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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Viagem / Danielle Stel
A Viagem / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Viagem

 

          

 

A comprida limusina preta afrouxou lentamente e acabou por parar, numa extensa fila de carros semelhantes. Era uma noite amena dos princípios de Junho. Dois marinheiros deram, em simultâneo, um passo em frente quando Madeleine Hunter saiu graciosamente do carro diante da entrada leste da Casa Branca. Uma pequena bandeira flutuava com a brisa de Verão, e Madeleine sorriu a um dos marinheiros quando este a saudou. Era alta e esguia, trazia um vestido de noite branco que lhe pendia de um dos ombros num elegante drapeado. O seu cabelo escuro estava penteado num rolo alto que lhe realçava na perfeição o pescoço longo e o ombro nu.

Tinha a pele clara, os olhos azuis, e movia-se com aprumo e delicadeza sobre umas sandálias prateadas de salto alto. Brilharam-lhe os olhos, sorriu, desviou-se para o lado quando um fotógrafo disparou a máquina. E depois outro, quando o marido saiu do carro e se lhe juntou. Jack era um homem de quarenta e cinco anos, bem constituído, fizera a sua fortuna no decurso de uma carreira no futebol profissional, investira-a proveitosamente, e em tempos transaccionara, vendera e comprara primeiro uma estação radiofónica, depois acrescentara-lhe uma de televisão, e aos quarenta possuía uma das maiores redes por cabo. Jack Hunter há muito que transformara a sua bela fortuna num grande negócio. Num muito, muito grande negócio.

O fotógrafo disparou uma segunda vez, após o que ambos entraram rapidamente na Casa Branca. Há já sete anos que formavam um casal notável. Madeleine estava com trinta e quatro anos e tinha vinte e cinco quando ele a descobrira em Knoxville. Há muito que o seu sotaque arrastado se perdera, tal com o dele. Jack era de Dallas e falava num tom forte, incisivo, que convencia de imediato os seus interlocutores de que sabia exactamente o que queria. Tinha olhos escuros que seguiam a sua presa por todos os cantos da sala e conseguia prestar atenção a várias conversas ao mesmo tempo, isto arranjando maneira de parecer atento à pessoa com quem falava.

Havia ocasiões em que, diziam os que o conheciam bem, os seus olhos pareciam perfurá-los, e outras em que davam a impressão de os acariciar. Emanava dele algo poderoso e quase hipnotizante. Bastava observá-lo, impecável no seu smoking e camisa muito bem passada a ferro, com o cabelo negro e liso, para que apetecesse travar relações com ele, tornar-se seu íntimo

Produzira esse efeito em Madeleine quando se encontraram, era ela pouco mais do que uma rapariga, em Knoxville. Tinha então o sotaque do Tennessee, viera de Chattanooga para Knoxville. Fora recepcionista numa estação de televisão, até uma greve a obrigar a passar primeiro para a meteorologia e depois para o noticiário. Apesar de desastrada e tímida, era tão bonita que os espectadores que a viam ficavam hipnotizados ao olhá-la. Mais parecia um modelo ou uma estrela de cinema, mas havia nela qualquer coisa de “vizinha do lado” que todos adoravam, e uma arte pessoal para ir direita ao âmago das histórias. Jack ficou subjugado ao vê-la pela primeira vez. Tanto a voz como os olhos dela queimavam.

O que faz você aqui, beleza? Arrasar o coração de todos os rapazes, aposto dissera-lhe ele. Não parecia ter mais de vinte anos, embora fosse cerca de cinco mais velha. Jack parara para lhe falar no fim da emissão.

Nada disso rira-se ela. O homem estava a negociar a compra da estação. E comprara-a, dois meses mais tarde. Mal o fez elevou-a a locutora e maridou-a para Nova Iorque para que primeiro lhe fosse ensinado tudo o que precisava de saber acerca de noticiários e depois, como se pentear e maquilhar. E o efeito, quando voltou a vê-la no ar, foi impressionante. Em poucos meses, a carreira dela estava em marcha.

Foi Jack quem a ajudou a libertar-se do pesadelo em que vivera, com um marido com quem estava casada desde os dezassete anos e que a maltratara de todas as maneiras possíveis. Sem a mínima diferença daquilo que em criança vira passar-se com os pais, em Chattanooga Bobby Joe fora seu namorado no liceu e estavam casados há oito anos quando Jack Hunter comprara a rede de televisão por cabo na cidade de Washington, e lhe fizera uma proposta irresistível. Queria-a para sua colaboradora do horário nobre e prometeu-lhe que, se aceitasse, a ajudaria a mudar de vida e a cobrir os acontecimentos mais importantes.

Jack chegou a Knoxville numa limusina e encontrou-se com ela na estação de autocarros da Greyhound, com uma pequena mala Samsonite e uma expressão aterrorizada. Entrou no carro com ele sem dizer palavra e fizeram juntos todo o percurso até Washington. Bobby Joe levou meses a interrogar-se sobre o paradeiro da mulher, que entretanto lhe pedira o divórcio, ajudada por Jack, com o qual, um ano depois, se casara. Há sete anos que era Mrs. Jack Hunter, e Bobby Joe e as suas impensáveis afrontas não passavam de um pesadelo que se ia esbatendo. Agora, era uma estrela. Vivia uma vida de conto de fadas. Era conhecida, respeitada, adorada em todo o país. E Jack tratava-a como a uma princesa. Ao entrarem na Casa Branca de braço dado, parando na recepção, mostrava-se descontraída e feliz. Madeleine Hunter não tinha preocupações. Era casada com um homem importante, poderoso, que a amava, e sabia-o. Sabia que nada de mau voltaria jamais a acontecer-lhe. Jack Hunter não o permitiria. Agora, estava a salvo.

O presidente e a primeira-dama apertaram-lhes a mão na Sala Leste e o presidente disse baixinho a Jack que queria estar um momento a sós com ele, mais tarde. Jack anuiu com um aceno de cabeça e sorriu-lhe, enquanto Madeleine tagarelava com a primeira-dama. Conheciam-se bem. Maddy entrevistara-a várias vezes e os Hunter eram com frequência convidados para a Casa Branca. E quando Madeleine penetrou na sala pelo braço do marido, ambos encarando os outros convidados, as pessoas sorriram e cumprimentaram-nos, todos a reconhecendo. Como era extenso o percurso desde Knoxville! Não sabia onde parava agora Bobby Joe, o que aliás lhe era indiferente. A vida que vivera com ele parecia-lhe actualmente irreal. A sua realidade era aquela, um mundo de seres poderosos, importantes, entre os quais brilhava como uma estrela.

Misturaram-se com os outros convivas, e o embaixador francês conversou amigavelmente com Madeleine e apresentou-a à esposa, enquanto Jack se afastava para falar a um senador que era o dirigente do Comité de Ética do Senado.

Havia um assunto relacionado com o comité que Jack esperara discutir com ele. Madeleine viu-os pelo canto do olho quando se aproximava dela o embaixador brasileiro, acompanhado por uma atraente congressista do Mississipi. Como sempre, uma noite interessante.

Os seus vizinhos de mesa, ao passarem para a sala de jantar oficial, eram um senador do Illinois e um congressista da Califórnia, que já anteriormente conhecera, e que toda a noite competiram entre si para atrair a atenção dela. Jack sentou-se entre a primeira-dama e Barbara Walters. Só bastante mais tarde, voltou a juntar-se à mulher, dirigindo-se então ambos para o salão de baile.

Quem era ele? perguntou o marido sem grande interesse. Raramente perdia o rasto aos que o rodeavam, e era seu hábito ter uma agenda com os nomes dos que queria ver, encontrar e reencontrar, quer por qualquer história quer por assuntos de negócios. Raramente, se é que alguma vez acontecia, deixara fugir oportunidades, e nunca perdera uma noite sem ter planeado o que faria. Passara uns escassos minutos tranquilamente a sós com o presidente Armstrong, que o convidara a almoçar no próximo fim-de-semana em Camp David para continuarem a conversa. Mas, agora, estava concentrado na mulher.

Então, como é o senador Smith? O que tinha a dizer?

O habitual. Falou sobre o novo imposto. Sorriu ao seu marido. Agora, era uma mulher do mundo, consideravelmente sofisticada e muitíssimo requintada. Como Jack gostava de acentuar, uma criação inteiramente dele. Atribuía-se todos os créditos pelo ponto a que ela chegara, pelo enorme sucesso de que gozava na sociedade dele, e adorava espicaçá-la nesse sentido.

Isso parece muito sexy comentou, referindo-se ao imposto. Os Republicanos atacavam-no, mas Jack estava convencido de que os Democratas ganhariam a batalha, especialmente sendo escudados pelo presidente, firme nessa matéria. E quanto ao congressista Wooley?

É tão giro! Sorriu outra vez a Jack, como sempre, embora um pouco ofuscada pela presença dele. Havia qualquer coisa no aspecto do marido, o seu carisma, a aura que o rodeava, que ainda a impressionava. Falou do cão e dos netos. Fala sempre. Apreciava isso no senador, que era louco pela mulher com quem estava casado há quase sessenta anos

É espantoso ele ainda ser eleito comentou Jack quando a música acabou

Acho que toda a gente gosta dele. O coração caloroso da “vizinha do lado” de Chattanooga não a abandonara, apesar da sua grande sorte Nunca se esquecera de onde provinha, conservava uma certa ingenuidade, ao contrário do marido, que era mordaz e por vezes até contundente e agressivo. Mas ela gostava de falar com as pessoas acerca dos filhos. Não tinham nenhum. Jack era pai de dois rapazes que raramente via e que frequentavam a universidade no Texas, ambos eram amigos de Maddy E a despeito do enorme sucesso de Jack, a mãe dos rapazes poucas coisas boas tinha a dizer do pai deles, ou de Maddy. Haviam-se divorciado há quinze anos e a palavra que com maior frequência usava para o descrever era desumano

Pronta para dar por finda a noite? interrogou Jack, avaliando de novo a sala e decidindo que contactara com todos os que lhe interessavam, e que a recepção estava prestes a terminar. O presidente e a primeira-dama acabavam de retirar-se, o que dava aos seus convidados liberdade para partirem. Jack não via qualquer razão para ficar mais tempo E a Maddy agradava-lhe ir para casa na manhã seguinte tinha de estar cedo no estúdio para se dedicar aos noticiários

Abandonaram calmamente a reunião, o motorista esperava-os perto da porta, por onde saíram com graciosidade E Maddy instalou-se confortavelmente na limusina ao lado do marido. Era longo o trajecto desde o velho camião Chevy de Bobby Joe, as festas a que iam no bar local, os amigos que visitavam em atrelados. Por vezes ainda lhe custava a acreditar que as suas duas vidas, tão diferentes, faziam parte de uma só existência. Não havia qualquer semelhança. Movimentava-se no mundo de presidentes e reis e rainhas, políticos e príncipes, e magnatas como o seu marido

De que falaste com o presidente esta noite. perguntou, reprimindo um bocejo. Estava tão encantadora e tão bem arranjada como ao princípio da noite. Era, muito para além do que imaginava, uma verdadeira bênção para o marido Mais do que reconhecido como o homem que a inventara, era visto como o marido de Madeleine Hunter e, se tinha consciência disso, nunca o admitira perante Madeleine.

O presidente e eu discutimos uma coisa muito interessante respondeu Jack vagamente. Eu conto-te quando me for permitido falar no assunto.

E quando será? Reacendera-se o interesse dela. Não era apenas sua esposa, tornara-se uma jornalista muito competente, e adorava o que fazia, as pessoas com quem trabalhava e os noticiários. Tinha a sensação de tomar o pulso do país.

Ainda não tenho a certeza. Vou almoçar com ele no sábado em Camp David.

Deve ser importante. Mas tudo o era. O que quer que envolvesse o presidente era potencialmente uma grande notícia

Percorreram a curta distância até R Street, comentando o serão. E Jack perguntou-lhe se vira Bill Alexander.

Só ao longe. Não o imaginava de volta a Washington. O homem mantivera-se afastado os últimos seis meses, após a morte da mulher na Colômbia no ano anterior. Fora uma história terrível, de que Maddy se recordava perfeitamente. A senhora fora raptada por terroristas e o próprio embaixador Alexander conduzira as negociações, ao que parecia desastradamente. Após receberem o resgate, os terroristas entraram em pânico e mataram-na. E o embaixador demitiu-se pouco depois.

É um idiota sentenciou Jack sem qualquer preâmbulo ou pena dele. Nunca devia ter tentado ser ele a conduzir o caso. Qualquer pessoa preveria o que iria acontecer

Não creio que ele calculasse tal coisa retorquiu Maddy calmamente, olhando o exterior pela janela

E passado um momento estavam em casa, ela e Jack subiam as escadas, este ia tirando a gravata.

Amanhã, tenho de estar no estúdio cedo observou ela, enquanto, já no quarto, o marido desabotoava a camisa e ela tirava o vestido, ficando parada à frente dele apenas de colãs e sandálias prateadas de salto alto. Tinha um corpo espectacular que Jack não desperdiçava nunca, tal como não fora desperdiçado antes, embora os dois homens com quem se casara fossem extraordinariamente diferentes. Um brutal, grosseiro e violento com ela, indiferente aos seus sentimentos, ou gritos de dor quando a magoava, o outro tão doce, tão carinhoso, aparentando respeitá-la tanto. Bobby Joe partira-lhe uma vez os braços, e ela quebrara uma perna quando ele a empurrara pelas escadas abaixo. Acontecera precisamente quando conhecera Jack e o marido entrara numa raiva ciumenta contra este. Madeleine jurara-lhe que não andava com Jack, e nessa altura correspondia à verdade. Jack era o seu patrão e não passavam de amigos, o resto viera mais tarde, depois de ela deixar Knoxville e se mudar para Washington a fim de trabalhar para ele na sua empresa de televisão por cabo. Um mês depois de chegada a Washington haviam-se tornado amantes, mas já então estava em curso o seu divórcio.

Porque tens de ir cedo? perguntou Jack por cima do ombro ao entrar na sua casa de banho de mármore preto. Tinham comprado a casa, cinco anos antes, a um diplomata árabe milionário. Havia um ginásio completo e uma piscina no andar inferior, belos salões que Jack gostava de usar para receber, e as seis casas de banho existentes eram todas forradas a mármore. A casa possuía ainda quatro quartos, uma suite e três aposentos para hóspedes

Não havia plano algum de transformar qualquer das divisões em quarto de crianças. Jack fora logo de início muito claro ao dizer-lhe que não queria filhos. Não gostara de assistir ao crescimento dos dois que tivera e não tinha o mínimo desejo de ter mais, na verdade não o aceitaria de modo nenhum. E após um breve período em que se lamentara pelas crianças que nunca teria, Maddy fizera, por insistência de Jack, uma laqueação das trompas. Achou que de certa maneira era o melhor; passara por meia dúzia de abortos durante os anos que vivera com Bobby Joe e já nem sequer tinha a certeza de poder ter um bebé normal. Parecia mais simples ceder aos desejos de Jack e não arriscar. Ele dera-lhe tanto, e desejava para ela coisas tão grandiosas, que conseguia admitir o seu ponto de vista de que os filhos não passariam de um obstáculo que ela teria de transpor e de um fardo para a sua carreira. No entanto, por vezes deplorava a irreversibilidade da decisão que tomara Aos trinta e quatro anos, muitas das suas amigas ainda tinham bebés e ela tudo o que agora tinha era Jack. Não iria lamentar ainda mais esse facto quando fosse mais velha e não tivesse netos, nem filhos? Mas havia um pequeno preço a pagar pela vida que partilhava com Jack Hunter. E fora tão importante para Jack! Ele insistira tanto!

Reencontraram-se na grande e confortável cama de casal. Jack puxou-a para si, ela aninhou-se ternamente a seu lado e repousou a cabeça no seu ombro. Era habitual ficarem assim deitados um bocado antes de adormecerem, conversando acerca dos acontecimentos do dia, dos sítios onde iam, das pessoas com quem se tinham encontrado, das festas a que haviam assistido. Como agora, e Maddy tentou adivinhar o que se passava com o presidente.

Já te disse, conto-te quando puder. Deixa-te de palpites

Os segredos põem-me maluca Riu-se.

Tu pões-me maluco replicou ele, voltando-a gentilmente para si e sentindo o acetinado da sua pele por baixo da camisa de noite de seda. Nunca se cansava dela, ela nunca o aborrecia, na cama ou fora da cama, era para ele um prazer sabê-la sua, de corpo e alma, não apenas na estação noticiosa mas também no quarto de cama. Especialmente aí, tinha por ela um apetite insaciável e às vezes parecia a Maddy que ele queria devorá-la. O marido adorava tudo nela, sabia tudo o que ela fazia, gostava de estar a par do sítio onde se encontrava a cada momento do dia e de como se sentia. E tinha muito a dizer a esse respeito. Mas tudo aquilo em que de momento pensava era no corpo de que jamais se saciava e, quando a beijou e enlaçou, ele gemeu docemente. Nunca demonstrou melindre ou objecção à forma como ele a possuía ou à quantidade de vezes que o fazia. Agradava-lhe que a desejasse tanto, saber que ainda o excitava tão intensamente. Era tudo tão diferente do que fora com Bobby Joe. Bobby mais não quisera do que usá-la, e magoá-la. O que excitava Jack era a beleza e o poder. Ter “criado” Maddy fazia-o sentir-se poderoso, e “possuir” Maddy na cama quase o enlouquecia

 

Como sempre fazia, Maddy levantou-se às seis horas e deslizou silenciosamente para a sua casa de banho. Tomou duche e vestiu-se, sabendo que a penteariam e maquilhariam, como todos os dias, no estúdio E quando Jack desceu à cozinha às sete e meia, acabado de pentear e barbear, de fato cinzento-escuro e uma impecável camisa branca, encontrou-a muito bem-disposta, vestida com um fato de calça e casaco azul-escuro, a beber café e a ler o jornal da manhã

Ao ouvi-lo entrar, ergueu o olhar e comentou o último escândalo conhecido. Um dos congressistas fora preso na noite anterior, em consequência do seu relacionamento com um traficante

Dá para pensar que sabem mais alguma coisa concluiu, passando-lhe o Post e pegando em The Wall Street Journal. Gostava de ler os jornais antes de entrar no estúdio onde se ocupava dos noticiários. Habitualmente lia The New York Times a caminho do trabalho e, se tinha tempo, o Herald Tribune

Saíram juntos às oito horas e Jack perguntou-lhe se estava a trabalhar nalguma peça que a obrigasse a sair tão cedo. Às vezes só entrava às dez. Era seu costume ocupar-se de diversos temas o dia inteiro e gravar entrevistas durante o almoço. Não entrava no ar antes das cinco, e de novo às sete e meia. Pelas oito, estava despachada e, quando saíam à noite, mudava de roupa numa sala de vestir do estúdio. O dia era comprido para ambos, mas gostavam do que faziam

O Greg e eu andamos a trabalhar numa série de entrevistas com mulheres. Queremos chegar a uma estatística de quem anda com quem, e quando. Já temos cinco mulheres na calha. Penso que vai ser uma boa história. Greg Morris era um colaborador, um jovem repórter negro de Nova Iorque, que cooperava com ela há dois anos. Eram amigos e adoravam trabalhar juntos

Não achas que podias conseguir a reportagem sozinha. Para que precisas do Greg para isso?

Torna as coisas mais interessantes respondeu ela calmamente. O facto de existir uma perspectiva masculina. Tinha as suas próprias ideias sobre o programa, muitas vezes diferentes das do marido, e acontecia não gostar de lhe falar muito naquilo que andava a fazer. Não queria que interferisse no seu trabalho. Por vezes, era um desafio ser casada com o patrão.

A primeira-dama falou-te a noite passada em colaborares com ela na Comissão de Violência contra as Mulheres? perguntou Jack despreocupadamente; Maddy abanou a cabeça. Haviam-lhe chegado aos ouvidos uns rumores sobre a comissão que a primeira-dama estava a criar, mas ela não lhe falara nisso.

Não, não falou.

Há-de falar. Disse-lhe que pensava que tu adorarias fazer parte dela.

Adorava, se tivesse tempo. Depende do empenhamento que exigir.

Garanti-lhe que aceitarias cortou Jack, brusco. É bom para a tua imagem.

Maddy ficou em silêncio um momento, de olhar fixo na janela. Conduzia-os ao trabalho o motorista de Jack, com quem trabalhava há anos e no qual ambos confiavam inteiramente.

Gostaria de ser eu a decidir retorquiu ela, muito calma. Porque lhe disseste que eu aceitaria? Fazia-a sentir-se uma criança quando Jack agia assim. Era apenas onze anos mais velho do que ela, mas por vezes tratava-a como se ela fosse a filha e ele o pai.

Eu fui claro. Será bom para ti. Considera a coisa como uma decisão do foro executivo tomada pelo chefe da empresa. Como muitas outras. Detestava-o quando o fazia, e ele sabia-o. Uma situação que realmente lhe desagradava! Além disso, acabaste de dizer que gostarias.

Se tiver tempo. Deixa-me ser eu a decidir. Mas entretanto tinham chegado à estação e Charles abrira-lhes a porta do carro. Não havia mais tempo para prosseguir a conversa. E aliás, de qualquer maneira, Jack não parecia disposto a continuá-la. Era óbvio que formara a sua ideia. Beijou-a rapidamente  ao despedirem-se. Ele enfiou-se no seu elevador privado e Maddy, depois de passar pelo segurança e pelo detector de metais, entrou no elevador para a zona do noticiário.

Tinha um gabinete envidraçado, uma secretária e um assistente de pesquisas; Greg Morris estava instalado num gabinete ligeiramente mais pequeno, muito perto do dela. Acenou-lhe com a mão quando a viu entrar, rápida, no seu local de trabalho, e um minuto depois foi levar-lhe uma caneca de café.

Bom dia... ou não? Observou-a minuciosamente e pareceu-lhe detectar qualquer coisa quando ela lhe retribuiu o olhar. Embora fosse difícil dar por isso, a menos que a conhecessem bem, estava a ferver por dentro. Maddy não gostava de se enfurecer. Na sua vida passada, fúria significara perigo, o que nunca esquecera.

O meu marido acaba de tomar uma “decisão do foro executivo”. Olhou Greg de relance, visivelmente agastada. Greg era como um irmão para ela.

Oh, oh! Vou ser despedido? Estava a brincar, era óbvio; a sua categoria era quase tão elevada como a dela, mas nunca ninguém se sentia inteiramente seguro quando se trabalhava com Jack, que era capaz de decisões inopinadas, aparentemente irracionais e não negociáveis. Tanto quanto Greg sabia, porém, Jack gostava dele.

Nada de tão dramático, felizmente. Maddy apressou-se a sossegar-lhe o espírito. Disse à primeira-dama que eu colaboraria na sua nova Comissão de Violência contra as Mulheres, sem sequer pedir a minha opinião.

Pensei que gostavas desse género de coisas comentou Greg, instalado numa cadeira em frente dela, diante da secretária à qual Maddy se sentara, visivelmente agastada.

Não é esse o ponto, Greg. Gosto de ser consultada. Já sou crescidinha!

Provavelmente, o teu marido supôs que era o que tu querias. Sabes como os homens são patetas. Esquecem-se de dar os passos todos entre A e Z: supor basta-lhes.

Ele sabe como detesto isso. No entanto, ambos também sabiam que Jack tomava imensas decisões por ela.

Era assim que as coisas sempre se tinham passado entre ambos. Dizia saber o que era melhor para ela.

Detesto ser eu a contar-te, mas chegou-me aos ouvidos outra “decisão do foro executivo” que ele deve ter tomado ontem. A informação desceu do Olimpo antes de tu entrares. Ao dizer estas palavras, Greg não parecia muito satisfeito. Era um afro-americano bem-parecido, de ar despreocupado, pernas e braços longos e expressivos. Quando criança, desejara ser bailarino, mas em vez disso fora parar”aos noticiários, trabalho de que gostava imenso

Estás a falar de quê? indagou Maddy, preocupada

Cortou uma secção inteira do noticiário. O nosso comentário político das sete e meia.

Fez o quê? As pessoas adoram esse programa. E a nós agrada-nos fazê-lo.

Quer mais notícias de choque às sete e meia. Diz que foi uma decisão baseada nas audiências. Querem que tentemos assim.

Porque não nos falou sobre isso?

E desde quando ele pede a nossa opinião, Maddy? Ora, ora, miúda, tu conhece-lo muito melhor do que eu. O Jack Hunter toma as suas decisões sem consultar os apresentadores. Não é novidade nenhuma.

Gaita! Serviu-se de nova caneca de café, zangada. É bonito! Então, agora, acabaram-se os editoriais? Que estupidez.

Também pensei o mesmo, mas o papá é quem sabe. Disseram que poderiam voltar a pô-los no ar às cinco da tarde, se houver reclamações. Mas não para já

Óptimo. Por amor de Deus, convirás que devia ter-me avisado.

Como faz habitualmente, não é, Pocahontas? Não brinques comigo. Vamos em frente, nós limitamo-nos a trabalhar aqui.

E, tens razão. Ficou um momento a remoer em silêncio o assunto, após o que se atirou ao trabalho com Greg, discutindo em conjunto quem, da lista das congressistas que já haviam seleccionado, entrevistariam em primeiro lugar. Eram quase onze quando acabaram e Maddy saiu para fazer uns recados e comer uma sanduíche. À uma estava de regresso, de novo ocupada com a lista de entrevistas das congressistas. Ficou à secretária até às quatro, hora a que se dirigiu à sala de penteado e maquilhagem, onde encontrou Greg com quem tagarelou acerca das histórias da tarde. Por enquanto, não havia nada de importante.

Já arrancaste a cabeça ao Jack por causa dos nossos editoriais?

Não, mas arranco mais tarde, quando estiver com ele. Nunca o via durante o dia, embora fosse hábito saírem juntos do trabalho, a menos que ele tivesse onde ir sem ela; nesse caso, Maddy ia para casa sozinha e esperava por ele.

O noticiário das cinco correu bem, e ela e Greg ficaram a conversar, como de costume, antes de voltar a entrar no ar às sete e meia. Às oito haviam terminado, e Jack apareceu quando ela abandonava o estúdio. Maddy deu as boas-noites a Greg, tirou o microfone, pegou na mala e partiu com o marido um minuto depois. Tinham prometido ir a um cocktail em Georgetown.

O que diabo aconteceu aos nossos editoriais? interrogou-o a mulher, a caminho de Georgetown.

As taxas de audiência demonstraram que as pessoas estavam fartas deles.

Uma ova, Jack, adoram-nos!

Não foi isso que nos foi dito retorquiu Jack com firmeza, indiferente ao comentário dela.

Porque não me disseste nada a esse respeito, de manhã? Continuava aborrecida com o caso.

Tinha de passar pelas vias adequadas.

Nunca me consultas. Teria sido bom estar a par do facto. Acho que desta vez tomaste a decisão errada.

Vamos a ver o que dizem as taxas de audiência. Chegaram à festa em Georgetown e durante algum tempo perderam-se de vista no meio da multidão. Só voltou a ver Jack quando ele foi ao seu encontro duas horas mais tarde e lhe perguntou se queria ir-se embora. Ambos queriam, o dia fora cheio e tinham estado a pé até tarde na noite anterior, na Casa Branca.

Não falaram muito durante o caminho; ele lembrou-lhe que ia a Camp David almoçar com o presidente no dia seguinte.

Encontro-me contigo no avião às duas e meia disse, parecendo distraído. Iam para a Virgínia todos os fins-de-semana. Jack comprara lá uma quinta no ano anterior àquele em que conhecera Maddy, um lugar que adorava e a que ela acabara por se habituar. A casa, cheia de corredores e recantos, era confortável, com quilómetros de terreno à volta. Havia cavalariças, e Jack possuía alguns cavalos de raça. Porém, a despeito do agradável cenário, Maddy aborrecia-se sempre quando lá iam.

Não queres ficar na cidade este fim-de-semana? sugeriu, esperançosa, ao segui-lo para casa depois de Charles lhes ter aberto a porta do carro.

Não podemos. Convidei o senador McCutchinse a mulher para o fim-de-semana. Não a avisara.

Também era segredo? Maddy estava irritada. Detestava que ele não lhe pedisse o seu acordo sobre coisas daquelas, ou pelo menos não a informasse.

Desculpa, Maddy. Tenho andado ocupado, com milhentos problemas na cabeça toda a semana. Há complicações no escritório. A mulher suspeitou de que o que o distraía era o encontro em Camp David. Mas mesmo assim, podia ter-lhe falado no fim-de-semana com os McCutchms. Ele sorriu-lhe gentilmente ao acrescentar: Foi desleixo meu. Desculpa-me, querida. Era difícil continuar zangada perante tal atitude. Jack era cativante e, por muito que começasse a enfurecer-se com ele, Maddy acabava sempre por capitular.

Tudo bem. Só gostaria de ter sido avisada. Não se deu ao trabalho de dizer que não suportava Paul McCutchms. Jack sabia-o. Era um homem gordo, autoritário e arrogante, e a mulher parecia sempre aterrorizada por ele. Demasiado nervosa para dizer mais do que duas palavras quando se encontrava com Maddy, dir-se-ia que a própria sombra a apavorava. Até os filhos deles denotavam nervosismo. Levam os filhos? Tinham três, pálidos e chorões, cuja companhia Maddy nunca apreciara, embora geralmente gostasse de crianças. Mas não as dos McCutchms.

Disse-lhes que não os levassem respondeu Jack, com uma careta. Sei que não os suportas, o que não te censuro. Além disso, assustam os cavalos.

Já é alguma coisa comentou Maddy ao entrarem em casa. A semana fora sobrecarregada para ambos, e estava cansada. Nessa noite adormeceu nos braços de Jack e nem o ouviu levantar-se na manhã seguinte. O marido estava vestido e a ler o jornal quando ela desceu para o pequeno-almoço.

Jack beijou-a de fugida e uns minutos depois partiu para a Casa Branca, onde o helicóptero presidencial o esperava para o levar a Camp David.

Diverte-te. Maddy sorriu-lhe enquanto se servia de uma chávena de café. Ele parecia de excelente humor. Nada excitava mais Jack do que o poder. Era um vício.

E quando o viu no aeroporto nessa tarde, resplandecia, literalmente. Dir-se-ia que passara uns momentos gloriosos com Jim Armstrong.

Então, resolveram todos os problemas do Médio Oriente, ou planearam uma guerrazita algures? perguntou, brincalhona. Só de olhá-lo ao sol de Junho, apaixonou-se uma vez mais por ele. Era tão terrivelmente atraente e tão bonito!

Foi mais ou menos isso. Sorriu, misterioso, seguindo-a para o avião que comprara nesse Inverno, um Gulfstream, com o qual estava muito satisfeito. Usavam-no todos os fins-de-semana, e ele também em serviço.

Contas-me? Morria de curiosidade, mas ele abanou negativamente a cabeça e olhou-a a rir. Gostava de lhe fazer pirraça com qualquer facto que conhecesse e ela não.

Ainda não. Brevemente.

Havia dois pilotos; levantaram voo vinte minutos depois, enquanto Jack e Maddy conversavam instalados nos confortáveis assentos da traseira do avião, e rumaram para sul, em direcção à quinta na Virgínia. E para grande desgosto de Maddy, quando lá chegaram já os McCutchinsos esperavam. Tinham saído de Washington de manhã, de carro.

Como era de prever, Paul McCutchinsaplicou sonoras pancadinhas nas costas de Jack e apertou de mais Maddy num abraço; a esposa, Janet, não abriu a boca. Os seus olhos mal pousaram em Maddy. Era como se temesse que Maddy pudesse ler neles qualquer segredo sombrio. Algo em Janet provocara sempre em Maddy uma certa falta de à-vontade, embora nunca conseguisse definir o quê, e não se desse grandemente ao trabalho de pensar no assunto.

Jack quis discutir com Paul um assunto de negócios. Tinha a ver com controlo de armas, um problema ultra-sensível e eternamente alvo de notícia. Os dois homens dirigiram-se para os estábulos praticamente quando Jack e Maddy chegaram, o que deixou a Maddy o fardo de aturar Janet. Sugeriu-lhe que entrassem, ofereceu-lhe limonada fresca e biscoitos feitos pela cozinheira da quinta, uma italiana encantadora que trabalhava para eles há anos. Jack contratara-a antes de casar com Maddy. A quinta sempre dera a impressão de ser mais dele do que deles, e ele apreciava-a mais do que ela. Era afastada e demasiado isolada, e Maddy nunca fora uma apaixonada por cavalos. Jack usava-a com frequência para encontros com pessoas de cujo convívio necessitava por causa dos negócios, como por exemplo Paul McCutchms.

Enquanto se sentava, na sala, Maddy perguntou a Janet pelos filhos e, quando acabaram de beber a limonada, sugeriu-lhe um passeio pelo jardim. Pareceu decorrer uma eternidade até que Jack e Paul regressassem dos estábulos. Maddy divagou ao acaso sobre o tempo, a quinta e a sua história, e as novas roseiras que o jardineiro plantara. E foi grande a sua surpresa quando, ao olhar Janet, viu que esta chorava. Não podia ser considerada uma mulher atraente, tinha peso a mais, era pálida, e havia nela qualquer coisa de infinitamente triste. Naquele momento, mais do que nunca, com as lágrimas a correrem-lhe descontroladamente pela cara abaixo, o seu aspecto era absolutamente patético.

Sente-se bem? perguntou Maddy, atrapalhada. Era óbvio que Janet não estava bem. Posso ajudar?

Janet McCutchinsabanou a cabeça e o seu choro redobrou.

Desculpe-me foi tudo o que conseguiu articular.

De nada replicou Maddy com suavidade. Parou junto a uma cadeira de jardim, para que a outra pudesse sentar-se e recompor-se. Quer um copo de água? De novo Janet abanou a cabeça; assoou o nariz e encarou Maddy. Inesperadamente, explodiu, num impulso muito forte, quando os olhares de ambas se cruzaram.

Não sei o que hei-de fazer. A sua voz insegura tocou Maddy.

Posso ajudá-la de qualquer maneira? Interrogava-se sobre se a mulher estaria doente, ou se se passaria algo de grave com um dos filhos; parecia tão perturbada e tão profundamente infeliz. Maddy nem sequer imaginava qual seria o problema.

Não, não pode. Demonstrava desespero e insegurança. Não sei o que fazer repetiu. É o Paul. Ele odeia-me.

Claro que não, tenho a certeza de que não contrapôs Maddy sentindo-se estúpida, sem o mínimo conhecimento da situação. Tanto quanto sabia, ele de facto não mostrava gostar da mulher. Porque havia de odiar?

Tem-me ódio há anos. Tortura-me. Teve de casar comigo porque eu engravidei.

Ele não estaria ainda hoje a seu lado se não quisesse estar. O filho mais velho de ambos tinha doze anos, os outros dois eram mais pequenos. Embora Maddy tivesse de admitir que nunca vira Paul ser gentil com Janet. Era uma das coisas que lhe desagradava nele.

Não podemos dar-nos ao luxo de um divórcio, o Paul diz que isso o prejudicaria politicamente. Uma possibilidade, decerto, mas outros políticos haviam sobrevivido a um divórcio. Então, Janet respirou fundo e acrescentou: Ele bate-me. Gelou-se o sangue nas veias de Maddy ao ouvir tal revelação. E como prova, Janet arregaçou a manga e Maddy pôde ver equimoses horríveis. Ouvira histórias desagradáveis sobre o temperamento violento e a atitude arrogante de Paul ao longo dos anos. Agora, tinha a confirmação.

Lamento tanto, Janet. Não sabia o que dizer, mas sentia uma grande simpatia e pena da mulher e só lhe apetecia abraçá-la. Não consinta aconselhou serenamente.

Não o deixe fazer isso. Eu estive casada oito anos com um homem do mesmo género. Sabia bem de mais como era, apesar de ter passado os últimos sete anos a tentar esquecê-lo.

Como escapou. De repente, pareciam dois prisioneiros da mesma guerra, a segredar no jardim

Fugi. Maddy assumia mais coragem do que a que tivera na altura, e quis ser honesta com a outra. Estava aterrorizada. O Jack ajudou-me Mas para aquela mulher não havia nenhum Jack Hunter. Não era jovem nem bonita, não tinha esperança alguma, nem carreira, nem escapatória, e havia três filhos a seu cargo. Era muito diferente.

Ele diz que me mata se eu me for embora e levar as crianças E diz que, se eu contar a alguém, me mete num manicómio. Já o fez uma vez, depois do nascimento da minha filha mais nova. Trataram-me com electrochoques. Maddy disse para consigo que Paul é que devia ter levado electrochoques, em sítios com real significado para ele, mas absteve-se de expressar o seu pensamento. Só de imaginar o que a mulher estava a passar e tendo visto as equimoses, sentia-se invadida por uma grande pena.

Tem de arranjar ajuda. Porque não vai para uma casa de acolhimento? sugeriu-lhe

Sei que ele me encontrará. E mata-me. Janet soluçava.

Eu ajudo-a disponibilizou-se Maddy sem hesitação. Tinha de fazer qualquer coisa por aquela mulher. Sentia-se culpadíssima por nunca ter gostado dela. Mas agora Janet precisava de ajuda e, qual sobrevivente de idêntica agonia, sentiu que devia prestar-lhe apoio. Vou encontrar sítios para onde você possa ir com os seus filhos

Vai aparecer nos jornais argumentou Janet, ainda a chorar, desamparada.

Também vai aparecer nos jornais se ele a matar replicou Maddy com firmeza. Prometa-me que fará qualquer coisa. Ele bate nos filhos? Janet negou com um aceno de cabeça, mas Maddy compreendeu que era mais complicado do que isso. Mesmo que não lhes tocasse, estava a distorcer-lhes o espírito e a aterrorizá-los, e um dia as raparigas casariam com homens semelhantes ao pai, tal como Maddy fizera, e talvez o filho viesse a achar admissível bater nas mulheres que tivesse. Ninguém escapa imune de um lar em que a mãe leva pancada. Fora isso o que atirara Maddy para os braços de Bobby Joe e a levara a crer que era um direito dele agir como agia.

E quando Maddy segurava na sua a mão de Janet, ouviram aproximar-se os homens. Janet retirou rapidamente a mão e, um instante depois, exibia a sua máscara de pedra. Era como se a conversa nunca tivesse existido, quando os dois homens chegaram ao jardim.

Nessa noite, ao ficarem sós, Maddy contou tudo a Jack.

Ele bate-lhe! exclamou, ainda revoltada.

O Paul? Jack mostrava-se surpreendido. Duvido. É um tipo rude, mas não penso que fizesse uma coisa dessas. Como sabes?

A Janet abriu-se comigo respondeu Maddy, agora resolutamente amiga da outra. Existia entre elas qualquer coisa em comum.

Se eu fosse a ti, não levava a coisa muito a sério retorquiu Jack calmamente. O Paul disse-me há anos que ela tem problemas mentais.

Eu vi as equimoses. Maddy estava furiosa. Acredito nela, Jack. Já passei pelo mesmo.

Sei que passaste. Mas não sabes como é que ela arranjou as equimoses. Pode tê-las feito ela própria para o denegrir. Eu sei que ele andou uns tempos com outra. A Janet está provavelmente a vingar-se, dizendo coisas horríveis a respeito dele. No mesmo instante, Maddy achou o homem ainda pior, e não duvidou nem por sombras da história de Janet. Odiava Paul.

Porque não acreditas nela? perguntou, irada. Não percebo.

Eu conheço o Paul. Ele não faria isso. Ao ouvi-lo, Maddy teve vontade de gritar. Discutiram o caso até se deitarem. Tão zangada estava pelo facto de o marido não acreditar nela, que ficou aliviada por nessa noite não fazerem amor. Sentia-se muito próxima de Janet McCutchins, e, nesse momento, com mais afinidades com ela do que com o próprio Jack. Mas este não pareceu notar como a esposa estava aborrecida.

E antes de o casal partir no dia seguinte, Maddy lembrou a Janet que a contactaria para lhe transmitir informações. Janet manteve-se porém inexpressiva. Temia por de mais que Paul as ouvisse. Limitou-se a inclinar a cabeça num acordo mudo e entrou no carro, que arrancou passados uns minutos. Quanto a Maddy e Jack, durante o voo de regresso a Washington nessa noite, a mulher fixou o olhar na janela contemplando em silêncio o panorama. Só conseguia pensar em Bobby Joe e no desespero que sentira nesses anos solitários em Knoxville. Recordou então Janet e as equimoses que ela lhe mostrara. Era como se Janet fosse uma prisioneira sem coragem nem energia para fugir ao marido. Na verdade, estava convencida de que ela não o faria. Ao aterrarem em Washington, Maddy fez um voto silencioso de a ajudar.

 

Quando foi trabalhar na segunda-feira seguinte, Maddy correu para junto de Greg mal chegou ao escritório, seguiu-o até ao seu gabinete e serviu-se de uma chávena de café.

Como foi o fim-de-semana da mais glamorosa apresentadora laureada? Gostava de se meter com ela sobre a vida que levavam e sobre o facto de ela e Jack frequentarem assiduamente a Casa Branca. Passaste o fim-de-semana com o nosso presidente, ou limitaste-te a ir às compras com a primeira-dama?

Muito engraçadinho, meu idiota! Bebeu um gole de café. Ainda a obcecavam as confissões de Janet McCutchins. Por acaso, o Jack almoçou com ele no sábado, em Camp David.

Graças a Deus, nunca me desiludes! Partia-se-me o coração se vos imaginasse a lavar o carro, como nós outros, simples mortais. Eu... vivo por vosso intermédio. Espero que o saibas. Todos nós.

Acredita-me, não é tão excitante como julgas. Na realidade, nunca se sentia a gozar a sua própria vida, era como se vivesse à luz de um projector emprestado pelo marido. Tivemos os McCutchins a passar o fim-de-semana na Virgínia. Ele é nojento!

Um tipo bem-parecido, o senador Muito distinto. Greg sorriu-lhe, matreiro

Maddy ficou calada um longo momento, então, decidiu pôr Greg a par do segredo. Tinham-se tornado muito íntimos, como irmãos, desde que haviam começado a trabalhar juntos. Ela não tinha muitos amigos em Washington, nunca tivera tempo para os fazer e, daqueles que fizera, Jack nunca gostara e acabara por presssioná-la para que não se desse com eles. Nunca objectara porque Jack a mantinha ocupadíssima, trabalhando continuamente. Ao princípio, quando conhecera mulheres com quem simpatizava, Jack tinha sempre um reparo a fazer: ou eram gordas, ou muito feias, ou inadequadas, ou indiscretas, ou em sua opinião invejavam-na. Madeleine estava cuidadosamente protegida, mas bastante isolada. As únicas pessoas de quem tinha uma possibilidade real de se aproximar eram apenas as do trabalho. Sabia que ele julgava agir bem protegendo-a, e não se importava, mas, como consequência, praticamente só se dava com Jack e, nos últimos anos, com Greg Morris.

Aconteceu uma coisa horrível neste fim-de-semana.

Começou cautelosamente, sentindo-se ainda um pouco desconfortável por divulgar o segredo de Janet. Não ignorava que esta não quereria que alguém o comentasse.

Partiste uma unha? ironizou ele; habitualmente ela ria-se com aquele tipo de graças, mas desta vez ficou séria.

Foi a Janet.

É muito pálida e enfadonha. Só a vi umas duas vezes, em recepções do Senado.

Maddy suspirou e decidiu mergulhar a fundo. Confiava totalmente em Greg.

Ele bate-lhe.

O quê? O senador? Tens a certeza? Isso é uma brutalidade.

Se é! Acredito nela, mostrou-me as equimoses.

Ela não tem problemas mentais? indagou Greg, céptico. Reacção idêntica à de Jack, o que a aborreceu.

Porque é que vocês, homens, dizem sempre essas coisas quando se trata de mulheres maltratadas? Como seria se eu te dissesse que ela lhe dera com um taco de golfe? Acreditavas em mim? Ou respondias-me que o filho da mãe estava a mentir?

Provavelmente teria acreditado nele, lamento dizê-lo. Porque os homens não mentem acerca de coisas desse género. É muito raro um homem ser agredido por uma mulher.

As mulheres também não mentem. Mas gente como tu, e o meu marido, fazem-nas sentir-se culpadas. É por isso que guardam segredo. E sim, ela esteve num manicómio, mas eu não a considero maluca e aquelas equimoses não eram fruto da sua imaginação. Tem pavor dele. Sempre ouvi dizer que era um sacana para o pessoal, mas não um agressor.

Nunca falara abertamente do seu passado, com Greg. Como outras mulheres na mesma situação, achava que de certo modo a culpa era sua e também ela guardava ferozmente o seu segredo. Disse-lhe que a ajudaria a arranjar uma casa de acolhimento. Por onde hei-de começar? Tens alguma ideia?

Que tal a Coligação pelas Mulheres? É uma amiga minha que a dirige. E desculpa o que eu disse. Devia estar melhor informado. Mostrava-se contrito.

Devias, pois. Mas obrigada, vou telefonar-lhe. Lançou-lhe um nome que lhe soou familiar. Fernanda Lopez. Lembrava-se vagamente de ter feito uma reportagem sobre ela logo ao princípio de trabalhar na estação. Fora há uns bons cinco ou seis anos mas recordava-se de que a mulher a impressionara. Porém, quando ligou para o seu escritório, responderam-lhe que Fernanda Lopez se encontrava de licença sabática e a sua substituta, na maternidade. A nova mulher que ocuparia o cargo não se apresentaria senão daí a duas semanas, e dar-lhe-iam conhecimento do telefonema mal ela chegasse. Indicaram a Maddy alguns nomes quando ela explicou o que pretendia. Tentou contactá-los mas de todos os números obteve respostas gravadas e, quando experimentou a Linha de Mulheres Maltratadas, estava ocupada. Teria de ligar mais tarde. Depois, pôs-se a trabalhar com Greg e esqueceu-se do assunto até entrar no ar às cinco horas, prometendo então a si própria que voltaria a tentar de manhã. Se Janet aguentara tanto tempo, decerto sobreviveria até à manhã seguinte, mas Maddy queria fazer qualquer coisa. Era óbvio que Janet estava demasiado paralisada pelo medo para se ajudar a si própria, o que aliás não era caso raro.

Quando Greg e Maddy foram para o ar às cinco, transmitiram o habitual sortido de histórias locais, políticas, nacionais e internacionais, e a queda de um avião no JFK ocupou a maior parte do noticiário das sete e meia.

Nessa noite foi para casa sozinha no carro de Jack, o qual tinha outro encontro com o presidente; por mais tratos que desse à imaginação, não percebia o que tanto ocuparia ambos. Ao chegar a casa, pensou de novo em Janet. Deveria telefonar-lhe? Receou, porém, que Paul escutasse os telefonemas da mulher e decidiu-se pela negativa.

Leu uma quantidade de artigos que guardara e passou os olhos por um novo livro acerca das últimas técnicas de tratamento do cancro da mama, para ver se lhe interessava entrevistar o autor durante um noticiário. Arranjou as unhas e foi para a cama cedo. E ouviu Jack entrar cerca da meia-noite. Mas sentia-se cansada de mais para conversar, voltando a adormecer antes de ele se deitar a seu lado. Só acordou de manhã e ouviu-o dirigir-se à casa de banho e abrir o chuveiro

Jack estava na cozinha a ler The Wall Street Journal quando ela desceu; olhou-a com um sorriso. A mulher vestia umas calças de ganga, uma camisola vermelha e sandálias Guca de um encarnado-vivo. Tinha um aspecto fresco, jovem, sexy.

Fazes-me lamentar não te ter acordado ontem à noite. Sorria, e ela riu-se, servindo-se de uma chávena de café e pegando no jornal

Tu e o presidente devem andar a tramar alguma das boas, com todos estes encontros. Oxalá seja qualquer coisa mais interessante do que uma remodelação do gabinete.

Talvez seja respondeu ele, prudente E ambos voltaram aos seus jornais. Inesperadamente, ouviu Maddy suster a respiração e fitou-a. O que é? Por um momento, a mulher foi incapaz de falar; enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas enquanto tentava continuar a ler o artigo. O choro cegava-a quando se virou para o marido

A Janet McCutchins suicidou-se a noite passada. Cortou os pulsos na casa deles de Georgetown. Um dos filhos encontrou-a e chamou o Cento e Doze, mas quando chegaram ela já estava morta. Disseram que tinha equimoses nos braços e nas pernas e de início recearam que se tratasse de crime, mas o marido explicou que ela caíra pelas escadas abaixo na noite anterior. Escorregou no patim de um dos filhos. O sacana... Ele matou-a. Estava chocada, mal conseguia respirar e sentia-se tensa da cabeça aos pés

Ele não a matou, Maddy replicou Jack calmamente, foi ela que se matou. Tu própria o disseste.

Achou que não tinha outra saída articulou Maddy em voz estrangulada, recordando bem esse sentimento. Olhou para o marido. Eu podia ter feito o mesmo, se tu não me tivesses arrancado de Knoxville

Que disparate! Tu matava-lo primeiro. Ela estava perturbada, tinha uma história de problemas mentais. Provavelmente, havia inúmeras outras razões para fazer o que fez.

Como diabo podes dizer isso? Porque não queres acreditar que aquele sacana gordo a agredia? É assim tão incrível? Acha-lo assim tão encantador? Porque não é possível que ela estivesse a dizer a verdade? Por ser uma mulher? Enfurecia-a ouvi-lo, e até Greg duvidara da história quando lha contara. Por que razão a mulher está sempre a mentir?

Talvez não estivesse. Mas o facto de se ter suicidado apoia a teoria de ser desequilibrada.

Apoia a teoria de que pensou que não tinha qualquer alternativa e estava desesperada. Suficientemente desesperada para deixar os filhos sem mãe e até para arriscar que um deles a encontrasse. Chorava copiosamente ao falar e na sua respiração perpassavam soluços de terror. Conhecia a sensação de se estar tão torturada, tão atemorizada, em tantas dificuldades que nos parece não haver escapatória. Se ela não fosse jovem e bonita, e Jack não a tivesse querido na estação, o seu destino poderia ter sido idêntico ao de Janet McCutchins. E não estava muito segura da razão de Jack ao dizer que ela teria primeiro morto Bobby Joe. Pensara em suicídio mais do que uma vez, em noites negras em que ele estava bêbedo e os lábios e olhos dela inchados em consequência dos últimos actos de agressão que sofrera. Era-lhe facílimo perceber o que Janet sentira. Lembrou-se então dos telefonemas que fizera do escritório, na véspera. Eu ontem telefonei à Coligação pelas Mulheres por causa dela, e a outros. Gaita, quem me dera ter-lhe ligado a noite passada! Mas tive medo, tive medo de que o Paul interceptasse a chamada e eu fosse metê-la em sarilhos.

Não podias ajudar, Mad. Não te tortures por causa disso. O que aconteceu prova-o.

Não prova nada, com um raio, Jack. Ela não estava maluca. Estava aterrorizada. E como sabes tu onde parava ele, ou o que lhe fez antes de ela se matar?

O Paul é um asno, não um assassino. Apostava na minha vida. Expressava-se com calma, ao contrário de Maddy, cada vez mais exaltada.

Desde quando são vocês dois tão amigalhaços? Como diabo sabes como a tratava ele? Não tens a mínima ideia do que tudo isto é. Estremecia com soluços ao sentar-se à mesa da cozinha, chorando por uma mulher que mal conhecia, mas que percorrera um caminho idêntico ao dela, e do qual sabia ser uma das afortunadas sobreviventes, Janet não tivera tanta sorte

Sei o que tudo isso é, sim. Continuava muito calmo. Quando me casei contigo, tu tinhas pesadelos terríveis, e dormias em posição fetal com os braços por cima da cabeça. Eu sei, querida, eu sei. Eu salvei-te.

Salvaste concordou ela, assoando-se e olhando-o tristemente. Nunca o esqueço.. Só que... tenho tanta pena dela... Pensa em como terá sofrido para fazer uma coisa daquelas. A sua vida deve ter sido uma agonia pavorosa

Acho que foi admitiu ele friamente, e lamento pelo Paul e pelos filhos. Vai ser duro para todos eles. Só espero que os média não explorem o caso.

Pois eu espero que um qualquer jovem repórter agressivo faça uma investigação e ponha a nu o que o marido andava a fazer-lhe. Não só por ela, mas por todas as outras mulheres que ainda estão vivas e se encontram na mesma situação.

É difícil perceber por que motivo ela não se foi embora, se era assim tão mau. Podia ter ido. Não precisava de se matar.

Talvez pensasse que precisava comentou Maddy, compreensivamente, mas Jack não se deixou convencer.

Tu conseguiste, Maddy. Também ela poderia ter conseguido!

Levei oito anos..., e tu ajudaste-me. Nem todas têm essa sorte. E só consegui com a graça de Deus, e por um triz. Talvez um ano mais e era bem possível que ele me tivesse morto.

Tu não permitirias que isso acontecesse. Jack afirmava-o com segurança, mas Maddy não tinha tanta certeza.

Permiti que acontecesse durante imenso tempo, até tu apareceres. E a minha mãe permitiu-o até à morte do meu pai. E juro-te que teve saudades de tudo aquilo, e dele, até morrer. Relações deste género são muito mais doentias do que se imagina, tanto para o agressor como para o agredido.

Uma perspectiva interessante. Mostrava-se de novo céptico. Eu acho que há algumas pessoas que apenas esperam... ou deixam que aconteça, por serem demasiado fracas para reagir.

Estás fora do assunto, Jack retorquiu ela em voz tensa. Saiu da cozinha, foi ao andar de cima buscar a mala e um casaco. Ao descer, trazia um bonito blazer azul-escuro e pusera uns brincos pequenos de diamantes. Andava sempre bem vestida e arranjada, em casa ou no trabalho; nunca sabia o que se lhe iria deparar e as pessoas reconheciam-na onde quer que fosse.

Nessa manhã, foram juntos para o trabalho em silêncio. Aborreciam-na algumas das coisas que Jack dissera e não queria entrar em discussão com ele. Mas Greg esperava-a, e lera a notícia, o que o angustiara.

Tenho muita pena, Maddy, deves sentir-te um farrapo. Sei que querias ajudá-la. Talvez não pudesses de modo nenhum. Tentava reconfortá-la, mas Maddy voltou-se e retorquiu-lhe com brusquidão mal ele se calou:

Porquê? Porque ela era uma psicopata, como todas as outras mulheres agredidas, e quis cortar os pulsos? É isso que pensas?

O que eu queria dizer é que talvez ela estivesse demasiado ferida para fugir daquilo de qualquer maneira, como uma pessoa em estado de choque numa zona de guerra. Não pôde impedir-se de acrescentar: Por que razão achas que fez o que fez? Só porque ele a maltratava, ou era realmente uma psicopata? Maddy ficou furiosa com a pergunta.

Isso é o que o Jack pensa, é o que a maioria das pessoas pensa, que as mulheres em tais situações são basicamente malucas, independentemente do que os maridos lhes fazem. Ninguém consegue entender por que motivo não abandonam a casa. Pois bem, algumas muito simplesmente não podem... não podem, é tudo... Desfez-se em soluços; Greg abraçou-a.

Eu sei, querida, eu sei... Desculpa-me... Talvez não pudesses salvar esta, foi só o que eu quis dizer. Falou em tom suave e Maddy sentiu-se grata pelo abraço.

Eu queria... ajudá-la. Os soluços provocavam-lhe estremecimento em todo o corpo: pensava na dor de Janet para chegar àquele ponto, e no sofrimento por que os filhos estavam agora a passar, tendo perdido a mãe.

Que cobertura vamos dar a este caso? perguntou Greg quando a viu recomposta.

Gostava de fazer um editorial sobre mulheres vítimas de violência respondeu ela, pensativa, enquanto Greg lhe servia uma chávena de café.

Essa hipótese foi-nos retirada, lembras-te?

Vou dizer ao Jack que quero fazer um editorial, seja lá como for. Demonstrava firmeza; Greg abanou a cabeça. Apetece-me desmascarar esse sacana do McCutchins.

Eu não agiria assim se estivesse no teu lugar. E o Jack não vai deixar-te fazer esse editorial. Não me interessa o facto de dormires com ele todas as noites, a ordem veio de cima. Nada de editoriais, nem de comentários sociais ou políticos, apenas notícias secas. Relatamos a coisa como aconteceu, sem apartes nossos.

O que é que ele pode fazer? Dar-me um tiro? Aliás, é uma notícia seca: A esposa de um senador suicidou-se, após ter sido maltratada pelo marido.

Mesmo assim, o Jack não te permitirá dizê-lo, ou fazer um editorial, se bem o conheço, a menos que tomes a estação à bala. E honestamente, não me parece que isso lhe agradasse, Maddy.

Não brinques. Não sei como, mas vou fazê-lo. Estamos em directo, santo Deus. Não podem tirar-me do ar sem provocar um distúrbio ou um escândalo. Por isso, vamos fazer mais um editorial e depois apresentamos as nossas desculpas. Se ele ficar acagaçado, eu aguento-me.

És uma mulher corajosa declarou Greg com o seu sorriso rasgado que dava a volta à cabeça das mulheres com quem saía. Era um dos mais assediados celibatários de Washington, e com boas razões. Era esperto, bem-parecido, gentil e um homem de sucesso, combinação rara e altamente apetecível; Maddy era louca por ele, num sentido puramente de camaradagem e adorava trabalhar com ele. Não tenho a certeza de ser capaz de desafiar o Jack Hunter e ir contra uma das suas ordens

Eu tenho os meus meios retorquiu ela com o primeiro sorriso desde que lera a notícia sobre Janet McCutchins

Sim, e as melhores pernas da empresa O que também ajuda gracejou o rapaz

Às cinco horas, quando ela e Greg entravam no ar pela primeira vez nesse dia, Maddy estava nervosa. Mostrava-se tão fria e impassível como sempre, com a sua camisola vermelha, o cabelo imaculadamente tratado, e os brincos com um simples diamante. Greg, porém, conhecia-a o suficiente para se aperceber de como estava ansiosa durante a contagem decrescente para o início da emissão

Vais por diante com a tua? sussurrou ao aproximar-se a hora. Ela acenou-lhe afirmativamente, de seguida, sorriu quando a câmara a focou e apresentou-se, a si própria e ao seu colaborador. Foram dando as notícias como sempre, trabalhando em perfeita harmonia, alternando factos e acontecimentos, então, Greg, sabendo o que ia seguir-se, afastou a sua cadeira e o rosto de Maddy ficou instantaneamente ssério ao fixar as câmaras que a evidenciavam

Há no noticiário de hoje um caso que afecta cada um de nós, uns mais do que outros, É a história do suicídio de Janet Scarbrough McCutchins, na sua casa de Georgetown, deixando sem mãe os seus três filhos. Sem dúvida uma tragédia, e quem pode dizer quais os desgostos que obrigaram Mistress McCutchins a acabar com a própria vida, mas há interrogações que não podem ser ignoradas e é muito possível que nunca obtenham resposta. Porque o fez ela? Por que imenso sofrimento passava nesse momento, e antes? E por que razão ninguém ouviu, ou viu, o que deve ter sido o seu desespero? Numa conversa recente, Janet McCutchins contou-me que uma vez estivera hospitalizada uns dias, com uma depressão. Mas uma fonte próxima de Mistress McCutchins afirmou que poderia ter sido uma consequência de violência sofrida o que a levou ao suicídio. Se é esse o caso, Janet McCutchins não seria a primeira mulher a pôr termo à vida, preferindo isso a sofrer maus tratos. Tragédias como esta ocorrem vezes sem conta. É possível que Janet McCutchins tivesse outras razões para acabar consigo. Talvez a sua família saiba porque o fez, ou o marido, ou os amigos mais íntimos, ou os filhos. Mas são claros, para todos nós, os problemas que algumas mulheres enfrentam, de dor, de medo, de desespero. Não posso dizer-vos por que motivo morreu Janet McCutchins. Não me compete especular. Constou-nos que deixou uma carta aos filhos: estou certa de que nunca teremos conhecimento dela.

“Não podemos porém impedir-nos de pensar por que razão, quando uma mulher grita, o mundo se recusa a ouvi-la e muitos de nós dizemos: ”Deve haver alguma coisa que se passa com ela... talvez ela seja maluca.” E se não for? Morrem mulheres todos os dias, pelas suas próprias mãos e às mãos dos seus algozes. E com demasiada frequência não acreditamos nelas quando nos contam o sofrimento em que vivem, ou simplesmente rejeitamo-lo. Talvez nos seja por de mais doloroso prestar atenção.

“As mulheres que fazem isto não são loucas, na sua maioria, nem perturbadas. Não são preguiçosas nem estúpidas, o que poderia impedi-las de fugir. Têm medo de o fazer. Não podem fazê-lo. Por vezes essas mulheres preferem morrer pelos seus próprios meios. Ou ficam tempo de mais e deixam que sejam os maridos a matá-las. Acontece. É real. Não podemos virar as costas a tais mulheres. Devemos ajudá-las a encontrar uma saída.

“Peço-vos que se recordem de Janet McCutchins. E da próxima vez que tiverem conhecimento de uma morte como esta, interroguem-se: porquê? Ao interrogarem-se, façam silêncio e atentem na resposta, por mais assustadora que possa ser.

“Boa noite. Convosco esteve Maddy Hunter.

Passaram de imediato à publicidade. Todos no estúdio estavam boquiabertos. Ninguém ousara interrompê-la e, hipnotizados pelas suas palavras, não tinham metido mais cedo a publicidade. Greg, de pé, abria-se num grande sorriso e felicitou-a calorosamente quando também ela lhe sorriu.

Que tal foi? perguntou Maddy, num sussurro abafado.

Dinamite. Eu diria que vamos ter a visita do seu marido dentro de cerca de quatro segundos.

Foram dois, até ele irromper pelo estúdio como um tornado, a tremer de fúria e precipitando-se para ela.

Estás totalmente doida? O Paul McCutchins vai dar cabo de mim! Parou a uns centímetros de Maddy e gritava-lhe. Maddy empalideceu, mas não recuou um passo. Manteve-se impassível, embora também ela tremesse. Apavorava-a quando ele, ou qualquer outra pessoa, se enfurecia, mas desta vez afigurou-se-lhe pior do que isso.

Eu disse que uma fonte próxima dela afirmou que podia ser uma consequência de violência sofrida. Bolas, Jack, eu vi-lhe as equimoses. Ela contou-me que ele lhe batia. Que conclusão tiras de tudo isto, quando ela se suicida um dia depois? Tudo o que eu fiz foi pedir às pessoas que pensem nas mulheres que se suicidam. Ele não pode atacar-nos legalmente. Estou pronta a testemunhar o que ela me disse, se for preciso.

E provavelmente será, raios? És surda, não sabes ler? Eu disse nada de editoriais, e era para cumprir!

Desculpa, Jack. Tive de o fazer, devia-lho, a ela e a outras mulheres na sua situação.

Oh, por amor de Deus... Passou uma mão frenética pelo cabelo, incapaz de acreditar no que Maddy lhe fizera, e que os responsáveis pelo estúdio a haviam deixado fazer. Podiam tê-la interrompido, mas não o tinham feito. Gostavam das suas palavras sobre mulheres agredidas. E Paul McCutchins tinha fama de ser uma pessoa e um patrão verbalmente agressivo, e quando jovem participara em inúmeras brigas de bar. Era um dos mais odiados senadores de Washington e manifestava com frequência o seu temperamento violento. Ninguém se apressara a defendê-lo, parecia-lhes perfeitamente plausível, embora Maddy nunca o tivesse citado, que ele maltratasse a esposa. Jack andava ainda às voltas pelo estúdio a gritar com toda a gente quando Rafe Thompson, o produtor, lhe veio dizer que o senador McCutchins o chamava ao telefone. Maddy! berrou à mulher. Quanto queres apostar em como vai processar-me?

Lamento muito, Jack respondeu Maddy calmamente,  mas sem remorsos, enquanto o produtor assistente chegava para informar de que a primeira-dama se encontrava ao telefone. Ambos desapareceram para telefones diferentes, e para conversas muito diferentes. Maddy reconheceu de imediato a voz de Phyllis Armstrong, e ouviu-a agitadíssima

Estou tão orgulhosa de si, Madeleine A voz calorosa da mulher mais velha atravessou a linha com vivacidade

Foi uma coisa muito corajosa o que fez, e muito necessária. Uma emissão formidável, Maddy

Muito obrigado, Mistress Armstrong. Maddy fingia uma serenidade que não sentia. Não lhe referiu a fúria de Jack

Tenho andado a pensar em telefonar-lhe por causa da Comissão de Violência contra as Mulheres. Pedi ao Jack que lhe falasse nisso

Ele falou. Estou muito interessada

Claro, ele disse-me que você adoraria, mas eu queria ouvi-lo da sua própria boca. Os nossos maridos têm tendência a empurrar-nos para aquilo que menos queremos fazer. O meu não é excepção. Maddy sorriu ao ouvi-la, sentindo-se melhor quanto ao facto de Jack a ter dado como disponível com tanto à-vontade. Era com tanta frequência prepotente e tão liberal nas opiniões e decisões que tomava em seu nome. Às vezes, parecia uma falta de respeito por ela

Neste caso, ele teve razão. Eu adoraria

Ainda bem. Vamos reunir-nos pela primeira vez nesta sexta-feira Na Casa Branca, no meu gabinete particular. Mais tarde arranjaremos um local mais apropriado. Ainda somos muito poucos, só uma dúzia. Estamos a tentar idealizar o melhor meio de provocar impacto no público, um verdadeiro impacto, acerca da violência cometida contra as mulheres. E acho que você deu o primeiro passo a nosso favor. Parabéns.

Uma vez mais obrigado, Mistress Armstrong. Maddy, quase sem fôlego, precipitou-se para o gabinete de Greg logo que desligou

Pareces ser o número um na classificação Armstrong

comentou ele, orgulhoso. Adorara o que ela fizera. Era precisa muita coragem, mesmo sendo o patrão da rede o seu marido. Agora, teria de ir para casa e engolir a pílula. E como toda a gente sabia, Jack Hunter nem sempre era uma doçura, especialmente quando alguém se atravessava no seu caminho. A imunidade de Maddy não era superior à de qualquer outro.

Começara Maddy a contar a Greg a conversa com Mrs. Armstrong, quando Jack se lhes lançou em cima como um furacão. Furioso.

Sabia disto? berrou a Greg, ansioso por culpar alguém, qualquer pessoa, todo o mundo! Dava a impressão de querer estrangular Maddy.

Não exactamente, mas andava lá próximo. Sabia que a Maddy ia dizer qualquer coisa respondeu Greg com sinceridade. Não tinha medo de Jack e, embora fosse um segredo bem guardado, que nunca revelara a Maddy, não gostava dele. Achava-o arrogante e despótico e desagradava-lhe o modo como dava a volta a Maddy. Nunca, todavia, comentara nada com ela. Bastava-lhe lidar com o facto, não ia impor-lhe ainda a defesa do marido.

Podia tê-la impedido acusou-o Jack. Devia ter falado a sério com ela e acabar com o caso antes de ela começar.

Tenho demasiado respeito pela Maddy para fazer tal coisa, Mister Hunter. Além disso, concordo com o que ela disse. Não acreditei nela quando me falou da Janet McCutchins, na segunda-feira. No entanto, considero o que ela disse um alerta para todos nós, os que não querem ter de pensar até que ponto se sentem desesperadas algumas mulheres vítimas de violência. Acontece todos os dias, à nossa volta. Nós apenas não queremos vê-lo, ou ouvi-lo. Mas, por causa da pessoa com quem era casada, o caso da Janet McCutchins adquire um grande significado e talvez ajude alguém. Com o devido respeito, acho que a Maddy agiu correctamente. Tremeu-lhe a voz ao pronunciar as últimas palavras, e Jack Hunter lançou-lhe um olhar indignado.

Tenho a certeza de que os nossos patrocinadores vão adorar se formos processados.

Foi isso o que o McCutchinsdisse ao telefone? perguntou Maddy, denotando preocupação. Não estava arrependida, mas detestava causar tamanho contratempo a Jack. No seu espírito, porém, agira como devia. Vira com os seus próprios olhos o que McCutchinsjá fizera à esposa, e estava disposta a testemunhá-lo, se necessário. Lançara para o ar um assunto, sem atender ao custo potencial para si ou para a estação. Assunto que, em sua opinião, merecia ser divulgado.

Fez algumas ameaças veladas, mas o véu era muito fino. Disse que ia telefonar aos seus advogados mal desligasse respondeu-lhe Jack em tom brusco.

Não me parece que vá tão longe comentou Greg, pensativo. A prova é aparentemente condenatória. E a Janet McCutchinsfalou directamente com a Maddy. Isso salvaria as nossas peles.

As nossas peles! Que nobreza a sua, Greg! rosnou-lhe Jack. Tanto quanto sei, a minha é a única em risco. Foi um acto estúpido, irresponsável. E dito isto, atravessou com arrogância o estúdio e subiu de novo aos seus domínios.

Estás bem? Greg olhou para Maddy apreensivo e ela acenou-lhe afirmativamente.

Eu sabia que ia aborrecê-lo, mas espero que não sejamos processados. Mostrava-se constrangida. Tinha a esperança de que McCutchinsnão se atrevesse a processá-los, arriscando-se a expor-se ele próprio.

Contaste-lhe o telefonema da Phyllis Armstrong?

Não tive tempo. Conto-lhe a caminho de casa.

Porém, nessa noite Maddy foi sozinha para casa. Jack telefonara aos seus advogados para rever com eles a gravação e discuti-la; era uma da madrugada quando chegou a Georgetown. Maddy ainda estava acordada, mas o marido não lhe dirigiu a palavra ao atravessar intencionalmente o quarto rumo à sua casa de banho.

Como correu? perguntou ela, cautelosa, ao vê-lo voltar e olhá-la

Não consigo acreditar que me fizeste o que fizeste. Foi uma coisa tão imbecil. Bem podia tê-la esbofeteado. Mas limitou-se a zurzi-la com olhares furibundos e com palavras. Era óbvio que se sentia traído.

A primeira-dama telefonou mal saímos do ar. Estava excitadíssima com a emissão e achou que fora um acto de coragem. Vou para a comissão dela esta semana informou-o, como que a desculpar-se. Não sabia muito bem que caminho tomar para se harmonizar com ele, mas tinha de tentar naquele momento. Não queria que Jack a odiasse ao ponto de isso interferir no trabalho de ambos.

Já tomei a decisão por ti. Lançara-lhe um olhar irado ao ouvi-la referir-se à Comissão de Violência contra as Mulheres.

Fui eu quem a tomou corrigiu Maddy calmamente. É um direito que me assiste, Jack.

Agora também te ocupas dos direitos das mulheres, em simultâneo com a violência? Devo esperar por um editorial sobre isso? Porque não te entreténs com um raio de um programa teu, onde possas dizer o que te vier à cabeça o dia inteiro, mas esquecendo as notícias?

Se agradou à primeira-dama, pode ter sido assim tão mau?

Pior do que mau, se os advogados de McCutchins decidirem nesse sentido.

Talvez tudo acalme em meia dúzia de dias proferiu em tom esperançoso enquanto ele andava devagar pelo quarto, acabando por parar e baixar para ela o olhar com uma fúria mal contida. A sua raiva não se dissipara nem diminuíra.

Se voltares a fazer uma coisa idêntica, não me interessa que sejas minha mulher... Despeço-te de imediato. Fui claro? Ela acenou afirmativamente, em silêncio, sentindo-se de repente não como alguém que agira correctamente, mas como se o tivesse traído. Nunca na sua relação com ele o marido se mostrara tão encolerizado, e Maddy perguntava-se se ele alguma vez lhe perdoaria, especialmente se a estação fosse processada.

Pensei que estava a fazer o que era correcto.

Estou-me nas tintas para o que tu pensas. Não te pago para pensares. Pago-te para te apresentares bem e leres as notícias com o teleponto. É tudo o que pretendo de ti. Entrou na sua casa de banho e atirou com a porta, enquanto Maddy se debulhava em lágrimas no quarto. Fora uma noite esgotante para ambos. Mas, bem lá no fundo, continuava a achar que fizera o que devia ser feito, fosse qual fosse o preço a pagar. E pelo menos, de momento, dava a impressão de que iria ser um preço altíssimo.

Quando Jack saiu da casa de banho, meteu-se na cama sem dizer palavra. Apagou a luz, virou-lhe as costas, e o silêncio instalou-se até ela o ouvir ressonar. Então, pela primeira vez em anos, Maddy sentiu um arrepio de terror. A ira dele, mesmo controlada, trouxe-lhe velhas recordações e apavorou-a. E nessa noite, também pela primeira vez désde há muito tempo, teve pesadelos.

Jack não lhe dirigiu a palavra ao pequeno-almoço e partiu sozinho no carro, com o motorista.

Como é que vou para o trabalho? perguntou ela, perplexa, vendo que o marido a deixava no passeio.

Ele olhou-a nos olhos, atirou com a porta do carro e respondeu-lhe, como se de uma estranha se tratasse:

Apanha um táxi.

 

O funeral de Janet McCutchins teve lugar na sexta-feira de manhã e Jack mandou a Maddy uma mensagem por intermédio da sua secretária informando-a de que tencionava ir com ela. Saíram do escritório no carro dele, Jack de fato escuro e gravata preta às riscas, ela com um saia-casaco Chanel preto e de óculos escuros, e seguiram para a Igreja de São João, atravessando o Parque Lafayette desde a Casa Branca. O serviço fúnebre foi longo e doloroso, uma missa solene, com o coro a cantar a ave-maria. O banco da frente estava cheio de sobrinhas e sobrinhos de Janet, além dos filhos. Até o senador chorou e parecia estarem presentes todos os políticos importantes da cidade. Maddy deu por si de olhos fixos no senador, incrédula, a vê-lo chorar, e o seu coração voltou-se para os filhos. Impensadamente, no fim do serviço deu o braço a Jack. Este olhou-a de relance e afastou-se de imediato. Continuava em fúria, mal lhe falando desde a noite de terça-feira.

Juntaram-se aos outros nos degraus enquanto a urna era carregada para o carro funerário e a família entrava em limusinas que seguiriam para o cemitério. Os Hunter sabiam que depois haveria uma refeição ligeira em casa dos McCutchins, mas nenhum deles quis ir, porque não eram muito íntimos da família. E voltaram para a estação lado a lado, num silêncio sepulcral.

Quanto tempo vai isto durar, Jack? perguntou ela finalmente, incapaz de suportar aquela situação.

Enquanto eu me sentir como me sinto em relação a ti foi a resposta brusca que obteve. Tu ignoraste-me,

Maddy. Não! Para ser preciso, tu lixaste-me.

Foi mais importante do que isso, Jack. Uma mulher maltratada matou-se, e ia passar à história como um caso de loucura. Tratava-se de lhe conceder, a ela e aos filhos, um momento de justiça. E de trazer à luz do dia o seu carrasco, mesmo que apenas por uns minutos.

E, pelo meio, de me lixar. Nada do que fizeste altera o facto de que ela passará à história como um caso de perturbação mental. Os factos estão aí. Esteve num hospital psiquiátrico e foi tratada com electrochoques durante seis meses. A que ponto pensas que ela era normal, Mad. E merecia transformar-me num alvo fácil para um procedimento legal?

Lamento, Jack Tive de fazer o que fiz. Continuava a achar que procedera bem

És tão doida como ela era ripostou Jack com um ar de repugnância, fixando o exterior pela janela. Fora sórdido no que dissera e fizera num tom que feria, o tom em que se lhe dirigia nos últimos três dias

Podemos fazer tréguas no fim-de-semana. Ia ser horrível na Virgínia se ele continuasse na mesma, e começava até a pensar em não o acompanhar

Acho que não. Além disso, tenho assuntos a tratar aqui. Umas reuniões no Pentágono. Tu podes fazer o que quiseres. Não vou ter tempo para estar contigo

Que ridículo, Jack. Aquilo foi trabalho. Isto é a nossa vida

No nosso caso, as duas coisas interligam-se na perfeição. Devias ter pensado nisso antes de abrires a boca

Óptimo. Então, castiga-me Mas não entremos em criancices

Se o McCutchinsme processar, podes crer que a soma não será uma “criancice”

Não me parece que o faça, especialmente com a primeira-dama a aplaudir a emissão. Aliás, ele não pode defender-se Se houver uma investigação, o relatório do médico legista pode mencionar as equimoses dela

Talvez a primeira-dama não o impressione tanto como a ti

Porque não fazes uma pausa por uns tempos, Jack? Eu não posso apagar o que está feito, e aliás não apagaria. Sendo assim, porque não tentamos atirar tudo para trás das costas.

Enquanto ela falava, ele olhava-a com um olhar gelado

Talvez te fosse útil refrescar um pouco a memória, Joana d’Arc, e recordar que, antes de te lançares nas cruzadas a favor dos oprimidos, não eras ninguém nem nada quando eu te encontrei. Não eras nada, Mad, Zero. Eras uma provinciana  vinda de nenhures, encaminhavas-te em linha recta para uma vida de canecas de cerveja e maus tratos num parque de atrelados. Quem raio pensas tu que és agora? Não te esqueças de que fui eu quem te fez. Deves-me isso. Estou enjoado dessa trampa idealista e das choraminguices e lamentações por causa de um monte de merda pouco atraente como a Janet McCutchins. Não era digna de me meter em apuros, ou a ti, ou à estação.

Maddy olhou o marido como se de repente lhe fosse um estranho, e talvez fosse, e ela nunca tivesse dado por isso.

Já chega. inclinou-se para a frente e bateu no ombro do motorista. Pare o carro. Eu saio aqui.

Jack ficou instantaneamente sobressaltado

Pensei que voltavas para o trabalho.

E volto, mas prefiro ir a pé do que aqui sentada a ouvir-te falar assim. Recebi a mensagem, Jack. Tu fizeste-me e eu devo-te tudo. Quanto? A minha vida? Os meus princípios. A minha dignidade? Qual é o preço por salvar alguém de ser um miserável trapo até ao fim dos seus dias? Informa-me, quando chegares a uma conclusão. Quero ter a certeza de que não fico a dever-te nada. Dito isto, saiu do carro e afastou-se calmamente em direcção ao seu local de trabalho. Jack não disse nada; subiu em silêncio o vidro da janela. Ao chegar ao seu gabinete, não lhe telefonou. Ela estava apenas a cinco andares de distância, a comer uma sanduíche com Greg.

Como correu o funeral? perguntou o rapaz olhando-a, apreensivo. Achava-a tensa e exausta

Deprimente. Aquele imbecil chorou durante toda a missa

O senador. Com a boca cheia, Maddy acenou afirmativamente. Talvez se sinta culpado.

Deveria sentir-se. Bem podia ter sido ele a matá-la. O Jack ainda está convencido de que ela era uma psicopata

E, comportando-se como estava a comportar-se, era Maddy quem começava a pensar o mesmo a respeito dele.

O Jack continua chateado? indagou Greg cautelosamente, passando-lhe os picles da sua sanduíche, sabendo que ela os apreciava imenso.

Chateado é pouco. Está convencido de que o meu propósito foi irritá-lo.

Há-de passar-lhe. Greg recostou-se na cadeira e fitou-a. Era tão esperta e honesta, e incrivelmente bela! Adorava o facto de ela estar sempre disposta a lutar por aquilo em que acreditava; mas parecia-lhe preocupada e infeliz. Maddy detestava quando Jack se zangava com ela e nunca, nos seus sete anos de casamento, o marido se mostrara tão irritado.

O que te leva a crer que há-de passar-lhe? Agora, não estava muito segura disso e pela primeira vez sentia o seu casamento em perigo, o que na verdade a aterrorizava.

Há-de passar-lhe porque te ama respondeu Greg com firmeza. E precisa de ti. És uma das melhores profissionais do país, se não a melhor. Ele não é louco.

Não me parece que seja uma razão válida para me amar. Outras haveria com mais significado para mim.

Dá graças pelo que obtiveste, garota. Ele vai acalmar. Talvez no fim-de-semana.

No fim-de-semana, vai ter reuniões no Pentágono.

Deve estar na forja algo de grande comentou Greg com interesse.

Há já algum tempo, acho eu. Não me contou nada, mas encontrou-se com o presidente algumas vezes.

Talvez vamos atirar uma bomba sobre a Rússia gracejou Greg com um sorriso, nenhum deles acreditando em semelhante hipótese.

Isso está um bocado ultrapassado, não está. Maddy retribuiu-lhe o sorriso. Aposto que vão pôr-nos a par, mais cedo ou mais tarde. Olhou o relógio de pulso e levantou-se. Tenho de ir à comissão da primeira-dama. A reunião é às duas horas. Volto a tempo de me maquilhar para o noticiário das cinco.

Ficas bonita mesmo sem maquilhagem. A voz de Greg era suave. Diverte-te. Dá cumprimentos meus à primeira-dama. Maddy esboçou um sorriso, disse-lhe adeus com a mão, saiu do gabinete e desceu as escadas para chamar um táxi. Era uma corrida de cinco minutos até à Casa Branca, e a primeira-dama, que acabava precisamente de chegar no meio de uma fila de automóveis vinda de casa dos McCutchins, encontrou-se com Maddy e entraram juntas na Casa Branca, cercadas por membros dos Serviços Secretos. Mrs. Armstrong perguntou-lhe se fora ao funeral e, perante a sua resposta afirmativa, fez um comentário relacionado com o espectáculo triste dos filhos dos McCutchins.

O Paul também parecia muito abalado acrescentou, pesarosa. Depois, no elevador que as levava aos aposentos privados, perguntou-lhe: Crê de verdade que ele a maltratava? Não a interrogou quanto às fontes de onde provinha a informação.

Maddy hesitou, mas por experiência anterior sabia que podia confiar na discrição de Mrs. Armstrong.

Creio, sim. Ela própria me contou que ele lhe batia e tinha pavor dele. Mostrou-me as equimoses nos braços na semana passada. Sei, pelo que ela disse, que me falava verdade, e acho que o Paul McCutchinsnão o ignora. Vai querer que toda a gente esqueça as minhas palavras. E era por isso que não acreditava que ele fosse processar a estação.

A primeira-dama abanou a cabeça tristemente, suspirando quando saíam do elevador ao encontro da sua secretária e de mais agentes dos Serviços Secretos.

Lamento o que ouvi. Não duvidava nem por um momento do que Maddy lhe contara, ao contrário de Greg e Jack. Como mulher, estava predisposta a aceitar. E aliás nunca gostara de Paul McCutchins: parecia-lhe um tirano. É por essas e por outras que estamos hoje aqui, não é? Que exemplo perfeito de um acto de violência impune contra uma mulher, Maddy. Houve muitas reacções a ele? Maddy sorriu ao ouvir a pergunta.

Recebemos milhares de cartas de espectadoras, aplaudindo-o. Quase nenhuma de espectadores. E o meu marido Por pouco não se divorciava de mim.

O Jack? Que mesquinho da parte dele. Surpreende-me o que me diz. Phyllis Armstrong mostrava-se genuinamente admirada. Tal como o marido, sempre fora amiga de Jack Hunter.

Tem medo de que o senador o processe explicou-lhe Maddy.

Não me parece que se atreva, se for verdade respondeu Phyllis Armstrong ao entrarem na sala onde os outros membros da recém-formada comissão as esperavam. Especialmente se for verdade. A propósito, ela deixou algum bilhete.

Parece que existe uma carta para os filhos, mas não sei quem a leu, se é que alguém o fez. A polícia entregou-a ao Paul quando a encontrou.

Aposto que vai ficar tudo por aí. Diga ao Jack que se descontraia O que você fez está certíssimo. Trouxe à luz essa zona escura, a dos maus tratos, e da violência cometidos contra as mulheres.

Vou repetir-lhe as suas palavras. Maddy sorriu, enquanto o seu olhar varria a sala. Havia oito mulheres e quatro homens, e a oitava mulher era ela própria Entre os homens, reconheceu dois juizes federais, entre as mulheres, uma juíza do tribunal de apelação e outra, membro da imprensa. A primeira-dama apresentou-lhe as mulheres e explicou que eram duas professoras, uma advogada, uma psiquiatra e uma médica. O terceiro homem era também médico e o último do grupo a quem Maddy foi apresentada era Bill Alexander, o antigo embaixador na Colômbia que perdera a mulher às mãos de terroristas. A primeira-dama informou-a de que ele gozara algum tempo livre após ter deixado o Departamento de Estado, e agora estava a escrever um livro. Formavam um grupo interessante e ecléctico: asiáticos, afro-americanos e brancos; uns jovens, outros mais idosos, todos profissionais, vários bastante conhecidos, Maddy era a mais nova de todos, talvez cerca de meia dúzia de anos, e possivelmente a mais famosa, com excepção da primeira-dama.

Phyllis Armstrong deu rápida e sucintamente início à sessão e a sua secretária sentou-se para tomar apontamentos. Deixara lá fora os agentes dos Serviços Secretos; os membros da comissão estavam sentados numa salinha confortável na qual havia uma grande bandeja de prata com café, chá e um prato de biscoitos, sobre uma bonita mesa inglesa antiga Conversava com cada pessoa interpelando-a pelo seu nome e olhava toda a sala com uma expressão maternal. Já lhes falara do corajoso editorial de Maddy de terça-feira à noite, sobre Janet McCutchins, embora muitos deles o tivessem ouvido e o aprovassem sinceramente

Tem a certeza de que ela foi maltratada? perguntou-lhe uma das senhoras, e Maddy hesitou antes de responder.

Não sei bem como responder-lhe. Acredito que foi, embora não pudesse prová-lo em tribunal. Seria tido como boato. Foi ela quem me contou. Voltou-se para a primeira-dama com um olhar interrogativo. Presumo que o que dizemos aqui é confidencial... Era assim que se passava muitas vezes com as comissões presidenciais.

É, sim assegurou-lhe Phyllis Armstrong.

Acreditei nela, apesar de as duas primeiras pessoas a quem relatei o caso não terem acreditado em mim. Trata-se de dois homens, um colabora comigo na televisão, o outro é o meu marido, e ambos deviam estar melhor informados.

Estamos hoje aqui para discutir o que podemos fazer acerca do problema de crimes cometidos contra as mulheres começou Mrs. Armstrong. Será uma questão de legislação, de incutir nas pessoas em geral a percepção da violência? Como podemos lidar com isto com maior eficácia? E, de seguida, gostaria de ver o que podemos fazer. Acho que todos nós gostaríamos. Os presentes anuíram com um aceno de cabeça. Hoje, pretendo fazer uma coisa um pouco fora do comum. Apreciaria que cada um expusesse a razão por que está aqui, quer seja por motivos profissionais ou pessoais, se não lhes custar falar nisso. A minha secretária não tomará notas e, se não quiserem falar, nada os obriga a fazê-lo. Mas penso que seria interessante para nós. E, embora não o tenha dito, sabia que criaria um elo forte entre eles. Estou disposta a ser a primeira, se preferirem.

Todos esperaram respeitosamente, e ela contou-lhes uma coisa a seu respeito que nenhum deles sabia.

O meu pai era um alcoólico e todos os fins-de-semana, sem falha, batia na minha mãe, depois de ter recebido o salário à sexta-feira. Estiveram casados quarenta e nove anos, até ela acabar por morrer de cancro. O facto de lhe bater era como que um ritual para todos nós, eu tinha três irmãos e uma irmã. E todos aceitávamos aquilo como algo de inevitável, tal como ir à igreja ao domingo. Eu costumava esconder-me no meu quarto para não ter de assistir, mas de qualquer modo sabia o que estava a passar-se. E depois ouvia-a soluçar no quarto Mas ela nunca o deixou, nunca o obrigou a parar, nunca lhe retribuiu a pancada. Todos nós odiávamos aquilo e, quando cresceram, os meus irmãos foram-se embora e também eles começaram a embebedar-se. Mais tarde, um deles maltratava a mulher, o mais velho, o que se lhe seguia era abstémio e veio a ser ministro, o mais novo morreu, alcoólico, aos trinta anos. Eu não, eu não tenho problemas de álcool, se é que se interrogam a esse respeito. Não gosto muito de bebidas, bebo muito pouco, a mim o álcool não me afectou. O que me tem afectado a vida inteira é a ideia, a realidade de mulheres agredidas em todo o mundo, muito frequentemente pelos maridos, e ninguém mexer um dedo contra isso. Sempre prometi a mim própria que um dia me envolveria, e gostaria de fazer qualquer coisa, fosse o que fosse, para provocar uma mudança, e já. Todos os dias há mulheres molestadas nas ruas, atacadas e perseguidas sexualmente, violadas e espancadas pelos companheiros e maridos e, por qualquer razão, nós aceitamo-lo. Não gostamos, não aprovamos, choramos quando ouvimos falar num caso, especialmente se conhecemos a vítima. Mas não pomos um ponto final, não estendemos o braço para afastar a arma, ou a navalha, ou a mão, tal como eu nunca obriguei o meu pai a parar. Talvez não saibamos como, talvez não nos preocupemos o suficiente Ou preocupamo-nos Simplesmente, não gostamos de pensar no assunto. O que pretendo é que as pessoas comecem a pensar, se ergam e actuem. Acho que já não é sem tempo, há muito que devia ter acontecido. Quero que me ajudem a travar a violência contra as mulheres, por mim, por vós, pela minha mãe, pelas nossas filhas e irmãs e amigas. Quero agradecer a todos pela vossa presença aqui, pela ajuda que se prestaram a dar-me. Tinha lágrimas nos olhos quando acabou de falar e por um instante todos a fitaram. Não era uma história rara Mas tornava Phyllis Armstrong muito mais real para todos

A psiquiatra que crescera em Detroit contou um caso semelhante, só que o pai matara a mãe e em consequência fora para a prisão. Acrescentou que era lésbica e fora violada e espancada aos quinze anos por um rapaz junto do qual crescera. Vivia com a mesma mulher há catorze anos, acrescentando que conseguira ultrapassar os maus tratos que sofrera em jovem, mas preocupava-a a tendência para o aumento de crimes violentos contra as mulheres, mesmo na comunidade homossexual, e a capacidade de todos virarem as costas quando eles aconteciam.

Alguns dos outros não possuíam experiência pessoal de violência, mas ambos os juizes federais referiram que tinham tido pais agressivos que às vezes esbofeteavam as mães e que, até crescerem e mudarem de opinião, achavam normal o procedimento do pai. Chegou então a vez de Maddy, que hesitou momentaneamente. Nunca até aí contara a sua vida em público; sentia-se insegura.

A minha história não é assim tão diferente das outras começou. Cresci em Chattanooga, no Tennesee, e o meu pai sempre bateu na minha mãe. Às vezes ela retribuía-lhe, a maior parte delas, não. Por vezes, estava bêbedo quando o fazia; noutras alturas, apenas furioso com ela, ou com qualquer outra pessoa, ou com qualquer coisa que sucedera nesse dia. Éramos paupérrimos e ele sempre pareceu incapaz de manter um emprego, e também por isso batia na minha mãe. Tudo o que lhe acontecia era culpa dela. E quando ela não estava por perto, batia-me a mim, mas não com muita frequência. As zangas deles foram uma espécie de música de fundo da minha infância, um tema familiar com o qual cresci. Sentia-se um pouco ofegante, e pela primeira vez em anos a sua pronúncia sulista se fez ouvir, enquanto prosseguia. Tudo o que eu queria era fugir daquilo. Odiava a minha casa, e os meus pais, e o modo como se tratavam. Por isso casei-me, aos dezasseis anos, com o meu namorado do colégio, e mal nos casámos ele começou a bater-me. Bebia de mais e não trabalhava quase nada. Chamava-se Bobby Joe e eu acreditei nele quando disse que a culpa era toda minha; que se eu não fosse tão insuportável e má esposa, e tão estúpida e desmazelada, uma imbecil, ele não “teria” de me bater. Mas tinha de o fazer. Uma vez empurrou-me pela escada abaixo e parti uma perna. Eu trabalhava então numa estação de televisão em Knoxville, que foi vendida a um homem do Texas, que por acaso comprou uma rede de televisão por cabo em Washington e me trouxe com ele. Julgo que a maioria de vocês o conhece. Jack Hunter. Deixei a minha aliança de casamento e um bilhete na mesa da cozinha em Knoxville e encontrei-me com o Jack na estação de autocarros da Greyhound, levando comigo apenas uma mala Samsomte com dois vestidos lá dentro, e voei como louca até Washington para trabalhar com ele. Divorciei-me e casei com o Jack passado um ano e desde então ninguém levantou a mão contra mim. Eu não o permitiria. Agora sei defender-me. Basta que por acaso alguém me pareça mal-intencionado para eu fugir como do demónio. Não sei porque tive sorte, mas tive. O Jack salvou-me a vida. Fez de mim tudo aquilo que hoje sou. Sem ele, provavelmente estaria morta. Acho que o Bob me teria morto uma noite, empurrando-me pelas escadas até eu partir o pescoço ou pontapeando-me na barriga. Ou talvez simplesmente porque eu quisesse por fim morrer. Nunca contei nada disto por vergonha, mas agora quero ajudar mulheres como eu, mulheres que não têm tanta sorte como eu tive, mulheres que se julgam acorrentadas e que não têm um Jack Hunter à espera delas com uma limusina para as levar para outra cidade. Quero estender a mão a essas mulheres e ajudá-las. Elas precisam de nós acrescentou, com os olhos rasos de lágrimas. Devemos-lhes isso

Obrigada, Maddy. A voz de Phyllis Armstrong soava docemente. Todos eles tinham um elo em comum, ou a maioria deles, advogados e médicos e juizes e até uma primeira-dama, casos de violência e ultraje, e só por muita sorte e determinação haviam sobrevivido E todos tinham plena consciência de que havia muitas outras pessoas com menos sorte, que precisavam de ser ajudadas. O grupo sentado nos aposentos da primeira-dama estava ansioso por pôr em acção algo nesse sentido.

Bill Alexander foi o último a falar, e a sua história foi a mais rara, como aliás Maddy suspeitava que seria. Crescera num bom lar em Nova Inglaterra, com pais que o amavam e se amavam. E conhecera e casara com a sua esposa quando ela estava em Wellesley e ele em Harvard. Doutorara-se em Política Estrangeira e Ciências Políticas e ensinara vários anos em Dartmouth, depois em Princeton e dava aulas em Harvard quando fora nomeado embaixador no Quénia aos cinquenta  anos. O seu posto seguinte foi em Madrid e daí foi transferido para a Colômbia. Disse que tinha três filhos adultos que eram respectivamente médico, advogado e banqueiro. Todos muito respeitáveis e com boas carreiras académicas. Fora uma vida calma, “normal”, de facto, acrescentou com um sorriso, uma existência algo aborrecida mas satisfatória

A Colômbia fora para ele um desafio interessante a situação política lá era delicada, e o tráfico da droga infiltrava-se no país por todos os lados. Estava intrincadamente entrelaçado com todas as formas de comércio, os políticos não prestavam, a corrupção disparava. Fascinara-o a tarefa que se propunha levar a cabo e sentia-se à altura até a sua esposa ser raptada. Tremeu-lhe a voz ao dizer a palavra. A mulher fora mantida prisioneira durante sete meses, prosseguiu, lutando contra as lágrimas que acabaram por vencê-lo. A psiquiatra sentada a seu lado pôs-lhe a mão no braço, como que para o amparar, e ele sorriu-lhe. Todos eram agora amigos, conheciam-se mais intimamente, partilhavam segredos ocultos

Tentámos tudo para a recuperar explicou em voz rouca, perturbada. Maddy calculara, pelo tempo que passara nos seus postos diplomáticos, que andaria pelos sessenta anos. Tinha o cabelo branco, olhos azuis, um rosto jovem e um porte atlético. O Departamento de Estado mandou negociadores especiais para falar com representantes do grupo terrorista que tinha a refém em seu poder. Propunham uma troca, negociá-la contra cem prisioneiros políticos, e o Departamento de Estado não ia aceitar tal coisa. Compreendo as razões que lhe assistiam, mas não queria perdê-la. A CIA também tentou, pretendeu por seu turno raptá-la, mas a tentativa falhou e ela foi levada para as montanhas e a partir daí não conseguimos encontrá-la. Acabei por pagar o resgate que eles pediam e depois fiz uma coisa muito idiota. De novo se lhe embargou a voz enquanto continuava a sua história, e o coração de Maddy, tal como o de todos os que o ouviam, compadeceu-se dele. Tentei negociar eu próprio com eles. Fiz tudo o que podia. Quase enlouqueci, a tentar tê-la de volta. Mas eles eram demasiado espertos, demasiado rápidos, demasiado demoníacos para serem batidos. Pagámos o resgate e, três dias mais tarde, mataram-na. Largaram o corpo dela nas escadas da embaixada. Gaguejava a cada palavra e chorava abertamente. E tinham-lhe cortado as mãos. Sentou-se por um momento desfeito em soluços e ninguém se mexeu, então, Phyllis Armstrong incllinou-se e tocou-lhe, ele respirou fundo. Todos os outros murmuravam o quanto sentiam a sua dor. Uma história horrenda e um trauma que todos se perguntavam como teria ele ultrapassado. Senti-me totalmente responsável pelo meu mau trabalho. Nunca devia ter tentado negociar directamente com eles, foi como se os tivesse enlouquecido ainda mais. Pensei que podia ajudar, mas acho que se me tivesse mantido afastado e deixado a acção aos peritos, eles a teriam guardado um ano ou dois, como fizeram com outros, e depois a libertariam Mas, tendo eu interferido, de certo modo matei-a

Isso é um disparate, Bill interrompeu Phyllis com firmeza. Espero que não duvide. Não pode pôr-se a adivinhar o que poderia ter acontecido. Essa gente é implacável e amoral, para eles uma vida não significa nada. Podiam muito bem tê-la morto fosse lá como fosse. Na verdade, tenho a certeza de que provavelmente o teriam feito

Acho que toda a vida sentirei que a culpa foi minha retorquiu Bill, desolado, e a imprensa insinuou-o. De súbito, ao ouvi-lo, Maddy recordou-se de Jack a afirmar-lhe que Bill Alexander era um idiota. Agora que conhecia a história, perguntava a si própria como podia o marido ser tão desumano

A imprensa adora o sensacionalismo. A maior parte do tempo não sabem do que falam interveio Maddy, enquanto Bill levantava para ela um olhar repleto de sofrimento. Nunca na sua vida Maddy vira tanta mágoa. Gostaria de inclinar-se e tocar-lhe, mas estava sentada demasiado longe dele. O que eles querem é vender uma história. Digo-lhe por experiência própria, embaixador Lamento imenso tudo o que lhe aconteceu acrescentou gentilmente

Também eu. Obrigado, Mistress Hunter. Assoou-se ao lenço impecável que tirou da algibeira

Todos nós temos as nossas histórias. É por isso que estamos aqui. Não foi porém por isso que lhes pedi que viessem. Phyllis Armstrong repunha serenamente a ordem

Eu não conhecia a maior parte desses casos quando recorri a vocês. Fi-lo porque são pessoas inteligentes e devotadas. Foi essa a razão por que vieram e por que querem ajudar a comissão. Todos nós aprendemos por experiência própria, da pior maneira, ou pelo menos a maioria de nós. Sabemos do que estamos a falar, e o que está implicado. Do que precisamos agora é de descobrir o que fazer a esse respeito, como ajudar as pessoas ainda a passar pelo que passámos. Nós somos sobreviventes, todos nós, mas elas podem não vir a sê-lo. Temos de chegar depressa até elas, até à imprensa, ao público em geral. O relógio não pára, há que acudir-lhes antes de as perdermos. Morrem mulheres todos os dias, assassinadas pelos maridos; são violadas nas ruas, raptadas e torturadas por estranhos, mas a maior parte dessas mulheres são mortas por homens, homens que conhecem, e o mais frequente é serem os seus cônjuges ou namorados. Precisamos de educar o povo e de indicar às mulheres onde devem ir procurar ajuda antes que seja tarde de mais para elas. Temos de mudar as leis, torná-las mais fortes. Temos de fazer com que as penas de prisão correspondam ao crime cometido, com que seja bem pesado praticar um acto de violência contra uma mulher, ou contra seja quem for. É uma guerra de classes, uma guerra que temos de travar e vencer. E quero que cada um de vocês vá para casa e pense no que podemos fazer para alterar o estado actual das coisas. Sugiro que voltemos a reunir-nos daqui a duas semanas, antes de a maioria partir para as férias de Verão, e tentemos chegar a algumas soluções. Hoje, quis em primeiro lugar que se conhecessem. Eu conheço-vos a todos, a alguns até bastante bem, mas agora sabem com quem trabalharão e porque estão aqui. Encontramo-nos aqui todos essencialmente pela mesma razão, tendo alguns de nós ssofrido na pele o problema, mas todos queremos que haja uma mudança, e podemos consegui-la No plano individual, todos somos capazes disso; colectivamente, formaremos uma força irresistível. Deposito em vocês toda a minha confiança e eu própria quero pensar maduramente antes de voltarmos a reunir-nos. Levantou-se, com um sorriso caloroso que envolvia cada um dos presentes. Obrigada por terem comparecido hoje. Fiquem à vontade se quiserem conversar mais um bocado. Eu, infelizmente, tenho de me ir embora, devido a um compromisso.

Era cerca das quatro horas, e Maddy mal podia acreditar em tudo o que ouvira no espaço de duas horas. Fora tão emocionante para todos, que se sentia como se tivesse passado dias com eles. E foi para si ponto de honra ir até junto de Bill Alexander antes de partir. Parecia um homem gentil e a sua história era tão trágica! Dava a impressão de ainda não se ter recomposto, o que não era estranho, pois o trauma por que passara dera-se apenas sete meses antes. Surpreendia-a, sim, a sua coerência.

Lamento tanto, embaixador. Lembro-me do caso, mas é diferente ouvi-lo da sua boca. Que pesadelo!

Não tenho a certeza de vir um dia a superá-lo disse Bill com sinceridade. Ainda sonho com tudo aquilo. Contou-lhe que tinha pesadelos recorrentes, e a psiquiatra perguntou-lhe se estava em tratamento, ao que ele respondeu que estivera alguns meses, mas agora contava só consigo. É certo que parecia são e normal, e era obviamente muitíssimo inteligente, mas Maddy não conseguia impedir-se de pensar em como lhe era possível sobreviver a uma experiência daquelas e continuar a agir com sensibilidade e calma. Sem dúvida, uma pessoa extraordinária.

Estou ansiosa por trabalhar consigo disse, com um sorriso.

Obrigado, Mistress Hunter. E retribuiu-lhe o sorriso.

Trate-me por Maddy, por favor.

Eu sou Bill, e vi a sua peça no noticiário, sobre a Janet McCutchins. Foi muito perturbante, não podia deixar de o ser.

Maddy sorriu, pesarosa, ao cumprimento e agradeceu-lho.

O meu marido ainda não me perdoou. Ficou muito apreensivo com as implicações para a empresa.

Temos de ser corajosos e fazer as coisas que consideramos correctas. Você sabe tão bem como eu. Deu ouvidos ao seu coração, tal como os seus adjuntos. Tenho a certeza de que o seu marido compreenderá. Era o caminho certo a tomar e você tomou-o.

Não me parece que ele concorde consigo, mas agrada-me ter feito o que fiz admitiu ela.

O público precisa de ouvir estas coisas acentuou Bill, numa voz de novo forte. E parecia mais novo ao conversar com ela. Sentia-se muito impressionada, quer pela presença dele, quer pela forma como se comportara naquela primeira reunião. Percebia bem a razão por que Phyllis o convocara.

Acho que precisa mesmo concordou Maddy, e olhou para o relógio. Passava das quatro e tinha de ir para o estúdio tratar do cabelo e da maquilhagem. Infelizmente, tenho um programa a fazer às cinco horas. Até à próxima reunião. Maddy apertou a mão a várias pessoas antes de abandonar a sala, após o que saiu da Casa Branca o mais rapidamente que pôde e apanhou um táxi para o estúdio.

Greg estava já a ser maquilhado quando ela chegou.

Então, que tal correu? perguntou, entabulando conversa. Intrigava-o a comissão da primeira-dama e pensava que dela poderia ser extraída uma boa história.

Muito interessante. Adorei. Conheci o Bill Alexander, o ex-embaixador na Colômbia cuja esposa foi morta por terroristas no ano passado. Que coisa horrorosa!

Lembro-me vagamente. Vi uma foto. O homem era um autêntico trapo quando levaram o corpo dela para a embaixada... Não é que eu o critique. Pobre tipo! Como está agora?

Parece bem, embora eu ache que ainda está bastante abalado. Está a escrever um livro sobre o assunto.

Uma boa história. Quem mais lá estava? Ela citou alguns nomes, mas não lhe contou nenhuma das histórias pessoais que ouvira: sabia que era essa a sua obrigação e cumpria-a. E, mal a maquilhagem ficou pronta, entrou no estúdio e passou os olhos pelas peças que iam ser apresentadas. Não havia nada sensacional ou terrível, só assuntos banais, e uma vez no ar deram as notícias serenamente. Depois, Maddy voltou para o seu gabinete. Queria ler algumas peças e tinha umas pesquisas a fazer antes do jornal das sete e meia. Às oito, terminara. Fora um dia cheio e, quando ficou pronta Para deixar o trabalho, ligou para Jack. Ele continuava lá em cima, a terminar uma reunião.

Tenho boleia, ou queres que vá a pé para casa? perguntou-lhe, e ele sorriu mesmo contra vontade. Continuava zangado com ela, mas sabia que não seria por muito tempo.

Vou obrigar-te a correr atrás do carro durante os próximos seis meses, para expiares os teus pecados e aquilo que poderás custar-me.

A Phyllis Armstrong não pensa que ele nos processe.

Espero que tenha razão. Se não tiver, o presidente pagará a conta? Vai ser bem avultada.

Vamos esperar que não aconteça nada replicou ela, muito calma. A propósito, a reunião da comissão foi formidável. Tem gente de grande valor. Era a primeira conversa real entre eles desde terça-feira, e Maddy ficou contente por vê-lo quebrar um pouco da sua frieza.

Encontramo-nos ao fundo da escada daqui a dez minutos. Tenho umas coisas a acabar aqui.

Quando dez minutos mais tarde desceu à recepção, não se mostrou feliz por vê-la, mas tinha um aspecto menos feroz do que nos três dias anteriores, desde a “transgressão” dela. E ambos tiveram o cuidado de não aflorar o assunto no trajecto até casa. Pararam para comer uma piza, enquanto ela lhe falava na reunião da comissão. Mas também a ele não deu pormenores; só o essencial e o que esperavam obter. Sentia-se protectora das pessoas que lá conhecera.

Há um laço comum a todos vocês, ou são todos apenas inteligentes e interessados no tema?

As duas coisas. É espantosa a violência que pode abater-se sobre a vida de cada um. Todos foram muito sinceros nesse ponto. Era tudo o que podia, ou queria dizer-lhe.

Não lhes contaste a tua história, pois não? Olhou-a com interesse.

Por acaso, contei, sim. Todos fomos muito francos.

Isso é estúpido, Mad comentou ele sem cerimónias. Ainda estava aborrecido com ela, e não refreava os seus impulsos. E se alguém o transmite à imprensa? É essa a imagem que queres dar de ti? O Bobby Joe a deitar-te pelas escadas abaixo em Knoxville? Era uma crítica, de que Maddy não gostou mas que não comentou.

Talvez seja bom, se ajudar alguém a aperceber-se de que os maus tratos também atingem pessoas como eu. Um pouco de exposição pode valer a pena se salvar a vida de alguém, ou lhe der a esperança de poder vir a escapar.

Tudo o que te dará a ti é uma dor de cabeça, e uma triste imagem que me custou uma fortuna a apagar. Não consigo entender como pudeste ser tão idiota.

Fui franca. Toda a gente o foi. Algumas das histórias eram bem piores do que a minha. A da primeira-dama não era decerto bonita e ela não a escondera. Todos tinham sido muito francos, e era aí que residia a beleza do que haviam partilhado. O Bill Alexander faz parte da comissão. Contou-nos o rapto da mulher. Era do conhecimento público pelo que podia falar no caso a Jack, mas como resposta este limitou-se a encolher os ombros e mostrou-se nitidamente hostil.

Bem pode ter sido ele a matá-la. O que fez foi uma burrice, tentar ser ele o negociador. Todo o Departamento de Estado o avisou, mas o tipo recusou-se a dar-lhes ouvidos.

Estava desesperado, provavelmente nem conseguia raciocinar. A mulher foi mantida como refém sete meses antes de a matarem. A espera deve tê-lo deixado meio louco. Ainda sentia pena ao pensar no assunto, mas Jack manteve-se impassível, o que a aborreceu. Demonstrava total indiferença pelos sentimentos do homem e pelo que ele passara. O que tens contra ele? Dá-me a sensação de que embirras com o homem.

Foi um dos conselheiros do presidente, por pouco tempo, a seguir a ter sido professor em Harvard. Tem ideias medievais e é intransigente quanto a princípios e moralidade. Um autêntico romeiro. Uma maneira antipática de descrevê-lo, que irritou Maddy.

Penso que há mais a dizer sobre ele. Parece muito sensível e inteligente, e uma pessoa muito honesta.

Não gosto dele, é tudo. Acho que o tipo não tem vivacidade suficiente, ou sex appeal, ou seja lá o que for. ma coisa estranha o que dizia, porque Bill era um homem bem-parecido e interessante. No entanto, Jack falava com sinceridade. Claro que Bill era o oposto da multidão espampanante com que Jack Hunter gostava de se dar, mas Maddy não estava muito certa de a incomodarem o estilo e as ideias de Bill. Apesar de este não parecer suficientemente glamoroso aos olhos do marido.

Chegaram a casa pelas dez horas e, o que não era seu hábito, Maddy ligou para o noticiário, ficou paralisada quando viu que tropas dos Estados Unidos tinham invadido de novo o Iraque. Voltou-se para Jack e leu no seu olhar algo de estranho

Sabias disto, não sabias? perguntou-lhe sem rodeios.

Eu não aconselho o presidente quanto às suas guerras, Mad. Apenas quanto a assuntos dos média.

Uma gaita! Tu sabias. Foi por isso que foste para Camp David na semana passada, não foi? E é por isso que neste fim-de-semana vais para o Pentágono. Porque não me contaste? Várias vezes o marido partilhara com ela informações altamente confidenciais, mas desta não o fizera. Pela primeira vez, sentiu falta de confiança da parte dele e isso feriu-a.

Era demasiado delicado e demasiado importante.

Vamos perder lá uma quantidade de homens, Jack. Havia preocupação na sua voz. A cabeça andava-lhe à roda. Também para ela ia ser uma peça importante, na segunda-feira.

Por vezes é um sacrifício que tem de ser feito retorquiu Jack friamente. Achava que o presidente tomara a decisão certa. Ele e Maddy já antes haviam divergido de opinião a esse respeito, e ela não estava tão convencida como o marido

Assistiram ao resto das notícias; o apresentador disse que dezanove fuzileiros navais tinham morrido nessa manhã num recontro com soldados iraquianos. Jack desligou o aparelho e Maddy seguiu-o até ao quarto

É interessante que o presidente Armstrong te meta nisto. Porquê, Jack? Mostrava-se desconfiada ao fazer a pergunta

Porque não? Ele confia em mim.

Confia em ti, ou está a usar-te como médico de serviço que obriga o povo americano a engolir esta pílula sem que a imagem dele seja afectada?

É um direito seu opinar sobre o comportamento dos média. Não é crime.

Não é crime, mas talvez também não seja muito honesto impingir ao público qualquer coisa que a longo prazo possa vir a revelar-se uma muito má ideia.

Poupa-me às tuas opiniões políticas, Mad. O presidente sabe o que está a fazer. Pôs ponto final sumariamente, o que lhe desagradou, e intrigou-a o facto de Jack estar em tão bons termos com a administração em curso. Teria o facto a ver, em parte, com a sua fúria contra a peça dela na terça-feira acerca de Janet McCutchins? Talvez temesse qualquer dificuldade que pusesse em causa o seu delicado equilíbrio de poder. Jack mantinha sempre os olhos bem abertos, via o que potencialmente podia vir a perder. Calculava cada passo que dava e ainda mais atentamente os que os outros davam. Porém, nessa noite, ao meter-se na cama com ela, foi mais caloroso do que vinha sendo há dias e, quando a puxou para bem junto de si, Maddy pôde sentir quanto ele a desejava.

Lamento que tenha sido uma semana tão má para nós disse ela meigamente, enquanto ele a agarrava.

Não repitas, Mad. Da próxima vez não perdoo e sabes o que aconteceria se eu te despedisse? A sua voz soava dura e fria. No dia seguinte estarias na lama. Estarias acabada, Mad. A tua carreira depende de mim, nunca o esqueças. Não brinques comigo, Maddy. Posso apagar a tua carreira como se fosse uma vela. Não és a estrela que gostas de pensar que és. Tudo provém de estares casada comigo. As palavras dele enjoaram-na e entristeceram-na, não por aquilo que poderia perder se o marido corresse com ela, mas pelo modo como se expressara. Não respondeu nada; beliscou-lhe os mamilos com força, com demasiada força, e então, sem uma palavra, possuiu-a, mostrando-lhe quem mandava. Nunca era Maddy, sempre Jack. Maddy começava a pensar que poder e mando eram tudo o que contava para ele.

 

No sábado, quando Maddy acordou, Jack já estava vestido e prestes a sair para a sua reunião. Disse-lhe que passaria o dia inteiro no Pentágono e que não o esperasse até à hora do jantar

Porque vais lá? perguntou ela ainda da cama, observando-o Bem-parecido, bem vestido, com calças desportivas, blazer e uma camisola cinzenta de gola alta. Estava calor na rua, mas ele sabia que estaria todo o dia numa sala com ar condicionado, bastante fria.

Eles andam a pôr-me a par de alguns dos seus assuntos. Isso ajuda-me a ter uma melhor perspectiva do que por lá se passa. Podemos noticiar o que eu ouço, mas é informação útil e o presidente quer, penso eu, dar a sua opinião sobre como transmitir as notícias aos média. Acho que posso ajudá-lo nesse ponto. Era exactamente o que ela supusera na noite anterior. Jack estava a servir de pronto-socorro ao presidente.

Contar a verdade aos Americanos podia ser um modo interessante de agir. Seria certamente algo de novo, de diferente comentou ela, olhando para o marido. Às vezes não lhe agradava a sua prontidão em camuflar a verdade para dar a volta “certa” às coisas. Tinha uma maneira de o fazer que a enervava. Maddy era muito mais do género preto no branco. Era verdade, do seu ponto de vista, ou não era. Mas Jack via um arco-íris de oportunidades e sombras subtis. Para ele, a verdade tinha um milhão de matizes e significados.

Há diversas versões da verdade, Mad. Apenas queremos encontrar aquela com que o povo melhor se acomode.

Isso é uma treta e tu bem o sabes. A verdade é a verdade.

Acho que é por isso que vou estar lá hoje e tu não. A propósito, o que vais fazer? Passava uma esponja pelo que acabara de dizer-lhe e pelas implicações subsequentes.

Não sei. Vou ficar por aqui, creio. Descansar. Talvez vá às compras com uma amiga. Mas há anos que não o fazia.

Já nem oportunidades tinha para cultivar amizades, Jack monopolizava todo o seu tempo livre e mantinha-a ocupadíssima, ou então estava a trabalhar. E as únicas pessoas com quem mantinha relações sociais estavam de qualquer forma ligadas aos negócios, como por exemplo os McCutchins, na Virgínia durante o fim-de-semana.

Porque não vais no avião até Nova Iorque e passas assim o dia? Podes fazer compras lá. Ias gostar. Ela abanou a cabeça, a pensar na sugestão.

Podia ser divertido. Há uma exposição no Whitney que eu também gostava de ver. Não te importas mesmo se eu me servir do avião? Era uma vida fantástica e ela nunca se esquecia disso. O marido proporcionava-lhe luxos e oportunidades com que nunca sequer sonhara quando vivia em Knoxville. Ocorreu-lhe o que lhe dissera na noite anterior, que ela não teria de todo feito carreira se não fosse ele. Era doloroso ouvi-lo, mas não podia negar o facto. Tudo o que de bom lhe acontecera devia-o, sem dúvida, a Jack.

Este telefonou ao piloto antes de sair, dizendo-lhe que esperasse Madeleine cerca das dez horas e obtivesse autorização para um voo até La Guardia com regresso a Washington à noite.

Diverte-te desejou-lhe com um sorriso ao sair, e ela agradeceu-lhe. Uma vez mais tomou consciência de que havia pequenos sacrifícios que fazia por Jack, mas em contrapartida o marido dava-lhe tanto! Até aborrecer-se com ele era difícil de justificar.

Chegou ao aeroporto às dez e quinze, com o cabelo preso atrás, vestindo um fato branco de calça e casaco. O piloto esperava-a, e meia hora depois levantaram voo e rumaram a Nova Iorque. Aterraram em La Guardiã às onze e meia, e ao meio-dia estava na cidade. Foi até ao Goodman and Saks, de oergdorf, e depois subiu a Madison Avenue, parando nas suas lojas preferidas. Saltou o almoço e chegou ao Museu Whitney às três e meia. Uma vida dourada, que ela adorava. Jack também a levara a Los Angeles, Nova Orleães, São Francisco, Miami, e de vez em quando a passar o fim-de-semana em Las Vegas. Sabia que era estragada com mimos, mas estava-lhe grata por isso. Nunca perdia de vista os muitos  benefícios da sua vida com Jack, ou a carreira que ele lhe proporcionara. E sabia também que era verdade o que ele dissera, que tudo acontecia por ela ser Mrs. Jack Hunter. Concordava em absoluto: sem Jack não seria nada. Acreditar nisso dava-lhe uma espécie estranha de humildade, que outros achariam ingénua e atraente. Um pouco insegura, não tinha a mínima sensação da sua própria importância, só da dele. Jack até a convencera de que os prémios que ganhara haviam sido uma dádiva sua.

Estava de regresso a La Guardiã às cinco; tiveram autorização de partida às seis, e entrou em casa na R Street às sete e meia. Fora um dia perfeito, divertira-se. Comprara calças, fatos de banho, e um belo chapéu novo, e estava bem-disposta quando entrou em casa com os seus trofeus e viu Jack sentado no sofá com um copo de vinho, a assistir à emissão das sete e meia. Mais uma quantidade de notícias sobre o Iraque e Jack parecia interessado no que ouvia.

Olá, querido saudou-o ela com ar natural; a animosidade da semana anterior parecia haver-se dissipado durante a noite, e ele estava de melhor humor. Alegrava-a ver Jack, e este voltou-se para ela com um sorriso no primeiro intervalo do noticiário

Como correu o teu dia, Mad. Serviu-se de outro copo de vinho.

Divertido. Fiz imensas compras e fui ao Whitney. E o teu? Era emocionante para ele ser o braço direito do presidente, Maddy sabia-o.

Formidável. Acho que pus uma data de coisas em ordem. Mostrava-se contente, como se se sentisse muito importante, e era-o. Ninguém que o conhecesse ignorava isso, e Maddy muito menos.

Qualquer coisa que possas contar-me ou é tudo secreto?

Muitíssimo. A mulher devia sabê-lo pelo que eles lhe davam para transmitir no noticiário. O que nunca saberia, nem ela nem ninguém, era a realidade, ou a versão original não filtrada. O que é o jantar?

Posso arranjar uma omoleta, se quiseres respondeu ela, pousando os embrulhos. Continuava impecável e bonita após o seu longo dia de compras. Ou posso encomendar qualquer coisa.

Porque não saímos? Estive todo o dia fechado, com uma quantidade de tipos. Sabia-me bem ver pessoas autênticas... Pegou no telefone e fez uma reserva para as nove horas no Citronelle, de momento o restaurante mais em voga em Washington. Veste qualquer coisa bonita.

Sim, meu senhor. Sorriu-lhe e desapareceu escada acima direita ao quarto, com todas as coisas que comprara em Nova Iorque; voltou passada uma hora, banhada, penteada, perfumada, com um vestido de cocktail preto, simples, e sandálias de salto alto, os brincos de diamantes e um colar de pérolas. Jack comprava-lhe coisas bonitas de vez em quando e todas lhe ficavam bem. Os brincos de diamantes e o anel de noivado de oito quilates eram os seus galardões. Nada mal para uma garota vinda de um parque de atrelados de Chattanooga, disse-o muitas vezes ao marido, que lhe chamava “meu lixinho branco” quando queria realmente espicaçá-la. Maddy não gostava, mas era a verdade. Não podia negá-lo, apesar de ter ido tão longe, subido tanto. Era óbvio que ele achava engraçado chamar-lhe aquilo, mas ao ouvir tais palavras Maddy estremecia sempre, dada a imagem evocada.

Ficas muito bonita lavada brincou ele, à laia de cumprimento, e ela sorriu-lhe. Adorava sair com ele, ser dele, e deixar que todo o mundo visse isso. A emoção de ser casada com Jack nunca a ofuscara, nem agora que era uma estrela por mérito próprio. Naquele momento, havia mais pessoas que conheciam Maddy do que Jack ou o número equiparava-se. Ele era o magnata atrás do cenário, o homem com quem o presidente se aconselhava para assuntos dos média, mas ela era a mulher que outras mulheres e raparigas queriam ser, e o rosto com que muitos homens sonhavam. Uma presença nas suas salas de estar, a voz em que confiavam, a mulher que lhes dizia a verdade sobre coisas penosas o melhor que podia, como fizera relativamente a Janet McCutchins e inúmeras outras mulheres como ela. Maddy era íntegra e a sua integridade transparecia. Além de que vinha numa embalagem tremendamente atractiva. Como Greg dizia repetidamente a seu respeito, era “deslumbrante”. E estava-o quando saíram para o restaurante onde iam jantar.

Foi o próprio Jack quem guiou, o que era raro fazer, e pelo caminho conversaram acerca de Nova Iorque. Era óbvio que sobre as suas reuniões não podia dizer nada. Chegados ao Citronelle, foram conduzidos pelo chefe a uma mesa bastante em evidência. Viraram-se cabeças e houve comentários sobre quem eram e sobre a beleza dela. As mulheres também olhavam para Jack, era um bonito homem, com um sorriso sexy, olhos perscrutadores e uma presença marcante. Tudo no casal irradiava sucesso e poder, e em Washington isso era importante. Dúzias de pessoas pararam à sua mesa para conversar, na maioria políticos, e um dos conselheiros do presidente E a intervalos de minutos alguém se aproximava, hesitante, e pedia a Maddy um autógrafo, que ela concedia com um ssorriso caloroso e trocando meia dúzia de palavras

Não estás farta disto, Mad? interrogou-a Jack enquanto lhe servia o vinho. O criado deixara-o a arrefecer num frappé junto da mesa. Era um Chateau Cheval Blanc de

1959, Jack era perito em bons vinhos e aquele era óptimo

Na verdade, não Acho amoroso saberem quem eu sou e ligarem-me suficiente importância para vir ter comigo. Era sempre gentil nessas ocasiões e as pessoas afastavam-se dela com a sensação de ter feito uma nova amiga e apreciando-a ainda mais em pessoa do que no ecrã da televisão. Aproximar-se de Jack intimidava um pouco mais, era muito menos amistoso

Quase à meia-noite saíram do restaurante e no domingo voaram para a Virgínia. Jack detestava perder um minuto que pudesse passar lá. Andou um bocado a cavalo, almoçaram fora. O dia estava quente, e ele comentou que o Verão ia ser óptimo

Vamos para algum sítio? perguntou Maddy no regresso. Sabia que ele detestava fazer planos, gostava de decidir no último minuto e limitar-se a dizer-lho então Arranjava-lhe um substituto para os noticiários e arrastava-a a toda a velocidade. Mas ela preferia ser avisada com um pouquinho de antecedência. Às vezes, o marido só a informava na véspera ou na própria manhã E Maddy não podia nunca dizer-lhe que precisava de mais tempo. Não tinham filhos e ele era o patrão, por isso, se resolvia que se iam embora juntos, não havia maneira de lhe dizer que era impossível. Estava sempre livre para o acompanhar.

Ainda não decidi nada para o Verão respondeu vagamente. Nunca lhe perguntava onde quereria ir, mas arranjava sempre lugares que ela acabava por adorar. Com Jack, a vida era cheia de surpresas. E quem era ela para se queixar? Sem ele, nunca teria conhecido tais lugares. Acho que vamos à Europa. Maddy compreendeu que seria toda a informação que obteria, e talvez toda aquela de que precisava.

Informa-me quando forem horas de fazer as malas brincou, como se não tivesse ocupação alguma e pudesse largar tudo de um momento para o outro. Muitas vezes, era exactamente o que Jack esperava dela.

Informarei acedeu o marido, tirando em seguida uns papéis da pasta, sinal de que de momento não tinha nada a acrescentar.

No resto do voo para casa, Maddy leu um livro que a primeira-dama lhe recomendara, uma obra sobre crimes de violência contra mulheres, cheio de estatísticas deprimentes mas interessantes.

O que é isso? perguntou Jack, apontando para o livro, ao aterrarem.

Deu-mo a Phyllis. É sobre crimes de violência contra mulheres.

De que género? Cancelar-lhes os cartões de crédito? Sorria; ao ouvi-lo, sentiu-se decepcionada. Detestava quando o marido depreciava temas que para ela eram relevantes. Não sofras de mais com essa comissão, Mad. É óptima para a tua imagem, foi por isso que a sugeri, mas não dês cabo da cabeça por causa dela. Não precisas de te tornar a campeã das mulheres maltratadas.

Gosto do que estão a fazer e do modo como querem actuar. É uma coisa com que realmente me preocupo, e tu sabes que sim. Falava-lhe calmamente mas com emoção, enquanto o avião deslizava já pela pista.

O que eu sei... é como tu és. Capaz de te deixares empolgar pelas coisas. Trata-se da tua imagem, Mad, não de ser a Joana d’Arc. Mantém a tua perspectiva. Muito do que se diz sobre mulheres violentadas não passa de palavreado sem sentido.

Como, por exemplo? Percorreu-lhe a espinha um arrepio gelado. O que queria ele dizer efectivamente?

Toda essa conversa sobre agressão e assédio sexual não passa disso, e provavelmente mais de metade das mulheres espancadas, ou alegadamente assassinadas pelos maridos, mereceram-no. Denotava a maior convicção, e Maddy olhou-o fixamente

Estás a falar a sério. Não posso acreditar. E eu? Achas que eu mereci o que o Bobby Joe me fez. Achas mesmo?

Ele era um zé-ninguém que não prestava para nada, e um bêbedo, e só Deus sabe o que poderás ter dito para o provocar. Imensa gente se zanga, Mad, alguns trocam uns socos entre si, alguns saem magoados, mas isso não justifica uma cruzada e não é uma emergência nacional. Acredita em mim. Se lhe perguntares em particular, tenho a certeza de que a Phyllis se meteu nisto pelas mesmas razões por que eu pretendo que tu o faças. Parece bem. Maddy sentiu-se enojada ao escutá-lo

Não posso acreditar no que estou a ouvir. A mãe dela toda a vida foi maltratada pelo pai, e a Phyllis cresceu nesse ambiente. Eu também E muita gente, Jack. Nalguns casos, bater não basta, têm que as matar só para provar como são fortes, e como as mulheres valem pouco. Isto soa-te ao teu banal dia-a-dia? Quando foi a última vez que deitaste uma mulher pela escada abaixo a pontapé, ou lhe atiraste com um ferro quente, ou com lixívia para os olhos, ou a queimaste com um cigarro? Fazes alguma ideia de como actua essa gente?

Estás a começar a exaltar-te, Mad. Essas são as excepções, não a regra. Claro, há por aí alguns loucos, mas também matam homens. Ninguém disse que o mundo não está cheio de malucos

A diferença é que algumas dessas mulheres vivem com os seus agressores, ou mesmo eventuais assassinos, durante dez ou vinte ou cinquenta anos e deixam-nos continuar a brutalizá-las, possivelmente a matá-las

Então, são mulheres doentias, não é? Podem pôr um ponto final indo-se embora, mas não vão. Que diabo, talvez até gostem. Maddy jamais se sentira tão frustrada na sua vida como ao escutá-lo, mas ele não era apenas a voz da ignorância, era a voz da maioria das pessoas. Conseguiria fazê-lo entender? Poucas esperanças tinha.

Estão demasiado assustadas para fugir, na maior parte das vezes. A maioria dos homens que ameaça matar as mulheres geralmente fá-lo. As estatísticas são devastadoras e as mulheres sabem-no instintivamente. Estão assustadas de mais para se irem embora, para fugir. Têm filhos, não têm para onde ir, muitas delas não estão empregadas, algumas, ou a maioria, não têm dinheiro. A vida delas é um beco sem saída, e há um tipo que lhes diz que, se dão um passo, as mata ou mata os filhos, ou ambos. O que fazias tu num caso destes? Chamavas o teu advogado?

Não, punha-me a milhas, como tu fizeste. Maddy tentou então outra abordagem.

Esse género de violência é um hábito. É familiar. Torna-se normal para nós. Cresce-se com ele, vê-se continuadamente, dizem-nos que somos reles e más e que o merecemos, e nós acreditamos nisso. É como um hipnotizante: paralisa-nos. Estamos isoladas, sós e assustadas e não temos para onde ir, talvez até queiramos morrer, porque a morte nos parece ser o único meio de evasão. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Porque achas que deixei o Bobby Joe espancar-me? Porque gostava imenso? Pensava que não tinha outra opção, e acreditava que merecia. Os meus pais diziam-me que eu era má, o Bobby Joe dizia-me que a culpa era toda minha, eu não conhecia mais ninguém até te encontrar, Jack. Ele nunca lhe levantara a mão e, no seu espírito, não lhe bater era o suficiente para ser um bom marido.

Lembra-te disso da próxima vez que me fizeres passar um mau bocado, Mad. Nunca levantei a mão para ti, e nunca o faria. És uma mulher de sorte, Mistress Hunter. Sorriu-lhe e levantou-se. Chegados ao terminal, desinteressara-se do tema que tão importante era para Maddy.

Talvez seja essa a razão por que acho que tenho deveres para com as outras, as que não têm tanta sorte, que preciso de ajudá-las... Gostaria de saber porque lhe haviam soado tão mal as palavras do marido. Mas era óbvia a sua indiferença pelo assunto, e nenhum deles voltou a abordá-lo.

Saíram do avião e regressaram à sua casa em Georgetown.

Passaram uma noite calma; ela fez massa para o jantar, ambos leram e fizeram amor quando se deitaram mas, sem saber bem porquê, Maddy sentia que o seu coração não estava envolvido. Achava-se distante, estranha... e deprimida; depois, estendida na cama, pensou nas coisas que ele dissera acerca das mulheres agredidas. Tudo o que sabia era que qualquer coisa que fora dita, ou o modo como lha dissera, a magoara. E quando por fim adormeceu, sonhou com Bobby Joe e acordou a meio da noite, aos gritos. Quase podia vê-lo à sua frente, com um olhar cheio de ódio, socando-a repetidamente; e no sonho Jack, de pé, abanava a cabeça e observava-a... E, ao afastar-se, Maddy sabia que a culpa de tudo era dela, e Bobby Joe seguiu-a e voltou a bater-lhe.

 

O dia seguinte foi de grande azáfama na estação televisiva. Havia resmas de coisas para ler sobre o combate no Iraque e os acidentes ocorridos nos Estados Unidos durante o fim-de-semana. Mais cinco fuzileiros tinham sido mortos, um avião fora abatido causando a morte a dois pilotos. Pouco importava a intervenção de Jack para ajudar o presidente a mostrar o lado positivo, não havia maneira de alterar os factos, ou a realidade deprimente de que pessoas de ambos os lados iam morrer naquela guerra.

Nessa noite, Maddy trabalhou até às oito, horas a que terminou a sua emissão. Iam a um jantar de cerimónia em casa do embaixador do Brasil e Maddy trouxera consigo um vestido de noite para poder mudar-se no gabinete. Precisamente quando estava a vestir-se, o intercomunicador tocou; era o marido.

- Estou pronta daqui a cinco minutos.

- Tens de ir sem mim. Acabam de me telefonar, há uma reunião. - Mas desta vez ela soube porquê. Tinha a certeza de que o presidente estava preocupado com a reacção pública às mortes ocorridas no Iraque desde o início dos combates.

- A tua reunião é na Casa Branca, presumo eu.

- É.

- Vens tarde? - Estava habituada a ir a recepções sozinha, mas preferia que Jack a acompanhasse.

- Duvido. Temos umas coisas a tratar. Encontramo-nos em casa. Se acabar cedo apareço no jantar, mas já telefonei a informá-los de que não vou. Desculpa, Maddy.

- Não faz mal. Não está a correr nada bem no Iraque, pois não?

- Vai correr. É um facto com o qual temos de viver. E se desempenhasse bem o seu papel, ia convencer disso o povo americano, mas Maddy não caía no embuste, nem Greg caíra quando tinham falado. Não fizeram, porém, nenhum editorial a propósito. As suas opiniões não tinham cabimento nas emissões. - Até logo.

Acabou de se arranjar: um vestido rosa-pálido que combinava lindamente com a sua maquilhagem suave e o seu cabelo escuro, brincos de topázio rosa-pálido muito brilhantes, uma echarpe de cetim cor-de-rosa pelos ombros. Saiu da estação; Jack deixara-lhe o carro e fora para a Casa Branca num automóvel de aluguer com motorista

A embaixada ficava na Massachusetts Avenue e dava a impressão de se encontrar lá uma centena de pessoas. Falavam espanhol, português e francês, e havia, como música de fundo, muito agradável, o samba. O embaixador brasileiro e a esposa recebiam com muita elegância e bom gosto, e toda a gente em Washington gostava deles. Ao olhar em redor, foi com prazer que Maddy avistou Bill Alexander.

Olá, Maddy cumprimentou-a ele com um sorriso caloroso, aproximando-se. Como está?

Bem, obrigado Como foi o seu fim-de-semana? Podia considerá-lo um amigo, depois de tudo o que sabiam um do outro

Rotineiro. Fui a Vermont ver os meus miúdos. O meu filho tem lá casa. Foi interessante a reunião do outro dia, não foi? É incrível verificar quantos de nós somos atingidos pela violência doméstica, ou por crimes violentos, de uma forma ou de outra O espantoso é que todos nós pensamos que as restantes pessoas têm vidas normalíssimas, o que de facto não corresponde à verdade, não é? Tinha olhos azuis, profundos, quase da cor dos dela, mas mais escuros, a cabeça toda branca muito bem penteada e estava elegantíssimo no seu smoking. Com cerca de um metro e noventa, a seu lado Maddy parecia uma boneca.

Aprendi isso há muito tempo. Nem a primeira-dama escapara à violência na infância. Por ser muito nova, costumava sentir-me culpada, e às vezes ainda sinto, mas compreendo finalmente que também acontece a outras pessoas. O facto é que achamos sempre que a culpa é nossa

Penso que o truque é perceber que não é assim Pelo menos, não no seu caso. Quando regressei a Washington, de início, tinha a sensação de que todos os que me olhavam diziam ou pensavam que eu matara a Margaret. Surpresa com as suas palavras, Maddy ergueu para ele o olhar e perguntou com doçura:

Porque haveria de sentir isso?

Porque acho que tinham razão. Apercebo-me agora muitíssimo bem de que o que fiz foi uma idiotice.

O desfecho poderia ter sido o mesmo de qualquer maneira e possivelmente teria sido. Os terroristas não fazem jogo franco, Bill. Você sabe que não.

É difícil de admitir quando o preço a pagar é alguém que amamos. Não sei se alguma vez o compreenderei, ou o aceitarei. A sua franqueza e sinceridade aumentavam o apreço de Maddy. E tudo nele sugeria tratar-se de uma pessoa gentil.

Não creio que a violência possa ser compreendida. Aquilo com que lidei foi muito mais simples, e também não me parece que o tenha entendido. Porque quereria alguém fazer semelhante coisa a uma pessoa? E porque permiti eu que ele fizesse tal coisa?

Falta de opções, de escolha, de saída, ninguém para a ajudar, nada para onde se virar. Estou certo? perguntou, e ela concordou com um aceno de cabeça. Bill parecia ter apreendido perfeitamente a situação. Muito melhor do que o seu marido e muitas outras pessoas.

Está certíssimo. Sorriu-lhe. O que pensa da questão do Iraque? perguntou, mudando de assunto.

É vergonhoso termos sido obrigados a voltar para lá. Não é uma situação de vitória e acho que o povo vai ter perguntas muito duras a fazer. Especialmente se começarmos a perder rapazes ao ritmo a que perdemos neste fim-de-semana. Maddy concordava em absoluto com ele, a despeito da certeza de Jack de que poderia dar a volta de modo a que o povo aceitasse e continuasse a apoiar a acção do presidente. Jack era bastante mais optimista do que ela nesse ponto. Odeio ver-nos agir assim continuou Bill. Acho que as pessoas temem que os ganhos não justifiquem as perdas. Quereria dizer-lhe que ele podia agradecer a Jack, mas não o fez. Agradava-lhe que Bill concordasse com ela, e ficaram um bocado a conversar; ele perguntou-lhe quais os seus planos para o Verão.

Ainda não sei. Tenho um trabalho para acabar. Mas o meu marido detesta fazer projectos. Limita-se a dizer-me quando devo fazer a mala, geralmente no dia da partida.

Bem, isso deve dar interesse e cor à sua vida. Bill sorriu, a imaginar como lidaria ela com esse facto. A maioria das pessoas precisava de saber com alguma antecedência. E como reagiriam os filhos? Tem filhos?

Maddy hesitou uma fracção de segundo antes de responder

Não, de facto não tenho

Não ficou surpreendido. Ela era jovem, a sua carreira exigente, tinha muitíssimo tempo pela frente para ter filhos E seria difícil numa conversa de ocasião explicar-lhe que já não podia, por ter laqueado as trompas, uma condição de Jack para se casarem

Na sua idade, tem imenso tempo para pensar em filhos E sabendo o que sabia, interrogava-se se não seria o seu trauma de infância que a levava a adiar a decisão. No caso dela, decerto o comprenderia

O que faz neste Verão, Bil? Maddy decidiu mudar de assunto. Normalmente, íamos para Martha’s Vineyard Mas acho que agora seria difícil para mim. Emprestei a casa à minha filha, durante o Verão. Ela tem três filhos, que adoram lá estar, e se me apetecer aparecer posso sempre ficar no quarto de hóspedes. Parecia um homem encantador e era óbvio que se dava bem com os filhos

Continuaram a conversar, um casal francês muito interessante juntou-se-lhes. Eram diplomatas e bastante jovens. Um momento depois, o embaixador da Argentina parou para cumprimentar Bill com quem conversou em espanhol, língua que Bill falava com uma fluência absoluta. Uns minutos mais tarde, Maddy ficou surpreendida ao descobrir que era ele o seu par no jantar e desculpou-se por ter já monopolizado tanto do seu tempo

Não sabia que ficaríamos juntos

Gostaria de lhe dizer que maquinei tudo disse ele a rir-se, mas não tenho assim tanta influência. Acho que apenas tive sorte

Também eu retorquiu ela com à-vontade, enquanto Bill lhe oferecia o braço e entravam na sala de jantar

Foi uma noite agradabilíssima. Junto de Maddy, no lado oposto ao de Bill, ficou o mais antigo senador democrata do Nebrasca, com quem ela nunca se encontrara e que sempre admirara. E Bill manteve-a entretida com histórias dos tempos em que ensinara em Princeton e em Harvard. Agradava-lhe, obviamente, a sua curta carreira de diplomata, fora interessante e compensadora, até ao seu fim trágico.

E o que pensa fazer agora? perguntou-lhe Maddy à sobremesa. Sabia que estava a escrever um livro, e ele disse-lhe que ia quase no fim.

Para ser sincero consigo, Maddy, não sei bem. Pensei em voltar a ensinar, mas já o fiz. Foi interessante escrever o livro. A seguir, não tenho bem a certeza do rumo que vou tomar. Recebi várias propostas de instituições académicas, uma delas evidentemente de Harvard. Na verdade, estou tentado a ir algum tempo para o Oeste, talvez dar aulas em Stanford. Ou passar um ano na Europa. A Margaret e eu sempre adorámos Florença. Ou eventualmente Viena. Também me foi oferecida a oportunidade de ensinar um ano em Oxford, política externa americana, mas não tenho a certeza de me apetecer e os Invernos são um pouco rigorosos. A Colômbia estragou-me com mimos, pelo menos no que respeita ao clima.

Tem muito por onde escolher comentou ela com admiração, percebendo porque todos o queriam. Era inteligente, caloroso e aberto a ideias novas e a conceitos diferentes. E Madrid, uma vez que fala um espanhol tão perfeito?

É uma opção que já me ocorreu. Talvez aprendesse a tourear. Ambos riram perante a imagem inverosímil, e Maddy sentiu-se pesarosa quando o jantar terminou. Bill fora um parceiro encantador e findo o serão ofereceu-se para a acompanhar a casa, mas ela disse-lhe que tinha um carro e um motorista à sua espera.

Vê-la-ei na próxima reunião da comissão. É um grupo intrigante, e eclético, não é? Eu não creio ter muito para dar. Não sou grande conhecedor do assunto, pelo menos na área dos maus tratos, ou da violência doméstica. Temo que o meu combate à violência seja um pouco desusado, mas lisonjeia-me que a Phyllis me tenha chamado.

Ela sabe o que está a fazer. Acho que formaremos uma boa equipa, uma vez decidido o rumo a tomar. Espero que consigamos alguma atenção por parte dos média. As pessoas precisam de ter os olhos abertos acerca das consequências das ofensas corporais contra as mulheres.

Você será uma excelente porta-voz para nós. Maddy voltou a sorrir-lhe, trocaram mais meia dúzia de palavras e ela foi por fim para casa, onde encontrou Jack a ler na cama, aparentemente descontraído e calmo.

Perdeste uma boa recepção disse, tirando os brincos e os sapatos enquanto parava para o beijar.

À hora a que acabámos, imaginei que o vosso jantar já estivesse no fim. Alguém interessante por lá?

Montes de gente. Estive com o Bill Alexander. Uma pessoa encantadora.

Sempre pensei que fosse um chato. Jack desinteressou-se do homem e fechou o livro com um olhar apreciativo à mulher que, mesmo sem brincos nem sapatos, tinha um aspecto formidável. Estás um espanto, Mad. Falava com espontaneidade e Maddy inclinou-se e beijou-o de novo.

Obrigada.

Anda para a cama. Havia nos seus olhos um brilho familiar que ela reconheceu de imediato e, quando uns minutos depois se lhe juntou, ele estava mais do que desejoso de lho confirmar. Havia alguns benefícios em não ter filhos. Nunca tinham de prestar atenção a mais ninguém, apenas concentrar-se um no outro, quando não estavam a trabalhar.

E depois de terem feito amor, Maddy aconchegou-se-lhe nos braços, sentindo-se bem e protegida.

Como correram as coisas na Casa Branca? perguntou, sonolenta, com um bocejo.

Muito bem. Acho que tomámos algumas decisões sensatas. Ou melhor, tomou-as o presidente. Eu limito-me a dizer-lhe o que penso, e ele põe isso na balança em conjunto com o que dizem os outros, e extrai do todo o que pretende fazer. Mas é um tipo esperto, e faz a coisa certa a maior parte das vezes. É um lugar difícil, o dele.

O pior emprego do mundo, na minha opinião. Não o aceitava nem por todo o dinheiro do planeta.

Serias formidável a ocupá-lo brincou ele. Todos na Casa Branca andariam bem vestidos, seriam bonitos, a casa Branca um encanto, todos corteses e compreensivos, ponderando bem o que diziam, e os membros do teu gabinete teriam todos um grande coração. Um mundo perfeito, Mad. Embora parecesse um cumprimento, ela considerou-o uma humilhação e não respondeu. Quando se afastou para dormir, esqueceu tudo, e a próxima coisa de que teve consciência foi de que era manhã e precisavam ambos de ir cedo para o trabalho

Chegaram à estação pelas oito horas, Maddy e Greg sentaram-se a trabalhar juntos numa peça especial que ele estava a preparar sobre bailarinos americanos. Ela prometera ajudá-lo e encontrava-se ainda no seu gabinete ao meio-dia quando se aperceberam de vozes e tumulto no corredor

O que há agora? interrogou-se Greg e levantou o olhar procurando ver o que se passava

Gaita Talvez as coisas estejam a aquecer no Iraque. O Jack esteve com o presidente a noite passada. Podem ter estado a tramar qualquer coisa. Ambos se dirigiram para o corredor a fim de ouvir o que diziam as pessoas. Maddy foi a primeira a interpelar um dos produtores associados. Alguma coisa importante?

Um avião para Paris explodiu, desfez-se em pedaços, vinte minutos depois de descolar do Kennedy. Dizem que a explosão se ouviu em Long Island. Não há sobreviventes. Era a versão abreviada do que sucedera, mas ao consultarem o painel de notícias Greg e Maddy ficaram a saber melhor o que se passara. Ninguém reivindicara o atentado mas Maddy tinha a certeza de que havia mais qualquer coisa por trás daquilo, embora não se conhecessem ainda pormenores

Recebemos um telefonema anónimo de alguém que parecia saber do que falava informou-os o produtor. Dizem que a companhia de aviação teve conhecimento antes de iniciar o voo de que havia uma ameaça. Devem mesmo tê-lo sabido já ontem ao meio-dia, e não o suspenderam. Greg e Maddy entreolharam-se. Era uma loucura. Ninguém Poderia ter permitido que tal coisa acontecesse. Tratava-se de uma companhia independente americana

Qual é a vossa fonte de informações perguntou Greg, de sobrolho franzido

Não sabemos. Mas eles estavam elucidados. Deram-nos uma quantidade de pormenores facilmente detectáveis. Tudo o que sabemos é que o FAA recebeu um aviso qualquer ontem, e parece que não fizeram nada

Quem está a investigar o caso para si? perguntou Greg com interesse

Você, se quiser Alguém ficou com uma lista de pessoas a quem telefonar. O tipo que ligou deu-nos alguns nomes e endereços. Greg olhou Maddy, erguendo uma sobrancelha

Conta também comigo disse ela e, ao encaminhharem-se para o assistente de produção que supostamente tinha a lista, comentou. Não acredito nisto. Eles não embarcam passageiros em aviões em que haja ameaças de bombas

Talvez o façam e nós o ignoremos resmungou Greg

Levaram a lista, e duas horas mais tarde sentaram-se frente a frente, à secretária de Maddy, a olhar um para o outro com incredulidade. De todos aqueles a quem haviam telefonado, a história era coincidente. Houvera um aviso, mas não um aviso específico. A FAA fora informada de que, dentro dos próximos três dias, haveria uma bomba num avião de longo curso com partida do Kennedy. Era tudo o que lhe fora dito, e tudo o que sabiam, e tinha sido tomada a decisão, ao mais alto nível, de reforçar a segurança mas não de cancelar os voos de longo curso, a menos que se encontrassem provas da existência de uma bomba ou se obtivessem mais informações. Não houvera, porém, mais nenhum aviso

É tudo muito vago admitiu Maddy, defendendo-os. Talvez tenham pensado que se tratava de uma falsa ameaça. Mas também poderiam ter imaginado que a ameaça provinha de um de dois grupos terroristas, ambos tendo já anteriormente cometido atrocidades semelhantes, tendo, por isso, razões para a levar a sério

Há mais do que o que salta à vista afirmou Greg, desconfiado. Cheira-me a esturro. Quem poderemos contactar para obter uma boa fonte dentro da FAA? Tinham esgotado todos os recursos ao seu alcance, de repente, Maddy teve uma ideia e levantou-se de um salto da cadeira. O que te ocorreu?

Talvez nada. Demoro-me cinco minutos. Não o disse a Greg, mas subiu no elevador particular do marido. Este estivera na Casa Branca na noite anterior e com uma ameaça de tal magnitude decerto ouvira alguma coisa. Queria perguntar-lhe.

Jack encontrava-se numa reunião quando ela chegou. Interrompeu-a passado um minuto, apreensivo.

Estás bem?

Óptima. Estou a trabalhar no caso do avião que caiu. Temos indicações de que houve um aviso sobre a bomba, mas mesmo assim o voo manteve-se. Julgo que ninguém sabia em que aparelho estaria a bomba A explicação foi rápida, mas ele não se mostrou demasiado preocupado ou surpreendido

São coisas que acontecem, Mad. Não havia muito a fazer. O aviso era muito vago e podia ser infundado

Podemos dizer a verdade agora, pelo menos. Ouviste alguma coisa a noite passada. Olhava-o intencionalmente. Algo nos seus olhos lhe dizia que o caso não lhe era estranho.

Não exactamente foi a resposta vaga.

Isso não é uma resposta a sério, Jack, e o assunto é importante. Se eles estavam avisados, deviam ter suspendido os voos. Quem tomou a decisão?

Eu não te disse que estou metido no caso. Mas se estavam avisados de uma forma vaga, o que achas que deviam ter feito. Suspender todos os voos de longo curso com partida do Kennedy durante três dias? Santo Deus, também podiam ter parado toda a aviação dos Estados Unidos. Não lhes era possível fazer isso

Como soubeste que se tratava de todos os voos de longo curso, e que a ameaça cobria um período de três dias. Estavas a par, não estavas? E de súbito veio-lhe à ideia que talvez fosse por isso que ele fora chamado à pressa à Casa Branca, para os aconselhar sobre a forma de informar o povo americano, se fosse caso disso, ou talvez mesmo sobre o que fazer ou não fazer E como ilibá-los, se a certa altura um avião se despenhasse. No entanto, apesar de a decisão não ter sido dele, e não o era decerto, podia ter tido uma palavra a dizer quanto à decisão final de alertar ou não o público Maddy, não podem suspender-se todas as descolagens de longo curso do Kennedy durante três dias. Sabes o que isso significa. A ser assim, também teriam de ser suspensas as aterragens, não fosse a explosão atingi-los. O país ficaria em pânico, para já não mencionar a nossa economia

Não acredito no que oiço exclamou furiosa. Tu e sabe Deus quem mais decidiram ir em frente normalmente com o negócio e não avisar ninguém, porque a nossa economia seria afectada. E não interromperam escalas de voo. Diz-me que as coisas não se passaram como eu julgo. Diz-me que não perderam a vida quatrocentas e doze pessoas para poupar uma ruptura na nossa indústria aeronáutica É isso o que estás a dizer-me. Que se tratou de uma decisão de negócios? Quem raio decidiu isso.

O nosso presidente, pateta. O que achas. Que eu tomo decisões dessas. Era uma coisa da maior importância, mas a ameaça não era suficientemente específica. Eles não podiam fazer nada, excepto passar cada avião a pente fino antes da partida E se me culpas, Mad, mato-te.

Estou-me nas tintas para o que fizeres. Trata-se de pessoas, de vidas, de bebés e crianças, de gente inocente que entrou num avião com uma bomba lá dentro, porque ninguém teve tomates para interditar o Kennedy por três dias. Cos diabos, Jack, deviam tê-lo feito.

Não sabes o que dizes. Não se encerra um aeroporto internacional de primeira categoria durante três dias por causa de uma ameaça de bomba. Não se pode fazer isso e continuar depois com o negócio

Eles encerram-nos por causa dos nevões e a economia não se afunda. Porque não o fazem devido a uma ameaça de bomba.

Porque teriam parecido parvos e toda a gente teria entrado em pânico

Ah, tudo bem. Presumo que centenas de vidas é um preço baixo a pagar para evitar o pânico. Meu Deus, não acredito no que estou a ouvir. Não posso crer que tu sabias e não mexeste um dedo.

O que esperavas que eu fizesse? Que fosse para o JFK lançar folhetos?

Não, burro, tu és dono de uma estação noticiosa. Podias ter insinuado o que sabias, anonimamente se quisesses, e tê-los forçado a encerrar o aeroporto.

E a porta da Casa Branca ter-me-ia sido fechada na cara para sempre. Pensas que eles não adivinhariam a origem da fuga? Não sejas ridícula e nunca mais... Agarrou-lhe o braço e deu-lhe um violento safanão... Nunca mais me chames burro. Eu sabia o que estava a fazer.

Tu e os tipos com quem estiveste a noite passada mataram quatrocentas e doze pessoas ao meio-dia de hoje. Quase lhe cuspia as palavras, e tremia-lhe a voz. Não conseguia acreditar que o marido participara naquilo. Porque é que vocês não compram armas e começam a disparar a torto e a direito? É mais prático e bastante mais honesto. Sabes o que isto significa? Significa que os negócios valem mais do que as pessoas. Significa que, cada vez que uma mulher apanha um avião com os seus filhos, não sabe se alguém foi avisado de que há uma bomba a bordo, mas, para benefício dos grandes negócios, ela e os filhos não passam de um sacrifício ocasional, por ninguém achar que sejam importantes o suficiente para merecer um “encerramento”.

E não o são, se queres saber. Tu és ingénua. Não percebes nada. Às vezes as pessoas têm de ser sacrificadas a interesses superiores. Ao ouvi-lo, Maddy sentia-se agoniada.

E digo-te uma coisa: se deixas escapar uma palavra a este respeito, vou eu pessoalmente levar-te de volta a Knoxville e largar-te à porta do Bobby Joe. Se deixares escapar nem que seja uma palavra, vais ter de responder perante o presidente dos Estados Unidos e espero que te enfiem atrás das grades Por traição. Foi um caso de segurança, tratado por pessoas que sabiam o que estavam a fazer e o mais independente possível. Não estamos a falar de uma qualquer dona de casa chorona e psicopata, ou de qualquer gordo senador baboso. Se tocas neste vespeiro, vais ter o presidente à perna, e o FBI, e a FAA, e todas as maiores agências do país, e eu vou observar como te queimas. Não entres nesta batalha. Não sabes nada de nada e eles viram-se contra ti tão depressa que ardes em cinco minutos. Esta guerra não irás ganhar nunca.

Maddy sabia que havia uma certa verdade no que Jack dizia; todos mentiriam, seria o maior conluio desde o caso Watergate, e era provável que ninguém acreditasse nela. Era uma pequena voz no meio de outras muito mais audíveis, e que não só abafariam a sua, como a desacreditariam para sempre. Até podiam matá-la. Imaginar isso era assustador, mas pensar em não ligar qualquer importância ao público, ocultando-lhe a verdade, fazia-a sentir-se traidora. O público tinha o direito de saber que as pessoas do Voo 263 haviam sido sacrificadas a interesses económicos. E que para aqueles que tinham tomado a decisão, a sua morte não significava nada.

Ouviste o que eu acabei de te dizer? gritou-lhe Jack com um olhar raivoso. Começava a aterrorizá-la. Seria o primeiro a derrubá-la, antes mesmo que outros o fizessem, se ela pusesse em jogo a sua estação noticiosa.

Ouvi respondeu ela, estarrecida. E detesto-te por isso.

Estou-me nas tintas para o que pensas ou sentes neste caso. Só me interessa o que fizeres, e o melhor é agires correctamente desta vez, ou está tudo acabado para ti. Comigo, e com a televisão. Estás a perceber, Mad? Maddy olhou-o longamente após o que lhe virou as costas e desceu rapidamente as escadas, de retorno ao seu andar. Nem esperou pelo elevador e entrou no gabinete, pálida e trémula.

O que aconteceu? Ele sabia alguma coisa? interrogou-a Greg. Percebera imediatamente onde ela fora e nunca lhe vira um aspecto semelhante àquele com que chegara ao gabinete. Estava de uma palidez mortal e parecia doente; levou um momento a responder.

Não, não sabia foi tudo o que disse, e tomou três aspirinas com meia chávena de café. Como não era de surpreender, dez minutos mais tarde o chefe de produção entrou e olhou ambos com severidade antes de fazer o seu aviso:

Tenho de ver o vosso texto antes de entrarem no ar esta noite. Ambos. Se alterarem minimamente o que foi aprovado, cortamo-los e passamos à publicidade. Percebido?

Percebido aquiesceu Greg calmamente e, tal como Maddy, não teve dúvidas de onde vinha o recado. Greg ignorava o que fora dito lá em cima, mas sabia que não fora nada de agradável. Bastava olhar para a cara de Maddy. Esperou que o produtor saísse e então fitou-a com um olhar pleno de interrogações. Vejo que ele sabia. Não tens de me contar nada se não quiseres. Maddy olhou longa e profundamente para Greg e acenou com a cabeça afirmativamente.

Não posso prová-lo. E não podemos falar nisso. Todos os implicados o negarão.

Acho que o melhor é não tocar em nada, Maddy. É uma batata muito quente, grande de mais para nós, em minha opinião. Se falássemos, podes ter a certeza de que toda a gente envolvida lavaria as mãos. É um caso a ser tratado pelos grandes. Impressionou-o aperceber-se de que Jack Hunter era agora considerado um deles. Chegara-lhe aos ouvidos que Jack se tornara imprescindível ao presidente. Era óbvio que participava nos grandes conciliábulos.

Disse que me punha na rua se eu tocasse no assunto. Mostrava-se menos impressionada do que Greg imaginaria. Não me interessa nada, odeio mentir ao público.

Às vezes tem de ser disse Greg, cauteloso, embora eu também não goste. Mas, desta vez, os grandes senhores penduravam-nos pelos pés.

O Jack disse que eu ia para a cadeia, ou qualquer amabilidade semelhante.

Ele não está a ficar um bocado desaparafusado? Greg sorriu de esguelha, e Maddy riu-se mesmo contra sua vontade; nesse momento, recordou a forma como o marido lhe agarrara o braço e a abanara. Nunca o vira tão enraivecido, nem tão assustado. É que aquilo era uma coisa em grande.

Escreveram o seu texto para a emissão dessa tarde, e o produtor reviu-o minuciosamente. E, meia hora mais tarde, foi-lhes devolvido com alguns cortes. A notícia do desastre aéreo era tão suave quanto possível, e os poderes dos andares superiores, ordenaram que eles ilustrassem o acontecimento com vídeos

Tem cuidado, Mad sussurrou-lhe Greg quando se sentaram no estúdio, à espera de ir para o ar, depois do início da contagem decrescente. E ela limitou-se a um aceno de cabeça afirmativo. Greg sabia até que ponto a colega era uma lutadora, e uma pessoa honesta, bem capaz de se atirar como um camicase para a zona de perigo, expondo a verdade acima de tudo. Todavia, estava certo de que desta vez não o faria

Ela leu a peça sobre a explosão do Voo 263 e quase se lhe embargou a voz, triste e pesarosa ao mencionar as pessoas a bordo e o número de crianças. E o vídeo que passaram acentuou ainda mais a tragédia. Tinham acabado de transmitir as últimas imagens de um vídeo amador que alguém de Long Island obtivera da explosão. Maddy estava prestes a finalizar a emissão quando Greg a viu pousar as mãos na secretária e desviar os olhos do teleponto. Ficou apavorado.

Maddy, não. murmurou. Via no monitor que a sua própria imagem não estava a ser focada, mas ela sim. Olhava a direito para a câmara que tinha em frente, a direito para as caras, corações e lares do povo americano

Correm muitos boatos acerca da explosão de hoje começou, cautelosa, alguns deles muito perturbadores. Greg viu o produtor levantar-se por trás da câmara, com o pânico estampado no rosto Mas não mudaram para a publicidade. Disse-se que a FAA foi avisada com antecedência de que “um qualquer” voo de longo curso com partida do Kennedy poderia transportar uma bomba, “num qualquer dia” desta semana. Mas não há provas que apoiem tal boato. De momento, apenas sabemos que quatrocentas e doze vidas se perderam, e concluímos que, se a FAA tivesse sido prevenida, teria partilhado a informação com o público. Aproximava-se da linha limite, mas não a atravessou, e Greg suspendeu a respiração e observou-a, enquanto ela prosseguia: Todos nós aqui na WBT apresentamos as nossas condolências aos amigos e familiares dos que pereceram no Voo Duzentos e Sessenta e Três. É uma tragédia descomunal. Boa noite. Convosco, Maddy Hunter. Passaram então à publicidade.

Greg estava pálido quando Maddy se sentou, carrancuda, e retirou o microfone.

Gaita, apavoraste-me. Pensei que ias explodir tudo. Estiveste perto, não estiveste? Ela aflorara uma interrogação, mas deixara-a sem resposta. E podia tê-la dado.

Disse o que podia... O que não era muito, ambos o sabiam. E, ao levantar-se, agora fora do alcance da câmara, viu o produtor à entrada da porta a falar com o marido. Jack veio ao seu encontro e parou junto dela.

Aproximaste-te muito do limite, não foi, Maddy? Estávamos prontos a cortar-te a qualquer momento. Não parecia muito contente, mas já não estava encolerizado. Ela não o traíra, e poderia tê-lo feito. Ou pelo menos poderia ter tentado, embora eles não a tivessem deixado adiantar-se muito.

Sei que estavam retorquiu ela friamente, com uns olhos que ao fitá-lo pareciam pedras azuis brilhantes. Algo de terrível acontecera entre eles nessa tarde e Maddy nunca o esqueceria. Estás satisfeito? perguntou num tom tão gelado quanto o seu olhar.

Salvaste a tua pele, não a minha. Falava baixo para que ninguém mais pudesse ouvi-los. O produtor já se fora embora e Greg voltara para o seu gabinete. A visada, aqui, eras tu.

O público foi aldrabado.

Teria perdido a cabeça se todas as descolagens e aterragens do Kennedy tivessem sido canceladas durante três dias.

Bem, estou contente por tal não ter acontecido. Tu não estás? Aposto que as pessoas do Voo Duzentos e Sessenta e Três também ficaram contentes. É muito melhor matar pessoas do que irritá-las.

Não desafies a sorte, Maddy advertiu-a ele, ameaçador, e Maddy viu que o marido não estava a brincar. Sem dizer nada, passou por ele ao dirigir-se para o seu gabinete. Greg ia precisamente a sair quando ela entrou.

Tudo em ordem? sussurrou, sem saber muito bem se Jack estaria por perto; ficara no estúdio a falar com o produtor.

Nem por isso. Não sei como estou. Nauseada, sobretudo.

Eu vendi-me, Greg. Combateu as lágrimas. Odiava-se a si própria.

Não tinhas escolha. Esquece. Era demasiado, não podias meter-te nisso. Como está ele? Referia-se ao marido. Chateado? Não devia estar. Deste-lhe uma prenda e sem a menor dúvida safaste a FAA e, com ela, toda a gente.

Acho que o assustei observou ela, sorrindo por entre lágrimas.

Não te rales com ele. A mim, assustaste-me à brava. Pensei que ia ter de te pôr o meu casaco por cima da cara para te calar, antes que alguém te matasse. Podiam tê-lo feito, bem sabes. Diriam que sofreras um ataque de loucura, que andavas instável há meses, sob cuidados psiquiátricos, esquizofrénica, que tinham tentado tudo o que era possível. Ainda bem que não fizeste nada de realmente estúpido. Maddy ia começar a falar precisamente quando Jack entrou no gabinete.

Pega nas tuas coisas. Vamo-nos embora. Nem se deu ao trabalho de cumprimentar Greg. Estava satisfeito com os índices de audiência de Greg, mas nunca gostara dele e nunca fingira que gostava. Dirigia-se agora a Maddy como se esta fosse uma criada, apenas alguém que recebe ordens sem dizer uma palavra. Não sabia bem como, mas apercebia-se de que a partir desse dia as coisas seriam diferentes entre eles. Cada um se sentia traído pelo outro.

Jack seguiu-a até ao elevador, desceram em silêncio e só no carro ele voltou a falar-lhe.

Estiveste muito perto de pôr fim à tua carreira, hoje. Espero que o saibas.

Tu e os teus amigos mataram quatrocentas e doze pessoas. Mal consigo imaginar o que isso deve custar. Em comparação, a minha carreira não significa muito.

Agrada-me que penses assim. Andas a brincar com o fogo. Foi-te dito que te limitasses a ler o teu texto.

Pensei que a morte de mais de quatrocentas pessoas mereceria um pequeno comentário. Não disse nada a que possas pôr objecções.

Instalou-se de novo o silêncio, que durou até casa. Aí, ele olhou-a com desdém, como que a recordar-lhe a sua insignificância.

Faz as tuas malas, Mad. Partimos amanhã.

Para onde? perguntou ela, desinteressada.

Europa. Como sempre, não dera pormenores e não a consultara.

Não vou. Foi firme na resposta, determinada desta vez a fazer-lhe frente.

Não te perguntei nada. Informei-te. Estás fora da emissão por duas semanas. Quero que te acalmes e te lembres de quais as regras antes de voltares a ir para o ar. A Elizabeth Watts substitui-te. Pode fazê-lo em permanência, se o preferires. Não eram palavras vãs. Elizabeth Watts era a apresentadora cujo lugar Maddy ocupara ao ingressar na estação. Continuava a substituir Maddy durante as férias dela. Fazia parte do seu contrato, embora ainda fosse amargo para si ter sido destituída para dar lugar a Maddy.

Não me ralo com isso, Jack replicou Maddy friamente. Se queres despedir-me, despede. Palavras corajosas, embora estremecesse de terror ao observá-lo. De certa forma, apesar de nunca a ter violentado fisicamente, sempre a assustara. O poder que exsudava por todos os poros não se dirigia só aos outros, mas também a ela.

Se eu te despedir, vais lavar pratos para qualquer sítio. Era melhor pensares nisso antes de abrires a boca. E sim, vais comigo. Vamos para o Sul de França, Paris e Londres. E se não arrumares as tuas coisas, arrumo-as eu. Quero-te fora do país. Não vais emitir comentários, dar entrevistas, ou fazer editoriais de qualquer espécie. Agora, estás oficialmente de férias.

A ideia foi do presidente ou tua?

Minha. Eu dirijo o espectáculo, aqui. Tu trabalhas para mim. És casada comigo. És propriedade minha. A intensidade com que falou cortou a respiração a Maddy.

Tu não és meu dono, Jack. Eu posso trabalhar para ti e ser casada contigo, mas não és meu dono. Calma, firme, mas assustada. Já em criança odiava confrontos e conflitos.

Então, faço eu as malas ou fazes tu? indagou ele, sem mais comentários.

Maddy hesitou um longo momento, depois, atravessou o quarto, foi até à sala de vestir e pegou numa mala. Havia lágrimas nos seus olhos ao fazê-lo e chorava abertamente ao atirar para dentro dele fatos de banho, calções, T-shirts e sapatos. Só conseguia pensar que as coisas nunca mudavam muito. Bobby Joe podia tê-la empurrado pelas escadas abaixo, mas Jack fizera um belo trabalho naquele dia, apesar de praticamente nem lhe ter tocado. O que se passava com os homens daquele género? O que os levara a pensar que possuíam as mulheres? Era culpa dos homens que escolhera, ou a culpa seria sua? Não conseguia discernir. Dobrou quatro vestidos de linho e meteu na mala três pares de sapatos de salto alto. Vinte minutos mais tarde terminara e foi tomar um duche. Jack estava na casa de banho dele, também a guardar as coisas de toilette.

A que horas partimos amanhã? perguntou-lhe quando voltou a vê-lo no quarto.

Saímos daqui às sete da manhã. Apanhamos o avião para Paris. Foi tudo o que ela soube da viagem, mas na realidade pouco lhe importava. Ele decidira, ela submetera-se. Apesar das suas palavras corajosas, só provara a ambos que era de facto pertença dele.

Acho que há uma vantagem em ter um avião particular comentou, ao entrarem na cama.

Qual? perguntou pensando que ela dizia aquilo apenas para meter conversa.

Pelo menos sabemos que não transporta uma bomba É um ponto positivo. Deitada a seu lado, virou-lhe as costas. Jack não ripostou, apagou a luz e, por uma vez, não lhe tocou.

 

Chegaram a Paris às dez da noite; esperava-os um carro. Uma bela e cálida noite. Seguiram para o Ritz onde entraram às onze horas. A Place Vendôme estava profusamente iluminada, e o porteiro reconheceu-os imediatamente. Mas, a despeito da beleza do cenário, Maddy não via nele nada de romântico. Pela primeira vez em anos, tinha a impressão de estar prisioneira. Jack ultrapassara os limites. E ao segui-lo na recepção, sentia-se vazia e entorpecida.

Habitualmente, adorava visitar Paris com o marido, mas não dessa vez. Mais não havia entre eles do que gelo e mágoa. Pela primeira vez em anos, teve a sensação doentia de estar a ser agredida e, embora ele não lhe tivesse batido, era como se o houvesse feito. Existia em Jack uma faceta com que nunca se confrontara e agora perguntava a si própria com que frequência e de quantas maneiras algo de semelhante acontecera. Nunca antes se permitira pensar no assunto, mas hoje os seus sentimentos não diferiam do que tivera em Knoxville com Bobby Joe. O pano de fundo era mais imaginativo, mas apercebia-se de que ela era a mesma pessoa. Caíra na ratoeira, como anteriormente. Enquanto as malas eram trazidas para o hotel, as palavras de Jack na noite anterior ecoavam aos seus ouvidos: “És propriedade minha.”

A suite no Ritz era tão bonita como de costume. Tinha vista para a Place Vendôme, uma sala de estar, um quarto e duas casas de banho. A decoração era em cetim amarelo-pálido. E o hotel enchera três jarras com rosas amarelas. Maddy tê-la-ia adorado se não estivesse tão magoada com Jack.

Há alguma razão especial para estarmos aqui? interrogou-o, desanimada; o marido encheu para si uma taça de champanhe e ofereceu-lhe uma a ela. É apenas para me manter longe das câmaras ou há alguma razão mais forte? Achei que precisávamos de férias. A resposta foi simples, e toda a fúria do dia anterior parecia ter-se desvanecido. Maddy aceitou a taça de cristal; nem sequer lhe apetecia  beber, mas precisava de qualquer coisa que a entorpecesse. Sei quanto gostas de Paris e pensei que seria divertido para nós.

Depois de todas as tuas palavras dos últimos dois dias como podes dizer tal coisa? A perspectiva de algo ser “divertido para ambos” era absurda.

Nessa altura, tratava-se de negócios. Agora, não retorquiu ele calmamente Intrometeste-te numa coisa que era um assunto de segurança nacional e que não te dizia respeito. Maddy, eu estava a tentar proteger-te

Lérias! Sorveu um gole de champanhe. Não estava ainda pronta para lhe perdoar as suas ameaças, as suas palavras, ou o ter-lhe dito que era propriedade sua. Mas também não queria discussões. Estava exausta e deprimida

Porque não atiramos tudo para trás das costas e nos limitamos a usufruir de Paris? Ambos precisávamos de férias.

Quanto a ela, do que precisava era de uma lobotomia, ou talvez de um marido novo. Nunca se sentira traída por ele em todos os seus anos de casados. Como iriam, ou não, recompor-se? Eu amo-te, Mad Aproximou-se dela e passou-lhe sensualmente os dedos pelo braço que na véspera abanara. Ela recordava ainda a sensação e sabia que essa lembrança iria permanecer

Não sei o que dizer-te. Falava-lhe com sinceridade. Estou zangada e ferida e talvez mesmo com um pouco de medo de ti. Causara-me náuseas tudo o que aconteceu.

Era sempre escrupulosamente sincera com ele, muito mais do que ele com ela.

É por isso que estamos aqui, Mad Para esquecermos os nossos empregos, o nosso trabalho, os nossos problemas, as nossas diferenças de opinião. Viemos aqui. Aconchegou-se a ela e pousou a taça na mesa Luís XV Viemos aqui para ser amantes. Mas a mulher não se sentia nada amante. Tudo o que queria era esconder-se e lamber as suas feridas, ficar algum tempo só até perceber os seus próprios sentimentos. Ele porém não lho permitiria. Beijava-a, começou a abrir-lhe o fecho do vestido e, antes que Maddy pudesse impedi-lo, tirara-lhe o sutiã

Jack, não. Preciso de algum tempo.. Não posso.

Podes, sim. Calou-a com um beijo, quase a sufocando; então, a sua boca procurou-lhe os seios, e o vestido desapareceu levando consigo a roupa interior, enquanto ele a deitava no chão, beijando-a e acariciando-a. E a sua língua era tão potente e eficaz que Maddy tentou reunir todas as suas forças para lhe resistir, mas viu que não conseguia. E para seu grande desgosto, passado um momento já não quereria que ele parasse. Foi ali que ele a possuiu, no chão, abraçados, atingiram um clímax tão rápido e tão intenso como ela jamais esperara. Pertencia-lhe de novo, pensou, ainda deitada e sem fôlego, agarrada a ele e interrogando-se sobre como acontecera e porquê.

Bem, é uma maneira como outra qualquer de começar umas férias comentou, sentindo-se idiota. Haviam feito amor por pura sensualidade e fora tão forte como uma vaga que a submergisse, mas não houvera no acto nada de amor. Se alguma coisa existira, fora a prova repetida de que era propriedade dele. Sentia-se porém impotente para combater esse facto. Não sei como aconteceu disse, olhando-o, nu, deitado a seu lado no chão.

Posso demonstrar-te, se quiseres. Talvez mais um pouco de champanhe ajudasse. Apoiou-se num cotovelo e sorriu-lhe. Maddy não estava agora certa de o odiar ou não, mas de uma coisa, quanto a Jack, não restavam dúvidas, era fatalmente belo, e ela nunca fora capaz de lhe resistir. Ele não lhe permitia escolher.

Triste, soergueu-se para o olhar quando ele lhe deu outra taça de champanhe. Na realidade não lhe apetecia, mas pegou nela e bebeu-a.

Ontem, detestei-te. Foi a primeira vez que senti ódio por ti confessou, e Jack pareceu embaraçado

Eu sei, É um jogo muito perigoso. Espero que tenhas aprendido a lição. Uma advertência velada.

E qual é a lição que eu devo ter aprendido?

A de não meteres o nariz onde não és chamada. Ocupa-te apenas daquilo que sabes, Mad. Tudo o que tens a fazer é ler as notícias. Não te compete julgá-las.

É assim que funciona. Sentiu-se levemente ébria e Por uma vez não se importou

É assim que deve funcionar. O teu papel consiste em apresentares-te bonita e ler o teu texto no teleponto. Deixa que alguém se preocupe com o que lá está escrito.

Parece muito simples. Por entre risadinhas, reprimiu um soluço. Era como se tivesse sido não apenas rebaixada, mas diminuída na sua qualidade de pessoa. E fora-o.

É simples, Mad. E é simples entre nós. Eu amo-te. És a minha mulher. Não é bom para nós zangarmo-nos, ou para ti desafiares-me daquela forma. Quero que me prometas que nunca mais o farás.

Não posso, Jack respondeu ela honestamente. Não queria mentir-lhe, por muito que detestasse conflitos. Ontem, foi um caso de ética profissional, de âmbito moral. Sou responsável perante as pessoas que me ouvem.

És responsável perante mim replicou ele num tom melífluo, e por um instante a mulher sentiu-se outra vez assustada, embora sem saber bem porquê. Não havia agora nele nada de ameaçador; de facto acariciava-a de novo e de um modo muito persuasivo. Eu disse-te o que quero... Quero que me prometas que vais ser uma linda menina... A sua língua percorria-lhe as partes mais sensíveis do corpo, enquanto ia dizendo coisas que a deixavam confusa.

Eu sou uma linda menina, não sou? Ria-se, descontrolada.

Não, não és, Mad... Ontem foste uma menina feia, muito feia, e se voltares a fazer o mesmo tenho de te castigar... Talvez deva castigar-te agora... Provocava-a, mas não se mostrando odioso, apenas sedutor. Não quero castigar-te, Mad... Quero dar-te prazer. E dava, talvez até de mais. Não teve forças para o obrigar a parar; estava demasiado cansada e confusa, e o champanhe entontecia-a. Excepcionalmente, não a incomodou sentir-se embriagada. Ajudava.

Tu dás-me prazer articulou em voz rouca, esquecendo momentaneamente a que ponto estivera furiosa com ele. Mas isso fora antes, e agora era agora, e estavam em Paris. Difícil de recordar... a sua fúria anterior, como se sentira traída e amedrontada. E quando tentava recordar-se, descobriu que não lhe era possível porque ele recomeçara a fazer amor e o corpo dela estava em brasa. 94

Vais ser uma linda menina? Zombava dela e torturava-a com prazer. Prometes?

Prometo respondeu Maddy quase sem fôlego.

Promete outra vez, Mad. Era um mestre naquilo que estava a fazer, tendo tido longos anos de prática. Promete-me outra vez..

Prometo... prometo., prometo.. Serei boa, juro. Tudo o que agora queria era agradar-lhe e, muito no íntimo, sentia que se odiava por isso. Vendera-se-lhe uma vez mais, entregara-se-lhe uma vez mais, mas ele era uma força demasiado poderosa para conseguir resistir-lhe.

A quem pertences, Mad.. Quem te ama. Eu sou o teu dono.. Eu amo-te Repete, Maddy.

Eu amo-te. tu és o meu dono... Jack entrava e saía dela e, quando Maddy falou, começou a fazer amor com tanta energia que a magoou. Soltou um pequeno grito de dor e tentou afastar-se, mas ele manteve-a fortemente pregada ao chão e continuou a penetrá-la enquanto ela gemia, dorida; nada o fazia parar, cada vez o seu movimento de vaivém era mais intenso. Tentou dizer-lhe alguma coisa e ele esmagou-lhe a boca com a sua, enquanto continuava, tão energicamente quanto lhe era possível, até atingir o orgasmo com um intenso estremeção, ao mesmo tempo que se deixava cair e lhe mordia o mamilo até o pôr a sangrar. Maddy estava tão entorpecida que nem gritou. Não entendia bem o que acontecera. Estava zangado, ou amava-a de verdade? Castigava-a, ou desejava-a tanto que nem percebia que a magoava? Já não entendia se o que sentia por ele era amor ou desejo ou aversão

Magoei-te. Mostrava-se inocente e preocupado Oh, meu Deus, Mad, estás a sangrar. Desculpa-me. Escorria uma gota de sangue pelo seu seio esquerdo cujo mamilo ele mordera, e Maddy tinha a impressão de as suas entranhas terem sido agredidas E tinham sido. Talvez ele quisesse dizer o que dissera e a tivesse castigado, mas os seus olhos transpiravam amor quando tirou o guardanapo molhado que envolvia a garrafa de champanhe e lho colocou sobre o mamilo. Perdoa-me, querida. Desejava-te tanto. Fiquei louco!

Não tem importância. Ainda se sentia confusa e mais do que ligeiramente tonta. Ele ajudou-a a levantar-se, deixaram as roupas no chão e foram para o quarto. Tudo o que apetecia a Maddy era ir para a cama. Nem forças teve para tomar um duche E sabia que, sem ajuda, poderia ter desmaiado

Jack deitou-a com toda a gentileza e ela sorriu-lhe, enquanto via o quarto girar à sua volta

Amo-te, Maddy. Fitava-a e ela tentou concentrar-se em olhar para ele, mas o quarto girava muito depressa

Eu também te amo, Jack. As palavras saíam indistintas, e passado um momento dormia, Jack contemplava-a. Apagou a luz, voltou à sala de estar, serviu-se de um uísque. Bebeu-o puro enquanto olhava a Place Vendôme, contente consigo próprio. A lição fora dada. Ela aprendera

 

Jack levou Maddy a jantar ao Taillevent, à Tour d’Argent, ao Chez Laurent e ao Lucas Carton. Jantavam todas as noites em lugares elegantes e almoçavam na margem esquerda em pequenos cafés. Faziam compras e iam a antiquários e a galerias de arte. E comprou-lhe uma pulseira de esmeraldas no Carrier. Dir-se-ia uma segunda lua-de-mel, e Maddy lamentava ter-se embriagado na primeira noite, da qual tinha ainda recordações muito estranhas, algumas muito sexy, outras coloridas com uma aura de algo sinistro, assustador e triste. Depois disso, passou a beber muito pouco. Não precisava de beber. Com Jack a inundá-la de atenções e presentes, havia uma sensação de embriaguez constante. O marido fazia tudo o que podia para a seduzir. E na altura em que partiram para o Sul de França, estava de novo completamente dominada pelo fascínio dele. Era um perito nesse jogo.

Alojaram-se no Hotel du Cap em Cap d’Antibes, numa fabulosa suite sobre o oceano. Tinham uma cabana privativa onde passavam os dias, suficientemente isolada para que pudessem fazer amor, e ele não a poupava. Mostrava-se mais apaixonado e mais amoroso do que nunca. Por vezes, Maddy sentia-se estonteada. Era como se tudo o que anteriormente experimentara, a raiva, o ultraje, a traição, fossem uma espécie de ilusão, e aquilo, a única realidade que conhecia. Ficaram lá cinco dias; Maddy detestou partir e ir para Londres. Tinham alugado um barco e ido a Saint-Tropez, feito compras em Cannes e jantado em juan lês Pins e, quando à noite voltaram para o Hotel du Cap, ele levou-a a dançar. Tudo era calmo, feliz, romântico. E nunca o marido fizera com tanta frequência amor com ela. Mal podia sentar-se, quando partiram para Londres.

Londres foi mais uma viagem de negócios, mas mesmo assim Jack esforçou-se por andar com ela. Levou-a às comPras e a jantar ao Bar Harry’s. Foram dançar ao Annabel’s, comprou-lhe no Graffs um anel com uma esmeralda pequena para condizer com a pulseira que lhe oferecera em Paris.

Porque é que estás a estragar-me com tantos mimos perguntou ela, a rir, quando saíam do Graffs para a New Bond Street

Porque te amo e és a minha apresentadora preferida

Ah, São subornos para substituir um aumento? Estava bem-disposta, mas apesar de tudo confusa. Ele andava tão encantador e precisamente antes da viagem fora tão cruel

Deve ser isso. Fui mandado vir pelo inspector para te seduzir replicou Jack fingindo-se austero, e ela riu-se. Queria amá-lo, e queria que ele a amasse

Deves querer qualquer coisa, Jack brincou E queria. Queria o corpo dela dia e noite. Maddy começava a sentir-se uma máquina de sexo e, uma vez ou duas, quando faziam amor, ele lembrou-lhe que era o seu “dono”. O termo não agradava a Maddy, mas dizê-lo parecia excitá-lo, pelo que optou por não lhe fazer qualquer reparo. Se significava assim tanto para ele, que o dissesse, embora de vez em quando perguntasse a si própria se o marido acreditava no que dizia. Ele não era dono dela. Amavam-se E era seu marido. Começo a sentir-me uma Lady Chatterley comentou, a rir, quando ele lhe arrancou uma vez mais as roupas no momento em que regressavam ao quarto do hotel. Que vitaminas andas a tomar. Talvez tomes demasiadas

Não há nada como o sexo, Maddy É bom para nós. Gosto de fazer amor contigo quando estamos de férias. Mas também não se abstinha quando estavam em casa. Parecia ter um apetite insaciável por Maddy E a maior parte das vezes isso agradava-lhe, excepto quando era bruto com ela, ou a agarrava à força, como fizera em Paris

Voltou a fazê-lo na última noite que passaram no Claridge’s. Tinham estado a dançar no Annabel’s e, mal entraram na suite e fecharam a porta, empurrou-a com força contra a parede, baixou-lhe as calças e quase a violou. Maddy tentou fazê-lo esperar, ou ir para o quarto com ela, mas ele pressionou-a de encontro à parede e não parava, arrastou-a para a casa de banho e possuiu-a no chão de mármore, enquanto ela lhe suplicava que parasse. Estava de novo a magoá-la, mas a sua excitação era tal que nem a ouviu. Depois, desculpou-se e colocou-a delicadamente na banheira cheia de água quente

Não sei o que me fazes, Mad. A culpa é toda tua. Esfregou-lhe as costas e passado um momento meteu-se na água com ela. Maddy olhou-o desconfiada, receosa de que ele voltasse a querê-la, mas desta vez quando começou a acariciá-la foi o mais meigo possível. A vida com Jack era um constante carrossel de prazer e dor, terror e paixão, gentileza infinita misturada com uma pitada de algo aterradoramente brutal e cruel. Seria difícil explicar a quem quer que fosse, e a explicação embaraçosa para ela. Às vezes obrigava-a a fazer coisas que a deixavam perturbada. Mas garantia-lhe que não havia nisso nada de mal, eram casados e ele amava-a, e quando a magoava alegava sempre que ela o punha louco, que a culpa era dela. Lisonjeiro, sim, mas apesar de tudo às vezes muito doloroso. E Maddy vivia continuamente confusa.

Quando por fim regressaram a casa, as duas semanas mais pareciam ter sido um mês de férias. Há muito que Maddy não se sentia tão chegada ao marido. Fora estranho e divertido. Durante duas semanas toda a atenção de Jack se concentrara nela. Não a deixava sozinha um minuto, mimara-a de todas as formas possíveis, fizera amor com ela tantas vezes que Maddy já nem conseguia ter a mínima noção do que haviam feito.

Na noite em que voltaram para casa em Georgetown, era para Maddy como se tivessem estado em lua-de-mel, e Jack beijou-a ao segui-la no corredor. Trouxe para cima as bagagens de ambos, além da mala de viagem que ela adquirira para meter as coisas que comprara em Londres e Paris. Enquanto Jack descia a buscar o correio, a mulher pôs-se a ouvir as mensagens telefónicas e foi com surpresa que escutou quatro mensagens do seu companheiro de trabalho, Greg Morris. Pela voz, parecia-lhe sério. Olhou o relógio. Era tarde de mais para lhe telefonar.

Não havia nada de interessante no correio e, depois de comerem qualquer coisa ambos, tomaram um duche, foram Para a cama e levantaram-se cedo na manhã seguinte.

Conversaram a caminho do trabalho, separaram-se na recepção e Maddy subiu para o seu gabinete. Estava ansiosa Por falar a Greg na viagem e foi com surpresa que não o viu no gabinete. Entrou no dela e leu todas as mensagens e correspondência

Como de costume, havia um monte de cartas de fãs. Às dez horas, ainda não vira Greg, o que a preocupou. Perguntou à sua secretária se ele estava doente, e Debbie olhou-a, obviamente embaraçada:

Eu bom... ele.. Aposto que ninguém lhe contou nada disse finalmente.

Ninguém me contou o quê? Maddy denotava pânico. Aconteceu-lhe alguma coisa? Talvez tivesse sofrido um acidente e ninguém tivesse querido preocupá-la durante a sua ausência.

Ele foi-se embora explicou a secretária abruptamente.

Para onde? Maddy não percebia o que ela queria dizer.

Já não trabalha cá, Mistress Hunter. Pensei que alguém lhe tivesse dito. O seu novo colaborador começa na segunda-feira. Acho que está sozinha. O Greg foi-se embora no dia seguinte à sua partida para férias.

Ele o quê? Não acreditava no que ouvia. Discutiu com alguém e abandonou o emprego?

Não sei pormenores. Mentia, mas não queria ser ela a contar-lhe. E nem terminara a frase já Maddy se precipitava para o gabinete do produtor.

O que diabo aconteceu ao Greg? perguntou, quando aquele olhou para ela

Rafe Thompson era um homem alto, de aspecto cansado, que parecia carregar às costas o peso do mundo, e às vezes carregava

Foi-se embora respondeu sumariamente.

Eu sei isso. Para onde? E quando? E porquê. Quero respostas a estas perguntas. Os olhos de Maddy chispavam

O formato da emissão foi alterado. Ele não se enquadrava no novo formato. Creio que agora está na secção desportiva da NBC. Não sei pormenores

Uma ova! A Debbie disse-me o mesmo. Quem sabe os pormenores? Mas já conhecia a resposta à sua pergunta e não esperou um minuto para se precipitar para o gabinete de Jack. Entrou directamente, sem se fazer anunciar, e encarou-o.

Este acabara de pousar o telefone e tinha a secretária cheia de papéis, o preço a pagar por umas férias de duas semanas. Despediste o Greg? disparou ela sem preâmbulos; o marido ficou um longo momento a fitá-la, após o que respondeu calmamente:

Tomei uma decisão do foro executivo.

O que quer isso dizer? E porque não me contaste na Europa? Sentia-se lograda.

Não quis apoquentar-te, Mad. Achei que merecias umas verdadeiras férias.

Tinha o direito de saber que despediras o meu colaborador. Estavam explicadas as quatro mensagens no gravador e o tom de voz de Greg. Apercebia-se agora de que era o tom de uma pessoa magoada, o que não era de estranhar. Porque o despediste? Ele é formidável. E os níveis de audiência também eram.

Não somos dessa opinião. Ele não é tão bom como tu, querida. Precisávamos de alguém mais forte para te contrabalançar.

O que queres dizer com “mais forte”? Não percebia o significado do que ouvia e preocupava-a a decisão e a forma como fora conduzida.

O Greg é demasiado brando, demasiado efeminado; tu consegues ofuscá-lo e és muito mais profissional do que ele. Desculpa. Precisas de alguém com um pouco mais de personalidade e muito mais experiência.

Então, quem contrataste? Continuava aborrecida por causa de Greg, adorava trabalhar com ele, além de que era o seu melhor amigo.

O Brad Newbury. Não sei se te lembras dele. Costumava dar as notícias do Médio Oriente na CNN. É estupendo. Penso que vais gostar imenso de trabalhar com ele. Jack falava com firmeza.

O Brad Newbury? Maddy estava estupefacta. Ele nem sequer de uma zona de guerra consegue atrair a Benção do público! De quem foi a ideia?

Foi uma decisão colectiva. É um profissional e um repórter com maturidade. Achamo-lo perfeito como contraponto para ti. Maddy odiava o estilo do homem, e nunca gostara dele. E nas poucas vezes em que se haviam encontrado mostrara-se arrogante e condescendente para com ela

E seco, enfadonho e... chato. Não tem o mínimo carisma protestou, furiosa. Por amor de Deus, vai pôr os espectadores a dormir. Até o problema do Médio Oriente transformou numa chatice, sem qualquer interesse.

É um jornalista muito experiente.

Também o Greg. As nossas audiências nunca tinham sido tão elevadas.

As tuas audiências nunca tinham sido tão elevadas, Mad As dele começavam a baixar. Não quis alarmar-te, mas ele ter-te-ia arrastado consigo para o fundo.

Não percebo, e não sei porque não me contaste nada.

Porque não quis perturbar-te. Isto é negócio, Mad. O negócio do espectáculo. Temos de manter os olhos bem abertos. Mas Maddy continuava deprimida quando regressou ao seu gabinete e telefonou a Greg.

Não posso acreditar nesta história, Greg. Ninguém me disse nada. Julguei que estavas doente ou coisa no género quando não te vi cá às dez horas. O que raio aconteceu depois da minha partida? Pisaste os calos a alguém?

Que eu saiba, não. Continuava com uma voz desolada. Adorava trabalhar com ela e ambos sabiam que a emissão deles era um sucesso. Mas percebia melhor do que ela o que estava a acontecer. Na manhã a seguir à tua partida, o Tom Helmsley, o produtor executivo, como sabes, chamou-me e disse que me deixavam ir embora, mais exactamente que me despediam Acrescentou que nos tínhamos tornado demasiado informais, demasiado chegados, que começávamos a lembrar uma actuação antiga do Abbott e Costello.

De onde raio partiu isso? Quando foi a última vez que brincámos durante a emissão?

Não ultimamente, mas acho que a palavra-chave é chegados. Penso que alguém sente que éramos demasiado pessoais, demasiado íntimos. Com mil diabos, Maddy, tu és A minha melhor amiga. Acho que há na tua vida alguém que não gosta desse facto. Não soletrou o nome, mas foi como se o fizesse.

Referes-te ao Jack? Greg, isso é uma loucura. Não acreditava em tal coisa. Não havia razão alguma para o despedir e Jack nunca poria em jogo os níveis de audiência da emissão por razões pessoais. Mas não restavam dúvidas de que Brad Newbury era uma estranha escolha. Talvez Greg achasse que Jack tinha ciúmes dele, mas Maddy não pensava assim.

Pode parecer-te loucura, Mad. Mas chama-se a isto... isolamento. Alguma vez te passou pela cabeça? Quantas vezes te permite ele que te encontres com alguém? Comigo não tinha opção, trabalhávamos juntos. Mas tratou do assunto, não tratou? Pensa nisso.

Porque quereria ele isolar-me? Estava confusa, e Greg perguntava-se até onde poderia avançar. Há muito que se apercebera, mas ela obviamente não, e Greg achava que ela rejeitaria a ideia.

Ele quer isolar-te, Mad, porque quer controlar-te. É ele quem comanda a tua vida, toma todas as decisões por ti, nunca te consulta acerca do programa. Nem sequer te disse que iam para a Europa senão na noite anterior. Trata-te como a uma boneca de trapos... Por amor de Deus! E quando não lhe agrada o que fazes diz-te que vieste de uma miserável lixeira e que sem ele voltarias para um parque de atrelados. Quantas vezes te disse que, sem ele, não serias nada? Tens consciência da burrice que isso é? Sem ti, ele teria o noticiário com menos audiência de qualquer canal. Se alguma vez saísses da WBT, seria esmagado por qualquer estação noticiosa que tu quisesses. A que se assemelha tudo isto, Mad? A um marido amoroso ou a algo muito mais familiar? Maddy nunca se permitira encarar os factos por tal prisma, mas ao ouvi-lo ficou subitamente aterrorizada. E se ele pretendesse isolá-la? De repente, recordou todas as vezes em que recentemente lhe dissera que era “dono” dela. Estremeceu ao pensar nisso.

Parece um comportamento abusivo, não é? respondeu, num tom quase inaudível.

Agora, estás a abrir os olhos. E o que há mais? Queres dizer que nunca te fez recordar algo já conhecido? É verdade que não te corre ao pontapé aos sábados à noite, mas não precisa de o fazer, controla-te de todas as formas e, quando te portas mal e não gosta do que fazes, arrasta-te para a Europa, tira-te do ar duas semanas e despede-me. Eu diria que estás casada com uma aberração, um maníaco do controlo. Não quis dizer “um tipo que te maltrata”, mas para ele o significado era idêntico.

Talvez, Greg. Hesitava entre defender Jack e concordar com o seu colaborador. Este pintara-lhe um belo quadro, do qual ela não discordava. Contudo, não sabia o que fazer.

Desculpa-me, Maddy. Ela representava muito para ele, e há imenso tempo que detestava as coisas que Jack lhe fazia. E o que lhe partia o coração era ver que Maddy parecia não dar por nada. Mas Greg dava. E tinha a certeza de que tudo aquilo fazia parte da razão por que o tinham despedido. Era perigoso de mais tê-lo perto de Maddy. O que ele anda a fazer-te é ofensivo.

Assim parece admitiu ela, tristemente. Mas não tenho a certeza. Talvez estejamos a exagerar, Greg. Ele não me bate. Percebia perfeitamente, só que não queria ver, nem ouvir. Era demasiado difícil de admitir.

Achas que ele te respeita?

Acho que me ama foi a sua resposta imediata, especialmente depois da recente viagem à Europa. Acho que quer o que é melhor para mim, mesmo que nem sempre proceda da maneira correcta. Greg discordava, e tudo o que pretendia era que ela pensasse e examinasse melhor a vida que levava com Jack. Creio que mesmo os homens que maltratam as mulheres as amam. Achas que o Bobby Joe te amava?;

Não, não acho. Não podia acreditar que Greg estava a comparar Jack a Bobby Joe. Era um pensamento pavoroso, que nem queria admitir. Uma coisa era pensar que Jack era dominador e possessivo, outra era ouvir Greg ir tão longe. Tornava-lhe de novo real o horror dos maus tratos.

Bem, talvez o Bobby Joe não te amasse. Mas pensa nalgumas das coisas que o Jack te faz. Dispõe de ti como de uma coisa, um objecto que comprou e pagou. A que ponto se deleita ao dizer-te que sem ele não serias nada? E quer que tu acredites nele. E o pior é que ela acreditava, e Greg sabia-o. Maddy, ele quer que tu penses que lhe pertences. A tais palavras, percorreu-lhe a espinha um arrepio gelado. Na Europa, Jack dissera-o.

O que te leva a essa conclusão. Ele não me maltrata, e eu não lhe pertenço.

Maddy, quero que faças uma coisa por mim. Pensou que ele ia pedir-lhe que falasse com Jack acerca da reintegração no emprego e estava disposta a fazê-lo, embora lhe parecesse que Jack não lhe daria ouvidos.

Faço o que quiseres prometeu.

Vou cobrar-te a promessa. Quero que entres para um grupo de mulheres sujeitas a maus tratos.

Que disparate! Não preciso. Surpreendeu-a a sugestão.

Decidirás depois de lá teres ido. Não me parece que faças a mínima ideia do que está a acontecer-te, ou de quem está a provocar-to. Era exactamente o que ela tentara fazer por Janet McCutchins, mas essa estava coberta de equimoses e Maddy não. Acho que te abrirá os olhos, Mad. Posso mesmo ir contigo.

Sim... talvez... se encontrares algum. E se alguém me reconhecer?

Podes dizer que vieste para me apoiar. Maddy, a minha irmã passou por isso. Tentou suicidar-se duas vezes antes de compreender o que estava a acontecer-lhe. Eu também fui com ela. Parecia uma reposição de Meia Luz e a minha irmã tinha quatro filhos dele.

O que lhe aconteceu?

Divorciou-se e agora está casada com um homem formidável, mas passou por três anos de terapia. Achava que, pelo facto de ele não a espancar como o meu pai fazia à minha mãe, era um herói. Nem todas as formas de maus tratos deixam equimoses. Maddy sabia-o, mas parte dela ainda queria crer que o que o Jack fazia era diferente. Não desejava sentir-se uma vítima, nem ver em Jack um agressor.

Título original Gaslight, filme realizado por George Cukor em 1944, com Bergman e Charles Boyer. (N do T )

Penso que és maluco, mas gosto muito de ti. O que vais fazer agora, Greg? Preocupava-se com ele e tentava não pensar nas suas palavras acerca de Jack. Eram demasiado ameaçadoras para ela. Já começara de novo a convencer-se de que Jack não tentava controlá-la de uma forma abusiva. Greg estava aborrecido e confuso, dizia ela para consigo

Vou para as notícias de desporto na NBC. Fizeram-me uma oferta fabulosa e começo daqui a duas semanas. Já sabes quem têm para ti?

O Brady Newbury respondeu, abatida. Ia sentir a falta de Greg, mais do que podia dizer-lhe E talvez valesse a pena ir a um grupo de vítimas de maus tratos com ele, só para poderem estar juntos. Tinha a certeza de que Jack não ia deixá-la dar-se com o amigo. Havia de arranjar maneira de afastar completamente Greg da sua vida, “para teu próprio bem”, e tornar-lhe impossível qualquer encontro. Conhecia o marido

O tipo da CNN? Greg nem acreditou ao ouvi-la mencionar o nome de Brad. Estás a brincar. Ele é horrível

Penso que os nossos níveis de audiência vão cair a pique sem ti

Não, não vão. Eles têm-te a ti. Vai correr tudo bem, miúda Mas pensa no meu conselho. é tudo quanto eu quero que faças. Pensa nisso. Fazer o noticiário com Brad era o último dos problemas dela

Vou pensar prometeu, mas sem grande convicção E, durante o resto da manhã, de cada vez que se lembrava de Greg ficava ansiosa. As coisas que ele lhe dissera haviam-na afectado e ia fazer tudo o que pudesse para as repudiar. Quando Jack dissera que lhe “pertencia”, o que queria dizer era que a amava com paixão. Todavia, agora que pensava no assunto, até a forma de fazerem amor era estranha, em especial ultimamente. Magoara-a mais do que uma vez, e em Paris muito. O mamilo levara-lhe uma semana a sarar, e quando fizera amor com ela no chão de mármore do Claridge’s magoara-lhe as costas, o que ainda sentia. Mas não fora intencional, Jack apenas era insaciável e com grande apetência sexual, e desejava-a. Além disso, não gostava de fazer projectos

Até que ponto era uma atitude abusiva levá-la para Paris, instalarem-se no Ritz, mesmo sem qualquer pré-aviso? Comprara-lhe uma pulseira no Cartier, um anel no Graffs. Greg estava louco, provavelmente bastante magoado por ter sido despedido, o que era compreensível. E a maior loucura era comparar Jack a Bobby Joe. Não tinham absolutamente nada em comum e Jack salvara-a do outro. A única coisa que não conseguia entender era a razão por que se sentia mal ao recapitular as coisas que Greg dissera. Deixara-a incrivelmente nervosa. Só de pensar em maus tratos, ficava assim.

Ainda a perseguiam as palavras de Greg quando na segunda-feira foi à comissão da primeira-dama e se sentou ao lado de Bill Alexander. Este estava bronzeado e contou-lhe que voltara a visitar o filho em Vermont desde a última vez em que se haviam encontrado, e a filha em Marthas Vineyard, no fim-de-semana

Como vai o livro? perguntou-lhe ela baixinho, porque a reunião começava

Devagar, mas bem. Sorriu-lhe, fitando-a com admiração. Maddy usava um camiseiro de algodão azul e calças de linho branco, com um aspecto estival e bonito.

A primeira-dama convidara uma oradora para lhes falar sobre o tema principal. Chamava-se Eugenia Flowers. Era psiquiatra, especializada em vítimas de maus tratos, e apoiava numerosas causas de mulheres. Maddy já ouvira mencionar o nome dela, mas nunca a conhecera. Do seu lugar, a Dra. Flowers conversou com cada uma. Atraente, calorosa, assemelhava-se a uma avó, mas o seu olhar era penetrante e parecia saber exactamente o que dizer a cada pessoa. Fez perguntas a todos sobre o que pensavam ser um comportamento abusivo e a maioria respondeu o mesmo, que tinha a ver com violência física, com pancada

Bem, isso é verdade concordou ela, amigável. São comportamentos abusivos Enumerou então vários outros, alguns dos quais tão perversos e obscuros que assustaram os presentes. E quanto a outras formas? O que acham que podem ser? Entre os que maltratam são muitas as diferenças. Por exemplo, controlar alguém, cada um dos seus actos, dos seus movimentos, dos seus pensamentos. Destruir-lhe  a autoconfiança, isolando essa pessoa e assustando-a? Talvez apenas conduzir depressa de mais numa situação perigosa até a assustar? Ou ameaçá-la. Desrespeitá-la? Levarem os outros a acreditar que o branco é preto e o preto é branco, até os baralhar por completo, ou tirar-lhes dinheiro, ou dizer-lhes que sem eles não seriam nada, que lhes “pertencem”? Roubar-lhes a vontade própria, ou forçá-los a opções que eles não querem, como ter bebés uns atrás dos outros, ou talvez impedi-los em absoluto de ter filhos? Algumas destas coisas se vos afiguram maus tratos? Pois bem, são de facto formas clássicas, e tão dolorosas, tão perigosas e letais, como as que deixam equimoses. Maddy mal conseguia respirar ao ouvi-la. Ficou pálida de morte e Bill Alexander reparou mas não lhe disse nada

Há muitas espécies de violência contra as mulheres continuou a oradora, algumas óbvias, todas elas perigosas. Umas mais insidiosas do que outras. As mais insidiosas são as subtis, porque as vítimas não só acreditam como se culpabilizam por elas Se o agressor for suficientemente esperto, seja homem ou mulher, pode usar todos estes tipos de violência e convencer a sua vítima de que a culpa é toda dela. A vítima de um agressor pode ser levada ao suicídio, ao consumo de drogas, a depressões incapacitantes, ou até ao assassínio. Qualquer atitude abusiva é potencialmente fatal para a vítima Mas as formas mais subtis são as mais difíceis de travar, porque é mais difícil dar por elas. E o pior de tudo é que, na maior parte das vezes, a vítima está tão convencida de ser sua a culpa, que aceita mais, e espera que o agressor o faça, pois sente que lhe pertence e julga-se tão culpada e tão má e tão inútil que sabe que ele está correcto e que ela merece aquilo que tem. Acredita que sem ele não seria nada. Maddy sentia perder as forças ao escutá-la: a oradora descrevia em pormenor o seu casamento com Jack. Jamais este levantara a mão contra ela, excepto quando lhe agarrara o braço, mas fizera tudo o que a psiquiatra descrevia. Apeteceu-lhe fugir da sala aos gritos. Em vez disso, ficou colada à cadeira, paralisada.

Eugenia Flowers continuou a falar durante meia hora, altura em que a primeira-dama deu início à reunião para permitir perguntas. Na sua maior parte, tinham a ver com o que poderia ser feito para proteger essas mulheres não só dos agressores, mas também de si próprias, e qual o modo de pôr um ponto final a tal estado de coisas.

Bem, primeiro têm de tomar consciência do que se passa. Têm de se dispor a isso. Tal como as crianças vítimas de violência, a maioria dessas mulheres protege os seus agressores, negando os factos e acusando-se a si próprias. É quase sempre muito penoso admitir o que está a acontecer-lhes, e torná-lo público. O que sentem é vergonha, porque acreditam em tudo o que o agressor lhes diz. Portanto, o primeiro passo é ajudá-las a tornar-se conscientes; depois, a sair dessa situação, e isso também não é fácil. Têm as suas vidas, têm filhos, têm lares. É-lhes pedido que saltem barreiras e fujam de um perigo que não vêem nem têm a certeza de que seja um perigo real. O problema consiste em que é tão real e tão perigoso como se lhes fosse apontada uma arma, mas a maioria ignora-o. Algumas fazem-no, mas quase sempre estão tão assustadas como as outras. E estou a falar de mulheres inteligentes, educadas, por vezes até profissionais competentes, que se julgaria serem mais informadas. Mas ninguém está isento de ser vítima deste tipo de maus tratos. Pode acontecer a qualquer, e acontece, nos melhores empregos, nas melhores escolas, em camadas elevadas ou baixas da sociedade. Às vezes, mulheres lindas, espertas, que ninguém acreditaria capazes de cair numa dessas situações. São por vezes os melhores alvos. As mulheres do povo são as menos aptas a aceitar, as que levam pancada. As outras são torturadas com maior subtileza. Este tipo de violência não distingue cor, raça, classe social ou regras socioeconómicas. Toca a todos. Pode acontecer a qualquer de nós, especialmente se tivermos antecedentes que predisponham a tal.

“Por exemplo, uma mulher que em criança presenciou violência doméstica em casa, digamos, com um pai dominador, pode pensar que um homem que nunca a agride fisicamente é um tipo formidável, embora ele possa ser dez vezes mais violento do que o seu pai, muito mais subtil e muito mais perigoso. Controla-a, isola-a, ameaça-a, aterroriza-a, insulta-a, amesquinha-a, humilha-a, desrespeita-a, recusa-lhe afecto ou dinheiro. Abandona-a, ou ameaça tirar-lhe os filhos, mas não deixa nela marcas físicas; diz-lhe que é uma mulher de sorte e, o que é pior, ela acredita nisso. E ninguém poderá metê-lo na cadeia, porque, quando se acusa o safado por aquilo que lhe fez, ele dirá que a mulher é louca, estúpida, desonesta, psicopata, e mentirá no que a si diz respeito. E mais uma vez ela, provavelmente, acreditará nele. Essas mulheres têm de ser lentamente afastadas da relação e., postas em segurança. Mas vão combater-vos de todas as formas, defendê-los com unhas e dentes e abrir os olhos muito devagar.

Maddy estava à beira das lágrimas antes do fim da reunião, e mal foi capaz de manter uma calma aparente até ao momento de se ir embora; tremiam-lhe os joelhos quando finalmente se levantou. Bill Alexander olhou-a, interrogando-se sobre se o calor estaria a incomodá-la. Vira-a empalidecer meia hora antes e estava quase verde quando o tempo da reunião se esgotou.

Quer um copo de água? perguntou-lhe, gentil. Foi uma reunião interessante, não foi? Embora eu não saiba lá muito bem como se deve ajudar mulheres em situações daquelas, excepto talvez educá-las e apoiá-las. Maddy voltou a sentar-se, acenando-lhe afirmativamente. Começava a ver a sala a girar; felizmente, ninguém mais notara que não se sentia bem.

Continuava sentada, à espera dele, quando a oradora convidada se aproximou.

Sou uma grande admiradora sua, Mistress Hunter disse, sorrindo a Maddy, a qual, incapaz de se pôr em pé, lhe retribuiu com dificuldade o sorriso. Vejo o seu programa todas as noites. É a nossa única maneira de saber o que se passa no mundo. Apreciei muito em especial o seu editorial sobre a Janet McCutchins.

Muito obrigada articulou Maddy com a boca seca, precisamente no momento em que Bill apareceu com um copo de papel cheio de água, sem poder deixar de imaginar que talvez ela estivesse grávida. A oradora observou-a a beber um gole e o seu olhar ao fitá-la intensamente era gentil e caloroso. Maddy levantou-se quando acabou de beber, e não admitiria perante ninguém quanto as pernas lhe vacilavam. Começava a pensar em como iria conseguir sair e apanhar um táxi, e Bill Alexander deu mostras de pressentir a sua angústia.

Precisa de boleia para qualquer sítio? perguntou-lhe, cavalheiresco e, sem pensar, Maddy assentiu com a cabeça.

Tenho de voltar para a estação televisiva. Nem sequer tinha a certeza de poder ir para o ar; por momentos, imaginou se seria de alguma coisa que comera. Mas agora percebia melhor. Era de alguém com quem se casara.

Gostaria de me encontrar consigo um dia disse a Dra. Flowers quando Maddy se despedia dela e da primeira-dama. Entregou um cartão a Maddy, que lhe agradeceu e saiu, guardando o cartão no bolso do camiseiro. A acrescer ao que Greg lhe dissera, tinha sido uma dose dupla e não sabia bem se tudo aquilo era real ou um pesadelo. Fosse o que fosse, atingira-a como um comboio de mercadorias. E o seu aspecto reflectia-o, ao descer no elevador com Bill, que estacionara o carro à porta. Seguiu-o em silêncio.

Bill abriu-lhe a porta e Maddy entrou; um momento depois sentou-se ele ao volante e olhou-a com preocupação. Tinha um aspecto horrível.

Sente-se bem? Pensei que ia desmaiar lá dentro. Maddy acenou afirmativamente e por um instante não disse nada. Pensou em mentir-lhe, em dizer-lhe que estava engripada, mas não foi capaz. Sentia-se totalmente perdida e absolutamente só, como se tudo aquilo em que confiara e acreditara, e em que quisera acreditar, lhe tivesse sido arrancado, deixando-a órfã. Nunca se sentira tão apavorada nem tão vulnerável como naquele momento. Começaram a deslizar-lhe lágrimas pelo rosto; Bill estendeu um braço e tocou-lhe no ombro. E sem que fosse essa a sua vontade, Maddy rompeu em soluços a que não conseguia pôr fim.

É muito perturbante ouvir coisas daquelas comentou ele com gentileza e instintivamente passou-lhe a mão pelo ombro e amparou-a. Não sabia o que mais fazer, mas fora esse o gesto dos outros quando estava destroçado por causa da esposa, e o que usara para com os filhos na mesma situação.

Limitou-se a ampará-la enquanto ela chorava até os soluços se extinguirem e Maddy erguer para ele o olhar. O que leu nos seus olhos foi puro terror. Eu estou aqui, Maddy. Não vai acontecer-lhe nada de mau. Está tudo bem consigo, agora. Mas ela abanou a cabeça e recomeçou a chorar. Nada estava bem, não estava bem há anos, e talvez nunca viesse a estar. Apercebia-se inesperadamente do perigo que correra, de como fora humilhada e isolada de quem quer que tivesse visto isso ou tivesse podido ajudá-la. Jack eliminara, sistematicamente, todos os seus amigos, até mesmo Greg, e ela era a sua presa solitária, desprotegida. De repente, tudo o que lhe fizera e dissera ao longo dos anos, inclusive recentemente, ganhou um novo e odioso significado. O que posso fazer para a ajudar perguntou-lhe Bill, enquanto ela se abraçava a ele e chorava, como nunca fora capaz com nenhum homem na sua vida, a começar pelo pai.

O meu marido faz todas as coisas que aquela psiquiatra referiu hoje. Alguém me disse exactamente o mesmo há uns dias, e eu acho que nunca dei por isso. Mas quando ela começou a falar no assunto, eu vi... Ele isolou-me completamente e violentou-me durante os últimos sete anos, e eu achava-o um herói porque nunca me bateu. Sentou-se, encostou-se ao assento e fitou Bill, chocada e descrente. Bill demonstrava uma grande perplexidade.

Tem a certeza?

Absoluta. Até abusara dela sexualmente, apercebera-se agora. Não era bruto por acaso, ou em consequência da sua paixão por ela. Tratava-se de uma outra forma de a rebaixar e controlar. Era um modo aparentemente aceitável de a magoar, e praticara-o durante anos. Incrível, agora, nunca ter percebido. Não posso começar a enumerar as coisas que ele me fez. Parece-me que não lhe escapou uma única. Tremiam-lhe os lábios. O que vou eu fazer agora? Ele diz que sem ele não serei nada. Às vezes chama-me “miserável lixo branco”, e diz que sem ele volto a correr para um parque de atrelados. Exactamente o que Eugenia Flowers descrevera, Bill olhou-a, estarrecido.

O seu marido está a brincar?! Você é o maior nome dos noticiários em todo o país. Poderia arranjar trabalho em qualquer sítio. A única possibilidade que tem de voltar a ver um parque de atrelados, é se comprar algum. Ela riu-se da piada e ficou um longo momento a olhar pela janela. Era como se a sua casa acabasse de arder e não tivesse a mínima ideia sobre para onde ir viver. Nem sequer podia imaginar-se a voltar para casa, para junto de Jack, ou encará-lo, tendo visto como vira a imagem nítida do que ele lhe fizera. Mas ainda lhe custava a acreditar. Disse para si própria que talvez não tivesse sido com intenção, que talvez estivesse errada.

Não sei o que fazer. Falava com calma. Ou o que dizer-lhe. Só quero perguntar-lhe porque age assim.

Talvez não seja capaz de agir de outra maneira, mas isso não é desculpa para a humilhar. Em que poderei eu ajudá-la? Sentia-se tão perdido como ela.

Tenho de pensar no que vou fazer respondeu, pensativa, enquanto Bill girava a chave na ignição, após o que de novo olhou para ela.

Quer parar pelo caminho para tomar um café? Era tudo o que lhe ocorria para a acalmar.

Gostava. Fora um autêntico amigo para ela, e estava-lhe grata. Transmitia-lhe calor humano e sinceridade; sentada a seu lado, sentia-se a salvo. E sentira-se a salvo e em paz quando ele a enlaçara. Sabia instintivamente que era um homem que nunca a magoaria. E ao pensar em Jack, notou a diferença. Havia sempre no marido um ângulo, uma aresta, dizia sempre coisas que a acabrunhavam e a levavam a sentir-se inferior àquilo que era, como se lhe prestassem um favor enorme. Bill Alexander agia como se estivesse grato pela oportunidade de a ajudar e Maddy compreendeu, com justeza, que podia ser sincera com ele.

Pararam num pequeno café. Maddy continuava pálida quando se sentaram a uma mesa de canto. Bill pediu chá, ela um capuchino.

Desculpe-me. Não era minha intenção envolvê-lo nos meus dramas pessoais. Não sei o que me aconteceu. O que a senhora disse deixou-me de rastos.

Talvez fosse esse o objectivo. O destino a empurrá-la Para lá. Maddy, o que vai fazer agora? Não pode continuar a viver com um homem que a maltrata. Ouviu-a, é como ter uma arma apontada à cabeça. Pode não o ver ainda muito claramente, mas corre um risco grave.

Acho que começo a perceber isso Mas não posso ir-me embora assim sem mais nem menos.

Porque não? A ele, parecia fácil. Precisava de se ir embora, para que Jack não pudesse magoá-la nunca mais. Era claro para Bill, mesmo que não o fosse para Maddy.

Devo-lhe toda a minha carreira, e o que possuo. Ele fez de mim aquilo que sou. Trabalho para ele. E para onde ia? O que faria? Se o deixar, tenho de deixar também o meu emprego. Não saberia para onde ir, ou o que fazer. Além disso... Encheram-se-lhe de novo os olhos de lágrimas. Ele ama-me.

Não tenho tanto a certeza como você retorquiu Bill com firmeza. Ameaçar alguém como a doutora Flowers nos descreveu não é amar. Acha mesmo que ele a ama?

Não sei. Subjugavam-na emoções conflituosas de terror e remorso. Sentia-se culpada pelo que pensava e dizia do marido. Se estivesse errada? Se, no caso de Jack, fosse diferente?

Acho que está com medo e uma vez mais se recusa a crer. E quanto a si, Maddy, você ama-o?

Julgava que sim. O meu anterior marido partiu-me os dois braços e uma perna várias vezes. Torturou-me, atirou-me pelas escadas abaixo. Uma vez encostou-me um cigarro aceso às costas. Ainda tinha a cicatriz, embora pouco visível. E o Jack salvou-me dele. Levou-me para Washington numa limusina e deu-me um emprego, uma vida. Como posso eu virar-lhe as costas?

Porque não é um indivíduo correcto, segundo você disse. É apenas mais subtil, mesmo óbvio perante si, do que o seu primeiro marido, mas você ouviu a doutora Flowers’ é igualmente letal. E não estava a fazer-lhe um favor quando se casou consigo. Você é a melhor coisa que alguma vez lhe aconteceu e uma peça de peso no seu negócio. Não é um filantropo, é um homem de negócios, e sabe exactamente o chão que pisa. Você ouviu a doutora. Ele controla-a.

E se eu me for embora?

Substitui-a na emissão por outra pessoa e vai torturar outra pessoa qualquer. Você não pode curá-lo, Maddy. Tem de se salvar a si própria. Se ele quiser modificar-se, pode tratar-se. Mas primeiro você tem de se ir embora, antes que ele encontre outra maneira de a magoar, ou você fique demasiado desmoralizada para partir. Viu isso agora. Sabe o que está a acontecer. Tem de se salvar, sem pensar em mais ninguém. Está a pôr em risco a sua vida e o seu bem-estar. Pode não ter equimoses desta vez. Mas se ele faz tudo o que você diz, não se arrisque a perder um minuto. Afaste-se dele.

Ele mata-me se eu o deixar. A última vez que lho dissera fora há nove anos, mas tomou consciência subitamente de que continuava a ser verdade. Jack investira muito nela, e não ia aceitar de boa mente que ela o abandonasse ou desaparecesse.

Você tem de ir para qualquer lugar seguro. Tem família? Maddy negou, abanando a cabeça. Os pais haviam morrido há anos e perdera o contacto com os seus familiares em Chattanooga. Podia ficar com Greg, mas seria provavelmente o primeiro sítio onde Jack a procuraria, e depois acusaria Greg da partida dela; e Maddy não queria pôr o amigo em perigo. E não tinha outros verdadeiros amigos, Jack tratara de que assim fosse. Parecia ridículo que alguém tão conhecido como ela fosse para um estabelecimento de abrigo. Talvez, porém, a tal fosse obrigada. E que tal ficar com a minha filha e a família dela em Martha’s Vineyard? Ela anda pela sua idade e há lá espaço para si. E os miúdos são adoráveis. Estas palavras recordaram-lhe o procedimento de Jack e, antes dele, o de Billy Joe. Fizera seis abortos quando estava casada com Billy, os dois primeiros porque ele dissera não estar preparado para ter filhos e os outros porque ela não quisera filhos dele, ou pôr no mundo uma criança para viver uma vida igual à sua. Quanto a Jack, insistira em que ela laqueasse as trompas quando se casaram. Os dois haviam determinado que ela nunca tivesse filhos. Ambos a tinham convencido de que era o melhor para si e ela acreditara neles. De repente, não se sentia apenas destruída, mas incrivelmente estúpida por lhes ter dado ouvidos. Ambos lhe tinham roubado a oportunidade de ser mãe.

Não sei o que pensar, Bill, ou para onde ir. Preciso de algum tempo.

Talvex não se possa permitir. Rememorava tudo o que a Dra. Flowers dissera. Se estava certa, Maddy tinha de agir muito depressa. Não podia esperar mais. Não me parece que deva levar muito tempo a decidir-se. Se o seu marido procurar ajuda, se as coisas mudarem, se resolver os seus problemas, pode sempre voltar atrás.

E se ele não mo permitir?

Então, quer dizer que não mudou e não tem interesse por si. Era exactamente o que teria dito à filha, queria fazer tudo o que pudesse para a proteger e ajudar, e Maddy estava-lhe grata por isso. Quero que você pense e aja rapidamente. Ele também pode aperceber-se de que as coisas mudaram e que você está mais consciente. Se assim for, sentir-se-á em perigo e tudo se tornará pior para si. Você não se encontra numa situação muito cómoda. Era verdade, e ela tinha consciência disso. Olhou o relógio de pulso, viu que tinha de estar na maquilhagem dentro de dez minutos e disse a Bill, cheia de pena, que precisava de voltar para o trabalho.

Saíram do café, entraram no carro e ele levou-a à estação televisiva. Mas antes de a deixar fitou-a, preocupado.

Vou ficar raladíssimo consigo, até a ver fazer qualquer coisa. Prometa-me que não vai tentar ignorar tudo. Se acordou, agora tem de fazer algo de construtivo.

Prometo. Sorriu-lhe, mas não tinha ainda a mínima ideia de como proceder.

Telefono-lhe amanhã e quero que haja progressos. Ou então sou eu próprio quem a rapta e a leva para a minha filha.

Isso parece-me bem, de momento. Como posso agradecer-lhe? Estava-lhe grata, fora como um pai para ela, sentia-o um amigo. Confiava totalmente nele, nem por um momento lhe passando pela cabeça que pudesse divulgar o que ela lhe confidenciara.

A única forma de me agradecer, Maddy, é agir. Conto que o faça. E estou aqui, se precisar de mim. Escreveu o seu número de telefone num pedaço de papel, ela guardou-o na mala, agradeceu-lhe uma vez mais, beijou-o na face e entrou a correr no edifício.

Ia ser o seu primeiro dia no ar com Brad Newbury e tinha de mudar de roupa, pentear-se e ser maquilhada. Sentado ao volante, Bill viu-a desaparecer, angustiado por tudo o que ela lhe contara. Era difícil imaginar que uma mulher daquelas pudesse ser intimidada por alguém, ou imaginá-la sem amigos, sem emprego, e de regresso a um parque de atrelados se alguma vez deixasse o marido. Nada estava mais longe da verdade, só que Maddy ignorava-o. Era a prova evidente de tudo quanto Eugenia Flowers dissera sobre maus tratos de ordem psíquica, e isso espantava-o. Quando pôs o carro em marcha, Maddy encaminhava-se para a sala de maquilhagem.

Encontrou lá Brad Newbury e ficou a olhá-lo enquanto o penteavam e maquilhavam. Parecia-lhe incrivelmente pretensioso; ainda não podia crer que Jack o contratara para trabalhar com ela. Mas o homem fez um esforço por lhe ser agradável enquanto conversavam e a via pentear-se. Dissera-lhe que era um prazer trabalhar com ela, mas agia como se estivesse a fazer-lhe um favor. Delicadamente, Maddy replicou que aguardava, impaciente, o momento. Sentiu ainda mais a falta de Greg e deu por si a pensar nele e depois, quando voltou ao escritório para se vestir, em Bill Alexander. Quanto a Jack, não fazia a mínima ideia do que fazer. Não tinha porém tempo para pensar nisso. Estaria no ar dentro de menos de três minutos, apenas o suficiente para descontrair a respiração antes que começasse a contagem decrescente.

Mas a emissão teve início, apresentou Brad e seguiram em frente. Brad tinha um estilo seco, formal, mas, ao trabalharem em conjunto, Maddy teve de reconhecer que o homem era inteligente e culto, mas com um estilo tão diferente do dela que pareciam totalmente dessincronizados e particularmente contrastantes. Ela era calorosa e com uma presença cativante, ele indiferente e distante. Não existia minimamente a harmonia e a desenvoltura que partilhara com Greg. O que iriam dizer os níveis de audiência, pensava.

Andaram por ali um bocado a trocar umas palavras até voltarem para o ar, ele desta vez um pouco mais afável, mas não o suficiente para impressionar fosse quem fosse. A emissão afigurou-se-lhe insípida e o produtor estava de sobrolho franzido quando ela saiu do estúdio. Recebera a mensagem de que Jack tinha reuniões até tarde nessa noite e lhe deixava o carro. Afinal, decidiu-se por caminhar uns quarteirões e, depois apanhar um táxi. A noite estava quente e ainda havia luminosidade na rua, mas Maddy teve a curiosa sensação de que alguém a observava. Pensou que estava paranóica. Fora um dia tão enervante que a sua imaginação galopava. E também talvez por causa de Jack. Começava a pôr em causa a conclusão a que chegara e sentia-se desleal para com ele por ter dito o que dissera a Bill. Talvez Jack não fosse nada daquilo de que o acusara, havendo milhentas explicações para o seu comportamento.

Ao sair do táxi, viu dois polícias parados perto da sua casa, e um carro sem identificação do outro lado da rua. O que poderia ter sucedido? A caminho de casa, parou e perguntou-lhes.

Estamos só a vigiar o local. Sorriram, e ela seguiu em frente. Mas duas horas mais tarde viu que ainda lá se encontravam e mencionou o facto a Jack quando ele chegou, à meia-noite.

Também vi. Ao que parece, um dos vizinhos tem um problema qualquer de segurança. Disseram que iam ficar algum tempo e que não me preocupasse com isso. Talvez o juiz do supremo, que mora na rua, tenha recebido alguma ameaça de morte. Seja pelo que for, o local fica muito mais seguro para todos nós. Então, ralhou-lhe por não ter vindo com o motorista mas sim de táxi. Disse-lhe que queria que ela se servisse do carro e do motorista deles sempre que saísse.

Não é muito importante. Apeteceu-me andar a pé contrapôs Maddy, subitamente pouco à vontade. Se o marido era aquilo que imaginava, ela nem sabia o que dizer-lhe. E de novo se sentiu culpada. Era tão amável da parte dele... a história do carro!

Como correram as coisas com o Brad esta noite? perguntou Jack ao deitar-se. E inesperadamente, Maddy quase estremeceu, só de pensar que ele iria fazer amor com ela. Tudo o que sabia era que não queria.

Insípido, acho eu. Ele é bom, mas não muito excitante à vista. Vi a gravação das cinco horas, faltava vida à emissão.

Então, dá-lhe alguma. De um modo brusco, atirava-lhe com a responsabilidade para cima. E Maddy deu por si a fitá-lo como se de um estranho se tratasse. Nem sequer sabia como abordá-lo, onde estava a verdade. Era ele um agressor, ou fazia-o unicamente para ter o controlo das coisas, e orientava-lhe a vida por se preocupar com ela. O que fizera exactamente de assim tão mau? Dar-lhe uma carreira fabulosa, ou uma casa encantadora, ou um carro com motorista para ir para o trabalho, roupas lindas, jóias formidáveis, viagens à Europa, e um avião particular que podia usar para ir às compras a Nova Iorque sempre que lhe apetecesse. Estava maluca, ou então porque o imaginara como um agressor? Dizia precisamente para consigo que tudo não passava de imaginação sua, sentindo-se desleal apenas por ter tido aqueles pensamentos, quando Jack apagou a luz e se virou devagar para ela com uma estranha expressão. Sorriu-lhe e com a mão tocou-lhe gentilmente no seio; então, antes que ela pudesse impedi-lo, agarrou-a com tanta força que lhe cortou a respiração e Maddy pediu-lhe que parasse.

Porquê? perguntou, num tom em que havia crueldade; depois, riu-se Porquê, boneca. Diz-me porquê? Não me amas?

Amo-te, mas estás a magoar-me. Havia lágrimas nos seus olhos ao dizê-lo. Jack arrancou-lhe a camisa de noite deixando-a totalmente nua; depois, afundou a cabeça entre as pernas dela levando-a a gemer de excitação. Era o mesmo jogo que praticara com ela anteriormente, um alternar de dor e prazer. Não quero fazer amor hoje balbuciou Maddy, mas ele não lhe deu ouvidos. Agarrou-lhe uma mancheia de cabelos e puxou-lhe impetuosamente a cabeça para trás; beijou-lhe o pescoço tão sensualmente que todo o corpo dela tremeu, penetrou então nela com tanta força que dava a impressão de querer dilacerar-lhe as entranhas. Era tanta a sua brutalidade que Maddy gritou e, quando o arranhou para o fazer parar, o marido retomou uma atitude delicada e ela ficou nos seus braços a chorar de desespero enquanto ele atingia o clímax e estremecia violentamente dentro dela.

Amo-te, querida murmurou, enquanto Maddy se interrogava sobre o significado da palavra para ele, ou sobre o modo de lhe escapar. Havia algo de violento e assustador na forma de se amarem. Era uma forma subtil de a aterrorizar que ela há muito conhecia e nunca reconhecera. Agora, porém, estava consciente: o que mais sentia no amor que ele lhe tinha era perigo. Amo-te repetiu Jack, desta vez numa voz ensonada.

Também eu te amo sussurrou ela, enquanto lágrimas se lhe desprendiam dos olhos. O pior de tudo é que de facto o amava..

 

Quando no dia seguinte saíra para o trabalho, ainda tinham dois polícias ao pé de casa e a segurança parecia mais apertada do que o habitual quando chegaram à estação. Pediam a identificação a toda a gente e ela teve de passar três vezes pelo detector de metais até admitirem que o alarme que disparava era devido à sua pulseira e a mais nada.

O que se passa? perguntou a Jack.

Apenas rotina, acho eu. Alguém deve ter-se queixado de que estávamos a ficar desleixados. Maddy não pensou mais no caso e subiu ao encontro de Brad. Tinham combinado passar algum tempo juntos a preparar a emissão. Os seus estilos eram tão diferentes que Maddy pedira alguns ensaios para se adaptarem melhor um ao outro. Um noticiário era mais do que apenas ler um teleponto, contrariamente ao que Jack dizia.

A seguir, telefonou a Greg para lhe relatar a reunião com a Dra. Flowers, mas ele não estava. Decidiu sair para ir buscar uma sanduíche. A tarde estava fantástica, uma brisa atenuava o calor típico dos Verões de Washington. E uma vez mais, quando saiu, teve a sensação de estar a ser seguida. Voltou-se, olhou em redor, não notou nada de suspeito. Tudo o que viu foram dois homens que deambulavam atrás dela, a rir e a conversar. E mal regressou ao gabinete, Bill telefonou-lhe.

Queria saber como estava e se tomara alguma decisão.

Não sei confessou ela. Talvez eu esteja errada. Talvez ele seja apenas difícil. Devo parecer-lhe maluca. Mas amo-o e sei que ele me ama.

Você é quem melhor pode julgar, mas, depois de ouvir ontem a doutora Flowers, não posso deixar de pensar que se encontra num processo de rejeição. Talvez devesse telefonar-lhe, pedir-lhe uma opinião.

Ela deu-me um cartão e eu estou a pensar nisso.

Telefone-lhe.

Telefono. Juro. Agradeceu-lhe uma vez mais pela

véspera e prometeu ligar-lhe no dia seguinte, só para o tranquilizar. Era um homem encantador, e agradecia sinceramente a sua amizade e preocupação. Durante o resto da tarde, trabalhou nas peças em curso do dia-a-dia e no noticiário das cinco. Brad foi um pouco mais cordial, mas não muito. Irritava-a a sua inaptidão. O que dizia era inteligente, mas exprimia-o como um principiante. Nunca antes fora apresentador de um noticiário e, a despeito da sua inteligência, faltava-lhe em absoluto encanto ou carisma ou estilo

O facto ainda a aborrecia quando saiu do trabalho. Jack ia a uma reunião na Casa Branca. Disse-lhe que fosse no carro e fechasse bem as portas de casa, o que lhe pareceu idiota. Nunca as deixava abertas E com polícias estacionados tão perto, a segurança era maior do que jamais fora. Estava uma noite tão boa que mandou o motorista parar antes de casa e fez a pé os últimos quarteirões. Caíra já o crepúsculo, e sentia-se mais feliz e mais descontraída do que na véspera. Pensava em Jack. Quando dobrava a última esquina, de algures surgiu uma mão e, antes que ela pudesse afastar-se, alguém a agarrou e a puxou para os arbustos. Nunca fora agarrada com tanta força. Não conseguia ver-lhe a cara quando ele a segurou e lhe puxou os braços para trás das costas. Começou a gritar mas o homem tapou-lhe a boca com a mão, lutou como uma leoa, pontapeou-o com força nas canelas, enquanto tentava equilibrar-se no outro pé E continuou a debater-se, cada vez mais assustada. Tanto lutaram que se desequilibraram e caíram, num instante, o homem estava em cima dela a puxar pelo seu camiseiro, tentando arrancá-lo com uma mão enquanto com a outra se esforçava por lhe baixar as calças. Mas precisava das duas mãos para fazer o que queria, o que deixou de novo livre a boca de Maddy que gritou o mais alto que pôde. De súbito ouviu gente a correr por perto. Precisamente quando ele lhe baixava as calças e começava a desapertar as suas, alguém o arrancou de cima dela, com tanta violência que o homem quase voou pelos ares. Maddy ficou uns momentos deitada no chão, ofegante

No mesmo instante, havia polícias por toda a parte, e luzes, e alguém a ajudou a levantar-se enquanto ela compunha as roupas e retomava a respiração normal. Tinha o cabelo em desalinho e as costas do camiseiro imundas, mas estava ilesa, e a tremer. Um dos polícias amparou-a.

Está bem Mistress Hunter?

Estou, julgo. Meteram o atacante numa furgoneta e toda ela tremia ao observá-los. O que aconteceu?

Apanhámo-lo. Eu tinha a certeza de que o apanharíamos. Era só uma questão de tempo, até ele dar um passo em falso. É um malandro doentio, mas vai voltar para a prisão pelo que fez. Não podíamos actuar até ele a agarrar.

Têm andado a espiá-lo? Parecia estarrecida; pensara tratar-se de um atacante ocasional.

Desde que ele começou a mandar-lhe cartas.

Cartas? Que cartas?

Uma por dia durante mais ou menos toda a semana passada, julgo. O seu marido falou com o tenente. Ela abanou a cabeça não querendo parecer tão estúpida como se sentia. Porque não lhe falara Jack no assunto? O mínimo que podia ter feito era avisá-la. Então, lembrou-se das coisas que ele dissera, como servir-se do carro e fechar as portas quando estivesse em casa. Mas não lhe explicara porquê, razão pela qual se sentira perfeitamente segura ao fazer a pé os últimos quarteirões até casa, direita aos braços de um violador.

Ainda estava abalada quando Jack chegou à noite, já conhecedor do que se passara. A polícia telefonara-lhe para a Casa Branca para o informar de que o assaltante fora capturado.

Estás bem? perguntou-lhe, com um ar inquieto. Até abandonara a reunião um pouco mais cedo, persuadido pelo presidente, o qual ficara preocupado com o telefonema da polícia e aliviado por Maddy não ter sido molestada.

Porque não me disseste? Maddy estava pálida ao fazer a pergunta ao marido.

Não quis alarmar-te.

Não te parece que eu tinha o direito de saber? Vim a pé até casa ontem à noite e foi por isso que ele me apanhou.

Disse-te que viesses no carro. Mostrava-se simultaneamente irritado e apreensivo.

Eu não sabia que andava a ser perseguida, por amor de Deus! Jack, eu não sou uma criança. Devias ter-me contado.

Não vi razão para isso. Aqui, a polícia vigiava-te, e no trabalho apertaram a segurança. Isso explicava a sensação que tivera nos últimos dias de estar a ser seguida Estivera, de facto.

Não quero que tomes por mim todas as minhas decisões.

Porque não? Não eras capaz de as tomar, se eu te deixasse. Precisas de ser protegida.

Aprecio muito os teus cuidados. Tentava mostrar-se grata, mas sentia-se sufocada. Sou uma mulher adulta, tenho o direito de decidir e de optar. Preciso de amigos E mesmo que não gostes das decisões que eu possa tomar, tenho o direito de as tomar.

Não, se forem erradas. Porque haverias de sobrecarregar-te com isso. Nos últimos nove anos tenho sido eu a tomar todas as tuas decisões. O que é que mudou.

Talvez eu tenha crescido. O que não significa que não te ame.

Também eu te amo e é por isso que te protejo, para não cometeres patetices. Jack não iria, em absoluto, admitir que ela tinha o direito e pelo menos alguma independência. Maddy tentava chamá-lo à razão, provar-lhe que o que temia não era real, mas ele mostrava-se inabalável quanto a renunciar a um pouquinho que fosse do seu controlo sobre ela, até sobre a sua vida pessoal. És uma rapariga linda, Mad, mas é tudo o que és, querida. Deixa-me pensar por ti. Tudo o que tens a fazer é ler as notícias e apresentar-te bonita

Eu não sou uma mentecapta, Jack. Foi zangada que o disse e ainda estava abalada pelo que lhe acontecera nessa tarde. Sou capaz de fazer mais do que pentear-me e ler as notícias. Por amor de Deus! Até que ponto achas que sou estúpida?

Pergunta complicada respondeu ele sorrindo-lhe ironicamente; pela primeira vez na vida, apeteceu a Maddy dar-lhe uma bofetada.

Isso é insultuoso.

É a verdade. Recordo-te, Mad, que nunca frequentaste a faculdade. Nem sei se terminaste o liceu. Era o rebaixamento máximo, insinuar que ela era demasiado estúpida e ignorante para poder pensar. Disse-o para a humilhar, mas dessa vez apenas conseguiu enfurecê-la. Já antes lhe dissera coisas semelhantes e ela nunca lhe pagara na mesma moeda.

Isso não te impediu de me contratares, pois não? Ou de obter os melhores níveis de audiência?

Eu disse-te As pessoas reagem a caras bonitas. E agora vamos para a cama?

O que quer isso dizer? Que estás cheio de desejo e a sentir-te de novo apaixonado? Já fui molestada uma vez esta tarde.

Cuidado, Maddy Deu um passo na direcção da mulher e esta viu a fúria nos seus olhos. Tremia, mas não recuou um milímetro. Estava cansada de ser ofendida, fosse qual fosse o nome que ele desse ao facto Mas a paixão já não a convencia. Estás a passar dos limites sibilou-lhe na cara

Também tu, quando me magoas.

Eu não te magoo. És tu que o queres, e adoras que eu o faça.

Eu amo-te, mas não gosto da maneira como me tratas

Com quem andaste a falar? Aquele pretinho punk com quem trabalhaste. Sabes que ele é bissexual, ou isto constitui uma surpresa para ti. Tentava humilhar Greg e chocá-la, mas em vez disso ultrajou-a ainda mais.

Sim, de facto eu sabia E não tenho nada com isso, nem tu. Foi por isso que o despediste.

Despedi-o porque era uma péssima influência para ti. Corriam boatos a vosso respeito. Poupei-te ao embaraço de os abordar contigo e pu-lo na rua, que é o lugar dele

Que coisa nojenta. Sabes que nunca te enganei.

Tu o dizes. Mas, para o que desse e viesse, achei por bem afastar a tentação.

Foi por isso que contrataste aquela múmia pretensiosa que nem é capaz de ler as notícias? Usa um teleponto do tamanho de um cartaz de cinema. E vai mandar os teus níveis de audiência pela sanita abaixo.

Se forem, menina, vais com eles. Por isso, o melhor que tens a esperar é que ele ponha alguma animação no seu desempenho. Tinhas mais juízo se o apoiasses, como fizeste com o teu amiguinho preto. Porque se as audiências derraparem, pode bem ser que fiques sem emprego e vás para casa esfregar soalhos, porque não há mais nada que saibas fazer, pois não? Dizia-lhe coisas repelentes e toda a sua pretensão de fazer amor com ela ia por água abaixo. Ao ouvi-lo, o que lhe apetecia era bater-lhe.

Porque procedes assim, Jack? Tinha lágrimas nos olhos, mas isso não parecia incomodá-lo. Deu uns passos em frente, agarrou-lhe um punhado de cabelo e puxou-a, para que lhe prestasse atenção.

Procedo assim, bebé-chorão, porque precisas de te lembrar quem manda aqui. Dá a impressão de o teres esquecido. Não quero ouvir nunca mais as tuas ameaças, ou as tuas exigências. Eu te direi o que quero, quando o quero, se o quero. E se te ocultar qualquer coisa, não é da tua conta. Tudo o que tens a fazer é o teu trabalho, ler as notícias, de vez em quando dar uma informação especial, e à noite ir para a cama e não te pores com lamúrias a respeito de estar a magoar-te. Nem sequer sabes o que é ser magoada e reza para que nunca venhas a sabê-lo. Tens sorte por eu me dar ao trabalho de fornicar contigo.

És repugnante. Sentia náuseas: o marido não a respeitava minimamente, e decerto não a amava. Quis dizer-lhe que se ia embora, mas teve medo. E a polícia desaparecera, agora que tinham apanhado o assaltante. De súbito, teve medo de Jack, e soube que ele se apercebera disso.

Estou farto de te ouvir, Mad. Agora vai para a cama, e fica lá. E eu dir-te-ei o que quero fazer. Maddy permaneceu um longo momento de pé à sua frente, a tremer; pensou em recusar-se a ir para a cama com ele, mas achou que seria pior se o fizesse. O que em tempos fora um estilo algo rude de fazer amor tornara-se incrivelmente violento desde que ela o desafiara com a peça sobre Janet McCutchins. Estava a castigá-la.

Subiu as escadas e meteu-se na cama sem pronunciar uma palavra, rezando para que ele não tencionasse fazer amor. E por milagre, quando por fim foi deitar-se, Jack virou-lhe as costas sem lhe falar... e nada fez. Maddy ficou tremendamente aliviada.

 

No dia seguinte, Maddy não foi para o trabalho com Jack. Ele precisava de sair cedo e a mulher disse que tinha umas chamadas a fazer antes de ir trabalhar. Jack não perguntou nada. Não foi feita qualquer alusão à noite anterior; o marido não lhe pediu desculpa e Maddy não se referiu ao caso. Mal ele partiu, ligou para o gabinete de Eugenia Flowers e marcou uma entrevista. A psiquiatra concordou em recebê-la no dia seguinte. Maddy ficou a pensar em como iria passar mais uma noite com Jack. Era agora claro para si que tinha de fazer qualquer coisa antes que ele a agredisse a valer. Já não parecia ao marido suficiente rebaixá-la, chamar-lhe “miserável lixo branco”, começava a atacá-la abertamente, e ela começava a pensar que tudo o que Jack sentia por ela era aversão e desprezo.

Acabava de chegar ao escritório quando Bill lhe telefonou:

Como vai isso?

Não muito bem respondeu, sincera. As coisas parecem estar a tornar-se um pouco complicadas.

Vai piorar se você não se afastar, Maddy. Ouviu o que a doutora Flowers disse.

Tenho uma marcação para ela amanhã. E então contou-lhe o que se passara com o assaltante. Sabia que a história sairia no jornal da tarde e que teria de identificar o suspeito numa formação em linha.

Santo Deus, Maddy, ele podia tê-la morto.

Tentou violar-me. Aparentemente, o Jack estava a par de tudo, mas nunca me contou. Não me julga suficientemente esperta para tomar decisões, por eu nunca ter frequentado a faculdade.

Você é uma das mulheres mais brilhantes que eu conheço, Maddy. O que vai fazer?

- Não sei. Estou assustada admitiu. Tenho medo das consequências se me for embora.

Eu tenho medo das consequências se não for. Ele pode matá-la.

Não faria isso. E se eu não arranjar outro emprego. Se eu voltar para Knoxvill. Estava apavorada. As ideias entrechocavam-se na sua cabeça

Nada disso vai acontecer. Vai encontrar um emprego melhor. Knoxville acabou para si, Maddy Tem de se consciencializar disso

E se ele tem razão. Se eu sou estúpida de mais para ser contratada por outra pessoa. O Jack está certo, eu nunca andei na faculdade. O marido induzira-a a achar-se uma fraude

E daí, por amor de Deus. Ouvi-la frustrava-o. A mulher entravava qualquer ajuda. Você é bonita, jovem e talentosa. Obteve os níveis máximos para a sua emissão. Maddy, mesmo se ele estivesse certo e você tivesse de esfregar soalhos, o que não será nunca o caso, ainda assim estaria melhor do que agora. Ele trata-a como lixo e pode vir a agredi-la

Nunca até hoje o fez. Mas não era inteiramente verdade. Não a magoara tão brutalmente como Bobby Joe, mas tinha uma cicatriz no mamilo que lhe mordera em Paris. A sua forma de violência era apenas mais subtil e mais perversa do que a do seu anterior marido, mas de igual modo arrasadora psiquicamente

Penso que a doutora Flowers vai dizer-lhe o mesmo que eu lhe disse. Conversaram mais uns minutos e Bill convidou-a para almoçar, mas ela tinha de ir ver a formação em linha à hora do almoço

E, quando mais tarde Greg lhe telefonou, repetiu-lhe as palavras de Bill

Estás a brincar com o fogo, Mad O sacana é louco à sua maneira e um dia destes apanha-te. Não esperes que isso aconteça. Põe-te a cavar depressa Mas, por qualquer razão, a dúvida paralisava-a, era impossível seguir o conselho. E se ele ficasse realmente furioso com ela. E se de facto a amava. Depois de tudo o que fizera por ela, não podia abandoná-lo. Era uma imagem clássica de agressor e agredido, tal como a Dra Flowers lhe dissera ao telefone, mas também compreendera que Maddy estava imobilizada pelo medo. A Dra Flowers não a pressionara tanto como Bill e Greg.

Sabia que Maddy tinha de aguardar até estar pronta. E Maddy sentiu-se aliviada depois de terem conversado. Ia a pensar nessa conversa, e na hora do encontro que haviam combinado, quando saiu para almoçar. E, no regresso, vinha distraída. Ao entrar no edifício, nem reparou na rapariga que a observava do outro lado da rua. Era nova e bonita, trazia mini-saia preta e sapatos de salto alto, e não tirou os olhos de Maddy.

Estava lá outra vez no dia seguinte, quando Maddy saiu para o almoço com Bill. Encontraram-se à entrada e foram almoçar ao 701 da Pennsylvania Avenue, sem fazer segredo disso. Não tinham nada a esconder. Trabalhavam juntos na comissão da primeira-dama, Maddy sabia que nem Jack poderia objectar o que quer que fosse.

O almoço foi agradável, e abordaram vários assuntos. Ela contou-lhe a conversa que tivera com a Dra. Flowers, uma pessoa muito compreensiva.

Espero que ela a ajude comentou Bill, inquieto. Pelo que podia avaliar, Maddy estava numa situação muito perigosa e ele sentia medo por ela.

Também eu. Algo mudou entre o Jack e eu explicou a Bill, como se tentasse fazê-lo a si própria e não fosse capaz. Mas havia agora uma perversidade no seu relacionamento com Jack que nunca antes existira. A Dra. Flowers achava que isso se devia a ele senti-la a afastar-se, e que Jack iria fazer tudo o que pudesse para a aterrorizar até ela voltar a deixar-se controlar. Quanto mais independente, e mais saudável ela fosse ficando, menos contente ele se sentiria. A Dra. Flowers aconselhara-a a ser cautelosa. Mesmo agressores não violentos poderiam mudar de táctica a qualquer momento, e Maddy apercebera-se disso em Jack de vez em quando.

Ela e Bill falaram bastante tempo do assunto e ele disse-lhe que ia para Vineyard na semana seguinte, mas que detestava deixá-la sozinha.

Dou-lhe o meu número de telefone antes de partir. E se acontecer alguma coisa, posso sempre regressar. Era como se agora se sentisse responsável por ela, sobretudo desde que sabia que Maddy praticamente não tinha amigos para a apoiar, excepto Greg que fora para o seu novo emprego em Nova Iorque.

Fico bem garantiu ela, sem convicção, mas não querendo sobrecarregá-lo com os seus problemas. Quem me dera poder acreditar nisso. Ia ficar fora duas semanas e esperava acabar o seu livro enquanto lá estivesse. Ansiava também por navegar com os filhos. Era um navegador exímio. Bem desejava que você aparecesse. Estou convencido de que gostava. Vineyard é um encanto.

Adorava. Devemos ir passar uns dias à nossa fazenda na Virgínia, mas ultimamente o Jack anda tão envolvido com o presidente que nunca vamos a parte nenhuma, com excepção da nossa viagem à Europa. Ao escutá-la, Bill admirava-se com o facto de um homem que possuía uma estação de televisão, e era tão íntimo do presidente, poder ser um agressor E de uma mulher, que era literalmente uma estrela por mérito próprio, famosa, muito bem paga, bonita e inteligente, lhe permitir a agressão. Tratava-se na verdade de um flagelo que não respeitava classe, dinheiro, poder ou educação, tal como a Dra Flowers afirmara

Espero que quando regressar você esteja fora de tudo isto. Até lá, vou continuar ralado consigo disse, e olhou-a intensamente. Era tão encantadora, e tão digna, desprendia-se dela tanta cordialidade e sedução, que não entendia como podia alguém fazer-lhe semelhante coisa. Dava-lhe prazer a sua companhia, tencionava falar com ela diariamente. A amizade que os unia transformava-se rapidamente num forte laço entre ambos

Se a sua filha vier vê-lo a Washington, adorava conhecê-la

Decerto gostaria dela. Sorriu. Achava curioso o facto de Maddy e a filha serem da mesma idade, mas os seus sentimentos para com Maddy começavam lentamente a evoluir para algo diferente. Via-a mais como uma mulher do que como uma miúda e, sob muitos aspectos, ela era muito mais adulta e sofisticada do que a filha. Maddy passara por tantas coisas, algumas delas nada agradáveis. Parecia-lhe mais uma amiga e companheira do que alguém da idade da sua própria filha

Saíram às três horas do restaurante. Quando Maddy voltou ao trabalho, uma bonita rapariga com cabelo escuro, comprido, e de mini-saia, encontrava-se na entrada. Olhou a direito para Maddy e esta teve a esquisita sensação de haver nela qualquer coisa de familiar, mas não foi capaz de localizá-la. A rapariga fitou-a e depois afastou-se, como se quisesse ver Maddy mas não ser reconhecida por ela. E, mal Maddy começou a subir as escadas, perguntou ao guarda em que andar ficava o gabinete de Miss Hunter. O guarda, porém, em vez de a informar indicou-lhe o de Jack. Era as instruções que tinha. Quaisquer visitas para Mrs. Hunter eram directamente encaminhadas para o marido, e filtradas por ele, embora Maddy o ignorasse. Nunca ninguém lho dissera. E não chocava quem quer que perguntasse por ela. Afinal, tratava-se de um processo razoável de selecção.

A rapariga de mini-saia subiu no elevador, e uma secretária perguntou-lhe o que pretendia.

Gostava de falar com Mistress Hunter. Aparentava vinte e poucos anos.

Assunto pessoal ou de trabalho? perguntou a secretária, a tomar nota. O nome da rapariga era Elizabeth Turner.

Pessoal. Hesitou um breve instante antes de responder.

Mistress Hunter não recebe ninguém hoje, está muito ocupada. Se quiser, diga-me do que se trata, ou deixe uma mensagem e eu entrego-lha. A rapariga acenou afirmativamente e mostrou-se um pouco desapontada. Mas pegou no papel que a secretária lhe estendia e escreveu uma nota curta, que devolveu à empregada. Esta desdobrou o papel, leu-o de relance e levantou-se, algo nervosa. Queira esperar um momento por favor, Miss... Miss Turner. A rapariga limitou-se a um aceno de cabeça, enquanto a secretária desaparecia e passado um minuto entregava a nota a Jack. Jack olhou a nota e a secretária, furioso.

Onde está ela? O que raio está a fazer aqui?

Está na recepção, Mister Hunter.

Traga-a cá. O seu espírito galopava, tentando decidir o que fazer, e esperava ardentemente que Maddy não a tivesse visto. Mas se visse, não a reconheceria, por isso talvez não tivesse importância.

A rapariga foi introduzida e Jack ficou de pé a olhá-la. O seu olhar era frio e duro, mas o sorriso com que a cumprimentou dizia muito. Maddy não sabia absolutamente nada acerca da rapariga.

 

Maddy foi, sem dar nas vistas, ao seu encontro com a Dra. Flowers. A única pessoa que sabia era Bill Alexander. E quando Maddy entrou, a médica tinha o mesmo ar de avozinha calma do primeiro dia em que se haviam encontrado na Casa Branca.

Como está, minha querida? cumprimentou num tom caloroso. Maddy explicara ao telefone, rápida e sucintamente a sua situação com Jack, mas não tivera tempo para entrar em pormenores.

Aprendi muito consigo no outro dia afirmou, sentando-se numa das confortáveis cadeiras de cabedal. O consultório era acolhedor, mas dava a impressão de que tudo o que lá havia fora comprado numa loja de segunda mão. Nada condizia, as cadeiras estavam muito usadas e todos os quadros pareciam pintados por crianças. Mas impecavelmente arrumado e íntimo, e surpreendentemente Maddy sentiu-se em casa. Eu sou o produto de um lar agressivo, o meu pai batia na minha mãe todos os fins-de-semana em que se embebedava. E, aos dezassete anos, casei com um homem que me fazia a mesma coisa explicou, respondendo às perguntas da Dra. Flowers sobre o seu passado.

Lamento imenso, minha querida. A Dra. Flowers mostrava-se pesarosa e preocupada, mas o tom doce de avozinha contrastava nitidamente com o olhar, que parecia tudo compreender e tudo ver. Eu sei como isso pode ser doloroso, não só fisicamente mas pelo género de cicatrizes que deixa. Quanto tempo esteve casada?

Oito anos. Só me vim embora depois de ele me ter partido uma perna e os dois braços... e de ter feito seis abortos.

Presumo que se divorciou dele. Os olhos perscrutadores fixavam Maddy.

Esta assentiu, pensativa. Só o facto de falar no assunto trazia de volta recordações demasiado penosas. Em espírito, via Bobby Joe tal como se apresentava no dia em que o deixara.

Fugi. Nós vivíamos em Knoxville. O Jack Hunter salvou-me. Comprou a estação de televisão onde eu trabalhava e ofereceu-me um lugar aqui. Foi buscar-me de limusina a Knoxville E mal cá cheguei, divorciei-me do meu marido. O Jack e eu casámos dois anos mais tarde, um ano depois de o meu divórcio ser definitivo.

A Dra Flowers estava interessada em mais do que palavras e ouvia muito mais do que aquilo que as pessoas lhe contavam. Há quarenta anos que tinha prática de casos de mulheres violentadas, conhecia todos os indícios, às vezes até mesmo antes de as suas pacientes os reconhecerem. Fez-se um longo silêncio durante o qual olhou Maddy nos olhos.

Fale-me do seu actual marido pediu, muito calma.

O Jack e eu estamos casados há sete anos e ele tem sido bom para mim. Muito bom mesmo. Organizou a minha carreira e vivemos luxuosamente. Temos uma vivenda, um avião, eu tenho um emprego óptimo, graças a ele, uma fazenda na Virgínia que é verdadeiramente o seu. A voz foi-se-lhe sumindo; a Dra. Flowers observava-a. Já sabia as respostas às perguntas ainda não feitas.

Têm filhos?

Ele tem dois filhos de um casamento anterior e não quis mais quando nos casámos. Debatemos muito o assunto e ele decidiu... nós decidimos que eu laqueasse as trompas.

Está satisfeita com essa decisão ou lamenta tê-la tomado?

Era uma pergunta franca que merecia uma resposta franca.

Às vezes, lamento. Quando vejo bebés, gostava de ter tido um. Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Mas o Jack estava certo, acho eu. Não temos de facto tempo para filhos.

O tempo não é para aqui chamado retorquiu calmamente a Dra Flowers É um caso de vontade, e de necessidade. Sente que precisa de um bebé, Maddy?

Às vezes, sinto Mas agora é tarde. Tenho as trompas laqueadas, e ligadas para maior segurança. É irreversível respondeu, triste.

Podem adoptar, se o seu marido estiver disposto. Estaria?

Não sei respondeu Maddy em voz abafada. Os problemas deles eram muito mais complicados do que isso. Pelo telefone, só os resumira à Dra. Flowers.

Acerca de adoptar um bebé? A Dra. Flowers parecia surpreendida pelo que Maddy acabara de contar-lhe. Não o esperava.

Não, acerca do meu marido. E do que a senhora disse no outro dia. Veio à baila numa conversa que acabei de ter com um colega. Eu... ele pensa... eu penso.. Rolavam-lhe lágrimas pela cara quando por fim desabafou: O meu marido é agressivo comigo. Não me bate como o primeiro fazia. Nunca levantou uma mão contra mim... Há algum tempo, abanou-me... e é... sexualmente... muito brutal, mas não creio que o faça de propósito. Acho que é muito arrebatado... Calou-se e olhou a Dra. Flowers nos olhos. Tinha que lhe contar. Eu costumava pensar que ele era rude, mas não é... É cruel, agressivo... e magoa-me. De uma forma intencional, julgo. Além disso, controla-me. Constantemente. Toma todas as decisões por mim. Trata-me como se eu fosse lixo, lembra-me que não sou instruída, e diz-me que se me despedisse eu iria direita para a sarjeta e ninguém me daria emprego. Nunca me permite ter amigos, isola-me. Faz-me sentir uma porcaria. Mente-me, deprecia-me, convence-me de que não valho nada. Humilha-me e ultimamente assusta-me. Está a ficar mais brutal na cama, e ameaça-me. Eu nunca tinha querido ver, mas ele faz praticamente tudo aquilo que a doutora descreveu há dias. As lágrimas continuavam a inundar-lhe o rosto.

E você permite-lho disse calmamente Eugenia Flowers. Porque acha que ele tem razão e você merece que ele a trate assim. Pensa que o terrível segredo que carrega é ser tão má como ele diz, e que se não fizer exactamente o que ele manda toda a gente ficará a par da sua inferioridade. Maddy anuiu com um aceno de cabeça. As palavras da médica aliviavam-na, porque exprimiam precisamente o seu pensamento. E agora que está consciente disso, o que vai fazer? Quer ficar com ele? A pergunta era directa, e Maddy não temia dizer a verdade, por mais disparatada que se lhe afigurasse.

Às vezes. Eu amo-o. E creio que ele me ama. Ainda penso que, se percebesse o que está a fazer-me, não o faria. Talvez se eu o amasse mais, ou pudesse ajudá-lo a compreender a que ponto é ofensivo, ele deixasse de o ser. Não julgo que queira realmente magoar-me.

É possível Mas improvável. Encarou Maddy. Não a julgava. Abria-lhe portas e janelas. O que acima de tudo queria dar-lhe era perspectivas. E se ele quisesse magoá-la, se você soubesse que era intencional? Continuava a querer ficar com ele?

Não sei... talvez. Apavora-me a ideia de deixá-lo. E se ele tiver razão? Se eu não conseguir arranjar um emprego, e ninguém me quiser nunca mais? Em silêncio, a Dra Flowers admirava-se com o facto de aquela deliciosa criatura poder pensar que nunca mais alguém a amaria ou lhe daria emprego. A verdade era que nunca ninguém a amara, nem o primeiro marido ou os pais, ou mesmo Jack Hunter. Disso, a Dra. Flowers tinha a certeza. Não por culpa de Maddy, só por ter escolhido homens que mais não queriam do que feri-la. Ainda tinha, todavia, de perceber isso.

Eu convenci-me de que tudo seria tão simples Pensei, quando deixei o Bobby Joe, que nunca voltaria a consentir que alguém me agredisse. Jurei que mais ninguém me bateria. E o Jack não bate. Pelo menos, com as mãos.

Mas não é assim tão simples, pois não? Há outras formas de agressão que até são mais destrutivas, como o género de agressão que ele pratica em si, batendo na sua alma e na sua auto-estima. Se lho permitir, Maddy, o Jack vai destruí-la. É o que ele pretende e o que você o deixou fazer durante sete anos. E pode continuar a deixar, se quiser. Não tem de o abandonar. Ninguém vai obrigá-la

Os meus dois únicos amigos dizem-me que tenho de me ir embora, se não, ele vai dar cabo de mim

Pode fazê-lo. É quase certo que o fará, de uma maneira ou de outra. Nem sequer tem de ser ele a fazê-lo Eventualmente, fá-lo-á você mesma por ele. A probabilidade era aterradora. Ou definhará interiormente. O que os seus amigos lhe dizem não é inconcebível. Ama-o o suficiente para correr um tal risco?

-Acho que não... não quero... Mas assusta-me deixá-lo e... Reprimiu um soluço. Vou ter saudades dele. Tivemos uma vida tão boa! Gosto de estar com ele.

Como a faz ele sentir-se quando está a seu lado?

Importante. Bem... não... não é verdade. Faz-me sentir estúpida e cheia de sorte por estar com ele.

É estúpida?

Não. Maddy riu-se. Só nos homens por quem me apaixono.

Há mais alguém de momento?

Não, não exactamente... bem, não em sentido romântico. O Bill Alexander é um bom amigo... Contei-lhe tudo no dia em que a doutora foi à comissão.

E qual é a opinião dele?

Que eu devia fazer as malas o mais depressa possível e pôr-me a andar antes que o Jack me faça qualquer coisa horrível.

Já fez, Maddy. E quanto ao Bill? Está apaixonada por ele?

Não creio. Somos apenas bons amigos.

O seu marido sabe? A Dra. Flowers demonstrava preocupação.

Não... não sabe. E Maddy mostrou-se assustada ao responder. A médica ficou um longo momento a olhá-la em silêncio.

Tem um extenso caminho a percorrer, Maddy, até alcançar a segurança. E mesmo quando lá chegar, quererá retroceder algumas vezes. Vai ter saudades dele, e da maneira como ele a faz sentir-se, não dos momentos maus, mas dos bons. Os homens agressivos são muito espertos. Há um potencial tremendo nesse género especial de veneno. Faz com que as mulheres queiram mais, porque os bons tempos são deliciosos. Mas os maus são horríveis. É um pouco como deixar a droga, ou deixar de fumar, ou qualquer outra espécie de vício. A agressão, por muito terrível que seja, é viciante.

Acredito. Estou tão habituada ao Jack, que não me imagino a viver sem ele. Mas há alturas em que só me apetece fugir, ir para qualquer outro sítio onde não possa ser atingida.

O que precisa de fazer, e eu sei que é difícil, é tornar-se tão forte que ele não possa atingi-la onde quer que esteja, porque você não lho permitirá. Tem de partir de si, ninguém pode na realidade protegê-la. Os amigos podem escondê-la dele, e mantê-lo afastado, mas, se você quiser mesmo, esgueira-se e volta para ele, para a droga que ele lhe dá. Que é perigosa como qualquer outra, ou talvez mais. Acha que tem força suficiente para enfrentar o problema?

Maddy acenou afirmativamente, pensativa. Era tudo o que queria. Sabia-o. Do que agora precisava era de coragem

Se me ajudar. Tinha lágrimas nos olhos.

Ajudo. Pode levar-nos algum tempo. Seja paciente consigo própria. Quando estiver pronta, você mesma o deixa. Você saberá quando achar que já basta e estiver suficientemente forte para agir. Entretanto, tem de tomar todas as precauções possíveis para se manter a salvo, não se arriscar a permitir-lhe agredi-la mais do que já agrediu. Ele dará por isso. Os tipos agressivos são como animais selvagens, têm percepções e defesas altamente apuradas. O que há a fazer é aperfeiçoar agora as suas. Se ele pressentir que a presa está a fugir-lhe, tentará encurralá-la, levando-a a sentir-se assustada, desnorteada e sem esperança. Convencê-la-á de que não há saída, de que sem ele não será nada. E parte de si quererá acreditar nele. Mas o resto de si estará mais alerta. Agarre-se tanto quanto puder a essa certeza. É o que vai salvá-la, a parte que não quer ser mais agredida, ou enganada, ou prejudicada, ou humilhada. Oiça essa voz e tente ignorar a outra. Nem por sombras duvidava de que Jack era agressivo. Por tudo o que ouvira nesse dia, tinha a certeza de que o era, e podia ver nos olhos de Maddy a que ponto fora ferida. Não se tratava porém de algo sem remédio, ou salvação, havia muitas coisas a fazer por ela, e a Dra Flowers estava certa de que Maddy encontraria o caminho de saída mais cedo ou mais tarde, quando estivesse pronta, não antes. Tinha de ser ela mesma a encontrá-lo, ou então esse caminho nada significaria para ela.

Quanto tempo acha que nos será preciso? perguntou Maddy, preocupada. Bill Alexander tinha querido que ela deixasse Jack no dia em que lhe contara o que se passava Mas ela não podia ainda fazê-lo

É uma coisa difícil de precisar ou mesmo prever. Você saberá quando está pronta, pode levar dias, ou meses, ou anos. Depende do medo que tiver dele e da parte de si que quer acreditar no seu marido. Vai fazer-lhe imensas promessas, e ameaçá-la, vai tentar tudo o que puder para a conservar, como um traficante de droga a oferecer-lhe o produto que você escolher. Neste momento, essa droga é, para si, um tratamento agressivo. E quando você tentar pôr um ponto final a esse comportamento, vai assustá-lo e torná-lo mais agressivo ainda.

Isso parece horrível declarou Maddy, embaraçada acerca da sua dependência da agressão, mas sabendo que havia alguma verdade em tudo o que a psiquiatra dizia. Parecia-lhe correcto, tocava uma corda familiar.

Não tenha vergonha. Muitas de nós passamos por isso. As corajosas admitem-no. Para outras pessoas, é difícil aceitar que se possa amar um homem que procede assim. Mas é longo o retrocesso, passou muito tempo, relativamente ao que lhe disseram sobre si própria na sua infância. Se lhe afirmaram que era inútil, malcomportada, terrível, insuportável, isso constitui uma mensagem poderosa ao seu lado obscuro. O que é preciso agora é enchê-lo de luz, e convencê-la de que é uma pessoa encantadora. E posso dizer-lhe uma coisa: não só vai arranjar outro emprego nos primeiros cinco minutos em que estiver livre, como vai haver homens, homens bons com atitudes sãs, a rastejar a seus pés mal saibam que o caminho está livre. Porém, nada disto importa até você acreditar.

Maddy riu-se perante a imagem evocada. Era sem dúvida um quadro apelativo, as palavras ouvidas muito reconfortantes. Já se sentia melhor. Confiava plenamente na capacidade da Dra. Flowers para a arrancar à confusão em que mergulhara. E estava-lhe grata por se dispor a ajudá-la. Maddy sabia como a psiquiatra era uma pessoa ocupada.

Gostava que voltasse cá daqui a uns dias, para me contar como vão as coisas, consigo, com ele. E vou dar-lhe um número especial para onde pode ligar-me, de noite e de dia. Se acontecer alguma coisa que a assuste, Maddy, ou se se julgar em perigo, ou mesmo se apenas estiver perturbada, telefone-me.

Levo o meu telemóvel para toda a parte, pode sempre entrar em contacto comigo. Era uma linha especial de apoio às mulheres maltratadas. Foi um alívio para Maddy sabê-lo e ficou grata pela ajuda. Quero que saiba, Maddy, que não está sozinha. Há imensa gente a querer auxiliá-la, e você tem forças, se quiser.

Quero. Pronunciou a palavra num tom que pouco mais era do que um murmúrio e menos firmemente do que agradaria aos que quereriam apoiá-la. Mas, como sempre, com sinceridade. É por isso que estou aqui. Apenas, não sei como agir. Não sei como livrar-me. Parte de mim acredita que sem ele nunca farei nada.

É aquilo em que quer que você acredite. Assim, precisará dele e ele pode manobrá-la como quiser. As pessoas com relacionamentos saudáveis não tomam decisões uma pela outra, não dizem à outra que ela não vale nada nem a tratam como se fosse lixo, nem a ameaçam de cair na sarjeta! Isso é agressão, Maddy. O seu marido não precisa de lhe atirar cal à cara ou de lhe bater com um ferro quente. Não precisa. Faz-lhe mal suficiente com a boca e a mente, não precisa de usar as mãos para a magoar. O que ele faz é muito eficaz. Maddy concordou, com um aceno.

Meia hora mais tarde saiu e voltou para o trabalho. E ao entrar no edifício, não viu a rapariga de cabelo preto e comprido de novo parada junto à entrada, a observá-la. E lá continuava às oito da noite, desta vez do outro lado da rua, quando Maddy entrou no carro para ir para casa. Parecia esperar qualquer coisa. Mas Maddy nunca a viu. Quando um pouco mais tarde Jack saiu e tomou um táxi, a rapariga escapou-se à pressa, escondendo a cara para que ele não pudesse reconhecê-la. Já tinham dito tudo o que tinham a dizer, e ela sabia que com Jack não iria a parte alguma.

 

No dia seguinte, estava Maddy a trabalhar com Brad numa pesquisa sobre a Comissão de Ética do Senado, quando o telefone tocou. Atendeu-o. No outro extremo da linha, alguém ficou longo tempo à escuta sem dizer nada. Por um momento, Maddy assustou-se. Seria outro assaltante, ou um qualquer telefonema de uma mente doentia? Entretanto, desligaram e, ao voltar a embrenhar-se no trabalho, esqueceu o incidente.

A mesma coisa se passou à noite, em casa, e desta vez contou a Jack, que encolheu os ombros e comentou que provavelmente se tratava apenas de um erro de número. Brincou com ela por ter medo da própria sombra, só porque um maluco a atacara. Dada a sua popularidade, não era de surpreender que um tipo a tivesse atacado. Acontecia à maioria das celebridades.

Faz parte do meio, Mad. Tu lês as notícias. Devias saber isso. As coisas entre ambos haviam acalmado, mas ainda a aborrecia o facto de ele não a ter avisado acerca do assaltante. Jack dissera-lhe que ela tinha mais em que pensar e que os casos de segurança relativos aos apresentadores eram um problema seu. Maddy continuava porém a achar que o marido devia ter-lhe contado.

Na segunda-feira, ao telefone com a secretária particular da primeira-dama, abordava uma alteração de data da próxima reunião da comissão. Como a primeira-dama tinha de acompanhar o presidente a um jantar oficial no Palácio de Buckingham, tentava estabelecer uma nova data com Maddy e os outros onze participantes da comissão. Maddy franzia distraidamente o sobrolho ao ouvir as datas propostas, quando uma jovem entrou no seu gabinete. Tinha cabelo preto comprido e liso, vestia calças de ganga e T-shirt. Vinha arranjada e limpa, mas com roupas baratas, e demonstrava grande nervosismo quando Maddy, sem saber de quem se tratava, ergueu para ela o olhar. Nunca a vira, pensou que fora mandada por outra secção da estação, ou talvez que apenas quisesse um autógrafo. Reparou que não exibia qualquer identificação e trazia na mão uma embalagem de donuts. Ocorreu-lhe então que tivesse sido esse o pretexto para a rapariga entrar no edifício.

Não, obrigada. Sorriu-lhe e com a mão acenou-lhe para que se fosse embora, mas a jovem não se mexeu, limitou-se a fitá-la e, por um instante, Maddy entrou em pânico. E se fosse outra atacante. Talvez escondesse uma arma, ou uma faca, ou fosse doente mental. Deu-se conta de que tudo era possível e pensou em accionar o botão de alarme sob a secretária, mas não o fez. O que é? Tapou o bocal ao questioná-la

Preciso de falar consigo respondeu a rapariga, e Maddy olhou-a, desconfiada. Qualquer coisa nela a enervava extremamente

Importa-se de esperar lá fora? Maddy mostrou-se firme, e a rapariga saiu do gabinete com relutância, carregando o pacote de donuts

Maddy deu à secretária de Phyllis Armstrong três datas possíveis e a secretária prometeu voltar a contactá-la. Mal desligou, pegou no intercomumicador e falou com um recepcionista da entrada.

Há uma pessoa à minha espera lá fora. Não sei o que quer. Por favor, fale com ela e veja do que se trata e depois ligue-me, sim? Talvez fosse uma perseguidora de celebridades ou uma coleccionadora de autógrafos, ou desejasse um emprego. Mas desagradava a Maddy que tivesse entrado com tanto à-vontade no seu gabinete Dado o ocorrido recentemente, era ainda mais enervante

O intercomumicador tocou daí a minutos e Maddy atendeu-o de imediato

Diz que precisa de falar consigo Que é um assunto pessoal

Que assunto. Quer matar-me? Tem de lhe dizer o que é, se não, não a recebo. Mas ao pronunciar estas palavras ergueu o olhar e a rapariga encontrava-se à entrada do gabinete com um ar determinado. Oiça, não é assim que as coisas se passam aqui. Não sei o que você quer, mas tem de falar com alguém antes de vir ter comigo. Mostrou-se firme e calma, mas roçava o dedo pelo botão de alarme e o coração batia-lhe, apressado. O que quer de mim?

Só quero falar consigo uns minutos. Maddy viu que a rapariga estava quase a chorar e que os donuts tinham desaparecido.

Não sei se posso ser-lhe útil disse, hesitante, e então ocorreu-lhe de repente que o caso podia ter a ver com a sua presença na Comissão de Violência contra as Mulheres, ou com algumas das histórias destas. Talvez a rapariga contasse com a sua compreensão. Do que se trata? interrogou, com um pouco mais de brandura.

É a seu respeito. A voz da rapariga tremia e, quando a olhou com mais atenção, Maddy reparou que lhe tremiam também as mãos.

A meu respeito, o quê? perguntou cautelosamente. O que tinha a rapariga a dizer-lhe? Porém, ao olhá-la, assaltou-a um pressentimento muito estranho.

Penso que a senhora é minha mãe disse ela num sussurro, para que ninguém que fosse a passar pudesse ouvi-las, e Maddy deixou-se cair na cadeira como se tivesse levado uma bofetada.

Você pensa o quê? Do que está a falar? Ficara branca, e agora as suas mãos, sempre junto ao botão de alarme, vacilavam. Pensou instantaneamente, com preocupação, que a rapariga era louca. Eu não tenho filhos.

Nunca teve? Os lábios da rapariga tremiam e os olhos começavam a espelhar o seu desapontamento. Para ela, tinham sido três anos à procura da mãe, e pressentia que voltava ao zero. Já voltara a muitos zeros. Alguma vez teve um bebé? Chamo-me Elizabeth Turner, tenho dezanove anos, nasci a quinze de Maio, em Gatlinburg, no Tennessee. Julgo que a minha mãe era de Chattanooga. Falei com toda a gente que pude, e tudo o que sei é que ela tinha quinze anos quando nasci. Creio que se chamava Madeleine Beaumont, mas não tenho a certeza. E uma pessoa com quem falei disse que eu me parecia muito com ela. Maddy olhava-a, incrédula; tirou lentamente a mão do botão de alarme e pousou-a sobre a secretária.

O que a leva a pensar que seja eu?

Não sei. Sei que é do Tennessee. Li uma vez numa entrevista, e o seu nome é Maddy, e., não sei... tenho a impressão de que me pareço um bocadinho consigo, e.. eu sei que isto parece loucura. Corriam-lhe lágrimas pela cara devidas agora ao stresse de ter chegado até ela, e ao medo de um novo desapontamento. Talvez eu apenas quisesse que a senhora fosse a pessoa certa. Vi-a muito na televisão e gosto verdadeiramente de si. Fez-se na sala um prolongado e pesado silêncio, enquanto Maddy avaliava a situação e tentava decidir como lidar com ela. Nunca desviou os olhos dos da rapariga e ao fitá-la iam-se lentamente desmoronando paredes dentro de si, esboçando recantos em que há anos não tocava e que pensava que nunca mais se permitiria aflorar. Não queria que isso acontecesse, mas estava a acontecer, e não havia nada que pudesse fazer para o alterar. Podia facilmente pôr-lhe um ponto final. Podia dizer à rapariga que não era a mesma Madeleine Beaumont, que havia imensas no Tennessee, embora Beaumont fosse o seu apelido de solteira. Podia dizer que nunca estivera em Gatimburg, e que lamentava, e que lhe desejava boa sorte. Podia dizer tudo o que fosse necessário para se ver livre dela, e nunca mais lhe pôr a vista em cima, mas olhava-a e sentia que não podia fazer isso àquela rapariga.

Sem uma palavra, levantou-se e fechou a porta do gabinete. De pé, ficou a olhar para a rapariga que declarava ser o bebé que dera à luz aos quinze anos, e que pensara nunca mais voltar a ver. O bebé pelo qual havia chorado e sofrido durante vários anos e que acabara por se proibir a si própria de recordar. A criança de que nunca falara a Jack. Ele só sabia dos abortos

Como posso eu saber que você é quem diz? indagou, numa voz agitada pela culpa, pelo medo e pela memória dolorosa de ter abandonado o seu bebé. Nunca mais a vira depois do parto, só lhe pegara uma vez. Mas aquela rapariga podia ser qualquer pessoa, a filha de uma enfermeira que tivesse estado lá, a filha de um vizinho que quisesse chantageá-la e conseguir algum dinheiro. Muito poucas pessoas sabiam, e Maddy dava graças por nenhuma delas ter alguma vez aparecido. Temera-o durante anos

- Tenho a minha certidão de nascimento respondeu a rapariga desajeitadamente, tirando um papel da bolsa, um rolo fininho que deu a Maddy. E com ele, entregou-lhe também a foto pequenina de um bebé, que Maddy olhou numa agonia silenciosa. Era igual à que lhe tinham dado a ela, tirada no hospital, com as faces rosadas e uma etiqueta de identificação, envolta num cobertor cor-de-rosa. Maddy trouxera-a na carteira durante anos e por fim deitara-a fora, com medo de que Jack a encontrasse. Bobby Joe sabia, mas nunca ligara muito ao facto. Imensas raparigas que conhecia engravidavam e davam os bebés para adopção. Algumas tinham-nos tido mais novas do que Maddy. Mas, no decorrer dos anos, esse tornara-se o seu segredo mais negro.

Pode ser qualquer bebé replicou, friamente, ou você pode ter obtido esta fotografia de qualquer outra pessoa, até mesmo do hospital. Não prova nada.

Podíamos fazer testes de sangue, se achar que talvez eu possa ser a sua filha objectou com sensatez a rapariga, e o coração de Maddy sucumbiu. Fora corajosa, e Maddy não estava a facilitar-lhe as coisas. Mas... e se tudo o que a rapariga queria fosse destruir-lhe a vida, obrigá-la a enfrentar algo que finalmente olvidara e que não se atrevia a encarar agora? E como contar a Jack?

Porque não se senta? proferiu, sentando-se também, devagar, na cadeira junto à dela e fitando-a. Gostaria de estender os braços e tocar-lhe. O pai da rapariga fora um aluno mais velho do liceu em que Maddy andara, nem sequer se conheciam muito bem, mas Maddy gostava dele e tinham saído juntos umas vezes, durante um período em que ela e Bobby Joe estavam zangados. Morrera num acidente de automóvel três semanas depois do nascimento da bebé e já Maddy a tinha dado para adopção. Nunca dissera a Bobby Joe quem era o pai, e ele não se ralara muito, embora lhe tivesse batido uma ou duas vezes por causa disso, mas não passara de mais uma desculpa para a agredir, depois de casados. Como chegou até aqui, Elizabeth? Pronunciou o nome a medo, como se o simples facto de o mencionar a comprometesse a um destino que não estava ainda preparada para enfrentar. Onde vive?

Em Memphis. Vim de autocarro. Trabalho desde os doze anos para poupar dinheiro suficiente para vir. Sempre quis encontrar a minha verdadeira mãe. Tentei encontrar também o meu pai, mas acerca dele não achei pistas nenhumas. Ainda ignorava qual seria a resposta de Maddy e mostrava-se extremamente nervosa.

O seu pai morreu afirmou Maddy calmamente, três semanas depois do seu nascimento. Era um rapaz encantador e você parece-se um pouco com ele. Mas tinha muito mais semelhanças com a mãe, o tom de pele e as feições de ambas eram iguais, até Maddy podia vê-lo. Teria sido difícil renegá-la, mesmo se quisesse. Não podia porém impedir-se de imaginar o aspecto da história nos tablóides.

Como sabe? Elizabeth olhava-a, confusa, insegura quanto ao que ouvira. Era uma rapariga inteligente, mas subjugava-a o impacto do que estava a fazer, tal como a Maddy, e nenhuma delas pensava com clareza.

Maddy fixou-a durante muito tempo: o seu desejo mais secreto acabava de tornar-se realidade, ainda sem saber se esse desejo se transformaria num pesadelo, se seria traída, se a rapariga não passaria afinal de uma impostora, o que parecia improvável. Abriu a boca para falar, mas um soluço antecipou-se às palavras. Estendeu os braços e abraçou a rapariga sentada a seu lado. Levou muito tempo até poder dizer a frase que julgara nunca vir a pronunciar em toda a sua vida.

Eu sou a tua mãe.

Elizabeth suspirou profundamente, a mão voou-lhe para a boca, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, erguendo-os para Maddy, e então puxou-a para si. E limitaram-se a ficar sentadas por muito tempo, agarradas uma à outra e ambas a chorar.

Oh, meu Deus... Oh, meu Deus... Eu não achava realmente que fosse a senhora... Eu só queria perguntar-lhe... Oh, meu Deus...

Há muito ali sentadas, baloiçando para trás e para a frente, deram as mãos e olharam-se. Elizabeth sorria através das lágrimas, Maddy estava ainda demasiado abalada para coordenar os pensamentos. A única coisa que sabia era que, para além do momento e das circunstâncias, se haviam encontrado uma à outra. E quanto a isso, Maddy não fazia a menor ideia de como reagir. Era apenas o começo, passados tantos anos.

Onde estão os teus pais adoptivos? perguntou por fim. Tudo o que lhe fora permitido saber era que viviam no Tennessee, não tinham outros filhos e estavam bem empregados. Ignorava tudo o mais que se relacionasse com eles. Naqueles tempos, todos os registos eram secretos e as informações fornecidas à outra parte tão reduzidas que uma localização era impossível. Era esse o objectivo. E ao longo dos anos, quando as coisas mudaram legalmente em relação às adopções secretas, Maddy nunca fizera qualquer esforço para a encontrar. Achava que era tarde de mais, que era uma coisa de que devia libertar-se, não a apegar-se. Mas, agora, ela estava ali.

Nunca os conheci explicou Elizabeth, ainda a enxugar os olhos, agarrada à mão da mãe. Morreram quando eu tinha um ano, num descarrilamento de comboios, e eu fui criada por uma instituição estatal até aos cinco anos, num orfanato em Knoxville. Contraiu-se o estômago de Maddy ao dar-se conta de que vivia em Knoxville nessa altura, casada com Bobby Joe, e podia tê-la tido de volta se quisesse. Mas não tivera maneira de saber onde parava a criança. Depois disso, cresci em lares de acolhimento. Alguns eram bons, outros horríveis. Andei de cá para lá, nunca fiquei em nenhum mais de seis meses; na verdade, nunca quis ficar. Sentia-me sempre uma estranha, e alguns eram sórdidos. Por isso, ia sempre para o próximo toda contente.

E nunca mais ninguém te adoptou? Elizabeth abanou negativamente a cabeça; Maddy estava horrorizada.

Acho que foi por isso que eu quis encontrá-la. Quase fui adoptada uma vez ou duas, mas os meus pais de acolhimento concluíram sempre que era muito dispendioso. Tinham filhos deles, não podiam encarregar-se de mais um. Continuo em contacto com alguns, especialmente os últimos. Têm cinco filhos e foram bons para mim. Eram todos rapazes e eu quase me casei com o meu irmão mais velho, mas achei que seria muito esquisito, por isso não casei. Agora, vivo sozinha em Memphis, frequento o City College e trabalho como criada. Quando acabar os estudos, mudo-me para Nashville e tento arranjar emprego a cantar numa discoteca. Tinha um espírito de sobrevivência idêntico ao da mãe.

Tu cantas? perguntou Maddy, surpreendida, querendo de súbito saber tudo a seu respeito. Doía-lhe o coração ao pensar nela em orfanatos e lares de acolhimento, sem nunca ter pais autênticos. Mas, para seu espanto, a rapariga parecia ter ultrapassado os reveses, ao menos pelo que Maddy podia ver superficialmente. Era uma rapariga adorável, reparou que ambas haviam cruzado as pernas ao mesmo tempo e exactamente do mesmo jeito

Gosto de cantar. Acho que tenho uma voz bastante boa É o que as pessoas me dizem.

Então, não podes ser minha filha Maddy riu-se, de novo com lágrimas nos olhos. Dominava-a a emoção, sempre de mãos dadas, ali no seu gabinete. E miraculosamente, por uma vez ninguém as interrompeu. Era uma manhã rara, calma. De que mais gostas?

Gosto de cavalos. Sou capaz de montar qualquer coisa que tenha quatro patas. Mas detesto vacas. Uma das famílias que me acolheu tinha uma fazenda com gado leiteiro. Jurei que nunca me casaria com um fazendeiro. Ambas se riram. Gosto de crianças. Escrevo a todos os meus irmãos e irmãs de acolhimento, com poucas excepções. Na sua maioria, é boa gente. Gosto de Washington. Sorriu então a Maddy. Gosto de vê-la a si na televisão, gosto de roupas., gosto de rapazes.. gosto de praia.

Amo-te deixou Maddy escapar, embora nem sequer a conhecesse. Também te amei quando nasceste. Só que não pude tomar conta de ti; tinha quinze anos e os meus pais não me deixaram ficar contigo. Chorei-te durante anos. Perguntava-me sempre onde estarias e se te encontrarias bem, e se as pessoas eram boas para ti. Dizia para comigo que foras adoptada por gente encantadora que te amava. Despedaçava-lhe o coração pensar que não tinha sido o caso, que a criança crescera entre lares de acolhimento e instituições estatais.

Tem filhos? Elizabeth queria saber. Era uma pergunta razoável E Maddy abanou a cabeça com um ar pesaroso.

Mas agora tinha. Tinha uma filha. E, desta vez, não ia perdê-la. Já decidira.

Não, não tenho. Nunca tive filhos e agora não posso. Elizabeth não lhe perguntou porquê, respeitava o facto de não se conhecerem. E dada a manta de retalhos que fora o seu passado, Maddy estava impressionada pelo bom comportamento e boa educação que aparentava. Gostas de ler? perguntou, curiosa a seu respeito.

Adoro confirmou Elizabeth, outro traço que herdara da mãe, em conjunto com a perseverança, a coragem e a persecução obstinada dos seus objectivos. Nunca desistira de encontrar a mãe. Era tudo o que sempre quisera.

Que idade tem agora? perguntou Elizabeth, só para ter a certeza de que calculara a idade certa de Maddy. Não sabia bem se Maddy tinha quinze ou dezasseis anos quando ela nascera.

Tenho trinta e quatro. Mais pareciam irmãs do que mãe e filha. E sou casada com o dono desta estação televisiva. Chama-se Jack Hunter. Não passava de informação básica; Elizabeth, porém, deixou-a estupefacta.

Eu sei. Encontrámo-nos na semana passada, no gabinete dele.

Tu o quê? Como fizeste isso? Parecia impossível a Maddy.

Tentei um encontro consigo, na recepção, e eles não me deixaram vê-la. Mandaram-me directamente para o gabinete dele. Falei com a secretária e escrevi uma nota para si: dizia apenas que queria perguntar-lhe se era a minha mãe. A secretária levou-lha e depois mandou-me entrar para falar com ele explicou a rapariga com ar inocente, como se se tratasse de uma sequência de acontecimentos perfeitamente lógica, e de certo modo era. Só que Jack não dissera a Maddy uma única palavra sobre o caso.

E, então, o que aconteceu? perguntou Maddy, de novo com o coração aos saltos, tal como quando Elizabeth lhe comunicara que ela era a sua mãe. O que te disse ele?

Que tinha a certeza de que eu estava errada porque a senhora nunca tivera filhos. Acho que pensou que eu era uma impostora, ou que estava a tentar fazer chantagem, ou coisa no género. mandou-me embora com ordens para nunca mais cá voltar. Mostrei-lhe a minha certidão de nascimento e a foto, e tive medo de que ele mas tirasse, mas não. Limitou-se a informar-me de que o apelido não era o seu apelido de solteira, mas eu sabia que era, por isso pensei que talvez estivesse a mentir para a proteger. Depois, passou-me pela cabeça que ele talvez não soubesse, que a senhora não lhe tivesse contado.

Nunca contei. Tive medo. Ele tem sido muito bom para mim. Trouxe-me de Knoxville há nove anos e pagou o meu divórcio. Fez de mim o que hoje sou e eu não sabia qual seria a sua reacção se eu lhe contasse. Por isso, não contei. Mas agora ele sabia e não lhe dissera uma única palavra. Seria por achar que se tratava de um logro e não querer preocupá-la, ou guardava a informação como arma de ataque? Atendendo ao que acabara por pensar dele recentemente, julgou mais plausível a última hipótese e não pôde impedir-se de imaginar quando iria ele abordar o assunto. Provavelmente, esperaria pelo momento certo, aquele em que maior dano provocaria. De imediato, sentiu-se culpada pelos seus pensamentos. Bem, agora ele está ao corrente. Suspirou e olhou para a rapariga. Depois, encarou-a frontalmente: O que vamos nós fazer agora?

Nada, acho eu respondeu Elizabeth, prática. Não quero nada de si. Só queria encontrá-la e conhecê-la. Volto para Memphis amanhã. Deram-me uma semana de folga no trabalho, mas chegou a hora de voltar.

É tudo? Surpreendia Maddy que a pequena quisesse tão pouco dela. Gostava de voltar a ver-te, Elizabeth, e vir a conhecer-te. Talvez eu possa ir a Memphis.

Que bom! Podia ficar comigo, mas não me parece que lhe agradasse. Sorriu, tímida. Tenho um quarto alugado numa pensão, muito pequeno e humilde. Gasto todo o meu dinheiro com a escola., e à sua procura. Agora, acho que isso já não é preciso.

Talvez possamos ficar juntas num hotel. Os olhos da rapariga iluminaram-se, o que enterneceu Maddy. Parecia não alimentar expectativas algumas.

Não vou contar nada a ninguém afirmou Elizabeth,  acanhada. Só à minha senhoria e ao meu patrão, e a uma das minhas mães de acolhimento, se a senhora estiver de acordo Mas, se não quiser, não conto a ninguém. Não quero causar-lhe problemas. Não tinha qualquer consciência das implicações para Maddy de uma exposição pública.

É muito amável da tua parte, Elizabeth, mas nem eu sei o que vou fazer. Tenho de pensar em tudo isto e discutir o assunto com o meu marido.

Não me parece que ele vá gostar. A Maddy também não parecia. Não se mostrou muito contente ao ver-me. Acho que foi uma grande surpresa!

Sim, decerto foi. Maddy sorriu-lhe. Fora sem dúvida um choque, até para ela, mas agora estava contente. Era excitante ter uma filha. E o fim de um mistério, a cura de uma velha ferida a que se resignara durante anos, mas que nunca sarara. Era uma bênção única. Ele vai habituar-se. Todos nós vamos. Maddy convidou-a então para almoçar. Elizabeth, excitada, pediu à mãe que a tratasse por Lizzie. Foram a um café ali perto, e pelo caminho Maddy passou-lhe o braço pelos ombros. Diante de uma sanduíche e de um hambúrguer, Lizzie contou-lhe tudo o que lhe ocorreu sobre a sua vida, os seus amigos, os seus temores, as suas alegrias, e fez-lhe depois milhentas perguntas. Era o encontro que sempre idealizara e com que Maddy nunca ousara sonhar.

Às três horas foram-se embora; Maddy dera-lhe todos os seus números de telefone e de faxe, anotara os dela, e prometera telefonar-lhe com frequência para saber como iam as coisas. E mal tivesse esclarecido tudo com Jack, queria tê-la na Virgínia a passar o fim-de-semana. Quando lhe disse que mandaria o avião buscá-la, os olhos de Lizzie esbugalharam-se.

Vocês têm um avião vosso?

O Jack tem

Ena! A minha mãe é uma estrela da televisão e o meu pai tem um avião a jacto! Santo Deus!

Não é exactamente o teu pai corrigiu-a Maddy gentilmente, nem quereria ser, suspeitava ela. Não lhe dava prazer contactar com os seus próprios filhos, muito menos com a filha ilegítima de Maddy. Mas é um homem encantador. Ao dizer estas palavras, sabia que estava a mentir-lhe Era, porém, complicado de mais explicar a que ponto era infeliz, e que andava a tratar-se para tentar arranjar coragem para o deixar. Só esperava que Elizabeth nunca tivesse sido agredida, como ela fora. Ao almoço, tal tema não fora aflorado e, a despeito de jamais ter tido um verdadeiro lar, a rapariga parecia indiscutivelmente bem adaptada. E por muito deprimente que fosse para si pensar nisso, Maddy perguntava aos seus botões se não teria sido melhor assim do que se a criança tivesse assistido a Bobby Joe a atirar a mãe pelas escadas abaixo, ou Jack a ofendê-la. Porém, não podia evitar os remorsos com toda essa facilidade, e sentia-se culpada pelo que nunca dera à filha. Só a palavra a fazia estremecer. Tinha uma filha.

Despediu-se de Elizabeth com um beijo, e abraçaram-se longamente. Olhou depois a pequena e disse-lhe com doçura:

Obrigada por me teres encontrado, Lizzie Ainda não te mereço, mas estou tão feliz por te conhecer!

Obrigada, mãezinha murmurou Lizzie, e ambas limpavam lágrimas enquanto Maddy a via afastar-se. Era um momento das suas vidas que nenhuma delas esqueceria nunca. Maddy passou o resto do dia mergulhada em confusão e ainda estava distraída quando Bill Alexander lhe telefonou

O que se passa consigo hoje? perguntou ele com à-vontade, e Maddy riu-se.

Não ia acreditar se eu lhe contasse.

Isso soa a mistério. Alguma coisa importante? Passou-lhe pela cabeça que ela iria dizer-lhe que deixara o marido, mas começara a aperceber-se de que não era ainda isso

Conto-lhe quando voltar a vê-lo. É uma história comprida.

Mal posso esperar. Como vão as coisas com o seu parceiro dos noticiários.

Lentas. É um homem simpático, mas para já é como dançar com um rinoceronte. Não constituímos um par a que possa chamar-se gracioso. Esperava pelo nível de audiências para se atirar de cabeça; já tinham centenas de cartas com queixas pelo desaparecimento de Greg Morris. Despertava-lhe a curiosidade ver como reagiria Jack ao lê-las.

Hão-de acabar por se ajustar Provavelmente é mais ou menos como no casamento.

Talvez. Não se mostrava convencida. Brad Newbury era inteligente, mas não formavam um duo convincente e era inevitável que os telespectadores dessem por isso.

Que tal almoçarmos amanhã. Continuava preocupado com ela, queria ter a certeza de que estava bem, depois de tudo o que lhe contara. Além disso, gostava dela

Adorava aceitou Maddy sem hesitar.

Poderá então contar-me a sua longa história. Ardo de curiosidade! Combinaram o sítio e Maddy sorria ao desligar. Pouco depois foi tratar do cabelo e da maquilhagem.

Após as emissões, que correram bem, encontrou-se com Jack na recepção. Ele falava ao telemóvel e a conversa continuou até meio caminho de casa. Quando o marido finalmente desligou, Maddy não abriu a boca.

Estás muito séria esta noite comentou ele, distraidamente. Não fazia a mínima ideia de que a mulher se encontrara com Lizzie e ela não aflorou o assunto até chegarem a casa e Jack se pôr a revistar a cozinha à procura de qualquer coisa para comer. Tinham combinado não ir jantar fora e nenhum deles estava com grande apetite

Aconteceu alguma coisa de especial hoje? perguntou ele, acidentalmente. Com Maddy, o silêncio era muitas vezes sinal de algo importante de que ela queria falar. Maddy olhou-o, e assentiu com um gesto da cabeça. Estivera a tactear no escuro, na busca das palavras certas, e por fim decidiu ir directa ao assunto

Porque não me disseste que recebeste a visita da minha filha? Os seus olhos não se despegaram dos dele ao fazer a pergunta, pelo que pôde ver a frieza e a dureza transformando-se numa brasa ardente rapidamente ateada pela raiva

Porque não me disseste que tinhas uma filha? retorquiu ele, igualmente brusco. Quantos outros grandes segredos me terás escondido, Mad? Este é enorme. Sentou-se à mesa da cozinha com uma garrafa de vinho, serviu-se de um copo mas não ofereceu outro a Maddy.

Devia ter-te contado, mas não queria que ninguém soubesse. Aconteceu dez anos antes de te conhecer e tudo o que eu pretendia era atirar o caso para trás das costas. Como sempre, era sincera com ele. O seu único pecado fora uma omissão, não uma mentira.

É engraçado como as coisas ressurgem às vezes, não é? Pensavas que te livraras dela e ei-la que salta como uma pulga indesejada! Doeu-lhe ouvi-lo falar assim. Lizzie era uma rapariga formidável e Maddy já se sentia sua protectora.

Não precisas de a tratar assim, Jack. É uma boa miúda. Não é culpa sua eu tê-la tido aos quinze anos e desistido dela. Parece uma pessoa decente.

Como raio sabes? Cuspia fogo, Maddy quase se sentindo atingida pelas labaredas. Pode estar a dar uma entrevista ao Enquirer esta noite. Podes ver-lhe a cara na televisão amanhã, a falar da sua famosa mamã que a abandonou. Montes de pessoas fazem isso. Nem sequer sabes se é autêntica, por amor de Deus! Pode ser uma fraude. Pode ser uma data de coisas, e provavelmente é, tal como a mãe. O rebaixamento final: ela seria “lixo, tão má como a mãe”. Maddy captou claramente a implicação e pensou de imediato na Dra. Flowers. Este era o género de agressão de que haviam falado, sub-reptício, malévolo, com o intuito de amesquinhar.

É parecida comigo, Jack. Seria difícil renegá-la proferiu Maddy calmamente, sem se dar por atingida por nenhum dos seus insultos, numa tentativa de se limitar a factos e mais nada.

Qualquer provinciana do Tennessee se parece contigo. Estás convencida de que ter cabelo preto e olhos azuis é raro? São todas semelhantes a ti, Maddy. Tu não és especial. Maddy ignorou mais este comentário desagradável.

O que eu pretendo saber de ti é porque me ocultaste que a viste. Guardaste o facto na manga para quê? Para o momento em que mais a atingisse, calculou, quando mais a abalasse e chocasse.

Estava a tentar proteger-te do que julguei ser uma chantagem. Ia investigá-la antes de te falar no assunto. Parecia razoável, e cavalheiresco, mas a mulher conhecia-o bem.

É Muito simpático da tua parte. Agradeço-te. Teria todavia gostado de ser informada logo que a conheceste.

Lembrar-me-ei disso da próxima vez que um dos teus filhos bastardos aparecer. A propósito, quantos são? Maddy não se dignou responder-lhe.

Foi bom vê-la, é um amor de rapariga. Da sua voz desprendia-se tristeza e melancolia.

O que queria de ti? Dinheiro?

Apenas conhecer-me. Passou três anos à minha procura. Eu levei a vida inteira a pensar nela.

Que comovente! Ela vai voltar, vai perseguir-te, garanto-te eu. E não vai ser uma história bonita acrescentou cinicamente, servindo-se de outro copo de vinho e fitando-a, enfurecido.

Pode ser. É muito humano. São coisas que acontecem às pessoas.

Não às pessoas honestas, Mad. Acentuava as palavras, aprofundava a ferida. Não acontece às mulheres honestas. Não andam para aí a ter filhos aos quinze anos e a largá-los à porta da igreja como se fossem lixo. Ouvi-lo a dizer aquelas palavras atingiu-a até ao âmago.

Não foi assim. Talvez te interesse ouvir a história toda? Devia-lhe pelo menos isso, era o seu marido e sentia-se culpada por nunca lhe ter contado.

Não, não interessa, só quero saber o que vamos fazer quando a notícia estourar e tu fores vista como uma mulher sem princípios na televisão nacional. Tenho uma emissão com que me preocupar e uma estação televisiva.

Penso que o público vai compreender. Tentava manter a sua dignidade, pelo menos exteriormente, mas, por dentro, Jack marcara-a. Doía-lhe a alma perante o retrato por ele pintado. Ela não é uma assassina, por amor de Deus, e eu também não.

Não, apenas uma prostituta. Miserável lixo branco. Eu não andava muito longe da verdade, pois não?

Como é possível dizeres-me coisas dessas? Encarava-o, com o medo estampado nos olhos, mas Jack manteve-se impassível. Queria feri-la. Não sabes a que ponto me magoas?

É para magoar. Não podes estar orgulhosa de ti e, se estás, és maluca. Talvez também o sejas, Mad. Mentiste-me, a ela abandonaste-a. O Bobby Joe sabia? Sabia, sim. Mas no tempo do Bobby Joe, o facto era muito mais recente. Talvez fosse por isso que te chegava a roupa ao pêlo. Explica-se. Omitiste essa parte quando te queixaste dele. Agora, não sei bem se o censuro. Isso é nojento! Não me interessa o que fiz. Não mereci o modo como ele me tratou, e não o mereço agora. Não estás a ser justo, e sabes que não estás. Mentir-me acerca dela também não foi. Como achas que me sinto? És uma pega, Mad, uma cadela rafeira. Já devias andar a fornicar a torto e a direito aos doze anos. Fico a imaginar o que és agora. É como se nem sequer te conhecesse. És injusto! Ele afastara por completo o problema de não lhe ter falado no encontro. Eu tinha quinze anos, e fiz mal, mas foi horrível ter-me acontecido. Nunca nada na minha vida foi tão triste ou tão doloroso. Nem os pontapés que levei do Bobby Joe. Quando a deixei, despedaçou-se-me o coração. Diz-lhe isso a ela, não a mim. Talvez possas compensá-la com um cheque. Mas não tentes servir-te de dinheiro meu. Vou ficar atento.

Nunca me servi do teu dinheiro para nada gritou-lhe. Sirvo-me do meu, para tudo o que faço acrescentou, orgulhosa.

Uma gaita! Quem pensas que paga o teu ordenado? Também é dinheiro meu retorquiu Jack, complacente.

Ganho-o.

Uma ova é que o ganhas. És a apresentadora mais bem paga do ramo.

Não! É o Brad, e ele vai atirar de pantanas as tuas emissões. Mal posso esperar para ver.

E quando atirar, menina, tu vais também. De facto, atendendo a como te tens portado ultimamente e me tens tratado, eu diria que os teus dias estão contados. Não vou manter no ar a tua trampa por muito mais tempo. Por que raio o faria? Posso correr-te daqui quando me apetecer. Não vou ficar quietinho enquanto tu me mentes, me roubas, me atormentas. Santo Deus, mulher, nem posso acreditar quanto me agrides. Ouvi-lo deixou-a estupefacta. Ele era o agressor e pretendia ser a vítima. A Dra. Flowers, porém, alertara-a para essa técnica, aliás muito eficaz. A despeito do que sabia e sentia, ele fazia-a achar-se culpada, punha-a na defensiva. E para que fique bem claro, não tentes trazer a tua fedelha para perto. Provavelmente é uma prostituta, como a mãe.

É minha filha! gritou-lhe Maddy, totalmente frustrada. Tenho o direito de a ver se quiser, e eu moro aqui.

Só enquanto eu to permitir, não o esqueças. E dito isto, levantou-se e saiu da cozinha. Maddy ficou em pé, ofegante. Esperou até o ouvir a subir as escadas, depois fechou silenciosamente a porta da cozinha e ligou para a Dra. Flowers. Contou-lhe tudo o que se passara, acerca de Lizzie a ter encontrado, de Jack não lhe ter dito que a rapariga a procurara e da sua terrível fúria por ela lhe ter mentido.

E como se sente você, Maddy? Neste momento. Honestamente. Pense bem.

Sinto-me culpada. Devia ter-lhe contado. E nunca devia tê-la abandonado.

Acredita em todas as coisas que ele diz que você é?

Nalgumas.

Porquê? Se fosse ele a ter um caso igual ao seu, perdoava-lhe?

Sim. A resposta foi instantânea. Acho que compreenderia.

Então por que razão não pode ele proceder de igual modo para consigo?

Porque ele não presta respondeu Maddy, atenta à cozinha e à Dra. Flowers.

É uma maneira de ver. Mas você não. E esse o ponto. Você é uma boa pessoa a quem aconteceu uma coisa muito triste, uma das piores coisas que pode acontecer a uma mulher, ter de desistir de um bebé. Consegue perdoar a si própria por isso?

Talvez. Com o tempo.

E quanto às coisas que o Jack lhe disse Acha que as merece?

Não.

Pense no que ele diz a seu respeito. Preste atenção ao que ele diz a seu respeito, Maddy. Nada é verdadeiro, mas tudo tem como objectivo magoá-la, e magoa, o que eu compreendo. Maddy ouviu passos no corredor e disse à Dra. Flowers que tinha de desligar, mas pelo menos a médica abrira-lhe algumas perspectivas. Passado um instante, a porta abriu-se e Jack irrompeu com um ar desconfiado.

Com quem estavas a falar? Com o teu namorado?

Não tenho namorado nenhum, Jack, e tu sabes que não replicou suavemente.

Então, quem era?

Uma pessoa amiga.

Tu não tens amigos. Ninguém te grama. Era esse mariquinhas negro de que tanto gostas? Maddy estremeceu às palavras de Jack, mas não lhe respondeu. O que tens a fazer de melhor é não falar disto a ninguém. Não quero que dês cabo da minha empresa. Dizes uma palavra sobre o assunto a alguém e eu mato-te. Entendes-me?

Entendo respondeu, com os olhos rasos de água. Jack dissera tantas coisas ofensivas na última hora que nem sabia a que a tinha ferido mais. Todas, talvez.

Esperou que ele saísse da cozinha e telefonou para o hotel onde Lizzie se instalara até ao dia seguinte.

Ligou para o quarto dela e um segundo depois Lizzie atendeu. Estivera estendida na cama a pensar em Maddy. Vira-a à noite no noticiário e não conseguia parar de sorrir.

Maddy... quero dizer, a mãe... quero dizer...

A mãe... está óptimo. Maddy sorriu à voz agora familiar e reparou em como era semelhante à sua. Só telefonei para te dizer que gosto muito de ti.

Eu também gosto muito de si, mãe. Soa bem, não soa?

Corriam lágrimas pela cara de Maddy ao responder.

Se soa, minha querida! Telefono-te para Memphis.

Boa viagem de regresso. Não queria que lhe acontecesse nada, agora que se haviam encontrado; quando desligou, sorria. Não importava o que Jack lhe dissesse, ou viesse a fazer-lhe, já não podia tirar-lha. Depois de tantos anos, e de tantas perdas, era mãe.

 

Bill e Maddy encontraram-se no Clube Bombay para almoçar. Maddy vestia uma calça e casaco Chanel de linho branco, trazia os óculos escuros na cabeça e uma mala de palha ao ombro. Parecia saída de um anúncio evocando os prazeres do Verão, e Bill mostrou-se feliz ao vê-la Elegante e bronzeado, o seu cabelo branco contrastava fortemente com os olhos azuis e o rosto queimado pelo sol. De pé, contemplava Maddy a encaminhhar-se na sua direcção. Parecia bastante mais feliz do que na última vez em que a vira, o que lhe deu prazer

Encomendou vinho branco para ambos, tagarelaram uns minutos antes de consultar a ementa. Estavam no restaurante vários políticos de renome e um juiz do Supremo Tribunal, que Bill conhecia dos seus tempos de Harvard

Está muito alegre hoje. Sorriu-lhe. As coisas acalmaram um pouco na frente matrimonial?

Não diria isso, mas a doutora Flowers tem sido uma grande ajuda, e aconteceu-me uma coisa maravilhosa. De cada vez que se encontrava com ela, por uma ou outra razão, receava ouvi-la dizer-lhe que estava grávida. Não percebia porque é que isso o aborrecia tanto, mas, agora que sabia mais acerca de Jack, menos queria que ela ficasse presa na armadilha daquele casamento E seria certamente essa a consequência de um bebé

Você tocou nesse assunto ontem. Posso perguntar, ou é altamente secreto?

Ela riu-se

Acho que a sua área de segurança é adequada, embaixador Além disso, confio em si, mas sim, é um segredo

Não vai ter um bebé, Maddy, pois não? Fez a pergunta em voz baixa, mostrando-se apreensivo, e ela sorriu à maneira de Mona Lisa, enquanto um estremecimento de inquietação o percorria

Tem graça você falar nisso. A resposta convenceu-o imediatamente. Acertara. O que o levou a fazer-me tal pergunta?

Não sei. Só um pressentimento. Quando a vi a última vez na comissão, você quase desmaiou. E uma coisa que disse ontem alertou-me. Não tenho a certeza de que seja assim uma notícia tão boa para si. Um filho decerto a amarrará ao seu casamento com um marido agressivo. Então, é isso. Parecia desapontado mas resignado e surpreendeu-se quando ela abanou a cabeça, negando

Não, não estou grávida. De facto, não posso ter filhos. Era engraçado falar-lhe de assuntos semelhantes, mas na sua companhia sentia-se perfeitamente descontraída. Tal como se sentira com Greg quando se conheceram mas, por razões diferentes, era total o seu à-vontade com Bill E agora que o pusera a par da sua situação com Jack, confiava implicitamente nele para lhe contar os seus segredos e sabia, por instinto, que ele não a trairia

Lamento, Maddy, sei que deve ser um grande desgosto para si

É, ou pelo menos era Mas não tenho o direito de me queixar. Foi uma opção. Fiz laqueação das trompas, a pedido do Jack, quando nos casámos. Ele não queria mais filhos. Bill gostaria de dizer que isso era egoísmo da parte dele, mas absteve-se de comentar. Mas, ontem, aconteceu uma coisa extraordinária. Sorriu-lhe por cima do copo de vinho e seria difícil Bill ignorar a que ponto era bonita. Um raio de sol. Durante meses, andara deprimido pela morte da esposa, e ainda lutava com o facto Mas, sempre que via Maddy, sentia-se feliz, e apreciava a amizade entre ambos. Lisonjeava-o a confiança que Maddy lhe demonstrava e a franqueza com que falava de coisas sobre as quais suspeitava, não falava com mais ninguém E não se enganava

Não aguento o suspense. O que foi?

Olhe, não sei se comece pelo princípio ou pelo fim. Hesitava, e ele riu-se. Adivinhava que era algo que lhe dera enorme prazer

Comece pelo meio se quiser, mas conte-me.

Está bem, está bem. Talvez pelo princípio. Tentarei ser breve. Aos quinze anos, eu já andava envolvida com O Bobby Joe, com quem vim a casar-me depois de acabar o curso. Ele deixou-me algumas vezes, e uma noite fui a uma festa com outro rapaz. Hesitou e franziu o sobrolho. Jack tinha razão. Contasse a coisa como contasse, soava a leviandade, e era fácil imaginar o que Bill pensaria dela. Não queria desculpar-se perante ele, mas foi com ansiedade que o olhou.

O que há?

Não vai pensar grande coisa a meu respeito quando eu continuar. E isso contrariava-a mais do que julgara quando dera início à sua história, que já nem sabia se devia ter começado.

Deixe-me ser eu a julgar. Penso que a nossa amizade sobreviverá.

O seu respeito por mim talvez não.. Mas arriscava correr o risco. Tinha muito boa opinião dele e estava disposta a expor-se, para partilhar o segredo. Bem, saí com outra pessoa. E não devia., mas dormi com ele. Era um rapaz muito meigo, bonito, simpático. Não estava apaixonada mas encontrava-me só e confusa, e lisonjeada pela atenção que ele me dispensava

Não tem que se defender, Maddy interrompeu-a Bill docemente, está tudo certo. Sou um menino crescido, aguento. Ela sorriu-lhe, grata. Que diferente ser tratada pelo marido como cadela e prostituta... “O miserável lixo branco!”

Obrigada. Esta foi a confissão número um. A número dois, é que engravidei. Tinha quinze anos e o meu pai quase me matou. Eu era pobre. Provavelmente teria tido de passar por aquilo de uma forma ou de outra, mesmo se tivesse pensado nisso mais cedo.

Teve o bebé? Estava espantado, mas não formulava juízos de valor. Havia uma grande diferença, de que Maddy estava consciente.

Tive o bebé. Embora até ontem, quase ninguém soubesse disso. Fui passar cinco meses a outra cidade, andei lá no liceu, e tive o bebé. Uma menina... Sem querer, encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Só a vi uma vez e deram-me uma fotografia quando saí do hospital. Foi tudo o que sempre tive dela e acabei por deitá-la fora com medo de que o Jack a encontrasse. Nunca lhe contei. Dei-a para

adopção e fui para casa, como se nada se tivesse passado. O Bobby Joe sabia, mas não ligou, e voltámos a andar juntos.

O pai do bebé envolveu-se no caso?

Não, eu disse-lhe que estava grávida mas ele não quis saber de nada. Os pais dele eram donos de uma loja de ferragens e acharam que nós não valíamos nada, e em minha opinião não valíamos. Convenceram-no de que provavelmente o filho era de outro qualquer. Não creio que acreditasse neles, mas assustou-o de morte enfrentá-los, e eu mal o conhecia. Telefonei quando o bebé nasceu. Nunca retribuiu o telefonema. E três semanas mais tarde, morreu num acidente, numa colisão frontal. Penso que nem soube da existência da bebé. Eu nunca soube quem a adoptou prosseguiu em voz ansiosa. Contar-lhe era mais difícil mas também mais emocionante do que supusera; por baixo da mesa, Bill pegou-lhe na mão, encorajador. Não fazia ainda a mínima ideia do que estava para vir. Apenas sabia ser qualquer coisa que ela achava que deveria contar-lhe. Nesse tempo, os registos de adopção eram selados e não havia a mais pequena esperança de o descobrir, por isso nunca tentei. Casei com o Bobby Joe depois de acabar o liceu e, passados oito anos, deixei-o. Divorciei-me e casei com o Jack. E sei que cometi um erro, mas nunca lhe contei. Porque não consegui. Tinha medo de que ele não me amasse se eu lhe contasse... De novo ficou banhada em lágrimas e o criado que esperava a encomenda manteve uma distância discreta. Nunca lhe contei repetiu ela. Era um momento do meu passado que eu própria tentava esquecer. Não aguentava pensar nisso. Ao ouvi-la, humedeceram-se os olhos de Bill. E ontem... Sorriu através das lágrimas que lhe escorriam pela cara e apertou a mão do amigo. Ontem, ela entrou no meu gabinete.

Quem? Tinha medo de pronunciar a palavra. Embora quase adivinhasse, afigurava-se-lhe demasiado extraordinário para ser possível. Coisas daquelas só aconteciam em livros e filmes.

A minha filha. Chama-se Lizzie esclareceu Maddy, orgulhosa. Levou três anos a encontrar-me. O casal que a adoptou morreu passado um ano e ela foi parar a um orfanato estatal em Knoxville, onde eu vivia, mas sem saber de nada. Pensava que ela estava bem. Quem me dera ter sabido acrescentou, melancólica; mas pelo menos agora tinham-se reencontrado. De momento, era tudo o que interessava. Andou por lares de acolhimento todo este tempo e está com dezanove anos. Vive em Memphis. Estuda e trabalha como criada e é linda. Espere até a conhecer! Passámos cinco horas juntas, ontem; regressou hoje a Memphis, mas não vou tardar a trazê-la de volta. Não lhe disse nada, mas gostava que ela vivesse aqui, se quiser. Telefonei-lhe a noite passada.. Apertava-lhe fortemente a mão, enquanto a voz lhe ia falhando por completo. E ela chamou-me.. mãezinha.. Também Bill reforçou o seu aperto de mão. Era uma história espantosa, tocava-lhe o coração.

Mas como deu ela consigo? Admirava a sinceridade de Maddy e o desfecho da história. O proverbial happy end

Não sei bem. Limitou-se a procurar. Acho que voltou a Gatimburg, a cidade onde nasceu, para ver se alguém se lembrava de alguma coisa. Tinha a minha idade na sua certidão de nascimento e foi às escolas locais, até encontrar um professor que se recordava. Disseram-lhe que o meu nome era Madeleine Beaumont, e tenho a impressão de que se lembravam bem. O espantoso é ninguém ter ligado essa pessoa a Maddy Hunter. Mas a verdade é que passaram quase vinte anos e não deve haver grande semelhança entre as duas. Lizzie, porém, chegou a uma conclusão ao ver-me nos noticiários. Nunca falei muito de mim publicamente. Não tinha muito de que me orgulhar. De facto, com a ajuda de Jack, envergonhava-se profundamente do seu passado

Tem, sim, tem muito de que se orgulhar protestou Bill calmamente, e fez sinal ao criado para que os deixasse a sós mais uns minutos

Obrigada, Bill. Seja como for, parece que regressou a Chattanooga e não sei como descobriu o que mais ninguém descobrira. Diz que me vê nos noticiários e leu algures que o meu apelido de solteira era Beaumont. É uma leitora voraz. O orgulho transparecia na sua voz e Bill sorriu. De repente, era uma mãe Com dezanove anos de atraso, mas mais valia tarde do que nunca E a filha surgira no momento certo. Foi aos estúdios e tentou falar comigo. Neste ponto do relato, o rosto de Maddy ensombrou-se. Em vez disso, mandaram-na ir ter directamente com o Jack. Ele montou um esquema disparatado qualquer, o qual envia para ele as pessoas que perguntam por mim. Diz que é uma espécie de filtragem, para minha protecção, mas agora apercebo-me de que tem a ver com o facto de me controlar, a mim e as pessoas que acha que eu devo ou não devo receber. Mentiu-lhe, disse-lhe que o meu apelido de solteira era Beaumont, e que eu não era de Chattanooga E não sei se ela não acreditou ou se apenas é tão obstinada como eu, mas ontem arranjou maneira de se introduzir no edifício, fingindo que ia distribuir donuts, e entrou no meu gabinete. No primeiro momento, pensei que ia atacar-me. Tinha uma expressão estranha e estava muito nervosa. Então, contou-me E pronto. Agora, tenho uma filha. Sorriu-lhe abertamente. Era demasiado bom para crer, demasiado maravilhoso para resistir, ao vê-la sorrir-lhe, e Bill limpou lágrimas dos seus próprios olhos

Mas que história! Ocorreu-lhe então uma pergunta. O que disse o Jack a tudo isso? Presumo que você lhe contou

Contei, e, quando lhe perguntei porque não me dissera nada, respondeu-me que pensara tratar-se de uma intrujice e que a rapariga estava a tentar chantagear-me. Mas foi muito mais loquaz quanto ao facto de eu lhe ter escondido o caso. Estava lívido, e com razão. Foi errado da minha parte, eu sei. Andava aterrorizada, se é que isso é uma desculpa. E aliás talvez tivesse razão, porque agora ele chama-me desavergonhada e prostituta, e ameaça despedir-me. Não quer participar em nada. Mas eu não vou deixá-la escapar, uma vez que a encontrei

Claro que não. Como é ela? Tão bonita como a mãe.

Muito mais. Bill, ela é esplêndida, e tão meiga, tão amorosa. Nunca teve um verdadeiro lar, ou uma mãe. Há tantas coisas que quero fazer por ela. Bill só esperava que Se tratasse de uma pessoa tão decente quanto Maddy imaginava. Mas quer o fosse quer não, percebia que Maddy a queria integrar na sua vida. O Jack diz que não a deixa ir lá para casa. Está preocupado com o escândalo e com o impacto na minha imagem se vier a saber-se.

E você?

Nada. Cometi um erro. Acontece a qualquer um, creio que as pessoas compreenderão

Para a opinião geral, julgo que será mais positivo do que negativo. Mas acho que há consequências muito mais importantes a considerar, É uma história muito tocante

E a melhor coisa que alguma vez me aconteceu. Não mereço tanta felicidade

Ah, merece, sim. Já contou à doutora Flowers?

Ontem à noite. Ficou muito excitada, por mim

Não me surpreende, Maddy Também eu o estou, É uma bela prenda, e você merece-a. Seria uma tragédia para si nunca na vida ter filhos e a rapariga tem direito a uma mãe

Ela está tão feliz como eu

A propósito, não me surpreende a reacção do Jack, É um autêntico safado para si em todas as oportunidades. As coisas que lhe disse são imperdoáveis, Maddy. Está a ameaçá-la e a tentar que se sinta culpada Disso não tinha dúvidas, e ambos o sabiam

Encomendaram então o almoço e continuaram a conversar. A tarde foi correndo, nem dando pelas horas. Já eram duas e meia

O que vai você fazer? perguntou-lhe, sinceramente interessado. Maddy tinha decisões a tomar, e apenas algumas delas incluíam a filha recém-encontrada. Continuava a ter um marido agressivo contra o qual devia lutar e que não ia desaparecer por magia

Ainda não sei. Acho que daqui a umas semanas vou a Memphis vê-la. Gostava que ela pedisse a transferência para a universidade daqui

Talvez eu possa ajudá-la. Diga-me quando chegar a altura

Obrigada, Bill. Primeiro, tenho de me ocupar do Jack. Ele está em pânico com um eventual escândalo nos jornais

E daí? Você rala-se realmente com isso? A pergunta de Bill era lógica, e ela abanou a cabeça ao pensar no assunto.

Acho que apenas me ralo com a reacção do Jack. Vai torturar-me. Ambos sabiam que era verdade, e Bill temia o efeito que tal teria em Maddy.

Bem gostava de não ir amanhã para Vineyard. Posso ficar cá, se você quiser, mas não sei bem o que fazer para o levar a comportar-se correctamente. Continuo a pensar que a única solução para si é deixá-lo.

Eu sei. Mas a doutora Flowers e eu concordámos em que ainda não estou pronta. Devo-lhe tanto, Bill.

A doutora Flowers também concorda com isso? Maddy sorriu timidamente perante o seu tom de voz, que exprimia dúvida.

Não, não concorda. Mas compreende que eu não possa ainda deixá-lo.

Não espere de mais, Maddy. Um dia destes, o seu marido vai magoá-la a valer. Pode não o satisfazer agredi-la apenas emocionalmente e aumentar a parada.

Na opinião da doutora Flowers, ele vai ficar pior à medida que eu me tornar mais independente.

Então, porquê ficar? Não faz sentido arriscar-se ao que poderá acontecer-lhe. Maddy, você tem de se afastar rapidamente. O extraordinário é que ela era bonita, com um bom emprego, inteligente, o tipo de mulher que todas as outras mulheres do país invejavam e quereriam ser. Tanto quanto julgavam saber, era o protótipo da independência e tinha os recursos necessários para escapar a uma má situação. Mas aquele género de agressão era algo mais complicado, como Maddy sabia muito bem e Bill começava a compreender. Era como um buraco coberto de alcatrão, cheio de culpa e terror, que a mantinha paralisada, incapaz de fugir, embora toda a gente pensasse que lhe era possível fazê-lo. Movia-se ao retardador, mas fizesse o que fizesse não conseguia andar mais depressa. Tinha a sensação de dever a sua vida a Jack. O que Bill receava, ao observá-la, era que Jack a magoasse tanto física como emocionalmente, sobretudo se deixasse de poder controlá-la. Ela própria tinha consciência disso, só que estava ainda demasiado assustada para agir. Levara-lhe oito anos a escapar-se de Bobby Joe, e a única esperança de Bill era que desta vez não esperasse de mais.

Telefona-me para Vineyard, Maddy? Vou andar terrivelmente assustado por sua causa. Era verdade; ultimamente não conseguia afastá-la dos seus pensamentos, mais do que alguma vez esperava. Ainda lamentava a perda da esposa, e a sua lembrança obcecava-o enquanto terminava o livro que sobre ela escrevera. Todavia, nos últimos tempos, distraía-se muito mais e por vezes, ao pensar em Maddy, sentia-se alegre. Eu telefono-lhe para o trabalho. Receava ligar-lhe para casa e acrescentar o ciúme às armas de que Jack se servia para a atormentar.

Eu ligo-lhe. Prometo. Fico bem aqui. Tenho imenso que fazer e provavelmente vamos passar uns dias à Virgínia. Adorava que a Lizzie também fosse, mas não creio que o Jack o permita.

Tudo o que desejo é vê-la fora dessa embrulhada replicou ele, inflexível. Não tinha nenhum interesse pessoal no caso, nenhum envolvimento romântico com Maddy Mas, como qualquer ser humano ao ver outro torturado, sentia-se angustiado e furioso, ansiando fazer qualquer coisa para a ajudar. Às vezes, recordava-lhe os meses infindáveis em que a sua mulher fora refém. Aguardava constantemente notícias dela, frustrava-o o facto de não poder fazer nada para a libertar. Fora o que acabara por levá-lo a agir por conta própria. E a sua ingenuidade, matara-a, ou pelo menos achava-se responsável pela sua morte. De certa forma, as duas situações assemelhavam-se dolorosamente. Quero que seja muito cuidadosa advertiu-a ao deixá-la no carro, junto ao restaurante. Não faça nada que a ponha em perigo. Pode não ser este o melhor momento para o enfrentar. Não tem de provar nada, Maddy. Não tem de obter o assentimento dele. Tudo o que tem a fazer é pôr-se a andar, mal se sinta pronta para isso. Ele não vai libertá-la, tem que ser você a libertar-se, e fuja a sete pés até chegar à meta.

Eu sei. Deixei a minha aliança na mesa da cozinha e fugi a sete pés no dia em que abandonei o Bobby Joe. Levou-lhe meses a descobrir-me e já então o Jack tratara de tudo. Tive mais segurança do que o papa, nos meus primeiros meses na estação.

Pode ter de voltar a passar pelo mesmo durante algum tempo. Olhou-a longa e penetrantemente, ambos ao pé do carro dela. Não quero que ele a magoe. Ou pior, que a matasse se perdesse a cabeça, pensou, mas não lho disse. Julgava-o capaz disso. Era um homem sem ética e sem alma. Na opinião de Bill, um psicopata, um homem sem consciência. Cuide de si... Sorriu-lhe, a pensar na filha dela. Mãezinha... Gosto de a ver no papel de mãe. Fica-lhe bem.

Também eu gosto. É um sentimento fantástico. Endereçou-lhe um sorriso rasgado.

Goze-o. Você merece. Deu-lhe então um caloroso abraço, continuando parado à beira do passeio quando ela se afastou. Duas horas mais tarde, chegou ao escritório de Maddy um enorme ramo de flores, todas elas em tons suaves de rosa, com balões cor-de-rosa e um ursinho de peluche também rosa. No cartão lia-se: “Parabéns pela sua nova filha. Com ternura, Bill.” Maddy meteu o cartão numa gaveta e sorriu ao olhar para as flores. Um gesto amoroso, que a tocou. Ligou para lhe agradecer mas ele ainda não estava, pelo que lhe deixou uma mensagem no atendedor, agradecendo-lhe e expressando-lhe toda a sua amizade.

Sorria ainda por causa das flores e do almoço com Bill, quando uma hora mais tarde Jack entrou no seu gabinete.

Que raio é isto? berrou, furioso, ao ver os balões cor-de-rosa e o urso. Era fácil imaginar a razão de ser de tais objectos.

Uma brincadeira. Não é importante.

Uma gaita é que não é. Quem mandou esta tralha? Procurou um cartão mas não encontrou nenhum, enquanto ela tentava freneticamente inventar um nome.

São da minha psicoterapeuta respondeu gentilmente, dando-se conta de que também não era a resposta correcta. Fizera psicoterapia há uns anos e Jack obrigara-a a desistir. Sentira-se ameaçado e argumentara que o psiquiatra era incompetente. Acabara por ser fácil deixar de o consultar.

Percebia agora que tudo fazia parte do plano de Jack para a isolar.

Quando recomeçaste com isso?

Na realidade, é apenas uma amiga. Conheci-a na Comissão de Violência contra as Mulheres.

Poupa-me. O que é ela? Uma espécie de filão para mulheres que querem libertar-se?

Tem cerca de oitenta anos... com filhos e netos. É uma mulher com muito interesse.

Aposto que é. Deve ser senil. Seja como for, se desatas a abrir a boca a torto e a direito, Maddy, não vais tardar a ler a tua história nos jornais. E espero que te divirtas quando tal acontecer, porque perderás o emprego enquanto o diabo esfrega um olho. Por isso, se eu fosse a ti, mantinha o bico calado. E diz a essa prostitutazinha de Memphis que também não abra o dela, ou eu lixo-a com um processo por difamação.

Não seria difamação se declarasse que é minha filha retorquiu Maddy, fingindo-se mais calma do que estava. É a verdade. E ela tem o direito de a dizer Mas prometeu-me que não o fará. E não lhe chames prostitutazinha, Jack. É minha filha. Pronunciou as palavras clara e delicadamente, e ele voltou-se para a olhar com uma expressão maldosa.

Não me digas o que devo fazer, Maddy. Lembras-te? Eu sou o teu dono.

Ia responder-lhe quando a secretária entrou no gabinete; decidiu calar-se. Mas era essa a chave do problema. Jack acreditava que a possuía. E durante os últimos nove anos ela deixara-o pensar assim, porque também ela acreditava nisso Porém, acabara. Ainda não tivera ânimo para agir, mas pelo menos o seu espírito aclarava-se Uns minutos depois ele saiu, de volta ao seu gabinete.

Quase no mesmo momento, tocou o telefone. Era BillOuvira a mensagem dela e estava satisfeito.

Adoro as flores! Sorria, apenas levemente abalada pela visita do marido. Regozijava-se por lhe ter ocorrido tirar o cartão, sem o que se teria visto numa situação muitíssimo pior. Foi tão gentil da sua parte! Obrigada, Bill. E também pelo almoço.

Já sinto a sua falta disse ele, numa voz de jovem, um pouco desajeitadamente. Durante anos não mandara flores a ninguém excepto à esposa, mas quisera festejar o reaparecimento da filha de Maddy. Sabia quanto isso significava para ela e emocionava-o profundamente o que ela lhe contara e a confiança que lhe demonstrara. Nunca a trairia. Tudo o que queria era ajudá-la. Agora, eram amigos. Vou ter saudades suas enquanto estiver fora. Era engraçado, ambos o reconheceram. Também Maddy sabia que ele iria fazer-lhe falta. Contava com ele, ou no mínimo gostava de sabê-lo perto, embora não se vissem com frequência. Tinham começado a falar-se diariamente. Pelo menos isso podiam continuar a fazer durante a estada em Vineyard, excepto aos fins-de-semana, em que ele não podia telefonar-lhe por razões óbvias. Era demasiado perigoso para ela. Volto dentro de duas semanas, Maddy. Até lá, tente ser cuidadosa.

Tento. Prometo. E divirta-se com as crianças.

Estou desejoso de conhecer a Lizzie. Era como se uma grande parte de Maddy tivesse sido devolvida, uma parte que ela quase se esquecera que lhe faltava. Nunca se dera conta de como era grande essa parte que lhe fora arrancada Agora que a tinha de volta, sabia-o de alma e coração.

Vai conhecê-la em breve, Bill. Cuide de si. Um minuto depois desligaram, e Maddy ficou sentada a olhar pela janela e a pensar em Bill e nas flores que ele lhe mandara. Era um homem encantador e um bom amigo, fora uma sorte tê-lo conhecido. A vida às vezes era engraçada: as coisas que nos tirava, aquelas que nos oferecia. Ela perdera tanto na vida, e depois encontrara outras pessoas, outros lugares, outras coisas. Sentia-se finalmente em paz com o passado. Tudo o que faltava era garantir a segurança do futuro. Só esperava que o destino voltasse a ser-lhe favorável.

E na sua casa em Durbarton Street, também Bill olhava pela janela. Mas as suas preces por Maddy eram mais específicas. Pedia estabilidade para ela. Todas as fibras do seu corpo lhe diziam que Maddy corria perigo. Muito mais do que podia imaginar.

 

Durante as duas semanas em que Bill esteve fora, tudo foi bastante pacífico para Maddy. Ela e Jack tiraram uma semana de férias e foram para a Virgínia, ele muito mais bem-disposto. Gostava dos seus cavalos e da sua fazenda; voou várias vezes até Washington para se encontrar com o presidente, por diversas razões E quando ele se ausentava, ou cavalgava pelas redondezas, Maddy telefonava a Bill para Vineyard. Antes disso, era ele quem lhe ligava diariamente para o trabalho.

Como se tem ele portado? perguntava-lhe, preocupado

Está tudo bem tranquilizava-o ela. Não andava contente, mas também não estava em perigo. Jack modificava-se sempre após os períodos em que era particularmente agressivo Como se quisesse provar que tudo não passava de imaginação dela. Como a Dra. Flowers sublinhara, era um esquema clássico, semelhante ao do filme Meia Luz, para que ela não apenas parecesse, mas se sentisse louca se se queixasse do comportamento do marido. E era assim que estava a agir na Virgínia. Fingia não se importar com a existência da filha, embora tivesse dito a Maddy que achava que ela não devia ir a Memphis Podia ser reconhecida, aliás era um sítio perigoso E queria-a a seu lado Invulgarmente amoroso com ela, meigo, mais civilizado, pelo que as suas reclamações sobre quanto a magoara em Paris pareciam uma patetice. Mas, agora, Maddy não discutia com ele a propósito do que quer que fosse, e a Dra. Flowers advertira-a de que esse facto podia levá-lo a desconfiar. Era, porém, sincera com Bill quando lhe dissera que ali se sentia segura.

Como vai o livro? perguntou-lhe Todos os dias ele a punha a par

Acabado respondeu, orgulhoso, no último fim-de-semana de férias Ambos ansiavam por regressar a Washington E a comissão reunia na segunda-feira. Nem acredito

Estou morta por lê-lo.

Não é aquilo a que possa chamar-se uma leitura agradável.

Não espero que o seja, mas tenho a certeza de que é óptimo. Sabia que não tinha esse direito, mas a verdade é que se orgulhava do amigo.

Eu passo-lhe um exemplar mal esteja pronto. Estou ansioso por que você o leia. E fez-se um estranho silêncio. Bill não sabia muito bem o que dizer-lhe, mas pensara muito nela, e em constante angústia. Estou impaciente por vê-la, Maddy. Tenho andado raladíssimo consigo.

Não esteja. Eu estou bem. E vou ver a Lizzie no próximo fim-de-semana. Ela vai a Washington para se encontrar comigo. Estou desejosa de vos apresentar. Falei-lhe de si.

Não imagino o que lhe disse a meu respeito. Parecia embaraçado. Ela deve achar-me um monumento pré-histórico e não sou muito excitante.

Para mim, é. É o meu melhor amigo, Bill. Estava mais apegada a ele do que a qualquer outra pessoa há anos, excepto Greg, que tinha uma namorada nova em Nova Iorque e mesmo assim lhe telefonava sempre que conseguia. Mas ambos haviam percebido que, quando era Jack a atender as chamadas, as suas mensagens nunca lhe eram transmitidas. E quando atendia e ela estava ao pé, nunca lhe passava o telefone. Ela e Bill eram mais cautelosos quanto às horas e circunstâncias dos telefonemas que trocavam.

Você também é muito especial para mim respondeu Bill, sem encontrar outras palavras. Confundiam-no os seus próprios sentimentos: parte filha, parte amiga, parte mulher, em combinações alternadas. E Maddy sentia o mesmo em relação a ele. Às vezes parecia-lhe um irmão, outras vezes estarreciam-na as sensações que lhe provocava. Nenhum deles tentara nunca abordar o assunto com o outro. Vamos almoçar na segunda-feira, antes da comissão? Pode?

Com todo o prazer.

Mais confusa ainda ficou com a gentileza de Jack durante o último fim-de-semana que passaram na Virgínia. Trouxe-lhe flores do jardim, o pequeno-almoço à cama, passearam juntos, afirmou-lhe quanto era importante para ele. E quando agora faziam amor era mais meigo e doce do que alguma vez fora. Como se as agressões anteriores não passassem de um fragmento da sua imaginação. Voltou a sentir-se culpada pelas coisas que dissera dele a Bill, a Greg e à Dra. Flowers; queria corrigir a impressão que lhes transmitira sobre o seu marido, agora tão afectuoso. Começava a pensar se não seria tudo por culpa sua. Talvez só visse o pior dele. Quando queria, e quando ela era amável com ele, Jack era uma pessoa incrivelmente agradável.

Tentou explicar isso à Dra. Flowers na manhã em que regressaram a casa, e achou a médica insensível quando esta a advertiu:

Tenha cuidado, Maddy. Veja o que anda a fazer. Está a cair de novo na ratoeira. Ele sabe o que você pensa e quer provar-lhe que está enganada, que vai sentir-se culpada. A artimanha afigurou-se-lhe tão maquiavélica que teve pena de Jack. Dissera tanto mal do marido que a Dra. Flowers acreditara nela. Mas não falou em nada durante o almoço com Bill, com medo de ouvir o mesmo que ouvira da boca da Dra. Flowers. Conversaram sobre o livro dele. Já o vendera há meses a um editor, através de um agente.

Que planos tem para o Outono? perguntou-lhe Bill, desejando que ela lhe dissesse que ia deixar o marido. Mas durante todo o almoço foi coisa que Maddy nunca mencionou e parecia mais feliz e mais descontraída do que se habituara a vê-la. Dava a impressão de estar tudo a correr bem. Continuava, todavia, preocupado com ela. E tal como a Dra. Flowers, receava que Jack estivesse a atraí-la de novo para a sua armadilha e aí a mantivesse para sempre, alternando agressão e confusão até ela não poder aguentar mais. Maddy, porém, não aludiu à hipótese de deixá-lo.

Quero tentar voltar a pôr o programa nos eixos. As nossas audiências mergulharam de repente. Pensei que fosse por causa do Brad, mas o Jack acha que eu também ando em baixo e isso se reflecte no meu trabalho. Diz que as minhas peças têm sido autenticamente chatas. Quero descobrir a razão da queda e ver se podemos dar-lhe a volta. Como sempre, Jack acusava-a de uma coisa de que não era culpada, suspeitava Bill, e ela estava mais do que predisposta a dar-lhe ouvidos. Não que fosse estúpida. O que andava era hipnotizada

Ele era infinitamente convincente. A menos que alguém que conhecesse o padrão, era difícil que os estranhos ao círculo íntimo se apercebessem. Quanto a Maddy, estava demasiado perto para discernir

Depois do almoço com Maddy, Bill sentiu-se tentado a telefonar à Dra Flowers, mas sabia que, por uma questão de ética, agora que Maddy era sua paciente, a médica não iria discutir o caso com ele, e compreendia-a. Só lhe restava ficar quieto a observar os acontecimentos e avançar quando surgisse uma oportunidade de a ajudar. De momento, nada havia a fazer. Uma vez mais se recordou de Margaret, dos longos meses de espera para a resgatar e trazer de volta sã e salva. Penalizava-o sobretudo reviver o desfecho. Desta vez não queria cometer o mesmo erro, assustar o inimigo com as suas iniciativas. Mais do que ninguém, sabia que Jack era um adversário de peso, um terrorista de extrema perícia. Bill queria acima de tudo salvá-la. Esperava ser, desta vez, bem-sucedido

A comissão corria bem, e punham a hipótese de reunir com maior frequência. A primeira-dama incluíra mais seis pessoas, planeando para o Outono uma campanha de publicidade contra a violência doméstica e os crimes contra as mulheres. Trabalhavam em seis projectos diferentes e estavam a ser formados subgrupos. Bill e Maddy pertenciam a uma subcomissão que se ocupava de violação, e as coisas de que tomavam conhecimento eram espantosas. Havia uma outra subcomissão dedicada a assassínios, mas nenhum dos dois quisera entrar nela

No fim-de-semana que se seguiu ao regresso de ambos, Lizzie voltou à cidade e Maddy instalou-a no Four Seasons. Convidou Bill a tomar chá com ambas, ele ficou impressionado ao conhecer a rapariga. Era tão bonita quanto Maddy dissera e tão brilhante como a mãe. Dadas as poucas vantagens de que usufruíra, a sua educação surpreendia-o. Empenhara-se em frequentar o liceu, apreciava as aulas na Universidade de Memphis, e era obviamente uma devoradora de livros

Gostava de a pôr em Georgetown no próximo período, se puder disse-lhe Maddy durante o chá E Lizzie mostrou-se entusiasmada com a perspectiva

Tenho lá alguns contactos que talvez possam ser úteis ofereceu-se Bill. O que queres seguir?

Política externa e comunicação social respondeu Lizzie sem hesitar

Adorava conseguir-lhe um lugar na estação, mas não é possível comentou Maddy, pesarosa. Nem sequer informara Jack de que Lizzie estava em Washington, e não ia fazê-lo. O marido andava tão gentil com ela que não queria aborrecê-lo. Falava em levá-la de novo à Europa em Outubro, mas Maddy ainda não dissera nada a Bill. Se a Lizzie vier para a faculdade aqui, vamos arranjar-lhe um apartamentozinho em Georgetown.

Veja bem que seja um lugar seguro aconselhou Bill, preocupado. Ambos haviam ficado horrorizados com as estatísticas de violação de que tinham tido conhecimento nessa semana na comissão

Não tenha medo, serei cautelosa concordou Maddy, a pensar na mesma coisa. Provavelmente, teria uma companheira de quarto E quando Lizzie foi retocar a maquilhagem, Bill comentou quanto a achava encantadora.

É uma rapariga forrmidável, você deve ter muito orgulho nela. Sorriu a Maddy

Tenho, apesar de não ter direito nenhum. Levava-a ao teatro nessa noite. Dissera a Jack que ia a um jantar de mulheres relacionado com a comissão, o que não lhe agradara mas, dado que a primeira-dama estava envolvida, compreendeu

Quando Lizzie voltou para a mesa, falaram um pouco mais dos estudos e dos seus planos de mudança para Washington a fim de estar mais perto da mãe. Era, para ambas, como se um conto de fadas se tivesse transformado em realidade. A Bill, não restava a menor dúvida de que ambas o mereciam.

Às cinco horas deixou-as finalmente e passados poucos minutos Maddy acompanhou Lizzie ao hotel e foi para casa, para saudar Jack e para se arranjar para o teatro. Ela e Lizzie iam ver uma nova produção de O Rei e Eu, e Maddy estava excitada por levar Lizzie a assistir pela primeira vez a um musical. Havia montes de divertimentos à espera delas e Maddy ansiava por começar.

Quando entrou em casa, Jack, descontraído, via o programa de fim-de-semana. Os apresentadores tinham obtido melhores índices de audiência do que ela e Brad, mas Jack continuava a recusar-se a dar-lhe ouvidos quanto à culpa de Brad, que não tinha aptidão para ser um apresentador. A trama de Jack para se livrar de Greg fora um tiro que lhe saíra pela culatra. Continuava porém a acusar Maddy, insistia em culpá-la. E embora o produtor concordasse com ela, temia dizê-lo a Jack. Ninguém gostava de o contrariar.

Jack planeara jantar com amigos, apesar de não gostar de sair sem a mulher nos fins-de-semana, e Maddy deixou-o a vestir-se. Beijou-a carinhosamente e ela partiu contente pela sua gentileza. Era bem melhor assim. Pertenceriam os maus tempos ao passado?

Foi buscar Lizzie ao hotel de táxi e seguiram directamente para o teatro. Lizzie parecia uma criança a ver a peça e no final aplaudiu freneticamente.

É a melhor coisa que eu já vi, mãezinha declarou, entusiasmada, quando saíam do teatro, no preciso momento em que Maddy viu pelo canto do olho um homem com uma máquina fotográfica a observá-las. Um flache disparou e o homem desapareceu. Nada de importante, pensou Maddy, provavelmente um turista que a reconhecera e quisera uma fotografia sua. Esqueceu o incidente. Estava demasiado ocupada a conversar com Lizzie para se preocupar com qualquer outra coisa. A noite fora estupenda.

Lizzie entrou no táxi com ela; Maddy deixou-a no hotel e depois de um abraço prometeu que se encontrariam no dia seguinte ao pequeno-almoço. Uma vez mais teria de esconder Lizzie de Jack. Detestava mentir-lhe, mas dir-lhe-ia que ia à igreja, porque aí ele nunca a acompanhava. E depois disso, Lizzie regressaria a Memphis e Maddy passaria o dia com o marido. Tudo orquestrado na perfeição, e foi excitada com a noite que tinham passado e contente consigo própria que chegou a casa em Georgetown uns minutos mais tarde.

Jack estava na sala, a ver as últimas notícias, quando ela entrou e lhe dirigiu um sorriso radioso, ainda na crista da onda da alegria que partilhara com Lizzie a ver O Rei e Eu.

Divertiste-te? perguntou Jack inocentemente, quando ela se sentou a seu lado. Maddy assentiu com um sorriso.

Foi interessante mentiu-lhe, e odiou fazê-lo, mas sabia que não podia dizer-lhe que estivera com Lizzie. Ele proibira-a terminantemente de voltar a vê-la.

Quem estava lá?

A Phyllis, claro, e a maioria das senhoras da comissão. Um grupo simpático respondeu, ansiosa por mudar de assunto.

A Phyllis? Safa, que habilidade a dela! Estava precisamente a vê-la no noticiário, num templo em Quioto. Chegaram lá esta manhã. Maddy fitou-o um momento, sem saber o que dizer-lhe. E agora, porque não me contas com quem estiveste efectivamente? Com um tipo? Andas a dar curvas por fora? Agarrrou-lhe a garganta com uma mão, exercendo uma leve pressão, enquanto ela tentava não entrar em pânico e o olhava bem nos olhos.

Eu não te faria isso.

Então, onde estiveste? Tenta dizer-me a verdade desta vez.

Estive com a Lizzie murmurou ela.

Quem raio é essa?

A minha filha.

Ah, por amor de Deus! exclamou Jack, empurrando-a para longe de si. Maddy caiu de costas no sofá, sentindo com considerável alívio o ar encher-lhe os pulmões. Por que diabo trouxeste essa cadela para cá?

Não é nenhuma cadela replicou Maddy calmamente. E apeteceu-me vê-la.

Vais ver manchada a tua reputação em todos os jornais. Eu mandei-te ficar longe dela.

Precisamos uma da outra disse Maddy simplesmente. Jack olhava-a, furibundo. Enfurecia-se quando ela não obedecia às suas ordens.

Eu disse-te, para teu próprio bem, que não podes arriscar-te. Se achas que as tuas audiências são péssimas agora, espera até veres o que acontece quando alguém tornar pública essa história. E é mais do que provável que a tipa o faça.

Tudo o que ela quer é ver-me. Não quer publicidade.

Maddy mantinha-se calma, lamentando ter-lhe mentido, tê-lo feito zangar tanto Mas a intransigência dele quanto aos seus encontros com Lizzie não lhe deixava muitas opções.

Isso é o que tu julgas. Como podes ser tão estúpida? Espera até ela começar a extorquir-te dinheiro, se é que já não o fez Ou fez? Semicerrou os olhos ao fitá-la. Vais ter mais problemas do que mereces. Se não for de uma maneira, é de outra. Onde está a criatura?

Num hotel O Four Seasons.

Sorte a dela E dizes-me tu que não está interessada no dinheiro.

Estou a dizer-te que ela quer uma mãe. Maddy tentava acalmá-lo, mas em vão. Furioso, atravessou a sala e parou a fitá-la, com irritação e desprezo.

Passas o tempo a fazer qualquer coisa para me lixar, não é, Mad? Se não é um editorial acerca da maluca com quem o Paul McCutchinscasou, é deitar abaixo as audiências, e agora isto.. Desta vez, vais pelo cano abaixo. Verás se eu não tenho razão. Mad. E quando isso acontecer, acredita-me, hás-de lamentar profundamente. Sem acrescentar mais nenhuma palavra, precipitou-se escadas acima e atirou com a porta da sua casa de banho. Maddy ficou algum tempo sentada na sala, tentando imaginar como explicar-lhe o quanto a filha significava para si e como lamentava tê-lo aborrecido. Era tudo culpa sua, sabia-o, porque lhe mentira quanto ao facto de ter tido um bebé. Talvez, se lhe tivesse contado de início, ele não ficasse tão zangado. Tudo o que podia fazer era pedir desculpa e tentar ser discreta. Do que tinha a certeza era de que não ia desistir da filha, agora que se tinham finalmente encontrado.

Subiu calmamente as escadas, depois de apagar as luzes, e quando vestiu a camisa de noite ele já estava na cama, com os olhos fechados e a luz apagada Maddy tinha a certeza de que o marido não estava a dormir e, ao meter-se na cama, aquele falou-lhe, sem abrir os olhos.

Odeio quando me mentes. É como se não pudesse confiar em ti. Passas a vida a magoar-me.

Lamento imenso, Jack. Acariciou-lhe o rosto, esquecendo por completo que ele quase a asfixiara meia hora antes quando a acusara de o aldrabar. Não foi minha intenção afligir-te. Mas queria mesmo vê-la.

Eu avisei-te. Proíbo-te de o fazeres. Não consegues meter isso na cabeça? Em primeiro lugar nunca quis miúdos, e tu também não. Abrira os olhos e olhava para ela. E tenho a certeza de que não pretendes grudar-te a uma pegazinha de dezanove anos de Memphis.

Por favor, não fales dela nesses termos pediu-lhe Maddy, mas o que na realidade desejava era que ele lhe perdoasse, por lhe mentir e o trair, pelo facto de a sua filha ilegítima ter aparecido sete anos depois de se terem casado, sem que ela a tivesse mencionado previamente. Apercebia-se de que era pedir-lhe que engolisse muita coisa. Não podia, porém, deixar de desejar que a sua reacção se assemelhasse à de Bill, que gostara realmente de Lizzie mal a conhecera.

Quero que deixes de a ver intimou Jack, olhando-a com firmeza. Deves-me isso, Mad. Nunca me contaste que ela existia, agora quero que volte a desaparecer das nossas vidas. Não precisas dela, nem sequer a conheces.

É-me impossível. Não posso ter filhos. E, acima de tudo, em caso algum desistiria dela.

Mesmo se isso te custar o teu casamento? Era uma ameaça terrível.

É o que tens estado a insinuar? Mostrava-se horrorizada. O marido ameaçava-a, obrigava-a a fazer uma opção que lhe despedaçaria o coração. Naquele momento, tão-pouco queria deixá-lo. Fora tão encantador para ela nas últimas semanas que as coisas entre eles parecia estarem a entrar nos eixos. E logo ia acontecer aquilo! Quem lhe dera não ter sido obrigada a mentir para levar Lizzie ao teatro.

Estava desesperada por ver a filha, e não sabia como fazê-lo sem irritar o marido.

É uma possibilidade afirmou Jack, em resposta à sua pergunta relacionada com a ameaça que Lizzie representava para o casamento deles. Foi coisa que não fez parte do contrato. Entraste neste casamento numa base fraudulenta, disseste-me que nunca tiveras filhos. Mentiste-me. Esse facto poderia permitir-me a anulação do casamento.

Passados sete anos?

Se me defraudaste, e me mentiste, o que fizeste e eu posso provar, não há casamento. É bom que penses nisso antes de voltar a arrastá-la para as nossas vidas. Pensa a sério, Mad, estou a avisar-te... E ditas estas palavras, virou-se e fechou os olhos; cinco minutos depois ressonava, com Maddy a olhá-lo fixamente. Não sabia o que fazer ou dizer. Não queria desfazer-se uma vez mais de Lizzie. Não podia fazer semelhante coisa, nem a Lizzie nem a si própria. Mas também não queria perder Jack. Ele dera-lhe tanto, e as agressões de que o acusara começavam a parecer fragmentos da sua imaginação, o que Lizzie não era. Maddy sentia-se como se fosse ela a portar-se mal com Jack, era ele a vítima, tal como lhe afirmara. Passou horas acordada, a pensar e a culpabilizar-se.

De manhã, porém, continuava sem respostas. Explicou-lhe que ia despedir-se de Lizzie ao hotel, que tomaria o pequeno-almoço com ela, e que depois regressaria e poderiam passar o dia juntos.

O melhor que tens a fazer é dizer-lhe que não voltas a encontrar-te com ela, Mad. Andas a brincar com o fogo. Comigo, e com a imprensa. É um preço muito alto a pagar por uma garota que nem sequer conheces e de que nunca sentirás a falta se a puseres com dono de imediato.

Já te disse, Jack. Falava-lhe num tom sério e franco. Não queria voltar a mentir-lhe. Era mais um pecado a juntar aos muitos que já cometera, segundo ele. Não posso fazer isso.

Tem de ser.

Não lhe faço tal coisa.

Preferes fazer-ma a mim, não é? Elucidas-me quanto ao valor que dás a este casamento. Mostrava-se magoado. A vítima consumada.

Não estás a ser razoável tentou Maddy explicar-lhe, mas ele calou-a com o seu olhar ultrajado.

Razoável! Estás a brincar comigo? És maluca? Que drogas andas a tomar? A que ponto se te afigura razoável atirar-me para cima com a tua filha bastarda, nunca me tendo dito que ela existia?

Elucidas-me quanto? Mostrava-se magoado.

Foi um erro da minha parte, concordo. Mas não estou a pedir-te que convivas com ela, Jack. Sou eu que quero conviver

Então, ainda és mais louca do que eu pensava. Que tal um retrato de família na capa da People? Seria o bastante para ti? Porque é o que vai suceder mais cedo ou mais tarde E então, bem podes dizer adeus ao público

Talvez não, talvez sejam mais compreensivos neste caso do que tu.

Tretas! Por amor de Deus, serás capaz de raciocinar? Continuaram a discussão por mais meia hora. Jack teve de sair para ir jogar golfe com dois dos conselheiros do presidente, mas não sem antes ordenar a Maddy que nunca mais se encontrasse com Lizzie. Maddy também saiu, foi tomar o pequeno-almoço com a filha e passaram um óptimo bocado. Lizzie achou-a preocupada, mas Maddy negou. Não queria desgostá-la e não lhe disse que nunca mais se veriam. Em vez disso, prometeu que brevemente a teria de volta para outro fim-de-semana e acrescentou que a manteria a par do que soubesse acerca de Georgetown. Beijaram-se e abraçaram-se à despedida, e Maddy deu-lhe dinheiro para o táxi até ao aeroporto mas, embora lho tenha oferecido, Lizzie não quis mais nenhum. Era muito conscienciosa quanto a não aceitar da mãe mais do que o bilhete de avião, o hotel e o táxi. Maddy propusera abrir-lhe uma conta bancária e Lizzie recusara categoricamente. Não pretendia aproveitar-se da mãe. Maddy, porém, sabia que Jack nunca acreditaria nisso

Ao meio-dia, Maddy estava de volta, e Jack ainda não chegara. Telefonou a Bill e contou-lhe o sucedido

Tudo por minha culpa disse, lastimosa. Não devia ter-lhe mentido

Bill discordou

O seu marido está a agir como um sacana e pretende ser ele a vítima. Não é, Maddy. A vítima é você. Como é que não vê isso? Estava mais frustrado do que nunca. Conversaram quase uma hora e no fim Maddy ainda mais deprimida ficou, como se não compreendesse os argumentos de Bill. Este perguntava a si próprio se ela alguma vez se libertaria das amarras que a prendiam. Ultimamente parecia recuar em vez de avançar

Quando à tarde voltou para casa, Jack não disse uma palavra sobre Lizzie. Maddy não sabia ser bom sinal ou não, ou se ele se preparava para um novo ultimato. Fez-lhe um apetitoso jantar e falou-lhe com amabilidade Nessa noite, fizeram amor e o marido foi extremamente meigo, o que mais a culpabilizou por o tornar tão infeliz

Quando no dia seguinte foram para o trabalho, tal como Jack previra, a bomba rebentou. A fotografia que o homem do teatro tirara a Lizzie e a Maddy aparecia na primeira página de todos os jornais, em diversas variantes E alguém contara ou adivinhara a verdade. Nos cabeçalhos lia-se “Maddy Hunter e a sua filha há muito perdida. Relatavam tudo o que sabiam, que Maddy tivera um bebé aos quinze anos e o dera para adopção. Havia várias entrevistas com Bobby Joe e com um professor da sua antiga escola. Não restavam dúvidas de que os jornalistas se tinham aprimorado nos seus trabalhos de casa

Jack estava no gabinete dela com exemplares de todos os jornais

Bonito, não é? Espero que te orgulhes disto. E o que raio devemos fazer. Vendemos-te como uma Virgem Maria nos últimos nove anos e agora surges como aquilo que és, Mad. Uma estuporada prostituta. Bolas, porque não me deste ouvidos. Na fotografia, ela e Lizzie pareciam gémeas, tão parecidas eram. Jack soprava como um touro enraivecido. Mas não havia como apagar o que acontecera

Maddy telefonou a Lizzie, em Memphis, para a avisar e, quando Jack voltou finalmente para o seu próprio gabinete, telefonou à Dra Flowers e depois a Bill. Ambos lhe disseram praticamente a mesma coisa A culpa não era sua, e a coisa não era tão grave quanto ela pensava. O público adorava-a. Ela era uma boa pessoa, cometera um erro na juventude, e sabê-lo só contribuiria para que gostassem mais dela e a compreendessem. A foto das duas juntas era na verdade muito terna, enlaçando-se pela cintura

Jack porém fizera todos os possíveis, e com muito sucesso, para a aterrorizar e culpar. Até Lizzie chorara quando Maddy lhe telefonara

Lamento tanto, mãezinha. Não queria causar-lhe problemas.

O Jack está realmente furioso? Preocupava-se com Maddy. Não gostara de Jack quando o conhecera, achava-o deveras assustador. Havia nele algo de sinistro

Não está contente, mas há-de passar-lhe. Uma afirmação muito optimista.

Vai despedi-la?

Acho que não. Aliás, não penso que o sindicato lho permitisse. Seria discriminatório... A menos que Jack pudesse evocar a cláusula da moralidade do seu contrato. Quer pudesse ou não, estava furibundo com ela, e ela numa agonia pelo desgosto que lhe causara. Só temos de ultrapassar isto. Mas promete-me que não falas com nenhum jornalista.

Juro. Nunca o fiz e nunca o farei. Não faria nada para a magoar. Adoro-a. No outro extremo da linha, soluçava, e Maddy fez todos os possíveis para a tranquilizar.

Eu também te adoro, querida. E acredito em ti. Até eles se fartarem do assunto, tenta não te ralares muito

No entanto, os jornalistas de televisão começaram a persegui-la, e a estação andava num grande alvoroço. Todas as revistas do país tinham telefonado, queriam uma entrevista.

Talvez possamos dar-lhes o que eles querem sugeriu por fim o chefe de programas. A que ponto seria mau? Portanto, ela teve um bebé aos quinze anos. Não é a primeira. Não o matou, que diabo, até é uma história dramática e terna, se lhe dermos a volta certa. O que acha, Jack? Mostrava-se esperançoso ao olhar o patrão

O que acho é que me apetece dar-lhe um pontapé no rabo que a atire para Cleveland. É o que eu acho foi a resposta instantânea de Jack. Nunca estivera tão enfurecido com ela, ou tivera tanta razão para o estar. É uma idiota por ter sequer admitido perante essa prostitutazeca que era sua mãe. Mãe! O que raio significa isso num caso destes? Foi para a cama com um palerma qualquer do liceu que a emprenhou, e desembaraçou-se da miúda no exacto momento em que ela nasceu. E agora anda por aí com ares de santa a falar da sua filha. Porra, uma gata está mais ligada à sua ninhada do que a Maddy a essa estúpida cabra de Memphis. A rapariga está apenas a pendurar-se nas saias da Maddy e a burra não vê isso.

Pode não ser bem assim replicou delicadamente o chefe de programas. Estarrecia-o a veemência da reacção de Jack. Ultimamente, tinha andado sob grande pressão. Os índices de audiência do programa de Maddy desciam diariamente, talvez fosse parte da razão por que estava tão zangado com a mulher. Mas todos sabiam que a culpa não era dela, e tinham-no dito a Jack que também nesse ponto não quisera escutá-los.

Ainda espumava quando foram para casa à noite e tentou arrancar a Maddy a promessa de que nunca mais veria Lizzie, mas ela não acedeu. Pela meia-noite, estava tão furioso que saiu de casa e só voltou na manhã seguinte. Maddy não fazia a menor ideia do sítio para onde ele fora, mas ao olhar pela janela depararam-se-lhe câmaras de televisão no exterior e não ousou segui-lo. Tudo o que agora podia fazer era o que aconselhara a Lizzie que fizesse. Não abrir a boca. Lizzie estava em casa de amigos, pelo que não a encontraram na pensão, e o patrão dera-lhe férias do restaurante até ao fim da semana, tão impressionado ficara por ela ser filha de Maddy Hunter.

O único que não se impressionou foi Jack. Estava tudo menos impressionado. Suspendeu-a do programa durante duas semanas alegando a perturbação que causava a todos eles e ordenou-lhe que esclarecesse o seu acto, se desfizesse da filha, e não voltasse ao trabalho até ter feito tudo isso. Para ele, caíra em total desgraça e advertiu-a, com as veias da testa a latejar, que se mais alguma vez ela lhe mentisse, acerca de qualquer coisa, a mataria. Tudo o que a percorreu, ao ouvi-lo, foi um sentimento de culpa. Acontecesse o que acontecesse, a culpa era sempre sua.

 

No decurso de Setembro, os jornais começaram a desinteressar-se de Maddy e da filha. Houve repórteres que se deslocaram ao restaurante em Memphis uma ou duas vezes, mas o patrão de Lizzie escondeu-a na sala das traseiras até eles saírem. Acabaram por deixar de aparecer. Foi um pouco mais difícil para Maddy, que estava mais exposta e teve maiores problemas do que Lizzie para evitar a imprensa. Por insistência de Jack, nunca fez comentários, e para além da fotografia em O Rei e Eu, pouco havia a relatar. Maddy não desmentiu nem confirmou que Lizzie era sua filha, embora lhe tivesse agradado dizer-lhes que tinha muito orgulho nela e a emocionava o facto de Lizzie a ter procurado e encontrado. Mas, por consideração por Jack, não o fez.

Ela e Lizzie tinham combinado que, durante uns tempos, a rapariga não viria a Washington, porém Maddy continuava a tentar a sua admissão na Universidade de Georgetown e Bill dava o seu melhor para a ajudar. Era fácil Lizzie ser admitida. Tinha boas notas e estupendas referências dos seus professores em Memphis.

A comissão da primeira-dama voltou a reunir e foi um prazer para Bill a presença de Maddy. Mas achou-a tensa, cansada e preocupada. O ataque da imprensa saíra-lhe caro e confessou que Jack ainda lhe fazia a vida negra por causa disso. Também a massacrava por causa do nível de audiências, que agora declarava ser consequência do escândalo relativo à sua filha ilegítima. Através dos seus telefonemas diários, Bill sabia muito mais. O que não sabia, e de que agora não tinha a certeza, era se ela acabaria por se separar do marido. Deixara de tocar no assunto e parecia culpar-se pela maioria dos problemas do casal.

Bill andava tão obcecado com a situação dela que abordou a Dra. Flowers numa das reuniões da comissão. Sem lhe divulgar segredo algum, a médica tentou sossegá-lo.

A maioria das mulheres suporta a agressão durante anos disse-lhe sensatamente, intrigada tanto pelo seu interesse  como pela sua reacção. Mostrava-se quase louco de preocupação com Maddy. E este é o género mais subtil, mais insidioso. Os homens como o Jack são bons nisso. Leva-a a sentir-se responsável pelo que ele faz, e retrata-se como sendo a vítima. E não esqueça, Bill, ela permite-lho.

O que podemos fazer para a ajudar? queria desesperadamente agir, mas não sabia como.

Estar a postos para ela. Prestar atenção. Esperar. Dizer-lhe sinceramente o que pensa e ver. Mas se ela quer sentir-se culpada em relação a Jack, sentir-se-á. Por fim, será ela a encontrar o caminho. Você está a fazer tudo o que de momento pode. Não lho disse, mas sabia por Maddy que ele lhe telefonava todos os dias e que Maddy prezava a sua amizade. A Dra. Flowers não podia impedir-se de imaginar o que mais havia, mas Maddy insistia firmemente em que não passavam de amigos e nenhum deles alimentava sonhos românticos. A Dra. Flowers não estava assim tão certa. Houvesse o que houvesse, gostava de Bill e respeitava muito ambos.

O que me assusta é que um dia destes a subtileza dele se transforme em qualquer coisa mais óbvia. Continuo a recear que vá magoá-la.

Está a magoá-la agora. Mas não é habitual os homens como Jack tornarem-se violentos. Não posso garantir-lhe que ele não venha a sê-lo, mas penso que é esperto de mais para isso. Quanto mais perto estiver de perder a sua presa, pior será para ela. Não vai deixá-la partir amigavelmente.

Conversaram um bom bocado, muito depois de Maddy se ter ido embora, e Bill não se sentia encorajado ao conduzir rumo a casa. Já uma vez na vida passara por idêntico desespero. Talvez o seu temor de que Maddy fosse agredida se baseasse na sua própria experiência, quando a mulher fora raptada e depois assassinada. Até então, nunca acreditara verdadeiramente que uma coisa tão terrível pudesse acontecer.

Na semana seguinte, entregou a Maddy o manuscrito passado a limpo do seu livro. Ela ia a meio, no fim-de-semana, e escorriam-lhe lágrimas pelo rosto. Jack notou-o.

O que diabo estás a ler que tanto te faz chorar? perguntou-lhe com curiosidade. Estavam na Virgínia, num fim-de-semana chuvoso, e Maddy passara a tarde estendida no sofá, a ler e a chorar. A descrição de Bill do que se passara quando a esposa fora raptada pelos terroristas despedaçava-lhe o coração.

É o livro do Bill Alexander. Está muito bem escrito.

Santo Deus, porque te interessa ler uma droga dessas? É um tipo com tão pouca fibra que é difícil acreditar que tenha escrito qualquer coisa que valha a pena ler. Jack não tinha a mínima consideração por Bill e era óbvio que não gostava dele. Teria gostado ainda menos, tê-lo-ia mesmo odiado, se suspeitasse do apoio que dava a Maddy. Pressenti-lo-ia?

É muito comovente.

Jack não falou mais no assunto, mas quando à noite foi buscar o manuscrito Maddy não o encontrou e acabou por perguntar ao marido se o vira.

Vi. Achei por bem poupar-te a outra noite de lágrimas. Pu-lo no lugar a que pertence. No lixo

Deitaste-o fora? indagou, chocada.

Tens coisas melhores em que empregar o teu tempo. Se fizesses um pouco mais de pesquisa, as audiências do teu programa seriam melhores.

Sabes que faço imensa pesquisa retorquiu, na defensiva. Tinha estado a trabalhar num escândalo prestes a rebentar na CIA e noutra peça relacionada com a corrupção dos serviços alfandegários. E também sabes que a minha pesquisa não é o problema.

Talvez estejas a envelhecer, garota. É que o público não aprecia mulheres com mais de trinta. Dizia tudo o que lhe ocorria para a amesquinhar.

Não tinhas o direito de deitar fora o livro. Não o acabei E prometi devolver-lho. Estava aborrecida, e Jack totalmente indiferente aos seus sentimentos. Era apenas uma outra forma de desrespeito, por ela e por Bill Alexander. Felizmente, tratava-se de uma cópia, não do original.

Não desperdices o teu tempo, Mad. Subiu as escadas para o quarto e, quando ela se deitou, fez amor com ela. Maddy notara que ultimamente ele voltara a ser rude, como que a puni-la pelas suas muitas transgressões. Não era brutal ao ponto de ela poder queixar-se e, quando lhe fazia qualquer observação, dizia-lhe que tudo era imaginação sua. Tentava convencê-la de que fora gentil, mas ela não se deixava enganar.

Na semana seguinte, quando voltaram para Washington, Brad surpreendeu toda a gente ao solucionar o maior problema do programa. Falou com Maddy antes de ir ter com Jack, disse-lhe que se apercebera de que ser um apresentador não era tarefa fácil, mesmo acompanhado por uma pessoa tão competente como Maddy.

Julguei sempre que era bom nesta coisa de estar no ar, mas é diferente de falar de uma árvore ou de um tanque, para ser ouvido apenas durante dois minutos. Sorriu-lhe, pesaroso. Não acho que tenha aptidão para isto. E para ser sincero consigo, não gosto do trabalho. Já arranjara emprego noutra estação, como correspondente na Ásia. Ficaria em Singapura, e estava ansioso por partir. E embora Maddy tivesse começado a gostar mais dele, foi com alívio que recebeu a notícia. Qual iria ser a reacção de Jack, perguntou a si própria.

Este mal comentou o facto. No dia seguinte, foi emitido um memorando a informar que Brad se despedira e concordara em ficar até ao fim da semana. O contrato para os primeiros seis meses era provisório, porque o próprio Brad não estava certo de que o lugar lhe agradasse. Pelo ar de Jack, Maddy via que ele não estava satisfeito, mas não o admitia. Tudo o que lhe dizia era que o fardo dela seria agora mais pesado, até encontrarem outro colaborador.

Espero que as tuas audiências não se afundem. Mostrava-se inquieto. Mas os seus receios depressa provaram ser infundados. Em vez de descerem, as audiências dispararam logo que Brad abandonou o programa na semana seguinte, e o produtor sugeriu mesmo a Jack que a deixassem continuar sozinha. Jack, porém, insistia em que ela não tinha força suficiente para levar por diante o programa sem colaboração e queria alguém para o criar com ela. Entretanto, os níveis de audiência tinham voltado a ser altos, o que deixava Maddy feliz apesar de Jack não o ter em conta.

A despeito das audiências, que eram para ela um enorme alívio, Bill quando lhe telefonava ainda a achava abatida. Batera-se pelo programa muito tempo E dizia que sentia falta de trabalhar com Greg. Não sabia bem qual era o problema, mas confessou-lhe que não andava muito bem-disposta. Melhorou notoriamente quando Bill lhe telefonou para a informar de que conseguira colocar Lizzie na Universidade de Georgetown. A pequena tinha boas notas e competência e enviara um currículo perfeito Mas, como se tratava de uma das mais populares faculdades do país, levara algum tempo a arranjarem lugar para ela. Bill servira-se de vários dos seus contactos e, com base nele e nas recomendações que Lizzie obtivera dos seus professores, haviam decidido aceitá-la. Maddy ficou excitadissima pela filha. Disse a Bill que ia arranjar-lhe um pequeno apartamento em Georgetown, e que ela e Lizzie poderiam encontrar-se sempre que quisessem. Estava em êxtase e agradecia-lhe imenso

Espere até eu lhe contar.

Diga-lhe que eu não tive nada a ver com isso pediu-lhe Bill, humilde. O merecimento foi todo dela. Tudo o que fiz foi abrir algumas portas, mas não teria servido de nada se ela não fosse merecedora

Você é um santo, Bill. Voltou a sorrir. Mortificara-a contar-lhe que Jack deitara fora o manuscrito, mas ele não demonstrara surpresa. Mandara-lhe outro exemplar, que ela leu nos momentos livres no trabalho. Acabara precisamente na véspera, e falaram sobre o livro durante algum tempo. Na opinião de Maddy, iria ter um enorme impacto. Era não apenas inteligente mas sincero e caloroso, e tremendamente humano

Nesse fim-de-semana, falou pessoalmente a Lizzie sobre Georgetown. Jack foi a Las Vegas passar o fim-de-semana com um grupo de homens, e Maddy apanhou um avião para Memphis. Foram as duas jantar fora e passaram um bom bocado a fazer planos. Maddy prometeu arranjar-lhe um apartamento em Dezembro, antes do início do segundo período em Georgetown, a seguir ao Natal. Lizzie nem acreditava na sua sorte

Não me arranje nada muito caro. Se vou para a faculdade a tempo inteiro, só posso trabalhar à noite e nos fins-de-semana

E quando achas que vais fazer os teus trabalhos de casa perguntou Maddy, muito maternal e radiante por se sentir assim. Não podes trabalhar e conseguir boas notas, Lizzie. Pensa nisso. Na perspectiva de Lizzie, não havia muito que pensar. Já passara um ano e meio na faculdade, sem deixar de trabalhar um só minuto.

Eles dão-me uma bolsa de estudos? Continuava preocupada.

Não, mas dou eu. não sejas pateta, Lizzie. Os tempos mudaram. Agora, tens uma mãe. E uma mãe com uma vida desafogada, com um dos mais cotados programas do país. Tinha a intenção de pôr Lizzie na faculdade e pagar-lhe o apartamento e as despesas pessoais. E explicou-lhe muito objectivamente: Não espero que sejas tu a manter-te. Mereces uma pausa. Já tiveste tempos difíceis em demasia. Havia muito a fazer pela filha e tudo o que queria era compensá-la. Não podia apagar o passado, mas pelo menos conseguia assegurar-lhe o futuro.

Não posso permitir isso. Um dia hei-de pagar-lhe declarou Lizzie solenemente.

Podes dar-me apoio quando eu for velha riu-se Maddy, como uma filha dedicada. A verdade é que estavam já dedicadas uma à outra e, mais uma vez, passaram juntas um delicioso fim-de-semana. Depressa descobriram que partilhavam imensas ideias, tinham gostos muito parecidos no vestuário e nos objectos que lhes agradavam. A única coisa em que diferiam, veementemente, era na música. Lizzie era louca por punk rock e country, dois géneros que Maddy detestava. Espero que isso te passe com a idade brincou Maddy, e Lizzie jurou que não passaria.

As coisas que a mãe ouve são tão desactualizadas! espicaçou-a a filha por seu turno.

Deram longos passeios juntas e passaram uma manhã calma no domingo, após terem ido à igreja. Depois, Maddy voou de regresso a Washington e chegou a casa antes de Jack, que viria de Las Vegas. Ele avisou que voltaria pela meia-noite. Quanto a ela, não lhe contara onde ia e não tencionava dizer-lho. Lizzie continuava a ser uma bomba entre ambos.

Estava a desfazer a sua pequena mala quando o telefone tocou no domingo à noite e, ao atender, surpreendeu-a ouvir a voz de Bill. Ele nunca lhe falava para casa, habitualmente só para o trabalho, para que não fosse Jack a responder

Alguma coisa vai mal? perguntou, nervoso.

Não, tudo bem. Acabo de chegar, estive com a Lizzie. Está excitadíssima por causa de Georgetown.

Óptimo! Estive o dia inteiro a pensar em si. Alegra-me que esteja boa. Não sei porquê, mas estava preocupado consigo. Não era raro da parte dele. Desde que Maddy entrara na sua vida, só conseguia pensar nela. Estava numa situação tão difícil! Tinha a sensação de dever tanto a Jack que acreditava ter de aguentar tudo o que de mau ele lhe preparava, e tão convictamente que Bill não conseguia convencê-la do contrário, embora já tivesse começado a aperceber-se de que o marido era realmente agressivo. Uma situação altamente frustrante para Bill, que andava numa permanente inquietação por ela. Até falara no caso aos seus filhos, a quem intrigara que o pai a conhecesse. O seu marido está por aí? perguntou, cauteloso. Calculava que não, visto ela ter-lhe mencionado Lizzie.

Não. Foi passar o fim-de-semana a Las Vegas. Foram lá jantar e assistir a um dos espectáculos mais recentes. Vai chegar a casa muito tarde. Ele disse meia-noite, mas aposto que não está cá antes das três ou quatro da manhã.

Então, que tal jantarmos juntos? convidou-a de imediato, aliviado por encontrá-la sozinha. Estava precisamente a fazer massa e uma salada para mim. Interessa-lhe uma coisa tão simples? Ou saímos, se preferir. Nunca antes a convidara para jantar, embora tivessem almoçado diversas vezes, e Maddy sempre tivera prazer em estar com ele. Tornara-se o seu mentor e confidente e, sob certos aspectos, o seu anjo-da-guarda. Com a partida de Greg, passara a ser o seu melhor amigo.

Na verdade, adorava jantar consigo. Sorriu perante o convite. Ambos concordaram com a ideia da casa dele. Não era o momento de dar origem a rumores e, dado o nível de interesse que a imprensa tinha nela, isso poderia acontecer. Um problema que nenhum dos dois desejava. Quer que leve alguma coisa. Vinho. Sobremesa. Guardanapos. Mostrava-se feliz por ir vê-lo

Venha só a Maddy E não acalente grandes esperanças. Os meus dotes de cozinheiro são limitados. Na verdade, só comecei a aprender há um ano

Não faz mal. Eu ajudo-o

Chegou a casa dele meia hora mais tarde, com uma garrafa de vinho tinto na mão, vestida com uma camisola branca e calças de ganga E, com o cabelo a cair-lhe pelas costas, parecia-se mais do que nunca com Lizzie. Bill sublinhou-o

É uma garota amorosa comentou Maddy com orgulho, como se tivessem partilhado juntas toda a vida

A eficiência de Bill na cozinha impressionou-a. Usava uma camisa azul muito bem engomada e calças de ganga, arregaçara as mangas e preparara uma salada excelente. Aqueceu a baguete que comprara para ela, e o seu fettucini Alfredo estava delicioso. O vinho tinto trazido por Maddy adquava-se na perfeição à massa. Sentados na confortável cozinha, a contemplar o jardim de que ele tanto gostava, conversaram sobre imensas coisas. Os seus postos diplomáticos, a sua carreira académica, o seu livro, o programa dela, e até os filhos dele. Era total o à-vontade entre ambos, amigos como eram Bill achava que podia discutir tudo com ela, até as suas preocupações com o casamento da filha. Em sua opinião, esta trabalhava de mais, tivera muitos filhos num curto espaço de tempo, e apoquentava-o o facto de o seu genro ser demasiado crítico. Pareciam uma família encantadora e Maddy tê-lo-ia invejado ainda mais se não tivesse Lizzie

Nunca me apercebi de quanto são importantes os filhos, até não poder tê-los. Fui estúpida em permitir que o Jack me levasse a isso, mas era tão importante para ele, e ele fizera tanto por mim que achei que lho devia. Toda a minha vida as pessoas me têm dado opiniões quanto a ter ou não ter filhos, ou dá-los, ou eu não poder tê-los. Incrível, conversar com ele sobre aquele assunto, mas a sua amargura e angústia tinham-se desvanecido até certo ponto, agora que recuperara Lizzie. Imagine se eu nunca a tivesse encontrado, pense em como a minha vida teria sido triste, sem nunca ter filhos

É difícil de imaginar. Os meus filhos são o que dá valor à minha vida admitiu ele. Às vezes, penso que estava mais ligado a eles do que a Margaret. Ela era bastante mais desprendida. Eu sempre me preocupei com eles e era um pouco superprotector. Hoje em dia, Maddy compreendia-o melhor. Andava sempre a pensar em Lizzie, receosa de que lhe acontecesse alguma coisa e a maior dádiva da sua vida desaparecesse de repente Como se fosse uma dádiva boa de mais para ser verdade, e ela pudesse ser punida com o desaparecimento da filha

Sempre me senti culpada por tê-la dado para adopção É um milagre ela ter ultrapassado esse facto tão bem. De certa maneira, é muito mais saudável do que eu observou Maddy, com admiração, enquanto Bill punha na sua frente uma taça de musse de chocolate. Como tudo o que lhe servira, estava deliciosa

Não sofreu embates tão fortes como a Maddy. É espantoso que seja tão saudável como é Embora decerto também tenha passado maus bocados em lares de acolhimento e orfanatos. Também não deve ter sido fácil para ela. Graças a Deus, têm-se uma à outra. Fez-lhe então uma estranha pergunta. Agora que a tem, e sabe o que é ter um filho, quereria ter mais.

Adorava, mas não creio que haja grandes possibilidades de tal acontecer. Sorriu-lhe melancolicamente. Não dei mais nenhum, não posso tê-los a única maneira seria adoptar, e o Jack não mo permitiria. Entristecia-o que Jack ainda constituísse uma parte tão importante da vida dela. Ultimamente Maddy não dizia uma palavra quanto a deixá-lo. Não se acomodara com a situação em que se encontrava, mas por outro lado não arranjara coragem para lhe virar as costas. Continuava a achar que lhe devia imenso, especialmente depois da mágoa que lhe causara por causa de Lizzie e da sua própria fraude

E se o Jack não existisse. Adoptaria. Uma pergunta despropositada, mas cuja resposta lhe despertava curiosidade. Era óbvio que gostava de crianças e encantava-a o relacionamento com a filha reencontrada. Era uma mãe surpreendentemente boa, apesar de novata no papel

É provável respondeu, surpreendendo-se a si própria. Nunca pensei nisso Sobretudo, porque nunca julguei que me separaria do Jack. E, mesmo agora, não sei se alguma vez terei coragem para tanto

Mas quer? Deixar o Jack. Às vezes achava que ela queria, às vezes achava que não. Era uma área da vida dela repleta de complexos de culpa, confusão, conflito. No entanto, pelo menos aos olhos de Bill, aquele casamento não era um casamento. Maddy não passava de uma vítima.

Gostaria de deixar toda a dor e medo, e a culpa que sinto quando estou com ele. Talvez aquilo que realmente me agradasse fosse tê-lo sem ter tudo isso, o que não julgo possível. Mas quando penso em deixá-lo, penso em deixar o homem que julguei que ele era, e de vez em quando foi, e costumava ser. E quando penso em ficar, penso em ficar com o safado que ele pode ser, e é com demasiada frequência E difícil conciliar as duas coisas. Nunca sei ao certo quem ele é, ou quem eu sou, ou quem deixaria. Era tão sincera quanto possível, e a explicação elucidava-o um pouco mais.

Talvez o mesmo se passe com todos nós, embora em menor grau.

De certo modo, ela navegava em indecisão porque ambas as facetas tinham idêntico peso; para Bill, o lado agressivo de Jack fazia pender a balança Mas Bill não tivera a infância atormentada de Maddy e que a predispusera a deixar Jack fazer-lhe o que quisesse. Levara quase nove anos, sete dos quais casada com ele, para compreender que Jack e Bobby Joe tinham de facto muito em comum. Só que Jack era mais subtil

Até no meu caso continuou Bill, não me lembro de algumas das coisas que a Margaret costumava fazer e me desagradavam. Quando agora olho para trás, e me recordo dos anos que partilhámos, tudo parece tão perfeito! Mas tínhamos as nossas diferenças, como a maioria das pessoas, e atravessámos momentos difíceis. Quando aceitei o meu posto diplomático, e quis sair de Cambridge, ameaçou deixar-me. Não queria ir-se embora, achou que eu estava maluco. Com ° andar dos tempos... Olhou tristemente para Maddy. Bom... revelou-se que tinha razão. Eu nunca devia ter feito aquilo. Se não tivesse ido, ainda hoje ela estaria viva.

Não pode dizer isso protestou Maddy com doçura, estendendo o braço por cima da mesa para lhe tocar gentilmente na mão. O destino é que manda. A sua mulher podia ter morrido num acidente de avião, ser atropelada por um carro, morta na estrada, ter um cancro. O Bill não podia saber o que iria acontecer E deve ter pensado que estava a fazer o que era correcto

Pensei. Nunca me passou pela cabeça que a Colômbia fosse tão perigosa como era, ou que correríamos lá tanto risco. Se o tivesse adivinhado, nunca teria aceite o cargo

Eu sei. Maddy mantinha a mão sobre a dele, que a tomou na sua e a apertou. Tenho a certeza de que a sua mulher também o sabia É como dizer que nunca se deve andar de avião porque às vezes eles caem. Tem de se levar a vida o melhor que se pode, e correr riscos razoáveis. A maior parte das vezes, vale a pena. Não pode martirizar-se com o ocorrido. Não é justo. Merece mais acrescentou, com simplicidade

Também a Maddy retorquiu ele, ainda a segurar-lhe na mão e olhando-a. Quero que acredite nisso

Estou a tentar aprender. Houve muita gente a dizer que não merecia É difícil não lhes dar ouvidos

Quem me dera poder afastar de si todas essas ideias. Merece uma vida muito melhor do que a que tem tido, Maddy. Se eu pudesse protegê-la, ajudá-la.

Já o faz Mais do que julga. Sem o Bill, estaria perdida. Contara-lhe tudo, todas as suas esperanças, todos os seus medos, todos os seus problemas. Não havia nada que ele ignorasse sobre a sua vida. Muito mais do que Jack sabia E estava grata por ter Bill à sua disposição

Bill serviu uma chávena de café a cada um e foram para o jardim. O ar estava fresco mas ainda agradável quando se sentaram num banco e ele lhe passou um braço pelos ombros. Fora uma tarde perfeita, depois de um fim-de-semana delicioso

Temos de repetir isto mais vezes, se puder. Fora uma sorte para ele Jack estar em Las Vegas

Não me parece que o Jack pudesse compreender retorquiu Maddy. Nem estava muito segura de o compreender  ela própria. Sabia que Jack se zangaria se soubesse do jantar com Bill Alexander. Mas já decidira não lhe contar. Nos últimos dias, ocultara-lhe muitas coisas.

Estou ao seu dispor, Maddy, se precisar de mim. Espero que o saiba. Voltou-se para a olhar à luz da sala e do luar.

Sei, Bill, obrigada. Fitaram-se um longo momento e então ele puxou-a para si e ficaram ali sentados juntos por muito tempo, sem dizer nada, calados e em paz, sentindo-se bem um com o outro, como é normal entre amigos.

 

Outubro pareceu a toda a gente mais agitado do que habitualmente. A vida social estava em plena actividade. Do mundo político desprendia-se uma sensação de tensão superior ao normal. O problema do Iraque persistia, o que trazia infelicidade ao povo E Jack passou uma rasteira a Maddy, contratando outro apresentador. Era melhor do que Brad, mas extremamente difícil, ciumento e hostil para com ela. Chamava-se Elliot Noble. Já fora apresentador antes e, apesar de ser frio como gelo, era bom, e pelo menos desta vez os níveis de audiência não foram afectados. Até melhoraram ligeiramente. Mas era um inferno trabalhar com ele, ao contrário do que acontecia com Greg ou até mesmo com Brad

Uma semana depois de Elliot ter começado, Jack anunciou a Maddy que ia levá-la à Europa. Tinha três dias de reuniões em Londres e queria que ela o acompanhasse. Maddy não imaginara que deixaria o programa tão depressa após a entrada de Elliot e ficou preocupada com o facto de as pessoas poderem pensar que ele viera substituí-la. Jack, porém, insistiu em que ninguém julgaria isso e mostrou-se inflexível quanto à ida dela. A mulher concordou, mas no último minuto apanhou uma forte constipação e uma infecção num ouvido e não pôde voar com ele. Assim, Jack foi sozinho, o que o aborreceu. Decidira ficar uma semana e visitar uns amigos em Hampshire durante o fim-de-semana. Quanto a ela, agradou-lhe a oportunidade de ver Lizzie e mesmo de procurarem juntas um apartamento. Divertiram-se, mas não encontraram nada de que gostassem. Não precisavam de casa para ela até Dezembro E Bill levou ambas a jantar fora

A caminho de casa, Maddy parou para comprar no supermercado algumas coisas para o pequeno-almoço e ficou estarrecida ao ver o nome de Jack na primeira página dos jornais “O marido de Maddy Hunter ainda estará furioso por causa da filha dela?”, foi a linha que lhe prendeu a atenção, e logo abaixo “Doce vingança. Dá a impressão de que ele tem uma nova filha muito sua. Títulos a encimar uma fotografia dele com outra mulher. Era difícil saber se se tratava de uma falsificação por parte dos jornalistas, ou de um artigo genuíno. Mas era a fotografia de Jack a sair do Annabel’s, de mão dada com uma mulher loira, muito bonita e muito jovem, exibindo uma expressão de contrariedade e surpresa. Ainda mais surpreendida ficou Maddy, que comprou um jornal. Leram-no atentamente em casa, e Maddy confessou a Lizzie a sua inquietação.

Sabe como são estas coisas. Provavelmente ele estava num grande grupo, ou talvez seja apenas uma amiga, ou a esposa ou acompanhante de qualquer outro. Os jornalistas são repugnantes e na sua maioria mentirosos. Já ninguém acredita no que escrevem argumentou Lizzie para reconfortar a mãe e porque podia bem ser como dizia, mas para Maddy fora uma bofetada ver Jack e a mulher junto a ele na foto.

Há dois dias que o marido não lhe telefonava, pelo que decidiu ligar para o Claridge’s, de onde lhe responderam que Jack fora passar o fim-de-semana fora. Não voltou a falar no assunto, mas pensou nele durante todo o fim-de-semana e, quando Jack regressou na segunda-feira, estava muito agitada.

Estás de mau humor, Mad disse ele jovialmente, ao entrar na casa. O que se passa? Ainda te dói o ouvido? A sua disposição era óptima. Sem dizer uma palavra, a mulher pegou no jornal que guardara para lhe mostrar. Jack deu-lhe uma olhadela e, encolhendo os ombros, sorriu-lhe.

E daí? Qual é o problema? Estava num grupo e saímos juntos. Não é crime, tanto quanto sei. Não parecia sentir-se minimamente culpado, nem tentou desculpar-se, nem sequer sossegá-la. Maddy olhou-o, muito insegura.

Saíste para ir dançar com ela? Não tirava os olhos de cima do marido.

Claro. Dancei com imensa gente nessa noite. Não fui para a cama com ela, se é isso que queres saber. Ia directo ao fulcro da questão e começava a mostrar-se aborrecido com as dúvidas da mulher. É disso que estás a acusar-me, Maddy? Dava a impressão de ser dela o erro, e não a sua fidelidade que estava em causa.

Fiquei preocupada. Ela é giríssima, e o artigo dá a entender que andaste com ela.

As histórias a teu respeito fazem-te parecer uma prostituta de meia-tigela, mas eu não acreditei nelas, pois não? Maddy ficou tão tonta como se tivesse levado um soco no estômago.

Não foste nada amável, Jack

Não é verdade? Ninguém me mostrou com os meus fedelhos ilegítimos, pois não? Se mostrarem, então tens o direito de protestar. Mas, em minha opinião, pouco te resta para dizer. E dadas as mentiras que me contaste, e as coisas que me escondeste, quem me censuraria se eu te enganasse? Como de costume, a culpa era toda dela, era ela quem merecia as represálias Pensando bem, Maddy percebeu que ele estava parcialmente certo. Ainda não lhe dissera que ia trazer Lizzie para Washington, ou que de vez em quando se encontrava com Bill e se falavam todos os dias ao telefone. Jack manejara as coisas de modo a fazê-la sentir-se culpada, em vez de assumir se lhe fora ou não infiel

Desculpa É que parecia... Confusa, achava-se horrível pelo que pensara dele.

Não sejas tão rápida a atirar pedras, Mad. O que se passa no trabalho? Como sempre, desinteressava-se por completo das palavras dela. Só se agarrava a um tema quando este servia os seus fins, o que não era o caso. Usara-o para a ameaçar e, como sempre, com êxito

De facto, dado o que ela lhe dissera, e o que pensara ao ver a fotografia, acusou-a diversas vezes de flartar com o novo apresentador. Elliot era jovem, solteiro, bem-parecido, e Jack começou a insinuar que corriam boatos acerca deles, o que muito a irritava. Falou nisso a Bill, que lhe fez notar que Jack estava apenas a distrair-lhe a atenção, mas Maddy continuou a pensar que ele acreditava nesses boatos, o que a desesperava.

E o que lhe disse a propósito de Elliot não foi nada comparado com o que fez sobre Bill, quando alguém lhe contou que os vira no Clube Bombay, a almoçar juntos.

É por isso que me fizeste aquela cena por causa do Annabel’s? O que era aquilo? Alguma espécie de arenque fumado? Andas a fornicar com aquele peido velho, Mad? Se andas, tenho pena de ti. Talvez seja tudo o que agora consegues arranjar.

Que nojento! lançou-lhe, enraivecida, exasperada pela acusação e pelo modo como ele falava de Bill. Bill não tinha nada de velho nem de estúpido. Era interessante, divertido, boa pessoa e correcto, e extremamente bem-parecido. E o engraçado é que, embora fosse mais velho do que ela vinte e seis anos, nunca tal lhe ocorria quando estavam juntos.

Tudo piorou quando Jack, nas suas costas, interrogou uma das recepcionistas que aludiu inocentemente aos telefonemas de Bill. Jack, com grande habilidade, levou-a a contar-lhe que Bill telefonava a Maddy quase todos os dias. Cinco minutos depois estava no gabinete da mulher, a acusá-la e a ameaçá-la.

Grande pega! O que raio se passa entre vocês dois? Quando começou? Nessa maldita comissão piegas sobre as mulheres? Não te esqueças de que esse filho da mãe conseguiu que lhe matassem a mulher. Talvez te faça o mesmo favor, se não te puseres a pau.

Como podes dizer semelhante coisa? Perante a brutalidade das palavras, encheram-se-lhe instantaneamente os olhos de lágrimas. Não sabia como defender-se e não havia maneira de provar que não ia para a cama com Bill Alexander. Somos apenas amigos. Eu nunca te enganei, Jack. Com o olhar implorava-lhe que acreditasse nela. Em vez de o odiar pelo que ele lhe dissera, apenas se sentia acabrunhada.

Conta isso a quem te der ouvidos. Eu não sou desses, lembras-te? Eu sou o tipo a quem mentiste a respeito da tua filha.

É diferente. Soluçava ao sentar-se à secretária, enquanto ele a ia agredindo com palavras.

Não, não é. Já não acredito numa só palavra tua, e porque acreditaria? Tenho mil razões para não confiar em ti! A tua pseudofilha prova-o bem, se é que precisas de avivar a memória.

Somos apenas amigos, Jack repetiu referindo-se a Bill, mas o marido recusou-se a prestar-lhe atenção. Saiu do gabinete com tal ímpeto que quase partiu a porta de vidro, e Maddy, sentada à secretária, estremeceu. Estava ainda lavada em lágrimas quando Bill lhe telefonou meia hora mais tarde e ela lhe relatou o acontecido.

Acho que não deve voltar a telefonar-me. O Jack pensa que temos um caso. E, agora, era certo que não poderiam voltar a almoçar juntos. Para Maddy, era como se cortasse as amarras que a sustinham, mas via bem que não havia opção. Eu telefono-lhe. É mais simples acrescentou tristemente.

Ele não tem o direito de lhe falar como falou. Bill sentia-se ultrajado, apesar de ela ter omitido bastantes pormenores. Se tivesse ouvido Jack, teria perdido as estribeiras. Lamento tanto, Maddy.

Está tudo bem. A culpa é minha. Enfureci-o quando o acusei de ter saído com uma mulher em Londres.

A Maddy viu a fotografia, por amor de Deus! Não foi uma suposição à toa. Em sua opinião, Jack mentira-lhe, mas não lho disse. Em voz abatida, perguntou- Até que ponto vai aguentar, Maddy? Esse homem trata-a como se fosse o pó que pisa. Não vê isso?

Vejo... mas ele não deixa de ter razão. Eu menti-lhe acerca da Lizzie. Provoco-o. Até minto a seu respeito. Também não me agradaria que ele telefonasse todos os dias a uma mulher.

Quer que deixemos de nos falar? Bill entrara em pânico. Maddy apressou-se a serená-lo.

Não, não quero. Mas compreendo o sentimento do Jack.

Não me parece que tenha a mais remota ideia de como ele se sente, ou até se ele sente. É tão manipulador e tão diabólico, que sabe como jogar consigo e incutir-lhe sentimentos de culpa. Seria incapaz de lhe pedir desculpa, sentindo-se culpado! Percebia-se a sua imensa preocupação enquanto iam desenredando a emaranhada meada. Combinaram por fim que ela lhe telefonaria todos os dias e que suspenderiam os almoços por algum tempo, ou talvez almoçassem calmamente de vez em quando em casa dele, embora tal também fosse uma dissimulação. Porém, afigurava-se melhor não serem vistos em público e nenhum dos dois queria deixar de ver o outro. Maddy precisava de pelo menos um amigo e, além de Lizzie, só o tinha a ele.

O ambiente em casa manteve-se tenso vários dias até que, por acaso, ela e Jack foram a uma recepção em casa de um congressista conhecido de Jack, e Bill estava lá. Tinham andado juntos na faculdade, e Bill esquecera-se de dizer a Maddy que ia.

Jack reagiu de imediato quando Bill entrou na sala e apertou com força o braço de Maddy que o deixou branco. A mensagem fora clara.

Se lhe diriges uma só palavra, arrasto-te daqui para fora tão depressa que nem vais perceber o que te aconteceu murmurou-lhe ao ouvido.

Já percebi sussurrou ela em resposta. Evitou o olhar de Bill, transmitindo-lhe assim a mensagem de que não podia falar com ele, e de cada vez que o amigo se aproximava ia para junto de Jack, para o acalmar. Estava nervosa e pálida, toda a noite se mostrando embaraçada e, quando Jack foi à casa de banho, olhou implorativamente para Bill, que se precipitou ao seu encontro com um ar preocupado.

Não posso falar consigo... Ele está furioso.

Sente-se bem? Raladíssimo, percebera o que se passava e decidira não lhe falar.

Sinto... Jack entrou precisamente quando Bill se afastava dela e percebeu de imediato o que se passara. Atravessou a sala direito à mulher e ordenou entre dentes, num tom que a aterrorrizou:

Vamos embora. Vai buscar o teu casaco.

Maddy agradeceu gentilmente o convite e saíram uns minutos depois. Foram os primeiros a sair, mas o jantar já terminara, pelo que não houve comentários. Jack explicara que ambos tinham reuniões cedo no dia seguinte. Bill ficou inquieto depois da saída de ambos, e não podia telefonar para obter notícias. A caminho de casa, já Jack a ia agredindo verbalmente, ao ponto de ela se sentir tentada a saltar do carro e fugir. Estava numa fúria por causa de Bill.

Que espécie de idiota pensas que sou? Disse-te que não lhe falasses... Vi o teu olhar quando olhavas para ele... Porque não tiraste a saia e as cuecas e lhe acenaste com elas?

Jack, por favor... Nós somos amigos, é tudo. Eu disse-te. Ele chora ainda a mulher. E eu estou casada contigo.

Pertencemos à mesma comissão. Não passa daí. Falava o mais depressa que podia, esforçando-se por não o provocar mais, mas inutilmente. Jack estava de cabeça perdida.

Tretas, sua prostituta! Sabes muito bem o que andas a fazer com ele, e eu também sei. E, provavelmente, sabe-o Washington inteira. Queres que eu passe por imbecil? Eu não sou cego, Maddy. Porra, a merda em que tu me atolas! Mal posso acreditar.

Maddy não articulou uma só palavra e, chegados a casa, Jack foi atirando com todas as portas mas nunca lhe tocou. Maddy passou a noite inteira aninhada na cama, cheia de medo do que ele poderia fazer-lhe, mas nada aconteceu. Quando na manhã seguinte lhe servia o café, o marido estava frio como gelo. Limitou-se a um aviso:

Se alguma vez voltares a falar com ele, atiro-te para a sarjeta, que é o teu lugar. Percebeste? Em silêncio, Maddy anuiu, lutando contra as lágrimas e aterrorizada perante o quadro em perspectiva. Não vou pactuar com esta trampa. A noite passada humilhaste-me. Não tiraste os olhos dele, como se fosses uma cadela com cio. Maddy queria argumentar e defender-se, mas não ousou. Limitou-se a abanar a cabeça e seguiram calados até ao trabalho. Depois disto, a única coisa sensata a fazer era telefonar a Bill e dizer-lhe que não podia voltar a vê-lo ou a falar com ele. Sabia que devia fazê-lo. Mas Bill era a bóia a que se agarrava, o ténue fio entre ela e o abismo em que temia cair. E não sabia bem o que se passava, mas tinha consciência de que um laço especial os ligava e, por muito que Jack a ameaçasse, não seria capaz de cortá-lo, custasse o que custasse, arriscasse o que arriscasse Embora ciente do perigo que corria, e por mais que o repetisse a si própria, não tinha a mínima dúvida de que não podia acabar com tudo agora.

 

Maddy ainda não fizera as pazes com Jack, e telefonava todos os dias a Bill do seu gabinete, tomanddo as maiores precauções. Uma tarde, ouviu o barulho de um tiro vindo da sala do noticiário. Estava precisamente ao telefone com Bill. Interrompeu por um segundo, atenta ao ruído do exterior. Disse-lhe então que algo devia ter acontecido e que voltaria a falar-lhe e desligou. Precipitou-se para fora do gabinete para se inteirar da causa do rebuliço. Todos se amontoavam em redor de um monitor, e, ao princípio não conseguiu perceber o que estavam a ver. Passados segundos, alguém se afastou para o lado e ela pôde ouvir e ver o comunicado que fizera interromper todos os programas de todos os canais. O presidente Armstrong fora alvejado a tiro e estava a ser transportado à pressa de helicóptero para o Hospital Naval de Bethesda, em estado crítico.

Oh, meu Deus... oh, meu Deus! murmurou. Enquanto olhava as imagens, só conseguia pensar na primeira-dama.

Ponha o casaco gritou-lhe o produtor. Temos um helicóptero à sua espera no National. Um operador de câmara já estava a postos, alguém lhe entregou a mala e o casaco e Maddy correu para o elevador sem parar para falar com ninguém. O mesmo comunicado anunciara que a primeira-dama se encontrava com o marido. Mal entrou no carro que a aguardava para a levar ao National, Maddy pegou no telemóvel e ligou para a estação. O produtor ficara à espera de notícias suas.

O que aconteceu? perguntou ela rapidamente.

Ainda não sabem. Um tipo qualquer saiu do meio de uma multidão e disparou. Foi atingido um dos homens dos Serviços Secretos, mas ainda não há ninguém morto. Ainda. Essa era a palavra-chave.

Ele irá morrer?

Ouviu a resposta de olhos fechados.

Também ainda não sabemos. Não está nada bem. Há sangue por toda a parte, no que estão a mostrar. Passaram tudo ao retardador. Estava a cumprimentar um grupo perfeitamente inócuo e um tipo qualquer aproximou-se. Apanharam o atirador. Já está preso, mas ainda não disseram o seu nome.

Gaita!

Mantenha-se em contacto. Obtenha tudo o que puder. Médicos, enfermeiros, os Serviços Secretos. A primeira-dama, se a deixarem vê-la. O produtor sabia que eram amigas e no ramo deles nenhum relacionamento era sagrado. Maddy não ignorava que esperavam dela que explorasse minuciosamente todas as oportunidades possíveis, mesmo que fossem de mau gosto. Temos uma equipa que vai ao seu encontro de carro, para o caso de precisar de fazer uma pausa. Mas quero-a lá a tratar do assunto.

Eu sei. Eu sei.

E mantenha o seu telemóvel ligado, para a eventualidade de precisarmos de contactar consigo.

Certo. No rádio do carro, durante cinco minutos ouviu sempre a mesma coisa. Hesitou uma fracção de segundo e ligou a Bill, para lhe comunicar para onde ia. Não posso demorar explicou rapidamente. Tenho de manter a linha livre. Ouviu o que se passou?

Acabei de ouvir na rádio. Santo Deus, nem posso acreditar. Era outra vez como com o Kennedy, só que pior. Não se tratava apenas de política ou história. Ela conhecia-os.

Estou a caminho do Bethesda. Depois falo-lhe.

Tenha cuidado! Não precisava de o ter. Não corria perigo algum. Após desligarem, Bill ficou a contemplar o jardim através da janela, com o pensamento naquela mulher.

Nas cinco horas seguintes, Maddy viveu em perfeita loucura. No hospital, havia uma zona delimitada com cordas para os jornalistas e, fora, máquinas de café, também para eles. O secretário para a imprensa vinha falar-lhes de meia em meia hora. E todos tentavam monopolizar qualquer membro do pessoal hospitalar que avistassem. De momento, porém, ainda não havia notícias.

O presidente estava a ser operado desde o meio-dia e às sete horas ainda não saíra do bloco operatório. A bala perfurara-lhe o pulmão e provocara lesões num rim e no baço. Havia imenso trabalho cirúrgico a efectuar. Miraculosamente, não lhe atingira o coração, mas provocara uma grande hemorragia interna. Ninguém vira a primeira-dama, que o esperava na unidade ao lado, seguindo a operação através de um circuito interno de televisão E nada mais havia a dizer, até que ele saísse da sala de operações e o seu estado fosse avaliado. Os médicos calculavam que a operação duraria até à meia-noite E Maddy aguardaria

Mais de cem fotógrafos ocupavam a sala de entrada, em sofás, em cadeiras, sentados nos estojos das suas câmaras, alguns aos cantos, esticados no chão Por toda a parte, um mar de copos de papel, pacotes de comida rápida, um grupo de jornalistas fumava no exterior do hospital. Parecia uma zona de guerra

Maddy e o operador de câmara que lhe fora atribuído tinham ficado num canto da sala e conversavam calmamente com uns repórteres que conheciam, de outros canais e dos principais jornais

Fizera uma reportagem para o noticiário das cinco, do lado de fora do hospital, e às sete atiraram-na para uma área que lhes fora destinada dentro do edifício Elliot Noble regressara à estação, sozinho no ar e comunicando regularmente com ela. Maddy fez nova reportagem para o noticiário das onze, mas não havia muito a relatar, excepto aquilo que lhes fora transmitido. Os médicos que se ocupavam do presidente tinham esperanças, mas mostravam-se prudentes

Era quase meia-noite quando Jack lhe ligou para o telemóvel

Não consegues nada mais interessante do que aquilo, Mad? Que diabo, vocês estão todos a impingir a mesma chatice. Tentaste encontrar-te com a primeira-dama?

Está à espera do marido junto ao bloco operatório, Jack Ninguém senão os Serviços Secretos e o pessoal do hospital tem acesso a ela

Então, põe uma bata branca, por amor de Deus! Instigava-a continuamente a fazer mais e melhor

Não me parece que ninguém saiba nada que nós não saibamos Agora, está tudo nas mãos de Deus. Ainda não havia maneira de saber se ele sobreviveria. Jim Armstrong não era um jovem, e já antes fora alvo de um atentado. Nessa altura, a bala apenas lhe passara de raspão

Deduzo que passes aí a noite. O tom pertinente de Jack dava a entender tratar-se mais de uma ordem do que de uma pergunta, mas ela já planeara fazê-lo

Quero estar presente se acontecer alguma coisa. Vão dar uma conferência de imprensa quando a operação terminar. Prometeram-nos um dos cirurgiões

Telefona-me se houver qualquer novidade importante. Vou agora para casa. Ainda se encontrava na estação, e a maioria do pessoal também. Fora um dia infindável e ao que parecia seria uma longa noite. Mas os dias seguintes seriam piores, se o presidente não recuperasse. Pensando na primeira-dama, Maddy esperava que ele recuperasse. Ninguém podia fazer mais do que rezar. Tudo estava nas mãos dos deuses e dos cirurgiões

Depois do telefonema de Jack, Maddy sentou-se a beber mais café. Já bebera imenso e mal comera durante todo o dia. O ocorrido abalara-a de mais para ter fome

Um pouco mais tarde, ligou a Bill. Enquanto o telefone tocava, perguntava a si própria se ele estaria a dormir. Finalmente atendeu e Maddy ficou aliviada por não lhe parecer ensonado

Estava a dormir? inquiriu, hesitante. Bill reconheceu-lhe de imediato a voz e ficou contente com o telefonema. Vira todas as suas intervenções do hospital e tinha a televisão ligada para o caso de ela reaparecer

Desculpe, estava no duche. Tinha a esperança de que me telefonasse. Como vão as coisas.

Não há muito a dizer. Notava-se o seu cansaço, embora feliz por falar com ele. Estamos para aqui sentados, à espera. A operação deve estar a acabar. Continuo a pensar na Phyllis. Maddy sabia quanto ela amava o marido. Todos o sabiam. Phyllis não fazia segredo disso. Estavam casados há quase cinquenta anos e Maddy não suportava a ideia de semelhante final para eles

Penso que não conseguiu vê-la, pois não, indagou Bill, a primeira-dama não aparecera em nenhum programa, em nenhum canal

- Está algures lá para cima. Quem me dera poder, não pela reportagem, mas apenas para que ela saiba que pensamos nela

Tenho a certeza de que sabe. Santo Deus, como é que sucedem coisas destas? Com toda a segurança, de vez em quando ainda sucedem. Vi a gravação original ao retardador. O tipo limitou-se a dar um passo em frente e atirar. Como está o homem dos Serviços Secretos que foi atingido.

Operaram-no esta tarde e dizem que o seu estado é grave, mas sem alterações. Teve sorte

Espero que o Jim também tenha E a Maddy. Deve estar exausta

Mais ou menos. Temos andado por aqui toda a tarde, à espera que aconteça qualquer coisa. Ambos se lembraram de Dallas e de John Kennedy. Fora antes de ela nascer, mas vira todos os filmes sobre o caso, e Bill frequentava então a universidade

Quer que lhe leve comida. Preocupava-se com ela, a qual sorriu da sugestão

Deve haver aqui dois mil donuts e todo o pronto-a-comer de Washington Mas obrigada pela oferta. Reparou num grupo de médicos que se aproximava de um microfone e disse-lhe que tinha de desligar

Telefone-me se acontecer alguma coisa. Não se importe de me acordar Se precisar de mim, estou a postos. Ao contrário de Jack, que apenas lamentara que a emissão deles fosse muito enfadonha

Um dos médicos trazia bata cirúrgica, sapatos de papel por cima dos seus próprios sapatos e luvas verdes, pelo que Maddy depreendeu que vinha directamente da sala de operações. Subiu ao pódio que fora colocado na entrada. Todos os jornalistas se amontoaram em seu redor

Não temos nada de sensacional a comunicar-vos disse, sério, enquanto todas as câmaras o focavam, mas temos razões para estar optimistas. O presidente é um homem forte e saudável e, em nossa opinião, a operação foi bem-sucedida. Fizemos tudo o que por agora é possível e fornecer-vos-emos boletins de saúde ao longo da noite, pondo-vos a par da progressão do seu estado. De momento, encontra-se ainda sob o efeito da anestesia, mas começava a recuperar a consciência quando o deixei. Mistress Armstrong pediu-me que agradecesse a todos vós e vos dissesse que lamenta muito... Sorriu, um sorriso cansado. Lamento que tenham de dormir aqui e que gostaria que não fossem obrigados a isso. É tudo, de momento. E desceu do pódio sem mais comentários. Fora feito o aviso prévio de que não haveria perguntas. Pusera-os a par de tudo o que os próprios médicos sabiam. O resto estava nas mãos de Deus.

O telemóvel de Maddy tocou mal o médico os deixara. Era Jack.

Arranja uma entrevista com ele.

Não posso, Jack. Já nos avisaram de que é impossível. O homem esteve a ser operado durante doze horas, estão a dizer-nos tudo aquilo que sabem.

Uma ova é que estão! Dão-vos migalhas, e vocês contentam-se com isso. Pelo que sabemos, o cérebro dele está paralisado.

O que sugeres que eu faça? Que me infiltre no quarto do Armstrong através do respiradouro? Muito fatigada, irritava-a ele ser tão despropositado e tão exigente. Estavam todos no mesmo barco. Tinham de esperar pelo que ia sendo anunciado, perseguir os cirurgiões não ia levá-los a lado nenhum.

Não armes em engraçadinha, Mad. Queres pôr a tua vigilância a dormir ou estás a trabalhar para a estação?

Sabes o que se passa aqui. Todos nós engolimos a mesma droga. Sentia-se exasperada.

É aí que eu quero chegar. Descobre qualquer coisa diferente. Desligou sem sequer se despedir, e um repórter de uma estação rival sorriu-lhe e encolheu os ombros, compreensivo.

Os meus chefes massacram-me com a mesma lengalenga a toda a hora. Se são assim tão espertos, porque não se deslocam até cá e fazem eles o trabalho?

Tenho de me lembrar de sugerir isso. Maddy retribuiu-lhe o sorriso e instalou-se numa cadeira com o casaco por cima do corpo, até ao próximo boletim para a imprensa

Às três da manhã veio uma equipa de médicos e os que estavam a dormir acordaram para os ouvir. Praticamente nada mudara. O presidente continuava a aguentar-se. Acordara da anestesia, mantinha-se em estado crítico, e a esposa estava a seu lado

Foi uma noite comprida e, apesar de outra comunicação às cinco horas, ninguém lhes deu notícias significativas até às sete da manhã. Nesse momento, Maddy estava acordada e a beber café. Dormira cerca de três horas, aos bocadinhos, e sentia-se perra ao sair da cadeira onde se mantivera enroscada a noite inteira. Era como passar uma noite no aeroporto por causa de uma tempestade de neve

Pelo menos, às sete, as notícias foram um pouco melhores. Admitiram que o presidente se sentia indisposto e muito dorido, mas sorrira à esposa e enviara os seus agradecimentos à nação E a equipa de cirurgiões sentia-se extremamente satisfeita com o seu estado. Atreviam-se a dizer que tinham todas as razões para crer que ele iria escapar, a menos que sobreviesse qualquer complicação

Meia hora mais tarde, a Casa Branca comunicava a identidade do homem que o alvejara. Era agora tratado por “o suspeito”, embora metade do país tivesse visto e revisto a gravação que o mostrava a atirar sobre o presidente. A CIA considerava que o acontecimento nada tinha a ver com uma conspiração para assassinar o presidente. O filho do suspeito fora morto em combate no Iraque nesse Verão, e o suspeito achava que a culpa era do presidente. Era um homem sem registo criminal anterior, sem historial de violência ou de instabilidade mental, mas perdera o seu único filho numa guerra com que não estava de acordo, e desde então ficara deprimido Encontrava-se em prisão preventiva e a ser cuidadosamente observado. O resto da família entrara em estado de choque. A mulher em aparente histeria. O homem fora, até ao momento, um membro respeitado da comunidade e um contabilista bastante bem-sucedido. Pensar em tudo isso entristeceu Maddy

Através de um dos secretários para a comunicação social, mandou umas palavras à primeira-dama, só para que Phyllis soubesse que estava ali, e a rezar por eles E ficou espantada quando umas horas depois recebeu uma resposta. A primeira-dama  escrevera uma dúzia de palavras à pressa: “Obrigada, Maddy. Ele está melhor, graças a Deus. Com amizade, Phyllis.” Maddy ficou extremamente sensibilizada pelo facto de a primeira-dama ter dedicado algum tempo a escrevê-las

À meia-noite voltou a entrar no ar, com a mais recente informação: o presidente repousava calmamente e, embora ainda em situação crítica, esperavam que não tardasse a ser considerado livre de perigo

Se não me dás depressa qualquer coisa interessante disse Jack ao telefonar depois da emissão, vou mandar o Elliot para te substituir

Se ele pode obter seja o que for diferente daquilo que todos nós podemos, então manda-o. Pela sua voz era óbvio que estava exausta. A tal ponto que, por uma vez, não a afectavam as ameaças e acusações de Jack.

Estás a chatear-me a mim e a toda a gente acusou-a ele.

Estou presa ao que nos dão, Jack. Ninguém obtém nada de melhor. Contudo, Jack não parou de lhe telefonar, sempre a queixar-se E quando à uma hora Bill lhe ligou, foi com alívio que o ouviu.

Quando comeu pela última vez, Maddy? perguntou, sinceramente preocupado.

Não me lembro. Sorriu. Estou tão cansada que nem tenho apetite

Bill não se ofereceu para ir até lá. Limitou-se a aparecer passados vinte minutos com uma sanduíche gigante, fruta e refrigerantes. Parecia a Cruz Vermelha a chegar, abrindo caminho pelo meio do mar de jornalistas espalhados pela recepção até a encontrar. Obrigou-a a sentar-se numa cadeira e a comer, ficando a observá-la.

Não acredito nisto! Gratificou-o com um sorriso rasgado. Nem dava por isso, mas afinal estava esfomeada. Obrigada, Bill.

Faz-me sentir útil. Ficou pasmado com o número de pessoas presentes, jornalistas, operadores de câmara, equipas de som, produtores, todos aglomerados na sala de entrada do hospital. Extravasavam para a rua, onde se viam, desordenadamente estacionadas, as carrinhas de reportagem. Parecia uma zona onde tivesse ocorrido uma catástrofe e, no fundo, era. Bill alegrou-se por ela comer a sanduíche toda. Quanto tempo vão vocês ter de ficar aqui.

Até ele estar livre de perigo, ou nós nos irmos abaixo. Ver-se-á o que acontece primeiro. O Jack ameaça mandar o Elliot substituir-me, porque as minhas emissões são chatíssimas. Não posso fazer mais do que faço. Acabava de pronunciar estas palavras quando o secretário para a comunicação social voltou a subir ao pódio para junto do qual todos se precipitaram, empurrando-se. Maddy teve de ir com eles

Dessa vez foi-lhes dito que o desenvolvimento das informações ia ser lento e cauteloso, e o secretário sugeriu que alguns deles talvez devessem ir para casa e ser revezados por colegas. O presidente estava a recuperar bem. Não havia complicações, tinham todas as razões para crer que continuaria a melhorar

Podemos ir vê-lo? gritou alguém.

Durante vários dias, não respondeu o secretário

E Mistress Armstrong? Podemos falar com ela.

Ainda não. Nem por um minuto abandonou a cabeceira do marido E vai continuar aqui até ele se restabelecer. Neste momento, estão ambos a descansar. Talvez vocês devessem dormir também um pouco acrescentou, com o primeiro sorriso que viam nas últimas vinte e quatro horas. Foi-se depois embora, prometendo voltar daí a umas horas. Maddy desligou o seu microfone e olhou para Bill. Estava tão cansada que já tinha a visão perturbada

O que vai fazer agora? perguntou-lhe ele.

Dava o braço direito para ir para casa tomar um duche, mas provavelmente o Jack matava-me se eu virasse as costas a isto.

Ele não pode mandar alguém substituí-la? Era desumano continuar ali

Podia, mas não creio que o faça. Pelo menos por agora O Jack quer-me aqui Embora eu não esteja a fazer nada que qualquer outro não pudesse fazer. Ouviu o que o secretário nos comunicou. Tudo muito bem programado. Dizem-nos aquilo que querem que saibamos, mas, se estão a falar verdade, parece que ele está bem.

Não acredita neles? O cepticismo de Maddy surpreendia Bill. Fazia, porém, parte do ofício ser assim, descortinando qualquer inconsistência nas histórias que lhes contavam. Ela era boa no seu trabalho, razão pela qual Jack queria que continuasse no hospital

Acredito Mas a verdade é que, por aquilo que sabemos, o presidente podia estar morto. Uma coisa horrível de dizer, mas sem dúvida uma possibilidade. Não julgo que mintam, a menos que seja necessário por uma questão de segurança nacional. Neste caso, penso que estão a ser sinceros. Pelo menos, assim o espero

Também eu corroborou Bill com fervor

Ele ficou mais meia hora e depois foi-se embora E às três, Jack libertou-a finalmente, mandou-a ir a casa mudar de roupa e voltar para o estúdio para fazer o programa das cinco. Pouco tempo tinha, nem poderia passar pelas brasas. Ele já lhe dissera que voltasse para o hospital a seguir à emissão das sete e meia. Após ter ido a casa e vestido um conjunto de calças e casaco azul-escuro, certa de que iria dormir numa das macas postas à disposição da imprensa pelo hospital, quase cambaleava quando foi tratar do cabelo e da maquilhagem. Elliot Noble também lá estava e olhou-a com admiração

Não sei como consegue, Maddy. Se eu tivesse passado naquele hospital as últimas vinte e sete horas, tinham de me tirar de lá de maca. Fez um trabalho formidável Embora o seu marido não fosse da mesma opinião. Sensibilizou-a o cumprimento, que sabia merecido

Estou habituada, acho eu. Há muito tempo que trabalho nisto. Sentiam-se mais colegas e ela simpatizou com ele Pelo menos por uma vez, tratara-a com correcção

Como acha que está realmente o presidente perguntou-lhe Elliot em voz baixa

Acho que provavelmente estão a dizer-nos a verdade desta vez E sem saber bem como, com a ajuda dele, aguentou a emissão das cinco e a das sete e meia, e às oito e quinze estava de volta ao hospital, tal como Jack lhe ordenara. Este passara para a ver entre os dois programas, fresco e repousado, e presenteou-a com todo um novo conjunto de ordens, críticas e instruções. Nem sequer lhe perguntou se estava cansada. Não lhe interessava. Havia uma crise e ela tinha de aguentar. Nunca o deixara ficar mal. O que, apesar de ele não o reconhecer, todas as outras pessoas sabiam. Era um dos poucos veteranos da primeira noite quando regressou ao hospital. A maior parte das outras estações substituíra a sua gente por novas equipas, e Maddy tinha um novo operador de câmara e um novo sonoplasta. Miraculosamente, alguém se apiedou dela e lhe trouxe uma maca para a sala de entrada, para ela poder ir dormindo entre os comunicados à imprensa. Quando contou a Bill ao telefone, ele insistiu para que aproveitasse a maca.

Pode adoecer se não dormir um bocado disse-lhe, sensato. Já jantou?

Comi entre as emissões, no estúdio.

Qualquer coisa nutritiva, espero. Maddy sorriu. Muito tinha ele a aprender sobre aquele ofício!

Comida saudável, de facto. Piza e donuts. Alimentação típica dos repórteres. Mudava de profissão se não comesse isso. Só como a sério em jantares especiais.

Quer que lhe leve alguma coisa? ofereceu-se, esperançoso, mas ela estava demasiado cansada para o receber.

Acho que vou atirar-me para a maca e tentar dormir umas horas. De qualquer forma, obrigada. Telefono-lhe de manhã, a menos que aconteça qualquer coisa importante. Não aconteceu nada. Foi uma noite calma, e de manhã Maddy foi para casa, tomar duche e vestir-se de lavado.

Com o desenrolar dos acontecimentos, esteve no hospital cinco dias e, no último, falou finalmente uns minutos com Phyllis, embora sem a entrevistar. A primeira-dama mandara chamá-la, e conversaram no corredor do quarto do presidente, ao pé dos homens dos Serviços Secretos. O presidente era guardado de perto. Embora o seu atacante estivesse detido, não queriam facilitar nada. E Maddy imaginou que se sentiam muito culpados por não terem detido a bala.

Como se vai aguentando? perguntou Maddy, com um interesse sincero. A primeira-dama aparentava cem anos e envergava uma bata de hospital sobre umas calças e uma camisola. Mas sorriu à pergunta de Maddy.

Melhor do que você, provavelmente. Somos muito bem tratados. O pobre Jim sente-se abatidíssimo, mas está muito melhor. É um bocado difícil, na nossa idade

Lamento tanto o que aconteceu. Passei a semana preocupada consigo. Toda a gente cuida dele, mas eu não sabia o que se passava consigo

Foi um choque tremendo, para não dizer mais Mas estamos a ultrapassá-lo. Espero que possamos ir todos para casa dentro em breve

Eu por acaso vou para casa esta noite. O secretário para a comunicação social anunciara que o presidente já não se encontrava em estado crítico E toda a gente reunida na entrada se alegrara com a notícia A maioria deles passara dias ali e foi tal o seu alívio que alguns até choraram. Nessa altura, só Maddy se mantivera desde o princípio Todos a admiravam por isso

Quando nessa noite entrou em casa, Jack via estações rivais. Ergueu o olhar para ela, mas não se levantou do sofá para a cumprimentar. Nem sequer lhe estava grato pelo que ela lhe dera nos últimos cinco dias. A sua vida, a sua alma, a sua mente E não lhe disse que os níveis de audiência eram os mais altos de todas as estações, só ouviu isso da boca do produtor Até arranjara maneira de fazer uma crónica sobre as dúzias de pessoas que tinham tido de ser transferidas para outros hospitais para libertar um andar inteiro para o presidente, os seus serviços de enfermagem e os agentes dos Serviços Secretos E todos se tinham mostrado contentes por ser transferidos. Sentiam-se felizes por fazer o que podiam por ele, e fora-lhes dito que as suas despesas hospitalares noutro local seriam pagas pela Casa Branca. Nenhuma dessas pessoas se encontrava em estado crítico. Eram todas convalescentes, pelo que fora correcto transferi-las

Estás um nojo, Mad foi tudo o que Jack lhe disse, e era verdade Sentia-se exausta E mesmo assim conseguira mostrar-se apresentável quando teve de ir para o ar. Tinha o rosto muito marcado, pálido e com olheiras profundas

Porque estás sempre tão exasperado comigo. Não percebia nada Admitia que nos últimos meses procedera de modo a aborrecê-lo. Os seus editoriais, a sua relação com Lizzie, as suas conversas com Bill Mas o verdadeiro crime que Cometera era ir fugindo ao seu controlo, razão por que a detestava. A Dra. Flowers alertara-a. Dissera-lhe que ele não aceitaria bem esse facto, e tinha razão. Era algo de muito ameaçador para ele. Quando lhe passou pela cabeça que Jack a detestava, Maddy recordou-se subitamente do que Janet McCutchinslhe dissera quatro meses antes, que o marido a detestava, no que então se recusara a acreditar. Agora acreditava nisso relativamente ao seu próprio marido. A sua forma de agir não deixava lugar para dúvidas.

Tenho razões para estar exasperado contigo respondeu ele friamente. Traíste-me de todas as formas que pudeste nestes últimos meses, Mad. Tens muita sorte por eu ainda não te ter despedido. O ainda era para aterrorrizá-la e levá-la a pensar que tal podia acontecer a qualquer momento. E podia. No entanto, tudo o que realmente sentiu foi ansiedade. Era tão difícil fazer-lhe frente e sofrer as consequências! Só que, ultimamente, sabia que tinha de ser. Encontrar Lizzie e conhecer Bill haviam-na modificado. Era como se se tivesse encontrado a si própria, tal como encontrara a filha. Obviamente, isso não agradava a Jack. Quando nessa noite foram deitar-se, ele nem lhe falou, e na manhã seguinte mostrava-se gelado

Nos dias seguintes, Jack foi mais desagradável do que nunca, alternando a crítica insistente com a indiferença total. Poucas coisas agradáveis tinha a dizer-lhe, o que não a ralava muito. Ia buscar conforto às suas conversas com Bill E numa noite em que Jack estava fora, voltou a jantar em casa de Bill. Dessa vez, ele fez-lhe um bife, porque achava que ela continuava a trabalhar arduamente e precisava de comida a sério. Mas a melhor alimentação que ele lhe deu consistiu nos cuidados que lhe prodigalizou e na afeição que lhe demonstrou

Falaram um pouco sobre o presidente. Estava no hospital há duas semanas e iria para casa dentro de poucos dias. Autorizaram que Maddy e a mais uns poucos do grupo de elite o entrevistassem, uma entrevista curta. Acharam-no mais magro e muito fatigado. Mas com uma disposição excelente, e agradeceu a cada um a sua devoção e a sua gentileza. Maddy também entrevistara Phyllis, igualmente simpática e acolhedora.

Tinham sido duas semanas extraordinárias e Maddy estava contente com a aceitação por parte dos telespectadores, embora Jack não o estivesse. Ganhara mesmo o respeito de Elliot Noble que, tal como toda a gente da estação, a considerara uma jornalista fantástica.

Ao sentarem-se na cozinha depois do jantar, Bill olhou-a com um sorriso pleno de ternura e admiração.

E agora o que vai fazer para se entreter? O presidente não era alvejado a tiro todos os dias e, depois de semelhante facto, tudo o que ela pudesse relatar pareceria insignificante.

Hei-de descobrir qualquer coisa. Preciso de encontrar um apartamento para a Lizzie. Estava-se em princípios de Novembro. Ainda tenho um mês pela frente.

Talvez eu possa ver alguns consigo. Terminado o livro, andava menos ocupado. Falava em voltar ao ensino. Recebera propostas tanto de Yale como de Harvard. Maddy alegrava-se por ele, mas sabia que seria uma tristeza se ele deixasse Washington. Era o único amigo que lá tinha. Não será antes do próximo Setembro serenou-a Bill. Pensei em experimentar os meus dotes de escritor noutro livro, depois do Ano Novo. Desta vez, talvez ficção.

A perspectiva excitou-a mas, simultaneamente, teve a sensação de que não se tratava da sua vida. Cada vez estava mais consciente do quanto Jack era agressivo, mas deixava-se ir ao sabor da corrente. Bill não a pressionava. A Dra. Flowers dissera que Maddy agiria quando achasse que chegara o momento, o que poderia levar anos. Bill quase se resignara, apesar da preocupação constante com ela. Pelo menos, as duas semanas que passara no hospital por causa do presidente, tinham-na mantido longe de Jack, e demasiado ocupada para se ralar com ele, muito embora Jack não parasse de lhe gritar pelo telemóvel. Bill dava logo por isso quando lhe telefonava. Tudo era sempre culpa dela. Uma nova edição de Meia Luz.

O que vai fazer no Dia de Acção de Graças? perguntou-lhe quando acabavam de jantar.

Nada de especial. Normalmente vamos para a Virgínia e passamos o dia calmamente. Nenhum de nós tem família. Às vezes juntamo-nos aos vizinhos. E o Bill?

Vamos todos os anos para Vermont. Maddy não ignorava que nesse ano seria difícil para ele. Ia ser o seu primeiro Dia de Acção de Graças em casa sem a esposa, o que o apavorava, Maddy sabia-o pelas conversas de ambos.

Quem me dera poder convidar a Lizzie, mas não posso. Vai jantar com a sua família de acolhimento preferida. Parece bem-disposta. Quanto a Maddy, estava desapontada por não passar com ela o primeiro Dia de Acção de Graças das duas; mas não tinham opção.

E a Maddy? Estará bem-disposta?

Acho que sim. Mas não tinha a certeza. Conversara sobre o assunto com a Dra. Flowers, que lhe pedira que aderisse a um grupo de mulheres maltratadas. Maddy prometera que o faria. Começava logo após o Dia de Acção de Graças.

Na véspera das respectivas partidas, Maddy e Bill viram-se, ambos de humor sombrio. Ele por causa da esposa e ela por ter de acompanhar Jack, estando a relação deles tão tensa, tão sobre brasas. Jack vigiava-a como um falcão. Já não confiava nela. Não voltara a apanhá-la com Bill, e Bill não lhe telefonara mais, excepto pelo telemóvel. Quase sempre esperava que fosse ela a contactá-lo. A última coisa que desejava era causar-lhe problemas.

Na véspera do Dia de Acção de Graças encontraram-se em casa dele. Bill fez-lhe chá, ela levou-lhe uma caixa de biscoitos. Sentados na sua acolhedora cozinha, conversaram. Arrefecera, ele disse-lhe que em Vermont já nevara e que planeavam ir esquiar, ele, os filhos e os netos.

Maddy ficou a seu lado todo o tempo que pôde. Por fim, teve de voltar para o estúdio.

Cuide de si, Maddy. Os seus olhos revelavam sentimentos que não podiam ser expressos. Ambos sabiam que seria entrar por um caminho errado. Nenhum deles fizera nada que pudesse lamentar, que significasse falta de respeito pelo outro. O que quer que sentissem continuava inexplicado e recalcado. Só com a Dra. Flowers ela se questionava quanto aos seus sentimentos por ele. Tinham um estranho relacionamento e contudo Maddy sabia que ambos dependiam dele. Eram como dois sobreviventes de barcos naufragados  que se tivessem encontrado em águas agitadas. Antes de se ir embora, encostou-se a ele e Bill abraçou-a como um pai abraçaria um filho, com braços fortes e um coração terno, sem lhe fazer qualquer exigência

Vou sentir a sua falta disse simplesmente. Sabiam que não podiam falar-se durante o fim-de-semana. Jack desconfiaria se Bill lhe ligasse para o telemóvel E ela não se atrevia a telefonar-lhe

Ligo-lhe se ele sair para andar a cavalo, ou coisa no género. Tente não estar muito triste. Afligia-a saber como lhe iria ser difícil festejar o feriado sem Margaret Mas nesse momento Bill não pensava na mulher, só em Maddy

Tenho a certeza de que vai ser difícil, mas será bom estar com os filhos e os netos E então, sem pensar, beijou-lhe o alto da cabeça e abraçou-a ternamente. Quando nessa tarde se separaram, a ambos entristecia o que tinham tido e haviam perdido, e não mais voltariam a ter. Ao seguir de carro para o trabalho, Maddy agradeceu em silêncio o facto de se terem pelo menos um ao outro. Tudo o que podia fazer era agradecer a Deus a existência de Bill

 

O feriado passado na Virgínia com Jack foi difícil e tenso. Ele esteve de mau humor a maior parte do tempo, fechando-se com frequência no escritório para fazer chamadas secretas. Dessa vez, Maddy sabia que não podiam ser para o presidente, ainda convalescente. Quanto ao vice-presidente, de momento percorria o país. Aliás, Jack nunca fora muito chegado a ele. A sua ligação era com Jim Armstrong e mais ninguém.

E uma vez, ao pegar no telefone para falar com Bill, convencida de que Jack saíra, ouviu-o por acaso a conversar com uma mulher. Desligou imediatamente, sem escutar o que diziam. Mas ficou perplexa. Jack fora muito rápido a explicar a fotografia da mulher com quem estivera no Annabel’s, em Londres, mas durante o mês anterior andara afastado dela e já raramente faziam amor. De certo modo era um alívio, mas intrigava-a. Durante toda a sua vida de casados, o apetite sexual do marido fora insaciável, voraz. Agora, parecia desinteressado dela, excepto para se queixar ou a acusar de algo que decidira que ela fizera mal.

Maddy arranjou maneira de telefonar a Lizzie no Dia de Acção de Graças, e a Bill na noite seguinte, quando Jack foi ter uma conversa sobre cavalos com um dos vizinhos. Bill disse-lhe que o feriado fora amargo, mas o esqui estupendo, o que já era qualquer coisa. Fizera peru com os garotos. Maddy e Jack tinham comido o deles num silêncio sepulcral e, quando ela tentou abordar o problema da tensão entre eles, Jack despachou-a, afirmando-lhe ser tudo imaginação sua. Maddy sabia que não era. Nunca estivera tão infeliz, excepto quando Bobby Joe a agredia. Não era, afinal, muito diferente, só que mais subtil. Doloroso, confuso e triste.

Ficou aliviada quando finalmente entraram no avião de regresso a casa, facto que Jack comentou com desconfiança.

Alguma razão especial para estares tão feliz por voltar para casa?

Não, estou apenas ansiosa por regressar ao trabalho respondeu, sem mais. Não lhe apetecia entrar numa briga com ele, que por seu turno dava a impressão de estar ansioso por isso

Há alguém à tua espera em Washington, Mad? perguntou, num tom sórdido. Maddy olhou-o, desesperada

Não há ninguém, Jack Espero que não duvides

Não estou muito certo do que sei a teu respeito. Mas podia descobrir, se quisesse. Não lhe respondeu. A discrição afigurava-se-lhe o melhor caminho. O silêncio, a única opção

No dia seguinte, depois do trabalho, foi ao grupo de mulheres maltratadas a que prometera à Dra Flowers aderir. Não que na verdade lhe apetecesse. Achava deprimente. Dissera a Jack que ia a uma reunião relacionada com a comissão da primeira-dama. Não sabia ao certo se ele acreditara nela, mas por uma vez não recalcitrara, também tinha os seus próprios planos. Informou-a de que ia encontrar-se com uma pessoa para tratar de negócios

Maddy ficou outra vez deprimida ao deparar-se-lhe a morada onde se encontrava o tal grupo. Era uma casa em ruínas, com má vizinhança, que teve a certeza de estar cheia de pobres mulheres lúgubres e lamurientas. Não se sentia com disposição para aquilo. Foi pois com surpresa que viu aparecer as mulheres, em calças de ganga, ou em fatos de saia-casaco, umas jovens, outras idosas, umas bonitas outras insípidas e pouco atraentes. Um sortido heterogéneo, embora a maioria parecesse inteligente e interessante, e algumas muito joviais E quando a chefe do grupo chegou e se sentou, foi caloroso o olhar com que contemplou Maddy

Aqui, só usamos os nomes próprios explicou E se reconhecermos alguém, não o comentamos. Não nos cumprimentamos umas às outras se nos cruzamos na rua. Não contamos a ninguém o que vimos e o que ouvimos. O que é dito aqui fica dentro destas paredes. É importante que nos sintamos em segurança. Com um gesto, Maddy aquiesceu, e acreditou nela

Sentaram-se em cadeiras muito usadas, apresentaram-se pelos seus nomes próprios, muitas davam a impressão de se conhecerem de anteriores visitas ao grupo. Havia habitualmente vinte mulheres, às vezes mais, explicou a chefe reuniam-se duas vezes por semana, e Maddy poderia aparecer quando quisesse. Era uma ligação aberta. Havia ao canto uma cafeteira com café e alguém trouxera biscoitos.

Uma a uma, começaram a falar acerca do que faziam, do que acontecia nas suas vidas, do que as preocupava ou alegrava, ou do que temiam. Algumas encontravam-se em situações terríveis, outras tinham-se separado de maridos que as maltratavam, umas eram normais, outras eram lésbicas, algumas tinham filhos, mas o elo comum entre todas era terem sofrido maus tratos às mãos de agressores. Na maioria, provinham de famílias agressivas, mas não era o caso de todas. Várias tinham tido vidas aparentemente perfeitas, até encontrarem os homens e as mulheres que as maltratavam. Ao ouvi-las, Maddy sentiu-se descontraída como não se sentia há anos. Aquilo que escutava era tão familiar, tão real, o sair de uma armadura e respirar ar puro. Como se tivesse chegado a casa e aquelas mulheres fossem suas irmãs. E quase tudo o que descreviam se assemelhava ao que ela vivera, não só com Bobby Joe, mas nos últimos anos com Jack. Ouvi-las era como ouvir a sua própria voz, e a sua própria história, não lhe restando a mínima dúvida de que Jack a agredira desde o dia em que a conhecera. Todo o poder, todo o encanto, todas as ameaças, todo o controlo, todos os presentes, todos os insultos, toda a humilhação e dor, eram coisas por que as outras mulheres tinham igualmente passado. E Jack era o retrato tão clássico de um agressor que a perturbou não ter compreendido mais cedo. Nem quando a Dra. Flowers o descrevera na comissão há vários meses, o facto fora para si tão claro como agora. Inesperadamente deixou de se sentir envergonhada, ou pouco à vontade, antes aliviada. A única coisa errada que fizera fora aceitar todas as culpas que o marido lhe atribuíra e permitir-se julgar-se culpada.

Falou-lhes da sua vida com ele, das coisas que ele lhe fazia e dizia, das palavras que usava, do tom, das acusações, da sua reacção a Lizzie. Todas foram unânimes na compreensão e acentuaram que ela tinha opção. Era da sua responsabilidade o desenrolar dos acontecimentos.

Estou tão assustada sussurrou, enquanto as lágrimas lhe corriam pela cara abaixo. O que me acontecerá se o deixar? E se eu não conseguir viver sem ele? Ninguém a achou ridícula por tais palavras, ou lhe chamou estúpida pelos sentimentos que expressava. Também elas tinham tido medo, algumas com boas razões para isso. O marido de uma estava na prisão por ter tentado matá-la, e a mulher sentia-se aterrorizada ao imaginar o que poderia acontecer quando ele saísse, dentro de mais ou menos um ano. Muitas tinham sido agredidas fisicamente, como ela fora por Bobby Joe. Havia as que renunciavam a vidas estáveis e casas encantadoras, uma até abandonara os filhos, por sentirem que tinham de se salvar antes que os maridos as matassem. Sabiam que não era louvável, mas haviam fugido a correr, de qualquer maneira Outras ainda se debatiam, nem sequer estavam seguras de ser capazes, como Maddy. De uma coisa, porém, adquiria consciência, era que, a cada hora, cada dia, cada minuto que se deixasse ficar, corria perigo. De súbito, percebeu as advertências de Bill e da Dra. Flowers, e mesmo de Greg. Até aí, não conseguira dar-lhes verdadeiramente razão. Agora, finalmente, conseguia.

O que acha que vai fazer, Maddy? perguntou uma das mulheres.

Não sei foi a sua resposta sincera Ando apavorada, temo que ele veja o que me vai na cabeça, que oiça os meus pensamentos

A única coisa que ele vai ouvir com nitidez é você a bater-lhe com a porta na cara e a fugir a sete pés. Não ouvirá nada até você fazer isso declarou uma mulher sem dentes e de cabelo hirsuto Mas, apesar do seu aspecto e da sua rudeza, Maddy gostou dela. Aquelas mulheres, apercebia-se agora, eram o que ia salvá-la. Tinha de ser ela a agir, também o sabia, mas precisava da ajuda delas E por qualquer motivo, prestava-lhes atenção.

Era uma nova pessoa ao deixá-las, mas elas também a avisaram de que nada aconteceria por magia. Sentisse-se como se sentisse pela experiência comum partilhada, e pela aprovação que lhe haviam dado, era ela quem tinha de actuar, e não ia ser fácil. Maddy estava ciente disso

Deixar a agressão é como deixar as drogas sentenciou, abrupta, outra mulher. É a coisa mais difícil que há, porque a agressão nos é familiar. Estamos habituadas a ela. Já nem percebemos que é agressão. É a única maneira que temos de saber, ou de imaginar que alguém nos ama. Maddy já ouvira aquilo antes, mas ainda odiava escutá-lo. Compreendia por fim a verdade que continha. Só ignorava o que ia fazer, excepto que voltaria ali.

Não espere muito de si de início advertiu-a uma das outras, mas não hesite por uma “última vez”, por uma “última jogada”... Pode ser a última de que dispõe. Até os tipos que nunca nos levantaram a mão por vezes enlouquecem. Ele é uma pessoa má, Maddy, bastante pior do que você julga, e poderia matá-la. Provavelmente deseja-o, mas não tem coragem. Ponha-se ao fresco antes que ele arranje essa coragem... O homem não a ama, não se preocupa consigo de forma alguma... o amor que lhe tem expressa-o magoando-a. É o que quer e o que vai fazer. Não irá mudar nunca. Só para pior. E quanto melhor você for, pior será ele. Corre um perigo muito grande.

Ao partir, Maddy agradeceu a todas e foi para casa, conduzindo, pensativa e a ponderar tudo o que ouvira. Não duvidava de nada. Sabia que era verdade. E também sabia que, por qualquer louca razão, desejava que Jack deixasse de a magoar e a amasse. Gostaria de mostrar-lhe como o fazer, ansiava mesmo por explicar-lhe tudo, para ele poder parar de fazer as coisas que a feriam. Mas sabia que ele nunca pararia. O que iria era feri-la cada vez mais. E mesmo que pensasse que Jack a amava, tinha de deixá-lo. Era uma questão de sobrevivência.

Telefonou a Bill do carro e contou-lhe como tinha sido. Bill mostrou-se aliviado, por ela. Só esperava que lhe tivessem inoculado a força necessária, e que ela agisse em conformidade.

Quando entrou em casa, dir-se-ia que Jack pressentia tudo. Olhou-a de um modo estranho e perguntou-lhe onde estivera. Maddy repetiu que fora a uma reunião relacionada com a comissão. Até aproveitou a oportunidade para lhe contar que se tratava de um grupo de mulheres maltratadas que tinham querido avaliar, e que fora muito interessante. Mas só ouvir falar nisso enfureceu-o.

Devia ser um bando de gajas doidas. Nem posso acreditar que esperem de ti que te mistures com gente dessa. Maddy abriu a boca para as defender, mas depressa a fechou. Já não duvidava de que expor-se tanto podia ser perigoso. Não ia arriscar-se. Aprendera o suficiente. Porque te mostras tão complacente com elas acusou-a, e ela fingiu-se o mais desprendida e confiante que pôde, recusando-se a permitir-lhe abalá-la. Punha em prática o que lhe tinham ensinado nessa tarde na reunião.

Por acaso, foi bastante aborrecido, mas prometi à Phyllis que iria. Jack olhou-a fixamente e abanou a cabeça. Parecia satisfeito com a resposta. Por uma vez, fora a resposta correcta.

E nessa noite, o que já não acontecia há bastante tempo, Jack fez amor com ela. E de novo foi brutal, como que a recordar-lhe o seu poder. Não importava o que ela tivesse ouvido, o poder continuava a ser dele e sê-lo-ia sempre. Tal como anteriormente, não lhe disse nada. Tomou um duche, mas nenhuma quantidade de água ou de sabão parecia lavar de si a repugnância que sentia por ele. Voltou para a cama em silêncio e foi com alívio que o ouviu ressonar

Levantou-se cedo no dia seguinte e estava na cozinha quando ele desceu. Nada parecia ter mudado entre ambos. Mas Maddy sentia-se agora uma prisioneira entre quatro paredes, a escavar às escondidas um túnel para a sua segurança, por muito tempo que levasse a fazê-lo.

O que se passa contigo? vociferou Jack quando ela lhe passava o café. Estás estranha. Maddy pediu a Deus que o marido não lesse os seus pensamentos. Tinha quase a certeza de que ele era capaz disso, mas proibiu-se de admitir tal hipótese. Ao ouvi-lo, percebeu que já estava a modificar-se, o que a punha em risco.

Acho que apanhei uma constipação, ou coisa do género

Toma vitamina C. Não quero ter de arranjar um substituto para ti, se adoeceres. Dá um trabalhão. Nem sequer era ele quem tinha de arranjar o substituto, mas pelo menos engolira a sua versão de não se sentir bem. Pelo tom, Maddy notava a sua constante agressividade actual para com ela

-Vou ficar boa. Aguento-me. Jack abanou a cabeça, concordando, e pegou no jornal. Maddy fixou, sem ver nada, The Wall Street Journal. Tudo o que podia fazer era rezar para que ele não imaginasse aquilo que pensava. Com alguma sorte, não imaginaria. Tinha de estabelecer um plano, e fugir antes que ele a destruísse. Porque havia uma coisa de que tinha a certeza: a raiva que suspeitara ele sentir por ela era real, e muito mais intensa do que receara.

 

O mês de Dezembro foi agitado, como de costume. Reuniões sociais, encontros de trabalho, planos para as férias. Cada embaixada parecia ter a sua recepção, um jantar, ou um serão com danças, aquilo em que pudesse incluir as suas tradições nacionais Fazia parte do lado agradável de se viver em Washington e sempre agradara a Maddy. No princípio de casados, adorara ir a festas com Jack, mas, nos últimos meses, à medida que a relação de ambos se ia deteriorando, detestava sair com ele. Jack passava o tempo com ciúmes, observava-a com outros homens e depois acusava-a de qualquer delito ou comportamento inadequado. Era extenuante acompanhá-lo onde quer que fosse nesse ano, o Natal não a atraía

O que realmente queria era incluir Lizzie nas suas férias, mas, com Jack a proibir-lhe qualquer contacto com a pequena, Maddy sabia que não poderia fazê-lo Ou o enfrentava e transformava o caso numa batalha, ou tinha de desistir completamente da ideia não havia acordo possível com Jack. Era à sua maneira, ou não era de todo. Pasmava-a nunca antes ter dado por isso, nem como ele depreciava as suas ideias e necessidades e a levava a sentir-se idiota ou culpada. Uma coisa que aceitara de boa vontade durante anos Agora, nem sabia ao certo como se operara a mudança, mas, nos últimos meses, à medida que se ia apercebendo de como ele a desrespeitava, era constante a urgência que tinha de combater a sua crescente sensação de opressão. No entanto, por muito estranha que se sentisse em relação a Jack, lá muito no íntimo sabia que ainda o amava O que era aterrador, porque a tornava vulnerável

Contudo, não podia esperar que esse amor terminasse. O amor não era para ali chamado. Mesmo ainda o amando e de certo modo precisando dele, sabia que tinha de se afastar. Cada dia que passava com o marido a punha em perigo, repetia constantemente a si própria. Também estava consciente de que se tivesse tentado explicar-se a alguém, ninguém teria compreendido, excepto quem passara pelo mesmo. Aos olhos de qualquer outra pessoa, as conflituosas emoções e sentimentos de culpa com que se debatera teriam parecido absolutamente loucos. Até Bill, com todo o interesse que tinha nela, não a entendia verdadeiramente. A única coisa que o ajudava era o muito que ia aprendendo, na comissão, acerca das formas subtis, ou não tão subtis, de violência contra as mulheres. E era difícil, na verdadeira acepção da palavra, etiquetar como “violência” o que Jack fazia, mas era o paradigma do comportamento agressivo. Visto do exterior, ele pagava-lhe bem, salvara-a, proporcionava-lhe segurança, uma casa encantadora, uma fazenda no campo, um avião a jacto que ela podia usar a seu bel-prazer, roupa bonita, presentes de jóias e peles, férias no Sul de França. Como iria alguém no seu juízo perfeito acusá-lo de ser um homem agressivo e que infligia maus tratos. Porém, Maddy e os que examinavam o relacionamento ao microscópio conheciam bem de mais o demónio que se escondia por detrás. Todas as células do mal estavam presentes, cuidadosamente ocultas pela aparência. Hora a hora, dia a dia, minuto a minuto, Maddy podia sentir o veneno dele devorá-la. Vivia num medo constante.

Houve alturas em que percebeu que Bill estava aborrecido com ela. Sabia o que o amigo pretendia, embora sem saber bem porquê: era que ela se libertasse e encontrasse o seu caminho para a salvação. Observá-la a tropeçar e cair, avançar e recuar, ver claramente e depois deixar-se consumir pela culpabilização até esta a paralisar e cegar... era frustrante para ele. Ainda se falavam ao telefone todos os dias, e tomavam precauções quando almoçavam juntos. Havia sempre o perigo de alguém a ver entrar em casa dele e tirar conclusões que seriam não só incorrectas, como desastrosas para ela. Mantinham-se sempre circunspectos mesmo quando estavam sós. A última coisa que Bill queria era sobrecarregá-la com mais problemas. Já os tinha de sobra, achava ele, não lhos aumentaria.

O presidente regressara entretanto à Sala Oval. Trabalhava meio dia, cansava-se facilmente, mas quando Maddy o viu num chá íntimo que ofereceram, achou-o com melhor aspecto e muito mais forte. Phyllis parecia ter atravessado uma guerra, mas irradiava alegria sempre que olhava para o marido. Maddy invejou-a por isso. Nem conseguia idealizar aquele sentimento. Estava tão habituada a tensões no seu relacionamento que lhe era difícil imaginar sem eles. Chegara ao ponto de tomar como certas a ansiedade e a dor E, ultimamente, mais do que nunca

Jack andava mais desagradável do que jamais fora, pronto a saltar à mínima oportunidade, em permanente acusação ao seu comportamento Como se, noite e dia, no trabalho e em casa, espreitasse o momento de a atacar, qual puma atento à sua presa, e Maddy sabia a que ponto o marido podia ser letal. As coisas que dizia eram devastadoras E o modo como as dizia, ainda mais. No entanto, havia momentos em que Maddy dava por si a pensar em como ele era encantador, inteligente e bonito. O que mais queria aprender era a odiá-lo, não apenas a temê-lo. Crescera muito interiormente, graças ao grupo de mulheres maltratadas, via melhor o que a motivava, e o que fazia E percebia que de uma qualquer forma, subtil, invisível, estava viciada nele

Um dia, abriu-se com Bill, em meados de Dezembro A festa de Natal da estação televisiva era no dia seguinte e não lhe apetecia nada ir. A última batalha de palavras, em que Jack a acusara de flartar no programa com o apresentador, subira de tom passara a acusá-la repetidamente de dormir com ele. Maddy tinha a certeza de que ele sabia que não era verdade, só o dizia para a martirizar. Até comentara o assunto com o produtor, o que a levava a pensar que talvez os dias de Elliot no programa dela estivessem contados. Pensara em pô-lo de sobreaviso, mas, quando falou nisso a Greg pelo telefone, o amigo aconselhou-a a não o fazer. Só lhe acarretaria mais problemas, o que era provavelmente o objectivo de Jack

O que ele está a tentar é que te sintas no inferno, Mad afirmou Greg, com toda a franqueza. Sentia-se feliz em Nova Iorque, falava em casar com a sua nova namorada, Maddy aconselhou-o a dar mais algum tempo. Naquela altura não pensava muito em casamentos, ou pelo menos ele que procedesse com cautela

Ao sentar-se nessa quinta-feira à tarde na cozinha de Bill” sentia-se infinitamente cansada e desiludida. O Natal não lhe dizia nada, tentava descobrir como ir a Memphis para ver Lizzie, ou chamá-la a Washington, sem o conhecimento de Jack. Encontrara finalmente um pequeno apartamento para ela no fim-de-semana anterior. Era acolhedor e bem iluminado, e estava a ser pintado de novo por deliberação sua. Fizera o depósito em numerário e estava convicta de poder pagar a renda sem que Jack viesse a descobrir.

Odeio mentir-lhe comentou calmamente durante o almoço com Bill. Este comprara caviar, e gozavam um dos seus raros e agradáveis momentos juntos. Mas é a única forma de poder fazer aquilo que eu quero e me é necessário. Ele é tão irracional em relação à Lizzie: proibiu-me de a ver. Em relação a quê... não era ele irracional, pensou Bill, mas guardou para si o pensamento. Falava menos do que era habitual, e Maddy perguntava a si própria se alguma coisa o aborrecia. Sabia que as férias lhe eram penosas. E o dia do aniversário de Margaret também era nessa semana, outro facto doloroso. Sente-se bem? interrogou-o, enquanto lhe passava uma tosta com caviar sobre o qual espremera umas gotas de sumo de limão.

Não sei. Esta época deixa-me sempre nostálgico. Este ano muito especialmente. É difícil não olhar às vezes para o passado, em vez de olhar para o futuro. Contudo, Maddy vira-o melhorar nos últimos tempos. Ainda se referia com frequência à mulher, mas dava a impressão de se sentir menos torturado com o que ocorrera. Ele e Maddy tinham falado muito sobre isso e ela continuava a pressioná-lo a perdoar-se a si próprio, mas era mais fácil dizer do que fazer. Tivera a impressão de que quando escrevia o livro se libertara um pouco. O desgosto pela perda da esposa era todavia uma carga que ainda transportava.

As férias são terríveis... Mas, pelo menos, estará com os seus filhos. Ia de novo para Vermont, ela e Jack para Virgínia. Seria muito menos divertido para ela do que para ele. Bill e os filhos planeavam um Natal à antiga. Jack detestava festas e, com excepção de meia dúzia de prendas caras para ela, fazia o menor espalhafato possível. Em criança, todos os anos o Natal o desapontara e em adulto recusava-se a comemorá-lo.

O que Bill disse a seguir surpreendeu-a-

Quem me dera poder passar o Natal consigo, Maddy Sorria-lhe tristemente. Era um sonho impossível, mas um pensamento terno. Os meus filhos adorariam tê-la connosco

Também a Lizzie replicou ela, num tom resignado. Já comprara presentes de Natal lindos para a filha, e algumas lembranças para Bill. Pequenas coisas que lhe faziam pensar nele, CDs, um cachecol quente que parecia feito de propósito para o amigo, e um conjunto de livros antigos que esperava que ele apreciasse. Nada de importante ou de caro, mas tudo muito pessoal, como que símbolos de amizade que os dois tanto prezavam. Guardava-os para a véspera da partida dele para Vermont e esperava que almoçassem juntos uma última vez antes de ambos saírem da cidade e seguirem os seus caminhos separados até depois do Ano Novo

Então, enquanto comiam o resto do caviar, Maddy sorriu-lhe. Bill comprara pasta de fígado, uma baguete e uma garrafa de vinho tinto. Preparara-lhe um piquenique requintado, um refúgio seguro contra as tensões do mundo que a rodeava

Às vezes pergunto-me porque me dispensa tantas atenções. Tudo o que eu faço é queixar-me e choramingar por causa do Jack. Sei que isso deve, aos seus olhos, significar que não estou a tomar medidas nenhumas. Às vezes, deve ser difícil ficar sentado a observar

A resposta é fácil. Retribuiu-lhe o sorriso E deixou-a boquiaberta pelo que disse a seguir, sem afectação e sem hesitar. Amo-te. Fez-se um momento de silêncio enquanto Maddy se concentrava na palavra ouvida e aprendia o seu significado. O mesmo como se tivesse sido ela a dizê-la a Lizzie. Vinha de um protector e amigo, não como uma mulher a teria dito a um homem, e vice-versa. Pelo menos foi assim que a entendeu

Eu também o amo, Bill replicou ternamente É o meu melhor amigo que tenho no mundo. O que haviam partilhado ultrapassava mesmo a sua amizade com Greg, que entretanto se dedicara à sua própria vida. O Bill é como se fosse da minha família, quase como um irmão mais velho

Tendo, porém, dito o que dissera, Bill não ia recuar. Parou muito perto dela e pôs-lhe uma mão no ombro.

Não é isso o que eu quero dizer, Maddy. Digo-o num sentido mais profundo, como homem. Amo-te repetiu, e ela fitou-o, sem saber bem o que responder. Bill compreendeu-a e tentou pô-la à vontade. Mas estava contente por finalmente lho ter dito. Levara muito tempo a chegar àquele ponto. Seis meses de grande intimidade, em todos os sentidos que contavam. Era agora parte diária da vida dela e só desejava ser ainda mais. Não tens de me responder se não quiseres. Não espero nada de ti. Passei os últimos seis meses a aguardar que mudasse a tua vida, fizesses qualquer coisa em relação ao Jack. Mas compreendo como te é difícil. Nem sequer tenho a certeza de que alguma vez o consigas. Acho que aceito isso. O que não quero é esperar até que ajas, se agires, para te dizer que te amo. A vida é curta, e o amor algo de muito especial. As suas palavras deixavam-na confusa.

Também o Bill é muito especial disse meigamente e inclinou-se para o beijar na face. Mas Bill virou levemente a cara, e Maddy não soube bem como foi, se partiu dele ou dela, o certo é que no momento seguinte beijava-o e ele beijava-a, com um sentimento que vinha do fundo dos seus corações e com autêntica paixão. Quando por fim se separaram, olhou-o, estupefacta. Como foi que isto aconteceu entre nós, Bill?

Penso que já vinha de longe. Rodeou-a com os braços, preocupado com a ideia de a ter perturbado. Está tudo bem contigo? Baixou o olhar para ela, que acenou afirmativamente e encostou a cabeça ao peito dele. Era consideravelmente mais alto do que ela; sentiu-se em segurança e feliz nos seus braços, como nunca antes se sentira. Era qualquer coisa totalmente diferente e, na sua novidade, ao mesmo tempo deliciosa e assustadora.

Está tudo bem respondeu, olhando-o e tentando pôr ordem nos seus sentimentos. Então, Bill voltou a beijá-la. Não lhe opôs qualquer resistência. Pelo contrário, percebia agora que aquilo era tudo o que queria. Mas, então, o que Jack dissera a seu respeito era verdade. Nunca o traíra, nunca antes olhara para outro homem, e via que estava apaixonada por Bill sem ter a mínima ideia de como lidar com a situação

Sentaram-se à mesa da cozinha, de mãos dadas, olhos nos olhos. Bill abrira a porta junto da qual ambos tinham parado, e Maddy nunca se apercebera de como era grandiosa a vista para o jardim.

É um autêntico presente de Natal disse, com um sorriso envergonhado, e Bill sorriu abertamente

É, Maddy, não é? Mas não quero que te sintas pressionada. Não planeei nada. Tal como tu, também não o esperava E não quero que te sintas culpada. Já a conhecia bem. Havia ocasiões em que o simples facto de respirar lhe trazia sentimentos de culpa, e aquilo era muito mais do que respirar. Aquilo era viver.

Como queres que eu me sinta? Sou casada, Bill Estou a fazer precisamente aquilo de que ele me acusa, e que até hoje nunca aconteceu. Agora é. ou podia ser...

Isso depende de como procedermos e sugiro que prossigamos muito devagar. Embora tivesse gostado de avançar muito mais depressa. Por respeito por ela, porém, sabia que não devia. Quero fazer-te feliz, não complicar-te a vida. Era contudo o que estava a acontecer. E forçava-a a olhar o seu relacionamento com Jack de uma forma que sempre evitara. Com aquele primeiro beijo, fora catapultada para uma situação completamente diferente.

O que vou eu fazer agora? perguntou a Bill e a si própria. Estava casada com um homem que a tratava de modo abominável. Apesar disso, tinha para com ele um sentimento de lealdade, ou pelo menos daquilo que entendia por lealdade

Vais fazer o que for certo para ti. Já sou crescidinho. Posso aguentar-me. Mas seja o que for que decidas acerca de mim, continuas a ter de te ocupar do Jack. Não podes esconder-te dele para sempre, Maddy Esperava que o seu amor, e o conhecimento desse amor por parte dela, lhe desse a força de que precisava para o deixar. Num certo sentido, embora ela se recusasse a pensar assim, ele era o seu passaporte para a liberdade. Maddy estava todavia decidida a não o usar. íTinha a sensação de que, se quisesse, Bill poderia ser o seu futuro. Bill Alexander não era homem para brincar com coisas sérias.

Tagarelaram depois durante o almoço, enquanto iam comendo queijo e bebendo vinho, e ele fê-la rir da situação que viviam. Disse-lhe que, embora de início não o reconhecesse, se apaixonara por ela no primeiro dia.

Penso que eu também confessou Maddy, mas tinha medo de o admitir. Achava errado, por causa do Jack.

E continuava a sê-lo, porém agora era mais forte do que ela, ou do que de ambos. O Jack nunca me perdoará acrescentou, infeliz. Nunca acreditará que não aconteceu o tempo todo. Dirá a toda a gente que andei a traí-lo.

Fá-lo-á em qualquer caso, se o deixares. E mais do que nunca Bill rogava que ela o fizesse, para bem de ambos. Era como se uma bela borboleta lhe tivesse pousado na mão e ele receasse tocar-lhe ou agarrá-la. Apenas queria admirar Maddy e amá-la. Penso que vai dizer das boas, quando te livrares dele, sem ter a ver comigo. Não vai agradecer-te, isso de certeza. Era a primeira vez que dizia “quando” em vez de “se”, e ambos o notaram. A verdade é que ele precisa mais de ti do que tu dele. Tu precisaste dele para dar corpo às tuas fantasias sobre segurança e casamento, e ele precisa de ti para alimentares a sua doença, para satisfazeres a sua sede de ira, se preferes assim. Um agressor precisa de uma vítima.

Pensativa, Maddy não lhe respondeu. Por fim, acenou em silêncio, concordando.

Passava das três quando o deixou, relutante. Quereria ficar com ele; antes de partir beijaram-se longamente. O seu relacionamento entrara noutra dimensão, fora aberta uma porta que não poderia voltar a ser fechada, o que aliás nenhum dos dois desejava.

Toma conta de ti. Sê cuidadosa.

Vou ser. Presa nos braços dele, sorriu-lhe. Amo-te... e agradeço-te o caviar... e os beijos...

Às tuas ordens. Retribuiu-lhe o sorriso e ficou à entrada da porta a acenar-lhe, enquanto ela se afastava no carro. Tinham muito em que pensar. Sobretudo Maddy.

Ficou de imediato nervosa quando a secretária a informou  de que Jack lhe telefonara duas vezes na última hora. Sentou-se, respirou fundo e ligou para a extensão dele, de súbito aterrorizada perante a ideia de que alguém a tivesse visto sair de casa de Bill. Tremiam-lhe as mãos quando ele atendeu.

Onde raio andaste?

Compras de Natal foi a resposta imediata. A mentira ocorrera-lhe tão rapidamente que ela própria se surpreendeu pela sua prontidão a enganá-lo. Decerto não poderia dizer-lhe onde estivera, ou o que estivera a fazer. Embora a caminho do escritório tivesse vindo a pensar se o correcto não seria contar-lhe a verdade, que era desesperadamente infeliz com ele e estava apaixonada por outro. Sabia porém que dizer-lho seria convidá-lo a agredi-la. A menos que pudesse ir-se embora no mesmo instante E também sabia que não estava preparada. Assim sendo, a honestidade não era necessariamente a resposta correcta, para já.

Telefonei-te para te dizer que tenho que me encontrar com o presidente Armstrong esta noite. Ficou surpreendida. O presidente ainda não lhe parecia suficientemente bem para ter reuniões nocturnas, mas não fez qualquer observação. Era mais fácil ficar calada. E concluiu de imediato que as suspeitas que o marido lhe inspirava se baseavam provavelmente no seu próprio comportamento. Detestava pensar assim. Mas sabia que, sentisse o que sentisse por ele, o que estava a acontecer com Bill era errado da parte de uma mulher casada, por muito que o casamento estivesse deteriorado

Está bem. Tenho de ir comprar algumas coisas no caminho para casa. Necessitava de papel para embrulhar presentes e de umas pequenas lembranças para a sua secretária e o seu assistente no campo das pesquisas. Já comprara para ambos relógios Cartier. Precisas de alguma coisa? perguntou, tentando ser amável para o marido, como que para mascarar as suas transgressões

Porque estás tão bem-disposta? Perante a desconfiança de Jack, referiu-se ao Natal. Ele disse-lhe que não o esperasse acordada, que podia ser uma reunião demorada, o que acentuou as dúvidas de Maddy. Uma vez mais, nada comentou.

Fez os seus dois programas dessa noite como se pairasse nas nuvens, e ligou a Bill duas vezes, antes e depois da emissão.

Fazes-me muito feliz. E muito assustada, poderia ter acrescentado. Não falaram no futuro, limitaram-se a saborear o presente. Ela disse-lhe que depois do trabalho ia a um centro comercial comprar umas coisas, e ele que lhe telefonaria para casa, uma vez que o marido estaria ausente. Também não acreditava que Jack fosse encontrar-se com o presidente. Phyllis dissera a ambos na comissão, há poucos dias, que Jim chegava exausto ao fim da tarde e pelas sete da noite estava a dormir.

Talvez o Jack durma com ele brincou Maddy, com um bom humor inesperado.

Seria uma nova reviravolta. Bill riu-se da sugestão, e prometeram que se falariam mais tarde.

Maddy saiu do trabalho num dos carros da estação, visto que Jack tinha consigo o carro deles e o motorista. Alegrou-a ficar sozinha naquele momento. Dava-lhe tempo para pensar em Bill, sonhar com ele. Estacionou no centro comercial e entrou numa grande loja para comprar fitas e papel para embrulhar os seus presentes.

A loja estava à cunha com gente a fazer compras de Natal, mulheres e crianças barulhentas, homens de ar confuso sem saber o que escolher, e os compradores habituais que enchiam o centro nas vésperas dos feriados. Uma agitação superior ao normal, o que não era surpreendente. E a loja de brinquedos da porta ao lado tinha um Pai Natal que apinhava de gente que queria vê-lo a caminho para o parque de estacionamento. Todo aquele movimento deixou Maddy bem-disposta. Era o espírito de Natal que, graças a Bill, começava a saborear.

Carregava nos braços uma dúzia de rolos de papel encarnado, cartões perfumados, fita gomada, chocolates com a do Pai Natal e pequenos ornamentos natalícios, quando ouviu um estranho ruído vindo de algures por cima dela. Era tão forte que inicialmente a assustou. Viu outras pessoas parar e olhar, igualmente incapazes de compreender. Um boom estrondoso seguido de um som semelhante ao de uma cascata,  de uma queda de água impetuosa. Não ouvia ninguém. A música parou e de súbito irromperam gritos enquanto toda a iluminação da loja se apagava. Nem tempo teve para entrar em pânico ou abrir a boca, viu o tecto desabar à sua frente e, simultaneamente, toda a gente a desvanecer-se na escuridão e tudo o que a rodeava a desaparecer.

 

Quando acordou, Maddy sentiu-se como se tivesse um edifício inteiro sobre o peito. Abriu os olhos; doíam-lhe e estavam cheios de pó. Não conseguia ver nada, pairava no ar um estranho cheiro a poeira e a queimado. Estava quente, e com todo o corpo muito pesado. Compreendeu então que qualquer coisa lhe caíra em cima. Tentou mover-se e de início pensou não ser capaz. Podia mexer os pés, mas algo lhe pressionava as pernas para baixo e toda a parte superior do corpo estava presa. Pouco a pouco, porém, a debater-se para se soltar, foi conseguindo afastar os vários pesos que haviam desabado sobre si. Não deu por isso, mas levou-lhe mais de uma hora a libertar-se e a poder sentar-se, como uma pequena bola, no diminuto espaço a que estava confinada. E o que de imediato notou foi que à sua volta o silêncio era total. Mas, passado um bocado, começou a ouvir gemidos e gritos e, à distância, pessoas que chamavam outras pessoas. Sentou-se, expectante, e teve a certeza de ouvir algures o choro de um bebé. Não fazia a mínima ideia do que acontecera ou de onde se encontrava exactamente.

No parque de estacionamento, longe do sítio onde se encontrava, vários automóveis tinham explodido. A fachada de vários edifícios fora destruída. Havia carros de bombeiros por toda a parte, gente que corria e gritava. Pessoas a sangrar precipitavam-se para o parque e crianças feridas eram postas em macas e apressadamente metidas em ambulâncias. Parecia um estúdio cinematográfico, e os que, no meio da confusão, falavam com a polícia e os bombeiros diziam que todo o edifício ruíra num instante. De facto, quatro grandes armazéns do centro comercial estavam destruídos e havia uma enorme cratera do lado de fora do armazém onde Maddy permanecia. Na cratera, um buraco imenso, estacionava instantes atrás um camião. Fora uma explosão de tal magnitude que os vidros dos prédios a cinco quarteirões de distância se tinham estilhaçado. Novas equipas chegaram; e o Pai Natal da loja de brinquedos foi levado coberto com um encerado. Tivera morte instantânea, ele e mais de metade das crianças que aguardavam para o ver. Uma tragédia que não se conseguia avaliar correctamente, tais as suas enormes proporções.

Bem no fundo do armazém, onde se sentava torcida numa pequena bola, Maddy tentava descobrir como sair de debaixo do entulho que a mantinha prisioneira. Tentou agarrar-se-lhe, afastá-lo, empurrá-lo com o corpo, mas de início nada cedeu e, com o pânico a apoderar-se de si, começava a ter uma sensação de falta de ar. Foi então que, no escuro, ouviu uma voz muito perto.

Socorro... socorro... Alguém me ouve? A voz era fraca, mas reconfortava-a saber que havia alguém por perto.

Ouço eu. Onde está? O pó era tanto que Maddy mal conseguia respirar. Voltou-se na direcção da voz, prestando toda a atenção.

Não sei. Não vejo nada respondeu a voz. O negrume era total.

Sabe o que aconteceu?

Acho que o prédio nos caiu em cima... Bati com a cabeça... Parece que está a sangrar... Era uma voz de mulher. Maddy julgou ouvir de novo o bebé. Mas pouco mais ouvia. Uma voz ocasional, um grito... Esperava o som de sirenes, sinónimo de ajuda, mas nada. O cimento que as bloqueava era tanto que não lhes permitia ouvir o caos exterior ou os veículos de salvamento que, de sirenes ligadas, se encaminhavam naquela direcção vindos de toda a cidade. Até tinham sido feitos apelos para a Virgínia e o Maryland. Ninguém sabia ainda nada, excepto que ocorrera uma enorme explosão e havia imensos feridos e mortos.

O bebé é seu? perguntou Maddy ao voltar a ouvir o choro.

É... respondeu, fraca, a voz. Tem dois meses. Chama-se Andy. A rapariga chorava. E Maddy também teria chorado, se não estivesse ainda num estado de choque que a impedia de sentir as suas próprias emoções.

Está ferido?

Não sei... não o vejo. Rompeu em soluços. Maddy fechou os olhos por um minuto, numa tentativa de pôr ordem nos pensamentos. Algo de terrível devia ter acontecido  para que todo o edifício lhes desabasse em cima, mas não conseguia imaginar o quê.

Consegue mexer-se? Falar com a rapariga ajudava-a a manter a sua própria sanidade, enquanto recomeçava a tentar empurrar vários pedaços de entulho. E o que parecia um enorme pedregulho atrás de si cedeu um bocadinho, embora apenas uns centímetros, na direcção oposta àquela de onde vinha a voz.

Não, nada, há qualquer coisa sobre as minhas pernas e os meus braços... e não sou capaz de chegar até ao meu bebé.

Eles vão mandar-nos ajuda, tenha calma. Enquanto Maddy falava, ambas ouviram o som surdo de vozes distantes, mas não havia maneira de saber se eram salvadores ou vítimas. Maddy tentou então pensar no que devia fazer; lembrou-se de que tinha o telemóvel na mala. Se o achasse, podia pedir socorro, ou talvez eles a encontrassem mais facilmente. Era uma ideia louca, mas que a distraiu; ao mesmo tempo, ia tacteando em seu redor, sem tocar em mais do que pó, pedras e pedaços de cimento partido. Ficou porém com uma melhor percepção da pequena área que a rodeava. E de novo tentou deslocar as paredes da sua cela provisória. Numa das extremidades conseguiu alargar a borda uns trinta centímetros, ampliando assim o espaço de ar. Estou a ver se chego ao pé de si disse encorajadoramente à rapariga. Por um longo momento só o silêncio lhe respondeu. Ficou assustadíssima. Você está bem?... Ouve-me?... Depois de uma pausa extensa, veio a voz:

Julgo que adormeci.

Não durma. Tente manter-se acordada. Maddy mostrava-se firme, mas continuava confusa, não chegava a conclusão nenhuma. Ela própria estava ainda em estado de choque e quando se mexia sentia uma terrível dor de cabeça.

Fale comigo... como se chama?

Anne.

Olá, Anne. O meu nome é Maddy. Que idade tem?

Dezasseis.

Eu tenho trinta e quatro. Sou jornalista... na televisão.

Outra vez ausência de resposta. Acorde, Anne... Como vai o Andy?

Não sei. O miúdo choramingava, estava portanto vivo, mas a rapariga parecia mais enfraquecida. Só Deus sabia a que ponto estava mal, ou quando alguém as encontraria

E enquanto Maddy continuava a lutar dentro da sua caverna, lá fora não paravam de chegar carros de todos os bairros. Dois dos armazéns ardiam, quatro tinham ruído, e corpos desmembrados eram retirados das zonas junto ao centro de explosão, alguns deles absolutamente irreconhecíveis. Havia mãos, pés, braços, cabeças, por toda a parte. Os que podiam andar eram removidos e as ambulâncias levavam aqueles que não se deslocavam pelos seus próprios meios. A área fora o mais possível desobstruída para nela poderem operar salvadores e voluntários. O Centro de Controlo de Catástrofes e Emergências Nacionais tinha sido chamado e as pessoas iam organizando equipas à medida que os buldózeres começavam a chegar Mas o equilíbrio das estruturas ainda de pé era demasiado instável para que fossem usados, e muitas vítimas seriam postas em risco pelo uso de maquinaria que, no fim de contas, criaria um problema ainda maior

Havia um grande número de equipas de reportagem, e os programas de televisão de todo o país tinham sido interrompidos para informar os telespectadores de que ocorrera em Washington o maior desastre da história do país desde a explosão na cidade de Oklahoma em 1995

Mencionava-se já mais de uma centena de mortos e feridos, não sendo possível fazer um cálculo exacto. Uma criança aos gritos, com os braços decepados, fora filmada por todas as câmaras presentes a ser levada à pressa pelos salvadores. A sua identidade era desconhecida e ninguém a reclamara ainda. Havia dúzias de outras pessoas em situação semelhante. Feridos, em estado de choque, maltratados, mutilados, mortos e moribundos iam sendo removidos dos escombros

Bill, calmamente instalado no seu canto, via televisão quando foram passadas as primeiras imagens da tragédia. Sentou-se de um salto, horrorizado. Maddy dissera-lhe que ia lá depois do trabalho. Instantaneamente, correu a telefonar-lhe. Não obteve resposta. Ligou em seguida para o telemóvel e uma gravação informou-o de que o número não estava disponível. À medida que continuava a ver as notícias, submergia-o  uma onda de pânico. Quase telefonou para a estação para obter informações dela, mas não se atreveu. Havia sempre a possibilidade de Maddy estar no terreno, a cobrir o acontecimento; decidiu esperar para ver se ela lhe telefonava. Sabia que o faria, se tivesse tempo e não se encontrasse presa algures por baixo do entulho. Tudo o que agora podia fazer era rezar, rogar que não fosse esse o caso. E a única coisa que lhe vinha à ideia era o momento em que se apercebera de que Margaret fora raptada por homens com máscaras e armas de fogo.

Também Jack estava consciente da situação. O seu telemóvel tocou instantes depois da explosão, e ele olhou, desanimado, para a mulher que o acompanhava. Não era aquela a noite que planeara. Organizara tudo com extremo cuidado, como sempre fazia, e a interrupção irritou-o.

Encontrem a Maddy e digam-lhe que desande para lá. Ela deve estar em casa ordenou, desligando em seguida. Já tinham duas equipas no terreno e uma terceira ia a caminho, dissera o produtor. E a linda loira com quem estava no Ritz Carlton perguntou-lhe o que acontecera.

Um idiota qualquer fez ir pelos ares um centro comercial respondeu ele, e ligou a televisão. Ambos se sentaram e ficaram com os olhos presos às imagens. Um cenário de destruição total e caos absoluto. Jesus! murmurou, por entre dentes. Nenhum deles imaginara a magnitude da catástrofe até a verem. Durante um bocado, mantiveram-se em silêncio; então, Jack pegou no telemóvel e ligou para a estação. Encontraram-na? vociferou. Era um acontecimento dos diabos, mas até olhos experimentados como os seus se encheram de lágrimas em certos momentos, perante as imagens mostradas. A seu lado, a rapariga que só conhecera na semana anterior, chorava de mansinho. Um bombeiro acabava precisamente de passar levando nos braços um bebé morto e a mãe.

Estamos a tentar, Jack respondeu o produtor extenuado. Ela ainda não está em casa e tem o telemóvel desligado.

Raios! Disse-lhe que nunca fizesse isso. Há-de acabar por ligá-lo. E então, ao desligar o seu, passou-lhe pela cabeça  uma ideia que de imediato rejeitou. Maddy dissera que ia comprar papel e mais umas coisas, mas habitualmente, como detestava centros comerciais, fazia as suas compras em Georgetown. Não havia razão alguma para se encontrar ali.

Ouve-me, Anne? A voz de Maddy atravessou uma vez mais o cimento, mas levou muito tempo a estimular a outra voz.

Ouço... sim... Quando ela respondia, escutaram outra voz. De homem, e surpreendentemente perto de Maddy.

Quem está aí? perguntou a voz, forte e alta Disse que empurrara algumas pedras e uma viga e se arrastara ao longo de um comprido percurso até chegar perto delas, mas não fazia ideia de para onde ia, ou onde estava

O meu nome é Maddy respondeu ela firmemente, e há aqui uma rapariga chamada Anne.. não está junto de mim mas consigo ouvi-la. Penso que está ferida e tem um bebé.

E a senhora? Está bem?

Doía-lhe a cabeça, mas não valia a pena falar-lhe nisso.

Estou óptima. Pode remover algum deste lixo que me cobre?

Continue a falar. Vou tentar. Maddy esperava que ele fosse grande e forte. Suficientemente forte para mover montanhas, se necessário

Como se chama?

Mike. E não se preocupe, minha senhora. Eu aguento com mais de duzentos quilos. Tiro-as daí num abrir e fechar de olhos. Mas Maddy ouvia-o ofegar enquanto falava com ela, e Anne voltou a não responder quando a chamou. Quanto ao bebé, chorava cada vez com mais força.

Fale com o seu bebé, Anne. Se ele a ouvir, talvez fique menos assustado.

Estou muito cansada retorquiu Anne em voz débil. Maddy continuou a falar com Mike, que parecia uns centímetros mais perto.

Sabe o que aconteceu? perguntou-lhe Maddy

Sei lá! Estava a comprar creme de barbear e o maldito telhado caiu-me em cima. Estive para trazer os meus filhos. Ainda bem que não trouxe. Havia alguém consigo?

Não, estava sozinha respondeu Maddy, tentando uma vez mais agarrar-se às pedras e ao estuque, mas tudo o que conseguiu foi partir as unhas e ferir os dedos. Nada cedia.

Vou tentar escavar na outra direcção disse ele finalmente, e Maddy sentiu-se invadida pelo pânico. O pensamento de perder a voz amigável provocou-lhe uma sensação de abandono como jamais conhecera. Tinham porém de arranjar ajuda e, se isso fosse possível a um deles, os outros também seriam salvos.

Está bem. Boa sorte. Quando sair... Fez questão de dizer “quando” e não “se”... eu sou repórter de televisão... Por favor, informe a minha estação de que a Maddy está aqui. Tenho o pressentimento de que andam lá fora, algures.

Eu volto para buscá-las afirmou ele. E passados poucos minutos a sua voz sumiu-se e nenhuma outra a substituiu. Maddy fora deixada só, no escuro, com a sua solidão, Anne e o seu bebé a chorar. Continuava a desejar ter o seu telemóvel, não que isso tivesse feito grande diferença. Nem sequer teria podido dizer-lhes onde estavam, apenas onde tinham começado por estar. Tanto quanto se apercebia, haviam sido atirados para longe. Nada identificava o sítio onde agora se achavam presos.

E enquanto Bill continuava a ver o noticiário, o seu pânico ia aumentando. Ligara para ela uma dúzia de vezes, só a gravação lhe respondera. O telemóvel continuava desligado. Por fim, em desespero, telefonou para a estação.

Quem fala? perguntou irritado o produtor, surpreendido pelo facto de o interlocutor ter obtido ligação.

Sou um amigo da Maddy e estou preocupado. Ela está a cobrir o acontecimento?

Depois de uma pausa, o produtor decidiu responder-lhe com sinceridade.

Também não conseguimos encontrá-la. Tem o telemóvel desligado e em casa não está. Podia ter ido para o local por conta própria, mas ninguém a viu. O facto é que há lá uma imensa multidão. Talvez acabe por dar sinal de si. Fá-lo sempre tranquilizou-o Rafe Thompson, o produtor.

Não é o género dela... desaparecer replicou Bill num tom de preocupação, e Rafe não pôde impedir-se de imaginar como aquele homem ao telefone sabia disso, mas era óbvio que estava raladíssimo. Muito mais do que Jack. Tudo o que Jack fizera fora berrar-lhes que a encontrassem, com mil raios. E o produtor ficara com uma ideia bastante exacta do que Jack estava a fazer quando contactara com ele. Jack atendera e ele ouvira em fundo risadinhas de mulher.

Não sei o que dizer-lhe. Provavelmente, vai telefonar daqui a pouco. Podia estar no cinema, por exemplo. Mas Bill sabia que não, e o facto de ela não lhe ter ligado para o sossegar assustava-o profundamente. Durante dez minutos andou às voltas na sala, com os olhos postos na televisão. Por fim, não aguentou mais. Pegou no casaco e nas chaves do carro e saiu porta fora. Ignorava se poderia aproximar-se do local do acidente, mas tinha de tentar. Não sabia porquê, mas sabia que tinha que estar lá. Talvez a encontrasse.

Passava das dez quando Bill acabou de percorrer todo o caminho, uma hora e meia depois da explosão que destruíra dois blocos de edifícios da cidade, matara cento e três pessoas, segundo a última contagem, e ferira dúzias de outras. E isso era apenas o princípio.

Quando lá chegou, levou vinte minutos a abrir caminho pelo meio das viaturas de emergência e dos destroços e havia tantos voluntários dispostos a ajudar que ninguém lhe pediu qualquer distintivo ou identificação; limitaram-se a deixá-lo passar. Parou em frente do que restava do armazém de brinquedos, com lágrimas nos olhos e pedindo a Deus que o ajudasse a encontrá-la no meio da multidão.

Uns minutos depois, alguém lhe entregou um capacete e lhe pediu que ajudasse a tirar destroços do interior. Seguiu os outros e era tão apavorante o simples facto de ali estar que a sua única esperança era que Maddy se encontrasse em qualquer outro sítio e apenas se tivesse esquecido de ligar o telemóvel.

Na sua toca, Maddy atirava todo o seu peso contra um pedaço de cimento, a pensar em Bill. Com surpresa, viu o cimento ceder. Tentou de novo, o cimento moveu-se mais uns centímetros; e, sempre que se movia, a voz cada vez mais fraca de Anne parecia ficar mais próxima.

Acho que estou a chegar a qualquer sítio comunicou a Anne. Vá falando comigo. Preciso de saber onde está. Não quero piorar nada. Sente alguma coisa? Há pó a cair-lhe em cima do corpo? Onde? Não sabia ao certo se estava a aproximar-se da cabeça ou dos pés da rapariga, mas a última coisa que desejaria era provocar a queda de um pedaço de cimento em cima dela ou do bebé. Dava quase tanto trabalho empurrar o cimento como manter Anne desperta.

Maddy falava agora sozinha enquanto ia empurrando, arranhando... Deu a certa altura um tal empurrão que quase se feriu e, para seu grande espanto, ao fazê-lo, um grande pedaço de cimento recuou e ela conseguiu afastá-lo, criando um espaço suficientemente grande para poder rastejar. E, mal começou, encontrou Anne. A sua voz estava muito próxima, e a primeira coisa em que tocou foi em Andy. Estava deitado perto da mão da mãe, embora fora do seu alcance, e contorcia-se livremente. Maddy não o via, mas sentia-o e puxou-o para si. O bebé gritou, aterrorizado. Maddy ignorava se estava ou não ferido; voltou a deitá-lo no chão e arrastou-se pelo buraco na direcção de Anne. Por momentos, a rapariga não disse nada, e então Maddy tocou-lhe, sem sequer estar certa de que ela ainda respirava.

Anne... Anne... Roçou-lhe suavemente a mão pela face e ao percorrer-lhe cuidadosamente o corpo pensou saber o que acontecera. Uma viga enorme atravessava-se-lhe sobre o tórax, esmagando-o, e pela humidade na sua roupa percebia-se que sangrava. Outra viga repousava-lhe sobre as pernas. Estava literalmente entalada contra o chão e, embora Maddy se esforçasse freneticamente, nada podia fazer para a libertar. As vigas eram mais pesadas do que o cimento, e o que ela não sabia era que havia mais cimento a pressioná-las para baixo. Anne!... Anne!... foi repetindo o seu nome, com o bebé a choramingar perto delas: finalmente a rapariga mexeu-se e falou:

Onde está? Não percebia o que sucedera.

Estou aqui. Estou consigo. O Andy está bem, creio. Pelo menos, em comparação com a mãe.

Eles encontraram-nos. Anne recomeçava a adormecer e Maddy receava abaná-la, dadas as lesões provocadas na rapariga pela queda das vigas.

Ainda não. Mas vão encontrar Garanto-lhe. Aguente-se. Pegou no bebé, agachou-se junto a Anne e então, sempre a tentar que esta não desmaiasse, encostou a carinha dele à da mãe, como deviam ter feito aquando do nascimento. Anne começou a chorar de mansinho.

Vou morrer, não vou? Não havia uma resposta sincera para tal pergunta, ambas o sabiam. Já não tinha dezasseis anos. Atingira num espaço de minutos a plena maturidade, naquele momento até podendo ter cem.

Acho que não mentiu Maddy. Não pode Tem de ir em frente, pelo Andy

Ele não tem um pai, o pai não lhe ligou quando ele nasceu. Não o quis.

A minha filha também não teve um pai. Maddy tentava acalmá-la. Pelo menos ia falando, o que já era qualquer coisa. Lizzie também não tivera uma mãe, pensou Maddy, culpabilizando-se, mas não disse nada a Anne.

Você vive com os seus pais? perguntou, sempre na tentativa de mantê-la desperta, e aconchegando mais o bebé junto dela. Este parara de chorar. Pôs-lhe um dedo por baixo do nariz e ficou aliviada ao verificar que ainda respirava. Adormecera

Eu fugi aos catorze anos. Sou de Oklahoma. Telefonei aos meus pais quando ele nasceu e eles não nos querem. Têm outros nove filhos e a minha mãe diz que eu só arranjo complicações. O Andy e eu estamos a cargo da Assistência Social. Era uma tragédia, mas não tão terrível como aquela por que agora estavam a passar. Maddy não parava de pensar se algum dos dois sobreviveria, ou se sobreviveria ela própria. Ou se iriam ser encontrados muito depois de terem morrido, pedaços de uma história mais vasta, mais horrenda. Mas estava determinada a não permitir que tal sucedesse, por causa deles. Aquele bebé tinha direito a viver, tal como a criança que a sua mãe era. Salvá-los tornara-se o seu único objectivo

Quando ele crescer, pode contar-lhe tudo isto. Ele vai achar que você foi maravilhosa e uma mulher cheia de coragem...} E é. Estou muito orgulhosa de si. Lutava contra as lágrimas, a pensar em Lizzie. Tinham-se reencontrado passados dezanove anos e agora Lizzie talvez voltasse a perdê-la. Não, não podia deixar-se invadir por tais pensamentos. Precisava de manter o sangue-frio e reparara, ao falar com Anne, que se sentia atordoada. Quando iria faltar-lhes o ar? Se ficassem ofegantes, ou se adormecessem, apagar-se-iam como velas. Começou a cantarolar, para si própria, para Anne e para o bebé, mas Anne voltara a cair em silêncio e os esforços de Maddy não pareciam resultar. Quando lhe tocou, gemeu, portanto ainda estava viva, mas dava a impressão de se ir esvaindo rapidamente.

No exterior do armazém de brinquedos, Bill encontrara por fim a equipa dela. Identificou-se e viu que estava a falar com o produtor com quem já contactara ao telefone, agora no terreno a dirigir equipas de fotógrafos e repórteres.

Penso que ela está lá dentro adiantou Bill, horrorizado. Disse-me que precisava de comprar papel e outras coisas e que vinha aqui...

Tive esse estranho pressentimento admitiu Rafe Thompson, e achei que estava maluco. Não que faça qualquer diferença. Estão a fazer o possível e o impossível para retirar as pessoas. Como a conheceria Bill, interrogou-se; Bill explicou-lhe então que faziam ambos parte da comissão da primeira-dama. Pareceu a Rafe uma boa pessoa. Durante horas ajudara a resgatar vítimas. Tinha o casaco roto, a cara imunda, e sangrava das mãos. Em toda a gente eram patentes o stresse e a exaustão. Passava da meia-noite e Maddy ainda não aparecera. Rafe telefonara várias vezes a Jack, que continuava a berrar-lhes do Ritz Carlton. Fora menos do que complacente a respeito do desaparecimento de Maddy, comentara que ela andava provavelmente “a fornicar em qualquer sítio” e que ia matá-la quando a encontrasse. Rafe e Bill estavam mais preocupados com o facto de não saberem quem pusera a bomba. E, até então, ninguém reivindicara o acto.

Nem mencionaram na emissão que Maddy devia encontrar-se presa nos escombros. Não tinham maneira alguma de saber se estava e não havia razão para se referirem ao facto até haver certezas. Pelas quatro da madrugada, as equipas de salvamento começavam a progredir notoriamente. Após quase oito horas de fatigante trabalho, já perto das cinco, foi resgatado um homem chamado Mike. Sangrava por toda a parte, escavara sem parar nos escombros, abrira túneis e tocas afastando cimento e vigas, e com os seus esforços salvara quatro pessoas. Ao chegar ao exterior explicou aos homens que o resgataram que encontrara mais duas mulheres mas não pudera retirá-las. Chamavam-se Maddy e Anne e uma delas tinha um bebé. Fez todos os possíveis por indicar aos salvadores em que direcção estavam, enquanto o metiam numa ambulância e o levavam. Rafe ficou a saber passados uns momentos e foi contar a Bill, os trabalhadores voltaram a entrar para seguir as vagas indicações de Mike

Ela está lá dentro disse Rafe a Bill, num tom lúgubre

Oh, meu Deus Encontraram-na. Teve medo de perguntar se estava morta ou viva, a expressão de Rafe não era tranquilizadora

Ainda não. Um dos homens que acabaram de retirar disse que havia duas mulheres que não conseguira alcançar. Uma delas é a Maddy. Contou-lhe que era repórter da televisão e qual a rede para que trabalhava. O pior dos seus receios confirmava-se, e tudo o que podiam fazer era esperar. Durante mais duas horas observaram corpos a ser removidos, sobreviventes com membros a menos, crianças mortas, para serem identificadas por pais desesperados. Pelas sete, Bill parou e chorou. Era impossível acreditar que ela continuasse viva. Tinham decorrido quase onze horas. Pensou se deveria tentar telefonar a Lizzie, mas para lhe dizer o quê? Por essa altura, já todo o país estava a par da tragédia. Uma obra de loucos

Bill e Rafe estavam sentados sobre as caixas dos equipamentos de som quando chegou uma nova equipa e um membro da Cruz Vermelha ofereceu café a ambos. Rafe aceitou um copo com gosto, Bill não foi capaz

Rafe não fizera mais perguntas a Bill acerca do seu relacionamento com Maddy, mas no decorrer da noite foi-se tornando óbvio quanto era grande a sua angústia e Rafe teve pena dele.

Anime-se. Eles vão com certeza encontrá-la. A pergunta que atravessava a mente de ambos era... se viva ou morta.

E enquanto aguardava as equipas de salvamento, Maddy mantinha-se agachada como uma bola, segurando o bebé; há horas que Anne não dava sinal de si. Ignorava se a rapariga estava adormecida ou morta; há muito tempo que todos os seus esforços para a fazer falar eram em vão. Maddy não fazia a menor ideia das horas, ou de há quanto tempo ali permaneciam. Por fim, quando o bebé se agitou e recomeçou a chorar, a mãe ouviu-o.

Diga-lhe que eu o amo... sussurrou, assustando Maddy. A voz a seu lado parecia a voz de um fantasma.

Tem de ser forte, vai ser você a dizer-lho respondeu Maddy, tentando mostrar-se optimista. Mas já não estava. Faltava-lhe o ar, mal se aguentava consciente para segurar o bebé.

Quero que tome conta dele em meu lugar disse Anne, que de novo se calou. E, passado um momento: Eu gosto de si, Maddy. Obrigada por estar aqui comigo. Sem a senhora, teria ficado apavorada. Também Maddy estava apavorada, mesmo com Anne e o bebé, mas rolavam-lhe lágrimas pela cara abaixo quando se inclinou e beijou na face a rapariga ferida, pensando em Lizzie.

Eu também gosto de si, Anne... Gosto muito de si... Agora tem de se pôr boa. Não tarda nada, saímos daqui. E eu quero que conheça a minha filha. Anne concordou, com um aceno de cabeça, como se acreditasse nela, e sorriu no escuro. Maddy apercebeu-se desse sorriso que não via.

A minha mãe costumava chamar-me Annie. Nos tempos em que gostava de mim disse, com tristeza.

Aposto que ainda gosta. E vai gostar do Andy quando o conhecer.

Não quero que ela fique com ele. Exprimia-se com mais força e com determinação. Quero que a senhora tome conta do meu bebé. Prometa-me que vai amá-lo. Maddy teve de reprimir os soluços ao responder, sabia que nenhuma delas dispunha do ar ou da energia necessários. E precisamente quando ia dizer-lhe qualquer coisa, ouviu vozes à distância, vozes fortes que se aproximavam... Percebeu que pronunciavam o seu nome.

Ouve-nos, Maddy? Maddy?.. Maddy Hunter., e Anne... Ouvem-nos? Apeteceu-lhe gritar de excitação e respondeu-lhes o mais alto que pôde.

Ouvimos! OUVIMOS! Estamos aqui. As vozes iam-se aproximando cada vez mais. Falou rapidamente a Anne. Vêm buscar-nos agora, Annie... aguente-se... daqui a minutos estamos lá fora. Mas a despeito do barulho feito por Maddy, Anne recaíra no sono e, em consequência, o bebé recomeçou a chorar intensamente. Estava cansado, esfomeado e assustado. Maddy também.

As vozes cada vez soavam mais perto, a centímetros ao que parecia, e Maddy identificou-se. Descreveu, o melhor que pôde, a toca onde estavam, e o estado de Anne, sem a aterrorizar por completo. A seu respeito, disse que estava bem e tinha o bebé seguro.

O bebé está ferido? perguntou outra voz, para saber qual o tipo de salvamento adequado

Não sei. Julgo que não. E eu também não estou. Excepto um enorme galo e uma colossal dor de cabeça. A mãe do bebé era outro caso.

Todavia, apesar de as terem localizado, levou-lhes hora e meia a libertá-las. Tinham de remover os detritos centímetro a centímetro, e a mesma lentidão se aplicava ao cimento. Temiam que toda a estrutura desabasse sobre elas se trabalhassem depressa de mais, e Maddy gritou de alívio e de dor quando lhe apontaram aos olhos um potente feixe de luz, através de um buraco com o diâmetro de um pires. Não conseguiu suster os soluços e contou a Anne o que se passava. Mas não obteve reacção alguma.

O buraco foi aumentando de tamanho. Maddy observava os homens que iam falando com ela, e cinco minutos depois passou para fora Andy, podendo então ver, quando o iluminaram com uma lanterna, como estava sujo. Tinha sangue seco na cara, proveniente de um pequeno golpe na bochecha, mas, fora isso, os grandes olhos estavam abertos e Maddy achou-o lindo. Beijou-o ao pegar-lhe para o entregar, e um par de fortes mãos masculinas agarrou-o. E desapareceram. Ficaram outros quatro homens para prosseguir a tarefa de a libertar a ela e a Anne, e meia hora depois havia espaço suficiente para Maddy rastejar, o que fez não sem primeiro acariciar a mão de Anne. A rapariga dormia, o que era uma bênção. Ia ser penoso o trabalho de a soltar. Maddy deslizou até aos homens colocados junto ao buraco aberto e, dois deles passaram a ocupar-se de Anne enquanto um outro puxava Maddy; Maddy recuou, gatinhando, até à saída. Aí, mãos fortes içaram-na e foi carregada por cima de cimento, destroços e pedaços de aço retorcidos que se amontoavam por toda a parte, formando como que uma floresta diabólica. Num ápice, achou-se à luz esplendorosa do dia.

Eram dez da manhã, quase catorze horas depois de o centro comercial ter ruído e ela ter sido apanhada. Tentou perguntar a alguém se o bebé estava bem, mas o caos que a rodeava era tal que ninguém dava mostras de a ouvir. Continuavam a ser retiradas pessoas, havia corpos cobertos com encerados, gente que chorava aguardando notícias dos familiares, salvadores a gritar instruções uns aos outros, e subitamente, no meio de tudo aquilo, viu-o, ali parado, à espera dela. Bill, quase tão imundo como ela, devido aos seus esforços para salvar vítimas. Ao vê-la irrompeu em soluços e arrancou-a ao homem que a segurava. Só foram capazes de se abraçar e chorar. Não havia palavras para lhe dizer o que sentira, a que ponto fora imenso o seu medo, e terrível o pavor dela. Levariam anos a explicarem-no um ao outro, e tudo o que tinham agora era o instante único de amor e alívio desse momento inesquecível.

Obrigado, meu Deus murmurou ele apertando-a contra o peito; e conduziu-a devagarinho a uma equipa de paramédicos. Miraculosamente, porém, não estava ferida; então, esquecendo por momentos Bill, mas sempre com a mão dele firmemente agarrada, virou-se para um dos salvadores.

Onde está a Anne? Está bem?

Estão à volta dela respondeu o homem, num tom austero. Vira tanta coisa nessa noite! Todos eles tinham visto! Cada sobrevivente era uma vitória. Cada um que salvavam, uma dádiva por que todos tinham rogado.

Digam-lhe que gosto muito dela pediu Maddy com fervor, após o que se virou para Bill, com o olhar transbordante de tudo o que sentiam um pelo outro E por um terrível instante, passou-lhe pela cabeça que aquilo talvez fosse um castigo por se ter apaixonado por ele sem dever. Afastou energicamente tal pensamento como se se tratasse de um pedregulho a tentar esmagá-la e ela não lho permitisse, tal como não deixara as paredes da minúscula toca esmagar Anne ou o bebé. Agora, era de Bill. Ficara viva para isso. Para ele E para Lizzie. Meteram-na então numa ambulância e, sem hesitar, Bill entrou com ela E quando ao partirem olhou para trás pela janela, Bill viu Rafe, que os observava e chorava Feliz pelos dois

 

Quando Maddy chegou ao hospital puseram-na numa unidade onde se encontravam os outros que haviam sido resgatados do centro comercial. Perguntou logo pelo bebé e foi-lhe respondido que estava bem. Os médicos ficaram estupefactos por ela não ter ossos partidos, nem danos internos. Sofrera um forte abalo, alguns arranhões, uma dúzia de contusões. Bill nem acreditava na sorte que Maddy tivera. Sentado a seu lado, contou-lhe o que conhecia do sucedido. Tudo o que até agora se sabia era que um grupo de militantes fizera explodir uma bomba. Numa mensagem ao presidente, apenas uma hora antes, diziam ser o seu protesto contra o governo. Parecia coisa de loucos. Tinham morto mais de trezentas pessoas, quase metade das quais crianças. Maddy estremeceu perante um horror tão absoluto.

Contou a Bill o que vira quando o tecto ruiu e o que fora estar metida numa cova com Anne e o bebé. A sua única esperança era que ambos sobrevivessem. Anne preocupava-a, mas nem por sombras tanto quanto Bill se preocupara com ela. Fora tão mau como o que passara com Margaret, e Maddy, complacente, comentou que não era justo ninguém sofrer duas vezes na vida o que ele sofrera.

Conversaram mais uns minutos, até os médicos quererem submetê-la a mais exames, apenas para confirmar os seus diagnósticos. Ambos concordaram então que Bill devia ir-se embora, para o caso de Jack vir vê-la. Bill não queria causar-lhe mais problemas.

Volto daqui a umas horas. Inclinou-se e beijou-a. Fica calma.

Tu também. Dorme um bocadinho. Beijou-o outra vez, e foi contrariada que lhe largou a mão. Mal ele saiu, os médicos levaram-na e completaram os exames. De regresso ao quarto, recebeu a visita de Rafe e uma equipa do noticiário. Fora Jack quem os mandara. Rafe não disse a Maddy a que ponto achava Jack um safado por não vir ele próprio vê-la, e não lhe fez qualquer pergunta acerca de Bill. Nem precisava. O que quer que se passasse entre eles, era óbvio para o produtor do seu programa que o homem a amava verdadeiramente, e agora igualmente óbvio que Maddy também o amava

Ela contou-lhes o que podia sobre o atentado, do seu ponto de vista e, perante a câmara, acentuou quanto Anne fora corajosa.

Tem dezasseis anos acrescentou, impressionada e orgulhosa. Notou então uma expressão estranha nos olhos de Rafe e, quando desviaram a câmara, perguntou-lhe: Ela está bem, não está, Rafe? Ouviste alguma coisa?

Rafe hesitou, teve vontade de lhe mentir, mas não foi capaz. De uma maneira ou de outra, acabaria por descobrir, e não parecia justo ocultar-lho.

O bebé vai ficar bom, Mad Mas não conseguiram trazer a mãe cá para fora

O que queres dizer com isso: não conseguiram trazer a mãe cá para fora? Quase gritava as palavras. Mantivera-a viva catorze horas e agora diziam-lhe que não tinham podido libertá-la? Era impossível. Recusava-se a acreditar.

Teriam tido de usar dinamite. Estava em coma quando te tiraram a ti, Maddy. Prestaram-lhe os primeiros socorros mas ela morreu passada meia hora. Tinha os pulmões esmagados e sangrava tanto internamente que os médicos da equipa disseram que nunca a teriam salvo. Foi um grito animal o som emitido por Maddy ao escutá-lo. Um som agudo, rouco, como se a rapariga fosse a sua própria filha. Não suportava pensar nisso. E o que ia ser do bebé? Rafe respondeu-lhe que não sabia nada a esse respeito. Depois deixaram-na, para que repousasse um pouco. Mas não sem antes Rafe lhe repetir, a soluçar, quanto se alegrava por ela ter escapado

Todos estavam felizes, por ela. Lizzie desatou a chorar quando Maddy lhe ligou para Memphis para lhe dizer que se encontrava bem. Lizzie ficara a pé toda a noite a ouvir as notícias e não vendo Maddy com as equipas de televisão, telefonara-lhe para casa, mas ninguém respondera. Pressentiu que fora apanhada pela derrocada.

Phyllis Armstrong telefonou-lhe para lhe dizer como ela e Jim se sentiam aliviados; e comentou a enormidade da tragédia, especialmente as mortes de todas aquelas crianças. Ambas choraram ao evocar isso e, depois de ela desligar, Maddy perguntou pelo bebé a uma enfermeira. Andy continuava no hospital, em observação e ficaria lá mais uns dias. As entidades de protecção à criança ainda não o tinham ido buscar. Depois de a enfermeira sair do quarto, Maddy levantou-se calmamente e foi ao berçário vê-lo. Parecia pouco mais do que recém-nascido e Maddy pediu a uma enfermeira licença para lhe pegar. As duas deram-lhe banho e pentearam-no. Era loiro, com grandes olhos azuis. Envolveram-no num cobertor azul. Estava imaculado e, ao olhá-lo, Maddy imaginou quanto Anne devia ser bonita. E não tardaria que ele fosse entregue ao mesmo destino que a sua filha tivera, sempre nas mãos de estranhos, passando de orfanatos para lares de acolhimento, sem pais autênticos para o amar. O coração de Maddy sangrava.

Nos seus braços, o pequenino olhou-a intensamente, e Maddy, que lhe cantava baixinho, ficou a pensar se ele reconheceria a sua voz. Um momento depois desinteressou-se e deixou-se adormecer ao colo dela. Maddy chorou, recordando Anne. Fora um estranho golpe do destino, o que as juntara no meio da derrocada. Deitou cuidadosamente o bebé no berço do hospital e voltou para o seu quarto, ainda a chorar por Anne.

Sentia-se mal e dorida, e incrivelmente cansada, mas não havia lesões graves. Que sorte tivera! A olhar pela janela, meditava em como era estranha a vida, que poupava uns, levava outros, sem qualquer ritmo ou razão aparentes. Era difícil adivinhar porque fora ela uma das felizardas, e Annie não. Teria tido tanta mais vida para viver do que Maddy! Reflectia ela sobre os mistérios da vida quando Jack entrou no quarto com uma expressão solene.

Acho que, desta vez, não preciso de perguntar-te onde passaste a noite. O “desta vez” era desnecessário, mas típico dele. Como vais, Maddy? Parecia, e estava embaraçado. De início, não acreditara realmente que a mulher se encontrasse no meio dos destroços. Soava-lhe a histeria, e ficou surpreendido ao saber que era verdade mas aliviado por ela ter sobrevivido. Deve ter sido terrível, não? comentou, inclinando-se para a beijar. Uma enfermeira trouxe para o quarto uma enorme jarra de flores, dos Armstrong.

Sim, foi bastante assustador concordou ela, pensativa. Jack era mestre em minimizar a importância dos factos. Mas aquilo era demasiado forte para ser menosprezado. Ficar catorze horas presa num edifício que explodira podia ser classificado como um enorme trauma, mesmo por Jack. Esteve quase a falar-lhe em Anne e no bebé, e em quanto isso a afectara, mas decidiu calar-se. Ele não compreenderia.

Todos se ralaram contigo. Eu imaginava que andasses por qualquer outro sítio. Não queria aceitar que estavas lá. Porque havias de estar?

Fui comprar papel para embrulhar os presentes esclareceu ela, simplesmente, fitando-o. Afastara-se para o lado oposto do quarto, como se precisasse de se manter à distância, e o mesmo fazia ela, para sua própria salvação.

Tu detestas centros comerciais retorquiu ele, como se isso alterasse agora os acontecimentos. Maddy sorriu-lhe.

Acho que agora sei porquê. São tremendamente perigosos disse, e ambos se riram. Mas a tensão entre eles era elevada. Até à noite anterior, Maddy não fizera ainda a sua escolha definitiva, mas mesmo presa nos destroços, tentando manter Anne viva, pensara nisso. Ocorreu-lhe que se sobrevivera àquilo por que passara, teria afrontado o maior terror da sua vida. Não precisava de mais nenhum, nem de impô-lo a si própria, ou voltar a correr riscos. Teria enfrentado o maior inimigo, olhado a morte nos olhos. Não havia razão para se castigar mais, e jurara que não o faria. E ao vê-lo ali, desajeitadamente sentado do outro lado do quarto, teve a certeza de que não podia continuar. Ele nem sequer tinha no coração amor suficiente para atravessar o quarto, apertá-la nos braços e dizer-lhe que a amava. Não podia. Provavelmente, amava-a tanto quanto lhe era possível, mas isso não significava nada. Como se sentisse que algo de estranho estava a passar-se entre eles Jack levantou-se, encaminhou-se para ela e entregou-lhe uma caixa muito bem embrulhada. Maddy recebeu-a sem dizer palavra, abriu-a e deparou-se-lhe uma pulseira estreita de diamantes. Era muito bonita, e agradeceu-lhe.

O que não sabia era que ele comprara duas no Blitz Carlton quando de lá saíra nessa manhã. Uma para ela, pelo que sofrera no centro comercial, a outra para a rapariga com quem passara a noite. Mas mesmo ignorando o facto, Maddy devolveu-lha com uma expressão séria.

Não posso aceitar. Desculpa, Jack disse, e os olhos dele estreitaram-se ao olhá-la. Sentia a presa escapar-se-lhe devagarinho e por um instante Maddy pensou que ele ia agarrá-la; mas tal não aconteceu.

Porque não?

Vou deixar-te. Surpreenderam-na as suas próprias palavras, mas não tanto como a Jack. Tinha o ar de ter sido esbofeteado por ela.

A que raio de propósito vem isso agora? Como de costume, cobria os seus próprios erros e fraquezas atacando-a.

Não posso continuar a fazer isto.

A fazer o quê? Andava de cá para lá, incapaz de simplesmente aceitar e deixá-la. Parecia um tigre à espreita da presa, mas não a assustava como dantes. Ali, sabia-se segura. Havia gente por toda a parte, mesmo atrás da porta do quarto. O que é que não podes fazer? Viver uma vida luxuosa? Ir à Europa duas vezes por ano? Viajar num jacto particular? Receber jóias sempre que eu sou suficientemente idiota para as comprar? Que vida ruim para uma pega de Knoxville! Voltava ao mesmo.

É esse o problema, Jack retorquiu ela, fatigada, e encostando-se à almofada enquanto o observava. Não sou uma pega de Knoxville. Nunca o fui. Nem quando era pobre e infeliz.

Tretas! Não me recordo de que estivesses no caminho certo, ou soubesses sequer o que isso era. Que diabo, já em miúda eras uma pega. Pensa na Lizzie.

Sim, penso nela. É uma garota formidável, uma pessoa decente apesar de algumas faltas bem graves que suportou, por minha culpa. Estou em dívida para com ela. E para comigo própria.

Deves-me tudo a mim. E espero que estejas consciente de que ficas sem emprego se me deixares. Os seus olhos tinham um brilho de aço.

É possível. Os meus advogados que tratem disso, Jack. Tenho um contrato com a estação. Não podes correr comigo sem justa causa ou uma indemnização. Tornara-se mais corajosa e mais esperta ao lutar pela vida nos escombros. Perguntava-se como podia o marido pensar que as palavras que pronunciava a convenceriam a ficar com ele. Em tempos, podiam ter convencido, por puro medo. Era essa a parte triste.

Não me ameaces. Não vais arrancar-me um cêntimo com essas artimanhas. E não te esqueças do contrato pré-nupcial que assinaste. Sais de minha casa de mãos a abanar É tudo meu, até as tuas cuecas. Viras-te contra mim Maddy, e tudo o que vai restar-te é a camisa de noite do hospital que tens vestida.

O que queres de mim? interrogou ela tristemente. Porque queres que eu fique? Tu odeias-me.

Tenho todo o direito de te odiar. Mentes-me. Traíste-me. Sei que tens um namorado que te telefona todos os dias. Que raio de imbecil pensas que eu sou? Imbecil, não. Desprezível. Mas não lho disse. Era corajosa, não era parva.

Não é um namorado. Até agora, temos sido apenas amigos. Nunca te traí. E a única mentira que alguma vez te disse foi acerca da Lizzie

E é bastante grande! Mas estou disposto a perdoar-te. A vítima sou eu, não és tu. Sou o único lixado nesta história, e continuo disposto a remediar as coisas contigo. Não sabes a sorte que tens. Espera até estares esfomeada e de regresso a qualquer buraco sujo em Memphis, ou Knoxville, ou onde quer que vás parar com a tua bastarda. Vais implorar-me que te deixe voltar. Aproximava-se lentamente da cama, Maddy reflectia no que iria ele fazer. Havia nos seus olhos uma expressão que nunca lhe vira e lembrou-se instantaneamente de tudo o que lhe haviam dito no grupo das mulheres maltratadas. Quando sentisse fugir-lhe a presa, faria tudo o que pudesse para a segurar. Fosse o que fosse. Tu não vais deixar-me, Mad. Maddy tremia. Não tens tomates para tanto. És demasiado esperta para o fazer. Não vais atirar pela janela fora uma vida dourada e toda a tua carreira, pois não?

Alternava adulação e terror, e havia uma ameaça implícita no modo como a olhava. Talvez tenhas batido com a cabeça a noite passada. Talvez tenha sido o que te aconteceu. Talvez eu deva insuflar-te algum bom senso para te obrigar a pensar de novo correctamente. O que achas, Maddy? Enquanto ele falava, algo crescia dentro dela; sentiu que se ele lhe pusesse a mão em cima, o matava. Não ia permitir-lhe repetir o habitual, obrigá-la a recuar e torturá-la e humilhá-la e convencê-la de que era lixo e merecia todos os insultos e acusações que lhe lançasse. E a expressão dos seus olhos tê-lo-ia apavorado, se a percebesse.

Se me tocas, aqui ou em qualquer outro lugar, juro que te mato. Aturei-te tudo. Espezinhaste-me, mas acabou-se, Jack. Não volto atrás. Arranja outra pessoa para te aparar o lixo, para agredires, para torturares.

Ah, olhem a rapariga crescida a ameaçar o seu papá! Pobre criancinha! Meto-te medo, Mad? Riu-se-lhe na cara, mas ela saíra da cama e enfrentava-o. Chegara o momento, o jogo terminara.

Não, não me metes medo, meu filho da mãe. Enojas-me. Fora do meu quarto, Jack. Ou eu chamo a segurança e és levado à força.

De pé, Jack fitou-a por um longo momento. Depois, aproximou-se tanto que ela poderia ter-lhe contado os pêlos das sobrancelhas, se lhe apetecesse.

Oxalá morras, grande prostituta. E hás-de morrer. Em breve, espero. Mereces. Maddy não poderia dizer se se tratava ou não de uma ameaça directa, o que a assustou, mas não ao ponto de a fazer mudar de ideias. Ao vê-lo girar nos calcanhares e sair do quarto, por um instante insano quis detê-lo e pedir-lhe perdão. Mas sabia que não podia. Era a sua parte doentia a tentar fazê-la recuar, sentir-se culpada, desejar que ele a amasse a qualquer preço, fosse qual fosse o sofrimento por que viesse a passar. Todavia, essa parte já não a controlava. Viu-o sair, silenciosa, sem se mexer. E depois da partida dele, irrompeu em soluços de dor, de perda, de culpa. Por muito que o odiasse e ele fosse diabólico, com uma malignidade que lhe invadia a alma, por muito fundo que o tivesse arrancado de dentro de si, sabia que nunca o esqueceria, e que ele jamais iria perdoar-lhe.

 

No dia seguinte a terem-na salvo, Maddy foi de novo ao berçário para tornar a ver Andy e informaram-na de que a assistente social viera visitá-lo nessa manhã. Iam levá-lo no dia seguinte para um lar de acolhimento, até lhe arranjarem colocação a longo prazo. Voltou para o quarto com o coração oprimido. Sabia que nunca mais o veria, como em tempos o soubera com relação a Lizzie Mas, com esta, Deus dera-lhe uma segunda oportunidade. Andy e a mãe teriam entrado na sua vida por uma razão determinada? Interrogava-se ela

Pensou nisso toda a tarde, falou no assunto a Bill quando ele chegou. Soubera da visita de Jack na véspera e ficara simultaneamente aliviado e preocupado. Não voltara nesse dia ao hospital para não lhe provocar problemas. Agora que Jack sabia que ela ia deixá-lo, não podia adivinhar-se qual seria a sua reacção, e Maddy tinha de redobrar de cautela. Ia a casa buscar as suas coisas quando deixasse o hospital e concordou em fazer-se acompanhar. Levaria um segurança da estação. Bill prometeu-lhe comprar roupas para poder sair do hospital. Jack não a assustava. Sentia-se surpreendentemente livre E embora a penalizasse ter-lhe dito o que dissera, surpreendia-a o facto de não se considerar culpada. Repeti-lo-ia, se fosse caso disso. Fora posta de sobreaviso Mas sabia que seguira o caminho certo. Jack era um cancro que a teria morto se ela lho permitisse

Obcecava-a o bebé de Anne

Sei que parece maluquice admitiu, ao abordar o assunto com Bill, mas eu prometi-lhe tomar conta dele. Acho que devia, pelo menos, informar a assistente social de que gostaria de saber onde vão colocá-lo. Bill achou boa a ideia, e recomeçaram a conversar sobre a catástrofe no centro comercial. Um dos executantes fora apanhado. Era um rapaz de vinte anos com uma história de distúrbios mentais e registo criminal. Segundo parecia, agira em conjunto com dois outros, ainda não encontrados. Por toda a parte havia serviços fúnebres pelas vítimas, e ser quase Natal piorava o quadro. Bill dissera-lhe que estava a pensar em não ir para Vermont, ficar na cidade com ela.

Não te preocupes comigo. Eu fico perfeitamente. Sentia-se surpreendentemente bem, com excepção de umas tantas equimoses e dores, e já decidira mudar-se para o apartamento de Lizzie com ela. A filha chegaria dentro de uma semana, passariam o Natal juntas. Não se importava de partilhar um quarto com Lizzie, pelo menos nos primeiros tempos.

Podes ficar comigo, se quiseres sugeriu ele, esperançoso. Maddy sorria quando Bill a beijou. Fora extraordinário para ela desde a calamidade no centro; aliás, já o era muito antes.

Obrigada pela oferta, mas não tenho a certeza de que estejas preparado para ter uma companheira de quarto.

Não era exactamente isso o que eu tinha em mente explicou ele, corando ao de leve. Maddy adorava a sua gentileza, a sua amabilidade para com ela. Tinham pela frente muito em que pensar e muito a descobrir mutuamente. Não queria apressar as coisas. Precisava de se refazer de uma vida de agressão, nove anos de Jack, e Bill ainda recuperava do desgosto da perda de Margaret. Do que não restavam dúvidas era que cada um deles tinha agora espaço para o outro na sua vida. Só o que Maddy não sabia era como enquadrar Andy, embora soubesse que queria criar um lugar para ele, mesmo que apenas com visitas ocasionais, mantendo assim a promessa que fizera à mãe. Não ia esquecê-la.

E nessa noite falou no caso a Lizzie, pelo telefone. Lizzie ficara tão apavorada pela explosão no centro, que ligava à mãe várias vezes por dia.

Porque não o adopta? perguntou, com a simplicidade dos seus dezanove anos. Maddy retorquiu-lhe que era ridículo. Agora, não tinha marido, talvez tivesse perdido o emprego, nem sequer possuía um apartamento seu. Todavia, depois de desligar, a ideia começou a rodopiar na sua cabeça. E às três da manhã, sem ainda ter adormecido, foi ao berçário; sentou-se numa cadeira de baloiço e pegou-lhe. O bebé dormia calmamente nos seus braços quando uma enfermeira entrou e a aconselhou a voltar para a cama. Mas não lhe era possível. Uma força mais poderosa do que ela empurrava-a para a criança, era irresistível.

Esperava, nervosa, na entrada quando de manhã a assistente social foi buscá-lo. Pediu-lhe uns minutos de atenção. Explicou-lhe a situação, e a mulher mostrou-se interessada mas estupefacta.

Viveu sem dúvida um momento muito emocionante, Mistress Hunter. Todas as vossas vidas corriam perigo. Ninguém esperaria de si que cumprisse uma promessa dessas. É uma decisão importantíssima.

Eu sei que é. Mas não é só isso... não sei o que é... acho que me apaixonei por ele.

O facto de estar sozinha não é uma desvantagem. Embora o bebé pudesse vir a revelar-se um fardo para si disse-lhe a assistente. Maddy omitira que podia perder o emprego; mas tinha dinheiro suficiente em seu nome para viver bem durante bastante tempo. Fora cautelosa ao longo dos anos, juntara uma boa maquia para ela e Lizzie, e até para um bebé. Está a dizer-me que quer adoptá-lo?

Acho que sim. Inundou-a uma onda de amor pelo pequeno. A ela, parecia-lhe o rumo correcto. Não fazia a mínima ideia do que Bill sentiria. Em qualquer caso, não podia renunciar aos seus sonhos por causa dele. Tinha de fazer o que para si era correcto. Se resultasse para ambos, seria uma bênção para todos, não só para ela e para o bebé. Mas queria ao menos pedir a sua opinião. Quanto tempo tenho para decidir?

Algum. Vamos colocá-lo num lar de acolhimento provisório. E uma família que já nos tem ajudado. Não estão interessados em adopção. Fazem-no de coração aberto, por razões religiosas. Mas um bebé como este vai ser adoptado. É saudável, de raça branca, tem oito semanas. O ideal para quem quer adoptar. Não há muitos como ele actualmente.

Deixe-me pensar no assunto. Terei alguma prioridade?

Desde que não haja familiares que se oponham, pode ser seu muito rapidamente, Mistress Hunter. Maddy acenou afirmativamente e passados poucos minutos a assistente social saiu do quarto, depois de dar a Maddy o seu cartão. Quando voltou ao berçário, apertou-se-lhe o coração por não o ver lá. Foi ainda triste que Bill a encontrou ao ir visitá-la um pouco mais tarde. Comprara-lhe umas calças cinzentas, uma camisola azul, um par de sandálias, roupa interior, um casaco, e alguns artigos de toilete e maquilhagem, além de uma camisa de noite

Maddy felicitou-o pela sua capacidade de observação, tudo lhe servia perfeitamente. Sairia do hospital no dia seguinte e concordara em ficar com ele até o apartamento de Lizzie estar disponível. Achava que levaria uma semana. Queria ir buscar as suas coisas a casa de Jack e precisava de regressar ao trabalho. Tinha imenso que fazer. Sentou-se a conversar com Bill sobre tudo isso e então veio à baila o bebé. Disse-lhe que estava a pensar em adoptá-lo. Bill ficou atónito

Estás. Tens a certeza de que é o que queres, Maddy.

Certeza absoluta, não É por isso que estou a falar contigo. Não sei muito bem se é a ideia mais louca que alguma vez me passou pela cabeça, ou a melhor coisa que já fiz ou que pensei fazer. Sinceramente, não sei

A melhor coisa que alguma vez fizeste foi deixar o Jack Hunter afirmou ele, peremptório. Esta poderia ser a segunda melhor coisa, depois da Lizzie. Sorriu-lhe. Devo dizer que me apanhaste desprevenido, Maddy. O facto sublinhava quanto era mais velho do que ela. Amara os seus filhos em crianças, amava agora os seus netos, mas encarregar-se de um bebé da idade daquele era mais do que esperara, apesar de ser louco pela filha dela. Não sei bem o que responder-te. Estava a ser sincero

Nem eu. Não sei se estou a perguntar-te ou a informar-te ou se qualquer das hipóteses é relevante. Não fazemos por enquanto a mínima ideia de como as coisas irão correr entre nós, se não resultará, por muito que nos amemos. Também ela era sincera, pelo que Bill a admirou E o que dissera era verdade. Estava apaixonado, mas se iria ser um relacionamento para toda a vida, ou até mesmo se resultaria a curto prazo, nenhum dos dois poderia garanti-lo. Estavam apenas no início. Nem sequer tinham ainda feito amor, apesar de a perspectiva ser sem dúvida atraente. Um bebé era um compromisso muito sério. Não houve todavia qualquer discussão entre ambos. Toda a minha vida esforçou-se ela por explicar-lhe, as pessoas me disseram o que fazer, nesta área e em todas as outras. Os meus pais obrigaram-me a renunciar à Lizzie. O Bobby Joe obrigou-me ao princípio a fazer abortos, depois fi-los porque não queria filhos dele. O Jack proibiu-me de ter filhos, e laqueei as trompas. Depois, proibiu-me de ver a Lizzie. Agora, surge este bebé e eu quero ter a certeza de que faço o que tem de ser feito, o que para mim é correcto, não apenas para ti Porque se eu desistir dele para te ter a ti, talvez fique sempre com o sentimento de que desisti de uma coisa de que não devia ter desistido. Por outro lado, não quero perder-te por causa de um bebé que afinal não é meu. Percebes o que quero dizer. Era óbvio que estava confusa. Ele sorriu-lhe, sentou-se a seu lado na cama, enlaçou-a com um braço e puxou-a para si

Sim, percebo o que queres dizer Embora se afigure um bocado complicado. Não quero que renuncies seja ao que for que aches bom para ti. Um dia odiar-me-ias por isso, ou sentir-te-ias defraudada Especialmente porque nunca tiveste um bebé desde a Lizzie, não podes ter nenhum, além de teres perdido dezanove anos da vida dela. Eu tive os meus filhos. Não tenho o direito de te privar desse gosto. Era o que Jack deveria ter-lhe dito há sete anos, quando casara com ela, mas não dissera. Não tinham aliás sido honestos um com o outro, agora era totalmente diferente. Bill não tinha nada de nada em comum com Jack Hunter E a mulher que ela era agora também nada tinha a ver com aquela que casara com Jack. Por outro lado continuou Bill, querendo ser escrupulosamente sincero com ela, para não a iludir, não sei se sou capaz de recuar tantos anos no calendário, ou mesmo se quero fazê-lo. Sou muito mais velho do que tu, Maddy. Estás na idade de ter bebés Eu, na de ter netos. é um facto que tenho de enfrentar, e em que ambos devemos pensar. Nem sequer acho justo para um bebé ter um pai com a minha idade. Entristeceu-a ouvi-lo, e não concordou com ele, mas também não queria impingir-lhe uma paternidade

Não há nada de errado em ter um pai da tua idade contrapôs, convicta. Serias encantador com um bebé. Ou uma criança. Ou seja com quem for. De qualquer modo, era uma conversa disparatada, nem sequer ainda haviam falado em casamento. Estamos a pôr o carro adiante dos bois, não estamos? Era verdade mas ela tinha de tomar uma decisão antes que alguém adoptasse o bebé, dando origem a uma disputa por parte de Maddy. Sabia que não iria passar a vida a ansiar por um bebé. Mas este era diferente. Era o produto de um acontecimento que alterara tudo. O aparecimento inesperado de Andy no seu caminho parecia obra do destino.

O que desejas tu fazer? perguntou-lhe Bill, simplesmente. O que farias se eu não existisse?

Adoptava-o respondeu sem hesitação.

Então, adopta. Não podes viver a tua vida em função de outra pessoa, Maddy. Foi o que fizeste sempre. Eu posso morrer amanhã ou na semana que vem. Podemos concluir que somos ambos pessoas formidáveis mas que é preferível sermos amigos do que amantes, embora eu espere que tal não aconteça. Obedece ao teu coração, Maddy. Se for certo para nós, acabará por resultar. E quem sabe, talvez eu venha a gostar imenso de ter um garoto para jogar basebol comigo na minha segunda infância. Perante a forma como se expressou, aumentou o seu amor por ele. E não discordava dos seus argumentos. Não desejava renunciar a uma coisa que talvez lhe estivesse destinada. Sentia que havia uma razão para Deus lhe ter dado uma segunda oportunidade, não só com Bill, mas com Lizzie e com aquele bebé.

Achas que sou completamente louca se o adoptar? Nem sequer sei se tenho emprego. O Jack ameaçou despedir-me.

Esse não é o problema. Arranjas emprego em cinco minutos, se perderes o actual. A questão reside em quereres ou não tomar a teu cargo o filho de outra pessoa, e assumir uma responsabilidade para o resto da tua vida. Tens de pesar bem os prós e os contras.

Pois tenho. Bill conhecia-a o suficiente para saber que ela não se dicidiria de ânimo leve.

Respondendo à tua pergunta, não, não te acho louca.

Corajosa. E jovem. E enérgica E incrivelmente digna e decente e cheia de amor e de devoção. Mas não louca. Era tudo o que ela precisava de ouvir; ajudou-a na sua decisão

Deitada e ainda acordada, pensou no caso toda a noite, e de manhã telefonou à assistente social e comunicou-lhe que queria adoptar Andy. A assistente social felicitou-a, dizendo-lhe que ia tratar dos papéis. Foi um momento capital na vida de Maddy, que começou por chorar de alegria e alívio e depois telefonou primeiro a Bill, a seguir a Lizzie. Ambos se mostraram felizes por ela, embora Maddy conhecesse as reservas dele. Mas se o objectivo consistia em as coisas resultarem entre ambos, não podia abandonar os sonhos da sua vida por causa dele Nem ele quereria que o fizesse. Só o que não sabia era se iria apetecer-lhe treinar uma equipa infantil de basebol aos setenta anos, e não podia criticá-lo por isso. Tudo o que podia era esperar que a adopção viesse a revelar-se uma bênção para todos, não só para ela e Bill, mas especialmente para Andy

Quando nesse dia saiu do hospital, vestia a roupa que Bill lhe comprara e dirigiu-se directamente a casa dele. Surpreendia-a sentir-se ainda tão cansada Embora não tendo ficado seriamente magoada, o trauma da explosão roubara-lhe qualquer coisa. Mesmo assim, ligou ao produtor e prometeu voltar ao trabalho na segunda-feira seguinte. Elliot telefonara-lhe várias vezes, por respeito pelo que lhe acontecera e grato por ela ter sobrevivido. Dava a impressão de que toda a gente que conhecera na vida lhe mandara flores para o hospital. Era um lenitivo estar em paz em casa de Bill. No dia seguinte, iria buscar as suas coisas apesar das ameaças de Jack de que não ficaria com nada. Contratara um segurança seu conhecido para a acompanhar. Não tivera notícia alguma de Jack desde que lhe dissera que ia deixá-lo

E nessa noite, ela e Bill sentaram-se diante da lareira e conversaram horas a fio, enquanto ouviam música. Ele fizera-lhe o jantar e servira-o à luz de velas. Mimava-a, acarinhava-a. Nenhum deles queria acreditar na sua boa sorte. De repente, Maddy estava instalada em casa dele, e livre de Jack. Tinham todo um mundo novo pela frente. Que estranho para Maddy! De um momento para o outro, era como se Jack não existisse, como se toda a vida que haviam vivido juntos se tivesse desvanecido.

Acho que o grupo das mulheres maltratadas funcionou mesmo. Sorriu-lhe. Agora, sou uma rapariga crescida. Mas, de tempos a tempos, o passado ainda a fazia vibrar. Preocupava-se com Jack, lamentava-o, receava que o tivesse deprimido o que lhe dissera, achava-se muito ingrata para com ele. Não tinha maneira alguma de saber se ele passara o fim-de-semana com uma rapariga de vinte e dois anos que conhecera e com quem dormira em Las Vegas. Havia muitas coisas que Maddy não sabia a seu respeito, e jamais viria a saber.

Foi preciso fazer explodir todo um centro comercial para te chamar à razão brincou Bill. Porém, os dois sabiam quanto ele levara o caso a sério. Ficara desesperado ao ver as tragédias que se desenrolavam à sua volta, enquanto esperava que a resgatassem. Fora uma coisa tão chocante que ambos sentiam a necessidade de aligeirar um pouco o drama. A propósito, quando te dão o Andy?

Ainda não sei. Vão telefonar-me. E então, fez-lhe uma pergunta em que matutava desde o momento em que decidira adoptar Andy. Aceitas ser padrinho dele, se não quiseres ser mais do que isso? Olhava-o muito séria; Bill tomou-a nos braços.

Será uma honra. E, depois de a beijar, recordou-lhe: Eu não disse que “não seria mais do que isso” para ele. Ainda temos de acertar as agulhas. Mas, se vamos ter um bebé, Maddy, há alguns pormenores preliminares a tratar. Maddy riu-se, percebendo de imediato onde ele queria chegar.

Puseram os pratos na máquina, apagaram as luzes, subiram calmamente as escadas juntos e entraram no quarto dele. Maddy colocara discretamente os seus poucos haveres no quarto de hóspedes, não querendo que Bill se sentisse pressionado. Por tudo o que já lhe contara, sabia que não houvera outra mulher na sua vida desde a morte de Margaret, há pouco mais de um ano. O aniversário fora pungente para ele, mas de então para cá parecera-lhe mais liberto, com o coração mais leve.

Maddy sentou-se na cama, conversaram um bocado sobre o centro comercial, os filhos dele, Jack e tudo aquilo por que ela passara. Não tinham segredos um para o outro. Bill olhou-a com um olhar repleto de amor e devagarinho puxou-a para si.

Sinto-me outra vez um garoto quando estou contigo murmurou. Uma forma de lhe dizer que estava assustado, mas também ela o estava, embora não muito. Sabia que dele nada tinha a recear.

E quando se beijaram, todos os fantasmas do passado de ambos se dissiparam, ou pelo menos foram momentaneamente afastados, tanto os bons como os maus. Era como começar uma nova vida com um homem há tanto tempo seu amigo que já não conseguia imaginar a vida sem ele.

Tudo aconteceu com naturalidade, com à-vontade; deslizaram lado a lado na cama, ficaram deitados nos braços um do outro como se sempre tivessem estado juntos. E no fim, ele abraçou-a, sorriu-lhe e repetiu-lhe quanto a amava.

Também eu te amo, Bill sussurrou Maddy, colada a ele. Ao adormecerem, enlaçados, sentiam-se abençoados. Fora um longo percurso de duas vidas até se encontrarem, mas a viagem, e as tristezas, e a dor e até as perdas que haviam sofrido tinham valido a pena para ambos.

 

O segurança que Maddy contratara encontrou-se com ela em casa de Bill no dia seguinte. Maddy explicou-lhe que tudo o que pretendia fazer era ir à casa que partilhara com Jack buscar as suas roupas. Tinha lá suficientes malas vazias para as guardar e alugara uma carrinha para as transportar. Ia pô-las no apartamento de Lizzie. As obras de arte, a mobília, as recordações, em suma tudo o resto, deixava-as a Jack. Não queria senão as roupas e objectos pessoais. Parecia correcto e simples. Até chegarem à casa.

O segurança conduzia a carrinha. Bill oferecera-se para também ir, mas ela não achou que fosse correcto e garantiu-lhe que não tinha razões para se preocupar. Imaginava que lhe levaria poucas horas e partiram quando sabia que Jack já saíra para o trabalho. Porém, mal chegou à porta da frente e rodou a chave na fechadura, apercebeu-se de algo de estranho. A porta não abriu. A chave adaptava-se perfeitamente, mas ao ser rodada não abria. Voltou a tentar, pensando que a fechadura estivesse avariada. O segurança também tentou. Então, olhou para ela e disse-lhe que as fechaduras tinham sido mudadas. A chave dela não servia para nada.

Ainda de pé do lado de fora da casa, serviu-se do telemóvel para ligar a Jack, cuja secretária lhe respondeu que ia estabelecer de imediato a ligação. Por um momento, receara que ele não quisesse falar-lhe.

Eu estou em casa, para buscar as minhas coisas explicou, e a minha chave não funciona. Presumo que mudaste as fechaduras. Posso passar pelo escritório a buscar a chave? Depois, vou levar-ta. O pedido era razoável e a voz soava equilibrada e jovial, apesar de lhe tremerem as mãos.

Quais tuas coisas? interrogou ele num tom neutro. Não tens “coisas” nenhumas em minha casa. Estranha afirmação!

Só quero tirar as minhas roupas, Jack. Não me refiro a mais nada. Podes ficar com o resto. Também tinha de ir buscar as roupas que deixara na Virgínia. E as minhas jóias, obviamente Mais nada, o resto é teu

Não és dona da roupa nem das jóias. O dono sou eu. Tu não possuis nada, Mad, excepto aquilo que tiveres agora em cima do corpo. Fui eu quem pagou É tudo meu. Tal como costumava dizer-lhe que era dono dela. Maddy possuía roupa e jóias que fora adquirindo durante os últimos sete anos e não havia razão para não poder retirá-las, excepto se ele pretendia vingar-se.

O que vais fazer com isso? perguntou-lhe calmamente.

Mandei as jóias para a Sotheby’s há dois dias e chamei a Legião da Boa Vontade para levar as tuas coisas no dia em que me comunicaste que te ias embora. Disse-lhes que as destruíssem.

Fizeste isso?

Claro que fiz. Não me parece que quisesses que outras pessoas vestissem o que era teu, Mad respondeu, como se lhe tivesse prestado um grande favor. Já não há absolutamente nada teu dentro de casa. E as jóias nem sequer representavam um grande investimento. Nunca lhe dera nenhuma realmente valiosa, apenas algumas coisas bonitas de que ela gostava e que não lhe renderiam uma fortuna quando as vendesse.

Como pudeste fazer semelhante coisa? Era um autêntico sacana. Maddy continuava em frente à casa, estupefacta pela mesquinhez do marido

Eu avisei-te, Maddy. Não te metas comigo Se queres pôr-te a andar, pagas o preço.

Já paguei, com os anos em que vivi contigo, Jack replicou ela calmamente, mas toda a tremer. Tenho a sensação de ter sido roubada

Ainda não viste nada advertiu-a Jack. E num tom tão maldoso que a assustou.

Óptimo Desligou e voltou para casa de Bill. Encontrou-o lá, a trabalhar. Ficou surpreso ao vê-la regressar tão depressa.

O que aconteceu? O Jack já tinha emalado tudo antes de tu lá ires?

Bem podes dizê-lo. mandou destruir tudo. Mudou as fechaduras, nem entrei. Telefonei-lhe. Diz que tem as jóias para venda na Sotheby’s e que mandou a Legião da Boa Vontade destruir todas as minhas roupas e objectos pessoais.

Era como se um incêndio tivesse dado cabo de tudo. Nada lhe restara. Era tão cruel e tão mesquinho!

O filho da mãe! Ele que se lixe, Maddy. Podes comprar coisas novas.

Acho que sim. Mas de certo modo sentia-se violada. E iria ser caro refazer todo um guarda-roupa.

Abalara-a a acção de Jack, mas mesmo assim conseguiram ultrapassar o facto e tiveram um fim-de-semana estupendo que lhe incutiu forças para um inevitável encontro com o marido quando voltasse ao trabalho na segunda-feira. Sabia que seria difícil trabalhar com ele, mas adorava a sua profissão e não queria perder o lugar.

Acho que devias despedir-te aconselhou-a Bill sensatamente. Há montes de outras estações de televisão que gostariam de te ter lá.

Preferia manter o status quo por agora. Talvez não estivesse a ser sensata; mas ele não a contrariou. Já sofrera traumas bastantes para uma semana, entre o atentado e a perda a favor do seu próximo ex-marido de tudo o que possuía. Não estava todavia minimamente preparada para o que se lhe deparou quando chegou ao local de trabalho na segunda-feira. Bill, que tinha uma reunião com o seu editor, deu-lhe boleia e ela encaminhou-se para a recepção com o distintivo posto e um sorriso corajoso, preparando-se para atravessar o detector de metais. E viu de imediato, pelo canto do olho, o chefe dos seguranças à sua espera. O homem chamou-a de parte e explicou-lhe que não podia subir.

Porquê? Haveria alguma simulação de incêndio ou alguma ameaça de bomba, ou até uma ameaça contra si?

Não está autorizada. Ordens de Mister Hunter. Desculpe-me, minha senhora, mas não pode entrar no edifício.

Não estava apenas despedida. Era persona non grata. Se o guarda lhe tivesse batido, não a deixaria mais atordoada do que com as palavras que acabara de dizer-lhe. Fora-lhe fechada a porta na cara. Estava sem trabalho, sem roupas, sem sorte, e por um instante sentiu o pânico que ele quisera que experimentasse. Só lhe restava um bilhete para Knoxville num autocarro da Greyhound

Respirou fundo ao sair e jurou a si própria que, fizesse ele o que fizesse, não a destruiria. Estava a ser castigada por tê-lo deixado. Afinal, não fizera nada de mal. Depois de tudo o que ele levara a cabo contra ela, tinha todo o direito à sua liberdade. Mas E se não arranjasse outro emprego, ou se Bill se cansasse dela, ou se Jack estivesse certo e ela fosse desprezível. Sem pensar, meteu pernas a caminho e voltou a pé para casa de Bill, o que lhe levou uma hora. Quando chegou, estava exausta

Ele já regressara e olhou para ela, branca como a cal. Rompeu em soluços mal o viu e contou-lhe o sucedido

Acalma-te, acalma-te, Maddy Vai correr tudo bem. O Jack não pode atingir-te de modo algum

Pode, sim. Vou parar à sarjeta, tal como ele disse E tenho de voltar para Knoxville. Palavras totalmente irracionais, mas Maddy passara por muita coisa num curto espaço de tempo e entrara num pânico absoluto. Tinha dinheiro no banco, que poupara do seu ordenado sem dizer a Jack, e Bill estava ao seu lado, mas, a despeito de tudo isso, sentia-se órfã, precisamente como Jack planeara. Sabia exactamente quais os sentimentos que a avassalariam, a que ponto ficaria destruída, aterrorizada, e era isso exactamente o que queria. Agora era a guerra

Não vais para Knoxville. Não vais a parte nenhuma, excepto a um advogado E não dos do Jack. Deixou-a acalmar e telefonou a um. Juntos, foram consultá-lo nessa tarde. Algumas coisas o advogado não podia fazer, por exemplo recuperar as roupas dela Mas havia imensas outras possíveis, para obrigar Jack a cumprir o contrato. Jack ia ter de pagar-lhe tudo o que destruíra, explicou ele, ia ter de proceder a uma divisão de bens justa e indemnizá-la por tê-la expulso da estação. Falou mesmo em perdas e danos de milhões por não cumprimento de contrato, deixando Maddy boquiaberta. Não era como de início temera, nem uma desamparada, nem uma vítima dele. Jack ia ter de pagar caro pelo que andava a fazer, e a má publicidade que o caso lhe acarretaria também não era de molde a beneficiá-lo

É assim, Mistress Hunter. A senhora pode fazer bem pior do que ele fez. Ele pode aborrecê-la. Pode magoá-la pessoalmente, mas não pode ir mais longe. É um alvo fácil e uma figura pública. Vamos obter dele um ajuste de contas muito vantajoso, ou então o pagamento de perdas e danos, através de um júri. Maddy sorriu-lhe como uma criança com um brinquedo novo no Natal e, quando saíram do escritório do advogado, ergueu para Bill um olhar embaraçado. Sentia-se mais segura do que nunca, com ele a seu lado.

Desculpa ter-me ido abaixo esta manhã. É que fiquei tão assustada, e foi tão horrível quando o guarda me disse que tinha de sair do edifício!

Claro! Foi torpe da parte do Jack e por isso o fez. E não te iludas. Ainda não acabou. Ele vai chatear-te o mais que puder, enquanto o tribunal lho permitir. Talvez mesmo depois continue a tentar. Tens de te revestir de uma couraça.

Eu sei. O facto deprimia-a. Uma coisa eram as palavras, outra, passar pelas situações.

No dia seguinte, a guerra continuou. Maddy e Bill tomavam calmamente o pequeno-almoço e liam o jornal quando de súbito ela suspirou. Bill fitou-a.

O que há? Com os olhos marejados de lágrimas, Maddy passou-lhe o jornal. Na página doze, um pequeno artigo informava que Maddy tivera de abandonar o lugar de apresentadora do seu programa em consequência de um esgotamento nervoso que sofrera depois de ter estado presa catorze horas no centro comercial, objecto de atentado.

Meu Deus! exclamou Bill, que leu cuidadosamente o artigo e depois telefonou ao advogado. Este disse-lhes, quando ao meio-dia respondeu ao telefonema, que podiam processar Jack por difamação. Mas era agora claro que Jack Hunter lançaria mão de tudo, e que o seu único objectivo na vida era descarregar a sua vingança sobre Maddy.

Na semana seguinte, Maddy voltou ao grupo das mulheres maltratadas e contou-lhes o que ele andara a fazer-lhe. Não as surpreendeu. Avisaram-na de que iria ser pior e que ela precisava de se precaver também fisicamente. A chefe do grupo descreveu-lhe o comportamento sociopata, que assentava a Jack como uma luva. Um homem sem moral nem consciência que, quando lhe convinha, dava a volta às coisas e se imaginava a si próprio como vítima. A descrição perfeita de Jack. À noite reproduziu toda a conversa a Bill, que concordou plenamente com elas

Quero que te acauteles quando eu não estiver cá, Maddy Vou ficar preocupado de morte e gostava que viesses comigo. Insistira em que ele fosse passar o Natal a Vermont, como planeado, partia dentro de dias. Maddy queria ficar na cidade para instalar Lizzie no seu novo apartamento. Lizzie chegava no dia da partida de Bill E continuava a pensar em mudar-se para casa da filha Embora adorasse estar com Bill, não queria que este se sentisse pressionado ou amarrado. Além disso, ainda esperava notícias do bebé, que era a última coisa de que ele precisava para quebrar a sua existência pacífica. Queria aproximar-se de Bill devagarinho

Fico bem sossegou-o. Já não pensava que Jack fosse atacá-la fisicamente. Andava demasiado ocupado a incomodá-la por meios que a prejudicassem seriamente

O advogado fez com que o jornal publicasse um desmentido da notícia dada e depressa correu que ela fora despedida pelo seu ex-marido, num ataque de fúria. Passados dois dias, recebia telefonemas das três estações mais importantes, e com ofertas excepcionalmente vantajosas. Maddy quis algum tempo para pensar. Desejava tomar a decisão certa e não agir à pressa. Mas pelo menos estava segura de que não ia ficar desempregada para sempre. As alusões dele a acampamentos de atrelados e quedas na sarjeta não passavam de outra forma de tortura

No dia em que Bill partiu, foi ao apartamento de Lizzie pôr em ordem as coisas que comprara para ela e, quando à noite a filha chegou, achou-o alegre, acolhedor e arrumado na perfeição. Ficou radiante por ir partilhá-lo com a mãe. Achou horrível o que Jack lhe fizera Mas o facto de tentar afastar Lizzie de Maddy era para esta o seu pior crime. A lista das coisas odiosas por que a obrigara a passar era interminável, todas agora muito claras para Maddy. Embaraçava-a pensar nas imensas agressões que lhe permitira. A verdade é que sempre julgara, secretamente, que as merecia, e Jack sabia isso. Fornecera-lhe todas as armas de que ele precisava para a ferir.

Passou horas a conversar sobre o assunto com Lizzie. Bill telefonou-lhe de Vermont logo que lá chegou. Já tinha saudades dela

Porque não vêm passar o Natal?

Não quero intrometer-me no meio dos teus filhos

Eles adoravam ter-te cá, Maddy

Que tal o dia a seguir ao Natal? Era uma proposta razoável e Lizzie estava ansiosa por aprender a esquiar. Bill exultou com a sugestão, e Lizzie também, quando Maddy lha comunicou

À noite, antes de ir para a cama, novo telefonema de Bill, para lhe repetir quanto a amava

Acho que temos de renegociar esse teu estilo de vida. Não me parece que seja justo para ti viveres com a Lizzie num apartamento com um só quarto. Além disso, vou sentir a tua falta. Na verdade, ela pensara em arranjar um apartamento para si, pela mesma razão por que não quisera ir passar as férias a Vermont Não queria que ele se sentisse pressionado. Era uma pessoa muito sensível Mas Bill parecia quase magoado por ela se ter ido embora para casa de Lizzie

Bem, tendo em conta o volume das minhas roupas de momento proferiu, rindo-se com uma certa amargura, é uma decisão que posso modificar em cerca de cinco minutos

Óptimo. Quero que te mudes quando eu voltar para casa. Já não é sem tempo, Maddy acrescentou meigamente. Ambos atravessámos suficientes períodos difíceis solitários. Vamos começar uma nova vida juntos. Não sabia ao certo o que ele queria dizer e não teve coragem para lho perguntar. Teriam muitas ocasiões para esclarecer tudo. No dia seguinte, era véspera de Natal, todos tinham imenso que fazer, apesar de ela já não ter um emprego com que se preocupar. Planeara dedicar por inteiro a Lizzie a sua atenção

Saíram as duas, compraram uma árvore e decoraram-na juntas. Foi um grito profundo contra os seus feriados austeros com Jack, fechados na casa da Virgínia, ele ignorando o dia e obrigando-a a ignorá-lo também. Sob certos aspectos, aquele era o Natal mais feliz da sua vida, embora ainda lamentasse bastante Jack, que tão amargo se tornara Mas repetia regularmente para consigo que estava melhor sem ele. E quando lhe ocorriam recordações boas, anulava-as com as más, muito mais numerosas. Do que tinha acima de tudo consciência era da felicidade de ter Bill na sua vida, e Lizzie.

Às duas horas dessa tarde, na véspera de Natal, recebeu a chamada por que tanto ansiara, sem fazer a menor ideia do que ia ouvir. Tinham-lhe dito que podia levar semanas, mesmo um mês, pelo que tirara de momento o assunto da cabeça, concentrando-se no prazer de estar com Lizzie.

Ele está pronto, mamã anunciou-lhe pelo telefone uma voz familiar. Era a assistente social que a ajudara na adopção de Andy. Ganhou um rapazinho que quer ir para casa passar o Natal com a sua mamã.

A sério? Posso ir buscá-lo agora? Olhou para Lizzie, a abanar a mão freneticamente, mas Lizzie não fazia a menor ideia do que se tratava e limitou-se a rir.

É todo seu. O juiz assinou os papéis esta manhã. Achou que significaria muito para si, por ser Natal. É uma forma formidável de passar o feriado, com um bebé novo.

Onde está ele?

Aqui mesmo, no meu gabinete. Os pais de acolhimento acabam de mo deixar. Pode vir buscá-lo a qualquer hora da tarde, mas eu gostaria de ir para casa ter com os meus filhos.

Estou aí dentro de vinte minutos. Desligou e informou Lizzie. Vens comigo? perguntou-lhe, de súbito, muito nervosa. Nunca se ocupara de um bebé. Tudo ia ser novidade para ela, e não lhe comprara nada. Não quisera contar com o ovo antes de a galinha o pôr, por assim dizer, e por qualquer razão julgara que a avisariam com maior antecedência.

Vamos às compras depois de o irmos buscar disse Lizzie, sensata. Tratara de miúdos em todos os seus lares de acolhimento e sabia muito mais do que a mãe acerca de bebés e das suas necessidades.

Nem sei o que é preciso... fraldas, leite, acho eu... rocas... brinquedos... coisas dessas, não é? Sentia-se com catorze anos e tão excitada que não parava quieta. Penteou-se e lavou a cara, pôs o casaco, agarrou na mala e desceu a correr as escadas do apartamento, seguida de Lizzie.

Quando chegaram, de táxi, ao gabinete da assistente social, Andy esperava-as vestido com uma camisola branca com capuz e calças de veludo azul-claro; e os pais de acolhimento tinham-lhe oferecido um urso de peluche como presente de Natal.

Dormia como um anjo quando Maddy olhou para ele. Levantou-o com todo o carinho e aninhou-o nos braços. E tinha lágrimas nos olhos ao fitar Lizzie. Ainda era tão grande o seu sentimento de culpa e de pesar por nunca ter estado perto dela! Dir-se-ia que Lizzie lhe leu o pensamento; enlaçou-a e disse-lhe:

Tudo bem, mãezinha... Eu amo-te.

Também eu a ti, querida retorquiu Maddy e beijou-a, precisamente quando o bebé acordava e começava a chorar. Maddy encostou-o cuidadosamente ao ombro, o pequenito olhou-a como se procurasse uma cara familiar e redobrou o choro.

Acho que está com fome opinou Lizzie, mais confiante do que a mãe. A assistente social entregou-lhes o saco dele, o leite, e uma lista de instruções. E a Maddy, um grande envelope com os documentos de adopção. Ainda tinha de ir ao tribunal mais uma vez, tratava-se de uma mera formalidade. O bebé era dela. Maddy mantivera-lhe o nome próprio e decidira mudar o apelido para o seu de solteira, Beaumont. Não queria mais ligação nenhuma a Jack Hunter. Mesmo que voltasse a ter um programa seu, fá-lo-ia como Madeleine Beaumont. E o bebé chamava-se agora Andy William Beaumont. Pusera-lhe o segundo nome em honra do padrinho. Ao deixarem o gabinete da assistente social, carregava o seu fardo precioso com um olhar perplexo.

A caminho de casa pararam numa loja para bebés e compraram tudo o que Lizzie e a empregada da loja disseram ser necessário. O táxi ficou tão cheio que mal havia lugar para elas, e Maddy sorria, radiante, ao entrarem no apartamento, onde o telefone tocava.

Eu pego-lhe, mamã ofereceu-se Lizzie, e Maddy detestou ficar sem ele mesmo por uns minutos. Embora tivesse duvidado de estar a tomar a decisão certa, tinha agora a certeza de que o fizera, de que era exactamente aquilo de que precisava e que queria.

Onde estiveste? perguntou a voz familiar. Era Bill, falava de Vermont. Acabara de chegar de uma tarde de patinagem no gelo com o neto E não podia esperar para lho contar. Onde estavas, Maddy. repetiu, e ela sorria ao responder, orgulhosa

Fui buscar o teu afilhado. Lizzie acabava de acender as luzes da árvore de Natal, o apartamento era acolhedor, aconchegado Mas lamentava não passar o Natal com Bill. Especialmente tendo já Andy consigo

Por segundos, Bill não percebeu o que ela queria dizer, mas logo compreendeu, e sorriu. Pela voz de Maddy, podia avaliar a sua felicidade

Que belo presente de Natal! Como está ele. Como ela estava, já ele percebera

É tão bonito, Bill! Olhou para Lizzie com o novo irmão nos braços e sorriu-lhe. Não tanto como a Lizzie era, mas é um amor. Espera até o veres

Vais trazê-lo contigo para Vermont.. Mal fez a pergunta, achou-a idiota. Ela não tinha qualquer alternativa, e o bebé não era um recém-nascido. Tinha uns saudáveis dois meses e meio. Faria dez semanas no dia de Natal

Se tu achas bem, eu gostaria muito

Trá-lo. Os miúdos vão adorá-lo E acho melhor que ele e eu nos acostumemos um ao outro, já que vou ser o seu padrinho. Não lhe disse mais nada, mas voltou a telefonar-lhe à noite e na manhã seguinte Ela e Lizzie foram à missa do galo e levaram o bebé, que não acordou uma só vez. Maddy pô-lo no elegante carrinho azul que acabara de lhe comprar. Parecia um pequeno príncipe, vestido com o seu fatinho azul, novo em folha, e tapado com um fofíssimo cobertor azul Aconchegado a seu lado, o urso de peluche

Na manhã de Natal, mãe e filha abriram os presentes que tinham uma para a outra. Havia malas, luvas, livros, camisolas e perfumes Mas o melhor presente de todos era Andy, deitado no seu berço e a olhar para elas E quando Maddy se inclinou e o beijou, abriu-se num grande sorriso. Um momento que ela nunca iria esquecer. Uma prenda pela qual ficaria eternamente grata. Ao pegar-lhe, fez em silêncio uma prece de agradecimento a Anne, a mãe dele, pela sua incrível prenda

 

No dia a seguir ao Natal, Maddy e Lizzie partiram para Vermont num carro alugado, que mais parecia uma furgoneta de ciganos com todo o material para o bebé. Este dormiu a maior parte do trajecto, e Maddy e Lizzie conversaram e riram. Pararam para comer um hambúrguer, e Maddy aproveitou para dar o biberão a Andy. Nunca fora tão feliz na sua vida, nem tão segura de ter feito o que era correcto. Apercebia-se do que Jack lhe roubara quando a forçara a laquear as trompas. Tirara-lhe muitas coisas, a audácia, a auto-estima, a confiança, o poder de decidir e organizar a sua própria vida. Fora uma má troca pelo emprego e pelos bens materiais que lhe proporcionara.

O que vai fazer relativamente às ofertas de emprego que recebeu? perguntou Lizzie com interesse a caminho da casa de Bill em Sugarbush, e Maddy suspirou.

Ainda não sei. Hei-de voltar a trabalhar, mas quero desfrutar da tua presença e da do Andy por algum tempo. É a minha primeira oportunidade, e a última, de ser mãe a tempo inteiro. Uma vez de regresso ao trabalho, volta a cair-me tudo em cima. Não tenho pressa. O seu advogado estava a organizar um importante processo contra Jack e a estação televisiva. Jack devia-lhe uma enorme indemnização por despedimento, e havia ainda difamação, intenção malévola e várias outras coisas que o advogado queria incluir no processo. Mas, acima de tudo, o que ela desejava era ficar um certo tempo em casa com Lizzie e o bebé. Lizzie entrava para Georgetown dentro de duas semanas, o que a trazia excitadíssima.

Chegaram a Sugarbush às seis da tarde, mesmo a tempo de conhecerem todos os filhos de Bill e jantarem com eles. Os netos ficaram doidos com o bebé. Bill riu-se e sorriu-lhes, e o mais pequeno, que tinha dois anos e meio, brincou com Andy, que adorou a brincadeira.

No fim do jantar, Lizzie pegou no bebé e declarou que ia ser ela a deitá-lo. Depois de ter ajudado a filha e as noras

de Bill a arrumar a cozinha, Maddy sentou-se com ele diante da lareira e ficaram um bocado a conversar. Quando todos subiram para se deitar, Bill sugeriu-lhe um passeio. Fazia imenso frio, mas as estrelas brilhavam e a neve estalava-lhes debaixo dos pés enquanto caminhavam pelo carreiro que o filho dele escavara. A velha casa era grande, confortável, e obviamente todos eles a adoravam. Uma família encantadora, que gostava de se reunir. Ninguém parecia chocado pelo relacionamento de Bill com Maddy. Fora para eles um ponto de honra acolhê-la calorosamente e até com Lizzie e o bebé eram adoráveis.

Tens uma família maravilhosa felicitou-o ela; passeavam de mãos dadas, com luvas calçadas. Os esquis de todos eles estavam alinhados no exterior da casa, e Maddy ansiava por esquiar com ele no dia seguinte, se arranjassem alguém para ficar com o bebé. Era um novo aspecto da vida dela, que por um certo tempo iria estranhar, mas que lhe agradava.

Obrigado. Sorriu a Maddy e enlaçou-a. É um amor de bebé acrescentou. Era-lhe fácil perceber o quanto ela já o amava. Teria sido errado, se nunca tivesse podido passar por essa experiência. E tinha a possibilidade de dar ao pequeno uma vida que ele nunca teria tido com a sua verdadeira mãe. Deus sabia o que estava a fazer quando naquela noite juntara os três nos destroços do centro comercial E quem era ele, pensou Bill, para a privar de tudo aquilo? Tenho pensado muito disse passado um bocado, quando já regressavam a casa. E notou o ar assustado dela ao olhar para ele. Maddy pensava saber o que se seguiria.

Não tenho a certeza de querer ouvir-te... Brilhavam-lhe os velhos terrores nos olhos, que desviou para que ele não visse as lágrimas que se formavam.

Porque não? Voltou-se com meiguice, obrigou-a a encará-lo, e pararam sob a cobertura do carreiro. Cheguei a algumas conclusões. Pensei que quererias conhecê-las.

A nosso respeito? A voz dela tremia, receosa de que, mal começara, tudo acabasse. Não parecia justo, mas nada na sua vida fora tão intenso como o que agora tinha. Bill, Lizzie e Andy. Eram o seu único interesse. A sua vida com Jack já não passava de um sonho mau.

Não tenhas medo, Maddy. Sentia-a tremer nos seus braços.

Tenho. Não quero perder-te.

Não há garantias quanto a isso respondeu ele honestamente. Tens muito mais caminho pela frente do que eu. Mas acho que concluí que, neste ponto da minha vida, o que interessa não é quando se vai chegar lá, ou com que rapidez, mas sim o percurso. Percorrermos juntos o caminho e fazê-lo bem, talvez seja tudo o que possamos pedir. Ninguém está nunca seguro daquilo que se lhe vai deparar ao dobrar da esquina. Aprendera a lição duramente, tal como Maddy. É uma espécie de caminho de fé. Ela não estava ainda bem certa do ponto onde ele queria chegar. Mas o que Bill mais desejava era incutir-lhe segurança. Não vou deixar-te, Maddy. Não vou fugir para parte nenhuma. E não quero magoar-te nunca. De vez em quando, porém, magoar-se-iam, embora nunca intencionalmente. Ambos o sabiam.

Também não quero magoar-te replicou ela com doçura, vagamente tranquilizada pelas palavras que lhe ouvira. Sentia que nada tinha a temer dele. Era uma nova vida, um novo dia, um novo sonho que haviam encontrado juntos e acalentado cuidadosamente.

O que eu estou a tentar dizer-te é que cheguei à conclusão de que talvez me fizesse bem jogar basebol quando andar pela casa dos setenta. Se tudo o mais falhar, o Andy pode atirar-me a bola para a cadeira de rodas.

Maddy olhou-o com um sorriso divertido.

É-me difícil imaginar que nessa altura estejas numa cadeira de rodas. Ele ria-se.

Quem sabe? Podes extenuar-me. Já tentaste. Só Deus sabe, explosões em centros comerciais, bebés, ex-maridos malucos... Não há dúvida de que trazes excitação à minha vida. Eu não quero ser apenas o padrinho. Ele merece mais do que isso. Todos nós merecemos.

Queres ser o treinador aquando do seu primeiro campeonato? proferiu em tom de provocação. Era como se o seu barco acabasse de chegar, um barco por que esperara muito tempo, de facto toda a vida. Com Bill, estava finalmente a salvo e em boas mãos.

Quero ser teu marido, é o que estou a tentar explicar-te. O que achas, Maddy?

O que irão dizer os teus filhos? Isso preocupava-a, mas a verdade é que tinham sido incrivelmente gentis com ela.

Provavelmente, vão dizer que eu estou louco, e com razão. Mas eu penso que é a coisa correcta a fazer para nós dois... para todos nós... Há muito que o sei. Só ignorava o que tu ias fazer, ou quanto tempo levarias a fazê-lo.

Levei tempo de mais. Agora lamentava-o, mas a verdade é que não conseguira agir mais depressa.

Eu disse-te, Maddy, o que importa não é a rapidez. É o percurso. Então, o que achas?

Acho que tenho muita sorte murmurou ela.

Também eu. Rodeou-lhe os ombros com um braço e encaminharam-se para casa. Lizzie, com o bebé ao colo, observava-os da janela do primeiro andar. Como se o pressentisse, Maddy ergueu para ela o olhar, sorriu e acenou-lhe, enquanto Bill a conduzia para dentro, a fazia parar à entrada da porta e a beijava. Para eles, não se tratava de um princípio ou de um fim. Tratava-se de uma vida que partilhavam, e da certeza de que o percurso continuaria por muito tempo.

 

                                                                                            Danielle Stell

 

 

                      

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