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O Mundo Mágico do Antigo Egito / Christian Jack
O Mundo Mágico do Antigo Egito / Christian Jack

 

 

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O Mundo Mágico do Antigo Egito

 

Estátuas que curam, as leis do amor mágico, a proteção de uma criança, os arquivos bem guardados, a alimentação mágica são alguns aspectos, dentre tantos outros, de uma magia onipresente no Antigo Egito e cujo conhecimento permitia aos sábios alcançarem a idade de 110 anos.

Christian Jacq encontrou em Luxor uma das mais célebres famílias de magos que atualmente praticam a caça aos escorpiões e serpentes. Textos hieroglíficos e tradição oral revelam a mesma verdade: é possível ao mago, agindo em harmonia com as potências criativas, interferir no mundo.

“A força sobrenatural que mantém a vida não está fora do alcance da inteligência humana. Reside no coração do ser, no seu templo interior. Ao descobri-la e ao utilizá-la depois, o mago constatava que a sua ação tinha repercussões nesse mundo e no outro, como se não existisse qualquer barreira real entre eles. Conhecer o deus da magia é descobrir o poder dos poderes, penetrar no jogo harmonioso das divindades. E também o morto, aquele que passa para o outro lado do espelho, deve conservar o seu poder mágico para atingir a última realidade”

 

Mesmo em nossos dias, a vida de um egiptólogo freqüentemente caminha passo a passo com a aventura. Verdade que é necessário passar longas horas debruçado sobre os papiros, atento aos textos dos templos e das estelas. As bibliotecas são cavernas cheias de tesouros onde, graças aos trabalhos dos antecessores, é possível reconhecer os caminhos que levarão à descoberta. Mas toda essa erudição, por mais indispensável que seja, não substitui um contato vivo com o Egito.

Um egiptólogo que não creia na religião egípcia, que não partilhe uma simpatia absoluta com a civilização que estuda, não pode, na nossa opinião, pronunciar mais do que palavras sem vida. O intelectualismo, por mais brilhante que seja, jamais substituiu o sentimento vivido, mes­mo numa disciplina científica. Os maiores sábios são aqueles que partici­pam do mistério do Universo e tentam exprimi-lo por meio de sua visão do Conhecimento, amadurecida ano após ano.

Sendo isto verdade para ciências como a física, como demonstraram Eisenberg, Einstein e tantos outros, será fácil compreender que o Antigo Egito reclame, da parte de quem o estuda, uma atitude bem diversa do raciocínio glacial e do “distanciamento” histórico.

Uma noite de Natal, em Luxor, foi-me oferecido um presente sun­tuoso: um convite para jantar em casa de uma família de encantadores de serpentes. O avô, amigo da França, falava admiravelmente a nossa língua. Deu-me o lugar de honra, a seu lado, durante a refeição, na presença da mulher e de seus quatro filhos e três filhas. Do lado de fora, a noite esta­va cálida. Ao crepúsculo, o sol havia-se estilhaçado em dezenas de cores, até desaparecer pouco a pouco num último raio luminoso que veio mor­rer nas paredes do templo de Luxor, a obra-prima do faraó Aménofis III e de seu genial arquiteto, Amenhotep, filho de Apu.

A casa de meu anfitrião nada tinha de régio. Decorada com simplicida­de, era, no entanto, um templo em louvor à amizade. Pombos grelhados, arroz, tortas, bolos... um verdadeiro festim em homenagem ao viajante.

Nessa festa cristã de Natal, no decurso de uma longa refeição que só terminou pouco antes da aurora, a nossa conversa versou sobre um único assunto: magia. O meu anfitrião e seu filho preenchiam uma função extraordinária: sair à cata de serpentes e escorpiões. Aos jornalistas que de vez em quando vinham questioná-los acerca da bizarra profissão, eles se apresentavam como pessoas simples, cuidadosas, herdeiras de uma antiga tradição familiar, mercadores de venenos ligados a uma função lucrativa. Tais declarações não me satisfaziam. No decorrer das minhas pesquisas, como qualquer egiptólogo, eu havia deparado com a magia. Muitos “sábios” tentaram separá-la da religião egípcia, como se ela fosse um cami­nho incompatível com a grandeza das concepções metafísicas expostas nos grandes textos. Mas a magia é resistente. No Egito, está presente em toda parte, na sinuosidade de um conto que se acredita “literário”, ou no interior de um túmulo, ou nas paredes de um templo. Na época dos faraós, aqueles que se ocupavam dos animais venenosos eram magos que haviam recebido uma iniciação, possuíam conhecimentos, utilizavam fórmulas específicas cuja manipulação requeria qualificações excepcionais.

Lembrei ao meu anfitrião esses conhecimentos. Ele sorriu, admitin­do: “Temos de reconhecer que ser irmão de uma serpente não está ao alcance de qualquer um... Talvez, realmente, seja útil uma certa magia...” Segundo as regras da delicadeza oriental, a verdadeira conversa tinha se iniciado.

Persuadido de que meu anfitrião ainda conhecia e praticava as regras da antiga magia egípcia, confrontei a experiência dele e os meus conheci­mentos de egiptólogo. Foi assim que nasceu este livro acerca do mundo mágico da civilização faraônica. Dos textos antigos até a experiência vivi­da, não há lacunas. Eis a razão por que hoje é possível abordar um assun­to outrora considerado tabu.*

 

* Em notas, o leitor será remetido para os textos egípcios, a maior parte dos quais apenas acessíveis aos especialistas. O aspecto fundamental da documentação escrita, completada pela informação oral, é que várias vezes desvenda as chaves.

 

Hermópolis, a antiga cidade santa do deus Thot, patrono dos magos egípcios, o Hermes dos gregos, não passa hoje de uma cidade em ruínas. No entanto, aqui e além subsistem vestígios da grandeza passada. Uma das mais impressionantes é o túmulo de Petosíris, sumo sacerdote de Thot, iniciado nos mistérios. Esse túmulo não é consagrado à morte, mas sim à vida na eternidade. Seus textos admiráveis foram redigidos para aju­dar o homem a realizar-se, a encontrar a verdade profunda do seu ser, sem a qual nenhuma felicidade poderá ser vivida na Terra. Numa das paredes do túmulo de Petosíris lêem-se estas frases:

“Aquele que se coloca na via do deus passa toda a sua vida na alegria, cumulado de riquezas, mais do que seus pares. Envelhece na sua cidade, é um homem venerado na sua província, seus membros mantêm-se jovens como os de uma criança. Os filhos estão diante dele, numerosos e considerados os primeiros da cidade; esses filhos sucedem-se de geração em geração... Chega, enfim, à necrópole em alegria, no belo embalsamamento do trabalho de Anúbis.” [1]

Para atingir a sabedoria evocada pelo grande sacerdote Petosíris, não basta a boa vontade. Torna-se indispensável uma certa ciência a que os egípcios chamavam “magia”. Essa noção-chave, hoje confundida com ma­gia negra, feitiçaria, poderes psíquicos e outros fenômenos de certa forma inquietantes, tinha, na época dos faraós, um significado preciso.

Religião e magia não podem ser separadas uma da outra. Pode-se imaginar um ritual sem irradiação mágica? Não é verdade que as religiões como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo, embora, por vezes, se defendam disso, exercem uma magia sobre a alma humana, a fim de a submeter a realidades que os nossos sentidos se revelam incapazes de registrar?

Os escribas egípcios redigiram milhares de páginas, reunidas em códices que os egiptólogos classificam de “mágico-religiosas”. Uma lei­tura rápida, embora superficial, desses escritos leva-nos à conclusão de que os egípcios formulavam votos: viver uma vida longa sobre a Terra, não ser privado de alimentos no Além, não morrer da picada de uma ser­pente, manter-se saudável na Terra, gozar de todo o seu potencial físico, entrar e sair pelas portas orientais do Céu (isto é, ter um espírito suficien­temente formado para “circular” no Cosmo), conhecer as almas dos oci­dentais (quer dizer, anuir aos mistérios dos Antigos). Como se vê, misturam-se esperanças materiais e esperanças espirituais. Essa é uma das características essenciais do pensamento egípcio. Há um céu, há uma ter­ra, ambos agem um sobre o outro. A nossa vida terrestre, nos seus aspec­tos mais vulgares, está impregnada de uma força espiritual a que os sábios do Egito chamam heka, “magia”. Este termo, de etimologia incerta, signi­fica provavelmente “reger os poderes”, o que efetivamente constitui o cume da arte do mago.

Quem deseja praticar a magia deve estar consciente dos poderes que regem, qualquer vida, manipulando-os experimentalmente. Não há lugar para qualquer experiência estritamente individual: como veremos, o aprendiz de mago forma-se nas escolas especializadas dos templos, sob a vigilância de mestres que não o deixam agir à sua vontade nem ao sabor da sua fantasia.

Revelação essencial dos sábios: a Magia, compreendida como força geradora, foi concebida antes da criação que conhecemos. É filha do deus do Sol cujos raios de luz são uma manifestação mágica, porque portado­res de vida.

Para o egípcio antigo, tudo vive. Pensar que alguma coisa é inanimada prova que o nosso olhar não se abriu corretamente para a realidade. O homem, tal como qualquer outra parcela viva, é o resultado de um jogo de forças. Poderá suportá-las passivamente ou poderá tentar identificá-las. A qualidade do seu destino irá depender da resposta que der a essas questões. As forças mágicas parecem-nos hostis na medida em que o nos­so grau de conhecimento é insuficiente. O cientista contemporâneo cri­tica o primitivo que se extasia ou se assusta diante de fenômenos naturais que julga sobrenaturais. Mas esse mesmo cientista, apesar de todo o seu saber, mantém-se escravo de zonas de sombra que por vezes tornam fal­so o raciocínio mais seguro de si. Isto quer dizer que o homem de hoje, tal como o de ontem, se confronta com o desconhecido, fonte e finalida­de da sua existência. Nesse domínio, os magos do Antigo Egito têm mui­to a nos ensinar.

A força sobrenatural que mantém a vida não está fora do alcance da inteligência humana. Reside no coração do ser, no seu templo interior. Ao descobri-la e ao utilizá-la depois, o mago constatava que a sua ação tinha repercussões nesse mundo e no outro, como se não existisse qualquer barreira real entre eles. Conhecer o deus da magia é descobrir o poder dos poderes, penetrar no jogo harmonioso das divindades. E também o morto, aquele que passa para o outro lado do espelho, deve conservar o seu poder mágico para atingir a última realidade.

Esta magia pode ser definida como a energia essencial que circula no Universo, tanto dos deuses como dos humanos. Não existem “vivos” e “mortos”, mas sim seres mais ou menos capazes de captar essa energia contida no nome secreto dos deuses. Estudando os hieróglifos, isto é, “as palavras dos deuses”, progride-se no conhecimento desses nomes carre­gados de energia. No Egito, nada se mantém intelectual no mau sentido do termo, quer dizer, cortado do real. Eis por que qualquer objeto anima­do mágica e ritualmente — por exemplo, as coroas reais — registra um segredo vital. Espírito e matéria tecem-se na mesma substância. O impor­tante, na prática da magia, é identificar o laço que une todas as coisas, que reúne o conjunto das criaturas numa cadeia de união cósmica.

As linhas precedentes provam suficientemente que não se deve redu­zir a magia do Antigo Egito a uma feitiçaria de baixo estrato. Na realida­de, encontramo-nos perante uma ciência sagrada que exige especialistas com boa formação, capazes de apreender as forças mais secretas do Universo. Segundo um texto magnífico, intitulado Ensinamento para Merikarê, “o Criador deu ao homem a magia para repelir o efeito fulgurante do que acontece inesperada­mente”. Dito de outro modo, todos somos escravos de um certo determi­nismo. A maior parte das vezes, os acontecimentos felizes ou infelizes nos apanham desprevenidos. Não somos donos do nosso destino. O Egito não nega esse determinismo, mas considera possível escapar dele utilizando a magia. Pela prática dessa arte, podemos modificar o nosso destino, lutar contra as tendências negativas da aventura humana, quer esta seja coletiva ou individual, afastar os perigos de que tomamos cons­ciência.

No Egito, a magia era considerada uma ciência exata. Embora certos amadores, como os feiticeiros de aldeia, utilizassem algumas receitas mágicas elementares, a grande magia de Estado era revelada apenas a uma elite de escribas, que devem ser comparados aos físicos contemporâneos da energia atômica. Com efeito, essa magia é destinada a preservar a ordem do mundo. Um ato como esse não é fruto de uma improvisação ou de um ilusionismo qualquer. Repousa sobre uma linha contínua de expe­riências controladas pelo mago.

A existência humana repousa sobre um equilíbrio precário. Muitos perigos a ameaçam: gênios malignos, forças negativas, mortos errantes, múltiplas manifestações do “mau-olhado”, quer dizer, de uma energia negativa que, pelo seu simples poder, destrói tudo que existe. O primei­ro dever do mago é travar essa negatividade, preservar aquilo que existe. Mas deve igualmente velar para que os momentos de “passagem” se desenrolem corretamente. O nascimento, o casamento, a morte, o fim de um ano e o início do seguinte são outros tantos exemplos de situações muito delicadas em que a intervenção mágica é indispensável.

Os magos afirmam que os seus segredos remontam à mais alta Antigüidade. Não é a referência a uma convenção, mas sim o cuidado de se referir aos modelos primordiais, aos mitos da Criação. De uma certa maneira, o mago está em contato direto com o Arquiteto dos mundos. Qualquer ato mágico é, por definição, um ato criador enraizado nas pro­fundezas da origem. O mágico “refaz tal como foi feito no começo”, coloca no presente “a primeira vez”, restitui o mundo “àquele tempo”. O tempo mágico é um tempo primordial. Pelo estudo da magia, chegamos à centelha de onde jorrou toda a Criação.

O deus da magia, Heka, é uma criação da Luz. Falar de magia “negra” e de magia “branca” é considerado uma decadência. Na realidade, existe apenas uma magia solar, portadora da Luz, que favorece a iluminação do mago. O resto é somente ilusionismo, feitiçaria ou busca de poderes.

No mundo das divindades, o deus da magia tem uma função precisa: afastar o que deve ser afastado, evitar que o mal e a falta de harmonia per­turbem a ordem das coisas. Quando é realmente habitado pela força divi­na, o mago preenche igualmente essa função. Ele é Hórus. A magia da sua mãe Ísis está nos seus membros.[2] É Rê de nomes misteriosos, é aquele que se encontrava no oceano de energia das primeiras idades.[3] Identifica-se com os maiores deuses do panteão, sentindo a magia no próprio cor­po como força viva: circula-lhe nos pés, nas mãos, na cabeça, no corpo inteiro. É sabido que a força mágica emite uma luz, e que em certas oca­siões irradia um cheiro característico.

“E eis que recolhi esse poder mágico em todo lugar onde se encontra, em todo homem no qual se encontra”, diz o mago no capítulo 4 do Livro dos Mortos. “É mais rápido que o galgo, mais veloz que a luz.” O mago enche o seu ventre de poder mági­co, estanca a sede graças a ele.[4] Essa “magia no ventre” sobe seguidamen­te ao espírito, como um fluido que circula nos canais secretos do corpo. Dessa maneira, o mago, filho de Rê, senhor da Luz e do Sol, e de Thot, encarnado pela Lua, descobre a extensão das suas percepções. O seu saber está consignado num escrito que vem da moradia do deus do Sol, depois de ter sido selado no palácio de Thot.

Sem magia, a sobrevivência é impossível. As fórmulas apropriadas fornecem àquele que se apresenta perante as portas da morte a coragem e a ciência adequadas para franquear o obstáculo sem este ser aniquilado.

O mago viaja no céu. Diante da estrela Órion afirma ter comido as potências vitais e ter-se nutrido dos espíritos dos antigos deuses cujos nomes secretos conhece. Órion escuta o viajante do Além. Reconhece que ele adquiriu efetivamente todos os poderes, que nenhum foi esque­cido.[5] Eis por que o ressuscitado, identificado com uma estrela, brilhará nas alturas celestes. Esse é o destino do mago: tornar-se uma luz no Cosmo, para iluminar o caminho dos outros homens.

 

O coração intuitivo

A magia é um assunto de percepção. Ora, o centro das mais sutis percepções é o coração. Não o órgão de carne, mas sim o centro imaterial do ser. Esse coração, na concepção do Egito, é o testemunho da vida do homem. E impossível mentir-lhe ou enganá-lo. O coração-consciência concebe, pensa, dá ordens aos nervos, aos músculos, aos membros. É ele que permite que os sentidos funcionem corretamente. Tudo parte do coração e a ele volta. Ele é emissor e receptor. Sensações e impressões são a ele conduzidas para que faça delas a síntese e extraia a lição dessas informações vindas do mundo exterior.

Segundo a mitologia da cidade de Mênfis, o deus Ptah concebeu o mundo no próprio coração antes de o exprimir pela língua. Em cada ser consciente desperta um coração herdeiro do coração divino. Receptáculo da força divina, o coração responde pela retidão do mago perante os seus juizes, aqui e no Além. A qualidade da prática mágica está estrei­tamente ligada à qualidade do coração. Ao mago compete desenvolver essas faculdades intuitivas que lhe permitirão descobrir o cofre misterio­so do Conhecimento, prefiguração do Graal. O coração lhe ditará o meio de o abrir de modo a descobrir a essência da magia.

Um amuleto especial, o escaravelho do coração, detém um papel determinante no momento da passagem da morte terrestre para a vida eterna. O escaravelho é o símbolo das metamorfoses e das mutações. Colocando-o no coração da múmia, o mago confere ao morto o poder de atravessar as zonas mais obscuras onde o ser se arrisca a sofrer graves atentados. No momento da abordagem feliz das margens dos paraísos, o coração do homem justo ser-lhe-á restituído. Esse dom é preparado na Terra durante a vida do indivíduo. A atitude mágica consiste em fazer com que pulse em si um coração de origem celeste que venha despertar a percepção do invisível.

 

Uma magia de Estado

A magia era considerada no Estado egípcio uma atividade primordial. Os livros mágicos não são escritos por autores que os redigem segundo a sua fantasia, sendo antes obra de instituições oficiais como a Casa de Vida, e fazem parte dos arquivos reais. Um dos primeiros objetivos da magia é proteger o faraó de qualquer influência negativa. Como escreveu Jean Yoyotte, “a visão egípcia do mundo procede de uma alta magia de Estado, coerente, raciocinada, admiravelmente perceptível e serena”.[6]

Estaríamos bem enganados se acreditássemos que a magia, na época dos faraós, era uma atividade individual. Essa foi a expressão mais deca­dente e a menos rica de significado. Os egípcios utilizaram, sobretudo, os rituais dos templos, celebrados em todo o país. Todo ato de culto é mági­co. Pensemos, por exemplo, no fato de o faraó ser o único habilitado a dirigir os ritos necessários para manter a presença dos deuses na Terra. A imagem do rei, gravada na parede de cada templo, anima-se magicamen­te para entrar na alma do sacerdote que efetivamente dirigirá a cerimônia.

O maior centro de magia do Egito era provavelmente a cidade santa de Heliópolis, a cidade do Sol (à altura do Cairo), onde se elaborava a mais antiga teologia. Ali eram conservados numerosos papiros “mági­cos”, no sentido amplo do termo, incluindo textos médicos, botânicos, zoológicos ou matemáticos. A maior parte dos sábios e dos filósofos gre­gos dirigiu-se a Heliópolis para lá receber comunicação de uma parte dessa ciência acumulada durante séculos. Foi ali, nomeadamente, que Platão tomou conhecimento da lenda da Atlântida que fez correr tanta tinta e cujo verdadeiro significado ainda hoje nos é desconhecido, e só pode ser deduzido dos textos egípcios.

O primeiro princípio mágico é a necessidade da oferenda aos deuses. Graças a esse ato, a Criação continua. “Dar Maât (a harmonia universal) ao mestre de Maât (o Criador)”, segundo a fórmula ritual, é permitir que a vida se prolongue.

O que o Antigo Egito mais temia era o caos, esse estado de negatividade oposto a Maât, a ordem das coisas. Não basta a boa vontade para evitar a desordem que, a termo, condena toda a civilização. A magia é uma arma de valor excepcional, graças à qual as barcas solares circulam corretamente nos céus, os mortos recebem o alimento que lhes é devido, o Estado funciona e celebram-se as festividades. Sem a intervenção mági­ca do Estado, as importantes cheias do Nilo não ocorreriam, as culturas não seriam irrigadas, os caçadores não poderiam matar caça, os pescado­res não pescariam peixes, os artesãos não acabariam as suas obras, os tem­plos não poderiam cumprir a sua missão.

Uma visão como esta surpreende-nos. Tantos fenômenos nos pare­cem hoje tão “naturais” que já não conseguimos alcançar o seu significa­do recôndito. A caça, por exemplo, era para o egípcio uma aventura mui­to especial que consistia em entrar no mundo das forças obscuras, não dominadas pelo homem. O perigo poderia acontecer a cada instante, quer tomasse a forma de um animal do deserto ou de um crocodilo furio­so. O caçador considerava ser o seu papel afrontar as forças do mal. Para as dominar, também se utilizavam fórmulas mágicas.

 

O rei mago

O faraó do Egito não tem pai nem mãe. Vive a vida e não morre a morte. E o grande mago por excelência, porque nele encarna a força da vida. No Império Antigo, só o faraó está apto a comunicar-se com o prin­cípio divino para que a humanidade subsista. E, pois, o rei, mestre das forças naturais e sobrenaturais, que detém o poder real, adquirido pela ingestão das forças mágicas em um banquete extraordinário, misto de uma perturbação cósmica, acompanhando a vinda do rei aos espaços celestes.[7] As estrelas escurecem. A luz rarefaz-se. O céu e a terra tre­mem. Um personagem aterrador provoca esses acontecimentos: o faraó em pessoa. Ele é aquele que se nutre de seus pais e mães. É um mestre de sabedoria do qual a mãe não conhece o nome. A sua glória está no céu, o seu poder está no horizonte como o de Atum, o Criador, que o engen­drou. O rei tornou-se mais poderoso que ele. Touro do céu, ele assimila o ser de cada divindade. Come homens e deuses. Khonsu, um gênio temível, mata os seres de que o rei tem necessidade e extrai, para si, o que há nos seus corpos. Outro gênio, Chesmu, cozinha-os para ele nas pedras de uma fornalha. O rei come-lhes a magia, engole-lhes os espíritos. Os gordos são para a refeição da manhã, os médios para a refeição do dia, os pequenos para a ceia. O faraó apanha os corações dos deuses, come a coroa vermelha, engole a verde. Todo o Cosmo reconhece o seu domí­nio. Nutre-se dos pulmões dos sábios e da sua magia. O seu tempo de vida é a eternidade.

Este texto foi classificado de “hino canibal”, supondo que aludia a rituais muito arcaicos em que os egípcios teriam consumido carne huma­na. Na realidade, era um modo de invocar a captação do poder mágico pela ingestão direta da vitalidade divina considerada como alimento.

Cheio de magia, o faraó está protegido. O ser maléfico que o mor­desse só conseguiria envenenar-se a si mesmo. Cada parte do corpo real está divinizada. O ventre do faraó, por exemplo, é Nut, a deusa do céu. Ora, a força mágica encontra-se precisamente nesse “ventre celeste”.

Face aos deuses, o faraó manifesta a sua autoridade. Ordena-lhes que construam uma escada para ele subir ao céu. Se não obedecem, não terão alimentos nem oferendas. Mas o rei toma uma precaução. Não é ele, enquanto indivíduo, que se exprime, mas sim o poder divino: “Não sou eu que vos digo isso, a vós, deuses, é a Magia que vos diz isso”.[8]

Quando o faraó completa a sua ascensão, a magia está aos seus pés.[9]“O céu treme”, afirma ele, “a terra estremece diante de mim, porque eu sou um mágico, possuo a magia”.[10] É ele, de resto, que instala os deuses nos seus tronos, provando desse modo o seu máximo poderio reconhecido pelo Cosmo.

No Egito do Império Antigo, tudo que diz respeito à pessoa real é de ordem mágica. Como o faraó é o único sacerdote, tem por função “carre­gar” magicamente os rituais do Estado. O nome real está contido numa “carteia”, cujo nome egípcio, chenit, significa “o que cerca” (ou seja, o contentor do universo sobre o qual reina o faraó). Segundo o princípio do jogo de palavras, capital para a compreensão do funcionamento da língua hieroglífica, esse termo implica também a idéia de “conjuração”. O nome real está protegido magicamente pela carteia. Atributos, insígnias, roupa­gens reais estão carregados de magia. A coroa vem em primeiro lugar na lista desses objetos. É considerada um ser vivo, uma deusa, a um tempo leoa agressiva e serpente que ataca os inimigos do rei. Cantam-se-lhe hinos. Só o faraó é capaz de a usar e de utilizar as suas virtudes secretas.

 

Magos célebres

Segundo Maneton, o sacerdote de Sebennitos que, na época grega, consagrou uma obra célebre à história dos reis do Egito, o faraó Athotis (primeira dinastia) era um médico que redigia livros de anatomia. Prati­cou, portanto, uma arte mágica, abrindo o caminho para os seus sucesso­res. Nessa perspectiva, considera-se que todos os faraós foram magos institucionais.

No Império Antigo, Imhotep foi o mais célebre dos magos. A sua fama era tal que, séculos mais tarde, os gregos o identificaram com o seu deus da medicina, Asclépio. No Império Novo, os escribas prestavam culto ao “deus” Imhotep; antes de escrever, deitavam na terra um pouco de água em memória de seu ilustre patrono. A personalidade de Imhotep é, portanto, essencial para se perceber a extensão do “campo mágico” no Antigo Egito. Esse personagem não era um pequeno feiticeiro de aldeia, mas sim o primeiro-ministro do todo-poderoso faraó Djoser e o inventor da arquitetura de pedra cuja primeira obra-prima foi a pirâmide de degraus de Saqqara. Em outras palavras, um homem de Estado de primei­ro plano cuja competência mágica era julgada indispensável para levar corretamente a cabo a sua função. Certas “receitas”, atribuídas a Imhotep, foram transmitidas à posteridade, como esta:[11] “Pegar uma mesa de madeira de oliveira de quatro pés. Colocá-la num local puro, no meio, cobri-la completamen­te com um tecido. Colocar quatro tijolos debaixo da mesa, um em cima do outro. Diante da mesa, colocar um incensório de argila. Colocar carvão de madeira de oliveira no incensório, e uma gansa selvagem gorda triturada com mirra, fazer bolinhas e colocá-las no braseiro, pronunciar uma fórmula, e passar a noite sem falar a quem quer que seja, na terra. Ver-se-á o deus sob a forma de um sacerdote vestindo um traje de linho”. O mago invoca, então, aquele que está sentado nas trevas, porém no meio dos grandes deuses, buscando e recebendo os raios do sol.

Hardedef, um dos filhos de Khéops, era conhecido pelo seu extenso conhecimento e as suas sábias palavras. Descobriu diversos livros antigos de magia, cujas fórmulas foram integradas nos escritos rituais. Khaemuase, quarto filho de outro faraó célebre, Ramsés II, era sumo sacerdote de Ptah em Mênfis. Construiu e restaurou numerosos monumentos. Tinha uma paixão pela arqueologia e pelo estudo dos documentos anti­gos. Passava por grande sábio e inspirou duas histórias de magia acerca das quais voltaremos a falar.

Hórus, filho de Panechi, era um mago que viveu na Época Baixa. Teve de combater um mago etíope que ameaçava a segurança do Estado. Este Hórus vivera quinze séculos antes e havia reencarnado para vir em socor­ro do seu país.

É ao mago Es-Atum, sacerdote que viveu na época de Nectanebo II (359-341), que se deve a salvaguarda da famosa Estela de Metternich. Es-Atum constatara que uma inscrição num templo da cidade santa de Heliópolis tinha sido retirada. Para que esse precioso testemunho não se perdesse, mandou copiar o texto numa estela que chegou até nós.

Esta pequena galeria de retratos tinha como simples objetivo ilustrar a continuidade do estatuto de mago no decurso dos séculos que viram desenrolar-se a aventura egípcia. Seria possível, evidentemente, citar dezenas de outras figuras. Pensemos ainda em Harnuphis, o último mago egípcio de grande renome. Estava presente nos campos de batalha da Mordávia, em 172, no lugar em que guerreava o exército de Marco Aurélio. Faltou água, e os gregos, privados de provisões, arriscavam-se a morrer de sede. O mago egípcio provocou a chuva, apavorando os bár­baros e salvando os soldados de Marco Aurélio. A velha ciência da terra do Egito provava assim que nada tinha perdido da sua eficácia.

 

Textos mágicos

Os textos mágicos, que formam uma parte considerável da “literatu­ra” egípcia, estão inscritos em suportes materiais variados: papiros (des­de o Império Médio), óstracos (placas de calcário), estelas, estátuas, múl­tiplos pequenos objetos. Os eruditos contemporâneos, habituados a fazer dissecações racionalistas, ganharam o hábito de classificar os textos egípcios em “literários”, “históricos”, “religiosos”, “mágicos” etc. Essas distinções formais não correspondem à realidade. O Conto do Náufrago, reconhecido como “literário”, é uma história de magia admirável. Os Textos dos Sarcófagos, ditos “funerários”, apelam constantemente para a magia. O fato de um texto estar escrito em hieróglifos faz com que já se pressuponha a sua eficácia; poder-se-ia então dizer que todo escrito egíp­cio é por essência mágico, ainda que se tenha de reconhecer diversos graus na aplicação desse princípio.

Alguns textos, no entanto, destacam-se do conjunto pela sua impor­tância ou pela sua originalidade. Entre eles, o Livro dos Dois Caminhos, ins­crito em sarcófagos do Império Médio, confere ao morto o conhecimen­to dos caminhos do Além. Dois caminhos, um de terra, outro de água, são separados por um rio de fogo. Outras tantas vias de acesso simbólico a um país povoado de gênios temíveis. É lá que se encontra uma espécie de Graal que o justo descobre depois de ter vencido numerosas provas cujas chaves só um conhecimento “mágico” poderá fornecer-lhe.

Os Livros de Horas são conjuntos de fórmulas que o mago recita duran­te as horas do dia e da noite para obter os favores das divindades. O Papiro Bremner-Rhind, onde se conta a luta das potências solares contra a mons­truosa serpente Apófis, gênio das trevas, registra também um tratado esotérico sobre a natureza divina. É-nos revelado que o Mestre do Universo criou o conjunto dos seres quando o céu e a terra ainda não existiam. O plano da criação foi concebido no próprio coração dele. De Um, o arquiteto dos mundos, tornou-se Três. Provocou mutação e trans­mutações, instalou-se no monte inaugural, primeira terra emergida. Quanto aos homens (remetj), esses nasceram das lágrimas (remetj) do deus, quando chorou sobre o mundo.

A Estela de Metternich é a mais célebre das estelas mágicas. Data do século IV a.C. e registra um texto notável que trata da cura mágica de Hórus criança, picado por um animal venenoso nos pântanos do Delta onde vivia escondido em companhia de Ísis, sua mãe. Na parte superior da frente da estela, vê-se Hórus de pé em cima de crocodilos, agarrando criaturas maléficas. O jovem deus é protegido por Thot, o Mago, e por Hathor, deusa da Harmonia. Por baixo, uma história em quadrinhos sim­bólica inclui sete registros onde figuram deuses e gênios, desenvolvendo a sua atividade em múltiplas cenas de conjuração. No cimo da estela, oito babuínos celebram com seus gritos o nascimento da Luz. A Estela de Metternich evoca igualmente o papel da grande maga, Ísis. Quando encon­tra Hórus, seu filho, agonizando, apela aos habitantes dos pântanos, mas nenhum deles conhece um remédio apropriado. Ninguém pode pronun­ciar palavras de cura eficazes. Iria o Criador, Atum, permitir que a vida se esvaísse? Ísis retira Hórus do ataúde onde repousa e lança um longo lamento que atinge o céu. A sua ameaça é aterradora: enquanto o seu filho não for curado, a Luz não brilhará. As potências celestes, assim for­çadas, intervêm a favor do jovem deus: “Desperta, Hórus!”, é dito a ele. O veneno perde a sua capacidade letal, depois torna-se inócuo. Hórus cura-se. A ordem do mundo é restabelecida. A barca divina percorre nova­mente os espaços celestes.

Outro documento surpreendente: “a estátua curadora” de alguém chamado Djed-Her, guardião das portas do templo de Athribis. Desco­berta em 1918 e conservada no Museu do Cairo, oferece informações acerca das práticas religiosas do século IV d.C. Assente num pedestal e medindo 65 centímetros de altura, esse monumento de granito negro representa uma personagem acocorada, braços cruzados, as costas contra um pilar. O corpo está coberto de inscrições, com a exceção do rosto, dos pés e das mãos. A superfície do pedestal está cavada de modo que duas bacias ligadas por um córrego recolham a água que se impregnou de magia depois de ter sido derramada sobre a estátua. Bebendo essa água, o doente curar-se-á.

Sobre qualquer estátua curadora, a menção do nome próprio do de­funto é importante. Aqueles que queriam utilizar magicamente a sua está­tua, o morto pedia que lessem em seu favor os textos rituais. Aparecia também como um salvador produzindo milagres. “Oh, sacerdotes, escribas, sábios que vejam este Salvador! Recitem os escritos Dele, aprendam as fórmulas mágicas Dele! Conservem-Lhe os escritos, protejam-Lhe as fórmulas mágicas! Anunciem a oferenda funerária que o rei faz, em mil coisas boas e puras, para o ka (a potência vital) deste Salvador que se nomeou Hórus-o-Salvador”.

Na mesma categoria de documentos se classifica uma base de estátua de granito negro (32,2 centímetros de comprimento, 12 centímetros de altura) adquirida em 1950 pelo Museu de Leiden. Coberta de textos má­gicos, é aproximadamente da época ptolemaica. Os textos revelam que Ísis, vinda de uma moradia secreta onde tinha colocado Seth, utilizou to­do o seu conhecimento mágico para curar uma criança mortalmente pica­da por um dos sete escorpiões que a precediam nos seus deslocamentos.

Entre as estátuas “mágicas”, deve ser dado um lugar à parte à do faraó Ramsés III, encontrada no deserto oriental.[12] A sua função era a de pro­teger os viajantes contra os animais malfazejos, nomeadamente as serpentes. Os que se aventuravam nas paragens do istmo do Suez se beneficia­vam assim dos favores de Ramsés III divinizado, cuja efígie, colocada num pequeno oratório, emitia uma influência benéfica. Na estátua (ou, mais exatamente, no grupo esculpido, porque o rei era acompanhado por uma deusa) estavam gravadas fórmulas mágicas que, assegurando a salva­guarda de Hórus criança, garantiam também a do viajante.

Uma corporação de magos, os saú, quer dizer, “os protetores”, esta­va encarregada de velar pela segurança daqueles que percorriam as pistas do deserto. Ramsés III teve relações especialmente estreitas com o uni­verso da magia. Na ocasião do sombrio processo criminal batizado “conspiração do harém”, conspiração fomentada por dignitários, estes utilizaram a magia mais negativa para tentar eliminar o chefe do Estado. Um dos conjurados tinha conseguido retirar dos arquivos reais um texto mágico ultra-secreto. Fez uso dele contra o seu soberano. Os membros da maquinação fabricaram figuras de cera que representavam os guardas do faraó e conseguiram assim paralisá-los. Esperavam, sem dúvida, poder ir mais longe e atingir a própria pessoa do faraó, mas foram identificados e capturados. A utilização da magia como arma criminosa foi considerada delito muito grave, castigado com a condenação à morte, sendo a senten­ça executada sob a forma de suicídio.

Vários museus guardam papiros mágicos, de interesse desigual. Citamos anteriormente o Papiro Bremner-Rhind e poderíamos estabelecer uma longa lista de documentos (entre os quais alguns inéditos ou não tra­duzidos, ou ainda inacessíveis por motivos obscuros). Um deles, o Papiro demótico de Londres e de Leiden, goza de um renome algo injustificado. Esse documento de época tardia mistura práticas divinatórias, receitas de bai­xa feitiçaria e antigos elementos mitológicos. E o reflexo de uma menta­lidade mágica, dando um lugar não negligenciável a sortilégios dos quais um bom número visa conquistar a mulher amada. Esse papiro não foi, de resto, redigido para uso apenas dos egípcios, mas também dos gregos e dos cristãos.

 

Arquivos sagrados e bibliotecas mágicas

Em egípcio, os arquivos sagrados são chamados baú Râ, “potências do deus-luz”. “Os livros”, explica um papiro,[13] “são a potência do deus-luz no meio do qual vive Osíris”. E, pois, por intermédio desses arquivos sagrados que se comunicam as duas grandes potências divinas, Rê, deus-luz, e Osíris, senhor das regiões tenebrosas. Os autores dos livros mágicos não são homens, mas sim Thot, o mestre das palavras sagradas; Sia, o deus da sabedoria; Geb, o senhor da terra. Escrevendo esses livros, legaram à humanidade mensagens que ela poderá utilizar com conhecimento de causa.

O mago deve, portanto, possuir um conhecimento perfeito do mundo divino. No apogeu da sua arte, ele é considerado o Mestre da Enéade, cor­poração de nove deuses protagonista na origem de toda a criação. Portador da grande coroa, o mago torna-se redator de textos sagrados.

O egípcio gosta da escrita. E a escrita que registra o conhecimento. “Ama os livros como amas a tua mãe” é recomendado àquele que procura a sabe­doria. O mago não se contenta em ler: engole os textos, coloca pedaços de papiro numa tigela, bebe o Verbo mágico, ingere as palavras portado­ras de significado. Esse rito extraordinário foi transmitido aos construto­res de catedrais.

Perto da múmia era depositado um papiro encarregado de repelir as forças hostis e de permitir ao morto entrar em completa segurança nas regiões desconhecidas do Além. Esses escritos mágicos eram colocados ora perto da cabeça, ora perto dos pés, ora entre as pernas do corpo mumificado. O morto dispunha assim de fórmulas eficazes, de itinerários, de indicações que deviam ser seguidas para que a sua viagem póstuma fosse bem-sucedida.

Cada templo possuía uma biblioteca mágica onde se conservavam as obras necessárias às práticas rituais e ao ensino esotérico dos praticantes. Em Edfu, por exemplo, dispunham de obras para combater os gênios malignos, repelir o crocodilo, apaziguar Sekhmet, caçador de leões, pro­teger o faraó no seu palácio. O mago rege a sua vida cotidiana pelas leis cósmicas; por exemplo, “O dia vinte do primeiro mês da inundação é o dia de receber e de enviar cartas. A vida e a morte saem nesse dia. Faz-se nesse dia o livro “fim da obra”. É um livro secreto, que faz malograr os encantamentos, que detém e trava as conjuras e inti­mida todo o universo. Contém a vida, contém a morte”.[14]

O escrito mágico goza de uma vida autônoma, dado se encontrar escrito em hieróglifos, signos portadores de potência. Os Textos das Pirâmides, que incluem numerosas fórmulas mágicas, oferecem a este res­peito um exemplo muito significativo. Esses textos, inscritos nas paredes internas das pirâmides do Império Antigo (V e VI dinastias), apresentam-se sob a forma de colunas de hieróglifos. Cada um deles é considerado um ser vivo, a tal ponto que os animais perigosos ou impuros (por exem­plo, os leões, as serpentes) são cortados em dois ou mutilados para não fazer mal ao faraó morto e ressuscitado. Na própria composição dos tex­tos mágicos notam-se usos característicos, como o processo enumerativo que consiste em dar longas listas de inimigos vencidos ou partes do cor­po do homem identificadas às dos deuses. Também se empregam palavras incompreensíveis, formadas de conjuntos de sons julgados eficazes: há uma mistura de egípcio, de babilônio, de cretense e de outras línguas estrangeiras, desembocando em fórmulas do estilo “abracadabra”. Esses desvios bizarros da magia sacra não devem fazer com que se esqueça o valor da palavra. Ler em voz alta as fórmulas mágicas é conferir-lhes efi­cácia e realidade. A língua hieroglífica é baseada, em grande parte, num “alfabeto” sagrado que inclui letras-mãe (consoantes e semiconsoantes). As vogais não são notadas, são elementos perecíveis, passageiros, depen­dendo de uma época e um lugar. Em troca, “o esqueleto de consoantes” é o elemento imortal da língua. Esta idéia de um valor mágico da lingua­gem foi conservada durante muito tempo. Na época copta, um amuleto preservava vinte e quatro nomes mágicos, cada um deles iniciado por uma das letras do alfabeto grego.[15]

“Eu sou a Grande Palavra”‘, declara o faraó,[16] indicando desse modo que é capaz de dar vida a todas as coisas. Há uma palavra secreta nas tre­vas” [17]. Qualquer espírito que a conheça escapará à destruição e viverá entre os vivos. O viajante do Além descobre-a e reveste a magia que irá permitir-lhe manejar a varinha de um deus verdadeiro. Quem possuir a fórmula será capaz de fazer a sua própria magia.[18]

Quando os deuses falaram, rasgaram o nada e abriram a via às forças da vida. Eis a razão por que o mago repete as palavras dos deuses, como as de Hórus que afastam a morte, extinguem o fogo dos venenos, reentregam o sopro da vida e arrancam o homem a um destino maléfico. Palavras e fórmulas pronunciadas não são ditas por acaso; inspiram-se em lendas sagradas, em ações acontecidas nos tempos divinos e que se repe­tem no mundo dos homens. Uma fórmula mágica só é eficaz na medida em que remonta a uma alta antigüidade ou, mais exatamente, à origem da vida. A fórmula de oferenda, por exemplo — peret kheru —, significa: “o que aparece na voz”, sendo apenas o Verbo capaz de animar a matéria.

O título geral para a fórmula mágica é “fórmula para...” e se tornar, ser, ter poder sobre. Deve ser lida, recitada, decorada, compreendida, gravada, utilizada como um verdadeiro utensílio espiritual e material. Repetir quatro vezes um texto mágico torna-o plenamente eficaz, mas é igualmente necessário prestar atenção ao som, ao ritmo, à salmodia.

A matéria-prima do mago é essa palavra que, acrescentando-se ao gesto, produz o ato mágico. Pelas fórmulas tornadas vivas, o mago encan­ta o céu, a terra, as potências noturnas, as montanhas, as águas, com­preende a linguagem dos pássaros e dos répteis. O alvo é considerável: a recitação correta das fórmulas torna-o capaz de aceder ao cortejo de Osíris e de fazer parte da confraria dos reis do Alto e do Baixo Egito, a sociedade iniciática mais fechada que é possível conceber.

As próprias divindades vêem-se obrigadas a obedecer às palavras de poder do mago: “Ó vós, todos os deuses e todas as deusas, voltai para mim o vosso ros­to! Sou o vosso mestre, filho do vosso mestre! Vinde a mim e acompanhai-me... sou o vosso pai! Sou um companheiro de Osíris, percorri o céu em todos os sentidos, explorei a terra, atravessei o mundo intermediário seguindo os passos dos Iluminados veneráveis, porque dete­nha inúmeras fórmulas mágicas”.[19]

O mago proclama-se eficaz pela sua boca, glorioso pela sua forma. Tendo cavado o horizonte e percorrido o Cosmo em todas as direções, recolheu o ensinamento dos bem-aventurados.

Aquele para o qual são recitadas as fórmulas beneficia-se de privilé­gios importantes: bebe a água do rio, sai para o dia como o deus Hórus, vive como um deus, é adorado pelos vivos como um sol.[20] Quem recita as palavras justas irá por toda parte e o seu coração ficará estável qualquer que seja a forma que adotar.[21] Ejaculará o seu sêmen sobre a terra, terá herdeiros que prosseguirão a sua obra. Nem o seu poder nem a sua som­bra serão presas dos demônios. E isso, acrescentam os redatores dos livros de magia, foi “um milhão de vezes verídico”.

Existe até uma fórmula para proteção contra qualquer morte, quer seja provocada por doença, por animais nocivos, por afogamento, uma espinha de peixe, um osso de pássaro, a fome, a sede, a agressão de huma­nos ou pelas divindades.[22] E preciso, com efeito, lutar incessantemente contra as agressões do invisível que se manifesta de mil e uma maneiras. Por isso, o mago recita com freqüência fórmulas complexas para afastar o desenlace fatal daquele que está asfixiado.[23] A falta de ar parece ter sido uma das obsessões dos egípcios, para os quais a respiração era uma das mais deslumbrantes manifestações da vida.

A magia evita também que o homem justo seja comido pelas serpen­tes. Para protegê-lo com eficácia, a melhor solução consiste em lhe dar a aparência de uma serpente, que será ele próprio capaz de engolir as suas perigosas congêneres.[24] Voltaremos a falar destes temas característicos da magia egípcia.

 

Magia de Estado, magia privada: os dois termos não são contraditó­rios, mas têm como alvo objetivos sensivelmente diferentes. A primeira atinge uma dimensão cósmica; a segunda, por vezes iniciática, arrisca-se a cair, em qualquer momento, no mau caminho que conduz aos poderes mais temíveis. Não acontece hoje o mesmo com as disciplinas científicas de que tanto nos orgulhamos?

A magia egípcia é uma visão do mundo que ilumina zonas ao mesmo tempo luminosas e obscuras da alma humana. Ela foi, muito antes da psi­canálise, uma via de pesquisa fecunda para o conhecimento da última realidade que há em nós. Serviu igualmente para manipular, não sem perigo, uma energia psíquica que a ciência mais racional começa a descobrir, tateante e com um certo espanto.

O Antigo Egito tem ainda muito a nos ensinar, tanto no domínio da magia como em muitos outros. Ouçamos, pois, os magos formular as suas certezas, as suas angústias, celebrar os seus sucessos e interrogarem-se sobre os riscos de insucesso. E também a nossa aventura que eles contam.


O MAGO, HOMEM DE CONHECIMENTO

Um pai de família egípcio, mago por acréscimo, vive um ritual coti­diano no seio da sua própria família. Quando esta está toda reunida, por ocasião de uma festa ou de uma circunstância considerada excepcio­nal, o pai torna-se o símbolo de uma força sobrenatural. Não se dirigem a ele de qualquer maneira e ninguém se permite jamais tomar a palavra. No Ocidente, freqüentemente temos perdido esse sentido do sagrado nas nossas ações mais simples. Ora, como escrevia Hermes Trismegistos, “o que está embaixo é como o que está no alto”. Ainda que este julgamento possa chocar, creio que um banquete como aquele que foi celebrado na noite de Natal em Luxor é uma cerimônia sagrada.

“O mago”, diz o meu anfitrião, “é um homem que conhece as coi­sas”. Os filhos dele aprovaram com um aceno de cabeça. Não dissimulei a minha surpresa. “Conhecer as coisas”... esta expressão, na aparência banal, é freqüente nos textos hieroglíficos. Significa: magicamente os deuses na Terra. “Conhecimento”, prosseguiu o mago de Luxor, “eis a palavra-chave da arte mágica”.

Quem ignora as fórmulas mágicas não poderá circular à sua vontade neste mundo ou no outro.* A ignorância prende o homem à terra, o reduz à escravidão. O mago está “informado” pelos deuses Sia, detentor da intuição das causas, e Hu, o Verbo criador. Tomam-no pela mão e conduzem-no até a um cofre misterioso. Abrem-no diante dele. O mago vê, então, o que está no interior: o próprio segredo da magia.[25]

 

* O capítulo 572 dos Textos dos Sarcófagos foi redigido para conferir o poder mágico àquele que viaja no reino dos mortos. É necessário apelar à corporação dos Seguidores de Hórus, sabedores entre os sabedores, que conhecem os segredos da origem. Forne­cem ao mago uma proteção onde quer que se encontre, com a condição de que seja apto ao conhecimento e não ceda ao esquecimento.

 

Intuição e Verbo: não é verdade que se trata, hoje como ontem, das duas “ferramentas” indispensáveis àquele que procura? Do encantador de serpentes dos campos de Luxor ao físico atômico mais “evoluído” não se manteve idêntica a via seguida: perceber pela intuição, formular pelo Verbo?

O mago não é um necromante nem um ocultista. Para o Egito, ele é um sábio e um sacerdote. Lê e escreve hieróglifos, conhece os livros anti­gos e as fórmulas de poder. É mago porque é conhecedor. A sua função oficial é concretizada pelo porte de um rolo de papiro, símbolo da abstra­ção e do conhecimento esotérico.

Esses fatos são desconcertantes para a nossa mentalidade moderna, que associa a magia aos videntes das festas populares ou às práticas mais aberrantes. O mago, na civilização do Antigo Egito, é uma personagem pública que faz parte do universo “normal”. O que seria “anormal” seria viver sem magia; em outras palavras, com os olhos e os ouvidos fechados. Apto para as mais altas funções, o mago ocupa um lugar importante na corte do faraó.

Nas aldeias, os magos locais, detentores de segredos técnicos por vezes muito úteis ao bem-estar de todos, são pequenos proprietários muito escutados e consultados a propósito de tudo pela população. Possuem o saber sem o qual cada um se sentiria em perigo.

Como sacerdotes, os magos recebem uma iniciação sacerdotal. Os que ocupam o cimo da hierarquia são submetidos a um modo de vida que Porfírio evocava nestes termos:[26] “Pela contemplação, atingem o respeito, a seguran­ça da alma e a piedade, pela reflexão, atingem a ciência: e, pelas duas, ascendem à prática de costumes esotéricos e dignos dos tempos de outrora”. Não esqueçamos que o che­fe dos magos é o próprio faraó, que transporta as coroas carregadas de magia, a mais concentrada e eficaz.

É a entrada no conhecimento que autoriza o mago a declarar: “Eu sou o mestre da vida a qual se renova eternamente, e o meu nome é Aquele que vive dos ritos”.[27]Como khery-heb, título que significa “aquele que está encarregado do livro dos rituais”, ele lê em voz alta os textos sagrados, dando-lhes uma anima­ção mágica que os torna plenamente eficazes.

Era nas salas secretas da Casa de Vida que o mago se iniciava na lei­tura e na compreensão desses textos utilizados nas cerimônias públicas e privadas. Existia uma Casa de Vida perto de cada grande templo, de tal modo que em nenhum ponto do território faltavam especialistas respon­sáveis pela primeira das ciências do governo: a prática dos rituais.

Algumas figuras se destacam no corpo oficial dos magos, nomeada­mente a do grande sacerdote de Heliópolis, cujo título egípcio, ur maú, significa “grande vidente” ou “aquele que vê o (deus) grande”. A sua ves­timenta ritual é uma pele de fera ornada de estrelas, da qual se poderá encontrar uma longínqua analogia no manto cósmico usado pelos reis da França nas cerimônias da coroação. O sumo sacerdote de Heliópolis, “chefe supremo dos segredos do céu”, é o guardião da mais antiga tradi­ção solar e de uma magia de luz que vela pelo renascimento cotidiano da força da vida. Com efeito, sem a aplicação da magia o sol não se levanta­ria em cada manhã.

Igualmente magos, os sacerdotes da deusa leoa Sekhmet são especia­listas em medicina e cirurgia. Práticos e conjuradores, a sua gama de com­petência vai da mais banal picadela de inseto ao mais grave traumatismo. Os seus êmulos mais modestos são curandeiros de aldeia, aptos a praticar os primeiros socorros. A comunidade iniciática dos construtores de Deir el-Medineh, a quem se deve a maior parte dos templos e dos túmulos do Império Novo, contratou um encantador de serpentes e de escorpiões de modo a poderem ser evitados eventuais incidentes.

 

Na boca do ser mumificado, estendido no solo, penetram raios de luz. O ressuscitado poderá, portanto, falar o Verbo, o que se traduz pela saída de um braço, símbolo da ação, para fora da mortalha. (As capelas de Tutankhamon)

 

A magia é indissociável das atividades que classificamos de “artísti­cas”. As instrumentistas de sistro, os dançarinos, os músicos (masculinos e femininos), componentes do pessoal dos templos, não existem para se sacrificar ao prazer estético, mas sim para banhar a alma das divindades com eflúvios harmoniosos para poderem continuar a velar pelo equilíbrio e serenidade dos homens.

Nada é gratuito no mundo mágico do Antigo Egito, onde tudo é jogo de correspondências sutis que só os iniciados na magia podem perceber.

 

Como se tornar mago?

A esta questão essencial não se pode responder com um “tipo de emprego”. A prática mágica não é aprovada com um diploma nem julga­da por meio de exames. O saber moderno, quase inteiramente codifica­do, não leva em conta, infelizmente, a experiência vital. Tal não era o caso em civilizações como a do Egito.

Existe, evidentemente, um método para se tornar mago. Mas esse método não é exposto de uma maneira racional. Os textos não o deixam na sombra, antes apelam ao nosso sentido intuitivo e à nossa inteligência do coração mais do que às nossas faculdades de dedução e análise.

O capítulo 261 dos Textos dos Sarcófagos intitula-se Tornar-se Mago. Eis o seu conteúdo. O adepto dirige-se aos magos que estão em presen­ça do Mestre do Universo. Pede-lhes respeito na medida em que os conhece, dado que eles lhe guiaram os passos. Não é ele aquele que o Único criou antes que fossem instituídas as duas refeições na Terra, o dia e a noite, o bem e o mal, quando o Criador abriu o seu olho único, na sua solidão? O mago apresenta-se como aquele que maneja o Verbo. É filho da Grande Mãe, daquela que pôs o Criador no mundo, desse que, no entanto, não tem mãe! O pai dos deuses é o mago em pessoa. É ele que os faz viver.

Estranho texto, na verdade. Nada há de técnico nessas páginas; tra­ta-se de um verdadeiro compêndio de metafísica e de espiritualidade que traz à luz um processo de criação. Únicas indicações práticas: o adepto manteve o silêncio durante a cerimônia de entronização, curvou as cos­tas, sentou-se em presença dos mestres qualificados de “touros do céu”. Eles lhe reconheceram a dignidade de “possuidor de potência” e de her­deiro do Criador.*

 

* É conhecido um ato de nascimento iniciático de um mago, assim relatado (Papiro mágico Leiden, 55): Eu sou a face do Carneiro. Juventude é o meu nome. Nasci sob a venerável Perseia, em Abidos. Sou a encarnação do grande nobre que está em Abidos (a saber, Osíris), sou o guardião do gran­de corpo (de Osíris) que está em Uupek (lugar sagrado de Abidos). Quer dizer que o adepto participou da reconstituição do corpo de Osíris disperso, provando assim a sua capaci­dade, antes de se identificar perante o deus ressuscitado.

 

O adepto veio tomar posse do seu trono e receber as marcas da sua função. Pertence-lhe o que veio à existência antes dos deuses. Também lhes ordena que desçam dos céus e venham ter com ele como sinal de deferência.

A aquisição da qualidade de mago resulta de uma entrevista com os mestres dessa matéria que julgam o candidato a respeito de seus conhe­cimentos esotéricos muito mais do que sobre a sua aptidão prática, que será desenvolvida posteriormente. Tal como o morto, ao aceder ao esta­do de ser iluminado (o akh), ele reencontra a vida no seu princípio, tam­bém o adepto consegue, do mesmo modo e enquanto vivo, comunicar-se com a luz da origem, contendo a magia na sua verdadeira pureza.

Primeira revelação feita pelos mestres: qualquer problema humano que se apresente ao mago tem um modelo no mundo divino. O mesmo acontecimento foi produzido à escala cósmica antes de ter uma repercus­são terrestre. Eis a razão por que o mago deve conhecer a genealogia divina, a teologia, os diversos relatos que dizem respeito à criação do mundo. Nisso encontrará todas as soluções.

Identificando-se com os quatro pontos cardeais, o adepto torna-se o Cosmo. Excelente método para conhecer as suas leis, captar as potências invisíveis e dirigi-las — pelo menos parcialmente — à sua vontade. No momento do ritual de investidura, o mago é despojado do seu “eu”, da sua visão demasiado pessoal do mundo, para permitir que o Cosmo o penetre. Talvez se recorresse a drogas para mergulhá-lo num sono artifi­cial enquanto os seus Irmãos o carregavam magicamente de energia de modo a prepará-lo para as suas tarefas futuras.

As potências invisíveis manifestam-se sob a forma de gênios bons ou maus. O adepto tem de confrontá-los. Mais ainda, identifica-se com eles, o que é o melhor meio de os conhecer e de adquirir o máximo de potên­cia mágica. Poderá lutar contra os gênios resolutamente maléficos, extirpá-los do corpo de um doente. Quando os gênios malignos atacarem um humano, uma cidade, um campo protegido por um mago de qualida­de, terão de se haver com um adversário de respeito.

 

O mago age invocando uma potência que lhe é superior e graças à qual ele se torna eficaz. A fórmula típica dos textos mágicos revela-nos a forma: “Não sou eu que digo isto, não sou eu Quem o repete, mas é o deus que o diz, e é seguramente o deus que o repete”.[28]

Não é, pois, o mago que fala, mas sim a potência divina através dele. Na luta do “bem” contra o “mal”, não há o confronto de um humano con­tra “alguma coisa” extra-humana ou super-humana, mas sim um duelo entre forças sobrenaturais, algumas delas positivas, encarnando-se no espírito e no corpo de um mago. O próprio paciente, quer se trate de um doente a curar ou de um “médium a manipular”, é identificado com uma divindade que não pode ser destruída. Que melhor segurança para esca­par a uma sorte demasiado cruel?

Apuleio (escritor latino, 125 d. C), o autor de O Asno de Ouro, notá­vel romance iniciático no qual se evocam os mistérios de Ísis e Osíris, era um mago de nomeada. Em sua obra, relata o encantamento de Lucius, transformado em burro, tendo de percorrer um longo caminho antes de recuperar a forma humana. Só a iniciação nos mistérios o libertará da pri­são da sua animalidade. Apuleio foi perseguido pelas autoridades judiciá­rias do seu tempo e acusado de feitiçaria num processo público, tendo de pôr à prova todas as possibilidades da arte da oratória para escapar a uma condenação. Apuleio nada ignorava da magia egípcia. “É”, escrevia ele, “uma arte agradável aos deuses imortais, uma das primeiras coisas que se ensina aos príncipes”.[29] De fato, o faraó, na sua “educação” ritual, é iden­tificado magicamente com as divindades.

Àquele que se torna mestre em magia é declarado ritualmente:[30]“Misturas-te com os deuses do céu e não é possível estabelecer diferença entre ti e um deles. O teu corpo é Atum (o Criador) para a eternidade”. Não seria nada fácil encon­trar melhor para afirmar que o mago acede às mais altas esferas do espí­rito. Ali se impregna de poder a fim de ser um interlocutor qualificado das forças do Cosmo. É de resto um “cosmonauta” antes de estes existi­rem, explorando universos desconhecidos após longa preparação física e psíquica.

O resultado desta aventura foi piedosamente recolhido nos textos de diversos livros: “Não há em mim nenhum membro privado de deus”, explica o mago, “Thot é a proteção de todos os meus membros. Eu sou Rê de cada dia (...) os homens, os deuses, os bem-aventurados, os mortos, nenhum nobre, nenhum sujeito, nenhum sacerdote poderiam apoderar-se de mim”.*

 

* Texto que comporta diversas variantes. Por exemplo: “Não há em mim nenhum membro que seja privado de deus e Thot é a proteção do meu corpo, a minha carne está na plenitude da vida, em cada dia” (...) “Aquele que dura milhares de anos’ é o meu nome, caminho em todos os sentidos no céu e na terra, o temor que eu inspiro reina nas entranhas dos deuses”. (Goyon, Rituels, 257)

 

Para dissipar qualquer ambigüidade, cada parte do corpo do mago é formalmente identificada com a de uma divindade. Por exemplo, a cabe­ça é a de Atum, o olho direito é o do mesmo Atum quando ele dissipa o crepúsculo, o olho esquerdo é o de Hórus que desalinha o dia da lua nova quando se corre o risco de se produzir uma lunação desfavorável, as narinas são as de Thot e de Nut (a deusa do céu), a boca é a da Enéade de Atum, companhia de nove divindades que rege o Cosmo, os lábios são os de Ísis e de Néftis, os dedos são serpentes de lápis-lazúli, as vértebras são os ossos das costas de Geb, o deus da Terra, o ventre é o de Nut, os pés são as abóbadas das plantas dos pés de Chu, o deus do ar luminoso quan­do atravessa o mar. Conclusão: “Não há nele membros que sejam privados de deus que porá a sua chancela sobre o que ele traçou, dado que os amuletos de Heliópolis lhe são aplicados”.[31]

Esta frase enigmática merece um comentário. Colocar uma chancela, para o egípcio, é inscrever o divino no real. Os selos reais são conhecidos desde a primeira dinastia. Mais tarde, os mais célebres terão a forma de um escaravelho, símbolo do “devir”. Em outras palavras, quando o rei toma uma decisão e a sela, está consciente do seu “devir”, das conseqüên­cias dos seus atos. Em magia, essa tomada de consciência é absolutamen­te necessária para não se extraviar. A aplicação dos “amuletos de Heliópolis” corresponde a um momento primordial da iniciação do mago. Reconhecido como apto para as suas funções, vê o seu corpo revestido das insígnias de poder que o Mestre mago, presidindo à cerimônia, mane­ja. Os amuletos são ditos “de Heliópolis” porque esta antiga cidade do sol era a capital da magia. São também colocados sobre a múmia para torná-la indeteriorável. É de resto um dos sentidos profundos da mumificação: identificar um despojo mortal com um corpo imortal para que a alma, munida com esse suporte, penetre no Além em país conhecido.

 

Figuras do outro mundo: seres de aparência humana, com coroas reais, ser­pente cujo corpo é semeado de cabeças humanas, objetos compósitos formados com coroas, cetros e facas. Outros tantos elementos de conhecimento e de sig­nos a identificar no caminho do viajante. (As capelas de Tutankhamon)

Todo morto mumificado, segundo os rituais, torna-se um mago capaz de ressuscitar. O egípcio não confia na simples crença para franquear o obstáculo do nada. O conhecimento parece-lhe ser um melhor caminho.

Luz do mago

Quando o mago volta o seu olhar para o céu, vê Rê, o deus-luz. Quando volta o olhar para a terra, vê Geb, príncipe das divindades e deus-terra. Essas duas divindades ajudam-no a conjurar o mal.[32] O con­curso de Rê é especialmente precioso: graças à luz divinizada, ele vê tudo e dissipa as trevas.

Rê tem o poder de mudar a morte em vida. Repete essa operação mágica a cada manhã, no lago de chamas, no momento de um combate encarniçado contra os seus inimigos que tentam impedir que a luz dê de novo a vida. O mago também trava essa guerra contra as potências das trevas.[33] Em primeiro lugar no momento da cerimônia de iniciação, depois na sua atividade cotidiana. Tem necessidade da luz divina para ser aquele que ilumina o Egito, as Duas Terras, vermelha e branca, que rejeita a obscuridade para se tornar o touro das montanhas do Oriente e o leão das montanhas do Ocidente, aquele que percorre em cada dia as extensões celestes. Quando abre o olho, a luz surge. Quando o fecha, a noite estende-se sobre o mundo. Os deuses ignoram o seu verdadeiro nome.[34]

Identificado com a luz que viaja ao longe, o mago liberta a estrada do sol para que ele possa seguir em paz.[35] Colabora, portanto, na obra solar de cada dia e na regeneração da humanidade.

Segundo o Antigo Egito, o estado de ser mais perfeito, que a via iniciática coroa, é o akh, a personalidade luminosa, irradiante, de eficiência sobrenatural. O corpo pertence à terra, o akh pertence ao céu. É este ser iluminado que Rê revela ao mago capaz de contemplar o sol, de descobrir o divino contemplando o astro diurno. Muito mais tarde, serão qualifica­dos de “iluminados” aqueles que tiverem recebido a iniciação; hoje esse termo tornou-se pejorativo. Ser-lhe-á preferido o de “Filho da Luz”, expressão egípcia que caracteriza o faraó, designando-lhe o seu verdadei­ro pai e conferindo-lhe a dimensão sobrenatural da sua função.

 

O mago astrólogo

A astrologia egípcia é um dos campos de pesquisa mais difíceis e menos explorados.* “Não há talvez país”, escreve Diodoro de Sicília[36]falando do Egito, “onde a ordem e o movimento dos astros sejam obser­vados com mais exatidão do que no Egito. Eles” (os astrólogos) “conser­vam há já um número inacreditável de anos registros em que essas obser­vações são consignadas. Neles se encontram informações acerca da rela­ção de cada planeta com o nascimento dos animais e sobre os astros cuja influência é boa ou má. No túmulo de Osimandias, em Tebas, havia no terraço um círculo de ouro de 365 côvados de circunferência, dividido em 365 partes; cada divisão indicava um dia do ano e ao lado estavam escritos o levantar e deitar naturais dos astros, com os prognósticos que os astrólogos egípcios fundamentavam no exame dos dias”.

 

* Infelizmente não existe nenhum estudo sério acerca deste assunto. A documen­tação existente é abundante, mas de manejo muito difícil. Será preciso esperar ainda muito tempo até que se possa dispor de um tratado de astrologia egípcia que, baseado nos textos hieroglíficos e nas representações de zodíacos ou de outros elementos celes­tes, forneça finalmente a verdadeira base da astrologia ocidental, tão deformada pela tra­dição greco-latina e pela maior parte das práticas atuais.

 

O zodíaco de Dendera, documento célebre que mereceria uma interpretação aprofundada, não é o único testemunho da astrologia egíp­cia que, na Época Alta, se centrava essencialmente na figura do faraó. Os horóscopos individuais só são atestados tardiamente. Mas o mago sem­pre se preocupou com as relações entre a sua ação e as disposições cós­micas. Segundo o capítulo 144 do Livro dos Mortos, ele leva em considera­ção a posição das estrelas no céu. Em silêncio e no segredo, consulta os livros de astrologia, apenas acessíveis a iniciados de longa data. Contrariamente ao que hoje se passa, a astrologia não é facultada a profa­nos. Mantém-se ciência de templo, que só mãos peritas e espíritos res­ponsáveis manejam.

Graças ao conhecimento das leis astrológicas, podem os bem-aventurados circular à sua vontade no céu, na terra e no império dos mor­tos. Acompanha-os o espírito do mago.

Quando faz as suas observações do céu, o mago grava sete vezes as suas pegadas no solo. Recita sete vezes fórmulas mágicas em honra da Coxa, quer dizer, da Ursa Maior, orientando-se para norte, para o eixo do mundo.[37]

Os conhecimentos astrológicos são um dos suportes necessários ao ato mágico. A familiaridade com os astros é indispensável para utilizar as forças do Cosmo, a ponto de poder capturar a luz e agarrar bem a lua com as mãos,[38] ou, por outras palavras, dominar a sua influência em vez de a suportar.

 

Segredos bem guardados e exigências rituais

“Isto”, afirma o capítulo 162 do Livro dos Mortos, “é um grande livro secreto. Não o deixeis ver a qualquer pessoa, seria um ato detestável. Aquele que o conhece e guar­da segredo, continua a ser. O nome deste livro é ‘a soberana do templo escondido’”.

Essas recomendações, formuladas em intenção tanto dos praticantes da magia como dos profanos imprudentes, não proibiam aos adeptos o acesso aos segredos. Impunham-lhes o silêncio em relação a indivíduos inaptos ou desastrados.

Sabemos como esse livro e os segredos nele contidos foram comuni­cados aos magos do Egito. O deus Thot reuniu os mestres em magia e entre eles foi recebido o postulante. Este lavou a boca, ingeriu natrão* e provou que era capaz de se juntar à Enéade, a corporação das nove potências criadoras.[39] Isso subentende que ele era capaz de levar a cabo, com sucesso, as experiências de base. Junto do mestre em magia que preenchia a função do deus Hórus, com uma máscara de falcão, o postu­lante teve a revelação das palavras e das fórmulas que datavam da época em que Osíris, o antepassado primordial, ainda estava vivo e reinava na terra do Egito.

 

 

* Natrão: carbonato de soda natural; servia aos egípcios para conservar as múmias. (N.T.)

 

A primeira prova para se poder concluir que o postulante compreen­deu bem o que lhe foi confiado, seria a de vencer uma víbora com chifres.

Sangue-frio, conhecimento da fórmula sonora que hipnotiza o réptil, segurança manual para poder dominá-lo: o futuro mago é confrontado com a sua morte.

Tendo triunfado na prova física, segue-se a revelação metafísica. Os mestres em magia revelam ao adepto que os dois deuses tão diferentes, mesmo tão opostos — Rê, o luminoso, e Osíris, o tenebroso —, são ape­nas um e o mesmo ser. É no interior da Casa de Vida que esse deus único é evocado, sob o nome de “Alma Reunida”, simbolizado por uma múmia envolta numa pele de carneiro.[40] Contemplando-a, o novo adepto reunia o seu próprio espírito e entrava no caminho da ressurreição.

Só um ser em estado de pureza pode aceder ao conhecimento dos segredos e da Unidade. É impuro o que é anti-harmônico, antivital. O homem está enredado nos próprios laços, não é naturalmente transparen­te à vida. A magia ensina-o a libertar-se dos entraves que ele impõe a si mesmo. A pureza exterior, a simples higiene tão apreciada pelos sacerdo­tes do Egito, é uma manifestação tangível da pureza interior. Por isso, o mago lava-se com freqüência. Com a boca purificada, as palavras que profere também o estão. O ato de lavar as mãos, assim como o de lavar os pés, desembaraçam-no de energias nocivas. “Os teus pés são lavados em cima de uma pedra, na margem do lago do deus”, diz o capítulo 172 do Livro dos Mortos. Este ato ritual era, portanto, considerado suficientemente importante para ser executado no interior do templo. Também se lavavam os pés de um rei no decurso de uma grande cerimônia, e é mais ou menos certo que esse rito real inspirou a cena dos Evangelhos em que Cristo dá grande importância ao ato de lavar os pés.

Uma vez purificado, o corpo é digno de receber um vestuário ritual. O capítulo 117 do Livro dos Mortos é uma fórmula específica para vestir o trajo uab, ou seja, “o Puro”, um verdadeiro “corpo novo”, de brancura imacula­da, que o mago deverá evitar manchar com atos contrários à harmonia.

Recebendo esse traje, o adepto recolhe-se e implora às divindades para que afastem dele as impurezas espirituais e corporais, que o traje de pureza lhe seja oferecido para toda a eternidade. Essa tradição será pre­servada até épocas mais tardias da civilização egípcia, uma vez que num papiro grego da Biblioteca Nacional (Paris) se pede ao mago que se vista com um tecido leve, que cante um hino e recite uma fórmula em presen­ça de um “médium” que está diante do sol.

Hoje, tal como outrora, não se pratica a magia de qualquer maneira nem em quaisquer condições. As exigências rituais estão assim indicadas no Livro da Vaca do Céu,[41] inscritas em colunas de hieróglifos nos túmulos reais do Império Novo: “Se um homem pronuncia esta fórmula para seu próprio uso, deve ser untado com óleos e ungüentos, tendo na mão o turíbulo cheio de incenso, deve ter natrão de uma certa Qualidade atrás das orelhas, tendo na boca uma qualidade diferente de natrão; deve estar vestido com duas peças de roupa nova, depois de se ter lavado na água da enchente, ter calçado sandálias brancas e ter a imagem da deusa Maât (a Harmonia Universal) pintada na língua com tinta fresca”.

Outras prescrições elementares:[42] “Que esta fórmula seja lida quando se este­ja puro e sem mancha, sem ter comido carne de rebanho ou peixe e sem ter tido relações com mulher”.

Assim preparado, respeitador de regras estritas, o mago está apto a traçar no solo o desenho sagrado em que se inscrevem, sob a forma de símbolos, as forças que manipula. Na “sala das duas Maât” (quer dizer, das duas verdades, a cósmica e a humana), vestido de linho, coberto de galena, devidamente purificado, ungido com mirra, calçado com sandá­lias brancas, o mago faz a oferenda de bois, galináceos, resina de terebintina, pão, cerveja e legumes. Depois traça o desenho ritual em conformi­dade com o que se encontra nos escritos secretos, sobre um solo puro, coberto de um branco extraído de um terriço que não tenha sido pisado nem por porcos nem por cabras.[43] Os construtores da Idade Média não agiram de modo diferente ao traçarem o seu “quadro de loja”, que em algumas lojas iniciáticas da Maçonaria contemporânea é efetivamente recriado a cada sessão de trabalho.

O mago é, desse modo, um verdadeiro mestre-de-obras, designado para conceber um plano. Cinge em torno da fronte “a faixa do conheci­mento” e faz esta espantosa declaração: “Os meus pensamentos são grandes sorti­légios mágicos que saem da minha boca”.[44]

Antes disso passou por um rito de ressurreição durante o qual se dei­ta numa esteira de junco, tornando-se uma múmia viva que entra magica­mente em contato com as potências superiores. O mago revive a paixão de Osíris, regressado do além-morte.[45]

 

O tribunal divino, os guardiães das portas, o barqueiro

Se um mago recita o livro secreto, sobre a terra, em favor de um homem, este não será despojado pelos gênios que, em todos os lugares, atacam quem cometeu o mal. Não será decapitado, não morrerá sob a faca do deus Seth, não será conduzido a nenhuma prisão. Entrará serena­mente no tribunal divino que espera todos os seres no crepúsculo da sua existência terrestre, e dele sairá justificado, desembaraçado do terror da injustiça.[46]

Eis, pois, um dos grandes serviços prestados pela magia: permitir ao justo apresentar-se de cabeça erguida, sem temor, diante dos seus juizes. Alguns egiptólogos, sentindo talvez preocupações com o seu próprio caso, acusaram os egípcios de serem “embusteiros”: teriam enganado os deuses, abusando da magia. Na realidade, isso demonstra uma ingenuida­de que nos deixa desarmados. É a magia do conhecimento que o tribunal põe à prova, não os “truques” de um ilusionista de feira. Se o homem não possui as leis dessa magia, está efetivamente desarmado e condenado de antemão a reviver um novo ciclo material, sem que isso implique uma reencarnação no sentido habitual do termo.

Outros perigos espreitam o adepto nas estradas do outro mundo. Para passar as quatro fronteiras do céu, o viajante deve convencer os guardas a deixarem-lhe a via livre, recitando-lhes as palavras daqueles cujos lugares são secretos.[47] Numerosos capítulos dos Textos dos Sarcófagos[48] evocam essas personagens sinistras, freqüentemente armadas com facas, velando lagos de profundidades insondáveis e caminhos que se alongam nas trevas, cruzamentos onde as pessoas se perdem. Só a magia aniquila o poder desses gênios inquietantes.

Uma outra personagem exige do viajante do Além qualificações mágicas de primeira ordem. Trata-se do barqueiro, que detém o tesouro entre os tesouros: a barca, graças à qual se pode atravessar as grandes extensões aquáticas dos campos celestes. Quando o iniciado exige utili­zar a barca,[49] o barqueiro submete-o a um interrogatório: “Quem és?”, per­gunta. “Sou um mago”, responde o adepto, que em seguida afirma estar “com­pleto, equipado, dispondo do uso dos membros”. Esta afirmação é considerada insu­ficiente. Terá de provar a sua qualidade de mago enunciando as diferen­tes partes da barca e as suas correspondências mitológicas e esotéricas. O profano não tem qualquer possibilidade de conseguir essa proeza. Em troca, o mago formado na profissão triunfa: comandará as cidades do Além, fará o inventário das riquezas do outro mundo e dará aos pobres aquilo de que têm necessidade na terra. O que significa que o estatuto social do mago é elevado: não se trata apenas de um “intelectual”, mas também de um gestor cujas competências são postas ao serviço dos mais desfavorecidos, embora se trate de um processo econômico dos mais estranhos.

O barqueiro, no entanto, ainda não está satisfeito. Exige do mago um saber matemático, traduzido na sua capacidade de contar pelos dedos. Cada dedo, cada “ato numérico”, tem um profundo significado.* Não se trata de um cálculo mental banal, mas sim de uma criação do mundo pelos Números e não pelos algarismos.

 

* Esta “contagem” muito especial exigiria por si só um longo estudo. Na nossa opi­nião, está na origem, ainda não assinalada, da Cabala numérica.

 

Outra questão que o barqueiro coloca ao mago: “De onde vens?”, terá a seguinte resposta: “Da ilha da chama”, quer dizer, do lugar do universo onde o sol trava, a cada manhã, um combate vitorioso com os inimigos da luz. Oriundo do sol, o mago tem um temperamento de guerreiro e de vencedor. Já o provou.

Fato capital: o mago revela ao barqueiro que descobriu o estaleiro naval dos deuses onde a barca se encontra em peças separadas. Não é ela análoga a Osíris desmembrado? Ora, o mago sabe o que fazer para reconstituí-la, pois possui a arte suprema.

Vencido por tanta ciência, o barqueiro inclina-se. Preenche as exi­gências formuladas pelo mago, põe a barca à sua disposição e regressa ao seu posto, esperando pôr à prova o próximo viajante.

 

Sair para o dia

“Aquele que conhece o livro de magia pode sair para o dia e passear na terra entre os vivos. Nunca morrerá. A eficácia disso foi testada milhões de vezes.” [50]

Cercam-no milhões de magos egípcios, eternamente vivos. “Saíram para o dia”, na luz, porque o poder mágico estava com eles e permitia-lhes afastar qualquer entrave à sua liberdade de movimentos.[51] Nem sem­pre têm forma humana, mas, como Gérard de Nerval sabia, escondem-se na pedra, na madeira ou no metal.

A “saída para o dia” está presente no ritual celebrado cotidianamente nos templos. De manhã, quando o sacerdote abre as portas do naos que contém a estátua divina, pronuncia estas palavras: “Abertas estão as portas do céu, sem ferrolhos estão as portas do templo. A casa está aberta para o seu mestre! Que ele saia quando Quiser sair, Que entre Quando quiser entrar!” [52]

É essencial, no Além, caminhar sobre os pés e não sobre a cabeça. Fórmulas mágicas evitam ao iniciado esse grave dissabor, permitindo-lhe percorrer normalmente os caminhos de água e de terra do outro mundo acompanhando a comitiva do deus Thot.

O mago avança pelos belos caminhos do Ocidente sob a forma de um ser iluminado, tendo adquirido e experimentado todos os poderes sem deles se ter tornado escravo. E identificado com o jovem deus nasci­do no Belo Ocidente, vindo da terra dos vivos, desembaraçado da poeira do cadáver, tendo enchido de magia o coração, e estancado a sua sede de conhecimento. Navega para o campo de juncos, um dos campos celes­tes.[53] Vai e vem pelos campos, cidades e canais do Além. Lavra, vê Rê, Osíris e Thot em cada dia, tem poder sobre a água e sobre o ar, pode fazer tudo o que deseja, como o iniciado da abadia de Telema. A vida está no seu nariz, não morrerá, vive no campo das oferendas em que estão fixadas as suas propriedades para a eternidade. Cumpriu o seu voto: tornar-se mago.[54]


O mago de Luxor e os filhos dele não ficaram de modo algum sur­preendidos com os velhos textos aos quais eu me referira. Encontravam nesses textos o eco de uma prática secular, transmitida de geração em geração. Quem poderia duvidar dos imensos poderes de um mago, baseados na sua capacidade de conhecimento? O seu único verda­deiro temor, neste mundo e no outro, é o de ser privado de suas capaci­dades mágicas em conseqüência da intervenção de alguma potência maléfica. Mas ele dispõe de uma fórmula especial para afastar esse perigo: “Não permitir que o poder mágico de um homem lhe seja retirado no reino subterrâneo”.[55]

Adquirida esta certeza, é preciso combater o mal que tenta sempre atingir os seres em estado de menor resistência. O mago, referindo-se a combates realizados no mundo divino, afasta as influências nocivas, tal como o deus Rê, que se salvou do temível crocodilo Sobek, e Hórus, que se salvou do lúbrico Bebon.[56]

Combater o mal exige técnicas elaboradas. O mago extrai a força perniciosa do corpo do indivíduo atingido e transfere-a para outro lugar: por exemplo, para um animal. Ora aparece sob a forma masculina, ora sob a forma feminina. Por isso o mago desconfia especialmente dos espectros e das almas errantes, multiformes, difíceis de descobrir. Assim, ameaça destruir os túmulos de onde elas vêm, para privá-las da sua “base” terres­tre, ou ameaça suprimir-lhes as oferendas, para fazê-las morrer de fome.

É fácil compreender que a fama dos magos do Egito se tenha difun­dido com tanto brilho em todo o Mundo Antigo. Segundo os autores gregos e latinos, eles sabiam curar os doentes, utilizar ervas, predizer o futuro e até fazer chover. [57] Os verdadeiros poderes mágicos foram, infe­lizmente, reduzidos a operações simplistas, como o fato de dar a uma mulher uma cabeleira esplendorosa que nunca ficará branca, ou lançar sobre um inimigo um sortilégio para que fique careca. O Papiro de Leiden expõe assim uma série de práticas espetaculares: praticar a adivinhação, afastar os maus espíritos, fabricar ungüentos, favorecer os sonhos, fazer uma mulher ficar apaixonada, matar os inimigos, utilizar uma fórmula para repelir o medo que domina um homem de noite ou de dia. Tudo isso repousa em bases tradicionais, pouco a pouco esquecidas.

Para se fazer adivinhação, utiliza-se um vaso cheio de água. Identificado com Hórus, o Antigo, grande deus cósmico, o mago inter­roga os deuses por intermédio de um “médium” jovem que carrega em si a verdade. O mago ordena-lhe que abra os olhos, para que veja a luz. E necessário, a todo custo, afastar do “médium” as trevas, de modo a que o seu espírito penetre no mundo dos deuses e encontre a resposta para a pergunta que foi formulada. O vaso é um excelente suporte para comunicar-se com o céu e o mundo intermediário.[58]

O mago é capaz de adormecer a si mesmo, criando um sono hipnó­tico ao colocar-se diante de uma luz ou contemplando a lua, ou ainda recitando sete vezes uma fórmula mágica.

Entre as técnicas mágicas oficiais, o oráculo vivenciou um grande sucesso no Egito do Império Novo e na Época Baixa. O mago de Estado coloca questões a uma estátua divina da qual espera uma resposta, por vezes concretizada por um gesto, quando a efígie sagrada inclina a cabe­ça para dizer “sim” ou “não”. Os clientes “particulares” consultam as divindades em pequenos oratórios, quer oralmente, quer por escrito, acerca dos assuntos cotidianos que preocupam a humanidade: a promo­ção social, o futuro, os bens materiais, o amor.

Nunca será demais sublinhar que qualquer aquisição de poder mágico repousa no processo de identificação abundantemente ilustrado nos textos egípcios. O mago “torna-se” as forças que criam o mundo: por exemplo, a Abundância personificada. Não para o seu próprio benefício, mas para que um paciente se beneficie dos efeitos benéficos da sua arte.

 

Magia dos templos e das cidades

Nos templos, a magia está onipresente. Pela prática dos rituais, pelo próprio significado da arquitetura e da escultura, mas também em conse­qüência de uma realidade surpreendente: as imagens gravadas nas pare­des são animadas, vivas. Adquirem vida quando as palavras rituais são pronunciadas. No momento da cerimônia matinal, a mais importante do dia, a imagem do faraó “desce” — ao mesmo tempo e em todos os tem­plos do Egito — das paredes onde está e encarna no corpo do sacerdote encarregado de agir em seu lugar.

Segundo uma estela da época de Ramsés IV os próprios templos são protegidos magicamente por amuletos e fórmulas de modo a que seja expulso todo o mal do seu corpo. “Corpo” é a palavra justa, uma vez que cada santuário é considerado um ser vivo.

Tudo que se encontra nos templos (estelas, baixos-relevos, mobiliá­rio etc.), assim como nos túmulos, deve ser preservado magicamente. Quem ousasse levantar a mão sobre esses objetos ou sobre os decretos administrativos registrados nas paredes dos monumentos pereceria sob o gládio de Amon ou o fogo de Sekhmet, a deusa leoa.

As cidades, tal como os templos, gozavam de uma proteção mágica. O caso da aglomeração tebana é característico.[59] Tebas, Hermontis, Medamud, Tod eram os quatro santuários do deus Montu. O de Medamud continha quatro estátuas, lar mágico para o conjunto da região. Um texto explica que “Amon-Rê”, chefe dos deuses, está no centro do Olho direito, completo nos seus elementos (...) O que é Tebas, é Medamud: o Olho completo nos seus elementos pelo fato de que Sua Majestade, Amon-Rê, se encontra no número dos cinco deuses que fazem existir Tebas como um Olho direito completo. Os quatro Montu estão à sua guarda. Estão reunidos nesta cidade para repelir o inimigo de Tebas. Os Montu, divindades guerreiras, olhar aberto para o mundo, têm o encargo de pro­teger Tebas contra os seus inimigos visíveis e invisíveis. Com efeito, Tebas é considerada o Olho saudável e completo, o udjat, usado freqüen­temente como “amuleto”. O plano dos templos tebanos, especialmente o de Medamud, encarna esse Olho cósmico, chave principal do simbolismo egípcio. Não esqueçamos que o signo do Olho, em escrita hieroglífi­ca, significa “fazer, criar”.

Também existe uma fórmula para a proteção da casa familiar e dos seus elementos (a janela, as fechaduras, o quarto, a cama...). A cada um dos lugares da casa é destinada uma divindade protetora: um falcão fêmea, Ptah, chefe dos artesãos, “aquele cujo nome se encontra oculto” e outros gênios. Assim, os inimigos não entrarão nem de noite nem de dia.[60]

 

Vencer a morte

O mago é “especialista”, tanto da vida como da morte. Quando a alma abandona o corpo, tudo se desune. Os elementos que constituem o ser, até aí associados pelo fenômeno “vida”, deixam de coabitar. A morte é, portanto, uma passagem muito perigosa, porque os diferentes elementos correm o risco de se manter dissociados do outro lado do espelho. Dá-se então a “segunda morte”, a extinção definitiva do ser, possibilida­de que implica necessariamente a ação mágica: preservar a coerência do ser durante a passagem deste mundo para o outro, fazê-lo reviver do outro lado na sua plenitude.

A mumificação é um ato mágico. Conservar as vísceras em vasos especiais, os vasos de vísceras, é um dos cuidados a ter. Cada vaso é colo­cado sob a proteção de uma divindade, um dos filhos de Hórus, em número de quatro: Imseti, com cabeça de homem, protege o fígado; Hapi, com cabeça de babuíno, os pulmões; Duamutef, com cabeça de cão, o estômago; Kebehsenuf, com cabeça de falcão, os intestinos. Não são apenas os órgãos materiais que se beneficiam dos favores divinos, mas também os princípios sutis que esses órgãos abrigam. Segundo o esote­rismo egípcio, o ser é composto por diversas “qualidades”, sendo as mais conhecidas o akh, a irradiação, o ba, o poder de encarnação, e o ka, a potência vital. Existe também o heka, a capacidade mágica do indivíduo.* Cada elemento tem uma existência independente. A arte do mago con­siste em fazer com que todas passem pelas aberturas do céu, de modo que o ser completo possa ir e vir, dirigir-se para a luz.[61]

 

* O akh é simbolizado por uma íbis. Originalmente, é o poder sobrenatural dos deuses e do rei. O ba faculdade móbil do ser, evocada por um pássaro de cabeça humana. Os bau (plural egípcio do termo) das cidades são o seu poder sobrenatural, o seu gênio próprio. O ka é a Força; o ka dos alimentos, por exemplo, é o seu aspecto energético. Potência sexual, o ka é a animação da matéria.

 

Segundo a expressão extraordinária dos Textos das Pirâmides,[62] o morto não partiu morto, mas sim vivo. Esta constatação aplica-se ao faraó e aos iniciados regenerados pelos ritos. O objetivo da magia funerária é essa vida ressuscitada que necessita do funcionamento perfeito do coração-consciência, dos órgãos vitais, o livre deslocamento nos espaços celestes, o gozo das energias sutis contidas nos alimentos e nas bebidas servidos nos festins do Além.[63]

Se o mago deixasse de ser mestre na sua arte, isso seria uma catástro­fe cósmica. O sol não voltaria a levantar-se, o céu seria privado de deuses, a ordem do mundo seria subvertida, o culto deixaria de ser celebrado, todo o ritmo das coisas seria perturbado.[64] Enquanto mestre da energia, o mago permite às forças luminosas exprimirem-se em toda a sua plenitu­de. Um dos seus nomes mais freqüentes é “poderes de Heliópolis”, a cidade do sol. Essas forças engendram a prosperidade. Quando a energia se desequilibra, esses poderes deixam de se exprimir. As crianças deixam de nascer.[65]

A preservação e a transmissão da vida são ações mágicas. Corpos aparentemente inertes são animados por elas. Uma estátua, por exemplo, parece ser apenas um objeto de pedra. Pelo rito da “abertura da boca”, a estátua é tornada viva. Habita-a uma presença espiritual. Nas mastabas, túmulos do Império Antigo, o serdab, pequena e exígua peça, contém uma estátua — viva — do morto. O ka do defunto está presente nessa estátua. Beneficia-se da recitação das fórmulas, que lhe proporcionam a energia de que tem necessidade.

Os famosos “modelos” colocados nos túmulos não são brinquedos, mas sim objetos mágicos: por exemplo, as pequenas barcas de madeira com os seus remadores tornam-se, no Além, meios de transporte bem reais que permitem ao viajante vogar pelas águas eternas do Cosmo.

A vida é ameaçada por forças hostis, especialmente por almas que escaparam dos túmulos, por erros mágicos ou rituais incorretos. Erram, provocando graves prejuízos físicos ou psíquicos. Compete ao mago neutralizar essas almas, uma vez que no interior da Casa de Vida ele apreende os segredos do invisível. A quem conhece a estatueta chamada “Vida”, que é o coração desta instituição mágica, é dito: “Estarás ao abrigo da morte súbita, estarás ao abrigo do fogo, estarás ao abrigo do céu, que não se desmorona­rá, e a terra não se afundará e Rê não fará cinzas com os deuses e deusas”.[66] Esta estatueta “Vida” é mumificada, depois untada com ungüentos e uma substân­cia chamada “pedra divina”, sendo por fim deitada num caixão. E consa­grada antes de se lhe abrir a boca e de ser colocada numa pele de carnei­ro, uma “pele de ressurreição”. A “Vida”, assim protegida, é conservada num lugar da Casa de Vida onde é constantemente regenerada pelos ritos.[67]

Simbolicamente, a Casa de Vida é um pátio arenoso cercado por um muro com quatro portas, em cujo interior se ergue uma tenda para abri­gar um relicário que contém uma múmia de Osíris. Em torno existem várias construções: alojamentos, lojas, oficinas, onde se formam os espe­cialistas que são chamados para exercer funções rituais.

A magia dos ritos, no Egito, não é uma palavra vã. Ela dá realmente a vida e vence a morte. O mago coloca amuletos em cima da múmia, exe­cuta certos gestos, fazendo com que o “morto” passe do seu corpo humano para o seu corpo divino. As faixas que envolvem a múmia depen­dem de uma deusa, Tait, cujo papel consiste em preservar o corpo da decomposição. Ela é também a deusa que cria os vestuários reais.[68] Em outras palavras, a deusa confere uma qualidade real ao indivíduo mumificado ritualmente.

Abertura da boca, abertura dos olhos: atos que transformam o cadá­ver em ser vivo. O mago pratica a abertura da boca com uma enxó de fer­ro, faz uma fumigação colocando incenso sobre uma chama, purifica com a água da juventude.[69] E pedido a Ptah, pai dos deuses, que favoreça a abertura da boca e dos olhos tal como o fez para o deus Sokar, na oficina dos escultores de Mênfis chamada “a moradia do Ouro”.[70] Uma das mais belas ilustrações desse rito encontra-se no túmulo de Tutankhamon, no qual o rei Ai, vestido com uma pele de pantera, abre a boca do jovem rei morto, representado em Osíris.

Ponto capital: o Sarcófago não é um túmulo nem um lugar fechado. E considerado como um navio e como o ventre do céu. No Império Médio, pintam nas paredes exteriores portas falsas e dois olhos à altura dos do rosto da múmia. O espírito do “morto” entra no Sarcófago e sai. Do mesmo modo, o túmulo é um lugar de passagem. A porta falsa, inicialmente colocada no meio do lado leste da mastaba, estabelece a comunicação entre o aqui e o além. O espírito passa através da matéria.

 

O nome, chave do poder mágico

O conhecimento do nome é o verdadeiro conhecimento: pronunciar o nome é modelar uma imagem espiritual, revelar a essência de um ser. Ao nomear, cria-se. Conhecendo os verdadeiros nomes, ocultos ao pro­fano, vive-se uma mestria.

O mais grave para um ser é ver o seu nome destruído. Por isso a magia toma todas as precauções para que o nome dure eternamente.[71] Os elementos do nome, as letras que o compõem, são sons portadores de energia. Quando o mago fala ritualmente, utiliza esses sons como uma matéria animada, age sobre o mundo exterior, modifica-o se tanto for necessário.

Cada ser — incluindo as divindades — possui um nome secreto. O deus solar, Rê, não escapa à regra. O pai e a mãe tinham-lhe dado o seu verdadeiro nome, ocultado logo ao nascimento.[72] Alguns nomes secretos são revelados pelos textos no decurso de episódios curiosos. Assim, Hórus navegava numa barca de ouro, em companhia do irmão, quando este foi mordido por uma serpente. Ao chamar Hórus em seu socorro, o deus disse: “Revela-me o teu nome”. Só depois de preencher essa condição é que Hórus médico fez vir o grande deus para iniciar o processo de cura. Nessas circunstâncias, o irmão foi obrigado a aceder. Confessou: “Eu sou ontem, hoje e amanhã”, “sou um homem de um milhão de côvados, cuja natureza é desco­nhecida”, “sou um gigante”... Hórus escuta aquela litania, mas continua cético. O verdadeiro nome não figura entre os pronunciados. O outro inclina-se e, finalmente sincero, dá o seu nome secreto: “O dia em que uma mulher grávida pôs um filho no mundo”.[73] Hórus pronuncia então a fórmula da cura. Neste relato, devemos ver sem dúvida uma ilustração simbólica do andrógino, desse ser homem-mulher que existiu na aurora dos tempos, antes da separação do espírito em “homem” e “mulher”.

O mais célebre exemplo da busca do nome secreto é-nos dado pela lenda de Ísis e de Rê. A deusa fazia questão absoluta de descobrir o ver­dadeiro nome do deus da luz. Para atingir os seus fins, só podia dispor de uma arma eficaz: a magia. Como Rê estava com a idade avançada, a saliva caía-lhe no chão. Ísis utilizou esse material precioso: amassou-o com a própria mão graças à terra à qual aderia, e com essa pasta fez uma serpen­te que colocou no caminho por onde Rê passava. Mal protegido por seu séquito, o deus do sol foi picado pelo réptil. Muito admirado, Rê soltou um grito que chegou até o céu: “Que está acontecendo?”, admirou-se o mes­tre da luz. Tremeu, balbuciou. O veneno circulou-lhe nas veias, possuiu-lhe o corpo. Chamou então os deuses: que viessem junto dele, eles, que tinham saído do seu ser. Rê explica que foi picado por uma criatura mal­fazeja. Não a viu, não a conhece, ela escapa ao seu controle. Rê sofre atrozmente, nunca sentira semelhante dor. Pronuncia palavras que cada mago repetirá quando se identificar com o deus: “Eu sou um Grande, filho de um grande, sou uma semente que saiu de um deus. Sou um grande mago, filho de um gran­de mago (...) Tenho muitos nomes e muitas formas, a minha forma está em cada deus”.

Rê confia. O pai e a mãe ofereceram-lhe um nome que ficou secreto no mais fundo de seu íntimo — eis a razão por que nenhum mago, homem ou mulher, tem poder sobre ele. Mas agora foi atingido por um mal que não conhece enquanto passeava na Terra que ele próprio criou. Que dor insuportável é esta? Não é fogo nem água. O corpo treme-lhe. O frio começa a invadi-lo.

“Que venham os filhos dos deuses”, ordena ele, “aqueles que podem dizer palavras úteis, aqueles cuja boca é sábia, cuja habilidade atinge o céu”. Cada qual se apressa, cada qual tenta socorrer Rê.

Uma deusa era reputada pelas suas excepcionais qualidades mágicas e pela sua capacidade de dar o sopro da vida, reanimando quem já não respirava: Ísis. Ela vem e pergunta a Rê: “Que está acontecendo? Que significa este acontecimento?”. Constata-se que uma serpente mordeu Rê. Ela irá, pois, conjurar o veneno por meio de um encantamento apropriado.

O estado de Rê agrava-se. Está mais frio que a água, mais ardente que o fogo. Os membros estão cobertos de suor. Já não consegue ver.

Ísis aproxima-se dele. Felina, murmura: “Diz-me o teu nome, pai divino!”. Efetivamente, ela tem necessidade de o saber para formular a conjura que irá permitir a Rê continuar com vida. O deus responde: “Sou aquele que fez o céu e a terra, que enredou as montanhas e criou tudo o que se encontra em cima”. E acres­centa que pôs no mundo os elementos, os horizontes, que colocou divindades no céu. Quando ele abriu os olhos, nasceu a luz, quando os fecha, existem as trevas. Ele gera o fogo, os dias, os anos, as flores. Mas o seu nome mantém-se desconhecido. Sabe-se que se chama Khepri de manhã, Rê ao meio-dia, Atum à noite... Mas isso não basta para expulsar o vene­no. O grande deus não está curado.

Ísis constata: “O teu nome secreto não está entre os que me disseste! Confessa-o e o ve­neno sairá”. O estado de Rê continua a deteriorar-se. “Empresta-me o teu ouvido, minha filha”, diz ele a Ísis, “para que o meu nome passe do meu peito para o teu peito”.

Rê revela, então, o seu nome secreto a Ísis. Infelizmente, o ouvido dos humanos não era bastante fino para perceber as palavras pronuncia­das pelo deus. Só a deusa recebeu a confidência. Para conhecer o segre­do, para ouvir a palavra perdida, é preciso ser iniciado em seus mistérios.

Cada ser humano tem como missão procurar saber o nome secreto que lhe foi confiado ao nascimento, e do qual se deve tornar digno. Passar vitoriosamente na prova da morte é tornar esse nome duradouro como o de Osíris. A importância do nome é tal que é levado em conta pelos tri­bunais como valor sagrado. Assim, muda-se o nome de criminosos culpa­dos de terem violado um lugar santo ou de terem tentado construir uma moradia mais alta que a dos deuses. Primeiro grau do castigo: excluir do nome do acusado o do deus que poderia ser mencionado nele. Na cons­piração fomentada contra o faraó Ramsés III, os criminosos haviam utili­zado a magia para assassinar o monarca. Julgados, mudaram-lhes os nomes, tornando-os odiosos; cada um passou a ser chamado “Rê-o-odeia”, “Mau-em-Tebas”, “o maligno”. Esses nomes que apavoram são castigos em si mesmos. Pode-se ir mais longe e suprimir toda a lembran­ça do culpado fazendo-o desaparecer, ao passo que o nome é um elemen­to essencial para a sobrevivência. O morto sem nome é condenado à segunda morte. É destruído no seu ser profundo.[74]

No reino dos mortos, é preciso antes de mais nada recordar o pró­prio nome.[75] O mago apresenta-se como um construtor que merece um lugar proeminente no céu. O nome dele foi pronunciado nos templos. Recordou-se durante a noite de contar os anos e os meses, quando fez a sua iniciação nos mistérios em que os seus pares o identificaram como um adepto. Aos deuses, ele afirma com precisão que o seu nome é um deus que lhe reside no corpo.[76] Aos seres da luz que encontra no céu, ele declara: “Conheço os vossos nomes”.[77]

Mas o “verdadeiro nome” dos deuses nunca é pronunciado diante de profanos. Por vezes finge-se revelar o nome recitando uma série de sons incompreensíveis que não têm qualquer significado. Os iniciados da Casa de Vida desencorajavam desse modo os curiosos cujo objetivo era adqui­rir poderes pessoais e não o de decifrar o sentido profundo dos hierógli­fos. Com efeito, cada nome divino é formado com letras-mães que forne­cem o significado esotérico de cada personalidade divina. Tomemos um exemplo. O nome do deus chacal Anúbis é formado por um i, um n e um p, o que dá inp, de onde — com a introdução de vogais para poder pro­nunciar — Anúbis (a por i, que é uma semiconsoante em egípcio, b alter­nando com p). Ora, o Papiro Jumilhac explica claramente que cada uma das letras que formam o nome de Anúbis tem um significado preciso. Por elas, o deus tem poder sobre o sopro vital, a energia e a matéria, três qua­lificações indispensáveis para preencher o seu papel de embalsamador, de iniciador e de mestre-de-cerimônias nos ritos de ressurreição.

Conhecer os nomes secretos dá acesso aos campos celestes,[78] cujas portas são abertas por Rê e por Nut. Em cada porta do Além, o mago deve provar que conhece o nome do guarda e da própria porta. É neces­sário fornecer pormenores. Guardiã da passagem, Anúbis pergunta a quem deseja entrar: "Conheces o nome do dintel e do umbral?" E necessário responder-lhe: "Mestre de retidão que está sobre as suas duas pernas" (nome do din­tel) e "mestre de força que introduz o rebanho" (nome do umbral). Tal como em todas as confrarias iniciáticas, o viajante é testado.[79] Se os conhecimen­tos dele são suficientes, é-lhe dito: "Passa, uma vez que sabes!".

É preciso ainda escapar dos pescadores que apanham nas redes as almas dos mortos. Para fazer isso, o mago mostra que conhece o nome oculto de cada uma das partes da rede, e portanto nada terá a recear.[80]

Nascida no solo do Egito, a religião cristã não esquece a magia do nome. O mago copta identifica-se com Cristo, com Maria, manda nos deuses, nos espíritos e nos anjos, ameaça o diabo, reza, evocando os "ver­dadeiros nomes" graças aos quais espera obter a plena eficácia


 

OS UTENSÍLIOS MÁGICOS

Os amuletos

V

ivos e mortos gozam da proteção dos amuletos que trazem no cor­po. Esses objetos representam freqüentemente grandes divindades (Rê, Hórus, Osíris) que garantem uma excelente viagem nos céus, a segurança, a saúde e a felicidade. Os amuletos são “inscritos” em diver­sos suportes; por exemplo, papiro ou tecido. Dá-se um nó, enrola-se, suspende-se por um fio no pescoço: o importante é estar em contato com ele.

Quando o mago cria um amuleto, introduz num objeto forças essen­ciais para preservar a vida e garantir a imunidade de um corpo ou de uma múmia. Para que esta seja completamente protegida, é necessário utilizar cento e quatro amuletos diferentes que, ligados aos tornozelos ou aos pés, fazem circular a força mágica através de todo o corpo antes de atin­gir a cabeça.[81] Protegem do mal sob todas as formas.

Eis a razão por que uma boa mãe de família tem um conhecimento aprofundado da magia dos amuletos de que se serve para proteger o filho dos perigos externos. Não favorecem eles também o amor, a vitalidade, o sucesso no trabalho?

No preparo dos amuletos utilizam-se ouro, bronze, vidro, faiança, pedra. O Papiro mágico de Leiden ensina o modo de confeccionar um excelen­te talismã: uma tira de linho de dezesseis fios (quatro brancos, quatro verdes, quatro azuis, quatro vermelhos) é tingida com o sangue de uma poupa e liga-se a um escaravelho na sua atitude de deus solitário, vestido de bissos. Todo o universo religioso do Antigo Egito se revela no peque­no mundo dos amuletos: nele se pode ver toda uma plêiade de divinda­des, animais sagrados, elementos reais que conferem ao morto o estado de faraó (por exemplo, as coroas reais), conceitos abstratos como a Vida, a Saúde, a Força (simbolizados pela “chave de vida”, o papiro), o coração-consciência, a mutação do ser encarnado pelo escaravelho, a estabilidade por um pilar. Objetos vulgares têm um significado profundo: a escada permite subir ao céu, o travesseiro concede um sono reparador ao abrigo dos gênios malignos, os instrumentos de trabalho dos constru­tores (régua, nível de bolha de ar, esquadro, fio de prumo) revelam o modo como os Mestres-de-Obras trabalhavam.

Como é de regra na magia, é o Verbo que confere realidade aos amu­letos. Assim, os capítulos 155 a 160 do Livro dos Mortos intitulam-se: “Palavras a pronunciar sobre um pilar-djed em ouro, colocado no pescoço do bem-aventurado, sobre um laço de jaspe vermelho, sobre um abutre de ouro colocado no pescoço do bem-aventurado...” Efetivamente, bem-aventurado é aquele que se benefi­cia de semelhante segurança contra as forças do mal. O pilar-djed merece atenção especial. Por exemplo, numa cerimônia grandiosa que dizia res­peito à magia de Estado, o faraó punha em pé esse pilar deitado no chão, recriando, desse modo, a coluna vertebral do seu reino. Esse pilar é, real­mente, o eixo secreto do corpo de Osíris. Permite ao Estado ser estável, dado estar em conformidade com o divino. Sobre o pilar-djed, pronuncia-se esta fórmula: “As tuas costas pertencem-te, tu que tens o coração em repouso, as tuas vértebras pertencem-te, tu que tens o coração em repouso. Deitas-te sobre flanco, ponho água abaixo de ti. Vês, trouxe-te o pilar-djed, para que te regozijes”.[82] Fórmula enig­mática, cuja finalidade é a de ver o ser levantar-se, adotar um eixo, atingir a estabilidade necessária para durar.

 

Antes de pronunciar fórmulas sobre o pilar, o mago coloca-o em cima de um ladrilho de argila e é preparado um nicho na parede oeste do túmulo, voltado para leste; o nicho é então fechado com terra impregna­da de óleo de cedro. O pilar está invisível, mas está presente. Graças a ele, o túmulo é imutável e torna-se uma morada para a eternidade.[83]

Certos amuletos são surpreendentes, como a “mão de Atum”, deusa que expulsou do céu a tempestade e que lembra a masturbação primor­dial do Criador. Esta mão, qualificada de “Poderosa”, auxilia a luz a ven­cer o demônio das trevas. Afasta o sofrimento, a impureza.[84] Por isso, na ausência da mãe ou da ama-de-leite da criança, coloca-se em cima desta uma mão-amuleto para protegê-la. Esse amuleto não é mais do que “a mão de Ísis” que vela pelo seu filho Hórus e para ele busca bem-estar e saúde.[85]

A rã — na realidade a deusa Heket — é um amuleto que favorece a ressurreição,[86] em conseqüência do seu nascimento especial na vazante do Nilo. Os amuletos são ornados com os seres mais estranhos: personagens nuas, disformes, de cabeça raspada, ao mesmo tempo crianças e adultos,[87]cujo papel consiste em afugentar os gênios malignos.

Fato capital: os amuletos são eficazes para os vivos tanto quanto para os mortos. Como garantir as funções vitais, aqui na Terra e no Além, sem uma utilização inteligente dos amuletos? Graças a eles, o bem-aventu­rado tem a possibilidade de se juntar aos seguidores de Hórus, de gover­nar o mundo das estrelas.[88]

Na Época Baixa, os amuletos proliferaram, no seguimento de uma onda de uma magia popular cada vez mais ingênua, cada vez mais afasta­da das origens. Utilizam-se pêlos de boi, de cabra, ou substâncias mais ou menos atraentes para fabricar talismãs para uso corrente, vulgarizando-se. Nisso há apenas uma caricatura da magia.

 

O ouro e as pedras preciosas

Rê intervém para que se coloque ouro nas carnes do morto, desse modo tornando a sua tez florescente. Como se poderia significar melhor a dádiva ao justo da vida eterna?[89] No termo da mumificação feita corre­tamente, o mago constata essa transformação e exclama: “Ó, tu que acabas de receber as tuas dedaleiras de ouro e os teus dedos são de ouro, as tuas unhas são electro! A emanação da Luz chega até a ti, ela que é em verdade o corpo divino de Osíris. Estás regenerado pelo ouro, estás revigorado pelo electro. O ouro irá iluminar o teu rosto no mun­do intermediário, respirarás graças ao ouro, sairás graças ao electro”.[90]

O ouro é sinal de vida regenerada. A grande maga, Ísis, tem o cuida­do de fazer com que o iniciado renove a sua vida por meio do ouro inte­rior que descobriu. O rosto dele ilumina-se então com alegria. Aparece como “jovem rapaz nascido de novo”.[91] Esses textos evocam, com toda a evi­dência, uma iniciação de caráter alquímico.

Na cena da ressurreição do túmulo de Petosíris, em Hermópolis, o deus subterrâneo Osíris tornou-se divindade solar. Emitindo ouro, espa­lha a luz vital. Os iniciados nos mistérios de Thot revelam-nos assim que Osíris é indissociável de Rê, de quem saíram uma pedra e uma goma que se destinavam a tornar indestrutível a múmia do morto identificado com Osíris

Esta pedra de luz é decerto o protótipo da pedra filosofal dos alquimistas.*

 

* A origem das pedras preciosas, utilizadas como objetivos mágicos, é assim preci­sada: As pedras preciosas vêm para ti, rolam para ti em ondas desde o interior das montanhas, tornando-se protetoras nas entradas dos maciços de papiros (?), «os batentes da primeira porta da necrópole. (Goyon, Rituels, 49)

 

Nós e sombras

O mago egípcio passa uma boa parte do seu tempo fazendo nós. Um nó mágico é um ponto de convergência de forças que unem mundo divino e mundo humano. Os capítulos 406 a 408 dos Textos dos Sarcófagos são fór­mulas para conhecer os sete nós da vaca celeste. Para o mago, servirão para o momento de manobrar a barca em que atravessará os espaços celestes. Esses nós celestes tornam o corpo são e vigoroso, tendo de resto corres­pondências nos “nós” do corpo humano, os pontos sensíveis onde se encontram os fluxos energéticos dos quais depende a nossa existência.

Certas fórmulas, como as do Papiro mágico de Londres e de Leiden,[92] forne­cem precisões técnicas. Joga-se sobre o número, sobre a cor. O que está ligado na Terra também o está no céu, e inversamente. Cristo retomará por sua conta esta idéia simbólica da qual se encontram marcas nos papi­ros mágicos coptas. Possa a minha voz atingir-vos, declara o mago às potên­cias, vós, que desfazeis cordas, nós e cadeias, de modo a que possais desfazer sempre todas as cadeias.

A magia dos números é indissociável da magia dos nós. O número é considerado como um nó abstrato. Ainda nos falta um estudo aprofunda­do do simbolismo dos números no Antigo Egito. No entanto, estão pre­sentes a cada momento, até na magia do Estado. Um dos melhores exem­plos é o de um altar do culto de Heliópolis, uma mesa de oferendas for­mada da junção de quatro mesas[93] e sobre as quais se colocam pães que servem para as quatro direções do espaço, os “quatro Orientes”. Por outras palavras, o Cosmo é organizado a partir de uma unidade central que torna concreta a oferenda aos deuses. Na religião cósmica de Heliópolis, Quatro era o número da eficácia, do concreto, da eficiência. Sete é, sem dúvida, o número mais freqüentemente citado: cordas de sete nós, sete anéis de pedra e ouro, sete fios de linho... uma litania de exemplos seria necessária. O Papiro mago de Leiden[94] evoca um ritual em que o Sete está onipresente. Escolhem-se sete tijolos não remexidos, são manipulados sem que toquem a terra, e são dispostos ritualmente, estan­do o próprio manipulador em estado de pureza. Três deles servem de suporte a um recipiente que contém azeite, os outros quatro são coloca­dos em torno de um “médium”. Trazem-se então sete pães puros, sete blocos de sal, um prato novo cheio de azeite dos oásis. O conjunto é dis­posto em torno do recipente que contém azeite. O mago manda esten­der o “médium” sobre o seu ventre. Pronuncia um encantamento enquanto o “médium” olha fixamente o azeite sete vezes. Até a sétima hora do dia, pode-se fazer-lhe qualquer pergunta desejada.

 

O corpo de substituição

O corpo de substituição, freqüentemente designado sob o nome de “golem”, segundo as práticas da Cabala, é bem atestado na prática mági­ca do Antigo Egito. Esse corpo, também chamado “subsidiário”, não é somente manifestado pelas estatuetas encantatórias, mas também pelas numerosas estátuas reais ou privadas. Corpos de substituição que são ani­mados e carregados de vida, tal como os modelos de madeira que repre­sentam servidores, artesãos, soldados colocados no túmulo para ali vive­rem eternamente na plenitude da juventude e no exercício da sua função.

No caso das estatuetas de cera, trata-se de corpos de substituição contra os quais se desencadeavam as forças agressivas sob o controle do mago.[95] Os uchebtis, cujo nome significa “os que respondem (ao apelo do morto para irem ajudá-lo)” são, pelo contrário, suporte de forças construtivas. São pequenas personagens em madeira, faiança ou bronze que têm duas enxadas, e o seu corpo está coberto com um texto mágico. Trazem um saco que lhes pende das costas. Servem de substitutos mági­cos aos justos, indo trabalhar, a chamado deles, nos campos do Além. No Império Médio, data da aparição dos uchebtis, não há normalmente mais do que um em cada túmulo. Depois disso o número cresceu rapidamente. Na Época Baixa, havia caixas que continham por vezes mais de quinhen­tos. Essas representações são indissociáveis de um texto, o capítulo seis do Livro dos Mortos.[96] Trata-se de uma fórmula que obriga o uchebti a obe­decer. Este é encarregado das tarefas mais penosas: cultiva os campos, tra­ta da irrigação, transporta o limo que servirá de adubo. A qualquer pedido do mago, ele responde: “Estou aqui”. O modelo antigo desse capítulo do Livro dos Mortos aparece nos Textos dos Sarcófagos[97] onde se diz que o iniciado tomou posse do seu poder face aos deuses, aos espíritos e aos mortos. Ocupa-lhes os tronos. As tarefas ingratas deixam de lhe ser infligidas.

Para ser eficaz, a fórmula mágica deve ser pronunciada sobre uma imagem do proprietário da estatueta, enquanto se encontra na terra ima­gem feita de madeira de tamariz ou de zízifo que se colocará na capela mortuária.

 

Cartas aos mortos

Os egípcios pensavam que “vida” e “morte” não se encontravam separadas por uma barreira intransponível. O espírito daqueles a quem se chama “os mortos” viaja. E estes não são inacessíveis aos vivos, para os quais são por vezes benéficos e outras vezes maléficos. A comunicação com os seres do Além faz-se de várias maneiras, principalmente escrevendo-lhes.[98]

O objeto que mais freqüentemente serve de suporte às cartas aos mortos é uma tigela. Se o texto é muito longo, usa-se o papiro ou o teci­do. No princípio, as tigelas eram objetos de culto onde se depositava pão ou grão. Pensava-se que um morto, convencido a agir por meio de uma carta com bons argumentos, intervinha no destino dos vivos, de maneira positiva ou negativa. Quem desafia um morto arrisca-se a ser castigado pelo tribunal divino. Quem degrada um túmulo terá o pescoço quebrado como o de um pássaro. Quem entra num túmulo sem ser em estado de pureza ver-se-á sujeito a diversos males. Tudo isso prova que os mortos estão presentes na nossa vida cotidiana. Por que não pedir-lhes para resolver ou ajudar a resolver problemas tão complicados como “histórias de heranças”? Assim se implora a uma mãe falecida que tenha um papel de árbitro entre os seus dois filhos.

Entre as cartas aos mortos, uma delas é especialmente célebre. Trata-se de uma missiva endereçada por um marido descontente à sua esposa morta. O documento estava ligado a uma estatueta de mulher, em madei­ra, coberta de gesso e colorida, excelente veículo mágico para fazer che­gar a carta ao seu destinatário.[99]

Enquanto vivos, marido e mulher eram um casal feliz e afortunado; viviam em Mênfis no final do Império Novo. A esposa morreu em conse­qüência de doença incurável e o marido passou oito meses numa aflição profunda, quase sem beber nem comer, chorando incessantemente sobre o túmulo daquela que amava. Durante três anos o desgosto manteve-se. Mas ele sentia-se como que enfeitiçado. Escreveu então uma carta de protesto à sua esposa morta: “Que maldade me fizeste tu para que eu tenha chega­do a este penoso estado em que me encontro? Que fiz eu contra ti que possa justificar que mantenhas a mão sobre mim sem que eu tenha praticado qualquer maldade a teu respeito?... Pleitearei contra ti por meio das minhas palavras, perante a Enéade que está a Ocidente, e o julgamento será entre ti e esta carta que contém os dados deste assunto. Que fiz eu para que procedas assim?”.

A história não revela o que aconteceu após esta carta endereçada a uma morta. Este documento extraordinário permite, no entanto, consta­tar que o universo psíquico dos antigos egípcios estava aberto a todas as formas de realidade.

 

A lamparina

O Papiro mágico de Leiden[100] confere à lamparina um papel mágico espe­cial uma vez que ela é um dos elementos principais de um processo de vaticínio. Numa sala escura, faz-se um buraco na parede do lado leste e enche-se uma lamparina branca de azeite virgem proveniente dos oásis. Recitam-se as preces de adoração a Rê, de madrugada, quando o sol se levanta. Acende-se a lamparina, em estado de pureza. Intervém um “médium” de olhos fechados. O mago põe o dedo na própria cabeça. Sobre um braseiro, arde o incenso. O mago pede ao “médium” para abrir os olhos e olhar a lamparina. Vê perto dela a sombra de uma divindade. E esta que responde ao mago acerca dos assuntos que lhe interessam.

Ao mago compete manipular uma lamparina nova, com uma mecha pura. Sobre a mecha inscreve hieróglifos e símbolos, pousa a lamparina em cima de um tijolo, diante dele. Pronuncia fórmulas, tentando ver a divindade que se manifesta na lamparina para poder colocar-lhe as per­guntas. A divindade aparece-lhe sob diversos nomes. Dá a luz, sendo a amiga da chama, a presença divina instalada no fogo. O mago pede-lhe para se revelar, mesmo à noite, e de conversar com ele, dizer-lhe a verda­de sem nenhuma mentira.

Para praticar esse tipo de adivinhação, é necessário untar os olhos com um ungüento fabricado a partir das flores do feijão grego. Depois de as ter colhido, põem-se-nas num recipiente de vidro, que deve ser tapa­do e colocado durante vinte dias num lugar sombrio e secreto. Ao ser aberto, encontram-se um pênis e um par de testículos. Quarenta dias mais tarde, esse pênis torna-se sangrento, devendo então ser deposto num recipiente de vidro colocado numa cerâmica igualmente deposta num lugar secreto. O mago deve encher os olhos com o sangue devidamente recolhido. Quando pronuncia as fórmulas, deita-se sobre um entrançado de juncos, sem ter feito amor nos dias precedentes; dirige-se então à lam­parina, que viajou no espaço e recolheu a mensagem dos deuses.

Esses elementos complexos, pertencentes a uma magia tardia, mistu­ram mitos primordiais e práticas de feitiçaria. Só magos muito experien­tes seriam capazes de extrair os elementos positivos desse novelo onde o melhor e o pior se encontram lado a lado.

Os instrumentos mágicos do mago egípcio eram diversos e numero­sos. Eram apenas utensílios. Corpos de substituição, amuletos, nós mági­cos etc. servem de suportes ao praticante. A força de criação reside na comunhão que se produz entre o seu espírito e o universo, não em sim­ples objetos.

E certo que existem objetos ditos “carregados”, nos quais subsiste a marca mais ou menos viva das operações mágicas para as quais serviram. Mas é ainda necessário conhecer a fórmula que desperta essa energia oculta. Como se poderia atingir esse objetivo sem dominar as forças ele­mentares?


 

O DOMÍNIO DOS ELEMENTOS

Não abordaremos neste capítulo o domínio da terra, por causa de uma chamada de atenção do meu anfitrião de Luxor. “A terra”, disse-me ele, “pertence às serpentes e aos escorpiões. É a nossa mãe, mas é uma mãe exigente, perigosa. O mago não é um ingênuo. Para conhecer os tesouros da terra, devemos em primeiro lugar conquistar a amizade daqueles que os defendem. Mas isso é impossível para quem não seja um homem de água, de ar e de fogo”.

Estranhas palavras que, no entanto, não teriam surpreendido um egípcio do Império Antigo, habituado a viver em harmonia com os ele­mentos. Não os via com olhos insensibilizados. Sabia que eles detinham uma parte do segredo da sua própria vida.

 

A água e a barca

Todas as águas vêm do Nun, oceano primordial que cerca o mundo. Em cada noite, o sol entra de novo no Nun, regenera-se e sai dele purifi­cado e renovado em cada manhã. Os lagos sagrados dos templos contêm precisamente essa água primordial na qual os sacerdotes se purificam.

Os Textos das Pirâmides fornecem uma fórmula mágica para obter o domínio da água.[101] Diz-se que o Nilo celeste está à disposição do mago que se identifica com o grande deus cujo nome não é conhecido dos espí­ritos das ondas. Ele pronuncia estas palavras: “Ó Hapi, príncipe do céu, refresca-me o coração graças à tua água corrente! Faz com que eu tenha poder sobre a água... Dá-me a água que existia antes dos deuses, uma vez que vim à existência no primeiro dia”.[102]Para estar certo de o conseguir, o mágico transforma-se ele mesmo em deus do Nilo, senhor das águas que permite o crescimento da vegetação. Eis a razão que leva o seu poder mágico a subsistir no Céu e na Terra.[103]

O mago banha-se com Rê nas extensões de água celestes. Está cer­cado por Órion, Sothis e a estrela da manhã. Eles colocam-no nos braços da sua mãe Nut, o céu. Desse modo escapa ao furor dos danados que caminham de cabeça para baixo.[104]

Água purificadora, água onde se banham, mas também água que ser­ve de suporte aos deslocamentos no Cosmo. Segundo a mais antiga reli­gião, o faraó vogava sobre flutuadores de junco nos espaços celestes. Cada mago, na seqüência do faraó, deseja “subir ao céu, embarcar na barca de Rê e tornar-se um deus vivo”.[105] O mago pode utilizar um vaso para ver essa bar­ca do sol. Pede à mãe dos deuses que lhe abra o céu, onde ele verá os navios divinos subirem e descerem.[106]

Pronunciam-se fórmulas mágicas sobre uma barca de Rê pintada de branco, colocada num lugar puro.[107] Diante dela, a imagem do bem-aventurado. O mago desenha uma barca da noite à sua direita e uma bar­ca do dia à sua esquerda. O capítulo 133 do Livro dos Mortos fornece uma explicação pormenorizada: “Palavras a dizer sobre uma barca de quatro côvados de comprimento pintada com pó (?) verde, tendo sobre ela a assembléia divina dos nomes, faz-se um céu estrelado, purificado com natrão e resina de terebintina. Traça-se então uma ima­gem de Rê em branco sobre uma tigela nova que será posta na proa da referida barca e coloca-se nessa mesma barca a imagem desse bem-aventurado que se pretende glorificar: assim se lhe permite viajar na barca de Rê”.

O mago que obtém poder sobre a água celeste torna-se o remo de Rê, que não se molha em líquido nem é queimado pelo fogo.[108] Identifi­cando-se com esse remo, o mago fica certo de poder “conduzir a sua bar­ca” sem hesitações. Quando é obrigado a nadar, é confrontado com a água de uma maneira mais direta e mais arriscada. Existe uma técnica apropriada: para proteger o nadador e o livrar de todo perigo, saúda-se um babuíno de sete côvados, de olhos de electro e lábios de fogo, nos quais cada palavra proferida é uma chama.[109]

O corpo contém água, indispensável à vida. Beber é um ato sagrado. O mago dispõe da água que vem de Elefantina e do próprio Nun. E capaz de se identificar com o pai dos deuses.[110] Existe um capítulo de “beber a água no reino dos mortos” que contém este apelo: “Vem a mim, em cada dia, tu que és a água do rejuvenescimento! Possas tu refrescar-me o coração com a água fresca da tua corrente! Possas tu conceder que eu tenha poder sobre a água como a Poderosa!”. Esta água prodigiosa será oferecida ao mago cujo espírito se situou na origem dos tempos.[111]

“A água fresca” é um dos nomes do mago rejuvenescido que conhe­ce a alegria de viver, de se mover segundo a sua vontade, de ser protegi­do, de aparecer em glória. Nut, a deusa do céu, e Néftis, a patrona do templo, vem até ele para trazer o Olho de Hórus, a medida de todas as coisas.[112] O iniciado saúda Rê.[113] Pede ao deus que lhe traga o leite de Ísis, a ondulação de Néftis, o desbordamento do mar, a vida, a prosperidade, a saúde, a felicidade, o pão, a cerveja, o vestuário, a alimentação: todo o conjunto de formas líquidas que proporcionam uma verdadeira beatitude. Ele deseja ver Rê quando ele sai como Thot, quando um caminho de água está preparado para a barca do sol.

O mago identifica-se com Osíris. Ora, Osíris fez uma longa viagem — em estado de cadáver — sobre as águas. O Olho de Hórus está junto dele quando ele flutua. O escaravelho Kheper plana por cima dele. Ao mago compete proteger o deus dos seres nocivos escondidos nas águas. Ele deve obter a ajuda dos deuses presentes nas suas barcas.[114] De resto, existe uma fórmula para franquear as águas repletas de gênios malignos: “Osíris está sobre a água, o Olho de Hórus está com ele. O grande escaravelho estende-se sobre ele. Não levantem os vossos olhos, habitantes das águas, para que Osíris possa pas­sar por cima de vós”.[115]

O Nilo abriga seres estranhos e malfazejos que espreitam os animais e os humanos que atravessam o rio. É preciso impedi-los de agir. O mago recita canções, “encantamentos de água”.[116] Os textos desses encanta­mentos são ultra-secretos. A seu respeito, é aconselhado: “Não os reveleis ao homem comum. É um mistério da Casa de Vida”. Algumas indicações permitem-nos conhecer uma parte do segredo. O mago utiliza um ovo que é “gran­de no Céu e na Duat” (mundo intermediário entre o Céu e a Terra). Dele nas­ce uma avezinha. O mago sai do ninho com ela. As palavras mágicas são para pronunciar sobre um ovo de argila que evoca o ovo primordial. Tendo-o na mão, o mago mantém-se à proa do barco que voga sobre o rio. Se um ser malfazejo vem à superfície e ameaça atacá-lo, o mago lança o ovo na água. O perigo é imediatamente afastado.

Estes “encantamentos de água” são por vezes fórmulas muito evoluí­das e isso porque o perigo ameaça freqüentemente, de maneira muito direta, o viajante ou o vaqueiro. O mago torna-se então muito solene nas suas declarações:[117] “Ó antigo que se rejuvenesce a si mesmo no seu tempo, idoso que se torna jovem! Fossais vós jazer com que Thot venha a mim pela minha voz! Para trás, aquele que habita na água; se aquele que se encontra na água for atacado, Hórus também o será! (Por outras palavras, a ordem do mundo seria comprometida.) Que aquele que se encontra na água não levante a cabeça antes de Osíris passar!”.

O próprio Rê toma precauções quando viaja de barco para ir visitar a sua Enéade. Os “donos da Duat” estão prontos para castigar o crocodilo que se ergueria contra a barca divina. As bocas dos habitantes da água são fechadas por Rê, as gargantas fechadas por Sekhmet, as línguas cortadas por Thot, os olhos cegados por Heka, deus da magia. Os quatro deuses que protegem Osíris, protegem igualmente quem quer que afronte a água, homem ou animal.

Outra fórmula muito impressionante: “Vem a mim, chefe dos deuses! Lança por terra, para mim, toda forma do mal, todo monstro que se encontra no rio! Transforma-os para mim em seixos na montanha, semelhantes a cacos de cerâmica espalhados ao longo doscaminhos.” [118] Com efeito, seria um processo radical: transformados em sei­xos, os seres nocivos das águas não poderão ameaçar mais ninguém.

Para lutar vitoriosamente contra as criaturas malfazejas presentes nas águas, o mago não hesita em se identificar com Amon, com Onuris, com Montu, com Soped nas suas funções guerreiras. Os que estão debaixo da água, impressionados, não se atreverão a vir à tona. Derivarão na corren­te, com as bocas seladas como as sete grandes caixas, fechadas para sem­pre.[119]

 

O ar

Os Textos dos Sarcófagos relatam uma extraordinária operação mágica:[120]tornar-se os quatro ventos do céu e conhecer o nome do deus responsá­vel pela escada do céu que permite o acesso ao paraíso. O mago tem o domínio desses quatro ventos,[121] que lhe permitem explorar todo o Uni­verso. O vento do sul, por exemplo, traz água, crescimento e vida.

O vestuário do mago é o ar que dá a vida. Ele criou o céu luminoso para substituir as trevas. Manifesta-se por meio das nuvens de tempesta­de, a amplidão do céu corresponde à medida das suas passadas.[122]

Mas o ar também contém perigos, especialmente miasmas que provo­cam doenças. Existem então fórmulas para dissipar o ar viciado do ano.[123]O mago apela à deusa abutre Nekhbet, que ergue a Terra. Pede-lhe para que venha até ele e enlace estreitamente em torno dele as suas duas gran­des asas. Desse modo ele poderá viver em boa saúde e receberá a coroa branca, insígnia de poder que está na cabeça do grande mago de Heliópolis. Vogará no oceano cósmico, na barca do dia, com a condição de pro­nunciar corretamente as fórmulas sobre um par de penas de abutre.

O ar que se respira deve ser purificado pelo mago. Em certos perío­dos — principalmente na mudança de ano —, o ar transporta elementos perigosos (miasmas, fluidos negativos, doenças). Só uma purificação má­gica, que é aliás parte de um ritual de Estado, permite que os humanos respirem um ar vivificante.

 

O fogo

Os seres nocivos transportam uma chama, um fogo destruidor que ameaça a vida. Para extinguir esse fogo, é necessário usar a água. Mas não uma água qualquer: a do Nun, o oceano primordial, que se manifesta como uma onda fresca.[124] O mago mistura os elementos* para reduzir a nada o fogo mau.

 

* A oitava fórmula do Socle Behague expõe assim a técnica do mago: “Fogo na água, fogo na água, fogo que saiu da água! A chama da minha boca trouxe o fogo, apago-o quando ele produz uma chama. A água apagará o fogo”.

 

As manifestações mais freqüentes desse fogo são as queimaduras. Não foi o próprio Hórus queimado pela chama da deusa leoa Sekhmet,[125]de cólera temível? Contra qualquer queimadura, o mago deve, de resto, lembrar a lenda de Hórus criança: um fogo tinha-lhe caído no corpo quando a mãe se encontrava ausente. O fogo era demasiado forte para uma criança tão pequena, ninguém a podia salvar. Ísis regressava da casa da tecelagem onde iniciava mulheres nesses mistérios — poderia ela extinguir a chama com o seu leite? É necessário recitar fórmulas sobre resina proveniente de uma acácia, sobre uma bolacha de trigo, sementes de alfarrobeira, colocintos, excrementos, em seguida queimar tudo isso para obter uma massa que se deve misturar com o leite de uma mulher da qual tenha nascido um menino. Em seguida aplica-se essa mistura em cima da queimadura e envolve-se o doente numa folha de rícino.[126]

Para a vítima de uma queimadura ou de um incêndio, o mago refere-se obrigatoriamente a Hórus. O deus estava tão gravemente atingido que só Ísis, a maga, era capaz de inventar um remédio para evitar o pior. Perto dela não havia água, e a deusa foi então obrigada a usar um líquido saído do seu próprio corpo: “Há água na minha boca”, disse ela, “e um Nilo entre as minhas pernas; venho para extinguir o fogo”.[127]

O fogo positivo e criador está contido no sol. O mago dirige-se a ele quando ele se levanta das trevas com o seu brilho: é ele que afastará a sombra morta que tenta arrancar da mãe o filho.[128] Existem fórmulas para dissipar as tempestades, de modo a permitir que o sol brilhe normalmen­te.[129] Mas a vitória nunca é adquirida de um modo definitivo, e o encanta­mento mágico deve ser renovado diariamente. Uma prova disso: a folha de papiro em que está escrito o nome da serpente é colocada numa caixa e lançada ao fogo todos os dias. Quando o sol se levanta, o ser da serpen­te arde.[130]

A manifestação de um deus é freqüentemente acompanhada por cha­mas que destroem adversários e seres nocivos, devorados por um fogo divino. “Ó rebeldes”, proclama uma fórmula, “o fogo de Amon está contra vós, nun­ca se extinguira. Aquele que está escondido na sua imagem, que esta dissimulado na sua forma, amaldiçoa-vos... Ele lança contra vós o fogo para vos reduzir a cinzas”.[131] Por isso, os inimigos mais perigosos verão os seus projetos reduzidos a nada.*

 

* Outra fórmula de destruição dos inimigos por meio do fogo, que impede igual­mente a serpente de lançar o seu ataque: “A chama contra o céu, a flecha (de fogo) contra a ter­ra! A flecha (de fogo) contra a terra, a chama contra o céu!”.[132]

 

Na fronte do faraó, a serpente uraeus é uma chama viva que calcina os inimigos do rei. O mago identifica-se com a uraeus; torna-se suficiente­mente forte para cortar cabeças. Aguçada é a chama que se encontra na sua boca, contra as facas que estão nas mãos dos deuses hostis e dos quais nada mais há a temer.[133]

O fogo destruidor revela-se igualmente protetor. Os Textos dos Sarcófagos evocam o círculo de fogo que cerca Rê e o protege enquanto ele se encontra na cabine da sua barca solar. O mago deve usar uma fór­mula para expulsar esse círculo:[134] o fogo é momentaneamente extinto para que ele possa aceder ao interior do sol.

“Entrar no disco solar” é um tema iniciático excepcional.[135] O mago pro­vou a sua competência estabelecendo a ordem cósmica à glória de Rê e abrindo o olho misterioso que dá à luz a humanidade. Uma figura estra­nha nos Textos dos Sarcófagos[136] mostra um ser divino, sentado num trono e cercado de ovais. É o símbolo esotérico de Rê, pontificando numa ser­pente chamada Mehen. Evoca um número enorme de ciclos e de anos. Caminhos de fogo protegem esse sol secreto. O mago conhece os cami­nhos sombrios pelos quais circulam Hu e Sia, o Verbo e a Intuição. Ele conhece o “circuito de Rê”, a curva do Universo.

Uma fórmula serve para entrar no fogo e para dele sair.[137] O mago é um ser cuja forma é invisível no meio do fogo. E ali que ele aprende a manejar uma faca, que não é mais do que um raio de luz. O mago torna-se o fogo no reino dos mortos, em cada lugar do Ocidente,[138] zona obs­cura à qual leva o calor. Ele se torna a chama que se move diante do ven­to, na extremidade do céu e da terra, que atravessa os espaços.[139]

Dominador do fogo, o mago vive da harmonia das esferas, Maât. É também mestre da eternidade. Cria a alegria, conhece as palavras secre­tas inscritas nos rolos mágicos. Ele será como Rê a leste do sol, como Osíris no mundo inferior.[140]

Usa-se uma fórmula “para fazer nascer a chama na cabeça do justo”: trata-se do famoso hipocéfalo, disco de tela, de papiro ou de bronze colocado sobre a cabeça da múmia.[141] Essa chama fazia do cadáver um ser vivo: o protótipo simbólico do nimbo cristão, essa auréola de fogo que cerca a cabeça dos santos. Sobre esse hipocéfalo, por vezes pintado de ouro, inscrevem-se fórmulas e pintam-se gênios protetores.

Os archotes utilizados nos rituais são preparados pelos iniciados nos segredos do fogo.[142] Ao mago recomenda-se a preparação de quatro reci­pientes em argila misturada com incensos, cheios de leite de uma vitela branca; os archotes serão ali extintos no fim do ritual. O mago pronuncia palavras sobre quatro archotes feitos com tecido vermelho impregnados com óleo da Líbia. São erguidos por quatro homens em cujos braços está traçado o nome dos filhos de Hórus. Respeitando essas regras, o iniciado terá poder sobre as Estrelas imorredouras.


O MAGO FACE ÀS DIVINDADES

Mostrava-se acolhedora para com as antigas formas divi­nas. Deuses e deusas do tempo dos faraós não desapareceram completa­mente do solo do Egito, ainda se encontram presentes nas consciências, mesmo que sob outros nomes e outros rostos. Alá é o mestre dos magos árabes de hoje... mas atrás dele uma sombra se perfila: a sombra de um deus enigmático, ora íbis, ora babuíno, um deus que sabia abrir os papi­ros selados.

 

Thot, mestre de magia

Thot, o senhor de Hermópolis, é o mestre dos hieróglifos e da magia. Na sua cidade erguia-se um grande templo cujas criptas secretas albergavam papiros mágicos escritos pela mão do deus. O mago assimila-se a Thot, tomando mesmo a sua forma animal: “Eu sou aquele que está no seu ninho, enquanto íbis venerável, Tbot é o meu nome”.[143]

Thot, primeiro mago, é o modelo de todos os seus discípulos. Guardião da sapiência, inventor da língua sagrada, astrônomo, matemáti­co, curou o Olho de Hórus, medida de todas as coisas. Segundo a Estela de Metternich, Thot é invocado como o deus “equipado” com o poder máximo. E capaz de conjurar os efeitos de um veneno de forma a que o doente não seja atingido irremediavelmente. Repele os rebeldes que se erguem constantemente contra Rê. Vem do céu por ordem do deus-sol para dar proteção aos fracos dia e noite.[144]

O mago faz um apelo a Rê para obter o auxílio de Thot: “O velho que rejuvenesceu no seu tempo, velho que se tomou criança, possas tu fazer com que Thot venha até a mim, ao meu chamado!”.[145]Thot desce do céu: combate o veneno do escorpião, cura aqueles que foram picados, especialmente Hórus, filho de Ísis.[146] Ao deus que sofre, ele diz: “A tua cabeça pertence-te, Hórus (ele terá coroas na cabeça), os teus olhos pertencem-te, o teu nariz pertence-te, os teus braços e os teus antebraços pertencem-te, o teu coração pertence-te, as tuas mãos pertencem-te, o teu ven­tre pertence-te, o teu pênis pertence-te, as tuas coxas pertencem-te, os teus pés pertencem-te”; em conseqüência desta integridade corporal: “Estás à cabeça dos países do sul, do norte, do oeste e do leste. Tu vês como Rê”.

Graças a Thot, os deuses possuem uma alma saudável num corpo saudável, e os homens iniciados também se beneficiam desse privilégio. O mago é um deus curador: “Eu sou Thot”, afirma ele, “mais velho que Rê, que Atum e a Enéade enviaram para que Hórus recobre a saúde por sua mãe Ísis, tal como aque­le que foi picado foi curado”.[147]

Mas Thot é também um mago que castiga: é-lhe pedido que afie a faca para poder cortar os corações daqueles que poderiam opor-se ao faraó quando este vier para Osíris.[148] Com o seu poder temível, Thot inter­vém com eficácia, dissipando as perturbações naturais e velando pelo equilíbrio do Cosmo. Assim é Thot cinocéfalo, macaco de sete côvados, que detém qualquer enchente excessiva do Nilo.[149]

O mestre dos magos não é avaro da sua ciência. Ensina os escribas, os pesquisadores, os magos, torna-os hábeis na sua arte. Um Livro de Horas precisa as funções muito extensas de Thot: “Senhor da escrita, proeminente na moradia dos livros, possui o olho sagrado... coração de Rê, língua de Atum, guia dos deu­ses que reduz tanta coisa, que reduz o tempo, chefe da justiça e vizir, mensageiro de Rê que exorciza os demônios, que põe tantas coisas no seu justo lugar, Thot que completa o Olhos de Rê e o Olho de Hórus”.[150]

Os documentos informam que Thot reina na inteligência e no pro­cesso intelectual em geral. São-lhe atribuídas a escrita, as palavras divinas, a separação das línguas criando o gênio de cada raça, as leis, bases da vida em sociedade, os anais, documentos reais oficiais, os rituais e o calendá­rio. Com efeito, não seria necessário ser um deus, mago ainda por cima, para executar tal obra?

Os escribas e os magos nem sempre se dão bem. Uma passagem dos Textos das Pirâmides relata um episódio estranho:[151] “Escriba, escriba, desfaz a tua paleta, Quebra os teus pincéis, destrói as tuas cartelas! Ó Rê”, exige o mago, “expulsa-o do seu lugar e põe-me lá... porque eu sou ele!”. Nos mesmos textos[152] encontra-se uma explicação: o faraó não deve ser privado da magia que está na sua mão. Os maus escribas que gostariam de guardar os poderes para si mes­mos veriam quebrados os seus instrumentos. O bom mago deve por vezes lutar contra colegas que desviam a magia do seu objetivo principal: a proteção da pessoa real.

Diligência eficaz: tornar-se secretário de Thot. O dono desse ofício verá abrir-se o cofre do deus, depois de se ter quebrado o selo. O mago toma conhecimento dos documentos mais secretos, aquilo a que se cha­ma “os textos funerários”,[153] que contêm as chaves da sobrevivência. Introduzido no círculo dos deuses, o mago apresenta-se como um deles, Seth à sua direita, Hórus à sua esquerda. O mago não vem de mãos vazias: traz amuletos que servem para a proteção de Hórus.

Thot intervém para fazer com que o iniciado avance no caminho do conhecimento. E ele que o introduz no interior do disco solar para lhe conferir o verdadeiro poder.[154] Thot enobrece o justo cuja cabeça está fir­me nos seus ombros. Recebe um cetro na barca da noite onde é admitido pela equipagem do sol. São-lhe reveladas as estradas do Mestre da totali­dade.[155]

Mas Thot não oferece os seus segredos a qualquer um. É necessário procurá-los, encontrá-los e mostrar-se digno. Semelhante descoberta é atestada em alguns textos egípcios. O capítulo 30B do Livro dos Mortos é uma fórmula que impede que o coração se lhe oponha no Além. Deve ser recitada em cima de um escaravelho em nefrita, montado em electro, sen­do o anel em prata colocado no pescoço do morto. Esse texto é de uma importância considerável, dado que o fato de o conhecer evita ao inicia­do uma condenação quando comparece num tribunal do além-túmulo. Ora, a fórmula foi descoberta sob os pés de uma estátua de Thot, na épo­ca de Miquerinos. A tradição também dizia que o texto estava gravado num tijolo de faiança, imagem da pedra da fundação sob a qual o templo repousava. Competia a cada mago procurá-la e descobrir a fórmula lega­da por Thot aos seus adeptos.

Como se vê pelo que precede, Thot é o patrono dos magos do Egito, que lhe devem a revelação da sua ciência. É a razão por que o mago com­pleto se apresenta como Thot descido do céu (Estela de Metternich). Ele afirma, com toda a legitimidade, quando recita o ritual: “Eu sou Thot, mestre das palavras divinas, aquele que age como intérprete de todos os deuses”.[156]

 

De Hórus a Bés

Os deuses-magos são concebidos como panteicos, ou seja, como uma potência “acompanhada pelos seus poderes decompostos sob forma visível, analisa­dos e justapostos, de alguma maneira, à imagem do deus que os contém”.[157] Além disso, o deus-mago maneja os instrumentos do seu poder, tal como os cetros, e usa coroas. Essas divindades complexas, estimadas pelos papiros tardios, passaram aos talismãs da Idade Média ocidental, prolongando desse modo a influência da magia egípcia.

Na origem, o mago identificado com Hórus recebe a proteção do céu e da terra contra qualquer morto ou qualquer morta, ao sul, ao norte, a leste e a oeste.[158] De fato, as palavras de Hórus têm um poder protetor excepcional: afastam a morte, voltam a dar o sopro vital ao oprimido, renovam a vida, alongam os anos, apagam o fogo, curam a vítima do vene­no, salvam o homem de um destino funesto. A magia de Hórus desvia as flechas do alvo, apazigua a cólera do coração do ser angustiado.[159]Thot, mestre dos magos, glorifica Hórus sobre a água e sobre a terra. Saúda-o, a ele que foi trazido pela vaca divina, aquele que Ísis pôs no mundo. Pronunciou-lhe o nome, recitou-lhe a magia, conjurou com os seus esconjuros, utilizou o poder que lhe vem da boca.[160]

Hórus, filho e herdeiro por excelência, touro, filho do touro e da vaca celeste, que possui sentenças eficazes, palavras poderosas transmiti­das por seu pai, a Terra, e sua mãe, o Céu, é invocado para que impeça a ação dos répteis que estão no céu, na terra e na água, os leões do deser­to, os crocodilos do rio. Esses seres nocivos serão reduzidos ao estado de pedras do deserto ou de cacos de vasos quebrados.[161]

Quando Ísis vem ver Hórus, ensina-lhe que ele é seu filho na região celeste. Saído do Oceano das origens, manifesta-se sob a forma da grande garça-real nascida no cimo de um salgueiro, em Heliópolis, irmão de um peixe profeta que anuncia os acontecimentos futuros. Foi nutrido por um gato na casa de Neit, patrona da tecelagem. Foi protegido por uma porca e um anão.[162] Como se vê, tudo é mágico nesta educação divina.

Cada parte do corpo de Hórus é animada magicamente, de modo a ser totalmente penetrado pelas forças do Alto e preencher as suas fun­ções: abater os inimigos do pai, vencer Seth, o rebelde, reinar nos quatro pontos cardeais. Protetor da realeza, Hórus desempenha um papel capi­tal de deus que cura. E visto espezinhando crocodilos, segurando escor­piões e insetos perigosos na mão, provando assim que nada tem a temer de criaturas que causam a morte. Outra função fundamental do deus: a de pastor. Hórus, o vaqueiro, guardava o seu rebanho, mas este foi ameaça­do por animais selvagens. Ísis e Néftis intervieram, confeccionando amu­letos. Assim foram fechadas as bocas dos leões e das hienas. Hórus expulsa-os pela magia, retira-lhes a força, provoca-lhes a cegueira. Identificado com o deus pastor, o mago exige que os animais ferozes se dispersem pelos quatro pontos cardeais.[163] O céu abre-se, libertando influências benéficas para o camponês, que desse modo goza da totalida­de do seu domínio em completa segurança. Nenhum ser maléfico se aproximará do seu campo.*

 

* No domínio da magia “agrícola”, digamos também que o mago se torna a cevada do Baixo Egito, a sarça de vida que saiu de Osíris, crescendo no seu costado para alimen­tar os homens, tornar os deuses divinos e espiritualizar os espíritos. O iniciado é o “grão fumado” dos vivos, o alimento daqueles que lhe sucedem sobre a terra.[164]

 

Na XVIII dinastia, surgiu Ched, o Salvador, uma curiosa figura que protege contra animais e insetos perigosos. Ched é um jovem que mata com as suas flechas os animais perigosos ou os agarra pela cauda. Na épo­ca mais tardia, confunde-se com Hórus criança. Nas estelas é representa­do em cima de dois crocodilos, uma máscara de Bés por cima da cabeça, cercado de fórmulas mágicas. Esses monumentos, uns modestos, outros grandiosos, são verdadeiros talismãs que garantem a segurança do Estado.[165]

Outro deus “mago”: Chu, que criou a ele mesmo e cuja forma é invi­sível. Está impregnado de poder criador, apazigua o céu, põe as Duas Terras em ordem.[166] Ora, o mago é Chu, filho de Atum: foi criado no nariz dele e saiu das suas narinas. O mago conhece a ciência dos espaços infinitos; para disso fazer prova, recita uma fórmula sobre os oito deuses que sustentam o universo, traçada com pigmento amarelo e ocre da Núbia sobre a mão de um homem.[167]

Na Época Baixa amplia-se a fama de Chu, filho de Rê, que se acredi­tava sustentar o céu. Em pé, no seu carro, afasta as feras. É considerado o “Salvador”, potência mágica capaz de arrancar o homem do abraço do mal.

 

 

O deus Seth é conhecido como o assassino de Osíris. Mas preenche um papel mais positivo: enquanto Hórus, atingido por uma violenta dor de cabeça, repousa numa almofada, o irmão Seth vela por ele, impede que as pernas sejam vítimas dos ataques de demônios desejosos de privá-lo do movimento.

Esta ação divina repete-se na Terra. O mago age como um tecelão: corta uma peça de pano e faz sete nós ligando-a ao grosso calcanhar do paciente.[168] Para conseguir isso, o mago deve identificar-se perante Seth, cuja força é considerável:[169] “Sou aquele que separou o que estava reunido”, afirma ele, “sou aquele que está cheio de vigor e de grande poder, Seth”.

 

Não esqueçamos que se deu ao morto uma mortalha perfeita, que é também a do iniciado renascendo para a vida em espírito: a pele de Seth.[170] A morada da ressurreição será, assim, o próprio ser do “inimigo”, do adversário vencido e dominado pelo poder mágico. Todas as técnicas de artes marciais se baseiam no mesmo princípio: utilizar a força do combatente que procura nos destruir para desenvolvermos o nosso pró­prio poder.

Seth é um curandeiro eficaz. Numa conjura especial contra a miste­riosa “doença asiática”, é chamado “Seth que apazigua o mar”. Desse modo, os líquidos do corpo humano também estarão em paz e a doença se afastará. Se necessário, ela será encerrada e sua boca ficará impenetrá­vel como a pele de tartaruga.[171]

Um papiro mágico de Paris ensina-nos que o mago invoca os deuses por meio de um vaso. Dirige-se a Seth-Tifon, considerado o deus dos deuses. O mago tem essa audácia porque venceu uma serpente invisível graças ao poder de Seth, que lhe permite fazer os deuses deambularem à vontade.[172]

 

Bés foi o deus mago mais popular dos últimos tempos do Egito. Já existia no Egito clássico, onde detinha o papel de iniciador da alegria, conquistada pela vitória sobre as potências das trevas. Bés é um anão bar­budo, com cara de leão e pernas encurvadas. Põe a língua de fora: símbo­lo da transmissão do Verbo, que freqüentemente se encontrará formula­do nos capitéis das catedrais. Bés aparece em estelas, vasos, amuletos, paredes dos templos. Aterroriza aquele que não o conhece, afasta o mago incompetente; com a sua faca ataca os demônios, forçando-os à fuga. Tem por vezes o corpo constelado de pequenos olhos: outras tantas proteções contra o mau-olhado. E por esse motivo que se ocupa muito da vida coti­diana, protegendo especialmente as mães que acabam de dar à luz.

Bés está igualmente atento à fronteira oriental do Delta: por ali che­gam os invasores. Mas é também ali que, em cada manhã, o sol combate vitoriosamente contra Apófis, a serpente.

Em Abidos, como hóspede do templo de Sethi I, Bés fornecia orá­culos e curava doentes.[173] O Papiro mágico de Brooklyn[174] indica que Seth dos sete rostos afasta morto e morta, inimigo e inimiga, adversário e adversá­ria, a porca, devoradora do Ocidente. Bés dispõe das forças temíveis de Amon-Rê que está à frente de Karnak, o carneiro de peitoral prestigioso, o grande leão nascido dele mesmo, o grande deus da origem dos tempos, senhor do Céu e da Terra, aquele cujo nome se encontra oculto, o gigan­te de um milhão de côvados.

Muito popular, Bés desafiaria durante muito tempo o cristianismo, que acabaria por relegá-lo ao papel de gênio malfeitor. Mas cada egípcio sabe que o deus barbudo e risonho está sempre presente, escondido nos templos. São numerosos aqueles que ainda buscam os seus favores.

 

Deusas da magia

À noção de magia liga-se imediatamente o nome de Ísis, que conhe­ce o nome secreto do deus supremo. Ísis dispõe do poder mágico que Geb, o deus da Terra, lhe ofereceu para poder proteger o filho Hórus. Ela pode fechar a boca de cada serpente, afastar do filho qualquer leão do deserto, todos os crocodilos dos rios, qualquer réptil que morda. Ela pode desviar o efeito do veneno, pode fazer recuar o seu fogo destruidor por meio da palavra, fornecer ar a quem dele necessite. Os humores malignos que perturbam o corpo humano obedecem a Ísis. Os “vasos”, pelas suas palavras, expurgam o que neles há de mau.[175] Qualquer pessoa picada, mordida, agredida, apela a Ísis, a da boca hábil, identificando-se com Hórus, que chama a mãe em seu socorro. Ela virá, fará os gestos mágicos, mostrar-se-á tranqüilizadora ao cuidar do filho. Nada de grave irá lesar o filho da grande deusa. Quem, como Hórus, surgiu do céu e das águas primordiais, não pode morrer.[176] Não é Ísis a Mãe de onde tudo provém e a quem tudo regressa?

Nut, a deusa do Céu, reina sobre um Cosmo mágico. O símbolo de Nut encontra-se freqüentemente no peito das múmias: uma mulher alada ou um abutre fêmea. Existe uma fórmula, pronunciada pela própria deusa, para lhe definir a ação: “Sou a tua mãe, Nut, alongo-me por cima de ti nesse meu nome do céu. Entrando na minha boca, sais por entre as minhas coxas, como o sol em cada dia”.[177]

Mut, cujo nome egípcio significa “mãe”, aparece nas figuras mágicas compósitas. Palavras eficazes são pronunciadas sobre uma figura da deu­sa Mut com três cabeças (mulher, leoa, abutre).[178] Deusa alada, munida de um pênis, com garras de leão, Mut, desenhada numa faixa de tecido ver­melho, permite ao mago não ser rejeitado no reino dos mortos, de rece­ber como dádiva uma estrela do céu.

As sete Hathor são as fadas egípcias. Ostentando na fronte a serpen­te uraeus, dão-se as mãos formando uma cadeia de união. A deusa Hathor em pessoa conduz as suas sete filhas. De fato, ela toma a forma de sete divindades benfazejas que tornam favorável o destino da criança recém-nascida. Elas regozijam o mundo com música e dança. O papel delas con­siste em orientar, emitir profecias, e não em fixar os destinos de maneira definitiva. Mas o enunciado da profecia, em função da magia do Verbo, torna-se por vezes realidade. Um estela conservada em La Haye, datada da XIX dinastia, mostra as sete Hathor, prometendo uma descendência a um sacerdote de Thot, em troca do culto que ele lhe presta. O contato era fácil entre essas magas e o adepto do deus da magia.

Filhas da Luz, as sete Hathor têm faixas de fio vermelho com que criam nós: segundo o número de nós — sendo sete o número benéfico por excelência —, o destino da pessoa revela-se ou não favorável confor­me a decisão das “fadas”.

A deusa Sekhmet, com cabeça de leoa, é temível. Reina sobre grupos de gênios emissários armados com instrumentos cortantes, que percor­rem a terra trazendo consigo a doença, a fome, a morte, sobretudo duran­te os períodos delicados do calendário, nas épocas de transição em que o mal se precipita: a passagem de um ano para outro, o fim de uma década, o fim do mês e até o fim do dia e o início da noite.[179] Essas hordas aterradoras são conjuradas pelos magos mais competentes, inicialmente a nível nacional, depois na esfera privada. Para apaziguar o furor de Sekhmet, é preciso utilizar um amuleto ou uma estatueta que represente a deusa. A força maléfica transforma-se então em benéfica, o poder desembaraça-se das suas escórias. No último dia do ano, a deusa leoa é invocada, lem­brando o papel dos assassinos vindos do Olho mau que semearam o pâni­co e as trevas, que lançaram pela boca os seus dardos. Mas que se afastem do mago! Não terão poder sobre ele, porque ele é Rê, ele é a própria Sekhmet! As palavras são para ser recitadas num retalho de linho fino no qual estão desenhados os deuses. O mago oferece-lhes pão e cerveja, queima incenso, faz doze nós e coloca o tecido no pescoço de quem deseja ser protegido. Para afastar assassinos e incendiários de Sekhmet, o mago identifica-se com Hórus, o único. Pronuncia fórmulas sobre um bastão de madeira que segura na mão. Deve em seguida sair da sua casa e dar a volta na construção.[180]

Sob o reinado de Amenófis III foram esculpidas muitas estátuas da deusa Sekhmet. A deusa é qualificada como “aquela cujo poder é tão grande quanto o infinito”. Os epítetos presentes nas estátuas formam uma litania gigantesca que evoca uma Sekhmet-chama que repele a ser­pente e combate os inimigos do faraó. Uma força como essa é difícil de manipular, porque pode destruir o mundo. Mas é graças a ela que o faraó conserva a sua vitalidade. Está vivo entre os vivos, na condição de que Sekhmet seja apaziguada e dominada. Eis o motivo por que as estátuas de Sekhmet protegiam o acesso aos lugares sagrados, proibindo aos seres impuros e incapazes a entrada nos templos.

O ano ritual era encarnado pela serpente uraeus que, para simbolizar a multiplicidade dos dias, se desdobra em 365 serpentes dispostas em tor­no da coroa real. Ora, há 365 estátuas de Sekhmet (ou duas séries de 365): em cada dia é necessário conquistar os favores da deusa para que ela dispense uma energia positiva e proteja o faraó, o templo e até as mora­dias dos particulares.[181]

 

Anões e gigantes

Existe uma fórmula onde um “bom anão” detém um papel importan­te em relação à placenta a que se pede para “descer”, com o intuito de que o nascimento corra bem e o parto seja feliz. A própria deusa Hathor coloca a mão em cima da parturiente. As palavras mágicas são pronuncia­das quatro vezes sobre um anão de barro colocado na cabeça da mulher que tem dificuldades no parto.[182]

Apela-se ao anão celeste de grande cabeça, de longo traseiro, de coxas curtas: deve cuidar do mago, noite e dia, apesar de a sua aparência pouco estética ser a de um velho macaco.[183]

 

Por vezes, o deus da magia tem a forma de um anão. O Papiro mágico ilustrado de Brooklyn revela vinhetas especialmente interessantes: vê-se um homem em pé, com uma cabeça de Bés, com cetro e coroa nas duas mãos; tem vários braços com facas, lanças e serpentes; o corpo está coberto de olhos. É alado.[184] Por cima da cabeça de Bés, várias cabeças de animais: gato, macaco, leão, touro, hipopótamo, crocodilo, falcão, todo o conjunto encimado por chifres de carneiro de onde saem seis facas e seis serpentes. Sob os pés do deus, um Ouroboros, serpente que engole a própria cauda, contendo animais. A estranha figura está colocada num círculo de chamas.[185]

A essas fascinantes aparições, o mago é capaz de acrescentar a de um gigante que invoca para que a ordem do mundo seja respeitada. Serge Sauneron faz derivar esse símbolo do conceito de imensidade do deus que sustenta o céu e cujo passo lhe permite percorrer todo o Universo: resulta daí a noção de um ser que mede um milhão de côvados, bom gigante da magia.[186]

 


COMBATE DOS MAGOS

Desfile de deuses e deusas, litania mágica de ressonâncias estranhas, mundo

esquecido, no entanto, tão próximo... Meus anfitriões de Luxor ainda conheciam os segredos das divindades mágicas do Antigo Egito, mas não lhes votavam uma devoção cega. “A magia”, disse-me o mais velho, “é um combate. Os deuses devem dobrar-se perante o teu pensamento. As deusas devem ficar apaixonadas por ti. Caso contrário, serão outros tantos inimigos impla­cáveis” “Então, é preciso lutar?”, perguntei. “Em magia, sempre”, respondeu-me.

 

Contos e lendas

Os contos do Antigo Egito, documentos literários de excepcional qualidade, quer pelo conteúdo, quer pelo estilo, mostram os magos no trabalho. Um deles, que se passa sob o Império Antigo,[187] fala do caso de um marido enganado. Mas este esposo infortunado não é qualquer um: trata-se do sacerdote-leitor e de um mago altamente qualificado que manda fabricar um crocodilo de cera com sete côvados de comprimento; e então pronuncia uma fórmula: “Seja quem for que venha banhar-se na minha água, apanha-o!”. Pelo Verbo, o crocodilo de cera possui uma alma mágica que o tornará verdadeiro em caso de necessidade. O mago pede ao seu servidor que ponha o crocodilo na água quando o amante da sua mulher vier tomar banho.

O que tem de acontecer, acontece. A mulher do mago e o seu aman­te encontram-se no jardim edênico da alta personalidade; o amante deci­de tomar banho na água cristalina e o obediente servidor do mago colo­ca ali o crocodilo de cera, que então se transforma num sáurio bem real de sete côvados e que durante sete anos manterá o homem no fundo da água.

Quando o mago regressa a casa, em companhia do faraó que o hon­rava com a sua amizade, deseja mostrar um grande prodígio ao Mestre do Egito. Dá ordem ao crocodilo para trazer à superfície das águas o aman­te da mulher. O monstro é tão grande que chega a assustar um pouco o faraó. O sacerdote-leitor agarra sem dificuldade o animal, que logo se transforma num crocodilo de cera. Então o mago conta ao rei a sua infe­licidade. O faraó pronuncia o seu julgamento: que o crocodilo leve con­sigo o que lhe pertence. O monstro apossa-se do condenado, desce ao fundo das águas e nunca mais se sabe para onde levou a sua presa. A mulher adúltera é queimada e as suas cinzas, lançadas no Nilo.

 

Outro conto, datado do reinado de Khéops, fala do combate de um mago, não contra um rival em amor, mas enfrentando o faraó em pessoa. Nessa época havia um mago prodigioso chamado Djedi, com a idade de cento e dez anos, sendo ainda capaz de comer quinhentos pães, metade de um boi e de beber uma centena de cântaros de cerveja. Khéops tinha necessidade de conhecer os nomes dos quartos secretos do templo de Thot, algo que Djedi sabia. Foram então buscá-lo em casa e levaram-no à corte, perante o faraó do Egito. “É verdade o que se conta”, perguntou o faraó, “que sabes pôr no lugar uma cabeça cortada?”. “É verdade”, respondeu o mago. O faraó quis verificar. Deu ordem para executarem um prisioneiro e traze­rem o cadáver.

É nesse instante que o mago deve travar o seu combate. “Não”, disse ele com ar de gravidade, “não um ser humano, meu soberano, meu mestre, porque é proibido fazer semelhante coisa ao rebanho sagrado de deus”. Momento crítico em que a tensão é perceptível. O faraó, ele próprio mago, aceita essa preven­ção. Trazem um ganso, depois um boi. Cortam-lhes as cabeças. O mago coloca-as no lugar. Preserva, portanto, a vida, mesmo nas condições mais difíceis. Em seguida, revela ao faraó o meio de conhecer o número dos quartos secretos de Thot, mestre da magia.

 

 “O Passeio Náutico”, que se passa na época de Snefru, fala de um combate mais “físico” da parte do mago que se mede com o elemento água. O faraó Snefru aborrecia-se. O chefe-leitor, o mago Djadjaemankh, aconselha-o a dar um passeio de barco com algumas belas remadoras. A chefe das remadoras, instalada na popa do barco, deixa cair na água uma faixa de turquesa em forma de peixe. Imediatamente deixa de remar e toda a sua equipe se detém. O faraó está pronto a substituir a jóia, mas a bela é teimosa: é aquela faixa que ela deseja e nenhuma outra.

Snefru apela para o mago. Este pronuncia algumas fórmulas indispen­sáveis para obter o domínio das águas. Depois, serenamente, coloca uma metade do lago em cima da outra e encontra o pingente, que devolve à proprietária. Para deixar o lugar no mesmo estado em que se encontrava, o mago volta cuidadosamente a pôr a metade do lago tal como estava.

 

Um conto da época de Ramsés II fala de um combate mágico contra a doença de uma jovem princesa prometida aos mais elevados destinos. Essa jovem, princesa do Bakhtan, devia casar com o grande Ramsés, que se havia apaixonado por ela. Mas a doença dominou-a. O faraó chamou os seus melhores sábios, que não conseguiram vencer a doença. Perante a falha dos magos humanos, era preciso invocar o poder mágico encarnado na estátua do deus Khonsu. Este, consultado, aprova o método com um aceno de cabeça: foi transportado, com as honras devidas à sua estirpe, até o país da princesa. A viagem durou dezessete meses. A estátua divina agiu magicamente sobre a jovem e conseguiu curá-la. O maligno que era a causa da doença conversou até com o deus egípcio, garantindo-lhe que a partir de então seria seu escravo. O príncipe de Bakhtan, estupefato com os poderes da magia egípcia, decidiu guardar consigo a estátua mira­culosa. Mas, após três anos e nove meses, viu em sonhos o poder divino escapar da estátua sob a forma de um gavião de ouro e voar para o Egito. Assustado, deixou a estátua partir.

 

O conto de Satni Khamois é um dos florões da literatura mundial. Satni Khamois, filho de faraó, lia os livros da escritura sagrada, principal­mente os que se encontravam na Casa de Vida, as estelas, conhecendo também as virtudes dos amuletos e dos talismãs. Tinha habilidade para redigir. Dele se dizia: “É um mago que não tem igual nas terras do Egito”.

Um dia, um velho zombou dele. Conhecia um livro escrito com a pró­pria mão de Thot e podia levá-lo ao lugar onde o livro se encontrava. Nes­se livro estão escritas duas fórmulas. “Se recitas a primeira”, diz o velho, “encantarás o céu, a Terra, o inferno, as montanhas, as águas, conhecerás os pássaros do céu e todos os répteis que houver; verás os peixes, porque a face divina os fará subir à superfície. Se lês a segunda fórmula, ao estares no túmulo, terás a forma que tinhas na Terra; verás o sol a erguer-se no céu, o seu cortejo de deuses, a lua na forma que tem quando aparece”.

Esse livro prodigioso está escondido numa necrópole, no túmulo de um filho de faraó. Satni desce até o túmulo. Encontra-o luminoso como se o sol ali penetrasse, porque a luz sai do livro. O nome do filho do faraó era Neferkaptah. Também estavam presentes as almas da mulher e do filho.

Essas almas dialogam com Satni, na tentativa de persuadi-lo a não reti­rar o livro que se encontra na origem de muitas infelicidades. Com efeito, Neferkaptah tinha sabido antes da colocação do livro: estava no meio de um rio, num cofre de ferro. O cofre de ferro estava num cofre de bronze, o cofre de bronze estava num cofre de madeira de palmeira, o cofre em madeira de palmeira estava num cofre de marfim e ébano, o cofre de marfim e ébano estava num cofre de prata, o cofre de prata estava num cofre de ouro e o livro estava dentro disso tudo. Havia em torno uma multidão de serpentes, de escorpiões e de toda espécie de répteis. A última guardiã da entrada: uma serpente imortal enrascada em torno do último cofre.

Neferkaptah matou duas vezes a serpente imortal que voltou à vida. Combateu uma terceira vez o réptil, cortou-o em dois pedaços e os cobriu com areia, de modo que a serpente não pôde retomar a sua forma primitiva. Dispôs então do livro e dos seus encantamentos.

Mas tinha ido longe demais. O deus Thot zangou-se e foi lamentar-se junto a Rê. O deus-sol enfeitiçou o mago e nele provocou toda espé­cie de infelicidade, sobretudo o afogamento da mulher e do filho. Antes de ele mesmo morrer afogado, o mago fixou o livro em cima do peito.

Satni não deu ouvidos a qualquer conselho de prudência. Apostou o livro num jogo de xadrez com Neferkaptah, tendo perdido a partida. Mas mesmo assim, passando por cima do resultado, apoderou-se do livro. Iria pagar caro essa atitude: enfeitiçado por uma mulher por quem se apaixo­nara, matou os próprios filhos para poder dormir com ela. Tais encanta­mentos terríveis são obra de Neferkaptah, são a sua vingança.

Satni desperta do seu pesadelo. Tudo não passara de um sonho mau. Os filhos ainda estão vivos. Guiado pelo espírito de Neferkaptah, fará com que repousem em paz os restos mortais da mulher e do filho, e nun­ca mais tocará no livro maldito.

 

O conto de Siusirê, filho de Satni, fala de um outro combate de mago que não termina por uma derrota. O texto foi escrito em demótico, no verso de papiros gregos conservados no Museu Britânico.[188]

Satni está muito aflito. A mulher não consegue confortá-lo. Chega o filho: por que seu pai está tão deitado, tão deprimido? Que ele diga o que o angustia. “És muito novo, não compreenderias”. O filho insiste. O pai explica-se: veio ao Egito um oficial etíope, portador de uma carta selada, e lançou um desafio: quem poderá lê-la sem abri-la. Nenhum sábio egípcio é capaz. O Egito é humilhado perante o país dos Negros. Eis o motivo por que Setna se encontra doente.

O filho, Siusirê, ri. Satni espanta-se. “Levante-se, meu pai”, diz Siusirê. “Eu sei ler a carta sem quebrar o selo”. O pai não acredita nele. Submete-o a uma experiência, utilizando livros guardados em sua biblioteca. O resultado é positivo. Siusirê, portanto, irá intervir no drama que se desenrola na cor­te do Egito.

O mago etíope está decidido a mergulhar a terra dos faraós nas trevas. Fabrica uma cadeirinha em cera com quatro portadores e anima-os magica­mente. Dá-lhes ordem para levarem o faraó do Egito ao rei da Etiópia, o que eles fazem. O faraó recebe quinhentas chicotadas e depois é reposto no Egito. Sabedor disso, o mago oficial da corte utiliza a sua sabedoria para evitar o pior: que uma tal humilhação não se repita. Invoca Thot, inventor da magia que fundou o céu e a terra: que ele salve o faraó da magia etíope. A esse mago, chamado Hor, filho de Paneshe, Thot aparece em sonhos. Aconselha-o a ir à biblioteca do templo de Khnum, onde encontrará, num armário fechado e selado, um invólucro com um rolo de papiros escritos pela sua própria mão. Que faça uma cópia e reponha o rolo no seu lugar. Auxiliado por esse documento, Hor fabrica amuletos protetores. Graças a eles, o faraó não volta a ser levado para a Etiópia contra a sua vontade.

Hórus fabrica, por sua vez, uma cadeirinha em cera com quatro por­tadores e anima-os: levam para o Egito o rei da Etiópia, que recebe qui­nhentas chicotadas. Quando acorda, encontra-se todo machucado e per­cebe que caiu sob o domínio da feitiçaria adversária.

O rei da Etiópia é, então, maltratado duas vezes seguidas. O mago negro decide ir ao Egito para afrontar o seu rival. O combate dos magos realmente ocorre. Hórus, o egípcio, faz chover e desse modo extingue um fogo. O da Etiópia faz acumular nuvens por cima da corte do Egito, de tal modo que ninguém reconhece mais ninguém. Com uma fórmula mágica, Hórus limpa o céu. Seu adversário cria uma grande cúpula de pedra para separar o Egito do seu faraó e este do céu. Hórus cria uma bar­ca onde coloca a cúpula de pedra, que assim é levada para o céu. Sentindo-se à beira da derrota, o etíope torna-se invisível para poder fugir. Mas Hórus faz com que ele reapareça sob a forma de uma ave de rapina, que cai de costas no chão. Um caçador prepara-se para apunhalá-la. A mãe do mago etíope, sentindo o filho em perigo de morte, chega ao Egito sob a forma de uma gansa. Hórus identifica-a e domina-a. Ela reto­ma a aparência de mulher negra e implora compaixão para o filho e para ela. Ambos juram não voltar ao Egito antes de mil e quinhentos anos.

Assim sendo, esse Hórus regressou do Ocidente mil e quinhentos anos após a sua morte, para lutar contra o mago inimigo e salvar a honra do Egito. Osíris permitiu que ele voltasse à Terra para levar a cabo essa missão, sob a forma de... Siusirê que, como uma sombra, desaparece diante do faraó e de seu pai.

 

O cético Luciano, em O Escriba Sagrado de Mênfis, relata um combate mágico célebre que está na origem da lenda do aprendiz de feiticeiro, demasiado inexperiente perante as forças que tenta submeter. O narrador encontrava-se no Egito para estudar. Foi ver os Colossos de Memnon e ouvir o estranho som que faziam ao nascer do sol. Prodígio: os Colossos pronunciavam um oráculo em sete versos. Subindo o Nilo, o narrador encontrou um escriba de Mênfis que tinha passado vinte e três anos nas criptas onde Ísis lhe havia ensinado magia; sabia cavalgar os crocodilos e dominar os monstros. O viajante ganhou a sua confiança. Ao chegar a um estabelecimento hoteleiro, o mago tomava a barra da porta ou uma vas­soura, ou um bastão, cobria com roupas o objeto e pronunciava uma fórmula mágica que o animava e fazia andar. Todos acreditavam tratar-se de um homem! O objeto animado satisfazia os desejos dos dois viajantes: trazia água e alimentos. Em seguida, voltava a ser vassoura ou bastão. Mas o mago não revelava de modo algum o seu segredo. Um dia, cheio de curiosidade, o companheiro escondeu-se e ouviu o encantamento: uma palavra de três sílabas. Tentou imitar o mestre, vestiu um pedaço de pau, pronunciou a fórmula e ordenou que lhe trouxesse água. Triunfo total. Mas como poderia detê-lo? O pedaço de pau animado não cessava de trazer água e inundou a casa. O aprendiz de feiticeiro, assustado, cortou o pau em dois. Resultado desastroso: passou a haver dois portadores de água! Felizmente, quando o mestre mago chegou, pôs as coisas em ordem, mas em seguida desapareceu para sempre com o seu segredo.

 

O combate contra o Inimigo

O Inimigo do mago é o rebelde, aquele que se revolta contra a ordem do mundo, provocando o furor dos deuses que lançam um grande grito para conjurar a ação das forças malignas.[189]

Segundo as inscrições da estátua de Djed-her,[190] produziram-se alguns acontecimentos dramáticos: uma voz gritou violentamente dentro do templo; no palácio lamentam-se. Um crime foi cometido. As divindades choram. Rê, que não tinha ouvido, apareceu finalmente e expulsou o Inimigo que tentava destruir a harmonia.

O mago sabe que este Inimigo, que concentra a negatividade, está presente neste mundo assim como no outro e procura suprimir a vida por todos os meios. Um doente que sofre é habitado pelo Inimigo, e só a arte mágica poderá expulsá-lo do corpo. O Papiro Bremner. Rhind diz exatamen­te que o mago é inspirado pelo Criador para vencer o rebelde cheio de intenções detestáveis que, a cada dia, se ergue contra o sol para impedi-lo de renascer.

O combate do sol contra o espírito das trevas reproduz-se eterna­mente. O doente, ou o paciente, acompanha o deus-sol na sua viagem. O momento mais dramático é o nascer do sol a leste, quando o céu está ver­melho e Rê se banha no sangue das feridas recebidas em combate.[191] A luta desenrola-se na ilha da chama, mundo especial onde a luz afronta as for­ças vivas das trevas, onde o poder mágico domina o caos. Nas Casas de Vida, esta “ilha da chama” era o lugar onde o adepto fazia as suas provas antes de receber de seus Irmãos os segredos da magia. O mais velho que transmitia essa sabedoria era comparável ao Criador. No termo da iniciação e em cada ato importante, o mago prestava homenagem ao Único que criou a si mesmo e se manifestou pela Luz do Oriente, cuja natureza se encontra oculta, velho que é jovem, que existe em todas as coisas.

O mago dirige-se a esse grande deus, apelando para que desça do alto do céu e destrua os inimigos. Pede igualmente a assistência da Enéade, a confraria dos nove criadores, para abater o mal que ameaça Hórus e faz enfraquecer o coração. Compete ao mago agir com ciência e restabelecer, quer para os homens, quer para os deuses, uma correta cir­culação da energia.

O mago desafia o Inimigo, seja ele macho ou fêmea. Proclama o seu poder, leva o medo aos espíritos. E temido, porque afirma ser um deus, ordenando às forças maléficas que se submetam e partam. Prova que é mais forte que elas. Por vezes interpela-as com modos bastante rudes, indo até o ponto de ameaçá-las. Se o Inimigo suspeitasse nele a menor fraqueza, o mago perderia o combate e a vida humana seria ameaçada nos seus princípios. A amabilidade, expressão mais elevada de uma civilização requintada, obriga por vezes o mago a desculpar-se perante o seu inimi­go sobrenatural da obrigação de ter de usar meios violentos contra ele, mas não pode proceder de outro modo, porque o habita uma potência superior ao mal.

Exemplo de um modo de se dirigir aos inimigos do mago:[192] “Se ousas­sem erguer o braço contra ele, seria como levantar o braço contra o homem de um milhão de côvados que se ergue sobre os trinta cumes do país de Kuch (o Sudão), o deus cujas pupi­las são vermelhas, injetadas de sangue, e que detesta o coito, tem uma cabeça de animal...”. Até um ser maligno, convenhamos, deve ficar aterrorizado por uma apa­rência como a que é descrita.*

 

* Estas disposições não são reservadas apenas ao mago; ele as aplica também aos “pacientes” que deseja proteger. Por isso a forma mágica diz: “Pronunciar estas palavras sobre esta imagem que é desenhada, reproduzida sobre uma folha nova de papiro que se pendura no pescoço do homem”.

 

Existe um livro mágico especial para repelir os inimigos, guardado no interior de um cofre de madeira de acácia. Quando a boa fórmula é pronunciada, é o próprio poder mágico que fala. Revela os mistérios de Osíris e a natureza dos deuses. O mago iniciado nos segredos desse livro adquire um domínio excepcional das forças divinas. Obriga mesmo Osíris a pôr-se ao seu serviço e a reconhecê-lo como um perito do sobre­natural. Ameaça o deus, em caso de desfalecimento da sua parte, de impedir as navegações sagradas para os locais sagrados de Busíris e Abidos, de destruir o seu ba e o seu corpo, de pôr fogo em seu túmulo.[193]

O Inimigo encarna normalmente no corpo de um monstro chamado Apófis, uma espécie de serpente que se mostra rebelde por excelência. De resto, existe um Livro de repelir Apófis. O mago pede aos deuses que intervenham para que essa serpente não se desenvolva de maneira nor­mal, que o nome dela seja destruído, tal como a sua alma e o seu espírito, a sombra, os ossos, os cabelos, que não possa ter filhos nem herdeiros, que o sêmen e o ovo se atrofiem, que o seu poder mágico se dilua, que não encontre lugar no céu nem na terra.[194]

O praticante pronuncia, sobre uma figurinha de Apófis em cera,[195] o seguinte encantamento: “O teu veneno não entrará nos meus membros, porque os meus membros são os de Atum... O teu entorpecimento não entrará nos meus membros, a minha salvaguarda é constituída por todos os deuses eternamente”. A fórmula VI do Socle Behague ajuda a expulsar Apófis, gênio das trevas, “o caído, o rebelde, considerado como o intestino de Rê, o ser que não tem braços nem pernas”. A cabeça do monstro foi cortada.

A Estela de Metternich afirma que, apesar disso, a serpente Apófis é útil a Rê, na medida em que a sua chama pode nutrir as radiações solares. De fato, não se mata Apófis: domina-se-a.

Por meio da palavra, o mago neutraliza a serpente maldita: “Desmaia, Apófis, inimigo de Rê! (deve dizer-se quatro vezes). Treme, afasta-te daquele que está no naos, serás aniquilado, rebelde! Cai em cima da própria cara, e que o rosto fique cego!”. Quando os caminhos da serpente são obstruídos, ela deixa de ter força, seu coração desfalece. É ferida pelas facas que mergulham em seu corpo. Corta-se-lhe o pescoço e ela é lançada ao fogo.[196] Para a vencer, é necessário, antes de mais nada, glorificar o poder da luz e a alegria que ela inspira. Em seguida deve-se cuspir em cima da serpente; Rê queima-a com as suas chamas, de modo que a barca continua a vogar nos céus com toda a segurança... até o reaparecimento do monstro.

A luta contra Apófis é um combate contra todos os inimigos da luz, a quem também se ordena que caiam em cima da cara. O mago fará com que pereçam, fazendo-os depois em pedaços. Deixarão de ter nome. É a chama do Olho de Hórus que irá exterminá-los; é Sekhmet, o fogo divi­nizado, que os destruirá. Assim, serão abatidos Apófis e seus aliados: a tartaruga, o antílope, os filhos dos revoltados, os adversários dos deuses e do faraó.

Para obter uma eficácia quase absoluta, escrevem-se os nomes dos inimigos, juntamente com os dos pais, das mães e dos filhos, em verde, numa folha de papiro. Gravam-se esses mesmos nomes em figurinhas de cera. Cospe-se em cima delas, são pisadas, furam-se ou queimam-se num forno, em momentos precisos do dia ou da noite, em datas precisas do mês. Magia e astrologia estão, nesse caso, intimamente ligadas. A vitória sobre Apófis situa-se, de resto, numa perspectiva cósmica: é Rê quem pessoalmente lhe aplica o golpe decisivo, na presença das divindades do sul, do norte, do leste e do oeste. Órion agrilhoa a serpente no céu do sul. A Ursa Maior encrava-o no céu do norte.

Apófis não é o único ser abominável a ser combatido. Existem nume­rosas fórmulas contra seres aterrorizantes, tal como um certo Chakek, demônio vindo do céu e da terra, que tem a língua no ânus, come “o pão do seu traseiro” (os seus excrementos) e ataca os iniciados. “Para trás, afasta-te!”, ordena-lhe o mago, que consegue fechar-lhe a boca e cortar-lhe a língua. O monstro será cortado em pedaços. O nome dele será suprimido, desde que as palavras mágicas sejam pronunciadas sobre uma flecha de cera.[197]

 

Para estar seguro da sua força, o mago efetua uma peregrinação aos locais sagrados de Pe e de Dep, no Delta, de onde regressa identificado a uma faca. Eis por que se diz que os seus membros são de ferro.[198]Possuindo essa arma excepcional, sendo ele próprio essa arma, o mago é capaz de enviar o seu poder contra todo e qualquer inimigo que venha a se opor a ele.

Outro instrumento dissuasor das intenções do adversário: os marfins mágicos, facas ou porretes nos quais se representam criaturas, ou aliadas ou adversárias do sol nos seus combates contra as trevas. O mago que as utiliza é um “iluminado” que vence, como a luz, os perturbadores da ordem cósmica. Inscrições e imagens tornam vivos esses objetos proteto­res, freqüentemente utilizados para garantir a segurança das crianças. Chamada pelo seu nome, identificada com o sol, a criança magicamente protegida revê a paixão e os dramas do deus, mas também as suas vitó­rias.[199]

A expressão favorita das forças maléficas é o mau-olhado, especial­mente temível. Há, no entanto, um meio de lutar contra a sua influência: utilizar a flecha de Sekhmet, a magia de Thot. Requerer o auxílio de Ísis e de Néftis, confiar na lança de Hórus que irá cravar-se diretamente na cabe­ça do Inimigo: tudo isso é igualmente indispensável. O adversário acabará a sua triste existência no forno de um mago da Casa de Vida, que cegará todos aqueles que poderiam lançar o mau-olhado contra um justo.[200]

Para poder preservar a sua integridade, o mago passa ao ataque contra os necromantes e os magos negros. Quebra-lhes as penas com as quais escreve, rasga-lhes os arquivos. Assim, consegue conservar a cabeça e os ossos ficam juntos.[201] Como escriba hábil, o mago é especialmente dotado para manejar a pena. Segue as recomendações muito exatas de seus mestres: “Tu desenharás qualquer adversário de Rê, e qualquer adversário do faraó, morto ou vivo, e o nome do pai, da mãe e dos filhos de cada um deles, inscritos com tinta fresca numa folha de papiro que nunca tenha servido — os nomes deles inscritos no peito, tendo sido eles mesmos confeccionados em cera e ligados com fio negro, sobre eles se cuspirá, serão pisados com o pé esquerdo, esfaqueados com punhal e lança, depois lançados ao forno do ferreiro”.[202]

O Inimigo está presente em toda parte. Nos campos de batalha, os adversários não são apenas humanos. São habitados por uma força hostil contra a qual o rei deve utilizar armas mágicas. Antes de qualquer comba­te no terreno, é preciso proceder ao encantamento dos inimigos; isso faz parte das técnicas oficiais de guerra praticadas pelo Estado. O modelo sagrado é fornecido pelos rituais que os sacerdotes celebram nos templos para lutar contra os inimigos da luz.

 

Na ordem profana, é utilizado para combater os invasores do Egito e salvaguardar as fronteiras. Listas de ini­migos são escritas com tinta vermelha em figurinhas de barro que repre­sentam os adversários vencidos e travados. As figurinhas são batidas e furadas, cospe-se-lhes em cima e são queimadas. Esse aniquilamento mágico é a razão profunda da figuração de inimigos eternamente derru­bados nas paredes dos templos ou nos pedestais das estátuas reais.[203]

O quebrar dos vasos, carregados de poder maléfico, era um rito mágico do Estado. Descobriram-se em vários lugares do Egito amontoa­dos de peças de olaria quebradas em numerosos pedaços — eram assim disseminadas as forças hostis. Essa técnica, herdada dos tempos mais antigos, foi praticada ao longo de toda a História egípcia. No Império Médio, principalmente, o nome dos inimigos era inscrito em vasos e taças: príncipes e chefes adversos são os principais adversários visados. Graças aos magos, deuses e espíritos intervinham; e para que ninguém fosse omitido, anotavam-se também os nomes dos príncipes negros, indi­cando por motivos de segurança: “Todos os negros, os seus homens fortes, os seus corredores, os seus aliados, os seus confederados que serão hostis, que conspirarão, que se baterão e aqueles que dizem que serão hostis, neste país inteiro”. E nem se esquecem de incluir, nesta lista mágica, os palestinianos, os líbios e até os egípcios e as egípcias que conspiravam no interior.

Entre os inimigos, o mago inclui “Todas as más palavras, todos os maus ultra­jes, todos os maus pensamentos, todas as más intrigas, todas as más lutas, todas as más dis­cussões, todos os maus desígnios, todos os maus sonhos”.[204] Não se poderia ter uma melhor consciência profissional.

Em Mirguissa, lugar que se encontra ao nível da segunda catarata do Nilo, na margem oeste, descobriram-se numerosos objetos com textos de encantamento, estatuetas de prisioneiros, peças de olaria. Os prínci­pes dos países estrangeiros eram considerados seres maléficos revoltados contra a harmonia do mundo.[205] O mal existe: é necessário, pois, enfeitiçá-lo. Esse é também o melhor meio de traçar uma fronteira insu­perável.

Para o mago experiente que se libertou do sofrimento como Osíris ressuscitado, é possível vencer o Inimigo e esmagá-lo sob as suas sandá­lias. Por isso a sua ação é eficaz quando pronuncia as palavras justas sobre uma figurinha de cera.[206] Alguns pensaram na fabricação de “golems”, criaturas animadas. De fato, essas figurinhas não são móveis. São conde­nadas à inércia, para que esta vença aquele que se deseja atingir.

Advertência a respeitar:[207] decapitar o inimigo de cera, o adversário de­senhado num papiro ou esculpido em madeira. Desse modo, os habitantes do deserto não se revoltarão contra o Egito, não haverá guerra ou rebelião no país, o faraó será obedecido, a terra dos deuses será defendida.

O mago entra no ventre do Inimigo como se fosse uma mosca, volta-lhe o rosto para trás da cabeça, coloca-lhe os pés ao contrário. Enfra­quece-o, esvazia-o da sua substância.[208] Evoca o poder do deus touro Montu e o de Seth. Pega terra com a mão direita e sobre ela recita uma fórmula. Quebra os ossos e devora a carne do Inimigo. Arranca-lhe o poder para ficar com ele.[209]

O ataque do adversário traduz-se por meio de fenômenos físicos muito precisos. Por exemplo, a catalepsia. O mago pega então uma cabe­ça de burro e coloca-a entre os pés, em oposição ao sol nascente, e age do mesmo modo quando o sol se põe. Unta o pé direito com uma subs­tância proveniente de uma pedra da Síria, prefigurando assim a litoterapia moderna, e o pé esquerdo com argila. Unta as mãos com sangue de bur­ro. Tem ainda de repetir as fórmulas durante sete dias, ligar filamentos de palmeira à mão, ao pênis e à cabeça. Invoca o poder que se encontra no ar invisível.[210] Vencerá então a catalepsia e a morte.

O mago dispõe de encantamentos para defrontar um homem pode­roso que se recuse a parlamentar com ele. Basta-lhe declarar que trans­porta a múmia de Osíris para Abidos. Se o adversário persistisse, seria vencido.[211]

 

As ameaças

Para garantir um domínio real no mundo dos deuses, bons ou maus, favoráveis ou desfavoráveis, o mago não hesita em ameaçá-los. No capí­tulo 219 dos Textos das Pirâmides, onde o faraó é identificado com Osíris, as divindades são chamadas e a cada uma diz: “Se ela vive, este faraó viverá, se ela não morre, este faraó não morrerá”. Num primeiro tempo, portanto, contenta-se em ligar a sorte do faraó ao destino dos deuses. Mas o mago vai mais longe, pois pode utilizar o nome secreto de um deus, o de Chu, por exemplo, para alterar a ordem das coisas. Se o nome fosse pronunciado à beira do rio, este secaria. Se fosse pronunciado na terra, esta incendiar-se-ia. Se o crocodilo atacasse o mago, o sul mudaria em norte, o mundo oscilaria.

Pior ainda, dirigem-se violentos insultos aos deuses e deusas, espe­cialmente no capítulo 534 dos Textos das Pirâmides, cujas fórmulas querem impedir a vinda de Osíris, de Hórus, de Seth (tratado de castrado), de Khenti-Irti (de baboso), de Thot (de sanguessuga), de Ísis (de inchada de podridão), de Néftis (de concubina sem vagina)! Qualificativos horríveis que arrastam pela lama as augustas divindades.

Quando o mago profere ameaças terríveis contra os deuses, toma uma importante precaução: “Não sou eu que assim falo”, acrescenta, “nem sou eu que repito isto, mas sim esta força mágica que veio atacar aquele de quem eu me ocupo”?[212]Dessa maneira, o taumaturgo pode proferir palavras terríveis, evocando o pior, por exemplo, pôr fogo em Busíris e queimar Osíris.

As ameaças mágicas são utilizadas para curar. Se o ser que se encon­tra gravemente atingido se arrisca a morrer, o mago usa esta última arma: “Se o veneno se espalha no corpo”, diz ele, “se se aventura em qualquer parte do corpo, nenhuma libação será feita nas mesas de oferendas dos templos, nenhuma água será derra­mada nos altares, nenhum fogo será aceso nas salas do templo, nenhum gado será levado à mesa de abate, nenhuma peça de carne será trazida para o templo. Mas se o veneno cai por terra, todos os templos terão alegria e os deuses serão felizes nos seus santuários”.[213]

O próprio Estado hesita em utilizar este processo. Um decreto real proíbe afastar toda a influência nefasta e todas as espécies de morte. Se o efeito mágico não fosse ativo, as represálias seriam aterradoras: deixaria de haver água para aquele que está no Sarcófago; aquele que está em Abidos — ou seja, Osíris — já não seria enterrado; deixaria de haver ofe­rendas para aquele que está em Heliópolis, ou seja, o deus Rê.[214] As for­ças do mal sabem a que se agarrar.

Os deuses tomam precauções semelhantes. Hórus, segundo certas tradições, tem uma esposa. Como qualquer pessoa, receia a mordedura dos répteis. Mas “se a esposa de Hórus fosse mordida, deixaria de ser permitido à enchente inundar as margens, deixaria de ser permitido ao sol iluminar a terra, o trigo seria proibido de crescer, não mais se poderia cozinhar pão, nem encher moringas de cerveja para os trezentos e cinqüenta e cinco deuses que teriam fome noite e dia”.[215]

Quando o mago apela às divindades e reclama que lhe prestem assis­tência, não admite resposta negativa. Ameaça diretamente os animais simbólicos nos quais elas encarnam, para de algum modo lhes “forçar a mão”. Dirige-se a cada força divina de que necessita, em termos vigoro­sos: “Se não ouves as minhas palavras, cortarei a cabeça de uma vaca no pórtico de Hathor, decapitarei um hipopótamo no pórtico de Seth, farei com que Anúbis se sente envol­to na pele de um cão, e que Sobek se sente envolto na pele de um crocodilo”.[216]

Faz-se o mesmo tipo de ameaça aos objetos mágicos, como a lanter­na que serve de suporte à presença divina. O mago ordena que a ele se submeta quando Osíris tiver sido encontrado na sua barca, com Ísis na cabeça e Néftis nos pés. A lamparina deve intervir a favor do mago, caso contrário este irá privá-la de azeite.

 

Os perigos da noite

O mago sai à noite, na obscuridade, Hórus diante dele, Seth à sua direita. Está encarregado de uma mensagem que emana dos grandes deu­ses. Em tal companhia, o mago não teme os seres malignos que rondam as trevas. Os mortos não lhe causam qualquer inquietação. E ele que os ameaça: pode cortar-lhes as mãos, cegar-lhes os olhos, fechar-lhes as bocas. “Eu sou Hórus-Seth”, proclama, realizando dessa maneira uma união extraordinária, para além da dualidade, para além do “bem e do mal”.[217]

A noite é perigosa. Nela se escondem espectros para circularem na Terra. São fantasmas, mortos errantes. O mago protege-se declarando que é o dono do Universo. Ele é o jovem deus, senhor da Verdade e da Justeza. Como companheiro do Criador, Atum, percorre o céu e conhe­ce seus caminhos.[218]

Aquele que sai durante a noite toma precauções: leva consigo uma luz especial, organiza a sua defesa com serpentes protetoras. O mal não pode­rá atacá-lo.[219] A luz está colocada no interior dos olhos do mago para que se possa deslocar tanto de noite como de dia e possa viajar na Terra saindo do horizonte do céu sem morrer de novo. Contempla Rê, vê a luz de frente.[220]

Existe um livro especial para afastar os terrores de que sofrem os homens durante a noite. E necessário levantar o rosto, provocar o des­pertar das qualidades espirituais do ser. Assim se apercebe o Mestre de Tudo. E preciso recitar as fórmulas sobre uma peça de linho fino que se aplica na garganta para manter a calma.[221]

O mago dispõe de um arsenal contra os pesadelos. Dirige-se aos demônios que perturbam o sono e os ridiculariza. Chama as divindades presentes na barca da noite que atravessa o céu. Pinta figuras de gênios guardiães nas cabeceiras das camas, nelas inscrevendo fórmulas mágicas. Contra os maus sonhos, o mago chama um bom sonho com os seus votos, uma noite que seja semelhante ao dia. Os males provocados por Seth são afastados. Como Rê, o mago sairá vitorioso dos seus inimigos oriundos das trevas. Também utilizará ervas mergulhadas em cerveja e em mirra, com as quais poderá friccionar a fronte do adormecido para dissi­par os pesadelos.[222] Pronuncia estas palavras eficazes: “Vede, é o Mestre de Tudo e são Aqueles-que-são, é Atum, é Uadjet, a mestra do terror na grande barca, é a criança, é o mestre da Verdade, é a figura de Atum na estrada superior, é a chama devoradora que foi criada por Sia, o senhor dos céus”.[223] Essas aparições assustam os gênios malignos. O homem justo dorme em paz, protegido pela magia.

 

MAGIA E MEDICINA

A noite de Luxor nunca é tenebrosa. Não há dúvida de que os demô­nios só existem para aqueles que os temem. Mas a doença, essa exis­te seriamente e nos atinge nos momentos em que menos esperamos. Meus anfitriões, família mágica por excelência, conheciam bastante bem a medicina ocidental, embora não acreditassem muito nela. Médicos egípcios, formados em Londres e em Paris, tinham tentado convencê-los sem obter resultados. “Quando se trata o mal pela ponta errada”, explicou-me o pai, “não se lhe quebra a cabeça. No melhor dos casos, podemos deslocá-la. No pior, aumentamo-la”. Magia e medicina: seria a boa via?

 

Um médico-mago

A medicina mágica nasceu provavelmente no Egito. Não se trata de uma criação artificial, mas sim de uma ciência ao mesmo tempo teórica e experimental cujo critério de base é a vontade de manter o corpo huma­no em harmonia com o Cosmo, de maneira a que esse corpo sirva de receptáculo às forças vitais que criaram o Universo. Quem é atingido por uma doença, um sofrimento, uma dor, é dominado pela força negativa de uma divindade hostil, leia-se: de um ser maligno. O médico-mago deve tratar a causa e não o efeito, devendo, pois, atacar a potência invisível e irracional que perturba o organismo.

Constatação importante para compreender os princípios desta medi­cina mágica: ela não comporta qualquer aspecto moral. O deus curador não é “bom”, o deus agressor não é “mau”. São ambos expressões da for­ça criadora que circula por toda parte. É o ser humano que reage de ma­neira harmoniosa ou não-harmoniosa àquilo que o cerca; é ele que acolhe e manipula “bem” ou “mal” as divindades que lhe regem a existência.

Nos dias de hoje, magia e medicina opõem-se radicalmente. O Egito preferia unir as duas técnicas para chegar a uma ciência do homem muito mais completa e muito mais vasta. Devemos reconhecer, apesar de tudo, que as técnicas médicas atuais, baseadas exclusivamente na racionalidade química ou matemática, formam médicos dos quais uma parte acaba por se interrogar sobre o valor da sua prática. Curar é tanto uma arte quanto uma ciência, uma magia do ser tanto quanto uma análise racional.

A medicina egípcia foi escondida sob signos secretos de modo a que só os “filósofos”, aqueles que amam a “sabedoria”, pudessem compreen­der-lhe os arcanos. O mistério foi, no entanto, escrito e transmitido, especialmente pelos papiros egípcios e os arabescos árabes, traduzidos em latim e transmitidos de praticante em praticante até o século XV sobretudo nos cursos da Alemanha, que ainda conheciam alguns dos segredos dos sacerdotes egípcios.

E a magia que permite à medicina ser preventiva, impedindo que a doença se aproxime do corpo. O médico prepara cientificamente fórmu­las, mas considera insuficiente esta ciência . É necessário acrescentar-lhe uma fórmula mágica para lhe dar uma alma. Alguns medicamentos podem ser simples, mas a maioria é complexa, e tratam acidentes provocados por demônios. Quando a doença aparece, é porque Seth ou outro demônio qualquer cruzou o caminho do paciente e o assaltou, tornando-o impuro. Daí a necessidade de intervenção de um médico, “sacerdote-puro” de Sekhmet qualificado para curar.

As doenças são provocadas por inimigos masculinos ou femininos contra os quais o mago se bate como um guerreiro. Os instrumentos que manipula são comparados a armas. Não é possível ser médico-mago sem receber uma longa e exigente iniciação, que para os mestres da corpora­ção ocorria em Heliópolis. Posto em presença da mãe dos deuses, de quem o adepto recebe as graças, ele aprende os encantamentos formula­dos pelo próprio Mestre do Universo quando repele as forças nocivas. O primeiro preceito é: “O deus faz viver aquele que ele ama”.

Para ajudar melhor o doente a recuperar a saúde, o mago assimila-o a certas divindades, em primeiro lugar a Rê. As divindades são prevenidas: “Ó Rê, Geb, Nut, Osíris, Hórus! Restabelecei o coração deste sofredor! Fazei-o voltar à vida como haveis feito reviver o coração de Rê Quando foi atacado por Nehaher (um demônio)! Fazei com que seja repelido o veneno Que se encontra no corpo dele como o fizes­tes com o veneno de Apófis que estava no corpo do grande deus!”; conclusão essencial para o paciente: “Rê é a tua proteção”.[224]

Operação indispensável: dirigir-se diretamente ao ser maligno, para que revele as suas más intenções e o modo como diminui o vigor daquele de quem faz sua vítima. “Para trás!”, diz o mago, “inimigo, gênio do mal Que causas tanta dor [nomeia a pessoa]. Dizes que infligirás feridas na cabeça que é a dele, para forçar a tua entrada na fronte que é a dele, revolver as têmporas, que são as dele! Vai-te embo­ra, recua diante do poder fulminante desse olho flamejante, que é o dele! Ele previne o teu poder agressivo, dispersa as tuas ejaculações, o teu sêmen, a tua nocividade, os produtos da tua digestão, as tuas opressões, os teus males, os teus tormentos, as tuas inflamações, as tuas aflições, calor e fogo, todas as coisas más sobre as quais disseste: ‘Por causa delas ele irá sofrer’“. Graças a Rê, o doente mantém-se em vida. O deus-sol impedirá que os venenos o aniquilem.

Mas o próprio Rê não se encontra totalmente ao abrigo do assalto das forças maléficas. A sua barca pode ficar subitamente imobilizada no céu. Uma vez interrompida a navegação cósmica, o Universo detém-se, porque Hórus está em perigo. Sendo o doente identificado com Hórus, é necessário que tanto o humano como o divino sejam libertados dos seus males para que a ordem no Universo se restabeleça.[225]

A proteção de Hórus é exercida pelo mais velho no céu, que gover­na tudo que existe, o grande anão que dá a volta à Duat, o mundo inter­mediário, o livro da noite que viaja na montanha do oeste, a grande potência oculta, o imenso falcão que voa no céu, na Terra e na Duat, o escaravelho sagrado, o corpo secreto simbolizado pela múmia, a fênix divina, o próprio nome de Hórus, os nomes do seu pai Osíris, as suas imagens nos seus nomes, o lamento da sua mãe Ísis: essas são igualmente as proteções do doente identificado com Hórus quando é corretamente tratado por um mago.

Num caso que aparece como único, o doente é aconselhado a dirigir-se diretamente à Duat,[226] quer dizer, a esse mundo especial que não é o céu nem a terra e que cerca o Cosmo. Esse fato é raríssimo, porque o mago é o intermediário indispensável entre a doença e a sua causa. Para aprender o seu ofício, ele dispõe de um ensino oral dado nas Casas de Vida, e de um ensino escrito: os papiros médicos.

Estes não são para todas as mãos. O Papiro Médico de Londres, por exem­plo, não é um escrito profano. Foi encontrado uma noite numa sala de templo, quando um raio de luar o iluminou. Foi então levado ao faraó. Esse grande evento aconteceu enquanto a Enéade deliberava. Qualquer escrito médico, na realidade, pertence à esfera do sagrado.

Essa arte maravilhosa, de origem divina, necessita de uma estreita colaboração entre o médico e o seu paciente. A simples técnica não bas­ta. O efeito do medicamento não se exerce plenamente sem que a vonta­de de conjurar o mal venha também do coração e do corpo do doente. A fórmula mágica ajuda a concretizar a ação conjugada do doente e do terapeuta. Tal como Hórus e Seth foram “saudáveis”, o primeiro de novo com o seu olho e o segundo com os seus testículos, do mesmo modo o homem que está na Terra pode gozar da sua integridade física reencon­trando a saúde.[227]

O médico-mago, homem de iniciação e de ciência, dispõe de um arsenal terapêutico impressionante. Para extirpar o mal do corpo do doente, ele se beneficia dos seus conhecimentos técnicos, da assimilação mágica do seu paciente a uma divindade (freqüentemente Hórus comba­tendo Seth), do conhecimento dos nomes dos inimigos e dos seres malignos, da capacidade de dialogar com o mal para convencê-lo da sua ineficácia e do poder do ser doente que possui os recursos internos sufi­cientes para travar um combate vitorioso. Se, por infelicidade, a doença tiver entrado profundamente no corpo, ainda resta a possibilidade de a interpelar, de a ameaçar, de lhe ordenar que saia, de a expulsar. O mago explica à doença que ela não se sentirá à vontade nos lugares do corpo onde deseja ir: a língua será para ela uma serpente, o ânus irá enojá-la, os dentes a quebrarão. É certo que a doença se sentirá muito mais à vonta­de na sua própria casa, longe dos humanos.[228]

 

Como vimos, em Heliópolis o médico-mago teve uma longa e difícil iniciação, tão rude que precisou se salvar antes de poder curar os outros. Poderemos concluir dessa informação[229] que uma doença foi inoculada no adepto para verificar o seu sangue-frio e a extensão dos seus conheci­mentos? Ou, muito “simplesmente”, que suportou provas físicas que estão sempre presentes num ritual de iniciação? Seja como for, o novo médico, após esse período de prova, visitava outras Casas de Vida, como a de Saís, e recebia ensinamentos de muitos dos seus colegas. As divinda­des maiores auxiliavam nessa tarefa: Rê em pessoa, que o defendia contra os seus inimigos visíveis e invisíveis; o seu guia era Thot, aquele que conhece as fórmulas e as ensina aos estudantes para que eles possam libertar do mal aqueles que o deus deseja manter em vida.

Primeiro dever do mago: ligar o destino do doente ao do Universo. Se ele não se curasse, o céu desabaria, a luz desapareceria. O ser maligno que causa essa desarmonia seria esmagado pela catástrofe. Para se salvar, o único recurso é a fuga... o que eqüivale à cura da sua vítima.

Fato capital: a tomada de um medicamento é comparada à abertura da boca pelos deuses Ptah e Sokaris durante os ritos de ressurreição. A fórmula mágica era recitada por Néftis, “a patrona do templo”. A abertu­ra da boca tinha por objetivo tornar viva a múmia e animar a estátua. Praticando esta “operação” num doente, aumentava seu potencial vital e faculdade de resistência às agressões exteriores. Quando se absorve um remédio, é indispensável pronunciar palavras mágicas. As duas ações reforçam-se mutuamente. A matéria de que o remédio é composto é ani­mada pela fórmula.[230]

Para se retirar uma ligadura, é evocado Hórus, libertado por Ísis do mal que lhe foi causado por Seth. O doente implora a Ísis, “grande da Magia”, que afaste dele toda a influência maléfica. Ele entrou no fogo, saiu da água, não se deixará cair na armadilha dos seres malignos.[231] O mago diz: “Libertado foi, libertado foi por Ísis. Libertado foi Hórus por Ísis de todo o mal que lhe tinha sido feito pelo irmão Seth, quando este lhe matou o pai, Osíris. Ó Ísis, gran­de maga, livra-me, liberta-me de toda coisa má, malfazeja, vermelha, da doença de um deus e da doença de uma deusa, da morte masculina e da morte feminina, do inimigo e da inimi­ga que poderiam vir contra mim.” [232]

Nenhum ato médico, por mais simples que seja, é considerado pura­mente material. Está sempre ligado ao mundo mágico, onde encontra o seu modelo divino. Os poderes dos magos egípcios eram freqüentemen­te surpreendentes, mesmo aos olhos do nosso saber atual. Os egiptólo­gos reduziram a poucas coisas a fórmula do Papiro Médico Edwin Smith, que propõe “transformar um velho em jovem de vinte anos”, mas parece certo que os sábios do Egito praticaram uma ciência de transmutações e de rejuvenes­cimento que explica a longevidade de certos dirigentes, no entanto sub­mersos em trabalho e deveres. A idade canônica dos “sábios” não era a de cento e dez anos?

Um texto do Papiro Ebers alude a um aspecto fundamental da ciência egípcia — a percepção do real pela intuição vinda do coração: “recomeço do segredo do médico, conhecimento da marcha do coração e conhecimento do coração. Há nele vasos que vão a todos os membros. Onde quer que o praticante ponha os dedos, na cabeça, na nuca, nas mãos ou no próprio coração, braços, pernas ou o que quer que seja, ele sente ali algo do coração, porque os vasos deste vão a todos os membros; eis o motivo por que fala dos vasos de cada membro”.

Não se trata, como freqüentemente se supôs, de uma fisiologia ele­mentar, mas sim de indicações exatas sobre o “corpo sutil” do ser que é necessário cuidar com tanta atenção quanto o corpo físico. Na mesma ordem de idéias, e em conformidade com uma lógica mágica, o mago só utiliza remédios físicos ou diretos contra o veneno: por exemplo, faz sete nós num tecido, tem nas mãos uma relíquia proveniente de um cofre guardado em Heliópolis, que contém um selo de pedra negra. O conhe­cimento dos nomes secretos não é o remédio mais eficaz contra os humo­res malignos?[233] Face a semelhantes males, só a magia pode lutar com algumas possibilidades de sucesso. Se o doente é gravemente atingido, o médico poderá dotá-lo de um furor tão terrível que o tornará capaz de destruir cidades como Busíris e Mendés, de impedir que as oferendas cheguem a Abidos, capaz, portanto, de perturbar a ordem do mundo. Os gênios malignos da doença serão obrigados a recuar.

 

Contra a febre e o catarro, utiliza-se... um decreto real! O senhor do Alto e do Baixo Egito, Osíris, diz ao vizir, o príncipe hereditário Geb, que erga o mastro da sua barca, desdobre a vela e vogue para o campo de juncos. Que leve as forças hostis, febre e catarro, para longe da terra. Palavras divinas devem ser pronunciadas sobre duas barcas divinas e dois olhos completos; dois escaravelhos são desenhados num papiro que deve ser colocado na garganta do paciente. [234]

Contra a constipação, doença que parecia aos egípcios especialmen­te penosa, o médico-mago emprega todos os recursos da sua eloqüência: “Escoa-te, zonza, filha de coriza! Tu, que quebras os ossos, que rebentas o crânio, que esca­vas o cérebro, que adoeces as sete aberturas da cabeça, as serventes de Rê, as louvadoras de Thot. Vês, trouxe um remédio contra ti, a tua poção contra ti: leite de mulher que pôs no mundo uma criança do sexo masculino, e resina perfumada. Que ele te cace e te expulse, e vice-versa! A dizer quatro vezes sobre leite de mulher que pariu um macho, e sobre resina odorífera. A colocar nas narinas”.[235]

Incidentes banais têm por vezes conseqüências desastrosas: por exemplo, uma fórmula mágica evita a asfixia a quem se engasgou com um osso. O mago identifica-se com um peitoral de leão, com uma cabeça de carneiro, com um dente de leopardo. Tecnicamente, despeja azeite na boca do doente. Com o dedo, ajuda-o a engolir o azeite que o fará vomi­tar e expelir o osso.[236] No mesmo caso, o mago, servindo-se de meios aparentemente desproporcionados contra o mal, identifica-se com aque­le cuja cabeça toca no céu e cujos pés repousam nas águas eternas. São necessários um ovo de falcão na sua boca e um ovo de íbis no seu ventre.

O osso de deus, de homem, de pássaro, de animal, as espinhas sairão da boca do doente e cairão na mão do mago, filho do deus vivo.

A saliva é um excelente remédio. Babando-a sobre uma ferida, esta curar-se-á. A saliva faz parte das secreções e exsudações que, como o san­gue, o suor, a urina, provêm do corpo dos deuses. É esse o motivo por que a utilização de excrementos, de urina e de outras matérias, a priori repugnantes, deriva de uma concepção mágica. O mundo das forças malignas é o inverso do mundo do homem justo. Os danados, no outro mundo, comem excrementos e caminham de cabeça para baixo. No entanto, o uso homeopático dessas matérias naturais é possível. Tal como os outros elementos da vida, elas contêm uma parcela de divindade que o mago deve saber extrair e manipular. Uma tradição curiosa, oriunda do Egito, herança tardia dessa concepção, foi conservada na Idade Média e conhecida até o século XVII. Para se conhecer o sexo da criança que vai nascer, mergulha-se trigo picado e frumento na urina da mulher grávida e colocam-se os grãos em dois saquinhos. Se o frumento germinar, será um menino; se for o trigo picado, será uma menina. Podem-se também cavar duas fossas: numa delas coloca-se cevada; na outra, frumento. Verte-se nas duas urina da mulher grávida e cobrem-nas de terra. Se o frumento nascer mais depressa que a cevada, será um menino; mas se a cevada nas­cer primeiro, será uma menina a nascer no ventre da mãe.[237]

Essas histórias mágicas, baseadas em conhecimentos químicos, não devem esconder os extraordinários aspectos da magia de Estado, tal como as estátuas curadoras: cobertas de textos mágicos e consagradas nos templos, eram colocadas em sanatórios sagrados ou em capelas. O pedestal era cavado para nele se constituir uma espécie de bacia que recolhia a água vertida em cima da estátua e que, passando pelos textos, se havia impregnado de magia. Essa água, assim tornada energética, era oferecida aos doentes ou aos infelizes picados por uma serpente ou um escorpião. Essa água mágica tinha também um efeito preventivo, prote­gendo de qualquer agressão os viajantes que se aventuravam no deserto.

 

Sangue e magia

Em todas as magias conhecidas, o sangue desempenha um papel: transporta quantidades vitais de primordial importância, cujo segredo só é conhecido por um mago experiente. Eis o motivo por que o sangue entra na composição de diversos produtos. Conhece-se, por exemplo, um ungüento fabricado com sangue de cordeiro negro ou com o sangue que saiu do corno de um touro negro, produto que dá energia a quem o utiliza.

Não saiu o próprio faraó do sangue de Rê,[238] o sangue do sol?

Ora, é o próprio Rê que abre o corpo do doente e lhe renova a vida, impedindo os venenos de agir, não deixando o homem justo à mercê dos fluidos maléficos. As palavras mágicas são para ser pronunciadas sobre uma figura de Rê, desenhada com o sangue de um peixe abdju, numa peça de linho real que em seguida se coloca na cabeça do indivíduo em trata­mento.[239]

Quando a deusa Sekhmet se desencadeia, prestes a destruir a huma­nidade, Rê é obrigado a intervir. Faz com que a deusa beba uma beberagem mágica cor de sangue, uma operação muito delicada, mas que obtém pleno resultado, uma vez que a furiosa Sekhmet se transforma na delica­da Hathor.

Sangue e suor misturam-se numa fórmula de regeneração destinada a aumentar o poder do mágico: “Que o suor dos deuses te penetre, que as proteções de Rê se estendam ao teu corpo, que tenhas acesso ao território sagrado, ao Sol sagrado nas províncias, que faças o que amas nas Duas Terras, graças ao divino suor originário do país do Punt! Que a gordura dos teus inimigos te penetre, que o teu coração seja regenerado gra­ças ao sangue daqueles que te são rebeldes!”.[240]

O sangue da deusa Ísis protege o mago de qualquer atentado negati­vo, impede que algum mal lhe seja feito. Esse sangue feminino é também o da defloração; eram-lhe atribuídas qualidades excepcionais, ligadas[241] à revelação do nome secreto das divindades, à aquisição do poder de esma­gar os seres malfazejos. De uma certa maneira, ao praticar a sua arte, o mago fazia amor com uma deusa sempre virgem que lhe revelava a sua eterna verdade.

Uma magia simplista descaracterizou este simbolismo ao utilizar uma mistura de sangue e de esperma para criar a paixão amorosa no ser que se deseja. Amar, mesmo ao nível mais simples, é uma vibração comum de duas energias diferentes: daí a intervenção dos magos que favorecem semelhantes conjunções.

O sangue é um líquido precioso. Essa é a razão por que uma hemor­ragia é considerada um mal temível. Felizmente, existe uma fórmula para lhe pôr fim: “Para trás, tu que estás sob a mão de Hórus! Para trás, tu que estás sob a mão de Seth! O sangue que com está travado!”. A fórmula mágica é recitada sobre um amuleto em forma de cama, em seguida colocado sobre o traseiro do indivíduo em tratamento.[242]

 

A hemorragia feminina é uma das mais graves. Para a deter, é neces­sário invocar Anúbis, que impediu a inundação de se ampliar sobre o que é puro. As fórmulas são pronunciadas sobre os filamentos de um tecido que comporta um nó e depois é aplicado no interior da vagina da doen­te.[243] Também se pode fazer com que beba, em jejum, sumo da planta chamada “Grande Nilo”, misturada com cerveja.[244] O fluir do rio é compara­do ao fluxo menstrual. Os deuses devem ser regulares para que a terra dos homens, tal como o corpo da mulher, estejam em harmonia.

 

Dores de cabeça

A cabeça deve ser preservada das doenças, porque ela contém a fon­te da vida: os olhos para ver e recriar o mundo, o nariz para respirar tan­to o sutil como o concreto, os ouvidos para ouvir o Verbo e as palavras, a boca para que o homem viva.[245] As dores de cabeça, que perturbam esse “órgão” maior, até atingiram o deus Hórus que escalava uma montanha, no verão, ao meio-dia. Encontrou deuses que celebravam um banquete numa sala de tribunal e que o convidaram a partilhar do repasto. Mas Hórus respondeu que não tinha apetite. Sofria de enxaqueca. Estava cheio de febre. Competia aos trezentos e sessenta e cinco deuses senta­dos no banquete libertar-lhe a cabeça do sofrimento! O mago deve con­tar esta história sete vezes quando trata um doente, friccionando-lhe as mãos, o corpo e os pés com um ungüento especial.[246]

Outro relato evoca Hórus, sempre com enxaqueca, que passa o dia deitado numa almofada. O irmão, Seth, vela-o. Hábil, o mago adquiriu o tecido em que a almofada foi talhada e fez nela sete nós, que aplica no tornozelo do doente que está tratando.[247] Quanto a Hórus, esse chama Ísis e propõe um remédio radical: que a deusa lhe dê a sua própria cabe­ça em troca da cabeça dele. Ísis não aceita esse delicado negócio. Age, no entanto, a favor de Hórus, fabricando nós mágicos, sempre em número de sete.[248] O mago imita a deusa e aplica o tecido no pé esquerdo do doente porque, conclui a fórmula, “o que foi aplicado nas partes inferiores é válido para as partes superiores”. Como não reconhecer aqui uma das origens da célebre máxima hermética: “O que está no alto é como o que está embai­xo, e o que está embaixo é como o que está no alto”?

Sábia precaução: trazer como amuleto a cabeça de certas divindades (Bés, Hathor, por exemplo), valendo pela divindade inteira. Os capitéis chamados “hatóricos” — dito de outro modo, cabeças gigantes da deusa — que se encontram nos cimos das colunas de certos templos, como o de Dendera, são poderosos talismãs que protegem o construção.

A cabeça do doente é identificada com a de Rê. Se o paciente não recuperar o equilíbrio anterior, haverá perturbações no Cosmo. A cabeça de Rê ilumina a Terra, faz viver a humanidade. É necessário que Rê não adormeça esfomeado, que os deuses não estejam tristes. Caso contrário, corre-se o risco de ver voltar a obscuridade primordial, esse tempo que precedeu a Criação, em que os céus estavam unidos. A água celeste seria então desviada e a Terra condenada à esterilidade. Como se vê, as conse­qüências de uma enxaqueca divina seriam terríveis, se não fosse tratada magicamente.

Se o mal atinge os dois lados da cabeça é porque um ser maligno se apossou da sua vítima num dia de festa. O caso é grave. É necessário encontrar uma máscara para o doente, feita pelo deus carneiro Khnum. Identificado com o deus, o paciente adquire a força de que precisa para vencer o mal. Mas existem remédios mais simples para se libertar de uma enxaqueca tenaz. Ísis mostrou o exemplo: balançou a cabeleira como uma mulher enlutada, por analogia com a desordem da cabeleira de Hórus que tinha sido atingida por Seth quando combatera. Quem puser os seus cabelos em ordem evitará as dores de cabeça.[249]

Recomenda-se igualmente colocar as mãos na cabeça: os sofrimentos desaparecerão sob o efeito do magnetismo que o paciente oferecerá a si mesmo, com a condição de que o ato mágico lhe permita identificar-se com Hórus, o Antigo, de vigor primordial. Precaução útil: acrescentar um amuleto que cobre a parte superior da espádua e da coluna vertebral, espécie de peruca protetora que foi fiada e tecida por Ísis e Néftis.

Outro meio de lutar contra a enxaqueca: recitar uma fórmula sobre um crocodilo de barro em cuja boca é colocada uma pevide. Na cabeça da figurinha, um olho de faiança. É preciso, em seguida, ligá-lo e inscre­ver um desenho dos deuses numa faixa de linho.[250]

Outro encanto eficaz: assimilar a cabeça do doente à de Osíris Onófris, na cabeça de quem foram colocadas 377 serpentes divinas, que cospem chamas e afugentam o mal.[251] O mago passa ao ataque lançando ao fogo o animal do Além cuja frente é idêntica à de um chacal e que lançou um malefício sobre o paciente. Destruindo a causa, aniquila-se o efeito.

É especialmente importante manter a própria cabeça. A cabeça de Osíris era uma relíquia essencial, conservada perto de Abidos, principal centro de culto do deus. Tornando-se Osíris, o justo adquire um estatuto divino. Mas evita ter a cabeça cortada. Toma todas as precauções para a conservar intacta no império dos mortos.[252] Para obviar a todo e qualquer risco, até se prevêem “cabeças de substituição” que se depositam nos túmulos.

O capítulo 101 dos Textos dos Sarcófagos é um texto dos mais estranhos. O mago recita-o sobre uma cabeça pousada no solo, iluminada pela luz que sai de uma janela. A finalidade da operação é uma transmigração psí­quica. A alma humana adquire a faculdade de se deslocar no Cosmo e de reencontrar Chu, o deus do ar luminoso. Na cabeça escondem-se capaci­dades misteriosas que só o mago é capaz de despertar e levar à maturida­de. Esses antigos conhecimentos foram conservados no Ocidente, per­manecendo ainda em certos rituais maçônicos. Assinalemos, por exem­plo, que o Aprendiz, no caso de perjurar e trair os segredos de que dis­põe, terá simbolicamente a garganta cortada: perde a cabeça e o sentido da vida em espírito.

 

Males de ventre

Os deuses não são poupados por essa dolorosa doença, da qual sofre­ram divindades tão importantes como Rê e Hórus. Quando o deus solar se queixa do ventre, a sua barca se detém, a corrida celeste interrompe-se, a equipagem fica inquieta. Quando a navegação pára, a ordem do mundo está em perigo. É necessário apelar para os grandes que se encon­tram em Heliópolis, quer dizer, aos mestres em magia que conhecem os remédios mais complexos. Para aliviar o doente, este é magnetizado colocando-lhe a mão no ventre. Como complemento, pronuncia-se uma fórmula sobre uma estatueta de mulher, em barro, para a qual o mago envia o mal.[253] Apela-se igualmente à Duat, através da superfície da Terra. O céu, o mundo intermediário e a Terra são postos em perigo quando as entranhas de Rê sofrem. É o próprio movimento dos astros que se arris­ca a parar, tal como a barca.

O mal de ventre é provocado por um ser maligno. É preciso consul­tar Ísis e Néftis. Ísis pergunta se se trata da ação de vermes. Se for o caso, gravam-se dezenove sinais com a ponta de um arpão. As palavras mágicas são para dizer em cima de um desenho inscrito no ventre do doente.[254]

Hórus queixa-se do ventre porque comeu um peixe de ouro vindo do lago puro de Rê. Violou, portanto, um tabu. Ísis irá curá-lo. A fórmu­la é para recitar em cima de um disco de ocre vermelho. Em seguida untar com mel e lavar o doente.[255]

Hórus cometeu uma falta ainda mais grave: comeu falcão, o seu pró­prio animal sagrado! As conseqüências não se fazem esperar: o deus torce-se com dores, o mal atormenta o seu estômago. Chama os seres malignos para prevenir Ísis, sua mãe. Mas tem muita dificuldade em encontrar os que sejam bastante rápidos para percorrer o espaço. Por fim, escolhe um que viaja com o sopro da sua boca e volta do mesmo modo. O gênio informa Ísis de que Hórus se encontra doente. A deusa evoca o seu verdadeiro nome que conduz o sol para oeste e a lua para leste, e faz com que as trezentas veias que cercam o umbigo sejam conjuradas, assim como toda a doença que aflige o corpo do paciente. Hórus está salvo! Mas o papiro mágico copta que conta esta história termina de uma maneira bem estranha, acabando a fórmula mágica com estas palavras: “Eu, que falo, sou o Senhor Jesus que cura”. Cristo, indubitavelmente, herdou o poder mago de Ísis, a Grande.

 

Do olho e do ouvido

Existem numerosas formas de proteger os olhos. O vento do deser­to causava males como cataratas, infecções, doenças veiculadas por seres malignos. Mas o olho é um órgão essencial. O verbo “criar”, em egípcio antigo, escreve-se com um olho. Ver é recriar, abrir-se à realidade. O olho físico é a manifestação expressa de um olho interior. O olho saudável, o olho completo, são símbolos da totalidade, da vida na sua plenitude. Eis por que o mago cumpre um ato criador ao regenerar, pelo uso do olho, aquele que se mostra digno da iniciação aos mistérios: “Eu te apliquei o Olho de Hórus para que o teu rosto seja por ele regenerado, pintei-te os olhos com a tinta verde e a tinta negra para que o teu rosto seja por essas tintas regenerado... Completo o rosto com ungüento proveniente do Olho de Hórus, esse mesmo ungüento pelo qual ele foi completado. Ele liga-te os ossos, junta-te os membros, reúne as tuas carnes e dissipa-te os males”.[256]

Para lutar contra as doenças dos olhos, o mago evoca uma desordem cósmica que um dia se produziu no céu do norte e no céu do sul. Um dos pilares que suportam o céu caiu na água. Para evitar que o Cosmo desa­be, o mago fixa solidamente as cabeças dos membros da equipagem da barca de Rê nos respectivos pescoços. Estarão assim aptos a prosseguir os seus trabalhos e a embarcação vogará normalmente. As palavras deve­rão ser pronunciadas sobre a vesícula biliar de uma tartaruga, adicionada com mel. O produto aplica-se no exterior dos olhos.[257]

Isso quer dizer que o tratamento de uma doença ocular está em rela­ção direta com o equilíbrio do Universo. Outra confirmação: contra as doenças dos olhos, apela-se ao Olho de Hórus, que destrói as perturbações causadas por espíritos malignos, por um morto ou por uma morta, por um inimigo ou uma inimiga.[258] É graças ao Olho de Hórus que um remédio aplicado nos dois olhos se revela eficaz. Foi especialmente pre­parado pelos mestres magos de Heliópolis. Thot foi encarregado de levar o Olho para a grande moradia que se encontra na cidade santa, protegendo-o de qualquer influência nociva.[259]

Se, apesar dessas precauções, se declara um leucoma, uma voz repercute-se no céu do sul. O céu do norte está perturbado. Uma cons­trução desmorona-se, as pedras caem na água. E necessário levantar o que ameaça ruína, voltar a pôr de pé a edificação. Assim se expulsa o mal e se preserva o olho.[260]

Trazer o olho como amuleto permite ter consigo a medida de todas as coisas, o análogo do Olho de Rê que aniquila os seus inimigos. “Olho de Hórus” é também o nome genérico da oferenda: o homem que o traz como amuleto, apresenta-se, portanto, como oferenda aos deuses, faz doação da sua pessoa ao Criador e, desse modo, protege-se do mal.

No Egito, o olho está presente em toda parte... para quem saiba ver. É gravado nas estelas, nos Sarcófagos, nos barcos. Em toda parte, é o olhar do Além que observa os vivos e os guia. O faraó, como sempre, dá o exemplo. A uraeus, a serpente fêmea que ele traz na fronte, é “o olho ardente de Rê”, fogo ativo da coroa que dispersa os seus adversários. Em Saqqara, no domínio funerário do faraó Djoser, um friso de uraeus consti­tui outros tantos olhos protetores da alma do faraó. Acontece o mesmo com as duas serpentes que cercam o sol, formando um símbolo freqüen­temente inscrito nas paredes dos templos. A Estela de Metternich fala da pro­teção do olho divino da direita e do olho divino da esquerda. Assim, o olhar do Criador está aberto para o mundo, as estrelas são mantidas no seu lugar e o tempo decorre ritualmente, dando ao ser humano a sua jus­ta função na Criação.

O mago pinta um olho na sua própria mão. No interior do olho, a imagem do deus Onuris, cujo nome significa “aquele que traz o longín­quo”, quer dizer, a deusa que simboliza o olho que fugiu para lugares lon­gínquos e que o mago deve fazer voltar ao Egito.[261] Pronunciando as fór­mulas sobre um olho de lápis-lazúli, o mago mostra-se capaz de colocar o olhar em qualquer dos seus membros e assim torná-los clarividentes.[262]

As fórmulas mágicas pronunciadas sobre o olho completo, udjat, com a figura de Onuris, autorizam o mago a fazer esta declaração: “Eu sou um ser escolhido entre uma multidão, que saiu da Duat, cujo nome é desconhecido. Se o seu nome é pronunciado na margem do rio, então este secará. Se o seu nome for pronunciado na Terra, então uma chama se produzirá. Eu sou Chu, símbolo da Luz, que mora no interior do olho completo do pai dele. Se alguma coisa que está sobre a água abre a boca, se ela mexe com os braços, farei com que a terra seja invadida pelas ondas, que o sul se torne o norte e que a Terra fique ao contrário!”.

Quando o mago utiliza um vaso de medir, este não é um objeto pro­fano, mas sim uma “relíquia” que serviu outrora para medir o Olho de Hórus. Ora, este Olho é também um meio mágico através do qual Hórus ressuscita Osíris, seu pai.

Quer dizer que o biólogo, o químico e o alquimista do Antigo Egito tinham o “bom olho” para fazer os seus cálculos e descobrir as justas pro­porções que entram na composição dos medicamentos e das drogas. Esse “bom olho” vê a sua ação contrariada por um “mau olho” que provoca graves preocupações ao mago. A serpente Apófis volta o seu mau olho contra Rê. Hipnotiza a equipagem da barca solar. Somente Seth lhe pode resistir porque possui, também ele, um olhar temível que lhe permite lutar contra a serpente maléfica. Esta, tal como as outras potências das trevas, procura arruinar ou roubar o Olho de Rê. Única solução: cegar Apófis para impedi-la de fazer mal. Se não conseguir ver, será incapaz de espalhar a infelicidade. Método exato para consegui-lo: o ritual de bater a bola. Nesse jogo contra Apófis, o faraó bate uma bola diante da deusa Hathor. A bola é o olho da serpente Apófis, assim travada para que a vida cósmica prossiga em harmonia. Esse rito é integrado numa série de ações mágicas que consistem em matar o oryx (uma espécie de antílope), o cro­codilo, a tartaruga, oferecendo as partes sacrificadas de um ser maléfico abatido: outros tantos meios de dominar as forças negativas utilizando-lhes a energia.[263]

Desde as épocas mais antigas, o olhar da serpente é considerado perigoso. A cobra, que ainda hoje se dissimula nas reentrâncias das pare­des dos templos, era por vezes reputada por ter um olhar hipnótico: na realidade, a vista desse temível réptil é de tal modo impressionante que a pessoa fica entorpecida — e se não se toma a precaução de proteger os olhos, a cobra expele o seu veneno e cega a sua vítima. Esse jato de vene­no é tão medonho quanto uma mordedura, porque pode provocar uma cegueira definitiva.

É preferível não olhar de frente os seres maléficos; é por esse motivo que o mago, em virtude da sua arte, os obriga a olharem para trás deles mesmos.

 

O ouvido merece igualmente a atenção do mago. Com efeito, as orelhas são as portas de entrada do sopro que transporta ora a vida (pela orelha direita), ora a morte (pela orelha esquerda). É necessário ter mui­to cuidado para não se ser violado nem fecundado pelas energias negati­vas, que poderiam a todo momento penetrar pelas orelhas e atingir o coração. A saúde é para o “bom entendedor”, ou seja, para aquele que só dá ouvidos às vibrações harmônicas. E também indispensável identificar os maus gênios que tentam penetrar por meio do canal auditivo.

Numa estela dedicada ao deus Min, designado como “touro da sua mãe”, vê-se um fiel ajoelhado fazendo um gesto de adoração a Amon-Min: por cima dele duas orelhas gigantescas.[264] E a garantia de que o deus ouvirá a prece e a acolherá favoravelmente. Na Época Baixa multiplica­ram-se as “estelas com orelhas”, portadoras das esperanças mais imedia­tas. Os crentes eram persuadidos de que os seus votos se realizariam por efeito de uma magia simpática que atrairia a atenção das divindades sobre o seu caso.

 

Uma alimentação mágica

O que o faraó detesta é a fome. Não a comerá. O que também detes­ta é a sede. Não a beberá.[265] Isso implica uma alimentação muito especial para que o soberano se sinta satisfeito. Os oficiais de boca, tal como na China Antiga, ocupavam na corte um lugar invejável. A qualidade e a quantidade dos alimentos e das bebidas são igualmente importantes, tan­to para os vivos como para os mortos. Nos túmulos são depositadas “lis­tas de oferendas”, verdadeiros menus destinados aos do outro mundo. Não é o aspecto material dos alimentos que conta, mas sim a sua essência. Esta nasce dos próprios hieróglifos quando se lêem em voz alta as fórmulas de oferenda. E, portanto, a magia do Verbo que realmente nutre a alma dos habitantes do Além. A fórmula clássica, repetida em numerosas estelas, é: “Uma oferenda dada pelo faraó, uma oferenda dada por Anúbis, mil pães, mil jarros de cer­veja, mil bois, mil gansos para a potência vital de [nome da pessoa]”.

O ritual de abertura da boca[266] é mais explícito:

“Ó [nome da pessoa]”, proclama o mago,

“dou-te mil pães,

dou-te mil jarros de cerveja,

dou-te carne de touro,

dou-te carne de pássaro,

dou-te mil panos de linho,

dou-te mil peças de vestuário,

dou-te carne de gazela,

dou-te carne de antílope,

dou-te carne de boi,

dou-te carne de vitela,

dou-te carne de ganso,

dou-te carne de ave aquática,

dou-te carne de grou,

dou-te carne de pombo,

dou-te carne cortada no matadouro,

dou-te mil pães cozidos no palácio,

dou-te mil grãos de incenso,

dou-te mil bilhas de azeite,

dou-te mil bilhas de água fresca,

dou-te mil oferendas divinas,

dou-te mil pedaços escolhidos na mesa das oferendas,

dou-te mil pedaços de carne de primeira,

dou-te mil ramos de oferenda,

dou-te mil alimentos,

dou-te um milhar de todas as coisas boas e puras, um milhar de todas as coisas exce­lentes, deliciosas e duas vezes puras, destinadas ao teu ka, [nome da pessoa]!”.

A esta lista muito apetitosa acrescentemos o mel, alimento extraordi­nário que viaja numa barca divina e escapa aos gafanhotos. O coração dos deuses era amargo quando acolheu o mel: comendo-o, recuperará a feli­cidade. Também assim será para os justos.[267]

A deusa Uret-hekaú, “Grande em magia”, é patrona da alimentação. Toma a forma da dupla serpente uraeus que está na fronte do faraó. Comer e beber não são ações profanas, são as expressões mais imediatas de uma alquimia que se efetua no interior do corpo. E necessário também, em certas circunstâncias, tomar precauções mágicas. Deve-se recitar uma fórmula enquanto se bebe cerveja. Devem-se evocar Seth, deus da potência vital, e o coração, centro do equilíbrio espiritual.[268] A cerveja é considerada uma bebida que traz consigo a saúde, ou seja, a cura: serve para purgar o estômago. Mas corre-se o risco de embriaguez: aquele que bebe em excesso é comparado a Seth, o bêbado. A utilização mágica da cerveja afasta as influências malignas. Recitada a fórmula, absorvida a cer­veja, é bom regurgitar uma parte. Dirige-se então ao ser nefasto que se encontra no ventre e diz-se o nome. Ele chama-se “o morto”. Também se nomeia o pai dele, “aquele que faz cair as cabeças”. Em virtude desta identificação, o doente fica curado dos seu males.[269]

O mago pronuncia igualmente fórmulas sobre outros líquidos, tais como a água e o vinho: aqueles que absorvem esses líquidos gozam de virtudes sobrenaturais que se espalham pelo corpo todo.

 

O mago dirige-se ao guardião da Grande Morada e pede-lhe para a abrir, porque ele é Rê e o Nilo.[270] Afirma que as portas da Duat lhe estão abertas, que ele sai pelo portal sagrado. Mas é necessária uma operação mágica para triunfar sobre uma das inumeráveis passagens de porta: a fór­mula deve ser recitada sobre sete olhos sagrados dispostos em escritura; em seguida, bebe-se uma mistura de cerveja e natrão.

A cerveja constitui, com o pão, a alimentação energética de base. No entanto, para estancar a sede um pouco sobrenatural de uma criança assi­milada a um deus, utiliza-se “a grande torrente” vinda do céu, análoga ao leite da vaca sagrada que amamenta o faraó criança. Nutrição mágica como nenhuma outra, uma vez que confere uma vitalidade excepcional aos felizes beneficiários.

Não se deve brincar com os alimentos sagrados nem manipulá-los de qualquer maneira. Existem proibições que qualquer mago qualificado conhece em pormenor. Comer alimentos “tabu” faz adoecer. Tal como foi dito antes, o próprio Hórus foi vítima de uma indisposição grave depois de ter comido parte de um peixe consagrado a Rê, e também de um falcão que era o seu próprio animal sagrado. As dores do deus exigi­ram a intervenção de Ísis. No caso do mago que trata de casos semelhan­tes, deve recitar as fórmulas sobre um prato novo pintado de ocre amare­lo. E preciso untar com mel o homem que sofre as dores suportadas pelo deus. Uma vez lavado, estará curado.[271]

Faz grande falta um estudo importante acerca da alimentação no Egito faraônico. Sabe-se, no entanto, que os antigos egípcios apreciavam muito os prazeres da mesa, cuja magia, ritual ou não, não lhes escapava.

 

Plantas mágicas

A terra é um fator de proteção mágica. E utilizada pelo exorcista para combater o mal. Quando o veneno de um ser nocivo cai por terra, ele é aniquilado. A Terra, pai dos deuses, extingue o fogo destruidor.[272] O orvalho da manhã, enviado pelo céu para banhar as plantas com um fluxo divi­no, tinha a reputação de curar os membros paralisados.

“Quando as plantas dos deuses estão sobre a tua cabeça”, proclama um ritual, “todas as proteções da vida chegam a ti... Para ti vêm as plantas que saem da terra, o linho originário do campo das pedras, os vegetais regeneradores originários da safra da alegria, a emanação selecionada que reveste os deuses na sua saída. Ela vem para ti sob a forma de uma preciosa mortalha, preserva-te sob a forma de uma faixa, faz-te crescer sob a forma de roupa, consolida-te os ossos sob a forma de ligadura imaculada” .[273]

Todas as plantas essenciais do Egito — papiro, linho, assim como as substâncias preciosas, mirra, incenso, mel — são de origem divina. São, na realidade, o choro de Hórus, o sangue de Geb, as lágrimas de Chu, de Tefnut e as de Rê, que caíram do céu para a Terra.[274] Certos vegetais detêm um papel muito especial: por exemplo, a acácia, símbolo de rege­neração, ou o zimbro, do qual se diz que é oriundo da luz.

Para tratar dos seios, cujos modelos divinos são os de Ísis, que amamentou os gêmeos cósmicos Chu e Tefnut, usam-se várias ervas, nomea­damente caniços.[275] Até o veneno vê a sua ação contrariada pela aplicação de um lótus sobre a ferida.[276] Quanto à raiz de mandrágora, é eficaz para fazer dormir um homem durante dois dias.[277] O alho é usado nas habita­ções para fechar a boca das serpentes macho e fêmea e de escorpiões. São os braços de Rê, de Hórus, de Thot, da grande e da pequena Enéade que, ativados pelo emprego do alho, matarão os inimigos de um doente. A fór­mula deve ser recitada sobre alho moído e reduzido a pó misturado com cerveja — trata-se do “Olho branco de Hórus”. Com isso se impregna a moradia durante a noite, de modo que nela não possa penetrar nenhum ser perigoso.[278] A cebola revela-se, de resto, igualmente eficaz. Quanto ao pinheiro ach, este é portador de um fluido que aumenta as capacidades de percepção do mago.

As matérias vegetais são amplamente usadas em magia: assim aconte­ce com a cera, matéria de base para o preparo das figurinhas mágicas, cobertas de inscrições, depois lançadas ao fogo em sinal de aniquilamento do inimigo que encarnam. Os magos eram especialmente peritos na arte de criar ungüentos e se beneficiavam de magníficos laboratórios no interior dos templos. Um dos seus mais maravilhosos produtos era “o grande ungüento secreto da Casa de Vida”, que serve para proteger as construções, bem como para manter em harmonia os membros do corpo humano.

Conhecer os segredos dos perfumes é indispensável no outro mun­do. O morto justificado substitui o odor da putrefação pelo de mirra que Hathor coloca para si mesma na cabeça; o seu aroma é o do incenso que a deusa utiliza, a sua emanação é um óleo precioso com que Hathor se unta.[279]

Quem duvidaria de que o universo vegetal é percorrido por vibra­ções mágicas? Há momento mais sereno que o de refrescar-se sob a folhagem da venerável Persea gratíssima de Heliópolis, de acordar em cada dia num jardim, contemplando os primeiros raios de sol, depois que as provas iniciáticas foram ultrapassadas e a alma se ergueu para a luz?

 


 

O AMOR MÁGICO

Quando os homens partem para a caça às serpentes e aos escorpiões, as mulheres ficam em casa. Como o meu anfitrião me dera a grande honra de me apresentar a esposa, tive coragem para interrogá-lo, com muita moderação, sobre o papel mágico da mulher.

Refletiu durante muito tempo antes de me responder. O amor entre um homem e uma mulher, afirmou ele, não é o que muitas pessoas acreditam. O amor é uma oferenda da magia. A minha mulher e eu vivemos a mesma aventura.

Existem tantos textos, tantas esculturas que mostram casais terna­mente enlaçados, há tantas evocações do amor humano como símbolo vivo do amor divino... sim, o Antigo Egito celebrou com múltiplas fórmu­las o amor mágico.

 

Encantamentos

Num encanto para celebrar o amor, o mago saúda as sete Hathors, Rê-Horakhty, o pai dos deuses, os mestres do Céu e da Terra. Endereça-lhes este pedido: que a mulher que ele ama o procure como uma vaca busca o capim, como a mãe busca os filhos ou o pastor o seu rebanho. Se essas potências divinas recusassem ajudá-lo, o mago incendiaria Busíris e queimaria Osíris![280]

Isso quer dizer que o amor — energia bem mágica — necessita de intervenções freqüentes da parte de especialistas, tão conhecedores das paixões da alma quanto das do corpo. O capítulo 576 dos Textos dos Sarcófagos é consagrado ao poder divino residente no pênis daquele cujo pensamento está ao mesmo tempo no céu e na terra. O homem que conhece a fórmula mágica poderá copular nesta terra de noite e de dia, o desejo virá à mulher que se encontra por baixo dele quando ele faz amor.

Um papiro grego da Biblioteca Nacional de Paris, que registra textos destinados a inspirar o amor de uma mulher, lembra a lenda de Ísis que, no coração do verão, se dirige para as montanhas, errante, dolorosa. Thot fica preocupado ao vê-la naquele estado. Por que o rosto de Ísis está coberto de poeira?, por que seus olhos estão cheios de lágrimas? A razão é simples e trágica: encontrou a irmã Néftis dormindo com Osíris, seu marido! Acontece então uma conjura terrível que assustará a rival e enfeitiçará as diversas partes do seu corpo.[281] A magia greco-egípcia tardia perde-se com freqüência nesses caminhos ínvios. Um papiro grego,[282] que ensina como provocar o amor numa mulher, não hesita em apelar para Anúbis, o encarregado do ritual dos funerais: “Anúbis, deus terrestre, subterrâ­neo e celeste, cão, cão, cão, coloca todo o teu poder e toda a tua força em Titer, que foi pari­da por Sofia (a Sabedoria). Liberta-a do orgulho, da reflexão e do pudor e faça-a vir aqui, a mim, aos meus pés, lânguida de paixão a qualquer hora do dia ou da noite, pensan­do em mim incessantemente quando come e quando bebe, quando trabalha e mesmo quando convive, quando repousa, quando sonha e quando se encontra sonhadora; quando, atormen­tada por ti, se apressa, lânguida, ao meu encontro, com as mãos cheias e a alma generosa, oferecendo-se a mim e preenchendo o dever das mulheres para com os homens, satisfazendo a minha avidez e a sua própria, sem aborrecimento, sem vergonha, apertando a sua coxa contra a minha coxa, o seu ventre contra o meu ventre, o seu púbis negro contra o meu púbis negro no encosto mais doce! Sim, Mestre, traz-me Titer a quem Sofia deu nascimento, a mim, Hermes que fez nascer Hermione”.

Os métodos mágicos que se destinam a fazer com que uma mulher se apaixone são com freqüência de uma complicação extrema. É necessário empregar diversos produtos vegetais, esmagá-los, colocá-los num reci­piente, acrescentar azeite num momento exato, regular-se pelas fases da lua, recitar fórmulas, levantar-se cedo para ir a um jardim, ter um sarmen­to de vinha na mão esquerda e depois na mão direita quando cresceu sete dedos, levá-lo para casa, tirar óleo de um peixe que se macerou, ligar-lhe o rabo, etc.[283] Encontrar-se neste dédalo de manipulações não é coisa fácil.

O método do escaravelho e do copo de vinho não é nada mais práti­co. Para apaixonar uma mulher, recomenda-se pegar um escaravelho pequeno e sem cornos; deve-se agir ao nascer do sol. Afoga-se o escara­velho em leite de uma vaca negra e ali ele é deixado até à noite; depois, ele é retirado e é espalhada areia na sua parte inferior, colocando-se em cima uma faixa de tecido circular. Queimar incenso diante dele. Um dia depois está seco. É, então, dividido ao meio com uma faca de bronze, cozido em vinho de bosque, esmagado com pevides de maçã misturadas com urina ou com o suor do mago. Fazer com tudo isso uma bola que se coloca em vinho que a mulher desejada deverá beber.[284]

As boas e velhas poções mágicas, como se constata, tinham direito de cidadania na magia popular. Mas necessitavam de ingredientes que eram quase impossíveis de obter, como pêlos da cabeça de um homem vítima de morte violenta ou sete grãos de trigo miúdo provenientes de um túmulo. Mais rápidos são os artifícios que consistem em verter ungüento de rosas numa lamparina, ou em esmagar frutos de acácia mis­turados com mel, para obter uma substância com que se unta o pênis. O resultado, no entanto, não é garantido. O amor de uma mulher é um sentimento tão complexo que esse tipo de magia, na maior parte das vezes, conduz apenas a resultados mesquinhos.

A única verdadeira magia amorosa é a identificação do mago com Osíris, por quem Ísis está apaixonada, a ponto de o ressuscitar dentre os mortos. Essa magia é parte integrante da iniciação aos grandes mistérios e da transmutação do amor humano em energia divinizada.

 

Parir magicamente

O nascimento é um momento tão perigoso como feliz, tanto para a mãe como para o filho, cuja existência é ameaçada pelos maus espíritos. Compete ao mago assistir a parturiente, fazendo intervir gênios bons armados com facas, dispondo de armas tão eficazes como as dos seus temíveis adversários. É prudente apelar para as grandes divindades. Num nascimento difícil, tanto a mãe como a criança são objeto dos cuidados do mago. Este invoca uma deusa e um Hórus: mas como estão ocupados com atividades de medida nos campos, eles demoram a chegar. Finalmen­te disponíveis, apresentam-se perante a criança como modelos dos justos que cultivam a sua parcela de terra nas regiões celestes. O nascimento material é prelúdio do nascimento celeste. A corda de medida é assimila­da ao cordão umbilical.[285]

São muito raras as fórmulas destinadas a acelerar o nascimento. Tendo Hathor e Ísis passado por um caso dos mais delicados, as mulheres que suportam dores comparáveis serão igualmente assistidas pelas maiores divindades que virão em seu socorro.* É útil usar amuletos protetores, nomeadamente os do alegre anão Bês. A parturiente pode também ser encomendada diretamente a Hathor para que esta venha assisti-la.[286]

 

* Existem diversas fórmulas para facilitar o nascimento. Eis uma delas: “Abre-me! Sou o da vasta oferenda, o construtor que construiu um pilar para Hathor, patrona de Dendera, que se ergue para que ela possa dar nascimento” (ela, quer dizer Hathor).[287]

 

Os ginecologistas são obrigatoriamente magos. Colocar o útero no lugar, por exemplo, não é uma simples ação mecânica. É necessário con­jugar cirurgia e magia, fabricar uma estatueta de íbis em cera, queimá-la numa fogueira. O fumo entrará nas partes genitais da mulher e, graças à intervenção de Thot, tudo entrará em ordem.

Uma deusa é especialmente afetada pelo desenrolar do parto. A deu­sa Meskhenet, descendente de Atum, filha de Chu e de Tefnut, preenche o seu trabalho fazendo penetrar o espírito no corpo do recém-nascido que vai sair do ventre materno. Ela lhe oferecerá os poderes celestes e terrestres de que ele necessita, impedirá que qualquer malefício seja pro­nunciado e afastará dele o mal. O mago pronuncia as fórmulas sobre dois tijolos onde se encontra instalada a mulher em trabalho de parto. Lança incenso e gordura de pássaro no fogo. Desse modo, tudo irá correr bem.[288]

Para acelerar o parto de Ísis, o mago implora a Rê e Aton, os deuses que estão na região oeste, assembléia das divindades que julgam toda a Terra, o conselho dos deuses de Heliópolis e dos de Letópolis. Ísis sofre. A sua gravidez chega ao fim. Se Hórus não nascesse, quanta infelicidade! Não haveria Céu, nem Terra, nem oferendas para as divindades, só per­turbações cósmicas![289]

Ísis é a mãe por excelência. Se não tivesse um parto feliz, as conse­qüências seriam aterradoras. O próprio princípio da vida seria posto em causa. E a razão por que toda a futura mãe coloca a sua confiança na deu­sa, tal como obtém a assistência da deusa hipopótamo Tuéris, “a grande”, fêmea grávida, detentora do hieróglifo da proteção. Duas figurinhas de Tuéris que estão no Museu de Berlim estão cavadas de modo a que se possa colocar pedaços de roupas pertencentes a uma mulher grávida. Outra figurinha era preenchida com leite: o líquido escorria lentamente da mama da deusa hipopótamo, garantindo à mãe que esta amamentaria o filho sem problemas. Existia uma comunidade de doze deusas hipopótamos, cada uma destinada a velar cada mês do ano. Na origem, a deusa hipopótamo Ipet era identificada com o céu. Até a Época Baixa, presidi­rá aos mammisi, santuários especialmente consagrados aos ritos do nasci­mento. A gorda Tuéris, com o seu ventre enorme, com patas e focinho de leão, é feia somente em aparência: sob esta forma de espantar, esconde a sua verdadeira natureza, que nos é revelada pelo texto de uma estatue­ta:[290] “Eu sou Tuéris, em todo o seu poder, a que combate por aquilo que lhe pertence e afas­ta os que tentam jazer mal a Hórus, meu filho. Eu sou Ipet, que reside no horizonte e cuja faca protege o Mestre universal, a patrona que se teme, aquela cujo aspecto é ornado e que decapita aqueles que contra ele se revoltam”. *

 

* É preciso ainda exaltar magicamente, em certas circunstâncias, a influência do Sol. Para lá chegar, é preciso escolher um jovem do sexo masculino, puro, recitar uma fórmula escrita por ele, colocá-lo face ao oeste, fazer com que esteja em cima de um tijolo novo ao nascer do Sol. Em seguida, colocar uma peça de linho atrás do rapaz que está com os olhos fechados. Bate-se-lhe na cabeça com um dedo da mão direita. (Papiro mágico de Leiden, 165-7)

 

No momento do parto, é invocada Nut, a deusa do Céu. Nela estão todos os deuses, as estrelas que transmitem a luz e que são as almas dos glorificados. O mago pede que a abóbada das estrelas desça sobre a mulher que está dando à luz e a proteja. Emanação mais concreta da deu­sa do Céu, a porca Reret protege os humanos contra as picadas veneno­sas e favorece igualmente o processo do parto. Amamentando numerosas crias, esta porca será celebrada até o fim da Idade Média ocidental, onde aparece na iconografia das catedrais.

 

A criança

A criança, sobretudo a recém-nascida, é um ser frágil. Por esse moti­vo, o mago dispõe de uma abundante série de fórmulas para protegê-la. Em Heliópolis, celebram-se festas no primeiro e último dia da lunação para salvaguarda da mãe e do filho.

A proteção da criança é comparável à do céu, da Terra, do dia e da noite, dos deuses que estabeleceram os fundamentos da Terra. Os deuses protegem o nome da criança, o leite que ela mama, a roupa com que se veste, a época em que vive, os amuletos fabricados para ela e que lhe são colocados em torno do pescoço.[291] Recitam-se fórmulas sobre a criança quando a luz do sol aparece. A mão e o selo do deus-sol são a proteção da mãe. Em cada manhã, em cada tarde, ela pronuncia fórmulas mágicas sobre um amuleto suspenso do pescoço do filho. Apela ao sol nascente, implora-lhe que afaste os mortos que querem arrebatar a sua criança. “E Rê, o meu senhor, que me salva”, afirma; desse modo, ela não entregará o seu rebento ao ladrão ou à ladra vindos do reino dos mortos.[292]

Aos magos egípcios opõem-se freqüentemente os magos estrangei­ros. A mãe protege o filho contra a magia estrangeira, cercando-o com os seus braços. Desconfia especialmente da feiticeira da Núbia e do asiático. Quer sejam escravos ou nobres, ela profere contra eles um malefício ter­rível: que sejam como vômito ou como urina![293]

Há uma constante preocupação com o bebê a todo momento: estará bem quente no seu ninho, ele, que é comparado a uma avezinha? A mãe tra­ta bem dele? Ela está presente? Ou então a sua ama-de-leite? Estão velan­do para que respire bem? Para lhe evitar toda e qualquer perturbação, con­feccionam-se nós mágicos e pronunciam-se fórmulas sobre bolinhas de ou­ro e uma pedra grená sobre um selo que inclui um crocodilo e uma mão.[294]

Se a criança aparece com um inchaço suspeito, lembra-se-lhe que ela é Hórus e afasta-se o gênio maligno, que se manifesta como um agressor de faca afiada como um carniceiro. O inchaço diminui, e o pus desapare­ce. Face a esse pouco delicado espetáculo, o mago evoca uma cena deli­ciosa onde se está deitado na companhia de mulheres maravilhosas com cabelos perfumados de mirra.[295]

A Estela de Metternich explica que Hórus foi picado num campo de Heliópolis enquanto Ísis se encontrava nas moradas superiores, fazendo libações em honra do seu irmão Osíris. Hórus gritou de dor. Ísis apelou às potências celestes para socorrê-lo.[296] Para que Hórus se cure, as amas do local santo de Buto velam por ele, traçando o seu caminho entre os homens até que ele tenha tomado posse do trono das Duas Terras. O poder mágico da mãe dele é a sua proteção; ela o cerca de amor e traz o receio dele para o meio dos homens.[297]

Esse mito fundamental de Ísis e de Hórus, da Mãe e da Criança, obceca o pensamento egípcio. A fragilidade da existência humana e a for­ça da magia confrontam-se aí. O drama vivido por Ísis é pungente. Escapando ao furor de Seth, esconde o filho e parte em busca de alimen­to. Quando volta, encontra Hórus inconsciente. Interroga os habitantes dos pântanos. Hórus foi picado por um escorpião ou uma serpente. Ísis beija Hórus, canta a litania “Hórus foi picado”. A conselho da deusa escor­pião Serket, invoca a barca solar, que é obrigada a deter-se. Thot desce. Ordena ao veneno que desapareça para que cessem as perturbações cós­micas provocadas pela imobilização da barca solar.[298]

Não há outra educação senão a mágica. Sem a magia, como poderia qualquer mãe atenciosa afastar os maus gênios? Para abater a febre no ventre de uma criança, Ísis e Néftis lançam um apelo a Geb, pai dos deu­ses. Elas recitam a fórmula sobre duas imagens de Thot, desenhadas com tinta fresca na mão de um homem.[299]

Para ajudar uma criança a crescer, faz-se com que absorva um peda­ço da sua placenta, triturada no leite. Se a vomita, morrerá. Se a engole sem problemas, viverá longo tempo. A placenta real era, efetivamente, considerada um dos símbolos do princípio de vida, princípio que devia ser sempre exaltado face às forças da morte que rondam. O ser maligno da doença vem das trevas. Tem o nariz atrás, o rosto igualmente voltado para trás. Deve-se evitar que esse gênio nefasto beije a criança, se aproxi­me dela e a tome para si, ou seja, que a leve à morte. A mãe está sempre inquieta com a saúde do filho. Em cada momento, uma forma inquietante, um fantasma feminino, pode penetrar na casa. A mãe interroga-o: “Vieste para beijar esta criança? Não o permitirei”. “Vieste para a levar? Não o permiti­rei”. O espectro é uma morte. Desconcertada com as perguntas da mãe, o ser maligno já não sabe por que veio. Afasta-se e perde-se no nada.[300]

Os antigos egípcios tinham um sentido agudo de uma magia médica em que o ambiente circundante exercia um importante papel. As forças negativas não são apenas expulsas para fora do corpo da criança, mas tam­bém para fora da casa. Não pode existir um ser saudável num ambiente doentio. Felizmente, a mãe de família dispõe de um formidável remédio mágico: o seu leite. O leite das deusas regenera o faraó, o leite da mãe expulsa os malignos para longe das crianças. Esse alimento extraordinário cura as cólicas, a gripe, as queimaduras, confere vigor e potência. O leite “investido” magicamente por fórmulas é vertido num recipiente cuja for­ma é a de uma mãe com uma criança nos joelhos. O leite da mãe ou da ama-de-leite é considerado como uma “água de proteção” que põe o recém-nascido ao abrigo das doenças. Não tinha Ísis, ao sair da oficina de tecelagem, apagado o fogo que havia atingido Hórus graças ao seu leite?[301]

Leite de mulher e grãos de perfume são excelentes suportes mágicos para lutar contra uma afecção penosa, a gripe. “Deixa de correr, gripe, filha da gripe que faz adoecer os sete orifícios da cabeça”, diz o mago; os seguidores de Rê endereçam as suas preces a Thot, o mago traz o remédio, ou seja, o leite de uma mulher que pariu um menino e grãos de perfume bem seleciona­dos. Thot assim curou Rê de uma sinusite que o afetava gravemente.

 

O estado de infância é para ser reconquistado. O faraó volta a ser criança para beber na fonte da vida. Acontece o mesmo ao iniciado que entra no reino do Além, como é proclamado por um ritual: “Vais recomeçar a caminhar, sob a aparência de uma criança pequena, em razão do que se fez para o teu ka, segundo o decreto da Soberana dos quatro suportes do céu, dando-te umasepultura perfeita, cuidadosa, rematada” .[302]

Esse é o mais belo resultado do amor mágico: fazer de uma criança um homem cujo espírito se abre ao conhecimento do divino, um ser cuja inteligência sensível capta as energias sutis do Cosmo.

 


O MUNDO ANIMAL

Meus anfitriões de Luxor amavam os animais, até mesmo os escor­piões e as serpentes. Na casa deles, cães e gatos viviam em acordo de paz. Mas o patriarca e a sua família não olhavam para eles com um olhar indiferente ou compassivo. “Esses seres”, confidenciou-me o mais velho, “são receptáculos da alma. Não têm necessidade de conhecer os espíritos porque eles são os espíritos”. Evidentemente, eu lhe fiz mil perguntas acerca das divinda­des egípcias com cabeças de animais, acerca dos animais sagrados, acerca desse extraordinário amor do Antigo Egito pelo mundo animal, onde o divino se exprime com tanta força e precisão. Contentou-se freqüente­mente em aprovar com um aceno de cabeça, como se o tempo estivesse abolido, como se a paisagem espiritual do Antigo Egito continuasse a desenrolar-se perante os nossos olhos.

 

Falcão, gato e companhia

Na primeira fila dos animais mágicos figura naturalmente o falcão, encarnação de Hórus e protetor da realeza. O capítulo 134 do Livro dos Mortos exprime-se deste modo: “Palavras a dizer sobre um falcão em pé, com a coroa branca na cabeça, e sobre Atum, Chu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Ísis, Seth, Néftis, pintados em branco numa taça nova e colocados na referida barca com a imagem desse bem-aventurado que desejas glorificar, untado, apresenta-lhes incenso sobre a chama”.

 

Algumas fórmulas dos Textos dos Sarcófagos[303] permitem ao mago tornar-se um falcão. Os deuses assustam-se. O falcão é agressivo, rápido. Percorre os caminhos da eternidade. Torna-se homem-falcão capaz de regressar à Terra para se vingar dos seus inimigos, dilacerando-os com as garras, destruindo-lhes a família, a habitação. O Olho de Hórus é o seu guia, os seus poderes mágicos são a sua força, ninguém lhe pode fazer frente. É sob a forma de falcão que o mago vai e vem até os confins do céu, para recolher a palavra de Geb, o deus da Terra, e pedir o Verbo efi­caz ao Mestre da Totalidade.[304] Falcão de ouro, o mago apreende o que se encontra nos vazios do céu e nutre-se nos matadouros de Hórus.[305] É por assimilação do poder celeste do falcão que o mago adquire a potência de Hórus.

 

O gato, tão amado pelos egípcios, não é apenas um felino ardiloso e inteligente. É também a encarnação de Rê, de Hathor e de Bastet. O mago apela a Rê porque um escorpião picou a gata num lugar isolado. O animal gritou de dor. O seu grito subiu até o céu. “Vem para a tua filhai”, suplica o mago, “o veneno entrou-lhe no corpo, circula-lhe nas carnes”. Rê chega. “Não tenhas medo, minha filha”, diz ele para confortá-la. O deus coloca-se atrás dela com o sinal da vida. Todas as partes do corpo da gata são iden­tificadas a partes do corpo de divindades*. O ser da gata torna-se o sím­bolo de conjunto das forças divinas. Por esse fato, a cura é essencial, o que acontece. “Foi Rê quem recitou isso”, conclui o texto mágico: o encanta­mento foi, portanto, pronunciado pela luz em pessoa.[306]

 

* A cabeça é a de Rê, os olhos do Mestre divino, que iluminam as Duas Terras; o nariz é o de Thot; as orelhas são as do Mestre do Universo, que ouve a voz de qualquer pessoa que invoque a sua justiça, em qualquer lugar; a boca, a de Atum; o peito, o de Toth, que dá o ar necessário à garganta para respirar; o coração, o de Ptah, que liberta o coração de qualquer veneno; as patas são as mãos da Grande e da Pequena Enéade; o ven­tre é o de Osíris; as coxas, as de Montu; os artelhos, os de Khonsu; as ancas são as de Hórus, e as plantas dos pés são as de Rê.

 

Outro felino, talvez a gineta (gato bravo), é o animal simbólico da deusa Mafdet. Rápida, ágil, ela age contra os inimigos do mago que pro­curam aniquilar-lhe a potência sexual e as faculdades de criação. As pala­vras são para ser pronunciadas sobre o pênis de um burro, cuja forma foi dada a um bolo, com o nome do inimigo, e o do seu pai e da sua mãe. É colocado num pedaço de carne e dado a um gato que, comendo-o, supri­me o mal.[307]

O cão goza igualmente de uma real consideração. Para cativá-lo, o mago, segundo um papiro copta, usa meios extraordinários. Liga o céu, a Terra, os quatro pilares da Terra, o sol a leste, a lua no oeste (impedindo-os de se levantarem), os campos à terra (impedindo-os de produzir). Todo laço é feito de modo a não se poder desfazer-lhe os nós. Mas o cão nem sempre é dócil, é capaz de se revoltar e de morder. Por esse motivo, existe uma fórmula mágica contra a dentada de um cão. O mago afirma que a sua boca está cheia de sangue de um cão negro. Intima o seu agres­sor, que faz parte de uma companhia de dez animais pertencentes a Anúbis, a extrair-lhe o “veneno”. Caso contrário, irá enfurecer-se contra ele.[308]

No deserto do Antigo Egito praticava-se a caça ao leão. A fera, dizia-se, mantém os olhos abertos ao dormir. O faraó é identificado com o leão, porque todo ele é vigilância, todo ele é poder, irradiando uma luz que o protege dos seres perigosos. O capítulo 83 dos Textos dos Sarcófagos é para recitar sobre a parte dianteira de um leão. Pendura-se o amuleto no pescoço do mago que desce à necrópole. Isso permite-lhe exercer o seu domínio sobre os ventos do céu e dele se tornar rei. Aquele que conhece a boa fórmula “não morrerá a morte de novo”. Seus inimigos não terão poder sobre ele. Nenhuma magia contrária poderá prendê-lo à Terra. Sairá da necrópole à sua vontade e tornar-se-á um ser iluminado em com­panhia de Osíris.

 

Animal característico da paisagem do Antigo Egito, o hipopótamo é um ser ambivalente, ora benéfico, ora maléfico. Um mito conta a vitória de Hórus, o arpoador, sobre Seth, o hipopótamo que simboliza o triunfo da luz sobre as trevas e sobre todas as potências do mal. A “festa de arpoar o hipopótamo” é conhecida desde a I dinastia, sendo o paquider­me identificado com os inimigos do faraó. As pontas do arpão são com­paradas aos raios solares desde os Tortos das Pirâmides. O mago, segundo os Tortos dos Sarcófagos, é um arpoador instalado na sua barca. Mata o mons­tro, adquirindo assim a estatura de Hórus coroado.

O hipopótamo é maléfico quando se revela comilão, monstro pesado e poderoso que esmaga as culturas e ataca as populações. Tendo sido o faraó o primeiro arpoador, seu gesto deve ser repetido. Mas a fêmea do hipopótamo é considerada benéfica: em Tebas é uma deusa branca que destrói os inimigos do faraó, tal como o fez no começo do mundo; não é arpoada, mas sim celebrada como símbolo da fecundidade materna.[309]

 

O escaravelho

O Papiro Ebers[310]aconselha a comê-lo: curiosa recomendação que se compreende melhor quando se sabe que o nome egípcio do escaravelho é kheperer, palavra que também significa “crescer, devir, transformar-se”. Poderoso talismã, o escaravelho em pedra verde é colocado no coração de um homem purificado com mirra, depois de terem sido praticados os ritos de abertura da boca, os ritos de ressurreição.

O escaravelho é um animal dos mais espantosos. Faz rolar diante de si o seu sêmen depositado numa matéria fabricada em forma de esfera, empurrando esta com as suas patas traseiras. Imita assim a corrida do sol.

Para trazer os deuses à sua presença, o mago pega um escaravelho e afoga-o no leite branco de uma vaca negra, colocando-o seguidamente em cima de um braseiro. A magia agirá plenamente no momento deseja­do, e a luz aparecerá.[311] Os “escaravelhos” eram também uma espécie de carimbos, que serviam principalmente para selar documentos oficiais. Trazidos como amuleto, revelavam-se de uma eficácia notável, garantin­do aos seus proprietários a ocorrência de acontecimentos felizes e uma vida espiritual em permanente evolução.

 

Os três animais mais perigosos, por serem possuidores de uma potência considerável, são o crocodilo, o escorpião e a serpente.

O crocodilo é especialmente temível porque poderia retirar ao morto a sua potência mágica. Há fórmulas que servem para repeli-lo. “Para trás, vai embora! Não venhas contra mim! Vivo da minha potência mágica! Que a tua cara se vol­te para Maât!” (quer dizer, para a harmonia do mundo que irá apaziguar o crocodilo). O mago dialoga com o monstro que lhe fala do céu e conhe­ce as virtudes que ele possui na boca. Ao taumaturgo compete evitar um combate dramático entre magia celeste e magia terrestre: deve dominar o crocodilo, tomar-lhe a sua potência, mas não aniquilá-lo.

Em cada um dos pontos cardeais que limitam o Cosmo está um cro­codilo. O do Ocidente come as estrelas, o do Oriente vive dos seres que comem as suas porcarias, o do Meridiano vive de excrementos, o do Setentrião come as horas. O mago vence os quatro e declara: “Estou vesti­do e munido com o poder mágico de Rê: ele está em cima de mim, plenamente realizado por mim, amplificado por mim, alargado pela minha garganta”.[312]

O crocodilo “terrestre” não é menos inquietante que o crocodilo celeste, sobretudo para o gado que atravessa um curso de água e se arris­ca a ser atacado. O monstro encarna a morte, que ronda, invisível, angus­tiante. Eis por que o vaqueiro, para preservar a existência dos animais que formam o seu rebanho, deve comportar-se como mago. Compete-lhe estar vigilante e cegar o crocodilo. Desse modo, o agressor não poderá ver as suas vítimas eventuais e não se aproximará.[313] O vaqueiro mago pronuncia palavras que impedem o crocodilo de prender com as patas e abrir a goela. A água tornar-se-á uma chama que o consumirá. Um encantamento especial impedirá o crocodilo de usar a cauda. Sessenta e sete deuses mergulharão os dedos nos olhos do crocodilo, enquanto ele será amarrado ao poste de ancoragem de Osíris ou aos quatro postes de pedra verde que se encontram na proa da barca de Rê.

O mago identifica-se então com Amon. Recita as palavras sobre uma imagem desse mesmo deus, com quatro rostos num só pescoço, desenha­da no chão, com um crocodilo aos pés, oito deuses à direita e à esquer­da.[314] Segundo o Papiro mágico Harris, o marinheiro, adquirindo a função de mago, mantém-se à proa de um barco com um ovo de barro na mão. Parece-se assim com o sol surgindo das águas num ovo e dispersando as trevas. Os habitantes malévolos das águas têm medo ao ver esse espetá­culo e mergulham para regressar aos seus abrigos. O barco prossegue o seu caminho em plena segurança. Se o crocodilo ousasse, apesar de tudo, aparecer no rio em atitude ameaçadora, o marinheiro jogaria o ovo na água, fazendo fugir o ser maligno.[315]

Certas estelas mostram Hórus em pé, com o pés em cima da cabeça de dois crocodilos. O deus-criança está nu. Esses objetos são de tama­nhos muito diversos, alguns atingem um metro de altura, enquanto outros não passam das dimensões de um amuleto. Essas estelas eram depostas tanto nos templos como nas habitações. Quem as dedicava fazia-se representar com a preciosa estela.

Estátua e estela são colocadas num pedestal onde são escavadas duas bacias, a níveis diferentes, comunicando-se por um canal. Quando se ver­te água no monumento, ela fica impregnada pelos textos e representa­ções mágicas, conservando-se uma parte do líquido nas bacias do pedes­tal. Quem beber dessa água estará ao abrigo do mal.*

 

* Tipo de texto (estátua, Louvre, E. 10777): “Este homem que bebe esta água faz com que o seu coração que está aqui, o seu peito que está aqui, se fortifiquem graças às proteções mágicas que assim adquire. O veneno não lhe entra no coração, não lhe queima o peito, porque o seu nome é Hórus, porque Osíris é o nome do seu pai, porque Neit é o nome da sua mãe”.

 

Fato extraordinário, o capítulo 991 dos Tortos dos Sarcófagos permite ao mago tornar-se Sobek, ou seja, o crocodilo divino! “Eu sou o mestre da potên­cia e da força que tomou a forma de um crocodilo”, afirma. Senhor do Nilo, até é classificado como “belo de rosto” e “grande sedutor” que apaixona todas as mulheres. Existe de resto uma maneira de encantar rapidamente um vaso de modo que os deuses entrem nele e respondam com verdade ao mago: basta pôr sobre a chama a casca de um ovo de crocodilo.[316]

Assustador é o escorpião, irmão da serpente. Está sentado no cruza­mento dos caminhos, esperando aquele que caminha de noite. Para este, possa o seu calcanhar ser de bronze e a frente do pé ser de marfim! Graças à magia, os pés do transeunte são os sete falcões que se mantêm à proa da barca de Rê:[317] que melhor proteção se pode querer para se evitar ser picado? No entanto, os próprios deuses foram vítimas do escorpião, embora não tivessem morrido. O homem picado por um escorpião identifica-se com eles para se beneficiar da sua capacidade de luta contra o mal. O homem deve conhecer os mitos, tal como aquele que diz respei­to à filha de Rê, a gata que foi picada por um escorpião e depois curada por Rê.

O mago que criou a estátua curadora de Djed-her, chamada de “o Salvador”, exprime-se nestes termos: “Coloquei nesta estátua as inscrições em conformidade com o que está escrito nos livros sagrados de Rê, no texto que expõe todos os processos de dominar o escorpião para reanimar, graças a eles, todas as pessoas, todos os ani­mais, e para os proteger contra o veneno de todas as serpentes macho ou fêmea, de todos os répteis, fazendo o que o coração do Senhor dos deuses ama.” [318] Identificado com Hórus, o justificado, o mago domina o escorpião. Protetor de seu pai, colocou os braços atrás de Rê. Suas capacidades de magnetizador garantem-lhe vida, prosperidade, saúde. Trata com cuidado seus mem­bros, acalmando as dores, afastando o mal. Rê levantou-se curado, mais belo que antes. Isso acontecerá a qualquer doente tratado por um bom mago.[319]

Este ordena ao escorpião que fique tranqüilo e fecha-lhe a boca. Se ainda assim se agita, cortará as setenta e sete cabeças que são o pescoço do grande deus, a mão de Hórus cegará os olhos de Seth, apreenderá a boca da grande Enéade, queimará Osíris. Portanto, é necessário que o escorpião fique bem imóvel, tal como fez Seth perante Ptah![320]

“Eu sou Osíris”, afirma o mago para impressionar o escorpião. Apre­senta-se mesmo como sendo a serpente de Heliópolis, capaz de comba­ter qualquer espécie de ser maléfico.

O escorpião, que serviu para escrever o nome de um dos primeiros faraós egípcios, não é totalmente negativo. É o receptáculo do espírito de uma deusa, Serket, que reinava numa confraria de curandeiros a quem ela comunicava os segredos do poder do escorpião. O escorpião de água, apesar disso, é inofensivo. Ele é que será desenhado nos hieróglifos por­que estes, figuras vivas, não podem abrigar seres perigosos.

Existe uma Ísis escorpião que protege Hórus e o faraó.[321] “Patrona da luz, que ilumina as Duas Terras e ilumina os rostos, assimilada à estrela Sótis”. Diz-se que ela emite um raio brilhante para expulsar a obscuridade. A deusa escorpião é conhecida desde a mais alta Antigüidade, mas as suas primei­ras representações figuram nos templos núbios da XVIII dinastia. Ela é Ísis, a Grande, a quem era dirigida esta prece: “Vem a mim, Ísis, a Grande, digna-te garantir a minha proteção, salva-me dos répteis e que as goelas deles sejam seladas, que os focinhos deles sejam obstruídos”. A deusa concedia aos seus fiéis “sopro de vida, saúde, longa duração da vida e uma velhice perfeita”. Ísis escorpião pisava ser­pentes e crocodilos. Um texto do templo de Edfu definia-a como filha de Rê, que destruía os inimigos do sol e os adversários de Hórus, na quali­dade de “escorpião imponente, réptil venerável cujo veneno é fulminante, invadindo o solo dos inimigos num instante, de modo que eles morrem imediatamente quando ela ataca”.

Tal é o paradoxo mágico: inimiga jurada dos escorpiões, Ísis é tam­bém a sua deusa, venerada na cidade de Coptos. Quando ela procura escapar de Seth, Thot aconselha-a a esconder-se com o seu filho Hórus, para que este cresça e se junte aos deuses que o colocarão no trono do pai para que reine nas Duas Terras. Ísis iniciou o caminho à noite. Para se pro­teger de um eventual ataque de Seth, segue acolitada por uma estranha companhia: sete escorpiões! Ordena-lhes que não façam qualquer dife­rença entre rico e pobre, que sejam severos mas eqüitativos com o gêne­ro humano. Quando a deusa entra na casa de uma mulher, esta, assustada ao ver os escorpiões, fecha-lhes a porta. Estes, furiosos, deliberam: dão o seu veneno a apenas um deles, que consegue penetrar na casa e picar o filho da mulher má. Mas Ísis não aceita que a morte vitime um inocente. Cria fórmulas mágicas para salvar a criança e expulsar o veneno, depois de ter pronunciado o nome dos sete escorpiões. As palavras assim ditas servirão de remédio para curar qualquer criança picada por um escorpião: “Viva a criança” diz ela, “e pereça o veneno, tal como Rê viveu quando o veneno foi mor­to! Como Hórus é saudável para a sua mãe Ísis, assim o doente está são!” [322]

O mago sabe utilizar o escorpião para lutar contra a serpente, de modo que ele a pique e aniquile. É até capaz de se identificar com o escorpião, como o prova um estranho pormenor simbólico: a trança do mago é a da deusa escorpião e, mais precisamente, o rabo do animal. Portanto, é possível deslizar no interior do escorpião e dirigi-lo à vonta­de, sob a condição de se ser um mestre em arte mágica.

 

Os Textos das Pirâmides concedem um lugar importante aos textos mágicos destinados a aniquilar o perigo representado pela serpente. Esses textos são formados por palavras raras, incompreensíveis, misturas de sons considerados eficazes ao serem pronunciados. Papiros inteiros são consagrados aos encantamentos contra as serpentes.[323] “A sua face cai sobre a sua face” é a fórmula clássica para exprimir o aniquilamento da serpente; aos répteis é ordenado que não agridam o faraó porque ele é o represen­tante dos deuses na Terra. Rê amaldiçoa a serpente, Ísis liga-a, Néftis acorrenta-a.[324] Por vezes, o mago lança um apelo excepcional a Rê, para impedir a ação do veneno de todas as serpentes do Universo. O poder luminoso do deus-sol confere ao mago uma faculdade especial.[325]

Para se proteger contra os répteis, é bom situar-se face ao Oriente e reconhecer a soberania de Amon, coroado com a coroa branca. Fica-se em silêncio, recolhido, e adquire-se poder. Deixará de se ter receio do encontro com a serpente, classificada “negra de rosto, cega dos dois olhos, com o olho branco que avança tortuoso”. O réptil é identificado com Seth, saído das coxas de Ísis.

A ardência provocada pela picada da serpente é assimilada à chama perigosa que Hórus mago, mestre do fogo, deve dominar. A serpente é “a do fogo”, o ser a dominar. O mágico, assimilado ao sol, sai incólume da ilha da chama, porque é capaz de extinguir o aspecto nocivo do fogo quando jorra.[326]

Segundo os Textos das Pirâmides, as serpentes são metidas umas nas outras. O mago pede à terra que as engula, ordena aos monstros que se deitem, que rastejem; as cabeças lhes são cortadas, os sacos de veneno esvaziam-se. O mago consegue até que a serpente macho morda a fêmea e vice-versa. Se age com correção, gozará a proteção do Céu e da Terra, igualmente necessárias para reforçar a eficácia das fórmulas que fecham a boca dos répteis que existem na terra, no céu e na água.[327]

A Estela Metternich evoca a serpente como aquela que está ao mesmo tempo no buraco e na abertura do buraco, e também como aquela que se encontra no caminho. Ou seja, um perigo constante para quem se deslo­ca. Como viajar sem temores? É possível, identificando-se com o touro Mnévis, com a centopéia Sepa, com a deusa escorpião Serket ou com divindades mais importantes como Rê e Thot. Impressionada, a serpente não morderá o viajante investido por essas personalidades divinas.[328] Evidentemente, é preciso não esquecer a recitação da fórmula adequada: “A toda serpente macho e fêmea, a todo escorpião, a todo réptil. Que as vossas bocas sejam seladas! É Rê Quem vos fechou as gargantas. É Sekhmet quem vos cortou as línguas. É Tbot quem vos cegou os olhos. É Heka, o Quarto dos grandes deuses, quem faz a proteção de Osíris. São todos estes que protegem os doentes: de todas as pessoas, de todos os animais que estejam sofrendo neste dia”.[329]

Grave problema: certas serpentes são elas próprias magos. Para afas­tar um desses répteis furiosos que atacam, é necessário dispersar os livros de magia que ele utiliza, graças ao uso da argila de Ísis, saída da axila da deusa escorpião. O dedo do mago é o seu guardião. A argila é o barro que obstrui a toca da serpente.[330] Geb, deus da Terra, é o pai das serpentes, sobre as quais tem poder. E por vezes considerado o criador de Atum. Pai e príncipe dos deuses, está à frente de uma Enéade. Os gregos fizeram dele Cronos, que se tornou o Saturno dos romanos.[331]

O capítulo 163 do Livro dos Mortos recomenda que se pronunciem as palavras mágicas sobre uma serpente munida com duas pernas e com o disco solar entre dois chifres; ao lado, dois olhos sagrados munidos com duas pernas e duas asas. Desenha-se essa imagem com mirra seca mistura­da com vinho de romã em cima de uma banda de tecido verde e com ela envolve-se o corpo de um homem para que esteja devidamente protegido.

A serpente é, por vezes, considerada benéfica. Assim, Aha, uma ser­pente de bom gênio, estava colocada na entrada dos templos, guardando o limiar.[332] Outra serpente protege o palácio real ou cerca a mesa das ofe­rendas, pondo-a ao abrigo de influências maléficas.[333] Renenutet, mulher com cabeça de serpente, vela pelas searas e pelas colheitas. É, por exce­lência, a serpente alimentadora que mantém a vida na Terra. Segundo os capítulos 87-88 dos Textos dos Sarcófagos, o morto é a serpente nau, o touro das Enéades, e não está sujeito a qualquer magia. Nada de penoso lhe pode acontecer. Nem o fogo nem a água lhe podem fazer mal. Será como Rê em cada dia. Transformado em serpente “filho da terra”,[334] o mago posto no mundo é todas as noites renovado, rejuvenescido.

 

Os venenos e as peçonhas são temíveis, porque se introduzem nos canais do corpo, perturbam o fluido vital e conduzem a uma morte certa. No entanto, a iniciação do mago leva-o a familiarizar-se com esses perigos. E mesmo provável que ele tenha sido picado, embora de um modo controla­do, para experimentar os efeitos reais do mal. Djed-her, o mago, exprime-se nestes termos: “Aproximei-me de maneira que fui mordido e fiquei doente. Mas o vene­no sairá. Que seja queimado o veneno que esteve no corpo deste homem que sofrei” [335]

O homem que sofre é chamado “senhor da noite”, quer dizer, do período durante o qual a serpente, invisível, é mais perigosa. Ele é mestre das forças obscuras, desceu às trevas e saiu delas.[336] O mago viveu uma iniciação indispensável para poder combater o mal com algumas possibi­lidades de sucesso.

O veneno é uma força. Como tal, é necessário conjurá-la. Cegando-o, por meio de suas fórmulas, o mago impede-o de circular à vontade. O veneno tem um rosto que não poderá erguer-se, uma cabeça que será vol­tada para baixo, terá de errar sem poder atingir o seu alvo. Não soltará gritos de alegria.

Quando foi dada ordem ao veneno para se perder na terra, abando­nando o corpo do indivíduo doente, é criado um clima mágico muito especial. Há um ruído de vento, mas não há vento. Há um ruído de água, mas a inundação não veio. E preciso ter cuidado com a aparição da luz solar, com a irradiação brilhante do disco que acabará por vencer as tre­vas. O mago olha para o céu e vê Rê. É ele quem o salvará. Olha para a terra e vê Geb. Também ele o salvará. “Ó Rê”, invoca o mago, “vem, age como um salvador, agora que te vil”. O veneno não agirá.[337] Fazem-se ameaças ao veneno, explica-se-lhe que a sua ação poderia ter conseqüências catastró­ficas para a ordem universal: “Se o veneno avança para o coração deste homem doen­te, avança para o coração de Rê. Se ele embarga o coração deste homem, embarga o cora­ção dos Espíritos de Heliópolis”.[338] Esta última catástrofe é impossível. Durante todo o tempo em que o mago não sofrer do veneno, Rê não irá embora, Thot não irá embora, Hórus não irá embora, a luz virá, o rito será execu­tado nos templos.[339]

A voz do exorcista é forte quando interpela o veneno, como a voz de Rê ao dirigir-se à sua Enéade, como a de Thot aos seus escritos, da fari­nha ao grão, de Seth quando se bate com o mal.[340] Existe uma fórmula para impedir a ação do veneno desde “o tempo primordial”, aquele em que os seres chegaram à existência. As palavras são pronunciadas por Serket, a deusa escorpião, evocando o deus que criou a si mesmo, que formou o céu, a terra, a água, o alento, a vida, os deuses, os homens, o gado de pequeno e grande portes, os répteis, os pássaros e os peixes. O mago obtém, assim, a revelação de que a realeza sobre os homens e sobre os deuses é uma única e mesma coisa. Por esse domínio é que ele conse­gue obrigar a peçonha e o veneno a executarem, num tom extremamen­te duro, as ordens que formula: “Sai, veneno, vem, espelha-te no solo! Hórus conjura-te, aniquila-te, cospe-te em cima. Não te levantas e tombas, és fraco e não tens for­ça, és desprezível e não lutas, és cego e não vês, a tua cabeça pende e não ergues o rosto”.[341]

Para lutar contra o dardo do escorpião, Ísis usa um óleo ao qual diri­ge uma prece especial. Esse verdadeiro óleo é comparado a uma gota de chuva, a um aguaceiro de Júpiter que desce da barca do sol na madruga­da.[342] Se alguém bebeu veneno, o mago chama a atenção para o fato de que ele próprio e Ísis e Osíris também o beberam e não estão mortos. O mago usará a “taça de ouro de Osíris”, que transforma qualquer líquido maléfico em beberagem benéfica.[343] Segundo a Estela de Metternich, Ísis e Néftis fiam e tecem contra o veneno. Desse modo, criam uma rede cós­mica de harmonias que impedem as forças do mal de se desencadearem sobre a Terra. São essas duas deusas que fornecem aos magos as faixas e os tecidos necessários à prática da sua arte.

O mago, vencedor do dardo do escorpião, é considerado um rei e em torno dele reúnem-se os deuses. Se foi ferido durante o combate, Ísis vem em seu auxílio, aconselhando-o a lamber com os lábios os bordos da ferida, porque a sua língua é a do Criador, Atum. Desse modo, será ins­tantaneamente curado.[344]

 

Dezenas de animais desempenham um papel mais ou menos impor­tante nos rituais mágicos. Seria fastidioso enumerá-los aqui. Mas alguns casos surpreendentes merecem citação. Assim, para afastar as criaturas inquietantes que são atraídas para o mago, mesmo contra a vontade dele, é preciso colocar num braseiro fezes de macaco. Ectoplasmas e fantas­mas, incomodados com o cheiro, regressarão às zonas obscuras de onde saíram.[345]

 

Mesmo os mais modestos não são esquecidos, uma vez que se conhece uma fórmula para purificar uma mosca[346] e impedi-la de veicular uma mancha de sujidade.

O capítulo 98 dos Textos dos Sarcófagos, que diz respeito a uma viagem celeste da alma do mago, deve ser recitado sobre um piolho tirado da sua cabeça, pousado no joelho até que a mosca o coma.

Mas a maior preocupação do magos que utiliza as forças do mundo animal é a de não cair nas garras do mais aterrador dos monstros, “a comedora do Ocidente”, com cabeça de crocodilo, traseiro de hipopóta­mo e juba de leão. É encarregada de engolir e de destruir o morto que não foi reconhecido pelo tribunal. Compete ao mago evitar, graças às fórmu­las de conhecimento, uma tal infelicidade e franquear esse obstáculo para aceder aos paraísos celestes.

 

Os coptas, cristãos do Egito, não esqueceram a antiga magia. Retomaram muitos aspectos dos rituais e dos processos mágicos utilizados na época faraônica. Cristo, a Virgem, os santos e os anjos suce­deram aos deuses e às deusas. Uma grande parte da ideologia e da simbó­lica ditas “pagãs” passou no cristianismo por magia. O que se chama “superstições” encobre de fato costumes antigos. Encontram-se, tudo misturado, fórmulas para curar, para favorecer um parto, proteger-se dos demônios etc. O mago copta é uma personagem importante e ouvida. O sacerdote e o patriarca não são, afinal, um pouco magos?

Os papiros mágicos coptas são, na sua maior parte, adaptações cris­tãs de antecedentes egípcios. Uma grande fórmula de proteção era usada “contra tudo que sabemos e que não sabemos e contra tudo o que é proveniente dos homens curiosos, astuciosos e covardes”: eterna “sabedoria” que transcende as formas religiosas no seu particularismo e nos desperta, hoje como ontem, para as realidades do invisível. Na magia egípcia, o taumaturgo identifica-se com Ísis. O processo é idêntico na magia copta: o mago identifica-se com Maria e com Jesus, “aquele que manda e aquele que fala”.[347]

Numerosas divindades sobreviveram no cristianismo. A mais popular delas era Bés, que aparecia nomeadamente aos monges do convento de Apa Moise, perto de Abidos, sob a forma de um demônio barbudo que se divertia fazendo caretas horríveis. Ainda sobrevive no folclore egípcio contemporâneo, onde se tornou um fantasma que mete medo em todos, porque leva as almas dos vivos para o Além. Bés também se manifestava num templo ao norte do convento de Apa Moise. Saía e batia nos tran­seuntes, tornando-os zarolhos ou paralíticos. Além do mais, tomava as mais diversas formas. Apa levou sete irmãos com ele, entre os quais o nar­rador que conta a história. Entraram no templo, uma noite, rezando. A terra tremeu debaixo deles. Ouviu-se um grande estrondo: raios e tro­vões. Apa ficou impassível: feitiçarias do demônio, nada mais do que isso! À meia-noite, este gritou: “Não nos deixas em paz, Moise? Sabes que não me metes medo! As tuas preces não me fazem mal. Perdes em vão a tua noite acordado. Foge, se não queres morrer e fazer com que os que te acompanham percam a vida!”. Ouviu-se então um alarido de multidões que bramiam, mas os monges mantiveram-se impassíveis. O templo tremeu. Caem de rosto no chão, mas Apa os sus­tenta: “Não tenham medo, tende coragem e percebereis a glória de Deus!”. O final do relato perdeu-se, mas o desfecho era, sem dúvida, favorável ao santo homem.

Um texto copta relata a captura de monges que foram depostos no altar de um templo pagão para serem sacrificados. Mas Apa Besa bateu à porta do templo onde esse crime ia ser cometido e pronunciou uma fór­mula mágica: “Deus Todo-Poderoso, que tiraste Pedro da prisão soltando-lhe as mãos e os pés e fazendo com que a porta se abrisse diante dele, que os guardas o não retivessem e que os soldados que lhe velavam a porta adormecessem; que o anjo do Senhor o siga e o conduza pela porta de ferro que dá acesso à cidade; faz com que o templo se abra por si mesmo!”. A por­ta do santuário abriu-se e os monges foram libertos das suas amarras. Apa Besa entrou com quatorze monges e todos juntos rezaram para que o fogo caísse do céu. Na verdade, um muro de chamas cercou o templo, depois os bons monges queimaram vivo, alegremente, o sumo sacerdote do deus pagão. Os infiéis converteram-se ou fugiram para o deserto.

Esses textos de propaganda pró-cristã utilizam amplamente, como se vê, a magia para combater a antiga religião mágica. Perto da cidade de Akhmim havia uma ilha célebre onde os pagãos que cultivavam a vinha produziam um mau vinho, que era vendido aos trabalhadores a um preço excessivo. Estes queixaram-se a Apa Chenute. À noite, o santo homem dirigiu-se à ilha e, com um pequeno ramo de palmeira que tinha na mão, bateu numa palmeira no meio do chão; intimou a ilha a recuar para o meio do rio e que afundasse, como a Atlântida. Foi o que aconteceu: casas, jar­dins e seres humanos desapareceram debaixo da água.[348] A lenda esconde um fato religioso capital: a supressão do “ponto primordial” dos antigos egípcios, simbolizado por essa ilha que igualmente encarnava a religião faraônica e a sua magia de mil facetas.


EPÍLOGO

“A

Magia é conhecer o Poder, saber falar-lhe, saber ouvi-lo, deslizar para o interior das múltiplas formas que ele assume na terra dos homens”... O sol já estava alto no céu de Luxor quando meu anfitrião, o patriarca da mais antiga família de magos do Egito, pronunciou estas pala­vras, tão fiéis à tradição faraônica. A esposa dele já se havia retirado há muito tempo, os filhos tinham partido para o trabalho, na pista das ser­pentes e dos escorpiões. Meu anfitrião dera ao seu convidado a grande honra de ficar na sua companhia.

Apesar de não termos dormido, não nos sentíamos fatigados. Talvez a magia nos tivesse dado, sem sabermos, uma energia especial, essa ener­gia que os antigos egípcios haviam aprendido a dominar no segredo dos templos e das Casas de Vida, esse poder que é a verdadeira origem da arte de construir.

Uma das frases do patriarca ficará gravada para sempre na minha memória: “A magia constrói o Homem.” Não o indivíduo, essa pequena parcela de existência perdida na onda dos possíveis, mas sim o Homem à imagem do Cosmo, esse ser formado pelas qualidades criadoras de todos que procuram compreender o sentido da vida, que nela mergulham como o perfeito nadador da “sabedoria” chinesa, apto a confundir-se com a corrente sem lhe opor resistência.

Acaso existe maior tentação do que a de nos sentarmos de frente para o deserto, ao lado de um velho mago forjado por milênios de práti­ca, de olhar os jogos de luz na areia, de abolir a fronteira entre o visível e o invisível? Há algum sonho mais belo do que o de se fundir no movi­mento inapreensível do vento que transporta a vida até as colinas secas ritmando a solidão do deserto?

Sim, tudo isso seria fácil, maravilhoso, encantador... mas os antigos egípcios não concebiam o mundo em termos de facilidade. Se utilizaram a magia, foi porque a civilização, o laço sutil entre todas as formas da vida, lhes apareceu como um combate com o real, uma luta cotidiana que não permitia o sucesso dos covardes e dos incapazes. Talvez uma regra seve­ra, mas uma realidade implacável: semelhante caminhada não é também exigida para a descoberta vivida da ordem do mundo?

Quando os olhos do mago do Antigo Egito se abriam para o mundo, recriavam-no. O deserto é a terra de Seth, o Vermelho, o lugar onde se trava o perigoso duelo com as forças descontroladas que, uma vez doma­das, permitirão fazer com que nasçam as terras cultivadas, moradia de Hórus. O faraó, Mago dos magos, é o “terceiro termo”, o Um que une os dois irmãos para sempre inimigos e para sempre inseparáveis. Não faz a magia parte das “artes do faraó”, para nos convidar a ser, também nós, mediadores entre o Céu e a Terra?



 

 

[1] Inscrição nº 61 do túmulo de Petosíris.

[2] Papiro médico Hearst 11, 4.

[3] Papiro Leiden,347,4-11

[4] Text. Sarc, I, 137 e segs.

[5] Text. Sarc, cap. 1.017.

[6] Dictionnaire de la cívilisation égyptienne, p. 278.

[7] Pir., cap. 273-274.

[8] Pir., § 1.324.

[9] Pir., § 477.

[10]  Pir., § 924.

[11] Papiro mágico Leiden, 42.

[12] ASAE 39. 57 e segs.

[13] Papiro Salt 825, 5-6.

[14] Papiro Salt 139.

[15] Lexa I, 145.

[16] Pir., § 1.100.

[17] Text. Sarc, cap. 1.087.

[18] Text. Sarc, cap. 281.

[19] Goyon, Rituels, 257-8.

[20] LdM. cap. 135.

[21] Text. Sarc, cap. 503.

[22] Lexa II, 50.

[23] ZAS 57, 70.

[24] Text. Sarc, caps. 370 e 374.

[25] JEOL 23, 359.  

[26] De Abstinentia IV, 6.

[27] Goyon, Rituels, 258-9.

[28] Sauneron, Papiro mágico ilustrado. Brooklyn, 20, nota I 2 (b).

[29] Apologia, XXVI

[30] Goyon, Rituels, 178.

[31] LdM, capítulo 42.

[32] OMRO 51, 19-20.

[33] Djed-her, 34.

[34] Lexa II, 59.

[35] Lexa II, 74 (Estela de Metternich). 

[36] Texto Sarc II, 37.

[37] I, 71 e 49.

[38] Pap. mágico Leiden, 45.

[39] Goyon, Rituais, 74.

[40] ASAE 39,70-71.

[41] Derchain, Pap. Salt 825, 35.

[42] BIFAO 40, 98-99.

[43] LdM, cap. 64

[44] LdM, cap. 125

[45] LdM, cap. 80.

[46] Derchain, Pap. Salt 825, 171.

[47] LdM, cap. 163

[48] Text. Sarc, cap. 1.018

[49] Por exemplo, 1.054, 1.055, 1.057.

[50] Texto Sarc, caps. 396-397.

[51] LdM, cap. 68.

[52] Text. Sarc., cap. 91.

[53] Goyon, Rituels, 179.

[54] Text. Sarc., cap. 30.

[55] O incipit do cap. 349 dos Text. Sarc.

[56] Papiro de Turim 118, 9-10.

[57] Sauneron, Prêtres, 62.

[58] Papiro de Leiden 348, Recto 2, 1.

[59] E. Drioton, La Protection magique de Thèbes à l’époque des Ptolémées, in l’Ethographie, 1931, 3-10.

[60] AEMT, 11.

[61] Text. Sarc., VI, 71.

[62] Pir., § 134 = Text. Sarc., I, 187.

[63] Cf. J.-C. Goyon, Le Papyrus du Louvre N 3 279, 75.

[64] Sauneron, Papiro mágico ilustrado Brooklyn, 1920, Nota I1.

[65] ASAE 39, 75.

[66] Derchain, Papiro Salt, 144.

[67] Id, 90.

[68] SO 8, 27.

[69] Goyon, Rituels, 61.

[70] Goyon Le Papyrus du Louvre N3 279, 34.

[71] Goyon, Rituels, 205.

[72] Posener, RdE 22, 204.

[73] Lexa II, 51-52.

[74] Posener, RdE 5, 51-56.

[75] Text. Sarc., cap. 410 e 412.

[76] Text. Sarc., 238.

[77] Text. Sarc., cap. 220, por exemplo.

[78] Text. Sarc., cap. 24.

[79] LdM, cap. 125.

[80] LdM, cap. 153 A.

[81] OMRO 51,10.

[82] Erman e Ranke, Civilisation, 458.

[83] LdM, cap. 137 A.

[84] Djed-her, 9-14.

[85] H. Altenmüller, Die Apotropaia und die Götter Mittelägyptens, 1965.

[86] Lexa I, 88.

[87] SO 8, 55-6.

[88] LdM, cap. 101.

[89] Goyon, Rituels, 73.

[90] Id., 51.

[91] Daumas, BIFAO LIX, 72-3.

[92] Lexa II, 136.

[93] Drioton, Miscelanea Gregoriana, 73 e segs.

[94] Papiro mágico de Leiden, 33-5.

[95] LdA III, 1.138.

[96] Cf. Schneider, Shabtis.

[97] Text. Sarc., cap. 472.

[98] Cf Gardiner/Sethe, Egyptian Letters to the Dead, 1928.

[99] Guilmot, ZAS 99, 94 e segs.

[100] Papiro mágico de Leiden, 47-51.

[101] Pir., cap. 353.

[102] Goyon, Rituels, 260.

[103] Text. Sarc., IV, 115, 124, 136.

[104] Text. Sarc., 1, 188.

[105] Incipit do cap. 76 dos Text. Sarc.

[106] Papiro mágico de Leiden, 79.

[107] LdM, cap. 130.

[108] Text. Sarc., cap. 361.

[109] AEMT, 89.

[110] Goyon, Rituels, 70.

[111] Goyon, Le Papyrus du Louvre N 3 279, 53-54.

[112] Text. Sarc., cap. 840.

[113] Pir., cap. 406.

[114] Lexa II, 70 (Estela de Metternich).

[115] Djed-her, 50-2.

[116] CdE XLV, 253; AEMT, 87.

[117] AEMT, 86.

[118] Papiro Harris IV, 6-7.

[119] AEMT, 89.

[120] Text. Sarc., cap. 297.

[121] Text. Sarc., cap. 162.

[122] Text. Sarc., cap. 80.

[123] AEMT, 14-5.

[124] Socle Behague, 61.

[125] ONRO, 51, 13.

[126] AEMT, 25.

[127] Erman, Religion, 343.

[128] Lexa II, 31.

[129] Livro de repelir Apófis, 23, 14 e segs.

[130] Lexa II, 97.

[131] Derchain, Papiro Salt, 141.

[132] Djed-her, 41.

[133] Text. Sarc., cap. 311.

[134] Text. Sarc., cap. 1 032-I 033.

[135] Text. Sarc., cap. 100.

[136] Text. Sarc., cap. 758-9.

[137] Text. Sarc., cap. 246.

[138] Text. Sarc., cap. 284.

[139] Text. Sarc., cap. 288.

[140] Text. Sare, cap. 1 130

[141] LdM, cap. 162.

[142] LdM, cap. 137 A.

[143] Goyon, Rituels, 259.

[144] Lexa II, 66.

[145] Djed-her, 49-50.

[146] Socle, 62-3.

[147] Lexa II, 81 (Estela de Metternich)

[148] Pir., 962-3.

[149] Lexa II, 41.

[150] Faulkner, An Ancient Book of Hours, 20, 25 a 21, 5.

[151] Pir., 954-5.

[152] Pir., cap. 678.

[153] Text. Sarc., cap. 992.

[154] Text. Sarc., 1,231.

[155] Text. Sarc., 1, 210-1.

[156] Goyon, Rituels, 248.

[157] Sauneron, Papiro mágico ilustrado de Brooklyn, 15-6.

[158] ASAE 39, 75.

[159] AEMT, 75.

[160] AEMT, 82-3.

[161] Lexa II, 76.

[162] AEMT, 70.

[163] Herman, Religion, 343.

[164] Text. Sarc., cap. 269.

[165] SO 8, 56-7

[166] Text. Sarc., 1,314-321.

[167] Text. Sarc., cap. 81.

[168] OMRO 51, 16-7

[169] LdM, cap. 54

[170] Goyon, Rituels, 76.

[171] AEMT, 37.

[172] Lexa I, 166.

[173] SO 8, 53-4.

[174] Papiro mágico de Brooklyn, 47 218, 156, segundo documento.

[175] Socle, 58-9.

[176] Lexa II, 74.

[177] Sander-Hansen, Die Religiösen Texten auf dem Sarg des Anchenesneferibre, 1937, 118 (372).

[178] LdM, cap. 164.

[179] SO 8, 44.

[180] AEMT, 15.

[181] Yoyotte, BSFE, 87-8, 47 e segs.

[182] AEMT, 39.

[183] AEMT, 90.

[184] Sauneron, Papiro mágico ilustrado de Brooklyn, II-2.

[185] Id, 13.

[186] Id., 26, Nota 4 (n).

[187] Para o conjunto desses contos e lendas, ver Lefebvre, Romans et contes de l’Egypte pharaonique, e Lichtheim, Ancient Egyptian Literature, I—III.

[188] Lexa II, 198-206.

[189] Ibid, 71.

[190] Djed-her, 54-55.

[191] Socle, 79.

[192] Sauneron. Papiro mágico ilustrado de Brooklyn, 24.

[193] AEMT, 7-10.

[194] Lexa II, 95.

[195] LdM, cap. 7.

[196] ASAE 39, 80.

[197] AEMT, 18.

[198] Segundo a tradição dos CT.

[199] Altenmüller, Die Apotropaia.

[200] AEMT, 2.

[201] Text. Sarc., cap. 392.

[202] 16 SO 7,47.

[203] Ver Nota 16.

[204] Erman, Religion, 351.

[205] Syria XLIII, 277 e segs.

[206] Text. Sarc., cap. 37.

[207] Papiro Jumilhac XVIII. 9-11.

[208] AEMT, 2.

[209] AEMT, 1.

[210] Papiro mágico de Leiden, 145-7.

[211] Id., 109.

[212] SO 7, 60, n° 39.

[213] Socle, 60.

[214] AEMT, 6.

[215] Papiro de Turim, 137,2-4.

[216] Papiro Chester Beatty V, verso 5, 4-6, 4.

[217] OMRO 51, 28.

[218] Lexa II, 57.

[219] AEMT, 80.

[220] J.-C, Goyon, Papyrus du Louvre, N3 279, 42-3.

[221] AEMT, 3.

[222] AEMT, 4.

[223] OMRO 51,33.

[224] Djed-her, 36.

[225] Socle, 57.

[226] OMRO 51, 12.

[227] Papiro Ebers 2, 1-2,6.

[228] Erman, Religion, 340.

[229] AEMT 45.

[230] Papiro Ebers [3] 2, 1-6.

[231] Ibid., [2] 1, 12-2, 1.

[232] Erman-Ranke, Civilisation, 459.

[233] AEMT, 81.

[234] AEMT, 37

[235] Papiro Ebers 90, 15-91, 1 = RdE 9, 60.

[236] Papiro mágico de Leiden, 127.

[237] Erman-Ranke, Civilisation, 459.

[238] Pir., cap. 533.

[239] AEMT, 29.

[240] Goyon, Rituels, 45

[241] ASAE 39, 68-9.

[242] AEMT, 23.

[243] AEMT, 24.

[244] Papiro mágico de Leiden, 177.

[245] OMRO 5l, 23.

[246] Lexa II, 149.

[247] AEMT, 30.

[248] OMRO 51, 18.

[249] AEMT, 31.

[250] SO 7, 43.

[251] SO 7, 37.

[252] Coyon, Rituels, 245.

[253] AEMT, 32.

[254] AEMT, 22.

[255] AEMT, 33.

[256] Goyon, Rituels, 148 e 150, Nota 2.

[257] Papiro Ebers [360].58, 6-15.

[258] Papiro de Londres 7, 1-7, 8.

[259] AEMT, 47-48.

[260] Papiro Ebers 58,6-58, 15.

[261] LdM, cap. 140.

[262] AEMT, 88.

[263] Borghouts, The Evil Eye of Apophis, JEA 59, 1973, 114-150.

[264] Lexa 3, pl. XII.

[265] Pir., cap. 211.

[266] Goyon, Rituels, 167-8.

[267] Papiro Hearst [215] 14, 7-10.

[268] AEMT, 32.

[269] OMRO 51,27.

[270] Text. Sarc., cap. 341.

[271] OMRO 51, 26.

[272] Socle, 54.

[273] Goyon, Rituels, 62,48.

[274] Derchain, Papiro Salt 825, n° 325.

[275] Papiro Ebers [811] 95,7-14.

[276] ASAE 39, 70.

[277] Papiro mágico de Leiden, 149.

[278] AEMT, 83.

[279] Text. Sarc., cap. IV, 183.

[280] AEMT. 1

[281] Lexa II, 155-6.

[282] Lexa I, 165.

[283] Papiro mágico de Leiden, 89.

[284] Ibid., 137

[285] OMRO 51,30.

[286] OMRO 51, 13.

[287] AEMT, 39-40.

[288] Lexa II, 29.

[289] OMRO 51, 31.

[290] SO 8, 51-2.

[291] Lexa II, 32-33.

[292] AEMT, 42.

[293] Ibid.

[294] Ibid., 43.

[295] Lexa II, 29.

[296] AEMT, 70.

[297] Socle, 58.

[298] Ibid, 82.

[299] OMRO 51, 25.

[300] Erman, Religion, 349.

[301] Desroches-Noblecourt, RdE 9, 49-67.

[302] Goyon, Rituels, 308

[303] Text. Sarc., 148-150.

[304] lbid., cap. IV, 73.

[305] Ibid., cap. IV, 148.

[306] Djed-her, 81-4.

[307] AEMT, 38.

[308] Papiro mágico de Leiden, 123.

[309] T. Save-Soderbergh, On Egyptian Representatives of Hippopotamus Hunting as a Religious Motive, Horae Soederblomianae, Uppsala, 1953.

[310] Papiro Ebers, 88, 13-6.

[311] Papiro mágico de Leiden, 39.

[312] Texto Sarc., cap 342; LdM, caps. 31-2.

[313] AEMT, 83.

[314] Ibid., 86-7.

[315] SO 7, 44.

[316] Papiro mágico de Leiden, 37.

[317] AEMT, 78.

[318] Djed-her, 133.

[319] Ibid., 15-8.

[320] AEMT, 77.

[321] BIFAO 78, 451.

[322] Lexa II, 72-3.

[323] Cf., por exemplo, A. Rocatti, Papiro hierático n° 54.003, Turim, 1970.

[324] ASAE 39, 77 e 80.

[325] Djed-her, 26-7.

[326] Goyon, Papiro do Louvre N 3 279, 31 e n° 3.

[327] Djed-her, 39.

[328] AEMT, 94.

[329] Djed-her, 53.

[330] AEMT, 91.

[331] Socle, 80-1.

[332] SO 8,43.

[333] Djed-her, 33.

[334] LdM, cap. 87.

[335] Djed-her, 34-5.

[336] Ibid., 45.

[337] AEMT, 78 e 81.

[338] Djed-her, 43.

[339] AEMT, 59.

[340] Ibid., 82.

[341] Papiro mágico Harris, 8, 5.

[342] Papiro mágico de Leiden, 131-3.

[343] Ibid., 125

[344] lbid., 129-131.

[345] Ibid., 37.

[346] AEMT, 16.

[347]Socle, 67.

[348] Para tudo o que precede, ver Lexa II, 217-230.

 

                                                                                            Christian Jack

 

 

                      

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