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AS EGIPCIAS / Christian Jack
AS EGIPCIAS / Christian Jack

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AS EGIPCIAS

Retratos de Mulheres do Egito Faraônico

 

       Núbia, 17 de Janeiro de 1829.

       Jean-François Champollion, que conseguiu decifrar os hieróglifos em 1822, efetua a sua única viagem ao Egito. Quer ver tudo, compreender, admirar, e não hesita em avançar para o Sul. Nesse dia, quando sopra uma forte nortada e o Nilo sobe, ameaçador, o pai da egiptologia pára em Ibrim, na Núbia. Visita santuários escavados na rocha e medita diante da representação da esposa de um príncipe.

       Subitamente, descobre uma verdade surpreendente. A posição daquela mulher, a sua dignidade, mostra, escreve ele, tal como mil outros fatos idênticos, como a civilização egípcia diferia essencialmente do resto do Oriente e se aproximava da nossa, porque podemos apreciar o grau de civilização dos povos segundo o estado mais ou menos suportável das mulheres na organização social.

       Com a sua habitual intuição, Champollion não deixa de observar que, no Egito dos faraós, a mulher ocupava uma posição absolutamente extraordinária, não só relativamente à cultura greco-latina mas mesmo em relação à sociedade do século XIX.

       O faraó Ramsés III afirma que contribuiu para que a mulher egípcia circulasse livremente sem que ninguém a importunasse: trata-se da mera evocação de um fato social adquirido desde a origem da civilização egípcia e não de uma inovação. De fato, com a instauração da monarquia faraônica, a mulher havia beneficiado de uma inteira liberdade de movimentos, sem ficar fechada num quarto escuro da casa, sob a implacável autoridade de um pai ou de um marido todo-poderoso.

       Os primeiros gregos que visitaram o Egito ficaram chocados com a autonomia concedida às egípcias; o geógrafo Diodoro da Sicília chega a afirmar, confuso, que a mulher egípcia tem plenos poderes sobre o marido, o que fez crer erradamente na existência de um matriarcado nas margens do Nilo. É certo que a mãe do faraó ocupa uma posição central no processo do poder; é certo que conhecemos numerosas inscrições em que o filho cita o nome da mãe e não o do pai; é certo que muitas vezes os grandes personagens fazem figurar o nome da mãe nos seus túmulos, ou seja, para todo o sempre. Mas estes indícios não nos permitem deduzir a existência de um poder feminino abusivo. Na realidade, no Egito dos faraós não existiu nenhuma tirania exercida por um dos sexos em detrimento do outro.

       Constatação essencial, houve egípcias que exerceram as mais altas funções de Estado, o que não acontece na maior parte das democracias modernas. Como veremos, o papel político e social das mulheres foi determinante ao longo de toda a História do Egito. Graças a um notável sistema jurídico, a mulher e o homem eram iguais por direito e de fato; a este estatuto legal - que só foi posto em causa no reinado dos Ptolomeus, soberanos gregos - acrescentava-se uma verdadeira autonomia, posto que a egípcia não estava submetida a nenhuma tutela.

       Esta igualdade entre o homem e a mulher não se impôs à partida apenas como um valor fundamental da sociedade faraônica mas perdurou enquanto o país se manteve independente. É inegável que as egípcias beneficiaram de condições de vida muito superiores às que milhões de mulheres conhecem hoje; em certos campos, como o da espiritualidade, as cidadãs dos países ditos desenvolvidos não obtiveram as mesmas capacidades institucionais que as egípcias. De fato, atualmente é impossível imaginar uma papisa, uma grande rabina ou uma reitora de uma mesquita, ao passo que muitas egípcias ocuparam o topo de certas hierarquias sacerdotais.

       O que impressiona o observador que começa a interessar-se pela arte egípcia é o imenso respeito pela mulher. Bela, serena, luminosa, ela contribuiu da maneira mais ativa para a construção diária de uma civilização que cultivou a beleza, nomeadamente a feminina. Esta beleza perturbou os primeiros cristãos: temerosos da sedução das egípcias, destruíram inúmeras representações de mulheres ou cobriram-nas de gesso para se furtarem ao seu olhar. Felizmente, numerosas filhas do Nilo escaparam às múltiplas formas de vandalismo e continuam a encantar-nos. Quem poderia resistir à soberana atração das grandes damas do tempo das pirâmides, à graça das elegantes da Tebas do Novo Império, ao seu sorriso divino e ao amor da vida que elas encarnam?

       Ao longo destas páginas iremos conhecer rainhas, desconhecidas, mulheres de poder, trabalhadoras, sacerdotisas, servas, esposas, mães; nenhuma delas poderia chamar-se ”Senhora Antônio Silva”, o que suporia o aniquilamento do seu nome próprio, do seu apelido e um total apagamento por detrás do marido. A mulher egípcia afirmou o seu nome e a sua personalidade, sem no entanto entrar em competição com o homem, porque pôde exprimir plenamente a sua capacidade de ser consciente e responsável.

       O Egito faraônico, a que só temos acesso a partir de 1822, data da decifração da linguagem hieroglífica por Champollion, continua a surpreender-nos; o estudo da condição feminina faz parte precisamente das áreas em que os avanços da sociedade egípcia são particularmente notáveis. Partir ao encontro das egípcias é uma aventura fascinante, recheada de surpresas; da mulher de um faraó a uma superiora dos médicos, de uma mulher de negócios a uma ”cantora do deus”, tantos rostos que traçaram um caminho de uma riqueza e de um esplendor ainda sem igual.

             

       MULHERES NO PODER

 

       A RAINHA ÍSIS

       Mãe e rainha

       O túmulo do faraó Tutmósis III no Vale dos Reis é de difícil acesso; primeiro temos de subir uma escada de metal instalada pelo Serviço das Antiguidades e depois introduzirmo-nos num estreito túnel que penetra pela rocha adentro. Os claustrófobos vêem-se obrigados a desistir; mas o esforço é recompensado porque, no fim da descida, descobrimos duas salas: uma de teto baixo com paredes decoradas com figuras de divindades, e outra mais vasta, a Câmara da Ressurreição. Nas suas paredes, os textos e as cenas do Amduat, ”O Livro da Câmara Oculta”, revela as etapas da ressurreição do Sol nos espaços noturnos e a transmutação da alma real no Além.

      

       Num dos pilares, uma cena surpreendente: uma deusa saída de uma árvore amamenta Tutmósis III. Amamentado deste modo para a eternidade, o faraó é regenerado para sempre. O texto hieroglífico indica-nos a identidade desta deusa de inexaurível generosidade: Ísis. Mas Ísis é também o nome da mãe terrena deste rei, uma mãe cujo rosto foi preservado numa estátua descoberta no famoso esconderijo do templo de Carnaque1: de faces cheias, tranquila e elegante, a mãe real Ísis exibe longas tranças e um vestido de alças. Está sentada, com a mão direita sobre a coxa e tem na mão esquerda um cetro floral. Apenas sabemos que o filho a venerava e que tinha o nome da mais célebre das deusas do Antigo Egito.

      

       A paixão e a demanda de Ísis

       Ísis, a Grande, reinara nas Duas Terras, o Alto e o Baixo Egito, muito antes do nascimento das dinastias. Em companhia do seu esposo Osíris, governava com sabedoria e conhecia uma felicidade perfeita. Até que Set, irmão de Osíris, o convidou para um banquete. Tratava-se de uma cilada, pois Set estava decidido a assassinar o rei para ocupar o seu lugar. Utilizando uma técnica original, o assassino pediu ao irmão que se deitasse num caixão para ver se era do seu tamanho. Imprudente, Osíris aceitou. Set e os seus acólitos pregaram a tampa e lançaram o sarcófago ao Nilo.

      

       Os pormenores desta tragédia são conhecidos graças a um texto de Plutarco, iniciado nos mistérios de Ísis e Osíris; as fontes mais antigas mencionam apenas a morte trágica de Osíris, cujas desgraças prosseguiram, pois o seu cadáver foi retalhado. Set convenceu-se de que aniquilara o seu irmão para sempre.

      

       Ísis, a viúva, recusou a morte.

       Mas o que podia ela fazer, além de chorar o marido martirizado? Um projeto insano nasceu no seu coração: encontrar todos os pedaços do cadáver, reconstituí-lo e, graças à magia sagrada cujas fórmulas conhecia, restituir-lhe a vida.

      

       Assim começou a busca de Ísis, paciente e obstinada. E quase conseguiu! Todas as partes do corpo foram reunidas menos uma: o sexo de Osíris, engolido por um peixe. Desta vez, Ísis tinha de desistir.2

      

       Mas não desistiu: convocou a irmã Néftis, cujo nome significa ”a senhora do templo”, e organizou uma vigília fúnebre. “Eu sou a tua irmã bem amada”, disse ela ao reconstituído cadáver de Osíris, “não te afastes de mim, clamo por ti! Não ouves a minha voz? Venho ao teu encontro, e nada me separará!” Durante horas, Ísis e Néftis, de corpo puro, inteiramente depiladas, com perucas encaracoladas, a boca purificada com natrão (carbonato de soda), pronunciaram encantamentos numa câmara funerária obscura e perfumada com incenso, Ísis invocou todos os templos e todas as cidades do país para que se juntassem à sua dor e fizessem a alma de Osíris regressar do Além. A viúva tomou o cadáver nos braços, o seu coração bateu de amor por ele e murmurou-lhe ao ouvido: Tu, que amas a vida, não caminhes nas trevas.

      

       O cadáver, desgraçadamente, permaneceu inerte.

       Ísis transformou-se então num milhafre fêmea, bateu as asas para restituir o sopro da vida ao defunto e pousou no sítio do desaparecido sexo de Osíris, que fez reaparecer por magia. Desempenhei o papel de homem, afirma ela, embora seja mulher. As portas da morte abriram-se diante de Ísis, que conheceu o segredo fundamental, a ressurreição, agindo como nenhuma deusa o fizera antes: ela, a quem chamavam ”a Venerável, nascida da Luz, saída da pupila de Hator (o princípio criador)”, conseguiu fazer regressar aquele que parecia ter partido para sempre e ser fecundada por ele.

      

       Assim foi concebido o seu filho Hórus, nascido da impossível união da vida e da morte. Um acontecimento importante, porque este Hórus, filho do mistério supremo, foi chamado a ocupar o trono do pai, doravante monarca do Além e do mundo subterrâneo.

      

       Set não se deu por vencido. Só havia uma solução: matar Hórus. Ciente do perigo, Ísis guardou o filho entre os papiros do Delta. Não faltaram perigos - a enfermidade, as serpentes, os escorpiões, o assassino que ronda... - mas Ísis, a Maga, conseguiu preservar o seu filho Hórus de todas as desgraças.

      

       Set não admitiu o seu fracasso e contestou a legitimidade de Hórus, que era no entanto sobrenatural, convocando então o tribunal das divindades a fim de conseguir a condenação do herdeiro de Osíris. Como o tribunal se reuniu numa ilha, Set usou o seu engenho para que uma decisão iníqua fosse adotada: o barqueiro devia impedir as mulheres de entrarem na sua barcaça, e assim Ísis não poderia defender a sua causa.

      

       Mas iria a viúva desistir ao cabo de tantas provações? Por conseguinte, convenceu o barqueiro oferecendo-lhe um anel de ouro; apresentou-se diante do tribunal, venceu a má fé e os argumentos especiosos e fez aclamar Hórus como faraó legítimo.

      

       Esposa perfeita, mãe exemplar, Ísis tornou-se também no garante da transmissão do poder régio - aliás, o seu nome significa ”o trono”. Percebe-se que, segundo o pensamento simbólico egípcio, é o trono, ou, por outras palavras, a Grande Mãe, a rainha Ísis, que gera o faraó.

       

       Ísis, maga e sábia

       Ísis é a mulher-serpente que se transforma em uraeus, a naja fêmea que se ergue na fronte do rei para destruir os inimigos da Luz; uma desastrosa evolução e o desconhecimento do símbolo primitivo tornaram a boa deusa-serpente no réptil tentador do Gênesis que causa a perdição do primeiro casal, Ísis e Osíris, pelo contrário, afirmam a vivência de um conhecimento luminoso graças ao amor e ao que está para além da morte.

      

       Sob a forma da estrela Sótis, Ísis anuncia e desencadeia as cheias do Nilo; debruçada em choro sobre o corpo de Osíris, faz subir as águas benfazejas que depositam a vaza nas margens e asseguram a prosperidade do país3 aliás, a cabeleira de Ísis não forma os tufos de papiros emergindo do rio?

      

       Esta magia cósmica de Ísis nasce da sua capacidade para conhecer os mistérios do universo e, entre eles, o nome secreto de Ra, encarnação da Luz divina. É certo que o coração de Ísis era mais hábil do que o dos bem-aventurados e que era conhecida dos céus e da Terra, ignorando apenas o famoso nome secreto de Ra, que este não confiara a ninguém, nem mesmo às outras divindades, Ísis lançou-se ao assalto do bastião: apanhou um escarro de Ra, amassou-o com terra e formou uma serpente. Escondeu o réptil sagrado num arbusto que ficava no caminho do deus e, quando este passou, o réptil mordeu-o. O coração de Ra ardeu e, depois de tremer, os seus membros arrefeceram. Embora fora do alcance da morte, o veneno causou-lhe grande sofrimento e ninguém conseguiu curá-lo.

      

       Ísis decidiu intervir e restituir-lhe a saúde, contanto que Ra lhe confiasse o seu nome secreto. O divino Sol tentou enganá-la confiando-lhe vários nomes mas nunca mencionando o nome correto. Intuitiva, Ísis não se deixou enganar e Ra, exausto, foi obrigado a revelar-lhe o seu verdadeiro nome. Ísis curou-o e guardou o segredo para sempre.

           

       Os lugares de Ísis

       Cada uma das partes do corpo de Osíris deu origem a uma província, e assim todo o Egito foi assimilado ao seu ressuscitado esposo, animando a totalidade do país. Ísis sentia-se, pois, em toda a parte como na sua própria casa. No entanto, quando percorremos o Egito, descobrimos três lugares particularmente ligados a Ísis, de Norte para Sul: Behbeit el-Hagar, Dendera e Filas.

      

       Behbeit el-Hagar, no Delta, é um local desconhecido dos turistas. Uma vez saídos de um dédalo de ruelas, sofremos uma viva decepção quando chegamos lá: o que resta do grande templo de Ísis, além de um monte de enormes blocos de granito ornados de cenas rituais? Ísis foi venerada aqui, mas o seu templo foi destruído e utilizado como pedreira, sem nenhum respeito pelo seu carácter sagrado. É impossível deixar de pensar na época em que ali se erguia um santuário colossal dedicado à senhora dos céus.

      

       O nascimento de Ísis é situado simbolicamente em Dendera, no Alto Egito. O santuário da deusa Hator está parcialmente conservado, mas o templo coberto e o mammisi (templo do nascimento de Hórus) existem ainda, bem como um pequeno santuário onde, segundo os textos, a bela Ísis veio ao mundo com uma pele rosada e uma cabeleira negra. Foi a deusa dos céus que lhe deu vida, enquanto Amon, o princípio oculto, e Chu, o ar luminoso, lhe concediam o sopro vital.

       

       Na fronteira meridional do Antigo Egito reina Filas, a ilha-templo de Ísis; aqui viveu a derradeira comunidade iniciática egípcia, aniquilada por cristãos fanáticos. Ameaçados de destruição pela inundação do ”alto dique”, a grande barragem de Assuã, os templos de Filas foram desmontados pedra por pedra e reconstruídos numa pequena ilha vizinha. A ”pérola do Egito” foi assim salva das águas. A visão deste lugar constitui uma experiência inesquecível. De acordo com a vontade dos egípcios, os ritos continuam a ser celebrados graças aos hieróglifos gravados na pedra; a presença de Ísis é inteiramente palpável e ouvem-se as palavras pronunciadas nas cerimônias pelas sacerdotisas da grande deusa: Ísis, criadora do universo, soberana do céu e das estrelas, senhora da vida, regente das divindades, maga de excelentes conselhos, Sol feminino que tudo marca com o seu selo4, os homens vivem às tuas ordens, sem o teu acordo nada se faz.

      

       A eternidade de Ísis

       Vitoriosa sobre a morte, Ísis sobreviveu à extinção da civilização egípcia, desempenhando um importante papel no mundo helenístico até ao século V d.C. O seu culto espalhou-se por todos os países da bacia mediterrânica e mesmo mais além.

      

       Tornou-se na protetora de numerosas confrarias iniciáticas mais ou menos hostis ao cristianismo, que a consideravam o símbolo da omnisciência, detentora do segredo da vida e da morte e capaz de assegurar a salvação dos seus fiéis.

      

       Mas Ísis não exigia apenas uma simples devoção; para a conhecerem, os seus adeptos deviam sujeitar-se a uma ascese, não se contentando com a crença mas subindo na escala do conhecimento e transpondo os diversos graus dos mistérios.

      

       Sendo o passado, o presente e o futuro, a mãe celeste de infinito amor, Ísis foi durante muito tempo uma temível concorrente do cristianismo. Mas nem mesmo o dogma triunfante conseguiu aniquilar a antiga deusa; no hermetismo, tão presente na Idade Média, ela continuou a ser ”a pupila do olho do mundo”, o olhar sem o qual a verdadeira realidade da vida não poderia ser apercebida. Aliás, não se dissimulou Ísis sob as vestes da Virgem Maria, tomando o nome de ”Nossa Senhora” à qual tantas catedrais e igrejas foram dedicadas?

      

       Ísis, modelo da mulher egípcia

       Uma civilização molda-se de acordo com um mito ou conjunto de mitos. Todavia, no mundo judaico-cristão, Eva é pelo menos suspeita, e daí o inegável e dramático défice espiritual das mulheres modernas que se regem por este tipo de crença. Isto não acontecia no universo egípcio, pois a mulher não era fonte de nenhum mal ou deturpação do conhecimento. Muito pelo contrário: era ela que, através da grandiosa figura de Ísis, enfrentava as piores provações, tendo descoberto o segredo da ressurreição.

      

       Modelo das rainhas, Ísis foi também o modelo das esposas, das mães e das mulheres mais humildes. Aliava à fidelidade uma indestrutível coragem perante a adversidade, uma intuição fora do comum e uma capacidade para penetrar nos mistérios. Por conseguinte, a sua busca servia de exemplo a todas quantas procuravam viver a eternidade.

      

       MERIT-NEIT, A PRIMEIRA FARAÓ DO EGITO?

       A lei diz: uma mulher pode ser faraó

       Maneton, um sacerdote da época tardia, dividiu os faraós do Egito em trinta dinastias, perpetuando uma tradição segundo a qual fora promulgada uma lei na segunda dinastia afirmando que as mulheres podiam exercer as funções régias. Podemos, sem grandes riscos, fazer remontar esta legislação às próprias origens da civilização faraônica.

      

       Por volta de 3150 a.C. nasceu a primeira dinastia, fundada por Menes, cujo nome faz alusão à ideia de estabilidade; Menes talvez signifique também ”fulano”, o que indicaria que Menes, o rei ”fulano”, é o modelo e a base dos soberanos posteriores.

      

       Estamos mal informados acerca das origens da civilização egípcia, mas sabemos que a linguagem hieroglífica foi utilizada na primeira dinastia; o estudo das raras inscrições conservadas permite constatar que os valores fundamentais do Egito faraônico se encontram já presentes, nomeadamente na pessoa simbólica do monarca, que deve unir as Duas Terras e assegurar a sua prosperidade celebrando os cultos.

      

       Os faraós da primeira dinastia possuem duas sepulturas, uma em Sacara, localidade próxima do Cairo, a outra em Abidos, no Médio Egito. Um túmulo a Norte, outro a Sul, por conseguinte, a fim de recordar que o faraó devia unir estes dois pólos complementares. Uma das duas moradas da eternidade servia para a perenidade do corpo luminoso e invisível do monarca, a outra para repouso do seu corpo mumificado.

      

       Eis o enigma: uma mulher, Merit-Neit, ”a amada da deusa Neit”, possui o túmulo Y em Abidos e o túmulo 3503 em Sacara. Ora, só um faraó podia ter este privilégio. Além disso, estas duas sepulturas são muito semelhantes às dos outros soberanos da dinastia. O túmulo de Merit-Neit em Abidos (19m por 16m), construído no fundo de um poço com paredes revestidas de tijolos, é uma das maiores e mais bem construídas sepulturas reais desta época. Entre as paredes de tijolos existem oito capelas de forma alongada onde estavam colocados objetos rituais como ânforas e outros recipientes. No solo da câmara funerária havia uma espécie de parquete e era protegida por um telhado de madeira. Não faltavam estelas erigidas em memória do defunto.

      

       Tanto em Sacara como em Abidos, a última morada de Merit-Neit encontra-se rodeada de sepulturas de funcionários e artífices que formavam a sua corte, sem esquecer setenta e sete servas, se é que podemos confiar no relatório das escavações.

      

       Concluindo: Merit-Neit é o terceiro faraó da primeira dinastia e o primeiro faraó do sexo feminino.

      

       Uma objeção, porém: nas estelas de Merit-Neit falta a representação do falcão Hórus, protetor do faraó. De fato, todos os faraós ostentavam a denominação Hórus. Cremos que a presença da deusa Neit no nome de Merit-Neit pode paliar esta ausência. Vamos tentar compreender porquê.

      

       A primeira rainha do Egito e a deusa Neit

       Excetuando Menes, o antepassado fundador, o primeiro faraó da primeira dinastia foi Aha, o Guerreiro. A sua esposa, a primeira rainha do Egito, chamava-se Neit-Hotep, ”a deusa Neit está em paz”. Um faraó guerreiro, uma rainha pacífica; por certo a expressão de um desejo de equilíbrio.

      

       Eis pois esta enigmática deusa Neit, que presidiu aos destinos da primeira rainha do Egito e da primeira mulher faraó. Os textos explicam-nos a razão desta escolha. Símbolo do vento e da inundação, Neit é a imensa superfície aquática que gerou o que existe, que criou as divindades e os seres, a grande mãe que tornou as sementes fecundas; tudo o que nasce provém dela. Grande antepassada do começo dos tempos, veio ao mundo por si só: foi a primeira mãe, deus e deusa ao mesmo tempo. Andrógina, dois terços homem e um terço mulher, macho capaz de desempenhar o papel de fêmea e fêmea capaz de desempenhar o papel de macho, Neit criou o mundo com sete palavras. Gerando o seu próprio nascimento6, qualificaram-na como ”pai dos pais” e ”mãe das mães”.

      

       Sob a proteção de Neit, uma mulher que ascenda ao poder é pois uma personalidade autônoma, tanto mais que o próprio faraó é definido como um poder divino cujas orientações regem a nossa vida, o pai e a mãe, único e sem igual.

      

       O faraó simboliza o casal régio

       Pai e mãe: eis a natureza do faraó. Na ordem humana, esta natureza exprime-se num casal formado pelo rei e pela rainha. Afirma Aton, o princípio criador: ”Eu sou Ele-Ela”8 de resto, ele une-se à sua própria expressão feminina, Atumet, simbolizada por uma serpente.

      

       Esta constatação é importante: é um casal que governa o Egito, análogo ao primeiro casal divino formado por Chu e Tefnut, por vezes simbolizado por um casal de leões. Não existe nenhum templo dedicado a faraós do sexo masculino e solteiros, porque uma grande esposa real revela-se indispensável para celebrar os ritos e manter a ligação entre o céu e a Terra. Em contrapartida, como veremos, um faraó do sexo feminino não precisa de marido humano, pois tem em si o princípio masculino, como Ísis tinha Hórus. Mas continua a ser faraó, “pai e mãe”.

      

       As rainhas participaram de maneira efetiva no governo do país. Longe de serem ”primeiras damas” apagadas e sem consistência, desempenhavam funções de Estado e foram escolhidas de acordo com a sua capacidade para as exercerem. Daí os textos enaltecerem tanto o seu sentido de autoridade como a sua beleza.

      

       Estamos longe de qualquer feminismo, pois o que é valorizado e praticado é o papel espiritual da mulher, a sua participação ativa na criação espiritual. Após o desaparecimento da instituição faraônica, a idéia perdeu-se e podemos falar mais de regressão do que de progresso.

      

       Uma rainha ao leme

       As escavações arqueológicas revelaram várias sepulturas de mulheres das primeiras dinastias: rainhas, mães de reis ou personalidades da corte; estas descobertas provam o respeito pela mulher e ao mesmo tempo a sua eminente posição nas altas esferas do Estado.

      

       Uma destas rainhas, esposa do último faraó da segunda dinastia (cerca de 2700 a.C.), merece especial menção: Ny-Hepet-Maat, ”o leme pertence a Maat”, considerada como a antepassada da terceira dinastia. Embora nada saibamos a seu respeito, o seu nome é revelador.

      

       Se por vezes referimos ”o carro do Estado”, os egípcios preferiam dizer ”o navio do Estado”, pois o Nilo era o rio nutriente e a grande via de circulação. O fato de uma rainha ser considerada ”o leme”, demonstra que é capaz de orientar corretamente o barco. É sobretudo assimilada à deusa Maat, a base da civilização egípcia. Podemos traduzir a palavra Maat por ”Ordem”, desde que nela incluamos as idéias de ordem universal, de harmonia cósmica, de eterno equilíbrio do universo, de justiça celeste que inspira a justiça humana, de retidão, de solidariedade entre os seres vivos, de verdade, de justa repartição dos deveres, de coesão social, de sabedoria. Maat tem na cabeça uma pluma, a retriz, que permite dirigir o vôo das aves; é também ela que inspira a ação quotidiana do faraó. De fato, o seu primeiro papel consiste em colocar Maat no lugar da desordem e da injustiça, lutando contra os defeitos inerentes ao ser humano: o esquecimento, a preguiça, o desinteresse pelos outros, a teimosia cega e a avidez. O faraó deve dizer e fazer Maat, para que o Estado seja o reflexo justo da harmonia cósmica. Por isso, como Assmann demonstrou, o faraó, súdito de Maat e servo do seu povo, não pode ser um tirano e deve proteger o fraco contra o forte e combater as trevas, é o vínculo que assegura a coesão entre os humanos, o vínculo entre a comunidade dos homens e os poderes criadores. Foi esta concepção grandiosa e efetiva que permitiu que a instituição faraônica durasse três milênios.

      

       Para o historiador, a rainha Ny-Hepet-Maat, como Merit-Neit, não passa de uma sombra fugaz; mas, graças aos seus nomes, estas mulheres encarnam a grandeza da aventura egípcia e fornecem-nos a chave para a sua decifração. O fato de Maat ser uma deusa e de as rainhas do Egito serem as suas encarnações terrestres significa que confiavam à mulher a mais vital das responsabilidades.

      

       HETEP-HERES, A MÃE DE QUÉOPS

       Uma descoberta inopinada

       No dia 2 de Fevereiro de 1925, a equipe do arqueólogo americano Reisner procedia à exploração do planalto de Gize, no grande cemitério real situado a leste da fenomenal pirâmide de Quéops (cerca de 2589-2566 a.C), muitas vezes chamada ”a Grande Pirâmide”. Aí se encontram também três pequenas pirâmides de rainhas cujas capelas de culto, abertas sobre a face oriental, dão para uma alameda. Nesse dia, o fotógrafo da expedição decide instalar-se na extremidade setentrional da alameda para tirar fotografias. Como qualquer bom profissional, prepara cuidadosamente o material e assenta o tripé de maneira a estabilizá-lo, uma operação mil vezes repetida, um ato rotineiro.

      

       Mas desta vez encontrou um pequeno obstáculo, pois um dos pés enterrou-se numa cavidade. O técnico deparou-se então com uma camada de gesso. Tratava-se, evidentemente, de uma obra humana, uma espécie de ardil destinado a imitar o solo rochoso.

      

       Os escavadores encontraram uma trincheira retangular obstruída por pequenos blocos de calcário que escondiam uma escada prolongada num túnel que conduzia a um poço, também obstruído por pedras. A excitação aumentou: tratar-se-ia de uma sepultura inviolada? A quem pertenceria?

      

       Depois de desobstruírem o poço, os escavadores acederam a um nicho contendo ânforas, o crânio e as patas de um touro embrulhadas em redes: uma oferenda que mitigaria a sede do proprietário da sepultura, que também dispunha do poder criador do touro.

      

       A 8 de Março de 1925 chegou-se à câmara funerária, uma pequena sala talhada na rocha. Uma sala... inviolada!

      

       O tesouro da rainha, ”mãe do rei”

        A 25m da superfície do solo encontrava-se, pois, uma sepultura secreta a que nenhum salteador tivera acesso. A presença de um sarcófago levava a crer que haviam descoberto uma múmia, mas estava vazio. Passada a decepção, contemplaram os múltiplos objetos contidos na sepultura, cujo exame exigiu 1500 páginas de notas e 1700 fotografias. O nome da legítima ocupante do local era Hetep-Heres, que provavelmente significa ”o faraó é plenitude graças a ela”.

      

       Uma grande personalidade, visto que era esposa do faraó Snefru e a mãe do construtor da Grande Pirâmide. O equipamento que levou para o Além era notável: baixela em ouro, um dossel em madeira e cadeirões revestidos a ouro, uma cama e a sua cabeceira, colares, cofres, recipientes de cobre e de pedra, pulseiras de prata com incrustrações de cornalina, lápis-lazúli e turquesa, um pequeno cofre de madeira dourada contendo dois rolos para guardar estas jóias. Obras-primas como as bandejas e as taças de ouro, ou o pote de cobre, demonstram o gênio dos artífices do Antigo Império. A peça mais extraordinária é por certo a liteira, descoberta em peças soltas e depois montada e exposta no Museu do Cairo, com outros elementos deste tesouro de uma espantosa perfeição, que só por si revela o requinte da corte de Snefru e de Quéops, o seu amor pela sobriedade e pela pureza das linhas.

      

       Importante pormenor: estas maravilhas criadas para a eternidade, e não para o mundo passageiro dos humanos, estavam destinadas aos paraísos do Além onde vive a alma de Hetep-Heres. Graças aos adornos, a sua beleza permanecerá inalterável; graças à preciosa baixela, poderá celebrar um banquete perpétuo.

      

       A magnífica liteira da mãe de Quéops é um símbolo associado à sua função. De fato, a rainha do Egito possuía os espantosos títulos de ”liteira de Hórus” e de ”liteira de Set” também se chamava ”a Grande que é uma liteira”. Aparecia assim como o suporte em movimento dos deuses Hórus e Set, os irmãos inimigos que se reúnem e apaziguam na pessoa do faraó. Assim como Ísis é o trono de onde nasce o rei do Egito, a rainha é a liteira que permite ao monarca deslocar-se, e portanto estar em ação.

      

       Os títulos da grande dama informam-nos acerca das suas tarefas rituais: Mãe do rei do Alto e Baixo Egito, companheira de Hórus, superiora dos talhantes da Casa da Acácia, para a qual tudo o que ela formula se realiza, filha do deus, do seu corpo, Hetep-Heres.

      

       A Casa da Acácia está associada ao mistério da ressurreição, ao qual todas as rainhas estiveram ligadas; mais adiante voltaremos a falar desta instituição. Mas debrucemo-nos por um instante sobre o título de ”mãe do rei”, que será utilizado até à última dinastia. Dizemos ”título” porque é certo que a expressão não designa obrigatoriamente a mãe carnal de um faraó. A filiação corporal é proclamada, mas é impossível afirmar a existência de laços familiares mais concretos.

      

       A ”mãe do rei” tinha o direito de transmitir ao futuro faraó a energia constantemente produzida pelo universo divino; por isso está muitas vezes presente ao lado do monarca durante os grandes ritos e encarna a continuidade dinástica. Presta-se culto à ”mãe do rei” na sua qualidade de origem espiritual da monarquia. O leito de ressurreição de Hetep-Heres, admiravelmente confeccionado, servia não só para o eterno repouso da grande rainha mas também para a sua perpétua união com o princípio criador para que gerasse o rei.

      

       Quando os arqueólogos escrevem romances policiais

      

       A arqueologia deve ser rigorosa e científica, mas é praticada por homens e mulheres que inevitavelmente interpretam os fatos em função dos seus conhecimentos e do seu nível de consciência. No início do século XX, sábios reconhecidos como o alemão Erman consideravam a religião egípcia como um monte de tolices; recentemente, Jan Assmann, outro egiptólogo alemão, demonstrou que o pensamento egípcio, mais preocupado com o conhecimento do que com a crença, constitui uma dimensão espiritual insubstituível e insubstituída.

      

       Por muito arqueólogo que fosse, Reisner não se contentou com o estudo ”objetivo” da sepultura da rainha Hetep-Heres. A ausência de superestrutura e a dissimulação propositada do jazigo levavam a crer no carácter secreto da sepultura. Mas porquê este segredo?

      

       E Reisner pôs-se a imaginar. Sendo esposa de Snefru, construtor de duas grandes pirâmides na estação de Dachur, Hetep-Heres teria sido aí enterrada para ficar perto do marido. Infelizmente, talvez os ladrões tivessem saqueado a sua sepultura, lançando Snefru num profundo desespero. Este teria, pois, decidido retirar os despojos da sua esposa do túmulo de Dachur a fim de a esconder para sempre no jazigo secreto de Gizé, mas a múmia destruiu-se provavelmente durante o transporte e ninguém teria ousado anunciá-lo ao rei. Eis o motivo por que a sepultura secreta de Gizé estava vazia!

      

       Se sublinhamos as hipóteses, foi porque esta trágica história só existiu na imaginação de Reisner. Infelizmente, foi por vezes recopiada como uma verdade histórica...

      

       Se o estranho túmulo de Hetep-Heres, espécie de relicário que lembra o túmulo de Tutancámon, abrigava os chamados canopos destinados a receber as vísceras da rainha, ignoramos por que razão a múmia foi deslocada, supondo que alguma vez tenha estado no sarcófago. Será que uma alteração do programa arquitetônico levou os construtores a escavar outro túmulo para a rainha? Será que consideravam Hetep-Heres como uma faraó, dispondo assim de uma sepultura para o seu corpo mumificado e outra para o seu ser luminoso? Talvez novas escavações em Dachur e Gizé nos tragam respostas. Esperemos que um fotógrafo ponha o pé no lugar certo...

      

       A ENIGMÁTICA MERESANQ

       Uma grande linhagem

        Os nomes de Quéops, Quéfren e Miquerinos celebrizaram-se graças às suas três pirâmides erigidas no planalto de Gize. Esta prodigiosa quarta dinastia (cerca de 2613-2498 a.C.) viu nascer estes gigantes de pedra, verdadeiros centros de energia espiritual, raios de luz petrificados que permitiam à alma real ascender aos céus para se juntar às divindades e guiar os humanos sob a forma de estrela.

      

       Os baixos-relevos das sepulturas desta época mostram-nos um Egito próspero, cuja riqueza se baseia numa administração rigorosa e eficaz, numa agricultura diversificada, numa criação desenvolvida e num artesanato de excepcional qualidade.

      

       Entre as altas personalidades da corte houve três mulheres com o mesmo nome, Meresanq, que parecem formar uma linhagem. Duas possíveis traduções para este nome notável: ou ”Ela ama a vida” ou ”a Viva (uma deusa, provavelmente Hator) ama-a”12. Seja qual for a solução, o relacionamento direto de uma linhagem feminina com o conceito essencial de ”vida” sublinha uma vez mais o papel proeminente da mulher na civilização do Antigo Egito.

      

       Não sabemos nada acerca da primeira Meresanq; foi talvez a mãe do faraó Snefru, fundador da quarta dinastia e construtor de duas colossais pirâmides na estação de Dachur. A segunda Meresanq parece ter sido filha de Quéops. A terceira reserva-nos uma magnífica surpresa.

      

       Dez mulheres para uma morada eterna

       Numa das ”ruas de sepulturas” do planalto de Gize, a leste da pirâmide de Quéops, abre-se a estreita porta de uma bela e grande morada eterna escavada na rocha para Meresanq III. A sepultura fora preparada por uma rainha de nome Hetep-Heres, como mãe de Quéops, mas que não devemos confundir com ela - existe uma dificuldade insuperável em estabelecer as genealogias egípcias! Esta Hetep-Heres era a filha de Quéops; tinha, pois, o nome da sua mãe e era muito dedicada à sua filha Meresanq, a terceira com o mesmo nome, e certamente esposa do rei Quéfren.

      

       Ao entrarem no túmulo desta terceira Meresanq, um choque! Uma visão única, um conjunto esculpido que, tanto quanto sabemos, só existe nesta morada eterna. Brotando da pedra, uma confraria formada por dez mulheres de pé, de idades compreendidas entre a adolescente e a mulher madura.

      

       Quando penetramos pela primeira vez neste lugar que nos enfeitiça, temos a impressão de que estas mulheres estão vivas, que os seus olhos nos contemplam e que continuam a proferir as frases rituais indispensáveis ao bom andamento do mundo. E à medida que permanecemos neste lugar de uma rara força, a impressão confirma-se. Intimamente ligadas à rocha, estas estátuas foram animadas por magia e contêm ainda o ka, o poder imortal que faz delas estátuas da Luz.

      

       Como Meresanq tinha acesso à Casa da Acácia, podemos supor que está representada na companhia das ”irmãs” da confraria, e que a transmissão se faz da mais antiga à mais nova, passando por etapas intermédias. De resto, duas delas abraçam-se: a mais velha pousa o braço esquerdo sobre os ombros da sua discípula, a qual passa o braço pela cintura da sua iniciadora.

      

       Um profundo sentimento de comunhão desprende-se deste grupo de dez mulheres unidas para sempre pelos laços de uma mesma experiência de eternidade; contemplando-as no silêncio da capela, compreendemos a verdadeira dimensão das egípcias.

      

       A ”mãe”, Hetep-Heres, é igualmente representada com a sua ”filha” Meresanq em diversos episódios rituais, durante os quais a mais velha ensina a sua sabedoria à mais nova; é assim que as duas mulheres exploram os pântanos de barco para colherem flores de lótus. Não se dedicam apenas ao culto das divindades, também preservam o perfume da primeira aurora, quando a vida nasceu da Luz. Durante este passeio de barco, a mãe revela à filha o segredo do lótus, a partir do qual se desenvolveu a Criação.

      

       Meresanq, guardiã das escrituras sagradas

       Entre os personagens presentes no túmulo figuram escribas. Ora, Meresanq possui um título notável: sacerdotisa do deus Tot, criador da linguagem sagrada e senhor das ”palavras de deus”, os hieróglifos. Está, pois, diretamente relacionada com o deus do conhecimento. É, aliás, o caso de várias rainhas egípcias, como Bentanta, que vemos ser conduzida por Tot para o outro mundo numa cena da sua sepultura (nº 271) do Vale das Rainhas.

      

       O pormenor é importante, pois prova que Meresanq tinha acesso à ciência sagrada e aos arquivos dos templos, denominados ”a manifestação da Luz divina (baú Ra)”. É também uma deusa, Sechat14, que rege a Casa da Vida onde se compunham os rituais e onde os faraós eram iniciados nos segredos da sua função. Guardiã das bibliotecas e dos textos fundamentais, ela maneja perfeitamente o pincel, que utiliza tanto para escrever as palavras da vida como para praticar a requintada arte da maquilhagem. Vestida com uma pele de pantera, a cabeça coroada por uma estrela de sete pontas (por vezes cinco ou nove), é Sechat quem redige os Anais Régios e inscreve os nomes do faraó nas folhas da árvore sagrada de Heliópolis. Desta deusa detentora dos segredos de construção do templo, que partilha com o rei, depende o secretariado do palácio. No templo de Séti I em Abidos, Sechat, ”encarregada dos arquivos aos rolos divinos”, escreve o destino do faraó e diz: A minha mão escreve o seu longo tempo de vida, a saber, do que sai da boca da Luz divina (Ra), o meu pincel traça a eternidade; a minha tinta, o tempo; o meu tinteiro, as inúmeras festas de regeneração.

      

       Meresanq, iniciada nos mistérios de Tot e no conhecimento das escrituras rituais, foi instruída em toda a ciência sagrada do Antigo Egito; mais de três mil anos após o seu desaparecimento, podemos encontrá-la na companhia da sua ”mãe” e das suas ”irmãs”, numa das mais surpreendentes sepulturas de Gize. Esta misteriosa e fascinante Meresanq permitiu-nos descobrir que o universo do conhecimento estava inteiramente aberto à mulher egípcia.

      

       A RAINHA QUENET-KAUS, UM FARAÓ ESQUECIDO?

       Um gigantesco sarcófago

        No Inverno de 1931-1932, o egiptólogo egípcio Selim Hassan explorou uma parte da imensa estação de Gize, a cerca de 400 m a sudeste da pirâmide de Quéfren. Neste planalto criado pelo homem havia um impressionante número de obras-primas: as três pirâmides, por certo, mas também numerosas sepulturas decoradas. São necessárias longas jornadas para percorrer estas ”ruas de sepulturas” que nada têm de fúnebre; pelo contrário, esta cidade de eternidade, de tranquilizadoras pedras, é um lugar de paz e serenidade.

      

       Selim Hassan descobriu um extraordinário monumento, um imenso sarcófago cuja base tinha 40m de lado. Espantado, teve de render-se à evidência: tratava-se de um sarcófago retangular de teto abobadado, assente sobre uma base quadrada, cujo interior maciço era em parte constituído pela rocha.

      

       Desconcertado e deslumbrado, o egiptólogo pensou num monumento comparável: o túmulo do rei Chepseskaf (cerca de 2504-2500 a.C.), sucessor de Miquerinos e último rei da quarta dinastia. A sua morada eterna, em forma de gigantesco sarcófago, foi edificada a sul de Sacara, longe da atual zona turística. Infelizmente, nada sabemos acerca deste faraó cujo reinado foi breve.

      

       Quem era Quenet-Kaus?

       No ângulo sudeste do túmulo-sarcófago de Gize, nos alizares em granito de uma capela exterior e de uma ”falsa porta” que estabelece a comunicação entre o visível e o invisível, Selim Hassan decifrou o nome e os títulos da proprietária: Quenet-Kaus, ”Aquela que preside aos seus poderes criadores”, mãe do rei do Alto e Baixo Egito, filha do deus para o qual se realizam todas as boas coisas que ela formula. E uma grande hesitação: será que a inscrição nos permite pensar que esta mãe de um rei não designado era também faraó?

      

       Desde a descoberta do seu túmulo, poucas informações conseguimos acerca desta rainha, mas podemos concluir que teve um papel importante. Filha, por certo, de Miquerinos, o construtor da mais pequena das três pirâmides de Gize, foi criada e instruída na escola do palácio. A sua mãe seria a sublime Qamerer-Nebti, a esposa de Miquerinos, cujo rosto admirável conhecemos graças a uma estátua conservada no Museu de Boston? Esta obra magnífica, colocada no templo do vale no conjunto funerário de Miquerinos, mostra-nos a sua esposa caminhando a seu lado, passando o braço direito pela cintura do monarca e pousando a mão esquerda no braço esquerdo do esposo, numa atitude protetora.

      

       Chepseskaf, o último rei da quarta dinastia, e Quenet-Kaus, considerada a ”mãe” dos dois primeiros faraós da quinta dinastia, mandaram construir o mesmo e excepcional tipo de túmulo. Chepseskaf abandonou o símbolo da pirâmide que podia ser avistada de longe, e o mesmo fez Quenet-Kaus; os primeiros monarcas da quinta dinastia voltarão a mandar edificar pirâmides na estação de Abusir, próxima de Sacara.

      

       Uma suposição ousada: a existência deste túmulo-sarcófago, de um templo funerário, a sua posição de fundadora de uma nova dinastia, o culto que lhe será prestado depois da sua morte, não levam a crer que Quenet-Kaus ocupou a função suprema no início da quinta dinastia, entre o desaparecimento de Chepseskaf e a subida ao trono de Kserkal (cerca de 2500-2491 a.C.)? Os ”poderes criadores” sobre os quais esta mulher reinava eram talvez os seus sucessores, que ela havia preparado para reinarem, quer tenha sido a sua mãe espiritual ou carnal, ou ambas.

      

       Infelizmente é impossível saber mais, mas reconhece-se hoje unanimemente que Quenet-Kaus, grande dama do Antigo Egito, foi uma das duas figuras marcantes.

      

       As Mulheres de Pépi II

       Uma outra rainha faraó?

       O faraó Pépi II (cerca de 2278-2184 a.C.) é a figura central da sexta dinastia: noventa e quatro anos à frente do Egito, ou seja, o mais longo reinado da História! É certo que não edificou uma pirâmide tão colossal como a de Quéops, mas o país manteve-se próspero e feliz.

      

       Quando Pépi II foi escolhido para reinar, tinha apenas cinco anos. Era, evidentemente, incapaz de governar. Esta função foi conferida a uma mulher, Meryré-Anquenes, “a amada da Luz divina, que a vida lhe seja concedida”, viúva do faraó Pépi I. Que fosse simplesmente considerada como regente não altera os fatos assumiu os assuntos de Estado até ao momento em que Pépi II foi capaz de assumir o seu cargo.

      

       Uma estátua em alabastro, conservada no Brooklyn Museum, mostra-a sentada com uma grande peruca, tendo sobre os joelhos o Faraó menino e enfeitiçando-o com a mão esquerda. A estatura de Pépi II revela que é certamente uma criança, mas tem um rosto de adulto. De fato, na concepção egípcia, o senhor das Duas Terras é Faraó ”desde o ovo”, o papel da ”mãe do rei” consiste em fazê-lo crescer magicamente, em ”alargar o seu coração” e torná-lo plenamente ciente dos seus deveres.

      

       Três rainhas para um faraó e pirâmides falantes

       Pépi II viveu centenário e teve três esposas sucessivas: Neit, Ipuit e Udjebten. Cada uma das três rainhas foi a encarnação da deusa Hator, cujo nome significa ”templo de Hórus”, ou seja, o próprio faraó; na sua qualidade de senhora das estrelas, ela gerava ”o Hórus de ouro”, a obra-prima da Criação, o rei capaz de exercer na Terra a missão de natureza cósmica que ela lhe confiava. A rainha chama-se ”aquela que vê Hórus e Set” no mesmo ser (o faraó) e que consegue conciliar o inconciliável restabelecendo a paz entre os dois irmãos inimigos. É também ”aquela que reúne os dois senhores”, os mesmos Hóros e Set que reinam sobre o Norte e o Sul do país, cuja aliança é indispensável.

      

       Nesta época, é certo que o título de ”Amiga (semeret) de Hórus” já não está reservado às esposas reais, podendo ser concedido a uma ”filha de rei” ou mesmo a uma dignitária. E não foi a única inovação do longo reinado de Pépi II.

      

       Havia muito que se construíam pirâmides para as ”mães de rei” e as grandes esposas reais, que assim partilhavam o destino estelar do faraó; quanto aos príncipes, não tinham sepulturas tão monumentais. As três esposas de Pépi II (Neit, Ipuit e Udjebten) viveram a sua eternidade nas três pirâmides próximas da do rei, as duas primeiras a noroeste, a terceira a sudeste. Cada uma delas possuía um templo onde os ritualistas celebravam um culto do ka dedicado à rainha defunta.

      

       A grande Neit, cujo nome evoca o da deusa, foi a primeira grande esposa real de Pépi II; igualmente ”esposa da pirâmide do rei”, foi venerada por todos os dignitários da corte. A sua própria pirâmide era rodeada por uma muralha com uma única porta precedida por dois pequenos obeliscos. Na primeira sala, dita ”sala dos leões”, praticavam-se ritos de ressurreição. Depois encontrava-se um pátio, câmaras onde se conservavam objetos rituais e estátuas, e o santuário propriamente dito, encostado à parede da pirâmide. Um corredor estreito conduzia ao jazigo que abrigava um sarcófago de granito rosado, comparável ao de Pépi II. A pirâmide de Ipuit e o seu templo, mal conservados, compreendem conjuntos idênticos, mas com uma disposição diferente. Um lintel em granito especifica que o faraó mandara edificar este monumento para a sua esposa, aliás figurada nos alizares. A pirâmide de Udjebten, que não teria sido de origem real, ao contrário das duas primeiras esposas, não era menos importante.

      

       É certo que estes três monumentos não passam de ruínas, mas contêm um tesouro excepcional, parcialmente descoberto em consequência da dificuldade das escavações: colunas de textos hieroglíficos consagrados aos múltiplos modos de ressurreição da alma real e à sua perpétua viagem no Além. Estes Textos das Pirâmides, concebidos na cidade santa de Heliópolis, foram revelados pela primeira vez no interior da pirâmide de Unas, o último faraó da quinta dinastia, e as três mulheres de Pépi II foram autorizadas a mandar inscrever nas paredes do seu jazigo estas fórmulas de magia e de conhecimento. Tal como Pépi II, elas repousam pois no interior de um Livro da Vida onde cada hieróglifo está carregado de poder.

      

       A menos que falte descobrir uma pirâmide feminina com textos, foi a primeira vez que se gravou em pedra a identificação de uma rainha com Osíris. Os textos das pirâmides das três mulheres de Pépi II oferecem ao mesmo tempo capítulos comuns à totalidade dos monumentos do mesmo tipo e passagens originais; ou seja estas três grandes damas fazem ouvir uma voz única e insubstituível. Estas figuras distantes, cuja história pessoal é desconhecida, formam uma trindade híeroglífica que opera para a concretização de um dos grandes ideais do Antigo Egito: a vitória sobre a morte.

      

       NITOCRIS, A PRIMEIRA MULHER CONSAGRADA FARAÓ

       O reinado de Nitócris

       Tendo morrido centenário, o rei Pépi II teve como sucessor Merenré, cujo reinado foi muito breve: deve ter durado menos de um ano. É então que entra em cena Nitócris, a primeira mulher oficialmente consagrada faraó reinante, posto que o seu nome figura numa das listas reais compostas pelos próprios egípcios e conhecida sob a designação de ”Cânone de Turim”. Outras listas foram provavelmente destruídas e constatamos que, muito antes de Nitócris, houve mulheres que exerceram o poder supremo. Contudo, no atual estado de documentação, ela é a primeira mulher a possuir formalmente o título de ”Rei do Alto e Baixo Egito”.

      

       Nitócris subiu ao trono cerca de 2184 a.C. e, de acordo com os arquivos da época ramessida, reinou dois anos, um mês e um dia; certos investigadores inclinam-se a favor de um período mais longo, de seis a doze anos. Infelizmente não chegou até nós nenhum documento arqueológico com o seu nome, o que origina uma situação paradoxal: para rainhas anteriores, como Quenet-Kaus, há um monumento colossal, faraônico, mas nenhum título explícito; para Nitócris, há o título mas nenhum monumento! Belo enigma a resolver e, se não tivesse sido destruída, uma sepultura excepcional para se descobrir.

      

       De acordo com o grego Eratóstenes, o nome Nitócris significa ”Atenas é vitoriosa”, e não andava longe da verdade, porque Nitócris, em egípcio Neit-iqeret, pode traduzir-se por ”Neit (o modelo egípcio da Atenas grega) é excelente”. Mais uma vez, a deusa Neit é a protetora de uma mulher de primeiro plano.

      

       Bela e corajosa

       A história das dinastias redigida pelo sacerdote egípcio Maneton perdeu-se, mas subsistem fragmentos citados por autores da Antiguidade. Um deles, conservado num texto de Eusébio, fala nestes termos da faraó Nitócris: Uma mulher, Nitócris, reinou; tinha mais coragem do que os homens da sua época e era a mais bela de todas as mulheres, loira e de faces rosadas. Diz-se que construiu a terceira pirâmide. De acordo com uma tradição tardia, teria sido sepultada com o corpo repousando sobre um sarcófago em basalto azul.

      

       Esta ”terceira pirâmide” poderia ser a de Miquerinos, no planalto de Gize, mas não foi encontrado nenhum vestígio de Nitócris aí. Em contrapartida, certos arqueólogos crêem que o monumento foi restaurado na época da mulher faraó; a atenção que prestou a este grandioso monumento explica talvez a lenda.

      

       A beleza de Nitócris faz pensar nos títulos das rainhas do Antigo Império: grande no amor, de belo rosto, encantadora, soberana no encanto, que satisfaz a divindade graças à sua beleza, à voz feiticeira com que canta, que enche os palácios com o odor do seu perfume, a soberana de todas as mulheres, a senhora das Duas Terras e da Terra até aos seus confins. Trata-se, pois, de uma beleza ritual, de um encanto consubstancial à função de rainha do Egito e, afortiori, à de rainha faraó.

      

       Outra lenda tardia, de que não encontramos vestígios nos documentos egípcios, afirma que Nitócris era a esposa de um rei que havia sido assassinado por traidores. Este ato odioso não lhes permitiu reinar e por isso pediram à pobre Nitócris que governasse a fim de não interromper a linhagem legítima. A jovem aceitou, mas preparou a sua vingança em segredo: mandou construir uma grande sala subterrânea e convidou os traidores para um banquete para festejarem a vitória; enquanto festejavam, Nitócris mandou abrir um cano por onde a água entrou. Os traidores afogaram-se e Nitócris suicidou-se lançando-se a uma câmara cheia de cinzas, onde sufocou. Um dramático conto oriental, mas sem fundamento histórico.

      

       O fim do Antigo Império

       O glorioso tempo das pirâmides termina com o reinado de Nitócris, seguindo-se um período confuso acerca do qual estamos muito mal informados. Instaura-se uma grave crise que, sem pôr em causa a instituição faraónica, parece traduzir-se em perturbações sociais e econômicas. Cheias nocivas, brusca alteração climática, invasão de tribos beduínas, enfraquecimento do poder central, aumento do poder dos chefes das províncias que esquecem o interesse geral? Numerosas explicações foram avançadas sem que se obtivesse uma certeza. Nem sequer conhecemos com exatidão aquilo que os egiptólogos designaram por ”o primeiro período intermédio”, intermédio entre o fim do Antigo Império e o início do Médio: entre cem a cento e noventa anos, durante os quais o Egito enfraquece.

      

       O reino de Nitócris foi, pois, o último do Antigo Império, dessa idade áurea do Antigo Egito; durante cerca de cinco séculos, faraós construtores de pirâmides edificaram um mundo de uma força e beleza incomparáveis. Se é verdade que um povo feliz não tem história, este pensamento aplica-se maravilhosamente bem ao Antigo Império, em que reis e rainhas falam da sua função, do seu papel de ligação entre o divino e o humano, da prática dos rituais concebidos como uma ciência da vida. Mas é em vão que buscamos pormenores da sua vida privada ou a sua história pessoal, pois filiações e genealogias são incertas.

      

       Os baixos-relevos dos túmulos, porém, põem em cena o quotidiano e as venturas dos meses e dos dias naqueles tempos em que a História havia sido ritualizada e concebida como uma festa.

      

       Seria injusto considerar Nitócris como responsável pela quebra produzida; na realidade, a sexta dinastia enfraqueceu pouco a pouco e, durante o longo reinado de Pépi II, evoluções negativas, difíceis de perceber em consequência da pobreza de documentação, conduziram o Egito à crise.

      

       Rodópis  e Cinderela

       A bela Nitócris continuava a dar que falar para além dos fatos históricos. Foi confundida com uma certa Rodópis, ”a dama de tez rosada”, mas houve várias Rodópis que se confundiram um pouco na memória dos narradores orientais. Pensemos na cortesã grega nascida em Naucratis, uma cidade do Delta. Apesar dos seus costumes dissolutos, os gregos atribuíram-lhe a construção da pirâmide de Miquerinos! Será idêntica à muito sedutora Rodópis pela qual se apaixonou o rei Psamético, o qual teve uma filha chamada Nitócris, que foi sumo sacerdotisa do deus Amon, em Tebas, onde levou uma vida austera? Como vemos, tudo se mistura e se confunde, mas parece que os antigos admiraram muito os loiros cabelos de Nitócris e Rodópis.

      

       Nitócris-Rodópis foi a vedeta de uma lenda que todos conhecem, pelo menos em desenhos animados. Eis a sua versão egípcia: enquanto a jovem se banhava no Nilo, um falcão (Hórus, protetor da realeza) apoderou-se de uma das suas sandálias, voou até à cidade de Mênfis, onde residia o faraó, e deixou-a cair no colo do monarca; este, imaginando o delicado e maravilhoso pé que as dimensões e a requintada confecção do objeto faziam supor, mandou então procurar a sua proprietária por todo o país. A empresa foi coroada de sucesso e os emissários do rei conduziram a bela jovem à corte; o rei apaixonou-se imediatamente e desposou-a. Quando morreu, o modelo de Cinderela teve o insigne privilégio de ser inumado numa pirâmide.

      

       O fantasma de Nitócris

        O planalto de Gize sofreu muito nos últimos anos. A cidade moderna e a poluição agridem-no, construções aberrantes ameaçam desfigurar a estação, o mágico cenário e a serenidade de outrora parecem pertencer ao passado.

       No entanto, quem tivesse a ventura de passear junto da pirâmide de Miquerinos ao poente, num dia ameno, poderia ver, sob o louro dos derradeiros raios de sol, uma mulher nua e muito bela.

        É Nitócris, ou, mais exatamente, o seu fantasma, a alma da pirâmide, encarregada de guardar o monumento. Diz a tradição que quem ceder aos seus encantos enlouquece; mas, se conhecermos o seu nome, se soubermos falar-lhe da idade áurea, não estaremos simplesmente enfeitiçados pela mulher faraó de cabelos loiros e róseas faces?

      

       SEBEQ-NEFERU, MULHER FARAÓ ANTES DA TORMENTA

       Venturas do Médio Egito

       Cerca de 2060 a.C., o Egito sai de uma longa crise. Durante duas dinastias, a décima primeira e a décima segunda (de 2133 a 1785 a.C.), três linhagens de faraós, os Mentuhotep, os Amenemhat e os Sesóstris18, governaram um país novamente próspero onde, infelizmente, a obra arquitetônica desapareceu por completo. Alguns monumentos, desmontados com cuidado, foram utilizados como alicerces dos seus próprios edifícios pelos reis do Novo Império. Podemos, no entanto, admirar a ”capela branca” de Sesóstris I, reconstruída pelo arquitecto francês Chevrier e exposta em Carnaque no ”museu ao ar livre”. Elegância da geometria, beleza do calcário, delicadeza dos hieróglifos, perfeição das cenas esculpidas: tudo evoca a ”idade clássica” do Médio Império, inspiradora de grandes obras literárias como o Conto de Sinué, verdadeiro romance de espionagem que narra a missão de um dignitário egípcio no estrangeiro e o seu regresso ao redil.

      

       É verdade que já não constroem pirâmides gigantes em pedra talhada como as do planalto de Gize, mas o símbolo não é abandonado, ainda que os faraós desta época se contentem com pirâmides mais modestas, algumas das quais construídas em grande parte com tijolo. Uma estação como a de Licht, a sul do Cairo, manifesta porém uma grandeza sempre perceptível, apesar das destruições infligidas aos conjuntos funerários de Sesóstris.

      

       Nos últimos anos tem-se tentado demonstrar que o estatuto social e legal da mulher egípcia se havia degradado um pouco durante o Médio Império, mas o estudo da documentação prova que continuava a ser livre e autônoma, em conformidade com os princípios civilizadores enunciados na primeira dinastia.

      

       O Médio Império conheceu três séculos e meio de paz, que terminaram com o reinado de uma mulher faraó, Sebeq-Neferu.

      

       Sebeq-Neferu: um reinado, nomes, monumentos

       De 1790 a 1785 a.C., uma mulher reina como faraó. A sua presença histórica é confirmada pelos seus nomes régios e por vários documentos. Era talvez filha de Amenemhat III e irmã ou esposa de Amenemhat IV, seu sucessor. Não sabemos a duração exata do seu reinado: cinco anos para uns, três anos, dez meses e vinte e quatro dias para outros, que seguem o papiro de Turim.

      

       Nenhum estado de crise precede a subida ao poder de Sebeq-Neferu, faraó legítima e reconhecida como tal. Um documento excepcional, infelizmen-te mutilado, a estátua do Louvre E 27135, constituía uma representação de Sebeq-Neferu, simultaneamente mulher e rei. Desta imponente obra em grés vermelho só o torso subsiste; a cabeça, os braços e as pernas desapareceram. Que vemos? Os seios de uma mulher parcialmente cobertos pelo comprido vestido tradicional sobre o qual se vê uma sobreveste de faraó! Este tipo de vestes é único na estatuária faraônica preservada. Como sabemos que se trata de Sebeq-Neferu? Graças ao seu nome, escrito em hieróglifos na cintura. Sobre o vestido feminino tinha, pois, envergado a veste masculina do rei, aliando assim as duas naturezas e tornando-se num Hórus feminino.

      

       O seu nome foi igualmente gravado numa arquitrave de um templo da cidade de Heracleópolis, nas pedras do templo funerário de Amenemhat III e noutras estátuas que a representavam, provenientes do Delta; estes escassos vestígios levavam a crer na existência de outras obras, hoje destruídas ou enterradas na areia, ou ainda guardadas em coleções particulares.

      

       Será que Sebeq-Neferu mandou construir uma pirâmide, tal como os seus antecessores? É o mais provável, e supõe-se que ficava na estação de Mazghuna, a sul de Mênfis, mas as escavações ainda não descobriram nenhum elemento decisivo de identificação.

      

       De acordo com as regras relativas aos títulos usados a partir da quinta dinastia, a faraó Sebeq-Neferu tem cinco nomes: Nome de Hórus, A Amada da Luz Divina (Ra), Nome das Duas Soberanas: A Filha do Cetro do Poder (ou: da Poderosa), a Senhora das Duas Terras19. Nome do Hórus de ouro: Estável nas aparições em realeza (ou Aquela cujas coroas são estáveis). Nome do rei do Alto e Baixo Egito: Sebeq é o poder (ka) da luz divina (Ra).

      

       Nome da filha da Luz divina (Ra). Beleza perfeita (neferu) de Sebeq. Graças aos seus nomes, esta mulher faraó definia o seu programa de governo e o seu modo de ação espiritual. Note-se que insiste na sua relação com a Luz divina, no seu poder, na sua estabilidade e, sobretudo, num fato surpreenden-te: ela encarna a ”beleza perfeita” do deus-crocodilo Sebeq, que é o próprio poder da Luz.

      

       Para quem contemplou de perto um crocodilo, o termo ”beleza” não é o primeiro que acode ao espírito; contudo, os egípcios consideravam Sebeq como a encarnação do princípio criador simbolizado pelo crocodilo, como um grande sedutor e ladrão de mulheres, igualmente capaz de castigar o adúltero. Este príncipe encantado deliciava-se com as gentis damas, e era sem dúvida para conjurar o perigo que Sebeq-Neferu transformava em beleza a agressividade do sáurio. Tornava-se ela própria crocodilo e, como os seus títulos precisam, ”Sebeq do Faium”.

      

       O Faium é um pequeno paraíso a uma centena de quilômetros a sudoeste do Cairo. Os faraós do Médio Império dedicaram-se a valorizar esta região, nomeadamente graças a importantes trabalhos de irrigação que fizeram dela um imenso jardim ligado a uma reserva de pesca e de caça. O deus da principal cidade do Faium, Shedet (a Crocodilópolis dos gregos e a atual Medinet el-Faium), era precisamente Sebeq, e uma das suas maiores funções consistia em elevar o Sol do fundo das águas a fim de fazer jorrar a Luz sobre a Terra, desencadeando assim o processo de fertilização. Considerado como o ”grande peixe”, o senhor das margens e dos pântanos, Sebeq era o ”poder da Luz divina”, capaz de extrair a vida do oceano tenebroso das origens e de fazer verdejar o país. Eram estas as tarefas que Sebeq-Neferu, a faraó-crocodilo, se impunha a si mesma.

      

       A tormenta: uma invasão vinda do Norte

       A nordeste do Delta, a fronteira do Egito é frágil, revelando-se uma via de invasão natural muito tentadora para as populações nômades, os hicsos20, que formavam clãs de pastores amantes da pilhagem. Há muito que lançavam um olhar ávido sobre as ricas terras cultivadas dos egípcios.

      

       Por que razão se terá desencadeado uma vaga invasora por volta de 1785 a.C.? Sem dúvida porque povoações asiáticas se juntaram a estes clãs com a firme intenção de se apossarem do Egito. O dispositivo de segurança dos faraós revelou-se muito insuficiente e o ataque dos hicsos foi um sucesso. O exército de Sebeq-Neferu não conseguiu repelir os invasores, que se instalaram no Norte do país e controlaram a própria Mênfis.

      

       Hórus-fêmea, Sebeq-Neferu21, foi um autêntico faraó, e considerada como tal pelas antigas listas régias. Afirmou o vínculo das mulheres com o poder por via do deus-crocodilo Sebeq, cuja primeira sacerdotisa havia sido Quenemet-Nefer-Hedjet, a esposa de Sesóstris II. Três outras damas sublinharão esta relação simbólica: Amés-Nefertari, Hatshepsut e Tiyi.

       

       Como se desenrolaram os últimos dias do reinado de Sebeq-Neferu quando o país se dividia em zona livre e zona ocupada? Não sabemos. Uma vez que a data precisa da invasão dos hicsos permanece desconhecida, nem sequer é certo que ela tivesse de os enfrentar diretamente.

      

       LAH-HOTEP, A LIBERTADORA DO EGITO

       A ocupação dos hicsos

       Durante mais de dois séculos, de 1785 a 1570 a.C., os hicsos ocuparam o Norte do Egito. Os egiptólogos batizaram esta época com o nome de ”segundo período intermédio”; o seu estudo revela-se difícil pela pobreza da documentação. O processo dinástico não se interrompe, mas nenhum monarca de envergadura se impõe; os próprios hicsos conformaram-se com os títulos faraônicos, como se desejassem ser admitidos pela população. Os ”monarcas” são numerosos mas os seus reinados são breves, pois os chefes dos clãs estão sempre em luta.

      

       Alguns chefes das províncias mantiveram no entanto a independência; o Alto Egito permanece livre e os hicsos não conseguem assenhorear-se dele. Da décima terceira dinastia ao final da décima sétima, o país encontra-se dividido em dois.

      

       Alguns egípcios colaboraram com os ocupantes, outros recusaram obstinadamente a sua presença. Na verdade, torna-se difícil apreender a natureza desta ocupação. Para uns, os hicsos foram uns bárbaros cruéis e destruidores; para outros, dobraram-se ao modo de vida egípcio, na esperança de se imporem com o tempo. Fosse como fosse, não se tornaram populares.

      

       Pouco antes de 1570 a.C., a situação modificou-se quando uma mulher excepcional, lah-Hotep, deixou de tolerar esta ocupação estrangeira que arruinava o Egito e decidiu fazer tudo para o libertar.

      

       Uma guerra inspirada pelo deus-Lua

       Filha do rei Taa I e da rainha Tetisheri, que foi talvez a primeira a defender a reconquista, lah-Hotep tem um nome significativo: ”O deus-Lua (lah) está em paz”. Em antigo egípcio, a palavra ”Lua” é masculina: é o ”Sol da noite”, cheio de magia e muitas vezes comparado a um touro, um temível combatente. O nome da rainha anuncia todo um programa político: primeiro a guerra (lah), depois a paz (Hotep), uma vez conseguida a vitória.

      

       lah-Hotep provém de Tebas, pequena cidade do Sul do Egito, que vai agrupando os resistentes; e é o marido da rainha, o rei Sequenenré, ”Aquele que aumenta a bravura da Luz divina”, que assume a chefia do exército de libertação e se lança ao ataque dos hicsos.

      

       Desconhecemos o número de soldados envolvidos na ação e os episódios do conflito, o qual terminou com a morte de Sequenenré. Efetivamente, a sua múmia exibe vários ferimentos fatais.

      

       lah-Hotep está viúva, mas restam-lhe dois filhos, Kamósis e Amósis. O nome de Kamósis, ”o poder nasceu”, é seguido de um guerreiro empunhando um bastão: quer dizer que a rainha lhe insuflou a vontade de prosseguir a obra do pai e de continuar a guerra. De fato, o impulso não foi interrompido, embora um novo problema surgisse: conscientes da determinação das tropas tebanas, os hicsos procuram provocar uma revolta na Núbia. Se os núbios se tornassem seus aliados, Tebas ficaria entre dois fogos: os hicsos a Norte, os núbios a Sul.

      

       Outra solução: atacar. Enquanto Kamósis avança para Norte, reconquistando aos hicsos uma cidade atrás da outra, lah-Hotep preocupa-se com a fortificação da fronteira sul, em Elefantina. Os núbios não passarão, o projeto de aliança com os hicsos fracassará.

      

       Kamósis alcançou várias vitórias, mas não conseguiu apossar-se de Avaris, a capital fortificada dos hicsos, onde os últimos asiáticos haviam encontrado refúgio. Regressou a Tebas, onde foi acolhido por lah-Hotep, que governava na sua ausência. Por que razão Camósis não continuou o cerco? Talvez estivesse ferido. Quando saiu de cena, o segundo filho de lah-Hotep tinha apenas uns dez anos. A rainha assumiu, pois, o poder sobre um território cada vez mais vasto, sem perder de vista o objetivo final: a libertação total do Egito. Os nomes deste segundo filho são eloquentes: ”Aquele cujas transformações são grandes, o touro em Tebas, aquele que reúne as Duas Terras, a Luz divina (Ra) é o senhor da força”. Na qualidade de Amósis22, ”Aquele que nasceu do deus-Lua”, prosseguiu a ação guerreira da rainha.

      

       A libertação do Egito

       Quando chegou à idade de mandar e de combater, Amósis partiu de novo para o Norte, com a firme intenção de se apoderar de Avaris e expulsar definitivamente os hicsos do Egito. Uma estela, erigida pelo rei no interior do templo de Carnaque, salienta o difícil papel que lah-Hotep teve de desempenhar antes de entrever a vitória. Certamente que nem todos os cortesãos estavam de acordo com a continuação da luta e que a rainha teve de mostrar coragem e autoridade para reanimar as energias desfalecidas. De acordo com o texto desta estela, é evidente que lah-Hotep se comportou como uma verdadeira faraó, governando o Egito com firmeza: “Dirigi louvores à dama das margens das terras distantes, cujo nome é exaltado em todos os países estrangeiros, ela que governa multidões, ela que cuida do Egito com sabedoria, que se preocupou com o seu exército, que velou sobre ele, que fez regressar os fugitivos e reuniu os dissidentes, que pacificou o Alto Egito e submeteu os rebeldes’’.

      

       Poderemos nós deduzir destas linhas que lah-Hotep pôs fim a uma revolta militar no Sul e perpetrou uma espécie de golpe? As opiniões divergem, mas parece que foi um autêntico chefe do exército, do qual cuidava e encorajava: galvanizou os hesitantes, deu coesão as suas tropas e reintegrou nelas os soldados que haviam desertado.

      

       Imaginamos a alegria de lah-Hotep ao tomar conhecimento da queda de Avaris. O seu marido morrera em combate; o seu filho mais velho, Kamósis, entregara a alma antes da vitória final; e o seu segundo filho, Amósis, acabava de libertar a totalidade do território egípcio até reunificar as Duas Terras, tornando-se no primeiro faraó de uma nova dinastia, a décima oitava.

      

       lah-Hotep e Amósis não se contentaram com a tomada da odiada cidadela; o rei perseguiu os vencidos em fuga até ao Norte, talvez até ao Eufrates. E não esqueceu a temível tentativa de aliança que por pouco comprometera o seu sucesso: após a expulsão dos hicsos, Amósis expulsou do seu reino um pequeno rei núbio suspeito de colaboração com o inimigo. Da ponta do Delta até à Núbia, apenas o faraó reinava.

      

       O nascimento de uma capital

      

       Até então, a grande cidade do Egito dos faraós era Mênfis, ”a balança das Duas Terras”, implantada na junção do Delta e do Vale do Nilo. Fundada pelo ilustre Djoser, Mênfis não tinha rival.

      

       Mas quem acabara de libertar o Egito fora uma linhagem de soberanas originárias de Tebas. lah-Hotep agarrou então a oportunidade e soube elogiar os méritos de Uaset, ”a cidade do cetro uas (aquele que as deusas têm)”, nome sagrado de Tebas. A ”cidade das cem portas”, que maravilhou Homero, é simbolizada por uma mulher e conheceu a glória graças a uma mulher. Sob o impulso de lah-Hotep, Tebas tornou-se na capital de um Egito livre, de novo senhor dos seus destinos.

      

       Uma rainha condecorada como um general

       Mulher enérgica e vigorosa, lah-Hotep morreu octogenária, venerada pela corte e pelo povo. Fora a libertadora, a heroína indômita que dera ao exército a coragem necessária para expulsar os ocupantes.

      

       O seu filho Amósis presidiu às cerimônias fúnebres; a rainha foi inumada num túmulo de Dra Abu el-Naga, um setor ocidental da necrópole de Tebas. O egiptólogo francês Auguste Mariette escavou a sepultura em 1859 e teve a felicidade de descobrir um tesouro composto por jóias de bela confecção, como por exemplo uma pulseira em ouro maciço, revestida de lápis-lazúli, a qual proclamava o reconhecimento de Amósis como faraó. Outra maravilha, uma pulseira de pérolas enfiadas em ouro e formada por faixas de ouro, lápis-lazúli, cornalina e turquesa. Ao fechá-la, a rainha juntava hieróglifos que afirmavam a qualidade de Amósis como ”perfeito deus, amado de Amon”, e, portanto, deus de Tebas. Citemos ainda um diadema representando a deusa-abutre Neqbet, que encarna ao mesmo tempo a função materna e a capacidade de dar títulos e nomes a um faraó; pois não tinha a rainha oferecido ao Egito dois reis, Kamósis e Amósis?

      

       Três objetos surpreendentes sublinhavam a ação guerreira da grande rainha24: um punhal com lâmina de ouro, um machado com cabo de cedro laminado a ouro, no qual se pode ver o rei, a esfinge e o grifo vencendo os seus inimigos, e três moscas de ouro, habitualmente atribuídas como recompensa aos generais e soldados que se distinguem em combate pela sua valentia.

      

       Tanto quanto sabemos, mais nenhuma rainha do Egito recebeu esta condecoração militar, a mais alta que o faraó concedia a um valente. Amósis reconhecia assim que a inspiradora da guerra da libertação era lah-Hotep. A rainha tinha realizado o seu projeto: utilizar a força do deus-Lua em prol da luta vitoriosa contra os hicsos e para restabelecer a paz. Merecia estas três moscas de ouro, símbolo da sua coragem indómita e da sua tenacidade nas provações.

      

       AMÉS-NEFERTARI, A ESPOSA DO DEUS

       De lua em lua, de rainha em rainha

       Tal como entrevemos o seu carácter, lah-Hotep não era mulher para deixar os destinos do Egito em mãos incompetentes. Podia ter confiança no seu filho, o faraó Amósis, que reinou de 1570 a 1546 a.C., mas a escolha de uma grande esposa real não era menos determinante. Esta escolha irá recair numa personalidade tão excepcional como lah-Hotep, Amés-Nefertari, cujo nome significa: ”Nascida do Deus-Lua, a mais bela das mulheres”.

      

       Soberana das Duas Terras, ”mãe real”, Amés-Nefertari25 foi também uma espécie de faraó: sobreviveu ao marido, depois de se ter associado a todos os grandes atos do seu reinado; foi regente do reino durante a infância de Amenotep I (1551-1524) e morreu velha, no início do reinado de Tutmósis I (1524-1518), depois de assistir à sua coroação. Com ela, estamos de novo em presença de uma dessas extraordinárias rainhas do Egito.

      

       Será que ela provinha de um meio modesto, como o parece trovar uma inscrição de que voltaremos a falar? É possível, pois no Antigo Egito a fortuna e a ”nobreza” não constituíam critérios imperiais para escolher uma rainha. Amés-Nefertari nasceu provavelmente em Tebas e aí foi criada; o desenvolvimento religioso que deu a esta região demonstra o amor que lhe dedicava.

      

       Tal como algumas rainhas, exerceu o poder durante vários anos, quando Amenotep I, o primeiro faraó a incluir no seu nome o de Amon, era ainda muito jovem para assumir o cargo; Amés-Nefertari foi também autora de notáveis inovações cujas consequências seriam ainda perceptíveis vários séculos após o seu desaparecimento, quando a dinastia das Divinas Adoradoras reinava em Tebas. Mas comecemos por evocar a sua dedicação ao culto dos antepassados.

      

       Uma antepassada venerada

       Uma estela descoberta na capela da rainha Tetisheri, em Abidos, faz-nos assistir a um diálogo entre o faraó Amósis e a sua grande esposa real Amés-Nefertari. O rei tinha uma viva admiração pela sua avó Tetisheri, uma tebana que havia vivido sob a ocupação dos hicsos e que suscitara o primeiro sentimento de revolta; quis que a sua memória fosse dignamente honrada e recomendou a Amés-Nefertari que fizesse por isso.

      

       O que era necessário fazer por Tetisheri? Manter a sua capela em Abidos, o tanque onde os ritualistas iriam buscar água fresca para as libações quotidianas, o seu jardim e as suas árvores, fazer ”verdejar” as suas mesas de oferendas, ou seja, guarnecê-las diariamente de oferendas, associar a sua alma às grandes festas. Para que estas tarefas fossem praticadas corretamente, era necessário pessoal adequado e dotá-lo de campos e rebanhos.

      

       O casal régio dedicou um culto a Tetisheri e proclamou a sua importância, porque a considerava como a antepassada de uma nova dinastia que devia restituir ao Egito o seu esplendor passado - o respeito pelos antepassados era a base sólida sobre a qual se podia construir.

      

       A esposa do deus

       Na terceira coluna do templo de Carnaque, coberto de antigas pedras, foram descobertos fragmentos de uma estela que foi possível reconstituir. O esforço foi recompensado, porque o texto revelou uma estranha história de grande importância durante o reinado de Amés-Nefertari.

      

       Ficamos a saber que esta última tinha o título de ”segundo servidor do deus” na hierarquia do templo de Carnaque. Mas, em vez de se vangloriar por tal, renuncia. Porquê esta surpreendente decisão? Porque o rei lhe oferece em troca os meios materiais necessários para criar uma nova instituição religiosa e econômica a da ”esposa do deus”, de que a rainha se tornou a fundadora.

      

       Passou a dispor então de bens móveis e imóveis destinados a constituir o domínio da esposa do deus: terras, ouro, prata, bronze, vestes, trigo, unguentos. O texto da estela fornece-nos uma informação surpreendente: a rainha ficou rica, sendo pobre. Fato simbólico ou alusão ao passado da soberana?

      

       O rei mandou construir uma morada para a esposa do deus e um registo de propriedade foi selado a seu favor. Nas suas funções, Amés-Nefertari usava um vestido estreito até aos calcanhares, apertado na cintura e com umas alças que cobriam parcialmente os seios, um vestido clássico, como o das sacerdotisas do Antigo Império; uma peruca curta, cingida por um aro, moldava-lhe a cabeça. Usava ainda duas altas plumas que completavam o toucado tradicional das rainhas e que eram ”os despojos do abutre”, símbolo da função materna no seu aspecto espiritual. Estas duas grandes plumas encarnavam o casal primordial, Chu e Tefnut26, os dois olhos do Criador, as duas deusas da ressurreição, Ísis e Néftis; graças a elas, o olhar da esposa do deus ia até às alturas celestes e tinha a capacidade de conhecer Maat, a Ordem eterna do universo.

      

       Amés-Nefertari chefiou um colégio de sacerdotisas que a ajudariam a exercer a sua principal função: manter, com o seu amor, a energia do deus Amon, a fim de que o amor divino alimentasse o Egito. Do ponto de vista do Estado, este ato mágico era essencial. A energia das divindades era efectivamente considerada como uma realidade vital, sem a qual o país não poderia viver em harmonia com o invisível.

       

       Amés-Nefertari, santa padroeira da necrópole tebana

       A morte da grande rainha, no início do reinado de Tutmósis I, cerca de 1524 a.C., constituiu um importante acontecimento: tinha marcado o seu tempo e os espíritos de tal maneira que a sua memória não se apagou: cerca de setenta escaravelhos ostentando o seu nome, estelas amovíveis e estatuetas com a sua efígie, inúmeros objetos rituais como os sistros que lhe são dedicados, a sua presença em cerca de cinquenta cenas pintadas nos túmulos tebanos... Esta acumulação de testemunhos prova a existência de um verdadeiro culto em honra de Amés-Nefertari. A sua múmia foi recolhida num enorme sarcófago depositado num túmulo a oeste de Tebas, em Dra Abu el-Naga. Uma outra vida começou para a rainha, no céu e na Terra ao mesmo tempo.

      

       Amés-Nefertari foi considerada como a santa padroeira da necrópole tebana e durante várias décadas gozou de grande popularidade. Porquê este fervor? Porque se havia preocupado com a manutenção dos túmulos e tivera a ideia, concretizada por Tutmósis I, de criar uma confraria encarregada da construção e restauração das moradas eternas. Instalados na aldeia de Deir el-Medina, os artesãos sentiram-se imensamente reconhecidos à rainha, que elevaram à categoria de divindade protetora.

      

       O seu templo foi edificado perto do seu túmulo: ”aquele cuja localização é estável (mensei)”, na orla das terras cultivadas. Este tipo de edifício estava normalmente reservado aos faraós, sendo conhecidas poucas excepções. Isto significa pois a grande estima por esta rainha. O seu santuário sugeria uma região do outro mundo, revelada e encarnada na terra onde era aprazível passear. Vogando numa barca de Luz, Amés-Nefertari vivia nos paraísos reservados aos justos. Durante uma festa estival, a barca da rainha, puxada por um trenó, percorria a necrópole tebana e recebia a homenagem de grandes e humildes.

        

       Amés-Nefertari, autora de rituais?

       Um texto conhecido sob o título de ”Ritual de Amenotep I” inspirou a decoração dos templos tebanos; a rainha é referida e não é improvável que tenha participado na sua concepção ou mesmo na sua redação.

      

       A mesma hipótese se coloca em relação a um texto fundamental, ”o ritual do culto divino diário”, cuja versão mais completa figura no templo de Abidos. Nele se revelam os ritos que o faraó deve praticar diariamente à hora do despertar da divindade no naos do templo, a sua parte mais secreta, onde só ele podia penetrar.

      

       Os rituais eram redigidos pelos adeptos das Casas da Vida; na sua qualidade de esposa do deus, Amés-Nefertari tinha acesso a eles e manejava os hieróglifos, sinais penetrados de poder onde se incorporavam as palavras das divindades. É certo que, ao longo da História do Egito, algumas mulheres colaboraram na escrita dos textos utilizados nas liturgias; Amés-Nefertari foi certamente um desses autores sagrados.

      

       Amés-Nefertari, rainha negra?

       Várias representações da grande rainha espantaram os observadores: não havia dúvida de que tinha a pele negra! Seria Amés-Nefertari de origem núbia? A descoberta da sua múmia, retirada do seu túmulo em Dra Abu el-Naga e abrigada no esconderijo de Deir el-Bahari depois de uma vaga de assaltos aos túmulos reais no reinado dos últimos ramessidas, ofereceu uma certeza: Amés-Nefertari morrera velha e tinha a pele branca. Infelizmente, em contato com o ar e por falta de precauções, o corpo decompôs-se.

      

       Por que razão certas estátuas da rainha são em madeira betumada, e portanto de cor negra? Por que foi escolhida esta cor em certas cenas pintadas? No simbolismo egípcio, ela encarna a idéia da regeneração, do processo alquímico pelo qual a alma deve passar para reviver no Além. Porventura a vida não surge da terra negra e lodosa depositada pelas cheias nas margens do Nilo? O negro, a cor do deus Anúbis de cabeça de chacal, encarregado de conduzir os ressuscitados ao longo dos belos caminhos do Além, não evoca morte nem aniquilamento, mas um meio fértil e rico em potencialidades criadoras onde se organiza uma nova forma de existência.

      

       Amés-Nefertari prefigura assim as Virgens negras, outrora numerosas nas catedrais e igrejas do Ocidente; remotas figuras de Ísis segurando Hórus, o menino-deus, eram também as descendentes de uma rainha do Egito, tornada deusa da ressurreição.

      

       A RAINHA HATSHEPSUT

       Os inconvenientes do vedetismo

       Hatshepsut é uma das vedetas da História egípcia. Ainda que o seu nome possa soar insólito aos nossos ouvidos, a sua história foi tão extraordinária que o imaginário romanesco (e por vezes egiptológico) se apoderou dela para a converter numa intriguista roída pela ambição, numa devoradora de homens, numa Maquiavel de saias que perseguiu o frágil Tutmósis III antes de ser perseguida por sua vez por este vingativo faraó; também teria suprimido alguns cortesãos a fim de melhor dominar o reino. Em suma, uma série de horrores no mais puro estilo de uma Catarina de Médicis. Mas o Egito tinha outros valores, e projetar nele as nossas torpezas é um erro lamentável.

      

       O ”dossiê Hatshepsut” contém um certo número de documentos que permitem reconstituir alguns dos episódios da aventura daquela que foi uma grande esposa real, regente, e depois faraó. Contrariamente a uma idéia feita, Hatshepsut não foi nem a primeira nem a única mulher faraó; inscreve-se numa linhagem de mulheres no poder cuja estatura política não chocava os egípcios. Se a notoriedade de Hatshepsut eclipsou a das regentes e das mulheres faraós que a precederam, tal deveu-se à duração do seu reinado e à relativa abundância de documentação arqueológica que a refere.

      

       Tal como resulta de um estudo atento, o retrato de Hatshepsut é inteiramente conforme com o ideal faraônico e - confessemo-lo muito diferente de uma versão romântica ou sulfurosa.

      

       A linhagem dos Tutmósis

       A grande rainha Amés-Nefertari morreu, como vimos, no início do curto reinado do primeiro dos Tutmósis (1524-1518 a.C.). Assim se passava do deus-Lua combatente, lah, ao deus-Lua Tot, considerado como intérprete do Sol, Ra. Tot entrou na composição do nome dos quatro Tutmósis, ”Aqueles que nasceram de Tot”.

      

       Admitimos que Tutmósis I foi pai de Hatshepsut e que conduziu uma campanha militar na Ásia, decerto para dissuadir certos desordeiros de atacarem o Delta. Esta foi, de resto, uma das obsessões dos soberanos do Novo Império: fortificar a fronteira a nordeste, controlar a Síria-Palestina e manter um muro de proteção entre as margens setentrionais do Egito e os potenciais invasores.

      

       Porém foi uma época pacífica. Graças ao gênio de um excepcional mestre-de-obras, Ineni. Tutmósis I aproveitou para desenvolver Carnaque, um templo modesto que aos poucos se transformaria numa imensa cidade santa, onde Amon, o princípio oculto, acolheria os santuários de outras divindades. Era um projeto de envergadura; tratava-se de dar a Tebas, a cidade que vencera os bárbaros hicsos e que reunificara as Duas Terras, uma dimensão digna da antiga Mênfis.

      

       Quando Tutmósis I deixou o mundo dos humanos para se juntar aos deuses seus irmãos, Hatshepsut era uma jovem de quinze anos (segundo outros, teria vinte anos). Tornou-se na grande esposa real de Tutmósis II, cujo reinado permanece um enigma; de fato, segundo os historiadores, o seu reinado varia de três28 a catorze anos!

      

       Entra em cena um jovem moço, Tutmósis III, continuador da linhagem dos ”filhos de Tot”29. Não há certezas quanto às suas origens. Diz-se que seria filho de Tutmósis II e de uma ”concubina”, de tal modo a nossa projeção de fantasmas, nascida do fascínio pelos haréns otomanos, se aplica, muitas vezes erradamente ao Antigo Egito. Quando Tutmósis II morreu, o jovem Tutmósis III devia ter entre cinco a dez anos, não sendo pois apto para governar.

      

       Hatshepsut, regente do reino

       O que se terá passado durante este período: intrigas palacianas, sórdidos conluios, manipulações subterrâneas? Nada disso. De acordo com a tradição, pediu-se à grande esposa real, neste caso Hatshepsut, que exercesse a regência. Diz um texto30: O seu filho, instalado no lugar do rei defunto como faraó das Duas Terras, reinou sobre o trono daquele que o havia gerado, enquanto a sua irmã, a esposa do deus Hatshepsut, se ocupava dos assuntos do país, estando as Duas Terras sob o seu governo. A sua autoridade foi aceite, o vale submeteu-se-lhe.

      

       O mestre-de-obras Ineni especifica: Hatshepsut ocupou-se dos assuntos do Egito segundo os seus próprios planos. O país curvou a cabeça diante dela, a perfeita expressão divina vinda de Deus. Era o cabo que serve para içar o Norte, o poste onde se amarra o Sul; era o cabo perfeito do leme, a soberana que dá as ordens, aquela cujos planos excelentes pacificam as Duas Terras quando fala.

      

       Não esqueçamos as funções rituais de Hatshepsut: é esposa do deus, Divina Adoradora de Amon, ”Mão do deus”31 e ”Aquela que vê Hórus e Set”.

             

       O túmulo da rainha Hatshepsut

       A rainha mandou escavar a sua morada eterna num lugar original: num ued de acesso difícil numa falésia onde se abriu um longo corredor cuja entrada, uma vez obstruída, dificilmente seria descoberta. Hatshepsut não podia adivinhar o afinco dos modernos salteadores que, à força de contorções e escaladas, acabaram por descobrir a sua sepultura.

      

       No túmulo da regente, um sarcófago com o nome de Hatshepsut, ”soberana de todo o país, filha de rei, irmã de rei, esposa do deus, grande esposa real, senhora das Duas Terras”. A rainha pedia à deusa do céu, Nut, para comunicar com ela e para lhe conceder um lugar entre as estrelas imorredouras.

      

       O destino da viúva de Tutmósis II parecia pois já traçado: assumir a regência e depois apagar-se por detrás do faraó Tutmósis III quando este adquirisse as competências necessárias para reinar.

      

       O rosto de Hatshepsut

       Um faraó do Egito é por natureza eternamente jovem e, regra geral, é inútil observar retratos na estatuária régia sagrada para extrairmos indicações psicológicas em função dos nossos próprios critérios. Os escultores criaram a imagem simbólica de uma Hatshepsut divinamente bela e para sempre jovem. No entanto, tentou-se desenhar um retrato-tipo da rainha32: olhos amendoados, nariz comprido, faces quase magras, boca pequena, lábios finos, queixo diminuto. Uma mulher muito bonita, felina, com um leve sorriso. Em suma: uma Hatshepsut ideal cuja feminilidade não é ocultada pelo peso do poder. Não é, de resto, a Hatshepsut humana que está encarnada na pedra, mas o seu ka, o aspecto imortal do ser que venceu o envelhecimento e a morte.

      

       Quando um oráculo transforma uma rainha em faraó

       No vigésimo nono dia do segundo mês do Inverno, no ano 2 do reinado de Tutmósis III, sucedeu algo extraordinário: o oráculo do deus Amon, no grande pátio do templo de Luxor, prometeu a Hatshepsut que ela reinaria no futuro, sem fornecer uma data precisa. É provável que a estátua do Deus, transportada em procissão, se inclinasse diante da rainha e que um sacerdote pronunciasse palavras que exprimiam a vontade do divino senhor.

      

       Porquê esta decisão? Não sabemos. É tanto mais surpreendente porquanto Hatshepsut não começou a reinar nesta data, tendo sido coroada cinco anos mais tarde, no ano 7 do reinado de Tutmósis III. Se bem que o seu nome não figure nas listas de faraós até agora descobertas, Hatshepsut é bem conhecida graças a outras fontes, e a sua qualidade de faraó reinante não oferece dúvidas.

      

       A terrível Hatshepsut terá reduzido ao silêncio o pobre Tutmósis III, lançando-o para o fundo de uma cela? Decerto que não. Por um lado, ela inscreveu-se nos anos do reinado de Tutmósis III sem decretar um ”ano I” próprio, e daí a tradição lhe atribuir um reinado de vinte e um anos e nove meses, quando parece ter governado apenas cerca de quinze anos (1498-1483 a.C,). Por outro lado, Hatshepsut associa Tutmósis III a vários atos oficiais, como a exploração das carreiras ou a inauguração dos santuários. Nos anos 12, 16 e 20, vemos Hatshepsut e Tutmósis III juntos, cada um deles apresentando-se como faraó. Formam, pois, um casal que não é composto por marido e mulher, mas por dois soberanos; veremos que Hatshepsut, mulher faraó, reunia em si as polaridades masculina e feminina.

       

       É evidente que os dois reinados, o de Tutmósis III e o de Hatshepsut, se sobrepuseram; este caso repetiu-se várias vezes ao longo da História do Egito. Mas desta vez o período de reinado comum foi especialmente longo. Devemos certamente desistir da idéia de um conflito entre Hatshepsut e Tutmósis III.

      

       Do ano 2 ao ano 7, nenhum fato se salienta. Depois, no ano 7 de Tutmósis III, realizou-se o que o oráculo de Amon havia anunciado: Hatshepsut tornou-se faraó.

      

       HATSHEPSUT FARÁÓ

       O novo nascimento da rainha Hatshepsut

       Um faraó não é um oportunista nem um banal personagem político; não são os homens que o escolhem, são os deuses que o moldam, segundo a expressão egípcia ”desde o ovo”. Na pessoa de um rei do Egito sobrepõem-se um indivíduo humano, perecível, acerca do qual os textos são mudos, e uma pessoa simbólica, imortal, de que nos falam abundantemente.

      

       Por isso, ao tornar-se faraó no ano 7 do reinado de Tutmósis III, Hatshepsut vê proclamado o seu novo nascimento enquanto monarca, nascimento relatado no âmbito do templo; a narrativa destina-se às divindades e não aos homens, a fim de que reconheçam o novo faraó digno de reinar.

      

       Para descrever este episódio, tão decepcionante para nós, os eruditos inventaram a expressão ”teogamia”, ou seja, o casamento com um deus. Eis o que nos revelam os baixos-relevos do templo de Deir el-Bahari, a grande obra de Hatshepsut.

      

       Amosé, a grande esposa real de Tutmósis I, encontra-se no seu palácio; quando a vê, o deus Tot regozija-se. O senhor das ciências sagradas dirige-se a Amon e anuncia-lhe que acaba de descobrir aquela que procurava. Amon, o deus oculto, é igualmente Ra, a Luz revelada; sob o seu nome de Amon-Ra, sintetiza o poder divino que ao mesmo tempo exprime o segredo da vida e a sua mais brilhante manifestação. Depois de consultar o seu conselho formado por doze divindades, Amon-Ra decide gerar um novo faraó. O deus assume a aparência física de Tutmósis I e entra na câmara onde a rainha repousa. Esta desperta com o maravilhoso perfume que o seu régio e divino marido exala. Os odores do Ponto, região distante onde crescem as árvores do incenso, espalham-se pelo palácio.

      

       Abrasado de amor pela visão da rainha, Amon-Ra dirige-se-lhe e oferece-lhe o seu coração e o seu desejo; ela está feliz por poder contemplar a sua beleza, o amor divino percorre os seus membros e espalha-se pelo seu corpo. O deus e a rainha unem-se.

      

       Declara Amon-Ra: Aquela que está unida a Amon, Hatshepsut, será o nome da filha que depositei no teu corpo... É ela que exercerá as funções de faraó, radiosa e benfazeja, no país inteiro. O deus oferece à sua filha as qualidades necessárias para governar, o poder criador, a capacidade de ver claramente e de conduzir o seu povo à plenitude.

      

       Chega o momento do nascimento. O deus-rei está presente junto da grande esposa real; apresenta-lhe a chave divina e ordena ao oleiro divino, o deus Knum de cabeça de carneiro, que molde no seu torno Hatshepsut ”com o seu ka”, ou seja, que una no mesmo ser o imortal e o mortal, a energia indestrutível e a individualidade encarregada de a encarnar. O oleiro utiliza a carne de Amon-Ra, material abstrato e luminoso, para moldar duas crianças, o rei humano e o seu ka; ao novo ser são concedidas toda a vida, todo o poder, toda a estabilidade e toda a alegria. Hatshepsut espalhará a prosperidade em seu redor, reinará sobre o Egito e sobre os países estrangeiros, não perderá nenhuma oferenda, possuirá um pensamento justo, será elevada acima de todas as divindades e aparecerá como Hórus no trono de Luz.

      

       Assistido pelas divindades, pelas forças universais e pelos gênios protetores do nascimento, Knum termina a sua obra. Tot pode então anunciar à rainha que Amon-Ra está feliz e que chegou o momento do parto. Assistido por Hequet, a deusa com cabeça de rã, garantia das mutações e transformações, Knum conduz a rainha a uma sala especial onde foi instalado um grande leito.

      

       Foram tomadas todas as disposições mágicas para que a vinda de Hatshepsut ao mundo decorra sem incidentes. Mesquenet, encarnando ao mesmo tempo o ”lugar de nascimento” e o destino da criança, profere um encantamento que afasta mágoas e desgraças da recém-nascida.

      

       Quando vê a sua filha, Amon-Ra avança para ela, rejubilante; é a deusa Hator que lhe apresenta Hatshepsut, nascida da Luz divina. Ela abraça-a e beija-a. É a vaca celeste que amamenta a criança, transmitindo-lhe a energia que preservará uma juventude inalterável. As divindades apresentam votos de felicidade como as fadas boas que cumulam a futura rainha com as qualidades necessárias.

      

       Quem senão Hator poderia ser a ama de Hatshepsut? O seu odor é mais suave do que o das outras divindades, ela será uma mãe celeste que cada dia fará nascer a rainha faraó como um novo sol. Esta última é purificada por Amon e por Ra, sendo-lhe prometidas inúmeras festas de regeneração.

      

       Amon apresenta a sua filha às divindades do Alto e Baixo Egito, que admiram a sua beleza. ”Amai-a”, diz-lhes ele, ”e tende confiança nela”. Pois não é ela o símbolo vivo de Amon, a sua representante na Terra? Não nasceu ela da própria carne do deus?

      

       A coroação da faraó Hatshepsut

       Segundo os baixos-relevos do templo de Deir el-Bahari, o nascimento da rainha faraó foi imediatamente seguido da sua coroação. O oráculo de Amon, formulado no ano 2 do reinado de Tutmósis III, tornou-se realidade no ano 7.

      

       O ritual realizou-se provavelmente na mais antiga cidade santa do país, Heliópolis, onde Hatshepsut foi reconhecida como faraó legítima por Aton, o Criador, que engloba na sua pessoa todas as formas do ser. Amon apadrinhou esta coroação, magicamente celebrada em todos os templos a fim de que nenhuma força divina faltasse a Hatshepsut. Hórus e Set entregaram a coroa ao novo rei do Alto e Baixo Egito, Tot e Sechat registaram o seu nome nos Anais Régios e na Árvore da Vida.

      

       Munida de um remo e de um leme, Hatshepsut empreende a caminhada ritual que marcaria a sua tomada de posse da totalidade do território egípcio e, mais além, do espaço delimitado pelo circuito do Sol. Em seguida, recebeu ”os símbolos da Luz divina”: os cetros, as coroas e as vestes próprias da função.

      

       Depois, Hatshepsut iniciou uma verdadeira ”volta pelo Egito”, que a conduziu a cada uma das grandes cidades a fim de ser reconhecida pela divindade própria de cada lugar e comunicar com ela para assim se tornar no traço de união entre as múltiplas expressões do sagrado.

      

       Faltava comparecer diante da corte; segundo o costume, aclamaram a subida de uma mulher faraó ao ”trono dos vivos”.

      

       Os nomes de Hatshepsut

       Nunca será de mais insistir nos nomes dados a um faraó no início do seu reinado, pois definem ao mesmo tempo o seu ser e a sua maneira particular de encarar as suas funções. Já vimos que, desde a quinta dinastia, o faraó tem cinco nomes.

      

       Enquanto Hórus feminino, Hatshepsut é ”Aquela que é rica em poder criador (useret kau)”; enquanto rei protegido pelas ”duas senhoras” (o abutre e a cobra), ”A de anos verdejante (uadjet renput)”; enquanto Hórus de ouro, ”Aquela cujas aparições são divinas (neteret kaif)”; enquanto rei do Alto e do Baixo Egito, ”a Ordem é o poder da Luz divina (Maat-ka-Ra)”; enquanto Filha da Luz divina (Ra), ”Aquela que se une a Amon (quenemet Imen), a primeira das veneráveis (hatshepsut)”.

      

       Este último nome, Hatshepsut, é o mais conhecido; traduzimo-lo também por ”a mais nobre das damas”. A palavra chepeset, ”venerável, nobre”, serve para formar o nome de uma deusa que encarna o destino concebido como um gênio feminino bom e protetor, que afasta o Mal.

      

       A paz reina no Egito

       Certos analistas evocam o início do reinado de Hatshepsut como uma espécie de revolução provocada pela ”usurpadora” e imaginam sombrios conluios que conduziram ao afastamento de Tutmósis III.

      

       A documentação prova que estas efabulações tão românticas são destituídas de fundamento. Nem revolução, nem purga, nem guerra civil, nem usurpação...

      

       Apenas uma mulher reconhecida como faraó e, segundo o desejo de Amon, capaz de ”exercer a benéfica função régia no país inteiro”. Tutmósis III permanece associado a certos ritos e atos oficiais e é à sombra de Hatshepsut que aprende o seu ofício de rei.

      

       HATSHEPSUT, SOL FEMININO

       Hatshepsut, homem e mulher

       Na sua qualidade de grande esposa régia, a rainha Hatshepsut era casada com Tutmósis I; na sua qualidade de faraó, devia reconstituir um casal régio. Mas Hatshepsut não casou. Teria traído a regra principal da instituição faraônica, que devia ser sempre encarnada por um monarca e uma grande esposa real?

      

       De modo algum. Parece que todos os faraós do sexo masculino reinaram na companhia desta esposa ritual, ao passo que os do sexo feminino permaneceram ”celibatários”. Tendo adquirido a qualidade de homem ao tornarem-se reis, elas eram esposas de si próprias e reconstituíam na sua pessoa o casal régio.

      

       Hatshepsut é uma ”mulher de ouro”, uma ”mulher perfeita de rosto de ouro”, ”o Sol feminino (Rayt)” que os textos identificam com Maat, a Ordem universal, brilhando com seu pai, o Criador. Ora, Maat entra precisamente no nome de Hatshepsut, Maat-ka-Ra. Quando saiu do caos primordial, Ra, a Luz divina abriu os olhos no interior de um lótus; uma emanação líquida caiu no solo e metamorfoseou-se numa bela mulher, à qual foi dado o nome de ”ouro dos deuses”33: Hator, a Grande. Hatshepsut é identificada com ela e torna-se no venerável Hórus feminino, o Sol feminino, a radiosa que ilumina a escuridão, aquela que brilha como o ouro; pelo seu olhar, ela é a iluminadora.

      

       Dois ministros fiéis: Hapuseneb e Senenmut

       Como se apresentava a corte quando Hatshepsut assumiu o poder? Havia velhos servidores de Tutmósis I que ela conservou junto de si, além de escribas experientes, pessoas humildes, estrangeiros, militares. Fosse qual fosse a sua categoria, ocupavam funções civis e ao mesmo tempo sagradas; por outras palavras, permaneciam no templo durante períodos mais ou menos prolongados a fim de se desligarem periodicamente das preocupações materiais e retomarem as suas tarefas com maior lucidez e exigência.

      

       Entre eles, Hapuseneb, sumo sacerdote de Amon, vizir e iniciado nos mistérios da Enéada; os textos indicam-nos que praticou Maat, a Ordem, na Terra. Hapuseneb desempenhou um papel econômico determinante no início do reinado; era ele quem vigiava as diferentes construções, nomeadamente em Tebas. Dirigiu a equipe de trabalhadores que escavou a morada eterna da rainha faraó no Vale dos Reis.

      

       A confiar nos testemunhos arqueológicos que apontam o seu nome e evocam a sua carreira, Senenmut34 conviveu muito próximo de Hatshepsut. Em muitas obras é apresentado como o amante de Hatshepsut e o pai da sua filha Neferuré. Que sabemos ao certo?

      

       Parece que Senenmut, cujo nome significa ”o irmão da mãe”, era de origem modesta; foi oficial do exército, um posto que não implicava uma atividade de terreno. Hatshepsut escolheu-o como preceptor e ”amo” da sua filha Neferuré; foi representado várias vezes em estátuas segurando a criança, nomeadamente sob a forma de ”estátua-cubo”, ou seja, um cubo de pedra de onde emergem as cabeças do preceptor e da sua pupila. Pelo menos vinte e quatro vezes, os escultores receberam ordens para representar Senenmut, cujas estátuas foram colocadas nos templos. Os seus títulos eram numerosos: ”Amigo único”, ”Servo de Maat”, ”Aquele que conhece os segredos de Amon e do santuário”, ”Governador da casa do faraó”, ”Aquele que conhece os mistérios da Casa da Manhã”, ”Mestre-de-obras de todas as construções do faraó”, ”encarregado dos sótãos, dos campos, dos rebanhos e dos jardins de Amon”. Diz-se que este grande personagem de múltiplas responsabilidades pronunciava palavras benéficas ao rei, que era capaz de falar com retidão, que sabia ser silencioso quando era preciso e que guardava os segredos de Estado.

      

       Não cabem dúvidas de que Senenmut era o confidente de Hatshepsut e um dos seus principais ministros. Os seus privilégios eram notáveis: dois túmulos, um magnífico sarcófago em quartzite, numerosas estátuas. Outro fato importante é que Senenmut está presente no interior do templo de Deir el-Bahari; uma presença discreta, porém, uma vez que o seu rosto, sumariamente desenhado, ficava dissimulado quando se abria a porta do santuário. Mas, quando estava fechada, Senenmut venerava em silêncio a alma da soberana.

      

       Senenmut dirigiu obras em Carnaque, em Luxor e em Hermontis, mas a sua maior coroa de glória é o templo de Deir el-Bahari, o ”sublime dos sublimes”, que mais adiante evocaremos. Mas um enigma permanece: por que lhe foram atribuídos dois túmulos, um em Cheik Abd el-Gurna (nº 71) e o outro em Deir el-Bahari (nº 35335)? Este último contém mapas celestes e representações astronômicas. Para além do seu significado simbólico, que implica a ascensão da alma de Senenmut ao círculo imortal das estrelas? Será que elas evocam os conhecimentos científicos do mestre-de-obras?

      

       Desconhecemos as circunstâncias e a data da morte de Senenmut; a sua múmia não foi encontrada. Mas a imaginação preencheu este vazio: não teria sido vítima de uma desgraça que o afastou do poder? Nenhum documento nos permite afirmá-lo. Não há sinais de desentendimento entre Hatshepsut e Senenmut, e o seu desaparecimento da vida pública explica-se pura e simplesmente pela sua morte.

      

       Neferuré, filha única?

       Para alguns historiadores, Hatshepsut teve apenas uma filha, Neferuré, ”a perfeição da Luz divina”; talvez a sua mãe desejasse que ela acedesse à categoria de grande esposa real e, mais ainda, que aprendesse o ofício de rei graças ao ensino ministrado por Senenmut.

      

       Quando se tornou faraó, Hatshepsut transmitiu o cargo de ”esposa divina” à sua filha, que possuía igualmente os títulos de ”filha real” e de ”regente do Sul e do Norte”. Neferuré exerceu funções religiosas e não parece ter participado ativamente nas decisões políticas.

      

       Depois do ano 16 deixa de haver sinais de Neferuré, o que nos leva a crer que tenha morrido jovem36. A filha de Hatshepsut constitui uma leve sombra que mal se inscreve na História.

      

       HATSHEPSUT MESTRE-DE-OBRAS

       Uma política de grandes obras

       Um dos primeiros deveres de um faraó consistia em edificar templos, moradas dos deuses, que podiam assim residir na Terra e favorecer o desenvolvimento espiritual e social da comunidade humana. Hatshepsut não foi contra a regra; ao longo de todo o seu reinado, mandou construir ou restaurar edifícios sagrados em vários locais, nomeadamente em Tebas, Hermontis, Kom Ombo, El-Kab, Gusas e em Hermópolis, a cidade de Tot. Em Elefantina proclamou: Construí este grande templo em calcário de Tura, as suas portas em alabastro de Hatnub, os seus alizares em cobre da Ásia.

      

       Entre Carnaque e Luxor, mandou instalar pequenos descansos que serviam de estações para a barca sagrada durante as procissões; no interior do templo de Carnaque mandou erigir obeliscos, um importante episódio de que falaremos mais adiante.

      

       O santuário de uma deusa-leoa e a luta contra o Mal

       Existe um lugar pouco conhecido ao qual Hatshepsut prestou especial atenção: o Speos Artemidos, perto de Beni Hassan, no Médio Egito. Aí se encontrava um pequeno santuário rupestre, consagrado a uma deusa-leoa denominada Paqet. Ora, rezava a tradição que o Speos Artemidos teria sido destruído pelos ocupantes hicsos, bárbaros e profanadores.

      

       Saltando por cima do tempo e da História, Hatshepsut afirmou que ela própria havia combatido os ocupantes para libertar este lugar excepcional, uma montanha onde os deuses falavam. Assim restabelecia a paz e a harmonia no país inteiro e garantia a liberdade readquirida. Para a preservar, preocupou-se com o bom estado moral e material do seu exército, que devia ser capaz de lutar contra as forças das trevas.

      

       Quando o perigoso poder da deusa-leoa Paqet estava dominado e ao serviço da Luz, era capaz de vencer os temíveis demônios do deserto e de os transformar em gênios protetores. No seu santuário, onde a energia divina estava concentrada, Hatshepsut praticou esta grande magia de Estado que consistia em identificar as forças destruidoras e ousar manipulá-las ou invertê-las para que se tornassem construtivas.

      

       Se a leoa Paqet não tivesse sido apaziguada pelos ritos, violentas chuvas teriam caído sobre a região, formando torrentes de lama e pedras que devastariam tudo à passagem; no coração dos humanos, as paixões negativas gerariam então ódio, violência e cupidez.

      

       Hatshepsut restaurou o templo da leoa, restabeleceu os rituais, assegurou a ”circulação das oferendas”, encheu o santuário de ouro, prata, tecidos, baixelas preciosas e mandou colocar estátuas, fechando-o com portas de acácia revestidas a bronze. A ”divina morada do Vale” estava agora ao abrigo de qualquer invasão semelhante à dos hicsos, esses seres ”tenebrosos que ignoravam a Luz”.

      

       Um texto do Speos Artemidos revela uma das grandes preocupações de Hatshepsut: A minha consciência pensa o futuro, confessa; o coração de um faraó deve pensar na eternidade. Eu glorifiquei Maat, Deus vive dela.

      

       Deir el-Bahari, templo da eternidade de Hatshepsut

       No ano 8 do seu reinado, pouco depois da sua coroação, Hatshepsut começou a sua grande obra, o templo de Deir el-Bahari, na margem ocidental de Tebas. Decidiu encostar o monumento a uma falésia coroada pelo ”cume”, o ponto culminante da montanha desta margem ocidental e local de residência da deusa do silêncio. Esta pirâmide natural, em parte talhada pelo homem, domina o Vale dos Reis e o Vale das Rainhas.

      

       Deir el-Bahari é ”o templo dos milhões de anos” de Hatshepsut, o local onde se presta culto ao seu ka associado ao do seu pai Tutmósis I, e também residência de Amon, o deus do oculto, e de Hator, a deusa do amor divino. Neste santuário, a alma de Hatshepsut, protegida pelas divindades, é perpetuamente regenerada.

      

       Os vestígios que hoje contemplamos conservaram um carácter sublime que não escapa a nenhum visitante, emboras certas restaurações devam ser retificadas. O local beneficiava outrora de esplendores desaparecidos, pois diante do templo abriam-se jardins com árvores e lagos refrescantes. Era a porta de um paraíso que se anunciava, marcada pela presença de dois leões em pedra encarnando o ”ontem” e o ”amanhã”.

      

       Neste local encontrava-se um edifício que fora construído durante o Médio Império, por Mentuhotep; Hatshepsut ligava-se pois a uma tradição que havia percebido o carácter sagrado do lugar. De modo que a falésia serviu de parede de fundo ao último santuário, oferecendo uma formidável sensação de verticalidade e de ascensão até ao divino.

      

       O texto da dedicatória, pronunciado pela própria Hatshepsut, foi preservado: Construí um monumento para meu pai Amon, senhor do trono das Duas Terras, erigi este vasto templo de milhões de anos cujo nome é o ”Sagrado dos sagrados” em bela e perfeita pedra branca de Tura, neste lugar que lhe é consagrado desde as origens.

      

       Hatshepsut dirigiu o grande ritual de fundação do templo; colocou numa pequena cova os objetos que constituíam o ”depósito de fundação”: maços, tesouras, moldes de tijolos, peneiras para areia, cordel, etc. Uma vez cobertos de areia, os utensílios dos pedreiros eram reunidos para sempre no segredo e continuavam a servir no invisível. Hatshepsut cravou as estacas simbólicas para delimitar o espaço do templo e depois esticou o cordel, manifestando assim o plano concebido no seu coração-consciência.

      

       Conheceu uma das maiores alegrias do seu reinado ao percorrer a álea bordejada de árvores que conduzia ao santuário; no ar flutuavam perfumes de incenso. Na água dos tanques em forma de T vogariam pequenas barcas durante a celebração dos ritos que afastavam os poderes nocivos.

      

       Para além deste oásis de verdura revelava-se o principal aspecto da arquitetura de Deir el-Bahari, a sua disposição em terraços ritmados por pórticos. O olhar orientava-se para o alto, em direção ao terraço superior, onde haviam escavado o santuário.

      

       Ali se celebravam vários cultos: o de Amon, senhor do templo; de Ra, a Luz divina; de Anúbis, o guia dos justos nos caminhos do Além; de Hator. Na capela que lhe é consagrada, vemos a deusa sob a sua forma de vaca lambendo as pontas dos dedos de Hatshepsut: assim lhe comunica a energia celeste e a capacidade para ressuscitar. É igualmente sob esta aparência que Hator amamenta a rainha faraó, que, ao absorver o leite das estrelas, conhece uma juventude eterna.

      

       No terraço superior, Hatshepsut é representada sob a forma de Osíris, transpondo as portas da morte para renascer e tornar-se num novo Sol, venerado no santuário de Ra.

      

       O templo de Deir el-Bahari é também o conservatório dos altos feitos do reinado. No pórtico inferior assistimos ao transporte dos obeliscos destinados ao templo de Carnaque, aos rituais da apanha do papiro e da caça nos pântanos; no pórtico médio desenrolam-se episódios da expedição ao Ponto, do mistério do nascimento divino e da coroação. E também vemos Hatshepsut e Tutmósis III prestarem culto a Tutmósis I, Tutmósis II e à rainha Amosé, toda uma linhagem que assim se reúne para a eternidade.

      

       Um templo egípcio é um ser vivo e recebe um nome. Deir el-Bahari chamava-se djoser djoseru, que traduzimos por ”o sagrado dos sagrados”, mas que também se pode compreender como ”o sublime dos sublimes”, ”o esplêndido dos esplêndidos”. O termo djoser, que serviu para formar o nome de Djoser, o grande faraó da terceira dinastia, significa essencialmente ”sagrado”, com a idéia de que um lugar sagrado está afastado do profano e protegido do mundo exterior.

      

       Muito depois da morte de Hatshepsut, Deir el-Bahari foi reconhecido como um local de manifestação do sagrado; no santuário escavado na rocha foi celebrada a memória de dois grandes sábios: Amenotep, filho de Hapu, e Imotep, primeiro ministro de Djoser, arquiteto, mágico e médico. Os doentes vinham pedir-lhe a cura para a alma e para o corpo, e alguns permaneciam no templo até recobrarem a saúde. Aliás, ainda hoje vamos ali buscar a harmonia que Hatshepsut soube criar.

      

       HATSHEPSUT E O PONTO

       Política externa

       O reinado de Hatshepsut foi um dos mais pacíficos. Interveio talvez na Núbia, no início do seu reinado, mas tratava-se certamente de uma operação de policiamento de alguma tribo turbulenta, depressa chamada à razão. A Núbia estava calma, Hatshepsut reinava sobre um Egito unificado e tranquilo e sobre os territórios que seu pai, Tutmósis I, havia conseguido controlar. Nenhum conflito a Norte, nenhuma rebeldia a Sul.

      

       E, contudo, ela afirmou-se simbolicamente como um chefe guerreiro que batalhou vitoriosamente contra a Líbia e a Síria, as suas inimigas hereditárias. Como representante da Luz divina na Terra, devia, como todos os faraós, combater as trevas encarnadas pelos povos que não viviam segundo Maat. Por isso, em Deir el-Bahari a soberana é representada sob a forma de um leão ou de um grifo a abater nove inimigos que simbolizam o conjunto das forças do Mal. Núbios, líbios, asiáticos e beduínos são magicamente submetidos.

      

       A política externa de Hatshepsut resumiu-se, aparentemente, a encantar os potenciais adversários pelo verbo e pelo rito.

      

       De acordo com a tradição, Hatshepsut continuou a enviar para o Sinai especialistas encarregados de recolher turquesas; eram sempre protegidos por um destacamento militar e pela polícia do deserto, e por isso não temiam os assaltos dos nômades.

      

       Uma viagem ao país das maravilhas

       O deus Amon falou ao coração da sua filha e ordenou-lhe que aumentasse a quantidade de unguentos destinados às divinas carnes e que os fosse buscar muito longe, à ”terra do deus”, ao Ponto. A exigência foi claramente formulada: Instalar o Ponto no interior do seu templo, plantar as árvores do país do deus de ambos os lados do seu santuário, no seu jardim.

      

       Hatshepsut não se deslocará fisicamente, mas o seu espírito guiará a expedição. Onde fica o Ponto? Resulta de longos debates egiptológico-geográficos, que por certo prosseguirão. Aparentemente, este Eldorado situar-se-ia algures nas costas das Somalis. Mas o Ponto pertence sobretudo à geografia simbólica do Antigo Egito; as expedições a esta região, atestadas ao longo das dinastias, destinam-se a trazer aos templos substâncias odoríferas indispensáveis às práticas rituais. A viagem ao Ponto é uma busca dos perfumes e das essências sutis.

      

       Esta viagem revestia-se de tamanha importância que Hatshepsut mandou gravar os seus episódios no templo de Deir el-Bahari. Senenmut supervisionou a intendência; Tuty, superior da Casa do Ouro e da Prata, deu o seu aval e forneceu os meios materiais; Nehesi, portador do selo real, foi encarregado de comandar o corpo expedicionário, que contava duzentos e dez homens. Os cinco barcos necessários foram reunidos no porto de Kosseir e rumaram em direção à costa ocidental do Mar Vermelho.

      

       Amon serviu de guia para que não se perdessem. Os textos não descrevem o itinerário, limitando-se a relatar que os marinheiros chegaram ao Ponto depois de uma boa viagem - para esse efeito haviam levado um grupo de estátuas representando Amon e Hatshepsut, graças ao qual todos os perigos haviam sido afastados.

      

       Quando Nehesi descobriu o Ponto, ficou encantado com a grandiosa paisagem: palmeiras, coqueiros, árvores do incenso. Os autóctones viviam em cabanas construídas sobre estacas, às quais subiam por uma escada, e pareciam pacíficos. Nehesi tomou, porém, precauções elementares: apresentou-se acompanhado de uma pequena escolta, na verdade muito pouco ameaçadora, uma vez que os soldados egípcios traziam presentes: colares, pulseiras, contas e vitualhas.

      

       O acolhimento foi caloroso: a família reinante do Ponto e os dignitários inclinaram-se diante dos enviados de Hatshepsut. Vacas, burros e macacos assistiam ao espetáculo. Pa-Rahu, o rei do Ponto, usava uma tanga e tinha um porte digno. Como a maior parte dos seus compatriotas, tinha uma barba pontiaguda. Mas o que dizer da sua esposa, a pobre Ity? Gorda, obesa, inchada, disforme, sofria manifestamente de uma penosa enfermidade37, o que não a impedira de ter dois filhos e uma filha.

      

       Os ”grandes do Ponto” não ocultaram o seu espanto: como conseguiram os egípcios chegar àquela terra, cuja localização os homens desconheciam? Tinham passado pelos caminhos celestes, haviam chegado por mar ou por terra? A narrativa não contém vestígios de explicações geográficas.

      

       Montaram um pavilhão e celebraram um banquete. Da ementa faziam parte carnes, legumes, fruta, vinho e cerveja. Importante pormenor: os habitantes do Ponto veneravam Amon, que vinha visitar Hator, a soberana deste maravilhoso país. As oferendas trazidas pelos marinheiros egípcios eram destinadas à deusa. Tratava-se, pois, de um encontro entre duas grandes divindades naquela terra longínqua.

      

       Terminados os festejos, houve que pensar no regresso. Os homens de Nehesi carregaram mirra, marfim, madeiras preciosas, antimônio, peles de pantera, sacos de gomas aromáticas, sacos de ouro, bumerangues e árvores do incenso cujas raízes haviam sido cuidadosamente embrulhadas em redes úmidas. E também levaram para bordo macacos e cães, que certamente encontraram bons donos no Egito.

      

       No centro da aldeia do Ponto foi erguida a estátua que representava Hatshepsut e Amon; o grande deus de Tebas estaria assim junto de Hator para sempre, soberana da terra das árvores do incenso.

      

       Durante o carregamento, um dos trabalhadores protestou junto de um camarada: ”Por que razão tenho de transportar um peso muito maior?”. A altercação não durou, e a viagem de regresso foi tão amena como a ida.

      

       Ao chegarem a Tebas foram recebidos com uma festa, pois no cais grande a populaça havia-se reunido, dançando e cantando. Nehesi foi condecorado com quatro colares em honra dos seus bons e leais serviços.

      

       Mas o essencial eram as árvores de incenso e as riquezas do Ponto. Na presença do deus Tot e da deusa Sechat, registaram por escrito a lista dos produtos e Hatshepsut em pessoa mediu o olíbano fresco com um alqueire de ouro fino. Pegando num pouco de bálsamo, passou-o pela pele, e o maravilhoso odor espalhou-se pelo corpo da rainha faraó, a sua dourada pele pareceu ouro puro e toda ela resplandeceu como uma estrela. Ouro, âmbar, prata, lápis-lazúli e malaquite foram pesados e oferecidos a Amon.

      

       Hatshepsut plantou com as suas próprias mãos as árvores do incenso, cujo odor encheria as salas do templo de Deir el-Bahari. O que Amon ordenara fora feito; doravante, o fabuloso país do Ponto estaria ali, no santuário dos milhões de anos de Hatshepsut.

      

       DA FESTA AO ALÉM: O DESTINO DE HATSHEPSUT

       As festas de Hatshepsut

       O nascimento de um novo ano era ocasião de uma grande festa em que eram oferecidos presentes ao faraó. No túmulo tebano nº 73 Hatshepsut encontra-se sentada sob um dossel e recebendo esplêndidos colares, uma liteira, mesas, carros, recipientes, um leque, uma edícula, um leito e estátuas que a imortalizam na companhia das divindades. Assim honrando o faraó, os dignitários contribuíam magicamente para a prosperidade do Egito.

      

       Na ”bela festa do Vale”, o deus Amon deixava o seu templo de Carnaque e ia até à margem ocidental para residir nos templos de milhões de anos. Faziam uma prolongada paragem em Deir el-Bahari, onde Hatshepsut o recebia e lhe oferecia magníficos ramos de flores que encarnavam ao mesmo tempo a beleza da Criação e o viço de uma vida vitoriosa sobre a morte. Ao crepúsculo, Hatshepsut alumiava quatro archotes e então a portadora da Luz iluminava as trevas seguida por uma procissão. Tanques de leite eram iluminados por estes archotes, simbolizando os esteios da abóbada celeste; alguns iniciados assistiam à navegação ritual da divina barca num lago luminoso. Ao amanhecer, apagavam os archotes no leite dos tanques.

      

       Durante esta festa, os vivos comunicavam com os mortos na capela das sepulturas, fazendo oferendas aos antepassados e organizando banquetes nos quais participavam as almas dos defuntos.

      

       Durante o seu reinado, Hatshepsut presidiu todos os anos a estes festejos alegres e ao mesmo tempo graves.

      

       A ”capela vermelha” de Hatshepsut, formada por blocos de quartzito vermelho hoje expostos no ”museu ao ar livre” do templo de Carnaque, era decorada com cenas comemorativas de certos acontecimentos do reinado, entre os quais a festa da deusa Opet, a deusa da fecundidade espiritual. Neste momento privilegiado, o ka do faraó regenerava-se e fazia circular a energia divina pelo corpo do Egito. A ”capela vermelha” chamava-se na realidade a ”praça do coração de Amon”, que comunicava com o coração de Hatshepsut.

      

       Os obeliscos de Hatshepsut

       Os textos sublinham as estreitas relações que Hatshepsut mantinha com seu pai Amon, que várias vezes lhe falou diretamente e lhe ditou a sua conduta. Estas palavras divinas dirigiam-se ao centro vital do ser, ao coração-consciência, que em escrita hieroglífica é representado por um vaso. Hatshepsut apercebeu-se da vontade do seu pai celeste e concretizou-a, mandando erigir vários obeliscos38 em sua honra. Agia como o seu pai terrestre, Tutmósis I, havia agido.

      

       Realizar um tal projeto não era fácil; de fato, tornou-se necessário talhar um gigantesco monólito de mais de 300 toneladas nas pedreiras de granito de Assuão e depois transportá-lo até Carnaque e erguê-lo. Foram precisos sete meses de trabalho para erigir dois obeliscos.

      

       Senenmut supervisionou as obras e as operações de transporte, que exigiram a construção de dois enormes barcos de 90m de comprimento. Cada lancha era puxada por três grupos de dez barcos; na frente do cortejo, um especialista sondava o Nilo com uma vara para evitar os bancos de areia. Senenmut observava a manobra da confortável cabina do navio almirante. Graças à habilidade dos marinheiros egípcios, foi um grande êxito.

      

       Como os relevos pintados do templo de Deir el-Bahari indicam, ”houve uma festa nos céus” quando os obeliscos chegaram a Tebas e ”o Egito alegrou-se ao ver o monumento”. Quando os barcos acostaram, houve ritos de oferenda, acompanhados pelo júbilo popular: um músico fez soar a sua trombeta, seguido por uma esquadra de arqueiros formada por jovens recrutas do Sul e do Norte. Para não ficarem atrás, os marujos tocaram tamboris. E um alegre cortejo, um pouco indisciplinado, dirigiu-se para o templo de Amon.

      

       No interior do santuário era proibido qualquer ruído ou confusão; os marinheiros e os soldados cederam lugar ao mestre-de-obras, ao ritualista e aos técnicos encarregados de instalar os obeliscos. Hatshepsut acolheu os dois ponteiros de pedra e constatou a perfeição das suas formas.

      

       A presença dos obeliscos dissipava as forças negativas e protegiam o templo, mantendo-o afastado das ondas negativas e atraindo sobre ele a Luz criadora. Eram igualmente evocações da pedra primordial, que na alvorada dos tempos servira de base à Criação.

      

       A uma ordem da soberana, Tuty, ministro das finanças, havia extraído do Tesouro doze alqueires de âmbar amarelo (mistura de ouro e prata) para cobrir a ponta dos obeliscos. Quais raios de sol petrificados, os grandes ponteiros de pedra vararam os céus e iluminaram as Duas Terras, verdadeiras montanhas de ouro que as gerações vindouras contemplariam.

      

       Hatshepsut mandou gravar as seguintes palavras no granito róseo do obelisco:

      

       Realizei esta obra com o coração cheio de amor por meu pai Amon39 iniciada no seu segredo das origens, instruída graças ao seu poder benéfico, não esqueci o que ele ordenara. A minha Majestade conhece a divindade. Agi sob as suas ordens, foi ele que me guiou, não tracei o plano da obra fora da sua ação, foi ele que me orientou. Não adormeci, pois ocupava-me do seu templo; não me afastei do que mandara. O meu coração era intuição (sic) diante de seu pai, entrei na intimidade dos planos do seu coração. Não voltei as costas à cidade do senhor da totalidade, mas virei o meu rosto para ele. Sei que Carnaque é a Luz na Terra, o venerável terreno das origens, o olho sagrado do senhor da totalidade, o seu lugar favorito que possui a sua perfeição.

      

       As obscuridades do fim de um reinado

       No ano 20 do reinado de Hatshepsut, uma estela foi erguida no templo de Hator, no Sinai. O próprio Tutmósis III conduzira a expedição encarregada de trazer turquesas para o Egito, e a sua figura foi representada na companhia de Hatshepsut, que, se interpretamos bem a inscrição, estava viva.

      

       No ano 21 não há atestados conhecidos do nome de Hatshepsut. No ano 22 do seu próprio reinado - que, portanto, não foi interrompido pelo governo da rainha faraó -, Tutmósis III reina sozinho. Hatshepsut tinha-se certamente apagado, mas nenhum documento nos fala da sua morte, o que no Antigo Egito era habitual pois raramente os textos evocam o nascimento e a morte de um faraó, e quando o fazem é apenas de maneira simbólica.

      

       Nenhuma perturbação acompanhou o desaparecimento de Hatshepsut. Após uma longa espera e uma excepcional preparação para o exercício do poder, Tutmósis III revelar-se-á como um dos maiores monarcas da História egípcia.

      

       Os túmulos de Hatshepsut

       O túmulo da rainha Hatshepsut fora escavado na falésia que lomina o Vale de Oeste, entre o Vale dos Reis e o Vale das Rainhas. É neste Vale de Oeste que serão inumados os faraós Amenotep III e ty, o sucessor de Tutancamon.

      

       Situado a 67m acima do solo e a 40m do cimo da falésia, este primeiro túmulo de Hatshepsut oferecia um aspecto espetacular40. Mas o que dizer do segundo, o da faraó Hatshepsut, o nº 20 da lista das moradas eternas do Vale dos Reis! Próximo do túmulo do seu pai, Tutmósis I, o de Hatshepsut atinge uma profundidade de 97m e segue um percurso semicircular ao longo de cerca de 124m! Devemos ver nele o esboço de uma espiral, símbolo de uma nova vida? Este extraordinário caminho do Além, o mais longo do Vale dos Reis, conduz a um jazigo que abrigou dois sarcófagos. O primeiro, que Hatshepsut tinha previsto para si própria, acolheu a múmia do seu pai, Tutmósis I, o qual deixou a sua última morada para repousar no da filha. O segundo sarcófago, o da faraó Hatshepsut, era em grés vermelho. Conservada no Museu do Cairo, a sua tampa é em forma de rolo, contendo o nome real. No interior, Nut, a deusa dos céus, une-se à rainha para a fazer renascer entre as estrelas. A técnica de execução é admirável: ambos os lados são perfeitamente lisos, iguais e paralelos! Um dos textos gravados no grés especifica que o rosto de Hatshepsut recebeu a Luz e que os seus olhos foram abertos para a eternidade.

      

       A memória de Hatshepsut teria sido alvo de perseguições?

       Em muitas obras, algumas delas consideradas sérias, pode ler-se que, vingativo e fanático, Tutmósis III mandou apagar o nome e as representações de Hatshepsut para apagar da História a lembrança desta soberana que o afastara do poder durante muito tempo. Enfim, um sombrio ajuste de contas político... que nada tem que ver com a realidade egípcia! Tutmósis III não dirigia um partido de oposição contra o partido minoritário de Hatshepsut e não queria pregar-lhe golpes baixos. Recorde-se que esteve associado a vários atos oficiais, que Hatshepsut não o ”eliminou” e que o vemos oficiar como faraó em Deir el-Bahari, o grande santuário de Hatshepsut.

      

       Quando Tutmósis III reinou sozinho, não praticou nenhuma purga; os altos funcionários que haviam servido Hatshepsut mantiveram-se nos seus lugares. Na verdade, não existe nenhuma prova do ”ódio” que Tutmósis III teria votado a Hatshepsut. Golpes de martelo no túmulo dela? É certo que os constatamos. Mas as representações e os nomes da rainha faraó foram martelados em lugares obscuros ou pouco acessíveis, e ficaram intatos em locais visíveis e de fácil acesso! Tutmósis III não atacou as mais notáveis imagens de Hatshepsut; sob o pórtico de Deir el-Bahari consagrado à viagem ao Ponto, por exemplo, o ka da rainha faraó está intato. Com a sua simples presença, ele torna Hatshepsut imortal. Além disso, se Tutmósis III ocultou o nome e a imagem de Hatshepsut de maneira muito parcial, não o fez antes do ano 42, ou seja, mais de vinte anos após o desaparecimento da soberana.

      

       Parece-nos que a intenção de Tutmósis III foi associar o seu reinado ao dos primeiros dois Tutmósis para formar uma linhagem de ”filhos de Tot”. E não esqueçamos que a sua grande esposa real se chamava Merytré-Hatshepsut, como se a memória da rainha faraó se perpetuasse no seio do casal régio.

      

       De fato, é a Ramsés II que convém atribuir a maior parte das marteladas. Ao ”renovarem” o templo de Deir el-Bahari, os restauradores de Ramsés, o Grande, apagaram certas representações de Hatshepsut, mas tiveram o cuidado de deixar os hieróglifos visíveis, bem como o contorno das figuras!

      

       Atualmente, podemos afirmar que a ”vingança” de Tutmósis III só existiu na imaginação de certos egiptólogos. Marteladas, ocultação ou apagamentos relativos correspondem apenas a estratégias mágicas que ainda não é possível explicar de maneira plenamente satisfatória.

      

       Uma reencarnação inesperada

       O rei Salomão admirava o Egito, tanto que se inspirou na monarquia faraônica para governar o Estado de Israel41. Nos ”Provérbios” e nos textos de sabedoria que escreveu, no Cântico dos Cânticos que lhe é atribuído, distingue-se a influência da cultura egípcia. Não afirma a tradição que o sedutor Salomão desposara a filha de um faraó?

      

       Uma única mulher se mostrou tão brilhante como Salomão, conseguindo submeter a sua inteligência a uma dura prova42, a célebre rainha do Sabá, vinda de um país distante e maravilhoso. Seduziu-o, engravidou dele, deixou Israel e teve um filho, fundador de uma dinastia de que os etíopes se dizem descendentes.

      

       Não foi Hatshepsut o modelo da rainha de Sabá? Beleza, inteligência, sabedoria, encanto, poderes mágicos... Não eram estas as qualidades da rainha faraó, que lhe deram a capacidade de reinar sobre o Egito? A cativante rainha do Sabá foi talvez o último sonho de Hatshepsut.

      

       Tiyi, A RAINHA LUMINOSA

       Uma provinciana no trono do Egito

       Tutmósis III reinou durante cinqüenta e quatro anos, de 1504 a 1450 a.C.; sucederam-lhe o segundo dos Amenotep (1453-1419 a.C.), o quarto e último representante da linhagem dos Tutmósis (1419-1386 a.C.) e Amenotep III que, durante trinta e sete anos, de 1386 a 1349 a.C., governou um Egito rico, feliz e luminoso. Ao lado do monarca, um sábio, Amenotep, filho de Hapu, cuja fama será tão grande que o faraó mandará construir para ele um templo onde o seu ka será venerado; até aos últimos dias da civilização egípcia, a memória de Amenotep, filho de Hapu, será venerada no santuário de Deir el-Bahari, onde permanece ao lado de Imotep.

      

       Entre as numerosas obras-primas da época de Amenotep III, o templo de Luxor é sem dúvida a mais representativa: delicadeza dos baixos-relevos, pureza das colunas, milagrosa síntese da força e da graça. A luz do reino brilha em cada pedra.

      

       O faraó, inútil será repeti-lo, encarna num casal régio. Ora, Amenotep III soube escolher uma esposa excepcional, Tiyi.

      

       A jovem não pertencia à família real. Nasceu provavelmente em Akhmim (a Panópolis dos gregos), no Médio Egito; a cidade estava sob a proteção do deus Min, garantia da fecundidade e da regeneração perpétua da natureza. O seu pai, Yuya, era sacerdote de Min, tenente das carruagens e intendente das estrebarias; ocupava-se com grande cuidado dos cavalos reservados aos corpos de elite do exército egípcio. Teria Yuya ensinado o rei a montar a cavalo? De acordo com a sua múmia, admiravelmente conservada, o pai da futura rainha era um homem de estatura elevada e de uma força física evidente, e devia parecer-se com o ator americano Charlton Heston, o inesquecível Ben-Hur. A sua esposa Tuya era superior do harém de Min43 dirigia, pois, uma instituição religiosa e ao mesmo tempo econômica. Possuidora do muito antigo título de ”ornamento real”, tinha certamente acesso à corte e participava em festas e rituais presididos pelo faraó e pelo seu sucessor.

      

       Em que ocasião o futuro Amenotep III encontrou a jovem Tiyi? Não sabemos. O fato de desposar uma mulher que não pertencia ao círculo das mais elevadas personalidades da corte não levantou problemas. Por ocasião do casamento, fabricaram-se escaravelhos em faiança de cerca de dez centímetros de comprimento e que tinham escrito o seguinte texto: Faraó e grande esposa real Tiyi, que ela viva! O seu pai chama-se Yuya, a sua mãe Tuya. Tiyi é a esposa de um poderoso soberano de um reino cuja fronteira sul vai até Karoy (no Sudão) e a fronteira norte até ao Naharina (na Ásia).

      

       Estes pequenos objetos foram enviados a todas as províncias do Egito e até ao estrangeiro, a fim de anunciarem o reinado do novo casal régio. Como os correios egípcios funcionavam bem, a notícia não tardou a espalhar-se.

      

       Tiyi dedicava uma grande afeição aos seus pais, tendo feito questão de mencionar os seus nomes. Passaram o resto dos seus dias junto da rainha, que não esqueceu o seu irmão Anen, o qual exerceu altas funções na clerezia de Amon e de Ra-Aton, e se tornou um dos próximos do faraó.

      

       Dois retratos de Tiyi

       É sempre delicado utilizar o termo ”retrato” quando evocamos a arte egípcia, porque os escultores, ”aqueles que dão vida”, preocupavam-se em representar o ka de um ser, a sua energia imorredoura, e não a sua individualidade física. Em certos casos porém, quando se trata de estudos preliminares, de esboços ou de obras destituídas de caráter oficial, é possível entrever as feições verdadeiras deste ou daquele grande personagem.

      

       No caso da rainha Tiyi, duas cabeças minúsculas têm talvez valor de retrato44. A mais célebre foi descoberta num santuário de Serabit el-Qadim, no Sinai: com uma altura de 7 centímetros e uma largura de 5, foi talhada em esteatite, uma pedra xistosa verde. Digamos claramente: não é o rosto de uma mulher acomodada. Os olhos são estreitos, as faces salientes, os lábios severos, o queixo pequeno e pontiagudo. A vontade é afirmada, bem como um caráter altivo e dominador.

      

       O segundo ”retrato” foi descoberto na estação de Medinet Gurub, no Faium; trata-se de uma pequena cabeça em madeira de cipreste, de 11 centímetros, conservada no Museu de Berlim. A mesma intensidade, a mesma determinação, a mesma força interior. Evidentemente, uma mulher de poder.

      

       Tiyi governa: a Casa da Rainha

       Na casa eterna de Queruef (túmulo tebano na 192), cujos relevos se contam entre as mais puras obras-primas da arte egípcia, a rainha Tiyi interpreta o papel da deusa de ouro Hator e participa na regeneração ritual do rei. Oferece-lhe a sua proteção mágica e assegura-lhe um reinado de milhões de anos, ao mesmo tempo que as sacerdotisas festejam dançando e cantando. Na companhia do seu filho Amenotep IV, que ainda não é Aquenaton, a rainha faz oferendas às divindades, nomeadamente a Aton, o Criador. De resto, o futuro faraó venera Ra, o deus de Heliópolis, e os seus próprios pais, Amenotep III e Tiyi, não já como indivíduos, mas na sua qualidade de casal régio imortal.

      

       Durante o ritual de regeneração do faraó, Tiyi atua como sumo sacerdotisa iniciada nos mistérios de Hator; usa o colar da ressurreição, uma coroa de uraeus encimada por duas plumas e um disco solar. Tiyi está presente no ponto culminante do ritual, o levantamento do pilar ”Estabilidade” (djed), que simboliza a ressurreição de Osíris.

      

       A rainha Tiyi esteve associada a todos os acontecimentos marcantes do reino e ”presidiu ao Alto e Baixo Egito”. Numerosos atos oficiais mencionam explicitamente: ”sob a majestade do rei Amenotep III e da grande esposa real Tiyi”. E um texto do túmulo de Queruef dá-nos uma precisão essencial: ”Ela é semelhante a Maat (a Ordem universal) segundo Ra (a Luz divina), e encontra-se assim no séquito da Sua Majestade” (o faraó). Encarnando Maat na Terra, a rainha é ao mesmo tempo a harmonia indestrutível do cosmos e o pedestal intangível sobre o qual se constrói a sociedade egípcia.

      

       O casal régio mandou edificar dois templos no longínquo Sudão, um em Soleb para a regeneração permanente do ka real, e o outro em Sedeinga, onde a magia da rainha perpetua o ser do faraó. Indissociáveis, os dois santuários formam a imagem do casal régio, prefigurando o dispositivo simbólico de Abu Simbel para Ramsés II e Nefertari.

      

       Tem-se glosado muito acerca do caráter lascivo de Amenotep III, das suas inúmeras mulheres, da sua preguiça de déspota oriental que projetava no Egito fantasmas e orientalismos que nada tinham a ver com a realidade egípcia. Vejamos um exemplo preciso: no ano 10 do reinado, Amenotep III desposa Giluquipa, filha do rei do Mitanni, país da Ásia com o qual o Egito havia estado em conflito. Este ”casamento” diplomático destinava-se a selar a paz e a evitar conflitos. Fabricaram-se escaravelhos com os títulos de Amenotep III e de Tiyi, que assim proclamavam a necessidade deste ato político. Tiyi não teve de lutar contra uma estrangeira, pois, tal como as outras ”esposas diplomáticas” do Novo Império, Giluquipa tomou um nome egípcio e viveu na corte.

      

       Tiyi permanecia a maior parte do tempo na maravilhosa cidade de Tebas, a cidade vitoriosa simbolizada por uma mulher com um arco e setas e uma clava branca. A Tebas de verdejantes jardins, de inúmeros lagos e tanques, de grandes casas rodeadas de árvores, de templos magníficos onde residiam as divindades. Tebas, a rainha das cidades e a matriz do mundo. Tebas, onde se rivalizava em elegância nos banquetes e onde se viviam dias felizes.

      

       Tiyi dispunha de uma administração eficaz, a Casa da Rainha, integrada na Casa do Faraó. Aquilo a que hoje chamamos ”palácio” apresentava-se como um conjunto ao mesmo tempo sagrado e profano onde coabitavam sacerdotes e funcionários. Na Casa da Rainha havia oficinas cheias de artesãos, padeiros, cervejeiros, marceneiros, ourives, armazéns, um tesouro, serviços médicos e laboratórios. A soberana reunia os seus mordomos e chefes de equipa, velava pela boa gestão dos seus bens e comportava-se como um verdadeiro empresário.

      

       O lago de Tiyi

       No ano 11 do reinado, no primeiro dia do terceiro mês da primeira estação, ou seja, em finais de Setembro, o rei mandou escavar um lago em honra da grande esposa real Tiyi. O lugar escolhido foi Djaruqa, a norte da cidade de Akhmim, de onde eram originários os pais da rainha.

      

       As dimensões do lago eram impressionantes: 3700 cevados de comprimento por 700 de largura, ou seja, cerca de 2 km por 365 m. É sempre graças a uma ”emissão de escaravelhos”, o meio de informação favorito da época, que somos informados. Os engenheiros egípcios e o seu pessoal foram tão hábeis que a inauguração do lago se fez... quinze dias depois, o que parece impossível.

      

       Nesta ocasião, a barca real, certamente chapeada a ouro, vogou no lago e resplandeceu. Tinha um nome significativo: ”Aton irradia”. Aton, o nome egípcio do deus solar, o deus que o faraó Aquenaton (Akh-en-Aton) incluiria no seu nome anos mais tarde e em honra do qual havia de construir uma nova capital.

      

       Tratar-se-ia de fato de um lago de lazer destinado à rainha? De modo algum. Como demonstrou Jean Yoyotte, o rei pretendia criar um tanque de irrigação para melhorar as culturas. Fechando os canais que atravessavam os diques, os técnicos tinham criado um ”lago” artificial cuja quantidade de água chegaria para irrigar o solo e facilitar a fertilização. A verdadeira abertura deste lago consistiu em abrir canais que permitiam o escoamento da água. Mas, primeiro, a navegação ritual da barca ”Aton irradia” havia sacralizado o lago tornando a terra fecunda. Também desta vez a rainha tinha exercido a sua função divina.

      

       A rainha viúva

       Ao cabo de vários anos de felicidade, Tiyi sofreu uma terrível provação: a morte de Amenotep III. E mandou gravar esta comovente inscrição num escaravelho comemorativo: A grande esposa real Tiyi lavrou este documento, que é seu, para o seu irmão bem-amado, o faraó. Este irmão bem-amado, com o qual ela havia reinado com sabedoria, partira para o Belo Ocidente, deixando-a só à frente do Estado.

      

       Dois filhos estavam aptos a reinar: uma rapariga, Satamon, a ”filha de Amon”, e um rapaz, chamado para ser o quarto da linhagem dos Amenotep. Mas eram ambos jovens e inexperientes.

      

       Tiyi teve de vencer a prova e reinar. Escreveu Tushratta, o rei do Mitanni, à rainha: ”Conheces todas as palavras que troquei com o teu marido, o faraó. Só tu as conheces”. De fato, Tiyi era a única que conhecia todos os segredos do Estado e que sabia manejar o navio do Egito. E transmitiu esta ciência aos seus filhos; o jovem Amenotep IV e a sua esposa Nefertiti foram discípulos atentos.

      

       Tiyi e a ”revolução” de Aquenaton

       Satamon, a filha da rainha, afastou-se. Era, certamente, senhora de um vasto domínio e tinha uma posição proeminente na corte, mas desapareceu dos documentos oficiais, quer por morte prematura, quer por ter renunciado ao peso do poder.

       

       Um novo casal régio, formado por Amenotep IV e Nefertiti, ocupou a cena vistosamente. Depois de um início de reinado ”tradicional”, Amenotep mudou de nome, ou seja, de programa espiritual e político, tornando-se Aquenaton, ”Aquele que é útil a Aton”, com um jogo de palavras incluído na palavra akh, que significa ao mesmo tempo ”o ser útil” e ”o ser luminoso”. Como Aton era uma forma divina sem grande peso no território egípcio, Aquenaton criou uma cidade em sua honra, Aquetaton, ”a terra da Luz de Aton”, situada em Tell el-Amarna, no Médio Egito. A corte mudou-se e Tebas foi reduzida ao papel de cidade secundária. Não houve guerra civil e Aquenaton estabeleceu os limites da sua fronteira no espaço e no tempo. No espaço, marcos com a forma de estela delimitaram o território do deus Aton; no tempo, a supremacia de Aton terminaria com a morte do rei.

      

       Que papel exato teve Tiyi nesta erroneamente chamada ”revolução”? Considerá-la como sua inspiradora é por certo excessivo, mas não se opôs. Como pudera ela, viúva do faraó, contestar a vontade do rei? Parece ter permanecido perto do seu filho, servindo de elo de ligação entre Tebas e a capital do deus Aton, onde habitava num palácio que o seu filho mandara construir para ela. Tebas não se tornara numa cidade morta, e Tiyi teve de efetuar um grande número de viagens para manter as ligações entre as cidades de mion e Aton.

      

       Quando Tiyi permaneceu na nova capital, organizaram-se banquetes em sua honra. Nefertiti recebeu-a calorosamente e Aquenaton conduziu-a ao templo de Aton. No grande pátio, banhado pelos vivificantes raios solares, o rei dá a mão a sua mãe; dignos e serenos, recolhem-se. Para além da ternura e do respeito mútuo, é a prova de que Aquenaton se situa numa continuidade dinástica salvaguardada pela rainha-mãe e que não modifica a instituição faraônica. Estando a par da política internacional, será que Tiyi alertou Aquenaton quando o prestígio do Egito começou a declinar? Preocupadíssimo com a sua mística solar, o rei descurou importantes relatórios vindos do estrangeiro. E quando a sua mãe morreu no ano 8 do seu reinado, o vazio que deixou não foi preenchido.

      

       Tiyi no Vale dos Reis?

       Onde é que Tiyi terá sido inumada? Fortes presunções orientam-nos para o túmulo nº 55 do Vale dos Reis, uma modesta sepultura sem decorações esculpidas, como é costume para quem não era faraó mas que teve o insigne privilégio de repousar neste lugar excepcional.

      

       Este túmulo continha objetos com o nome de Amenotep III e de Tiyi. Segundo um dos escavadores, havia ali um trenó para a múmia, um féretro, amuletos, frascos de perfume e várias peças raras, que infelizmente se destruíram ao serem retiradas do jazigo. Notas não publicadas e relatórios da escavação pouco fiáveis condenam-nos assim à ignorância. Teria o túmulo nº 55 sido inicialmente previsto para abrigar a múmia de Tiyi, tendo servido depois de esconderijo para Aquenaton antes de ser desocupado na época ramessida? Hipóteses plausíveis, mas meras hipóteses.

      

       A lembrança da grande rainha perdurou; fundações funerárias em Tebas e no Médio Egito celebraram a sua memória e foi-lhe prestado culto. Grande esposa real de um monarca sábio e benfeitor, rainha de transição entre a luminosa época de Amenotep III e a experiência religiosa de Aquenaton, Tiyi deixara uma marca indelével no seu tempo.

      

       NEFERTITI, A ESPOSA DO SOL

       Um rosto sublime

       Quem não contemplou já num livro ou numa revista o maravilhoso rosto de Nefertiti e não ficou encantado com tamanha graça, beleza e majestade? Faltam-nos as palavras para descrever esta mulher de nobreza resplandecente e cujo sorriso é animado por uma luz interior que atravessou milênios para nos comover. De rosto claro, diz a seu respeito o texto de uma estela-fronteira da cidade de Aton, alegremente ornada da dupla pluma, soberana com a ventura, dotada de todas as virtudes, cuja voz enche de regozijo, graciosa dama, grande de amor, cujos sentimentos regozijam o senhor das Duas Terras.45

      

       Dois retratos se conservaram. O primeiro, guardado no Museu do Cairo, foi descoberto pelo inglês Pendlebury durante a campanha de escavações de 1932-1933 na estação de Tell el-Amarna; esta cabeça esculpida, de olhos não-incrustados, devia ser colocada sobre uma estátua. A intensidade espiritual da obra é admirável; é realmente um ser fiel à Luz, contemplando a divindade para além do mundo aparente. Nenhuma inscrição permite identificar formalmente Nefertiti, embora os historiadores de Arte sejam unânimes em reconhecer a esposa de Aquenaton.

      

       O célebre busto conservado no Museu de Berlim é uma pequena escultura de 50 centímetros. Foi encontrada em Tell el-Amarna a 6 de Dezembro de 1912 por uma equipa alemã dirigida por Ludwig Borchardt. O lugar da descoberta é admirável: a oficina do escultor Tutmósis. Esta fascinante obra-prima é na realidade um modelo inacabado, abandonado quando o artista regressou a Tebas. A coroa muito característica que Nefertiti usa nos baixos-relevos amarnianos permite identificá-la com segurança. A delicadeza do pescoço, a pureza do rosto, a doçura da expressão aliada a serenidade, provam o gênio de um escultor e a beleza da rainha.

      

       As origens de Nefertiti

       O nome Nefertiti significa ”a Bela chegou”. Alguns egiptólogos supuseram que a rainha fosse de origem estrangeira, mas não é verdade. O seu nome é tipicamente egípcio e, como veremos, refere-se à função divina.

      

       Nefertiti, filha de Amenotep III e de Tiyi? Nada confirma esta hipótese. E, posto que nenhum texto nos indica o nome dos pais da grande esposa real de Aquenaton, o mais prudente é considerar que era uma dama da corte, talvez a filha de um alto dignitário como Ay, que será faraó depois da morte de Tutancamon. E nada nos impede de pensar que Aquenaton decidiu desposar uma jovem mulher muito bela e sem fortuna.

      

       Temos uma única certeza: a ama de Nefertiti chamava-se Tiyi, como a grande esposa real de Amenotep III. Esta Tiyi desposou Ay.

      

       A deusa Nefertiti

       A palavra ”Nefertiti” lê-se tecnicamente Nefertiti, ”a Bela chegou”. Esta ”Bela” é a deusa longínqua que, depois de deixar o Sol criador, partiu para o deserto da Núbia. Sem ela, as Duas Terras estão condenadas à esterilidade e à desolação. Graças à intervenção das divindades, nomeadamente Tot e Chu, a deusa longínqua regressará ao Egito, e a natureza e todos os seres vivos conhecerão de novo a ventura.

      

       Nefertiti é a encarnação desta deusa que vem - ou, mais exatamente, que volta - para prodigalizar o seu amor ao faraó a fim de que ele brilhe como um sol. Sendo ao mesmo tempo Hator, amor celeste, e Maat, a Ordem eterna, ela recria a Luz e protege o rei encarregado de a fazer brilhar na Terra. Foi, aliás, este o grande papel de todas as rainhas do Egito.

      

       Dado que o culto do momento estava centrado em Aton, Nefertiti chamava-se também ”a Perfeita é a perfeição de Aton”, e era para ela que o disco solar se erguia. Quando se punha, redobrava de amor por ela. No grande templo de Aton havia duas estátuas da deusa Nefertiti, às quais as pessoas dirigiam preces para que ela continuasse a fazer verdejar as Duas Terras.

      

       Querendo afirmar o poder da Luz de Aton, Aquenaton ocultou os mistérios osírios. No entanto, era necessário que os ritos de ressurreição fossem praticados, nomeadamente que as quatro deusas colocadas nos cantos do sarcófago real (entre as quais Ísis e Néftis) recitassem as litanias mágicas. Foi Nefertiti quem as substituiu.

      

       A cena de adoração do túmulo de Ity reúne, segundo o ritual amarniano, o rei, a rainha e a sua filha venerando um sol divino cujos raios terminam em mãos que transmitem a vida. Há um pormenor surpreendente: Nefertiti ergue a Aton uma bandeja sobre a qual se encontram os nomes do deus inscritos num rolo e uma pequena estatueta representando uma rainha sentada, dirigindo uma prece a estes nomes divinos, e que é a própria Nefertiti. É claro que se trata de uma Nefertiti divinizada. É o Sol feminino que dá a vida.

      

       Nefertiti, rainha faraó?

       Em certas inscrições, o nome do rei não é seguido do nome próprio, mas sim do da rainha, como se ambos formassem um único númen, uma única entidade régia cujos dois elementos eram indissociáveis.

       

       Nenhuma atividade sagrada podia ser praticada sem a presença de Nefertiti. O casal régio era formado por duas personalidades igualmente importantes perante o deus Aton; o rei e a rainha dirigem-lhe as mesmas preces, consagram-lhe as mesmas oferendas e fazem subir até a ele o mesmo fumo de incenso. Estas cenas de adoração muito repetitivas são particularmente numerosas, ornando as paredes dos templos e das sepulturas e constituindo o “programa” simbólico do reinado.

      

       O faraó aparecia habitualmente sozinho na sua carruagem. Na sua nova capital de Tell el-Amarna, e à vista de todos, Aquenaton beija ternamente a sua bela esposa sob os raios do Sol. Na carruagem vai outra ocupante: uma das filhas do casal solar, que enquanto os pais se beijam só tem olhos para os cavalos, cujas cabeças estão ornadas com plumas multicores.

      

       Quando o vizir Ramosé foi investido e o casal régio habitava ainda em Tebas, Nefertiti participou na cerimônia e mostrou-se à ”janela das aparições” para felicitar o alto dignitário. Na cidade de Aton, sentada num trono ao lado do monarca, Nefertiti recebeu os embaixadores da Ásia e da Núbia, que vinham prestar tributo ao faraó.

      

       Poderemos nós admitir que Nefertiti foi mais do que uma rainha e que reinou sozinha? A coroa especial que usa, muito próxima da coroa vermelha do Baixo Egito, parece apontar neste sentido. Sumo sacerdotisa do culto de Aton, Nefertiti possuía um espaço sagrado próprio, ”a sombra de Ra”. É provável que o rei dirigisse o culto da manhã e a rainha o da tarde. Nefertiti tinha a capacidade de dirigir sozinha os rituais e de apresentar oferendas a Aton.

      

       Outro notável privilégio: a rainha podia deslocar-se na sua própria carruagem, equipada com um arco e setas, tal como a do rei. Um bloco conservado no Museum of Fine Arts de Boston registra um pormenor ainda mais surpreendente: a bordo de uma barca régia, Nefertiti, coroada, segura um adversário pelos cabelos e bate-lhe com a sua clava, simbolizando assim a vitória da ordem sobre o caos. Habitualmente, só o faraó reinante executa este gesto ritual que encontramos num bloco de Carnaque.

      

       Para alguns egiptólogos, este conjunto de indícios permite concluir que, tal como Hatshepsut, Nefertiti foi uma rainha faraó. A hipótese tornar-se-ia certeza se se conseguisse provar que a rainha sobreviveu a Aquenaton e que mudou de nome para reinar sozinha com o nome de Semenqkaré. Mas a documentação é muito rara e confusa para nos fornecer atualmente uma conclusão definitiva.

      

       Quando Nefertiti condecorava uma mulher

       O casal régio fez questão de recompensar os seus fiéis; os personagens apresentavam-se diante do palácio real, à janela do qual Nefertiti e Aquenaton apareciam coroados. Ora, Nefertiti podia celebrar esta festividade sozinha e, mais ainda, a favor de uma mulher. Esta última, Meretré, não vinha acompanhada pelo marido. A dama Meretré, ”a amada da Luz divina”, embelezou-se para a circunstância: uma grande e comprida peruca coroada por um cone de perfume, pintura cuidada, um comprido vestido transparente, que deixa adivinhar as suas formas encantadoras. É assistida por vários servos e servas carregando recipientes, flores e instrumentos musicais. O lugar onde a cena decorre é encantador, porque o palácio da rainha fica no centro de um jardim de árvores e vinhedos. Enquanto as suas companheiras se prostram diante de Nefertiti, uma das servas aproveita para tomar uma taça de vinho. Crianças admoestadas por um guarda com um pau conseguiram misturar-se a esta cerimônia que, por muito protocolar que fosse, nada tinha de glacial. Tendo recebido um colar em ouro, Meretré é reconduzida a casa por um próximo que lhe dá a mão, enquanto as suas amigas a seguem. Em sua casa, um alegre banquete festejará a distinção.

      

       As filhas de Nefertiti e de Aquenaton

       O ponto culminante do culto de Aton era a celebração da Luz por parte da família real. No enorme pátio do grande templo de Aton, o rei e a rainha consagravam oferendas alimentares num vasto altar ao qual se acedia através de uma rampa de acesso. Aquenaton e Nefertiti estavam lado a lado, sobre uma espécie de estrado; à sua volta, as suas filhas, altos dignitários, ritualistas, damas da corte. Todos os presentes estavam recolhidos, acolhendo no seu íntimo a iluminação solar.

      

       De uma forma inteiramente inabitual na arte egípcia, são representadas cenas que nos permitem entrar na intimidade da família real: vemos Nefertiti a amamentar uma das suas filhas, enquanto outra lhe acaricia o queixo; noutra, senta as filhas ao colo e senta-se por sua vez ao colo de Aquenaton. Também assistimos à refeição da família já sem o vestuário protocolar.

      

       Aquenaton e Nefertiti querem demonstrar abertamente que constituem uma família feliz e radiosa graças à energia que o deus Aton diariamente lhes transmite. Propõem um modelo ideal, fundado nesta veneração da Luz; por isso, as jovens são associadas aos atos de culto.

      

       O casal teve seis filhas: três antes do ano 6 do reinado, a quarta entre o ano 6 e 9, as duas últimas entre o ano 6 e 9. Sabe-se que todas são filhas da esposa real Nefertiti.

      

       Pouco antes do ano 12 do reinado, uma primeira e muito cruel provação afeta o casal régio: a morte de Mequet-Aton, a sua segunda filha. Foi uma profunda mágoa para esta família, que fazia da sua coesão o exemplo das benfeitorias de Aton. Impôs-se a celebração dos ritos fúnebres e a exumação na sepultura familiar: uma cena mostra Aquenaton e Nefertiti chorando diante do leito fúnebre.

      

       A morte de Mequet-Aton abalou de maneira irremediável o belo edifício que o régio casal havia construído; Nefertiti ficou profundamente afetada por este desaparecimento. Terá morrido pouco tempo depois?

      

       Interpretando de uma maneira verista as representações das jovens, certos egiptólogos consideraram que o seu crânio alongado constituía a tradução estética de uma doença. ”Estética”, sim: em certas cenas, todos os personagens são representados com esta mesma deformação. Em contrapartida, esculturas descobertas em Tell el-Amarna oferecem-nos rostos ”clássicos”. É, pois, inútil pensar numa patologia.

      

       Seis raparigas e nenhum rapaz? Alguns eruditos gostariam que Tutancamon, cujos pais são desconhecidos, fosse filho de Aquenaton e Nefertiti, mas nenhum indício decisivo veio corroborar esta hipótese.

      

       O desaparecimento de Nefertiti

       Escreveram-se verdadeiros romances acerca da morte de Nefertiti, por vezes sob a capa de uma egiptologia ”séria”. Falou-se de uma zanga entre Aquenaton e Nefertiti, do isolamento desta num palácio da Cidade do Sol, da tomada do poder à frente de um partido da oposição, etc.

      

       Ignoramos a data e as circunstâncias da morte de Nefertiti. Podemos, quando muito, admitir que morreu antes de Aquenaton.

      

       Uma das filhas do casal régio, Meritaton, desposou simbolicamente o seu pai, mas acaso este fato é suficiente para provar que Nefertiti estava morta? De fato, já em vida de Nefertiti, Meritaton, ”a amada de Aton”, era considerada como o terceiro termo da trindade sagrada formada por pai, mãe e filha. Meritaton está presente em inúmeras cerimônias, caminhando atrás da mãe e manuseando um sistro para afastar as influências maléficas. Ocupando uma casa pessoal na Cidade do Sol, Meritaton parecia prometida às mais altas funções e recebeu o título de ”grande esposa real”. Mas cedo desapareceu da cena pública sem que saibamos se morreu muito nova ou se decidiu retirar-se da vida política.

      

       Outro enigma: o nome de Nefertiti encontra-se em parte no de Semenqkaré, a efêmera monarca que Aquenaton associa ao trono pouco antes da sua morte. Tratar-se-á de Nefertiti tornada faraó sob outro nome, de Aquenaton simbolicamente desdobrado ou de um dignitário da Cidade do Sol escolhido como sucessor?

      

       Onde foi inumada Nefertiti? Provavelmente no grande túmulo previsto para a família real e situado muito longe da capital, num local desértico. Os escavadores encontraram-no saqueado e devastado.

      

       É a múmia de Nefertiti que jazia no túmulo nº 55 do Vale dos Reis? Os nomes foram destruídos, o rosto foi martelado. Tratar-se-á de Aquenaton, de Semenqkaré, da rainha Tiyi ou de Nefertiti? Perguntas ainda sem resposta.

      

       Nefertiti, a esposa do Sol, continua a fascinar. Quando admiramos os seus retratos, é impossível deixar de pensar na sua voz melodiosa que cantava a onipotência da Luz.

      

       Aparentemente, Aquenaton teve uma esposa ”secundária” chamada Kiya, para a qual o rei havia mandado construir umas capelas no recinto sagrado de Aton. O seu nome não se encontra inscrito num rolo, e não usou coroas. Após o ano 12, a história do reinado de Aquenaton mergulha na obscuridade. Talvez o rei tenha escolhido como sucessora uma mulher faraó de nome Anq-Queperu-Ra Neferneferu-Aton, e que teria reinado mais de dois anos. Este faraó (trata-se mesmo de uma mulher!) não podia ser Meritaton, a filha de Aquenaton.

      

       A GRANDE ESPOSA REAL DE TUTANCAMON

       Um jovem casal sem preocupações?

       No palácio norte da Cidade do Sol vivia um jovem casal formado por uma das filhas de Nefertiti, Anques-en-pa-Aton, ”Ela vive para Aton”, e o príncipe Tut-anq-Aton, ”Símbolo vivo de Aton”. Gozavam o luxo da corte e não pensavam no poder. Aquenaton e Nefertiti reinavam. Para quê preocupar-se com o futuro?

      

       Mas os acontecimentos precipitaram-se. Quando Aquenaton morre, a jovem Anques-en-pa-Aton torna-se no garante da legitimidade do trono e o seu marido, ainda adolescente, é chamado a ser faraó. Eis que termina bruscamente o tempo da despreocupação e dos prazeres. Terminada a experiência ”atoniana”, foi necessário deixar a Cidade do Sol e regressar a Tebas. A capital de Aquenaton depressa foi abandonada, tornando-se numa cidade morta.

      

       Um indício essencial desta alteração foi a mudança do nome do casal régio: Tut-anq-aton tornou-se Tut-ãnq-Amon, Anques-en-pa-Aton, Anques-en-almon. Por outras palavras, tinha terminado o reinado de Aton; o rei e a rainha veneravam o novo Amon, senhor de Tebas. No primeiro ano do reinado, a evolução estava programada: uma estela conservada em Berlim mostra Tut-anq-aton adorando Amon.

      

       Tutancamon desfaz o que Aquenaton fizera magicamente, simplesmente mudando de nome; longe de ser um ”reizinho”, inaugurou assim um novo período da História egípcia.

      

       O regresso a Tebas foi pacífico. Nem guerra civil, nem matança dos adeptos de Aton, nem destruição da Cidade do Sol, que será arrasada muito mais tarde (no reinado de Ramsés II). Foi a simples passagem de um reinado a outro, o regresso a Amon após um desvio por Aton num país que não conheceu dogmatismos nem verdades reveladas impostas à força.

      

       Tutancamon e a sua grande esposa real não tiveram tempo para serem jovens; tiveram de reinar e assumir os deveres do seu cargo.

      

       Uma grande maga

       Nenhum acontecimento dramático perturbou os nove anos do reinado de Tutancamon (1334-1325 a.C.). Sabemos que a sua morada eterna, o único túmulo real inviolado do Vale dos Reis, foi descoberta em 1922 por Howard Cárter após uma longa pesquisa financiada por Lord Carnavon. Deste túmulo cuidadosamente dissimulado foram extraídas inúmeras obras-primas, entre as quais uma pequena capela dourada cujas cenas revelam o papel exercido pela grande esposa real’.

      

       Anquesenamon era de grande beleza: uma peruca delicada e complicada, a serpente uraeus na fronte, de olhos pintados e rosto cuidadosamente maquiado, usa brincos nas orelhas, um colar com várias voltas e um comprido vestido branco que cai sobre as sandálias. A grande esposa real era a sedução em pessoa.

      

       As cenas em que figura não constituem, porém, simples demonstrações de encanto; os textos hieroglíficos designam-na efetivamente como ”a grande maga” que, com os seus atos rituais, comunica ao rei a energia necessária para reinar. Nas paredes desta edícula de ouro, ela renova eternamente os ritos da coroação que o régio casal celebrará durante milhões de anos.

       

       A grande esposa real toca sistro para Tutancamon, oferece-lhe ramos de flores, enche a sua taça de vinho, coloca-lhe um colar da ressurreição ao pescoço, passa-lhe pela pele um unguento de regeneração, assiste-o quando caça e pesca criaturas do Além sob a

      

       forma de aves e peixes. Como podemos constatar, a rainha é muito ativa; mas uma cena mostra-a sentada em cima de uma almofada aos pés do rei e voltando-se para ele a fim de receber o líquido de um frasco que o monarca entorna.

       

       São Chu e Tefnut, o casal primordial, que transmite a vida e a Luz. Cada gesto da rainha é a expressão de uma magia de Estado que age desde as primeiras dinastias.

      

       Uma rainha culpada de alta traição?

       Tutancamon morreu jovem, por certo antes dos vinte e cinco anos. A sua viúva ficou desamparada. Assumiria sozinha a totalidade do poder tornando-se rainha faraó ou desposaria um novo monarca?

      

       A rainha praticou então um ato inaudito, que poderia ser considerado como uma traição46. Em vez de escolher para faraó um dos nobres da corte, escreveu uma surpreendente carta ao poderoso rei hitita Suppiliuliuma, que sonhava conquistar as Duas Terras e apoderar-se das suas riquezas. Este documento conservou-se nos arquivos hititas. Eis a passagem principal: ”O meu marido morreu”, escreve a rainha. ”Não tenho filhos. Dizem que tens vários. Se me enviasses um deles, tornava-se meu marido. Jamais escolherei um dos meus servos para marido”.

      

       O soberano hitita duvidou da autenticidade da missiva. Imaginando uma cilada, enviou um emissário a Tebas para analisar a situação. Impaciente, Anquesenamon escreveu uma segunda carta, protestando a sua boa fé: ”Se eu tivesse um filho, acaso me teria dirigido, para desonra minha e do meu país, a um reino estrangeiro?”.

      

       O soberano hitita pôs-se a sonhar. Conquistar as Duas Terras com um simples casamento! Decidiu tentar a aventura e mandou ao Egito um dos seus filhos, o futuro faraó.

      

       As tentativas da jovem rainha não haviam passado despercebidas na corte. Dois homens velavam: o general Horemheb, chefe dos exércitos, e o velho sábio Ay, uma eminência parda que já tinha estado em dois exércitos e dirigia a administração. Enquanto esta tenebrosa história não passou de uma mera troca epistolar, eles não agiram. Mas quando a escolta do príncipe hitita se pôs a caminho, tomaram uma decisão.

      

       O príncipe hitita não chegou a atravessar a fronteira. Foi, por certo, suprimido. O aviso era claro e brutal: jamais um hitita subiria ao trono do Egito.

      

       Anquesenamon desposou Ay que, depois de ter servido vários faraós, veio a ser faraó com o apoio de Horemheb. Fora, de resto, Ay quem dirigira o funeral de Tutancamon. A sua união com a jovem rainha foi puramente teológica.

      

       Que foi feito da esposa de Tutancamon, casada com Ay? Não sabemos. Para nós, continua a ser a grande maga da máscara de ouro, a rainha eternamente jovem que lhe dá vida para sempre.

      

       A DOCE RAINHA MUTNEDJEMET

       A irmã de Nefertiti

       A dama Mutnedjemet, irmã da rainha Nefertiti, viveu dias felizes e tranquilos na Cidade do Sol. Aí desposou o general Horemheb, que nada tinha de soldado grosseiro ou de guerreiro ávido de combater o inimigo. Escriba real, fino letrado, especialista em Direito, Horemheb era um dos responsáveis pela segurança externa do Egito.

      

       Horemheb mandou construir uma magnífica morada eterna em Sacara, cujos baixos-relevos exaltam a sua atividade militar e a sua capacidade para manter a ordem. Aquenaton e Nefertiti confiaram no escriba-general, que soube mostrar-se digno. A carreira de Horemheb parecia traçada, a sua esposa Mutnedjemet seria uma grande dama da corte e levaria uma vida luxuosa.

      

       A morte de Aquenaton pôs fim à experiência ”atoniana” e abalou a situação. A corte regressou a Tebas, Tutancamon tornou-se faraó, Horemheb tornou-se num dos homens fortes do regime e a irmã de Nefertiti numa personalidade saliente. Porém, quando Tutancamon morreu, não foi o general que subiu ao trono, mas um velho funcionário, Ay, cujo reinado será breve (1325-1321 a.C.).

      

       Chegou então a hora de Horemheb47, cujo nome significa ”Hórus em festa”, e que durante vinte e oito anos presidirá aos destinos do país e será autor de uma importante reforma jurídica: suprimiu direitos abusivos e restabeleceu a justiça. Foi um faraó de grande envergadura. Que papel teve Mutnedjemet?

      

       Mudnedjemet, regente do reino?

       Quando o rei Ay morre, será que Mutnedjemet passa a exercer a função de regente do reino? Se esta hipótese é exata, ela teria reinado sozinha antes da designação de Horemheb como faraó. Seja como for, teve os títulos de ”grande princesa hereditária (repatet uret)” e de ”soberana do Alto e Baixo Egito”, e participou nos ritos de coroação do marido.

      

       Um pormenor insólito: num documento da época de Tutancamon, batizado ”estela da restauração” porque marcou o regresso do governo a Tebas, o nome de Mutnedjemet substitui o da esposa de Tutancamon! Tratar-se-ia de um ato mágico, destinado a apagar a memória de uma rainha que quisera desposar um príncipe hitita?

      

       No grupo estatuário da coroação conservado no Museu de Turim, Mutnedjemet aparece do mesmo tamanho que o esposo. Por mais forte que fosse a sua personalidade, Horemheb não podia reinar sem uma grande esposa real que justificasse simbolicamente a sua função.

      

       Mut, a grande mãe

       Mutnedjemet significa ”Mut, a doce, a aprazível, a agradável (nedjemef)”. O hieróglifo que serve para escrever estas noções é uma alfarroba, que era de uma suave doçura para o paladar dos antigos egípcios. Usando o nome de Mut no seu aspecto positivo e benéfico, a rainha encarnava a grande mãe, a Antiga, que rege as Duas Terras.

      

       A palavra Mut significa ”mãe”; esposa de Amon, Mut é por excelência a mãe do faraó e ocupa um lugar essencial quando do seu verdadeiro nascimento, ou seja, da sua coroação. A deusa pode, aliás, usar a dupla coroa para fazer nascer a Luz que o rei representa na Terra.

      

       Como nota o ”Papiro Insinger”, datado do século I d.C., a obra de Mut e de Hator é o que atua entre as mulheres. Símbolo da feminilidade criadora, Mut foi a protetora dos nascimentos felizes.

      

       Não deveríamos esquecer o outro rosto da deusa cujo nome se escreve com um abutre. É certo que os egípcios consideravam que o abutre fêmea era uma mãe exemplar; mas era também uma ave necrófaga e, qual verdadeira alquimista, alimentava-se de carnes mortas que lhe permitiam viver. Não é por acaso que a palavra ”Mut” é sinônimo de outro termo que significa ”a morte”. Efetivamente, a grande mãe pode aparecer sob a forma de uma leoa aterradora ou de uma cobra erguida na fronte do faraó para exterminar os seus inimigos. Uma chama dança no rosto de Mut quando é necessário dissipar as trevas, e portanto matá-las.

      

       Em Carnaque, Mut era soberana de um vasto espaço sagrado que compreendia o lago de Icheru, onde vinha beber a perigosa leoa Seqmet, que havia que pacificar através dos ritos, para transformar a sua fúria em energia positiva. Aí se situava a matriz do mundo, graças à qual Mut fazia aparecer as formas de vida em harmonia com Maat, a Ordem universal. A finalidade do ”ritual de Mut” era precisamente salvaguardar a ordem de Maat que, por ignorância, preguiça e violência, a humanidade tenta destruir constantemente.

      

       Grande foi, por conseguinte, a responsabilidade da rainha Mutnedjemet. Encarnando o aspecto doce e maternal de Mut, teve a missão de dar ao mundo um novo Hórus, um novo faraó que poria o Egito em festa: Horemheb.

      

       A morte de uma mãe

       Coroado faraó, Horemheb mandou escavar uma morada eterna no Vale dos Reis. O seu magnífico túmulo de Mênfis serviu talvez de sepultura à sua grande esposa real, que teria tido um fim precoce; junto da sua múmia, que é a de uma mulher de cerca de quarenta anos, foram encontrados os restos de um embrião malformado. Seria ele a trágica testemunha do aborto que haveria causado a morte da rainha cerca do ano 13 do reinado de Horemheb?

      

       Uma história comovente, mas sujeita a caução. A idade e mesmo a identificação da múmia são discutíveis. Supondo que se trate de Mutnedjemet, é provável que a presença do embrião tenha um valor simbólico e faça referência à sua função de deusa Mut na Terra, de grande mãe eternamente geradora neste e no outro mundo.

      

       Considera-se por vezes, e não sem razão, que Horemheb foi o verdadeiro fundador da décima nona dinastia, na qual se ilustrarão faraós excepcionais como Séti I e Ramsés II. Cumprindo o dever implicado pelo seu nome, a sua iniciadora não terá sido Mutnedjemet?

      

       A RAINHA TUY, ESPOSA DE SÉT II E MÃE DE RAMSÉS II

       Esposa e mãe no auge do poder

       Quando Horemheb morre, é um velho vizir, arrancado à sua tranqüila reforma, que um conselho de sábios escolhe para governar o Egito. Tomou um nome que se tornará célebre: Ramsés, o primeiro monarca de uma longa linhagem que compreenderá onze Ramsés mas que só reinou dois anos (1293-1291 a.C.). Sucedeu-lhe um faraó de extraordinária envergadura, Séti I.

      

       Os seus treze anos de reinado foram uma verdadeira idade áurea: conteve a ameaça hitita, obrigando os temíveis guerreiros dos altos planaltos da Anatólia a manter as suas posições e impôs a calma no turbulento protetorado da Síria-Palestina. Quanto à sua obra arquitetônica, deixa-nos parvos de admiração: as suas mais notáveis criações são o grande templo de Osíris em Abidos, cujos baixos-relevos se encontram num maravilhoso estado de conservação; o maior túmulo do Vale dos Reis, onde estão inscritos os principais ”livros” sobre a ressurreição da alma real; o ”templo dos milhões de anos” de Gurna, na margem ocidental de Tebas; e uma parte da gigantesca sala hipóstila de Carnaque.

      

       É certo que Séti I era animado pela energia do deus Set, comparável à do relâmpago e da tempestade. A sua múmia, bem conservada, impõe respeito: autoridade e gravidade são as principais características de um rosto cuja grandeza a morte e os séculos não alteraram.

      

       Para viver ao lado de tal faraó, era necessária uma grande esposa real dotada de uma forte personalidade; foi o caso de Tuy50, também chamada Mut-Tuy, para sublinhar, como em Mutnedjemet, o seu papel de ”grande mãe”. Mutnedjemet havia criado um novo Hórus, o seu marido Horemheb; Tuy gerou o ”filho da Luz”, Ramsés II, que reinou setenta e sete anos.

      

       Guardiã do espírito da monarquia faraônica, Tuy viveu o derradeiro apogeu do poder egípcio. Após a morte de Ramsés II, começará uma longa decadência que, apesar de alguns brilhantes sobressaltos, os faraós apenas poderão atrasar.

      

       Tuy sobreviveu pelo menos vinte e dois anos ao seu marido e durante os primeiros vinte anos do reinado do seu filho Ramsés II exerceu uma influência considerável na corte. Uma estátua, conservada no Museu Vaticano, representa-a sob o aspecto de uma mulher colossal e altiva, com cerca de três metros de altura. A estatuária imensa não estava reservada aos homens e conhecemos vários exemplos de gigantas de pedra, como Nefertari em Abu Simbel ou Merit-Amon, filha de Ramsés II, da qual se encontrou recentemente, em Akhmim, uma efígie de oito metros com cerca de quarenta toneladas.

       

       Ramsés II tinha uma verdadeira veneração pela sua mãe. Numerosas estátuas e baixos-relevos lhe são consagrados e celebram a sua memória. É muitas vezes associada ao faraó, a sua esposa e aos seus filhos. Em Tebas, do lado norte do seu ”templo dos milhões de anos”, o Ramesseum, Ramsés II mandou construir para Tuy um pequeno santuário em grés cujos pilares eram coroados por capitéis representando o rosto da deusa Hator; o edifício exaltava a rainha-mãe e a sua função teológica.

      

       Nefertari, a grande esposa real de Ramsés II, estava associada a este templo feminino, no qual havia gravada uma série de cenas particularmente interessantes aos olhos do rei. Ali se via, sentada em cima de um leito, a mãe real Tuy e o deus Amon-Ra, que se tinha apaixonado por esta mulher muito bela, de cintura fina e rosto elegante. Como é jubiloso o meu orvalho, diz o deus, o meu perfume é o da terra do deus, o meu odor o do país do Ponto. Farei do meu filho um faraó. Aqui reconhecemos o tema do nascimento divino do faraó, já utilizado por outros soberanos, como Hatshepsut ou Tutmósis III,

      

       Venerada em todo o país, Tuy foi o perfeito símbolo da rainha-mãe, discreta e ativa, mantendo a tradição das mulheres de Estado ligadas à grandeza do Império. Uma estátua conservada no Museu do Cairo, com 1,50 m de altura, merece ser citada. Foi descoberta na estação de Tanis, no Delta, e deve provir do esplêndido palácio da cidade de Pi-Ramsés, igualmente no Delta, uma das mais belas realizações arquitetônicas do reinado de Ramsés II. Não se trata de uma obra ”original” mas de uma estátua do Médio Império que os escultores de Ramsés, o Grande, ”reutilizaram” e remodelaram; se o volume do corpo, a cabeleira e outros pormenores foram modificados, o rosto da distante rainha da décima segunda dinastia mantém-se inalterado, se bem que a inscrição gravada na estátua indique Tuy.

      

       Não se trata, como muitas vezes se escreveu sem perceber a simbólica egípcia, de uma ”usurpação”, mas de uma incorporação simbólica do passado, que revive tornando-se presente. Tuy é ao mesmo tempo ela própria e todas as rainhas que a precederam. Assim personifica a continuidade da função de grande esposa real através do tempo e das dinastias.

      

       Uma rainha para a paz

       Um dos tempos fortes do longo reinado de Ramsés II foi a guerra contra os hititas. Este povo guerreiro da Anatólia queria apoderar-se dos protetorados egípcios, destruir a linha de defesa edificada pelos faraós do Novo Império e conquistar as Duas Terras de riquezas tão tentadoras. O conflito era inevitável, e o seu ponto culminante foi a batalha de Qadesh, no ano 5 do reinado. O jovem rei quase perdeu a vida, mas, graças à intervenção sobrenatural do seu pai Amon, que respondeu ao seu apelo no meio da rixa e não abandonou o seu filho, Ramsés venceu os hititas e as forças do Mal.

      

       Uma vitória? Foi mais uma espécie de empate. Igualmente poderosos, os exércitos egípcio e hitita mantiveram as suas posições, enquanto os respectivos serviços de espionagem se entregavam a diversas manobras de desestabilização.

      

       Por inverosímil que pareça, uma única solução se impunha: a busca da paz. Nesta perspectiva, a influência de Tuy foi provavelmente decisiva. No ano 21 do reinado do seu filho, ela teve a alegria de assistir à proclamação do tratado de não-beligerância e de assistência mútua entre egípcios e hititas, sob o olhar das divindades de ambos os países. A força da palavra dada era tão grande que o tratado nunca será rompido. Mais de trinta anos de conflitos mais ou menos abertos chegavam ao fim e instaurava-se uma era de paz para o Próximo Oriente.

      

       Tuy escreveu com o seu próprio punho uma carta de felicitações à rainha hitita, que por seu lado tinha militado a favor do fim das hostilidades. Procedeu-se, naturalmente, a uma troca de presentes.

      

       Uma morada eterna no Vale das Rainhas

       É provável que Tuy tenha morrido pouco depois de saborear a ventura desta paz, tão difícil de obter. Com mais de sessenta anos, foi inumada num túmulo do Vale das Rainhas (nº 80), por certo profusamente decorado e contendo um abundante e luxuoso mobiliário fúnebre. Infelizmente, esta morada eterna foi saqueada e devastada. Uma das tampas dos vasos que continham as vísceras da rainha foi milagrosamente preservada: representa o rosto de Tuy com uma pesada peruca. O seu fino sorriso encanta. Uma extraordinária juventude emana desta modesta escultura que, rasgando as sombras da morte, preserva a memória de uma grande rainha do Novo Império.

      

       O VALE DAS RAINHAS

       Uma necrópole esquecida

       Se o Vale dos Reis goza de uma celebridade merecida, o Vale das Rainhas atrai muitos mais visitantes. Situado a 1500 m a sudoeste do Vale dos Reis, no valezinho mais meridional da montanha a ocidente de Tebas, este ”vale” é igualmente uma zona desértica que os árabes denominaram Biban el-Harim, ”a porta das mulheres”.

      

       Champollion visitou alguns túmulos, mas só em 1903 o italiano Ernesto Schiaparelli dirigiu uma primeira escavação global e registrou a existência de 79 túmulos - um conjunto impressionante, infelizmente muito arruinado. Os saques haviam começado no final da época ramessida, quando bandos de ladrões se haviam introduzido em certos túmulos; durante o vigésimo primeiro ano da dinastia até à época saíta, as sepulturas das rainhas foram reutilizadas e, na época romana, amontoaram-se nelas numerosas múmias, muitas vezes mal preparadas.

      

       Quando os cristãos se instalaram nos jazigos, destruíram figuras de rainhas e princesas, consideradas como temíveis tentadoras, ou usaram reboco para as ocultarem. Quanto aos habitantes árabes, queimaram as múmias, o mobiliário fúnebre e a decoração das paredes, o que explica que algumas estejam enegrecidas.

      

       Há alguns anos, os escavadores recomeçaram e tentam ressuscitar o que podem. Uma grande obra-prima sobreviveu: o túmulo de Nefertari, a grande esposa real de Ramsés II, recentemente restaurado.

      

       Sat-Re inaugura o Vale das Rainhas

       Durante a décima oitava dinastia, príncipes, princesas e seus educadores foram inumados no local que ainda não era o Vale das Rainhas, pois tradicionalmente só se enterravam aí personagens da corte, em simples poços funerários.

      

       No início da era ramessida verifica-se uma inovação fundamental: a rainha Sat-Re, ”a filha da Luz divina”, grande esposa real de Ramsés I, mãe de Séti I e avó de Ramsés II, decide mandar escavar a sua morada eterna neste local, que recebeu o nome de ”lugar da regeneração espiritual”.

      

       O túmulo de Sat-Re é pequeno, mas as suas paredes ostentam uma decoração simbólica, que faz dele o equivalente de uma morada eterna do Vale dos Reis. As figuras dos gênios e das divindades são traçadas com elegância, a pintura é apenas esboçada, mas o tom é dado: a rainha encontra criaturas do Além, tendo de conhecer os seus nomes para as dominar. Segue-se um verdadeiro percurso iniciático que a conduz a uma perpétua ressurreição. Graças aos textos do Livro de Sair ao Encontro da Luz, que constituem o seu viático, ela vencerá a morte.

      

       Rainhas e príncipes

       Neste vale foram escavadas sepulturas das rainhas das décima nona e vigésima dinastias; infelizmente, o local sofria de um defeito: uma rocha friável e um calcário pouco propício à arte do relevo. Os artesãos conseguiram contornar a dificuldade cobrindo as paredes com argila, mas a decoração é frágil.

      

       Nota: Em egípcio, ta set neferu. Outras traduções compatíveis: ”lugar da perfeição”, ”lugar da beleza”, ”lugar dos filhos régios”.

      

       Não obstante as irremediáveis destruições infligidas à maior parte dos túmulos, alguns deles, como o da rainha Titi, contêm ainda cenas muito belas: numa delas encontra Hator, a divina protetora do Vale, que lhe oferece a água da regeneração. Em 1984 foi desobstruído o túmulo de Henut-Tauy, ”filha” de Nefertari, visitado por Champollion: a princesa venera as divindades do silêncio, do amor e do oceano primordial, de onde provém a energia da Criação. Na capela da princesa Nebet-Tauy, a ”soberana das Duas Terras”, um relevo merece atenção: mostra-nos a jovem mulher com uma coroa que comporta um sol no meio de duas grandes plumas, estendendo o braço sobre um altar carregado de oferendas; tem na mão o cetro que lhe permite consagrar estas oferendas, purificando-as e consagrando a sua essência imaterial, que se elevará até aos deuses para satisfazer os senhores da terra do silêncio, ou seja, da necrópole. Este ato ritual é habitualmente praticado pelo faraó.

      

       No reinado de Ramsés III voltou-se à tradição da décima oitava dinastia; cinco príncipes, um deles sacerdote de Ptah, receberam a eterna hospitalidade do Vale. Reunidos a norte da estação, os seus túmulos oferecem ainda cores muito vivas, num estado de conservação magnífico. Mas não procuremos nenhuma informação histórica na magnífica decoração pintada-, os príncipes, eternos adolescentes, transpõem as portas do Além guardadas por perigosos demônios e escutam a voz das divindades ao penetrarem nos paraísos.

      

       O Vale das Rainhas não revelou todos os seus segredos. O estudo da documentação prova que falta descobrir vários túmulos, que não sabemos se foram escavados nesta estação: por exemplo, os de Iset-Nofret, esposa de Ramsés II, ou seis sepulturas construídas por ordem de Ramsés VI. E as múmias de certas rainhas devem jazer ainda num esconderijo onde foram colocadas a salvo após os saques do final da época ramessida.

      

       Os tesouros do Vale das Rainhas... Sim, ainda é possível sonhar com eles.

      

       NEFERTARI, A GRANDE ESPOSA REAL DE RAMSÉS II

       O grande amor de Ramsés

       É difícil, ou mesmo impossível, discernir através das inscrições oficiais os sentimentos de um faraó pela sua grande esposa. Mesmo no caso de Aquenaton e de Nefertiti, que parecem oferecer-nos cenas de intimidade familiar, a parte simbólica é importante.

      

       Quanto a Ramsés II e Nefertari, não deparamos com familiaridade nem confidência romântica, mas um casal régio em toda a sua glória e majestade. Porém, como veremos, Ramsés honrou Nefertari de maneira excepcional. Embora tenha vivido muito mais tempo do que ela, e embora outras esposas reais hajam sucedido a Nefertari, foi ela a rainha ligada ao reinado de Ramsés.

      

       Os pais de Nefertari são desconhecidos; era talvez de origem relativamente modesta. O seu nome significa ”a mais bela”, ”a mais perfeita”, e é muitas vezes seguido do epíteto ”amada de Mut”. Duas importantes referências: uma a uma grande antepassada, a rainha Amés-Nefertari, a outra à deusa Mut, esposa de Amon, senhor de Tebas.

      

       Nefertari desposou Ramsés antes de este suceder a seu pai, Séti I; possui os títulos que sublinharam o papel essencial da grande esposa real: ”soberana do duplo país, ”aquela que preside ao Alto e Baixo Egito”, ”a senhora de todas as terras”, ”aquela que satisfaz os deuses”. Os textos especificam que tinha um belo rosto e uma doce voz.

      

       A sua presença numa festa em Luxor é evocada nestes termos: A princesa, rica em louvores, soberana da graça, doce no amor, senhora das Duas Terras, a perfeita, aquela cujas mãos seguram os sistros, aquela que alegra o seu pai Amon, a mais amada, a que usa a coroa, a cantora de belo rosto, aquela cuja palavra dá a plenitude. Tudo quanto pede se realiza, toda a realidade se cumpre em função do seu desejo de conhecimento, todas as suas palavras despertam alegria nos rostos, ouvir a sua voz permite viver.

      

       Portadora de amor e do poder da Criação, a palavra da rainha torna felizes deuses e humanos. A sua formulação adoça o coração de Hórus, o rei, e traz-lhe a paz.

      

       Interpretando as inscrições à letra, Nefertari teria dado quatro filhos e duas filhas a Ramsés; mas, como vimos, a noção de ”filho” e ”filha” corresponde muitas vezes a um título. No seu longo reinado, Ramsés adotou um número considerável de ”filhos régios” e ”filhas régias”, o que levou certos egiptólogos a crer que havia sido um furioso procriador.

      

       O papel político de Nefertari

       No ano 1 do reinado, a grande esposa real foi associada a atos importantes; depois de participar nos ritos de coroação, Nefertari foi apresentada junto de Ramsés, em Abidos, na cerimônia em que o rei nomeou Nebunenef sumo sacerdote de Amon, assegurando-se assim da fidelidade do rico e poderoso clero tebano. Nefertari teve um papel ativo nos grandes rituais do Estado, indispensáveis para perpetuar a prosperidade das Duas Terras, como a festa de Min; aliás, vemos a rainha dar sete voltas em torno do rei, recitando fórmulas mágicas.

      

       Como outras rainhas anteriores, Nefertari exerceu uma forte influência na política externa. Nas longas negociações necessárias para obter a paz com os hititas, correspondeu-se com a sua homóloga, a rainha do Hatti. Trocaram jóias e tecidos e é provável que tenha nascido uma amizade entre as duas soberanas. ”Comigo, tua irmã”, escreve ela, ”tudo bem; com o meu país, tudo bem; comigo, tua irmã, tudo bem”. A egípcia e a hitita desejavam que as divindades concedessem a paz e a fraternidade aos dois povos, um desejo que foi coroado de sucesso.

      

       Devido à origem da sua dinastia, Ramsés II tinha um gosto pronunciado pelas proximidades do Delta, que se havia tornado numa zona estratégica nas relações com a Ásia. O rei criou no Delta uma nova capital, Pi-Ramsés, ”a cidade de Ramsés”, cidade de turquesa onde mandou edificar templos e palácios. Aí foram veneradas divindades egípcias, nomeadamente Amon, mas também asiáticas. Esta coabitação manifestava bem a vontade de paz à qual Nefertari não devia ser alheia. Uma carta redigida por um escriba enaltece a fabulosa beleza desta capital, onde Nefertari presidiu a inúmeras cerimônias. Foi o próprio Ra, afirma o escriba, que criou este lugar. Em volta da cidade, os campos são de uma riqueza deslumbrante. A capital é abastecida diariamente com excelentes alimentos, os canais estão cheios de peixes e os lagos cobertos de aves. Nos sótãos, abundantes reservas de cevada e espelta. Flores maravilhosas tornam risonhos os jardins. Nada falta sobre as mesas: figos, uvas, maçãs, romãs, azeitonas, cebolas, alhos-porros e vinho tinto de inigualável sabor.

      

       O palácio onde o régio casal viveu era suntuoso. No centro, uma sala com colunas coloridas, uma sala de audiências e uma sala do trono. A decoração debruçava-se sobre cenas campestres, sobre a fauna e a flora. Um grande conforto reinava nos aposentos privados dos soberanos, nomeadamente providos de uma casa de banho. À tardinha, era agradável sair ao terraço e assistir ao pôr-do-sol, saboreando a fresca brisa do Norte. Em torno do palácio, jardins e lagos ofereciam calma e doçura. Acácias, palmeiras, sicômoros e romãzeiras alegravam a vista.

      

       Os dois templos de Abu Simbel, ou a sublimação do casal régio

       Foi em 1813 que o suíço Burckhardt descobriu Abu Simbel, uma extraordinária estação no centro da Núbia. Aí, a montante da segunda catarata do Nilo, dois templos haviam sido escavados na falésia, na margem do rio, cerca de 1300 km a sul de Pi-Ramsés, a capital de Ramsés II. A deusa Hator reinava neste lugar mágico cuja escolha não se devia ao acaso; sob a proteção da soberana do amor celeste, o faraó decidira exaltar o casal régio encarnando-o de maneira monumental nos dois templos próximos um do outro.

      

       Estes templos foram inaugurados por Ramsés e Nefertari no Inverno do ano 24 do reinado. Quem viu Abu Simbel antes da transladação dos templos, exigida pela desastrosa criação do Lago Nasser e a destruição da Núbia, partilhou da intensa emoção vivida pelo régio casal: o Sol tingia de dourado o grés núbio; os colossos sentados de Ramsés, de fino sorriso, contemplavam a eternidade; os colossos do rei e da rainha, de pé e em marcha, caminham para sempre em sendas luminosas.

       

       Ramsés e Nefertari penetraram no grande templo, consagrado à regeneração perpétua do ka do faraó, avançaram na alameda bordejada de pilares representando o rei Osíris, transpuseram as portas que davam acesso às salas secretas e foram até ao fundo do santuário onde reinavam quatro divindades: Ra, Amon, Ptah e o ka de Ramsés.

      

       Nefertari está presente neste templo, onde atua na qualidade de grande maga, insuflando ao rei a energia necessária para vencer as trevas; mas é honrada de maneira monumental no templo vizinho. De acordo com as inscrições hieroglíficas, Ramsés II mandou-o construir como obra de eternidade para a grande esposa real Nefertari, a amada de Mut para todo o sempre, Nefertari, para cujo esplendor o Sol brilha.

      

       Este ”pequeno templo” é uma maravilha. A estatura da rainha é igual à do rei; vemo-la tocar sistro para Hator, oferecer lótus e papiros a Mut e Hator, incensar as deusas, fazer oferendas a Ísis, mãe do deus, dama dos céus e soberana das divindades, prestar homenagem a Ta-Uret, ”a grande”, deusa-hipopótamo que torna o mundo fecundo e gera as forças da Criação. Tal como Hatshepsut no seu santuário de Deir el-Bahari encontrava Hator sob a forma da vaca celeste, também Nefertari, no fundo da gruta escavada numa longínqua montanha da Núbia, é representada explorando os papiros para descobrir esta vaca, símbolo do cosmos.

      

       A cena da coroação de Nefertari é extraordinária: a rainha, na suprema elegância do seu corpo fino e alongado, tem na mão direita a ”chave da vida” e na esquerda um cetro floral. A sua coroa é composta por um sol no meio de dois cornos e duas altas plumas, que fazem dela a encarnação de todas as deusas criadoras. Na fronte, o uraeus, a cobra fêmea que queima os inimigos e dissipa as forças negativas. Ladeando Nefertari, duas deusas, Ísis e Hator, que a magnetizam depois de lhe terem colocado a coroa.

      

       Ramsés é o esposo do Egito, sendo Nefertari a mãe; no naos do seu templo, ela identifica-se com Hator e Ísis, cria as cheias e dá vida a todo o país.

      

       A morada eterna de Nefertari

       Quando Ramsés II celebrou a sua primeira festa sed destinada a regenerar o poder real, já muito desgastado ao fim de trinta anos de reinado, Nefertari não figurou entre as personalidades presentes nesta importante cerimônia que durava vários dias e à qual acorriam todas as divindades do Alto e Baixo Egito para oferecer ao monarca um novo dinamismo.

      

       A conclusão impõe-se: Nefertari tinha franqueado as portas do Além, mas nenhum documento especifica a data da sua morte. Segundo uma hipótese romanesca, a rainha teria entregado a alma em Abu Simbel, diante do templo que a imortalizava. Exausta, teria confiado à sua filha mais velha o dever de inaugurar os santuários com Ramsés.

      

       Outro monumento canta para sempre a glória de Nefertari: a sua morada eterna no Vale das Rainhas. Descoberta em 1904 por Schiaparelli, é uma grande obra-prima da arte egípcia e foi recentemente restaurada graças a fundos privados provenientes da Fundação Getty de Los Angeles. Pintores e desenhadores do Antigo Egito aperfeiçoaram a sua arte para descreverem o caminho iniciático da grande esposa real no outro mundo.

      

       Mas permanecem enigmas. Por que razão o túmulo de Nefertari foi o único do Vale das Rainhas que escapou à destruição e às degradações? O mobiliário funerário foi roubado ou simplesmente mudado? Não é impossível que os próprios egípcios tenham fechado cuidadosamente o túmulo depois da transferência da múmia de Nefertari para um esconderijo que ainda não teria sido encontrado.

      

       Esta morada eterna é vasta e inclui várias salas que conduzem à ”sala do ouro”, onde o corpo de Luz da rainha havia sido animado pelos ritos a fim de servir de suporte aos elementos espirituais do ser, como o ba, a alma-pássaro. Foi aqui, neste ”lugar de Maat”, que o coração da rainha conheceu a alegria da ressurreição e se juntou à grande Enéada, a confraria das nove divindades que constantemente criam e organizam o universo.

      

       Nefertari joga senet, o antepassado das damas e do xadrez. O seu adversário é o invisível e a rainha tem de ganhar esta partida. Oferece a Ptah estofas tecidas por ela e profere as palavras certas para obter de Tot a paleta de escriba e o material de escrita. Sou escriba, pode afirmar, faço Maat, trago Maat. Estas cenas ilustram verdadeiras provas iniciáticas que manifestam a capacidade de conhecimento da rainha. Ela pode também encontrar as divindades, deixar-se guiar por Hator, enfrentar os guardiões das portas e ver aparecer a ave benu, a fênix egípcia.

      

       É de grande importância o fato de Nefertari ser iniciada ao mesmo tempo nos mistérios de Osíris, senhor do mundo subterrâneo e do reino dos mortos, e nos de Ra, Luz divina e senhor dos céus. Dando a mão à rainha Ísis, esposa de Osíris, oferece-lhe a vida eterna e permite-lhe tomar assento no trono do deus morto e ressuscitado. Purificada, Nefertari participa também das mutações solares, é guiada no caminho dos dois horizontes, aparece sob a forma de seu pai Ra e torna-se numa estrela imperecível.

      

       A morada eterna de Nefertari é um verdadeiro livro da sabedoria, reconstituindo as etapas de uma iniciação feminina. Muito para além da sua existência terrestre, a grande esposa real de Ramsés II lega-nos assim um inestimável testemunho.

      

       A ESPOSA HITITA DE RAMSÉS II

       Um casamento para a paz

       O tratado de paz com os hititas pusera fim a um longo período de conflitos armados, mas era necessário normalizar as relações e torná-las mais calorosas. Trocaram-se cartas e presentes, as famílias reais quiseram saber das respectivas saúdes e foi necessário chegar ao grande acordo estabelecido no Novo Império, ou seja, a um casamento entre uma princesa estrangeira e o faraó.

      

       Tutmósis III tinha ”desposado” três estrangeiras, certamente filhas de chefes sírios, a fim de acalmar os ímpetos desta região belicosa. Para estabelecer um importante tratado de paz com o reino do Mitanni, Tutmósis IV havia celebrado um casamento diplomático com a filha do rei deste Estado asiático. No ano 10 do reinado de Amenotep III, a filha do rei do Naharina viera ao Egito acompanhada de uma importante escolta a fim de unir o seu destino ao do faraó, que organizou outros ”casamentos” com estrangeiras e anunciou estes felizes eventos com emissões de escaravelhos.

      

       Chegadas ao Egito, estas mulheres receberam nomes egípcios, de modo que lhes perdemos o rasto. Tornaram-se certamente damas da corte e aí passaram anos felizes, se é que não tinham muitas saudades da sua terra. Note-se que esta diplomacia dos casamentos se efetuou apenas num sentido, do estrangeiro para o Egito; o rei da Babilônia, que tinha ”casado” a sua filha com Amenotep III e pedia ao faraó que lhe enviasse uma princesa egípcia, recebeu deste uma resposta categórica: Jamais, desde tempos remotos, a filha de um faraó foi dada a qualquer um.

      

       Inspirado nestes exemplos famosos, Ramsés II consolidou a paz no Próximo Oriente ”casando”, ao que parece, com uma babilônia, uma síria e duas hititas. Embora o fato tendesse a banalizar-se, Ramsés, o Grande, deu grande importância ao seu casamento no ano 34, por certo atendendo à personalidade da mulher que ia deixar o rude clima do planalto da Anatólia para vir viver no Egito: a filha de Hattusil, ”o grande chefe” hitita, o principal adversário do faraó.

      

       O tratado de paz do ano 21 havia sido corretamente respeitado dos dois lados, mas os dois monarcas convieram que havia que concretizá-lo de maneira definitiva e manifesta.

      

       Do lado egípcio, descreveu-se uma situação que não parecia muito favorável aos hititas: o poder de Ramsés não havia aterrorizado todos os chefes dos países estrangeiros, sobretudo o do Hatti, país desolado e arruinado, porque o temível deus Set tinha lançado os seus raios contra ele? Como aplacar a sua cólera senão oferecendo a sua filha mais velha ao faraó? Ela partiria, pois, para o Egito com numerosos presentes: ouro, cavalos e dezenas de milhares de bovinos, cabras e carneiros!

      

       Quem se poderia opor a Ramsés, muralha de pedra protegendo o seu país, sábio proferindo palavras acertadas, homem corajoso e vigilante que dava a Luz ao seu povo e o cobria de alimentos? O seu corpo era de ouro, os seus ossos de prata, o faraó era pai e mãe do país inteiro, e conhecia todos os segredos dos céus e da Terra.

      

       O grande chefe hitita devia, pois, inclinar-se diante do faraó do Egito: Vim a ti para adorar a tua perfeição, pois tu unes os países estrangeiros, tu, o filho de Set! Despojei-me de todos os meus bens, a minha filha está diante de ti para tos apresentar. Tudo quanto ordenares é perfeito. Sou-te submisso, como todo o meu país.

      

       Ainda que a realidade fosse menos favorável ao faraó, ao cabo de uma longa negociação o rei hitita aceitou enviar a sua filha a Ramsés em sinal de paz.

      

       A viagem não se anunciava fácil; era Inverno, havia que atravessar zonas montanhosas e desfiladeiros e seguir pistas caóticas antes de chegar à fronteira. Além disso, o cortejo hitita deparou-se com mau tempo, o que perturbou o avanço. É Ramsés que, com uma oferenda a Set, restabelece as condições climatéricas normais.

      

       O faraó mandou um corpo do exército ao encontro da sua futura esposa. Quando egípcios e hititas se juntaram, caíram nos braços uns dos outros, comendo e bebendo juntos e unindo-se como irmãos que evitam disputas. Os habitantes das terras atravessadas por este cortejo não queriam acreditar no que viam: que milagre contemplar soldados hititas e egípcios misturados e felizes! Um dignitário exclamou: Como é grande o que hoje constatamos! O Hatti pertence ao faraó, como o Egito. O próprio céu está colocado sob o seu selo.

      

       Depois de atravessar Canaã e percorrer a costa do Sinai, a princesa hitita chegou por fim a Pi-Ramsés, a magnífica capital de Ramsés II. O faraó recebeu-a em pessoa, e amou de imediato o seu belo rosto. Deu-lhe o nome de Mat-Hor-Neferu-Ra, ”Aquela que vê Hórus e a beleza de Ra”, e concedeu-lhe uma honra extraordinária: tornar-se na grande esposa real. A paz entre o Egito e o Hatti era assim selada de maneira manifesta.

      

       Esta formidável notícia foi proclamada por textos hieroglíficos, alguns dos quais chegaram até nós: os de Amara ocidental e de Aksha na Núbia, o de Elefantina, o de Carnaque (na face sul do cais leste do nono pilar) e sobretudo a famosa ”estela do casamento”, encastoada na parede externa do grande templo de Abu Simbel. Aí vemos Set e Ptah inspirar Ramsés, venerado pelo rei hitita e pela sua filha.

      

       A princesa de Bakhtan

       A estela C 284 do Louvre, descoberta em Carnaque, constitui um curioso documento. Redigido na vigésima primeira ou na vigésima

      

       - As interpretações diferem acerca deste tempo perturbado. Escreveu-se muitas vezes que Ramsés fizera parar a chuva e a neve, mas notou-se que a seca e o calor eram, na realidade, condições climáticas anormais para um Inverno anatólio. É provável que Ramsés tenha feito chover para restabelecer a harmonia.

      

       A segunda dinastia, é um eco distante do casamento da princesa hitita com Ramsés II. Nele são evocados os dezessete meses de viagem de uma bela princesa, vinda de um país muito longínquo, Bakhtan, para descobrir o Egito. O Hatti era muito mais próximo, mas o narrador oriental exagerou.

      

       Uma grave preocupação domina a princesa: a sua irmã Bentresh está doente e os médicos de Bakhtan não conseguem curá-la. A ciência e a magia dos egípcios deveriam consegui-lo. Um médico tebano, enviado em consulta, formula um inquietante diagnóstico: Bentresh está possessa do demônio. Só um deus poderia curá-la.

      

       No entanto, o Egito envia a Bakhtan a estátua do deus-curandeiro, Qonsu, que fixa o destino e expulsa os espíritos errantes: Bentresh recupera a saúde. Mas o príncipe de Bakhtan tem uma atitude incorreta, recusando restituir aos egípcios a preciosa estátua.

      

       Um sonho fá-lo desistir desta condenável decisão: o deus aparece-lhe e ordena-lhe que devolva a sua estátua ao Egito. Quanto à princesa de Bakhtan, imagem poética da filha do rei hitita, deixar-se-á cativar pela magia da terra dos faraós.

      

       TAUSERT, A ÚLTIMA RAINHA FARAÓ

       Época conturbada e complexa

       Cerca de 1212 a.C., Meremptah, já idoso, sucedeu a Ramsés II. Reinou dez anos e conseguiu repelir sérias tentativas de invasão. Após a sua morte, o seu sucessor ousou tomar, pela segunda e última vez na História do Egito, o nome de Séti. Por outras palavras, Séti II definiu-se como a encarnação do deus que tem o maior poder, o poder da tormenta, do relâmpago, do céu enfurecido, e que, na proa do barco solar, é igualmente capaz de enfrentar o dragão que impede o seu avanço. Mal dominado, o temível poder de Set gera desordem e confusão. Segundo uma magra e hermética documentação, parece que Séti II teve grandes dificuldades em assumir o papel de faraó.

      

       Teria ele reinado na companhia de um grande dignitário, Amenmosé? Teria este tentado tomar o poder quando Séti II morreu em 1196 a.C., sendo o sucessor designado o jovem Siptah? Ninguém pode descrever os fatos com precisão. E não é o túmulo de Séti II no Vale dos Reis que pode preencher este vazio porque, como as outras moradas eternas, é desprovido de referências históricas.

      

       Apresentou-se, por certo, um caso clássico: como Siptah era muito inexperiente para reinar, o poder foi confiado à regente, Tausert, provavelmente a grande esposa real de Séti II, mas que não era por certo a mãe do novo faraó. ”Rica em favores, doce soberana, muito amada, soberana das Duas Terras”, ela, que não era de sangue real, governou o Egito como outras mulheres o haviam feito antes.

      

       O ”percurso” de Siptah é muito obscuro: por que terá mudado de nome para Meremptah-Siptah, afirmando assim a sua fidelidade ao deus Ptah e retomando o nome do rei Meremptah, sucessor de Ramsés II? De acordo com o exame da sua múmia, o pobre Siptah tinha a perna esquerda atrofiada. Devia ter pouca saúde e morreu depois de um curto reinado, mais teórico do que real.

      

       De regente, Tausert tornou-se então faraó, segundo o mesmo processo que Hatshepsut; o seu reinado, o último da décima nona dinastia, durou oito anos (1196-1188 a.C.).

      

       Os monumentos e os textos são escassos, o que dificulta a tarefa do historiador. Devemos depreender que houve intrigas palacianas e lutas intestinas, projetando deste modo os nossos costumes políticos no passado faraônico? Não convém deduzir automaticamente horríveis maquinações deste silêncio documental. Seja como for, a instituição faraônica não foi posta em causa, e Tausert foi reconhecida como faraó.

      

       O chanceler Bay, amigo ou inimigo?

       Um personagem chamado Bay, que certos eruditos supõem ter exercido uma forte influência na corte de Siptah52, pretendeu ter contribuído fortemente para manter o poder régio. Mas terá sido aliado ou inimigo da regente (e depois faraó) Tausert? As opiniões divergem.

      

       Escriba real, escanção, chefe do Tesouro, foi certamente considerado um excelente conselheiro, pois gozou de um privilégio raras vezes concedido: ser exumado no Vale dos Reis. O seu túmulo é o nº 13 e, como todas as outras sepulturas não-reais, não é decorado.

      

       Longe de ter sido um intriguista e um manipulador, Bay foi tratado como um fiel servidor do faraó.

      

       É talvez o autor de uma prece ao deus Amon, na qual exprime o desejo de rever Tebas, a sua querida cidade, e as belas tebanas às quais dedicava uma terna afeição, pois longe delas sentia-se triste e saudoso.

      

       A Faraó Tausert

      

       Tausert recebeu vários nomes, como os faraós que a precederam: era a amada de Maat, aquela que possui a beleza na qualidade de rei, como Aton, a fundadora do Egito, aquela que submete os países estrangeiros, a soberana da terra amada, a amada de Amon, a poderosa, a amada de Mut, a eleita de Mut.

      

       O ”programa” é bastante completo, pois faz referência a Aton, o princípio criador, a Amon, senhor de Tebas, a Mut, a grande mãe, e antes de mais a Maat, a Ordem universal. A nova faraó afirma a sua plena e total soberania: funda o Egito e dirige-o. O seu poder é proclamado, os países estrangeiros curvam-se diante dela, e o seu nome mais corrente, Tausert, significa precisamente ”a poderosa”, com a idéia implícita de que a rainha faraó é rica em força e valentia. A noção de ”beleza” (an) é uma alusão ao físico de Tausert ou, mais provavelmente, à sua capacidade para pôr em prática ”de maneira bela” a regra de Maat?

      

       Sob a forma de Taoser, o nome da última rainha faraó não é desconhecido dos amantes de literatura romântica: é o mesmo da heroína do Roman de Ia momie de Théophile Gautier; inútil será dizer que o autor, que foi buscar este nome a Champollion, esteve muito longe das realidades do Antigo Egito.

      

       Do reinado de Tausert nada sabemos. Partilha com o faraó Setnaqt um grande túmulo do Vale dos Reis (nº 14), no qual se encontram sublimes representações de deusas. Uma ínfima parte dos seus tesouros foi preservada, porque havia sido dissimulada num esconderijo do Vale; aí foram encontrados brincos e um colar em ouro, e uma coroa formada por um grosso aro em ouro perfurado por dezesseis orifícios que serviam para fixar alternadamente flores em ouro amarelo e vermelho. De 17 centímetros de diâmetro e 104 g de peso’, este diadema seria a ”coroa de justificação” que a rainha faraó, reconhecida como ”justa voz” pelo tribunal do outro mundo, usaria na eternidade?

      

       O nome de Tausert encontra-se presente em monumentos do Delta, do Sinai e da Núbia; tinha iniciado a construção do seu ”templo dos milhões de anos” a sul do Ramesseum. Certamente que são fracos indícios, mas permitem pensar que o reinado de Tausert foi um momento de paz e de relativa prosperidade.

      

       Existiam para cada templo vários ”depósitos de fundação” enterrados no solo e contendo objectos em miniatura que garantiam o crescimento e a prosperidade do edifício. No depósito de fundação do templo de Tausert encontravam-se blocos de grés e pequenos tijolos de faiança azul com o seu nome, amuletos florais em forma de coxa de touro (símbolo de poder) e de cabeça de touro, peixes, utensílios em cobre, etc. Em Bubastis, no Delta, foi descoberto um tesouro composto por recipientes em ouro e prata com o nome de Tausert.

      

       ARSINOÉ II, RAINHA DIVINIZADA

       Em 324 a.C., os persas invadiram o Egito pela segunda vez, acabando definitivamente com a independência política das Duas Terras. Será necessário esperar por 332 a.C. e a conquista de Alexandre Magno para ver os persas deixarem o Egito, que será governado por soberanos gregos, os Ptolomeus, que residem em Alexandria, concebida pelo espírito grego e aberta ao mundo mediterrânico. A espiritualidade faraônica sobrevive, sobretudo no Sul.

      

       Para serem admitidos como faraós, os Ptolomeus fazem-se coroar segundo os ritos. Uma rainha, Arsinoé II, esposa de Ptolomeu II, o Filadelfo (285-246 a.C.), conheceu um destino notável.

       

       Ptolomeu II havia acedido ao poder aos vinte e cinco anos. Criado em Alexandria por mulheres que o enchiam de mimo, parece que o jovem rei tinha um grande encanto, mas que se preocupava mais com o seu bem-estar do que com o do país. Nos documentos oficiais, porém, clamava alto e bom som que as benesses abundavam, que os seus sótãos chegavam ao céu, que os seus soldados eram mais numerosos do que a areia da praia, que todos os santuários estavam em festa e que fazia oferendas aos deuses. Retomava assim os velhos textos da época em que a riqueza do Egito era bem real.

      

       Achando Alexandria fria e aborrecida, Ptolomeu II tentou dar um certo brilho ao seu reinado. Estava talvez impressionado com o caráter grandioso da arquitetura egípcia e com o esplendor do passado das Duas Terras.

      

       A sua irmã Arsinoé, de trinta e sete anos, chega ao Egito em 278 a.C. Bela e voluntariosa, é uma mulher temível. Havia quem pensasse que tinha ordenado assassinatos e fomentara conluios para obter o poder da maneira menos recomendável. A sua viagem era, de fato, uma fuga para escapar aos inimigos.

      

       O Egito agradou-lhe. Arsinoé cedo concebeu um plano para tomar as rédeas do Estado: tinha de desposar o seu irmão, Ptolomeu II, que a admirava tanto como a temia. Havia um obstáculo de somenos: o rei já era casado, e a sua esposa também se chamava Arsinoé. Arsinoé II conseguiu desacreditar a sua rival e exilá-la para a cidade de Coptos, onde, sem ligações com a corte, morreu de solidão e tristeza. O caminho estava livre e Arsinoé torna-se rainha do Egito.

      

       Mandou inscrever o seu nome em rolos, como um faraó, e interveio em todas as circunstâncias como uma co-regente. Fraco de caráter e fascinado por esta mulher de personalidade forte, Ptolomeu II tudo aceitou. Mas colocava-se um problema delicado: este casamento era um incesto. Arsinoé II descobriu um exemplo mitológico: não havia o próprio Zeus desposado a sua irmã Hera? A corte aprovou e calou. Mas dois dignitários continuaram a protestar: o primeiro foi exilado e o segundo assassinado.

      

       O casamento manteve-se talvez simbólico; de fato, há quem pense que a união nunca se consumou. Arsinoé II acabou por governar sozinha, abandonando o irmão às suas amantes e à sua vida de luxo e ociosidade. Comportou-se durante oito anos como uma verdadeira faraó; por isso, numerosas cidades tomaram o seu nome. Uma região inteira, o Faium, tornou-se ”o nome de Arsinoé”.

       Dizia-se que era mais agradável ver Arsinoé do que contemplar o Sol e a Lua. O seu corpo era magnífico e maravilhosamente perfumado. Todos a temiam, mas dirigiam-lhe louvores pelas suas benfeitorias.

      

       Arsinoé organizou impressionantes procissões em que o rei e a rainha, sentados em tronos de ouro, atravessaram Alexandria, acompanhados de numerosos sacerdotes que transportavam os livros de

      

       Nota: Arsinoé não é o único exemplo de mulher divinizada. Na época tardia, a dama Udjarenés foi considerada santa e a ela se dirigiram preces como a uma divindade no sétimo nomo do Alto Egito (vide Revue d’égyptologie 46, 55 ss.). As mulheres, como os homens, podiam atingir o estado de ”santidade” e a noção de ”santidade feminina” provém certamente do Egito.

      

       Tot e as estátuas das divindades egípcias. Atrás da carruagem real vinham astrólogos, adivinhos e escribas.

      

       A rainha era também uma mulher de Estado. Indo contra a vontade do seu irmão, impôs um programa econômico menos dispendioso do que o imaginado por Ptolomeu. Além disto, Arsinoé quis fazer de Alexandria a capital econômica do Oriente, fazendo transitar por ela um máximo de riquezas. Pensou até em alargar a zona de influência do Egito e dotar o país de um exército bem equipado. Escavaram-se poços na estrada que permitiam encaminhar as mercadorias do Mar Vermelho para o Nilo, pensou-se na conquista da Etiópia e procurou-se obter os elefantes indispensáveis para os futuros combates.

      

       Sob a influência de Arsinoé, o descuidado Ptolomeu mudou de mentalidade. E se a rainha tivesse razão? E se fosse possível restituir ao Egito o estatuto de grande potência? Havia que abrir aquela via de comunicação (o futuro Canal do Suez), tentar conquistar a Arábia, a Síria, a Ásia Menor, a Grécia, a Macedônia.

      

       Ao tornar-se chefe militar, Ptolomeu passou à ação. A costa sudoeste da Ásia Menor foi submetida à sua autoridade. Mas as campanhas militares custavam caro, tanto mais que a corte de Alexandria, povoada de parasitas e minada por uma administração tentacular e ineficaz, vivia à larga. Arsinoé tentou reformá-la e conter os gastos, desenvolvendo ao mesmo tempo a produção agrícola, nomeadamente na bela província de Faium. Não faltavam riquezas ao país: minas de ouro, searas, vinhas, pesca, fábricas de tecidos e perfumes, manufaturas de papiros... Uma economia sanada consentiria todas as esperanças.

      

       Mas a saúde de Arsinoé declinou e, após uns meses de sofrimento, morreu em 270 a.C. A dor do seu irmão foi imensa, pois este estranho casal acabara por agir em harmonia. Considerada intransigente e ambiciosa, esta mulher conseguira dar ao rei um ideal e o sentido das responsabilidades, fazendo-o conhecer um extraordinário destino póstumo, pelo que a divinizou.

      

       No próprio ano da sua morte, Arsinoé entrou no colégio das divindades da cidade de Mendes, no Delta. Qualificada como ”deusa entre os deuses vivos sobre a Terra”, foi venerada nos principais templos do país, nomeadamente em Saís, em Mênfis, no Faium e mesmo em Carnaque. Um templo especial foi erigido em sua memória em Alexandria; outro foi construído perto da cidade de Canopo, no extremo do Cabo Zefírio. Arsinoé aí reinava na qualidade de deusa que realizava os desejos dos marinheiros, concedendo uma boa viagem aos navios e aplacando o mar furioso. Os poetas compuseram obras em sua glória, o Estado mandou cunhar moedas que celebravam o acesso de Arsinoé ao mundo divino e os escultores criaram numerosas estátuas da nova deusa.

      

       Tendo morrido no primeiro mês do Verão, Arsinoé usufruíra da magia dos antigos ritos egípcios pois nela praticaram ”a abertura da boca” antes de instaurar a sua festa em Mendes. Depois, nos lugares santos, ergueram-se as estátuas de Arsinoé divinizada, algumas em ouro e pedrarias. A Casa da Vida foi encarregada de compor hinos a Arsinoé, diariamente cantados por sacerdotisas que comeriam um pão especial consagrado à rainha. Em Filas, foi identificada com a grande Ísis.

      

       Os historiadores não são indulgentes com Arsinoé, mas não mudou ela completamente em contato com a terra do Egito, a ponto de querer fazer reviver a grandeza do reino dos faraós?

      

       CLEÓPATRA OU O DERRADEIRO SONHO FARAÔNICO

       O Egito do crepúsculo

       Os sábios do Egito tiveram consciência da sua morte programada, que se prolongou durante séculos. É certo que a instituição faraônica havia triunfado sobre muitos invasores, mas o mundo acabara por resvalar para um sistema político e econômico que não tinha em conta nem Maat nem os valores antigos. E nunca mais as Duas Terras conheceriam a liberdade e a independência.

      

       Urgia, pois, porque ainda era possível, escrever e transmitir. No Sul, longe da grega Alexandria, as comunidades de iniciados gravaram milhares de hieróglifos nas paredes dos templos de Kom Ombo, Dendera, Edfu e Filas, grandes livros que revelavam mistérios e rituais.

      

       Havia que renunciar definitivamente à grandeza passada? Uma mulher recusou submeter-se à História. Nascida em 69 a.C., Cleópatra, sétima princesa com este nome, que significa ”a glória de seu pai”, perseguiu o sonho impossível de um império ressuscitado centrado na velha terra dos faraós.

      

       Terá sido por acaso que o Egito, favorável às mulheres ao longo das dinastias faraônicas, foi exaltado uma última vez por uma rainha que tentou desempenhar o papel de faraó?

      

       Quem era Cleópatra?

       Popularizada no cinema e na banda desenhada, Cleópatra é célebre pela sua beleza... que por certo não passa de uma lenda. A confiar nos vagos retratos da época, não devia possuir um aspecto muito notável, mas era uma intelectual e falava várias línguas. Culta, ambiciosa, não lhe faltava encanto e possuía uma voz cativante: era uma delícia ouvi-la e a sua língua era como uma lira de várias cordas.

      

       À sua volta, um mundo decadente e uma única grande potência: Roma. É preciso avançar por etapas e começar por conquistar Alexandria, cidade mais grega do que egípcia, que conserva a memória de Alexandre Magno, vencedor dos persas e libertador do Egito. A dinastia dos Ptolomeus está agonizante, os homens da família não possuem inteligência, vigor ou projetos políticos. Comprazem-se com os pequenos deleites de uma corte alexandrina que se contenta com o seu medíocre poder.

      

       Acusada por Roma de utilizar processos mágicos para encantar os homens, Cleópatra tem outros horizontes. Sonha com um Egito poderoso e independente, como nos tempos antigos.

      

       Mas Cleópatra não é popular, desconfiam dela. Quando o seu pai morre em 51 a.C., o trono é partilhado entre ela e o seu irmão Ptolomeu XIII, que se torna seu esposo teórico. A jovem não suporta esta situação; esforçando-se por acabar com as intrigas contra si, aspira a reinar sozinha. Mas o seu irmão triunfa e, em 48 a.C., Cleópatra é afastada. Para muitos, a sua carreira política havia terminado.

      

       César seduzido pelo Egito e por Cleópatra

       Por muito romano, militar e racionalista que fosse, César, o Conquistador, não resistiu aos encantos conjugados de Alexandria e de uma jovem de vinte anos, viva, erudita e apaixonada. É certo que foi afastada do poder e que o povo não a estimava. Mas César decide a seu favor. Os rivais de Cleópatra são eliminados de forma brutal e, finalmente, ela toma o poder sozinha. Sozinha... Não será uma ilusão? Não pode passar sem o apoio de César, apoio que não lhe falta, pois é mãe do seu filho Cesarião.

      

       Em 46 a.C., Cleópatra vai a Roma e instala-se nos ”jardins de César”, o atual Palácio Farnese. Espera muito desta estada, decidida a ser admitida pelos romanos como uma grande rainha, digna de respeito. De modo que se rodeia de filósofos, poetas e artistas, criando uma corte brilhante e afamada. Mas subestimou a desconfiança dos intelectuais romanos contra uma oriental. A sua zanga com o hipócrita Cícero prejudica-a. Em breve correm os mais perniciosos rumores acerca da egípcia, que comete o erro de mandar colocar no templo de Vênus uma estátua de ouro à sua imagem.

      

       O Senado receia que César ”se orientalize” mais e mais, acabando por atribuir à estrangeira um lugar demasiado importante. A 15 de Março de 44 a.C., César é assassinado. Cleópatra vê-se obrigada a abandonar Roma e regressar ao Egito.

      

       Dissipam-se muitas ilusões. Felizmente, Ptolomeu XIV morreu - assassinado por Cleópatra, dizem as más-línguas - e o novo co-regente da rainha, Ptolomeu XV, tem apenas três anos. Cleópatra continua, pois, a governar. Mas que atitude adotar face ao triunvirato composto por Lépido, Octávio e Marco António, designado como o novo senhor do Oriente?

      

       Cleópatra, a nova Ísis

       Aos vinte e sete anos, Cleópatra sabe que pode contar com a sua cultura e o seu encanto. Mas estas armas não serão insuficientes? A rainha do Egito não é uma mulher vulgar, é a encarnação de uma deusa. Esta idéia dá-lhe a força necessária para perseguir o seu sonho.

      

       Mas a jogada não parece ser fácil, uma vez que o empedernido Marco António não se mostra particularmente favorável. Vencedor da batalha de Filipes, está descontente com a atitude da egípcia, que não o apoiou como ele desejava. E intima-a a vir a Tarso explicar-se.

      

       Uma deusa vem ao seu encontro. Sobe o rio Cnido, encontra-se com Plutarco num navio cuja popa era de ouro, as velas de púrpura, os remos de prata. O movimento dos remos seguia a cadência do som das flautas, associado ao das liras e das charamelas. Ela própria, adornada qual Afrodite, estava estendida sob um pavilhão bordado a ouro, rodeada por crianças semelhantes, aos amores dos quadros, que a abanavam. As suas aias, todas igualmente belas, vestidas de Nereides e de Graças, iam umas ao leme, outras junto dos cordames. O odor dos perfumes queimados no navio espalhava-se pelas margens do rio, onde a multidão se juntara.

      

       Cleópatra aparece como a encarnação viva de Ísis, a mãe universal, a esposa perfeita, a figura divina na qual se confundiam todas as deusas do mundo antigo. Pois não se fazia chamar ”a nova Ísis”? Cleópatra tenta persuadir António de que ele se tornará num novo Osíris e de que juntos formarão um extraordinário par, capaz de recriar uma idade áurea.

      

       Cleópatra, Ísis-Hator; António, Osíris-Dionísios! Ela, terra do Egito fecundada pelo Nilo; ele, poder animador e vitorioso. Um casal régio, no antigo estilo egípcio, está pronto a ascender ao trono das Duas Terras para ressuscitar o seu esplendor passado. Cleópatra pensa cobrir-se dos títulos tradicionais caídos em desuso: ”princesa hereditária, soberana do Norte e do Sul, regente da terra, Hórus feminino”.

      

       António deixa-se enfeitiçar. Esquece a vida militar, a moral romana, a própria Roma. É seduzido pelo luxo da corte de Cleópatra, pelos faustos que a mulher amada revela à sua volta. Nas procissões rituais que animam as ruas da cidade, António, coroado de hera, segue numa carruagem e desempenha o papel de um deus.

      

       Cleópatra trabalha entretanto, reformando o sistema monetário e saneando o comércio; acaba com os monopólios e faz ressurgir o Egito na cena internacional. António oferece-lhe o que lhe faltava para avançar: o poder militar. Mas um temível inimigo se ergue no seu caminho: o romano Octávio.

      

       António e Octávio negociam e partilham o mundo. O Ocidente para Octávio, o Oriente para António. Para selar este pato, António deve desposar, em 40 a.C., Octávia, irmã de Octávio. Esta consegue subtrair o seu marido à influência de Cleópatra durante algum tempo. Mas como resistir longamente ao mágico encanto de uma deusa?

      

       Em 36 a.C., Cleópatra triunfa e António aceita desposá-la. Pouco importam os protestos que se erguem em Roma. Cleópatra e o seu esposo encabeçam um império helenístico centrado no Egito.

      

       O sonho desfeito

       A partir desta data, o céu tolda-se. Uma desastrosa campanha militar contra os espartanos debilita o exército de António, ao mesmo tempo que cresce o prestígio de Octávio.

      

       Octávia dirige um ultimato a António, seu marido legítimo: deve deixar Cleópatra e abandonar a sua vida dissoluta. António recusa, e Octávio designa-o como inimigo de Roma.

      

       A guerra revela-se inevitável.

       Cleópatra proclama a existência de um império do Oriente numa grandiosa cerimônia, no decurso da qual António e a rainha do Egito, instalados em tronos de ouro, assumem uma estatura faraônica.

      

       Tudo se irá decidir no conflito que vai opor o exército do Oriente às legiões de Octávio. Cleópatra visita as casernas e as obras, vigia a construção de novos barcos de guerra. Anima-a uma feroz vontade de vencer.

      

       Octávio declara guerra a Cleópatra, não a António.

       Actium, 31 a.C. A frota egípcia é vencida, António suicida-se em Alexandria. Aos trinta e nove anos e sem grandes esperanças, Cleópatra tenta seduzir o glacial Octávio. Mas, ao contrário de César e António, o futuro imperador Augusto não sucumbe nem à magia do Egito nem à da rainha.

      

       Reza a lenda que Cleópatra se matou deixando-se morder por uma serpente. Vejamos nisto um símbolo: o réptil, evocação do uraeus54 na fronte dos faraós, fez passar a sua descendente para outro mundo, onde o seu sonho prosseguiria.

      

       Inumada no túmulo que mandara construir perto do templo de Ísis, Cleópatra foi a última representante de uma longa linhagem de mulheres de Estado que haviam reinado no país amado dos deuses.

             

       AMANTES, ESPOSAS E MÃES

      

       UMA APAIXONADA NESTE JARDIM

       O amor é um valor muito importante para ser abandonado aos humanos. Por isso, Hator, a soberana de todas as formas de alegria, desde a das estrelas até ao prazer físico, vela sobre a misteriosa atração que reúne dois amantes. A deusa dos céus, que derrama sobre a Terra o irresistível poder do amor, enche bruscamente o coração. Hator, mãe e filha do Sol, do dia e da noite, do claro e do escuro, é o fogo ardente e a amena doçura que possui todos os rostos da mulher apaixonada.

      

       O apaixonado compara-se a um ganso selvagem que deseja ser apanhado na armadilha da sua bem-amada, cuja boca é uma flor em botão e cujos seios são pomos de amor. Ela conhece perfeitamente a arte de lançar a rede feita com os seus cabelos para o aprisionar. E com o seu anel imprime-lhe uma marca.

      

       A beldade impõe ao seu amante provas para saber se a ama de fato: fecha-lhe a porta e ao nascer do dia ele deve dirigir-lhe preces e fazer-lhe oferendas para que consinta em abrir. E o percurso é difícil, porque a bem amada habita na margem oposta; o apaixonado deve atravessar o Nilo a nado, espiado por um crocodilo deitado num banco de areia. Só dando ouvidos à sua paixão é que consegue mergulhar e escapar ao monstro. Cheio de coragem, julga até caminhar sobre as águas. O seu desejo torna-o invulnerável. No seu íntimo, está certo de que a sua bem-amada proferiu as fórmulas mágicas, ”os encantos da água”, que suprimem todos os perigos.

      

       Uma vez chegado à morada da beldade, ainda tem de escapar à vigilância da mãe e de utilizar um mensageiro para transmitir uma carta à jovem na qual exprime os seus sonhos: tornar-se o porteiro da sua amácia, aquele que lavará as suas vestes, e até tornar-se na serva núbia que a penteará! Também deseja transformar-se no anel que ela usa no dedo para estar em contato com a sua pele. Se os impedissem de se verem, os amantes tomariam a forma de cavalos ou gazelas, capazes de transpor todos os obstáculos.

      

       O desejo desperta os sentidos. A mulher apaixonada tem o gênio da maquiagem e sabe escolher ungüentos e perfumes. Preparou-se demoradamente para o seu primeiro encontro; vem ter com o seu amante com os cabelos perfumados e os braços floridos, assim se assemelhando a Hator, a maravilhosa deusa que enche as Duas Terras com os mais suaves odores. O apaixonado deseja captar o perfume da sua bem-amada, a sua subtil emanação que encanta a alma.

      

       Se está irritado, a beldade sabe como retê-lo: Vais partir, inquieta-se, porque queres comer? De forma que apenas escutas a voz do teu ventre? Vais partir porque queres agasalhar-te? Tenho aquilo de que precisas: lençóis no meu leito... Vais partir porque tens sede? Toma o meu seio. o que ele contém transborda sobre ti, o amor que sinto penetra no meu corpo como o vinho se mistura com água.

      

       Quando o meu coração está em harmonia como teu, acrescenta a beldade, não estamos longe da ventura.

      

       Também a mulher é escrava do desejo.

       Hoje, diz ela ao seu amante, não armei nenhuma cilada. É o teu amor que me tem cativa, e não posso libertar-me. O seu coração bate mais depressa, já não sabe o que vestir, deixa de pintar os olhos e de se perfumar, perdendo todo o bom senso. Em suma, está apaixonada. O pior é quando não pode ver o amante. Os membros estão pesados, os médicos não conhecem remédio eficaz. A minha salvação, afirma o apaixonado, igualmente atingido, é voltar a vê-la; que ela abra os olhos para mim e eis que estou curado. Que ela fale e recupero todo o meu vigor.

      

       Com uma túnica de linho fino e transparente, coberta de óleos perfumados, a jovem deixa adivinhar a perfeição do seu corpo.

      

       Entra lentamente na água, depois despe-se e nada, nua, divertindo-se a apanhar um peixe vermelho, que foge por entre os seus dedos. Vem, recomenda ao seu bem-amado, e olha para mim! Então enlaça-o com flores de lótus e de papiro. Que bom é passear depois de barco num lago, remando preguiçosamente, incomodando os patos e saboreando frutos maduros!

      

       Depois de terem confessado o seu desejo mútuo, os apaixonados só têm um desejo: estarem sós no pântano onde se caçam as aves ou, melhor ainda, num jardim deserto. Escondem-se entre os papiros ou à sombra de um sicômoro plantado pela jovem em honra da deusa Hator, à qual havia pedido que lhe desse a conhecer o amor.

      

       A mulher amada é gratificada pelo seu amante com mil nomes meigos: ”gazela”, ”gatinho”, ”andorinha”, ”pomba”, ainda usados nas nossas sociedades, ao passo que ”meu hipopótamo”, ”minha hiena”, ”minha macaca” ou ”minha rã” são menos utilizados.

      

       Beijar é estar ébrio sem ter bebido. Acaso existe felicidade mais doce do que o amor partilhado neste jardim onde falam o sicômoro, o tamarindo, a romãzeira e a figueira? Com o coração dilatado, o apaixonado satisfeito pode murmurar o canto de amor que as beldades do Egito ouviram encantadas: Tu és a única, a bem-amada, a sem igual, a mais bela do mundo, semelhante à estrela brilhante do ano novo, às portas de um bom ano, aquela cuja graça resplandece, cuja pele brilha, de claro olhar, doces lábios, longo pescoço, cabeleira de lápis-lazúli, dedos semelhantes a cálices de lótus, de ancas estreitas, de nobre andar.

      

       PRAZERES DE AMOR E AMORES PERIGOSOS

       Um erotismo à egípcia?

       A arte egípcia está eivada de beleza, nobreza e dignidade; não há desleixo nem vulgaridade nas atitudes dos pares. O perfume, o mais subtil e impalpável, era pois o maior sinal de amor. O Egito prefere a evocação ao fato bruto, a sensualidade sugerida ao erotismo manifesto.

      

       Beijar diz-se sen, a mesma palavra que ”respirar um odor”, ”fraternizar”. A mulher que solta os cabelos perfumados convida o seu amado a beijá-la e a partilhar o seu leito igualmente perfumado. Um testemunho muito modesto, um desenho traçado por um artesão da comunidade de Deir el-Medina, mostra-nos uma apaixonada sorridente, nua sobre o leito, com a mão esquerda debaixo da cabeça e com flores no cabelo. Espera o homem amado ou saboreia os momentos de prazer que acaba de experimentar? E não se compraz ela em tocar harpa para cativar o seu amante e o atrair a si, qual feiticeira?

      

       Prazer evocado, perfume dos sentidos, requinte do ímpeto amoroso, poesia das palavras, elegância dos gestos... As egípcias conheceram maravilhosos prazeres de amor.

      

       Nenhuma pudicícia, porém. Os órgãos genitais masculinos e femininos estão presentes nos hieróglifos56, a nudez não estava proscrita, o deus Min é representado em ereção para evocar o dinamismo criador atuante no cosmos e na natureza. De acordo com uma ”chave dos sonhos”, se um homem sonha que faz amor com a sua mulher, é um bom presságio: algo de bom lhe será transmitido.

      

       As posturas eróticas são por vezes ilustradas de maneira realista em pequenos fragmentos de calcário, os ostraca, que serviam de esboço aos desenhadores; também conhecemos terracotas mais ou menos tardias que provam (se tal fosse necessário) que as egípcias gozaram bem as alegrias da sexualidade: uma sexualidade alegre e livre, que leva um velho moralista a dizer com um leve sorriso: ”Grande dama de dia, mulher à noite”.

      

       E não podemos omitir o famoso papiro proveniente de Deir el-Medina e conservado no Museu de Turim, tão sulfuroso (segundo os augustos círculos de eruditos) que só pode ser contemplado por olhos muito avisados. A que ”inferno” dá acesso este documento? Trata-se, evidentemente, de uma sátira: o humorista conta-nos uma história cujo sentido nos escapa em consequência do caráter elíptico do texto que acompanha os desenhos. Assistimos a episódios que põem em cena animais que imitam as atitudes humanas e zombam da vaidade dos bípedes; depois entramos numa espécie de prostíbulo onde homens grosseiros, mal barbeados e mal penteados, fazem amor com jovens apenas cobertas por cintos, colares e pulseiras. Estão maquiadas, uma delas pinta os lábios, vendo-se ao espelho. Leitos, almofadas, ânforas de vinho e cerveja e instrumentos musicais compõem a decoração de um sarau muito animado, no decurso do qual as posturas amorosas são, porém, inteiramente clássicas.

      

       Estamos provavelmente no interior de uma Casa da Cerveja, onde oficiam jovens qualificadas como ”filhas do prazer”. A maior parte delas estariam mais próximas das gueixas japonesas do que das prostitutas atuais, exibindo muitas vezes uma tatuagem na coxa sabiam dançar, tocar música e distrair os homens. Muitas eram estrangeiras, nomeadamente babilônias.

      

       Amores perigosos: a advertência dos sábios

       O Egito condena o excesso em tudo. Os escribas dirigem sérias advertências aos alunos que esquecem o trabalho para se entregarem aos prazeres da bebida e do sexo. Acusam-nos de andarem de taberna em taberna, de se deixarem levar pelo cheiro da cerveja e de sujarem a alma, torcendo assim o leme da sua barca. Parecem um santuário privado do seu deus, uma casa sem alimento. Aventuram-se em público, instalados numa Casa da Cerveja, rodeados de jovens prontas a satisfazerem todos os seus desejos. Com uma grinalda de flores ao pescoço, inundados de perfumes, acabam por cair por terra, sujos de vomitado. O excesso de prazer deixa de ser prazer.

      

       O sábio Ptah-Hotep adverte contra os perigos da sedução: Se desejas fazer durar a amizade numa casa onde podes entrar como irmão ou amigo, ou em qualquer outro lugar, não te aproximes das mulheres (nem lhes toques). Nunca se é lúcido de mais! Milhares de homens caíram na armadilha da sedução. Quanta desgraça em troca de um curto instante de prazer, semelhante a um sonho! E aquele que fracassa continuando a cortejar as mulheres, fracassa em tudo’.

      

       E o sábio Ani acrescenta que o homem prudente deve manter-se afastado da mulher que não é conhecida na sua cidade, comparando-a à água muito profunda, com remoinhos imprevisíveis e perigosos. Outro perigo para que Ptah-Hotep alerta é para a mulher-criança, cujo desejo sexual nunca será saciado por nenhum homem.

      

       ”Concubinas” do morto?

       Em certos túmulos privados, a maior parte deles datados do Médio Império, foram descobertas curiosas figurinhas de mulheres nuas em faiança azul, com o corpo sarapintado de pintinhas que evocam tatuagens. Usam jóias e um cinto e arvoram uma larga bacia; outras são em marfim ou madeira.

      

       Não se trataria de mulheres de má vida? A imaginação dos sábios perturbou-se, a ponto de acreditarem numa inquietante pornografia funerária. Estas damas, muitas vezes sem pernas, não garantiam ao defunto um inesgotável prazer sexual?

      

       É uma teoria aliciante, mas inexata, porque estas ”concubinas do morto”, tão mal denominadas, foram igualmente depositadas em túmulos de mulheres e meninas. Uma inscrição oferece-nos a chave: ”Possa o reconhecimento ser concedido a esta mulher”. Por outras palavras, estas figurinhas são encarnações da Grande Mãe que concede uma nova vida aos justos e os faz renascer no seu seio para além da morte. O seu papel consiste em regenerar o defunto ou a defunta, em fazê-los viver uma gravidez espiritual para renascerem no outro mundo. Nem concubinato nem erotismo, mas magia simbólica, indispensável à grande passagem.

      

       O CASAMENTO

       Casamento? Se a mulher quiser

       A apaixonada pensa em casar. É um ato obrigatório? Não no Antigo Egito. Nenhuma lei obrigava uma mulher a viver com um homem. A mulher solteira possuía uma autonomia jurídica, tinha bens próprios, que ela mesma geria, e ninguém a julgava irresponsável. Esta independência chocou muito os gregos, que a consideraram quase imoral.

      

       O casamento, porém, tentava a maior parte das apaixonadas, que não estavam sujeitas a uma idade legal para realizarem o seu sonho. Aos quinze anos, ou mesmo mais cedo, uma egípcia podia ser mulher e casada; segundo os sábios, devia-se ter filhos na juventude. Quando a apaixonada decide casar, ninguém a pode impedir. É necessário discutir com os pais, mas o pai não tem o direito de impor um pretendente à sua filha. Em caso de conflito, prevalece a opinião da jovem. Na maior parte dos casos, o bom entendimento familiar foi a regra, tanto mais que se recomendava ao pai que estimasse o seu futuro genro em função das suas próprias qualidades, e não da sua eventual abastança.

      

       Casamento experimental

       Ao contrário de muitas sociedades antigas e modernas, que dão muita importância à virgindade da noiva, o Egito faraônico não fez disso uma questão de honra nem motivo de preocupação. Nada impede a jovem de ter relações sexuais antes do casamento. Como uma das bases desta união é a fidelidade, devem viver namoros e ligações passageiras antes de um compromisso que se pretendia definitivo e para toda a vida. Documentos tardios mencionam porém um ”presente da virgem”, ou seja, bens materiais oferecidos pelo marido à mulher em troca do dom da sua virgindade.

      

       Ainda mais surpreendentes, e de um liberalismo que a nossa época ainda não igualou, são os contratos de casamento temporários, ou seja, experimentais, por um determinado período de tempo. Em certas circunstâncias, julgava-se preferível pôr os sentimentos à prova.

      

       O filho de um guardador de gansos, por exemplo, tomara mulher por nove meses, concedendo-lhe bens que depositara no templo. Se ela rompesse o contrato, ele reavia-os. Se, em contrapartida, ele lhe pedia para deixar a sua casa, seriam para a mulher. Três textos provenientes da região tebana falam de uma primeira fase do casamento com uma duração de sete anos, finda a qual os laços que uniam o casal deviam ser definitivamente explicitados, tanto para estabelecer os direitos da esposa como os dos eventuais filhos.

 

       O casamento: habitação comum

       Constrói uma casa, recomenda o sábio Ani na sua Máxima 26 destinada ao futuro marido, verás que afasta desavenças e desordem. Não penses que podes habitara casa dos teus pais.

      

       Para o Egito faraônico, é este o aspecto fundamental do casamento: que um homem e uma mulher vivam juntos sob o mesmo teto, numa casa própria. Segundo os textos, casar é ”fundar uma casa” (geregper), ”viver juntos” (hensi irem), ”entrar na morada” (aq e per). O casamento não é um ato jurídico mas social, que consiste numa coabitação livremente decidida por um homem e uma mulher.

      

       Não se trata de um ritual religioso nem de uma obrigação administrativa, mas da vontade de um casal viver o seu próprio destino num lugar a que irá apor a sua própria marca: eis o casamento à egípcia. A partir do momento em que um homem e uma mulher vivem juntos à vista de todos, estão casados e devem assumir os deveres inerentes a essa escolha.

      

       Outra palavra, meni, é por vezes utilizada para designar o casamento; é um termo da marinha e traduz-se por ”amarrar”, sugerindo a idéia de um barco que chegou a bom porto após uma longa viagem. Este termo também significa ”morrer”, posto que a existência era apreendida como uma travessia que podia terminar num naufrágio ou numa acostagem feliz, ou seja, na ressurreição.

      

       De fato, o casamento é a morte da vida descuidada; ao tomar marido, a egípcia amarrava-se ao porto da vida conjugal, lugar de estabilidade.

      

       Uma cerimônia de casamento?

       Não sendo considerado um ato sagrado, mas puramente humano, o casamento não era objeto de nenhum ritual. Haveria alguma festa familiar? Não estamos certos. O Romance de Setna, texto tardio, evoca um festim organizado pelo faraó para o casamento da sua filha, mas não subsiste nenhum documento das épocas antigas em que se relatem semelhantes festividades.

      

       Supõe-se que a noiva chegava à casa do noivo com objetos que constituíam o dote e trazendo flores; teria certamente entrançado uma grinalda e recebia uma veste especial, uma espécie de véu.

      

       Talvez os noivos comessem sal para selar a sua união, talvez unissem as mãos sobre uma tabuinha onde figurava um escaravelho, símbolo das transformações benéficas.

      

       O essencial, repetimos, era viverem juntos na mesma casa. O casamento era assim oficializado como ato privado, com o qual nem o Estado nem a religião tinham que ver.

      

       Os contratos de casamento: proteção da esposa

       ”És meu marido”, ”És minha mulher”: estas palavras selam o casamento. Contudo, podiam tomar-se certas disposições jurídicas com o grande intuito de assegurar a subsistência da mulher em caso de desgraça, viuvez ou divórcio’. Pede-se ao marido que se comprometa formalmente a garantir o bem-estar material da esposa se o casamento fracassar e terminar com a separação por iniciativa de um deles. Se o marido deixa a mulher, dá-lhe bens, devidamente assinalados por contrato, e um terço de tudo o que tiver sido adquirido a partir do dia em que o contrato foi estabelecido. Os objetos trazidos pela mulher, ou um valor equivalente, ser-lhe-ão restituídos.

      

       Os motivos de separação, tais como os conhecemos através da documentação, são os mesmos de hoje: desentendimento profundo, adultério, desejo de viver com outro parceiro, conflitos de interesse, infecundidade. Os sábios recomendam ao homem que não se separe da mulher infértil. O texto de um ostracon conservado em Praga ilustra uma banal situação de divórcio em que os pequenos problemas do dia-a-dia criam desavenças. Escreve uma mulher à sua irmã: Discuto com o meu marido. Dizia que ia repudiar-me. Discuto com a minha mãe por causa da quantidade de pão que nos é necessária. E dizia-me: a tua mãe não faz nada de jeito, os teus irmãos e as tuas irmãs não cuidam de ti. Todos os dias discute comigo.

      

       O homem sabe que não pode divorciar-se levianamente, porque se arrisca a duras penalidades como perder os bens adquiridos em comum. A egípcia estava assim protegida contra uma separação abusiva e injusta. Um papiro evoca o caso de uma mulher que tinha ficado sem um olho e cujo marido a queria repudiar ao fim de vinte anos de vida comum, certamente para se juntar a alguma mulher nova e bela. ”Divorcio-me de ti”, anuncia-lhe, ”porque estás cega de um olho”. A mulher fica ofendida: ”Foi isso que descobriste durante os vinte anos que passei em tua casa?”. E manifesta uma justa cólera contra o triste cavalheiro, mas não receia o seu futuro material. Sabe que esta cláusula de separação seria inaceitável e que, em caso de divórcio, este custaria muito caro ao indigno marido.

      

       Todas as contestações eram resolvidas em tribunal perante o qual os esposos compareciam e se explicavam. O marido dispunha de algum tempo para reunir o capital de que a divorciada beneficiaria. No caso de ser a mulher a abandonar o domicílio conjugal, devia uma pequena compensação ao marido mas conservava a totalidade dos seus bens privados. Caso a morada familiar fizesse parte desses bens, o marido era obrigado a deixá-la e a arranjar outra residência.

      

       A própria esposa podia estabelecer o contrato de casamento. O Papiro Salt 3078 relata o caso de uma mulher que faz a seguinte promessa ao marido: se o expulsar de casa por amar outro homem, restituir-lhe-á os bens que ele lhe oferecera na altura do casamento. ”Se eu me afastar de ti”, acrescenta ela, ”não poderei pôr em causa as nossas aquisições comuns”.

      

       Liberdade de casamento, liberdade de divórcio: eis a extraordinária independência de que a egípcia gozava, não tendo de dar contas nem a um Estado nem a uma Igreja.

      

       O casamento da dama Tais

       Em 219 a.C., no reinado de Ptolomeu IV, a dama Tais mandou lavrar um contrato de casamento. Os reis que governam o Egito desta época são gregos; a idade áurea não passa de uma remota lembrança, mas as egípcias tentam preservar a sua autonomia.

      

       O contrato indica a data, os nomes do marido, da mulher e os nomes dos pais, a indicação da sua origem e da sua profissão, o nome do escriba que lavra o documento, os nomes das testemunhas (que, neste gênero de circunstâncias, variava entre três e trinta e seis).

      

       Originário do Grande Sul, o marido chamava-se Horemheb, como o ilustre faraó da décima oitava dinastia. Como presente de casamento, ofereceu à mulher duas moedas em prata, que constituíam uma aquisição definitiva.

      

       Horemheb assumiu um claro compromisso: se viesse a odiar a sua esposa, se desejasse viver com outra, seria obrigado a divorciar-se, dando-lhe duas moedas em prata suplementares e um terço dos seus bens comuns. Naturalmente, restituiria a Tais a totalidade dos bens trazidos para o casamento ou a sua contrapartida monetária.

      

       Apesar da época tardia e do reinado de reis gregos, apesar da introdução do sistema monetário recusado pelos faraós, do poder crescente dos homens na sociedade, a dama Tais conseguira fazer respeitar a antiga lei.

      

       A noiva conserva o seu nome

       Se uma egípcia do tempo dos faraós visitasse o nosso tempo, ficaria surpreendida com muitos aspectos da nossa sociedade por causa da sua rigidez jurídica. Mas um deles parecer-lhe-ia insuportável e aberrante: tomar o nome do marido.

      

       Ao sacrificarmo-nos a esta convenção, eliminamos o nome da esposa, o que, do ponto de vista egípcio, equivale a negar a existência da mesma. Ao casar, a egípcia não tomava o nome do marido, mantendo o seu e de bom grado recordando a sua filiação materna.

      

       Num mundo em que o espírito comunitário e a hierarquia têm um importante papel, impressiona constar até que ponto a personalidade de cada ser foi afirmada. O nome fazia parte dos elementos vitais que permitiam vencer a prova da morte. E não era por certo o casamento, um assunto humano, que o ia apagar!

      

       Poligamia ou... poliandria?

       Entre as muitas idéias que ainda subsistem acerca do Egito faraônico, a poligamia ocupa um lugar proeminente. Há grupos estatuários em que o marido é representado na companhia de duas mulheres que qualifica como ”esposas” Daí a concluir que o egípcio podia ter várias esposas vai um passo. Mas um falso passo. O exame atento desta ”poligamia” prova que estas esposas não eram simultâneas, mas sucessivas. Viúvo, o homem voltara a casar e quisera associar no Além as mulheres amadas. Não existe até hoje nenhum exemplo comprovado de poligamia.

      

       Teria havido, em contrapartida, casos de poliandria? Duas damas do Médio Império, Menquet e Kha, foram durante muito tempo suspeitas de terem tido dois maridos simultaneamente. Mas a egiptologia inocentou-as. Na realidade, tratava-se de esposos sucessivos. Após um período de viuvez, as duas damas tinham abandonado a sua solidão.

      

       Casamento entre irmãos?

       Outra idéia feita, devida ao autor grego Diodoro da Sicília: ”Diz-se”, escreve ele, ”que, ao contrário do costume, os egípcios estabeleceram uma lei que permitia aos homens desposar a sua irmã, porque Ísis havia sido bem sucedida neste campo, tendo desposado Osíris, seu irmão. E quando ele morreu, não quis aceitar outro homem”.

      

       Estas linhas mergulham-nos numa série de confusões. A mais clara é a mistura do mito com o quotidiano; além disso, o autor parece ignorar que a mulher trata o marido por ”meu irmão” e que o marido trata a mulher por ”minha irmã”. Um casal é, pois, constituído por um irmão e uma irmã, o que torna quase impossível o trabalho dos genealogistas.

      

       É provável que na época ptolomaica a corte grega de Alexandria tenha celebrado casamentos reais entre irmãos para perpetuar a pureza dinástica. Na época romana, este tipo de união foi praticado nas aldeias, mas não sem uma boa razão: para preservar o patrimônio de raiz. Nas épocas anteriores, não há exemplos de casamentos entre irmãos de sangue na população egípcia.

      

       O que se passava na corte? Na sua qualidade de esposo, o faraó é também um ”irmão” e a grande esposa real ”uma irmã”. A maior parte dos casamentos julgados consangüíneos aparecem hoje como uniões com uma meia-irmã. Além disso, o casamento do faraó com a sua irmã carnal, ou com a sua filha, tem normalmente um valor simbólico e ritual, não sendo consumado fisicamente, como aconteceu nas bodas de Ramsés II com as suas filhas. Mais uma vez, devemos desconfiar das nossas leituras sobre o Egito faraônico.

      

       O AMOR DA ESPOSA

       Se és um homem de qualidade, escreve o sábio Ptah-Hotep na sua Máxima 21, funda a tua casa, ama a tua mulher com ardor, enche-lhe o ventre e veste as suas costas; o azeite é um remédio para o seu corpo. Vá-la feliz enquanto viver. Ela é uma terra fértil, útil ao seu dono.

      

       A violência contra uma esposa está posta de parte e seria inteiramente condenável; predomina o respeito, sem o qual o amor não poderia durar. Uma outra qualidade consolida um casal: a alegria de viver. E Ptah-Hotep considera que a verdadeira felicidade consiste em casar com uma mulher alegre: Se desposas uma mulher alegre de coração... Uma mulher de coração alegre traz o equilíbrio (Máxima 37).

      

       O respeito pela esposa implica a fidelidade, a qual assenta na palavra dada, que é o valor central da civilização egípcia. Não esconder nada à esposa, não a magoar, não a ofender, não a abandonar, eis a atitude justa de um bom marido. Numerosos textos evocam a esposa como ”A companheira venerada pelo seu marido”, ”a irmã bem-amada, cara ao seu coração”, ”ela que é rica em vida e traz a felicidade”.

      

       Como evitar a discórdia num casal? O marido deve reconhecer as competências da esposa e o valor do seu trabalho e não a deve importunar: ”Que felicidade quando ela toma a tua mão”, afirmam os sábios.

      

       Um moralista da época tardia chamado Anqseshonqy dá rudes conselhos ao candidato ao casamento: não deve casar com uma divorciada, não deve deitar-se com uma mulher casada, não deve abandonar uma mulher estéril, não deve distribuir as suas riquezas cegamente, e deve estar ciente de uma verdade inalterável: Se uma mulher vive em paz com o marido, é a vontade de Deus.

      

       Nos grupos esculpidos que representam casais, a mulher é igual ao marido e reina entre eles uma profunda cumplicidade. A mulher abraça o marido com ternura e discrição, passando-lhe o braço pelas costas; a mão pousada no ombro do homem amado não é apenas um sinal de afeto, mas também um gesto de proteção. Nestas esculturas, o homem está imóvel, ao passo que os gestos quase secretos da mulher traduzem uma atividade mágica necessária à sobrevivência do casal.

      

       Muitas vezes o homem e a mulher estão sentados dos dois lados de uma mesa de oferendas, fitando-se e participando no eterno banquete cuja mesa está sempre posta.

      

       No túmulo de Amen-Naqt, em Deir el-Medina, o defunto e a sua mulher, ajoelhados sob uma palmeira, bebem água de uma bacia. No jardim florido do outro mundo saboreiam a divina frescura que nunca mais lhes faltará. É uma das numerosas evocações em que a mulher vive ao lado do esposo uma alegria inalterável através de um gesto simples, de uma atitude quotidiana. Jogar um jogo de sociedade com a esposa, passear no campo com ela, conversar sob uma pérgula que protege dos ardores solares, contemplar searas e árvores de fruta, vogar num lago de recreio, ouvir cantar ou tocar música, são prazeres que, vividos nesta terra, o serão também nos paraísos celestes se o amor tiver sabido criar laços que o tempo não pode quebrar.

      

       Um dos mais sublimes textos egípcios sobre a felicidade imperecível de um casal feliz deve-se a uma mulher, sacerdotisa da deusa Mut, que mandou gravar estas linhas admiráveis na estátua do seu marido: Desejamos repousar juntos, e Deus não há-de separar-nos. Enquanto viveres, não te abandonarei. Estaremos sentados cada dia, sempre serenos e sem que nenhum mal possa afetar-nos. Juntos fomos ao país da eternidade. Os nossos nomes não serão esquecidos. Maravilhoso é o momento em que se vê eternamente a luz do Sol.

      

       O SURPREENDENTE CASAMENTO DA DAMA SENET-ITÉS E OUTRAS UNIÕES INSÓLITAS

       Um casamento inesperado

       Ela chamava-se Senet-Ités, ”a irmã do seu pai”, e vivia no Antigo Egito, provavelmente durante a quarta dinastia, a dos construtores das grandes pirâmides do planalto de Gize. A dama Senet-Ités era bela e elegante, sacerdotisa das deusas Hator e Neit e gostava de usar uma peruca negra e um vestido cingido por mangas compridas.

      

       Quantos pretendentes a tinham pedido em casamento? Era um ”bom partido” e podia contar com uma vida longa e feliz junto de um marido afortunado.

      

       O príncipe encantado não deixou de se apresentar, conquistando o coração da dama. Chamava-se Seneb e tinha altas funções: chefe do guarda-roupa real e sacerdote do culto da alma dos faraós Quéops e Djedefré.

      

       Tudo corria pelo melhor e os pais de Senet-Ités deveriam regozijar-se. Mas um pormenor talvez os inquietasse ou até chocasse: Seneb era anão!

      

       Este defeito não perturbou a bela Senet-Ités e o casal foi feliz, teve belos filhos e levou uma vida tranquila.

      

       Conservou-se uma célebre representação da família, um grupo estatuário que imortaliza a sacerdotisa e o seu marido, sentado à maneira de um escriba, de pernas cruzadas e as mãos unidas à altura do peito. O torso é musculoso e imponente; o rosto, grave e recolhido, olha ao longe. A esposa sorri, feliz e serena, abraçando-o ternamente com o braço direito. No lugar onde deviam ter sido esculpidas as pernas do pai, se estivesse de pé como Senet-Ités, figuravam dois filhos, um rapaz e uma rapariga, despidos e anafados, com o dedo sobre a boca para mostrar que são silenciosos e obedientes. Os cabelos entrançados e caídos de um dos lados da cabeça formam a ”madeixa da infância”, provavelmente cortada na puberdade.

      

       A escultura em calcário pintado era protegida por um pequeno naos, e foi descoberta no túmulo familiar em Gize. Sendo chefe de todos os anões do palácio, Seneb era um homem rico; numerosos escribas trabalhavam para ele, possuía barcos, burros, cabras, carneiros e numerosas cabeças de gado. Deslocava-se de liteira e gostava de andar de barco nos pântanos do Delta, acompanhado pela mulher e pelos filhos.

      

       Os anões estavam bem integrados na sociedade egípcia e exerciam diversos ofícios e, como constatamos, podiam ocupar um importante lugar na hierarquia.

      

       Que comovente é esta estatueta em madeira muito realista que representa uma anã nua segurando o seu bebê contra o seio esquerdo! A anatomia é vigorosa: queixo quadrado, faces espessas, nádegas gordas, vulva bem demarcada, pernas anormalmente curtas. Esta anã era provavelmente uma ama que tinha toda a confiança da sua patroa.

      

       O casamento da filha da irmã do barbeiro

       No ano 27 do reinado de Tutmósis III, a tranquila existência do barbeiro do rei, Sa-Bastet, o ”filho de Bastet”, sofreu um inesperado abalo. Não havia sido fácil obter um cargo desta importância, mas Sa-Bastet fora um soldado corajoso e o faraó notara-o nas expedições militares da Síria-Palestina destinadas a pacificar a zona e a prevenir quaisquer tentativas de invasão. Sa-Bastet não matara ninguém, mas fizera um prisioneiro; autorizado a trazê-lo para o Egito, empregava-o como seu servo. Como declara o próprio barbeiro: ”Capturei-o com as minhas próprias mãos, quando acompanhava o faraó, e não foi espancado nem aprisionado”.

      

       O prisioneiro de guerra recebeu um nome egípcio, Ameniu, e mostrou-se muito satisfatório; era tão sedutor que Ta-Kamenet, a filha da irmã do barbeiro, se apaixonou por ele! E mostrou-se até firmemente decidida a casar com este homem, que tinha o duplo inconveniente de ser um estrangeiro sem fortuna e um servo sem grande futuro. Um mau casamento, em suma, e um rude golpe para a honorabilidade do barbeiro Sa-Bastet!

      

       Este aconselhou-se, pediu a opinião de personagens influentes e tentou chamar Ta-Kamenet à razão, mas ela mostrou-se inflexível. Casaria com o servo Ameniu ou então nunca casaria. Ninguém podia fazer vergar a vontade de uma egípcia, nem mesmo um barbeiro régio. Só lhe restava uma solução para tornar o casamento aceitável: fazer do seu servo um homem abastado. De modo que lhe doou uma parte dos seus bens. Esta doação foi oficializada na presença de testemunhas e devidamente registrada por um escriba, a fim de que ninguém a contestasse. Deste modo, o antigo servo tratou o barbeiro de igual para o igual, que até desejou transmitir-lhe o seu cargo.

      

       A dama Ta-Kamenet tinha ganho. E o barbeiro declarou com certo orgulho: ”Dei Ta-Kamenet em casamento a Ameniu, que agora deixa a minha casa sem ser privado de nada”.

      

       O soldado e a estrangeira

       O Papiro Lansig preservou uma bonita anedota, reveladora da consideração de que as mulheres, mesmo estrangeiras, gozavam no Antigo Egito. A cena passa-se no início do Novo Império, pouco depois da queda de Avaris, a capital dos ocupantes hicsos. O exército de libertação é finalmente vitorioso e os bravos soldados têm direito a uma parte do espólio, sendo igualmente autorizados a contratar como servos os prisioneiros de guerra, que trabalharão ao seu serviço durante algum tempo antes de serem libertados.

      

       O herói de que o papiro nos fala levava para casa três mulheres e um homem. De tanto andar, uma das mulheres desmaiou. Como ela colaborara com o inimigo e era muito fraca para trabalhar, será que a deixaria morrer na beira do caminho?

      

       Mas o soldado não pensou assim. Pousou o seu equipamento, levantou a infeliz e pegou nela às costas a fim de a levar para casa.

      

       A aventura terminou em casamento? Ignoramos, mas sabemos que nada se opunha à união de um egípcio com uma estrangeira ou vice-versa. De resto, muitas estrangeiras receberam no Egito uma educação requintada, aprenderam um ofício e ocuparam cargos importantes.

      

       A TOILETTE DE KAUIT

       A arte do penteado

       Graças às representações gravadas no sarcófago da princesa Kauit, datadas do início do Médio Império, assistimos a um momento privilegiado na vida de uma egípcia: o fim da sua toilette, mais precisamente o delicado momento do penteado.

      

       Esposa do faraó Montuhotep-Nebhepet-Re, a princesa Kauit não tem um rosto muito sedutor. Sérias ou mesmo austeras, as suas feições chegam a ser ingratas. Sacerdotisa de Hator, mandara escavar a sua sepultura sob o templo do faraó, em Deir el-Bahari, e foi nesta sepultura que se encontrou o magnífico sarcófago de calcário imortalizando uma cena de grande dignidade.

      

       Sentada numa cadeira de espaldar alto e envergando um vestido comprido e cingido que lhe deixa os seios à mostra, com o pescoço ornado com um colar de contas, Kauit segura delicadamente entre o polegar e o indicador uma taça de leite que lhe foi apresentada pelo seu intendente, proferindo as palavras essenciais: ”Para o teu ka, senhora”.

      

       Outra cena faz-nos assistir à ordenha da vaca que deu o leite; uma lágrima corre-lhe do olho. Um vitelinho está amarrado à sua pata direita. O fato não é tão profano como parece: recorde-se que Kauit era sacerdotisa de Hator, a qual encarnava na vaca, e o leite que ela oferecia era um líquido celeste destinado ao ka, a energia imortal do ser.

      

       Atrás de Kauit encontra-se uma serva que aperta com toda a minúcia os caracóis da curta peruca escolhida pela sua senhora. A peruca era um ornamento indispensável e muito apreciado e evoluiu ao longo das dinastias, tendo sido usada por mulheres e homens. Para uma mulher, uma bela peruca era um fator decisivo de sedução e elegância.

      

       Estas perucas eram confeccionadas com fibras vegetais ou com cabelo humano, e mais raramente com pêlo animal. Em todas as épocas foram apreciadas as madeixas numerosas, as tranças múltiplas, ungidas de perfumes e produtos capilares. Uma peruca bem feita despertava a admiração dos poetas, que elogiavam a beleza da mulher e o encanto do seu rosto. Quanto mais avançamos na História, mais as perucas se tornam complicadas, chegando a constituir verdadeiras construções que exigiam cabeleireiros de uma destreza notável e um perfeito porte por parte das elegantes. À simplicidade do Antigo Império opõe-se um luxuriante Novo Império: um adorno de cabelos, descoberto no túmulo de uma princesa que viveu na corte de Tutmósis III, contava nada menos que novecentas rosetas de ouro que cobriam toda a peruca.

      

       É provável que a cabeleira estivesse relacionada com a sexualidade; graças ao poder de sedução que conferia, um belo penteado tornava a mulher desejável. Soltar o cabelo e exibi-lo despenteado era tido como um ”sinal” erótico.

      

       Os ”cones perfumados” constituem um enigma. Vemos estes estranhos dispositivos na cabeça dos nobres tebanos do Novo Império e das suas esposas quando participam num banquete, o qual é ao mesmo tempo uma festa celebrada na Terra e uma festividade de além-túmulo, na companhia de seres de Luz. Supõe-se que o calor derretia lentamente o cone, libertando suaves odores à medida que a noite avançava.

      

       As beldades egípcias tinham grande cuidado com a manutenção do seu cabelo, que temiam ver encanecer ou, pior ainda, cair58. O óleo de rícino era o produto de base para evitar estes incômodos. Esmagavam sementes de rícino para obter um óleo que punham na cabeça. A receita 468 do Papiro médico de Ebers, devida a Shesh, rainha do Antigo Império e mãe do faraó Téti, destinava-se a lutar eficazmente contra a calvície. A antiguidade garantia o seu sucesso, embora os ingredientes utilizados pareçam insólitos: ”patas de lebréu” (certamente o nome de uma planta), caroços de tâmara e um casco de burro cozidos em lume vivo num pote com azeite. Devia-se ungir energicamente a cabeça com o produto obtido. Para escurecer o cabelo grisalho, utilizava-se sangue de um boi negro cozido em azeite.

      

       A arte do enfeite

       Outra cena do sarcófago de Kauit: com uma peruca redonda de finos caracóis e um xale sobre os ombros, segura uma flor de lótus na mão esquerda, recolhe um pouco de unguento que a sua serva lhe estende e cujo indicador da mão direita sustenta um leque em forma de asa de pássaro.

      

       Para além da simples e indispensável higiene, as beldades possuíam um impressionante número de produtos de beleza, que utilizavam segundo as regras de uma sutil alquimia. Conservavam-nos em preciosos pequenos cofres, poucos dos quais, infelizmente, chegaram até nós. Os raros exemplares que sobreviveram são fabricados com as mais belas madeiras, incrustados com metal ou marfim e delicadamente decorados. No interior há pequenas gavetas para guardar perfumes, cosméticos, pós, unguentos, pauzinhos e colheres que serviam para aplicar os produtos na pele, pinças para depilar, um ou mais espelhos, pentes e ganchos.

      

       Os primeiros destes objetos luxuosos são recipientes para unguentos, por vezes de formas inesperadas, como o do Novo Império: uma serpentina” que inclui um corpo de macaca oco utilizado para guardar pauzinhos de maquiagem. Não se trata de uma simples fantasia decorativa, mas do desejo de oferecer à mulher preocupada com a sua beleza um animal familiar encarregado de proteger magicamente a casa. Associado a um sinal hieroglífico que significa ”beleza, perfeição” e a um duplo olho que afastava as forças negativas, este macaco domesticado e amável tornava-se num gênio benéfico de cujos serviços a elegante se assegurava.

      

       Os mais célebres objetos de toilette egípcios são as colheres para os pós, que chocaram certos egiptólogos puritanos-, de cerca de trinta centímetros, em madeira ou marfim, têm muitas vezes a forma de uma jovem nadadora nua, estendida de bruços, de cabeça erguida e o pescoço bem direito, as finas pernas juntas e esticadas; de braços estendidos, as jovens nadadoras seguram por vezes uma tacinha que continha pinturas ou incenso, ou então um pato cujo corpo oco formava uma grande colher. Existem algumas variantes: jovens de pé numa barca vogando entre lótus e papiros, meninas com flores, executantes tocando alaúde à beira de água.

      

       Nestes maravilhosos e gráceis personagens femininos vemos a encarnação da deusa Hator.

      

       Algumas destas pequenas obras-primas não se destinavam ao uso doméstico, sendo depositadas nos túmulos para acompanharem os ressuscitados no outro mundo, garantindo-lhes assim eterna juventude. A mesma simbólica ocorre no uso da peruca, que marca por vezes uma das etapas da preparação ritual da sacerdotisa durante a sua iniciação nos mistérios de Hator.

      

       Perfumes femininos e cuidados corporais

       O perfume, tal como hoje o definimos - óleo etérico numa solução alcoólica -, não parece ter existido no Antigo Egito. Os perfumistas fabricavam os seus produtos a partir de plantas aromáticas maceradas com óleos gordos. Também praticavam a extração de essências florais e dispunham de uma gama muito variada que certos textos, como os do laboratório de Edfu, no Alto Egito, enumeram parcialmente. É certo que conhecemos o nome de muitos produtos de beleza, mas ainda somos incapazes de os traduzir com precisão e de os identificar. A preparação destes perfumes, muitos deles reservados a usos litúrgicos, podia exigir vários meses e era confiada a especialistas.

      

       A rainha faraó Hatshepsut não deixou de enviar uma expedição ao maravilhoso país do Ponto a fim de obter incenso fresco, destinado tanto ao culto de Amon como ao fabrico de produtos de beleza. Não esqueçamos que as divindades assinalavam a sua presença aos humanos com um perfume tão suave que alguns caíam em êxtase. Aliás, o perfume é associado ao sopro vital, à doce brisa do Norte que vivifica o organismo quando o Sol se põe ao fim de um dia de calor.

      

       Pós e cosméticos arrumados em tabuinhas com alvéolos eram utilizados por toda a população. Os mais correntes eram um pó negro à base de antimônio e um verde à base de malaquite, que permitiam às elegantes prolongar a linha das sobrancelhas e acentuar o encanto do seu olhar. Estes produtos eram considerados tão indispensáveis que durante uma greve no reinado de Ramsés III os trabalhadores reclamaram o seu soldo em unguentos e em comida.

      

       Também devemos sublinhar a utilização medicinal destes produtos, pois em certas épocas do ano o Egito sofre a agressão dos ventos de areia e pragas de múltiplos insetos. Pós e cosméticos serviam para os afastar e proteger a pele e os olhos. As egípcias também recorriam aos unguentos para se manterem magras, para impedirem a flacidez dos seios, para enrijecerem a carne e evitarem borbulhas desagradáveis. Para purificar a pele e a manter jovem e fresca, esmagava-se cera, óleo fresco de moringa, goma de terebintina e erva de Chipre, de modo a obter um emplastro vegetal.

      

       Frágil herança de tantas horas passadas a embelezar-se, os potinhos para os pós, em alabastro ou em madeira, têm formas delicadas e inesperadas: uma vaca deitada numa barca, antílopes, gansos, patos, macacos, jovens nadadoras. No caso do pato ou do ganso, o corpo do animal era esvaziado para servir de conteúdo e as asas amovíveis eram usadas como tampas.

      

       SAT-HATOR, A BELA DO ESPELHO

       Um espelho de vida

       A princesa Sat-Hator-Iunet, a ”filha de Hator de Dendera”, vivia em Illahun, à entrada da província do Faium, num palácio do Médio Império. Possuía um magnífico espelho no qual todas as manhãs se contemplava para apreciar a sua beleza; o cabo era uma haste de papiro encimada pela cabeça da deusa Hator com orelhas de vaca, e esta coluna vegetal suportava a abóbada celeste. O espelho propriamente dito tinha a forma de um disco polido e prateado. Prata, ouro, quartzo, cristal de rocha e lápis-lazúli eram utilizados no fabrico dos espelhos, manejados pelos iniciados durante a celebração dos ritos secretos dos templos.

      

       O nome do espelho é ankh, sinônimo da palavra que significa ”vida”; para uma egípcia, ver-se ao espelho não é apenas um ato estético, pois corresponde ao desejo de se identificar com Hator, de participar na vida do céu e do Sol, evocado pelo disco de metal polido.

      

       Ser bela

       O ideal de beleza é indissociável do esplendor do seu ser. O olhar de uma bela egípcia é claro, o seu andar é nobre e os seus dedos são como cálices de lótus. ”A bela”, ”Como é belo o seu rosto”, ”A luminosa”, são nomes de mulheres maravilhosas. E como não pensar em Mutirdis, filha do rei e sacerdotisa de Hator, doce no amor, de cabelos mais escuros do que a noite, as uvas e os figos, de dentes brilhantes?

      

       A egípcia tem o culto da beleza, cujo cânone se encontra definido com grande precisão desde épocas remotas: deve ser magra, ter membros finos, ancas marcadas mas não gordas, seios redondos e pequenos. Mas nada de tirania; as estátuas e estatuetas mostram muitas vezes mulheres de simpáticas curvas, faces gordas e por vezes até com uma musculatura afirmada. Mas as deusas são eternamente jovens e esbeltas. Não foi o celeste ourives que criou a beleza feminina e traçou o desenho das sobrancelhas? Não foi ele quem inspirou a mão do pintor que traçou admiráveis retratos de mulheres nos túmulos tebanos? Grandes damas pelo braço dos seus dignos esposos, convidadas para um banquete, passeando de barco, jovens servas, executantes musicais, todas têm em comum um perfil aéreo, olhos mágicos, atitudes graciosas sem falsos langores, uma serena ternura onde reside o segredo de um amor para além da paixão. O sorriso das egípcias, eivado de nobreza nas damas de posição elevada e de uma pontinha de esperteza nas suas servas, é a expressão perfeita de uma feminilidade feliz e acabada, tão radiosa que imediatamente seduz.

      

       A convenção adotada pelos pintores exige que a mulher tenha a pele de um amarelo pálido e que a do homem seja de um vermelho-acastanhado; deveremos ver nisto uma simbólica relacionada com a luz doce e ”hatórica” para a mulher e uma energia vermelha, ”setiana”, para o homem.

      

       Do vestido às jóias

       O rei da moda egípcia é o linho branco e fino, mais ou menos transparente, que molda o corpo feminino com um toque de mistério. O vestido cingido de linho, descendo até aos calcanhares e dotado de alças que passam por cima dos seios ou deixam o peito à mostra, é o traje das belas damas do Antigo Egito, e atravessou séculos. Confere às egípcias uma inimitável nobreza, uma altivez que não exclui encanto nem doçura. É igualmente o vestido das deusas.

      

       Para trabalhar, a mulher não se atrapalha: seios nus, uma tanga, por vezes enrolada atrás, ou então um vestido muito simples.

      

       Apesar do seu gosto pelos trajes mais excêntricos, o Novo Império conservará o vestido clássico das origens. Mas as beldades de Tebas, Mênfis ou Pi-Ramsés adotaram o plissado e usarão mangas curtas. Por baixo do vestido usarão uma camisa muito fina. Estas peças de vestuário são por vezes transparentes, a fim de sublinharem a delicadeza do corpo. Túnicas e vestidos são tão estreitos que valorizam o contorno dos seios e das ancas, a delicadeza da cintura e a graça das pernas.

      

       E quanto à roupa interior? Umas tangas triangulares e nada mais. Em contrapartida, toda uma série de peças de vestuário contra o frio, nomeadamente xales e casacos, porque o Inverno egípcio pode ser relativamente rigoroso, nomeadamente no Baixo Egito. Na Primavera e no Outono as noites são frescas, e quem tiver vivido no deserto sabe que, mesmo na Núbia, a temperatura se revela por vezes glacial.

      

       Os sapatos? Os egípcios gostavam de andar descalços,, mas existiam vários tipos de sandálias, desde a simples sola em papiro até ao sapato em cabedal tingido e decorado.

      

       Será necessário lembrar a importância dos nós neste tipo de vestuário? Atar uma tanga ou um cinto ou fixar as alças exigia uma certa destreza. Ora, a palavra nó, tebes, é idêntica ao termo que significa ”palavra mágica”, ou seja, uma palavra que ”ata” as energias umas às outras.

      

       Os adornos? Pulseiras nos pulsos e nos tornozelos; colares aludindo muitas vezes à difusão dos raios solares; diademas e aros ornados de motivos florais; anéis, brincos e pingentes. Ouro, prata, turquesa, ametista, cornalina e outras pedras semipreciosas serviam para fabricar estas pequenas maravilhas, que aumentavam a sedução feminina. As grandes damas possuíam verdadeiros tesouros, poucos dos quais sobreviveram; o da princesa Knumit, ”A do deus Knum (ou: a que se une)”, filha de Amenemhat III, faraó do Médio Egito, foi encontrado intato no seu túmulo de Dachur. Os símbolos que ornamentam as suas pulseiras são muito significativos: prometem-lhe ”nascimento” (no Além), ”alegria” e ”toda a proteção e vida”. Quer dizer que estas jóias não tinham um mero valor decorativo, mas serviam também de palavras de poder nos caminhos do Além.

      

       É o que acontece com a inalterável beleza das egípcias, sempre ligada a Hator, soberana do outro mundo; quando uma bela jovem, numa postura de suprema elegância, aspira uma flor de lótus, sente o perfume da ressurreição. Ela própria transformada em lótus, renasce a cada instante, tornando-se na primeira manhã do mundo e no primeiro raio de luz.

      

       O TEMPO DA GRAVIDEZ

       Contracepção à egípcia

       A menstruação chamava-se ”as purificações”; graças a ela, as mulheres libertam-se de elementos nocivos. Durante este período, a mulher está dispensada de trabalhar e não entra nas salas secretas do templo. Cabe às lavadeiras lavar os panos sujos.

      

       Existem contraceptivos para a mulher que não quer ter filhos ou que não deseja voltar a engravidar. Os textos médicos apontam vários, cujos ingredientes, infelizmente, são difíceis de identificar. Evoquemos uma mistura de mel e natrão que a mulher barrava nos lábios e na vagina, fumigações, bebidas à base de aipo e cerveja doce e sobretudo a prescrição na 783 do Papiro de Ebers: para evitar que uma mulher fique grávida durante um, dois ou três anos, deve colocar na vagina um tampão impregnado de uma substância formada de extrato de acácia, colocíntido, tâmaras e mel. Ora, a goma da acácia fermentada produz ácido láctico, que mata os espermatozóides.

      

       Quando a mulher deseja conceber um filho, esquece os contraceptivos e então a aventura do nascimento começa.

      

       Tornar-se fecunda

       Em Dendera, no lugar santo da deusa Hator, durante o terceiro mês da estação das inundações, organizava-se uma festa da ”abertura do seio das mulheres”, em que as recém-casadas se reuniam para celebrarem um rito que lhes garantia uma maternidade próxima. Em Medinet Habu, na margem ocidental de Tebas, onde dormiam os deuses das origens, enterrados no outeiro primordial, as mulheres vinham banhar-se num lago sagrado, na esperança de se tornarem fecundas. Haverá algo mais triste do que a esterilidade? Quando evocam um período dramático, escrevem os escribas: ”As mulheres são estéreis, já não estão grávidas, apagou-se a alegria”.

      

       Felizmente, o deus-oleiro Knum continua a criar os seres no seu torno; para uma mulher ficar grávida, é necessário que o torno do divino oleiro seja instalado no ventre da futura mãe. Cabe-lhe pronunciar a fórmula correta:

      

        Deus do torno que criaste o ovo no teu torno, fixa a tua atividade criadora no interior dos órgãos femininos e dota esta matriz com a tua imagem.

      

       Comprovada a gravidez, convém ”atar uma faixa sobre a mulher grávida” e pousar sobre ela um tecido em forma de sinal mês, três peles de animal ligadas cujo significado é ”nascer”.

      

       Para uma egípcia, estar grávida é ”fazer um trabalho”. O sangue nutriente que circula no ventre da mãe faz crescer o embrião; curiosamente, os textos indicam que o tempo de gravidez é ora de nove ora de dez meses. Este período tem os seus perigos e as forças negativas que contrariam o processo do nascimento devem ser esconjuradas por fórmulas mágicas e pelo uso de amuletos. O útero é colocado sob a proteção de uma deusa específica, Tjenenet. A estas precauções juntam-se constantes cuidados médicos; para ungir o corpo da mulher grávida com óleos benfazejos, levava-se o requinte ao ponto de utilizar um frasco em forma de mulher pousando as mãos no ventre arredondado. Estes pequenos recipientes tinham um tampão que impedia o acesso das forças destrutivas ao ventre da grávida.

      

       Qual será o sexo da criança?

       Certas egípcias queriam saber o sexo da criança. A receita utilizada foi legada aos gregos e passou à Europa por intermédio de Bizâncio. Foi utilizada durante muito tempo na Europa, ignorando o fato de que viviam no tempo do Egito faraônico. Aqui a têm:

      

        Colocarás cevada (palavra masculina em egípcio antigo e sinônima de ”pai”) e trigo em dois sacos de pano que a mulher regará todos os dias com a sua urina, e metes também tâmaras e areia nos dois sacos. Se a cevada e o trigo germinarem, a mulher dará à luz. Se a cevada germina primeiro, é rapaz-, se germina o trigo, é rapariga. Se nenhum germina, não dará à luz.

      

       Segundo Gustave Lefebvre, este diagnóstico pode ser comparado às modernas teorias sobre o papel das hormônios: ”Constatou-se”, escreve ele, ”que a foliculina extraída da urina das mulheres grávidas e misturada com a água para regar certas plantas pode apressar o aparecimento da flor. Conhecemos, por outro lado, as experiências de Dorn e Sugarman: a injeção de 10 centímetros de urina de grávida na veia de um coelho de 2 meses e meio (idade da migração testicular) produz efeitos diferentes consoante a mulher esteja para parir uma rapariga ou um rapaz”.

      

       Quer a curiosidade da futura mãe estivesse satisfeita ou não, aproximava-se o grande acontecimento: o parto.

      

       O PARTO DA DAMA RED-DJEDET

       Nascimento solar

       Um dos mais célebres partos da História egípcia é o da dama Red-Djedet, ”Aquela que funda o que deve durar”. De acordo com uma narrativa do Papiro Westcar, foi uma mãe excepcional, pois gerou três faraós da quinta dinastia. Red-Djedet era esposa de Ra-User, ”Ra é poderoso”, e tomara a aparência do seu esposo para conceber uma dinastia solar. Efetivamente, a partir da quinta dinastia todos os faraós passam a chamar-se ”filhos de Ra (a Luz divina)”.

      

       Dar à luz diz-se em egípcio antigo ”ser liberta”, ”sair do corpo”, ”vir à Terra”. Para facilitar este grande acontecimento, o cabelo da parturiente era atado, era ungida com óleo a fim de distender a carne e injetavam-lhe na vagina líquidos à base de plantas medicinais.

      

       Apesar destas precauções, o parto de Red-Djedet apresentava-se difícil, de modo que Ra recorreu a várias divindades encarregadas de facilitar o nascimento, Ísis, Néftis, Hequet (a deusa rã das metamorfoses) e Mesquenet (o lugar do nascimento) transformaram-se em belas jovens, e o deus Knum encarregou-se da sua bagagem.

      

       Era um caso importante, visto que Red-Djenet trazia no ventre três gêmeos, chamados a exercer a benéfica função de faraós, a construir templos e a abastecer o altar dos deuses. Quando as divindades entraram na casa da futura mãe, encontraram o marido muito inquieto e vivamente agitado. ”Nobres damas”, declarou, ”a minha mulher sofre! O parto anuncia-se difícil”. As deusas tocaram música e pediram para verem a parturiente. ”Sabemos fazer um parto”, declararam, tranquilizadoras.

      

       O pavilhão do nascimento

       O parto deve ocorrer de preferência no pavilhão do nascimento, como o recordavam os papiros: fora aí que Ísis parira Hórus ao abrigo das forças maléficas.

      

       Uma representação de Deir el-Medina dá-nos uma idéia muito precisa deste pavilhão: é uma construção leve, cujas colunas de macieira têm a forma de hastes de papiro simbolizando o Pântano primordial. Ao longo destas colunas e nas paredes há trepadeiras. Outras decorações: Bes, o jovem anão músico, e Tueris, a mulher-hipopótamo, ambos deuses benfazejos dos partos. Além disso, Tueris está encarregada de retirar ”as águas do nascimento”.

      

       Neste pavilhão há um leito, almofadas, tecidos, tamboretes, um espelho, objetos de toilette, marfins mágicos e a cadeira do nascimento ou os quatro tijolos com a mesma função.

      

       A parturiente está nua e despenteada e livre de todos os nós que possam entravar o nascimento.

      

       As parteiras e o nascimento

       Como qualquer outra parturiente, Red-Djedet foi assistida por parteiras que a ajudaram a acocorar-se em cima de uma esteira ou sobre dois ou quatro tijolos61 em certos casos utiliza-se uma cadeira de parto (no Museu do Cairo existe um exemplar proveniente da região tebana): com uma altura de 0,30 m, o objeto é em madeira pintada de branco. A deusa Mesquenet encarna nesta cadeira e contribuiu para fixar o destino do recém-nascido.

      

       As parteiras são ao mesmo tempo ”as doces” e ”as de firmes polegares”, facilitando o trabalho do parto e recolhendo o recém-nascido ”nas mãos”. São consideradas encarnações da deusa-abutre Neqbet, ligada à maternidade e protetora do faraó; a criança deve ser formalmente agarrada pela parteira, à imagem das garras do abutre que segura a presa e não a larga mais. Segurando a parturiente pelas costas e pelos braços, uma das parteiras pronuncia fórmulas encantatórias. A sua colega cortará o cordão umbilical, lavará o recém-nascido, apresentá-lo-á à mãe e depois deitá-lo-á num confortável leito.

      

       Em certos casos dá-se a comer ao recém-nascido um bocado de placenta esmagado em leite no próprio dia do nascimento. Se vomita, morrerá; se o absorve, viverá.

       

       Se surgem dificuldades, as mulheres põem cataplasmas ou compressas sobre o útero da parturiente. Quando a expulsão da criança era impossível pelas vias naturais, recorria-se à cirurgia, que parece ter sido notável neste campo. O caso mais temido era o parto prematuro. Para que decorresse o melhor possível, recitava-se um encantamento em quarenta contas redondas, sete pedras preciosas, sete pedaços de ouro e sete fios de linho tecidos pelas irmãs Ísis e Néftis. Um amuleto com sete nós era colocado em volta do pescoço da criança.

      

       As parteiras esperavam impacientemente o primeiro grito do recém-nascido. Se dizia ny, viveria, mas se dizia emby, morreria. Outro mau sinal: uma voz lamuriosa. Quando o grito era bem claro, podia-se dar largas à alegria.

      

       O parto de Red-Djedet decorreu em boas condições. Depois de transformar o seu quarto em pavilhão de nascimento, as deusas fecharam a porta e partilharam as tarefas, Ísis colocou-se diante da parturiente e Néftis atrás. Hequet acelerou o processo do nascimento, Ísis pronunciou o nome de cada uma das crianças que estavam para nascer. A primeira, Userkaf, ”o seu ka é poderoso”, escorregou-lhe das mãos; tinha um côvado de comprimento, ou seja, 0,52 m, ossos duros, os membros incrustados de ouro e cabelos de lápis-lazúli. As divinas parteiras cortaram-lhe o cordão umbilical e lavaram-na. ”Será fardo”, predisse Mesquenet, ”e reinará sobre todo o país” Knum deu vigor e saúde ao rapaz. Os outros dois vieram ao mundo da mesma maneira e foram colocados em cima de uma peça de linho.

      

       Encantado, o marido ofereceu às belas damas um saco de cevada, que Knum foi obrigado a carregar; mas as deusas tinham presentes a dar. Fabricaram as coroas de faraó, esconderam-nas no saco e desencadearam chuva e vento, de maneira que o marido foi obrigado a guardar o saco numa sala bem fechada.

      

       Red-Djedet repousou durante catorze dias. Quando precisou de comida para a sua casa, mandou abrir o saco de cevada e descobriu as coroas. O marido e ela compreenderam que tinham gerado futuros faraós.

      

       Os mammisis

       Cada recém-nascido é um Hórus ressuscitado. Nele se afirma um desejo de harmonia que poderá ser corroborado ou traído pelo seu caráter. Na sua qualidade de filho divino, Hórus nasce num templo especial, o mammisi, de que se conservaram vários exemplos, nomeadamente em Dendera e Edfu. As cenas destes santuários datados da época ptolomaica fazem-nos assistir aos preparativos rituais do nascimento divino, derivado da união da rainha com um deus que tomou a forma de faraó.

      

       As paredes destes templos, onde ressoavam alegres cânticos e jubilosas músicas, eram por vezes revestidas de finas folhas em ouro coladas sobre estuque. O sol tornava estas cenas eficazes ao iluminá-las.

      

       Um grande leito espera a parturiente, qualificada como ”mãe do Sol divino”. Por baixo, vacas de origem celeste garantem fecundidade e amamentação. Seis mulheres assistem à futura mãe que, depois de ter parido, apresentará o seu recém-nascido ao deus Amon. Vinte e nove deusas Hator tocam tamboril, enquanto sete potências masculinas (os kau) e sete potências femininas (as hemuset) asseguram a formação espiritual e física da criança. O deus Ptah esculpe-a, o deus Knum molda-a no seu torno de oleiro, a deusa Sechat inscreve os seus anos de existência na árvore da vida.

      

       É um verdadeiro drama ritual, o mistério do nascimento divino, que assim se realiza eternamente. O menino-deus é chamado a tornar-se faraó e a reunir as Duas Terras. O rito encontra-se já presente nas paredes do templo de Luxor, onde podemos ver o parto de Mutemuia, a mãe de Amenotep III, rito que remonta talvez às mais antigas dinastias.

      

       A AMA

       Dar um nome

       Logo após o nascimento, um importante personagem entra em cena: a ama. É verdade que em muitos casos a própria mãe amamenta o filho, mas a ama assistia-a para resolver os mil e um problemas que surgiam.

      

       Primeira grande questão: dar um nome à criança. A criança recebia dois nomes: um utilizado diariamente e outro que definia o seu ser autêntico e secreto. Este era definido como ”o nome dado pela sua mãe” e parece que só era revelado à criança caso esta se mostrasse digna disso.

      

       Os nomes dos egípcios e das egípcias eram extremamente variados, e especialistas na matéria redigiram abundantes repertórios. A mãe pode dar ao filho o nome de ”o Sírio”, ”o Núbio”, mesmo que não seja originário destas regiões, mas porque considera que a sua existência estará relacionada com elas; também escolhe ”a Bela”, ”o Guardador de pássaros”... Em suma, o fato de atribuir um nome implica um dom de vidência praticado quer pela mãe quer por uma mulher consultada. Cada nome tem um sentido preciso, que orienta a existência do seu portador. Este ato é assim invocado no Papiro do Louvre 3148: ”Ó fulano, quando te deu à luz, a tua mãe anunciou o teu belo nome”.

      

       A importância da ama

       Várias amas tiveram um importante papel na corte egípcia. Estamos a pensar, por exemplo, na ilustre Tiyi, esposa do dignitário Ay, futuro faraó, e que deu o seio e educou Nefertiti. Chamava-se ”grande ama” àquela que amamenta um futuro rei, ”aquela que criou o deus”, ”a do doce seio”, ”vigorosa a amamentar”, ”aquela cuja pele foi tocada por Hórus”. Dispondo de um servo, a ama real tem ainda a possibilidade de mandar escavar um belo túmulo.

      

       O sábio Paheri mandou representar as suas três amas nas paredes da sua morada eterna. Satré, ama da rainha faraó Hatshepsut, teve o grande privilégio de ver a sua estátua colocada no interior do templo de Deir el-Bahari. Meryt, esposa de um tesoureiro-chefe (túmulo tebano (nº 63), foi ama da filha do faraó e contratada para o serviço do próprio rei. Amenotep I, rei qualificado como ”desportista” graças às suas proezas no tiro ao arco e como remador, dedicava uma viva afeição à sua ama, a mãe do alto dignitário Kenamon. No túmulo tebano (nº 93) deste último, o rei fez-se representar ao colo da sua ama, instalada numa espécie de trono, no interior de um pavilhão com colunas e teto ornado de romãs e flores de lótus; junto da cama está deitado um cão; duas jovens trazem de beber, uma terceira toca alaúde.

      

       Datados da época baixa, determinados contratos especificam que, em troca de honorários, a ama se comprometia a amamentar a criança ou a tratar dela durante um período bem determinado. Também exercia uma função médica e tratava em particular da incontinência urinária da criança fazendo-a absorver pílulas compostas de parcelas de pedra fervida ou de um líquido à base de cana.

      

       Uma vez que o pior para uma ama era não ter leite, ela dispunha de um remédio eficaz contra este inconveniente: ungir as costas com um unguento à base da espinha dorsal de um peixe, o lates niloticus, cozida em azeite.

      

       Como a criança tinha de ser amamentada pelo menos durante três anos, segundo as prescrições médicas, o trabalho não faltava às amas, sendo mais bem pagas do que certos terapeutas; assim, em troca dos seus serviços, uma delas recebeu três colares em jaspe, um par de sandálias, um cesto, um bloco de madeira, marfim e meio litro de gordura; a sua colega, dois pares de sandálias, um recipiente em cobre, uma esteira, cestos e um litro de azeite.

      

       Considerado como ”o líquido que cura”, o leite era examinado com atenção; devia ter o cheiro das plantas aromáticas ou de farinha de alfarroba. Se cheirava a peixe, não era assimilável. A longa duração da amamentação explica a inexistência de raquitismo nos esqueletos de crianças egípcias. O precioso leite podia ser recolhido em recipientes de barro em forma de mulheres apertando os seios e com uma criança ao colo.

      

       Tratar os seios das amas era uma tarefa essencial, destinada a evitar pruridos, sangrias e supurações. Os médicos utilizavam produtos à base de cana, fibras vegetais, pistilos e estames de junco.

      

       Uma ama no exílio

       Muito longe do Egito, em Adana, na Síria, foi descoberta uma comovente estátua em diorite, conservada no Metropolitan Museum of Art. Representa Sat-Neferu, uma mulher de rosto grave e sorridente com os olhos erguidos para o céu. Está sentada sobre os calcanhares e tem a mão esquerda pousada no seio direito.

      

       Sat-Neferu era uma ama famosa, mas a sua reputação desgraçou-a, pois foi chamada a exercer os seus talentos num país estrangeiro, em casa de um embaixador ou de um dignitário colocado na Síria. Como qualquer egípcio ou egípcia obrigados a permanecer longe das Duas Terras, sofreu muito com o exílio e teve saudades dos dias felizes passados nas margens do Nilo. Antes de deixar o seu país, mandou esculpir esta estatueta para que fosse depositada na sua morada eterna, pois cria que aí seria inumada, mesmo que morresse no estrangeiro.

      

       Leite para faraó

       Um singular documento, uma estela da décima oitava dinastia, merece ser citado. Nele vemos uma mulher muito digna, de peruca, sentada numa cadeira de espaldar baixo. Dá o seio a uma criança, provavelmente um rapaz, instalado no seu colo. Diante dela, uma das suas filhas deita água num recipiente, praticando um rito de purificação. Atrás, uma segunda filha traz-lhe flores de lótus, símbolo da ressurreição. Um rapaz sentado respira outra flor de lótus. As três crianças celebram a memória da sua falecida mãe, e esta cerimônia de amamentação tem de excepcional o fato de se desenrolar no outro mundo, onde a mulher, para sempre viva, continua a exercer a sua função nutriente.

      

       O leite dá vida, poder e uma longa existência. Hórus conseguiu reconquistar a sua antiga realeza porque foi amamentado por Ísis. Desde a época do Texto das Pirâmides, o mais antigo corpus sagrado, a amamentação faz parte dos ritos de coroação do faraó, que graças a ela volta a ser jovem e vigoroso, senhor de um crescimento assegurado pelo leite celeste.

      

       Trata-se, efetivamente, de um verdadeiro processo de ressurreição. O rei amamentado pelas deusas volta a ser criança, volta a ser vivo, e reconhece-se-lhe a capacidade de exercer as funções reais. Como Jean Leclant escreve, a amamentação implica mais do que a absorção de uma beberagem eterna; é mais do que o gesto de uma proteção mágica ou do que um simples rito de adoção... Trata-se de uma espécie de iniciação. Ao alcançar a sua nova dignidade, o faraó entra no mundo dos deuses.

      

       QUE AS DIVINDADES SALVEM O MEU FILHO

       O nascimento: um momento perigoso

       A mãe que acabava de parir um filho repousava quinze dias. Note-se que o nascimento de uma rapariga era tão bem acolhido como o de um rapaz. Na história faraônica nunca se mataram ou abandonaram as raparigas, ao contrário do que acontecia na Grécia ou em Roma.

      

       A felicidade do nascimento é imediatamente seguida de inquietação. Para um novo ser, tomar forma na Terra é sair do indiferenciado, particularizar-se, transpor uma difícil passagem e expor-se a muitos perigos. Ao nascer para o mundo dos homens, a criança é frágil.

      

       Quando lhe é dado um nome, torna-se um ser vivo completo, mas também uma presa tentadora para a morte, a ladra vinda das trevas que tenta arrebatar o recém-nascido. Inicia-se então um encarniçado combate entre a mãe e a morte.

      

       Uma magia contra a morte

       A mãe dispõe de uma preciosa coletânea de fórmulas, experimentadas com êxito por gerações de mulheres e que lhe permitem proteger-se contra os maus espíritos, fantasmas, formas errantes e obscuras, de forma a abrigar o filho destas forças negativas. Elas procuram beijar a criança, e esse beijo será mortal. Estes sinistros fantasmas identificam-se facilmente: têm o rosto nas costas e olham para trás. Cabe à mãe estar sempre vigilante para que não se aproximem do berço.

      

       A mãe proclama que cada uma das partes do corpo do filho pertence a uma divindade; por conseguinte, nenhum demônio lhe tocará. Recorre à proteção dos céus e da Terra, da noite e do dia, de Hator, de Ra, da pedra fundamental, dos sete deuses que puseram a Terra em ordem quando estava deserta. Pede às divindades que protejam o nome da criança, o lugar onde se encontra, o leite que bebe, o seio a que se encosta, a veste que enverga. As fórmulas são repetidas de manhã e ao anoitecer sobre bolinhas de ouro e de ametista e um selo: Que a morte que vem na sombra desapareça, exige a mãe, que o seu rosto seja desviado, que esqueça por que veio; ela não beijará a criança, ela não a levará!

      

       Cada egípcia era uma Ísis para o seu filho, de modo que tinha de o acariciar frequentemente e de o magnetizar, como a grande deusa fizera com Hórus. A mão materna emitia uma energia positiva, indispensável à saúde da criança.

      

       A mãe dispunha de toda uma série de amuletos e talismãs: placas de marfim, plaquinhas e figurinhas de faiança representando gênios benfazejos, capazes de repelir as forças do Mal, tais como Bes, Tueris ou Aha, ”o combatente”. No túmulo de Bebi, em El-Kab, e no de Djehuti-Hotep, em el-Bersheh, vemos amas brandindo paus em forma de serpente para dissipar as trevas destrutivas. Gatos, antílopes, macacos, mulheres nuas discípulas da deusa Bastet protegem a criança, para a qual tocar música é excelente. Ao pescoço da criança e da mãe, um amuleto completa o dispositivo das disposições mágicas contra a morte.

      

       A morte prematura de uma menina

       O resultado do combate nem sempre foi favorável à mãe e ao filho; considerava-se que a morte fazia parte integrante do processo cósmico e que, apesar do sofrimento, era uma etapa da vida, muito para além do nascimento e da morte de ordem física.

      

       Na época tardia formulam-se expressões de revolta contra o falecimento. Assim, uma estela dá a palavra a uma menina morta em tenra idade e que considera a sua sorte como uma injustiça’: Eu venero o teu ka, senhor dos deuses, embora seja apenas uma criança; a desgraça atingiu-me quando era ainda uma criança! Quem te narra estes fatos é um ser que não cometeu nenhuma falta. Eu, uma menina, jazendo num lugar deserto, tenho sede e há água perto de mim. Fui arrancada à infância muito cedo... Sou demasiado jovem para estar só, eu que tanto gostava de ver muita gente e de ser alegre! Ó rei dos deuses, senhor da eternidade, para o qual todos vêm, dá-me pão, leite, incenso, água vinda do teu altar, pois eu sou uma menina e não cometi nenhuma falta!

      

       A DAMA TA-IMOTEP E O AMOR DA FAMÍLIA

       O drama de uma grande dama

       Antes da época baixa, os documentos egípcios interessam-se pouco pelas datas de nascimento e da morte. No tempo dos Ptolomeus, sob a influência grega, a situação evolui, e o anedótico sobrepõe-se ao sagrado. Por isso, dispomos de testemunhos a propósito de certas personalidades, com a dama Ta-Imotep, ”a devotada a Imotep”, nascida a 17 de Dezembro de 73 a.C. A sua história é-nos contada numa estela’ datada do reinado de Cleópatra; nela vemos Ta-Imotep venerar Osíris, o senhor do Além, e outras divindades.

      

       Aos catorze anos, Ta-Imotep desposou Pa-Cheri-en-Ptah, ”o jovem filho de Ptah”, que será sumo sacerdote deste mesmo Ptah em Mênfis. Ta-Imotep era uma mulher encantadora, dotada de um caráter excelente e de uma voz convincente; era amada por todos e de bom grado a consultavam para obter conselhos judiciosos. Em suma, o retrato clássico de qualquer grande dama do Egito, bem conhecido graças à literatura anterior. Filha de um sumo sacerdote e de uma sacerdotisa executante musical, manifestava uma maturidade real, apesar da sua tenra idade. O marido de Ta-Imotep foi um grande personagem do Estado; ”escriba do deus na Casa dos Livros”, possuía a qualidade de ”olhos e ouvidos do rei”, ou seja, de confidente do faraó.

      

       Ta-Imotep deu três filhas ao marido, mas sofria por não ter um filho. Como obter satisfação, a não ser dirigindo-se ao seu protetor Imotep, o mestre-de-obras que construíra a pirâmide em degraus para o faraó Djoser, o mago, o médico, o modelo dos construtores, escribas e sábios?

      

       Imotep não ficou insensível à dor da sua protegida. Apareceu em sonhos ao marido de Ta-Imotep, seu sumo sacerdote, e pediu-lhe que realizasse uma bela obra e a depositasse no seu templo. Tratava-se, certamente, da remodelação de uma antiga capela. O sumo sacerdote cumpriu a tarefa.

      

       No dia 15 de Julho de 46 a.C., à oitava hora do dia, Ta-Imotep deu à luz um rapaz. Infelizmente morreu jovem, no dia 15 de Fevereiro de 42 a.C., aos trinta e um anos. O seu marido cumpriu por ela os ritos necessários e construiu-lhe uma morada eterna.

      

       Os protestos de uma defunta

       Na sua estela funerária, Ta-Imotep pede às divindades pão, cerveja, carne de vaca, aves, incenso, unguentos, roupa e todas as boas coisas provenientes do altar dos deuses. Mas, no texto da mesma estela, queixa-se amargamente da sua sorte.

      

       O Ocidente, onde se encontra para sempre, é uma terra de sono e de trevas; os defuntos são privados da visão e acabam por perder a memória. Grandes e pequenos estão nas mãos da morte que, insensível aos queixumes, ataca onde e quando quer, podendo mesmo arrebatar a criança que caminha ao lado do velho.

      

       Ta-Imotep tem sede da água da vida, que já não pode beber. É o seu marido que deve voltar a dar-lha! Que aproveite os prazeres da vida durante os anos que passará na Terra. E que todos os que vêm à sua sepultura lhe façam uma oferenda de água e de incenso. Que esperar longe do homem amado, longe dos seus filhos?

      

       A reunião da casa no outro mundo

       O marido de Ta-Imotep morreu um ano após o desaparecimento da esposa. De fato, nem um nem outro podiam perder a esperança, pois sabiam que as famílias justas aos olhos de Maat continuavam a viver no Além. Efetivamente, existia uma fórmula muito antiga que permitia reunir a casa para sempre: Reunir a casa, pai, mãe, amigos, companheiros, filhos, mulheres, companheiras, trabalhadores, servos... Foi verdadeiramente eficaz milhões de vezes.

      

       Áton, Ra, Geb e Nut (o Criador, a Luz divina, a Terra e o céu) garantem esta ventura. Assim não sendo, o pão e as carnes já não seriam depositados nos altares e as barcas não seriam fabricadas. Se assim for, as oferendas serão trazidas e a barca de Ra será acompanhada por tripulações de estrelas indestrutíveis e infatigáveis.

      

       E eis que Ta-Imotep, como os outros justos, terá o coração alegre e conhecerá o eterno júbilo, porque a sua casa será reconstituída no Além.

      

       A modernidade da família egípcia

       À estrutura da família egípcia do tempo dos faraós parece-nos simples e evidente: um pai e uma mãe com os mesmos deveres e direitos, e os seus filhos. Este núcleo central é acompanhado de um profundo respeito pelos avós.

      

       Mas esta estrutura não é tão comum como parece-, as famílias africanas e muçulmanas, por exemplo, funcionam de maneira diferente. Além disso, a família egípcia antiga não é muito numerosa; na povoação de Deir el-Medina, a maior compreendia quatro filhos, sendo a média de dois. Havia casais sem filhos e vários solteiros. Não esqueçamos que os sábios recomendavam que não se censurasse as mulheres que não queriam ou não podiam ter filhos.

      

       Os laços que uniam o casal eram muito fortes. Embora dedicassem um grande afeto à sua prole, os egípcios, como veremos, defendiam uma educação muito estrita. Cada membro da família tinha uma responsabilidade individual e não se podia abrigar atrás do seu clã para se furtar a uma sanção. Mas os membros de uma família tentavam preservar a sua riqueza coletiva ao longo das gerações. Uma família notável que favorecia o bem-estar de todos e a coerência do núcleo familiar.

      

       O BANQUETE DA DAMA ITUY

       Entre as venturas da vida do Antigo Egito, há uma que a mulher de categoria não quereria perder por nada: a participação num banquete. Em certos casos, como o da dama Ituy, tratava-se até de organizar e preparar as festividades de modo a que os convidados guardassem uma excelente lembrança da noite que iam passar na sua casa florida e perfumada.

      

       O marido da dama Ituy chama-se Horemheb. É escriba real e dos recrutas. Trata, pois, de escolher entre os voluntários os que lhe parecem aptos para fazer parte do exército regular.

      

       Nas cozinhas reina uma ruidosa agitação; prepara-se carne, peixe, pães e bolos. Os servos deitam vinho e cerveja em ânforas que serão levadas para a mesa do banquete, na qual está posta uma preciosa baixela composta por taças de ouro, prata e alabastro, bem como diversas louças. A dama Ituy tem de estar em toda a parte para verificar se não falta nada e se nenhum pormenor foi esquecido.

      

       Quando os convidados chegam, entre os quais mulheres muito bonitas, vestidas e enfeitadas, os anfitriões recebem-nos com calorosas palavras de boas-vindas. A dama Ituy deseja-lhes vida e saúde, invocando a proteção das divindades. Graças a elas, todos gozarão de boa saúde e apreciarão os bons momentos da festa.

      

       Terminadas as cortesias, entrava-se em casa. As belas damas, de finos e leves vestidos transparentes, avançavam graciosamente. Tinham levado horas a escolher uma maquiagem apropriada, a armar um penteado de complicadas tranças, a perfumar-se e a vestir-se com todo o requinte.

      

       Há uma hierarquia na sala de banquete: o casal anfitrião preside, sentado em cadeiras de madeira. Os convivas dispõem de cadeiras, banquinhos e coxins.

      

       Os casais não costumam misturar-se. Marido e mulher estão juntos durante o banquete e manifestam discretamente a sua ternura, passando a esposa o braço sobre os ombros do esposo.

      

       Instalados os convivas, começa a circulação das servas, a maior parte delas jovens, enquanto as executantes musicais produzem delicadas harmonias que inspiram agradáveis figuras às bailarinas. As servas oferecem flores de lótus às damas, que elas aspiram, deleitadas; enfeitam-lhes o pescoço com grinaldas e colocam-lhes na cabeça bem como na dos homens - cones de gordura perfumada que, ao derreterem, emanam odores suaves. Os convivas são igualmente perfumados, ungidos e massageados.

      

       As ementas dos banquetes eram copiosas: entradas, carne, peixe, segundos pratos, legumes e sobremesas. Havia uma certa exigência quanto à qualidade e à preparação dos alimentos e selecionavam-se cuidadosamente excelentes vinhos, sobretudo provenientes do Delta e dos oásis. As belas convidadas apreciavam os prazeres da mesa, ao mesmo tempo que ouviam os versos das poetisas que celebravam a generosidade dos deuses e a perfeição da sua obra, e lhes agradeciam por terem revelado o amor aos humanos, colocando-o nos seus corações.

      

       Algumas bailarinas eram profissionais e faziam-se pagar caro para animarem os banquetes, outras eram jovens que queriam provar o seu talento e fazer admirar os seus encantos. A pintura de uma casa de Deir el-Medina representa uma jovem vestida unicamente com um véu transparente; toca oboé ao mesmo tempo que esboça um graciosíssimo passo de dança com as pontas dos pés. A artista usa um colar e pulseiras nos pulsos e nos tornozelos.

      

       Um harpista de olhos fechados ou uma harpista de olhos abertos entoavam um cântico ritual para desejarem aos convivas um dia feliz e para que tomassem plena consciência dos momentos de felicidade que viviam. Todos sabiam que a vida na Terra é uma simples passagem. Desde que a humanidade respeitasse o seu principal dever, que consiste em conhecer as leis eternas da Criação, os acontecimentos terrestres desenrolar-se-iam em harmonia, como acontecia neste banquete em que a beleza das mulheres é uma das mais admiráveis expressões da alegria celeste. Que o marido trate da sua bem-amada irmã, dando-lhe os melhores perfumes e as mais magníficas flores. Que todos gozem esta alegria partilhada, preparando-se para, mais cedo ou mais tarde, alcançarem a terra do silêncio.

      

       E eis uma atração espetacular: uma bailarina, simbolizando o Sul, pousa delicadamente o pé na nuca da sua colega, que simboliza o Norte; depois, lançam-se em verdadeiras figuras acrobáticas. Algumas executantes batem palmas para ritmar a representação. Uma cena admirável no túmulo de Naqt, o astrônomo, em Tebas: uma jovem de grande beleza, vestida apenas com um cinto de pérolas, toca alaúde ao mesmo tempo que dança, acompanhada por uma harpista e uma flautista.

      

       O repertório das cenas de banquete evita mostrar-nos os convidados a comer. Em contrapartida, vemo-los a beber. As servas deitam vinho e cerveja nas taças, que oferecem às mulheres e aos homens. Estas bebidas destinam-se a regozijar o ka, o poder energético do ser. Eis o que diz a dama Ituy, dirigindo-se ao marido: Para o teu ka! Passa um dia feliz na tua bela morada eterna, com o rosto virado para Amon-Re, teu senhor, para que ele possa amar-te.

      

       Não esqueçamos que o banquete simboliza a existência do além-túmulo. Não há melhor evocação da beleza eterna do que este repasto festivo, no decurso do qual cada conviva descobre uma infinita gama de prazeres subtis, do sabor de um vinho aos encantos da conversa. O banquete constitui um momento privilegiado, onde todas as formas de vida se entrecruzam. A dama Ituy pode orgulhar-se de ter regozijado o coração dos seus convivas.

      

       NEFERU, DONA DE CASA

       Uma tarefa essencial

       No Médio Império foi atribuído à mulher o título de ”dona de casa” (nebet per), abrangendo a totalidade das suas funções desde a origem da civilização egípcia.

      

       A dama Neferu deu-lhe os seus pergaminhos, pois era rainha, esposa de um Mentuhotep. A dona de casa, afirma um texto, possui um caráter encantador; é aquela a quem todo o universo diz: Bem-vinda, bem-vinda sejas!’

      

       Ao casar, a mulher não perde nenhuma parcela da sua autonomia legal e jurídica, mas adquire uma pesada responsabilidade: dirigir efetivamente uma casa de maiores ou menores dimensões. O sábio Ani recomenda aos homens que não a importunem na sua casa perguntando-lhe por este ou aquele objeto, pois encontrá-lo-ão arrumado no sítio certo. Admira o seu trabalho, exige o sábio, e cala-te. Em vez de resmungares e de criticares, mais vale ajudá-la de acordo com os seus desejos; pois não é ela feliz quando dá a mão ao seu marido? E conclui: Há mulheres cuja natureza consiste em fazerem tudo para pleno louvor do grande deus... Uma mulher que governa bem a sua casa é uma riqueza insubstituível.

      

       As dimensões da casa

       A palavra egípcia per, que traduzimos por ”casa”, significa também ”o domínio”; de fato, a ”dona de casa” reina sobre uma casa que não se restringe ao seu núcleo familiar propriamente dito, podendo incluir criados, animais, terras aráveis e até atividades artesanais.

      

       As dimensões da casa e o número de divisões dependem da fortuna dos donos. Foram encontrados poucos vestígios de cidades egípcias; apenas conhecemos, de maneira imperfeita, os vestígios de Kahun, cidade do Médio Império, de Deir el-Medina, localidade tebana do Novo Império, e de Tell el-Amarna, a capital de Aquenaton, no Médio Egito. As duas primeiras não são aglomerados vulgares mas cidades de artesãos rodeadas por uma muralha e cuja população ”especializada”, como a das ”cidades das pirâmides”, vivia em obediência às suas próprias leis. As casas de artesãos mais pequenas têm três divisões; as maiores, uma dezena. As casas dos mestres-de-obras, dos latifundiários ou dos dignitários da corte constituem grandes mansões com jardins, lagos e mais de setenta divisões. Em Deir el-Medina, as casas médias têm quatro divisões principais e umas traseiras que servem de cozinha.

      

       As construções eram, em todas as épocas, em tijolo não-cozido. Tinham geralmente um único piso, sempre com um terraço virado para Norte. Pequenas aberturas no telhado, cuidadosamente calculadas, deixavam entrar a luz mas impediam o calor; também permitiam a circulação do ar, que assegurava uma ventilação natural. Numa sala de visitas, colocada sob a proteção do deus Bes, existia um pequeno altar destinado a celebrar a memória dos antepassados. Contíguas aos quartos, havia salas de águas.

      

       No caso de uma grande mansão, havia ainda celeiros, oficinas, padarias, adegas e estábulos. Um importante elemento do mobiliário era a cama, cuja cabeceira estava fixada numa moldura em madeira. Havia ainda arcas em madeira, armários, banquinhos, ânforas de vinho e de azeite, e os utensílios necessários à cozinha, entre os quais são de notar sobretudo os fornos fixos ou móveis, fogareiros e marmitas.

      

       Sobre tal vasto domínio reinava a dama Neferu, cujo nome significa ”beleza”, ”realização”, pois tratava-se da corte de um rei!

      

       Cabia-lhe dirigir o pessoal para que nenhuma nota falsa perturbasse o dia-a-dia.

      

       Em Deir el-Medina, as mulheres dos artesãos tomavam conta da casa, mas dispunham do precioso auxílio das servas, que o Estado punha à sua disposição. Estas empregadas ocupavam-se sobretudo da moagem do trigo.

      

       A higiene

       Como qualquer outra dona de casa, Neferu prestava a maior atenção à higiene. A casa não era apenas perfumada, mas também desinfetada regularmente a fim de eliminar vermes e insetos; a fumigação era a principal técnica utilizada.

      

       A toilette matinal era indispensável, usando comumente substâncias saponáceas e esfregões para a pele; havia salas de águas e a obrigação de lavar as mãos e os pés antes de se entrar; a boca era purificada com natrão, e a roupa era lavada pelas lavadeiras, que a esfregavam com natrão em cima de uma larga pedra antes de a porem a secar ao sol: eis alguns aspectos da higiene egípcia, praticada em todas as camadas sociais. Eis a grande razão por que nenhuma grande epidemia dizimou o Egito dos faraós.

      

       Um episódio ilustra a exigência de asseio desta civilização. No final do Conto de Sinué, o herói, Sinué, pode finalmente entrar em casa após uma longa permanência no estrangeiro, onde trabalhara como informador. Quando foi recebido na corte, a rainha exclamou: ”É impossível! Tornou-se num verdadeiro beduíno!”. Como voltar a fazer dele um egípcio? Graças à higiene, lavando-o: uma passagem prolongada por uma sala de águas, barba feita, intervenção de um cabeleireiro, depilação, utilização de incenso e de unguentos, roupa de linho lavada. Quando nem uma onça de sujidade o conspurcava, Sinué reapareceu diante da rainha, que desta vez o reconheceu.

      

       Sustentar a casa

       Uma mulher excelente, de nobre caráter, escreve o moralista Anqseshonqy, é como sustento em tempo de fome. E sublinha também o papel da mulher na compra e na preparação dos alimentos.

      

       Neferu encarregou-se certamente do abastecimento do palácio; donas de casa mais modestas iam aos mercados ou adquiriam os produtos oferecidos por vendedores ambulantes e caravaneiros.

      

       A mulher executa na sua casa uma tarefa primordial: preparar o alimento de base, o pão de cerveja. Estamos a pensar numa célebre estátua conservada no Museu do Cairo e que representa uma robusta dona de casa em plena ação. De peruca negra e colar, tronco nu, pés descalços e com uma simples saia branca, ela enfia as mãos num enorme pote e amassa o pão, umedecido numa peneira pousada em cima de uma ânfora. Deste trabalho provirão ao mesmo tempo o pão cozido e a substância de base da cerveja, a cevada fermentada em água e aspergida com licor de tâmaras.

      

       É pouco provável que a grande dama Neferu tenha amassado o pão, mas conhecia esta técnica, que passava de mãe para filha. Peneirar, moer, amassar, pilar, são tarefas tradicionalmente reservadas às mulheres; em contrapartida, a cozedura é trabalho sobretudo para o homem. Cabe também ao homem a grande parte dos trabalhos agrícolas, sobretudo os mais pesados, bem como fazer o vinho, salgar ou secar a carne, preparar o peixe e, muitas vezes, cozinhar. Como vemos, a dona de casa não estava só.

      

       Por um acaso das escavações, foi num túmulo feminino da segunda dinastia que o arqueólogo inglês Emery descobriu uma refeição mumificada: faziam parte da ementa uma espécie de papa à base de cevada, uma codorniz e dois rins assados, guisado de pombo, peixe cozido, costeletas de vaca, fatias de pão, bolinhos redondos, compota de figo e bagas.

      

       Dona de casa para a eternidade

       Esperava-se que Neferu, como qualquer dona de casa, fosse ativa, competente e generosa, capaz de socorrer os aflitos, de dar pão aos famintos e de vestir os nus. Por isso toda a cidade a amava e cantava os seus louvores.

      

       Um baixo-relevo da décima oitava dinastia descoberto em Sacara, perto da pirâmide de Téti, situa a dona de casa noutra perspectiva: usa uma peruca negra, tem um cone perfumado na cabeça e enverga um vestido branco justo e preso sob os seios, sobre o qual usa um véu de linho transparente. Pratica um ato de adoração a Hator, soberana do Ocidente, que a acolhe no outro mundo. À sua fiel serva, que soube ser uma perfeita dona de casa, oferece a deusa outra morada, o templo celeste, onde as tarefas domésticas serão executadas por magia e onde ela será eternamente jovem, celebrada pelo marido como sua irmã, sua amada, digna de confiança, de amável disposição e de voz justa.

      

       A DAMA MUT EDUCA A SUA FILHA

       As brincadeiras infantis

       A dama Mut, cujo nome significa ”a mãe”, teve uma filha. A magia e os cuidados das parteiras foram eficazes e a amamentação proveitosa. Mãe e filha estão de boa saúde. Na sua qualidade de dona de casa, Mut tem muitas ocupações, nomeadamente ir ao mercado. Quando não pode confiar o bebê a um próximo, leva-o a tiracolo (de modo a ter as mãos livres), ao colo ou ainda sobre a anca. As núbias gostam de transportar os filhos num cesto ou às costas; se a egípcia optar por esta solução, segura a criança com uma faixa de linho.

      

       Quando a menina já sabe andar, pode ir brincar com outras crianças, nuas como ela, salvo quando está mais fresco; traz ao pescoço um amuleto protetor, muitas vezes uma conta azul-turquesa enfiada num cordão, para afastar o mau olhado. A menina andará nua até ser menstruada, embora não se vista para nadar ou dançar.

      

       Aprende muito cedo a nadar no rio, nos canais e, para os abastados, também nos tanques. Tem à sua disposição muitos jogos: bonecas de trapos, brinquedos em madeira (articulados ou não), jogos de sociedade, sem contar com a permanente companhia dos animais domésticos: cães, gatos e macacos sempre espertos.

      

       As cenas conservadas nos túmulos de Beni Hassan, no Médio Egito, revelam-nos distrações de meninas e raparigas novas. Longe da presença dos rapazes, as meninas fazem malabarismos com uma bola para provar a sua habilidade. As mais ágeis adotam uma posição complicada, montadas em cima das companheiras abaixadas. Pares de cavaleiras enviam assim a bola umas às outras.

      

       A ginástica era igualmente praticada. As mesmas cenas mostram-nos mulheres contorcidas de trás para a frente num exercício de flexibilidade, outras dão saltos com as pernas dobradas e os braços esticados, outras ainda praticam uma espécie de judô. Uma jovem bem direita desequilibra a sua adversária sobre o ombro numa atitude implacável.

      

       Estes exemplos muito vivos indicam que, longe de ficarem metidas em casa, as jovens egípcias tinham a possibilidade de praticar jogos e desportos. E não precisavam da autorização dos pais para se juntarem às amigas. No Antigo Egito, a ”libertação do corpo” era um fato consumado.

      

       O respeito devido à mãe

       Os egípcios antigos não prestavam culto à criança-rei. A dama Mut exige respeito e boa educação. Como qualquer criança, a menina é uma ”vara torta” que convém endireitar e que se distingue por dois grandes defeitos: a surdez às recomendações e a ingratidão. O papel da mãe consiste em abrir os ouvidos dos filhos, ”os vivos”, através dos quais passam os ensinamentos, fazendo-os ouvir as palavras dos sábios dirigidas às crianças: Restitui a dobrar o pão que a tua mãe te deu, e carrega com ela como carregou contigo. Foste para ela um encargo, fatigaste-a, mas ela não te descurou. Os seus cuidados não cessaram quando nasceste ao cabo de nove meses de gravidez. Deu-te de mamar durante três anos. Não se enojou com os teus excrementos, procurando tratar sempre de ti o melhor possível. Levou-te à escola. Aprendias a ler e ela estava sempre junto de ti, preparando-te pão e cerveja. Lembra-te de que a tua mãe te trouxe ao mundo e te criou com todos os cuidados. Cuidado, não possa ela censurar-te e levantar as mãos a Deus para se queixar de ti.

      

       Vários grandes personagens fizeram-se representar junto da sua mãe, orgulhosos de proclamar que eram ”filhos de fulana”, e muitos faraós homenagearam a sua progenitora, considerada como a encarnação da Grande Mãe.

      

       A educação da menina

       Ouvir música, aprender a cantar, a tocar um instrumento, a fiar e a tecer: a dama Mut procura que a sua filha seja um primor nestas especialidades associadas às deusas Hator e Neit. Elas permitirão à aluna dotada trabalhar num templo.

      

       A escrita e a leitura são acessíveis às raparigas e aos rapazes na escola da aldeia. Para ir mais longe, têm de dirigir-se à cidade ou serem admitidos na escola do templo. O fulcro de toda a educação mais ou menos avançada é o conhecimento e o respeito por Maat, a Ordem eterna. Para a aplicar no dia-a-dia, a menina deverá amar a verdade e detestar a mentira, evitar os excessos e as paixões destrutivas, não se julgar o centro do mundo, praticar a solidariedade, saber ouvir, saborear as virtudes do silêncio e falar sabendo o que diz, respeitar a palavra dada, não reagir ao mínimo impulso vindo do exterior, reconhecer em todas as coisas a presença do sagrado e do mistério e tentar ser reta.

      

       Quando o coração do ser esta aberto e consegue dizer e fazer Maat, esta prática é preferível a todos os saberes. Eis o caminho traçado para as raparigas e para os rapazes.

      

       NANEFER, A ESPOSA ADORADA

       TV T ao reclames contra quem não tem filhos, recomenda o sábio L j Ptah-Hotep na Máxima 9; há muitos pais aflitos, assim como muitas mães que deram à luz e outras sem filhos, mais serenas do que elas. No Antigo Egito, não ter filhos não é uma tara nem uma maldição; de acordo com o mesmo Ptah-Hotep, a falta de descendência carnal pode até facilitar o acesso a uma vida espiritual no interior do templo.

       Para um casal estéril e desejoso de educar um filho, havia a possibilidade da adoção. Não conhecemos em pormenor as modalidades do processo, mas implicava um investimento material. Um contrato de adoção proveniente de Tebas e datado de 536 a.C. é redigido sob a forma de um ato de venda. O pai adotivo ”compra” o filho, que declara: Estou satisfeito com o preço que pagaste para que eu seja teu filho. Sou teu filho, juntamente com os filhos que trarei ao mundo e todos os bens que possuo ou possuirei. Ninguém mais tem direitos sobre mim, nem pai, nem mãe, nem senhor, nem senhora.

      

       Existe um caso extraordinário, o da dama Nanefer, ”a Bela”. Os acontecimentos passam-se na vigésima dinastia, no reinado de Ramsés XI. A dama Nanefer era uma cantora do deus Sete e exercia os seus talentos rituais na cidade de Sepermeru, a atual Bahnasa; o seu marido Nebnefer era chefe de estrebaria. Eram um casal sossegado, que gozava de uma certa abastança numa tranquila cidade da província.

      

       E, contudo, Nebnefer sente-se angustiado. Tem medo de estar doente e aflige-se com o futuro da esposa. Não tiveram filhos e receia que, depois da sua morte, alguns membros da sua família contestem de alguma forma a herança de Nanefer.

      

       Nebnefer tomou uma surpreendente precaução: adotou a sua esposa, que assim se tornou sua filha única! ”Fez de mim sua filha”, explica ela.

      

       Foi necessário um documento escrito, redigido por um escriba diante de numerosas testemunhas: quatro chefes de estrebaria, dois soldados, várias mulheres, uma delas cantora de Sete. Doravante, e de modo explícito, Nanefer será a única legatária de todos os bens do seu marido, e ninguém poderá contestar a sua propriedade.

      

       Uma decisão sábia, pois a dama Nanefer sobreviveu muito tempo ao marido. Dezoito anos depois da sua morte, teve um comportamento nobre. Sempre à cabeça dos bens transmitidos pelo falecido esposo, pareceu-lhe justo favorecer os seus próximos, que durante a sua viuvez se haviam portado bem com ela.

      

       Efetivamente, Nanefer não voltou a casar e não teve filhos. O seu irmão mais novo, Padiu, manifestou-lhe afeto e consideração, como também a sua serva, mãe de três filhos, um rapaz e duas raparigas. Ora, Padiu, também chefe de estrebaria, apaixonara-se pela mais velha. A dama Nanefer facilitou o casamento adotando o irmão mais novo e legando-lhe a sua fortuna, que ele teria de partilhar com os três filhos da serva. Ela sustentara-os e ocupara-se da sua educação, mas em troca eles tinham-na tratado bem.

      

       Um belo exemplo de generosidade e gratidão, que merece que a dama Nanefer, mulher e filha do seu marido, permaneça na nossa memória.

      

       TRÊS CASOS TRISTES

       Uma esposa rejeitada

       A dama luteneb era esposa de um importante proprietário rural, Hekanaqt, e vivia no Médio Império, no reinado de Mentuhotep I. Era, mais precisamente, a segunda esposa deste autoritário personagem, que fazia frequentes viagens de negócios.

      

       Longe de casa, ele escrevia cartas e dava instruções no sentido de que a ordem reinasse sob o seu teto. Infelizmente, a dama luteneb não gozava da estima dos habitantes da casa, a mãe e os filhos de Hekanaqt, e sobretudo de uma serva, que fazia mil e uma maldades à esposa do seu senhor.

      

       Muito descontente e respeitador da sua mãe, Hekanaqt mostrou-se rude com os seus filhos e pediu ao seu intendente que despedisse a serva, o que não era fácil, pois era antiga na casa e exigia uma indenização.

      

       Finalmente, a atmosfera tornara-se sufocante para a dona de casa, que não soubera substituir a falecida esposa no coração dos seus filhos; só havia uma solução: o intendente devia tomar as medidas necessárias para que ela fosse ter com Hekanaqt. Rejeitada pela família, terá a pobre luteneb encontrado a felicidade junto do marido?

      

       A esposa adúltera

       Assentes num livre compromisso dos parceiros, os casamentos foram na sua maior parte sólidos e duradouros. Mas nem todas as egípcias eram fiéis. O Conto dos Dois Irmãos põe em cena uma bela jovem que, casada com o irmão mais velho, tentou seduzir o mais novo, cujo vigor via crescer de dia para dia. Desejosa de o conhecer carnalmente, convidou-o a estender-se a seu lado para passar um momento agradável.

      

       Quando injustamente acusada, a mulher podia recorrer a um método peculiar: proferia um juramento na presença do marido e de testemunhas e jurava que não tivera relações sexuais fora do casamento e que não conhecera carnalmente outro homem além do esposo. Este juramento lavava a acusada de quaisquer suspeitas. Numa sociedade como a nossa, em que a palavra dada não tem muito valor, tal atitude faz sorrir. No entanto, no Antigo Egito, prestar juramento e dar a sua palavra constituem atos de grande gravidade, que comprometem a pessoa na sua integridade. Jurar falso era destruir-se, pois esta falta incorria numa condenação definitiva pronunciada pelo tribunal do outro mundo. A mentirosa seria, pois, privada da vida eterna. A esposa que afirmava a sua fidelidade não o podia fazer levianamente; quanto ao marido, se fosse reconhecido culpado de ter acusado a mulher injustamente, devia-lhe uma compensação material.

      

       De acordo com os contos, o adultério podia ser punido com a morte. O irmão mais velho do Conto dos Dois Irmãos acabou por ter dúvidas acerca da fidelidade da mulher. Conseguindo obter as confidências do mais novo, ficou a saber a triste verdade. A sua vingança foi implacável: ao regressar a casa, matou a mulher e lançou o cadáver aos cães. Na narrativa intitulada Verdade e Mentira, é um filho que constata que a mãe engana o pai. Furioso, adverte-a de que vai convocar um conselho de família para a julgar. Noutro conto, datado do Antigo Império, Ubaoné, ritualista e mago, foi até à corte do seu rei, Nebka. A sua mulher aproveitou a ausência para folgar com um burguês no interior da magnífica propriedade onde vivia tranquilamente com Ubaoné. Distraídos num pavilhão à beira de um lago, os dois amantes não deram pela presença de um jardineiro que, indignado com este comportamento, preveniu o seu senhor.

      

       Ubaoné manteve a calma, mas fabricou um crocodilo de cera com treze centímetros de comprimento. Ao entardecer de um dia quente, o burguês teve vontade de se banhar. Quando entrou na água, o jardineiro introduziu nela o crocodilo de cera, que se transformou num monstro de quatro metros. Ubaoné convidou o faraó para vir a sua casa ver o prodígio. ”Traz o burguês”, ordenou o mago ao crocodilo; Ubaoné baixou-se, pegou no sáurio e mostrou ao soberano... uma figurinha de cera. ”Porquê esta demonstração?”, perguntou o rei. ”Para provar a minha infelicidade”, respondeu o mago, que narrou o seu infortúnio conjugal. O faraó lavrou a sua sentença dirigindo-se ao sáurio: ”Leva o que te pertence”. Transformando-se num monstro, o crocodilo arrastou o burguês para o fundo do lago. Quanto à mulher adúltera, foi queimada e as suas cinzas foram dispersas pelo Nilo.

      

       Excetuando estes textos ”exemplares”, a morte foi realmente aplicada como castigo do adultério? Nada o prova. Em contrapartida, este crime punha fim ao casamento. Se um homem pertencente a uma confraria profissional era reconhecido como culpado de adultério, era excluído e pagava uma multa; por seu lado, a mulher culpada saía de casa. Quer se tratasse de uma mulher ou de um homem, o adultério era considerado uma falta grave e implicava uma perda financeira prevista no contrato matrimonial.

      

       Que a viúva seja protegida

       Quando a morte separava os esposos, era muitas vezes acompanhada de desespero. E que pior destino para uma mulher, na maior parte das sociedades, do que a viuvez? No Antigo Egito, a viúva nada tinha a recear relativamente à sua situação material. Herdava e geria bens familiares, guardando pelo menos um terço para si e partilhando o resto com os seus, sem distinguir entre filhos e filhas. Mesmo que voltasse a casar, continuava a ocupar-se dos bens adquiridos durante a sua união anterior.

      

       Caso a família tivesse recursos modestos, a viúva podia recear a miséria; recorria então às autoridades administrativas, que deviam dar pão a quem tinha fome, água a quem tinha sede, vestir os nus e proteger as viúvas. Efetivamente, todo o notável devia ser ”o pai do órfão, o marido da viúva, o irmão da mulher repudiada”; por outras palavras, devia fazer bom uso da sua fortuna para atenuar a desventura dos desfavorecidos. Os sábios insistem: a viúva deve ser protegida. Pois não vive ela os sofrimentos de Ísis após a morte de Osíris?

      

       Dotada dos mesmos direitos que a mulher casada, a viúva era livre de decidir voltar a casar. E para o Egito faraônico, é uma glória o fato de ter manifestado uma solidariedade ativa para com as mulheres que passavam por tão dura provação.

      

       ANQIRI, A MORTA TEMÍVEL

       Um marido perseguido

       Vivia no final do Novo Império e tinha tudo para ser feliz. Formador dos oficiais de cavalaria em Mênfis, estimado na corte régia, tinha desposado uma mulher de qualidade, Anqiri, cuja beleza todos admiravam. Um excelente casamento e uma brilhante carreira, que contudo exigia frequentes deslocações; durante a sua ausência, o dignitário tomava as necessárias precauções para que nada faltasse à sua esposa.

      

       Quando, devido a uma promoção, teve de deixar a casa durante vários meses para residir numa caserna distante, enviou à mulher unguentos, vestuário e comida. Ao regressar a Mênfis, o marido encontrou a mulher com uma saúde periclitante. Imediatamente chamou um ”chefe dos médicos”. E eis que nessas horas de angústia chega uma ordem do faraó: tem de partir imediatamente para o Sul.

      

       A saúde de Anqiri degradou-se e morreu. O marido recebeu a trágica notícia a caminho do seu novo posto. Tão desesperado ficou que recusou todo o alimento. Quando regressou a Mênfis, dirigiu-se ao túmulo da esposa e chorou amargamente.

      

       Passaram-se três anos. O viúvo esteve inconsolável, roído pela tristeza. Interrogou-se acerca da origem do seu desalento e compreendeu que a defunta o martirizava no Além, exercendo contra ele uma injusta vingança. De modo que lhe escreveu uma carta cujo texto chegou até nós, uma extraordinária missiva dirigida por um homem deste mundo a uma mulher no Além.

      

       Ao espírito de Anqiri66: que fizeste de nocivo contra mim para que me encontre neste penoso estado? Que fiz eu de repreensível contra ti para justificar o fato de levantares a mão contra mim, sem que tivesse cometido maldade contra ti? Que fiz eu desde que fui teu marido até ao dia da tua morte? Qual foi o meu esquecimento para que ajas assim? É certo que agora queixo-me de ti com as minhas próprias palavras diante da Enéada que reside no Ocidente. Graças à carta que contém a matéria do nosso diferindo, um julgamento poderá ser pronunciado.

      

       Que terei eu feito contra ti? Tomei-te como esposa quando eras jovem e vivi contigo. Exerci diversas funções, mas estive a teu lado. ”Viveremos juntos”, prometi-te. Em todas as ocasiões, eu agia de acordo com os teus desejos. Ora, agora não me deixas em paz. Tu e eu temos de ser julgados para que se distinga o verdadeiro do falso. Quando eu instruía os oficiais de infantaria do faraó, assim como os homens das carruagens, mandava-os vir, eles prostravam-se diante de ti e ofereciam-te os presentes que te haviam trazido. Nunca te escondi nada em vida. Não deixei que te faltasse fosse o que fosse nem te fiz sofrer de forma alguma enquanto exercia as minhas funções; não podes acusar-me de me comportar como um rústico indelicado nem de ter entrado noutra casa (para cortejar outra mulher). Não podes censurar-me em nenhum aspecto do meu comportamento.

      

       Quando me desloquei para um novo posto e não pude deixar o meu acantonamento, fiz os possíveis, como sempre, para que não te faltasse nem alimento nem vestuário e para que fosses bem tratada. Não reconheces o bem que te fiz! Escrevo-te para que tenhas consciência da injustiça que cometes.

      

       Quando adoeceste, chamei um chefe dos médicos, que tratou de ti e agiu de acordo com todos os preceitos. Quando fui obrigado a seguir o faraó, indo para o Sul, e recebi a notícia da tua morte, passei oito meses inteiros sem me alimentar normalmente. De regresso a Mênfis, pedi dispensa ao faraó, dirigi-me ao local onde repousas, e chorei-te muito.

      

       Entreguei tecidos do Sul para a tua mumificação, mandei-te fazer inúmeras vestes (funerárias). Nada descurei em prol da tua felicidade.

      

       Ora, há três anos que vivo triste sem ter voltado a casar, quando um homem na minha situação não é obrigado a portar-se assim. Agi desta forma por amor a ti. Mas tu não distingues o bem do mal. Deverão, pois, julgar entre ti e mim. Vê que não conheci outra mulher.

      

       O viúvo estava convencido de que o espírito maléfico da sua falecida esposa ”tinha posto a mão sobre ele” e o perseguia sem razão. O tribunal do outro mundo proferiu, sem dúvida alguma, o seu veredicto.

      

       Uma esposa real no Além

       Pinedjem II, faraó da vigésima primeira dinastia, teve a infelicidade de ver morrer a sua esposa Neschons. Durante o funeral, tomou a precaução de colocar junto dela um papiro cujo texto lhe oferecia certas garantias.

      

       Efetivamente, Amon-Re prometia guiar o coração de Neschons, não permitindo que ela abreviasse a existência do marido nem introduzisse algo de nefasto no espírito de um homem. O deus inspirou a falecida: desejaria o bem ao seu esposo enquanto vivesse. Conceder-lhe-ia saúde, força e poder.

      

       Se bem que exercesse a mais alta das funções, a de faraó, Pinedjem II tinha, pois, medo e respeito pelos poderes sobrenaturais da sua falecida esposa. Viver no Além não significava desaparecer nem ser aniquilado, pelo menos quando a pessoa havia sido reconhecida justa pelo tribunal de Osíris. Acedendo à eternidade, a rainha Neschons continuava a ser a esposa do Faraó e a influenciar o seu destino.

      

       Se as vivas se revelavam por vezes perigosas graças aos seus encantos, as mortas eram-no às vezes bem mais. Um ostracon de Deir el-Medina evoca uma defunta que se dirige às divindades, dando-lhes ordens: exige que a sua filha a siga como um pastor ao seu rebanho. Caso contrário, deitará fogo à cidade de Busíris!

      

       Uma mulher escreve ao Além

       Se os homens se correspondem com as esposas defuntas, também as mulheres entram em contato com os falecidos maridos. Assim, um texto inscrito numa peça de olaria vermelha diz-nos que uma mulher escreveu ao seu defunto esposo porque o seu filho tinha graves problemas. E, contudo, ela comportava-se como uma viúva honesta e não tinha dilapidado os bens familiares. Se as oferendas funerárias à alma do defunto eram corretamente asseguradas, acaso ele se limitaria a assistir às desventuras dos seus sem reagir?

      

       Permanente diálogo dos vivos e dos mortos: uma realidade quotidiana no Egito faraônico.

             

       MULHERES TRABALHADORAS

 

       A DAMA NEBET (VIZIR) E OUTRAS MULHERES DA ALTA FUNÇÃO PÚBLICA

       O âmbito profissional da egípcia

       Muitas egípcias tinham uma profissão muito absorvente, que já evocamos: eram donas de casa. Mas muitas outras tiveram um ofício fora da vida familiar e ocuparam importantes funções, a começar pelas grandes esposas reais que estavam à cabeça do Estado, ao lado dos faraós.

      

       O braço direito do casal régio era o vizir, uma espécie de primeiro ministro com múltiplas tarefas. Oriundo das instituições do império otomano, o termo ”vizir” foi mal escolhido. O termo verdadeiro é tchaty, ”o da cortina”, ou seja, aquele que conhece os segredos do faraó porque foi admitido do outro lado do véu e sabe guardar silêncio ”correndo a cortina”. Encarregado de executar a vontade do soberano, qual Tot-Lua secretário de Re-Sol, o vizir jurava cumprir sem fraquejar todos os seus esmagadores deveres e devia observar uma total integridade sob pena de ser demitido das suas funções, as quais, precisa o texto da investidura, podiam ser ”amargas como fel”.

      

       Ora, uma inscrição do Antigo Império reserva-nos uma bela surpresa. Este documento conserva a memória dos títulos de uma dama Nebet, ”a soberana, a senhora”, que foi princesa hereditária (repaf), diretora (haty-hatet), filha de Geb, filha de Tot, companheira do rei do Alto e Baixo Egito, filha de Hórus e... juiz e vizir! O caso é raro, pois apenas conhecemos outra mulher que foi vizir, na vigésima sexta dinastia, um período deliberadamente inspirado na idade áurea do Antigo Império. Mas o fato não é considerado excepcional, e a inscrição não o realça particularmente.

      

       Quem era a dama Nebet? Esposa de Kui, não pertencia à família real, mas foi talvez a sogra do faraó Pépi I (sexta dinastia), que nela depositava a sua confiança; originária de Abidos, a família da dama Nebet era próxima do soberano. Filha de Hórus, tinha um olhar clarividente; filha de Tot, conhecia a língua sagrada; filha de Geb, tinha o poder: qualidades indispensáveis para ser vizir.

      

       ”Altas” funcionárias

       Na documentação poupada pelo tempo e pelas destruições, descobrimos acidentalmente que uma mulher podia ser governadora de uma província, de uma cidade ou de uma circunscrição administrativa, o que implicava um importante trabalho à frente de um pessoal numeroso. Uma mulher podia igualmente ser inspetora do Tesouro, superiora das estofas e da casa da tecelagem, dos cantores e dos bailarinos, da sala das perucas, etc. Em suma, e à exceção do exército, estavam-lhe abertos quase todos os sectores de atividade que caracterizavam a civilização faraônica.

      

       Uma vez que esta realidade era evidente para os egípcios, nenhum escriba se sentiu no dever de a sublinhar. Quantas grandes damas, imortais graças à escultura e à pintura, exerceram uma influência social determinante sem que fosse necessário proclamá-lo?

      

       Estamos a pensar em Merit-Téti, ”a amada do faraó Téti”, representada numa liteira no vasto túmulo de Mereruka, datado do Antigo Império; acompanham-na numerosas servas carregadas de leques, arcas e recipientes, algumas das riquezas que a responsável por um sector econômico tinha de gerir. Estamos a pensar ainda na dama Sennuy, que conhecemos graças a uma das raras estátuas individuais de mulher preservadas; esculpida em granito negro, foi descoberta no túmulo de Kerma, no Sudão, e encontra-se exposta no Museum of Fine Arts em Boston. Sentada, de mãos postas sobre os joelhos, é a própria imagem da serenidade e da dignidade. Que alta função exercia para ter sido imortalizada assim, sem marido nem filhos?

      

       A ESCRIBA IDUT E OS SEUS COLEGAS

       A dama Idut, escriba e latifundiária

       A recordação desta grande dama, cujo nome significa ”a jovem”, conservou-se graças ao seu túmulo em Sacara’, cujos baixos-relevos e inscrições abundam em importantes informações.

      

       O título de Idut, ”filha do rei, do seu corpo, (filha) que ele ama”, não significa que fosse a filha carnal de um faraó; ”venerada junto de Osíris, de Anúbis, do grande deus e do rei”, Idut foi, sem dúvida alguma, apreciada pelas suas excepcionais qualidades de gestora, uma vez que recebeu o cargo de ”latifundiária”, normalmente concedido aos homens.

      

       Aparece-nos envergando um cingido e transparente vestido branco que desce até aos tornozelos, com alças nas costas. Tem o pescoço ornado com um colar multicor. O penteado é admirável: trata-se de uma touca que deixa passar uma trança de cabelo caída sobre o pescoço. Na extremidade, um disco, característico das bailarinas e executantes musicais. Será um espelho, utilizado em certas danças rituais durante as quais as mulheres tentam captar a luz solar?

       

       Nas paredes do seu túmulo, Idut é representada em tamanho grande, dominando quatro registros onde se desenvolvem atividades agrícolas e artesanais, jogos, cenas de caça e de pesca. Numerosos funcionários estão prontos a executar as suas ordens.

      

       Fato raro para uma mulher, ela desloca-se de barco para assistir às obras que se efetuam nos pântanos; Idut é latifundiária e inspeciona atentamente, aspirando uma flor de lótus. É acompanhada por um servo; na margem, assistentes transportam panos e odres. Entre eles vêem-se escribas.

      

       Pormenor essencial: na barca de Idut segue o seu material de escriba, incluindo paleta, calamos, tintas e papiros. Idut sabe ler e escrever, e domina perfeitamente os hieróglifos.

      

       O transporte da estátua de Idut serviu de pretexto a uma cerimônia grandiosa. Os artífices encarregados de a levar até à morada eterna haviam avançado lentamente para o sul da pirâmide em degraus de Djoser, muito perto da entrada do gigantesco conjunto arquitetônico deste faraó. Haviam deitado água à passagem do trenó para o ajudar a deslizar. Depois, a estátua de Idut, diante da qual se havia queimado incenso, fora beneficiada pelos ritos de ressurreição. O rei e Anúbis haviam-lhe trazido oferendas a fim de que circulasse à vontade e em paz nos belos caminhos do Ocidente. O supervisor dos escribas, o mestre dos escribas e o arquivista assistiam ao funeral daquela que haviam servido fielmente.

      

       Agora, no paraíso do outro mundo, a dama Idut, acompanhada da sua ama, aspira o inefável perfume das flores imortais. Contempla os belos trabalhos dos campos banhados de uma eterna luz solar, os produtos das colheitas, as cidades felizes do Norte e do Sul, os camponeses que trazem os ricos produtos da terra, e saboreia a alegria das festas. E a eternidade da dama Idut será uma sucessão de dias felizes.

      

       Mulheres letradas

       A senhora e a protetora da Casa da Vida, morada do conhecimento e dos escritos, é uma deusa, Sechat; e existe um hieróglifo que mostra uma mulher manejando dois pincéis para escrever. As mulheres da corte sabiam ler e escrever, a começar pelas rainhas; no túmulo de Nefertari, por exemplo, vemos a grande esposa real recebendo a paleta de Tot e a taça com água para diluir a tinta. Na sua qualidade de escriba, a rainha pode ”dizer Maat” e, portanto, transcrever em hieróglifos a palavra divina.

      

       A prática da escrita era indispensável para entrar na administração. Ao longo de toda a História do Egito existiram mulheres escribas, por vezes conhecidas graças a documentos modestos, como no-lo revela um escaravelho do Museu de Berlim, que conserva a memória da escriba Idut, que viveu no Médio Império. Neste período, a mulher escriba dirigia o secretariado da rainha e outra pertencia à comunidade sagrada das ”esposas divinas”. Nos túmulos tebanos do Novo Império, a qualidade de mulher letrada é assinalada pela presença de uma paleta colocada sob a cadeira da dama escriba. Champollion foi o primeiro a publicar o papiro da dama Tentamon, que a mostra em adoração diante do deus Tot sob a forma de um cinocéfalo, detentor do material de escriba, que será necessário à iniciada para vencer as provas do Além.

      

       A maior parte dos textos egípcios não eram assinados, sendo pois difícil ou mesmo impossível identificar os seus autores. Mas é certo que algumas mulheres escreveram textos importantes, como a dama Nesi-Tanebet-Isheru, uma discípula da deusa Mut de Carnaque, e a filha do sumo sacerdote Pinedjem II, designada como ”a que trabalhava nos rolos de papiro de Amon-Ra”. Esta última compôs rituais e redigiu ”Livros dos Mortos”.

      

       Se as mulheres da alta sociedade eram letradas, o que dizer das outras? Muitos eruditos afirmaram, um pouco à pressa, que o povo era iletrado, como se a educação só tivesse aparecido nos tempos modernos. Os fatos desmentem este juízo apressado: entre os mais patentes, a correspondência das mulheres da povoação de Deir el-Medinas. Estas damas, esposas de lapidários, desenhadores, pintores e empreiteiros, escreviam a homens, recebiam cartas suas, e escreviam umas às outras. Qual era o assunto das cartas? Problemas da vida corrente: os mil e um pequenos problemas familiares, transações, confidências. Uma mulher tenta convencer o seu correspondente a aceitar uma leira de terra em troca do burro que lhe pediu emprestado e que deve restituir-lhe-, outra queixa-se de um amigo que a negligenciou quando estava doente; uma terceira protesta porque o seu correspondente não leva a sério as faltas de comportamento da esposa. E, depois, há uma lista de roupa para lavar e tantos outros pormenores a pôr por escrito. Modestas mulheres escribas, é certo, mas cujos testemunhos provam que a leitura e a escrita eram muito mais comuns do que se supunha.

      

       A DAMA PESESHET, MÉDICO-CHEFE

       A medicina egípcia foi muito afamada no mundo antigo; terapeutas de diversas nacionalidades vinham ao Egito aperfeiçoar os seus conhecimentos.

      

       Não só as mulheres tinham acesso às profissões médicas como também uma certa dama Peseshet, do Antigo Egito, foi nomeada superiora dos médicos, vendo-se assim à frente dos serviços de saúde do Estado. O título é especificado na sua morada eterna de Gize; o seu filho Aqehotep foi ”superior dos sacerdotes do ka da mãe do rei”.

      

       As mulheres podiam ser parteiras, enfaixadoras, massagistas, médicas, cirurgiãs; tal como os homens, começavam a carreira como especialistas. Só os melhores médicos acediam à categoria de clínicos gerais, que tinham uma visão de conjunto - um percurso inverso do que hoje conhecemos no Ocidente.

      

       A padroeira dos terapeutas de ambos os sexos era a deusa-leoa Seqmet, ”Aquela que exerce o domínio”; trazia ao mesmo tempo as doenças e a maneira de as curar. O profano não estava separado do sagrado: um médico, homem ou mulher, vivia uma iniciação na magia de Seqmet e na ciência de Tot.

      

       O segredo do médico era o conhecimento do ”funcionamento do coração”, concebido ao mesmo tempo como o músculo cardíaco e o centro energético de onde partiam os ”vasos”, vias de circulação que chegavam a todos os membros e veiculavam, sob diversas formas, a vida que irrigava o organismo. A dama Peseshet sabia tomar o pulso, examinar os olhos e a pupila, a cor e a textura da pele, apreciar a qualidade da circulação da energia nos vasos, em suma, estabelecer um diagnóstico e concluir com uma das seguintes três frases: ”uma doença que conheço e que tratarei”; ”uma doença que conheço e que tentarei tratar”, ”uma doença que não conheço e que não poderei tratar”.

      

       Peseshet tinha à sua disposição numerosos tratados médicos, que abundavam em observações rigorosamente classificadas, diagnósticos e prescrições. Os remédios eram extraídos dos três reinos, animal, vegetal e mineral; a medicina secreta das plantas fornecia ao terapeuta numerosas substâncias muito ativas, que deviam ser manipuladas com precaução, quer fossem extraídas da acácia, do sicômoro, da palmeira, do zimbro, de plantas e de ervas comestíveis, dos cereais, etc. O fígado de vaca e de burro, a bílis, as gorduras, o leite, o peixe, as serpentes, para citarmos alguns exemplos do reino animal, eram úteis aos preparadores de remédios. Em cirurgia, utilizava-se muito o mel, com importantes virtudes cicatrizantes e anti-sépticas que investigadores americanos acabam de redescobrir recentemente. E também se usava o cobre, o alabastro, o granito, o sílex, o natrão, terra da Núbia, arsênico e muitos outros elementos minerais que entravam na composição de certos remédios.

      

       A dama Peseshet aprendera a preparar poções, unguentos e cataplasmas; recorria muitas vezes a fumigações medicinais e prescrevia regimes alimentares correspondentes a esta ou àquela disfunção. Por exemplo, para lutar contra as consequências das doenças respiratórias, preconizava uma sobre-alimentação em substâncias gordas.

      

       Com o advento do cientismo, troçou-se desta utilização de substâncias repugnantes como a urina ou os excrementos líquidos de certos animais como os morcegos; porém, quando a médica Peseshet se servia desta matéria natural para a transformar em remédio e curar, por exemplo, um tracoma, fazia agir a vitamina A e um antibiótico. Por outras palavras, um tratamento atual.

      

       Entre as especialidades de Peseshet, a ginecologia ocupava um importante lugar, muito desenvolvida no Antigo Egito; existiam vários tratados consagrados aos ”remédios que convém preparar para tratar as mulheres”, segundo a expressão do Papiro de Ebers. É notável a importância atribuída à saúde da mulher, mostrando-nos, se acaso fosse necessário, o lugar essencial que ocupava na sociedade faraônica. À mulher que não queria ter filhos, Peseshet dava um tampão para colocar na vagina, impregnado de uma substância composta de colocíntido, tâmaras e espinhos de acácia esmagados em mel. Sabia praticar o aborto, lutar contra as menstruações anormais, demasiado abundantes ou insuficientes, e favorecer a fertilidade. Injeções vaginais curavam as metrites. Em casos complicados, a médica pedia à paciente que se agachasse em cima de um tijolo aquecido ao rubro, sobre o qual tinha espalhado um medicamento; a fumigação que assim se produzia no decurso de várias sessões vencia a maleita.

      

       Secreções vaginais e uterinas chamavam a atenção de Peseshet, que as examinava e procurava sinais de doença grave. Sabia estabelecer a relação entre uma afecção do útero e sintomas remotos. De modo que, quando uma mulher padecia de dores persistentes nas pernas e nos pés depois de caminhar, atribuía o fato a secreções anormais do útero e prescrevia banhos de lama. Quando uma paciente sofria do estômago e os remédios habituais não a aliviavam, Peseshet examinava a vagina e o útero. Se descobria um coágulo, mandava tomar durante quatro dias um hemético à base de azeite, cerveja doce e plantas para suprimir as náuseas, e massageava o ventre da enferma com uma pomada.

      

       É notável o diagnóstico do cancro do útero, e não menos o tratamento proposto, que, como Gustave Lefebvre observa, anuncia a terapia homeopática: Instruções a seguir quando uma mulher tem dores no útero ao andar. Dir-lhe-ás: ”A que cheiras?”. Se te responder: ”A carne queimada”, diagnosticas: ”É um tumor do útero”. E eis o que prescreverás: fumega-a com toda a espécie de carnes queimadas, precisamente quando cheira.

      

       O terrível mal era igualmente combatido com uma preparação à base de tâmaras frescas, de uma laurácea, de extratos de conchas marinhas, tudo pilado em água e exposto ao orvalho. Em seguida, o remédio era injetado na vagina.

      

       Aos remédios materiais, a dama Peseshet acrescentava a prática da ”magia”, ou seja, a capacidade para desviar o efeito da fatalidade. Não devemos troçar deste aspecto da sua arte, que lhe permitia ver o invisível e ir para além do quantificável e do observável.

      

       O útero pertencia à esfera do sagrado. Estava ligado a uma deusa, Tjenenet, comparada a um raio de luz. Útero cósmico, ela favorecia ao mesmo tempo os nascimentos materiais e espirituais. Deste modo, desempenhava um papel na coroação do faraó.

      

       Eis uma das mais belas conquistas da medicina faraônica, o mel da atividade quotidiana da dama Peseshet: ter percebido que a matéria não se dissocia do espírito e que o corpo humano está submetido a múltiplas forças, umas mensuráveis, outras mais subtis.

      

       AS DAMAS DO HARÉM

       A verdade sobre os haréns egípcios

       Harém... Palavra portadora de fantasmas, povoada de sultões libidinosos, de jovens lascivas educadas para satisfazerem os desejos do macho. A egiptologia teve a infeliz idéia de escolher a palavra ”harém” para designar uma importante instituição do Estado faraônico, ritual, educativa e ao mesmo tempo econômica, que nada tem que ver com as prisões de mulheres do mundo muçulmano.

      

       A confusão vem do significado do termo egípcio kheneret, ”lugar fechado”, que certos eruditos logo traduziram por ”harém” porque ali se encontravam comunidades femininas, que no entanto não eram formadas por reclusas, e que aí celebravam ritos em honra da divindade protetora do harém: por exemplo, Âmon, Min, Hator, Ísis ou Bastet. O caráter fechado do ”harém” egípcio, já que temos de continuar a chamar-lhe assim por um hábito dito ”científico”, está ligado ao seu aspecto secreto. Além disso, o termo khener significa igualmente ”tocar música, manter o ritmo”, e veremos que o ensino da música era, efetivamente, uma das funções dos haréns egípcios.

      

       Discípulas da deusa Hator, as sacerdotisas que aí viviam asseguravam ritualmente a sobrevivência da alma e a irrigação da Terra pela energia celeste. Uma ”Venerável (shepesef) está à frente do harém, e a superiora de todos os haréns é a própria rainha. Na sua qualidade de ”esposa do deus” e de soberana de todas as sacerdotisas do reino, ela dirigia estas instituições na sua totalidade: preocupava-se com os programas educativos, nomeava os professores, zelava pela boa saúde econômica dos estabelecimentos e pela prática justa dos ritos. Em cada harém, uma encarregada representava a rainha, quer como diretora delegada, quer como assistente de um diretor, muitas vezes chefe de província ou sumo sacerdote.

      

       Devemos imaginar o harém como um pequeno aglomerado com serviços administrativos e numerosas oficinas; a instituição dispunha de rendimentos de raiz e recebia provisões vindas dos seus próprios domínios. Mer-Ur, o grande harém do Faium, tinha uma reserva de caça e de pesca.

      

       O fato de pertencer à administração do harém era muito apreciado e abria caminho a brilhantes carreiras ao serviço do Estado. Personagens de grande estatura como Hapuseneb, o sumo sacerdote de Amon, ou os vizires Requemiré e Ramosé aí ensaiaram os seus primeiros passos.

      

       No Novo Império, a direção dos haréns foi por vezes confiada a mulheres, esposas de sumo sacerdotes de Amon. Aliás, as damas do harém parecem ter exercido uma importante influência na nomeação dos altos dignitários do clero tebano.

      

       Entre as primeiras atividades artesanais do harém figurava a tecelagem, destinada a fornecer ao templo as vestes indispensáveis ao culto e a ilustrar o processo da Criação relacionado com a deusa Neit, que havia tecido o mundo à mão e pelo Verbo. As mulheres também fabricavam objetos de toilette como pequenos cofres e potes para pós.

      

       No harém eram admitidos altos funcionários, administradores, artesãos, servos; em suma: toda uma população de homens e mulheres que formavam uma micro-sociedade. As rainhas e as esposas ”secundárias” gostavam de mandar criar os seus filhos nos haréns, onde recebiam uma educação de qualidade. Moisés, filho de uma dama da corte, teria descoberto a sabedoria dos egípcios no internato de um harém. Futuras sacerdotisas beneficiavam do saber dos professores. Era um lugar tão tranquilo que altas personalidades aí vinham terminar os seus dias; é provável que a grande rainha Tiyi tenha morrido no harém de Gurob, um paraíso na Terra, para onde se havia retirado.

      

       As estrangeiras que vinham habitar o Egito na qualidade de ”esposas diplomáticas” do faraó eram hóspedes privilegiadas dos haréns. Garantes da paz e da amizade entre o Egito e o seu país de origem, tinham direito a um tratamento excepcional: boa casa, numerosa criadagem, vida dourada para fazer esquecer o exílio.

      

       As damas do harém aprendiam a tocar vários instrumentos musicais como o alaúde, a harpa, a flauta, a lira, etc., iniciando-se também no canto e na dança. Estas artes tinham uma função mágica, pois a sua harmonia afastava as forças negativas e congregava as positivas. Pela música, a alma eleva-se ao divino e todo o ser sublima-se. Embora ainda não tenha sido possível identificar a notação musical do Antigo Egito, supondo que tenha existido, nunca será de mais sublinhar a onipresença da música nos ritos e no quotidiano.

      

       Uma inscrição do túmulo de Mereruka, em Sacara, datada do Antigo Egito, revela ”o segredo das mulheres do harém”: trata-se de uma dança ritual em que participam sete mulheres divididas em dois grupos, o primeiro de três dançarinas e o segundo de quatro. Encarnam na Terra a dança do universo, na qual o próprio faraó participa quando evolui diante de Hator, padroeira das iniciadas do harém.

      

       Um harém em Luxor?

       Certos autores falam do templo de Luxor como o ”harém do Sul”, expressão tão ambígua que se chegou a imaginar que este castelo divino abrigava jovens magníficas prontas a seduzir o faraó. Se bem que isso possa decepcionar os apreciadores de cenas trepidantes, o templo de Luxor só abriu as suas portas a austeros ritualistas encarregados de captar e de fazer viver na Terra a energia divina.

      

       A confusão vem da má tradução do termo egípcio ipet, que não significa ”harém” mas sim ”o lugar do número”. Em Luxor, templo do ka real, era revelado o mistério da Criação, composto por um conjunto de ”números”, de características próprias a cada um dos seres criados. Ipet era também o nome de uma deusa que encarna no hipopótamo fêmea; no seu santuário de Carnaque, Osíris era relembrado e ressuscitado. Em Dendera, ”a morada de Ipet”, existia um templo de Ísis onde se celebravam igualmente os grandes mistérios da ressurreição de Osíris.

      

       O conluio do harém

       Um dos mais sombrios episódios da História egípcia é conhecido pelo nome de ”O conluio do harém”, que visava assassinar o faraó Ramsés III (1184-1153), o construtor de Meclinet Habu e o salvador do Egito, uma vez que tinha vencido temíveis invasores, ”os povos do mar”.

      

       Qual a razão deste drama? O harém régio tinha acolhido inúmeras princesas estrangeiras, algumas das quais passavam a maior parte do seu tempo a urdir intrigas. Muitas foram inofensivas, mas uma delas tomou uma amplitude tal que foi registrada nos arquivos reais e chegou até nós com alguns pormenores, graças ao Papiro jurídico de Turim.

      

       Neste documento, Ramsés III dirige-se ao seu sucessor Ramsés IV para lhe explicar as modalidades do conluio que havia turbado os últimos anos do seu reinado e para o precaver em relação ao futuro. A instigadora da afronta era uma concubina real, Tiy, que desejava fazer subir ao trono o seu filho, o príncipe Pentaur, que Ramsés III decidira afastar do trono. Desiludida e rancorosa, Tiy havia tomado a pior das decisões: suprimir o faraó reinante através da magia negra. Tomando para seu principal acólito um homem chamado ”o cego” (alcunha que lhe foi dada por castigo no decurso de um processo, após a supressão do seu verdadeiro nome), pediu-lhe que reunisse o máximo de conjurados: entre eles, um general, dois escribas, um mago, um sumo sacerdote de Seqmet, um administrador do Tesouro, um intendente real, vários altos funcionários do harém e seis mulheres, que serviam de agentes de ligação.

      

       Apesar da extensão das ramificações, a manobra fracassou. Os conjurados foram identificados e presos, tendo comparecido diante de juizes. O processo começou de maneira lamentável, pois suspeitava-se que dois magistrados haviam pactuado com os acusados. Em contrapartida, o segundo processo permitiu a juizes íntegros fazerem justiça por fim. Embora a horrível maquinação tivesse fracassado, consideraram que a intenção de suprimir o faraó e a prática da magia negra eram crimes de excepcional gravidade. O príncipe Pentaur, cuja cumplicidade com a sua mãe havia sido provada, foi reconhecido como culpado; ”deixaram-no onde estava e ele próprio pôs fim à vida”. Quanto a Tiy, a alma do conluio, desconhecemos a sorte que lhe coube.

      

       MULHERES DE NEGÓCIOS

       Hemet-Ra, chefe de empresa

       Na imensa área arqueológica de Gize, as moradas eternas estão cheias de informações apaixonantes e revelam muitas personalidades femininas de primeiro plano. Assim, a dama Hemet-Ra, ”a serva da Luz divina”, era uma verdadeira chefe de empresa.

      

       Tinha ao seu serviço um intendente e vários escribas... Mas não possuía empregados! As cenas do seu túmulo, destinadas a perpetuar a sua existência no outro mundo, celebram a autoridade desta princesa, que distribuía as suas diretivas a vários funcionários e que provavelmente geria todo um sector administrativo.

      

       Tchat, especialista em finanças

       A dama Tchat, ”a jovem”, vivia no Médio Império, durante a décima segunda dinastia, na magnífica região de Beni Hassan no Médio Egito. Nesta época, os chefes das províncias eram ricos proprietários rurais e ocupavam uma importante posição no reino. Ora, a dama Tchat trabalhava como funcionária na casa do poderoso

      

       Knum-Hotep, governador local. Muito estimada e influente, possuía os títulos de ”tesoureira e guardiã dos bens do seu amo”; por outras palavras, era ministra das finanças de um governo local.

      

       Representada ao lado de Quéti, a dona da casa, a dama Tchat era a confidente do seu patrão, e talvez tenha sido até mais, se é certo que casou com ele depois da morte da sua mulher e que lhe deu dois filhos.

      

       Tchat é certamente uma das gloriosas antepassadas das mulheres dedicadas à gestão das finanças públicas e capazes de assegurar a prosperidade de uma região.

      

       Nenuphar, proprietária rural

       No Antigo Egito, são mulheres maravilhosamente belas que simbolizam os domínios agrícolas; vemo-las nas paredes dos templos e dos túmulos em procissão, trazendo as suas riquezas aos deuses ou ao ka do defunto. A partir da terceira dinastia, e certamente antes, reconheceu-se a aptidão jurídica da mulher para possuir uma grande superfície agrária, e esta disposição legal perdurou durante todo o regime faraônico. Apesar do seu modesto título de ”bailarina”, a dama Nenuphar, que vivia no Novo Império, foi uma mulher de negócios muito ativa. Estava à frente de uma importante exploração agrícola e era também a patroa de uma equipa de representantes do comércio encarregados de vender os produtos das suas explorações.

      

       Qualquer mulher, mesmo solteira ou viúva, podia encarregar-se de uma propriedade familiar, e não constatamos nenhuma diferença de tratamento social ou jurídico em relação a um proprietário do sexo masculino. Uma mulher como a dama Sebtitis pode comprar, vender e dispor dos seus bens como entender e, tal como a dama Ipip cerca de 775 a.C., tinha o direito de utilizar um agente comercial para efetuar transações.

      

       Existem vários exemplos de mulheres proprietárias de terras; é o caso da dama Hetepet, que assiste à colheita do linho enquanto lhe servem de beber; ou da dama Ify, sozinha a bordo de um barco, sentada numa cadeira cúbica de costas baixas e aspirando uma flor de lótus enquanto percorre os seus domínios.

      

       Henut-Tauy, interina

       No ano 12 de Ramsés XI, a dama Henut-Tauy exercia as funções de cantora de Amon em Tebas, mas também tinha ocupações profanas e administrativas no harém do deus. O seu marido, Nes-Amenipet, escriba da necrópole, teve de partir em viagem oficial quando contava superintender à chegada de uma carga de trigo destinada à confraria de Deir el-Medina, tarefa particularmente importante uma vez que os construtores e decoradores das moradas eternas do Vale dos Reis não suportavam o mínimo atraso nas entregas dos gêneros que lhes eram devidos.

      

       Não podendo furtar-se às ordens ou renunciar à viagem, o escriba confiou na sua esposa para o substituir. Henut-Tauy não era nenhuma novata; tinha assento no tribunal local e ocupava-se da organização das festas.

      

       Quando os barcos acostaram, ela própria verificou a quantidade de trigo anunciada e constatou que havia um erro. Determinada, procedeu imediatamente a um inquérito a fim de identificar os responsáveis e assegurou a entrega de rações alimentares aos artífices de Deir el-Medina. Dotada dos mesmos poderes que o marido, a dama Henut-Tauy substituiu-o com notável eficácia.

      

       O gado de Takaré

       Na época ramessida, a dama Takaré, cujo nome indicava o poder (ka) da Luz (Ra), geria o gado por conta do seu proprietário. Por razões que ignoramos, este último ficou descontente com o trabalho de Takaré e recorreu a outra mulher para se ocupar do seu gado.

      

       É fácil imaginar o descontentamento da dama Takaré, que contudo teve um motivo de satisfação: a sua rival contratou-a! Tendo, por certo, considerado que Takaré havia sido despedida de maneira abusiva, chegou a aliar-se com ela para apresentar queixa contra o proprietário. E esta queixa chegou à mais alta instância jurídica, o tribunal do vizir!

      

       A solidariedade feminina não era, pois, uma palavra vã. Mas uma grande dama também podia intervir a favor de um explorador agrícola; quando um proprietário rescindiu o contrato de um dos seus rendeiros, a sua mulher desaprovou a decisão e convenceu o marido a mudar de parecer, sendo obrigado a escrever ao rendeiro: Tinha-te anunciado que não te autorizava a continuar a explorar as minhas terras. Mas a minha esposa, dona da casa, disse-me: não lhe retires o campo e deixa-o continuar a explorá-lo.

      

       Urnero, administradora de bens

       Cerca de 1550 a.C., o faraó Amósis doara a Neshi, capitão de um navio de guerra, um terreno perto de Mênfis a título de bem inalienável e indivisível. Os herdeiros, porém, contestaram esta disposição e, no reinado de Horemheb, um tribunal deu-lhes razão. Mas a batalha jurídica continuou. A situação tornou-se tão confusa que, no reinado de Ramsés II, três séculos depois da doação de Amósis, a dama Urnero’’, administradora deste bem, conheceu sérios aborrecimentos.

      

       Descendente do capitão Neshi, Urnero recebera do tribunal o direito de cultivar as terras em nome dos seus cinco irmãos e irmãs; mas uma das irmãs manifestou o seu desacordo e exigiu que o terreno fosse dividido pelos seis herdeiros. Urnero e o seu filho recorreram, mas foi expulsa e a sua queixa não foi ouvida.

      

       Revoltado contra esta injustiça, o seu filho Mês não desanimou e mandou examinar os documentos da doação. Qual não foi a sua surpresa ao verificar que alguns documentos haviam sido falsificados! Mês teve de provar que era descendente do capitão Neshi, que o seu pai tinha cultivado aquelas terras e pagara os impostos. Embora o fim do texto tenha sido destruído, é certo que o corajoso Mês ganhou o processo e deu uma grande alegria a Urnero, que, na sua qualidade de administradora, não se tinha apartado do caminho certo.

      

       A última mulher de negócios independente

       De origem grega, Apolônia vivia em Pathyris, trinta quilômetros a sul de Tebas, no século II a.C. Filha de um soldado, possuía também um nome egípcio, Sen-Montu, ”a irmã de Montu (deus-falcão e guerreiro de Tebas)”. Os seus avós, os seus pais e outros familiares possuíam igualmente nomes gregos e egípcios; vindos de Cirene, tinham-se instalado no Egito e adotado o modo de vida local.

      

       Aos vinte anos, Apolônia desposou Dríton, um quadragenário viúvo, oficial de cavalaria e pai de um filho; dar-lhe-á cinco filhas. Na altura do casamento, Dríton designou como legatários o seu filho, a sua esposa e os filhos que esta tivesse.

      

       Embora reinassem no Egito soberanos gregos, os Ptolomeus, as egípcias gozavam ainda dos direitos reconhecidos e aplicados no tempo dos faraós indígenas. Mas os tempos tornaram-se ameaçadores; efetivamente, os gregos opunham-se inteiramente as liberdades que o antigo Direito egípcio concedia às mulheres. Parecia-lhes uma abominação o fato de estas possuírem autonomia jurídica e capacidade de gestão das suas terras. Contudo, nenhum rei grego ousara ainda modificar a legislação vigente há tantos séculos.

      

       Vinte e quatro anos depois de casar, Dríton quis deserdar a mulher, um ato fácil de realizar na Grécia, mas impossível no Egito. Tudo o que Apolônia adquirira por casamento era seu. A jovem conservava igualmente, tal como as suas irmãs, as terras herdadas do seu pai, tendo embora de sofrer as investidas do tio-avô, sinistro personagem chamado Aríston, que não reconhecia às mulheres o direito de possuírem e gerirem um domínio, por modesto que fosse. Baseando-se no Direito egípcio, Apolônia aguentou, arrendou as suas terras, emprestou dinheiro e trigo a um veterano e continuou a subsistir à custa dos negócios.

      

       Porém, no reinado de Ptolomeu IV Filopátor (221-205 a.C.) tivera início a tão desejada reforma dos gregos: doravante, a mulher, considerada um ser infantil e irresponsável, deveria ter um tutor, guardião legal da esposa, que assinaria todos os atos jurídicos.

      

       Como Apolônia deve ter ficado abatida! Para tornar válidos os seus empréstimos e arrendamentos, teve de recorrer a Dríton, o seu detestado marido. Neste final do século II a.C., as egípcias tinham perdido a independência e a autonomia.

      

       MULHERES NOS CAMPOS

       Que lugar ocupava a mulher no trabalho dos campos numa civilização agrícola como o Egito faraônico? Por vezes, o primeiro, como a dama Ashait, ”aquela que possui a abundância”, sacerdotisa de Hator e ”único ornamento real”. Rica e considerada, assistia ao desfile do gado sentada numa cadeira com patas de leão e aspirando uma flor de lótus. Estendendo a mão direita, Ashait dominava a cena e a situação; grande relativamente aos outros personagens representados nas paredes do seu túmulo, era a senhora do domínio agrícola. Todos lhe deviam obediência e a todos ela devia o bem-estar.

      

       Atrás dela, uma serva refresca-a com um leque em forma de asa de pássaro; um servo apresenta-lhe um pato, que segura pelo pescoço e pelas asas, e pronuncia a forma ritual: ”para o teu ka”. Naturalmente, uma equipa de escribas escrupulosos e meticulosos tomava nota do número de cabeças de gado e da quantidade de trigo armazenado nos celeiros.

      

       Se podia possuir, dirigir e gerir um domínio agrícola, uma mulher estava dispensada dos trabalhos pesados que exigiam grande força física.

      

       Limpar o trigo e joeirar são, em contrapartida, tarefas atribuídas muitas vezes às mulheres, que manejam o crivo, uma espécie de pá oval. Um pouco debruçadas para a frente, as joeiradoras levantam alto o seu instrumento, de modo a fazerem cair o trigo longe delas. Quando se forma um monte, intervêm as peneireiras, que eliminam as impurezas. Varredoras estão encarregadas de limpar o terreno e de varrer a palha. É necessário joeirar várias vezes até acabar o trabalho. Ainda que existissem corporações mais ou menos informais de joeiradoras, peneireiras e varredoras, este tipo de trabalho não lhes estava estritamente reservado, podendo ser confiado a homens.

      

       As mulheres participavam de maneira modesta mas ativa nas vindimas; vemo-las colher as uvas, sozinhas ou com a ajuda de camponeses; e, graças às cenas de banquetes, sabemos que as damas apreciavam bons vinhos.

      

       Existia uma função de ”guardiã do jardim”, que implicava mais uma vigilância do que uma atividade de terreno; efetivamente, jardinar era considerado como um trabalho duro, nomeadamente porque era necessária uma irrigação quotidiana e repetitiva. Os jardineiros queixavam-se de dores no pescoço, de tanto carregarem com paus na extremidade dos quais estavam pendurados pesados baldes de água.

      

       Uma mulher, representada na mastaba de Ipi-ankh, em Sacara, foi célebre. Trata-se, porém, de uma pobre camponesa, de uma ceifeira que acompanha as colheitas manejando a foice. Curvada e idosa, tem na mão um cesto com asas, onde mete as espigas que tem o direito de juntar. Esta ceifeira tem o seu feitio, e mostra-o depois de uma descompostura cujo teor ignoramos, protestando com veemência: ”Preguiçosa, eu? Se todos os dias sou a primeira a trabalhar!”. E cumprimentos de uma ceifeira que não sentia nenhum peso na consciência.

      

       Uma informação aparentemente inquietante: os trabalhos agrícolas prosseguem no outro mundo. É certo que existem os uchebtis, ”os que respondem”, figurinhas mágicas ativadas por quem conhece as fórmulas mágicas para os animar. Em certos casos, os ressuscitados continuam a manejar a charrua, a lavrar e a ceifar, mas estão sorridentes e serenos, envergando imaculadas vestes brancas, pois a pena e a fadiga desapareceram para darem lugar à simples beleza do ato cumprido.

      

       É assim que, no pequeno mas magnífico túmulo de Senectjem, em Deir el-Medina, vemos o marido ceifar as espigas de trigo ao mesmo tempo que a mulher as apanha e as mete num cesto. Li-Nefer, ”A bela vem”, é uma ceifeira feliz-, os campos da eternidade têm para ela o sabor do paraíso.

      

       O ARTESANATO NO FEMININO

       Mulheres ”chefes de trabalhos”

        Pelo esforço exigido, a maior parte das atividades artesanais eram exercidas por homens. Não conhecemos mulheres lapidárias, carpinteiras, furadoras de recipientes, pedreiras, etc. Mas há um caso enigmático datado do Antigo Império.

      

       O sumo sacerdote do deus Ptah de Mênfis era considerado como o chefe dos artesãos do reino; a palavra ”Path” significa, aliás, ”moldar, criar”. Ora, duas mulheres, suas ”irmãs”, possuíram o título de ”diretoras dos trabalhos (kherpet kaf)”, o que é pelo menos surpreendente. Mas de que trabalhos se tratava? A inscrição não especifica, e a nossa curiosidade fica insatisfeita.

      

       Inenu, cabeleireira

       Um baixo-relevo da décima primeira dinastia, conservado no Brooklyn Museum, revela-nos a existência de uma cabeleireira, a dama Inenu, ”Aquela que traz a energia”. Vemo-la arranjar um caracol e preparar uma peruca. Esta atividade artesanal não é apenas profissional, mas está relacionada com o culto de Hator, que exige da parte das suas fiéis uma cabeleira e uma peruca cuidadas.

      

       A arte capilar e os cuidados corporais não eram reservados às mulheres; homens houve que exerceram este tipo de profissão na corte, nas cidades e nos campos. A sua sala de espera andava com ele e situava-se à sombra de uma árvore.

      

       No túmulo de Psamético, datado da vigésima sexta dinastia, aparecem graciosas jovens que colhem lírios e os arrumam em cestos. Certamente são perfumistas, encarregadas de preparar ao mesmo tempo unguentos medicinais e produtos de beleza. Cada templo abrigava uma oficina de criação de perfumes, usados no culto diário.

      

       A arte da tecelagem

      

       A arte da tecelagem era um dos principais ensinamentos ministrados num harém. Constituía ao mesmo tempo uma disciplina especulativa, que iluminava o espírito das iniciadas acerca dos mistérios da Criação, e uma disciplina operativa, ensinando-as a concretizar manualmente o que haviam percebido de forma abstrata. Tecer e criar eram, de fato, concebidos como o mesmo ato.

      

       Na origem da Criação está a deusa Neit, que utiliza a arte da tecelagem para organizar o universo. Assexuada, dá à luz o Sol. Ísis e Néftis eram artesãs, encarregadas de confeccionar as vestes das divindades, Ísis tecia a veste chamada ”sólida e coerente” e Néftis fiava ”o puro. As duas deusas teciam juntas as palavras mágicas, eficazes contra os venenos e as enfermidades.

      

       As iniciadas nos mistérios da tecelagem confeccionavam vestes brancas destinadas a envolver o cadáver de Osíris durante a celebração dos seus mistérios. Era na oficina de tecelagem, chamada nayt, que duas sacerdotisas, desempenhando os papéis de Ísis e Néftis, criavam os panos funerários. Quanto à tecelã Chentayt, ”a Venerável”, fabricava faixas na Casa da Vida e fiava os nós que serviam para fixar os degraus da escada que o rei erguia para subir aos céus.

      

       Parece que no Antigo Império a arte da tecelagem foi quase exclusivamente confiada a mulheres; as ”superioras das tecelãs” dirigiam oficinas de especialistas, cujo trabalho era muito apreciado. No Novo Império, alguns homens foram admitidos nestas oficinas, chegando a dirigi-las.

      

       Sentada no chão, a tecelã utilizava um caule curvo como lançadeira e trabalhava num tear de simples confecção, composto por dois paus que serviam de cilindros e de dois outros que fixavam o órgão. No Novo Império aparecem novas técnicas, como um pente para apertar. As fiandeiras não têm rocas, mas possuem uma habilidade extraordinária no manejo do fuso, revelada nomeadamente pelas cenas figuradas nos túmulos de Beni Hassan.

      

       A produção das oficinas era importante: faixas, mortalhas, vestidos, tangas, lençóis, ligaduras, telas, etc. O comprimento das peças de tecido podia chegar aos 22 metros! O templo precisava de numerosas peças de vestuário ritual, umas para vestir as estátuas divinas e outras para os sacerdotes e as sacerdotisas. Um relevo do templo de Luxor mostra-nos o rei e uma grande sacerdotisa caminhando atrás de uma procissão de sacerdotes que carregam cofres. No interior destes estão as vestes para as estátuas do culto. Utilizando um cetro, o rei consagra-as quatro vezes e a grande sacerdotisa recita um hino; o Verbo, composto por palavras tecidas e fiadas, torna eficiente o ato de sacralização.

      

       Uma mulher piloto naval

       O Nilo não oferecia ao Egito apenas a fértil vasa de que hoje se encontra cruelmente privado devido à alta barragem de Assuão, mas servia-lhe também de auto-estrada fluvial. Embora a roda fosse conhecida desde o Antigo Império, os transportes terrestres eram pouco desenvolvidos; era mais fácil construir barcos, e alguns deles tinham de suportar cargas muito pesadas.

      

       Imaginamos, pois, uma intensa circulação de barcos de diversos tamanhos, o que exigia uma grande competência da parte dos pilotos. Ora, num túmulo de Sacara, datado da quinta dinastia, está representada uma mulher manejando o leme de um barco de transporte!

      

       Um marinheiro oferece-lhe um naco de pão, mas a capitã responde-lhe, mal encarada: ”Não me tapes a vista quando me preparo para acostar”. Era evidentemente uma mulher de caráter.

      

       SERVAS OU ESCRAVAS?

       Até mesmo em obras consideradas sérias ainda se pode ler que o Egito faraônico conheceu a escravatura. Neste campo, a influência exercida por filmes como Os Dez Mandamentos é importante; muitas pessoas acreditam ainda que milhares de escravos, chicoteados por sádicos contramestres, construíram as pirâmides à custa do seu sofrimento e do seu sangue.

      

       Não é fácil apagar esta imagem absurda e inexata. Na Grécia e em Roma, alguns trabalhos eram executados por escravos, que se podiam comprar e vender, mas nada disto acontecia no Egito. Nenhum ser humano era considerado como um objeto sem alma. E, contudo, por que continuam certos egiptólogos a utilizar esta terminologia? Devido a um erro de tradução que se tornou num desses ”hábitos científicos” contra os quais é tão difícil lutar.

      

       Trata-se do termo egípcio bem, geralmente traduzido por ”escravo”, mas que nunca teve este sentido. Bem significa ”servo” e aplica-se primeiro ao faraó, na sua qualidade de servo das divindades. Do ponto de vista egípcio, servir é um ato nobre, e não servil. Por isso, nas moradas eternas eram colocadas estatuetas de servos e servas (igualmente representados nas paredes do túmulo) e que eram assim associados à ressurreição do amo. Estamos a pensar nas maravilhosas portadoras de oferendas, imortalizadas numa atitude de dignidade, de graça e de sorridente gravidade; o ato que praticam é essencial: oferecer é contribuir para manter a presença divina neste mundo.

      

       As grandes damas reinavam sobre uma casa mais ou menos numerosa; no seu domínio trabalhavam servas, algumas delas muito jovens. Entre elas havia núbias e asiáticas, sobretudo a partir do Novo Império. As servas egípcias eram pessoas responsáveis, que gostavam de se mostrar independentes da patroa. Quando era preciso, mulheres de condição modesta também podiam recorrer a profissionais do serviço da casa ou da sua manutenção, que alugavam as suas competências por um dado período. Todas as servas podiam possuir bens e terras, assim como legá-las livremente aos seus filhos.

      

       Merece ser mencionada a aventura da dama Iri-Neferet. Esta dona de casa da classe média precisava de uma serva, e não de uma escrava, como geralmente se indica. Para a arranjar, dirigiu-se a um comerciante, que lhe propôs os serviços de uma síria a um preço elevado: seis travessas de bronze, várias peças de vestuário em linho, uma coberta e um pote de mel. Iri-Neferet teve de pedir emprestado à vizinha. Um empréstimo que não pôde pagar a tempo e que lhe valeu um processo.

      

       O ”trabalho alugado” era prática corrente no Egito, e não deve ser assimilado à escravatura. Nem tão-pouco a ”corvéia”, uma forma de requisição de trabalhadores nas grandes obras ou nas vastas explorações agrícolas em certos períodos. Tratava-se de uma espécie de imposto a pagar sob a forma de horas de trabalho. E as pessoas que trabalhavam como criados sabiam fazer-se pagar pelas suas competências; as tarifas eram livres, e por vezes mesmo proibitivas: Um boi em troca de quatro dias de trabalho!

      

       O único caso de trabalho obrigatório, não-livre, era a posição de criado infligida aos prisioneiros de guerra. Mas já vimos que as estrangeiras podiam casar com os egípcios e os estrangeiros com egípcias. Uma vez adquirida a liberdade, muitos ex-prisioneiros integravam-se na sociedade egípcia.

       

       Os eruditos que persistem em utilizar o termo ”escravos” são obrigados a admitir que estes possuíam bens próprios, casavam com quem entendiam, legavam os seus bens aos filhos, deixavam o patrão ou a patroa quando queriam... e até tinham criados! Esta ”escravatura” merece verdadeiramente esse nome?

      

       Até ao fim da civilização faraônica, existiu uma forma particular de ”servidão” voluntária: a dedicação ao culto de uma divindade e a pertença a uma comunidade sagrada. Foi assim que, no ano 33 de Ptolomeu Evergeta III, uma mulher formulou o desejo de viver no templo do deus Sebeq em Tebtunis, no Faium. Recusando toda a independência profana, colocou-se sob a proteção desta divindade, que lhe dava equilíbrio e saúde. Em troca da sua aceitação, ofereceu bens materiais ao templo.

      

       O Egito faraônico não foi uma civilização da escravatura e da servidão, mas sentiu um profundo respeito pelo ato de servir, como testemunho da primeira máxima do ensinamento do sábio Ptah-Hotep: Uma palavra perfeita é mais oculta do que a pedra verde, e contudo encontramo-la junto das servas que trabalham na mó.

      

       RECOMPENSAS E CASTIGOS

       Ouro em troca de trabalho bem feito

       Como vimos, todas as mulheres podiam trabalhar fora de casa e nem o pai, nem o marido, nem outro homem tinham a possibilidade de a fechar em casa. O historiador grego Heródoto ficou espantado ao constatar que as egípcias andavam à vontade, frequentavam os mercados e tinham atividades comerciais. Quando recebiam um salário, não era inferior ao de um homem pelo mesmo trabalho.

      

       Tecelãs e fiandeiras exerciam uma profissão tão importante aos olhos das autoridades que as suas obras-primas eram recompensadas de uma maneira notável. Um baixo-relevo da época baixa põe em cena cinco mulheres pertencentes a uma comunidade artesanal.

       Estão na presença de um grande personagem, ”o escriba dos livros Divinos”, assistido por um escriba sentado e um intendente. Este último chama uma das mulheres e entrega-lhe um colar e outras jóias, como recompensa pelo trabalho bem feito. Um texto precisa reiteradamente que estas tecelãs são honradas pelo ”dom do ouro”. Estas riquezas provinham de uma câmara do tesouro que o escriba dos livros divinos aceitara abrir; o que saía era cuidadosamente registrado por um ”escriba do ouro”.

      

       O drama de uma camponesa

       Téti era uma alegre camponesa que vivia no Médio Império. Colocada sob as ordens de um escriba dos campos, recusou trabalhar e fugiu, uma falta muito grave que desencadeou um inquérito policial. Membros da família de Téti, suspeitos de cumplicidade, foram detidos e encarcerados na ”grande prisão”, termo utilizado para designar um centro administrativo onde se estabelecia um cadastro judiciário e se repartiam os trabalhos de utilidade pública em função das penas infligidas aos condenados: manutenção dos diques, saneamento dos canais, tarefas agrícolas... - o leque era vasto.

      

       Téti foi informada das consequências catastróficas da sua fuga e teve um comportamento notável. Não suportando a idéia de que inocentes fossem condenados em seu lugar, apresentou-se na grande prisão.

      

       A menção ”presente”, associada ao seu nome, prova que executou o trabalho que lhe foi exigido. Para obter o perdão definitivo, foi certamente obrigada a fazer horas extraordinárias nos campos.

      

       Mulheres e homens eram iguais perante a lei, e por conseguinte perante o castigo. Dois pormenores: uma mãe condenada a trabalhos de utilidade pública não era separada do seu filho. E a mulher não era responsável pelas faltas do marido, não podendo sofrer por ele as penas que lhe eram impostas.

      

       Os crimes da dama Héria

       No ano 6 do reinado de Séti II, um operário da povoação de Deir el-Medina apresentou-se diante do tribunal local e acusou a dama Héria de lhe ter roubado um utensílio de valor que tinha escondido em casa.

      

       ”Roubou o utensílio?”, perguntou a Héria o presidente do tribunal. ”Não”, respondeu ela. ”Pode jurar pelo deus Amon e afirmar que diz a verdade?”. Héria jurou. Apesar das suas declarações e de um juramento mais ou menos balbuciado, o juiz teve dúvidas. O inquérito prosseguiu e chegou à constatação de graves fatos: foram encontrados em casa de Héria não apenas o utensílio roubado mas também objetos rituais furtados do santuário local!

      

       O caso era importante: roubo, sacrilégio e falso juramento. O tribunal da aldeia não tinha competência para fixar e aplicar uma pena pesada, de modo que remeteu o caso para a jurisdição do vizir. Não sabemos como prosseguiu o processo, mas os jurados de Deír el-Medina tiveram o cuidado de indicar por escrito que um caso precedente de condenação da mulher de um funcionário por roubo não tinha obtido o indulto. Nenhum privilégio devia entravar a justiça.

      

       LEGATÁRIAS E HERDEIRAS

       A mulher deixa legados

       A egípcia conserva ao longo de toda a vida uma autonomia jurídica que nem mesmo um segundo casamento põe em causa. Ninguém lhe pode tirar os seus bens, e dispõe deles como lhe apraz.

      

       Na terceira dinastia, a dama Nebsenit, mãe do alto funcionário Meten, possuía um importante patrimônio. Sem ter de recorrer à autoridade do marido, Nebsenit redigiu um testamento a favor dos seus filhos e especificou o modo como devia ser repartida a sua fortuna.

      

       Outra dama do Antigo Império, Ibeb, insistiu no fato de ela própria ter legado os seus bens ao filho, que no entanto vivia com o pai. O filho reconheceu: ”Adquiri riquezas na casa do meu pai Iti, mas foram-me legadas pela minha mãe Ibeb”. Outra dama, Quenet, agira da mesma forma.

      

       É inútil multiplicar os exemplos; o que importa é a independência da egípcia e a sua capacidade, extraordinária aos olhos das culturas antigas e mesmo modernas, de dispor dos seus bens como lhe aprouvesse.

      

       A mulher também herda

       Como filha ou como esposa, a egípcia podia receber uma herança, na totalidade ou em parte. Bens móveis e imóveis eram legados às mulheres como aos homens, e o sexo masculino não gozava de nenhum privilégio especial. Em caso de litígio por sucessão, uma mulher pode fazer valer os seus direitos sobre uma propriedade de raiz e ganhar a causa.

      

       Idu, sacerdote da alma dos faraós Pépi I, Merenré e Pépi II, indica que doou uma terra a Dysneq, ”Que ela possa dar-te”, sua amada esposa, e que a terra é doravante propriedade verdadeira desta. Agiu deste modo porque Dysneq foi uma esposa exemplar, E declara a herdeira: Fui digna de ser amada, e toda a minha cidade me amou. Se alguém tentasse tirar-me as terras, eu apresentaria queixa, com o apoio do grande deus.

      

       Um sacerdote de Medinet Habu, na margem ocidental de Tebas, voltara a casar depois de ter enviuvado e legara os seus bens à segunda mulher. Mas tivera de resolver problemas jurídicos para legalizar o ato. Eis que se escreveram estas frases espantosas: Ainda que a herdeira não fosse sua esposa, ainda que fosse uma estrangeira, uma síria, uma núbia que ele amasse e à qual tivesse decidido ceder um dos seus bens, quem poderia anular o que ele fez?

      

       Uma mulher a quem tentam espoliar não fica inativa. Vejamos o caso da dama Tehenut. O seu pai voltara a casar com a dama Senebtisy e lavrara um contrato de doação a favor dela e dos seus filhos. Ora, Tehenut apresentou queixa contra ele, não por causa da união à qual não se podia opor, mas porque o seu pai tinha disposto de bens que lhe pertenciam a ela. Enumerou-os e exigiu que lhe fossem restituídos. Uma vez que lhe haviam sido legados, pertenciam-lhe a ela e a mais ninguém.

      

       O testamento da dama Naunaqté

       No ano 3 do reinado de Ramsés V, a dama Naunaqté, ”A cidade é poderosa”, habitava a povoação de Deir el-MeDina’.

      

       Idosa e senhora de algumas riquezas, pensou em redigir o seu testamento, uma vez que, de acordo com os seus próprios termos, era ”uma mulher livre no país do faraó”.

      

       Debruçando-se sobre o seu passado, constatou que tinha criado oito pessoas, filhos e servos; dera a estes entes queridos a possibilidade de fundar um lar e de o equipar, concedendo-lhes os bens necessários. Era difícil ser mais generosa... Mas que ingratidão por parte daqueles que havia cumulado de benfeitorias! A maior parte deles tinham-na abandonado por estar velha.

      

       Naunaqté tomou uma decisão espetacular. Legou o que possuía a quem ”colocasse a mão sobre a sua”, ou seja, a quem prestasse assistência a uma velha senhora, sem estar à espera de recompensa. ”Àquele que cuidar de mim”, declarou na presença de testemunhas, ”legarei uma parte dos meus bens; àquele que não o tiver feito, nada darei”.

      

       Por isso, quatro filhos foram deserdados; poderiam ter obtido parte da herança do pai, um escriba, mas é provável que este tivesse seguido o parecer da mulher, deserdando também estes filhos ingratos.

      

       Naunaqté beneficiou três artesãos, tendo um deles recebido um gomil em metal que valia dez sacos de trigo, e duas mulheres. E a sentença do tribunal foi clara: ”Quanto aos escritos redigidos pela dama Naunaqté a respeito dos seus bens, permanecerão tal e qual”.

      

       INICIADAS E SACERDOTISAS

 

       O EGITO, REINO DA ESPIRITUALIDADE FEMININA

       Se na terra do Egito não existiam desigualdades entre homens e mulheres, o mesmo acontecia no céu, no paraíso do outro mundo, e no domínio do espírito. Neste aspecto, a humanidade regrediu muito.

      

       No tempo dos faraós, uma mulher podia ocupar as mais altas funções sagradas. A rainha do Egito era soberana de todos os cultos, celebrava os rituais, delegava os seus poderes espirituais e litúrgicos em grandes sacerdotisas que oficiavam nas principais cidades do país.

      

       A este magnífico desenvolvimento da espiritualidade feminina, não mais conhecido desde a extinção da civilização faraônica, acrescenta-se outra dimensão não menos admirável: a ausência de rivalidade espiritual e intelectual entre homens e mulheres. Trabalharam juntos nos templos e formaram comunidades dirigidas ora por um homem ora por uma mulher, embora existissem caminhos iniciáticos especificamente masculinos ou femininos, que no entanto se cruzavam no essencial, e os grandes mistérios eram celebrados por um casal formado pelo rei e pela grande esposa real69. Este casamento espiritual era, de resto, proclamado alto e bom som na festa da união de Hórus de Edfu, o princípio masculino, e de Hator de Dendera, o princípio feminino.

      

       A egípcia que desejasse iniciar uma via espiritual tinha acesso ao ensino dos templos e não precisava de intermediários masculinos entre ela e o conhecimento. Nekanq, nobre do Antigo Egito e sumo sacerdote de Hator, teve de repartir o seu cargo sacerdotal entre os filhos. Um deles era uma filha. Nekanq não fez diferença entre ela e os rapazes: a filha foi investida de uma função tão importante como a dos seus irmãos e, segundo a regra rotativa do serviço do templo, exerceu-a durante o período fixado.

      

       Além disso, no campo da busca espiritual, a condição social e a fortuna não contavam; entravam no templo e participavam nos ritos damas ricas, mulheres e raparigas modestas, mulheres casadas, viúvas ou solteiras. Face ao universo divino, só a qualidade do ib, o coração-consciência, contava.

      

       As grandes sacerdotisas possuíam títulos diversos, como por exemplo ”a esposa (hebeset, a saber: Hator, a esposa de Hórus)”, em Hierakonpolis, capital da XII província do Alto Egito; ”a protetora (khuyt)”, em Atríbis; ”o trono”, em Edfu; ou ainda ”a mãe do deus” ou ”aquela que amamenta”.

      

       A rainha Hetep-Heres era sacerdotisa de Hator, de Neit e da alma do faraó Quéops. Meresanq estava ao serviço de Tot, Nefret era ”sacerdotisa pura” do deus Upuaut, o fazedor dos caminhos que guiava as procissões. De acordo com uma estela conservada no Museu Britânico, a dama Sement, mãe de um escriba, era sacerdotisa Pura do deus Qonsu, que atravessava o céu como a lua. De acordo com uma inscrição da mastaba de Chepsi em Sacara (quinta dinastia), Ni-Kau-Hator, ”Aquela que está ligada ao poder de Hator”, era sacerdotisa de Neit; envergando um comprido vestido cingido, protegia magicamente o seu esposo, passando o braço direito pelas suas costas e pousando a mão no seu ombro. Conhecemos ”vigilantes do deus Min” e uma ”esposa de Min”; a princesa Inti, que viveu na sexta dinastia, foi ”companheira de Hórus”. Filha do rei, possuía um túmulo próximo da pirâmide do faraó Téti. Quanto à dama Rahemet, era grande sacerdotisa da pirâmide do faraó Unas e reconhecida como ”justa de voz” pelo grande deus, a deusa Hator, Senhora dos sicômoros, Anúbis, Neit e Upuaut.

      

       A partir da sexta dinastia, o nome da pirâmide do soberano reinante foi associado aos nomes e aos títulos da mãe do rei, da sua esposa e das suas filhas. Estas tornavam-se, pois, ”esposa da pirâmide”, ”mãe da pirâmide”, assim exercendo a sua proteção mágica sobre o monumento mais essencial.

      

       No Antigo Império, as mulheres estão mais ligadas aos cultos e aos rituais de Hator e de Neit, duas grandes deusas criadoras, mas também são sacerdotisas de Tot, o deus do conhecimento, de Ptah, Min, Sebeq e outros poderes divinos.

      

       Uma sacerdotisa com uma posição elevada na hierarquia não tinha de preocupar-se com as suas condições materiais de existência na medida em que se consagrava ao templo; em contrapartida, recebia cerca de um hectare e meio de terra arável e uma parte das doações feitas à comunidade que dirigia. O seu cargo era pesado, pois tinha de assegurar a boa realização dos ritos quotidianos, das numerosas festas, e de governar um pessoal composto por permanentes e eventuais. As mulheres, como os homens, dividiam-se em quatro equipas e exerciam alternadamente as suas funções durante um mês.

      

       No Novo Império, numerosas damas faziam parte do clero de Amon na qualidade de executantes musicais e cantoras. Nas festas, acompanhavam a barca divina que saía do templo.

      

       O que exprimiam estas sacerdotisas senão a alegria de uma espiritualidade vivida, florescente, larga como o céu e generosa como a terra, uma espiritualidade fundada ao mesmo tempo no desejo de conhecimento e na prática diária do rito?

      

       AS INICIADAS NOS MISTÉRIOS DE HATOR

       Quem é Hator?

       O nome da deusa é composto por duas palavras, Hut-Hor, e traduz-se por ”o templo de Hórus”. Hator é o espaço sagrado, a matriz celeste que contém Hórus, o protetor da instituição faraônica. Hator é o céu e é também aquela que espalha pelas superfícies celestes a esmeralda, a malaquite e a turquesa para com elas fazer estrelas. É muitas vezes chamada ”a dourada”, porque é o ouro das divindades, a matéria alquímica que forma o seu corpo.

      

       ”Única e sem paralelo no céu”, Hator encarnava numa vaca imensa, da dimensão do cosmos, que oferecia generosamente o seu leite para que as estrelas vivessem.

      

       A deusa goza de grande popularidade em todo o Egito; a sua residência preferida era no Alto Egito, em Dendera, onde sobrevive um templo ptolomaico de grande beleza e encanto. Contemplar os campos do telhado deste santuário ao sol poente, quando a paisagem se nimba de ouro celeste, é um momento inesquecível. Mãe das mães, Hator gerava o Sol e derramava nos corações a alegria de viver. Era ela quem concedia a beleza, a juventude e o fogo do amor sob todas as suas formas, do desejo físico ao amor do divino. Favorecia os casamentos e tornava-os harmoniosos, quando o homem e a mulher escutavam a sua voz.

      

       Hator ensina aos seus adeptos a dança e o sentido da festa; protetora dos vinhos, chama os seus fiéis à mesa do banquete divino.

      

       Um sacerdote de Hator que oficiava no templo de Deir el-Bahari mandou gravar na sua estátua textos que recomendavam às mulheres, ricas ou pobres, que dirigissem as suas preces a Hator; a deusa ouviria as suas invocações e proporcionar-lhes-ia os momentos de felicidade a que aspiravam. Por isso, as egípcias optavam por nomes que fizessem referência a Hator: ”estrela dos homens”, ”a deusa de ouro veio”, ”ela veio”, ”a perfeição acabada”, ”aquela que apareceu no céu”, etc.

      

       Na sua qualidade de protetora e ama da alma dos justos, Hator reside muitas vezes num sicômoro; com a madeira desta árvore fabricavam-se sarcófagos, cujo nome egípcio é ”aqueles que possuem a vida”. Esta deusa luminosa era uma mãe não apenas para os vivos mas também para os ressuscitados. No amor de Hator revela-se o mistério da morte e do renascimento. ”Soberana do Belo Ocidente”, Hator acolhe todos aqueles que empreendem a grande viagem para o outro mundo. Sorridente, enigmática, está na orla do deserto e tem na mão o sinal hieroglífico da vicia e a haste de papiro que simboliza o eterno crescimento da alma dos justos.

      

       Para vencer as provas do Além, o homem deve tornar-se em Osíris; o mesmo acontece com a mulher, que tem a vantagem de ser ao mesmo tempo Osíris e Hator. Alimentada pelo leite da vaca celeste, a ressuscitada percorre para sempre o caminho das estrelas, dança com elas, ouve a música celeste e saboreia a subtil essência de todas as coisas.

      

       A confraria das sete Hator

       Na época ptolomaica, os mistérios de Hator eram celebrados nos mammisis por uma comunidade de mulheres intituladas ”perfeitas, belas e puras”. Na realidade, estes ritos remontavam à Alta Antiguidade, mas, como muitas outras vezes aliás, foi o Egito crepuscular que os revelou.

      

       As Hator tocavam música, cantavam e dançavam depois de um passeio ritual pelos pântanos, onde haviam feito zumbir os papiros em honra da deusa, reatualizando assim a Criação do mundo. A cerimônia terminava com uma oferenda de vinho, líquido soalheiro que abria o caminho à intuição do divino. As Hator eram sete, número sagrado e particularmente ligado à espiritualidade feminina. Estas sete Hator são também chamadas ”as veneráveis”. O seu papel consistia em afastar o Mal, em manter a harmonia e em favorecer todos os fenômenos do nascimento. Festivas, tocam tamboril e batem palmas. Tranquilas e recolhidas, dão as mãos para formar uma cadeia. Têm na fronte um uraeus e o seu toucado apresenta os cornos da vaca celeste emoldurando o globo solar.

      

       A superiora das sete Hator segurava um cetro cuja extremidade tinha a forma de uma umbela de papiro. As suas irmãs envergavam, como ela, vestidos compridos e estavam enfeitadas com fitas vermelhas formando sete nós nos quais o Mal ficava encerrado. Estas sete filhas da divina Luz, Ra, eram responsáveis pelo tempo de vida dos humanos e pelo seu destino. Por isso presidiam simbolicamente a todos os nascimentos e vinham visitar as parturientes.

      

       As serpentes uraeus que trazem na fronte lançam chamas ora purificadoras ora destrutivas; tudo depende da autenticidade do ser que as enfrenta. Saber reconhecer a presença das sete Hator e suscitar a sua benevolência é uma arte difícil. Podem conceder longevidade, estabilidade, saúde e descendência, mas também estabelecem as provas e o termo de um destino. As fadas da Europa pagã foram suas herdeiras.

      

       Em Dendera e Edfu, as sete Hator tocam tamboril e sistro em honra da deusa e do faraó acabado de nascer. A superiora da confraria pronuncia palavras que sobem ao alto dos céus: Tocamos música para Hator, para ela dançamos, senhora dos cetros, do colar e do sistro, todos os dias a celebramos, de noite à alvorada, tocamos tamboril

       e cantamos em cadência para a senhora da alegria, da dança, da música, a dama dos encantamentos, soberana da Casa dos Livros, como é bela e radiosa a Dourada! Para ela, céu e estrelas dão um concerto, Sol e Lua cantam louvores.

      

       As iniciadas nos mistérios de Hator manejavam dez objetos sagrados, que podiam ser executados em miniatura e em materiais preciosos: o colar da ressurreição, cujos sons recriam o mundo; a clepsidra, relógio de água associado a Tot, senhor do tempo sagrado; os dois sistros, que afastam a violência e proporcionam a tranquilidade; o símbolo hatórico real, composto por duas asas que protegem o Egito e o cosmos; o mammisi, lugar do repouso e templo onde se realiza o mistério do nascimento; um pote de leite, doce para o ka, alimento celeste que ilumina e rejuvenesce; um cântaro, que contém a bebida da embriaguez sagrada e que revela o que estava oculto; uma coroa para a fronte de Hator, fundida por Ptah, que escolhera o ouro, a carne dos deuses; uma porta monumental fundada pelo Sol feminino, que abastece o país em oferendas e dá acesso ao templo. Estes objetos eram, de resto, representados nas paredes do templo da deusa e assim permaneceram vivos.

      

       CANTORAS, EXECUTANTES E BAILARINAS

       A rainha executante musical

       A frente das comunidades femininas, a rainha é a primeira executante musical do reino. Canta, sabe salmodiar os textos sagrados; no palácio ou no harém, aprendeu a tocar vários instrumentos musicais. Durante algumas festas de Estado, ensaia passos de dança impostos pelo ritual.

      

       É certo que música, canto e dança não são exclusivos das mulheres; contudo, todas as sacerdotisas são iniciadas nestas disciplinas, etapas obrigatórias do seu percurso em direção ao conhecimento. A música era concebida como um despertar do espírito e uma abordagem das forças ocultas da natureza; graças a ela, como Mozart afirmará em A Flauta Mágica, era possível vencer o obstáculo da morte.

      

       Muito antes de Bach, já se praticava o rito da oferenda musical, pois a subtileza dos sons fazia parte dos ”alimentos” agradáveis à divindade; graças à música, era possível unir-se ao divino e favorecer um novo nascimento em espírito.

      

       Cantoras sagradas

       Na festa da vitória de Hórus sobre as trevas, celebrada em Edfu, intervinha uma iniciada intitulada sbemayt, ”a cantora”. Tinha o primeiro papel no ritual, e era muitas vezes a própria rainha quem exercia este ofício, assistida por outras cantoras, ”as mulheres de Busíris e de Buto”, cidades santas do Delta. Poderosa maga, esta shemayt encantava a barca de Hórus, tornando-a invulnerável. Recorria a arpoadores para que auxiliassem Hórus no seu combate contra o hipopótamo vermelho, encarnação da força de destruição, e oferecia ao jovem deus a energia do Verbo. Terminado o ritual, o hipopótamo era sacrificado sob a forma de um bolo que comiam durante um banquete.

      

       Muitas mulheres foram cantoras desta ou daquela divindade e algumas delas foram grandes personalidades. É o caso de Meryt, ”a amácia”, esposa de Sennefer, senhor de Tebas, cujo célebre ”túmulo das vinhas” está ornado de magníficas pinturas. Meryt era cantora de Amon, louvada pela deusa Mut, mas também dona de casa. O seu papel no processo de ressurreição do marido era essencial: oferecia-lhe um colar com o escaravelho, símbolo das perpétuas metamorfoses no Além, unguentos perfumados e um lótus. Também tocava música para a sua alma, sem se esquecer de o magnetizar com ternura.

      

       Num papiro datado da vigésima primeira dinastia, a cantora de Amon Heruben é beneficiada por um rito extraordinário: Hórus e Tot purificam-na, ajoelhada num pedestal. Dos recipientes que os deuses seguram saem sinais hieroglíficos simbolizando a vida e o bem-estar. Ora, este rito estava reservado ao faraó. Quer dizer que uma simples cantora podia ter acesso a liturgias pertencentes aos grandes mistérios.

      

       A dama Irti-Eru, cantora de Anúbis, o guia das almas no outro mundo, recomendava que se venerasse Hator, senhora do sicômoro do Sul, soberana dos homens e das mulheres, deusa que ouve as preces. Não fora graças a Hator que a cantora encontrara um sábio de caráter perfeito?

      

       Um dos mais antigos cânticos, particularmente apreciados, era a canção dos quatro ventos, conhecida ao mesmo tempo graças ao capítulo 162 dos Textos dos Sarcófagos e às representações dos túmulos de Beni Hassan. Cinco mulheres, uma regente do coro e quatro executantes vestidas com uma simples tanga, interpretavam esta obra. Tinham os cabelos puxados para trás e presos de maneira a imitar um tufo vegetal. Intervinham num ritual em que as portas do céu se abriam para o ser ressuscitado. As quatro bailarinas encarnavam os ventos celestes. O vento Norte trazia a vida e a doçura, depois de ter atingido os confins do mundo; o vento Leste abria as lucarnas do céu, oferecia as brisas do Oriente, criava um bom caminho para Ra, que dava a mão à iniciada e a conduzia ao paraíso; o vento Oeste provinha do ventre do deus e existia antes de o Egito ter sido separado em duas terras; o vento Sul trazia a água que fazia germinar a vida. Os quatro ventos permitiam àquelas que conheciam o segredo do canto vogar de barco até a uma escada de fogo onde se operavam a purificação e a ressurreição.

      

       É possível sentir uma intensa emoção ao ler o texto inscrito no pedestal da estátua de uma ”grande cantora”, proveniente da cidade de Mendes: Vós que me vedes, de pé, ornada com o meu colar e segurando o meu espelho, orai por mim e oferecei-me flores-, recordai o meu belo nome.

      

       Instrumentistas do divino

       Sob o nome das ”duas mulheres que são amadas”, duas executantes musicais envergando um vestido apertado com alças e penteadas de maneira muito especial, com longas cabeleiras entrançadas evocando as matas e as plantas do Alto e Baixo Egito, celebravam o poder do amor, que retém na Terra as forças divinas. Dirigindo-se aos quatro pontos cardeais, dialogavam magicamente com a totalidade do cosmos. Estas duas Meret cantoras e executantes, salmodiavam textos rituais, marcavam o compasso e tocavam harpa. Ligadas a Hator, soberana do amor, intervinham na festa sed, durante a qual o faraó era regenerado. Participavam ainda na transformação do ser justo em Osíris e ajudavam ao renascimento do Sol. De pé na proa das barcas do dia e da noite, identificavam-se com Maat, a harmonia celeste respirada pelas divindades.

      

       Estas instrumentistas afastavam da estátua do culto todas as influências nocivas a fim de que nada obnubilasse o seu brilho; eram ainda as guardiãs do santuário e impediam os profanos de penetrar nele. Em contrapartida, quando o faraó se aproximava do templo, acolhiam-no com cânticos de boas-vindas e tocavam música para o seu ka.

      

       Dois instrumentos, o sistro e o menat, eram particularmente utilizados nos mistérios de Hator. Ainda presente nas confrarias isíacas dos primeiros séculos da nossa era, o sistro tinha várias formas, duas delas principais: um cabo prolongado por uma caixa oval crivada de buracos pelos quais passavam hastes móveis que, uma vez abanadas, produziam um som metálico; um cabo cilíndrico terminado numa cabeça de Hator, num naos ou ainda numa porta monumental. Os materiais utilizados são o ouro, a prata, o bronze, terra esmaltada e madeira. Do mais simples ao mais complexo, os sistros são tocados pelas executantes de Hator porque os sons que produzem afastam as trevas e o Mal.

      

       Na manhã da festa do Ano Novo, no templo de Dendera, o rei e a rainha conduziam a procissão, que, depois de subir a escada, chegava ao teto do templo. A rainha agitava dois sistros: o primeiro denominava-se ”aquele que zumbe” (sesbesh), o segundo ”aquele que exerce o poder” (sekherri). Declarava que o seu manuseamento afastava o que fosse hostil à senhora dos céus. O divino ritmo de Hator imprimia-se no sistro que as executantes faziam vibrar em cadência.

      

       O colar menat, composto por numerosas pequenas contas, está provido de um contrapeso, muitas vezes decorado com uma representação da deusa Hator. A executante ou usa o colar com o contrapeso pendente do pescoço ou tem-no na mão para o apresentar à pessoa a quem deseja oferecer boas vibrações. Fazia entrechocar as contas e ritmava as danças. O som deste colar transmitia vida e poder às jovens mulheres, chamava a elas o amor e tornava-as fecundas, mas era também o símbolo do renascimento do ser no Além. Em Carnaque, por exemplo, é a própria Hator que, dando o seio ao faraó para o alimentar com o leite celeste, lhe apresenta o colar menat; deste modo, ele é regenerado. De fato, este colar favorece o renascimento espiritual, confirma a coroação régia e prolonga o poder do faraó durante milhões de anos.

      

       As sacerdotisas tocavam numerosos instrumentos: harpa, flauta, oboé, alaúde, lira, cítara, tamboril, instrumentos de percussão, castanholas e matracas. As grandes harpas, cuja caixa de ressonância tem forma cônica, eram magníficas; as executantes mantinham ao ombro as elegantes harpas portáteis de quatro cordas. O alaúde, formado por uma caixa de ressonância oblonga e por um cabo alongado, era tocado em pé; a deusa de belo rosto veio, cantam as tocadoras de alaúde num banquete, para deixar iguarias e preparar uma bebida numa taça de ouro. A música do alaúde era alegre; as instrumentistas ensaiavam passos de dança viradas umas para as outras ou lançando a cabeça para trás num movimento de êxtase. Matracas e castanholas, decoradas com a cabeça de Hator, serviam para marcar o ritmo nos rituais de nascimento ou de renascimento, durante os quais o papel da deusa era preponderante. De forma redonda ou retangular, os tamboris eram compostos por uma caixa de madeira com duas peles pregadas. O tamboril retangular era mais utilizado nos banquetes, o redondo estava reservado para cerimônias fúnebres ou ritos de regeneração. Mencionemos entre estes o momento capital do levantamento do pilar djed (cujo nome significa ”estabilidade”), que corresponde à ressurreição do deus assassinado; as cenas do túmulo de Queruef, datadas da décima oitava dinastia, mostram-nos elegantes princesas a tocar tamboril redondo numa procissão dançada.

      

       No Antigo Império, as orquestras são quase sempre compostas por homens. Em contrapartida, o Novo Império oferece-nos o espetáculo de orquestras femininas; as instrumentistas marcam o compasso batendo palmas e tocam os diversos instrumentos, ora de pé ora sentadas.

      

       Não há festividade sem a presença destas instrumentistas sagradas, a começar pela festa da própria Hator, no primeiro dia do quarto mês do Inverno. Esta festa é descrita no túmulo de Amenemhat, datado da décima segunda dinastia. As mulheres ocupam o primeiro lugar e deslocam-se em procissão pelas ruas das cidades e das aldeias, indo de casa em casa para espalhar bênçãos sobre os habitantes. Algumas cantam e dançam, outras tocam nas pessoas com os objetos sagrados da deusa, o sistro e o colar.

      

       O rito de ”agitar o papiro”

       Um rito musical era praticado nas imensas extensões de papiros do Delta, mas também na região tebana. Tratava-se de sacudir e colher hastes de papiro em honra de Hator. O verbo empregado para designar este rito, seshesh, corresponde a um dos nomes do sistro, o que significa que há identidade de natureza entre ”tocar sistro” e ”apanhar o papiro”. Em ambos os casos se produzem vibrações e um zumbido que encantam o ouvido da divindade, a qual, em compensação, alegrava a Terra. Este culto prestado a Hator no segredo da vegetação fazia eclodir uma vivificante juventude e favorecia o advento de uma nova vida, concedida pela deusa às almas que tocavam bem.

      

       Devemos, por certo, associar à perfeita execução do rito a admirável figura de Ames Merit-Amon, a esposa do faraó Amenotep I. O seu sarcófago em cedro, descoberto no seu túmulo de Deir el-Bahari, é uma obra-prima de um tamanho impressionante, decorado com plumas pintadas e chapeado a ouro. O rosto desta mulher-pássaro é de uma beleza e juventude espantosas; a rainha segura dois cetros em forma de papiro, símbolos do eterno viço da alma.

      

       Danças sagradas

       Mulheres sedutoras de corpos perfeitos, de seios firmes e cabelos perfumados, por vezes nuas, usando colares e pulseiras... As bailarinas egípcias, cujo papel ritual nunca devemos esquecer, eram muito belas e tinham a possibilidade de exprimir os seus talentos em inúmeras ocasiões, quer nos tempos fortes da vida agrícola, como nas ceifas ou nas vindimas, quer nas festas em honra das divindades ou em funerais.

      

       A dança é uma atividade sagrada, criada por Hator. No túmulo do vizir Kagemmi, em Sacara, datado da sexta dinastia, cinco jovens compõem um bailado cujas figuras audaciosas desafiam as leis do equilíbrio; assim celebram, com um ritmo alegre que traduz um júbilo intenso, o aparecimento de Hator no Oriente, saudado pelos deuses, nomeadamente Ra e Hórus. No túmulo do escriba Idu, da mesma época, quatro jovens dançam a um ritmo declamado por três cantoras que dirigem uma saudação a Hator, aquela que ama a beleza e permite ao ka, a força vital, atingir a plenitude.

      

       Vem, deusa de ouro, pedem elas a Hator. Tu, que te alimentas de cânticos, tu, cujo coração se sacia de danças, tu, cujo júbilo te faz brilhar à hora do repouso e que as danças regozijam durante a noite. Como já dissemos, o segredo das mulheres do harém não é senão uma dança que abre as portas do céu. Durante a ”dança dos espelhos”, representada nomeadamente na mastaba de Mereruka, as iniciadas expulsam os espíritos malignos, comunicam com o Sol e a Lua e atingem a embriaguez divina.

      

       Por ocasião da festa do Sol feminino em Medamud, na região tebana, a deusa do ouro sacia com bailados o coração das suas fiéis servidoras. Durante toda a noite elas comunicam com o espírito de Hator.

      

       De acordo com as figurações do túmulo de Antefoquer, vizir e senhor de Tebas na décima segunda dinastia, as bailarinas celebravam a união de Hator com a Luz divina. Este fulgor espalhava a alegria e a fertilidade por toda a Terra.

      

       Um dos dramas mais temidos pelos egípcios: o momento em que Hator deixava o Egito e se dirigia para o Grande Sul, onde assumia a forma de uma leoa decidida a exterminar a humanidade. Graças à intervenção de Tot, o Sábio, e de Chu, Verbo e ar luminoso, a longínqua deusa aceitava regressar à terra dos faraós. Organizavam-se em Filas grandes festividades destinadas a aplacar a cólera da deusa e a despertar o seu desejo de regozijar os corações. As iniciadas nos mistérios de Hator, cantoras, executantes e bailarinas, cumpriam então a sua grande missão: transformar o perigoso poder em energia criativa.

      

       AS DIVINAS ADORADORAS: AS SACERDOTISAS REINAM SOBRE TEBAS

       As ”esposas do deus”

       Durante cerca de meio século, do ano 1000 a.C. até à invasão persa de 525 a.C., uma dinastia de mulheres, ”as Divinas Adoradoras”, governa a grande cidade de Tebas. Não eram profanas, mas sacerdotisas iniciadas nos mistérios de Amon. O faraó concedeu-lhes um poder espiritual e temporal sobre a principal cidade santa do Alto Egito.

       

       Para compreender o fato, devemos remontar à instituição da ”esposa do deus”. Todas as rainhas exerciam esta função, mas a primeira que usou oficialmente este título foi limeret-Nebes, ”A amada do seu senhor”. Uma estatueta datada do Médio Império e conservada no Museu de Leiden mostra-no-la com um vestido cingido e transparente, sandálias douradas, braços bem esticados ao longo do corpo, dedos finos e compridos, olhos pintados, busto alto, seios redondos, cintura muito fina; usa vima peruca amovível e sorri. O senhor que a deseja é o deus que procura exprimir o seu poder de Criação, que ela deve apaziguar para o tornar benéfico.

      

       Como vimos, foi a rainha lamosé-Nefertari que criou o domínio temporal da esposa do deus, que assim foi dotado de terras e de um pessoal que incluía um intendente, escribas, um chefe dos celeiros, artesãos e camponeses. Entre as mais célebres esposas do deus, que não pertenciam necessariamente à família real, temos Hatshepsut e Tausert, futuras mulheres faraós.

      

       Sendo instrumentistas, sabiam manipular as energias vibratórias, alegrar a divindade e torná-la propícia. Enchendo o santuário de maravilhosos odores com o seu perfume, cantavam com uma voz serena, reservada aos ouvidos da divindade.

       

       Um bloco da ”capela vermelha” de Hatshepsut revela um estranho rito: um sacerdote com o título de ”pai divino” estende um archote à esposa do deus, que o utiliza para acender um braseiro; depois, o mesmo sacerdote apresenta-lhe uma espécie de espeto com um leque representando uma imagem do Inimigo, a Desordem, o Mal. A esposa do deus mergulha esta imagem no braseiro.

      

       Purificada numa bacia antes de entrar no templo, a esposa do deus chamava-o a manifestar-se, mandava que trouxessem as estofas sagradas e participava na manutenção da harmonia entre o céu e a Terra.

      

       Na segunda metade do século XI a.C., uma nova instituição, a das ”Divinas Adoradoras”, assumiu todas estas tarefas de uma forma particular.

      

       O celibato sagrado das Divinas Adoradoras

       Uma silhueta graciosa, elegante, um grande toucado composto por um tecido a imitar o despojo de um abutre, a serpente uraeus na frente, um comprido e cingido vestido, um largo colar e pulseiras: Eis como apareciam as Divinas Adoradoras, que tinham a capacidade de ”atar todos os amuletos” e, portanto, de praticar a magia de Estado, cujos segredos conheciam.

      

       Esposas de Amon, as Divinas Adoradoras não faziam voto de castidade, mas não tomavam marido humano e não tinham filhos, a fim de se consagrarem exclusivamente ao serviço da divindade. Não sendo reclusas, passavam a maior parte do tempo no interior do templo de Amon em Carnaque, onde todos os dias despertavam o poder do deus e mantinham a sua presença na Terra.

      

       Vemos a Divina Adoradora abraçar Amon, pousando o braço esquerdo no seu ombro. Tem na mão direita o colar da ressurreição e o sinal hieroglífico da vida. Numa atitude ainda mais íntima, a divina Adoradora passa o braço pelo pescoço de Amon para o abraçar. Noutras cenas, o seu divino esposo dá-lhe a vida a respirar e a sacerdotisa toca na coroa de Amon, participando assim da sua origem celeste. Um pequeno grupo em terracota mostra até uma Divina Adoradora ao colo de Amon; assim se exprime a união mística do deus e da sua grande sacerdotisa. ”O meu coração”, diz ele, ”está muito satisfeito”.

      

       É Amon quem coroa a Divina Adoradora. Ela ajoelha-se, virando-lhe as costas, e Amon toca-a com as mãos, magnetizando-a e comunicando-lhe o seu poder. A sacerdotisa pratica o ato nua, ”adorar, venerar”, que caracteriza as preces de saudação da luz da alvorada, sinal da Criação renovada.

      

       ”Aquela que se une ao deus” é também ”a mão do deus”. Este título refere-se à masturbação praticada pelo Criador que, na solidão da origem, havia tomado por esposa a sua própria mão. A Divina Adoradora era idêntica a esta mão ativa do deus, extraindo de si próprio a sua substância para dar forma ao mundo, sem dissociar espírito de matéria.

      

       As Divinas Adoradoras, rainhas de Tebas

       A instalação de uma Divina Adoradora era uma verdadeira coroação. A esta cerimônia assistiam numerosos sacerdotes e importantes cortesãos. A Divina Adoradora entrava no templo, guiada por um ritualista. O escriba do livro divino e novos sacerdotes puros revestiam-na dos ornamentos, das jóias e dos amuletos relativos à sua função. Era proclamada soberana da totalidade do circuito celeste percorrido pelo disco solar. Finalmente, enunciavam-se os títulos daquela de quem se dizia que ”presidia à subsistência de todos os seres vivos”.

      

       Trata-se realmente de títulos, pois os nomes das Divinas Adoradoras, como os dos faraós, estavam inscritos em rolos. Formavam uma dinastia e tinham privilégios reais, usando os títulos tradicionais das rainhas, tais como ”dotada de grande encanto”, ”doce de amor”, etc. O seu nome de coroação constitui muitas vezes uma ocasião para homenagear Mut.

      

       A Divina Adoradora era iniciada nos mistérios da sua função pelo rito da ”subida real” ao templo, conduzida pelo seu divino esposo Amon. No sigilo das salas interiores de Carnaque, ela recebia os ensinamentos relativos ao papel cósmico do faraó. Por isso, e à semelhança do senhor das Duas Terras, a Divina Adoradora tinha a capacidade de consagrar monumentos, dirigir ritos de fundação, cravar estacas para delimitar o recinto sagrado, proceder aos sacrifícios de animais, consagrar as oferendas e oferecer Maat, a Ordem eterna, a si própria.

      

       Recebendo ”a realeza do duplo país”, a Divina Adoradora podia ser representada como uma esfinge, outro privilégio faraônico. Além disso, era chamada a agir no ritual de regeneração da festa sed Destinada a revivificar o poder mágico do rei, esgotado ao fim de alguns anos de reinado, esta celebração era estritamente reservada ao faraó. Há, contudo, cenas que mostram as Divinas Adoradoras presidindo ao ritual da festa sed, caracterizada pela presença de um duplo pavilhão, símbolo do Alto e Baixo Egito. Também vemos estas grandes sacerdotisas a praticarem ritos régios: dar quatro voltas a um espaço sagrado, atirar ao arco sobre alvos dispostos nos quatro pontos cardeais, atar os nós da energia criadora relacionados com quatro divindades correspondentes às direções do espaço.

      

       Podem as Divinas Adoradoras ser consideradas faraós? Não, pois os seus anos de reinado inscrevem-se no do faraó reinante; além disso, não praticam todos os ritos régios, como por exemplo a grande oferenda ao Nilo, destinada a desencadear uma boa cheia. Mais ainda, não edificam grandes templos, mas pequenas capelas, e só em Tebas. As grandes construções da época dita ”etíope”, a vigésima quinta dinastia, apogeu do poder das Divinas Adoradoras, devem-se apenas aos faraós.

      

       Convém, pois, falar de uma realeza mais espiritual do que temporal, cuja influência se limitava à região tebana. As Divinas adoradoras participaram, porém, na eternidade estelar e solar dos Faraós e, embora pouco estudados, os seus monumentos funerários revestem-se de grande interesse.

      

       Citemos as suas capelas de Medinet Habu, nas paredes das quais se desenrola um ritual revelado por textos que ainda não foram sujeitos a um estudo aprofundado, assim como as capelas de Carnaque, dedicadas a ”Osíris, senhor da vida”, a ”Osíris, no coração da flor” e a

      

       ”Osíris, regente da eternidade”. Esta última capela é um edifício excepcional, situado perto da grande porta do Oriente. É um dos lugares mais pungentes de Carnaque. O nome completo do monumento é ”a grande porta da esposa do deus, a Divina Adoradora Amenirdis venerada por todos os que atingiram o conhecimento na morada do seu pai Osíris, regente da eternidade”. A Divina Adoradora celebra aí a sua própria festa de regeneração, que lhe abre as portas do Além. Consagra o edifício a Osíris, toca sistro diante de Amon-Ra, recebe de Ísis o colar da ressurreição, é coroada e faz a oferenda de Maat.

      

       Para lá da Porta do Oriente, do último templo das Divinas Adoradoras, nada mais existe. Nada mais além do Sol de um outro mundo.

      

       Um dispositivo temporal

       As Divinas Adoradoras dispunham de serviços administrativos dirigidos por um grande intendente, ”verdadeiro conhecido do rei, um homem que ele aprecia”, ou seja, um conselheiro próximo do faraó. Este grande intendente tinha de gerir uma grande quantidade de bens: metais preciosos, vestes, gêneros alimentares, para já não falar em campos e em gado.

      

       Entidades particulares podiam consagrar as suas estátuas a uma Divina Adoradora e pedir a sua proteção. Conhecemos até estátuas em cujos ombros o proprietário mandou gravar o nome do faraó e da Divina Adoradora, manifestando assim a sua dedicação a esta dupla expressão da realeza. Pelo menos um texto jurídico prova que se podia invocar a pessoa da Divina Adoradora como testemunha sagrada de um ato legal.

      

       Uma Divina Adoradora assegurava a sua sucessão por adoção. A escolha era feita por concertação com o faraó reinante, que de bom grado propunha uma princesa da sua família. A titular chamava-se ”mãe”; a que era chamada a suceder-lhe, ”filha”. A ”mãe” educava a ”filha” e revelava-lhe os segredos da alta função que devia assumir. As duas mulheres reinavam juntas até ao afastamento voluntário da ”mãe” ou até ao seu desaparecimento.

      

       Na época ptolomaica, muitos séculos após a morte da última Divina Adoradora, este título designava ainda a grande sacerdotisa de Tebas, última recordação da dinastia feminina que havia reinado na grande cidade.

      

       A deusa Tefnut e as Divinas Adoradoras

       Aton, ao mesmo tempo o ser e o não-ser, criou o primeiro casal, Chu e Tefnut. Chu é a vida, o ar luminoso e a brisa; Tefnut é Maat, a Ordem universal. Polaridade masculina e polaridade feminina são indissociáveis e interatuantes. A vida gera a Ordem, a Ordem gera a vida.

      

       Ora, tal como a rainha, a Divina Adoradora foi assimilada a Tefnut; todos os ritos de que estava encarregada eram praticados ”como para Tefnut da primeira vez”. Sentada no trono de Tefnut, a Divina Adoradora encarnava igualmente Maat, e consolidava o torno do oleiro que cria os seres.

      

       A DINASTIA DAS DIVINAS ADORADORAS

       Maat-ka-Re

       Filha do faraó Psusennes I (1040-993 a.C.), Maat-ka-Re, ”o poder criador da Luz divina é a Ordem”, foi a primeira Divina Adoradora. Inaugurou uma espécie de dinastia de doze mulheres.

      

       A sua entrada em funções marca uma nítida mudança em relação às esposas do deus que a precederam, uma vez que o nome de Maat-ka-Re está inscrito num rolo. O seu sarcófago em madeira foi encontrado em 1875 no famoso esconderijo de Deir el-Bahari. O rosto da primeira Divina Adoradora, gravado numa folha de ouro, é de uma beleza soberana. Com uma peruca de compridas madeixas cingida por um diadema com o uraeus, o corpo coberto de símbolos e divindades protetoras, tem um olhar vivo e profundo.

      

       O egiptólogo francês Daressy tinha razão ao afirmar que esta filha do rei e da grande esposa real havia observado um celibato sagrado, casando com o deus Amon. Mas o seu irmão Maspero contrariou esta ideia, pois constatara a presença da múmia de um bebê no féretro de Maat-ka-Re, o que parece provar que esta grande dama morrera de parto. Havia, contudo, muitas informações que certificavam a existência de um grande intendente desta Divina Adoradora, de uma administração e de uma instituição que exigia que esta grande sacerdotisa não desposasse um mortal nem tivesse filhos. O bebê de Maat-ka-Re punha em causa o que se julgava saber acerca da sua função.

      

       A radiografia veio em socorro da egiptologia para restabelecer a verdade: universitários americanos provaram que esta incômoda múmia pertencia a... um macaco! A Divina Adoradora havia levado para a derradeira viagem o seu animal preferido.

      

       Karomama

       Pouco sabemos acerca da segunda Divina Adoradora, Henut-Tauy, ”a soberana das Duas Terras”, que exerceu as suas funções na primeira metade do século X a.C., nem da terceira, Mehyt-Usequet, ”a Doderosa deusa Mehyt”, amada de Mut, que oficiou na segunda metade do mesmo século.

      

       Em contrapartida, Karomama, ”amada de Mut, a primordial”, foi divina Adoradora na primeira metade do século IX a.C. e adquiriu uma certa celebridade graças a uma estatueta de bronze que a imortaliza. Numa carta escrita a 27 de Dezembro de 1829, Jean François Champollion descreve-a nos seguintes termos: Trago para o Louvre o mais belo bronze jamais descoberto no Egito. É uma estatueta... inteiramente incrustada a ouro da cabeça aos pés. Uma pequena obra-prima do ponto de vista artístico e uma maravilha sob o aspecto da execução. Estou certo de que beijareis a princesa em ambas as faces, apesar do óxido que as mascara um pouco e que formou uma bossa no meio dos ombros. Trata-se de uma peça capital.

      

       Com um grande colar e delicadas jóias, Karomama enverga um vestido plissado; grandes asas envolvem a parte inferior do corpo, fazendo da Divina Adoradora uma mulher-pássaro. A estatueta está incrustada a ouro, cobre e prata. Braços, mãos, pés e pregas do vestido estão chapeados a ouro. Sendo o ouro a carne dos deuses, ”a esposa do deus de mãos puras, a soberana das Duas Terras, a Divina adoradora de Amon, a dama das coroas, Karomama amada de Mut, amada de Amon-Re” era assim imortalizada no seu aspecto divino.

      

       Uma inscrição revelou-nos que o tesoureiro-mor e camareiros tinham colocado a estátua da sua soberana Karomama no interior do templo de Carnaque, a fim de que lhe fossem prestadas piedosas homenagens. A jovem, aliás, estende os braços, cumprindo o rito que consiste em fazer zumbir dois sistros em ouro, que desapareceram. Estas estatuetas, mostrando a Divina Adoradora atraindo sobre a Terra a influência benévola das divindades, eram transportadas em procissão.

      

       Karomama, ”de belo andar na casa de Amon”, gozou de tão grande reputação que lhe foi construída uma capela funerária no recinto do Ramesseum, o templo dos milhões de anos de Ramsés II’.

      

       Chepenupet I

       À quinta Divina Adoradora, Kedemerut, acerca da qual não sabemos praticamente nada, sucedeu Chepenupet I, ”o dom de Upet” (esta deusa Upet era talvez a encarnação da fecundidade espiritual).

      

       Filha do faraó líbio Osorkon III, Chepenupet era ainda viva no ano 700 a.C.; foi representada na capela de Osíris, regente da eternidade, em Carnaque. Infelizmente, a sua capela em Medinet Habu foi destruída.

      

       Durante o seu reinado, Pianqy veio do longínquo Sudão para restabelecer a ordem no Egito e acabar com a divisão entre o Norte e o Sul. Muito apegado às antigas tradições, Pianqy procurou restabelecer os cultos no seu rigor e magnificência e preservou a instituição sagrada das Divinas Adoradoras.

      

       Com o consentimento do novo faraó, Chepenupet adoptou Amenirdis, ”Amon a deu”, como filha espiritual.

      

       Amenirdis, a Antiga

       Filha do rei etíope Kachta, Amenirdis, cujo nome era seguido do epíteto ”a perfeição de Mut é radiosa”, teve um longo reinado. Foi em Carnaque, em 1858, que Mariette descobriu uma estatueta que a representa ao colo do deus Amon num estado de abandono amoroso que ilustrava a união metafísica com o princípio criador.

      

       Esta Divina Adoradora deixou vestígios da sua atividade arquitetónica na estação de Carnaque e em Medinet Habu, onde a sua belíssima capela está coberta por uma admirável abóbada em pedra. Numerosas cenas rituais ornam as paredes. A capela recebera um abundante material funerário, nomeadamente uma mesa de oferendas e estátuas de Osíris com o nome de Amenirdis.

      

       Amenirdis participou em ritos de fundação e dirigiu uma corte colocada sob a responsabilidade de um grande intendente chamado Harwa que, na sua qualidade de sacerdote de Anúbis, organizou o funeral de Amenirdis, a Antiga, e o seu culto funerário.

      

       Graças a Mariette, libretista de ópera durante algum tempo, a memória desta Divina Adoradora sobreviveu, embora deformada, na Aida de Verdi.

      

       Chepenupet II

       A partir de 700 a.C. e durante cinquenta anos, a filha do conquistador Pianqy, Chepenupet II, foi a oitava Divina Adoradora, atravessando o reinado de três faraós.

      

       Alguns retratos representam-na como uma africana de maçãs do rosto proeminentes e com ancas e coxas pronunciadas. O seu reinado constituiu uma verdadeira empresa na região tebana; mestre-de-obras de várias capelas funerárias em Carnaque e Medamud, aparece muitas vezes só, sem a presença do faraó, que nela confia inteiramente para administrar a região.

      

       Chepenupet dirigia o culto, celebrava uma festa de regeneração e foi qualificada como ”soberana do Duplo País”. Mandou construir e decorar em Medinet Habu a capela funerária da sua ”mãe” Amenirdis. Adotou como ”filha” a sua sobrinha Amenirdis II, dita ”a jovem”, filha do faraó etíope Taharqa.

      

       Chepenupet II assistiu à partida dos etíopes e viveu o início da vigésima sexta dinastia, cujo primeiro faraó foi Psamético I.

      

       ”Amada de Tefnut”, Amenirdis, a Jovem, viveu à sombra da sua poderosa ”mãe”. Sucedeu-lhe a filha do rei Psamético I (664-610), Nitócris I, dita a Grande.

      

       Nitócris, a Grande

       A décima Divina Adoradora inaugura o período dito ”saíta”, durante o qual faraós originários da cidade de Saís, no Delta, tomaram como modelo o Antigo Império e regressaram aos valores da idade áurea, inspirando-se nomeadamente nos Textos das Pirâmides. Terá sido por isto que esta forte personalidade tomou o nome de Nitócris, rainha faraó das épocas altas?

      

       A ”estela de adoção” de Nitócris, erigida em Carnaque, permite-nos conhecer as circunstâncias do evento. No ano 9 do reinado de Psamético I, em 655 a.C., Nitócris deixou a residência real de Saís, a cidade da deusa Neit. A bordo de um barco oficial, acompanhada de uma flotilha numerosa, rumou em direção a Tebas, aonde chegou dezesseis dias depois.

      

       Do cais até ao templo, Nitócris foi transportada numa liteira nova, chapeada a ouro e prata. Na presença de numerosos dignitários e ritualistas, Chepenupet recebeu aquela que devia suceder-lhe. Mas primeiro teve de convencer Montuemhat, o rico e influente governador de Tebas, que se dobrou às exigências do faraó e participou nas cerimônias de investidura.

      

       Quando Chepenupet doou ritualmente a Nitócris tudo o que possuía, Tebas reconheceu a autoridade do rei saíta. Ao entrar em funções, a nova Divina Adoradora encarnava a união do Norte e do Sul, do Baixo e Alto Egito. A sua entronização constituía, pois, um grande ato político, destinado a recriar um reino coerente e forte após um período conturbado.

      

       Nitócris restaurou o palácio das Divinas Adoradoras; os altares, os pavimentos em pedra e a cozinha foram reconstruídos. Novecentos hectares de sete províncias do Alto Egito e quatro do Baixo Egito formaram o seu domínio. Todos os dias o clero de Amon oferecia ao pessoal da Divina Adoradora 190 quilos de pão, 6 litros de vinho, leite, legumes, bolos, cereais e ervas e, todos os meses, três bois, cinco gansos, vinte ânforas de cerveja e outros alimentos. Quanto ao grande intendente, era comparado ao ka do rei: por outras palavras, devia fornecer à Divina Adoradora a energia indispensável para cumprir a sua tarefa.

      

       Uma admirável estátua em xisto verde, com 96 centímetros de altura, representa a deusa Tueris, hipopótamo fêmea de pé, com braços e apoiada no sinal hieroglífico da proteção mágica; a obra encontrava-se no interior de um naos em calcário com uma abertura através da qual a deusa olhava para o exterior. Neste naos encontra-se representada Nitócris, oferecendo o sistro à deusa na companhia das sete Hator, que tocam tamboril. Tueris, ”a grande mãe”, e a Divina Adoradora tornavam-se assim indissociáveis.

      

       Em 594 a.C., após um longo reinado, a ”mãe” Nitócris, a Grande, adotou a ”filha” Anqnes-Neferibré. Revelou-lhe os segredos da sua função, ensinou-a a governar e morreu no ano 4 do faraó Apriés, em 585 a.C., depois de reinar nove anos em comum com a décima primeira Divina Adoradora.

      

       Anqnes-Neferíbré

       Filha do rei Psamético II, Anqnes-Neferibré tinha sido acolhida em Tebas por Nitócris, que lhe abrira as portas da morada de Amon e a levara à presença do deus oculto. Como faraó, Anqnes-Neferibré tinha praticado o rito da ”subida ao templo”.

      

       No sigilo do santuário, havia sido coroada e investida com as vestes e ornamentos rituais. Os seus títulos faziam dela ”a grande cantora, a que traz flores, a que está à cabeça da linhagem de Amon” e também ”o primeiro profeta de Amon”.

      

       Por outras palavras, Anqnes-Neferibré era colocada à frente da hierarquia tebana e tornava-se na superiora de todos os sacerdotes de Carnaque. O escriba do livro divino registrou os pormenores da cerimônia, constatando que a Divina Adoradora, digna de todos os louvores, doce de amor, reinava sobre o circuito do disco solar. Para manifestar o seu júbilo, ela tocou sistros e salmodiou um cântico sagrado com a sua bela voz.

      

       O nome da décima primeira Divina Adoradora significa ”Que o faraó viva para ela, pois perfeito é o coração da Luz divina”. Amada de Mut, regente da perfeição, Anqnes-Neferibré entrou plenamente em funções doze dias após a morte de Nitócris, a Grande.

      

       Mandou edificar uma porta triunfal na parte norte de Carnaque, duas pequenas capelas na álea que conduzia ao templo de Ptah, uma capela de Osíris, e reinou durante cerca de setenta anos. Quando sentiu as suas forças fraquejarem, escolheu como ”filha” Nitócris II, filha do faraó Amasis, e transmitiu-lhe o seu cargo de primeiro profeta de Amon.

      

       Nitócris II

       A décima segunda Divina Adoradora ia ser a última representante desta extraordinária linhagem de grandes sacerdotisas.

      

       Efetivamente, em 525 a.C. os persas invadiram o Egito e devastaram Tebas. O seu chefe Cambises teria mesmo violado o túmulo e queimado a múmia de Anqnes-Neferibré em Deir el-Medina. Felizmente, o sarcófago desta grande dama escapou à destruição, sendo encontrado pela expedição francesa de 1832, mas os poderes públicos não o consideraram suficientemente interessante para o comprarem. Mais perspicazes, os ingleses apoderaram-se desta obra-prima, hoje exposta no Museu Britânico. Está coberta de textos de capital importância, que traçam o destino espiritual da Divina Adoradora.

      

       Que sorte reservaram os bárbaros persas à última Divina Adoradora? Não sabemos.

      

       O apelo das Divinas Adoradoras

       Entre as riquezas arquitetónicas do grande templo de Medinet Habu, na margem ocidental de Tebas, contam-se as capelas das Divinas Adoradoras. Num dos lintéis podemos ler este ”apelo aos vivos”:

      

       Ó vivos, que estais na Terra e que passais por esta morada da energia criadora (ka} que Chepenupet II construiu para seu pai, o deus Anúbis, o qual preside ao pavilhão divino, e também para a Divina

      

       Adoradora Amenirdis, de voz justa! Assim como amais os vossos filhos e gostaríeis de os ver conservar as vossas funções, as vossas casas, lagos e canais, conforme vos foi desejado quando vós mesmo os construíeis e abríeis, assim como aspirais a doce e perfumada brisa da grande álea e seguis o deus venerável, de grande poder, em cada uma das suas magníficas procissões; assim como celebrais as festas do grande deus que está em Medinet Habu e as vossas esposas praticam os ritos em honra de Hator, soberana do Ocidente, e que lhes permite gerar machos e fêmeas sem enfermidades e sem sofrimento, eu vos peço: pronunciai a fórmula ”Oferenda do faraó”.

      

       AS CARPIDEIRAS

       Uma confraria sagrada

       A morte ceifou. A múmia foi preparada e introduzida num sarcófago, colocado num trenó puxado por bovinos. Organiza-se o cortejo fúnebre. Aparecem carpideiras, envergando um vestido branco e sem ornamentos. Com os seios nus, batem no peito e cobrem a cabeça de pó.

      

       Desoladas, lamentam-se, dão gritos de dor, evocam o bom pastor que partiu para o país da eternidade, ou seja, o defunto ou a defunta assimilados ao deus ressuscitado que sabe conduzir o rebanho humano aos paraísos do Além.

      

       Tu, cuja casa era numerosa, recitam as carpideiras, encontras-te agora, numa terra solitária. Aquele que gostava de mexer as pernas e andar está hoje imóvel e enfaixado.

      

       As carpideiras dispõem, efetivamente, de um repertório de textos e cânticos livres onde não há margem para a improvisação. ”Ofereçam água àquele que deseja beber”, imploram elas, evocando o morto que tem de passar por difíceis provas antes de conhecer a regeneração.

      

       Cantoras da deusa Hator, estas carpideiras que intervêm nos rituais funerários estão igualmente encarregadas, como vemos no túmulo de Ramosé, de fazer o gesto da energia criadora que sobreviverá ao nada.

      

       Ísis e Néftis, os dois milhafres fêmea

      

       As duas principais carpideiras chamavam-se djeryt, ou seja, ”milhafres fêmea”, aves de rapina que pousavam à cabeça aos pés do sarcófago e que o protegiam. Vemo-las também no barco que transporta o féretro para o paraíso dos justos.

      

       Estas duas aves são Ísis e Néftis, ”da voz justa”; durante os ritos, mulheres como a dama Ny-Anq-Hator, ”Aquela que pertence à vida, Hator”, que viveu na sexta dinastia, estão encarregadas de encarnar as deusas. Estas iniciadas envergavam um comprido vestido de alças que deixava os seios à mostra; um aro cingia a sua curta peruca. Traziam cofres em madeira, que continham tecidos e vestes de ressurreição.

      

       Ísis é ”a grande carpideira”, Néftis ”a pequena carpideira”; por vezes tocavam no sarcófago para lhe transmitirem a energia de que eram depositárias. Quando desempenhavam o papel de Ísis e Néftis, as iniciadas tinham de purificar-se quatro vezes, de sete em sete dias, antes de se apresentarem à porta da larga sala onde ritualistas as fumegavam. À primeira hora da noite, proferiam a fórmula: ”Sou pura, clara e incensada”.

      

       Recitavam-se as lamentações de Ísis e Néftis, cujo beneficiário era Osíris, ou seja, todos os seres reconhecidos como justos pelo tribunal do outro mundo.

      

       Na festa das carpideiras, purificavam-se os locais onde oficiavam. Depiladas e com perucas frisadas, Ísis e Néftis tinham o nome inscrito no braço. Veneravam Osíris quatro vezes, e um ritualista respondia-lhes : ”O céu está reconciliado com a Terra”.

      

       Para terem a boca pura, as carpideiras mascavam natrão, depois eram incensadas. O olho de Hórus, sinônimo de oferenda, aspergia o seu perfume sobre elas. Elevavam-se cânticos e músicas, anunciando a transformação de Osíris morto em Osíris vivo. Céus e Terra rejubilavam e conheciam a ventura, pois já não havia que temer pelo destino de Osíris. O Senhor estava bem presente na sua morada de ressurreição, não estava perdido nem transviado.

      

       Vem a mim, implorava Ísis, já não tens inimigos. Vem a mim para me contemplares. Sou tua esposa, aquela que te ama. Não te afastes de mim. Eu desejo-te. Que maravilhoso seria ver-te! Vem àquela que te ama, tua esposa, dona da tua casa. Sou a tua irmã bem-amada. Deuses e homens se voltaram para ti para te contemplarem e vêem a minha dor. Eu chamo-te e as minhas lamentações chegam às alturas do céu. Não ouves a minha voz? Sou a tua esposa bem amada na Terra, e não amas outra mulher. Está escuro para mim, embora o Sol brilhe na Terra. Céus e Terra são um só, e as trevas invadiram a Terra. As cidades vivem na desolação, os caminhos já não conduzem a parte alguma. O meu coração sofre, pois a desventura te levou. Faz-me falta o teu amor. Não fiques isolado, não fiques distante!

      

       A intervenção da carpideira e a intensidade do seu amor produzem um resultado feliz. O esposo de Ísis regressa aos seus braços. Ela começa por sentir a sua presença graças ao seu perfume, o perfume do maravilhoso país do Ponto, e depois vê-o. Osíris ressuscitado derrama a vida à sua volta. As carpideiras contribuíram para este milagre.

      

       AQUELAS QUE SERVEM O KA

       O ka é a energia criadora que anima todas as formas de vida. Deposita-se no ser humano cuja sobrevivência depende das relações que mantém com o seu ka, de modo que é essencial que, depois da morte de um indivíduo, ritualistas pratiquem os gestos necessários à manutenção deste poder invisível e imaterial.

      

       Ora, se existem ”servidores do ka”, também existem, desde as épocas altas, mulheres que exercem estas funções, a quem chamavam ”aquelas que servem o ka”. Oficiam nas capelas dos túmulos, queimam incenso e perfumes, apresentam oferendas líquidas e sólidas, que tornam eficazes fazendo-as ”sair para a voz”, ou seja, enunciando-as. Assim, a matéria é transformada em espírito.

      

       Ser ”servidora do ka” era uma profissão; em troca dos serviços prestados, a ritualista recebia um salário em gêneros. Tinha a capacidade de consagrar o monumento funerário do marido, de um parente ou amigo.

      

       Homem e mulher são idênticos perante o Além. Tal como o homem, a mulher pode atingir o mais elevado estado espiritual, o akh, termo que significa ”ser útil, ser luminoso”. A mulher iniciada é um ”ser venerado (imakti)”, ”a venerada junto do grande deus”. Assim, a dama Quensu, cujo nome significa ”Eu o protegi”, é sacerdotisa de Hator, senhora dos sicômoros, a sacerdotisa daquela que abre os caminhos, a Neit do norte da parede, a sacerdotisa da senhora de Dendera, em todos os seus lugares, a venerada junto do grande deus, a que é conhecida do rei, o ornamento do rei.

      

       Tal como o homem, a mulher deseja ter uma boa sepultura no Ocidente, subir até ao grande deus e receber oferendas. A princesa Ni-Sedjer-Kai, que viveu na quinta dinastia, foi inumada numa grande mastaba de Gize; filha do rei, sacerdotisa de Hator e da alma de Quéops, morreu em idade avançada. O faraó e Anúbis concederam-lhe o repouso no Ocidente e oferendas a cada festa, de modo que viajou em paz nos belos caminhos da eternidade para os quais se dirigem os justos.

      

       Que ela possa viajar e atravessar os céus, deseja-se à sacerdotisa de Hator, Hedui, enterrada na necrópole de Naga el-Deir; que a sua mão seja tomada pelo grande deus, senhor dos céus, para a conduzir ao lugar puro.

      

       A dama Neferet-Iabet, ”a bela oriental”, era uma personalidade excepcional. Na sua estela encontrada em Gize, e datada do reino de Quéops, está sentada num banquinho com pés de touro; com uma longa peruca estriada, vestida com uma pele de pantera, a mão esquerda sobre o peito, estende a direita para uma mesa de oferendas. Com este gesto consagra mil pães, mil cântaros de cerveja, mil cabeças de gado, mil peças de caça, mil vasos de alabastro, mil peças de tecido, o incenso, o azeite, o pó verde, o pó negro, os frutos, o vinho e todas as outras coisas boas e puras que figurarão nas festas e nos banquetes do Além. Diante do rosto de Neferet-Iabet, atuando como animadora do ka, um hieróglifo que significa ”água fresca, água de regeneração”. Consagrando alimentos e produtos rituais, ela tornava-os vivos para sempre.

      

       O baixo-relevo da dama Ketisen e do seu marido Huti é revelador da importância atribuída à mulher como servidora do ka e, portanto, capaz de sacralizar a matéria. Os dois esposos estão frente a frente. Diante deles, uma mesa de oferendas com pães. Os dois personagens são da mesma estatura. Huti é severo e digno, a sua esposa Ketisen é de uma extraordinária beleza. Pormenor capital: todos os hieróglifos se dirigem à mulher e não ao marido. O Verbo e a magia que veiculam são destinados a Ketisen, reconhecida como animadora desta cena e como a ”proprietária” da oferenda gravada na pedra para a eternidade. Os diversos produtos enumerados são seus e dispõe deles como lhe apraz. O marido, Huti, tem uma postura de veneração face à esposa, que aliás marca a sua proeminência estendendo as mãos para a mesa das oferendas. Huti é o convidado da dama Ketisen, à qual dirige um discurso, prometendo-lhe grande quantidade de oferendas para que nada lhe falte no outro mundo.

      

       AS RECLUSAS

       As ”reclusas” (khenerut) formavam uma categoria de iniciadas que podiam passar longos períodos no interior de um templo ou aí residir definitivamente. A rainha do Egito era a superiora das reclusas, as quais se colocavam sob a proteção do faraó, de Amon, Min, Qonsu, Sebeq, Osíris, Knum, Upuaut, Ísis, Mut, Bastet, Néftis e, enfim, de quase todos os deuses e deusas.

      

       Não lhes era exigida a virgindade nem o celibato, mas praticavam-se várias purificações antes de entrarem no templo e de participarem nos ritos, pois as iniciadas eram lavadas numa bacia, depiladas e incensadas.

      

       Deviam usar um vestido comprido e apertado, até aos calcanhares, uma tanga curta ou semicomprida, por vezes presa com faixas cruzadas sobre o peito e nas costas, um cinto com duas compridas faixas na frente, jóias, pulseiras nos braços e nos tornozelos - eis as principais peças de vestuário e os ornamentos das reclusas, cuja função consistia em atrair a energia divina sobre a Terra e concentrá-la no santuário.

      

       Para além das atividades musicais, as reclusas olhavam pelos objetos sagrados e pronunciavam palavras de poder contidas nos hinos, apaziguando assim as forças cósmicas cuja intensidade podia ser destrutiva.

      

       Estas iniciadas habituadas a viver os mistérios do templo estavam incumbidas da tarefa de encarnar as deusas na representação secreta dos mitos. As carpideiras, que evocamos já, estavam ligadas a uma comunidade de reclusas, ”as da Casa da Acácia”. Eram dirigidas por uma ”superiora da Casa da Acácia” capaz de utilizar o formidável poder da leoa Seqmet e de permitir que as suas irmãs vencessem a morte.

      

       A rainha Tiaa, esposa do faraó Amenotep II, foi ”diretora dos talhantes da Casa da Acácia”; efetivamente, ao lado do santuário onde estas iniciadas oficiavam havia um sector econômico encarregado de assegurar o seu bem-estar material.

      

       Um baixo-relevo da mastaba de Mereruka mostra-nos três reclusas da Casa da Acácia vestidas com uma curta tanga, os braços em arco sobre a cabeça e dançando a um ritmo lento. Acompanham-nas duas irmãs. O essencial do seu cântico ritual reside nestas palavras: ”Que o seu corpo permaneça intacto”, ou seja, que Osíris seja preservado da morte. As reclusas da Casa da Acácia participavam nos mistérios da ressurreição de Osíris e colocavam-se sob a proteção de Hator, ”dama da Casa da Acácia”.

      

       Tuy e Huy

       A dama Tuy, que viveu durante o reinado de Amenotep III, é conhecida graças a uma estatueta em madeira de 33,4 centímetros de altura. É representada idosa, de rosto severo, com um ar austero e um colar de ressurreição, o menat, na mão esquerda. Dona de casa, era também ”grande cantora” e ”grande reclusa de Min”, títulos que indicam uma posição elevada na hierarquia sagrada.

      

       Tal como a ilustre Tuy, grande esposa real de Séti I e mãe de Ramsés II, a dama Huy havia sido ”superiora das reclusas de Amon” na época de Tutmósis III. Uma estátua representa-a sentada num trono e especifica os seus outros títulos: ”superiora das reclusas na morada de Ra, adoradora do deus, adoradora no templo de Aton”. Um personagem de primeiro plano, tendo nos braços uma criança despida, a sua filha, grande esposa real.

      

       De acordo com as inscrições, o ka de Huy recebia oferendas, pão, cerveja, carne, aves de capoeira, vinho e leite aquando de todas as festas do céu e da Terra. O deus Amon e a deusa Mut agiram de tal modo que ela conheceu a alegria, deslocando-se livremente no templo todos os dias e tendo acesso a todos os lugares secretos, e gozando de boa saúde.

      

       MULHER CONHECEDORA E MAGA

       Como nos revelam nomeadamente os arquivos da povoação de Deir el-Medina, existia em todas as comunidades, grandes ou pequenas, uma ”mulher sábia, conhecedora”, chamada a resolver mil e um problemas. Vidente, capaz de dar a uma criança o nome no qual estaria contido o seu destino, curandeira, previa o futuro, aliviava os males psíquicos e físicos, sabia encontrar objetos perdidos e distinguir a verdade da mentira. Guardiã das tradições, transmitia oralmente os mitos, as lendas e os contos. A quem vinha ter com ela, era capaz de dizer se era habitado por forças positivas ou negativas e, neste último caso, como libertar-se delas.

      

       Estas ”conhecedoras” exerceram uma influência considerável na vida diária dos antigos egípcios; a dama Horsedjem, dita ”Osíris, a quem se dirigem louvores”, título raro, era certamente uma delas. Vemo-la ajoelhada diante de Tot, que, sob a forma de um íbis, escuta aquela que havia sido admitida na morada de um deus. Instruída nos segredos do deus do conhecimento, ela podia afirmar: ”Eu sou a mulher que ilumina das trevas”.

      

       Enquanto ciência que dava acesso às leis universais, a magia está presente no universo egípcio, onde a fronteira entre a vida e a morte é mera aparência. As divindades residem na Terra e impregnam com o seu poder as menores atividades diárias, reclamando aos camponeses, artífices e donas de casa uma consciência do sagrado. Por isso utilizam meios carregados de magia como escaravelhos e amuletos.

      

       A conhecedora é também uma maga. A expressão ”grande, rica em magia” designa ao mesmo tempo a coroa real, a serpente uraeus erguida na fronte do faraó e várias deusas, entre as quais Ísis. Quando partiu pelos caminhos e surgiu aos humanos sob a aparência de uma mulher, Ísis fez-se acompanhar por sete escorpiões que lhe obedeciam e a protegiam contra todos os agressores. Ao chegar a uma povoação situada nos limites das terras e à beira dos pântanos do Delta, Ísis exprimiu o desejo de entrar na casa de uma mulher, que a afastou fechando a porta, Ísis insistiu e conseguiu que lhe abrissem a porta, mas um dos seus escorpiões picou o filho da dona da casa. Ísis compadeceu-se e salvou o infeliz tocando-lhe com as mãos e mandando o veneno sair do corpo e escorrer para o chão.

      

       A maga nada ignora acerca dos malefícios e das virtudes de seres perigosos como escorpiões e serpentes. Sabe desencadear a vinda da cobra Renenutet, de cabeça de mulher, que protege as colheitas e as torna abundantes; com o rosto coberto por uma máscara com orelhas de leão, ela segura uma serpente em cada mão’ e pronuncia as fórmulas de esconjuro adequadas.

      

       Identificada com os quatro ventos, a maga abre as portas dos céus, estende o seu olhar até aos confins da Terra, percorre o caminho da Luz e da água, e vive na unidade que existia antes do nascimento da multiplicidade.

      

       A dama Nestayerré, que vivia em Tebas no Novo Império, receava, como toda a gente, as calamidades que podiam abater-se sobre si, desde uma constipação até ao desabamento de uma parede. Pequenas ou grandes, as desgraças eram enviadas pelas divindades quando não as honravam corretamente. Existia uma maneira de se salvaguardar: trazer consigo um papiro cujo texto afirmava que o mesmo preserva o seu proprietário das catástrofes. Os grandes deuses de Tebas prometeram à dama Nestayerré que a manteriam de boa saúde e lhe concederiam bons sonhos. Salvaguardá-la-ei do crocodilo, da serpente, dos escorpiões, da doença, da maledicência, da injustiça e dos demônios, afirma o deus Qonsu. Farei prosperar as suas terras, o seu pessoal, o seu gado, as suas cabras e todos os seus bens no país, de tal modo que nenhuma divindade do Sul ou do Norte intervenha contra ela. Evitar-lhe-ei as dores de cabeça, males da língua ou dos olhos. Manterei de boa saúde o seu coração, os seus pulmões, o seu fígado, os seus rins e o seu ventre. Uma conclusão especifica que os males que houvessem ficado esquecidos seriam também esconjurados e que os acontecimentos benéficos não mencionados também se produziriam.

       

       As divindades concederam uma bela carreira de sacerdotisa à dama Mutuatés, permitindo-lhe chegar a uma idade avançada e terminar os seus dias na paz do templo. Um texto contido num pequeno cilindro que ela traz ao pescoço garante-lhe que será acolhida no Além por Amon, o qual lhe reserva uma grande festa.

      

       FIGURAS DE INICIADAS

       Taniy, iniciada nos mistérios de Abidos

       Em 1880, Auguste Mariette descobriu em Abidos uma estela do Médio Império com o nome da dama Taniy; faltava a parte superior, recentemente encontrada, de modo que dispomos agora do monumento completo. É difícil saber em que reino exato ela viveu, talvez no de Amenemhat II, mas o essencial é o extraordinário texto desta estela porque evoca a participação de uma mulher nos mistérios de Osíris, a propósito dos quais as informações são raras.

      

       Taniy era venerada (imakhet) junto de Osíris, possuía o estado de venerável (imaktí) e havia sido reconhecida como ”justa de voz”; podia comparecer diante de Osíris, o grande deus, senhor de Abidos, da sua esposa Ísis e do seu filho Hórus. Envergando um vestido comprido com alças presas sob os seios à mostra, com uma peruca curta, enfeitada com um largo colar, tinha uma flor de lótus na mão esquerda e fazia uma libação sobre uma mesa de oferendas. Poderia dispor de milhares de pães, cântaros de cerveja, bois, aves de capoeira, perfumes e incenso para toda a eternidade. A dama Taniy lançava um apelo aos sacerdotes puros e aos servidores do deus que tinham acesso ao templo de Osíris: que todos os dias e em todas as festas fizessem oferendas.

      

       Depois Taniy revela o que viveu: Sou dotada de carácter para aqueles que conhecem, uma venerável, louvada pelo meu senhor, perfeita graças ao que emana da sua boca, distinguida pelo rei graças à sua equidade. Ele recompensou-me com presentes diários; entrei sob louvores e saí como uma amada; sou alguém cuja formulação revela as qualidades, que formula os ritos para ela praticados, uma venerável junto da grande esposa real, que se une à coroa branca.

      

       Taniy estava pois familiarizada com a corte régia, ou pelo menos era suficientemente conhecida para que as suas qualidades fossem apreciadas. E prossegue, revelando alguns episódios dos mistérios de Abidos: A conhecida do rei, Taniy, foi a Abidos no dia em que não se fala; depois de ter entrado na divina tenda, ela viu os ritos secretos.

      

       Esta tenda era uma espécie de capela no interior da qual se encontrava um símbolo de Osíris, por certo uma estatueta que o representava sob a forma de uma múmia servindo de suporte aos ritos de ressurreição.

      

       Depois de ter entrado na barca (neshemet), continua Taniy falando de si própria, ela atravessou o rio na barca divina. A conhecida do rei, Taniy, saiu à planície de Ra com plantas chamadas ”a vida que está em ti” nos olhos, no nariz e nos ouvidos e com o produto chamado ”os irmãos do céu” nos membros. Foi vestida por Tayt (a deusa da tecelagem), e as suas vestes foram-lhe dadas por Hórus, o mais velho, no dia em que tomou a grande coroa.

      

       E o texto conclui: Que o teu nariz-’’ te pertença, ao mesmo tempo que os teus olhos vejam, ó verdadeira conhecida do rei, Taniy, justa de voz, venerada dama.

      

       Henut-Udjebu, a amada dos céus

      

       Henut-Udjebu, ”a senhora das larguezas (ou das estofas)”, foi inumada num magnífico ataúde em madeira dourada e pintada, depositado no túmulo de Hatiay, em Tebas. Dona de casa e cantora de Amon, a dama Henut-Udjebu tornara-se em Osíris. O seu rosto, em ouro e estuque, é luminoso e sereno; o vidro negro utilizado para as pupilas e o vidro branco para a córnea preservaram um olhar vivo. O colar de contas era arrematado por botões de flores de lótus douradas.

      

       O texto da tampa do sarcófago merece atenção: Palavras ditas pela Osíris Henut-Udjebu, justa de voz: ”Ó minha mãe Nut (o céu), estende-te sobre mim, para que eu seja colocada entre as estrelas imorredouras que estão em ti, sem morrer”.

      

       Amada da deusa do céu, Henut-Udjebu unia-se a ela para viver a imortalidade das estrelas tal como a conheciam os faraós do Antigo Império.

      

       A dama Tauau identifica-se com os deuses     

       Tauau, tocadora do sistro de Amon-Re, viveu na época ptolomaica; um papiro, felizmente conservado, revela as etapas da sua iniciação e as importantes consequências que daí advieram.

      

       Reconhecida como justa pelo tribunal divino, Tauau obtém o domínio do Verbo e do seu coração, de modo que realizou três desejos: ”refrescar” o coração, ou seja, regenerá-lo constantemente, obter um poder idêntico ao de Seqmet e ter uma velhice feliz no Além, como Osíris ressuscitado. Sendo um ser de Luz, a dama Tauau tornou-se Aton, o Criador, Ptah, o que dá forma, Tot, o conhecedor, Amon, o rei dos deuses, Osíris, o senhor do outro mundo, Hator, o ouro dos céus. Identificou-se com todas as divindades, tornando-se pai e senhor de todas as forças divinas.

      

       Por isso não morreu segunda vez e obteve uma total liberdade de movimentação nos espaços do Além.

      

       A estátua da dama Takushit, datada da vigésima quinta dinastia, exprime um simbolismo idêntico; sobre o seu corpo de pedra são evocadas as divindades de Heliópolis, Mênfis, Mendes e outros lugares sagrados. O panteão inteiro fá-la reviver para sempre, porque o seu ser ressuscitado é formado pelo conjunto dos poderes da Criação.

      

       Na coleção arqueológica da Universidade de Liverpool encontra-se uma modesta escultura muito estragada, sem pés nem cabeça. No entanto, trata-se obviamente de duas mulheres. Este tema é excepcional em estatuária, evocando duas iniciadas, duas irmãs pertencentes a uma comunidade de reclusas, partilhando o mesmo mistério e desejando permanecer lado a lado para sempre.

            

       Foi Ptolomeu Filopátor (221-205 a.C.) quem reduziu a mulher egípcia à categoria da mulher grega, impondo-lhe um tutor para todos os atos jurídicos ou comerciais. A igualdade entre os sexos, um dos valores essenciais da civilização faraônica, desaparecia assim.

      

       Um outro passo foi dado pelo cristianismo. Quando Clemente de Alexandria, um dos primeiros Padres da Igreja, ainda pensava, no ano 180 d.C. que ”em Cristo não há macho nem fêmea”, o seu contemporâneo Tertuliano tomou uma posição radicalmente hostil à mulher, à qual ”não é permitido falar na igreja, nem ensinar, batizar, fazer oferendas, reclamar uma parte de uma função masculina, ou recitar qualquer ofício sacerdotal”. Cristianismo, judaísmo e islã procederão neste sentido, mantendo as mulheres num estado de inferioridade espiritual.

      

       No tempo dos faraós não era assim, tendo sido observado, e bem, que a amplitude dos direitos das egípcias não foi igualada em parte alguma até à Primeira Guerra Mundial. E, mesmo assim, há que restringir esta moderna reconquista a uns quantos países e ao campo social e econômico.

      

       Efetivamente, no campo espiritual, os pontos altos atingidos pelas egípcias nunca mais o foram desde a extinção da civilização faraônica; os seus valores eram demasiado amplos, ricos e criativos para serem contidos em religiões dogmáticas.

      

       Uma das primeiras grandes figuras da História egípcia, a esposa do sábio Petosíris, seguiu o modelo da mulher perfeita, de acordo com a antiga sabedoria. Nos anos 350-330, a velha cidade santa de

      

       Hermópolis, a Grande, onde se encontravam a primeira colina emergida quando da Criação e do ovo do mundo, não passava de uma cidade pequena e pobre. Em 333, Alexandre Magno libertaria o Egito do jugo dos persas para lhe impor o dos gregos; o país nunca mais seria governado por um faraó originário das Duas Terras. Mas, em Hermópolis, o sumo sacerdote Petosíris quis esquecer a fatalidade da História. Chefe dos sacerdotes de Seqmet, sumo sacerdote de Tot, via o deus no seu naos e recomendava aos humanos que respeitassem a regra de Maat, caminhando nas veredas de Deus. Petosíris restaurou o templo de Tot, restabeleceu os horários de trabalho, encheu os celeiros de trigo e cevada, cuidou da manutenção dos jardins e das árvores de fruta.

      

       Quando reedificou a capela das Esposas Divinas e a de Hator, realizou o desejo da sua esposa, redigido nestes termos:

      

       A sua mulher, sua amada, soberana da graça, doce de amor, de hábil palavra, agradável nos seus discursos, de conselho útil nos seus escritos; tudo o que passa pelos seus lábios é semelhante a Maat; mulher Perfeita, favorecida na sua cidade, a todos estendendo a mão, dizendo o que está certo, repetindo o que as gentes amam, a todos agradando; Escutando-a, não se aprende o mal, ela que é muito amada por todos, ela que se chama Renpet-Neferet, ”o ano perfeito”, Petosíris e a sua esposa, ”o ano perfeito”, foram inumados juntos num magnífico túmulo; de acordo com as palavras do sábio, uma pessoa será tratada conforme a maneira como agiu, e deixar boas palavras é construir um monumento. Para encontrar a felicidade e alcançar o Belo Ocidente, há que ser reto e praticar a equidade.

      

       As egípcias conheceram um mundo em que a mulher não era nem adversária nem rival do homem. Um mundo que lhes permitia desabrocharem como esposas, mães, trabalhadoras e iniciadas nos mistérios do templo sem perderem a sua identidade a favor do homem. Um mundo em que o domínio do sagrado lhes era acessível na sua totalidade.

      

       É uma mulher imensa, a deusa Nut, que engole o Sol poente e gera o Levante. Nela se reproduz, todas as noites, a alquimia da Criação; e todas as manhãs faz nascer uma nova luz. Com ela aparecem todos os seres vivos, que nela se realizam.

      

       Esta percepção do papel da mulher celeste, das deusas, da polaridade feminina da Criação, esteve na origem do respeito que a civilização faraônica manifestou pelas mulheres e do papel que lhes atribuiu na sociedade, de grande esposa real a dona de casa de Divina Adoradora a serva.

      

       Haveria que evocar muitas outras egípcias e traçar inúmeros outros retratos; o acaso da conservação dos documentos priva-nos de muitas informações, tornando-se muitas vezes necessário investigar demoradamente para obter indicações fiáveis. Não obstante as suas imperfeições, esta obra constitui uma homenagem às radiosas e imortais egípcias.

      

       ”Que aquele que me vê ornada com o meu colar ore por mim e me ofereça flores”, pedia uma bela dama originária da cidade de Mendes; ”que se recordem do meu belo nome”. Sim, o historiador tem o dever de fazer reviver os ”belos nomes” das egípcias, a sua aventura e o seu exemplo.

      

       Quando contemplamos Ísis magnetizando ”o doador de vida” (o sarcófago), Nefertiti contemplando o Sol, uma convidada num banquete tebano, uma portadora de oferendas do Antigo Egito, a serenidade luminosa de Nefertari, o sorriso de Maat, como poderíamos esquecer as egípcias por um instante que seja.

 

                                                                                            Christian Jack

 

 

                      

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