.

 

 Compreendeste-me, meu jovem amigo?

 

 Sim, sim, Majestade!

 

 Apopis seguiu pelo corredor que conduzia à sala do conselho. No limiar, um Khamudi excitado.

 

 Senhor, uma mensagem! Uma mensagem do vosso informador! O espião hicso há muito tempo que não se manifestava, com certeza  porque sentira as maiores dificuldades em transmitir aquele pedaço de papiro escrito em linguagem cifrada de que apenas o Imperador conhecia a chave.

 

 Ao ler o texto, o rosto de Apopis exprimiu um tal ódio que o próprio Khamudi ficou impressionado.

 

 Ah-hotep ousou! Aquela maldita Rainha ousou fazer coroar o filho, um garoto hoje com a idade de onze anos, que apresenta como Faraó! Tanto um como a outra serão esmagados. E vamos primeiro provocar a confusão nas suas próprias fileiras.

 

 Levando as mãos ao ventre, o grande tesoureiro torceu-se de dor.

 

 Perdoai, Majestade, é um cálculo da bexiga. Não creio poder assistir ao conselho.

 

 Sê operado, Khamudi. Temos muito trabalho em perspectiva.

 

 Com os cabelos descolorados para parecerem louros, cada vez mais gorducha devido ao seu gosto imoderado pelos bolos, a dama Yima roía as unhas.

 

 Sem o marido, Khamudi, sentia-se perdida. Como alguns murmuravam que a doença do grande tesoureiro era consequência de uma maldição lançada por Apopis, o infeliz não tinha qualquer hipótese de sobreviver. Depois do seu desaparecimento, Yima não perderia a maior parte da sua fortuna, requisitada pelo palácio? É verdade que defenderia a sua causa junto da imperatriz Tani. Mas esta, constantemente de cama, só se preocupava com a sua própria pessoa.

 

 Chegou o cirurgião avisou o porteiro.

 

 O terapeuta era um cananeu, como ela, e tinha boa reputação. Diziam-no capaz de tratar um caso como o de Khamudi, que não parava, de gemer.

 

 O meu marido é um homem muito importante. É preciso ter muito cuidado.

 

 Ninguém ignora o papel eminente do grande tesoureiro, dama Yima. Tende confiança na minha técnica.

 

 É realmente... eficaz?

 

 Sim, mas dolorosa.

 

 Tenho droga.

 

 Yima fez o marido absorver um analgésico à base de papoila-rosa. Em geral, ele contentava-se com uma pequena quantidade para melhorar as proezas amorosas mas, desta vez, a dose adormeceu-o...

 

 O cirurgião tirou da sua sacola um tubo em cartilagem que introduziu no canal urinário do doente até ao colo da bexiga.

 

 Khamudi não reagiu.

 

 O médico introduziu-lhe um dedo no ânus, detectou o cálculo e empurrou-o para o colo. Depois, soprou com todas as suas forças na outra extremidade do tubo a fim de o dilatar e aspirou bruscamente para fazer passar o cálculo por ele.

 

 Depois de ter preso outro tubo ao que acabava de utilizar, fez descer o cálculo pelo pénis e retirou-o à mão.

 

 Com o espírito ainda nebuloso, Khamudi entrou no gabinete do Imperador que acabava de redigir um texto em hieróglifos.

 

 Como te sentes, meu amigo?

 

 Aliviado, Majestade, mas fatigado e com náuseas.

 

 Recompor-te-ás depressa. Não há melhor remédio do que um trabalho intenso e é precisamente o que tenciono oferecer-te.

 

 O grande tesoureiro de boa vontade teria tirado alguns dias de repouso, mas não se discutiam as ordens do Imperador, sobretudo quando se tem à frente um adversário tão inquietante como Jannas.

 

 As nossas reservas de escaravelhos estão bem fornecidas?

 

 Temos de todos os tamanhos e em diversos materiais, da pedra à faiança.

 

 Preciso de milhares, Khamudi, e exijo que sejam escritos o mais depressa possível. Eis a mensagem que deve ser entregue num máximo de regiões.

 

 No lugar chamado Porto-de-Kamés, em memória do Faraó defunto, o governador Emheb reforçava todos os dias o seu dispositivo defensivo graças ao entusiasmo de soldados experientes. Naquela magnífica região do Egipto Médio, o colosso pensava muitas vezes na sua cidade de Edfu, a sul de Tebas, uma cidade que provavelmente nunca mais voltaria a ver.

 

 Se a sorte lhe tinha sorrido na frente de Cusae, acabaria por abandoná-lo, de tanto a solicitar. Uma vez mais, encontrava-se na primeira linha, em companhia de Ahmés, filho de Abana, archeiro de elite e capitão de navio. Entre os dois, sabiam levantar o moral das tropas nas piores condições. Mas quando fora informado dos prejuízos infligidos a Tebas por um cataclismo, o bom vivant com pescoço de touro, de largos ombros e ventre dilatado, sentara-se na soleira da sua tenda pensando que a epopeia de Ah-hotep se arriscava a terminar num fracasso.

 

 Sem receber reforços, como poderia Emheb resistir a uma ofensiva hicsa de envergadura? O Imperador demorava a fim de permitir a Jannas preparar um enorme exército que começaria por arrasar Mênfis, depois destruiria à sua passagem as bolsas de resistência, a mais importante das quais era a de Porto-de-Kamés, e precipitar-se-ia então sobre Tebas, incapaz de se defender.  Governador disse-lhe Ahmés, filho de Abana os nossos aliados de Mênfis acabam de nos enviar estas mensagens distribuídas pelo Imperador.  Uma dezena de escaravelhos em faiança e comalina, tendo todos o mesmo texto, escrito em hieróglifos grosseiros e com erros que um escriba experiente nunca teria cometido. Transmitamo-los  o mais depressa possível à regente recomendou Emheb. Este ataque poderia ser-nos fatal.

 

 ”A todos os habitantes das Duas terras, em nome do Imperador Apopis, Rei do Alto e do Baixo Egipto, eis o que deve ser conhecido: o raio de Set abateu-se sobre Tebas, a cidade dos revoltosos. O seu palácio foi destruído, a Rainha Ah-hotep morreu e o seu filho Ahmés, Faraó fantoche, pereceu nas ruínas. O exército dos insurrectos já não existe. Os sobreviventes desertaram. Que cada um se submeta a Apopis. Quem lhe desobedecer será severamente castigado.”

 

 Ninguém deve ler este texto! inflamou-se o chanceler Neshi.

 

 Tarde de mais lamentou a Rainha Ah-hotep.

 

 Arriscamo-nos a uma debandada geral angustiou-se o intendente Qaris. Aqui em Tebas provareis facilmente que o Imperador continua a mentir e a praticar uma política de desinformação, mas noutros lados... Em Mênfis, os resistentes vão depor as armas! E talvez mesmo em Porto-de-Kamés.

 

 Resta-nos um meio de contra-atacar: redijo de imediato uma curta mensagem que os nossos escribas copiarão em pequenos papiros. Confiá-los-emos a Larápio e à sua frota.

 

 Atleta excepcional, amimado e condecorado, Larápio era o chefe incontestado dos pombos-correio, capazes de percorrer de uma só vez mil e duzentos quilómetros a uma velocidade média de setenta e dois quilómetros por hora. Ferido durante uma missão Perigosa, recompusera-se perfeitamente e passava com prazer os fins de tarde junto de Risonho, o Jovem, a quem contava as sua memórias de guerreiro infatigável.

 

 Sempre capazes de se orientar em função do magnetismo terrestre, os pombos eram ameaçados pelas aves de rapina e pelas flechas dos inimigos. Mas os soldados de Larápio tinham aprendido a defender-se, usando a sua acuidade visual muito desenvolvida.

 

 Existia outro perigo, mais pérfido. Segundo Ah-hotep, o espião hicso tinha outrora envenenado um dos mensageiros para interromper a ligação entre ela própria e o seu filho Kamés. Desde esse incidente, havia soldados a vigiar de perto o pombal.

 

 E foi num concerto de bater de asas que Larápio e os seus camaradas levantaram voo, uns para sul, outros para norte, para propagarem a mensagem da Rainha Ah-hotep.

 

 Nem um movimento recomendou Ahmés, filho de Abana, aos dois soldados que, com uma trouxa ao ombro, se preparavam para desertar.

 

 Com uma flecha só matarás um de nós! replicou o mais jovem.

 

 Não devias estar tão confiante objectou o camarada. Terá disparado outra flecha antes que te possas aproximar.

 

 Não tenho a mínima intenção de suprimir soldados egípcios afirmou Ahmés, filho de Abana. Mas detesto os cobardes. Se derdes um passo mais, será o último. Porque vos vou estropiar e nunca mais podereis andar.

 

 Não sabes as notícias? A Rainha morreu, já não há Faraó, nem Tebas, nem Exército de Libertação! É preciso fugir antes que os hicsos caiam sobre nós.

 

 O Imperador é um mentiroso.

 

 Então porque não aparece a Rainha?

 

 Um bater de asas intrigou o archeiro que não deixava de visar os desertores.

 

 O pombo poisou e ele reconheceu-o: Larápio, com uma mensagem presa à pata direita!

 

 Vamos acordar o governador. Sigam à minha frente. Tendo em conta o ar intransigente do atirador de elite, os dois homens  preferiram obedecer.

 

 O governador não estava a dormir. Também ele reconheceu imediatamente Larápio, que o contemplava com o seu olhar inteligente e orgulhoso.

 

 Depois de lhe ter acariciado docemente o topo da cabeça, Emheb desenrolou o minúsculo papiro portador do selo real, percorreu-o à pressa e depois leu o texto em voz alta:

 

 ”Ano dois do reinado do Faraó Ahmés, o terceiro dia do primeiro mês da segunda estação.

 

 O vil asiático Apopis, Imperador das Trevas e usurpador, continua a mentir utilizando escaravelhos de propaganda. A Rainha Ah-hotep, Esposa do Deus e regente do reino, está bem, tal como o seu filho bem-amado, o Faraó do Alto e do Baixo Egipto, Ahmés. Em Tebas, os rituais são realizados em honra de Amon, deus das vitórias, e o Exército de Libertação continua a preparar-se para esmagar os invasores e restabelecer o reino deMaet.”

 

 Os dois desertores ficaram de boca aberta.

 

 Eu bem vos tinha dito lembrou Ahmés, filho de Abana.

 

 Está bem, engolimos uma grade patranha confessou o mais velho. Não seria possível esquecer isso?

 

 Compete ao governador Emheb determinar o castigo que vos deve ser infligido.

 

 O arco permanecia tenso, a flecha pronta a partir. E o governador Emheb tinha um olhar duro e colérico que não pressagiava nada de bom.

 

 Passando por trás dos dois soldados, deu-lhes um pontapé no rabo com toda a força.

 

 Isto bastará por esta vez decretou. Mas se voltarem a acreditar em qualquer idiotice, deixarei Ahmés, filho de Abana, ocupar-se de vocês.

 

 A batalha dos comunicados durava há vários meses. Em Mênfis, depois dos movimentos de pânico, os responsáveis da resistência tinham conseguido manter uma aparência de coesão entre as suas tropas. Inundados de escaravelhos hicsos que contradiziam os papiros dos pombos-correio, citadinos e camponeses reuniam-se para discutir.

 

 No início do ano três de Ahmés, a sua convicção ficou formada: o Imperador mentia. Oficiais vindos de Tebas confirmaram aos chefes das províncias da zona livre que a Rainha Ah-hotep continuava o combate e que o jovem Faraó Ahmés tinha um carácter tão determinado como o pai e o irmão.

 

 Com um pouco de sorte, talvez a notícia se espalhasse até Auaris e no Delta.

 

 Trabalhei todo o dia e estou esgotado queixou-se Minos.

 

 Vou apagar a tua fadiga prometeu Ventosa, lavando com água perfumada o corpo juvenil do seu amante cretense.

 

 Minos esqueceu depressa as horas passadas a realizar os mínimos pormenores dos grifos de acordo com exigências muito precisas do Imperador e acariciou com ardor as formas perfeitas da bela eurasiática.

 

 Juntos atingiram o prazer, num novo deslumbramento que acalmou as angústias de Ventosa e devolveu a esperança a Minos. Mas, passado o êxtase, a realidade saltou-lhes de novo à cara. Ventosa nunca confessaria ao amante que o espiara e que conhecia as suas intenções. Minos nunca confessaria à sua amante que se queria desembaraçar do Imperador. Persuadido de que Apopis o tinha desmascarado e brincava com a sua presa, o pintor receava não sobreviver aos seus grifos.

 

 O palácio inteiro fala da tua nova obra-prima, mas ninguém a viu. Há muito tempo que a sala do trono é inacessível.

 

 Apopis não utilizará os monstros antes de os considerar perfeitos. Ele, que era tão apressado, obriga-me e rectificar o meu estilo para que esteja em completo acordo com a sua visão. São aterradores, Ventosa, mal me atrevo a contemplá-los! Mais um pouco de intensidade no seu olhar e terei terminado. Em seguida, o Imperador animá-los-á com a sua magia destruidora.

 

 Porque tens tanto medo, Minos?

 

 Quando descobrires os grifos, compreenderás.

 

 Achas que Apopis te escolherá como a sua primeira vítima? O pintor afastou-se da amante.

 

 É bem capaz disso! Sabes que Auaris pulula de estranhos boatos pretendendo que a Rainha Ah-hotep e o filho continuam vivos?

 

 Não dês ouvidos a esses falatórios, meu amor.

 

 Quero regressar a Creta contigo, Ventosa. Casar-nos-emos lá, teremos filhos e viveremos felizes, com simplicidade.

 

 Sim, muita simplicidade...

 

 O Rei Minos, o Grande, gosta dos artistas. Foi ele que me permitiu usar o seu nome. Teremos uma casa soberba, perto de Cnossos, a capital, num vale ensolarado. Visto que o meu trabalho está a chegar ao fim, fala ao Imperador. Ele que nos deixe partir.

 

 Para completar a sua cura, o grande tesoureiro Khamudi devia observar um período de abstinência demasiado prolongado aos olhos da esposa. Por isso, a dama Yima requebrava-se pelos corredores do palácio em busca de um macho que fosse ao mesmo tempo atraente e suficientemente discreto para nunca revelar a sua breve ligação.

 

 Fez parar o sedutor Minos, que regressava aos seus aposentos.

 

 Haveis terminado a vossa obra-prima? perguntou-lhe com um sorriso cativante.

 

 Compete ao Imperador decidir.

 

 Todos falam de vós, Minos, e do vosso extraordinário talento. Gostaria de vos conhecer melhor.

 

 O trabalho ocupa todo o meu tempo, dama Yima. Ela roçou-o com um movimento de ancas.

 

 Uma pessoa também precisa de se saber distrair, não vos parece? Tenho a certeza que mereceis melhor do que os braços de uma única mulher.

 

 Encurralado num canto do estreito corredor, o cretense não sabia como escapar àquela louraça cada vez mais opressiva.

 

 Não te aproximes de Minos! exigiu a voz cortante de Ventosa.

 

 Yima não se atrapalhou.

 

 Eis a nossa bela princesa! Então o que consta é verdade: ainda não te cansaste dele?

 

 Ventosa esbofeteou Yima, que soltou gritos estridentes de rapariguinha assustada.

 

 Volta para junto do teu marido e nunca mais deites os olhos a Minos. Caso contrário, arranco-tos.

 

 A ”imperatriz” Tani não suportava nem a luz do dia nem a obscuridade da noite. Fizera portanto colocar em redor do seu leito uma dezena de lâmpadas cuja chama a tranquilizava. Com as janelas ocultas por pesados cortinados que não deixavam passar o mínimo raio de sol, a esposa do Imperador sentia-se em segurança. Nunca mais ousaria contemplar os canais de Auaris que os egípcios tinham utilizado para lançar um assalto contra a capital hicsa.

 

 Todas as noites, a dama Tani tomava um sonífero à base de sementes de lótus esmagadas, esperando não ser brutalmente acordada pelo pesadelo que a enlouquecia: uma mulher de extraordinária beleza aniquilava o exército de Apopis, queimava o Imperador com o seu olhar, desmantelava a cidadela e reduzia a imperatriz à condição de escrava, forçada a beijar os pés e as mãos das suas criadas.

 

 No leito encharcado, Tani uivava de terror.

 

 Majestade avisou-a a criada de quarto a dama Yima deseja ver-vos.

 

 Essa querida e doce amiga... Ela que entre!

 

 A esposa de Khamudi curvou-se diante da obesa imperatriz, entalada em almofadas. Era a mulher mais feia da capital e, apesar da quantidade de unguentos de que cobria a pele gordurosa, exalava um odor nauseabundo.

 

 Mas Yima precisava dela. Embora não saísse do quarto, a horrível Tani exercia ainda uma certa influência que a mulher do grande tesoureiro tencionava utilizar.

 

 Como vai a vossa saúde hoje?

 

 Sempre catastrófica, infelizmente! Nunca me recomporei.

 

 Não digais isso, Majestade sussurrou Yima. Estou certa do contrário.

 

 Como és gentil, fiel amiga! Mas... pareces contrariada.

 

 Não ouso importunar Vossa Majestade com as minhas pequenas preocupações.

 

 Ousa, por favor!

 

 Yima fez ar de rapariguinha vexada e ressentida.

 

 Insultaram-me e puseram-me mais baixo do que a terra.

 

 Quem?

 

 Alguém muito importante, Majestade. É por isso que não tenho o direito de revelar o seu nome.

 

 Não me contraries, Yima.

 

 Estou tão perturbada...

 

 Abre-me o teu coração, doce amiga. Yima baixou os olhos.

 

 É o pintor Minos. Tem ares de menino tímido mas, na realidade, é um sátiro terrível! Nunca um homem me tratara assim.

 

 Queres dizer que...

 

 Yima abanou afirmativamente a cabeça. Tani beijou-a na testa.

 

 Pobre querida! Conta-me tudo.

 

 Auxiliada pelo intendente Qaris, Teti, a Pequena, fazia, questão de se dirigir à sala do conselho onde estavam reunidos o almirante Lunar, o superior dos celeiros Herai, o chanceler Neshi e os dois comandantes das tropas de elite, o Bigodes e o Afegão. Tal como o jovem Rei Ahmés, tinham todos um semblante grave.

 

 Ah-hotep ajudou a mãe a sentar-se.

 

 As notícias de Porto-de-Kamés são más revelou a Rainha. Os soldados estão deprimidos e nem o governador Emheb consegue devolver-lhes a coragem. À primeira ofensiva hicsa, será a debandada. É por isso que me parece indispensável reforçar a frente com a quase totalidade do armamento de que dispomos.

 

 A nossa frota encontra-se longe de estar reconstituída lembrou o chanceler Neshi. Se enviarmos os nossos navios e as nossas tropas para Porto-de-Kamés, Tebas ficará sem defesa.

 

 Apenas em aparência rectificou Ah-hotep porque os hicsos não atravessarão as nossas linhas, desde que tenhamos tempo para as consolidar. E se o conseguirem, é porque estaremos todos mortos. Mas tornaste-te muito prudente, Neshi; outrora, terias sido o primeiro aprovar esta estratégia.

 

 Aprovo-a, Majestade, e sem a menor reserva. Rodear Tebas de uma muralha não serviria de nada. É indispensável, com efeito, tomar novo impulso e levar o conflito o mais longe possível para o norte, sejam quais forem os perigos.

 

 Pouco à-vontade nas liças oratórias, o Afegão e o Bigodes contentaram-se em aquiescer À ideia de espezinharem os hicsos esqueciam a evidente superioridade do adversário.

 

 A Rainha Ah-hotep tem razão declarou Teti, a Pequena. É necessário afastar o perigo de Tebas e proteger a pessoa do Faraó, que deve crescer em sabedoria, força e harmonia.

 

 Com o olhar, o jovem Ahmés fez compreender à mãe que não tinha nada a acrescentar.

 

 Herai e Qaris precisou Ah-hotep estão encarregados da segurança do Faraó. Disporeis da guarda habitual do palácio e de reforços que eu própria escolherei. Se formos vencidos em Porto-de-Kamés, um pombo-correio trar-vos-á a ordem de partirem com o Rei a fim de que ele possa continuar a luta.

 

 A obra era tão assustadora que Minos não ousava contemplá-la Violentando-se, conseguira tornar insuportável o olhar dos grifos. Poder-se-ia jurar que os dois monstros que enquadravam o trono do Imperador estavam prestes a saltar e a esfacelar quem tentasse aproximar-se.

 

 Mais um pequeno esforço exigiu a voz rouca de Apopis e ficará perfeito. Falta no olho esquerdo aquele fulgor de crueldade que tornará os meus dois guardiães absolutamente implacáveis.

 

 Depois de ter engolido a saliva, o pintor fez a pergunta que o afligia.

 

 Qual será o meu próximo trabalho, senhor?

 

 Tu e os teus companheiros ireis decorar os palácios das cidades do Delta. Graças a vós, os deuses do Egipto desaparecerão uns a seguir aos outros. Por todo o lado haverá as provas do touro e do labirinto e ninguém pensará em revoltar-se contra mim.

 

Assim, o Imperador conservava a vida ao pintor para que ele continuasse a sua obra de propaganda. Minos nunca mais tornaria a ver Creta.

 

 Abandonando o artista, Apopis dirigiu-se ao pequeno compartimento escavado no centro da fortaleza. Ninguém podia ouvir o que ali se dizia.

 

 O Imperador sentou-se pesadamente num banco de madeira de sicômoro.

 

 Dois guardas fizeram entrar o almirante Jannas.

 

 Fecha a porta, Jannas.

 

 Apesar do seu hábito dos combates e da morte, o almirante estava impressionado pelo lugar e por aquele homem que se sabia servir da sua fealdade como de uma arma ameaçadora.

 

 Estás satisfeito com nosso novo dispositivo de segurança, almirante?

 

 Sim, senhor. Mais nenhuma expedição egípcia poderá ter êxito. Auaris é inexpugnável.

 

 Mas isso não te basta...

 

 Com efeito. Continuo a considerar necessário atacar a frente inimiga, rompê-la e destruir Tebas.

 

 Chegou a hora, Jannas. Lança a primeira vaga de assalto.

 

 O governador Emheb estava deslumbrado.

 

 Deslumbrado pela nobreza da Rainha Ah-hotep, cujo aparecimento à proa do navio-almirante transformara soldados esgotados e desesperados em rudes combatentes decididos a morrer por ela. Deslumbrado também pela amplitude do dispositivo que fazia de Porto-de-Kamés uma verdadeira base militar, apta a conter um avanço hicso.

 

 Com a sua minúcia habitual, o almirante Lunar formara uma imponente barragem de navios de guerra. Os especialistas de engenharia tinham escavado fossos nas margens. Dissimulados por ramagens cobertas de erva e terra, fariam emboscadas aos carros hicsos. Os archeiros ficariam dispostos em várias linhas a fim de abater os intrépidos que conseguissem franquear os primeiros obstáculos. Além disso, sob o impulso de Neshi, tinham sido erguidas à sombra dos sicômoros e das palmeiras numerosas tendas de boa qualidade, enquanto os pedreiros construíam uma caserna. Quanto ao Bigodes e ao Afegão, submetiam as suas tropas de elite a um treino intensivo. E a Rainha concretizava um outro grande projecto: escavar canais de derivação cujo papel se poderia revelar decisivo.

 

 Nos estandartes, o sinal de ligação dos resistentes: um disco lunar numa barca que servia para escrever a primeira parte do nome de Ah-hotep, ”o deus Lua”, aquele que dava a força necessária para combater. Hotep, ”a paz”, segunda parte do nome, não passava ainda de um sonho.

 

  Quando a soberana erguia a espada de Amon diante do exército recolhido e confiante, cada soldado se sentia invencível. Iluminada pelo sol da madrugada, a lâmina flamejava. Brotando desse foco luminoso de insustentável intensidade, potentes raios tocavam os corações.

 

 E o governador Emheb admirava cada vez mais aquela Rainha que conhecera adolescente, apaixonada e intransigente, e cuja fé na liberdade crescia cada vez mais.

 

 Como está Tebas defendida, Majestade?

 

 Não há nem um único navio, nem um único regimento, e a base militar está quase vazia. Será aqui que tudo se jogará, Emheb. Nenhum hicso deve ultrapassar Porto-de-Kamés.

 

 O papel de espião não era decididamente fácil de manter, sobretudo em face de um adversário da dimensão de Ah-hotep. Conseguir fazer chegar uma mensagem a Auaris apresentava sérias dificuldades, mas colocava-se, antes de mais, uma questão particularmente espinhosa: que informações transmitir?

 

 A Rainha tivera a inteligência de distribuir as tarefas, designando a cada responsável uma missão bem determinada, mas só ela conhecia o plano de conjunto.

 

 O abandono de Tebas não seria um logro? Porto-de-Kamés tronar-se-ia realmente o primeiro posto avançado ou serviria de base recuada para uma ofensiva no Delta? A estas perguntas, e a muitas outras, o espião era incapaz de responder. E porque não atacava o Imperador, a não ser porque tinha em Auaris dificuldades que o imobilizavam?

 

 Apostar na paciência e espreitar o bom momento, aplicando esta estratégia, o espião já conseguira suprimir dois Faraós: Seken e Kamés.

 

 A prudência recomendava-lhe portanto que não a alterasse.

 

 O condenado, um oficial de cavalaria que ousara emitir críticas sobre a hesitação do Imperador, acabava de franquear a terceira porta do labirinto.

 

 Uma autêntica façanha.

 

 Escapando a armadilhas mortais, revelava-se tão astucioso como rápido. Um lampejo de interesse brilhava nos olhos de Apopis.

 

 Diante da quarta porta, um arco de abóbada de alfena, estava espalhada terra vermelha. O condenado notou que estava entremeada de pedaços de vidro que, se tivesse corrido, se lhe teriam cravado nos pés. Evitando aquela cilada, tomou impulso e conseguiu agarrar-se ao arco. Balançando, ganharia velocidade e saltaria para além da zona perigosa.

 

 Foi esse o seu erro.

 

 Na verdura estava dissimulada uma lâmina de duplo corte que agarrou em cheio com as mãos. Sob o efeito da dor, largou-a e caiu de costas sobre os bocados de vidro. Com a nuca trespassada, esvaiu-se  em sangue.

 

 Mais um incapaz constatou Apopis. Divertiste-te um pouco, Ventosa?

 

 Sentada à direita do Imperador, a bela eurasiática assistia ao espectáculo com olhar distraído. O oficial que enviara para a morte não era um bom amante.

 

 Tenho dificuldade em esquecer as minhas preocupações.

 

 Quais são elas?

 

 Minos deu-te plena satisfação. Porque não o deixas regressar a Creta?

 

 Porque ainda preciso do seu talento.

 

 Os seus camaradas de oficina também o têm!

 

 Minos é diferente e tu bem o sabes.

 

 E se eu suplicar ao Imperador que me conceda esse favor?

 

 O teu amante querido nunca deixará o Egipto.

 

 Os deuses tinham criado obra-prima mais bonita do que o corpo de Felina? Com ela, o Bigodes esquecia a guerra, aquela guerra que o conduzira para longe, para o sul, a fim de aí encontrar aquela núbia de longas pernas morenas.

 

 Graças ao seu conhecimento das plantas medicinais, Felina salvava muitos feridos. Nomeada para a direcção do serviço de urgências e considerada como uma heroína, atraía o olhar dos soldados que, tendo em vista o carácter do marido, não se permitiam nem gestos nem palavras incorrectas.

 

 Ao entrar na resistência, o Bigodes jurara no entanto a si mesmo não se prender a uma mulher. Considerando as fracas hipóteses de sobrevivência dos que combatiam na primeira linha, era preferível, como o Afegão, passar de uma amante a outra.

 

 Isso era não contar com a magia de Felina e com a sua teimosia. Uma vez escolhido o Bigodes, mostrara-se tão possessiva como uma liana. Mas como era deliciosa aquela prisão!

 

 Afastando-se dele, Felina fitou-o com os seus olhos trocistas.

 

 Em que pensas neste momento?

 

 Mas... em ti!

 

 Não só. Diz-me a verdade.

 

 O Bigodes observou o tecto da cabina do barco onde os amantes passavam horas febris.

 

 O perigo aproxima-se. Felina já não sorria.

 

 Terás medo?

 

 Com certeza. A um contra dez, não será fácil. Pode-se mesmo afirmar que está perdido de antemão. Esqueces  a Rainha Ah-hotep!  Quem o poderia esquecer? Sem ela, Apopis teria conquistado todo o Egipto há já muito tempo. Morreremos pela Rainha Liberdade e nenhum de nós o lamentará. Bateram  à porta da cabina. Sou eu,  o Afegão. Felina envolveu-se num xaile de linho. Entra  disse o Bigodes.  Lamento importunar-vos, mas as coisas estão a agitar-se. Jannas e as suas tropas abandonaram Auaris a fim de se dirigirem para sul. Nos arredores de Mênfis, o almirante teve uma má surpresa: as redes de resistência tinham aniquilado os postos de guarda hicsa. A população  vai ser massacrada!  É um facto, mas os menfitas conseguiram travar o avanço de Jannas e avisar-nos.

 

 A Rainha tenciona enviar-lhes reforços?

 

 Apenas dois regimentos: o teu e o meu.

 

 Também nós vamos ser massacrados.

 

 Isso dependerá da nossa mobilidade: o objectivo da manobra consiste em atrair os hicsos para Porto-de-Kamés. Não é tentador perseguir e exterminar fugitivos? É evidente que, se falharmos o nosso golpe, estamos arrumados.

 

 O Bigodes vestiu-se com lentidão.

 

 Distribui cerveja forte aos nossos soldados.

 

 Já foi feito respondeu o Afegão. Agora vamos explicar-lhes.

 

 As explicações não servem para nada. Contentar-se-ão em morrer como heróis, como os seus chefes.

 

 Não cedas ao pessimismo, Bigodes.

 

 Não me digas que já passámos por pior!

 

 Não to direi.

 

 Vou convosco decidiu Felina.

 

 Nem penses retorquiu o Bigodes. E é uma ordem. Enlaçaram-se demoradamente, convencidos de que se abraçavam pela última vez.

 

 Ventosa fizera mal em suplicar ao Imperador e revelar o seu interesse por Minos. Tentando proporcionar-lhe a felicidade com que sonhava, punha-o em perigo. Considerava portanto necessário confessar a Minos que conhecia as suas verdadeiras intenções a fim de que ele cessasse de conspirar contra Apopis. Juntos, aprenderiam a suportar a realidade.

 

 A noite tinha caído há muito tempo, mas o pintor cretense ainda não empurrara a porta do quarto da sua amante, perdida nos seus pensamentos.

 

 Nervosa, avançou pelo corredor que conduzia à oficina do cretense.

 

 Vazio.

 

 Procurando os seus colegas, encontrou-os na sala de refeições que lhes era reservada, mas Minos não jantava com eles.

 

 Inquieta, Ventosa correu até ao quarto do pintor.

 

 Vazio, também.

 

 Desamparada, interrogou vários guardas. Em vão.

 

 Metodicamente, explorou a cidadela.

 

 E foi numa arrecadação onde eram guardadas arcas de roupa que o descobriu.

 

 Minos fora pendurado de um gancho de suspensão suficientemente sólido para suportar o seu cadáver.

 

 Jannas apresentou-se diante do grande tesoureiro Khamudi. Tanto um como outro eram acompanhados pelos guarda-costas. O almirante teria de boa vontade dispensado aquele encontro, mas era Khamudi que pagava o soldo dos militares e, antes de empreender a conquista de Tebas, tornava-se necessário fazer um ponto exacto da situação.

 

 Jannas e Khamudi dispensaram as fórmulas de cortesia.

 

 O exército hicso tem duzentos e quarenta mil homens lembrou o almirante. Não tenciono desguarnecer nem a Siro-Palestina, nem as cidades do Delta, nem, bem entendido, a capital. Partirei portanto com cinquenta mil soldados, aos quais pagareis imediatamente um bónus extraordinário.

 

 O Imperador está de acordo?

 

 Está.

 

 Devo verificar, almirante. Como responsável pelas finanças públicas, não posso cometer nenhum erro.

 

 Verificai, e depressa!

 

 Na vossa ausência, estou encarregado da segurança de Auaris. Deveis dar indicações para que o conjunto das forças armadas me obedeça sem discutir.

 

 É às ordens do Imperador que elas devem obedecer.

 

 É isso o que eu considero.

 

 Quando Jannas inspeccionou os corpos do exército, teve a desagradável surpresa de constatar que muitos oficiais e soldados se tinham transformado em consumidores habituais da droga vendida por Khamudi. Alguns talvez se tornassem mais entusiastas no combate, mas a maior parte tinha perdido muito do seu vigor. No entanto, a superioridade do armamento hicso era tal que os egípcios não poderiam resistir muito tempo.

 

 Os subúrbios de Mênfis reservavam outra surpresa desagradável a Jannas: séries de emboscadas nas quais pereceram centenas de hicsos. As fisgas e os arcos dos resistentes, tão móveis como vespas, revelavam-se de uma temível eficácia e o avanço dos carros, muitas vezes bloqueados nas ruelas, foi quase inútil. Jannas decidiu portanto tomar casa por casa e depois destruir todas as que abrigavam revoltosos.

 

 A limpeza dos arredores da grande cidade demorou várias semanas, de tal forma os seus adversários eram determinados. Mesmo cercados, recusavam render-se e preferiam morrer de armas na mão.

 

 Esta gente é louca disse-lhe o seu ajudante-de-campo.

 

 Não, odeiam-nos. A esperança mantida pela Rainha Liberdade insufla-lhes uma coragem quase sobrenatural. Quando ela morrer, tornar-se-ão carneiros.

 

 Almirante, não seria conveniente esquecer Mênfis e avançar para o sul?

 

 Os menfitas sairiam da sua cidade e atacar-nos-iam pelas costas. As portas da ”Balança das Duas Terras” recusaram abrir-se quando

 

 Jannas se apresentou diante delas. Por outras palavras, os resistentes consideravam-se capazes de suportar um cerco.

 

 Jannas estava a organizá-lo quando o seu ajudante-de-campo lhe anunciou a ofensiva dos regimentos egípcios provenientes do sul.

 

 Vêm ajudar os insurrectos, almirante! E não são amadores, a nossa guarda avançada foi exterminada. O comandante  chefe das forças hicsas tomava consciência de que a sua tarefa seria muito menos fácil do que previra. Pouco a pouco, os egípcios aprendiam a arte da guerra e dispunham de uma força que não era possível negligenciar: a vontade de libertar o seu país.

 

 É necessário impedir esses regimentos de entrarem em Mênfis considerou Jannas. Que uma parte das nossas tropas cerque a cidade e a outra me siga.

 

 Nem o Bigodes nem o Afegão eram generais vulgares que se conformassem com um protocolo bem estabelecido, adoptassem um plano de batalha rígido e observassem, de longe, os seus homens a deixarem-se matar. Do seu passado de clandestinos, habituados a sobreviver nas piores condições, tinham guardado o sentido da intervenção pontual e destruidora. Fraccionavam portanto as suas tropas para que, em caso de fracasso, as perdas não fossem irremediáveis.

 

 A disciplina demasiado rigorosa dos hicsos fora o melhor trunfo dos comandos egípcios, atacando em vagas sucessivas depois de terem eliminado os oficiais e metido ao fundo o navio da frente. Alguns teriam desejado explorar a sua vantagem levando mais longe a ofensiva, mas o Bigodes dera ordem de bater em retirada a bordo de rápidos veleiros.

 

 Dez mortos e vinte feridos nas nossas fileiras anunciou o Afegão. E causámos-lhes um máximo de baixas. Se tudo correr bem, Jannas deverá vir em nossa perseguição.

 

 Os nossos archeiros matarão os timoneiros e os nossos nadadores de combate abrirão orifícios nos cascos, a começar por mim.

 

 Não te julgues mais forte do que és, Bigodes, e não te esqueças que deves acima de tudo comandar.

 

 Durante algumas horas, os dois homens interrogaram-se se Jannas não iria primeiro arrasar Mênfis antes de se ocupar deles.

 

 Mas em plena tarde apareceram as primeiras velas dos pesados navios hicsos.

 

 Nem mais uma palavra foi pronunciada. Cada um sabia o que tinha a fazer.

 

 O batedor hicso imobilizou-se.

 

 Encarregado de detectar qualquer presença suspeita na margem e alertar imediatamente o navio da frente, sentia-se cada vez menos à-vontade.

 

 No entanto, não havia ninguém à vista nem nada de suspeito.

 

 Nada, excepto um bosquezinho de tamargueiras cujos ramos se moviam por acção do vento. Mas moviam-se um pouco demais, como se inimigos tentassem dissimular-se ali. Porque se saíam tão mal?

 

 O batedor estendeu-se na pista e observou.

 

 Nas tamargueiras não havia mais nenhum sinal de vida. Não passavam portanto de caprichos do vento.

 

 O hicso continuou a sua exploração, voltando-se várias vezes. O campo parecia tranquilo e nenhuma embarcação circulava no  rio. Os egípcios tinham fugido como coelhos em direcção ao sul, mas não escapariam ao exército de Jannas.

 

 O batedor trepou ao cimo de uma palmeira para fazer sinal ao colega que inspeccionava a outra margem que estava tudo bem.

 

 A mesma mensagem chegou ao navio da frente, que continuou a sua lenta progressão.

 

 O Bigodes esperou que ele estivesse ao alcance de tiro para desencadear a intervenção dos seus archeiros, enquanto o Afegão e os seus homens eliminavam os batedores.

 

 Mas a reacção hicsa foi tão rápida que os egípcios apenas deveram a sua salvação a uma retirada precipitada. Várias flechas assobiaram aos ouvidos do Afegão, que viu cair a seu lado dois jovens soldados.

 

 As nossas emboscadas só provocam arranhadelas lamentou o Bigodes. Mesmo que sofra algumas perdas, Jannas não se importa. Decidiu avançar e nós somos incapazes de o impedir.

 

 Mênfis cercada e reduzida à impotência na expectativa de uma destruição total, que o Imperador adiava para melhor mergulhar os seus habitantes na angústia, o exército de Jannas avançando para o sul, a depuração em bom caminho... A Apopis não faltavam motivos de satisfação. Quanto à morte de Minos, não passava de um incidente. Os seus colegas cretenses executariam o programa decorativo previsto pelo Imperador.

 

 Apopis sabia que o crime fora cometido pela dama Aberia por ordem da ”imperatriz”. Como Minos conspirava um pouco contra ele e mais tarde ou mais cedo o teria mandado para o labirinto, o Imperador não sancionaria a esposa.

 

 Ventosa curvou-se diante do Senhor dos Hicsos.

 

 Gostaria de solicitar um favor.

 

 Esquece esse pintor, não era digno de ti.

 

 Gostaria de repatriar o seu corpo para Creta. Apopis ficou intrigado.

 

 Estranho projecto... Quais são as tuas verdadeiras intenções?

Por um lado, evitar a eventual cólera do Rei de Creta, afirmando-lhe que a morte do seu artista preferido fora perfeitamente natural; por outro lado, seduzi-lo e ir para a cama com ele para ficar a saber os seus sentimentos e fazer dele meu escravo.

 

 Um sorriso mau iluminou o rosto do Imperador.

 

 Queres atacar um rei... Porque não? Como estás no apogeu da tua beleza, tens todas as hipóteses de vencer. Desembaraçar-me do cadáver de Minos e utilizá-lo como uma arma contra os cretenses é uma bela ideia. Ponho um navio à tua disposição.

 

 Larápio poisou sobre a ponte do navio-almirante, mesmo em frente de Ah-hotep. Depois de o ter felicitado e acariciado, a Rainha tomou conhecimento da mensagem de que era portador.

 

 Terminada a leitura, reuniu o seu conselho de guerra.

 

 Boa notícia: embora cercada, Mênfis resiste e retém uma parte das tropas de Jannas. Má notícia: as armadilhas que o Afegão e oBigodes lhe preparam revelam-se pouco eficazes. É um exército poderoso e bem equipado que avança para nós.

 

 Se bem vos compreendo, Majestade adiantou-se o governador Emheb estais persuadida que a nossa frente não resistirá.

 

 Tem de resistir.

 

 Está tudo pronto para conter um assalto afirmou o chanceler Neshi. Jannas não espera certamente uma forte oposição. Imagina-nos já em fuga para Tebas.

 

 Proveniente do sul, outro pombo-correio poisou na ponte. Ah-hotep identificou um dos adjuntos de Larápio, encarregado das ligações com o palácio real.

 

 O curto texto fê-la empalidecer.

 

 Tenho de regressar a Tebas imediatamente. A minha mãe está a morrer.

 

 Aproveitando a ausência do almirante Jannas, o grande tesoureiro Khamudi convidara para jantar os oficiais superiores colocados na capital para lhes oferecer uma bela quantidade de droga, uma propriedade no Delta, cavalos e escravos, tudo em troca de uma cooperação sem falhas.

 

 Que Jannas tente esmagar o inimigo de acordo com as directivas do Imperador, é absolutamente necessário. Mas o almirante não se devia entusiasmar, esvaziar as guarnições do Delta e desorganizar as defesas de Auaris. Competia ao grande tesoureiro garantir a segurança do Imperador e a da capital, evitando aventuras insensatas. A partir de agora, qualquer ordem proferida pelo almirante não seria executada sem a concordância de Khamudi.

 

 Nenhum oficial superior rechaçara os avanços do grande tesoureiro. O terreno perdido estava portanto reconquistado. Garantindo a amizade de militares de alta patente, Khamudi minava a autoridade de Jannas e reduzia o número dos seus partidários.

 

 Assim, regressou a casa de excelente humor, com vontade de saborear um copioso repasto.

 

 Mas descobrir Ventosa na antecâmara da sua mansão cortou-lhe o apetite.. Havia tanto desprezo no olhar da bela eurasiática que estremeceu.

 

 Gostaria de ver a vossa esposa disse ela em voz pausada.

 

 Ela... ela está à cabeceira da dama Tani.

 

 Esperá-la-ei tanto tempo quanto for necessário.

 

 Desejais... um refresco?

 

 Não será necessário.

 

 Sentai-vos confortavelmente, peço-vos!

 

 Prefiro permanecer em pé.

 

 Khamudi era incapaz de suster o olhar de Ventosa que já nada tinha do de uma sedutora. Por sorte, a esposa fez uma entrada tonitruante, reclamando a sua criada de quarto.

 

 Ventosa! Que feliz surpresa, mas...

 

 Foste tu que ordenaste o assassinato de Minos.

 

 Como... Como te atreves...

 

 Pediste a cabeça do homem que eu amava e obtiveste-a. É por isso que te julgas toda-poderosa. Enganas-te, Yima. Não passas de uma louca e como tal perecerás.

 

 A dama Yima saltou ao pescoço do marido.

 

 Ouve-a, meu querido, está a ameaçar-me! Atrapalhado, Khamudi devia ao mesmo tempo acalmar a mulher

 

 e não chocar a irmã do Imperador.

 

 Tudo isso não passa de um mal-entendido, e tenho a certeza de que...

 

 O olhar de Ventosa cintilou.

 

 Os assassinos e os seus cúmplices serão castigados prometeu. O fogo do céu abater-se-á sobre eles.

 

 Lentamente, a eurasiática saiu da mansão, indiferente à crise de histeria que contorcia o corpo da dama Yima.

 

 Com um pontapé, o almirante Jannas voltou o cadáver do archeiro egípcio que os seus homens acabavam finalmente de abater. Empoleirado num sicômoro, o atirador de elite matara muitos hicsos.

 

 Os outros estão neutralizados?

 

 Já só resta um, almirante respondeu o seu ajudante-de-campo. As contas serão em breve ajustadas.

 

 Jannas via arder as velas dos três navios da frente que tinham sido gravemente afectados e ameaçavam afundar-se.

 

 Trazei-me os capitães.

 

 Os três oficiais cumprimentaram o almirante.

 

 Conhecíeis os riscos lembrou-lhes Jannas. Porque não haveis tomado as precauções necessárias?

 

 O adversário é hábil respondeu o mais experiente. Não cometemos qualquer erro.

 

 Falso. Fostes vencidos por menos fortes do que vós, e isso é indigno de um hicso. Foram os vossos marinheiros que evitaram um desastre. Escolherei portanto entre eles os novos capitães. Quanto aos vossos cadáveres, ornarão a proa das vossas embarcações e provarão ao inimigo que sabemos punir a incompetência.

 

 Afastando-se dos condenados, Jannas procedeu imediatamente às nomeações.

 

 Tanto em terra como no rio, o caminho está livre anunciou o ajudante-de-campo. Podemos avançar sem receio.

 

 É isso que os egípcios querem fazer-nos crer objectou Jannas e sacrificaram muitos homens corajosos para o conseguir. Depois de nos terem atacado como vespas, fingem renunciar e apostam na nossa credulidade. Emboscadas e escaramuças eram apenas a preparação da verdadeira armadilha montada há muito tempo. Vamos portanto imobilizar a frota e esquadrinhar cada polegada de terreno até termos detectado o seu verdadeiro dispositivo.

 

 O navio da Rainha batera recordes de velocidade. Mal tocava no cais de Tebas e já Ah-hotep descia a passarela instalada à pressa. Uma cadeira de transportadores conduziu-a tão rapidamente quanto possível ao palácio real onde foi acolhida pelo intendente Qaris, visivelmente perturbado.

 

 A minha mãe ainda está viva?

 

 Agoniza, Majestade.

 

 O jovem Faraó Ahmés veio ao encontro de Ah-hotep.

 

 Não abandonei a cabeceira da minha avó revelou. Falou-me dos meus deveres e da necessária solidão do Rei. Mas prometeu-me estar sempre presente junto de mim quando o medo me dominar. O seu único receio, mãe, era não voltar a ver-vos.

 

 Ah-hotep empurrou lentamente a porta do quarto de Teti, a Pequena.

 

 A idosa dama conseguira deixar o leito para se sentar de frente para o Sol poente. Restava-lhe tão pouca vida que mal ousava respirar.

 

 Estou aqui murmurou Ah-hotep, poisando a sua mão sobre as da mãe.

 

 Como estou feliz... Suplicara à deusa do Ocidente que esperasse até ao teu regresso. Os hicsos atacaram?

 

 Ainda não.

 

 Cometem o erro de te deixar organizar a nossa defesa... Porque tu triunfarás, Ah-hotep. Nasceste para libertar o Egipto e conseguirás essa vitória para todos nós, para aqueles que morreram e para as futuras gerações.

 

 Embora extremamente fraca, a voz permanecia clara.

 

 Sabes o que é a vida, minha querida filha? Os sábios inscreveram a resposta nos hieróglifos. A vida é o laço do cinto que separa e liga o nosso ser pensante e o nosso ser animal. É também a tira da sandália que nos permite andar e avançar, o espelho no qual contemplamos o céu e a flor que desabrocha. A vida é a orelha que ouve a voz de Maet e nos torna vivos, e o olho que confere a faculdade de criar. Tu possuis todas estas qualidades, Ah-hotep, e deves utilizá-las para fazer realmente renascer um Faraó no trono dos vivos. Nunca duvidei de ti, porque o teu coração ignora a baixeza e a pequenez. Soubeste sobreviver à infelicidade, o fogo da esperança alimenta a tua alma. Eu vou repousar na morte, Mut, a divina mãe. E se o tribunal do Além me permitir renascer, o meu ka reforçará o teu. Podes pôr-me um pouco de creme doce nas faces e ocre vermelho nos lábios? Não gostaria de partir mal arranjada.

 

 Quando Ah-hotep regressou do compartimento onde Teti, a Pequena, guardava os seus produtos de beleza, a Rainha-Mãe estava morta. Numa última preocupação de elegância, não quisera que a filha ouvisse o seu último suspiro.

 

 De acordo com o seu desejo, Ah-hotep maquilhou-a com cuidado.

 

 Ah-hotep mandou perfumar o palácio real como nunca tinha estado. Não eram os deuses formados por essências subtis? Os doces odores encantaram o nariz de Teti, a Pequena, cujo corpo fora mumificado de acordo com as antigas regras. Djehuti, o sumo sacerdote de Amon, dirigiu a vigília fúnebre durante a qual a defunta, graças às fórmulas de glorificação, se tornou ao mesmo tempo uma Hathor e um Osíris.

 

 Como para os grandes iniciados, o coração de carne de Teti, a Pequena, foi substituído por um escaravelho de pedra engastado em ouro. Príncipe das transmutações no Além, não testemunharia contra ela na sala de julgamento e garantir-lhe-ia uma eterna juventude.

 

 Como Esposa do Deus, Ah-hotep presidiu à cerimónia dos funerais da mãe, aquela mulher extraordinária que impedira Tebas de morrer e participara em cada etapa da guerra de libertação. Muito diferentes uma da outra, Teti, a Pequena, e Ah-hotep não tinham tido o costume de se alargar em confidências. Mas compreendiam-se com um olhar, orientando sempre o navio na mesma direcção.

 

 Quando a porta da Morada de Eternidade foi selada, Ah-hotep sentiu-se tão só que teve a tentação de renunciar a uma luta desigual cujo desenlace era demasiado previsível. Mas teria sido trair a sua família e tornar-se indigna de todo um povo que convencera a bater-se sem fraquejar.

 

 Nunca esquecerei a avó prometeu Ahmés. Quando tivermos expulsado o invasor, prestar-lhe-emos uma grande homenagem.

 

 Levando com elas a alma justificada de Teti, a Pequena, centenas de andorinhas sobrevoavam a necrópole da margem oeste de Tebas. Amanhã, de madrugada, ela ressuscitaria com o novo Sol.

 

 Durante a vossa ausência, mãe, não tenho estado inactivo. Primeiro, leio muito; depois, observo as pessoas; por fim, recruto.

 

 Ah-hotep ficou espantada.

 

 Quem recrutas tu?

 

 Novos soldados respondeu Ahmés. Visto que todas as nossas forças devem estar concentradas em Porto-de-Kamés, Tebas não poderia permanecer passiva. Inspecciono regularmente o estaleiro naval onde os nossos carpinteiros constróem novos navios de guerra e percorro os arredores e os campos para alistar voluntários. Os oficiais da guarda real formam-nos, Herai aloja-os e alimenta-os. Foi assim que o meu pai e vós mesma haveis criado o nosso primeiro regimento, não é verdade? Em breve Tebas já não estará sem defesa.

 

 O adolescente já não o era completamente. Nele, já a função começava a devorar o indivíduo.

 

 Estou orgulhosa de ti, Ahmés.

 

 De repente, o jovem Faraó pareceu contrariado.

 

 Fui vítima de um roubo: tiraram-me um par de sandálias de cerimónia. Foi o intendente Qaris que notou, mas é impossível precisar a que momento o roubo foi realizado porque desde a coroação que eu não usava essas sandálias.

 

 Suspeitas de alguém?

 

 Não, mãe. Dezenas de pessoas teriam podido introduzir-se no compartimento onde estavam arrumadas.

 

 Simples roubo ou delito cometido pelo espião? Fazer mal ao Faraó, eliminá-lo como os seus predecessores: era esse o seu único objectivo.

 

 Nas tuas deslocações, tomas as precauções necessárias?

 

 Sempre que é possível.

 

 A porta do teu quarto é guardada durante a noite?

 

 Unicamente por homens escolhidos por mim.

 

 À parte desse roubo, não há mais nenhum incidente grave?

 

 Nenhum.

 

 Ah-hotep e Ahmés tiveram de reconfortar Qaris que, pela primeira vez desde que Teti, a Pequena, o nomeara intendente do palácio, se sentia incapaz de cumprir os deveres do seu cargo.

 

 Sou velho de mais, Vossas Majestades. Substituí-me por um homem jovem e vigoroso.

 

 Teti, a Pequena, é insubstituível declarou a Rainha e tu também, Qaris. Em plena guerra, como encontrar-te um substituto? Este palácio deve continuar a viver. Quem senão tu saberia velar pela correcta realização dos rituais quotidianos? Tudo o que sabes, deves transmiti-lo ao Rei Ahmés.

 

 Podeis contar comigo, Majestade.

 

 A mãe e o filho passaram a tarde à beira do lago sagrado do templo de Karnak. Naqueles lugares onde reinava o espírito dos deuses, como parecia impossível qualquer conflito!

 

 Vem muitas vezes aqui recomendou Ah-hotep para te afastares da realidade imediata e a sobrevoares, como se fosses um pássaro. Estende o teu pensamento como ele desdobra as suas asas e contempla a água do Nun onde nasceu a vida e onde regressará quando os tempos se tiverem completado. O instante é o teu reino, Ahmés, a eternidade a tua ama; no entanto, é aqui e agora que deverás combater as forças das trevas.

 

 Partireis já amanhã para Porto-de-Kamés?

 

 Ah-hotep apertou ternamente de encontro a si aquele homenzinho que mil mortes ameaçavam.

 

 Já amanhã, com efeito. Continua a recrutar e não toleres nenhum abrandamento no estaleiro naval.

 

 Sem a avó tudo será mais difícil.

 

 É apenas o início das tuas provações, Ahmés.

 

 Ventosa era a única passageira do navio a não ficar morta de medo durante a travessia entre a costa egípcia e Creta. Os dois primeiros dias de navegação tinham decorrido sem problemas, mas a tempestade transformara os três seguintes num inferno. Até mesmo o capitão vomitara e três homens da tripulação tinham saído pela borda fora.

 

 Indiferente à fúria do mar, Ventosa só pensava em Minos, na intensa felicidade vivida na sua companhia, nas horas de prazer que rememorava minuto a minuto. O amante parecia-lhe tão próximo e, no entanto, não o apertaria nunca mais nos seus braços.

 

 O oficial cretense que acolheu a irmã do Imperador contentou-se com breves fórmulas de delicadeza e conduziu-a ao palácio real de Cnossos onde residia Minos, o Grande. Nem por um instante Ventosa observou a paisagem.

 

 Também não se interessou pelo monumental palácio do Rei de Creta, um velho barbudo e imponente sentado num trono de pedra enquadrado por dois grifos pintados.

 

 A visão dos dois animais fantásticos fê-la sair do seu torpor. Eram simultaneamente esplêndidos e inquietantes, mas não tinham a marca do génio do seu amante.

 

 Ventosa apercebeu-se de que a sala de recepções estava cheia de dignitários com cuidados penteados, comportando longas madeixas onduladas e outras curtas e encaracoladas. Estavam todos fascinados pela sua beleza.

 

 Trago-te o corpo do escultor Minos ao qual havias concedido a honra de usar o seu nome.

 

 Como morreu?

 

 Rei de Creta, desejo falar-te a sós.

 

 Elevaram-se murmúrios de protesto contra a insolente.

 

 Majestade interveio um dos conselheiros não deveis correr qualquer risco!

 

 Minos, o Grande, sorriu.

 

 Se receias que uma mulher tão bela esteja animada de más intenções, revista-a.

 

 Que ninguém me toque ordenou Ventosa. Tens a minha palavra de que não possuo armas.

 

 Isso basta-me cortou Minos, o Grande. Saiam todos. O Rei abandonou o seu trono.

 

 Vamos sentar-nos naquela banqueta propôs a Ventosa. O olhar da jovem estava perdido no vácuo.

 

 Para que serve tanta beleza quando a alma está cheia de desespero? interrogou o monarca.

 

 Amava o pintor Minos. Queria viver com ele, aqui em Creta.

 

 Devo compreender que a sua morte não foi natural?

 

 Foi assassinado confessou Ventosa, com a expressão crispada pelo sofrimento.

 

 O Rei deixou passar um longo momento.

 

 Conheces o culpado?

 

 Uma assassina às ordens da esposa do grande tesoureiro e da do Imperador. E, sobretudo, Apopis em pessoa! Nada pode ser realizado sem a sua autorização. Deixou matar Minos porque este conspirava contra ele a fim de poder regressar a Creta. Foi-me impossível impedir esse crime.

 

 Deploro essa forma de agir reconheceu o monarca mas de que serve protestar?

 

 É necessário destruir os Hicsos declarou Ventosa com gravidade.

 

 O desgosto não te estará a fazer divagar?

 

 Vim revelar-te dois segredos de Estado. O primeiro é a profunda discórdia entre o braço direito e a alma danada do Imperador  o grande tesoureiro Khamudi, e o comandante-chefe dos exércitos, o almirante Jannas. Khamudi e Jannas odeiam-se e só pensam em destruir-se um ao outro. Jannas é um soldado competente e feroz, mas Khamudi vai passar-lhe uma rasteira, mesmo em detrimento da segurança do Império.

 

 Que importância tem isso, se a força militar hicsa é invencível?

 

 O segundo segredo de Estado, é que já não o é. Tebas revoltou-se e as tropas comandadas pela Rainha Ah-hotep demonstram uma coragem extraordinária. Desde que o seu jovem filho Ahmés foi coroado Faraó, o Egipto readquiriu força e vigor. Ah-hotep apenas tem um ideal: libertar o seu país.

 

 Não tem qualquer hipóteses de o conseguir!

 

 O exército do seu filho mais velho, Kamés, conseguiu atravessar todas as linhas hicsas e apoderar-se de trezentos navios no porto de Auaris.

 

 O Rei de Creta ficou estupefacto.

 

 Tu... tu não estás a exagerar?

 

 Alia-te a Ah-hotep e não dês mais nenhuma ajuda aos Hicsos. Se não agires assim, Creta será destruída, mais cedo ou mais tarde.

 

 Deixar de ser vassalo do Imperador... Não seria assinar a minha sentença de morte?

 

 Não, se a tua aliança com Ah-hotep conseguir a vitória. Minos, o Grande, levantou-se.

 

 Preciso de reflectir. O meu camareiro vai conduzir-te aos teus  aposentos.

 

 Enquanto uma corte de servidores se ocupava da bela eurasiática, o Rei reuniu os seus próximos conselheiros e informou-os das revelações de Ventosa.

 

 Essa mulher é louca considerou o embaixador encarregado de apresentar os tributos a Apopis. Dorme com muitos dignitários hicsos para obter as suas confidências e os denunciar ao Imperador se suspeitar da mínima reserva a seu respeito. Porque haveria ela de se apaixonar por Minos, o pintor, a ponto de detestar o seu próprio povo?

 

 Pareceu-me sincera.

 

 É uma cilada, Majestade. Ela procura seduzir-vos também a vós, a fim de conhecer as vossas intenções e de atrair sobre vós as iras de Apopis. Nem Jannas nem Khamudi lhe desobedecerão. Quanto a essa Rainha Ah-hotep, não passa de uma agitadora cuja revolta será castigada com a máxima crueldade.

 

 Os outros conselheiros aprovaram. O Rei de Creta parecia hesitar.

 

 Para já decidiu precisamos de nos desembaraçar dela. Escreverei a Apopis que o seu navio se afundou ao largo das nossas costas e que, apesar dos nossos esforços, não conseguimos recuperar o corpo. Quanto ao resto, avisaremos.

 

 O comandante de carros encarregado de cercar Mênfis observava o décimo assalto que lançava contra a grande cidade de muros brancos. É verdade que se apoderara da maior parte dos arrabaldes à custa de uma luta encarniçada, casa por casa; é verdade que os egípcios sofriam pesadas perdas, mas continuavam a resistir!

 

 Toda a cidade se revoltara, convencida de que a Rainha Liberdade voaria em seu socorro. Mênfis acabaria por cair, mas o cerco demoraria muito tempo. O comandante enviara portanto mensagens ao almirante Jannas e ao grande tesoureiro Khamudi para exigir reforços. Com alguns milhares de soldados a mais, forçaria com maior facilidade as portas da cidade.

 

 A resposta de Jannas fora negativa: empenhado na reconquista do Sul, o almirante não se privaria de nenhum homem. Mas a reserva de soldados de infantaria do Delta era tal que o comandante não duvidava do acordo do grande tesoureiro.

 

 Ficou portanto espantado com a mensagem oficial, redigida em nome do Imperador. A segurança de Auaris era prioritária e devia por isso resolver sozinho o problema de Mênfis. A falta de provisões não poria fim à obstinação dos revoltosos?

 

 Sob pena de exasperar os seus superiores, o comandante não podia insistir. Executaria portanto as ordens à letra, como qualquer bom hicso, e demoraria o tempo que fosse necessário para derrubar a muralha branca de Mênfis e matar todos os seus habitantes.

 

 Quando o navio-almirante acostou, todos os soldados de Porto-de-Kamés soltaram gritos de alegria. A Rainha Liberdade estava de regresso e, à cabeça das forças egípcias cujo potencial decuplicava, a jovem saberia quebrar o impulso hicso antes de retomar a ofensiva.

 

 Desde a escolha do local como base militar, o seu aspecto mudara muito. Instalações sólidas substituíam as tendas, cais de pedra facilitavam a descarga das mercadorias, um estaleiro naval garantia a manutenção dos navios de guerra.

 

 Qual é a situação? perguntou Ah-hotep ao governador Emheb.

 

 Está tudo pronto, Majestade.

 

 O almirante Lunar está satisfeito com o seu dispositivo?

 

 Reforçou-o ao máximo.

 

 Não percamos um instante para espalhar os nossos homens. De acordo com a última mensagem de Larápio, o almirante Jannas aproxima-se.

 

 O último embate com os regimentos comandados pelo Afegão e pelo Bigodes fora particularmente violento. É certo que o exército de Jannas conseguia vitória atrás de vitória e prosseguia o seu lento avanço para sul, mas perdera mais dois navios e sofrera perdas não negligenciáveis.

 

 Todos se felicitavam pela prudência do almirante. Os egípcios davam-lhes luta nos lugares mais inesperados, utilizando pequenas unidades destinadas a uma morte certa.

 

 Não falta coragem ao inimigo reconheceu ele perante os seus oficiais. Podeis ter a certeza que os resistentes não deporão as armas e que se baterão até ao último.

 

 O aborrecido, almirante lembrou o seu ajudante-de-campo é que continuamos a ignorar o local exacto onde Ah-hotep reuniu o grosso das suas tropas. Os nossos batedores são sistematicamente eliminados, nenhum deles regressou para nos dar informações. Na minha opinião, a Rainha recuou para Tebas. É lá que nos espera.

 

 Arriscar-se-ia muito objectou Jannas. A um tempo, a derrota militar e a destruição da sua capital. Não, foi longe de Tebas, com certeza no Egipto Médio, que ela consolidou a sua linha de defesa principal. Sinto que estamos perto do objectivo.

 

 Foi com farrapos de regimentos que o Afegão e o Bigodes, extenuados, chegaram a Porto-de-Kamés.

 

 Felina ocupou-se imediatamente dos feridos, alguns dos quais, atingidos com excessiva gravidade, não sobreviveriam. Felizmente, o Bigodes apenas sofria de uma ferida na perna e de múltiplas contusões que os bálsamos da núbia curariam com facilidade.

 

 A Rainha Ah-hotep recebeu os dois homens no seu pequeno palácio, cujo compartimento principal era uma capela onde fora depositada a espada de Amon.

 

 Lamento, Majestade disse o Afegão mas só pudemos travar Jannas. E por que preço...

 

 O Bigodes estava tão pesaroso como o seu companheiro.

 

 Haveis cumprido perfeitamente a vossa missão considerou Ah-hotep. Graças ao tempo precioso que haveis ganho, escavámos os canais de derivação.

 

 Um pálido sorriso iluminou o rosto fatigado dos dois guerreiros.

 

  Então constatou o Bigodes os nossos homens não morreram em vão!

 

 Pelo contrário, desempenharam um papel essencial. Se não tivésseis conseguido atrasar Jannas, não teríamos tido qualquer hipótese de vencer.

 

 Matámos muitos hicsos e afectámos a sua frota precisou o Afegão mas eles ainda nos são largamente superiores em número e em material.

 

 Segundo vós, quando atacará Jannas?

 

 Tornou-se de tal forma desconfiado que avançará passo-a-passo respondeu o Bigodes. Temos de continuar a suprimir os seus batedores para que o almirante descubra Porto-de-Kamés no último momento. Na minha opinião, não estará aqui antes de três semanas.

 

 Também é a minha opinião confirmou o Afegão.

 

 Tinham decorrido três semanas desde o último choque sério com os egípcios. Os hicsos continuavam no entanto a avançar com extrema lentidão. No Nilo não havia o mínimo barco. Quanto às aldeias da beira do rio, tinham sido abandonadas.

 

 É evidente que o inimigo bateu em retirada considerou o ajudante-de-campo. Não deveríamos acelerar o andamento em direcção a Tebas?

 

 Ignoramos a posição exacta do adversário. Por outras palavras, os egípcios preparam mais emboscadas. Apressarmo-nos seria suicidário. Mais vale conquistar o terreno polegada a polegada. Há vários  dias que não encontramos qualquer oposição! É isso  que me inquieta. Os egípcios devem estar a reagrupar-se para tentarem barrar-nos a passagem.  Foi à saída de uma curva do Nilo que Jannas descobriu a muralha de barcos preparada pelo almirante Lunar por altura de Porto-de-Kamés.  O hicso salivou de satisfação. Finalmente, uma verdadeira batalha! 

 

 Com frieza, analisou a situação. Nas margens, palmeiras e maciços de tamargueiras. Com certeza dissimulavam-se ali archeiros egípcios. Na sua frente, o essencial da frota inimiga, composta por embarcações mais rápidas mas mais leves do que as suas.

 

 Almirante, olhai! É ela!

 

 À proa de um navio cujo estandarte era adornado com o disco lunar na sua barca em forma de crescente, erguia-se uma mulher toucada com um diadema de ouro, envergando um vestido vermelho e empunhando a espada de Amon, que cintilava ao sol.

 

 A Rainha Ah-hotep... Só podia ser ela, com efeito.

 

 Desafia-nos e procura atrair-nos considerou Jannas. O meio da barragem vai abrir-se, nós penetraremos e seremos apanhados na armadilha. Hábil mas insuficiente... Ah-hotep subestimou-me e esse erro ser-lhe-á fatal.

 

 Quais são as vossas ordens, almirante?

 

 Lançamos o ataque a toda a largura do rio e embatemos na totalidade da barragem flutuante. O choque será terrível e os corpo-a-corpo ferozes, mas o efeito de surpresa jogará a nosso favor.

 

 E os nossos carros?

 

 Guardemo-los de reserva para esmagar Tebas.

 

 As pesadas embarcações hicsas espalharam-se com lentidão.

 

 Compreendendo que a sua estratégia fora descoberta, não iriam os egípcios dispersar, tornando-se presas fáceis?

 

 Nenhum movimento se verificou.

 

 Esta Rainha tem coragem, pensou Jannas. Prefere morrer a recuar. Uma bela loucura, mas uma loucura.

 

 Abrigados por trás dos escudos, os archeiros hicsos estavam prontos a ripostar aos seus adversários egípcios. Para sua grande surpresa, não tiveram que disparar nem um tiro.

 

 Sob o olhar espantado de Jannas, as embarcações da sua frota, com excepção daquelas que transportavam os carros, avançavam serenamente para a barragem flutuante que destruiriam sem dificuldade.

 

 De repente, as duas margens pareceram rasgar-se. Serradas pela base, as palmeiras caíram sobre os atacantes e grandes maciços de tamargueiras foram afastados para libertar canais de derivação nos  quais esperavam numerosas barcas que se precipitaram sobre os hicsos.

 

 Batalha de archeiros, flechas incendiadas, ganchos para a abordagem, tumultos furiosos onde morriam muitos homens, intervenção dos barcos fáceis de manobrar e rápidos de Ah-hotep, várias unidades hicsas imobilizadas, incendiadas e afundadas...

 

 Com os lábios brancos, Jannas ordenou a retirada.

 

 O Rei Ahmés já não era uma criança. Transformara-se num jovem cujo porte distinto se impunha a qualquer pessoa e cada dia demonstrava mais as suas aptidões para a função de Faraó. Menos atlético do que o irmão mais velho Kamés, surgia no entanto como um monarca determinado cuja seriedade e capacidade de trabalho espantavam os seus próximos.

 

 Contentando-se com um conselho muito restrito formado pelo intendente Qaris, o chanceler Neshi e o superior dos celeiros Herai, Ahmés assumira o governo da província tebana e dos territórios vizinhos cuja agricultura estava florescente. Graças a um rigor administrativo do qual se considerava responsável, o Rei podia não apenas alimentar a população como também abastecer a frente e fazer mesmo reservas na previsão de uma má cheia.

 

 Os danos causados pela cólera de Set não passavam de uma má recordação. Sob o impulso de Ahmés, um intenso programa de reconstrução permitira realojar rapidamente os mais desfavorecidos, cujas condições de existência tinham melhorado de maneira sensível. Dentro de alguns meses, todos os tebanos teriam quer uma casa, quer um apartamento conveniente. Nascia uma nova cidade, onde era mais agradável viver.

 

 Quase todos os dias o Rei ia ao estaleiro naval onde os carpinteiros trabalhavam com ardor, conscientes de que possuíam sem dúvida a chave da futura vitória. O Egipto teria necessidade de muitos navios de guerra, a sua principal arma contra os hicsos. Ahmés conhecia cada artesão, preocupava-se com a sua família e com a sua saúde. Quando via um deles no limite das forças, obrigava-o a repousar. Mas mostrava-se implacável com os embusteiros e os doentes imaginários, condenados a pesadas tarefas. No coração da guerra, o monarca não tolerava qualquer forma de cobardia.

 

 Como prometera à mãe, Ahmés preocupava-se com a defesa de Tebas. Percorrendo os campos e as aldeias, conseguira formar um pequeno exército de voluntários, prontos a baterem-se até à morte para impedirem os hicsos de destruir a cidade do deus Amon.

 

 O Rei não tinha quaisquer ilusões sobre a eficácia daquela modesta tropa, mas a sua existência contribuía para sufocar o medo dos tebanos e permitia-lhes acreditar ainda num futuro melhor. Tal como o seu pai antes dele, Ahmés formava verdadeiros soldados na base militar de Tebas, prevendo confrontos futuros.

 

 O monarca estava precisamente num povoado do sul de Tebas para alistar novos recrutas quando ressoou um pedido de socorro a alguns passos dele.

 

 Sempre acompanhado pelos mesmos guardas que ele próprio escolhera, Ahmés entrou na quinta de onde provinham os gritos.

 

 Com os seus chicotes, dois sargentos recrutadores ameaçavam uma jovem de deslumbrante beleza.

 

 O que se passa aqui? perguntou o Rei.

 

 Esta traidora recusa revelar-nos o local onde se esconde o irmão! Haveis-nos dado a ordem de verificar o estado civil de todos os habitantes da província, Majestade, e é o que nós fazemos.

 

 Explica-te exigiu Ahmés, olhando a direito os olhos da acusada, que não baixou os seus.

 

 Os meus pais morreram. O meu irmão mais velho e eu ocupamo-nos da quinta que eles nos legaram. Se ele for alistado à força, como poderei eu ocupar-me dela sozinha?

 

 Ninguém é alistado à força no meu exército. Mas talvez o teu irmão não passe de um fugitivo. Como saber se dizes a verdade?

 

 Juro pelo nome do Faraó!

 

 Saí ordenou Ahmés aos sargentos recrutadores, sem cessar de contemplar a rapariga.

 

 Esguia, de uma elegância natural, orgulhosa, tinha o porte de uma Rainha.

 

 Encontras-te precisamente diante do Faraó. Como te chamas?

 

 Nefertari.

 

 Nefertari, ”a Bela entre as belas”... Esse nome não é usurpado. O cumprimento não fez corar a jovem.

 

 No que diz respeito ao meu irmão, Majestade, que decisão tomais?

 

 Visto que me deste a tua palavra, continuará a ocupar-se da sua quinta. Para um homem só, é uma tarefa demasiado pesada. Decidi portanto conceder-lhe a ajuda de dois camponeses que serão remunerados pela minha administração.

 

 Ela exprimiu finalmente uma emoção.

 

 Majestade, como vos hei-de agradecer...

 

 Abandonando esta casa e acompanhando-me ao palácio.

 

 Ao palácio, mas...

 

 O teu irmão já não tem necessidade de ti, Nefertari, e o teu lugar deixou de ser aqui.

 

 Proibir-me-eis que o volte a ver?

 

 Claro que não! Mas estamos em guerra e cada um de nós deve cumprir a sua função o melhor que pode.

 

 A minha não consiste em ajudar o meu irmão?

 

 Agora, consiste em ajudar o teu Rei.

 

 De que forma?

 

 Uma mulher que sabe gerir uma propriedade possui inevitavelmente qualidades de organizadora. Preciso de alguém para supervisionar as oficinas de tecelagem que fabricam as velas dos nossos navios de guerra e ajudar o intendente Qaris, cujas forças estão a declinar. É uma pesada responsabilidade, mas julgo-te capaz de a assumir.

 

 Um sorriso de infinita doçura iluminou o rosto de Nefertari.

 

 Então, aceitas?

 

 Não conheço nada do protocolo, Majestade, eu...

 

 Aprenderás depressa, tenho a certeza.

 

 Nota: O seu nome de Rainha será Ahmés-Nefertari. A primeira Grande Esposa Real de Ramsés II retomará o nome de Nefertari.

 

 O cortejo real aproximava-se de Tebas quando o chefe da guarda se imobilizou. Imediatamente vários soldados rodearam o Faraó e Nefertari.

 

 O que se passa? perguntou Ahmés.

 

 Uma sentinela devia esperar-nos neste local, Majestade. A sua ausência é anormal, proponho-vos que envieis batedores.

 

 Não nos separemos objectou o Rei.

 

 Majestade... Talvez seja perigoso ir mais longe!

 

 Devo saber o que se passa.

 

 Todos pensavam no ataque das tropas hicsas e no saque de Tebas, cujas ruas ficariam juncadas de cadáveres. Nem um edifício escaparia às chamas.

 

 Não há fumo à vista, Majestade.

 

 O primeiro posto de guarda que encontraram fora também abandonado. Os seus soldados teriam fugido ou ter-se-iam precipitado para a cidade a fim de prestarem auxílio aos seus camaradas?

 

 Nefertari prestou atenção.

 

 Oiço cânticos que vêm da cidade. Aproximaram-se.

 

 Eram na realidade cantos e dos mais alegres! Apareceu um oficial, que corria já quase sem fôlego. Os guardas de Ahmés brandiram as suas lanças.

 

 Majestade exclamou o oficial acabamos de receber uma mensagem de Porto-de-Kamés: a Rainha Ah-hotep pôs os hicsos em fuga!

 

 Com o seu gorro às riscas, Jannas compareceu diante do Imperador cuja pele estava de uma palidez inquietante.

 

 Exijo a verdade, almirante.

 

 Metade da minha frota foi destruída em Porto-de-Kamés, mas os nossos carros estão intactos e infligi pesadas baixas ao inimigo. No entanto, é previsível um contra-ataque. Sou portanto favorável ao aniquilamento de Mênfis.

 

 Há coisas mais urgentes, almirante. A resistência dessa maldita suscitou émulos. Várias cidades do Delta agitam-se contra as nossas milícias. Intervém imediatamente.

 

 À saída da fortaleza de Auaris, Jannas cruzou-se com um Khamudi irritado. Enquadrados pelos seus guarda-costas, os dois homens desafiaram-se com o olhar.

 

 A vossa campanha não foi famosa, almirante. Deveríeis ter esmagado as tropas egípcias, mas a Rainha Ah-hotep continua viva.

 

 Por que não haveis enviado reforços ao meu subordinado que cerca Mênfis?

 

 Porque o Imperador não queria.

 

 Haveis-lhe realmente falado?

 

 Não vos permito que coloqueis a minha palavra em dúvida, almirante!

 

 Nunca haveis tido palavra, Khamudi. Hoje, é a própria segurança do Império que está em causa e compete-me a mim garanti-la. Não vos atravesseis no meu caminho, senão...

 

Senão o quê?

 

Desdenhoso, Jannas prosseguiu o seu caminho.

 

Haveis conseguido uma magnífica vitória, Majestade  disse o almirante Lunar à Rainha Ah-hotep.  Pena que Jannas não tenha ordenado o desembarque dos seus carros, que teriam caído nos fossos escavados nas margens.

 

Vitória é um termo excessivo  considerou a Rainha diante do seu conselho de guerra.  Perdemos muitos marinheiros e navios e Jannas está indemne.

 

Desta vez, Majestade  observou o governador Emheb o inimigo não sofreu apenas arranhadelas! Foi Jannas em pessoa que se viu forçado por vós a recuar. Quem teria podido imaginar semelhante resultado quando começámos a combater?

 

As últimas notícias provenientes do Delta não são más acrescentou o almirante Lunar.  Uma parte de Mênfis resiste ao cerco hicso e várias outras cidades estão prontas a solevar-se.

 

Cedo de mais, muito cedo de mais!  considerou o Bigodes. O Imperador fará massacrar os resistentes!

 

Não podemos pelo menos socorrer Mênfis?  sugeriu o Afegão.

 

É indispensável  afirmou a Rainha.  Forneceremos alimento e armas aos menfitas a fim de criar ali um novo abcesso de fixação.

 

É a nossa especialidade  afirmou o Afegão.  Eu e o Bigodes mobilizaremos todas as redes de resistência e transformaremos num inferno a vida dos assaltantes. A partir de agora, não passarão uma só noite tranquila. Os seus alimentos e água serão envenenados, as patrulhas atacadas, as sentinelas executadas.

 

Primeiro, alguns jovens temerários mataram dois polícias hicsos que os queriam prender. Depois, houve mulheres que se juntaram a eles para lutar contra os milicianos encarregados de os deportar para Tjaru. Por fim, a população dos arrabaldes de Bubastis, armada de machadinhas e foices, precipitou-se sobre a caserna cujos ocupantes foram espezinhados.

 

 Entregues à alegria daquele inesperado triunfo, os resistentes fizeram a festa queimando as roupas dos torcionários que tinham abatido. Amanhã, seria toda a cidade que se

sublevaria!

 

 E depois, de madrugada, houve relinchos de cavalos cada vez mais intensos. As ordens estalaram como chicotadas, secas e precisas.

 

 Os carros de Jannas! gritou um garoto, aterrorizado. Nas vastas planícies do Delta, como aquela onde estava implantada Bubastis, ninguém podia resistir à arma fatal dos hicsos.

 

 Depois de terem combinado rapidamente, os jovens egípcios avançaram para a frente das centenas de carros perfeitamente alinhados e, de maneira ostensiva, atiraram as armas ao chão.

 

 Cometemos uma loucura clamou um deles e imploramos perdão!

 

 Submissos, ajoelharam.

 

 Uma vitória sem combater constatou o ajudante-de-campo de Jannas.

 

 Com ou sem armas, os revoltosos são revoltosos afirmou o almirante. Deixá-los vivos seria um sinal de fraqueza que se voltaria contra nós.

 

 Jannas levantou o braço e baixou-o brutalmente para ordenar o assalto.

 

 Indiferentes aos gritos das suas vítimas, os carros hicsos esmagaram-nos. E o almirante Jannas aplicou a mesma estratégia a Atribis, a Léontopolis e a todas as outras cidades onde os insensatos tinham ousado rebelar-se contra o Imperador.

 

 Rodeado de piratas líbios e cipriotas que garantiam a sua segurança, o grande tesoureiro Khamudi estava particularmente orgulhoso do seu novo manto com franjas. Os lucros obtidos com a venda de droga não cessavam de aumentar e de acrescentar assim a sua imensa fortuna. Mas o seu sucesso podia ser ameaçado pelo almirante Jannas, cuja popularidade e o fracasso em Porto-de-Kamés não abalara! Não era possível compreender como a maioria dos oficiais superiores se mostrava incapaz de admitir que aquele militar estúpido os conduzia à sua perda.

 

 Khamudi ainda não conseguira corromper um dos membros do estado-maior de Jannas ou da sua guarda pessoal. Eram todos soldados que combatiam há muito tempo a seu lado e acreditavam no futuro do seu chefe. Mas Khamudi acabaria por descobrir um elo fraco.

 

 De acordo com as instruções do Imperador, Jannas acabava de exterminar os revoltosos que tinham espalhado a perturbação em várias cidades do Delta. O exército inteiro estava a seu lado e, naquela mesma manhã, seria publicamente felicitado por Apopis por serviços prestados ao Império. Esquecida a humilhante derrota de Porto-de-Kamés, esquecida a Rainha Ah-hotep que continuava a desafiar os Hicsos! Se os dignitários se tornavam surdos e cegos, quem senão Khamudi poderia salvar o Império?

 

 Ele, o único a estar consciente dos verdadeiros perigos, ia no entanto ser obrigado a baixar a cabeça diante de Jannas!

 

 O seu secretário trouxe-lhe uma mensagem confidencial e urgente proveniente da fortaleza hicsa que vigiava as pistas que conduziam às montanhas da Anatólia.

 

 Quando terminou a sua leitura, Khamudi solicitou audiência ao Imperador que conversava com o almirante.

 

 Más notícias, Majestade, muito más notícias!

 

 Fala diante de Jannas exigiu Apopis.

 

 Os montanheses anatólios revoltaram-se outra vez e atacaram a nossa principal fortaleza. O seu comandante pede socorro urgente.

 

 Tinha previsto isso, Majestade lembrou o almirante. Nunca se submeterão. Se nos queremos desembaraçar deles, será necessário matá-los até ao último.

 

 Parte imediatamente para sufocar essa rebelião ordenou o Imperador.

 

 E... a Rainha Ah-hotep?

 

 O Delta está pacificado, Auaris inconquistável. Graças ao meu espião, consegui o meio de bloquear no seu reduto a Rainha e o seu reizinho. Hoje, nada é mais importante do que retomar o controlo total da Ásia.

 

 Contrariamente ao que esperavam muitos soldados, a Rainha Ah-hotep não marchou sobre Auaris, contentando-se em fornecer a assistência necessária a Mênfis a fim de que os resistentes da grande cidade continuassem a fazer frente aos hicsos.

 

 Há várias noites que o céu estava atormentado, a energia deixara de circular normalmente. A mensagem do deus Lua não apresentava qualquer ambiguidade: pesava uma ameaça sobre o Rei Ahmés. Sem qualquer dúvida, Apopis acabava de lhe lançar um malefício.

 

 Permitis que regresse finalmente a Edfu, Majestade? solicitou o governador Emheb, cuja pesada figura parecia fatigada.

 

 Sabes bem que não respondeu Ah-hotep com doçura. Com quem mais posso contar para ter a certeza de que não haverá incúria em Porto-de-Kamés? Estou convencido que Jannas não contra-atacará tão cedo. Desde que permaneças vigilante, talvez possas repousar um pouco, prevendo os combates futuros.

 

 O sorriso da Rainha era tão encantador que Emheb não insistiu.

 

 Devo regressar a Tebas afirmou ela. Logo que estivermos prontos, tomaremos a ofensiva.

 

 Estarei a vosso lado, Majestade.

 

 Tebas de boa vontade teria celebrado a vitória de Porto-de-Kamés com pompa, mas como festejar quando a Rainha sofria? Os médicos não compreendiam porque razão o jovem monarca não conseguia poisar o pé no chão sem ser vítima de uma dor insuportável. Nenhum unguento o aliviava e o diagnóstico era pessimista: uma doença desconhecida que ninguém conseguia curar.

 

 Apesar dessa pesada desvantagem, Ahmés não abrandava o seu ritmo de trabalho. Quando era necessário, os seus guardas transportavam-no e ele continuava a percorrer os campos para recrutar novos soldados. Nem os conselhos de moderação do intendente Qaris nem os de Herai eram escutados; no entanto, o Faraó enfraquecia de dia para dia. Só o reconfortava a presença de Nefertari, tão discreta mas tão eficaz que conquistara o coração de todo o pessoal do palácio. Ajudar aquela maravilhosa jovem a descobrir os usos e costumes da corte dava a Qaris uma nova juventude.

 

 Está a chegar a vossa mãe anunciou ele.

 

 Recebê-la-emos na grande sala de audiências decidiu Ahmés.

 

 No cais era a grande barafunda. Desde que a Rainha Ah-hotep pisou de novo o chão da capital, o seu caminho foi juncado de flores pelos tebanos, entusiasmados com a ideia de aclamar a heroína que conseguira uma incrível vitória sobre os hicsos.

 

 À entrada do palácio, os dignitários formavam uma ala de honra. Quando Ah-hotep penetrou na sala de audiências, o Faraó Ahmés inclinou a cabeça em sinal de veneração.

 

 Sejam-vos prestadas homenagens, minha mãe, a vós que acabais, uma vez mais, de salvar o Egipto. O espírito de Amon está em vós, guia-vos. Através de mim são-vos oferecidos o amor, o respeito e a confiança do povo das Duas Terras.

 

 Comovida até às lágrimas, Ah-hotep prostrou-se perante o Faraó.

 

 Erguei-vos, peço-vos. Somos todos nós que nos devemos prosternar diante da Rainha Liberdade.

 

 Depois de ter sido celebrado um longo e intenso ritual em Karnak, no decurso do qual a Esposa do Deus pronunciou as palavras que convidavam Amon a incarnar nas pedras do templo e no coração dos seres, a mãe e o filho reencontraram-se frente-a-frente.

 

 Ahmés não dissimulava nada dos seus sofrimentos e da degradação do seu estado de saúde.

 

 Foi o espião de Apopis que te roubou as sandálias afirmou Ah-hotep. Fê-las chegar ao Imperador para que este as enfeitiçasse e impedisse a vida de circular nos teus pés.

 

 Como hei-de agir?

 

 O sumo sacerdote Djehuti conhece as fórmulas de Tot que destruirão esse feitiço, A fim de que cada parte do teu corpo fique a partir de agora protegida, aplicar-te-ei os amuletos de ressurreição.

 

 Datando da época das grandes pirâmides, essas fórmulas abriam ao viajante ressuscitado os caminhos do Além, quer fossem de fogo, de água, de ar ou de terra. Na planta dos pés do Rei, o sumo sacerdote desenhou a forma das sandálias aptas a percorrer todos os espaços. E Ah-hotep, depois de ter magnetizado a nuca do monarca, garantiu a salvaguarda de cada um dos seus centros vitais.

 

 Poder caminhar sem sentir a mínima dor foi um renascer para Ahmés. O sangue circulou normalmente no seu organismo e a sua energia habitual animou-o de novo.

 

 Devo-te a vida uma terceira vez disse ele à mãe. Depois de me teres dado à luz e coroado Faraó, devolves-me a vitalidade.

 

 Tu és o futuro do Egipto, Ahmés, e o Imperador não se enganou. Diz-me... Quem é esta maravilhosa jovem que te devora com os olhos?

 

 Então já notaste!

 

 Era preciso ser mais cega do que um cego.

 

 Se consentires, mãe, gostaria que ela se tornasse a Grande Esposa Real.

 

 É uma decisão demoradamente amadurecida? Ahmés hesitou.

 

 Não. Tomei-a num instante.

 

 Como se chama ela?

 

 Nefertari. É uma filha de camponeses, mas nasceu para ser Rainha.

 

  Ah-hotep descobria uma nova faceta do filho. Ele, tão paciente, tão senhor de si, tão sério, era capaz de semelhante impulso!

 

 O longo silêncio da Rainha inquietou Ahmés. Claro que ela já avaliara Nefertari. E se se opusesse ao casamento, como deveria ele reagir? Imaginar a sua existência sem a mulher que amava era-lhe impossível, mas privar-se do apoio da Rainha Ah-hotep também.

 

 Não deverias conversar com ela, mãe?

 

 Não será necessário.

 

 É que a sua origem...

 

 O teu pai era jardineiro.

 

 Achas que nem ela nem eu tivemos tempo de reflectir, mas...

 

 O olhar de Nefertari é o de uma Grande Esposa Real, meu filho. E é indispensável que o Faraó seja incarnado por um casal.

 

 O Imperador Apopis felicitava-se pelo trabalho do seu espião. Conseguindo fazer-lhe chegar às mãos as sandálias de Ahmés, proporcionara-lhe um meio eficaz de imobilizar um jovem guerreiro que, amanhã, teria podido tornar-se uma ameaça.

 

 Atingindo Ahmés, tocaria no coração da mãe Ah-hotep e ambos seriam reduzidos à impotência.

 

 Apopis introduzira as sandálias num grande recipiente de vidro cheio de veneno de escorpião que expunha à luz do meio-dia. Aquecido, o veneno tornar-se-ia corrosivo e roeria dia após dia os membros inferiores do insensato que ousava afirmar-se Faraó. Pouco a pouco, a dor tornar-se-ia insuportável e Ahmés acabaria por preferir matar-se a continuar a sofrer.

 

 Quando o Imperador seguia pela escada da cidadela, os gritos da esposa incomodaram-no. Tanto de dia como de noite, horríveis pesadelos atacavam a dama Tani, a quem Yima, a mulher do grande tesoureiro, administrava doses de droga cada vez mais fortes. Há muito tempo que Apopis nem sequer visitava aquela louca que tivera a boa ideia de o desembaraçar de Minos, cujo desaparecimento arrastara o de Ventosa, demasiado incómoda. Mais cedo ou mais tarde, o Imperador tê-la-ia oferecido ao touro.

 

 Embora ainda não fosse batido pelos raios do Sol, o recipiente de vidro tornou-se ardente. Apopis colocou-o sobre o parapeito. Mal terminou o gesto, o recipiente explodiu e o veneno espalhou-se sobre os seus pés, queimando-os como um ácido.

 

 O tempo parara, a guerra também.

 

 Na Anatólia e na Ásia, os combates multiplicavam-se, sob a forma de uma guerrilha que impedia Jannas de obter uma vitória definitiva.

 

 Mênfis continuava dividida em duas: uma zona sob o controlo hicso, uma outra nas mãos dos resistentes, a quem as tropas estacionadas em Porto-de-Kamés faziam chegar víveres e material.

 

 Mês após mês, a Rainha Ah-hotep, com quase uns deslumbrantes cinquenta anos, consultava o deus Lua que lhe ditava paciência. Assistira com alegria ao nascimento de um novo casal real formado por Ahmés e Nefertari. Ao profundo amor que os unia juntava-se uma noção cada vez mais acentuada da sua função e dos seus deveres.

 

 Todas as tardes, Ah-hotep meditava na margem do lago sagrado sobrevoado por andorinhas, almas do outro mundo que se regeneravam ao Sol. E foi ali que o filho, austero jovem de vinte anos, se lhe veio juntar.

 

 Em breve iremos celebrar o meu décimo primeiro ano de reinado, mãe, e o Egipto permanece ocupado. Até agora, não me sentia capaz de me bater como o meu pai e o meu irmão mais velho. Hoje, já sinto.

 

 É verdade, Ahmés, mas os presságios continuam desfavoráveis.

 

 Temos de os ter em consideração?

 

 A precipitação não seria um erro fatal?

 

 Os hicsos não reconquistaram nenhuma das posições perdidas, saíram do nosso estaleiro naval bastantes navios, mobilizámos muitos homens... Porque adiar o confronto?

 

 - Gosto de te ouvir falar assim, meu filho. Libertar o nosso país deve ser a nossa permanente preocupação. Mas apenas o acordo dos deuses e o sopro de Amon nos fornecerão as forças decisivas.

 

 Precisamos então de aumentar Karnak e o santuário que é consagrado ao deus de Tebas na base militar. Ocupar-me-ei disso a partir de amanhã.

 

 Os tornozelos de Apopis estavam dolorosos. Apenas se deslocava portanto sentado no seu trono de pinho, transportado por dois guardas cipriotas aos quais mandara cortar a língua. Embora parecesse cada vez mais inerte e menos loquaz, o Imperador continuava a governar sem partilhar uma polegada de poder.

 

 Jannas fazia reinar a ordem hicsa na Ásia, à custa de milhares de mortos; Khamudi no Delta, graças às deportações. E a ruína de Mênfis, cercada, favorecia a expansão comercial de Auaris.

 

 Restavam a Rainha Ah-hotep e o seu miserável reizinho! É certo que tinham renunciado a combater e permaneciam imobilizados nas suas posições, mas a sua própria existência era uma injúria à grandeza hicsa. Quando Jannas estivesse de regresso, seria conveniente encarar uma nova forma de aniquilar esses revoltosos.

 

 Quando o malefício das sandálias se voltara contra ele, o Imperador ainda sentira mais vontade de destruir aquela Rainha cuja magia rivalizava com a sua. Seria a vitória mais saborosa do seu reinado.

 

 Sob um céu ameaçador, Apopis fez-se transportar até ao templo de Set, do qual era actualmente o único sumo sacerdote. Quem, a não ser ele, podia realmente comunicar com o raio?

 

 Penetrando no santuário, o Imperador sentiu uma violenta dor nos pés e não precisou de muito tempo para compreender que se ia verificar um acontecimento importante.

 

 Apoderando-se do crânio ensanguentado de um burro sacrificado, Apopis cravou os seus olhos nos do animal.

 

 E viu.

 

 Viu Tebas, uma Rainha e o filho. E viu que se selava um pacto entre eles e que essa aliança teria a força de um exército.

 

 Fez portanto apelo a Set uma vez mais para que se encarniçasse contra os seus adversários e os separasse para sempre.

 

 No terceiro dia do primeiro mês da primeira estação do décimo primeiro ano do reinado de Ahmés, o Faraó partiu de barco para lançar os planos da futura capela de Amon. E foi na manhã desse mesmo dia que Djehuti, o sumo sacerdote de Karnak, reconstituiu finalmente o antigo calendário dos períodos fastos e nefastos que chegara até ele em fragmentos difíceis de reunir.

 

 Dando a última mão naquele vasto puzzle, o escriba erudito sentiu um sobressalto. Ele, em geral tão comedido, não pôde impedir-se de correr para chegar o mais depressa possível ao palácio real, onde Ah-hotep o recebeu de imediato.

 

 Majestade, é necessário interromper todas as actividades em curso e proteger a pessoa real! Este dia é o do nascimento de Set e se o Imperador o souber descarregará o raio sobre nós!

 

 Ahmés dirige-se para a base militar. Vou tentar alcançá-lo.

 

 Não deveis correr qualquer risco, peço-vos! Também vós podeis ser vítima do fogo celeste.

 

 A Rainha não deu ouvidos ao sumo sacerdote que, antes dela embarcar, lhe entregou uma tira de linho real na qual estava inscrita uma antiga fórmula.

 

 Colocai-a em torno do pescoço do Faraó recomendou. Talvez lhe salve a vida.

 

 Desencadeando a terrível tempestade que destruíra boa parte de Tebas, Apopis aliara-se às nuvens e aos ventos. Desta vez, à tempestade que assolou a cidade de Amon e a necrópole do Oeste, acrescentou o furor das águas do Nilo.  Em poucos minutos, o rio começou a fervilhar e vagas enormes atacaram simultaneamente as margens e os flancos do navio de Ahmés, que se aproximava da base militar.

 

 Em Karnak, no palácio, à entrada da necrópole e em cada casa, os tebanos seguiram as instruções de Ah-hotep, fazendo oferendas aos defuntos e queimando figurinhas de argila nas quais fora escrito o nome de Apopis. O sumo sacerdote tomou uma precaução suplementar colocando um olho de cornalina sobre a efígie em cera do Imperador, a fim de anular o mau-olhado com o qual ele procurava devastar Tebas.

 

 A bordo do veleiro que se lançara para o norte, Ah-hotep segurava firmemente o ceptro de ouro com cabeça de Set. O deus das tempestades já não era seu inimigo mas seu aliado. Depois de ter captado o seu raio, a Rainha já não lhe receava os excessos. Naquele emblema uniam-se as energias do céu e da terra.

 

 Ah-hotep só pensava no Faraó. Mesmo que ela perecesse na aventura, era necessário salvá-lo.

 

 Firme no seu lugar, Ahmés ajudava a tripulação a baixar as velas para oferecer a mínima superfície possível ao vento furioso que fazia girar o navio sobre si mesmo. Privado de leme, que se quebrara, o capitão não sabia que manobra fazer para se aproximar da margem.

 

 Apenas a calma do Faraó impedia os marinheiros de ceder ao pânico. No momento em que tudo parecia perdido, Ahmés dava uma ordem à qual a tripulação obedecia o melhor possível e protegia assim a embarcação do naufrágio.

 

 Atravessando a cortina de chuva, o navio da Rainha colocou-se ao lado do do Faraó. Quando ela brandiu o ceptro para a massa de nuvens, as precipitações enfraqueceram.

 

 As tábuas do navio real estalavam de forma sinistra. Tinham-se aberto diversas fendas.

 

 Ah-hotep declamou o texto inscrito na tira de linho:

 

 O universo das esteias obedece-te, a luz poisa sobre ti.

 

 O navio parou de girar sobre si mesmo. Mesmo antes de se afundar, os seus ocupantes saltaram para o de Ah-hotep, que colocou de imediato a tira ao pescoço do filho.

 

 A trovoada dissipava-se. Tebas saía quase intacta da tempestade.

 

 O dispositivo de segurança em redor da fortaleza de Auaris nunca tinha sido tão espectacular. Por ocasião da cerimónia de entrega dos tributos e na ausência de Jannas, o grande tesoureiro Khamudi queria prevenir qualquer acidente. Torres e ameias estavam guarnecidas de archeiros em estado de alerta e os piratas que formavam a guarda pessoal do Imperador tinham ordem para deter e eliminar qualquer personagem suspeita.

 

 Foi num clima opressivo que os embaixadores dos países dominados pelos hicsos e os seus transportadores de presentes foram autorizados a franquear a porta principal do recinto e, sob boa escolta, a penetrar na sala de audiências do palácio de Apopis.

 

 Sentado no seu trono de pinho enquadrado pelos dois grifos, o Imperador saboreou o pavor dos seus hóspedes, que não ousavam erguer os olhos para o tirano envolto num amplo manto castanho. Até mesmo a beleza dos frescos de estilo cretense tinha um aspecto inquietante, como se os touros fossem precipitar-se sobre os visitantes.

 

 Tanto no Verão como no Inverno, o compartimento era glacial. Da pessoa do Imperador desprendia-se uma frieza que inviabilizava que a menor parcela de calor adoçasse o ambiente.

 

 Os embaixadores e os membros do seu séquito prostraram-se longamente perante Apopis. Ele apreciava aquele momento em que se afirmava a sua qualidade de todo-poderoso sobre o mais vasto Império que o mundo já conhecera. Com a mão direita, acariciou o punho de ouro da sua adaga com a qual podia infligir a morte a quem quisesse e quando quisesse. Fora esquecendo esse aspecto do verdadeiro poder que os Faraós tinham sido vencidos. Com um gesto desdenhoso, Apopis ordenou aos representantes dos seus vassalos que se levantassem.

 

 Alguns bárbaros da Anatólia tentaram revoltar-se declarou ele com a sua voz rouca que fez estremecer a assembleia. Encarreguei o almirante Jannas de os exterminar. Quem lhes prestar assistência, seja de que maneira for, sofrerá a mesma sorte. Agora, consinto em receber as vossas homenagens.

 

 Aos pés do trono acumularam-se lingotes de ouro e de prata, tecidos, vasos preciosos de formas elegantes, potes com unguentos... Mas o feio rosto de Apopis não se desanuviava e a atmosfera permanecia crispada.

 

 O embaixador de Creta foi o último a depor os seus presentes: anéis de ouro, taças de prata e vasos com cabeça de leão.

 

 Basta! tonitroou o Imperador. Os teus tributos são ainda mais ridículos do que os dos teus predecessores! Sabeis bem de quem ousais troçar?

 

 Senhor interveio o embaixador do Líbano fizemos o máximo! Deveis compreender que os rumores de guerra são muito nefastos para o comércio. E longos períodos de mau tempo impediram os nossos navios de se fazer ao mar. O tráfego de mercadorias foi portanto menos importante do que o habitual e empobrecemos.

 

 Compreendo, compreendo... Aproxima-te. O libanês teve um movimento de recuo.

 

 Eu, senhor?

 

 Visto que me deste explicações, mereces uma recompensa. Aproxima-te do meu trono.

 

 Foi a tremer que o diplomata obedeceu.

 

 Dos olhos dos grifos brotaram chamas tão intensas como breves.

 

 Com o rosto queimado, o libanês soltou uivos de dor e rolou sobre o monte dos presentes para tentar apagar o fogo que o devorava.

 

 Muda de terror, a assistência viu-o agonizar.

 

 Eis o castigo reservado a quem ousar faltar-me ao respeito declarou o Imperador. Tu, embaixador de Creta, o que tens a declarar?

 

 Idoso e doente, o diplomata conseguiu conter o seu medo.

 

 Não podíamos oferecer mais, senhor. A nossa ilha sofreu abundantes chuvas e ventos violentos que destruíram a maior parte das nossas colheitas. Além disso, a morte acidental dos nossos melhores artesãos durante um incêndio desorganizou as nossas oficinas. Quando a situação se tornar de novo normal, o Rei Minos, o Grande, fará chegar até vós outros tributos.

 

 Durante alguns instantes, os dignitários hicsos julgaram que aquelas explicações tinham aplacado a fria fúria do Imperador.

 

 Tu e os outros afirmou ele troçais de mim. O aspecto miserável destes dejectos prova que vos recusais a pagar o imposto e que vos revoltais! A partir de amanhã, partirão regimentos para as províncias do meu Império e os responsáveis por este acto de insubmissão serão condenados à morte. Quanto a vós, ridículos embaixadores, concedo-vos um fim à vossa medida.

 

 Com o grande machado que manejava tão bem como um lenhador, a dama Aberia cortara a cabeça de todos os transportadores de presentes. Quanto aos dois núbios e aos três sírios que tinham tentado fugir empurrando os guardas, divertira-se a cortar-lhes os pés antes de os estrangular.

 

 Os divertimentos não tinham terminado; tal como os outros dignitários hicsos, ia assistir ao grande jogo concebido por Apopis.

 

 Diante da cidadela fora traçado um rectângulo. No interior, alternavam doze casas brancas e doze casas pretas.

 

 Com as mãos atadas atrás das costas, os vinte e quatro embaixadores que representavam as províncias do Império foram trazidos pelos polícias.

 

 Vamos libertar-vos anunciou Apopis, sentado numa cadeira de transportadores que dominava o xadrez e dar-vos armas. Doze de vós formarão um exército, os outros doze o adversário.

 

 Interditos, os diplomatas curvaram-se às ordens de Apopis.

 

 Contra quem jogarei?... Contra ti, meu fiel Khamudi!

 

 O grande tesoureiro teria de boa vontade dispensado aquele favor. Só havia uma estratégia possível: deixar o Imperador ganhar.

 

 Fazei exactamente o que eu ordenar e respeitai as regras deste jogo avisou Apopis. Caso contrário, os archeiros abater-vos-ão. Agora, não passais de peões que Khamudi e eu deslocaremos.

 

 Do mais idoso ao mais jovem, os diplomatas estremeceram.

 

 Iraniano, avança uma casa em frente exigiu Apopis. Khamudi opôs-lhe o núbio, armado com uma lança, como seu adversário.

 

 Que o iraniano tente eliminar o núbio decidiu o Imperador. Assustados, os dois embaixadores encaravam-se.

 

 Batei-vos. Que o vencedor retire do jogo o cadáver do vencido e ocupe o seu lugar.

 

 O iraniano feriu o núbio no braço. Este largou a arma.

 

 Está vencido, senhor!

 

 Mata-o ou és morto.

 

 A lança abateu-se uma vez, duas vezes, dez vezes... Depois, o iraniano arrastou o corpo ensanguentado para fora do rectângulo e assumiu o comando dos peões de Apopis.

 

 É tua vez, Khamudi.

 

 Se se deixasse bater demasiado facilmente, o grande tesoureiro arriscava-se a desagradar ao Imperador.

 

 Que o sírio ataque o iraniano anunciou.

 

 Este tentou fugir, mas os archeiros pregaram-no ao chão atirando-lhe flechas às pernas. E o sírio desfez-lhe a cabeça com a sua maça.

 

 Não esqueçais que os vencedores terão a vida salva acrescentou Apopis.

 

 A partir daí, os ”peões” mataram-se uns aos outros em duelos rápidos e ferozes.

 

 Khamudi manobrava bem, tornando o jogo apaixonante. Vencedor, Apopis dispunha de um único peão, o velho embaixador cretense. Estupefacto, sem compreender onde ia buscar tanta energia,   segurava com força a adaga ensanguentada com a qual matara três dos seus colegas.

 

 Como soldado vitorioso, tens a vida salva decretou o Imperador.

 

 O cretense largou a arma e saiu do jogo, cambaleando.

 

 Mas como traidor acrescentou o Senhor dos Hicsos deves ser castigado. Encarrega-te dele, dama Aberia.

 

 Os cinco homens tinham desembarcado num local deserto da costa egípcia de onde o seu barco se afastara imediatamente. Depois, em vez de tomarem o caminho de Sais, haviam-se afastado da franja verde do Delta a fim de penetrarem no deserto. Munidos de mapas aproximados que indicavam um certo número de pontos de água, esperavam evitar qualquer confronto no longo trajecto que os conduziria até à província de Tebas.

 

 Por várias vezes estiveram prestes a ser interceptados, quer por patrulhas hicsas, quer por nómadas, quer pelos caravaneiros. A meio caminho do seu destino recearam morrer de sede, porque um dos poços anunciados estava seco. Tiveram que se aproximar da zona das culturas e roubar fruta e odres de água numa quinta.

 

 Dois deles não sobreviveram. O primeiro caiu, esgotado; o segundo sucumbiu à mordedura de uma cobra. Se os três últimos não fossem soldados bem treinados, habituados a deslocar-se em meio hostil, não teriam conseguido ultrapassar uma prova que não imaginavam tão dura.

 

 A menos de uma hora de marcha da base militar de Tebas, esbarraram com guardas egípcios.

 

 Esgotados, emagrecidos, caíram de joelhos na areia.

 

 Vimos da ilha de Creta declarou um deles e somos portadores de uma mensagem para a Rainha Ah-hotep.

 

 O chanceler Neshi interrogara separadamente os três homens que se diziam enviados de Minos, o Grande. Como os seus relatos coincidiam, aceitou o seu pedido.

 

 Lavados, barbeados, alimentados, envergando saiotes novos e enquadrados por vários soldados, foram introduzidos numa pequena sala do palácio de Tebas onde a Rainha e o Faraó Ahmés estudavam um relatório de Herai sobre os serviços de intendência do exército.

 

 Sou o comandante Linas declarou um barbudo de rosto quadrado e só falarei com a Rainha do Egipto.

 

 Tu e os teus companheiros, inclinem-se diante do Faraó ordenou Ah-hotep.

 

 A sua autoridade era tal que os três cretenses obedeceram.

 

 Qual a razão desta longa viagem? perguntou ela.

 

 Majestade, a mensagem do Rei de Creta é estritamente confidencial e...

 

 Os meus guardas vão reconduzir os teus amigos ao seu quarto. Tu ficas. O Faraó e eu escutamos-te.

 

 Linas, que tinha o hábito de comandar, sentiu que mais valia não desagradar àquela mulher.

 

 Minos, o Grande, encarregou-me de vos convidar a vir a Creta, Majestade. Deseja falar convosco de projectos tão importantes para o vosso país como para o nosso.

 

 Que projectos?

 

 Ignoro.

 

 Não és portador de nenhum documento escrito?

 

 De nenhum, Majestade.

 

 Porque hei-de eu entregar-me a um dos principais aliados dos Hicsos?

 

 Devido às leis de hospitalidade que reinam em Creta, não correis qualquer perigo. Entre nós, um hóspede é sagrado. Minos, o Grande, reservar-vos-á um acolhimento digno da vossa categoria e, seja qual for o resultado do encontro, voltareis a partir livre e indemne.

 

 Como podes garantir isso?

 

 Não sou apenas comandante do exército cretense mas também o filho mais novo de Minos, o Grande. É evidente que permanecerei em Tebas até ao vosso regresso.

 

 O chanceler Neshi, o ministro da Economia Herai e o intendente Qaris partilhavam a mesma opinião: aquele convite era uma cilada grosseira lançada pelo Imperador para atrair a Rainha Ah-hotep a território inimigo e se apoderar dela. A única resposta possível consistia em devolver a Creta o filho de Minos, o Grande, e os seus acólitos.

 

 E se o soberano da grande ilha fosse sincero? avançou a Rainha. Creta suporta mal o domínio hicso. O seu povo é orgulhoso e a sua cultura rica e ancestral. As suas relações com o Egipto sempre foram excelentes porque os Faraós, ao contrário de Apopis, não procuravam colonizá-la.

 

 É certo, Majestade interveio Neshi mas a situação actual...

 

 Justamente, essa situação não é de forma alguma favorável a Creta! Suponhamos que Minos, o Grande, receia ser atacado e derrubado. Suponhamos que suspeita que Apopis queira devastar a sua ilha. O que lhe resta como solução, a não ser uma aliança contra os Hicsos? Apesar das suas inúmeras tentativas de desinformação, Apopis não conseguiu ocultar o nosso combate. O eco dos nossos êxitos, por mínimo que seja, chegou até Cnossos. Hoje, Minos, o Grande, sabe que os Hicsos já não são invencíveis. Se Creta se revoltar, outros países dominados a imitarão e o Império desagregar-se-á pelo interior. O destino oferece-nos uma oportunidade inesperada que é necessário aproveitar.

 

 O raciocínio de Ah-hotep era sedutor. Mas o velho intendente Qaris recusou entusiasmar-se.

 

 Se Minos, o Grande, é um monarca inteligente e astuto, terá desejado que fizésseis essa análise e a cilada só está ainda mais bem montada! Vejo nisso uma nova marca da perversidade de Apopis. Como não vos consegue suprimir, utiliza os serviços de um fiel vassalo que vos faz entrever uma esperança louca.

 

  A voz de Qaris é a da razão aprovou Herai.

 

 Desde o instante em que decidi lutar contra os Hicsos lembrou a Rainha nunca lhe dei ouvidos. E sabeis todos que não ganharemos esta guerra sem correr riscos. Este convite é o sinal que eu esperava.

 

 Qaris voltou-se para Ahmés.

 

 Posso pedir ao Faraó que persuada a Rainha a renunciar?

 

 Se desaparecerdes, mãe declarou o Rei com gravidade o que será de nós?

 

 Foste ritualmente coroado e reinas sobre o Egipto, Ahmés. Num primeiro tempo, instalar-te-ás em Porto-de-Kamés, a nossa base militar mais avançada, e continuarás a apoiar a resistência de Mênfis de forma a que só o Delta seja ainda um território seguro para os hicsos. E esperarás os resultados da minha entrevista com Minos, o Grande, ao mesmo tempo que mandarás construir mais navios. Se eu tiver caído numa cilada, Apopis não deixará de se gabar disso e deverás então enfrentá-lo. Se, pelo contrário, o Rei de Creta aceitar ser nosso aliado, ficaremos em posição de força.

 

 Devo compreender, mãe, que a vossa decisão está tomada? Ah-hotep esboçou o sorriso que encantava os contestatários

 

 mais coriáceos.

 

 Tomei-a porque te sei capaz de governar, Ahmés. Ahmés sabia que o desaparecimento da Rainha Liberdade

 

 seria bem pior do que um revés militar. Mas ninguém convenceria Ah-hotep a mudar de opinião.

 

 Sempre aprovei as vossas iniciativas, Majestade lembrou o chanceler Neshi mas deveis renunciar a esta por um simples motivo: é impossível irdes a Creta. Com efeito, ser-vos-ia necessário atravessar o Egipto Médio, depois o Delta inteiramente nas mãos dos Hicsos e, por fim, arranjar um navio com uma tripulação experiente!

 

 Existe outro itinerário, o que seguiram os três cretenses para chegarem até nós.

 

 As pistas do deserto... Um trajecto esgotante e perigoso!

 

 A expedição compreenderá marinheiros egípcios e os dois companheiros do filho de Minos, o Grande, que nos fornecerão preciosas indicações. Quanto ao navio, transportá-lo-emos em peças separadas e montá-lo-emos no lugar da costa de onde partiremos.

 

 Majestade, esse projecto... esse projecto...

 

 Eu sei, chanceler: não é razoável. Mas imaginai que eu consigo!

 

 Um único pormenor contrariava Ah-hotep: que o espião do Imperador fosse informado e pusesse um fim prematuro à sua viagem, provocando a intervenção dos hicsos.

 

 Os olhos aflitos de Vento do Norte rivalizavam em tristeza com o olhar desesperado de Risonho, o Jovem. Mas Ah-hotep não podia ceder às suas súplicas. Explicou-lhes que atravessar o deserto e depois o mar era demasiado perigoso e que, além disso, o burro e o cão tinham missões determinadas a cumprir. Vento do Norte devia continuar a guiar os seus congéneres especializados no transporte de materiais destinados ao exército e Risonho, o Jovem a velar por Ahmés. Tal como o pai, Risonho, o Velho, o molosso tornara-se um temível guarda pronto a bater-se até à morte para salvar o Rei.

 

 Os dois fiéis servidores fingiram conformar-se.

 

 Pudésseis vós proteger-me murmurou ela.

 

 Com o pôr do Sol, o calor do dia abrandou. O suave vento do norte levantara-se, os duros trabalhos dos campos interrompiam-se e por todo o campo se misturavam áreas de flauta.

 

 Ah-hotep pensou no marido e no filho falecidos e soube que partilhavam o banquete dos deuses.

 

 O jantar está pronto, Majestade anunciou Nefertari. Oh, perdoai! Interrompi a vossa meditação.

 

 A hora não é de recordações, há demasiado futuro a construir.

 

 Contemplando a Grande Esposa Real, Ah-hotep pensou que Ahmés, em geral tão prudente, tivera razão em não hesitar. Gratificada com todos os dons que a teriam podido transformar numa pessoa satisfeita com a sua sorte e procurando apenas pequenos prazeres, a jovem possuía a natureza de uma Rainha: exigente, luminosa, mais preocupada com o destino do seu país e do seu povo do que com o seu próprio.

 

Se eu não regressar, Nefertari, terás de te bater ao lado do Faraó. Sem o teu fulgor e sem a tua força mágica, faltar-lhe-á a energia necessária para vencer. Foi ísis que ressuscitou Osíris, é a Grande Esposa Real que insufla o fogo do acto justo na alma do Rei. Sobretudo, não percas o teu tempo em tarefas profanas e não disperses a tua palavra em banalidades.

 

A firmeza do olhar de Nefertari desmentia a fragilidade da sua aparência.

 

Comprometo-me a fazê-lo, Majestade.

 

Agora, podemos jantar.

 

Ah-hotep felicitava-se por ter retomado o controlo da pista dos oásis utilizada outrora pelos núbios e os hicsos para comunicarem mensagens oficiais. No Grande Sul, sob controlo egípcio, o príncipe de Kerma parecia contentar-se com as suas riquezas e a sua vida faustosa, longe da guerra. Mas Ah-hotep permanecia céptica e receava que o seu humor belicoso despertasse. Esperando enganar-se, a Rainha apreciava a beleza selvagem do deserto onde o humano não era bem-vindo.

 

Os homens sofriam, mas sentiam-se de tal forma orgulhosos por terem sido escolhidos para acompanhar a Rainha Liberdade que o esforço lhes parecia leve. Apenas os dois cretenses, firmemente convidados a transportar a sua carga como os outros, faziam má cara. A qualidade das refeições e dos vinhos acabou por acalmá-los e longas paragens nos oásis fizeram com que ficassem de melhor humor. Aceitaram responder às perguntas da Rainha, que os interrogava sobre as condições de vida em Creta onde, segundo eles, reinava um gosto acentuado pelos jogos, as festas e a moda.

 

Permanentemente alerta, Ah-hotep dormia com um olho aberto. Se o espião tivesse conseguido prevenir o Imperador, os hicsos não pesquisariam um vasto território a fim de interceptar a Rainha?

 

 No entanto, nenhum incidente se verificou e a expedição chegou até à costa mediterrânea sem se cruzar com uma única patrulha inimiga. Os duzentos últimos quilómetros, é verdade, tinham-se revelado particularmente penosos, e os homens haviam feito largo uso dos remédios e unguentos de Felina.

 

 A travessia da zona pantanosa fizera com que os viajantes lamentassem a falta da dureza do deserto. Obrigados a andar na água estagnada, roçados por serpentes, devorados pelos mosquitos, estavam convencidos que deviam a salvação das suas vidas à magia protectora da Esposa do Deus que, sem nunca se queixar, partilhava as suas provações.

 

 Depois os egípcios descobriram um universo novo: uma praia de areia, ondas, água salgada em constante movimento. A conselho dos cretenses, ousaram banhar-se nela e acharam-na pesada e pegajosa, embora proporcionasse um maravilhoso bem-estar depois da dos pântanos.

 

 Ah-hotep deixou os seus marinheiros descontrair-se, feliz por estarem todos vivos. Não seria o sinal de que a sua decisão era justa?

 

 Ela, no entanto, não baixava a guarda.

 

 Os demónios do mar são mais temíveis do que os do deserto lembrou a Rainha durante a refeição sob as estrelas. Conhecemos bem os caprichos do Nilo, mas os desta imensidade arriscam-se a surpreender-nos. No entanto, ultrapassá-la-emos.

 

 Sob o olhar céptico dos dois cretenses, os marinheiros egípcios montaram um navio previsto para viagens longas. Com o mastro duplo formado por duas varas oblíquas reunidas no topo, a cabina de tecto horizontal, as velas novas, os remos e o sólido leme, tinha um belo aspecto.

 

 Tencionais ir até Creta... com isso?

 

 Os nossos antepassados fizeram-no respondeu Ah-hotep.

 

 Ignorais todos os perigos que nos espreitam, Majestade! Com bons ventos de trás, não demoraremos mais de três dias para percorrer a distância que separa Creta do Egipto; é preciso quase o dobro para ir do Egipto até Creta, e as mudanças de vento são frequentes e imprevisíveis, a ondulação perigosa, sem contar com as tempestades! Em suma, é necessário que a quilha do barco suporte as pressões laterais das vagas e do vento.

 

 Há-de suportar.

 

 Além disso, se estiver mau tempo e as nuvens nos ocultarem as estrelas, perder-nos-emos!

 

 Não com o mapa que eu possuo. Os nossos antepassados, que foram muitas vezes a Creta, legaram-nos preciosos documentos. Faríeis mal em desprezar a sua ciência. Sabeis, por exemplo, porque foi determinado que o comprimento da Duat, o mundo intermédio entre o céu e o oceano subterrâneo, é de 3 814 iteru, de acordo com um termo técnico de agrimensor? Porque corresponde ao perímetro da Terra1147. Mesmo que o mar assuste a maior parte dos egípcios, o nosso povo teve grandes navegadores e sabemos como dominá-lo.

 

 Não é o caso desta tripulação!

 

 Não terá a oportunidade de adquirir a experiência que lhe falta? Ao ver a forma como os marinheiros da Rainha manobravam,

 

 os dois cretenses sentiram-se um pouco mais tranquilizados. Mas, habituados às cóleras do Mediterrâneo, receavam pânico a bordo em caso de incidente. Os ventos mudaram diversas vezes e, na madrugada do terceiro dia, o mar ficou com vagas. O capitão resolveu o caso modificando a posição das velas e a trajectória do navio, cuja maneabilidade se revelava um trunfo precioso. Sem nunca perder o sangue-frio, a tripulação adaptava-se de forma surpreendente.

 

 E a Rainha Ah-hotep não dialogava todas as noites com o deus Lua para lhe pedir uma travessia serena?

 

 Nota: Cerca de 500 quilómetros.

3 814 iteru = 39 894,48 quilómetros. Esta indicação, fornecida pelos túmulos do Vale dos Reis, era provavelmente conhecida antes. Ver J. Zeidler, Die Lánge der Unterwelt nach ãgyptischer Vorstellung, Gõttinger Miszellen, 156, 1997, pp.

101-112. (O perímetro equatorial da Terra é 40 053,84 km e o polar 39 918,82 km.

 

 

 Quando chegava ao fim o quarto dia de navegação, os dois cretenses não queriam acreditar nos seus olhos.

 

 Além, a nossa ilha... A nossa grande ilha!

 

 Prestemos homenagem a Amon, o senhor do vento, e a Hathor, a soberana das estrelas e da navegação exigiu Ah-hotep. Sem o seu auxílio, não teríamos chegado a bom porto.

 

 A Rainha colocou pão, vinho e um frasco de perfume sobre um pequeno altar e todos se recolheram.

 

 Barcos à vista anunciou o capitão.

 

 Quatro embarcações avançavam a toda a velocidade para o veleiro egípcio.

 

 Tomam-nos por um inimigo e querem cravar-nos o esporão! gritou um dos cretenses.

 

 De facto, a trajectória adoptada não deixava qualquer dúvida sobre as intenções dos navios de guerra.

 

 Ah-hotep deu ordem para recolher as velas e apareceu à proa, oferecendo um alvo ideal aos archeiros de Minos, o Grande.

 

 Khamudi andava às voltas na sua mansão como um urso na jaula. Embora tivesse duplicado o número de guardas que garantiam a sua protecção de dia e de noite, não se atrevia a sair.

 

 Porque tens tanto medo? perguntou a esposa Yima. O almirante Jannas não vai atacar a nossa casa!

 

 Esse assassino é bem capaz disso! Entre o poder e ele só há um obstáculo: eu. Ambos temos consciência disso, podes crer.

 

 Não continuas a ser o braço direito do Imperador?

 

 O grande tesoureiro deixou-se cair numa poltrona e esvaziou uma taça de vinho branco.

 

 Apopis está a envelhecer, perde todos os dias um pouco de lucidez.

 

 A dama Yima ficou chocada.

 

 É a primeira vez que te oiço criticar o Imperador!

 

 Não se trata de uma crítica mas de uma constatação. Se queremos preservar o poder do Império, temos de apoiar melhor Apopis.

 

 Perita em jogos perversos, Yima não entendia nada de política. No entanto, a perturbação do marido fazia-lhe recear a perda dos seus bens.

 

 Estamos... em perigo?

 

 Não, porque o Imperador me concede ainda a sua confiança.

 

 Pensará em retirar-ta?

 

 

 Foi Jannas que lhe meteu essa ideia na cabeça. Há demasiadas divergências entre nós e o almirante já não suporta a influência que eu exerço sobre muitos dignitários. Por outras palavras, quer realmente desembaraçar-se de mim.

 

 Yima empalideceu.

 

 São boatos ou factos confirmados?

 

 Desenvolvi um inquérito aprofundado e todos os indícios concordam: quando regressar da Ásia, Jannas tentará reduzir-me à impotência.

 

 Yima sentou-se nos joelhos de Khamudi e cobriu-o de beijos nervosos.

 

 Não é possível, meu querido, não lhe permitirás que roube a nossa fortuna!

 

 Não, se me ajudares.

 

 Como?

 

 A imperatriz dá-te ouvidos, não é verdade?

 

 É uma velha louca, doente e impotente!

 

 Mesmo assim, deu ordem para eliminar o pintor Minos.

 

 Sim, mas Jannas é um problema bastante maior!

 

 É certo, mas podes persuadir a dama Tani que ele conduz o Império à ruína. Não foi por causa da incompetência de Jannas que a nossa capital foi atacada pelos egípcios e que a imperatriz perdeu a saúde? Esse almirante é a causa de todas as nossas desgraças. Se não o suprimirmos, será ele que nos suprimirá.

 

 Yima pareceu compreender.

 

 E se Jannas foi morto na Ásia?

 

 Segundo a sua última mensagem, regressará dentro de menos de uma semana e será recebido como vencedor.

 

 Tendo na cabeça o seu sempre iterno gorro às riscas e tão mal vestido como um simples soldado, Jannas permaneceu indiferente às aclamações da multidão que pontuavam o seu percurso para a cidadela. Soldados, polícias e habitantes de Auaris celebravam um triunfo injustificado, mas só o Imperador devia conhecer a verdade.

 

 De acordo com o protocolo, foi Khamudi, como chefe da segurança, que acolheu o almirante.

 

 Haveis feito boa viagem?

 

 O Imperador pode receber-me imediatamente?

 

 Está a fazer a sesta. Estou encarregado de ouvir o vosso relatório e de lho transmitir.

 

 Está fora de questão.

 

 Almirante! É esse o costume, e...

 

 Estou-me a borrifar para os vossos costumes, grande tesoureiro. Visto que estou de regresso, sou eu que me ocupo de novo da segurança da capital e da do Imperador. Regressai às vossas finanças e ao vosso tráfico de droga e não tenteis sobretudo impedir-me de entrar na cidadela onde esperarei o despertar do nosso soberano.

 

 Furibundo, Khamudi afastou-se.

 

 Apesar das muitas preocupações que o assoberbavam, Jannas adormecera. Um sopro gelado arrancou-o brutalmente do seu torpor.

 

 À sua frente, o Imperador.

 

 Demoraste muito, meu amigo. As tropas perderam as forças?

 

 A situação é grave, senhor.

 

 Segue-me.

 

 Os dois homens fecharam-se no pequeno compartimento preparado no centro do palácio, onde ninguém os podia ouvir.

 

 A Ásia está pacificada, Jannas?

 

 Matei milhares de revoltosos e as suas famílias, queimei centenas de aldeias, abati rebanhos inteiros e espalhei o terror por toda a parte onde passei. Todos sabem que ofender o Imperador dos Hicsos provoca um castigo implacável.

 

 Não respondeste à minha pergunta.

 

 Ninguém mais ousa enfrentar-nos de forma directa, porque nada nem ninguém se pode opor aos nossos carros. Infelizmente, há a guerrilha. Uma guerrilha interminável que eu teria exterminado se uma casta de verdadeiros guerreiros não tivesse conseguido federar os insurrectos e varrer os potentados locais para formar uma nova força a que chamam os hititas.

 

 Porque não os exterminaste, Jannas?

 

 Porque conhecem cada recanto das suas montanhas e são capazes de sobreviver nas condições mais difíceis. Mesmo esfomeados e morrendo de frio, combatem ainda como feras e preparam-nos emboscadas mortais. Enforquei-lhes as mulheres, esventrei-lhes os filhos, arrasei as suas casas... E não se renderam. Se tivesse enviado os meus homens pelas gargantas e ravinas, o nosso exército teria sido dizimado.

 

 A voz rouca do Imperador tornou-se ameaçadora.

 

 Então, o que propões?

 

 Deixei lá as forças necessárias para que esses hititas sejam obrigados a permanecer encerrados no seu reduto. Para já, não constituem uma ameaça séria. No entanto, no caminho de regresso reflecti muito. Na Ásia, os hititas; no Egipto, a Rainha Ah-hotep. Dois casos comparáveis. Duas bolsas de rebelião que é necessário aniquilar sob pena de as ver reforçar-se ou, pior ainda, multiplicar-se.

 

 Não te encarreguei de evitar esse género de catástrofes?

 

 Com os meios de que disponho, considero ter feito o máximo.

 

 É a mim que compete avaliar, almirante.

 

 Podeis enviar-me para o labirinto ou entregar-me ao touro, mas a minha morte não resolverá nenhuma das dificuldades com que o Império é confrontado.

 

 O tom de Jannas desagradava ao Imperador, mas reconhecia a validade dos seus argumentos.

 

 O que desejas exactamente, almirante?

 

 Plenos poderes.

 

 Apopis permaneceu rigorosamente imóvel durante intermináveis instantes.

 

 Explica-te, Jannas.

 

 Por várias vezes, o grande tesoureiro contrariou a minha acção de forma lamentável. Comportando-se assim, enfraquece-nos. Que Khamudi se limite ao seu papel de gestor e pare com as suas tentativas de corrupção junto dos oficiais superiores. Quanto ao meu plano, ei-lo: utilizar a quase totalidade das nossas forças, com excepção de um único regimento, encarregado da segurança de Auaris, a fim de atingir o mais depressa possível três objectivos: primeiro, arrasar a cidade de Mênfis; em seguida, atravessar a frente egípcia, destruir Tebas e trazer-vos, mortos ou vivos, a Rainha Ah-hotep e o filho; por fim, esmagar os hititas, arrasando a Anatólia se for necessário. Os meus relativos fracassos eram apenas devidos à dispersão dos nossos homens pretendida por Khamudi. Temos portanto que pôr fim às nossas divergências e aniquilar os nossos inimigos. Para o conseguir só há uma solução-, a cada etapa, utilizar a nossa plena potência militar. Foi assim que os Hicsos conquistaram o seu Império, é assim que o desenvolvereis.

 

 O almirante estava consciente dos riscos que corria. Mas como comandante-chefe do exército, não podia contentar-se com resultados medíocres.

 

 Terminaste, Jannas?

 

 Não tenho nada mais a acrescentar, senhor, a não ser que a minha única preocupação é a grandeza do Império.

 

 Os capitães dos navios de guerra cretenses preparavam-se para cravar os esporões no navio inimigo e dar ordem aos seus archeiros para disparar, mas o aparecimento de Ah-hotep deixou-os estupefactos.

 

 Com o seu diadema de ouro e o longo vestido vermelho, tinha todo o ar de uma Rainha. Tratar-se-ia daquela egípcia que os contadores pretendiam ter rechaçado os hicsos?

 

 Nenhum dos marinheiros da sua tripulação tinha uma atitude agressiva. E um dos capitães reconheceu os dois cretenses que faziam grandes gestos.

 

 A manobra de ataque foi imediatamente interrompida e contentaram-se em guiar a embarcação egípcia até ao porto.

 

 Os dois cretenses foram os primeiros a pisar de novo o solo da sua pátria. Explicaram a um graduado que regressavam de uma missão e que a Rainha Ah-hotep pedia audiência a Minos, o Grande.

 

 Depois de uma discussão tempestuosa, o tom baixou. Nenhum dos membros da tripulação estava autorizado a desembarcar e o navio permaneceria atracado sob vigilância no pequeno porto onde os cargueiros descarregavam jarras de óleo.

 

 A Rainha foi convidada a subir para um carro puxado por dois bois.

 

 Um instante ordenou.

 

 Ah-hotep falou com o capitão egípcio para lhe pedir que não tentasse nada e esperasse o seu regresso. Depois, dirigiu-se aos dois cretenses que trouxera para a sua terra.

 

 Exijo que me deis garantia da segurança dos meus marinheiros e que me assegureis que serão bem tratados e correctamente alimentados durante a minha ausência. Caso contrário, volto a partir imediatamente.

 

 Breves palavras trocadas entre os cretenses terminaram de forma positiva, dando tempo à Rainha para examinar as rodas maciças do carro. O Egipto tinha-as fabricado desde a primeira dinastia, principalmente para fazer avançar em terreno duro as torres militares destinadas a atacar os bastiões líbios. Mas esta técnica revelara-se inútil nas zonas arenosas e, para o transporte de materiais, homens ou animais, a navegação no Nilo era inigualável. A invasão hicsa, no entanto, provava que os egípcios tinham feito mal em esquecer a roda. A Rainha concebeu um novo projecto que poria em execução no seu regresso, supondo que Minos, o Grande, não a fizesse prisioneira.

 

 Confortavelmente instalada, Ah-hotep descobriu Creta. Florestas de pinheiros e de carvalhos adornavam uma sucessão de colinas. A estrada que conduzia do porto à capital, Cnossos, era ladeada por postos de guarda e pequenas pousadas.

 

 Depois de ter atravessado um viaduto sobre um aterro arenoso, Ah-hotep contemplou a elevação que dominava o vale de Kairatos, onde cresciam ciprestes. Ao longe, o monte louktas. Como aquele país diferia do seu e como sentia já a falta do Egipto!

 

 A cidade de Cnossos era aberta. Nem fortificações nem muralhas, mas ruelas de comércio com oficinas e lojas. Numerosos mirones saíram de casa para admirar a bela estrangeira, que lhes sorriu e dirigiu sinais amigáveis. Rapidamente a atmosfera se descontraiu: mulheres e crianças quiseram tocar naquela Rainha vinda de um outro mundo e cuja lenda pretendia que dava sorte.

 

 Ultrapassada, a polícia tentou repelir os manifestantes. Ah-hotep desceu do carro e interpôs-se. De imediato regressou a calma, em breve substituída por aclamações de uma multidão complacente que adoptava aquela mulher tão bela e tão calorosa.

 

 E foi a pé, coroada de flores-de-lis e acompanhada de crianças risonhas, que a Rainha Liberdade fez a sua entrada no palácio real de Cnossos, cujos guardas não ousaram intervir.

 

 O imponente edifício abrigava-se atrás de espessas muralhas. Da ribeira, distinguiam-se terraços em degraus que ocultavam um vasto pátio com cerca de sessenta metros de comprimento e trinta de largura. Cada lado desse quadrilátero era orientado para um ponto cardeal. Para aquele espaço interior, agradável durante os fortes calores, abriam-se janelas oblongas com caixilhos pintados de vermelho.

 

 Um oficial precedeu a Rainha num corredor com paredes ornadas de machados e cabeças de touro.

 

 A sala do trono era menos austera. Com uma paleta de cores de um notável requinte, os pintores tinham criado admiráveis cenas representando apanhadores de açafrão, jovens de corpo encantador, transportadoras de vasos preciosos, gatos, poupas, perdizes, golfinhos e peixes voadores. Espirais e palmas decoravam os tectos.

 

 Não faltava um dignitário da corte de Cnossos, e os olhares convergiram para Ah-hotep.

 

 Imberbes, vestindo saiotes curtos coloridos e cruzados, os homens exibiam um toucado particularmente cuidado: longas madeixas onduladas alternando com madeixas encaracoladas mais curtas e outras em espiral caindo sobre a testa. Alguns calçavam botinas de cabedal, outros meias subidas.

 

 As mulheres rivalizavam em elegância e exibiam ostensivamente a última moda. Saias compridas, curtas ou com folhos multicores, corpetes transparentes, jóias em ouro, colares de ágata ou de cornalina revelavam o gosto das cretenses pelo luxo.

 

 Mas Ah-hotep eclipsava-as a todas, embora tivesse optado pela simplicidade, com o seu tradicional diadema de ouro e um vestido de linho de brancura imaculada. Uma maquilhagem ligeira salientava a perfeição das suas feições.

 

 Fixava o trono em pedra de gesso com alto espaldar, enquadrado por dois grifos, sobre o qual estava sentado um velho barbudo e imponente. Na mão direita, um ceptro; na esquerda, um duplo machado, símbolo do raio que utilizava contra os seus inimigos.  Majestade, o Faraó Ahmés apresenta-vos os seus votos de boa saúde, para vós e para Creta.  Minos, o Grande, avaliava Ah-hotep. 

 

 Portanto, ela existia realmente e estava ali, no seu palácio, só e sem exército, à sua mercê. Podia mandá-la prender e enviá-la ao Imperador, ou executá-la ele próprio e mandar a sua cabeça a Apopis.

 

 A decisão do Rei de Creta espantou a corte.

 

 Vinde sentar-vos à minha direita, Rainha do Egipto. Desde que enviuvara, Minos, o Grande, desinteressara-se das mulheres.  Prestar uma tal homenagem a uma soberana estrangeira não tinha na verdade nada de protocolar e os especialistas da etiqueta ficaram chocados. Mas quando Ah-hotep tomou lugar no trono em madeira dourada, adornado com figuras geométricas, esqueceram as suas críticas.

 

 Este palácio é digno do de Tebas?

 

 É muito mais vasto, melhor construído e mais bem decorado.

 

 Os Egípcios passam no entanto por construtores inigualáveis espantou-se o Rei.

 

 Os nossos antepassados eram-no. Em comparação com eles, não passamos de anões. Mas travamos uma guerra e apenas conta a libertação do meu país. Se o destino nos for favorável, vai ser necessário construir tudo de novo e seguiremos então o exemplo dos nossos predecessores. Possa a infelicidade que feriu o Egipto poupar Creta.

 

 Por aquela simples declaração, Minos, o Grande, vassalo do Imperador dos Hicsos, poderia ter lançado a provocadora na prisão.

 

 Como considerais a minha corte? perguntou-lhe ele.

 

 Brilhante e requintada. E não vejo nela nenhum hicso. Segundo a maioria dos dignitários cretenses, a Rainha ultrapassava os limites. Minos, o Grande, não parecia perturbar-se.

 

 A vossa viagem não foi demasiado fatigante?

 

 Por sorte, o mar mostrou-se calmo.

 

 O meu povo gosta da música, da dança e dos jogos. Por isso vos convido sem mais tardar para uma refeição de festa em vossa honra.

 

 O Rei levantou-se, Ah-hotep imitou-o. Lado-a-lado, os dois soberanos abandonaram a sala do trono para se dirigirem a um jardim onde tinham sido postas mesas floridas e carregadas de vitualhas.

 

 Depois de um fabuloso banquete, a corte deslocara-se para o lugar onde os acrobatas e os bailarinos tinham dado um espectáculo antes do apogeu dos festejos: a prova do touro.

 

 Numa arena, aparecera um monstro digno dos touros selvagens egípcios, que os caçadores experientes consideravam como o animal mais temível da criação.

 

 Para atletas ágeis e rápidos, o jogo consistia em provocar a cólera do animal, que investia contra eles. No último momento, agarravam-no pelos cornos e, com um salto perigoso que fazia estremecer a assistência, saltavam por cima do seu lombo e caíam para além da cauda.

 

 A técnica daqueles jovens era tão espantosa que nenhum acidente perturbou o jogo.

 

 Que sorte reservais ao touro? perguntou Ah-hotep a Minos, o Grande.

 

 Deixamo-lo em liberdade. Matar tão nobre animal, incarnação da força real, seria um acto bárbaro.

 

 O que representa aquele estranho desenho na parede da arena?

 

 O labirinto, um símbolo ligado ao touro. Foi construído perto de Cnossos e abrigava um génio de terrível força, o Minotauro. Graças ao fio que lhe entregou Ariana, o herói Teseu entrou no labirinto, matou o monstro e voltou a sair sem se perder.

 

 Acreditais, Majestade, que existe um fio de Ariana para ligar os nossos dois países?

 

 Minos, o Grande, acariciou a barba.

 

 Se bem compreendo, estais farta das nossas distracções e desejais abordar as questões essenciais.

 

 O Egipto está em guerra. Seja qual for a qualidade do vosso acolhimento, não me posso demorar muito tempo.

 

 A hesitação do Rei de Creta foi pesada de ameaças.

 

 Como quiserdes... Deixemos a corte divertir-se e retiremo-nos para os meus aposentos.

 

 O velho andava com dificuldade, mas a sua energia permanecia intacta. Ah-hotep estava satisfeita por negociar com um verdadeiro monarca.

 

 Ele instalou-se com a Rainha num gabinete decorado com cenas campestres. Nas prateleiras, tabuinhas de madeira cobertas de textos.

 

 Como é difícil administrar um país! lamentou-se Minos, o Grande. Um instante de descuido e o caos ameaça.

 

 Não é mais esgotante ainda ter de prestar contas a um tirano como Apopis?

 

 O Rei de Creta deitou vinho tinto em duas taças de prata, ofereceu uma a Ah-hotep e sentou-se num robusto cadeirão, enquanto a Rainha tomava lugar num banquinho coberto por um tecido multicor.

 

 Como está o meu filho, o comandante Linas?

 

 Quando deixei Tebas, estava muito bem e parecia apreciar bastante a nossa modesta capital. Informo-vos que foi ele que decidiu ficar no Egipto até ao meu regresso.

 

 Eram essas as minhas ordens. Se não vos tivesse oferecido uma garantia desse valor, teríeis vindo a Creta?

 

 Ele não é vosso filho, pois não?

 

 O Rei não ousou fitar a interlocutora.

 

 Não, não é.

 

 Agora, posso conhecer as razões do vosso convite?

 

 Eu, um fiel vassalo dos Hicsos, receber na minha ilha a sua principal inimiga... por que razão não haveis recuado perante uma cilada tão grosseira?

 

 Porque não se trata de uma cilada. Sabeis que os Hicsos vos querem aniquilar e que não podereis combatê-los sozinho. É por isso que considerais uma aliança com o Egipto.

 

 Minos, o Grande, contemplou demoradamente Ah-hotep.

 

 Que força sobrenatural vos permite resistir ao Imperador?

 

 O desejo de liberdade.

 

 E não renunciais nunca?

 

 O meu marido morreu em combate, o meu filho mais velho também, e o meu mais novo é hoje Faraó, firmemente decidido a continuar a luta, mesmo a um contra dez. Graças aos esforços dos nossos carpinteiros, a nossa marinha de guerra pode rivalizar com a dos Hicsos.

 

 Em terra, os seus carros esmagar-vos-ão!

 

 Ainda não encontrámos a solução, é verdade, mas estou certa que existe.

 

 O Rei recostou-se no cadeirão.

 

 Ventosa, a irmã do Imperador, veio a Cnossos dizer-me que o seu amante, um pintor cretense que eu tinha em alta estima, fora assassinado por ordem de Apopis. Para se vingar, ela revelou-me dois segredos de Estado. Primeiro, a confirmação da vossa existência e dos vossos êxitos militares.

 

 O meu filho Kamés lançou um ataque contra a capital dos Hicsos, Auaris, e a nossa frente repeliu um assalto do almirante Jannas em pessoa. Actualmente, controlamos o Alto Egipto, o que a propaganda do Imperador tenta ocultar.

 

 Graças à minha marinha mercante, posso espalhar a verdade em muitos países.

 

 Nesse caso, os vassalos de Apopis saberão que ele não é invencível e a revolta propagar-se-á!

 

 Não sejais tão optimista, Ah-hotep, porque nem todos têm a vossa coragem. No entanto, é possível que essa notícia abale profundamente o Império.

 

 Estais decidido a agir, Minos?

 

 Antes, devo falar-vos do segundo segredo de Estado: existe uma profunda rivalidade entre os dois principais executantes das vontades de Apopis, a saber, o almirante Jannas e o grande tesoureiro Khamudi. Os dois homens detestam-se e o seu confronto, mais ou menos disfarçado, acabará por vir à luz do dia, enfraquecendo o regime hicso. Apopis envelhece e prepara-se a guerra de sucessão. Quem a ganhará?

 

 Pouco importa afirmou a Rainha. O essencial é aproveitar essa oportunidade. Quando houver um vencedor, comportar-se-á como o pior dos tiranos. É portanto antes da sua tomada de poder que precisamos de intervir.

 

 Creta está muito longe do Egipto e é no meu país que devo pensar em primeiro lugar.

 

 Se não combaterdes a meu lado, posso pelo menos ter a certeza da vossa neutralidade?

 

 É um compromisso que exige madura reflexão, porque as suas consequências arriscam-se a ser dramáticas.

 

 Só vos resta uma saída, Minos: reconhecer a minha soberania sobre as ilhas da bacia mediterrânea, e particularmente sobre a vossa. Como Rainha das margens distantes, dever-vos-ei protecção e é contra mim, e contra mim só, que se desencadeará a cólera de Apopis.

 

 Minos esboçou um sorriso.

 

 Não sereis mais exigente do que o Imperador?

 

 A minha única exigência será a vossa palavra de não me trair. Continuareis a ser Rei de Creta, o vosso país manterá a sua independência, trocaremos embaixadores e tributos.

 

 Existe outra solução, Ah-hotep. Sou viúvo e o meu país tem falta de uma Rainha. Aqui, estaríeis em segurança e o meu povo adoptar-vos-ia sem dificuldade.

 

 Sou fiel a um único homem, o Faraó Seken. Como Esposa do Deus, tento robustecer constantemente a força do Rei do Egipto e atrair para ele a benevolência de Amon. O meu lugar é no coração do meu exército. Refugiar-me junto de vós seria uma cobardia inqualificável. Reconhecei portanto a minha soberania, Minos, transmiti verdadeiras informações graças aos vossos marinheiros, não presteis qualquer assistência aos hicsos e preparai a vossa ilha para repelir um assalto da frota de Jannas.

 

 As vossas condições são draconianas, Ah-hotep!

 

 São aquelas que desejáveis ouvir, não é verdade? Minos, o Grande, não respondeu.

 

 O que aconteceu a Ventosa? perguntou a Rainha.

 

 Afogou-se. Um infeliz acidente. É tempo de irdes repousar, Ah-hotep.

 

 Quando terei a vossa resposta?

 

 Quando chegar o momento.

 

 Os apartamentos reservados à Rainha do Egipto eram luxuosos. Para além de um mobiliário em madeira de bela qualidade, compreendiam uma sala de banhos e toilletes equipadas com um assento de madeira colocado sobre uma canalização que ia dar à rede de esgotos existente por baixo do palácio. As águas da chuva desciam dos terraços por condutas cimentadas e o conjunto dos vários canos ia dar a um grande colector.

 

 Sobre uma mesa em pórfiro, taças decoradas com espirais, vasos cónicos e outros com cabeça de leão contendo água, vinho e cerveja. Quanto à cama, era confortável.

 

 Ah-hotep deitou-se, perguntando a si própria se voltaria a sair um dia daquela prisão dourada.

 

 Lamento declarou o chefe da guarda. O Imperador está adoentado e não receberá ninguém hoje.

 

 Nem mesmo eu? espantou-se Khamudi.

 

 As minhas ordens são rigorosas, grande tesoureiro: ninguém. Tratava-se da primeira vez que Khamudi era assim repelido. É verdade  que ao almirante Jannas também não era permitido ver o Imperador, mas a posição privilegiada do grande tesoureiro acabava de ser anulada.

 

 Inquieto, Khamudi interrogou alguns fiéis apoiantes para saber quanto tempo durara a conversa entre Apopis e Jannas: mais de uma hora! Em geral, o Imperador dava ordens breves. Desta vez, devia ter havido uma discussão.

 

 Quanto ao almirante, encontrava-se na caserna principal de Auaris rodeado de todos os seus oficiais superiores. Por outras palavras, reunia o estado-maior sem convocar o grande tesoureiro.

 

 À beira de uma crise de nervos, Khamudi regressou a casa.

 

 Já de regresso? requebrou-se a dama Yima. É por minha causa, certamente! Vem, meu querido, vou...

 

 Estamos em perigo. Yima empalideceu.

 

 - Quem... quem nos ameaça?

 

 Estou convencido de que Jannas pediu plenos poderes ao Imperador.

 

 Apopis com certeza recusou!

 

 Receio que não. Recusa receber-me, enquanto o almirante revela os seus planos aos generais.

 

 Não podes ser informado deles?

 

 Sê-lo-ei, mas tarde de mais. E creio saber do que se trata: a guerra total, tanto no Egipto como na Ásia, com a utilização de todas as nossas forças. Nessa perspectiva, ou o meu papel será reduzido ao mínimo, ou serei eliminado por ter contrariado os projectos do almirante. Em breve os seus esbirros virão prender-nos.

 

 Fujamos imediatamente!

 

 É inútil. Jannas instalou por certo os seus homens nas saídas de Auaris. E para onde iríamos?

 

 Tens de forçar a porta do Imperador!

 

 Impossível.

 

 Mas então... o que havemos de fazer?

 

 Batermo-nos com as nossas armas. Convenceste a imperatriz Tani que o almirante Jannas, incapaz de defender Auaris, era o responsável pela sua doença?

 

 Sim, sim!

 

 Vai vê-la e explica-lhe que esse louco tenciona travar a guerra em todas as frentes ao mesmo tempo e que apenas deixará a guarda imperial na capital. Se os egípcios regressarem, não terão então nenhuma dificuldade em apoderar-se da cidadela. Tani será capturada e torturada.

 

 Sem perder tempo a maquilhar-se e mudar de vestido, Yima correu para casa da imperatriz.

 

 Os generais tinham aprovado sem reservas a estratégia preconizada por Jannas. Os rebeldes, tanto asiáticos como egípcios, não podiam continuar a desafiar assim o Império hicso. Era necessário atacar com força e aniquilá-los a fim de demonstrar que o exército do Imperador nada perdera da sua eficácia.

 

 Até mesmo os oficiais subornados por Khamudi se tinham aliado à causa do almirante.

 

 Quanto ao grande tesoureiro, seria detido nos próximos dias e depois enviado para um dos dois campos de concentração de que tanto se orgulhava.

 

 Magicando no inevitável encadeamento dos acontecimentos, Jannas permanecia pensativo. É certo que surgia como o único comandante-chefe dos regimentos hicsos, mas sem a concordância explícita de Apopis. Como soldado que sempre lhe obedecera, aquela indecisão contrariava-o. Desejava conseguir plenos poderes sem qualquer equívoco e iria portanto rondar os apartamentos de Apopis até obter uma declaração oficial. O Imperador sabia bem que não podia recusar.

 

 Supondo que aquele velho se recusasse a admitir a realidade e condenasse assim o Império hicso a desaparecer, Jannas tinha o dever de o salvar. Se Apopis teimasse, o almirante deveria desembaraçar-se dele.

 

 O seu ajudante-de-campo interrompeu o atribulado curso dos seus pensamentos.

 

 Almirante, um grande escândalo! Afirmam que haveis mandado decapitar os vossos criados para oferecer os seus cadáveres no templo de Set antes de partir para campanha!

 

 Isso é delirante!

 

 Foi lançada uma acusação de assassínio contra vós pelo grande tesoureiro Khamudi.

 

 Vamos imediatamente à minha mansão para destruir essas alegações.

 

 Acompanhado pelos seus guarda-costas, Jannas avançou rapidamente até ao seu domicílio oficial.

 

 A sentinela encarregada de vigiar a entrada tinha desaparecido.

 

 De acordo com as ordens do Imperador, um espaço arenoso substituía o jardim, considerado amolecedor.

 

 Dispersai-vos em redor da casa ordenou Jannas aos seus homens.

 

 O ajudante-de-campo permaneceu junto do almirante.

 

 A porta principal estava escancarada.

 

 O almirante chamou o seu intendente. Não obteve resposta.

 

 Com a garganta cortada, o criado jazia no átrio de entrada. A poça de sangue ainda estava quente.

 

 Os assassinos acabam de partir constatou o ajudante-de-campo.

 

 Autor de muitos massacres, Jannas parecia perdido. Nunca tinha pensado que o pudessem agredir na sua própria casa e atacar o seu pessoal doméstico.

 

 Com um andar vacilante, o almirante atravessou o átrio para penetrar na sala de recepções.

 

 Sobre uma cadeira, numa posição grotesca, o corpo da sua criada de quarto. A seus pés, a cabeça cortada. Não longe dela, os cadáveres despidos da cozinheira e do jardineiro, com as cabeças ensanguentadas poisadas sobre o ventre.

 

 O ajudante-de-campo vomitou.

 

 Atordoado, Jannas entrou lentamente no seu gabinete.

 

 O seu secretário fora morto à machadada e a cabeça imperava sobre uma estante.

 

 Continuo a explorar este sepulcro disse Jannas ao seu ajudante-de-campo. Vai ver se os meus homens encontraram alguém. Se não, eles que venham ter comigo.

 

 No quarto do almirante, as três últimas criadas, também decapitadas. O leito, as cadeiras e as paredes estavam sujos de sangue.

 

 Nenhum membro do seu pessoal doméstico fora poupado.

 

 Jannas agarrou num copo cheio de água fresca e espalhou-a sobre o rosto.

 

 Depois, saiu da casa e chamou o seu ajudante-de-campo.

 

 Surpreso por não ter resposta, tropeçou no corpo de um dos seus guardas, com uma flecha cravada na nuca.

 

 A uma dezena de passos, o ajudante-de-campo, morto da mesma maneira. Um pouco mais longe, outros guardas.

 

 Petrificado durante um instante, Jannas compreendeu que devia fugir.

 

 Duas enormes mãos apertaram-lhe o pescoço. Com um golpe de cotovelo, bateu no ventre do adversário para se libertar, mas a dama Aberia encaixou o golpe sem pestanejar.

 

 Ninguém é mais forte do que o Imperador disse ela, estrangulando-o com selvajaria. Ousaste desafiá-lo, Jannas, e essa insolência merece a morte.

 

 O almirante debateu-se com a derradeira energia, sem conseguir que a assassina soltasse a sua presa.

 

 Com a laringe esmagada, morreu amaldiçoando Apopis.

 

 Está feito anunciou Aberia ao grande tesoureiro, rodeado pelos piratas cipriotas que tinham abatido o pessoal e os guardas de Jannas.

 

 Esventra-o com uma foice. Oficialmente, foi o jardineiro que o assassinou para o roubar.

 

 Ah-hotep acabava de adormecer quando o seu leito tremeu com tanta força que quase a fez cair. Os móveis gemeram e um vaso quebrou-se no solo. A calma regressou durante alguns instantes, depois um novo abalo, mais forte do que o primeiro, incitou a Rainha a levantar-se. O tecto do seu quarto apresentava fendas. Lá fora, gritos.

 

 Ah-hotep tentou sair, mas a porta estava fechada por fora.

 

 Abram mediatamente!

 

 Uma voz embaraçada respondeu:

 

 Majestade, as ordens...

 

 Abram ou deito abaixo esta porta!

 

 O homem que a libertou não era um guarda vulgar. Secretário particular de Minos, o Grande, falava, tal como o rei, um egípcio aceitável.

 

 Sou vossa prisioneira?

 

 Não, de maneira nenhuma, mas a vossa segurança...

 

 Não troceis de mim: exijo a verdade. O secretário cedeu.

 

 O Rei Minos partiu para a montanha sagrada a fim de recolher o oráculo do touro na gruta dos mistérios. Em geral, só lá vai de nove em nove anos. Tendo em conta a pergunta excepcional que tem de fazer, quebrou a tradição e correu muitos riscos. Por vezes, o soberano reinante não volta a sair da gruta e temos de o substituir. Na corte, muitos pensam que Minos, o Grande, cometeu um duplo erro: convidar-vos a vir a Cnossos e enfrentar esta prova.

 

 A maior parte dos dignitários cretenses é favorável aos Hicsos, não é verdade?

 

 Digamos que receiam, com razão, a cólera do Imperador. A vossa presença convenceu mais do que um a mudar de opinião, mas continuam a existir os irredutíveis que poderiam revelar-se perigosos. Na sua ausência, o Rei pediu-me que velasse por vós e creio que a melhor solução consiste em fechar-vos no vosso quarto, que será vigiado dia e noite.

 

 Daqui a quanto tempo Minos, o Grande, regressará a Cnossos?

 

 A consulta do oráculo demora nove dias.

 

 E... se ele não regressar?

 

 O secretário pareceu pouco à-vontade.

 

 Seria uma tragédia para Creta. Receio uma luta feroz pelo trono e a vitória de um partidário dos Hicsos.

 

 Então não me fecheis. Devo ter liberdade de movimentos.

 

 Como quiserdes. Mas peço-vos para não abandonardes esta álea do palácio onde cada guarda é um homem seguro.

 

 Prometo.

 

 Os vossos alimentos e bebidas são testados pelo meu cozinheiro. Podeis portanto alimentar-vos e desalterar-vos com toda a segurança. Sabei que desejo vivamente o regresso de Minos, o Grande, e a concretização dos vossos projectos.

 

 Estes tremores de terra são frequentes?

 

 Cada vez mais, nestes dois últimos anos. Alguns afirmam que traduzem a cólera de um vulcão cuja serenidade os Hicsos profanaram, massacrando nas suas encostas piratas cipriotas. Os abalos são impressionantes mas não provocam grandes estragos. O palácio de Cnossos é tão sólido que não tendes nada a recear.

 

 Gostaria de falar todos os dias convosco sobre a evolução da situação.

 

 Será feito como desejais, Majestade.

 

 Entre os marinheiros egípcios, fundeados no pequeno porto cretense onde eram armazenadas as jarras de óleo, o tom não era de optimismo. Não havia qualquer contacto entre eles e os autóctones. Os soldados traziam-lhes duas refeições por dia e jarras com água. Nem vinho, nem cerveja.

 

 Era-lhes proibido desembarcar e a única tentativa do capitão terminara no fim da passarela. Ameaçado por lanças, tivera de voltar para trás.

 

 Nunca nos entenderemos com esta gente considerou o imediato.

 

 No passado, antes da invasão hicsa, fazíamos comércio com eles lembrou o capitão.

 

 Hoje, são inimigos!

 

 A Rainha Ah-hotep talvez consiga fazer deles nossos aliados. Não seria o seu primeiro milagre.

 

 Não sonheis, capitão: Creta é um vassalo do Imperador e assim continuará. Caso contrário, o almirante Jannas transformá-la-á em deserto.

 

 Deixa-me mesmo assim sonhar.

 

 Mais valeria admitir a realidade! Há dez dias que estamos imobilizados aqui e que não temos qualquer notícia da Rainha. Abri os olhos, capitão!

 

 Explica-te.

 

 Ah-hotep está morta ou prisioneira. Em breve, os cretenses subirão a bordo e passar-nos-ão a fio de espada. Temos de partir o mais depressa possível.

 

 E as amarras?

 

 Temos dois bons mergulhadores que as cortarão durante a noite. De madrugada, levantamos âncora e saímos do porto a remar.

 

 Os archeiros dispararão sobre nós!

 

 Serão perturbados pela luz do Sol nascente. E nós ripostaremos.

 

 Os barcos cretenses perseguir-nos-ão.

 

 Não é muito certo. Sabem que somos inexperientes no mar e contarão com o nosso naufrágio. E depois, somos mais rápidos do que eles. Com os mapas e um pouco de sorte, regressaremos ao Egipto.

 

 Não tenho o direito de abandonar a Rainha Ah-hotep!

 

 A sua sorte está selada, capitão. Salvai pelo menos a vossa tripulação.

 

 A reflexão foi amarga, mas era impossível escapar à conclusão.

 

 Está bem, imediato. Prepara os homens, partiremos de madrugada.

 

 Dez dias.

 

 Minos, o Grande, não regressara da gruta do oráculo. Por outras palavras, o Rei de Creta tinha morrido e a guerra da sucessão acabava de se iniciar. Ah-hotep seria um dos troféus daquela batalha encarniçada. Ou o novo soberano a executaria e faria desaparecer o seu corpo, ou a poria nas mãos de Apopis. Segundo o que soubera da boca do secretário de Minos, os pretendentes estavam todos persuadidos de que a Rainha do Egipto representava um perigo a afastar.

 

 Se não conseguisse abandonar o palácio nas próximas horas, Ah-hotep nunca mais reveria o seu país. Mas a álea onde ela estava era agora vigiada por novos soldados que não a deixariam passar.

 

 Como fugir, a não ser usando o vestuário de uma criada e tentando eclipsar-se com as outras empregadas domésticas? A seguir, seria necessário sair da capital e vencer a distância que a separava do porto. Mas o seu navio ainda lá se encontraria?

 

 Ah-hotep esqueceu os obstáculos que tornavam a sua evasão impossível.

 

 Quando a criada de quarto entrasse para mudar os lençóis, pô-la-ia a dormir.

 

 Bateram à porta.

 

 Sou eu murmurou o secretário de Minos, o Grande. Abri depressa.

 

 O homem não estaria acompanhado por uma chusma de soldados? Desta vez, não tinha qualquer saída. Ah-hotep abriu. O secretário estava só.

 

 Minos, o Grande, morreu com certeza na gruta misteriosa admitiu ele. Os sacerdotes reclamam um prazo antes de evocarem a sucessão. É a vossa única hipótese de escapar, Majestade. Subi para o meu carro, acompanhar-vos-ei até ao porto.

 

 Porque correis tais riscos?

 

 Porque acredito numa aliança entre o Egipto e Creta. Tanto para o meu país como para o vosso, não há outro processo de escapar à tirania hicsa. Será essa a posição que defenderei na corte e diante do novo soberano, mesmo sem esperança de ser escutado.

 

 O carro avançou pela estrada que conduzia ao porto. A qualquer instante a Rainha esperava ser detida por uma patrulha. Graças às intervenções do secretário de Minos, o Grande, nenhum posto de guarda controlou o veículo.

 

 O barco egípcio ainda estava no cais. Cerca de vinte soldados impediam o acesso.

 

 Haveis recebido ordem de não deixar ninguém sair lembrou o secretário a um graduado. A Rainha Ah-hotep vai subir a bordo.

 

 Colocado perante a evidência, o graduado afastou-se. Com os nervos extremamente tensos, tal como os outros membros da tripulação, o capitão não ousou manifestar a sua alegria.

 

 Estávamos persuadidos que não vos voltaríamos a ver nunca mais, Majestade, e encontrávamo-nos prestes a partir.

 

 Teríeis feito bem. Levantai a âncora, cortai as amarras e içai as velas. Se os archeiros cretenses dispararem, ripostaremos.

 

 Enquanto os egípcios executavam com grande rapidez as manobras, o secretário do Rei discutia firmemente com o graduado para o impedir de abrir as hostilidades. Conseguiu convencê-lo que Minos, o Grande, desejava a partida da Rainha Ah-hotep, cuja estadia em Creta devia permanecer um segredo de Estado.

 

 Confrontado com argumentos complexos que não tinha tempo de expor a um superior, o oficial viu o navio egípcio manobrar. Aproveitando um forte vento de trás, afastou-se com rapidez da costa  cretense.

 

 Sob o comando do Faraó Ahmés, o exército egípcio reunido em Porto-de-Kamés assumira um aspecto garboso. Todos apreciavam a autoridade do monarca que, no entanto, permanecia próximo dos seus homens. Para além dos exercícios e manobras cuja frequência não diminuía, o Rei velava pela administração e não tolerava qualquer falha nas ordens dadas. Reinava no campo uma higiene rigorosa e as refeições eram excelentes.

 

 Tais condições de existência, tão boas quanto possível, não faziam esquecer a ninguém que mais cedo ou mais tarde se verificaria um ataque hicso. O estado de alerta era portanto permanente. De dia e de noite, numerosos vigias tinham por missão alertar o Faraó ao menor sinal de perigo.

 

 Graças a Larápio e aos seus pombos-correio, Ahmés permanecia em contacto com o Bigodes e o Afegão, que continuavam a animar a resistência de Mênfis. Os hicsos contentavam-se em manter o cerco sem tentar tomar de assalto a parte da grande cidade que não dominavam.

 

 Ahmés sonhava muitas vezes com Nefertari, que ficara em Tebas para aí desempenhar as funções que outrora eram exercidas por Teti, a Pequena. Com o auxílio de Herai e de Qaris, a Grande Esposa Real tinha o encargo de garantir a prosperidade das províncias do Alto Egipto que forneciam aos soldados os indispensáveis produtos alimentares. Todas as manhãs, a jovem se dirigia ao templo de Karnak onde celebrava o despertar de Amon e solicitava a sua protecção.

 

 O povo amava já aquela soberana, a um tempo simples e plenamente responsável.

 

 Nada a assinalar, Majestade disse-lhe o governador Emheb a quem a robusta constituição permitira recuperar.

 

 Responde-me sem disfarces: a nossa vigilância poderia ser apanhada em falta?

 

 Não vejo como, Majestade. Todo o sistema é falível, bem entendido, mas dupliquei cada posto. Quer o inimigo venha pelo rio os campos ou o deserto, será detectado.

 

 Como se comporta o cretense?

 

 Respeita a sua prisão domiciliária.

 

 Ahmés julgara preferível levar o comandante Linas para Porto-de-Kamés, pondo-o no segredo para que soubesse o menos possível sobre o exército egípcio. Lamentava sem dúvida a saída de Tebas mas não se tratava de um hóspede muito particular que o Faraó não tinha a obrigação de acarinhar?

 

 Porque não tenta Jannas aniquilar-nos? perguntou Ahmés ao governador Emheb.

 

 Porque não tem as mãos livres, Majestade. Ou o Imperador o mandou espalhar o terror num país longínquo, ou o almirante está encarregado da segurança do Delta e da preparação de uma ofensiva que varrerá tudo à sua passagem. Jannas com certeza tirou lições do seu fracasso.

 

 E se as querelas internas enfraquecessem os hicsos? O Imperador está velho e o seu trono em breve ficará vago.

 

 Receio que esse velho maléfico nos enterre a todos! Ahmés reconheceu o bater de asas característico de Larápio,

 

 que regressava do oásis de Siua, próximo da Líbia.

 

 O chefe do serviço de informações egípcio poisou com a sua precisão habitual. No seu olhar havia alegria.

 

 Ao ler a mensagem, o Rei compreendeu por que razão Larápio estava feliz.

 

 A minha mãe está de regresso anunciou ao governador Emheb. Ela e a sua tripulação atravessaram as zonas pantanosas do Delta, meteram pelas pistas do deserto e acabam de chegar ao oásis.

 

 A pista está sob o nosso controlo lembrou o governador cujo rosto se iluminava num amplo sorriso mas mesmo assim vou mandar homens ao encontro da vossa mãe.

 

 Logo que Risonho, o Jovem e Vento do Norte autorizaram o Faraó a aproximar-se da soberana que tinham recebido ruidosamente, Ah-hotep e o filho abraçaram-se.

 

 Estais de boa saúde, mãe?

 

 Excelente. Este passeio por mar permitiu-me repousar depois da minha partida precipitada de Creta.

 

 Então era uma cilada!

 

 Não exactamente. Minos, o Grande, compreendeu que os Hicsos acabariam por invadir o seu país, mas receia a sua reacção se se aliar ao Egipto. Propus-lhe portanto, como soberana das margens distantes, que se colocasse sob a nossa protecção.

 

 E... ele aceitou?

 

 Retirou-se para a gruta misteriosa onde meditam os reis de Creta quando têm necessidade de uma energia nova. Mas não regressou e os seus potenciais sucessores começaram a atacar-se mutuamente. Sem o auxílio do secretário de Minos, que acredita na ligação egipto-cretense, teria ficado sua prisioneira.

 

 O vosso regresso é um novo milagre!

 

 A sorte ainda não me abandonou, Ahmés.

 

 Não podemos portanto contar com Creta lamentou o Faraó.

 

 A grande ilha vai sofrer profundas perturbações. O que sairá disso? Se o próximo monarca não acusar o secretário de Minos de alta traição, talvez lhe dê ouvidos. Para ser sincera, a esperança é muito fraca. A minha viagem não terá no entanto sido inútil, porque o Rei de Creta me disse que o almirante Jannas e o grande tesoureiro Khamudi, os dois hicsos mais importantes depois do Imperador, se odeiam! Encarniçam-se já num combate sem tréguas, sem dúvida com a ambição de substituir o velho Apopis.

 

 É por isso que Jannas ainda não nos atacou! E se aproveitássemos para tentar retomar Mênfis e avançar no Delta?

 

 São esses os meus objectivos, Ahmés, mas precisamos primeiro de resolver o problema levantado pelos carros hicsos.

 

 Haveis concebido um novo projecto, não é verdade?

 

 Antes de falarmos nisso, convoca o cretense.

 

 Bom garfo e sólido bebedor reduzido à inactividade, o comandante Linas tinha engordado.

 

 Majestade, como estou contente por vos rever! exclamou ele, cumprimentando Ah-hotep. Ouso acreditar que me autorizais a regressar a Creta.

 

 Quem és tu? Linas atrapalhou-se.

 

 - Bem o sabeis, o filho de Minos, o Grande, o seu filho mais novo!

 

 Ele próprio me confessou que tinhas mentido por sua ordem a fim de que eu deixasse o Egipto sem preocupação. Um monarca não teria sacrificado o seu próprio filho, não é verdade? A tua história não me convenceu, Linas, mas apesar disso parti.

 

 O cretense ajoelhou-se.

 

 Obedeci a Minos, Majestade, mas mesmo assim não sou um qualquer! Consideram-me como um dos melhores marinheiros cretenses e, em caso de conflito, o meu navio combaterá na primeira linha.

 

 Podes regressar a casa decidiu a Rainha.

 

 Agradeço-vos, mas... de que maneira?

 

 - Dirige-te a um pequeno porto sob controlo hicso e faz com que te contratem num dos seus navios mercantes de partida para Creta. Se o teu novo Rei desejar transmitir-me uma mensagem, ele que ta confie. Acolher-te-emos de novo com satisfação.

 

 Porque não impedira o espião hicso que Ah-hotep fosse a Creta? Por duas razões-, por um lado, porque esperava que ela não chegasse à grande ilha, tão numerosos eram os perigos da viagem; por outro lado, porque tinha a certeza que Minos, o Grande, não ousaria fazer uma aliança com os Egípcios. Além disso, ignorava que Ventosa se rebelara contra Apopis e revelara segredos de Estado.

 

 Durante a ausência da Rainha não fora perpetrada nenhuma tentativa de atentado contra a pessoa de Ahmés. Em Tebas não houvera qualquer incidente.

 

 Nem Ah-hotep nem o Faraó conseguiam convencer-se que o espião tivesse renunciado a atacar.

 

 Não se verificaram recentemente mortes de oficiais superiores? perguntou a Rainha.

 

 Um velho general de engenharia deixou-nos, com efeito, mas não tinha o perfil de um sectário de Apopis.

 

 Não será essa precisamente a principal qualidade que Apopis lhe exige?

 

 Isso significaria que esse monstro está morto e que o Imperador deixou de ter informador!

 

 Não passa de uma hipótese bem frágil, Ahmés, e mais vale esquecê-la. No entanto, seria bom que regressasses a Tebas e fizesses um inquérito aprofundado sobre esse velho general. Assim, terás ocasião de rever Nefertari.

 

 Continuais a ler os meus pensamentos, mãe. Tenho pressa de conhecer o vosso plano para lutar contra os carros hicsos.

 

 Consiste antes de tudo em rememorar as nossas próprias técnicas e, em seguida, em utilizar as do adversário.

 

 Larápio em pessoa levou a mensagem de Ah-hotep ao Afegão e ao Bigodes que se encontravam no quartel-general da resistência menfita, uma quinta semidestruída e aparentemente abandonada. Como já não interessava aos hicsos há muito tempo, era lá que armazenavam alimentos e armas vindos do sul antes de os introduzir em Mênfis cercada.

 

 Conhecendo tudo dos hábitos e horários do inimigo, os egípcios utilizavam o melhor que podiam as falhas do bloqueio. O comandante dos carros já não lançava assaltos e contentava-se com demonstrações de força por ocasião de grandes manobras destinadas a impressionar os resistentes, condenados a apodrecer ali.

 

 O Bigodes descodificou a mensagem.

 

 Ora esta! É impossível, davam cabo de nós.

 

 A Rainha ordena-nos que ataquemos Auaris?

 

 Não andas longe da verdade! Ora esta...

 

 Gostava que te explicasses melhor manifestou o Afegão.

 

 Devemos apoderar-nos de um carro hicso e vários cavalos. O Afegão ficou sem vontade de brincar.

 

 Ora esta... murmurou ele também.

 

 Atordoados, os dois homens esvaziaram um jarro de vinhotinto, uma especialidade local que dava coragem.

 

 A Rainha não nos deixa opção, suponho? Já a conheces respondeu o Bigodes.

 

 A ideia é genial, mas a sua realização bastante problemática, tanto mais que não sabemos manejar nem os cavalos nem os carros. Está fora de questão roubar um conduzindo-o.

 

 Tens razão, Afegão. Portanto, uma parte do comando ocupar-se-á desses animalejos que devem assemelhar-se a burros e outra do carro, que será necessário puxar até ao rio. E nós embarcaremos tudo num veleiro.

 

 Aprecio esse resumo que tem a vantagem de iludir as fases críticas da operação Acreditas que possamos pedir delicadamente a um oficial hicso que nos autorize a examinar o seu veículo? A tua primeira reacção parece-me a correcta: davam cabo de todos nós.

 

 Ordens são ordens. Não vamos desiludir a Rainha Liberdade, não achas?

 

 Nisso estamos de acordo, Bigodes.

 

 Os dois amigos reuniram os seus melhores homens para formarem um comando de trinta resistentes. Mais numeroso, arriscar-se-ia a ser notado e a tornarem-se ineficazes. Era inútil perguntar-lhes se eram voluntários para uma missão impossível, visto que deviam sê-lo em permanência. No entanto, o objectivo não despertou qualquer entusiasmo. Todos compreenderam que tinham muito poucas hipóteses de sobreviver àquela loucura.

 

 Considero três acções simultâneas propôs o Afegão. Um: os menfitas criam uma diversão atacando o acampamento hicso o mais próximo possível da muralha branca. Dois: vinte e cinco de nós retiram um máximo de cavalos da cavalariça. Três: os cinco outros apoderam-se de um carro.

 

 Saltaram perguntas de todos os lados, sublinhando as dificuldades da operação. E a bebida correu em rios.

 

 Seguindo os passos de Teti, a Pequena, à qual prestava todos os dias homenagem, Nefertari não cessava de embelezar Tebas. Conquistara todos os corações, incluindo os dos velhos sacerdotes e dos artesãos mais endurecidos. O intendente Qaris tornara-se seu cúmplice dedicado e o ministro da Economia Herai considerava um ponto de honra apresentar-lhe as provas de uma perfeita gestão.

 

A jovem Rainha não permanecia fechada no seu palácio. Percorria os campos, visitava as casas da capital, concedia a mesma consideração aos pobres e aos ricos, intervinha em favor dos doentes e dos mais carenciados. Os dias eram longos, por vezes esgotantes, mas como ousaria ela queixar-se pensando em Ah-hotep que, há tantos anos, lutava com risco da própria vida para libertar o Egipto?

 

Apenas a ausência de Ahmés lhe pesava verdadeiramente. Privada da sua serena força, sentia-se vulnerável.

 

Ele estava finalmente de regresso!

 

Muito antes da sua chegada já Nefertari se encontrava no desembarcadoiro onde se preparava a festa para receber o Faraó.

 

Nem ela nem ele ouviram as aclamações. No seu olhar brilhava uma felicidade tão profunda e tão intensa que estavam sós no meio da multidão em delírio.

 

Nefertari conseguia quase fazer-lhe esquecer a guerra, de tal forma as suas noites de amor eram alegres e apaixonadas. Mas Ahmés era o Faraó e, chegada a manhã, devia ao seu povo a obrigação de assumir os deveres do seu cargo. Venerar Amon em Karnak era o primeiro deles, a fim de que o laço entre o céu e a terra não se quebrasse. Vinha em seguida a reunião do seu conselho, à qual assistia Nefertari, cujas recomendações tinham autoridade. Conhecendo na perfeição as forças e as fraquezas da região, a Grande Esposa Real orientava os espíritos para as decisões correctas.

 

Quanto tempo tencionas permanecer em Tebas?  perguntou-lhe ela quando saboreavam a doçura da noite no terraço do palácio.

 

Exactamente o tempo necessário para investigar sobre a morte de um velho general e saber se ele não seria o espião hicso que procuramos.

 

O espião hicso, mas...

 

A minha mãe considera-o responsável pela morte do meu pai e do meu irmão.

 

 Esse monstro terá assassinado dois Faraós... E poderias ter sido a sua próxima vítima!

 

 Mantém-te muito vigilante, Nefertari, e detecta o menor comportamento suspeito.

 

 O Rei recebeu Herai no seu gabinete. Continuando a velar pelas colheitas e o abastecimento dos celeiros, uma arma de guerra tão essencial como a espada, o ministro alargara o seu domínio ao conjunto da economia tebana. De contacto fácil e olho vivo, Herai convivia com toda a gente. Como esquecer a época em que descobria, em Tebas, os partidários dos hicsos? Sempre ligeiro apesar da sua massa impressionante, não cessara de manter uma rede de informadores a fim de que nada lhe escapasse e que a segurança da capital fosse bem garantida.

 

 Estudaste o caso do general?

 

 Em pormenor, Majestade. É um tebano que ultrapassou todos os escalões da hierarquia graças à sua capacidade para formar jovens recrutas. Passou a maior parte da sua existência na base secreta e sempre se mostrou fervoroso partidário da luta contra os hicsos. Durante a sua agonia, aconselhou os seus próximos a permanecerem fiéis à Rainha Liberdade.

 

 Não se oculta nada por trás dessa bela fachada?

 

 Nada, Majestade. Esse militar vivia na caserna e apenas se ocupava dos seus soldados.

 

 Nenhuma viagem para o norte?

 

 Nenhuma.

 

 Nas suas relações, ninguém emitiu suspeitas sobre o seu comportamento?

 

 Ninguém, Majestade.

 

 Portanto, um oficial honesto e respeitável que serviu bem o seu país.

 

 Exactamente.

 

 A tua rede não detectou nenhum caso suspeito entre os dignitários tebanos?

 

 Não, Majestade.

 

 Não afrouxes a atenção, Herai.

 

 Se existir ainda um único partidário dos hicsos na nossa boa cidade, identificá-lo-ei.

 

 De acordo com o desejo da Rainha Ah-hotep, o Faraó dirigiu-se à base militar para mandar preparar um vasto terreno fechado e cavalariças destinadas aos cavalos hicsos que, se o destino favorecesse o comando encarregado de se apoderar deles, em breve chegariam a Tebas.

 

 Finalmente a Lua nova, por sorte acompanhada de algumas nuvens.

 

 Vamos! decidiu o Afegão.

 

 Encarregas-te dos cavalos ou do carro? perguntou-lhe o Bigodes.

 

 Os cavalos são com certeza mais perigosos.

 

 Então eu encarrego-me deles.

 

 Porquê tu?

 

 Porque é assim.

 

 Tiramos à sorte.

 

 Não há tempo. Eu entendo de burros e os animais hicsos são apenas um pouco mais compridos e um pouco maiores. Sobretudo, não falhes a tua parte. Se não tivermos o carro, as minhas façanhas serão inúteis.

 

 O carro sem os cavalos também não será muito útil, lembra-te.

 

 Tem piada, não achas? Quando entrámos na resistência eu tinha a certeza de não chegar a velho. E esta noite vamos desferir um golpe terrível no invasor.

 

 Divagas mais tarde. A caminho.

 

 Correndo um máximo de riscos, os dois homens tinham localizado carros em reparação e cavalos afastados do campo principal. Talvez aqueles animais estivessem doentes ou fatigados. O local apresentava a notável vantagem de ser menos bem guardado do que as outras cavalariças.

 

  Cerca da meia-noite, restava apenas uma dezena de sentinelas! de guarda aos quadrúpedes e três no abrigo onde três carros esperavam para ser arranjados.

 

 Deitados nas ervas bravias e cortantes, os egípcios observavam

 

 Se uma só sentinela der o alerta murmurou o Afegão

 

 estamos perdidos. Temos de suprimi-las todas ao mesmo tempo ! e sem ruído.  Tenho medo que os seus aliados de quatro patas os imitem adiantou o Bigodes. Antes de os levarmos, entramos no dormitório e suprimimos os outros hicsos.

 

 Os dois homens sabiam que a mínima imprecisão na execução do plano lhes seria fatal. Mas não era hora para tergiversar e cada um, com o punhal na mão, se movimentou para o alvo que lhe fora destinado.

 

 Uma única sentinela teve tempo de soltar um grito, rapidamente abafado.

 

 Com o coração a bater, os membros do comando imobilizaram-se. Decorreram intermináveis segundos e nenhum hicso se manifestou.

 

 Os egípcios convergiram para o dormitório. Ao sinal do Bigodes, entraram de roldão.

 

 Apenas os dois oficiais que dormiam ao fundo do aquartelamento esboçaram um gesto de defesa, mas os membros do comando eram rápidos e determinados.

 

 Sem dizer uma palavra, passaram à parte seguinte da sua missão.

 

 Da parte do Afegão, nenhuma dificuldade. Escolheu o único carro ainda equipado com as duas rodas e puxou-o com os seus quatro companheiros em direcção ao rio.

 

 Da parte do Bigodes, a tarefa revelou-se muito mais árdua. O primeiro egípcio que se aproximou de um cavalo cinzento por trás recebeu um coice em pleno peito e caiu de costas.

 

 O Bigodes ajudou-o a levantar-se.

 

 Seguras-te em pé?

 

 Estou meio partido, mas isto vai. Desconfiai dessas criaturas!

 

 Passamo-lhes cordas em volta do pescoço e puxamo-los.

 

 A maior parte dos quadrúpedes aceitaram o tratamento com mais ou menos boa vontade, mas um relinchou, ameaçando morder, e outro empinou-se, saiu da cavalariça e partiu a galope.

 

 Não nos demoremos mais aqui ordenou o Bigodes, que receava outras reacções brutais da parte daquelas feras.

 

 Entretanto, satisfeitos com aquele passeio inesperado, os cavalos aceitaram ser guiados até ao rio.

 

 Na margem, os egípcios congratularam-se. Um único ferido e a missão cumprida!

 

 Falta ainda o embarque lembrou o Afegão.

 

 A passarela era demasiado estreita para o carro. Foi necessário justapor-lhe a de socorro e empurrar o veículo lentamente a fim de evitar que caísse no rio.

 

 É a vez dos cavalos ordenou o Bigodes.

 

 O primeiro recusou-se avançar, o segundo a mesma coisa.

 

 Picamo-lhes as nádegas recomendou o ferido, que não sentia qualquer afecto por aqueles animais.

 

 É demasiado arriscado objectou o Bigodes.

 

 Não vamos abandoná-los!

 

 Tenho uma ideia.

 

 O Bigodes localizou o cavalo maior e mais robusto, um macho branco de olhar directo, menos nervoso do que os seus congéneres.

 

 Levamo-vos para Tebas anunciou-lhe e aí, sereis bem tratados. A única forma de irmos para lá é entrarmos nesse barco. Dá o exemplo subindo essa passarela, está bem?

 

 O egípcio acariciou a cabeça do quadrúpede e deixou-o sentir o seu odor de humano. Depois de um longo momento, o animal aceitou o convite.

 

 Uma égua seguiu-o tranquilamente e os outros imitaram-na.

 

 Sabes falar ao ouvido dos cavalos notou o Afegão.

 

 Tenho tantos dons que não viverei o tempo suficiente para os explorar.

 

 Quando a madrugada se erguia sobre Mênfis, efectuou-se o render da guarda no vasto campo hicso. Mais uma noite parada em que nada acontecera, mais um dia parado durante o qual os que cercavam e os que eram cercados permaneceriam nas respectivas posições. Talvez o comandante ordenasse uma parada de carros a fim de impressionar os menfitas, lembrando-lhes quem era o mais forte.

 

 A sentinela bocejou, feliz por ter terminado. Depois de ter bebido leite e comido pão fresco, iria dormir até ao meio-dia. Em seguida, almoço e sesta.

 

 O que julgou ver devia ser uma miragem: um cavalo, sozinho, vagueava pelo campo!

 

 O cananeu alertou o seu superior, cujos olhos estavam ainda enevoados.

 

 Olhai, além!

 

 Dir-se-ia... Não, não é possível! Quem teria podido deixar fugir um cavalo? Previne imediatamente o comandante.

 

 Brutalmente arrancado ao seu sono, este quis verificar por si próprio. O que constatou fê-lo ficar dominado por uma violenta cólera.

 

 Trazei-me o mais depressa possível os responsáveis por esta inqualificável falta de disciplina. Que esse cavalo seja reconduzido à sua cavalariça.

 

 Uma boa meia hora depois, foi um palafreneiro lívido que veio trazer o relatório.

 

 Os soldados, mortos... A cavalariça, vazia...

 

 O que estás a contar?

 

 A cavalariça e o dormitório de oeste... Nem um único sobrevivente!

 

 Acompanhado pelo seu ajudante-de-campo, o comandante dirigiu-se ao local.

 

 O palafreneiro não exagerara.

 

 Os resistentes atreveram-se a roubar cavalos! indignou-se o ajudante-de-campo. É preciso prevenir Auaris.

 

 Na minha opinião, seria um grave erro.

 

 Comandante, é o regulamento! Um incidente de uma tal gravidade...

 

 Seremos acusados de incompetência e negligência, eu, tu e os nossos subordinados. Na melhor das hipóteses, será a prisão. Na pior, o labirinto e o touro.

 

 A pertinência dos argumentos abalou o ajudante-de-campo.

 

 Qual... qual é a vossa proposta?

 

 O silêncio absoluto. Enterramos os cadáveres e suprimimos o palafreneiro. A seguir, esquecemos tudo.

 

 Orgulhosos, robustos, um metro e quarenta de cruz, os cavalos hicsos deslumbravam e intrigavam os egípcios. Vento do Norte e Risonho, o Jovem, observavam-nos com atenção e o burro já sabia que eles não seriam capazes de carregar pesadas cargas, tanto mais que uma palavra egípcia se impusera para designar o imponente mamífero: ”o belo”.

 

 Na base secreta de Tebas, a Rainha Ah-hotep e o Faraó Ahmés tinham reunido o seu estado-maior, que se desdobrara em felicitações em relação ao Afegão e ao Bigodes, incluindo o governador Emheb, autorizado a abandonar temporariamente Porto-de-Kamés onde o almirante Lunar garantia o comando. Ao menor sinal de perigo, alertaria a capital.

 

 São belas criaturas, é verdade considerou o intendente Qaris. Sinto-me feliz por ter vivido o suficiente para os ver de perto.

 

 Precisamente. Não vos aproximeis! aconselhou o chanceler Neshi. Alguns cavalos têm o coice fácil. Por mim, renuncio a compreender o seu carácter.

 

 Não é mais difícil do que o dos burros considerou Herai. Sejamos simplesmente pacientes e atentos para conquistarmos a sua confiança.

 

 O urgente é que tenham crias adiantou Emheb. Se conseguirmos dominar estes animais, precisaremos de muitos para rivalizarmos com os carros hicsos.

 

 Por esse lado, o trabalho já começou tranquilizou-o o Bigodes Segundo as minhas primeiras constatações, o cavalo gosta da autoridade. Como fez notar Herai, é necessário que o seu dono estabeleça com ele uma relação de amizade. A regra será portanto: um cavalo, um homem. Aprenderão a conhecer-se e tornar-se-ão inseparáveis.

 

 Já escolheste o teu? perguntou a Rainha.

 

 O grande macho branco que nos está a olhar, Majestade. Foi ele que nos permitiu embarcar e desembarcar sem grandes dificuldades.

 

 Entre os hicsos, os cavalos estão habituados a puxar os carros. Porque não poderemos então cavalgá-los?

 

 O Bigodes será assim o primeiro cavaleiro do exército egípcio ironizou o Afegão. Ele que tente sem mais demora!

 

 Eu, trepar lá para cima?

 

 Já te sentaste em cima de um burro, não?

 

 No caso de não te teres apercebido, o cavalo é maior e mais alto!

 

 O macho dominante adoptou-te, Bigodes. Percebe as tuas intenções. Não vais desiludir a Rainha Ah-hotep, pois não?

 

 Picado, o interpelado instalou-se na garupa do animal.

 

 Não só o quadrúpede se recusou a avançar, como ainda se empinou! O Bigodes efectuou um soberbo deslizar que terminou na areia do recinto de treino fechado e vigiado por uma miríade de guardas.

 

 Vexado, levantou-se de imediato.

 

 Olha lá, Grande Branco, tu e eu somos amigos! Não tens nenhuma razão para me pregar más partidas.

 

 Procura um assento melhor - aconselhou Ah-hotep.

 

 Perto do pescoço?

 

 Mais a meio das costas.

 

 Desta vez, o Bigodes conseguiu instalar-se.

 

 Avança, Grande Branco!

 

 O cavalo relinchou e lançou-se a galope.

 

 Surpreendido, o Bigodes tentou agarrar-se ao pescoço do corcel, cuja força e rapidez os espectadores admiraram antes de assistirem ao voo planado do primeiro cavaleiro egípcio.

 

 Ai! Dói mesmo queixou-se o Bigodes, deitado de barriga para baixo.

 

 Comporta-te como um herói recomendou-lhe Felina, que o massajava com doçura. Este unguento vai aliviar-te depressa.

 

 Aquele maldito cavalo partiu-me as costelas todas.

 

 Foi a tua queda, não o cavalo, e ainda tens algumas intactas. Não há nenhum ferimento grave.

 

 Nunca mais volto a montar em cima daquele monstro.

 

 O Grande Branco é magnífico e já se está a habituar a ti. Ainda mal começaste a tua aprendizagem, querido. Daqui a dois dias cavalgarás de novo no recinto de treino.

 

 Queres a minha morte, Felina!

 

 A maneira como ela o acariciou provou-lhe o contrário.

 

 Apesar de algumas pequenas imperfeições, a tua experiência foi muito instrutiva. A Rainha Ah-hotep concebeu melhorias que te agradarão.

 

 Felina era tão dotada para curar como para amar. Quase restabelecido, o Bigodes reencontrou o Grande Branco com prazer.

 

 Sobre as costas, Ah-hotep colocara um pano, e o cavalo estava agora equipado com freios e rédeas de cabedal.

 

 Ele aceitou isso? espantou-se o Bigodes.

 

 Falámos muito declarou a Rainha e procurámos juntos uma solução para permitir ao cavaleiro comandar os movimentos do cavalo sem o ferir. Penso que estamos no caminho certo, mas compete-te descobrir a técnica.

 

 Quando o Bigodes conseguiu transmitir as suas ordens à montada, sentiu uma intensa alegria. Podia fazê-lo acelerar, abrandar, virar à direita e à esquerda. O cavalo reagia depressa e apreciava visivelmente o exercício.

 

 Surpreendes-me reconheceu o Afegão. Não te julgava capaz de dominar essa nova arma.

 

Nota:  Os cavalos egípcios não eram ferrados e os cavaleiros não utilizavam sela nem estribos.

 

 Enquanto estava a ser tratado, reflecti.

 

 Ah... em quê?

 

 Um único cavaleiro não nos bastará. Outros devem imitar-me.

 

 Sem dúvida reconheceu o Afegão em voz surda.

 

 Notei um cavalo cinzento que te olha com interesse.

 

 Gosto da terra firme. Ter as pernas separadas do chão angustiar-me-ia.

 

 O governador Emheb e o ministro Herai erguer-te-ão sem dificuldade.

 

 Os dois bons gigantes desempenharam o seu papel com prontidão.

 

 À custa de algumas quedas, o Afegão tornou-se o segundo cavaleiro do exército egípcio.

 

 Como nada se agitava dos lados de Porto-de-Kamés, o estado-maior permanecia em Tebas onde continuava a descobrir o universo dos cavalos. Felina conseguira tratar uma égua que sofria de uma oftalmia e constatou a eficácia dos seus remédios naquela raça.

 

 Risonho, o Jovem também se habituava a conviver com aqueles animais de grande porte. Âh-hotep acalmava os nervosos e tranquilizava os ansiosos. Alimentava-os de vez em quando e falava com eles demoradamente.

 

 Quanto ao Bigodes e ao Afegão, transformados em excelentes cavaleiros, tinham ultrapassado uma etapa suplementar fazendo o Grande Branco e o Cinzento saltar obstáculos cada vez mais altos. Por diversas vezes se tinham lançado no deserto onde os cavalos gostavam de galopar, devorando o espaço.

 

 Mas os dois homens e as suas montadas não formavam na verdade um corpo de exército suficiente para enfrentar os carros hicsos. Restava saber se os carpinteiros egípcios seriam capazes de fabricar um carro idêntico àquele que fora roubado a Mênfis.

 

 O cadáver do almirante Jannas fora lançado numa grande cova, juntando-se aos do seu ajudante-de-campo, criados e guarda-costas. Limpa à pressa, a mansão tornou-se o alojamento oficial do novo almirante da frota, proposto por Khamudi e nomeado pelo Imperador. Grande consumidor de droga, esse velho marinheiro estava encantado com a sua promoção inesperada e em nada incomodaria o grande tesoureiro.

 

 Os dignitários hicsos não acreditaram numa palavra da versão oficial, mas nenhum ousou investigar para descobrir uma verdade fácil de adivinhar: ameaçado de exoneração, Khamudi desembaraçara-se de Jannas.

 

 Agora colocava-se uma única questão: agira ou não por ordem do Imperador, invisível há já alguns dias?

 

 Muitos pensavam que Apopis agonizava. Alguns propunham aliar-se a Khamudi, outros suprimi-lo, mas quem colocar no trono? Nenhum militar gozava da reputação de Jannas. Já se formavam os clãs, prontos a degladiar-se, quando se espalhou a notícia: o conjunto dos responsáveis pelo exército fora convocado para a cidadela.

 

 Considerado como o braço direito de Jannas, um general do regimento de carros tentou abandonar Auaris embarcando num navio comercial. Pouco importava o destino. Eclipsar-se-ia no primeiro porto e faria com que o esquecessem.

 

 Mas o capitão recusou aceitar a bordo aquele passageiro imprevisto e alertou a polícia, que o conduziu imediatamente à presença de Khamudi.

 

 És um traidor e mereces a morte considerou o grande tesoureiro. Deixo-te escolher: ou denuncias os cúmplices de Jannas e terás a cabeça cortada, ou recusas falar e serás torturado.

 

 Recuso-me a falar.

 

 Imbecil! Não resistirás muito tempo. Khamudi não se enganava.

 

 Com o rosto queimado, os membros dilacerados, o general deu os nomes dos partidários do almirante assassinado.

 

 Detidos em suas casas ou nas casernas, foi-lhes cortada a cabeça diante dos soldados.

 

 A sala de audiências da cidadela continuava a ser gelada.

 

 Graças à depuração declarou o Imperador com a sua voz rouca muitas ovelhas ranhosas foram eliminadas. Não pensem por isso que a minha vigilância abranda. Se ainda há partidários de Jannas, serão descobertos e castigados. Os que se denunciarem de imediato beneficiarão da minha clemência.

 

 Um jovem capitão de infantaria saiu das fileiras.

 

 Majestade, cometi o erro de acreditar nas palavras do almirante Jannas. Afirmava ter plenos poderes e eu desejava bater-me sob as suas ordens para afirmar o poderio do Império.

 

 A tua franqueza evita-te a vergonha da decapitação em praça pública. Terás a garganta cortada diante do templo de Set.

 

 Majestade, suplico-vos...

 

 Cortem a língua desse traidor e levem-no.

 

 O sangue do capitão manchou o pavimento da sala de audiências.

 

 O grande tesoureiro Khamudi é nomeado comandante-chefe das forças hicsas anunciou Apopis. São as minhas ordens, que ele executará fielmente. Quem recusar obedecer-lhe, seja sob que pretexto for, será entregue ao carrasco.

 

 Completamente bêbedo, estendido sobre o leito, Khamudi tinha dificuldade em recuperar o fôlego. Nunca passara tão próximo do abismo. Se Jannas, menos respeitoso da pessoa do Imperador, se tivesse decidido a assumir mais depressa os plenos poderes, o grande tesoureiro apodreceria num degredo.

 

 Por sorte, o almirante não se mostrara suficientemente tortuoso e cometera o erro fatal de revelar ao Imperador as suas verdadeiras intenções. Sentindo-se ameaçado, Apopis reagira com feracidade.

 

 Hostil à dispersão das suas forças, o Imperador fazia questão de conservar numerosos regimentos no Delta e perto de Auaris. O novo generalíssimo prolongava portanto o statu quo, apodrecimento da situação em Mênfis e acentuação do esforço de guerra na Ásia a fim de sufocar a revolta hitita. Os hicsos queimariam mais florestas, culturas e aldeias e massacrariam civis, mulheres, crianças e velhos inclusive, desde que estes fossem suspeitos de cumplicidade com os insurrectos.

 

 Restava Ah-hotep e o seu pequeno Faraó! Não seguiam o mesmo caminho que o príncipe de Kerma, esse núbio adormecido na sua longínqua província, que se contentava com o seu harém e a sua boa mesa? Se era uma mulher inteligente, Ah-hotep compreendera que não atravessaria a fronteira do santuário hicso e que se devia contentar com o território conquistado.

 

 Mas o que o velho Imperador aceitava, escaldado pelo fracasso de Jannas, Khamudi não suportaria durante muito tempo! Queria ver aquela revoltosa a seus pés, desamparada e suplicante.

 

 É certo que havia outras prioridades, a começar pelo desenvolvimento do comércio da droga. Khamudi preparava-se para lançar no mercado dois novos produtos, um de base de gama e pouco dispendioso, que qualquer pessoa poderia comprar, e o outro raro e muito caro, reservado aos dignitários do regime. As margens de lucro seriam tais que o grande tesoureiro em breve duplicaria a sua imensa fortuna.

 

 Desaparecido Jannas, o Imperador envelhecia e o futuro abria-se à sua frente. Continuava no entanto a existir uma ameaça não negligenciável. Khamudi desabafou com Yima, a sua esposa dedicada.

 

 Que terrível noite!

 

 Dominado por uma cavalgada de pesadelos, qual deles o mais aterrador, a dama Tani sujara a cama por várias vezes, obrigando as criadas a mudar os lençóis. Mesmo acordada, a imperatriz tremia ainda pensando nas torrentes de fogo que via desabarem sobre Auaris.

 

 De madrugada, devorara caça bem condimentada e bebera cerveja forte. De imediato torturada pelos gorgolejes do estômago, voltara a deitar-se.

 

 A dama Yima deseja ver-vos avisou a criada de quarto.

 

 Essa querida e terna amiga... Ela que venha! Excessivamente maquilhada, Yima requebrava-se ainda mais do  que era costume.

 

 Pareceis menos fatigada esta manhã.

 

 É apenas aparência, infelizmente! Tinhas razão, Yima: esse maldito almirante Jannas lançou-me um feitiço. Como estou contente por ele ter morrido! Com o teu marido à frente do exército, a capital não corre mais nenhum risco.

 

 Podeis contar com Khamudi, Majestade. Com ele vivo, nenhum egípcio se aproximará de Auaris.

 

 Como és reconfortante! O Imperador não te causou aborrecimentos, pois não?

 

 Estava demasiado feliz por se desembaraçar desse Jannas com exorbitantes pretensões.

 

 Tanto melhor, tanto melhor... Mas temos de guardar o nosso pequeno segredo! Ninguém deve saber o papel da nossa querida Aberia.

 

 Podeis estar tranquila, Majestade; apenas circula a versão oficial do assassinato de Jannas pelo seu jardineiro.

 

 Aberia recebeu a sua recompensa?

 

 O meu marido mostrou-se muito generoso. Quanto à vossa dedicada serva, gostaria de vos oferecer um remédio que poderia apressar a vossa cura.

 

 Vai buscá-lo depressa!

 

 A escultural Aberia penetrou no quarto da imperatriz.

 

 Tu, Aberia... És tu que conheces uma poção que me devolveria a saúde?

 

 Não é uma poção.

 

 Então de que se trata?

 

 De um remédio muito mais radical.

 

 Aberia exibiu as suas enormes mãos.

 

 Eu... eu não compreendo!

 

 O melhor meio de preservar o nosso segredo, Majestade, é fazer-vos calar definitivamente. Parece que falais durante o sono. É demasiado perigoso.

 

 A volumosa mulher tentou levantar-se, mas as mãos de Aberia fecharam-se em torno do seu pescoço.

 

 A dama Tani foi enterrada no cemitério do palácio sem que o Imperador assistisse à inumação. Apopis estava demasiado ocupado a examinar as contas apresentadas por Khamudi.

 

 Permiti, senhor, que vos apresente as minhas condolências.

 

 Ninguém, e muito menos eu, lamentará essa velha porca. Graças a Khamudi, a dama Aberia ficara rica. A partir de agora,

 

 só trabalharia para ele.

 

 A eliminação da imperatriz, cuja influência perniciosa o grande tesoureiro receava, era um passo mais para o poder absoluto.

 

 Khamudi proibia a si próprio essa ideia na presença de Apopis, porque o Imperador das Trevas poderia ler os seus pensamentos. 

 

 O governador Emheb apresentou o seu veredicto à Rainha Ah-hotep.

 

 Antes de me ocupar da minha querida cidade de Edfu lembrou ele exerci a profissão de carpinteiro. Visto que não desejais que haja nenhuma fuga, Majestade, eu próprio me encarreguei desse carro hicso. Uma peça extraordinária, mas de um peso considerável! É necessário isso para aguentar quatro soldados!

 

 Aligeiremos o conjunto e concebamos o carro apenas para dois homens recomendou a Rainha. Ganharemos em mobilidade.

 

 Sem dúvida nenhuma, mas o problema da estabilidade será difícil de resolver. E não estou a falar da escolha da madeira, que deve ser simultaneamente leve e sólida! Há três que me parecem convenientes: a tamargueira, o ulmeiro e a bétula. Da primeira, dispomos com abundância; as duas outras, pelo contrário, são bastante raras. Vou examinar todos os armazenamentos disponíveis, que bastarão para uma centena de rodas, mas depois vai ser preciso ir buscar as duas últimas espécies ao Delta ou à Ásia!

 

 O sorriso desarmante de Ah-hotep anulava as argumentações do técnico. Este mostrou-lhe como tencionava curvar a madeira, humidificando-a e aquecendo-a até ao limite da sua resistência.

 

Nota:  As indicações técnicas sobre a fabricação de carros egípcios foram expostas por J. Spruytte, in Kyphi, 2, pp. 77 sg.

 

 E as duas primeiras rodas foram concluídas! Com um metro de diâmetro, tinham quatro raios.

 

 Inspirei-me na técnica hicsa precisou Emheb mas aperfeiçoei-a. Cada raio das rodas é formado por duas peças de madeira que trabalhei de forma diferente. Acima de tudo, procedi ao ajustamento de várias partes que garantirão uma solidez máxima, tanto mais que utilizei colas e revestimentos para as endurecer.

 

 Com orgulho, Emheb acariciou um eixo com o comprimento de dois metros que suportaria a caixa do carro e um timão de dois metros e meio cuja altura seria regulada em função da altura dos cavalos.

 

 O que pensaste para fundo? perguntou Ah-hotep.

 

 Tiras de cabedal bem esticadas sobre uma armação de madeira. O conjunto será muito leve, absorverá as irregularidades do terreno e amortecerá os choques.

 

 Veio o momento da primeira experiência.

 

 Estavam atrelados dois cavalos e só faltava a tripulação.

 

 Onde vamos arranjar dois loucos para subirem para este carro e o lançarem a toda a velocidade? interrogou-se o Bigodes.

 

 A Rainha exige segredo absoluto sobre estas experiências respondeu Emheb. Entre os que estão ao corrente, não se põe evidentemente a questão de fazer correr o mínimo risco ao Faraó Ahmés. O chanceler Neshi é um letrado pouco habituado aos exercícios físicos, o intendente Qaris é demasiado velho, Herai demasiado pesado. E eu, encarrego-me do fabrico. Portanto...

 

 O Afegão e eu?

 

 Haveis enfrentado situações bem mais perigosas!

 

 Não tenho assim tanto a certeza respondeu o Afegão.

 

 Vamos, subam! O Bigodes conduzirá, o Afegão desempenhará o papel do archeiro e disparará sobre um alvo de palha. O objectivo é simples: acertar-lhe sempre, avançando o mais depressa possível.

 

 O futuro da guerra depende de vós afirmou Ah-hotep, aprovada pelo Faraó.

 

 O Bigodes e o Afegão instalaram-se no protótipo.

 

 Nesse género de situação, tanto um como outro adoptavam a mesma atitude: avançar.

 

 Em linha recta, a experiência revelou-se conclusiva, Mas à primeira curva, feita sem abrandar, o carro voltou-se e os dois passageiros foram projectados para o exterior.

 

 Já não sinto qualquer dor constatou o Afegão. Felina, tu és uma verdadeira feiticeira!

 

 A minha esposa dirige o serviço de urgências lembrou-lhe o Bigodes, também ele refeito e tu já não és uma.

 

 Quando regressam vocês ao terreno? perguntou a linda núbia.

 

 Não há pressa, querida, e...

 

 Pelo contrário, não devem perder tempo. Fabricar um carro superior ao dos hicsos exige numerosas experiências e vocês não têm tempo para preguiçar.

 

 Fomos feridos, nós...

 

 Simples contusões já esquecidas. Estais de perfeita saúde e podeis portanto suportar algumas quedas suplementares.

 

 A profecia de Felina realizou-se.

 

 No decurso dos meses seguintes, Emheb procedeu a múltiplas correcções para obter a máquina de guerra mais eficaz possível. Aumentou a quantidade de revestimentos e colas, ajustou mais solidamente a parte de trás do timão à barra colocada por baixo do fundo, preparou um arreio ideal formado por uma larga tira de tecido cobrindo o garrote, outra mais fina por baixo do ventre do cavalo e uma terceira, forrada de cabedal, encostada ao peitoral a fim de que o animal não ficasse ferido.

 

 Aligeirou ainda mais a caixa, aberta atrás. A armadura era composta por diversas barras de madeira curvas e as suas finas paredes estavam forradas de cabedal. O mesmo material guarnecia as partes do carro expostas aos atritos, bem como os pontos de junção entre os diversos elementos.

 

 Todos os dias, Ah-hotep receava receber más notícias de Porto-de-Kamés, mas os pombos-correio transmitiam sempre a mesma mensagem: ”Nada a assinalar.”

 

 A resistência menfita enviou um texto surpreendente, a partir de boatos provenientes de Auaris: o general Jannas teria sido assassinado por um dos seus empregados domésticos e o grande tesoureiro Khamudi, nomeado generalíssimo, procederia a depurações e à reorganização do exército hicso.

 

 Se a informação era exacta, significava que se tinha reconstituído na capital inimiga uma rede de resistência, mesmo ténue, que conseguia comunicar, sem dúvida muito dificilmente, com Mênfis sitiada.

 

 O desaparecimento de Jannas explicaria a demora dos hicsos considerou o Rei.

 

 É ainda mais importante conseguirmos os nossos carros concluiu Ah-hotep. Os cavalos reproduzem-se lentamente e dispomos apenas de um pequeno número de casais. Por consequência, será necessário roubar outros ao adversário enquanto esperamos que os nossos veículos de ataque estejam operacionais, o que continua a não ser o caso!

 

 Encarrego-me disso prometeu Emheb.

 

 O Bigodes e o Afegão já nem contavam os ensaios, alguns dos quais terminavam menos mal do que outros. Sobretudo, tinham aprendido a manejar as rédeas que o condutor enrolava em torno da cintura. Com uma simples rotação do corpo para a direita ou para a esquerda, fazia virar os dois cavalos na direcção desejada. Uma tensão mais ou menos acentuada para trás fazia-os abrandar ou parar.

 

 No interior da caixa, o Bigodes dispusera bolsos de cabedal onde se encontravam flechas, dardos, punhais e tiras de cabedal previstas para uma reparação de emergência.

 

 Desta vez confiou ao Afegão: sinto que vai ser de vez. Já disseste isso tantas vezes!

 

 Vamos, rapazes, a toda a força! Libertos, os cavalos partiram.

 

 Apesar das irregularidades do terreno, o carro manteve a velocidade.

 

 E foi a primeira curva, em volta de um marco em pedra. Depois a segunda, feita muito secamente, por causa de um trilho de rodas.

 

 O veículo conservou um perfeito equilíbrio.

 

 O Afegão disparou cinco flechas sobre o manequim de palha. Todas atingiram o alvo.

 

 O Bigodes efectuou uma segunda passagem, tão brilhante como a primeira.

 

 Conseguimos disse a Rainha a Emheb, que quase chorava de felicidade. Iniciem de imediato a fabricação de outros carros e a formação de novos condutores.

 

 Depois de ter fumado uma boa quantidade de ópio, o oficial encarregado da segurança do porto comercial de Auaris estendeu-se com todo o seu peso sobre uma jovem egípcia que, depois de ter sido espancada, acabava de mergulhar em coma.

 

 Acorda, idiota! Não me vou divertir com uma morta. Esbofeteou-a várias vezes, sem qualquer resultado.

 

 Tanto pior para esta. Acabaria numa vala comum, com as vadias da sua espécie.

 

 O hicso saiu da sua mansão oficial para urinar na beira do cais, tendo cuidado para não cair à água.

 

 Quando se viu rodeado por uma dezena de piratas pertencentes à guarda pessoal de Khamudi, julgou-se vítima de um mau sonho.

 

 Segue-nos ordenou um deles.

 

 Há com certeza um erro.

 

 És o encarregado da segurança do porto, não é verdade?

 

 Sim, mas...

 

 Então, segue-nos. O grande tesoureiro quer ver-te.

 

 O dia foi duro, eu... eu estou muito fatigado.

 

 Se for necessário, ajudamos-te a andar.

 

 Khamudi instalara-se no gabinete do almirante Jannas, no interior da maior caserna de Auaris. Mandara mudar o mobiliário e pintar as paredes de vermelho. Sobre a sua mesa de trabalho, denúncias escritas revelando o nome dos partidários de Jannas, em todos os graus e em todos os regimentos. Khamudi examinava os casos um a um e colocava o seu selo acusador na quase totalidade dos documentos. Apenas uma verdadeira depuração do exército lhe permitiria comandar as tropas hicsas sem receio de ser traído.

 

 O suspeito foi conduzido até junto dele.

 

 Tenho a certeza que tens muitas explicações a dar-me.

 

 O meu trabalho é bem-feito, grande tesoureiro! Para mim, a segurança do porto é sagrada!

 

 Eras amigo de Jannas, não é verdade?

 

 Eu? Detestava o almirante!

 

 Viram-te muitas vezes com ele.

 

 Dava-me ordens, nada mais!

 

 Admitamos.

 

 O suspeito descontraiu-se um pouco.

 

 Foi por outro motivo, não menos sério, que te convoquei recomeçou Khamudi. Estava uma jovem egípcia na tua cama.

 

 Exacto, senhor, mas...

 

 - Na véspera, havia outra. E na antevéspera outra ainda.

 

 É verdade, sou um homem ardente e...

 

 De onde vêm essas raparigas?

 

 De encontros, de...

 

 Pára de mentir.

 

 O acusado retorceu-se.

 

 Desde o encerramento do harém, temos de nos desenrascar! Então eu... eu... eu desenrasquei-me.

 

 Constituíste o teu pequeno harém e alugas as tuas raparigas aos amadores, não é verdade?

 

 Somos vários a aproveitar, mas é por causa desse encerramento, compreendeis? De certa forma, presto serviço.

 

 Sou o grande tesoureiro e nenhum comércio pode ser aberto no território hicso sem eu ser informado. Defraudar o Estado é uma falta muito grave.

 

 Pagarei a multa, senhor!

 

 Quero saber como te organizaste e conhecer a localização de todas as casas secretas de Auaris.

 

 O responsável pela segurança do porto falou abundantemente.

 

 Encantado, Khamudi iria deitar mão àquela rede de prostituição e obter lucros substanciais.

 

 Cooperaste correctamente reconheceu e mereces portanto uma recompensa.

 

 Eu... eu já não sou suspeito?

 

 De maneira nenhuma, visto que os factos estão estabelecidos. Acompanha-me.

 

 O oficial não compreendia muito bem o sentido da fórmula utilizada pelo grande tesoureiro, mas seguiu-o

sem hesitar.

 

 À saída da caserna, a dama Aberia acorrentava pessoalmente oficiais e soldados hicsos acusados de cumplicidade com o criminoso Jannas.

 

 Já não és simplesmente suspeito precisou Khamudi mas culpado de alta traição e, portanto, condenado ao degredo. Boa viagem.

 

 O homem tentou fugir, mas Aberia agarrou-o pelos cabelos, arrancando-lhe um grito de dor. Atirou-o ao chão e quebrou-lhe uma perna.

 

 Resta-te a outra para andar. E não te lembres de ficar para trás pelo caminho.

 

 No arsenal do porto, era a terceira rusga da polícia num mês. Cinquenta membros do pessoal tinham sido detidos e ninguém sabia o que lhes acontecera.

 

 Pertencente à equipa encarregada da manutenção das rodas dos carros, Arek, um jovem vigoroso nascido de pai caucasiano e mãe egípcia, vira o irmão mais velho partir num comboio de homens, mulheres e crianças, acusados de terem conspirado com o almirante Jannas. Segundo os rumores, os que sobreviviam à marcha forçada eram amontoados num campo de concentração de onde nenhum prisioneiro saía vivo.

 

 Persuadido de que a loucura do Imperador seria cada vez mais mortífera, Arek entrara para a resistência, transmitindo tudo o que sabia a um distribuidor de sandálias que, em caso de necessidade, ia a Mênfis a fim de reequipar os soldados hicsos. À custa de mil precauções, contactava então com os egípcios.

 

 Embora se sentisse muito só, Arek vivia com uma certeza: segundo o distribuidor, a Rainha Liberdade não era uma miragem. Erguera um exército que os hicsos não conseguiam destruir. Graças a ela, um dia o Egipto venceria as trevas.

 

 Para além das poucas informações que podia oferecer ao distribuidor de sandálias, o jovem entregava-se a uma tarefa obscura e delicada: sabotar as rodas dos carros. Talhava profundamente os raios ou o aro de forma a fragilizá-los e mascarava a sua sabotagem sob uma camada de verniz. Quando os veículos rodassem a grande velocidade, o acidente seria inevitável.

 

 De repente, o ruído de passos precipitados e de gritos.

 

 A polícia! avisou um colega de Arek.

 

 Fiquem onde estão e não tentem sobretudo fugir - ordenou a voz imperiosa da dama Aberia, acompanhada por uma centena de esbirros.

 

 No arsenal, os empregados ficaram imóveis.

 

 Obrigando-os a andar com pancadas dos cacetes nos rins, os polícias agruparam-nos.

 

 Aos pés de Aberia, um fiel de armazém ensanguentado cujas chagas eram horríveis de ver.

 

 Este criminoso conspirava com Jannas revelou ela. Tem forçosamente um cúmplice entre vocês. Se não o denunciar imediatamente, farei executar todos os membros da sua família.

 

 Aberia obrigou o infeliz a levantar-se.

 

 Mas ele tem os olhos furados! exclamou um empregado, horrorizado.

 

 Um polícia espancou o insolente e arrastou-o para fora do arsenal, enquanto o supliciado, titubeante, se aproximava dos seus colegas.

 

 Juro-vos... que não tenho qualquer cúmplice!

 

 Toca no culpado e a tua família será poupada prometeu Aberia, que já a enviara para o campo de Tjaru.

 

 O cego estendeu a mão.

 

 Os seus dedos afloraram o rosto de Arek, que não respirava. A mão do moribundo crispou-se e agarrou o ombro do vizinho do jovem resistente, um sírio que uivou de terror.

 

 Ocorreram no mesmo dia dois felizes acontecimentos: Nefertari deu à luz um filho que recebeu o mesmo nome do pai, a fim de que a dinastia do deus Lua pudesse continuar a combater, e o governador Emheb anunciou à Rainha Ah-hotep que o primeiro regimento de carros egípcios estava operacional.

 

 O Faraó Ahmés exercitava-se com o Bigodes e o Afegão, para adquirir um perfeito domínio daquela nova arma de guerra. Obstinado, sério e exacto, Ahmés igualava já os seus instrutores. As últimas experiências no deserto tinham-no satisfeito plenamente.

 

 Ah-hotep embalava o bebé que a mãe amamentaria durante três meses antes de o confiar a uma ama.

 

 Majestade solicitou Nefertari concedei-me a honra de atribuir ao meu filho o nome secreto que ele usará se for digno dele.

 

 Possa ele ser o fundador de uma nova dinastia que verá a reunificação das Duas Terras e Maet reinar sobre o Egipto. Que o seu nome secreto, realização do seu ser, seja Amen-hotep. ”Amon está satisfeito”.

 

 A Rainha não pôde continuar a testemunhar a sua ternura ao neto, porque Larápio acabava de chegar de Mênfis e a esperava no rebordo da janela do seu quarto.

 

 As notícias de que era portador justificavam a convocação imediata dos membros do estado-maior.

 

 Dispomos actualmente de uma fonte de informações mesmo em Auaris declarou a Rainha Chegam à resistência menfita, que no-las transmite.

 

 Não se tratará antes de uma desinformação? interrogou-se o chanceler Neshi, céptico. Tenhamos cuidado para não sermos atraídos a uma cilada!

 

 Esse alerta era indispensável admitiu a Rainha mas tenho tendência a acreditar no que nos é revelado: a confirmação da morte do almirante Jannas, a nomeação do grande tesoureiro à frente das forças armadas hicsas e o clima de terror que reina em Auaris. Os partidários de Jannas são perseguidos, presos e executados.

 

 Khamudi pensará em atacar-nos? perguntou o governador Emheb.

 

 O nosso informador apenas fala de uma terrível depuração que nem sequer poupa os dignitários.

 

 Dir-se-ia que os invasores se retraem observou o intendente Qaris e que a sua barbárie os corrói internamente.

 

 Não será um novo sinal do destino? sugeriu Herai. Chegou a hora de passar à ofensiva!

 

 O Bigodes e o Afegão concordaram.

 

 Algum de vós tem opinião diferente? perguntou Ah-hotep. Todos tiveram consciência do peso do seu silêncio.

 

 O conselho do Faraó é portanto unânime concluiu a Rainha. Mas é a ele que compete decidir.

 

 Preparemo-nos para deixar Tebas declarou Ahmés.

 

 Bela, repousada, simultaneamente satisfeita com tanta felicidade e angustiada pensando na intensificação da guerra, Nefertari passeava no jardim do palácio em companhia de Ah-hotep.

 

 Eis-te de novo, única responsável pela nossa capital, Nefertari. O confronto será terrível e ninguém pode prever o resultado. Tal como o pai e o irmão, Ahmés combaterá na primeira linha e o seu exemplo será indispensável para garantir a coerência dos nossos homens e dominar o seu medo. São as trevas que vamos desafiar. Talvez nem o meu filho nem eu própria regressemos da frente. É por isso que devo assumir disposições que te dizem directamente respeito.

 

 A Grande Esposa Real não fez qualquer comentário supérfluo. Devia enfrentar a realidade com a mesma lucidez que Ah-hotep.

 

 Não tive tempo de ser jovem, Nefertari, e espero que não seja esse o teu caso. Mas se o destino se mostrar implacável, não terás o direito de ser fraca.

 

 Foi num carro conduzido pela Rainha Ah-hotep que as duas mulheres se dirigiram ao palácio do templo de Karnak, onde as esperava o Faraó Ahmés e o sumo sacerdote Djehuti.

 

 Apesar da gravidade do momento, Nefertari apreciara aquele passeio inesperado e a sensação inédita de velocidade.

 

 Terminados os rituais de purificação, o quarteto atravessou o pátio a céu aberto e atingiu a capela onde fora celebrada a coroação do Faraó.

 

 Com espanto, Nefertari descobriu ali uma esteia cujo conteúdo Ahmés resumiu.

 

 A pedido da Rainha Ah-hotep, concedo à Grande Esposa Real Nefertari o título de Esposa do Deus e a função de Divina Adoradora de Amon. Governará o templo de Karnak com o sumo sacerdote. Para esse efeito, receberá ouro, prata, vestuário, potes de unguentos, campos e criados. Que esta instituição perdure e prospere, que agrade ao espírito de Amon e conserve a sua benevolência em relação à terra amada dos deuses.

 

 Nefertari curvou-se diante do rei.

 

 Vestiste-me quando eu não possuía nada, tornas-me rica quando eu era pobre. Esta fortuna pertence ao templo, está ao serviço da força criadora que o faz viver.

 

 Ah-hotep abraçou a nova Esposa do Deus, que a substituiria se caísse sob os golpes dos hicsos.

 

 No dia seguinte de madrugada, a fim de evitar os fortes calores, Ah-hotep atravessou o Nilo em companhia do Faraó, da sua esposa e de alguns soldados da guarda real. Postos à prova nas pistas do deserto, os carros demonstraram uma vez mais as suas qualidades de maneabilidade e estabilidade.

 

 Ah-hotep parou na orla de um vale protegido por colinas.

 

 São os construtores que criam a verdadeira riqueza do Egipto. Enquanto o meu filho e eu própria enfrentarmos os hicsos, tu, Ahmés-Nefertari, fundarás aqui uma aldeia de artesãos, o Lugar de Verdade. Deverão trabalhar em segredo, longe dos olhos e dos ouvidos, e fabricar os objectos rituais de que temos falta. Neles ficará inscrita Maet, a rectidão da obra. Reúne os que te parecerem dignos dessa tarefa, põe-nos à prova. Inicia-os de acordo com os antigos rituais e mostra-te inflexível sobre a qualidade do seu ser. O mais velho ourives tebano será o teu assistente. Eis a oferenda que ele realizou para o Faraó.

 

 A Rainha adornou o pescoço de Ahmés com um peitoral combinando ouro, cornalina, lápis-lázuli e turquesa. Representava o Rei em pé numa barca, enquadrado pelos deuses Amon e Ré. Tanto um como outro seguravam vasos de onde brotava a energia celeste que, impregnando a pessoa do soberano, lhe permitia desempenhar a sua função.

 

 Agora disse Ah-hotep podemos partir para Porto-de-Kamés.

 

 O intendente Qaris apresentou-se diante da Rainha.

 

 Majestade, o homem chegou há uma hora. Achei por bem dar-lhe um quarto no palácio, mas sob vigilância. Levei-lhe vinho e um guisado de lebre e ele pede mais.

 

 De quem estás a falar?

 

 Do cretense que regressou. Linas não mudara.

 

 Boa travessia, comandante?

 

Nota:  Em egípcio, Set-Maet, cujo nome moderno é Deir el-Medina. Evocámos essa excepcional confraria nos quatro volumes de A Pedra de Luz.

Nota:  Este peitoral foi encontrado na Morada de Eternidade de Ah-hotep, em Dra Abul El-Naga (Tebas-oeste).

 

 - Execrável, Majestade. O mar estava caprichoso e os ventos maus. Se eu não fosse um bom marinheiro, ter-me-ia afundado. E teria sido pena, tanto por mim como por vós.

 

 Isso significa que és portador de boas notícias?

 

 Permiti que vos ofereça dois presentes: este machado de guerra decorado com grifos e esta adaga onde se vê um leão, em pleno esforço, caçar a sua presa. O punho tem a forma de uma cabeça de touro, símbolo do nosso Rei Minos, o Grande}

 

 Ainda está vivo?

 

 Regressou da gruta com uma resposta do oráculo, com efeito, e não demonstrou qualquer clemência para com os que se queriam apoderar do seu trono. Deseja-vos a força do leão e a magia dos grifos para triunfardes sobre os Hicsos, vossos inimigos.

 

 Devo compreender que não se trata dos nossos inimigos?

 

 Por toda a parte onde os cretenses forem declararão que a Rainha Liberdade combate o Imperador que é incapaz de a vencer. Creta reconhece-vos como soberana das margens distantes, coloca-se sob a vossa protecção e não mais fornecerá nem tributos nem assistência aos Hicsos.

 

Nota:  Estes objectos foram igualmente encontrados no túmulo de Ah-hotep.

 

 Era o último.

 

 O último oficial superior que combatera ao lado de Jannas em todas as províncias do Império. Aos cinquenta e sete anos, o vice-almirante estava coberto de honrarias mas vivia modestamente na sua morada oficial, com dois criados.

 

 Todos os seus companheiros de armas tinham sido executados ou deportados para campos de concentração de cuja existência acabava de ter conhecimento.

 

 Horrorizado, fechara-se em casa para se embebedar.

 

 Então, o grande tesoureiro enviava leais guerreiros hicsos acabar os seus dias no degredo!

 

 Porque cedia o Imperador aos caprichos daquele doente mental, guiado apenas pela cupidez?

 

 Visto que se tinham esquecido dele, com certeza devido à sua idade, não devia o vice-almirante tentar vingar Jannas e os seus camaradas de combate? Pediria audiência a Khamudi, sob o pretexto de denunciar traidores que ainda não tinham sido interpelados. Quando estivesse em frente daquele monstro, atacaria.

 

 Embora fosse sumário, o seu plano podia resultar.

 

 O vice-almirante chamou a criada para que ela lhe trouxesse vinho aromatizado.

 

 Não tendo obtido resposta, saiu da sala de estar e descobriu-a no corredor, deitada de costas e com a língua pendente. Junto dela, o marido, igualmente estrangulado.

 

  A dama Aberia saiu da sombra.

 

 Não te tinha esquecido, vice-almirante.

 

 O velho Imperador passava a maior parte do seu tempo no compartimento secreto, no centro da cidadela, onde imperavam o frio e a obscuridade.

 

 Era ali que Khamudi vinha, todas as manhãs, apresentar-lhe o seu relatório e a lista das nomeações.

 

 Eliminaste todos os partidários de Jannas?

 

 A depuração está em bom caminho, Majestade. Perseguimos constantemente os traidores.

 

 Muito bem, Khamudi. Não abrandes os teus esforços. E dizer que esse Jannas ousou exigir plenos poderes! Esqueceu que, como qualquer hicso, me devia obediência absoluta.

 

 Graças à dama Aberia, apanhamos mesmo os conspiradores que se julgavam a salvo.

 

 Perfeito, grande tesoureiro. Depurar e deportar: eis as nossas duas prioridades. Quando Auaris e o Delta só tiverem fiéis servidores de Apopis, a ordem estará restabelecida.

 

 Tenho muito boas notícias de Mênfis, onde a vossa estratégia se revela a melhor. Segundo o comandante que cerca a praça, os menfitas estão esgotados. Pergunta se desejais um novo assalto.

 

 Ele que continue a deixá-los apodrecer, quero que esses revoltosos morram no seu lodo. Depois, queimaremos a cidade. Apodrecer, Khamudi, é a verdadeira lei da vida.

 

 As notícias da Ásia são também bastante satisfatórias. O nosso exército, como lhe haveis dado ordem, massacra civis e rebeldes e ocupa aldeia após aldeia. Nas montanhas, a reconquista é lenta mas certa. Em breve não haverá ninguém na Anatólia e os hititas serão exterminados.

 

 Jannas estava errado ao reclamar um ataque global. Em caso de sucesso, os nossos soldados teriam ficado inactivos. É bom que Se batam e que matem.

 

 Resta Ah-hotep, Majestade. É evidente que ela renuncia a lutar e é com certeza por essa razão que o nosso espião está mudo.

 

 Não está, Khamudi. Eis o texto da sua última mensagem: ”Aconteça o que acontecer, cumprirei a minha missão.”

 

 De repente, a voz rouca tornou-se ainda mais sinistra, como se subisse de profundezas tenebrosas onde apenas Apopis tinha acesso.

 

 Ah-hotep aproxima-se, sinto-o. Vem para nós porque se julga capaz de nos vencer. As desgraças que já a feriram não bastam para a deter. Vai conhecer ainda mais desespero e sofrimento. Vem, Ah-hotep, vem, estou à tua espera!

 

 Informações provenientes de Elefantina disse o intendente Qaris a Ah-hotep. A cheia será perfeita: cerca de dezasseis côvados.

 

 Era o último pormenor, mas tão importante, que ainda faltava a Ah-hotep para dar o sinal de partida. Utilizando a força da corrente, a frota egípcia, composta por novos navios de guerra saídos do estaleiro naval, atingiria rapidamente o Porto-de-Kamés onde se uniria ao grosso das tropas.

 

 Continuando a avançar com a ajuda do Nilo, avançaria para o território hicso.

 

 Foi com emoção que a Rainha contemplou a maqueta de Qaris.

 

 O nosso primeiro segredo de Estado lembrou ela. Eu não passava de uma jovem exaltada e tu, o sábio e ponderado intendente de um pequeno palácio decrépito, catavas informações sobre o inimigo tentando acreditar que existiam alguns resistentes. Mostraste-me esta maqueta onde o último espaço de liberdade era a cidade do deus Amon.

 

 Deveríeis ter-vos desencorajado, Majestade. Pelo contrário, esta constatação decuplicou-vos as forças! Graças a vós, vivemos em dignidade e esperança.

 

 Ah-hotep pensou no marido Seken, no filho mais velho Kamés, e na mãe Teti, a Pequena. Para ela, não eram sombras mas aliados bem vivos que continuavam a lutar a seu lado.

 

Nota:  8,32 metros.

 

 A minha maqueta mudou muito observou Qaris. Haveis libertado o Sul do país, Majestade, e uma parte do Egipto Médio.

 

 Sabes, tal como eu, que é ainda muito pouco. A próxima batalha será decisiva.

 

 Agora possuís cavalos e carros!

 

 Não os suficientes, Qaris. E não temos nenhuma experiência dos confrontos em terreno plano, exército contra exército.

 

 Não renuncieis, Majestade. Mesmo se fordes vencida, mesmo se Tebas for destruída, mesmo se morrermos todos, tereis tido razão. O Faraó deve reinar sobre as Duas Terras, celebrando a união do Alto e do Baixo Egipto. Fora dessa harmonia, fora da confraternização de Set e Hórus, não há felicidade possível.

 

 O intendente raramente se expressara de forma tão clara e as suas palavras dissiparam as últimas hesitações de Ah-hotep.

 

 No palácio e nos cais de Tebas reinava a efervescência. Dotado de uma energia surpreendente apesar do peso da idade, Qaris velava para que nada fosse esquecido a fim de garantir o conforto da Rainha Ah-hotep e do Faraó Ahmés. Vigiava tudo, da qualidade dos lençóis à das navalhas.

 

 Quanto ao chanceler Neshi, não confiava em nenhum dos seus assistentes. Apelidado por alguns a Estrela das Duas Terras por causa do seu brilho intelectual, o escriba não se preocupava com a sua reputação, de tal forma estava preocupado com os preparativos da partida. Examinando cada escudo, cada lança, cada espada, não esquecia o armazenamento de vagens de moringa que, mergulhadas nas jarras de água, a purificavam, nas de óleo, o clarificavam. E não devia faltar nem uma esteira nem um saiote. Por sorte, Felina e os seus auxiliares médicos carregavam eles próprios os remédios e unguentos.

 

 Longe daquela agitação, o Faraó Ahmés e a Grande Esposa Real Nefertari contemplavam o Nilo que crescia e tomava um tom avermelhado. Depois de ter longamente apertado o filho contra si, Ahmés levara a esposa até à beira do rio a fim de saborear um último momennto de intimidade ao abrigo de uma tamargueira, antes de se lançar numa aventura de onde tinha poucas hipóteses de regressar vivo.

 

 Não longe dali, dissimulado num maciço de papiros, o espião hicso sonhava aproveitar aquela ocasião. O Rei não estava armado e os guardas mantinham-se a boa distância de forma a não o importunar.

 

 Passando pela margem e atacando muito rapidamente, o espião passaria desapercebido.

 

 Sempre meticuloso, repetiu mentalmente cada um dos gestos que devia realizar, sem deixar às suas vítimas a possibilidade de dar o alerta. A mínima imprecisão ser-lhe-ia fatal.

 

 Hesitante, perscrutou mais uma vez os arredores.

 

 Uma vez mais a sua prudência o salvou do desastre.

 

 Um soldado bem oculto, mais vigilante e mais temível do que os outros, fê-lo renunciar ao seu projecto. Deitado sob os ramos baixos da tamargueira e com o olhar atento, Risonho, o Jovem protegia o casal real.

 

 A constelação de Orion ergueu-se declarou o sumo sacerdote Djehuti. Osíris ressuscita na luz celeste.

 

 Vinte novos navios de guerra, entre os quais O que brilha emMênfis, A Oferenda e O Touro Combatente, largaram as amarras, seguidos do Setentríão que atraía o máximo de curiosidade, porque transportava os cavalos. Todas as embarcações exibiam o estandarte com as cores de Ah-hotep, com o disco da Lua cheia reinando sobre a sua barca.

 

 À proa do Setentríão, a Rainha empunhava o ceptro de ouro com a cabeça de Set. Quanto ao Faraó, usava a coroa branca do Alto Egipto e um colete de cabedal. Quando brandiu a espada de Amon, os sacerdotes de Karnak entoaram o hino composto em sua honra:

 

 ”Quando aparece, o Faraó parece o deus Lua no meio das estrelas. Perfeito é o seu braço no momento de governar, felizes são os seus passos, firme o seu andar, vivas as suas sandálias, ele que é o símbolo sagrado sobre o qual poisa a luz divina.”

 

 Depois de ter confiado a espada à Rainha Liberdade, Ahmés manejou o remo-leme proveniente de Elefantina e a frota, auxiliada pela corrente rápida, dirigiu-se para Porto-de-Kamés.

 

 Estamos a chegar disse o governador Emheb.

 

 Instalados em amplas gaiolas parcialmente ao ar livre que compreendiam duas estalas, os cavalos não tinham manifestado qualquer nervosismo durante a viagem. Na paragem de Porto-de-Kamés puderam desentorpecer as patas sob os olhares duvidosos do almirante Lunar e de Ahmés, filho de Abana.

 

 Tendes a certeza de os conseguirdes dominar? perguntou o almirante ao Bigodes e ao Afegão.

 

 Graças ao nosso treino intensivo respondeu o primeiro

 

 não haverá qualquer problema.

 

 Lunar quis ver os carros, solidamente estivados noutro navio de carga e guardados por archeiros.

 

 Serão tão eficazes como os dos hicsos?

 

 Sem dúvida mais considerou o Afegão. O governador Emheb melhorou o modelo em que se inspirou.

 

 A paragem devia ser apenas de curta duração, porque não podiam deixar a cheia aumentar muito.

 

 Quando o conjunto das unidades se preparava para aparelhar, levantou-se um vento estranho. Turbilhonante e gelado, assemelhava-se a uma nortada de Inverno.

 

 As nossas manobras arriscam-se a ser seriamente afectadas

 

 lamentou o almirante Lunar.

 

 É o Imperador afirmou Ah-hotep. Tenta atrasar-nos desencadeando os maus sopros do ano que morre. Invoquemos Amon, o senhor dos ventos, e protejamos os navios.

 

 Sobre cada ponte foram depositados dezenas de saquinhos de oferendas contendo grãos de incenso, pó de galena, tâmaras e pão. Depois, Ah-hotep ergueu o seu ceptro para o céu, que se tornara ameaçador, a fim de solicitar os favores de Set.

 

 O vento caiu e as nuvens dissiparam-se.

 

 Naquele décimo sétimo ano do seu reinado, Ahmés deu ao Exército de Libertação o sinal de partida para o Norte.

 

Nota:  O novo ano começava com a cheia, aproximadamente no princípio de Julho.

 

 Os soldados tebanos que tinham participado na expedição contra Auaris sob o comando do Faraó Kamés, redescobriam com emoção paisagens gravadas na sua memória. Os outros, aventuravam-se num mundo desconhecido que era no entanto a terra dos seus antepassados.

 

 Graças à força da corrente, a frota avançava velozmente. A qualquer momento Ah-hotep esperava enfrentar o inimigo. Mas o Imperador abandonara a zona compreendida entre a frente egípcia e os arredores de Mênfis. Apenas aí se encontravam milícias que aterrorizavam os aldeões e roubavam o essencial das suas colheitas para o transportar para Auaris.

 

 Majestade sugeriu o governador Emheb não podemos abandonar estes infelizes. Caso contrário, os milicianos assassiná-los-ão.

 

 Quebrar o avanço da frota teria sido um erro. Portanto, Ah-hotep confiou uma mensagem a Larápio: as três últimas embarcações reter-se-ião e os seus soldados libertariam diversas aldeias. Uma vez os hicsos eliminados, os camponeses receberiam armas e, sob a autoridade de um oficial tebano, espalhariam a revolta por todo o Egipto Médio.

 

 O chanceler Neshi continuava a verificar o armamento: espadas direitas e curvas, à semelhança das dos hicsos, para o combate corpo-a-corpo, lanças com pontas de bronze, adagas leves e perfurantes, maças, machados muito manejáveis, arcos de tamanhos diversos, escudos de madeira reforçados de bronze, couraças e capacetes. De melhor qualidade do que antigamente, aquele material equivaleria ao do adversário?

 

 A aproximação do primeiro objectivo maior, teste decisivo imposto ao Exército de Libertação, as gargantas apertaram-se. Mesmo os que estavam habituados aos confrontos violentos, como o governador Emheb ou Ahmés, filho de Abana, sabiam que o próximo seria de natureza diferente.

 

 Em caso de derrota, o Egipto não sobreviveria.

 

 O comandante hicso encarregado do cerco de Mênfis estava de péssimo humor. Não se dava bem com o calor e, pior ainda, a cheia obrigava-o a modificar o seu dispositivo. Em breve o Nilo invadiria as terras e o Egipto transformar-se-ia numa espécie de mar.

 

 O comandante já mandara esvaziar várias cavalariças. Reunidos num cercado, os cavalos seriam evacuados para o norte. Restava apenas uma unidade de carros operacional que, como as outras, não tardaria a pôr-se a salvo na fortaleza de Léontópolis, perto da cidade santa de Heliópolis.

 

 Oficial de engenharia apresenta relatório, meu comandante!

 

 O que é agora?

 

 O técnico estava excitado.

 

 Podíamos utilizar a cheia para acabar com Mênfis. Instalemos os nossos archeiros nos pontões que o rio elevará à altura das muralhas e facilmente eliminarão os defensores. Os meus homens destruirão uma parte das muralhas e os nossos soldados de infantaria entrarão na cidade por essa brecha.

 

 Operação delicada... Não corresponde às ordens que recebi.

 

 Eu sei, comandante, mas os sitiados estão no limite das suas forças! E o Imperador não irá apesar de tudo censurar-vos por vos terdes apoderado de Mênfis. Os nossos homens desejam terminar este cerco com um êxito que deverá valer-vos uma bela promoção.

 

 Arrasar aquele buraco de ratos depois de o ter pilhado, abandonar enfim aquele campo onde todos se aborreciam, conseguir uma vitória total... O comandante deixou-se tentar. Explicaria a Khamudi, o novo generalíssimo, que os menfitas, desesperados, tinham cometido um erro fatal tentando uma saída massiva.

 

 Foi dada ordem para dispor os barcos lado-a-lado a fim de formarem uma espécie de parede no canal mais próximo da muralha branca. Em seguida, colocariam os pontões na água e deixariam o rio agir.

 

 A última tira de terra ainda acessível aos carros ficaria inundada nos próximos dias. Estes tinham portanto sido reunidos na parte mais larga, antes de serem embarcados em cargueiros com destino a Léontopolis.

 

 O comandante convocou os seus subordinados e revelou-lhes as suas intenções.

 

 Uma sentinela interrompeu a reunião.

 

 O que significa esta insolência, soldado?

 

 Comandante, carros à vista!

 

 Divagas!

 

 Não, garanto-vos que não.

 

 Então Khamudi enviava finalmente reforços. Mas para que serviriam em tempo de cheia? Irritado, o comandante saiu da sua tenda para acolher descontraidamente o responsável daquele regimento inútil.

 

 A sentinela esquecera-se de assinalar que os veículos não vinham do Norte mas do Sul.

 

 Estupefacto, o comandante foi o primeiro morto da batalha de Mênfis. A flecha disparada pelo Bigodes, bem equilibrado na plataforma do carro conduzido pelo Afegão, cravou-se na testa do hicso.

 

 Os egípcios não poderiam ter sonhado melhores condições de combate. Os cavalos reunidos de um lado, os carros de outro, os navios imobilizados e incapazes de manobrar, os soldados entretidos em tarefas domésticas... Aproveitando de imediato a situação, o regimento de carros comandado pelo Bigodes e o Afegão suprimiu numerosos hicsos graças à habilidade dos archeiros.

 

 Este ataque, rápido e profundo, facilitou a tarefa dos soldados de infantaria conduzidos por Emheb, enquanto os marinheiros de Lunar e de Ahmés, filho de Abana, tomavam de assalto as embarcações inimigas. Passado o efeito da surpresa, os homens do Imperador tentaram organizar-se, embora os diferentes corpos de tropa estivessem isolados uns dos outros.

 

 No mais aceso da confusão onde o Faraó fazia fulgurar a espada de Amon, os resistentes saíram de Mênfis e ajudaram os tebanos.

 

 Compreendendo que nenhum deles sairia incólume do confronto, os hicsos venderam cara a pele. Submergidos pelo entusiasmo dos egípcios, que sentiam a vitória próxima, caíram uns a seguir aos outros.

 

 Mênfis foi libertada anunciou o Faraó Ahmés às suas tropas e apoderámo-nos de um número considerável de carros e de cavalos! Mas antes de festejar este êxito, pensemos nos nossos mortos, em todos aqueles que deram a sua vida pelo Egipto.

 

 À vista dos numerosos cadáveres que juncavam o solo ou flutuavam nos canais, Ah-hotep sentiu-se tão desesperada como se o Exército de Libertação tivesse sofrido uma derrota.

 

 A guerra era uma das piores depravações da espécie humana, mas que outro meio utilizar para vencer o Imperador das Trevas?

 

 Em vez de se encerrar nos seus pensamentos, Ah-hotep assegurou-se que nenhum dos seus fiéis companheiros tinha sucumbido sob os golpes do adversário. Apenas Lunar estava ferido no braço. Tratado por Felina, que não sabia para onde se voltar, o almirante não concedeu a si mesmo nem um minuto de repouso, preocupado em conhecer a dimensão das suas perdas.

 

 Reunindo os soldados menos esgotados e os carros, o governador Emheb formou uma primeira linha a norte de Mênfis. Receava um contra-ataque de tropas hicsas mantidas de reserva. Nesse caso, a aparente vitória transformar-se-ia em desastre.

 

 O Bigodes, o Afegão, os respectivos soldados e os seus cavalos recuperavam o fôlego. Também eles sabiam que não estariam em condições de deter um ataque hicso.

 

 A noite caiu. Uma calma opressiva reinava sobre a planície menfita.

 

 Este lugar é muito difícil de defender considerou Ah-hotep.

 

 A muralha branca de Mênfis será uma preciosa aliada afirmou o chanceler Neshi. Coloquemos carros e cavalos abrigados na velha cidade.

 

 Em marcha! ordenou Ahmés. Só dormiremos no final da manobra.

 

 Os egípcios consolidaram as suas novas posições no limite do território que os hicsos consideravam como o seu santuário, simultaneamente tão próximo e tão inacessível.

 

 Aquela trégua benfazeja seria de curta duração. Todos pensavam já no próximo objectivo: Auaris, a capital hicsa.

 

 Era essa batalha que se tornava necessário ganhar. Em caso de derrota, os sacrifícios realizados teriam sido inúteis.

 

 Os nossos homens estão prontos disse o Faraó à Rainha Ah-hotep. Mortos de medo mas prontos a atacar o reduto de Apopis. Estão conscientes da enormidade da tarefa e ninguém recuará perante o seu dever.

 

 Marchar sobre Auaris seria uma loucura considerou Ah-hotep.

 

 Mãe... Não podemos desistir!

 

 Quem te fala de desistir? Se o Imperador não enviou reforços a Mênfis foi por saber daquilo que somos realmente capazes. Há muito tempo que ele procura atrair-nos para o seu terreno, na esperança de que o conjunto das nossas tropas caia na sua cilada. Não, Ahmés, não estamos prontos.

 

 Mas teremos de avançar no Delta!

 

 Claro, mas quando nós tivermos decidido. Depois do assalto realizado pelo teu irmão mais velho, é certo que os hicsos montaram um dispositivo para repelir uma ofensiva naval. Quanto aos nossos carros, ainda são insuficientes. Transformemos e aligeiremos os carros hicsos de que nos apoderámos e depois formemos os seus condutores. Além disso, não venceremos o Imperador unicamente com armas materiais. É por isso que devemos, tu e eu, dirigir-nos a Sakara para que o teu poder real ali seja confirmado.

 

 Sob a vigilância atenta de Risonho, o Jovem, que muito apreciara o passeio de carro até à necrópole de Sakara, a Rainha Ah-hotep e o Faraó Ahmés contemplaram deslumbrados aquela imensidão consagrada aos antepassados ressuscitados na luz. Pirâmides e Moradas de Eternidade testemunhavam a sua presença, e a sua palavra continuava a ser transmitida graças ao fulgor dos hieróglifos e das formas arquitecturais.

 

 Dominando o local, a pirâmide em degraus de Djoser, edificada pelo mestre-de-obras Imhotep, cuja fama atravessara os tempos, parecia ser a guardiã. Verdadeira escadaria para o céu, permitia à alma do Faraó comunicar com as estrelas e depois voltar a descer à terra para incarnar a harmonia do alto.

 

 A pirâmide em degraus reinava no

centro de um vasto espaço ritual delimitado por uma parede de cerca. O Rei e a mãe constataram que só existia uma única entrada. Fixa na pedra, a porta parecia estar permanentemente aberta.

 

 Estranho notou Ahmés. Por que razão os hicsos não destruíram este santuário? Sabem com certeza que a alma real se regenera aqui no mistério, fora da vista dos humanos.

 

 Estou convencida disso aprovou a Rainha mas o Imperador viu-se confrontado com uma tal força que a sua magia negativa fracassou.

 

 O Faraó pretendeu avançar pelo estreito acesso, mas Ah-hotep reteve-o.

 

 Apopis não renunciou certamente a fazer mal. Se deixou este monumento intacto sem sequer inutilizar a porta, foi porque descobriu o processo de bloquear o seu esplendor.

 

 Terá encerrado a energia regeneradora no interior?

 

 É o que julgo. O Imperador deve ter tornado este acesso intransponível lançando-lhe um malefício. Assim, nenhum Faraó poderá voltar a alimentar-se da herança dos antepassados.

 

 A Rainha recolheu-se, implorando ao marido Seken e ao filho Kamés.

 

 Temos de quebrar o malefício anunciou a Ahmés. Eu encarrego-me disso, pois penso conhecer o nome desta porta.

 

 Mãe, vós...

 

 Que importa a minha morte? És tu que deves reunir a coroa branca e a coroa vermelha.

 

 Ah-hotep avançou lentamente.

 

 Quando atingiu o limiar, foi imobilizada por um sopro glacial. Depois, pareceu-lhe que os sopros, ardentes como brasas, se aproximavam dela para a esmagar. A Rainha estava pregada ao chão.

 

 Porta, conheço o teu nome! Chamas-te ”a rectidão dá a vida”. Visto que te conheço, abre-te.

 

 Uma intensa luz jorrou da bela pedra branca e o sopro glacial desapareceu.

 

 Ah-hotep convidou Ahmés a segui-la. Precedendo o Faraó, a Rainha avançou no breve espaço deixado livre entre robustas colunas.

 

 Risonho, o Jovem deitou-se no limiar, na postura de Anúbis, e guardou a porta do invisível.

 

 Guiada pelo espírito de Seken e de Kamés, a Rainha sentia que o malefício não estava totalmente anulado.

 

 À saída da colunata, viu várias cobras erguidas no cimo de um muro. Prontas a saltar da pedra na qual estavam esculpidas, não iriam lançar-se sobre Ahmés?

 

 O vosso papel consiste em abrir o caminho do Faraó e espalhar o vosso fogo sobre os seus inimigos! Tereis esquecido o espírito que vos concebeu e a mão que vos criou? Vós, serpentes da realeza, conheço o vosso nome: sois a chama da origem!

 

 Os olhares dos répteis e o da Rainha desafiaram-se antes que as esculturas retomassem o seu porte hierático.

 

 Esgotada mas serena, Ah-hotep pôde finalmente contemplar o grande pátio a céu aberto diante da pirâmide em degraus. Simbolizava o Egipto inteiro, sobre o qual o seu filho era chamado a reinar.

 

 Apopis já só exercia duas actividades.

 

 Ou assistia ao suplício dos condenados que enviava para o labirinto ou para a arena do touro, ou se fechava no compartimento secreto no interior da cidadela onde acendia uma lâmpada.

 

 Na chama, de uma inquietante luminosidade esverdeada, contemplava cenas que só ele podia ver.

 

 Impaciente, o grande tesoureiro tivera de esperar que o Imperador estivesse disposto para lhe comunicar as informações alarmantes que acabava de receber.

 

 Senhor, os revoltosos reconquistaram Mênfis! O nosso regimento encarregado de cercar a cidade foi aniquilado.

 

 Eu sei.

 

 As nossas milícias do Egipto Médio foram exterminadas.

 

 Eu sei.

 

 Senhor, é necessário admitir que Ah-hotep e o filho estão à frente de um verdadeiro exército!

 

 Eu sei, Khamudi. A Rainha conseguiu mesmo quebrar o malefício que eu fazia pesar sobre Sakara. Actualmente, Ahmés é um autêntico chefe de guerra.

 

 Quais são as vossas ordens, senhor?

 

 Esperar. Embora ainda hesite, Ah-hotep virá ao nosso encontro.

 

 Não seria melhor atacar antes que ela se aproxime de Auaris?

 

 De maneira nenhuma.

 

 Perdoai se insisto, senhor, mas esses egípcios não podem ser considerados de ânimo leve!

 

 O olhar gelado de Apopis trespassou o grande tesoureiro.

 

 Crês realmente que eu tenha cometido um tal erro? Ah-hotep é uma adversária à minha medida porque a deixei crescer. Nela vive uma força, a força que eu devo destruir. Se tivesse intervindo mais cedo, essa revoltosa não teria ultrapassado as fronteiras de Tebas. Hoje, imagina-se tão forte como eu. A chama diz-me que a sua esperança de liberdade nunca foi tão intensa, e é essa esperança que conduz os egípcios para o abismo. Vou infligir-lhes uma derrota de que não recuperarão. E será em Auaris, junto da minha cidadela, que a sofrerão. Desaparecida Ah-hotep, nem mais um único dos seus compatriotas ousará pegar em armas contra mim.

 

 Louco de raiva, Khamudi quebrou uma mesa baixa e espezinhou-a.

 

 Acalma-te, querido! implorou a sua esposa Yima. O generalíssimo atirou os restos do móvel pela janela.

 

 O Imperador é demasiado velho para governar declarou com os maxilares crispados.

 

 Cala-te, suplico-te! Se alguém te ouvisse...

 

 És a única a poder ouvir-me, Yima. E não és mulher para me trair, não é verdade?

 

 A falsa loura baloiçou a cabeça.

 

 Claro que não, meu amor! E não te oculto o fundo do meu pensamento: já que te desembaraçaste de Jannas, deixa de tergiversar.

 

 O tom cortante da esposa surpreendeu Khamudi.

 

 O que queres dizer exactamente?

 

 Sabe-lo tão bem como eu.

 

 Mênfis renascia.

 

 Os sobreviventes tinham de se habituar a deixar de recear ser abatidos, a comer o que tivessem na vontade e a falar de futuro.

 

 Com a ajuda dos soldados, sacerdotes e talhadores de pedra reparavam os templos menos degradados.

 

 Tranquilizados por não terem de marchar imediatamente sobre Auaris, os soldados do Exército de Libertação esperavam a decisão do conselho de guerra que se realizava no palácio em grande parte devastado.

 

 O poder real foi confirmado em Sakara revelou o Rainha Ah-hotep aos membros do estado-maior. Mas espreita-nos um perigo: a falta do heka. Sem essa força mágica que nos ajudou a ultrapassar tantos obstáculos, não teremos qualquer hipótese de vencer os hicsos amontoados no Delta. É por isso que devemos recolher o heka onde brilha sob a forma mais pura, na cidade santa de Heliópolis.

 

 Segundo as informações que a resistência menfita nos forneceu referiu o chanceler Neshi, Heliópolis está infelizmente fora do nosso alcance.

 

 Por que razão?

 

 Porque se encontra no território controlado pela fortaleza de Léontopolis, a mais importante do Delta a seguir a Auaris.

 

 Sabemos desmantelar praças-fortes lembrou Ah-hotep.

 

 Aquela é diferente, Majestade: muros espessos com a altura de dez metros e portas tão sólidas que nenhum ariete conseguiria derrubar.

 

 Os monumentos de Heliópolis estão intactos?

 

 O Imperador inscreveu o seu nome sobre as folhas da árvore sagrada revelou o governador de Mênfis. Colocou-se assim na linha dos Faraós. É por isso que o santuário de Atum está ainda de pé, mas guardado por hicsos.

 

 De certa maneira deplorou Neshi a árvore torna Apopis imortal. Além disso, ele provavelmente destruiu a fonte do heka.

 

 Antes de nos desesperarmos recomendou Ah-hotep verifiquemos por nós próprios.

 

 De regresso da sua missão de reconhecimento, no decurso da qual tinham cavalgado o Grande Branco e o Cinzento, o Bigodes e o Afegão estavam em dúvida. Construída sobre uma elevação ao abrigo da cheia, Léontopolis parecia inexpugnável. Dois navios de guerra bloqueavam o canal que a ligava a Heliópolis.

 

Os nossos nadadores causarão tais avarias que acabarão por sucumbir  considerou o Bigodes.

 

Da parte da infantaria hicsa de Heliópolis também não haverá problemas  corroborou o Afegão.  Os nossos carros acabarão com eles.

 

A fortaleza enviará reforços  objectou o governador Emheb. O Imperador será alertado, milhares de hicsos convergirão para Heliópolis e é lá que seremos esmagados! Nenhuma manobra resultará sem a conquista dessa praça-forte.

 

É por isso que os nossos carpinteiros devem pôr-se ao trabalho  precisou a Rainha Ah-hotep.  Porque havemos de procurar sem ser na nossa própria tradição a arma de que temos necessidade?

 

Informado da vitória de Mênfis conquistada pelo exército egípcio, o comandante da fortaleza de Léontopolis não tinha no entanto outros problemas que não os da administração. Possuía numerosos cavalos que era necessário alimentar e dois regimentos de carros que criavam uma sobrepopulação difícil de controlar. Felizmente, a descida da cheia começara. Dentro de alguns dias, os seus importunos hóspedes abandonariam aquelas paragens.

 

Comandante  avisou uma sentinela  barcos inimigos à vista!

 

Espantado, subiu até ao topo da mais alta torre de guarda.

 

De facto, dezenas de embarcações arvorando o estandarte da Rainha Liberdade penetravam no canal que conduzia ao desembarcadouro da fortaleza!

 

Os revoltosos tinham portanto eliminado os navios de guarda, mas essa proeza seria inútil. Imobilizados diante das altas muralhas, os egípcios tornar-se-iam alvos perfeitos para os archeiros hicsos. Depois a grande porta abrir-se-ia e os carros exterminariam os fugitivos.

 

Seria então ao comandante de Léontopolis que caberia a honra de levar ao Imperador a cabeça da Rainha Ah-hotep.

 

 Os navios egípcios imobilizaram-se, fora do alcance do inimigo.

 

 Para estupefacção do comandante de Léontopolis, os atiradores de elite do Exército de Libertação utilizaram grandes arcos que lhes permitiram abater um bom número de hicsos colocados nas ameias.

 

 Transportando enormes barrotes, desembarcaram soldados de engenharia. Cobertos pelos seus archeiros, chegaram à grande porta sem grandes perdas.

 

 O comandante sorriu.

 

 Nenhum ariete conseguiria deitá-la abaixo.

 

 Mas os egípcios nem sequer tentaram! Pelo contrário, serviram-se dos barrotes como de enormes ferrolhos para bloquearem os hicsos no interior!

 

 Depois, vieram outros soldados de infantaria carregados de longas escadas montadas sobre rodas! A cadência de tiro dos archeiros acentuou-se, permitindo aos camaradas erguer as escadas e deslocá-las tão depressa quanto possível para as encostarem às muralhas.

 

 Assustado, o comandante ordenou a um máximo de defensores que ocupassem as ameias. Mas o caminho de ronda era estreito e já os primeiros assaltantes chegavam ao topo das escadas móveis.

 

 Pés Grandes, o matrícula 1790, era o mais antigo sobrevivente do campo de concentração de Charuhen. Apenas a sua vontade de vingança o mantinha vivo. Visto que a morte não queria nada com ele, faria pagar aos hicsos o roubo das suas vacas.

 

 Há várias semanas que os comboios de deportados se sucediam sem interrupção. Entre eles, muitos egípcios do Delta, mas também uma nova categoria de condenados que descobriam o horror do campo de concentração: militares hicsos!

 

 Formando grupo, evitavam o olhar das mulheres, crianças e velhos que morriam de fome e sofriam as sevícias dos seus torcionários. Tal como eles, os ex-militares tinham agora um número gravado na carne.

 

 Uma noite, um oficial originário do Cáucaso aproximou-se de Pés Grandes que dormia sobre umas tábuas, protecção inestimável contra a lama.

 

 1790... Tu não chegaste ontem, não senhor! Qual é o teu segredo para te aguentares neste inferno?

 

 Não aceito a injustiça. Tu e os teus semelhantes roubaram-me as minhas vacas.

 

 A mim, roubaram-me a minha honra e a minha razão de viver.

 

 Porque estás aqui?

 

 Depuração. Eu e os meus camaradas acreditávamos no futuro do almirante Jannas. O Imperador mandou-o assassinar.

 

 Um hicso a menos... Excelente notícia.

 

 Há muito melhores, no que te diz respeito. A Rainha Ah-hotep libertou Mênfis e apoderou-se da fortaleza de Léontopolis. Em breve atacará Auaris.

 

 Pés Grandes perguntou a si mesmo se sonhava. Depois compreendeu.

 

 Mentes para me torturar, não é? Patife! Divertes-te a dar-me esperança!

 

 Não te enerves, amigo! É a pura verdade. O Imperador quer a minha morte, mas a tua Rainha também. Só tenho uma solução: fugir deste campo de concentração.

 

 Pés Grandes ficou espantado.

 

 Ninguém pode fugir daqui!

 

 Eu e os outros hicsos eliminaremos os guardas. Como me és simpático, aviso-te: ou nos segues ou apodrecerás neste lodaçal.

 

 Pés Grandes queria acreditar que o caucasiano não mentia.

 

 Mas não seguiu os partidários de Jannas quando tentaram forçar a porta do campo de Charuhen, certo de que fracassariam.

 

 Pés Grandes teve razão.

 

 Cortados em pedaços, os cadáveres dos insurrectos foram lançados aos porcos.

 

 Graças à tomada de Léontopolis, o regimento de carros egípcio duplicava os seus efectivos em cavalos e veículos. Restava aligeirar os últimos e formar condutores e archeiros capazes de enfrentarem os hicsos de Auaris.

 

 Aproveitando o recuo das águas que deixaram livre uma vasta planície, os instrutores puseram-se imediatamente ao trabalho, enquanto Ah-hotep e o Faraó se dirigiam a Heliópolis, finalmente libertada.

 

 Esvaziada dos seus ritualistas e dos artesãos que trabalhavam outrora nas oficinas do templo, a velha cidade parecia extinta para sempre. Entorpecida numa calma opressiva, como podia ela oferecer o heka?

 

 Com todos os sentidos alerta, Risonho, o Jovem precedeu a Rainha e o Faraó na álea que conduzia ao grande templo de Atum e de Ré, cuja porta monumental estava fechada. Rodearam portanto a cerca até à pequena porta das purificações, grosseiramente murada. Um soldado retirou os tijolos.

 

 Os seus passos conduziram Ah-hotep e o filho a um obelisco com a ponta coberta de ouro, erguido na colina primordial saída do oceano de energia aquando do nascimento do Universo.

 

 Depois descobriram a árvore sagrada de Heliópolis, a perséa de enormes ramos e folhas lanceoladas sobre as quais estavam preservados os nomes dos Faraós.

 

 Reencontrando instintivamente o gesto ritual dos seus antepassados, Ahmés ajoelhou-se, a perna esquerda dobrada sob o corpo e a direita estendida para trás. Apresentou à perséa a espada de Amon, a fim de que o invisível a impregnasse da sua força.

 

 A Esposa do Deus examinava as folhas. Espantada com as primeiras constatações, tornou a verificar.

 

 Desta vez, não havia dúvida possível.

 

 Apopis mentiu: o seu nome não figura na folhagem da árvore solar! A perséa recusou conservar a memória desse tirano, o heka de Heliópolis não foi maculado.

 

 No momento em que Ah-hotep inscrevia os nomes rituais do Faraó Ahmés, a espada de Amon tornou-se um raio de luz tão intensa que o Rei teve de fechar os olhos.

 

 Vem para junto de mim pediu-lhe a mãe.

 

 Ah-hotep desempenhou a função de Séchat, que tornava vivas as palavras dos deuses, Ahmés a de Tot, que transmitia a sua mensagem. E foi a vez dos nomes do jovem Faraó se tornarem luminosos.

 

 No seu coração ele ouviu a voz de Atum, o ser e o não-ser indissoluvelmente ligados, a totalidade precedendo o tempo e o espaço, a matéria-prima de onde tudo provinha, E a cadeia foi reatada com os seus predecessores, cuja magia protectora penetrou no seu alento.

 

 A nossa tarefa não está terminada considerou Ah-hotep. Este templo ainda não vibra como devia.

 

 Continuando a sua exploração, penetrou numa ampla capela onde jaziam os bocados de duas grandes barcas em acácia.

 

 A barca do dia e a barca da noite murmurou ela. Se não circularem, os ritmos do cosmos são perturbados e as trevas invadem a terra. Eis porque o Imperador conseguiu impor a sua lei!

 

 Pacientemente, o Faraó reconstituiu cada barca.

 

 À proa da do dia, uma ísis em madeira dourada; à proa da da noite, uma Néftis. Face-a-face, as deusas estendiam as mãos para transmitirem uma à outra o disco de ouro onde incarnava a luz regenerada.

 

 Um disco que Apopis roubara e destruíra. Mas jazia no solo o amuleto do conhecimento que a Rainha colocou ao pescoço do filho.

 

 Coloca-te entre ísis e Néftis ordenou-lhe ela. Como todo o soberano do Egipto, és o filho da luz que regressa ao oceano de energia com o sol da tarde e renasce a oriente com o da manhã.

 

Nota:  O siat, palavra formada na raiz de sia, conhecer intuitivamente, ser sábio”.

 

 Um sorriso sereno iluminou o rosto das deusas, que encheram de heka o espírito do Faraó.

 

 Depois de Ah-hotep e Ahmés terem deixado o lugar, um disco de ouro apareceu nas mãos de Néftis, que o transmitiu a ísis no segredo do templo.

 

 A circulação das barcas do dia e da noite acabava de recomeçar.

 

 Longe, muito longe do Egipto, o reino núbio de Kerma vivia numa opulência com que o seu príncipe Nedjeh se congratulava cada dia mais. Depois de ter tentado dar o golpe nos hicsos a sul do Egipto, proclamando-se seu aliado, e depois guerreado contra a Rainha Ah-hotep, Nedjeh contentava-se com a sua existência dourada.

 

 Recluso na sua província de ricos recursos agrícolas, tornado obeso à força de se empanturrar com excelentes comidas, o efervescente príncipe de Kerma renunciara a combater fosse quem fosse. Raramente saía do seu palácio decorado à egípcia, onde a disposição das aberturas garantia a circulação de ar fresco. Cinco refeições por dia, adornadas com os mimos dispensados pelas soberbas mulheres do seu harém, bastavam à sua felicidade. Nenhuma deixava transparecer o seu desagrado, porque a cólera do velho déspota ainda fazia tremer os seus súbditos. Quem quer que lhe desagradasse morria com o crânio esfacelado e ia juntar-se às numerosas ossadas que se amontoavam no futuro túmulo de Nedjeh, mais vasto do que a sepultura de um Rei de Tebas.

 

 Tu outra vez! grunhiu o obeso vendo Ata, o chefe da sua polícia, aproximar-se do leito macio sobre o qual estava estendido.

 

 Príncipe, esta situação não pode durar mais! Os soldados de Ah-hotep, aliados às tribos núbias que nos traíram, condenam-nos à imobilidade.

 

 Não me dizes nada de novo. Pára de te agitar.

 

Ata era alto, magro e nervoso. Nedjeh censurava-lhe não saber estar quieto, mas era um bom polícia, capaz de fazer reinar a ordem na cidade.

 

Kerma é um principado guerreiro que deve recuperar o seu orgulho  insistiu.

 

Esquece esses perigosos sonhos e aproveita a vida! Começo a cansar-me de algumas mulheres que consinto em oferecer-te. Acalmar-te-ão os nervos.

 

Há já demasiado tempo que estávamos separados do mundo exterior e que não recebíamos nenhuma informação  declarou Ata.  Pus fim a esse isolamento.

 

O obeso franziu as sobrancelhas.

 

O que fizeste?

 

Os meus melhores homens arriscaram a vida para atravessarem o território sob controlo egípcio e atingir Auaris passando pelo deserto.

 

Não permito a ninguém tomar semelhantes iniciativas! berrou o príncipe de Kerma.

 

Deveis aprovar-me, senhor. Haveis sem dúvida tido razão em temporizar, mas é preciso agora estreitar os nossos laços com os Hicsos e reconquistar o terreno perdido.

 

Enlouqueceste, Ata!

 

As minhas mensagens anunciaram ao Imperador que Kerma retomava a luta contra o Egipto.

 

O obeso estava espantado.

 

Como ousaste...?

 

Deveis aprovar-me  repetiu o chefe da polícia.

 

Enganas-te redondamente!

 

Então, tanto pior para vós.

 

Ata cravou a sua espada na pança do obeso, estupefacto com aquele crime de lesa-majestade.

 

Com uma lentidão ameaçadora, levantou-se.

 

Vou esmagar-te, verme!

 

Esquecendo o dardo mortal, Nedjeh avançou para Ata que recuava, incrédulo. Como conseguia ainda mover-se aquele batoque?

 

 Agarrando num pé de lâmpada em bronze, desferiu-lhe uma violenta pancada na cabeça.

 

 Estacando por instantes, Nedjeh recomeçou a avançar, com o rosto coberto de sangue.

 

 Ata bateu de novo. Desta vez, o estróina caiu. O ex-chefe da polícia podia anunciar ao povo de Kerma que havia um novo príncipe.

 

 A fortaleza de Léontopolis caiu anunciou Khamudi ao Imperador, afundado num cadeirão de grosseiros braços.  Não tem importância. Com os tornozelos inchados e dolorosos, as bochechas mais pendentes  do que o habitual e a voz enrouquecida, Apopis já não saía do compartimento secreto preparado no coração da cidadela. Apenas o generalíssimo Khamudi ali tinha acesso.

 

 A queda de Léontopolis arrastou a de Heliópolis precisou este.

 

 Agora, pensou o Imperador, Ah-hotep sabe que a árvore sagrada recusou aceitar o meu nome e que eu não pertenço à linhagem dos Faraós. Por isso deve morrer.

 

 Não devemos continuar passivos, Majestade. Esta Rainha acumula demasiados êxitos. Proponho que a ataquemos sem demora. Nas planícies do Delta, os nossos carros esmagarão o exército egípcio.

 

 Deixa-a vir até à capital ordenou Apopis. O meu plano desenrola-se ponto por ponto e é aqui que Ah-hotep cairá nas minhas mãos. Aqui e em mais lugar nenhum. Quanto mais se embriagar com inúteis vitórias, mais vulnerável será.

 

 Majestade, eu...

 

 Basta, Khamudi, preciso de repousar. Avisa-me quando Ah-hotep chegar às portas da minha capital.

 

 Khamudi não conseguia acalmar. Como havia de chamar à razão aquele velho senil que já não compreendia a realidade? É certo que o próprio grande tesoureiro se mostrara em tempos hostil à dispersão das forças. Mas a situação mudara muito. Hoje, Ah-hotep e o Faraó Ahmés estavam à frente de um verdadeiro exército que acabava de se apoderar de uma fortaleza considerada inexpugnável e violar o santuário hicso.

 

 A sua estratégia era clara: destruir uma a uma todas as praças fortes do Delta e só desafiar Auaris depois de a ter isolado.

 

 Esperar por eles seria portanto suicidário. Visto que cometiam o erro de se aventurar em terreno plano, o generalíssimo aniquilá-los-ia.

 

 Mas era impossível lançar os carros ao assalto sem ordem explícita do Imperador!

 

 Enquanto pensava nas palavras da sua esposa Yima, Khamudi foi informado que tinham chegado a Auaris emissários do príncipe de Kerma. Uma boa ocasião para descarregar os nervos sobre aqueles negros que Ah-hotep reduzira ao estado de carneiros!

 

 Senhor disse um homem jovem de ar marcial transmitimo-vos as saudações do príncipe de Kerma.

 

 Esse cobarde que se contenta em comer e fornicar?

 

 Nedjeh morreu e o príncipe Ata não se parece em nada com ele. À frente dos guerreiros de Kerma, quebrará a armadura na qual sufocamos.

 

 Ata quer bater-se contra os egípcios?

 

 Numa primeira fase, recuperará toda a Núbia. Em seguida, apoderar-se-á do sul do Egipto, desde que lhe deis a certeza de não entravar o seu avanço.

 

 Khamudi não reflectiu muito tempo.

 

 Dou-lhe essa certeza.

 

 Majestade, foram detectados batedores do exército egípcio anunciou Khamudi.

 

 Ei-la, enfim! Vem, Ah-hotep, vem até mim!

 

 O ódio que enchia o olhar do Imperador tornava-o insuportável.

 

 Não deveríeis ir ao templo de Set para desencadear a sua fúria contra o inimigo? sugeriu o generalíssimo.

 

Ah-hotep sabe como conjurá-la, mas tens razão: não devemos negligenciar esse precioso aliado. Uma tempestade de extrema violência abater-se-á sobre os egípcios e os raios destruirão uma parte da sua frota.

 

Khamudi ajudou o Imperador a levantar-se e a andar.

 

No limiar da cidadela, Apopis tomou lugar numa cadeira de transportadores sem notar o gesto discreto que o grande tesoureiro dirigia ao chefe dos piratas cipriotas.

 

Obsequioso, Khamudi apoiou ainda Apopis quando este se instalou na barca que atravessaria o braço de água para acostar à ilhota onde estava erigido o templo de Set.

 

Estes remadores não pertencem à minha guarda pessoal notou o Imperador.

 

Exacto, são os meus homens.

 

O que significa isto, Khamudi?

 

Que tomo o poder.

 

Perdeste a cabeça, como Jannas!

 

Jannas contemporizou, eu não cometerei o mesmo erro.

 

És pequeno, meu amigo, e serás sempre pequeno, apesar da tua vaidade, da tua fortuna e das tuas sórdidas manobras.

 

A voz e o olhar de Apopis gelaram o sangue de Khamudi, que sentiu os membros paralisados.

 

Indo buscar força ao fundo da sua raiva, bateu com o punho no rosto do Imperador, cujo nariz e lábios rebentaram.

 

Com fúria, cravou-lhe um punhal no coração. Enquanto a sua vítima tombava de lado, Khamudi apoderou-se da adaga de Apopis e cravou-a nas costas do velho.

 

Perturbado, afastou-se do cadáver.

 

Continuem a remar  ordenou aos soldados.

 

A barca acostou.

 

Coloquem esta carcaça sobre o altar de Set e queimem-na.

 

Ainda mexe!  exclamou um marinheiro, aterrorizado. Khamudi empunhou um remo e bateu dez, vinte, cem vezes no Imperador, até que ele não foi mais do que um fantoche ensanguentado e desarticulado.

 

A mão direita de Apopis ergueu-se ligeiramente.

 

 Histérico, Khamudi compreendeu que o velho trazia consigo uma protecção.

 

 Ao pescoço, o ankh, a cruz da vida, presa a uma corrente de ouro e, no dedo mindinho da mão esquerda, um escaravelho em ametista num anel de ouro.

 

 O grande tesoureiro arrancou as jóias e espezinhou-as.

 

 A mão do velho voltou a cair, enfim inerte.

 

 Depressa, queimem-no!

 

 O fumo que se elevou acima do templo de Set espalhou um odor pestilencial.

 

 Está feito anunciou Khamudi à esposa, a dama Yima.

 

 Então, tu és... o Imperador dos Hicsos!

 

 A partir de agora, todos me devem uma obediência absoluta.

 

 É maravilhoso, maravilhoso! Mas... Como cheiras mal! Estás coberto por uma poeira escura, vai lavar-te depressa. Vou mandar-te servir o nosso melhor vinho. E eu... eu sou Imperatriz!

 

 Abandonando Yima a sonhos de grandeza que se tornavam realidade, Khamudi apressou-se a reunir oficiais superiores e dignitários na sala de audiências da cidadela.

 

 O Imperador Apopis morreu revelou ele. Tive o triste privilégio de recolher as suas últimas vontades: que o seu corpo fosse incinerado sobre o altar do templo de Set e que eu lhe sucedesse para manter a grandeza do Império.

 

 Quem teria podido opor-se à tomada de poder do generalíssimo e grande tesoureiro Khamudi? Depois de ter depurado o exército e deitado a mão à economia hicsa, não tinha nenhum rival.

 

 Todos se inclinaram portanto diante do novo Imperador, que sentiu o peito inchar e o torso alargar. Esta consagração era mais inebriante do que todas as drogas reunidas!

 

 Com um andar pouco firme, como se estivesse ébrio, Khamudi penetrou nos apartamentos privados de Apopis cujos guardas tinham sido suprimidos nessa mesma manhã pelos piratas cipriotas fiéis ao grande tesoureiro. Ordenara à dama Aberia que enviasse para o campo de concentração a totalidade dos criados do seu predecessor.

 

 Lugar novo: era essa a palavra de ordem que se aplicava também aos objectos. Qualquer recordação do tirano devia desaparecer, com excepção das pinturas cretenses, cuja frescura agradava a Khamudi.

 

 A dama Yima corria de um compartimento para outro, chorava, beijava uma criada, esbofeteava outra, deitava-se em cima de um leito, levantava-se, pedia de beber, esquecia a taça, absorvia um pouco de droga e rasgava os seus antigos vestidos soltando gritos.

 

 Conseguimos, sou Imperatriz! Imperatriz, eu, estás a ver! Atirou-se ao pescoço do marido, que a repeliu.

 

 Temos trabalho a fazer, é necessário continuar a depuração. Vais fazer um inquérito aprofundado sobre cada um dos membros do pessoal da cidadela. À mínima suspeita, que Aberia nos desembarace dele.

 

 Deixando a esposa entretida com as suas ocupações, Khamudi convocou generais e almirantes a fim de preparar o contra-ataque que lhe permitiria reconquistar Léontopolis, Heliópolis e Mênfis, enquanto os núbios do novo príncipe de Kerma se precipitariam sobre o Alto Egipto. Obrigada a recuar até Tebas, Ah-hotep seria apanhada entre dois fogos.

 

 Khamudi queria-a viva. Para ela, inventaria suplícios inéditos a fim de que morresse o mais lentamente possível entre insuportáveis sofrimentos.

 

 Perdido nos seus pensamentos, o novo Imperador chocou com o velho almirante que nomeara para ficar à frente da frota.

 

 Senhor, os egípcios!

 

 Os egípcios o quê?

 

 Estão aí!

 

 Porque lhe vinha aquele imbecil repetir a fábula que ele contara a Apopis para o incitar a sair da cidadela?

 

 Volta para o teu posto.

 

 Não compreendeis, senhor! Os egípcios atacam Auaris!

 

 Divagas, os nossos vigias tê-los-iam detectado há muito tempo.

 

 Não, porque eles não vieram do sul.

 

 É impossível!

 

 Esperamos as vossas ordens, senhor.

 

 O que previam os hicsos senão uma ofensiva da marinha egípcia idêntica à desencadeada com um êxito certeiro por Kamés? A Rainha Ah-hotep sugerira portanto uma estratégia totalmente diferente que consistia em atacar Auaris de diferentes maneiras e em diversos locais ao mesmo tempo. Isso implicava lançar a totalidade das forças egípcias na batalha e, previamente, destruir o conjunto dos postos de vigia.

 

 O Afegão e o Bigodes tinham-se encarregado dessa tarefa, enquanto a Rainha reforçava as medidas de segurança em redor da pessoa do Faraó. Se o espião hicso continuasse em actividade, tentaria suprimir Ahmés a fim de entravar o avanço do Exército de Libertação. Mais do que nunca, Risonho, o Jovem permanecia atento.

 

 Eis Auaris disse o governador Emheb, comovido. Finalmente, Ah-hotep descobria a capital do Império das Trevas!

 

 Tal como a mãe, o Faraó Ahmés ficou impressionado pela grandeza do lugar, a dimensão dos portos de guerra e de comércio e, sobretudo, o tamanho da cidadela. Nenhuma fortaleza lhe poderia ser comparada.

 

 O medo insinuou-se nas fileiras egípcias, de tal forma as embarcações da frota hicsa e os carros alinhados na margem oriental lhes pareceram inumeráveis.

 

 Estavam todos preparados para aquele instante, mas ninguém tinha imaginado que o adversário fosse tão monstruoso.

 

 Avançamos para o massacre previu o chanceler Neshi, lívido.

 

 O que pensam disso os dois oficiais mais intrépidos? perguntou Ah-hotep.

 

 O chanceler tem razão aprovou o Bigodes.

 

 Por uma vez reconheceu o Afegão o meu camarada não está errado.

 

 Mais vale bater em retirada em vez de sofrer uma derrota imediata preconizou o governador Emheb. Sei que nunca haveis recuado, Majestade, mas ninguém vo-lo censurará.

 

 O silêncio do almirante Lunar provou que partilhava a opinião dos seus companheiros de armas.

 

 No olhar do seu filho, a Rainha detectou intenções bem diferentes.

 

 Olhai os hicsos recomendou Ahmés. Correm em todas as direcções como caça assustada! O nosso dispositivo de assalto é excelente, será ele que nos permitirá superar o déficie em homens e material. Que cada um ocupe imediatamente o seu posto. Quando os tambores ressoarem, que todas as nossas unidades avancem de acordo com o plano previsto.

 

 Khamudi não se deixara abater.

 

 Pelo contrário, a iminência do confronto com os egípcios desencadeara nele um tal furor que se multiplicara para incitar os oficiais superiores a controlarem os seus soldados. Os hicsos não eram superiores aos seus adversários e Auaris inexpugnável?

 

 Iniciava-se a verdadeira batalha e era aquela que se tornava necessário ganhar.

 

 Incitados pelo ardor do seu novo chefe, os hicsos organizaram-se. Os condutores de carros e as suas tripulações correram para os veículos, os marinheiros precipitaram-se para os seus postos de combate, os archeiros tomaram lugar nas torres da cidadela.

 

 Seguido de várias embarcações, o navio-almirante da frota egípcia, O Falcão de Ouro, avançava pelo canal que conduzia ao desembarcadouro da cidadela.

 

 O erro fatal que Khamudi esperava!

 

 Imitando o seu irmão mais velho, Ahmés tentava apoderar-se dos portos, que se transformariam em cemitérios para os navios egípcios.

 

 Mas O Falcão de Ouro imobilizou-se a meio caminho, enquanto outros navios penetravam no canal do norte a fim de apanharem por trás as embarcações hicsas, ao som compulsivo dos tambores.

 

 Aquela má surpresa sucedeu a estupefacção: do navio-almirante desembarcou um carro puxado por dois cavalos conduzido Pelo Faraó em pessoa, tendo na cabeça a coroa branca do Alto Egipto. Nos flancos do veículo estavam pintados hicsos ajoelhados e amarrados.

 

 Conseguiram construir um carro! espantou-se Khamudi.

 

 Um carro não rectificou um general, despeitado. Centenas de carros.

 

 Lançados a toda a velocidade, os carros egípcios precipitavam-se sobre os dos hicsos.

 

 Segundo Ah-hotep, apenas as manobras combinadas e inesperadas podiam dar ao Exército de Libertação uma pequena hipótese de vencer o adversário.

 

 O navio-almirante e os seus acompanhantes serviram de isca para a marinha hicsa, que os considerou erradamente como presas fáceis. Iniciou-se um combate feroz, enquanto outros navios egípcios, chegando pelo canal do norte, cortavam a meio a frota inimiga.

 

 E foi a infantaria da marinha, comandada pelo governador Emheb e Ahmés, filho de Abana, que utilizou barcas à vela fortificadas para se lançar à abordagem das pesadas embarcações hicsas, totalmente apanhadas desprevenidas.

 

 Nessas duas frentes, o entusiasmo e a mobilidade dos egípcios permitiu-lhes jogar de igual para igual com o adversário.

 

 Restava o choque principal de que dependia o resultado da batalha de Auaris: quais os carros que sairiam vitoriosos do confronto?

 

 Surpreendido a princípio por aquele ataque em terreno plano com veículos ocupados apenas por dois homens, o chefe dos carros egípcios lançou um regimento em linha a fim de varrer tudo à sua passagem.

 

 Por ordem de Ahmés, os egípcios afastaram-se a toda a velocidade e, dando a volta, dispararam sobre os flancos adversários. A maior parte dos disparos atingiu os seus alvos. Os cavalos caíram, provocando um verdadeiro caos, onde numerosos hicsos foram feridos ou mortos.

 

 Como zangãos, os carros do Faraó portavam-se à altura dos seus adversários, lentos e menos manejáveis. Os archeiros abatiam os condutores inimigos. Sem controlo, os cavalos esbarravam nos seus congéneres e provocavam uma confusão que era ampliada por outras tripulações desgovernadas.

 

 Os egípcios respeitavam a ordem recebida: evitar qualquer choque frontal com os hicsos, surpreendê-los de lado e por trás. Como verdadeiros peritos, o Bigodes e o Afegão proporcionaram a si mesmos um belo quadro de caça.

 

 Rodeado por vários carros que o protegiam, de acordo com as ordens de Ah-hotep, o Faraó Ahmés disparava flecha sobre flecha.

 

 Num sinistro concerto de relinchos e gritos de sofrimento, os soldados do Imperador viram-se cercados. Revoluteando em torno deles, os egípcios não lhes concediam tréguas.

 

 Quando uma nova vaga de carros hicsos iniciou um contra-ataque, a Rainha Ah-hotep receou que fosse decisivo. No limite do esgotamento, como conseguiriam os egípcios contê-lo?

 

 Mas esses veículos estavam equipados com rodas sabotadas pelo empregado de armazém Arek, e a maior parte deles cederam logo à primeira aceleração. Assim, os que teriam podido virar o curso do conflito juntaram-se à debandada do seu próprio campo, agora incapaz de se defender.

 

 Sob o impulso de Ahmés, os regimentos de carros egípcios não abrandaram os seus esforços, exigindo o máximo tanto dos animais como dos homens. Lanças e flechas saltavam, mortíferas.

 

 Do lado do navio-almirante, a situação não evoluía de forma favorável. Depois de terem repelido duas tentativas de abordagem, os marinheiros do Faraó, dizimados, sucumbiam ao número. Foi necessário um ataque audacioso de Lunar para evitar o pior. Mas, abandonando o canal do norte, permitiu que vários navios hicsos se reagrupassem e retomassem o controlo daquele acesso a Auaris.

 

 Felina aqueceu uma lanceta ao fogo e cauterizou a ferida profunda feita por uma espada no flanco esquerdo do Afegão. Embora resistente à dor, este não pôde evitar um gemido.

 

 Tiveste sorte disse-lhe ela. É espectacular mas sem gravidade.

 

 E eu lamentou-se o Bigodes fico sem cuidados?

 

 Tu só tens arranhadelas.

 

 Mesmo assim, tenho sangue por todo o lado e estive quase a  morrer cem vezes.

 

 Devo ocupar-me primeiro dos casos sérios. Tu e os que estão sãos e salvos, ajudem-me.

 

 Os feridos eram inúmeros. Felina e os enfermeiros estavam assoberbados, mas os carros egípcios acabavam de conseguir a sua primeira grande vitória.

 

 No entanto, não havia qualquer manifestação de alegria nas fileiras do Exército de Libertação, porque a cidadela, intacta, o desafiava com toda a sua massa.

 

 Chegou a hora dos relatórios, ouvidos com atenção pela Rainha e o Faraó, na cabina do navio-almirante.

 

 Um quarto dos nossos carros destruído declarou o chanceler Neshi mas muito material recuperado ao inimigo. Os nossos soldados comportaram-se de forma admirável. A partir de amanhã, vai ser necessário formar novos condutores para substituir os mortos. Graças às riquezas dos campos em redor, os cavalos serão bem alimentados.

 

 Nada a acrescentar disse o Bigodes, aprovado pelo Afegão.

 

 O teu ferimento? inquietou-se a Rainha.

 

 Incomodar-me-á um pouco durante alguns dias, Majestade, mas não me impedirá de cumprir a minha tarefa de instrutor.

 

 Dez navios afundados ou gravemente atingidos referiu o almirante Lunar pesadas perdas entre os marinheiros e a infantaria da marinha. Felizmente, a frota hicsa foi muito mais duramente afectada do que a nossa, mas continua a ser importante e reuniu-se no canal do norte. Desaconselho um confronto imediato, porque os nossos homens estão esgotados.

 

 Preciso de tempo para reorganizar a administração solicitou o chanceler Neshi e isso não se anuncia fácil. É necessário que os nossos valentes comam correctamente e durmam em boas condições.

 

 As nossas escadas móveis não são utilizáveis informou Emheb. Os muros da cidadela são demasiado elevados e, ao contrário do que aconteceu em Léontopolis, os archeiros hicsos estão perfeitamente protegidos por ameias. Fora do nosso alcance, abaterão os soldados que tentarem aproximar-se da muralha.

 

 Ah-hotep reconheceu a validade dos argumentos. Apesar da sua valentia, as tropas egípcias só tinham conseguido um meio êxito.

 

 Estou muito inquieto confessou o chanceler Neshi. Resta com certeza uma grande quantidade de hicsos a leste do Delta e outros ainda na Siro-Palestina. O Imperador chamá-los-á em seu auxílio para libertar Auaris e nós seremos submersos.

 

 Recuar está fora de questão considerou o Faraó Ahmés.

 

 Devemos apoderar-nos de Auaris a qualquer preço.

 

 É esse o nosso mais profundo desejo confirmou Emheb

 

 mas o cerco será longo, muito longo.

 

 Temos todos necessidade de repouso e de reflexão cortou Ah-hotep.

 

 Que estranha noite! Embora o céu estrelado fosse o do Baixo Egipto, a terra negra, os canais e os campos de cultura pertenciam ainda ao Imperador das Trevas.

 

 Ah-hotep pensava no seu filho Kamés que, com fracos meios, lançara um primeiro assalto contra Auaris, conseguindo pilhar o seu porto comercial. Sem a intervenção do espião hicso, o jovem Rei teria causado mais graves perdas ao inimigo. Mas também ele teria ficado impotente aos pés daquela cidadela que escarnecia do exército de Ahmés.

 

 Perante cada obstáculo, a Rainha descobrira o meio de o ultrapassar ou de o contornar. Desta vez, parecia demasiado monumental! No entanto, Ah-hotep sabia desde a sua adolescência que onde não existia caminho era necessário criar um.

 

 Deixando o pensamento vaguear nas estrelas onde viviam para sempre os Faraós Seken e Kamés, a Rainha aproximou-se da tenda de Ahmés a fim de verificar as medidas de segurança.

 

 Durante o combate, o espião hicso nada pudera tentar. Formada por fiéis entre os mais fiéis, a guarda pessoal do Rei garantia a melhor das protecções. E Risonho, o Jovem, deitado no limiar da tenda, só dormia com um olho.

 

 Como alimentos e bebidas propostas ao monarca eram provados por dois cozinheiros voluntários, o espião também não conseguiria envenenar o Faraó.

 

 Circulavam de novo as barcas da noite e do dia. Ah-hotep viveu a transmissão do antigo para o novo Sol e o seu renascimento a oriente, depois de ter vencido a serpente das trevas no lago da chama.

 

 De madrugada, a decisão da Rainha estava tomada.

 

 Ou o Exército de Libertação se apoderava de Auaris, ou seria aniquilado.

 

 Graças aos estupefacientes, nenhum soldado hicso receava os egípcios. Uns viam as suas angústias desaparecer, outros sentiam-se capazes de enfrentar dez adversários ao mesmo tempo. Khamudi mandara mesmo distribuir droga medíocre à população, a fim de que os civis não fossem dominados pelo pânico.

 

 Era evidente que um único objectivo interessava a Rainha Ah-hotep e o seu filho Ahmés: a cidadela. Mas não tinham nenhum meio de lá entrar. O cerco terminaria por um fiasco e os reforços provenientes do Delta e de Canãa infligir-lhes-iam uma derrota definitiva.

 

 Do alto da principal torre de vigia, Khamudi observava o adversário, cujo comportamento lhe pareceu estranho. Os corpos de archeiros e de infantaria da marinha embarcavam nos barcos de guerra que, um a um, seguiam pelos canais e pelo lago de Auaris.

 

 À proa do navio-almirante, o Faraó Ahmés, facilmente reconhecível pela sua coroa branca.

 

 Querem destruir a minha frota, constatou o novo Imperador, para melhor cercar Auaris,

 

 Descobre-me um excelente archeiro ordenou ele ao oficial que estava perto dele. Que ele tome uma barca ligeira com dois bons remadores e se aproxime à distância de tiro daquele pequeno Rei imprudente.

 

 Comandando o barco denominado Aquele que aparece em glória em Mênfis desde a libertação da ilustre cidade, Ahmés, filho de Abana, era secundado por archeiros de elite que causavam razias nas fileiras inimigas. Eliminando os defensores adversários, facilitavam as manobras de abordagem. Já duas embarcações hicsas tinham caído nas mãos dos egípcios.

 

 Ahmés, filho de Abana detectou uma barca ligeira. Abordo, três homens de torso nu, dois dos quais remadores que mantinham uma cadência desenfreada.

 

 De repente, os remadores abrandaram o ritmo.

 

 Quando o terceiro homem se pôs em pé e tirou uma flecha do carcaz, Ahmés, filho de Abana, notou que ele olhava na direcção do navio-almirante.

 

 O Faraó... O archeiro hicso queria matar o Faraó, cuja coroa branca refulgia ao sol!

 

 Retesando o seu arco, o egípcio mal teve tempo de visar. A seta rasou a cabeça do hicso que, assustado, largou a arma.

 

 Abandonando os seus camaradas, lançou-se à água.

 

 Por precaução, Ahmés, filho de Abana, abateu os dois remadores. Depois, furioso com a ideia de que aquele verme tivesse podido atingir o Rei, mergulhou por sua vez.

 

 Graças ao seu crawl vigoroso e regular, não tardou a apanhar o hicso, que atacou com um violento soco na nuca antes de o atirar para a margem e o pôr às costas como um vulgar saco de mercadorias.

 

 Semi-inconsciente, o prisioneiro tentou apoderar-se do punhal do egípcio. Ahmés, filho de Abana, atirou-o ao chão, cortou-lhe a mão e depois pô-lo definitivamente inconsciente.

 

 Comandante Ahmés, filho de Abana, entrego-te o ouro da valentia declarou o Faraó Ahmés, colocando um fino colar em torno do pescoço do oficial.

 

Nota:  Esta técnica foi praticada desde o Império Antigo.

 

 A reputação do herói não cessava de crescer nas fileiras do Exército de Libertação que se apoderara de diversos navios hicsos. Em breve os combates recomeçariam, intensos e mortíferos.

 

 Ahmés, filho de Abana, curvou-se.

 

 Posso solicitar um favor, Majestade?

 

 Fala.

 

 Concedeis-me a honra de comandar a vossa guarda pessoal, de forma a que eu seja o primeiro a proteger-vos em todas as circunstâncias?

 

 Depois da façanha que acabas de realizar, acedo de boa vontade ao teu pedido.

 

 A Rainha Ah-hotep franziu as sobrancelhas.

 

 E se Ahmés, filho de Abana, fosse o espião hicso? Se o seu acto de bravura tivesse sido apenas um disfarce destinado a conquistar a confiança do Faraó? A partir de agora muito próximo dele, disporia mais cedo ou mais tarde de condições ideais para o suprimir!

 

 Aquelas suspeitas eram absurdas. Ahmés, filho de Abana, servia no Exército de Libertação desde a adolescência e arriscara cem vezes a vida lutando de forma exemplar contra os hicsos. Mesmo assim, a Rainha alertaria o filho.

 

 Interroguemos o teu prisioneiro decidiu Ahmés. Tratado mas aterrorizado, o hicso não se atrevia a levantar os olhos  para o soberano.

 

 O teu posto e a tua função?

 

 Primeiro archeiro no regimento da parte baixa da cidadela.

 

 Descreve-nos o interior exigiu Ah-hotep.

 

 Eu não era admitido lá. Sei apenas que abriga soldados e víveres suficientes para se manter durante anos.

 

 Quem te deu ordem para atirares sobre o Faraó?

 

 Khamudi... O Imperador Khamudi.

 

 Queres dizer... Apopis?

 

 Não, Apopis morreu. Enfim, o grande tesoureiro matou-o e o seu cadáver foi queimado. Agora, o Imperador é Khamudi.

 

 Se queres ter a vida salva, vai dizer-lhe que o Faraó está gravemente ferido.

 

 Oh não, Majestade! exclamou o hicso. Khamudi nunca acreditará! Serei lançado no labirinto ou na arena do touro.

 

 O prisioneiro alargou-se em pormenores sobre os suplícios e as torturas tão apreciadas tanto pelo antigo como pelo novo Imperador.

 

 Matai-me imediatamente implorou.

 

 Quando tivermos ganho esta guerra decretou Ah-hotep tornar-te-ás o criado de Ahmés, filho de Abana.

 

 Todos os empregados de armazém do arsenal de Auaris tinham absorvido droga barata e vogavam em sonhos onde as flechas e as lanças egípcias não causavam qualquer ferimento.

 

 Todos, excepto Arek.

 

 O jovem resistente, agora privado de qualquer contacto com o exterior, dificilmente continha a sua alegria. Por fim, os egípcios assaltavam Auaris! Mesmo se Khamudi se comportava como um temível bruto, o desaparecimento de Apopis enfraquecia os hicsos.

 

 Depois de ter sabotado as rodas dos carros, Arek dedicara-se aos arcos. Uma vez esticados, a madeira partiria.

 

 Muito mais fácil do que para as rodas, o trabalho apresentava mais riscos, porque o empregado de armazém não estava autorizado a penetrar naquele edifício. Devia portanto esperar que os seus colegas adormecessem para retirar os ferrolhos e trabalhar durante toda a noite.

 

 O que fazes tu aqui, rapaz? Arek estacou.

 

 Era a voz áspera do seu chefe de equipa, um asiático cuja resistência à droga ultrapassava qualquer compreensão.

 

 Esta noite notei que não consumias nada, rapaz, e isso intrigou-me. Não tens o direito de estar aqui.

 

 Eu... eu queria um arco!

 

 - Isso é roubo. E o roubo de uma arma, em plena guerra, é um crime.

 

 Esquece isto, que eu hei-de recompensar-te.

 

 


 Não sou um malfeitor! Vais acompanhar-me à cidadela e explicar-te-ás diante do nosso novo Imperador. Se tens coisas a esconder ele fará com que as confesses. A mim, agradecer-me-á.

 

 Arek precipitou-se, empurrou o asiático e saiu do armazém

 

 a correr.

 

 O seu chefe de equipa alertou os guardas que patrulhavam o cais.

 

 Uma terrível queimadura rasgou o ombro de Arek. Ultrapassando a dor provocada pela lança, atirou-se ao canal.

 

 Para ele, era a morte mais doce. Porque o jovem resistente não sabia nadar.

 

 Com os olhos no vazio, a dama Yima agarrou-se ao braço do marido.

 

 Meu Imperador, estamos realmente em segurança?

 

 Tomaste droga de mais considerou Khamudi.

 

 É preciso lutar contra o medo! Aqui, mais ninguém receia os egípcios, porque tu és o mais forte, o único senhor do país. E eu, ajudo-te... Com a minha amiga Aberia, vamos executar todos os traidores.

 

 Excelente ideia. Se não tiverem provas, escolham uns culpados ao acaso, reunam os seus próximos e matem-no diante deles. Que todos compreendam que Khamudi é invulnerável.

 

 Deliciada com a ideia desses divertimentos, a imperatriz foi ter com a torcionária de mãos desmesuradas enquanto o Imperador reunia os seus generais.

 

 A batalha continua nos canais e no lago informou um deles. Ao contrário do que pensávamos, Ah-hotep e Ahmés não se interessam pela cidadela. O seu único objectivo parece ser a destruição da nossa frota. Não o conseguirão antes da chegada dos nossos reforços. Infelizmente, é inútil enviar comandos para abater o Faraó que está desconfiado e já não se mostra.

 

 Substitui a guarda de três em três horas. Um máximo de archeiros nas torres de vigia e nas ameias ordenou Khamudi.

 

 Enquanto Ah-hotep, o governador Emheb e o almirante Lunar dirigiam o confronto naval, tendo o cuidado de o fazer durar, o Faraó Ahmés encontrava-se longe de Auaris, na pista do Uadi Tumilat usada pelos caravaneiros de reabastecimento. Sob a protecção de Risonho, o Jovem e de Ahmés, filho de Abana, novo comandante da sua guarda pessoal, o Faraó aplicava o plano preconizado pela mãe: cortar a via comercial e impedir os reforços hicsos, provenientes de Canãa e do Delta Oriental, de atingirem Auaris.

 

 A captura de vários carregamentos permitiu aos soldados regalarem-se antes de o regimento de carros comandado pelo Bigodes enfrentar o seu homólogo cananeu, enquanto o Afegão e o seu chocavam com os hicsos do Delta.

 

 Em contacto com eles graças a Larápio e ao seu esquadrão de pombos-correio, o Faraó Ahmés acorria ao ponto em que as suas tropas estavam em dificuldades.

 

 Inferiores em número, os egípcios jogavam com a sua mobilidade. Sob o Sol ardente, a espada de Amon espalhava uma luz tão intensa que todos os soldados se sentiam animados de uma energia inesgotável.

 

 Nem as estações, nem os meses, nem os dias, nem as noites, nem as horas, nada mais contava excepto a batalha de Auaris onde, pouco a pouco, a marinha egípcia se impunha. Privada de Felina que, felizmente, tinha formado assistentes, Ah-hotep ocupava-se dos feridos, a maior parte dos quais exigiam regressar ao combate. Tão perto do objectivo, ninguém aceitava renunciar, embora a cidadela, arrogante, assistisse aos violentos confrontos sem nada perder da sua soberba.

 

 Acabamos de afundar as melhores embarcações deles anunciou Emheb. Finalmente, a nossa superioridade é bem evidente.

 

 Foi o momento escolhido por Larápio para poisar no ombro de Ah-hotep que, como de costume, o gratificou com inúmeras carícias antes de consultar a preciosa mensagem de que era portador.

 

 A Rainha pensava constantemente no filho, na esperança de que a sua protecção estivesse realmente garantida. Como esquecer o combate no decurso do qual o seu esposo, Seken, fora traído e assassinado? No entanto, não existia outra estratégia: se Ahmés não conseguisse cortar a via dos reforços, o Exército de Libertação seria esmagado. Até agora, a estratégia de Ah-hotep tinha resultado: fazer crer ao Imperador Khamudi que os egípcios concentravam o conjunto das suas forças em Auaris, atacando apenas a marinha adversária.

 

 O governador Emheb não ocultava a sua impaciência.

 

 Quais as novidades, Majestade?

 

 Os reforços vindos de Canãa tiveram de recuar.

 

 E os hicsos do Delta?

 

 Também eles bateram em retirada, mas os nossos regimentos de carros sofreram pesadas perdas. O Faraó pede para lhe enviarmos homens e material.

 

 É possível, mas ficaremos fragilizados. Se os hicsos da cidadela efectuarem uma saída, arriscamo-nos a uma catástrofe.

 

 Então, Emheb, temos de acabar com a sua marinha!

 

 À vista do ceptro de Ah-hotep, que simbolizava a força de Tebas, os egípcios esqueceram a fadiga e os ferimentos. Tanto no lago como nos canais, os seus navios lançaram-se ao assalto do inimigo. E foi o almirante Lunar que, apesar de uma lança cravada na coxa esquerda, cortou as mãos do último capitão hicso que combatera até à morte.

 

 Senhor, não seria necessário fazer uma saída? sugeriu um general hicso.

 

 De maneira nenhuma! irritou-se Khamudi. Não compreendes que é exactamente isso que os egípcios esperam? Não nos resta um único navio, Ah-hotep bloqueou todos os canais, Auaris está cercada! Por outras palavras, os nossos carros cairiam numa armadilha. Só estamos em segurança no interior da cidadela.

 

 Por onde passou o raio de guerra que devia devastar tudo à sua passagem?, interrogou-se o general, tal como os seus colegas.

 

 Temos finalmente notícias das nossas tropas de Canãa e do Delta? inflamou-se de novo o Imperador.

 

 Nenhuma, mas não podem tardar.

 

 Estarão cortadas as nossas ligações com o norte?

 

 É evidente que sim, senhor. Mais nenhum mensageiro hicso consegue chegar a Auaris. Podeis no entanto estar certo que os nossos homens, como uma nuvem de gafanhotos, se abaterão sobre os egípcios.

 

 Para acalmar os nervos, Khamudi assistiu a uma execução. Com um prazer crescente, a dama Aberia estrangulava os supostos traidores com extrema violência.

 

 A Rainha Liberdade partilhava todos os dias a refeição dos seus soldados, composta por peixe ou porco seco, alho, cebolas, pão e uvas, tudo regado com cerveja leve. Depois de ter tido o privilégio de estar lado-a-lado com ela, todos readquiriam coragem.

 

 Não são os hicsos que podem comer assim brincou um soldado porque estão proibidos de comer carne de porco! Cá por mim, até sonho com um bom assado com lentilhas!

 

 Obrigada, soldado. Dás-me uma excelente ideia para fazer chegar a minha mensagem ao Imperador Khamudi.

 

 O rapaz ficou de boca aberta e os seus camaradas não deixaram de o festejar, enquanto a Rainha mandava preparar um odre de pele de porco onde introduziu uma tabuinha escrita.

 

 Aproxima-se um barco! gritou um vigia hicso.

 

 Os archeiros da cidadela puseram-se imediatamente em posição e um dilúvio de flechas caiu sobre a embarcação de guerra, que não ripostou.

 

 Parem de disparar ordenou Khamudi.

 

 O barco chocou violentamente com um cais, a norte da cidadela, e imobilizou-se.

 

 É um dos nossos notou um archeiro mas não há ninguém a bordo!

 

 Vejam, no topo do mastro grande! exclamou o seu vizinho.

 

 Estava ali fixado um manequim em madeira vestido com uma couraça preta e tendo na cabeça um odre.

 

 Deve ser uma mensagem do inimigo afirmou um graduado.

 

 Vai buscá-lo exigiu o Imperador.

 

 Eu, mas...

 

 Ousas discutir?

 

 Ou morria supliciado, ou caía sob as flechas egípcias. O graduado preferiu a segunda solução. Descendo do alto da muralha suspenso de uma corda, ficou espantado por estar ainda vivo quando atingiu o topo do mastro e desprendeu de lá o estranho acessório.

 

 São e salvo, compareceu diante de Khamudi.

 

 Não toqueis nesse odre, Majestade, é um horror... É em pele de porco!

 

 Àbre-o.

 

 O graduado tirou de dentro a tabuinha, que poisou com nojo sobre uma ameia.

 

 O texto redigido por Ah-hotep informava Khamudi que não podia contar mais com nenhum socorro porque as suas tropas tinham sido detidas pelo Faraó Ahmés.

 

 Atira-me isso.

 

 O graduado obedeceu.

 

 Tresandas a porco, estás impuro. Uma toalha para as minhas mãos, depressa!

 

 Sem se sujar, Khamudi apoderou-se do odre, enfiou-o na cabeça do graduado e empurrou-o para o vazio.

 

  A situação estava de novo congelada.

 

 Abrigado na sua cidadela, Khamudi desafiava Ah-hotep. Quanto ao Faraó Ahmés, encontrava-se incapacitado de continuar a ofensiva. Nos próximos meses, mesmo nos próximos anos, teria de se contentar em consolidar a nova frente e barrar o caminho aos reforços esperados por Khamudi.

 

 A Rainha meditava em companhia de Vento do Norte. Cintilando em mil cores, o poente era sumptuoso. Fatigado depois de um longo dia de trabalho em que havia transportado armas e provisões, o burro apreciava aquele momento de calma.

 

 E foi junto daquele fiel servidor, de quem Ah-hotep não tinha qualquer traição a recear, que a evidência se lhe impôs.

 

 Enquanto os campos egípcios adormeciam, convocou o almirante Lunar, o governador Emheb e o chanceler Neshi.

 

 A cidadela de Auaris é inexpugnável devido à magia de Apopis declarou a Rainha. Enquanto não for aniquilada, os nossos esforços serão inúteis. Compete-me a mim quebrá-la honrando os antepassados. Sem eles, Ahmés não vencerá a Guerra das Coroas e nunca unirá a vermelha e a branca. É por isso que devo partir.

 

 O almirante estava estupefacto.

 

 Partir... Não compreendo, Majestade!

 

 Vou à ilha da chama onde implorarei aos antepassados que venham em auxílio do Faraó. Durante a minha viagem, continuai o cerco de Auaris.

 

 De quantos soldados necessitais? perguntou Neshi.

 

 Dois remadores.

 

 É demasiado arriscado! insurgiu-se Emheb. Ah-hotep contentou-se em sorrir.

 

 Devemos informar o Rei? inquietou-se o chanceler Neshi.

 

 Com certeza. Se eu não estiver de regresso dentro de vinte e oito dias, pedi-lhe para desistir e regressar a Tebas. Amon será o nosso último baluarte.

 

 Seguindo os braços de água, a barca de Ah-hotep atravessava vastas extensões povoadas por cabras e ovelhas de lã. Havia ginetas que fugiam à aproximação da embarcação observada pelos touros selvagens, semiocultos na erva alta. A vigilância devia ser permanente a fim de detectar a tempo a presença de hipopótamos, que não deviam ser importunados, ou de crocodilos, que se afugentavam batendo na água grandes pancadas com os remos.

 

 A barca atravessou um lago pouco profundo, regurgitando de peixes como as fataças, as tainhas ou os siluros. Graças aos unguentos, o trio formado pela Rainha e dois remadores escapava às picadas dos inúmeros mosquitos.

 

 Pouco a pouco, os maciços de papiros iam ficando mais espessos até se tornarem impenetráveis.

 

 Não podemos continuar com esta barca constatou um dos remadores. Fabriquemos uma jangada.

 

 Os dois homens estenderam molhos de papiros sobre uma armadura de ramos entrecruzados e ataram o conjunto com cordas.

 

 Esperem-me aqui disse a Rainha, que penetrou sozinha numa floresta escura e hostil.

 

 Para fazer avançar a jangada, apoiava-se numa longa vara que cravava no lodo.

 

 Centenas de pássaros e de pequenas aves de rapina viviam naquele território perpetuamente inundado, onde a vegetação tinha mais de seis metros de altura, íbis, poupas, abibes e galinholas reproduziam-se ali apesar dos ataques das ginetas e dos gatos selvagens.

 

 De repente, viu a armadilha: uma rede estendida entre dois paus. A jangada imobilizou-se. Era observada.

 

 Mostrai-vos exigiu Ah-hotep.

 

 Eram quatro. Quatro pescadores nus e barbudos.

 

 Ora esta! exclamou o mais velho Uma mulher! Uma mulher aqui!

 

 Deve ser uma deusa considerou um ruivo. A menos que... Não sereis por acaso essa Rainha Liberdade que todos os hicsos querem suprimir?

 

 Sereis vós seus aliados? perguntou a soberana.

 

 Isso, não! É por causa deles que estamos a morrer de fome.

 

 Vamos, conduzi-me até Buto. O pescador ficou carrancudo.

 

 É um território sagrado onde ninguém pode penetrar. Há monstros que devoram os curiosos.

 

 Levai-me à sua proximidade e aventurar-me-ei nele sozinha.

 

 Como quiserdes, mas é muito perigoso. Esse lugar está infestado de répteis.

 

 A minha varinha de cornalina mantê-los-á à distância.

 

 Subjugados pela segurança da Rainha, os quatro homens fizeram-na subir para uma barca de papiros e avançaram com habilidade num dédalo onde apenas quem estivesse familiarizado com o lugar se podia orientar. Quando pararam numa colina, comeram peixe grelhado e hastes de junca, de sabor amargo.

 

 Os hicsos tentaram explorar estes pântanos revelou o ruivo mas nenhum daqui saiu vivo. Vamos dormir e amanhã pomo-vos no caminho de Buto.

 

 Ao despertar, um dos pescadores tinha-se volatilizado.

 

 É o Tagarela, um fulano esquisito, meio desaparafusado comentou o ruivo. Já nos roubou peixes. Boa viagem.

 

 Depois de várias horas de um périplo esgotante, a vegetação tornou-se menos densa. A floresta desapareceu, dando lugar a um lago atravessado por uma estreita faixa de terra.

 

 Não tendes mais que seguir em frente e atingireis a ilha de Buto. Esperar-vos-emos algum tempo aqui. Mas ficai a saber que não regressareis.

 

 Armada apenas com a sua varinha de cornalina, Ah-hotep precipitou-se para o lugar onde repousavam os espíritos dos Reis da primeira dinastia e os dos seus antepassados divinos, as Almas de pé e de Nekhen, as duas cidades míticas edificadas em sua honra sobre a ilha da primeira manhã do mundo.

 

 A Rainha avançava em passo rápido. Não havia cantos de pássaros e a água era de uma pureza incrível.

 

 De repente, viu-a.

 

 Uma ilha plantada com grandes palmeiras que tinha dois santuários, um guardado por estátuas representando homens com cabeça de falcão e o outro com cabeça de chacal.

 

 No instante em que Ah-hotep abordava aquele lugar sagrado, brotou uma chama no seu centro. A Rainha imobilizou-se e a chama metamorfoseou-se numa cobra coroada com um disco de ouro.

 

 Ah-hotep estava na presença do olho de Ré, a luz divina.

 

 Aqui se realizava o casamento impossível da água e do fogo, da terra e do céu, do tempo e da eternidade.

 

 Vim procurar o auxílio das Almas declarou a Rainha. Vós que haveis reunido o que estava disperso, vós que haveis realizado a Grande Obra, permiti que o Faraó Ahmés use a dupla coroa sobre a qual pousará o olho de Ré a fim de iluminar o seu destino.

 

 Fez-se um longo silêncio.

 

 Quando foi tão profundo como o Nun, o oceano de energia primordial, a voz dos antepassados elevou-se no coração de Ah-hotep.

 

 No topo da varinha de cornalina erguia-se agora uma pequena serpente de ouro toucada com a dupla coroa.

 

 A Rainha teria gostado de passar algum tempo na ilha e saborear mais demoradamente a paz que ali reinava. Mas rudes combates ainda a esperavam.

 

 Percorreu em sentido inverso a língua de terra.

 

 Na orla da floresta de papiros, ouviu gritos e ruído de luta.

 

  O sangue dos três pescadores avermelhava a água. Apareceu o Tagarela, à frente de uma patrulha de hicsos com couraças e capacetes negros que ele guiara no labirinto vegetal. Ah-hotep não tinha qualquer hipótese de escapar.

 

 Correr como um animal assustado em direcção à ilha que não tinha qualquer hipótese de alcançar, ser atingida pelas flechas que se cravariam nas costas de uma fugitiva, era indigno de uma Rainha.

 

 Ah-hotep fez portanto face aos hicsos.

 

 É ela gritou o Tagarela é mesmo ela, a Rainha Liberdade!

 

 Olhou-o com um tal desprezo que o delator, inquieto, se ocultou atrás de um soldado.

 

 Quando viram aquela soberana bela e serena avançar na sua direcção, os hicsos recuaram. Aquela segurança não ocultaria algum malefício contra o qual as suas espadas seriam impotentes?

 

 Ela não tem arma rosnou o Tagarela e não passa de uma mulher! Agarrem-na!

 

 Os soldados recuperaram a serenidade. Semelhante captura valer-lhes-ia uma fabulosa recompensa.

 

 Quando estavam apenas a alguns passos da sua presa, um golfinho efectuou um salto gracioso e aproximou-se da língua de terra.

 

 No seu olhar havia um apelo.

 

 Ah-hotep mergulhou.

 

 Agarrem-na, agarrem-na de uma vez! berrou o Tagarela. Como os soldados hicsos não ousavam atirar-se à água por causa  do peso da sua couraça, o traidor lançou-se só em perseguição da Rainha.

 

 Com um movimento de uma suprema elegância, o golfinho rasgou-lhe o rosto com a barbatana cortante implantada no seu dorso, graças à qual rasgava o ventre frágil dos crocodilos.

 

 No momento em que os hicsos lançavam espadas e punhais, a Rainha agarrou-se ao golfinho, que a arrastou para sul.

 

 Sem guia, os soldados do Imperador não sairiam vivos da floresta de papiros.

 

 Apelidado ”disco solar”, o Rei dos peixes lançava pescas miraculosas nas redes dos pescadores que se tinham tornado seus amigos. Levou a sua protegida até ao lugar onde a esperavam os dois remadores egípcios.

 

 Tal como a esposa de Apopis, que fizera assassinar pela dama Aberia, a nova imperatriz Yima detestava a arte egípcia e, muito particularmente, a cerâmica. Não admitia portanto na capital senão jarras hicsas ovóides de tipo cananeu, com uma boca estreita e duas asas. Auarisrecebia todos os anos mais de oito mil. Cobertas com um

 

 vidrado rosa-claro, as mais belas eram reservadas à aristocracia militar.

 

 Apesar da interdição formal de fabricar objectos de cerâmica tradicional, um velho artesão ousara utilizar a sua roda. Denunciado pela esposa de um oficial sírio, acabava de ser estrangulado por Aberia diante dos seus colegas.

 

 Transformados em escravos, compreenderam que em breve sofreriam a mesma sorte.

 

 Reunião amanhã de manhã em casa do coxo anunciou o filho da vítima.

 

 Na maior parte das mansões hicsas onde os oleiros estavam reduzidos ao estado de criadagem, restavam apenas as esposas e os filhos dos oficiais encerrados na cidadela ou que tinham partido para lutar na Ásia. ”Reunir-se em casa do coxo”, o pai do empregado de armazém Arek que se suicidara para escapar à tortura, tinha um significado preciso: não aceitar mais nenhuma humilhação e desembaraçar-se dos torcionários.

 

 No dia seguinte, a imperatriz reuniu de novo os ex-oleiros numa pequena praça de Auaris. Atrás dela, a dama Aberia e polícias.

 

 Não aprenderam a lição, tinhosos e cabeçudos como são! Quem foi suficientemente louco para depositar um objecto de cerâmica à antiga diante da casa do revoltoso executado ontem? Se o culpado não se acusar, morrerão todos!

 

 Inebriada pelo seu poder absoluto, Yima exultava. Depois daqueles, suprimiria outros artesãos.

 

 Fui eu confessou o filho do velho. Avança!

 

 De cabeça baixa, hesitante, o delinquente obedeceu.

 

 Conheces a sorte que te está reservada.

 

 Tende piedade, Majestade!

 

 Bando de cobardes, fazem-me nojo! Acreditam que a vossa Rainha Liberdade vos vai libertar? Pois bem, estão enganados! Os reforços não tardarão a chegar, ela será feita prisioneira e torturá-la-ei com as minhas próprias mãos!

 

 O oleiro rojou-se aos pés da imperatriz.

 

 Lamento, piedade!

 

 Yima cuspiu sobre o condenado.

 

 Tu e os teus cúmplices não passam de sub-homens. Levantando-se com rapidez, o oleiro cortou a garganta da imperatriz com o bocado de vidro dissimulado na mão direita.

 

 Para lhe permitirem acabar com Yima, cujo sangue já manchava a parte de cima do vestido, os colegas precipitaram-se sobre os guardas. Surpreendidos pela revolta daqueles que consideravam carneiros incapazes de combater, tardaram a reagir. Não tendo já nada a perder, os artesãos desferiam golpes em todas as direcções.

 

 Sob o impulso da dama Aberia, a polícia acabou por impor-se e passou imediatamente todos os insurrectos a fio de espada.

 

 Tens um ar tão estúpido morta como viva disse Aberia sobre o cadáver da imperatriz Yima.

 

 Depois do regresso da Rainha Ah-hotep, Emheb confiara uma mensagem a Larápio para que este prevenisse o Faraó Ahmés.

 

 A lenda da Rainha Liberdade, aclamada pelos seus soldados, enriquecia-se com um novo capítulo.

 

 As Almas dos antepassados protegem-nos declarou ela. A partir de agora, Ahmés está inscrito na sua linhagem. Para que não duvideis e que o Imperador Khamudi seja informado do castigo que se abaterá sobre ele, aproximemo-nos da cidadela.

 

 O governador Emheb empalideceu.

 

 Majestade... O que tencionais fazer exactamente?

 

 Ergam um estrado.

 

 Soldados de engenharia executaram a ordem, mas a Rainha não pareceu satisfeita.

 

 Desloquem-no e instalem-no mais perto da cidadela.

 

 É impossível, Majestade, ficaríeis ao alcance de tiro!

 

 Khamudi deve ouvir claramente o que tenho para lhe dizer.

 

 Para evitar escavar mais uma cova no cemitério estreito e superpovoado do palácio, Khamudi mandou reabrir aquela onde estava inumada a imperatriz Tani. Sobre o seu cadáver foi lançado o de Yima, com o vestido manchado de sangue. Depois, recobriram-nas com  terra.

 

 É um facto que aquela histérica tinha ajudado muito Khamudi, que apreciava os jogos perversos de que ela era uma hábil instigadora. Mas hoje, como chefe supremo dos Hicsos, não lhe desagradava ter-se desembaraçado dela. Uma centena de artesãos seriam decapitados como represália e a dama Aberia não mais deixaria o Imperador, a fim de garantir a sua segurança.

 

 Senhor, os egípcios vão tentar tomar de assalto a cidadela! avisou um oficial.

 

 Khamudi subiu quatro a quatro a escada que levava à torre mais alta.

 

 Na verdade, os assaltantes tinham-se reunido, mas a boa distância das muralhas.

 

 A excepção era Ah-hotep, de pé sobre um estrado.

 

 A Rainha brandiu a varinha de cornalina.

 

 Observa, Khamudi, observa bem a deusa cobra de Buto, toucada com a dupla coroa! Queres ignorá-lo, mas o teu reinado já terminou. Se te resta um pouco de inteligência, rende-te e implora a clemência do Faraó Ahmés. Caso contrário, a cólera do olho de Ré aniquilar-te-á.

 

 Um arco! exigiu o Imperador, louco de fúria. Ah-hotep não tirou os olhos do assassino que a visava.

 

 Majestade, recuai! suplicou o governador Emheb. A Rainha continuava a brandir a varinha de cornalina.

 

 No instante em que o seu arco estava esticado ao máximo, a madeira fendeu-se e a arma explodiu.

 

 Agora, tanto os hicsos como os egípcios sabiam que o olho de Ré protegia Ah-hotep e o Faraó.

 

 O Afegão e o Bigodes entreolharam-se, aturdidos.

 

 Era o terceiro ataque dos carros cananeus que repeliam em menos de dez dias.

 

 Esgotados, eles e os seus soldados interrogavam-se como arranjavam ainda força para combater. Quanto aos cavalos, comportavam-se de forma admirável, respondendo às mínimas solicitações dos condutores. Entre os quadrúpedes e os homens tinha nascido uma cumplicidade de cada instante que lhes permitia sobreviver nas situações mais desesperadas.

 

 As nossas perdas? inquietou-se o Faraó Ahmés.

 

 Um verdadeiro milagre respondeu o Afegão. Apenas dez mortos. No campo deles, trinta carros sem condições para nos prejudicar.

 

 Salvo o devido respeito, Majestade avançou o Bigodes deveríeis expor-vos menos.

 

 Com um archeiro como Ahmés, filho de Abana, a fazer a minha cobertura, não receio nada. E se eu não participasse no combate, porque arriscariam os meus homens a sua vida sob o olhar de um cobarde?

 

 Foi ao pôr do Sol que um batedor vindo do leste do Delta lhes trouxe uma excelente notícia. Várias localidades tinham-se levantado contra os hicsos e, um pouco por toda a parte, os insurrectos sabotavam carros e roubavam cavalos. Ocupado em restabelecer a ordem sem verdadeiramente o conseguir, o inimigo já não tinha capacidade para retomar a ofensiva.

 

 Apoiemos os resistentes decidiu o rei. Que duzentos homens os vão auxiliar e continuem a espalhar o máximo de conflitos.

 

 Desde que Ah-hotep regressara indemne de Buto e ridicularizara Khamudi, todos os soldados do Exército de Libertação a consideravam uma deusa protectora que, graças ao olho de Ré, os salvaria das piores calamidades. Mas os recursos do adversário ainda eram enormes e a cidadela de Auaris permanecia inexpugnável.

 

 Os organismos estão exaustos informou Felina, ela própria mais magra à força de noites em branco passadas a tratar os feridos. Se não repousarmos, ir-nos-emos abaixo.

 

 Depois da tareia que acabamos de infligir aos cananeus considerou o Bigodes eles não devem estar muito mais frescos do que nós.

 

 Ah-hotep recebeu o chanceler Neshi, de regresso da frente norte.

 

 A tua opinião, sem subterfúgios exigiu a Rainha.

 

 Não é brilhante, Majestade. Graças à intersepção das caravanas, a alimentação é boa e abundante. Mas as nossas tropas estão esgotadas. É certo que a revolta que ecoa no leste do Delta é rica de promessas; é certo que os carros palestinianos foram dizimados. Mas o tempo não joga a nosso favor e o facto da cidadela de Auaris parecer inconquistável garante a coesão dos nossos inimigos.

 

 Infelizmente, o chanceler tinha razão.

 

 E as informações que a Rainha acabava de receber de Elefantina ensombravam a paisagem. O novo príncipe de Kerma, Ata, apoderara-se de aldeias controladas pelos egípcios e descia o Nilo. Mas a guarnição do forte de Buhen e as tribos núbias fiéis a Ah-hotep tinham-se mobilizado para o deter. Entre a segunda e a primeira catarata grassava a guerra.

 

 Em caso de vitória de Ata, Elefantina seria ameaçada, e depois Edfu e Tebas. Era impossível enviar um único regimento em seu socorro.

 

 O que propões? perguntou Ah-hotep ao governador Emheb.

 

 Os voluntários que atingiram as muralhas da cidadela foram mortos pelos archeiros ou os manejadores de fundas. Um ataque massivo seria suicidário. Somos impotentes, Majestade.

 

 Precisamos portanto de aguardar o esgotamento das suas reservas de água e de alimentos.

 

 A frente do norte arrisca-se a ser atravessada antes desse esgotamento profetizou Emheb.

 

 Então, procuremos outra solução!

 

 Cansado, o governador retirou-se para a sua tenda.

 

 Ferido na fronte e no ventre, o batedor egípcio agonizava. Sem as drogas administradas por Felina, teria sido dominado por abomináveis sofrimentos e incapaz de falar. Com o rosto quase descontraído, estava orgulhoso por poder fazer o seu relatório ao Rei do Egipto.

 

 Os deuses protegeram-me, Majestade; consegui atravessar as linhas cananeias. É grave, muito grave... Milhares de soldados hicsos vindos da Ásia não tardarão a juntar-se aos cananeus. É uma verdadeira nuvem de carros e de soldados de infantaria que se abaterá sobre nós...

 

 O batedor contraiu-se, a sua mão apertou a do Rei e o seu olhar extinguiu-se.

 

 O Faraó vagueou longamente pelo campo, depois de ter confiado uma mensagem a Larápio a fim de que Ah-hotep fosse avisada o mais depressa possível.

 

 Então, era o fim do caminho.

 

 Todos aqueles mortos, todos aqueles sofrimentos, todo aquele heroísmo para acabar sob as rodas dos invasores, cuja repressão seria terrível. De Tebas não restaria nada. Khamudi terminaria a obra destrutiva de Apopis.

 

 O Faraó reuniu os seus mais próximos e disse-lhes a verdade.

 

 Desejais levantar o acampamento já amanhã de manhã, Majestade? perguntou o Afegão.

 

 Nós ficamos declarou Ahmés.

 

 Majestade... Nem um de nós escapará! protestou o Bigodes.

 

 Mais vale morrermos como guerreiros do que como fugitivos.

 

 Sabendo que fora portador de muito más notícias, Larápio, com olhar triste, mantinha-se afastado de Ah-hotep, que nem sequer pensava em acariciá-lo.

 

 Acabou-se! revelou ela ao governador Emheb, ao chanceler Neshi e ao almirante Lunar. Aliadas aos carros cananeus, as tropas da Ásia desabarão sobre Ahmés e depois sobre nós. O Faraó aguentará o máximo de tempo possível, a fim de cobrir a nossa retirada até Tebas.

 

 Já que os hicsos nos perseguirão e destruirão avançou o almirante Lunar porque não havemos de assaltar a cidadela com a totalidade dos nossos efectivos? Morrer por morrer, Majestade, gostava pelo menos de não morrer com pena.

 

 Mais vale proteger Tebas considerou Emheb.

 

 Não deveríeis convencer o Rei a juntar-se a nós? sugeriu o chanceler Neshi. Juntos, seríamos mais fortes.

 

 Dir-vos-ei a minha decisão amanhã de manhã.

 

 Fosse qual fosse a solução adoptada, o Exército de Libertação seria aniquilado. No entanto, Ah-hotep fora a Buto, ouvira a voz dos antepassados e recebera o olho de Ré!

 

 A Rainha ergueu os olhos e implorou o auxílio do seu protector, o deus Lua.

 

 Era o décimo quarto dia do quarto crescente, onde se realizava o preenchimento do olho completo, pescado e reconstituído pelos deuses Tot e Hórus. Provocando todo o crescimento, a Lua brilhava na sua barca.

 

 Não, o seu companheiro celeste não podia abandoná-la assim!

 

 Recusando acreditar no desastre, a Rainha pensou durante toda a noite nas façanhas de todos aqueles que se tinham batido pela liberdade.

 

 De madrugada, não ouvira ainda a voz dos antepassados.

 

 De repente, um ruído aterrador.

 

 Mal se levantara, o Sol tinha desaparecido. O céu tornava-se mais escuro do que tinta e ventos de uma violência inaudita arrastavam as tendas e embatiam contra as muralhas da cidadela.

 

 Uma chuva de cinzas recobria Auaris, enquanto enormes vagas assaltavam a costa mediterrânea.

 

 Juntando-se a essa fúria, um tremor de terra!

 

 A novecentos quilómetros dali, nas Cíclades, o vulcão de Thera explodira.

 

Nota:   Também conhecido sob o nome de Santonn.

 

 Majestade, estão a chover rochas! exclamou o chanceler Neshi.

 

 De facto, fragmentos de pedra-pomes, pedaços solidificados da lava do vulcão transportados pelo vento, caíam sobre a capital hicsa.

 

 Assustados, os egípcios corriam em todos os sentidos.

 

 Acalmem os cavalos exigiu Ah-hotep.

 

 Pelo seu lado, Vento do Norte soltava gritos imperiosos para incitar os burros da sua companhia a permanecerem tranquilos.

 

 Pouco a pouco, a chuva de pedras cessou, o vento abrandou e o véu negro dissipou-se. Com o regresso do Sol, Ah-hotep constatou que o acampamento egípcio estava devastado e que havia numerosos feridos.

 

 No entanto, um amplo sorriso iluminou o seu rosto.

 

 O que os egípcios tinham sofrido não era nada em comparação com os estragos infligidos à cidadela!

 

 Profundas fendas rasgavam os muros e a maior parte das ameias tinha caído, arrastando na sua queda centenas de archeiros. No lugar da grande porta, um buraco escancarado.

 

 Reúne os soldados e os carros ordenou a Rainha a Emheb. Uma muralha inteira oscilou, pedras e tijolos desmoronaram-se

 

 com grande estrondo.

 

 Todos os soldados do Exército de Libertação contemplavam o incrível espectáculo. Na sua frente não havia mais do que uma ruína.

 

Que o deus Set seja louvado pelo seu auxílio  proclamou Ah-hotep.  Acaba de colocar o seu furor e a sua força ao serviço da liberdade. Ao ataque!

 

Cobertos de cinzas, soldados de infantaria e archeiros precipitaram-se ao assalto do monstro esventrado.

 

Chocado, o Imperador Khamudi observava o desastre. Compartimentos inteiros tinham desaparecido, tectos e soalhos não existiam, inúmeros cadáveres juncavam o grande pátio interior.

 

Organizemos a nossa defesa  preconizou a dama Aberia, ligeiramente ferida na cabeça.

 

É inútil, temos de fugir.

 

Abandonando os sobreviventes?

 

Não resistirão muito tempo. Vamos à casa-forte.

 

Khamudi esperava apoderar-se dos tesouros de Apopis, sobretudo da coroa vermelha do Baixo Egipto, mas os blocos barraram-lhe o caminho.

 

Chamou o chefe da sua guarda, um cipriota de bigodes.

 

Eu repilo os assaltantes no norte da cidadela. Tu, reúne os sobreviventes e encarrega-te do sul. Os egípcios ainda não ganharam. Se conseguirmos conter o seu primeiro assalto, desencorajar-se-ão.

 

Travaram-se sangrentos corpo-a-corpo. Determinados a fazer frente aos egípcios, os hicsos aproveitavam os recantos intactos da cidadela e formavam bolsas de resistência difíceis de aniquilar.

 

Durante horas, Ah-hotep exortou os seus soldados a não fraquejarem. Apesar daquelas circunstâncias excepcionais, a vitória estava longe de ser conquistada.

 

Majestade, o Faraó!  exclamou o governador Emheb. Como era agradável de ouvir o ruído das rodas dos carros! Quisera a sorte que o cataclismo afectasse duramente as tropas

 

cananeias e asiáticas, mas muito pouco as egípcias. Esperando que a cidadela de Auaris fosse abalada pela cólera do céu e da terra, Ahmés movimentara-se em direcção à capital inimiga.

 

 O resultado enchia-o de alegria.

 

 Tomando imediatamente o comando, o Rei quebrou uma a uma as defesas adversárias.

 

 Faltava apenas conquistar uma sala de armas, a parte menos destruída da cidadela. Ao penetrar ali, o monarca não viu o cipriota de bigodes que, surgindo por trás dele, se preparava para lhe cravar um machado nas costas.

 

 Viva e exacta, a flecha disparada por Ahmés, filho de Abana, cravou-se na nuca do guarda pessoal do Imperador.

 

 Depois de ter recebido o ouro da valentia uma vez mais e obtido três prisioneiras como futuros membros do seu pessoal doméstico, Ahmés, filho de Abana, releu o texto hieroglífico inscrito pelo chanceler Neshi no trofeu de que se sentia mais orgulhoso:

 

 ”Em nome do Faraó Ahmés, dotado de vida: ponta de flecha trazida de Auaris a vencida.”

 

 No ano 18 do reinado do filho de Ah-hotep, a capital do Império Hicso acabava de exalar o último suspiro.

 

 Vários pombos-correio partiram para o sul, levando a extraordinária notícia, enquanto os batedores egípcios se encarregavam de a espalhar pelas cidades do Delta onde a resistência se intensificava.

 

 Nem rasto de Khamudi deplorou o governador Emheb.

 

 Fugiu, o cobarde! inflamou-se o almirante Lunar.

 

 Enquanto o Imperador dos Hicsos estiver vivo afirmou o Faraó Ahmés a guerra continuará. Khamudi dispõe ainda de um exército poderoso e não deixará de sonhar com a vingança.

 

 Os seus homens em breve saberão que Auaris caiu considerou Ah-hotep e essa derrota ensombrará os seus espíritos. A nossa tarefa mais urgente consiste em libertar completamente o Delta e em alistar novos recrutas. Antes, cumpramos a vontade dos antepassados. Estou convencida de que a coroa vermelha está escondida aqui, na cidadela. Desmontemo-la pedra por pedra, se necessário.

 

  Enquanto numerosos soldados se punham à caça, o Afegão, visivelmente perturbado, interpelou o Faraó e a Rainha.

 

 Vinde ver, peço-vos...

 

 Era um estranho jardim, em parte obstruído pelos tijolos provenientes do desmoronamento das paredes do palácio. Diante do primeiro arco coberto de plantas trepadoras, cerca de cinquenta jarras.

 

 Retirei as tampas disse o Afegão. No interior, há cadáveres de crianças e de recém-nascidos degolados.

 

 Centenas de outras jarras estavam amontoadas no jardim. Durante o cerco de Auaris, Khamudi fizera suprimir todas as bocas inúteis.

 

 Além, diante do maciço de tamargueiras, há o cadáver de um homem quase cortado a meio por uma lâmina! constatou o Bigodes.

 

 Eis o sinistro labirinto precisou a Rainha, certa de que o Imperador das Trevas sonhara precipitá-la naquela armadilha de aspecto campestre. Queimem-no.

 

 Não longe, um animal lançou um queixume. O governador Emheb descobriu um touro selvagem encerrado num recinto cujo acesso estava bloqueado por entulho.

 

 Libertem-no exigiu Ah-hotep.

 

 Este animal é perigoso avisou-a o almirante Lunar.

 

 O touro é o símbolo da força do Faraó. Apopis enfeitiçou este para o transformar em assassino. Convém pois reconduzi-lo ao domínio de Maet.

 

 Quando o recinto ficou liberto, lanças, espadas e flechas foram apontadas para o animal, que só tinha olhos para a Rainha.

 

 Não avanceis, Majestade! recomendou o governador. Com uma única cornada ele poderá trespassar-vos.

 

 O monstro escarvava o solo com os cascos.

 

 Acalma-te aconselhou Ah-hotep. Mais ninguém te obriga a matar. Deixa-me oferecer-te a paz.

 

 O animal estava prestes a atacar.

 

 Baixem as armas ordenou a soberana.

 

 É loucura, Majestade! protestou Lunar.

 

 Com um gesto rápido e preciso, a Rainha poisou o olho de Ré sobre a fronte do touro, cujo olhar exprimiu de imediato um intensa gratidão.

 

 - Agora disse-lhe ela és verdadeiramente livre. Afastem-se.

 

 Sem hesitar, o animal lançou-se para fora da fortaleza e tomou a direcção dos pântanos.

 

 Ainda há hicsos! preveniu o chanceler Neshi. Um dos nossos soldados foi gravemente ferido nas ruínas da sala do trono.

 

 O Afegão e o Bigodes foram os primeiros a assomar ao limiar, de punhal na mão.

 

 Proveniente do fundo do compartimento, agrediu-os uma chama que queimou o Afegão no pulso.

 

 Há um ser maléfico lá dentro! exclamou o Bigodes.

 

 O olho de Ré cegá-lo-á prometeu Ah-hotep, que penetrou na sala com a varinha de cornalina apontada para o local de onde brotara a chama.

 

 No caos de tijolos, as cabeças dos dois grifos tinham sido poupadas. Fulminavam quem quer que se aproximasse do trono do Imperador.

 

 Protegida pelo olho de Ré, Ah-hotep ocultou os olhos dos génios maus com um pano. Depois, Emheb cobriu-os de gesso a fim de os tornar inofensivos.

 

 Quebrem o trono em mil pedaços e tapem o nariz de todas as estátuas intactas ordenou a Rainha. O Imperador certamente que as enfeitiçou para que espalhem miasmas.

 

 Majestade anunciou Neshi encontrámos uma casa-forte! Receando um cilada póstuma de Apopis, Ah-hotep mandou acender  uma fogueira. Quando os ferrolhos metálicos fundiram, a porta abriu-se a chiar.

 

 No interior da casa-forte estava a coroa vermelha do Baixo Egipto.

 

 Pés Grandes, o matrícula 1790, estava inquieto. Há mais de um mês, não chegava nem um único comboio de deportados.

 

 À sua volta, continuavam a morrer. Transformado no coveiro oficial do campo de concentração, Pés Grandes beneficiava de uma ração suplementar por semana. Hábil de mãos, reparava as sandálias dos guardas, que já não desconfiavam daquele esqueleto ambulante cuja sobrevivência era um mistério.

 

 Tenho duas garotas e um velho para enterrar disse ao vigilante-chefe, um iraniano barbudo. Olhai, a minha picareta está partida... Posso ir buscar outra?

 

 Cava com as mãos!

 

 Resignado, Pés Grandes afastava-se quando o vigilante o chamou.

 

 Está bem, está bem... Vai buscar à cabana.

 

 Entre as ferramentas, havia várias marcas em bronze que serviam para gravar na pele dos prisioneiros o seu número de encarceramento. Pés Grandes roubou uma, que enterrou num canto do campo. Se saísse vivo daquele inferno, conservaria assim uma prova dos seus sofrimentos e contemplá-la-ia todos os dias para agradecer ao destino.

 

 Depois de ter realizado a sua penosa tarefa, entregou a picareta ao vigilante.

 

 Há muito tempo que não chegam novos observou.

 

 Isso incomoda-te, 1790?

 

 Não, mas...

 

 Limpa essa porcaria e desaparece.

 

 Pela dureza do tom, Pés Grandes compreendeu que nem tudo corria pelo melhor entre os hicsos. Teria a Rainha Liberdade obtido vitórias decisivas e começaria o Império a desmoronar-se?

 

 Mais do que nunca, o deportado devia recusar o desespero. Hoje, o pão duro teria melhor gosto.

 

 Foi na antiga sala do trono do Imperador dos Hicsos que o Faraó Ahmés usou pela primeira vez a dupla coroa, união da vermelha do Baixo Egipto e da branca do Alto Egipto. Depois apareceu diante das suas tropas, que o aclamaram.

 

 Ah-hotep permaneceu retirada para melhor ocultar as suas lágrimas de alegria. Mas o filho pediu-lhe que viesse para a primeira fila.

 

 Esta imensa vitória, devemo-la à Rainha Liberdade. Que o nome de Ah-hotep se torne imortal e que ela seja a mãe benfazeja de um Egipto ressuscitado.

 

 A Rainha pensava em Seken e em Kamés. Encontravam-se ali, perto dela, e partilhavam aquele momento de intensa felicidade.

 

 No entanto, a hora não era ainda para descansar, porque era necessário transformar a capital dos Hicsos em base militar egípcia. O primeiro trabalho dos prisioneiros de guerra, incluindo as mulheres, consistiu em purificar as casas ainda de pé, fumigando-as. Depois, foram destinados ao serviço dos oficiais e receberam a garantia de serem um dia libertados se se comportassem correctamente.

 

 Enquanto os especialistas de engenharia abatiam as partes demasiado afectadas da fortaleza e restauravam as que mereciam ser restauradas, a Rainha fez inumar os soldados mortos no combate. Indignada, notou que os hicsos enterravam os seus defuntos nos pátios das casas ou nas próprias moradias, e que os túmulos do cemitério do palácio continham considerável quantidade de droga! Nem esteias de oferendas, nem inscrições de eternidade que deveriam ser pronunciadas por um servidor do ka. Separados das suas tradições e dos seus rituais, os egípcios de Auaris tinham vivido horas terríveis.

 

 Antes de formar de novo um exército para libertar a totalidade das cidades do Norte, era necessário purificar o templo de Set. Ah-hotep dirigiu-se para lá com o Faraó numa barca, sob a protecção de Risonho, o Jovem e de Ahmés, filho de Abana. Como nenhum incidente se verificara no decurso dos inúmeros combates travados pelo Rei, mandava a razão que fossem aligeiradas as medidas de segurança. Mas a guerra não tinha acabado e Ah-hotep recusava-se a fazer correr o menor perigo a um monarca que devia inaugurar uma nova dinastia.

 

 Segundo as últimas informações lembrou Ahmés as tropas do príncipe de Kerma não avançam. Não se torna portanto necessário desguarnecer os nossos regimentos para vir em auxílio da fortaleza de Buhen e dos nossos aliados núbios.

 

 O Faraó e a mãe ficaram espantados com a insignificância do templo, um medíocre edifício em tijolo indigno de uma força divina.

 

 Sobre o altar, rodeado de carvalhos, os restos dos despojos de Apopis despedaçados pelos abutres. Numa fossa, burros sacrificados.

 

 Que lugar sinistro! considerou o Faraó. Não deve restar nada deste santuário do mal.

 

 Erguer-se-á aqui um grande templo dedicado a Set, o que o Imperador não conseguiu dominar, o que nos deu força quando dela tínhamos necessidade. Possam Hórus e Set reunir-se e pacificar-se na pessoa do Faraó.

 

 Logo que o carro conduzido por Aberia entrara na fortaleza de Charuhen, os dois cavalos caíram, mortos de esgotamento. O Imperador Khamudi ficou feliz por pôr pé em terra, no termo de uma viagem desgastante durante a qual receara a cada instante ser interceptado.

 

 Por toda a parte havia estigmas do cataclismo.- árvores arrancadas, quintas destruídas, campos com fendas e centenas de cadáveres de hicsos que a fúria dos elementos aniquilara. Para grande alívio do Imperador, a fortaleza de Charuhen parecia quase intacta.

 

 Dimensão dos estragos? perguntou Khamudi ao comandante que o veio receber.

 

 Apenas fendas numa muralha, Majestade. Estamos a tratar de a consolidar. Alguns cavalos enlouqueceram e espezinharam os soldados. Vários homens que estavam de vigia nas ameias foram arrastados pela tempestade.

 

 Concedo uma grande honra a Charuhen declarou Khamudi. Torna-se a capital do meu Império. Convoca os oficiais para a minha sala do trono.

 

 Estava-se longe do luxo do palácio de Auaris, mas o Senhor dos Hicsos saberia ter paciência antes de gozar de novo de um enquadramento digno de si.

 

 Esfomeado, devorou carneiro grelhado, pato e ganso, e bebeu um jarro de vinho branco. Pois não era invencível, ele que conseguira desembaraçar-se de Apopis e apoderar-se do poder supremo?

 

 Os egípcios não obtiveram nenhuma vitória anunciou ele ao seu estado-maior. Devido a defeitos de construção, a cidadela de Auaris não resistiu a um tremor de terra e a ventos violentos. O inimigo contentou-se em invadir uma ruína. Podeis estar certos de que não cometerei os mesmos erros do meu predecessor. O nosso exército continua a ser o melhor e esmagará os revoltosos. Ah-hotep e o Faraó ignoram que dispomos de uma imensa reserva de tropas na Ásia, às quais vou dar ordem para regressar imediatamente e na totalidade. Começaremos por reconquistar o Delta, depois arrasaremos Tebas. O meu reinado será o maior da história hicsa e a minha fama ultrapassará a de Apopis. Preparai os vossos homens para o combate e não duvideis do nosso triunfo.

 

 Os oficiais retiraram-se, com excepção de cinco deles.

 

 O que pretendeis? espantou-se Khamudi.

 

 Acabámos de chegar da Anatólia respondeu um general sírio e somos portadores de muito más notícias. Foi por isso que preferi, com os quatro outros generais sobreviventes, falar-vos em privado.

 

 Sobreviventes... sobreviventes de quê?

 

 Já não controlamos nenhum território na Ásia. O Rei Hattusil I colocou-se à cabeça de um enorme exército hitita e venceu-nos.

 

 As nossas bases do norte da Síria foram destruídas, Alep caiu. Os poucos regimentos que subsistem estão cercados, não haverá nenhum sobrevivente.

 

 Khamudi ficou imóvel um longo momento.

 

 Bateste-te mal, general.

 

 Todas as nossas províncias da Ásia se revoltaram, senhor, até mesmo os civis pegaram em armas. Com o tempo, a guerrilha hitita revelou-se muito eficaz e só faltava um Hattusil para federar os revoltosos.

 

 Um hicso vencido não é digno de me obedecer. Tu e os teus generais incompetentes, ides conhecer o vosso verdadeiro lugar: o campo de concentração.

 

 Abandonados a si mesmos pelo Imperador, os soldados, milicianos e polícias hicsos do Delta tinham deixado de receber ordens claras. Sem ligações, incapazes de coordenar os seus esforços, eram perpetuamente atormentados pelos resistentes e pelos comandos de Ahmés.

 

 Quando o exército egípcio avançou pelo leste do Delta, encontrou apenas uma fraca oposição da parte de um inimigo desmoralizado. E as cidades do Baixo Egipto foram libertadas umas após outras, num clima de júbilo indescritível.

 

 Foi na antiga cidade de Sais, onde a deusa Neith tinha pronunciado as sete palavras criadoras, que uma velha mulher enrugada caiu não longe de Ah-hotep, de quem todos se queriam aproximar. A Rainha fê-la imediatamente transportar para um compartimento do palácio, onde Felina a examinou.

 

 Com um simples olhar, a núbia fez compreender à soberana que o organismo da infeliz estava gasto.

 

 A idosa mulher abriu no entanto os olhos e exprimiu-se com tanta dor na voz que Ah-hotep ficou profundamente comovida.

 

 Os hicsos levaram o meu marido, os meus filhos e os meus netos para os torturar...

 

 Onde estão eles?

 

 Num campo de concentração, em Tjaru. Os que ousaram falar disso foram deportados também. Salvai-os, Majestade, se ainda for possível.

 

 Tens a minha palavra.

 

 Tranquilizada, a velha mulher morreu docemente.

 

 O Faraó estava tão comovido como a mãe.

 

 Um campo de concentração... O que é que isso significa?

 

 Apopis foi mais longe no caminho do mal do que qualquer demónio do deserto, e receio os piores horrores! Parto imediatamente para Tjaru.

 

 Essa praça-forte situa-se num território ainda controlado pelos hicsos, mãe. Khamudi está a reunir com certeza forças importantes na Siro-Palestina e temos que preparar uma nova batalha de grandes dimensões.

 

 Prepara-a, Ahmés. Eu dei a minha palavra que interviria tão depressa quanto me fosse possível.

 

 Por uma vez, peço-vos, dai-me ouvidos! Não deveis correr nenhum risco. O Egipto precisa demasiado de vós. O Egipto e o vosso filho.

 

 O Faraó e a Rainha abraçaram-se.

 

 Tjaru fica no limite da zona de influência inimiga. O Bigodes e o Afegão acompanhar-me-ão com dois regimentos de carros. Se essa fortaleza for um obstáculo demasiado forte, esperaremos pela tua chegada.

 

 Aguentar, aguentar, isso é muito bonito, aguentar! irritou-se o comandante cananeu da fortaleza de Tjaru. Aguentar com quê e com quem? Khamudi esqueceu completamente que somos a posição mais avançada do Império Hicso desde a queda de Auaris!

 

 Habituado a amontoar deportados no campo de concentração próximo do pântano e a viver confortavelmente ao abrigo das suas paredes, o cananeu não tinha qualquer desejo de sofrer um cerco.

 

 Não desesperemos, comandante sugeriu o seu adjunto. O Imperador está a reconstituir um exército, a contra-ofensiva não tardará.

 

 Enquanto esperamos, somos nós que estamos na primeira linha! Novidades do Delta?

 

 Não são famosas. Receio que o Faraó e a Rainha Ah-hotep o tenham reconquistado na sua totalidade.

 

 Serem vencidos por uma mulher, que vergonha para os hicsos!

 

 Batendo raivosamente com o pé nos ladrilhos, o comandante feriu-se no calcanhar.

 

 Estado de alerta permanente ordenou. Archeiros nas ameias, de dia e de noite.

 

 À saída da estrada comercial vinda de Canãa e na orla dos múltiplos canais que atravessavam o Delta em direcção ao vale do Nilo, a fortaleza de Tjaru era ao mesmo tempo um posto alfandegário e um local de armazenamento de mercadorias. Construída no istmo que se formara entre os lagos Ballah e Menzala, imperava no seio de uma paisagem que hesitava entre o deserto e extensões verdejantes.

 

 Nervoso, o comandante passou os seus homens em revista e inspeccionou as reservas de armas e alimentos. É um facto que podia aguentar várias semanas, mas para que servia resistir se não deveria ser socorrido? O cananeu votava tanto uma obediência cega a Apopis, quanto desconfiava de Khamudi, financeiro venal e comerciante de droga desprovido de experiência militar.

 

 Aí estão os egípcios, comandante anunciou em voz trémula o seu adjunto.

 

 São muito numerosos?

 

 Têm carros, muitos carros, e escadas móveis!

 

 Todos aos seus postos!

 

 Belo animal considerou o Afegão, observando a fortaleza de Tjaru. Mas ao lado de Auaris isto parece quase uma brincadeira.

 

 Não te deixes enganar recomendou-lhe o Bigodes. Este animal é sólido e saberá defender-se.

 

 Detectámos tropas hicsas na região?

 

 Não, Majestade. Segundo parece evidente, Khamudi abandonou Tjaru a si própria na esperança que ela nos atrasará no nosso avanço para nordeste. É provável que a fortaleza disponha de víveres suficientes para suportar um cerco prolongado.

 

 Devemos libertar os deportados o mais depressa possível considerou Ah-hotep.

 

 Podemos tentar um assalto, mas perderemos muitos homens considerou o Afegão. Em vez disso, estudemos o terreno em pormenor e detectemos os pontos fracos do edifício.

 

 Estou demasiado apressada cortou a Rainha.

 

 O plano que Ah-hotep expôs ao Bigodes e ao Afegão fê-los estremecer. Mas como impedir a Rainha de o pôr em execução?

 

 Como só? espantou-se o comandante.

 

 A Rainha Ah-hotep está só diante da porta grande da cidadela confirmou o adjunto e deseja falar-vos.

 

 Essa mulher é louca! Porque é que os archeiros não a abateram?

 

 Uma Rainha só, sem armas... Não se atreveram.

 

 Mas é a nossa pior inimiga!

 

 Os hicsos perderam a cabeça, pensou o comandante, que se precipitou para prender pessoalmente aquela diaba e impedi-la de enfeitiçar a totalidade da guarnição.

 

 A grande porta tinha sido entreaberta, Ah-hotep encontrava-se já no interior da fortaleza.

 

 Um fino diadema de ouro, um vestido vermelho, e um olhar intenso, franco e penetrante... O comandante ficou subjugado.

 

 Majestade, eu...

 

 A tua única hipótese de sobreviver é renderes-te. O teu Imperador abandonou-te e o Exército de Libertação está a chegar. De Norte a Sul, nenhuma fortaleza lhe resistiu.

 

 O cananeu podia prender Ah-hotep e entregá-la a Khamudi, que faria dele um general coberto de riquezas. Estava à sua mercê, bastava-lhe dar uma ordem.

 

 Mas o olhar da Rainha Liberdade impunha-lhe que adoptasse a solução que ela lhe propunha.

 

 Disseram-me que havia um campo de deportados em Tjaru. O comandante baixou os olhos.

 

 Foi a dama Aberia, por ordem de Khamudi, que o abriu... Eu não tenho nada a ver com isso.

 

 O que se passa nesse campo?

 

 Ignoro-o. Sou um soldado, não um guarda prisional.

 

 Os soldados hicsos serão prisioneiros de guerra e utilizados na reconstrução do Egipto decretou Ah-hotep mas os carrascos não. Reúne imediatamente todos os torcionários que trabalharam nesse campo e não esqueças um único. Caso contrário, considerar-te-ei como um deles.

 

 A Rainha já nem conseguia chorar.

 

 Depois de tantos anos de luta, acreditava saber tudo do sofrimento, mas o que acabava de descobrir em Tjaru rasgava-lhe o coração.

 

 Salvara apenas cerca de cinquenta deportados, entre os quais dez mulheres e cinco crianças, algumas das quais não sobreviveriam aos ferimentos e à subnutrição.

 

 Uma rapariguinha morrera nos seus braços. No solo, jaziam cadáveres semidevorados pelos roedores e as aves de rapina.

 

 Os dois únicos sobreviventes capazes de se expressarem contaram, com as suas pobres palavras e frases por vezes incoerentes, o que a dama Aberia e os seus esbirros os tinham feito sofrer.

 

 Como tinham podido seres humanos comportar-se assim, mesmo ao serviço de um monstro que os aterrorizava? Ah-hotep não quis ouvir nenhuma explicação, apenas os factos contavam. A falta mais grave, que teria inevitavelmente provocado a repetição dos mesmos horrores, consistia em perdoar. A Rainha mandou portanto executar de imediato os torcionários.

 

 Desde a sua chegada, o Faraó Ahmés constatou que Tjaru era uma bela presa: cavalos, carros, armas, provisões. Mas tremia ainda ao saber como Ah-hotep se apoderara daquela fortaleza.

 

 Mãe, não deveríeis...

 

 Segundo o comandante, existe um outro campo de concentração, maior do que este, em Charuhen, uma cidade fortificada. Foi lá que se refugiou Khamudi.

 

 A guerra de Canãa durava há mais de dois anos e Pés Grandes continuava a aguentar-se. Já não eram egípcios do Delta que eram lançados no campo, mas soldados hicsos culpados de terem desertado ou recuado diante do inimigo. Torturados pela dama Aberia, morriam rapidamente.

 

 Pelo menos, o matrícula 1790 dispunha agora de notícias agradáveis. Passo-a-passo, o exército do Faraó e da Rainha Liberdade ia aniquilando as tropas siro-cananeias, apesar de serem ferozes no combate. A cidade fortificada de Tell Manor, cujo governador tinha prazer em matar os cães, rendera-se. Desta vez, Charuhen estava isolada.

 

 Pés Grandes aproximou-se de um jovem libanês que só tinha um braço.

 

 Perdeste-o na guerra, rapaz?

 

 Não, foi Aberia que mo cortou porque eu me tinha escondido para fugir aos carros egípcios.

 

 Ainda estão longe daqui?

 

 Em breve estarão em Charuhen. Ninguém os pode travar. Pés Grandes respirou a plenos pulmões, como não fazia há já muito  tempo com medo de quebrar a sua pobre carcaça.

 

 Senhor declarou o comandante da fortaleza de Charuhen a guerra está perdida. Todas as nossas praças-fortes foram tomadas, não temos mais nenhum regimento para opor ao exército do Faraó Ahmés. Se o desejardes, Charuhen ainda pode resistir algum tempo. Na minha opinião, mais valeria rendermo-nos.

 

 Um hicso morre com as armas na mão! arrotou Khamudi.

 

 Às vossas ordens.

 

 O Imperador retirou-se para os seus aposentos onde a dama Aberia, detestada pela guarnição, encontrara refúgio. De noite, divertia-se a satisfazer os caprichos de Khamudi.

 

 Organiza a nossa partida, Aberia.

 

 Para onde vamos?

 

 Para Kerma. O príncipe Ata reservar-me-á um acolhimento digno da minha posição e colocar-se-á ao meu serviço.

 

 Não apreciais os negros, senhor.

 

 Hão-de ser melhores guerreiros do que este bando de cobardes que ousou perder esta guerra! O erro fatal dos egípcios será acreditar que estou vencido. Tomaremos um barco até à costa líbia e depois seguiremos pelas pistas do deserto. Selecciona uma tripulação segura e faz embarcar o máximo de ouro e de droga.

 

 Quando partimos?

 

 Depois de amanhã de madrugada.

 

 Logo que o barco estiver pronto, restar-me-á uma pequena formalidade a cumprir afirmou a dama Aberia com voluptuosidade. Eu própria encerrarei o campo de Charuhen.

 

 Em geral, os suplícios terminavam ao cair da noite, imediatamente antes de os prisioneiros terem direito a uma infame refeição. Foi por isso que Pés Grandes ficou espantado por ver a dama Aberia e os seus esbirros penetrarem no campo ao crepúsculo. Que nova tortura inventara ela agora?

 

 Vem para junto de mim ordenou ao libanês que só tinha um braço.

 

 Os prisioneiros contemplaram a torcionária que regia aquele inferno.

 

 Dentro de algumas horas revelou ela os egípcios entrarão em Charuhen e neste campo. Haveis de convir que é impossível deixá-lo numa tal desordem, que prejudicaria gravemente a minha reputação. A causa deste deixa-andar sois vós e a vossa preguiça! Devo portanto suprimir essa causa.

 

 A dama Aberia passou o braço em volta do pescoço do jovem soldado e quebrou-lhe as vértebras cervicais.

 

 Pés Grandes desenterrou a marca que tinha escondido, enquanto os polícias estendiam no chão um líbio que tentava fugir.

 

 Com o pé, Aberia enterrou-lhe o rosto na lama e manteve a pressão até que a sua vítima deixasse de respirar.

 

 Com o seu passo lento, o matrícula 1790 aproximou-se.

 

 Devo enterrar os cadáveres? A ideia divertiu Aberia.

 

 Abre-me uma bela cova, e depressa!

 

 Quando passou diante da escultural directora do campo, capaz de o matar com um soco, nenhum polícia teria podido imaginar que Pés Grandes, submisso e alquebrado, fosse capaz do mínimo gesto de revolta.

 

 Foi precisamente essa convicção que lhe permitiu agir com toda a serenidade.

 

 Isto disse ele com calma, cravando a marca de bronze no olho direito de Aberia é pelas minhas vacas.

 

 Enquanto ela uivava de dor, Pés Grandes atacou uma segunda vez, enterrando a sua arma na boca de Aberia tão violenta e profundamente que saiu pela nuca.

 

 Interditos por momentos, os polícias ergueram as suas espadas para abaterem o matrícula 1790. Mas os prisioneiros hicsos, sentindo que tinham uma ocasião única para fugir, lançaram-se sobre os guardas.

 

 Antes de sair do campo, Pés Grandes pegou numa espada e cortou as enormes mãos da dama Aberia.

 

 Ganhei a minha guerra murmurou.

 

 A Grande Esposa Real Nefertari fez o velho intendente Qaris reler a mensagem trazida por Larápio: a cidade fortificada de Charuhen, última bolsa de resistência hicsa, acabava de ser conquistada!

 

 Ah-hotep está vitoriosa! exclamou o velho, pensando na jovem que, há mais de quarenta anos, fora a única a acreditar na libertação do Egipto.

 

 Levo-te ao templo anunciou Nefertari.

 

 Claro, claro... Mas os carros fazem-me um pouco de medo.

 

 Convir-te-ia melhor uma cadeira de transportadores?

 

 Majestade! Não passo de um intendente e...

 

 És a memória de Tebas, Qaris.

 

 A boa notícia espalhou-se muito depressa. Começavam já a preparar uma imensa festa para o regresso da Rainha Ah-hotep e do Faraó Ahmés.

 

 O sumo sacerdote Djehuti estava em pé no limiar do templo. O seu rosto grave não exprimia a mínima alegria.

 

 A porta da capela de Amon continua fechada, Majestade. Isso significa que a guerra não terminou e que ainda não somos vencedores.

 

 Depois de ter avisado o Rei Hattousil I que o Egipto estava liberto do jugo hicso e que tencionava manter as melhores relações com a Anatólia, o Faraó Ahmés tivera o cuidado de ocupar militarmente o corredor siro-palestiniano a fim de desencorajar qualquer tentativa de invasão. Uma administração especial governaria a região e, graças ao corpo de elite dos pombos-correio, o Rei seria informado das menores perturbações.

 

 Um único ponto negro: o desaparecimento do Imperador Khamudi que, segundo testemunhas, teria abandonado Charuhen de barco. Como a porta da capela de Amon continuava obstinadamente fechada, Ahmés e Ah-hotep sabiam que outras provações os esperavam.

 

 A norte, Khamudi não encontrará mais nenhum aliado adiantou o Rei nem tão-pouco no Delta. Ou partiu para as ilhas do mar Egeu com intenção de aí se ocultar até à sua morte, ou apenas pensa em vingar-se.

 

 Colocar a questão é responder-lhe já considerou Ah-hotep. Resta apenas uma única possibilidade: Khamudi tentou atingir o reino de Kerma, o último adversário que teremos de enfrentar Mesmo se Tebas tem o coração em festa, a nossa tarefa não está terminada.

 

 Enquanto Ahmés saboreava a alegria do reencontro com a esposa e o filho, Ah-hotep consultava os últimos relatórios provenientes da Núbia. É certo que o príncipe Ata não avançava, mas a guerrilha continuava a actuar com êxito.

 

 Aquele abcesso era sem dúvida o motivo pelo qual Amon alertava os egípcios.

 

 Nada a propósito de Khamudi?

 

 Nada respondeu o chanceler Neshi. Talvez se tenha perdido nas areias do deserto.

 

 Não contemos demasiado com isso. O ódio ter-lhe-á permitido encontrar o caminho.

 

 Majestade... Podemos esperar a vossa presença no banquete desta noite?

 

 Estou fatigada, Neshi.

 

 Foi no templo de Karnak, face à deusa Mut, que Ah-hotep passou a noite. Recebera tanto da esposa de Amon, a mãe das almas vivas e a detentora do poder divino, que lhe devia o relato daqueles desgastantes anos de guerra no termo dos quais Ahmés usava finalmente a dupla coroa.

 

 A quem mais senão a Mut podia Ah-hotep confiar que aspirava ao silêncio e à solidão?

 

 O Faraó já não tem necessidade de mim disse-lhe ela. O meu filho tornou-se um excelente chefe que inspira respeito e confiança.

 

 Nos olhos de pedra, um brilho irritado.

 

 Se me concederes repouso, deusa Mut, inclina a cabeça. A estátua permaneceu imóvel.

 

 Entre Ata, o príncipe de Kerma, e Khamudi, o Imperador dos Hicsos, o primeiro contacto foi glacial.

 

 A vossa presença honra-me, senhor, mas teria preferido ver-vos à frente de milhares de soldados.

 

 Tranquiliza-te, Ata, eles existem! A minha reputação permanece intacta por toda a parte. Quanto aos Egípcios, tremem à ideia de pronunciar o meu nome. Quando tivermos reconquistado a Núbia e destruído Elefantina, os meus partidários sublevar-se-ão e juntar-se-ão a nós. Bem entendido, avançarei à cabeça do nosso exército.

 

 Não sois um núbio, senhor, e os meus guerreiros só obedecem ao seu príncipe.

 

 Khamudi encaixou a afronta sem protestar.

 

 Em que consiste a tua estratégia, Ata?

 

 Recuperar as aldeias que nos roubaram os egípcios e depois apoderarmo-nos do forte de Buhen. Caso contrário, é impossível encarar a conquista do sul do Egipto.

 

 Não conheces nada das fortalezas, Ata. A mim, são-me familiares.

 

 Os vossos conselhos ser-me-ão portanto muito preciosos!

 

 Será necessário primeiro abrir um caminho até Buhen, e não serão operações de guerrilha que nos permitirão isso.

 

 O que preconizeis?

 

 Dai-me um mapa da região e voltaremos a falar. De momento, quero repousar.

 

 Os apartamentos do palácio de Kerma eram espaçosos e confortáveis. Mas o que atraiu a atenção de Khamudi foi o olhar do mordomo.

 

 O de um drogado.

 

 O teu nome?

 

 Tetian.

 

 Fumas erva, não é verdade?

 

 O grande rapagão abanou a cabeça afirmativamente.

 

 Trouxe melhor, muito melhor! Se queres droga de primeira qualidade, terás de me ouvir. Tens um porte de guerreiro, não de servidor. Ata ordenou-te que me espiasses, não é verdade?

 

 Exacto, senhor.

 

 Porque aceitas essa humilhação?

 

 Não pertencemos ao mesmo clã. Um dia, o meu vingar-se-á e governará Kerma.

 

 Porque hás-de esperar, Tetian? Age imediatamente e combateremos juntos os egípcios. Matarás muitos e o teu povo ficará a teus pés.

 

 Matarei muitos, muitos, e serei admirado, eu, Tetian!

 

 Antes, meu amigo, saboreia as maravilhas prometidas. Durante toda a noite, Tetian consumiu a melhor droga hicsa. A meio da manhã, apresentou-se diante de Ata, como combinado, para lhe fazer o seu relatório.

 

 Obtiveste as confidências de Khamudi?

 

 Sim, príncipe.

 

 Quais são as suas reais intenções?

 

 Colocar-se à frente do nosso exército e invadir o Egipto. E depois confiou-me uma missão.

 

 Qual?

 

 Suprimir-te.

 

 Ata não teve tempo de se defender. O punhal lançado por Tetian trespassou-lhe o coração.

 

 Kerma tinha um novo príncipe.

 

 Tendo em conta o aviso do deus Amon, Ah-hotep considerava o caso núbio muito seriamente.

 

 Alguns pensavam que um simples corpo expedicionário teria bastado para abortar a revolta de Kerma, mas não era essa a opinião da Rainha, que convencera o filho a não tratar com ligeireza aquele último obstáculo.

 

 Ahmés partia portanto para o grande Sul com a quase totalidade do Exército de Libertação. O almirante Lunar, o governador Emheb, o chanceler Neshi, o Bigodes, o Afegão e todos os heróis da guerra faziam parte dos que partiam, tal como Ahmés, filho de Abana, e Risonho, o Jovem, sempre encarregados da segurança do monarca.

 

 Apenas Vento do Norte fora desmobilizado. O velho burro saboreava por fim os prazeres de uma bem merecida reforma.

 

 No cais onde estava a terminar o embarque, a atmosfera era sombria.

 

 Então a Rainha Ah-hotep não vem? perguntou o Afegão.

 

 Tem necessidade de repouso respondeu o Bigodes, tão desconsolado como o seu colega.

 

 Sem ela afirmou um jovem marinheiro que expressava a opinião geral arriscamo-nos a ser vencidos. Os núbios são guerreiros mais aterradores do que os hicsos. A Rainha teria sabido quebrar a sua magia.

 

 Somos dez vezes mais numerosos afirmou o Afegão.

 

 Os hicsos também eram dez vezes mais numerosos lembrou o marinheiro mas não eram comandados pela Rainha Liberdade.

 

 Uma agitação no extremo do cais.

 

 De repente, gritos de alegria.

 

 Ah-hotep apareceu com a sua varinha de cornalina, o seu fino diadema de ouro e um vestido verde que fora tecido por Nefertari.

 

 Logo que a Rainha chegou a bordo do navio-almirante, as manobras aceleraram-se.

 

 A primeira paragem ordenada por Ah-hotep surpreendeu a frota egípcia. Porque parar por altura de Aniba, muito antes de Buhen?

 

 Desembarcaram apenas uma centena de homens, entre os quais uma vintena de trabalhadores das pedreiras. Englobando numerosos burros carregados de odres de água e de provisões, a expedição dirigiu-se para a pedreira de diorite que tinha sido explorada pelo Faraó Khafré, construtor de uma das três pirâmides do planalto de Guiza. Reabrindo-as de forma solene, Ah-hotep inaugurava um programa a longo prazo: uma vez a Núbia pacificada, cobrir-se-ia de templos onde viriam residir as forças divinas. Produzindo Maet, os santuários diminuiriam os riscos de conflito.

 

 Foi com intenso alívio que Turi, o comandante da fortaleza de Buhen, recebeu o exército do Faraó. Esquecendo o protocolo, dirigiu-se à Rainha e ao seu filho sem dissimular a sua angústia.

 

 Chegais mesmo a tempo, Vossas Majestades, porque acontecimentos dramáticos alteraram o equilíbrio da Núbia! O hicso Khamudi aliou-se ao novo príncipe de Kerma, um tal denominado Tetian, que assassinou o seu predecessor e sublevou tribos até agora inofensivas. O nosso dispositivo defensivo voou em pedaços. Parece que os guerreiros de Kerma nunca se mostraram tão violentos. Mesmo mortalmente feridos, continuam a combater!

 

Nota:  De acordo com as expressões egípcias, é possível ”dizer, fazer, produzir Maet”.

 

 ”Segundo os meus batedores, acabam de franquear a segunda catarata e precipitam-se sobre Buhen. Tanto eu como a guarnição estamos aterrorizados! Felizmente, um escultor fez uma obra que preserva a esperança.

 

 O comandante Turi mostrou um lintel sobre o qual estavam representados o Faraó Ahmés, toucado com a coroa azul, e a Rainha Ah-hotep com a peruca em forma de abutre, símbolo da deusa Mut. A mãe e o filho veneravam Hórus, protector da região.

 

 Ao trabalho exigiu o Rei. Temos uma dura batalha a preparar.

 

 Khamudi felicitava-se por ter trazido uma quantidade suficiente de droga que transformava os guerreiros de Kerma em verdadeiras máquinas de matar. Tetian era um louco furioso, mas um condutor de homens excepcional, sem consciência do perigo. Manejando a funda tão bem como o arco ou a lança, só tinha prazer na extrema violência de um combate, no decurso do qual massacrava um máximo de adversários, a maior parte dos quais, tetanizados, nem sequer conseguiam lutar.

 

 Sob o impulso de Tetian e de Khamudi, o exército de Kerma exterminara os polícias egípcios e os seus aliados núbios, devastara numerosas aldeias povoadas de partidários do Faraó, e apoderara-se de navios comerciais transformados em navios de guerra.

 

 O próximo objectivo era Buhen.

 

 Fazendo saltar aquele ferrolho, Khamudi abriria de par em par a porta do Egipto.

 

 Senhor, um mensageiro desejaria falar-vos avisou-o o seu ajudante-de-campo.

 

 De onde vem ele?

 

 Segundo o que diz, de Buhen.

 

 Khamudi sorriu. Um soldado egípcio pronto a sacrificar a sua vida para eliminar o Imperador dos Hicsos, que truque grosseiro!

 

 Traz-mo.

 

 O homem era um jovem negro, visivelmente assustado.

 

 Então, rapaz, querias matar-me?

 

  Não, senhor, juro-vos que não! Alguém me entregou uma mensagem urgente dirigida a vós. Em troca, prometeu-me que me daríeis ouro, uma casa e criados.

 

 O seu nome?

 

 Ignoro-o, senhor!

 

 Mostra-me essa mensagem.

 

 Ei-la.

 

 No instante em que o jovem negro fazia deslizar a mão no saiote, o ajudante-de-campo estendeu-o no chão, receando que tirasse um punhal.

 

 Mas o único objecto que dissimulava era um pequeno escaravelho hicso coberto com uma escrita cifrada de que Khamudi conhecia a chave.

 

 Portanto, o espião de Apopis ainda estava vivo! E o que propunha a Khamudi era motivo de regozijo.

 

 Terei o que me foi prometido, senhor? perguntou o mensageiro.

 

 Queres saber o que me recomenda realmente o autor deste texto?

 

 Oh sim, senhor!

 

 Para que o mensageiro se cale, mata-o.

 

 Os núbios de Kerma escolheram o choque frontal constatou o Faraó Ahmés, vendo aproximar-se os navios inimigos, carregados de guerreiros usando perucas vermelhas, brincos de ouro e grossos cintos. Que os nossos archeiros se coloquem em posição.

 

 Acorreu um oficial de ligação.

 

 O comandante Ahmés, filho de Abana, é chamado à parte de trás.

 

 Por que razão? espantou-se este último.

 

 O almirante Lunar deseja consultá-lo com urgência. Ahmés deu o seu acordo. Ahmés, filho de Abana, afastou-se

 

 quando o confronto estava prestes a começar.

 

 Apenas a presença da Rainha Liberdade tranquilizava os soldados egípcios, apesar de serem mais numerosos e estarem melhor armados, porque os gritos dos guerreiros de Kerma gelavam-lhes o sangue. Ah-hotep deu ordem para tocarem os tambores a fim de abafarem aquele alarido. E quando os primeiros assaltantes, inconscientes do perigo, caíram sob as flechas egípcias, todos compreenderam que eram apenas homens.

 

 Tetian tinha apenas uma ideia na cabeça, mil vezes martelada por Khamudi: esfacelar o crânio do Faraó Ahmés com a sua maça.

 

 Enquanto se desenrolava o combate naval, Tetian, sobreexcitado, nadara a toda a velocidade. Escalou a proa do navio-almirante tão depressa como um tronco de palmeira, decidido a massacrar quem se lhe opusesse.

 

 Febril, via já o Faraó morto, o rosto ensanguentado. Privado do seu chefe, o exército inimigo desmembrar-se-ia e o Egipto ficaria sem defesa.

 

 De olhos enlouquecidos, Tetian encontrou-se na ponte do navio-almirante. Mas a proa do Falcão de Ouro estava vazia.

 

 Onde estás tu, Faraó, onde estás tu? Vem bater-te com Tetian, o príncipe de Kerma!

 

 Larga a tua arma e rende-te exigiu Ahmés, filho de Abana. Com um grito de fera selvagem, Tetian precipitou-se sobre o  archeiro.

 

 Apesar da flecha cravada na testa, o núbio conseguiu abater a maça sobre o chefe da guarda pessoal de Ahmés.

 

 A operação de Felina fora perfeitamente bem sucedida. Ahmés, filho de Abana, estava agora dotado de uma notável prótese, um pequeno dedo do pé esquerdo em madeira pintada, cor de carne, que substituía o original esmagado por Tetian.

 

 O cadáver do príncipe de Kerma juntara-se aos dos seus guerreiros vencidos, lançados num imenso braseiro. Pela sua nova façanha, Ahmés, filho de Abana, recebera, uma vez mais, o ouro da valentia, mais quatro criados e um presente inestimável: um grande terreno cultivável em El-Kab, a sua cidade natal, onde passaria a sua velhice.

 

 Nem por um instante acreditara que o almirante Lunar desejasse consultá-lo. Queriam unicamente afastá-lo do Faraó. Pedira portanto ao Rei que fosse para a popa do navio-almirante, enquanto esperava o inevitável ataque de um assassino.

 

 Convocado pelo monarca, o almirante Lunar afirmara com veemência não ter solicitado a presença de Ahmés, filho de Abana. Mas era impossível interrogar o oficial de ligação para saber mais, porque este fora morto durante o combate.

 

 Um único navio conseguiu fugir lamentou Lunar. Khamudi encontrava-se a bordo dele.

 

 Depois de Ah-hotep ter distribuído víveres às populações duramente afectadas pelos rigores de Ata e de Tetian, o Exército de Libertação subiu o Nilo em direcção a Kerma sem encontrar resistência.

 

 Quando a frota abordou a rica bacia cerealífera da qual Kerma era a capital, os soldados prepararam-se de novo para combater. Conhecendo a bravura dos núbios, seriam ainda necessários duros confrontos antes de poder extirpar Khamudi do seu reduto.

 

 A configuração plana do terreno permitiria aos regimentos de carros comandados pelo Afegão e pelo Bigodes lançar o primeiro assalto, logo que os últimos barcos de Kerma estivessem reduzidos à impotência.

 

 Mas estes estavam atracados ao cais. Nenhum marinheiro a bordo.

 

 Desconfiemos recomendou o almirante Lunar. É provavelmente uma cilada.

 

 Um homem idoso avançou com uma bengala na mão e ergueu os olhos para o Faraó e para a Rainha, que se mantinham à proa do Falcão de Ouro.

 

 Sou o delegado do Conselho dos Anciãos declarou ele e entrego-vos a cidade de Kerma. Acedei a poupar a sua população que aspira à paz, depois de tantos anos de tirania. Possa o Egipto governar-nos sem nos escravizar.

 

 A Rainha Ah-hotep foi a primeira a tocar o solo de Kerma. Desconfiado, o governador Emheb perscrutava os arredores.

 

 Uma parte do exército desembarcou, permanecendo os archeiros em estado de alerta. Mas o velho não mentira e os habitantes de Kerma, ansiosos, escondiam-se nas suas casas esperando a decisão do Faraó.

 

 Acederemos aos teus pedidos anunciou Ahmés desde que Khamudi nos seja entregue.

 

 Quando esse fugitivo regressou aqui, ordenou-nos que pegássemos em armas e integrássemos no conflito todos os habitantes do nosso principado, incluindo mulheres e crianças. Recusámos e insultou-nos. Com que direito aquele homem de mau coração nos falava assim?

 

 Fugiu outra vez’

 

 Não, permaneceu em Kerma.

 

 Conduz-nos até ele pediu Ahmés.

 

 Com as suas portas monumentais, os bastiões e o templo-palácio, Kerma tinha um belo aspecto.

 

 O velho subiu lentamente a escada que conduzia ao topo do edifício.

 

 O último Imperador dos Hicsos não voltaria a ter ocasião de atacar o Egipto. Empalado numa longa estaca talhada com cuidado por um apanhador de lixo que sorria com os dentes todos, ficara imobilizado num último grito de ódio.

 

 A porta da capela de Amon abrira-se por si mesma.

 

 O Faraó Ahmés apresentou ao sol da madrugada a espada flamejante com a qual vencera as trevas e depois entregou-a à Rainha Ah-hotep que, como Esposa do Deus, penetrou no santuário e a depositou sobre um altar. Competiria à Grande Esposa Real Nefertari manter aquela chama a fim de que a unidade das Duas Terras as colocasse a partir de agora ao abrigo de uma invasão.

 

 Venero-te, Única com múltiplas manifestações disse Ah-hotep. Desperta em paz, que o teu olhar ilumine a noite e nos dê a vida.

 

 Ao deus Amon, à sua esposa Mut e ao deus Lua Khonsu, formando a Tríade sagrada de Karnak, o Faraó fez a oferenda de Maet, a rectidão de que Ah-hotep nunca se desviara e graças à qual seria possível restabelecer um Egipto digno dos seus anos felizes.

 

 Devo cumprir uma promessa importante lembrou a mãe ao filho.

 

 A corte em peso deslocou-se ao local onde a princesa adolescente encontrara um agrimensor, desaparecido há muito tempo. Ele permitira-lhe tocar pela primeira vez o ceptro de Set sem ser fulminada, com a esperança de que a Rainha devolveria um dia ao Egipto as suas verdadeiras fronteiras.

 

 O local era desolado, as instalações do cadastro ameaçavam ruína.

 

 Porque não foram restauradas? perguntou Ah-hotep ao intendente Qaris.

 

 Tentei por diversas vezes, Majestade, mas os operários não querem trabalhar aqui, sob pretexto que o lugar está assombrado.

 

 Com o ceptro Força na mão, Ah-hotep deu alguns passos e sentiu estranhas sensações, como se o terreno recusasse ser conquistado.

 

 Na esquina dos edifícios degradados, uma tamargueira de que apenas dois ramos estavam ainda floridos. Junto do seu pé, um amontoado de madeira seca.

 

 Detectando um foco de energia negativa, a Rainha aproximou-se.

 

 Dissimulados naquelas ramagens, farrapos de roupa manchados de sangue, tufos de cabelos e pedaços de papiros cobertos de fórmulas mágicas onde aparecia o nome de Apopis.

 

 Ah-hotep poisou a extremidade do ceptro sobre aquele amontoado maléfico. Dos olhos de animal de Set brotou um brilho vermelho que inflamou a madeira seca.

 

 Apesar dos esforços do seu espião, Apopis estava definitivamente  morto.

 

 A Rainha pôde assim percorrer a zona reservada ao cadastro, onde trabalhariam a partir do dia seguinte um responsável pelas culturas, um guarda dos arquivos e escribas especializados. A terra do Egipto atraía de novo o amor dos deuses.

 

 Depois, a corte fez-se transportar para um vasto campo cultivado. A Grande Esposa Real Nefertari espalhou ali poeira de ouro que tornaria fecundas as sementes na totalidade das províncias.

 

 A verdadeira hierarquia estava finalmente restabelecida. No topo remavam os deuses, as deusas e os espíritos glorificados, representados na terra pelo Rei e a Rainha; a estes pertencia a responsabilidade de nomear um primeiro-ministro, o vizir, magistrados encarregados de fazer aplicar a lei de Maet, e responsáveis de cada sector da comunidade dos vivos.

 

 Começaremos por reconstruir os templos anunciou Ah-hotep. As paredes do recinto serão reerguidas, os objectos sagrados depositados nos santuários, as estátuas erigidas no seu justo lugar, a circulação das oferendas restaurada e os rituais dos mistérios de novo celebrados.

 

 Onde nos conduz este passeio de barco? perguntou ao filho a Rainha Ah-hotep, intrigada.

 

 Compete-vos proceder ao encerramento da nossa antiga base secreta, mãe. Além disso, reservei-vos uma surpresa.

 

 Ah-hotep lembrou-se dos dias angustiantes durante os quais o seu marido, Seken, reunia ao norte de Tebas os primeiros soldados do Exército de Libertação. Hoje, a caserna estava deserta, o palácio desabitado e o templo abandonado. Dentro de alguns anos, os ventos de areia teriam recoberto toda aquela base onde nascera a esperança. Centenas de homens formados aqui tinham perdido a vida nos campos de batalha, mais ainda sofriam de graves ferimentos e nunca apagariam da sua memória os terríveis combates nos quais tinham participado.

 

 Mas o Egipto estava livre. As gerações futuras esqueceriam o sangue e as lágrimas, visto que o Faraó reconstruía a felicidade.

 

 Com o seu ceptro, a Rainha fechou a boca da capela e a do palácio. Desta vez, a guerra tinha realmente terminado.

 

 Quando regressou ao navio, notou no cais um homem de largos ombros que se encontrava junto do Rei e de Ahmés, filho de Abana. Risonho, o Jovem estava deitado serenamente.

 

 Eis o mestre-de-obras do Lugar de Verdade, a aldeia dos artesãos disse Ahmés. Fazia questão de vos apresentar a primeira obra-prima da sua confraria precisamente neste lugar onde se extinguiu o ruído das armas.

 

 O mestre-de-obras poisou no chão o seu precioso fardo, coberto com um tecido branco que retirou lentamente para revelar uma pedra cúbica talhada com perfeição.

 

 Extraímos a pedra bruta de um vale profundo, perdido na montanha explicou ele. Esse lugar solitário é dominado pelo cume, em forma de pirâmide, onde reside uma deusa cobra que exige o silêncio e castiga tagarelas e perjuros. Com cinzéis de cobre e martelos de madeira, criámos esta base sobre a qual repousarão as nossas obras futuras, desde que Vossa Majestade se digne dar-lhe vida.

 

 O Faraó ofereceu à mãe a maça branca, a iluminadora, com a qual consagrava as oferendas.

 

 Ah-hotep bateu na pedra, que flamejou como a espada de Amon.

 

 Depois, os raios de luz concentraram-se no interior do cubo mineral que o mestre-de-obras recobriu com o seu invólucro.

 

 Que esta Pedra de Luz transforme a matéria em espírito declarou a Rainha e que seja fielmente transmitida de mestre-de-obras em mestre-de-obras.

 

 Assassino de dois Faraós, o espião hicso não conseguira suprimir o terceiro. Mesmo que o tivesse conseguido, o Exército de Libertação teria mesmo assim atingido o seu objectivo.

 

 Porque o seu verdadeiro coração era Ah-hotep.

 

 No princípio, ela divertia-o. Nunca a teria considerado capaz de tais façanhas e quisera saber até onde era capaz de ir.

 

 A cada nova etapa, convencia-se que a Rainha não iria mais longe. No entanto, fossem quais fossem os golpes do destino e apesar da dimensão dos seus sofrimentos, ela continuava tenazmente, como se nada a pudesse desviar daquele caminho.

 

 Ele admirava-a, e sem dúvida mesmo mais.

 

 E depois ela beneficiara do favor dos deuses com o desaparecimento de Apopis e a erupção de Thera. Hoje, o Império hicso estava aniquilado e as Duas Terras reunidas.

 

 Mas o espião prometera cumprir a sua missão. E manteria a sua palavra.

 

 Aquele Egipto renascente era muito mais frágil do que ela imaginava. Matando Ah-hotep, destruiria a base sobre a qual ele estava construído. No decurso das próximas festividades, escolheria a melhor ocasião para demonstrar ao povo que a Rainha Liberdade não era imortal.

 

 Privado da que lhe devolvera a vida, o Egipto desmoronar-se-ia no caos.

 

 E o Imperador das Trevas teria finalmente triunfado.

 

 Na presença de Ah-hotep, o Faraó Ahmés celebrou o início dos seus vinte e oito anos de reinado reabrindo as famosas pedreiras de Tura, onde se extraía o mais belo calcário do país. Duas esteias talhadas e colocadas à entrada das galerias comemoravam o acontecimento.

 

 Seis bois de bossa puxavam o primeiro bloco do futuro templo de Ptah de Mênfis, poisado sobre um trenó de madeira. O boieiro que tratava com doçura aqueles animais de origem asiática não era outro senão Pés Grandes, completamente restabelecido.

 

 Tornado proprietário de uma quinta e de uma propriedade onde pastavam numerosas vacas, empregava prisioneiros de guerra que não tivessem matado nem torturado egípcios.

 

 Por toda a parte se restaurava e construía. Mênfis, a cidade da muralha branca, reencontrava pouco a pouco o seu esplendor de outrora. Da Ásia e da Núbia chegavam de novo ouro e prata, do Sinai o cobre e a turquesa, do Afeganistão o lápis-lazúli, símbolo da abóbada celeste e da água primordial.

 

 Quem senão o Afegão, promovido a general de reserva como o Bigodes, teria podido ser nomeado director das importações?

 

 Continuas decidido a regressar ao teu país? perguntou-lhe o amigo. Aqui és rico e coberto de honrarias, as mulheres correm atrás de ti, o vinho é excelente e o clima maravilhoso!

 

 Sinto a falta das minhas montanhas.

 

 Sabes, Afegão, posso compreender quase tudo, mas isso...

 

 Não esqueças que tens de escalar uma encosta coberta de neve para me provares que és verdadeiramente um homem.

 

 Observa antes esta pedra e diz-me se é digna de ser levada ao templo.

 

 Esse lápis-lazúli é magnífico.

 

 A economia tradicional reanimava-se. Tanto em Mênfis como em Tebas, as oficinas reais retomavam o trabalho, tal como os serviços do cadastro, dos pesos e medidas, da manutenção dos canais e do recenseamento. O princípio de redistribmção das riquezas era de novo aplicado sob a égide de Maet, garante da solidariedade e da coesão social.

 

 A frota real navegava para Abides.

 

 Apesar da sua avançada idade, o intendente Qaris fazia questão de estar presente na cerimónia no decurso da qual seria honrada a memória de Teti, a Pequena. Rodeado pelo governador Emheb, que não tardaria a regressar à sua boa cidade de Edfu, e pelo chanceler Neshi, cada vez mais preocupado desde que as tarefas administrativas se acumulavam sobre os seus ombros, o velho rememorava cada um dos episódios da guerra de libertação.

 

 Que incrível existência tivemos! disse ele a Emheb. Graças a Ah-hotep, alimentámo-nos de esperança e criámos um futuro onde ele já não existia.

 

 O ministro Herai trouxe vinho fresco e bolos.

 

 As responsabilidades não te fazem emagrecer observou Neshi.

 

 Qaris e eu não tivemos a sorte, como vós, de estar na primeira linha. Em Tebas, sofremos muitas vezes de angústia, e a angústia dá fome. Olha para o Afegão e para o Bigodes: desde que não andam a cortar hicsos em bocados, estão a engordar.

 

 Estamos a chegar avisou-os o almirante Lunar.

 

 Pareces preocupado admirou-se Herai.

 

 A navegação não foi fácil. O Nilo tem por vezes caprichos que exigem uma extrema vigilância. Eu não tive tempo de provar esse vinho.

 

 Vais recuperar o tempo perdido predisse Emheb.

 

 A Grande Esposa Real Nefertari fazia particularmente questão de celebrar a avó do Faraó, cuja popularidade nunca fora desmentida. Venerada em Tebas, devia sê-lo também em Abides, no domínio sagrado de Osíris.

 

 O monarca realizou portanto para Teti, a Pequena, de acordo com a fórmula ritual, ”o que nenhum Rei tinha feito antes”. Foram construídas uma capela e uma pequena pirâmide rodeadas de plantações e foi instituído um serviço de oferendas dotado de um pessoal que todos os dias alimentaria o ka da defunta, presente entre os vivos. Alojados, alimentados, vestidos, proprietários de terras e de gado, os sacerdotes não teriam outra preocupação que não fosse cumprir a sua função de forma impecável.

 

 Foi erguida uma grande esteia sobre a qual estava representado Ahmés, ora com a coroa branca do Alto Egipto, ora com a dupla coroa, e consagrando oferendas face a Teti, a Pequena.

 

 No tesouro reservado à mãe, Ah-hotep depositou o fino diadema de ouro que tantas vezes usara e que a tinha protegido de tantos perigos.

 

 Para o espião, era uma cerimónia demasiado íntima. Seria em Tebas que atacaria, a fim de que o brutal desaparecimento de Ah-hotep tivesse a máxima repercussão.

 

 Era evidente que Herai, Qaris e Neshi conspiravam.

 

 De que falam? perguntou Ah-hotep.

 

 - De banalidades, Majestade respondeu o chanceler Neshi.

 

 É verdade, Qaris?

 

 O velho intendente hesitou.

 

 De certa maneira... Enfim, sob um determinado ponto de vista...

 

 Nunca soubeste mentir-me fez notar Ah-hotep, sorrindo.

- Permiti que guarde segredo, Majestade.

 

 É uma conspiração a três, ou há outros dignitários metidos na confidência?

 

 Estamos todos confessou Herai e a ordem vem de alto, de muito alto!

 

 Nesse caso admitiu a Rainha, divertida é inútil interrogar-vos mais.

 

 Ah-hotep reuniu-se ao filho na cabina do navio-almirante, cuja porta continuava a ser guardada por Ahmés, filho de Abana, e por Risonho, o Jovem.

 

 Não vos parece, mãe, que seria conveniente aligeirar odispositivo de segurança em volta da minha pessoa?

 

 O estado-maior está convencido que o oficial de ligação morto durante o combate naval na Núbia era o espião hicso. Não é essa a minha opinião.

 

 Supondo que esse espião ainda esteja vivo, mãe, o seu único objectivo não será fazer com que o esqueçam?

 

 Assassinou o teu pai e o teu irmão. Deixar esses crimes impunes corresponderia a curvar-se perante o espectro de Apopis. Enquanto esse criminoso não for identificado e colocado em estado de não poder fazer mal, teremos realmente paz?

 

 O templo de Amon em Karnak vibrava de novo ao som dos martelos e dos cinzéis. Pondo em marcha um vasto programa de desenvolvimento do santuário, o Faraó Ahmés velava pela instalação de novas mesas de oferendas, copiosamente guarnecidas todas as manhãs. Utilizando jarros e taças em ouro, os ritualistas realizavam o seu ofício com calma e gravidade, preocupando-se em purificar os alimentos a fim de que o seu aspecto imaterial recarregasse de energia positiva as estátuas divinas a quem o Rei abrira os olhos, a boca e as orelhas com o venerável bastão.

 

 Para cada membro da tríade de Karnak fora feita uma grande barca em cedro recoberta de folha de ouro que vogaria sobre o lago sagrado e seria levada em procissão durante as festas.

 

 Tomei duas novas decisões anunciou o monarca à Rainha Ah-hotep.  A primeira consiste em construir um novo templo em Tebas para ali abrigar a forma secreta de Amon e venerar o seu ka. Esse santuário denominar-se-á ”O Harém do Sul,” ou seja, o que revela o Número, a natureza real das divindades. A segunda decisão diz-vos respeito, mãe. É tempo de que sejais honrada como mereceis.

 

 Então era essa a conspiração!

 

 Pedi aos nossos próximos que guardassem segredo, com efeito, porque se prepara uma grande cerimónia.

 

 Não é inútil, Ahmés?

 

 Pelo contrário, mãe. Sem vós, o Egipto já não existiria. E não é apenas o filho que deseja esta celebração, mas também o Faraó.

 

 Tinha chegado o grande dia.

 

 No pátio a céu aberto do templo de Karnak, todos os notáveis de Tebas e mesmo de outras cidades do Egipto assistiriam ao triunfo de Ah-hotep. No exterior, amontoava-se já uma numerosa multidão que fazia questão de aclamar a sua Rainha, a que nunca recuara diante da adversidade.

 

 Ah-hotep lamentava ter cedido às exigências do Faraó, porque não procurava honras. Como tantos soldados caídos pela liberdade, apenas cumprira o seu dever.

 

 Ah-hotep lembrou-se que Teti, a Pequena, em todas as circunstâncias, estava sempre admiravelmente maquilhada e vestida. Para a honrar, a Rainha colocou-se portanto nas mãos de duas especialistas do palácio que manejavam com destreza os pentes, as agulhas de alisar em alabastro e os tampões para maquilhar. Utilizando produtos de beleza de excepcional qualidade, tornaram a Rainha mais sedutora do que uma jovem beldade.

 

 Com tanto respeito como emoção, o intendente Qaris colocou na cabeça de Ah-hotep um diadema de ouro. Na frente, uma trança em relevo e a cartelaNT de Ahmés sobre fundo de lápis-lazúli, enquadrado por duas esfinges. Depois pôs ao pescoço da Rainha um largo colar formado por numerosas fiadas de pequenas peças em ouro, umas representando leões, antílopes, cabritos monteses e uraeu, outras figuras geométricas tais como espirais ou discos. Quanto aos fechos, eram duas cabeças de falcão.

 

Nota:  Carteira escudo heráldico com ornatos.

 Nota: Uraeus representação da cobra que era o símbolo da divindade e da realeza, assim como das divisões do céu, Oriente e Ocidente.

 

 O velho intendente acrescentou um pingente, composto por uma cadeia de ouro e um escaravelho de ouro e de lápis-lazúli que incarnava a perpétua regeneração da alma e as suas incessantes metamorfoses nos paraísos celestes. Não restava a Qaris mais do que adornar os pulsos da soberana com admiráveis braceletes de ouro, de cornalina e de lãpis-lazúli. Longe de serem simples objectos de vocação estética, serviam de suporte a cenas que afirmavam a soberania do Faraó sobre o Alto e o Baixo Egipto. O deus Terra, Geb, entronizava-o na presença de Amon. E a deusa abutre Nekhebet, criadora e guardiã dos títulos reais, lembrava o papel essencial da Rainha.

 

 Muito impressionado, o velho intendente afastou-se da soberana.

 

 Perdoai a minha impudência, Majestade, mas... estais tão sublime como uma deusa!

 

 Ai as minhas costas! queixou-se o Bigodes. Continuam a doer-me! Não me podes massajar, Felina?

 

 A cerimónia vai começar daqui a menos de uma hora, não acabei de me vestir e tu acabas de envergar o teu traje de cerimónia! Achas que temos tempo para esse género de cuidados?

 

 Estou cheio de dores! Se não puder ficar de pé e assistir ao triunfo de Ah-hotep, não me conformarei!

 

 Felina suspirou.

 

 Um instante, vou buscar-te pílulas contra as dores.

 

 O Bigodes olhou-se num espelho. Nunca tinha estado tão soberbo, com os colares de ouro que recompensavam as suas façanhas, o largo cinto e as sandálias de primeira qualidade.

 

 Tinha esquecido disse Felina que as dei ao Afegão que tinha dores na nuca. Para heróis da guerra da libertação, vocês não estão muito brilhantes!

 

 O Afegão vivia na mansão próxima da do Bigodes e da núbia. O Bigodes precipitou-se para lá.

 

 O meu senhor está na sala de água indicou a criada de quarto.

 

 Não o incomodes, eu resolvo o caso.

 

 O Bigodes entrou no compartimento onde o amigo arrumava armas, saiotes e remédios. Depois de ter em vão explorado um baú de roupa, deu com uma caixa contendo pequenos potes de unguento e com um curioso objecto cuja observação o deixou estupefacto.

 

 Um escaravelho.

 

 Não um escaravelho egípcio, mas um hicso com o nome de Apopis. O objecto tinha sido utilizado muitas vezes para servir de sinete. Nas costas, sinais compondo o código de uma escrita cifrada.

 

 Procuras alguma coisa? perguntou o Afegão, ainda molhado. Com um olhar furibundo, o Bigodes exibiu o escaravelho.

 

 O que significa isto?

 

 Precisas realmente de explicações?

 

 Tu não, Afegão, não é possível!

 

 Cada um com o seu combate, amigo! Um pormenor que tu ignoras: foi o Egipto que arruinou a minha família, estabelecendo comércio com o clã rival. Jurei vingar-me e a palavra de um homem das montanhas não fica por cumprir. Os hicsos deram-me a minha oportunidade, o Imperador Apopis encarregou-me de me infiltrar na resistência e consegui ultrapassar as minhas esperanças. Dois Faraós no meu activo, Seken e Kamés, estás a ver? Que espião poderia gabar-se de ter sido tão eficaz?

 

 Mas tu bateste-te comigo, correste riscos insensatos e mataste muitos hicsos!

 

 Era indispensável para que me concedessem total confiança e não pesasse sobre mim qualquer suspeita. E ainda não acabei as minhas façanhas.

 

 Queres também assassinar Ahmés!

 

 Ele não, mas Ah-hotep. Foi ela que destruiu o Império Hicso, é a mim que compete destruí-la no apogeu da sua glória para que o Egipto se desmorone.

 

 Enlouqueceste, Afegão!

 

 Pelo contrário, levo finalmente a bom termo a missão que me foi confiada. E será o meu Imperador morto o verdadeiro vencedor desta guerra. Lamento, amigo, porque não deixei de admirar Ah-hotep. Creio mesmo que me apaixonei por ela desde que a vi e que ainda estou apaixonado. Foi por isso que a poupei tanto tempo, demasiado tempo... Mas sou um homem de honra, como tu, e só poderia regressar ao meu país depois de ter honrado os meus compromissos. Lamento ser obrigado a suprimir Ah-hotep depois de te ter eliminado, meu amigo.

 

 Tão rápidos um como o outro, os dois homens apoderaram-se cada um de um punhal. E ambos sabiam que nunca tinha tido adversário mais duro à sua frente.

 

 Deslocando-se muito lentamente, de olhos nos olhos, procuravam a abertura, convencidos de que o primeiro golpe seria decisivo.

 

 Foi o Bigodes que atacou primeiro.

 

 O seu punhal fez apenas um arranhão no braço do Afegão, que desequilibrou o agressor e o fez cair no chão.

 

 Ao cair, o Bigodes largara a sua arma. A lâmina do espião poisou sobre o seu pescoço, de onde corria já um fio de sangue.

 

 Que pena! deplorou o Afegão. Nunca devias ter mexido nas minhas coisas. Apreciava-te e senti-me feliz por combater contigo.

 

 De repente, o espião contraiu-se e soltou um grito abafado, como se quisesse conter o atroz sofrimento que lhe arrancava a vida.

 

 Mesmo ferido de morte pelo punhal que Felina acabava de lhe cravar nas costas, o Afegão teria podido cortar a garganta ao Bigodes. Mas poupou o seu irmão de armas e, com o olhar já perdido no nada, caiu de lado.

 

 Tinha-me esquecido de te indicar a posologia explicou Felina ao Bigodes. Se tomasses pílulas de mais, poderia ser perigoso.

 

 Sobre um altar, o Faraó Ahmés depositou uma barca de prata, montada sobre rodas que lembravam as dos carros de guerra. Eram assim evocadas a força e a capacidade de deslocamento do deus Lua, o protector de Ah-hotep.

 

 Tal como os outros, o Bigodes, cujo ferimento estava oculto por um bocado de pano, não tirava os olhos da Rainha Ah-hotep, maravilhosamente adornada. A beleza daquela mulher de sessenta anos eclipsava a das elegantes da corte.

 

 Graças ao relato do Bigodes, Ah-hotep estava finalmente serena. Mais nenhum perigo ameaçava a vida do Faraó.

 

 Inclinemo-nos diante da Rainha Liberdade ordenou Ahmés. É a ela que devemos a vida, foi ela que ressuscitou este país que juntos reconstruiremos.

 

 No silêncio que reinou sobre o grande pátio de Karnak, o amor de todo um povo encheu o coração de Ah-hotep. O Faraó avançou para a mãe.

 

 Nunca, no decurso da longa história do Egipto, uma Rainha recebeu uma condecoração militar. Majestade, sereis portanto a primeira e, assim o desejo, a última, visto que, pela realização do vosso nome, a paz sucedeu à guerra. Que este símbolo da acção incessante que haveis desencadeado contra as forças das trevas seja o testemunho da veneração de todos os vossos súbditos.

 

 Ahmés condecorou Ah-hotep com um pingente em ouro ao qual estavam presas três moscas de ouro admiravelmente estilizadas.

 

 Na primeira fila, Risonho, o Jovem, Vento do Norte e Larápio partilhavam o mesmo pensamento: não existia nenhum insecto tão tenaz e insistente como a mosca. Ah-hotep transformara essa mania em virtude guerreira para vencer os Hicsos.

 

 Era a vós que devia pertencer o poder supremo, mãe murmurou o Rei.

 

 Não, meu filho. Compete-te a ti fundar uma nova dinastia e fazer reviver a Idade de Ouro. No que me diz respeito, fiz um juramento: retirar-me para o templo quando o nosso país estivesse libertado. E esse dia feliz chegou, meu filho.

 

 Fulgurante, a Rainha dirigiu-se para o santuário onde, como Esposa do Deus, viveria a partir de agora em companhia de Amon, no segredo da sua Luz.

                                                                                            Christian Jack

 

 

                      

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