Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O CASO TUTANKHAMON
George Edward Stanhope Molyneux Herbert, visconde de Porchester, chamado Porchey pelos seus raros íntimos e considerado pelos invejosos como o futuro Lord Carnarvon, deu um soco na cara do marinheiro grego que recusou obedecer às suas ordens. A bordo do seu iate Afrodite, era o único patrão e não admitia que se lhe atravessassem no caminho, mesmo que uma violenta tempestade semeasse o pânico no meio da tripulação.
O grego levantou-se atordoado.
— O seu cozinheiro está tramado... faria melhor em tomar conta do leme.
— Uma crise de apendicite não é uma condenação à morte. Deveria saber, meu amigo, que a Afrodite é uma deusa do mar; durante a operação, entrego-lhe o barco e a tripulação.
Desdenhando do incrédulo, Porchey desceu ao seu camarote onde instalou o doente; estimava muito aquele cozinheiro brasileiro, contratado por ocasião da sua última volta ao mundo.
O homem torcia-se com dores.
Na coberta, a maioria dos marinheiros tinha-se ajoelhado e rezava, Porchey detestava aquele género de manifestações, característico de uma falta de autodomínio. Quando aprendeu a navegar no Mediterrâneo, em frente da vivenda que seu pai possuía em Porto Fino, na Riviera italiana, o visconde Porchester nunca apelara para o Todo-Poderoso. Ou vogava sozinho, ou se afogava sozinho, sem importunar uma assembleia ocupada em tarefas mais importantes do que a assistência a um navio em perigo.
Deu a beber, ao cozinheiro, metade de uma garrafa de um excelente uísque, depois sentou-se ao piano e tocou as Invenções a duas vozes, de João Sebastião Bach. A mistura de álcool com aquela música serena acalmava o paciente; se não sobrevivesse, partiria com derradeiras sensações de qualidade.
Antes de morrer, a mãe de Porchey tinha exigido dele que, de acordo com a educação que recebera no castelo de Highclere, não visse nem ouvisse nada de ordinário nem de vil. Ao preparar-se para abrir a barriga de um brasileiro, que devia ter um ou dois crimes na consciência, o visconde desculpou-se junto da alma da sua genitora.
O doente, com o olhar febril, ousou perguntar:
— Já... já alguma vez operou?
— Uma boa dúzia de vezes, meu amigo, e sem nenhum fracasso. Descontraia-se e tudo correrá bem.
Grande leitor, falando o inglês do Trinity College de Cambridge, o alemão, o francês, o grego, o latim e compreendendo alguns idiomas raros da bacia mediterrânica, Porchey tinha lido, efectivamente, manuais de cirurgia e tinha ensaiado mentalmente uma operação ao apêndice, pesadelo dos navegadores que partissem para travessias longas. Fora por isso que se munira de um estojo cirúrgico digno de um profissional.
— Feche os olhos e pense numa boa refeição ou numa mulher bonita.
Um sorriso brejeiro dilatou os lábios grossos do cozinheiro.
Porchey aproveitou aquele instante de fraqueza e atingiu-o com uma marretada na nuca. Algumas rixas nos bares escusos de Cabo Verde e das Antilhas tinham-no ensinado a aperfeiçoar aquela técnica de anestesia.
Operou com mão segura, pensando na epidemia de sarampo que quase o levara; à guisa de remédio, borrifavam-no com água gelada a fim de fazer baixar a febre. Em Eton, o tratamento não era nada melhor; a partir dos primeiros segundos, o visconde tinha detestado os professores pretensiosos, além de cheios de um saber inútil. Trabalhava à sua maneira e ao seu ritmo, indiferente às notas e às sanções; era por isso que o classificavam de preguiçoso, ao passo que desenvolvia um formidável poder de concentração e uma total independência de pensamento. Coleccionador de selos, de chávenas de porcelana, de gravuras francesas e de serpentes em boiões, aborrecia-se profundamente com a leitura de clássicos, quer se tratasse de Demóstenes, o maçador; de Séneca, o desmancha-prazeres ou de Cícero, o toleirão; no Trinity College tinha, contudo, encontrado uma ocupação apaixonante: restaurar as madeiras à sua custa. O director, escandalizado, tinha-se queixado a seu pai da atitude intolerável de um membro da velha aristocracia terrena, guardiã dos valores e da tradição, que Porchey espezinhava com satisfação.
Ao jovem nobre, desportista consumado, restava apenas descobrir o mundo, descobrir a África do Sul, a Austrália e o Japão, passar de um continente ao outro em busca de um ideal que lhe fugia. Quando a existência lhe parecia muito aborrecida, mergulhava nos livros de história; a antiguidade atraía-o, por causa do seu carácter grandioso, tão oposto à mentalidade pequeno-burguesa em que a Europa se enterrava.
O Egipto fascinava-o; não tinha ultrapassado o homem, integrando-o no colossal e construindo templos à medida do universo? Contudo, tinha evitado a terra dos faraós como se um receio respeitoso, pouco frequente nele, o impedisse de penetrar em território desconhecido.
O visconde examinou o seu trabalho com satisfação.
— Nada mal... nada mal mesmo. Não juro que saia bem, mas o manual estava correcto; decididamente, nada vale um bom livro.
Aproximava-se a hora do jantar. O visconde mudou de roupa, optando por um casaco branco e umas calças de flanela cinzenta; não esqueceu o boné de capitão e tornou a subir à coberta onde a tripulação continuava a rezar no meio da tempestade.
— Deus é bom — observou o aristocrata. — O Afrodite atravessou aquela pequena borrasca e ninguém caiu à água.
Vários marinheiros se precipitaram para junto dele.
— Calma, senhores. O nosso cozinheiro está agora livre do seu incómodo apêndice; provavelmente, não estará em estado de preparar as refeições e teremos de nos desembaraçar como pudermos até à próxima escala. Que este incidente não os impeça de voltarem aos seus postos.
Ao leme do iate, o herdeiro dos Carnarvon tinha uma postura distinta. Com a fronte alta e larga, coroada por uma cabeleira quase ruiva, o nariz de boa raça, o bigode cortado na perfeição, o queixo bem marcado, tinha o rosto de um conquistador, partindo para o infinito.
Apenas Porchey sabia que a imagem enganava; teria, de boa vontade, delapidado uma parte da sua herança para dar um sentido à sua vida. A inteligência, a cultura, a fortuna, a possibilidade de fazer o que lhe apetecia, como lhe apetecia... nada disso lhe destruía o sentimento de ser vazio e inútil.
O grego berrou.
— O cozinheiro está vivo! Eu vi, abriu os olhos!
O visconde encolheu os ombros.
— Eu só tenho uma palavra, meu caro. Não tinha prometido salvá-lo?
O homem observava o jovem Howard Carter havia meia hora.
Elegante, fino, tinha um rosto severo e um olhar inquisidor.
Howard, aproveitando um dia bonito, tinha colocado o cavalete num campo onde uma égua amamentava o seu potro; o Norfolk beneficiava de um fim de Verão excepcional, e oferecia cem temas de quadros. Aos dezassete anos, o jovem seguia o rasto do pai e contava tornar-se como ele, pintor animalista; em vez de o mandar para a escola da terra, tinha-lhe ensinado a ler, a escrever, a desenhar e a pintar; cavalos e cães eram os motivos principais. Embora tivesse irmãos e irmãs, sentia-se filho único, só ele era capaz de receber a mensagem do artista; de lhe perpetuar a descendência e de provar que podia viver da sua arte. Por isso trabalhava com perseverança, encarniçando-se a aperfeiçoar o mínimo pormenor.
Embora tivesse nascido em Londres, no bairro de Kensington, a 9 de Maio de 1874, Howard Carter passara a sua infância em Swaffham, uma pequena aldeia cuja calma verdejante amava.
Na véspera à noite, tinha-se produzido uma espécie de milagre pela primeira vez, um dos seus quadros quase o satisfazia. O cavalo cabriolava, os seus olhos riam, vivia; era verdade que faltava finura às suas patas e que a cabeça deveria ser aperfeiçoada. Mas a mão tornava-se firme: a profissão manifestava-se. O homem colheu um cólquico que enfiou na botoeira, e deu alguns passos em direcção ao adolescente que se levantou e o olhou sem baixar os olhos, espezinhando a sua educação. Continuou a sua marcha lenta através da erva, não receando manchar de verde o seu belo fato de aristocrata, e parou em frente da aquarela que examinou estendendo o pescoço como uma ave de rapina.
— Interessante — concluiu. — Chama-se, ao que julgo, Howard Carter?
O jovem detestava as maneiras dos ricos: entre eles, quantos salamaleques, para se dirigir a palavra. Ao inferior, bastava dar ordens num tom desdenhoso.
— Não o conheço. Não é da aldeia.
— Uma vez que não há ninguém para nos apresentar, à excepção daquela bonita égua ocupada noutras tarefas, fique sabendo que me chamo Percy E. Newberry, e que temos uma amiga comum. Teria a amabilidade de me desenhar um pato?
Ele estendeu uma folha de papel.
— Mas... Porquê?
— A nossa amiga comum, Lady Amherst, que mora no palácio vizinho, falou-me de si como de um pintor notável. Comprou três telas suas. A sua égua pode considerar-se perfeita, mas um pato, é outra coisa...
Furioso, Howard pegou no papel e, em menos de cinco minutos, esboçou um pato de pescoço verde, de grande perfeição.
— Lady Amherst tinha razão; aceitaria desenhar e colorir, para mim, gatos, cães, gansos e uma quantidade de outros animais?
A desconfiança do artista permanecia intacta.
— Será, por acaso, coleccionador?
— Professor de egiptologia na universidade do Cairo, no Egipto.
— É longe, não é?
— Muito longe. Londres ainda é mais perto.
— Porquê Londres?
— Porque a nossa bela capital alberga o British Museum; gostaria de o levar lá.
O maior museu do mundo... o pai tinha-lhe falado nele muitas vezes. Talvez um dia, algum dos seus quadros lá fosse exposto!
— Não tenho dinheiro. A viagem, o alojamento...
— Está combinado. Aceita deixar a sua família e o seu país durante um mês... três meses?
As andorinhas brincavam no céu; na orla da floresta, um picanço depenicava a casca de um carvalho. Abandonar Norfolk, separar-se dos irmãos, despedaçar a infância... Atirou com o cavalete.
— Quando partimos?
Vários meses de trabalho ininterrupto, debruçado sobre a sua mesa, a reproduzir hieróglifos onde figuravam não só animais mas também seres humanos, objectos, edifícios, sinais geométricos e muitos outros aspectos dessa língua que os Egípcios consideravam como sagrada: como um escriba, Howard Carter aprendia a desenhá-la antes de a compreender; traçar essas palavras de autoridade transformava-lhe a mão e o pensamento. Respeitava escrupulosamente os modelos que o professor Newberry lhe facultava; a pouco e pouco, aprendera a escrever como os antigos tinham escrito.
Isolado num escritório, limitado a um pequeno quarto, não convivia com ninguém. O British Museum e os seus gentlemen afectados intimidavam-no; preferia a companhia dos hieróglifos.
Um manto de chuva gelada cobria Londres. O professor Newberry convocou-o; sobre a sua secretária estavam os desenhos de Howard Carter.
— O seu trabalho satisfaz-me inteiramente. Gostaria de passar a ser o mais jovem membro do Egypt Exploration Fund?
— Que cargos implica essa distinção? — Percy E. Newberry sorriu.
— Para ser franco, Howard, tem o carácter mais desconfiado e mais independente que o Criador colocou no meu caminho. O destino decidirá. No que diz respeito à fundação científica privada, que ficaria feliz por o acolher, tem por vocação o estudo das artes do Egipto antigo e um melhor conhecimento da sua civilização.
Se bem que Howard Carter tivesse decidido não deixar transparecer qualquer emoção, arrebatou-o uma vaga de entusiasmo.
— É... é maravilhoso! Portanto vou continuar aqui a desenhar hieróglifos!
— Receio que não.
Newberry revelou-se-lhe subitamente como um demónio saído do Inferno, a fim de o torturar. Ao alcance da sua mão havia um tinteiro. O professor apercebeu-se da sua intenção.
— Nada de gestos irreflectidos, Howard; a situação é delicada.
— Terei cometido um erro? Mandar-me embora porquê?
— Reage sem saber; esse entusiasmo poderia trazer-lhe bastantes preocupações.
— Os conselhos ficam para depois; primeiro, a verdade!
Percy E. Newberry, com as mãos cruzadas atrás das costas, voltou-se para a janela do escritório e observou a chuva a cair.
— O pato dos hieróglifos é um bicho venenoso, Howard; uma vez que nos mordeu é para toda a vida.
— Eu aceito desenhar milhares de patos.
— Aceita também sacrificar tudo a esses voláteis?
A posição não o assustou.
— Quando se tem a felicidade de encontrar verdadeiros amigos, conservam-se.
O professor Newberry voltou-se novamente para o adolescente.
— Pois bem, senhor Carter, ei-lo arqueólogo. Só resta um pormenor a regularizar.
— Qual?
— As suas malas. Embarcamos amanhã para o Egipto.
Da Alexandria, Howard Carter não viu nada; o professor Newberry estava com pressa de apanhar o comboio para o Cairo. Logo que deu os primeiros passos no solo do Egipto, o jovem sentiu-se liberto de dezassete anos de Inglaterra e de uma família que desapareceram nas brumas do esquecimento. Só, mas subitamente embriagado pelos milénios de uma civilização imortal, começava a viver.
Transportando duas preciosas malas do professor, cheias do seu material científico, não teve sequer vagar de saborear um Oriente colorido e perfumado.
O caminho de ferro, linhas telegráficas, um serviço postal, uma estação barulhenta... Não escondeu o seu espanto.
— É verdade, Howard, o Egipto moderniza-se. Acaba infelizmente de adoptar o árabe como língua oficial da administração e de autorizar um jornal pregando a independência. Que loucura! Sem nós, o país seria condenado à ruína e à miséria. Essa maldita gazeta recebeu o nome de al-Ahrâm. A Pirâmide. Que profanação... por felicidade, os extremistas não têm futuro algum. Acabarão na prisão, à fé de Newberry!
Abandonando o professor à sua vindicta, contemplou as paisagens do Delta, casamento de água e de terra; as aldeias, construídas sobre colinas, dormiam ao sol. Coortes de pássaros brancos sobrevoavam extensões verdejantes povoadas de canaviais; camelos, pesadamente carregados, avançavam com um passo majestoso pela crista dos diques que dominavam os campos de trigo. Com o nariz colado à janela do comboio, passava de deslumbramento em deslumbramento.
— Esqueces-te de fazer esboços.
Envergonhado, tirou o caderno de desenho para fora e começou a trabalhar.
— O trabalho, Howard! Só o trabalho conta. Tu, agora, és um cientista, mesmo que ignores tudo. Contenta-te em anotar e analisar; se te deixas envolver pela magia deste país, perderás a alma.
Dez raças, cem línguas, mil cores de turbantes, uma multidão compacta de Egípcios, de Sírios, de Arménios, de Persas, de Turcos, de Beduínos, de Judeus e de Europeus, mulheres veladas de negro, burros carregados de luzerna ou de barro, os telhados das casas em mau estado, atafulhados de detritos, dos cheiros de excrementos misturados com o perfume das especiarias, solos lamacentos, pequenas lojas abertas num lanço de parede, o fumo dos fornos ao ar livre, onde se coze a carne e o pão, milhafres rapaces voando em redor do alimento, dentro do cesto que as camponesas traziam à cabeça, um sonho louco, grandioso, inumano: assim lhe apareceu o Cairo, a mãe do mundo.
Ficaram num hotel do centro da cidade que se parecia, traço a traço, com um estabelecimento londrino; o professor encomendou sopa e porrídge para o jantar. Esgotado, encantado, Howard adormeceu, escutando as vozes ininterruptas da grande cidade. Às cinco da manhã, Newberry sacudiu-o sem contemplação.
— A pé, Howard! Temos um encontro.
— Tão cedo?
— O funcionário que temos de seduzir, trabalha, à segunda-feira, das seis às onze; se perdermos a ocasião, perdemos uma semana.
Abriam os primeiros cafés; nas ruas, quase desertas, os transeuntes pareciam cheios de frio. O ar vivo varria as nuvens e deixava aparecer um Sol pálido, cujos primeiros raios poisavam sobre os inúmeros minaretes: em frente da grande mesquita de Méhémet Ali, foi rendida a guarda.
Percy E. Newberry meteu por um beco sórdido atafulhado de gaiolas, de restos de aves e amontoado de detritos; as casas, meio abatidas, inclinavam-se umas para as outras, ao ponto que os moucharabiehs se tocavam, permitindo às donas de casa trocarem confidências sem saírem. Atravessaram, a grandes passadas, o bairro miserável, passaram em frente dos mercadores de laranjas e de cana-de-açúcar; atrás de um sicômoro escondia-se a entrada de um palácio degradado, que dois homens de idade guardavam. Cumprimentaram o professor, que se contentou com um aceno de cabeça e se enfiou por uma escada, noutros tempos sumptuosa.
Um núbio, com uma vestimenta vermelha, comprida, acompanhou-os à porta de um escritório que um dos seus compatriotas, tão musculoso como ele, vigiava.
— Sou o professor Newberry. Previna Sua Excelência da minha chegada.
“Sua Excelência”, um pequeno tirano de bigodes, com o rosto sacudido por tiques, aceitou recebê-los. O seu antro[1] estava cheio de pilhas de cadernos e de notas administrativas, no meio dos quais pontificava como um paxá. Em virtude da exiguidade do local, era impossível introduzir-lhe cadeiras; ficaram, pois, de pé, em frente do funcionário.
— Encantado por o tornar a ver, professor. Posso ser-lhe útil?
— Vossa Excelência é detentor da chave da minha salvaguarda.
— Que Alá nos proteja. Quem é esse rapaz?
— Howard Carter, o meu novo assistente.
— Seja bem-vindo ao Egipto.
Howard inclinou-se desajeitadamente. Pronunciar as palavras “Vossa Excelência” estava acima das suas forças; porque seria que um sábio como Newberry perdia o seu tempo com aquele homenzinho sentencioso?
— A sua família está de boa saúde, Excelência?
— Muito boa, professor; constato que a sua saúde está também florescente.
— Menos do que a sua.
— Lisonjeia-me; conta voltar ao Médio Egipto?
— Se agradar a Vossa Excelência.
— Agradava-me, professor, agradava-me! As autorizações de estada encontram-se no cimo daquela pilha, à sua esquerda. Gostaria tanto de as assinar e de lhas dar...
Percy E. Newberry empalideceu.
— Há perturbações na região?
— Não, não... as povoações locais estão calmas.
— As estradas não estão seguras?
— Não há nenhum acidente a lamentar.
— Esclareça-me, Excelência.
— As despesas administrativas... Aumentaram muito nestes últimos meses. A quantia que pagou antecipadamente, deixou de pertencer à realidade, infelizmente.
O professor pareceu aliviado.
— Vossa Excelência estaria de acordo em me precisar o montante desse aumento?
— O dobro.
Percy tirou da algibeira do casaco um maço de libras esterlinas e ofereceu a Sua Excelência, que se desfez em agradecimentos. Abriu um cofre mural e nele arrumou, cuidadosamente, o seu pecúlio. Fechada a porta, condescendeu em entregar as autorizações.
O núbio trouxe café turco; trocaram-se banalidades enquanto ele foi saboreado. Ao sair desta entrevista, Howard manifestou o seu furor.
— É corrupção!
— Um cerimonial, Howard.
— Nunca cederei a semelhante chantagem.
— Na Europa, a corrupção dissimula-se sob a capa da política e da justiça; aqui, é uma instituição. Cada coisa tem seu preço; mas será preciso conhecer o bom. Senão, passarás por um imbecil e perderás a cara, isto é, tudo.
Um riso sarcástico animou o peito do professor.
— Tendo em consideração o tesouro que vais descobrir, não paguei caro.
— Um tesouro, diz? — interrogou Porchey, céptico.
O cozinheiro reiterou a sua afirmação, numa mistura de português e de inglês bastante desagradável ao ouvido.
— Um enorme tesouro!
— Jóias?
— Anéis, colares, diamantes, esmeraldas... foram os piratas que os esconderam.
O futuro Lord Carnarvon observou o mapa.
— Em que ilha?
— Lançarote.
— Não me fica em caminho.
— Não perca esta ocasião, meu senhor.
Lançarote... o nome dessa ilha das Canárias, ressoava de uma maneira estranha na memória do aristocrata. Concentrou-se no seu passado de estudante e fez-se luz; tinha sido ali, numa das pontas do mundo, para onde retirara um castelão escocês arruinado, apaixonado por astrologia, mulheres exóticas e vinho branco.
A mil quilómetros ao sul da Europa, e a cento e quinze da costa africana onde os antigos situavam os Campos Elíseos, onde os bem-aventurados saboreavam um eterno sol e onde também os amadores do maravilhoso localizavam a Atlântida!
“Ilhas afortunadas”: assim baptizavam as Canárias entre marinheiros de longo curso; ilha de púrpura, dizia-se da estranha e severa Lançarote, imenso campo de lava pontuado de vulcões de encostas esfarrapadas.
O Afrodite atracou ao Arrecife, a custo de mil dificuldades; a chuva fustigante, um vento violento, correntes perigosas e um canal estreito tornaram a manobra delicada. Porchey aguentou o leme e, uma vez mais, evitou o naufrágio. O cozinheiro brasileiro refugiara-se numa ladainha em que a Virgem Maria estava a par de um demónio africano.
Desolada e hostil, Lançarote não se parecia nada com a idéia que um inglês correctamente educado podia ter do paraíso. Lançada a âncora, Porchey serviu-se de uma barca local, que o levou a um porto miserável onde apodrecia um brigue de piratas; sobre o vazio de um mar deserto velava uma torre fortificada, e alguns canhões enferrujados preparavam-se para atirar inutilmente sobre fantasmas de corsários.
— Onde se encontra o teu tesouro?
— Na capital, Teguise — respondeu o cozinheiro brasileiro.
Porchey alugou, a peso de ouro, uma campana conduzida por um mago, camponês local com um chapéu de palha, de abas largas, na cabeça, e tão conversador como um pedaço de lava.
Os insulares ainda não tinham inventado as estradas; assim, os veículos puxados por uma mula e um camelo, que se davam bem, caminhavam sem pressa numa pista cheia de pedras, através de uma paisagem devastada em que nenhuma árvore conseguia crescer.
O aristocrata reparou que o cozinheiro ficava cada vez mais nervoso. — És um ingrato. Operei-te com êxito e gostarias de me furar a pele.
— Eu? Mas porquê?
— Receio que a minha bolsa te interesse mais do que o meu estudo inédito sobre os vasos etruscos.
— Senhor... estais a pôr em mim os vossos pensamentos...
— Resumindo a situação, os teus amigos esperam-me atrás de algum cacto, na firme intenção de me tirar a vida e os meus guinéus.
A tez do brasileiro tornou-se esverdeada.
— Um cavalheiro far-te-ia falar antes de te suprimir.
— Vós sois um deles, milord!
— Por vezes, gosto de me abandalhar.
O cozinheiro saltou em terra e escapuliu-se. O mago não abrandou o passo, indiferente às querelas dos estrangeiros. Como Porchey não podia, contudo, preparar ele mesmo as refeições, teria necessidade de contratar um moço de cozinha para não mostrar a sua incompetência culinária.
Teguise, a capital, era um burgo miserável, de casas brancas e baixas, acometidas de um sono milenário. Não era ali que Porchey descobriria a paixão que queimaria o seu tédio.
A casa do governador, com varandas de madeira, imperava na praça principal em que dormitavam, sob os seus chapéus, alguns velhos camponeses. Um homem vestido de branco dissertava com vinhateiros, que gabavam a qualidade dos seus produtos. Porchey reconheceu o seu condiscípulo, apesar da gordura e de uma barba mal cortada.
— Estou feliz por te tornar a ver, Abbott.
— Porchey! Sobreviveste ao colégio?
— Mais ou menos.
— Vens instalar-te aqui? As raparigas são um bocado desconfiadas, mas o vinho branco é excelente! Cepas que crescem na lava... um gosto incomparável! Prova-me isto! — O líquido era de um amarelo-brilhante.
— Razoável – apreciou. Porchey não suporta a comparação com um bourgogne, mas pode salvar uma situação desesperada.
— Continuas a ser tão exigente... É evidente que te hospedo!
A noite foi agradável; Abbott serviu uma carne de vaca grelhada e um arroz-doce.
— Eu não estou infeliz aqui; não acontece nada e eu vou desaparecendo docemente.
— Tens sorte, Abbott.
— Eu conheço-me, não presto para nada e desenvolvo essa qualidade. — Tu, és diferente... Uma vez elaborei o teu tema astral, lembras-te?
Abbott voltou com uma série de zodíacos quadrados onde tinha disposto planetas.
— Sol e Mercúrio em Caranguejo, Júpiter em Aquário... o passado e o futuro, a tradição e a invenção. Ainda não deixaste de nos espantar, Porchey!
— Que Deus te ouça!
Ligeiramente tocado pelo vinho branco, o futuro Lord Carnarvon teve dificuldade em adormecer. Quando a cama abanou, compreendeu que tinha abusado daquele vinho delicioso; quando as paredes do quarto tremeram, começou por pôr em dúvida a competência do arquitecto, e foi depois até à varanda.
A lua cheia oferecia uma luz prateada. Ao longe, um penacho de fumo saía de um vulcão.
Abbott apareceu na varanda da esquerda.
— Uma erupção — anunciou guloso.
A terra continuava a tremer; um clarão vermelho brotou da montanha em chamas. Uma corrente de lava galgaria em breve a encosta.
— Esplêndido — observou Abbott. — Que será mais excitante do que viver às portas do inferno?
— Ultrapassá-las — respondeu Porchey
Foi em Beni-Hassan que Howard Carter viveu a sua primeira noite egípcia. Naquele lugar, esquecido do Médio Egipto, floria ainda a alma dos nobres do Médio Império, cujas tumbas escavadas no cume de uma falésia dominavam o Nilo. Num nível inferior, um cemitério muçulmano e pequenos jardins à beira do rio; em ilhotas cobertas de erva brincam garças. O ar era transparente; o pôr do Sol surpreendeu-o quando copiava uma inscrição hieroglífica.
Sentado num escarpado, fixou o disco avermelhado que se escondia rapidamente no horizonte; ouro, púrpura e lilás disputavam entre si a supremacia, antes de ceder à luz desencarnada das estrelas.
Uma paz de um outro mundo acalmou-lhe o coração, acabara-se a bruma, a chuvinha, o macadame luzidio de chuva, de smog, acabaram-se os tristes cortejos de homens sérios e com pressa de ganhar a vida para melhor a perderem, mas ficara a luz, o rio divino e o tempo parado.
Tinha encontrado a sua terra; o seu destino pertencia-lhe.
— Lembremo-nos, Howard, da crítica de Pescennius Níger aos seus soldados: “Têm a água do Nilo e pedem vinho!” Não desfazendo nesse valoroso guerreiro romano, proponho-lhe saborear este excelente produto da terra.
— Obrigado, professor!
Percy E. Newberry examinou o seu colaborador com ansiedade.
— Tens uma cara esquisita; sofrerás de alguma doença?
— Quem bebeu água do Nilo, tornará a beber, afirma o provérbio; não peço mais nada.
Sem admitir recusa, o professor encheu os copos. No campo das escavações de Beni-Hassan era dia de descanso, logo a ocasião de melhorar o normal. As condições de existência eram duras, mas dormir no local representava a vantagem de estar com a mão na massa, mal o Sol nasce, e de poder desenhar sem qualquer outra preocupação, além da busca da perfeição. O traçado egípcio, aparentemente tão simples, requeria um extraordinário domínio, mas Howard Carter não deporia armas antes de ter esgotado a totalidade dos seus recursos.
— Trabalhas demais, Howard.
— O trabalho, professor, não é o essencial?
— Não me tomes por um idiota. Quando o teu dia termina, começas outro; não contente de desenhar e de pintar, passas a noite a ler.
— A história antiga do Egipto apaixona-me. Será isso um crime? Se a memória não me falha, foi o senhor quem me apanhou com o pato dos hieróglifos.
— Quem poderia chamar-te à razão?
Howard abriu um pano da tenda onde almoçavam.
— Esta paisagem contempla-nos mais do que nós a contemplamos, cada minuto me absorve mais, me alimenta, me faz sentir que a morte é um fruto de eternidade. Aqueles túmulos estão vivos, professor; venero aqueles defuntos sorridentes representados nas paredes. Os seus olhos nunca se fecharão.
— Não te fies, Howard; estás a tornar-te um velho egípcio. Abandonar a nacionalidade britânica é uma infâmia.
Alguém subia o atalho; rolavam pedras sob os seus sapatos. Inquieto, Newberry saiu da tenda.
— Ele ousou — murmurava ele — ele ousou...
O homem trepava com regularidade. Tinha o rosto comido por uma abundante barba branca, poderia ter cinquenta ou cem anos. Seco, quase descarnado, com a pele bronzeada, avançava em terreno conquistado.
— Gostas de me tornar a ver, Percy?
O professor respondeu num tom glacial.
— Quem não ficaria encantado por receber Sir William Flinders Petrie, o maior dos egiptólogos?
— Por uma vez não se engana. Esse rapaz, de rosto desconfiado, é Howard Carter?
Petri encarou-o como se se tratasse de um animal destinado a ser abatido.
— É o meu assistente.
— Já não é. A partir deste momento, entra ao meu serviço. — Howard cerrou os punhos.
— Eu não sou uma mercadoria. Por muito Petrie que seja, eu sou um homem livre; o meu patrão é o professor Newberry.
Sir William sentou-se num bloco, em frente do Nilo e do suave campo de Beni-Hassan.
— A liberdade é uma ilusão moderna, meu rapaz; neste mundo só existe uma realidade; há os que dirigem e os que obedecem. Hoje, pertenço à primeira categoria e tu à segunda. Faço tenção de te ensinar a tua profissão; não podes sair daqui.
— E se eu o mandar para o diabo?
— Não serás o primeiro; Petrie é indestrutível. Se recusares, o nosso amigo Newberry será obrigado a voltar para Inglaterra com os teus belos desenhos e contigo de brinde.
O professor enraivecia mas não ousava protestar.
— É uma chantagem odiosa.
— Espera-me um enorme trabalho e preciso de colaboradores entusiastas e competentes, mesmo que tenham mau feitio. Não esperes ter tempo para reflectir; vou imediatamente para o meu barco. Ou me segues ou renuncias ao Egipto.
Petrie desceu a encosta com a agilidade de uma cabra. Breve desapareceria. Newberry pôs a mão no ombro do rapaz.
— Não tens escolha, Howard. Segue-o.
— Mas o senhor...
— Petrie é o melhor. Graças a ele, tornar-te-ás um verdadeiro arqueólogo.
Um inglês nunca chora. A fim de esconder as suas lágrimas, Howard Carter, com a sua pasta de desenhos e a sua caixa de aquarelas por única bagagem, lançou-se na descida com risco de partir o pescoço.
Um pouco antes do pôr do Sol, o céu tornou-se sépia; umas nuvens ocre encheram o horizonte e formaram um zimbório ameaçador.
— Corramos para o interior do barco e tapemos todas as aberturas ordenou Petrie.
O vento foi mais rápido do que os arqueólogos; soprando com uma violência de fim do mundo, era acompanhado de uma chuva de areia que se infiltrou no menor interstício. Se bem que estivessem ao abrigo, os olhos ardiam-lhes; Sir William obrigou Carter a tapar a cabeça com uma coberta e a permanecer prostrado. O camarote do velho esquife era tão pouco hermético que a areia depositou-se nas camas, nos móveis e em cada peça de louça.
Passadas dez horas de fúria, o khamsin acalmou, deixando uma camada esbranquiçada sobre as casas da aldeia, junto das quais tinham atracado.
No dia seguinte, o vento do deserto desencadeou turbilhões que velaram o Sol e os impediram de sair.
— Quanto tempo irá durar este cataclismo?
— Três dias, três semanas ou três meses, Howard; aproveitemos para verificar os teus conhecimentos.
Sir William submeteu-o a um interrogatório egiptológico que pôs as suas lacunas em evidência.
— Ser ignorante a esse ponto é uma farsa, meu rapaz.
— Não tive a sorte de frequentar a universidade.
— Estou-me nas tintas. A tua sorte é estares aqui; uma vez que não sabes nada, não aprendeste nada errado.
Desvendou-lhe as regras de gramática, deu-lhe frases simples para traduzir e fez-lhe memorizar as listas das palavras; depois, mostrou-lhe os resultados da investigação.
— Os egiptólogos são borboletas ou toupeiras, Howard; voam de lugar em lugar, sem nada ver, ou então limitam-se a ponto de se demorarem dez anos sobre um caco de cerâmica. Eu ponho em ordem a trapalhada que os séculos acumularam.
Carter sentiu, subitamente, um respeito imenso por Sir William, pela sua atenção extrema pelos monumentos, pela sua vontade de transmitir a sua ciência. Os seus caracteres nunca se aliaram, mas o seu amor comum pelo Egipto favoreceu um diálogo que durou até ao dia da Primavera em que o mestre fez descobrir Tell-el-Amarna ao discípulo.
Nessa planície desértica, entre o Nilo e a falésia, tinha sido edificada a cidade do sol, a efémera capital de Akhenaton, a herética. Petrie não gostava dela e considerava-a decadente.
Aquela vastidão desolada apertou o coração de Howard. Subitamente, viu o grande templo a céu aberto, o palácio branco com rampas ornadas de frescos, lagos de água fresca, o viveiro regurgitando de pássaros exóticos, viu o rei e a grande esposa Nefertiti na sua carruagem de prata, aclamados pelos seus fiéis, viu os embaixadores da Ásia e da Núbia apresentar os seus tributos ao par real.
— Sonhar é inútil, Howard; a realidade dá-nos demasiado trabalho.
Obediente, mudo, mediu os traçados das casas arrasadas até aos alicerces; enquanto aplicava as técnicas rigorosas de Sir William, não cessou de pensar no faraó maldito cuja obra tão encarniçadamente tinha sido destruída. A despeito da luta conduzida pelas acácias e os sicômoros, apesar dos canais de irrigação, o deserto triunfava; concedia ao Nilo uma faixa fértil, mas lançava-se no assalto das terras logo que o homem mandriava.
— Estás a progredir, Howard — admitiu Petrie. — mas toma cuidado com essa morte luminosa que se chama deserto. Os árabes tiveram medo dele; julgam-no povoado de monstros, de génios maus e de forças incontroláveis. Deverias escutá-los.
Petrie dormia, Howard partiu só pelo deserto, em direcção ao Ocidente; precisava de dialogar com aquele lugar selvagem, arrancar-lhe o seu segredo. O calor breve se tornaria insuportável mas ele não o receava; além, naquela areia infinita, ao fundo de um rio seco, esperava-o o fantasma de Akhenaton.
O sol atingia o zénite. Ao fim de quatro horas de caminho, distinguiu um acampamento. Um beduíno, armado de uma espingarda, obrigou-o a entrar na tenda do chefe.
— Quem és?
— Howard Carter. Trabalho no lugar de El-Amarna.
— Com Petrie?
— Exactamente.
O chefe falava um excelente inglês.
— Petrie... um sábio escrupuloso que nunca compreenderá nada do Egipto. Para ele tudo são números, medidas, cálculos, inventários... tu és muito jovem. Que procuras tu?
— O túmulo de Akhenaton.
— Descalça-te, os meus servos vão lavar-te os pés. Depois, dividiremos as tâmaras, o borrego assado e beberemos leite de cabra.
Grande favor lhe era concedido; seis crianças prestaram homenagem a seu pai e mantiveram-se em silêncio a seu lado, esperando que tivesse absorvido o primeiro bocado antes de se servirem. O chefe, de uns sessenta anos de idade, adoptou a postura do escriba.
— Não te lances a direito sobre o obstáculo, Howard Carter; toma um caminho sinuoso, aprende a perder tempo, fortifica-te com a tenacidade dos justos, desposa as curvas da paciência e chegarás à tua meta.
— Será que a conhece?
— Mo é o túmulo de Akhenaton que fica perto daqui.
— Leva-me lá?
— É inútil; os larápios destruíram-no. Busca o filho do seu espírito, aquele que lhe sucedeu e de que os homens perderam o rasto. Eis o destino, Howard Carter: descobrir um tesouro, o mais fabuloso de todos os tesouros. Mas quem ousaria defrontar tantos perigos?
O chefe levantou os olhos para um futuro que só ele descerniu.
— Fala mais — suplicou Carter.
— Atinge a cidade destruída e começa a procurar sem pressa e sem trégua; tenta levantar o véu e recorda-te: se um dia se passar sem que tenhas aprendido alguma coisa que te ensine a aproximar-te mais de Deus, que esse dia seja maldito. Quem procura essa sabedoria é mais amado por Deus do que o maior dos heróis da guerra santa.
Com nervosismo, Carter examinou os manuais da história egípcia que Petrie pusera à sua disposição; Sir William surpreendeu-o a meio da noite.
— Eis-te de volta... onde te escondias?
— Quem é o filho de Akhenaton?
— Ele só teve filhas.
— O seu sucessor? Estes livros são tão confusos.
— O período é mal conhecido. Eu apostaria num reizinho completamente obscuro: Tutankhamon.
— O seu túmulo foi descoberto?
— Ainda não.
— Poderá ter sido aberto perto do de Akhenaton?
— É mais provável no Vale dos Reis; sérios indícios autorizam a pensar que Tutankhamon, no fim da heresia, tivesse voltado a Tebas. Mesmo o seu nome, que significa “símbolo vivo de Amon” prova que venerava de novo o todo-poderoso Amon. Em que é que essas velhas querelas teológicas te interessam?
— Quero descobrir o túmulo de Tutankhamon.
— Quem te meteu essa ideia na cabeça?
— Um chefe beduíno revelou-me o meu destino no deserto.
— Ah! Esse velho louco que pretende conhecer a localização da sepultura de Akhenaton... julga-se um adivinho. Sossega: nenhuma das suas predicções se realizou. Esquece a sua profecia e assenta em finalidades sérias; todos os túmulos do Vale dos Reis foram pilhados há muitos séculos. O lugar já não apresenta o menor interesse para um arqueólogo.
Percebendo a sua confusão, Petrie entendeu por bem dever confortá-lo.
— Gostaria de te confiar uma missão delicada, Howard. O meu colega suíço Naville em breve trabalhará em Dar el-Bahari, e precisará da colaboração de um aquarelista para reproduzir os quadros e os baixos-relevos do templo da rainha Hatshepsut.
Carter anuiu sem manifestar entusiasmo, se bem que tivesse vontade de gritar a sua alegria: Dar-el-Bahari não se encontrava na margem ocidental de Tebas, mesmo ao pé do Vale dos Reis?
Quando Porchey se voltou, notou a marca dos seus passos na areia imaculada da baía do Oriente. A ilha de S. Martinho, refúgio de piratas e traficantes, oferecia vastas praias solitárias, sobrevoadas por pelicanos. Água verde límpida, vento firme, sol morno... o futuro Lord Carnarvon não se importava com isso. Se escolhera aquela escala, na charneira das Grandes e das Pequenas Antilhas, não era para se banhar mas a fim de acrescentar uma peça de escolha à sua colecção de personalidades: o último dos Arawaks, os primeiros índios que lá tinham vivido.
Descoberta em 1493 por Cristóvão Colombo, São Martinho tinha caído no esquecimento antes de, em 1029, ser ocupada pelos Franceses, seguidos, em 1631, pelos Holandeses e, em 1633, pelos Espanhóis, contra os quais Peter Stuyvesant lutou em vão. A ilha tinha sido propriedade de uns e de outros, ao sabor das guerras e dos combates. Os Ingleses tinham mantido correctamente o seu papel, antes de cederem a melhor parte aos Holandeses e a menos rica aos Franceses.
Porchey rememorou o itinerário que lhe tinha indicado um antilhano exilado nas Canárias: deixou a praia em direcção ao monte Vernon e passou em frente de uma casa em ruínas que as térmitas tinham roído. Os muros dos fortes e das mais belas moradas tinham sido regularmente abatidos, como se a paz fosse impossível naquele aparente paraíso.
O aristocrata lera com interesse a narrativa do irmão Ramon Pane, irmão pregador da ordem de São Jerónimo e companheiro de viagem de Colombo; explicava a maneira como os Arawaks, depois de terem absorvido cohoba, uma droga alucinogénea, entravam em contacto com os deuses e os demónios que teriam depois de esculpir na pedra e na madeira. Essas esculturas tornavam-se muito perigosas; sob pena de serem amaldiçoados e de caírem doentes, os seus autores deviam oferecer-lhes mandioca todos os dias. Ora o último dos Arawaks pretendia ter visto o grande deus e tinha-o portanto fechado numa forma que revelava a sua verdadeira natureza. Uma ligeira excitação animava Porchey, que um britânico razoavelmente céptico pudesse contemplar o Criador merecia a animosidade.
No tempo dos Arawaks, a ilha ignorava o crime; viviam nus e pescavam. A chegada dos Caraíbeos, que vieram da selva do Amazónias, tinha posto fim a esse período tranquilo. Violentos e cruéis, tinham exterminado os Arawaks e tinham-se alimentado da sua carne. Processo chocante, segundo Porchey, que lamentava a falta de elegância desses Caraíbeos, cujo nome, transformado em Caraíbas, não significava senão canibais. Quando se tem a sorte de descobrir um povo feliz, será necessário devorá-lo?
Segundo a opinião geral, os Arawaks tinham sido aniquilados; que subsistisse um, era quase um milagre. Milagre... eis o único fenómeno que interessava Porchey. À força de o perseguir por todos os cantos do mundo, acabaria por encontrá-lo?
Porchey meteu por um caminho muito estreito, caminhou ao longo do sopé do monte Vernon, e enfiou por uma pequena floresta de que emergiam coqueiros. No lugar previsto, perto de uma árvore morta que espessos cipós encerravam, descobriu uma cabana coberta por um telhado de palmas; sentada em frente de uma porta, uma velha negra cozia arroz numa panela de barro. O seu domínio estava escondido sob hibiscos, cretones e alamedas; a poucos passos, cultivava um canteiro quadrado de batatas-doces e de couves.
Como não havia ninguém para fazer as apresentações, Porchey foi obrigado a revelar uma parte da sua identidade. A enumeração da totalidade dos seus títulos pareceu-lhe supérflua.
— Chamo-me Mammy disse a velha.
— Será a última dos Arawaks?
— Fui criada com sopa de ervilhas e nunca ninguém me insultou.
— A minha intenção não é essa; não possuirá uma escultura? — Mammy sorriu.
— Também tu te deixaste apanhar! A lenda atrai aqui dois ou três visitantes por ano... Quem poderia fechar Deus dentro de um ídolo?
— Os Arawaks tentaram.
— Já morreram... Gostaria de comer em paz.
Porchey reconheceu a legitimidade desse desejo; abandonou Mammy e tomou a direcção da capital francesa, Marigot. Mesmo graças à colaboração de um burro e do seu dono, não chegou antes da noite.
O lugar não se parecia com Londres nem com Roma. A rua principal, a única que existia, era bordada de casas de madeira pintada, cuja solidez deixava muito a desejar. No termo da artéria, o oceano; à esquerda, a câmara; à direita, a escola e a esquadra. Como pessoa importante conseguiu um primeiro andar com uma galeria.
Porchey levou a efeito um inquérito minucioso, consultou arquivos e interrogou as autoridades. A sua busca do último dos Arawaks traduziu-se por um fracasso; tinha sido vítima de uma mentira.
No dia seguinte, assistiu a um baile onde as raparigas atiravam aveia para o solo, a fim de se poder escorregar quando se dançava; encantado por um instante, o aristocrata depressa se aborreceu, abandonou a assembleia e sentou-se à borda da água. Os alíseos sopravam com força, dobrando os coqueiros.
— Estás à espera de alguém? — perguntou uma garota risonha, com uma flor de hibisco no cabelo.
— Talvez.
— Como se chama?
— Não sei.
— É um amigo?
— Um amigo... sim, encontraste a palavra certa. Um amigo em quem terei confiança, um homem verdadeiro, capaz de se sacrificar pelo seu ideal.
A garota partiu a correr.
Olhando-a, Porchey perguntou a si mesmo se o amigo sem nome viria do céu, do oceano ou da terra, se tinha nascido num país próximo ou distante e se conseguiria extinguir a sua vagabundagem num olhar cúmplice.
O comboio partiu da estação do Cairo, com um barulho infernal, às vinte horas precisas; os viajantes berravam, riam, chamavam-se e corriam de um compartimento ao outro. Entalado entre um notável obeso, apoiado sobre a sua bengala, e uma matrona de véu e vestida de preto, Carter pensava na despedida gelada de Petrie. Sir William estimava ter-lhe ensinado as bases da arqueologia tal como a tinha praticado; dotado de sólidos conhecimentos históricos, capaz de decifrar certos textos hieroglíficos, o jovem estava apto, segundo sua opinião, a começar uma brilhante carreira de que Dar el-Bahari seria uma etapa decisiva.
Carter sentia-se órfão. Depois de ter perdido Newberry, era abandonado por Petrie. O destino condenava-o à solidão? Contudo, no termo dessa nova viagem estava Tebas! Tebas e o Vale dos Reis, que interrogaria até que ele lhe confiasse os seus segredos.
Uma família jantou; puseram-se sobre os bancos pepinos, folhas de alface, ovos cozidos, e esvaziaram-se jarros de água-pé sem parar de falar alto e forte. O pai, saciado, tirou os chinelos, encostou-se a um saco e conseguiu adormecer apesar do concerto de gritaria. Quando três baixos funcionários se decidiram a ocupar o compartimento, a fim de manter um conciliábulo, fumando charutos, Carter foi obrigado a fugir; o cheiro daquele tabaco teria condenado os seus pulmões à asfixia. Por felicidade, pôde atingir a plataforma.
Só, frente à noite estrelada, viveu a sua mais bela viagem de caminho de ferro. Graças à fraca velocidade do comboio, o vento era suave; respirar foi uma delícia. Saboreou cada milha como uma oferenda celeste. As horas passaram num instante.
Subitamente, o oriente tingiu-se de vermelho; no coração de uma ilha de chama, o jovem Só desencadeou um combate vitorioso contra as trevas; meteu-se oiro no meio do verde das palmeiras, as searas ondularam sob a brisa da manhã, o Nilo saiu do seu torpor.
Apareceu a estação de Luxor, poeirenta e esmagada pelo sol; o comboio parou debaixo de uma ponte metálica. Apressados, os viajantes brotaram dos vagões a gesticular; apanhado pela tormenta, Carter seguiu o fluxo humano. Peões, mercadores ambulantes, burros, entremisturavam-se num caos movediço. Habituando-se à algazarra, enfiou-se numa nuvem de areia, e, sem dúvida, também de eternidade, proveniente das pedras, dos templos ou dos túmulos. Liberto da barafunda, parou na frente de uma cozinha ao ar livre e consumiu favas quentes misturadas com arroz. Aquela sólida refeição dar-lhe-ia a energia necessária para o dia inteiro.
Sem dúvida que se devia ter apresentado ao empregado que, no cais da estação, brandia um cartaz com o nome dele, a fim de o conduzir junto de Naville; mas não tinha vontade de discutir com qualquer pessoa. Era-lhe preciso, em primeiro lugar, lidar com aquela luz ao mesmo tempo terna e violenta. O seu olhar não se pôde soltar da montanha tebana, imperando sobre a margem do Ocidente; àquela hora, era cor-de-rosa e azul.
No embarcadouro, chamou um falucheiro; combinado o preço da passagem, depois de uma longa discussão em que Carter utilizou os seus rudimentos de árabe, a embarcação lançou-se no Nilo. Ultrapassou um barco carregado de camponeses e de animais, meteu-se na corrente e atingiu, demasiado depressa, a margem oposta. Esta curta travessia foi um momento de extrema felicidade, um rito repetido milhares de vezes durante milénios, que ele tornou a viver com a veneração de um discípulo ouvindo a mensagem de um mestre invisível, exprimindo-se pelo sopro do vento que a vela branca purificava.
Um mercado animava a margem esquerda; vendia-se lá trigo, centeio, favas, pistácios, frangos em gaiola e tecido. À volta de um adivinho, que traçava na areia sinais estranhos, empurravam-se basbaques. Vários burriqueiros o assaltaram e lhe propuseram os seus serviços; escolheu um ruço de olhar malicioso e bonita pelagem.
— Onde queres ir? — perguntou o burriqueiro.
— Ao Vale dos Reis.
— É longe. Será caro.
— Eu conheço exactamente a distância e o preço; se queres ser meu amigo, não procures enganar-me.
Depois de um diálogo cerrado com a sua consciência, o homem rendeu-se à opinião de Carter. Partiram com um passo lento para o vale das maravilhas, atravessaram um campo risonho onde cresciam trigo, luzernas, trevo, lupino e algodão. Gamos e dromedários passaram por eles, indiferentes.
O guia parou em frente dos colossos de Mémnon, dois colossos reais bastante degradados.
— Grande mistério — resmungou ele — são génios temíveis. Por vezes, cantam.
— Calaram-se desde que os Romanos os repararam.
— Não! É o bom ouvido que falta.
Reteve a lição. Com Petrie, tinha estudado uma “sabedoria” do Antigo Império, em que o velho escriba afirmava que a escuta é a chave da inteligência. Os Egípcios não chamavam, às orelhas, “as vivas”?
Continuando o seu caminho, passaram ao longo da aldeia de Gurnah. Em frente das casas de terra brincavam crianças sujas, meio nuas; algumas sorriram-lhe, outras fugiram. Sentiu que, por detrás do rosto amável dos fellabs, escondiam-se segredos que era melhor terem-se deixado escondidos na escuridão das caves ou nos recantos da montanha. O seu trabalho consistiria, portanto, em escavar, em buscar e em desenterrar. Deixaram o templo de Séti I, abandonado a rebanhos de cabras e invadido de ervas daninhas, e meteram-se pela estrada que conduzia às tumbas.
Com brutalidade, as culturas desapareceram; imediatamente, o deserto iniciou-se, sem qualquer transição. Areia, calor e aridez repeliam toda a presença humana, animal ou vegetal; aqui, reinava como senhor absoluto o mineral, celebrando grandiosas bodas com o Sol. Nada do que Carter tinha visto anteriormente se comparava com aquele universo que dominava o cimo do Ocidente, semelhante a uma pirâmide. Na fulgurância do instante, soube que passaria ali os mais belos anos da sua vida.
A luz queimava-lhe os olhos; o burro afrouxou o andamento, ao avançar por entre as muralhas de calcário. Penetrou num país de apocalipse, em que parecia concentrada a matéria-prima utilizada aquando da criação do mundo. Passo a passo, enterrou-se num desfiladeiro escaldante; de uma parte e de outra, encostas escavadas pelas enxurradas, rasto de violentas chuvas. Cada uma das pedras estava carregada de memórias; não tinham elas assistido às procissões funerárias que, dantes, metiam por esse mesmo caminho?
Desceu do burro; o pobre ruço tinha-o aguentado tempo de mais. Chegou a hora de ultrapassar a porta do Vale, fenda no tempo e no espaço, onde o poder mais enigmático preservava a glória dos deuses.
Deserto dos desertos, solidão absoluta, silêncio infinito... Como descrever esse lugar de verdade onde qualquer actividade humana era imprópria? Sentiu que as almas dos reis mortos velavam sobre as suas moradas.
Nem uma só sepultura, afirmava-se, tinha escapado aos ladrões; incrédulo, ia de cave em cave. Infelizmente, todas tinham sido pilhadas, esvaziadas de toda a sua mobília e dos seus tesouros.
Tornadas celas de monges, por ocasião do triunfo do cristianismo, as tumbas, desdenhadas pelos novos invasores muçulmanos, tinham acolhido chacais e morcegos que substituíam agora turistas admirados e apressados.
Acostumando-se aos sortilégios do Vale, visitou os monumentos com relevos e pinturas admiráveis, enterrou-se debaixo da terra e voltou à luz, trepou encostas, percorreu atalhos, encheu os olhos com aquela visão do além talhada por mão humana na pedra.
Quando os raios do poente o embrenharam, o cansaço dissipou-se. A montanha do Ocidente tornou-se leve, os blocos gigantes perderam o seu peso, o último oiro do dia uniu-se às claridades prateadas da terra. Trepou até uma crista dominando o Vale, sentou-se numa pedra chata e pensou nas palavras de Volney pronunciadas ali mesmo: À minha volta, tudo dizia que o homem não é nada senão pela sua alma: rei pelo pensamento, frágil átomo pelo seu invólucro, a esperança única de uma outra vida pode torná-lo vencedor nessa noite contínua contra as misérias da sua existência e o sentimento da sua origem celeste... esses hieróglifos, essas figuras, estão em toda a história dos conhecimentos humanos: os padres do Egipto não os confiaram aos abismos senão para os subtrair à desordem do globo. Parecia como se eu fosse guiado pela luz da lâmpada maravilhosa, e no mesmo instante ser iniciado em algum mistério.
A sua silhueta desenhou-se num raio de Lua; com a cabeça coberta por um turbante, vestido com um galabieh, era alto e bem constituído. Tinha uma pistola à cinta.
— Não tem o direito de passar aqui a noite — declarou em inglês.
— O meu nome é Howard Carter; sou arqueólogo.
— O meu é Ahmed Girigar; pertenço aos serviços de segurança.
— Não sou nenhum ladrão.
— É o senhor que tem de ser protegido, senhor Carter. Será que tem consciência do perigo?
— À parte a imbecilidade e a malevolência, não estou a ver.
Ahmed Girigar sentou-se ao seu lado.
— B’ism-illab-ma’sba’llah, que Deus desvie o mal disse com gravidade esses inimigos são temíveis, mas não deveria negligenciar as seitas de ladrões instalados nas colinas de Gurnah. Pilham os camponeses e saqueiam os estrangeiros.
— Não me sinto estrangeiro; este Vale é meu.
— Terá obtido a concessão?
A concessão... um nome mágico significando que teria o direito de procurar aqui, por toda a parte que desejasse.
— Não passo do assistente de Naville.
— O suíço que trabalha em Dar el-Bahari? — Ficou admirado.
— Parece conhecer na perfeição a casta dos arqueólogos.
— O meu pai era reis; eu caminho no seu rasto e quero, como ele, dirigir equipas de operários em busca de tesouros. Espero encontrar aquele que amará bastante este Vale para lhe consagrar a sua vida; a esse, se a souber cativar, ela falará.
— Li os trabalhos de Belzoni.
Ahmed Girigar sorriu.
— Estranho investigador... um gigante animado por uma paixão furiosa! Não sonhava senão com proezas tumultuosas e forçava as portas das tumbas a golpes de maço. Utilizar o dinamite não o desanimava. Depois de Champollion, explorou a fundo o Vale. Conheço de cor a sua conclusão: “É minha firme opinião, que depois dos meus trabalhos, não haverá mais nenhuma tumba a descobrir.”
Carter desempenhou o papel do advogado do diabo, esperando ouvir palavras de esperança. Ahmed Girigar não o desiludiu.
— Opinião prematura de um homem apressado.
— Um pioneiro como ele não deixaria contudo a presa pela sombra.
— Certamente... mas faltava-lhe paciência. O Vale foi ferido, humilhado; agora, cala-se e esconde-se. Só um ser escrupuloso, encarniçado até à teimosia, poderá levantar o véu do tempo e da areia que ele estendeu sobre o seu mistério. Ninguém nos ouve, porque não somos fellahs, pobres pessoas sem instrução; mas percorremos todos os dias esses caminhos e estamos à escuta dessas pedras. Agora, senhor Carter, é preciso partir; senão, serei obrigado a instaurar-lhe um processo verbal por visita ilícita.
— Tornaremos a ver-nos.
— Se Alá o quiser.
Ahmed Girigar viu afastar-se o jovem inglês. Inclinou o busto e, ao levantar-se, aproximou a mão estendida da boca e da fronte; cumprimentava assim uma personagem importante que ignorava ainda a grandeza da sua vocação.
O templo de Dar-el-Bahari, “a maravilha das maravilhas”, encostava-se a uma falésia esmagada de sol; em frente do edifício de terraços, um deserto escaldante substituía os pomares, os lagos de água pura e as plantações de árvores de incenso, que a rainha Hatshepsut tinha trazido do maravilhoso país de Pount. Carter dirigiu-se para o pórtico de Anúbis, o deus encarregado de conduzir os mortos nos belos caminhos do outro mundo. Ali trabalhava o seu novo patrão.
O acolhimento de Edouard de Naville não foi dos mais calorosos; apertado no seu fato colonial, recebeu-o com indiferença.
— Perdeu o comboio?
— Não, senhor.
— Ah... o meu criado não teria segurado bem alto o cartaz com o seu nome?
— Segurou, senhor.
— Nesse caso, porque não se lhe dirigiu?
— Houve uma urgência. Poderei começar a trabalhar?
Naville designou os baixos-relevos.
— Obras-primas incomparáveis gravadas por um artista com a mão tão fina e leve que o tempo as apagará em breve... devemos publicá-las, a fim de as conservar na memória da humanidade. Será preciso desenhar tudo e tudo pintar, Carter; um trabalho de romano.
— Mais de egípcio, não acha? — Sorriu e o gelo quebrou-se.
— A aquarela será o melhor processo. Também reproduzirá os textos.
— Na condição de que os decifremos juntos. Quero aprender.
Eles apertaram as mãos; para um inglês e um suíço, esta manifestação de cordialidade raiava a indecência.
A noite caía sobre Luxor. Clarinetes acompanhavam cantos melancólicos, o último barco atracava, os candeeiros dos cafés acendiam-se. Sentado no terraço do Winter Palace, Carter bebia uma cerveja em companhia de Naville.
— Esta “urgência” que demorou a sua chegada... quereria esclarecer-ma?
O arqueólogo suíço parecia-lhe ser um homem de honra. Menos severo do que Newberry, menos augusto do que Petrie, a sua atitude não era doutrinal; Carter concedia-lhe toda a sua confiança.
— Há alguns meses que tomo notas sobre o Vale dos Reis. Já enchi dois grandes cadernos; cada descoberta é reportoriada, quer se trate de uma tumba, de uma múmia ou de um simples vaso. Estou longe do fim, mas quero saber tudo sobre as escavações.
— Em que perspectivas? Belzoni já a explorou completamente. Deploro os seus métodos; meter dentro uma porta antiga com pancadas de aríete, ou disparar sobre os concorrentes não são processos da melhor inspiração. Mas enfim... numa época em que não se hesitava em se entrematarem para se roubar um escaravelho, efectuou, contudo, um bom trabalho.
— Eu também o admiro; era, como eu, de origem modesta e, tinha sacrificado tudo à sua paixão. Mas meteu a direito na sua frente, sem se preocupar com ínfimos pormenores que poderiam revelar a existência de outros tempos.
— Vou decepcioná-lo, Howard; a opinião de Belzoni foi confirmada por sábios meticulosos e ponderados como o alemão Lepsius. Apenas exumou uns pobres vestígios e abandonou-se definitivamente à exploração do Vale.
— É insensato! Está de acordo com o facto que todos os faraós da décima oitava e décima nona dinastias estejam lá enterrados?
— É provável.
— Falta um certo número ao chamamento, hão-de convir.
— O argumento é perturbante, em que soberanos está a pensar?
— Em uma boa dezena... e principalmente em Tutankhamon. Estampou-se no rosto de Naville um esgar de decepção.
— Esse reizinho sem importância? O seu reinado foi tão curto e tão baço... quanto a mim, foi enterrado ou queimado, como Akhenaton. Esse pequeno monarca estava demasiado ligado à heresia.
— Não foi coroado em Karnak, como os maiores reis?
A pergunta embaraçou o suíço.
— É possível...
— Reinou quase dez anos acrescentou Carter, entusiasta e não sabemos nada a seu respeito, como se devesse continuar a ser o mais secreto faraó da história. Nenhum objecto que lhe dissesse respeito circulou ainda nos mercados de antiguidades.
— Pressinto a sua conclusão precipitada: tumba inviolada.
Nos olhos de Carter, a chama foi eloquente.
— A juventude é louca, é um dos seus encantos... mas deveria continuar uma carreira séria, Howard. Pense primeiro na sua reputação. Não é nem um sábio de boa família nem um aristocrata suficientemente rico para obter a concessão do Vale dos Reis; esqueça-a.
Ao fim de vários anos de viagem, o visconde de Porchester e futuro conde de Carnarvon, desfiava algumas recordações com um antigo jóquei, duas vezes terceiro no derby de Epsom. A conversa desenrolava-se na sala das traseiras de uma taberna sórdida de Constantinopla, ao abrigo dos ouvidos indiscretos; muito nervoso, o jóquei não parava de se voltar.
— Quem lhe indicou este lugar?
— Um pirata genovês. Afirmou-me que seria o senhor o homem da situação.
— Talvez... Aristocrata?
— Tanto quanto se possa ser, meu caro; é assim e ninguém pode fazer alguma coisa contra isso.
— Vou fazê-lo pagar caro.
— Estou habituado; em contrapartida, exijo um serviço impecável.
Porchey, vestido de comandante, bebia um café turco; o antigo jóquei tratava dos nervos com álcool de rosas.
— Quando quer encontrar-se com Abdul O Maldito?
— O mais cedo possível.
— Está na cidade, nesta semana, mas o seu emprego do tempo está sobrecarregado. Porque deseja vê-lo?
— Para o ver.
— Perdão?
— Não é o maior bandido do Bósforo, um gatuno de génio e um estratega de primeira força?
— É verdade, mas...
— Pois bem, meu caro, fique sabendo que colecciono entrevistas com indivíduos fora do vulgar nos registos mais diversos. Depois de tantos périplos, acho melhor conhecer o nosso velho planeta. A África do Sul divertiu-me durante alguns dias, o Japão, uma semana, a França uma noite, os Estados Unidos um mês inteiro; agora, a geografia cansa-me. Procuro a companhia das pessoas mais afastadas da minha condição, como se passa consigo, por exemplo, que ignora a que ponto os aristocratas são presumidos e maçadores. Quanto aos grandes deste mundo, que a minha defunta mãe me queria ver frequentar, esses não pensam senão em mentir. O senhor também, note...
— Eu? Mas porquê?
— Porque não conhece Abdul O Maldito e tenta subtrair-me algum dinheiro de uma maneira que eu qualificaria de desonesta.
— Isso é falso! Sirvo-lhe de agente de ligação.
— Nesse caso, diga-lhe que o encontrarei amanhã, à meia-noite, no ângulo sul do velho porto, a fim de completar a minha galeria de retratos.
O herdeiro dos Carnarvon levantou-se, evitou cumprimentar o seu interlocutor, e saiu da taberna assobiando uma velha canção gaulesa.
À hora e no lugar marcados, Porchey viu aproximar-se um barco em que dois homens remavam em cadência e sem barulho.
Pensou no pai que esperava o seu regresso ao castelo de Highclere; o velho lord censurava ao filho as suas idas e vindas incessantes, um amor excessivo pelas viagens e aquele hábito detestável de aparecer e desaparecer sem prevenir. Que o seu comportamento não fosse o de um futuro conde, encarregado de um dos mais respeitáveis domínios da Inglaterra, Porchey admitia-o de boa vontade; mas como acalmar de outra forma a impaciência de viver e o aborrecimento supremo que lhe roía a alma? Devorando o espaço, tinha esperado apaziguar a sua fome, e não tinha conseguido senão exaltar o seu spleen. Uma existência oca e inútil: eis o que os oceanos e os mares não conseguiam preencher. Só um ser humano, talvez, acalmaria os seus tormentos, abrindo-lhe um caminho inesperado. Aquele messias seria Abdul O Maldito?
Aqueles marinheiros arvoravam uma cara absolutamente patibular: barbudos, mal barbeados, com os cabelos gordurosos e a roupa viscosa, ordenaram-lhe que descesse no seu esquife bastante degradado. Um homem de bom senso teria hesitado, Porchey correu o risco.
Da água verde subiam odores fétidos; com as mãos apertadas sobre os remos, os dois turcos apressaram o andamento.
— Onde vamos?
— Vamos além — respondeu o mais velho num mau inglês.
— Portanto, verei Abdul O Maldito.
O barbudo troçou.
— Admirar-me-ia.
— Porquê esse cepticismo?
— Porque Abdul está longe daqui. Acabámos por apanhá-lo; é a sua vez de ser presa dos abutres.
— Trata-se inegavelmente de um facto novo que modifica a situação. A melhor solução consiste em voltar ao porto.
O barco imobilizou-se.
— Nem pensar.
— Não tem razão, meu amigo.
— Não somos vossos amigos.
— Isso alegra-me de certo modo.
— É um homem rico...
— É verdade.
— Traz consigo uma grande quantia em dinheiro.
— Deveria chegar para comprar o seu belo navio.
— Infelizmente, meu príncipe, temos outras intenções.
— Chame-me visconde.
— A fortuna encontra-se no saco que está aos seus pés?
— Exacto.
— Deixe ver.
— E se eu recusar?
— Morrerá afogado.
— Sinistro destino para um marinheiro experimentado... E se aceitar?
— Nadará até ao cais e ficará livre, por um banho.
— Esquece-se, meu caro, que um bom capitão não sabe nadar e que fica a bordo até ao último momento.
O ladrão enervou-se.
— Abra esse saco.
— Abrir as malas de um honesto viajante é uma acção condenável; no seu lugar, renunciaria.
— Obedeça.
O visconde tirou do saco uma magnífica pistola de prata que apontou para os seus agressores.
— Convém preveni-los que sou um dos melhores atiradores do Reino Unido; com mais treinos, teria obtido o primeiro lugar.
Os dois turcos mergulharam imediatamente na água turva.
— Que pena — lamentou o aristocrata. — Falhei mais uma ocasião de me aperfeiçoar.
Carter pensava todos os dias no Vale dos Reis de que estava tão perto e tão afastado. Dar el-Bahari não lhe concedia repouso. Impossível dar livre curso à sua imaginação: cada aquarela devia reproduzir com fidelidade uma cena de oferenda, um barco vogando no Nilo ou uma coluna de hieróglifos. Não pintava para seu próprio prazer, mas a fim de transmitir às gerações futuras o esplendor de um templo onde reinava Hator, com o seu sorriso mágico. Fazer renascer no papel o rosto da deusa foi uma emoção tão intensa que, acabada a obra, a sua mão tremeu; incapaz de prosseguir o trabalho, pediu a Naville autorização para deixar o lugar por algumas horas.
Onde recrear-se, senão no templo de Luxor cujas colunas, as mais esguias do Egipto, levavam a alma até ao céu? Tomou, pois, o barco dos camponeses onde, como de costume, reinava um alegre alvoroço. Ninguém explicava como, num espaço tão reduzido, se amontoavam tantos homens, animais e mercadorias, as mulheres aproveitavam a travessia para se reunirem e tagarelar. Saberiam aquelas boas muçulmanas que uma egípcia cristã tinha lançado a moda do vestido negro, nos primeiros séculos da nossa era, com a intenção de chorar a morte de Cristo?
Quando seres animados e inanimados ocuparam o seu lugar, a ponto de já não mexerem sequer um polegar, o barco agitou-se, adoptou uma atitude ponderada porque, segundo as escrituras, a pressa provém do Diabo.
A meio do rio, viu-a.
Com cerca de vinte anos, com um longo vestido vermelho, o pescoço ornado de um colar de lápis-lazúli, uma pulseira de ouro no pulso direito, tinha um rosto muito fino, compridos cabelos negros e olhos verdes-água. A borda das pálpebras estava sublinhada com um traço preto; as unhas das mãos e dos pés nus dentro das sandálias, estavam tingidas com hena. Estavam separados por um camponês de abdómen saliente, com pressa de chegar ao cais para lá vender um carregamento de cebolas e de favas.
— O meu nome é Howard Carter — anunciou com uma voz que se pretendia firme — desculpe-me de lhe dirigir a palavra de uma maneira tão desembaraçada, mas parece-se com a deusa Hator que acabo de pintar em Dar el-Bahari. É... é perturbante encontrar uma deusa viva.
Pareceu contrariada, mas consentiu em lhe responder.
— Nunca se deve elogiar uma mulher em termos excessivos, senhor Carter; poderia atrair o mau olhado sobre ela e ofender o seu marido.
— É casada?
— Ainda não. Será por acaso arqueólogo?
— Preparo a publicação do templo de Dar el-Bahari.
— É magnífico! Falo frequentemente dele aos meus alunos.
— Será que é professora?
— Sou professora benévola na minha aldeia; por vezes enfermeira e mesmo guia de turistas, quando calha.
— Daí o seu óptimo inglês.
— Fala árabe?
Tentou algumas frases de cortesia, começando pelo indispensável “Em nome de Deus clemente e misericordioso” que devia inaugurar qualquer discurso. O seu sorriso encantou-o.
— Não está mal... era preciso progredir.
— Aceitava-me como aluno?
O barco abrandou a marcha; seguiu-se um movimento de multidão. Todos se preparavam para desembarcar, com uma impaciência pouco oriental. Desesperado à ideia de a perder, deu umas cotoveladas e foi um dos primeiros a sair da estação. Mal a avistou dirigiu-se para junto dela.
— Posso acompanhá-la?
— Vou para casa.
— Se chamássemos uma carruagem? Far-me-ia descobrir o campo e a sua aldeia?
Apanhada de surpresa, aceitou subir para uma carruagem rutilante; ele escolhera um cavalo de boa saúde e bem tratado que galopou sem custo. Saíram rapidamente da pequena cidade e penetraram no universo imutável dos campos e dos canais de irrigação, sem mudança alguma, havia milénios. Durante o trajecto manteve-se silenciosa.
À beira da aldeia, ordenou ao cocheiro que parasse.
— Chamo-me Raifa. Quer tomar um chá, senhor Carter, ou regressar à cidade?
— Decida você.
Seguiu-a. Passaram entre a eira, para a ceifa, e o forno público, onde as mulheres coziam pães redondos enquanto outras tiravam água do poço próximo. Cães errantes, um tanto hostis, observavam-nos. Escondida num palmeiral, a aldeia de Raifa compunha-se de casas baixas de terra amassada, sem electricidade nem água corrente; nos telhados, palmas entrançadas e tijolos de bosta de vaca seca que servia de combustível. Meteram por becos estreitos e poeirentos que formavam um verdadeiro labirinto. Ao pé da mesquita, cujo minarete emergia por cima da massa compacta das moradas, havia homens que desfiavam o terço.
Raifa morava na mais bonita casa, ao lado da do presidente da câmara; sobre a porta pintada de azul, um ferro de cavalo e uma mão de Fátima, destinada a afastar os espíritos maus. Rodearam-nos cerca de vinte crianças; as meninas brincavam com bonecas de trapo, os rapazes empurravam-se. Atraídos por aquela agitação, cabritos pedincharam alimento. Raifa acalmou aquela “malta” e empurrou a porta do seu domínio.
Na primeira divisão, de chão de terra batida, dormia um burro; uma velha desdentada, de vestido preto roto, amassava farinha. Assustada à vista do ocidental, puxou o pano para cima da cabeça, não deixando ver senão a fenda dos olhos. Raifa deu-lhe ordem para preparar chá e convidou-o a entrar numa segunda divisão bastante ampla, de chão lajeado. Ao longo das paredes havia almofadas e banquinhos de várias cores.
— Sente-se, senhor Carter.
— Vive só?
— Vivo com o meu irmão Gamai. É proprietário terrícola e perceptor.
A sua voz entristeceu quando pronunciou o nome dele.
— Gosto muito dele mas... por vezes é violento. Deve mostrar-se severo e chicotear os maus pagadores. Gamai é muito agarrado às tradições e não apreciaria nada a sua presença aqui. Na aldeia, consideram-me uma mulher demasiado livre; por felicidade, disponho do amparo do presidente da câmara que eu tratei de uma infecção... Há tantos infelizes e doentes... é dever de uma mulher aliviar a sua miséria.
A velha criada trouxe o chá e os bolos de mel. Apareceu um jovem robusto, de pele muito morena, de sobrancelhas pretas e desgrenhadas que se juntavam e formavam uma barreira inquietante. Na sua mão direita, um chicote.
— Saia daqui. Não tem o direito de estar só com a minha irmã.
Não corresponder ao seu convite teria sido um insulto.
— O meu nome é Carter, estou a cumprimentá-lo. Permita-me que me despeça.
Indiferente ao furor de Gamai, Carter poisou o copo de chá de menta, levantou-se e deixou a casa. Na entrada, uma cobra erguida travou-lhe a passagem.
— Não tenha medo — recomendou Raifa — mora connosco e vem pedir leite.
Voltou-se para o irmão.
— A nossa serpente só se mostra aos amigos sinceros; devias sentir-te tranquilizado, Gamai.
Quando Carter saiu da aldeia, as mulheres de véu soltaram uma lengalenga de yuyus, fazendo ondular a língua contra o céu da boca, a fim de exprimir a alegria.
Alguns dias mais tarde, os seus passos levaram-no para o Rameseum, o templo dos milhões de anos de Ramsés II. O edifício tinha sofrido muito; no grande pátio, aberto na frente da sala de colunas, jazia o maior colosso que se esculpira. Intacto, e de pé, pesava mais de mil toneladas. O fanatismo e a estupidez tinham chegado a deitá-lo abaixo, senão a aniquilá-lo; o seu rosto, iluminado do ouro-avermelhado do poente, continuava a exprimir um poder sereno.
Um rebanho de cabras pretas e brancas pastava no sítio, Carter enfiou-se entre os blocos espalhados e os bosques de tamargueiras, tendo o cuidado de evitar as ervas picantes, e sentou-se sob a folhagem de uma acácia que floria no meio das ruínas.
Depois do seu encontro com Raifa, tinha deitado fora uma dezena de aguarelas falhadas. Incapaz de esquecer a jovem, desamparado, não conhecia ninguém a quem se confiar. Tornar a vê-la obcecava-o; se, realmente, o irmão fizesse queixa dele, Naville seria constrangido a mandá-lo embora. Detestava conflitos e não sonhava senão com a publicação do “seu” templo, contudo corria o risco. O guarda do sítio, aproximou-se com um pau na mão.
— Tenha cuidado; aqui as serpentes não são raras.
Com o rosto sem idade, enrugado e de gestos lentos, sentou-se num bloco coberto de hieróglifos e olhou na direcção do poente.
— Não procura o túmulo de um rei desconhecido?
— Quem lho disse?
— O vento sopra com força e o meu ouvido é muito apurado.
— Ouviu falar de objectos com o nome de Tutankhamon?
— Nem mercadores nem gatunos os possuem. Nada mais normal... o grande Ramsés não destruiu o seu templo e pilhou o seu túmulo a fim de apagar todo o rasto daquela época maldita?
Aquelas declarações consternaram-no, o aviso daquele gaffir contava mais do que o dos egiptólogos.
— Siga o seu caminho, senhor Carter, sem se preocupar com uns e outros; não se transforme num gatuno nem num coração de pedra. Se não fosse inglês, dava-lhe um talismã para o proteger contra os inimigos que, na sombra, se preparam para o prejudicar. Mas os Ingleses não acreditam em Deus.
— Deus te proteja, meu filho; esses dois bandidos poderiam ter-te assassinado.
— É prudente acreditar nele de vez em quando — reconheceu Porchey.
— Donde vens tu, desta vez?
— De Constantinopla.
— Encontraste algum personagem importante?
— Devia encontrar-me com Abdul O Maldito, mas o encontro foi adiado.
O velho conde de Carnarvon levantou os olhos ao céu.
— Porchey! Porchey! Quando deixarás de correr mundo?
— Quando ele deixar de girar, não importa em que sentido. Descanse, pai; sinto que está cansado.
Porchey chamou o chefe de serviço que reanimou o lume na chaminé do grande salão; depois, serviu ele mesmo um uísque ao pai e zelou por que estivesse confortavelmente instalado num cadeirão de coiro de encosto alto.
— Desde que a tua mãe desapareceu que tenho muitas preocupações com o teu futuro; que procuras, meu filho?
— Ignoro-o.
— Tantas viagens feitas não te deram ainda uma resposta?
— Anedotas, nada de essencial. Não importa quem possa vogar nos oceanos e atravessar os continentes; o que eu julgava ser uma proeza não passava de mais uma banalidade. Já recebeu livros novos de História?
— Manuais maçadores provenientes do British Museum; empilhei-os no teu escritório.
— É o melhor dos pais.
— Aceitarias jogar uma partida de xadrez?
— Depois da sua sesta, de boa vontade.
Entre duas chuvadas, Porchey passeou no imenso parque de Highclere. O castelo era austero; as torres maciças, rectangulares e ameiadas davam-lhe o aspecto de uma fortaleza medieval, fechada sobre o seu passado e as suas tradições. O visconde apreciava aquele carácter grandioso e mais ainda o enconto dos relvados tratados na perfeição por um exército de jardineiros. Uma numerosa criadagem, dedicada e fiel, zelava pela integridade do domínio. De pai para filho, era uma honra servir os Carnarvon e preservar uma das mais belas propriedades de Inglaterra.
Porchey repousava, caminhando horas nas suas terras acompanhado dos seus cães de caça; meditava debaixo dos cedros-do-Líbano, andava ao longo do lago que dominava um belvedere de mármore branco, aventurava-se por entre as moitas de pilriteiro, em busca de alguma caça, trepava as colinas cobertas de carvalhos e de faias. Highclere era uma terra ao abrigo das convulsões do tempo e das sociedades humanas. Ninguém, na aristocracia britânica, compreendia porque razão o futuro conde de Carnarvon não passava dias felizes naquele paraíso.
Porchey voltou quando a noite caiu, ordenou que alimentassem os seus cães e refugiou-se na sua biblioteca, uma das mais vastas e das melhor fornecidas do Reino Unido. Tudo o que tinha sido escrito sobre a história antiga estava ali reunido; deitando um olhar divertido a duas estranhas relíquias, a secretária e a cadeira utilizadas por Napoleão I, a quando da sua permanência forçada na ilha de Elba, o visconde hesitou a sentar-se lá. Por respeito pelo inimigo, contentou-se com um assento mais vulgar e debruçou-se sobre um estudo consagrado à cerâmica oriental. O pai abriu a porta da biblioteca.
— Será que te esqueceste de mim?
— Perdoe-me.
— Prefiro ver-te estudar finanças e emprego.
— Como igualá-lo neste domínio?
— Meu filho, breve deixarei de aqui estar.
— Tretas! Tem a construção de um carvalho.
— Estou a envelhecer, Porchey, devias ter isso em conta.
A partida de xadrez foi jogada em frente da grande chaminé; um espesso nevoeiro envolvia as torres do castelo. Lord Carnarvon tinha feito servir uma garrafa de Dom Pérignon e torradas com caviar, presente de um ministro russo. O filho empregava-se numa abertura siciliana das mais clássicas.
— Estás a progredir.
— Durante as minhas travessias, tenho tempo para estudar os melhores tratados.
— Deveríamos ter uma discussão séria.
— Como queira.
Não sem inquietação, Porchey verificava que o pai estava a enfraquecer. Dantes, teria utilizado as suas peças com mais agressividade.
— Quanto tempo ficarás em Highclere?
— É o género de pergunta a que eu sou incapaz de responder. Depende da humidade, da atmosfera, do meu humor, de uma ideia que passa...
— Permite-me exigir mais. Concebeste um projecto preciso?
— À reflexão, sim.
— Qual?
— Não gosto de me abrir.
— Insisto, Porchey.
— Pois bem... vai admirar-se, mas conheço mal a Itália, principalmente o Sul do país. Nápoles é uma cidade bem atraente.
— Nápoles! Um covil de ladrões e de assassinos.
— Precisamente... Gostaria de encontrar o chefe da Mafia.
— Porchey! Tens consciência de...
— Completamente, pai. Não corro qualquer perigo, uma vez que se trata da minha colecção de retratos; não penso em tratar dos negócios.
O velho lord deitou abaixo o rei.
— Renuncio a compreender-te e não imploro senão um só favor: inicia-te no bom caminho deste domínio. Seria a minha maior alegria de velho.
— Prometo-lhe: Highclere permanecerá propriedade dos Carnarvon e o mais belo domínio da terra.
— Deus seja louvado, meu filho.
Logo que o pai adormeceu, Porchey consultou os documentos administrativos e financeiros que tinha posto no seu escritório. Bastou-lhe uma noite para assimilar os principais pontos e aperceber-se de que a fortuna familiar era gerida com a maior seriedade; assim, a partir do dia seguinte, tomou a direcção de Nápoles.
Por detrás da fachada leprosa da casa de Gurnah, escondia-se um pátio com pavimento de calcário; ao centro, havia um poço. Aos lados, banquetas de madeira e cofres cobertos de estofos. Sentado numa cadeira de espaldar baixo, o senhor da terra, de galabich vermelha, deslumbrante de brancura, observou Carter com uma curiosidade mesclada de crueldade. Um turbante escondia-lhe metade da testa; os lábios finos contrastavam com o queixo espesso. Howard sentiu o personagem habituado a dar ordens que não se discutiam.
Naville não tinha aconselhado aquela visita ao chefe do clã Abd el-Rassul, a poderosa mafia tebana que, havia decénios, pilhava os túmulos, espoliava os viajantes imprudentes e não hesitava em se desembaraçar dos seus adversários mais incómodos. Mas o arqueólogo suíço estava, ele mesmo, na origem da diligência de Carter, dado que o tinha alimentado longamente do acontecimento que, no ano de 1881, sobreviera em Dar-el-Bahari: quarenta múmias reais tinham sido encontradas no coração de uma cave escavada na falésia! Os verdadeiros arqueólogos eram os Abd el-Rassul; tinham entrado no esconderijo alguns anos mais cedo, bem decididos a vender as suas descobertas no decorrer dos meses, obtendo o máximo de proveito. Amuletos e jóias circularam no mercado de antiguidades, primeiro em pequeno número, depois em tão grande quantidade que atraíram a atenção da Polícia.
Um dos membros do clã confessou, uma vez submetido a um interrogatório apertado pelo erudito francês Maspero; salvas as múmias reais, partiram de barco para o Cairo, sobre aclamações de fellahs concentrados nas margens.
Uma hipótese inquietante atravessara o espírito do pesquisador; era por isso que ele defrontava o bandido mais assustador do Egipto.
— Quarenta múmias reais da décima oitava à décima nona dinastia... era mesmo o tesouro?
Abd el-Rassul acenou afirmativamente com a cabeça.
— Guardou silêncio durante seis anos?
— Prestámos juramento, senhor Carter, e estávamos encorajados, Mustapha Agha Ayat, agente consular de Inglaterra, da Rússia e da Bélgica, garantia-nos a sua protecção. Por causa dele, perdemos muito dinheiro. Quando as múmias saíram do buraco, tive vontade de atacar o cortejo... mas os polícias eram demasiado numerosos e alguns sabiam atirar. Malech!
Malech podia traduzir-se “é assim, tinha de acontecer, e não há nada que o impeça”, a palavra servia de talismã para resolver pela inacção os problemas mais delicados.
— Tenho de lhe fazer outra pergunta.
Abd el-Rassul franziu o sobrolho.
— Polícia?
— Arqueólogo.
— Foi o que me disseram e não me agrada nada. Quem o envia?
— Ninguém.
— Um europeu é sempre empregado de alguém.
— O meu patrão é Edouard Naville.
— Esse não o temo; evita escavar as areias. E o senhor?
— Eu desenho, pinto.
O gatuno pareceu tranquilizado.
— Quando encontrou as múmias, não encarou a hipótese de as vender?
— A carne de múmia tem menos valor do que antigamente; depois da fundação da dinastia dos Abd el-Rassul, faz setecentos anos, nós preferimos o ouro.
— Quarenta múmias em 1875, aquando da vossa descoberta, 40 em 1881, aquando da chegada de Maspero ao lugar do esconderijo. É belo demais. Não desapareceu nenhuma entretanto...
— Nenhuma.
Pelo seu ar desdenhoso, que significava que ele poderia ter sido um gatuno melhor, Carter soube que ele dizia a verdade. Subitamente, o seu olhar tornou-se feroz.
— Seja esperto, senhor Carter, e não mude de actividade; sobretudo, não brinque aos buscadores de tesouros. Essa imprudência pode acarretar-lhe graves aborrecimentos.
A ameaça não impressionou Carter, perante uma maravilhosa esperança: a múmia de Tutankhamon não dormiria no seu túmulo, ainda inviolado?
Caminhos sinuosos contornavam os tapetes de trevo e as sombras de campos de favas; as sakehs[2] gemiam em cadência, entrelaçamentos de jasmim coavam o sol. Debaixo das palmeiras, havia burros que buscavam um pouco de frescura; Raifa e Howard Carter abrigavam-se dos raios demasiado ardentes num bosque de sicômoros e contemplavam o verde dourado do campo.
Gamai foi chamado a Quena pelo seu superior hierárquico; a jovem tinha aproveitado a ausência do irmão para atravessar o Nilo e ir ter com Carter a Dar el-Bahari. Como Naville partira para o Cairo, a fim de resolver os seus problemas administrativos, Howard estava livre para passear com ela.
Ela evocou a pobreza dos seus compatriotas, as epidemias que levavam as crianças mais fracas, a bilharziose endémica, à qual sucumbiam tantos camponeses; insurgiu-se contra o dia de um rapaz: escola corânica, onde aprendia o livro santo, trabalho nos campos, onde conduzia os bois, refeições frugais, à base de queijo e de biscoitos, períodos de sono demasiado curtos. Raifa sonhava com escolas brancas e crianças felizes; Carter desaconselhou-lhe a Inglaterra. Ficou horrorizada por saber que garotos de dez anos morriam de esgotamento nas minas de carvão.
Confessou-lhe o seu gosto cada vez mais intenso pela vida lenta dessa natureza imutável em que a luz reinava como senhora absoluta; tinha aprendido a poisar os pincéis e a ver os pica-peixes agarrar as suas presas, os rebanhos de gamos de cornos curvos avançarem por caminhos poeirentos, as mulheres andarem com bilhas à cabeça. Os mochos castanhos e as corujas de asas largas, visíveis de dia, tornavam-se familiares.
Raifa obrigou-o a falar-lhe em árabe e rectificou os seus erros ao fim da tarde, durante uma semana tão curta, levou-o a tomar chá a uma quinta onde um dos seus amigos tateava a aguarela. Majestoso, no seu vestido branco comprido, com um pau na mão, vinha buscá-los à beira do deserto, acompanhado de dois cães. Introduzia-os na sua casa de terra seca ao lado da qual, entre dois caniçados, tinha instalado o seu atelier.
A chaleira, sempre cheia, estava colocada sobre o fogareiro da cozinha ao ar livre; a esposa preparava bolos de mel que os cães cobiçavam. O pintor apresentou Carter aos seus inúmeros amigos, camponeses, burriqueiros, guardas de túmulos, mercadores ambulantes, funcionários e mesmo polícias; depressa foi integrado na sociedade de Gurnah e da margem ocidental de Tebas. Próximo dos pobres, partilhou das suas alegrias e das suas tristezas.
O horizonte tornou-se laranja e violeta. O Nilo tornou-se prateado. Um voo de patos selvagens acompanhou os faluchos que voltavam ao cais. Era o primeiro pôr de Sol a seu lado.
A montanha sagrada enfeitava-se com pregas azuis e cor-de-rosa, formava o tecido em que se drapearia até de madrugada. Animava as palmeiras uma brisa muito suave; do alto do seu poleiro, como de costume, os guardas dos campos começavam a sua vigilância.
Sentados à borda do rio, espreitavam o nascer das estrelas. Carter identificava a Ursa Maior, as circumpolares e a polar.
— Falas bem árabe; podes desembaraçar-te sem mim.
— É impossível; escapam-me muitos cambiantes.
— Gamai volta esta noite.
Ele não ousou retê-la; as palavras pareceram-lhe supérfluas. Beijou-lhe as mãos, ela corou e fugiu.
Enquanto um barco a trazia de volta à margem dos vivos, ele ficava na dos mortos. O calor era tão agradável que dormiria fora de casa, junto do templo de Dar el-Bahari, a fim de se atirar ao trabalho logo que nascesse o Sol. No seio da colina desértica, crivada de cavernas, encontrou uma tumba pilhada que lhe serviu de quarto.
Longe do mundo, sonhou com a felicidade.
O telegrama tinha apanhado Porchey em Nápoles, no dia seguinte ao da sua decepcionante entrevista com o chefe da Mafia.
“Regresse o mais depressa possível a Highclere. Seu pai está moribundo.”
O intendente.
Esquecidas as aventuras italianas... Sem perder um instante, Porchey tinha atravessado a Europa.
Sobre o castelo abatiam-se trombas de água. Apertado no seu impermeável forrado de pele, penetrou no grande hall de estilo neogótico onde se tinham reunido os criados.
O intendente avançou para ele.
— Senhor conde... como dizer-lhe...
— Quando aconteceu?
— O seu pai morreu na noite passada, durante o sono. Tinha recebido os últimos sacramentos e relido o seu testamento. Em nome de todo o pessoal, apresento-lhe os meus mais sinceros pêsames e asseguro-lhe a nossa inalterável fidelidade à sua linhagem.
— Onde se encontra ele?
— No seu quarto.
Porchey passou a noite junto do pai. Tinha sido precisa aquela morte para interromper a sua vagabundagem e obrigá-lo a fixar-se em Highclere, de futuro objecto dos seus cuidados; sentindo-se órfão, privado de conselhos que não ouvia mas que o tranquilizavam, chorou. Não sobre si mesmo, não sobre as ocasiões perdidas de aprender mais de um ser experiente, mas sobre aqueles demasiado raros momentos em que um pai e o filho compreendem que vieram da mesma cepa e foram talhados na mesma madeira.
Porchey acabava, também ele, de morrer.
Velório, enterro, costumes e mímicas de circunstância, desfile contristado dos membros da família e dos amigos... o quinto conde de Carnarvon dobrou-se com dignidade às exigências do cerimonial. Apesar da sua juventude, a aristocracia considerava-o apto para cumprir os seus deveres.
Aos vinte e três anos, George Herbert tornava-se um nobre muito rico, à cabeça de um domínio de
Mais experimentado do que queria deixar transparecer, isolou-se durante um longo mês, passeou com os seus cães, deu voltas a cavalo, caçou a raposa e leu com atenção os cadernos financeiros e administrativos de seu pai. Este estudo esclareceu-o sobre o papel eminente que o velho lord desempenhara na política do seu país; desse modo, não ficou surpreendido por receber um pedido de audiência emanado do gabinete do primeiro-ministro de Sua Majestade.
O emissário era um personagem austero de cerca de quarenta anos; o fato escuro às riscas, as suíças grisalhas e o rosto gelado, sem qualquer expressão, conferiam-lhe o ar de respeitabilidade indispensável a uma carreira impecável.
— Naquelas penosas circunstâncias, Lord Carnarvon, fique sabendo que o Governo e eu apreciamos o seu gesto. Teríamos admitido a sua recusa.
— Teria voltado dez vezes ao ataque... de preferência abrir imediatamente a caixinha das surpresas.
A expressão chocou o emissário; com o seu sentido inato da diplomacia, mudou de assunto.
— O seu pai pertenceu ao gabinete Disraeli, onde se tornou um político ilustre. Escrupuloso, não se afastou um milímetro do caminho do dever.
— É absolutamente extraordinário, admitamo-lo; além do mais, é verdade. Estou bastante satisfeito que a Inglaterra reconheça os méritos de um dos seus filhos mais leais.
— Infelizmente, esse grande servidor do Estado deixou de o ser. Mas o Estado continua a existir.
— Não duvido.
— Obrigado pela sua compreensão, Lord Carnarvon. Tanta maturidade enche-me de admiração.
— A mim também. Devo-a, sem dúvida, às minhas viagens.
O emissário coçou a garganta com distinção.
— É precisamente um dos pontos que dá lugar à minha visita. Dada a sua nova posição e as responsabilidades que, um dia ou outro, desempenhará, seria melhor...
— Que fosse sedentário? Não conte muito com isso.
— Ninguém lho pede.
O aristocrata ficou intrigado. A conversa começou a interessá-lo.
— O seu pai era um dos pilares da melhor sociedade; mantendo a ordem e a moral, encorajou a acção do Governo e participava da maneira mais resoluta na construção do país. Espero que não trairá a sua memória e que prosseguirá a sua obra.
— Se o Governo não atraiçoa a minha confiança, porque se anularia a descendência dos Carnarvon?
O emissário conteve um suspiro de satisfação.
— É muito diferente de seu pai, Lord Carnarvon; ele só gostava do seu domínio, o campo inglês e Londres. Em contrapartida, o senhor apregoa um gosto pronunciado pelo exotismo. Segundo as informações que nos chegaram, deu várias vezes a volta ao mundo e encontrou personalidades... diversas.
— Terei sido espiado?
— Observado, de tempos a tempos, como qualquer homem de futuro.
— Que concluiu?
— Que é corajoso, lúcido e capaz de se safar das situações mais escabrosas.
— Demasiados elogios anunciam um desastre.
— Uma vez que conta tornar a partir para terras distantes, como supomos, aceitaria ser útil a Inglaterra?
— Estranha sugestão, na verdade.
— Cabe-lhe escolher o destino que lhe convém; não fazemos tenção de lho impor. As autoridades ficariam lisonjeadas por conhecer a sua opinião sobre os países que atravessará. Essas preciosas indicações ajudá-las-ão a manter a paz. Olhares como o seu são indispensáveis.
— Neste último ponto, partilho da sua opinião; terei a liberdade de decidir no que diz respeito aos outros?
O emissário tossicou.
— Bem entendido, Lord Carnarvon, bem entendido... mas como duvidar do seu patriotismo?
— O seu tacto é perfeito.
— Vou mandá-lo acompanhar. O Império poderá contar consigo?
— Mesure pour mesure[3], dizia Shakespeare.
Uma dúvida medonha apoderou-se de Carter: a múmia de Tutankhamon não se encontraria no “lote” Abd el-Rassul, mal identificada? Interrogou Naville sem descanso, e extirpou-lhe a verdade. O esconderijo real não passava de uma modesta cave, de tecto baixo; as múmias, dissimuladas à pressa tinham sido enfaixadas sem grande cuidado. Algumas tinham mudado muitas vezes de morada. Decerto que a vontade encarniçada dos seus salvadores tinha-se traduzido por um real sucesso dado que os mais ilustres faraós tinham escapado à destruição; mas o relato da descoberta “arqueológica” fê-lo estremecer.
Em dois dias, os funcionários do Serviço das Antiguidades tinham esvaziado a sepultura sem efectuar um mapa nem anotar a posição dos preciosos despojos, transferidos à pressa, para um barco! Talvez as etiquetas tivessem sido perdidas, aquando dessa incrível mudança, talvez identidades tivessem sido misturadas.
Naville compreendeu que a obstinação de Carter fosse a mais forte. Autorizou-o a permanecer uma semana no Cairo e entregou-lhe uma carta de recomendação.
Aqueles que baptizavam o Museu do Cairo de “caverna de Ali Baba” não se enganavam; nele se acumulavam os tesouros saídos da terra do Egipto, sarcófagos, estátuas, figurinhas funerárias, esteias e tantos outros objectos que mereceriam, cada um deles, um estudo atento. Percorrendo as galerias poeirentas, Carter descobriu obra-prima após obra-prima; quantos anos seriam precisos para as valorizar e lhes dar um quadro digno da sua beleza? Mariette teria certamente ficado feliz de dispor de tanto espaço, ele que abafava no seu pequeno museu de Bulaq; mas quatro mil anos de história mereciam melhor.
Com o espírito acalmado, Carter conseguiu, no entanto, segurar a língua quando ele se apresentou naquela manhã como único responsável administrativo do serviço. Recebeu-o com amabilidade, depois de ter tomado conhecimento da missiva do patrão.
— Deseja examinar as múmias do esconderijo de Dar el-Bahari... nada mais fácil. A sala está aberta ao público.
— Gostaria de estar só.
— Ah... posso autorizá-lo a ficar depois do fecho. Digamos... uma hora?
— É muito pouco.
— Poderia conhecer a razão da sua diligência?
— Receio que tenham sido feitas confusões e misturas.
O funcionário levantou os braços ao céu.
— Não é o primeiro! As circunstâncias da descoberta foram um pouco... agitadas. Procederam ao exame atento das múmias numerosos sábios preocupados; fique certo de que todas foram identificadas com a maior precisão.
— Seria que... Tutankhamon faria parte do número dos que se salvaram?
— Não conheço esse faraó.
— Disporá de documentos sobre as escavações do Vale dos Reis?
— Cadernos e jornais conservados pelos arqueólogos desde o século XVIII... foram mais de cinquenta. Hoje, uma coisa se sabe: o Vale já não tem nenhum segredo.
— Não sou da sua opinião.
— Está enganado. Esquece-se de que os ladrões profissionais de Gurnah desencadearam uma forte concorrência aos pesquisadores e aos sábios. Nenhum tesouro lhes pôde escapar. Contudo, se quiser consultar os nossos arquivos...
— É mesmo a minha intenção.
Depois de ter subido a escada monumental, Carter entrou com respeito na sala, onde repousavam, para a eternidade, os corpos dos reis do Novo Império; vazia e silenciosa, parecia hostil a qualquer presença profana. Teria gostado de cobrir de tiras aqueles cadáveres descarnados, substituí-los nos seus sarcófagos e subtraí-los à curiosidade mórbida de um público irónico ou assustado.
Dois rostos conservavam um incrível poder: o de Séti I, o construtor do templo de Abidos, e o de Ramsés II. Estavam ancorados numa transfiguração de que traziam prova; quem os contemplava, sabia que o Egipto vivia para além do tempo.
O exame das múmias reais corroborou as declarações do funcionário: a múmia de Tutankhamon não tinha sido descoberta.
Nem túmulo, nem múmia: Tutankhamon não passará de uma miragem?
Carter despejou os arquivos do Museu e tomou nota dos trabalhos efectuados pelos pesquisadores sem obter um só indício sobre o rei ou a localização da sua última morada. Nem rumor nem boato falso, como se nunca tivesse existido. Por um lado, esse silêncio perturbava-o; por outro, alimentava as suas esperanças.
De passagem pelo Cairo, alguns colegas admiraram-se de o ver trabalhar dia e noite; um deles convidou-o para jantar. Repudiou secamente a proposta; água, um pãozinho e alguns frutos lhe bastariam. O seu verdadeiro alimento era aquela documentação que ninguém tinha examinado com cuidado.
Na manhã do último dia da sua escapada pelo Cairo, foi recompensado dos seus esforços: um arqueólogo anónimo tinha consagrado um estudo manuscrito com a chancela da necrópole real, representando o chacal Anúbis por cima de nove personagens ajoelhados e peados. O Egipto simbolizava assim o triunfo do conhecimento sobre as forças do mal; amarradas, incapazes de agir, davam graças ao deus encarregado de abrir as portas do além e de conduzir os iniciados até à luz. Era por essa razão que tal chancela era colocada no acesso às tumbas do Vale dos Reis e em mais lugar algum. Teria ele um dia a oportunidade de lhe tocar com o dedo?
Com a imagem para sempre gravada na memória, prosseguiu a leitura, interrogando-se sobre um fenómeno curioso: a entrada de certas tumbas tinha ficado bem visível, marcada por uma majestosa fachada; noutros casos, as caves tinham sido tapadas e dissimuladas atrás dos aterros, como se as tivessem querido tornar inacessíveis. Se o túmulo de Tutankhamon existisse, pertenceria a essa última categoria; seria, sem dúvida, necessário desaterrar toneladas de areia, antes de a livrar.
Um documento anexo tinha-se juntado ao estudo: o começo de um papiro relatava a agressão de Seth contra seu irmão Osíris, depois tratava de um sinistro assunto, uma série de maldições ao encontro dos violadores de sepulturas reais!
Traduziu e retraduziu os hieróglifos; receando iludir-se, consultou dois conservadores e um adido científico alemão em estágio no Museu. Todos três confirmaram a sua interpretação. Segundo a cota do papiro, talvez fosse possível recolher um outro fragmento e obter a continuação do texto.
Carter deveria ter voltado a Tebas e recomeçado o seu trabalho, mas a excitação era demasiado forte; obteve autorização de prosseguir as suas buscas nas reservas do Museu, onde dormitavam obras admiráveis, das quais algumas não tornariam a sair das trevas e do esquecimento.
Depois de numerosas tentativas infrutíferas, foi de novo abençoado pelos deuses do Egipto; segurava nas mãos a segunda parte do papiro, enfeitado com a mesma cota a que tinha sido acrescentado um bis. A separação dos dois fragmentos parecia bizarra; com efeito, esse género de incidente era dos mais frequentes. Porquê ligar a tão modestos vestígios?
O texto decifrava-se sem grande dificuldade:
“Só eu vigiei a construção da tumba de Sua majestade ao abrigo de todos os olhares e de todas as orelhas. Ninguém o viu, ninguém o soube. Zelei escrupulosamente, de modo a fazer a mais perfeita das obras; ultrapassa a dos antepassados e fará falar dela muito depois de mim.”
A exaltação atingia o seu cúmulo; não se tratava do acto oficial, dizendo respeito à construção da sepultura de Tutankhamon, tornada inviolável por uma acumulação de blocos e, sobretudo, pela preservação de um segredo bem guardado através dos séculos?
Não restavam mais do que alguns sinais a decifrar, os nomes do rei e de seu mestre-de-obras.
Trémulo, com a fronte coberta de suor, Carter fechou os olhos e tentou controlar a respiração. Essa emotividade pareceu-lhe indigna de um sábio; subitamente enraivecido, defrontou a realidade.
A decepção foi dilacerante.
O mestre-de-obras chamava-se Ineni, o faraó Tutmés I, primeiro monarca a escolher o Vale dos Reis, a fim de subtrair a sua morada de eternidade aos gatunos. O soberano tinha assim inaugurado uma tradição respeitada pelos seus sucessores das décima oitava, décima nona e vigésima dinastias. Graças a Tutmés, o lugar selvagem da margem oeste era chamado para uma fama universal. Mas Tutankhamon permanecia inacessível.
— Os Ingleses são uns monstros! — declarou Raifa, com o os olhos cheios de cólera.
Howard Carter tomou-lhe as mãos com doçura.
— Nem todos.
— Sim, todos!
— Eu também?
— Tu já és só metade inglês! É à tua metade egípcia que eu falo.
Sentados na borda de um canal, assistiam ao banho dos búfalos que se agitavam na água; crianças nuas nadavam a seu lado, divertiam-se a trepar às suas costas e a mergulhar.
Abbas II Hilmi acabava de suceder a seu pai, o kbédive[4] Teufique, que liderava o país. O khédive, fraco economista, tinha endividado o Egipto, a ponto de o submeter ao controlo da Inglaterra que, sem dificuldade, tinha afastado a França, pronta a descorrer mas incapaz de agir. Abbas II Hilmi, favorável aos nacionalistas, tinha-se lançado no caminho da emancipação; o cônsul-geral de Inglaterra tinha-se empenhado em cortar o mal pela raiz, com grande zanga de Raifa e dos Egípcios, persuadidos de que a sua terra devia libertar-se do jugo estrangeiro.
— O Egipto precisa de nós, Raifa; bem o sabes.
— Recuso-me a compreendê-lo e proíbo-te de manter essa posição.
A indignação ficava-lhe bem. Howard não tinha certamente vontade de falar de política; olhá-la, quer estivesse doce ou zangada, encantava-o. Um mês depois do seu regresso a Dar el-Bahari, quando Naville o ameaçou de o mandar para a tropa se recomeçasse a desertar do campo de trabalho, Raifa tinha fugido da sua aldeia, aproveitando as obrigações do irmão, ocupado a cobrar os impostos nos confins do campo. Durante uma semana, ver-se-iam de manhã e à noite, à sombra de uma palmeira, escondidos num bosque de sicômoros ou numa cabana de caniços, na orla de um campo. Teriam tanto a dizer-se, se o khédive Teufique não tivesse a desastrada ideia de morrer.
— É preciso mandar embora os Ingleses; esses invasores são responsáveis pela miséria do meu povo.
— Foram os Turcos que arruinaram o Egipto — lembrou Carter irritado.
— A Europa modificou a nossa maneira de viver; nunca deveríamos ter aceitado a perfuração do canal de Suez.
— A Inglaterra opôs-se.
— Porque receava perder o controlo da rota das índias! Queria lá saber da desgraça do povo... só contam os seus interesses económicos.
— Exageras, Raifa. Abrindo-se para a Europa, o Egipto começou uma revolução agrícola; já não depende da cheia para sobreviver, uma vez que pratica a irrigação perene.
— Pôr constantemente os fellahs a trabalhar, torná-los mais escravos... será um progresso? Por causa dessa forma de irrigação, o parasita que transmite a bilharziose proliferou nos canais onde os camponeses tomam banho, lavam a roupa e a loiça. Antigamente, a água era pura; hoje, leva-lhes a morte! O verme ataca o fígado e o baço, gasta o organismo; depois o sangue substitui a urina, e é a agonia! Porque haveríamos nós de amar aqueles que nos inocularam esse veneno?
— Porque me amas tu?
A brutalidade da pergunta assustou-o: lamentou logo tê-la feito. Já ela se levantava, fugia, desaparecia. Newberry, Petrie e Naville tinham-no avisado contra o seu carácter impulsivo, sem obter a mínima melhoria.
Mas Raifa não retirou as suas mãos.
— Perdoa-me.
— Que mal me fizeste, Howard?
— Não te devia ter agredido assim.
— Penas e remorsos não se parecem; não terias tu sido sincero?
Ele quase se irritou outra vez, mas o sorriso dela desarmou-o.
— Nunca me confundiram dessa maneira.
— Ninguém se tinha ainda apaixonado por ti.
Os dedos deles entrecruzaram-se; ele não soube que dizer nem que fazer. Como declarar a sua paixão a uma jovem árabe, que gesto fazer? Na frente de uma lady, o seu instinto ter-lhe-ia talvez indicado a conduta a seguir. Aqui, na borda do Nilo, sob o Sol de Outono, a cem passos de um casal de gamos gozando o seu banho, o seu saber de arqueólogo não o ajudava nada.
— Gostaria de pintar o teu retrato.
— O Corão proíbe-o; deveria estar de véu. Guarda-me no teu coração mas não conserves os meus traços.
— Serias uma outra.
— Recuso. Criarias um génio mau.
Durante a tarde, passearam num campo deserto. Raifa evocou a lembrança do pai, um lavrador morto muito novo. Howard descreveu-lhe o campo de Norfolk.
Quando o sol declinou, pararam perto de um chaduf[5], Raifa deitou sobre os pés poeirentos o conteúdo de um balde de água e apercebeu-se que a tinta de hena tinha, em parte, desaparecido. Contrariada, receando perder a sua pureza e ser a presa de espíritos errantes, arrastou-o até um grupo de casas onde chamou uma mulher velha que trabalhava uma preciosa massa. As folhas ovais da hena, arbusto parente do ligustro, dava flores em cacho, análogas às do lilás; eram moídas e reduzidas a pó, antes de se tornarem num cosmético e numa protecção mágica.
Acocorada, com as pernas dobradas sobre si, Raifa tingiu as unhas dos pés. Ao olhá-la, teve a sensação de roubar alguns instantes da sua intimidade.
Ela olhou para trás.
Assustada, levantou-se e encostou-se contra o muro da casa de adobe. Num barulho de cascos e uma nuvem de poeira, Gamai imobilizou o cavalo entre ela e Carter. À cintura, a kurbash, um chicote de pele de hipopótamo.
— Tinha-o proibido de ver a minha irmã.
— Raifa é uma mulher livre.
— Cão de inglês! Julgas podê-la conspurcar?
O cavalo empinou-se; Carter não se mexeu uma polegada.
— Respeito a sua irmã; gostamos de conversar um com o outro.
Ele agarrou no chicote e fê-lo estalar várias vezes.
— Depois da correcção que te vou inflingir, não terás mais vontade de falar.
— Só um cobarde chicoteia um homem desarmado; bate-te com os punhos, se tiveres coragem.
Gamai largou o kurbash e saltou para o chão.
Mais alto e mais largo de ombros do que Carter, ignorava que um pequeno camponês inglês se aperfeiçoa na arte do boxe desde que aprende a andar; Howard tinha aprendido as regras à sua custa e repetido uma vasta escala de golpes permitidos e proibidos. Gamai atacou-o unicamente com a força do desdém; foi o seu erro. Uma defrontação bem conduzida não dura muito tempo; dois uppercuts, um no queixo, outro no plexo, deixaram-no zonzo, com um joelho em terra.
Carter estendeu-lhe a mão.
Cuspiu.
— Que o ódio do Profeta caia sobre ti!
Dobrado pela dor, Gamai conseguiu escarranchar-se na sua montada e foi-se embora.
Raifa rompeu em soluços.
Carnarvon releu o artigo do Times consagrado ao Sudão. Os observadores melhor informados prediziam perturbações graves e lembravam as acções brilhantes de Kitchener, o único soldado capaz de restabelecer uma paz durável. O conde não teria podido explicar porque é que aqueles barulhos de botas o perturbavam mais do que de costume; se bem que ele se defendesse delas era sujeito a visões premonitórias. “Sudão” e “Sangue” soavam-lhe hoje como termos indissociáveis.
No começo daquele soberbo Verão de 1895, tais pensamentos eram incongruentes; dentro de algumas horas, um rico aristocrata de vinte e nove anos festejaria o seu aniversário, tomando por esposa Miss Almina Wombwell, jovem e frágil pessoa, semelhante a um modelo de Greuze. Memorável 26 de Junho, na verdade, que veria uma magnífica cerimónia em Santa Margaret, em Westminster, depois um banquete dos mais convencionais em Lansdowne House. Almina, terna e enternecedora no seu vestido de gaze com estrelas, de esmeraldas e diamantes, apareceria como uma espécie de vítima expiatória oferecida ao lutador por fim acalmado.
A idade da razão, murmurava-se à volta de Carnarvon; outros tinham-na atingido com menos felicidade. Ele, titular, rico e culto; ela, inteligente, doce e bela. Um casal ideal prometido a um êxito certo, temperado com dois ou três filhos que fariam honra aos pais.
Por um lado, o conde apreciava a situação; por outro, detestava-a. Ao contrário de tantos outros homens, não sentia nenhuma angústia perante o amanhã e dever-se-ia alimentar de uma perfeita beatitude; mas o gosto dos grandes espaços não o abandonava. Almina não sentia qualquer atracção pelas viagens. O castelo de Highclere era um universo apto a encher uma existência inteira; ela desejava um filho e uma filha, desejava educá-los com calma, dar-lhes uma educação tradicional e ocupar-se o melhor possível de um marido fora do vulgar.
Sem que ela lho confessasse, Carnarvon estava persuadido de que a noiva tinha a intenção de o transformar e de o livrar daquela sensação de vazio e de inutilidade que o mergulhava frequentemente no inferno; tornar-se pai de família seria uma etapa decisiva do processo.
Tinha saudades do bom tempo em que Porchey procedia segundo a sua fantasia, passava dois meses no mar à procura de uma tempestade, conversava com bandidos num bar esquisito do fim do mundo e perdia-se no desconhecido, a vagabundagem não encontraria a sua justificação nela mesma? Mas Porchey tinha desaparecido, cedendo o lugar a George Herbert, quinto conde de Carnarvon.
O criado de quarto apresentou-lhe um smoking.
— O senhor conde deveria preocupar-se com as horas. Seria lamentável que o senhor conde chegasse atrasado.
— Lamentável, para quem?
O criado de quarto inclinou-se e retirou-se.
— Lamentável — repetiu Carnarvon sonhador. — E se eu não fosse feito para o casamento?
Os momentos de ternura, passados ao lado de Almina, brotaram na sua memória. Estava sinceramente apaixonado por ela, e não se casava sob constrangimento. Contudo, tinha vontade de fugir, de saltar para a ponte do primeiro barco e de dizer adeus à Inglaterra.
A alma do pai falou-lhe.
Aquela fuga, característica de Porchey, não era digna de Carnarvon. A sua desesperança não se alimentava do seu egoísmo, do seu apego exclusivo à pessoa dele, às suas próprias alegrias e às suas próprias penas? Uma mulher e filhos: eis o que se seguiria do nada em que se enterrara.
Obrigado a preocupar-se com o destino de outrem e com a prosperidade do seu domínio, Lord Carnarvon tomaria o caminho certo.
Perspectiva pouco animadora, na verdade; teria preferido casar com Almina, na crista de uma vaga, na encosta de um vulcão ou então no fundo de um vale perdido do Novo Mundo, com índios nus por testemunhas.
Cercado por todos os lados, o conde armou um combate de honra. Desdenhou o smoking, enfiou um casaco de sarja azul e pôs um chapéu de palha.
O criado de quarto, espantado, resmungou algumas palavras indistintas à entrada do quarto.
— Ora bem, meu amigo, teria perdido a língua? Se algum pormenor o choca, seja franco.
— O... o chapéu do senhor conde está ao contrário.
Carnarvon viu-se ao espelho.
— Exacto. Faz-me pensar em o aumentar; sem a sua judiciosa intervenção, teria feito escândalo.
Toda a casa esperava o feliz acontecimento com impaciência; a esposa de Lord Carnarvon tinha certamente concebido um macho. Logo às primeiras horas, o parteiro e as “comadres”, tinham acorrido ao castelo de Highclere.
Instalado na biblioteca, o conde lia um trabalho de André Chevrillon, intitulado Terras Mortas; no regresso de uma viagem ao Egipto, a propósito do Vale dos Reis, escrevia:
Outros faraós dormem ainda no seio da montanha, ao fundo de hipogeus que o homem nunca perturbou depois do dia em que a porta foi fechada. Dormem sob a guarda dos deuses. Belo efeito literário, absurdidade arqueológica; sabia-se há muito tempo que aquele lugar sinistro tinha entregado todas as suas múmias e todos os seus tesouros, quer aos gatunos quer aos egiptólogos. Aquele Chevrillon, como tantos franceses, tinha a alma romântica demais.
Os passos do carteiro ressoaram no corredor.
Carnarvon interrompeu a sua leitura.
— Parabéns, senhor conde; tem um rapaz.
— Chamar-se-á Henry, viverá muitos anos e será o sexto conde de Carnarvon.
— Deus o ouça.
Logo que abraçou Almina e o filho, Carnarvon foi para Londres. Esperavam-no no Foreign Office[6], no banco e em dois escritórios da City; mas descurou esses encontros de uma aflitiva banalidade e passou várias horas num barracão dos subúrbios norte em companhia de uma equipa de mecânicos. Mal se ouviam falar, tão ensurdecedor era o barulho do motor.
— Esse inconveniente não perturbou o conde, que descobrira a sua nova paixão: o automóvel.
Enquanto Kitchener, depois de ter vencido o califa Abdullah, em Ondurmão[7], conseguia reconquistar o Sudão e obrigava o comandante francês Marchand a abandonar a Inglaterra, Carter reflectia sobre os túmulos do Vale dos Reis. Que possuíam eles em comum? Uma porta de acesso, um corredor enterrando-se na terra, uma antecâmara e a sala do sarcófago; por vezes um poço destinado a recolher as águas de chuva a fim de simbolizar o oceano primordial e a tumba de Osíris. Nas paredes, relevos e quadros evocavam as etapas da ressurreição de Faraó e as mutações da sua alma.
Infelizmente, as dimensões dessas sepulturas eram muito variáveis, indo de alguns metros a mais de uma centena! Nessas condições, impossível prever as de Tutankhamon. Além do mais, havia a certeza de que a imortalidade repousava sobre dois elementos: um templo e uma tumba; mas o templo de Tutankhamon tinha desaparecido... se é que alguma vez existira.
A sexta-feira era o dia de repouso no Egipto, salvo para Howard Carter; livre da sua tarefa em Dar el-Bahari, durante algumas horas, consagrava esse muito breve lazer a completar os seus cadernos sobre o Vale, decidido a coleccionar tudo o que tivesse sido escrito ou declarado.
A Primavera resplandecia. Laranjeiras, madressilvas e jasmins floriam, tais como os campos de luzerna e de favas; o calor aumentava, as sombras diminuíam, a poeira parecia estender o seu império. Um pouco cansado, abandonou os seus papéis e passeou ao longo do Nilo.
Havia cinco meses que não via Raifa; tentar dirigir-lhe a palavra, tê-la-ia posto em perigo. Não cessava de pensar nela e lutava com a maior energia para não a roubar ao irmão.
Subitamente, apareceu a seu lado. De momento não a reconheceu, porque pusera um vestido de um azul-vivo; tinha os cabelos presos num véu que lhe cobria a fronte. O andar traiu-a, antes que tivesse pronunciado uma só palavra.
— Raifa... porquê correr este risco?
— O meu irmão foi promovido; foi nomeado para Assuão. Hoje, Howard, é o primeiro dia de Primavera e a festa de Cham en-nessim, (o perfume da brisa); não poderia existir momento mais doce para um reencontro, se aceitares esquecer o teu trabalho.
— Esse grave assunto merece reflexão.
O seu sorriso encantou-lhe a alma.
— Trouxe-te um turbante e uma galabieh.
— Essa moda parece-me pouco britânica.
— Será bastante cómoda para se confundir na multidão e passar despercebido. E, além disso... quero saber se um certo Howard Carter deseja mudar de aparência a fim de me provar a sua afeição.
Por felicidade, não havia nenhum espelho nas paragens e não viu a sua indumentária de mau gosto.
Cham en-nessim recolhia o fervor popular; os citadinos invadiam o campo, famílias inteiras lançavam-se na estrada e almoçavam à borda do Nilo. Rapazotes e miúdas usavam, com orgulho, fatos e vestidos novos, de cores vivas, entravam nas casas de portas largamente abertas e, em troca de ovos cozidos coloridos, recebiam pombos, peixe salgado ou laranjas. Os vendedores de jasmim e de rosas obtinham um franco sucesso; flutuavam no ar perfumes de noivado.
Raifa era uma fada. Quase lhe fez esquecer o Vale dos Reis: perdido numa multidão em júbilo, feliz como uma criança, Howard Carter soltou-se da sua habitual desconfiança e seguiu o mais encantador dos guias. Ela lembrava-lhe que aquele país tinha sido, num passado longínquo, um lugar de festas e de júbilo em que cada um colhia o prazer de viver.
Quando os citadinos retomaram o caminho da cidade, Raifa não lhe restituiu a sua liberdade e conduziu-o até à sua aldeia, onde alguns lampiões furavam a noite nascente; esgotadas, as crianças adormeciam. Eles entraram na casa silenciosa.
— Espera-me aqui — ordenou ela, abandonando-o num quarto garrido, com paredes brancas e verdes.
Carter sentiu subitamente a garganta apertada; tinha-o introduzido nos seus aposentos privados, o que constituía uma falta à moral local. Como sair daquela armadilha? Incapaz de descobrir uma escapatória, encheu-se de paciência.
Ela tornou a surpreendê-lo.
Sem véu, descalça, vestida com uma saia que parava acima dos tornozelos e um bolero dourado que deixava aparecer o ventre, segurava na mão direita um darabuka, tamborim em forma de vaso com o fundo coberto de pele. Perfumada com jasmim, dona de um desejo tanto mais ardente quanto era contido, expressou a sua juventude e a sua beleza, oferecendo-lhe uma dança do ventre, herdada de uma arte requintada, vinda pela Rota da Seda. Com movimentos muito lentos, quase imperceptíveis no começo, formou círculos em volta de um eixo invisível; o corpo de Raifa, esbelto e maleável, teve subtis variações. Os tornozelos deram o ritmo, os seios animaram-se, as ancas estremeceram.
Nem por um momento ela deixou de o olhar, enquanto ele nem sabia onde pôr os olhos; aquela visão inflamava-o mas não conseguiu confessar-lhe a sua paixão. Raifa desapertou o bolero, deixou cair ao chão o pedaço de tecido e aproximou-se dele com um passo lascivo; ela abandonou o tambor, tomou-lhe a mão e puxou-o contra si.
Deveria tê-la repelido, convencê-la que cometiam uma loucura, não aceitar aquela aventura sem saída... mas Raifa era enfeitiçadora, com a sua pele cheirosa, o seu desejo ardente. As suas mãos fizeram deslizar a saia ao longo das ancas; desastrado, ele crispou-se. Com uma ondulação, ela ajudou-o. Nua, continuou a dançar e arrastou-o para o centro de um turbilhão de beijos e de carícias. Mergulhado nos seus cabelos negros, embriagado com a água dos seus olhos, ofereceu-lhe um amor semelhante à cheia do Nilo, subindo ao assalto das margens.
Naquela manhã do dia 9 de Março de 1898, Howard Carter foi arrancado aos braços de Raifa por um rumor que, depois de ter crescido de aldeia em aldeia, esteve em todos os lábios. Com uma voz agitada, o escrivão público explicou aos papalvos como um arqueólogo francês, Victor Loret, acabava de descobrir, no Vale dos Reis, uma tumba intacta contendo o sarcófago de um rei desconhecido.
Pela janela aberta, que um cortinado velava, Carter não perdeu uma só palavra; a sua jovem amante, sorridente no seu meio-sono, sonhava com outras fantasias.
— Onde vais, Howard? O dia mal rompeu.
— O Sol já vai alto, Raifa. Dormimos muito.
— Dormimos?
Ele abraçou-a ternamente.
— Concedes-me autorização para visitar uma múmia?
Longe dela, a sua jovialidade desapareceu. A notícia tinha-o perturbado; quando aquele mesmo Loret, no dia 12 de Fevereiro, atingiu o sarcófago vazio de Tutmés III, o Napoleão egípcio, um pressentimento apoderou-se de Carter. Aquele francês tinha o direito de pesquisar no Vale! Para mais, a sorte parecia acompanhá-lo... não teria ele posto a mão na tumba de Tutankhamon?
Quando Carter chegou ao lugar da descoberta, onde uma dúzia de gaffirs faziam guarda, Loret tinha partido para Luxor. O inglês desejava pedir-lhe a natureza exacta das maravilhas que ele arrancava das trevas; na sua ausência, restava-lhe convencer os cérberos a deixá-lo enfiar-se na caverna dos tesouros.
Como todos eles conheciam Carter, a sua tarefa foi fácil, e obteve depressa o seu acordo. Passando por uma brecha feita na porta murada, acesso indiscutível a uma sepultura real, caminhou iluminando-se com um archote. Sem a sua fraca luz, teria caído num poço largo e profundo. Teve de voltar à superfície e pedir uma escada; atirando-a através do buraco aberto, estabeleceu uma ponte de ocasião que lhe permitiu ultrapassar o obstáculo. Impaciente avançou a passos apressados em direcção à sala do sarcófago.
Este último estava bem no seu lugar.
Aproximou-se dele com respeito, receando encontrar o faraó que o obcecava, desde a sua chegada à terra dos deuses.
No interior da cuva, um rei repousava. Na cabeça tinha um ramo de flores; aos pés uma coroa de folhagem. Pela primeira vez, um pesquisador ressuscitava um monarca egípcio, no próprio lugar onde, graças aos ritos, vivia eternamente.
E esse pesquisador não era Howard Carter.
Com os olhos fechados, a respiração curta, concentrou-se; era inútil atrasar por mais tempo o instante em que deveria decifrar as inscrições e ficar a saber o nome do faraó. Nunca tinha recuado perante a realidade; uma vez que o seu sonho se desfazia, quis ao menos prestar homenagem a Tutankhamon.
Aproximou o archote dos hieróglifos e observou os anéis elípticos que continham a palavra fatal. Leu “Amon”... mas não Tutankhamon! Aquela múmia, aquele sarcófago, aquela tumba pertenciam a Amenófis II, soberano que as suas proezas no tiro ao arco e no remo tinham tornado célebre.
De novo sereno, alegre como um garoto que ganhou ao jogo, sentou-se uns longos minutos no chão poeirento do sepulcro; a sua derrota transformava-se em vitória. Loret provava que algumas caves intactas permaneciam escondidas nas entranhas do Vale... Entre eles, Carter sentia-o, sabia-o, figurava a de Tutankhamon.
O seu archote iluminou a entrada de um quarto; no interior, múmias reais em número de nove! Foi de novo tomado pela angústia; o seu rei seria um dos habitantes daquele novo esconderijo?
Cada uma daquelas veneráveis relíquias lhe revelou o seu nome; por felicidade, Tutankhamon faltava ao chamamento!
Com o seu trabalho em Dar el-Bahari bastante adiantado, Carter ocupou os seus tempos livres, interrogando sem interrupção o lugar de Dar el-Mendich, muito perto do Vale; aí, numa pequena aldeia, tinham vivido os artesãos que, no maior segredo, construíam e decoravam as tumbas reais. A sua comunidade beneficiava de um sistema jurídico especial e dependia directamente do vizir, o primeiro ministro de Faraó.
Que restava de Dar el-Mendich? Um templo, as fundações das casas e o traçado das ruas, e as tumbas dos entalhadores de pedra, dos pintores e dos desenhadores. Tinham sido extraídos de uma fossa imensa, milhares de pedaços de calcário que serviam de molde aos aprendizes.
Atravessando a praça central da aldeia, perto do poço onde as mulheres vinham buscar água, Carter pensou na animação que ali reinava havia três mil e quinhentos anos; os artesãos partiam daquele porto de paz, rodeado de solidão e de extensões desérticas, por onde rondavam as hienas, para seguirem um caminho que conduzia ao Vale dos Reis. Britadores, entalhadores de pedra, pintores, escultores e desenhadores repousavam, de boa vontade, a meio caminho, em cabanas rudimentares, antes de voltarem para casa, na “praça da verdade”, segundo o nome egípcio de Dar el-Mendich.
Altas falésias verticais, rochedos, areia, um anfiteatro silencioso tornavam o lugar austero; flutuava ainda no ar morno o entusiasmo dos construtores. Longe dos homens do seu tempo, Carter sentia-se próximo daqueles seres cuja alma sobreviveria através da perfeição das suas obras. Um deles tinha cavado a tumba de Tutankhamon; talvez tivesse também gravado algum texto ou deixado algum indício susceptível de o pôr no caminho. Era por isso que, depois de vários meses, examinava cada parede e cada pedra.
Quando ele saía da cave do mestre-de-obra Sennedjem, que, sobre a parede pintada, ceifava nos paraísos do além, em companhia da esposa, esbarrou com um homem corpulento, calvo e de bigodes, de mãos gorduchas e olhar duro, por detrás dos óculos de lentes redondas, vestido à europeia com a distinção de um nobre.
— Howard Carter?
— Não tenho o prazer de o conhecer.
— Gaston Maspero, director do novo Serviço das Antiguidades.
Carter deixou cair o caderno de desenho. Assim, encontrava de imprevisto o papa da egiptologia, o descobridor dos Textos das Pirâmides, o pesquisador de Abidos, de Saqqara, de Karnak e de Edfu, o detective que tinha trazido à luz o esconderijo de Dar el-Bahari, o autor da história antiga dos povos do Oriente clássico, professor em Paris, no Colégio de França, com vinte e sete anos de idade, numa palavra, o erudito, em frente do qual, os pesquisadores de todo o mundo se inclinavam.
Não tinham razão. Maspero tinha deixado o Egipto para seguir a sua carreira, depois de ter dirigido uma missão permanente no Cairo, durante muito tempo; Carter nunca partiria...
— Está então de regresso... Por quanto tempo?
— A vantagem dos meus cinquenta e três anos, senhor Carter, e de quarenta anos de egiptologia, é ter a experiência dos homens e do terreno. Hoje, possuo poderes que antigamente me recusavam, e que não me deixariam contar.
— Parabéns pela sua nomeação, senhor director.
Com as mãos cruzadas atrás das costas, bem assente sobre as pernas, Carter devia parecer um estudante, pronto para ouvir a sentença do júri.
Maspero tirou os óculos e limpou-lhe as lentes com um lenço fino.
— A situação não é contudo tão fácil: Kitchener e a Inglaterra puseram a mão no Sudão, enquanto Mustafa Kamil e o Partido Nacional exigem a partida dos Ingleses.
— Simples provocação sem amanhã.
— O Egipto conta hoje sete milhões de habitantes contra três em 1820; as famílias fazem cada vez mais filhos a fim de os mandarem trabalhar nos campos de algodão. Amanhã, serão uns patriotas e pregarão a independência.
— Será que está zangado com a Inglaterra?
— Pelo contrário! Para não lhe esconder nada, foi o cônsul-geral britânico, Lord Cromer, que apoiou fortemente a minha nomeação.
— Isto significa que Loret...
— O meu antecessor, embora francês, era um fraco arqueólogo. De facto, mexeu-se muito e fez algumas descobertas dignas de interesse.
— Não acabou ele de desobstruir a tumba de Amenófis I, a mais antiga do Vale?
Maspero varreu o argumento com as costas da mão.
— Loret escava em cima do joelho, não tira nenhuma fotografia, rabisca notas ilegíveis. Mas há coisas mais graves, Carter: as “tumbas Loret” são abertas a todos os ventos, circula-se muito nelas... demais. Alguns objectos terão desaparecido por ocasião de transacções ilícitas; arqueólogos ingleses e alemães pronunciaram a palavra tráfico e criticaram vivamente Loret junto das autoridades. Eis porque apelaram para mim. Aceites as minhas condições morais, financeiras e materiais, volto a tomar as coisas em mão, mesmo se o meu compatriota for acusado, decerto, sem razão.
— “As coisas”? ...quer dizer: todos os lugares!
— Todos os lugares, repartidos por cinco distritos administrativos, que serão geridos com o maior cuidado por cinco inspectores locais e um número crescente de guardas. As sociedades científicas, os institutos e os afortunados especiais obterão as licenças de escavação, se eu assim o entender, de acordo com um comité consultivo internacional.
— Consultivo...
— Apercebe-se bem das intenções: o poder executivo, o único que conta, sou eu. Era tempo de pôr em ordem esta confusão. Que idade tem, Carter?
— Vinte e seis anos.
— Há quanto tempo trabalha no Egipto?
— Há quase nove anos.
— Fala árabe?
— Vários dialectos.
Maspero, por fim satisfeito com a limpeza das suas lentes, tornou a pôr os óculos.
— Os rumores que lhe dizem respeito eram, pois, fundados. Pretende-se também que a região tebana não tem segredos para si.
— Desta vez, o rumor é excessivo; gostaria que fosse verdade.
— Ainda por cima, modesto... isso passa-lhe. Senhor Carter, nomeio-o inspector-geral do Alto Egipto e de Núbia, tendo por cargo ocupar-se dos monumentos. A sua cadeira administrativa será em Luxor. Naturalmente, exijo relatórios regulares.
Gaston Maspero fez menção de se ir embora, parou e voltou-se.
— Ah, esquecia-me... um homem da sua importância deve andar muito mais bem vestido; tem uma deplorável tendência para cair na moda indígena. Rectifique imediatamente a sua maneira de vestir, porque entra em funções desde já.
Lord Carnarvon, o mais feliz dos homens; aos trinta e quatro anos era um aristocrata rico, festejado e amimado, dentro em breve pai de um segundo filho. Hábil gestor, via aumentar as suas contas bancárias de uma maneira regular e não conhecia qualquer preocupação quotidiana. A quem o quisesse ouvir, pretendia que a vida era um desporto em que o mais hábil vencia se soubesse apreciar um quadro de mestre como o porte de um cavalo de corrida; extrair um bronze antigo do antro de um antiquário excitava-o tanto como uma caçada à raposa levada segundo a tradição.
Membro do Jockey Club, Carnarvon passava longos dias ocupado com uma das cavalariças mais janotas de Inglaterra; vencedor de numerosas corridas, começava a cansar-se daquele amontoado de êxitos. A sua consciência retomava os seus direitos: feliz, não o era senão no exterior de si próprio. Ainda conseguia afogar-se numa paixão mas, logo que ela fraquejava ou se esvaziava de um pouco de substância, aborrecia-se.
O automóvel, a velocidade, o ar vivo que lhe batia nas faces, as milhas que desfilavam sob as rodas, as curvas em que a arte do piloto se revelava... eram os seus novos entusiasmos. Foi em França que comprou os seus primeiros bólides, antes que a Inglaterra se interessasse por eles; por ocasião da sua primeira passeata, deveria ter-se feito anteceder de um peão portador de uma bandeira vermelha. Naquele ano que inaugurava o século XX, a mecânica progredia depressa e obrigava o proprietário de Highclere a mudar frequentemente de carro. Apaixonado pelo risco, mas nunca insensato, o conde tinha assegurado os serviços de um motorista profissional, Edward Trotman, com o qual partilhava a condução dos veículos; quando se sentia cansado, Carnarvon evitava pegar no volante.
Naquela manhã, na estrada alemã que conduzia a Schwalbach, onde se encontraria com a esposa, o aristocrata sentia-se em excelente forma. Sentado ao seu lado, o motorista sofria de uma coriza.
— O ar livre vai curá-lo. Edward. Não há micróbio que resista.
— Deus o oiça, senhor conde; os olhos choram-me, não me sentia em estado de conduzir. O senhor, contudo, deitou-se bastante tarde.
— Aquela recepção estava enfadonha; um professor vienense expôs as teorias de um certo Freud, autor de um livro recente sobre a interpretação dos sonhos. Não só inepto como perigoso; se um certo número de universitários idiotas ou crédulos propagam essas teorias, difundirão uma peste de que o mundo se livrará com dificuldade. Esse Freud é o pior dos pesadelos.
— Tome cuidado, senhor conde; esta estrada não é senão uma sucessão de viragens.
— Tem razão, Edward, eu desconfio das curvas. Provocaram todos os acidentes registados até este dia. Sabe o que me propôs um milionário turco? Comprar campos de algodão no Egipto! Parece que os proprietários terráqueos fazem fortuna, constituindo imensos domínios em detrimento de pequenos camponeses encurralados na miséria ou obrigados a abandonar os seus bocados para se amontoarem no Cairo. A nossa época perde a cabeça e nós vivemos numa panela de bruxas; a tampa acabará por nos saltar à cara.
Edward Trotman espirrou; a sua coriza atafulhava-lhe o espírito ao ponto de o distrair de qualquer visão planetária. Carnarvon concentrou-se na sua condução; o nevoeiro e as chuvadas tinham tornado o piso escorregadio. Não podia impedir-se de pensar na sua recente conversa com um novo emissário do Governo britânico; já não lhe propunham ser um agente de informações benévolo, mas muito belamente de se tornar um especialista oficial do Oriente, e de iniciar uma carreira política que o levaria muito longe; o Foreign Office precisava de personalidades como a dele. Uma nova paixão, talvez, quando o automóvel lhe parecer fastidioso.
Carnarvon passou uma lomba da estrada a grande velocidade; Edward Trotman saiu do seu assento e agarrou-se ao braço do conde para recuperar o equilíbrio.
— Perdoe-me, senhor conde.
— Eu é que lhe tenho de pedir desculpa, Edward. Vou afrouxar.
A sucessão de viragens obrigou o condutor à prudência; finalmente, uma longa recta, permitiu-lhe libertar a energia do motor.
— Este veículo arrasta-se; era preciso...
Carnarvon não acabou a sua frase. Dois carros de bois, saindo de um atalho, cortaram a estrada, indiferentes ao automóvel que carregava sobre eles. Já não dispondo da distância necessária para travar, o conde deu um golpe de volante, saiu da via, e subiu para o talude. Um pneu rebentou. Trotman teve a sorte de ser cuspido enquanto o carro, caindo em viés num fosso enlameado, se voltava sobre Carnarvon.
Edward Trotman ficou a dever a sua salvação a um espesso casaco que lhe amorteceu o choque; pouco preocupado com eventuais ferimentos, voou em socorro do patrão. Assustado, verificou que Carnarvon tinha a cabeça enterrada na lama; sozinho não tinha a força de deslocar o carro e de arrancar o conde a uma morte enlameada.
Trotman correu a gritar. Os camponeses, responsáveis pelo acidente, estavam imóveis no meio da estrada.
— Venham depressa! Preciso de vocês.
Dois, de entre eles, fugiram.
— Se fogem, serão acusados de crime!
Os alemães não compreendiam o discurso do inglês, mas o seu tom ameaçador convencia-os de o seguir.
O rosto de Carnarvon estava irreconhecível. Apoderando-se de um balde de água, que um camponês transportava, Trotman deitou-lhe um pouco sobre o nariz e os lábios, tirando-lhes a lama; depois, dirigindo a manobra, ordenou aos alemães que empurrassem o carro. Eles rabujaram; Trotman alterou-se, agarrou um pela gola e obrigou-o a ajudá-lo. Um segundo ajudou-os enquanto um terceiro, tomando consciência da gravidade da situação, partiu à procura de socorro.
O veículo era pesado; primeiro, não se mexeu. Sob o impulso de um inglês desenfreado, os camponeses serviram-se dos seus recursos. Por fim, a carcaça metálica mexeu-se.
— Empurrem, por Deus!
Carnarvon estava livre; mas tinha parado de respirar. Agarrando-o pelas axilas, Trotman tirou-o da sua mortalha.
— Fale comigo, senhor conde... fale comigo, suplico-lhe! — O motorista estendeu o patrão sobre o talude.
— Mais água...Wasser, bittá
Trotman deitou o conteúdo do balde sobre a cabeça de Carnarvon. O líquido gelado provocou uma reacção; as pálpebras levantaram-se, os lábios tremeram e retomou consciência.
— Está vivo, vivo!
O olhar parecia perdido. Com uma voz muito fraca, Carnarvon conseguiu fazer uma pergunta que espantou o motorista.
— Matei alguém?
Trotman não teve tempo para responder: o conde caiu em coma.
De três peças às riscas, lacinho de borboleta às pintas, lenço branco, chapéu de abas largas de fita preta, cigarreira, sapatos de lona branca: Howard Carter parecia um verdadeiro inspector das antiguidades, respondendo às exigências da melhor tradição britânica e de Gaston Maspero.
Assim vestido, impunha sem dificuldade a sua autoridade nos diferentes depósitos de que era responsável.
Esta promoção enchia-o de à-vontade; correu de Edfu a Komombo, de Abu Simbel a Luxor, de El-Kab a Hermonthis; como não ficar maravilhado em frente dessa miríade dos templos, de baixos-relevos e de estátuas que era preciso preservar, como não ter vontade de levantar toneladas de areia a fim de trazer para o dia novos monumentos? Mas os seus pensamentos levavam-no sempre para o Vale dos Reis, agora colocado sob o seu controlo. Infelizmente, não lhe podia consagrar o essencial do seu tempo; Maspero, que não se interessava nada por aquele lugar considerado como esgotado, não o teria aceitado.
Tirando argumento das descobertas de Loret, Carter conseguiu no entanto captar o interesse do patrão que aceitou uma visita de rotina pelos lugares.
— A tumba da rainha Hatshepsut: não é apaixonante?
— Interessante mas vazia. Uma sepultura sem objectos e sem tesouro... uma velha sedutora estragada e sem atractivos.
— Estou persuadido de que haverá maravilhas ainda escondidas, aqui mesmo.
— Sonhos, Carter! Este Vale já não é mais do que uma desolação.
— Gostaria de dirigir uma grande campanha de escavações.
— O Serviço das Antiguidades é pobre — objectou Maspero —, o meu orçamento está tapado. As quantias estão afectadas na manutenção dos monumentos conhecidos.
— Tenho a certeza...
— Isso basta. Se quiser pesquisar, comece por se tornar rico; contrate uma boa centena de operários e desembolse vários milhões de libras esterlinas. Será capaz?
Furioso, Carter mordeu os lábios.
— A minha única fortuna é o salário que o senhor me deposita.
— Pois bem, saiba ao menos poupá-la e esqueça este lugar sinistro. O Vale está morto, Carter; não se enterre nele.
De manhãzinha, Luxor tem um cheiro a café e a jasmim; a montanha cor-de-rosa da margem do Ocidente e o mundo dos deuses misturam-se aos humanos num silêncio luminoso. Quando o Sol se manifestou, encontrou Carter junto de uma pequena mesquita, rodeada de roseiras e de hibiscos; no interior, um velhote lia o Corão. Pássaros bebiam numa gamela colocada junto da entrada, guarnecida de mármores e de mosaicos.
Vestida à europeia, Raifa parou a um metro do amante.
— Porque me marcaste encontro aqui?
— Está muito impressionante, senhor inspector. Eu preferia-o numa roupa mais modesta, mas hei-de habituar-me.
— Não tenho escolha possível.
— Sacrificavas-me às tuas novas funções?
— Raifa...
Tomá-la nos braços e apertá-la contra si... em plena rua, era impossível.
— Será necessário torturar-me assim?
— Não o merecerás? O meu irmão vive em Quena, tu tornaste-te uma pessoa importante, somos livres, tu e eu, e afinal deixámos de nos ver, se o teu trabalho se transformar numa amante, Howard, afastá-lo-ei. Amo-te e quero casar contigo.
Aquela exigência não o surpreendeu; temia-a e esperava-a.
— És egípcia, eu sou inglês...
— Existe uma solução: converte-te ao Islão. Olha para aquela mesquita; tudo nela é paz e serenidade.
— É verdade, mas...
— Terás apenas cinco obrigações a cumprir; a profissão de fé no Deus único, as orações quotidianas, a caridade, o jejum e a peregrinação a Meca. Aceitas, Howard?
Brilhava-lhe nos olhos uma louca esperança.
— Preciso de reflectir.
— Compreendo, Howard; Deus é o maior, eu louvo a sua perfeição. Saberá iluminar-te.
Gaston Maspero deu um murro na secretária.
— É um verdadeiro escândalo, senhor Carter! Quero a verdade.
— Os meus relatórios não o satisfizeram, senhor director?
— São precisos, concisos e em constante progresso; a esse ritmo, breve será o melhor dos meus inspectores.
— Hei-de mostrar-me digno da sua confiança.
— Na condição de acabar com as suas extravagâncias.
— A minha existência é consagrada ao trabalho.
— Bem o desejava, Carter! É um homem novo, cheio de ardor... viver solitário seria um erro. Luxor está povoado de europeias encantadoras que poderá encontrar.
— O meu trabalho...
O rosto de Maspero tingiu-se de púrpura.
— Não o impede de frequentar uma certa Raifa.
— Tão vermelho como o seu interlocutor, não recuou em frente do assalto.
— Quem me traiu?
— Toda a gente o sabe, Carter! Junto da gentalha europeia de Luxor, está a ser a troça e a vergonha, ao mesmo tempo... tanto mais que o seu funesto projecto o conduz, só por si, à decadência.
— A que se refere?
— Não se faça burro! A sua “noiva” espalha por toda a parte, que está decidido a converter-se ao Islão.
Muito direito, com o olhar fixo, Carter fez-lhe frente.
— O casamento tem esse preço.
— Não haverá casamento. A sua conversão seria a pior das inépcias; os muçulmanos não o aceitarão e os europeus rejeitá-lo-ão. Essa mulher será obrigada a deixá-lo e terá perdido o seu emprego, que digo eu? A sua vocação! Escute-me, Howard: as religiões apodrecem o homem. Fui expulso da Escola Superior porque tinha tomado posição a favor de Sainte-Beuve, livre pensamento e livre exame. Depois, fui reintegrado e não cessei de lutar para livrar a ciência da coleira de crenças que a sufoca; não soçobre por causa de uma loucura da juventude!
— Raifa deseja oficializar a nossa união. Iniciou-me neste país, à sua língua, aos seus costumes; o meu êxito é-lhe, em grande parte, devido.
— Incorrigível romantismo! O êxito de um ser não é devido senão ao seu próprio talento e à sua capacidade de utilizar as circunstâncias o melhor possível. Começo a conhecê-lo bem, meu rapaz; se vencer, ninguém lhe ficará grato. Por causa do seu lamentável gosto pela rectidão, terão inveja e ciúme de si.
Aquele decidido fatalismo muçulmano não divertiu Maspero.
— A aventura terminou.
— Não creio, senhor director. Atraiçoar o amor de uma mulher seria uma indignidade a que não me posso acomodar.
Por detrás dos óculos, o seu olhar tornou-se glacial.
— A primeira qualidade de um sábio é dobrar-se à realidade. Ignora um facto maior: o irmão de Raifa acaba de voltar a Luxor. A irmã fez-me chegar uma carta em que ela me pede para intervir num sentido definido: que cesse de a importunar. Senão, o irmão fará queixa de si.
— Quero ler esse documento.
Maspero estendeu-lho.
— Esse texto foi escrito sob coacção... é evidente.
— Pouco importa, põe fim a essa ligação indecente. Agora, inspector Carter, regresse aos seus campos. Os monumentos precisam de si; durarão muito mais tempo do que essa egípcia.
— Quero a verdade exigiu Carnarvon.
O cirurgião hesitou.
— Está salvo, senhor conde; não será o essencial?
— Não. Não creio ter perdido o meu sangue-frio e recomendo-lhe que conserve o seu.
Carnarvon revivia o instante em que, na hospedaria mais próxima do local do acidente, tinha aberto de novo os olhos, em presença da esposa, do motorista e de vários médicos. Infelizmente o seu olhar estava turvo; alguns minutos mais tarde, cobria-o um véu negro.
— Estou definitivamente cego?
— Não creio, senhor conde.
— Os meus ferimentos?
— Pernas queimadas, fracturas nos maxilares, caixa torácica arrombada, comoções e contusões diversas.
— Grau de gravidade?
— Não é de desprezar.
— Quando poderei andar?
— Dentro de três ou quatro meses, mas... com uma bengala.
— Correr?
— Tem de lhe renunciar.
Carnarvon não tornaria a navegar e não se lançaria mais nos oceanos à conquista de uma impossível liberdade.
— Sinto uma dor atroz nos braços.
— Estão fracos; acabarão por reencontrar a sua completa função. Contudo...
— Continue.
— Serão necessárias várias operações; ser-lhe-á preciso ter coragem e paciência, senhor conde.
O parque de Highclere verdejava sob um pálido Sol de Primavera; Carnarvon tentava jogar golfe e prolongar cada dia a duração do seu percurso. Recuperadas as suas capacidades de visão, sentia-se mais apto a lutar contra a adversidade. Irritado pela sua falta de energia, regressou ao castelo.
Almina esperava-o à entrada.
— Não renuncie, meu querido; é preciso viver. Para mim, para o seu filho e para a sua filha que acaba de nascer.
— Estou cansado.
— A reeducação será longa. O seu médico...
— Um mentiroso, como todos os médicos. A minha reeducação nunca mais acabará; sofrerei até ao fim dos meus dias.
Almina olhou o marido com ternura e beijou-lhe as mãos.
— Tem certamente razão; para mim, isso não muda nada.
— Gostar de um inválido... será isso possível?
— Mas não é um inválido.
— Nem mesmo a sua ternura pode modificar a realidade; ando com dificuldade, esforços ridículos cansam-me, a minha existência passada foi uma sequência de coisas absurdas e já não tenho futuro. Triste balanço, não lhe parece?
— Balanço inexacto, senhor conde. A experiência acumulada é insubstituível, a sua família venera-o e as suas primeiras fotografias provam um real talento.
Carnarvon alegrou-se.
— Estão boas, realmente?
— Verifique o senhor.
Tão depressa quanto pôde, Carnarvon dirigiu-se ao quarto escuro, instalado numa ala do castelo. A fotografia, a sua nova paixão, exigia uma minúcia de que se julgava incapaz; depois das primeiras tentativas medíocres, hesitava em continuar. A sua última série pareceu-lhe correcta; nitidez, enquadramento, composição imortalizavam o parque de Highclere.
— Fotografaremos pois — murmurou.
Numerosas cartas afluíam do mundo inteiro; organismos oficiais e círculos de amadores felicitavam-no pelas suas fotografias e propagandeavam o seu nome em toda a Inglaterra; amanhã Carnarvon seria um fotógrafo de talento reconhecido.
— A sua entrevista, senhor conde.
Carnarvon hesitou; não deveria ter aceitado aquela visita. Sentado na cadeira de Napoleão I, recebeu o seu visitante na biblioteca. O homem do fato preto cumprimentou o castelão.
— Londres ainda se lembrará de um aristocrata acidentado.
— Está a recompor-se muito bem, senhor conde, as suas infelicidades pertencem ao passado. A maioria dos membros do Governo espera a sua entrada na política.
Carnarvon levantou-se e disse uma cinquentena de versos de Macbeth; o seu interlocutor ficou impassível.
— Eu aprecio Shakespeare, mas...
— Ouviu-me bem?
— Espero que sim.
— Nesse caso, reparou.
— Não compreendo.
Carnarvon voltou as costas ao emissário do Governo.
— A sua discrição honra-o mas é inútil; as sequelas do meu ferimento no maxilar acarretam-me um defeito de locução que só os meus parentes podem suportar. Imagina-me declamando, fazendo um discurso e desencadeando risos? Os humoristas não tardariam em me escarnecer, e a minha carreira morreria como o pinto na casca.
— Engana-se, senhor conde; esse defeito só existe na sua imaginação.
— Não se lisonjeia um homem diminuído.
— O senhor não o é. A sua coragem forçou a admiração de todos; um homem da sua têmpera tornar-se-ia um dirigente de primeiro plano.
— Eu aceito a adversidade, o ridículo não.
— Deixe-me expor o plano que os meus amigos e eu próprio preparámos para a sua eleição.
— É inútil: não desejo nenhum mandato.
— É insensato! Não se vai, contudo, enterrar aqui e...
— O meu destino não pertence ao Governo de Sua Majestade; a nossa conversa terminou.
Ter sido inútil e tornar-se mais inútil ainda... Carnarvon tornou a examinar aquele pensamento que nem o amor da esposa nem o dos filhos, nem a devoção dos criados afugentavam. Sofrendo de intoleráveis dores de cabeça, não encontrava repouso senão no centro do seu domínio, sob os cedros-do-Líbano; concentrar-se era tão penoso que devia interromper frequentemente as suas leituras ou a sua actividade de fotógrafo. Durante as refeições, mantinha enormes silêncios, ausente dele mesmo como da conversa.
Aos trinta e quatro anos, o brilhante conde de Carnarvon era um homem acabado, quanto mais o ajudavam mais ele se desprezava. Depender da ternura dos seus, ou de uma simples bengala, levava-o para o inferno; se o suicídio não fosse uma tremenda falta de gosto, ter-se-lhe-ia resignado.
Os seus cães foram os melhores terapeutas. Fiéis no instante como na duração, atentos aos seus menores gestos, não lhe reclamaram senão a sua presença e longos passeios a seu lado; aprendeu a suportar os seus sofrimentos e a não continuar a chorar a saúde perdida. A vida foi menos cinzenta, o desespero menos denso. Que o horizonte se tivesse estreitado como negá-lo? Mas o aventureiro sentia que uma outra porta se abriria no céu, que um outro caminho se ofereceria. Cabia-lhe a ele preparar-se.
O escritório de Carter, em Gurnah, não era grande nem luxuoso, mas representava um extraordinário êxito e a possibilidade de estabelecer um plano de buscas para vários anos, plano em que estava incluído o seu querido Vale.
Instalado ao fundo de um local rectangular, onde imperavam dois ventiladores, recebia pouco, preferindo a companhia dos trabalhos de erudição à dos insuportáveis perguntadores. Os seus três subordinados, nativos da aldeia vizinha, tinham a missão de afastar os importunos; desta forma, as banquetas encostadas às duas compridas paredes ficavam, com frequência, vazias.
Com um mapa e um lápis, como era fácil pesquisar o Vale! Carter tinha vontade de o furar em lugares diferentes e previa várias centenas de operários a trabalhar, cujos cantos alegres seriam o prelúdio da descoberta. Mas faltavam-lhe aqueles milhares de libras esterlinas sem os quais não se poderia abrir nenhum estaleiro.
— Dois dos seus compatriotas desejariam vê-lo, senhor inspector.
— Como se chamam?
— Recusam-se a dizê-lo, e pretendem possuir informações que lhe interessarão ao mais alto nível.
A curiosidade levou-o a conceder a entrevista. Os dois ingleses eram homens maduros, de rosto burilado e traços grosseiros: teria jurado que se tratava de dois irmãos.
— Moramos em Luxor — declarou o primeiro — e o Vale intriga-nos. É por isso que solicitamos a autorização de escavar.
— Falaram em informações...
— Primeiro a nossa autorização.
— São arqueólogos?
O segundo avançou.
— Trabalhámos com Loret; isso deveria bastar-lhe.
— Não organizam um tráfico de antiguidades?
— Não é ilegal.
— Actualmente, é. Na qualidade de inspector desta região, reprovo essas práticas e condenaria os seus autores.
Os dois homens consultaram-se com o olhar e recuaram.
— Não partam tão depressa, senhores, as informações?
— Enganámo-nos, nós...
— Ou falam, ou são considerados culpados.
A ameaça fê-los parar.
— Vou ajudá-los, senhores. Se desejam uma licença de escavação, é porque já conhecem o sítio onde darão o primeiro golpe de picareta. Suponho que Loret tinha marcado a entrada de uma tumba; quando soube da sua destituição, preferiu tapá-la.
Nem um nem outro protestaram; Carter tinha posto o dedo na ferida.
— Aqui está um mapa do Vale. Indiquem-me o lugar e desapareçam.
Tinham-se reunido numerosos operários à entrada do Vale, movidos por algum pressentimento; em virtude de um instinto secular, mobilizavam-se à aproximação de um acontecimento.
— Procurem o chefe dos guardas — exigiu Carter. Fendendo as linhas, o reis avançou.
— Ahmed Girigar! Subiu de posto.
— À sua semelhança, senhor Carter; estou feliz por poder trabalhar consigo.
— Eu também.
— Quando começamos?
— Imediatamente; preciso de homens experientes.
Ahmed Girigar seleccionou os melhores; distribuiu as suas ordens com calma e foi imediatamente obedecido.
Dirigiram-se para a falésia; Carter seguiu à cabeça apressado em chegar àquela tumba inédita.
O trabalho foi rápido e fácil; Poucos blocos grandes, cascalho, areia... e a cavidade! Abria-se sobre uma escada bastante larga, em excelente estado. Nenhuma inscrição a dar o nome do proprietário. Logo que Carter meteu pelo corredor direito e alto, seguido de Ahmed Girigar, soube que a sepultura tinha sido violada. O quarto funerário, de forma oval era uma obra notável, embora o sarcófago, desprovido de textos, não estivesse terminado.
Ajoelhou-se e apanhou uma roseta.
— Olha, Ahmed. Provém de um pedantife de ouro incrustado de pedras preciosas: as deusas que pintei em Dar el-Bahari usavam umas semelhantes.
Aquela tumba, como tantas outras, devia conter riquezas fabulosas; só subsistiam algumas magras relíquias, em nome de um conservador de Tebas, Sennefer, e de sua esposa; Carter atribuiu o número 42 à última morada deles.
Os dois eruditos saboreavam pombo grelhado num restaurante típico de Luxor; o primeiro era francês, o segundo inglês.
A egiptologia ao vivo, tanto para um como para o outro, só representava uma etapa; a carreira deles levá-los-ia para postos de professor em Paris e em Londres, longe de um país de que não gostavam.
— Leu o último tomo dos Anais do Serviço das Antiguidades? — perguntou o francês.
— Este Carter, apesar de ser meu compatriota, começa a exasperar-me.
— Não é único! Indispõe a comunidade científica. Que ideia deslocada... Divulgar essa tumba 42, onde não existe o mínimo tesouro!
— Se o deixam, redigirá relatórios sobre as sepulturas violadas e sobre os menores buracos do Vale: ridiculariza os seus antecessores e põe os seus colegas em má posição. Planos, sumários, desenhos! Como se nós não tivéssemos outras preocupações... Esse Carter queria esmagar-nos debaixo de um trabalho inútil. É ambicioso, vingativo e excessivo, sem dúvida porque vem de um meio pobre.
— Impedi-lo-emos de ser prejudicial, meu caro colega.
— Estou feliz com este entendimento cordial, ou Carter dobra ou quebra.
Carter teve consciência de que perturbava os hábitos de um grupo de preguiçosos e de incapazes, para os quais o Egipto e a egiptologia não eram mais do que passatempos um pouco snobs; quem procurava a verdade do passado devia conceder-lhe tantos cuidados como na observação do presente e na preparação do futuro.
Um mês depois da descoberta da tumba 42, Ahmed Girigar solicita uma entrevista ao abrigo de ouvidos indiscretos. Depois de ter fechado o seu escritório, Carter juntou-se a ele num vale desértico onde, por ocasião das chuvas de trovoada, se formava uma torrente.
— Quatro operários que trabalhavam para Loret confessaram uma tentativa de roubo.
— Em que tumba?
— Uma sepultura desconhecida que o francês tornou a tapar como sendo a 42. Os quatro homens tentavam introduzir-se nela quando um affrit os incomodou; é um espírito muito agressivo que lhes torceria o pescoço e os impediria de respirar.
— Indicaram a localização?
— Eu levo-o lá.
O reis conduziu Carter até à pequena ravina que guardava a tumba de Ramsés XI; mostrou-lhe uma concavidade na areia onde estavam acumulados estilhaços de pedra.
— Convoca operários e escavemos.
A quinze pés abaixo dos destroços, um poço foi descoberto; ao fundo, havia uma porta intacta! Ahmed Girigar notou o entusiasmo de Howard Carter.
— Não se regozije tão depressa; Loret já lá entrou.
Inquieto, Carter enfiou-se no interior; no tecto, ninhos de vespas em barro, característicos dos túmulos tebanos, violados há muito tempo.
Dois caixões de madeira, cobertos de resina branca, e um terceiro, branco, contendo uma múmia, pertenciam a cantores do templo de Karnak; entre as ligaduras, folhas de mimosa, de lotus e de “persea”... De Tutankhamon, nem rasto.
— Senhor inspector, venha depressa! É grave, muito grave!
O graffir estava transtornado; uma coluna acabava de se abater sobre a tumba de Séti I, a mais bela e a maior do Vale.
Carter dirigiu-se ao local a fim de verificar os estragos e de tomar medidas de urgência. Mais uma vez, ficou deslumbrado por essa capela “sistina” do egipto antigo; esplendor dos quadros que pareciam terminados no dia anterior; perfeição dos hieróglifos que narravam a perigosa viagem do Sol no mundo subterrâneo, e presença das divindades que, ajudando o faraó a renascer, provocavam uma emoção intensa. Vinha frequentemente recolher-se perante a representação de Nut, a deusa do céu, mulher enorme de corpo coberto de estrelas; a noite, engolia o astro do dia que ela punha no mundo todas as manhãs.
Carter não teve ocasião de se consagrar ao estudo daqueles frescos inigualáveis; foi-lhe necessário escorar a parte abatida com troncos de madeira, fechar a tumba ao público e dirigir-se a toda a pressa para casa de Maspero.
O director do serviço, cansado da cidade, tinha instalado o seu quartel-general num barco, uma dahabiya, que dava pelo nome de Míriam. Podia deslocar-se facilmente de um lugar para o outro, servindo-se do Nilo, à maneira dos antigos. Maspero, cujo pequenino escritório estava atravancado de uma pilha de cadernos, parecia de mau humor.
— Que se passa no Vale, Carter? Parece que a tumba de Séti está meio destruída!
— O rumor exagerou um pouco o incidente, mas o caso não é de desprezar: uma coluna ruiu. Os trabalhos de restauro estão já em curso.
— E os turistas?
— Visita proibida.
Maspero, recostado, baloiçou no seu cadeirão.
— Ah, os turistas! Que súcia!... Duas mil pessoas por ano no Vale, uma verdadeira colónia instalada em Luxor, de Dezembro a Abril, uns tagarelas, uns agitados e uns doentes que vêm apanhar sol e degradar os monumentos!
O director do serviço adoptou uma posição mais augusta e fixou o seu inspector com serenidade.
— É realmente a sua opinião, Carter? Os seus propósitos?
— Na palavra como no espírito. Essas pessoas não pensam senão em exibir-se nos hotéis de luxo, em namoriscar, em trocar cartões de visita; andam de recepção em recepção, jogam ténis e bridge, inventam sem cessar uma nova distracção. Incluem, infelizmente, no seu programa, um piquenique obrigatório no Vale dos Reis e uma visita às tumbas. Não lhe concedem o menor interesse e ainda menos respeito; os seus guias escurecem as paredes com o fumo de archotes, e cada um diverte-se a tocar nos relevos. Impõem-se medidas drásticas, senhor director, se quer salvar esses tesouros inestimáveis.
— Em que pensa?
— Agir, agir!
— É fácil de dizer! Conta proibir aos turistas o acesso ao Vale?
— Porque não o tempo de o escavar?
— Está escavado, Carter.
— A descoberta da tumba 42 e a dos três cantores de Amon, que usará o número 44 na minha lista, não provará o contrário?
O argumento fez vacilar Maspero; depressa retomou a compostura.
— Caves violadas, reutilizadas, desprovidas de mobiliário e de belos objectos... descobertas bem modestas que só interessam a um apaixonado como o senhor! Meta na cabeça que centenas de ladrões passaram por ali e apenas deixaram migalhas. Que propõe para as tumbas mais visitadas do Vale?
— Construir pequenos muros a fim de preservar as estradas das quedas de pedras e das águas torrenciais, abrir caminhos a fim de canalizar a vaga de visitantes e instalar balaustradas nas tumbas para as impedir de se colarem às paredes.
Maspero abriu um caderno.
— Hum... é executável... O meu orçamento permite-o.
— Não é tudo; resta o essencial.
— O essencial esperará: já não tenho dinheiro.
— É portanto preciso lutar contra o negro de fumo.
— Como?
— Utilizando a electricidade nas tumbas principais.
— A electricidade! Quem lha fornecerá?
— Um gerador, no Vale.
Maspero, irritado, partiu o lápis.
— É um revolucionário, Carter. Deixe-me trabalhar em paz.
— Obterei autorização?
— Não insista.
Mal a notícia se espalhou, os turistas afluíram: graças à luz eléctrica, podia-se enfim admirar a totalidade dos baixos-relevos. Carter não tinha repelido a massa de curiosos, mas a supressão dos archotes e a colocação de guardas asseguravam a salvaguarda dos monumentos; durante algumas horas foi constrangido a transformar-se em guarda das galés e de acalmar alguns excitados que berravam a sua satisfação de ver o progresso insinuar-se no Vale.
Com a noite, voltava a calma; sentado num dos cabeços que dominavam as tumbas reais, Carter saboreava a solidão e os momentos de graça em que tinha a sensação de comungar com a alma dos reis vencedores da morte.
Os guardas não se aventuravam nas trevas do Vale, povoado de demónios que tornavam louco, cego e mudo; ignoravam as formas hieroglíficas capazes de os reduzir a nada. Por vezes, um mocho ou um morcego roçavam-no; uma raposa galgava uma encosta, em busca de uma presa.
A esperança crescia. Em virtude da ausência de grafitos, Carter sabia que nenhum viajante grego ou romano havia visitado as tumbas 42 e 44, fechadas desde a Antiguidade; por consequência, sepulturas importantes ainda se escondiam sob a areia. Tinham-se contentado com escavações activas, satisfeito com resultados espectaculares, depois tinha-se estimado, de forma arbitrária, que o Vale emudecesse para sempre.
Olhando-a com atenção, apercebeu-se que quase nada era natural naquela paisagem grandiosa. Aqui, trinta pés de estilhaços de calcário; ali, as rochas transformadas e caminhos arranjados pelos pedreiros; acolá, enormes montes de entulho de pesquisadores modernos... e essas enormes falésias, essa pirâmide dominadora não teriam sido talhadas por mão de homem?
Quantas toneladas teria sido preciso deslocar para trazer à luz a fachada de uma tumba real inviolada, que talvez não existisse senão na sua imaginação? Essa dúvida dilacerou-o. Ainda não era digno do Vale.
Golfe, fotografia, passeios com a mulher e os filhos, longas sestas e tardes de leitura na biblioteca de Highclere. A vida de palácio que Lord Carnarvon levava pesava-lhe cada vez mais. Ao contrário das afirmações dos médicos, as sequelas do seu acidente não se apagavam. Sofria do maxilar e das costas, arrastava a perna e passava noites em claro.
Almina continuava doce e paciente apesar do humor do marido se degradar; já não tinha espírito, não brincava com o filho e a filha, conservava-se em silêncio durante horas. A jovem aproveitou um raio de Sol que iluminava o parque para abrir o coração.
— É como se estivesse na prisão, querido.
— Começo a odiar-me, Almina.
— Por causa dos ferimentos?
— Um homem diminuído não merece viver.
— Está a dizer coisas absurdas.
— Sou inválido.
— É teimoso.
— Ousaria afirmar que ainda sou capaz de comandar um iate, de conduzir um carro de corrida ou de deitar abaixo um lutador de feira?
— Esse género de proezas é desprovido de interesse, numerosas pessoas mais ou menos medíocres são capazes de as desempenhar. Ser o quinto conde de Carnarvon, em contrapartida, é uma missão fascinante; não é a sua opinião?
Carnarvon fixou o Sol, ao ponto de ficar encandeado.
— Recuperou o pleno uso dos seus olhos; essa cura deveria encorajá-lo a lutar. Os Carnarvon sempre desafiaram a adversidade com uma coragem notável e notada; fará excepção à regra?
George Herbert baixou a cabeça. Comovida, a esposa aproximou-se dele.
— Perdoe-me. Magoei-o.
— Tem razão: porto-me como um cobarde.
— Não seja injusto consigo mesmo e fique sabendo que o admiro.
Lord Carnarvon voltou-se para a esposa.
— Sem si teria renunciado.
— Se a minha presença pode abreviar a sua cura, não hesite em abusar dela.
— Preciso de solidão, Almina; é nela que encontro forças.
— Respeitarei a sua inclinação, na condição que cumpra uma promessa: melhorar a sua pontuação no golfe.
Carnarvon, apesar das suas dores por vezes fortes, obrigou-se a manejar os clubs e a percorrer longas distâncias de um buraco ao outro. O rigor dessa ascesse teve por consequência afastar os pensamentos tristes; conquistar uma mobilidade, mesmo relativa, tornava-se uma finalidade exaltante; a satisfação do jogo e uma série de partidas apimentaram o esforço.
Ver vir ter com ele o emissário do Governo foi, contudo, uma surpresa.
— Parabéns, Lord Carnarvon; está a tornar-se um excelente golfista.
— Tenho demasiado nervosismo nas aproximações e falta de precisão no drive; mas não desespero.
— Um dia tão agradável convida aos projectos do futuro.
— O meu está atrás de mim.
— Permita-me estar em desacordo consigo; mesmo se renunciar a uma carreira política declarada, existem outros meios de servir o seu país. Não poderemos evocar as suas recordações do Oriente?
— Preferia, sem dúvida, as minhas análises políticas.
— Antes de tomar decisões, o Foreign Office consulta os melhores peritos; o secretário de Estado gostaria de almoçar consigo.
Antes do desastre, Carnarvon teria respondido com uma observação irónica; agora, aquele convite divertia-o.
Quando o marido aceitou dirigir uma caçada à raposa, e a autorizou a organizar um grande jantar em Highclere, Almina soube que o quinto conde de Carnarvon tinha reencontrado a sua condição e a sua vontade de viver. Se bem que se obstinasse a recusar o uso do smoking e que aparecesse com o seu casaco preferido, de sarja azul, teve ditos de espírito e observações acerbadas usando do seu habitual talento.
— Se não fosse um dos nobres mais ricos do reino — perguntou uma baronesa — quem teria gostado de ser?
Carnarvon não reflectiu muito tempo.
— Alguém como Schliemann.
— Pintor ou jockey?
— Nem um nem outro. Arqueólogo.
— Que feia profissão! Poeira, calor, suor... Que descobriu ele, o vosso Schliemann?
— Tróia.
— A cidade de Homero, é isso?
— Se quiserem.
— Seria capaz de descobrir uma cidade inteira, cheia de ouro e escondida na areia?
— Correndo o risco de a desapontar, baronesa, receio que não. A sua pergunta não passa de uma brincadeira e a minha resposta de um sonho.
O marido de Lady Almina estava atrasado para o jantar. Depois de uma espera conveniente, começou a inquietar-se. Como o criado de quarto de Lord Carnarvon beneficiava da sua noite de folga, teve de ir ela mesma à biblioteca.
— Esqueceu-se da hora?
— Receio que sim.
— Qual é a causa dessa perturbação?
— O grande livro de um francês sobre o antigo Egipto.
— Como se chama esse importuno?
— Gaston Maspero.
— Conta convidá-lo para Highclere?
— Vive no Egipto.
— Que horror! Deve ser insuportável... o Inverno lá, segundo parece, é agradável; mas as outras estações são caniculares. Como será preciso ser constituído para suportar esses climas inumanos?
— Ignoro-o, Almina. Não conheço o Egipto.
— Deu, várias vezes, a volta ao mundo.
Carnarvon fechou o volume e levantou-se.
— Um génio mau afastou-me desse país mágico.
— “Génio mau”, “magia”... estará a tornar-se supersticioso!
O conde ofereceu o braço à esposa: andaram a passos lentos pelo corredor fora, na direcção da casa de jantar.
— O nosso mundo é mais misterioso do que parece; atravessam-no forças ocultas, mesmo se os nossos olhos não se apercebem delas. Os Egípcios estudavam-nas à maneira dos nossos cientistas.
— Este trabalho é uma calamidade! Não só provoca o seu atraso mas também lhe dá pensamentos curiosos. Esqueça esse Maspero, o Egipto e os seus demónios, e venha saborear o salmão preparado pelo seu cozinheiro.
O conde desempenhou as suas obrigações com o espírito ausente.
— Carter —, anunciou Maspero com determinação — temos de proceder a uma operação de prestígio que dará ao seu Serviço das Antiguidades uma famosa reputação. O novo Museu do Cairo reagrupará as colecções existentes no Egipto; graças ao estabelecimento de um catálogo geral, procederemos ao inventário de todos os objectos, da mais pequena estatueta ao colosso.
— Programa magistral.
— Graças ao seu encorajamento. O catálogo é essencial.
Carter não compartilhava dessa opinião; num país como o Egipto, o mais importante era pesquisar e descobrir, mas Gaston Maspero não desistia do seu credo.
— Na qualidade de inspector da região tebana, confio-lhe duas missões prioritárias: a primeira consistirá em conduzir até ao Museu do Cairo as múmias reais, escondidas na tumba de Amenófis II.
— Farão, pois, parte da colecção. — A observação irritou o director.
— Ficou descontente com a minha decisão!
— A segunda missão?
— Um rei autêntico, no mercado das antiguidades, possui um valor incalculável; dado que Amenófis repousava no seu sarcófago de origem, tratem de o tornar a pôr lá. Os turistas poderão admirar um verdadeiro faraó no seu verdadeiro túmulo.
Apanhado de surpresa, Carter balbuciou:
— Oferece-me... oferece-me uma imensa alegria!
Teimoso, Maspero tornou a mergulhar num caderno.
— Despache-se. Mesmo as múmias detestam esperar.
A inumação de Amenófis II, o rei do braço vigoroso e da valentia incomparável, foi um momento de felicidade que iluminou a jovem carreira de arqueólogo de Howard Carter. Lá fora, o céu estava de um azul suave, atravessado por uma luz doce que incitava ao recolhimento. Ajudado por Ahmed Girigar e alguns guardas, deslocou-se sem barulho pelo caminho tomado por esse mesmo faraó três mil e quinhentos anos antes.
Era um dos seus antepassados que eles transportavam, com precaução e respeito, um ser ao mesmo tempo próximo e distante, homem e deus. Os seus passos levantavam uma fina poeira que o vento do norte levava. Nem uma palavra foi pronunciada até à entrada do túmulo; talvez os guardas recitassem as orações muçulmanas com o seu coração. Carter pensou no ritual da abertura da boca que fazia reviver a morte, tornando-lhe a dar o uso do verbo.
Quando depuseram o caixão no seu sarcófago, conteve as lágrimas com dificuldade; celebrando essas exéquias fora do tempo, teve a sensação de efectuar um acto justo.
Muito tempo depois do fim da cerimónia, sonhou, só na penumbra, com os faustos de um tempo em que a morte era luminosa.
A pouca distância do templo de Luxor, um velho palácio particular abrigava um dos últimos haréns do Egipto. Dantes povoado de mulheres lascivas, objecto de todas as atenções do potentado local, aquele estabelecimento definhava a olhos vistos; a pintura dos mucharabiehs escamava-se e os estuques tornavam-se leprosos.
Howard empurrou a porta de fechaduras enferrujadas, persuadido que esbarraria com um eunuco armado de uma moca; só lá havia uma dezena de pobres diabos que fumavam haxixe. Um horrível cheiro a cebola frita provava que aqueles hóspedes, pouco decentes, também lá cozinhavam.
Porque lhe teria Raifa marcado encontro num lugar tão sórdido? Leu de novo o bilhete que um rapazote lhe tinha trazido: não havia dúvida possível. Tentou interrogar os locatários; embrutecidos pela droga, não lhe responderam. Irritado, arripiava caminho no momento em que a porta se abriu sobre Raifa.
Os seus olhos verde-água, a doçura do seu rosto e a elegância do seu porte aprisionaram-no na rede dos seus encantos, que ela sabia tão bem desenvolver: o harém decadente transformou-se num palácio de maravilhas onde brilhavam dourados.
— Vem — disse ela, tomando-lhe a mão. Subiram a correr ao primeiro andar.
Arrastou-o para um quarto forrado de veludo vermelho, onde imperava um leito com baldaquim que um raio de Sol iluminava, através do mucharabieh.
— Ninguém nos importunará; Gamai não conhece este lugar.
— Amo-te, Raifa.
— Prova-o, Howard.
O seu desafio exigia uma pronta réplica; Raifa não resistiu muito tempo.
Por ordem de Maspero, Carter tinha sido constrangido a inspeccionar o Sul da província de Tebas e de lá marcar os vestígios arqueológicos; aquele trabalho meticuloso afastou-o do Vale e de Raifa.
Um mês depois do começo desta missão, foi surpreendido por um telegrama: o director do serviço pedia-lhe para voltar para Luxor primeiro do que nada.
Maspero recebeu-o no seu barco, omitindo os cumprimentos usuais.
— O caso é grave: a tumba de Amenófis foi violada, a sua porta quebrada, a múmia martirizada.
A indignação emudeceu Carter.
— Os primeiros ladrões do século XX... é inaudito! Quem teria sido bastante abjecto para profanar este venerável despojo?
— Bem entendido que chamei a Polícia. O inquérito foi tão rápido como decepcionante: o guarda não viu nada; nenhuma testemunha, nenhum rumor, nenhuma pista. Ocupe-se da múmia, Howard, e repare os estragos.
— O culpado...
— Esqueça o culpado, não o identificaremos. Já somos bastante ridículos.
Este drama permitia a Carter voltar ao Vale, mesmo se as circunstâncias fossem consternadoras; antes de ultrapassar a entrada, tinha tomado a decisão de recomeçar o inquérito.
A Primavera fazia fugir os turistas que temiam o calor, depressa sufocante, no centro do circo montanhoso; os raros visitantes empurravam-se em frente da entrada do sepulcro vítima dos gatunos, como se esperassem um novo drama. Com a ajuda de Ahmed Girigar, Carter afastou-os a fim de examinar à vontade os lugares do crime.
A porta de ferro, colocada pelo serviço, tinha sido forçada por um instrumento fácil de identificar: uma pequena alavanca para forçar fechaduras.
— Quem a possui em Gurnah?
— O ferrador — respondeu o reis.
Interrogaram o artesão que afirmou ter sido roubada, mas mentiu pretendendo ignorar a identidade do culpado. Carter voltou à tumba e, sob o olhar espantado de Ahmed Girigar, tomou moldes de gesso de pegadas bastante suspeitas.
— Conheces alguém que as possa identificar?
— Um guarda de camelos. Percorre as pistas do deserto desde a sua juventude e repousa em Gurnah entre duas viagens; o estudo das pegadas é a sua distracção preferida, quer se trate de um animal ou de um ser humano.
O perito não o desiludiu. O seu diagnóstico foi formal: se ele queria verificá-lo, bastava-lhe passear em frente da casa dos Abd el-Rassul. Carter não hesitou. As suas investigações semearam a perturbação entre os membros do clã; foi convidado a mostrar as moldagens ao seu chefe.
— O que significa esta manobra, senhor Carter?
— Demonstrar quem estava à cabeça do grupo de gatunos que profanou a tumba de Amenófis II. É por isso que todas as testemunhas se calam, inclusivamente o guarda, seu cúmplice.
O rosto de Abd el-Rassul endureceu.
— Não insista. Não chegará a nada.
Nessa mesma noite, depois da oração, Carter voltou com um grupo de polícias que procederam a uma escavação a preceito, cujo resultado ultrapassou as suas esperanças: colares, figurinhas funerárias, ligaduras de múmias, fragmentos de relevos recortados à serra, provenientes de várias tumbas que provavam a culpabilidade do clã.
Abd el-Rassul não negou.
O processo teve lugar alguns dias mais tarde; o tribunal de Luxor estava cheio. Carter compareceu como testemunha. O presidente interrogou-o longamente; ele descreveu as etapas do inquérito que tinha conduzido à culpa.
— Onde estão as provas, senhor Carter?
— Nas mãos da Polícia, Excelência.
— Engana-se.
— Eu fui testemunha, Excelência. Uma quantidade de peças arqueológicas foram apanhadas na cave de Abd el-Rassul.
— É inexacto. O processo verbal não o menciona.
— Excelência...
— Em virtude da ausência de provas, o tribunal declara Abd el-Rassul inocente.
Maspero e Carter tornaram a colocar o corpo de Amenófis II no seu sarcófago; de futuro, os visitantes que estivessem por baixo da cave, contemplariam o faraó na sua postura hierática, pronto a viajar no outro mundo.
— Não fique desiludido, Carter; nunca conseguirão pôr o clã na cadeia, e ninguém o conseguirá.
— Não suporto a injustiça.
— Que quer dizer?
— Quando não se pode abater um inimigo, mais vale aliar-se a ele.
Highclere tornava-se um dos centros da vida cultural britânica. Despeitado por não se curar mais depressa, e incapaz de empreender viagens longas através do mundo, Lord Carnarvon convidava para a sua mesa artistas, escritores e historiadores, naquele ano de 1902 em que Pélleas, de Claude Debussy, revolucionava a música. A esposa insistiu em oferecer igualmente hospitalidade a homens políticos, a financeiros e a nobres, satisfeitos de defrontar o espírito incisivo do senhor do lugar.
Um coronel reformado, grande amador de caça e especialista do espírito militar, lançou-se na apologia das conquistas britânicas.
— Somos os garantes da paz mundial. Quando não nos batemos para preservá-la, construímos. Assim, no Egipto...
— Teremos erigido uma nova pirâmide? — inquiriu Carnarvon.
— Muito melhor. Uma barragem.
— No Assuão, não é verdade?
— Graças a essa obra de arte, a felicidade da população está assegurada.
— Não tenho tanto a certeza.
Indignado, o coronel poisou o garfo.
— Como pode duvidar?
— Fazendo passar o Egipto do ciclo natural da inundação à irrigação perene, modificamos brutalmente hábitos milenários e substituímo-los por técnicas que são mal compreendidas e mal utilizadas.
— O progresso, Lord Carnarvon, o progresso.
— Acha que a espécie humana está realmente em progresso? Pensa que os bairros pobres de Londres sejam uma melhoria em relação aos templos da Antiguidade, que os nossos pensadores sejam superiores a Platão, Lao-Tsen, Buda ou ao arquitecto da grande pirâmide?
O coronel reajustou o colarinho polido da sua camisa.
— São opiniões... revolucionárias.
Lady Almina desviou a conversa, evocando a última representação do Sonho de Uma Noite de Verão, onde a Royal Shakespeare Company se mostrara, mais uma vez, fiel à sua reputação.
Uma vez saídos os convidados, só junto do marido em frente do lume brilhante na chaminé do grande salão, achou bom intervir.
— Não foi demasiado longe?
— O mundo é absurdo minha cara, e a Inglaterra delira.
— Não está no coração de um formidável império que garante o equilíbrio dos povos?
— Não por muito tempo.
— O que é que subentende?
— O futuro interessa-me tanto como o passado. Durante essa interminável convalescença, tive tempo de ler os jornais e os estudos dos especialistas. O império está a fender-se, Almina; amanhã decompor-se-á. As suas colónias reclamarão a independência.
— O nosso Exército reduzirá ao silêncio os causadores de perturbações.
— Tentará, infelizmente.
— Infelizmente?
— Opor-se a um rio cujo caudal aumenta de hora para hora é uma estupidez; é melhor canalizá-lo. Mas os homens políticos não pensam senão no seu interesse do momento; como habitualmente, tomarão consciência da realidade quando for demasiado tarde.
Carnarvon colocou uma acha na lareira onde as chamas compunham uma dança com figuras constantemente renovadas.
— Os seus pensamentos são horríveis, querido; deprimem-no.
— Pelo contrário.
— Não... não vai encabeçar um partido de oposição.
O conde apertou ternamente a esposa contra si.
— A Inglaterra é uma pequena ilha que se toma por um continente; sabe bem que detesto a pequenez e que não me agitarei nela.
— Não me tranquiliza nada; teria concebido um projecto...
— Insensato? Ainda não. O meu estado físico proíbe-me de encarar uma nova volta ao mundo como solitário, mas não posso ficar imóvel, semelhante a uma água estagnada.
— Como ousa falar assim? Pense nos seus filhos, no seu domínio, em mim mesma?
— Sou feliz e infeliz, Almina; eis o meu drama. Amo-a, amo o meu filho e a minha filha, amo esta terra... mas há um outro amor em mim, que não consigo nomear e que me abafará se não conseguir expressá-lo.
— É tão difícil compreendê-lo, meu querido.
— Concedo-lho; para mim próprio é uma tarefa sobre-humana.
Almina enroscou-se no marido.
— Jure-me que não voltará a deixar Highclere.
— Um Carnarvon nunca foi acusado de perjúrio.
Almina reteve as lágrimas; era possível lutar contra um inimigo declarado, quer se se tratasse de uma amante ou de uma ambição, mas não contra a presença invisível que roía a alma de George Herbert. Como ele, sentia que acontecimentos imprevisíveis perturbariam a existência sossegada à qual o amarraria com todas as suas forças.
Adormeceu nos braços dele.
O conde manteve-se acordado, pensando nos horizontes distantes que aquele maldito acidente lhe tinha feito perder para sempre. Tinha-se submergido no conforto familiar sem reservas mentais, com o desejo de esquecer a aventura; a sua lucidez obrigava-o a verificar a derrota. A resposta, a única resposta que esperava da vida, continuava a fugir dele: para que destino estava talhado?
— Recuso.
Maspero fez-se vermelho de cólera.
— Não tem nada a recusar, Carter! Sou eu que dirijo o serviço, e sou eu que decido.
— Na qualidade de inspector tebano, julgo ter uma palavra a dizer.
— Tem de executar as minhas ordens, ponto final!
Casaco de tweed, calças de flanela, camisa engomada e lacinho às pintas, davam a Carter a força bastante para resistir a Maspero. Aos vinte e nove anos tinha-se tornado uma personalidade de todo o Luxor e já não reagia como um garoto assustado.
— Mesmo quando se engana?
Glacial, o director do serviço levantou-se, contornou a secretária e fez-lhe frente.
— Explique-se, senhor Carter.
— Como cientista, parece-lhe que pesquisar o Vale dos Reis é inútil.
— É verdade.
— Porquê dar uma licença de escavação a Theodore Davis, um amador sem experiência?
— Porque esse senhor possui uma qualidade maior: a fortuna. O serviço não terá de desembolsar um soldo. Pelo contrário, receberá algum dinheiro a título de homenagem e levantará a sua parte sobre eventuais descobertas.
— O dinheiro... é pois o único critério? Se esse personagem massacrar o lugar e o tornar impróprio a qualquer estudo científico, que teremos nós ganho?
— As suas elucubrações são desprovidas de qualquer fundamento. O que o incomoda, Carter, é que esse senhor é americano: como todo o inglês, detesta os Estados Unidos. Eu tenho necessidade de assegurar o financiamento do Serviço.
— Ao preço da destruição do Vale?
— Decerto que não, uma vez que é inspector e que isso é da sua competência.
— O que significa?
— Que participará nas escavações de Davis.
— Nem pensar.
— Não seja estúpido, Carter.
— Um profissional não pode submeter-se às vontades de um amador.
— Não se trata de submissão, mas de colaboração.
— É pior ainda; não colaborarei com o inimigo. Permita-me que me retire.
Enclausurado no seu escritório, Carter chorou de raiva. Não só o Vale lhe escapava mas também caía nas mãos de um advogado americano, desejoso de ocupar a sua reforma, implicando com as sombras dos faraós. Carter possuía a experiência, sentia-se pronto a explorar aquela terra sagrada com amor e atenção, e um intruso roubava-lhe a finalidade da sua existência, com o apoio das autoridades!
A própria Raifa não conseguiu consolá-lo; mostrou-se fraco amante, incapaz de esquecer a catástrofe. Com ódio, tinha batido com a porta do quarto e, sem dúvida, rompido a sua ligação com ela, abandonando-a, nua, e soluçando, no harém desalojado.
A sua vida ruía.
Só Ahmed Girigar podia ainda penetrar no seu antro. Trazia-lhe água, frutos e bolachas, que ele comia sem apetite.
Um visitante conseguiu contudo forçar a porta.
— Professor Newberry!
— Prazer em ver-te, Howard.
— Basta de congratulações: é Maspero que o envia?
— Obstinares-te é ridículo, Howard. O Egipto precisa de ti.
— Mas o serviço precisa de Davis.
— Conheço-o e desejo favorecer um encontro; não é um homem fácil, é preciso prevenir-te. Dá-me a honra de aceitar. Controlando as suas actividades, salvarás o Vale; esse ideal exige que te sentes em cima da tua vaidade.
— Terei merecido essa injustiça?
— Pouco importa. Bate-te com as tuas armas.
A má educação dos Americanos não era uma lenda; Theodore Davis apertou brutalmente a mão de Carter com a segurança do caçador persuadido que abateria a sua presa ao primeiro tiro.
— Então, é você o cientista? Tem ar disso.
Theodore Davis, de estatura média, dava uma impressão de extrema fragilidade; não se deslocava sem uma bengala, escondia a garganta com um lenço branco e cobria a cabeça com um chapéu de abas largas. O seu calção de cavaleiro, os seus jodhpurs e as suas polainas faziam-no parecer-se com um cavaleiro que perdera o cavalo. Um bigode abundante alargava-se como asas de pássaros e comia-lhe a parte de baixo do rosto; atrás das lentes dos pequenos óculos, o olhar era agressivo.
— Tenho sessenta e cinco anos e não desejo tornar-me arqueólogo, senhor Carter.
— Nesse caso, o Vale dos Reis não o seduzirá.
— O direito aborrece-me, procurar diverte-me. Tenciono trazer à luz uma grande quantidade de tumbas cheias de estátuas, de sarcófagos, de múmias e de objectos magníficos: vai ajudar-me. Fique a saber que tenho o hábito de ser obedecido e que tenho horror em discutir com os meus subordinados.
Newberry achou que era urgente intervir.
— Howard não é precisamente seu subordinado, meu caro Davis; o termo assistente seria mais apropriado. O Serviço das Antiguidades deseja ajudá-lo no seu generoso empreendimento.
— Generoso mas não gastador! Eu paguei a minha dízima, quero resultados. Cabe-lhe a si jogar, Carter; mande construir uma casa perto do lugar, quanto a mim, morarei num barco no Nilo. Estarei ao fresco e passearei à minha vontade.
— O seu plano de escavações, senhor?
— Um plano? Para quê? Desenrasque-se... Enquanto se espera pelos primeiros resultados, vou repousar para Assuão. Parece que a cidade é atraente.
No fim do Inverno de 1902, Carter dirigiu uma equipa de uns sessenta homens que escavavam por conta de Theodore Davis. Aproveitando essa mão-de-obra, fez desobstruir os dois lados da estrada que conduzia ao Vale e se revelava muito estreita em função do número crescente de turistas; depois, atacou uma zona de uma centena de jardas situadas entre as tumbas de Ramsés IV e de Ramsés II.
A sorte sorriu-lhe; descobriu a sepultura de um casal, que a água tinha degradado. No fundo, os vasos canopos e uma caixa pintada de amarelo, contendo uma tanga de guerra, de cabedal. Devidamente prevenido, Davis voltou a Assuão e esbarrou com Maspero. O director do serviço exigia os objectos a fim de os enviar para o Cairo; Davis recusou. Segundo os costumes, voltavam ao escavador que contava oferecê-los a um museu americano. Maspero enfureceu-se. Davis pagou. O serviço não precisava de dinheiro?
O americano, repousado, tinha concebido um plano de escavações aberrantes, caracterizado por uma total ausência de método; tentou dirigir ele próprio uma equipa, deu ordens incoerentes, agitou-se em todos os sentidos e apenas conseguiu macular de poeira o seu fato preto. Carter seguiu-o, como sombra protectora e discreta; nem ele nem o reis Ahmed Girigar protestaram, Davis procedia de maneira estúpida mas inofensiva; a Primavera e os calores quebraram o seu entusiasmo.
Maspero não acreditou nos seus olhos. Releu por uma terceira vez o relatório confidencial de Carter sobre o Verão que acabara de passar em Inglaterra.
— Será um sonho Carter?
— Não, senhor director. Mrs. Goff atribui-nos fundos destinados à restauração da tumba de Séti II, e o industrial Robert Mond à de Séti I.
— Apaixonados pela arte egípcia?
— Consegui fazê-los entender o interesse do nosso trabalho.
— Está a tornar-se diplomata! Eu, ofereço-lhe a electricidade e Abu Simbel.
Desiludido pela pobreza dos resultados uma pequena tumba abrigando duas múmias de mulheres e patos mumificados Davis passou a estação de Inverno em Assuão.
No princípio do mês de Janeiro de 1903, Carter ofereceu-se um longo passeio a cavalo pelo lugar de Dar el-Bahari. Subitamente, as patas da sua montada enterraram-se na areia e o cavaleiro saltou pela cabeça do cavalo. Nem o animal nem o arqueólogo ficaram feridos; mas este último só tinha olhos para o buraco milagroso que breve mandou alargar pela sua equipa.
A cento e cinquenta metros da entrada do corredor, havia uma porta selada. Do outro lado, uma cave que não continha mais do que um caixão vazio e um bloco embrulhado num pano. Carter tirou-o com cuidado: protegia uma grande estátua de Mentuhotepe II, vestido de branco e usando a coroa vermelha. A última morada do faraó de rosto severo recebeu imediatamente o nome de Bab el-Hosan, (a tumba do cavalo).
Na ausência de Davis, Carter tentou uma experiência; Ahmed Girigar tinha-lhe assinalado a localização de dois poços cheios de objectos miniaturais, utensílios e peças de baixela marcadas com o nome de Tutmés IV; um depósito de fundação! A sua presença provava que a sepultura do rei devia estar próxima; ora ela não figurava no seu resumo, o único exaustivo alguma vez estabelecido. Um quadriculado sistemático dos arredores deveria rematar.
A 18 de Janeiro de 1903, descobriu uns degraus largos e uma porta. Apesar da sua necessidade de ir mais longe, Carter respeitou o contrato assinado com o escavador oficial: Davis devia entrar em primeiro lugar. Tentou em vão juntar-se a ele; saído em excursão, não se podia encontrar. Ninguém sabia onde tinham amarrado o seu barco. Pensando-se livre das suas obrigações morais, Carter desceu até à tumba.
A largura do corredor, talhada com arte, pressagiava maravilhas. A qualidade das pinturas confirmava essa primeira impressão que, infelizmente, breve se transformou em decepção: milhares de fragmentos juncavam o solo. Entre bocados de faiança azul jazia uma corda que os gatunos tinham utilizado. Carter passou o poço, avançou na massa de destroços e parou, horrorizado, em frente de uma criança de carnes escuras, de pé e imóvel! Não, não tinha acabado de ser arrancado ao sono da morte; não, não era um espectro vingador, mas uma infeliz múmia despojada das suas ligaduras e atirada contra uma parede. Perturbado, Carter sentiu ódio pelos profanadores que tinham martirizado o pequeno príncipe.
A abertura oficial da tumba de Tutmés IV teve lugar no dia 3 de Fevereiro de 1903, em presença de Maspero; os operários de Carter contiveram uma multidão de curiosos. Davis pavoneava-se.
— Eis a minha primeira tumba, senhor Maspero.
— Felicitações.
— A sua confiança estava bem colocada, tinha a certeza de obter resultados.
— A propósito... onde está Carter?
— Mesmo atrás de si.
— Bem, bem... está tudo pronto para a nossa visita?
— Dispus umas tábuas por cima dos estilhaços de antiguidades —, indicou Carter — mas o avanço arrisca-se a ser penoso por causa da poeira.
— É lamentável: outros aborrecimentos?
— A alma errante de um pequeno príncipe cujos gatunos perturbaram o último sono.
Davis sentiu-se pouco à vontade.
— O Carter está a brincar — declarou Maspero. — As múmias não têm qualquer poder maléfico.
O americano lançou um olhar assassino ao inglês.
— Será prudente, doutor? Uma viagem tão comprida!
— É indispensável, Lady Almina. O conde Carnarvon restabelecer-se-á mais depressa se beneficiar, todos os invernos, de um clima quente e seco. O Egipto oferecer-lhe-á uma verdadeira cura de juventude; deve evitar qualquer risco de bronquite. Senão, as suas dificuldades respiratórias agravar-se-ão e deixarei de responder pela sua saúde.
Lady Almina inclinou-se. Até então, tinha conseguido destruir o desejo de vagabundagem do marido; uma vez que a sua própria existência estava em jogo, não o devia impedir de partir.
Uma chuva glacial caía sobre Highclere; na véspera, a neve tinha ficado deposta nos troncos altos dos cedros. No bali do castelo, Lord Carnarvon contava as malas; constatava, divertido, que a mulher o tinha equipado para uma expedição de vários anos.
Escondida atrás de uma tapeçaria, olhava-o. Os seus cabelos, de um loiro ruivo, estavam mal penteados, formando contraste com o bigode impecavelmente cortado; a juventude tinha abandonado o rosto altivo, contudo animado de uma alegria certa. A aventura, amante do lord, reaparecia, enfeitada com mil atractivos que não possuíam nem a esposa mais afectuosa nem dois filhos jovens, nem o mais belo domínio de Inglaterra. Carnarvon apertou o cinto do casaco. Quando abraçou a esposa, ela sentiu que o espírito do conde se encontrava já na terra dos faraós.
Inaugurado em 1895, o Bristol era um dos mais belos hotéis do Cairo. Uma espécie de pudim arquitectónico, apresentava uma entrada com colunas que respondia às exigências de conforto e de elegância britânicas. Desde o começo da sua estada, Carnarvon vivia um sonho digno das Mil e Uma Noites; as suas dores diminuíam, a sua vista melhorava, as suas forças cresciam. Saboreava o ar puro e o sol como se fossem guloseimas, passeava durante horas nas ruas do Cairo, fosse a pé fosse de carruagem.
Absolutamente sem querer, participou no Ramadão, desde o nascer ao pôr do Sol. Por brincadeira, aplicou-se a não se alimentar, a não fumar, a não se zangar, a não dizer palavrões, a não mentir e a não invejar os outros. Essa ascese afastava a alma da materialidade e abria-a aos pensamentos espirituais. O conde não ficou decepcionado: uma nova vontade de viver passou a morar nele. Esperou com impaciência o iftar, o momento da ruptura do jejum, em que as lojas fechavam muito cedo e em que as ruas se esvaziavam enquanto se iluminavam as centenas de mesquitas da cidade. Luzes em triângulos, em losangos e em meias-luas iluminavam cúpulas e minaretes.
Carnarvon parava em frente de uma cozinha ao ar livre, acendia um cigarro, bebia um sumo de alperche e comia com apetite arroz com pedaços de carne, salada e fatias recheadas de favas quentes. Por volta das duas horas da manhã, não recusava os cabelos-de-anjo ou um bolo de pistacha, antes de voltar ao hotel e de dormir até ao meio-dia, indiferente aos tocadores de tambor que acordavam a população, a fim de que ela se alimentasse antes do aparecimento da luz.
Dois dias antes do fim do Ramadão, uma velha lady não hesitou em abordá-lo no hall do Bristol.
— Não será o senhor o quinto conde de Carnarvon?
— Tenho essa honra.
— Ah! A minha memória continua muito boa... Conheci bem o seu pai e parece-se muito com ele. Que país curioso, não é verdade? Raríssimos relvados que a seca ameaça, uma dramática ausência de aguaceiros e uma penúria crónica de nevoeiro. Conhece o Cairo?
— É a minha primeira visita.
— Voltará todos os anos; esta cidade, querido amigo, é uma droga. É verdade que mudou e que acolhe demasiados turistas... Porque é que também hiberna?
— Para me curar e dar um sentido à minha vida.
— Então vá procurar! Parece que o solo arrecada maravilhas. Um homem novo deve ter uma finalidade e agarrar-se a ela mesmo durante os seus ócios; um inglês inactivo trai o seu país.
Pesquisar, cavar a terra, desenterrar os tesouros esquecidos... a ideia aflorava Carnarvon desde a infância, mas não tinha conseguido formulá-la com nitidez. Aquela velha lady não seria o seu destino mascarado? As suas palavras obcecaram-no. Desdenhando as ruas e as festas, correu os ministérios e as administrações a fim de se informar sobre o regime das escavações. Breve se apercebeu de que só o dinheiro contava; um americano rico, Theodore Davis, não acabara de obter a concessão do Vale dos Reis, se bem que não tivesse qualquer experiência arqueológica? Enquanto o conde saboreava uma perca do Nilo, à sua mesa do Bristol, um colosso barbudo sentou-se em frente dele sem lhe pedir autorização. Sobrecasaca preta, calção vermelho e botas com esporas davam-lhe um ar marcial.
— Receio que se tenha enganado?
— É o Lord Carnarvon e eu chamo-me Demóstenes. Pelo menos, hoje; no meu ofício, é prudente mudar o nome.
— Veria inconveniência em que o fizesse sair do hotel?
— Quer investigar? Não serve de nada.
A carne do rosto de Demóstenes era amarela e flácida, as mãos tremiam-lhe e o olhar perdia-se por vezes no vazio. Carnarvon conhecia esses sintomas, observados em bares mal afamados: o homem drogava-se com haxixe.
— Se quiser adquirir raridades, dirija-se a Demóstenes.
— Será porventura versado em arqueologia?
O colosso abafou um riso espesso.
— Depois de ter sido padre anglicano no Cairo e vendedor de aguardente de contrabando na Alexandria, descobri uma ocupação melhor: vendo múmias. Peças em bom estado, extraídas das tumbas autênticas. É caro mas vale a pena.
— É provável. Onde as descobre?
— Devagarinho, meu príncipe. As minhas fontes são sagradas; e se discutíssemos o preço?
— De acordo, mas não aqui.
— Então, onde?
— No posto de Polícia mais próximo.
Demóstenes, com os lábios subitamente exangues, levantou-se.
— Nunca nos encontramos. Não tente causar-me aborrecimentos; aqui estamos no Egito, não na Inglaterra.
— A existência não tem o mesmo preço.
— Múmias autênticas... será que ainda existem?
A grandes passadas, o colosso atravessou a sala do restaurante; à passagem, empurrou o chefe de mesa que trazia um pudim a Carnarvon.
— Se me é permitido um conselho, milord, deveria desconfiar desse personagem. É um grego corrompido, por vezes ladrão, informador da Polícia e talvez um pouco assassino.
— O segundo anjo bom do meu dia; este grego e a velha inglesa merecem a minha eterna gratidão.
O chefe de mesa pousou o pudim. Em certas circunstâncias, era preferível manter-se rigorosamente ao serviço.
Lord Carnarvon repudiou a sobremesa e contemplou uma vela até depois da meia-noite; como era sublime, para uma vida que saía do nada, tomar por fim um sentido.
Naquele ano de 1903, especialistas e turistas só falavam da descoberta de um esconderijo num dos pátios de templo de Karnak. O arquiteto francês Legrain opinava que seriam precisos vários anos para trazer à superfície os milhões de objetos piedosamente escondidos, depois de terem sido utilizados pelos padres.
Esse sucesso confortou Davis, dando-lhe a idéia de que uma descoberta espetacular estava ao seu alcance.
Convocou Carter para o seu barco amarrado em Luxor. Enervado, andava para trás e para diante, martelando o soalho com os tacões das suas botas.
— O importante, Carter, são as rainhas do Egito. Se as tumbas dos faraós foram pilhadas, as das suas esposas foram talvez poupadas.
— Peça a concessão do Vale das rainhas.
— Está demasiado arruinado; refiro-me às soberanas enterradas no Vale dos Reis. Existem, não é verdade?
Carter foi da mesma opinião.
— A grande Hatshepsut fascina-me; pretende-se que a sua tumba nunca foi explorada a fundo. Será verdade?
O inglês concordou novamente.
— Entre lá, Carter; tenho a certeza de que contém um tesouro.
O americano tinha subestimado a dificuldade; com a sua equipe de operários, Carter percorreu
Quando Davis pôde chegar junto de Carter, graças a uma bomba de ar ter sido posta ao serviço, este pintava uma aquarela que restituía o aspecto arruinado do lugar santo.
— É contudo uma boa prova — observou ele — divulgarei esta tumba e mencionarei a sua coragem.
Apertaram a mão à americana. O essencial, para Carter, era dispor de uma equipa cada vez mais qualificada e que ele formaria segundo os seus pontos de vista, mesmo que Tutankhamon persistisse em fugir dele.
— Quero casar-me — disse Raifa. — Discuti longamente com o meu irmão e ele caiu em si; ninguém pode lutar contra o amor.
— Receio que sim — objetou Carter.
— Trabalhei e possuo os elementos do meu dote; os móveis, os utensílios de limpeza e os lençóis, vou traze-los e não terás vergonha de mim. Se fosses muito pobre, contentavas-te em dar-me 25 piastras; mas és um personagem respeitado, Howard! Deves-me um belo dote.
— Nesse ponto preciso, eu...
Ela colocou-lhe um dedo sobre a boca.
— Na véspera do meu casamento, estarei depilada; o meu irmão, que desempenhará o papel do pai, pedir-te-á a tua proteção. Depois da tua jura, dar-me-á ao meu futuro esposo, tomaremos lugar nos tronos. Na nossa frente, haverá um tabuleiro de flores, de doces, de carne assada e de especiarias, quero muitos cantores e dançarinos! Será o mais belo casamento alguma vez celebrado em Luxor. Dentro de mil anos, ainda se falará nele.
Aninhou-se contra ele. A câmara do harém desalojado, assumiu um ar de palácio, onde o sonho mais louco transportava dois amantes num leito de rosas.
— Tens a certeza de ter convencido Gamai?
— Que importa Gamai!
— Desempenhará o papel de teu pai, recorda-te!
— Desempenhá-lo-á. Ninguém pode resistir a uma mulher apaixonada; nem mesmo tu, Howard Carter.
— Tudo bem, pesado...
Uma careta de interrogação desencadeia o seu furor.
— Sê sincero. Exijo-o.
— Tudo bem pesado, tens razão.
O Mena House, antigo pavilhão de caça do quediva Ismail, transformado em hotel de luxo por ocasião das festividades para celebrar a abertura do canal de Suez em 1869, acolhia as mais ricas famílias do Cairo e hóspedes de classe. A Inglaterra tinha-o elevado à condição de colônia, dado que os sujeitos de Sua graciosa Majestade dispunham de um médico, de um capelão e de uma enfermeira britânica, bem como de uma biblioteca de seiscentos volumes.
Naquela tarde de Primavera, Carter fora convidado para o Mena House, para lá gozar do seu triunfo. A fama do inspetor tinha atingido o Cairo, onde a boa sociedade organizava um jantar em sua honra; o desenhadorzinho de Norfolk tornava-se um arqueólogo reconhecido e invejado, que os importantes gostavam de ver à sua mesa. A desobstrução das grandes tumbas da rainha Hatshepsut e do rei Merenptah, feita com tanta rapidez como rigor científico, fazia de Carter o melhor pesquisador em atividade.
Ele estava orgulhoso e triste. Orgulhoso do trabalho realizado que adorava, mas triste por perder o seu tempo em mundanismos quando o seu diálogo com o Vale mal começara e a busca de Tutankhamon requeria todos os seus esforços.
Antes de ir para o Mena House, situado junto do planalto de Gize, subiu à grande pirâmide. Com algumas frases muito secas, afastou os mercadores de falsas antiguidades e os beduínos desejosos de alugar burros e camelos; levantando os olhos para o alto do fabuloso monumento, relembrou a página de Chateaubriand, que Newberry lhe tinha lido:
Não é pelo sentimento do seu nada que o homem erigiu um tal sepulcro, foi pelo instinto da sua imortalidade: esse sepulcro não é o limite que anuncia o fim de uma carreira de um dia, é o limite que marca a entrada de uma vida sem termo; é uma espécie de porta eterna,construída sobre os confins da eternidade.
Abandonou, contrariado, a grande pirâmide por um jantar mundano. Pediram-lhe que contasse as suas proezas, e lamentaram-no por engolir tanto pó.
Um advogado britânico levantou uma taça de champanhe.
— Ao nosso novo Arquimedes! Tê-lo-ão informado da mais fabulosa das descobertas?
— Não... em que sítio?
— Em Luxor, meu caro, na sua ausência.
Carter fez boa figura, apesar da sua inquietação.
— Bem! Fazê-los enlaguescer mais tempo seria cruel. Trata-se de uma tumba.
Carter apertou nervosamente o guardanapo.
— No Vale dos Reis?
— Precisamente.
A mesa inteira tornou-se silenciosa.
— Trata-se de uma tumba real?
— Ignoro, mas nunca foi aberta.
— Sabe-se... o que ela contém?
— Sabe-se.
O advogado exprimiu-se com ênfase.
— Sabe-se graças a três camelos brancos que saíram da cave, portadores de montões de ouro e de jóias!
A assistência, encantada, desatou a rir. Carter levantou-se lívido.
— Desculpem-me deixá-los tão cedo; a idiotice corta-me o apetite.
Raifa, ensonada, enrolou-se em Carter que acariciou os seus cabelos e a beijou no pescoço.
— Quando nos casamos, Howard?
— Breve.
— Amanhã?
— Restam pormenores a regularizar.
— O meu dote?
— Tenho de falar com Maspero.
Gaston Maspero estava de bom humor; bebia uma chávena de café e comia um biscoito redondo recheado de cebolas e de feijões.
— Prazer em vê-lo, Carter; por sua causa, não dormi.
— Posso saber a razão desse incidente?
— A qualidade do seu trabalho. É o mais brilhante dos meus inspetores e a sua contribuição aos serviços é absolutamente notável. O seu êxito deve-se ao seu trabalho encarniçado e a uma excelente formação: o conhecimento do terreno, a prática do árabe, o dom de dirigir operários, um sentido artístico agudo.
— Tantos elogios inquietam-me. Que escondem eles?
— Uma promoção, meu caro Howard! Aos trinta anos, está absolutamente designado para ocupar um posto-chave: inspetor chefe do Baixo e do Médio Egito. Pirâmides serão consigo!
Depois de seis meses de trabalho encarniçado no sítio de Saqqara, tinha a sua primeira noite de repouso.
Quantos hectares restavam pesquisar nessa imensa necrópole onde Maspero tinha descoberto as pirâmides, cujas câmaras secretas estavam cobertas de hieróglifos? Da modesta morada do inspetorado, onde se tinha instalado, Howard Carter gozava de um panorama sem igual; de um lado, o deserto e os monumentos de eternidade; do outro, o palmeiral da antiga Mênfis. Freqüentemente, era penoso arrancar-se à sua contemplação e perder-se nos meandros do quotidiano; mas tinha consciência da sua tarefa e desejava executá-la sem desfalecimento, mesmo sofrendo de estar afastado do seu querido Vale.
Na véspera da sua partida para o Norte, Raifa lançara-se ao seu pescoço a chorar. Não tinha tentado confortá-la. Um e outro sabiam que aquela separação seria longa. Certamente, durante os seus períodos de folga, Carter voltaria a Luxor, mas não podia prometer-lhe casamento.
Despeitada, jurou-lhe fidelidade; ele recusou aquela jura que ela não consentiu em retomar.
A solidão convinha a Saqqara, dominada pela pirâmide dos degraus de Djoser, o primeiro monumento de pedra erigido na terra do Egito. Os faraós e os nobres repousavam aqui havia mais de cinco milênios, formando uma comunidade invisível, cuja realidade permanecia, contudo, perceptível a cada instante.
Sentado numa cadeira, ao abrigo do vento, Carter pensava em Raifa, na doçura dos seus abandonos, quando viu acorrer um guarda.
— É preciso vir imediatamente, senhor inspetor.
— Que se passa?
— Uns franceses... querem visitar o Serapeum.
— Lembre-lhes que o local está fechado.
— Recusam.
— Como, recusam?
— Creio... que não estão em si.
Irritado, apressou o passo em direção ao Serapeum, conjunto de galerias subterrâneas onde se encontravam os gigantescos sarcófagos dos touros sagrados. Em frente da entrada, dois guardas disputavam-se com turistas meios bêbedos. Um deles, um homem embriagado com uns cinqüenta anos, tratou o seu interlocutor de “porco árabe” e de “filho de uma cadela”. Antes de Carter poder intervir, um guarda empurrou-o; seguiu-se uma zaragata geral que ele interrompeu com grande custo.
— Quem é o senhor? — interrogou uma mulher morena, despenteada e agressiva.
— Howard Carter, inspetor das Antiguidades.
— Estou feliz por encontrar enfim um responsável! Queríamos ver o Serapeum quando estes macacos nos atacaram. Queriam mesmo fazer-nos pagar bilhetes de entrada.
— Peço-lhe que seja correta, minha senhora; esses guardas são meus subordinados e obedecem às minhas indicações. A esta hora não tem o direito de estar no local.
— De quem é que está a troçar? Somos europeus e o nosso amigo foi selvaticamente agredido!
— Ordenamos-lhe que mande parar esses selvagens.
Um bigodaças, vermelho de cólera, ladrou como um rafeiro.
— Eu paguei e quero ser reembolsado! Está tudo às escuras aí dentro, e nem mesmo nos deram luz!
— Voltem para casa e tomem todos um duche frio.
— Isto não fica assim, Carter! Apresentaremos queixa.
Maspero parecia muito incomodado.
— Apresentaram queixa contra si, Carter. Pancadas e ferimentos ...é grave.
— É completamente inexato . Um dos meus guardas, insultado de uma maneira odiosa, reagiu de maneira normal.
— Normal? Socando um turista francês?
— Um bêbedo perigoso que foi apenas empurrado. Eu deponho a favor da minha equipe.
— É completamente inútil; os seus adversários já obtiveram o apoio do cônsul-geral de França que exige reparação.
— Creio ter compreendido mal.
— Porém, é simples, Carter; graças à minha intervenção, evito o processo. Bastará que se desculpe junto do cônsul, desse grupo de turistas e que penalize a sua guarda.
— Está fora de questão. Que esses bêbedos apresentem as suas desculpas ao guarda, isso é que era justiça!
— Não se trata de justiça mas de diplomacia! Facilite-me a tarefa e não se obstine.
— Não faço tenção de me rebaixar perante mentirosos.
— Não tome as coisas assim, que diabo! Peço-lhe algumas palavras, mais nada.
— É demais, senhor diretor.
— Não seja teimoso; o caso pode envenenar-se.
— A razão está do meu lado; a justiça triunfará.
Como Maspero não obtinha a rendição de Howard Carter, os queixosos solicitaram uma entrevista com Lord Cromer, o alto-comissário britânico, o homem forte do Egito; concedeu crédito à mentira e tomou partido contra Carter. O jovem arqueólogo não era estimado pela melhor sociedade.
Quando Maspero o convocou de novo, estava muito triste.
— Recebi instruções formais: despedimento imediato do guarda e as suas desculpas. Lord Cromer estará aqui dentro de alguns minutos a fim de o ouvir.
— Portanto, poderei dizer-lhe a verdade.
— Não o ouvirá; a sua opinião está formada.
— Então é um imbecil.
— Carter! Não se apercebe da gravidade da situação. Tem de ceder, senão...
— Senão o quê?
— Serei constrangido a aceitar a sua demissão.
Carter estava atordoado.
— O senhor, Gaston Maspero, não cometerá essa malvadez!
— Algumas frases, Howard, apenas algumas frases conciliadoras e esqueceremos esse drama absurdo.
Lord Cromer irrompeu pelo escritório do diretor de serviço. Não concedeu sequer um olhar a Carter e dirigiu-se diretamente a Maspero.
— Está regularizado?
— Quase, senhor alto-comissário.
— Que Carter formule imediatamente as suas desculpas, que serão relatadas por escrito e entregues às pessoas a que dizem respeito.
Instalou-se um pesado silêncio. Lord Cromer não o suportou mais do que trinta e sete segundos.
— Está a brincar com a autoridade que eu encarno, senhor Maspero?
— Howard Carter está pronto a reconhecer os seus erros, mas a injustiça...
— A minha opinião é construída sobre fatos, não sobre sentimentos. Qualquer discussão é supérflua; que Carter se incline ou que se demita.
Lord Cromer não ouviu o som da voz de Howard Carter; quando a porta bateu, teve um sobressalto.
Aos primeiros frios, a disposição de Carnarvon mudou. De comum aborrecido, assobiou ao ler ou a passear, gracejou à mesa, brincou mais com os filhos. Nevoeiros gelados e chuva regozijaram-no ao ponto mais alto; as suas dores desapareceram e andou durante várias horas no parque do castelo ,
apesar da proibição do médico.
No regresso de uma das suas fugas, a esposa não conseguiu esconder a sua inquietação por mais tempo.
— O seu banho está a arrefecer; apresse-se a tomá-lo.
— Uma atenção delicada, minha querida; segundo dizem os camponeses, o Inverno será duro.
— Porquê tantos riscos? O frio e a umidade não lhe são aconselhados.
O conde baixou os olhos.
— Tenho uma confidência muito delicada a fazer-lhe, Almina.
— Não tem o costume de ser tão prudente.
— A situação justifica as minhas precauções oratórias.
— Não ouso compreender...
Carnarvon voltou-se.
— Apaixonei-me. Estou loucamente apaixonado.
Lady Almina fechou os olhos.
— Deus impõe-me uma prova terrível. Aceito-a. Como se chama ela?
— Já não é muito nova.
— É ao menos de família nobre?
— Real.
— Mas... o seu nome?
— O Egito faraônico.
— Não tem esse direito!
— É muito sério, minha querida. Como recomenda o meu excelente médico, parto amanhã para o Cairo.
Lord Carnarvon reencontrou com alegria, nesse fim de ano de 1904, as ruelas animadas do Cairo. Aquela estada que ele tinha esperado com impaciência, iluminava a sua existência.
Permitia-lhe escapar a numerosos mundanismos londrinos, e de não assistir às representações de Puccini, músico lacrimejante e tagarela, que ele detestava.
O conde desejava fazer um programa de escavações, mas não possuía nenhuma experiência nesse domínio; consultou pois os serviços do alto-comissário, tornado o verdadeiro senhor do Egito graças ao entendimento amigável entre a França e a Inglaterra, que se puseram de acordo sobre a divisão da África do Norte e do Próximo Oriente; à França voltava nomeadamente Marrocos, que ela ocupava em plena liberdade, à Inglaterra, o Egito. Uma única restrição, mas de vulto: o posto de diretor do Serviço das Antiguidades reservava-se, como no passado, a um francês.
Por isso, Carnarvon marcou um encontro com Gaston Maspêro.
— Gostaria de obter uma autorização para escavações. — Maspero limpou os óculos redondos; o pesadelo recomeçava.
Uma vez ainda, seria preciso inclinar-se na frente de um amador de posses cujo principal argumento científico era a espessura da sua conta bancária.
— Nada de mais simples; basta assinar um formulário.
— Quais são as minhas obrigações?
— Praticar escavações num terreno pertencente ao Egito, não construído, afastado das culturas, livre de impostos, fora de uma zona militar e não atribuído ao serviço público. Se fizer uma descoberta importante, por exemplo, um túmulo, deve prevenir o serviço.
— Posso lá penetrar em primeiro lugar?
— Na condição de ter um inspetor a seu lado. Dispõe de dois anos para me fornecer um relatório sobre as suas atividades.
— Que se passa com as múmias?
— Continuam propriedade do Egito, da mesma maneira que os sarcófagos. No que diz respeito aos outros objetos, procederemos a uma divisão razoável.
— Que entende por “razoável”?
Maspero conteve com dificuldade um acesso de cólera. Decerto uma cláusula do contrato especificava que o conteúdo de uma tumba inviolada não seria dividida entre o responsável pelas escavações e o Estado; mas não se descobririam mais tumbas intactas e, em caso de milagre, a cláusula seria inaplicável.
— Pois bem... conforme a importância e o valor dos objetos, procederemos a uma discussão entre cavalheiros.
— Nada de mais razoável — concedeu Carnarvon.
— Esquecia-me do essencial: as escavações serão efetuadas a seu encargo e sujeitando-se aos seus perigos.
— Perfeito.
— Um pormenor ainda: que sítio escolheu?
O conde foi apanhado de improviso.
— Não acreditará em mim, mas nunca pensei nisso. É o meu segundo Inverno no Egito e só conheço o Cairo: indicar-me-ia um lugar propício?
Maspero estava atordoado.
— Em toda a parte, senhor conde, será preciso escavar por toda a parte... Luxor é um lugar atraente e bastante apreciado pelos seus compatriotas; não faltam zonas inexploradas na região.
Carnarvon seguiu o conselho de Maspero e deu-se bem. Planou na Tebas antiga, foi reduzido, como cada visitante, ao estado liliputiano na sala de colunas gigantes de Karnak, saboreou a luz de Luxor, passeou de falucho no Nilo, meditou debaixo da acácia do Rameseum, sentiu a grandeza dos faraós em Medinet-Habu, maravilhou-se cem vezes ao contemplar as pinturas das tumbas. O Egito penetrava nele, moldava a sua alma, desenvolvia-lhe uma sensibilidade nova.
Antes de abrir um campo de trabalho, quis impregnar-se daquela beleza que cansava o tempo e oferecia uma alimentação sem par.
Enquanto saboreava um chá de menta, num botequim da margem oeste, um colosso barbudo cumprimentou-o, tirando o chapéu branco.
— Senhor Demóstenes... que feliz surpresa.
— Posso sentar-me?
— Vejo que aprendeu as boas maneiras.
Com o seu casaco preto, calças vermelhas e as suas botas altas, o traficante de antiguidades não passava despercebido.
— É um homem de palavra, senhor conde, uma vez que não me causou qualquer aborrecimento.
— Tenho uma dívida para consigo.
— Não lhe emprestei dinheiro.
— Uma dívida de ordem moral.
— Ah... não tem interesse. Vem comprar múmias?
— Encontrá-las.
— Onde?
— Nas profundezas da terra.
— Escavar! Que boa piada! Perderá a sua fortuna. Tenho tudo o que precisa e a bom preço; este país está podre.
— A Inglaterra torná-lo-á são.
— Decerto que não. A nova lei impõe o fecho dos locais insalubres e perigosos... por outras palavras, a falência geral. As manufaturas locais e os ateliers estão mal; trusts internacionais vão ocupar o lugar e provocar um descontentamento que acabará mal. O tráfico, eis o futuro! Aproveite bem as suas férias de Inverno; o Egito não será sempre inglês. Desculpe-me: estão à minha espera.
Demóstenes, cada vez mais gordo, levantou-se como um elefante e afastou-se, bamboleando-se.
Louco ou visionário? Ninguém, no Foreign Office, partilhava dos seus pontos de vista; mas os diplomatas de carreira não passavam o seu tempo a enganar-se?
Prostrado ao lado de mendigos adormecidos, Howard Carter deixara de ser inspetor do Serviço das Antiguidades. Lord Cromer tinha pedido e obtido a sua cabeça, obrigando Maspero a despedi-lo. Quinze anos de trabalho encarniçado e, subitamente, a decadência definitiva. Sem emprego, sem indenização sem economias, incapaz de partir em busca de um outro trabalho, Carter sentia-se desfeito. Perdendo o seu posto, afastava-se para sempre do Vale dos Reis e de Tutankhamon. O seu sonho desabava e a sua vida perdia o sentido. Contudo, não lamentava a sua atitude; a injustiça era o pior dos males e nunca a aceitaria.
Um homem de estatura média, vestido à ocidental, com o rosto redondo ornado de um pequeno bigode, parou na sua frente.
— Não é Howard Carter?
— Já não sou nada.
— O meu nome é Ahmed Ziuar... guiou-me até Saqqara. Conhece o meu país melhor do que eu, como se gostasse mais dele do que eu. Estou ao corrente do drama; permita-me que o admire, senhor Carter.
O inglês, incrédulo, levantou os olhos.
— Onde faz tenção de morar, no Cairo?
— Não sei.
— Eu não passo de um pequeno funcionário, mas disponho de um pequeno quarto desocupado; terei muito prazer em lho oferecer. Poderá dormir, recuperar forças e preparar-se para o futuro.
Quando Deus fecha uma porta, abre uma outra.
Carter levantou-se. Não tinha o direito de ser indigno diante de um homem de qualidade.
Instalado à esquina de uma rua, Carter observava as idas e vindas dos cairotos, o portador de água, o vendedor de bolos, a mãe de família com um cesto na cabeça e um bebê nos braços, o burro carregado de luzerna. Tentando esquecer-se de si próprio, deitou sobre a tela essas cenas sem importância, testemunhos preciosos de uma existência monótona e tranqüilizadora.
Basbaques e garotos aglutinaram-se à sua volta e observaram-no a trabalhar; um europeu ofereceu-lhe algum dinheiro. Ainda que reticente, aceitou. Tornado pintor de estilo, ganhou a quantia necessária para pagar o aluguer do seu quartinho de hóspede num bairro pobre; situado no último andar de um imóvel degradado, ofereceu-lhe um porto de paz, depois do dia passado no meio do barulho incessante da cidade. O ladrar dos cães perturbavam freqüentemente a noite; estendido na cama, com os olhos abertos, lembrou-se daquele tempo maravilhoso em que trabalhava em sítios grandiosos.
A nostalgia foi mais forte. Voltou a Saqqara, pintou a pirâmide com degraus, o deserto, as mais belas cenas das tumbas do Antigo Império; turistas apreciaram os seus quadros e as suas aquarelas. Não contente por vender essas pequenas obras, guiou-os pelos lugares dantes postos sob a sua proteção; a sua reputação cresceu e breve se tornou um mentor apreciado dos visitantes mais atentos.
A arte e as gorjetas não o tornaram milionário; aprendeu a contentar-se com pouco e escondeu a sua pobreza sob um aspecto impecável. Escreveu com freqüência a Raifa, mas rasgou as cartas, não suportanto a idéia de lhe confessar a verdade. Quis que ela conservasse na memória a imagem de um Carter feliz e respeitado. Uma outra atividade se desenvolveu. Ao correr dos meses, compradores mais ou menos crédulos pediram-lhe para avaliar estatuetas ou fragmentos de relevos que eles encontravam nos suks; a maioria eram peças falsas, mas algumas eram autênticas. A reputação de Carter estendeu-se; consultavam-no no próprio momento de fazer os negócios.
Passou o melhor das suas folgas junto da pirâmide com degraus, fascinado pela austeridade da mãe de toda a arquitetura egípcia. Numerosos esboços não lhe deram satisfação; como dar o impulso dos gigantescos degraus de pedra que sobem ao assalto do céu?
A areia estalou. Um turista aproximou-se e imobilizou-se atrás dele.
— O seu talento está intacto , Howard.
A voz de Gaston Maspero fê-lo estremecer.
— Como está, senhor diretor?
— Vai sobrevivendo, segundo me disseram?
— Informaram-no bem. O serviço vai progredindo?
— Sem si, marca passo. Os amadores suplantam-nos.
— Theodore Davis, por exemplo.
— A sua equipe está orgulhosa da sua última proeza: uma tumba intacta.
— O pincel hesitou.
— Um tesouro?
— Um belo mobiliário funerário: cofres, cadeiras, vasos e dois caixões de bom tamanho contendo as múmias bem conservadas dos parentes da rainha Tiyi.
Rainha Tiyi, a esposa de Amenófis III é mãe do rei herético, Akhenaton... estes personagens conheceram o jovem Tutankhamon, cuja sombra voltava a tocá-lo ao de leve. Tiyi era talvez sua mãe.
— Davis quer divulgar, mas não é capaz; é por isso que me pede para o ajudar. Aceitei mas tenho necessidade de um desenhador. Aceitaria esse trabalho, Howard?
Davis e a sua equipe, em que se incluía um jovem arqueólogo, Burton, ocupavam uma pequena casa à entrada do pequeno vale ocidental do Vale dos Reis; construída em pedra e em barro, à sombra da falésia, era invisível aos visitantes. Quatro pequenos quartos, uma casa de jantar, uma reserva para as
antiguidades, um quarto escuro, um escritório, uma cozinha compunham essa morada em que velava, permanentemente, um guarda. O americano recebeu Carter numa das suas celas de monge, sem água nem eletricidade; vestido de preto, parecia um anjo exterminador.
— Deve-me o seu regresso a Luxor. Em troca, exijo a mais extrema discrição; o desenho, de acordo, mas nenhuma intervenção no processo das escavações. Já não é inspetor e eu formei uma equipa competente que não tem necessidade de qualquer conselho. Além disso, não quero nenhum aborrecimento: as autoridades britânicas não apreciariam a sua presença aqui. Feche-se no escritório que Maspero põe à sua disposição e contente-se de divulgar com fidelidade os objetos que os meus assistentes lhe levarão. Comentários?
— Nenhum.
O Inverno de 1906 foi semelhante aos outros invernos: doce, calmo e soalheiro. A fortuna de Carter não melhorava nada; algumas peritagens, por ocasião das transações de objetos de proveniência mais ou menos lícita, proporcionaram-lhe um pecúlio suficiente. A sua principal atividade, não remunerada, consistiu em desenhar os suntuosos móveis de madeira descobertos por Davis na tumba dos sogros de Amenófis III. Não esperava que esses grandes dignitários, de origem modesta, estivessem presentes no Vale reservado aos faraós; essa anomalia confortou-o com a idéia que os egípcios tinham concedido uma grande importância ao período antecedendo a subida ao poder de Tutankhamon. Porquê ter ocultado o seu reino e dissimulado a sua tumba com tantos cuidados?
Quando as noites se tornaram frescas, embrulhou-se numa cobertura de lã e leu a produção científica que Maspero punha à sua disposição. Enfureceu-se freqüentemente; os arqueólogos trabalhavam mal e os historiadores raramente verificavam as suas fontes, contentando-se em acumular cópias, a fim de obterem cadeiras universitárias, distribuídas ao peso do papel impresso e das relações mundanas. A competência, a coragem, a honestidade? Virtudes estúpidas que conduziam à mediocridade social.
Bateram à sua porta.
— Está aberto.
Ela entrou, encantadora. Os olhos maquiados, os lábios brilhando de um vermelho leve, os cabelos negros caindo em volutas sobre os ombros. Imobilizou-se à entrada.
— Aceitas tornar a ver-me?
— Raifa...
Ficou incapaz de se mexer. Avançou, sem deixar de o olhar.
— Estou bonita?
Ele tomou-a nos braços e apertou-a até lhe faltar o ar.
— Já não sou nada, Raifa. Perdi o meu posto de inspetor e estou pobre.
Estou-me nas “tintas”... se tu soubesses até que ponto me estou nas “tintas”!
Gamai nunca aceitará um mendigo como marido da irmã.
— Eu contento-me em ser tua amante... amo-te Howard.
As palavras cederam o lugar às carícias.
Quantas horas de amor tinham perdido por causa da sua vaidade?
O operário debruçou-se, tirou uma grande pedra, desimpediu um amontoado de pedras e cavou levemente à mão. Junto de um rochedo, num buraco, tinha divisado uma espécie de relâmpago.
Os raios de Sol refletiam-se sobre uma superfície brilhante. Debruçando-se, julgou avistar uma linha azul entre dois pedaços de calcário; uma vez solta, revelou-se como sendo o rebordo de uma taça envernizada, antigamente coberta de ouro.
O operário chamou o seu chefe que alertou Theodore Davis. O americano considerou o objeto com desdém.
— Não merece uma fotografia. Leve-a a Carter que nos fará um desenho. Depois do que, enviá-la-emos ao Museu do Cairo. É necessário gratificá-los de vez em quando.
Saindo do grupo de turistas a que se tinha misturado, Carter examinou o lugar onde a taça de faiança azul tinha saído da terra. No seu entender, devia conter bolinhas de natrão, utilizadas com substância purificadora, quando do ritual da abertura da boca que torna a dar vida à múmia; por outras palavras, durante as exéquias reais! No primeiro exame, a sua convicção foi estabelecida: tratava-se de um esconderijo. Um padre tivera o cuidado de dissimular o precioso objeto.
Três dias depois, tentou em vão desenhá-la; as suas mãos tremiam demais. Na taça havia um texto: “Que o deus perfeito dá a vida!”; os hieróglifos, colocados no cartucho[8], a saber, o sol, o cesto e o escaravelho seguido dos três pauzinhos do plural, lia-se: “A luz divina é a soberana das transformações”[9]
Esses sinais, sem importância aos olhos de Davis, perturbavam Carter, ao ponto de lhe fazer perder o sono: não compunham eles o nome de coroação de Tutankhamon?
Agora, a sua certeza tomava um aspecto científico. Aquele modesto objeto provava que as exéquias do misterioso faraó tiveram lugar no Vale e que estava enterrado aí, algures nas areias.
Lord Carnarvon assistiu ao cocktail de inauguração do Winter Palace, o novo hotel de luxo de Luxor.
Construído no coração da pequena cidade, frente ao Nilo, exibia pretensiosamente a sua fachada amarela, que contrastava com o verde das palmeiras e o branco da mesquita e das casas vizinhas; o conde não apreciou nada aquele amontoado de estuque e de gesso, vestindo uma carcaça metálica.
Luxor tornava-se a presa dos mercadores e de hordas estúpidas; com o guia Baedeker na mão, os turistas invadiam as lojas cheias de falsos escaravelhos, leques e chapéus. Contingentes desembarcavam ao andamento vivo dos barcos fretados pela agência Cook, percorriam os templos a passo de carga, ao chamamento do apito, ou dos sinos, tornavam a subir a bordo e vestiam-se para o almoço.
Carnarvon, que tinha recebido o cognome de Lordy, contentou-se com um casaco de Yatcbman com botões de metal; deu-lhe um ar marcial que desmentiu a sua amabilidade perante os indígenas. Fugindo aos europeus, foi convidado de todos os paxás locais.
Aprendeu a conhecer o Egito do interior e desembaraçou-se rapidamente em árabe; esses preliminares pareceram-lhe indispensáveis antes de se lançarem numa busca, em boa e devida forma.
— Se continua a desejar uma concessão — declarou Maspero — tenho uma a propor-lhe: um lugar inexplorado no alto da colina de Xeque Abd el-Gurnah. Com um pouco de sorte, poderá descobrir um pequenino túmulo; não se esqueça de me prevenir.
— Eu tenho sorte — respondeu Carnarvon. — Quando poderei começar?
— A partir da semana que vem, se o desejar.
— Entendido. Anulo uma entrevista e dirijo-me até à margem oeste.
O funcionário do Foreign Office, que trabalhava em Luxor sob a “capa” de mercador de sementes, lá estaria às suas expensas e relhas. O conde não recusava comunicar-lhe as suas impressões sobre o país mas não aceitava estar a seu soldo.
O Xeque Abd el-Gurnah não tentou seduzir Lordy: sol a pique, poeira, vento de areia e sorriso divertido dos aldeões não tinham nada de encantador. No momento de começar a escavar, o aristocrata apercebeu-se de que não era fácil improvisar-se arqueólogo. Porquê escolher aquele lugar de preferência a um outro? Fiando-se no seu instinto, deu ordem aos seus dois operários para deslocarem uma grande pedra achatada e de enterrarem o ferro da sua pá de escavar, o fâs, no terreno em declive. Quando estivessem cansados, substituía-os. Manejar o utensílio, derreou-lhes as costas mas atraiu a sua simpatia; depois de terem dividido bolos, cebolas e tomates, desenvolveram um novo ardor.
De mais a mais, Lordy dispunha de um aliado de grande valor: uma cadela terrier, Susie, que não aceitara deixar o dono; a fim de não trair a sua afeição, Carnarvon levara-a para o Egito, contando mais ou menos com o seu faro e a sua capacidade de perseguir uma presa até ao seu próprio covil; mas Susie, de orelhas em forma de V, caindo junto das faces, perdera toda a agressividade e não gostava senão de se instalar contra as pernas de Lordy, sentado num cadeirão de verga, ao abrigo do pó. Muito ciumenta, não permitia a ninguém que se aproximasse sem seu consentimento.
Pouco antes do pôr do Sol, os fellahs caíram sobre o que parecia ser a boca do um poço funerário.
Estavam tão excitados como o conde e dominaram com grande custo o seu desejo de irem até ao mais fundo. A partir da manhã seguinte, um delegado do Serviço das Antiguidades foi até lá; tão despeitado como Carnarvon, verificou que o poço se resumia a um buraco vazio.
Como o destino lhe tinha piscado o olho, o conde não se desencorajou; durante seis semanas, afincou-se no lugar do seu primeiro sucesso. O poço estava ligado a um túmulo e, apesar das nuvens de areia, abundantes suadelas e uma falta de agilidade certa, o conde enfiou-se na cavidade. Um operário passou-lhe um archote que iluminou um pequeno caixão: no interior, havia uma múmia de gato. Susie manifestou uma discreta reprovação.
Carnarvon reconheceu a insignificância da sua proeza: centenas de despojos de felinos atravancavam já as reservas dos museus. Esses pouco brilhantes princípios incitaram-no contudo a perseguir as suas investigações na grande extensão lisa que se alongava na frente do templo de Dar el-Bahari: buracos por aqui e por ali, um calor cada vez mais sufocante e uma ausência total de resultados.
— Há quatro anos que passa os invernos no Egito, meu querido... não está cansado?
— Pelo contrário, Almina.
— O que é que o atrai?
— Um trabalho da mais alta importância.
— Essas buscas de amador?
— Amador... tem razão. É preciso pôr fim a essa prática ridícula.
A esposa de Lord Carnarvon tomou-lhe o braço:
— Isso significa que renuncia à sua viagem e que fica em Highclere.
— Isso significa que me vou tornar profissional.
— Está satisfeito com as suas atividades arqueológicas, senhor conde?
— Não estou nada, senhor Maspero.
O diretor do Serviço das Antiguidades franziu o sobrolho. Naqueles últimos meses, os aborrecimentos acumulavam-se, os novos inspetores não tinham as qualidades de Carter e o tráfico de antiguidades recomeçara. Difundiam-se numerosas críticas contra o sábio francês; acusavam-no de conceder demasiada importância ao estudo da história, de desprezar a arqueologia, de conceder licenças de escavações a torto e a direito sem se preocupar com a qualidade dos requisitantes, e de deixar partir numerosos objetos para os museus estrangeiros.
— Será que foi importunado?
— Creio que me menosprezou. Na qualidade de conde de Carnarvon que sou, não disponho do saber e menos ainda da técnica necessária para levar a bom termo o meu empreendimento. Desenterrar múmias de gatos não me basta; faço questão de trabalhar de uma maneira séria.
— A sua equipa de operários...
— Obedece às minhas ordens. Como as minhas diretrizes não têm valor, contenta-se em fazer buracos que não conduzem a nada. Esqueça um instante os meus títulos e a minha fortuna; dê-me a assistência científica de que preciso.
Maspero tirou os óculos, limpou-os lentamente e rabiscou um nome no mata-borrão de que acabara de se servir. Hesitou em pronunciá-lo. Carnarvon sentia uma real paixão, ou não passava de uma borboleta esvoaçando de uma distração para à outra?
— Conheço um egiptólogo que poderia ser-lhe útil.
— Um homem experiente?
— Tem mais de quinze anos de trabalho no Egito. Fala árabe, sabe dirigir equipas e não ignora nenhum dos costumes locais.
— Como se chama essa pérola rara?
— Howard Carter.
— Há um pormenor que me intriga: porque é que esse brilhante rapaz não é o seu colaborador direto?
— Foi-o, e felicitei-me por isso. Carter estava destinado a uma grande carreira; mas o seu caráter íntegro e a sua falta de diplomacia conduziram-no a excessos lamentáveis.
— Despediu-o?
— Constrangido e forçado, uma vez que se recusava submeter-se a uma obrigação administrativa.
— De que ordem?
— Apresentar as suas desculpas a turistas franceses culpados de brutalidades, é certo, mas apoiados pelo alto-comissário britânico.
— Parece-me simpático, o seu Carter. Terei hipótese de lhe agradar?
— Não lho garanto.
— Como vive ele?
— Muito mal; vende algumas telas, pratica peritagens e colabora “para a cidade” em trabalhos científicos. Não o considere, no entanto, como uma presa fácil.
—Onde mora ele?
— Em Luxor. Deseja encontrá-lo?
— Hoje mesmo
Pouco depois das dezoito horas, Carter entrou no bali do Luxor Hotel. Maspero tinha insistido muito para que ele saísse do seu antro e fosse àquele encontro para que o convidava um certo aristocrata, Lord Carnarvon. Segundo a opinião do diretor do serviço, esse rico aristocrata contava com ele; Carter não acreditava no que ouvia. Mais um desses amadores pretensiosos, ávidos de estátuas e de múmias, desejosos de obter uma opinião de técnico sobre as suas últimas aquisições. Carnarvon não era melhor do que Theodore Davis, cada vez mais incompetente, à medida que avançavam as suas escavações no Vale dos Reis, sem a menor lógica.
Um homem franzino, quase descarnado, de fato azul, avançava para o arqueólogo.
— É o senhor Carter, presumo? Eu sou o Conde de Carnarvon.
Junto do aristocrata, um terrier de pêlo branco e preto parecia hostil.
Carter inclinou um pouco a cabeça. O seu interlocutor, de rosto cansado, apoiava-se numa bengala; a mão direita metida na algibeira do casaco amarrotado, exprimia-se com uma certa dificuldade. A parte de baixo do rosto tinha a marca de um antigo ferimento.
— Vamos sentar-nos, está bem?
— Aprecio a sua companhia, mas gostaria que a nossa conversa fosse o mais breve possível; o trabalho espera-me.
— Obrigado por me conceder alguns minutos do seu precioso tempo, senhor Carter; espero que não fique decepcionado.
O Luxor Hotel era um enclave inglês onde os turistas usufruíam dos serviços de um médico e de uma enfermeira vindos de Londres, e podiam jogar ao bilhar depois de terem andado de bicicleta, com o assento escorado num selim britânico.
O empregado trouxe dois cálices de porto e uma tigela de água para a Susie.
— É o melhor arqueólogo da sua geração, senhor Carter, e o que melhor conhece o Egito; vê-lo privado de campo é injusto.
— A injustiça não conduz o mundo?
— É bem amargo.
— Maspero deve ter contado a minha história.
— O talento merece recompensa; gostaria de trabalhar comigo?
— Não creio.
Carnarvon conservou a sua calma.
— É melhor confessar-lhe que sou inválido, senhor Carter; antes do meu acidente de automóvel, corria os mares e não recuava diante de qualquer aventura. Agora, sou incapaz de me desembaraçar sozinho.
— Precisará de um carregador de malas? Nesse caso, receio estar inapto.
— Não tem a espinha maleável.
— Não cessa de se retesar.
— Estará de acordo, contudo, em ouvir-me?
— As minhas peritagens não são grátis.
— Não sou um turista; o Egito tornou-se a paixão que ilumina a minha existência. Todos os invernos aqui estou e todos os invernos gosto mais de cá estar.
— Regozijo-me por si.
— Isso não chega; estou convencido de que, sob o seu solo, dormem tesouros.
— Ora aí está... escavar buracos diverti-lo-ia?
— Comecei, mas preciso de um perito. O senhor, Howard Carter.
— Qual é exatamente a sua finalidade?
— A mais bela coleção de antiguidades egípcias privada. O meu castelo de Highclere é digno de abrigar obras-primas saídas desta terra sem igual; quero o melhor e o mais belo.
— O investimento seria enorme.
— É mais fácil obter dinheiro do que uma estátua autêntica. Escumei todos os mercadores e não encontrei senão falsificações ou bagatelas, como desfalcar o Museu do Cairo é contrário aos meus princípios, só me resta obter uma concessão.
— Onde?
— Na margem Oeste. Xeque Abd el-Gurnah, Dar el-Bahari... um fiasco.
Carter sorriu.
— Simples falta de técnica, senhor conde. A margem dos mortos é selvagem, implacável; é preciso... é preciso cativá-la, aprender a sua linguagem, não perturbar a sua serenidade.
— Está muito místico.
— Se não compreende isto, torne a partir para Inglaterra. O Egito é um mundo secreto, com quatro milênios. Nós somos uns intrusos, demasiado apressados e ignorantes. A sua coleção, é melhor esquecê-la.
Carter levantou-se.
— Não bebe porto? É uma excelente produção.
— A vida não nos é meiga; nela contraí uma doença de estômago e não bebo álcool antes do jantar.
— Havemos de nos entender nesse ponto; o meu médico proibiu-mo. — Poderemos conversar à beira do Nilo?
— Vai perdoar-me a minha lentidão. Arrasto uma perna.
Lord Carnarvon já estava de pé; Susie aceitou o passeio. Caminharam ao longo do rio-deus.
— Conheço a sua paixão, senhor Carter. — O ataque supreendeu-o.
— Ter-se-á informado a meu respeito?
— Eu não contrato um colaborador de ânimo leve. O seu colega Georges Legrain acaba de desenterrar um documento que lhe deveria interessar: uma esteia cujo texto se deve ao rei Tutankhamon. Esse monarca desconhecido indica que voltou a Tebas depois da heresia, e que restabeleceu os cultos tradicionais a fim de tornar a dar felicidade e prosperidade.
Instalou-se um longo silêncio, enquanto avançavam lentamente. Essas revelações confirmavam, de uma mmaneira definitiva, a existência do faraó Tutankhamon, que certos egiptólogos continuavam a negar. Apresentava-se mesmo como um poderoso monarca, apto a governar e a fazer-se obedecer.
— A tumba de Tutankhamon... é a sua obsessão, senhor Carter. Em Luxor, todos o sabem, mas todos troçam de si.
— Costuma uivar com os lobos?
— Aceite trabalhar comigo: procurará a sua tumba e belos objetos para a minha coleção.
— Projeto irrealista.
— Porquê?
— Porque a minha tumba se esconde no Vale dos Reis e a concessão foi concedida a Theodore Davis.
— Simples hipótese, meu caro; o seu Tutankhamon talvez se dissimule noutro lugar. É talvez por isso que a sua última morada ainda não foi identificada.
Carter receava ouvir essas palavras.
— A nossa vida não tem sentido senão na condição de ser orientada em direção ao impossível. No seu caso, um rei desaparecido; no meu, obras-primas enterradas. Se aliássemos as nossas loucuras, talvez nos tornássemos razoáveis.
O rio dormitava; nas trevas da margem do Ocidente, o cimo velava sobre o Vale.
— Volto à minha pintura. O resto já não me interessa.
— É um homenzinho muito pândego, Carter! Theodore Davis é um americano pretensioso e autoritário; julgam que me pareço com ele e não têm razão.
— O senhor é rico e eu sou pobre.
— Mas é sábio e eu sou ignorante. Ocupar-me-ei das finanças e o senhor das escavações.
— Davis contratou um jovem arqueólogo que deve obedecer às ordens do patrão.
— Pôr em paralelo um multimilionário do Novo Mundo e um conde britânico educado na mais pura das tradições não tem sentido algum. Repito-lhe: é o senhor, e mais ninguém, quem dirigirá a nossa equipe. Eu só lhe peço resultados.
Carter sacudiu negativamente a cabeça.
— Já não acredito em milagres; as minhas aquarelas bastam-me.
Carnarvon espetou a bengala na frente de Carter e impediu-o de avançar. Susie sentou-se no meio deles.
— A sua recusa significa que não tem qualquer confiança nos seus meios.
O arqueólogo corou.
— Conheço a margem do Ocidente melhor do que ninguém; passou a ser a minha terra.
— Prove-o.
Quando Carter brincava no campo com os seus pequenos camaradas, eles não cessavam de chamar mentirosos e exploradores aos nobres; tinha então jurado nunca se tornar criado de um desses grandes senhores.
— Está a travar-me a passagem, Lord Carnarvon.
— Peço-lhe que interrompa o seu estúpido diálogo interior e que cumpra a sua vocação.
“Peço-lhe”... O proprietário do domínio de Highclere a pedir-lhe a ele, Howard Carter, pintor e arqueólogo licenciado, exilado e sem fortuna.
— Com um caráter como o seu, a existência deve ser um combate quotidiano; isso agrada-me, senhor Carter. Continue a ser intransigente e sem fraquejar consigo mesmo; senão, aborrecer-me-ia. Diretor da missão Carnarvon: agrada-lhe o título?
Escavar de novo, não voltar a desabar sob o peso das dificuldades materiais, demonstrar que os seus métodos são os bons, tornar a partir em busca de Tutankhamon... Carter mordeu os lábios para não responder. Susie afastou-se um instante do dono e pousou a sua trufa junto da barriga da perna de Carter; o conde sorriu.
— Existe um último ponto, absolutamente capital — continuou Carnarvon — disponho de uma arma que lhe falta de vez em quando. Sem ela, está condenado a enfraquecer. Estou pronto a oferecer-lhe.
— Qual?
— A sorte.
Os tetos de cedro eram ornados de centenas de motivos, desenhando na madeira versículos do Corão; esse trabalho, de uma extrema delicadeza, tinha exigido o concurso de uma dezena de escultores que se mataram a trabalhar durante mais de cinqüenta anos.
— Gosta da minha casa, senhor Carter?
— Admiro-a.
Ahmed Bey Kamal, sensível à lisonja, colou o olho direito à luneta astronômica que lhe permitia observar o nascer da Lua do Ramadão.
— Esta velha casa é propícia ao recolhimento; e por isso juntei nela livros e documentos herdados da minha família.
Ahmed Bey Kamal era um erudito modesto que se comprazia no estudo dos documentos raros; pouco falador, abria a sua porta com parcimônia.
— Porque veio perturbar a minha solidão, senhor Carter?
O britânico hesitou; em certas circunstâncias, a sinceridade confundia-se com a grosseria. Mas não sabia mentir.
— Os rumores pretendem que está a ponto de publicar um livro espantoso. Eis o seu título exato: O Livro das Pérolas Enterradas e o Mistério Precioso a Respeito das Indicações, dos Esconderijos, das Descobertas e dos Tesouros.
— Os rumores pretendem que poderia ser um ladrão de tumbas.
Carter levantou-se, ultrajado.
— Sou arqueólogo e desejo ressuscitar um faraó esquecido: será uma infâmia?
O tom de Ahmed Bey Kamal adoçou-se.
— Que deseja saber?
— O livro mencionará a existência de uma tumba real cuidadosamente dissimulada?
O erudito consultou o seu manuscrito.
— A tradição evoca uma tumba escondida na montanha; quem chegar lá deverá fazer fumigações e escavar o solo. Descobrirá uma placa munida de um anel de bronze; depois de a ter levantado, descerá até um grande subterrâneo e passará três portas. A última abre-se sobre uma grande sala onde se erguem doze armários cheios de moedas de prata, de armas e de objetos preciosos. Em frente da mais alta, uma pedra preciosa alumia como um candeeiro aceso: junto dela, está uma chave. Quem a utilizar para abrir o armário, conhecerá uma alegria celeste: aparecer-lhe-á um rei deitado numa cama de ébano, ornada de ouro e incrustada de pérolas. Perto do corpo, estarão todas as riquezas do Egito.
As mãos de Carter tremiam.
— O manuscrito será mais preciso?
— Receio que não.
— Não haverá a mínima indicação geográfica? Nenhum nome de faraó?
Ahmed Bey Kamal abanou negativamente a cabeça.
Carter instalou a sua casa de apoio numa plataforma que dominava um cruzamento de caminhos, a vinte minutos de distância do Vale dos Reis; construída com tijolos, de forma quadrada, a modesta morada abria-se no sítio de Dar Abul el-Naga. Tumbas e templos, construídos no deserto, conservavam a memória de fastos desaparecidos; os camponeses respeitavam a orla das culturas como uma fronteira sagrada.
O arqueólogo levantava-se cedo; saía do seu quarto, com o teto em forma de cúpula, e empurrava a porta, peça autêntica, proveniente de um chalé inglês e provida de uma fechadura do Suffolk, na qual tinha inteira confiança. Depois de se ter alimentado com frutos secos, chá, um bolo, e um nascer do Sol, de que não se saciava, Carter caminhava até Dar el-Bahari que tinha escolhido como primeiro sítio para as “escavações Carnarvon”.
Na manhã desse décimo dia de trabalho, recomeçava a lenta ladainha dos portadores de cabazes cheios de entulho; sob a ordem de Carter, escavavam, desentulhavam e despejavam os fragmentos longe do estaleiro. Carnarvon chegava a meio da manhã; apoiado na bengala, com a mão direita na algibeira do fato cinzento, observava o vaivém dos operários. Com um rigor militar, Carter resumia os trabalhos da véspera.
— Nunca faltará a poeira neste país.
— Nem tumbas, Lord Carnarvon. Creio que nos aproximamos.
— Uma sepultura, já?
— Não exige resultados?
— Aprendi a mostrar-me paciente. Devo confessar que me surpreende?
— Não seja demasiado otimista; a entrada acaba de ser liberta. Poderei pedir -lhe que entre, na qualidade de proprietário, numa tumba intacta?
A cave abrigava vários sarcófagos; um deles de um branco brilhante, estava coberto com um véu. Junto dele, havia uma coroa de flores. Carnarvon, comovido, apanhou-a.
— Significa que o morto conseguiu a sua ressurreição — precisou Carter.
— Eu começo a conseguir a minha.
Carter apressou o andamento do seu burro e entrou a galope no Vale dos Reis. O ano de 1907 começava bem mal, dado que a equipe Theodore Davis se gabava de ter dado à luz uma tumba extraordinária.
Quando circulava esse tipo de notícia, Carter dirigia-se imediatamente para os locais.
Davis, com o seu fato poeirento, mantinha-se em frente da entrada. Postado sobre as suas pernas curtas, de bigodes conquistadores, dirigiu-se ao intruso.
— Até melhor informação, Carter, deixou de ser inspetor do serviço. A sua presença aqui não se impõe; ignora que Weigall o substituiu?
— É um incapaz. A quem pertence esta cave?
O rosto redondo do americano animou-se com um sorriso.
— Gosto das rainhas e as rainhas amam-me. Olhe, caro amigo, olhe!
Com nervosismo, o antigo advogado baixou-se para entrar num corredor onde jaziam painéis de madeira cobertos de ouro fino.
— Estas peças estão muito estragadas; era preciso restaurá-las depressa. Caso contrário, desfazer-se-ão em pó.
— Avancemos, Carter; há coisas mais interessantes.
Um caixão de ouro estava colocado no chão do quarto funerário. Incrustado de pedras semi-preciosas, já não tinha rosto. Tiveram o cuidado de impedir qualquer identificação.
— É a rainha Tiyi, a esposa real de Amenófis III e a mãe de Akhenaton o herético! A mais bela descoberta jamais efetuada no Vale!
— Conclusão precipitada, senhor Davis. É preciso notar a posição dos objetos, fotografar, não desprezar qualquer pormenor não...
— O patrão sou eu, e a tumba é minha. Ponha-se a andar.
Carter deu à tumba o número 55. Apesar dos seus conselhos, Davis tinha conduzido a escavação de uma maneira desastrosa. Nenhum relatório arqueológico, nenhuma tentativa de restauração e, para coroar o empreendimento, uma “limpeza” antes da fotografia. Vandalismo oficial que Maspero e os seus inspetores se esqueciam de sancionar.
Quando um ladrãozinho de Gurnah lhe propôs um vaso cheio de folhas de ouro e uma parte do colar de ouro da múmia, Carter soube que conseguia uma bela desforra. Comprou os objetos a um bom preço e foi ter com Davis cuja sesta foi perturbar.
— Está a enervar-me, Carter!
O inglês pousou as preciosas relíquias aos pés do americano.
— É para vender.
— Donde tirou isso?
— Há membros da sua equipe que o roubam e que pilham as tumbas enquanto escavam. Trago-lhe os seus bens...
Acendeu um cigarro e queimou o indicador, esquecendo-se de soprar o fósforo.
— Eu... eu compro-lhe...
— Não ousava esperá-lo; a sua contribuição é bem-vinda.
Quando Carter se voltou de costas, o americano tentou retê-lo.
— Conto com a sua discrição.
— Porquê?
— A minha reputação... a da minha equipe...
Carter voltou-se e olhou o seu interlocutor nos olhos.
— Exijo a verdade. Que se encontra nesse sarcófago?
Davis apertou os punhos.
— Os peritos contradizem-se. Para uns, trata-se de um corpo de homem, para os outros de mulher... tenho a certeza de que é a rainha Tiyi.
Carter agarrou Davis pelas bandas do casaco.
— Existe alguma prova, uma só prova que permita identificar Tutankhamon?
— Largue-me Deus do céu! Não, juro que não!
Carter soltou-o.
— Será capaz de se calar? — pediu o americano com uma voz fraca.
— Desprezo-o, Davis.
Carnarvon sacudiu o fato e tomou a sua pose.
— Estou apresentável?
— Perfeito, senhor conde — apreciou Carter. — Quando tiver muito calor, previna-me.
— Talvez não tenha tempo. Se cair, saberá que desmaiei. A Susie nos alertará.
Sentado em frente do seu cavalete, o inglês esboçava o retrato do patrão no sítio de Dar el-Bahari, ao lado da segunda tumba que acabava de descobrir para o castelão. Não se tratava, segundo dizia Carnarvon, senão de uma espécie de estábulo onde um pequeno proprietário terrícola tinha armazenado os seus livros de contas e posto o seu burro ao abrigo do sol, mas esses princípios não seriam prometedores?
Carnarvon e Carter jantaram no Luxor Hotel; o Outono de 1907 estava suave e luminoso.
— O pombo estava um pouco duro, meu caro Howard, e está sem apetite. O Vale dos Reis estará a pesar-lhe no estômago?
— Davis é um iconoclasta.
— A sua reputação não pára de crescer; uma tumba inédita por ano, é um belo score.
Carter espetou a faca no pombo grelhado; àquele ritmo, receava que o americano caísse por acaso em cima da tumba de Tutankhamon e a massacrasse com a sua desenvoltura habitual.
— Davis acumula uma quantidade de destroços e sobretudo não tem qualquer respeito pela arte egípcia; se continua, acabará por destruir o sítio.
— Porque não pedimos nós a concessão do Vale?
— Maspero não no-la concederá nunca; Davis paga bem demais e obtém excelentes resultados.
— Sempre a obsessão do vosso Tutankhamon... que significa ao certo, o seu nome?
— Símbolo vivo do deus enterrado.
— Vivo é encorajador; enterrado, é aborrecido. Quanto tempo reinou ele?
— Nove ou dez anos.
— Casado?
— Com uma filha de Akhenaton.
— Filhos?
— Provavelmente não.
— Ações de vulto?
— Nada de conhecido, à parte a esteia descoberta por Legrain este ano. Tutankhamon apresenta-se lá como um monarca poderoso, justo e generoso.
— As lisonjas clássicas... Porque desapareceu ele da história?
Carter esbarrava contra esse problema insolúvel.
— Tenho a certeza que ele repousa no Vale.
— Sem se afastar do seu ideal, meu caro Howard, gostaria que pensasse mais na nossa exploração comum; estou impaciente por ver algumas belas estátuas nos corredores de Highclere.
Enquanto o seu arqueólogo dirigia a manobra, o conde de Carnarvon encontrava, num salão de Winter Palace, um personagem afetado vindo de Londres como turista. A sua ligação com o Foreign Office, normalmente exibida com ostentação, só era conhecida do seu interlocutor. A entrevista que ele solicitara justificava-se; numa aldeia do Delta, oficiais ingleses que vieram caçar pombos tinham-se enganado no alvo e morto uma velha camponesa. O incidente tinha sido provocado por um motim, seguido de uma severa repressão. Normalmente, a calma regressava bastante depressa; daquela vez, as reações populares endureciam e as relações entre o Governo egípcio e a Administração britânica envenenavam-se.
Mustafa Kamil, um jornalista de formação francesa, logo anarquista, tinha-se atrelado à reorganização de um partido nacional preconizando a evacuação das tropas inglesas. Por felicidade, morreu antes de semear uma nova agitação.
A evocação desses acontecimentos não deixou Carnarvon indiferente. Quanto a Susie arreganhava os dentes.
— Esses dramas são prelúdio de perturbações graves — profetizou ele.
— Lord Cromer, o nosso alto-comissário, restabeleceu contudo a ordem.
— Com uma violência inaceitável que engendraria a violência.
— Pensa que a sua ação...
— Cromer é limitado e não compreende nada da evolução deste país. A sua partida seria uma excelente notícia.
— Nas altas esferas, essa hipótese foi encarada. Na qualidade de perito...
— Sou muito favorável.
— Que preconiza para o que se segue?
— Solte a rédea.
— O laxismo não é uma política.
— A repressão também não.
O emissário, perturbado, abreviou as suas férias. A situação revelava -se mais perigosa do que ele imaginava.
Os assistentes de Theodore Davis chamaram o patrão. Depois de terem desimpedido uma cave cheia até ao teto de lama seca, em resultado das chuvas torrenciais que se abatiam por vezes no Vale, acabavam de extrair da sua ganga uma figurinha desprovida de inscrições e um cofre de madeira. Embora estivesse partido, competia ao americano tirar-lhe as folhas de ouro que continha.
Davis amuou. Uma tumba minúscula, um modesto tesouro. Juntando as parcelas de folhas de ouro, viu aparecer um faraó no seu carro, depois o mesmo rei, despedaçando a cabeça de um libanês com a sua maça, enquanto a esposa o encorajava.
— Medíocre — pensou ele. — Que significam aqueles hieróglifos?
Ninguém era capaz de os decifrar.
— Poderíamos pedir a ajuda de Carter — propôs um dos assistentes.
Davis não hesitou; como tinha prometido ao inglês assinalar-lhe as descobertas mais importantes, a fim de preservar um entendimento cordial, iria preveni-lo sem tardar. Além disso, traduzia o texto.
Howard Carter acorreu. Contemplando as folhas de ouro, identificou imediatamente um trabalho da décima oitava dinastia; a voz faltou-lhe quando leu o nome do faraó guerreiro e caçador.
— Tutankhamon...
Pela décima vez, Carter explicou a Carnarvon que a estatueta, a caixa de madeira e as folhas de ouro tinham sido roubadas na tumba de Tutankhamon, antes de serem depostas numa cave desviada a que o arqueólogo dera o nº 58.
— Tutankhamon e a esposa, sob os meus olhos, esplêndidos, radiosos... desta vez não há mais dúvida nenhuma! O rei está no Vale. E é esse Davis, esse incapaz que se aproxima dele!
— Não gostaria de abalar as suas convicções, Howard, mas essas pequenas coisas de ouro provam mais a pilhagem de uma tumba real do que a sua preservação. No meu entender, é um indício desastroso.
— Ousa... ousa utilizar esse argumento?
— Receio ter razão.
— Recuso essa razão.
Durante os dias que se seguiram a esta conversa assim interrompida, Carter desenvolveu um ardor que esgotou os seus operários; os cabazes enchiam-se e esvaziavam-se em vão. Depois de um começo promissor, a missão enterrava-se. Quando atacava o sopé de uma colina, onde amontoados de fragmentos de calcário deixavam esperar por uma sepultura entulhada, Carter esbarrou com Theodore Davis trocista. Com o chapéu enterrado na cabeça, lenço branco a contrastar com o fato preto, o americano bamboleava-se como que bêbedo. Carter ajustou o seu lacinho à borboleta e encarou-o. Davis divertiu-se a traçar círculos na areia com a bengala.
— É um tipo catita, Howard; uma vez que segurou a língua, mantenho os meus compromissos.
— Uma nova tumba?
Uma gota de suor orvalhou a fronte de Carter.
— Intacta?
— Mais ou menos.
— Um rei?
— Este.
Davis tirou da algibeira um pedaço de tecido no qual estava escrito: “Tutankhamon, ano
— De onde vem esse tecido?
O americano levantou a bengala, como um maestro.
— Ainda não compreendeu? Da tumba de Tutankhamon, certamente!
— Impossível! — gritou Carter, magoado até à alma.
— Então, meu caro colega! É preciso render-se à evidência. Venha visitá-la, a sua famosa tumba; eu vou na sua frente.
Davis, subitamente desembaraçado como nos seus bons tempos, levou Carter até à colina situada sobre o túmulo de Séti II. À entrada da sua nova descoberta, havia operários a fazer a guarda.
O inglês, tão nervoso como intrigado, teve lágrimas de desespero.
— Entre, Howard, e veja com os seus olhos.
Carter avançou; aceitando o convite do americano, avaliava o seu sucesso. O que viu espantou-o.
— Mas... é um simples esconderijo!
— Aparentemente — retorquiu Davis. — Seja mais científico meu caro colega.
Carter penetrou na pequena divisão escavada na rocha; não media mais de um metro de lado e a sua altura atingia apenas dois metros. No solo, havia louças e secos.
— Não é uma tumba real — pensou Carter aliviado.
— Isso é que é! Examine a rolha dessa garrafa.
O inglês leu os hieróglifos: o modesto objeto estava carimbado com o nome de Tutankhamon.
— Tiremos ambos a conclusão — propôs Davis — acabo de descobrir a tumba desse pequeno monarca e de resolver assim um enigma irritante. Carter irritou-se.
— A sua posição é estúpida! É um esconderijo, Davis. E mais nada! Nenhuma tumba real se parece com isto!
— Acalme-se e reconheça a sua derrota; não será o fairplay uma especialidade britânica?
— Onde está o selo da necrópole real? Onde se encontra o sarcófago? Se continua a defender as suas inépcias, os egiptólogos mais ignorantes rirão na sua cara. Deixe-me examinar o conteúdo desses jarros.
Davis pôs-se à defesa com o corpo.
— Nem pensar! Venha amanhã à recepção que eu organizo na minha casa de apoio e conhecerá finalmente o tesouro de Tutankhamon!
Davis havia vinte anos que não se ria com tanto gosto.
Os quartos da casa de apoio tinham sido limpos, o escritório e o armazém das antiguidades arrumados, a cozinha e a sala de jantar lavadas a balde, sem respeito pela preciosa mercadoria.
Toda a equipe de Davis fazia segurança na frente do gabinete do guarda.
O americano fumava cigarro sobre cigarro, andando de um lado para o outro. Com uma sacudidela, limpou a cinza que não deixava de se acumular no seu fato preto. O sucessor de Lord Cromer, Sir Eldon Gorst, cônsul-geral da Inglaterra, já estava atrasado meia hora.
Howard Carter mantinha-se retirado; foi o primeiro a avistar a carruagem que, lentamente, subia a estrada.
Theodore Davis precipitou-se ao encontro do mestre oficioso do Egito; com o seu concurso, tornar-se-ia o mais célebre dos arqueólogos e poderia transferir para os Estados Unidos as mais belas peças arrancadas ao deserto.
Davis apresentou os membros da sua equipe ao ilustre visitante, evitou Carter, e fez-lhe o elogio de um personagem que o britânico encontrava pela primeira vez.
Herbert E. Winlock, conservador-adjunto do departamento do Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, vinha negociar a compra de antiguidades. Quase calvo, baixote, de olhar muito vivo, estava sempre em movimento; alguns dos seus colegas comparavam-no a um gnomo e temiam o seu espírito crítico e as suas graças ácidas. Com bom humor, Winlock gabou as excelentes relações entre o seu país e a Inglaterra e desejou que o almoço satisfizesse o paladar do seu convidado.
Davis, Winlock e o cônsul-geral trocaram banalidades à mesa de honra, armada no interior da casa de investigações, enquanto Carter, sem apetite, petiscava com os membros da equipe americana. Logo que a refeição terminou, Davis mandou trazer os jarros e os sacos armazenados na tumba de Tutankhamon, que tinha descrito a Sir Eldon Gorst sem o obrigar a uma visita de pouco interesse.
O pesquisador americano lançou-se num discurso atrapalhado, em que se gabava de ser o primeiro a desvendar um tesouro antigo na frente de um personagem oficial, cuja cultura lhe permitiria apreciar o acontecimento pelo seu justo valor.
Davis tirou a rolha do primeiro jarro, selado com lama seca e pedaços de papiro; tirou de lá uma pequena máscara pintada de amarelo para imitar a cor do ouro. Estalaram alguns aplausos.
Encorajado, Davis esvaziou o segundo jarro; apenas continha tiras de linho. O americano passou rapidamente a um terceiro, de onde extraiu fragmentos de ossos de pássaros e de outros pequenos animais. Envergonhado, continuou num ritmo acelerado. O espólio revelou-se miserável: destroços vegetais pedaços de louça, trapos, colares de flores, natrão. Nenhuma jóia de ouro.
— A arqueologia é uma arte — observou o cônsul-geral — por vezes conduz ao sucesso, por vezes à derrota. Será certamente mais feliz numa próxima vez, senhor Davis; da minha visita, apenas recordarei um fato: a refeição estava perfeita.
Quando a carruagem desapareceu numa nuvem de poeira, o americano atirou com o chapéu ao chão e espezinhou-o.
O Sol punha-se sobre a casa de apoio que Davis e a sua equipe tinham desertado. Herbert E. Winlock debruçou-se sobre o magro tesouro-que Sir Eldon Gorst tinha desdenhado.
— Conta comprar esses despojos? — perguntou Carter.
— Não sou seu inimigo e aprecio o seu trabalho. Davis só gosta do grande espetáculo; estes miseráveis objetos contam uma história. O senhor pode compreendê-la.
Intrigado, Carter ajoelhou junto de Winlock.
— Repare bem... estas ligaduras devem ter sido cortadas quando se fez o enfaixamento da múmia real. Com estes trapos, um padre limpou o corpo. O natrão foi utilizado para a mumificação; durante a cerimônia, quebravam-se vasos a fim de aniquilar magicamente as forças das trevas.
— O enterro de Tutankhamon... eis a sua prova.
— É a minha opinião; as inscrições que subsistem oferecem-nos uma identificação certa.
— E o resto?
Winlock refletiu tomou o peso a alguns ossos.
— Não se tratará dos restos de um jantar? Por ocasião de um banquete celebrado pelos participantes nas exéquias, estes comiam aves.
Carter contemplou com um novo olhar os colares florais, os troncos de acácias e as centáureas.
— No ritual, furavam obrigatoriamente ornamentos florais...
— Não falta nem o último pormenor. — Winlock exibiu uma vassoura de caniços. — Quando o banquete terminou, um padre serviu-se deste objeto para apagar as marcas dos passos dos convidados e abandonar a tumba ao eterno silêncio.
O pôr do Sol tingiu de rosa-alaranjado as colinas mais próximas do Vale dos Reis.
— Uma descoberta única, Carter: os restos do último jantar em honra do seu Tutankhamon. Vou levá-los para Nova Iorque e provarei a validez da nossa hipótese.
— Disse... nossa?
— Obstine-se, meu caro. Agora, é absolutamente certo que Tutankhamon foi enterrado no Vale.
Howard Carter folheou a obra de Davis, desatou a rir e deitou-a pela janela da sala de hotel onde Lord Carnarvon lhe oferecia chá.
— Não aprovo o seu gesto, Howard. Por um lado, poderia magoar um inocente; por outro, um livro merece mais respeito.
— Não é um livro mas um churrilho de idiotices! Leu o livro? A Tumba de Tutankhamon! Esse estúpido americano obstina-se. E não é tudo: obteve a colaboração de Maspero.
Carnarvon saboreou um muffin de uma qualidade razoável.
— O diretor do serviço contentou-se em redigir uma notícia sobre a vida de Tutankhamon, isto é, sobre o nada.
— Contudo, quero vê-lo e dizer-lhe aquilo que penso.
— O seu chá está arrefecer.
— A mentira é uma coisa insuportável.
— A humanidade também, Howard; deveria fazer parte do fogo. O seu inimigo está no auge da glória; Maspero tem de admitir que, desde 1903, descobriu uma quinzena de tumbas.
— Seria razão bastante para abrir uma Sala Theodore Davis no Museu do Cairo?
— Seria indispensável expor as descobertas. Em vez de incomodar o nosso bom Maspero e de bater com as portas, não deveria encarar a seqüência da nossa própria campanha de pesquisas?
Carter levou a chávena de chá aos lábios.
— Seja objetivo, Howard; Davis é um colosso de pés de barro. Grost não gostou nada da sua encenação falhada; não se desloca um cônsul-geral para lhe mostrar uma máscara de gesso e trapos velhos. Se o americano não continua a desentulhar pelo menos uma tumba por ano, a sua reputação corre o risco de ser demolida.
Os meios científicos desdenhavam de Carter e detestavam Davis. A este último reprovavam também o caráter precipitado das suas publicações e o ridículo do seu último trabalho. Era evidente que não se podia tratar de uma tumba real, fosse ela a do obscuro Tutankhamon. Era opinião geral que o americano tinha dado um passo em falso.
Carter dirigia com entusiasmo a sua própria equipe; nenhum sucesso notável coroava os seus esforços.
Era verdade que tinha desenterrado uma tábua coberta por um texto relatando a guerra de libertação conduzida pelo rei Kamose contra os Hicsos, invasores asiáticos que tinham ocupado o país no fim do Médio Império. O valor histórico dessa modesta relíquia, à qual Carter deu o nome de Tábua Carnarvon, divertiu durante algum tempo o senhor de Highclere; dividia o seu tempo entre breves permanências no campo e longas entrevistas com personalidades egípcias. Lordy tornava-se a pouco e pouco uma personagem-chave do país; cada um apreciava o seu sentido diplomático, a sua capacidade de escuta e o seu conhecimento dos arquivos. O Foreign Office, que esbarrava por vezes com a independência de espírito do quinto conde de Carnarvon, regozijava-se contudo com a sua franqueza e a sua lucidez.
Que um observador da sua qualidade mantivesse um olhar sobre os propósitos do cônsul-geral, satisfazia alguns membros do Governo de Sua Majestade; os altos funcionários em exercício no estrangeiro eram tomados por vezes por tiranos.
A rede de espionagem de Carter funcionava às mil maravilhas. Graças aos guardas do Vale que ele conhecia havia muito tempo, seguia passo a passo as escavações de um Davis cada vez mais agitado. O americano não se recompunha da sua desastrosa prestação: à guisa de represália, tinha despedido vários membros da sua equipe e buscava encarniçadamente cada montículo e cada sopé de colina. Provaria, mais uma vez, que era o melhor e que só, era capaz de descobrir novas tumbas.
Fevereiro de 1908 terminava quando um gaffir, ofegante, avisou Carter que a equipe de Davis estava a ponto de entrar numa cave intacta. O inglês deixou o seu próprio campo e chegou ao Vale a toda a pressa.
Davis, de cigarro na boca, olhou-o com desdém.
— Ei-lo já aqui, Carter! Fique satisfeito; desta vez apanhei o seu maldito reizinho!
O americano mandou buscar as folhas de ouro encontradas na entrada do hipogeu. Carter leu os nomes de Tutankhamon e do seu sucessor, Ay, cuja sepultura tinha sido identificada.
— Isso não prova nada.
— Verá!
Foram necessários três dias para tirar os fragmentos de pedra que enchiam o vasto túmulo a que se chega por uma escada larga. À medida que os operários evacuavam o entulho, Davis trazia para a luz admiráveis pinturas murais de cores intactas; o seu brilho e a sua frescura faziam crer que tinham acabado de ser feitas. Mas o americano apenas via um pormenor: o nome do faraó proprietário do lugar, onde não subsistia tesouro nenhum. Não se tratava de Tutankhamon, mas de Horemheb.
Carter rejubilava.
Horemheb, general chefe sob o reino de Akhenaton, tinha continuado a ocupar o seu posto quando Tutankhamon tomara o poder. Sempre igualmente poderoso durante os dois curtos anos em que o velho cortesão Ay tinha passado a ser senhor das Duas Terras, Horemheb tinha subido ao trono. A tumba nº 55 atribuída a Akhenaton, a tumba de Ay, essas duas, não tinham sido destruídas por Horemheb; porque teria ele exercido uma vingança cega contra Tutankhamon? A menos que o jovem rei não se tivesse tornado culpado de uma proeza que tivesse justificado o apagamento do seu nome e a destruição dos seus monumentos.
Davis acumulava as aldrabices. Não só não redigia relatórios científicos sobre as suas escavações mas também proibia aos seus assistentes que os publicassem; vozes cada vez mais numerosas se elevavam contra os métodos precipitados do americano.
O Inverno de 1909 tinha começado mal para Carnarvon. Cedendo ao requerimento de Carter, persuadido de ter esgotado o sítio de Dar el-Bahari, tinha aceitado abrir um campo no Delta onde se exumam por vezes estátuas esplêndidas. Fracasso violento e dias perdidos, em resultado de uma estação fria e úmida em regiões onde os templos tinham sido desmontados pedra por pedra; com o regresso ao calor, a equipe tentou trabalhar perto de Sais, mas uma invasão de cobras tinha-a dissuadido.
Enquanto Carnarvon, depois de numerosas conversas com políticos do Cairo e da Alexandria, voltava a Inglaterra, Carter regressava a Luxor. Não lhe chegara nenhuma mensagem; já sabia que, pela primeira vez, a estação de escavações de Davis revelara-se totalmente infrutuosa.
Abandonando o centro do Vale, o americano tinha explorado em vão as ravinas e as falésias que bordavam o vale do oeste, antes de se perderem em valezinhos igualmente estéreis.
Despeitado, com um ar sombrio, Davis afirmava a quem o rodeava que o Vale dos Reis já não escondia senão montículos de areia.
Lady Carnarvon via, com receio, aproximar-se o fim do Outono de 1910. Breve, George Herbert mandaria fazer as malas.
— Esse concerto agradou-lhe?
— Estou horripilado! Esse senhor Stravinski e o seu Pássaro de Fogo fazem um alarido que não tem relação alguma com a música. Os meus ouvidos ainda zumbem.
— Parece cansado.
— A umidade rói-me. É tempo de partir para o Egito.
— A sua filha vai queixar-se outra vez da sua longa ausência.
— Evelyn é sensível e inteligente, compreende as minhas razões profundas.
— Não tenho assim tanto a certeza.
— Vai ver... um dia partilhará o meu amor pelo Egito.
Lady Carnarvon parou de lutar. Ninguém era mais obstinado que o esposo.
Carter esperava pelo patrão no cais da estação de Luxor. Pelos seus olhos faiscantes, o conde soube que o seu arqueólogo tinha obtido um belo sucesso. Já há muito tempo que os dois homens evitavam as banalidades e entendiam-se com um olhar. Susie manifestou a sua alegria lambendo as mãos de Carter.
— Uma tumba?
— A do fundador do Vale dos Reis, senhor conde. Mergulhei no estudo do Papyrus Abbotte, tenho a certeza que a sepultura de Amenófis está ao alcance da mão. Seria uma fantástica descoberta.
— Esqueceu-se de Tutankhamon?
— Penetraremos em duas tumbas invioladas.
— Belo otimismo: o que é que o prende?
— Tenho contatos com informadores... difíceis de manejar.
Carnarvon levantou as sobrancelhas.
— Melhor dizendo, gatunos. Tenha cuidado consigo, Howard; Susie, habituou-se à sua companhia e não gostaria de o perder de uma maneira brutal.
A sala das traseiras do café estava cheia de fumo e empestava a alho; Carnarvon sentou-se a uma mesa onde dois clientes tinham abandonado as suas chávenas de café. O aristocrata, com o seu casaco de sarja azul e as suas calças amarrotadas, não parecia um turista rico. Encomendou um chá de menta que não tinha intenção de consumir, e esperou pela chegada de Demóstenes.
O colosso barbudo permanecia fiel ao seu chapéu branco, à sua sobrecasaca preta e às suas calças vermelhas. Um criado trouxe-lhe imediatamente um licor à base de sementes de cânhamo e bloqueou a entrada do local com cadeiras.
— Eis-nos sossegados, Lord Carnarvon.
— Porque me queria ver com urgência?
Demóstenes bebeu um golo da sua droga favorita; as suas mãos tremeram. As suas pálpebras inchadas acentuavam o seu aspecto doentio.
— Porque está em perigo de morte.
— Desagradável notícia! É hipótese ou certeza?
— Está incomodar, senhor conde. Certos egípcios de alto nível não apreciam nada as suas intervenções, e alguns ingleses que possuem interesses financeiros no país, ainda menos.
— Somos sempre traídos pelos nossos, meu caro Demóstenes. Teve rumores de intenções mais... precisas.
— Não, apenas persistentes. Isso merece bem um bakchich?
— Sem dúvida alguma.
Um maço de libras esterlinas mudou de mãos.
— A sua comissão será mais consistente se as suas informações forem mais completas.
— Impossível, senhor conde. Estimo muito a miserável pele; como me é simpático, alertei-o. Agora compete-lhe atuar.
Demóstenes esvaziou o copo e deixou o café cambaleando.
À mesma hora, numa casa térrea de Gurnah, Howard Carter tomava café com um dos seus gaffirs do Vale dos Reis, que Davis tinha contratado para vigiar o último campo.
O homem, de uns cinqüenta anos de idade, era um dos mais temíveis gatunos do clã Abd el-Rassul, que lhe ofereceu uma proteção eficaz. Graças a esse apoio, o gaffir podia vender algumas belas peças, desprezadas pelos arqueólogos.
— Onde está Davis?
— Explora os recantos desconhecidos do Vale.
— Com êxito?
— Enfurece-se cada vez mais; Deus tirou-lhe a sorte. Desejava adquirir essas peças?
O gaffir desdobrou um grande lenço. Aparentemente, tratava-se de sardônicas e cornalinas gravadas; numa delas, uma cena de jubileu mostrando Amenófis III, pai ou avô de Tutankhamon, e sua esposa Tiyi sob a forma de esfinge alada.
Para Carter, o mais difícil começava: a negociação duraria várias horas.
Carnarvon examinou o pequeno tesouro que Carter lhe trazia; ter aquelas jóias antigas na palma da mão, tomar-lhes o peso, tocá-las com a ponta dos dedos, proporcionava-lhe um real prazer.
— Parabéns, Howard! Um tesouro de Amenófis I?
— Infelizmente, não! Mas é proveniente do Vale.
O conde franziu o sobrolho.
— Parece-me que não temos direito algum de lá fazer escavações?
— Comprar não é proibido.
— Davis não se importa?
— Davis está muito deprimido: não fez nenhuma descoberta de há dois anos para cá, publicações más, uma equipe que se desloca. Creio que está a ponto de se ir embora.
Carnarvon torceu alguns pêlos do bigode.
— Se estou a compreendê-lo, a operação Vale dos Reis começou?
Carter sorriu.
— O ideal é o único fogo que nunca se extingue; dê-me os meios de o atingir e farei de si um homem feliz.
— Curiosas palavras, Howard; o multimilionário não sou eu?
— Esquece-se que Tutankhamon e os seus tesouros breve estarão ao alcance da minha mão.
— E a sua famosa tumba de Amenófis I?
— Estou no seu rasto.
Theodore Davis irrompeu pelo escritório onde Maspero conversara com Lord Carnarvon; o egiptólogo francês levantou-se.
— Que significa esta intervenção, senhor Davis?
— Porque está o conde de Carnarvon aqui?
— Os meus encontros só a mim dizem respeito.
— Vou dizer-lhe, Maspero: Carnarvon quer obter a concessão do Vale dos Reis e despojar-me do meu campo.
— E quanto será isso? O senhor é um homem idoso e cansado, senhor Davis; tantos anos passados no Vale esgotaram-lhe a curiosidade.
O rosto redondo de Theodore Davis tornou-se vermelho de cólera.
— Foi esse maldito Carter, que atua como seu intermediário... Ele quer o Vale, mas não é bastante rico para o comprar! Tenha a certeza que não o conseguirá.
Maspero tentou mostrar-se conciliador.
— Que importância tem? Não há mais nada para encontrar; as suas escavações provaram-no de uma forma definitiva.
— Pouco importa; não quero que Carter toque num só calhau do Vale.
— Porquê tanto ódio? — interrogou Carnarvon.
A pergunta surpreendeu Davis. Acendeu um cigarro e passeou de um lado para o outro.
— Porque... porque é Howard Carter.
— Isso é pouco — observou Maspero.
— Perturba o sistema, empurra os hábitos, encarniça-se a seguir o rasto de um rei sem interesse e de uma tumba que não existe! Esse tipo tem um feitio impossível... julga que o Vale lhe pertence desde sempre. O seu caso é para um psiquiatra.
— E se ele tivesse razão? — sugeriu Carnarvon.
Desconcertado, o americano bateu com o punho na secretária de Maspero.
— Comigo vivo, Carter não dará uma só enxadada no Vale! Não tem o direito de exigir a minha concessão, senhor Maspero.
— É exato, mas...
— Nenhuma das tumbas que escavei o foi de maneira definitiva.
— Portanto, recomeço; quer ciência?
— Vai tê-la. Inspecionarei os meus sepulcros metro a metro. Assim, Carter compreenderá que não abandonarei mais os lugares.
Davis saiu do escritório batendo com a porta.
Desolado disse Maspero
— Esperava mais compreensão.
— Que fazer?
— Infelizmente, nada. O Vale pertence a Davis.
Carnarvon olhou-se no enorme espelho. Sentado num cadeirão confortável, com o peito coberto por um imenso guardanapo branco, viu o barbeiro inclinar-se para a sua face esquerda, cobri-la com espuma e levantar uma navalha inglesa que ele tinha amolado num pedaço de cabedal.
— Ibrahim está doente?
— Um resfriamento, senhor conde. Estou a substituí-lo.
O barbeiro tinha a mão segura. A lâmina deslizava sobre a face e a espuma foi atirada para a tigela da barba de fabricação inglesa, também ela.
— O ar está um pouco fresco esta manhã.
— Não é obrigado a conversar comigo, meu amigo.
O barbeiro estendeu a espuma na face direita.
— Não tenho a certeza que a nomeação de Lord Kitchener como cônsul-geral seja apreciada pelos Egípcios. É um homem duro, que não compreenderá as aspirações do nosso povo.
— Será que é especialista em política internacional?
A lâmina pousou no pescoço.
— Deveria ouvir-me, senhor conde.
— Porquê?
— Porque esta navalha é uma arma temível e que o senhor está sem defesa.
A pistola que aponto ao seu abdómen é uma prova do contrário; não faça nenhum falso movimento.
— Serei mais rápido que o senhor.
— O futuro o dirá; escuto-o.
A lâmina tinha-se imobilizado. A voz do barbeiro tornou-se mais surda.
— Dado que é um amigo do Egito, senhor conde, dissuada Kitchener de empreender uma repressão contra os partidários da independência.
— Empresta-me poderes que eu não possuo.
— Contudo tente; a sua influência é considerável. Se lutar ao nosso lado, evitaremos um banho de sangue. Senão...
A lâmina retalhou a carne.
— Quem o envia?
— O povo, senhor conde. Não esqueça.
O falso barbeiro retirou-se.
Carnarvon tirou a toalha branca e passou a mão pelas faces barbeadas de uma forma impecável.
Se continuassem a importuná-lo, precisaria de se munir de uma arma de fogo que tinha simulado com o indicador e o médio.
Nesse ano de 1912, que ficaria conhecido como o do naufrágio do Titanic, o Egito tinha passado a ser inglês. A velha terra dos faraós pertencia, a partir de agora, à Grã-Bretanha. A operação tinha-se desenrolado sem aparente traumatismo, graças a alguns homens de diálogo, na linha dos quais figurava o quinto conde de Carnarvon.
Howard Carter tinha outras preocupações. Dava os últimos retoques a um livro de que era cosignatário com o patrão, Cinco Anos de Explorações em Tebas. O trabalho provava aos especialistas que a sua colaboração com o multimilionário britânico se traduzira por um trabalho sério, embora pouco espetacular. Com orgulho, Carter ofereceu o volume a Maspero.
— Excelente, Howard; estou feliz por o ver de novo conquistando. — Sinto a sua falta.
— Por causa dos roubos?
— Exatamente.
— Roubam as tumbas, retalham os baixos-relevos, partem as estátuas para transportarem melhor os pedaços... as seitas organizadas são cada vez mais ativas, eis a deplorável realidade! Os clientes são numerosos e ricos.
— Eu sei! — rugiu Maspero. — Poderiam ter posto um freio a esses tráficos! À minha volta só há corrupção e laxismo. É por isso que tomei a decisão de fazer votar uma lei contra as escavações clandestinas.
— Crê na sua eficácia?
— Mandarei vigiar os sítios e vigiar a mão-de-obra nos campos; as medidas mais simples são por vezes as mais positivas.
— Contem comigo para os ajudar.
Os dois homens apertaram as mãos.
Theodore Davis entrou numa cólera violenta, tratou os colaboradores de incapazes e de imbecis, depois refugiou-se no seu quarto. Ninguém ousou entrar na casa de apoio onde, havia duas estações, reinava um aspecto sinistro.
Davis já não conseguia descobrir novas tumbas. Tinha de se contentar em desentulhar caves conhecidas havia muito tempo e de regularizar questões de arqueologia sem interesse. Ele, o mais ilustre dos comanditários, tornara-se a chacota dos seus adversários e dos seus colegas; os membros da sua própria equipe começavam a criticá-lo. Cada dia estalavam querelas a propósito de tudo e de nada; o período dos grandes êxitos estava longe. Mas um Theodore
Davis poderia renunciar?
Havia uns quinze dias que Carter não tinha qualquer notícia do Vale. Só os turistas freqüentavam o sítio mais célebre onde toda a atividade arqueológica parecia extinta. Os seus informadores calavam-se; não havia nenhum contato com os gaffirs que pretendiam conhecer a localização da tumba de Amenófis I.
Carter almoçou com Raifa em casa do amigo deles pintor. Apesar da sua insistência, a jovem recusava sempre a posar; ser fechada no seu próprio retrato parecia-lhe pior do que a morte.
Raifa não evocava mais o casamento; contentava-se com a fidelidade do seu amante, de momentos de ternura roubados ao seu trabalho e ao seu sonho, com um amor sincero que o tempo não gastava. No Inverno, não procurava encontrá-lo; Carter estava votado a Carnarvon e trabalhava com um furor e uma constância que assustavam os seus colegas. Quando o calor se tornava insuportável, era preciso interromper as buscas no terreno e entregar-se a trabalhos de inventário e de arquivo; tornava-se mais acessível, aceitava vê-la, esquecer um pouco livros, documentos e relatórios. Conseguia arrastá-lo para longos passeios a que, a pouco e pouco, ele se confiava, confessava amargura, dúvida, esperança.
Assim decorria a existência deles, ao ritmo do Nilo, assim se tecia a sua paixão sob o olhar dos génios da margem do Ocidente.
— Pareces inquieto.
— Um pouco de cansaço, Raifa.
— Não acredito.
— Tens razão. Estou inquieto.
— Que receias?
— O Vale não me liga importância. Está aí, ao alcance da minha mão e recusa-me. Contudo, sabe que o conheço melhor do que ninguém; estará morto, Raifa? Terá contado todos os seus segredos?
O dono da casa interrompeu-os.
— Um homem procura-te, Howard; afirma que é urgente e importante.
— Um habitante de Gurnah?
— Não, um europeu.
Carter pediu desculpa a Raifa. O visitante inesperado não era outro senão Theodore Davis; com o chapéu enfiado até meio da testa, o fato preto coçado, os johdpurse, as polainas poeirentos, quase metia dó.
— Perdoe-me de o incomodar... queria falar-lhe.
Carter não estava habituado a tais deferências.
— Vamos até à colina; estaremos lá sossegados.
O Sol ia alto no céu; o ar vivo rosava as suas faces. Sob os seus passos, a areia estalava bem como o cascalho e os fragmentos calcários.
— Tenho setenta e cinco anos, estou doente e cansado; o Vale gastou-me. Talvez se vingue, uma vez que desvendei todos os seus mistérios.
— Sabe bem que não.
— Sabe bem que sim, Carter. Todas as tumbas reais foram descobertas.
— A de Tutankhamon, não.
— Um simples esconderijo para um reizinho... as folhas de ouro provam-no. Apesar da nossa rivalidade, estimo-o e posso afirmar-lhe, sem qualquer pensamento reservado, que é a minha última convicção. Foi mesmo nesta modesta cave que Tutankhamon foi inumado. Alguns gatunos terão destruído o sarcófago e a múmia. Não se encarnice numa busca inútil; o seu talento merece melhor. Há cinqüenta sítios inexplorados que o esperam.
— Tenho encontro marcado com Tutankhamon e cumprirei os meus compromissos.
— A vossa fantasia... eu deixo isto.
Carter imobilizou-se, estupefato.
— Tomei a decisão de deixar o Egito e de renunciar à minha concessão. Na minha idade, convém repousar.
Carter continha mal a sua alegria.
— O Vale... o Vale está livre?
— Tenha um pouco de paciência, restam formalidades a cumprir. Mas, com efeito, sê-lo-á dentro em breve.
O inglês fechou os olhos.
— É... fabuloso!
— Não se regozije depressa demais. Por um lado, talvez não obtenha a minha sucessão, por outro, não colherá senão uma carcaça vazia. O Vale entregou todos os seus tesouros.
— Impossível.
— Tê-lo-ia prevenido.
— Lord Carnarvon não poderá recebê-lo — declarou a enfermeira inglesa com desdém.
— Está doente? — perguntou Carter.
— Por favor, senhor! Com que direito...
— O do seu principal colaborador.
A enfermeira encolheu os ombros.
— As visitas estão proibidas.
— Para mim, não; queira anunciar-me.
— Não é possível.
Exasperado, Carter empurrou o “cérbero”, abriu a porta do quarto, e pôs-se em frente da cama em que repousava Carnarvon. À cabeceira, Susie velava.
— Saia imediatamente! — berrou a enfermeira. Febril, de rosto cansado, o conde ergueu-se.
— Calma, enfermeira; o doutor Carter era esperado.
Ela abandonou a luta com uma expressão afetada.
— Tenho uma notícia formidável!
— A tumba de Amenófis I, finalmente?
— Melhor; o próprio Vale! Davis renuncia; é nosso.
De braços pendentes, Carnarvon atirou a cabeça para trás.
— Receio ter de renunciar eu também.
— De que sofre?
— De uma infeção estranha; os médicos não percebem nada.
— Confie em mim.
Duas horas mais tarde, Carter estava de volta em companhia de Raifa. A enfermeira deitou-lhes um olhar dubitativo mas não ousou intervir.
Carnarvon sentia-se demasiado fraco para protestar; Raifa deu-lhe água a beber, sobre a qual tinha soprado um dervixe, esfregou-lhe a fronte com ervas cheirosas e pôs-lhe sobre o peito um amuleto portador de um versículo do Corão. Depois fechou as portas de madeira das janelas, correu os reposteiros e, sem pronunciar palavra, saiu do quarto.
O conde saboreava o seu segundo kebah com um belo apetite e esvaziou uma caneca de cerveja preta. Susie apreciou o carneiro assado.
— O apetite voltou, meu caro Howard; a sua curandeira é notável.
— Compreenda a minha impaciência... Que deu a sua entrevista com Maspero?
— Nada.
— Como, nada?
— Os desejos de Davis não se tornaram realidade. Oficialmente, conserva a concessão, mesmo não encarando mais qualquer trabalho no Vale.
— Contudo, abriu-se com Maspero?
— A si, e só a si. O diretor de serviço está convencido que sonhou.
— Juro-lhe que...
— É inútil, Howard; Davis deu-lhe falsas esperanças.
— Parecia-me sincero.
— O senhor é um grande arqueólogo mas um fraco conhecedor da natureza humana; o seu adversário engodou-o.
— Tenho a certeza do contrário; Davis está gasto. Já não tem vontade de lutar contra o Vale.
— Esperemos que tenha razão.
Durante a estação 1913-1914, Carnarvon esteve muito ocupado no Cairo; seguiu de perto a evolução política de um Egito que, graças a uma lei orgânica, dispôs de uma assembléia legislativa de sessenta membros eleitos e de vinte e três nomeados pelo Governo. Naturalmente que só detinha um poder: criar novos impostos diretos; mas foi um passo para a independência, cujo campeão, Zaghlul, não hesitou mais em afirmar a sua convição. Desejoso de evitar confrontações diretas, Carnarvon multiplicou as conversas confidenciais e favoreceu os contatos entre os responsáveis pelos dois campos. A Inglaterra mostrou-se primeiro atenta e conciliadora; mas, 1914, viu a situação degradar-se. As autoridades britânicas endureceram a sua posição. Vários contingentes de soldados reforçaram a presença militar estrangeira; as casernas receberam um material moderno.
O povo murmurou. Os diferendos entre nações européias não o interessavam, mas os soldados estrangeiros, armados até aos dentes, guardavam os edifícios públicos das grandes cidades e desfilavam em país conquistado.
Carter ficava indiferente às convulsões que se anunciavam. Na Primavera de 1914 foi à casa de apoio de Theodore Davis, a fim de encontrar o último dos seus assistentes ainda a trabalhar.
Henry Burton, chamado Harry, era inglês e tinha trinta e cinco anos. Vestido com fatos clássicos que o seu alfaiate londrino expedia para “H. Burton, tumbas reais, Luxor”, arvorava um rosto severo; ninguém o ouvira rir nem brincar. Meticuloso, mesmo maníaco, queria que os seus cabelos pretos fossem colados ao crânio achatado e que o seu lenço de peito fosse de uma brancura imaculada.
As apresentações foram glaciais.
— Howard Carter, arqueólogo de Lord Carnarvon,
— Henry Burton, fotógrafo de Theodore Davis; faça favor de entrar.
Na parede, fotografias de esfinges, pirâmides, tumbas e paisagens inglesas, onde relvados verdes se alimentavam de uma chuva generosa.
— A casa está um pouco em desordem; não tenho tempo de a arrumar.
— Queira desculpar o caráter improvisado da minha visita; procedi sobre um impulso.
— Admitamo-lo. Deseja visitar o meu quarto-escuro?
— Com prazer.
Carter admirou o material que Burton tinha instalado; sem dúvida alguma, era o melhor profissional que operava no Egito.
— Posso convidá-lo para almoçar, senhor Carter? Acabam de me mandar salsichas de Oxford, um coelho com cogumelos, cerveja alemã e bicarbonato de soda.
A refeição desenrolou-se num ambiente mais cordial. Burton revelou, não sem orgulho, que as suas fotografias saíam no Illustrated London News e que contava unir-se à expedição do Metropolitan Museum em Dar el-Bahari.
— Davis voltará ao Egito?
— Não. Retirou-se para a sua residência de Newport, de onde me enviou as suas ordens: localizar a área entre a tumba de Merenptah e a de Ramsés VI. Procedi a algumas sondagens, sem resultado; não disponho nem de homens nem do material indispensável. Um combate de retaguarda... a missão de Davis terminou.
Carter dominou com grande dificuldade a sua excitação. Davis não lhe tinha mentido.
— Leu os últimos números do Daily Mail e do Westminster
— Gazetté? As notícias são desastrosas, caro amigo. Na nossa velha Europa, as tensões aumentam; espero que os governantes sejam bastante ajuizados para evitar horríveis conflitos.
— A mensagem de Davis... seria a última?
— Sem dúvida alguma.
Um barulho estranho intrigou os dois homens. Primeiro julgaram que se enganavam; depois renderam-se à evidência: a chuva, uma chuva batida, torrencial, abatia-se com uma violência inaudita sobre o Vale dos Reis e formava torrentes furiosas, carregando lama e cascalho. Em menos de uma hora, as tumbas de Ramsés II e de Ramsés III foram inundadas e obstruídas por um amontoado de fragmentos.
— Não terei tempo de as desimpedir — declarou Burton, abatido. — Aquele lugar é maldito.
Carter meditava à entrada do Vale, quando dois homens, com um ar sombrio, se dirigiram para ele. Um deles, Mohamed Abd el-Gaffir, era um dos informadores que afirmavam conhecer a localização da tumba de Amenófis I. Imobilizou-se a um metro do arqueólogo e mostrou-lhe o conteúdo do seu cabaz: pedaços de vasos de alabastro.
— Vendo — declarou com gravidade.
— Onde encontraste esse tesouro?
O ladrão contraiu-se; Carter devia ajudá-lo.
— A tumba que me prometeste?
Abd el-Gaffir baixou os olhos.
— Existe um poço?
— Existe; ao centro.
— Fundo?
— Muito fundo.
Carter exultava; tratava-se pois de uma tumba real!
— Leva-me lá.
— Terá de pagar.
— Serás recompensado.
— Uma parte para os vasos, outra para a tumba.
— Está bem.
Uma breve negociação permitiu fixar os preços, depois Abd el-Gaffir guiou Carter por um atalho a pique, atrás de Dar Abu el-Naga. A cave fora cavada num valezinho sombrio e isolado, escondido em relação ao Vale. Um bloco escondia a entrada; o arqueólogo e o gatuno deslocaram-se com dificuldade. Esse esforço acalmou Carter, febril por causa da idéia de penetrar no sepulcro intacto de Amenófis I, o criador do Vale dos Reis.
Logo que o archote iluminou a tumba, Carter censurou-se pela sua ingenuidade. Milhares de cacos de vasos de cerâmica e de alabastro juncavam o solo; Abd el-Gaffir e os seus acólitos tinham-se entregado a uma pilhagem sem regra antes de negociar aquele esqueleto. Amenófis não tinha escapado à rapacidade dos vampiros.
Despeitado, Carter comprou, para Carnarvon, as mais belas peças que Abd el-Gaffir guardava para ele, e expediu um relatório ao seu patrão; insistiu sobre a importância arqueológica da descoberta e sobre o fato de que o conde Carnarvon tinha identificado a localização secreta da última morada de um ilustre faraó.
Completamente calvo, de bigodes brancos, corpulento, de olhar severo e com as mãos gorduchas, Maspero não dissimulava o seu cansaço.
— Passados, dentro em pouco, sessenta e oito anos que andam no ar, as minhas asas começam a cansar-se, meu caro Howard; vejo aproximar-se o momento de as fechar. É com esse sentimento do fim inevitável que eu procuro terminar, senão tudo o que tinha sonhado fazer pelo menos quase tudo aquilo que comecei. Infelizmente, os dias têm apenas vinte e quatro horas e a empreitada administrativa encurta-mas de tal maneira, que tenho muita dificuldade em encontrar de tempos a tempos as horas que tinha necessidade para levar a termo todos esses trabalhos.
— Provavelmente será com eles como muitas coisas humanas: muita ambição para pouco proveito.
— Posso testemunhar, a meu favor, que não desencorajei qualquer verdadeira vocação por culpa de uma severidade pedante, vaidosa ou deslocada.
— Nesse caso, encoraje a minha.
— Que quer ainda, Carter?
— O Vale.
— O Vale, sempre o Vale!
Maspero levantou-se e olhou pela vigia do seu barco ancorado perto do Museu; tinha amontoado livros, documentos administrativos e anotações tomadas durante os anos em que tinha reinado como mestre incontestado sobre o Serviço das Antiguidades. Era o escritório que ele preferia; dava-lhe a sensação de estar sempre em viagem, de não se fixar na respeitabilidade; de um erudito cumulado de honrarias.
— Davis é o proprietário da concessão.
— Renuncia e eu quero-o.
— Porquê, Carter?
— Porque é a minha vida; creio nele.
— Agora a fé! Eu, perdi-a... No começo, cria verdadeiramente na unidade do deus egípcio, na sua imaterialidade, na sublimidade do ensinamento que os seus padres davam: tudo era sol para mim. Agora, sou céptico. Os fatos, só os fatos, e todas as religiões num pé de igualdade!
— Desolado de o desapontar: a minha fé no Egito está intacta.
— É jovem; renunciará às suas ilusões.
— Nunca perderei o caminho do Vale.
Maspero apoderou-se de um caderno e brandiu-o junto do rosto de Carter.
— As minhas notas são formais! As areias do Vale foram remexidas em todos os sentidos. Nem uma só tumba real falta ao chamamento.
— A de Tutankhamon...
— Quimera!
— Mesmo que eu tenha de deslocar toneladas de terra e de cascalho, hei-de encontrá-la.
— Não tem qualquer prova da sua existência.
— Claro que sim: uma taça de faiança com o nome do rei, uma folha de ouro com a sua efígie e uma parte do material funerário utilizado aquando das suas exéquias.
— Retomar as escavações no Vale, vão fazer-lhe perder tempo e dinheiro; Carnarvon tirou-o do inferno, reconheço-o, mas a sua colaboração já não tem qualquer sentido.
— É meu amigo; precisa de mim, eu preciso dele. Vários setores do Vale, escondidos debaixo de entulhos antigos ou recentes, não foram explorados.
— Só descobrirá pequenos objetos sem valor; não reembolsarão o investimento de Carnarvon. A conclusão de Davis é formal: o Vale está despojado dos seus segredos.
— Um só ausente: Tutankhamon. Porquê negar a evidência? Na cadeia de reis, ele é o único elo que falta.
— Reizinho sem poder e sem sepultura... eis a verdade.
— O senhor já escreveu o contrário. Dê-me a concessão; não terá de lamentar.
— Já o lamento; merece melhor do que uma obsessão. Os papéis encontram-se em cima da mesa, à esquerda.
Carter apertou ao peito os preciosos documentos; naquele mês de Junho de 1914, tornava-se proprietário oficial do Vale dos Reis. Aos quarenta e um anos, realizava o seu sonho mais louco.
— Volto para França — declarou Maspero. — Não nos tornaremos a ver.
Carter entrou na casa de apoio de Theodore Davis, abandonada havia pouco tempo; Burton tinha-se integrado na equipe americana de Dar el-Bahari: quartos, escritório, casa de jantar...estava tudo vazio. O fotógrafo, que tinha levado as suas fotografias e deixado as paredes nuas, só tinha esquecido um calendário.
Cada dia estava tomado, até ao fim de Junho.
O Verão ardente não incomodava Carter; era verdade que lhe faltava esperar algumas semanas antes de receber a autorização oficial das escavações, onde ele as desejava, nesse Vale com que sonhavam todos os arqueólogos; mas cada gaffir conhecia já o nome do novo senhor daqueles lugares.
O pôr de Sol de uma noite de Julho, acariciava a fronte de Raifa encostada ao ombro de Carter; tinham-se amado com o fogo de uma paixão sempre renascente, contra a qual lutava em vão o irmão da egípcia.
— Queria um filho, Howard.
— O Vale espera-me.
— Como podes tu comparar esse amontoado de pedras mortas ao ser que nascerá do nosso amor?
— Não estão mortas... estremece nelas uma outra vida que o tempo não pode gastar.
— Este sítio põe-te doido.
— É o meu destino; não tenho o direito de lhe fugir.
— Só gostas desses túmulos, desses reis desaparecidos, desse silêncio que me faz medo...
Apertou-a mais contra ele; calaram-se os dois. Raifa não protestaria mais, não tornaria a pedir a Carter mais alguma coisa além dele próprio. Devia tê-lo deixado, ter casado com um homem da sua raça e dar-lhe muitos filhos; mas aquele inglês, vindo de outro planeta, continuava a fasciná-la.
Tão exigente com ele próprio como com outrém, recusando compromissos e baixezas, encarniçado a perseguir o mais insensato dos ideais em risco da sua existência, o seu amante era um predestinado, um daqueles seres chamados a desempenhar, nesta terra, uma função que os ultrapassa, Carter não podia sair do caminho eterno traçado antes dele e para ele; se se afastasse um só passo, enfraqueceria como uma flor estragada. Era assim, e não seria de outra maneira.
Como lutar contra uma amante de três milênios de idade, jovem como o Sol da alvorada, que se chamava Vale dos Reis?
Os conselheiros militares britânicos consultaram-se com o olhar; o coronel que presidia à reunião apercebeu-se dos seus pensamentos.
— Vejamos, meus senhores! O conde de Carnarvon é um conselheiro benévolo, não tem outra finalidade senão a grandeza da Inglaterra.
— Nesse caso — protestou um jovem graduado — porquê inundar-nos de relatórios estúpidos?
— Pensaríamos ler as profecias de um iluminado!
O conde não se afastou da sua calma.
— Há um ano que os ponho em guarda. A guerra acontecerá e o Egito não escapará ao conflito.
— Ontem, o herdeiro do trono da Áustria foi assassinado em Serajevo; temia um incidente desse género. Os Balcãs inflamar-se-ão; e a vez das grandes potências chegará.
Os protestos estalaram, pontuados de exclamações: “Ridículo”, “vergonhoso”, “estúpido”. O coronel julgou necessário pôr fim à confrontação.
— O pessimismo é um mau conselheiro, Lord Carnarvon; agradecemos-lhe, contudo, a sua colaboração.
A 28 de Julho de
Carter, não se aguentando mais, tinha apanhado o comboio para o Cairo; Carnarvon só o recebeu em 1 de Agosto, dia em que a Alemanha declarou guerra à Rússia. Se bem que o conde parecesse muito preocupado, Carter conseguiu convencê-lo a ir falar com Maspero e a arrancar-lhe o último formulário que lhe permitiria escavar a seu modo.
O seu entusiasmo decidiu Carnarvon; o Vale dos Reis apresentava outros atrativos que não os dos futuros campos de batalha, onde o aristocrata via já a juventude européia entredespedaçarse, por causa da vaidade e da tolice de políticos cegos. Maspero estava lívido.
— Estou doente, senhores; a França curar-me-á. Julgava nunca mais o ver, Carter; amanhã, terei deixado este escritório, o Serviço das Antiguidades e o Egito.
— Vamos recordá-lo — disse Carnarvon comovido — antes da sua partida, poderia assinar o último documento que nos falta?
Gaston Maspero sentou-se à sua secretária.
— Ao fim de catorze anos, passados à frente daquele serviço, durante o meu segundo mandato, pus fim à rivalidade franco-britânica no terreno das antiguidades. Como recusar coroar essa bela obra? Beneficiarão, pois, do meu último ato oficial.
O erudito redigiu, em papel livre, um contrato entre o serviço e Lord Carnarvon; durante dez anos, o aristocrata, que confiava a direção científica das escavações a Carter, podia explorar o Vale dos Reis como entendesse. Se tumbas reais intactas fossem descobertas, permaneceriam propriedade do Egito; o conde guardaria, contudo, obras cujo valor correspondesse ao montante das suas despesas.
Na noite de 13 de Agosto, Carnarvon recebeu um Carter inflamado que acabava de terminar a redação do seu plano de trabalho; não lhe faltariam menos de trezentos homens para desimpedir os montículos de areia, de pedras e de fragmentos que cobriam as partes virgens do vale.
O conde leu-o com atenção.
— É demasiado tarde, Howard.
Carter tornou-se lívido.
— Mas ainda nem sequer começámos...
— A desgraça desencadeia-se sobre o mundo, meu amigo. Hoje, a Inglaterra declarou guerra à Áustria.
Carnarvon tinha seguido os conselhos de Kitchener que lhe pedia que deixasse o Egito o mais depressa possível e que voltasse para Highclere, a fim de transformar o seu imenso domínio em hospital de campanha. De regresso às suas terras, o conde apercebeu-se que duzentas e cinqüenta e três pessoas dependiam mais ou menos diretamente dele; o seu principal dever consistia em assegurar a sua subsistência. Lady Almina, feliz por reencontrar o marido, mas inquieta com o futuro, temia a falta de víveres: assim, o conde ordenou que as batatas ficassem nos campos, o trigo nos celeiros, e que se transformassem as pastagens em terras de lavradio.
Estabeleceu ele próprio um plano de racionamento, e dirigiu-se solenemente à sua gente a fim de que qualquer rapina fosse evitada, sob pena de exclusão definitiva do domínio.
Quando os primeiros oficiais feridos no combate chegaram, Highclere estava pronto a acolhê-los.
Carnarvon pensava no Egito, no sonho louco de Carter, que uma guerra mundial desfazia, naquele Vale que mais uma vez lhe fugia, mas afugentava essas emoções a fim de se concentrar numa só tarefa: lutar contra a barbárie alemã ameaçando a Europa inteira.
O táxi parou diante da entrada de Highclere; Lady Almina tentou reter o marido.
— É uma verdadeira loucura, meu querido; renuncie a partir, suplico-lhe.
— Quero combater.
— O seu estado físico é muito mau e já ultrapassou a idade do recrutamento; o Exército não pode aceitar o seu concurso.
— Tenho que ir ao Ministério da Guerra; graças aos meus conhecimentos de francês, farei um excelente oficial de ligação. O meu amigo, o general Maxwell, levar-me-á para a frente.
— Esquecerá o seu filho e a sua filha?
— Nem por um momento; nunca admitiriam que o pai recusou a bater-se.
Carnarvon beijou a esposa e sentou-se na banqueta de trás do carro.
Não longe de Londres, uma dor fulgurante atacou-lhe o ventre; com a testa molhada de suor, os lábios crispados, tentou resistir. O sofrimento foi mais forte. Despeitado, furioso contra si mesmo, pediu ao motorista que o levasse para Highclere onde a mulher o acolheu com a mais doce das ternuras. O conde, decidido a tornar a partir o mais depressa possível, consentiu em repousar alguns dias.
Uma semana mais tarde, a mesma dor reapareceu, ainda mais violenta. Com a transferência dos soldados feridos, o castelo ficara deserto. Pelos sintomas, Almina identificou uma crise de apendicite aguda; conseguiu obter um carro e, com a ajuda de um criado, acompanhou o marido à capital. No hospital diagnosticaram uma peritonite. Carnarvon, quase inconsciente, foi logo transportado para a sala de operações.
— Não sei se o seu marido sobreviverá — declarou o cirurgião.
— Chama-se Howard Carter?
— Exato.
O oficial superior não apreciava nada a atitude orgulhosa daquele personagem vestido com um blazer e umas calças de flanela; parecia um aristocrata demasiadamente habituado a viver afastado das realidades do mundo.
— Já não tem idade de ir para a frente bater-se, senhor Carter, mas ainda pode servir o seu país.
— Estou às suas ordens.
— Está nomeado mensageiro do rei e desempenhará esta função no Médio Oriente; o Foreign Office confiar-lhe-á diversas missões.
— Como quiser.
— Isso não é uma resposta de soldado.
— Sou arqueólogo.
O oficial superior pôs um comentário na coluna reservada à administração militar: “Espírito independente; tendência para a indisciplina. A vigiar.”
Em 18 de Dezembro, a Inglaterra decretou que o Egito deixava de ser vassalo da Turquia, aliada dos alemães, mas protetorado britânico. Em 19, o quediva Abbas II Hilmi, de tendências nacionalistas demasiado marcadas, foi deposto e substituído por Hussein que, a despeito do título sonoro de sultão, obedeceria às ordens do alto-comissário inglês. O Cairo tornar-se-ia uma base
operacional importante, e o esforço de guerra seria imposto, sem condescendência, à população egípcia. Se necessário, a lei marcial seria aplicada.
Convocado para as 8 e 30, Carter chegou um pouco depois das 11 horas. O oficial superior falou-lhe com veemência.
— É intolerável, senhor Carter! Não cumpriu nenhuma das missões que lhe foram confiadas, e não liga importância às autoridades!
— As instruções que recebo são absurdas.
— Como ousa...
— Os funcionários que as distribuem estão fechados nos escritórios e esquecem-se de pôr o nariz de fora.
— Disciplina e obediência são as maiores virtudes do soldado; não tem de criticar as ordens. Espero as suas desculpas.
— Reconheça de preferência os seus erros. Depois, desempenharei a minha missão como convém, e à minha maneira.
O oficial superior levantou-se.
— Está demitido, Carter.
Alguns meses depois do começo do conflito, não havia vencedor. Na Europa, começava uma interminável guerra de trincheiras, onde os soldados morriam em condições abomináveis; no Oriente, os Turcos tinham fechado os estreitos.
Com os movimentos livres, Carter tinha voltado a Luxor onde dividia o seu tempo entre Raifa e a visita sempre renovada das tumbas reais. O risonho Egito mergulhava na tristeza e na angústia; a maior parte dos campos estava fechada, muitos jovens arqueólogos tombavam no campo da honra, longe do Sol do Alto Egito e das suas pedras luminosas.
Carter passava longas horas solitárias no Vale, esse Vale que lhe pertencia e que não podia escavar com as mãos nuas. O desânimo conquistava-o; sem a presença de Carnarvon, sem a sua magia conquistadora, sentia-se abandonado. Porque se mostrava o destino assim tão cruel? No momento de saborear o fruto cobiçado durante anos, este retirara-se brutalmente.
Alguns prediziam que aquela guerra duraria dez anos, talvez mais, que o Egito seria invadido por hordas de turcos e de alemães, que os monumentos seriam arrasados e que os túmulos serviriam de entrepostos para munições.
Numa manhã fria de Dezembro, Carter pensou em renunciar. Escreveria uma comprida carta a Carnarvon para lhe explicar que o Vale se recusava para sempre. Com o coração num torno, entrou pela milésima vez na tumba imensa de Séti I, e deixou-se agarrar pelas cenas rituais e os textos esotéricos que cobriam as paredes. Acolheram-no deuses e deusas, pronunciando as palavras de vida gravadas na pedra, à medida que o seu olhar pousava sobre os hieróglifos. Sem dar por isso, Carter identificou-se ao Sol, que se enterrava no outro mundo, e defrontava os mistérios dos quartos escondidos com esperança de renascer; o astro moribundo atravessava doze aterradoras regiões onde reinavam trevas, génios agressivos, uma serpente decidida a destruir a luz. O viajante ultrapassou as portas, e passou por cima do poço fundo de onde subia a energia das primeiras idades; leu, nas paredes, O Livro do Dia e O Livro da Noite e recitou as fórmulas da abertura da boca.
Penetrou na sala do ouro, em que imperava a alma do Sol e o espírito de faraó, seu mensageiro, ressuscitado dentro do sarcófago; o de Séti I, transportado para Inglaterra, deixava um vazio cruel. Carter jurou a si mesmo nunca desnaturar uma tumba roubando-lhe o coração, essa pedra de regeneração que o Egito nomeava, não caixão mas “fornecedor de vida”. Levantando os olhos, admirou as representações da deusa do céu, dos astros, dos planetas e dos decanos; quem vencia a morte voltava para a luz de onde tinha saído e confundia-se com a própria origem do universo.
Desorientado, Carter escreveu a Carnarvon:
Um estudo superficial da mitologia e da religião egípcia poderia concluir que temos feito
progressos. Mas se temos capacidade para admirar e compreender a sua arte, perdemos
qualquer sentimento de superioridade. Pessoa alguma, dotada de sensibilidade, negará que
a arte egípcia tenha incorporado o essencial. Com todo o nosso progresso, somos incapazes
de o pressentir. O Egito é o horizonte da eternidade, o Vale detém o segredo. É por isso
que devemos continuar. Eu fico aqui e espero-o.
Lord Carnarvon examinou jornais e telegramas. A situação evoluía mal. Os submarinos alemães conseguiam organizar o bloqueio da Inglaterra, e as ofensivas aliadas, mal preparadas, não desembocavam em nenhum sucesso de envergadura. Por entre a vaga de más notícias, a carta de Howard Carter tinha trazido um pouco de luz. O Vale... o conde sonhava com ele agora. Representava um paraíso inacessível em que a loucura dos homens se extinguia junto das moradas de eternidade.
— Querido! Prometeu-me que não se levantava.
Lady Almina, irritada, pediu ao esposo que voltasse para a cama.
— Preciso de trabalhar um pouco.
— Quando se sofre de pleuresia, tem-se sobretudo necessidade de repouso e de calor.
— Não estou doente.
— Não está a ser razoável! Tenha cuidado com a sua saúde.
O criado de quarto interrompeu a discussão:
— Um envelope urgente, senhor conde.
— Quem o envia?
— O Ministério.
Carnarvon leu o documento; aterrado, caiu sobre o cadeirão.
— Que se passa? — perguntou a esposa.
— Os Turcos e os Alemães acabam de atacar o canal de Suez. Amanhã, invadirão o Egito.
Howard Carter terminou o inventário dos objetos descobertos na tumba de Amenófis III e limpou-lhe completamente o interior; ali, como noutro lugar, Davis tinha-se contentado com um trabalho sumário. Graças a uma exploração meticulosa e sistemática, Carter tinha reencontrado cinco depósitos de alicerces intactos, em frente da tumba; centenas de utensílios em miniatura estavam empilhados em poços talhados no calcário, misturados com areia e cobertos com cascalho, fato surpreendente, as inscrições não mencionam Amenófis III, mas seu pai Tutmés IV, que servia assim de começo e de fundação a seu filho.
Os barulhos do ataque germano-turco, contra o canal de Suez, chegaram com dificuldade aos seus ouvidos; não desconfiando da sua vitória, soube, sem surpresa, que as tropas britânicas tinham repelido o invasor e continuavam a luta no Sinai e na Palestina.
À hora em que as comunicações marítimas estavam interrompidas, e onde a falta de venda e a baixa de preço do algodão para exportação empurravam o Egito para a miséria, Carter tinha-se comprometido resolutamente num diálogo interrompido com o Vale dos Reis. Seria de futuro a sua única preocupação e a sua única razão de ser.
No fim de Fevereiro de 1915, desenterrou os últimos restos do mobiliário funerário da rainha Tiyi, ilustre esposa de Amenófis III e talvez a mãe de Tutankhamon; quando segurava nas mãos duas figurinhas de alabastro com a efígie da soberana,. Carter soube da morte de Theodore Davis, tão apaixonado pela grande dama. O americano não tinha sobrevivido muito tempo ao seu abandono do Vale. Mais exigente do que a mais ciumenta das amantes, impunha aos seus amores uma fidelidade absoluta.
Howard Carter esqueceu o mundo exterior. Enquanto os países da Europa se entredespedaçavam, escreveu aos conservadores de museus, a fim de elaborar um catálogo dos objetos descobertos nas tumbas reais, reuniu trabalhos e artigos consagrados ao Vale, leu as primeiras relações de viagens dos primeiros exploradores, estudou os antigos mapas.
Nada do que se tinha passado no sítio lhe escapava; interrogou uma quantidade de habitantes de Gurnah, palavreou com gatunos, despojou montes de relatórios de escavações. Afinou o seu instrumento de trabalho todos os dias: um imenso mapa do Vale dos Reis, onde estavam localizadas todas as tumbas. Respirou ao ritmo do Vale, tornou-se sensível às menores pulsações, espreitou as suas mais íntimas reações.
Carter estava morto para si próprio; no seu casamento de amor com o mistério, tinha feito dádiva do seu ser.
No começo da Primavera de 1916, Lord Carnarvon, eleito presidente do Camera Club, alimentava uma nova esperança: a de atingir por fim a frente, na qualidade de conselheiro do Royal Headquarters Flying Corps, no departamento da fotografia aérea. Decerto, não se bateria de armas na mão mas, detectando a presença inimiga no terreno, poderia facilitar o avanço dos aliados, enquanto prosseguia a aterradora batalha de Verdun, em que os franceses chegavam a bloquear a ofensiva alemã, ao preço de dezenas de milhares de mortos.
O Egito, cuja moeda tinha sido ligada à libra esterlina, parecia escapar ao caos, se bem que a população sofresse cada vez mais privações. Era preciso que aquela guerra, a mais bárbara e a mais destruidora alguma vez levada a efeito na história da humanidade, acabasse o mais depressa possível; Carnarvon estava pronto a oferecer a sua vida para salvar milhões de jovens mandados para o matadouro.
Mais uma vez a sua saúde falhou. Apenas três dias depois do contrato, foi obrigado a voltar a Highclere. Deprimido, à beira do desespero, recebeu a afeição da esposa e dos filhos; mas foi a carta de Carter que o reasserenou: o amigo distante acabava de realizar uma bela proeza.
Num Luxor deserto, vazio de personalidades e de oficiais, o mais pequeno acontecimento assumia proporções consideráveis. Quando correram rumores anunciando a descoberta de um fabuloso tesouro muito perto do Vale, as imaginações inflamaram-se. Se os veleidosos se contentaram em sonhar, os gatunos profissionais preocuparam-se em verificar os rumores e, principalmente, em se apoderar das riquezas.
Dois grupos rivais, depois de terem feito falar os denunciantes que cederam às primeiras torturas, chegaram no mesmo momento ao lugar cobiçado; a briga foi violenta e o sangue correu.
Assustado com a idéia de que aquele conflito degenerasse ao ponto de abrasar a margem oeste, os edis alertaram Carter. Este último não hesitou um instante; recrutou uma dezena de operários que escaparam ao recrutamento. Se bem que a noite caísse, não adiou a expedição. Foi preciso avançar num terreno difícil para atingir uma abertura ao fundo de um pequeno vale, a mais de cem metros de altitude, entre paredes abruptas.
Carter tropeçou numa corda que pendia sobre a fenda; apurando o ouvido, apercebeu-se de barulhos fáceis de identificar: os gatunos estavam a trabalhar. O inglês decidiu não arriscar a vida dos seus companheiros, cortou a corda dos ladrões e substituiu-a por outra, graças à qual desceu. Quando chegou ao fundo do sepulcro, a setenta metros abaixo de entrada, meteu por um corredor que descia e esbarrou com oito homens armados que o observaram com susto.
— Podem escolher disse-lhes em árabe. Ou tornam a subir com a minha corda e desaparecem, ou ficam aqui e morrem.
Os gatunos hesitaram; conheciam a reputação de Carter e sabiam que não recuaria diante de ninguém. Um após outro, tornaram a subir, abandonando os seus archotes.
O arqueólogo ficou só. Teve ainda tempo para refletir, perante a surpreendente localização daquela tumba tão bem escondida; devia, sem qualquer dúvida, acabar num tesouro que todos os gatunos de Gurnah cobiçavam. Carter mergulhou num corredor de
terminava numa esquina um ângulo reto, voltou ao canto direito e meteu por um segundo corredor em declive, que conduzia a um quarto funerário cheio de cascalho. Os gatunos tinham escavado nele um túnel, por onde Carter se enfiou rastejando.
Tutankhamon... o nome tantas vezes esperado estaria inscrito no sarcófago?
Vinte dias foram necessários para desimpedir o sepulcro, Carter tinha feito instalar um sistema de polés e uma rede, na qual descia até à cave. Nenhum tesouro, nenhum objeto precioso, mas um sarcófago de grés dedicado a Hatshepsut, soberana de todos os países, filha de rei, irmã de rei,
Mulher do deus grande esposa do rei, senhora dos dois países. Acabava de descobrir uma outra sepultura da rainha Hatshepsut, escavada por essa grande senhora, antes de ela se tornar faraó.
Tutankhamon permanecia inacessível; mas o Vale continuava a falar.
A 30 de Junho de 1916, dois anos depois de ter deixado o Egito, Gaston Maspero presidia à sessão da Academia das Inscrições e Belas-Letras, de que era o secretário perpétuo. Pensava nesses maravilhosos anos consagrados ao estudo dos monumentos e à reorganização do Serviço das Antiguidades, perseguido pela recordação do filho, morto no campo de batalha, recordava-se também do mais insubmisso dos arqueólogos, esse Howard Carter, que um sonho insensato obcecava desde a sua adolescência. Enganava-se sem dúvida; mas quantas vezes o Egito tinha desvendado os seus mistérios a homens daquela têmpera? Subitamente, desfaleceu.
— Meus caros colegas — disse com uma voz trémula — peço-lhes que me desculpem... não me sinto muito bem.
Alguns instantes mais tarde, Gaston Maspero estava morto.
No Outono de 1917, Lord Carnarvon pôde enfim dar grandes passeios no parque de Highclere.
Junto dos cedros-do-Líbano, adquiriu a certeza de que os aliados ganhariam aquela interminável guerra. No fim de
Quando, a 6 de Abril de 1917, os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha, o conde já não duvidava do desfecho final.
O Egito sofria. Realmente, já estava ameaçado pelo inimigo; as forças inglesas, que tinham ficado senhoras da antiga terra dos faraós, breve se apoderariam de Bagdad e de Jerusalém. Mas a economia de guerra mergulhava o povo na desgraça; traduzia-se numa enorme inflação por privações constantemente crescentes. Os Ingleses tinham posto a mão nos organismos de produção e suscitavam um sentimento de revolta que os militares não apreciavam na sua justa medida; num país onde, por causa do conflito e da miséria, se contavam mais mortes do que nascimentos, as piores convulsões eram de recear.
Contudo, a decisão de Carnarvon estava tomada. A despeito dos conselhos e das prevenções, o conde encorajava Carter a começar a campanha de escavações, de que ele tinha proposto o plano, em Agosto de 1914.
Enquanto a Europa, inquieta e fascinada, assistia à derrocada do regime dos czares e à revolução dos bolchevistas, Carter, indiferente aos acontecimentos exteriores ao Vale, atravessava o Nilo e desembarcava na margem do Ocidente. Sob a proteção do cimo rosa e azul ao nascer do Sol, dourado ao meio-dia, vermelha e laranja ao poente, o arqueólogo lançava-se na aventura que desejava sempre mais ardentemente: a inauguração da sua primeira campanha de escavações.
Carter subiu até à casa que ocuparia, no cume de uma colina dominando o Nilo e admirando o Vale; junto de uma fonte degradada. Com uma chave de madeira abriu a porta, depois de ter trepado os degraus de uma escada de mármore. No interior havia um relógio britânico, um piano, numerosas almofadas, esteiras, tapetes, um candeeiro de petróleo, uma braseira, um forno de pão, em barro, e uma banheira metálica, numa palavra, o conforto necessário. Alguns buracos no telhado exigiam uma reparação; mas havia tarefa mais urgente: escolher um reis, um chefe de equipe corajoso e competente.
Bateram; Carter abriu.
— Tu, Ahmed Girigar, meu amigo!
— Sobrevivi e estou pronto a trabalhar consigo. A sorte sorriu-me de novo. Convém organizar aqui a sua existência; terá necessidade de um secretário, de um palafreneiro, de um cozinheiro, de um porteiro, de um carregador de água, de um...
— Não, Ahmed; não preciso de ajuda.
— Não é nada próprio; como não conseguirei fazê-lo mudar de opinião, ocupar-me-ei de si. É inútil tentar dissuadir-me: também sou muito teimoso.
Os dois homens abraçaram-se.
— A partir desta noite, arrume os seus fatos com cuidado e principalmente do direito. Os demônios da noite podiam entrar para dentro deles e impedi-lo-iam de se levantar.
— E shams, effendil O sol, senhor!
Ahmed Girigar trazia o café e um cachimbo, a fim de que Carter se levantasse com o pé direito.
O arqueólogo estava tão impaciente que engoliu depressa demais o pequeno-almoço; depois de se arranjar rapidamente, subiu para o burro que o
conduziria ao Vale. O novo senhor do sítio tinha-se vestido cuidadosamente para a sua aparição em frente dos seus operários: fato de lã de três peças, lacinho borboleta às pintas, lenço de peito branco, chapéu de abas largas e cigarreira. Ahmed Girigar mostrara-se à altura da sua reputação; uma longa procissão de portadores de cestos esperava ordens à entrada do Vale. Ainda não tinham tirado os seus galabiehs, cantavam e falavam alto.
— Negociei seis dias de trabalho por semana precisou o reis repouso à sexta-feira. Onde quer escavar?
Carter pensou no plano abandonado que tinha apanhado na casa de apoio de Davis, transformada em reserva de antiguidades! Graças às anotações da equipe do americano, tinha completado o seu próprio plano, refletido longamente e tomado uma decisão: abriria um campo onde Davis tinha parado a sua exploração, exatamente no triângulo definido pelas tumbas de Ramsès II, Merenptah e Ramsés VI. Estava persuadido de que, nas montanhas de destroços acumulados no decorrer das escavações anteriores, encontraria numerosos objetos destinados à coleção privada de Carnarvon, e talvez os indícios que o orientariam em direção à tumba de Tutankhamon.
Carnarvon, sensível aos argumentos de Carter, deu o seu acordo. Saber que a mais bela e a mais louca empresa da sua existência começava em terra distante, sob o Sol dos deuses, restituiu-lhe o vigor; na tormenta, o horizonte aclarava.
Uma comoção intensa apoderou-se de Howard Carter quando viu a longa fila de operários em trajes menores pôr-se em andamento, uns enchendo os cabazes e os cestos de cascalho, os outros esvaziando-os; um aguadeiro, com o odre ao ombro, ia de trabalhador em trabalhador.
Cantos ritmavam a manobra lenta e regular, que o reis vigiava, sendo as suas ordens seguidas à risca. Descalços, com o corpo coberto de suor, esses homens ganhavam alguns pennies por dia e consideravam-se bem pagos; os mais experientes usavam alviões, a fim de atacarem os montes artificiais. Do
Serviço de Antiguidades, ainda órfão depois da morte de Maspero, Carter obtivera um; nas calhas pré-fabricadas, os operário se empurravam a vagoneta aberta e com básculo. A pequena via férrea podia ser facilmente deslocada, segundo as exigências da escavação em curso, e facilitava a evacuação dos destroços para fora da área estudada e, principalmente, fora do próprio Vale, para um lugar já explorado. Desaterros, dejetos, blocos rejeitados... eis o que apavorava Carter. Os seus antecessores não se tinham preocupado senão em escavar à pressa, e às cegas, sem se preocuparem em limpar o Vale agora atafulhado de massas de terra e de pedras.
O primeiro mês de trabalho desenrolou-se em condições penosas; frio vivo de manhãzinha, calor sufocante ao meio-dia, poeira que se colava à roupa e à pele. Um cálculo aproximado não fez recuar Carter; seria preciso deslocar várias centenas de milhares de metros cúbicos de areia e de cascalho, a fim de se conseguir uma proeza que nenhum arqueólogo tinha tentado antes dele: atingir a própria rocha, o chão mineral do Vale, e assegurar-se assim que nenhuma entrada do túmulo lhe escaparia.
Logo que um objeto aparecia, logo que um fragmento antigo emergia do magma, Carter anotava a sua descrição na primeira lista exaustiva que nenhum arqueólogo alguma vez pensou em elaborar de maneira tão precisa. Os ostraca, pedaços de calcário que serviam de modelo aos aprendizes de escribas, nunca tinham registado, infelizmente, qualquer indicação sobre Tutankhamon.
No princípio de 1918, o campo parecia organizado na perfeição; mas Ahmed Girigar arvorava uma cara preocupada, Carter interrogou-o.
— Alguns operários querem interromper o trabalho.
— Porquê?
— Porque está sempre presente... Normalmente, os arqueólogos não vêm ao terreno tantas vezes e durante tanto tempo.
— Eles habituam-se. E que mais?
— Os objetos... Habitualmente, retiram uma parte que tornam a vender. Os seus colegas fechavam os olhos.
— Comigo é diferente; têm de renunciar a roubar.
— Será preciso negociar.
— Impossível, Ahmed.
— Nesse caso, aumente-os.
— Fixa tu mesmo a quantia e anuncia-lhes a boa notícia.
Carter estremeceu ao examinar o plano muito antigo de uma tumba real, traçado pela mão do mestre-de-obras que o construiu. O texto hieroglífico e as lendas evocavam a “morada de ouro” onde repousava o corpo de luz de Faraó; animada pelas cores dos frescos e a presença da enéada divina, abrigava um sarcófago que protegia as capelas. Como imaginar os tesouros acumulados, uma vez que todas as tumbas do Vale tinham sido violadas?
Todas menos uma.
Carter tinha interrogado os vendedores de antiguidades, desde os ladrõezitos de Gurnah até aos antiquários com casa própria. Nenhuma peça do mobiliário fúnebre de Tutankhamon estava em circulação: por conseqüência, ninguém tinha pilhado a sepultura.
O arqueólogo dormia pouco; pensava no trabalho do dia seguinte, numa melhor utilização da estaca e do cordel, à maneira dos antigos, a fim de respeitar proporções e distâncias entre os monumentos, e em melhor compreender os dispositivos do Vale. Em cada dia, era preciso aprender a pensar como o arquiteto egípcio, a viver como ele a alma da pedra.
Sentado no terraço da casa de apoio, Carter divisou um estranho personagem que subia o atalho quando o Sol declinava. O colosso barbudo cansava-se; os últimos raios faziam reluzir o vermelho das suas calças. A sinistra sobrecasaca preta suscitava a imagem de um predador em busca da presa. Arquejando, imobilizou-se a alguns passos de Carter.
— Gostaria de lhe falar.
— Já o encontrei em Luxor... quem é o senhor?
— Demóstenes, mercador de antiguidades.
Carter ofereceu um assento ao visitante noturno.
— Quer beber alguma coisa?
— Alguma coisa forte.
— Lamento, só tenho água.
— Paciência.
— Estou ocupado, senhor Demóstenes; poderia indicar-me as razões da sua diligência?
— Aqui tudo é tão calmo, tão tranqüilo... ninguém diria que está em perigo.
Carter ajustou o lacinho.
— Ameaças?
O colosso protestou com bonomia.
— Preferivelmente, informações confidenciais. O senhor não tem só amigos.
— Surpreende-me.
— Eu, sou um amigo; pode dar-me a sua confiança.
— De que perigo fala?
Demóstenes pareceu embaraçado.
— Prejudica o pequeno e o grande comércio... A sua equipe de operários tornou-se incorruptível, o seu reis só crê em si, e o Vale está interdito ao negócio. É uma situação extremamente embaraçosa, senhor Carter; se entrássemos num acordo, evitar-lhe-ia muitos aborrecimentos.
— Não entendo muito bem a sua posição... Desejaria ser contratado como escavador?
As sobrancelhas de Demóstenes franziram-se.
— Assim não se safa, Carter. Tem de me vender objetos; depois, farei calar a concorrência.
— A moral científica proíbe-mo.
— Em arqueologia nunca houve moral. Tudo se comprou e tudo se vendeu.
— Menos eu, caro senhor. Tenha a bondade de tornar a descer esse caminho o mais depressa possível; se bem que não tenhamos a mesma categoria no boxe, eu apostaria contudo na minha rapidez e na precisão dos meus golpes.
Demóstenes recuou.
— Não tem razão, Carter; neste mundo, a integridade nunca triunfa.
— Não é preciso esperar para empreender, nem conseguir para perseverar.
— Ficará desfeito.
Os operários prostaram-se na direção de Meca, tocaram no chão com o nariz e a testa e pronunciaram as palavras rituais: “Deus é o maior, louvo a Sua perfeição”; depois deitaram um olhar por cima dos ombros para venerarem os anjos caídos.
Um homem de bela estatura, fino e elegante, com rosto de uma beleza antiga, ornado de uma cabeleira, de um bigode e de uma barba branca, esperou pelo fim de uma oração antes de atravessar o campo e de ir cumprimentar Howard Carter.
— Parabéns, é muito tolerante.
— Julgo que ainda não fomos apresentados.
— Conheço-o bem, senhor Carter; o meu ilustre antecessor, Gaston Maspero, falou-me freqüentemente de si.
Carter inteiriçou-se. O homem dos olhos muito vivos, enterrados nas órbitas, era, pois, o novo diretor do Serviço das Antiguidades, Pierre Lacau, de cuja recente nomeação fora informado.
Corriam numerosos rumores a seu respeito; alma danada dos jesuítas, apaixonado de administração e de regulamentação, erudito de memória excepcional, lia os textos mais árduos com uma desconcertante facilidade. Untuoso, meticuloso, de uma calma inalterável, não se parecia nada com Maspero, que o tinha, contudo, designado como sucessor, em virtude das suas
competências técnicas.
Carter soube também que Lacau seria um inimigo temível. A sua frieza tornou-o repelente à primeira vista.
— Disseram-me que tinha empreendido uma vasta campanha.
— Pode verificá-lo, senhor diretor.
— Quais são os seus objetivos?
— Fazer falar o Vale.
— Acredita na existência de uma sepultura inviolada?
— Existem presunções.
— Em caso de descoberta, será necessário avisar-me imediatamente.
— Cortesia elementar.
— Não, meu caro colega: obrigação profissional. A minha posição é muito delicada.
— Porquê?
— Maspero era um homem muito generoso, demasiado generoso... não contesto a sua autorização, mas os tempos mudam e devo zelar pelas riquezas que saem do solo egípcio.
— Seja mais claro.
— Ora bem... a divisão das peças históricas parece-me ser uma heresia. O conteúdo de uma tumba real, intacta ou devastada, não deverá pertencer ao
serviço?
— Lord Carnarvon investiu muito dinheiro nas escavações que eu dirijo; foi-lhe prometido uma indenização sob a forma de obras de arte.
— Decerto, decerto... mas esses hábitos deploráveis devem cessar. Mesmo as peças dobradas deverão ficar no Egito.
— Que pensa conceder ao conde?
— Mas... o prestígio, senhor Carter, o prestígio! Já é muito.
— Receio que não vá ficar nada satisfeito com os seus futuros regulamentos.
— Futuros... mas em vigor dentro em breve. Conto consigo para os mandar aplicar de forma escrupulosa.
— Senão?
O olhar de Pierre Lacau tornou-se penetrante.
— Não tem boa reputação junto dos egiptólogos, senhor Carter, consideram-no demasiado independente, revolucionário, mesmo... e o seu percurso aparece um tanto caótico. Ninguém lhe nega competência, embora os seus projetos sejam um pouco levianos.
— A minha carreira tê-lo-á intrigado?
— Eu guardo listas e redijo fichas, muitas listas e muitas fichas; é o único método científico que permite estar informado.
— Nunca me teria dado esta concessão, pois não?
— Gaston Maspero mostrava-se demasiado liberal para com os arqueólogos estrangeiros, mas o que está feito, está feito. O importante será respeitar os novos regulamentos. Estou persuadido de que a nossa colaboração será frutuosa. Até breve, senhor Carter.
Muito atento aos relatórios de Carter, Carnavon não tardou em reagir. Uma vez que o Serviço das Antiguidades, obrigatoriamente dirigido por um francês, tentava voltar com a palavra atrás, convinha escavar um canal de derivação. Por isso, encontrando, em Londres, o diretor do Metropolitan Museum, falou com ele do futuro da sua coleção privada. Em virtude da sua fortuna, do seu conhecimento do Egito e dos seus grandes projetos, o conde aparecia como um dos maiores colecionadores do século. Revelou ao americano que Carter e ele tinham começado a acumular um verdadeiro tesouro, proveniente das escavações já efetuadas, e de negociações acerbas com mercadores de antiguidades da região tebana. Eles não desejavam dispor daqueles magníficos objetos, dos quais, os mais belos pertenciam a princesas da corte do Egito; assim, propôs ao Metropolitan Museum apresentar-se como comprador, com a maior discrição. Ainda era preciso convencer Carter, mas havia um homem que parecia designado para essa transação: Herbert Winlock.
No fim do mês de Janeiro de 1918, um número bastante grande de turistas visitava de novo a antiga Tebas, como se a guerra tivesse acabado. Contudo, o Exército alemão não baixava a cabeça e alguns prediziam novas ofensivas mortíferas.
Howard Carter tinha progredido. Junto da tumba de Ramsés VI, no ângulo oriental, um buraco de uma profundidade de trinta pés testemunhava a atividade incessante da sua equipe que, ao fim de esforços consideráveis, tinha atingido o leito da rocha. Pela primeira vez, podia-se contemplar o solo do Vale tal ele se apresentava na origem. Enfurecendo-se contra os curiosos que se debruçavam com risco de partirem o pescoço, Carter mandou construir pequenos muros de proteção em torno da fossa.
Doze pés abaixo do nível da porta de entrada da tumba de Ramsés VI, uma descoberta enigmática: lajes de pedra cobertas de troncos e de caniços que, sem dúvida alguma, eram casas de operários, construídas, de forma sumária, sobre blocos de sílex. O arqueólogo desenterrou alguns ostracas, dos quais um datava do reino de Ramsés II, pérolas de vidro, fragmentos de folha de ouro e um vaso contendo o corpo seco de uma serpente, considerada como protetora do lar.
Essa instalação provava que os artesãos tinham trabalhado na construção de uma tumba que forçosamente se escondia por baixo; as moradas exploradas, seria, pois, preciso continuar a escavar.
Quando ele se preparava para iniciar aquela nova fase da aventura, Carter recebeu um funcionário do Serviço das Antiguidades. Em virtude da afluência turística e das suas recaídas econômicas, pediam-lhe para não cortar o acesso à tumba de Ramsés VI, uma das mais belas e mais visitadas do Vale.
A estação quente aproximava-se, os operários estavam cansados... Carter aceitou interromper a escavação.
— Prazer em tornar a vê-lo, Howard.
— Também eu, Herbert.
Winlock e Carter almoçaram na casa da margem do Ocidente, de onde os ingleses contemplavam, com uma alegria sempre crescente, os sítios mágicos que os tinham enfeitiçado para sempre.
— A minha proposta convém-lhe, Howard?
— Recebi as instruções de Lord Carnarvon e conformo-me com elas.
— Está muito obediente... Tenho a impressão de que a personalidade de Lacau não o seduziu nada e que a guerra entre a Inglaterra e a França está a ponto de recomeçar.
— O que não é da minha vontade.
— O Metropolitan Museum está decidido a adquirir os mais belos objetos da coleção que está a juntar para Lord Carnarvon.
— São todos magníficos.
— Pois bem, compraremos a totalidade. O conde falou de colares, pulseiras, taças, escaravelhos, espelhos...
— Pode examiná-los como quiser.
— Tenho ordem de negociar diretamente consigo e de guardar segredo até que esses objetos sejam expostos no Metropolitan.
Os dois homens selaram o acordo erguendo o seu copo.
— E Tutankhamon?
— Não há, infelizmente, nenhuma pista séria. Mas está aqui perto, tenho a intuição.
A 21 de Março de 1918, os Alemães lançaram uma ofensiva formidável, na Picardia, Carnarvon, feliz por ter consolidado a situação material de Carter graças às comissões que receberia, vendendo a pouco e pouco os objetos da sua coleção aos Americanos, duvidou da sua lucidez quando o inimigo progrediu em Flandres e sobre o Marne. O destino da guerra estava a jogar-se.
Na sua casa de apoio, guardada noite e dia por uns homens de que Ahmed Gingar garantia a honestidade, Carter tinha desdobrado o seu mapa do Vale dos Reis. Contemplava-o durante horas, verificava e tornava a verificar as suas anotações, assegurava-se que tinha coberto bem os lugares onde escavações, grandes e pequenas, tinham sido praticadas. Como escapar a uma esmagadora realidade?
Precisaria de cavar o menor recanto, não deixar um pouco de terreno inexplorado, logo recortar o Vale por setores e não esquecer nenhum.
Com a afeição de um pai, Carter vigiava o Vale a fim de lhe evitar aborrecimentos e depredações.
Afirmava a si próprio que os guardas desempenhavam o melhor possível a sua missão e faziam digressões de inspeção inesperadas; na véspera, tinha expulsado um americano que, com um pote de alcatrão na mão, traçava o seu nome nas paredes de um túmulo. Esse vândalo e os seus semelhantes teriam merecido a prisão; dantes, degradar um monumento sagrado era considerado como o mais grave dos crimes.
A Primavera viu voltar a doce Raifa que, com a paciência das mulheres do Oriente, empreendeu reconquistar o amante; mas ele pareceu-lhe mais distante, quase inacessível, mesmo se a sua paixão parecesse intacta. A egípcia duvidou da sua beleza; cuidou mais a sua maquiagem, multiplicou os artifícios da sedução, tornou-se terna como uma noiva do paraíso. Carter amava-a, mas o seu espírito permanecia longe dali. Compreendeu que a sua mais temível rival, o Vale dos Reis, se tinha apoderado do coração daquele que ela não renunciaria a defender daquelas correntes absurdas. Como podia um homem fazer amor com pedras, areia e tumbas?
Carter examinava a localização das suas futuras escavações, quando viu acorrer Ahmed Girigar.
O reis não tinha costume de ceder à precipitação; o caso devia ser grave.
— Venha depressa.
— Que se passa?
— Um drama, em sua casa... desconheço os pormenores.
Os dois homens treparam até à casa de apoio. Na entrada, um dos guardas enxugava o sangue que corria da cabeça do colega.
— Surpreenderam um gatuno — explicou ele. — Tinha entrado pelas traseiras; batemo-nos, conseguiu fugir.
— Identificou-o? — perguntou Carter.
— Não.
— Onde estava ele?
— Na sala grande; tinha começado a enrolar o mapa.
— Obrigado pela sua coragem.
— Malech — respondeu o guarda, fatalista. — Que Deus afaste o mal.
Carter, tenso, verificou os estragos. Nada tinha sido roubado e o mapa estava intacto.
— Eu pago os cuidados indispensáveis ao ferido e quero um guarda suplementar atrás da casa indicou ao reis.
— Quem é culpado?
— É bastante fácil de adivinhar; este documento não pode interessar senão aos meus caros colegas. Querem intimidar-me e impedir-me de continuar.
— Porque habitará o ódio no coração dos homens?
— Malech — respondeu Carter.
Em Gurnah, clãs e famílias observavam-se; a aldeia tinha as suas próprias leis e a sua própria hierarquia.
A calma reinava quando cada um recebia o que lhe era devido; em caso de conflito, os chefes das seitas faziam reinar uma justiça sumária. Assim, em geral, ninguém pensava sair da linha. Ora, o velho Mahmud, que alimentava com dificuldade a esposa, acabava de tomar uma segunda. Por outras palavras, tinha enriquecido e ninguém sabia como. Um dos informadores da Polícia, lembrando-se que Mahmud tinha trabalhado numa equipe de operários do Vale dos Reis, achou por bem avisar os seus superiores que informaram Carter imediatamente. A origem da riqueza de Mahmud não podia ser senão rapina e, mais grave ainda, uma pilhagem de que só ele era beneficiário.
Acompanhado de um polícia, Carter fez uma visita ao velho; como este se recusava a responder às perguntas, os inquiridores decidiram interrogar a nova esposa que trabalhava num campo.
Assustada, fugiu e tentou atingir o embarcadouro onde o funcionário a apanhou. Histérica, gritou durante uma dezena de minutos; quando se acalmou, Carter falou-lhe com doçura.
— É a esposa de Mahmud?
— Sou, sou.
— Porque não larga esse cesto?
— É meu!
— Queria ver o seu conteúdo.
— Não, é meu!
O polícia foi constrangido a intervir e arrancou-lhe o preciso objeto; no interior, havia uma pequena estatueta de madeira. Carter examinou-a com atenção.
— É autêntica. Quem ta deu?
— Mahmud.
— Ordenou-te que a vendesses?
— Sim.
— Onde a encontrou?
— Não sei.
Carter e o polícia trouxeram a mulher para Gurnah; o esposo fechou-se num mutismo que nada parecia poder quebrar. O arqueólogo recorreu à última arma: comparecer diante do mudir que governava a província. A reputação do magistrado aterrorizava os seus administrados; não se afirmava que, para se livrar das quadrilhas de gatunos, mandava tapar com pequenos paus a entrada das grutas em que eles se escondiam e lançava-lhes fogo? Muitos morriam asfixiados, preferindo a morte à tortura.
Foi um Mahmud a tremer que entrou na casa do governador. Primeiro julgou que o terrível personagem estava ausente; ao fundo da grande sala imperava uma enorme banheira de onde saíam colunas de vapor. Emergiu, subitamente, uma cabeça a escorrer água. Quando os olhos negros fixaram Mahmud, o velho soltou um grito de pavor. És um gatuno afirmou o mudir e vou cortar-te os membros.
Mahmud ajoelhou-se.
— Não, por piedade!
— Se queres escapar ao castigo, indica-me a localização da tumba que pilhaste!
O velho, de cabeça baixa, fartou-se de falar.
Carter e Ahmed Girigar treparam em direção ao vale perdido. “Tumba inviolada”, tinha revelado o mudir; segundo Mahmud, está cheia de riquezas.” Foi por isso que o arqueólogo decidiu não prevenir ninguém antes de verificar ele próprio. De noite, munidos de cordas, os dois homens escalaram o pico rochoso que as descrições precisas do velho lhes tinham permitido identificar.
Verificaram que uma laje tinha sido colocada sobre um buraco que se enterrava na rocha; Girigar deslocou-a. Carter encordoou-se e começou a descer; a passagem tinha sido talhada de forma grosseira e terminava com uma peça minúscula donde fugiram morcegos. Nas paredes, apenas desbastadas, nenhuma marca de inscrição nem de pintura; aquela pobre cavidade nunca contivera nenhum objeto antigo. Furioso, Carter tornou a subir.
— Mahmud troçou de nós.
Ahmed Girigar parecia inquieto.
— Sombras, para ali... não desçamos pelo mesmo caminho.
Um tiro estalou, a bala raspou a orelha direita de Carter. O reis puxando a sua pistola da algibeira do galabieb, atirou na direção que lhe parecia certa e protegeu a retirada de Carter. O arqueólogo conhecia os culpados. Tinha feito mal em desdenhar do aviso de Demóstenes e tinha caído num laço organizado
de maneira notável; o velho Mahmud tinha desempenhado o seu papel na perfeição. Quem não teria acreditado nas suas confissões? Amanhã, gatunos profissionais fomentariam um novo atentado, mais maquiavélico ou mais brutal. Para pôr fim àquela ameaça, havia uma só solução: dirigir-se ao chefe dos bandidos. Por isso, Carter pediu audiência junto do chefe do clã Abd el-Rassul.
O acolhimento foi tão solene como da primeira vez; o temível personagem ofereceu carneiro grelhado, tâmaras e leite fresco. Durante a refeição, Carter contentou-se em abordar assuntos tão neutros como a pesca no Nilo ou as dificuldades milenares da irrigação; cabia ao seu anfitrião dar os primeiros passos, o que ele fez fumando por um cachimbo turco.
— A sua presença honra-me, senhor Carter; agora é o senhor o dono do Vale.
— Um sítio que requer todas as suas atenções.
— A minha família freqüenta-o há várias gerações; temos um direito de propriedade.
— O passado é o passado.
— Quem não respeita o passado é indigno do presente.
— O meu papel consiste em preservar o Vale de toda a pilhagem.
— Desempenha-o bastante bem.
— Demasiado bem, para o seu gosto.
— Conhece bem os meus gostos.
— Não me terei tornado... incômodo?
— Há quem o afirme.
— Não afirmam também que conviria livrarem-se de quem incomoda?
— É muito possível.
— O meu desaparecimento não o contraria nada.
— A vida e a morte estão nas mãos de Alá. À mão do homem substitui-se freqüentemente à de Deus. É o destino.
— Seria inconveniente perguntar-lhe se é o verdadeiro autor da tentativa de assassínio de que fui alvo.
— Efetivamente.
— Fique sabendo que prefiro morrer a renunciar.
— Porquê tanta obstinação, senhor Carter?
— Porque o Vale dos Reis é o meu destino; foi lá que a mão de Deus me tocou. Deixá-lo condenar-me ao nada.
Abd el-Rassul pareceu abalado por tanta determinação.
— Se me impede de comprar e de vender, senhor Carter, como alimentaria a minha gente?
— A opinião geral é que o Vale está esgotado; o seu solo já não esconde mais nenhum tesouro. Os vestígios arqueológicos não lhe proporcionarão qualquer benefício.
— Tenho uma pergunta a fazer-lhe: estenderá o seu poder a toda a margem do Ocidente?
— Só o Vale é que me interessa.
— Façamos um pacto: os meus homens não intervirão e ninguém ousará atacá-lo. Mas não me importunará mais, para além do seu domínio, e não tornará a chamar a Polícia.
— Que assim seja.
— Que Alá seja nossa testemunha.
Durante a última semana de Setembro de 1918, os Aliados lançaram uma quádrupla ofensiva em Champagne, Argonne, sobre Somme e Flandres; dessa vez, Carnarvon ficou persuadido de que as tropas alemãs não resistiriam e que essa abominável guerra, em que oito milhões de homens tinham morrido, breve teria fim.
Infelizmente, a saúde do conde não melhorava; sentia-se incapaz de suportar as fadigas de uma longa viagem. Como o Egito estava longe!... Dia após dia, Carnarvon seguiu o curso dos acontecimentos que uma sociedade camponesa, esfomeada e esgotada, agitava. Quando, a 30 de Outubro de
Depois do armistício, assinado a 11 de Novembro, em Rethondes, o Egito lembrou-se de que tinha ficado fiel aos Aliados; o sultão Fuad não escondeu a sua ambição de obter uma rápida independência no fim das negociações com a Inglaterra. Saad Zaghlul assumiu a chefia de uma delegação de compatriotas, o Wafd, que pediu ao auto comissário britânico a autorização para ir a Londres, a fim de solicitar a libertação do Egito. À maneira de resposta, foi deportado para Malta.
Carnarvon, que lutava tanto quanto possível contra a epidemia mundial de gripe, lamentou essa decisão e multiplicou as medidas de prudência; a Primeira Guerra Mundial tinha quebrado uma ordem internacional que alguns julgavam inabalável e modificou as mentalidades em profundidade. Em que tormenta se encontraria o Egito?
— É preciso compor as coisas — disse Ahmed Girigar. Carter dominou a sua cólera.
— Compor... o que é que isso significa? Os meus operários são os mais bem pagos do país!
— Não é só uma questão de dinheiro.
— Eu respeito os homens, Ahmed; será que me comportei como um tirano?
— É exigente, mas justo.
— Nesse caso, porquê interromper o trabalho?
— O país está exposto a convulsões; os meus compatriotas querem a independência.
— Não me preocupo com política... e o Vale não quer saber disso!
— A repressão não extinguiu as aspirações do povo; decuplou-as. Rebentaram motins aqui e ali, uma campanha de desobediência civil foi largamente seguida.
— Em que me diz respeito toda essa agitação?
— Esquece-se de que é estrangeiro e inglês.
— Que aconselhas?
— Abrande as suas atividades durante algum tempo; quando a calma tiver voltado, tornaremos a pôr a equipe a trabalhar.
— E se a calma não voltar?
— Deus decidirá.
O haxixe quase não acalmou Demóstenes. Como podia o seu plano ter falhado? Sem a falta de jeito dos atiradores, Carter não estaria agora neste mundo e o tráfico teria recomeçado como dantes. O mercador ter-se-ia encarniçado de boa vontade, mas as ordens do clã Abd el-Rassul eram formais: o Vale dos Reis tornava-se um domínio reservado ao inglês. Mas ninguém proibia que se arruinasse a sua reputação.
Demóstenes não se dirigiria a Lacau, o diretor do serviço, que teria recusado receber um indivíduo tão pouco recomendável; era-lhe preciso infiltrar-se de uma maneira mais subtil, adquirindo a confiança dos empregados subalternos. Os mais acessíveis eram inspetores locais a quem a personalidade de Carter fazia sombra; vê-lo retirar-se seria uma viva satisfação, que numerosos egiptólogos partilhariam, importunados pela independência e a capacidade de trabalho do colega. Por causa de energúmenos dessa espécie, não se acusavam os eruditos de ficarem limitados ao seu escritório em vez de conhecerem a experiência do terreno?
A arma de Demóstenes seria o fel. Ao correr dos meses difundiria falsas informações, primeiro insignificantes, depois cada vez mais comprometedoras; o seu primeiro peixe era um inspetor egípcio de meia-idade, cuja carreira estagnava num setor medíocre do Alto Egito.
O grego enfiou na algibeira de um funcionário um envelope cheio de notas.
— Porquê esse gesto?
— A sua documentação sobre as múmias foi-me preciosa.
— Simples artigos...
— Em Luxor, estão tão mal informados.
— Contudo, têm o famoso Carter!
— Um curioso arqueólogo, na verdade!
— Curioso? Impossível, quer dizer! As suas exigências científicas são insuportáveis; se devesse divulgar a mínima peça saída da areia, onde iríamos parar?
— Ele também tem outras preocupações.
— Quais?
— São apenas rumores — murmurou o grego —, mas pretende-se que vende objetos, por sua própria conta, sem prevenir Carnarvon.
— Tem provas?
— São apenas rumores — repetiu o grego.
Raifa não se embalava com ilusões. Se Howard lhe concedia tantos passeios no campo, era porque as ameaças de sublevação popular lhe atrasavam o trabalho no Vale; logo que a agitação tivesse caído, voltaria para o seu verdadeiro amor.
A deportação de Saad Zaghlul tinha acalmado numerosos espíritos, conscientes de que a Inglaterra reagiria com a maior firmeza assim que as veleidades de independência se tornassem mais ostensivas.
Não era no Cairo que se moldava a nova ordem mundial mas em Washington, em Londres e em Paris.
O Egito devia dobrar-se às decisões que, do exterior, lhe imporiam, mesmo se os corações mais ardentes, como o de Raifa, estivessem mortificados.
O ano de 1919 acometeu, com o seu calor, os últimos contestatários; desembaraçar-se do peso da Inglaterra e da sua administração parecia utópico. Continuava-se a tagarelar, mesmo a conspirar, mas atirava-se com a revolução para mais tarde.
— Quando retomarás as tuas escavações?
— No Outono; esta agitação fez-me perder um tempo precioso.
— É a cólera de um povo, Howard!
— Não me tomes por um cego, Raifa; estou consciente. Compreende o meu combate como eu compreendo o teu; a minha concessão é limitada e tenho de fazer falar o Vale.
— Porquê, Howard?
— É um fogo, no mais profundo de mim, uma exigência a que não me posso subtrair. O Vale chama-me constantemente, e não consigo ainda traduzir a sua mensagem.
— Fazes-me medo.
— Seremos livres de escolher o nosso caminho?
— A maioria dos seres são; tu és o servo de uma força contra a qual nada pode lutar.
Sentaram-se à sombra das palmeiras, perto de um poço.
— Não recuses a minha ajuda, Howard; por vezes, sinto-te tão só. A lutar contra o invisível, não dispersarás as tuas forças?
— Um faraó dorme nas trevas do esquecimento; por vezes, creio ouvir a sua voz. O invisível... sim, tens razão, por vezes, é o invisível que me atrai, do outro lado dessa muralha de rochas e de desaterros. Passarei o obstáculo, prometo-te.
Raifa não precisava daquela promessa; enrolou-se ternamente contra Carter e saboreou a doçura do fim do dia.
Lady Almina, de acordo com o desejo do esposo, tinha organizado um jantar de treze convidados. A sala de jantar era apenas iluminada por velas. Não conhecia nenhuma das pessoas, cuja presença lhe pareceu um tanto bizarra; mulheres idosas usando vestidos sarapintados e homens barbudos. Um deles arvorava um turbante. Quando foram instalados, segundo o plano de mesa do conde, Lady Almina ousou interroga-lo em voz baixa.
— Quem são estas pessoas?
— Os melhores médiuns de Londres.
— Os iluminados, em Highclere? Mas porquê...
Carnarvon pousou o indicador nos lábios da mulher.
— Recolhamo-nos, minha cara; o caso é sério.
Durante o jantar, a fina flor da vidência britânica comportou-se de maneira honrosa; o conde notou mesmo uma certa propensão para a guloseima na maior parte dos seus membros. Habituado a sondar os seres com o olhar, fixando-se em certas atitudes ou gestos, depressa distinguiu dois charlatões, vários desequilibrados e um louco. Uma mulherzinha morena, que levava o seu atrevimento até parecer-se com a rainha Vitória, em velha, intrigou-o; comia pouco, falava menos ainda e olhava constantemente para a
chama de uma vela, a ponto de se hipnotizar.
Levantada a mesa, Lord Carnarvon exibiu um plano do Vale dos Reis e uma folha em que Carter tinha inscrito em hieróglifos os nomes de Tutankhamon.
— Concentrem-se meus amigos e chamem os espíritos. O rei, cujos nomes estão aqui, está enterrado neste sítio? Se for sim, pode precisar o local?
Um silêncio pesado agarrou a assembléia. Uns fecharam olhos, os outros formaram um gesto de oração, outros ainda recolheram-se sobre uma bola de cristal ou cartas de Tarot. A sósia da rainha Vitória continuou a fixar a chama.
— Este monarca é um atlante — proferiu o homem do turbante o seu corpo está escondido sob as águas.
Como Carnarvon o tinha classificado na categoria dos charlatões a sua visão não o importunou nada; sucederam-se outras revelações do mesmo tipo, sem nenhuma relação com o Vale ou o reino de Tutankhamon.
Subitamente, a pequena mulher morena pediu a palavra; tinha uma voz grave, que subia do ventre.
— Um faraó... um faraó que morreu jovem... tudo brilha, tudo resplandece à sua volta... a sua alma esconde-se, escapa-nos... uma porta selada... ninguém a pode abrir, ninguém lá deve entrar! Lá está o segredo, o grande segredo!
A vidente desmaiou e caiu no sobrado. No mesmo instante, o chefe de mesa entrou na sala de jantar.
— Senhor conde... acaba de ser cometido um roubo na biblioteca!
Carnarvon abandonou os médiuns e precipitou-se para o local do crime. Um rápido exame deu-lhe a saber que o malfeitor se tinha atirado à sua coleção de objetos egípcios; desprezando os mais preciosos, só se tinha apoderado de uma folha de ouro de Tutankhamon. Lady Almina, assustada, agarrou-se ao marido.
— Um roubo em nossa casa, é horrível! Mas quem...
— Ou o espírito do faraó, ou um especialista.
Segundo informações recentes, uma indiscrição teria permitido ao British Museum conhecer o pacto secreto havido entre o conde e os americanos; o furor dos egiptólogos, que desdenhavam do trabalho de Carnarvon e do de Carter, considerado sonhador e fanático, ter-se-ia traduzido dessa forma brutal?
Habituado à perfídia e às suas inúmeras manifestações, o senhor de Highclere julgou a hipótese plausível.
Preferiu, contudo, crer que a alma de Tutankhamon se revoltava à idéia de ser perturbada no seu sono e fazia-lhe um sério aviso.
Que poderia ser mais excitante?
— O emissário do Foreign Office apreciou a excelência do Porto.
— Colheita especial — lembrou Lord Carnarvon.
— Notável.
— A sua visita, caro amigo, significa que as minhas últimas análises foram tomadas em consideração.
— Fizeram mesmo algum barulho.
— Agradável ou desagradável?
— Os dentes de alguns responsáveis dos nossos serviços secretos rangeram; para eles, o Egito não estava perto da independência.
— Enganaram-se, como é costume; senão, a Inglaterra teria conservado o domínio do mundo.
— Eis uma opinião quase subversiva; sabe que tem muitos inimigos?
— Muitos inimigos ingleses, muitos amigos egípcios; são estes que terão a última palavra, creia-me.
— Não esqueça, contudo, que é de nacionalidade inglesa, Lord Carnarvon, e que deve defender os interesses do seu país antes dos de um povo distante, com costumes tão diferentes dos nossos.
— Ameaça disfarçada?
— Louvamos o seu espírito crítico e a sua franqueza, mas não desejamos que ultrapasse o limite do razoável.
— Onde o fixa?
— Cabe-lhe ser prudente.
— Faço o que devo: arranje-me um meio de transporte para o Egito.
O emissário estremeceu.
— Torna a partir?
— A guerra terminou e a minha saúde melhora; terá esquecido que obtive a concessão do Vale dos Reis?
— Excelente cobertura que lhes permitirá retomar múltiplos contatos com as personalidades egípcias.
— Cobertura? Não, meu caro, mais do que isso...
— Que quer dizer?
— Quem ousaria falar de vocação com um alto funcionário?
Carter passeava de um lado para o outro no cais do porto da Alexandria. O barco que vinha de Inglaterra estava anunciado; a bordo dele, havia Lord Carnarvon, de regresso à terra dos faraós depois de tantos anos de ausência. Carter estava ainda mais nervoso do que de costume, por causa das más notícias transmitidas pela rádio. O navio não se parecia nada com um paquete de cruzeiro; tratava-se de um barco de transporte de tropas, munido de um pára-minas mas desprovido de qualquer conforto. Tinham-se arranjado à pressa uns camarotes estreitos sem ter havido tempo de proceder a uma limpeza em regra e a uma indispensável desinfecção. Numerosos viajantes tinham estado gravemente doentes durante a travessia e falava-se mesmo de duas mortes; por isso, Carter, conhecendo a saúde medíocre do conde, roia de inquietação. Por causa de um tempo horroroso no Mediterrâneo, o barco tinha-se demorado e, durante um dia, as autoridades portuárias tinham mesmo temido um naufrágio. Mas o canto das sereias anunciava enfim a chegada! O rebocador entrou em ação e, rapidamente, os primeiros passageiros desembarcaram.
Na confusão, Carter procurou em vão Carnarvon. Reencontravam-se famílias, pais abraçavam os filhos, mulheres os maridos; a alegria estalava, sem comedimento. Tinha decorrido perto de uma hora; o vazio da passarela oferecia o mais consternador dos espetáculos. O conde não tinha, pois, sobrevivido e aquele barco degradado formava a mais sinistra das mortalhas.
Provavelmente, jazia no seu camarote, incapaz de se levantar? No momento em que Carter se decidia a subir para bordo, avistou Lord Carnarvon.
Muito frágil, de andar hesitante, tinha no rosto as marcas de um profundo cansaço; a mão direita levantou o chapéu de abas largas, destapando os cabelos loiro-ruivos que flutuaram um instante ao vento. Lord Carnarvon jogava sempre com aquela elegância natural que fazia dele um personagem insubstituível; sob a carapaça do aristocrata transparecia a generosidade e a paixão.
Susie correu para Carter que a acariciou com ternura.
Apesar da felicidade que sentiu com aqueles reencontros, foi um outro sentimento que o invadiu.
Carnarvon não estava só.
Vinha de braço dado com uma esplendorosa jovem.
O casal desceu lentamente a passarela. Um chapéu preto em forma de sineta escondia a cabeleira da rapariga de rosto radioso, apenas saído da infância; o casaco cinzento de grandes bandas, pesado e austero, era contudo acrescido de um decote que deixava adivinhar formas encantadoras. A saia comprida e as meias pretas ainda aumentavam a seriedade excessiva do conjunto.
— Estou feliz por vê-lo, Howard; esta é a minha filha, Lady Evelyn.
Os grandes olhos negros cativaram o olhar de Carter. Como podia uma mulher ser ao mesmo tempo, tão bela e tão terna, tão pudica e tão atraente?
— Então, Howard, será que perdeu a língua no Vale?
— Perdoe-me... a emoção.
— Muito prazer em conhecê-lo, senhor Carter; o meu pai não fala senão de si em Highclere, e desse rei misterioso de que esqueci o nome.
— Viajar é indispensável para conhecer bem a humanidade; foi por isso que decidi trazer Eve. — Susie estava de acordo.
— Não teria sido eu que insisti, ao ponto de gastar a sua paciência lendária?
— Esse ponto é muito delicado para ser tratado a correr.
Entre o pai e a filha reinava uma cumplicidade risonha; Carter sentiu-se estúpido, incapaz de encontrar a palavra certa! Relatou, com precipitação, os seus últimos trabalhos no Vale, enquanto os carregadores se ocupavam das bagagens.
— Lady Evelyn, deseja ver os mais belos sítios do país?
— Estou com calor — confessou ela. — Mas como vestir-me de outra maneira? Li que uma mulher se devia dissimular sob fatos espessos e até velar o rosto.
— Só as camponesas são muito estritas, em certos campos muito recuados. Na cidade, os fatos europeus não chocam ninguém.
— Maravilhoso! Tive razão de encher as minhas malas.
— Eu optei por outros conteúdos — revelou o conde — , depois destes anos de privação, sonhei que mesmo um arqueólogo tão exigente como Howard Carter não desdenharia de alguns prazeres simples. A nossa casa de apoio breve estará equipada com vinho francês, conhaque, cerveja inglesa, tabaco e do melhor café; quando nos batemos contra o mistério, é preciso ganhar forças.
Do Cairo a Medinet el-Faium, Lord Carnarvon e a filha beneficiaram de uma viatura com motor, conduzida por um motorista tão depressa hesitante, como audacioso; depois, o conde escolheu uma carruagem em bom estado, puxada por cavalos bem tratados.
— Onde me leva? — perguntou ela, perdida numa multidão barulhenta.
— Ao paraíso.
Logo que saiu da cidade, onde canais tornados esgotos faziam reinar um cheiro pestilencial, o carro meteu por caminhos de terra batida, bordados de jardinzitos. A jovem admirou-se com a exuberância da paisagem, enfeitada de palmeiras-tamareiras, limoeiros, loureiros ou hibiscos; a sua surpresa foi ainda maior quando descobriu o lago Kerum, imensa reserva de água arranjada pelos faraós e de onde a província de Faium extraía a sua fertilidade.
— Tem razão... o paraíso deve parecer-se com este lugar.
Almoçaram à borda do lago, onde se pescavam excelentes peixes. Susie saboreou uma variedade de truta com evidente satisfação. Bruscamente, Lady Evelyn parou de comer.
— Acolá, junto da barquinha, está um homem a tomar banho!
Carnarvon levantou a cabeça.
— É inegável!
— Mas está nu!
— Não tenho nenhuns calções para lhe fornecer. Ou mudas de lugar, ou aceitas a fatalidade.
— Julguei que os muçulmanos tinham banido a nudez, mesmo no banho.
— As mulheres, sim, os homens, não; sobretudo, nesta região onde conservaram velhos costumes.
No tempo dos faraós, nadava-se nu, e trabalhava-se da mesma maneira nos campos.
— Observar as supervivências faz parte da aprendizagem de uma futura arqueóloga, não é verdade?
— Não mudarei de lugar.
O conde levou a filha a sítios que os turistas não freqüentavam, como o templo de Medinet Maadi, admirável vestígio de uma grande cidade escondida nas areias, ou o santuário ptolomaico de Kasr Karum, de pedras loiras e quentes. Erraram nas margens do lago, mataram a sede à sombra das palmeiras e foram acolhidos em várias moradas da aldeia onde lhes ofereceram bolinhos e chá de menta.
— O senhor Carter parecia zangado por o ver — partir observou ela.
— Zangado é uma grande palavra; desejava mostrar-te, o mais depressa possível, o Vale. O que é que eu estou a dizer?! ... o seu Vale.
— Quando iremos lá?
— Breve. Quis preparar-te para esse choque, fazendo-te experimentar as maravilhas deste país. O Vale é outro mundo feroz, hostil e grandioso.
— Dir-se-ia que lhe faz medo!
— Um pouco, confesso. Só fala de morte e de eternidade em termos tão fortes que a alma fica cativada.
A alguns quilômetros ao norte de Medinet el-Faium, camponeses armados de forquilhas fizeram parar a carruagem. Estabeleceu-se um diálogo muito vivo entre eles e o cocheiro. Carnarvon, que falava mal o árabe mas compreendia numerosos termos, percebeu o essencial. Um motim. Os independentistas molestaram polícias e querem atacar estrangeiros.
Lady Evelyn apertou o braço do pai.
O cocheiro propôs ao conde mudar de estrada e continuar a pé, se fosse preciso; em várias aglomerações, a cólera do povo estalava. O paraíso tingia-se de sangue.
Lord Carnarvon foi recebido por um colaborador próximo do marechal Allenby, o auto comissário que reinava no Egito.
— Não controlarão os movimentos da multidão durante muito tempo predisse o conde.
— Não seja tão pessimista.
— Acalme o jogo, ou abrasar-se-á o país inteiro.
— Que propõe?
— Liberte Zaghlul.
— Nem pense nisso.
— Fez dele um mártir; os discursos dos seus partidários são cada vez mais violentos.
— Se sai da prisão, não conseguiremos pará-lo.
— Pelo contrário, esgotar-se-á.
— Aposta bem perigosa.
— É a única saída possível. Zaghlul é muito mais temível na prisão; e não é a nossa única preocupação.
O funcionário, já contrariado, retratou-se mais.
— Seja mais explícito.
— A dívida do Egito permanece considerável; os países vencidos, Alemanha, Áustria e Hungria, já não fazem parte da Caixa encarregada de a gerir. Por causa da Revolução, a Rússia retirou-se; restam os Italianos, os Franceses e nós. Se não exagero, esse triunvirato não durará muito tempo; será preciso um vencedor.
— Segredo de Estado, Lord Carnarvon.
— Segredo de Polichinelo. Se a Inglaterra não quer cair no ridículo, ela que restabeleça a paz.
Carter, despeitado, sentiu-se só. Carnarvon e a filha, ocupados no Cairo, não concediam interesse algum aos seus trabalhos. Uma calma precária, ao voltar ao Alto Egito, tinha-lhe contudo permitido retomar as suas escavações em torno da tumba de Ramsés IV, depois em frente da de Tutmés III, mas as primeiras sondagens não forneciam nenhuma pista interessante.
No fim de uma semana decepcionante, Carter passeava ao longo do Nilo, em Luxor, quando foi abordado por um dos mais famosos mercadores de antiguidades clandestinas da margem de oeste, um homem jovem e barbeado, pertencente ao clã de Abd el-Rassul.
— Tinha-lhe prometido um lote de escaravelhos.
— Exatamente.
— Agora, já não tenho medo de ser denunciado, dado que me prometeu não avisar a Polícia.
— Na condição de nem um só objeto sair do Vale dos Reis.
— Maldito seja quem trai a sua palavra.
— Onde estão os teus escaravelhos?
— Já não os tenho; um outro comprador propôs-me um; preço melhor. — Se os quiser, terá de me pagar o dobro.
— Quem se permitiu...
— Não se zangue, senhor Carter. O comércio está assim. Espero a sua resposta até amanhã.
Estupefato, Carter seguiu o mercador a boa distância. Quem se divertiria a fazer subir os preços daquela maneira, e a intervir nas relações estabelecidas há muito tempo e só capazes de salvar alguns objetos?
O homem entrou no Winter Palace; saiu de lá alguns minutos mais tarde com um americano que Carter reconheceu imediatamente: Herbert Winlock! O inglês continuou a sua espionagem e esperou que a conversa terminasse para abordar o amigo.
— Perdoe a minha brutalidade, Herbert, mas aquele tipo propôs-lhe um lote de escaravelhos?
— Propôs, mas...
— Pertencem a Lord Carnarvon.
O americano apalpou as bochechas, divertido.
— Por outras palavras, esse bandidozito procura interromper o circuito normal e pôr-nos um contra o outro.
— Receio que sim.
— Vou, portanto, devolver-lhe. O Metropolitan Museum comprometeu-se a não atrapalhar em nada as transações do seu patrão, na condição de que a mais bela parte da sua coleção volte para nós; não tem de que se queixar, julgo eu?
— A comissão que eu recebo põe-me ao abrigo da necessidade durante algum tempo.
— Melhor. Não tenha receio; a regra do jogo permanece sem alteração. — Aqui para nós, diverte-me bater os ingleses no seu próprio terreno e de abater na sombra o British Museum.
Winlock corou.
— Desculpe... esquecia-me de que é inglês.
Carter não protestou. Inglês, ainda o seria?
Carnarvon triunfou modestamente. A libertação do líder independentista tinha acalmado os espíritos; Zaghlul discorria livremente e com veemência, as palavras sobrepunham-se à ação. Ao sair do escritório do alto-comissário, onde o tinham encorajado vivamente a prosseguir a sua tarefa, o conde sentiu as pernas fugirem-lhe. O coração falhou e começou a respirar mal. O plantão correu em seu socorro. Susie ladrou.
— Chamem a minha filha. Depressa...
No barco de regresso, Evelyn tratou do pai que teria de sofrer uma intervenção cirúrgica em Inglaterra.
Evelyn lutou contra o desespero que o ameaçava.
— Carter deve estar desencorajado — disse ele. — Vinha trazer-lhe o meu apoio e nem a Luxor chegamos.
— Não passa de um adiamento; logo que esteja de pé, voltaremos. O Egito fascina-me tanto quanto a si.
Durante todo o mês de Janeiro de 1920, Carter deslocou os montes de destroços que atafulhavam os contornos da tumba; de Merenptah, filho e sucessor de Ramsés II. Graças aos carris, o trabalho avançou depressa. Em frente da entrada da tumba, de Ramsés IV, Carter descobriu cinco depósitos de alicerces, que continham utensílios em miniatura, pérolas, placas de faiança, e quatro grandes fossas fechadas. Um tal dispositivo deixava esperar que se tratasse de um esconderijo; infelizmente estavam vazios.
Carter batia o pé. Não podia acusar-se senão a ele, dado que não lhe faltavam homens nem material.
Tantos esforços despendidos para tão magros resultados... Apesar da sua obstinação e do seu sentido do método, estava longe de igualar as provas de Theodore Davis. Por momentos, desesperava; não precisaria de se render às razões da quase totalidade dos egiptólogos, persuadidos de que o Vale estava esgotado?
A deterioração da saúde do conde agravava o sentimento de fracasso; tudo se ligava contra o arqueólogo, Carnarvon acreditava ainda num grande sucesso? Não se tinha sequer dado ao trabalho de levar a filha a Luxor.
Um telegrama, recebido a 24 de Janeiro, fez Howard lamentar ter duvidado do patrão: Carnarvon anunciava a sua chegada a meio de Fevereiro. O arqueólogo convocou imediatamente Ahmed Girigar e pediu-lhe que redobrasse o ritmo; seria concedido um prêmio especial aos operários, a fim de desimpedirem os contornos da tumba de Ramsés II, onde podiam estar dissimulados objetos preciosos.
Quando o conde se apresentasse no campo, Carter não teria as mãos vazias.
Lady Almina repudiou o Egito a partir dos seus primeiros passos na terra dos faraós. “O mais belo país do mundo”, segundo a expressão do marido, não passava de um gigantesco reservatório de moscas onde reinava um Sol insuportável e onde sopraram ventos que transportavam poeira e faziam enxaquecas. Que encanto se poderia encontrar nessas extensões planas, onde palmeiras franzinas lutavam contra a seca, nesses desertos escaldantes e inóspitos, nesses jardinzitos miseráveis e mal-amanhados, que desculpas se podiam conceder àquelas pessoas preguiçosas e sujas que passavam todo o seu tempo sentadas a fumar cachimbo?
Quanto mais descia para o Sul, menos Lady Almina esperava uma chuva aturada e vales verdejantes. Enfiada numa saia de lã, não parava de se queixar.
— É indispensável ir a Luxor?
— Felizmente, é.
— Felizmente! Como é que podem apreciar esta região e os selvagens que nela habitam?
— Sabe que nos consideram analfabetos?
Lady Almina sobressaltou-se.
— Com que direito, santo Deus!
— Aos olhos deles, fazemos tudo ao contrário; andamos com sapatos nos lugares santos, tiramos os chapéus dentro de casa e, principalmente, escrevemos no sentido errado, da esquerda para a direita, enquanto um letrado redige da direita para a esquerda.
— Esses argumentos são tão absurdos que prefiro calar-me.
As proximidades do Vale dos Reis apavoraram a esposa de Lord Carnarvon. O caos de rochas, o aspecto impiedoso das falésias esmagadas de sol e o silêncio mineral deram-lhe o sentimento de sair do mundo dos vivos e de entrar num universo resolutamente hostil onde ela não tinha lugar. Quando Howard Carter veio ao seu encontro, pareceu-lhe a aparição de um demônio surgido de uma das tumbas escavadas no rochedo; o impecável fato de três peças, o lacinho borboleta às pintas e o ar do personagem tranqüilizaram-na. Lidava com um compatriota, ilhota de civilização naquela desolação.
Saudações e apresentações foram feitas segundo o costume, Lady Evelyn, conservou-se ligeiramente afastada; depois, seguido de Susie, Carter fez o trio visitar a tumba de Séti I.
Aconselhou a Lady Almina que remetesse a um operário o seu pesado capacete colonial, munido de um véu, mas ela recusou secamente. Com um elegante fato de cabedal envernizado e coberta de jóias, avançava com dificuldade por causa dos saltos altos. Lady Evelyn, que tinha prevenido a mãe que se tratava de uma excursão no deserto e não um garden-party, contentara-se com uma camisola decotada, uma saia escocesa e uma sombrinha.
Carter descreveu com entusiasmo a viagem do Sol no outro mundo, e as suas transformações sucessivas, de uma morte aparente à ressurreição ofuscada.
Intrigada, Lady Almina continuou na defensiva; uma boa cristã e uma aristocrata, nascida no país mais requintado do mundo, não tinha o direito de admirar as obras bárbaras de uma religião ultrapassada. A casa de apoio reavivou a sua animosidade.
— Como pode viver neste quadro rebarbativo, senhor Carter? Esta morada é indigna de um gentleman!
— É por isso que devemos melhorá-la — declarou Lady Evelyn com uma voz suave. — Amanhã serão entregues malas cheias de tapetes, mosquiteiros, cortinados e candeeiros de petróleo. Pensei mesmo numa vassourinha para lutar contra a poeira dos túmulos.
— A nossa estada será bem mais agradável — julgou o conde — , uma vez que os alimentos prometidos já foram encaminhados.
— A nossa estada! — insurgiu-se Lady Almina. — Não me vai obrigar a viver aqui?
— Com certeza que não, minha cara; está uma suite reservada no melhor hotel de Luxor. No que me diz respeito, passarei algumas noites nesta casa.
Lady Evelyn não ousou formular o seu desejo; como ela teria gostado, também, de passar um tempo no Vale! Tinha herdado o gosto pela aventura e pelas situações inesperadas. Quando se lhe acrescentava o perfume do mistério , sentia-se animada pela paixão de conquistar. Ser proprietária, aos vinte anos, do mais famoso sítio do Oriente, não seria o mais incrível dos milagres?
Howard Carter verificou o vinco das calças, reapertou o laço borboleta, cortou um pêlo rebelde que desacreditava o seu bigode e desceu ao seu campo onde o esperava uma prova temível. Naquela manhã do mês de Março, devia mostrar ao Carnarvon o resultado dos seus enormes trabalhos de desimpedimento que tinham custado bem caro ao conde. O arqueólogo só tinha uma certeza: nenhuma tumba se escondia ali onde as escavações tinham sido conduzidas com o maior cuidado. Estátuas, colares de ouro, figurinhas funerárias, nada; que mostrar a Lord Carnarvon, senão o rochedo, fragmentos
de utensílios usados pelo construtor e as fundações de pequeninas casas onde trabalhavam? O triângulo delimitado pelas sombras de Ramsés VI, de Ramsés II e de Merenptah, de que Carter tanto; esperava, revelava-se estéril. Não tinha, pois, preenchido a sua primeira missão: enriquecer a coleção privada do
conde.
A conselho da filha, Lady Almina tinha aceitado vestir-se mais levemente; sem abandonar o casaco escuro e a saia cinzenta muito severa, tinha consentido em trocar a lã pelo algodão. Por vezes, surpreendia-se a saborear o Sol de Luxor e mesmo a passear de falucho no Nilo, mas censurava-se esses momentos de abandono. A seu lado, Lady Evelyn estava deslumbrante: chapéu às flores, vestido branco, colar de pérolas, sublinhavam o brilho da sua juventude. O conde, apoiado na bengala, olhou o relógio.
— Chegou a hora, Howard; mostre-nos as suas descobertas.
Dentro de alguns instantes, Carter deveria defrontar a vergonha. Tentaria demonstrar o valor científico das escavações : empreendidas, com a certeza de que os Carnarvon depressa bocejariam de aborrecimento.
A alguns passos da última cavidade escavada pela sua equipe, Ahmed Girigar murmurou algumas palavras ao ouvido de Carter.
— Tens a certeza?
— Tenho.
Mais distendido, Carter fez os seus convidados caminharem ao longo do campo; as duas mulheres ficaram espantadas com a dimensão dos trabalhos, o conde permaneceu silencioso. Depois de meia hora de explicações técnicas, interrompeu o arqueólogo.
— Essas montanhas de rocha deviam esconder objetos magníficos; estamos impacientes de os admirar.
Carter trouxe-os até ao buraco fundo à volta do qual Ahmed Girigar tinha colocado vários guardas.
— Vamos viver juntos a coroação de uma escavação anunciou com orgulho. Bem ao fundo, existe um esconderijo. Quer descer em primeiro lugar, Lord Carnarvon, e extrair o tesouro?
— Esse privilégio compete-me — declarou Lady Almina, perante a estupefação geral. — Não fiz esta comprida viagem para nada; uma vez que enfiamos uma fortuna nesta região, eu é que devo apreciar as nossas aquisições.
Lady Almina meteu-se com intrepidez no declive. Incomodado, desastrado, Carter tentou ajudá-la; ela foi mais rápida do que ele e, a custo de algumas escorregadelas, atingiu a sua finalidade.
— Como devo proceder?
— Pois bem... à mão.
Sem hesitar, a aristocrata mergulhou as mãos na terra venerável, mistura de areia e de fragmentos rochosos; breve desprendeu o gargalo de um jarro. Louca de alegria, tirou-lhe toda a ganga, brandiu-o com uma exaltação que tomou a assistência.
— Um jarro de alabastro! É esplêndido!
Carter pegou na obra-prima. Sem esperar a sua autorização, cavou novamente. O esconderijo continha treze soberbos jarros com o nome de Ramsés II e de seu filho Merenptah. O destino acabava de salvar Howard Carter, oferecendo a Carnarvon as mais belas peças descobertas no Vale desde que ele financiava as escavações.
Pierre Lacau não conseguia concentrar-se no texto hieroglífico que traduzia; estava obcecado por demasiadas preocupações. A 5 de Abril, a Sociedade das Nações tinha autorizado a Grã-Bretanha a ocupar a Palestina; a influência inglesa no Próximo Oriente ia crescendo. Dentro de quanto tempo atacaria ela o bastião do Serviço de Antiguidades?
Por pouca sorte, o escavador mais célebre e o mais mexido, era esse Carter que, uma vez mais, desencadeava a crônica; não tinha ele acabado de desenterrar treze vasos de alabastro num canto esquecido do Vale dos Reis? Longe de se gabar disso, tinha -se contentado em fotografá-los, indicar a sua posição e descrevê-los no seu próprio catálogo de arqueólogo, ao mesmo tempo que deixava a glória da descoberta a Lord Carnarvon.
O erudito francês sentia-se investido de uma missão sagrada: desempenhar o seu papel de diretor do serviço, defendendo, ao mesmo tempo, os interesses da ciência e do seu país. Assim, depois de um período de observação que tinha podido creditar a sua passividade, passava à ofensiva.
— Lord Carnarvon chegou — anunciou o seu secretário.
— Que entre.
Pierre Lacau levantou-se para cumprimentar o aristocrata.
— Obrigado por ter aceitado este encontro, senhor conde.
— Encontrá-lo é um privilégio, senhor diretor; não é um dos homens mais poderosos deste país?
— Um humilde funcionário que procura preservar um patrimônio prestigioso, mais nada.
Serviu-se do café.
— O seu êxito tem grande repercussão.
— Convenhamos que são belas peças.
— Está-se a chegar ao ponto das obras-primas.
— Eis os desenhos de Howard Carter.
Lacau apreciou o talento do artista e a beleza dos vasos.
— O rumor não mentia. Por um lado, é maravilhoso, por outro, bastante aborrecido.
— Porquê essa inquietação?
— Estes esplendores fazem parte da herança egípcia.
— O contrato assinado com o Serviço das Antiguidades é claro; eu financio as escavações, as descobertas pertencem-me.
— O texto é mais ambíguo — julgou Lacau —, e empreendi uma profunda reforma jurídica.
— Uma lei não saberia ser retroativa, senhor diretor.
— Decerto, decerto...criar uma batalha de advogados não me agradaria. A não ser...
Carnarvon considerou o francês perigoso, o tom suave e o ar cortês escondiam uma vontade de ferro e uma rara obstinação; além disso, aquele personagem elegante, de rosto fino e magnífica barba branca, manejava a manha como respirava. Sonhou, portanto, com um mercado. Não sou um comerciante...
— Parece-me que uma divisão seria uma solução excelente. Em que termos?
— Sete vasos para o Museu, seis para si; eu deixo -lhe a escolha. Os que são guarnecidos com uma cabeça de íbis darão prestígio à sua coleção; quanto à moral científica, será considerada como salvaguarda.
— Desejo, senhor diretor, que este pacto sele boas relações entre nós.
— Porque havia de ser de outra maneira, senhor conde?
Carnarvon passou um Verão descansado em Highclere. A sua saúde melhorava; a esposa e a filha evocavam com freqüência a sua estada no Egito e preparavam já a próxima expedição. Por ocasião das suas grandes passeatas com Susie, o conde pensava na evolução favorável que o Egito conhecia fixando as fronteiras de uma Turquia despedaçada, o tratado de Lausana tinha libertado definitivamente o velho Estado dá influência otomana. A despeito de perturbações esporádicas, a sociedade remodelava-se; a fundação do banco Misr permitia à poupança reconstituir-se, enquanto se formava uma burguesia média, desejosa de gozar dos frutos de uma expansão econômica cada vez mais marcada. Realmente, as aspirações à independência não desapareciam; mas pareciam menos agressivas e apagar-se-iam talvez no fluxo da prosperidade.
— O meu pai sonhará?
— Não se te pode esconder nada, Eve.
— Gosto desse diminutivo.
— Desconfia dele; faz de ti uma tentadora.
— Jure outra vez que me leva consigo, este Inverno.
— Só tenho uma palavra.
— É tão belo o Egito... e aquele Vale! Compreendo a sua paixão.
— Fazes-me tão feliz.
— O senhor Carter pensa que descobrirá a famosa tumba, acredita nisso?
— Acredita ele; é o essencial.
O calor diminuiu com os primeiros dias de Outono. Howard Carter foi ao Cairo para se encontrar com Arthur Lucas, diretor do Laboratório Analítico do Governo, a quem tinha confiado uma parte do conteúdo dos vasos; químico experiente, Lucas apaixonava-se por técnicas de preservação e de restauração das antiguidades. O rosto oval enfeitado com um espesso bigode preto e sobrancelhas grossas, o sábio não se afastava nunca do seu lado sério, cujo colarinho engomado, de uma brancura imaculada, era a melhor prova.
Lucas, lento e meticuloso, tinha estudado com prazer um material de três milênios de idade.
— Quais são as suas conclusões? perguntou Carter.
— Os seus jarros continham uma mistura de quartzo, de calcário, de betume, de resina e de sulfato de sódio.
— Restos de óleo?
— Com efeito.
Carter ficou decepcionado; de acordo com as inscrições, os vasos tinham servido para conservar os óleos santos e não pertenciam, portanto, a um material funerário que teria podido indicar a proximidade de uma tumba.
— As suas investigações progridem?
— Se for preciso, buscarei por todo o Vale.
— Gostaria de ajudar; se a química for necessária, não deixe de apelar para os meus serviços.
Ahmed Girigar e os seus operários retomaram o trabalho com entusiasmo; Carter, todos os dias presente no terreno, comunicava-lhes a sua energia e a sua certeza de vencer. Depois de ter desimpedido as casas de operários, abriu um novo campo na ravina próxima da tumba de Tutmés III, ainda lá, foi-lhe necessário deslocar os destroços provenientes das escavações de Davis, a fim de atingir o solo do Vale da décima oitava dinastia, época em que ele tinha sido escolhido para sepultura dos faraós.
O mapa do arqueólogo enriquecia-se constantemente; precisava a localização de pequenas caves, retificava os erros dos antecessores, armava planos exatos e refletia sobre a escolha dos construtores. Com demasiada freqüência, esquecia a necessidade de trazer à luz objetos dignos de uma coleção de qualidade. A sua única descoberta foi um lote de fragmentos de canopos que provinham da tumba 42 ª, primeira que ele tinha explorado no Vale, bastantes anos antes.
Quando Carnarvon voltou, na companhia da mulher e da filha, nenhum milagre se reproduziu.
Carter não teve qualquer objeto, pequeno ou grande, a apresentar-lhe. A sua única surpresa consistira em arranjar como sala de jantar a parte superior da tumba de Ramsés XI, onde foi celebrado o banquete de Natal, regado com um excelente champanhe. Encantado por ver a filha feliz e a esposa descontraída, Carnarvon não fez qualquer pergunta sobre os magros resultados da campanha em curso; instalados à volta de uma mesa comprida, os convivas participaram numa festa fora do tempo, graças à amabilidade de um faraó bastante hospitaleiro.
Quando os seus convidados partiram, Carter apagou a luz e absorveu a plenos pulmões o ar noturno, caminhou a passos lentos, comungou com o Vale que tanto amava e que lhe recusava o seu último segredo.
A quinze passos, saiu uma silhueta das trevas.
— Raifa!
— Já não sabes que existo, Howard.
— Raifa!
— Não mintas. Eu vi a jovem, vi a maneira como tu a olhavas.
— Lady Evelyn é a filha de Carnarvon. Não tenho o direito de...
— O amor troça das proibições; eu também não, não tinha o direito. — Mas ela tem vinte anos e eu mais de quarenta... Haverá outra verdade?
Raifa recuou.
— Não partas...
— Não me reterás, Howard. O Vale ganhou; foi ele que atraiu essa rapariga e que nos afasta para sempre.
Carter, profundamente abalado pelo fim da sua ligação com Raifa, afogou-se num trabalho hercúleo que estafou os operários mais robustos. Ao centro do Vale, explorou o espaço entre a desoladora tumba 55 e a de Ramsés IX. Atingiu mais uma vez o leito rochoso tendo, como única recompensa, um vaso canopo da época ramsédica.
Recusando ceder à decepção, atacou o outro lado da tumba 55 e teve de se contentar com um magro esconderijo contendo rosetas de bronze e jaspe vermelho destinado a colorir os papiros. Arrastou depois a sua equipe para o vale pequeno onde, em volta da tumba de Tutmés III, já tinha remexido toneladas de fragmentos. De novo, o decauville entrou em ação.
Em vão.
O Vale permanecia estéril.
Carnarvon e Carter assistiram ao pôr do Sol, sentados sob o alpendre da casa de apoio.
— Nada, Howard?
— Nada de importante, é verdade. O Vale é talvez o mais ingrato de todos os sítios, mas quando ele nos entrega um dos seus segredos, recebe-se uma recompensa, em centuplicado, de longos anos de trabalho monótono.
— Tenho confiança em si, mas a dúvida aflora-me. Qual é o seu plano, agora?
— Atingir o rochedo primitivo perto das grandes tumbas. As sepulturas ramsédicas foram escavadas a um nível mais elevado do que as tumbas da décima oitava dinastia, à qual Tutankhamon pertence. É pois preciso descer não só abaixo dos desaterros mas também abaixo dos solos de Ramsés II e dos seus sucessores.
— A empresa é colossal.
— Não é essa a razão por que me escolheu? — O conde sorriu.
— Contente-se em desvendar os mistérios do Vale, Howard, não os meus.
Carnarvon levantou-se e, com o seu passo lento, desceu o atalho, ajudado pela a bengala.
Freqüentemente, Carter perguntava a si mesmo se o aristocrata o considerava como o verdadeiro amigo ou se lhe oferecia a ilusão desse privilégio. Que ele o pusesse à prova não o entristecia, uma vez que a sua existência não passava de uma seqüência de desafios; mas gostaria que, uma vez pelo menos, Lord Carnarvon lhe abrisse o seu coração.
Da última língua de fogo que o sol morrendo punha ao lado do vale, saiu uma mulher de cabelos pretos e vestido branco.
— Não queria deixar Luxor sem o cumprimentar disse — Lady Evelyn.
— A sua atenção comove-me.
— Está aqui bem só.
— Os faraós rodeiam-me.
— A conversa deles não é demasiado silenciosa?
— Confesso que a voz deles não é tão doce como a sua.
— Tornou-se sedutor, senhor Carter?
— Nesse domínio, receio ser o mais desastrado dos homens.
— Não é verdade...
— Voltará?
— De certeza.
O vestido branco deu uma reviravolta e desapareceu no crepúsculo.
Pierre Lacau tornou a fechar o caderno. Depois de ter refletido maduramente, tinha feito parar decisões que se tornavam irrevogáveis, sem ter em conta os interesses particulares e as diversas suscetibilidades.
Assim recebeu Lord Carnarvon com uma fria determinação.
— Lamento, senhor diretor: não tenho qualquer tesouro a dividir. A estação das escavações foi má.
— Deveria mudar de arqueólogo.
— Howard Carter satisfaz-me completamente.
— Tem uma língua muito comprida, sobretudo quando critica o serviço e trata o seu diretor de sábio medíocre e incompetente.
— Intrigas.
— À força de me chegarem aos ouvidos devem ser verdadeiras.
— Carter será a razão do nosso encontro?
Lacau abriu o seu caderno.
— As licenças de escavações são documentos obsoletos a partir de agora, comportarão uma obrigação que será respeitada à letra: a presença permanente de um inspetor do serviço em cada campo. Exercerá uma vigilância efetiva e intervirá em caso de necessidade.
— Não receia algumas... fricções?
— Não lhes ligarei importância.
— Será tudo?
— As modalidades de divisão dos objetos achados durante as escavações são modificadas. — As mãos de Carnarvon crisparam-se na bengala.
— De que maneira?
— A divisão habitual pela metade foi abolida. O serviço tornar-se-á aquisidor da totalidade das peças arqueológicas descobertas ou de uma parte delas, segundo sua conveniência e as necessidades do Museu.
— Golpe de força... será a boa expressão?
— Necessidade científica.
— Deveria, portanto, dobrar-me a ela.
— É o que vivamente lhe aconselho. Outro ponto decisivo, senhor conde: a sua concessão terá fim em Abril de 1923. Depois, o Vale dos Reis voltará ao Serviço das Antiguidades.
— Não é muito correto; o senhor Maspero tinha-me oferecido um prazo melhor.
— Deus o tenha em bom lugar; mas ele já não dirige o serviço. Volta para a Inglaterra, creio?
— Permita-me que lhe deseje boa viagem.
No princípio do Outono de 1921, Lord Carnarvon ouviu as primeiras emissões regulares de rádio num enorme posto receptor que desfigurava na sua biblioteca. O mundo estava mal: a China tinha autorizado a criação de um partido comunista, e a Alemanha de um partido nacional-socialista sob o impulso de Hitler, convulsões sangrentas sacudiam a Rússia, greves de mineiros perturbavam a serenidade da Grã-Bretanha. O Egito inquietava de novo o conde; por causa de um clima insurrecional, as autoridades britânicas tinham aceitado dialogar com os independentistas, mas a negociação, breve, tinha acabado rapidamente porque o alto-comissário recusava qualquer concessão. Zaghlul tinha serviço de bode expiatório e conhecido uma segunda deportação dessa vez para as Seychelles.
Os relvados verdes de Highclere luziam sob o Sol de Outono; pela janela da biblioteca, o quinto conde de Carnarvon contemplava com encantamento uma paisagem sem mudança havia várias gerações. A mais abominável das guerras tinha devastado a Europa, as sociedades mais estáveis vacilavam, mas Highclere continuava idêntico a ele próprio, barreira imutável do caminho.
Depois do jantar, Lady Almina permaneceu junto do marido, em frente de um fogo de madeira.
— Está inquieta, minha cara.
— Fui alertada pelos nossos contabilistas. O curso da libra quebra, a inflação acentua-se e as nossas despesas aumentam, manter os nossos
— Em que domínio?
— O pessoal de casa, impossível; os jardineiros, a mesma coisa; as equipagens de montaria são indispensáveis. Só resta...
— As minhas escavações no Egito.
— Os resultados delas são medíocres, confesse. Não será a venda da sua coleção que reembolsará o investimento. Reflita, peço-lhe.
Carter lamentou não ter conservado um posto fixo que lhe tivesse permitido escavar durante toda a sua vida, sem obrigação de resultado; pensamento estúpido, verificou imediatamente, dado que a hierarquia administrativa não lhe teria permitido explorar o Vale dos Reis. Carnarvon era o único homem que lhe oferecia a possibilidade de realizar o seu sonho.
Carter rendeu-se ao encontro que Herbert Winlock lhe tinha marcado; num dos salões de Winter Palace desenrolou-se a última transação que tornaria o Metropolitan Museum, proprietário dos mais belos objetos da coleção Carnarvon, mais de duzentas peças breve seriam expostas; colares, pulseiras, anéis e taças provavam a arte dos joalheiros do Novo Império, com grande prejuízo do Serviço das Antiguidades e do British Museum.
A quantia que Lord Carnarvon receberia indenizá-lo-ia em grande parte dos seus esforços; quanto à comissão final de Carter, permitia-lhe acabar os seus dias numa aldeia do Alto Egito, longe de uma civilização fictícia cujos dogmas ele não partilhava. Winlock, gracejando, notou que o inglês tinha falta de tônus.
— A concessão termina na Primavera de 1923 e estarei longe de ter terminado o meu trabalho.
— Em Nova Iorque, examinei de perto a modesta descoberta que Davis tinha menosprezado... A minha hipótese confirmou-se. A presença dos selos da necrópole real e do nome de Tutankhamon provam, de maneira definitiva, que um banquete fúnebre foi celebrado em sua honra, no Vale onde está enterrado. Posso mesmo precisar que os convivas eram em número de oito, que usavam coroas florais e que fizeram uma sólida refeição; na ementa figuravam pato e carneiro. Beberam cerveja e vinho e tiveram o cuidado de enterrar, por sua vez, os restos daquela refeição excepcional e as peças da baixela.
O olhar de Carter despertou.
— Não tenho direito de duvidar. Tutankhamon está aqui perto; mas porque o esconderam tão bem?
Demóstenes não descolara. Por causa de Carter, o comércio das antiguidades passava cada vez pior. A pilhagem das tumbas privadas decerto continuava, mas mais nada provinha do Vale dos Reis. Ora os amadores pagavam sempre mais caro os objetos, mesmo medíocres, saídos do ilustre sítio. Assim, o grego multiplicava os encontros com os inspetores do serviço; apreciavam a sua generosidade que tornava mais aceitável o seu miserável salário e apuravam o ouvido para os rumores que ele veiculava.
Cada um sabia que o inglês era a ovelha negra de Pierre Lacau e que dava um mau exemplo trabalhando sem cessar; desembaraçarem-se dele tornava-se necessário, tanto mais que os egiptólogos começavam a troçar do “louco do Vale” que deslocava toneladas de areia e de rochas à procura de uma tumba que Davis tinha descoberto há muito tempo.
Perante três jovens lobos do serviço, que meteram ao bolso um envelope contendo as suas despesas de deslocação, Demóstenes tentou várias cartadas.
— Senhores, tenho o desagradável dever de lhes dizer que Howard Carter é um homem corrompido. Acaba de concluir acordos secretos com os americanos, e vende-lhes peças muito raras a preço de ouro.
— Objetos roubados? perguntou o inspetor mais graduado.
— Naturalmente.
— Carnarvon era o proprietário oficial?
— Efetivamente.
— Nesse caso não podemos intervir.
— Um roubo, um crime contra o patrimônio egípcio!
— Um negócio entre Carnarvon e os seus compradores.
— Não é tudo — insistiu o grego — Carter serve de perito junto dos seus colecionadores. Pede-lhes quantias consideráveis, antes de entregar as suas preciosas informações. Mesmo o multimilionário Calouste Gulbenkian, o mais rico vendedor de petróleo da região, retribuiu-o de maneira principesca. — Meus senhores, Carter enriquece à custa do Egito.
— Provas?
— A minha boa-fé não chega?
— De qualquer maneira, Carter não é um funcionário. Ganha a vida como entende. O que nós precisamos, é de uma falta profissional evidente, um atentado ao sítio, uma destruição sistemática dos vestígios.
Demóstenes encomendou um licor à base de sementes de cânhamo; tinha necessidade de se atordoar num paraíso artificial longe de Luxor e de Carter.
Carter convocou o reis, quarenta homens e cento e vinte rapazes. O mês de Fevereiro seria decisivo; pediu a essa numerosa trupe que redobrasse de ardor numa nova localização, do lado este da tumba Siptah, faraó do fim da décima nona dinastia.
Como essa área não tinha sido explorada por Davis, podiam, esperar-se felizes surpresas.
O mês de Fevereiro de 1922 viu um intensa atividade; sob a direção de Ahmed Girigar, cada operário trabalhou com gosto. Uma enorme quantidade de fragmentos foi deslocada e despejada na ravina próxima da tumba de Tutmés III. Em pouco tempo, graças à coragem da sua equipe, Carter tinha de novo atingido o nível mais antigo do Vale, aí onde ele esperava descobrir a tumba de Tutankhamon.
Um telegrama avisou-o da chegada iminente de Carnarvon.
Quando o conde penetrou no campo, Carter achou-lhe um ar preocupado. Lançou um olhar discreto às escavações.
— Belo trabalho, Howard.
— A equipe foi admirável; merece uma gratificação.
— Tê-la-á. Resultados?
O arqueólogo estava à beira das lágrimas.
— Nada, absolutamente nada. Nem tumba nem objetos.
— Tenho graves notícias a dar-lhe. Amanhã, 21 de Fevereiro, o Egito será reconhecido como um Estado soberano e independente.
— A Inglaterra renuncia...
— Não completamente. O verdadeiro senhor do nosso país permanece o alto-comissário britânico e o nosso Exército continuará a ocupar o país. O Governo de Sua Majestade defenderá o Egito contra toda a agressão exterior, protegerá os seus interesses, assegurará a segurança dos seus meios de comunicação e controlará o Sudão.
— Estado soberano... é pois uma palhaçada.
— Não completamente, também. O Egito gozará de mais dignidade e a Inglaterra deverá testemunhar-lhe novas atenções.
Carnarvon omitiu precisar o papel que tinha desempenhado nas negociações.
— Os resultados parecem magros disse Carter com emoção mas o nosso conhecimento do Vale foi acrescido em proporções interessantes. Os planos das tumbas reais da décima oitava dinastia já não têm segredos para mim e começo a compreender como trabalhavam os artesãos dos Ramsés. — Estas últimas escavações foram exaltantes; quer que lhas descreva em pormenor?
— Escuto-o Howard — respondeu o conde com uma voz cansada.
Em 15 de Março de 1922, Fuad abandonou o título de sultão e proclamou-se rei do Egito, com o acordo das autoridades britânicas. Carter e Carnarvon jantaram frente a frente, na modesta sala de jantar da casa de apoio, em que o arqueólogo ofereceu uma refeição digna do conde: folhas de vinha recheadas, almôndegas de cordeiro e pastelaria egípcia.
O aristocrata não tergiversou.
— Ainda existe uma esperança de fazer uma grande descoberta?
— Julgo que sim.
— O nosso balanço não é famoso. À parte as transações comerciais, sem relação com o Vale, não tiramos da terra senão jarros ramsédicos.
— Winlock provou que a tumba de Tutankhamom continua por encontrar.
— Acredito em si, Howard; mas não se trata de uma pequena sepultura correspondendo ao reino de um pequeno rei e, além disso, pilhada há muito tempo.
— Pilhada, decerto que não: alguns objetos teriam circulado nos antiquários.
— Concedo-lhe. Mesmo intacta, não deve conter grande coisa; a perseguição dessa quimera exigirá novas campanhas e meses de trabalho árduo.
— Enquanto existir uma polegada de terreno inexplorado, deveremos perseverar; prometeu-me a sorte senhor conde.
— Não tenho o direito de o negar; é uma amante infiel que talvez me tenha abandonado.
— Vivemos juntos as provas mais duras; o sucesso está perto, sinto-o!
— A concessão termina.
— Lacau não ousará recusar-lhe uma renovação.
— Desengane-se: ele odeia-o.
— Que o seu fel o sufoque! Estes anos estéreis, na sua aparência, eram indispensáveis; a minha equipe está rodada, a sua coesão perfeita e avançamos para o termo da nossa busca.
— Não teria outro sítio para me propor?
— Não atraiçoemos o Vale.
Carnarvon sentiu que não atenuaria a determinação de Carter.
— Como queria... consagrar-lhe-emos uma última estação... Que lugar escolhe?
Carter refletiu longamente.
— Isso talvez lhe pareça absurdo, mas tenho vontade de cavar debaixo dos alicerces das casas dos operários, perto da tumba de Ramsés VI.
— No entanto, já desimpediu essa zona.
— Não levei as minhas investigações ao seu termo, por causa dos turistas e das visitas oficiais; desta vez, voltarei ao acesso ao túmulo e saberei se essas casas provisórias não escondem um depósito dos alicerces que nos oferecerá a chave do enigma.
A 9 de Maio de 1922, Carter tinha festejado só o seu quadragésimo nono aniversário. Depois de ter bebido uma garrafa de champanhe, tinha errado pelo seu Vale. Tantas recordações se desfiavam ao fio do seus passos: as descobertas das tumbas do fundador, Amenófis I, da rainha Hatshepsut, as esperanças, os fracassos, o amor de Raifa, a fidelidade de Ahmed Girigar e a estranha amizade de George Herbert, conde de Carnarvon, ao mesmo tempo tão distante e tão próximo. Sentia-se desfeito, esgotado, como se o seu futuro não lhe dissesse respeito.
Dentro de menos de um ano, Carter seria obrigado a despedir os seus operários e de fechar o seu campo.
Lacau e os egiptólogos triunfariam, o Vale seria desprezado e abandonado aos turistas. O vento gelado do fracasso fê-lo arrepiar-se.
Carnarvon permanecia prostrado numa cadeira de repouso, voltada para o parque de Highclere que as cores do Verão embelezavam. O calor de Agosto envolvia os cedros-do-Líbano, de cúpula desabrochada; Lady Almina, que cuidava do marido com ternura, consultava os médicos cada vez mais freqüentemente.
O conde já não ia mesmo passear a Susie, sentindo o dono doente, esta passava a maior parte do seu tempo deitada a seus pés.
Enquanto o filho de Lord Carnarvon praticava os desportos tradicionais da aristocracia inglesa, Lady Evelyn não deixava de observar o pai. Normalmente tão conversador, mergulhava em períodos de mutismo intermináveis; mesmo a leitura dos trabalhos de arqueologia já não o regozijavam. Tinha adormecido por várias vezes, deixando cair o livro na relva. Nenhum remédio conseguia curá-lo de um esgotamento que se parecia com uma morte lenta. Nem as orações de Lady Almina, nem a doçura de Lady Evelyn atenuavam os sofrimentos do conde, que recusava qualquer visita.
A filha trouxe-lhe uma chávena de chá.
— Eve...
— Sim, pai?
— Senta-te ao meu lado. Sinto-te contrariada, quase revoltada; o espetáculo que te ofereço não é digno de um pai.
— Não se atormente assim; está a atravessar um mau período.
— Aos cinqüenta e seis anos, já não sou mais do que um velho impotente.
— Um doente que ficará melhor logo que consinta em exteriorizar as suas preocupações.
Carnarvon ergueu o busto e olhou para a filha.
— Conheces-me melhor do que eu próprio.
— De que tem medo? Para se roer assim, o peso a carregar deve ser pesado.
— Ainda mais do que pensas.
— Pois bem, faça qualquer coisa. Um ser da sua têmpera não pode continuar a fechar-se sobre o remorso.
— Tens razão.
Ela beijou-o na fronte.
— Manda um telegrama a Howard Carter — ordenou ele — e convoca-o para vir aqui imediatamente.
O filho de um modesto pintor animalista penetrou com algum receio no imenso domínio do patrão; Highclere esmagou-o com o seu tamanho e o seu esplendor. A austeridade do vale tinha-lhe feito perder o gosto pelos relvados verdejantes, pelas faias e pelos carvalhos. Carter, o camponês, o apaixonado pela terra, teria gostado de possuir um domínio semelhante. A riqueza do conde saltou-lhe à cara e reduziu-o à sua condição medíocre: um criado ao serviço do senhor. Durante um instante, pensou em se pôr em fuga;
mas lembrou-se que o seu verdadeiro patrão, aquele que orientava o seu destino, era um faraó perdido cuja voz, apenas audível, tinha atravessado os séculos. Apertando ao peito uma pasta cheia de documentos, Carter seguiu o criado que o introduziu na biblioteca do castelo. Estalou uma tempestade de uma violência inusitada; as lâmpadas apagaram-se. Carter permaneceu imóvel no escuro, rodeado de livros de presença tranqüilizadora. Com um castiçal na mão, Lady Evelyn iluminou as trevas.
— Senhor Carter! Que prazer vê-lo... mesmo que mal o distinga!
Com vivacidade, acendeu velas que banharam a casa com uma doce claridade.
— Gosta de Highclere?
— Quem não ficaria subjugado?
— Este castelo encantou a minha infância; se o desejar, desvendar-lhe-ei os seus segredos.
— Perdoe-me a minha impaciência: como está o seu pai? Aquele telegrama...
O rosto da jovem velou-se de tristeza.
— Vou preveni-lo.
Alguns minutos mais tarde, Carnarvon apareceu, com as feições vincadas, as mãos escondidas debaixo de uma manta que lhe tapava as pernas. Estava sentado numa cadeira de rodas que a filha empurrava.
— Bom dia, Howard. Tive uma má disposição esta manhã e estou a andar com dificuldade; Evelyn exige que me poupe.
— Se a minha visita é inoportuna...
— Fui eu que o chamei; temos de discutir coisas sérias. Importas-te de nos deixar sós, Evelyn, e de nos servir um Porto?
De má vontade, a rapariga retirou-se.
— Novidades, Howard?
— Nada de notável. Preparei a próxima estação e convoquei a minha equipe segundo as modalidades habituais.
O conde deitou a cabeça para trás.
— Estou cansado, muito cansado... e o Egito já não é um país muito seguro. A violência não pára de se desenvolver; os autóctones breve rejeitarão os estrangeiros e tomarão o poder. Ser-me-á necessário escolher outro destino para as minhas férias de Inverno.
Carter ficou em silêncio, à espera do seguimento de um discurso que foi ali interrompido. Então revoltou-se.
— Não é Lord Carnarvon que se exprime dessa maneira — observou ele — o homem que eu conheci nunca recuaria perante um perigo, nunca teria medo de um país que ama mais do que qualquer outro.
A impertinência do criado desencadearia o furor do senhor? Carter não se importava.
— Perdão por o ter ofendido, Howard; Lacau desencorajou-me. O novo regulamento que ele conta mandar aplicar é uma catástrofe.
— Eu encarrego-me de Lacau.
— Está a subestimar o poder da administração; é capaz de nos despojar de tudo.
— Lacau tem medo de si e da Inglaterra; se lhe mostramos os dentes, recuará.
— Não tenho a certeza... Que resultados nos farão valer? Durante cinco estações de escavações, arroteou mais de 200 000 toneladas de entulho e investi mais de
— Considera-me incompetente?
— Pelo contrário, é o melhor arqueólogo da sua geração. Se não descobriu nada nesse maldito Vale, foi porque não há nada lá para se encontrar. Que deixarei depois de mim? Montículos de cascalho e crateras... Amanhã, rirão do nome de Carnarvon. Sou muito rico, Howard, mas a Grande Guerra perturbou o mundo e mudou as regras da economia; antigamente, não fazia contas. Hoje, como qualquer um, tenho de ter cuidado com o meu orçamento. A minha fortuna não é inesgotável; é preciso ser um lord inglês, caro amigo, para ter tanta paciência, e perder tanto dinheiro, a fazer desaterros no meio de uma nuvem de poeira.
— Essas precauções espantam-me; renunciará a solicitar de novo a concessão?
— Com efeito, renuncio. A minha saúde e o bem-estar da minha família proíbem-me.
— Se a minha última estação lhe demonstrar que...
— Não haverá última estação, Howard.
— Não é possível! Crava-me um punhal nas costas.
— Não é essa a minha intenção.
— Dê-me uma última oportunidade.
— É inútil.
Carter abriu a pasta e tirou dela um plano do Vale dos Reis que desdobrou em cima de uma grande mesa.
— Olhe. Indiquei a localização precisa de todas as descobertas feitas no Vale desde a mais modesta figurinha até à maior tumba. Este plano não o mostrei a ninguém; inclino-me a pensar que a única zona verdadeiramente inexplorada, situa-se perto da tumba de Ramsés VI. Apenas cheguei à parte central do sítio; é aqui, e não noutro qualquer lugar, que se esconde a sepultura de Tutankhamon.
— Falou-me tanto disso, Howard... o sonho transformou-se em pesadelo.
— Conceda-me esta última estação.
Carnarvon abanou negativamente a cabeça.
— Conceda-me ao menos o seu apoio.
— Em que perspectiva?
— Financiarei eu mesmo os trabalhos.
— O senhor, Howard?
— Ganhei dinheiro, graças a si; gastá-lo-ei até ao último penny e até à última hora que eu possa pagar aos operários; mesmo que não disponha de mais de um mês de escavações, demonstrarei que tenho razão. Tudo o que lhe peço, é que mantenha a sua posição de comanditário oficial, a fim de que Lacau não me ponha paus entre as rodas.
Carnarvon tirou a manta e levantou-se.
— Aceito, mas numa condição.
— Qual?
— Serei eu, e mais ninguém, quem financiará os trabalhos da nossa última estação.
Animado da mais indomável determinação, Carter chegou a Luxor a 2 de Outubro de 1922. Convocou imediatamente Ahmed Girigar e explicou-lhe o seu plano: retomar os trabalhos intensivos a nordeste da tumba de Ramsés VI. O reis manifestou um certo espanto; não seria preciso, ao mesmo tempo, cortar o acesso aos visitantes e desmontar as casas de operários da época ramsédica? Tal era a intenção do arqueólogo.
Ahmed Girigar ia a sair quando ouviu um canto característico.
— Ter-se-á um pássaro introduzido na sua casa?
Carter enfiou-se entre as caixas cheias de garrafas de vinho francês, de bolos secos e de conservas compradas em Furtnum and Mason, e voltou com uma gaiola onde se debatia um canário. O reis ficou maravilhado.
— O pássaro de ouro! Vai trazer-lhe sorte.
— Sentia a necessidade de ouvir essa voz.
— O pássaro de ouro fala a linguagem do céu; ele nos guiará.
Na equipe, cada operário sabia que seria a última estação de escavações sob a direção de Howard Carter, patrão exigente mas compreensivo, que se interessava pelo destino dos homens e das suas famílias. Amanhã, seria preciso aceitar de novo o jugo de um estrangeiro glacial e distante, que se contentaria em inspecionar o campo de tempos a tempos, gabando-se dos seus esforços junto de visitantes de qualidade.
Concentrado, Carter distribuiu ordens precisas; logo que o acesso à tumba de Ramsés VI foi cortado, fez tirar a massa de fragmentos que ainda entulhavam o setor a explorar. No 1º de Novembro, fotografou as habitações dos operários ramsédicos, verificou os seus relevos anteriores e deu ordem de os demolir a fim de poder escavar mais fundo. Ahmed Girigar assinalou-lhe que pelo menos um metro de terra separava os alicerces dessas construções rudimentares do rochedo primitivo. O desaterro exigiria três ou quatro dias.
Um homem esperava por Carter em frente da sua casa isolada. Um homem que ele reconheceu com dificuldade, tão velho e gasto estava.
— É Gamai, o irmão de Raifa!
— A minha irmã morreu.
— Como é que aconteceu?
— Não tem importância. Formulou o voto de que assistisse ao seu enterro; trair uma defunta é-me impossível.
Gamai virou as costas. Carter seguiu-o.
Lavado com água quente, o cadáver de Raifa tinha sido embrulhado num lençol branco, enquanto as carpideiras cantavam melopeias. Com os tornozelos ligados, algodão nos ouvidos e nas narinas, Raifa começava a sua última viagem, embalada pela oração dos mortos: Pertencemos a Deus e devemos voltar para ele. Só os homens seguiam o caixão coberto de tecidos de cores variadas. No cemitério foi declamada uma passagem do Corão: “Dois anjos vão vir ter contigo e interrogar-te. À pergunta: quem é o teu Senhor? responde: Alá é o meu senhor. À pergunta: quem é o teu Profeta? responde- Mohamed é o meu profeta.” À cabeça da fossa foi cavado um buraco, graças ao qual os vivos poderiam falar com a morta.
As pazadas de terra engoliram anos de juventude e de felicidade.
Na noite de 3 de Novembro, as casas de operários tinham sido desmontadas; era possível, agora, escavar o chão nu, e aventurar-se num setor inexplorado. Carter dormiu mal nessa noite; acordou várias vezes, perseguido pelo doce rosto de Raifa. De madrugada, o canário cantou com a sua mais bela voz, como se contribuísse para fazer nascer o novo Sol.
Quando chegou ao campo, Howard Carter sentiu uma espécie de mal-estar, de que rapidamente compreendeu a causa: o silêncio. Normalmente, os operários tagarelavam, trocavam mil e um propósitos, manejavam os utensílios cantando. Naquela manhã de 4 de Novembro, todos se calavam. Carter dirigiu-se para o reis.
— Um acidente?
Ahmed Girigar não respondeu; fez sinal ao aguadeiro que se aproximasse.
— Explica-te.
O homem tremia.
— Estive a distrair-me a escavar a areia com o meu pau, acolá... Subitamente, esbarrou numa coisa dura. Intrigado, insisti. Soltei um bloco com as mãos. Creio... creio que é muito antigo! Tive medo e escondi o bloco com areia.
— Mostra-me o local — ordenou Carter. Carter ajoelhou-se e soltou, por sua vez, o bloco. — É um degrau... talvez haja uma escada talhada no rochedo.
Era muito cedo para ficar entusiasmado. Os operários revezaram-se ao longo do dia, a fim de fazer aparecer uma escada que se enterrava a quatro metros abaixo da entrada da tumba de Ramsés VI; o formato dos degraus, a sua largura, o seu modelado, pareciam-se com o dos hipogeus da décima oitava dinastia, época de Tutankhamon. Infelizmente, durante o desimpedimento, nenhuma confirmação: nem depósito de alicerces, nem pequeninos objetos com o nome de um faraó.
A noite de 4 para 5 foi breve. Estendido na cama, Carter obrigou-se a fechar os olhos e repousar um pouco. Tentou escorraçar as hipóteses e as esperanças do espírito, não se agarrando senão à realidade: acabava de trazer à luz uma escada que conduzia a uma tumba.
O dia de trabalho começou muito cedo, num clima de excitação; os operários não cantavam e falavam pouco. Todos tinham consciência de participar numa aventura gigantesca e queriam saber mais; o reis não teve necessidade de os estimular. A lenda já se difundia: aquela tumba era a do pássaro de ouro cuja alma tinha guiado a mão dos homens.
Carter estava cada vez mais nervoso, à medida que o lanço de degraus surgia da terra. Teve mil vezes vontade de se misturar aos operários e de apressar a manobra; as horas passavam demasiadamente lentas, angustiantes; não se trataria de uma cave por acabar ou de uma simples cavidade abandonada sem ter sido utilizada? O Vale tinha tantas vezes troçado dele, atraindo-o a uma das suas armadilhas! Como não se lembrar que nunca tinha dado um túmulo intacto?
No começo da tarde, Carter desceu a escada com as pernas a tremer. Era talvez o primeiro homem a fazer esse gesto irrisório, passados três mil anos; no campo, reinava um silêncio absoluto, como se um receio sagrado se tivesse apoderado dele.
Carter mandou interromper a desobstrução ao nível do décimo segundo degrau, porque mostrava a parte superior de uma porta que ele quis examinar imediatamente. Nos blocos, a argamassa tinha a marca de vários selos.
— Então era verdade — murmurou ele —, tive razão de não perder a fé no Vale.
Carter reconheceu Anúbis dominando os nove inimigos do Egito, acorrentados e incapazes de fazer mal: o selo da necrópole real que ele esperava contemplar há tantos anos! Não lhe restava mais do que identificar o nome do rei para conhecer o proprietário da tumba.
A decepção foi horrível.
Apenas tinham sido apostos os selos da necrópole real, uns verticalmente, os outros, quando do fecho definitivo da porta. Isto significava que o sepulcro pertencia a um alto dignitário, julgado digno de repousar entre os reis. Tutankhamon, um instante entrevisto, afastava-se.
Restava aquela porta murada; não provava ela que a sepultura estava inviolada? De fato a sua estreiteza afastava definitivamente a hipótese de uma tumba real. Mas não escondia ela o segredo de um mestre-de-obras da época radiosa em que o Egito resplandecia? E porque razão o indivíduo ali enterrado tinha sido tão bem dissimulado? A menos que se tratasse de um simples esconderijo de objetos mais ou menos preciosos...
Passada a primeira emoção, Carter examinou o alto da porta centímetro a centímetro; no ponto em que a argamassa se tinha lascado, aparecia madeira. Um lintel. Seria a porta do esconderijo ou a de acesso a um corredor descendente? Alargou uma pequena fissura entre a parede e o lintel e fez uma abertura suficientemente grande para que pudesse, com a ajuda de uma lâmpada elétrica, entrever o que se encontrava do outro lado da porta selada.
Existia realmente um corredor, mas cheio de pedras e de cascalho! Não contentes de dissimular a tumba sob casas de operários, os construtores tinham dificultado o seu acesso com precauções incríveis.
Demolir aquela porta imediatamente e esvaziar o corredor? Refreou um impulso estúpido; Carnarvon devia estar a seu lado. Não lhe oferecer aquela alegria seria a mais desprezível das traições.
Carter subiu os doze degraus e pediu ao reis que os cobrisse de terra e que mandasse guardar aqueles lugares noite e dia.
— Parece perturbado... Deseja que o acompanhe a casa?
— Obrigado, Ahmed. Prefiro estar só.
A noite caía. A luz do luar estendia sobre o Vale um véu prateado; muito exaltados, os operários dispersaram-se persuadidos que um imenso tesouro se escondia atrás da misteriosa porta.
Apesar das recomendações do reis, ninguém seguraria a língua muito tempo.
Carter escarranchou-se num burro; com os nervos em pé, teve vontade de vaguear no Vale durante a noite. Começava uma espera insuportável; daí a quanto tempo desceria Carnarvon, por sua vez, aquela escada? Que milagre podia Carter prometer-lhe? Não sobre uma tumba real, certamente, mas de certeza sobre uma cave muito antiga, datando da dinastia dos Amenófis e dos Tutmés. Se o conde se deslocava para ver um esconderijo pilhado e devastado, não poria ele fim, sem prorrogação, na campanha em curso? Não, delirava... A porta selada e o bloqueio do corredor não provavam que aquele misterioso sepulcro estava inviolado?
O burro errou à luz da Lua, enquanto o cérebro febril de Carter se perdia nos sonhos mais loucos, passando pelas escadas da esperança e do desespero.
Carnarvon voltava de um longo passeio no parque de Highclere, em companhia de Susie, Lady Evelyn, despenteada, corria para ele, agitando um papel.
— Pai, venha depressa! Um telegrama de Howard Carter!
O conde não se julgou capaz de uma emoção tão intensa. Correu por sua vez; a filha caiu-lhe nos braços.
— Lê-mo.
— Sei-o de cor: “Enfim, uma maravilhosa descoberta no Vale. Túmulo esplêndido com chancelas intactas. Cobri-o e espero a sua chegada. Parabéns!.”
— Parabéns! — repetiu Carnarvon, perturbado.
— Quando partimos?
— O mais cedo possível, Eve. Carter é um feiticeiro; não se deve contrariá-lo.
— Como estou feliz!
— Eu também... uma felicidade como esta, já não era de acreditar.
— Será Tutankhamon?
Carter não pronuncia o seu nome.
— Prudência...
— Não nos façamos mil perguntas; as respostas estão no Egito.
O jantar foi sinistro. Lady Almina tinha recebido a notícia como uma catástrofe; para ela, o Egito era uma página que se voltava.
— A sua saúde proíbe-lhe uma viagem tão fatigante.
— Leu bem o telegrama de Carter?
— O vosso Carter é um sonhador; procura deslumbrá-lo a fim de manter o financiamento.
— Não é o estilo dele.
— Não é o mais feliz dos homens em Highclere? Pode consagrar-se, com toda a calma, às suas ocupações preferidas, a leitura e caça, ver crescer os seus filhos que o admiram, sem falar da minha afeição.
— Tenho consciência da minha sorte, Almina, mas Carter precisa de mim.
— Não se pode desembaraçar sozinho?
— Trata-se de uma tumba inviolada.
— Quantas vezes me afirmou que era impossível?
— Enganava-me, e Carter tinha razão.
— Tenho um mau pressentimento; tome-o em consideração peço-lhe.
— Receio que as minhas malas não estejam prontas.
A 6 de Novembro, Carter vigiou a terraplenagem dos degraus que desapareceram sob uma camada de terra protetora; quarenta horas depois do princípio daquele estranho trabalho, mais nada ficava visível.
Grandes blocos, pertencendo às casas dos operários da época ramsédica tinham sido rolados em frente da escada oculta. Carter perguntou a si próprio se não tinha sonhado; só a presença permanente de guardas armados indicava a existência de vestígios dignos de interesse. A 7 de Novembro, Ahmed Girigar acordou-o em sobressalto.
— Que se passa?
— Um homem deseja falar-lhe; pretende que é importante.
Carter vestiu-se à pressa. O visitante esperava-o no exterior, de caderno e lápis na mão.
— Sou jornalista; parece que acaba de descobrir um fabuloso tesouro. Dê-me a exclusividade e ponho-o na primeira página.
— Quem lhe contou essa fábula?
— Luxor não fala de outra coisa.
Carter voltou-se para o reis.
— Ahmed, queira acompanhar este senhor à porta.
— Olá!? Devia informar a imprensa.
— Não insista! — O tamanho e o olhar do reis dissuadiram o jornalista.
— A imprensa voltará, Carter, e em força, creia-me!
Mal ele desapareceu, um dos operários da equipe trouxe um saco de linho cheio de cartas e de mensagens. Todo o Luxor, com efeito, estava já informado; felicitava-se o arqueólogo, propunham-lhe participar nas escavações, ameaçavam-no, faziam-lhe mil perguntas. Howard Carter deixou-se cair numa cadeira.
— Sinto-me perdido, Ahmed; este turbilhão arrasta-me.
— Está muito só; precisa de ajuda.
— Carnarvon não estará aqui antes de uns vinte dias... Se esse delírio se amplia, como resistir? Não estou preparado para lutar contra estas vagas!
— Existe um homem sólido que lhe prestará auxílio; contrate-o a partir de hoje.
Arthur Callender, antigo gerente dos caminhos de ferro egípcios, passava uma reforma tranqüila em Armant, quinze milhas ao sul de Luxor. Engenheiro reputado, tinha participado em escavações arqueológicas na qualidade de homem para toda a obra, e cruzado várias vezes o caminho de Howard Carter, que ele estimava. Quando recebeu o seu apelo de aflição, respondeu logo.
Grande, robusto, de ombros largos e fácies pesadas, Callender fazia lembrar um elefante. Mal vestido, comilão, nunca se enervava e tranqüilizava quem o rodeava. Não havia tarefa técnica que o assustasse; a eletricidade não tinha qualquer segredo para ele e sabia manejar não importa que utensílio. Construir uma casa, transportar caixas, avaliar a quantidade e a natureza dos materiais necessários para um campo, parecia-lhe uma brincadeira de crianças.
Carter e Callender abraçaram-se.
— Em que lhe posso ser útil, Howard?
— Não me pergunta porque lhe pedi para vir?
— Pouco importa. Servir é servir.
— Uma tumba, Arthur. Uma tumba da décima oitava dinastia.
— Bem a merece.
— Talvez esteja vazia.
— A caça acaba por sorrir aos homens de qualidade.
— Tenho de ir a Luxor para acolher Carnarvon e a filha que acabam de me telegrafar. Os meus operários são honestos, mas vão sofrer pressões e...
— Compreendo; zelarei pela tumba como por um ser querido. Parta tranqüilo, Howard.
Numa das grandes pedras que marcavam a localização da descoberta, Carter pintara as armas do quinto conde de Carnarvon; ninguém ignoraria a identidade do novo proprietário.
Durante a sua permanência no Cairo, Carter comprou material elétrico e fez ao Serviço das Antiguidades um pedido de autorização de iluminação, graças à ligação com a instalação da tumba de Ramsés IV.
Lacau não podia recusar-lhe esse dispositivo que facilitaria a escavação.
No Vale, Callender montou a guarda com uma vigilância que desencorajou os curiosos e eventuais gatunos; além disso, o chefe do clã Abd el-Rassul acalmou bastantes ardores, lembrando que existia entre ele e Carter um pacto de não agressão.
Mas Demóstenes entrou em jogo. Louco furioso à idéia de ver Carter triunfar, interveio junto do xeque da margem este, cuja xenofobia era bem conhecida. Feiticeiro e fabricante de talismãs, o notável gozava de uma grande reputação. Os mais humildes temiam-no.
Seguido de uma coorte de discípulos, apresentou-se em frente da localização da tumba. Arthur Callender pousou a sanduíche de pepino que saboreava e fez-lhe frente, sem baixar os olhos. Os operários de Carter, desvairados, mantiveram-se afastados. O reis admoestou-os para que não largassem a fugir.
— Este lugar é maldito — revelou o xeque. — Essa tumba contém espíritos nefastos; ninguém deve abrir a porta que os demônios antigos selaram! Senão, os profanadores serão massacrados e forças diabólicas se soltarão pelo mundo, forças que nenhum feiticeiro saberá destruir.
— Terá tenção de ficar aqui? — perguntou Callender, com os braços cruzados no peito.
— Com certeza que não — respondeu o xeque, surpreendido.
— Tanto melhor. Trata-se de um sítio arqueológico proibido ao público e sou obrigado a pedir-lhe que parta sem demora.
— Insolente! Morrerás como os outros.
— Mais vale morrer com o coração em paz do que com o ódio na boca.
— Maldito seja esse túmulo e malditos sejam os que lá penetrarem!
A barulhenta coorte afastou-se. Callender tornou a sentar-se e trincou o sua sanduíche com apetite.
Callender morava só na casa de escavações de Carter, onde gozava de alguns curtos períodos de repouso, entre duas voltas de guarda. Não concedia a sua confiança senão a Ahmed Girigar e alguns dos seus próximos, que o fanatismo do xeque não impressionava; surgia contudo de improviso, tanto de dia como de noite, e assegurava-se que tinham respeitado as suas ordens.
O seu melhor amigo era o canário. Logo que Callender entrava, cumprimentava-o com algumas notas alegres: o engenheiro não se esquecia de partilhar com ele as guloseimas. Naquela noite, soube que um acontecimento anormal se tinha produzido: a porta gemeu e o pássaro ficou mudo.
Prestando atenção, apercebeu-se de um bater de asas.
Desenrolava-se um drama na sala onde estava colocada a gaiola dourada. Uma cobra engolia o canário.
Callender matou a serpente, mas a sua presa estava morta. Enterrou-o junto da casa.
A partir do dia seguinte, murmurou-se que a maldição do xeque tinha feito a sua primeira vítima.
O faraó, cuja alma se tinha metido no corpo da cobra, tinha-se vingado do pássaro de ouro, que tinha revelado a localização do túmulo.
Carter morria de impaciência e maldizia a lentidão dos barcos. Uma tumba inviolada esperava-o no Vale, e ele batia o pé no cais da estação de Luxor!
A alegria contida de Carnarvon e o sorriso de Lady Evelyn, entusiasta com a idéia de viver a mais fabulosa das aventuras, apagaram os dias perdidos. Travessia do Canal, caminho de ferro através da França, Nova Alexandria, no Cairo, depois do Cairo a Luxor, o conde não estava no termo das suas experiências. Foi-lhe necessário ainda tomar o barco entre a margem leste e a margem oeste do Nilo, depois de ter recebido os cumprimentos do governador da província, que tinha vindo acolhê-lo, depois, subir para o dorso de um burro e caminhar para o Vale dos Reis ao ritmo do jerico.
Chapéu de borda branca, casaco grosso com duas ordens de botões, echarpe de lã, Carnarvon, cansado e friorento, não conseguia aquecer-se. Sua filha, radiosa, usava um conjunto bege-claro; uma gola de pele lembrava os frios europeus, e a saia muito “ajuizada”, abotoada ao lado, a linha obrigatória de uma jovem do establishment. Os olhos faiscantes de Susie, que corria ao lado do burro, não perdiam uma migalha do espetáculo.
Quanto mais avançavam, mais os basbaques aumentavam; encantada, Lady Evelyn aceitou as flores que lhe ofereceram. Rapazes tocaram tamborim, raparigas dançaram, soltando gritos de boas-vindas.
— Se não estivéssemos a 23 de Novembro de 1922, e se não me chamasse Carnarvon, acreditaria facilmente que se tornara a representar a entrada de Cristo em Jerusalém. A sua pequena descoberta parece fazer grande barulho, meu caro Howard.
Carter observou a filha do conde. De bonita passara a ser bela; a rapariga tinha cedido o lugar a uma mulher alegre, de olhar vivo e profundo.
— Diga-nos a verdade — exigiu ela brincalhona —, qual é o nome do rei enterrado nessa tumba?
— Não sei.
— Teria realmente parado em frente dessa porta? — Carter corou.
— Juro-lhe pela minha honra!
— Não seja susceptível — disse ela rindo —, é realmente um homem à parte. No seu lugar, não teria tido essa coragem.
Os burros forçaram o andamento, penetrando no Vale. Callender, prevenido por telegrama, tinha começado a limpar os degraus da escada. Lady Evelyn saltou da montada e foi a primeira a chegar ao campo.
— Quando retomamos os trabalhos?
— Quando o desejar respondeu Carter.
— Um pouco de repouso seria bem-vindo — julgou Carnarvon. — Prevêem-se dias duros.
Na manhã de 24 de Novembro, Carter contemplou os degraus. A que conduziam eles? Sentou-se num bloco e, maquinalmente, mergulhou a mão na areia. A queimadura, arrancou-lhe um grito de dor; debruçou-se e viu o pequeno escorpião negro que acabava de o picar. Sem se afligir, chamou Ahmed Girigar.
— Essa raça não é mortal, mas é preciso desinfetar a ferida imediatamente.
A melhor curandeira de Gurnah trouxe ervas, um ungüento e ligou o punho inchado. Sofrimento e febre eram suportáveis; nenhum veneno impediria Carter de dirigir as escavações. Pensou em Raifa que, também ela, conhecia os remédios ancestrais capazes de lutar contra o veneno.
Durante um mês, o arqueólogo sentiria dores por vezes violentas; em cada lua cheia, a queimadura reavivar-se-ia. Mas os seus dias não estavam em perigo e, se ele dispunha do vigor necessário, continuaria a trabalhar.
Carter repousou até à chegada de Carnarvon e da filha, ao princípio da tarde; depois de ter escondido o punho esquerdo, ligado, debaixo da manga do casaco, verificou a horizontalidade do seu lacinho borboleta e ajudou Lady Evelyn a descer do burro. Embora sentisse ainda algumas vertigens, conseguiu estar à altura.
— Desimpediremos a porta? perguntou a jovem, impaciente.
— Não percamos um instante mais.
Callender tinha terminado. Agora, dezesseis degraus estavam à mostra. Carter convidou Carnarvon e a filha a descerem.
— Há várias marcas de chancelas! — exclamou ela.
— A marca da necrópole — indicou Carter. Carnarvon tinha posto um joelho em terra.
— Em baixo, são diferentes.
Intrigado, Carter aproximou-se. De fato, a parte inferior da porta tinha recebido inscrições hieroglíficas bastante nítidas. Um escudo real, repetido várias vezes.
Carter julgou que o seu coração deixara de bater; lívido recuou um passo.
— Senhor Carter... sente-se mal?
O arqueólogo foi incapaz de responder. Apontou com o indicador em direção aos escudos.
— Ali... na porta...
Carnarvon agarrou-o por um braço.
— O que lê, Howard?
— Tutankhamon.
O êxtase dos santos devia parecer-se com aquela alegria inefável que se apodera do ser inteiro e o situa, num estado indescritível, entre o céu e a terra. Enfim, Tutankhamon! O rei surgia do fundo dos tempos; a sua morada de eternidade renascia do Vale, tornava-se o seu coração e o seu centro.
Carnarvon não tinha deixado o braço de Carter.
— Um conhaque?
— Não... preciso de toda a cabeça. Quero tornar a ver essa porta.
Carter receava ter-se enganado e ter decifrado outro nome, mas era mesmo Tutankhamon que tinha sido enterrado naquele lugar estranho.
— Fabuloso, Howard — julgou Callender com calor.
— Bravo, senhor Carter! — disse Lady Evelyn, entusiasta. — Permita-me abraçá-lo!
Não esperou pela autorização do arqueólogo.
— Eis a mais bela marca de gratidão — observou o conde.
— O senhor é um homem célebre e adulado, Howard.
— A paternidade da descoberta pertence-lhe.
— Não faço tenção de negar a minha participação, mas é o seu sonho que se realiza.
— O nosso sonho.
Carnarvon fez menção de refletir.
— Não deixa de ter razão.
Carter debruçou-se de novo sobre as chancelas.
— Será que outro monarca partilhará o túmulo?
— É muito mais grave.
Carter tinha empalidecido; Carnarvon pressentiu a sua perturbação.
— Que tem?
— A tumba foi violada.
— De onde lhe vem essa certeza?
— Uma das chancelas da necrópole foi aposta sobre uma espécie de fissura; abriram esta porta depois de a terem selado, e tornaram a selá-la.
O conde não perdeu a esperança.
— O acontecimento produziu-se antes da época ramsédica, dado que as casas de operários foram construídas por cima dessa tumba que eles esconderam e salvaram.
— Raciocínio inatacável — reconheceu Carter — o material funerário foi talvez preservado.
Uma surda inquietação tinha-se apoderado dos escavadores; teriam entrado gatunos na cave?
Ahmed Girigar alertou Carter; dos escombros que enchiam a parte de baixo da escada, acabavam de extrair um escaravelho. O arqueólogo não acreditava no que via: usava o nome de Tutmés III. Intrigado, examinou o mais pequeno caco, logo ajudado por Lady Evelyn, que teve boa mão porque apanhou vários fragmentos inscritos.
Mostrou-os a Carter que, cada vez mais perplexo, decifrou novamente o nome de Tutankhamon, mas outros escudos revelavam a presença dos seus antecessores, Akhenaton, o herético, e Semenkarê. Um outro caco mencionava Amenófis III, pai de Akhenaton.
— Cinco faraós — murmurou Carter.
— Que conclui?
— Nada de bom.
Callender acumulava fragmentos de barro e de caixas de madeira que tinham contido jóias e roupas reais, uns pertencendo a Tutankhamon, os outros a Akhenaton. Essa visão, desencorajou Carter.
— Porquê esse pessimismo, Howard?
— Receio que essa cave não seja um simples esconderijo pilhado há muito tempo; as relíquias provam que padres deslocaram as múmias desses reis para os pôr a salvo naquela cavidade. Na seqüência de uma tentativa de roubo, foram escondidas noutro lugar.
— Existe uma outra possibilidade: Tutankhamon, constrangido a deixar el-Amarna e de voltar a Tebas, dissimulou tesouros que tinha levado com ele.
Carter foi da opinião do chefe, mas pensou nas numerosas violações de sepulturas que vários papiros narravam. Imaginava os conciliábulos dos gatunos, a sua marcha nas trevas, o ataque dos guardas e o mergulho no túmulo à procura do ouro. Esses criminosos não respeitavam a múmia; arrancavam os colares, as jóias e os amuletos, tiravam a máscara, queimavam as ligaduras. Levavam vasos, móveis e estátuas, depois dividiam a sua colheita. Depois da sua passagem, a morada sagrada era apenas caos e desolação. Eis o que Carter receava contemplar do outro lado da porta selada.
— Abri-la-emos amanhã — decidiu Carnarvon.
— Porquê esse prazo? — perguntou Lady Evelyn impaciente.
— Por causa do regulamento do Serviço das Antiguidades.
Carter não se revoltou, estava demasiadamente frustrado pela decepção que tinha seguido ao êxtase.
Lacau tinha mandado para o Vale o mais sinistro dos inspetores, o magro e rígido Rex Engelbach, que nunca se tinha ouvido rir. A 25 de Novembro, de manhã, foi examinar os lugares; a visão dos degraus não lhe proporcionou qualquer emoção.
— Trata-se de uma porta de tumba, na parte de baixo da escada?
— É provável — respondeu Lord Carnarvon.
— Nesse caso, é preciso prever uma grade de ferro.
— Está prevista. No entanto, contamos entrar primeiro.
— Não esqueça que um inspetor do serviço deve estar presente no momento da abertura; Pierre Lacau é muito exigente nesse ponto. Toda a infração seria severamente sancionada.
— E o senhor — interveio Carter irritado —, não esqueça que quem descobriu tem o direito de entrar em primeiro lugar.
Rex Engelbach esticou o pescoço.
— Está explicado na sua licença de escavações, realmente, note bem que o lamento. A precipitação de um amador é temível.
— Não sou um amador e trabalho neste Vale há muito mais tempo do que o senhor.
Receando um pugilato, Carnarvon interpôs-se.
— Pois bem, fiquem. O senhor Carter vai proceder à abertura.
Lady Evelyn, indiferente às querelas administrativas, estava já em frente da porta. Carnarvon fotografou-a e fez também várias fotografias das chancelas.
— Como pode verificar — disse Carter a Engelbach —, trabalhamos com seriedade. Eu próprio desenhei o mínimo pormenor e a nossa descrição será tão precisa como completa.
— Esperemos.
— Tenho de o fazer constatar um fato essencial.
Carnarvon e a filha afastaram-se; Carter mostrou a Engelbach a parte superior esquerda da porta.
— Que houve de especial?
— A camada de argamassa. Tapa um buraco que serviu de passagem aos gatunos.
— Simples hipótese.
— Certeza inegável; tenha o cuidado de relatar no seu processo verbal que esse túmulo foi violado na antiguidade.
Engelbach tirou apontamentos. Carnarvon trocou um sorriso cúmplice com Carter; perante Lacau e a sua administração, a diferença entre “tumba intacta” e ”tumba violada” teria talvez uma grande importância.
— A natureza exata do túmulo?
— Se o quer saber, senhor Engelbach, terá de entrar.
— Será demorado?
— A porta não é muito larga.
— Pois bem, vamos lá.
Os operários tiraram um a um os blocos de pedra. Carter discerniu a entrada de uma galeria com uma encosta definida, com uma altura de dois metros e da mesma largura que a escada.
Progredir implicava esvaziar o amontoado de pedras e de terra que tapava a passagem; vestígios dignos de interesse escondiam-se no meio desses destroços: cacos de louça, rolhas de talhas, jarros de alabastro e jarros pintados. Carter demorou-se sobre odres que tinham contido a água necessária à estucagem da porta ou então à própria argamassa. Nenhum desses objetos mencionava o nome de Tutankhamon ou dos seus antecessores.
— Rasto do roubo — julgou Carnarvon. — Os bandidos abriram uma passagem neste cascalho e abandonaram atrás de si uma parte das suas rapinas.
Engelbach continuou a tomar apontamentos. Ao fim do dia, o corredor tinha sido desimpedido em cerca de nove metros.
— Não há segunda porta à vista — observou o inspetor de serviço. — Pouca sorte, Carter: caiu num esconderijo esvaziado e tornado a tapar.
A 26 de Novembro, Rex Engelbach não foi ao campo, que considerava sem interesse. Carter, febril, não pensou na dor na mão; ser libertado daquele funcionário limitado dava-lhe asas. Sob o seu impulso, os operários transbordaram de energia e prosseguiram o esvaziamento com precaução; mais um metro e puseram a nu a parte de baixo de uma segunda porta que logo foi desimpedida.
Daquela vez, era a prova da verdade. O acesso ao túmulo seria a porta do inferno ou a do paraíso? Carter lembrou-se que, cem anos mais cedo, a 14 de Setembro, Champollion tinha, num momento de iluminação, desvendado o segredo dos hieróglifos. Se o egiptólogo britânico abria a primeira tumba real intacta, juntar-se ia a ele na lenda.
— Arrombaremos esta porta? — perguntou Lady Evelyn.
— Talvez seja perigoso. Se o ar não foi renovado há trinta e quatro séculos, como saber se não é tóxico?
— Não quero saber dos riscos; viver um tal momento faz esquecer o medo.
Carter consultou Carnarvon com o olhar; o conde não manifestou qualquer oposição. A filha era tão teimosa como ele.
— Existe um meio de identificar eventuais emanações nocivas: a chama de uma vela. Se ela se extingue, sairemos do túmulo o mais depressa possível.
Com a garganta apertada, Carter fez uma pequena abertura no canto superior esquerdo. Introduziu-lhe uma barra de ferro que Callender lhe estendia e que só encontrou o vazio; por conseqüência, não havia qualquer bloqueio do outro lado. Depois, aproximou a vela acesa do orifício. A chama vacilou durante alguns instantes, mas não se apagou.
— Segure-a — pediu ele ao conde. — Vou alargar o buraco. — Carter observou a tremer. Tinha a sensação de penetrar vivo no outro mundo, de ultrapassar uma entrada sagrada que proibia à humanidade uma região fabulosa.
Em primeiro lugar não viu nada; a chama continuava a vacilar e iluminava a fraca distância.
Depois, os seus olhos habituaram-se à escuridão; das trevas destacaram-se formas a pouco e pouco.
Carnarvon tornou-se tão impaciente como a filha.
— Vê alguma coisa?
— Vejo. Maravilhas.
Animais estranhos, estátuas, ouro... por toda a parte, o esplendor do ouro!
Carnarvon observou por sua vez, aparvalhado; quando chegou a vez de Lady Evelyn, ficou tão muda como os dois homens. Quanto a Callender, ficou de boca aberta. A aventura transformava-se em milagre.
Carter tornou a tapar o buraco de uma forma sumária; os quatro saíram da tumba em silêncio.
Callender pôs uma grade de madeira na porta exterior e pediu ao reis que montasse uma guarda durante a noite. Ahmed Girigar não fez qualquer pergunta; os três homens e Lady Evelyn montaram os burros e partiram para a casa de apoio sem trocar uma palavra; Susie acompanhou-os em silêncio.
Callender serviu quatro conhaques. O álcool fez sair Carnarvon do mutismo.
— Dezenas, talvez centenas de obras-primas... o Vale é generoso, Howard.
— No dia mais maravilhoso da nossa existência, o dia do milagre... e dizer que Davis interrompeu as suas escavações a menos de seis pés dessa tumba! Mas não compreendo o seu plano; não se parece com nenhum outro.
— Comporta vários quartos? — interrogou Lady Evelyn.
— Apercebi-me do esboço de uma passagem no muro de norte; uma porta murada, provavelmente.
— Nem sarcófago, nem múmia — observou Callender.
— É portanto um esconderijo — concluiu Carter.
— Esquece-se dessa passagem que dá acesso a uma câmara funerária? — objetou Carnarvon. Se a porta murada está intacta, Tutankhamon ainda repousa no seu sarcófago.
— Esvaziar a antecâmara, explorar a totalidade do túmulo... será preciso muita paciência antes de encontrar o faraó... se ele existir.
Lady Evelyn levantou-se, desconfiada.
— Voltemos ao túmulo.
— Não quer dizer que...
— Quero. É preciso proceder esta noite mesmo.
— Se o Serviço das Antiguidades sabe, suprimirá a nossa licença.
— O reis não nos atraiçoará — precisou Callender — é um tipo formidável. Metamo-lo na confidência.
— É preciso redigir uma mensagem para Engelbach — observou Carnarvon — indicar-lhe-emos que a segunda porta foi desimpedida e que o esperamos amanhã de manhã no campo.
— Mandar-lha esta noite não desencadeará a sua chegada intempestiva? — inquietou-se a jovem.
— Não há risco algum. O escritório do serviço fecha às 17 horas. Engelbach só encontrará a mensagem amanhã.
— Muito bem, senhores, munamo-nos de luzes. Eu passo primeiro.
Ahmed Girigar amarrou os burros a uma estaca e retomou a sua atividade em frente da grade de madeira que fechara depois da passagem dos quatro. Na companhia de Susie, montaria a guarda do lado de fora.
Carter hesitou em forçar a porta do quarto fechado que os padres tinham encerrado na época do esplendor do Egito. Aquela empresa não estava marcada pelo selo da loucura?
— É preciso alargar o buraco — constatou Carnarvon.
— Era melhor renunciar — observou Carter.
Lady Evelyn aproximou-se do arqueólogo e tomou-lhe a mão.
— O senhor é que decide, certamente... mas não nos dê esse desgosto.
O seu sorriso, na penumbra, era o de uma deusa egípcia. Carter alargou o buraco.
— Gostaria de entrar em primeiro lugar. Se um perigo subsiste, sou eu que devo defrontá-lo.
— Lady Evelyn.
— Não voltarei atrás com a minha decisão, senhor Carter. O arqueólogo deve sobreviver a todo o preço, para redigir um relatório científico.
Carnarvon ajudou a filha; Carter desembaraçou-se sozinho, depois estendeu o braço ao conde que Callender empurrou com cuidado. Lady Evelyn iluminou-os com uma luz elétrica.
— Estou entalado — queixou-se Callender, que era muito mais corpulento do que os companheiros.
Carter puxou-o: a pedra desfez-se e o seu amigo passou.
Apertados uns contra os outros, com o coração em alvoroço, assestaram as luzes sobre o tesouro. O amontoado de objetos ultrapassava o sonho mais insensato; leitos funerários dourados, estátuas reais de madeira preta, cofres pintados e incrustados, vasos de alabastro, cadeiras, bengalas, peças desmontadas de um carro... o olhar saltava de uma obra-prima para a outra.
Um ligeiro odor flutuava nesse ar que eles eram os primeiros a respirar, passados três mil anos.
Lady Evelyn deu um grito.
— Ali, uma serpente!
Enquanto se refugiava nos braços de Carter, Callender interrompeu.
— Realmente é uma serpente, mas de talha dourada.
Passada a emoção, o arqueólogo mediu a peça:
— Que desordem! — observou Carnarvon. Empilharam os objetos uns sobre os outros... a menos que os gatunos tivessem sido surpreendidos em pleno trabalho.
— Uma desordem ordenada — retificou Carter. — Vejam no chão. Os que pisaram esta terra sagrada pela última vez tiveram o cuidado de não destruir nada. Não se trata apenas de um tesouro material que se nos oferece, mas da alma do Egito; o perfume que enche as nossas narinas é o da eternidade.
Perturbado, Carnarvon imobilizou-se em frente dos três leitos de ressurreição, um de cabeça de leão, simbolizando a vigilância, o outro de cabeça de vaca evocando a mãe celeste, o último de cabeça de hipopótamo encarnando a matriz do renascimento. A sombra das cabeças desenhava-se na parede, como se retomassem vida.
Lady Evelyn não ousou abrir dezenas de pequenos cofres de madeira preciosa e caixas em forma de ovo; uma decoração representando Tutankhamon no seu carro, vitorioso de inimigos em fuga, mergulhou-a numa espécie de êxtase. Carter levantou a tampa do cofre em glória do jovem rei: no interior, sandálias e vestimentas ornadas de pérolas de cor.
— Ele vestiu esta roupa e calçou estas sandálias — constatou ela, comovida.
Carnarvon admirou um trono cujo espaldar era consagrado a Tutankhamon e à sua jovem esposa; a rainha, em frente do rei, testemunhava-lhe a sua afeição, estendendo o braço para ele, num gesto de uma ternura e de uma distinção inigualáveis.
— É o mais belo relevo da arte egípcia — murmurou Carter.
— Como deve estar feliz — disse Lady Evelyn, tão perto dele que quase o tocava.
Os instantes de graça sucediam-se; uma quantidade de objetos únicos seduziam os olhos do egiptólogo.
— Venha ver aqui — propôs Callender que, apesar da sua corpulência, se deslocava sem bater em nada —, no ângulo sudoeste desta antecâmara, existe uma abertura.
— Se for estreita, passo à frente!
Lady Evelyn, com uma lanterna elétrica na mão, pôs-se em prática sem demora. Logo chamou Carter que, rastejando, entrou numa pequena divisão quadrada escavada na rocha como a antecâmara. Também ela estava cheia de objetos magníficos, camas douradas, cadeiras de ouro, vasos de alabastro; reinava uma grande desordem, como se uma borrasca tivesse atravessado o lugar e perturbado a ordem original.
Carter sentiu-se esmagado. O estudo do conteúdo da antecâmara e do anexo exigiriam anos de inventário e de busca; era preciso compreender porque tinha a única sepultura intacta do Vale sido concebida daquela forma. Sepultura... seria a palavra exata? Não faltava o próprio Tutankhamon?
De volta à antecâmara, Carter dirigiu-se para o esboço de passagem que ele tinha julgado discernir na parede norte; teve de defrontar o olhar das duas estátuas de madeira preta que encarnavam o rei como o próprio guarda do seu túmulo. Interiormente, pediu-lhes que lhe perdoassem essa intrusão e prometeu-lhes respeitar a alma e o corpo do faraó, se conseguisse atingir o sarcófago. Por um lado, Carter estava agora persuadido de que progredia bem numa tumba real e não num esconderijo, por mais prodigioso que ele fosse; por outro, admirava-se de um plano anormal, sem qualquer ponto comum com as tumbas conhecidas.
Normalmente, um corredor mais ou menos comprido, flanqueado de capelas laterais, terminando num quarto funerário; esta última estava escondida atrás de um dos muros da antecâmara? Uma argamassa de cor diferente da do muro provava a existência de uma passagem; tinha apostos vários selos da necrópole. Os padres tinham, portanto, tornado a tapar o orifício, depois de terem saído da sala secreta.
— Deseja ir mais longe, senhor conde?
— Certamente — respondeu Lady Evelyn em vez de seu pai.
Carter tirou o selo a alguns blocos, com a ajuda de Callender. A luz da sua lâmpada não iluminou senão uma espécie de corredor estreito, sem dúvida um caminho que conduzia a outro quarto.
Foi-lhe, pois, preciso tirar outros blocos e soltar a parte de baixo da passagem a fim de poder passar por ela. Carnarvon, a filha e Carter retiveram a respiração.
Subitamente, Carter desapareceu, como se estivesse caído num abismo.
— Howard! Onde estás?
A cabeça do arqueólogo reapareceu.
— Vai tudo bem... O solo fica a cerca de um metro por baixo da antecâmara. O deslocamento surpreendeu-me.
— Que vê?
— Ainda nada... estou a apanhar a minha lanterna.
O silêncio foi de curta duração.
— Meu Deus! Um muro de ouro!
Lady Evelyn, com os pés para a frente enfiou-se, por sua vez, na abertura. A sua lanterna, junta à de Carter, iluminou uma enorme capela que enchia quase inteiramente uma divisão mais pequena do que a antecâmara, mas maior do que o anexo.
— O quarto funerário... Desta vez, cá estamos!
Carnarvon desceu por sua vez: a corpulência de Callender proibiu-lhe seguir o mesmo caminho. Ele e Carter decidiram que não se levantavam os selos a outros blocos. Tornar a tapar o buraco não lhes deveria tirar muito tempo.
O conde, fascinado, passou a mão sobre o ouro do gigantesco catafalco, cuja porta estava fechada por um ferrolho.
— Ele repousa no interior, tenho a certeza. Um faraó, no seu sarcófago de ouro, pela primeira vez!
Carter puxou lentamente o ferrolho. Um lençol de linho, semeado de rosetas de ouro, cobria o caixão.
— Está aqui — murmurou, com uma voz estrangulada. — Está mesmo aqui, e eu tomarei conta dele.
Carter tornou a fechar a porta da capela e pôs o ferrolho no seu lugar, com as mãos a tremer.
— Impossível ir mais longe, esta noite, sem se correr o risco de estragar estas maravilhas.
Acocorada, Lady Evelyn assestava a lanterna em direção a uma passagem escavada no ângulo nordeste da câmara funerária.
— Outra divisão, aqui... é incrível!
Carter e Carnarvon rastejavam a seguir à jovem; um extraordinário relicário dourado captou o olhar deles.
Aos cantos, quatro deusas de ouro que estendiam os braços em sinal de proteção; os seus rostos eram perfeitos, os corpos tão admiráveis que sentiram um verdadeiro sentimento de piedade.
— Temos de partir — lamentou Carter. — É preciso voltar à casa de apoio antes de amanhecer.
— É a maior descoberta de todos os tempos — murmurou Carnarvon — tem objetos suficientes para encher a totalidade da parte superior do British Museum consagrada ao Egito.
Com pena, saíram daquele novo quarto do tesouro em que imperava uma magnífica estátua do chacal Anúbis, estendido no telhado de uma capela. Ao longo dos muros, cofres, vasos, candeeiros, cestos, modelos de barcos, jóias compunham um cenário de uma deslumbrante beleza.
Quase boquiabertos, voltaram ao quarto funerário e tornaram a subir à antecâmara. Callender tornou a pôr os blocos no seu lugar e Carter colocou na passagem a tampa de um cesto e caniços. Ahmed Girigar não fez qualquer pergunta. Quatro sombras subiram para os jericos e, guiados por Susie, desapareceram em silêncio na noite que acabava.
Carter não dormiu. Tentou persuadir-se que não sonhava e que a tumba de Tutankhamon muito belamente existia; para se tranqüilizar, observou o plano que tinha montado à pressa.
QUARTO DO SARCÓFAGO
Um conjunto de quatro peças de modestas dimensões compunha a única sepultura real intacta do Vale; se bem que ela não se parecesse com nenhuma outra, não faltava qualquer elemento essencial. Não era um lugar arranjado à pressa, mas um universo acabado em que todos os objetos rituais necessários à vida de além-túmulo do rei estavam presentes. Tutankhamon oferecia assim o caminho perfeito para quem queria furar os segredos da espiritualidade egípcia e, através dela, da ressurreição.
No começo da manhã, Carter acordou Callender e pediu-lhe para preparar a instalação elétrica que permitiria iluminar a tumba de Tutankhamon, ligando-a ao gerador principal do Vale. Quanto a ele, levantaria os selos da segunda porta antes de a demolir. Carnarvon, assistido pela filha, fez fotografias; eles também não tinham encontrado o sono. Todos receavam a chegada de Rex Engelbach. Por volta do meio-dia, um dos seus subordinados, Ibrahim Effendi, apresentou-se à entrada do túmulo; Carter acolheu-o.
— O senhor Engelbach transmitiu-me a sua mensagem; outras obrigações o retiveram na cidade. Eu próprio estou muito ocupado; se nós pudéssemos andar depressa...
O homem era bastante seco e pode dizer-se distante. Carter levou-o até à porta da antecâmara e fez-lhe notar as marcas da passagem de gatunos; apresentou o inspetor ao conde Carnarvon e à filha, que gabaram a competência do serviço. Cumpridas as civilidades, Callender procedeu à desmontagem da porta.
Na entrada jazia uma taça de alabastro; Carter apanhou-a e leu a inscrição hieroglífica que ornava o seu circuito: Que ton kal vive! Possas tu passar milhões de anos, tu que amas Tebas, quando estás sentado, com o rosto voltado para o vento norte e que o teu olhar contempla com beatitude.
— A última oferenda — julgou Lady Evelyn —, a de sua esposa, quando ela deixou o túmulo.
O solo estava coberto de cascalho, de fragmentos e de destroços vegetais. Ibrahim Effendi avançou com precaução e admirou-se da acumulação de objetos: bengalas, armas, cestos, barros, cetros, cornetas, pequenos cofres, cadeiras atraíam alternadamente o olhar. Carter, que examinava cada parede com uma poderosa pilha elétrica, assinalou uma passagem aberta no ângulo sudoeste da antecâmara; o inspetor, constatou a existência de um anexo, ainda mais atravancado do que o quarto grande. Carter fez-lhe notar que um grande número de cofres e de cestos tinha sido aberto e que a tumba devia ser considerada como roubada.
— Curiosos ladrões! — objetou o inspetor — Não levaram grande coisa. Olhe estes anéis de ouro embrulhados num xale. Haverá alguma coisa mais fácil de roubar?
— A conclusão impõe-se por si — declarou Carnarvon —, os bandidos foram surpreendidos e presos. Os padres procederam depois a uma arrumação apressada.
O inspetor pareceu satisfeito com a explicação. Carter guardou para ele uma outra hipótese que excluía o roubo: a fim de salvaguardar o tesouro de Tutankhamon, tinham-no transferido de uma tumba para a outra com uma precipitação certa. Circunstâncias políticas perturbadoras? Ação mágica? Vontade de preservar uma mensagem julgada essencial? Uma mistura desses diversos motivos, provavelmente.
Ibrahim Effendi notou a tampa do cesto e os caniços; mudou-os de lugar e pôs a nu uma parte degradada do tabique.
— Existe uma outra divisão.
— É verdade — reconheceu Carnarvon — mas seria imprudente destruir este tabique antes de se ter esvaziado a antecâmara.
— Como encara a continuação desta escavação? — perguntou o funcionário a Carter.
— O trabalho é gigantesco; é preciso armar os planos, fotografar tudo com cuidado, para que o flash de magnésio não pegue fogo, e tirar os objetos sem os partir. Será preciso, sem dúvida, restaurar alguns antes de os deslocar. O meu colega Callender ocupar-se-á da construção de uma grade de ferro que porá o túmulo ao abrigo de todas as cobiças; além disso, um guarda passará a noite no corredor.
— Perfeito, um inspetor do serviço virá verificar o avanço dos vossos trabalhos de dois em dois dias. O nosso diretor é muito atento à legalidade.
— Nós também — aprovou Lord Carnarvon.
A primeira vaga de invasões rebentou sobre o Vale nessa mesma tarde. Em Luxor, não se falava senão na famosa descoberta de Carnarvon e de Carter; os egiptólogos atiraram-se sobre a margem oeste, estimando ter o direito de olhar sobre a tumba que um arqueólogo fora das normas tivera o atrevimento de trazer à luz.
Com muita firmeza, Howard Carter recusou abrir a grade. A matilha de cães barulhentos, cujo ladrar ele ouvira durante toda a sua carreira, não o assustava.
— Não é a tumba de Tutankhamon, mas a de Horemhed! — clamou um erudito britânico.
— Inexato! Informe-se melhor: encontra-se, de fato, no Vale, mas não nesse lugar.
— Não será o esconderijo de um equipamento de palácio? — sugeriu um sábio francês.
— Não.
— Teriam identificado objetos mesopotâmicos — afirmou um alemão — e não se trataria de uma tumba egípcia.
— Trata-se da arte faraónica mais magnífica, no estilo tão puro da décima oitava dinastia.
— Mostre-nos as suas obras-primas!
Lord Carnarvon decidiu aguardar o tempo necessário; dado que estamos em presença do mais fabuloso tesouro que se descobriu, devemos-lhe um total respeito.
— Não vão, contudo, fazer-nos esperar? — protestou o francês.
— Vários anos, se for necessário. Queiram desculpar, senhores; se a vossa companhia me alegra, a de Tutankhamon requer toda a minha atenção.
Nessa mesma noite, o governador da província jantou no Winter Palace com Lord Carnarvon e a filha.
— O Egito tem orgulho em si, senhor conde; o seu arqueólogo, Howard Carter, é um homem muito eficaz.
— Infelizmente não tem um caráter fácil; os colegas deploraram a sua atitude.
— Ele deplora a deles, há muitos anos; o sucesso torna as pessoas invejosas, senhor governador.
— Certamente... mas não poderiam apressar a escavação? Normalmente, não se tomam tantas precauções.
— Belzoni desfundava uma tumba em dez dias, às vezes em dez horas, é verdade... mas Tutankhamon requer muitos cuidados.
— Carter não deseja contudo inventariar os objetos um por um?
— Claro que sim — respondeu Lady Evelyn. — Nenhuma pressão o fará mudar de opinião.
— A ciência espera uma publicação rápida.
— A ciência dobrar-se-á às exigências da escavação.
— Não se deveria repetir a triste experiência da tumba 55 — precisou Carnarvon com afabilidade — desimpedindo-a com grande rapidez, foi devastada por especialistas.
— Com certeza, com certeza... mas um pequeno ano de trabalho seria já bem longo para...
— Tutankhamon decidirá — disse Lady Evelyn com um sorriso encantador.
Carnarvon achou que já tinha brincado bastante com os nervos do seu convidado.
— Tranqüilize-se, senhor governador, organizaremos uma abertura oficial do túmulo a fim de que o senhor mesmo e os notáveis possam admirar o tesouro.
— Ah... que idéia maravilhosa! Já marcou uma data?
— O dia 29 de Novembro convinha-lhe?
— Admirável.
A atmosfera tornou-se francamente cordial; o governador recebeu a promessa de que ele faria parte dos primeiros a contemplar os esplendores ainda proibidos e que o omitira de pedir a autorização do Serviço das Antiguidades.
A notícia difundiu-se como um rasto de pólvora, por todo o Egito. Os jornalistas, privados de informações precisas, eram constrangidos a inventar e a dar livre curso à sua imaginação, uma vez que Carnarvon recusava dar qualquer entrevista à imprensa antes da abertura oficial, que passava a ser um
acontecimento nacional. Em 28 de Novembro propagou-se um rumor: três aviões teriam aterrado no Vale dos Reis. Numerosas testemunhas tinham visto Carter transportar ele mesmo enormes caixas e encher os compartimentos das bagagens com elas. Os aviões, carregados com o tesouro de Tutankhamon, tinham voado para um destino desconhecido, e o arqueólogo traidor tinha desaparecido.
— O Vale é um lugar prodigioso — indicou Carter a uns vinte repórteres que tinham acorrido para verificar — mas não pode servir de pista de aterragem: tem demasiados buracos e demasiadas bossas!
Lady Allenby, representando o alto-comissário retido no Cairo, o governador da província e o chefe máximo da Polícia local estavam na primeira fila das personalidades que, em 29 de Novembro, se empurraram à porta da entrada da tumba. Alguns notáveis repararam na ausência de Pierre Lacau e de um representante do Ministério dos Trabalhos Públicos, encarregados dos assuntos arqueológicos; Lord Carnarvon comportava-se como se a sepultura lhe pertencesse.
Quem, em tal momento, teria pensado em lho censurar?
Carter estava nervoso. Ele que detestava os mundanismos seria obrigado a guiar aqueles personagens tagarelas e indisciplinados que não pensavam senão no respeito pelo seu privilégio: serem os primeiros a ver o ouro do faraó esquecido. Enquanto se metia com eles pelo corredor descendente, Carnarvon ocupava-se da imprensa que ele tinha reduzido à sua expressão mais simples: só Artur Merton, do Times, tinha sido autorizado a visitar o túmulo e a redigir um artigo.
— Os meus colegas egípcios estão descontentes — confessou ele —quanto a Bradstreet, o correspondente do New York Times, está furioso e ameaça-o de represálias.
— Os Americanos são susceptíveis; faça o seu trabalho e não se preocupe com o resto.
Merton, encantado, tornou-se o autor de um scoop mundial. O artigo exclusivo do Times, consagrado à mais sensacional descoberta do século, deu rapidamente a volta ao planeta. Tutankhamon tornou-se uma vedeta da atualidade, à qual quotidianos e semanários consagraram tantos artigos como se se tratasse de um monarca em exercício. Desde 30 de Novembro, a Agência Reuter calculou o tesouro em vários milhões de libras esterlinas e desencadeou as mais variadas cobiças.
Carnarvon estava satisfeito com a sua estratégia; concentrando a informação, tinha obtido um golpe de mestre; a dispersão teria tornado menor a sua força. Que os jornalistas se batessem entre eles e fizessem a corte a Merton aliviava-o; mas não podia evitar o adversário que, naquela tarde de 30, se dirigia a passos lentos para a entrada da tumba.
— Bela descoberta — disse Pierre Lacau.
— O mérito pertence a Carter.
— A pequena cerimônia de ontem, segundo o que se diz, correu bem.
— Carter seduziu os convidados.
— Na qualidade de diretor do Serviço das Antiguidades, gostaria de ter estado presente.
— Um erro lamentável na redação dos convites privou-nos desse prazer.
— Erro que tocou igualmente o Ministério dos Trabalhos Públicos.
— A lei das séries.
— Faz tenção de me proibir a entrada da tumba? — O conde indignou-se.
— Não pense nisso? Permita-me que o guie; Carter ficará encantado de o tornar a ver.
Os dois homens não apertaram as mãos; Carter tinha começado o inventário, não interrompeu o seu trabalho. Lacau não manifestou qualquer emoção à vista das obras únicas que enchiam a antecâmara.
Carnarvon explicou-lhe que a tumba, infelizmente, tinha sido pilhada e que aquele compartimento comunicava com dois outros quartos, dos quais um era inacessível.
— Quando conta furar essa parede?
— Nunca antes de Fevereiro próximo. Devo voltar a Londres e Carter deseja avançar, tomando um máximo de precauções.
— Tanto melhor. Tem muita sorte.
— Tudo o que se encontra aqui é excepcional; considero-os como responsáveis, um e outro, da salvaguarda desses objetos.
— Estou feliz por o ouvir dizer isso — retorquiu Carter irônico.
Com as costas da mão, Carter afastou o monte de telegramas e de cartas que se acumulavam sobre a mesa de trabalho.
— Endoideceram... Ignorava que tinha uma centena de primos direitos, prontos a virem-me ajudar e principalmente a dividir o tesouro comigo!
— O artigo do Times, revendido a todos os órgãos de informação, fez sensação — lembrou Carnarvon.
— Tutankhamon tornou-se a maior vedeta internacional e o senhor é o seu empresário.
Estendido numa cadeira de repouso, o conde bebia uma cerveja; começava a divertir -se.
— Sou arqueólogo e quero paz.
— Acalme-se, Howard. A agitação acabará por se atenuar.
— Há dez dias que dura e não cessa de se ampliar! As felicitações, mais ou menos hipócritas, ainda vá... mas como aceitar as ameaças, as maldições, os conselhos estúpidos e as graçolas duvidosas? Mil pessoas me pedem para lhes enviar um pouco de ouro ou de areia que conservarão piedosamente!
— O preço da glória, meu caro; do homem mais rico da Terra, tudo se pode exigir.
— Ninguém despojará Tutankhamon.
— Que faraó! Ele, de quem nada se sabe, eclipsa as cabeças coroadas, as conferências internacionais, o debate sobre os prejuízos de guerra e mesmo as competições de crícket, depois de tantos séculos de silêncio, ocupa a frente da cena de maneira tonitruante.
— Sabe que nos acusam de termos acordado as forças maléficas que dormiam no túmulo? É por causa delas e, portanto, de nós, que os soldados belgas cometem atrocidades no Congo.
— Faz sonhar o mundo inteiro, Howard; não se preocupe com alguns pesadelos.
— Já não posso sair daqui sem ser agredido pelos jornalistas; querem saber tudo sobre Tutankhamon.
— Que lhes responde?
— Que está morto e foi enterrado no Vale dos Reis.
— Isso não lhes deve bastar.
— Já não os suporto! Não sou um saltimbanco mas um pesquisador que passou a existência ao serviço do antigo Egito, nos lugares mais recuados e mais inóspitos, a remexer toneladas de areia, a aprender a paciência, o silêncio e a solidão. Livrem-me desses parasitas.
— Infelizmente, Howard, não estamos senão no princípio da epidemia.
Dezembro de 1922 viu soltarem-se hordas de jornalistas, de eruditos, de mercadores e, sobretudo, de turistas. A tumba de Tutankhamon era um ponto de passagem obrigatório; era preciso contemplar a entrada e tentar penetrar nela. Na barulheira, no tumulto e na poeira, queria-se parlamentar com Carter, interrogá-lo, ser informado da última descoberta.
A partir dos primeiros minutos do dia, os turistas chegavam, de carruagem ou de burro, e instalavam-se no parapeito de pedra que Carter tinha mandado construir em volta da tumba.
Diziam, uns aos outros, que se iria produzir um acontecimento excepcional, como por exemplo sair uma estátua de ouro ou aparecer a múmia; alguns falavam sem descanso, outros liam, outros ainda fotografavam-se com a tumba em fundo. Quando Carter saía para o ar livre, chamavam-no e punham-se quase histéricos; mais de uma vez, o arqueólogo julgou que o parapeito iria ceder sob o peso.
Naquela manhã de Dezembro, um telegrafista obteve a autorização de ultrapassar a barragem de guardas e de penetrar no corredor onde Carter o esperava.
— Uma mensagem para mim?
— Sim e não.
— Explique-se.
— Sou um turista... A agência tinha-me prometido que poderia visitar o túmulo: arranjei esta farda e aqui estou!
Carter agarrou o homenzinho pela gola do casaco e propulsou-o para fora da tumba. Logo que desempenhou essa tarefa, um grupo de oficiais apareceu. Carter teve de examinar as suas recomendações, redigidas por diplomatas e funcionários do Museu do Cairo, e assegurar-se que não se tratava de falsificações. Durante uma meia hora, apresentou-lhes, como a tantos outros, as obras-primas da antecâmara.
Quando saíam, um desses privilegiados murmurou ao ouvido da esposa: “Afinal, não havia grande coisa para se ver.” Furioso, Carter fechou a grade de madeira, deixou o Vale, atravessou o Nilo e precipitou-se para o escritório do Serviço das Antiguidades onde Ibrahim Effendi bebia um café.
— A tumba de Tutankhamon não se visita mais.
O funcionário levantou-se aparvalhado.
— Senhor Carter! É completamente impossível. Atrai milhares de turistas, os hoteleiros e os comerciantes estão encantados.
— Tenciono aterrá-la e desaparecer até ao fim deste tumulto.
— Vão acusá-lo de egoísmo e de grosseria.
— Um pesquisador que não admite ser incomodado merece essas críticas? Dez visitas por dia representam cinco horas de trabalho perdidas. Porque é que esses eternos privilegiados gozam mais de direitos do que os outros quando não ligam nenhuma a Tutankhamon, à sua tumba e ao Egito inteiro? Só são guiados pela curiosidade e o esnobismo; o importante é poder pôr as suas relações de boca aberta, afirmando-lhes que conseguiram um livre-trânsito.
— A sua profissão impõe-lhe...
— Não falemos da minha profissão: é isso que se arrasta por toda a parte. Quantos arqueólogos empregaram as mãos num campo? Normalmente, confiam o trabalho a tarefeiros ou a incapazes! Eu, tenho de salvar o tesouro de Tutankhamon e salvá-lo-ei; não aceito que imbecis cometam estragos na antecâmara, deitando objetos ao chão. De futuro, não darei atenção a recomendações: a autorização de visita, sou eu só que a darei.
Carter bateu a porta. O funcionário pensou que o escavador possuía um dom inato para aumentar o número dos seus inimigos.
Na noite de 2 de Dezembro, Carter, Carnarvon e Lady Evelyn jantaram numa sala privada de Winter Palace. A jovem, com um vestido decotado, cor de turquesa, estava resplandecente.
— Uma informação desopilante, Howard: o conservador das coleções egípcias do British Museum, Budge, contatou-me. Subitamente, passou a achar que somos grandes arqueólogos.
— Quer objetos.
— Não parece acreditar na sua sinceridade.
— O British Museum não terá nada.
— É a minha opinião; ter sido durante muito tempo desdenhado, torna-o um pouco rancoroso.
Lady Evelyn exprimiu as suas inquietações.
— Parece ter esgotado as suas forças, senhor Carter.
— Estou muito inquieto.
— Porquê?
— O estudo dessa tumba e do seu conteúdo ultrapassou as minhas competências. Não só esvaziá-la será longo e caro mas também precisarei de peritos.
Carnarvon receava ouvir estas palavras.
— Longo e caro — repetiu ele.
— Contudo, não vai abandonar, pai!
— Se entregamos a concessão ao serviço — indicou Carter —, perderá todos os direitos sobre os objetos.
— Que solução propõe?
— Constituir uma equipe .
— Formidável! — observou Lady Evelyn.
— Já escolheu os seus colaboradores — bem entendido avançou Carnarvon.
— O meu amigo Winlock ajudou-me muito.
— O Metropolitan Museum! É para ele que apelará?
— É um parceiro útil e devotado, não é verdade?
— Então, essa equipe ?
— Harry Burton, o melhor fotógrafo do mundo, no campo arqueológico; Arthur Mace, sobrinho de Petrie, especialista na restauração e na embalagem dos objetos, e dois desenhadores. O professor Breasted debruçar-se-á sobre as inscrições, do mesmo modo que o gramático Gardiner. Callender continuará a ajudar-me e o químico Lucas não tardará a vir ter conosco.
Carnarvon acendeu um charuto.
— Notável, Howard. Assombra-me cada dia mais; não pensei que seria também um condutor de homens, capaz de reunir a melhor equipe do momento. Há um pormenor que me intriga: quanto me custará ela?
Carter sorriu.
— Nada. — A despeito de uma longa experiência da fleuma, Carnarvon quase se engasgou ao engolir o fumo.
— Como?
— A nossa descoberta entusiasma Lythgoe, um dos diretores do Metropolitan; põe o seu pessoal gratuitamente à nossa disposição.
— Onde é que está a esperteza?
— Gostaria de o encontrar e de negociar... num outro domínio.
— Estou aliviado... Durante um instante, julguei já não compreender nada da natureza humana. Onde se encontra ele?
— Em Londres. Pensa que os vossos encontros não se devem desenrolar no Egito.
— Tem razão. Torne a tapar a tumba, mande-a guardar o mais depressa possível pelos membros da sua equipe : nós partimos para Londres no dia 4.
— Tão cedo? — protestou Lady Evelyn.
— Não temos outro remédio; Howard é um homem implacável. Voltaremos logo que for possível.
Carter soube que a tristeza que ele decifrou nos olhos de Lady Evelyn lhe era destinada.
— Excelente idéia, esse fotógrafo — tornou Carnarvon.
— Conheço o seu gosto por essa arte mas...
— Não estou vexado: apesar do meu talento, estraguei quase todas as minhas fotografias! Howard, não se esqueça de pintar. Tutankhamon oferece-lhe uma mina inesgotável; mais tarde, vão disputar os vossos quadros e será multimilionário.
— Hei depensar nisso. — Pensaria ela nesse “mais tarde”?
A 4 de Dezembro, o conde e a filha deixaram Luxor com destino ao Cairo. Carter acompanhou-os, tinha proposto a Carnarvon uma lista de compras indispensáveis. A escada da tumba tinha sido tapada até ao primeiro degrau; soldados egípcios, aos quais se juntavam os homens de confiança do reis, guardavam o sítio. Mas os turistas não tinham olhos senão para um colosso, armado de uma espingarda, que estava sentado num grande bloco com as armas de Lord Carnarvon pintadas. Callender atiraria sobre quem quer
que tentasse violar o território proibido. Nem o Sol, nem as graçolas o distraíam da sua tarefa; graças à sua presença, Carter tinha podido partir em paz.
No Cairo, Carnarvon hospedou-se no Shepheard, construído na mais pura tradição londrina; o luxuoso hotel acolhia, todo o Inverno, numerosos ingleses da melhor sociedade. Tomavam, de boa vontade, o pequeno-almoço e o chá nos jardins, separados por grades de uma rua limpa e bem desimpedida. As elegantes exibiam de bom grado as suas toilettes diante da entrada monumental, enfeitada de palmeiras.
Carter estava pensativo. Durante a viagem, o conde tinha evocado dois grandes projetos: o primeiro, uma série de livros sobre a tumba compreendendo uma edição popular destinada ao grande público e uma publicação científica de grande envergadura; o segundo, um filme divertido e atraente. Carter protestou; não era escritor nem realizador.
O conde aconselhou-o a trabalhar com especialistas e a pensar nos benefícios que colheria. Se os inventores do túmulo não tomavam consciência que aquele último se tornava também num empreendimento comercial, outros encarregar-se-iam de o explorar.
— Tenho uma entrevista aborrecida no hotel, Howard; talvez gostasse de fazer a minha filha descobrir o velho Cairo! Nesse papel, Susie será completamente incompetente.
— Gostaria de me dedicar sem demora às minhas compras. — Lady Evelyn considerou necessário intervir.
— Leve-me! Tenho um desejo louco de descobrir os souks.
— Receio que esse lugar...
— Proteger-me-á.
O emissário do Governo britânico era tão lúgubre como os precedentes. Estatura média, olhos baços e fato cinzento tornavam-no tão maçador como o smog.
— Estamos bastante admirados, Lord Carnarvon.
— Compreendo-os; não se cai sobre Tutankhamon todos os fins-de-semana.
— Não evocava a sua epopéia arqueológica cujos aspectos técnicos não nos preocupam, mas um silêncio inexplicável desde a sua chegada ao Egito.
— A razão, contudo, é simples.
— Será tão amável que ma dê?
— Tutankhamon.
— Perdão?
— A minha epopéia também é uma aventura interior; de fato, a política interessa-me menos. Quando alguém se ocupa da imortalidade de um faraó, os assuntos humanos parecem irrisórios.
— Está a desviar-se, senhor conde.
— Pelo contrário, caro amigo, pelo contrário.
Carter precisava de uma grade de ferro, de produtos químicos, de material fotográfico, de caixas de dimensões variadas, de trinta e dois fardos de tecido, de cerca de dois quilômetros de algodão e de outras tantas ligaduras cirúrgicas. Contava também comprar um automóvel e algumas outras bagatelas.
Khan el-Khalili, o maior bazar do Oriente, tinha as suas dez mil lojas numa rede de ruazinhas tortuosas e escuras onde se vendia ouro, prata, pedras preciosas, especiarias, antiguidades falsas e verdadeiras, móveis, tapetes, espingardas, punhais e todos os produtos da indústria antiga e moderna. O que não se via nas lojas podia ser obtido graças a um palavreado inteligente.
Lady Evelyn apreciou a habilidade de Carter, admirou os queima-perfumes, embriagou-se com as essências de lótus e de jasmim, e adquiriu dois ovos de avestruz para a sua coleção.
Quando teve a certeza de que as suas encomendas seriam entregues em Luxor dentro do prazo, Carter levou a jovem à cidadela onde contemplaram a capital do Egito. Desse ponto culminante, a lepra dos bairros pobres desaparecia; por cima de um magma de casas amontoadas umas sobre as outras sobre-nadavam os minaretes, os zimbórios e algumas cruzes cristãs. Ao longe perfilavam-se as pirâmides de Gizé, de Abusir e de Saqqara.
— Não tenho vontade de voltar para Inglaterra: não poderia convencer o meu pai...
— Uma só pessoa exerce sobre ele um real poder: Lady Evelyn.
— Tenho o direito de o abandonar?
— Seria traí-lo.
— A mais amante das filhas não deverá, um dia, deixar o seu pai?
Carter não ousou responder; os clarões do poente misturavam-se à luz da cidade e às lanternas amarelas e vermelhas dos cafés.
— Não me peça para interpretar o destino... Há já bastantes anos, tive de interromper uma campanha de escavações a alguns metros da escada que conduz à tumba de Tutankhamon.
— Porque me impôs o destino tantas dúvidas, esforços e sofrimentos? — Talvez porque faria vinte anos no ano da descoberta.
O rosto atormentado de Howard Carter comoveu Lady
— Evelyn. — Ele não tinha nada de sedutor, faltava-lhe encanto, comportava-se de forma muito rude; mas, naquela noite, era só doçura e aspiração a uma felicidade impossível.
Nem ele nem ela romperam o silêncio vespertino. Do Cairo, mãe do mundo, esperaram uma aurora.
A amizade, valor sagrado, era por vezes penosa; a missão de que Carnarvon tinha encarregado Carter desagradava-lhe ao ponto mais alto: falar com o diretor do Serviço das Antiguidades e obter certas garantias.
Na véspera, o barco tinha levado o conde e Lady Evelyn para Inglaterra; segundo certas atitudes e certos olhares, Carter pusera-se a esperar que os seus sentimentos não a desgostassem. Mas não tivera a coragem de a interrogar, receando desfazer o seu sonho.
Respondendo ao desejo de Lord Carnarvon, Pierre Lacau tinha aceitado receber Carter sem cerimônia, longe do quadro oficial do seu escritório; o encontro não figurava na agenda do diretor. Os dois homens encontraram-se em fim de tarde, no pátio ensaibrado do museu de Bulaq, onde Mariette tinha instalado o primeiro edifício consagrado à civilização faraônica.
Nessa mesma manhã, Carter tinha recebido um telegrama assinado pelo reis Ahmed Girigar: “Permito-me informar Sua Excelência que tudo corre bem e que as suas ordens são seguidas de acordo com as instruções. Todos, aqui, cumprimentam a sua respeitável pessoa e todos os membros da família de Lord Carnarvon.” Aquele curto texto tinha-o tranqüilizado e comovido até às lágrimas; uma tal devoção investia-o de um poder inesgotável.
Frio, elegante, Lacau considerava o seu interlocutor com um sentimento de superioridade, misturado com desdém.
— Aborrecimentos, senhor Carter?
— Nenhum.
— Porquê tanto mistério?
— Lord Carnarvon está inquieto a propósito da divisão dos objetos.
— Ah, a divisão! É preciso chegarmos lá, efetivamente.
— Quais são as suas intenções?
Carter tinha a sensação de ser demasiado direto, mesmo brutal; o tom de Lacau horripilava-o.
— Conformar-me-ei com os hábitos; uma vez que Lord Carnarvon assume os custos de um trabalho que se anuncia longo e oneroso, receberá objetos de valor.
— Permita-me lembrar-lhe que o túmulo foi pilhado.
— Os meus inspetores notaram-no; esse ponto é, porém, matéria para discussão científica.
Lacau não precisou que o conteúdo inteiro de uma sepultura inviolada devia pertencer ao Museu; o seu meio-sorriso traduzia, contudo, a certeza de ser detentor de um grande trunfo.
— Seria possível notificar o seu compromisso por escrito?
— Não é indispensável, senhor Carter; a minha palavra bastará a Lord Carnarvon. Que ele se tranqüilize: um certo número de obras-primas enriquecerá a sua coleção.
Pouco à vontade, Carter sentia-se observado como uma presa.
— A sua equipe está constituída? — perguntou Lacau com um ar untuoso.
— Volto para Luxor a fim de coordenar os seus esforços.
— Cuide bem de Tutankhamon.
Carter preferia mil horas de trabalho num túmulo superaquecido a dez minutos de conversa com Lacau; poderia contudo telegrafar, informando Carnarvon que a negociação se tinha concretizado.
A 16 de Novembro, Carter tornou a abrir a tumba e, a 17, fez colocar a grade de ferro na entrada da antecâmara. O material encomendado no Cairo tinha chegado na véspera; Callender tinha-se entregado a uma verificação aprofundada e manifestado a sua satisfação. Agora, o trabalho sério podia começar.
A 18 houve a primeira reunião da equipe . Carter distribuiu os diversos vestuários; era preciso mudá-los freqüentemente por causa do calor que reinava no interior do túmulo.
— Obrigada pela vossa colaboração, senhores; proponho-lhes que se familiarizem com os lugares.
Breasted, o epigrafista, Burton, o fotógrafo, Mace, o especialista da conservação e os dois desenhadores do Metropolitan Museum seguiram Howard Carter, que, muito lentamente, meteu pelo corredor que descia. A grade estava dissimulada sob um pano branco.
— Um fantasma britânico? — perguntou Burton.
Callender, do interior da antecâmara, acendeu a luz enquanto Carter levantava o pano e empurrava a grade. Os olhares fixaram-se primeiro nos dois guardas da entrada, de pele negra, depois no trono de ouro; a majestade do espetáculo, a sua irrealidade grandiosa transpuseram bruscamente os que chegavam do século XX à época gloriosa de um jovem faraó, cuja alma reencontrada resplandecia de ouro. Com as lágrimas nos olhos, congratularam Carter e agradeceram-lhe por lhes oferecer o mais belo presente da sua existência. Breasted apertou-lhe a mão com tanta força que o inglês teve dificuldade em se libertar.
— Quanto a mim — declarou Burton, que tentava dominar a emoção com a ironia — o caso Tutankhamon arrisca-se a ser eterno.
Carnarvon já não sabia para que lado se havia de virar. Depois de um acolhimento triunfal, a partir da sua chegada a Inglaterra, tinha ido no dia
Na véspera de Natal, Carnarvon, apesar do seu cansaço, foi ao Hotel Burlington. Albert Lythgoe, representante oficial do Metropolitan, recebeu-o com calor.
— Que triunfo, senhor conde! A sua visita honra-me.
— Estava prevista, querido amigo.
— Gostaria de um pouco de champanhe?
— Não recusemos o mais alegre dos vinhos.
Lythgoe, ansioso, entornou uma taça. Falou de maneira precipitada, elogiou os méritos de Carter, celebrou a coragem de Carnarvon.
— Espera-nos uma dura tarefa — confessou o aristocrata. — Os objetos são tantos... receio que um só ano não seja suficiente.
— A equipe do Metropolitan estará à sua disposição tanto tempo quanto for necessário.
— Estou-lhe muito grato. Resta, certamente, o ponto mais delicado: a divisão dessas obras-primas.
— Acha que o meu museu...
— O Egito amava a justiça, eu também a aprecio; a sua ajuda é tão preciosa que merece recompensa.
Lythgoe teria beijado o conde se as conveniências não tivessem proibido um ato tão excêntrico.
— Qual é a posição de Lacau?
— Reconhece os meus direitos à partilha.
— Desconfie dele — aconselhou Lythgoe —, se ele não confirmar os seus compromissos por escrito, pode mudar de opinião.
— Como convencê-lo?
— Procedendo o senhor à restauração dos objetos; o Serviço das Antiguidades é incapaz de o fazer.
— Quantos mais objetos salvar, mais Lacau lhe atribuirá.
— Resta-me desejar-lhe um feliz Natal.
Na noite fria de Londres, o conde pensou na boa partida que pregava ao British Museum, tão desdenhoso de Carter. Não gostava nada dos Americanos, mas nas circunstâncias presentes eram a única escolha possível. Bem disposto, assobiando uma canção popular, Lord Carnarvon subiu para o carro que o levaria a Highclere, onde cearia com a família. Eve ficaria encantada em saber que a aventura continuava.
Em 25 de Dezembro, Carter decidiu tirar o primeiro objeto da tumba. Como se pressentissem o drama, os móveis emitiam estranhos estalidos.
— Outra vez o fantasma — pensou o fotógrafo.
A brincadeira não divertiu Callender. Carter pediu aos seus colaboradores que se movessem com a maior prudência na pequena área central aberta no coração da antecâmara. Um gesto brusco podia provocar a queda de uma pilha de objetos, cobertos com uma fina película de poeira rosa que o arqueólogo limpou com água morna.
Mace agarrou num par de sandálias. Apenas lhes tocou tornou-as a pousar, como se tivesse pegado numa bomba a ponto de explodir.
— Impossível manipulá-las, antes de as ter consolidado, senão vão desfazer-se em pó.
O americano utilizou a parafina que deixou endurecer durante duas horas; quanto às coroas funerárias, vaporizou-as com celulóide. Carter compreendeu que cada tipo de objeto colocaria um problema particular, que deslocar um só poderia prejudicar os outros, e que seria preciso restaurar um bom número deles, no espaço exíguo da antecâmara. Mesmo Callender pareceu um instante rejeitado por aquela empresa colossal que exigia dedos de fada.
— Qualquer negligência da nossa parte seria criminosa — declarou Carter. — Devemos transmitir esse tesouro ao mundo e mostrar-nos à altura da nossa sorte.
— É bom ser fotógrafo — observou Burton.
— Não use uma luz muito violenta.
— Uma meia penumbra me bastaria... mas tenho uma solução melhor a propor-lhe: dois projetores portáteis. Eles difundirão uma luz uniforme, muito superior à do flash, e terei um tempo de exposição.
À tarde, Carter confrontou-se com um outro problema: a profusão de pérolas que ornavam colares e pulseiras. Se bem que os fios estivessem apodrecidos, recusou-se a sacrificar uma só, mandou desenhar os originais com um máximo de exatidão e, manejando a agulha, ocupou-se ele mesmo de os tornar a enfiar, seguindo a ordem das pérolas desejada pelo artesão.
A multidão era cada vez mais numerosa à volta da entrada da tumba; Mace e Callender tiravam de lá os objetos um por um, sendo saudados por fortes aplausos. O espetáculo tornava-se permanente, e as pessoas empurravam-se para assistir.
Quando trazia um grande colar que cintilava ao sol, Carter reparou num jovem árabe. Tinha conseguido meter-se na primeira volta e parecia fascinado. O arqueólogo chamou-o; Callender deixou-o aproximar-se.
— O teu rosto lembra-me alguém... Como te chamas, meu rapaz?
— Hussein Abd el-Rassul.
— Um dos filhos do chefe do clã!
O poderoso personagem tinha respeitado os seus compromissos; por isso, Carter queria agradecer-lhe de uma forma espetacular. Pôs o colar ao pescoço de Hussein, Burton fotografou-o. Na galabieh branca destacava-se um escaravelho que elevava o Sol nas patas da frente.
— Quando estiver revelada, dar-te-ei a fotografia.
— Guardá-la-ei toda a minha vida — prometeu Hussein — e mostrá-la-ei a todos os que ultrapassarem a entrada de minha casa[10].
Soldados da província, membros do Serviço das Antiguidades e homens de confiança de Ahmed Girigar continuavam a fazer boa guarda de dia e de noite. Certos jornais faziam alusão à chegada de gangsters decididos a apoderarem-se dos tesouros de Tutankhamon; os bandidos locais, em contradição com as ordens de Abd el-Rassul, consentiram em lhes dar ajuda. Carter não tratava essas ameaças assim ligeiramente e preocupava-se constantemente com a segurança; quatro correntes com cadeado fechavam a grade de madeira de entrada e a grade de ferro, de uma tonelada e meia, que proibia o acesso à antecâmara. Só Carter podia dar autorização para se manipular um objeto.
— Não se pode continuar assim — queixou-se Burton — é-nos preciso um laboratório o mais depressa possível, e um entreposto.
— O seu quarto escuro não lhe chega?
— A tumba 55 está próxima de Tutankhamon mas é demasiado exígua. — Quem atribui as localizações?
— O Serviço das Antiguidades; eu trato disso.
Foi preciso defrontar Rex Engelbach, de novo, o qual, com um ar afetado, rejeitou a idéia.
Terminada a sua peroração, Carter tornou a partir ao assalto.
— Se não nos concede um lugar mais espaçoso, não poderemos continuar a trabalhar. Acarretará a responsabilidade desse fracasso.
Irritado, Engelbach aceitou discutir.
— Onde deseja ir?
— A tumba de Séti II convinha-nos. É estreita mas funda; como é pouco visitada, só preveniremos alguns especialistas.
— É muito distante da de Tutankhamon; mais valia construir um hangar ali perto.
— Os turistas tomá-lo-iam de assalto; reconheço que o projeto será muito longo, mas poderemos cortar o caminho e proibi-lo aos importunos. A segurança será fácil de manter; já previ uma grade de ferro.
Engelbach hesitava.
— As falésias, que rodeiam essa tumba, protegem-na do sol — continuou Carter — e conservam-na fresca, mesmo no Verão. Além disso, a área, em frente da entrada, está bem desimpedida. Instalaremos lá um estúdio de fotografia ao ar livre e uma oficina de marcenaria.
Engelbach cedeu.
Cada objeto foi deposto numa padiola acolchoada e depois amarrada com ligaduras. Uma vez por dia, um impressionante cortejo partia da tumba de Tutankhamon e dirigia-se para a de Séti II; polícias armados e chaouiches munidos de mocas vigiavam os carregadores e mantinham afastados os curiosos que não cessavam de tirar fotografias. Os excitados soltavam gritos e empurravam os jornalistas que rabiscavam anotações. Irritado, Carter lamentava que se gastasse mais películas num Inverno do que durante toda a história da fotografia; mal esboçava um gesto, logo se desencadeavam disparos.
Logo que o precioso carregamento chegou, a equipe procedeu com precisão e rapidez.
Numeração, medidas, apanhados das inscrições, desenhos, fotografias: cada obra estava provida de uma ficha de identidade indispensável aos estudos futuros. Depois, era colocada no fundo da cave antes de ser embalada, na previsão da sua transferência para o Museu do Cairo.
Agora que um carregamento estava a ponto de partir, o sol desapareceu. Carter levantou a cabeça; grossas nuvens negras velavam o céu. Callender alarmou-se.
— Uma tempestade... se estala, os leitos funerários estão tramados. Não teremos tempo de os abrigar.
Um relâmpago riscou as nuvens; caíram algumas gotas de chuva. Em menos de cinco minutos, tornar-se-ia torrencial, transformaria o leito do Vale em rio e invadiria a tumba. Nenhuma grade travaria o caminho àquele cataclismo.
Carter fechou os olhos.
Só lhe restava rezar: uma invocação ao deus Amon, o senhor dos ventos, veio-lhe ao espírito.
Um sopro potente quase o deitou ao chão; ao fim de uma rápida batalha, afastou as nuvens e dissipou a tempestade.
— Lá em cima, protegem-nos — conclui Callender.
O sonho continuava. Estendido no seu leito, Carter tornava a ler, pela décima vez, a carta de Lady Evelyn.
Uma longa carta, uma caligrafia redonda e terna... A jovem evocava a expedição noturna, à tumba, manifestava o seu reconhecimento para com o arqueólogo, descrevia a epopéia em pormenor. Os seus votos de felicidade para o Ano Novo deixavam entrever uma afeição sincera e profunda.
Ela, uma aristocrata! Ele, um plebeu... chocante e impossível! Tinha ela ousado falar da sua inclinação a Lord Carnarvon?
Decerto que não. Do amigo ou do proprietário de Highclere quem sairia vencedor? Carter devia renunciar a ser feliz porque tinha nascido de uma família pobre, não tinha freqüentado um grande colégio, e não possuía senão a magra cultura de um arqueólogo formado em cima da obra e detestado pelos seus colegas.
Subia nele uma revolta contra a convenção e a injustiça, que condenavam o mundo a mergulhar numa luta de castas tão artificial como cruel; daquela vez, não renunciaria.
À volta de Demóstenes tinha-se reunido a maioria dos mercadores de antiguidades de Luxor.
Todos se tinham tornado ferozes inimigos de Carter, acusado de arruinar um comércio dantes florescente.
A descoberta dos tesouros de Tutankhamon ainda agravava a situação; nem um só objeto tinha saído do campo, e os amadores só sonhavam com maravilhas inacessíveis! Atuar tornava-se indispensável.
— Se Carter cometesse uma falta profissional — avançava um libanês.
— Afaste essa hipótese — recomendou Demóstenes. — É demasiadamente cuidadoso.
— Ele descobriu mesmo a tumba? — perguntou um sírio — destruamos essa lenda.
— Infelizmente tornou-se realidade.
— Mesmo neste país, existem leis! A quem pertence esse tesouro? Não é a Carter.
— Não esqueça Lord Carnarvon; só visa enriquecer a sua coleção pessoal e não liga importância aos funcionários do Serviço das Antiguidades que teríamos podido comprar sem dificuldade.
— Carnarvon está fora de questão — afirmou o deão dos traficantes. — É Carter que é preciso destruir.
— Conte comigo — disse Demóstenes.
— Se conseguires, a tua fortuna está feita.
Howard Carter estava mergulhado no trabalho; zelava por que tratassem as peças mais modestas com o mesmo cuidado que as grandes obras-primas. Burton, sem protestar, adotava o ritmo infernal e revelava mais de cinqüenta fotografias por dia. Mace restaurava, cuidava, embalava. Callender fabricava caixas.
À noite, enquanto os seus colaboradores repousavam, Carter relia as suas notas, punha em dia o seu diário de escavações, classificava negativos e preparava o dia seguinte para não perder tempo; muitas horas tinham sido perdidas por causa de visitas inúteis. Só a noite lhe trazia uma tranqüilidade ausente, mal rompia o dia, turistas e correspondentes de imprensa agrupavam-se com a esperança de ver aparecer uma obra-prima; logo que um dos membros da equipe de Carter manipulava um objeto, os comentários difundiam-se. Circulava-se. Circulavam as mensagens expedidas pelos adeptos das ciências ocultas, que recomendavam que se deitasse na entrada da tumba leite, vinho e mel a fim de apaziguar o furor dos gênios maus. Aquela feira de cobiça, cada vez mais pronunciada, punha os nervos de Carter à prova.
Em Luxor, as pessoas agitavam-se; a pequena cidade tornava-se teatro de zaragatas entre turistas, desiludidos por não terem entrado na cave, ou entre jornalistas que, depois das corridas a cavalo, ou de burro, se empurravam para utilizar o telégrafo. À efervescência do dia, sucedia-se a da noite: nos salões dos grandes hotéis, dançava-se a valsa ou a polca, antes de evocar, durante a noite, toneladas de ouro escondidas no segredo da sepultura.
Carter recusava todos os convites para essas noites em que a estupidez rivalizava com o vazio. A sua única distração consistia, uma vez por semana, em jantar sozinho no Winter Palace. Foi aí que Demóstenes o abordou, barbeado de fresco e de smoking.
— Quer fazer fortuna?
O grego sentou-se.
— Eu, não; o senhor, sim.
— Não pense nisso. O tesouro de Tutankhamon não é para vender.
— Por enquanto. São centenas e centenas de objetos. Não os poderíamos expor todos num museu; quando Lord Carnarvon e o serviço tiverem tirado a sua parte, ainda ficarão algumas migalhas.
Carter saboreava uma carne salteada; à esquerda do seu prato, um caderno de anotações que ele relia.
— Dessas migalhas — declarou Demóstenes — eu faço-me comprador. Os benefícios serão enormes. Se conhecesse os meus clientes! Setenta por cento para si, trinta para mim... sem contar com este pequeno adiantamento.
O grego empurrou para Carter um envelope cheio de libras esterlinas. O arqueólogo pousou o garfo mesmo em cima dele; uma gota de molho escorreu e manchou-o.
— Tome, cuidado, Demóstenes; está a sujar o seu bem. Ele tornou a metê-lo no bolso, furioso.
— Tudo se compra, Carter! Eu farei o preço.
— Perde o seu tempo. O tesouro de Tutankhamon vale mais do que todo o dinheiro do nosso planeta, porque contém um segredo. E esse segredo não se troca por dinheiro.
— Arruinou-me, Carter. Há de pagar-me.
Sobrecasaca preta, calça vermelha e chapéu deram a Demóstenes a coragem de ir junto do xeque que, naquela noite, presidia o Zár, cerimônia mágica em que ele manipulava forças perigosas. O grego deu o nome ao guarda da porta de uma casa baixa e sórdida. Dobrado ao meio, Demóstenes penetrou numa atmosfera cheia de fumo e sentou-se numa banqueta ao lado de uma mulher embrulhada num xale preto.
O xeque salmodiou algumas fórmulas antes de degolar um carneiro; cobriu-se com o seu sangue e rodou sobre ele mesmo, chamando os gênios.
A mulher atirou com o xale, apoderou-se de uma faca e traçou umas estrias compridas nos antebraços. Sem sentir a mínima dor, cortou a extremidade do indicador esquerdo. Assustado, Demóstenes recuou para a porta; o feitiço do xeque pregou-o ao chão.
— Ó gênios das trevas, saiam das vossas cavernas, matem os gatunos e os profanadores que ousam perturbar o repouso de Tutankhamon.
O grego vacilou. Faltou-lhe o ar. Levou a mão ao coração e tombou.
Carter aguçou o ouvido. Daquela vez, não se enganava, era mesmo o barulho de um motor. Ao longe, uma nuvem de pó acompanhava o avanço do automóvel. Lord Carnarvon tinha pegado no volante e guiava devagarinho; a estrada não era nada propícia à velocidade e queria evitar demasiadas sacudidelas a Lady Evelyn, sentada a seu lado. O veículo percorreu, numa meia hora, a distância entre o embarcadouro e a entrada do Vale.
Toda a equipe se tinha reunido para acolher os viajantes. Muito comovido, o conde abraçou Carter que colheu um olhar terno e furtivo de Lady Evelyn; Burton pediu-lhes que posassem para uma fotografia. Susie colocou-se no primeiro plano.
Carnarvon, impaciente, dirigiu-se, com um passo apressado até à tumba de Séti II.
— Há muito tempo que desejava ver este lugar... magnífico... senhores!
O conde admirou à vontade as obras restauradas que brilhavam com mais esplendor do que na penumbra do túmulo. Mace apresentou-lhe várias bengalas decoradas e vestimentas rituais ornadas de centenas de rosetas de ouro.
— Formidável trabalho! Merece uma recompensa.
Carnarvon destapou a garrafa de Dom Pérignon que tinha trazido; Burton encheu os copos. Todos se sentiam orgulhosos e felizes.
— Estou tão cansado, Carter.
Carnarvon tinha-se estendido numa cadeira de repouso de verga entrançada. A seus pés, Susie dormia.
Durante o cocktail improvisado, o conde tinha gracejado e tornado a dar uma energia nova à pequena confraria.
— Mas parece em excelente forma.
— Aparência enganadora.
— A viagem estafou-o — explicou Lady Evelyn.
— A visão desses tesouros dá-me uma nova juventude — afirmou o conde.
Com um chapéu de abas enfiado na cabeça, Carter contemplava o pôr do Sol. O terraço da casa de apoio abria-se sobre as alturas do Vale; rosas, silenciosas, apegavam-se no disco vermelho que descia para o além.
— Tutankhamon não morreu Howard. Atravessou o mundo subterrâneo e ressurgiu quando quis, não quando nós quisemos. É por isso que ele não deve ser pasto de qualquer um. Os jornalistas do mundo inteiro assaltam-me; porque não conceder uma exclusividade definitiva ao Times?
— Excelente idéia. O seu correspondente no Cairo, Arthur Merton, é um amigo e bom conhecedor de arqueologia. Relatará corretamente a nossa aventura.
— O contrato dará uma bela quantia e cobrirá uma parte dos custos; lidar com um único jornalista economizará a nossa energia.
Lady Evelyn observava uma coleção de fotografias.
— Está persuadido, senhor Carter, de que essa tumba é mesmo a de Tutankhamon? Não se tratará de uma espécie de esconderijo? Ramsés I, que não reinou mais do que dois anos, foi gratificado com uma sepultura mais vasta do que Tutankhamon que ficou pelo menos seis anos no trono!
— Não paro de pensar na natureza real da nossa descoberta — confessou Carter. É muito mais do que uma tumba egípcia; o mestre da obra quis que a sua localização continuasse a ser o mistério do Vale. A partir do Novo Império, na época dos últimos Ramsés, o seu rasto desapareceu nos arquivos; escondido sob moradas de artesãos, tornou-se inacessível aos gatunos. Porquê? Porque Tutankhamon era o elo entre o culto solar e o conhecimento do deus secreto, Amon. Nele se resumia o ensinamento espiritual do Egito que devia ser preservado a todo o custo; o reizinho era um grande faraó.
Pierre Lacau perdeu o seu lendário sangue-frio. Rasgou o exemplar do Morning Post em mil pedaços e atirou-os para o cesto dos papéis. Os primeiros ataques contra Carnarvon e Carter tinham-no, por assim dizer, divertido; tomando conhecimento da existência de um contrato de exclusividade com o Times, os jornalistas tinham-se desenfreado, acusando o conde e o seu arqueólogo de prostituir a ciência e de se atolar no mercantilismo mais sórdido. Não considerariam, erradamente, que a tumba de Tutankhamon era a sua propriedade pessoal?
A edição no Cairo do Morning Post tinha atacado o verdadeiro responsável por esse estado de coisas: o diretor do Serviço de Antiguidades! Censurava-se Lacau de recusar qualquer informação à imprensa, como se ele fosse o escravo de Carnarvon. Os jornais egípcios tinham-se engolfado na fenda: porque o funcionário francês não desobedecia ao aristocrata britânico?
Porque não abria ele o túmulo a todos os jornalistas, recusando reconhecer a supremacia do Times?
Lacau, apanhado na tormenta, não estava preparado para tal prova; por causa dessa maldita descoberta, agüentava o assalto de milhares de turistas, célebres ou desconhecidos, que exigiam com o mesmo ódio uma licença de visita. Dessa forma, tinha-se dirigido a Luxor para lá encontrar Carter que o recebeu no campo, ocupado a embalar um colar.
— A situação tornou-se intolerável.
— Só o trabalho importa; deixem os invejosos ladrar.
— Deveria ser mais amável com os jornalistas egípcios.
— Um contrato é um contrato: que se dirijam ao Times.
— Recusar a entrada do túmulo aos visitantes provoca um vivo descontentamento.
— Não quero saber. Não tenho nem mais um minuto a perder com esse gênero de futilidades.
— Quando uma personalidade tiver um livre-trânsito oficial do Governo, deixem-se de criar embaraços!
— Com certeza que não! A tumba ficará cheia de turistas e não a poderemos esvaziar.
Lacau sentia-se apanhado num torno.
— Púnhamo-nos ao menos de acordo quanto a uma data: exijo um dia reservado aos visitantes aceites pelo serviço; jornalistas egípcios e estrangeiros juntar-se-ão a eles. É o único meio de refrear a campanha de imprensa contra si e contra mim.
— Impossível.
— Marco a data de 26 de Janeiro.
Lacau esperou em vão o acordo escrito de Carter. Enviou Rex Engelbach que, forte das suas prerrogativas administrativas, interveio com autoridade e veemência.
— O diretor escolheu uma data para as visitas oficiais. Convém-lhe, senhor Carter?
— Não.
— A sua teimosia é inaceitável!
— Os mundanismos não me interessam.
— O Serviço das Antiguidades...
— O Serviço das Antiguidades não pode impor a presença de profanos.
— Seria um oficiante num lugar sagrado?
— Começa a compreender.
Engelbach perdeu a linha.
— A sua insuportável porta blindada exaspera o mundo inteiro! Comporta-se como um tirano que guarda ciosamente tesouros que não lhe pertencem... Se isso continuar, vou recensear as armas de fogo e tomo a vossa posição de assalto!
— Porque não utilizar a dinamite? Seria mais rápido.
— Vou pensar nisso.
Mortificado, Engelbach voltou as costas.
Carter convidou Carnarvon a entrar na antecâmara da tumba; como de costume, os dois homens abrandaram o passo e baixaram a voz. Perto deles, o faraó velava. Pararam diante de uma caixa que tinha o número 43.
— É esta?
— É.
— Pelos papiros, tem a certeza?
— Só levantei a tampa uma vez. Cabe-lhe a honra de verificar.
A mão de Carnarvon tremeu.
Descobrir papiros era levantar o véu sobre o reino misterioso de Tutankhamon, decifrar um dos períodos mais obscuros da história, compreender porque essa tumba era única.
O conde tirou um primeiro rolo que começou a desdobrar com extremo cuidado.
— Não é senão linho, Howard... uma simples ligadura de tecido.
Carter examinou o resto do cofre.
— Rolos de linho, com efeito... Tenho porém a certeza de que foram escondidos papiros nesta tumba. Se não foram fechados num cofre, foram dissimulados no interior de uma estátua[11]. Conheço vários casos semelhantes no Vale. Mas teremos tempo e os meios de abrir todas as estátuas sem as danificar?
— Porquê esse pessimismo, Howard?
— Somos atacados por todos os lados.
— Trabalhe em paz; estou do seu lado. E lembre-se: tenho sorte.
A equipe trabalhava com um entusiasmo crescente; cada dia trazia o seu lote de maravilhas, quer se tratasse de um trono onde, a meio do espaldar, aparecia o gênio da eternidade que segurava as hastes dos milhões de anos, de um leito ritual com cabeça de leão, sobre o qual Tutankhamon se tinha deitado quando das festas de regeneração, ou então de um cofre de cedro, incrustado de marfim e coberto de um texto que afirmava que os olhos, a boca e as orelhas do rei seriam de novo abertos no outro mundo em que o soberano, banhado por uma brisa refrescante, saborearia pratos delicados.
Carnarvon vivia momentos exaltantes; a neura tinha desaparecido do seu pensamento e do seu coração.
Surpreendia-se por vezes a agradecer a Tutankhamon de lhe ter concedido aquela graça que ele já não esperava. Sua filha partilhava aquela felicidade miraculosa; seu pai não evocava mais os seus males, esquecia as dores, pulava como um rapaz, da tumba para o laboratório e do laboratório para a tumba. Ela mesmo adotava o ritmo desenfreado de Carter e, a seu lado, aprendia a decifrar hieróglifos, a estabelecer uma descrição sumária de um objeto por ocasião do seu registrro, e a julgar pelo seu estado de conservação. Inseparáveis, Carter e Lady Evelyn faziam reinar no campo uma alegria juvenil.
Carnarvon repousava à entrada do laboratório, quando viu Pierre Lacau, silhueta elegante e frágil, corpo estranho ao Vale.
— Faço apelo ao seu sentido das responsabilidades, senhor conde.
— Porquê?
— Creia-me, o caso é sério; eu próprio estou ameaçado por causa da intransigência de Carter.
— Encontra-me desolado. Howard é um cientista a quem falta diplomacia, admito-o, mas ninguém põe em dúvida a sua vocação, as suas competências e a sua integridade.
— Não, ninguém... É preciso deixar entrar os jornalistas egípcios na tumba. Conduzem contra nós uma cabala cada vez mais feroz.
— Não seja tão sensível às críticas, senhor Lacau; o meu contrato com o Times proíbe-me esse gênero de anulação.
— Dado que não quer ouvir a voz da razão, sou obrigado a usar outros métodos. Receberá, a partir de hoje, uma intimação do Ministério dos Trabalhos Públicos de que dependem as escavações arqueológicas.
Lacau cumpriu a palavra. A carta oficial adotava um tom que se pode chamar doce; o conselheiro jurídico do Ministério recomendava a Carter e a Carnarvon uma atitude conciliadora, de maneira a preservar os seus interesses e a não se comprometer numa luta prejudicial a todos os pesquisadores desejosos de explorar o solo egípcio. Entre as linhas planavam ameaças, mas a conclusão agarrava-se a uma sugestão: tomar as disposições necessárias no interesse geral.
Carter bebia o seu café da manhãzinha quando o reis lhe anunciou uma incrível visita.
— Que nome pronunciaste?
— Arthur Weigall.
Carter pousou a chávena e saiu para o patamar da casa de apoio. Nunca a presença desse bandido mancharia a sua morada. Weigall, ex-inspetor das Antiguidades, suspeito de roubo e constrangido a pedir a demissão, Weigall ousava voltar ao Egito.
Com um capacete colonial, vestido com elegância um casaco às riscas e uma calça cinzenta o visitante era um homem bastante bonito, tão polido como o colarinho da sua camisa. Os lábios e o olhar afiado exprimiam uma agressividade latente.
Conhecendo o feitio irascível do seu hóspede e as prevenções a seu respeito, Arthur Weigall não se embaraçou com normas de delicadeza.
— Estou inocente e quero ajudá-los. É um amigo sincero que deseja falar-lhes: ouça-me pelo menos alguns instantes, suplico-lhe.
Weigall tinha um rosto móbil e variável; vários indivíduos pareciam coabitar nele.
— Seja breve.
— Está em perigo, Howard, em grande perigo. O Egito já não é uma colônia submissa; desdenhando a imprensa autóctone, ficou com a opinião pública às costas. Acusam-no de ser um gatuno e começam a odiá-lo. Tutankhamon não lhe pertence; os partidários da independência consideram-no como um dos deles que mandou prender.
— Está a delirar.
— É o senhor que desvaira; volte à terra, declare à imprensa egípcia que compreende as suas culpas e que lamenta a sua conduta.
— Só tenho uma moral: nem pena, nem remorso.
— Não se obstine, Howard; já não está em terreno conquistado. O mundo modificou-se enquanto o senhor ficou na décima oitava dinastia, junto do seu faraó bem-amado. Não conte muito com a proteção de Carnarvon; é um homem fraco e doente. E além disso...
— Além disso?
— Fala-se de uma maldição que tocará a todos os profanadores da tumba.
— Estupidez.
— Lembre-se do terrível aviso do grande dignitário Ursu: “Aquele que violar a minha tumba na necrópole será um homem odiado pela luz; não poderá receber água no altar de Osíris, morrerá de sede no outro mundo e não poderá transmitir os seus bens aos filhos.”
— Nada disso me diz respeito — objetou Carter. — Ursu vivia na época de Amenófis II, não no reinado de Tutankhamon; eu não violo uma tumba, preservo-a de toda a destruição e de toda a pilhagem; em suma, não tenho filhos.
— Faz mal em tomar o aviso ligeiramente. Gostaria tanto de lho fazer entender.
— Desapareça.
— Nunca entrará na sala secreta, Carter, ou a maldição se abaterá sobre si.
Depois de uma longa conversa, por vezes um pouco viva, Carnarvon obteve o acordo de Carter.
A 26 de Janeiro, na data desejada por Lacau, todos os jornalistas egípcios e estrangeiros foram admitidos a visitar a antecâmara e a verificar que a equipe de Carter trabalhava da maneira mais notável.
Aquela concessão não acalmou o ardor vingativo de Bradstreet, o correspondente do New York e do Morning Post. A exclusividade de que o Times gozava aparecia-lhe como um golpe de força inaceitável; continuou a orquestrar uma violenta campanha de opinião contra a equipe de exploradores e de mercadores sem escrúpulos que tinham tomado Tutankhamon como refém. Carter era descrito como um monstro de vaidade e de egoísmo, que não comunicava nenhuma informação séria e que queria guardar tudo para ele, enquanto o seu patrão, Carnarvon, se transformava em homem de negócios, unicamente preocupado com os benefícios e pronto a tratar não importa que contrato vantajoso. Os dois gatunos revelavam-se muito mais eficazes do que os grupos de ladrões de Gurnah. Porque não estavam já expostas as obras-primas amontoadas na antecâmara, porque não estava a tumba aberta aos visitantes?
Porque Carter, como um avaro apertando contra si o seu saco de ouro, atrasava o esvaziamento e inventava mil embrulhadas administrativas que impediam o Serviço das Antiguidades de desempenhar a sua função.
Lady Evelyn ajudou Carter a tratar de um correio cada vez mais abundante.
— Quer ler o último artigo desse ignóbil Bradstreet?
— Não.
— Tanto melhor; conserve a sua energia para o essencial. Responderemos aos cem pedidos de autógrafos de hoje?
— Dividirei esse castigo com Mace e Burton; o seu pai e eu decidimos não menosprezar aqueles que nos encorajam e entendem a dificuldade da nossa tarefa.
— Mandaremos as sementes provenientes do túmulo a esse negociante de sementes que queria fazer crescer trigo egípcio.
— Não antes de as termos estudado nós mesmos.
— Aqui está um pedido de um costureiro parisiense que reclama amostras de tecido, a fim de lançar uma moda Tutankhamon.
— Compete-lhe responder, Lady Evelyn.
— Ele desembaraça-se sem nós. Ah... terceira carta de um fabricante de conservas que exige alimentos mumificados.
— Carter tomou a cabeça nas mãos.
— Não posso mais...
Ela levantou-se, aproximou-se dele e passou no alto da fronte um lenço embebido em água de colônia.
— É preciso agüentar, Howard; se perde pé, os vampiros abater-se-ão sobre Tutankhamon, e será a obra de uma vida que se estragará. Sem si...
— Não diga mais nada.
Fevereiro foi excepcionalmente quente. O vento de areia irritava os olhos e tornava as deslocações difíceis. Várias vezes por dia, os membros da equipe deviam mudar de roupa interior; Lady Evelyn, livre da sua vestimenta de turista, tinha adotado fatos mais desportivos e arranjado uma minúscula salinha privada ao fundo da tumba de Séti II. Tomava cuidado em não importunar os especialistas da restauração e da embalagem que lutavam contra o tempo; o seu labor devia ser levado a termo antes de Abril, em que as condições climáticas lhes proibiriam prosseguir uma tarefa já de si esgotante.
A saída dos grandes leitos rituais tinha sido um êxito enorme e permanecia um momento incomparável de emoção, na memória dos espectadores aglutinados em volta do túmulo e no trajeto do laboratório.
Quando a cabeça do leão apareceu no cimo da escada, murmúrios de admiração percorreram a multidão, o animal estava vivo, os seus olhos, ao mesmo tempo graves e risonhos, sondavam as almas.
Simbolizando ontem e amanhã, o leão suprimia os séculos separando o fecho do sepulcro da sua reabertura. Cada testemunha seguiu os gestos lentos de Callender, que vigiava a colocação das obras-primas em grandes caixas atapetadas de algodão.
Os curiosos tinham ocupado os melhores lugares desde as seis horas da manhã; ninguém ficou desapontado. Nesse dia apareceram o trono de ouro, cujo cenário cantava o amor de Tutankhamon pela sua jovem esposa, e um busto do rei tão realista que alguns julgaram que o soberano em pessoa saía do
grande sono. Os mais incrédulos sentiram que um acontecimento excepcional se produzia; pouco importava que se apreciasse, ou não, a arte egípcia, Tutankhamon e a história dos faraós. Uma força, até então aprisionada e retida nas trevas, rebentava como uma vaga sobre o mundo dos homens; uma vaga mágica que arrastava, na sua esteira, uma energia capaz de perturbar as consciências.
Carnarvon deu por fim uma conferência de imprensa. No maior salão do Winter Palace, os jornalistas empurraram-se; apesar do serviço da segurança e da obrigação de apresentar um cartão de convite à entrada, numerosos borlistas tinham ultrapassado as barragens.
Com um certo sentido do teatro, o conde esperou que a barulheira parasse antes de tomar a palavra.
— O senhor Carter e a sua equipe, graças a esforços dignos dos egípcios, respeitam o programa que nos impusemos, a fim de dar a conhecer ao mundo os prodigiosos tesouros de Tutankhamon. Os resultados obtidos farão calar, espero-o, as más-línguas e os invejosos. Os objetos da antecâmara,
muitos deles restaurados no nosso laboratório do Vale, serão transferidos para o Museu do Cairo, no começo da Primavera. O Serviço das Antiguidades encarregar-se-á depois de organizar uma exposição digna dessas peças incomparáveis.
Alguns risos de troça esfuziaram; a incompetência da maioria dos empregados do serviço era notória.
Carnarvon atirara uma enorme pedrada ao jardim de Pierre Lacau.
— A tumba ainda estará aberta ao público? — interrogou Bradstreet asperamente.
— Certamente que não.
— Porque razão?
— A melhor de todas: a escavação não está terminada.
Um arrepio de excitação animou a assembléia; as canetas estavam prontas a correr no papel.
Bradstreet, persuadido de não obter qualquer resposta precisa, deu a estocada.
— Em que data furarão a parede da sala escondida?
— Está bem informado reconheceu o conde com um meio sorriso.
— Então, essa data?
— Abriremos a porta murada no dia 17 de Fevereiro, em presença da rainha dos belgas.
Uma rainha viva por um rei morto, uma soberana popular para um faraó adulado: Lord Carnarvon, graças a esse formidável golpe de publicidade, fez calar os seus detratores. A partir de 15 de Fevereiro, Luxor tornou-se o centro do mundo: todas as capitais tiveram os olhos assestados sobre o pequeno burgo do Alto Egito, de onde partiram centenas de telegramas e de ofícios relativos ao Vale dos Reis. Os caminhos de ferro egípcios triplicaram o número de comboios provenientes do Cairo; os hotéis encheram-se de lordes, de ladies, de duques, de duquesas e mesmo de rajás que não queriam perder o milagre tão esperado: a descoberta da cave inviolada de um faraó.
O aspecto da estrada que levava ao Vale tinha mudado bastante. Antigamente, areia, rocha e silêncio; agora, uma ladainha de automóveis detonantes que passavam entre as duas filas de soldados da Armada egípcia em farda de cerimônia, encarregados de formar uma ala de honra para os visitantes ilustres.
Carter enraivecia. Aquele afluxo de turistas, fossem eles multimilionários, influentes e célebres, incomodava-o no seu trabalho e ameaçava a segurança dos objetos. Quantos lordes balofos e duquesas encolhidas tinham impedido de deitar abaixo um vaso de alabastro ou de pisar pérolas! Só a presença de Lady Evelyn lhe dava força para continuar com a farsa. A 16 de Fevereiro, a rainha e o filho, o príncipe Leopoldo, chegaram a Luxor no momento preciso em que a morte trágica do canário foi divulgada. Os jornais apoderaram-se do drama; alguns acrescentaram que a câmara funerária fervilhava de cobras que atacariam os profanadores.
Bradstreet ironizava; naquela famosa sala, durante tanto tempo inacessível, não se descobriria senão vazio ou, no melhor dos casos, um sarcófago pilhado.
No dia 17, ao meio-dia, a antecâmara foi desimpedida; não subsistiam senão as duas estátuas; do rei de pele negra que enquadravam a passagem para o quarto funerário. Carter, não sem pesar, contemplou a sala nua; uma parte inteira da sua vida abatia.
Talvez devesse contentar-se em gravar na sua memória a primeira visão das suas maravilhas e de tornar a fechar a tumba.
Às 14 horas principiou a cerimônia oficial; em vez das vinte pessoas previstas, cerca de quarenta invadiram a última morada de Tutankhamon. Lady Evelyn, Lord Carnarvon e Carter rivalizavam de elegância clássica com os seus convidados; o alto-comissário, Lord Allenby, e as mais altas autoridades egípcias tinham respondido ao convite do conde, da mesma maneira que Lacau e Engelbach. Este último semeou a dúvida, lembrando a triste aventura de Davis que, alguns anos antes, tinha importunado o senhor do país para lhe mostrar vasos vazios. A rainha dos Belgas, doente, tinha faltado.
Carter, Carnarvon e Lady Evelyn trocaram alguns olhares cúmplices enquanto os cameramen e fotógrafos fixavam, na película, a brilhante assistência que se empurrava à entrada da tumba.
Carter abriu a grade de ferro; aconselhou os homens a tirarem os casacos a fim de melhor suportar o calor que reinava na antecâmara.
— Está muito escuro — queixou-se um antigo ministro egípcio.
— Tranqüilize-se — disse Carnarvon — as entranhas da terra não nos engolirão. Vamos saborear uma espécie de concerto: Carter vai-nos cantar uma canção inédita.
Encostada ao parapeito, Arthur Weigall, contrito, observou os privilegiados a desaparecerem no corredor.
— O conde nunca deixa de gracejar — observou o jornalista que se encontrava ao seu lado.
— Com esse estado de espírito, não lhe dou mais de seis semanas. A maldição dos faraós...
— Está a brincar, suponho?
Envergonhado, Weigall eclipsou-se. Outro jornalista tomou o seu lugar; como os seus colegas, estava pronto a passar a tarde debaixo de sol, com a esperança de ser o primeiro a recolher uma informação sobre o quarto secreto. Já circulavam falsos rumores: de fonte segura, falava-se de duas múmias que, um quarto de hora mais tarde, passaram a ser oito.
A equipe arqueológica tinha instalado cadeiras e uma barreira separando os espectadores da porta murada em frente da qual estava edificada uma pequena plataforma, que permitiria a Carter trabalhar em boas condições, sem correr o risco de estragar as estátuas negras que protegiam as caixas de madeira.
Quando Carter subiu ao estrado, sentiu o arrepio de excitação que fazia vibrar os espectadores por trás da barreira. Se bem que a sua mão tremesse, deu a primeira pancada na parede que os projetores iluminavam.
Depois de ter soltado o lintel, que indicava a presença de uma porta, retirou o gesso e a ferragem que formavam a camada superior do enchimento e fez um buraco de fracas dimensões.
— Um candeeiro — pediu ele a Callender.
Carter iluminou o quarto secreto. Só ele podia ver o que se encontrava do outro lado da parede; os espectadores contiveram a respiração.
— Vejo uma parede... uma parede de ouro e de faiança!
Callender estendeu-lhe uma alavanca e ajudou-o a tirar o selo das pedras maiores, de maneira a alargar o buraco; Carter, cujos gestos eram precipitados, perdeu a paciência ao esbarrar com blocos irregulares, de tamanho e de peso muito variáveis. Fez questão de retirar ele mesmo cada um deles e passou-os a Callender, o qual os entregou a um operário a fim de os tirar da antecâmara. Mace tomou conta para que o tabique não se desmoronasse no quarto secreto, com o risco de danificar os seus tesouros; Carter meteu um colchão no orifício e passou para o outro lado. Carnarvon seguiu-o. A assistência esperava uma declaração; mas Carter acabava de pisar as pérolas caídas de um colar.
Apesar da impaciência cada vez mais manifesta, apanhou-as uma a uma e recusou-se a avançar antes de ter terminado. Lacau impôs-se como o terceiro explorador privilegiado; Carter, em êxtase, na frente da grande capela cujos lados pareciam uma parede de ouro, não o mandou embora. Os três homens avançaram com prudência, porque o chão estava juncado de símbolos: remos mágicos que permitiam à barca real avançar pelos caminhos do céu, naos contendo os instrumentos reais utilizados para as exéquias, ramos de persea, jarros de vinho, cornetas de prata, peles de Anúbis enrolados à volta de uma haste para evocar a morte e o renascimento.
Lacau ficou mudo. As inscrições e as cenas da enorme capela, que enchiam quase toda a sala, ofereciam um repertório inédito; quantos anos de estudos seriam precisos para o interpretar? Nas paredes, pinturas representavam a abertura da boca da múmia real depois de ela ter sido puxada para a necrópole pelos “amigos do rei”. A pesagem do coração, confrontada com a Regra, tinha sido favorável; portanto, o espírito de Tutankhamon tinha entrado na eternidade.
Carter puxou os fechos, abriu as portas grandes e fez aparecer uma segunda capela. Na porta, uma chancela.
— Está intacta — observou Lacau. — E esse véu que o tempo tornou amarelo... ninguém o levantou desde o enterro do rei.
Mantiveram-se em silêncio durante um longo momento. Quem ousaria quebrar o selo?
O olhar de Lacau caiu sobre a porta baixa que se abriu sobre a última sala da tumba, o tesouro. Carter entrou em primeiro lugar, notando a presença de um tijolo de argila no qual estava presa uma trança de caniço: Anúbis, deitado numa capela e embrulhado num pano de linho, olhava o intruso. Em frente da porta, contra a parede mais afastada, quatro deusas de ouro estendiam os braços para proteger o cofre com vasos onde se guardavam as vísceras do rei. Eram tão naturais e tão vivas, o seu aspecto expressava tanta serenidade que mal ousava contemplá-los.
Cofres, modelos de barcos, jóias, material de escriba, leque de plumas de avestruz, estatuetas... o olhar perdia-se. Quando Lacau saiu, aparvalhado, Lady Evelyn foi para junto de seu pai e do arqueólogo.
Carter, decifrando os hieróglifos inscritos sobre diversos objetos, identificou os nomes dos próximos do monarca, nomeadamente de Maya, ministro das Finanças e superintendente da necrópole real. Era, pois, ele que tinha ordenado a escavação da tumba naquele lugar e imposto o segredo mais absoluto depois de ter conduzido as exéquias! Maya, o fiel, de que Carter se tornara o continuador. Perturbado, preparava-se para deixar o quarto funerário quando notou a presença de uma lampreia, cujo soco de argila tinha uma inscrição.
— Que diz ela? — perguntou Lady Evelyn.
— Protege o túmulo de qualquer violação e conserva intacto o quarto secreto.
Nem Carter nem Carnarvon foram capazes de pronunciar uma só palavra quando voltaram da antecâmara; contentaram-se em levantar os braços ao céu. As personalidades, umas depois das outras, ultrapassaram a entrada do Santo dos Santos; várias delas destacaram-se com dificuldade do mundo fascinante que lhes tinha sido oferecido. Nem uma cujas pernas vacilassem, nem uma que não ficasse esmagada por tanta beleza. À agitação sucedeu a gravidade das testemunhas, persuadidas de terem participado nos mistérios cuja verdadeira natureza lhes escapava. Mais de três horas depois do começo do estranho cerimonial, Carter e Carnarvon saíram em último lugar da tumba, suados, poeirentos, despenteados; o Sol tinha-se posto e o ar fresco picava a pele. Carter pousou um xale sobre os ombros de Lady Evelyn.
— O Vale mudou — notou ela —, olhe... está iluminado por uma luz fora do habitual. Nunca vi nada de parecido.
— Nunca o amei tanto... Oferece-nos o impossível.
Tutankhamon tornara-se o senhor absoluto de Luxor. Não havia uma conversa em que ele não estivesse presente, uma loja onde o seu nome não fosse aposto nas mercadorias mais diversas; os cozinheiros tinham inventado as sopas Tutankhamon ou os assados à Tut, enquanto os organizadores das festividades atraíam a multidão ao baile Tutankhamon.
Bradstreet, que contava escrever um artigo irónico sobre a doença diplomática da rainha dos Belgas, desistiu ao saber que a soberana, depressa restabelecida, tinha-se dirigido para a margem oeste desde 18 de Fevereiro. Sem dúvida, preferia ela uma visita solitária à confusão da inauguração oficial.
Callender tinha-lhe reservado uma surpresa; aperfeiçoando a instalação elétrica e dissimulando as lâmpadas, tinha criado um ambiente doce e quente, propício à descoberta da grande capela e das maravilhas da sala do tesouro. Perturbado, o egiptólogo Jean Capart, que acompanhava a rainha, aplaudiu.
— Como reter este minuto fugidio? É o mais belo dia da minha vida. — Entusiasmado, beijou Carter nas duas faces. — É um gênio e um benfeitor da humanidade.
Sem pretensões a esses títulos de glória, Howard Carter estava feliz por receber uma prova de afeição sincera da parte de um colega; Tutankhamon fazia realmente milagres. A rainha, com um chapéu branco de aba larga, o rosto tapado por um pequeno véu, estava vestida de branco; com uma estola de raposa prateada a cobrir-lhe os ombros. A sua chegada não passara despercebida, uma vez que o séquito não contava menos do que sete automóveis, acompanhados de uma coorte de carros de cavalos e de veículos diversos puxados por burros. A pequena população da margem ocidental estava feliz por participar na festa, e manifestava barulhentamente a sua alegria; o chefe da província não tinha dado o exemplo, ao sair do embarcadouro, fazendo cumprimentar a soberana com uma fanfarra?
A gripe de que Sua Majestade sofria não era fingida; apesar do calor, tremia de frio. Contudo, a visita da tumba apaixonou-a; fez várias perguntas a Carter que, encantado, abriu cofres fechados desde a morte de Tutankhamon. Um deles continha uma serpente de madeira dourada cuja visão fez sobressaltar os visitantes tão viva parecia.
A rainha dos Belgas não deixou de elogiar Carnarvon e Carter durante a conferência de imprensa que deu na própria noite; feliz por estar em Luxor, mais feliz ainda por ter visto as obras-primas de uma beleza espantosa, insistiu no reconhecimento que o mundo inteiro devia testemunhar ao conde e ao seu
arqueólogo.
— Uma indisposição?
— Sim, Howard. É o terceiro visitante que desmaia ao sair do túmulo.
— O calor.
— O rumor público fala de uma maldição pronunciada por um xeque.
— Acredita nisso?
— Não — respondeu Carnarvon — ele não consegue dissuadir ninguém de visitar a tumba. O Times é um precioso aliado; dando conta, todos os dias, dos nossos trabalhos, faz calar os nossos adversários.
— Salvo Bradstreet e o New York Times. Pretende que os desacordos entre o Governo egípcio e nós não param de aumentar.
— O Ministério dos Trabalhos Públicos acaba de desmentir, qualificando de “ridículas” as alegações de Bradstreet e felicitando-se da cordialidade que preside às suas relações conosco. E recebemos esta mensagem do rei Fuad: “É-me particularmente agradável dirigir-lhes a expressão das minhas mais calorosas felicitações, na hora em que os vossos longos anos de trabalho são coroados de êxito.” Os nossos inimigos foram vencidos, Howard; mesmo Lacau deixa de poder levantar o dedo mínimo. Tornando-se um herói internacional, passa a ser intocável.
Entre 20 e 25 de Fevereiro, dezenas de milhares de turistas lançaram-se ao assalto da margem oeste e sobre o túmulo de Tutankhamon, nem mesmo a tempestade desencorajou os curiosos. A vida noturna de Luxor estava tão animada como a de uma grande capital; uma quantidade de americanos, indiferentes às maravilhas da arqueologia egípcia, gulosos de corridas de cavalos e de camelos, falavam alto, bebiam muito e jogavam durante a noite nos barcos de cruzeiro que sulcavam o Nilo.
Carter afastou dois homens meio embriagados e entrou no salão do Winter Palace onde Carnarvon tomava chá em companhia de um representante do Metropolitan Museum; o conde pressentiu uma desgraça.
— Isto não pode durar mais. Estes turistas são mais insuportáveis do que as moscas.
— O Governo egípcio pediu-nos autorização para abrir o túmulo ao público e...
— Fizemos mal; esses grupos de excitados põem-nos em perigo.
— Um acidente?
— Um obeso ficou entalado na passagem entre a parede e a capela, cujo tabique tinha sido retalhado. Amanhã, produzir-se-ão outras degradações; se não fecharmos o túmulo, não respondo por nada.
Carnarvon, tão inquieto como Carter, falou imediatamente com um representante do Ministério.
O arqueólogo, sedento de solidão, escrevia o seu diário de escavações, quando a porta de sua casa se abriu docemente.
— Posso incomodá-lo?
O sorriso de Lady Evelyn teria desarmado o mais feroz dos conquistadores: por isso, Carter abandonou a caneta.
— Por favor.
O Sol punha-se no Vale; a rocha tingia-se de ocre, o silêncio cobria as moradas de eternidade.
— O meu pai está contrariado.
— Lamento. Não estamos completamente de acordo sobre o comportamento a ter com as autoridades; as concessões desencadearão catástrofes.
Lady Evelyn aproximou-se de Carter; pôs-lhe a mão direita no ombro. Petrificado, mal podia respirar.
— É um homem intratável.
— Eu...
— Gosto do seu caráter, Howard; é impossível e único. Está persuadido de que o absoluto pode ser vencido neste mundo e que a retidão é o único comportamento aceitável.
— Reconheço-o.
Ela beijou-o na testa. Carter agarrou-se à sua mesa de trabalho como um náufrago a um destroço.
— Sou bastante intransigente aos seus olhos?
— Gostaria de lhe dizer...
Levantou-se lentamente, receando que ela não o obrigasse a ficar sentado: mas ela afastou-se, subitamente inacessível.
— Não quero perdê-la. Evelyn.
Deu um passo na sua direção. Ela não recuou.
— Não sei como...
— Cale-se, Howard. Não são essas as palavras que espero. — Tomou-a nos braços. Lady Evelyn, Eve, uma mulher apaixonada, a felicidade.
Às seis horas da manhã, Carter não se tinha levantado: com os olhos abertos, tentava ancorar na sua memória, cada instante daquela noite sublime onde, pela primeira vez, havia trinta e três anos, ele não tinha sonhado no Vale dos Reis.
A porta da casa de apoio abriu-se com estrondo.
— Carter, está aí?
O arqueólogo levantou-se só de um lado.
— Responda, Carter!
— Estou no meu quarto, senhor conde! — Carnarvon tinha um rosto desfeito; a sua voz rugia.
— Eve contou-me tudo.
— Teve razão.
— Proíbo-o de a tornar a ver.
— Porquê?
— Não são do mesmo meio.
— Ela, uma aristocrata; eu, um plebeu.
— Exatamente.
— Se eu lhe pedir a mão dela, recusará?
— Sou obrigado.
— Que lei o constrange?
— A moral e os costumes. — Carter levantou-se e vestiu-se.
— O senhor não acredita neles; o seu caráter, a sua existência, desmentem esse conformismo.
— Creio nela pela minha filha, e lutarei contra a sua loucura.
— Amar-me é uma loucura!
— Compreenda, Howard!
— Recuso. Parece que o mundo mudou... Hoje, um plebeu pode casar com a filha de um conde.
— Engana-se: o seu único amor é o Vale dos Reis. Eis a verdadeira razão da minha recusa. Devo protegê-lo contra si mesmo.
— Não decida dos meus sentimentos.
— Esqueça Evelyn.
— Nunca. Nem um segundo a encorajei; sou incapaz de a repudiar.
Carnarvon não conteve a sua cólera.
— Esforce-se! Ela tem vinte e dois anos e o senhor cinqüenta! É uma monstruosidade, Carter!
O arqueólogo ajustou o lacinho.
— Não se abaixe a discutir com um monstro. Saia daqui.
— Sabe o que isso significa? O conde despede o plebeu. A nossa colaboração terminou.
O ragtime tinha invadido a sala de baile do Winter Palace destronando as danças mais tranqüilas; os jovens da alta sociedade inglesa e americana entregavam-se a essa nova diversão e criavam numerosos idílios.
Numa sala contígua, Carter bebia.
Mais uma vez se encontrava só, abandonado por todos. Agora, que o seu sonho estava ao alcance da mão, passava a pesadelo; Carnarvon contrataria um outro arqueólogo para abrir as capelas e descobrir o último segredo. Que futuro poderia um egiptólogo desempregado oferecer à filha de um conde?
Carter encheu o copo. Uma mão agarrou o seu punho.
— Não se destrua, Howard.
Lord Carnarvon sentou-se em frente de Carter.
— Apresento-lhe as minhas desculpas.
— O senhor...
— Ouviu bem. O senhor é o meu único amigo; zangar-me consigo seria a pior das tolices. O que quer que aconteça, quaisquer que sejam os seus sentimentos para comigo, a minha afeição por si não se desmoronará. Portei-me como um imbecil... a mentira, o enervamento, o tumulto da glória? Não são mais do que pobres explicações, concedo-lhe.
— Parecem-me bastante válidas. Beber só é uma heresia; aceitaria uma taça de champanhe?
— Com prazer.
— Depois de nove dias de visitas intensas, Carter, apoiado por Carnarvon, obteve uma decisão favorável: o Serviço das Antiguidades e o Governo concederam o fecho do túmulo, condição indispensável à sua salvaguarda. Quando os dois homens contemplaram a antecâmara vazia do seu conteúdo, tiveram uma profunda sensação de mal-estar.
— Paredes de uma amarelo triste, um chão nu, nem o menor esboço de decoração... que desolação!
— Somos uns profanadores!
— Não creio, Howard: Tutankhamon sente o nosso respeito.
— Porque nos perdoaria ele termos mexido no seu túmulo?
— Porque daremos a conhecer a sua mensagem ao mundo. O velho Egito mal começa a falar; não afirmaram que nem a superstição nem a idolatria o guiavam, mas que os seus verdadeiros valores eram o conhecimento, a fidelidade a uma Regra universal e a sacralização do quotidiano? A nossa civilização é miserável, Howard; hipocrisia, corrupção e mediocridade são os seus deuses. Uma guerra mundial e milhares de mortos... eis o balanço do nosso famoso progresso. Se não encontrarmos a fé dos Egípcios, somos condenados ao nada.
Carter não tirava os olhos das duas estátuas negras que continuavam a guardar a entrada do quarto secreto. O ouro da sua coifa e a luz dos seus olhos purificavam a alma.
— A nossa época é a do materialismo cínico; destrói o que não é conforme com a sua pequenez.
— Tutankhamon é um milagre, o mais extraordinário dos milagres, a única luz de esperança.
A grande grade de ferro fechou-se sobre a antecâmara. Dezenas de operários, entre os quais numerosas crianças, despejaram no corredor centenas de cestos de areia e de fragmentos de pedra. O reis ia e vinha ao longo da corrente humana que vedava o acesso à tumba. Quando a noite caiu, Callender acendeu os projetores. O labor prosseguiu até ao romper da alva. Às 5:30 horas do dia 25 de Fevereiro, a morada de eternidade de Tutankhamon tinha de novo desaparecido.
— Que repouse em paz — murmurou Carter.
— Ninguém poderá esvaziar a sua sepultura — constatou Carnarvon. Que diligência inverossímil! De uma maneira geral, os arqueólogos desenterram e nós sepultamos. É decerto a primeira vez que escavadores tapam voluntariamente o sítio onde trabalham.
— Penso por vezes em não perturbar o seu sossego.
— Deve ir até ao fim, Howard. Esse rei persegue os seus sonhos desde a sua adolescência; encontrá-lo é a menor das gentilezas.
Os soldados e os guardas do Serviço das Antiguidades instalaram-se à volta do parapeito que assinalava a localização da tumba; Carter pediu ao reis que os fizesse vigiar pelo seu próprio serviço de segurança; mas quem imaginaria que essa cavidade cheia de entulho mascarava a única cave funerária intacta do Vale dos Reis?
Carnarvon apertou a mão de Pierre Lacau.
—A temperatura do Cairo é menos desgastante do que a de Luxor. Deseja um chá de menta, senhor conde?
— De boa vontade.
— A sua visita honra-me; a corte do Egito e o alto-comissário só confiam em si. Todas as personalidades que contam neste país reconhecem-no como um herói nacional.
— Restam-me alguns inimigos, felizmente; senão, dormiria sobre os meus louros.
— Os partidários da independência? Não é grave.
— Desiluda-se, senhor Lacau; não baixarão os braços. Como encara a partilha dos objetos?
O diretor do Serviço das Antiguidades temia aquela pergunta. Carnarvon aproveitou a sua notoriedade para obter um benefício ilícito, contornando o regulamento; com raiva no coração, Lacau veria dispersar-se a mais fabulosa coleção de todos os tempos.
— A partilha... teremos de discutir.
— Será hostil a essa idéia?
— A sua questão é bem embaraçosa. Aos costumes antigos falta, por vezes, rigor... Se o tesouro de Tutankhamon estivesse junto no Museu do Cairo, não acha que... Proponha-me uma lista; discutiremos como deseja. Lacau observou o conde a sair; inconscientemente, partiu o lápis que apertava na mão direita.
O vento da areia não acalmava; a despeito da poeira e do calor, a equipe continuava a trabalhar no laboratório. Restaurar as jóias, as roupas, as madeiras ou as louças exigia paciência e minúcia. Carnarvon interessava-se pelo mínimo pormenor e interrogava os especialistas acerca das suas técnicas; cada um reparava no seu nervosismo crescente e na lassidão que lhe vincava o rosto.
Durante a pausa que se seguiu ao almoço, Carter decidiu-se a interrogá-lo.
— Não tornei a ver Lady Evelyn.
— O senhor está livre, Howard; ela também.
— Perdoou-me realmente?
— Não cometeu nenhuma falta.
— Parecia tão distante, nos últimos dias.
— É uma estupidez, mas estou com dor de dentes. Dois partidos, um que caiu... estou a envelhecer, e aborreço-me sem a Susie. Por causa da sua saúde, teve de ficar em Highclere. Faz-me falta... Tem tanta experiência para tomar conta de mim, ao mesmo tempo que dos nossos tesouros! E esse papel do jornal egípcio el-Ahrâm, que escândalo! Acusar-me a mim, de querer tirar Tutankhamon da tumba e de transportar secretamente a sua múmia para Inglaterra! Estou cansado destas calúnias... Contudo, respondi que, se o rei repousa bem num sarcófago escondido no interior das capelas, tomaria disposições para que ele lá ficasse e não fosse transferido para o Museu do Cairo. Não partilho a paixão mórbida dos amadores de múmias expostas em vitrinas. Mas os jornalistas egípcios não crêem em mim! Entendem que Tutankhamon é o antepassado deles e que um lord britânico não se deveria preocupar com isso.
— Esqueça essas parvoíces.
— Não consigo. A Inglaterra já não domina o mundo, Howard; já não é guardiã da paz e da civilização. O senhor e eu devemos portanto ser os protetores desse rei que se tornou nosso irmão; contemplar o seu rosto será um momento, fabuloso.
Carnarvon teve um sobressalto e apalpou a face.
— Um mosquito... a sua picada é dolorosa. Na pele, tinha uma pérola de sangue; o conde enxugou-a com um lenço brasonado.
— Tenho de voltar ao Cairo.
— Lacau?
— Não é fácil de andar à trela, como dizem os Franceses. Tenho a impressão que se agita na sombra para entravar as nossas buscas e impedir-me de desenvolver a minha coleção; enquanto ainda é tempo, é preciso dar-lhe a estocada. No fim deste mês, as antiguidades serão divididas de maneira equitativa, imagina algumas das nossas obras-primas em Highclere?
Sonhador, Lord Carnarvon enterrou o chapéu na cabeça e, apoiando-se na bengala, saiu do laboratório. Sombra flutuante, desapareceu no turbilhão de poeira branca e ocre que apagava as feridas do Vale.
Lacau, doente, não pôde receber Lord Carnarvon. Lady Evelyn estava à espera que o pai manifestasse um vivo descontentamento; mas o pai, muito cansado, voltou ao hotel Continental onde passou o dia a dormir.
No dia seguinte, de manhã, parecia reanimado. Ao abraçá-lo, a filha reparou que o pescoço estava inchado; ele apercebeu-se do receio.
— Gânglios... é um pouco doloroso. Estas últimas semanas, o Vale esgotou-me.
O barbeiro entrou. Carnarvon pensou num dos episódios da sua aventura egípcia em que um dos seus colegas tinha premeditado cortar-lhe o pescoço; desta vez, a navalha passou suavemente sobre a pele coberta com uma espuma untuosa.
— Carnarvon soltou um grito de dor. O barbeiro recuou, desolado.
— Perdoe-me... feri-o.
O conde passou a mão pela face; gotejava sangue do ponto em que o mosquito tinha picado.
— Saia!
Confuso, o homem desapareceu. O conde acabou de se barbear ele próprio; quando se levantou, foi acometido de uma vertigem, agarrou-se a uma cadeira e conseguiu atingir a cama onde se deixou cair.
Pouco antes do meio-dia, Lady Evelyn encontrou-o estendido a todo o comprido, incapaz de se mexer.
Assustada, chamou imediatamente um médico que diagnosticou uma congestão pulmonar e administrou anti-infecciosos. A despeito dos cuidados, a temperatura ultrapassou os 40°.
— Creio que é grave, Eve.
— Não se angustie, pai; eu fico ao pé de si.
— Seria bom enviar um telegrama à tua mãe e ao teu irmão; que venham o mais depressa possível.
— Eu trato disso.
Lady Evelyn escreveu também a Howard Carter. Não dissimulou os seus receios e prometeu dar-lhe notícias todos os dias.
Os jornalistas assaltaram a jovem nessa mesma noite; foi obrigada a confessar que o pai estava de cama e que lhe eram necessárias várias semanas de repouso.
A sua cabeceira, revezaram-se especialistas. Pessimistas, diagnosticaram uma infecção generalizada e um envenenamento do sangue; um deles, contestado pelos colegas, estava persuadido de que o doente tinha absorvido uma substância tóxica.
Um boletim de saúde saiu quotidianamente na imprensa egípcia, que Carter, pela primeira vez, leu com avidez; os comunicados insistiam no excelente moral do paciente, na sua coragem e na sua lucidez. Na realidade, a febre persistia, mas a luta contra a doença tomava bom caminho. Mil embrulhadas administrativas retinham Carter em Luxor, onde Engelbach e os seus esbirros faziam questão de verificar todos os dias os trabalhos de restauração. No entanto, estava pronto a partir para o Cairo logo que Lady Evelyn o exigisse.
Durante a última semana de Março, o conde pediu à filha para lhe falar das pesquisas que Carter descrevia nas suas cartas; a equipe progredia com a certeza de que Carnarvon saberia apreciar o seu trabalho.
— Estás feliz, Eve?
— Enquanto estiver doente, a palavra “felicidade” não tem sentido.
— Pensa mais em ti... Não é um velho quem ta oferecerá.
— Deu-me tudo. Como poderia esquecer os nossos passeios ao luar, as lições de leitura na biblioteca, as partidas de caça onde tínhamos o cuidado de falhar a presa? E depois, o Egito, o seu Egito! O outro mundo na terra, um faraó ressuscitado no jorro do ouro, a eternidade ao alcance da mão... eis o que me revelou.
— Terás de passar sem mim.
— Essa idéia é indigna de Lord Carnarvon.
— Casas com Howard?
— Recuso-me a responder.
— Porquê?
— Continue a viver e sabê-lo-á.
No princípio de Abril, trouxe ao pai uma carta com as assinaturas de Lacau e do Ministério dos Trabalhos Públicos; aceitavam nada modificar no regime jurídico antes do fim de 1924. Aquela tomada de posição significava que o conde, na qualidade de investidor, retiraria legalmente um certo número de peças do tesouro.
— Está satisfeito?
— É muito tarde, Eve.
— Isso é que não é! Vai ficar bom.
— Ouvi o chamamento e preparo-me.
— Não...
— Quero ser enterrado no cimo da colina que domina Highclere. Lá, breve será Primavera... A minha música fúnebre será o canto das cotovias. Que a cerimônia seja simples e breve... os meus parentes, os meus criados, os camponeses que tratam do domínio, Susie... nenhum homem político notável.
— Howard Carter?
— Para ele, não morro. Ele que não deixe o Vale sem ter acabado o trabalho de restauração; o tesouro de Tutankhamon é mais importante do que um velho Ford na agonia. Lady Evelyn desfez-se em lágrimas.
— Não tem o direito de partir!
— A morte é uma brincadeira de gosto duvidoso... mas não sou eu o autor.
Carnarvon caiu em coma. Lady Evelyn não ousou prevenir Carter; ao seu único amigo, o conde queria deixar a imagem de ser forte e sereno.
O conde não reconheceu a esposa nem o filho, oficial do Exército das índias, que para o visitar fizera sair um barco da rota; os seus olhos contemplavam já um outro universo onde as silhuetas humanas passavam a ser fantasmas sem consistência.
A 5 de Abril de 1923, às 1:45 horas, Lord Carnarvon deu a alma a Deus.
Todas as luzes do Cairo se apagaram no momento da morte, se bem que a eletricidade fosse distribuída por seis centrais independentes. Durante longos minutos, os técnicos encarniçaram-se em vão para descobrir a origem da avaria, alumiaram velas, candeeiros de petróleo ou de azeite por toda a parte.
Em Highclere, Susie, fox-terríer fêmea, a cadela preferida do quinto conde de Carnarvon, soltou um longo uivo e morreu no preciso momento em que o dono metia pelos caminhos do outro mundo, pelos quais ela o guiaria sem falhar.
O hábito não dissipava o mistério; nenhum dos poderes de antigamente tinha deixado o Vale onde as almas dos reis continuavam a viver. Passado e presente eram apenas um só nos aposentos de Anúbis, o senhor da morte.
Como continuaria Carter a viver, sem Carnarvon, seu amigo, seu irmão? Carnarvon, que não tinha sobrevivido senão seis meses, à descoberta da tumba de que ele não veria nem o sarcófago nem a múmia, admitindo que ela estivesse intacta.
O arqueólogo tinha, constantemente, em frente dos olhos, aquela maldita certidão de óbito, redigida em francês, precisando que Henry George Stanhope, conde de Carnarvon, nascido a 22 de Junho, de cinqüenta e sete anos de idade e vindo de Londres, tinha morrido de pneumonia, depois de oito dias de doença.
Carnarvon, um homem direito, um aventureiro que escondia o entusiasmo sob a elegância, um conquistador sem violência... Sem ele, os dias seriam cinzentos e frios mesmo sob um sol ardente.
Carter teve vontade de fechar o laboratório e de abandonar para sempre o Vale e a tumba do silêncio e do pó, mas Carnarvon recusava-lhe essa cobardia. Em menos de um mês, todos os objetos da antecâmara deveriam ficar prontos para uma longa viagem. Era preciso esquecer a tristeza, o cansaço e o gosto acre da solidão.
“Uma nova vítima da maldição dos faraós”: vários jornais publicaram na primeira página esta informação sensacional, que deu muito rapidamente a volta ao mundo. Consultado, Conan Doyle, especialista de espiritismo, declarou que Tutankhamon se tinha, provavelmente, vingado do principal profanador. Órgãos de comunicação, considerados muito sérios, fizeram referência a um texto inscrito na tumba: não profetizava ele a destruição de todos aqueles que ousariam tocar no tesouro? Lembrou-se que os egípcios eram mágicos; atacavam, com os piores males, os violadores de sepulturas.
— Médicos célebres levantaram-se contra essas banalidades; quando muito admitem a existência de germes patogênicos na origem da infecção generalizada de que o conde de Carnarvon foi vítima.
— Não se deveria desinfetar o túmulo antes de lá penetrar de novo?
A morte de vários turistas semeou o pânico; realmente eram idosos e doentes, mas todos visitaram o túmulo. Por isso, uma dezena de políticos americanos exigira um exame atento das múmias conservadas nos museus; não eram responsáveis por mortes inexplicáveis, incluindo epidemias? Na Inglaterra, os proprietários de antiguidades egípcias enviaram-nas para o British Museum de maneira a desembaraçarem-se de objetos maléficos.
Carter aceitou comparecer na frente de uma matilha de jornalistas cujas perguntas explodiam.
— Está de boa saúde?
— Excelente, apesar da morte de Lord Carnarvon me ter abalado profundamente.
— As suas dores de estômago?
— Estabilizaram há dez anos.
— Ousaria descer novamente à tumba?
— Logo que seja possível.
— Acusam-no de ser um profanador.
— Ninguém, mais do que eu, respeita a memória de Tutankhamon. O meu voto mais caro é encontrá-lo, saudá-lo e garantir a segurança absoluta da sua múmia, se é que ela existe, para que os séculos a venerem.
— Os textos egípcios não proíbem que se penetre num túmulo?
— Maldizem o profano que falta ao respeito, e reclamam a atenção e amor para com o ser presente na sua morada de ressurreição, a fim de que o seu nome perdure. Não se deve passar junto de uma sepultura sem lhe ler as suas inscrições. Tutankhamon esperava-nos, senhores; tínhamos o dever de sermos fiéis ao encontro marcado.
Carter pensava na infelicidade de Evelyn. Tinha assistido à agonia do pai, vivido a morte do ser que ela amava e que lhe tinha aberto todos os caminhos da vida; sentia-se incapaz de lhe escrever uma carta suavizante e consoladora, com palavras vazias de sentido. Condenada, como ele, à solidão, para que horizonte dirigiria o seu amor?
Carter trabalhava na restauração de um colar quando um alto funcionário egípcio, acompanhado de Engelbach, se apresentou à entrada do laboratório. Callender travou-lhe o caminho e pediu-lhes para esperar que o arqueólogo tivesse terminado. Enfiar pérolas excluía toda a precipitação.
Uma hora mais tarde, os dois personagens estavam extenuados; Carter veio, por fim, ao seu encontro.
— Quero visitar a tumba — declarou secamente o egípcio.
— A que título?
— Tenho uma autorização do serviço.
— Não tem interesse.
— O que é que isso significa?
— Que a tumba está fechada até à próxima campanha de escavações.
— Quem tomou essa decisão?
— Eu mesmo.
— Esse túmulo é egípcio, não lhe pertence!
— Sou responsável pela sua salvaguarda.
— Aconselho-o a deixar-me entrar, senhor Carter.
— Aconselho-o a desandar.
Engelbach deitou lenha na fogueira.
— Howard Carter julga-se acima das leis... Não será sempre esse o caso.
— Se o serviço empregasse menos incapazes, a herança dos faraós seria mais bem preservada.
— Partamos — recomendou Engelbach — acertaremos esse caso com as altas esferas.
— Obteremos a sua demissão! — prometeu o alto funcionário.
— Não terão sorte — respondeu Carter sorrindo — não pertenço a nenhuma administração.
A última pazada de terra cobriu a sepultura de George Herbert, quinto conde de Carnarvon. Do alto da colina de Beacon Hill, dominava para sempre a sua terra de Highclere onde os cedros do Líbano ofereciam a sua copa a um sol primaveril.
Como o conde tinha desejado, as suas exéquias tinham sido celebradas com a mais extrema simplicidade.
Só estavam presentes os parentes próximos e os amigos sinceros, à excepção de Howard Carter, constrangido a prosseguir, no Egito, a missão que Carnarvon queria levar a termo. Susie dormia junto do dono que ela não tinha deixado nem na vida nem na morte.
As cotovias cantavam, felizes de subir ao céu. O concerto era tão suave e tão encantador que atenuou a tristeza do adeus; Lady Evelyn pensou no pássaro de cabeça humana que Carter lhe tinha mostrado nas paredes do túmulo. A alma de seu pai não teria saído do cadáver, a fim de se misturar nessa dança cósmica que a faria voar sem cessar da sua terra natal para o Egito de Tutankhamon?
À hora do enterro do amigo, Carter colocou à entrada do túmulo de Tutankhamon uma coroa de folhagem e um tronco de acácia. Um falcão atravessou o céu azul do Vale dos Reis, cuja luz inalterável apagava as vitórias e as derrotas da humanidade.
Mesmo se Carnarvon repousava em Highclere, no domínio dos seus antepassados, era aqui que a sua vagabundagem tinha acabado e que o seu sonho se realizara. Merecia a coroa de justificação dos seres de verdade, capazes de andar sem cansaço e sem traição no caminho da sua própria metamorfose.
Sem Carnarvon, a viagem não seria mais do que provas; o futuro anunciava-se sombrio. A única claridade era a presença de um faraó esquecido cujo poder mágico tinha dado vida a uma amizade eterna.
A 19 de Abril de 1923, o rei Fuad, chefe supremo dos Exércitos, cedeu às exigências dos partidos acordando uma Constituição. O soberano reservara para si o Executivo, o Parlamento, o legislativo. O Wafd, gabando a independência, organizou uma greve dos mercadores e marchas pacíficas; gozando do fervor popular, obteve uma nítida maioridade, bem decidido a governar ao mesmo tempo contra o rei e contra a Inglaterra, Fuad, que substituía facilmente os seus ministros se eles se atrevessem a contestá-lo, pensou, a partir daí, em dissolver um parlamento insolente e inútil. Mas o Wafd e o primeiro-ministro Zaghlul, que viera da sua linha, souberam difundir o ideal de um nacionalismo egípcio, se bem que fossem aliados dos banqueiros e dos grandes proprietários terrícolas, hostis a qualquer reforma social.
No túmulo-laboratório de Séti II, a equipe de Carnarvon julgou-se ao abrigo daquela agitação; contudo, um polícia altamente graduado, usando um soberbo uniforme branco e coberto de condecorações, convocou o arqueólogo para o posto de Gurnah. Sentado à sua enorme secretária, o funcionário folheava um maço de relatórios.
— Está numa situação irregular, senhor Carter.
— Surpreende-me.
— Os fatos estão aqui.
— Quais fatos?
— A segurança dos trabalhadores egípcios não está garantida no seu campo.
— Inexato!
— Tenho provas.
— Mostre-me. — O polícia puxou uma folha do maço.
— Ei-las: doenças, acidentes, atentados!
Carter leu a prosa administrativa.
— É tudo falso.
— Ousaria pôr em dúvida esses papéis oficiais?
— Sem hesitação. O reis Ahmed Girigar testemunhará a meu favor, como também a totalidade dos operários. Peço uma confrontação imediata.
— Se é sincero, talvez não seja indispensável.
— Tenho muito empenho.
— Falarei nisso aos meus superiores.
O polícia meteu os dossiers debaixo do braço, levantou-se, saiu do escritório e subiu para um carro de cavalos. Afastou-se numa nuvem de pó enquanto Carter enxugava a testa com um lenço.
Com 37 graus à sombra, em 13 de Maio de 1923, Carter e a sua equipe embalaram os tesouros da antecâmara com lã e tecido e dividiram os objetos, bem protegidos dos choques, em trinta e quatro caixas. No cais esperava um barco a vapor fretado pelo Serviço das Antiguidades.
— Perto de dez quilômetros de pista entre o laboratório e o Nilo —constatou Callender. — Como procederemos para o transporte?
— Tinha pensado em carregadores — respondeu Carter.
— Impossível! Está muito calor, é muito longe!
— Caminhões!
— Não lhos aconselho; a estrada é má. Tem muitas curvas, está cheia de pedras... Corremos o risco de muitos cacos.
— Resta uma solução: a via férrea.
— Um trabalho de formigas!
— Não temos escolha.
Às cinco horas da manhã do dia seguinte, Callender dirigiu a colocação dos primeiros carris que o Serviço entregou. Seções direitas e curvas davam um comprimento de trinta metros. Quando ele reclamou o resto do material, os funcionários confessaram que tinham trazido a totalidade dos carris prometidos pela administração.
Às oito horas, Carter verificou o desastre. O seu acesso de cólera contra o serviço não abalou nada os seus representantes; tinham obedecido às ordens de Lacau e não eram passíveis de qualquer censura.
Vendo o amigo à beira do desencorajamento, Callender reagiu. Com a ajuda de alguns operários, carregou as caixas para dentro dos vagões, empurrou-os até à extremidade da via férrea, desmontou os carris e tornou a pô-los à frente.
— Nada mais simples — concluiu ele recomeçando —, desta maneira algumas centenas de vezes, chegaremos ao Nilo.
Com uma abnegação e uma coragem que comoveram Carter, uns cinqüenta operários levaram a obra a bom termo. O reis Ahmed Girigar ritmava o esforço por meio de cantos e oferecia freqüentemente de beber aos seus homens. Callender regava constantemente os carris e vigiava as caixas. No dia 17 de Maio, ao meio-dia, o cortejo saiu do Vale; Carter pensou na lenta procissão que, três mil anos antes, levava aquelas obras-primas em direção à tumba do rei.
— Não podemos continuar hoje — lamentou Callender. — A estrada torna-se muito difícil e os operários estão esgotados.
Carter atirou-se à pista, tirou dezenas de pedras, tentou deslocar os carris sozinho.
— Não se obstine, Howard.
— Não se pode parar aqui!
— Tem mesmo de ser; concedamo-nos um pouco de repouso.
— E a segurança?
— Asseguremo-la nós mesmos, com o reis.
As caixas foram descarregadas e entrepostas perto do leito de um curso de água; Carter não pregou olho toda a noite. De manhãzinha, o reis e os seus homens receberam uma nova energia nos seus corpos fatigados; eles fizeram questão de ultrapassar o obstáculo. O bailado infernal recomeçou; com os nervos em pé, Carter receava acidentes ou ferimentos. Apesar da sua pressa, impôs lentidão no manejo dos carris, cada vez mais pesados.
Soldados, enviados pelo governador da província, afastaram curiosos e importunos; nenhum consentiu em dar uma ajuda.
— Finalmente, o Nilo.
— As águas estão baixas — lamentou Callender — e a margem está muito rija. A parte mais perigosa do percurso está por ultrapassar.
Os carris foram colocados sobre uma encosta que produzia solavancos; vergaram sob o peso dos vagões.
— Segurem-nos! — gritou Carter.
Os cinqüenta homens travaram a descida do primeiro vagão; as caixas atadas entre si, pareciam prontas a cair, com um gesto irrisório, Carter tentou empurrá-las para trás.
— Afaste-se — ordenou Callender — arrisca-se a ser esmagado!
Carter recusou-se a obedecer. Num concerto de gemidos metálicos, os vagões vieram morrer na extremidade da via férrea que tocava na água. Nenhuma caixa caíra. Carter, Callender Ahmed Girigar e os operários soltaram um grito de triunfo, saído espontaneamente dos seus peitos.
— Por todos os santos — Howard nem podia acreditar.
— Tutankhamon protege-nos.
— Não se estará a tornar místico?
— Mais um esforço, meu velho: é preciso transportar as caixas até ao barco.
O belo navio anunciado tinha-se transformado em fragata normal. Sem protestar, enterrados na água até à cintura, os carregadores levaram as caixas para a embarcação puxada por um rebocador. Carter abraçou o reis e felicitou os seus homens com um entusiasmo que nenhum deles esqueceria. Na sua família, evocariam durante séculos a proeza realizada.
Na parte da frente da fragata, Carter saciou-se de brisa. Carnarvon teria orgulho nele.
No dia 27 de Maio Pierre Lacau esperou Carter num embarcadouro situado a
— Os objetos estão intactos?
— Apesar da sua falta de cooperação, a minha equipe conseguiu o impossível.
Lacau não acusou a crítica.
— Abramos uma caixa.
Carter consentiu. Lacau viu aparecer bengalas e pés de cadeiras embrulhados em espessas ligaduras.
— Outra.
Cofres frágeis, embalados em espessas camadas de tecido, também não tinham sofrido com a viagem.
— Está satisfeito, senhor diretor?
Lacau resmungou um vago agradecimento.
— O seu trabalho de restauração foi bastante lento, Carter, desembalar também levará muito tempo.
— O público está, porém, impaciente para contemplar estas obras que, infelizmente, não poderão ser expostas antes de seis meses.
— Engana-se. — Lacau empertigou-se.
— Explique-se.
— Todas essas peças foram inventariadas e descritas; os seus serviços não têm, pois, qualquer tarefa científica a cumprir. Além disso, Callender e eu é que as embalamos de forma a oferecer-lhes a ordem mais satisfatória; bastar-lhe-á tirar os objetos seguindo a numeração das caixas. Por último, a restauração foi tão minuciosa que o seu laboratório não tem de intervir mais.
— Dentro de quanto tempo poderemos expor, segundo a sua opinião?
Carter fez cara de refletir.
Se os seus desembaladores forem competentes... uma semana!
— É grotesco!
Uma semana mais tarde, visitantes maravilhados, extasiaram-se perante as seis vitrinas da primeira exposição dos tesouros de Tutankhamon. Às portas do Museu, empurravam-se milhares de curiosos, dos quais nenhum ficou desapontado. O rei ressuscitado merecia a sua reputação.
Nesse mês de Maio de 1923, o termômetro ultrapassava os 50 graus mas o ardor de Howard Carter não diminuía. Indiferente à fadiga, concentrava-se sobre um problema grave: descascar as capelas do ouro como se fossem cebolas, a fim de libertar o seu provável coração, o sarcófago real.
Evocou diversos processos com os seus colaboradores, preocupado com o menor risco; uma carta de Lady Evelyn interrompeu as suas meditações. O arqueólogo devia dirigir-se com toda a urgência a Highclere, onde seria abordado o delicado assunto da sucessão de Lord Carnarvon.
Essa convocação mergulhou-o na angústia; a esposa do defunto teria decidido interromper o financiamento das escavações?
Os jornalistas ingleses assaltaram-no logo à descida do barco, onde teve de dar a notícia para o Who’s Who indicando a sua atividade principal: “pintor”. Carter tentou fugir, mas a matilha cercou-o por todos os lados. Responder às perguntas foi a única saída.
— Foi atingido pela maldição de Tutankhamon?
— Persegue-me, sim, mas com as suas bênçãos.
— Receia o fantasma do faraó?
— Somos os melhores amigos do mundo.
— Tornou-se multimilionário?
— Ainda não; o meu emprego do tempo está demasiadamente sobrecarregado.
— A escavação não é apressada?
— Pierre Lacau censurou-me a lentidão.
— O senhor não é um rapinante de sepulturas?
— Tutankhamon é meu irmão em espírito! Encontrando o seu túmulo, é a sua mensagem que eu trago para a luz.
— Quando se abrirá o sarcófago?
— Se me deixarem trabalhar em paz, dentro de pouco mais de um mês.
Carter recolheu-se sobre a tumba do amigo. O Verão radioso, de Highclere negava a morte; os grandes cedros, majestosos e serenos, tocavam no céu.
— Não deixou o Vale; em cada dia, sinto a sua presença junto de mim.
— Ele não nos abandonará — prometeu Lady Evelyn. — Venha Howard, a minha mãe pode impacientar-se.
Doce e cortante, ao mesmo tempo, Lady Almina não manifestou qualquer animosidade em relação ao arqueólogo; este receava, contudo, que ela o acusasse de ser responsável pela morte do marido.
— Graças a si, senhor Carter, George Herbert conheceu uma verdadeira felicidade neste mundo; o paraíso que ele tanto buscara chamava-se Tutankhamon. É por isso que o ajudarei.
Carter reteve as lágrimas. Fortalecido por aquele apoio, poderia continuar a combater.
— O mais urgente é retomar a concessão de escavações em seu nome.
— Dificuldades?
— Lacau resmungará, mas será obrigado a inclinar-se.
— Parece-lhe útil prorrogar o contrato de exclusividade com o Times?
— Pelo menos um ano, senão a imprensa invadirá o túmulo. Teremos também de exigir uma independência total, a fim de poder recusar a intrusão de turistas e dos inspetores do Serviço das Antiguidades.
— Terá o senhor de resolver esses problemas, senhor Carter; agora é o meu conselheiro arqueológico, o único habilitado a prosseguir a obra do meu marido.
O Verão correu docemente, os jardineiros regavam os relvados ao cair da noite, as colinas arborizadas douravam-se ao Sol, o belvedere de mármore branco velava sobre o domínio, de onde o seu senhor nunca mais estaria. Carter tinha aceitado o convite de Lady Almina; passar o Verão em Highclere junto de Evelyn era um presente inesperado.
A 5 de Agosto, tinha recebido a mais comovente das cartas; Ahrned Girigar e os seus operários desejavam-lhe uma excelente saúde, esperavam vê-lo em breve e informavam-no que não se tinha produzido nenhum incidente no campo onde o reis fazia respeitar à letra as suas ordens de segurança.
Por ocasião de um piquenique, na orla de um bosque de faias, Carter leu e releu a missiva a Lady Evelyn.
— Que boas pessoas! Portanto, o mundo não está só povoado de invejosos e de ambiciosos!
— Tornou-se pessimista, Howard?
— Um pouco lúcido.
— Não seja amargo.
— Sei que me querem impedir de chegar ao termo da minha aventura, e que utilizarão os meios mais baixos para me destruírem. Alguns inimigos apresentar-se-ão de rosto descoberto, outros atuarão na sombra; mesmo se os seus interesses divergirem, saberão aliar-se contra mim.
— Pensa... na maldição?
— Não existe nenhuma força demoníaca nos túmulos egípcios pelo contrário, preservam os elementos do mais fabuloso tesouro: o segredo da imortalidade. Até agora, foi-nos proporcionado apenas migalhas.
A jovem pousou a cabeça no ombro de Carter; um raio de Sol, enfiando-se entre as folhagens, iluminou-lhe a cabeleira.
— Será preciso correr tantos riscos, Howard?
— Nunca uma sepultura intacta foi explorada. Se eu conseguir, é a morte que será vencida.
— O sonho mais louco...
— Tutankhamon está muito perto, Eve; já não é um sonho. A maldição não é ele que a difunde mas a coorte de invejosos que se prepara para me atacar. E o seu pai já não está aqui para me ajudar; sem ele, estou desarmado.
— Tenha confiança em si; é muito mais forte do que imagina.
Um bando de gansos selvagens sobrevoou o bosque; a pequena comunidade de migradores, unida no seu movimento, partia para uma nova terra de acolhimento que só o seu chefe conhecia. O Verão vai acabar breve.
— Falou com a sua mãe?
— A família inteira opõe-se à nossa união. Se nos casarmos, o financiamento das escavações será interrompido.
— É a sua última palavra?
— Nenhuma negociação é possível; é reconhecido como amigo e continuador da obra do meu pai, mais nada.
— Porque aceita ela a minha presença em Highclere?
— Porque eu a exigi. Estou pronta a segui-lo, Howard.
— Seria uma loucura. Uma filha de conde não se pode perder num casamento desigual com um aventureiro. Pintor e arqueólogo, não são títulos de nobreza suficientes.
— Pois bem, não liguemos importância ao casamento.
Levantou-se, fogosa, tomou-o pela mão e obrigou-o a segui-la até ao interior do bosque. Um vento leve fazia estremecer as folhas. Quando o percurso do Sol se inclinou, a claridade do fim do dia tingiu de ouro o vestido branco abandonado numa moita de espinheiro.
O trabalho arqueológico, as tarefas administrativas, as relações com a imprensa, o problema da repartição dos objetos, organização das visitas oficiais, os contratos comerciais, as tentativas de desvio... eis o que Carter esperava quando chegou ao Cairo, a 8 de Outubro de 1923, na beleza serena do Outono egípcio que tornava quase sedutores os casebres mais degradados. A ausência de Carnarvon tornavam-no nervoso e inquieto. Não se sentia capaz de defrontar sozinho aqueles monstros de múltiplos rostos, mas não havia escolha. Em Londres, a atmosfera tinha-se tornado irrespirável desde a
morte súbita, em Setembro, de Audrey Herbert, irmão de Carnarvon. Acrescentada a outros desaparecimentos surpreendentes, trazia a prova definitiva de uma maldição cujo autor só podia ser Tutankhamon.
O calvário começava pelo assunto do Serviço das Antiguidades onde, dantes, o conde manipulava Lacau a seu jeito.
Contrariamente aos receios de Carter, o diretor recebeu-o com uma certa amabilidade.
— A sua equipe reconstituiu-se?
— Viajamos juntos desde Trieste.
— Que deseja Lady Almina?
— Que a concessão da tumba seja renovada em seu nome.
— Pedido legítimo. Ouso esperar que seja confirmado como perito.
— É sua decisão.
— Tanto melhor. Quem não reconheceria a sua competência?
— A esse título, gostaria de regularizar consigo o problema dos visitantes. Tornam o meu trabalho impossível; a melhor solução consistiria em não admitir ninguém no túmulo antes da desmontagem das capelas.
Pierre Lacau fez uma careta.
— É extremamente aborrecido.
Designou duas enormes pilhas de cartas que enchiam a sua secretária.
— Eis os pedidos oficiais das personalidades egípcias; não cessam de se acumular. Esses notáveis entendem que a tumba pertence ao seu país e que ninguém devia barrar-lhes o caminho.
— É contudo impossível.
— Lord Carnarvon mostrava-se mais maleável; coloca-me numa situação embaraçosa.
— Que devo responder?
— Que sou a única pessoa a poder dar uma autorização de visita.
Lacau tomou algumas notas.
— A exclusividade concedida ao Times não acabará por falhar?
— Numerosos jornais fizeram acordos com o Times durante o Verão; é por isso que ele deve manter uma posição privilegiada. Dessa maneira, contratei um correspondente, Arthur Merton, como membro da minha equipe
— Não é um pouco... leviano?
— É um excelente arqueólogo; estará no local para relatar os acontecimentos.
— Receio que os jornais egípcios nos queiram fazer sombra.
— Continuarão a gozar de um privilégio que não é de desprezar: um comunicado de graça. São os únicos que não terão de pagar as informações oficiais.
— Bem, bem... O seu dossier estará pronto amanhã.
Carter tinha pressa de voltar ao Vale, de saborear o seu esplendor selvagem e de ultrapassar a última etapa que o separava ainda de Tutankhamon. O Cairo era demasiado vasto, demasiado barulhento; nunca amara as cidades em que o homem se torna formiga ou fantoche desarticulado: separado da terra e do céu. O vazio deixado por Carnarvon não se preenchia; sem ele, Carter seria capaz de fazer dobrar Lacau?
Subiu à cidadela e meditou em frente do deserto que a expansão incessante da capital usurpava. Como gostava daquela paisagem absoluta, daquele chamamento para uma verdade eterna que nenhuma vilania podia sujar! Mesmo na violência do vento e no rigor das rochas, subsistia a ternura dos nômades à vagabundagem sempre recomeçada. Era lá que levaria Eve quando tivesse desvendado o segredo do faraó ressuscitado.
O rosto fino de Lacau parecia mais fechado do que na véspera; as suas mãos tinham pousado a direito sobre um dossier vermelho.
— Estou muito incomodado, Carter.
— Porquê?
— Defendi o seu dossier, mas alguns membros do serviço opõem-me argumentos que não posso menosprezar. Na minha posição, devo ser equitável e ter em conta as opiniões de uns e de outros; o compromisso e o meio-termo são as únicas atitudes razoáveis.
— Poderia ser mais claro?
— O compromisso de Merton é quase ilegal; quanto à recusa das visitas e ao desdém pela imprensa indígena, correm o risco de desencadear, contra si, uma campanha de opinião absolutamente desastrosa.
— De quem estão a troçar? Será que a gratuidade da informação não lhes chega?
Lacau abriu lentamente o dossier vermelho.
— Acusá-lo-iam facilmente de detestar o Egito e de considerar a tumba como sua propriedade privada.
— Eu, detestar o Egito onde vivo desde a idade de dezoito anos? É o meu verdadeiro país, senhor diretor! Ofereci-lhe a minha alma.
— É claro que acredito em si, mesmo que as suas declarações me pareçam excessivas... A sua intransigência a propósito dos visitantes é igualmente muito criticada.
— São uns snobs que tanto querem saber do túmulo como de uma ginja! A sua única finalidade? Pavonearem-se num jantar mundano, pretendendo ter visto Tutankhamon! E exigiria que suspendesse os trabalhos científicos por causa de uma seita de curiosos? Assuma a concessão e acabemos com isto. Tenho de voltar o mais depressa possível para o Vale.
Lacau passou o dossier com a ponta dos dedos.
— Veremos, Carter, veremos... tenho de consultar o ministro.
Abdel Hamid Suleman Pachá, ministro dos Trabalhos Públicos, era um bon vivant, amador de banquetes e de longas sestas; a sua ascensão social, suave e constante, repousava sobre um caráter amável e paciente. Inimigo acerbado de conflitos, possuía o gênio da diplomacia e tinha o costume de os regularizar lisonjeando os seus adversários. A independência do Egito aparecia-lhe como um sonho perigoso, que levaria o país à ruína; devia contudo poupar as susceptibilidades dos nacionalistas e fingir que aprovava algumas das suas teorias. Pierre Lacau inclinou-se na frente do ministro.
— Qual é o assunto delicado de que desejava falar-me, senhor diretor?
— A concessão Carnarvon.
— Esse problema não fica regularizado?
— Infelizmente não, senhor ministro! Howard Carter é um homem obstinado que não quer ceder a nenhuma exigência legítima do serviço.
— Contudo, gaba-se a sua competência.
— Eu não a contesto... mas deveria mostrar-se menos intransigente para com a imprensa egípcia e aceitar abrir o túmulo às notabilidades.
— O senhor Carter é súbdito britânico, se não estou em erro?
— com efeito.
— A colônia inglesa do Cairo é um elemento essencial do equilíbrio do país.
— Bem entendido, mas...
— Contrariar o senhor Carter é importunar o alto-comissário e atrair sobre nós uma quantidade de aborrecimentos diplomáticos.
— A exclusividade de que o Times goza é uma injúria para o Egito.
— Não exagere, senhor diretor! Um acordo comercial, no máximo. Quanto aos visitantes, não poderiam ter um pouco de paciência? Este conflito parece-me bem inútil.
Despeitado, Lacau tentou em vão convencer o ministro da justeza do seu ponto de vista.
— Que me aconselha?
— Assine a concessão e autorize Carter a prosseguir o seu trabalho. Para mim, senhor diretor, este assunto está classificado.
A 18 de Outubro, os operários começaram a empurrar as toneladas de entulho que tinham protegido o túmulo durante a ausência de Carter; sob a direção do reis Ahmed Girigar, trabalharam com ardor a fim de responder aos desejos do arqueólogo: desimpedir o acesso numa semana. A despeito do calor, uma corrente de carregadores de cabazes encheu o seu escritório com uma regularidade perfeita ritmada por melopeias.
Carter, comovido, meteu de novo pelo corredor a descer, abriu a grade e penetrou no santuário; teve a sensação de que Carnarvon caminhava a seu lado e defrontava as portas das grandes capelas que deviam mascarar o sarcófago. Callender, que o acompanhava, ousou revelar-lhe a verdade.
— Não estamos prontos, Howard. O serviço não entregou os candeeiros prometidos e falta o que é necessário para a preservação das capelas. Contudo, eu adiantei os fundos, precisei as datas e insisti na importância dos candeeiros.
A cólera de Carter foi tanto mais viva que a iluminação pública, em volta da tumba, funcionava às mil maravilhas. Os seus protestos junto do inspetor local não provocaram senão a redação de um relatório suplementar, a constatar a incúria; se Deus permitisse, os candeeiros seriam instalados antes do fim do mês.
Ao sair do inspetorado, Carter esbarrou com Bradstreet. O jornalista, com físico de atleta, tinha deixado o seu escritório do Cairo logo que teve rumores de que as escavações teriam recomeçado. Poderoso, raivoso, com a fronte marcada por veias aparentes, contava vencer facilmente o arqueólogo.
— Então, Carter! Novidades?
— Não tenho de lhe responder.
— Admiro-me! Tem na sua frente o correspondente do New York Times, do Daily Mail, de Londres e do Egyptian Mail. A minha missão consiste em informar o mundo inteiro e o senhor não fugirá como um ladrão.
— Contate o representante acreditado do Times.
— Essa situação não pode durar. Todos os jornalistas podem gozar dos mesmos direitos.
— Não era essa a vontade de Lord Carnarvon.
— Está morto.
— Para mim, não.
— Intimo-o a romper o contrato de exclusividade com o Times.
— É um bom jogador de pólo, segundo parece? — Bradstreet franziu o sobrolho.
— Exato, mas não vejo...
— Eu sou perito em luta livre.
As veias do jornalista incharam; com o rosto vermelho, parecia um touro furioso.
— Vou esmagá-lo, Carter! Tem cada vez mais inimigos, só lhe resta aliar-se a eles.
— Não irei — afirmou Carter, furioso.
Callender levantou para o amigo um olhar de cão abatido. Apesar dos seus ombros largos e do seu aspecto maciço, partilhou a tristeza de Carter.
— Mais valia inclinar-se — sugeriu ele com pesar.
— É uma maravilha! Lacau convoca-me para o Cairo, para desembalar as caixas e pôr os objetos no seu lugar... que brincadeira sinistra! Quer-me reter na capital e provar que eu não cuido do campo.
— Se não coopera, ainda o isolará mais. Ter consciência do perigo, já é subjugá-lo; o combate nunca lhe fez medo.
Carter abraçou Callender.
— Vou bater-me.
No escritório de Lacau estavam presentes o ministro dos Trabalhos Públicos e vários altos funcionários egípcios e ingleses. O túmulo de Tutankhamon tornava-se um negócio de Estado; Carter estava na posição de um acusado em frente de um tribunal, decidido a demonstrar-lhe os seus erros.
— Onde estão as caixas para desembalar? — perguntou o arqueólogo, sorridente.
Lacau voltou-se para o ministro, buscou um olhar de aprovação e dirigiu-se a Carter com uma untuosidade misturada de autoridade.
— De acordo com as mais altas autoridades, pedimos-lhe que autorize o Governo a publicar todas as noites um boletim de informação sobre os trabalhos em curso.
— Recuso; o direito de publicação deve ser reservado à minha equipe e a mim mesmo. Divulgar, de qualquer modo, notícias não verificadas, causaria o maior prejuízo ao nosso trabalho.
Lacau consultou o ministro.
— Exigências legítimas — admitiu ele. — Aceitaria convidar um representante da imprensa a visitar o túmulo?
— Evidentemente.
— A exploração comercial do sítio é bem incômoda — tornou Lacau. Carter passou a ser veemente.
— O acordo de exclusividade criado com o Times é destinado a proteger-me de uma matilha de jornalistas curiosos; o dinheiro obtido permite financiar os trabalhos no campo. A finalidade única é proteger os tesouros fabulosos que Carnarvon e eu próprio descobrimos; é por isso que peço o apoio total, e sem reserva, do Governo e do Serviço das Antiguidades. Nem impertinência da imprensa, nem visitantes, nem aborrecimentos administrativos: eis o que eu exijo, com a convicção de que todos, aqui presentes, tomarão o partido do sagrado e não do profano.
Os dias foram passando. Carter telefonou várias vezes para o ministro, mas este estava ausente ou em reunião; ao fim de uma semana irritante, o arqueólogo fez uma nova tentativa que ele considerava como a última. Desta vez, encontrou o poderoso personagem. A conversa foi cordial mas embaraçosa; o ministro inquietou Carter, explicando-lhe que Lacau desejaria retomar a negociação no seu conjunto, e tranqüilizou-o afirmando que as dificuldades em breve seriam aplanadas. Se o desejava, podia voltar a Luxor e retomar as suas atividades. O arqueólogo não se fez rogado.
Callender trouxe um envelope grosso com a chancela do Serviço das Antiguidades. Carter abriu-o com nervosismo; reconheceu a caligrafia fina de Lacau que, ponto por ponto, aceitava as condições do arqueólogo.
— Ganhamos? — interrogou Callender.
Carter esteve quase a responder que o resultado ultrapassava as suas esperanças, mas os seus olhos pousavam já nas últimas linhas. “Bem entendido”, concluía Lacau, “as medidas que deseja ver adotar não podem ser senão provisórias e sujeitas modificações em função dos resultados.”
Carter deixou cair o documento no chão pedregoso do Vale.
— Fracasso completo.
— Que conta fazer?
— Continuar. O meu único senhor, agora, é Tutankhamon.
O conflito ampliou-se a partir do dia seguinte. Lacau tinha expedido uma segunda carta, muito menos amável, na qual censurava a Carter andar sobre as pisadas do Serviço das Antiguidades; era a este último, e não a um arqueólogo privado, que competia regularizar as visitas num sítio que pertencesse ao Estado e a mais ninguém. O diretor do serviço precisava as suas ordens: desmontar as capelas sem estragar o seu cenário para desimpedir o sarcófago cuja presença era suposta. A Carter e a sua equipe competia obedecer às ordens sem tardar e limitar-se ao estrito domínio arqueológico.
A imprensa egípcia lançou um ataque em regra contra oinglês, acusado de se comportar como um colonialista, enquanto o Egito o hospedava; Tutankhamon era faraó, não rei da Grã-Bretanha. O contrato de exclusividade com o Times era um insulto ao partido nacionalista e ao povo. Na sua resposta a esses críticos, Carter insistiu na diferença entre os Egípcios modernos, a maioria descendentes dos invasores árabes do século VI a.C., e adeptos do islão, e os Egípcios antigos, hostis a qualquer dogmatismo. Esta imperícia valeu-lhe uma impopularidade crescente e o ódio de numerosos pregadores. Os membros da equipe conseguiram dissuadi-lo de replicar, mesmo se dissesse a verdade.
— Que mundo é este — perguntou ele a Callender — em que só os mentirosos e os intrigantes têm direito de cidade? Mesmo esta terra sagrada já não consegue transformar as consciências. Onde será, pois, preciso ir, para se respirar um pouco de ar puro?
— Ao fundo do túmulo de Tutankhamon. Do seu túmulo.
Como desmontar as capelas sem lhes causar o mínimo dano? Essa missão obcecava Carter. No santuário da tumba, sentia-se livre e infatigável; nenhum dos seus colaboradores conseguia seguir o seu ritmo de trabalho. Preocupado com o estado das douraduras e a fragilidade das esculturas, concebeu vários projetos antes de iniciar a delicada operação. Começou por tirar os dois guardas que enquadravam a porta do quarto funerário. Os reis negros, embrulhados em ligaduras, foram colocados sobre suportes; apenas os seus olhos permaneceram aparentes, como se fossem as últimas manifestações de vida de dois grandes corpos feridos.
Depois de ter consultado os membros da sua equipe, Carter pediu a Callender que construísse um andaime de madeira à volta da capela exterior; enfiou-se com grande custo entre os montantes, magoou-se, feriu as mãos e teve de adotar as posições mais inconfortáveis. Apesar do calor e da exigüidade, progrediu centímetro a centímetro, temendo o momento em que um painel, fora da sua posição, se curvaria e cairia sobre os outros. Carter repudiou uma visão de horror: centenas de bocados e fraturas irremediáveis.
Passados dez dias de esforços, a mais pesada das seções do teto foi levantada; Carter teve de apelar para um jovem para meter rolos de madeira debaixo de uma prancha que serviria de trenó. Quando o painel foi colocado contra a parede acolchoada do quarto funerário, o arqueólogo e os seus assistentes não gritaram vitória; o mais difícil ficava por realizar.
Tirado o teto, Carter admirou o véu de linho que cobria a segunda capela, chamou Merton, o correspondente do Times. O jornalista estremeceu.
— A arca da aliança... É ela, sem dúvida alguma!
Merton saiu da tumba e voltou para ela uma hora mais tarde, munido de uma Bíblia; leu as passagens do Êxodo, consagrados à preciosa relíquia. A sua imaginação inflamou-se.
— Eis o segredo de Tutankhamon! Ele tinha ido a Israel e roubara a arca. Nunca o solo do Vale conteve tesouro mais precioso; é por isso que a tumba foi bem escondida.
Carter permaneceu céptico; levantou o tule que tinha abatido sob o peso de rosetas de bronze dourado.
— Breve — disse ele a meia voz — abriremos a porta selada da segunda capela.
Lacau estudava o “dossier Carter” com a sua minúcia habitual. Funcionário zeloso, ligado ao regulamento como a um livro santo, suportaria cada vez pior o comportamento anárquico daquele aventureiro que recuava inscrever-se numa hierarquia administrativa. As suas exigências estavam fora de causa. Como dobrar Carter e obrigá-lo a pôr-se de joelhos? Até agora, Lacau tinha falhado. De fato, o jornalista Bradstreet e os seus colegas egípcios conduziam uma boa guerrilha que, cada dia, enfraquecia a posição de Carter e dava dele a imagem de um indivíduo odioso, mercantil e desprezível; mas o arqueólogo troçava da opinião dos outros e prosseguia o seu caminho com a mesma obstinação. Além disso, desde que trabalhava no interior do túmulo de Tutankhamon, retomava forças. Para o abater, era, pois, preciso tocar-lhe no coração e não se contentar com feridas artificiais. Lacau acabava de encontrar o ponto fraco do seu adversário.
Só lhe restava desenvolver uma estratégia prudente, sem golpe de força visível; procedendo por pequenos toques, gastaria os nervos de Carter, atingi-lo-ia na sua própria vocação e obrigá-lo-ia a cometer o erro fatal.
Foi um Carter indignado que reuniu os membros da sua equipe no laboratório.
— Recebi esta manhã o requerimento mais ultrajante de toda a história da arqueologia egípcia: o diretor do serviço intima-me a comunicar-lhe a lista dos membros da minha equipe como se ele os não conhecesse, e como se eu não fosse o único responsável pelos meus colaboradores sobre a concessão que me foi concedida.
Merton, o jornalista do Times, pediu a palavra.
— Sou eu que estou em causa; Bradstreet teve de intervir junto dos responsáveis. Quer demonstrar que um correspondente de imprensa não tem lugar numa equipe de arqueólogos.
— É mais competente do que a maioria dos inspetores do serviço.
— Se o exige, Howard, demito-me.
— É um amigo e um colaborador eficaz. Ficará.
— Desconfie de Lacau; é um jesuíta experimentado com as estratégias mais torcidas.
— Não tem qualquer direito sobre este túmulo e ele sabe-o; a sua guerra de usura não pode levar senão a uma desilusão. Não se esqueçam que o ministro está do nosso lado.
O rosto casmurro de Callender não se desfranziu; não ousou retorquir que os ministros não eram eternos e que havia muito tempo que não acreditava no direito e na justiça.
— Vai enviar-lhe essa lista? — perguntou Merton.
— Carnarvon não o teria feito, eu também não. Uma vez que Lacau anuncia a sua visita para o dia 13 de Dezembro, discutiremos de viva voz.
Lacau visitou o túmulo e o laboratório; só o reis Ahmed Girigar estava presente. Bastante descontente, o diretor do serviço trepou até à próxima morada de Carter onde o arqueólogo, embrulhado num cobertor, bebia um grogue.
— Desolado por não o ter recebido com fausto. Um resfriamento obrigou-me a ficar de cama.
Todo bem posto, com as mãos atrás das costas, Pierre Lacau exprimiu-se com uma voz açucarada que formava contraste com a secura da sua atitude.
— As suas exigências são injustificáveis, senhor Carter. Só o Governo, e não o senhor, está habilitado a fornecer autorizações de visita devidamente registradas e apresentadas sob a forma de um documento escrito.
— Sou eu que escavo, não é o Governo.
— O Estado tem o dever de controlar as escavações.
— Trata-se da minha concessão; sou o único mestre. Demonstre-me o contrário.
— Não tem o direito de empregar Merton; é um jornalista, não é um arqueólogo.
— A escolha dos meus colaboradores é comigo; o serviço não tem qualquer direito nesse domínio.
— Se ele não se demite, vai ter sérios aborrecimentos.
— Ele não se demitirá; as suas imposições são gratuita senhor diretor. Ameaçando-me perde o seu tempo.
— O ministro julgará.
— Já julgou.
— Veremos; sabe o que murmuram no Cairo? — Carter bebeu um golo a ferver.
— Diga-me; o rumor é uma da suas práticas preferidas.
Lacau evitou olhar o seu interlocutor.
— Alguns pensam que Lord Carnarvon era um espião e um homem de negócios, completamente indiferente à ciência e arqueologia, e que lhe seguiu os passos. Esta hipótese lança uma singular clareza sobre o seu comportamento.
Carter levantou-se empurrou a coberta.
— Você é ignóbil. O conde amava apaixonadamente o Egito; explorar aquela tumba tinha-se tornado a sua razão de ser. Quanto a mim, a minha existência inteira está orientada para ela.
— Admitamos... Esses impulsos sentimentais não justificam a sua arrogância.
— Quero trabalhar em paz.
— Pensou na partilha dos objetos?
— Essa questão está regularizada.
— Não é assim tão certo. Há outra coisa em suspenso, mais séria ainda.
Carter tremia de frio.
— A concessão não é eterna — lembrou Lacau —, devo verificar, mas parece-me que breve chegará ao termo. A sua renovação depende do Serviço das Antiguidades que se mostra cada vez mais exigente na qualidade dos escavadores e na seriedade do seu programa. Um cientista, tal como o senhor, não pode apreciar esse rigor. Trate bem de si, Carter; tornaremos a falar nisso logo que esteja a pé. Espero que Tutankhamon não o adoeça.
A 15 de Dezembro, Carter, enraivecido, entrou no escritório do ministro dos Trabalhos Públicos com a firme intenção de lhe dizer toda a verdade e de obter o fim das perseguições. Suleman Pachá não parecia tão jovial como das outras vezes; sobre a sua secretária, estava um espesso caderno com a marca do Serviço das Antiguidades.
— Está satisfeito com as suas buscas, senhor Carter?
— O diretor de serviço torna a pôr em causa as minhas exigências. Desempenha o melhor possível as suas funções. A campanha de imprensa levada contra si é bastante desagradável, tanto mais que certos jornalistas começam a criticar abertamente a minha posição. Como ministro devo permanecer acima do conflito.
Carter empalideceu.
— A presença de Arthur Merton é inoportuna — prosseguiu Suleman Pachá. — Segundo as minhas informações, não é um sábio; que contrate um jornalista do Times é um erro lamentável.
— Garanto-lhe a sua competência.
— É impossível reter esse argumento; ninguém pode acreditá-lo. É um homem de ciência e de paz, senhor Carter; proíba sem demora a entrada na tumba a esse Merton e tudo voltará à ordem. Visitá-la-á com outros correspondentes de imprensa, num dia da sua escolha.
— É um ultimato?
— Não utilizemos grandes palavras! Trata-se de um simples compromisso.
— Posso apresentar-lhe objeções?
— Não percamos mais tempo com pormenores; eu próprio suprimi o nome de Merton da lista dos membros da sua equipe.
— Será isso legal?
A pergunta vexou o ministro que se tornou cortante:
— É o meu desejo, senhor Carter.
— Se eu cedo, mais nenhuma equipe arqueológica trabalhará livremente no Egito.
— Não enegreça a situação.
— Submeterei a sua proposta aos meus colaboradores.
— Não vá muito longe, senhor Carter.
— O senhor também não, senhor ministro.
De regresso a Luxor, Carter reuniu todos os seus colaboradores na tumba de Séti II. Não lhes escondeu a gravidade do momento e citou-lhes os propósitos do ministro dos Trabalhos Públicos. Não desejando tomar uma decisão brutal que entravaria as buscas, consultou-os um a um. As intervenções convergiram: o político ultrapassava os seus direitos. Manipulado pelos independentistas e pelos franceses que dirigiam o Serviço das Antiguidades, iniciou uma guerra dissimulada contra a Inglaterra e os Estados Unidos. Capitular seria renunciar à necessária independência dos arqueólogos. Fortalecido por essa unanimidade, Carter escreveu ao ministro. Recusou despedir Merton, precisou que os especialistas do Metropolitan Museum abandonariam o Vale se o patrão fosse objeto de pressões administrativas, e que o Times não hesitaria em relatar os fatos. Certo que Suleman Pachá se renderia à razão, deplorou o incidente que os tinha incompatibilizado e lamentou aceitar as restrições sugeridas.
O ministro respondeu pelo silêncio.
O interior da tumba parecia uma sala de operações. Padiolas de madeira, liteiras de caniços, quilômetros de ligaduras, pacotes de algodão e luz elétrica evocavam mais o quadro gelado de uma intervenção cirúrgica do que a atmosfera mágica de uma sepultura real. No exterior, guardas e soldados repudiavam, por vezes com grande custo, os turistas, que exibiam um bilhete dando-lhes autorização de visitar o túmulo mais célebre do mundo; tinham-nos comprado a burriqueiros ou a mercadores de falsas antiguidades, e manifestavam o seu descontentamento com veemência.
Persuadido de que os aborrecimentos se afastavam, Carter, a 3 de Janeiro de 1924, cortou a corda e fechou o ferrolho da segunda capela funerária. Callender e os outros membros da equipe viram-no abrir as portas douradas.
— Mais luz — exigiu ele.
Callender ligou dois grandes candeeiros. Estes iluminaram a porta dupla de uma nova capela.
— Mais uma! — exclamou Burton, o fotógrafo. — Quando acabará aquele encaixamento?
A terceira capela estava, também ela, inviolada. Com a respiração curta, Carter abriu as portas e descobriu uma quarta capela. Dois falcões de asas desdobradas guardavam-lhe o acesso. Os hieróglifos conservavam a lembrança das palavras de Tutankhamon: “Sou a eternidade; vi ontem e conheço amanhã.”
Perturbado, Carter recusou avançar, apesar da insistência desses colegas.
— É talvez o último obstáculo — sugeriu Callender.
— Sem dúvida... mas temos nós o direito...
— Pense em Carnarvon; tê-lo-ia privado dessa alegria?
Carter quebrou o selo. Os últimos batentes giraram suavemente; o facho luminoso não iluminou mais portas de ouro mas o braço da deusa Néfis (a soberana do templo), que velava sobre um admirável sarcófago de quartzo. Espetáculo inesquecível e maravilhoso, o daquela mulher do outro mundo, terna e doce, encarregada de afastar os intrusos. Carter e os assistentes foram tomados de um receio respeitoso frente a essa encarnação de uma fé milenária, que o tempo não tinha gasto.
— Um sarcófago intacto — murmurou Carter, sufocado. — O único do Vale dos Reis.
Sentiu a presença de Lord Carnarvon ao seu lado; do outro lado da morte, o conde participava no triunfo.
Carter fechou religiosamente as portas da quarta capela.
O arqueólogo releu o texto do telegrama destinado a Pierre Lacau: As minhas buscas permitiram-me verificar que a quarta capela contém um magnífico sarcófago. Um sarcófago inviolado! Saudações.
Apenas a mensagem foi expedida, logo a extraordinária notícia se espalhou por todo o Egito; milhares de turistas e de curiosos acorreram ao Vale. Fotógrafos e jornalistas assaltaram Carter mal ele saiu da tumba; apesar da proteção dos seus colaboradores, foi obrigado a responder a um Bradstreet
superexcitado que lhe vedava a passagem.
— Tem a certeza que o sarcófago está fechado?
— Absoluta.
— Encontrará lá alguma coisa de único?
— De inimaginável.
— Porque não o abrir imediatamente?
— Tenho de mandar fotografar as paredes das capelas e inventariar os objetos rituais que foram dispostos entre elas. Qualquer precipitação seria criminosa.
— Pretende-se que gases mortais se difundirão logo que se levantar a tampa do sarcófago?
— Estou pronto a correr o risco.
— A múmia estará coberta de ouro?
— É provável.
— Quando o saberemos nós?
— Ignoro-o; a próxima etapa é a desmontagem das duas últimas capelas. Autoriza-me a voltar ao meu domicílio?
Carter deu ordem de fechar o túmulo. Depois desses momentos exaltantes, tinha necessidade de silêncio e de solidão, enquanto a equipe arqueológica se ocupava de restaurar objetos. O canto longínquo de um pássaro lembrou-lhe o seu canário, o pássaro de ouro, influência benéfica, tinha favorecido a mais fabulosa das descobertas. Olhou o seu imenso mapa do Vale dos Reis, de onde ele tinha transportado a totalidade das descobertas anteriores; com a sua caligrafia fina e rápida, indicou a localização da tumba de Tutankhamon.
Carter preparava-se para jantar sozinho quando Ahmed Girigar, chefe vigilante do seu serviço de segurança, o preveniu da chegada de um emissário do ministro dos Trabalhos Públicos. A despeito do seu estado de cansaço, recebeu o alto funcionário, vestido à ocidental.
O homem recusou-se a sentar.
— O ministro felicita-o, mas está bastante descontente com a maneira como procedeu à abertura da última capela. Um representante do Serviço das Antiguidades devia ter-se encontrado a seu lado.
— Convoquei o senhor Engelbach, mas estava retido por obrigações mais importantes. Tranqüilize-se, o sarcófago não sofre com a sua ausência.
— Além disso, o Governo acusa-o de ter deixado penetrar no túmulo um correspondente do Times no momento dessa abertura, o que é contrário à deontologia das escavações.
— Informação errada: apenas estavam presentes os membros da minha equipe.
— Permito-me tomar nota das suas explicações e de lhe fazer assinar o processo verbal que será remetido ao ministro.
Carter leu a prosa do alto funcionário, verificou que as suas respostas não tinham sido deformadas, e rubricou o documento.
— Temos sérias complicações — concluiu o emissário.
— Descontraia-se: está tudo em ordem.
Bradstreet e Lacau continuavam o seu trabalho de sapa. Quanto mais Carter se aproximava do sarcófago, mais eles se mostravam virulentos; mesmo se o ministro dos Trabalhos Públicos se inclinava um pouco para o seu lado, eles não queriam senão cravar bandarilhas nas costas de Carter.
— Outra visita — anunciou Ahmed Girigar.
— Ai, não! Mais tarde.
— Deveria receber o seu hóspede; vem de bastante longe. — Intrigado, Carter aceitou.
Lady Evelyn avançou para ele, vestida de lilás, luminosa e aérea.
— Quando chegou?
— Agora mesmo.
— Fica muito tempo em Luxor?
— Não tem necessidade de uma assistente? Anuncia-se a descoberta de fabulosos tesouros.
Carter tomou Lady Evelyn ternamente nos braços, como se temesse dissipar uma miragem.
— A sua mãe?
— Aceitou que eu passe o Inverno no Egito e que acompanhe o seu trabalho, em memória do meu pai.
— Ele está a meu lado, Eve; ninguém o pode substituir.
— É por isso que eu nunca poderei casar consigo, Howard. A opinião da minha família importa pouco, mas ele nunca teria dado o seu consentimento.
— E se ele lhe concedesse um sinal do alto dos céus?
— Que a sua alma o ouça.
— Está a tremer.
— Julgo que apanhei frio.
— Ele cobriu-lhe os ombros com um xale de lã. Os olhos da rapariga pousaram sobre o grande mapa do vale.
— Ganhou, Howard; como o meu pai deve estar feliz!
—Não gritemos muito cedo vitória; conheço alguns sarcófagos intactos e vazios.
— Não este... Tutankhamon está vivo, sinto-o!
— Vivo? Quer dizer...
Olhou-o com fixidez, com todo o amor que uma mulher sabe oferecer na comunhão do instante.
— Um faraó pode morrer?
A noite caiu no Vale. Carter apagou a luz e tirou o xale de lã; ao longe, o Nilo levava ao fio da corrente as felicidades de um dia terminado.
Chegara a hora de desmontar as capelas, painel por painel; indiferente ao calor e à poeira, Carter lutava contra a precipitação e os gestos bruscos. Desimpedir o sarcófago implicava um respeito absoluto das ordens de segurança, a fim de que nenhum outro elemento dessas obras inestimáveis fosse danificado.
Ao passar, notou que os carpinteiros egípcios tinham montado os painéis de uma maneira bizarra; a ordem estava invertida em relação aos pontos cardiais e às indicações hieroglíficas. Sem dúvida tinham sido constrangidos a proceder de maneira urgente; dissimular a tumba o mais depressa possível era o imperativo do mestre-de-obras.
Enquanto Carter trabalhava com calma, os hotéis de Luxor eram assaltados por hordas de turistas. Como o mesmo quarto tinha sido reservado quatro ou cinco vezes, a batalha tornava-se violenta; os que davam o maior bakchich saíam vitoriosos. Os outros deviam contentar-se com pensões de família ou ainda pior, de quartos em casa de habitação. Lojistas, mercadores ambulantes, proprietários de carruagens votavam um culto a Tutankhamon que tornava os seus negócios florescentes.
O mais importante falsário da cidade, obteve uma entrevista com Carter e pediu-lhe que interviesse a seu favor; segundo os métodos tradicionais, fabricava com seriedade escaravelhos falsos de Tutankhamon, que davam grande satisfação a uma quantidade de colecionadores. Ora, depois do anúncio de uma sepultura intacta, concorrentes indelicados inundavam o mercado de produtos medíocres. O arqueólogo lamentou não poder aplicar a sua própria marca às boas falsificações e, com gravidade, aconselhou ao comerciante, vítima de uma concorrência desleal, que consultasse o Serviço das Antiguidades.
Carter saía do túmulo, ao fim de um dia estafante, quando Lady Evelyn lhe trouxe um jornal local a que Lacau acabava de confiar as suas intenções.
— Mais conversa.
— Não, Howard; uma ameaça. Segundo o diretor do serviço, o Governo teria projetado suspender o seu trabalho e autorizar os turistas a visitarem o santuário.
— Estúpido. Outras declarações da mesma ordem?
— Acusa-o de criar aborrecimentos e de importunar constantemente o serviço e o Governo; segundo sua opinião, põe em causa a soberania do estado e a noção de domínio público.
— Por outras palavras, recusa a divisão dos objetos tal como fora concluída com o seu pai! Esse Lacau é uma verdadeira serpente... Sabe contudo que não é o gosto do luxo que me anima, mas um desejo de justiça. Tenta roubar a sua família e frustrá-la nos seus direitos. Não lho permitirei. — Seja prudente, Howard.
— Tenho, em primeiro lugar, de ser firme.
Carter reuniu egiptólogos de nome, o seu mestre Newberry, o filólogo inglês Gardiner, o seu colega americano Breasted e Albert Lythgoe, representante do Metropolitan Museum. Em nome da ciência, Carter e os quatro especialistas redigiram uma carta muito crítica relativa a Pierre Lacau e ao Serviço das Antiguidades, cuja atitude comprometia o avanço dos trabalhos. O túmulo de Tutankhamon, precisava a carta, não pertencia ao Egito, mas ao mundo inteiro; Howard Carter e a sua equipe cumpriam a sua missão com um fervor e uma seriedade que ninguém contestava. Porque os importunavam constantemente com pedidos de visita, em vez de pôr em primeiro plano a salvaguarda dos tesouros? O Governo egípcio não tinha desembolsado um penny, só Lord Carnarvon era responsável pelos investimentos comprometidos. Lacau faltava aos deveres do seu cargo, portando-se como um burocrata miudinho. Competia-lhe reconhecer os erros e favorecer por fim os esforços de Carter. Para que tivesse repercussão, foram enviadas cópias da carta ao alto-comissário britânico, e a várias instituições científicas.
Carter levantou a sua taça de champanhe; Lady Evelyn e os seus colaboradores imitaram-no.
Lacau não ousou sequer replicar.
— Desconfiemos — recomendou Burton — deve estar a tramar na sombra.
— É tarde demais.
— Um jesuíta — observou Burton — é sempre capaz de inventar uma estratégia que ninguém previa.
— Sou otimista — afirmou Carter — não nos aborrecerá mais. A via real para o sarcófago está aberta.
Preocupada, Lady Evelyn contentou-se em beber a deliciosa bebida; não se quis opor ao bom humor do arqueólogo.
— Apercebo-me de uma reticência — murmurou-lhe ao ouvido.
— Esta noite, sejamos felizes. Amanhã, mostro-lhe o mais perfeito dos sarcófagos.
Carter parecia contrariado; acabava de reparar no traço de fratura na tampa do sarcófago.
Uma reparação foi efetuada na antiguidade; gesso e pintura imitavam o granito, a fim de mascarar o acidente. A cada ângulo, uma deusa estendia braços e asas de maneira a proteger a alma do rei e a oferecer-lhe perpetuamente a vida.
Carter levou a mão à garganta.
— Howard! Que tem?
— Um mal-estar passageiro...
— Que se passa?
— Uma fenda, na tampa... significa talvez que o sarcófago foi violado.
A jovem observou a ferida do caixão de pedra.
— Não, é impossível. Não receie nada.
— Porque está assim tão afirmativa?
— Sinto-o no mais fundo de mim; foi a mão de um operário de faraó que pensou esta chaga.
Carter passou a mão pela tampa; as palavras de Lady Evelyn tranqüilizaram-no.
Callender galgou o corredor de acesso e parou, esfalfado, na entrada do quarto funerário.
— Uma catástrofe... É preciso ir ao Cairo sem demora.
Angustiado, Carter ultrapassou a porta do escritório do novo ministro dos Trabalhos Públicos.
Morcos Bey Hanna. O arqueólogo, indiferente às mutações políticas, compreendia enfim que a chegada ao poder do nacionalista Saad Zaghlul modificava a atitude dos oficiais egípcios para com os estrangeiros. O ministro era um homem bem constituído, de fronte estreita e postura marcial; menosprezou as habituais fórmulas de delicadeza.
— É inglês, senhor Carter?
— É exato, senhor ministro.
— Não gosto dos ingleses. Atiraram-me para a prisão durante quatro anos, porque reclamava a independência para o meu país; o povo fez de mim um herói. Faço questão de lhe agradecer a sua confiança e de lhe provar que conservei o meu ideal. Tem um ideal?
— A tumba de Tutankhamon.
— Não percebo nada de arqueologia; as pedras velhas aborrecem-me. Prefiro interessar-me pelos homens, o senhor, não?
— Dou-me com os faraós desde a minha adolescência; Tutankhamon é um companheiro de jornada que justifica todos os sacrifícios. — Morcos Bey Hanna acendeu um charuto.
— Devia descruzar as pernas; no meu país, é considerado uma posição indelicada quando se está em frente de um superior.
Furioso, dominando mal os nervos, Carter assim fez. Não cederia mais terreno.
— Porque é que eu o mandei vir já? Ah, é verdade! O caso Tutankhamon... Muitos conflitos com a administração. Demais! Essas perturbações desagradam-me. Um arqueólogo devia calar-se e obedecer.
— Na condição de lhe permitirem trabalhar em paz e de levar a termo a sua exploração.
O ministro admirou-se que aquele estrangeiro ousasse fazer-lhe frente.
— Pierre Lacau — precisou ele —, transmitiu-me as peças do dossier; segundo a sua opinião, a licença de escavação não lhe dá nenhum direito de propriedade sobre a tumba, considerada como inviolada, e ainda menos sobre os tesouros que ela contenha.
— Os acordos passados com Lord Carnarvon...
— Não é a um lord inglês que compete fazer a lei no Egito! Ponha-se de acordo com o serviço e não me importune mais.
— O seu comportamento é iníquo.
— E o seu, senhor Carter? Não assinou um contrato de exclusividade com o Times, a despeito da imprensa egípcia que tinha, contudo, direito às novidades?
— Lord Carnarvon estimava, a justo título, que a presença quotidiana de dezenas de jornalistas teria impedido a progressão do trabalho.
— Ora aí está a hipocrisia britânica! Falemos do seu trabalho... recomendo-lhe firmemente que obedeça às ordens recebidas e que não abandone o Egito. — Arrebatado, Carter levantou-se.
— Permita-me não o compreender.
— É muito simples; na qualidade de empregado do meu ministério, deve ser um funcionário zeloso.
— Estou ao serviço da esposa do falecido conde de Carnarvon e proprietário da concessão.
Morcos Bey Hanna tocou numa campainha. Abriu-se uma porta sobre a sua esquerda e apareceu Pierre Lacau, com os braços carregados de cadernos; inclinou a cabeça em frente do ministro.
— Estão aqui os elementos do contencioso.
Carter sentiu-se apanhado na armadilha; preparava-se para sair do escritório com altivez quando o ministro teve uma reação inesperada.
— Esta papelada aborrece-me; o passado é o passado. Quando organizamos uma cerimônia para a abertura do sarcófago? Depois de amanhã convinha-se muito.
— Impossível — respondeu Carter.
— Porquê?
— Porque ignoro o número e a qualidade dos caixões que ele contém; tirá-los da cova de pedra levará talvez vários meses.
O ministro voltou-se para Lacau.
— Que pensa, senhor diretor? — Pierre Lacau não quis mentir.
— Howard Carter tem razão em emitir essa hipótese.
Morcos Bey Hanna não escondeu a sua decepção.
— A arqueologia é verdadeiramente decepcionante; quando estiver pronto, previna-me.
O ministro saiu do escritório, deixando Carter e Lacau frente a frente.
— Não podia proceder de outra maneira — explicou o diretor do serviço.
— Deveria pousar os dossiers — aconselhou Carter
— O seu peso acabará por o cansar.
No dia 12 de Fevereiro, às 15 horas, Carter pediu aos seus convidados que se dispusessem junto do sarcófago de Tutankhamon. Depois de ter sido longamente interrogado sobre as intenções reais do ministro e de Lacau, tinha seguido o conselho de Lady Evelyn: acelerar o ritmo dos trabalhos e convidar
várias personalidades a participar num momento excepcional: o levantamento da tampa de pedra. Ao lado dos membros da equipe , figuravam o subsecretário do Ministério dos Trabalhos Públicos e Pierre Lacau, cujo fato preto punha uma nota fúnebre na cerimônia. Callender verificou a solidez dos guindastes e das cordas; com um olhar, fez ver a Carter que o dispositivo de levantamento o satisfazia. Este último deu ordem para atuar; num silêncio profundo, a laje gigantesca elevou-se.
Carter meteu a cabeça debaixo da tampa suspensa por cima dele; os doze quintais de pedra vacilaram um instante e depois imobilizaram-se. Lady Evelyn preparava-se para agarrar o braço do arqueólogo e o puxar para trás, mas ele tirava já a mortalha, que enrolava com a maior lentidão. Com as mãos trêmulas, a testa escorrendo suor, teve de renovar a operação por várias vezes. Como tocasse no último véu, soltou um grito de surpresa.
O rosto de ouro de Tutankhamon, sereno, sublime, olhava a eternidade; as feições estavam modeladas sobre folhas de ouro; os olhos de aragonite e de obsidia, as sobrancelhas e as pálpebras de lápis-lazúli. As mãos, cruzadas sobre o peito, seguravam o cajado mágico do pastor e a tranca do agricultor, incrustada de faiança azul.
Lady Evelyn enfiou-se, por sua vez, debaixo da tampa do sarcófago; a beleza do rosto de ouro ultrapassava, em esplendor, tudo o que ele dantes tinha visto. Tutankhamon não estava morto; uma vida ressuscitada habitava os seus olhos de pedra. A coroa que protegia a deusa abutre, a mãe do mundo, e a deusa cobra, símbolo da potência vital, situava o rei num universo divino de onde a humanidade estava excluída.
Cada um dos convidados contemplava o faraó. Nem um murmúrio perturbou a meditação e o caráter sagrado daquele encontro com uma lembrança de além-túmulo, saído das trevas. Callender chorou. Lacau, embora fosse cristão, sentiu grandes emoções: a perfeição da efígie de origem celeste. Um a um, saíram hesitantes; afastar-se do jovem rei foi despedaçarem-se. Howard Carter tornou a subir o último corredor de acesso, que o trouxe para a luz exterior; a visão do ser real permaneceu impressa no seu espírito.
— Vivo — murmurou ele.
Durante longos minutos, Carter foi incapaz de falar. Lacau e o subsecretário não ousaram afastar-se e despedir-se antes que o arqueólogo se pusesse em pé.
— Magnífico — reconheceu Lacau. — Seria bom autorizar algumas visitas — recomendou o subsecretário — e de dar uma conferência de imprensa, o acontecimento é tão fabuloso...
— Como quiser — concordou Carter, em estado de choque.
— Entendo que as esposas dos membros da equipe deveriam ser admitidas a ver o faraó antes dos jornalistas — propôs Callender.
— É evidente — reconheceu Carter — merecem essa recompensa.
— Decerto — admitiu o subsecretário — precisamos, contudo, de uma anulação. Este pequeno problema depressa será resolvido; apelo ao ministro.
— Maravilhoso — repetiu Lacau, perdido no seu sonho.
Carter abafava; tornou a descer ao túmulo, a pretexto de verificar o cordame; na verdade, desejava ficar só com Tutankhamon e perguntar-lhe o segredo de um olhar que a noite da morte não tinha extinto.
O ar estava transparente e leve; os colaboradores de Carter e as esposas congratularam-no.
Nessa manhã de Fevereiro, uma alegria intensa animava as conversas. Cada um tinha consciência de participar num momento histórico.
O reis Ahmed Girigar foi o primeiro a ver o carteiro que, montado num burro, se aproximava da tumba de Tutankhamon.
— Uma mensagem urgente para o senhor Carter! — anunciou com uma voz forte.
O arqueólogo, surpreendido, leu uma mensagem assinada por Pierre Lacau, diretor do Serviço das Antiguidades. Depois de ter recebido um telegrama do ministro dos Trabalhos Públicos, que proibiam formalmente a admissão das esposas dos colaboradores de Carter, Lacau achava-se na obrigação de formular essa ordem da maneira mais nítida. Se bem que lamentasse esse aborrecido mal-entendido, o diretor, por respeito pelas decisões ministeriais, intimava Carter a aplicá-las sem discussão. Nenhuma senhora, não munida de autorização escrita, poderia entrar no túmulo.
Carter cerrou os punhos.
— Estou desolado — confessou. — O ministro recusa às vossas esposas a possibilidade de ver Tutankhamon.
Levantaram-se protestos, mas Callender e Burton não aconselharam o golpe de força. A carta de Lacau possuía um caráter oficial; recusar ter em conta a proibição colocaria Carter em infração.
— Inclinarmo-nos seria cobardia.
Redigiu uma nota breve e brutal, onde evocava os vexames inadmissíveis de que ele mesmo e a sua equipe eram objeto; era por isso que eles recusavam prosseguir o seu trabalho e fechavam o túmulo.
Muito irritado, Carter pediu a Merton que publicasse no Times a relação exata dos fatos e de estigmatizar o papel de Lacau; dirigiu-se com grandes passadas para a tumba de Séti II, instalou a grade de ferro com a ajuda de Callender e pôs-lhe um cadeado. Depois, fechou aquela que protegia o acesso à sepultura de Tutankhamon, meteu o único jogo de chaves na algibeira, montou um burro e tomou a direção do embarcadouro. Ele, que tanto amava respirar a brisa quando atravessava o Nilo, nem mesmo prestou atenção. Uma carruagem levou-o a toda a velocidade ao Winter Palace. Carter precipitou-se para o bali e espetou a sua nota no quadro de afixação diante do qual passavam centenas de turistas e de personalidades.
Algumas horas mais tarde, a querela tornara-se pública; as acusações de Carter e a sua extraordinária decisão breve foram o único tema de conversa de todo o Luxor.
Carter conseguiu a luta noutra frente; expediu um telegrama ao primeiro-ministro, Zaghlul, a fim de solicitar uma intervenção a seu favor. Este último não podia senão condenar a atitude inqualificável do Serviço das Antiguidades. A fim de provar os seus direitos, o arqueólogo pensava mesmo em intentar um processo contra o Governo.
— Ganharemos — prometeu a Lady Evelyn.
— A maior parte dos turistas criticam a sua iniciativa.
— Pouco importa.
A resposta de Zaghlul foi rápida e muito seca.
— Incrível! — lamentou Carter. — Não só Zaghlul não reconhece os fatos, mas também me lembra que o túmulo não é propriedade minha, e que não tenho o direito de abandonar os trabalhos.
Lady Evelyn, inquieta, leu a missiva do primeiro-ministro apesar da frieza do tom, descobriu-lhe sinais encorajadores.
— Reconhece o interesse das suas descobertas para mundo inteiro.
— Fórmula de gentileza... Apoia o seu ministro e renegam-me a mim.
— A luta torna-se desigual, Howard.
— Decerto que não; o direito está do meu lado.
Pierre Lacau consultou a imprensa com satisfação. Só o Times tomava a defesa de Carter e acusava o Governo egípcio de ter enviado polícias para proibirem, pela força, a entrada no túmulo a algumas senhoras de categoria; todavia, os outros jornais criticavam a reação do arqueólogo, considerado como um megalômano, um homem esgotado e à beira do ataque de nervos, ou um colonialista da pior espécie.
Morcos Bey Hanna, ministro dos Trabalhos Públicos tinha difundido abundantemente a sua própria versão nos jornais egípcios; assim, consideravam eles que Carter, provocador de perturbações e grevista, já não merecia dirigir as pesquisas.
Lacau rejubilava. Ingênuo, desastrado, Carter, tinha cometido um erro fatal; vítima de uma paciente tática provocatória, não tinha desconfiado das ratoeiras armadas no seu caminho. Em que se tornava o escaldante aventureiro aos olhos da opinião pública, senão numa espécie de bandido? Cabia ao Governo quebrá-lo e afirmar a sua soberania.
Desamparado, Carter sentia-se apanhado por uma tormenta; Callender tentou em vão reconfortá-lo. As brincadeiras de Burton já não o divertiam. Só a presença de Lady Evelyn o estimulava.
— Os políticos são os mais desprezíveis dos homens. Mentira e traição: eis o seu código de conduta.
— Descobriria o mundo, Howard?
Tinham-se retirado para a casa de apoio que Ahmed Girigar e os seus homens vigiavam; alguns turistas, a quem o fecho da tumba de Tutankhamon tornavam furiosos, tinham tentado subir o caminho a fim de insultarem o arqueólogo.
Carter bebia mais do que de costume.
— Porquê tantas infelicidades? Em primeiro lugar a morte de Lord Carnarvon, depois aquela hostilidade...
— Agüente, Howard; se ceder, Lacau triunfará e a memória do meu pai será injuriada.
Exprimia-se sem qualquer agressividade; Carter ia buscar uma força nova na sua doçura.
— Vou bater-me, Eve; Vou bater-me até ao fim.
Carter e os seus colaboradores mantiveram um conselho de guerra. Ninguém o abandonou; todos estiveram de acordo sobre o fato de o ministro dos Trabalhos Públicos e o diretor do Serviço das Antiguidades ultrapassarem os seus direitos e praticarem uma política de intimidação. Nem uma vez, no decorrer da sua existência atormentada, Howard Carter se inclinou sobre a ameaça.
O apoio incondicional da sua equipe serenou-o. Fortalecido por essa unanimidade de coração, decidiu recusar qualquer concessão. A partir de agora, a exploração do túmulo desenrolar-se-ia sob a única garantia do arqueólogo responsável pelo sítio.
No dia 15 de Janeiro, de madrugada, Howard Carter desceu o caminho que conduzia ao Vale. Em frente do túmulo de Tutankhamon, a guarda era feita por militares. Julgou tratar-se, de um reforço das medidas de segurança habituais; um oficial superior avançou.
— Zona interdita — anunciou ele.
— Sou Howard Carter.
— Possui uma autorização escrita do Ministério dos Trabalhos Públicos ou do Serviço das Antiguidades?
— Não preciso.
— As minhas instruções são formais: os túmulos de Tutankhamon e de Séti II, inscrito com o nº 15 e servindo de laboratório, estão fechados e ninguém está autorizado a entrar neles.
— Está a brincar comigo?
— Não faça um gesto irrefletido, senhor. Caso contrário, utilizarei a força.
Como um animal ferido, Carter enfiou-se no canto mais escuro da casa de apoio. Durante dois dias não se alimentou; obstinada, Lady Evelyn conseguiu fazer-lhe absorver chá e arroz. O arqueólogo leu e releu o artigo do Saturday Review, onde o jornalista se inquietava com a qualidade das cordas que mantinham no ar a tampa do sarcófago; se elas se quebravam, os danos seriam irreparáveis.
— Tenho de tratar disso.
— É impossível, Howard; os soldados não o deixarão passar.
— O ministro terá recebido a minha carta de protesto?
— Com certeza que sim; mas não responde.
— Que Hei de fazer, Eve? É a minha vida que eles assassinam, é Tutankhamon que eles destroem.
— Esperar e rezar. As cordas agüentarão, juro-o. — Ele acreditou nela; o seu olhar não mentia.
Uma semana depois do fecho oficial, a opinião pública modificou-se. Ela censurou ao Governo esquecer os riscos que fazia correr ao sarcófago, não nomeando outro arqueólogo capaz de conduzir bem os trabalhos; os cordames acabariam por romper-se e a queda da tampa destruiria o caixão de ouro.
O Times insistia na imprudência das autoridades; a sua intransigência exercia-se num momento particularmente mal escolhido.
Os jornalistas locais mudaram de opinião; Carter não seria vítima em vez de culpado? A conselho de Lady Evelyn, aceitou receber um dos seus representantes. Barbeado, com o bigode bem cortado, o lacinho borboleta em perfeito equilíbrio, o arqueólogo tentou apresentar um ar sereno.
— Aceita reconhecer os seus erros, senhor Carter?
— Não cometi nenhum, senão acreditar na justiça.
— Mantém as suas críticas a respeito do ministro?
— O ministro mente apresentando-me como o adversário do Egito e do seu povo.
— Este país é o meu país; recuso-me simplesmente a abrir a tumba a qualquer visitante indiferente, enquanto os caixões não tiverem sido libertos.
— Então qualifica o ministro de mentiroso?
— É o termo exato.
— Que reclama?
— Que o dispositivo policial seja disperso e que a maior aventura arqueológica de todos os tempos prossiga; só a minha equipe possui as habilitações necessárias.
Lacau dobrou jornal onde acabava de sair o artigo de Carter; convidado pelo Conselho de Ministros, o diretor do Serviço de Antiguidades tinha exposto os fatos e comunicado os dados principais do dossiê ao conjunto do Governo.
O requisitório pronunciado contra Carter foi gravoso; o ministro dos Trabalhos Públicos aprovou-o na íntegra, e considerou que o inglês, insultando-o, injuriava a nação. Nenhum dos seus colegas tomou a defesa do arqueólogo.
— Acha que Howard Carter rompeu o contrato com o Egito e espezinhou os seus deveres de sábio, fechando o túmulo sem autorização? —perguntou Zaghlul.
— O conselho votou “sim” por unanimidade.
— Aprova a ação do senhor Lacau e do seu serviço? — A mesma resposta foi formulada.
— Por consequência — concluiu o primeiro-ministro —, Howard já não é autorizado a prosseguir as escavações e a penetrar no túmulo. É o próprio Governo, no futuro, que toma a seu cargo o caso Tutankhamon.
A leitura do comunicado oficial entorpeceu Carter; a sua derrota parecia consumada. Zaghlul desenvolvia o argumento mais demagógico: se procedia assim, era para permitir ao povo visitar, o mais cedo possível, um ponto alto da humanidade descoberto sob o seu solo.
Callender e os outros membros da equipe estavam despedaçados; o mais maravilhoso dos sonhos destruía-se por causa dos políticos e dos funcionários ambiciosos, indiferentes aos esforços realizados passados tantos anos. Carter tentou manter o moral dos seus colaboradores.
— A Inglaterra não nos abandonará.
— Pensou no alto-comissário? — interrogou Burton.
— Não — respondeu Lady Evelyn. — Não gostava de meu pai e não arriscará a sua carreira, opondo-se abertamente ao Governo egípcio.
— Que outra solução.
— O Parlamento! Telegrafei à minha mãe para que ela obtenha o apoio dos amigos políticos de meu pai; o nosso Governo fará dobrar o do Egito.
O entusiasmo da jovem foi comunicativo, Carter lembrou os momentos exaltantes que tinham balizado a epopéia e abriu garrafas de champanhe. Durante a noite, a equipe comungou numa nova fé.
A manhã avermelhava. Em frente do Vale e das encostas desérticas cruzadas de sulcos, Eve e Carter acreditavam ainda no impossível. Apertados um contra o outro, para fugir à friagem da manhãzinha, gozavam da cumplicidade de um par habituado a vencer cem demônios e a ultrapassar mil obstáculos. A felicidade não estaria à espera deles no termo da procura; sabiam que separação e despedaçamento lhes queimariam a alma e o coração. Antes que o abismo da solidão os absorvesse, saboreavam a embriaguez de uma meditação a dois, perto do cimo do Ocidente.
— Será o amor, Eve?
— O mais violento e o mais doloroso.
— Quando parte?
— A Primavera voltará; a minha mãe espera-me em Highclere.
— Manter a sua posição... é assim tão importante?
— Essencial e irrisório.
— Se eu a pudesse reter... Hoje, já não sou nada.
— É um predestinado, Howard; o seu caminho está traçado nas estrelas. É da mesma natureza que o ouro de Tutankhamon; eu, não passo de uma etapa.
— Duvida da minha sinceridade?
— Nem um segundo; mas não sou o seu futuro.
—Porquê essa condenação? — Ela sorriu-lhe e beijou-o.
— É o mais surpreendente dos homens, Howard, porque não muda. Nem eu, nem outra qualquer o farão desviar do seu caminho. Amo-o e admiro-o.
O Parlamento britânico ronronava; nenhum assunto importante devia perturbar o seu sossego. O primeiro-ministro, Ramsay Mac Donald, foi bruscamente interpelado a propósito do caso Tutankhamon.
— Será verdade que o senhor Carter seja titular da concessão arqueológica?
— Está ao serviço da viúva do quinto conde de Carnarvon, que dispõe, efetivamente, dessa concessão.
— No conflito que opõe Howard Carter ao primeiro-ministro egípcio, qual é a nossa posição?
— O Governo de Sua Majestade não concedeu qualquer privilégio à equipe arqueológica que trabalha no sítio.
O primeiro-ministro fingiu não esquecer os protestos que suscitavam a sua declaração. Um contestatário encarniçou-se e pediu-lhe que explicasse os seus propósitos.
— O caso Tutankhamon não depende da nossa competência — indicou Ramsay Mac Donald. — É de ordem privada; quanto às atuações do senhor Carter, estão submetidos à legislação egípcia e não à nossa. Não quero continuar a ouvir falar desse personagem e considero que o dossier está encerrado.
O reis Ahmed Girigar terminava a sua oração da manhã a alguns metros do túmulo de Tutankhamon, quando viu chegar uma tropa fora do normal, composta de soldados e de polícias.
À cabeça, vinha Pierre Lacau. Camelos e cavalos avançavam! com um passo tranqüilo. O reis colocou-se na orla do caminho que conduzia à tumba de Tutankhamon. Lacau, enquadrado por um oficial superior e um alto-funcionário do Ministério dos Trabalhos Públicos, imobilizou-se a dois metros dele.
— Deixe-me passar, meu amigo.
— O senhor Carter nomeou-me contramestre; estou encarregado da vigilância do seu campo.
— Já não lhe pertence; este sítio está colocado sob o controlo direto do Estado.
— O meu único patrão é o senhor Carter.
— Engana-se; agora está ao serviço do Governo.
— Possui documentos que o provem? — O alto-funcionário enervou-se.
— Conforme-se imediatamente com as ordens do primeiro-ministro!
— Mostre-me um papel oficial.
A um sinal do oficial superior, dois soldados apontaram a espingarda para o reis este último não mexeu um polegar.
— As suas ameaças são-me indiferentes — declarou com uma voz calma —, atire e tornar-se-ão assassinos.
Lacau interrompeu.
— Que ninguém se descontrole... não quero nenhum incidente. O reis é um homem inteligente e razoável; deve compreender que opor-se às diretrizes do Governo é uma loucura. Estou persuadido de que não nos constrangerá a utilizar a violência.
O tom glacial de Lacau impressionou Ahmed Girigar.
— Devo alertar o senhor Carter.
— Como quiser.
O reis afastou-se e correu a prevenir o arqueólogo. Aproveitando-se da ocasião, Lacau arrancou com o pelotão para a grade, um serralheiro serrou os cadeados, os polícias arremessaram-se para o interior do túmulo. O diretor queria atuar depressa.
— Faça descer a tampa.
Os soldados executaram a ordem; Lacau estava ao mesmo tempo triunfante e inquieto. As roldanas rangeram, os cordames aqueceram mas não se quebraram; a pouco e pouco, a enorme laje mexeu-se. O diretor do serviço seguiu com os olhos a sua lenta progressão; quando ela pousou sobre o sarcófago, soube que tinha passado a ser o senhor do sítio.
Na orla do túmulo, os soldados impediam Howard Carter de se meter pelo corredor que descia.
À vista de Lacau, rugiu.
— Que ousou fazer?
— O meu dever.
— Se estragaram o sarcófago, eu...
— Não se preocupe mais, senhor Carter; os tesouros de Tutankhamon são colocados sob a proteção do Estado.
— É ilegal! A concessão está em nome de Lady Carnarvon.
— Engano: está rescindida para a estação em curso. É pois a sua presença que é ilegal.
— É um monstro.
— Acrescento que o laboratório é igualmente requisitado! que já não tem possibilidade de o utilizar.
— A partir de hoje, instauro um processo judicial contra o Governo egípcio.
— Mais um passo em falso, meu caro Carter; o Egito portou-se de uma maneira muito digna, no respeito das leis e moral. Renuncie a uma nova agressão e deixe-me preparar um compromisso.
— Enjoa-me; exijo as suas desculpas e a reabertura imediata do túmulo.
Lacau levantou-se e meteu pelo corredor; Carter tentou segui-lo mas esbarrou com os soldados. Louco de raiva, apoderou-se de uma pedra e atirou-a para o céu.
Graças a uma sábia orquestração, a imprensa egípcia tomou a defesa do Governo, cuja única finalidade era enriquecer à custa do povo, único proprietário legítimo da tumba de Tutankhamon.
A 6 de Março de 1924, um comboio especial, proveniente do Cairo, trouxe a Luxor 170 convidados do primeiro-ministro Zaghlul, cuja quota de popularidade subira ao mais alto. Ao longo do percurso, os militantes nacionalistas gritaram slogans hostis à Inglaterra e a Howard Carter, refugiado na sua casa de apoio; se bem que Zaghlul, indiferente às antiguidades egípcias, não se tivesse deslocado, uma multidão enorme gritou o seu nome à chegada do comboio à estação de Luxor.
Nenhum dos oficiais tinha a menor vontade de perder o seu tempo no Vale dos Reis e de lá sofrer com o calor; mas a peregrinação era obrigatória. Foi um Lacau, transbordante de amabilidade, que acolheu as 170 personalidades no quartinho funerário, a tampa do sarcófago fora tirada e colocada contra um tabique. Uma luz, assestada sobre o rei, iluminava o rosto de ouro. O extraordinário espetáculo comoveu os mais sensíveis; os políticos felicitaram Lacau.
Com o apoio de Lady Carnarvon, Carter contratou um advogado, F. M. Maxwell, a fim de que desse início a um processo legal contra o Governo egípcio na corte mista do Cairo, composta de autóctones e de estrangeiros. Essa jurisdição, herdada do domínio otomano, suscitava o ódio dos independentistas, que exigiam a sua supressão: o ministro dos Trabalhos Públicos, Morcos Bey Hanna, não cessava de a vilipendiar.
Lady Evelyn encorajava Carter a lutar; Maxwell não gozava de uma excelente reputação e não conhecia o direito egípcio à perfeição? De um temperamento triste, até desiludido, o advogado nunca sorria. O rigor da lei aparecia-lhe como a condição essencial da sobrevivência de uma sociedade, fosse ela ocidental ou oriental. Pensou que o caso Tutankhamon daria, certamente, uma volta a favor de Carter, vítima de um característico abuso de poder; graças às suas relações e às qualidades técnicas do seu dossier, o advogado obteve o andamento rápido de um processo.
Na véspera da sua abertura, Carter e Lady Evelyn estavam otimistas. Maxwell não se comprometia levemente; normalmente, só batalhava em terreno conquistado e não concedia senão oportunidades ínfimas aos seus adversários.
— Lacau vergará, o Governo egípcio também... no fundo, pouco importa. O que eu desejo, é ocupar-me novamente de Tutankhamon.
— O meu pai ajuda-nos; sinto-o muito perto de nós.
Callender interrompeu a conversa; pelo seu parecer transtornado, Carter soube imediatamente que surgira uma dificuldade inesperada.
— Maxwell, o seu advogado...
— Explique-se!
Callender, petrificado, encontrava as palavras com dificuldade.
—É um homem intransigente, partidário encarniçado da pena de morte.
— Pouco nos importa.
— Pelo contrário, reclamou-a, há alguns anos, contra um traidor que a Inglaterra queria condenar com a última severidade. Por felicidade, o veredito foi muito mais clemente.
— “Por felicidade”... porquê esse alívio?
— Porque o acusado não era outro senão Morcos Bey Hanna, o atual ministro dos Trabalhos Públicos e o nosso principal inimigo.
O discurso de Maxwell foi dos mais convincentes, apresentou Carter como um pesquisador desinteressado cuja única finalidade era a preservação dos tesouros de Tutankhamon. Nenhuma jurisdição podia acusá-lo de corrupção, nem apresentá-lo como um simples executante; os fatos provavam
que tinha ele mesmo conduzido as escavações com seriedade e rigor. O dossier jurídico não apresentava qualquer ambiguidade; o Governo cometia um abuso de poder anulando o contrato de origem, e impedindo Carter de entrar na tumba e de nela trabalhar.
O juiz dormitava; para ele, o caso estava entendido. Carter e Lady Evelyn partilhavam a sua opinião; apesar das suas apreensões, o arqueólogo constatava que o ministro dos Trabalhos públicos não tinha conseguido entravar o curso da justiça. No fim da exposição técnica do advogado, o juiz pôs uma questão que o intrigava.
— Porque fechou o senhor Carter o túmulo, antes de alertar o tribunal?
Maxwell apercebeu-se que o magistrado não tinha ouvido a sua demonstração; irritado, retomou um argumento essencial.
— O meu cliente dispunha da fruição legal do sítio e não violava a lei, portando-se dessa forma; os agentes do Governo também procederam como bandidos!
A injúria semeou a perturbação na assistência. Muito incomodado, o juiz exprimiu-se com hesitação.
— Não acha que o termo é excessivo?
— Bandidos, gatunos, ladrões: eis a verdade. A ação dos funcionários, dos soldados e dos polícias foi ilegal.
A imprensa egípcia atirou balas ardentes sobre Carter e o seu advogado, acusados de terem insultado o Egito da maneira mais vil; o povo inteiro sentia-se agredido e difamado por aqueles dois ingleses, partidários de um colonialismo na agonia.
A reação de Morcos Bey Hanna foi rápida e brutal; não só Carter não poderia nunca mais exercer a sua profissão no Egito mas ainda o ministro dos Trabalhos Públicos recusaria qualquer negociação. A carreira do descobridor de Tutankhamon tinha terminado.
Morcos Bey Hanna andava de um lado para o outro, no escritório: passava e repassava em frente de uma fotografia que o mostrava na companhia de outras personalidades egípcias, com uma triste vestimenta de prisioneiro.
— Ei-los, os bandidos! Bandidos tornados ministros!
Pierre Lacau, com um dossier na mão, deixou passar a tempestade.
— Eu, um renegado, um bandido! Eu, um ministro do Governo que os Ingleses gostariam de meter na prisão... não será a vossa opinião?
— A razão vencerá.
— Esse Carter é um doido perigoso! Encontraram finalmennte o seu sucessor?
Lacau abriu o dossier.
— Contatei vários arqueólogos americanos e britânicos, todos recusaram.
— No vosso próprio serviço, não existirão técnicos competentes?
— A tarefa é muito delicada.
— O seu adjunto, Engelbach?
— É um administrativo.
— E o senhor mesmo, senhor diretor?
— Os meus numerosos cargos proíbem-me passar vários dias dentro de um túmulo.
— Então quem?
— Ninguém se habilita a correr o risco de deteriorar o caixão; só Carter poderia conduzir a bom fim...
— Nunca! Que deixe o Egito o mais cedo possível... ou então que se ajoelhe diante de mim e me apresente as suas desculpas.
A bela união da imprensa fendeu-se. Um jornal interrogou-se sobre a conduta a manter: não seria preciso apaziguar as querelas e ocupar-se de Tutankhamon? A posição intransigente do ministro dos Trabalhos Públicos não poria em perigo as mais fabulosas riquezas arqueológicas jamais descobertas?
Carter aproveitou essa falha para solicitar um encontro com o alto-comissário, Lord Allenby, personagem austero e glacial que não tinha amparado o Governo egípcio na luta contra o seu compatriota.
— Sente-se, senhor Carter.
— Obrigado por me receber; os seus conselhos ser-me-ão preciosos.
— Não sou competente em matéria de arqueologia.
— O caso Tutankhamon ultrapassa esse domínio.
— Infelizmente, tem razão... depois da sua greve-surpresa, confrontamo-nos com uma forma de guerra.
— Eu não o desejava.
— Evitá-lo teria sido preferível, o senhor causa-me bastantes problemas.
Carter sentiu-se chocado.
— Eu? Não será, melhor dizendo, o ministro dos Trabalhos Públicos!
— Ele ocupa uma posição oficial que devemos respeitar.
— Ele tenta roubar Lady Carnarvon, recusando-lhe a atribuição de alguns objetos que, em conformidade com os costumes, a reembolsarão das despesas feitas.
— Esse tema de litígio não me diz respeito.
— Entra no quadro do meu contrato; o Serviço das Antiguidades não tem direito de o quebrar.
— Ponha um termo a esse conflito: este é o interesse geral — Carter levantou-se, estupefato.
— Não sonha! É Tutankhamon que está em jogo.
— Não parece compreender: a febre independentista arrisca-se a propagar-se a todo o país, a todo o momento. O seu faraó: torna-se um jogo político; é preciso abandoná-lo aos Egípcios.
— Seria renegar a minha vocação.
— Ela não liga bem com os imperativos políticos do momento.
— Não quero saber.
— Faz mal. Deveria ajudar-me.
— Saia.
O alto-comissário agarrou num tinteiro e lançou-o ao rosto de Carter que se afastou à justa.
— A Inglaterra trai-me.
Lady Evelyn não contradisse Howard Carter. Seguiam pela margem, ao longo do Nilo; a noite estava suave. Desamparado, o arqueólogo agarrou-se ao braço da jovem e contou-lhe a sua entrevista com o alto-comissário.
— Voltemos para Highclere — propôs ela.
— A minha presença ao seu lado seria infamante; não quero incomodá-la a título nenhum. Londres rejeitame, como o Cairo; mais vale afastá-la de um pária.
— Não exagere, Howard.
— Eu não enegreço a situação; perdi o seu pai e Tutankhamon, querem mandar-me embora do Vale, da terra que eu amo.
Ela imobilizou-se.
— Ter-me-ia perdido, a mim também?
— Receio.
— Devo regressar a Highclere, mas eu voltarei.
— Ignoramo-lo, os dois.
Os independentistas não desarmaram; Carter tornou-se a sua ovelha negra e foi objeto de ataques incessantes. Um deles foi particularmente virulento: o arqueólogo foi acusado de ter roubado das tumbas papiros dizendo respeito ao Êxodo. Pretendia-se que eles continham os verdadeiros pormenores da aventura e insistiram sobre o comportamento horrível dos judeus durante a sua saída do Egito.
O vice-cônsul da Grã-Bretanha convocou Carter; muito irritado, dirigiu-se-lhe com veemência.
— Eu quero esses papiros. A sua própria existência é um perigo para a paz! Ignora que devemos ter em conta, ao mesmo tempo, o nacionalismo egípcio e o desenvolvimento da colônia judia na Palestina? Nenhum desses textos deve ser publicado.
— Não corre qualquer risco, porque esses papiros não existem.
— Não estavam escondidos na Arca da Aliança, no interior da tumba?
— Dá demasiada atenção aos rumores mais fantasistas.
— Está a chamar-me imbecil, senhor Carter?
— Se concede o menor crédito a essa ninharia, sim.
O vice-cônsul abriu ele mesmo a porta do seu escritório.
— O alto-comissário tinha-me prevenido: o senhor é um personagem impossível. Acrescentarei: indesejável.
Com o seu andar de pato, Winlock subiu os degraus da escada que conduziam ao quarto onde Carter se tinha refugiado. No bairro pobre onde ele tinha vivido menos mal da sua pintura, reencontrava as lembranças do período mais difícil da sua existência, cheiros de cozinha, berreiro de crianças, balidos de carneiros.
O americano esbarrou com duas mulheres vestidas de preto, desculpou-se em árabe e empurrou a porta. Carter pintava; uma ruela saía do seu pincel.
— Trago más notícias, Howard.
Normalmente vivo e sorridente, Winlock parecia desesperado!
Carter preparava as suas cores.
— As autoridades egípcias e inglesas puseram-se de acordo, a tumba de Tutankhamon é-lhe definitivamente proibida. O Metropolitan não o abandonará; conseguiremos desfazer essa decisão iníqua. Mas eu ponho uma condição.
Intrigado, Carter voltou-se para Winlock.
— Tem de partir, Howard. Se fica no Egito, o ministro organizará perseguições judiciárias contra si e a Inglaterra! Consentirá?
— Partir...
— Tem de criar uma distância em relação aos acontecimentos; nos Estados Unidos, ninguém o importunará. Pelo contrário, é lá esperado como um herói.
Carter pousou pincel e paleta.
— Esse exílio é verdadeiramente necessário?
— Aqui, cometerá erro sobre erro; os seus inimigos são demasiado poderosos. Têm todos os trunfos na mão.
O arqueólogo levantou-se, titubeou como um homem bêbedo, agarrou-se ao espaldar da cadeira.
— Toda a minha vida... toda a minha vida está naquela tumba.
No fim do mês de Março de 1924, Pierre Lacau, à cabeça de uma comissão de peritos egípcios, tomou posse da tumba de Tutankhamon. O triunfo do diretor do Serviço das Antiguidades, era total; Carter tinha deixado o Egito com a certeza de que não voltaria. O ministro dos Trabalhos Públicos não esgotava os elogios a respeito de Lacau, graças a quem o seu país tinha conseguido uma grande vitória Quanto aos independentistas, faziam de Tutankhamon o campeão da sua causa; o faraó tinha amaldiçoado o coolonialista Carter, impedido para sempre de profanar os seus despojos.
Metódico e meticuloso, Lacau deu-se como missão estabelecer o inventário das descobertas efetuadas até à paragem das escavações; nesse domínio, sentiu-se como um peixe na água.
Classificar, numerar, estabelecer fichas e listas... uma espécie de gozo se apoderou dele.
Ahmed Girigar, à beira das lágrimas, tentou uma última vez opôr-se àquilo que considerava como uma violação. Foi afastado, sem contemplações e ameaçado de prisão se continuasse opor-se à lei. Silencioso, agarrou-se aos passos de Lacau e observou o manejo do novo senhor do lugar.
O diretor não menosprezou nada: objetos pertencendo ao tesouro de Tutankhamon, certamente, mas também material fotográfico, produtos químicos, conteúdo do laboratório, mobiliário dos escavadores e mesmo produtos alimentares.
A chegada de Winlock interrompeu esse labor febril. O americano correu até ao túmulo de Séti II, onde Lacau abria cada caixa antes de abandonar o esvaziamento aos seus esbirros.
— Emito um solene protesto em nome dos membros da equipe de Howard Carter e do Metropolitan.
— Protesto inútil, meu caro Winlock; aplicamos a lei.
— Não da melhor maneira.
— A maneira importa pouco. Carter conhecia o Vale na perfeição; vejo, num dos cadernos de escavações, a menção “armazém de arrumação”; onde se situa ele?
— Ignoro — Callender, Mace, Burton e os colegas, por solidariedade com Carter, recusam-se a ajudá-lo.
— O reis Ahmed é o melhor informado de todos; faça-o falar e depressa. Saberei dar-lhe o melhor conselho.
As pernas curtas de Winlock levaram-no junto de Ahmed Girigar, à saída de um percurso aberto entre as tumbas; o reis tinha-se instalado no cimo de um monte, à chapa do sol, como se quisesse ser absorvido pela luz. Winlock convenceu-o a ceder; toda a forma de resistência se tornava inútil. O reis aceitou, na medida em que sabia que um operário o trairia, mais tarde ou mais cedo, em troca de uma quantia razoável.
Alguns minutos mais tarde, um serralheiro forçava a porta da tumba nº 4, sepultura do rei Ramsés XI, onde Carter tinha entreposto mobiliário e pequenas caixas; segundo o testemunho de um guarda, vinha, de tempos a tempos, tomar uma refeição. Um dos controladores egípcios, baixo e de bigodes, parecia muito excitado; Lacau chamou-o à calma. Um inventário devia estabelecer-se sem qualquer precipitação.
Se bem que o controlador desejasse começar pelo fundo do túmulo, Lacau adotou a sua ordem habitual. A descoberta de um caderno encantou-o: com um espírito tão metódico como o seu, Carter tinha estabelecido um registro claro e preciso. Cada objeto, provido de um número e com etiqueta, era facilmente recuperado graças a esse mesmo número repetido no interior e no exterior da caixa onde ele se encontrava.
No seu foro íntimo, o diretor do serviço prestou homenagem ao seu colega caído em desgraça; teria sido digno de trabalhar ao seu lado.
O controlador egípcio, de gestos sacudidos, atacou uma pilha de caixas com a marca Fortnum and Mason; atirou duas, vazias, ao chão. Lacau pediu-lhe mais uma vez que adotasse um comportamento digno da sua função e que se ocupasse de outra coisa além de embalagens sem interesse.
— Aí — disse ele — essa caixa! — Lacau leu a inscrição “vinho tinto”; a presença de álcool devia chocar o seu subordinado.
— Ocupar-nos-emos mais tarde.
— Não, não! Abra-a o senhor mesmo, imediatamente.
Admirado, o diretor do Serviço deixou-se convencer. No interior, havia várias camadas de algodão; no coração desse estojo protetor, uma magnífica cabeça de madeira animada de uma vida intensa.
— Não figura no registro — afirmou o controlador — eis a prova que Carter é um ladrão! É preciso telegrafar imediatamente ao primeiro-ministro e desencadear um processo de culpa.
— Não é pressa. A descoberta é inesperada, mas deve existir uma explicação.
— O roubo! Carter é um ladrão!
O controlador amotinou os colegas, que retomaram a acusação até à histeria; pela primeira vez, Lacau lamentou a ausência de Carter. Detestava o homem e o seu caráter, mas não acreditou que ele fosse culpado. Evidentemente que era vítima de um golpe montado, e ele, Pierre Lacau, de conduta irrepreensível, alto funcionário respeitoso da lei, tornava-se o seu instrumento involuntário.
Carter recebeu o telegrama de Winlock em Londres, pouco tempo antes da sua partida para a América.
Redigido em código, segundo a grade que o Metropolitan utilizava quando da transmissão de informações confidenciais, não escondia nada da gravidade da situação. A cabeça de madeira já tinha sido transferida para o Museu do Cairo, o primeiro-ministro Zaghlul rejubilava. Cabia a Carter intervir, sem demora, e fornecer a Lacau as explicações indispensáveis antes que o caso se envenenasse.
Agoniado, Carter teve vontade de atirar a mensagem para o cesto dos papéis e de se refugiar no silêncio.
Não tinha ele já perdido tudo? Os seus inimigos queriam agora destruir a sua honorabilidade; um colonialista ladrão lançado ao pasto da opinião pública... que melhor explicação haveria para justificar ter sido posto de parte? Não, era preciso lutar. Enquanto lhe restasse um sopro de vida, e mesmo se a tarefa parecesse impossível, tentaria recuperar o paraíso perdido.
Rezou à alma imortal de Tutankhamon, retirou da sua veneração do faraó ressuscitado uma força nova.
Renunciar seria trair; quer vencesse ou não, jamais desesperaria. Separar-se do rei com quem tinha sonhado desde a sua descoberta do Egito, não seria a mais abominável das cobardias? Se numerosos seres se interrogavam em vão acerca do sentido da sua vida, Howard Carter tinha encontrado a resposta para essa pergunta: servir Tutankhamon, servir o Egito, servir a humanidade oferecendo-lhe o poder do ouro divino através da figura imperecível de um ser de luz.
Com calma, redigiu a resposta. A cabeça de madeira esperava na tumba Nº 4 ser repertoriada, numerada e registrada na lista oficial que o escavador não tinha nem levado nem dissimulado. Precisou que Callender e ele tinham recolhido no corredor de acesso fragmentos da decoração pintada, soltos da cabeça, e que esta exigiria uma restauração muito atenta.
Na secretária de Pierre Lacau, havia quatro documentos lado a lado. O primeiro era o artigo de Bradstreet, um dos mais duros adversários de Carter, publicado no New York Times, o jornalista proclamava a sua satisfação por ter contribuído para a queda de um arqueólogo vaidoso, hostil à liberdade de imprensa. Quem quer que se lhe opusesse, teria a mesma sorte.
O segundo, a anulação oficial da concessão concedida a Lady Carnarvon e a Howard Carter, ato administrativo legal que o tribunal misto do Cairo não podia pôr em causa.
O terceiro, o telegrama de Howard Carter.
O quarto, a redação da nova concessão, devida à pena de Morcos Bey Hanna; o ministro dos Trabalhos Públicos não tinha consultado Pierre Lacau e entendia controlar de maneira ditatorial a atividade arqueológica no Egito, sem se preocupar com a opinião do diretor do Serviço das Antiguidades.
Um fantoche entre as mãos de um político: eis o que foi Lacau. Obtendo a cabeça de Carter, colocava a sua no cepo.
À chegada do vapor Berengária a Nova Iorque, a 21 de Abril de 1924, Howard Carter compreendeu que mudava de mundo. Festejado e adulado, como uma grande vedete, não dispunha de um dia, sequer, de repouso. Conferências, recepções, jantares mundanos, entrevistas, encadearam a um ritmo desenfreado.
A América inteira queria ver e ouvir um dos heróis dos tempos modernos, o self-made man que tinha decifrado o maior mistério da Egitologia.
Na sala de gala do Waldorf Astoria, Carter recebeu o seu primeiro título honorífico: membro honorário do Metropolitan Museum. A entrega do diploma foi saudada por um trovão de aclamações. Alguns pensaram que Carter só podia ser americano, e o rumor, depressa difundido na opinião geral, resistiu aos desmentidos.
Conferencista apaixonado e apaixonante, Carter utilizava, o melhor possível, as esplêndidas fotografias de Burton; sem procurar efeitos oratórios, enfeitiçava a assistência; o calor da voz, a qualidade da informação, os esplendores que mostrava, arrastavam o auditório para o Egito, para o Vale dos Reis e o interior da tumba de Tutankhamon. Sabia transmitir a experiência vivida no terreno e fazer partilhar os momentos mais exaltantes da sua epopéia; como um atleta, gastava a sua energia sem contar, e terminava as suas conferências esgotado. Nova Iorque, Filadélfia, New Heaven, Baltimore, Worcester, Boston, Hartford, Pittsburgh, Chicago, Cincinnati, Detroit, Cleveland, Columbia, Búfalo, Toronto, Montreal, Otava... o novo “doutor honorário” da universidade de Yale tinha atravessado o Novo Mundo.
Como lembrava o silêncio do Vale, a solidão da sua casa de apoio e as doces horas de meditação junto do cimo do Ocidente! Agora, apenas voltava as páginas de variedades de uma existência artificial, privado do contacto quotidiano com a sua terra e do encontro tão esperado de Tutankhamon. A sua única esperança era que a celebridade americana modificasse a atitude das autoridades egípcias; a sua prestação no Carnegie Hall, a 23 de Abril, perante mais de três mil pessoas, marcou o apogeu da sua digressão. Convidado para a Casa Branca, falou de Tutankhamon a um pequeno círculo de privilegiados na presença do Presidente dos Estados Unidos, Calvin Coolidge. Este último, com surpresa do conferencista, conhecia bastante bem o seu trabalho; Carter pôs-se a sonhar que o homem mais poderoso do mundo interviria em seu favor.
Perdeu as esperanças, ao receber o texto final da concessão que o Ministério dos Trabalhos Públicos tinha redigido. Carter era nele apresentado como um perigo para a ciência; ao abandonar o túmulo, tinha cometido um ato iníquo que justificava a atitude do Governo. O próprio corpo do documento surpreendeu-o, contudo, porque o seu regresso como diretor de escavações, colocado sob o controlo estrito do Serviço das Antiguidades, era aí encarado; mas o conteúdo das cláusulas tornava-o impossível. Uma vez mais, Morcos Bey Hanna portava-se como o mais hábil dos batoteiros, de forma que a responsabilidade recaía apenas sobre Carter.
O Ministério formulava secamente as suas exigências: todos os objetos seriam propriedade do Estado; Carter não poderia contratar nenhum colaborador sem a autorização do Governo, que constrangia o arqueólogo a empregar cinco estagiários egípcios; só o Governo daria autorizações de visita; Carter e Lady Evelyn deveriam redigir os relatórios científicos que o Serviço das Antiguidades examinaria. Por último, o ministro esperava duas cartas de desculpas, uma de Lady Carnarvon, outra do próprio Carter, que se comprometia a não tornar a insultar o Governo egípcio e a dobrar-se às suas decisões.
— Ora bem, senhor Lacau, onde estamos nós?
— Em parte nenhuma, senhor ministro. — Morcos Bey Hanna deu um murro na mesa.
— Que significa isso?
— Ninguém quer ou pode substituir Howard Carter.
— Inverosímil.
— Contudo, é a verdade.
— Que solução propõe?
— Tornar a chamar Carter. Só ele é capaz de soltar o caixão sem partir nada.
— Examinou as anotações dele?
— Li-as e reli-as; provam a sua competência, universalmente reconhecida. Conhece as armadilhas da tumba e navega no meio das dificuldades com um instinto muito seguro.
O ministro encarou Lacau com um olhar espantado.
— Não está a fazer a apologia de um homem que odeia?
— A objetividade científica obriga-me a isso; é a razão porque lhe fiz chegar as suas exigências, esperando que se conforme com elas.
— Nem pensar!
— Desprezamos um fator essencial: Carter ama o Egito mais do que ele mesmo. A tumba de Tutankhamon é a sua razão de viver.
Carter permanecia um brilhante conferencista mas, ao sair das suas prestações, fechava-se sobre si mesmo e refugiava-se no seu quarto de hotel. As notícias provenientes do Cairo roíam-no; a 30 de Abril, o Parlamento decretara que um orçamento importante, perto de 20.000 dólares, seria consagrado à continuação das escavações na condição de que Carter e a equipe do Metropolitan Museum fossem excluídos. Contudo, nenhum arqueólogo se apresentava ao ministro a fim de obter o mais belo posto com que um egiptólogo pudesse sonhar.
A partida parecia definitivamente perdida; fiel ao juramento que tinha feito a si mesmo, Carter continuou a luta num outro terreno: redigir uma relação detalhada dos acontecimentos, com a intenção de a publicar e de estigmatizar o maquiavelismo de Lacau e do Governo egípcio. O documento demonstraria que tinha sido vítima de indivíduos sem escrúpulos, unicamente preocupados com as suas carreiras.
No Mauritânia, o paquete que o trouxe a Inglaterra durante o Verão de 1924, Carter renunciou à publicação do seu panfleto; o rastilho não faria senão aumentar a agressividade dos seus inimigos.
O Egito fazia-lhe cada vez mais falta; com o tempo, a ferida agravava-se. A travessia não lhe deu nenhum prazer, tanto cansaço esmagava-o.
O seu regresso não suscitou nenhuma reação da imprensa britânica; à efervescência americana sucedeu a indiferença londrina. Carter partiu rapidamente para Highclere onde Lady Evelyn foi a primeira a acolhêlo.
— Li os jornais americanos; obteve um grande sucesso por lá.
— Irrisório seria mais certo.
— Não se subestime, Howard; tornou-se uma celebridade.
— Glória inútil, uma vez que não posso trabalhar no Egito.
— O seu verdadeiro amor...
Carter não respondeu. Seguiu a jovem, que o introduziu na biblioteca onde a mãe lia poemas de Shakespeare. Lady Almina parecia nervosa.
— O Egito está cada vez mais intransigente; pensei muitas vezes no meu marido e em si mesmo. Que réplica dar a este Governo iníquo?
— Ceder.
— O senhor, ceder! Em que ponto?
— Sem si não posso agir; o seu acordo é-me indispensável. — Lady Almina parecia petrificada.
— O meu pai teria aceitado esse comportamento? — indignou-se Lady Evelyn.
— Não teria sacrificado vantagens materiais a fim de ir até ao termo da sua pretensão?
— Seja preciso — exigiu Lady Almina.
— Terá de renunciar a qualquer exigência sobre os objetos. Nenhum deles sairá do Egito.
— Garantiram-nos uma indenização? A minha fortuna não é inesgotável. Prossiga.
— A senhora e eu devemos proclamar que não intentaremos nenhuma ação judiciária contra o Governo.
— Por outras palavras, entregamo-nos a ele de pés e mãos atados.
— Exatamente.
— Que nos concederá ele?
— A possibilidade de retomar o trabalho e de soltar o sarcófago?
— Preciso de refletir.
O fim do ano foi chuvoso e triste. Durante os seus longos passeios no domínio, Carter e Lady Evelyn só trocaram algumas poucas palavras; as suas conversas incidiram sobre Lord Carnarvon, cuja presença perseguia cada bosque. Carter não se defendeu; mesmo que a mulher amada desaprovasse a sua posição, não tentou convencê-la. Não sabia ela, desde o primeiro momento, que ele não podia sobreviver sem o Egito?
A 13 de Setembro, Lady Almina enviou uma carta a Sua Excelência Morcos Bey Hanna.
Aceitava os termos da sua nova concessão, mas lembrava que o seu defunto esposo, durante mais de dez anos, financiara escavações improdutivas com a esperança de ser recompensado dos seus esforços, como qualquer outro arqueólogo; as instituições científicas não recebiam também alguns objetos de valor para lhes agradecer dos seus investimentos? Lady Almina pedia ao ministro que encarasse uma solução eqüitativa, depois do exame do conteúdo total do túmulo de Tutankhamon.
Informou Carter da sua diligência, junto da chaminé principal do castelo, à hora do vinho do Porto; os grandes cedros-do-Líbano dobravam-se sob um vento violento. Sobre a tumba de Carnarvon, um pássaro morto oferecia o seu cadáver a uma chuva gelada.
A carta digna e circunspeta de Lady Almina Carnarvon mergulhou Morcos Bey Hanna na confusão; zangado com Lacau, detestado pela maioria dos seus colaboradores por causa do seu autoritarismo, o ministro dos Trabalhos Públicos era, por sua vez, vítima de uma campanha de imprensa que começava a desagradar ao primeiro-ministro. A opinião não admitia que o sucessor de Carter ainda não tivesse sido designado. A ação subterrânea de Lacau, depois de ter curvado a cabeça sob o jugo do Ministério, revelou-se de uma perfeita eficácia: nenhum profissional queria correr o risco de deteriorar o mais perfeito dos sarcófagos. Nem a segurança, nem a independência de uma equipe científica podiam ser garantidas.
Morcos Bey Hanna não esperava a reação da aristocrata e a submissão de Carter; esperava que o arqueólogo continuaria a atacá-lo e a desconsiderar-se a si mesmo. Agora, o ministro arriscava-se a perder a posição.
Carter aborrecia-se em Londres.
Segundo Lady Carnarvon, a resposta do Ministério não tardaria. Tinha-se enganado: havia mais de dois meses, nenhuma carta oficial o autorizava a voltar ao Vale. Carter interrogou o carteiro todas as manhãs, desolado de ele não lhe trazer o que esperava com tanta impaciência.
O político fingia que não ouvia, a despeito de várias intervenções oficiosas e de protestos formulados na América, Europa e mesmo no Egito. Carter tinha pago caro os seus erros; o tempo do perdão tinha chegado. O mundo inteiro desejava conhecer o último mistério de Tutankhamon; só o arqueólogo inglês possuía as competências necessárias para dialogar com o faraó.
Morcos Bey Hanna não saiu do seu silêncio.
O telefone tocou às sete horas, acordando Carter em sobressalto. Reconheceu a voz de Lady Evelyn.
— Leu o jornal?
— Ainda não.
— Despache-se.
— É assim tão importante?
Ela tinha desligado.
Carter vestiu-se à pressa e comprou todos os matutinos. O primeiro-ministro Zaghlul acabava de se demitir, arrastando na sua queda os membros do seu Governo. O bravo partidário da independência não tivera escolha; depois do assassínio de Sir Lee Stack, governador do Sudão, numa rua do Cairo, a Grã-Bretanha não se tinha embaraçado com compromissos: O Exército de Sua Majestade tinha tomado posse do país e proclamado a lei marcial. Zaghlul não podia admitir aquela invasão; Morcos Bey Hanna, tão anglófono como ele, tinha-o seguido. Carter circundou o artigo que dava o nome do novo primeiro-Ministro: Ahmed Pachá Ziuar, um dos seus mais velhos amigos egípcios!
Como o Inverno do Cairo lhe parecia suave! No Egito, depois de 15 de Dezembro, Carter renascia. Mesmo a barulhenta capital lhe aparecia como um oásis de paz.
O país tinha mudado. A população, tão hostil aos Ingleses, pedia-lhe agora que a defendesse contra os terroristas que matavam vítimas inocentes e espalhavam o medo nas grandes cidades; o partido Wafd e os nacionalistas, dantes elevados aos píncaros da lua, eram agora ultrajados. Quando se dirigia ao Serviço das Antiguidades, Carter cruzou-se com Ahmed Pachá Ziuar. Os dois homens abraçaram-se.
— Há quanto tempo estás no Cairo, Howard?
— Desde esta manhã. És o meu primeiro encontro, senhor ministro.
— A bênção de Tutankhamon, meu amigo; a sorte virou a teu favor. Zaghlul e os seus fanáticos fizeram-te sofrer as piores injustiças. Tenho consciência disso; conta comigo para te ajudar. Breve estarás de volta ao teu túmulo.
Carter julgava sonhar.
— Ahmed... se soubesses...
— Não digas nada, as maiores felicidades são mudas.
O poderoso Lord Allenby considerou que o caso Tutankhamon levava uma boa volta. Os nacionalistas não eram, certamente, eliminados; mas já não eram tão virulentos que desacreditassem Carter. O prestígio da Grã-Bretanha exigia que este retomasse as suas escavações. Além disso, a economia da região de Luxor dar-se-ia muito bem com um relançamento do turismo do Vale dos Reis; logo que o arqueólogo se pusesse ao trabalho, os turistas afluiriam.
Lord Allenby tomou contacto com o novo primeiro-ministro egípcio, vendia-lhe as qualidades de Carter e não lhe escondeu as suas críticas durante o encontro com Lacau onde a sua má-fé foi flagrante. Amed Pachá Ziuar desconfiou, amigo da Grã-Bretanha, ele era, antes de tudo, um egípcio. Competia-lhe restabelecer o equilíbrio sem se debruçar demasiado para um lado ou para outro. Assim, pediu ao seu amigo Howard Carter que lhe escrevesse uma carta na qual precisaria as suas intenções.
Admirado, desiludido, o arqueólogo dobrou-se a essa exigência. Um pensamento horrível atravessou-lhe o espírito: O primeiro-ministro não começava também a traí-lo? Tendo atingido um posto maior, porque se arriscaria a perder a causa de um faraó morto há numerosos séculos?
Ahmed Pachá Ziuar aceitou encontrar-se com Carter no Mohamed Ali Club, num ambiente alcatifado, longe de ouvidos indiscretos.
— Recebeste a minha carta. Repito-te que a minha única intenção é trabalhar o mais depressa possível no túmulo de Tutankhamon. O resto está esquecido.
— Fica tranqüilo; o teu caso está em bom caminho. Resta um problema minúsculo: seria bom renunciar de maneira definitiva aos teus direitos sobre o tesouro. Se Lady Carnarvon se manifestasse por escrito, num documento de caráter oficial, poderíamos avançar mais depressa. O povo não deve ter a impressão de que está a ser despojado.
— O direito egípcio não concede ao escavador uma retribuição justa?
— Decerto, decerto... mas, no atual clima, não podemos tomar a lei à letra.
— Lord Carnarvon mostrou-se de uma grande generosidade.
— Ninguém o nega; mas o teu inimigo mais feroz não desarma.
— Pierre Lacau?
— Ele mesmo; é um personagem estranho. Deseja o teu regresso mas não o aceita; desconfia dele.
O primeiro-ministro levantou-se.
— Tenho de me ir embora... tenho uma reunião importante. Primeiro, tenho uma notícia interessante para te comunicar; ninguém tocou na tumba. Se tu aceitasses ajudar um pouco Lacau no museu, a administração ficar-te-ia agradecida.
Lacau e Carter não apertaram as mãos; Lacau porque não lhe apetecia; Carter porque não era um costume inglês.
— Devo confessar que a sua ajuda me seria preciosa, meu caro Carter.
— Em que domínio?
— Desembalar comigo o conteúdo de algumas caixas.
— A tarefa é demasiado árdua para os membros do serviço?
— Ora bem... tivemos um acidente. — Carter ficou vermelho.
— Explique.
Lacau hesitou; engoliu a saliva e confessou:
— O véu de linho que cobria o sarcófago foi destruído.
— Como ousa...
— Estou desolado. Tomei medidas para que esse incidente não se repita mais.
— Medidas! Mostre-me as caixas.
Furioso, Carter constatou que os agentes do serviço tinham misturado os objetos e não tinham conseguido tornar a montar corretamente os carros rituais de madeira dourada.
— Uns analfabetos teriam trabalhado melhor — resmungou ele.
— Prometeu não emitir mais nenhuma crítica — lembrou Lacau.
Carter calou-se; foi-lhe preciso reparar erros e negligências. Antigamente, teria escrito um relatório de várias páginas contra Lacau, o serviço e o Governo.
Em 13 de Janeiro, a sua paciência foi recompensada. Com um ar torcido, Lacau entregou-lhe um envelope selado; Carter meteu-o na algibeira direita e saiu do Museu como se não ligasse importância nenhuma ao gesto do diretor. Forçou-se para não correr, escondeu-se atrás da estátua de Mariette e abriu a carta.
O texto era fabuloso: a autorização para prosseguir a escavação do túmulo de Tutankhamon.
A 25 de Janeiro de 1925, Pierre Lacau estendeu as chaves do túmulo de Tutankhamon a Howard Carter.
Os dois homens desafiaram-se com o olhar sob o sol do Vale dos Reis, depois, Carter abriu o cadeado e tirou a grade. Seguido do diretor, desceu o corredor, atravessou a antecâmara e penetrou no quarto funerário onde o faraó, com os olhos abertos, dormia um sono de ouro.
Carter deslocou-se sem barulho e retomou posse lentamente do seu domínio, onde nada tinha mudado. A magia do lugar apoderou-se do seu espírito; contemplou os frescos das exéquias e debruçou-se sobre o rosto pacificado, de onde qualquer traço de morte tinha desaparecido.
— Triunfa, Carter; eu também ganhei. A partir de agora, os caçadores de tesouros deixarão de ter direito de cidadania no Egito. Não tornarão a pilhar as riquezas dos antigos. A história só se lembrará de si, Carter; eu, instaurei uma legislação constrangedora de que tenho orgulho.
— Não o compreendo, senhor diretor.
— Estou feliz por estar aqui; é o seu verdadeiro lugar.
— Ajudou-me, não é verdade? — Lacau afastou-se.
— Fique com Tutankhamon; ele esperava-o.
A equipe tornou a pôr mãos à obra com uma paixão intacta; Callender, fiel entre os fiéis, mexeu de novo, com entusiasmo, a sua pesada carcaça. O fotógrafo Burton e o químico Lucas retomaram as suas atividades. Todos lamentaram a ausência de Mace, cuja pouca saúde fazia recear o pior; ninguém fez alusão à demasiado famosa maldição.
Antes de se ocupar do sarcófago, Carter classificou e inventariou. Passou a maior parte do seu tempo no laboratório onde preparou com minúcia a seqüência dos trabalhos, estabelecendo o seu catálogo. Os dramas cessaram. Quando o Governo o chamou, Carter abriu o túmulo e fê-lo visitar. A imprensa, sempre atenta, não o criticou. A equipe arqueológica efetuou o seu trabalho num clima sereno; a calma do Vale, ancorada na eternidade, tornou os gestos lentos e os pensamentos medidos. Se bem que permanecesse
uma das grandes vedetes da atualidade, Tutankhamon não continuou a ser matéria para escândalo; os jornalistas admitiram que a precipitação seria catastrófica.
Lady Evelyn consentiu em tornar a ver Carter, durante o Verão de 1925. Passearam junto do Tamisa, nas avenidas de Cambridge, em Hyde Park. Semelhantes a dois adolescentes, evocaram a felicidade que nunca conheceriam. Ela tinha vinte e cinco anos, ele cinqüenta e dois.
— Não quero saber da sua idade; freqüentando Tutankhamon, não se torna um eterno rapaz?
— Apanhei muitas pancadas e fui traído com muita frequência; amanhã, serei um velho.
— Eu também envelhecerei!
— É-me proibido arrastá-la para um caminho tão perigoso.
— É egoísta, senhor Carter!
— Tem razão; vê-la triste ao meu lado, ser-me-ia insuportável.
— Não sou um sonho, Howard, mas uma mulher viva.
— Conhece o meu domicílio: a tumba de Tutankhamon.
— Como poderia lutar contra um faraó?
— Não conheço o seu segredo; este Outono, estaremos frente a frente. Preciso do seu amor, Eve; para mim, a vida começa amanhã.
Ahmed Girigar deslocou a pesada barreira de madeira que fechava a entrada do laboratório; com orgulho, mostrou a Carter que nenhum roubo tinha sido cometido. Durante o Verão, apesar de um calor insuportável, homens de confiança tinham feito boa guarda. Desde a chegada do escavador, desimpediram o acesso à tumba; soltaram a massa de cascalho acumulada em frente da escada, a fim de proibir qualquer tentativa de pilhagem. Em dois dias, a última morada de Tutankhamon ficou de novo acessível, depois de ter sido tirada a vedação de traves de carvalho, tapando a entrada do corredor, e aberta a porta de acesso da antecâmara.
Cada vez que se metia pelo corredor descendente, Carter sentia uma emoção tão intensa que mal era capaz de avançar. Forças invisíveis moravam naquele santuário; a sombra das divindades egípcias e do rei transfigurado conservavam todo o império sobre ele. Carter ficou muito tempo só, na presença de Tutankhamon; pediu ao invisível que lhe concedesse o tempo necessário para restituir ao mundo a sabedoria daquele monarca imortal.
Quando voltou a subir da cave, Callender teve medo.
— Parece perturbado... quer uma bebida?
— Bastar-me-á a sua amizade.
— Está satisfeito com o estado da tumba?
— Os inseticidas atuaram bem; não há nada danificado e não notei qualquer rasto de parasitas, à exceção de alguns peixes de prata.
— Tomou alguma decisão?
— Torne a ligar a instalação elétrica ao gerador central. Amanhã, 10 de Outubro, às 6 e 30, abriremos o caixão dourado.
O sarcófago foi iluminado por poderosos projetores. Cada um perguntava a si mesmo, continha um caixão ou vários? Carter inclinava-se mais para a segunda solução, mas um pormenor o contrariava: o tamanho do caixão coberto com uma folha de ouro. Os seus
Carter decidiu utilizar as pegas de prata de origem; pareciam sólidas e suportariam o peso da tampa, fixa ao caixão por dez linguetas de prata maciça que encaixavam em buracos. A primeira dificuldade consistia em extrair os grandes pregos de prata com cabeça de ouro, que serviam de fixação. A delicada operação resultou, salvo num lugar: a cabeça. Esse teve de o serrar.
Callender procedeu à instalação de um guindaste, composto de dois blocos de três roldanas com freio automático; quando as correias ficaram no seu lugar, Carter deu ordem de começarem a levantar a tampa, com uma infinita lentidão. Não era autorizado qualquer engano. Numa atmosfera de profundo recolhimento, a tampa levantou-se.
Apareceu um segundo caixão, embrulhado numa mortalha de linho; por cima, havia grinaldas de folhas de oliveira e de salgueiro, pétalas de lótus azul e centáureas. Uma coroa floral, símbolo do ser reconhecido justo pelo tribunal do outro mundo, ornava a fronte do rei.
Tirado o pano de linho, Carter contemplou uma obra-prima de uma incrível beleza; o segundo caixão era a própria perfeição. Representava o rei em Osíris, coberto com uma folha de ouro, incrustada de massa de vidros às cores de lápis-lazúli, de turquesa e de jaspe. O rosto, doce e calmo, era ao mesmo tempo jovem e sem idade.
— Não seria a esposa de Tutankhamon que depusera, ela própria, aquelas flores sobre a mortalha, como última prova do seu amor? O brilho e a magnificência do ouro aliavam-se à fragilidade daqueles vegetais secos, cuja cor não tinha desaparecido completamente. Tinham-se apagado três mil anos.
Lucas examinou os indícios de perto.
— Se me fio no período de floração da centáurea e no da maturidade da mandrágora e da dulcamara, concluirei facilmente que Tutankhamon foi sepultado entre meados de Março e fins de Abril, feitas as contas dos sessenta dias rituais da mumificação.
A análise do cientista quebrou a contemplação.
— É inquietante — observou Callender — aqui e ali... e ali, marcas de umidade. Algumas incrustações estão a ponto de se soltar. Talvez a múmia real se tenha conservado mal?
A ansiedade apoderou-se de Carter; notou que o segundo caixão estava tão perfeitamente encaixado no primeiro que não se conseguia passar o dedo mindinho entre eles.
— Como separá-los sem os quebrar?
Quando Burton acabou o seu trabalho de fotógrafo, Carter aplicou o único método que se impunha: tirar primeiro os caixões do sarcófago. A operação foi muito mais difícil do que o previsto.
— O peso é enorme disse — Callender, coberto de suor.
— Os dois caixões são pesados.
— Não a esse ponto... O segundo deve conter uma quantidade enorme de jóias.
O caixão exterior foi tornado a descer ao sarcófago, o segundo permaneceu suspenso, sustido por dez fios de cobre de uma grande solidez; Burton fotografou as diferentes fases da manobra.
Quando o Osíris dourado foi colocado sobre uma placa de madeira, Carter tirou a tampa.
Apareceu o terceiro caixão, embrulhado numa mortalha de linho vermelho; no peito, um colar de flores. Só o rosto estava destapado.
— Impossível, é impossível... é de ouro maciço!
Um incrível bloco de ouro, de
Carter pensava nos tesouros inimagináveis que o Vale devia conter, antes da passagem dos ladrões: Tutankhamon era o único que escapara, o testemunho de uma época luminosa onde as mais fabulosas riquezas deste mundo eram oferecidas ao além, a fim de abrir as portas e vencer a morte.
O rosto de ouro estava coberto de uma camada escura; Lucas identificou os ungüentos.
— Aqui está a causa da umidade.
Quando Carter tocou no cabeção de flores e de faiança azul, ele desagregou-se entre os seus dedos. Aflito, recuou.
— Não toquemos em nada! A obra é muito mais frágil do que parece.
Callender reconfortou-o.
— Mas é preciso atingir a múmia...
— Deixe-me refletir.
Carter fechou-se na casa de apoio. Agora tinha medo. Medo de ir demasiado longe, de violar um mistério que devia ser preservado. No princípio do encontro com Tutankhamon, não se contentaria ele em venerar a maior maravilha moldada pela mão do homem? Tomou consciência da vaidade da sua posição; nem a sua equipe , nem o Governo lhe permitiriam parar pelo caminho. Lord Carnarvon já não estava presente para o aconselhar, Lady Evelyn escolhera morar em Highclere. Estava só perante o faraó que ele procurava havia tantos anos.
Carter sentia-se miserável e indigno. Com que direito ousaria perturbar o seu repouso? A curiosidade tornava-se, aos seus olhos, o mais grave dos vícios, nenhuma ciência justificava a ruptura de uma eternidade.
A experiência ultrapassava-o. Se se demitisse, a quem caberia a direção das escavações? O Egito e a Grã-Bretanha não suportariam um novo prazo; o mundo inteiro estava impaciente.
Vencido, Carter soube que não tinha outra escolha.
Depois de longas discussões com os colegas, Carter tomou uma série de medidas a fim de soltar o segundo sarcófago do terceiro. Salvar as incrustações foi a tarefa prioritária; depois de ter tirado a poeira e limpo a superfície com água quente misturada com amoníaco, produto cujo nome derivava do deus egípcio Amon, Carter tornou a cobri-la com uma camada de cera quente que aplicou com o pincel. Arrefecendo, a cera fixaria as incrustações de maneira satisfatória.
Uma outra dificuldade parecia quase inultrapassável, os ungüentos solidificados colavam os dois caixões um ao outro. A substância escura estava tanto mole como pastosa; quando a aqueciam, exalava um perfume penetrante, à base de resina. De certo se conseguiriam serrar oito pregos de ouro que impediriam a dissociação dos sarcófagos; mas esse sacrifício era insuficiente. Máscara e múmia continuavam coladas. Só um forte calor seria eficaz; várias horas de aquecimento a 65 graus não deram qualquer resultado. Uma temperatura mais forte não destruiria a madeira coberta de ouro? Carter teve a idéia de o proteger com placas de zinco e coberturas molhadas.
Colocadas sob caixões virados sobre cavaletes, candeeiros de parafina soltaram um calor de cerca de 500 graus.
Decorreram três horas.
— Eles mexem! — gritou Callender.
Carter não tinha parado de umidificar a cobertura que a máscara de ouro protegia.
— Sim, ganhamos! — exclamou Burton, entusiasmado.
— Parem! — ordenou Carter.
Constatou, com horror, que algumas tiras de faiança se soltavam da parte de trás da cabeça.
Depois de uma longa pausa e de uma intervenção do químico o segundo caixão elevou-se para fora da sua ganga. A 28 de Outubro, pela manhãzinha, a máscara de ouro tinha-se soltado; Vivo está o teu rosto, proclamava um texto gravado no metal precioso, o teu olho direito é a barca do dia, o teu olho esquerdo é a barca da noite. Ao longo do sarcófago, uma outra inscrição revelava que Tutankhamon, justo de voz, tinha-se tornado luz no céu e mestre de vida, para a eternidade.
A máscara de ouro oferecia o rosto mais puro alguma vez inscrito num material; faraó já não tinha idade.
Situado fora do tempo pela mão de um escultor de gênio, Tutankhamon tinha-se tornado um deus com barba de lápis-lazúli. O sorriso do além traduzia um total desapego: a alegria transfigurava os traços pacificados.
Callender terminava os seus cálculos.
— Incrível... ele só, o último sarcófago deve pesar 1100 quilos de ouro puro!
— Mais incrível ainda — observou Burton —, o leito de madeira dourada, que suportava os três caixões, não se deslocou! No domínio da resistência dos materiais, encontramos os nossos mestres.
Carter pediu silêncio.
— Este ouro que brilha na noite da tumba — declarou ele com uma voz grave — dedico-o à memória do meu amigo Lord Carnarvon, que morreu na hora do seu triunfo.
O único faraó do Vale enterrado num caixão de ouro... Carter não podia ainda acreditar. Quando uma existência oscilava assim no milagre, perdia os seus habituais pontos de referência.
Arqueólogo, egiptólogo, escavador, essas palavras já não tinham nenhum significado. O seu destino tinha-se cumprido ao serviço de um rei morto havia três mil anos e ressuscitado na luz do ouro dos deuses. Daí em diante, o mundo não seria mais o mesmo. Quantas dezenas de anos seriam necessárias para publicar, estudar e compreender o tesouro de Tutankhamon. O faraó, por meio dos textos e dos objetos que o acompanhavam na eternidade, transmitia a sabedoria do antigo Egito e a chave dos seus mistérios. Carter tivera o privilégio de os viver no terreno, de comungar com o instante inefável da descoberta; os outros que prossigam a sua obra.
— O senhor Lacau acaba de chegar — anunciou Ahmed Girigar.
Carter, vestido com um blazer e umas calças de flanela com prega impecável, ajeitou cuidadosamente o lenço branco de peito. O diretor do Serviço das Antiguidades, elegante como de costume, estendeu-lhe uma mão que o inglês acedeu em apertar.
— Magnífico, meu caro Howard. Eu venho do túmulo... é prodigioso! O senhor é o maior, tenho de admiti-lo.
— Tutankhamon, o pequeno rei esquecido, é o maior dos faraós; amanhã, esquecerão o meu nome e o seu será popular pelos séculos dos séculos.
— Talvez... mas a múmia?
Carter propôs a Lacau um bolo seco que ele mesmo cozera no forno; o francês recusou.
— Quais são as suas intenções, senhor diretor?
— Parece-me que o Museu do Cairo...
— Não. Seria um erro. Nunca supliquei; hoje, peço-lhes para deixar Tutankhamon repousar no seu sarcófago. Quando tivermos examinado a múmia, dê ordem para que ela volte para aqui, para esta tumba, e que não torne a sair.
— Porquê esse voto?
— Este santuário é um pólo de energia viva.
— Estará a tornar-se místico, Howard?
— Não mais do que o senhor; conhece os textos sagrados melhor do que eu. Do corpo solar de ressurreição emanam forças invisíveis que espiritualizam o mundo e alargam o coração dos seres. O Egito escolheu este lugar para lá esconder o mais essencial dos seus tesouros; não sejamos destruidores e respeitemos a sua vontade.
Carter olhou direito nos olhos o seu inimigo da véspera.
— Suplico-lhe.
Lacau e o Governo tinham dado o seu consentimento. Tutankhamon não deixaria a sua morada de eternidade, mesmo se as peças do tesouro estivessem expostas no Museu do Cairo. Carter fumava um último cigarro antes de adormecer, quando ouviu um barulho de passos precipitados no caminho de terra.
Ahmed Girigar bateu à porta.
— Venha depressa! Um atentado!
Vestido à pressa, Carter correu para junto do reis cujos homens tinham amarrado um rapaz alto de testa estreita e com o nariz semeado de veias escarlates. Não cessava de se debater e de chamar o responsável pelo desastre.
— Devo ser eu — sugeriu Carter. O rapagão acalmou.
— Enterrou a múmia de Tutankhamon?
— De certo modo.
— Então escute a voz de Deus e dos anjos! É preciso destruí-la imediatamente! Senão, espalhará a peste no planeta! Tentei penetrar na tumba fazê-la em pedaços, mas esses infiéis impediram-me; livre-me!
— Receio que seja impossível; estou do lado desses infiéis.
A notícia espantou o mundo inteiro: Howard Carter, atingido pela maldição de Tutankhamon, acabava de morrer. O interessado ficou, ele próprio, bastante admirado e teve de organizar uma conferência de imprensa a fim de trazer um desmentido ruidoso. Um jornalista, mais céptico do que os colegas, pediu-lhe para puxar pelo seu bigode, para se assegurar que não se tratava de um postiço.
Ao fim da conversa, um personagem inquietante, vestido de preto e com um comprido casaco roxo sobre o qual brilhavam alfinetes de peito prateados, aproximou-se de Carter.
— Posso fazer-lhe uma proposta?
— Escuto-o.
— Sou o representante de uma organização religiosa que conta vários milhares de membros, na Europa e nos Estados Unidos; apreciamos muito o seu trabalho.
— Estou muito lisonjeado.
— Uma vez que terminou, é a nossa vez de entrar em cena.
— De que maneira?
— A múmia não lhe será de nenhuma utilidade; é por isso que lhe propomos comprá-la. O seu preço será o nosso.
— Tutankhamon não tem preço há muito tempo; quem poderia avaliar o curso do ouro dos deuses? Estou desolado, caro senhor: uma dezena de seitas já me ofereceram grandes quantias que eu recusei.
— Dirigir-me-ei ao Governo.
— Não se prive; saiba, contudo, que ele próprio repudiou propostas vantajosas emanando de potências estrangeiras. Tutankhamon só pertence à eternidade.
No começo de 1926, treze mil visitantes precipitaram-se sobre o Vale e admiraram a sepultura e o faraó.
As câmaras filmavam sem descanso, as rotativas funcionavam em pleno, a recente telegrafia sem fios fazia furor; Tutankhamon eclipsava as outras vedetes internacionais e agarrava-se à primeira página de todas as revistas.
Carter não se mostrava; tinha-se refugiado no seu laboratório a fim de que, dentro dele, restaurasse os caixões interiores e a máscara de ouro que breve seriam encaminhados para o Museu do Cairo. Uma carta de Lady Almina tinha-lhe dado a saber que a coleção de Lord Carnarvon acabava de ser vendida ao Metropolitan Museum de Nova Iorque com grande prejuízo do British Museum, que se considerava intrujado e acusava Carter de ter traído o seu país.
O seu país! O seu país... estava ali, no coração daquele Vale que tantos curiosos atravessavam a correr, ao mesmo tempo maravilhados e desorientados. Um país de areia, de pedras e de tumbas onde circulava o sopro do imperecível.
Em Novembro de 1927, cinco anos depois de ter descoberto os degraus da escada, Carter empreendeu o esvaziamento do anexo. Não tinha tornado a ver Lady Evelyn senão em recepções oficiais onde, sem o tratar com frieza, não lhe ofereceu mais do que sorrisos de circunstância.
Com o coração desfeito, admitiu que ela tinha razão; porque se teria uma jovem bela e titular comprometido com um velho tolo como ele, cada vez mais parecido com um bloco do Vale?
— Mais de quatrocentos objetos em oito pés de largo — constatou ele —, inquieto além disso, ao menor sopro, tudo corre o risco de desabar. Antes de retirar os cofres e as caixas, devemos restabelecer um equilíbrio, mesmo que precário. — Callender sorria.
— Maravilhoso... dois anos de trabalho em perspectiva.
— A que pode corresponder esta pequena sala? — interrogou Burton.
— À última etapa da ressurreição — observou Carter —, olhem: a sua porta está voltada para o Oriente, para o lugar por onde desponta a luz da manhã.
—Contém tantos objetos heteróclitos!
— Os nossos olhos não sabem ver. Leiam o texto por cima da porta; diz-nos que o rei passa a vida a moldar os símbolos dos deuses para que eles lhes dêem todos os dias incenso, oferendas e libações. Pelos seus atos eternamente repetidos no invisível, Tutankhamon triunfa das forças de destruição. Esse anexo dá-nos a prova que ele continua a viver aqui em baixo e no além: observem esses cestos cheios de frutos secos, de uva de nozes de palmeira, de mandrágoras, esses jarros de vinho. A alma alimenta-se. Veste-se também: vestidos rituais, corseletes, sandálias.
— Ele fazia desporto — acrescentou Callender —, arcos, flechas boomerangs.
— Tudo traduz o seu poder e a sua vitalidade.
Carter debruçou-se sobre um jogo de xadrez; em frente de um parceiro invisível, o rei devia ter ganho a partida para ser proclamado “justo de voz” e renascer, semelhante à escultura representando o passarinho a sair do ovo que Callender mudou de lugar com ternura.
No ângulo sudeste da pequena sala, um trono. Evocava a união do rei e da rainha no outro mundo, o seu amor tornado imortal pelo ritos. A inscrição mencionava ao mesmo tempo o nome de Aton e o de Amon, que os eruditos tinham descrito a torto e a direito como adversários; Carter obtinha assim a certeza que a fé egípcia, recusando o dogmatismo, não tinha engendrado guerras de religião. Só o amor da eternidade o tinha guiado.
A 11 de Novembro de 1927, às 9:45 horas, o doutor Douglas Dorry, professor de anatomia na universidade do Cairo, praticou a primeira incisão nas ligaduras da múmia de Tutankhamon, sob o controle atento de Howard Carter, vestido com o seu fato mais clássico, de três peças, acompanhado de um lacinho borboleta de gala. Tinha exigido o maior respeito e conversas em voz baixa; Lacau, Burton, Lucas e outros altos funcionários egípcios, vestidos à ocidental, e com a cabeça coberta por um chapéu cônico, assistiram à cerimônia que se desenrolava no corredor da tumba de Séti II.
Carter desenrolou ele mesmo a múmia, embrulhada em treze camadas de ligaduras que evocavam o véu da barca na qual o espírito do ressuscitado vogava no além. A oxidação dos sucos resinosos e uma utilização excessiva de ungüentos, de óleos santos e de natrão tinham queimado o tecido e atacado os
ossos da múmia que parecia carbonizada. Soltando-a, Carter verificou que estava fechada numa armadura mágica, composta de cento e quarenta e três jóias, divididas por cento e um lugares; teve por vezes de soltar à tesoura a camada de prata endurecida que aderia aos membros. Peitoral, diadema, punhal de ouro, gorjal, pulseiras faziam do cadáver um corpo de ouro, de pedras preciosas e de amuletos; já não se tratava de um indivíduo, fosse ele um monarca, mas de Osíris reconstituído, garante da sobrevivência dos seres iniciados nos seus mistérios. Debaixo do pescoço, uma cabeceira intrigou os seus observadores; sem dúvida nenhuma que era de ferro, material raro no Egito. De ferro era, também, a lâmina da adaga, com botão de punho de cristal de rocha e com forro de ouro. Carter lembrou que aquele metal, aos olhos dos padres, era de origem celeste e permitia ao rei ultrapassar o espaço que o separava dos paraísos.
O corpo do homem, que tinha desempenhado a função de faraó, não era mais do que um pobre despojo; com uns vinte anos de idade, media cerca de
Com um pincel de pêlos de marta, Carter tinha tirado bocados de ligaduras podres e soltado o rosto calmo de um rapaz. A forma era bela, a expressão nobre; Tutankhamon tinha sido um rei de soberbo porte.
Sobre o crânio, no lugar dos cabelos, um pequeno pano de linho muito fino, decorado com tiras tecidas e ornadas de pérolas, de faiança e de ouro; Carter discerniu nele o desenho de quatro cobras, símbolo da vida que se enfiava através dos mundos.
Os Egípcios do Novo Império sabiam mumificar na perfeição; inundando o corpo de ungüentos ao ponto de o queimar, tinham atuado de maneira ritual, consciente e voluntária. Aquele pobre cadáver, tão frágil relativamente à magnificência da máscara de ouro e do sarcófago, tinha-se tornado a matéria-prima da obra alquímica; corpo desdenhável, roído, calcinado era, contudo, suporte da transmutação em metal divino. A presença, sobre o peito, de duas alças de ouro, provavam que Tutankhamon já não era considerado como um rei, mas como um deus. A mumificação da face, tão diferente da dos outros monarcas, evocava a sua tripla natureza de divindade, de grande padre encarregado de celebrar os ritos e de faraó iluminador da terra.
Tutankhamon, o esquecido, tinha-se enfiado entre as guerras e os massacres, tinha escapado aos ratoneiros e tinha-se refugiado na memória de um Ocidental dos tempos modernos que devia agora assegurar a sua última proteção.
1930 viu o regresso dos nacionalistas ao Poder, depois de ter sido anunciada, mais uma vez, a morte de Carter. O seu velho inimigo Zaghlul tinha morrido em 1927, e o partido Wafd já não se preocupava com o arqueólogo, no fim da sua prodigiosa missão no Vale dos Reis. O velho Governo, que certamente pretendia ser a expressão da vontade popular, promulgou imediatamente uma lei proibindo de sair do Egito qualquer objeto descoberto por ocasião de uma escavação; mas Lady Almina sabia há muito tempo que não obteria a mínima parcela dos tesouros de Tutankhamon. No Outono, contudo, as autoridades entregaram à viúva de Lord Carnarvon
Quando Arthur C. Mace, conservador adjunto do Metropolitan, morreu de uma pleurisia crônica, a imprensa trouxe outra vez a lume a maldição de Tutankhamon; não se contavam já vinte vítimas, entre elas o conservador do Louvre e vários membros da família de Lord Carnarvon?
Aquela agitação não abalava nada Carter que supervisionava a embalagem das grandes capelas de ouro, com destino ao Museu do Cairo onde seriam de novo reunidas. A febre caía; Tutankhamon, universalmente célebre, tinha entrado na memória coletiva da humanidade. De novo calmo, o Vale acolhia vagas de turistas no Inverno e dormitava durante a estação quente.
No fim do mês de Fevereiro de 1932, os últimos objetos, devidamente restaurados, saíram do laboratório e partiram para a capital. Callender, lavado em lágrimas, fechou a tumba de Séti II. Amanhã seria de novo acessível aos turistas.
— Acabou, Howard, acabou... Carter bateu-lhe no ombro.
— É preciso aceitar.
— Não poderia descobrir outra tumba?
— Infelizmente, a de Tutankhamon era a última. A grande voz do Vale dos Reis extingue-se definitivamente.
— Que conta fazer, Howard?
— Não sei. Obter um posto oficial, abrir um novo campo...
— Não ousarão negar-lho. Eu volto para a minha aldeia. O rosto de ouro obceca-me; todas as noites sonho com ele.
— É a mais bela das visões.
Os dois homens despediram-se; Carter já tinha cumprimentado os outros membros da sua equipe .
Desceu ao túmulo, onde só restavam no seu lugar a cuva de calcário e o sarcófago maior, que abrigava a múmia. Dessa vez, Lacau e o Governo tinham cumprido as suas promessas; Tutankhamon habitaria para sempre na sua morada de eternidade.
Aquela sala de ouro ensinava o segredo da eternidade; “sair para o dia como Deus” era a finalidade do trabalho invisível efetuado no interior daquela modesta tumba tão bem escondida.
O jovem rei, de olhar sereno, encarnava a fé do ser na imortalidade; pouco importava a idade do seu cadáver. “Símbolo vivo do mistério”, como o proclamava o seu nome, Tutankhamon tinha conseguido dominar as mutações da luz e incorporá-las no ouro dos sarcófagos. A sua existência fornecia a prova decisiva de que a morte podia servir de material a uma vida ressuscitada. Aqui, naquelas quatro pequenas divisões, a maior das civilizações tinha inscrito a sua mensagem mais essencial. Quantas gerações de pesquisadores seriam precisas para a decifrar?
Carter inclinou-se perante Tutankhamon, o senhor da eternidade.
Quando saiu do túmulo, onde abandonava o essencial da sua vida, o dia morria. O Vale, deserto e silencioso, preparava-se para as trevas, Carter abraçou o reis Ahmed Girigar, que reteve as lágrimas até o arqueólogo desaparecer por detrás dos montículos pedregosos que dominavam as sepulturas reais. Sentado num bloco roído pelos ventos, o sol e as chuvas da tempestade, contemplou o cimo despido que os fogos do poente douravam. Graças a Tutankhamon, aquele domínio do nada tinha-se transformado em esperança: tudo nele permanecia imóvel e imutável porque, naquela terra de deuses, nada tinha começado no tempo e nada nele terminaria. Um mocho soltou um grito profundo: de costume, gelava a alma. Daquela vez, Carter sentiu-o como um apelo sereno. Não, o Vale não se extinguiria; falaria de futuro
O ministro egípcio e o novo diretor do Serviço das Antiguidades levantaram ao mesmo tempo as suas chávenas de café, beberam com distinção e tornaram a colocá-las com lentidão. Quem tomaria a palavra primeiro? O diretor cedeu.
— O caso de Howard Carter não é fácil de tratar...
— Não é a minha opinião — retorquiu o ministro irritado.
— Ah? Terá em conta a sua notoriedade?
— De maneira nenhuma.
— Ah... o que significa...
— Significa que o Egito não lhe concederá nenhum campo de escavações... e o senhor também não, espero-o.
O diretor manteve o silêncio.
— Carter é um colonialista, um espírito obstinado e arrogante.
— Não receia que a opinião internacional...
— Tem outros gatos em que bater, como se diz em francês; Carter já está esquecido. Acredite-me, caro amigo: permitir-lhe trabalhar de novo no nosso solo seria um erro grave. Os seus colegas não gostam muito dele, parece?
— Realmente, senhor ministro; à exceção dos membros da sua equipe , os egiptólogos consideram-no como um diletante e um amador com sorte. Tenha em conta que ele nem mesmo saiu de uma grande escola.
— Então já vê! O caso está resolvido, senhor diretor; Howard Carter nunca mais escavará no Egito. Que se contente com as distinções que a Grã-Bretanha lhe conceder.
O ministro da Cultura britânico cumprimentou os três egiptólogos designados para representarem a corporação e sentou-se à secretária.
— Muito prazer em recebê-los, senhores; a Egitologia tornou-se uma ciência de primeiro plano.
— Não é a sua função — observou um homem pequeno e corpulento que se expressava em nome dos colegas.
— Howard Carter prejudicou muito a reputação da nossa disciplina.
— A esse ponto?
— Mais ainda do que pensa, senhor ministro; Howard Carter é a vergonha da Egiptologia. Um autodidata, filho de um pintor animalista sem dinheiro, um pequeno campônio que roubou a glória aos sábios sérios!
O ministro pareceu incomodado.
— Nessas condições, parece difícil conceder-lhe o posto oficial que ele reclama.
— Seria injuriar a ciência; todas as autoridades egiptólogas se opõem com a máxima energia. Uma condecoração acalmá-lo-á.
O homenzinho barrigudo levantou-se, imitado pelos seus dois acólitos.
— Seria um insulto para o nosso país, senhor ministro! Que fez esse Carter, na realidade? Nada. Teve sorte. Isso não basta para se obter uma distinção honorífica.
— O meu papel consiste em seguir as opiniões autorizadas; obrigado senhores.
“Estranho”, pensou o ministro; Howard Carter, o arqueólogo mais célebre do mundo, não receberia mesmo a mais baixa das condecorações, o título de Membership of the British Empire, concedido aos carteiros e aos ferroviários com mérito. Mantendo-se afastado da Egiptologia, cometeu o pior dos crimes: preferir o Egito a uma carreira. Permanecer um espírito livre que ninguém pode comprar custa muito caro.
Uma multidão de turistas empurrava-se à volta do túmulo de Tutankhamon; ninguém queria dar o lugar. A galanteria era espezinhada. Defrontava-se o calor e a poeira para se contemplar o pequeno túmulo vazio
dos seus tesouros, à exceção do sarcófago de ouro onde repousava o jovem rei que desencadeava, todos os dias, gritos de admiração.
Quando os visitantes se tornavam raros, um homem de uns sessenta anos, de elegância muito britânica, deixava o seu observatório e descia até à mais famosa das tumbas, metendo por um caminho desértico.
Quando o silêncio voltava ao Vale, Howard Carter revivia a sua epopéia. Doente, atacado por um cansaço de que não se conseguia desembaraçar, gasto pela inveja, a mesquinhez e a traição, o arqueólogo não contava senão com um amigo, o faraó Tutankhamon, cuja morada estava largamente aberta a tantos convidados tagarelas, desatentos ou indelicados.
Depois, em
Naquele dia frio e chuvoso, o enterro de Howard Carter, falecido em 2 de Março de 1939, passou despercebido. A Inglaterra gosta dos desaparecimentos discretos, que não perturbam a ordem pública e não suscitam manifestações de mau gosto.
Carter extinguira-se aos setenta e seis anos, isolado e esquecido. Lady Evelyn Herbert Beauchamp, única personalidade a assistir às exéquias, reteve as lágrimas; Howard não teria apreciado essa expansão.
Sempre muito bela, Eve fixou o pobre caixão que se enterrava e pensou no ouro de Tutankhamon.
A alma de Howard Carter não ficaria prisioneira daquele cemitério glacial. Já tinha voado para a sua pátria de origem, o Vale dos Reis, para se fundir na sua luz.
[1] Pequena varanda fechada por uma rede de arame
[2] Espécie de roda hidráulica
[3] Com conta, peso e medida
[4] Título do senhor do Egipto nessa época.
[5] Dispositivo para irrigação
[6] Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico
[7] Localidade do Sudão
[8] Cartucho é o termo técnico que designa o oval, mais ou menos alongado, onde está inscrito o nome de um faraó
[9] Transcrição técnica Neb-Kheperu-Ra É um dos nomes de Tutankhamon, cada faraó possuía vários que
serviam para indicar o sentido da sua missão sagrada
[10] Promessa cumprida Hussein Abd el-Rassul, proprietário da casa de repouso, próxima do
Rameseum (Tebas oeste), expõe lá este admirável documento.
Christian Jack
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