Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Maldição das Pedras Verdes
Capitulo 1
Começou com uma carta.
Trazia carimbo de Bogotá, Colômbia, viera por via aérea, demorara seis dias a chegar (embora nenhum avião precise de seis dias para voar da Colômbia até Hamburgo) e o que saltava mais à vista era o colorido do selo, que mostrava uma paisagem tropical com árvores gigantescas, papagaios de todas as cores e um emaranhado de lianas.
O Dr. Peter Mohr examinou a parte da frente do sobrescrito, o selo e o carimbo e só então o virou. O remetente era um enigma: Laboratórios Farmacêuticos H. Strothfeld, Bogotá. Quando o Dr. Mohr entrara no refeitório da clínica, a empregada acenara‑lhe de longe com a carta e correra para ele:
- Senhor doutor! Senhor doutor! É para si! Uma carta da América do Sul. Posso ficar com o selo para o meu irmão mais novo, que colecciona selos com figuras?
- Claro, Anni. Até lhe dou o sobrescrito todo.
Já tinha seis horas de operações atrás de si. Uma perfuração do estômago, uma vesícula com nada menos do que trinta e duas pedras amarelo‑esverdeadas e, por fim, um encurtamento do intestino, que não passava de uma cirurgia de desopressão. O doente tinha sessenta e quatro anos e o corpo tão cheio de metástases que o tratamento por radiações já nada adiantava. Mas a operação ainda lhe dera mais um ou dois anos de vida.
Esgotado, o Dr. Mohr deixou‑se cair na cadeira revestida de plástico e bebeu dois goles do chá com rum que Anni lhe pôs à frente sem lhe perguntar nada. Nos dias de operação repetia‑se sempre o rito do chá, acompanhado por um pedaço de bolo ou, pelo menos, um pastel com recheio de queijo derretido.
"Laboratórios Farmacêuticos Dr. H. Strothfeld", pensou o Dr. Mohr, enquanto abria o sobrescrito com uma faca. "Não conheço." Os prospectos publicitários ou iam para os serviços administrativos do hospital ou para os endereços privados dos médicos. O que o deixava mais perplexo era o nome do destinatário: "Dr. Pit Mohr (não Otelo)." Depois, o endereço do hospital e, no canto superior esquerdo, escrito à mão a vermelho em letra de imprensa: "Pessoal."
Pit Mohr (não Otelo) era um diminutivo que só um pequeno círculo conhecia. Quando andava na Universidade de Heidelberg, todos se tinham acostumado a dizer: "Lá vem o Otelo." Não era só por causa do seu nome, Mohr, que lhe chamavam assim; nesse tempo, usava o cabelo muito preto curtinho e encaracolado como um negro. As raparigas andavam como loucas atrás dele e era a inveja dos colegas. Bons tempos de estudante! Havia quanto tempo? Já seis anos! E agora, decorridos seis anos, alguém voltava a escrever Pit Mohr (não Otelo) da América do Sul!
A carta tinha duas folhas. O Dr. Mohr começou a ler a assinatura: Teu amigo Ewald.
Ewald? Quem seria Ewald? Rapidamente, recapitulou os amigos doutros tempos. Depois do exame final tinham‑se todos espalhado pelo mundo e só poucos haviam mantido contacto uns com os outros. E não havia nenhum Ewald entre eles.
Mas a primeira frase da carta esclareceu logo o enigma. Ewald escrevia:
"Deves estar admirado por voltar a ouvir falar do Ewald Fachtmann, meu velho, lembras‑te? Fui de Farmácia para a vossa charlatanice e deste‑me logo uma ensinadela. Bebemos como doidos durante três semestres, até eu ter ido para Friburgo. Não foi fácil encontrar‑te, mas consegui, como vês. Estou agora aqui em Bogotá a dirigir a sucursal alemã dos Laboratórios Farmacêuticos II. Strothfeld, com a missão de divulgar na Colômbia os antibióticos e a pílula anticoncepcional. Não é fácil, pá! Primeiro, a Igreja é contra e, depois, experimenta dizer a um índio chibcha da cordilheira que as pílulas brancas proporcionaram uma licença de porte de arma aqui ao papá. Como é que se interpreta isto? Vida em perigo!
Bom, tens alguma ligação sólida ao hospital? Com contrato de muitos anos e isso? Senão, Otelo, anda para cá! Sei que és um aventureiro e que o mundo inteiro é mais o teu local de trabalho do que uma estreita mesa de operações de uma sala coberta de azulejos, a cheirar a sangue. E mulheres bonitas há em todo o lado, sobretudo aqui! Ardentes e de ancas estreitas, pernas compridas e seios redondos! Que queres mais? Mas o essencial é que precisamos urgentemente de bons médicos. A assistência médica entre os índios e os mineiros é miserável. Não se pode confiar nela. E eis‑me chegado ao assunto principal: pesquisadores.
Topei com uma coisa verdadeiramente incrível! Contrabando de esmeraldas! Exploração mineira ilegal nas montanhas. Anualmente, setecentos e cinquenta mil milhões de marcos em esmeraldas "negras" saem de Bogotá a caminho de Hong Kong, dos EUA, do Japão e da Suiça. Quase todos os penduricalhos que vês ao peito, pescoço, orelhas e mãos das mulheres, são roubados! Nove em cada dez pedras chegam ao reino da abundância por canais pouco claros. E vêm de um mundo mais parecido com um inferno! Quando vires as cidades mineiras de Muzo, Chivor e Cozques, para já não falar do horror de Penasblancas, então terás dado com a última grande aventura do homem. E aqui, precisamente aqui, precisamos de médicos!
Não te sentes entusiasmado? Pensa bem, pá. Para um homem como o "Otelo", seria um dever. Na linha da frente da condição humana, onde humanidade é uma palavra desconhecida. Aqui, um médico é cem vezes mais precioso do que um missionário, que mesmo assim não há. Telefona‑me. Teu amigo, Ewald."
O Dr. Mohr leu a carta duas vezes, meteu‑a na bata, acenou a Anni, deu‑lhe o sobrescrito para o irmão mais novo e comeu pensativamente o pastel com queijo derretido.
Bogotá. A cordilheira. Médico na selva, no fim do mundo. Ali na clínica de Hamburgo tinha um lugar seguro e razoavelmente bem pago. Mas o Dr. Harrenbroich insinuara que em breve ia haver mudanças. O médico número dois da hierarquia ia ser professor em Marburgo. E dizia‑se por todo o lado que o Dr. Peter Mohr seria promovido. Nesse caso, a situação melhoraria: pareceres que davam dinheiro, doentes particulares, operações que então chefiaria, dividindo a remuneração com Harrenbroich (que tinha um enorme espírito de camaradagem, sem a mania das grandezas que é vulgar nos superiores hierárquicos). Havia um ano que Mohr trabalhava na sua especialização sobre operações a tumores com raios laser. Tinha à sua frente um futuro muito promissor. Além disso, havia Gabrielle, uma jovem médica francesa que fazia clínica geral em Eppendorf. Uma mulher maravilhosa, de cabelo ruivo com ondas que lhe chegavam ás ancas. Dizia‑se na clínica que precisamente quarenta e oito médicos andavam com febre desde que Gabrielle aparecera. Até o chefe de ginecologia, o professor Neubruch, caíra doente. No entanto, só um conseguira ainda acompanhar Gabrielle à ópera e levá‑la depois ao Atlantic Bar: o Dr. Peter Mohr, com os seus caracóis negros como azeviche. Depois do terceiro encontro, Pierre (como Gabrielle lhe chamava desde então) conhecera "todos os traços anatómicos da médica mais bonita que alguma vez trabalhou na Clínica de Hamburgo...", como dissera o professor Neubruch, num ataque lírico.
Bogotá! Minas de esmeraldas. O último "oeste selvagem" da nossa terra. O mundo dos aventureiros. O eldorado dos fora‑da‑lei. Se para esta gente existia um santo, era um médico. Santo Deus, que aventura!
à noite (em Bogotá devia ser manhã cedo), Peter Mohr telefonou a Ewald Fachtmann.
‑ Eu sabia! ‑ berrou Fachtmann para o aparelho, a milhares de quilómetros de distância. ‑ Pit, eu sabia! Cá vai um abraço em pensamento! Estás a ouvir o rádio? Desporto matinal. Também há cá! Dobraaaaar joelhos... inspiraaaar profundamente... esticar depressa! Saltar! Soltar o ar... Não dar traques, por favor! Este exercício estimula o intestino. ‑ Riu com gosto. Também Peter Mohr sorriu em Hamburgo, que a noite cobria. Vivia fora da cidade, numa casa de campo perto do Elba, onde não havia iluminação pública. O caminho que levava à casa era propriedade privada.
‑ Não mudaste nada, Ewald ‑ disse. ‑ Sempre a dizer o que não deves...
‑ Foi por isso que me mandaram para Bogotá! Não é a jogar ao berlinde que se vem cá parar. Espera! ‑ Fachtmann desligou o rádio e regressou ao telefone. - Antes de desfiares o teu rosário de desvantagens, Pit, que já conheço de antemão, deixa‑me dizer‑te que a Colômbia é o país onde o dinheiro cresce da terra. Só é preciso encontrar o lugar certo. Mas tens de renunciar a chamar vida à existência que levas aqui! É claro que se pode trabalhar tranquilamente, normalmente, como eu. Nesse aspecto, a Colômbia não é diferente dos outros países em nada. O homem vulgar vive do seu salário, na certeza de acabar numa cova de dois metros por um. De resto, os caixÕes são mais bonitos do que na Alemanha, todos enfeitados com entalhes. E por dois pesos podes contratar carpideiras que gritam por ti durante três dias! É o que queres?
- Em breve serei o número dois. Cirurgião‑chefe da clínica.
- Era o que eu supunha! Pit... precisamos de ti aqui.
- Eu sou cirurgião, Ewald, e não um Albert Schweitzer da selva.
- É precisamente de cirurgiÕes que necessitamos! Qualquer enfermeiro pode distribuir comprimidos, mas operar já é outra história! É preciso saber para se extrair balas de todas as partes do corpo possíveis e imaginárias.
- Balas?
‑ Na região mineira, há mais balas de chumbo do que feijÕes‑brancos na sopa! Mas existem também esmeraldas, por causa das quais famílias inteiras se exterminam mutuamente! Pit, não se pode contar tudo por telefone nem descrever por carta... seriam umas centenas de páginas. Vem ver com os teus olhos! Tens de ver! Dizem que não há no mundo nada parecido com o que se passa na cordilheira, em Muzo! E é verdade! No presente! É fenomenal existir uma coisa assim no século vinte! Não podes tirar férias, pá? Uma licença sem vencimento de... digamos, dois anos?
- Impossível! Nessa altura já o lugar de médico‑chefe estará ocupado. Além disso, há uma Gabrielle...
- Aqui há mil Gabrielles à solta, muito mais bonitas
do que a tua.
- Isso é que não há. A Gabrielle é a própria perfeição feminina.
- Aqui existem madonas de tal forma impias que até ficas com os joelhos transformados em geleia. Pensa bem, Pit. Não por causa das mulheres, mas por esta gente, os abandonados da sorte, que precisam tanto dum médico como de comida e água. Só têm duas esperanças, sobre as quais edificam a sua vida: a descoberta de muitas esmeraldas... É a sobrevivência. Telefona‑me outra vez quando tiveres pensado bem no assunto. Adeus, Otelo!
O Dr. Mohr andou sete dias a remoer a tentação de Bogotá. Tentou esquecê‑la, passando todos os minutos livres com Gabrielle. No sábado e no domingo, estando de folga, ficou praticamente quarenta e oito horas na cama, levando Gabrielle a comentar, cheia de olheiras:
- Mon cher, és um fenómeno do ponto de vista médico. De onde te virá tanta produção de hormonas? Tens alguma fábrica no corpo?
Todavia, nem a mais doce distracção o ajudou. A maldita voz de Mefistófeles de Ewald Fachtmann não o largava. Um exército de individuos fora‑de‑lei, sem nenhum médico. Gente à margem da sociedade, inteiramente esquecida. No entanto, gente por cujas mãos passavam milhões. Esmeraldas, as preciosas pedras de sedutor brilho verde.
Sóis verdes, incrustados em ouro ou platina.
Na segunda‑feira, o Dr. Mohr foi ver esmeraldas a um dos maiores joalheiros. A melhor qualidade. Um quilate. Por montar. O preço quase o fez cair.
A cor mais pura que há. Um verde como um lago profundo de montanha. Uma preciosidade. Vinte e dois mil marcos por quilate.
Na terça‑feira, depois de sete horas de operações, o Dr. Mohr teve uma longa conversa com o seu superior, enquanto fumavam um cigarro e bebiam um café forte e bem preto, como o professor Harrenbroich gostava em dias assim. Enquanto médico, desaconselhava vivamente aos seus doentes tais excitantes cardíacos.
- Há quanto tempo nos conhecemos, Peter? - perguntou Harrenbroich. - Quatro anos, não é? Isso dá‑me o direito de lhe dizer que está doido varrido! Colômbia? índios... Pippa?
- índios chibchas, senhor professor...
- Tanto faz. E mineiros! O que me contou parece‑se mais com Hollywood! Já não existem coisas dessas!
‑ Em Muzo existem, só que não se sabe! Dos cumes da cordilheira não transvasa nada para o mundo exterior. Não fazemos ideia do que se passa nos vales montanhosos, nas minas abandonadas, na floresta virgem e nos caminhos da selva. E, no entanto, estamos a falar de milhares de pessoas que valem menos dum dedal cheio de pó de esmeraldas. A grande corrida ao ouro do século dezanove na Califórnia e no Alasca ainda é uma realidade na Colômbia. E ninguém sabe! No século dos computadores e da astronáutica, da descida na Lua e das transmissões por satélite, ainda há pessoas que esgaravatam a terra de mãos nuas, à procura de pequenas pedras verdes. Uma pergunta, senhor professor: a sua esposa tem jóias com esmeraldas?
‑ Tem. - Harrenbroich aspirou o fumo do cigarro. ‑ Brincos, um anel, um colar e uma gargantilha...
‑ Provavelmente, todas roubadas na Colômbia...
‑ Não se faça engraçado, Peter!
- Claro que compradas honestamente ao ourives, que não faz a mínima ideia da maneira como as pedras chegam ao mercado. E o mercado recebe‑as dos exportadores, que raramente se conhecem. Só os testas‑de‑ferro. ‑ Peter Mohr esmagou o cigarro no cinzeiro e bebeu o resto do café diabolicamente forte. ‑ Andei a informar‑me. Telefonei três vezes ao meu amigo Ewald. Depois do terceiro telefonema, fiquei convencido: tenho de ir para Bogotá!
‑ O raio do seu sangue de aventureiro!
‑ Talvez, senhor professor.
‑ Sempre esperei que casasse com a Gabrielle e viesse a ser um grande cirurgião. Tem tudo ao seu alcance: a chefia, o lugar de professor catedrático... Peter! Acha que vale o sacrifício?
‑ Não sei. Daqui a dois anos estou de volta.
‑ Na qualidade de cadáver mumificado ao sol.
‑ Também posso ser mortalmente atropelado ao atravessar a rua. E a probabilidade é maior aqui do que na Colômbia. Senhor professor, vou ser médico dos abandonados da sorte. É uma posição privilegiada. Além disso... estou entusiasmado!
‑ É isso mesmo, Peter. Os seus bichinhos‑carpinteiros! Já que os conselhos não servem para nada, então, por mim, voe lá para o inferno, se é o que quer! Mas olhe que não posso guardar‑lhe o segundo lugar durante dois anos.
‑ Eu sei, senhor professor. ‑ Mohr fez um sorriso encantador, que costumava derreter as enfermeiras e as médicas umas a seguir às outras. - Talvez nessa altura o primeiro lugar esteja livre?
Harrenbroich desatou a rir à gargalhada. É raro encontrar‑se um professor catedrático com sentido de humor...
à primeira vista, Bogotá era uma desilusão.
Quando o avião descreveu um grande arco sobre a cidade antes de aterrar no Aeroporto El Dorado, Peter Mohr pôde confirmar o que alguns guias turísticos tinham escrito sobre a Colômbia: a moderna Bogotá já não era nenhum sonho tropical sul‑americano, e sim uma cidade de betão com dezenas de milhar de janelas. Arranha‑céus ao estilo americano, uma city com ruas de diversões e de lojas como a Broadway, mas em ponto pequeno, um bairro das grandes firmas, escritórios e bancos. "Vivem aqui dois milhões e setecentas mil pessoas", pensou o Dr. Mohr. "Mais do dobro da população de Hamburgo. E, no entanto, à excepção dos arranha‑céus, esta cidade é um amontoado horrível de casas miseráveis." Havia pouca coisa que valesse a pena ver: a famosa catedral de estilo espanhol antigo, o observatório astronómico com a sua brilhante cúpula prateada, o complexo da nova universidade com o parque e os repuxos, o sumptuoso Parlamento em estilo colonial, os jardins da Academia Militar, construída ao jeito de todas as casernas.
O avião passava agora muito baixo sobre a cidade, o que permitiu a Mohr ver onde habitava a maioria dos cidadãos de Bogotá. Os mais pobres de entre os pobres alojavam‑se nos morros, casebre sobre casebre, ligados por escadas, muitos andares por cima uns dos outros, com pequenas varandas e patamares. Um formigueiro de pessoas. Térmitas com corpo humano. Um milhão de marginais, com quem ninguém se preocupava. Ninguém conhecia o seu número exacto. Era um ir e vir, um morrer e nascer. Quem chegava dos campos para a cidade, desaparecendo nos morros, subtraía‑se a todo e qualquer reconhecimento e, portanto, não podia ser registado.
Ewald Fachtmann esperava Peter Mohr à saida do controlo de passaportes. Abraçando o colega, apertou‑o contra si e exclamou:
‑ Bem‑vindo à Colômbia, pá! Porreiro, vamos beber um copo!
‑ Não mudaste nada. ‑ Mohr examinou o velho amigo dos tempos de Heidelberg. ‑ Estás mais gordo, mas é tudo. És casado?
‑ Com esta oferta de mulheres com tão boa vontade?! Por favor! Vais ver: olhas uma vez em volta e tens logo dez penduradas nas calças! Isto fervilha de gente pobre das montanhas, que fareja imediatamente uma moeda de vinte pesos enquanto desabotoa a blusa. E se tem bom material lá dentro! As mulheres de Bogotá são célebres pela sua beleza! ‑ Examinando o Dr. Mohr e acenando várias vezes com a cabeça, prosseguiu: - Estás com um ar mais sério. Um médico estabelecido! Mas tens os mesmos caracóis de sempre, que vão fazer‑te cair nas boas graças das meninas. Tens o aspecto de quem vai para uma região subdesenvolvida. Ha! Ha!
Saíram do aeroporto de braço dado. O carregador, um mestiço, arrastava a mala de Mohr atrás deles. O carro de Fachtmann, um Buick branco, estava estacionado à frente do aeroporto.
‑ O ar é leve - comentou Mohr. Fachtmann assentiu.
‑ Bogotá fica dois mil seiscentos e quarenta metros acima do nível do mar. O clima é sempre montanhoso mas, passado algum tempo, já nem se dá por isso. E nunca faz aqui o calor sufocante da cidade portuária de Barranquilla, por exemplo, onde nalguns meses tens de te habituar a temperaturas da ordem dos trinta e quatro graus centígrados. Nem as noites trazem nenhum alivio, pois nesta altura a temperatura baixa o máximo até aos vinte e quatro graus. Estamos bem melhor aqui. Como és novato, ao princípio ainda podes ficar sem fôlego, sobretudo se fizeres algum esforço excessivo, por exemplo na cama.
‑ Não sabes falar doutra coisa? - perguntou o Dr. Mohr.
- Meu querido Pit, para nós, europeus, há três coisas na Colômbia que preenchem os nossos dias: o dinheiro, a bebida e as mulheres. Vale para todos, até os santos, um dos quais acaba de aterrar; o doutor Peter Mohr. Com ele, é assim: ajudar, deixar‑se intrujar por bondade e generosidade e depois beber de mágoa. diz lá, não funcionas assim?
Atravessaram a cidade em ebulição, passaram por subúrbios construídos ainda segundo o antigo estilo espanhol, viram as coloridas casas típicas, entre as quais se erguiam casebres de tábuas e chapa de alumínio ondulada, com telhados feitos de pedra e bidões de gasolina, e chegaram à cidade nova, orgulho da Colômbia. Avenidas largas, parques, monumentos a heróis nacionais, bancos instalados em palacetes, sedes de empresas com nomes internacionais.
‑ Agora presta atenção! ‑ disse Fachtmann. ‑ Vamos passar pela Emerald Street. Bastante devagar, porque com este trânsito não é possível ir mais depressa. Olha bem em volta. ‑ Virou para a dita rua, que mal se distinguia das outras do quarteirão. Lojas, varandas de ferro forjado ou madeiras trabalhadas, taipais de águas‑furtadas, casas comerciais com toldos, aqui e ali uma casa novinha em folha, com letreiros de empresas feitos de latão dum brilho ofuscante. Uma grande multidão acotovelava‑se no passeio, junto do qual se via uma enorme fila de automóveis estacionados, a maioria dos quais de marcas americanas ou japonesas.
- O que é que a Emerald Street tem de especial? - perguntou Mohr. - Não vejo nada de estranho.
‑ Umas quantas figuras esfarrapadas e imundas?
- Sim.
‑ Uns quantos homens parados à porta das casas?
- O que é que tem?!
‑ Observa melhor esses bandidos! Todos têm casacos dobrados debaixo do braço. Com pistolas lá dentro, aposto! A Emerald Street é o centro do comércio ilegal de esmeraldas. Esses tipos andrajosos e desidratados vêm das montanhas. Andam com uma fortuna atada nos lenços de bolso. Pedrinhas verdes e brilhantes. E os que andam por aí ao pé das portas são os receptadores, que tentam apanhá‑los para lhes comprar as pedras, cumprindo as ordens dos chefes, que nunca vemos e cujos nomes desconhecemos completamente. Se resolveres vir fazer turismo para aqui à noite, tens todas as hipóteses de acabar no dia seguinte amortalhado na capela de algum hospital, por entre velas grossas. Aqui, todas as noites há tiroteio! E não te serve de nada teres uma braçadeira da Cruz Vermelha e um letreiro na barriga a dizer "Médico".
Deixando a Emerald Street, viraram na direcção da universidade, onde ficava o bairro novo, cheio de jardins
tropicais, no qual Ewald Fachtmann alugara uma vivenda branca. Tinha três empregados permanentes; um criado de dentro, um cozinheiro e um jardineiro. A empresa pagava tudo.
‑ O meu pessoal é todo de bandidos despedidos - riu. - Não olhes para mim com esse ar de espanto: são os mais fiéis! Sou o seu novo hoss, por quem até se deixam esquartejar. É a mentalidade gregária: o chefe tem sempre razão. E uma coisa de que não podes esquecer‑te, Otelo: tens de ser sempre o chefe! à mais pequena fraqueza... mais vale rezar‑te um pai‑nosso! ‑ Fachtmann parou em frente de um bar de estilo colonial e travou a fundo, levantando um redemoinho de pó. Dois empregados precipitaram‑se para fora do restaurante. ‑ Vês, conhecem‑me só pelos travões. Estão dispostos a fazer seja o que for.
‑ E achas bem? ‑ inquiriu o Dr. Mohr.
‑ Isso é mesmo pergunta duma pessoa a quem impingem todos os dias uma data de chavões democráticos e socialistas! ‑ Fachtmann saiu do carro. Os dois empregados fizeram uma vénia, como num teatro barato. - Otelo, anda! Vamos beber um copo ao nosso reencontro! O Roberto tem o melhor vinho destes lados e uma sobrinha em cujo peito até podes partir nozes! Seis anos... temos de festejar! São só uns metros até casa. E o polícia responsável não vê nada. Dou‑lhe todas as pílulas anticoncepcionais que me mandam. O rapaz começou com elas um negócio muito próspero.
Dali a pouco, sentaram‑se no pátio interior, um jardim de palmeiras, em cadeiras de verga fundas, confortáveis e almofadadas, bebendo vinho fresco, comendo uma tortilha com tomates e azeitonas e admirando a senhorita Pepita, a sobrinha dos seios de ferro. Envergando um vestido folclórico espanhol muito decotado, que deixava adivinhar tudo, lançou ao Dr. Mohr um olhar ardente, serviu o vinho, palrou um pouco e foi‑se embora a saracotear.
‑ Já está! ‑ observou Fachtmann com um ar de especialista. - Otelo, também te sais muito bem! Mas voltemos a Emerald Street. Vai ser ela o teu destino. Como já te expliquei por telefone, uma vez que não vais para Penasblancas, a povoação mais brutal mas mais rica em esmeraldas, na qualidade de usurário profissional... o que quer dizer que provavelmente terás de passar por barragens policiais, controlos militares e tropas de protecção dos prospectores... e sim para ajudar oficialmente a gente ali esquecida, como médico muito desejado, precisas de intercessão de Don Alfonso Camargo.
‑Quem é?
‑ Deus em pessoa. O grande boss desconhecido, por cuja secretária passam aproximadamente dois terços de todas as esmeraldas roubadas, contrabandeadas e prospectadas ilegalmente. Se Don Alfonso disser si, passas a andar com uma auréola de santo, mas se disser no, O melhor é reservares logo um lugar no cemitério. O grande desconhecido manda em tudo.
‑ E tu conhece‑lo?
‑ Não pessoalmente! Quem é que já viu Don Alfonso em carne e osso? Desconfio que nem a família sabe que ele é Don Alfonso, e de certeza que as amantes o tratam por tesorito e nunca Alfonso. É verdade, como é que vai o teu espanhol? Dantes falavas bastante bem. O que quer dizer tesorito?
‑ Tesourinho.
‑ Bravo! ‑ Fachtmann bateu palmas. - Depois de amanhã, vais falar com o Alfonso na Emerald Street. O facto de ele te deixar entrar no escritório é uma distinção tão grande como se te espetasse uma medalha no peito. Queres saber de onde conheço Don Alfonso? Tem relações comerciais com os nossos laboratórios. Compra anualmente cerca de três milhões de medicamentos, desinfectantes e material de primeiros socorros. Sobretudo antibióticos. Na região mineira, o clima é... Eh pá! E higiene é palavra que deve pertencer à linguagem lunar. Quando insinuei ao Alfonso que havia um médico alemão, um idealista idiota, disposto a ir viver entre os prospectores em determinadas condições, mostrou‑se muito interessado.
‑ O que são determinadas condições? ‑ perguntou prudentemente o Dr. Mohr. A Colômbia começava a mostrar‑se tal como tinha esperado. A aventura começava logo no bar de Roberto.
‑ Além do salário de médico, uma parte das esmeraldas que encontrares. Propus cinquenta, cinquenta!
‑ Ewald, eu sou médico e não prospector de esmeraldas.
‑ Vai ser uma consequência natural. Mas é inútil discutir o assunto agora. Vais rastejar automaticamente pelas galerias e ficar fascinado com as pedras verdes. Quanto a mim, rendi‑me a elas. Don Alfonso concordou com cinquenta, cinquenta.
- E também me paga um ordenado de médico?
- Só como mecenas! Quem te emprega é o Ministério da Saúde. Mas o salário pago pelo Estado é tão miserável que até hoje nenhum médico foi para a cordilheira. É coisa que só os idealistas alemães ou suíços fazem. Don Alfonso acrescenta‑lhe clandestinamente umas centenas de pesos... É os cinquenta por cento em direitos de prospecção! Podes vir a ser milionário, Pit! Sabes como é que se chamam os prospectores?
‑ Gunqueros.
- Cada vez melhor, pá.
- Nos últimos dias, li tudo o que se sabe sobre as minas colombianas. E pouco, mas li que estão fechadas desde mil novecentos e setenta e quatro e que são guardadas por três batalhões.
- Eu escrevi‑te a dizer isso, Otelo!
‑ Mas eu não acreditei que fosse possível que no nosso século se andasse a pesquisar pedras preciosas de revólver na mão.
‑ Isso ainda é o menos. ‑ Fachtmann acabou de beber o vinho. ‑ Em Penasblancas, há gente que parece gente mas que tem mentalidade de predador. O local de trabalho ideal para ti.
‑ E o que ganhas tu com isto, Ewald? ‑ Era a pergunta pela qual ambos esperavam desde o princípio. Fachtmann riu, um tanto incomodado.
‑ Quando fores milionário, espero que alguns trocados caiam no meu porta‑moedas, agora completamente vazio. Sei que é muito reles: tu chafurdas no trabalho e eu estendo a mão. Mas admite que te proporcionei uma oportunidade de viveres uma grande aventura. Quanto a mim, e não tenho vergonha de o dizer, sou muito cobarde para este tipo de trabalho! É uma coisa para homens como tu. Além disso, és médico, e isso lá é assim uma espécie de colete à prova de bala.
O edificio de escritórios de Don Alfonso Camargo era um prédio novo na Emerald Street, revestido a mármore, com ar condicionado e um porteiro à entrada mais parecido com um guarda prisional. Estava sentado numa cabina blindada e com vidros à prova de bala, rodeado de alavancas e botões com luzinhas vermelhas ou verdes, provavelmente capazes de desencadear uma guerra electrónica em caso de necessidade. ¨Z frente de uma barreira, encontrava‑se um microfone. Cada visitante tinha de se identificar e dizer o que queria ao microfone, pois não se entrava na cabina do porteiro.
Fachtmann deixara o Dr. Mohr à entrada do edificio, desejando‑lhe que "partisse uma perna e o pescoço". Tinham combinado encontrar‑se depois num café da Rambla.
O porteiro examinou o Dr. Mohr dos pés à cabeça. Depois, ouviu‑se uma voz saida dum altifalante do tecto:
‑ Americano, sir?
- No! ‑ disse Mohr para o microfone.
‑ Inglês? Francês?
‑ Também não. Alemão!
‑ Obrigado. - O porteiro estudou uma lista que tinha à frente. Até ali falara inglês, mas mudou para espanhol. ‑ É o doutor Peter Mohr, de Hamburgo?
‑ Sou.
‑ Vá pela porta de vidro até ao elevador número três e suba ao nono andar. Espere aí pela Senhorita Teresa.
‑ Vou tentar lembrar‑me de tudo ‑ disse Mohr um tanto sarcasticamente. ‑ Não passo pelos raios X?
‑ O senhor não, Don Pedro.
"Ah, pois", pensou Mohr. "Agora chamo‑me Pedro, e não Peter. Don Pedro." A porta de vidro rangeu baixinho quando a empurrou; depois, entrou no ascensor número três, premiu o botão com o algarismo 9 e começou a subir suavemente. Quando a porta voltou a abrir‑se, esperava‑o uma senhorita bonita, de olhos negros, que lhe sorriu angelicamente. "Precisamente como em todas as grandes empresas", pensou Mohr. "A secretária à espera da visita do chefe. Nada aqui faz suspeitar que o sangue lava alguns milhões de marcos em esmeraldas."
A Senhorita Teresa conduziu o Dr. Mohr a uma divisão com móveis antigos de estilo espanhol, poltronas altas e um quadro enorme na parede, representando a conquista da Colômbia pelos Espanhóis. Cavaleiros de armadura lançavam‑se sobre os selvagens. Numa colina, um bispo erguia a cruz sobre o morticínio. A civilização chegava à América do Sul... O Dr. Mohr sentou‑se, sentindo uma grande repulsa. A Senhorita Teresa deixara‑o sozinho.
De repente, estremeceu. Da parede surgiu uma voz sonora, praticamente sem distorções. Nítida, agradável, de barítono.
- Saudações, doutor Mohr! - cumprimentou a voz. ‑ Percebe bem espanhol ou prefere que fale em alemão?
- Pode ser em espanhol, que será provavelmente a
minha língua nos próximos tempos. ‑ Permaneceu sentado, sem se dar ao trabalho de tentar descobrir o altifalante. ‑ Obrigado pelas boas‑vindas, Don Alfonso.
- O doutor Fachtmann não me fez grandes promessas. Mas parece que o senhor é um homem a quem se pode confiar uma vida em Penasblancas.
"Aha!", pensou o Dr. Mohr. "Também há por aqui câmaras escondidas. Ele está a observar‑me. O Ewald não mentiu nem exagerou: ninguém conhece Alfonso Camargo, mas ele conhece toda a gente, no fundo servindo‑se dum truque bem conhecido."
‑ Bem, ainda não decidi - respondeu o Dr. Mohr. ‑ Em resumo: não me interessam os pesos. Pertenço a uma família de posses. Também não me interessam os cinquenta por cento dos lucros da prospecção, porque são demasiadamente irreais. Quero ir para as minas como médico, não gunquero! E é na qualidade de médico que ponho condições antes de partir.
‑ Estou a ouvir ‑ retorquiu a voz de Don Alfonso. - Em princípio, sou sempre contra os estranhos que metem o nariz onde não são chamados. Já temos problemas que cheguem nas minas, e um estrangeiro representa sempre um inimigo! O senhor quer pôr condições... eu também! Pretendo que, sobretudo em Penasblancas, as coisas tomem outro rumo entre os pesquisadores, e o senhor parece‑me ser o homem certo para isso. Os gunqueros não têm muita cabeça. Creio que percebe o que quero dizer. São como selvagens, mas se os organizarmos bem, podem render muito mais! Daqui, é impossível fazer seja o que for. Sete... digamos... inspectores que mandei para Muzo foram simplesmente abatidos a tiro. Mas o senhor, como médico, não tardará a ter poder sobre essa gente, o que lhe permitirá introduzir algumas reformas.
‑ Por outras palavras: devo ser médico e seu lugar‑tenente em Penasblancas. Ou seja, seu pau‑mandado, dependente da sua vontade e do que lhe der na gana.
- Don Pedro, noto uma certa ironia na sua voz. As suas condições?
‑ Toda a liberdade para exercer a minha profissão de médico. Todos os medicamentos de que precisar.
‑ O seu amigo Don Ewald fornece‑lhos...
‑ Instalações próprias para operações. A construção de um hospital que possibilite tratamentos no local. Toda a protecção possível.
‑ O novo Albert Schweitzer da cordilheira! Mais alguma coisa, Don Pedro?
‑ Não! É o suficiente para poder cumprir o meu dever.
‑ O seu dever. ‑ A voz de Don Alfonso tornou‑se mais séria. ‑ Não se mostre tão valente nem defenda tanto o espírito reformista alemão! Cumpra o seu dever, mas ouça a minha sugestão: arranje uma tropa de elite de gunqueros que proteja bem as minas. E não faça um ar de desdém quando vir esmeraldas. Vai ver que muda quando tiver pela primeira vez mil marcos em pedrinhas verdes na mão. Sei que vamos entender‑nos. Compre todo o equipamento de que precisar. O pagamento é por minha conta. Mantenha‑se em contacto comigo em Penasblancas através do meu capataz, Christus Revaila. Don Pedro, devíamos ser verdadeiros sócios. Permita‑se caminhos mais sinuosos e não arranje nenhuma cruz para a sua campa.
‑ Sou apenas médico, Don Alfonso!
- Apenas médico! - Camargo riu com gosto. - Quantas camas tinha em Hamburgo?
- Em Cirurgia Um, trezentas e quarenta.
‑ Acertou no algarismo três. Esperam‑no nas montanhas trinta mil abandonados da lei! O senhor será o único médico de trinta mil pessoas!
O Dr. Mohr fez que sim com a cabeça, mas sentiu um arrepio de frio nas costas. Existe um limite a partir do qual até a maior aventura é uma verdadeira loucura.
E o limite era aquele.
Capitulo 2
Ewald Fachtmann esperava impacientemente pelo Dr. Mohr na sua casa branca, de estilo colonial. Peter faltara ao encontro no café da Rambla. Fachtmann esperara mais de uma hora. Depois, inquieto, percorrera de carro a Emerald Street de um lado para o outro e até estacionara discretamente em frente do edificio de escritórios de Don Alfonso, observando a entrada... mas o Dr. Mohr não aparecera.
Fachtmann ficara preocupado, fora para casa e começara a beber dois gigantescos uísques. Havia duas possibilidades: se Peter procedera insensatamente e fora liquidado a sangue‑frio pelos guarda‑costas de Camargo, nunca mais ninguém voltaria a vê‑lo. Nem valia a pena alertar a Policia ou a Embaixada alemã. Alfonso Camargo tinha tanto nome entre o Governo e a Polícia, ministros e generais, que quem tentasse denunciá‑lo só conseguiria cair no ridículo. Alguém que mesmo assim insistisse e continuasse a afirmar que Don Alfonso era o maior bandido da Colômbia e um dos mais perigosos gangsters, com um exército de assassinos altamente treinados, podia contar com a expulsão ou com tantas dificuldades e entraves que acabaria por deixar o país de motu proprio.
A segunda possibilidade para a falta de pontualidade de Peter era a conversa ter‑se tornado tão interessante
que o precioso tempo de Don Alfonso deixara, de repente, de ser importante. No entanto, esta hipótese parecia altamente improvável. Quem conhecia Camargo, sabia que este tomava as suas decisões com rapidez e precisão, sem discussões e sem perder tempo com contra‑argumentações.
Ewald Fachtmann serviu‑se generosamente de outro uísque e foi instalar‑se no terraço apoiado em pilares de madeira entalhada, contemplando tristemente o jardim cuidado e sentindo‑se perfeitamente impotente. Não faria qualquer sentido telefonar a Don Alfonso. Não passaria do porteiro ou, na melhor das hipóteses, da Senhorita Teresa. Mas nunca além.
Decorridas três horas, durante as quais Fachtmann percorreu trinta infernos cheios de autocensuras, ouviu chiar os travões de um táxi. O moço de recados da casa abriu a porta e o Dr. Mohr galgou alegremente os três degraus até à entrada.
‑ Nunca mais! ‑ exclamou Fachtmann em voz alta, pegando na garrafa de uísque. ‑ Nunca mais quero nada contigo! Ia morrendo! ‑ Agitou a garrafa. ‑ E o quarto...
‑ A quarta garrafa? ‑ Arrebatando‑a da mão de Fachtmann, o Dr. Mohr apontou o gargalo directamente à boca e bebeu um longo trago. ‑ Ewald! O fígado! O fígadozinho! ‑ Pousando a garrafa numa mesinha: - Pareces muito perturbado, pá. O que tens?
- Meu Deus, ainda perguntas? - Fachtmann avançou para o terraço e atirou‑se para uma grande cadeira de verga. ‑ Não é só por Bogotá ficar quase dois mil e setecentos metros acima do nível do mar e o ar ser rarefeito e o sangue ferver... a mais pequena agitação leva ao ataque cardíaco. Otelo, estive muito perto. Três horas com Don Alfonso! Nunca sequer um ministro o conseguiu.
‑ Mas é preciso dar tempo a um simples médico.
‑ Estou sem fala! Viste o Camargo?
‑ Não. Só o ouvi. Uma voz simpática de barítono.
‑ Que pode dizer: liquidar!... e logo acontece um fogo‑de‑artificio. A vida humana não tem muita importância para esse barítono tão simpático.
‑ Mas a nossa conversa não teve a ver com liquidar, e sim o contrário.
- Otelo, deixa‑te de charadas!
‑ Don Alfonso quer salvar vidas.
Fachtmann inclinou‑se para a frente e alisou o cabelo.
‑ Diz lá isso outra vez... parece que fiquei surdo.
‑ Sabias que nas regiões mineiras, apesar dos três batalhões militares e da Polícia, vegetam mais de trinta mil gunqueros?
‑ Sabia... - Fachtmann ergueu um olhar inocente para o céu azul‑pálido.
‑ Não queria assustar‑te antes de tempo.
‑ Patife!
‑ Dos trinta mil, vinte e nove mil novecentos e noventa e nove e meio são potenciais assassinos...
‑ Quem é o meio?
- Um homem só com um braço e um olho...
‑ O Camargo quer construir um hospital ‑ disse o Dr. Mohr em resposta a este chiste sanguinário.
Fachtmann fitou‑o de olhos esbugalhados.
‑ Tu falaste mesmo com Don Alfonso? Tens a certeza?
‑ É um gajo esperto. E raciocina assim: quanto mais gunqueros forem dizimados pela febre, doença e desavenças mútuas, menos esmeraldas serão encontradas. O potencial de prospectores ilegais tem de ser constantemente alimentado. Mas sabe‑se lá com que tipo de gente? Os que já lá estão são conhecidos. Portanto, no interesse do fluxo constante de esmeraldas para os cofres do Camargo, convém não só manter a força de trabalho dos gunqueros, como também estimulá‑la, promovê‑la e até protegê‑la fisicamente.
‑ Foi ele que te disse isso?
‑ E parece‑me evidente.
‑ O doutor Peter Mohr, o Albert Schweitzer de Penasblancas.
‑ Don Alfonso também disse precisamente isso. Quer fundar um hospital para tratar pelo menos os casos mais complicados.
‑ Que devem ser ferimentos de balas. Ou membros despedaçados. Os machados são muito procurados para ajudar às discussões. E não te esqueças das facas! Há lá verdadeiros artistas, capazes de lançar uma faca duma grande distância direitinha às costas ou ao coração.
‑ Mas também existem infecções e doenças horríveis. Acidentes com esmagamentos... e sífilis!
‑ Também. Há muito a fazer.
‑ Acredito, meu idiota incurável! ‑ Embora estivesse a falar alemão, Fachtmann esperou que o criado acabasse de servir os bolos e o chá, refrescos e um grande cesto com frutos exóticos e saísse. Um único médico para trinta mil pessoas!
‑ Quem é que me atraiu para a Colômbia com um monte de cartas muito dramáticas? Quem é que escreveu: "Precisamos de ti. Uma parte da humanidade apodrece aqui sem qualquer ajuda! Espera‑te uma missão de médico como nunca terás outra igual"? Quem é que disse isto?! E agora sou um idiota?!
Fachtmann assentiu várias vezes, bebeu um gole de chá e mastigou o seu bolinho de manteiga como se fosse borracha.
- De repente, a nossa própria coragem pode fazer‑nos medo, Otelo! É verdade que te enchi de entusiasmo
e que a Colômbia é um país onde se pode viver... caso se
tenha dinheiro e se viva em Bogotá. No interior, no entanto, ainda vigora a lei dos bandidos. O assalto nas ruas
é quase um delito de cavalheiros. Mas quem anda nas estradas tem sempre uma metralhadora pronta a disparar ao lado do volante. Há troços que até os camionistas experientes só percorrem em caravana. Além disso, nunca acreditei que os pesquisadores de esmeraldas representassem para ti mais do que uma simples aventura.
‑ O hospital de Penasblancas interessa‑me ‑ disse o Dr. Mohr pensativamente.
‑ Peter! ‑ Fachtmann fitou Mohr com um olhar pasmado. - Aceitaste a proposta de Don Alfonso?
‑ Com determinadas condições.
‑ Tu puseste condições? Ao Camargo?! ‑ Fachtmann ergueu o olhar para o tecto e esticou os braços: - Não! O céu não está a cair! Deve ser verdade.
‑ Vou ter tudo aquilo de que precisar ‑ continuou o Dr. Mohr. - Mas só o posso determinar no local. E quero fazê‑lo sem entraves. Por isso, vou começar por ir a Penasblancas não como médico mas na qualidade de novo gunquero. Quero situar‑me. Talvez construa o hospital em Muzo ou Chivor, quem sabe? Em todo o caso, onde fique mais central e seja mais necessário.
‑ Em Penasblancas, portanto. Digo‑te isto pensando nos tiroteios de ambos os lados... E Hamburgo? Só tiraste três meses de licença sem vencimento.
- Vou escrever ao professor Harrenbroich, expondo‑lhe a situação.
‑ E a Gabrielle?
- Vou pedir‑lhe desculpa...
‑ O honesto de Penasblancas! Otelo, tenho de beber mais um copo.
- A partir de agora, chamo‑me Pedro Morero.
‑ Como?
‑ Pedro Morero.
‑ Doutor não?
‑ Não na primeira viagem às minas.
‑ Nem penses! ‑ Fachtmann deu um salto. ‑ Peter, não vou permitir! É verdade que fui eu que te atraí
para cá mas, por trás da aventura, estava o pensamento de que irias até aos gunqueros na condição de médico. Não te esqueças do que te disse: não existe para ti melhor protecção do que anunciares aos quatro ventos que és médico! É como um colete à prova de bala!
‑ Está bem, mas começo pela aventura e, mais tarde, transformo‑me em médico.
‑ Já não terás tempo para isso. Aliás, nem sequer vais para Penasblancas. ‑ Fachtmann engoliu o seu uísque. A mão tremia‑lhe. ‑ Porque é que o Camargo não construiu já um hospital, se quer apaparicar tanto os pesquisadores?
- Porque não arranjou médicos. - Bebendo um gole de chá quente, que sabia a flores exóticas e tinha um travo de jasmim: ‑ Tinham medo.
Uma semana mais tarde, o Dr. Mohr, agora Pedro Morero, iniciou a sua viagem em direcção à cordilheira. Sozinho. Ewald Fachtmann, que passara três dias a remoer se devia acompanhar o amigo, acabou por capitular.
‑ É a minha cobardia - anunciou em voz séria. - Já te disse, Otelo. Falar muito não é o mesmo que ter muita coragem. Além disso, tenho o meu trabalho nos Laboratórios Farmacêuticos H. Strothfeld. Estou satisfeito por ter conseguido este lugar de director, onde sou o meu próprio patrão.
O Dr. Mohr comprara nos armazéns militares colombianos um velho jipe americano, que mandara pintar. Escolhera uma cor castanha de terra. Saindo de Bogotá, parou ao lado de uma encosta coberta de vegetação e afastou‑se um pouco. Dez passos à frente, o jipe já não era reconhecível, pois que se misturava com a paisagem. Fachtmann, que o acompanhara, abanou a cabeça.
- Não penses que os mineiros são cretinos - observou. ‑ Reconhecem uma cobra mesmo quando ela está quieta e parece mesmo uma liana. Além disso, se apareces de jipe, levantas logo suspeitas. Um verdadeiro gunquero anda de bicicleta, a pé, no melhor dos casos de mula, e na primeira estação, quando lá chega, toma a camioneta. Mas nem aí está seguro. São tantos, tantos, que nem podem mexer‑se. à chegada a Bogotá, já aconteceu alguém cair de repente quando a multidão se dispersou... mortinho da silva. Uma punhalada nas costas, acima da primeira vértebra. Morte certa e instantânea. Evidentemente que o homem não tinha o lenço atado com as esmeraldas, produto de talvez meio ano de trabalhos forçados.
No entanto, Mohr não se deixou convencer a não seguir de jipe e tratou de reunir o equipamento que levaria consigo: uma tenda, um fogão a gás com a respectiva botija, um par de botas de reserva, dois grandes chapéus de palha, algumas camisas, uma grande mala de metal, que encheu com medicamentos, ligaduras e ampolas de primeira necessidade, e um estojo de cirurgia como os que havia nas ambulâncias alemãs. As contas, mandou‑as a Don Alfonso.
Um dia antes da partida, um taxista levou um embrulho a casa de Fachtmann, dizendo que um desconhecido o encarregara de o entregar naquele endereço. A viagem estava paga. Bem paga. O taxista sorriu de satisfação e foi‑se embora. Fachtmann transportou o embrulho para dentro de casa como se fosse uma bomba.
‑ Para ti, Otelo. ‑ Pousando o embrulho na borda da piscina: ‑ Podemos atirá‑lo à água ou arremessá‑lo para o jardim, ao ar livre...
O Dr. Mohr saiu da piscina e sentou‑se ao lado do embrulho.
‑ Ainda há uma terceira hipótese: simplesmente desembrulhamo‑lo.
‑ E saltamos pelo ar aos pedacinhos.
‑ Porquê? Quem é que teria algum interesse em fazer‑nos explodir? Ewald, a tua cobardia começa a ser patológica. ‑ Desatando o nó, desembrulhou o papel e abriu a embalagem de cartão. Fachtmann fitou incredulamente o seu conteúdo.
‑ Uma pasta de bom couro preto, com dois fechos. ‑ Tirando‑a da embalagem e admirando‑a, prosseguiu: ‑ Está cheia. É bem pesada! Ha, ha, alguém resolveu fazer uma gracinha idiota. A pasta tem dois buracos. Olha! ‑ Apontou para um orificio redondo no lado mais estreito e para outro maior na parte de trás. Era uma pasta de pôr a tiracolo. Tinha uma tira larga de couro com protecção para o ombro, presa por dois ganchos de metal dourado. - Coa breca! Está cheia de pedras! Quem será o engraçadinho?!
- O embrulho é para mim ‑ disse o Dr. Mohr. Pegando na pasta defeituosa, fez saltar os fechos. ‑ Parece‑me que já sei. Olha só!
A tampa abriu‑se. No interior da pasta, na tampa, brilhava o metal preto de uma metralhadora de cano curto,
muito maneirinha, encaixada numas cavilhas de madeira.
Com a cartucheira comprida já engatilhada, estava pronta
a disparar. No espaço livre entre o gatilho e o cano, encontravam‑se presas de través mais duas cartucheiras. O suficiente para abrir caminho em caso de necessidade.
Estava portanto explicada a existência dos dois orificios: a morte matraqucava pela parte mais estreita da pasta.
O orificio maior da parte de trás tinha o tamanho ideal
para meter lá o indicador e accionar o gatilho.
Uma linda pasta de couro para usar a tiracolo. Inofensiva, indiferente, elegante, cómoda. E inviolável! Bastava a pressão do dedo indicador.
- O presente de despedida de Don Alfonso ‑ comentou Fachtmann monocordicamente.
- Acho que sim. Está aqui um bilhete: "Boa viagem!"... Sem assinatura.
- É espantoso, mas deve gostar muito de ti.
‑ Espantoso porquê?
‑ Até hoje, não há notícia de que Don Camargo se interesse por qualquer coisa a não ser esmeraldas. Em todo o caso, nunca por pessoas!
- Também não sou uma pessoa para ele - retorquiu
o Dr. Mohr, voltando a fechar a metralhadora‑pasta a tiracolo. ‑ De momento, sou apenas uma grande esmeralda de duas pernas. Não tenho ilusões. E também sei que tenho de me pôr a pau quando deixar de ser útil ao Camargo. É o ponto mais critico de todo o empreendimento. Dos trinta mil gunqueros, não tenho medo nenhum.
à tarde, o Dr. Mohr treinou‑se a disparar com a pasta. Funcionava na perfeição. Até o coice era muito amortecido por um revestimento de borracha esponjosa. A munição era infernal: um tiro de blindado com carga explosiva. Ewald Fachtmann foi obrigado a sacrificar três sicômoros do seu jardim. Os tiros dilaceraram‑nos por completo.
‑ Meu Deus, o que pode uma pessoa contra isto? - comentou o Dr. Mohr em voz rouca. ‑ Onde e como pode um médico ajudar?
Mas agora já estava. Chegara o dia X, como se diria em termos militares.
O Dr. Mohr sentou‑se no jipe, com a pasta mortal ao lado. No manípulo da porta, encontrava‑se uma espingarda automática, pronta a disparar. Tinha à volta das ancas um cinto de couro decorado com pregos de metal à cowboy de Ilollywood, de onde pendiam uma faca de dois gumes e um coldre aberto com um revólver.
‑ Um revólver é melhor do que uma pistola ‑ dissera o negociante de armas. ‑ As pistolas têm normalmente atravancos, mas os revólveres estão sempre prontos!
Até isto Don Alfonso conseguira através da sua rede de conhecimentos: o Dr. Mohr podia comprar armas legalmente. Um oficial da Polícia levara‑lhe voluntariamente uma licença de porte de armas a casa de Fachtmann, e o Hospital Estatal de Bogotá fornecera‑lhe uma bandeira da Cruz Vermelha, que estendera por cima do radiador do jipe. Mas só até chegar à estrada por Muzo. A partir daí, tencionava enrolar a bandeira e seguir viagem na cordilheira como Pedro Morero.
A despedida do amigo Ewald foi breve. Apertaram as mãos, Mohr pôs o motor a trabalhar e Fachtmann ainda correu uns metros ao seu lado, enquanto o jipe ainda só rolava.
‑ Não me rogues pragas! ‑ exclamou, dando uma palmada nas costas de Mohr. - E quando puderes, dá notícias. Não há nenhuma estação de correio em Penasblancas. Quem havia de mandar postais de lá? Além disso, SãO quase todos analfabetos. Otelo, se vires alguma moça bonita em Penasblancas, não te esqueças de levar sempre o revólver engatilhado para a cama! E ainda uma...
Mohr acelerou e o motor do velho jipe cortou as frases seguintes. Fachtmann ainda continuou a falar e parou sozinho na estrada, observando o veículo que seguia aos solavancos. Precisava de falar, descomprimir, soltar a opressão que sentia no peito.
- Vê se voltas, Otelo - disse por fim. O jipe dobrou a esquina e desapareceu. ‑ Volta com os dois braços e as duas pernas.
A estrada para Muzo, a "Cidade das Esmeraldas", é bastante razoável e muito segura ainda ao longo duns quilómetros depois da saída de Bogotá. Autocarros ligam a capital com os subúrbios, nos quais habitam sobretudo os trabalhadores das indústrias petrolíferas. Desde que se descobriram grandes jazidas de petróleo na Colômbia, levando à riqueza lendária duma minoria da população, alguns bairros degradados foram demolidos e substituidos por habitações económicas, construídos segundo o modelo americano. Colmeias gigantescas, nas quais as pessoas vivem como insectos sobredimensionados, suspirando pelos seus casebres de pedra e barro, com telhados de lata feitos de barris velhos de gasolina, onde tinham as suas galinhas, cabras, coelhos e ratazanas. É que as ratazanas também podem comer‑se. Os peritos em alimentação da ONU afirmam que a carne das ratazanas tem o mesmo valor alimentar da carne de vaca, mas menor teor em gordura. Muito boa para um nível de colesterol razoável. Recomendam também a carne de macaco e de cobra, que dizem ser comestível e saudável. Uma proclamação aos esfomeados do Terceiro Mundo. Uma contribuição do mundo civilizado, através da ONU.
No sítio onde a estrada para Muzo acaba e segue por uma típica pista sul‑americana, atravessando florestas e montes, no local onde deixa de haver paragens de camionetas desde que Muzo é uma cidade morta, habitada apenas por aventureiros, militares e polícia, com salas de jogo e bordéis, centro de transbordo do comércio ilegal das pedrinhas verdes, no ponto, portanto, onde começa o "caminho sangrento para os sóis verdes", encontrava‑se um homem na berma da estrada, o qual levantou o polegar à boa maneira internacional logo que o jipe do Dr. Mohr apareceu na distância.
Mohr já tirara a bandeira da Cruz Vermelha. Examinando pensativamente a figura que pedia boleia na estrada, puxou mais para a barriga o coldre aberto do revólver, pronto a empunhar, e travou. O homem tinha um aspecto descuidado. A barba preta tapava‑lhe o rosto. O corpo magro, mas não franzino, antes razoavelmente musculoso, adivinhava‑se‑lhe por baixo de um fato de linho velhíssimo, manchado e muito remendado, que já fora branco mas que agora era cinzento. Tinha um lenço atado ao pescoço e a cabeça tapada pelo típico chapéu de abas, de palha, também ele rasgado em vários sítios. Um saco verde de marinheiro e uma antiga sacola militar de lona a tiracolo eram a única bagagem da aventureira aparição.
O homem avançou para o jipe, encostou‑se ao radiador e observou Mohr com um sorriso aberto.
- Porque é que parou? ‑ perguntou.
‑ Porque não? Estava a pedir boleia.
- Já há três horas. Até agora, ninguém parou. Houve mesmo um condutor que disparou ao passar por mim. Assim mesmo. Mas é dificil fazer pontaria a alta velocidade. - Lançando um olhar à cintura de Mohr e rindo ainda mais, acrescentou: ‑ Pronto a disparar também, não? Tem aí um bom brinquedo. Novinho em folha!... Dá‑me boleia?
- Para onde? ‑ perguntou o Dr. Mohr com um ar reservado.
- Para onde vai?
O homem deu a volta ao jipe, sentou‑se no banco do passageiro e bateu com a mão na espingarda automática.
- Boa arma! ‑ comentou. ‑ Mas fraca quando há humidade. Tem de estar sempre seca. Mas para onde quer ir há muita água. Riachos de montanha, florestas das chuvas, cavernas alagadas...
‑ Para onde é que eu quero ir? - inquiriu Mohr laconicamente.
‑ Para onde queremos todos, camarada. ‑ O homem estendeu a mão. Não tinha as mãos sujas e calejadas, mas antes bem tratadas e macias, o que era surpreendente. - Chamo‑me Cristobal Montero.
‑Pedro Morero.
- Que coincidência! ‑ riu o barbudo. - Morero... Montero! Devíamos dar‑nos bem! Creio que não vai para Muzo, e sim para Penasblancas. Dá‑me boleia?
- Se já está sentado ao meu lado...
‑ Mas pode correr‑me a tiro! E eu não lhe respondo, visto que não estou armado.
‑ E quer ir para Penasblancas? Anda por aí ao sabor da aventura?
- Não propriamente!... Sou padre.
‑ Bravo! - Rindo alto, o Dr. Mohr apertou com força a mão estendida e sentiu‑se tentado a revelar a sua identidade. Mas afastou a ideia no último momento. "Não, continua a ser o que queres ser: Pedro Morero, um caçador de fortunas, um aventureiro, um futuro gunquero. Ninguém vê em ti um alemão. O teu espanhol é bom. Mergulha de cabeça no mundo desconhecido, na última grande aventura desta terra." ‑ Um padre!
- Da ordem da "Coroa de Espinhos Verdejante".
‑ Bem vai precisar deles, Don Montero. Quer ser um mártir, padre? ‑ Apontando para o saco de marinheiro que ficara na berma da estrada: ‑ Saia do carro e faça como o seu saco: fique em terra!
- E a si? ‑ O padre Cristobal recostou‑se no assento de aço do jipe. - Que devo aconselhar‑lhe? O regresso à cama duma linda senhorita?
- Ui! Isso são modos de um padre falar?!
- Também conhecemos o mundo. ‑ O padre fitou Mohr com um ar sério: - Você não é pesquisador de esmeraldas...
- Meu Deus, mas como é que isso se vê?!
- Ainda traz muita civilização colada ao corpo! Mas isso passa depressa! O que o leva a Penasblancas?
- Esmeraldas! Admito que sou um principiante, mas tenho muitas hipóteses nas minas abandonadas.
‑ Isso é o que dizem todos. Em pouco tempo, não passam de ratazanas.
- Eu sou geólogo. Tenho um alvo.
- Os outros também. Para onde apontam revólveres, armas, facas e machados.
- E o senhor, padreco esperto? - inquiriu Mohr de um modo quase grosseiro. - Quando erguer a cruz pela primeira vez, será para os outros como um sinal: Fogo! Eles executam‑no logo, padre.
‑ É um engano! Há crimes todos os dias nos desfiladeiros das montanhas, florestas, torrentes e cavernas, estradas e bares. E então acontece um milagre: aparece alguém que pousa um crucifixo no peito dos mortos e lhes ergue uma cruz em cima das campas. Pode ser uma cruz torta de madeira podre, mas é uma cruz! - O padre Cristobal levantou‑se, foi buscar o saco de lona, atirou‑o para cima do estojo médico de alumínio de Mohr e voltou a sentar‑se. ‑ Toca a andar, Pedro Morero! Estou contente por ter sido você a parar. Desconfio que precisa de mim!
- Há muito que me afastei da igreja, padre! ‑ resmungou Mohr. - Deixei de acreditar nos sermões.
‑ E com razão, Pedro. É dificil pregar na qualidade de saciado entre os saciados. Mas para onde vamos agora há homens com fome, tanto fisica como espiritual, e, embora nunca o digam, Deus está perto deles.
‑ No homicídio...
‑ Seja! Acreditam em Deus, porque a sua vida é breve e corre perigo diariamente.
Mohr assentiu. "Ele tem razão", pensou. "É por isso que também vou para lá. Um padre e um médico têm muito em comum. Quase toda a gente precisa dum ou doutro pelo menos uma vez na vida... mas são poucos os que agradecem."
‑ Estou convencido - disse, pondo‑se a caminho. ‑ Além disso, sempre é melhor quatro olhos observando a estrada. Sabe atirar?
‑ Treinei‑me com cartas de jogar.
‑ Cartas de jogar?
‑ Lançando uma para o ar e disparando. Se o orificio ficar no meio da carta, é porque se sabe atirar.
‑ Extraordinário! Estou a ficar com uma ideia completamente diferente da Igreja.
- Pare!
Mohr travou tanto a fundo que a cabeça lhe voou para a frente.
‑O que foi, padre?
- Nada. - Cristobal Montero estendeu novamente a mão a Mohr. ‑ Vamos tratar‑nos por tu. Chama‑me só Cris.
- Pedro ou Pete...
‑ Pete. - O padre Cristobal tirou a espingarda automática do manípulo e apertou‑a entre as pernas. ‑ Em frente, Pete! Parece‑me que hoje já não vamos chegar a Penasblancas. Não gostaria de viajar sozinho de noite, nem mesmo com a ajuda de Deus.
- Eu viajo.
- De noite, na montanha?
‑ Se tens medo, Cris, reza ao teu chefe.
‑ Que não colabora com loucuras! Nem vale a pena!
‑ Então, agarra‑te à espingarda. Cris, meu padreco, acho mesmo que vamos dar‑nos muito bem um com o outro.
Passada uma hora, houve nova paragem. Atrás deles apareceu um veículo, que se aproximou muito depressa. Era um grande todo‑o‑terreno, que cruzava a Estrada da Morte a toda a velocidade. Mohr ainda não percebera porque lhe chamavam assim. Até ao momento, tinham estado praticamente sozinhos, exceptuando quatro homens montados em mulas, que mal os viram saltaram para a floresta, procurando refúgio.
‑ Estão muito nervosos ‑ dissera o padre Cristobal. - Quatro pesquisadores de esmeraldas. Devem pensar que somos compradores a soldo do big hoss, querendo apoderar‑nos dos seus achados. É que também se pode ir "às compras" assim. Que importa de onde vêm as esmeraldas? O seu verde puro não deixa adivinhar o vermelho do sangue.
O rápido todo‑o‑terreno ultrapassou o jipe onde seguiam os dois homens e travou à sua frente, obrigando‑os a parar. O Dr. Mohr carregou no travão e, ao mesmo tempo, sacou do revólver. O padre Cristobal já engatilhara a espingarda automática. Dois homens fardados saltaram da grande viatura. Um oficial do Exército e um da Polícia, os quais se aproximaram com as pistolas automáticas apontadas.
‑ Nada de armas! - berrou o oficial do Exército. - Mãos na nuca! Cá para fora! Mas depressa!
O padre Cristobal afastou a arma, saiu do jipe e ergueu a mão direita.
‑ Deus te abençoe, meu filho! ‑ disse em voz alta. ‑ Se quiseres, posso dar‑te um santinho...
‑ Um maluco! ‑ gritou um oficial para o outro. - E tu aí? Larga o volante!
Saindo do jipe, o Dr. Mohr aproximou‑se lentamente.
- Como é possível que nos estraguem um dia tão calmo? ‑ perguntou. ‑ Pensei que estava aqui nesta estrada em liberdade?!
‑ Mais um maluco! - berrou o oficial. ‑ Nomes!
‑ Padre Cristobal Montero. Geólogo Pedro Morero.
‑ A caminho de Penasblancas. Com uma autorização do Ministério do Interior.
‑ Merda! ‑ exclamou o oficial, baixando o cano da arma. ‑ Chamo‑me Luis Gomez. Sou major do Exército. Vou comandar o Segundo Batalhão de Muzo.
‑ Felipe Salto! ‑ O outro oficial, com uniforme da Polícia, fez uma vénia. - Tenente. Destacado para novo chefe da Polícia de Penasblancas.
‑ Mas que ilustre reunião! ‑ riu o padre Cristobal.
‑ Meus senhores, devíamos ir já para a berma da estrada rezar uma acção de graças. Três de vós correm o risco de em breve jazer sem vida. Chefe da Policia de Penasblancas... Tenente, sabe bem o que isso significa?
- Sei! ‑ assentiu Felipe Salto, um homem baixo e musculoso que, apesar de ter algum sangue índio, era um orgulhoso descendente dos seus conquistadores espanhóis. ‑ Ordem!
‑ Amen! ‑ O padre Cristobal benzeu‑se. ‑ Como seguimos viagem agora?
- Juntos! ‑ sugeriu o major Gomez, grande e forte como um touro andaluz.
‑Então... para Penasblancas?
‑Sim! Em frente!
‑ Devem ter‑nos dado com força na cabeça - comentou o Dr. Mohr. - Vocês com as vossas transferências e nós com a nossa presença voluntária. Acho que somos malucos por seguirmos assim de um modo tão oficial.
‑ Sugiro que passemos a chamar‑nos "Os Quatro Idiotas"! ‑ exclamou o padre Cristobal. ‑ Afinal de contas, Deus está com os pobres de espírito...
‑ O que Deus me fez! Um padre na minha área!
O major Gomez bateu as palmas:
‑ Para os carros! Vou comunicar ao meu batalhão que passo a noite em Penasblancas e só chego amanhã a Muzo.
- Entretanto, os seus homens preparam‑se para as exéquias! - observou Cristobal. - Quem vai à frente?
‑ Vocês! ‑ O tenente da Policia Salto fez um grande sorriso. ‑ Deus vai sempre primeiro.
Entraram em Penasblancas por volta da meia‑noite.
O primeiro milagre realizara‑se: ninguém importunara os dois carros durante a viagem. Ninguém disparara contra os ocupantes. Nenhuma barreira os fizera parar. Uma calma estranha pairava sobre as montanhas, planícies e desfiladeiros cobertos de floresta virgem. Nem sequer se ouvia a multiplicidade de barulhos nocturnos da vida selvagem. Com os motores quase ribombando no silêncio, os dois veículos aproximaram‑se da cidade, seguindo aos solavancos pela estrada esburacada.
Comparados com os de Penasblancas, os bairros degradados do Rio ou de Hong Kong são um amontoado de palácios reais. Claro que existem casas em Penasblancas. Baixas, como no tempo dos colonos americanos; cabanas
de madeira parecidas com as dos antigos pesquisadores de ouro de Sacramento, na Califórnia, ou de Klondike, no Alasca. Nas ruas de terra batida, via‑se o armazém, a esquadra da Policia, umas quantas lojas, oficinas, cabanas e um edificio maior, cujo letreiro iluminado quase gritava na noite: "Bar and Dancing".
Enfim, luz!
Quando as minas paralisaram, a electricidade foi cortada em Penasblancas. Em Muzo ainda havia luz, tal como em Chivor, Cozques e onde houvesse militares estacionados. No entanto, os geradores de Penasblancas tinham sido desligados, até ao dia em que misteriosamente voltou a haver corrente, se bem que só no "interior da cidade". Alguns electricistas tinham reparado a instalação, pondo os geradores novamente a funcionar a gasolina, e Christus Revaila, o grande hoss do lugar, que andava sempre de guarda‑costas e considerava Penasblancas propriedade sua, fizera anunciar que quem quisesse luz tinha de largar uns tantos pesos. Portanto, sabia‑se a quem se devia tal beneficio: ao grande Don Alfonso...
A anarquia reinara durante meio ano. As pessoas tentavam puxar corrente às escondidas para os seus casebres na montanha, cabanas na selva e habitações de terra dos mais pobres entre os pobres gunqueros. Mas Christus Revaila em breve acabara com, na sua opinião, tais indelicadezas. Nove gatunos de electricidade tinham sido abatidos e, maravilha das maravilhas!, os outros haviam desistido rapidamente da sua corrente clandestina. Assim, algumas ruas de Penasblancas tinham luz, uma luz brilhante, enquanto ao seu lado a noite começava a adensar‑se. Gradualmente, também a luz crepuscular das velas e das lamparinas de petróleo se foi extinguindo, dando lugar a uma escuridão impenetrável. Aqui, vivia‑se do nascer ao pôr do Sol. Só nas montanhas em si ardiam ainda as fogueiras, como nos tempos primitivos, dando calor, luz e protecção. Viviam aí milhares de pessoas, em casebres com telhado de folhas e cavernas, nas saliências dos planaltos, como ninhos de pássaros. Famílias com nove, dez filhos, galinhas, porcos, cabras, mulas; térmitas humanas, rastejando nas pregas da montanha, dia e noite martelando e escavando, desgastando‑se nos penhascos: Esmeraldas! Esmeraldas!
O sonho da riqueza. Em Penasblancas já estavam preparados para a sua chegada. O sistema de comunicações funcionava impecavelmente. Vigias invisíveis por quem os quatro tinham passado sem darem por nada, haviam avisado:
- Aproximam‑se desconhecidos. Militares. Só dois carros. Fazemo‑los ir pelos ares?
Christus Revaila impedira as habituais boas‑vindas, testemunhadas por várias cruzes na berma da estrada:
‑ Deixar passar! - berrara para o aparelho de rádio.
‑ Calminha aí! São gajos importantes.
Os "Quatro Idiotas" pararam onde lhes competia: em frente da esquadra. Os quatro policias, órfãos até ao momento, assomaram à porta e puseram‑se em sentido. Era a primeira vez em sete semanas que voltavam a vestir a farda. Havia precisamente sete semanas que uma enigmática facada nas costas pusera o seu superior fora de serviço. De resto, a estrada estava vazia. Só se ouvia a música alta do Dancing Bar. Rock americano.
O Dr. Mohr olhou em volta. "Isto não é verdade!", pensou. "Devo estar num filme de Hollywood! Uma cidade decadente, fogueiras e luzes bruxuleantes nas montanhas em volta, um barracão onde se dança, quatro polícias solitários, contemplando tristemente o seu novo chefe. Fantasmagórico! Uma passagem disfarçada para o inferno."
‑ Uma cidadezinha pacifica ‑ observou em voz alta. Os quatro polícias estremeceram, como se uma metralhadora tivesse começado a disparar. O tenente Salto suspirou, entrou na sua nova esquadra e voltou a sair rapidamente. O major, comandante do 2.o Batalhão, ao qual já tinham dito adeus depois de ele comunicar que ia passar a noite em Penasblancas, permaneceu sentado no todo‑o‑terreno. O padre Cristobal olhava de soslaio para o bar, onde suspeitava ter grandes hipóteses de acção missionária.
‑ O que se passa? ‑ perguntou o Dr. Mohr.
O tenente Salto apontou para trás.
‑ Porque é que está uma mulher na cela? - berrou. ‑ Será que a polícia daqui tem um bordel próprio? A rapariga está a chorar.
O Dr. Mohr passou pelos quatro polícias e entrou na esquadra. Atrás da grande sala, havia uma porta aberta, por onde se entrevia uma fileira de celas. Duas estavam vazias e, na terceira, encontrava‑se uma rapariga que chorava desesperadamente, com o rosto pequeno encostado às grades. Quando viu o Dr. Mohr, levantou a cabeça e respirou profundamente.
O Dr. Mohr estacou. "Uma madona", pensou. "Sei que é um disparate... mas é uma madona a chorar." Velasquez pintara uma madona assim: um rosto doce e pequeno, rodeado de cabelos negros; um rosto dominado pelos olhos e a boca. Um rosto cuja luz vem do interior e que brilha até no sofrimento.
- Não chore - disse o Dr. Mohr, aproximando‑se das grades de ferro. - Deixe‑me ajudá‑la, para não precisar de chorar mais.
A rapariga assentiu e fitou‑o incredulamente. Era a primeira vez na vida que alguém a tratava por "você"; era a primeira vez que ninguém lhe dizia: "Ora, sua rameira!" ou "Maldita filha da mãe!"
Pela primeira vez, um homem era delicado com ela sem lhe deitar imediatamente a mão à blusa.
‑ Chamo‑me Margarita ‑ disse, reprimindo um novo soluço. ‑ Não fiz nada! Só queria visitar a minha irmã!
- Eu ajudo‑a ‑ replicou o Dr. Mohr num tom de voz marcadamente mais reservado. ‑ Confie em mim. Vou tirá‑la daqui.
A rapariga fitou‑o de olhos esbugalhados. O Dr. Mohr lançou‑lhe mais um olhar de encorajamento, virou‑se e saiu da ala das celas.
Em frente da porta da esquadra, o tenente Felipe Salto continuava a gritar. Os polícias ouviam com um olhar resignado e triste. "É novato aqui", pensavam. "Ainda está cheio de idealismo e de vontade de mudar, organizar. Isso passa com a rapidez de um traque, camarada. É sempre o mesmo com os que chegam aqui a Penasblancas querendo demonstrar o poder da lei. No fim, só há dois resultados possíveis: ou ele se adapta rápida e cuidadosamente, e então a vida até pode ser razoavelmente boa mesmo neste inferno, ou resolve teimar e acaba como o seu antecessor. Quem lhe atirou a faca, nunca será descoberto. Camarada, berra mais um pouco, que te faz bem. Amanhã, quando o Sol brilhar, começará um novo dia, também para ti. Se Penasblancas parece tão pacífica, tão modorrenta, tão cordial, é porque o Christus Revaila deu a ordem: "Deixem vir os quatro e não lhes façam nada". Deixem‑nos em paz. Ninguém vai impedir‑nos de pesquisar esmeraldas"."
O padre Cristobal, que avançara uns passos pela estrada, observando o Dancing Bar mais de perto, voltou atrás e inclinou‑se para o todo‑o‑terreno. O major Luis Gomez continuava sentado, com a espingarda automática entre as pernas.
- O que me diz? - inquiriu Cristobal Montero. - Uma cidadezinha com habitantes pacíficos, a dormir. Uns quantos dão um passinho de dança e embriagam‑se. Pelo barulho, parece que também estão lá algumas senhoras muito divertidas.
‑ Estão a enganar‑nos bem ‑ resmungou Gomez. ‑ Acredita mesmo nesta calma, padre? Se nos tivessem recebido com hostilidade... bom, diria que era normal. Mas esta tranquilidade? É perfeitamente perversa! Olhe à sua volta... veja as luzes e as fogueiras nas montanhas! Há milhares de pessoas sentadas nos penedos! Regimentos inteiros esperando por nós os quatro!
O Dr. Mohr saiu da esquadra e dirigiu‑se a Felipe Salto.
‑ Está lá dentro uma rapariga a chorar! ‑ exclamou. Os quatro policias baixaram a cabeça.
‑ Eu sei! ‑ berrou o tenente Salto.
‑ Prenderam‑na sem qualquer razão.
‑ Aqui ninguém é inocente! Oh, Mãe do Céu, nunca fale de inocência em Penasblancas. Eu sei que a rapariga é bonita, Pedro! Bastou‑me um olhar. É por isso que estou a interrogar os meus quatro rapazes!
‑ Ela só queria visitar a irmã.
‑ Acredita nisso?!
‑ Acredito.
‑ Só porque está a choramingar e se sente tocado pelos seus olhos de carneiro mal morto?! Meu querido amigo, aqui só há vigaristas! Do primeiro vagido ao último suspiro. Inclusivamente na Polícia! - Voltando a virar‑se para os quatro polícias, berrou: ‑ Quem é que trouxe a pequena para a cama? Respondam!
- Anda ‑ disse o padre Cristobal, puxando o Dr. Mohr.
‑ Onde?
‑ Ali ao bar. A música entusiasma‑me.
‑ E as vozes das mulheres.
‑ Também.
- Um sermão logo na primeira noite? Que bonito! ‑ Abanando a cabeça, disse: - Estou muito mais interessado no destino desta Margarita.
‑ Vai ser posta em liberdade! ‑ gritou o tenente Salto. ‑ Claro que vai sair! ‑ Arrancara aos seus quatro policias pelo menos uma parte da verdade. ‑ Dizem‑me que o Christus Revaila ordenou que não se andasse na rua. Como a rapariga apareceu e não queriam arranjar sarilhos com ele, prenderam‑na. Padre, este caso devia ser‑lhe entregue. Trata‑se dum grande bandido, que se chama Christus. Que o Céu me perdoe! Não é nenhuma blasfémia, ele chama‑se mesmo assim.
‑ Vou preocupar‑me com essas miudezas a seu tempo. ‑ O padre Cristobal indicou o Dancing Bar. - Onde vamos ficar?
- Por agora, comigo ‑ disse o tenente Salto. - O major Gomez parte amanhã para Muzo. Depois veremos. A instalação mais simples será a do padre: o céu inteiro é a sua tenda!
- Vamos. ‑ Cristobal Montero abotoou o casaco de linho remendado e andrajoso e começou a andar na direcção do bar. O Dr. Mohr hesitou e, depois, seguiu‑o em grandes passadas, apanhando‑o à porta do que parecia ser a casa maior e mais alta de Penasblancas. Tinha uma fachada de madeira branca envernizada e entalhada, três andares e um estilo de construção espanhol antigo. Adornavam‑na algumas pequenas varandas.
Em frente do bar, atrás de uma persiana, um homem agachado na escuridão transmitiu por microfone:
- Dois deles estão a ir para o bar. O que faço?
Christus Revaila, o receptor da mensagem, fitou a parede com um ar espantado.
‑ Estão doidos? - observou em voz rouca. - Já para a Mercedes?
‑ Um com barba e outro forte, de caracóis pretos.
- É ele.
‑ Quem?
‑ Aquele a quem os cabelos não deviam ser mais encaracolados! - bufou Revaila. ‑ Vou telefonar à Mercedes.
‑ Tarde de mais. Estão a entrar!
Christus Revaila atirou com o transmissor, saltou da poltrona, prendeu um revólver no cós das calças e apressou‑se a sair de casa. A distância até ao bar não era muita, mas temia não ter tempo de impedir o que estava a preparar‑se.
O padre Cristobal e o Dr. Mohr empurraram a porta, entraram e foram atingidos pela música em altos berros. Altifalantes ribombavam em todos os cantos. Atrás da porta, uma espécie de porteiro com ar de touro, ombros largos e nariz esmurrado, encarou‑os com perplexidade. Não sabia o que havia de fazer. Uma visita dos novos ao bar logo ao principio não estava no programa que Christus Revaila divulgara. Quem havia de esperar uma coisa assim?
‑ Ah! ‑ exclamou o porteiro, às aranhas. - Então cá estão...
‑ Deus te abençoe, meu filho! - respondeu o padre Cristobal, traçando uma cruz sobre o peito do homem, estupefacto. - Sabes cantar?
‑ Sei... ‑ gaguejou o porteiro.
‑ Bem?
‑ Não... não muito mal...
‑ Foi o que pensei. Tens uma voz agradável! A partir de domingo, passas a ser o chantre da igreja.
‑ Nossa Senhora... ‑ balbuciou o porteiro. O padre Cristobal assentiu com um ar amável.
‑ Ela há‑de ajudar‑te, irmão. Tens razão.
Passando o homem sem fala, penetraram no bar. Era uma sala enorme, com várias mesas redondas e simples cadeiras muito remendadas, o que mostrava que ali se discutia com a ajuda do mobiliário. Algumas mesas tinham até toalhas. Atrás do enorme balcão, ajustado a uma parede, em lugar dos armários com garrafas ou copos via‑se apenas uma parede colorida, pintada com motivos índios. A sala era iluminada por projectores montados no tecto. O que saltava mais à vista era o balcão em si, revestido de placas de aço igualmente pintadas. Os rebites, nitidamente visíveis, representavam até um elemento artístico no conjunto.
‑ Um blindado! ‑ comentou o padre Cristobal pensativamente. ‑ Aquilo não é um balcão, Pedro, é um blindado! Quem se abrigar atrás dele, só consegue ser tirado dali à força de granadas. ‑ Aproximando‑se duma das mesas tapadas por uma alegre toalha, sorriu para os homens que lá estavam sentados e, sem dizer palavra, puxou a cobertura, pondo à vista dois orificios no tampo, que certamente não tinham sido feitos por uma questão de ventilação.
‑ Isto é fantasmagórico! ‑ exclamou baixinho o Dr. Mohr. ‑ Parece que o tempo andou para trás. Estaremos no Oeste selvagem?!
‑ Claro que sim!
‑ Com todos os ingredientes...
‑ Mas modificados!
‑ E é muito perigoso.
‑ Veremos. - O padre Cristobal dirigiu‑se ao balcão. Obedecendo às ordens de Christus Revaila, ninguém lhe travou o passo. Os pares dançavam na pista de madeira com grandes convulsões e contracções. As pessoas sentadas às mesas observavam‑nos ou conversavam. Dois ou três homens bebiam encostados ao balcão, batendo nas placas blindadas com as pontas das botas, ao ritmo da música. Eram figuras arrojadas e musculosas, de pele rija e olhos muito grandes e brilhantes, que o trabalho nas galerias das minas esgotara.
"Sumo de peiote", pensou o Dr. Mohr. "Ou mastigam folhas de coca. Ou então, tuberculose e avitaminose. Olhos de criança em cabeças grisalhas."
Foram travados a um metro do balcão. Ninguém os agarrou, os impediu de continuarem, os chamou ou se lhes meteu no caminho: não, foram eles que estacaram. Uma aparição vinda de lado impossibilitou‑os de continuarem a avançar. Duma pequena porta junto ao balcão, saiu uma mulher bastante corpulenta. Tinha o cabelo preto apanhado para cima e um rosto que fora sem dúvida muito fascinante, mas agora um tanto inchado e largo, de onde sobressaíam os olhos, quais dois carvões em brasa. Envergava uma blusa de seda amarela sobre os imponentes seios, uma saia de algodão às flores que lhe chegava aos tornozelos e botas altas que se viam nitidamente quando andava. O que a distinguia especialmente das outras mulheres era que à volta da cintura trazia um cinto largo de couro, no qual reluziam dois revólveres nos seus coldres abertos. A mulher tinha um passo seguro e masculino, e quase não precisou de abrir caminho entre a multidão de fregueses. Formou‑se uma ala que voltou a fechar‑se atrás dela.
‑ Ah! ‑ exclamou o Dr. Mohr em voz baixa. - A grande dame do estabelecimento. A mãezinha do bordel. Cristobal, de que canto vai sair agora o John Wayne?! Isto é hollywoodesco!
‑ Isto é Penasblancas, Pedro. Onde há pessoas, as coisas repetem‑se. As condições de vida são limitadas. Não reparamos nisso porque nos consideramos perfeitos! ‑ Enfiando as mãos nos bolsos do casaco de linho, observou benevolamente a imponente figura, transportando os revólveres.
‑ Muito prazer! ‑ saudou a montanha feminina, parando à sua frente. ‑ Chamo‑me Mercedes Ordaz.
O padre Cristobal meteu a mão direita no bolso de dentro, tirou dele um pequeno santinho colorido e, para grande espanto do Dr. Mohr, estendeu‑o a Mercedes Ordaz.
‑ Nossa Senhora te abençoe ‑ disse. - A santa missa é no próximo domingo às onze da manhã.
"Mercedes, a Grande", como lhe chamavam em Penasblancas, pegou no santinho, contemplou‑o e enfiou‑o na parte da frente da blusa, entre os dois imponentes seios. Cristobal assentiu, satisfeito.
‑ É Santo António. Vai sentir‑se bem. O seu amor eram os animais.
‑ Não tenho piolhos nem pulgas ‑ retorquiu Mercedes calmamente. Tinha a voz agradável e profunda, com aquele timbre aveludado próprio dos quartos com camas cheias de almofadas. O seu espanhol era puro, sem sombra de dialectos: um castelhano perfeito. ‑ Tem a intenção de abrir uma loja de santinhos aqui em Penasblancas, senhor?
‑ Sou padre, senhora.
‑ Era o que eu queria dizer.
‑ Como se chama o seu porteiro?
‑ O Miguel?
‑ Vai ser cantor, em lugar do ôrgão que ainda não temos.
‑O idiota!
‑ Deus protege os pobres de espírito. Mas tem uma boa voz. E a senhora também.
‑ O que bebem? - perguntou Mercedes Ordaz, a
quem o rumo da conversa não estava a agradar. Observou
o Dr. Mohr com um ar inquiridor, critico. Depois, primeiro sorriram‑lhe os olhos e, a seguir, os lábios cheios. O primeiro teste fora um sucesso. ‑ É o geólogo de Bogotá?! ‑ Havia na sua voz um certo tom de ironia.
"Ela sabe muito bem quem eu sou", pensou o Dr. Mohr. "Jogar às escondidas com ela seria uma farsa."
- Sim, venho de Bogotá. ‑ Virando‑se para o padre
Cristobal: - Tenho de confessar uma mentira, Cris. Não sou geólogo, e sim médico.
‑ Ah! Ele acreditou?! ‑ exclamou Mercedes.
‑ Não. ‑ Cristobal Montero abriu o rosto num sorriso. A barba dividiu‑se‑lhe e retorceu‑se um pouco. - Mas não devemos estragar às pessoas, mesmo quando são amigas, a alegria dum pequeno segredo, com o qual brincam como crianças com os seus brinquedos.
‑ Obrigado, Cris. Um pecado mortal a menos.
‑ Não é assim tão grave mentir a um padre.
‑ O que bebem? ‑ perguntou novamente Mercedes Ordaz. Os altifalantes ribombavam, pares dançavam e às mesas discutia‑se e bebia‑se. Tudo parecia um tanto forçado, um cenário de marionetas movidas por uma grande mão invisível. Menos Mercedes, a Grande, a quem seria absurdo dar ordens. O próprio Christus Revaila provara‑o na pele quando, depois de um desaguisado com Mercedes por causa duma compra de esmeraldas, ficara uns dias de cama. Fora só um tiro de raspão na coxa, um arranhãozinho de nada, mas, depois do disparo, Mercedes dissera, cheia de orgulho e sobranceria: "Da próxima vez são dez centímetros à direita, no meio dos badalos dos sinos..." Coisas assim têm de ser levadas a sério. Não são palavras vãs!
‑ O que também bebe, senhora! - retorquiu o Dr. Mohr. - Acompanho‑a!
‑ E o netinho de Deus?
‑ A dobrar! A minha barba também bebe!
Mercedes Ordaz mirou o padre Cristobal com um ar espantado, deu a volta ao balcão blindado e baixou‑se. A garrafa que retirou era, aparentemente, reservada aos clientes especiais, pois os homens sentados perto do Dr. Mohr e do padre Cristobal lançaram‑lhes um olhar cheio de simpatia. Parecia uma despedida muda.
Mercedes, a Grande, encheu três copos, pegou no dela e esvaziou‑o de um só trago.
- Não tem veneno ‑ observou em voz quente e inalterada.
O Dr. Mohr e o padre Montero imitaram‑na. Até
àquele momento, não sabiam que o fogo pode ser líquido
e despejado em copos. Um ferro em brasa percorreu‑lhes o esófago e cauterizou‑lhes o estômago, aí ficando a
arder.
O Dr. Mohr lançou a Mercedes um olhar estupefacto.
O padre Cristobal levou as mãos à barba.
‑ Senhor, os tormentos são aos milhares ‑ disse em voz rouca. ‑ E há mais desconhecidos para vir.
‑ Querem ver os quartos, senhores? ‑ perguntou Mercedes, muito séria.
- Quartos? ‑ O Dr. Mohr ainda tinha a mão à volta do copo, que estava gelado, embora, na verdade, devesse achar‑se derretido. - Como?
‑ Mandei preparar dois quartos. ‑ Enchendo novamente os copos: ‑ Os oficiais ficam na esquadra da Policia, é claro, mas reservei os meus melhores quartos para os dois.
- É muito simpático da sua parte, mas nós queremos ficar juntos ‑ retorquiu o padre Cristobal, bebendo o fogo líquido e deixando de compreender os mártires que haviam sido queimados sem um único queixume.
‑ Medo? - Mercedes, a Grande, fez um sorriso maternal. - Na minha casa e à minha mesa não há nenhum Judas, padre. - Esvaziando o copo, deu a volta ao balcão e esperou que o Dr. Mohr tragasse a infernal bebida de olhos fechados. ‑ Vou levá‑los aos quartos.
No lado mais estreito do bar havia uma escada. Mercedes foi à frente e abriu caminho, dando um pontapé a um bêbedo sentado nos degraus. Parou no patamar do primeiro andar.
‑ Tenho vinte e dois quartos, dos quais ocupo três. Restam dezanove. O senhor, Pedro Morero, fica no quarto doze. O padre instala‑se no número catorze. Faço votos para que a vizinhança não vos incomode muito.
- Quem é a vizinhança? - perguntou o padre Cristobal.
- Umas jovens lindas de morrer. Trabalham aqui como criadas e pares de dança para os solteirões.
‑ É uma maneira de pôr as coisas, senhora ‑ comentou o padre.
‑ Pois, eu pratico o amor ao próximo!
Os quartos eram grandes e estavam mobilados com
simplicidade: um armário, uma mesa, duas cadeiras, um lavatório, um espelho e uma cama larga de madeira.
O mais importante parecia ser a grande tranca da porta. As janelas, que davam para a rua, tinham sólidas portadas de madeira.
‑ Não é o Hilton! ‑ observou Mercedes, a Grande.
‑ Para Penasblancas, é! ‑ O Dr. Mohr sentou‑se na
cama. - Qual é o preço por noite?
‑ Posso dar‑me ao luxo de os considerar meus convidados. - Fechando a porta com o corpo, falou com ar
muito sério: ‑ Presumo que sabem honrar a minha hospitalidade, senhores, e que vão deixar o meu negócio em paz.
‑ Eu sou médico, senhora. ‑ O Dr. Mohr levantou‑se, dirigiu‑se à janela e espreitou para a rua através de uma fenda nas portadas. - Devo e vou fazer tudo aquilo a que a minha profissão me obriga.
‑ As minhas raparigas são saudáveis! Eu própria as examino todas as semanas.
‑ Bravo!
- E também não precisam cá de confessores! - Fitando o padre Cristobal: - Estão satisfeitas, ganham bem e vivem comigo de livre vontade. De livre vontade, padre!
‑ Nunca contestei isso. A necessidade é como um pântano. As flores mais bonitas medram em solo podre.
‑ Não vão ficar muito tempo em Penasblancas.
‑ Acha?
‑ Tenho a certeza. Toda a gente precisa dum médico e dum padre. Mas esta gente daqui não! O Deus e o remédio destas pessoas são as pedrinhas verdes. O seu mundo reduz‑se ao buraco que todos os dias escavam na montanha. O único sentido da sua vida são os cristais verdes. São minerais de berilo transformados em sóis verdes pelo crómio.
‑ É por isso que, o mais tardar na próxima semana, também vou para a montanha, senhora - disse o Dr. Mohr. Mercedes Ordaz fitou‑o pensativamente.
‑ O Christus Revaila sabe disso?
‑ Não estou preocupado.
‑ Sem o Revaila... e sem mim... está de pernas e braços atados, senhor médico.
- É sempre útil conhecerem‑se as forças em jogo ‑ replicou jovialmente o padre Cristobal. - Eu trato dos Christus... quer dizer, do Christus Revaila. ‑ Já que está aqui, senhora, e que é uma dama com quem se pode falar abertamente, diga‑me: há alguma igreja em Penasblancas?
‑ Houve, mas à falta de padre, transformou‑se em supermercado.
- Vou falar com o proprietário.
- Está a falar com o próprio.
- Que bem! Para atalhar caminho, é dona de mais alguma coisa?
‑ Metade da cidade pertence‑me - retorquiu Mercedes, a Grande, indulgentemente. ‑ Não vai arranjar aqui nenhuma casa nem nenhum quarto para fundar uma igreja!
Tirando o colorido santinho de Santo António do meio dos seios, rasgou‑o em pedacinhos, que deixou cair.
O padre Cristobal assentiu várias vezes com a cabeça.
‑ Salvaste Santo António da tentação, minha filha.
Sem se dar ao trabalho de voltar a falar com o padreco, Mercedes Ordaz saiu do quarto e fechou a porta.
- Não vai ser fácil, Cris - observou o Dr. Mohr pensativamente. - Parece‑me que o porteiro Miguel não vai cantar na tua igreja.
- Quem é o Christus Revaila?
‑ O lugar‑tenente do grande boss desconhecido, que conheço por Don Alfonso. Mas pode ter outro nome qualquer.
- Portanto, a outra metade de Penasblancas.
‑ A mais perigosa.
‑ A sério? ‑ O padre Cristobal dirigiu‑se à porta.
O seu quarto, número catorze, ficava ao lado do do Dr. Mohr. Aquela mulher era mais do que uma antagonista. Era inteligente e insensível duma ponta à outra. - Sinto‑me como São Bonifácio antes de destruir o carvalho das divindades germânicas.
Bateram à porta.
O Dr. Mohr e o padre Cristobal entreolharam‑se assombrados. Não esperavam que em Penasblancas se batesse antes de entrar. A forte fechadura mostrava que as regras de entrada eram outras. Como não houve resposta imediata, bateram outra vez.
‑ Uma pessoa delicada - observou o padre Cristobal.
‑ Entre! ‑ gritou o Dr. Mohr.
Desta vez, a porta escancarou‑se e foi bater contra a parede, dando passagem a um homem, cujo aspecto faria qualquer pessoa sensata procurar abrigo. O cabelo grisalho era curto como uma escova. A seguir, vinha um rosto onde se lia a certeza de que esta vida não vale absolutamente nada se não tivermos um Colt para a defender a cada minuto. Portanto, esse Colt pendia à vista de toda a gente, ao lado de uma faca comprida numa bainha de couro. Era o único sinal guerreiro do homem. De resto, envergava um fato normal, sapatos um tanto grosseiros e camisa e gravata de bom corte espanhol. Provavelmente, era a única gravata que existia em Penasblancas. Uns olhos frios e verde‑acinzentados, encimados por duas sobrancelhas hirsutas, examinaram o Dr. Mohr e o padre Cristobal.
‑ Christus Revaila! ‑ anunciou o musculoso homem. ‑ O senhor é o médico... O senhor é o padreco!
‑ Oh, ele é inteligente! - exclamou o padre Cristobal, entusiasmado. Os olhos de Revaila semicerraram‑se imediatamente, como os dum animal irritado. ‑ Alguma vez ajudou à missa em pequeno?
‑ A Mercedes falou com os senhores. Era o que eu queria evitar! Até lhes deu quartos. Eu também não queria isso! Se disse mais alguma coisa, mentiu. Deviam ficar comigo...
- Mas será que consegue oferecer‑me uma vizinhança tão doce, Revaila? - perguntou sarcasticamente o Dr. Mohr. Revaila abanou a cabeça.
- Se gosta tanto de... de... ‑ Engolindo o palavrão que ia dizer, encostou‑se à porta. - Se quer saber, doutor, nas montanhas não faltam raparigas que durmam consigo sem olhar às horas, em troca de uma lata de carne de porco. Para muitos pais, será uma honra as suas filhinhas adoçarem algumas horas da vida do médico. A idade não interessa. Há cachopas de doze anos que parecem ter vinte! - Rindo para Montero: ‑ O senhor padre continua impassível?!
‑ Venho de uma região onde a prostituição infantil era o pão nosso de cada dia. Porque havia de ser diferente em Penasblancas?
‑ Têm de vir comigo! - Revaila apontou com o polegar para trás, na direcção da porta: ‑ A Mamas Grandes está do outro lado, à escuta...
- Como é que passou por ela? ‑ inquiriu o Dr. Mohr.
- Conhecemo‑nos bem de mais. - Revaila conteve o riso. ‑ Lá em baixo, no bar, estão sentados dez amigos meus. Ela contou‑lhes quem é?
‑ Em traços largos...
‑ Existem dois meios de transporte perfeitamente seguros daqui a Bogotá. Um sou eu, e o outro é a "mamã de Penasbíancas". Houve um tempo... aqui há três anos, pouco depois do encerramento das minas do Estado... em que apareceram por aqui uns idiotas que pensavam que a Mercedes não passava duma mulher com um certo peso. Por isso, tentaram tirar‑lhe o negócio da compra de esmeraldas. O que aconteceu? Nada que valha a pena contar. Quando amanhã forem passear na cidade, reparem no cemitério. Logo à entrada, há quatro campas com cruzes iguais. Em cada uma delas, diz assim: "Era muito estúpido!" Mais nada! Mas, desde então, toda a gente deixa a mamã em paz.
‑ Então existe aqui um cemitério? ‑ perguntou o padre Cristobal.
‑ E bem grande...
‑ Claro! E cruzes nas campas?
‑Sim... - respondeu Revaila, um tanto tenso.
‑ E reza‑se nas campas?
- Não posso impedi‑lo! - exclamou Christus.
- Uma cidade bem comportada. ‑ O padre Cristobal juntou as mãos. ‑ Meu filho, no domingo, às onze horas, há missa...
‑ Merda!
‑ Isso podes fazer antes ou depois.
‑ Vamos embora! - ordenou Revaila.
‑ Eu fico ‑ afirmou Montero.
‑ Num bordel?!
‑ Deus está em toda a parte...
‑ Ainda não decidimos ‑ disse o Dr. Mohr. - A mamã apanhou‑nos de surpresa com os quartos, e você agora quer atirar‑nos para outros. Antes de mais, temos de falar com os nossos companheiros de viagem.
- Os oficiais já estão instalados. ‑ Revaila endireitou o casaco. - Por mim, senhor médico, preferiria ficar onde as esperanças de vida são maiores.
‑ Vou dizer isso aos outros.
‑ Faça isso. ‑ O rosto de Revaila abriu‑se num sorriso, marcado por mil pequenas rugas. - É bom terem todos a consciência de que são nossos inimigos.
‑Nós sabemos.
‑ Traga o seu carro, senhor. Só tenho ordens para cuidar de si.
‑ Don Alfonso manda‑lhe cumprimentos.
- Obrigado. ‑ Acenando para o padre Cristobal: - Nem pense que vai dizer missa no domingo.
- Mas não...
- Proibo que a diga.
- E és tu que te chamas Christus?
- Tenho ganas de enforcar os meus velhos por causa disso! ‑ disse Revaila rudemente, deixando o quarto.
Mercedes, a Grande, não estava à vista, mas escutara tudo. Portanto, sabia o que Revaila dissera.
No edificio da Polícia, o tenente Salto e o major Gomez esperavam pelo Dr. Mohr e pelo padre Cristobal. Ambos os oficiais tinham as metralhadoras a tiracolo; os quatro policias, encostados à parede e igualmente armados, ficaram visivelmente aliviados quando o médico e o padre Montero apareceram.
- Mesmo no último minuto! - desabafou o major Gomez. - Estávamos prontos a ir tomar o bar de assalto. Meu Deus do Céu, mas o que andaram a fazer?! Como eu disse, logo que pensámos ir ao bar, os polícias ficaram da cor da cal.
‑ Engolimos fogo duas vezes, conhecemos uma mulher enorme, ofereceram‑nos cama em duas casas diferentes e temos a dizer‑lhes que as vossas esperanças de vida não são famosas. - O Dr. Mohr olhou para o lado das celas, que estavam vazias. - Onde está a Margarita?
- Livre. - O tenente Salto pousou a metralhadora.
‑ De facto, estava inocente.
‑ Onde está agora?
- Que sei eu? Com os pais...
- Aqui na cidade?
‑ Não sei. Porquê?
‑ Gostava de ter falado mais com ela ‑ replicou o Dr. Mohr vagarosamente.
‑Ah!
‑ Ah, nada! Como é que ela se chama?
‑ Como é que ela se chama? ‑ berrou Salto para os polícias, que abanaram a cabeça e encolheram os ombros.
‑Margarita... atreveu‑se um a dizer.
‑ Mas então não se fez nenhum registo? - Era a
derradeira esperança do Dr. Mohr.
‑ Para quê? Ela de facto só ia visitar a irmã, e foi contra as ordens do Revaila. Ele há‑de pagar‑mas! Afinal, quem é que manda aqui?
‑ Alguém conhece a irmã?
‑ Quem conhece a irmã? ‑ gritou Salto.
‑ Eu! ‑ Um dos polícias avançou: ‑ Chama‑se Perdita...
‑Mais!
‑Nada.
‑ Vai ser difícil! - suspirou o tenente Salto. - Em lugar do cérebro, a minha gente tem bosta de burro na cabeça! Doutor, parece‑me que perdemos a sua Margarita. Se vive nas montanhas... acredite que é mais fácil encontrar uma esmeralda de dez quilates. Admito que era bonita, mas não faltam aqui raparigas como ela. - Olhando em volta: - Vamos arrumar a loja, senhores, que bem merecemos dormir.
- Eu fico por cima do bar - informou o padre Cristobal.
‑ Não é possível! - exclamou o major Gomez. - Com aquelas mulheres sempre a chiar?
‑ Os eléctricos também chiam nos carris.
‑ Que comparação excelente!
‑ Eu vou dormir a casa do Revaila... ‑ acrescentou
o Dr. Mohr.
‑ A casa de quem? - O tenente Salto inclinou‑se para a frente.
‑ Do Christus Revaila. O número um da cidade. Está à minha espera.
‑ E diz isso com um ar tão calmo?
‑ Quer que me ponha aos saltos?
‑ Nem queira saber o que ouvi sobre esse bandido na última meia hora
‑ Para mim foi muito simpático, à sua maneira. - O Dr. Mohr acenou para os oficiais. - Vemo‑nos amanhã, senhores?
‑ Eu regresso cedo ao meu batalhão, em Muzo. Gomez também - acenou. - Depois volto com a tropa para passar Penasblancas a pente fino.
Na rua, o Dr. Mohr e o padre Cristobal entraram no velho jipe e percorreram o curto caminho até ao bar, onde este último saiu, tirando os sacos do carro.
Miguel, o porteiro com cara de pugilista, parecia estar à espera, pois apressou‑se a sair pela porta, arrastando a bagagem de Montero para dentro de casa.
‑ Ela afinal não tinha razão! ‑ comentou o padre Cristobal. ‑ Isto é mesmo o Hilton de Penasblancas. Um bom serviço!
‑ Se a mamá está à tua espera, então vais ter de engolir mais fogo, Cris...
- Até engulo uma garrafa inteira se ela for à missa no domingo!
- Nunca!
- Nunca digas "nunca", Pete. ‑ Apertou a mão ao Dr. Mohr. ‑ Vou ser tão hábil com o meu empreendimento como tu.
- Que grande habilidade! Só tens de dizer "Louvado seja Deus Nosso Senhor".
- E tu só tens de distribuir comprimidos. - Riram‑se e abraçaram‑se. Quando Montero desapareceu dentro de casa, o Dr. Mohr seguiu em frente. Christus Revaila esperava‑o à esquina da rua. Sem dizer palavra, entrou para o jipe, recostou‑se no assento e só então comentou:
- Tenho o traseiro a arder. Vejo que aqui esteve sentado um padreco. Vá em frente, vire à direita na esquina e siga a direito. A casa de pedra com os pilares de madeira branca é...
‑ Ah! Mas que luxo!
‑ Só é possível dar ordens quando nos olham de
baixo! - explicou Revaila, com a filosofia de todos os
ditadores. Conhece algum rei que tenha governado a
partir duma barraca? Eu não! E eu sou o rei de Penasblancas!
Não o disse com um ar presunçoso nem arrogante, e sim perfeitamente natural. Christus Revaila sabia o que valia. Não precisava de demonstrar nada.
Quando o Sol nasceu, Penasblancas despertou, depois de uma noite notavelmente calma. Vindos das montanhas, dos locais de pesquisa secretos, das galerias sem segurança das velhas minas, dos rios que, com as suas quedas d'água e os seus rápidos, arrancavam as esmeraldas das pedras, os gunqueros chegavam à cidade, transportando no corpo os lenços atados e na mão os revólveres ou as pistolas.
Os "escritórios" abriram. A mamá sentou‑se ampla e benevolamente numa dependência do seu Dancing Bar. Era uma pequena fortaleza, com vidro à prova de bala, grades de ferro, cinco guarda‑costas e uma estante blindada. Noutra parte da cidade, os homens de Christus Revaila espreitavam os pesquisadores, atraindo‑os para a oficina do rei de Penasblancas. A sangrenta guerra diária começara. As pedras verdes dominavam este mundo. Um mundo sem piedade, entre montanhas inacessíveis.
O tenente Salto não ficou de mãos a abanar por muito tempo. Uns compradores de Revaila atiraram sobre um da mamá. Não na cidade, e sim no caminho para as minas abandonadas. Era o costume: espreitavam‑se os gunqueros logo nos atalhos dos sítios onde andavam a pesquisar, fazendo‑se‑lhes ofertas logo ali.
Como só havia um morto, mas ninguém a quem pudesse atribuir‑se o tiro, a Policia só pôde, como sempre, tratar do transporte da vítima que, naturalmente, ninguém conhecia.
Assim, o corpo foi aumentar as campas dos desconhecidos do cemitério de Penasblancas.
O padre Cristobal apareceu, disse uma oração e depôs um tosco crucifixo de madeira no peito da vitima. Apesar de não ter dormido, desde as cinco horas da manhã que fazia cruzes de madeira, ajudado por Miguel, o porteiro. No pátio da casa, entre caixas e caixotes vazios, rodeados pelo fedor do lixo, tinham martelado incansavelmente durante horas a fio.
O Dr. Mohr, igualmente fatigado, estivera a comprovar o óbito. Era totalmente absurdo, pois qualquer um podia ver que o tiro trespassara o olho direito, mas, como agora havia um médico, era preciso dar‑lhe que fazer. O que o Dr. Mohr não viu, no entanto, foram os feridos do tiroteio.
Depois, passou quatro dias a passear, foi visitar o tenente Salto, soube que o major Gomez chegara são e salvo a Muzo, encontrando o seu batalhão num estado deplorável, e conduziu o jipe até às montanhas, onde se perguntou como era possível que trinta mil gunqueros se alojassem ali com as famílias. à noite, contemplava as fogueiras que ardiam nos rochedos. De dia, a região parecia deserta. Viu quatro famílias por baixo de ramadas primitivas, que serviam de alpendre a uma habitação numa caverna. Mulheres, crianças, três velhos descorados pela natureza impiedosa, vivendo no limite da existência humana. Quando o Dr. Mohr se aproximou, as crianças e as mulheres fugiram para dentro. Ficou parado, regressou ao jipe e seguiu em frente. Queria ajudar e não provocar. "Um dia, hão‑de vir ter comigo de livre vontade", pensou. Primeiro um, depois dois, três, cinco... que vão contar aos outros, dando‑lhes coragem. Por enquanto, a sua desconfiança era imensa. Por que razão um médico não podia ser também um espião e um inimigo?
Capitulo 3
No sábado à tarde, a igreja ficou pronta.
Com plásticos, tampas de caixotes velhos, pedras, tábuas e chapas onduladas que Miguel organizara, o padre Cristobal construíra uma espécie de uma tenda, no meio da qual colocara um grande crucifixo de madeira.
No domingo, tocou os "sinos": com um martelo, bateu numa frigideira de ferro.
‑ Vinde, filhos de Deus, mesmo que estejais amaldiçoados!
Por volta das onze horas, a igreja estava cheia.
A primeira missa do padre Cristobal foi um acontecimento.
Na primeira fila, encontravam‑se a Senhora Mercedes e Christus Revaila, separados um do outro por quatro guarda‑costas de cada lado. O porteiro Miguel, fazendo de órgão vivo, começou o primeiro cântico a solo. Uma atrás da outra, as indómitas figuras apertaram‑se em volta da cruz. Mas não só porque o invencível Miguel, o homem de mão da mamá, se mostrou tão sensacional ao atacar o cântico com uma voz de trovão, como se nunca na vida tivesse feito outra coisa; não, o facto é que Dona Mercedes Ordaz, enchendo o peito de ar e erguendo ainda mais os seios fulminantes, desatou também a cantar com uma poderosa voz de contralto. Os homens e mulheres, até ao momento muito reservados e espreitando os gestos da mamã, ficaram a ouvir embasbacados o dueto que esta cantava harmoniosamente com Miguel.
Ao lado da mamã, atrás do muro formado pelos guarda‑costas, Christus Revaila mordeu o lábio inferior. O seu olhar era lúgubre. "Que espertalhona", pensou. "Acredita tanto em Deus como uma pantera na alimentação vegetariana, mas sabe muito bem que estes malditos tratantes ainda guardam no coração uma centelha da sua fé infantil. Que vá para o diabo assim a recolher boas‑vontades e simpatias! Até com a ajuda de um padreco luta pelo poder em Penasblancas!"
Christus Revaila abriu as pernas, enfiou as mãos no cós das calças e começou a cantar. Ainda sabia o cântico do jardim de infância. Não a letra, claro, mas a melodia. Foi um novo ponto negativo, pois a mamá cantava impecavelmente com Miguel o louvor do Senhor na igreja improvisada. É evidente que ninguém suspeitava que Miguel aprendera de cor com a Senhora Mercedes a letra que o padre Cristobal lhe dera dois dias antes.
Revaila preencheu a falta de texto com a intensidade da melodia. Ninguém podia dizer que cantasse bem. Emitia um som parecido com o bramido de um touro, só que em vários tons. Mas o facto de Christus Revaila cantar era, em si, tão monstruoso, que todos desataram a cantar repentinamente. Foi como se se tivesse aberto uma represa: de súbito, elevou‑se na tranquila manhã de domingo um cântico como nunca houvera nenhum em Penasblancas.
O padre Cristobal ajoelhou‑se perante o altar feito de pedras, chapa ondulada e ripas de madeira envernizada. Em frente da modesta cruz grande de madeira, pusera o seu cálice de prata, um pequeno crucifixo também de prata e uma taça com hóstias. Quando o cântico acabou, levantou‑se e virou‑se com entusiasmo. A sua voz ressoou pela miserável igreja, sobre as cabeças dos presentes.
- Cantaram como se estivessem á beira do inferno. ‑ exclamou. - E têm razão! Vivemos aqui à beira do inferno, e o diabo é verde e diáfano e vem depois a adornar as orelhas, o pescoço e os dedos.
"Pronto!", pensou Revaila. "É a paga por não lhe termos incendiado esta igreja absurda. Nós queremos‑lhe bem e ele dá‑nos um pontapé no traseiro logo às primeiras palavras! É preciso falar com ele muito amavelmente e explicar‑lhe que, assim, não tem grandes possibilidades de sobreviver muito tempo em Penasblancas. Já temos agitações que cheguem. Não precisamos de padres a arranjarem‑nos mais complicações."
O Dr. Mohr, ao lado de Revaila, felicitou mentalmente o padre Cristobal.
Conseguira.
Então, viu‑a... Estava na quarta fila atrás da cruz e tinha um véu de renda branca sobre o cabelo preto. Ao seu lado, um homem atarracado e sério... devia ser o pai. Do outro lado, uma mulher, reflexo mais velho e amargurado da mesma beleza: a mãe. De mãos postas, todos eles contemplavam a cruz. O médico inspirou profundamente. Margarita...
Para o Dr. Mohr, Penasblancas perdeu o seu lado odioso e sinistro. Deixou de ouvir o sermão do padre Cristobal. Passando lentamente por entre a multidão, foi até ao outro lado e tornou a abrir caminho na primeira fila. Ainda lhe deram alguns empurrões mas, ao reconhecerem o novo médico, deixaram‑no passar.
Enquanto o padre Cristobal anunciava que estava à disposição de qualquer um, pois nada aliviava mais os tormentos da alma do que uma boa conversa, e até o mais infame continuava a ser filho de Deus, o Dr. Mohr colocou‑se junto de Margarita, que não olhou para o lado. Ouvia o padre a falar com os grandes olhos luminoSos. O médico só tocou ligeiramente no seu braço quando Cristobal disse "ámen" e Miguel atacou a aleluia com uma voz de trovão, no que foi imediatamente acompanhado por Mercedes Ordaz e toda a congregação, para grande fúria de Revaila. Ela estremeceu como se lhe tivessem batido, virou a cabeça e quase lançou fogo pelos grandes olhos. Depois, ao reconhecer o Dr. Mohr, tornou a voltar‑se silenciosamente para o altar.
Ficaram calados ao lado um do outro até ao fim da missa. Depois da bênção, que ela recebeu ajoelhada e de cabeça baixa, e a seguir ao "repicar dos sinos", desta vez a cargo de Miguel, que bateu na frigideira de ferro como se tivesse sido encarregado de a desfazer em bocadinhos, o pai meteu‑se entre Margarita e o Dr. Mohr, olhando‑o com desconfiança.
- Ponha‑se a andar, senhor - disse em voz áspera. - Não tem nada que fazer aqui.
- Só porque tenho as mãos mais macias do que as suas? Lançou um olhar a Margarita. Entretanto, a mãe também se metera de permeio. Decidida, com o sofrimento estampado no rosto, formava um muro com o pai: "Deixa a nossa filha em paz. Não pertences aqui. E quem não é como nós, só traz desgraças. Conhecemos bem os impiedosos caçadores das nossas formosas filhas."
- O que quer? - perguntou o pai.
- Conheci a sua filha na cadeia da esquadra.
- Ela contou‑me! - O pai hesitou. Tinha à frente um senhor bem‑educado, que o tratava por "você". Não era só estranho e totalmente insólito; também se tratava de um comportamento inqualificável. Um gunquero era, evidentemente, um monte de esterco. E como monte de esterco era tratado até ao dia em que chegava com o seu lenço atado e o pousava no tampo da mesa com o revólver a postos, pondo à mostra o produto de penosas semanas de trabalho, que lhe davam cabo da saúde: pequenas pedras verdes. Nessa altura, durante uma hora, tratavam‑no como um homem, dirigiam‑se‑lhe com cortesia e ofereciam‑lhe um copo. Até Christus Revaila chamava camarada ao mais nojento, dando‑lhe umas pancadinhas nas
costas. Era assim a vida: um gua quero só era homem quando tinha na sua posse os pequenos sóis verdes. Mas nem nessas alturas se lembrariam de o tratar por "você" e de agir como se ele fosse um senhor.
- Vamos, Adolfo - disse a mãe.
‑ Não vou comê‑lo. - O Dr. Mohr olhou em volta. A igreja esvaziara‑se tão rapidamente que parecia que todos tinham fugido ante a descoberta dos seus desejos mais secretos. Só o padre Cristobal continuava inclinado junto ao altar, limpando com um lenço de mão o prato prateado das hóstias.
‑ Chamo‑me Pedro Morero..
‑ Nós sabemos. Eu sou Adolfo Pebas, esta é a minha mulher Maria Dolores e a minha filha Margarita.
- Ainda tem outra filha, não é, Senhor Pebas?
A sua fisionomia, que se suavizara um pouco, voltou a endurecer.
‑ Não falemos dela, senhor - retorquiu Pebas asperamente. - Já estamos a dar nas vistas. Vamos andando.
‑ Gostava de ajudar.
- Como?! Ajudar! - Pebas riu amargamente. - Se quer ajudar‑nos, então deixe‑nos em paz. É a melhor ajuda! Talvez ainda possa tirar‑me alguma bala do corpo ou verificar o meu óbito, como no caso do Pablo Ramirez. Agradeço‑lhe por isso de antemão... depois não poderei fazê‑lo.
Voltou a rir‑se cheio de amargura, virou‑se, deu um braço à mulher e outro à filha e saiu da igreja. Ao princípio hesitante, o Dr. Mohr correu atrás deles, apanhou‑os na estrada e começou a caminhar ao seu lado.
Os Pebas olhavam fixamente em frente, como se ninguém os acompanhasse. Quando chegaram ao pé de duas mulas presas a uma árvore enfezada, cheia de pó e seca, que crescia do lado mais estreito da praça, Adolfo Pebas largou o braço da mulher e da filha e pôs‑se à frente do Dr. Mohr.
‑ Tem sorte em ser uma pessoa razoavelmente simpática! - exclamou friamente. - Qualquer outro que se portasse assim já teria levado um murro no nariz. Não precisamos de si!
‑Eu sei.
- Porque é que mentiu? - Era a primeira vez que Margarita abria a boca. Montada numa das mulas, ajeitava a saia por cima das pernas bonitas. - Dizia‑se que vinha um geólogo para Penasblancas, mas afinal o senhor é médico...
- Tive de mudar de ideias. - O Dr. Mohr sentiu uma espécie de alívio. A sólida parede dos Pebas começava a fender. A resistência enfraquecia. Embora com uma expressão crítica e prontos a saltar como um predador cautelosamente à espreita, dispuseram‑se a ouvi‑lo.
- Queria viver algum tempo entre vós, os gunqueros, para conhecer as vossas preocupações, necessidades, problemas e expectativas. Queria ser um de vós para mais tarde poder ajudar onde é verdadeiramente necessário.
- Nunca o teria conseguido! - replicou Pebas.
- Pareço feito de açúcar?
‑ Aqueles ali... ‑ Pebas apontou com o polegar para as montanhas - nem o teriam deixado respirar! Tencionava pesquisar?
‑Claro.
- Virgem Santa! Onde? As cavernas, galerias, buracos e margens dos rios já são autênticos formigueiros. Ia limpar a tiro alguma galeria só para si?
- Havia de arranjar uma equipa. Talvez o senhor. Duas mãos a mais são uma hipótese a dobrar. Uma verdadeira sociedade...
- Que acaba logo que alguém encontra alguma coisa. Nessa altura, os amigos matam‑se uns aos outros. Quem sobrevive é quem tem sorte. - Abanando a cabeça: - Não faz ideia de onde veio parar, senhor. A única coisa que interessa são as pedras verdes. Claro que somos todos idiotas ao acreditar que vamos fazer um grande achado. Eu também! Não há nada que possa
ajudar‑nos. O nosso entendimento está enterrado nas montanhas.
‑ Vamos tentar ‑ disse o Dr. Mohr.
‑O quê?
‑ Leve‑me consigo.
‑ Para onde?
‑ Para sua casa.
‑ Na montanha?
‑Sim.
‑ Está doido!
‑ Se me arranjar um canto onde eu possa ficar, isso chega‑me.
‑ Quer ir connosco para a cabana da montanha?
‑ Gostava de viver em sua casa. Quero ser gunquero, como todos vocês.
‑ Sabe atirar?
‑Sei.
‑ Tem força? - Dirigindo‑se à mula, Pebas desafivelou uma prancha do alforje e pegou nela com ambas as mãos. - Na verdade, precisava dela para uma porta, mas também serve para isto! Segure nela com força, com as duas mãos. Com muita força.
O Dr. Mohr pegou na prancha e estendeu‑a na direcção de Pebas. Sabendo muito bem o que ia acontecer, cravou os dedos na madeira. Pebas fitou a tábua, ergueu o punho direito com a rapidez do relâmpago e baixou‑o com igual velocidade. A prancha estalou e a madeira rachou. O Dr. Mohr manteve ambas as metades bem seguras nas mãos.
‑ Boa! ‑ exclamou Pebas friamente. ‑ E o senhor, doutor?!
‑ Pouse‑a entre duas pedras...
‑ Acha‑me um fracote? ‑ exclamou Pebas.
‑ Não gostaria que partisse os braços.
‑ Ah! Isso é o que vamos ver.
Procurando em volta, Pebas arranjou dois tijolos e colocou‑os no chão, pousando‑lhes a tábua em cima.
‑ Não vai conseguir! Nunca! O senhor é de carne e osso, não de ferro! Deixe‑se de disparates, doutor. Se há alguma coisa de que precisamos de si, é das suas mãos.
O Dr. Mohr ajoelhou‑se em frente da tábua e concentrou‑se. "Há dois anos", pensou. "Em Hamburgo. Lee‑en‑Lai, o professor de karaté, que rachava tábuas e tijolos mais grossos do que estes com um golpe de mão, rápido como um raio." Lee‑en‑Lai tinha sido seu doente. Uma simples operação ao apêndice, mas claro que Lai ficara profundamente agradecido e demonstrara‑lho dando‑lhe um curso particular de karatê. O Dr. Mohr chegara mesmo a aprender com Lai aquilo que normalmente nunca era ensinado, e que treinara com tábuas, tijolos e até chapas de ferro fundido: o golpe da morte, pancada temível que pode deformar completamente o esqueleto humano.
Olhando fixamente para a tábua, o Dr. Mohr inspirou profundamente, pensou em Lee‑en‑Lai e estendeu a mão. Depois, levantou o braço, a concentração da misteriosa força descarregou‑se num grito surdo e a aresta da mão embateu na prancha, abrindo‑a em duas como se tivesse sido atingida por um machado afiado como uma lâmina.
Pebas ficou a olhar para a prancha sem falar. O Dr. Mohr levantou‑se e encaminhou‑se para a mula montada por Margarita, cujos grandes olhos negros brilhavam. Com ambas as mãos, ajeitou por baixo do queixo o véu de renda que tinha na cabeça.
‑ Obrigado ‑ disse o Dr. Mohr.
‑ Porquê? ‑ perguntou ela baixinho.
‑ Quando baixei o braço, pensei: "Se conseguir convenço o pai da Margarita, que me leva para a montanha... para a sua cabana..."
‑ Não faças isso, Adolfo! ‑ pediu Maria Dolores, a
mãe, atrás das costas de Mohr. - Vai haver desgraça! Não o faças...
‑ Quando quer vir, doutor? ‑ indagou Pebas em voz baixa.
‑ Já. Se puder esperar, daqui a meia hora estou aqui. Só vou pôr a bagagem no Jipe...
‑ Os carros não vão até onde vivemos. E o seu jipe também não. Compre duas mulas e deixe o carro aqui. Nós esperamos!
‑ De certeza?
‑ Doutor, não sou só gua quero. Também sou espanhol! Os meus antepassados vieram para a Colômbia há cento e trinta anos. De Múrcia. Somos gente de palavra.
‑ Daqui a meia hora.
Virando‑se, saiu da praça a correr, enquanto ia esfregando dissimuladamente a aresta da mão direita. Ardia como se lhe tivesse pegado fogo. O padre Cristobal, à entrada da igreja, ameaçou‑o com o indicador.
- Anda já aqui Pete! ‑ ordenou com um riso contido. ‑ Vá, conta ao teu confessor o que andaste a fazer. Que coincidência! Ela estava na igreja!
‑ Daqui a meia hora, vou com eles para a montanha. Só preciso de ir buscar as minhas coisas a casa do Revaila.
- Isso é mau. ‑ Cristobal Montero juntou as mãos. Ainda envergava os paramentos. ‑ Pensei que íamos trabalhar juntos, tu na clínica e eu na igreja. Duas coisas que aqui são tão necessárias como o ar, a água e o pão.
‑ Vou procurar os meus doentes na montanha. Não quero esperar até eles me aparecerem... vou aos seus casebres e buracos.
‑ Boa ideia. - Contemplou a sua igreja improvisada: ‑ Também vou.
‑ Isso é loucura, Cris!
‑ O meu objectivo é precisamente levar Deus aos últimos recantos da humanidade. Encontrar‑nos‑emos em breve, Pete.
O Dr. Mohr percebeu que não fazia sentido discutir naquele momento. Dando uma palmada no ombro de Cristobal, partiu novamente a correr. à entrada do bar, a mamá Mercedes acenou‑lhe com as duas mãos. Ainda envergava o "vestido de ver a Deus" e a mantilha de renda.
‑ Entre aqui um bocadinho, doutor! ‑ gritou. - Vamos beber um bom vinho. Tenho de falar consigo. Vai ficar contente. Quero contribuir com alguma coisa para a clínica...
‑ Leve a sua contribuição para as montanhas, senhora! ‑ retorquiu ele. ‑ A partir de depois de amanhã dou consultas todas as manhãs!
Mercedes Ordaz ficou a olhá‑lo, perfeitamente embasbacada.
Christus Revaila estava com o pior dos humores. A missa pusera‑o muito tenso, não porque sentisse o aguilhão de qualquer arrependimento cristão (embora o padre Cristobal tivesse falado muito no remorso), mas porque tinha consciência de que, em poucos dias, a igreja adquirira uma nova força em Penasblancas, cujas consequências não podiam ainda prever‑se. Uma das coisas que mais perturbava Revaila era que Juan de Lupa, um rapaz muito mauzinho, que andava sempre a passear‑se com facas afiadas e revólveres engatilhados e a quem só a mamá conseguia impor‑se, fora um dos primeiros a aproximar‑se do altar para receber a comunhão. Ajoelhado, de olhos fechados, era a imagem da fé e da piedade. Uma visão monstruosa!
‑ Ah! Cá está o senhor médico! ‑ exclamou Revaila, quando o Dr. Mohr entrou em casa. ‑ Estou a rebentar! A estoirar! Tem algum remédio contra as explosões?!
‑ Beba um bagaço duplo, Christus.
‑ Foi para receitas dessas que andou a estudar anos a fio? ‑ Revaila pousou os pés na mesa de verga que tinha à frente. ‑ Viu aquela trapaceira da Mercedes? A cantar a plenos pulmões! A benzer‑se, a ajoelhar‑se, a revirar os olhos como uma vaca com cio... ah!... Eu rebento! E sabia todos os cânticos de cor! Só me pergunto como. Doutor, conheço essa "senhora" desde que ela apareceu em Penasblancas aqui há uns anos, com três rameiras atrás. Foi o primeiro equipamento do Dancing Bar. Tudo o que tinha pesos ou esmeraldas passou por três tendas e uma roulotte, onde vivia a mamá. Passado algum tempo, reformou a casa do bar e armou‑se em senhora. Todos os que quiserem estar com as mulheres têm de se lavar. Com água quente! E são obrigados a submeter‑se a uma desinfecção! Há quatro anos, apareceu aqui um padre, enviado pelo arcebispo de Bogotá. Como é que a Mercedes Ordaz reagiu? Rezou? Cantou com o peito erguido, como hoje?! Merda! Mandou‑lhe duas meninas a casa, que dançaram nuas pela casa paroquial e se puseram a gritar à janela: "Ah! Como ele é bom! Põe‑nos doidas!" O desgraçado do padre arrepelou os cabelos, apregoou a sua inocência, correu dum lado para o outro a tentar explicar tudo, protestou com desespero... mas só conseguiu que todos ainda se rissem mais dele! Por isso, fugiu da cidade. Desde então, ainda vieram mais três padres a Penasblancas: observaram a igreja transformada em supermercado, telefonaram a pedir ajuda às autoridades, durante a noite apanharam uma sova de desconhecidos e correram a refugiar‑se nos braços do arcebispo. Eram situações normais. E agora? A maldita carcaça ajoelha‑se e engole uma hóstia! O que ela quer é recolher apoios contra mim, para me arrebatar o negócio com o auxílio da Igreja. E o padre é tão estúpido que não percebe!
‑ O padre Cristobal é outro adversário! A Mercedes ainda vai divertir‑se muito com ele. ‑ O médico dirigiu‑se ao quarto e tirou a mala do armário. Revaila, que o seguira, deu‑lhe um murro nas costas.
- O que é isto, doutor? Vou mudar‑me.
‑ Ah! E para onde?
‑ Para a montanha. Para junto dos gunqueros.
‑ Porquê tanto trabalho? Se quer mesmo levar um tiro... eu posso dar‑lho! De resto, Don Alfonso encarregou‑me de tomar conta de si. Só posso fazê‑lo aqui.
‑ Porque não deve ser visto nas montanhas.
‑ Aleluia! Pelo menos percebeu isso.
‑ É aqui que reside a diferença entre nós: eu posso ser visto nas montanhas. Por isso, vou mudar‑me.
‑ Não sem a autorização de Don Alfonso. E não consigo contactá‑lo ao domingo. Tem de esperar até amanhã.
‑ Parto daqui a meia hora.
‑ Doutor, para quê zangar‑nos um com o outro? - Revaila pegou na mala do Dr. Mohr e tornou a atirá‑la para dentro do armário. ‑ Não vale de nada.
Encostando‑se à parede, o Dr. Mohr observou Christus Revaila, um monte de músculos forte e pujante que nem um touro.
‑ Esta cidade de Penasblancas é cheia de maravilhas ‑ comentou calmamente. ‑ As malas voam espontaneamente pelo ar. Revaila, ponha‑ma aqui outra vez.
‑ Talvez na segunda‑feira.
‑ Daqui a um minuto.
‑ Vamos aviar a sua receita de há bocado. Beba um copo de bagaço comigo.
‑ Revaila, é assim: quando falar com Don Alfonso, recorde‑lhe a nossa combinação: liberdade total! Faço aqui o que eu achar que é bom e não o senhor nem, muito menos, Don Alfonso, lá de Bogotá. Se ele for doutra opinião, então dou o nosso contrato por terminado.
Fitando‑o com estupefacção, Revaila abanou a cabeça:
‑ Esqueça isso, médico. Está a ser ridículo.
‑ É pena! Na verdade, tinha tudo começado tão bem! ‑ Olhou para a mala, pousada no guarda‑fatos.
"Tenho de mostrar que não estou deslocado aqui. Uma e outra vez. Sou obrigado a fazer ver a quem não quiser acreditar que não sou nenhum mariquinhas da cidade grande. Esta gente daqui só entende os actos, não as palavras. Ao mínimo sinal de fraqueza, ficamos marcados e somos ridicularizados. Poltrões que todos podem acossar e que, por fim, devem matar. O que vou fazer agora, Christus Revaila, não tem nada de médico... mas se não o fizer, nunca poderei sê‑lo aqui."
‑ A mala - clamou o Dr. Mohr friamente.
‑ Uma linda mala, doutor. - riu Christus Revaila.
Foi a última frase razoável que Revaila proferiu nas horas seguintes. Veloz como um raio, o punho do Dr. Mohr atingiu o surpreso "rei de Penasbíancas", arremessando‑o contra o armário. Revaila fez menção de sacar o revólver, mas um golpe de karaté quase invisível devido à rapidez imobilizou‑lhe o antebraço. O osso estalou. Revaila soltou um grito surdo, estendeu os braços e lançou‑se sobre o Dr. Mohr com a cabeça para a frente. Embateu directamente no punho esticado, foi lançado para trás e cambaleou como cego sobre si próprio. O terceiro golpe pôs fim à demonstração. Revaila caiu primeiro de joelhos e, depois, estendeu‑se ao comprido nas tábuas do soalho. O Dr. Mohr cruzou‑lhe as mãos atrás das costas e sacrificou um rolo inteiro de adesivo, com o qual lhe prendeu os pulsos de tal forma que nem um touro como Revaila conseguiria libertar‑se.
Com toda a calma, fez a mala, preparou os estojos médicos e levou tudo para o pátio interior, onde estava o jipe. Depois de o carregar, regressou ao quarto.
Revaila rolou pelo chão, tentou arrancar o adesivo com o rosto muito afogueado e pôs‑se de pé encostando‑se à parede. Era evidente que queria chegar á janela para gritar por ajuda. O Dr. Mohr agarrou‑o e voltou a atirá‑lo ao chão. O ódio contido nos olhos de Revaila era mortal.
‑ Se fosse a si, não o fazia - afirmou calmamente o Dr. Mohr. ‑ O senhor de Penasblancas a gritar por socorro?! Não são modos de um soberano, Revaila. Depois havia de dizer‑se que o invencível foi atado com adesivo! Que vergonha! Olhe, quer que daqui a duas horas lhe mande cá o Cristobal para o soltar?
‑ Eu hei‑de apanhar‑te, seu filho da mãe! ‑ gemeu Revaila. - Hei‑de apanhar‑te! Maldito!
‑ Se precisar dos meus conselhos médicos, vou abrir consultório na montanha.
‑ E se estiveres no inferno, apanho‑te na mesma!
- Com certeza. Aliás, até hei‑de vir fazer compras a
Penasblancas. Dê cumprimentos meus a Don Alfonso. Tenho grandes esperanças de que perceba os meus planos melhor do que você. Revaila, pode ser um grande senhor em Penasblancas, mas os músculos e a falta de escrúpulos ainda não substituiram os miolos. E no seu cérebro há muito, muito espaço vazio...
‑ Porco! ‑ gemeu Revai la, tremendo de raiva. - Porco! Porco!
‑ Daqui a duas horas pode vir atrás de mim. ‑ Despedindo‑se com um aceno de cabeça, fechou a porta e saiu da casa, bastante luxuosa segundo o padrão de Penasblanc as.
Quando passou pela "igreja", Cristobal Montero, parado à entrada, acenou‑lhe com ambos os braços. O Dr. Mohr deu uma guinada e travou.
‑ Eu ia voltar aqui ‑ afirmou. ‑ Não partia sem me despedir, Cris. Mas primeiro ainda tenho de comprar duas mulas.
‑ Anda comigo ver isto. - O padre entrou. Na igreja, em frente do altar, estavam duas mulas fortes, castanho‑acinzentadas, que fitaram o Dr. Mohr. Uma tinha uma sela e a outra uns alforjes enormes, onde cabiam imensas coisas.
‑ Padre, isto na igreja? - Rindo, o Dr. Mohr passou o braço pelos ombros de Cristobal. - Sabes ler pensamentos?
‑ Falei com os Pebas. O que queres dizer com isto numa igreja? Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento.
‑ Quanto custaram?
‑ Uma troca. Deixas‑me o teu jipe.
‑ Ia deixá‑lo de qualquer modo. Mas não te garanto a sobrevivência das mulas.
‑Nem eu do teu jipe.
‑ Queres mesmo vir?
‑ Não será um médico que vai ensinar à Igreja o que é o amor ao próximo. ‑ Cristobal Montero pegou nas rédeas da mula com a sela e puxou‑a para si. - Sabes montar uma mula?
‑ Claro que sei montar.
‑ Uma mula! É muito diferente de montar um cavalo. A mula tem a alma do cavalo e a cabeça dura do burro. Monta, Pete.
‑ Na igreja?
‑ A morada de Deus sempre foi fonte de ensinamentos. Onde é que está a diferença entre ensinar a palavra ou a montar uma mula?
- Vocês, os padres, têm sempre respostas para tudo, não é?
‑ Estaríamos perdidos se ficássemos sem fala nem que fosse só por um segundo. α Pete, não fales tanto! O tempo urge. Monta lá.
Em cima da mula, o Dr. Mohr atravessou dez vezes a igreja na diagonal, dando a volta ao altar e trotando por baixo do grande crucifixo de madeira pendurado na trave do tecto.
- Bravo! ‑ gritou o padre Cristobal algumas vezes. ‑ Muito bem! Excelente! É espantoso o que sabes sendo Só um sapateiro! Quando aprendeste? Pensava que os médicos trabalhavam trinta e seis horas por dia?!
‑ Quarenta, Cris! Nas quatro horas que nos restam por dia, gozamos a vida. ‑ O Dr. Mohr puxou as rédeas à mula e desmontou. O animal esfregou‑lhe a cabeça no ombro e farejou‑lhe o cabelo. ‑ Já gosta de mim.
‑ Que grande novidade! É fêmea...
‑ Obrigado, padre...
‑ Tu só vais para a montanha de modo a estares com a Margarita!
‑ Não só. Quero ver as coisas in loco, como nós dizemos. Quero estar na primeira linha deste cancro que ninguém conhece, ninguém quer conhecer e todos calam. Só podemos secar um atoleiro quando o conhecemos. Não chega termos o mapa.
- A Margarita não é nenhuma flor que cresce à beira do caminho e que podemos simplesmente colher para pôr na lapela.
- O seu sermão, meu confessor, era desnecessário.
‑ Os pais têm medo. Já perderam uma filha.
- Não sabia. Mas uma irmã da Margarita...
‑ É dela que estou a falar. - O padre Cristobal encostou‑se á mula de carga. - Está morta para o Adolfo e a Maria Dolores. Chama‑se Perdita, e há um ano que trabalha para a Senhora Mercedes, no bar. Fartou‑se da vida terrível nas montanhas, casebres e cavernas. A mamá ofereceu‑lhe um bom emprego a servir às mesas, com uma percentagem de cinco por cento no consumo.
- Isso é uma miséria! Em São Paulo recebem dez por cento.
‑ Para Penasblancas, é um contrato de sonho, pois o que se passa depois das horas de serviço é assunto absolutamente privado. Só uma coisinha de nada: a mamá embolsa vinte e cinco por cento. - O padre Cristobal pigarreou: ‑ No entanto, para as raparigas, é muito dinheiro! As horas de serviço fazem chover os pesos. A Perdita pode estar rica daqui a dois anos, mas nunca mais será honrada. Para a família, está morta. Só a Margarita continua a vê‑la. Quando chegámos e a encontrámos na cadeia, ia ver a irmã às escondidas. O Adolfo Pebas ficou furioso.
‑ Como é que sabes isso tudo?
‑ Foram eles que me contaram. Ouvi‑os em confissão.
‑Na praça?
‑ Deus está em todo o lado.
‑ Eu sei. E a vocês, padres, não vos falta descaramento.
‑ Por isso, vou tirar a Perdita da casa da mamá!
O padre Cristobal passou a mão pela barba desgrenhada.
‑ Descobri que ela vive e ("trabalha" no meu andar.
‑Meu Deus!
‑ O que é, meu filho?
‑ Vais continuar em casa da mamá?!
‑ Nunca me passou pela cabeça outra coisa. É o melhor lugar para mim! - Pegando nas rédeas das duas mulas, o padre Cristobal conduziu‑as para fora da "igreja". O Dr. Mohr seguiu‑o, encaminhou‑se para o jipe e começou a descarregar a bagagem.
- Tencionas competir com a mamá? Guerra de andar para andar? Vais perder, Cris.
- Desde que ela continue a ir à missa...
‑ Vai ajoelhar‑se à tua frente e receber a hóstia da tua mão, cheia de gratidão, mas à esquina estará à espreita o assassino contratado por ela. Perdoa‑lhe desde já o pecado de te mandar matar.
- É a caridade cristã.
‑ Dispenso!
Carregaram a mula, distribuindo o peso de modo a que o animal não ficasse excessivamente pesado. Na sua montada, o Dr. Mohr dispôs o estojo médico e a misteriosa pasta que lhe oferecera Don Camargo. Depois, o padre Cristobal estendeu‑lhe silenciosamente a mão, puxou‑o para si e beijou‑o em ambas as faces.
‑ Que Deus te acompanhe! - disse baixinho. - Vemo‑nos em breve.
‑ Pensa bem, Cris. As pessoas aqui da cidade também precisam de ti.
‑ Se um médico vai ter com trinta mil gunqueros, um padre também pode ir! Temos muito trabalho pela frente, Pete.
‑ Vai valer a pena, Cris. ‑ O Dr. Mohr subiu para a mula. ‑ Tem cuidado com a Mercedes Ordaz. A mamá é mais perigosa do que o Revaila. Ah, é verdade! Prendi o Christus com adesivo... meu Deus, cola que se farta! Está em casa deitado no chão. Prometi‑lhe que irias lá soltá‑lo daqui a duas horas.
‑ Pode muito bem esperar até à tarde. Um pouco de calma e reflexão só lhe faz bem.
- Tenho nele um novo inimigo de morte.
‑ Vês? Estamos quites. Tu tens o teu Revaila e eu a minha Mercedes Ordaz. Pete, mais uma vez, que Deus te acompanhe. Tem cuidado.
‑ E tu também.
O Dr. Mohr espicaçou a mula, que iniciou um trote calmo, seguida do animal de carga, preso por uma corda. Ao olhar em volta, viu o padre Cristobal conduzindo o jipe para a igreja. "Tem uma fé invejável", pensou. "Para ele, a casa de Deus é sempre o lugar mais seguro. Foi uma sorte eu ter‑lhe deixado no jipe uma metralhadora e quatro cartuchos de reserva."
A família Pebas estava à espera na praça. Quando viu o Dr. Mohr aproximando‑se ao longe, Adolfo ajudou Maria Dolores a subir para a sela.
Margarita tirara da cabeça o véu de renda e atara debaixo do queixo um lenço de franjas compridas. Sorriu timidamente quando o Dr. Mohr chegou junto da família.
‑ Até que enfim! ‑ exclamou Pebas. ‑ Demorou quase duas horas! Temos de nos apressar.
- Foi dificil convencer o Revaila.
‑ Deu em barulho? ‑ Adolfo fitou medrosamente o Dr. Mohr - Não valemos sequer um peso quando o Revaila é nosso inimigo.
‑ Ele reconheceu a necessidade. - Olhando em volta: ‑ Como é que vai, Adolfo?
‑ A pé! Ainda não posso dar‑me ao luxo de ter três mulas. De vez em quando, sento‑me atrás da Margarita.
‑ A que distância fica a sua cabana?
‑ Se tudo correr bem, a cinco horas de caminho.
‑ Que diabo! Porque é que não me disse? Tinha‑lhe arranjado uma mula!
‑ Não quero nada que não seja meu, senhor! - Afagando o focinho da mula do Dr. Mohr, acrescentou: - Fique a saber que não aceitamos nada que não possamos pagar. O mesmo se passa com a minha mulher e a minha filha. Antes morrer!
- São todos assim?
‑ Não! ‑ Pebas deu um estalido com a língua e as mulas começaram a andar. ‑ É por isso que me chamam o "Dolfo Maluco". - Aproximando‑se do Dr. Mohr, agarrou‑se à sela. - É um bom nome. Ninguém me leva nada a mal.
Durante quase sete horas, atravessaram desfiladeiros com luxuriantes arbustos e fetos gigantes, pistas estreitas seguindo por encostas íngremes e baloiçantes pontes de madeira estendidas sobre impetuosas torrentes da montanha. Sempre subindo, passaram por povoações mais parecidas com ninhos de pássaros, por habitações em cavernas e por casebres de telhado de palha entrançada. Onde quer que houvesse gente, existiam entradas para a montanha, passagens talhadas na pedra rumo às profundezas, galerias insuficientemente escoradas: acessos para o paraíso sonhado, verde e cintilante.
A casa dos Pebas ficava numa zona que as minas estatais tinham abandonado havia quatro anos, por não a considerarem rentável. A montanha estava perfurada por todo o lado pelas entradas das galerias, os vazadouros encontravam‑se cobertos de vegetação e a floresta virgem voltava a avançar. Era uma terra desconsolada, esgotada e, portanto, inútil. Até os gunqueros experientes tinham parado por ali apenas dois anos, voltando depois a mudar‑se. Haviam ficado dez famílias, entre as quais a do "Dolfo Maluco", que acreditavam piamente que existia nas profundezas da mina um veio de esmeraldas que ainda ninguém descobrira. Os geólogos do Estado tinham‑se limitado a abanar a cabeça. O que ali fora encontrado à custa de monstruosas despesas técnicas não valia nem um centésimo do que a mina custava anualmente. Quando depois se descobrira um novo jazigo de esmeraldas em Cozques, a mina fora encerrada, abandonada e entregue aos sonhadores, que escavavam as poucas pedrinhas verdes a que não se dera importância.
A cabana de Pebas tinha o aspecto de todas as outras habitações locais: uma caverna, à frente da qual fora construído um grande telhado, de modo a prolongar a casa, o que resultava em mais duas divisões. Dez galinhas e um galo receberam os moradores cacarejando loucamente. Dois porcos grunhiam num chiqueiro feito de estacas. Uma cabra leiteira corria por ali à vontade; quando viu as mulas, baixou os chifres. A escarpa da montanha erguia‑se atrás da casa. No meio desta escarpa, viam‑se as entradas de três galerias, da mais alta das quais pendia uma escada de corda.
- Não se mexam! - berrou uma voz lá de cima. O cano duma arma apareceu sobre uma pedra em frente da galeria do meio. - Mãos ao alto, seus patifes! Os vossos nomes! Nem mais um passo!
O Dr. Mohr levantou os dois braços. Horrorizado, viu Adolfo Pebas deslizando calmamente da sela atrás de Maria Dolores e encaminhando‑se para casa. Margarita também desmontou e seguiu o pai.
‑ Para trás! - gritou o Dr. Mohr. ‑ Ele tem‑vos na mira! Margarita, pára!
Virando‑se para trás, pegou na "pasta" de Don Alfonso e enfiou a mão no orificio. O punho frio da metralhadora parecia pegajoso.
Por sobre a pedra da galeria apareceu uma cabeça desgrenhada e, depois, o ombro ao qual estava encostada a coronha da arma.
O Dr. Mohr inspirou profundamente, apontou o orificio da "pasta" para cima e dobrou o dedo, preparando‑se para disparar.
O seu coração deixou de bater durante dois ou três segundos. Maria Dolores também desmontou da mula, seguindo calmamente atrás do marido e de Margarita. Lá em cima, na galeria, o homem tornou a apontar, mas não disparou. Parando na "varanda" do miserável casebre, um alpendre feito de estacas, tábuas e verga e palha entrançada, Adolfo Pebas acenou para o Dr. Mohr.
- Venha, doutor. Estamos em casa. Ou será que está arrependido da sua decisão? Já não pode voltar atrás. Os nossos vigias deixaram‑no entrar, mas agora não volta a sair sozinho. ‑ Ao ver o Dr. Mohr olhando fixamente para a galeria, riu alto e berrou: ‑ Pronto, Pepe! Tudo em ordem.
O homem que estava atrás da pedra desapareceu.
A arma foi recolhida. Mohr deixou‑se escorregar da mula
e dirigiu‑se para casa com as pernas entorpecidas. Margarita e a mãe já tinham desaparecido dentro da grande caverna. Pebas descarregou o animal de carga.
- Portei‑me como um imbecil, não? - perguntou o Dr. Mohr.
‑ Por causa do Pepe? Como havia de saber? O Pepe
é nosso vizinho. Toma conta da nossa casa quando vamos
à cidade. Mas é mais simbólico do que outra coisa, porque ele é quase cego. Por isso, tem um aspecto duplamente perigoso. Creio que é o gua quero mais velho da região. Ainda as minas do Estado funcionavam e Penasblancas era um lugarejo miserável, habitado por meia dúzia de índios chibchas, e já ele pesquisava esmeraldas às escondidas. Depois encontraram‑se realmente esmeraldas, coisa que o Pepe já sabia há muito tempo, só que não tinha instrumentos para chegar aos veios. Revolveu a montanha durante vinte anos, só com uma picareta e uma pá. Andava com uma lanterna de petróleo e, depois, com lâmpadas de bolso. A mudança permanente da escuridão das galerias para o sol do exterior corroeu‑lhe a visão. - Tirando um saco de conservas da mula, prosseguiu: - Todos nós acabamos por nos dar mal com estas pedras verdes. O Pepe chegou a fazer a sua grande descoberta! Há seis anos. Um bloco de esmeraldas que, desmontado, teria dado talvez uns quinze mil dólares. Era o que se calculava: quinze mil dólares! Em dinheiro contado! O Pepe partiu com o seu achado e até conseguiu chegar a Bogotá e à Emerald Street. Dois dias depois, encontrava‑se no hospital, com um buraco na cabeça e outro nas costas. Safou‑se, regressou à sua galeria e vive a escavar desde então. O que encontra dá‑lhe para não morrer à fome. Mas nunca mais deixou a montanha. Somos nós que lhe trazemos aquilo de que precisa. Há‑de morrer lá em cima, na galeria.
Na qualidade de hóspede, o Dr. Mohr ficou com o melhor lugar da casa: um canto da caverna, revestido com peles de cão. Maria Dolores fez uma sopa de carne enlatada e milho; Margarita foi recolher os ovos que as galinhas tinham posto.
à noite, tiveram visitas. Um homem gigantesco, de cabelo negro e rosto anguloso, que traía a sua origem índia, surgiu da escuridão. Ninguém o ouvira aproximar‑se. O crepitar da fogueira em frente da varanda abafava todos os outros ruidos. Parando à luz do lume, o homem fitou silenciosamente o Dr. Mohr. Depois, virando‑se para Pebas:
‑ Este é o médico?
‑ É. - Pebas fumava um charuto grosso, que ele próprio enrolara. Em honra do seu hóspede, até fora buscar uma garrafa de verga com vinho, mas, para não exagerar, misturara‑lhe água. Maria Dolores e Margarita afadigavam‑se na parte de trás da caverna, na "cozinha". O Dr. Mohr ainda não tivera oportunidade de trocar uma única palavra a sós com Margarita.
- A novidade já se espalbou? ‑ perguntou.
‑ Alastra como fogo. ‑ O homem alto e escuro afastou o cabelo preto da testa.
- Este é o Juan Zapiga ‑ informou Pebas.
‑ Posso muito bem apresentar‑me sozinho! ‑ resmungou Zapiga.
‑ Então faz isso e deixa de olhar para o doutor com essa cara de parvo.
- Portanto, chamo‑me Juan Zapiga... - continuou ele. ‑ Tenho mulher e dez filhos. E estão todos doentes. A minha mulher sofre da barriga, três dos meus filhos passam a vida a tossir, quatro têm feridas por todo o corpo, o rapaz mais velho quase não pode mexer o braço direito e grita de dores mal se lhe toca e os outros dois estão cada vez mais fracos e parece que têm leite nas veias em vez de sangue. Pode‑se fazer alguma coisa?
- Tenho de ver e examinar a tua família, Juan. Não posso fazer nada à distância.
- Ela está aqui.
Assobiou por entre os dentes e acenou. Sombras pequenas e grandes surgiram da escuridão. Foi como se das fendas das rochas brotassem silhuetas, que se perfilaram à luz da fogueira: uma mulher frágil e pequena, de cabelo comprido que lhe chegava aos joelhos e olhos de índia, e dez crianças dos catorze aos dois anos, envoltas em farrapos cosidos uns aos outros. Vinte e dois olhos, que o fogo tornava maiores e mais brilhantes, fitaram o Dr. Mohr. A criança mais pequena, agarrada à saia da mãe, tinha o polegar na boca. Um esqueleto revestido com uma pele pálida, quase cor de azeitona.
‑ Estão todos limpos e lavados - informou Zapiga. - Sei muito bem o que se deve fazer quando se vai ao
médico! ‑ Tornou a assobiar. O rapaz mais velho pôs‑se
ao seu lado. - Este é o que não consegue levantar o braço. Mas preciso dele. Tem força que chegue para andar comigo na montanha. Quanto custa?
- O quê? - perguntou o Dr. Mohr, um tanto perplexo, observando os membros da família um a um. "Está tudo dito", pensou. "Tuberculose, anemia, escorbuto, flirunculose, carência em albumina, ferro e cálcio, todas as formas de subnutrição e talvez já alterações ósseas."
‑ A observação.
‑ Nada.
Juan Zapiga pareceu não compreender. Que alguém fizesse alguma coisa sem levar nada, estava para além da sua compreensão. Levando a mão ao cinto, tirou o famoso lenço atado dos gunqueros e desatou‑o. Ao seu lado, o rapaz puxou de um revólver com a mão esquerda e aproximou‑se mais. Também apareceu subitamente uma arma na mão do segundo filho, talvez aí com uns dez anos. A mulher pequena e frágil, esgotada por tantos partos, cingiu o filho mais pequeno a si e apertou na mão direita uma pistola, que tirou de baixo da saia larga.
O Dr. Mohr olhou em volta, perplexo. Margarita e Maria Dolores encontravam‑se à entrada da caverna. Também elas tinham armas de cano comprido na mão e, pelos vistos, não era a primeira vez que se postavam assim à frente de casa, prontas para o que desse e viesse. O próprio Pebas também se inclinara para a frente. Tinha entre as pernas o revólver pesado, pronto a disparar.
‑ É só uma medida de precaução ‑ explicou. - O Juan está a desembrulhar as esmeraldas. E se estivermos a ser observados? Há olhos por todo o lado. Nenhum gua quero desata o lenço sem estar bem protegido.
Os melhores amigos transformam‑se em assassinos... as pedras verdes fazem esquecer a honra e a amizade.
Zapiga esperava. Depois, agachou‑se mais perto da fogueira, com a cautela do animal que vai beber, pressentindo continuamente o perigo, e estendeu o lenço. Um pequeno montinho de esmeraldas brilhou à luz da fogueira: cristais verdes de formas bizarras, redondos, poligonais, como lancetas, dois deles parecidos com minúsculos pilares.
‑ É tudo o que tenho - informou Zapiga. ‑ O trabalho de três anos. Não chega para parar e mudar‑me para a cidade com a mulher e os filhos. Não chega para comprar um pedaço de terra e fazer dele uma finca. Mas sei, tal como todos aqui, que a nossa montanha tem uma pedra muito grande! Sonho com ela. Todos os dias sonho com ela. Num destes sonhos, até me apareceu um anjo. Consegue entender isto, senhor doutor? Um anjo a sério, com asas e tudo! Disse‑me assim: "Juan, tem paciência! Não posso rebentar os rochedos por ti, mas tu podes escavá‑los. Tem fé na tua sorte!" Raios, senhor doutor, eu tenho fé! Mas até que ela venha, a sorte, morrem‑me todos. A mulher, os filhos... Tire o que quiser. Esta aqui? A mais comprida? Depois de lapidada, deve ter um quilate. É da melhor qualidade, da mais pura. Nem uma impureza.
‑ Não tiro nada ‑ retorquiu o Dr. Mohr em voz rouca. - Guarda isso tudo, Juan.
‑ Quer mandar‑nos embora? Doentes e fracos?
‑ Eu vou tratar de vocês.
‑ Sem ganhar nada? E de que vive?
‑ Tenho dinheiro que chegue.
Zapiga fechou o lenço em volta das esmeraldas e atou‑o.
‑ Não é nada nenhum médico... ‑ disse para Pebas. - É um doido varrido!
‑ É o que eu digo. Mas que hei‑de fazer? É melhor que viva comigo do que com outro qualquer.
‑ Vamos lá começar. ‑ O Dr. Mohr ajoelhou‑se no chão rochoso. "A minha primeira consulta entre trinta mil abandonados da lei", pensou. "A terra é a mesa de observações, a bruxuleante fogueira substitui a iluminação do tecto e, em lugar de se lavarem as mãos, esfregam‑se nas calças. Na semana que vem, já vai ser tudo diferente. Aqui ao lado dos Pebas vai construir‑se uma grande cabana médica, onde os doentes se deitarão pelo menos numa mesa de madeira e onde haverá uma lâmpada. Amanhã, meu querido Adolfo vamos iniciar a construção." - Preciso do meu estojo, aquele de metal - disse.
‑ Eu vou buscar! - ofereceu‑se Margarita.
‑ É muito pesado
‑ Vai buscar! ‑ ordenou Pebas. - Doutor, as Pebas não são nenhumas mulherezinhas de luxo cheias de não‑me‑toques. Aqui trabalha‑se no duro. Quando encontramos no caminho uma rocha grande, temos de a afastar! As escavadoras que temos são as nossas mãos! É claro que a Margarita pode muito bem com uma mala.
Saindo da caverna, Margarita arrastou a pesada mala de metal, sem que ninguém a ajudasse. Quando o Dr. Mohr fez menção de ir auxiliá‑la, Pebas conteve‑o.
‑ Ainda arranja uma hérnia! - ofegou o Dr. Mohr.
‑ Se calhar...
- Não quero que ela pegue em coisas tão pesadas. Se eu lhe enumerasse as possíveis lesões futuras, Pebas...
- Mas quem pensa aqui no futuro? O que é o futuro? As costas tortas? Uma barriga desfeita? Ossos quebradiços? E então? A Margarita não tenciona ser a Miss Colômbia.
Entretanto, esta chegara junto da fogueira e pousara a pesada mala. Tinha os braços a tremer e o suor escorria‑lhe pelo rosto de madona. Sorrindo com um esgar, passou o braço pelos olhos.
- Pronto. É tudo medicamentos?
‑ E muitos aparelhos. Margarita, não tornas a pegar na mala cheia.
‑ Pois vai levá‑la de volta ‑ retorquiu Pebas calmamente.
‑Eu é que a levo!
‑ Para quê discutirmos, doutor? ‑ Inclinando‑se para a frente, Pebas tornou a enfiar no cinto o revólver que lhe oscilava nos joelhos. ‑ O senhor é meu hóspede e disseram‑me que devemos ser delicados para com os nossos convidados. Mas um hóspede não tem nada que se meter na vida em família do dono da casa. Ou isso agora é novo entre a gente fina? Aqui, na minha casa, quem manda sou eu! E se eu digo que a Margarita é quem leva a mala, é isso mesmo que vai acontecer! Está claro?
‑ O que está claro é que a mala fica aqui e sou eu que a levo.
‑ Vamos ver. É uma questão de principio, não percebe?
‑ A mulher já não é nenhuma escrava, como aqui há duzentos anos.
‑ Há duzentos anos! ‑ Rindo asperamente, declarou: - Doutor, nós vivemos aqui como no inicio da Criação! E é coisa que o senhor não vai mudar sozinho!
O Dr. Mohr fez saltar os fechos de metal e abriu a tampa. Dum molde esterilizado, o que o fez sorrir sarcasticamente, retirou o estetoscópio e o aparelho de medir a tensão, cuja ponta desenrolou e pousou no joelho.
- Como se chama a sua mulher, Zapiga? - indagou.
‑ Nuria.
‑ Um nome muito bonito. Nuria, venha cá, por favor.
‑ Primeiro o rapaz, senhor doutor. - Zapiga empurrou o rapaz de catorze anos para a frente. ‑ O braço dele...
‑ Eu disse "Nuria".
- Mas eu preciso do braço dele!
- E a Nuria deu‑lhe dez filhos.
‑ E gostou. Sobretudo antes. ‑ Zapiga riu de esguelha para Pebas. "Que hei‑de fazer, camarada? Posso lá fazer zangar o médico! Como tens saúde, podes empinar o nariz, mas eu estou com onze doentes em casa." ‑ Dez filhos chegam. As dores de barriga que tem são a sua melhor protecção.
- Vê‑se. - O Dr. Mohr ajustou o estetoscópio ao pescoço. ‑ Vocês ainda são homens?
‑ Também gostávamos de saber. ‑ Pebas atirou para o lume o charuto meio fumado. ‑ Não discuta mais connosco, doutor. O que é que ganha com isso?
O rapaz mais velho aproximou‑se do Dr. Mohr e tirou a camisa com um esgar de dor. Mal podia erguer o braço direito.
- Diz que as dores que sente são como cem mil pregos a espetá‑lo por dentro ‑ esclareceu Zapiga. ‑ Já há meses que está assim. Ficou com isto de repente. De um dia para o outro.
- Febre?
‑ Não sei - resmungou Zapiga. ‑ Temos mais que fazer do que andar a pôr‑lhe a mão na testa.
‑ Ele tem febre. - A voz de Nuria era acanhada e cheia de paciência. ‑ Tem sempre febre, umas vezes alta e outras quase nada.
- A mãe sabe! ‑ exclamou o Dr. Mohr. ‑ Meu Deus, que consolo! Pelo menos, as mães ainda são gente por aqui. Anda cá. Como te chamas?
- Pablo ‑ redarguiu o rapaz, ajoelhando‑se no chão em frente do Dr. Mohr. O primeiro olhar confirmou logo
o diagnóstico que fizera mentalmente: a articulação do ombro estava inchada, a pele vítrea e o braço mal mexia. Quando pegou nele e o virou muito devagar, o rapaz cerrou corajosamente os dentes. Zapiga deu‑lhe um murro na ilharga.
- Domina‑te, Pablo!
‑ Temos aqui um belo sarilho! ‑ disse rudemente o Dr. Mohr. - É um empiema na articulação. E bem feio, por sinal. Não precisava de ser assim. Arrastou‑se muito! Deviam ter ido ao médico logo ao primeiro sinal.
‑ Levanta‑te! - ordenou Zapiga em voz dura. - Pablo, levanta‑te. Não temos aqui nenhum médico, e sim um idiota! - O rapaz ergueu‑se hesitantemente. Tinha os olhos ainda mais brilhantes. Lágrimas. Pablo chorava silenciosamente, mas o seu rosto permanecia impassível. ‑ Ao médico! Onde é que há algum médico por aqui?! Mas quem é que pode pagar um médico? E agora sou eu o culpado! Adolfo, quem trouxeste contigo? Dá‑lhe um pontapé no traseiro! Põe‑no daqui para fora! ‑ Zapiga deu um passo na direcção do Dr. Mohr com um ar ameaçador, se bem que não passasse de um esqueleto com pele de pergaminho. ‑ O que é que o Pablo tem?
‑ Em palavras simples, tem uma quantidade de pus na articulação, em resultado de uma inflamação. A cavidade da articulação está cheia. O problema arrastou‑se tanto que toda a articulação está inflamada.
‑ E pode‑se morrer disso?
‑ Pode‑se morrer de qualquer doença, até duma constipação. O Pablo vai morrer com uma septicemia... Uma infecção no sangue... mas, antes disso, as dores tornar‑se‑ão insuportáveis. Tão insuportáveis que há‑de preferir matá‑lo a deixá‑lo rebentar assim. Percebeu bem?
‑ Percebi! ‑ resmungou Zapiga.
‑ Ah! Então, finalmente, faço‑me entender. Portanto, quer matar o Pablo daqui a umas semanas?
‑ Não! ‑ arquejou Zapiga.
‑ Quer que o trate?
‑ Quero...
‑ Então, mete o rabinho entre as pernas e faz o que te digo! Tenho de fazer uma punção ao Pablo.
‑ O que é isso?
‑ Silêncio! ‑ Muito encolerizado, o Dr. Mohr deu um murro nas botas de Zapiga, de pé à sua frente. Desorientado, Zapiga recuou um passo e coçou a cabeça. Era um outro tom e um tratamento diferente. Claro que podia devolver‑lhe a pancada e atirá‑lo para o fogo mas, nesse caso, nem Pablo e os outros nove nem Nuria voltariam a ter saúde.
- Já estou calado, senhor doutor ‑ disse Zapiga, respirando com dificuldade.
- Depois da punção, vou tentar debelar a infecção com antibióticos. Se fosse numa clínica, irrigava a articulação, mas aqui não pode ser.
- Porquê?
- Não tenho meios. Falta‑me uma sala de operações anti‑séptica, um quarto esterilizado para o tratamento.. Quer saber mais?
- Mas não é verdade que um bom médico pode tudo? - retorquiu Zapiga com simplicidade.
O Dr. Mohr baixou a cabeça. "Tenho de enfiar a carapuça", pensou. "Como tens razão, Juan Zapiga! A perfeição técnica paralisa‑nos quando nos vemos fora do nosso mundo, só com uma faca na mão e uma barriga para abrir. A operação ao apêndice com uma faca de bolso, a trepanação do crânio com martelo e escopro, as suturas com uma agulha de sapateiro e os fios dum xaile de seda... há livros com histórias assim. A Bíblia dos médicos em situações de excepção. Mas, caros colegas, quem pode tratar um empiema tendo à disposição apenas uma toca de montanha na cordilheira colombiana, um estojo cirúrgico e duas caixas de antibióticos?"
- Vou tentar ‑ disse.
- Já sabia, doutor. ‑ Zapiga sorriu debilmente. ‑
O senhor não desiste. Não tem ar disso!
- Mas não prometo nada. Pode correr mal, Juan.
- E se não o tratar?
‑ Pior ainda.
- Então, faça o que achar melhor! ‑ Zapiga enfiou
as mãos no cós das calças. ‑ Não tenho nenhuma hipótese melhor no meu buraco da montanha.
‑ Imagino que não.
O Dr. Mohr examinou as dez crianças. As suas suspeitas confirmaram‑se. Furunculose, tuberculose, subnutrição, má alimentação, carências em vitaminas, distrofia. Juan Zapiga estava suspenso das suas palavras.
‑ Uma catástrofe! ‑ anunciou o Dr. Mohr. ‑ No fluido, só existe um remédio.
‑Eu sei: sair daqui.
‑ É isso.
‑ Impossível.
‑ Porquê?
‑ O meu sonho. O anjo, senhor doutor. Tenho de encontrar a minha grande pedra. E está aqui debaixo da montanha. Sinto‑o! Como posso ir‑me embora? O que hei‑de fazer na cidade? Varrer as ruas? Viver com doze pessoas em dois quartos fedorentos? Andar a esgaravatar à noite o lixo dos ricos? Na cidade, só tenho uma hipótese: ser ladrão! Senhor doutor, não posso sair daqui antes de enriquecer.
O Dr. Mohr assentiu, fitando Nuria, que esperava em silêncio e que, quando reparou no seu olhar, sorriu timidamente.
‑ Vou tratar dos teus filhos. Tenho comigo medicamentos que cheguem. O que não tiver, virá de Bogotá.
- Para aqui? Nunca!
‑ Garanto que sim. Quanto ao Pablo, farei o possível.
- Obrigado, senhor doutor.
‑ Agora a Nuria.
A mulher avançou até à fogueira e deitou‑se logo no chão, à frente do Dr. Mohr. Desabotoou a blusa e puxou a saia por cima das ancas. O seu corpo devia ter sido muito bonito. Liso e gracioso. Agora, os seios estavam flácidos, aS ancas angulosas, as coxas magras e o esterno quase perfurava a pele como um espeto. Só a barriga se apresentava lisa e redonda, de uma macieza e delicadeza alarmantes, quando comparada com o resto do corpo esgotado.
O Dr. Mohr olhou para cima, mas Zapiga, fazendo com os filhos uma roda em volta de Nuria, não entendeu a sua hesitação.
‑ Quero ficar sozinho! - anunciou o Dr. Mohr em voz alta.
‑ Porquê?
- Tenho de examinar a Nuria!
‑ Faça o favor.
‑ Raios! Tenho de a examinar profundamente. Nas partes intimas.
‑ Pois comece.
‑ As crianças, Juan.
‑ O que têm as crianças? Ela pariu‑as, vieram de dentro dela. Para quê tanto mistério?
- Existe uma coisa que se chama vergonha, Zapiga!
- Não entre nós. Connosco é tudo natural. Desde o
princípio ao fim da vida. Não vai ser diferente lá por examinar a Nuria.
O Dr. Mohr inclinou‑se sobre a mulher nua deitada à sua frente. Com muito cuidado, apalpou o baixo‑ventre e fez pressão em determinados sítios, perguntando se doía. Nuria abanava a cabeça. Depois, fez que sim algumas vezes e disse:
‑ Não dói sempre. Mas muitas vezes é como se fosse ter um filho. Tenho lá dentro qualquer coisa redonda e pesada, que faz força para sair, mas não sai. Não é nenhum filho.
O Dr. Mohr assentiu. "Era o que me faltava, aqui. neste deserto. Zapiga, tens azar com a tua grande família."
Tirando um espéculo ginecológico da mala de metal. olhou em volta.
‑ Alguém tem de levantar a Nuria ‑ disse em voz rouca.
‑ Basta dizer como, senhor doutor. ‑ Zapiga tornou a ajoelhar‑se e ergueu com ambas as mãos o baixo‑ventre de Nuria.
Surgindo do outro lado, Margarita apoiou as nádegas nos antebraços.
‑ É capaz de doer. Se quiser, grite, Nuria. - O Dr. Mohr fez avançar o espéculo cautelosamente.
Zapiga abanou a cabeça:
‑ Ela não vai gritar, senhor doutor. É uma mulher valente.
O exame através do espéculo não era muito claro. No entanto, o Dr. Mohr confirmou as suas suspeitas. Zapiga observava‑o com um ar interessado. "Que coisa!", pensava. "Como é que um médico pode estar a olhar para dentro da barriga da minha mulher?! São todos malucos."
O Dr. Mohr retirou o espéculo e assentiu. Zapiga e Margarita voltaram a pousar o baixo‑ventre de Nuria no chão. A sua pele estava coberta por uma ligeira película de suor, não devido às dores ou ao medo, mas como expressão de uma certa vergonha reprimida.
- Um mioma! ‑ anunciou Mohr. ‑ Um leiomiogia. Só há uma solução: operação. Em Bogotá.
‑ Aqui não?
‑ Impossível!
‑ Mas nós nunca vamos a Bogotá.
‑ Eu levo lá a Nuria.
‑ E quem paga?
‑ Eu.
‑ O senhor é um bom homem, doutor, mas não pertence a este nosso mundo. Ora pense bem. Se eu permitir que a Nuria seja operada, vão pensar que encontrei esmeraldas e estou a escondê‑las. Vão seguir a Nuria, raptá‑la, vão fazer chantagem comigo. São como jaguares. Sinistros e impiedosos. O senhor e a Nuria nunca chegariam a Bogotá.
- Então levo uma escolta militar.
- Militar? - Zapiga riu alto. - Por causa duma mulher? Ora tente! E se os soldados realmente aparecerem, não será por causa da Nuria, e sim para nos confiscarem as esmeraldas. Os soldados tornam a partir, mas o senhor fica. Sabe o que lhe fazem a seguir? A mesma coisa que já fizeram a um que pôs os soldados atrás de nós. É melhor nem contar...
- Há aqui algum telefone? ‑ perguntou o Dr. Mohr.
- Um telefone? É mesmo doido varrido!
- Alguém tem emissor de rádio?
- Alguns têm, nas galerias grandes.
- Conhece alguém lá?
- Conheço todos.
- Então vá lá, Juan, e diga‑lhes para entrarem em contacto com o Christus Revaila.
Zapiga baixou a cabeça e esticou o queixo.
- O que quer ao Revaila? O que é que tem a ver com o Revaila?
- É o meu contacto com o exterior.
- Logo o Revaila? ‑ O seu tom era ameaçador.
- Não tive escolha. Não gosta do Revaila? Eu também não.
- O Revaila anda atrás de mim há dois anos. Não se atreve a vir à montanha, mas quando eu sair, só um de nós há‑de ficar vivo.
- No entanto, agora precisamos dele. Só posso operar o Pablo e a Nuria com a ajuda dele. O Don Alfonso tem de me mandar os equipamentos.
‑ Don Alfonso? ‑ Zapiga recuou dois passos, como se o Dr. Mohr exalasse algum gás venenoso. ‑ Foi o Don Alfonso que o mandou para cá?
- Não. Tenho um contrato com ele.
‑ Levanta‑te! ‑ ordenou Juan em voz dura. Nuria pôs‑se de pé, vestiu rapidamente a blusa e a saia e aproximou‑se dos filhos. ‑ Muito obrigado, senhor doutor.
Ajoelhado junto da mala de metal, o Dr. Mohr procurava os medicamentos.
‑ Para onde vai, Juan?
‑ Para minha casa! Eu bem me parecia que havia qualquer coisa que não batia certo. Aparecer de repente aqui um médico! E de livre vontade! Claro que aqui há coisa: ele não veio de livre vontade! Veio a mando de Don Alfonso. O Camargo quer apanhar‑nos as esmeraldas servindo‑se das nossas doenças. Que cão tão traiçoeiro! E o senhor é o chamariz.
Zapiga cuspiu à frente do Dr. Mohr e pegou no braço do seu filho Pablo. O seu desprezo era imenso, tal como a sua desilusão. Só havia uma coisa de que tinha agora a certeza: a sua família ia morrer como moscas por efeito de uma nuvem de gás tóxico.
‑ Eu vim para ajudar ‑ afirmou o Dr. Mohr. - É‑me indiferente donde vem o dinheiro. O principal é que eu receba tudo aquilo de que preciso. Não interessa quem comprou uma injecção para o coração... o essencial é que a comprou! E uma mesa onde possa operar a Nuria é para mim mais importante do que todos os Don AlfonSos do mundo.
‑ O senhor doutor não percebe. ‑ Zapiga estava parado, rodeado pela família. Seis filhos e quatro filhas, todos marcados por aquela terra impiedosa. ‑ Hoje distribui medicamentos, amanhã oferece uma sala de operações e depois de amanhã aparece aqui com um exército para nos roubar. Já o fez uma vez, há dois anos, em Muzo. Houve cinquenta e nove mortos. Pelo menos, é a conta dos que se encontraram. Ninguém falou do assunto, nem sequer os militares de Muzo. Um gua quero pode muito bem ser abatido, até é uma boa acção. Alivia os soldados. Doutor, o senhor é só a tropa avançada! A razia vem atrás de si.
‑ De mim, não. Aí, Don Alfonso enganou‑se. - O Dr. Mohr sentou‑se na mala de metal. Os medicamentos de que estivera à procura encontravam‑se espalhados no chão, à sua volta. - Anda cá, Pablo.
Zapiga segurou‑o.
‑ Para quê?
‑ Tem de levar uma injecção contra as dores e de tomar antibióticos.
- Isso ajuda alguma coisa?
‑ Para começar, sim. As outras crianças também vão voltar a ficar boas. Juan, porque é que não acredita que eu agora sou um dos vossos?
‑ Como é que uma pessoa que nos trata por "você" pode ser um dos nossos? Isto é outro mundo, senhor doutor.
‑ É por isso que estou aqui. Para que vocês voltem a acreditar na humanidade. Talvez também venha para aqui um padre.
‑ Matamo‑lo à pancada.
- Vai ser mais dificil com ele do que comigo. Ele não se deixa matar à pancada. Responde taco a taco e, se for preciso, é o primeiro a levantar a mão. Se calhar, era o que eu devia fazer, não? Primeiro atirava‑te ao chão, e depois dizia‑te: "Agora levanta‑te e traz‑me cá os teus filhos!"
- Tenta, doutor.
‑ Obrigado.
Zapiga fitou o Dr. Mohr.
‑ Porquê?
- Trataste‑me por "tu".
- Tu também!
‑ Vai ter com ele, Pablo! ‑ ordenou Zapiga em voz rouca. - Deixa‑o tratar‑te. O doutor é um raio dum patife...
O Dr. Mohr aplicou injecções de vitaminas e antibióticos, espalhou pomada nos furúnculos dos pequenos e desinfectou as úlceras abertas. Distribuiu comprimidos e drageias contra os sintomas de carência e mandou a familia inteira beber à sua frente cálcio dissolvido em água. Pondo‑se de lado, Zapiga observou melancolicamente toda aquela movimentação. Depois de todos receberem os seus medicamentos, tornou a assobiar. A família correu para ele como uma manada que o touro tivesse chamado.
‑ Voltem amanhã! ‑ disse o Dr. Mohr.
‑Isso não sei.
‑ Juan, uma última palavra: se amanhã de manhã a tua família não estiver aqui por volta das onze horas, vou eu lá buscá‑la.
- Se fosse a ti, ouvia o que ele diz, Juan ‑ interveio Pebas, intrometendo‑se pela primeira vez. ‑ Ele é capaz de despedaçar uma prancha grossa com a mão. Eu vi. Parte‑te OS ossos todos antes de respirares duas vezes. Vai demorar mais tempo remendar‑te outra vez o corpo.
Zapiga resmungou qualquer coisa que não se percebeu e desapareceu silenciosamente com a família na escuridão. Tudo o que se passara parecia ter sido apenas um sonho. Só as ampolas partidas no chão mostravam que fora realidade. Adolfo Pebas atirou mais achas para a fogueira.
‑ Faz a tua lista, doutor. Vou ainda hoje ter com alguém que possua um aparelho de rádio. Conheço‑os a todos. Mas não acredito que as coisas alguma vez cheguem aqui.
‑ Vamos esperar, Adolfo. - O Dr. Mohr sentou‑se na mala de metal e tirou o bloco de apontamentos do bolso. ‑ Mas se chegarem, começa uma vida nova.
‑ Nunca te hão‑de agradecer, doutor. O teu caminho de regresso passa sempre pelo Christus Revaila.
- Quem é que te disse que quero regressar, Adolfo?
‑ Valha‑me Deus! Queres ficar connosco para sempre?
‑ Se me quiserem aqui... A pátria do médico é onde há doentes que precisam dele.
‑ Porque é que estás a mentir, doutor?
‑ Não estou a mentir, Adolfo.
‑ Ficas aqui só por causa da Margarita.
- Não só...
‑ Mas também.
O Dr. Mohr sentiu um formigueiro debaixo da pele da cabeça. Fingiu procurar alguma coisa na mala, mas sentiu o olhar de Pebas na nuca.
‑ A Margarita é uma rapariga pura ‑ continuou Pebas em voz monocórdica. ‑ Inocente e cheia de esperança num bocadinho de sorte. Eu tinha outra filha. A Perdita. Também era bonita, pura e inocente. Apareceu então um homem, que falava como uma enciclopédia, cantava lindas canções à guitarra e falava de amor. Levou‑a para Penasblancas. Deu‑me dois mil pesos para eu tratar do casamento. Nunca casou com a Perdita. Só mais tarde percebi que ma tinha comprado. Por dois mil pesos. Para onde a levou? Para uma casa de prostitutas. Deve ter recebido trinta mil pesos por ela. A mamá não paga mal pelas jovenzinhas. Foi assim que perdi uma filha. - Pebas inclinou‑se na direcção do Dr. Mohr, até a sua face roçar a nuca do médico. ‑ Se enganares a Margarita, podes crer que te mato, doutor ‑ ameaçou baixinho. - Juro‑te por Deus e todos os anjos que te mato! E agora, escreve a lista.
O Dr. Mohr assentou aquilo de que precisava: uma mesa de operações desdobrável, um projector potente, um gerador eléctrico a gasolina, instrumentos cirúrgicos para as operações mais importantes, frascos de infúsões e sangue. ligaduras e material de sutura em grandes quantidades, anestésicos, luvas cirúrgicas, soluções anti‑sépticas, sprays desinfectantes e um grande rol de medicamentos.
- É o principal ‑ disse, entregando a folha a Pebas. Demorara mais de uma hora a escrever tudo. - Com isso, já posso trabalhar.
Pebas passou os olhos pela lista e guardou‑a no bolso.
‑ És mesmo doido varrido, doutor. Mas como queiras. Vou mandar transmitir tudo ao Christus Revaila. Mas nunca mais vais voltar a ouvir falar no assunto. Vou‑me embora.
‑ Boa sorte, Adolfo.
Dados alguns passos, Pebas estacou, pensou e voltou atrás.
Tinha a expressão muito séria.
- Sei muito bem que a Margarita virá para aqui falar contigo quando eu partir. O que vais dizer‑lhe?
‑ Como hei‑de saber de antemão?
‑ Vais dizer‑lhe que a amas? Doutor, eu tenho dois olhos: estás doido pela minha filha! Vai haver desgraça! Estou a ver tudo: vais ser um anjo para os doentes, mas uma grande desgraça para nós, os Pebas. Foi um erro ter-te trazido comigo.
‑ Teria vindo na mesma!
‑ Mas não para nossa casa!
‑ Para vossa casa! Ter‑vos‑ia procurado por todo o lado e acabaria por vos encontrar!
‑ Margarita!
‑ Passei o tempo a pensar nela em Penasblancas.
‑ Porque é que não disseste? ‑ sibilou Pebas baixinho por entre dentes. ‑ Doutor, devia ter‑te dado uma sova na praça...
Depois de Pebas mergulhar na escuridão, o Dr. Mohr deixou‑se ficar sentado pensativamente junto da fogueira. Não se atrevia a entrar em casa, pois sabia que Margarita estava á sua espera. Era a primeira oportunidade de falar a sós com ela. Maria Dolores não constituía nenhum entrave. Aprendera a sofrer em silêncio. Adolfo e Perdita sempre tinham feito o que queriam sem nunca perguntar nada. Agora, Margarita crescera. Porque havia de ser diferente do pai e da irmã?
O Dr. Mohr não se virou quando ouviu atrás de si o roçagar dum vestido. Esperou, com todos os sentidos alerta. "Está atrás de mim", pensou. "A olhar para mim. Sinto o seu olhar na minha pele. É como se um vento quente passasse sobre mim. Que sensação sem pés nem cabeça! Se alguém me dissesse que a proximidade duma mulher bonita ainda corta a respiração a um homem experiente como eu, tomá‑lo‑ia por maluco. E se algum doente me dissesse "Senhor doutor, sinto a pele em fogo quando ela olha para mim!" ter‑lhe‑ia receitado como terapia: "De cada vez que lhe der um desses ataques, mergulhe a cabeça num balde de água gelada!"
"Onde haverá aqui um balde com água fria..."
‑ Eu ouvi o que ele disse. ‑ A voz de Margarita parecia triste. Mohr não se mexeu. Fitando as chamas, empurrou com o pé uma acha para a fogueira. ‑ Estava a falar a sério, doutor.
- Eu também o tomei a sério, Margarita.
‑ Então porque é que não voltas para Bogotá?
‑ Mesmo que quisesse, agora já não poderia. Não depois de ter visto a família Zapiga.
‑ Há centenas de famílias assim. Milhares...
‑ Foi o que pensei. Porque é que ninguém se preocupa com esta situação?
‑ Porque nós não existimos. Diz‑se que os trabalhos estão suspensos. A região foi vedada pelos militares. É uma terra morta. E se há gente a viver às escondidas nesta terra morta, quem é que tem a ver com isso? Ninguém faz caso. E se aparece alguém a preocupar‑se com esta miséria, é preso e mandado embora. Há um ano esteve aqui um homem, um alemão...
‑ Ah! ‑ O Dr. Mohr juntou as mãos sobre os joelhos.
‑ Falava espanhol como nós, mas disse que vinha da Alemanha. Conheces a Alemanha, doutor?
Mohr hesitou. Aquele era o momento decisivo, em que podia dizer a verdade ou vestir o "segundo eu" por mais algum tempo, quem sabe se para sempre. Decidiu esquivar‑se:
‑ Um país pequeno, muito longe.
‑ Mas rico, não é?
‑ Depende. As pessoas de lá também devem sonhar com trabalho e dinheiro.
‑ O homem falou muito da Alemanha. Queria organizar‑nos a nós, gunqueros, segundo o modelo alemão.
‑ Santo Deus! Realmente, era um verdadeiro alemão!
‑ Percebi que queria formar um sindicato connosco.
‑ Viva! E onde está esse reformador?
‑ Não sabemos. Primeiro, arranjou sarilhos com os militares, que o prenderam e o levaram para Muzo, de onde fugiu passados dois meses. Por fim, viram‑no em Penasblancas, na casa da Mercedes Ordaz. A seguir, desapareceu de repente. Mas sabemos que não foi para Bogotá.
‑ Porque é que me contas isso, Margarita?
‑ É perigoso alguém preocupar‑se connosco, doutor.
‑ Não sou fundador de nenhum sindicato gua quero. Sou médico.
‑ Mas queres fazer mudanças, e isso basta.
‑ Quero ajudar!
‑ Mas eu tenho medo por ti. ‑ O Dr. Mohr sentiu a mão dela pousando‑lhe ao de leve no ombro. A sua respiração acelerou‑se. Comprimindo os lábios, reprimiu o impulso de pegar nela.
‑ Até agora, parece tudo muito mais calmo do que eu pensava.
‑ Ainda nem passaste nenhum dia inteiro connosco. Aliás, nem sequer viste nada. Aqui não se passa um dia sem barulho, facadas, algum morto. Já nem sequer se fala nisso. Faz parte da nossa vida de todos os dias.
Calou‑se abruptamente. Na escuridão, ouviu‑se o barulho de passos decididos. Botas pesadas pisavam o chão rochoso, aproximando‑se da caverna. A mão de Margarita estremeceu. A pressão dos seus dedos, única expressão da sua ternura, desapareceu. O Dr. Molir virou‑se. Margarita corria para dentro de casa. De uma fenda nas rochas, que devia ser um carreiro estreito, surgiu um homem com um grande chapéu de abas largas. Apoiando‑se na arma de cano comprido como numa bengala, batia fortemente no chão com a coronha a cada passo que dava. Só pareceu sentir‑se bem ao aproximar‑se da fogueira. Os seus passos, um tanto inseguros, tornaram‑se mais enérgicos e rápidos. Estacando perante o Dr. Mohr, examinou‑o de olhos semicerrados e, depois, sentou‑se ao seu lado junto do lume, prendendo a arma entre as pernas.
- Sou o Pepe Garcia ‑ apresentou‑se.
‑ O vizinho da galeria lá de cima. Foi o que pensei.
- Portanto, és tu o médico.
- Sou.
‑ Amanhã ainda vai estar tudo calmo. ‑ Tirando do bolso uma caixinha com tabaco, Pepe enrolou um cigarro em papel velho de jornal. ‑ Queres? ‑ perguntou.
- Claro que sim.
Pepe enrolou o segundo cigarro e olhou para o Dr. Mohr:
- Lambo‑o?
‑Porque não?
- Dizem que o meu cuspo é como cola. Não há cigarro que se desfaça comigo. ‑ Lambeu as extremidades do papel, pressionou‑as uma contra a outra e estendeu o cigarro pronto ao Dr. Mohr.
‑ Feito com o melhor papel que há. Jornal seco. Os novos sabem muito a tinta de impressão. - Garcia tirou um galho aceso da fogueira, estendeu‑o ao Dr. Mohr e ambos aproximaram os cigarros. Era uma planta infernal. A primeira passa quase lhe incendiou a traqueia. O Dr. Mohr inspirou profundamente e o ar quente da noite pareceu‑lhe um hálito gelado. ‑ O Adolfo disse‑te que sou quase cego? ‑ perguntou Pepe Garcia.
‑ Não admira. A fumar um tabaco assim... Isto ataca até o nervo óptico.
‑ Que piada, não? ‑ Pepe riu com azedume. Tal como todos os que Mohr vira até ao momento, também Garcia era vitima das pedras verdes. A montanha, a galeria, a labuta constante, a falta de ar nas minas, tinham‑no transformado em couro curtido. Quem chegava ali ainda jovem tinha hipóteses de voltar para a cidade depois de algum achado feliz, mas os gunqueros velhos, pelo contrário, mumificavam em vida. - Não posso ficar cego.
‑ Isso é fácil de dizer, Pepe.
‑ Ainda tenho de conseguir ver durante mais um ano, doutor. Daqui a um ano estou lá. Esmeraldas grandes como um punho de criança. ‑ Apontou com a arma para a escarpa alta e escura que se erguia à sua frente. Uma parede íngreme, muito esburacada e fendida. ‑ Estão ali dentro, doutor. Ninguém quer acreditar, mas hei-de encontrá‑las!
‑ O Zapiga e o Pebas dizem o mesmo.
‑ Têm os dois a mesma sensação. Somos amigos e não vamos matar‑nos uns aos outros. Esta é a nossa montanha, que defenderemos com unhas e dentes! Mas para isso preciso dos meus olhos.
‑ Também nunca ninguém quis tirar‑vos a montanha.
‑ Isso muda depressa, doutor. Ao primeiro grande achado, seremos cercados e tomados de assalto. Não ha'verá quem os trave. Virão de todos os lados. O Adolfo não te falou do Juanito? Não? Era um rapazote novo, delicado como uma menina. Ninguém o levava a sério. Ao cabo de uma hora nas galerias, rastejava cá para fora, deitava‑se à sombra como um sapo doente e precisava de duas horas para respirar. Assim, ninguém tira nenhuma riqueza da montanha. Mas deixaram‑no em paz porque era muito jovem e pateta. Andava a escavar numa galeria lateral das velhas minas do Estado. Um buraco quase a desmoronar‑se, do qual até os geólogos tinham desistido. Todos sabiam que não havia ali das verdes. Mas o Juanito continuou a esburacar. Uma noite, desapareceu, deixando tudo atrás. As ferramentas, a roupa, a choupana de madeira. Nem o seu querido cão levara consigo. Estava preso e a uivar à frente do casebre. Ah!, havias de ver! Foi logo dado o alarme. Quando alguém desaparece assim, só pode ser por um motivo: encontrou os seus sóis verdes. Logo o Juanito! Começou então uma verdadeira perseguição, comparada com a qual um jaguar à caça era quase uma brincadeira. O Juanito só andava de noite. Durante o dia, escondia‑se no alto das árvores ou em cavernas, não usava caminhos públicos, antes atravessava a região pelos desfiladeiros e ao longo das encostas, galgando obstáculos de quilómetros, e esperou um mês num vale solitário que tinha uma nascente. "Hão‑de esquecer‑me", pensava. Mas alguém esquece um rapazola que tirou uma verde grande da montanha? Passados mais de dois meses, o Juanito apareceu em Penasblancas disfarçado com uma barba, pronto a seguir para Bogotá. Uma noite, foi à casa da mamá, escolheu uma das raparigas e pagou com uma esmeralda pequena. Pré‑pagamento, como sempre. A mamá acautela‑se. Mas aquela esmeralda! Que cor, que pureza! A mamá ficou fora de si. E pensou: "Onde há uma assim, existem mais." O Juanito ficou com a rapariga mais bonita, e também mais patifória! Duas coisas fazem a nossa desgraça: a montanha e as mulheres! De madrugada, o Juanito capitulou perante temperamento tão insaciável e adormeceu, esgotado. A mamá revistou‑o e descobriu um saquinho com mais pedras muito boas, mas não a grande... verde, e um papelinho que dizia: "Cerca de vinte e dois quilates." Eram poucas palavras, mas fizeram tocar todas as campainhas. O Juanito devia ter uma pedra de vinte e dois quilates depois de lapidada. Quem a comprasse, ganharia uns milhões de pesos! O Juanito nunca
mais precisaria de voltar a trabalhar! A mamá mandou‑o seguir, mas não foi suficientemente rápida.
Pepe atirou a ponta do cigarro para o lume e cuspiu, descrevendo um grande arco.
‑ Deram‑lhe um tiro - concluiu lentamente o Dr. Mohr.
‑ Oxalá o tivessem feito! Não, foi esfaqueado. Percebes o que quero dizer, doutor? Gente pior do que predadores apanhou o Juanito a caminho de Muzo, onde, apparentemente, ia procurar protecção militar até Bogotá. Esticaram‑no entre duas árvores como se faz à pele de um animal para secar e "interrogaram‑no". Deve ter‑se calado corajosamente durante muito tempo. O médico do batalhão de Muzo contou trinta e duas facadas distribuidas por todo o corpo, as últimas feitas com uma lâmina em brasa. Além disso, músculos dos braços e do peito abertos, castração... Queres saber mais, doutor?
‑ Não! ‑ retorquiu Mohr baixinho. Tinha a voz rouca.
‑ Morreu degolado. Como um porco. Mas antes deve ter falado. Quatro dias depois, o Christus Revaila foi a Bogotá com uma escolta formal de dez mocetões. Porquê? ‑ Pepe abanou a mão. ‑ Sabe‑se lá! Nunca se consegue provar nada. E já ninguém fala do Juanito.
‑ Então agora a pedra deve estar nas mãos do Don Alfonso Camargo.
‑ Nunca digas isso em voz alta, doutor. ‑ Pepe Garcia encostou‑se para trás, ergueu o rosto, apoiou‑se nos braços e arregalou os olhos. ‑ Olha bem para mim, doutor. Vou ficar cego?
‑ Não sou oftalmologista, Pepe. Mas se houver lesões no nervo óptico...
‑ Posso ser operado?
‑ Não me parece.
‑ Quando fizer a minha grande descoberta, ainda quero ver alguma coisa do mundo. Doutor, antes de ir descansar para sempre debaixo da terra, quero ter uma mulher nos braços. Vivi metade da vida na montanha, que foi a minha única amante. Vocês, médicos, sabem tanto! Até conseguem transplantar corações! O que é um olho em comparação?!
‑ Um nervo, Pepe! Ainda nunca ninguém conseguiu substituir um nervo óptico doente. Também nunca se conseguirá transplantar cérebros. Um coração, pelo contrário, não é nenhum problema do ponto de vista técnico. É apenas um músculo, mais nada.
‑ Mais nada! Mas o meu nervo óptico...
- É o mais delicado e fascinante que temos em nós.
‑ Ah! Como me sinto orgulhoso! - ironizou Pepe.
‑ Quando estiver cego, posso dizer a toda a gente: "O meu nervo óptico era tão delicado e sensível que não
aguentou o inferno de Penasblancas! - Voltando à posição normal, Pepe cuspiu novamente para o lume. Depois, meteu a mão no bolso e enrolou mais um dos seus cigarros assassinos. ‑ Queres ficar aqui, doutor?
‑ Quero, Pepe.
‑ E cegar?
‑ Não vou escavar para as galerias.
‑ Ai vais, vais! Todos os que cá vivem acabam por apanhar a febre das pedras verdes. Queres que te diga o que vai acontecer? De dia, és médico e ajudas todos os que te procurarem. à noite, vais para a montanha com a lanterna escavar entre as camadas de rocha. Depois, encontras a tua primeira pedra! Que alegria! Traze‑la à luz e tens uma sensação melhor do que nos braços da mais bonita das mulheres. Desse momento em diante, estás perdido! Já não te é possível recuar. A pedra enfeitiçou‑te, mudou‑te, já não és o mesmo do passado! Cada vez menos se verá o médico e mais o gunquero. Enquanto conseguires segurar uma picareta, não deixarás de escarafunchar. Algures no interior da montanha, está o paraíso.
‑ Não preciso de dinheiro, Pepe. É essa a diferença entre mim e vocês.
‑ Dinheiro! ‑ Rindo amargamente, continuou: - pode ser que o dinheiro não te interesse, mas isso só tornará as coisas ainda piores. As pedras verdes tornar‑te‑ão voluptuoso. É uma volúpia terrível, doutor. E odiarás todos aqueles que tirarem mais pedras verdes da montanha do que tu! Vai ser assim. Regressa antes a Bogotá.
‑ Ah! Até que enfim! - O Dr. Mohr levantou‑se. - porque é que vocês querem todos que me vá embora? Toda a gente me diz para partir e eu ainda mal cheguei! De que têm medo?
Garcia pigarreou, apoiou‑se na arma e pôs‑se de pé:
‑ Não queremos que o Christus Revaila nos dê mais atenção do que até aqui.
‑ Então é o Revaila!
- O Adolfo não te disse tudo, doutor. Já sabemos o que é que fizeste ao Revaila. O serviço informativo funciona tão bem como os nossos revólveres. Para o Revaila, és agora o homem que está a mais no mundo, e ninguém daqui te ajudará quando ele vier ajustar contas. Nem sequer aqueles que ajudares enquanto médico se porão do teu lado.
‑ Só um homem chega para vos pôr a tremer de medo? Pepe, tenho vergonha por vocês.
‑ Palavras leva‑as o vento, doutor. Ainda não reparaste, mas em breve vais perceber que não passas de um animal preso numa jaula, que as pessoas admiram por ser tão mansinho...
Capitulo 4
Adolfo Pebas não regressou com boas noticias. O Dr. Mohr continuava no pátio da casa, medindo com passos largos um grande pedaço de chão plano. Esta espécie de planalto estendia‑se até à floresta, que encobria uma pequena encosta inclinada para baixo. Era algures lá no fundo que viviam os doze Zapiga.
Pebas esperou calado até Mohr o ver e parar de medir.
‑. É um bom lugar, Adolfo ‑ disse. ‑ Protegido plano... podia prolongar‑se o caminho até aqui.
‑Para quê?
‑ Vou montar aqui a primeira "Clínica dos Guaqueros". Para já, em tendas, mas depois vocês ajudam‑me todos a construir casas a sério, de pedra e madeira. Material de construção é o que não falta.
‑ A Margarita esteve contigo? ‑ perguntou Pebas com um ar taciturno.
‑ Esteve.
Pebas assentiu. "Ele não mente", pensou. "Eu nunca teria podido comprová‑lo, pois só desconfiava, mas ele diz a verdade."
‑ O que queria?
‑ Convencer‑me a voltar para Bogotá.
‑ E depois?
‑ O Pepe Garcia também esteve aqui.
‑ E o que é que ele queria?
‑ Dois nervos ópticos novos e o meu regresso a Bogotá. Nisso, parece que todos estão de acordo: trago mais contrariedades do que vantagens.
‑ É verdade. Também o ouvi quando falei com o Christus Revaila.
‑ Ele já está de boa saúde?
‑ Transmiti‑lhe a tua lista. Riu‑se que nem um doido e depois berrou‑me que a escrevesse num saco de plástico e o enchesse de merda todos os dias. Eu avisei‑o de que tu tinhas dito que se ele não mandasse a lista para Bogotá, tu arranjarias maneira de telefonar a Don Alfonso. Ele berrou ainda mais e gritou ao microfone: "Diz ao teu médico que a lista vai seguir para Bogotá! Mas diz‑lhe também que não vai precisar de nada do que lá está. Eu próprio vou entregar‑lhe o que me enviarem... embrulhado em chumbo!"
‑ Que tagarela! - O Dr. Mohr bateu as palmas. - Se Don Alfonso cumprir o que me prometeu, as coisas estarão cá daqui a dez, catorze dias. Até essa altura, temos de construir quatro cabanas, Adolfo: um centro de atendimento, uma enfermaria com camas... que agradável, não?... e uma unidade para as doenças contagiosas, um isolamento.
‑ Com água corrente quente e fria, rádio, televisão, telefone, bar e, para os doentes de primeira classe, uma enfermeira índia sempre pronta, que faça trabalhinhos nocturnos...
‑ É suficiente cada casa ter algumas tinas, um soalho e um tecto. Além disso, vamos arranjar um local para se fazerem incinerações.
‑ Com quantos mortos conta por dia, senhor? escarneceu Pebas. ‑ Don Pedro, também quer arranjar um coro para cantar nos enterros?
‑ Isso é com o padre Cristobal, se chegar mesmo a vir. Ter um coro de igreja é o seu maior sonho. É um homem muito musical. ‑ O Dr. Mohr passou o braço à volta dos ombros de Pebas. ‑ Adolfo, vocês desaprenderam o que é a alegria.
- E tu ainda não aprendeste o que é o medo e o ódio.
- O medo deve ser um sentimento assustador.
- Nunca tiveste medo, doutor?
- O que é o medo? - O Dr. Mohr encostou‑se ao poste de madeira da varanda. A fogueira ardia. Pendurada numa trave sobre a entrada para a caverna, fumegava uma lanterna a petróleo. - Tive pela primeira vez uma sensação duma tensão monstruosa quando ainda era estagiário em Hamburgo e chegou uma noite ao banco uma mulher nova com uma embolia pulmonar. Não havia médicos superiores de serviço. A decisão estava inteiramente nas minhas mãos. Tomei rapidamente a minha resolução, deitei mãos à obra... e perdi a corrida. O meu adversário no sangue foi mais rápido. Mas será que foi medo? Medo da embolia? Medo da intervenção, que raramente é bem sucedida? Não!... Um outro exemplo, na auto‑estrada de Frankfúrt. Sabes o que é uma auto‑estrada?
- Não, doutor.
‑ Uma invenção abençoada para o automobilista, que permite regular o fluxo de trânsito por meio de quatro ou seis estradas largas. Mas também um campo de batalha para os assassinos em massa, desanuviamento para agressões reprimidas, passadiço de inúmeras vaidades e presunções, e sobretudo uma organização eficaz para reduzir e travar o excesso de população. Num fim‑de‑semana bom, há mais mortos nas auto‑estradas alemãs do que aqui num mês, embora vocês sejam todos potenciais assassinos.
- Porquê a Alemanha? ‑ perguntou Pebas, desconfiado. Só então o Dr. Mohr percebeu o erro que cometera.
‑ Estudei na Alemanha ‑ respondeu sem pensar. Parecia credível. ‑ Mais tarde, fui estagiário em Hamburgo durante meio ano. Mas depois o Ministério da Saúde chamou‑me para Bogotá. Afinal, tinha‑me pago os estudos e precisava de médicos no país.
‑ E tiveste medo na auto‑estrada?
‑ Não sei se foi medo. Um automóvel derrapou à minha frente, embateu contra o separador e ficou feito num monte de ferro e chapa. Atrás de mim, um outro carro que viu o acidente travou, acabou por também derrapar e foi contra um rochedo do outro lado. E eu estava no meio deste caos, sem um arranhão, esperando que a todo o momento um terceiro automóvel batesse em mim. Foi como se estivesse num quarto sem ar. "Já não estás vivo", pensei. "Morreste. Foste surpreendido e não deste por nada." Nessa altura, ouvi os gritos dos feridos e soube que estava vivo. ‑ O Dr. Mohr olhou para a fogueira quase apagada. As brasas tinham um brilho vermelho‑pálido. ‑ Nunca tive medo ‑ continuou pensativamente. ‑ Na verdade, só a sensação do inevitável, o que desperta em mim um impulso que pode ser caracterizado assim: "Tens de te safar! levanta a cabeça e luta."
‑ Nós temos medo do Christus Revaila, doutor.
- Eu sei! Estou a ver que não me basta ter escalpelo e comprimidos.
‑ O que é um escalpelo?
‑ Uma faca.
‑ Isso é bom! ‑ Pebas riu abertamente. ‑ Se sabes manejar uma faca, já é um bom ponto de partida.
O dia seguinte decorreu numa tranquilidade pouco habitual.
Durante a curta noite, Mohr não dormiu. Milhares de barulhos estranhos mantiveram‑no acordado: um chiar, um raspar, zumbidos, um coçar, um rangido. Tinha‑se a impressão de que a montanha era um gigantesco ser vivo, cujo corpo rasgado e remexido soltava na noite todos os queixumes de um ente torturado. Uma vez, pareceu‑lhe ouvir passos lá fora. Sentou‑se, agarrou no revólver e olhou para a entrada. De um quarto lateral, vinha de vez em quando o ressonar de Adolfo Pebas. Roncava alto, mas Maria Dolores devia ter‑lhe dado uma cotovelada, porque voltou a ter uma respiração como um assobio.
Margarita também dormia algures lá atrás. Ou então estava igualmente acordada, olhando na direcção onde o médico dormia. Entre os dois, encontravam‑se os pais. qual muro inultrapassável.
Quando amanheceu, o Dr. Mohr saiu da caverna. O ar fresco da montanha, àquela altitude, era excelente. Erguendo o olhar, viu as entradas das galerias, os montes de pedras revolvidas, o trabalho inútil de meses e anos. Podia ser um inferno, mas ninguém se importava de ser um diabinho por meia dúzia de pedras verdes.
O Dr. Mohr lavou‑se numa tina, alimentada pela água duma calha de madeira, que se perdia entre os penedos, depois de descrever alguns meandros. Era uma água clara, fria, purissima, que enchia a selha e corria depois por várias canalizações para a horta arranjada por Pebas. Se era verdade que aquela gente não possuía quase nada, pelo menos também não morreria à sede.
Lançando a camisa por cima do ombro nu, o Dr. Mohr avançou para os rochedos. De dia, tudo parecia muito diferente. A floresta virgem, formada ao longo de séculos, tornava os desfiladeiros quase inultrapassáveis. Só ia ali quem levasse uma faca de mato para abrir o seu próprio caminho ou quem conhecesse tão bem a selva que fosse capaz de desaparecer no mais pequeno atalho ou buraco. como um rato.
Este emaranhado da paisagem sempre fora a salvação dos gunqueros: quando apareciam patrulhas militares ou da Polícia, os acossados mergulhavam nos barrancos verdes. Nenhum soldado se atrevia a penetrar nas florestas desconhecidas desde que, meio ano atrás, metade duma companhia se desdobrara para passar um vale a pente fino e nunca mais aparecera. Nunca mais se vira um único homem! Um batalhão destacado para procurar os desaparecidos não chegara a dar a cara. Só três helicópteros tinham sobrevoado o desfiladeiro, lançando bombas para o torvelinho verde. Mas nem isto fizera grande mossa. A floresta fechara‑se imediatamente sobre as suas feridas, cicatrizara e conservara o seu enigma sangrento. Desde essa altura, os gunqueros chamavam aos desfiladeiros da selva "o seio da nossa mãe".
O Dr. Mohr iniciou uma jornada de reconhecimento. A cerca de cinquenta metros, a fenda das rochas alargava‑se. Quatro grandes cabanas, encostadas a uma escarpa, rodeadas por um baluarte de pedra, como uma fortaleza, espreguiçavam‑se ao sol da manhã cor de latão. O Dr. Mohr hesitou, avançou, voltou a parar em frente do baluarte e procurou uma entrada. Uma voz saída algures de entre as várias camadas de pedra gritou:
‑ Só podes ser o maluco do médico! Ninguém mais anda por aqui a fazer de alvo em movimento.
‑ O que prova que venho como amigo ‑ retorquiu, olhando em volta, mas sem conseguir detectar de onde vinha a voz.
‑ Aqui não há amigos.
‑ Então começo eu. Sou o primeiro. Aqui não há doentes.
‑ Duvido. Pelo que vi só na família Zapiga...
- Aqui não vivem mulheres nem crianças. Só homens! Ajudamo‑nos a nós próprios.
‑ Contra a tuberculose, a auto‑ajuda é como tentar fazer a barba a um jaguar. E o escorbuto? A quantos de vocês é que os dentes abanam? Sofrem todos de carência em albumina.
‑ Onde não há mulheres, também não há necessidade de albumina! Dê meia volta, pregador! Não precisamos de si aqui.
‑ Mas eu preciso de vocês! ‑ O Dr. Mohr encostou‑se ao baluarte de pedra. O interlocutor invisível pareceu examiná‑lo e pensar no que havia de fazer com uma pessoa tão obstinada. ‑ Quero construir um hospital.
‑ Idiota!
‑ Para vocês! Um hospital para os gunqueros!
‑ Então reserve umas centenas de camas para os ferimentos provocados por tiros e facadas.
‑ Só serão admitidos os casos mais graves.
‑ Entendido, médico‑chefe. ‑ O homem invisível casquinou para si próprio. "Quem ri, não dispara", pensou Mohr, satisfeito. - Também aceita quem anda sempre aos traques?
‑ A flatulência crónica pode ser tratada ‑ retorquiu seriamente o Dr. Mohr. ‑ Existem três tipos: a flatulência nervosa, a orgânica e a provocada pela alimentação.
‑ Diabos me levem!
‑ Não por causa da flatulência. ‑ Encolhendo os ombros com um ar resignado, acrescentou: ‑ Como não se mostra, vizinho... porque agora somos de facto vizinhos... tenho de falar para o ar. Já que este parece ser território vosso, preciso imediatamente de um grupo de homens fortes para cortar madeira, serrar tábuas, transportar pedras e fazer paredes e muros. Daqui a mais ou menos doze dias chegam de Bogotá os equipamentos para o hospital. Até lá, precisamos de ter um tecto, pelo menos. Passe palavra aos seus conhecidos: preciso de toda a gente! Isto não é para mim: é para todos vocês! E não tentem pensar muito no assunto: não leva a nada. Não pensem: trabalhem de livre vontade para, por exemplo, tratarmos a vossa flatulência.
- Era só uma piada, senhor médico.
‑ Existem misérias bem mais graves, para as quais é preciso um médico. Falem uns com os outros. Espero até amanhã. E quem ajudar recebe logo uma injecção de vitaminas.
‑ Ponha‑se a andar, seu tarado! ‑ gritou o homem
invisível. ‑ Meta as suas ampolas no cu. Se quiser, eu ajudo‑o, e ainda posso fazer‑lhe mais alguns buracos, visto que não lhe chega só um!
O Dr. Mohr desencostou‑se do baluarte, ergueu pesarosamente os dois braços e regressou à montanha de Pebas.
Entretanto, Margarita aproveitara a sua ausência para se lavar. Estava precisamente a pentear os compridos cabelos negros quando o Dr. Mohr dobrou a esquina. Ainda tinha a blusa desabotoada. Os seios cheios, que nada cobria, reluziam ao sol da manhã. Ao vê‑lo, apertou logo a blusa e virou‑lhe as costas.
‑ Para que é que anda assim furtivamente? ‑ perguntou em voz dura.
‑ Não estou a andar furtivamente, e sim muito normalmente. Mas sabendo que a estas horas só mostras a tua beleza à água, vou passar a assobiar quando estiver aqui por perto.
‑ Porque é que falas dessa maneira tão esquisita?
‑ Esquisita?
‑Tão... tão antiquada.
‑ Não devia? ‑ O Dr. Mohr aproximou‑se lentamente. - Até agora, aprendi com os Pebas como se vivia há trezentos anos. Presumo que, há trezentos anos, qualquer jovem falava assim a uma menina que passasse a vida a fugir dele. Se calhar, também tocava bandolim ou dizia poemas. Vou tentar tudo.
Margarita abotoou a blusa à pressa, mas continuou sem se virar.
‑ Mentiroso! ‑ acusou rudemente.
‑ Outra vez?
‑ Esteve na Alemanha e tinha‑me dito que não conhecia o país.
- É verdade.
‑O quê?
‑ Que eu não disse a verdade. Mas tive as minhas razões. Olha lá, costumas andar a ouvir as conversas?
‑ Costumo. É preciso.
‑ Preciso?
‑ O pai diz que as mulheres não têm nada que se meter na conversa dos homens. Mas tudo o que conta na nossa vida é decidido pelos homens. Por isso, temos de andar à escuta. Há alguma outra maneira de sabermos o que vai ser de nós? Os homens fazem tudo sozinhos! Por isso é que a Perdita fugiu.
‑ O que tirou muitos anos de vida ao teu pai.
- Mas nem por isso a vai buscar. Disse‑nos que a Perdita está morta para nós, e não arreda pé. Eu também gostava de fugir...
‑ Para os braços dum homem? ‑ A pergunta doeu‑lhe. Espantado, o Dr. Mohr percebeu que não queria ouvir a resposta.
‑ Claro que não! Só fugir daqui. Dos penedos, das galerias, da miséria. Não sabe o que é andar a esgaravatar na montanha....
- Mas vou saber.
‑ Não! ‑ Virou‑se de repente, com o terror estampado nos olhos. - Não... não entres nas galerias, doutor... A montanha dá cabo de ti! Por favor, não...
‑ Tens medo, Margarita?
‑ Não quero que a montanha também te devore a ti! Não a ti!
‑ Obrigado - retorquiu ele baixinho. ‑ Foi uma manhã maravilhosa.
Fitaram‑se em silêncio por um momento, exprimindo com o olhar as palavras que não deviam dizer. Depois, Margarita virou‑se e encaminhou‑se para casa. O pai saiu‑lhe ao encontro, bocejando, de tronco nu, mas com o revólver no cinto. Baixando a cabeça para a filha, num gesto que queria dizer "Bom dia", dirigiu‑se à tina e só então reparou no Dr. Mohr. Mudando de rumo, caminhou pesadamente na sua direcção.
‑ Os galos mais madrugadores são os mais suculentos! ‑ comentou sombriamente, parando à frente do Dr. Mohr. - A Margarita estava a chorar...
‑ Tem o medo que eu não tenho. Além disso, valia a pena pensar porque é que uma rapariga da idade dela chora. Falou da Perdita.
‑ Não conheço nenhuma Perdita! ‑ retorquiu Pebas bruscamente.
‑ Por isso mesmo é que chora. Existe tanta tristeza na sua vida!
‑ Mas um médico pode oferecer‑lhe melhor, não é?!
- Normalmente, sim. Mas comigo é diferente, porque
vou ficar aqui. Por isso, chora ainda mais. - Apontando com o polegar por cima do ombro, anunciou: ‑ Amanhã vem para aqui uma equipa de construção. Andei pela montanha e estive num aldeamento onde só há homens.
‑ No burgo? ‑ Pebas fitou incredulamente o Dr. Mohr. - E ainda estás vivo?
‑ Entendemo‑nos muito bem. Eles têm problemas de saúde.
‑ Aquele lugar à volta do burgo é como se estivesse amaldiçoado. Ninguém sabe muito bem quantas pessoas lá vivem. Mas de certeza que mais de trinta homens! Devem estar já todos ricos, porque os sítios onde escavam são bons. Só uma pessoa viu as pedras deles e viveu para o contar. Mas há muito tempo que morreu. Os compradores não têm hipóteses: nem se aproximam do burgo. Madre de Dios! E tu falaste com eles!
‑ Convidei‑os a participar na construção do meu hospital.
‑ Mais depressa as esmeraldas saem sozinhas dos penedos! ‑ comentou Pebas, quase solenemente. ‑ Os rapazes do burgo nunca mostraram a cara a ninguém.
As esmeraldas não saíram sozinhas dos penedos mas, na manhã seguinte, apareceram à frente da casa de Pebas vinte e sete barbudos de ar embrutecido. Carregavam aos ombros picaretas e pás, pesados malhos e grandes pés‑de‑cabra.
Maria Dolores e Margarita não se atreveram a sair de casa. Adolfo Pebas engatilhou a arma e permaneceu à sombra da entrada da caverna. O Dr. Mohr, que Maria Dolores fora acordar, avançou e contemplou‑os com um ar espantadissimo.
‑ Baixa a arma, Adolfo ‑ disse baixinho. ‑ Se ontem tivéssemos feito uma aposta, estavas agora muito pobre. Eles vieram construir o meu hospital.
‑ Não é certo. Não se pode acreditar numa palavra do que dizem. Riem‑se para ti e, ao mesmo tempo, espetam‑te uma faca no corpo. C'os diabos, nunca ninguém os viu assim todos juntos! Só isolados e, mesmo assim, sempre a mesma cara. Isto não vai acabar bem!
‑ Veremos.
O Dr. Mohr avançou para o ar livre. As vinte e sete figuras tenebrosas fitaram‑no como se ele surgisse de um mundo desconhecido. O seu chefe, que não se apresentou e que o Dr. Mohr passou a designar apenas como o "homem da barba", bateu no chão rochoso com o poderoso malho.
‑ Cá estamos nós, doutor! E agora?
- Alegra‑me muito que tenham vindo. ‑ O Dr. Mohr
despiu a camisa, encaminhou‑se para a tina, mergulhou a
cabeça e o tronco na água fria e regressou encharcado. - Ainda existem amigos.
‑ Não se iluda, doutor. ‑ O barbudo fitou‑o com uma expressão malévola. ‑ A maioria deles não está aqui de livre vontade! Achamo‑lo um idiota chapado! Por mim, disse aos meus homens: "Malta, vão lá e ouçam o que ele tem a dizer. Se for disparate, dêem‑lhe uma lição por nos fazer perder uma manhã!"
O Dr. Mohr dirigiu‑se ao planalto que escolhera para edificar o hospital e fez um movimento largo com o braço.
‑ O hospital vai ser aqui ‑ começou. ‑ Uma ajuda para cada um de vocês. Ninguém é saudável e forte para sempre. Além disso, ninguém perguntará neste hospital de onde veio a bala que terá de ser extraída. Quem cá vier, será apenas um doente, e mais nada. Todos serão atendidos. Para muitos de vocês, será uma questão de vida ou morte. Olhem o vosso apêndice, por exemplo. Quando começa a deitar pus e rebenta, só vos resta morrerem lastimosamente na mata, como ratos! É por isso que quero construir o hospital. Não é por mim, que tenho dinheiro que chegue, e sim por vocês! Entendido?
‑ Não vai levar‑nos dinheiro pelo tratamento?
‑ Não vou exigir nada. Quem quiser dar‑me alguma coisa para melhorar o hospital, estará a dar a si próprio, pois só lucrará com isso! O hospital é de todos vocês.
‑ Parece‑me bem. ‑ O barbudo pigarreou. ‑ O que se segue?
- Vamos sentar‑nos e discutir como devem ser os edificios. Vocês têm experiência na construção, a julgar pelo vosso burgo. - Estendendo os braços, acrescentou: - Dependo da vossa ajuda, homens! Sem vocês, não posso construir o hospital.
- Nós somos mais. - O barbudo tornou a bater com
o malho no chão. ‑ Só queríamos saber as suas ideias. Podia ser uma armadilha, não é verdade? Não há truques que não se usem aqui. Porque é que um médico não há‑de ser usado como isco?
Lançou um assobio estridente e, subitamente, sorriu. De dois lados, das fendas nos penedos e da floresta no desfiladeiro, surgiram mais figuras andrajosas e lúgubres, que se arrastaram até à frente da caverna de Pebas. Pelos cálculos do Dr. Mohr, estavam agora ali reunidos mais de cinquenta homens. Era verdade o que Pebas dissera: o burgo era inexpugnável, fechado a todo e qualquer desconhecido. Quem quer que se perdesse para aqueles lados, não tinha hipóteses de voltar a sair.
‑ Muito obrigado ‑ agradeceu o Dr. Mohr. O homem da barba assentiu.
‑ E ainda nem começámos. Então, crucificou o Christus Revaila, doutor?
- Ah! A novidade já se espalhou assim tanto?
‑ Acha que não foi por isso que viemos? O hospital... bem, é um disparate, uma doidice! Mas temos de ajudar um homem que deu uma sova ao Revaila! É um camarada nosso, que faz, como nós, parte da lista negra. Sabia que há mesmo uma lista negra?
- Não.
- Estão nela todos os que, mais cedo ou mais tarde acabam por ir jazer debaixo de uma cruz de madeira. Existem comandos que não têm mais nada que fazer senão riscar nomes da lista. Funciona aqui um sistema de espionagem admirável. Em Penasblancas sabe‑se logo quando alguém faz um bom achado. E se esse alguém consegue chegar a Bogotá, é um felizardo. Mas a nós não nos apanham eles. Quando tivermos o suficiente, partiremos daqui como um pequeno exército. Quero ver quem se atreve a sair‑nos ao caminho! Vai ser um morticínio... ‑ O barbudo pousou o enorme malho e aproximou‑se do Dr. Mohr. ‑ Tem algum projecto, doutor?
- Só na cabeça. Gostava de o discutir convosco.
Passaram duas horas sentados no chão, fazendo desenhos com um lápis grosso num grande pedaço de papel de embrulho. Por fim, todos concordaram que deviam construir‑se quatro casas: um centro de atendimento, que o Dr. Mohr baptizou elegantemente de policlínica, uma enfermaria com sala de operações, uma habitação para o médico e outro pessoal eventual e um armazém com a farmácia. Em anexo, um reservatório de água a construir no alto, de modo a haver pressão suficiente, e uma casa das máquinas para um gerador eléctrico.
- Lindo! - exclamou o barbudo, depois dos planos traçados em grandes linhas. - Maravilhoso! Mas totalmente ilusório! Além das pedras e da madeira, onde arranjamos as outras coisas todas?
‑ Virão de Penasblancas ou de Bogotá.
‑ Acha?
‑ Estou plenamente convencido.
‑ Veremos. Por nós, encarregamo‑nos da empreitada. Vamos trabalhar em dois grupos, um no hospital e outro nas minas. Sempre por turnos, para todos poderem descansar. Porque o seu hospital, doutor, é um verdadeiro repouso comparado com a pesquisa de esmeraldas.
Por volta das dez horas, Juan Zapiga apareceu na cabana de Pebas com a filha pequena, Neila. Transportava‑a às costas, numa mochila.
‑ Já não sei o que fazer, senhor doutor ‑ disse em tom monocórdico. ‑ Ela chora, contorce‑se e tem muitas cãibras. O que é que se passa?
Desenrolou Neila da manta e estendeu‑a no chão. Depois, olhou de esguelha para os homens que limpavam o planalto e para a coluna que já estava a abater árvores à
beira do desfiladeiro.
- São do burgo? - perguntou baixinho.
- São. Estão a construir o novo hospital...
- O senhor doutor é feiticeiro?
- Não. Só um homem que sabe falar humanamente com outros homens.
- Mas é extraordinário! É pena que seja tudo em vão.
- O que é que é em vão?
- Tudo o que está a fazer aqui! Ninguém vai agradecer‑lhe. Aqui, já ninguém sabe o que é a gratidão. Todos lutam contra todos por uma pedrinha verde.
O Dr. Mohr debruçou‑se sobre a pequena Neila, que tinha as pupilas assustadoramente dilatadas.
‑ Ingeriu algum veneno! ‑ anunciou gravemente o Dr. Mohr. ‑ Juan, começa a rezar. Mas talvez já seja tarde de mais...
Capitulo 5
Perdita Pebas seria, sem exagero, uma das mulheres mais bonitas não só da Colômbia como do mundo, se não tivesse pintado o admirável cabelo negro de um ruivo ordinário; era um ruivo que lhe coroava a cabeça como sangue e que não lhe assentava absolutamente nada bem. Também a maquilhagem berrante lhe deformava o rosto delicado, dando‑lhe um ar de máscara, de palhaço, deploravelmente vulgar. Habitualmente, envergava uma saia estreita, que lhe apertava as coxas e as pernas compridas. e uma blusa da qual lhe brotava a parte de cima dos seios redondos. Quando entrava de "serviço", chegava mesmo a espalhar pó dourado sobre o peito. Com a iluminação da mamá, o seu corpo reluzia então de um modo atraente e voluptuoso, que ninguém podia ignorar.
O padre Cristobal não fez qualquer esforço para a ignorar. Pelo contrário, interceptou‑a nas escadas para o bar. Perdita, cujo quarto ficava duas portas distante do seu, havia muito que sabia quem era o seu vizinho, que ocupava as melhores instalações.
‑ Tenho uma tarifa especial para a igreja - informou ela com vulgaridade, parando à frente de Cristobal Montero e esticando a blusa, o que lhe desnudou ainda mais os seios. ‑ Mas de graça, não! Sei muito bem que a igreja quer sempre tudo oferecido, mas comigo não
- A igreja também dá muitas vezes coisas de graça ‑ retorquiu amigavelmente o padre Cristobal. ‑ Por exemplo, posso dar‑te uma bofetada de graça! Puxa a blusa para cima! Isso são só aparências!
‑ Que candura! - Puxando o decote da blusa para baixo, espetou os seios nus na direcção de Cristobal. - Tenho as mamas mais bonitas das redondezas! ‑ Os seus olhos faiscavam. ‑ E também elas vêm de Deus!
‑ Claro! Mas o que fazes tu à dádiva de Deus? Sabes como vão estar daqui a dez anos com a vida que levas?
‑ E eu sei se vou estar viva daqui a dez anos?
- Sei eu.
- Naturalmente. Os padrecos sabem tudo. - Perdita deu uma gargalhada e puxou a blusa para cima. - Faz ideia do tipo de cama em que dorme?
‑ Faço! A Senhora Ordaz disse‑mo com todas as letraS. Mas não faz mal. É uma boa cama. E tu és boa rapariga.
‑ Diga isso outra vez, padre.
‑ És uma boa rapariga. Não és nada do que aparentas ser agora. Sentes‑te sozinha, desesperada, impotente, explorada. E morres de saudades.
- O senhor é doido, padre ‑ disse ela baixinho. De repente, o rosto com a pintura ordinária deformou‑se e ela começou a chorar. Girando nos calcanhares, desceu as escadas a correr.
Cristobal seguiu‑a lentamente. Já havia muito movimento em casa da mamá. A música tocava em altos berros, as mesas e os bancos do bar estavam quase todos ocupados e os pares empurravam‑se na pista de dança, como se lutassem por cada metro quadrado de chão. Miguel, o porteiro e órgão vivo da igreja, estava à porta examinando todos os que ainda queriam entrar. Os que já se achavam bêbedos, levavam um murro entre os olhos e cambaleavam de novo para a rua, facto que todos consideravam perfeitamente normal. Um dos lemas da cidade era "poucas palavras e mais acção". Aliás, assim todos compreendiam melhor. Depois dos murros de Miguel, poucos se atreviam a tentar um segundo assalto.
O padre Cristobal ergueu‑se para cima dum banco na ponta do balcão e pediu um grande uísque a Loulou, a empregada do bar de seios colossais e cintura apertada. Ao seu lado, estava sentado um homem que o examinou pelo canto do olho. Parecia‑lhe conhecido. Devia ser um dos que tinham estado de vigília ao morto. Um comprador de esmeraldas da mamá.
- Que fedor horrível! ‑ exclamou de repente o homem em voz alta. ‑ Cos diabos, cheira a incenso! Já tenho o nariz a arder. Mas quem suporta isto? Vou vomitar!
‑ Loulou, traz um balde! ‑ gritou o padre Cristobal, com um ar preocupado, sem ligar à expressão apavorada de Loulou, que não lhe obedeceu, recuando antes lentamente. ‑ Que insensatez! Os homens doentes, velhos e fracos não deviam frequentar bares! Como é que alguém pode beber uísque quando já lhe sai incenso das calças?
‑ Quem é que está doente aqui? ‑ perguntou o homem, esticando o queixo. Era musculoso, com a cara cheia de cicatrizes e manchas, e tinha um nariz grosso e vermelho, parecido com um cacto. ‑ O meu olfacto é que não está bom.
‑ Então não cheira mal ‑ retorquiu calmamente Cristobal.
- Ah! ‑ Pegando no copo do padre, o homem entornou‑lhe o uísque nas calças. Depois, atirou‑o contra a parede e soltou uma gargalhada rouca. ‑ Finalmente cheira a homem! ‑ A sua volta, os outros clientes riam na expectativa.
‑ É pena que o médico tenha ido para a montanha ‑ comentou suavemente o padre Cristobal. ‑ Agora não há ninguém para coser a cabeça desta boa alma! - Com a rapidez do relâmpago, pegou numa garrafa e partiu‑a no crânio do homem. O vidro estilhaçou‑se, o individuo cambaleou para fora do banco, girou sobre si mesmo com os olhos vítreos e percebeu que o sangue lhe escorria pelo rosto. Algumas mulheres guincharam. A ferida parecia grave, mas os golpes na cabeça sangram sempre muito.
O homem soltou um grito abafado, puxou uma faca comprida do cós das calças e agachou‑se, fúlminando o padre com o olhar. Sentado no seu banco, Cristobal acenou para Loulou com o copo vazio:
‑ Mais um! Ponha na conta deste cabailero.
Loulou não se mexeu. Havia muito que carregara no botão de alarme, debaixo do balcão: "Mamá, chegue aqui! Socorro!" Desesperada e perplexa, olhou para Miguel, que normalmente intervinha calado, impondo a ordem com as suas mãos enormes. Mas Miguel permanecia à porta, limitando‑se a coçar a cana do nariz. Era evidente que estava a pensar.
Com a cabeça a sangrar, o homem avançou de repente e tentou cravar a faca no padre Cristobal, mas não conseguiu aproximar‑se o suficiente. O padre levantou a perna direita, esticou‑a um pouco e arremessou‑a para a frente. Um poderoso pontapé atingiu o assaltante, travou-o e lançou‑o para trás. O homem foi bater contra uma mesa, dobrou‑se e começou a vomitar. Três outros indivíduos agarraram‑no, tiraram‑lhe a faca e arrastaram‑no por uma porta traseira.
- Então o meu uísque? - inquiriu Cristobal, quebrando o perigoso silêncio. ‑ Eu não pago com pesos verdadeiros? Até posso dar mais um santinho a quem quiser.
Mercedes Ordaz apareceu à porta do escritório, como se tivesse chegado o momento da sua deixa. Muito bem vestida e elegante, envergava um vestido ao estilo espanhol antigo, que lhe cingia o corpo luxuriante. Trazia aos ombros um xaile de renda preta, entretecido de fios dourados.
- Tinha mesmo de ser? ‑ perguntou, sentando‑se num banco ao lado do padre Cristobal. - Porque é que a igreja há‑de sempre intervir no que não lhe diz respeito?
‑ O meu cheiro a incenso incomodou‑o, filhinha do Senhor.
‑ Não estou a falar desse idiota! O senhor conversou há bocado com a Perdita. A pequena está inconsolável. Não pára de chorar, e recusa‑se a trabalhar hoje à noite...
‑ Isso é bom!
- enquanto o senhor estiver aqui.
- Tenho uma sede horrível. Fico. Além disso, estou hospedado aqui. A ideia de me alojar foi sua, senhora. Não me venha agora com censuras! Eu avisei‑a: quem recebe um padre em casa, tem de contar com os cânticos!
- A Perdita é a minha melhor éguazinha.
‑ Acredito. Mas tem um futuro melhor longe daqui.
‑ Que quer ela mais? Não foi à escola, não sabe fazer nada... só é bonita.
‑ Há‑de aprender a ler e a escrever...
- Ah! Onde? Em Penasblancas? É verdade que temos aqui uma escola, mas não há professor. Os dois que cá estiveram há muito que foram para as montanhas procurar esmeraldas.
‑ A Perdita vai frequentar a "Escola de Nossa Senhora da Misericórdia de Muzo".
‑ Que escola? ‑ Mercedes Ordaz fez um gesto e Loulou pôs‑lhe á frente uma garrafa de vinho tinto e um grande copo de cristal. - Em Muzo?
‑ Só de nome. A escola fica na montanha.
- Estou espantada.
‑ Ao lado do hospital dos gunqueros.
- Disparate! Padre, o senhor e o seu amigo são os idiotas mais lamentáveis destas paragens. Quer fundar uma escola?
- E uma igreja com um centro paroquial. Além disso, um cemitério em condições.
‑ Ora aí está uma coisa que compensa e que é rentável! ‑ exclamou sarcasticamente a mamá. ‑ Quanto ao resto, não se dê a esse trabalho, padre. - Serviu‑se de um copo de vinho e bebeu um grande trago.‑ Quando é que se vai embora?
‑ Nunca. Fico aqui.
‑ Não, para a montanha.
‑ Quando puder levar a Perdita comigo.
- Portanto, nunca! ‑ A mamá inclinou‑se para o padre Cristobal, com uma expressão de dureza no olhar. O rosto outrora bonito transformou‑se numa máscara. "Agora é mesmo ela, sem disfarces baratos", pensou serenamente Cristobal. Vou lutar pela Perdita. Ela pertence‑me!
‑ Não vamos regatear direitos de propriedade. Senhora Mercedes Ordaz, bem pode cantar em altos berros na igreja, ajoelhar‑se e receber a hóstia, que eu não vou descansar enquanto não vir a sua espelunca fechada ou transformada num bar decente!
‑ Quer guerra, padre?
‑ Quero ordem no mundo.
- E começa precisamente por mim?
‑ A mamá é um pântano de onde brota a peste. Antes de mais, temos de o secar.
- Não tem medo?
‑Não.
‑ Claro que não. Sabe que vai para o Céu.
‑ É verdade, minha filha.
‑ Os seus inimigos não têm qualquer respeito pela sotaina que usa.
‑ Para quê mais conversas? A mamá vai dar ordens para me matarem. Mas vai ser dificil. Já tenho muitos amigos em Penasblancas.
Calou‑se. A porta escancarou‑se. O tenente da Polícia Felipe Salto e os seus três ajudantes tomaram o bar de assalto e ocuparam a saída.
‑ Todos contra a parede! ‑ berrou. - De costas para mim! Braços bem levantados! Quem não estiver encostado à parede quando eu contar até três, não precisa de lavar a cara amanhã!
Os clientes do bar correram para as paredes e assumiram a posição que lhes fora ordenada. Só Cristobal e a mamá permaneceram sentados.
- Mais um maluco! ‑ comentou ela, tirando do bolso do vestido um grosso charuto preto, ao qual arrancou
a ponta com os dentes, cuspindo‑a depois para o chão. - Tem lume, padre?
- Com certeza. ‑ Cristobal riscou um fósforo e acendeu o charuto.
Mercedes Ordaz soltou um grunhido de satisfação e saciedade.
- Não percebo porque é que os jovens são tão imfieeis ‑ observou depois da primeira fumaça. ‑ Vêm para aqui com vontade de mudar tudo e acabam por ir parar debaixo da terra. O que é que ganham com isso? Se continuar assim, o tenente não vai chegar a velho.
- Parece que houve pancadaria! ‑ gritou Felipe Salto. - Padre, que é do bandido? Está ferido?
- Ele não ‑ retorquiu Mercedes Ordaz em voz untuosa. ‑ Quando ele bate e dá pontapés, tem a ajuda de muitos anjinhos.
O tenente Salto aproximou‑se, limpou o suor da testa e sentou‑se ao balcão, ao lado da mamá. Loulou apareceu e lançou ao polícia um olhar de interrogação.
- Rum e Coca‑Cola - disse Salto. ‑ Mas mais rum, sem balão.
Loulou das mamas grandes fez um esgar de desdém e preparou a bebida. Os clientes continuavam pacientemente de cara virada para a parede, com as mãos levantadas acima da cabeça.
‑ Que dia! ‑ suspirou Salto, bebendo o rum com Coca‑Cola de um trago e soltando um arroto contido. - Com licença! Houve outro tiroteio entre Muzo e Chivor. Uns ladrões de esmeraldas contratados fizeram uma emboscada a uma coluna que seguia para Bogotá com mulas e três motos. Os gunqueros estavam desconfiados e portaram‑se duma maneira quase militar, como na guerra. Uma patrulha que recuou depois de observar a movimentação inimiga, uma tropa em cunha que abriu caminho e, por fim, a retaguarda, melhor armada, que destruiu tudo à sua volta com um último ataque. Houve quatro mortos. Todos do lado dos ladrões! ‑ Salto inclinou‑se para a frente. ‑ Como sabia do transporte de esmeraldas, Senhora Ordaz?
‑ Dirigiu‑se à pessoa errada, tenente - retorquiu, fumando o grosso charuto preto e enchendo o ar de espessas baforadas de fumo.
‑ Três eram gente sua.
- Deve ser engano.
‑ Um era desconhecido.
- Desconhecido? ‑ O seu interesse despertou. - Chegado de novo de Bogotá?
‑ Não, de Cozques. Admira‑nos muito. Parece que andam à cata de "especialistas" nos outros sítios, dirigindo‑os depois para Penasblancas. Isto deve querer dizer alguma coisa.
‑ Anda aí a mãozinha do Revaila ‑ concluiu a mamá com um ar sombrio. ‑ Está a preparar alguma.
- Tem a certeza?
- Só suspeitas! Hoje, a casa dele parecia uma loja em saldos, com imensos indivíduos entrando ordenadamente. O Christus Revaila está a organizar um exército expedicionário.
Expedicionário? Para onde? ‑ inquiriu Salto.
Para a montanha. ‑ Sorriu lugubremente: ‑ Meu caro tenente, isto é tudo de mais para si! Quando o Revaila declara guerra.. e eu já o vivi uma vez... ninguém se atreve a entrar na cordilheira.
‑ Vou já telefonar ao major Gomez, em Muzo. Com o batalhão dele vai...
‑ Não vai absolutamente nada, tenente! Metade da tropa dele já deve saber o que se prepara, pois sobretudo os senhores oficiais vivem como minhocas gordas à custa do dinheiro que lhes entra clandestinamente no bolso. Um mistério! à noite, os bolsos estão vazios e, de manhã, é só ouvir os pesos a tilintar. O major Gomez vai ter muita gente a dar parte de doente.
‑ Que situação! ‑ berrou Salto. ‑ Também sabe aonde é que o Revaila quer ir?
‑Claro que sim.
‑ Aonde?
‑ à mina do Pebas, onde habita agora um homem que, na sua opinião, não deve viver mais: Pedro Morero.
‑ Ah! ‑ O tenente Salto estremeceu. - O nosso médico! Vou já prender o Revaila!
‑ Tarde de mais. O Revaila já tem à sua volta um pequeno exército, cuja barreira de segurança não vai lograr atravessar. Não consegue chegar a ele, tenente. O melhor que tem a fazer é ir embriagar‑se para a sua esquadra.
‑ De volta para os vossos lugares! ‑ gritou Salto. Os fregueses afastaram‑se das paredes e foram sentar‑se onde estavam antes. Fizeram‑no tão impassivelmente como se nada tivesse acontecido. "Então havemos de deixar que um polícia nos estrague a noite? Nem pense, tenente. A vida é tão curta e as mulheres da mamá tão bonitas! Concede‑nos este pequeno prazer, camarada. Quem sabe se voltaremos a ver Bogotá e a viver a verdadeira vida?!"
- Vou arrumar as minhas tralhas! ‑ O padre Cristobal deslizou do banco. ‑ Agradeça ao Revaila, senhora, por eu me ir embora mais cedo do que o previsto. Mas eu volto a buscar a Perdita.
‑ Para onde vai? ‑ indagou Salto, desconfiado.
‑ Vou ter com o Pete Morero.
‑ Bem me parecia! Loulou, mais um rum com Coca‑Cola! Padre, o Christus Revaila não é daqueles que se importam de disparar sobre uma cruz.
‑ Se fôssemos pelo nome, não o faria, mas sei das suaS intenções assassinas.
‑ Então, o que quer ir fazer para a montanha?
‑ Espalhar a Palavra! ‑ ironizou a mamá.
‑ Exactamente! - O padre Cristobal pagou o uísque, atirando alguns pesos para o balcão. - Vamos vencer o medo... nessa altura, venceremos também o Revaila...
A pequena Neila Zapiga conseguiu salvar‑se. O Dr. Mohr fez‑lhe uma lavagem ao estômago, deu‑lhe muito leite a beber e injectou‑lhe um calmante. Ainda estava a retirar a agulha e já Neila adormecera, respirando profunda e regularmente. A barriga ainda lhe estremecia de vez em quando, mas já não tinha cãibras. Ajoelhado ao lado da filha pequena, Zapiga afagava‑lhe a cabeça e falava‑lhe de mansinho. O homem da barba debruçou‑se sobre a criança e dirigiu‑se depois ao Dr. Mohr, que arrumava o estojo médico.
- Sabe tudo? ‑ indagou.
‑ Como? ‑ perguntou Mohr.
‑ Um médico só não sabe tudo. Um cura os ossos, O outro os pulmões... Existem especialistas dos olhos ou dos dentes e aqueles que cortam as pessoas e lhes tiram do corpo o que lhes faz mal.
‑ Eu sou um desses. Um cirurgião.
‑ Ah! E como é com o cancro...?
‑ Alguém do burgo tem. um cancro? ‑ perguntou o Dr. Mohr, preocupado.
‑ Era o que eu dizia! ‑ berrou o barbudo. ‑ É verdade, um de nós tem um cancro. Há hipóteses?
‑ Poucas.
‑ Ah! Aí, vocês têm medo.
‑ Não exactamente. Seria preciso determinar de que tipo de cancro se trata, em que fase se encontra e se ainda
pode operar‑se.
‑ Consegue operar coisas assim?
‑ Faço‑o há muitos anos.
- E ainda vem para o seio dos malditos? Há qualquer coisa que não bate certo. ‑ O barbudo fitou o Dr. Mohr: - Matou alguém?
- Não.
- Fez algum desfalque?
- Claro que não...
- Foi por questões políticas? É revolucionário?
‑ Também não. Levava uma vida muito boa em Bogotá, mas depois ouvi falar de vós e disse com os meus botões: "Essa gente precisa mesmo de ti." E cá estou... a construir o meu hospital com a vossa ajuda.
Sentado junto da filha adormecida, Juan Zapiga espreitava os rapazes do famigerado burgo arrancando as folhas dos troncos derrubados ou transportando em dois carrinhos de mão as pedras que depois atiravam para um monte. Lá em cima, agachado à entrada da galeria, o meio cego Pepe Garcia escutava o que se passava cá em baixo. Adolfo Pebas fora para a sua mina, levando consigo uma forte lanterna de bolso e uma mangueira de jardim, que desenrolava metro após metro, à medida que ia mergulhando às apalpadelas nas profundezas. O último troço só podia percorrer‑se de gatas, pois a altura da galeria apenas lhe permitia deslocar‑se com as mãos e os joelhos no chão. Uma passagem talhada na rocha, sem nada a escorá‑la; um cano de arestas afiadas, do qual só se podia voltar a sair gatinhando às arrecuas. Não era possível voltar‑se nem virar‑se. Tinha de arrastar o tubo de borracha atrás de si, sempre perto da boca, pois quanto mais fundo se embrenhava na montanha, mais a mangueira era o último elo com a vida: Ar! Ar! Ar!
Ao fundo do corredor, em frente da parede que queria perfurar mais, sob um calor sufocante e sem oxigénio, Pebas deixou‑se ficar parado por uns minutos, respirando pelo tubo de borracha. Depois de aspirar o pouco ar que lhe vinha pela mangueira, pegou no escopro, no martelo e na pequena pá com que atirava para trás de si as pedras e a terra que ia soltando.
Que tormento! E que esperança nesta sepultura diária! Um dia, chegas ao grande veio verde. Um dia, deitado na montanha, com a lanterna de bolso apertada na testa, olhas arrebatado para o brilho verde. Os milhões pertencem‑te, só precisas de os arrancar e levá‑los a Bogotá. Pela Estrada da Morte. Sob os olhares da mamá e do Christus Revaila. Se conseguires tudo isto, tens direito a não fazer mais nada durante o resto da vida a não ser gozar a tua riqueza.
Margarita serviu a comida. Maria Dolores fizera uma grande panela de sopa de feijão e até sacrificara uma gatinha. Os rapazes do burgo acercaram‑se com todo o tipo de recipientes e receberam uma grande concha cheia de sopa e pedaços de carne. Depois, acocoraram‑se no "estaleiro", sorvendo a sopa e mordiscando o pão que tinham trazido. O barbudo aproximou‑se do Dr. Mohr com um pão na mão.
‑ Quer? ‑ perguntou. ‑ É caseiro. Temos um bom padeiro no burgo. De resto, temos gente de quase todas as profissões. Até um advogado... que sou eu.
- É advogado? - O Dr. Mohr pegou no pão e levou‑o ao nariz. Era fresco e tinha um cheirinho delicioso.
- Vou dar um bocadinho aos Pebas.
‑ Se conseguir. Para eles, somos criaturas do diabo.
‑ Porque é que está aqui? - inquiriu o Dr. Mohr.
‑ Por causa das esmeraldas! Que pergunta tola! - O barbudo levou à boca uma colherada de sopa, que tirou duma gamela amolgada de alumínio. - Tudo começou há cinco anos, tinha eu um escritório bastante fraquinho em Valíavicencio, onde só havia umas tantas intrujices, discussões durante as quais os maridos enchiam as mulheres de nódoas negras, roubos, uns tantos pareceres e consultas de empresas e uma vez até um homicidio, no qual as circunstâncias do crime eram tão evidentes que eu mal tive de falar. Na verdade, nada de muito lucrativo! Até ao dia em que veio ter comigo um homem que desatou um lenço à minha frente. Esmeraldas. Cada uma mais bonita do que a outra. Deviam valer uns quatrocentos mil dólares. "O trabalho de seis semanas", disse o homem. "Tive sorte! Conhece Penasblancas?" Claro que não conhecia. Quem conhece este inferno? Mas fiquei curioso. Disse ao homem como havia de aplicar bem o dinheiro, fechei o estaminé e vim para a cordilheira. Desde então, ando aqui na pesquisa. Até hoje, houve nove mortos que queriam incomodar‑me.
- E vale a pena?
O barbudo lançou ao Dr. Mohr um olhar inquiridor.
- Vale... ‑ respondeu devagar. ‑ Sou hoje um homem mais rico... se conseguir vender as pedras. Já tenho o suficiente. Tencionamos ir todos para Bogotá no ano que vem. Estará então na estrada o maior tesouro que a Colômbia já viu. Aproximadamente dez milhões de dólares! O maior transporte de esmeraldas de todos os tempos. Vai ser uma matança! Rapando a gamela, ameaçou o Dr. Mohr com a colher. ‑ Se disser alguma coisa, doutor, penduro‑o entre duas arvorezinhas jovens, para se ir rasgando devagar!
‑ Você não tem nem sombra da mentalidade que normalmente vemos nos advogados ‑ comentou o Dr. Mohr em voz azeda.
‑ Aprendemos este tipo de execução com o Revaila. ‑ O barbudo levantou‑se. Era tempo de recomeçar a trabalhar. ‑ Sabe, não vim para cá sozinho. Tinha um filho de dezassete anos. A minha mulher, sua mãe, fugiu para a Europa com outro homem, um engenheiro. Estávamos cá há cerca de meio ano e tínhamos encontrado as primeiras pedrinhas quando dei com o meu filho pendurado entre as duas arvorezinhas, que tinham voltado à posição inicial. Um lado para a direita e outro para a esquerda! Rasgado ao meio! Tinha ido a Penasblancas comprar conservas e pagara com pequenas esmeraldas. Que idiotas fomos! O Revaila soube e tentou fazer falar o meu filho, que não lhe disse nada. Pouco depois, estava pendurado entre as árvores! É assim... - Assentiu, girou nos calcanhares e dirigiu‑se à sua frente.
O Dr. Mohr encolheu os ombros. De repente, sentia frio. Zapiga, que vigiava a filha, chamou‑o com um gesto de cabeça.
‑ Não tenha medo, senhor doutor ‑ disse baixinho, para Neila não acordar. - Estamos todos consigo. Nós protegemo‑lo! O Revaila não há‑de chegar‑lhe! E, de qualquer modo, não se atreve a vir à montanha.
Quase ao mesmo tempo, Revaila contava os nomes dos homens que se tinham alistado. Eram agora cento e trinta e quatro.
Cento e trinta e quatro homens prontos a ir com ele para a montanha e mostrar a todos quem era o senhor das minas entre Muzo e Cozques. Mas Revaila precisava de mais. O seu objectivo era reunir o número de homens dum batalhão militar. A ordem tinha de voltar a reinar na "sua" montanha. Um médico e um padre tinham bastado para atrapalhar tudo. As massas eram muito influenciáveis!
Revaila fez um aceno de cabeça para o homem que naquele momento entrava no seu escritório:
‑ Assina aqui, meu amigo! - disse vivamente. - Vamos lutar por um futuro melhor.
Na manhã seguinte, o padre Cristobal partiu para a montanha com dez mulas carregadas de mantimentos, armas e munições.
Mas não seguia sozinho. O porteiro, pugilista e cantor Miguel acompanhava‑o, depois de se ter demitido, dizendo à mamá:
- Vou com o padreco! Não porque acredito em Deus, mas pela beleza dos seus hinos e porque gosto muito de cantar...
Revaila só soube da partida de Cristobal por volta do meio‑dia. Mandou imediatamente dez homens atrás dele. mas já era tarde de mais. Foram apanhados logo na primeira barreira dos gunqueros, e não regressaram mais.
A estrada estava cortada por grandes montes de pedras, que atravancavam o caminho.
Uma nova era começava na montanha.
Capitulo 6
Fazia muito calor. Não por causa da temperatura, que nos vales mais altos da montanha provocava a evaporação da humidade acumulada pelas árvores durante a noite e que formava sobre os penedos uma campânula de vapor quente, abafado, atravessado por miríades de cheiros, mas porque os homens do burgo estavam a trabalhar tanto que iam conseguir fazer num dia o que o Dr. Mohr programara para uma semana.
Aplainavam o chão rochoso e derrubavam árvores, tiravam‑lhes os ramos e a casca e, dos ramos finos, talhavam com os machados tábuas angulares para as construções. Uma outra coluna arrastava pedras e começava a trabalhá‑las com picaretas de aço, de modo a alisá‑las para poder dispô‑las em camadas, erguendo as paredes. Reparando na atitude critica do Dr. Mohr, o homem da barba sentou‑se ao seu lado num cepo grosso, na extremidade da escarpa, respirando pesadamente.
‑ Está a pensar que parecemos os antigos Egípcios, não é? ‑ perguntou, tirando do bolso tabaco e um cachimbo muito velho e lascado, que encheu minuciosamente e acendeu com um isqueiro amolgado, soltando baforadas verde‑claras que fediam que tresandavam. - Também foi assim que construímos o nosso burgo, que é inexpugnável. Os militares bem podem vir com canhões e granadas. As pedras vão rir‑se deles!6
‑ E também não devem ter mosquitos! ‑ observou Mohr, tossindo quando o barbudo lhe soprou uma baforada para a cara.
- Não diga mal do meu tabaco, seu médico espertinho! - resmungou. ‑ Arranje‑me outro! Este aqui é cultivado por nós! Sabe quanto é que o bom tabaco custa em Penasblancas? Ou mesmo os cigarros americanos? Uma pessoa tem de trabalhar no duro durante uma hora para poder comprar um cigarrinho. Na cidade, não se aceitam nem pesos nem dólares. Só pode pagar‑se com pedrinhas verdes. A esmeralda é o único sistema monetário destas paragens. A nossa vida é a montanha, no verdadeiro sentido da palavra.
à tardinha, Nuria Zapiga foi ao local de construção. Juan Zapiga continuava sentado no chão com a cabeça da filha no regaço, observando o seu lento regresso à vida. O Dr. Mohr examinou novamente a criança debilitada e administrou‑lhe outra injecção, o que a fez recomeçar a vomitar, expulsando o resto do conteúdo do estômago. Depois, bebeu avidamente o leite de cabra que Margarita lhe levou numa gamela de alumínio e voltou a adormecer. Zapiga fitou o Dr. Mohr:
‑ Vai morrer? ‑ tartamudeou.
‑ Pelo contrário, vai safar‑se. Tomando o pulso da pequena e controlando‑lhe o ritmo cardíaco, perguntou: ‑ O que é que vocês comeram?
‑ O que comemos sempre, Don Pedro. O que a terra nos dá.
- A terra?
‑ Sabe como a minha família é grande. Temos um porquinho, mas ainda precisa de crescer. Temos umas galinhas... não podemos prescindir dos ovos. A cabra tem de dar leite. Além disso, semeámos algum milho e alface. Perto da casa há uma papaieira. Mas quanto à carne, caçamo‑la. Lá em baixo, na planície, nos sítios húmidos vivem umas cobras excelentes e gordas.
‑Cobras?
‑ Um acepipe, doutor! ‑ observou o barbudo. - há rosbife que valha um bife de cobra bem temperado. Não me olhe com um ar tão horrorizado! O que é que acha um acepipe? A lagosta, não é? Coxas de rã! Caracóis! Chocos! Ovas de peixe, a que elegantemente se chama caviar! ‑ Batendo com o punho na palma da outra mão: ‑ É também uma das razões por que vivo aqui. Quis afastar‑me da hipocrisia que nos rodeia! Vocês comem rãs e caracóis e entregam‑se a barbáries culinárias que vos deliciam os olhos. Porque não se hão‑de comer cobras aqui? As cobras são limpas, um banquete, em comparação com os caracóis e as ostras. Fazem‑se panados dos tentáculos das lulas ou chupam‑se as pinças dos lagostins, que se saboreiam com deleite. Sabia que a carne de rato sabe a carne de vitela?
‑ A criança deve ter comido um bocado de carne de cobra venenosa.
‑ Disparate! Se a carne for bem assada ou cozida, o veneno desaparece. Além disso, só o dente da cobra com a glândula do veneno é venenoso; o resto, é tudo bom. Don Pedro, convido‑o para comer carne de cobra! Vai ficar viciado! - O barbudo riu em voz rouca: ‑ Pense na áfrica Central, onde se apanham gafanhotos, que se secam e moem para fazer a farinha com que se cozem uns pães deliciosos. Na China, comem‑se lagartas estaladiças, cozidas e passadas na frigideira! Sente‑se enjoado, doutor?
‑ Ainda não! ‑ O Dr. Mohr fez um sorriso amarelo, encostou‑se para trás e lançou a Zapiga um olhar de interrogação. ‑ O que é que a criança pode ter comido?
‑ Um cogumelo cru...
‑ Ah! Também há aqui?
‑ Temos aqui tudo o que é hostil.
‑ Então, admira‑me muito que ainda estejam todos ViVOS! ‑ O Dr. Mohr lavou as mãos num recipiente de barro que Margarita lhe levara.
‑ A Natureza pode dominar‑se - observou o barbudo com ar sério. ‑ O nosso maior inimigo é o homem.
Nuria aproximou‑se, tirou a rapariguinha do colo de Zapiga, cingiu‑a a si e embalou‑a.
‑ Obrigado, senhor doutor ‑ disse. - Obrigado! Obrigado...
‑ O que anda a fazer o Pablo? ‑ perguntou o Dr. Mohr.
- A trabalhar.
‑ Na mina? ‑ gritou o médico, horrorizado. - Com o problema que tem?! Eu tinha dito que o braço precisa...
‑ Nós temos de viver, Don Pedro - disse Zapiga simplesmente. - Dez filhos, a Nuria e eu... Não podemos desperdiçar nem um dia. Como eu hoje não pude ir para a mina, o Pablo e os outros rapazes tiveram de ir trabalhar.
‑ Os outros? Que idade têm?
- Onze e nove anos, Don Pedro.
‑ E trabalham na montanha?!
‑ Claro que sim!
‑ Com ar da mangueira?! Escavando camadas de pedra em galerias que não têm mais de cinquenta centímetros de altura?
‑ Tem de ser.
- Mas tu queres matá‑los, Juan?!
- E vamos morrer à fome? ‑ Zapiga afagou a cabeça da filha profundamente adormecida, num gesto de profunda tristeza e ternura. - Isto há‑de acabar um dia, senhor doutor, quando dermos com a esmeralda que nos tornará milionários!
Lá estava de novo a esperança sempre presente, O sonho de trinta mil gunqueros: encontrar o veio verde, no qual cada martelada valeria milhares de dólares. Viviam por esta ilusão, mourejando até ao esgotamento, pondo a saúde em risco, abrindo caminho a tiro até Bogotá, atravessando as barreiras dos compradores de Christus Revaila e da mamá Mercedes. E depois ainda era preciso não ser intrujado na Emerald Street ou, no pior dos casos simplesmente morto.
‑ O Pablo não pode fazer nada! - declarou o Dr. Mohr em voz dura. ‑ Deve estar a berrar de dores lá na galeria.
- O Pablo é um rapaz valente, que sabe que não podemos deitar fora nem um dia.
‑ Quero‑o cá logo que as paredes do hospital estiverem aqui com um tecto para as cobrir!
‑ Veremos, senhor doutor. - Girando nos calcanhares, Zapiga meteu pelo caminho que levava ao vale. Nuria seguiu‑o calada, levando nos braços a criança adormecida. ‑ De que lhe serve o hospital, se não vai receber equipamento nenhum...
Ao crepúsculo, os homens do burgo regressaram à sua fortaleza de pedra. A família Pebas e o vizinho Pepe Garcia reuniu‑se debaixo do telheiro da caverna, comendo a refeição da noite. Maria Dolores fizera uma sopa de hortaliças, que engrossara com milho refogado.
Não havia carne. Depois da refeição de boas‑vindas a Pedro Morero, a qual custara uma galinha, o próximo prato de carne só estava programado para o domingo seguinte.
Adolfo Pebas tinha um aspecto péssimo. Trabalhara sete horas na mina. Por quatro vezes rastejara para o exterior respirando com dificuldade e deitando‑se por baixo duma rocha saliente, onde ficara um quarto de hora, como se fosse apenas um monte de pele e ossos embrulhado em andrajos. Depois de algumas golfadas de ar urgentes, quedara‑se como morto, de pernas e braços abertos; mas passados minutos, voltara a sentir as pernas formigando com o pensamento: "Tens de escavar mais! Tens de voltar para dentro da montanha! Algures sob os penedos, as pedras verdes esperam por ti..."
Ao jantar, estirado numa manta de pele de cão, comia a sopa grossa devagar, pesadamente. De vez em quando, Maria Dolores fitava‑o em silêncio. Mas quando o seu olhar se cruzou com o do Dr. Mohr, a sua expressão era de angústia: "Ele está a matar‑se, doutor. E como todos os outros: as pedras enlouquecem‑no. Ajuda‑nos, doutor."
- O Pepe já te contou o que se segreda por aí? - perguntou Pebas, raspando o fundo da tigela de sopa.
- Claro que não. Não quer inquietar‑te. ‑ Adolfo esperou que Margarita voltasse a pôr‑lhe na tigela uma grande concha de sopa. Era a terceira. A montanha enfraquecera‑o completamente. ‑ Na montanha, corre o boato de que és um espião de Don Alfonso Camargo. Então?
- Disparate! - O Dr. Mohr sentiu comichão no couro cabeludo. Espião de Don Alfonso era talvez a pior coisa que um gua quero podia ser. O mesmo que uma sentença de morte. Só era preciso esperar pela sua execução.
‑Todos sabem...
- Ninguém sabe nada! ‑ Pebas arrotou. A sopa estava a saber‑lhe bem. - O Pepe tentou explicar que és médico. Nisso, acreditam sem hesitações, mas dizem que também podem enviar‑nos um médico para nos espiar! Quem pode fazê‑lo melhor, mais minuciosamente e mais traiçoeiramente do que um médico?! As pessoas confiam nele. Contam‑lhe tudo o que lhes vai na alma. Um doente que não acredita em Deus vê no médico uma espécie de divindade. E assim Don Alfonso pode ficar tranquilamente a saber o que cada um tirou da montanha durante meses dum trabalho infernal: quantas pedras, de que tamanho, cor e pureza. As pessoas mostram‑nas ao querido tio médico e, dali a pouco, sabe‑se em Bogotá que o José Latinque vai amanhã para a capital com dez mil dólares de esmeraldas atados no lenço. O José nunca chegará a Bogotá. Com sorte, talvez se encontre o seu corpo e ele possa ser enterrado debaixo de uma cruz.
‑ Não tens confiança em mim? ‑ perguntou o Dr. Mohr em voz sumida.
‑ Que pergunta é essa? ‑ Pebas continuou a comer
a sopa. É a opinião dos outros, que sabem que conheces Don Alfonso. Ele pagou‑te tudo. Além disso, vai equipar o novo hospital e dar dinheiro para tu poderes tratar‑nos gratuitamente. ‑ Fazendo um gesto com a colher, proferiu: ‑ Dá que pensar, não achas? Porque é que o Don Alfonso desaperta os cordões à bolsa? Por amor ao próximo? Para garantir um lugar no Céu, aos pés da Virgem Maria? É de rir à gargalhada! Não, quer as nossas pedras! Quer que trabalhemos a dobrar para fazermos achados a dobrar! Tu ocupas‑te da nossa saúde e ele espera ver‑nos trazer muitas pedras à luz do dia!
‑É verdade.
‑ Ah! ‑ Fitando o Dr. Mohr com a cabeça para trás, prosseguiu: - Então, admites?!
- Sei muito bem as intenções do Don Alfonso ao querer prestar assistência médica a estes abandonados da sorte aqui das minas. Mas está muito enganado. Aceito a sua ajuda, mas construo um hospital de acordo com as minhas ideias! Vou ser vosso médico e não um instituto de engorda de Don Alfonso, que faça de vocês toupeiras possantes.
- Isso vai dar sarilho, doutor.
‑ Tenho consciência disso.
‑ Sarilho para todos nós! ‑ Lambeu minuciosamente a colher. - Ninguém acredita em ti.
‑ Vou falar com todos. Depois de amanhã, monto numa mula e começo a percorrer as redondezas para explicar a toda a gente o que se passa aqui.
‑ Impossível! ‑ Pebas estremeceu. A tigela caiu das mãos de Margarita e quebrou‑se no solo rochoso. - Olha O que a minha filhinha está a dizer‑te com grande estrondo: enforcam‑te, doutor! Perguntam‑te: "Conheces Don Alfonso?" Tu respondes que sim e... não vais mais longe! Prendem‑te, dão‑te uma sova e enforcam‑te. Aqi a noção de justiça é outra. As explicações são sempre suspeitas. Podes ter muitas mortes em cima, e ainda assim ser um camarada. Mas tem cuidado quando o nome de Don Alfonso for pronunciado. ‑ Pebas bocejou, espreguiçou‑se e levantou‑se. ‑ Estou cansado! Amanhã cedinho tenho de voltar à montanha. Hoje foi um dia mau. Nem um grãozinho de poeira verde! Doutor, fica aqui, que estás mais seguro. ‑ Encaminhou‑se para a entrada, virou‑se mais uma vez e abanou a cabeça: ‑ Não compreendo como é que os do burgo te ajudam! ‑ observou em voz rouca. ‑ Não compreendo!
Por fim, Pepe Garcia também se retirou, apoiando‑se na arma como se lhe tivesse cedido os seus olhos.
- Tenho muita pena, mas é o que se pensa de ti. doutor ‑ disse melancolicamente. ‑ Não podia deixar de te contar. Não saias daqui de perto. Olha que nunca mais voltas.
Estava uma noite clara, quente, com um impressionante céu estrelado. A fogueira estava extinta; só o cheiro a madeira queimada pairava no ar, sobre a clareira que os homens do burgo tinham aberto na floresta, no local onde ficaria a "enfermaria".
O Dr. Mohr sorriu, fazendo um esgar. "Enfermaria", que palavra! De pé, olhou em volta. O centro de atendimento, duas salas de exames, uma de operações, outra de radiografias, um pequeno laboratório. Que presunção! Uma sala de operações! Um médico sozinho entre trinta mil gunqueros. Apenas com as suas duas mãos e os seus dez dedos. Sem uma única enfermeira para assistir às operações, cuidar dos instrumentos, tomar conta dos doentes. Sem um enfermeiro para pôr ligaduras, mudar infusões, dar injecções, lavar os doentes, fazer turnos da noite.
Não seria um disparate monstruoso? Não seria mais útil descobrir os almejados, colossais sóis verdes do que pôr aquele hospital a funcionar? Sozinho entre trinta... era um erro médico.
O Dr. Mohr encaminhou‑se para a clareira e sentou‑se no cepo onde estivera com o barbudo. Caindo sobre o desfiladeiro, a floresta perdia‑se nas trevas. "Ali em baixo", pensou, "algures a meio da descida, devem viver os Zapiga." Doze pessoas alapadas na encosta que escarafunchavam metro a metro. E quantos mais com o mesmo destino? Gente sem futuro, mas cheia de esperança. Gente que as pedras verdes matavam e que achavam isso tão natural como o risco de um duelo: "É preciso sair‑se vencedor." Os poucos que o tinham conseguido provavam que era possível derrotar a montanha. Por exemplo, o mítico Miguel Totosa, que encontrara duas pedras de noventa e três quilates, lograra levá‑las até Bogotá e vivia agora na Florida, numa vivenda branca, bebendo um copo de champanhe logo pela manhã. Um ano atrás, escrevera uma carta, com fotografias, que passara de mina em mina. Um sonho que se fizera realidade. Porque não haveria de se repetir? Toda a gente sabia que a montanha escondia milhões incalculáveis.
‑ Estão todos a dormir ‑ disse uma voz baixinho, atrás do Dr. Mohr, que não se virou, limitando‑se a chegar‑se um pouco para o lado no cepo grosso.
‑ Senta‑te aqui, Margarita ‑ convidou, olhando‑a enquanto ela deslizava para o seu lado. Tinha o comprido cabelo negro atado atrás, o que lhe acentuava o rosto miúdo, parecido com uma miniatura espanhola. Envergava uma saia comprida de algodão, ligeiramente franzida na cintura, e uma blusa azul‑clara de decote redondo. Trazia à volta do pescoço um colar de pedras de vidro colorido, que lhe pousava na raiz dos seios. ‑ Não devias estar sozinha comigo - observou o Dr. Mohr.
‑ Estão todos ferrados no sono. Porque é que não vais dormir?
‑ Estou a pensar.
‑Em quê?
‑ Que estou sozinho.
- Mas nós estamos aqui... ‑ Dando com os olhos na clareira, percebeu de repente: - Queres dizer... quando o hospital estiver pronto?
- Sim. Não posso fazer tudo sozinho.
‑ Eu ajudo‑te... e a mamã... e a Nuria. E depois hão‑de vir muitos oferecer‑te ajuda. Entre os gunqueros, há alguns enfermeiros, que até extraem balas ou cosem facadas.
‑ Eu sei, mas não virão trabalhar comigo.
‑ Virão quando tiverem a certeza de que não és nenhum espião do Don Alfonso.
‑ E como posso prová‑lo? O problema é esse, Margarita! Estou aqui de mãos vazias, só com um pequeno estojo de enfermagem, mesmo esse dado pelo Camargo. Tudo o que alguma vez houver aqui neste hospital virá da parte do Don Alfonso. Mesmo que eu tentasse regressar agora a Bogotá, de que serviria? Ninguém vai dar‑me apoios. Nem os poderes públicos ou privados, as empresas ou a Igreja! Para o Estado, estes trinta mil gunqueros valem tanto como trinta mil mosquitos! Quanto mais cedo forem exterminados, melhor! Construir um hospital para eles? Pura loucura! Para quê? Para eles ainda durarem mais tempo?! O que se quer é que desapareçam. Empresas privadas? Eles são mão‑de‑obra lucrativa? Pois... A Igreja? Sim, são crentes, mas também fora‑de‑lei. Para quê construir‑lhes um hospital nas montanhas? Há muitas clínicas nas cidades. Que desistam da vida desregrada e assentem sob a cruz. Dar apoios é o mesmo que ser conivente com o caos das montanhas! É assim. Margarita. Um homem vale aquilo que pode produzir, o lucro que dá, o dinheiro que com ele se ganha, o que se pode fazer com ele. Na verdade, tive muita sorte por um homem me garantir tudo o que precisava para construir aqui um hospital. é‑me indiferente que se chame Don Alfonso. O que interessa é que o hospital seja construído e funcione. O que se seguirá, é coisa que não me preocupa por enquanto. Só penso nos doentes que podem recuperar a saúde. O tifo não pergunta se os medicamentos que o podem derrotar vêm do bispo ou dum negociante de esmeraldas.
- Havemos de conseguir, Pedro. ‑ A mão de Margarita tacteou timidamente para ele, que pegou nela, leVando‑a aos lábios e beijando‑lhe a palma.
Margarita foi percorrida por um violento arrepio. Tremendo, cerrou os lábios.
‑ Quando te vi pela primeira vez atrás das grades, na esquadra de Penasblancas, soube que tudo será diferente...
‑ Diferente? ‑ perguntou em voz reservada, tentando retirar a mão, que os dedos de Mohr apertaram e cingiram ainda mais a si.
‑ Ao princípio, queria vir para a montanha como um simples gua quero, para conhecer a vossa vida. Queria viver no meio de vós, pesquisar e olhar em volta, para perceber como poderia ajudar‑vos melhor. Queria, como se costuma dizer, fazer o levantamento para a realização de posteriores planos, sem deixar nada de lado.
- E já não é assim?
- Não! Vi‑te e, de repente, já não estavas ali. Andei dias e dias à tua procura, perguntando em todo o lado, mas não sabia o teu apelido. Só sabia que querias ir visitar a tua irmã, mas isso também o querem muitas raparigas. Depois, descrevi‑te: "A rapariga mais bonita da face da Terra", disse eu a toda a gente. Riram‑se de mim.
"Aqui só existem dois tipos de mulher", explicaram‑me. "As pombinhas virgens... que não vemos, porque os pais guardam‑nas... ou as outras, que andam por aí à solta... mas nessas, meu caro, a formosura ou já desapareceu ou anda disfarçada debaixo da maquilhagem. Anjos é coisa que não há aqui!" Mas eu andava à procura dum anjo. Tu...
‑ Tenho de ir para casa - interrompeu Margarita muito depressa, puxando a mão. - Larga‑me! Tenho de ir.
‑ Amo‑te ‑ afirmou ele devagar.
‑ Tu és como os outros! Larga‑me!
- Estou pronto a renunciar à minha vida anterior. E não é só porque precisam aqui dum médico... não, não é só por isso. Fico também por tua causa.
‑ És maluco, Pedro... - retorquiu ela, um tanto agitada. - Doido varrido! Um médico e uma rapariga tão pobre como eu.
‑ Se soubesses como és rica... - Cingiu‑a a si e ela deixou‑se ir como uma grande boneca sem vontade. Depois, abraçou‑a, inclinou‑lhe a cabeça para trás e beijou‑lhe os lábios cerrados. Margarita ficou imóvel por um momento. A seguir, ele sentiu os músculos distendendo‑se‑lhe, os lábios abrindo‑se‑lhe, os braços pendurando‑se‑lhe ao pescoço e o corpo apertando‑se‑lhe contra o seu. De um modo igualmente repentino, os seus braços deslizaram e bateram‑lhe no peito, e um punho acertou‑lhe em cheio no nariz. Ele largou‑a e ela deu um salto, bateu‑lhe mais uma vez com os punhos pequenos, acertando‑lhe no ombro e na testa, e ficou a olhar para ele, como se o tivesse matado. Depois, levou as mãos ao rosto e fugiu a correr para dentro da cabana. O Dr. Mohr sentiu um líquido quente escorrendo‑lhe pelo queixo. Apalpou‑se com a mão, retirou‑a e viu que tinha sangue. Tirando o lenço do bolso, apertou‑o contra o nariz e inclinou a cabeça bem para cima. Quando, passado algum tempo, voltou a baixá‑la, deu com os olhos num homem sentado à sua frente. Não o ouvira chegar. O desconhecido envergava um fato puido, uma camisa vermelha aberta e um boné velhíssimo. O seu rosto por barbear abriu‑se num grande sorriso. O homem levantou o boné, agitou‑o por cima do cabelo grisalho e voltou a pousá‑lo.
- Tem cá uma força, não? ‑ comentou em inglês. - Não é de confiar. Mas nesta terra reina uma máxima: Quem dá primeiro, ganha quase sempre.
‑ Viu tudo? - perguntou o Dr. Mohr, observando a arma que o desconhecido tinha entre as pernas. Uma boa arma bem tratada era, naquelas paragens, mais importante do que comer e beber.
‑ E até com muito prazer.
‑ Há quanto tempo está aqui?
‑ Não tenho relógio. Quer dizer, tinha um ainda há quatro meses. Mas depois dei uma fugidinha a Penasblancas. Faz cá uma sede! As minhas pedrinhas chegavam à justa para os preliminares da mamá Mercedes. Ainda podia pagar a fofinha da Juanita, mas mais não. E um uísque duplo nem pensar. Por isso, empenhei o relógio. Bebi‑o! Tem de admitir que um homem precisa dum torrãozinho de carne branca e dum bom copo de vez em quando! Afinal, para que é que vivemos e nos matamos a trabalhar? Bem, mas diverti‑me muito ali ao pé da floresta a ver a menina dar‑lhe uma lição!
‑ Obrigado. - O Dr. Mohr tornou a guardar o lenço ensanguentado. Sentia o nariz e a testa a arder no sítio onde Margarita lhe batera. - E porque é que anda a passear assim de noite? Por causa do ar puro? Tem falta de ozono?
- Que raio de conversa de sala! Esperava mais de si, doutor Morero! - O forasteiro pôs a arma de lado. ‑ Devia saber que o ozono é uma molécula de oxigénio de três átomos, com uma acção fortemente oxidante. Um componente da atmosfera a uma altitude de dois a quatro mil metros! Aqui estamos a quatro mil metros de altitude?
‑ Olá! ‑ O Dr. Mohr inclinou‑se para a frente com um ar interessado. ‑ Quem é você? Um físico falhado?
‑ Porque é que se há‑de ser falhado quando se anda à cata de esmeraldas? Que preconceito! Nem todos os gunqueros são patifes! Sei isso melhor do que você! Num período de três anos, já passaram milhares deles pela minha mesa!
‑ Mesa? Homem, quem é você?
‑ Chamo‑me Aldous Simpson. Agora já sabe mais? Tenho cinquenta e três anos mas provavelmente pareço ter setenta! Estudei em Birmingham e Paris e fiz os meus exames com distinção. Fui ginecologista em Sheffield durante quatro anos.
- Meu Deus, um colega! Pensava que não havia aqui médicos?!
- Não oficialmente! Estou aqui apenas na qualidade de gunquero, que por acaso tem muito jeito para tratar feridas. É tudo. Ninguém sabe que sou médico, e está muito bem assim. Já não existe ginecologista nenhum. M... percebe? O grande M! Enchi‑me de morfina quando achei que não tinha saída. Naturalmente que por causa duma mulher! Era casada com um colega. Meu Deus, como nos amámos! A confusão que ia na nossa cama! Era loura e tinha cá um corpo! Indescritível! O marido, o meu colega, também era cirurgião, doutor Morero. Sempre à mesa de operações, sempre a postos, casado com a clínica, permanentemente cansado para a irrequieta mulher. Aconteceu muitas vezes o telefone tocar a meio do jogo amoroso. Emergência! Dos braços da extravagante loura para a bata de operações. Que mulher aguenta isto? Ela ainda o sente nela e ele já está a amputar membros! Era muito bom nisso, o meu colega. Inventou uma forma excelente de proteger os membros amputados. Mas de que lhe serviu? Enquanto serrava pernas, eu estava na sua cama. Isso mesmo! Depois veio a bomba! A Susan... era como se chamava a agitada loura... estava grávida! Mas não veio ter comigo... não, foi a um médico de subúrbio que andou às voltas dentro dela e disse: "Tudo okay, minha senhora." Tudo okay mas, sete horas depois, a Susan esvaía‑se em sangue. Daí em diante, passei a injectar‑me com M. Até vir para a Colômbia e me tornar gunquero. Até agora, encontrei pedras no valor de nove mil dólares e estourei tudo a beber ou no primeiro andar da casa da mamá. Mas tenho sempre um grande mealheiro, fornecido pelos rapazes que andam aqui todos os dias à pancada, ferindo‑se à facada ou metendo chumbo no corpo.
E de repente aparece o doutor, a título muito oficial. A querer construir um hospital! Caro colega, está a lançar‑me no desemprego!
- Creio que bem pelo contrário, doutor Simpson! - Inclinou‑se para a frente. - Está a oferecer‑me o céu! Não! Só queria dizer‑lhe a minha opinião.
- Tem de ficar aqui.
- Um momento! Diga lá isso outra vez, doutor Morero.
- Nomeio‑o meu assistente! Meu Deus, apetece‑me cantar de alegria! Agora já somos dois médicos! Até mesmo um ginecologista...
- Já me esqueci de tudo, colega.
- É impossível esquecer! Todos os exames com distinção...
- E acredita sem provas?
- A sua palavra chega‑me, doutor Simpson.
- Trate‑me por Aldi. Como um cão. Pode chamar‑me, assobiar: "Aldi, anda cá! Deitado! Aldi..." E eu venho logo!
Tirando o velho boné, atirou‑o ao chão.
- De repente, fiquei cheio de calor, doutor Morero.
- Chamo‑me Pedro ou Pete...
- Há sete anos que não trabalho como médico. Andei pelo mundo e fiz tudo pela M; fui moço de recados e amanhei peixe num barco de pesca. Tudo só para adquirir a maldita M. Desse ponto de vista, sinto‑me agradecido à porcaria desta terra, que me desintoxicou! Quem escarafuncha a montanha não pode injectar‑se com M. E precisa à força de músculos jovens. Ao princípio, foi dificil. Uivei como um coiote. Mas então houve uma espécie dum dique interior... e tudo passou. - Simpson fitou o Dr. Mohr com os olhos brilhantes. - Estou cheio de curiosidade por saber como vou reagir ao voltar a ver uma ampola de M. Ou quando cheirar éter ou clorofórmio.
‑ Parto‑lhe a cabeça, Aldi!
- Faça isso!
‑ Onde vive?
‑ Numa cabana de madeira a dez quilómetros daqui.
‑ Meu Deus, mesmo assim tão longe já se sabe da minha presença?
‑ A noticia da sua chegada a Penasblancas espalhou‑se tão rapidamente como se tivesse sido transmitida pela rádio. O seu nome é tão popular na montanha como as especialidades das éguazinhas da mamá. Mas ninguém confia em si.
‑ Eu sei. E vou resolver o assunto.
‑ Resolver! É mesmo de cirurgião! ‑ Pigarreou: - Tem uísque aqui?
‑Lá dentro.
‑ Merda! Devíamos andar sempre com uma garrafa cheia no bolso! Veja como sobrevivemos aqui duma maneira tão elegante! É uma arte especial, onde se inclui o uísque. Um bourbon bem forte! ‑ levantando‑se, passeou pela clareira e fez um grande movimento com os braços. ‑ Um estaleiro?
- É. No sitio onde está agora vai ficar a enfermaria.
‑ E onde são os alojamentos das enfermeiras? Os quartos das gatinhas? - O Dr. Simpson abanou a cabeça.
‑ Não me diga! Não há enfermeiras? O que é uma clínica sem quartos decentes‑indecentes de enfermeiras? Em Paris, por exemplo, havia...
‑ Aldi, a sua troça não me atinge. ‑ O Dr. Mohr apalpou o nariz, que estava apenas ligeiramente inchado. - Vamos ter uma enfermaria, um centro de enfermagem e uma casa de habitação.
‑ Bravo! E eu vou viver consigo no palácio do chefe?
‑Claro! Dia e noite pronto...
‑ As voltas do destino! Mas eu não tenho nenhuma loura escultural! E quem constrói isto tudo? As paredes vêm do céu por helicóptero?
‑ Tenho uma excelente equipa de construção. Os homens do burgo.
O Dr. Simpson, de pé em cima de uma pilha de troncos, virou‑se de repente.
- Quem? - perguntou, estupefacto.
‑Os do burgo!
- Que mentira infame, chefe!
‑ Amanhã pode ver com os seus olhos!
‑ Não pode ser! Os homens do burgo são os únicos em quem ninguém confia. Com eles, não há discussões! São logo tiros! Conhece o chefe?
- Conheço. Um homem de barba, advogado de profissão. É o meu capataz e arquitecto de serviço.
‑ Estou espantado! Espantadíssimo! Como conseguiu? Parece tão inofensivo... mesmo o tipo de homem que anda sempre atrás das mulheres e vai nadar para Acapulco ou Saint‑Tropez, mas que berra logo pela mamã mal lhe pisam o dedo grande do pé. Doutor Morero, de onde vem?
‑ Franqueza por franqueza! Nem uma palavra do que vou dizer, Aldi...
‑ Palavra de honra!
‑ Sou alemão.
- Desilude‑me. - Regressando ao sítio onde estava sentado, declarou: - Não gosto dos Alemães.
‑ Porquê?
‑ São demasiadamente perfeitos. Imagino que ninguém pode cuspir para o chão na sua nova clínica.
- De modo nenhum!
‑ Pois é, doutor Morero... ou lá como realmente se chama! O hospital vai ser construído nos confins da Terra e os seus pacientes serão os homens mais desordeiros e as mulheres mais manhosas do mundo! Vamos ficar sentados à frente de camas vazias a apanhar mosquitos quando se souber que é preciso lavar as mãos depois de cada míjinha! Qual era o grande segredo do Albert Schweitzer em Lambaréné? Quando um doente estava de cama, toda a família acampava à volta dele! O homem branco era um santo! Quando morreu e os médicos que o substituiram construíram uma clínica nova e esterilizada, os doentes deixaram de aparecer, preferindo rebentar na selva, rodeados pelos parentes. Aqui, os que estão doentes andam com os amigos, que são uma espécie de guarda‑costas. Veja lá o que faz ao impedir‑lhes o acesso ao hospital! Esta gente daqui conhece o perigo... você não. ‑ O Dr. Simpson voltou a sentar‑se e deu uma palmada na coxa macilenta. - Talvez tenha sido bom eu vir aqui.
- Foi até muito bom, Aldi. ‑ Estendendo a mão a Simpson. - Fica cá?
‑ Fico. - Apertando‑lhe a mão: ‑ Quer ajudar‑me?
‑ Ajudar? Em quê?
‑ A descarregar! Tenho o carrinho de mão ali atrás. Trouxe comigo tudo quanto ainda possuo.
‑ Oh, seu tratante! ‑ exclamou o Dr. Mohr com uma gargalhada. ‑ Grande tratante! E se eu o tivesse mandado embora?
‑ Seria pouco provável! ‑ *Sorrindo abertamente: - Mesmo assim, teria vindo ter consigo na qualidade de doente. Ah, havia de arranjar uma doença que o fizesse andar às aranhas! Quantas mulheres pensa que tratei, subjectivamente doentes de morte, mas objectivamente muito alegres e sem nada de grave? Aprendi muito com isso. De resto, não lhe roubo espaço. Trouxe a minha tenda. ‑ Tacteando até à orla da floresta, parou à espera do Dr. Mohr:
‑ Não me quer falar da doçura que lhe acertou no nariz?
- Amo‑a. é o meu destino!
‑ Mais um imbecil como eu! Vamos descarregar, doutor Morero. Parece que cheguei na altura certa para o salvar.
O Dr. Simpson não foi a única visita da noite. Ajudado pelo Dr. Mohr, montou a tenda de plástico não no planalto, na orla da floresta, e sim junto da escarpa ingreme, directamente por baixo da caverna onde Pepe Garcia vivia, a meia altura.
‑ Nunca se esqueça disto, Pete ‑ explicou Simpson, fixando bem a lona. ‑ As costas sempre guardadas! Sempre com o rabo contra a parede, colocando‑se bem para a frente! É impossível protegermo‑nos por todos os lados quando estamos sozinhos. Temos de poder ver o que está à nossa frente.
‑ Aqui não há problema!
- Não tenha tanta certeza! - Regressando à velha mula carregadinha até cima, tiraram as caixas de cartão dos alforjes de couro. Eram tão pesadas que parecia que Simpson as enchera de pedras. ‑ Não sabe o que se prepara em Penasblancas?
‑ Não faço ideia.
- O Christus Revaila está a reunir um exército privado. Já estão alistados cerca de cem homens. Tudo por sua causa, Pete! Esta encenação deve custar‑lhe uma pequena fortuna, mas ele não se importa de a gastar! Logo o Revaila, que se senta nas pedras a chocá‑las como uma galinha, tentando multiplicá‑las. Colega, deve ter‑lhe pisado bem os calos!
- Só tínhamos opiniões diferentes sobre a minha vida futura, e eu fiz prevalecer o meu ponto de vista.
- Que sentido de humor! Bater no Revaila! Você está feito com o diabo?
- Quando se trata de liberdade, sou indomável, Aldi. Aviso sempre seriamente quem ma quer tirar. O Christus Revaila fez ouvidos de mouco ao meu aviso...
- E agora marcha com um exército para a montanha! Não sei por quantas esmeraldas pôs a sua cabeça a prémio, mas deve compensar! Todos os mais espertalhões inscreveram‑se para o serviço! É uma sorte ter a gente do burgo consigo! Vai ser um morticínio, olá se vai! Acho que vou Construir um baluarte à volta da minha tenda.
Arrastaram as caixas para a tenda e pousaram‑nas, gemendo.
‑ Desmontou a sua montanha e trouxe‑a consigo? - perguntou o Dr. Mohr, limpando o suor da testa. ‑ Que peso impossível!
‑Olhe aqui! Sabe o que é isto?
O Dr. Mohr olhou espantado para a estrutura de aço. Pintada de cinzento‑acastanhado, parecia um tripé colossal. No sítio onde os três pés se juntavam, via‑se uma bacia de aço com braçadeiras.
‑ Não faço ideia ‑ respondeu.
- É a carreta dum canhão. ‑ O Dr. Simpson tirou a armação do caixote e montou‑a no chão. - Com um aceno de cabeça para os outros pesados caixotes, esfregou as mãos.
‑ As outras peças estão ali: a culatra, o cano, quarenta granadas.
‑ Isso quer dizer... ‑ começou o Dr. Mohr, estupefacto.
‑ Não! Não ando com nenhum canhão atrás de mim. Trata‑se de um lança‑minas. Chega bem! Digo‑lhe que tem um belo efeito! Nove granadas destas já me serviram de carga explosiva na montanha. Os estilhaços voam que é uma beleza! Depois, basta remexer os destroços e juntar as pedras verdes. Infelizmente, acertei na mina errada: só encontrei pedras e nenhuma esmeralda. Mas se tivesse à minha frente um veio a sério, colega, seria hoje multimilionário!
- Aldi, onde arranjou o lança‑minas?
‑ Roubei‑o! ‑ Sentando‑se num dos pesados caixotes, o Dr. Simpson vasculhou por entre os papéis. ‑ Aqui estão as granadas. Doutor Morero, só lhe digo que foi uma beleza! O lança‑minas era propriedade do Exército colombiano estacionado em Muzo.
‑ Um batalhão.
- Ah, sabe disso?
‑ Conheço o novo comandante, o major Luis Gomez
‑ Tiveram de substituir o anterior, muito dado a depressões. Sabíamos de antemão sempre que vinha fazer uma rusga. Por isso, não estávamos nos buracos das cavernas quando ele chegava. Mas encontrava as mulheres de pé ou deitadas nuas, como no paraíso, cantando quais sereias. Digo‑lhe que os rapazes de farda ficavam de olhos arregalados! Só mulheres nuas, fossem onde fossem! Dos catorze aos oitenta anos! Então, o comandante mandava tocar em retirada, antes que a disciplina fosse toda por água abaixo! Foi assim que assaltámos o acampamento quase vazio: fizemos umas festinhas aos sentinelas e servímo‑nos. Eu escolhi um lança‑minas. ‑ indicando o tripé e os caixotes: ‑ Ei‑lo!
‑ Pode ajudar‑nos contra o Chrístus Revaila.
- Foi o que também pensei. ‑ Observando o Dr. Mohr pensativamente, perguntou: ‑ Conhece bem o tal major Gomez?
‑ Ficámos amigos. Porquê?
‑ Depressa se trazem para aqui trinta granadas, Pete.
‑ Está maluco, Aldi!
‑ Vamos lá supor que o seu Gomez não fosse dar falta de três caixotes de munições... Isso ia ajudar-nos muito.
‑ Impossível! O Gomez nunca o faria!
- Um especialista diria que é apenas uma questão de Gomez fechar os olhos.
‑ O major é incorruptível. Quer pôr ordem neste caos.
‑São os piores! Só agravam a situação.‑Ergueu a cabeça:‑Calado! O que é isto? Não ouve nada?
Levando o dedo aos lábios, inclinou‑se para a frente, à espreita.
O Dr. Mohr apurou o ouvido, mas não conseguiu escutar mais do que o sussurro das árvores, tocadas pelo vento da noite.
‑Nada‑disse baixinho.
‑Admiro a sua desfaçatez de vir para o meio dos gunqueros sem a minima preparação. Se queremos sobreviver aqui, temos de possuir o instinto dum predador! Temos de farejar ou ouvir o inferno antes de o vermos!
Continua a não ouvir nada? São mulas! Muitas mulas
avançando aos tropeções!
O Dr. Simpson desatou um saco e tirou dele uma arma de canos serrados.
‑Vá acordar a familia Pebas.
‑Está a ouvir fantasmas, Aldi! Não é possivel haver aqui nenhum ataque surpresa!
‑Ah! E porque não?
‑Os homens do burgo puseram sentinelas. Acha que alguma vez chegaria até mim se eles tivessem suspeitado de si?
‑Atravessei então um anel de segurança?
‑Isso mesmo.
‑Valha‑me Deus! E nem notei nada!
‑Aqui, temos de possuir o instinto dum predador - repetiu o Dr. Mohr, rindo. - Parece que você é um espécime bastante domesticado, Aldi.
‑Mas são mesmo mulas!‑exclamou o Dr. Simpson.
Levantando‑se dum salto, carregou a arma e colocou‑se de costas para a parede.‑Raios, de certeza que agora também ouve! Escute o tropel! Onde estão as suas sentinelas, Pete? Vá a correr buscar a arma!
De facto, agora o Dr. Mohr também já ouvia: um matraquear de cascos, um martelar irregular e, de vez em quando, um resfolegar ainda mais longinquo. Percebeu até uma voz humana, que gritou qualquer coisa e logo se calou. O Dr. Mohr olhou espantado para o Dr. Simpson.
‑Meu Deus, mas é o Miguel!‑exclamou, quando
um homem robusto como um touro apareceu na curva montado numa mula.‑Aldi, deve conhecê‑lo. É o porteiro Miguel, da mamá!
‑Impossivel!‑Ergueu a arma.‑Alto!‑berrou.
‑Quieto! Imediatamente!
O homem pareceu reconhecer este tom. Estacando aos solavancos. fez sinal para trás. As mulas cerraram fileiras, esgaravatando e ofegando, e fitaram o Dr. Simpson.
‑Que querem daqui?‑gritou Simpson.
‑O melhor é saíres‑me da frente!‑berrou a montanha de carne.
‑Miguel!‑espantou‑se o Dr. Simpson.‑É mesmo ele!
Com a última mula, surgiu na curva o segundo homem, que escorregou da garupa do animal. O coração do Dr. Mohr deu um salto. "Ele veio", pensou, sentindo que a alegria quase lhe marejava os olhos de lágrimas.
"O Cristobal Montero veio. Cumpriu o prometido." Ele bem lhe dissera: "Quando tiveres o teu hospital, vou construir ao lado a minha igreja! O sofrimento precisa do Céu..."
‑Deus te abençoe, meu filho!‑disse o padre Cristobal solenemente.
O Dr. Simpson abanou a cabeça.
‑Hen? ‑indagou, hesitante. ‑O que se passa?
‑Conheces bem isto aqui, meu filho?
‑Lambe‑me o cu!‑gritou o Dr. Simpson.
‑Mas primeiro tomas banho, está bem?‑O padre
Cristobal aproximou‑se sem ver ainda o Dr. Mohr, escondido na sombra da tenda.‑Tenho um gosto muito requintado.
‑Alto! ‑disse Simpson friamente, tremendo de cólera.‑Aí parado, amiguinho. Se pensas que me impressionas com os teus disparates, estás a mijar contra o vento!
‑Devíamos conversar amigavelmente um com o outro‑observou calmamente.‑Um homem que vive aqui e fala latim!
‑É só uma expressão médica ‑ resmungou o Dr. Simpson.
‑E com ela aproximamo‑nos mais do assunto que me traz aqui. Procuro o doutor Morero.
‑Ei‑lo aqui!‑gritou o Dr. Mohr, saindo da sombra da tenda e abrindo os braços.‑Cris, estou tão contente como se fosse Natal! Não esperava que viesses tão cedo!
Abraçaram‑se, estreitaram‑se e bateram nas costas um do outro.
O Dr. Simpson observava‑os de sobrancelhas franzidas.
‑O que é isto?‑bramou. Pelo canto do olho, espreitava Miguel, balançando‑se calmamente nas pernas semelhantes a troncos de árvore.‑Conhece este rapazinho, Pete?
‑E como! ‑Rindo, o Dr.Mohr largou o padre Cristobal.‑Este rapazinho é padre.
‑Meu Deus! ‑desabafou Simpson.‑Olha que esta!
‑E quem temos aqui? ‑ perguntou Cristobal. ‑ Latim médico...
‑O meu assistente.‑Continuando a rir:‑Deixa‑me apresentar‑te o doutor Aldous Simpson, ginecologista.
‑Excelente! ‑Agora, também o padre Cristobal ria, muito para desagrado de Simpson.‑Um médico de senhoras! Na verdade, é aquilo de que mais precisamos por aqui!
O Dr. Simpson ainda berrou qualquer coisa, mas a sua voz foi abafada pelo riso estrondeante de Miguel, tão poderoso como o seu corpo.
A família Pebas encontrava‑se na escuridão da entrada
para a caverna. Isto é, preparara‑se para se defender e
barricara‑se atrás de pedras e caixotes. Quando o
Dr. Mohr ia a atravessar o vestíbulo, foi de repente encandeado por um projector muito intenso, que o fez levantar
os braços, protegendo os olhos da luz forte.
‑Sou eu!‑disse, muito surpreendido.
‑Estou a ver!‑A voz de Pebas era fria e dura. - Aí
parado! Não te mexas!
‑Endoideceste, Adolfo?‑perguntou o Dr. Mohr.
‑Desde que estás aqui que aparece por cá muita ralé‑retorquiu
Pebas com um ar de poucos amigos. - Que
paz tínhamos antes! Mas agora, sempre gente nova!
Quem está lá fora?
‑O padre Cristobal e o Miguel, o porteiro da mamá.
‑Eu mato‑o!‑exclamou Pebas. Mohr ouviu o cano
duma arma batendo contra uma pedra. Baixou os braços,
mas não viu nada. A intensidade do projector ofuscou‑o
de tal modo que teve de voltar a fechar os olhos.
‑ O Miguel, que também era carcereiro da Perdita!
É um animal que deve ser abatido sem escrúpulos.
‑Devias falar com o padre.
‑Não preciso de ninguém para me dizer o que devo
fazer.‑Pebas parecia estar de pé atrás da barricada. - E
quem é o outro?
‑Um colega.
‑Um quê?
‑Um médico.
‑Aquele bêbedo mulherengo do Simpson?!
‑Ele mesmo.
‑O que quer ele daqui? Onde aparece, há sempre
desgraça! Toda a gente sabe. A desgraça é nele como
uma segunda pele...
‑Que disparate! As vossas superstições são completamente
idiotas! O doutor Simpson vai ser meu assistente.
Fica aqui para me ajudar no hospital!
‑Não perto de mim! ‑O Dr. Mohr ouviu fortes
marteladas lá fora. O padre Cristobal e Miguel não perderam
tempo. Já estavam a construir a sua primeira morada:
uma casa feita de tábuas e lona.‑O Simpson atrai a
canalha como uma luz‑teimou Pebas.
‑Pensas que para o meu hospital só vêm almas puras?
É para toda a gente que estiver doente, e não vou
perguntar a ninguém que maldades arrasta atrás de si.
A mim só me interessa a doença.
‑Até chegar alguém que pague os medicamentos
com o revólver.
‑Não há profissões sem risco, Adolfo. Já houve funcionários muito pacificos abatidos por cidadãos enfurecidos!‑Pestanejando:‑Raios!
Desliga lá o projector!
Um médico cego não vos serve para nada!
A luz intensa apagou‑se. Pebas surgiu detrás da barricada
de pedra, passou por Mohr, dirigiu‑se à entrada,
cujo tecto era de folhas, e parou na escuridão, observando
o padre Cristobal e Miguel, que descarregavam as mulas. O Dr. Simpson continuava atarefado à volta da sua tenda, transportando grandes pedras que dispunha em camadas à frente da entrada, como um pequeno muro. Uma fortificação que, em caso de emergência, teria de ser primeiro ultrapassada!
O Dr. Mohr tornou a abrir os olhos e viu os contornos
indefinidos de Margarita, de pé do outro lado da pequena
barricada. Também ela tinha uma arma na mão.
‑Vocês endoideceram! ‑observou o médico em
voz rouca.
‑Ouvimos o barulho de cascos e vozes, o que é
sempre perigoso de noite! Não há gente inofensiva a atravessar
os penedos para chegar aqui de noite! Nós sabemos
isso, mas tu não! ‑Pousando a arma, Margarita
deu a volta à barricada. Maria Dolores desapareceu no
interior da caverna, levando o projector.‑O Miguel está
mesmo aqui?‑perguntou ela baixinho.
‑Está.
‑O papá vai matá‑lo!
‑Não me parece.
‑Tencionas impedi‑lo?
‑Por todos os meios! O Miguel não tem nada a ver com a Perdita.
‑Isso é o que tu dizes! Para o papá...
‑Achas que o padre Cristobal teria trazido o Miguel
se ele tivesse culpa pela vida que a Perdita leva hoje?
‑Ah!‑A voz de Pebas ouviu‑se de repente na entrada.‑Lá
está o Miguel! Fica parado onde estás, seu
porco! Não te mexas! As tuas costas são suficientemente
largas para não se poder errar! E o senhor, padre, dê três
passos atrás, por favor. Este assunto é estritamente familiar.
‑Aconteceu‑tartamudeou Margarita. ‑Já não
podes fazer nada, Pete. Fica aqui! Por favor, fica!
E agarrou‑lhe o casaco com força, mas o Dr. Mohr
soltou‑se com um puxão. Dando passos largos, depressa
chegou junto de Pebas, cuja arma baixou com o punho.
Ao mesmo tempo, a aresta da sua mão sibilou no antebraço
de Adolfo. Pebas soltou um grito abafado, a arma
bateu no chão e ele levou a outra mão ao braço que lhe
doía como o diabo. Pressentindo a situação como um animal
acossado, Miguel virou‑se, atirou‑se para o lado, inclinou‑se
e procurou abrigo. Estupefactos, o padre Cristobal
e o Dr. Simpson fitaram a entrada da casa de Pebas,
onde Adolfo, curvado, gemia e, ao mesmo tempo, se lançava
de cabeça contra o Dr. Mohr.
O médico agarrou fortemente Pebas, que não podia
fazer nada com as mãos, e atirou‑o para o ar livre, onde
ele foi parar, cambaleando, em frente do padre, cingindo
o braço direito ao peito.
‑Pelas costas, não!‑disse o Dr. Mohr friamente.
‑Aqui podes falar. Aqui, estás em situação de igualdade.‑Olhando para o lado, viu Miguel deitado no chão,
com uma pistola na mão.‑Miguel, o aviso também é
para ti! Tens atrás de ti quem atire mais depressa do que
tu. E a tua cabeça é de bom tamanho.‑O Dr. Simpson assentiu. Como enfeitiçado, empunhava o revólver na mão direita. Miguel não se virou. Acreditava piamente nas palavras do Dr. Mohr.
Pebas respirava com dificuldade.
‑Ele partiu‑me o braço!‑queixou‑se em tom abafado.‑Diz
que quer ajudar e parte os melhores amigos das pessoas: os braços! Padre, gostava de me confessar! Aqui e agora!
‑Deus está sempre em toda a parte ‑ replicou
Cristobal cautelosamente.
‑Padre, gostava de confessar‑continuou Pebas
em voz alta‑que vou matar duas pessoas: o Miguel e o
Pete Morero. Peço de antemão a Deus o Seu perdão.
‑Recusado!‑O padre Cristobal abriu a mala, tirou
dela a sotaina, vestiu‑a por cima do habitual fato
meio esfarrapado e abotoou‑a. Depois, padre dos pés à
cabeça, postou‑se em frente de Pebas, que ergueu para
ele um olhar de través. Era uma boa meia cabeça mais
baixo do que Montero, mas duas vezes mais robusto e
forte do que ele. Ouviu‑se um grito vindo da caverna:
‑Papá, ajoelha‑te!
‑Acreditas em Deus?‑perguntou Cristobal calmamente.
Pebas baixou os braços. A dor atenuara‑se e
podia mexer novamente a mão. Portanto, não tinha nada
partido. Mas este reconhecimento só fez aumentar‑lhe a
fúria vulcânica.
‑Acredito!‑replicou rudemente.‑Quando estou
bem dentro da montanha, no fundo da minha galeria, escarafunchando os penedos, rezo muitas vezes: "Meu
Deus, devias estar aqui comigo para veres como é um logro
a vida que temos de levar à Tua imagem e semelhança."
É isto que Lhe digo! É assim que falo com Ele!
Sempre ouvi dizer que se pode falar a Deus de mil maneiras.
Eu falo da milionésima primeira!
‑Deus ouve‑te!
‑Ainda bem! ‑ Soltando uma gargalhada rouca.
exclamou: ‑ Tem de riscar dois nomes na Sua lista.
‑Quando se Lhe dirige a palavra, Ele responde - retorquiu suavemente o padre Cristobal.‑Deus responde directamente ou por intermédio do Seu representante. Olha para mim, Pebas. O que tenho vestido?
‑Uma saia de padre.
‑Portanto, Deus está agora a falar contigo por meu
intermédio! Escuta...‑Com a rapidez do raio, acertou‑lhe
um murro em cheio no queixo. Pebas cambaleou e
recuou um passo, mas não caiu. Só o seu olhar ficou vazio
e vítreo. Ouviu‑se um murmúrio ritmado vindo da entrada
da caverna. De joelhos, Margarita e Maria Dolores
rezavam um pai‑nosso.
O padre Cristobal esfregou o punho e abanou‑o.
‑Tens um queixo de ferro!‑exclamou elogiosamente.
‑ Pebas, podes confessar‑te. Mas precisas de
acrescentar mais um crime. Agora tens de assassinar o
teu confessor.
Pebas não respondeu. Girando nos calcanhares, cambaleou
até casa, passou ao lado das mulheres ajoelhadas
e entrou. O Dr. Simpson só baixou o revólver quando o
viu desaparecer na escuridão.
‑Tem de ser tratado!‑disse para o silêncio que se
seguiu.
‑O braço não está partido.‑O Dr. Mohr apanhou
a arma de Pebas.‑Só vai andar com uma bela nódoa
negra durante umas duas semanas.
‑Na minha opinião, não está muito bem da cabeça!
Temos de lhe dar um calmante. Meu Deus, o homem rebenta
de raiva! Além disso, tem uma tensão muito alta!
‑Miguel, chega aqui! ‑ordenou o Dr.Mohr em
voz áspera.
Miguel, o pugilista e porteiro, ergueu‑se do abrigo e
aprOximou‑se devagar. No seu rosto destroçado de buldogue,
os olhos tinham uma expressão desnorteada e duma
inocência infantil.
‑Não sei o que o Pebas quer. Não sei...‑balbuciou.
‑O que tiveste a ver com a Perdita Pebas?
‑Nada. Juro que nada. Só uma vez que ela queria fugir...
‑Ah! E depois?
‑Veio ter comigo. Queria dinheiro. A Senhora Ordaz
ficava com o dinheiro todo e só dava uns pesos às raparigas.
"Volta para a montanha", disse eu à Perdita. Mas ela
não quis.
mata‑me de pancada!" E acho que sim. Acredito que o
velho Pebas o faria! Queria fugir para Bogotá e, se possível,
ir ainda mais longe, até à costa, mas para isso precisava
de dinheiro. Não Lhe dei nenhum, porque também
não tinha. Chegou então a mamá e resolveu o assunto.
Foi assim. Não me podem matar só porque não tinha pesos!
Nunca forcei a Perdita a permanecer em casa da Senhora
Ordaz!
‑Acredito nele‑disse o padre Cristobal, vendo
que o Dr. Mohr se calava, por não estar inteiramente convencido.‑Antes de vir para a montanha comigo, fi‑lo
confessar tudo. No caminho, parei e mandei‑o ajoelhar‑se
na estrada. Contou‑me tudo! Deus até deve ter ficado
sem respiração! O Miguel contou tudo. Respondo por ele
enquanto padre!
‑Temos de ir acalmar o Pebas antes que faça alguma
estupidez‑ interveio o Dr. Simpson. ‑ Conheço
bem este tipo de gente.
‑Eu faço isso! ‑O Dr. Mohr pegou na arma de
Pebas.‑Desculpa teres sido tão mal recebido, Cris, mas
as coisas vão mudar.
‑Já sabíamos de antemão para onde vínhamos. Se
fosse para me beijarem a mão, bem podia ter ficado no
convento. Esta gente daqui não vai com conversas: tem
de ser conquistada!
O Dr. Mohr regressou à caverna. O Dr. Simpson, o
padre Cristobal e Miguel continuaram a erigir a curiosa
estrutura de tábuas e lona onde o padre queria viver de
momento.
Maria Dolores, que acendera a lanterna de petróleo na
grande caverna, fitou o Dr. Mohr de olhos esbugalhados
quando este entrou na parte da habitação destinada aos
Pebas. Sentado à mesa de madeira, Adolfo, que pendurara
o braço direito num lenço atado à volta do pescoço, bebia com a mão esquerda um púcaro de água misturada com vinho tinto. Mohr sentou‑se à sua frente, atirou‑lhe a arma para os pés e empurrou por cima do tampo da mesa um maço de cigarros na sua direcção.
‑Quando tencionas matar‑me?‑perguntou.‑Seria
bom eu saber de antemão. Existem várias maneiras de
o fazer.
‑Esquece!‑retorquiu Pebas, cabisbaixo.‑Meu
Deus, com essa tua mão até podes cortar membros inteiros!
Era assim que fazias amputações no hospital?
‑Não. Mas talvez introduza o método aqui. Vocês
parecem ser do tipo de pessoas com quem é preciso andarmos
à pancada para vosso próprio bem. Por mim, não
me importo.
‑Portei‑me como um idiota, não foi? É que quando
ouvi o nome Miguel, senti alguma coisa a destroçar‑me
por dentro.
‑Está bem‑replicou serenamente o Dr. Mohr. - Já
que estamos a falar de destroços, não te admires se fizermos
voar mais alguns.‑Depois de uma curta pausa, disse, articulando bem as palavras:‑Amo a Margarita.
Ouviu‑se um grito abafado vindo de trás. Margarita precipitou‑se para a mesa e ajoelhou‑se à frente do pai. Pebas
firmou o queixo.
‑Sim?‑indagou laconicamente.
‑Sim.
‑Eu também o amo, pai!‑exclamou Margarita,
abraçando o joelho de Pebas.‑Se o matares, então mata‑me
também a mim.
‑Tenho duas filhas‑começou Pebas devagar. ‑ Duas filhas formosíssimas. Mais formosura nenhum pai poderia
desejar. Diz‑se que é uma bênção de Deus. E no entanto... uma é prostituta, e vende a beleza por pesos ou esmeraldas, e a outra...
‑Antes de continuares a falar...‑interrompeu o
Dr. Mohr, mostrando‑lhe o punho por cima da mesa. - Parece
que tenho de ensinar o pai a acreditar na honra da
própria filha! Prossegue, Adolfo.
Pebas respirou com dificuldade pelo nariz.
‑Tu tens instrução, e ela é apenas a filha dum gauquero. Não pode ser!
‑ Amo uma mulher e não as suas origens!
‑Tretas! Quando voltares à cidade, à vida de rico e
aos milhares de mulheres elegantes e instruídas, que será
da Margarita? Definhará como uma orquídea. Não precisa
de temer nenhuma mulher, mas no teu mundo vão ridicularizá‑la
e troçar dela em todo o lado. A bonita flor do
pântano... ninguém a aceitará, será sempre uma estranha,
apenas tolerada porque está ao teu lado. Entre milhares
de pessoas, será a mais sozinha. Vagueará à luz como
uma cega, e todos os olhares que caírem sobre ela espetá‑la‑ão
até à morte! E queres que deixe fazerem isso à minha
filha?
‑Eu não me vou embora! Tenho aqui o meu hospital
e fico com os gunqueros.
‑E quando eu encontrar o meu veio verde? Sabes
muito bem que está ali na montanha. Sinto‑o como uma
comichão na pele, quase que o cheiro. E depois? Poderei
por fim levar uma vida de milionário. E tu vais ficar neste
inferno com a Margarita? Nunca, Pete, nunca o permitirei!
‑O que é que queres realmente, Adolfo?‑O Dr. Mohr
debruçou‑se sobre a mesa, o que era perigoso, pois ficava
ao alcance de Pebas. Mas este não estava a pensar em
deitar rapidamente as mãos ao pescoço dele. Em vez disso,
afagou a cabeça da filha, apertada contra o seu joelho.
‑Ora és um fora‑da‑lei, ora sonhas com milhões! Seja
como for, está sempre mal!
‑Havemos de falar mais nisso, Pete!
‑Não vai mudar nada: amo a Margarita.
‑Tencionas casar com ela?
‑Claro que sim. Logo que o hospital esteja pronto e a igreja do padre Cristobal fique de pé, ele casa‑nos.
‑Receio bem que o hospital nunca fique pronto! - comentou Pebas taciturnamente.
Capitulo 7
Na manhã seguinte, os homens do burgo voltaram a
aparecer, avançando em três colunas, formados numa ordem
quase militar. Juntando‑se na orla do planalto, olharam
com ar de poucos amigos para a tenda do Dr. Simpson.
A fortificação aumentara durante a noite e, atrás
dela, sentava‑se o Dr. Simpson ao lado do lança‑minas,
cujo cano carregara. Do outro lado, erguia‑se a habitação
do padre, ainda por acabar. O padre Cristobal gatinhou
para fora do saco‑cama e Miguel, depois de examinar o
aspecto selvagem daqueles homens, correu imediatamente
a abrigar‑se atrás da casa. O Dr. Mohr, que estava à
sua espera, foi ao encontro do comandante da expedição.
‑Chegaram mais amigos‑anunciou.
‑Estou a ver!‑O barbudo não ligou às mãos do
Dr. Mohr.‑Veremos se são amigos. Os sentinelas comunicaram
que se passou alguma coisa aqui durante a noite. É verdade? O Simpson está aqui?
‑ Ali na tenda.
‑Aquele é o Simpson? O gajo com o lança‑minas?
Doutor, sabe quem acolheu aqui?
‑Um médico. Vai fazer‑me muito jeito. Só um para
trinta mil pessoas' convenhamos que é muito pouco! Os meus colegas coleccionadores de atestados médicos exultariam
com tal clientela, mas eu, sinceramente, tenho medo.
‑Em cada três de nós, um está de alguma forma doente.
‑O que, portanto, perfaz dez mil! Só para um! Impossível!
‑Foi o doutor que meteu semelhante disparate na cabeça, não eu! E agora acredita que este Simpson, este poço sem fundo que só pode encher‑se de aguardente, tem condições para o ajudar? Vai beber‑lhe o álcool das desinfecções!
Como o barbudo falara alto, o Dr. Simpson levantou‑se
ao lado do lança‑minas e aproximou‑se da fortificação.
‑Alto lá!‑gritou.‑Não te conheço! Nunca foste
tratar‑te comigo! Mas ouvi falar muito de ti, senhor advogado!
Onde estão os teus conhecimentos jurídicos?
Quem é que anda sempre pelas salas dos julgamentos a
perorar pela concessão de mais uma oportunidade? Eu
agora tenho uma e tu recusas‑ma? Meu caro, vou ao teu
burgo e reduzo‑o a cinzas com o meu lança‑minas!
‑Eu bem dizia: um idiota que a bebida descerebrou!
Simpson, mete o teu lança‑minas no cu! Temos três canhões sete vírgula cinco no burgo!
‑Meu Deus! O destacamento de artilharia que desapareceu
sem deixar rasto no caminho de Muzo para Cozques...
‑És tu que estás a dizer!
‑Todos liquidados?
‑Os canhoneiros estão connosco. Alguns encontram‑se
ali.‑Apontando com o polegar para trás: - Demos‑lhes
a escolher, e escolheram a vida. Daqui a uns
anos, estão ricos. Depois falamos, Simpson. De momento,
não me interessas muito.
‑Oh! Imbecil!‑exclamou Simpson, corando. - Um advogado falhado a quem o oficial de diligências ensinava direito!
O barbudo imobilizou‑se, lançou um olhar colérico à
fortificação em frente da tenda e girou nos calcanhares,
dirigindo‑se ao padre Cristobal, que Lhe vinha ao encontro.
‑Ouviu, padre?‑perguntou o barbudo.
‑Você também o picou! Olho por olho, dente por dente.
‑Não conhece mais máximas?
‑Depende do que espera de mim.
O barbudo coçou a cabeça.
‑Desde que passou a primeira sentinela que sei que
o senhor é o padre que erigiu uma igreja em Penasblancas
e que conseguiu reunir a mamá e o Christus Revaila
sob o mesmo tecto, durante a missa. E sem um único
morto! Vai entrar para a história de Penasblancas. Quando
soube que vinha para a montanha, a minha ordem foi: "Deixar passar."
‑Foi muito amável‑retorquiu calmamente o padre
Cristobal, sorrindo.
O barbudo esfregou os olhos, pouco à vontade:
‑Tenho um homem que não pode morrer sem se
confessar.
‑Há gente assim.
‑Importa‑se de vir comigo, padre?
‑Até ao famoso burgo? Que nunca nenhum estranho
pisou?
‑Um padre e um médico não são estranhos. Fazem
parte das nossas recordações e cresceram connosco, embora
às vezes tentemos negá‑lo. ‑ Virando‑se para o
Dr. Mohr e mordendo o lábio inferior, pediu:‑Doutor,
venha também. Há uma hora que estou preocupado...
com a minha mulher.
‑A sua mulher? Tem mulher? Pensava que no burgo
viviam só homens?!
‑Ela mora num acampamento, no desfiladeiro vizinho.
Não somos casados, mas chamo‑lhe minha mulher.
Está à espera de bebé, mas parece que há complicações.
Percebo pouco do assunto, mas penso que tem a bacia
demasiadamente estreita. O bebé não consegue sair.
O Dr. Mohr engoliu em seco.
‑Sabe o que isso significa?‑perguntou em voz
rouca.‑O que isso significa aqui?
‑Confio em si, doutor.
‑Não se trata de confiança! Meu Deus, como vou
fazer aqui uma cesariana?
‑Tem instrumentos consigo...
‑Mas não os adequados! Não disponho de instrumentos
ginecológicos.
‑Quem falou de ginecologia?‑gritou o Dr. Simpson,
que ouvira a palavra.
‑Fecha o bico, Simpson!‑berrou o barbudo.
‑Devia dar graças por ele estar aqui. Também vem
connosco.
‑Então a minha mulher há‑de morrer com o mau‑olhado dele?
‑Onde deixou a sua racionalidade?
O barbudo assentiu com a cabeça.
‑Tem razão. Vamos. Dois médicos e um padre, escalpelos
e a palavra de Deus... isto promete. Por onde começamos?
Pelo moribundo ou pela parturiente?
‑Pela vida!‑retorquiu o Dr. Mohr.‑Que achas,
Cris?
O padre Cristobal juntou as mãos.
‑Vou rezar por dois lados. Já que Deus vê tudo,
também deve ter os dois ouvidos atentos.
‑Doutor Simpson! ‑chamou o Dr. Mohr para a
tenda.‑Deixe o seu lança‑minas em paz e venha fazer
uma cesariana!
‑Valha‑me Deus!‑Assomando por cima do seu
baluarte, declarou:‑Fiz a minha última cesariana há
nove anos!
Aproximando‑se do barbudo, que o observava com
desconfiança, ergueu as duas mãos:
‑Mas não tenhas medo, deturpador da lei, ainda
chego para assistente!
‑Vou buscar a mala‑disse o Dr. Mohr.
‑E eu a comunhão‑acrescentou o padre Cristobal,
girando nos calcanhares.
O barbudo e o Dr. Simpson ficaram sozinhos frente a
frente. Por um momento, fitaram‑se em silêncio, num
duelo de olhares. Depois, sorriram e enfiaram as mãos
nos bolsos das calças.
‑Seu mijinhas!‑disse o barbudo afectuosamente.
‑Seu merdas!
‑É possível... quer dizer... se for necessário, é possível
fazer aqui uma cesariana...?
‑Ser possível é... com todos os riscos‑replicou o
Dr. Simpson.‑Se conheço bem o Pete, ele vai arriscar.
‑Tu não?
‑Não.
‑E deixas morrer a minha mulher?
‑Prefiro sacrificar a criança... ‑ Levantando os
dois braços num gesto de impotência, afirmou:‑A decisão
é tua.
‑Minha?‑O barbudo voltou a passar a mão pelo
rosto:‑Como é isso?
‑Tens de decidir o que te é mais querido: a mulher
ou a criança! Só um vai sobreviver.‑O Dr. Simpson
encolheu os ombros, como se tivesse frio. O Dr. Mohr
saiu da casa dos Pebas com o pesado estojo metálico na
mão.
‑Isto é terrível! Não vamos enganar‑nos a nós próprios‑observou, suspirando.
Depois duma longa caminhada por um desfiladeiro
rochoso, no qual a muito custo se abrira um carreiro por
entre a densa vegetação, o barbudo, os Dr. Mohr e o Dr. Simpson e, na retaguarda, o padre Cristobal, chegaram
a um vale lateral, comprimido entre as paredes de
pedra como um tubo estreito. Tinham aberto uma grande
clareira na densa vegetação e construido habitações com
a madeira, ramos e folhas daí resultantes. Eram sete cabanas
dispostas em círculo, como uma barreira de caravanas,
protegidas contra qualquer ataque por um muro de
pedra e uma paliçada de paus aguçados. A maioria dos
habitantes era constituida por mulheres e crianças. Os homens
passavam a semana esgaravatando as minas, abrindo
galerias na montanha, peneirando, lavando e desfazendo
as pedras para delas arrancarem os seus achados,
quase sempre esmeraldas de má qualidade, turvas, que
nunca atingiam preços altos no mercado. Só os polidores
de pedras preciosas acabavam por lucrar alguma coisa
depois de cortarem as esmeraldas em placas muito fininhas,
que colavam num material sintético verde muito
bonito. As diversas montagens das pedras, num trabalho
verdadeiramente atraente, eram vendidas a preços muito vantajosos. Mas os gunqueros das montanhas de Muzo não faziam
a mínima ideia disso. Rastejavam nas galerias apertadas,
arrastando os tubos de borracha atrás de si, martelavam
centímetro a centímetro e, depois de quatro ou
cinco horas por dia, jaziam como mortos nos corredores
das minas, enchendo o peito de ar e com o corpo a tremer,
demasiado fracos até para amaldiçoarem a vida. Os
despojos do dia: nada. No máximo, uns minúsculos grãozinhos
verdes, que se haviam colado à rocha como bolor.
Mas era o suficiente: a esperança recrudescia a cada
achado. Se o raio da lanterna atada à cabeça batia em
qualquer coisa verde, então era porque devia haver mais
pedras da mesma cor algures nas profundezas dos malditos
rochedos. Pedras maiores, cristais puros... dinheiro,
dinheiro, dinheiro!
O aldeamento era guardado por quatro velhos que já não podiam andar nas minas e que os outros sustentavam porque cortavam madeira, faziam trabalhos de melhoramento nas casas, matavam porcos e cabras, preparavam enchidos, iam à caça ou calcorreavam uma vez por mês o caminho para Penasblancas com um par de mulas, para aí comprar dinamite para as cargas explosivas, munições, sal e outros temperos, roupas, ferramentas, pilhas, farinha, milho, açúcar, frutos secos, feijão, ervilhas, sabão e aguardente. Também eram eles que actualizavam as noticias.
A grande sensação do momento era o facto de um
médico e um padre se terem mudado para a montanha.
Havia muita risota, mais por causa do padreco do que do
médico. Um clínico ainda podia ser útil, mas que vinha
fazer às minas de esmeraldas alguém que só pregava a
santidade, falava do amor a Deus e discursava sobre o
Paraíso, num lugar onde havia muito se vivia no Inferno?
Como em todo o lado onde existiam gunqueros, também
no aldeamento funcionava o sistema de informações.
A pequena equipa dos quatro homens já estava avisada
há muito tempo. à entrada do muro e da paliçada, viam‑se
os quatro velhos com as armas em punho. O aldeamento
em si estava tão silencioso como se tivesse sido
abandonado. As mulheres e crianças encontravam‑se dentro
das casas e só se viam por ali algumas galinhas e patos.
Os porcos grunhiam e uma matilha de cães ladrava
num canil. Eram cães grandes, robustos, de pêlo quase
branco e dentes fortes. Ganiam e rosnavam furiosamente,
saltavam às redes de arame e comportavam‑se como se
tivessem farejado sangue fresco. à porta do canil, com a
mão no fecho, encontrava‑se um rapaz de roupas esfarrapadas,
aí com uns sete anos. Bastava uma ordem para ele
puxar o ferrolho, deixando os cães precipitarem‑se sobre
todos os que Lhes estivessem no caminho. E não havia
salvação possível para aqueles dentes arreganhados.
Opadre Cristobal parou e examinou o aldeamento
‑Que acolhimento tão amável!‑disse sarcasticamente.
‑A cautela e a desconfiança são meio caminho para
a sobrevivência, padre.‑O barbudo indicou as cabanas: ‑Ali, na quarta depois da entrada é onde vive a minha mulher. Não se assuste.
‑ Porquê?‑O Dr. Mohr pousou a pesada mala de
metal.‑Mais uma surpresa?
‑A minha mulher é ainda uma criança.
‑O quê?
‑Segundo os padrões do mundo civilizado.‑Puxando
colericamente a camisa aberta, exclamou:‑Não
olhe para mim como se eu fosse um assassino, doutor!
A minha mulher tem quinze anos. É da raça dos índios
chibchas, para os quais as leis são outras. Para eles, uma
adolescente com doze anos já é casadoira! Agora vá, pergunte‑me porque tomei mulher tão nova! O que aparece
de mulheres por aqui, ou já são casadas ou avós. As outras
não passam de prostitutas, que vêm para a montanha
mostrar as pernas, à cata de esmeraldas. Um negócio proveitoso, é o que lhe digo! A chegada destes bordéis ambulantes é festejada como um presente dos céus! Sei que
é uma lástima, padre, mas é verdade. E eu havia de ficar
com uma delas? Uma destas flores sem cheiro? Então,
conheci a Chica. A familia dela andava fugida. Já lhe tinham
matado o pai à pancada por ele não saber onde havia
veios de esmeraldas. Desde o tempo dos conquistadores
que os índios chibchas são considerados os maiores
conhecedores dos jazigos de esmeraldas. Nessa época,
eram torturados aos milhares até à morte... e de resto, o
que é interessante, com a aprovação da Igreja e em nome
de Espanha. Foi assim que os conquistadores souberam
das minas. E ainda hoje é assim. Quando se apanha um
chibcha, é sempre a mesma cantiga: "Onde é que há
veios? Veios verdes? Seu merdas, tu sabes muito bem!"
Muitas vezes, o resultado é o que aconteceu com o pai da
Chica... matam‑no à pancada, embora ele não saiba mesmO
nada. Por isso, a mãe da Chica e uma irmã ainda mais nova andavam fugidas. Quando as encontrei num
dia que fui à caça, viviam em tocas, como animais. Não
gritaram... só inclinaram a cabeça para mim, como que a
dizer‑me: "Anda, homem branco, acaba connosco!"
Trouxe‑as para este aldeamento e construí‑lhes a cabana.
Quando ficou pronta, a Chica veio ter comigo à noite.
Queria agradecer‑me. E a única coisa que tinha para me
oferecer era o corpo magnífico. No meu lugar, teria recusado?
Se disser que sim, é um grande hipócrita! E outra
coisa: sou feliz!
‑Vamos!‑interrompeu o Dr. Mohr.‑Ainda nos
largam os cães por não saberem quem está aqui no meio
das árvores...
‑Isso resolve‑se!‑Pondo as mãos à frente da boca,
o barbudo soltou um grito atroador. Um dos velhos
postados à entrada do aldeamento respondeu‑lhe e acenou‑lhe
com o braço. Tudo em paz! O garoto largou o
ferrolho do canil e correu para o casebre mais próximo,
onde desapareceu atrás duma pilha de lenha. Os cães
continuavam a ladrar furiosamente, mas algumas portas
abriram‑se, deixando sair mulheres e crianças, que correram
a retomar o trabalho que tinham interrompido.
A maioria desapareceu nas pocilgas anexas aos casebres,
onde foi tratar dos porcos.
Os quatro velhos acolheram‑nos no aldeamento, cumprimentando‑os, observando‑os e permanecendo desconfiados.
‑Como está a Chica?‑perguntou o barbudo ansiosamente.
‑Na mesma.‑Um dos velhos encolheu os ombros.‑Tem
menos dores, mas diz a minha velha que isso não significa nada. Podem voltar de repente e rasgá‑la toda.
‑Vamos lá imediatamente!‑O Dr. Mohr encaminhou‑se para o casebre onde Chica morava, mas o barbudo puxou‑lhe pela manga.
‑Se não for possível fazer nada, seja sincero comigo, doutor. Por favor!
‑Alguma saída havemos de arranjar!
‑Como o Simpson disse, a mãe ou o bebé. Um dos
dois tem de ser sacrificado...
‑Em último caso... Simpson, que disparate é esse?
‑A verdade, grande mestre. - Erguendo as duas mãos,
continuou:‑Aqui devemos dizer tudo... temos de dizer
tudo. Já estamos habituados a suportar o pior!
‑Quem é que o senhor salvaria, doutor? A mãe ou a
criança?‑indagou baixinho o barbudo. A rudeza desaparecera‑lhe
da voz. Como todos os futuros pais, estava
agora cheio de cuidados.
‑Sempre a mãe...
O barbudo suspirou profundamente.
‑Isso sossega‑me. doutor, se salvar a Chica, tem
aqui um amigo para toda a vida! O que, para si, é uma
espécie dum seguro de vida.
No casebre, numa cama de ferro, encontrava‑se deitada
uma rapariga, com a cabeça duma criança, grandes
olhos castanhos, cabelo negro preso em tranças muito
grossas e um corpo delicado, com a barriga encurvada
como um balão cheio de ar. Não parecia índia. O seu rosto
harmonioso assemelhava‑se a uma miniatura de tempos
passados. A pele reluzia de suor... uma pele castanho‑clara
e muito lisa. Em comparação com a grande
barriga, os seios pequenos e espetados pareciam espantosamente
infantis.
A mãe estava sentada num banquinho ao lado da cama.
Cumprimentou‑os timidamente com os braços cruzados no peito. Tinha a pele curtida, o cabelo ralo e as maçãs do rosto largas dos índios. "É pouco mais velha do que eu e já é uma anciã", pensou o Dr. Mohr, impressionado. <
Correndo de imediato para a cama, o barbudo debruÇOU‑se
sobre Chica e beijou‑a nos lábios cerrados. Ela fez menção de o abraçar e ainda ergueu os braços que, demasiado fracos, voltaram a cair‑lhe sobre a barriga.
‑Já vai melhorar‑disse o barbudo. Era espantosO
como falava com suavidade e ternura. Com a mão enorme,
limpou o suor do rosto de Chica e virou‑se para o Dr. Mohr:‑Ela é valente‑disse em voz abafada. - Tão valente! É... é o meu primeiro filho. Não pode salvá‑lo também?
‑Como posso sabê‑lo se está à minha frente? Nem
consigo chegar à mãe...
‑Que bruto, doutor! Faça o favor.‑Debruçou‑se
novamente sobre Chica e afagou‑lhe o rosto: ‑É um
grande médico, minha querida. Vai ajudar‑te. Não tenhas
mais medo...
Ela fez que sim com a cabeça, comprimiu os lábios
com força e arqueou‑se. As dores aumentaram de novo.
A mãe pousou‑lhe as mãos na barriga e fez força.
O Dr. Mohr sentou‑se na borda da cama e sorriu encorajadoramente para Chica. Ela tentou corresponder‑lhe,
mas não conseguiu: o seu rosto bonito transformou‑se numa máscara de dor. As contracções abanaram‑lhe o corpo.
‑Grita, rapariga! ‑disse o Dr. Mohr.‑Grita o
mais que puderes! Desabafa! Se te calas, ainda é mais insuportável.
‑Chefe?
‑Deixe‑se de disparates! Há água quente?
‑Ali atrás está a borbulhar qualquer coisa na chaleira...
‑É isso que queremos. ‑ Abrindo a mala, o
Dr. Mohr tirou dela um pulverizador com um desinfectante
e acenou para o Dr. Simpson:‑Dê‑me cá as patas.
Vou esterilizar...
‑Esterilizar! Mas só as mãos, por favor. Não pulverize
mais abaixo...
Simpson sorriu de esguelha. Depois de pulverizar as suas mãos e as de Simpson até ao antebraço, o Dr. Mohr tirou umas luvas de borracha fina duma caixa esterilizada.
Simpson deixou que ele Lhas calçasse e ficou de mãos
estendidas, com o rosto a brilhar de entusiasmo.
‑Meu Deus! ‑gaguejou.‑Luvas de borracha!
Luvas de borracha a sério! Sabe quando calcei umas assim
pela última vez? Há dez anos! E volto a calçá‑las
exactamente aqui, no cu de Judas!
O Dr. Mohr, que se inclinara sobre o corpo de Chica,
examinava manualmente a posição do bebé. Um olhar à
bacia de Chica pusera‑o pensativo. Já vira mães mais estreitas, cujos filhos tinham nascido sem problemas. Não
Lhe parecia que a bacia de Chica não conseguisse dilatar, como o barbudo desconfiava.
Com a dor seguinte, Mohr enfiou a mão no ventre de
Chica. Depois, esperou que a contracção passasse e retirou‑a.
‑Uma bela merda! ‑exclamou em voz alta. - Não é a bacia que é muito estreita. É o bebé que está ao contrário! Temos de o virar.
‑Meu Deus do Céu! Um parto pélvico?‑O Dr. Simpson
fitou o barbudo.
‑Porque é que está a olhar para mim assim?‑berrou
o colosso.‑Eu tenho culpa?! Sabe fazer esse déldico?
‑Pélvico!
‑Éo que eu também pergunto! ‑acrescentou o Dr. Mohr.
‑Vou tentar. ‑ Lançando um olhar hesitante ao ventre abaulado de Chica, exclamou:‑Raios, em tempos fui um bom ginecologista! Mas há quanto tempo!
‑Ele não toca na minha mulher!‑arquejou o barbudo, um suor de cólera, escorria‑lhe pela barba desgrenhada.‑Não este porco.
‑Eu ajudo‑o, Simpson‑disse o Dr. Mohr.
‑Como? Tenho de fazer isto sozinho. Só eu posso perceber como tenho de empurrar. Ou será que tem visão raios X? Mas se não posso...
‑Vá! Começa!‑berrou o barbudo.‑Mas se falhares, levas com
minha garrafa de aguardente...‑Colocando‑se ao lado da cama, sacou da pistola e lançou um olhar sinistro ao Dr. Simpson.
Este ajoelhou‑se junto da cama e assentiu com a cabeça.
‑Dobre as pernas. Chefe, segure‑as bem...
‑Não me trate por chefe!
O Dr. Simpson fez o exame e, depois, olhou para cima.
O barbudo já tinha a pistola em frente da sua cabeça.
‑Uma posição completamente invertida‑disse em
voz abafada. ‑E as contracções só o impedem ainda
mais de sair. Raios, não consigo trabalhar com uma pistola
apontada à cabeça!
‑Vá lá para fora!‑ordenou o Dr. Mohr.
‑Não!‑O barbudo encostou‑se à parede do casebre.‑Quero
ver o que fazem à minha mulher.
‑Como queira! Simpson, vamos embora! Tire as luvas...‑Desconcertado, o Dr. Simpson permaneceu ajoelhado,
sem se mexer. O barbudo dirigiu‑se ao Dr. Mohr
como se tivesse sido picado.
‑Tu também não és imortal!‑gritou.
‑Faça o favor!‑Indicando Chica:‑Talvez você
consiga. Tire o bebé cá para fora. Mas se não for capaz,
desapareça imediatamente de casa e espere lá fora.
O Dr. Simpson não vai levantar um dedo enquanto você
estiver aqui com essa pistola. Portanto...
O barbudo tornou a meter a arma no bolso das calças.
‑Eu fico sossegado, doutor‑disse baixinho.
‑Fora!
‑Por favor...
‑Fora! Simpson, levante‑se!
‑Eu saio, eu saio!‑Ohomenzarrão encaminhou‑se
para a porta, olhou mais uma vez para trás na direcção de Chica e limpou o rosto encharcado de suor. - Amo‑te ‑ afirmou
em voz rouca.‑Está um padre lá fora, minha pequena. Vou rezar com ele por ti.
A porta fechou‑se. Chica arqueou‑se e começou a gritar
em voz infantil, urgente. A porta voltou a escancarar‑se
imediatamente. O barbudo precipitou‑se para dentro
do casebre.
‑Fora!‑berrou o Dr. Mohr.‑Da próxima vez,
dou‑lhe um pontapé no baixo‑ventre. Talvez assim perceba
melhor!
O barbudo hesitou, fitou a sua jovem mulher, viu‑lhe
o rosto desfigurado e tornou a sair. No mesmo momento,
a mãe levantou‑se, empurrou o banco contra a porta e
sentou‑se, como um anjo da guarda.
‑Aqui não entra mais‑rematou num espanhol gutural.‑Eu
cuspo‑lhe em cima.
‑É o pior insulto, o mais mortal, entre os índios - segredou
o Dr. Simpson que, ajoelhado entre as pernas de
Chica, esperava pelo pequeno foco que o Dr. Mohr já tirara
da mala e estava a atarraxar num tripé.‑Acho que
agora vamos ter sossego. Cá para nós, tenho um pouco
de receio de dar a volta ao bebé.
‑Podemos sempre abri‑la, Simpson.
‑Valha‑me Deus! Quer mesmo tentar... uma cesariana...
aqui... neste fim do mundo? Há milhares de bacilos
e de vírus pelo ar! Se isso não der infecção, estou disposto
a deixar‑me castrar! É a aposta mais valiosa que posso
fazer!
‑Já se fizeram cesarianas em circunstâncias piores,
Simpson.
‑E quem sobreviveu a elas? Vê? Não tem resposta...
Se a Chica deixar de respirar, não passaremos de assassinos
aos olhos do barbudo que está lá fora. Nesse caso,
que Deus tenha piedade de nós! Como é que ele se chama?
‑Não faço ideia. Até agora, evitou sempre dizer‑me o nome.
‑Há muito que corre na montanha o boato de que
ele não só era advogado como também dirigente dum
partido, responsável por uma revolução reprimida. Foi
condenado à morte. É um homem que não tem nada a
perder. Daí o seu burgo e o pequeno exército privado.
Mas ninguém sabe se tudo isto não são só boatos.
‑Hei‑de perguntar‑lhe.
‑Só você!‑Abanou as mãos envoltas nas luvas
de borracha.‑Mas não fui eu que Lhe disse, está bem?
Aponte a luz mais para aqui. Assim. Ah, agora estou a
ver! Vamos lá a isto! Atenção, colega, depois da volta,
a expul são costuma ser espontânea. Tem mesmo de ser.
se eu conseguir dá‑la. Cuidado! Este traquinas está a ficar
em posição...
‑Simpson, devia dar‑lhe um pontapé no traseiro! - zangou‑se
o Dr. Mohr.‑Esteve a beber às escondidas, não é verdade?
‑Só um cheirinho, colega!
‑Ainda hei‑de tirar‑lhe esse vício!
Uma vez dada a volta, o parto espontâneo não aconteceu. Chica contraía‑se e a cabeça da criança não saía.
Gemendo, o Dr. Simpson endireitou‑se e descalçou as luvas
de borracha.
‑Ai, as minhas costas! A minha coluna deve estar
uma ruína! Pete, temos de puxar as orelhas à Chica que,
a cada contracção, ainda prende mais o bebé. Diz‑se que
as mulheres jovens têm os filhos só depois de uma longa
corrida de resistência.
O Dr. Mohr preparou uma seringa e procurou uma
ampola na mala:
‑Trouxe tudo de Bogotá... tudo o que é preciso neste
deserto. Mas quem pensa em partos? Se eu tivesse
aqui alguma coisa *tranquilizante e, ao mesmo tempo, espasmódica...
Passada uma hora, o bebé nasceu finalmente. Era saudável,
forte e tinha muito cabelo preto. Soltou um grito logo depois de cortado o cordão umbilical: o pequeno tórax
expandiu‑se e os pulmões encheram‑se de ar. A vida
foi celebrada.
O Dr. Mohr passou pela velha índia e abriu a porta de
par em par. Ao lado do padre Cristobal, o barbudo arrepelava
o cabelo. Virou‑se de repente quando, ao abrir‑se
a porta, se ouviram os vagidos do bebé.
‑Está... está a chorar‑gaguejou. Com a cabeça
espetada para a frente, fitou o Dr. Mohr, que Lhe fez um
aceno de cabeça.‑Está a chorar...
‑Pronto!‑disse‑lhe o Dr. Mohr.‑Bom dia, papá! É um rapaz.
‑Um rapaz...‑Deixando descair os ombros: ‑ Ouça, padre... um rapaz. Tenho... tenho um filho...
Virando‑se, pousou as mãos nos ombros do padre
Cristobal e enterrou a cabeça no seu peito. Um leve estremecimento percorria‑lhe o corpo. O gigante que nada
conseguia comover chorava.
Passadas duas horas, durante as quais o barbudo andou
com o filho nos braços, recebendo as felicitações das
mulheres e dos velhos do aldeamento, portando‑se com a
falta de jeito de todos os pais nas mesmas condições, perguntando constantemente à esgotada Chica se estava bem
e passando a vida a afagá‑la, o Dr. Mohr decidiu impor‑se:
‑Saiam todos!
‑Já?‑Sentando‑se na borda da cama, o barbudo
estendeu as pernas com um ar de desafio.‑A criança
está bem, a Chica aguentou‑se... o que quer mais?
‑A mãe tem de descansar e dormir.
‑E quem a impede de o fazer?
‑Você, com o raio das suas perguntas: "Sentes‑te
bem? Tens cores? Ah, minha querida, estou tão feliz que
parece que nem aguento."
‑Tem o coração na sola do sapato? Não vê como
estou feliz?
‑Pois então vá dizer isso às árvores e aos penedos
lá de fora. A Chica precisa de descanso absoluto. Não
percebe que ela esteve quase vinte horas com contracções? Maldito egoista!
O barbudo levantou‑se, encaminhou‑se para a porta e
parou à frente de Simpson que, sentado na mala de metal,
bebia um copo de leite com um ar desgostoso. Leite de
cabra, amarelado e gordo.
‑Já te agradeci?‑perguntou.
‑Não.‑Com um gesto de recusa:‑Não é preciso. De ti, ninguém espera nada.
‑Espero que te afogues no teu leite de cabra!
‑Estou quase.
‑Este médico dá cabo de nós, não é?‑Fazendo
um gesto de cabeça para trás:‑Que raio de homem!
Primeiro vem com falinhas mansas e depois não nos poupa!
Afinal, quem é que tirou o meu filho?
‑Foi trabalho de equipa. Em todo o caso, sozinho
nunca o teria conseguido. Estou completamente destreinado.
Mas ponho‑me em forma num instante! Construam
depressa o hospital.
Encaminhando‑se para a porta, o Dr. Mohr abriu‑a de
par em par. O barbudo acenou várias vezes com a cabeça.
‑Pronto, já vou!‑resmungou.‑Pode saber muito
de abrir barrigas e amputar pernas, mas não percebe nada de psicologia! Sabe que idade tenho?
‑Diz‑me isso depois.
‑Não! Aqui e agora! Cinquenta e seis anos... e não tenho filhos.
‑ O que não quer dizer que não tenha tentado!
‑Que vontade de o esmurrar!‑retorquiu o barbudo
em voz abafada.‑Que grande vontade de o esmurrar
da direita para a esquerda e de cima a baixo! Cale a
boca, doutor. Eu já desapareço.
Duas horas depois, encontravam‑se em frente do primeiro
baluarte do burgo, precisamente no meio do campo de tiro que todos tinham de atravessar. Um caminho mortal que ninguém passava sem ser visto. Era a primeira vez que algum estranho entrava no burgo.
‑Creio que é tempo de me apresentar‑afirmou o
barbudo.‑Sou o doutor Ramon Novarra.
‑Ai sim?‑deixou escapar Simpson.
‑Pois sou.‑Novarra esperou alguma reacção mas,
fora a exclamação de Simpson, o seu nome não despertou
sinais de surpresa ou embaraço.‑Isso não o perturba?
‑Não sei porquê.‑O Dr. Mohr nunca ouvira aquele
nome. ‑Por mim, até podia chamar‑se Bambilla.
‑O Ramon Novarra foi o homem mais procurado na
Colômbia‑explicou o padre Cristobal.‑O prémio a
que dava direito a sua cabeça enriqueceria qualquer um.
‑Passei muitos anos no estrangeiro, ocupando‑me
exclusivamente dos doentes, e nunca da política. A um
doente renal é completamente indiferente que haja uma
revolução na Colômbia e um coração enfermo não se
cura por Lhe dizerem o nome Novarra. Peço desculpa por
não saber muito da política nacional.
‑Fui condenado à morte‑acrescentou Novarra.
‑Devo pôr‑me em sentido em sinal de respeito?
‑Nunca vi maior ignorante da realidade, doutor!
Vem para o inferno de Penasblancas e Muzo sem fazer
ideia do que o espera. Dá uma tareia ao Christus Revaila
e não sabe que já é o mesmo que ter esticado o pernil.
Muda‑se para a montanha, aponta um local e decide: "Vou construir aqui um hospital", como se fosse a coisa
mais natural do mundo! Não sei o que hei‑de pensar de
si.‑Novarra levantou o braço. Um homem desencostou‑se
dum bastião de pedra e aproximou‑se lentamente.
Trazia uma metralhadora ao peito e umas tiras de tecido
no braço.‑Tenho de Lhes vendar os olhos, senhores. Não
por ser desconfiado, mas porque não gostaria de os pôr
em perigo. Ninguém de fora conhece a entrada. E também não a encontra, porque nem chega ao primeiro muro.
E se algum dia alguém conseguir reunir forças suficientes
para assaltar esta frente, a única coisa que
consegue é conquistar um muro. Mas está perdido logo a
seguir! No entanto, há ainda a possibilidade de os militares
me descobrirem. Nesse caso , as pessoas das redondezas
serão interrogadas. Querem que Lhes diga como se
"interroga" por estas bandas?
‑Nós sabemos‑retorquiu o padre Cristobal, desanimado.
‑E não é uma sotaina que os detém. Os meus homens
podem ser esfolados vivos que não falarão, mas os
senhores terão a mesma força? Não tenho razão ao chamar‑lhes
um factor de risco? Para o eliminar e para que
possam dizer que não viram realmente nada, tenho de
Lhes vendar os olhos.
A sentinela colocou‑se atrás dos dois médicos e do
padre e vendou‑lhes os olhos. Certificando‑se de que nenhum
deles via nada, Novarra apontou uma faca primeiro
ao Dr. Mohr, depois ao padre Cristobal e, por fim, ao
Dr. Simpson, travando o golpe mesmo à frente do rosto
de cada um.
Nenhum deles reagiu.
‑Vamos‑disse Novarra, satisfeito.‑Dêem as
mãos uns aos outros, como se fossem dançar de roda. Eu
gUio‑OS.
Partiram, atravessaram o campo de tiro e sentiram o
chão tornando‑se mais pedregoso debaixo das solas dos
sapatos. Primeiro subiram um pouco e, depois, meteram
por uma descida bastante íngreme. Tacteando com a
mão esquerda, o Dr. Mohr deu com uma parede encurvada.
"Ah!", pensou. "Uma passagem subterrânea. Uma
galeria." Se era a única entrada, então bem se poderia dizer
que o burgo era inexpugnável. Novarra só precisava
de soterrar, fazer explodir ou inundar a galeria, para só se
poder atacar pelos penedos lá de cima, o que seria um esf`orço
inútil. A passagem pareceu alargar. Os passos ecoaram,
como se tivessem penetrado numa sala ampla. Conduzido
pela mão de Novarra, o Dr. Mohr esbarrou contra
o seu grande corpo quando este parou.
‑Suponho que agora já podem tirar as vendas ‑ disse. ‑ Bem‑vindos!
Depois de arrancarem as vendas dos olhos, ficaram
em silêncio. Encontravam‑se numa gigantesca sala de pedra
abobadada, feita não pela mão do homem, mas formada
pela Natureza. Ao longo de milhões de anos, um
rio subterrâneo devia ter escavado a pedra até encontrar
outra saída, por onde desaparecera, deixando para trás
uma catedral de rocha, com formas bizarras. Este grande
espaço era iluminado pela luz que vinha de vários recantos.
Luz eléctrica. Lâmpadas com reflectores.
‑Que loucura! ‑ exclamou o Dr. Simpson. ‑
Donde vem a electricidade?
‑Tenho um grupo electrogéneo próprio.‑Novarra
fez um gesto largo com o braço.‑Aqui é o salão de
festas. Também temos vida social. Até já fizemos teatro.
Ali fica o palco. ‑Deleitado com a mudez dos seus
convidados, deu uma palmada nas costas do Dr. Mohr. - Ainda
tem dúvidas de que sejamos capazes de construir o
seu hospital?
‑Nunca duvidei disso‑replicou o Dr. Mohr, com
a voz ecoando na caverna semelhante a uma catedral. - Do
que suspeitava era que as surpresas são a sua especialidade.
O Dr. Ramon Novarra sorriu, lisonjeado. Também ele
possuía essa característica que se encontra frequentemente
entre os dirigentes políticos e os espíritos extravagantes: era vaidoso, o que o tornava ao mesmo tempo mais
humano e mais perigoso. A vaidade ferida já custou muitos
milhões de mortos à humanidade. A história do mundo
é atravessada pelo rasto vermelho de sangue do orguLho ofendido. Novarra não era excepção ao querer que
respeitassem e louvassem o pequeno mundo que governava
e que considerava ainda a base para uma revolução
na Colômbia. Por mais bizarra que fosse a ideia, o
Dr. Mohr percebeu de repente porque é que Novarra trabalhava
nas minas de esmeraldas com os seus homens e
por que razão cada pedra encontrada era propriedade comum.
O produto das esmeraldas, os milhões que Novarra
escavava dos penedos iam, a curto ou a longo prazo, financiar
a nova revolução, a nova Colômbia. No burgo,
cada um possuía apenas a própria vida. Um socialismo
perfeito para alimentar o fanatismo político.
‑Nunca os teria trazido aqui ‑ começou Novarra
depois de Lhes dar tempo a admirarem o que os rodeava ‑ se se tratasse de um moribundo normal que, de repente, se lembrasse de pedir um padre. Como sabe que não tem cura, já nem pensa em tratar‑se. Este homem... o nome não interessa... foi em tempos notícia de primeira página em todos os Jornais. Subitamente, desapareceu. Foi um rapto que agitou o país inteiro. Milhares de polícias e soldados passaram a Colômbia a pente fino, as nações vizinhas ofereceram ajuda, começou a caça ao raptor desconhecido... mas em vão. O homem nunca mais apareceu
nem deu sinal de vida. Com o decorrer dos anos, foi‑se
perdendo o interesse e o seu nome passou à história, à
medida que todos se convenceram de que estava morto e
enterrado nalgum lado.
‑O raptor foi você‑observou o padre Cristobal.
‑Não é dificil de adivinhar, pois não?‑Novarra
soltou uma risada breve e dura.‑Claro que poderia tê‑lo
morto... ninguém me impediria de o fazer... mas deixei‑o
viver. Excepto em legítima defesa, não sou capaz
de matar ninguém cara a cara.
‑Mas foi capaz de pôr bombas e de fazer ir pelos
ares pessoas inocentes! ‑ O padre Cristobal abanou a
cabeça.‑Doutor Novarra, não se apresente como um grande humanista que quer uma revolução pura! É exactamente
o contrário! O assalto ao Parlamento em Bogotá,
a explosão do comboio de Medellín, na qual quarenta e
nove trabalhadores inocentes perderam a vida e centenas
ficaram feridos ou estropiados para sempre, o incêndio
do cinema de Buena Ventura e o massacre de Manizales,
em que toda uma companhia de soldados foi dizimada...
Não queria nada disto?
‑Não‑respondeu serenamente Novarra.‑Padre,
não está a acusar quem devia! Eu só administro o poder.
São outros que fazem o trabalho sujo.
‑Pelas suas ideias! Em seu nome! Por ordem sua!
Claro que não põe pessoalmente as bombas! Nero também
não trespassava os cristãos com a sua própria espada:
mandava atirá‑los aos leões e às panteras.
‑Eu já sabia que só ia encontrar desconfiança e incompreensão. ‑ O Dr.Novarra indicou as paredes do enorme salão de pedra, onde várias portas feitas de tábuas davam para outras tantas surpresas.‑Vou levá‑los até ao doente. Quanto tempo terá ainda para viver, é coisa que o doutor poderá logo perceber. Provavelmente, estarão a pensar: "Por que razão fiz isto?" Quererá justificar‑se? Perante quem? Perante nós, que daqui a algum tempo seremos tão miseráveis como os outros gunqueros?
Serão os remorsos? Quererá redimir‑se? Pretenderá
atribuir a culpa histórica a um pobre moribundo? Será assim
tão cobarde?"... Não é nada disto. O próprio doente
poderá falar por si. Quando soube que nós, os fora‑de‑lei
de Muzo, temos agora um médico cheio de altos ideais e
um padre igualmente prenhe de ilusões, disse‑me assim: "Ramon, deixa‑os vir cá. Estou no fim. Testemunharão
mais tarde o crédito que nunca ninguém te dará." ‑ Ramon
Novarra girou nos calcanhares e atravessou o salão. ‑Sigam‑me, meus senhores.
Meteram por um corredor comprido. à esquerda e à
direita, como num convento, viam‑se pequenos quartos, celas minúsculas, dormitórios apenas com camas de madeira
tapadas por cobertores cuidadosamente alisados.
A meio do corredor, havia uma casa de banho com uma
capacidade aí para uns trinta homens. Sobre uma tina
comprida, de pedra, via‑se um cano de água com muitas
torneiras.
‑Água corrente!‑exclamou o Dr. Simpson, muito
impressionado.‑Que sonho!
‑É possível por causa do grupo electrogéneo. Temos
um reservatório a partir do qual levamos água a todos
os cantos do burgo. Até temos duches e banhos... de
água quente.
‑Fantástico! Novarra, vou inscrever‑me para poder
vir aqui tomar um banho quente duas vezes por semana! - O Dr. Simpson parou à porta da casa de banho. - O que é preciso fazer para ser aceite no seu clube?
‑Trabalhar muito nas minas, pelo menos oito horas
por dia. entregar à minha guarda tudo o que se encontrar...
e acreditar na revolução!
‑Para isso, um hospital dos pobres é mais confortável!‑Seguindo em frente, acrescentou:‑E é a nós que ele chama idealistas idiotas!
Pararam à frente de uma porta fechada. O Dr. Novarra
pigarreou:
‑Mais uma coisa‑acrescentou em voz abafada. ‑Para si, Dr. Morero. O homem quer morrer. Não Lhe dê esperanças do ponto de vista clínico.
‑Se as houver...‑Abanou energicamente a cabeça. ‑ Aceitei o dever de ajudar. De ajudar qualquer um!
‑Ele tem um cancro.
‑Já mo deu a entender. Mas a palavra por si só não
é uma sentença de morte.
‑Aqui é! O senhor não é nenhum deus de bolso, capaz
de destruir os tumores apenas com o olhar. E se está
a pensar no hospital que andamos a construir, o homem
não pode ser operado. Além disso, já terá morrido há muito tempo antes de poder dar‑lhe a primeira injecção
debaixo do seu tecto. Já é só pele e ossos.
‑Vamos entrar? ‑ perguntou o padre Cristobal.
‑Vamos.‑O Dr. Novarra abriu a porta e recuou.
Apesar dos canais de ventilação de chapa de zinco que
percorriam o tecto, bateu‑lhes no rosto um cheiro adocicado. Podridão, carne em decomposição, o cheiro da morte.
Quando a porta se abriu, o homem deitado na cama
de madeira maciça levantou a cabeça. Uma cabeça sem
carne, um crânio revestido com pele curtida. Uns olhos
grandes e ardentes e um tufo de cabelo preto e desgrenhado.
‑Quem é o padre?‑perguntou. Uma voz dura,
onde não existiam traços do calor nem da modulação que
as vozes humanas possuem. Só palavras frias, que pareciam
saídas do altifalante dum autómato.
‑Sou eu.‑O padre Cristobal acercou‑se da cama e
reconheceu imediatamente o esqueleto vivo, mas ninguém
percebeu como aquele reconhecimento o abalou.
‑E o médico?
O Dr. Mohr pôs‑se ao lado do padre Cristobal.
‑Eu, doutor Morero.
‑E o outro?
‑Também é médico. Está a ajudar‑me. Para si, não
serve de nada, pois é ginecologista.
O homem com o cheiro a morte voltou a recostar‑se
no cobertor dobrado que lhe fazia de almofada e fechou
os olhos. Um ligeiro sorriso passou‑lhe pelos lábios pequenos
e secos.
‑Dantes, ter‑me‑ia dado vontade de rir‑observou
na sua voz fria de autómato.‑Sabe o que é um desertor?
‑Claro que sei!‑O padre Cristobal sentou‑se na
borda da cama.‑Aliás, é um conceito que hoje até tem
outro nome: José Bandilla.
‑ Sou eu. Padre, até onde vai a misericórdia de
Deus?
‑ Se o homem conseguisse encher o universo de pecados,
Deus esvaziá‑lo‑ia.
‑É uma boa comparação.‑José Bandilla abriu os
olhos brilhantes de febre.‑Padre, matei cerca de quatrocentas
pessoas... Só pode imaginar‑se...
Capitulo 8
Não se podia dizer que Ewald Fachtmann, representante
dos Laboratórios Farmacêuticos H. Strothleld em
Bogotá, estivesse satisfeito com a evolução daquilo que,
ao principio, fora pensado apenas como uma aventura.
Desde que chegara a Penasblancas, "Otelo" Mohr só telefonara
uma vez da esquadra da Policia, dizendo que todos
os boatos que circulavam em Bogotá a respeito desta
cidade de pesquisadores de esmeraldas não eram nada em
comparação com a realidade, que ultrapassava tudo o que
se pudesse imaginar.
Não fora uma conversa nada tranquilizadora para Fachtmann,
que começou a censurar‑se, a beber mais do
que até ao momento e a tentar distrair‑se com meninas
especialmente opulentas, acabando sentado, bastante deprimido,
nos bares das redondezas e telefonando umas
quantas vezes para Penasblancas.
O chefe da Polícia Felipe Salto tinha mais que fazer
do que servir de repórter. Dado o pouco tempo que Lhe tinham
dado para se aclimatar, e depois do malogro de três
encantadOras tentativas de corrupção da mamá Mercedes
Ordaz‑nem a rapariga mais bonita do bar, que Salto
encontrara uma noite ao seu lado na cama e que pusera
na rua dum modo bastante descortês, conseguira travar a
sua sede reformista‑, Penasblancas voltou a assentar na
vida de todos os dias. Ou seja, assassinios sem assassinos nos vales dos desfiladeiros e nas correntes dos regatos e
dos rios, roubos e assaltos aos casebres dos gunqueros,
violações, pancadaria nas tabernas e esfaqueamentos mas.
sobretudo, os terríveis homicídios na estrada para Bogotá,
a Estrada da Morte que todos tinham de percorrer
quando iam levar as suas esmeraldas aos comerciantes de
pedras preciosas. Era bem sabido que na cidade se pagava
mais, visto já não haver o perigo do transporte. Uma
vez nos cofres, as esmeraldas estavam bastante seguras.
se bem que não fosse a primeira vez que os pacotinhos
com as pedras eram trocados em Bogotá, a caminho do
aeroporto, de onde partiam para Tóquio ou Zurique apenas
seixos sem qualquer valor. Como era isto possível
apesar de todas as precauções, permanecia um mistério.
Nem os maiores comerciantes de esmeraldas andavam
sozinhos nas ruas de Bogotá. Pelo menos três guarda‑costas
impediam que alguém se aproximasse deles. No
entanto, nenhum boss se atrevia a pôr o pé na estrada de
Penasblancas, percorrida de um lado para o outro por especialistas
armados até aos dentes, às vezes em carros
blindados. A norma era uma morte por dia. E o Governo,
o Exército e a Polícia eram impotentes. Aliás, diga‑se
que ninguém se esforçava muito. Quem estava disposto a
imolar‑se pelo punhado de pesos do salário mensal?
Quem queria ser herói protegendo gente que, por seu lado,
não conhecia a piedade quando se tratava das pedras verdes?
Portanto, quando Ewald Fachtmann telefonava para
Penasblancas e falava com o tenente Salto, ouvia sempre a mesma resposta:
‑Não sei nada do doutor Morero! Não vale a pena
continuar a telefonar. Temos outras preocupações...
Quando o telefone tocou naquela tarde, Fachtmann
percebeu, com um instinto infalível, que não se tratava
duma chamada normal. Com o toque estridente em pano
de fundo, esperou alguns segundos e levantou o auscultador.
‑ Até que enfim!‑exclamou.
‑ Até que enfim porquê?‑perguntou uma voz estranha.‑De
quem está à espera?
‑Quem fala?‑Fachtmann encostou‑se à parede.
‑Daqui fala o Camargo.
‑Oh, o grande boss em pessoa!‑Notou uma sensação desagradável no estômago. Não era nada do conhecido‑desconhecido
Camargo andar a fazer chamadas privadas. Portanto, tratava‑se de qualquer coisa fora do comum, pois os assuntos de negócios eram com os seus directores.
‑Até que enfim que sei alguma coisa do meu amigo
"Otelo". Parece que são todos mudos em Penasblancas.
Fachtmann esforçou‑se por se apresentar o mais tranquilo
possível.
‑E com razão! Senhor, a sua recomendação para que
eu mandasse o doutor Mohr ter com os gunqueros pode
ter sido apenas um capricho da sua parte, mas eu aceitei‑a
por achar que talvez fosse promissora. Estou desiludido!
‑Don Alfonso, estou assustado! - Estava mesmo.
"Meu Deus", pensou, sentindo a situação a aquecer.
"O que terá acontecido na montanha? O que terá o Pete
arranjado?"‑Não sei o que hei‑de dizer. Não tenho notícias
do meu amigo.
‑ Eu dou‑lhas! Está a construir um hospital na montanha, lá onde as pessoas são mais agrestes!
‑Isso é mesmo dele! Don Alfonso, é o que eu quase receei.
‑Um hospital para os gunqueros é uma coisa boa,
para a qual tem todo o meu apoio. Mas as circunstâncias
tornam‑me quase impossível continuar a protegê‑lo.
‑Protegê‑lo?‑Fachtmann sentiu a rouquidão atacando‑lhe
as cordas vocais.‑O que se passou, Don Alfonso?
‑O doutor Mohr parece muito empenhado em encurtar a vida. Deu uma sova ao meu lugar‑tenente em Penasblancas e quase o incapacitou.
‑Meu Deus do Céu!
‑Mete‑se em assuntos privados, mais explosivos do
que o material usado nas minas.
‑Não tenho palavras...
‑Está em vias de constituir um pequeno exército
privado. Não sei o que tenciona fazer com ele, mas é coisa
que não posso tolerar! Devia levar a paz à montanha
com o seu hospital, mas parece que tem outras intenções.
‑De certeza que perdeu o juízo. Don Alfonso, chame‑o
de volta a Bogotá!
‑E acha que ele vem?‑Camargo pareceu soltar
uma risada de piedade. Fachtmann reparou que tinha começado
a suar ligeiramente.‑E se vier, como há‑de sair
vivo da estrada nestas circunstâncias?
‑Com a sua protecção, Don Alfonso.
‑Que acaba em Penasblancas. Não se faça de ingénuo,
senhor. Mesmo que dê ordens ao Christus Revaila
para o trazer em segurança até Bogotá, tenho a certeza de
que o próprio Revaila o liquidará no caminho. E ninguém
dirá nada. Ninguém poderá acusar o Revaila. Dir‑se‑á
que foi alvejado numa emboscada. Poderá provar o contrário?
‑Isso quer dizer...‑Fachtmann começara a suar
abundantemente e a sentir‑se mais miserável do que um
cão. ‑Isso quer dizer... que o doutor Mohr não tem
qualquer hipótese de regressar à civilização? É... prisioneiro
da montanha?
‑Receio bem que sim, senhor. Faço o que posso. Vai
receber o equipamento completo para o hospital, tal qual
como está na sua lista. Daqui a duas semanas, vou mandar
uma coluna de camiões para Penasblancas, sob escolta
militar. Mas ainda não sei bem como é que o equipamento
vai chegar à montanha.
‑Também com escolta militar.
‑Isso é com o Ministério da Guerra. Já falei com o
ministro. A resposta foi inequívoca: o equipamento de
um hospital privado, que de facto é, não justifica a possível
morte de vários soldados. Seria diferente se o hospital
fosse do Estado. E compreensível. A verdade é que há tiroteio
valente logo que o exército aparece na montanha.
E é completamente indiferente que esteja apenas a escoltar
material para o hospital. Basta que haja fardas à vista.
Os gunqueros são todos alérgicos ao tecido dos uniformes!
Por outras palavras: o hospital vai estacionar em
Penasblancas daqui a quinze dias. Se o doutor Mohr for
lá buscá‑lo, vai apanhar uma saraivada de balas!‑Pigarreou.‑Sabe que está com ele um padre também cheio de manias?
‑Não sei nada dele‑balbuciou Fachtmann, pensando:
"Um padre? Que grande novidade! O Otelo e um
padreco? Meu Deus, como ele mudou em tão pouco tempo!
Quando me lembro dos tempos da universidade e das
missas dos estudantes! Sobretudo daquela missa solene
na Igreja do Espírito Santo! O Peter ficou com outros dez
colegas à entrada, debaixo da tribuna do órgão e, enquanto
os fiéis entoavam os hinos religiosos, eles cantaram,
muito desafinados, o Alfabeto Dourado, os famigerados e
indecorosos versos dos estudantes. A proeza custou‑lhes
dois meses de pena suspensa e cinco mil marcos à Cruz
Vermelha, mas só porque os seus velhos tinham conhecimentos
que mexeram os cordelinhos."
E agora, Peter tinha um padre por amigo! Era quase inacreditável.
‑Que quer o padre das minas?‑perguntou Fachtmann,
extenuado, sentando‑se num banco de bambu,
ao lado do telefone, e olhando ansiosamente de través para
o bar, que estava muito longe. <
suspirou. "Até se me ia evaporar na boca com um
assobio! "
‑ Provocar distúrbios, que mais? ‑ A voz de Camargo, até ao momento com um tom de cavaqueira, tornou‑se dura e fria. "Ah, cá o temos em todo o seu esplendor!", pensou Fachtmann. "O Don Alfonso, perante quem o próprio ministro se curva!"‑Quer construir uma igreja ao lado do hospital! Daqui a um ano, os gunqueros andam todos a cantar salmos e a organizar procissões
umas atrás das outras em vez de ir trabalhar para as
minas. Mas o que é pior, doarão as esmeraldas à igreja
pela salvação eterna das suas almas. Conheço estes padrecos
de ginjeira! Pagam com um beijo no crucifixo, e
os idiotas ficam muito felizes! Senhor, estou desiludido!
‑Espere lá, Don Alfonso!‑Batendo na coxa com
a mão livre, prosseguiu:‑Recomendei‑lhe um médico
excelente, mas nenhum padre! Que isso fique bem claro!
E também não tenho culpa se o meu amigo mudou de
ideias. Discuta isso com ele, se quiser. Reconheço, no entanto, que me preocupa esta amizade súbita com a Igreja.
É contra a natureza dele.
‑Ainda por cima, está apaixonado! A filha dum
pesquisador deu‑lhe volta ao miolo.
Fachtmann inspirou audivelmente.
‑Porque não começou as suas queixas por aí? Isso
explica tudo! Quando o Otelo está apaixonado, até faz os
rios das montanhas correrem para cima! Tudo deixa de
ser impossível para ele! Uma rapariga bonita transforma‑Lhe
as circunvoluções cerebrais numa montanha russa.
Só posso dizer‑lhe, Don Alfonso, que não se preocupe.
Ele vai voltar ao normal! As paixões têm nele o efeito
das flores cortadas: são lindíssimas quando estão frescas
mas, passado um ou dois dias, ao murcharem, o fascínio
vai todo por água abaixo. O fim é o balde do lixo.
‑Não compartilho do seu optimismo, senhor.‑Don
Camargo dava o telefonema por terminado. Em todo o
caso, Ewald Fachtmann tivera a honra de ser distinguido
com uma longa conversa com o senhor de Bogotá.
- O doutor Morero... tratemo‑lo assim... não vai construir um hospital para depois regressar à Europa. Quer estabelecer‑se
entre Muzo e Penasblancas. O senhor já está há
tempo suficiente no país para saber que qualquer gunquero.
quando tem uma filha, manifesta um enorme sentido
de honra. Metade dos mortos da região resultam de histórias
de saias! Não tenho outra saída...
Fachtmann ficou gelado de repente.
‑O que... o que é que isso quer dizer, Don Alfonso?
‑Três coisas.‑A voz de Camargo era agora cortante,
sem sombra de humanidade.‑Primeiro: se quando
o hospital estiver pronto a funcionar continuar este
disparate das reformas sociais, substituo o doutor Morero.
Percebe?
‑Percebo‑anuiu Fachtmann em voz monocórdica.
Na linguagem de Don Alfonso, substituir significava
liquidar a sangue‑frio. O que estava a ouvir ao telefone
não era mais do que a sentença de morte do Dr. Mohr.
Engoliu em seco. O ar assim ingerido deu‑lhe um nó na
garganta.
‑Segundo: se transmitir alguma palavra desta conversa
a nível oficial, será imediatamente destituido. Compreende?
‑Compreendo. ‑ Destituição: mais uma palavra
para definir o inevitável.
‑Terceiro: mesmo que não se chegue ao extremo,
ninguém mais fará encomendas de produtos dos Strothfeld
na Colômbia. Impedi‑lo‑ei de viajar para o estrangeiro.
Restar‑lhe‑ia apenas a fuga, mas o senhor é um cobarde.
Nunca correria semelhante risco.
‑Nunca!‑gaguejou Fachtmann.‑Don Alfonso,
não percebo porque é que me diz isso. Não tem lógica!
‑O senhor recomendou‑me o doutor Morero. Quer
queira quer não, é cúmplice de toda esta situação! Não se
mete um Camargo em apuros! E foi precisamente isso que fez!
Um estalido. Camargo pusera ponto final na conversa.
Sentado ao telefone, imóvel, Fachtmann fitou a parede.
Depois, levantou‑se, encaminhou‑se para o bar em
passos vacilantes, serviu‑se de meio copo alto de uísque
e bebeu‑o dum trago. "É hoje que me embebedo", pensou.
"É hoje que caio morto de bêbedo no tapete. Acabo de falar com a minha morte. Não será razão mais do que suficiente para esvaziar o bar inteiro?"
O padre Cristobal ouvira‑o em confissão. José Bandilla pedira‑o, e os outros tinham‑se retirado do quarto. Naquele momento, voltou a abrir a porta e assentiu. Tinha
um ar grave e esgotado.
‑Entrem‑disse em voz rouca.‑Agora é a vez
do médico. Perante Deus, o José está agora leve como
uma pena.
O Dr. Mohr aproximou‑ se do leito de morte e sentou‑se.
Os olhos grandes e brilhantes de febre de Bandilla
lançaram‑lhe uma pergunta muda.
‑As coisas são mais simples para os padres‑começou
o Dr. Mohr, com uma franqueza brutal.‑Ouvem
tudo, lamentam intimamente com o pecador e absolvem
em nome de Deus que, supostamente, perdoa tudo.
‑Perdoa realmente, Pete‑interrompeu suavemente o padre Cristobal.
‑Se afirmas isso, o problema é teu, Cris. Quanto a
mim, ouvi falar de mais de cem mortos.
‑Quatrocentos... ‑ corrigiu Bandilla debilmente. ‑Vítimas da revolução e da luta de guerrilha. Por uma grande causa. Sou eu o responsável por aquilo de que se acusa o Novarra! Fui eu o mentor das sabotagens. Depois de ele me ter raptado por eu ser seu inimigo político, convenceu‑me do seu objectivo. Tornei‑me partidário dele. Sujei as mãos de sangue em seu nome. Ele insurgia‑se sempre, mas eu dizia: revoluções com pezinhos de veludo e luvas de pelica são uma ilusão. Os grandes senhores têm de temer pelas suas vidas e o povo precisa de saber que há homens de acção. Têm de saber que se aproximam
outros tempos, que vão acabar com a podridão. Radicalmente! Foi, por exemplo, este o sucesso de Fidel Castro. O povo viu realmente sangue, mas era o sangue dos exploradores! E este sangue começou a resplandecer, tornando‑se o símbolo de uma nova vida: Destrói esta ordem podre e cria uma nova, melhor! Deste ponto de vista, quatrocentos mortos serão de mais?
‑Nem que fosse só um, Bandilla!
- Sou, portanto, um assassino?
‑Aos meus olhos, sim.
‑E que me diz dos generais que fazem a guerra e
depois recebem condecorações? Que empurram milhões
de pessoas para a morte e que deixam matar outros milhões?
Não lhes chamam senhores da guerra? Heróis? Não os festejam... tanto mais quanto mais soldados tiverem sacrificado?!
‑Não escolheu bem o tema, Bandilla. Não queira
discutir isso comigo. Abomino o poder e considero as
guerras crimes contra a humanidade. Não existe nenhuma
justificação para a guerra e, sensatamente, nenhum político
tenta justificá‑la. Acho igualmente monstruoso que se
implore a ajuda de Deus antes dum massacre ou que haja
padres que abençoam granadas e bombas que vão fazer
mortes em massa. Que padres são estes que pregam o
amor ao próximo e que ao mesmo tempo benzem armas de destruição em massa? Cris, não estou a pedir‑te explicações...
‑Também não tas posso dar‑retorquiu serenamente
o padre Cristobal.‑Por mim, nunca faria semelhante coisa.
‑Quando é que vou morrer?‑indagou Bandilla,
muitO esgotado e tomado de desassossego. As suas mãos
magras não paravam de se mexer em cima do cobertor.
‑Quem é que lhe disse que ia morrer?‑inquiriu o
Dr. Mohr.
‑Doutor ‑ admoestou o Dr. Novarra lá de trás.
‑Primeiro tenho de o examinar, e depois falamos.
‑Tenho um cancro.
‑Quem o diagnosticou?
‑Vê‑se.
‑Ai sim? É muito fácil fazer de médico, não é?
Uma pessoa tem dores, emagrece muito, claro que enfraquece
por causa disso, adquire o aspecto dum esqueleto
ambulante, as funções mais naturais do organismo falham
ou ficam descontroladas... e pronto! Um cancro!
Um diagnóstico pessoal, não?‑O Dr. Mohr puxou o
cobertor para trás. Bandilla estava realmente um esqueleto.
O médico calculou que nem quarenta quilos devia
pesar.‑Dores?
‑Por todo o corpo!
‑Isso é de estar deitado. Onde é que lhe dói mais?
‑No estômago. Não consigo comer nada. Vomito
tudo. Depois sabe tanto a azedo...
O Dr. Mohr assentiu e voltou a tapar Bandilla.
O doente estremeceu. O gesto do médico bastava‑lhe para
perceber que não havia nada a fazer.
‑Quanto tempo ainda?‑perguntou, exausto.
‑Eu podia examiná‑lo agora, Bandilla. Podia tactear,
palpar, usar o estetoscópio, medir as pulsações e a
tensão arterial e farejá‑lo todo... tive um professor que dizia que o cancro se pode ouvir e cheirar... mas para quê? Preciso duma radiografia. Sou cirurgião. Preciso de ver a doença!
‑Pois veja‑me!
‑Só uma vista de olhos não chega. Mas o aparelho
de raios X não tarda a chegar.
‑Para que o quero?! Só pretendo saber quanto tempo
tenho de vida.
‑Porquê? Já se confessou e a sua alma está a caminho
da salvação. Na auto‑estrada para Deus. Hoje, daqui
a uma semana ou um mês... é assim tão importante?
‑Não quero sofrer mais, doutor.‑Tacteou à procura
da mão do Dr. Mohr.‑Dê‑me uma injecção... por favor...
‑Quer que eu o mate? Bandilla, por quem me toma?!
Vou dar‑lhe uma injecção, mas para Lhe pôr glicose
no sangue. Depois, aplico‑lhe uma transfusão. Uma injecção
para adormecer por todo o sempre!‑Olhou em redor
à procura de Novarra.‑Foi para isso que me trouxe
ao burgo? Perdeu o seu tempo, Novarra. Não me rendo
assim tão depressa. Luto! Aqui também! Antes de ver o
cancro, não acredito nele. Bandilla, nada feito até à chegada
do equipamento hospitalar! Aparelho de raios X e
laboratório. Só então lhe direi quando vai morrer. Até lá,
espero que acredite na vida!
‑Pronto!‑exclamou Novarra lá de trás.‑Eu sabia!
Até hoje, nunca conheci ninguém tão casmurro!
Abanando a cabeça, o Dr. Mohr abriu o fecho da mala
de metal.
‑Pode achar‑me doido varrido, Novarra, mas não
acredito no seu cancro! Não consigo cheirá‑lo! Simpson,
as transfusões! Amanhã, Bandilla, vai sentir‑se bastante
saciado. Claro que não posso meter‑lhe um bife nas
veias, mas isto vai fazer‑lhe bem.
Debruçando‑se sobre Bandilla, procurou uma veia na
curva do braço esquerdo, sob a pele curtida, e fixou‑a fazendo
pressão com o polegar.
‑Veja lá se não se terá confessado cedo de mais,
grande revolucionário‑comentou.
José Bandilla adormeceu passados dez minutos. Ressonava
alto, com a boca aberta, e parecia um cadáver embalsamado.
O Dr. Mohr mediu‑lhe novamente a tensão arterial,
encolheu os ombros sem dizer palavra e acenou com a
cabeça. Todos saíram do quarto de pedra, fechando a porta
atrás de si. No corredor, o poder pertencia novamente
a Novarra.
‑ Apunhalou‑me pelas costas, doutor! ‑censurou
ele, penteando a barba com os dedos esticados.‑Como
pode dar esperanças ao Bandilla? Mesmo que haja só
uma centelha de esperança... vai agarrar‑se a ela com
unhas e dentes!
‑Os médicos são seres estranhos, doutor Novarra.
Ou aliás: eu sou um ser estranho. Realmente, o Bandilla
está num estado deplorável, mas não acredito na suspeita
de cancro.
‑Está no fim. Qualquer um vê isso.
‑Você é que vê. Vou explicar‑lhe: o fígado não está
inchado. Não tem dores no baço. Não há sangue nas fezes
nem na expectoração, senão o Bandilla ter‑me‑ia dito.
Nem arrotos ou sabor a podre na boca. Quando Lhe falei
em bifes, não teve nenhuma reacção de resistência, não mostrou repugnância, não protestou. No estômago, a palpação
não indicou nada: nenhum endurecimento, nenhum
inchaço...
‑Mas ele é só pele e osso!‑protestou Novarra. - Padre,
o que me diz disto?
‑Eu respondo pelo Céu. ‑ Levantando as duas
mãos, afirmou:‑Quanto ao corpo, é com o doutor Morero.
‑Se eu soubesse disso, não o teria trazido ao burgo! ‑ disse Novarra, cheio de resistências interiores.
‑Então ele deve morrer?
‑Seria melhor para todos. Uma solução natural para
muitos problemas. Enquanto revolucionário, o Bandilla
não conhecia escrúpulos de qualquer espécie! A partir do
momento em que Lhe dei a volta à cabeça, como todos
gostam tanto de dizer, conseguindo atraí‑lo para o nossO
lado, escapou do meu controlo. Em nome das minhas
ideias, que defendiam a não violência e a subversão através
do esclarecimento, lançou‑se pelo país com explosivos
e metralhadoras, pregando a moral do caos, do qual
sairá uma nova imagem do mundo. Claro que eu poderia tê‑lo matado. Seria uma espécie de legítima defesa; mas
ele era cauteloso como um leão da montanha. Conhece o
puma, doutor? É um dos animais mais inteligentes.
O Bandilla movia‑se como ele. Estava sempre em guarda.
Depois, esta doença misteriosa atacou‑o e quebrou‑o bastante
depressa. Todos respirámos de alívio. E alegrámo‑nos...
sim, alegrámo‑nos por ele ir morrer. E agora vem‑me
você com essa! Que faz? Com todo o descaramento,
diz‑me que vamos travar o seu declínio! Por acaso está a
ver o problema?
‑O Bandilla é para mim, em primeiro lugar, um paciente.‑Entrando na grande casa de banho, o Dr. Mohr
rodou uma torneira e lavou as mãos. Parado atrás dele,
Novarra esperou que o médico voltasse a endireitar‑se.
‑E, segundo a ética médica, um paciente é tabu... ‑ berrou.
‑Mais ou menos. Só que isto tem as suas consequências.
Digamos que realmente consigo pôr o Bandilla
de pé. Nesse caso, ele deixa de existir para mim enquanto
doente. Mas Bandilla o revolucionário sanguinário, o desumano
e impiedoso assassino Bandilla... esse está vivo!
E será então meu dever torná‑lo inofensivo para sempre.
‑Seu idiota! ‑exclamou rudemente Novarra. - Para
quê tantos desvios?! Pode fazê‑lo agora muito mais
facilmente. Deixe‑o morrer.
‑Agora ele está doente. Um médico deve ajudar e
curar e não castigar e matar! Não percebe isto? Não é jurista?
‑Exactamente porque sou jurista. Sempre achei um
disparate curar‑se um assassino gravemente ferido só para
depois o condenar à morte no seguimento dum processo que é o povo que paga! É uma cretinice!‑Penteou
novamente a barba com os dedos esticados.‑Além disso, quando o Bandilla recuperar a saúde, você não terá
qualquer hipótese de, como se diz tão pomposamente, fazer justiça. Logo que perceber as suas intenções, será ele quem o matará primeiro, a si, o seu salvador, sem uma centelha de remorso! Gratidão é palavra que não faz parte do vocabulário dele... Raios, eu devia mandar chamar a minha gente e impedir a construção do hospital por todos os meios! De resto, é esta a ideia geral.‑Rindo maldosamente, prosseguiu:‑Proponho‑lhe uma troca: o doutor não trata o Bandilla e deixa‑o morrer... e nós fazemos‑lhe o hospital. Se o tratar, os meus homens dão uma tareia a quem acarretar para si nem que seja uma pedra ou uma tábua.
‑A mim também?‑quis saber o padre Cristobal.
‑O senhor não é excepção, padre!
‑Vou construir uma igreja.
‑Em cujo interior pode funcionar perfeitamente
uma sala de operações! Conheço de ginjeira os truques
da Igreja!
‑Repudia a violência? ‑ perguntou calmamente o Dr. Mohr.
‑Já o disse muitas vezes!
‑E, no entanto, quer assassinar o Bandilla? O que
está a planear é um assassínio.
‑Valha‑me Deus! Andou na escola dos Jesuítas?! ‑
exclamou Novarra.‑Só quero fazer já o que, de qualquer
forma, farão mais tarde ao Bandilla! Aliás, até é um
bem, pois assim estou a evitar mais derramamentos de
sangue! Até o Bandilla ir para a forca, ainda morrerão
muitos inocentes. É um homem que não conhece limites.
Estarei a evitá‑lo, deixando‑o morrer.
‑O jurista perspicaz!‑Fez um gesto de cabeça em
sinal de partida.‑Para que estamos a discutir? Estou
aqui enquanto médico e não na qualidade de juiz. Amanhã dou uma transfusão ao Bandilla.
‑Não o deixo entrar mais no burgo!
‑Logo se verá amanhã. Venho por volta das nove
da manhã.‑Esticando a cabeça para a frente, propôs: ‑ Se quiser vendar‑nos novamente os olhos...
‑ Porque será que não o estico já ao comprido no chão?
‑ Porque ama a Chica e o seu filho recém‑nascido e
sabe que eles ainda precisam de mim. E porque no fundo, lá bem no fundo, é um homem decente. Por isso, tinha de fracassar na política, onde a decência é quase um ultraje.
‑Vou tentar melhorar!‑retorquiu Novarra, furioso.‑Homens como você até pulverizam as pedras com tanta lábia!
Capitulo 9
Três semanas não é muito tempo na montanha de Penasblancas, especialmente se forem preenchidas com muito trabalho desde a madrugada até à noitinha.
As colunas do burgo trabalhavam duramente. O hospital crescia de dia para dia. Primeiro, os alicerces e, depois, o telhado e os tabiques. Ia ficar um complexo maior do que o Dr. Mohr ao princípio planeara. Novarra estava orgulhoso e mostrava‑o.
-Claro que não é nenhum edificio de luxo-dizia, contemplando as paredes de pedra e madeira.-Mas é uma casa sólida, sem correntes de ar. Tapámos todas as fendas com lama e uma mistura de terra e plantas. Digo‑Lhe que vai ficar dura como cimento. O telhado também vai aguentar‑se cem anos. Troncos maciços e pedra! Já as suas clínicas modernas da cidade estarão estragadas e com o reboco a esfarelar‑se e ainda poderá sentar‑se aqui ao abrigo da humidade!
Todos os que podiam dispensar‑se nas minas trabalhavam agora na construção. Mas não só no hospital. Ao seu lado, a igreja do padre Cristobal também ia crescendo. Era um edifício circular que até tinha um campanário. uma estrutura feita de troncos compridos e grossos que se uniam na ponta e onde haveria uma trave para se pendurar o sino. Miguel andava sempre por ali, empregando sua força de touro, berrando ordens e puxando as cordas para fazer subir o material. Nos dias especialmente bonitos, quando estava de bom humor, fazia ouvir a sua voz potente sobre todo o local de construção. Só que não cantava hinos religiosos, apesar de estar no telhado duma igreja, entoava, isso sim, as frívolas canções do bar da mammá, até Adolfo Pebas, pensando em Margarita, o ameaçar que o empurraria pelo cume abaixo se não parasse de cantar indecências.
Entretanto, os dias iam decorrendo. O "consultório" do Dr. Mohr começou a encher‑se. Espalhara‑se depressa que o médico maluco, que realmente dava consultas gratuitas, era, por um lado, um homem simpático e, por outro, bastante bruto para os doentes, sobretudo quando estes Lhe apareciam todos sujos. Aí, era impiedoso
‑ Que fedor!-berrara por exemplo uma vez no receoso Piero Tomasso, quando este o fora consultar por causa da tosse que o sacudia todo.-Até um bode cheira melhor do que tu! Anda, vai‑te lavar e volta aqui!
Tomasso ainda fizera menção de protestar, mas estava lá o Dr. Simpson. A esse, conheciam‑no bem... e aquele lago de bebida agora seco mostrara‑lhe os dois revólveres que tinha à cintura. Por isso, Tomasso tomara banho, fora tratado e em três dias ficara sem tosse. Que boa publicidade! Na segunda semana, já havia uma longa fila de doentes, que esperavam pacientemente a sua vez.
O Dr. Mohr transformara o alpendre dos Pebas num
consultório provisório. Trabalhava ali sentado a uma mesa nova, assistido por Simpson, que também tirava o retrato a cada paciente com a pequena máquina fotográfica de Mohr. Em poucos dias, Margarita tornara‑se uma ajudante preciosa: esfregava com álcool os locais do corpo onde iam ser aplicadas injecções, consolava as mães que temiam pelos filhos, acalmava as crianças que choravam, assentava os nomes dos doentes e organizava os ficheiros. O Dr. Mohr estava espantado com a rapidez com que ela aprendia, com a facilidade com que tudo Lhe passava pela mão e com o pouco que parecia cansar‑se. Muitas vezes, passava dez horas tratando dos doentes debaixo do alpendre dos Pebas, até a noite cortar a torrente dos que iam chegando como se tivesse uma faca. Era estranho, mas Pebas explicara‑lhe a razão:
- à noite, ninguém sai de casa. Só se for muito urgente. Todos os que vêm ter contigo, Pete, trazem esmeraldas atadas no lenço, que escondem no corpo. Toda a gente anda com a sua riqueza atrás. Ninguém confia nem na própria mãe, que ficou em casa. E todos sabem disto. É por isso que ninguém anda de noite. Nunca chegaria ao seu destino!
Maria Dolores Pebas assumira o encargo mais dificil: ao lado de uma chaleira a fumegar, cheia de chá com rum, esperava pela transferência dos seus pacientes, quase sempre homens robustos, colossos de músculos de aço, que a força fazia baloiçar dum lado para o outro. Quando se punham na fila para o médico e viam as seringas e as agulhas compridas e finas que o Dr. ia espetar‑Lhes algures no corpo, quando respiravam o ar com um ligeiro cheiro a éter e fitavam os instrumentos alinhados sobre um lenço lavado, eram percorridos por um arrepio violento, os olhos esbugalhavam‑se‑lhes, empalideciam de repente... e então, logo depois da picada da agulha reviravam os olhos e dobravam os joelhos. Simpson interceptava as montanhas de músculos, deitava‑as num catre ao lado de Maria Dolores e dizia:
-Mais um herói!
Então, a mãe Pebas intervinha, aplicava duas bofetadas com mão rápida no rosto pálido, esperava pela primeira reacção e enfiava na boca do gigante caído o vivificante chá com rum.
-Um bom médico-dizia‑se nas montanhas de Muzo.-Tem um bom coração para os que sofrem! Afinal, Deus não se esqueceu de nós...
Também era verdade. Depois do tratamento, as pessoas não tinham outro remédio senão passarem pelo padre Cristobal. E não tinham outro remédio porque o padre punha‑se com uma expressão de desafio de pé em frente do tabique a que chamava "igreja", examinando todos os que saíam do médico. Era impossível evitá‑lo. Ou o padre gritava:
-Ah! Não é só o corpo: a alma também está doente! ‑ Ou:-Deus também está a ver‑te!-E não havia outra hipótese senão ir ter com ele.
Ou então era Miguel que lhes pegava pelos colarinhos, levantando‑os como um gato encharcado e gritando:
-Com que então, vais curado e nem agradeces a Deus! Benze‑te, seu ingrato!
Assim, ninguém tinha mãos a medir. Só havia discussões quando Simpson tirava as suas fotografias. Nessas alturas, alguns levavam a mão ao rosto ou viravam‑se. E com razão, pensava o Dr. Mohr. Não existia uma só fotografia destes condenados, que também não queriam que existisse. No entanto, o Dr. Mohr permanecia irredutível:
-Sem fotografia não há tratamento.
-Mas isto é um médico ou uma esquadra da Policia?-berrou uma vez um homem, que vinha precisamente com uma ferida infectada. A bala ainda estava no músculo.-É preciso fazer ficha?!
-Isso mesmo!-O Dr. Mohr acenou com a cabeça: ‑ O seguinte! Não tenho tempo para discussões.
-O seguinte sou eu! -bradou o homem, empunhando de repente uma pistola e encostando‑a à barriga do Dr. Mohr. Os que estavam em volta gritaram. Margarita deixou cair um copo.-A mim ninguém me tira fotografias! A barriga dum médico é como qualquer outra barriga, isso garanto eu! Também não digere balas! Então? Vamos lá começar, charlatão!
Ninguém se mexia. Todos tinham os olhos na pistola. Só Maria Dolores, de pé atrás do tresloucado, mergulhou um púcaro no chá a ferver, levantou‑se e despejou‑o em cima da cabeça do homem.
Com um berro bestial, este cambaleou directamente para o punho do Dr. Mohr. Quase ao mesmo tempo, o Dr. Novarra e o padre Cristobal atiraram‑se sobre ele. Os que estavam à espera recuaram.
-Ora vejam!-exclamou Novarra em voz alta.- Harald, o Viquingue! Que seja proclamado que ele espremia água das pedras! Eu levo‑o comigo, doutor.
-Espere! Para onde?-O Dr. Mohr deu a volta à mesa de tratamentos. Sentado no catre de Maria Dolores, Harald, muito cabisbaixo, fitava o Dr. Novarra com uma expressão expectante. A pele ardia‑lhe como o diabo. Os ombros e as costas reluziam de tão vermelhos.-O homem tem uma bala no braço e, agora, queimaduras do terceiro grau.
-Eu tiro‑lhe as dores!
-Novarra!
-Ele quis ou não matá‑lo, doutor?
-Quis fazer de viquingue, e já se arrependeu.
-Arrependeste‑te?-berrou Novarra para o homem.
Harald, o Viquingue, olhou em volta. Como tinha um nome a defender, respondeu em voz abafada:
-Não!
-Por favor! -Novarra encaminhou‑se para ele e Harald baixou‑se. Os olhos reluziam‑lhe perigosamente. O barbudo abanou a cabeça.-Não te alegres antes do tempo. Não me aproximo de ti. Mas pensa bem no que vais fazer! Tenho trinta homens ali fora. Está bem, podes atirar... mas, no máximo, esvazias uma cartucheira. Depois, és feito em farrapos. Ou então, podes levantar‑te e dizer: "Sim, portei‑me como um animal." Nesse caso, treinaremos contigo uma determinada frase, até tu a saberes de cor. É assim: "Caro médico, peço mil desculpas. É Difícil, Mas é possível dizê‑la. Basta um pouco de treino.-Indicando a porta:-Então? A pistola ou a frase?
Harald, o Viquingue, levantou‑se devagar. Sem olhar para o Dr. Mohr, dirigiu‑se à saída, onde foi recebido pelo padre Cristobal e os homens de Novarra. O Dr. Mohr fez um gesto de cabeça para Maria Dolores.
-Obrigado.
Ela sorriu timidamente e voltou a sentar‑se à espera ao lado da chaleira do chá. O Dr. Simpson ainda tremia todo. Com os dedos trémulos, Margarita desembrulhava uma embalagem de mechas, que empilhava numa mesa de apoio. Os cantos da boca estremeciam‑lhe, como se chorasse intimamente.
Harald, o Viquingue, regressou passados dez minutos. Deixaram‑no passar sem oposição. Pelos vistos, ninguém Lhe tocara, pois não parecia ferido nem forçado. O Dr. Mohr pousou uma pinça com a qual acabava de extrair um grande espinho de cacto duma ferida muito infectada.
-Peço desculpa!-resmungou Harald. O rosto do Dr. Mohr abriu‑se num sorriso.
-A frase é mesmo assim?
-Mais ou menos!-O homenzarrão respirava com dificuldade pelo nariz:-Não chega?
-Para mim, sim. Vamos à fotografia?
-Se tem de ser...
O Dr. Simpson empunhou a máquina. E como se tratava de Harald, o Viquingue, até lhe tirou uma fotografia de perfil.
-Pronto-ironizou.-Tive medo de que a tua tromba partisse a objectiva.
-Eu tenho de tolerar isto?-perguntou Harald em tom monocórdico.-Francamente, doutor!
-Francamente... não! Mas quem é que aqui é franco?
Também Harald recebeu a sua injecção sem tugir
nem mugir.
-Quero ver‑te daqui a dois dias - afirmou o Dr. Mohr, estendendo a Harald a bala que tinha extraído com anestesia local:-Podes mandar fazer um amuleto com ela.
-Se fosse assim, andava cheio de colares de chumbo! Não volto cá!
-Como queiras! O corpo é teu! O seguinte...
E foi assim durante três semanas, dez horas por dia. Nos intervalos, iam ver Chica e o filho, que recuperavam a olhos vistos e enchiam Novarra de orgulho. A intervalos regulares, Juan Zapiga aparecia com a mulher e os dez filhos, e todos ficavam a ver o Dr. Mohr tratando o mais velho, o robusto Pablo. Infelizmente, havia pouco a fazer. Era preciso esperar pelo material que fora enc omendado.
-Vou operar logo que as coisas cheguem, Pablo- dizia ao valente rapaz, que ainda só mexia o braço com dores muito fortes e apenas conseguia dormir à força de sedativos.-Até lá, temos de nos contentar com os comprimidos... à noite, com pernas de chumbo devido ao cansaço, os Pebas e o Dr. Mohr sentavam‑se a comer à volta da fogueira. Depois de muitas horas rastejando na galeria, Adolfo deitava‑se de costas, estourado, pálido, exausto, com os nervos à flor da pele. O produto de muitos dias: umas poucas pedrinhas minúsculas. Ou até nenhuma. Ou o brilho da esperança: "Vi uma corzinha na pedra. Devo estar perto de qualquer coisa! Mais uns dias... e chego lá..."
O vizinho de cima, o velho Pepe Garcia, meio cego, sentava‑se muitas vezes com eles à fogueira, contando como era Penasblancas trinta anos atrás.
-Eos meus olhos?-Acabava sempre assim as conversas.-Consegues dar‑mos outra vez, doutor?
-Não sei, Pepe-respondia o Dr. Mohr.-Em todo o caso, não devias ir mais para a mina. Andares a escavar com a lanterna dá‑te cabo dos olhos.
-Como posso parar? De que vivo depois? A maldita da montanha é o meu mundo.
Desde que o Dr. Simpson estava com eles, tinham sempre carne fresca. Para isso, Simpson era um génio. Farejava a caça como um velho índio. Quando entardecia, interrompia o trabalho de assistente, pegava na arma e desaparecia no desfiladeiro. Ouviam‑se então os seus disparos. Maria Dolores punha a água ao lume e amolava a faca, com a certeza de que iam ter uma boa refeição.
José Bandilla, o revolucionário, tornou‑se um problema. Todos os dias o Dr. Mohr, de olhos vendados, seguia para o burgo às apalpadelas atrás do Dr. Novarra, para ir tratar o cadáver vivo com injecções tonificantes e vitaminas. Mas só lhe dera três transfusões.
-Não posso dar‑lhe mais-disse‑lhe com ar sério.
Não é o único doente, Bandilla. Também preciso dos frascos que trouxe para outras situações. Mas quando o meu equipamento chegar de Bogotá, vai ficar cheio de força! Como se sente?
-Melhor.-Era Bandilla que o dizia, pois ainda não se via nada.-Ainda sinto uma ardência no estômago. E esta sede! Acho que conseguiria beber o mar inteiro!
-Apetite?
-Não. Vomito tudo. Ontem tentei... em vão.
-O que é que tentou?
-Uma fatiazinha de presunto... aliás, de fiambre, mas...
-Fiambre? E não teve náuseas?
-Náuseas? Até me apeteceu, mas depois vomitei.
-Pois!-comentou o Dr. Novarra lá atrás.
-Bandilla, não tem nenhum cancro!-Dando uma ligeira palmadinha, muito cautelosa, na barriga do revolucionário: -Aí anda outra coisa. Na minha opinião, tem uma gastrenterite crónica com uma polipose muito avançada.
-Parece ainda pior do que cancro! -resmungou Novarra.
- Mas não é. O problema é que, como não foi tratado, o organismo não reagiu. Quando é que foi ao médico pela última vez?
-Nunca fui!
-E tem orgulho nisso, não? Bandilla, quando o meu material chegar de Bogotá, vamos ter muito trabalho pela frente! Daqui a dois meses está a correr por aí e a suspirar por uma mulher. Vai ficar tão forte...
-Nessa altura, entrega‑o ao exército-rematou lá fora o Dr. Novarra, depois de Lhe tirar a venda dos olhos. ‑ É o seu plano.
- É. Quem matou conscientemente quatrocentas pessoas, não pode esperar piedade.
‑ Que mundo esquizofrénico! - Navarra abanou a cabeça:
- continue a apaparicar o seu assassino...
Passadas três semanas, a estrutura principal do hospital estava em condições de receber o Dr. Mohr, caso o material encomendado em Bogotá já tivesse chegado. Uns gunqueros que foram a Penasblancas regressaram com a notícia de que Christus Revaila ameaçava de morte todos os que mencionavam o nome do Dr. Morero. Pelos vistos, tinha agora um exército privado de cento e setenta e oito homens e continuava a reunir aderentes. Era impossível dar um passo em Penasblancas sem o consentimento de Revaila. Os seus homens espreitavam por todo o lado. A única excepção era Mercedes Ordaz, a mamá, que mandara vir de Bogotá um Chevrolet blindado e passeava aquele luxo por uma cidade quase morta e paralisada de medo. Todas as noites havia tiroteio na estrada para Muzo entre os compradores de esmeraldas dela e os de Revaila, o que não adiantava nada. Pelo contrário: já quase ninguém ia a Penasblancas. Os pesquisadores de esmeraldas ficavam na montanha, à espera. O fluxo de esmeraldas atingira niveis mínimos. Em Bogotá, Don Camargo espumava e ameaçava com uma expedição punitiva. Christus Revaila sabia o que isso significava.
-E o hospital?-gritou Camargo ao telefone. - Os camiões já chegaram?
-Estão aqui, Don Alfonso- alguma hesitação.
- É?!
- à espera.
-De quê, meu idiota?
-De que o médico venha cá buscar as coisas. Os camiões não podem ir à montanha. O senhor sabe isso, Don Alfonso.
-Então e o doutor Morero vai levar os caixotes às costas?
-Não sei...
-Revaila, vai lá levar‑lhe tudo. Em mulas! Ainda esta semana!
-Para isso preciso de duzentas mulas, Don Alfonso.
-Nem que fossem trezentas! Exijo que seja tudo entregue em bom estado. O doutor Morero é agora o rei das minas. Felizmente, ainda não o sabe. Temos de o distrair com o material, para que ele não pense em mais nada senão no hospital. Revaila, freta todos os meios de transporte que há em Penasblancas e leva o equipamento imediatamente para a montanha!
Revaila disse que sim, cuspiu para o canto (o que Don Camargo não viu) e desligou. à sua frente, à mesa, estava sentado um homem baixo e forte, careca, de nariz abatatado. Parecia um daqueles tiozinhos muito queridos que andam a vender gelados.
Mas o careca de cabeça redonda não vendia gelados. Era conhecido pelo nome de Henry Duk, e quando alguém gritava "Vai ali o Duk!", toda a gente corria a esconder‑se. Qualquer fabricante de cruzes viveria à vontade à custa dos seus crimes.
-Depois de amanhã!-anunciou Christus Revaila.
-Com cento e setenta mulas, três jipes e dez homens. Já sabes que os homens do burgo devem estar a protegê‑lo.
Henry Duk soltou uma gargalhada maldosa e bebeu um grande gole de cerveja de lata.
-Nem vai dar por nada-comentou calmamente. -Morre, e nem sabe que já não está aqui. Silencioso como um pensamento!
Dois dias depois, de madrugada, ainda o nevoeiro cobria as encostas que desciam dos vales da floresta para Penasblancas, a enorme coluna pôs‑se em movimento. Um hospital inteiro seguia nas garupas das mulas. Armações de camas, uma sala de operações, um laboratório, um aparelho de raios X, caixotes de medicamentos, instrumentos, colchões, mesinhas‑de‑cabeceira desdobráveis, camas com rodas... tudo acondicionado nas mulas.
E com elas seguia também um homem baixinho, forte e careca, que possuía um dom especial: matava sem fazer barulho.
A colossal caravana que serpenteava de Penasblancas em direcção à montanha, causou uma sensação nunca vista. As sentinelas que dos penedos vigiavam os acessos aos desfiladeiros e controlavam o único caminho para a cordilheira, prenhe de esmeraldas, comunicaram imediatamente que o transporte de mulas não era escoltado por nenhum polícia. Era compreensível, pois que polícia estava assim tão desejoso de arriscar a vida pelo punhado de pesos que constituíam o seu salário? O tenente Salto, que ainda tivera a disparatada ideia de escoltar o hospital ambulante com toda a sua tropa (ou seja, quatro homens), foi forçado a desistir quando três dos seus valentes meteram imediatamente baixa, ficando de cama com dores de barriga.
-Poltrões!-berrou Salto.-Caguinchas! Mijam‑se de medo!
Os polícias suportaram os insultos, assentiram em silêncio, resignados, e permaneceram na cama. "Antes um poltrão vivo do que um herói morto", pensaram. "Lá em cima na montanha não temos hipóteses nenhumas. Nós os quatro contra milhares... que loucura! E a camisa dos polícias sempre foi o alvo preferido dos gunqueros!"
O major Luis Gomez, em Muzo, também não estava em condições de escoltar o transporte. Mas não porque tivesse aprendido a ter medo no decurso das semanas. Pelo contrário: os seus soldados passavam as redondezas sistematicamente a pente fino, prendiam pesquisadores de esmeraldas, atiravam‑nos para as cadeias, apreendiam‑Lhes os achados e condenavam‑nos em julgamentos sumários. O maior JUIZ era o próprio major Gomez, a quem depois aconteciam coisas estranhas: ou encontrava pedras lindíssimas na mesinha‑de‑cabeceira, remetidas por alguém que estava preso, ou de repente, como por magia, aparecia‑lhe na casa de banho uma estampa de mulher nua, que se metia com ele no duche e depois Lhe pedia pelo pobre irmão que estava na cadeia.
O major Gomez espumava. Interrogado o pessoal da casa, ninguem vira entrar a hóspede indesejável. Claro que não, pois as pedrinhas verdes punham qualquer um cego. Os oficiais de Gomez, em compensação, já não compreendiam o seu comandante que, com tal comportamento, baralhava todas as regras do jogo. Quando queriam meninas bonitas, apanhavam alguns gunqueros e, surpresa das surpresas!, as camas apareciam ocupadas! Era uma coisa normal em Muzo. Chamava‑se a estas acções o imposto dos oficiais. Cada gunquero contava com este imposto. Se não tinha uma filha, irmã ou mulher bonita, então os vizinhos ajudavam‑no, cheios de compreensãO. Qualquer um podia ser apanhado pelos militares. Por isso, a ajuda entre vizinhos era meio caminho para a sobrevivência.
O major Gomez impunha‑se energicamente. Julgava com mão de ferro, as camas dos oficiais ficavam ocupadas só dum lado e as ameaças de morte pairavam pela casa. Adisciplina do batalhão era treinada à custa de exercícios até à exaustão. Em Muzo e arredores, as pessoas punham‑se de sobreaviso. "Este Gomez! Não tem medo nenhum! Um dia destes temos de o mandar para debaixo do chão..."
Agora, o tenente Salto pedia assistência oficial em Penasblancas. Queria um comboio militar para escoltar o transporte do hospital.
-Meu caro Salto-disse Gomez ao telefone, mordiscando um charuto que se apagara com a exposição do tenente.-Embora gostasse muito de voltar a ver o doutor Morero e o padre Cristobal, e apesar de ter a certeza de que o transporte vai enfrentar muitos perigos por não ser escoltado, não posso de maneira nenhuma. Tenho três companhias em acções de limpeza nas montanhas e preciso da outra aqui na guarnição, ou ainda nos roubam as casas e garagens! Sabe como é! Aqui já não vivem pessoas: só dedinhos com pernas! Não posso dispensar nenhum homem. Talvez daqui a três dias...
-Tarde de mais!-suspirou Salto.-O transporte já está a caminho. O Revaila cedeu uma escolta de três jipes e dez homens. É ridículo!
-Tenho muitas esperanças, Salto. O que está a caminho só interessa ao doutor Morero. Para que é que os gajos das minas querem o equipamento dum hospital? Um aparelho de raios X não é nada que se coma! Nem uma mesa de operações!
-Mas as camas, major! As cadeiras e as mesas! As ligaduras e os medicamentos. Valem uma fortuna nos desfiladeiros. Dão para se viver com muito conforto. Além disso, a caravana também transporta explosivos, mantimentos, conservas, munições e armas. E muitos narcóticos. Há muita gente capaz de matar por uma ampola. E existem centenas...
- Que merda!-desabafou o major Gomez.-Porque é que não me informaram disso ontem?
-Também só soube hoje pelo Revaila. O gajo fez de propósito. Se o transporte não chegar, a culpa não é dele! Só para prejudicar o doutor Morero, é capaz de ir a fazer o pino até Bogotá! O seu ódio é incomensurável.
-Podia mandar um helicóptero - disse Gomez pensativamente.-Mas para fazer o quê? Só observar.
-Além disso, seria abatido. Eles têm lá em cima metralhadoras do Exército. Trocadas por esmeraldas. O que ouvi contar aqui, o que já aconteceu comigo... é indescritível!
-Também comigo, Salto. Os meus próprios oficiais trocam gunqueros por noites de amor! Mas garanto‑lhe uma coisa: se o transporte não chegar, vou lá com três companhias passar tudo a pente fino. E arraso os sítios onde encontrar nem que seja uma só pastilha para a tosse pertencente ao hospital! Fuzilo‑os a todos! Bogotá deu‑me plenos poderes. Mais uma coisa: até hoje, já me ameaçaram de morte quarenta e três vezes. E a si?
-Nenhuma, major.
-Como assim? Já se deixou ir abaixo?
-Não. Como em Penasblancas há dois grupos que se vigiam mutuamente, reina a calma.-Suspirando:- Tinha posto as minhas esperanças em si, senhor major.
-Que pena, que pena...-Suspirando em resposta: -Vou estar sem recursos durante três dias.
Ninguém na montanha sabia desta conversa. Também ninguém se importaria muito com ela. O essencial era que cento e setenta mulas atravessavam a região, transportando valores incalculáveis. Era irrelevante saber se tudo o que ia nas mulas podia ser usado. Só o facto de ser valioso já era extraordinariamente estimulante.
Constituíram‑se quatro grupos decididos a observar a caravana em determinados locais e a apoderar‑se de tudo o que valesse a pena. Mas três destes bandos desfizeram‑se, porque a experiência do primeiro a isso os obrigou.
Este primeiro grupo de dez homens, dispostos a tudo pôs‑se à espreita das mulas numa depressão do terreno Por uma questão de segurança, alvejaram os dez homens da escolta, que correram a esconder‑se e não se mexeram mais. Este facto teria dado que pensar a qualquer um, mas os dez homens rejubilaram e, com um zelo exagerado, lançaram‑se sobre as cento e setenta mulas.
Foi a última coisa que fizeram. Foram abatidos como coelhos, mas não por tiros isolados; pelo contrário, viram‑se no meio do fogo cerrado das metralhadoras, do qual não havia salvação possível. Num dos jipes, uma metralhadora pesada martelava a região, obstruindo o caminho da fuga.
O relato do que sucedera espalhou‑se rapidamente. Aconteceu que houve um sobrevivente no primeiro grupo. Henry Duk, o demónio baixinho, entroncado e careca, tratou (nas suas palavras) o ferido ligeiro. Cortou‑lhe as orelhas e a ponta do nariz e mandou‑o embora com a seguinte mensagem: "Quem nos atacar e nos cair vivo nas mãos, em lugar de ter as orelhas amputadas, será castrado!" Não houve ninguém na montanha que não acreditasse incondicionalmente nisto. A fama de Henry Duk precedeu‑o nas colónias de gunqueros: "Está lá um homenzinho pequenino que corta bocados do corpo com um riso de satisfação. Temos de o despachar antes de atacarmos as mulas."
Aprimeira noite foi crítica. Já se sabia de antemão que o transporte não chegaria num dia às mãos do Dr. Morero; aliás, tinha‑se contado com três dias. Assim, ao cair da noite, juntaram‑se as mulas, que não se descarregaram, o que, de resto, seria impossível para dez homens. Ficaram, portanto, carregadas, o que, naturalmente, teria grande influência no seu rendimento no dia seguinte. Uma mula também se cansa. Henry Duk calculou que haveria dez por centO de baixas; ou seja, dezassete animais, cuja carga teriam de distribuir pelos outros.
Contra o que se esperava, não aconteceu nada nesta primeira noite. As mulas ficaram muito juntas umas das outras, os dez homens deitaram‑se à sua volta como cães‑pastores, nem uma palha mexia nos jipes. Centenas de olhos observavam o acampamento por todos os lados. Estudava‑se a táctica do careca. Mas este não tinha nenhuma. Só mandou cinco homens dormir, pondo os outros cinco de sentinela, um dos quais perto do jipe com a metralhadora pesada, pronta a disparar e com a cinta de munições encaixada.
-Vai funcionar amanhã à noite-disse John Berner, virando‑se para o lado. Berner vivia na montanha havia sete anos, nunca pesquisara nada, tinha uma equipa de quarenta homens e extorquia uma "taxa de protecção" aos gunqueros: assalto às minas de esmeraldas à boa maneira americana.-Quatro homens criam uma manobra de diversão, atacando por trás, e quando eles virarem a metralhadora, aparecemos‑lhes de lado e caímos‑lhes em cima. Quero o careca para mim...
Naturalmente que a notícia do gigantesco transporte também chegou aos ouvidos do Dr. Mohr. Quem a transmitiu foi um gunquero que apareceu no planalto com a mão esmagada e que foi o primeiro doente a ser tratado na nova "sala de operações" do hospital, uma divisão inundada de luz, na qual só havia ainda a mesa de madeira do vestíbulo dos Pebas. O homem, que andara quatro horas pelos penedos, sentou‑se na borda da mesa e anunciou, com o rosto destroçado pela dor:
-Vem qualquer coisa a caminho para si, senhor doutor. Eu não acredito muito, mas fala‑se de quase duzentas mulas. Muito carregadas. Devem trazer um hospital inteiro!
-Até que enfim! -exclamou o Dr. Mohr. Entregando o ferido aos cuidados do Dr. Simpson, correu para o Dr. Novarra que, com duas colunas, dava os últimos retoques na enfermaria e ajudava o padre Cristobal a acabar a sua igreja. Dois homens do burgo, de olhar sombrio e rosto cheio de cicatrizes, trabalhavam um grande crucifixo de madeira que ia ficar pendurado no altar, como único adorno, único objecto sobre o qual os fiéis deviam concentrar‑se.-Chegaram! -gritou, ainda de longe -Vêm aí cerca de duzentas mulas, trazendo o equipamento de Penasblancas. O Camargo cumpriu a sua palavra!
-Não diga esse nome na minha presença!-berrou‑lhe Novarra.-Se esse vampiro Lhe manda um hospital, pode ter a certeza de que não é por motivos humanitários! - Aproximando‑se, passou pelo Dr. Mohr e entrou na sala de operações. O Dr. Simpson já começara a desenrolar da mão esmagada uma ligadura que a sujidade encardira. O gunquero fazia caretas de dor.
-Onde está o transporte?-trovejou o Dr. Novarra.
O ferido estremeceu e olhou para o barbudo com um ar assustado:
-Só ouvi dizer...-gaguejou.
-Onde?
-No caminho para aqui...
-Pelo meio do território do John Berner? ‑Claro. Conhece outro caminho?
O Dr. Novarra virou‑se e esbarrou na porta com o Dr. Mohr.
-Isto está a ficar mau!-comentou tenebrosamente.-O John Berner é o maior bandido de toda a cordilheira. Escola americana! Temos de ir lá sem falta. Simpson?
-Sim?-O Dr. Simpson desenrolara a mão, que estava com um aspecto muito feio. A ferida aberta já começara a gangrenar.
-O raio do teu lança‑minas está pronto a disparar?
-O raio do meu lança‑minas amassa‑te esse focinho gordo em três tempos-respondeu Simpson, ofendido.
-É possível montá‑lo e transportá‑lo já pronto a disparar?
- Com três homens, sim.
-Então vamos ao encontro do transporte! E se o Eberner se enervar, acalmamo‑lo com uma mina! Simpson, parece‑me que não temos tempo a perder!
O Dr. Novarra considerou a acção tão importante que até mandou chamar às galerias os dois grupos de mineiros, que foram substituir as equipas de construção, que estavam mais frescas. Depois, os cinquenta e dois homens do temível "exército>> do burgo seguiram ao encontro do transporte; entre eles ia o Dr. Simpson com o seu lança‑minas, dois caixotes de minas e um estojo de primeiros socorros para os possiveis feridos.
Encarregando‑se do homem com a mão esmagada, Margarita lavou‑lhe a ferida e segurou‑lhe bem no braço enquanto o Dr. Mohr o tratava e Lhe administrava uma injecção de penicilina. Como quase todos os homenzarrões de aspecto forte e valente, também este gunquero revirou os olhos ao sentir a picada, deixando‑se cair contra o peito de Margarita, que o agarrou e sorriu para o Dr. Mohr.
-Conseguiste, Pete.
A doçura da sua voz mexia sempre com ele. Inclinando‑se para a frente, deu‑lhe um beijo por cima da cabeça do homem sem sentidos.
Foi uma coincidência desagradável, mas, precisamente neste momento, Adolfo Pebas apareceu à porta. Não o tinham ouvido aproximar‑se. Pela janela aberta, entrava o barulho dos trabalhos de construção na enfermaria e na igreja. O ruido de martelos e serras abafava qualquer outro som.
Ambos deram um salto quando a voz alta de Pebas atroou pela sala.
- Ah! - bradou. - à luz do dia! à frente de toda a gente! - Soltando um grito estridente, Margarita abraçou‑se ao gunquero sem sentidos, como se este pudesse ajudá la. Tinha nos olhos um medo indescritível. Pebas aproximou‑se com passos pesados e parou em frente do Dr. Mohr.
- O que é que eu te disse, Pete? Já me chega ter perdido uma filha. Esta não vai ser prostituta. nem que eu tenha de dar cabo de ti e dela!
-Não te armes em ofendido, Adolfo!-retorquiu calmamente o Dr. Mohr.-Há muito tempo que sabes que amo a Margarita!
-Juraste‑me que não Lhe tocarias!
-E mantive a minha palavra.
-Então o que é que eu acabo de ver?! Os desconhecidos costumam beijar‑se assim à frente de toda a gente.'
-Porque perguntas coisas que já sabes há muito tempo? Vim contigo para a montanha porque queria conhecer a vossa vida. Fiquei, e agora estou a construir um hospital. Só porque, enquanto médico, digo a mim próprio que precisam de mim aqui? Que esta gente que vive no fim do mundo e nos limites da humanidade precisa dum sopro de amor, mesmo que eu só possa dar‑lho com escalpelo e injecções? Não, não foi só por isso que vim. Se não tivesse visto a Margarita, talvez ainda estivesse em Penasblancas.
-Já falámos disso-resmungou Pebas.-E eu disse‑te que a minha filha não é nenhum brinquedo dos ricos! Não importa se vives aqui ou em Bogotá: és um homem com estudos, és rico... e o que é a Margarita?!
- A rapariga mais bonita que já vi na minha vida!
-E está tudo dito.-Olhando para a filha, estendeu‑lhe a mão autoritariamente:-Deixa‑o em paz e anda para casa. A partir de agora, não ajudas mais o doutor!
Margarita largou a cabeça do gunquero desmaiado e pousou‑a cuidadosamente na mesa. Depois, afastou o cabelo do rosto com um movimento brusco e firmou os braços na cintura. Pebas fitou a filha com um ar embasbacado. Era um gesto que só ainda vira em Maria Dolores, quando estava incrivelmente zangada.
-Não!-disse Margarita em voz alta.
-O quê?-gritou Pebas.-Enfrentas o teu próprio
pai?!
- Enfrento!
-Já para casa!
-Fico aqui! No hospital! Com o Pete. A partir de agora, durmo aqui...
-Margarita-admoestou o Dr. Mohr, com a garganta seca.-Eu prometi ao teu pai...
-Mas eu não prometi nada! -Respirava pesadamente. Apesar de todo o medo interior, não desviou o olhar do rosto colérico do pai.-Já tenho idade suficiente para não ser tratada como uma criança. Sempre uma criança! Amo o Pete! A partir de hoje, durmo com ele.
-Diz lá isso outra vez!-Pebas esticou a cabeça para a frente como uma ave de rapina.-Diz‑me isso na cara. Essa palavra de prostituta...
-Quero e vou dormir com o Pete!
-Ouviste bem?-Virou‑se para o Dr. Mohr:-Foi o que fizeste dela! Uma desavergonhada que quer meter‑se contigo na cama! Como posso tolerá‑lo?! Tenho de voltar a assistir a tudo o que vivi com a Perdita?! O mesmo tormento? Não! Não!
De repente, apareceu uma faca na mão de Pebas, que se agachou, fazendo menção de atacar. Margarita deu um grito. Ao mesmo tempo, levantou‑se na mesa uma perna com uma bota grosseira, que atingiu Pebas de lado com toda a força. Com um berro surdo, Pebas voou pela sala e, sem qualquer apoio nem nada que Lhe amortecesse a queda, foi embater na parede de madeira da esquerda com um estrondo que o deixou zonzo.
O gunquero escorregou da mesa e pestanejou.
-O que aconteceu?-perguntou, abanando a cabeça. - Estava alguém com uma faca à sua frente, senhor doutor. Foi a primeira coisa que vi quando acordei. Tem muitos doentes assim?-Na parede, Pebas mexeu‑se. O gunquero ergueu ameaçadoramente a mão que estava boa.-Alto! Quieto, seu bandido! Ainda temos contas a ajustar!
Margarita recuara e mordia desesperadamente o punho cerrado. O Dr. Mohr segurou o gunquero pelos ombros. Tal como Margarita, também ele sabia que tudo aquilo significava o rompimento entre ele e a família Pebas. Adolfo nunca esqueceria semelhante humilhação. Ser atirado contra a parede a pontapé e não poder ripostar era uma afronta que o queimaria por dentro. O que aconteceria agora? Tinham de viver lado a lado. Em frente do hospital, onde Margarita dormiria a partir daquele dia. a menos de dez metros de distância, ficava a caverna dos Pebas que, mal saíam de casa, a primeira coisa que viam era o hospital. Pebas conseguiria suportá‑lo por muito tempo? O que faria?
-Deixa‑o ir-disse o Dr. Mohr para o gunquero.
-Conhece o gajo? Ah, gostava de Lhe quebrar alguns ossos para que não se esquecesse.
-É o pai dela.
-O pai desta senhorita tão bonita?-Voltou a erguer o punho ameaçadoramente na direcção de Adolfo Pebas. -A natureza prega‑nos cada partida! Uma menina tão bonita foi feita por este bode?! Até me custa a acreditar.
Pebas deixou o hospital. De ombros descaídos, entrou em casa e sentou‑se junto da lareira, olhando fixamente em frente. Maria Dolores, que estava a fazer uma grande chaleira de chá, preparando‑se para mais um dia de trabalho no hospital, onde esperava outra fila de doentes, lançou‑lhe uma mirada de esguelha.
-Zangado?
Pebas suspirou.
-Não temos mais filhas.
Sobressaltada, Maria Dolores deixou cair a concha.
-Endoideceste de vez? - inquiriu em voz alta.
-A Margarita não é diferente da Perdita.
-Não! -Cambaleando e segurando‑se à parede. perguntou:-Fugiu para Penasblancas? Quando? Quando? Há uma hora, ia ter com o Pete.
-E é onde está! E onde fica. Quer ficar! Disse‑me De cara que, a partir de hoje, dorme com ele. Compreendes?
- Ah, compreendo!-Maria Dolores voltou de novo a atenção para a chaleira.-Sim...-A sua voz parecia calma.
Pebas deu um salto, como se o tivessem picado.
-Sim? Sim?-gritou.
-Sim, compreendo.
-Compreendes que ela quer dormir com um estranho?!
-O Pete não é nenhum estranho. Amam‑se um ao Outro
-Mas isto é uma conspiração contra mim?! Já sabes isso há muito tempo, não?!
-Esperava‑o. É muito natural.
-Mas vocês já não sabem o que é a honra?-bradou Pebas.
-Tu também não dormiste comigo antes de sermos abençoados pela igreja? Pensa lá bem, Adolfo.
-E isso é exemplo?
-Nunca julgues aquilo de que tu próprio não te arrependes. Não somos felizes?
-Pronto! - Pebas fitou Maria Dolores com um olhar agitado. A boca tremeu‑lhe.-És feliz?
-Tenho dúas filhas e tenho‑te a ti. É a minha vida. Alguma vez me queixei?
-Mas és feliz?
-Se não fosse, já te teria deixado há muito tempo. Anda, pega na chaleira. Tenho de ir ao hospital.
- Nunca mais lá entro!-arquejou Pebas.-Não veJo...
-Queres que leve a chaleira sozinha?! Como posso ser feliz com um homem tão cabeça dura?
Juntos, levaram a chaleira para o hospital, onde encontraram o padre Cristobal, que saía da sala de operações.
-Ia ter contigo, Adolfo.
Pousando a chaleira num banco, esfregaram as mãos quentes umas nas outras.
-Então já sabe, padre?-perguntou Pebas com ar sombrio.-Que vergonha! -Encostou‑se à parede e alargou a camisa como se estivesse a sufocar.-É verdade que se amam e que vão casar...
-Era isso que queria dizer‑te-interrompeu o padre Cristobal.
-... mas não será só um capricho de senhor rico?!
-Já...
- Sei como a minha filha é bonita. Sei como os homens reviram os olhos quando a vêem. Sei que qualquer um gostaria de a ter na cama. Os homens são como predadores! Eu era diferente? Não! Era precisamente assim, e por isso é que sei! E o médico é diferente?! Quem sabe? O que acontecerá se ele repudiar a Margarita como um trapo velho depois de a ter possuido?! Quem protegerá a minha filha?! Eu! Eu, o seu pai, que conheço a ralé a que também pertenci! Portanto, o que me resta senão matar o médico? Deus tem de o compreender, pois deu‑nos um coração!
-Já acabaste? - perguntou tranquilamente o padre Cristobal. - Então digo‑te uma coisa: vou casar a Margarita e o Pete, e se o casamento fracassar por causa do Pete, hei‑de persegui‑lo até ao fim do mundo. Satisfeito?
- Não!-Abanou a cabeça.-Nada disto era necessário. Podia ser tudo diferente.
-Como queres mudar seja o que for?-Juntou as mãos.-Tens razão, Adolfo: Deus deu‑nos um coração. Mas pôs‑nos amor neste coração. É uma dádiva de Deus. Raios, não critiques Deus por Ele ser tão bondoso!
Capitulo 10
A caravana com as cento e setenta mulas e a escolta de dez homens chegou a são e salvo ao seu destino. Quase não houve baixas. Os poderosos e, sobretudo, pacientes animais transportaram as pesadas cargas por atalhos rochosos e desfiladeiros, percorreram carreiros estreitos e equilibraram‑se ao lado de abismos. Havia muito que os jipes tinham ficado para trás. Uma vez desmontada a metralhadora pesada, tinham‑na transportado para um vale e escondido no meio de um silvado.
John Berner, que espreitava o transporte com o seu bando, à espera de uma boa oportunidade, deu às de vila‑diogo quando o Dr. Novarra e os seus homens saíram ao encontro da caravana num desfiladeiro.
-Oh, mesmo a tempo!-disse o careca, apertando a mão ao Dr. Novarra.-Já tínhamos sido vítimas dum ataque, e ando com a estranha sensação na nuca de que somos observados por muitos olhos. Sinto‑me cheio de comichões...
O Dr. Novarra sabia tão bem como Duk que o perigo espreitava à sua volta. Para mostrar ao inimigo o que o esperava, disse ao Dr. Simpson:
-Exibe o teu lança‑minas por aí. Ou melhor, faz uma demonstração.
Simpson assentiu, mandou dois homens transportarem a arma pronta a disparar para o meio de duas árvores e abriu uma caixa de munições. Metendo no cano grossO uma mina comprida, de brilho acinzentado, apontou a arma para os penedos em frente.
Berner, que estava ali escondido, começou de repente a agitar‑se.
-Esta agora! - balbuciou. - Fujam! Procurem abrigos ou cavernas. Depressa!
-O que é aquilo?-perguntou o homem ao seu lado.-Estão a montar uma chaminé? Quererão cozinhar com todo o conforto?
-Aquilo é um lança‑minas, seu estúpido!-arquejou Berner.-Se disparar, faz‑te em picadinho! Abriguem‑se, homens...
Berner e os cúmplices apressaram‑se a procurar pequenas cavidades na montanha e comprimiram‑se contra a pedra. Ouviu‑se então um estampido, o trovão ecoou várias vezes e a mina explodiu nos penedos, levantando no ar uma nuvem de pedras e estilhaços de metal.
-Excelente, Simpson!-exclamou o Dr. Novarra. -Deitaste a mão a uma máquina verdadeiramente infernal! Se ainda quiserem atacar‑nos, é porque não têm miolos na cabeça. O hospital está no papo!
John Berner ordenou a retirada. A sua velha ocupação, a extorsão, era mais segura e envolvia menos riscos. Claro que também havia quem se revoltasse, mas só com revólveres e não com lança‑minas.
Na segunda noite, formou‑se um círculo de sentinelas em volta das cento e setenta mulas, mas tudo permaneceu tranquilo. O caminho para o Dr. Morero estava livre.
-Podias não servir para nada, Simpson, mas ontem a tua vida teve sentido!
-E um dia destes ainda te dou um pontapé no cu, Novarra!-retorquiu o Dr. Simpson, ofendido.-Meu Deus, como eu gostava que fosses meu doente...
Por volta do meio‑dia, o grupo chegou ao planalto. Homens, mulheres e crianças das redondezas, ali reunidos, acenavam com ambos os braços, gritavam e saltavam de alegria. Entre eles, encontravam‑se os homens do burgo. " quase cego Pepe Garcia, a família Pebas e Juan Zapiga com a sua mulher Nuria e os dez filhos. O padre Cristobal fez sinal ao pugilista Miguel, que atacou um cântico com sua voz potente. Timidamente, os outros começaram a a`ccompanhá‑lo. Tinham as vozes mais fraquinhas' mas foram cantando cada vez mais a plenos pulmões, à medida que as mulas carregadíssimas iam surgindo no planalto.
Henry Duk, o careca baixo e gordinho, passeou o olhar pela multidão, até encontrar um homem que estava na primeira fila, com o braço passado pela cintura duma rapariga muito bonita.
"É ele", pensou Duk. "É o doutor Morero. Aproveita agora, meu rapaz, porque daqui a uma hora já não és deste mundo."
Duk, porém, estava enganado.
Demorou mais do que uma hora.
O Dr. Mohr nunca estava desprotegido ao ponto de Duk poder cumprir a sua missão. No meio das cento e setenta mulas, ajudava os homens do burgo e os gunqueros a descarregar, transportava para o hospital os preciosos caixotes cheios de medicamentos juntamente com o Dr. Novarra, o Dr. Simpson, o padre Cristobal e Miguel e vigiava o transporte das peças do aparelho de raios X, dos instrumentos de anestesia e doutros equipamentos cirúrgicoS essenciais.
-Hoje à noite, vamos meter‑nos nos copos!-disse o Dr. Novarra, sentado num caixote com peças do gerador a gasolina que produziria a energia necessária para o funcionamento dos aparelhos eléctricos.
Os homens tinham feito um intervalo. Doíam‑lhes as costaS de tanto carregar caixotes. O Dr. Mohr, a suar, com a camisa aberta até ao cinto, fumava um cigarro. Havia outras coisas diversas que também tinham sido enviadas: chá, café, cigarros americanos, uísque e conhaque colombiano.
-Doutor, tem consciência de que se inaugurou aqui uma nova era graças a si?-indagou Novarra.
-Eu não o diria dum modo assim tão pomposo...
- Nunca ninguém se preocupou com este canto do mundo. São mais de trinta mil pessoas que não existiam. No máximo, eram apenas vermes que rastejavam por entre as pedras. A vida não valia nada... e aparece você, com a despreocupação dum idiota...
-Obrigado...
-Instala‑se e diz simplesmente: "Vou construir aqui um hospital para tratar destes pobres seres que vivem à margem da humanidade." E até consegue pôr o hospital de pé!-Dando uma palmada na coxa:-Nem acredito! Explique‑me lá a ideia do vigarista do Camargo ao pôr isto tudo à sua disposição.
-Ele prometeu‑me.
-Claro! Mas com que intenção? Don Alfonso nem sequer mexe o dedo mindinho se isso não lhe der algum lucro. E se agora anda preocupado com a saúde dos gunqueros, só pode querer dizer uma coisa: intensificação da actividade nas minas. É evidente que uma pessoa saudável produz mais do que quatro doentes, o que, por seu lado, significa mais esmeraldas.
-Talvez.
-Seu grande cretino! Mais esmeraldas, mais mortos... é a fórmula do diabo. Não percebe? Nos caminhos daqui a Penasblancas e de Penasblancas a Bogotá espreitam os compradores, que não pagam com pesos e sim com balas de chumbo! E quem consegue chegar a Bogotá, tem de primeiro sobreviver à Emerald Street, a estação terminal, onde é forçado a mostrar as pedras, não sejam elas tão valiosas como seixos. Ficam então frente a frente: o dealer, de pistola na jaqueta, e o pesquisador com o seu reluzente tesouro verde, atado num lenço todo sujo. É uma situação francamente rudimentar, que vai intensificar‑se de futuro graças à sua actividade médica! No fundo, vai alimentar as pessoas com papinhas e leite, para depois outros Lhes darem um tiro ou as esfaquearem. Isso não Lhe traz problemas de consciência, doutor?
-Só quero ajudar os doentes, Ramon. O que eles depois fazem da sua vida, é lá com eles.
-Parece os médicos em tempo de guerra, que também não estão em paz com a sua consciência. Apoiando‑se na ética da medicina, põem o ferido novamente de pé com o objectivo de o mandar novamente para a frente, onde tem a oportunidade de morrer. Assim, e por mais horrível que pareça, o médico é cúmplice dum genocídio! Por um lado, tem de ajudar a curar e, por outro, está a reabastecer a morte. Cada indivíduo curado é uma nova vítima. Doutor, eu não gostaria de ser médico para felicitar os convalescentes e lhes dar alta, sabendo que a morte está de novo à espreita! Como consegue aguentar isso?
-É uma pergunta complicada, doutor Novarra.- Pisando o cigarro:-Tive a sorte de não viver esse tempo. Creio que a justificação está na frase: "Tudo pela pátria."
-E aqui?! Aqui é pelo Camargo... pelas esmeraldas... pelas demoníacas pedras verdes... Você está a trabalhar pela exploração, pela destruição. Percebe agora?
-Isso vai mudar quando o hospital estiver a trabalhar em pleno.
-Estou morto de curiosidade.
-Os pesquisadores vão deixar de levar as pedras sozinhos aos dealers, expondo‑se a um perigo de morte. Tenciono organizar o fluxo de esmeraldas...
-Que utopia! Como?
-Com a sua ajuda!
-Comigo?
‑ Preciso da sua gente para servir de guarda‑costas. Vou instalar um depósito central junto do hospital. Uma espécie de cooperativa. Se é possível na agricultura e com outros produtos, também deve ser praticável tratando‑se de esmeraldas! As pessoas entregam aqui as pedras, que são avaliadas, e o pesquisador recebe um vale correspondente à estimativa feita. Quando houver pedras suficientes, estas serão transportadas para Bogotá duma só vez, sob uma escolta pesada.
‑E acredita que passam?
‑Com as suas forças, doutor Novarra...
‑Que fantasia! Que acha que fará o Camargo quando vir o fluxo de esmeraldas a secar e você de repente a fixar os preços? Admito que a sua ideia duma cooperativa de esmeraldas é fascinante, mas o Camargo tem o poder de avançar contra si, até mesmo com o exército! As teias deste negócio abrangem até as mais altas esferas!
‑Teremos todos os gunqueros do nosso lado!
‑Até os bandidos que quererão dar cabo de si. E serão às centenas, aos milhares, os que formarão a força de combate do Camargo.
‑Tem medo, Novarra?‑troçou o Dr. Mohr.
‑Não me venha com essa!‑Lançou‑lhe um olhar mal‑encarado.‑Só não sou é maluco como você! Haverá centenas de bandidos a cortar as estradas por onde passar o transporte da sua cooperativa com esmeraldas no valor de talvez duzentos mil dólares! Cada saída para Bogotá será uma carnificina! Os pesquisadores colaborarão talvez umas duas vezes... mas mais não. Depois, voltarão a procurar fazer tudo sozinhos. Esgueirar‑se sozinho é mais seguro do que irromper em grupo.‑Levantou‑se e espreguiçou‑se.‑Vamos continuar. As próximas semanas mostrarão até que ponto a bênção da sua actividade se transformará em maldição.
Encaminhando‑se para as mulas, deixou o Dr. Mohr sozinho.
Era a oportunidade por que Henry Duk esperava havia tanto tempo.
O careca baixo e gordinho estava precisamente encostado à igreja, aí a menos de vinte passos do Dr. Mohr. Tendo ajudado a descarregar, descansava agora, mordiscando uma ervinha. Como o médico se encontrava sozinho, levou a mão ao bolso das calças, tirou um tubo extensível e desembrulhou cuidadosamente de uma folha de papel uma seta de bambu com cerca de dez centímetros de comprimento, fininha como uma agulha, que meteu no tubo com as pontas dos dedos, visando depois a sua vítima com os olhos semicerrados.
O Dr. Mohr olhava em volta, sem suspeitar de nada. Metade das mulas já estava descarregada... As outras, cansadas e sem forças, continuavam pacientemente por ali com as suas pesadas cargas. Debruçadas sobre os caixotes das porcelanas, Maria Dolores e Margarita desembrulhavam as louças.
Henry Duk inspirou profundamente, encheu os pulmões de ar e manteve‑o comprimido no tórax. O Dr. Mohr estava, naquele momento, de costas voltadas para si. A camisa encharcada de suor colava‑se‑lhe ao tronco. "Só mais uma voltinha", pensou Duk. "Só mais um bocadinho... Tenho de soprar o veneno mesmo para junto da carótida. Era melhor se lhe acertasse em cheio, mas seria muita sorte. Basta que a seta se aloje no pescoço. Depois, é muito rápido. A paralisia é imediata. Os índios de Chopzena têm um veneno infernal. Chamam‑lhe o "trovão silencioso", porque o sangue começa de repente a borbulhar e troveja nas veias, mas só a vitima é que o ouve e apenas durante alguns segundos, antes do cair das trevas."
Levou a zarabatana à boca. Tinha o peito arqueado. O Dr. Mohr estava na posição correcta, e Duk nunca falhara o seu alvo.
Nesse momento, a sua atenção foi desviada por um relâmpago no ar, perto dos seus olhos. E antes de poder soltar a respiração para lançar a seta venenosa com uma força monstruosa, foi atingido por um golpe no braço direito, que tinha esticado, e ao qual se seguiu uma dor violenta. A zarabatana caiu‑lhe da mão subitamente inerte. Soltando o ar num suspiro, fitou a faca que se lhe cravara no braço. Ao mesmo tempo, ouviu uma voz de rapaz, cujos gritos se elevavam acima do barulho que o rodeava.
‑Socorro! Assassino! Assassino! Socorro! Ele queria matar o nosso médico!
Henry Duk virou‑se. Depois daquele segundo de sobressalto, compreendia agora a sua situação. Apertando contra si o braço com a faca espetada, fez menção de fugir pela encosta abaixo, na direcção do desfiladeiro coberto de vegetação, mas um homem alto e magro saiu‑lhe ao caminho, levantou a perna direita e deu‑lhe um pontapé no baixo‑ventre. O careca dobrou‑se, uivando de dor, e tentou avançar cambaleando, mas três homens do burgo deitaram‑lhe a mão, puxaram‑no para cima e arrastaram‑no até ao hospital. Duk gemia, gritava e debatia‑se, mas os homens bateram‑lhe na boca, apertaram‑lhe a garganta e continuaram a puxá‑lo.
‑Muito bem, Pablo!‑disse Juan Zapiga para o filho. O jovem, muito pálido, estava encostado à parede da igreja, com o braço inchado e imóvel ao peito. A outra mão ainda tremia, como se a facada lhe tivesse incendiado todos os nervos. De repente, começou a chorar, lançando a cabeça para trás.
‑Com uma zarabatana, papá - balbuciou.‑Queria matar o nosso médico com uma zarabatana. Percebi mesmo no último momento.
- Atacaste muito bem, Pablo.‑Zapiga revolveu o cabelo do filho.‑Estou orgulhoso de ti! Porque choras?
‑ Foi a primeira vez que agredi alguém.
‑Mas com isso salvaste uma vida. Viste o pontapé que lhe dei?
‑ Vi, papá. - Pablo olhou na direcção do hospital, para onde tinham arrastado Duk até à presença do Dr. Novarra. O Dr. Mohr e o padre Cristobal falavam com Novarra. O Dr. Simpson gritava com os gunqueros que se juntavam, mostrando cordas ou ameaçando com facas.‑ (] que vão fazer com ele?
‑O que farias tu a um assassino que tentou matar o nosso médico?
‑Não me perguntes isso, papá...‑respondeu Pablo baixinho.
‑Então, dá meia volta, entra na igreja, reza e espera. Eu digo‑te quando tudo acabar. Pablo, és um rapaz valente...
Novarra não perdeu tempo com conversas. Virando e revirando a zarabatana nas mãos, observou a seta venenosa e encolheu os ombros, como percorrido por um arrepio. Depois, olhou para Duk, suspenso das mãos de quatro homens. Um fio de sangue escorria‑lhe pelo rosto pálido e balofo. à sua volta, as pessoas gritavam em vários coros:
‑ Enforquem‑no!
‑Fuzilem‑no! Fuzilem‑no!
‑Para a fogueira!
‑Torçam‑lhe o pescoço!
Henry Duk respirava com dificuldade. O pontapé no baixo‑ventre ainda lhe doía, mas já estava suficientemente lúcido para perceber que a sua única hipótese era a misericórdia. Não podia esperar mais.
‑Uma zarabatana‑comentou Novarra.‑Silenciosa, rápida e certeira. Quem podia suspeitar que tínhamos entre nós alguém que sabe matar com uma zarabatana?! Teria sido um homicídio perfeito. Nunca ninguém teria desconfiado de ti, meu gordinho.‑Olhou para o Dr. Mohr e o padre Cristobal. Margarita postara‑se em frente do médico, como se quisesse protegê‑lo com o próprio corpo. Até o ultrajado e humilhado Adolfo Pebas saíra de casa para observar Duk, comprimindo‑se entre a multidão.‑Padre... Doutor... não têm nada que fazer na igreja ou no hospital?‑perguntou o Dr. Novarra friamente.
‑Não!‑respondeu o padre Cristobal.
‑Raios! Quero que desapareça daqui! Talvez tenha alguém para se confessar...?
‑Agora não.
‑Tem sim! Eu! ‑ Pebas avançou. - Quero confessar‑me agora.
‑Daqui a uma hora, meu filho
‑Daqui a uma hora posso estar morto, sabe. Disseram‑nos que podemos falar com Deus em qualquer altura. Portanto, quero falar com Ele. Agora! Já!
‑Muito bem.‑Juntando as mãos: ‑ Então, fala!
‑Aqui?
‑Deus está em toda a parte!
‑E o segredo da confissão?
‑Então diz‑me ao ouvido...
‑Raios, padre, que casmurro! ‑ Ponha‑se a andar para a igreja! quer abençoar este assassino?
‑Se ele quiser...
‑Queres, careca?‑perguntou Novarra sarcasticamente.‑Ainda tens alguma coisa a dizer bem lá do fundo?
‑Ouçam‑me!‑guinchou Duk.‑Primeiro ouçam‑me. Isto foi obra do Christus Revaila.
‑Onde é que está o Christus Revaila?‑berrou Novarra.‑Revaila, avança! Não está aqui? Que estranho! Quem não está aqui, não pode soprar nenhuma zarabatana! Não achas lógico, meu odre?
‑Chamo‑me Duk. Henry Duk. O Revaila mandou‑me...
Novarra cortou‑lhe a frase com um movimento da mão.
‑Onde está o Revaila?
‑Em Penasblancas‑gaguejou Duk.
‑E quem está aqui? Como te chamas?
‑Duk...
‑O Duk baixinho e gordinho está aqui! Com uma zarabataninha! E não era o Revaila que ia soprar, e sim o pequeno Duk! Então, porque havemos de amaldiçoar o Revaila e fazer festinhas ao Duk‑da‑zarabatana? Porquê? Porque só queria ganhar rapidamente uns milhares de pesos, matando um homem? E depois? O que vale um homem nestas paragens?! Claro que a ordem vem dessa bosta do Christus Revaila, disso ninguém tem dúvidas... mas quem pôs a boca na zarabatana? Quem queria matar? Duk, perguntamos‑te...
O careca gordo calou‑se. Tudo nele doía: o baixo‑ventre, o braço, no qual a faca continuava cravada, o coração, que se contraía de medo e horror. De repente, começou a chorar e a soluçar como uma criança, abatendo o seu peso nas mãos dos homens.
‑Não posso dizer nada‑balbuciou.‑Tenham piedade. Por favor, por favor, tenham piedade.
‑Tiveste piedade do doutor? Quanto é que o Revaila te pagou?
‑Piedade...
Novarra olhou em volta.
‑Quem é que alguma vez ouviu esta palavra? - perguntou em voz alta.
‑Ninguém!‑berraram os gunqueros.
‑Eu...‑retorquiu o padre Cristobal, rompendo o silêncio que de repente se fez.
‑Portanto, uma pessoa! ‑ Passou a mão pelos olhos.‑Mas até que nos traduza essa palavra estranha, até que a compreendamos, já o tempo se esgotou. Duk...
Henry Duk ergueu o olhar. O seu rosto gordo estremecia. Com o olhar cintilante, viu o Dr. Novarra entregando a zarabatana com a seta envenenada a um homem que parecia mestiço. O homem assentiu, sopesou a zarabatana na mão e levou‑a aos lábios.
‑Somos justos‑disse Novarra devagar, articulando bem as palavras.‑Somos tão justos que até respeitamos a Bíblia. Olho por olho, dente por dente. Neste caso, seta por seta... Encostem‑no à parede!
‑Não!‑berrou Duk, com os olhos quase saindo‑lhe das órbitas. Caindo de joelhos, abraçou a cabeça com ambas as mãos. O sangue que tinha no braço, no qual a faca continuava cravada, escorreu‑lhe pelo crânio, tingindo‑o de fios vermelhos.‑Não! Juro passar a ser bom.‑Debatendo‑se, deu com os olhos em Cristobal e começou a aproximar‑se dele de joelhos.‑Padre! Ajude‑me!‑choramingou, juntando as mãos e endireitando‑se, como numa súplica. ‑ Padre, proteja‑me, por amor de Deus! Não podem matar‑me assim...
Dois homens afastaram Duk de Cristobal e arrastaram‑no para a parede do hospital. O careca soltou berros estridentes, fincou as pernas gordas no chão, deixou‑se cair... mas não lhe serviu de nada: os homens puxaram‑no, atiraram‑no contra a parede e recuaram. Duk ficou enroscado no solo rochoso, chorando, sacudido pelo medo da morte, mas acreditando que ninguém lhe faria nada enquanto continuasse caído e que a seta só seria disparada quando se endireitasse. Por isso, esticou‑se, deitou‑se de barriga para baixo e comprimiu o rosto contra o chão.
Novarra fez um gesto de cabeça para o mestiço. Antes de o padre Cristobal poder fazer fosse o que fosse, Adolfo Pebas pôs‑se à sua frente, qual bastião, e o mestiço avançou para Henry Duk, levando a zarabatana aos lábios.
‑Duk!‑chamou Novarra em voz dura.
O careca levantou a cabeça. De boca aberta, fitou a zarabatana, viu a seta saindo dela como um relâmpago sibilante e sentiu na garganta a picada quase indolor. Gorgolejando, virou‑se de costas e arrancou a seta do pescoço com as duas mãos, mas ao fazer este gesto sentiu a paralisia a atacá‑lo e ouviu o "trovão silencioso" dentro de si. O sangue rumorejou‑lhe como uma catarata gigante e a torrente engrossou e chegou‑lhe à cabeça; uma cabeça que não era mais do que um infinito tambor, que rufava ao ritmo da morte.
Esticou‑se todo, como se vencido por uma fadiga libertadora; os seus olhos esbugalhados, nadando num brilho receoso, procuraram a luz. Assim ficou, com o braço dobrado, de repente imóvel, rígido, meio levantado por um último estremeção, como um peixe procurando respirar.
O mestiço debruçou‑se sobre ele, pousou‑lhe a zarabatana no peito e recuou. Em volta, os homens estavam calados; só as cento e setenta mulas escoiceavam, zurravam e batiam com as patas no chão pedregoso.
O Dr. Novarra aproximou‑se do Dr. Mohr e do padre Cristobal.
‑Quer verificar o óbito, doutor?‑perguntou friamente.
‑Não!
‑E o senhor, padre? Quer fazer alguma oração?
‑Mais tarde... quando se for embora...
‑Podem pensar de mim o que quiserem. Estou‑me nas tintas! Quem quer viver e sobreviver aqui tem de se reger por outras leis. Os seus Dez Mandamentos de Moisés estão ultrapassados, padre. Consegue expulsar a fome dum leão esfomeado ao pregar‑lhe o amor ao próximo? Não me diga: "Mas estes são seres humanos." A única coisa que têm em comum com os seres humanos é a aparência; mais nada! O Henry Duk queria matar e foi castigado com a sua própria arma! Chama‑se a isto uma consequência' padre, uma justiça lógica. É humana...? Alguma vez o ser humano demonstrou humanidade?! Do machado de pedra à bomba atómica, o número dos mortos aumenta... Apesar da humanidade! Aí, até somos mais honestos: cada um sabe muito bem o que pode esperar do outro! Pronto, e agora vá queixar‑se a Deus! E o senhor, doutor, ponha os arrepios de lado e vá tratar do hospital. A nossa vida é muito curta e preciosa para perdermos um minuto que seja a chorar uma criatura como este Henry Duk...
Deixando o Dr. Mohr e o padre Cristobal, gesticulou e berrou para a multidão:
‑Vamos continuar! Tem de estar tudo descarregado até à noite!
Mais ninguém se preocupava com Henry Duk, o morto.
O padre Cristobal acenou a Miguel para que se aproximasse.
‑Trá‑lo para a igreja.
‑Eu?‑Miguel abanou o rosto achatado.‑Não toco nele. Veneno! Sei lá se o veneno não lhe chegou à pele!
O padre Cristobal lançou um olhar de interrogação ao Dr. Mohr, que assentiu:
‑Eu ajudo‑te. Para a igreja?
‑Sim. Invocou Deus nos seus últimos minutos. É isso que interessa.
Pegando no rígido morto pelas pernas e braços, levaram‑no dali. Todos aqueles por quem passavam viravam‑lhes as costas.
Na igreja, que ainda não estava pronta e que apenas tinha uma singela cruz de madeira no altar, encontrava‑ se ajoelhado Pablo Zapiga, o jovem que salvara a vida ao Dr. Mohr e que tapou os olhos com a mão boa quando o padre e o médico passaram por ele, carregando o cadáver. De repente, Adolfo Pebas apareceu ao lado de Pab lo , observando‑os a pousar o morto em frente do crucifixo. O padre Cristobal virou‑se.
‑Fora!‑ordenou rudemente a Pebas.
‑Quero confessar‑me, senhor padre...
‑ Tu meteste‑te no meu caminho. Impediste‑me de salvar o Duk.
‑É por isso que quero confessar‑me. E também quero confessar‑me por este jovem que espetou a faca. Ele não sabe o que é a confissão, nunca lhe ensinaram... mas se não tivesse dado a facada, o Henry Duk ainda estaria vivo. O morto seria o nosso médico, atingido por uma seta envenenada. Mas parece que teria sido melhor do que matar o Duk. Não percebo nada, padre. É por isso que quero confessar‑me e ouvir a palavra de Deus. Um assassino assassinado tem mais valor do que uma vítima resgatada? Tem de me explicar isso, padre...
‑Ele ainda não tinha assassinado ninguém!‑retorquiu Cristobal em voz alta.
‑Por uma questão de segundos. Já tinha as bochechas cheias de ar quando a faca o atingiu. Para o Duk, o doutor Morero já estava morto! Dever‑se‑ia tê‑lo deixado soprar?
‑Adolfo! Que pergunta!‑O padre aproximou‑se. Pablo, com o rosto ainda tapado pela mão boa, chorava baixinho.‑O que queres ainda daqui?
‑Quero dizer a Deus que evitei que o Duk fosse salvo. Por isso, sou cúmplice da sua morte. Mas não me arrependo. Até estou orgulhoso. O mundo tem um animal a menos. O que diz Deus disto?
‑Está triste, Pebas‑replicou Cristobal vagarosamente.‑Triste por todos os homens. Mas perdoa‑te, como perdoa a todos, até a este morto que está à frente da cruz. Compreendes?
‑Não!‑Pebas virou‑se para partir.‑Quem com ferro mata com ferro morre. E quem pensa de outra maneira não tem nada a fazer nas montanhas de Penasblancas. Padre, vai pregar para bancos vazios...
Pegando suavemente no cotovelo de Pablo, levantou‑o, passou‑lhe o braço pelo ombro e conduziu‑o para fora da igreja.
O Dr. Mohr fitou o padre Cristobal com uma expressão séria quando este regressou ao altar.
‑Vamos ter muitas dificuldades, Cris‑observou evitando olhar para o morto, ao qual o veneno tingira o rosto de amarelo‑claro.‑Ainda não percebi bem se o que pensamos é demasiadamente normal ou anormal. Em todo o caso, vivemos num mundo para o qual ainda não temos receitas.
à noitinha, depois de acesas grandes fogueiras e de as mulas terem bebido e comido, o Dr. Novarra entrou na igreja.
O padre Cristobal e o Dr. Mohr achavam‑se sentados num banco articulado, ao lado da cruz de madeira. O corpo de Henry Duk fora enterrado havia uma hora. Juan Zapiga fora buscá‑lo com um vizinho muito carrancudo e prometera sepultá‑lo. Mas não o fizera. Tinham arrastado o corpo para uma escarpa, atirando‑o lá para baixo. Os abutres e as hienas cuidariam de que não restasse nada de Duk senão uns quantos ossos.
‑ Pela nossa parte, o seu palácio está pronto - anunciou Novarra.‑Mas lá quanto à maneira de dispor as camas, isso é consigo, doutor. O gerador também está a funcionar. Se quiser, pode inaugurar agora o hospital, com o padre a aspergir a água benta. Ou será que os senhores ainda estão zangados?‑Fazendo um gesto largo com o braço, prosseguiu:‑Devia ir ver, doutor Morero. Don Camargo pensou em tudo, até num elegante uniforme de enfermeira, com avental e touquinha. Aqui! Mas está certo: com o uniforme vestido, a sua Margarita parece um anjo branco. Permite‑me que o convide a vir comigo, doutor? O seu pessoal espera o chefe...
Capitulo 11
Foi um espectáculo irreal o que se deparou ao Dr. Mohr, quando saiu da igreja e se dirigiu ao hospital. Os gunqueros, que formavam uma ala, desataram a bater palmas como se o Dr. Mohr fosse uma estrela célebre que acabasse de aparecer na ribalta.
De resto, era isso mesmo. Uma peça macabra, uma comédia comovente, uma visão opressiva: à frente do edificio por acabar, ainda sem portas nem vidros nas janelas, encontravam‑se duas mulheres envergando uniformes de enfermeira, com saias azuis compridas, aventais engomados e pequenas toucas nos cabelos pretos. Esperavam à porta do hospital, de flores nas mãos, e todos admiravam a mudança operada em Maria Dolores e Margarita, cuja dignidade despertava o respeito.
No meio da sala de operações, a maior divisão do edificio, que ocupava toda a sua largura, encontrava‑se a mesa de operações, já montada, saltando ainda mais à vista por ser o único objecto presente. Ao seu lado, o Dr. Aldous Simpson constituía uma nova guarda de honra. Igualmente de bata branca, pendiam‑lhe do bolso os tubos de borracha dum estetoscópio. Enquanto o Dr. Mohr percorria lentamente a ala aberta pelos pesquisadores, o entroncado Miguel ultrapassou‑o em passo de corrida, desapareceu dentro do hospital e voltou a surgir dali a pouco, todo sorridente, ao lado do Dr. Simpson, envergando um avental de borracha até ao chão, como se fosse patinhar no sangue e fazer malabarismos com os membros amputados.
‑Vocês são malucos‑disse o Dr. Mohr com a garganta apertada.‑Doidos varridos!‑Pegando nos ramos de flores de Maria Dolores e Margarita, beijou‑lhes as faces e entrou no hospital, ovacionado pelos gunqueros. à entrada da sala de operações, via‑se um letreiro na parede, pregado à madeira com pregos grossos. O Dr. Simpson escrevera nele a giz:
Plano de Operações: sexta‑feira
1) Ferimento de bala séptico do braço esquerdo
2) Carbúnculos no pescoço e na metade esquerda das costas
3) Luxação da articulação umeral esquerda
4) Banco cirúrgico.
O Dr. Mohr ficou parado. Miguel sorriu ainda mais e alisou o avental de borracha vermelho‑acastanhado.
‑Bom dia, chefe!‑saudou jovialmente o Dr. Simpson.
‑ Aldi, isto é ideia sua?
‑Trabalho de equipa, colega. A nossa vida, como sabe, é tão sem graça, que não perdemos uma oportunidade para fazer uma festa. E se a inauguração dum hospital, o primeiro destas paragens desde que o mundo é mundo, não é motivo para festejar, então não vejo mais nenhum que o seja!
A comoção apoderou‑se do Dr. Mohr, que olhou em volta da sala de operações. Os caixotes encontravam‑se encostados às paredes, abertos mas ainda por desempacotar. Havia também quatro armários desmontados de esmalte branco: as estantes dos instrumentos e dos medicamentos. Na divisão contigua, achavam‑se empilhados os pesados caixotes contendo o aparelho de raios X. A máquina de anestesias, especialmente sensível, estava tapada com uma lona.
O Dr. Novarra, que ficara no átrio, levantou a mão. No mesmo momento, ouviu‑se o motor do gerador. No tecto da sala de operações, uma pequena lâmpada começou a bruxulear e tremeluzir até se acender completamente, anunciando uma nova era.
Em frente do hospital, a multidão bateu novamente palmas. Emocionado, o Dr. Simpson passou a mão pelo rosto.
‑É como a segunda criação, colega. Luz! Luz eléctrica! Apetece‑me pôr‑me debaixo dela e deixá‑la inundar‑me como num duche! E você fica para aí sem dizer nada..
‑ Vamos começar!‑O Dr. Mohr respirou profundamente. Miguel desatou a correr, arrancou uma bata branca da embalagem, desdobrou‑a e estendeu‑lha. O Dr. Mohr vestiu‑a e ouviu um carrinho sendo empurrado atrás de si.
Margarita aproximava‑se com um arsenal de instrumentos, todos ainda esterilizados e metidos em sacos de plástico, tal como haviam sido empacotados. Parando em frente da mesa de operações, esboçou um sorriso de madona.
‑Não sei do que precisas‑disse.‑Peguei só numa peça de cada um. Fiz mal?
Ele abanou a cabeça, comovido pela azáfama desajeitada que o rodeava. Era um caos de caixas e caixotes. Cada vez mais eram transportados lá de fora e abertos, tampas de madeira levantadas... e entre estes montes de material, os doentes, pacientemente sentados na borda dos caixotes ou em sacos, esperavam pelo seu médico.
‑Aldi, vamos!‑disse o Dr. Mohr.‑Estou a ver ali atrás um caixote com elásticos e fitas. Não! Prepare os instrumentos para o ferimento a tiro. Eu trato do caixote com o Miguel. Onde ele põe a mão, não há touro que o faça arredar pé...
A altas horas da noite, o Dr. Mohr sentou‑se num banco junto da mesa de operações e, cheio de olheiras, pôs‑se a observar Miguel varrendo a sala com uma vassoura de giesta, ultrajando quaisquer pretensões de higiene e esterilização. Sentia‑se morto de cansaço. Maria Dolores fizera‑lhe um chá bem forte, mas nem a aguardente que lhe misturara conseguira arrebitá‑lo. Atrás dele, Margarita massajava‑lhe os músculos do pescoço, um remédio caseiro que costumava ajudar mas que, no estado de esgotamento em que se encontrava, era apenas uma carícia.
O Dr. Simpson, que começara a fazer um ficheiro das operações, além do dos doentes, sentado a uma mesinha de tampo de metal esmaltado, espreguiçou‑se com um suspiro profundo.
‑Tivemos hoje quarenta e nove acidentes no banco cirúrgico. Amanhã teremos oitenta e depois de amanhã cem ou mais. Chefe, vamos dar cabo de nós. Não é possível! Daqui a uns dias, haverá verdadeiras excursões, transportando os doentes nas mulas ou arrastando‑os de costas, e deixando‑os à nossa porta quando dissermos: "Fechado. Acabou! Precisamos de dez médicos."
‑Nessa altura, teremos um intervalo.‑O Dr. Mohr apertou as mãos de Margarita. "Descansar... preciso de descansar", pensou. "Apetecia‑me dormir... um dia inteiro. Tapar os olhos e os ouvidos, não ouvir nem ver mais nada... só dormir..." ‑ Só serão atendidos os casos verdadeiramente urgentes...
‑Cada pessoa que aqui vem considera que a sua doença precisa de tratamento urgente. Experimente dizer‑lhes: "Vai para casa, pá. Não estás assim tão doente a ponto de precisar de ser tratado. Lava a barriga com água fria que isso passa!" Sabe o que acontece a seguir?
‑Uma grande algazarra.
‑Se fosse só isso!‑Simpson passou as mãos pelo rosto marcado pelo cansaço.‑Segundo o temperamento próprio, uns vão cuspir‑lhe, outros dar‑lhe um pontapé no traseiro e os que estiverem mais furiosos entram‑lhe pelo hospital dentro, apontam‑lhe a pistola e obrigam‑no a tratá‑los. Depois, se nada disto der resultado, partem‑lhe tudo para que os outros também não possam ser ajudados. Aqui, ninguém reage racionalmente! A montanha, as pedrinhas verdes, deram‑nos cabo dos miolos! Ninguém acredita, mas é assim mesmo! Quem passa meses ou anos inteiros nas minas a escavar rocha, fica com a racionalidade dum martelo e dum escopro... mais não!
‑Então, atendemos as pessoas por senhas.
‑Oh, meu Deus! Pior ainda!‑Juntando as mãos, prosseguiu:‑Imagine a situação: um indivíduo recebe a senha com o número trezentos e setenta e oito, e sabe que tem de esperar cinco dias. São cinco dias perdidos. Nestes cinco dias, talvez encontrasse um veio de esmeraldas e ficasse milionário. É uma coisa em que todos acreditam! E ali à frente está outro indivíduo que tem o número vinte e sete e vai ser atendido já amanhã. Um fracalhote atacado pela tísica. O que se passará, chefe? O número trezentos e setenta e oito vai matar o número vinte e sete sem sequer pestanejar, de modo a apoderar‑se da senha vinte e sete! É o que cada um fará a quem esteja à sua frente. Teremos uma carnificina à porta, e todos se acharão dentro da razão! Moral? Escrúpulos? O que é isso? Marcas de tabaco?!
‑Vê alguma solução, Simpson?
‑Precisamos de mais médicos!
‑E onde vamos arranjá‑los?
‑Fale com o seu protector Don Camargo. Se encontrou um idiota como você, é possível que arranje mais.
‑Obrigado!‑O Dr. Mohr levantou‑se e passou o braço pelo ombro de Margarita.‑Vou dormir. Já não estou capaz de fazer nada, muito menos atender a carnificinas! O que vai fazer ainda, Aldi?
‑Continuar a desempacotar. Amanhã temos um lindo fleimão da articulação umeral esquerda. Vamos ter de escavar bem fundo. Já não vai lá com medicamentos. O rapaz vem para a mesa às nove horas...
‑ Simpson, sou uma pessoa perfeitamente em forma e hoje atingi o meu limite. E você, que é um destroço, não se vai abaixo. Como consegue?
‑Vieram também doze caixotes de uisque‑retorquiu alegremente o Dr. Simpson.
‑Aldi!‑Fitando o médico exausto:‑Quanto é que já bebeu?
‑Precisamente meia garrafa. Deixe‑se de resmunguices, chefe! Nenhum motor trabalha sem combustível nem óleo! Pense em mim como um motor, e verá que tenho razão!
‑Se as suas mãos tremerem durante a operação, mando‑o para o diabo!
‑Vão tremer mas é se eu não beber!‑O Dr. Simpson bocejou, abrindo muito a boca.‑Pronto! A sua tagarelice contra o álcool faz‑me sono! Vai ver: amanhã até pareço um Rastelli a fazer malabarismos com o estojo cirúrgico! Ele conseguia pôr sete bolas no ar e eu vou fazer saltar dez molas.
O Dr. Mohr estava demasiadamente exausto para continuar a discutir. Por isso, limitou‑se a acenar e saiu da sala de operações amparado por Margarita.
A sua habitação ainda não estava pronta. Continuava a dormir numa caverna contigua à casa dos Pebas mas, a partir daquele dia, Margarita ficava com ele, embora não na mesma cama. No entanto, mostrara que estava do lado dele, que lhe pertencia. E quando estendia a mão, conseguia tocar‑lhe, o que lhe chegava. Era um grande desafio. A vontade de ser adulta. Uma mulher...
Algures durante a noite, Adolfo Pebas parou à sua frente, contemplando os dois seres adormecidos. Depois, traçou uma cruz sobre a filha, suspirou baixinho e regressou à sua grande caverna nas pontas dos pés.
Durante dois dias, aconteceu precisamente o que o Dr. Simpson havia profetizado: quando, com a rapidez do raio, se espalhou que o hospital estava aberto, formou‑se uma verdadeira excursão.
Algumas das doenças apresentadas ao Dr. Mohr eram inconcebíveis.
‑Uma clínica universitária podia viver delas - disse ao Dr. Simpson.‑Temos de nos pôr em condições o mais rapidamente possível.
Os homens do burgo continuavam a desempacotar os caixotes, aparafusavam as camas, puxavam electricidade do gerador para a sala onde ia ficar o aparelho de raios X e montavam a máquina de anestesias segundo as instruções que a acompanhavam, enquanto os dois médicos examinavam, davam injecções, faziam ligaduras ou operavam, ainda só com éter, cujo cheiro adocicado e desagradável dançava sobre todo o planalto e acima da multidão que esperava em frente do hospital.
Na verdade, Novarra não exagerara ao afirmar que entre os homens do burgo havia gente de todas as profissões: electricistas, montadores, até dois engenheiros, que se ocuparam do aparelho de raios X como se nunca tivessem feito mais nada na vida, marceneiros, canalizadores e mesmo um antigo técnico radiologista, que se encarregou da máquina de anestesias e a pôs realmente a funcionar.
O Dr. Mohr aproveitava os poucos intervalos que tinha para organizar a farmácia e o banco e desempacotar os medicamentos, que depois agrupava. De vez em quando, o padre Cristobal aparecia a dar uma mãozinha: arrumava os armários, transportava colchões e ajudava a montar as janelas.
‑Mais uma semana para o hospital e a igreja ficarem arrumados, Pete‑disse, esfregando as mãos.
‑E eu também.‑O Dr. Mohr fumava nervosamente um cigarro. Encontrava‑se no consultório, onde já tinham colocado o divã articulado com um oleado por cima, uma secretária, dois armários, uma balança, um aparelho para medir a altura e um medidor de tensão muito moderno. Faltavam ainda as portas e as janelas. As paredes fediam a mordente para madeira.‑Tens de me ajudar, Cris...
‑Diz‑me o que queres que faça.
‑A partir de amanhã, tenho de distribuir senhas. O Simpson acha que vai ser uma matança, porque toda a gente vai querer o número mais baixo. Mas não pode ser de outra forma. Se eles já discutem e bulham sobre quem chegou primeiro... Tens de pôr ordem neles. Eu não posso preocupar‑me ainda mais com isso.
‑A sala de espera vai passar a ser na igreja‑replicou o padre Cristobal, muito a sério. ‑ Ninguém terá coragem de matar à frente da cruz.
‑Esperemos que não.‑Pisou o cigarro.‑O Thomas Beckett foi morto no altar...
No terceiro dia, fez‑se silêncio. O planalto parecia varrido e esvaziado duma ponta à outra. Nenhum doente, ninguém à espera, nenhum ferido. Os homens do burgo também não se viam. Só apareceu um gunquero montado numa mula encharcada em suor, o qual arrancou violentamente o Dr. Mohr ao sono.
‑Vêm aí!‑gritou o pesquisador.‑Devem chegar daqui a quatro horas. Não conseguimos detê‑los. Impossível! É um batalhão inteiro...
O Dr. Mohr afastou o cobertor e levantou‑se dum salto:
‑ Quem é que vem aí?‑gritou.
‑Soldados! De Muzo! Com canhões e metralhadoras pesadas! Marcham como se fossem para a guerra: uma patrulha, uma frente com muitos homens e, depois. o resto. Que grande merda! E graças a si! Bem podemos esconder‑nos como ratos...
Cuspindo no chão, girou nos calcanhares e desatou a correr. Pouco depois, o Dr. Mohr ouviu a mula afastando‑se a galope.
O Dr. Simpson já estava de partida quando Mohr se precipitou lá para fora, meio despido. Carregara a tenda e o lança‑minas em três mulas.
‑O que é isso, Aldi? Ninguém vai fazer‑lhe nada!
‑E isto aqui?‑batendo no cano do lança‑minas: ‑E o meu nome? Ia ser uma festa se apanhassem o velho Simpson! Estou em todas as listas, chefe!
‑Para onde vai?
‑Para o burgo, onde já declararam o estado de guerra.
‑Isso é um disparate! Não há hipóteses...
‑É verdade! Os soldados vão partir os dentes todos! Se tentarem atacar o burgo... Santo Deus, coitados! Vão direitinhos ao matadouro.
Amarrando melhor os seus haveres nas mulas, apontou para o Dr. Novarra, que surgia na curva, acompanhado por dois homens de aspecto mal ‑encarado . O Dr. Mohr afastou o cabelo da testa e foi ao seu encontro. A madrugada ainda estava pálida. Um céu que o sol ainda não tingia. A luz banhava a montanha como se filtrada por um vidro espesso e cinzento.
‑O que eu temia‑afirmou sombriamente o Dr. Novarra.‑Uma construção pacífica... era bom de mais. Agora, os militares vêm ajudá‑lo a si e perseguir‑nos a nós! Vai correr muito sangue...
‑Eu impeço‑o!
‑O senhor, doutor? É porque não conhece a ambição dos oficiais, que tem dois aspectos distintos. Primeiro, a fama de prender ou matar o maior número possível de fora‑de‑lei e, segundo, os despojos em esmeraldas, que naturalmente não constarão de nenhum relatório e que irão parar directamente aos bolsos de cada um! Um estímulo duplo: pilhagem sob a protecção do Estado! É coisa que não consegue atingir com a sua nobreza médica! Vão dar‑lhe um puxão de orelhas e pô‑lo a um canto. Sabe de algum civil que tenha conseguido deter oficiais em marcha?! Nunca aconteceu com nenhum exército... como quer que seja possível aqui na cordilheira?‑Estendendo a mão ao Dr. Mohr: ‑ É pena, doutor. Ambos tinhamos a melhor das intenções. Agora vai outra vez tudo por água abaixo. Fique bem...
‑ Ramon, isso parece uma despedida...
‑E é! Corram as coisas como correrem, tem de regressar a Muzo com os militares. Não pode continuar aqui. Vão culpá‑lo por cada gota de sangue que for derramada! Foi o senhor que atraiu os militares. Não conscientemente, mas só porque veio para aqui. Não voltaremos a ver‑nos. E se persistir nesse disparate de ficar, não posso continuar a protegê‑lo!
‑Não lhe aperto a mão, Novarra ‑ retorquiu o Dr. Mohr em voz rouca.‑Tornámo‑nos amigos! Que teria eu conseguido sem si? Nem uma parede deste hospital...
‑Talvez tivesse sido melhor. Acredite em mim, doutor, é melhor ir com os militares. Também é esta a opinião do José Bandilla.
‑Impossível.
‑Se fosse sincero... esqueci‑me de acrescentar. O senhor pô‑lo novamente de pé. Vai curá‑lo. E depois? O Bandilla sabe muito bem quais são as suas intenções... portanto, vai liquidá‑lo logo que lhe disser que já está bom. Gratidão? Que grande utopia a sua!‑Estendendo novamente a mão:‑Do seu ponto de vista ético, a sua ajuda é um acto natural. Na realidade, está a curar o seu assassino! Sei que nunca o há‑de entender, que nada disto tem a ver com a sua imagem da humanidade. Por isso, quando os militares tiverem deixado aqui o seu rasto de sangue, vá‑se embora com eles!
‑E você?
‑Pusemos o burgo em estado de alerta. É inexpugnável. Só podem vencer‑nos pela fome. Mas os soldados não têm tempo para isso. Vamos sobreviver. Quanto aos outros gunqueros, esses pobres diabos que vivem nos seus casebres e cavernas... Vão amaldiçoá‑lo, doutor...
‑Não fui eu que chamei os soldados!‑protestou o Dr. Mohr.
‑Nós sabemos. Mas vêm cá por sua causa. Onde está a diferença? O efeito é o mesmo.‑Fazendo um gesto amplo com o braço, indagou: ‑Onde estão os seus doentes? Tudo vazio! Precisa de mais argumentos?... Que a vida lhe corra bem!
‑Até à vista, Novarra.
‑Espero que não.
O Dr. Novarra girou nos calcanhares e dirigiu‑se aos dois homens que o esperavam, um pouco afastados. Ainda se virou mais uma vez. O Dr. Mohr continuava de pé onde o deixara, de camisa, calças e cabelo desgrenhado: um monumento solitário ao maldito amor ao próximo. Imóvel no céu, o sol agora vermelho‑dourado da manhã envolvia‑o num brilho irreal.
‑Não se esqueça de nós!‑gritou Novarra com um nó na garganta.‑Apesar de tudo, gostei de o conhecer...
O Dr. Mohr esperou pelos militares no seu hospital inacabado. Andando de cama em cama, tentava tranquilizar os doentes e os que tinham sido operados havia pouco tempo e não podiam fugir. Os ajudantes tinham desaparecido todos logo que Lhes chegara a noticia da aproximação do batalhão.
‑Ninguém vos fará nada!‑afirmou aos acamados. ‑Respondo pessoalmente por isso. Ninguém vai prender‑vos. Eu fico aqui convosco.
‑Dão cabo de si com toda a facilidade, doutor‑ retorquiu um homem idoso, com uma úlcera aberta no estômago.‑E a nós, dão‑nos um tiro na cama.
O padre Cristobal, alertado por Miguel, que se despedira e partira montado na mula, tentava igualmente espalhar a esperança e a fé no bem. Para dar mais ênfase ao que dizia, pendurara a pistola automática ao pescoço. Era uma visão bizarra: um homem de sotaina, com o solidéu na cabeça e a estola pelos ombros, rezava junto às camas com as mãos unidas por cima duma pistola automática.
Margarita e Maria Dolores encontravam‑se na sala de operações, envergando as suas fardas de enfermeira. Adolfo Pebas pusera o avental de borracha de Miguel.
‑Tenta!‑dissera‑lhe Miguel.‑Talvez te ajude. Comigo está fora de questão. Conhecem‑me bem de mais. Eu volto quando as coisas acalmarem.
Duas horas mais tarde, ouviram‑se no planalto os primeiros tiros à distância. Depois, o ar trepidou. Um helicóptero sobrevoou a região, afastou‑se, regressou e pôs‑se a descrever círculos sobre o hospital e a igreja. O padre Cristobal viu claramente o piloto falando ao microfone da carlinga de vidro, guiando os soldados para o planalto.
O major Luis Gomez, que vinha com os batedores da frente, chegou ao desfiladeiro solitário e começou a subir o barranco. Ao ver a manada de mais de cento e setenta mulas pastando nas redondezas, respirou de alívio. "Portanto, a encomenda chegou", pensou ele. "Os meus receios eram infundados. É a sorte deles! Se não tivesse chegado, ia encostar à parede todos aqueles a quem encontrasse nem que fosse só com uma seringa!"
O Dr. Mohr e o padre Cristobal estavam na enfermaria quando o major Gomez entrou no hospital. Não o admirava nada que houvesse um silêncio de morte à sua volta. Fosse ele onde fosse, era sempre assim. Ao contrário dos seus antecessores, tinha a fama de ser incorruptível, quer tratando‑se de esmeraldas quer de mulheres, o que esvaziava os sítios por onde passava.
Gomez deu ordens para que vigiassem o planalto, pôs duas metralhadoras em posição e foi ao encontro do alvo da sua acção militar com as mãos estendidas e um grande sorriso no rosto.
‑Amigos!‑exclamou, entusiasmado, quando viu
O Dr. Mohr e o padre.‑Que bom ver‑vos depois de tanto tempo! Meu Deus, o que aconteceu nestas semanas! Vamos festejar!
Correndo para eles, abraçou‑os, pespegou‑lhes um beijo nas faces e deu‑lhes palmadinhas nas costas. Depois, virou‑se, observou a longa fila de camas e bateu as palmas.
‑Que galeria de bandidos! Ao todo, pelo menos uns quinhentos anos de cadeia! É raro ver‑se uma coisa assim! Padre, o que é isso? Aqui tem de se pregar a palavra de Deus com a pistola automática? Estes gajos são assim? Admiro‑os aos dois...
‑São doentes, major! ‑ explicou o Dr. Mohr. O alegre reencontro deixava‑o respirar e acalentar novas esperanças.‑São invioláveis...
O major Gomez espetou o queixo. Brilhou‑lhe nos olhos a conhecida expressão do militar.
‑Tenho de os interrogar! Está aqui alguém do burgo?
- Estou obrigado ao segredo médico, maior.
‑Por isso vim aqui! Vou atacar o burgo e acabar com essas pústulas!‑Ouvia‑se lá fora o grosso do batalhão a marchar. Centenas de botas batendo no chão. Vozes de comando no ar. Mulas zurrando.
‑Considero‑o meu hóspede, major‑disse tranquilamente o Dr. Mohr.‑Estamos todos aqui para receber um velho amigo e não um inimigo que quer arrasar tudo. Peço‑lhe que haja paz.
A mesa estava posta no consultório do Dr. Mohr. Adolfo Pebas juntara três mesinhas de metal, tapara‑as com uma colcha e dispusera em cima a louça que Don Camargo mandara: travessas de cerâmica, pratos rasos e canecas. Um borrego assava na fogueira feita em frente da janela ainda por colocar. Um cheirinho apetitoso espaLhou‑se por todo o hospital quando o Dr. Mohr escancarou a porta, que já tinha um dia de vida.
O major Gomez estacou, pasmado, ao dar com os olhos nas duas mulheres vestidas de enfermeiras. Pebas, com o seu avental de borracha, regava o assado debruçado da janela.
‑Estarei a sonhar?‑perguntou Gomez.‑Amigos, o que é isto?! Enfermeiras! Enfermeiras a sério! Não acredito! Enfermeira Maria Dolores e enfermeira Margarita...
Como galante descendente de espanhóis, Gomez cumprimentou as duas mulheres com um beijo na mão, sem fazer ideia de quem eram as pessoas a quem concedia tal honra. Pebas, postado à janela, observava a cena tão embasbacado que até se esqueceu de que devia dar o menos possível nas vistas. Um oficial beijando a mão de Maria Dolores Pebas! Se fosse contar a alguém, passaria por um mentiroso dos mais descarados. Por patranha tão desavergonhada, até podia levar uma sova. Mas era verdade! Maria Dolores até sorriu, como se nunca na vida tivessem feito outra coisa senão beijar‑lhe a mão.
‑Também foi Don Camargo que as exportou? ‑ inquiriu Gomez.
‑Não, aprenderam comigo, major.
‑E isto tudo em tão pouco tempo? Doutor, não se imiscua nos assuntos de Deus, fazendo de criador! Deixe ao padre alguma coisa para fazer!‑Riu estrondosamente, sentou‑se à mesa e tornou a calar‑se, porque o helicóptero voltou a passar por cima deles.
Um jovem tenente entrou e bateu os calcanhares.
‑O batalhão já chegou todo!‑comunicou.
Gomez assentiu.
‑Montem o acampamento! Sentinelas em volta. Patrulhas em todas as direcções. Atenção. Reunião de oficiais daqui a uma hora.
O tenente repetiu as ordens e saiu. O major Gomez correu o olhar para o Dr. Mohr, esperando uma palavra de reconhecimento.
‑Satisfeito? Também poderia tê‑los mandado avançar sobre o burgo...
‑Sem os homens do burgo, eu teria fracassado redondamente, major. Sei isso agora. Não é com palavras bonitas que se abatem árvores ou se quebram pedras. O hospital e a igreja são obra deles.
‑É noticia que até a Muzo chegou. Ficámos todos de boca aberta. O hospital ainda vá lá, visto que também lucram com ele. Mas a igreja? O que é que esses bandidos querem com a palavra de Deus?
‑ Dignidade‑retorquiu o padre Cristobal.‑Nunca tive uma comunidade com tanta fé como aqui na montanha...
Pebas debruçou‑se da janela, cortou o borrego, provou‑o e anunciou, disfarçando a voz, como se a sua verdadeira voz fosse conhecida e equivalesse a um mandado de captura.
‑O borrego está pronto...
O padre Cristobal sentou‑se à mesa e pousou a pistola automática ao lado, à laia de talher. Gomez olhou de soslaio e viu que a arma estava pronta a disparar.
‑Padre, parece que, além do borrego, não confia em mais nada‑observou em tom azedo.‑Eles são realmente assim tão empedernidos que andam a matar‑se uns aos outros? Ou será que a montanha transformou a água benta numa pistola automática?
‑Pois é, major.‑Rindo amistosamente:‑Há situações em que Deus se lembra de ter derrubado os muros de Jericó com um sopro.
‑Fez bem.‑Observou com água na boca o pedaço de borrego que Margarita Lhe servia.‑Soprou a trombeta e pronto! Oxalá pudéssemos entrar assim no burgo!‑ Cortou um bocado do assado, mastigou com vontade e assentiu, satisfeito, quando Pebas lhe ofereceu vinho. ‑ Doutor, é verdade o que se diz por aí? Que o José Bandilla está escondido no burgo?
‑Não conheço nenhum Bandilla.‑O Dr. Mohr recebeu o seu pedaço de borrego assado, que cortou. "Como é que ele sabe?", cismou. "Como é que a informação passou para o exterior? Quem será o traidor? O próprio Novarra? Com medo dum Bandilla com saúde? Não é lógico, porque isso levaria à sua própria derrocada. Mas então quem traiu o burgo?"
Gomez mastigava com a boca cheia.
‑Não conhece o Bandilla? E o padre também não? Estiveram a dormir nos últimos anos?
‑Eu estive no estrangeiro‑respondeu o Dr. Mohr.
‑É verdade. Já me esquecia. E o senhor, padre? No convento só se ouvem os sinos? De momento, o Bandilla é o inimigo público número um! De repente, desapareceu sem deixar rasto.‑Fitou o Dr. Mohr com um olhar inquiridor.‑Não sabe mesmo nada, Pete?
‑Os homens do burgo construíram‑me o hospital, mas não discutiram política comigo.
‑Não esteve no burgo?
‑Não! Não somos amigos a esse ponto. Os homens vinham de manhã e partiam à noite. Nem sequer sei um único nome deles.
‑Uma corja, é o que lhe digo. Uma corja! Estive a ler os relatórios dos meus antecessores. De pôr os cabelos em pé! Não me admirava nada que o Bandilla estivesse mesmo lá escondido. De certeza que não arranjava melhor refúgio.
à noite, as fogueiras do acampamento ardiam no planalto, na escarpa e no desfiladeiro. O padre Cristobal rezou uma missa para os soldados. Dois cabos socorristas ofereceram‑se para acólitos e o velho Pepe Garcia, quase cego, sentou‑se atrás do altar com uma gaita de beiços, tocando os hinos religiosos que ainda tinha na memória. Pelos vistos, esta já era fraca, pois os hinos pareciam mais música de dança.
Pebas esgueirou‑se para o burgo ao abrigo da escuridão, evitando as sentinelas e as patrulhas. A meia altura dos penedos, num carreiro que mal tinha meio metro de largura, encontrou as sentinelas do burgo.
‑Se for verdade...‑começou Novarra, lançando a Pebas um olhar de poucos amigos. Saíra do primeiro anel defensivo e estava sentado com Pebas em cima dum montão de pedras.‑Se for mesmo verdade...
‑Podes rachar‑me ao meio...
‑Normalmente, as pessoas só dizem bem dos genros, mesmo quando eles cheiram a merda!
‑Porque havia de o fazer? Achas que é razão para vir aqui e correr perigo de vida?
‑É lógico.‑Afagou a barba com os dedos esticados.‑Vamos lá recapitular: o major Gomez não vai atacar‑nos. Amanhã, retirará com os seus homens e levará as cento e setenta mulas para Penasblancas, onde dará cabo do Christus Revaila mais o seu exército privado. Também vai desinfectar o estabelecimento da mamá, fechar a loja e transportar as raparigas para Bogotá ou Muzo. A Perdita Pebas ser‑te‑á entregue...
‑Isso.‑Pebas assentiu.‑Vou dar‑lhe uma sova quando chegar.
‑Vais mas é chorar de alegria e felicidade, meu bode velho! Mais: os militares vão manter a estrada aberta e deixar passar transportes para a montanha. Os compradores a soldo dos negociantes de esmeraldas, que espreitam por todo o lado, serão penalizados, o que cortará pela raiz o poder de Don Camargo. Tudo utopias, Pebas! Um sonho irrealizável! Sabes o que acontecerá? O Camargo vai convidar um ministro para jantar. Depois, o major Gomez será promovido a tenente‑coronel e destacado para comandar qualquer base militar estratégica. E lá se vai o incómodo homem de Muzo! O seu sucessor voltará a cruzar as mãos atrás das costas e tudo será como antigamente! Enquanto houver pedras verdes, os que as desenterram não deixarão de ser malditos!
‑ Vamos esperar. Se o Gomez não atacar o burgo...
- o doutor será elevado a santo ‑ interrompeu Novarra. - Será o homem mais poderoso da montanha. Uma figura lendária...
‑ Até o Bandilla ficar bom - observou Pebas sombriamente. E o doutor vai pô‑lo bom. Que idiota!
‑ Que ambicioso! ‑ O Dr. Novarra levantou‑se e estendeu a mão a Pebas.
‑ Teremos de decidir em breve quem é mais importante para nós: se o Bandilla se o doutor Morero.
‑ É questão que nem se põe. ‑ Pebas encolheu os ombros como se tivesse frio. ‑ O Bandilla já está morto para nós todos...
Novarra assentiu. Pensavam o mesmo. Seria suicídio deixarem a humanidade levar a melhor à razão.
Gomez não atacou o burgo.
Mas não partiu sem ir inspeccioná‑lo. Montado numa mula, acompanhado apenas pelo Dr. Mohr, parou em frente da alta fortaleza de pedra que rodeava o misterioso labirinto rochoso. Novarra, que mandara retirar todas as sentinelas, deixou ao major Gomez a alegria de observar um alvo inatingível.
‑ É possível atacá‑lo com a artilharia ‑ comentou Gomez baixinho. A sua voz ecoou no silêncio como através dum altifalante. - Com foguetes é muito fácil. E posso trazer lança‑foguetes...
‑ Major ‑ admoestou o Dr. Mohr, rindo. - Só queríamos apreciar as belezas da Natureza...
‑ É o que estou a fazer. ‑ Gomez fez um sorriso aberto. ‑ A minha paixão é a arquitectura paisagística. Gosto muito de a reorganizar e, por exemplo não me agrada aquela fortaleza. Não é natural, como os penedos. Se a fizermos ir pelos ares, a Natureza volta a ser pura...
- Tem meios para isso em Muzo?
‑Devo dar‑lhe outra vez razão, doutor.‑Encostou‑se à mula, que esperava imóvel e pacientemente atrás de si.‑Exige muito, sabe?
‑Como?
‑Todos os oficiais ambicionam a tomada duma fortaleza supostamente inexpugnável. Do ponto de vista militar, não há posiçÕes inexpugnáveis. Temos imensos exemplos disso na última guerra mundial. A linha Maginot, a muralha do Atlantico, a fortaleza dos Alpes... posiçÕes lendárias que amoleceram como manteiga quando tomadas da maneira certa.
‑Esqueça o burgo, Gomez. Você e o seu batalhão estão lá longe em Muzo, mas estes homens vivem ao meu lado. Preciso deles. Protegem‑me, que é coisa que o major não pode fazer.
‑Reconheço que essa é a única razão para eu deixar de repente de pensar como um militar. É uma situação de doidos: bandidos procurados constroem um hospital e conseguem assim a suspensão da sua pena! Não se pode dizer em voz alta! Mas espero que fique bem claro que não é mais do que isso, Pete: só pena suspensa, e não amnistia geral! Agora, só vim aqui para ver se o transporte do hospital tinha chegado. Como chegou... regresso amanhã e, de caminho, apanho alguns tratantes. Uma pequena compensação... Mas voltarei... preciso de voltar, pois tenho uma missão a cumprir!
‑Avise‑me com tempo, sim, major?
‑Espertinho!
‑Só digo isto por causa do assado. Da próxima vez, assamos uma vitela no espeto. Agora foi tudo tão rápido...
‑Oxalá nunca o tivesse encontrado, doutor!
O major Gomez afastou‑se na mula e olhou para trás, na direcção do burgo. Sabia que estava a ser observado por muitos olhos.‑O que acontece se eu me aproximar?‑ perguntou.
‑ Nada. Mas vai sozinho.
‑ Aquilo ali parece uma condenação à morte.
- E é. Os homens que a vigiam são outros tantos coveiros!
‑ E não se vê ninguém! Que camuflagem fantástica! Quem comanda o grupo?
‑ Não faço ideia. ‑ A resposta surgiu‑lhe natoralmente. ‑ Já lhe disse que ninguém sabe nomes. Os homens trabalham calados, como robôs. às vezes, até é in quietante.
Gomez sabia o que ele queria dizer. Espicaçando a mula com o calcanhar, avançou vagarosamente. O Dr. Mohr seguiu‑o. Algures nos rochedos alcantilados, o Dr. Novarra observava‑os. Ao longe, ouviram‑se toques de trombeta vindos do planalto. O batalhão reunia‑se para retirar.
‑ Conseguiu mesmo ‑ observou o Dr. Novarra, respirando de alívio. - Agora temos para com ele uma dívida que nunca poderemos pagar. ‑ Pigarreando e olhando em volta, perguntou: ‑ Que será do José Bandilla?
Ainda passaram três semanas até o hospital ficar a funcionar em pleno, na opinião do Dr. Mohr. As portas e janelas foram montadas e as peças soltas ajustadas. No laboratório, em cima de duas mesas compridas, reluziam retortas de vidro, provetas, dois microscópios e outros aparelhos técnicos; na sala das radiografias, a máquina estava finalmente montada, e na divisão destinada à revelação encontrava‑se tudo a postos. A sala de operações já tinha todo o equipamento necessário a uma cirurgia média, mas agora já todos conheciam o Dr. Mohr suficientemente bem para saber que ele não precisaria de mais nada para fazer também uma grande cirurgia. O aparelho de anestesias também estava a funcionar. O primeiro paciente foi um cão, ao qual Simpson extraiu uma bala do lombo. Um vizinho que se sentia incomodado pelos seus latidos disparara três tiros contra o animal, um dos quais acertara. O quarto tiro dera‑o o dono do cão, que não sobrevivera ao vizinho.
O dia‑a‑dia na montanha sobranceira a Penasblancas.
O cão suportou notavelmente a anestesia. O Dr. Simpson foi comunicar imediatamente o facto ao Dr. Mohr, que estava no banco e à frente de quem os pacientes desfilavam como numa correia transmissora. Muitos eram logo conduzidos a outra sala, onde Margarita ministrava automaticamente injecçÕes intramusculares. O Dr. Mohr treinara com ela à moda dos gunqueros. Catorze dias antes, fora‑lhe entregue um homem que tinha precisamente doze balas no corpo. Não havia nada a fazer a três delas, e o homem morrera passadas sete horas. Naturalmente, como toda a gente, não tinha nome. Fora neste morto, despido e deitado numa maca, que Margarita se treinara a espetar a agulha.
Aprendera depressa. A mão não lhe tremia quando dera a primeira injecção numa coxa. Quanto a ver mortos, estava habituada desde pequena. Uns dias mais tarde, dava injecçÕes sob a supervisão do Dr. Simpson, que ficou entusiasmado.
‑É uma enfermeira nata! ‑ exclamou para o Dr. Mohr.‑Há dois dias que treino com ela injecçÕes intravenosas...
‑Está doido, Aldi? Em quem?
‑Há para aí uns gajos a quem tanto faz uns hematomas a mais ou a menos! E se tiverem uma embolia... paciência, é uma pena!
‑Doutor Simpson, o que me apetece é pô‑lo na rua com um pontapé no traseiro, como manda o figurino! Paciência, também é uma pena!
Simpson baixou a cabeça, amuou e foi‑se embora.
‑Uma pessoa quer ajudar a humanidade e o que é que recebe em troca? Ameaças! E nem sequer posso ir beber de desgosto!
A primeira radiografia foi feita a um doente com uma fractura esquirolosa na perna. Como era um homem do burgo, foi acompanhado pelo Dr. Novarra que, espantado, pegou na chapa e a ergueu contra a luz. O osso estilhaçado via‑se com toda a nitidez.
‑Uma coisa destas aqui no fim do mundo!‑exclamou Novarra, devolvendo a chapa.‑E ninguém sabe de nada! Se um político dá um traque, é logo condecorado e tem direito à primeira página dos jornais! E uma pessoa como o senhor, doutor Morero, permanece no anonimato! O seu nome devia ser escrito no céu para todo o mundo ver. É verdade... o Bandilla está a passar muito mal.
O Dr. Mohr atirou a chapa para cima da mesa.
‑Como foi isso? Ainda há três dias andava por aí, bem sei que um tanto combalido, mas de pé e bem‑disposto...
‑Vomita um líquido amarelo e sangue.
‑Desde quando?
‑Desde há três dias. Começou na noite depois da sua última visita.
‑E só hoje é que me diz? Traga‑me já cá o Bandilla! Pode ser uma úlcera que rebentou no estômago.
‑O Bandilla já não pode ser transportado‑retorquiu Novarra com uma voz taciturna.
‑Quem disse? Você?
‑Sim! ‑A expressão de Novarra endureceu. ‑ A esta hora, talvez o Bandilla já esteja morto.
‑Novarra. Você...
‑Ele não queria o médico.
‑Não é verdade! Ficava muito contente sempre que me via!
‑Mas anteontem, quando quis chamá‑lo, resignou‑se. "Acabou‑se o sofrimento", disse. "Sinto que... que não vale a pena." E o aspecto dele, sempre a vomitar... tive de lhe dar razão! A medicina é para ajudar e curar, e não para atormentar desnecessariamente, quando já não há esperança!
‑Novarra, que tipo de homem é você?‑O Dr. Mohr sentou‑se na borda da secretária. O barbudo encaminhou‑se para a janela, virou as costas largas a Mohr e pôs‑se a olhar lá para fora. Ainda se trabalhava na igreja, tapando‑se as últimas partes do telhado com pranchas e pedras planas, parecidas com tijolos.‑Decide o destino duma vida sem qualquer conhecimento médico...
"Não preciso de conhecimentos médicos", pensou Novarra. "Sei que o Bandilla já não tem salvação. Desde que voltou a comer alimentos sólidos que lhe misturam vidro moído nos legumes, o que rasga as paredes do estômago. Nesta fase, já não há nada a fazer, doutor Morero. Nem o senhor pode extrair um estômago inteiro e ligar directamente o esófago ao intestino. Em princípio, até já é possível, mas não aqui, nos penedos entre Penasblancas e Muzo. Mas não precisa de saber disto, doutor Morero, pois voltaria a dizer que é um assassínio! E teríamos muita dificuldade em convencê‑lo de que, com ele, queremos precisamente evitar um assassínio. O seu assassínio. Graças ao Bandilla! Não faz sentido ter remorsos por causa dum homem que não sabe o que são remorsos! Claro que sei que o doutor tem outros princípios morais... mas nós não vivemos num mundo organizado, e sim à beira do inferno. Temos os nossos próprios princípios morais. Estou sempre a repetir‑lho, doutor, mas o senhor defende‑se desta verdade horrível! Portanto, tivemos de pôr de lado o seu código de honra..."
‑Estou à espera da notícia da morte do Bandilla‑ disse o Dr. Novarra em voz alta, virado para a janela. ‑Quero autopsiá‑lo!
‑Recusado...
‑Tenho de saber a causa da morte!
‑Ataque cardíaco. É isso. Ataque cardíaco. Pode desmenti‑lo?
‑Você mandou matar o Bandilla, Novarra!
‑Autorizo‑o a procurar ferimentos de bala no corpo.
‑Veneno!
‑Mas nós somos mulheres? O homicídio por envenenamento é um privilégio feminino!
‑Mas nalgum lugar há gato! A morte do Bandilla não é natural.
‑Está muito sossegado na cama! Não o enforcámos, nem o estrangulámos, nem o afogámos. Vai morrer debaixo do cobertor, como um valente... Doutor, já fez tudo o que era possível. Como sabe, a medicina tem as suas fronteiras. O Bandilla está para lá destas fronteiras. Chega‑lhe?
‑Não!‑O Dr. Mohr pegou na chapa da radiografia. A fractura esquirolosa esperava tratamento na sala de operaçÕes. O Dr. Mohr encurtara o tempo de espera contando uma série de anedotas monstruosamente obscenas ao pesquisador, que soltara gargalhadas estrondosas e quase esquecera as dores.‑Mas tenho de me contentar com isso. No entanto, não vou esquecer, Novarra!
‑Cada um de nós tem uma grande dívida de gratidão para com o outro. Vamos pôr o assunto de lado...
‑Uma vida humana?
‑O que é aqui uma vida humana?
‑A Chica e o seu filho valem assim tão pouco aos seus olhos?
‑Por falar neles, estão os dois muito bem, doutor.
‑Excelente! Mas a minha pergunta...
‑A Chica não é o Bandilla. Como é que trata um cão raivoso?
‑Abato‑o. Mas o Bandilla...
‑ óptimo! ‑Erguendo a mão direita:‑Doutor, entenda duma vez que um cão raivoso não passa dum bichinho manso em comparação com um Bandilla de boa saúde! Para mim, o assunto está arrumado!
à noite, chegou ao hospital um emissário do burgo com a noticia da morte de José Bandilla. O seu coração parara depois duma hemorragia.
‑Pronto, aí tem o seu diagnóstico!‑disse o Dr. Novarra para o Dr. Mohr.‑Ainda quer mais?
Capitulo 12
Era de noite quando, uns dias depois, alguém bateu à janela do Dr. Mohr. Havia uma semana que estava instalado na sua casa do hospital. Margarita acompanhara‑o com uma naturalidade que não admitia objecçÕes da parte de Adolfo Pebas. Dormiam ao lado um do outro na cama larga, mas apenas como irmãos, não como amantes. Cada um enrolado no seu cobertor, sem se tocarem, depois de trocado o beijo que encerrava o dia.
Mas ouviam‑se, viam‑se e amavam‑se numa ânsia silenciosa. Muitas vezes, o Dr. Mohr sentava‑se na cama observando Margarita a dormir, com o coração galopando de deseJo. Ou então era Margarita que se aproximava dele quando Lhe ouvia a respiração regular e profunda, sinal de que dormia. Passava‑lhe os lábios pelo rosto, afagava‑lhe o cabelo de mansinho e sussurrava‑lhe ao ouvido palavras de amor.
Era uma felicidade à distância, que exigia deles uma força que sabiam não ir conseguir manter por muito mais tempo.
Quando ouviu bater, Margarita ergueu‑se, estremunhada, e abanou o Dr. Mohr, que se levantou da cama dum salto, pegou na pistola automática que tinha ao lado encostada à parede e escancarou a janela. Pesados batentes feitos de pranchas de madeira protegiam de investidas desagradáveis.
‑ Quem está aí? ‑ gritou o Dr. Mohr.‑O hospital é do outro lado. O doutor Simpson está de serviço!
‑Deixe‑me entrar, senhor doutor‑pediu uma voz abafada por entre os batentes.‑Sou o Zapiga. O Juan Zapiga... Tenho de falar consigo...
‑Aconteceu alguma coisa ao Pablo?
‑Não directamente. Abra, senhor doutor.
Pouco depois, Juan Zapiga, dez vezes pai, estava no quarto, encostado à parede. Tinha um aspecto assustador, todo porco de cima a baixo, ofegante, com o corpo todo a tremer. Os olhos encovados ardiam‑lhe febrilmente. Apertando ao peito um lenço sujo com ambas as mãos, começou algumas vezes a falar, antes de conseguir pronunciar uma frase inteira.
‑Tenho de me ir embora!‑arquejou.‑Tenho de ir imediatamente embora, senhor doutor. Com toda a família. Meu Deus, quando se souber, livra‑nos de todo o mal...
O Dr. Mohr sentiu um arrepio frio na espinha.
‑Juan, mataste alguém?‑perguntou baixinho.
‑Oh, não, não... Venho agora da montanha. Tenho estado a escavar. Eu sabia, eu sabia. Foi como se cheirasse... Oh, meu Deus! Nossa Senhora! Não posso ficar aqui! Tenho de ir já para Bogotá. Senhor doutor... o meu próprio pai matar‑me‑ia se ainda estivesse vivo!... Veja...
Zapiga caminhou até à mesa, atirou o lenço para o tampo e desembrulhou‑o.
à luz da lâmpada nua, brilhou uma pedra verde e pura, quase do tamanho dum punho. Parecia um pedaço de vidro bruto, transparente, dum verde intenso, que reflectia a luz.
‑Meu Deus do Céu... ‑ exclamou também o Dr. Mohr, fitando a pedra. O grande sonho do pesquisador, o golpe de sorte que só acontece uma vez, jazia sobre a mesa. Mas também a morte impiedosa, se o achado fosse conhecido antes de chegar aos cofres‑fortes de Bogotá!
‑ Mais de dozentos quilates...‑murmurou Zapiga em voz rouca.‑Da melhor qualidade... Vale milhÕes, senhor doutor. MilhÕes! Nossa Senhora!‑Juntando as mãos, rezou em silêncio. Só os seus lábios se mexiam. Depois, novamente hesitante:‑Encontrei‑a há uma hora. Incrustada sozinha, como um ninho verde. Arranquei‑a da pedra, voltei para o ar livre e chorei. Agora tenho medo, doutor, um medo terrível. Tenho de me ir embora daqui. Mais de duzentos quilates! Valha‑me Deus!
Encostando‑se outra vez à parede, tapou os olhos com as mãos e desatou a soluçar.
Acreditara durante doze anos. Passara doze anos a rastejar pela montanha. Agora estava rico, incrivelmente rico... e tremia de medo.
Foi inútil tentar convencer Zapiga a deixar o seu achado no hospital entregue aos cuidados do Dr. Mohr, não contar nada a ninguém e esperar que o médico e o padre Cristobal pudessem ir a Penasblanc as sob a protecção do major Gomez, pegando aí no carro e seguindo para Bogotá. Era o caminho mais seguro. Mas Zapiga abanou a cabeça.
Um tanto recuperado do choque, tapou a pedra com o lenço todo sujo e sentou‑se à mesa a beber uma chávena de chá com uísque.
‑Quando será isso?‑perguntou.‑Amanhã?
‑Não. Talvez daqui a uns dois meses...‑respondeu o Dr. Mohr.
‑Quer que fique aqui sentado durante dois meses depois de ter encontrado milhÕes? Mais de duzentos quilates da melhor cor e pureza, senhor doutor! Só numa pedra! Nunca se viu coisa assim! Parece impossível. Nunca aconteceu nada semelhante! Quer que viva dois meses nesta angústia?
‑A pedra fica comigo e ninguém saberá de nada. Podes sossegar...
‑Vai haver falatório se eu não for à montanha todos os dias! Os vizinhos hão‑de perguntar: "O que é que tem o Juan, que já não anda a escavar? A vida corre‑lhe assim tão bem? Como é que consegue sustentar a mulher e dez filhos sem mexer um dedo? Ah, será que encontrou alguma coisa?" E em breve ficarão desconfiados! Senhor doutor, sabe o que significa aqui a desconfiança'?
‑Claro que sim. Entretanto, já aprendi. Mas as pessoas vão ficar ainda mais desconfiadas se de repente desapareceres!
‑Nessa altura, já estarei para lá de Penasblancas!
‑A estrada até Bogotá é muito perigosa, Juan! Fica aqui. Descansa. Vou operar o Pablo, o que é uma razão para não andares na montanha. Tens de estar ao lado do teu filho. Queres que chame o padre? Ele vai aconselhar‑te o mesmo.
‑ Não preciso de conselhos, doutor, preciso de ajuda.‑Zapiga voltou a destapar a enorme pedra, que contemplou com um olhar quase de insanidade, afagando‑lhe o corpo de reflexos verdes, acariciando‑a como a uma amante.‑Preciso duma pistola automática para conseguir passar. Já pensei muito bem em tudo. Com a mulher e os dez filhos, nunca mais chego a Bogotá. Vou levar só os três rapazes mais velhos. A Nuria e os sete mais novos ficam. Venho buscá‑los depois de vender a pedra em Bogotá. Nessa altura, como já não a tenho, ninguém pode tirar‑ma. A conta bancária não interessa a ninguém. O que todos querem são as pedras verdes!‑Pousando as mãos sobre o seu achado do século, perguntou:‑Quer tomar‑me conta da Nuria e das crianças, senhor doutor?
‑Claro. Vou trazê‑las para aqui. Podem ficar no hospital ou com o padre Cristobal. Mas o teu plano não é bom, Juan.
‑Dá‑me uma pistola automática?
‑Não.
‑Porquê?
‑Porque sei que ia haver desgraça. A pedra pÕe‑te doido, Juan! Vejo‑o nos teus olhos! Ias matar todos os que te aparecessem no caminho, mesmo que não fizessem mal a uma mosca!
‑Eu arranjo uma na mesma‑ retorquiu Zapiga com um ar carrancudo.‑O Pablo é bom atirador, mesmo só com uma mão. Viste muito bem como ele te salvou a vida, doutor... devias estar agradecido...
‑O Pablo fica aqui! Vou operá‑lo daqui a dez dias!
‑Veremos!‑Zapiga levantou‑se, atou a gigantesca esmeralda no lenço e prendeu a trouxa debaixo do braço. ‑Onde podem viver os milionários?
‑Em qualquer sítio.
‑Onde é que a terra é mais bonita?
‑Cada canto desta terra tem a sua beleza. Não queres ficar na Colômbia?
‑Não. Como é a América? A Florida...
‑Porquê tão longe? As ilhas das Caraíbas são um autêntico paraíso. Santa Lúcia, Granada, Barbados, Trindade... Paraísos em filinha, como enfiados num colar.‑ Fazendo um gesto:‑Mas isto é tudo um absurdo, Juan! Se não te acalmares, nem sequer chegas a Bogotá. Esperaste doze anos... não podes aguentar mais dois meses?
‑Vou pensar‑rematou Zapiga, levando a outra mão ao lenço com a esmeralda, saindo de casa do Dr. Mohr e desaparecendo na noite escura como uma sombra.
Vinte minutos mais tarde, estava o Dr. Mohr sentado na cama, comentando o enorme achado com Margarita, bateram novamente à porta. Era o padre Cristobal, com a camisa aberta e calçÕes. Entrando no quarto, lançou um breve olhar a Margarita, que só envergava uma camisa fininha.
‑Ele também esteve aqui? O Juan Zapiga...
‑Esteve. Então foi ter contigo...
‑Agora já se foi embora.‑Cristobal sentou‑se à mesa, viu a garrafa de uísque e levou‑a aos lábios. Depois de beber dois grandes goles, voltou a pousá‑la. ‑ Bem precisava, Pete! Que pedra... que Deus nos proteja! Nunca se viu nada assim...
‑Não percebo muito do assunto, mas também me parece que é um dos achados mais sensacionais que alguma vez se fez. Uma esmeralda gigante!
‑O Juan tem razão. São mais de duzentos quilates da melhor cor e pureza! Pelos meus cálculos, quando for dividida em pedras de um quilate, deve dar, no mínimo, dois milhÕes e trezentos e cinquenta mil dólares! Pete! Cerca de dois milhÕes e meio de dólares! Assim inteira, tem um valor incalculável! Uma verdadeira peça de coleccionador! É uma pedra capaz de levar a um genocídio, sabes?
‑ O que é que o Juan queria de ti?
‑Uma pistola automática.
‑E deste‑lha?
‑Dei...
‑Cris, és mesmo padre? ‑ exclamou o Dr. Mohr, horrorizado.
‑Nem por um segundo o esqueci! Olha, é um homem que tem mulher e dez filhos. Ninguém se ensaiará para o matar a ele, à mulher e aos dez filhos, de modo a pôr as mãos nesta pedra verde! E não terá nem os militares, nem um generoso médico, nem um padre bem‑falante a protegê‑lo. Só uma arma! Pete, nesta terra, o amor ao próximo soletra‑se... e interpreta‑se de outra maneira...
‑Vê‑se. Eu recusei.
‑Foi o que pensei. Suspeitei que o Zapiga veio primeiro ter contigo e só depois foi à minha procura. Confiou mais num médico do que em Deus.
‑Agora é ao contrário‑retorquiu o Dr. Mohr em voz azeda.‑Raios, Cris, nunca hei‑de aprender a pensar pelas vossas cabeças!
‑Talvez seja bom, Pete.‑Tornou a puxar a garrafa de uísque para si.‑Continua a ser um médico puro. Um padre pode dar‑se melhor ao luxo de ser um bandido. Os caminhos de Deus nem sempre foram direitos, como nos ensina o Antigo Testamento.
Sorrindo com uma expressão um tanto preocupada, voltou a beber um pouco. O Dr. Mohr percebeu que o padre Cristobal não estava a sentir‑se muito bem na sua nova pele.
De manhã, quando abriu a igreja, Cristobal viu Nuria e sete dos seus filhos sentados à porta. Estava a dar de mamar ao mais novo. Duas garotas brincavam com bonecas feitas por elas. Os outros dormiam no chão, enrolados em coloridas mantas artesanais.
‑ Entrem! - convidou o padre Cristobal. - Quando é que o Juan e os filhos partiram?
‑ Há quatro horas. ‑ Nuria sorriu‑lhe com uma expressão de felicidade. - Daqui a pouco, estamos ricos. Vamos dar‑te uma igreja em condições, padre, com um campanário e um sino enorme. Foi o que o Juan disse quando se despediu. E quer ir viver para uma ilha das Caraíbas. Conheces as Caraíbas, padre?
‑ Conheço. Entra. Eu mostro‑tas no mapa. Mas antes vamos rezar juntos... vamos rezar para que o Juan chegue a Bogotá...
Duas horas mais tarde, a angústia apoderou‑se do Dr. Mohr, que de repente percebeu a pressa de Zapiga.
O Dr. Simpson, que estava de banco e dormira muito bem, visto que a noite fora tranquila, encaminhou‑se para a sala de operações, onde o Dr. Mohr limpava uma grande ferida cheia de pus.
- Chefe, quer saber uma coisa muito esquisita? Disseram‑me agora que o Juan Zapiga partiu sem dizer nada a ninguém. A casa está vazia, deixou as ferramentas, abandonou a mina, todo o equipamento... desapareceu só com o que tinha no corpo. Só pode querer dizer uma coisa: fez alguma descoberta sensacional e está a caminho de Bogotá...
‑ Disparate! ‑ Apontou para a ferida. ‑ Continue você, Simpson! Onde está quem lhe disse isso?
‑ Lá fora, sentado na cadeira. Só interrompi para lhe dar a novidade. O homem tem uma colangite...
O Dr. Mohr assentiu e encaminhou‑se para o banco. Na sala de observações encontrava‑se sentado um típico gunquero: definhado, de pele amarelada, atrofiado. O homem examinou o médico com um olhar frio, que não conhecia a piedade.
‑ És vizinho do Zapiga? ‑ perguntou o Dr. Mohr.
‑ Sou. Ele desapareceu com a família inteira! Deixou tudo e abalou. De certeza que encontrou alguma coisa.
‑ Isso é o que tu pensas!
‑ Que outra razão há para se abandonar a mina à noite? Mas já não volta.
- O que quer isso dizer? ‑ A voz do médico soava ameaçadora. O homem riu maldosamente.
- Já estamos atrás dele. Nove homens.
‑ Seus bandidos! Vão atrás dum homem como predadores e nem sequer sabem o que se passa? A sua mulher Nuria e os filhos estão com o padre, na igreja.
‑ Ai é? ‑ O gunquero soltou uma risada grosseira. - E onde está o Juan? Com onze empecilhos atrás, não ia longe. Está sozinho? Melhor!
O Dr. Mohr debruçou‑se sobre a caixa das injecções. Pela primeira vez na vida, quebrou o juramento que fizera de ver num doente apenas alguém que precisava de ajuda. Pela primeira vez, compreendia o que o padre Cristobal já percebera havia muito tempo. "Esta gente sai dos padrões normais. Por isso, tem de ser tratada doutra forma. Aliás, tem de ser protegida sobretudo de si própria, pois já não sabe o que faz. Perdeu todo e qualquer sentido de justiça!"
Com as mãos firmes, o Dr. Mohr quebrou uma ampola, puxou o líquido claro para a seringa de vidro e inclinou‑se sobre o gunquero.
‑ O doutor Simpson disse‑lhe o que tem?
‑ Disse. Uma inflamação na vesícula...
‑ Vou dar‑lhe uma injecção contra a inflamação. Quando pensam seguir o Zapiga?
‑ Já. Quando eu sair daqui. Vou comandar o grupo! Conheço bem os truques do Juan...
"Então está certo o que vou fazer", pensou o Dr. Mohr. "Então, vou salvar uma vida enquanto médico, se bem que indirectamente." Aplicou‑lhe a injecção na nádega e ficou à espera. Passados cinco minutos, o homem começou a cambalear, deixou de se aguentar na cadeira e tombou. Miguel, de pé ao seu lado, segurou‑o.
‑ Para minha casa ‑ ordenou o Dr. Mohr, mergulhando as mãos numa solução desinfectante. - Amarra‑o bem...
- Amarrar... ‑ gaguejou Miguel. - Porquê?
‑ Não faças perguntas! Leva‑o, amarra‑o bem e deixa‑o no meu quarto.
Miguel pegou no homem às costas, fez menção de perguntar mais alguma coisa, desistiu quando viu a expressão do Dr. Mohr e saiu.
à tarde, o padre Cristobal lançou o alerta não só aos presentes no planalto, como também mandou buscar ajuda ao burgo. No seu quarto, sentado em frente do gunquero amarrado, o Dr. Mohr gritou‑lhe e esmurrou‑o. Mas o homem calou‑se obstinadamente.
As duas filhas mais velhas de Nuria tinham desaparecido. Havia ainda uma hora que tinham sido vistas a brincar perto da escarpa.
‑ Pronto, começou - observou o padre Cristobal em voz rouca. ‑ Vão exterminar a família Zapiga até conseguirem saber o que é que o Juan encontrou...
Havia seis dias que Zapiga e os filhos estavam a caminho.
Seis dias, durante os quais só andavam de noite. De dia, dormiam em cavernas ou no meio dos silvados e pescavam nos ribeiros ou caçavam com fisgas. Tudo tinha de ser feito em silêncio para que nenhum barulho chamasse a atenção. Ninguém podia vê‑los. O seu objectivo era passar ao largo de Penasblancas e percorrer um grande troço do caminho para Bogotá por entre o mato, evitando assim a Estrada da Morte. Significava isto atravessar penosamente desfiladeiros sem trilhos, conquistando cada metro de caminho até chegarem à parte da estrada que ainda era segura, visto ser patrulhada por militares e pela polícia, que vigiavam o trânsito para Muzo e Penasblancas. Uns quilómetros à frente, estendia‑se a terra de ninguém, onde não existia justiça nem humanidade. Começava aqui o domínio dos sem escrúpulos.
Juan Zapiga ia à frente. Pusera a pedra num saquinho de couro que pendurara ao pescoço, debaixo da camisa, directamente sobre o peito. Seguiam‑no dois dos seus filhos, de doze e dez anos de idade. Em último lugar, protegendo a retaguarda, ia Pablo, o filho mais velho. Levava ao peito o braço, muito inchado, e no primeiro dia tivera de cerrar os dentes sempre que batia com o ombro ou era obrigado a saltar. Mas depois parecia ter‑se habituado às dores. Seguia o pai e os irmãos a uma distância de alguns metros. No sexto dia, as expressões dos três Pebas desanuviaram‑se, iluminando‑se de esperança. Penasblancas já estava muito para trás e cada metro percorrido na direcção de Bogotá era menos um perigo à espreita. Mais um dia, e conseguiriam! Poderiam então sair do mato e meter pela estrada, protegida pelos militares. Faltava pouco para o grande momento em que chegariam à estação rodoviária, apanhariam a camioneta e seguiriam para Bogotá. Era a viagem para uma vida nova. O recém‑milionário Zapiga saudaria as primeiras casas com uma oração.
"Meu Deus, obrigado! A minha mulher Nuria e os meus dez filhos também Te agradecem! Foi grande o Teu amor por nós."
Neste sexto dia da caminhada infernal, uns homens puseram‑se a observar um rapaz que pescava sentado perto dum regato, empunhando uma vara com uma corda e um anzol de arame com uma minhoca na ponta. Um segundo rapaz, de roupas tão esfarrapadas como o outro, saiu do mato com uma lebre, que mostrou triunfalmente ao companheiro.
- Parece que vivem nas árvores! - comentou um dos homens. ‑ Esquisito! Anda, vamos ver melhor...
Uma hora depois, Juan Zapiga despedia‑se do seu filho Pablo.
‑ Tenta sozinho! ‑ disse Pablo. ‑ Vou detê‑los o mais tempo que puder. Não te preocupes comigo. Vocês têm de...
‑ Pablo! Zapiga abraçou o filho a chorar. - Não posso! Não posso... Nunca! Nunca! ‑ afirmou, agarrando a pistola automática que Pablo pendurara ao peito. - Ficamos juntos!
‑ Nunca conseguiremos, papá. Pensa na mamã e nos meus irmãos!
- Mas não é por isso que tu...
‑ Vai, papá... por favor, vai...
‑Pablo... ‑ chorou Zapiga.
- Vai! - gritou Pablo. ‑ Tens de passar com a pedra... pela mamã e os outros... Raios, será que tenho um pai cobarde...?
Choramingando, Zapiga girou nos calcanhares e correu novamente para o mato com os dois filhos mais novos. Pablo Zapiga deitou‑se atrás duma pedra, encostou a pistola automática ao ombro bom e pôs‑se à espera. "Oxalá levem uma vida boa no futuro, mamã", pensou. "Lembrem‑se de mim, mas não fiquem tristes. De qualquer maneira, sinto que não viveria muito mais, que o médico não conseguiria salvar‑me. Assim é melhor, mamã, sempre posso fazer alguma coisa por vocês. Só espero que sejam todos muito, muito felizes..."
Empunhando a pistola automática, Pablo Zapiga protegeu a retirada do pai e dos irmãos pequenos durante seis horas. Depois, a dor no ombro, que parecia explodir a cada tiro que dava, fê‑lo cair sem sentidos. Assim, não soube que foi atingido por catorze tiros. Um dos seus perseguidores esvaziou‑lhe a câmara da arma no corpo e berrou:
- Seu canalha! Cão danado! Não voltas a pôr‑te de pé...
Mas as seis horas de avanço foram suficientes para Juan Zapiga e os filhos chegarem ao troço seguro da estrada para Bogotá. Um camião militar recolheu‑os e levou‑os ao terminal rodoviário.
Muito devagar, seguido pelos olhares admirados dos outros passageiros, Zapiga ajoelhou‑se, no que foi seguido pelos dois filhos.
‑ Amigos ‑ começou Zapiga em voz rouca ‑, quem tiver um coração a bater dentro do peito, que reze comigo: Nosso Senhor, perdoa‑me, pois sacrifiquei um filho para que outras onze pessoas possam viver. Meu Deus, como hei‑de suportá‑lo? - Ergueu o olhar e fitou os rostos surpreendidos. ‑ Amigos, por favor, juntem as mãos. Rezem pela alma do meu filho Pablo. Foi um herói! Ainda não era um homem, só tinha catorze anos... mas foi um herói. Deu a vida por todos nós.
Nesta altura, Juan Zapiga ainda não sabia que também perdera duas filhas.
Encontraram as pequenas num vale, jazendo uma ao lado da outra junto duma árvore. Tinham as gargantas cortadas mas, antes, os assassinos haviam‑nas espancado, arrancando‑lhes o segredo de Zapiga.
Nuria não chorou. Com os olhos grandes e vazios, sentou‑se em frente do caixote no qual, à falta de caixões, tinham colocado as filhas. Nenhum músculo da sua cara se moveu quando o padre Cristobal bradou, tremendo de cólera:
‑ Minha é a vingança, diz o Senhor! E estas mortes serão vingadas! Também nós seremos culpados do sangue destas crianças inocentes se continuarmos a tolerar que gente assim permaneça entre nós!
Depois do enterro, o Dr. Novarra foi visitar o Dr. Mohr ao hospital. Sentado sozinho às escuras no consultório, o médico não se mexeu quando Novarra entrou. O Dr. Simpson, Miguel e Margarita faziam a ronda da tarde na enfermaria, que estava cheia.
‑ Doutor? - perguntou Novarra para a escuridão.
‑ Entre, Ramon. Tem uma cadeira mesmo à sua frente.
‑ Obrigado. - Sentando‑se: ‑ Luz?
‑ Não! Não, por favor...
‑ Desesperado com a humanidade? Esconde‑se das suas excrescências como um animal doente? Não faça isso, doutor Morero. Não conseguirá nada e mudará ainda menos, só o senhor se lamenta!
‑ Duas crianças com a garganta cortada... por causa destas malditas pedras verdes... Ainda não engoli bem, Novarra. Mas você está aqui para me explicar que é perfeitamente normal que torturem e cortem a garganta a duas garotas de seis e sete anos! Você quer fazer‑me ver que é uma coisa banal. Não diga coisas dessas! Ainda pego fogo ao meu hospital hoje à noite!
- Também vim falar‑lhe do bem.
‑ Deixei de acreditar no bem.
‑ A sério? Não ama a Margarita? E não é maravilhoso? Os doentes não fazem fila à sua porta? E não é muito bom?
‑ E depois os doentes matam ‑ retorquiu surdamente o Dr. Mohr. ‑ É com isso que não me conformo! Rezam pela sua saúde e matam o próximo!
‑ Que montanha de humanidade! ‑ troçou Novarra.
‑ Tem aqui as pessoas a nu, sem arrebiques nem máscaras. Viver e eliminar os outros: é o instinto primário. Tudo
o resto é aprendido. Não está interessado no que trago na manga?
‑ Não.
‑ óptimo. Então guardo para mim que o major Gomez caiu sobre Penasblancas como uma trovoada. O batalhão dele fez uma limpeza, às vezes com verdadeiras batalhas campais. Casa por casa. O exército privado do Christus Revaila debandou em boa ordem logo que o Gomez se aproximou. Claro que, como sempre, não houve nada a apontar ao Revaila. Nem à mamá Mercedes. As raparigas, que o Gomez tencionava libertar, prepararam uma recepção estrondosa aos oficiais. O bordel estava decorado até ao tecto com flores e bandeirinhas. De pé junto ao bar, só com parras nos locais expostos, as meninas entoavam cânticos de júbilo. Toda a gente teve direito a bebidas e... "voltinhas" grátis! Os oficiais ficaram entusiasmados e o major Gomez esteve perto dum ataque de insanidade. Neste momento, Penasblancas é uma cidade razoavelmente limpa. O Gomez deixou lá uma companhia de soldados. A mamá Mercedes aposta que não ficarão lá mais de quatro semanas. Bogotá só enviou um reforço de quatro homens ao chefe da Policia Salto, que quer controlar a estrada para a montanha. Lá coragem não lhe falta!... Mas vou guardar isto tudo para mim. Não lhe conto nada. Não lhe interessa.
‑ E a Perdita Pebas?
‑ Saiu de casa da mamá...
‑ E diz isso assim? ‑ O Dr. Mohr deu um salto e acendeu a luz. A claridade súbita fez Novarra pestanejar.
‑ Onde é que ela está agora?
‑ É cozinheira em casa duma antiga prostituta que tem hoje uma mercearia em Penasblancas.
E porque é que não vem para casa?
‑ Porque tem medo que o pai a mate de pancada.
- Ele nunca faria isso! E se for ele a ir buscá‑la?
‑ Aí está outra coisa que o velho Adolfo Pebas nunca faria! Conheço‑o há muito tempo. Se foi sozinha, também há‑de voltar sozinha!
‑ Então vou lá eu.
‑ Foi precisamente isso que pensei. - Sorriu ironicamente. ‑ Mas não pode ser. Não me quer dar ouvidos...
‑ Ramon, o que é que tem ainda para dizer?
‑ Só uma sugestão: quando for buscar a Perdita Pebas, leve a família Zapiga para Penasblancas. Receio bem que não se fiquem pelo assassínio das duas pequenas. São rumores que se espalham com a velocidade do vento. Posso dar‑lhe protecção até pouco antes da cidade, e depois espera pelo tenente Salto. A viagem até Bogotá devia ser feita sob escolta militar. Aí, a Nuria e os filhos estarão relativamente em segurança.
‑ E se o Zapiga não conseguiu passar?
‑ Mesmo assim, é melhor para a Nuria. Dão cabo deles todos só para se apoderarem do achado maravilhoso do Zapiga. De momento, a minha gente controla‑os. Mas com tais perspectivas, nem nos meus homens posso confiar mais.
Novarra olhou gravemente para o Dr. Mohr e assentiu com a cabeça.
‑ E mesmo assim, doutor. As pedras verdes paralisam! A Nuria tem de partir. Quer encarregar‑se disso? - Sorriu de esguelha. ‑ Um verdadeiro transporte feminino: uma para lá, outra para cá... E o senhor é o único homem a quem ambas as mulheres dão ouvidos. Por isso, em vez de estar para aí sentado às escuras a perder a fé na humanidade, pense que pode fazer alguma coisa de positivo: salvar a Nuria e os filhos. É possível que haja tiroteio antes de chegarmos a Penasblancas. E o Christus Revaila também continua lá! Doutor, quem vive aqui, mesmo que seja médico, não deve só curar: tem de se adaptar e manter o caminho livre... com a arma, se for preciso!
‑ Quando? ‑ perguntou o Dr. Mohr, indo direito ao assunto.
- O mais depressa possível. Enquanto ainda se notam em Penasblancas os efeitos da campanha militar do major Gomez. Temos de aproveitar.
‑ Então amanhã? E se a Nuria não quiser?
‑ Há‑de querer. Os mortos nunca nos estorvaram a vida. A Nuria também espera que o Zapiga tenha passado, para poder ser milionária.
‑ Malditas sejam as pedras verdes! - vociferou o
Dr. Mohr, pondo neste grito todo o seu sofrimento interior. Novarra assentiu, satisfeito.
‑ Faz‑lhe bem desabafar, doutor. Todos nós as odiamos, mas não passamos sem elas. Já não existe volta para nós, mas para si, sim! ‑ Levantou‑se. - Amanhã cedinho, de madrugada?
‑ Estarei pronto. ‑ Pousou uma mão por cima da outra. ‑ Falhei, Novarra. Tinha‑me responsabilizado pela Nuria e as crianças...
Nuria e os filhos já estavam a postos quando o Dr. Mohr e Margarita saíram de casa. A noite ainda cobria os penedos e só uns descoloridos riscos no céu anunciavam o nascer do dia. Estava frio. Começava a estação das chuvas. Dali a uns dias, toda a região apresentaria um aspecto diferente. Os ribeiros transformar‑se‑iam em rios e estes em torrentes caudalosas que enlameariam os caminhos. Muitos vales ficariam intransitáveis e cortados do mundo exterior, avalanchas de pedras transportadas pelas águas obstruiriam os acessos e haveria inundações num grande número de minas. Grandes massas de água, vindas de todos os lados, precipitar‑se‑iam nas grandes cavernas, às vezes tão de repente que todos os anos havia bastantes mortos... gunqueros que não abandonavam as tocas a tempo e morriam afogados.
Mas acontecia ainda outra coisa durante a estação das chuvas. Milhares de pesquisadores tornavam‑se lavadeiros. Punham‑se nas margens dos rios caudalosos ou até dentro deles, apanhando com grandes peneiras os detritos que as correntes arrastavam para os vales. É que a água passava pelos penedos mais profundos, onde também havia inclusões de esmeraldas, pequenos corpos verdes formados ao longo de milhões de anos sob a acção dum calor inimaginável, e que valiam hoje uma fortuna. Todos os anos os rios arrastavam o ouro verde para as peneiras... e todos os anos os homicídios aumentavam depois da estação das chuvas, quando os felizes contemplados se punham a caminho para levar a sua fortuna a Bogotá, espreitados pelos "compradores" de Christus Revaila e Mercedes Ordaz.
à noite, houvera uma discussão acalorada entre Margarita e o Dr. Mohr, que este voltara a perder. Margarita preparara‑se para a grande aventura metendo a sua roupa num saco de couro. Estava a limpar um revólver de 9 milímetros quando o Dr. Mohr, que voltava de falar com o Dr. Simpson para Lhe explicar tudo e entregar o hospital aos seus cuidados, parara especado à porta, de olhos esbugalhados.
‑Não me digas que também querias ir!‑exclamara em voz rouca.‑Nem penses.
‑Já arrumei tudo, Pete...
‑Então desarruma outra vez!
‑Não podes impedir‑me de ir buscar a minha irmã.
‑Posso impedir‑te de correres perigo de vida!
‑Quero estar contigo‑retorquira ela simplesmente, continuando a limpar o revólver.
‑Olha que eu prendo‑te!
‑Isso seria ainda pior, Pete. Ia gritar e berrar, e haviam de me socorrer. Depois, seguia sozinha atrás de ti, o que é muito mais perigoso!‑Carregara o tambor e fizera‑o rodar até dar um estalido. Já estava vestida para a perigosa caminhada. Tinha botas, uma saia de couro, uma camisa de folhos e um cinto largo, no qual enfiara a arma. Apanhara o cabelo negro, prendendo‑o com uma fita larga. Levantando‑se, entrara no quarto, sentara‑se na cama e encostara‑se à parede.‑Quem ia prender‑me?‑ gritara.‑Dou um tiro a quem tentar agarrar‑me! A ti também!
‑Tens de ficar no hospital! O Simpson precisa de ti! ‑berrara o Dr. Mohr.‑Não percebes que ainda tornas as coisas mais dificeis se vieres connosco?
‑Não! Sei atirar. E tenho coragem!
‑Tenho medo por ti, entendes?!
‑E eu por ti. Por isso, quero estar contigo. Não é natural? ‑ Erguendo os ombros, ficara parecida com uma gata preparando o salto.‑Grita, Pete! Chama o papá e a mamã! Berra pelo padre Cristobal! Façam de mim o que quiserem, que eu conseguirei libertar‑me. Depois, vou a correr atrás de ti!
Não valia a pena tentar convencê‑la. Suspirando, o Dr. Mohr fora ter com o padre Cristobal, que acabava de se despedir do Dr. Novarra. O barbudo regressava ao burgo montado na sua robusta mula.
‑A Margarita esteve a limpar o revólver e quer ir comigo‑anunciara o Dr. Mohr com uma expressão impotente.‑O que hei‑de fazer, Cris?
‑Nada.
‑Mas é impossível! Seria um suicídio.
‑Diz‑lhe isso.
‑Já tentei... em vão. O argumento dela é que deve estar onde eu estiver.
‑Aqui ainda existem mulheres prontas a morrer ao lado dos maridos.
‑É tudo o que tens a dizer?
‑Que mais queres?‑Encolhendo os ombros:‑ Só a morte poderia impedir a Margarita de ir contigo. Não esperava outra coisa, e acabei de o dizer ao Novarra. Ele concordou e disse‑me que achava natural.
‑Vou alertar o Pebas‑anunciara o Dr. Mohr em voz abafada.
‑Nem vale a pena! Vai ficar todo orgulhoso da filha corajosa que tem. Ele pode impedir que ela dormisse contigo? E ainda menos pode impedir que viva contigo; aqui, na montanha, viver significa ser incondicional até ao fim!
Pouco depois da chegada do doutor Dr. Mohr à frente de casa, o Dr. Novarra e quinze homens do burgo, calados e com ar de poucos amigos, apareceram no planalto, trazendo mulas carregando um cestinho de cada lado. Foi nestes cestos que puseram as crianças. Assim ficavam seguras, não podiam cair e a trepidação constante ia cansá‑las e fazê‑las adormecer. Uma outra mula tinha afivelada na garupa uma tábua larga, em cima da qual estava montada uma metralhadora pesada, já carregada e com a cinta das muniçÕes a postos. Uma segunda mula, muito robusta, transportava quatro caixas de aço com mais cintas para a metralhadora.
O Dr. Novarra saudou o Dr. Mohr como um irmão, abraçou‑o e também apertou Margarita contra o peito largo.
‑Estou contente!‑bradou na sua voz de baixo.‑ Apesar de não ir entrar em Penasblancas, espero ter a oportunidade de afugentar alguns paus‑mandados do Revaila. Doutor, o meu plano é o seguinte: vamos levá‑lo a si e à Nuria com as crianças até às proximidades da patrulha da Polícia. Depois, safamo‑nos depressa, porque nunca teremos qualquer contacto caloroso com as forças da ordem. Aí, a sua amizade com o chefe da Polícia não serve para nada! Quando estiverem em segurança, vamos tratar dos nossos assuntos. Não são da sua conta, nunca os compreenderá, têm a ver com as nossas próprias leis. ‑Olhou em redor. As crianças estavam nos cestinhos. Nuria, em cima duma mula, envergava roupa de homem. O Dr. Simpson surgiu à entrada do hospital e disse‑lhes adeus.‑Todos sentados!‑ordenou o Dr. Novarra em voz alta.‑Padre, onde estão as suas ferramentas? Então não há incenso?
‑A sua metralhadora chega bem! ‑ Apertou as mãos ao Dr. Mohr e a Margarita.‑Deus vos acompanhe. Que a vossa vida...
‑Cris! O que é isso?‑O Dr. Mohr segurou a mão de Cristobal.‑Parece uma despedida.
‑E é‑retorquiu Cristobal irreflectidamente.
‑Uma despedida para sempre? Ouviste dizer alguma coisa que não sabemos? Devemos sair daqui porque está para acontecer alguma?
‑Que disparate!‑O padre Cristobal riu, mas parecia estranhamente sufocado. ‑ E mesmo que se esfaqueiem uns aos outros, sabes muito bem que não acontece nada ao hospital nem à igreja. São todos bons filhos de Deus!
O Dr. Mohr afastou‑se, com um peso estranho no coração. Ele, o Dr. Novarra e Margarita, juntamente com mais quatro homens e a metralhadora, constituíam a guarda avançada. Seguiam‑se Nuria e os filhos, rodeados por seis cavaleiros. Fechavam a pequena coluna os outros cinco, armados até aos dentes. Se fossem atacados, o assalto surgiria de trás, enquanto à frente haveria uma barricada. A velha cilada de sempre, da qual ninguém saía com vida.
Mas não aconteceu nada. Avançaram bem durante todo o dia. Encontraram alguns pesquisadores sentados em frente dos seus casebres, extenuados pelo trabalho nas minas. Partiam grandes pedras na esperança de encontrar inclusÕes de esmeraldas. Três vezes foram observados por bandos que percorriam a região, mas que não se atreveram a atacar a coluna. Com a ajuda do serviço de informação dos gunqueros, que funcionava às mil maravilhas, o Dr. Novarra fizera saber que uns tantos homens do burgo iam fazer uma pequena excursão, o que bastara para despertar cautelas. Tudo o que ficava no caminho para Penasb lanc as tratou de se esconder e de esperar. Era evidente que a metralhadora montada na tábua também produzia o seu efeito. Depressa correu o rumor de que os homens do burgo iam para Penasblancas como para a guerra. Por iSSO, OS caminhos esvaziaram‑se.
à noite, começou a chover, mais cedo do que Novarra esperava. Eram lençóis de água. Já não se tratava duma chuvada nem dum aguaceiro. O céu parecia um mar que se precipitava sobre a terra.
‑Tem sorte, doutor‑disse Novarra, sentado com o Dr. Mohr, Nuria e Margarita debaixo duma tenda impermeável. O mar que caía do céu batia na tenda como se estivessem a martelá‑la com paus. As crianças encontravam‑se numa caverna, enroladas em mantas. Nos penedos, de cabeça baixa, as mulas não se mexiam. As cortinas de água transformavam‑nas apenas em sombras. "O dilúvio deve ter sido assim", pensou o Dr. Mohr. Estava a ver pela primeira vez uma chuva assim, totalmente incompreensível para quem nunca viveu esta experiência. ‑Com este tempo de cão, já ninguém tem interesse em andar atrás duma mulher com crianças pequenas. É quase certo que vai conseguir chegar a Penasblancas sem nenhum incidente. E depois segue para Bogotá, mas disso é o major Gomez que trata.‑Encolheu um pouco as pernas, para que a água que caía na tenda não Lhe respingasse as botas.‑Vai encontrar‑se com Don Camargo?
‑Não sei. Se ele deixar que eu Lhe fale...
‑Tem de tentar. Por causa do Christus Revaila. Aposto que o grande boss não sabe como esse bandido o aldraba. O Revaila é o seu único e grande perigo, doutor. E seja o que for que Lhe aconteça... será sempre apresentado a Don Camargo como um acidente. Por isso, tenha muito cuidado enquanto estiver em Penasblancas, mesmo que durma no bolso das calças do tenente Salto ou do major Gomez. O Revaila vai tentar chegar‑lhe! Não é nenhum idiota e sabe muito bem o que o espera se o doutor chegar de boa saúde a Bogotá e falar com Don Camargo. Nessa altura, a sua única saída será o caminho da montanha, pois não se atreverá a regressar a Bogotá. Mas, na montanha, estamos nós à espera dele! Compreende, doutor? A sua morte é o seguro de vida do Revaila! Nunca ande em Penasblancas sozinho. E não confie muito na protecção da policia. Se conseguiram atingir um Kennedy no meio duma data de homens armados, o doutor Morero não passa dum alvo fácil para o Revaila.
‑Não seria mais simples prender o Revaila?
‑ Tem razão? O problema é esse: nunca se consegue acusá‑lo de nada!
‑De repente há leis em Penasblancas?
‑Inacreditável, não? Mas é obra do Gomez e do Salto, que querem fazer de Penasblancas uma cidade modelo! Talvez o Revaila fique sob custódia da polícia enquanto o doutor lá estiver. O que não quer dizer que ele não o tenha calculado e não fique muito regalado numa cela enquanto os seus ajudantes Lhe enchem o pêlo de buracos.‑O Dr. Novarra abanou a cabeça. A chuva martelava na tenda e o caminho transformara‑se num rio que se precipitava ruidosamente para o vale. A água formava lençóis ao cair dos penhascos. à distância, parecia uma trovoada.‑Começou!‑comentou Novarra.‑Derrocadas. A água escava escarpas inteiras, que depois se desmoronam. Há sempre uma quantidade de mortos e feridos. O bêbedo do Simpson vai ficar atulhado de cadáveres até ao tecto.‑Os estrondos intensificaram‑se. Parecia que o chão tremia sob os seus pés.‑Meu Deus, que chuvada! Só choveu assim há sete anos. Já ninguém tinha esperança de voltar a ver um guaquero com vida. Dizia‑se em Muzo que tinham morrido todos afogados ou soterrados pela montanha. Até metade de Penasblancas foi arrasada por uma enxurrada.
Choveu até de manhã. O Sol já não brilhava. O céu cinzento absorvia a luz e inchava de água, que depois se precipitava contra a terra. Quando a chuva abrandou e se normalizou, o que, em termos europeus, significava que continuava a chover torrencialmente, o dia ficou como suspenso num saco cinzento. à luz difusa, parecia que o Sol se ia extinguindo lentamente. O mundo diluía‑se sem o calor do infinito.
Debaixo de lonas e mantas que rapidamente se encharcaram e ficaram pesadas como chumbo, com roupas que num instante se molharam todas, avançaram para o vale de Penasblancas. Mais pareciam fantasmas quando surgiram da cortina de chuva e chegaram à estrada que acabava, ou começava, no sopé da montanha. Esperava‑os o tenente Salto com um jipe e quatro polícias metidos numa tenda. Um fogareiro de petróleo espalhava um calor reconfortante e um chá forte fervia na chaleira.
Apesar da chuva, Felipe Salto correu de braços abertos para o Dr. Mohr. Havia cinco minutos que o Dr. Novarra e os seus quinze homens se tinham despedido do Dr. Mohr. Um batedor mandado à frente comunicara‑lhes que a polícia acampara no início da estrada.
‑ É um homem com sorte ‑ dissera‑lhe Novarra, beijando‑o em ambas as faces. ‑ Agora posso confessar‑lhe que ontem à noite não dava um peso pelas nossas vidas. Quando ouvi o ribombar na montanha, pensei que estávamos perdidos e que nunca mais saíamos dali. Estávamos presos numa ratoeira. Tínhamos o caminho soterrado atrás e o desfiladeiro obstruído à frente. Ali metidos naquela depressão, achei mesmo que íamos morrer afogados como coelhos. Mas tinha‑me esquecido de que o doutor estava connosco! O menino que nasceu virado para a Lua! ‑ Pigarreara, beijara as faces de Margarita e dissera: ‑ E agora ponham‑se a andar antes que o desfiladeiro inunde!
‑ Para onde vai? ‑ perguntara o Dr. Mohr.
‑ Algum buraco havemos de arranjar. Pense em nós de vez em quando...
‑ Mas que disparate é esse? Daqui a uns dias estou de volta!
‑ Ainda podem passar semanas até regressar ao hospital.
‑ Está bem, duas ou três semanas... Reflecti muito e decidi que não vou com a Nuria para Bogotá. O meu lugar é agora na montanha, ao lado dos feridos! O major Gomez pode ir falar com o Don Camargo.
‑ O Don Alfonso nem sequer vai receber o Gomez, quanto mais ouvi‑lo...
‑ Basta que o Camargo saiba a verdade. Nem precisa de dar respostas. Sei como é. Vai falar para uma sala vazia, num grande edificio de escritórios mas, apesar de não ver ninguém, vai ser ouvido. Quanto a mim, regresso imediatamente com a Perdita.
O Dr. Novarra assentira, voltara a montar na mula, tapara‑se com a lona e levantara a mão para dizer adeus. Os seus homens, que já tinham voltado para trás, haviam desaparecido atrás das torrentes de água. A chuva absorvera‑os.
‑ Se não voltarmos a ver‑nos, doutor, não se deixe abater pela tristeza! Os meses que passou connosco fizeram história na vida dos gunqueros. Uma história que existe, mas que nunca ninguém escreveu. Quem quer saber de trinta mil homens, mulheres e crianças que levam uma vida inacreditável apenas por um punhado de pedras verdes? A quem é que isso interessa? De certeza que não às grandes senhoras que exibem as suas jóias de esmeraldas na ópera ou nas noites de gala e se deleitam com os olhares de admiração dos outros. Quem pode suspeitar do sangue que as mancha, que destinos estão ligados a elas, de que mar de miséria provêm as pedras que, no pescoço, nas orelhas ou no pulso duma linda mulher valem uma fortuna? Talvez um dia escreva sobre isto, doutor.
Virando‑se, enterrara os calcanhares na barriga da mula e trotara atrás dos outros. O Dr. Mohr permanecera à chuva torrencial até o Dr. Novarra ter desaparecido atrás da cortina cinzenta. Apoderara‑se dele a mesma sensação estranha e angustiante que tivera ao ouvir as palavras de despedida do padre Cristobal. Girando nos calcanhares, correra na direcção da mula, saltara para a sela de couro e fitara Margarita e Nuria, montadas nos seus animais. A água escorria‑lhes das lonas que as protegiam. Nos cestinhos, igualmente protegidos por toldos, as crianças estavam tão caladas que mais parecia que já se tinham afogado.
‑ Vamos! - gritara o Dr. Mohr. ‑ Mais umas centenas de metros e estaremos a seco, no quentinho...
Em Penasblancas, instalaram‑se na esquadra da Polícia, onde não mudara nada. O que havia era um hóspede novo que, sentado na tarimba da cela número três, observou o Dr. Mohr com os olhos frios dum predador quando este se aproximou das grades, e que não pronunciou palavra nem mesmo depois da explicação do tenente Salto.
- Achei melhor prender o Christus Revaila, para sua própria segurança, doutor. Houve um advogado de Muzo que apresentou logo queixa, mas até os trâmites legais estarem cumpridos, já o doutor está em Bogotá. ‑ Batendo nas grades de ferro: ‑ ó Christus, não tinhas tanta coisa para dizer ao médico quando voltasses a vê‑lo...?
Revaila fitou o Dr. Mohr com uma expressão cheia de ódio, virou‑lhe as costas e pôs‑se a tamborilar com os dedos no colchão.
- Está a estourar de raiva! ‑ observou jovialmente o tenente Salto. ‑ Vamos deixá‑lo sozinho. Pode ser que se coma a si próprio.
Muita coisa mudara em Penasblancas depois da entrada das tropas do major Gomez na cidade. O bar de Mercedes Ordaz estava fechado. Viviam agora na grande casa oficiais e sargentos da 2.a Companhia. O restaurante fora transformado em escritório. As raparigas viviam espalhadas pela cidade e trabalhavam por conta própria. Fora permitido à mamá continuar instalada nos seus aposentos, mas estava sob vigilância constante, quase nunca saía do quarto e passava praticamente o dia inteiro sentada à janela, observando a rua e parecendo esperar um milagre. Também ela contratara um advogado, que se deslocara propositadamente de Bogotá para protestar junto do major Gomez, que o deixara falar e lhe respondera:
‑ Não tem razão nenhuma, senhor! Isto não é nenhuma arbitrariedade, nenhuma ilegalidade, nenhum atentado aos direitos individuais, e sim uma medida do Ministério do Interior para o combate à criminalidade internacional! Tenho plenos poderes. Queira ir queixar‑se pessoalmente ao ministro!
Com a ajuda de algumas visitas que fora autorizada a receber, a mamá ainda tentara manter contactos com as suas raparigas, de modo a, pelo menos, controlar este negócio enquanto o das esmeraldas estivesse temporariamente interrompido. Mas a sua tentativa fracassara. O poder de Mercedes Ordaz fora neutralizado. Os seus apelos tinham permanecido sem resposta, as suas ameaças surdas relativamente ao futuro (tanto ela como Christus Revaila consideravam a presente situação um episódio anormal e temporário, desencadeado pelo zelo excessivo dum major desejoso de ser promovido) não haviam sido levadas a sério e já ninguém dava ouvidos às suas promessas.
- Começaria de facto uma nova era em Penasblancas? Incutiu‑nos coragem a todos, doutor ‑ disse o tenente Salto. ‑ O senhor e o padre Cristobal serviam‑nos sempre de exemplo quando repetíamos para nós próprios: "Isto é um absurdo! Não estamos a fazer nada! Nunca conseguiremos sair deste atoleiro!" E depois ouvíamos falar do que o senhor tinha feito na montanha. Era como um pontapé moral no traseiro, percebe? Então o major Gomez era uma pessoa completamente diferente depois de ter estado consigo. Tomou Penasblancas como se assaltasse uma fortaleza. Aos poucos, foi tudo mudando. - Rindo ironicamente: ‑ Em lugar de um grande bordel, temos agora catorze empresas individuais! Já não é a Mercedes sozinha que protege as raparigas: neste momento, quem se encarrega disso são catorze proxenetas. Estamos a normalizar‑nos...
‑ Onde é que a Perdita Pebas está a viver? Queremos falar com ela já amanhã.
‑ Já não está aqui.
‑ O quê? ‑ O Dr. Mohr respirou pesadamente. - A Margarita já sabe?
‑Sabe... ‑ Hesitando, Salto continuou: - Perguntou por ela logo na tenda. Informou‑se baixinho enquanto pendurava as roupas molhadas. Tive de lhe dizer a verdade. A Perdita Pebas foi‑se embora com um homem.
‑ Sabe para onde?
‑ Diz‑se que para Chivor. O homem é comerciante. Vende camisas, fatos, botas e chapéus, naturalmente só contra esmeraldas. Desconfio de que também vende armas! Mas não consegui provar nada. - Encolheu os ombros. - É pena pela rapariga. Era muito bonita. Esperava que voltasse para o pai depois do encerramento do bar, mas a vida com a mamá já a tinha corrompido de mais. Já não havia volta. ‑ Passando os cigarros ao Dr. Mohr, indagou: - Onde está a Margarita?
‑ Com a Nuria, a comprar roupa para as crianças.
‑ Sozinha? - exclamou Salto, assustado.
- Um dos seus polícias, que está de folga, acompanha‑as.
‑ É verdade que o Zapiga fez um achado que vale milhões?
‑ É.
‑ Uma esmeralda pura de mais de duzentos quilates?
‑ Tive‑a na mão.
‑ Nossa Senhora! Qual é a sensação, doutor? ‑ Os olhos de Salto brilhavam. - Uma pessoa não fica doida?
‑ Não! ‑ Abanou a cabeça. Se eu soubesse a infelicidade que essa maldita pedra ia causar, tinha‑a feito em pedaços com um martelo.
‑ Mesmo assim, ainda seriam milhões!
‑ Que eu atirava para o desfiladeiro!
‑ E já não estaria vivo, doutor. O Zapiga teria dado cabo de si no mesmo momento! E todos nós o teríamos compreendido.
‑ Não teria feito nada, tenente? O senhor, um oficial da Polícia?
‑ Nem pensar, doutor. Uma pedra assim justifica tudo. Homens há muitos, mas esmeraldas de duzentos quilates só se encontram talvez de cem em cem anos
Capitulo 13
Chovia. Chovia ininterruptamente. Chovia havia nove dias. Havia nove dias que o mundo era um naufrágio cinzento. Nove dias de lusco‑fusco, de onde se precipitava água e mais água.
As estradas estavam intransitáveis, da montanha corriam regatos transformados em rios torrenciais, a cidade tinha água até ao joelho, sem hipóteses de escoamento, e colunas de automóveis regressavam dizendo que Penasblancas estava cortada do resto do mundo. O caminho para Bogotá achava‑se obstruido, as pontes arrancadas e a larga estrada cheia de buracos e inundada. Só pelo rádio era ainda possível qualquer contacto com o exterior. Os cabos telefónicos pendiam dos postes que não tinham tombado. E da montanha precipitava‑se uma enxurrada de terra, pedras e troncos que levava tudo à sua frente; uma avalancha que tudo soterrava.
Nesse nono dia, o tenente Salto subiu ao primeiro andar, onde o Dr. Mohr e Margarita estavam instalados.
‑ Uma comunicação via rádio de Muzo ‑ disse com um ar abatido. ‑ Tenho de lha transmitir, doutor. Dois helicópteros sobrevoaram ontem, em condições muito perigosas, as regiões mais atingidas pela catástrofe. Também... também estiveram no sítio onde mora...
O Dr. Mohr olhou fixamente o jovem tenente. O coração deu‑lhe um salto. Sentiu a mão de Margarita procurando a sua.
‑Fale... ‑ pediu o Dr. Mohr penosamente.
‑ Não se conseguia ver nada. Só água e enxurradas... Metade da montanha deve ter desabado... voaram o mais baixo que puderam. Não reconheceram nada... nem hospital, nem igreja...
‑ Oh, meu Deus! ‑ O Dr. Mohr fechou os olhos. Margarita abraçou‑o, apertou‑se contra ele e tentou consolá‑lo com os lábios, que lhe percorriam o rosto. "Agora estamos sozinhos", pensou ela. "Eu e tu. Completamente sozinhos. Sem o pai nem a mamã. Nem sequer tenho a minha irmã. A montanha liquidou‑nos a todos. A maldita montanha, onde se escondem milhões, como acreditava o pai. A montanha foi mais forte. Ganhou."
‑ Só enxurradas?
‑ Por todo o lado! ‑ Engoliu com dificuldade. - Nunca se viu nada assim! Ninguém sobreviveu. E não devemos acreditar em milagres.
No décimo quinto dia, a chuva abrandou finalmente, transformando‑se num chuviscar ligeiro. O céu continuava uma infinita massa cinzenta, que pairava sobre a terra como um saco. Mas clareara um pouco. Algures nadando na vasta humidade, o Sol tentava fazer passar a sua luz.
Havia muito que o mundo inteiro sabia o que se passara nas montanhas colombianas. Repórteres da televisão filmavam a catástrofe do ar, o Governo declarara o estado de emergência na região da cordilheira e os soldados tentavam chegar aos montes de destroços na procura de sobreviventes. Os países amigos enviavam medicamentos, tendas, médicos e alimentos, que eram primeiro armazenados em Bogotá, pois sabia‑se que, além da região mineira com o seu exército de clandestinos e fora‑de‑lei, havia outros locais necessitados na Colômbia. Também as colunas de dragas e escavadoras foram primeiro só até Muzo e Cozques, onde estacionaram à espera.
O que podiam as escavadoras contra uma montanha? Valeria a pena limpar estradas que já eram arriscadas numa situação normal? Para quem? Para os gunqueros? Deitar à rua milhões de pesos por um bando de esfarrapados? Não fora por vontade própria que tinham ido escarafunchar para as minas abandonadas? O Governo não se desinteressara delas? Além disso, os gunqueros não burlavam o Estado em milhões de dólares por ano, vendendo clandestinamente as suas pedras preciosas a compradores que as faziam sair do país?
Uma comissão sobrevoou a zona da catástrofe, chegando à conclusão de que realmente era possível recuperar uma região inundada, como na índia, ou que era fácil resgatar uma zona afectada por um terramoto, como em Marrocos, mas que era totalmente absurdo desenterrar grandes extensões soterradas pela derrocada da montanha, com o único objectivo de restaurar a paisagem primitiva.
Os sobreviventes chegavam dos desfiladeiros rochosos montados em mulas ou a pé, com carroças ou liteiras. Figuras miseráveis, cambaleando sem forças. Quase todos vinham feridos. A maioria tinha contusões graves, feridas abertas ou fracturas. Saíam em torrentes do inferno, sitiavam Penasblancas, Muzo, Chivor e Cozques e montavam acampamentos de refugiados nos limites das pequenas cidades, trazendo o terror com eles.
Em trinta e seis horas, a percentagem de homicídios triplicou. De Bogotá foram enviadas novas unidades militares e um batalhão blindado da Polícia. Os acampamentos foram cercados com arame farpado. Os prisioneiros da montanha tornaram‑se prisioneiros da cidade. Cozinhas portáteis sustentavam sobretudo mulheres e crianças. Pela primeira vez na vida, os homens foram registados, fotografados e reunidos em colunas de trabalho, regidos por uma lei de excepção imediatamente emitida.
Todos os dias Margarita e o Dr. Mohr passavam horas a fio nos locais de recepção de Penasblancas, onde os fugitivos da montanha tinham de se apresentar. Incansavelmente, andavam de tenda em tenda, perguntando:
‑ Sabem alguma coisa do Adolfo Pebas? Alguém viu o padre Cristobal? Há aqui homens do burgo? Alguém sabe onde ficou o doutor Simpson? ‑ Muitos conheciam estes nomes, que já tinham adquirido uma certa fama, mas ninguém sabia o que lhes acontecera.
Um ferido grave, que fora transportado numa rede pelos dois filhos, disse em voz entrecortada:
‑ O senhor é o médico, não é? O único daqui de fora que nos estimava... Que bom que pelo menos o senhor doutor ainda esteja aqui...!
‑E... e os outros? indagou o Dr. Mohr a muito custo.
‑ Vai voltar para junto de nós, doutor?
‑ Vou. Claro. Vou construir um hospital grande, a sério, para vós. Onde está o padre Cristobal, o doutor Simpson e os outros?
‑ A sua região foi a mais afectada, doutor. ‑ O velhote tossiu e contorceu o rosto com as dores. ‑ A água escavou tudo... mina por mina... a montanha ficou oca, esvaziada... só com uma pele fininha... Desmoronou tudo... o mundo desabou, doutor...
No dia seguinte, o major Gomez chegou a Penasblancas de helicóptero. Fora‑lhe confiado o comando de toda a região. Tomara medidas duras... havia dois dias que decorriam os fuzilamentos dos saqueadores e homicidas, condenados em processos sumários e executados na mesma hora e local.
‑ Não pode ser doutro modo! ‑ afirmou Gomez friamente. ‑ Voltámos à Idade Média. Deixo os mortos ali mesmo, como medida de intimidação. É a única língua que eles entendem. ‑ Indicando o helicóptero: - Quer vir, doutor?
‑Lá... lá acima? ‑ perguntou baixinho o Dr. Mohr.
‑ Sim. Se pudermos, aterramos. Vi fotografias do local. O desfiladeiro atrás do hospital desapareceu. Está cheio de entulho. Ruiu metade da montanha que fica em frente, onde o Pebas e os outros viviam e trabalhavam. Também já não existe o vale onde se erguia o burgo. O que se vê agora é um cabeço, como uma ilha num lago. É que as saídas do vale também abateram e formou‑se uma espécie duma represa.
‑ Portanto, não há esperanças. - O Dr. Mohr fitou o céu cinzento, de onde caía uma chuva fininha, quase delicada.
‑ Temos de ser fortes e pensar que, como a montanha abateu, a morte foi rápida...
Duas horas mais tarde, sobrevoavam o local onde outrora se erguiam o hospital e a pequena igreja. Só se viam destroços, uma torrente de água e uma montanha com todo um flanco arrancado, de cujas feridas jorravam mais quedas‑d'água que se precipitavam sobre o planalto, que já não era planalto nenhum.
O helicóptero desceu o mais possível, sobrevoando o caos. Em silêncio, o Dr. Mohr contemplava a desolação, a paisagem primitiva que ali nascera.
‑ Não podemos aterrar ‑ observou o major Gomez em voz baixa, pousando a mão no braço de Mohr. - Senão, a água ainda nos leva. Consegue reconhecer alguma coisa?
‑ Nada. ‑ O Dr. Mohr abanou a cabeça. ‑ Ele pressentiu isto.
‑ Quem?
‑O Cris...
‑ O padre?
- Despediu‑se de mim como se fosse para sempre. Podem pressentir‑se coisas assim?
‑Talvez... quando se tem o dom de prever o futuro... Deve haver pessoas assim. O padre era uma delas?
‑ Nunca falou nisso. Mas agora acredito que, muitas vezes, sabia mais do que podia dizer. - Encostou o rosto à carlinga de vidro. ‑ Ali devia ser o hospital ‑ comentou em voz rouca. ‑ Ali, a igreja. E ali a enfermaria... cheia... quarenta e três doentes, todos recuperáveis. Não se compreende...
Descreveram mais um círculo sobre a região, sobrevoaram o lago onde dantes ficava o burgo e viraram na direcção de Muzo. Debaixo deles deslizava uma terra sem rosto, cujas fendas e rachas jorravam água. Um mundo destroçado que chorava...
‑ O que vai fazer agora? ‑ perguntou Gomez depois de deixarem a montanha. A região mais plana que sobrevoavam parecia um mar com muitas ilhas. Por dois caminhos ainda transitáveis, desfilavam novas colunas vindas da montanha. Sobreviventes, que mal acreditavam no milagre de se terem salvo. - Tenciona ficar em Bogotá?
- Fico em Penasblancas.
Gomez fitou o Dr. Mohr como se este tivesse enlouquecido.
- Acho que não ouvi bem - afirmou com voz tensa.
- Não? Amanhã vou a Bogotá entregar a Nuria e as crianças e tratar duns assuntos pessoais. Depois, regresso a Penasblancas com a Margarita, que então se chamará Senhora Mohr.
- Mohr? Como é isso?
- Não sou colombiano, major. Morero era um nome falso.
- Valha‑me Deus! Não me faça isso! Não me diga que é algum criminoso! Quem é você? Ao menos é médico?
- Chamo‑me Mohr. Doutor Peter Mohr. Sou cirurgião em Hamburgo.
- Alemão!
- Isso!
‑ Daí a teimosia! Agora percebo porque é que você sempre me intrigou. Na sua situação, qualquer um já teria mandado tudo à fava há muito tempo. Mas você ainda se obstinou mais! Alemão! E quer voltar para junto daqueles doidos?
‑ Quero. Agora precisam mais de mim do que antes.
- As pedras verdes também o enfeitiçaram?
‑ Não, major. ‑ O Dr. Mohr recostou‑se no assento. ‑ Sempre acreditei que era uma pessoa de coração empedernido, inflexível. E até talvez o fosse segundo os padrões europeus, normais. Mas o que são eles comparados com as normas da cordilheira? E, de repente, descubro que também posso ser sentimental.
‑ O senhor? Isso é uma piada, doutor?
‑ Tenho de ficar aqui, major; devo‑o ao padre Cristobal, ao Simpson, ao Pebas e à Maria Dolores, a todos os doentes que jazem debaixo dos montes de destroços, ao Pepe Garcia, meio cego, que caiu para o desfiladeiro com a sua caverna, aos homens do burgo. Todos eles esperariam que eu não desistisse, que não fugisse da Natureza, que não fosse tão cobarde ao ponto de acreditar na maldição das pedras verdes. Todos eles esperariam que eu voltasse a fazer, a construir, aquilo que criaram comigo. É este o meu sentimentalismo, major. Em Bogotá, vou andar de ministro em ministro, lamber botas, mendigar, convencer as pessoas. Quero construir um grande hospital e criar uma pátria para os esquecidos.
‑ Não é possível discutir consigo ‑ ofendeu‑se o major Gomez, virando‑se. O helicóptero descia para o aeródromo militar de Muzo. - Acha que vale a pena andar a falar ao coração e argumentar contra a razão?
‑ Vale sempre a pena quando pode salvar‑se uma vida. Uma vida, major... e aqui há milhares.
Juan Zapiga esperava por Nuria e os filhos num pequeno hotel. Caíram todos nos braços uns dos outros a chorar e, depois, foram sentar‑se em frente do altar duma das igrejas de Bogotá, rezando pelas almas das três crianças sacrificadas às pedras verdes.
Zapiga ainda tinha em seu poder o grande achado. Não confiava em ninguém, nem sequer nos cofres‑fortes dos bancos. Dormia deitado em cima da pedra milionária, com a pistola automática na mão. De dia, atava o saco de couro à cintura e andava com ele pendurado entre as pernas.
Ewald Fachtmann, o amigo de Mohr que, na realidade, era o culpado de tudo, arrepelou os cabelos e suplicou ao médico que regressasse imediatamente a Hamburgo.
‑ Pega na Margarita e põe‑te a andar! ‑ exclamou insistentemente. ‑ Não te metas em assuntos de que não entendes nada, pá! Esse tal Zapiga que venda a pedra sozinho. Não tens nada a ver com isso. Duzentos quilates numa só pedra! Que loucura! É razão para se fazer uma revolução. E tu queres ir vendê‑la. És doido varrido!
‑ Quero falar com o Camargo. Combina com ele uma data...
‑Otelo... isso é um suicídio! Passaste a fazer parte da lista dele desde que se soube que querias fazer do hospital e da igreja pontos de recepção das esmeraldas. E agora ainda apareces com duzentos quilates!
‑ É um preço de se lhe tirar o chapéu.
‑ Vamos daqui para a cidade comprar um belo caixão entalhado para ti. Depois, adquirimos uma campa e preparamos‑te o enterro.
‑ Já que és assim tão cobarde, eu chego sozinho a Don Alfonso.
‑ Porque é que esse Zapiga não pode vender a pedra sozinho?
‑ Precisamente pelas razões que mencionaste. Matavam‑no num abrir e fechar de olhos.
‑ E o problema é teu?
‑ Mais do que pensas! Depois conto‑te. Esta maldita pedra custou a vida a três crianças, e duas estavam à minha responsabilidade. O Don Camargo tem de pagar por isso.
‑ Já falas como um gunquero! ‑ exclamou Fachtmann, apavorado. ‑ Tens de regressar imediatamente à Alemanha para te curares.
Quando a pedra estiver vendida, podes ir visitar‑me a Penasblancas. E já nem precisas de nenhum colete à prova de bala. Penasblancas está uma cidade tão segura como Eppendorf.
‑ Ter‑te chamado para a Colômbia foi a pior ideia que tive ‑ rematou Fachtmann, exausto. ‑ Mas quem podia adivinhar que o descuidado Otelo de Heidelberg se ia transformar num missionário com aspirações a mártir? Está bem! Eu telefono a Don Camargo e lavo daí as minhas mãos.
à tarde, depois de alguns controlos, o Dr. Mohr sentou‑se novamente na grande sala, enquanto a voz de Camargo se fazia ouvir no altifalante escondido. Uma voz neutra, educada. Era um prazer ouvir o seu espanhol puro. Um castelhano perfeito.
‑ Então está vivo! - disse Camargo. ‑ Ainda há milagres. Tinha muitas esperanças de o ver enterrado para sempre...
‑ Infelizmente, tenho de o desiludir, Don Alfonso, se bem que seja só por acaso que estou aqui.
- O padre...
‑ Morto. Morreram todos soterrados ou afogados. Assassinados pela montanha.
- Vi imagens na televisão. Ainda vão passar muitos meses até as primeiras minas recomeçarem a trabalhar. Um prejuízo de milhões.
‑ Apesar de tudo, a maior pedra que alguma vez foi encontrada está aqui.
- Então é verdade?
‑ É. Tive‑a na mão.
- O senhor? - A voz de Camargo aumentou de volume. ‑ Sabe onde a pedra está?
- Sei.
- Onde?
‑ Comigo.
Fez‑se silêncio por um momento. O Dr. Mohr sentiu um arrepio percorrendo‑lhe a espinha. Depois, a voz de Camargo voltou a fazer‑se ouvir.
- Se eu soubesse que é um homem sério...
‑ Tomei a meu cargo vender a pedra. Quem a descobriu foi outra pessoa, que está escondida. A pedra encontra‑se em segurança. Mais de duzentos quilates... um verde puro, límpido... Quanto oferece, Don Alfonso?
‑ Posso fazê‑lo desaparecer sem deixar rasto, doutor! ‑ afirmou Camargo com frieza, num tom de voz cheio de elegância. ‑ Ninguém iria andar à sua procura.
‑ Pois pode, mas fica sem a pedra, que está num cofre‑forte. As torturas e até a minha morte não lhe servem de nada. Vamos lá fazer negócio.
- Não compro às cegas. Tenho de ver a pedra.
O Dr. Mohr soltou uma gargalhada.
‑ Está a brincar comigo, Don Alfonso! Respondo pessoalmente por esta esmeralda. Quando o dinheiro que acordarmos estiver depositado num banco em Nova Iorque, então eu trago‑lhe a chave do tesouro.
‑ Está doido, doutor!
‑ Doze milhões de dólares...
‑ Acabou a conversa...
O Dr. Mohr levantou‑se da poltrona e fez uma vénia para um canto da sala, pois sabia que Camargo estava a vê‑lo através dum monitor.
‑ De resto, vou regressar a Penasblancas, apesar do seu homem de mão, Christus Revaila.
‑ Fique, doutor Morero!
Já na porta, o Dr. Mohr virou‑se.
‑ Doze milhões de dólares...
‑ O que é que se passa com o Revaila?
‑ Tenho muito para lhe contar. Deu ordens para me matarem?
‑Não!
‑ Então temos mais um ponto por esclarecer! Há muitos, Don Alfonso. De resto, lamento muito que tenha perdido os seus investimentos no hospital. Não tive culpa. Foi a última vingança das pedras verdes. A montanha estava toda esburacada por causa das minas e desabou com o temporal. Da mesma maneira que uma represa revolvida pelos coelhos desmorona se houver uma inundação.
‑ Dez milhões de dólares, doutor.
‑ Doze milhões, Don Alfonso. Quando vir a pedra, quando tiver aquele sol verde na mão, até fica sem respiração.
‑ Não vou em chantagens! ‑ afirmou orgulhosamente Camargo. ‑ O que é que percebe de pedras?
‑ Pouco. Mas percebo alguma coisa de mortos, e esta pedra já custou três vidas. As vidas de três crianças pequenas e inocentes. Isso, a meus olhos, fá‑la atingir um valor verdadeiramente incalculável.
‑ Doze milhões... ‑ repetiu Don Camargo com frieza. ‑ Aceito. Mas se me enganar, doutor...
‑ Tem a minha cabeça à sua disposição. Eu depois dou‑lhe o número da conta de Nova Iorque por telefone.
‑ Quando tenciona regressar a Penasblancas?
‑ Logo que tenha a garantia da construção dum novo hospital. Amanhã começo a minha ronda de pedinchice...
‑ Eu anuncio a sua visita ao ministro das Finanças, doutor. Satisfeito?
‑ Muito! ‑ O Dr. Mohr olhou em volta mas não viu nenhuma câmara. ‑ Porque é que faz isto tudo por mim, Don Alfonso? Vai contra tudo o que se ouve dizer de si.
‑ Também não sei, doutor. ‑ Na voz de Camargo havia um certo riso contido. ‑ Acho que tenho um fraquinho por si... se calhar porque tem a cabeça fraca, doutor...
O altifalante deu um estalido. A conversa terminara. Devagar, sem ser incomodado, respeitosamente saudado pelo porteiro, o Dr. Mohr abandonou o grande edifício de escritórios da Emerald Street. Ewald Fachtmann, que o esperava de carro no parque de estacionamento, saltou de alegria quando o viu sair vivo.
‑ Falaste com ele? ‑ exclamou, abraçando o amigo. - E não vens num caixão de zinco? Como correu?
‑ O Zapiga, a Nuria e os filhos vão ter uma bela vida ‑ retorquiu o Dr. Mohr. A tensão dos seus nervos relaxou. Apoderou‑se dele um enorme cansaço, perpassado de desânimo. Sentando‑se no automóvel, encostou a cabeça para trás e fechou os olhos. ‑ Talvez consiga um hospital novo. Pouco mais mudará entre Muzo e Penasblancas. Milhares de pessoas voltarão às montanhas para procurar pedras verdes e sonhar com o grande achado das suas vidas. Só uma coisa será diferente: terão um lugarezinho onde ainda existirá humanidade.
‑ Junto de ti... ‑ Sentou‑se atrás do volante. É um esforço que nunca te hão‑de pagar, pá!
- Já está pago. ‑ O Dr. Mohr manteve‑se de olhos fechados, mesmo quando Fachtmann seguiu em frente e se meteu na fila de carros, buzinando. Pensou no padre Cristobal, no Dr. Simpson, que tanto gostava da pinga e era um médico tão competente, em Adolfo Pebas, Maria Dolores, Pepe Garcia, Miguel, o pugilista, no Dr. Novarra e os homens do burgo e em todos os que a montanha engolira... mas pensou também no tenente Salto e no major Gomez, em Zapiga, Nuria e as crianças, em Margarita, que em breve seria sua esposa, e em todas as mulheres, homens, crianças e velhos que de futuro iriam ter consigo para lhe pedir ajuda. Um mundo à parte, transbordando de dor e amor não correspondido.
‑ Alegro‑me pelo amanhã - rematou lentamente.
‑ Cada dia é uma aventura, no seio da qual está o homem. O que há de mais bonito do que trabalhar com pessoas? Lá em cima, na montanha, aprendi a pensar doutro modo. O mundo não acaba em Penasblancas. Há homens que vivem para lá da vulgaridade.
Heinz G. Konsalik
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