Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Desconhecida
A porta da garagem abriu-se devagar, como uma grande boca de sapo preparada para engolir uma mosca desprevenida. Do outro lado da rua, um rapazinho olhava fascinado.
Gostava de ver a porta abrir-se daquela maneira, pois sabia que o belo carro esportivo iria aparecer na curva a qualquer instante. Esperava e ia contando: cinco... seis... sete... Sem ser visto pelo homem que fazia acionar o controle remoto dentro do carro, o garoto o via chegar em casa todas as noites. Era uma das distrações favoritas do rapaz, que ficava desapontado quando o homem chegava em casa muito tarde, ou não chegava. O garoto permaneceu imóvel na sombra, contando... onze... doze... e então o viu, um carro escuro e elegante que dobrava a esquina e deslizava suavemente para dentro da garagem. O rapaz olhou e por momentos ficou imóvel vendo o bonito automóvel desaparecer. Depois regressou lentamente para casa com visões do belo Porsche preto ainda dançando nos seus olhos.
Alexander Hale desligou o motor e ficou uns momentos sentado fitando a escuridão familiar da garagem. Pela centésima vez nesse dia, o seu pensamento voou para Rachel e ele afastou-o pela centésima vez. Suspirou de leve, pegou a pasta e saiu do carro. Uns instantes mais tarde, o dispositivo eletrônico fecharia automaticamente a porta da garagem. Alexander entrou em casa por uma passagem interior e parou no vestíbulo da pequena casa vitoriana, olhando para a cozinha, outrora tão acolhedora e que agora estava vazia. Havia tachos de cobre numa prateleira de ferro forjado, perto do fogão, mas a senhora que ia ali fazer a limpeza não os areava há muito e ninguém se importava com isso. As plantas colocadas em vasos nos parapeitos das janelas estavam secas e murchas. Ao ligar a luz da cozinha, reparou que algumas delas já tinham morrido. Voltou-se e olhou de relance para a pequena sala de jantar com as paredes forradas de madeira e dirigiu-se lentamente para as escadas.
Agora se servia sempre da entrada pelo jardim quando chegava em casa. Era menos deprimente do que entrar pela porta principal. Sempre que o fazia tinha a sensação de ir encontrar Rachel ali, à sua espera. Julgava vê-la com o belo cabelo louro preso no alto da cabeça e a sua figura elegante realçada pelos vestidos enganadoramente severos que usava para ir para o tribunal. Rachel... a advogada brilhante... a nobre amiga... a mulher fascinante... Até que o magoara e partira... até se divorciarem, exatamente dois anos antes.
Nesse dia, ao regressar do escritório, pensara se iria sempre recordar esse acontecimento com a acuidade com que o fazia agora. Lembraria para sempre, com a mesma dor, essa manhã de outubro? Era realmente estranho que a data do seu casamento e a do seu divórcio fossem no mesmo dia. Uma coincidência, declarara Rachel despreocupadamente.
Ironia do destino, pensara ele. Uma coisa horrível, dissera a mãe dele ao telefonar-lhe na noite em que ele recebera os papéis do divórcio, percebendo que o filho se encontrava completamente bêbedo e ria por não querer chorar.
Rachel. Pensar nela ainda o perturbava. Sabia que isso não devia suceder após dois anos de divórcio, mas sucedia... Os cabelos louros e os olhos da cor do Atlântico antes de um temporal, cinzento-escuros com laivos azuis e verdes. Vira-a pela primeira vez quando ela fora advogada da parte contrária num caso que acabara por ser resolvido fora do tribunal. Fora um combate renhido e Joana d'Arc não teria pleiteado o caso com maior determinação e entusiasmo. Alexander observara, fascinado e divertido, sentindo-se mais atraído por ela do que alguma vez se sentira por qualquer mulher em toda a sua vida. Convidara-a para jantar nessa noite, e ela insistira em pagar metade da despesa. Não queria relações profissionais «corruptas», Rachel declarara com um ligeiro sorriso que fizera com que ele tivesse vontade de esbofeteá-la e de beijá-la. Era uma mulher terrivelmente bonita e inteligente.
Essa recordação fez com que Alexander atravessasse a sala vazia de sobrolho franzido. Rachel levara consigo todo o mobiliário da sala de estar, a melhor e mais bem mobiliada da pequena casa vitoriana comprada por ambos. Alexander ficara com o resto da mobília e às vezes pensava se não teria se acomodado sem comprar novos móveis para a sala para ter um motivo de ressentimento contra Rachel ao ver a sala vazia. Porém, nessa altura não pensava nisso. O seu pensamento estava a milhas de distância e ele lembrava o tempo em que ainda viviam juntos e as coisas que os dois haviam partilhado ou não. Ambos gostavam das suas profissões e tinham partilhado aquela casa, a cama, o bom humor, as esperanças e pouco mais.
Alex desejava ter filhos, queria ver os quartos do andar superior cheios de risos e de ruído, mas Rachel preferira entrar na política e aceitara um lugar numa importante firma de advogados em Nova Iorque. Quando a conhecera, ela lhe falara vagamente em política. Tratava-se de uma coisa natural para ela, pois o pai era um homem poderoso em Washington e fora até governador do seu estado natal. Era outra coisa que Rachel tinha em comum com Alex, pois a irmã dele era congressista e vivia em Nova Iorque.
Rachel sempre a admirara muito, e Kay, a irmã de Alex, tornara-se muito amiga dela. Contudo, não fora a política que tirara Rachel a Alex. Fora a outra parte do sonho dela, a firma de advogados em Nova Iorque. Rachel levara dois anos tentando a sua sorte e acabara por conseguir os seus desígnios... e o deixara. Alex recordou o desgosto que tivera. A ferida já não sangrava agora, mas fora sem dúvida o maior desgosto da sua vida.
Rachel era uma mulher bonita, brilhante, dinâmica, alegre, uma mulher de sucesso... mas sempre faltara algo nela, uma certa ternura e gentileza. Não se podiam utilizar tais palavras para descrever Rachel. Ela ambicionava mais da vida do que ser apenas advogada em São Francisco e mulher de Alexander. Rachel tinha vinte e nove anos quando se conheceram e nunca fora casada. Dissera-lhe que andara sempre ocupada demais para isso, ocupada demais em conseguir realizar os objetivos, atingir os seus fins. Prometera a si própria, confessara um dia a Alex, que aos trinta anos teria algo de «grande». «Que significa isso?», perguntara ele. «Cem mil dólares por ano», fora a resposta dada sem sequer pestanejar. Por instantes Alex rira, mas só até ver a expressão dos olhos dela. Rachel falava a sério. E haveria de consegui-lo. Toda a sua vida era dirigida para a obtenção desse gênero de sucesso.
Um sucesso medido por notas de dólar e casos importantes, sem querer saber quem teria de magoar para obter tais coisas. Antes de partir para Nova Iorque, Rachel pisara todos os que se encontravam no seu caminho e até mesmo Alex chegara a perceber como ela era: fria e sem escrúpulos, tão ambiciosa que não se detinha diante de coisa alguma até atingir os seus objetivos.
Quatro meses depois de se terem casado, vagou um lugar numa prestigiosa firma de advogados da cidade. Ao princípio, Alex ficara impressionado por a candidatura dela ao lugar ser considerada. Ela era, afinal, uma mulher muito nova, mas não levou muito tempo para perceber que Rachel estava disposta a utilizar todas as manobras sujas para conseguir o lugar. E o conseguiu. Durante dois anos, Alex tentou esquecer o que a vira fazer para ocupar o lugar, dizendo a si mesmo que ela só utilizava essas táticas na sua profissão. Depois, deu-se o choque final. Rachel foi convidada a ir ocupar um lugar na mesma firma em Nova Iorque. Dessa vez eram mais de cem mil dólares por ano que estavam em jogo. E Rachel Hale tinha apenas trinta e um anos. Alexander observou com horror e fascínio as reações dela enquanto tentava tomar uma resolução. A escolha era simples e, no que dizia respeito a Alex, não havia decisão nenhuma a tomar. Nova Iorque ou São Francisco. Ficar com Alexander, ou deixar Alexander. Finalmente, Rachel acabou por lhe dizer que se tratava de uma oportunidade demasiado boa para se perder... Mas que não precisavam alterar o seu relacionamento... Ela poderia vir passar os fins-de-semana com ele, e, é claro, se ele quisesse deixar o seu lugar em São Francisco e ir para Nova Iorque com ela...
«E que faria eu? Preparava os teus casos?», dissera Alex, fitando-a, magoado e furioso. «Qual é o meu lugar nesse esquema?»
Alex sentira-se desgostoso quando Rachel lhe anunciara a sua decisão. Tivera esperanças de que fosse diferente, de que ela pensasse que o casamento era mais valioso do que o lugar em Nova Iorque; queria que Rachel lhe dissesse que ele era mais importante para ela. Mas não era esse o estilo de Rachel, como também não seria o da irmã de Alex. A irmã, Kay, abrira caminho para alcançar os seus fins sem olhar os meios, esmagando e destruindo os que inadvertidamente se metiam no seu caminho. A única diferença era Kay fazer carreira na política e Rachel na advocacia.
Era mais fácil compreender e respeitar uma mulher como a mãe dele. Charlotte Brandon conseguira ter uma carreira de sucesso e cuidar dos filhos. Durante vinte e cinco anos fora uma das escritoras com maior êxito no país, e contudo tivera dois filhos, Kay e Alex, e estivera junto deles, dando-lhes a sua atenção e o seu amor.
Depois da morte do marido, quando Alex era ainda bebê, a mãe aceitara um emprego em tempo parcial, fazendo trabalho de pesquisa para um jornal, acabando eventualmente por ser ela própria a escrever, ao mesmo tempo que aproveitava todo o tempo disponível para começar o seu primeiro livro. O resto era história relatada nas orelhas das capas dos dezenove livros de que era autora e que milhões de pessoas tinham lido no decorrer dos anos. A sua carreira se devera a um acidente gerado pela necessidade.
Porém, fossem quais fossem as suas razões, a mãe sempre recebera o que lhe iam dando como uma dádiva especial, como algo que ela partilhava e do qual usufruía com os filhos, e não como uma coisa que fosse mais importante para ela do que os filhos. Charlotte Brandon era na verdade uma mulher notável. A filha, pelo contrário, era colérica, ciumenta, compulsiva. Nada tinha da meiguice e generosidade da mãe. Com o tempo Alex compreendeu que o mesmo sucedia com a mulher com quem casara.
Ao partir para Nova Iorque, Rachel afirmara insistentemente não querer divorciar-se de Alex. Durante um certo tempo, tentou mesmo passar os fins-de-semana com ele; porém, devido ao trabalho de ambos em extremos opostos do país, os fins-de-semana em comum tornaram-se cada vez menos freqüentes. Era impossível conciliar a vida dos dois, como a própria Rachel relutantemente admitiu, e Alex chegou mesmo a pensar em fechar o seu lucrativo escritório e ir para Nova Iorque. Exausto, mas decidido, Alex pegou no telefone para informar Rachel da sua decisão.
Eram sete horas da manhã em Nova Iorque. Contudo, não foi Rachel quem atendeu. Foi um homem com uma voz profunda e suave. «Mrs. Hale?» Durante um momento pareceu não compreender. «Oh, Miss Patterson.» Rachel Patterson. Alex não sabia que ela iniciara a sua nova vida em Nova Iorque com o nome de solteira, assim como não se apercebera de que, com o novo emprego, iniciara uma nova maneira de viver. Ela quase não conseguiu dizer-lhe nada e Alex ouviu a voz dela com lágrimas nos olhos.
Mais tarde, Rachel falou-lhe do escritório.
— Que hei de dizer-te, Alex? Lamento... — Lamentava? Ter partido? Andar com outro? Lamentava o quê? Ou teria apenas pena dele, desse pobre marido patético, deixado sozinho em São Francisco.
— Achas que vale a pena tentarmos emendar as coisas? — perguntara ainda Alex, disposto a fazê-lo, mas dessa vez Rachel fora honesta.
— Não, Alex. Creio que não. — Falaram durante poucos minutos e finalmente desligaram o telefone. Nada mais havia a dizer, a não ser aos advogados de ambos. Na semana seguinte, Alex pediu o divórcio. Passou-se tudo sem atritos. «De uma maneira civilizada», como disse Rachel. Embora não houvesse qualquer problema, Alex ficara abalado até ao mais profundo do seu ser.
Durante um ano, sentiu-se como se algo de muito querido e íntimo lhe tivesse morrido.
Talvez chorasse por ele próprio. Tinha a sensação de que uma parte de si mesmo fora guardada em caixas e caixotes, como a mobília da sala de estar que enviara para Nova Iorque. Alex continuava a viver normalmente; comia, dormia, saía com mulheres, nadava, jogava tênis, ia a festas, viajava. O seu trabalho corria cada vez melhor; contudo, tinha a sensação de ter perdido uma parte essencial do seu ser. Sabia disso, embora mais ninguém o percebesse. Há dois anos que nada tinha para oferecer a uma mulher além do seu corpo.
Enquanto subia as escadas para se dirigir ao escritório, no andar de cima, o silêncio da casa se tornou subitamente insuportável e só lhe apeteceu fugir dali.
Isso lhe sucedia com freqüência, ultimamente. Tinha um desejo imenso de se afastar de casa, de escapar ao vazio e à solidão. Só agora, depois de viver dois anos sem ela, é que o atordoamento começava a desaparecer. Era como se tivesse finalmente tirado as ligaduras de uma ferida e aparecesse por baixo a cicatriz ainda fresca.
Alex mudou de roupa e vestiu umas calças de brim, sapatilhas e uma velha parca. Desceu rapidamente as escadas, tocando apenas de leve no corrimão, com o cabelo escuro um pouco despenteado. Saiu, batendo a porta, e voltou à direita, dirigindo-se para o Divisadero, onde começou a correr lentamente pela encosta íngreme até à Broadway. Aí parou por fim para observar a belíssima vista que dali se desfrutava. Lá em baixo as águas da baía brilhavam como cetim à luz do crepúsculo, os montes estavam velados pelo nevoeiro e as luzes de Marin brilhavam como diamantes, rubis e esmeraldas do outro lado da baía.
Quando chegou às imponentes mansões da Broadway, voltou à direita e começou a caminhar em direção ao Presídio, olhando de relance para as grandes casas e admirando a tranqüila beleza da baía. Aqueles edifícios estavam entre os mais belos de São Francisco. Eram os dois ou três quarteirões residenciais mais luxuosos da cidade, palácios de tijolo e mansões de estilo Tudor, com belíssimos jardins e imensas árvores. Não se via ninguém, nem se ouvia um som da fila de casas, embora se pudesse facilmente imaginar o tilintar dos cristais e o brilho das pratas, os criados com librés, os cavalheiros vestidos a rigor e lindas mulheres com vestidos de seda e de cetim. Alex não podia deixar de sorrir das imagens que ele próprio criava. De certo modo faziam com que se sentisse menos só do que as imagens que lhe ocorriam quando passava por ruas mais vulgares e casas menos grandiosas. Ali imaginava a existência de casais felizes, com crianças alegres e ruidosas, acompanhadas de animais de estimação, brincando nas cozinhas ou sentadas em frente de uma lareira crepitante. Nas grandes casas não havia nada que ele desejasse. Era um mundo a que ele não aspirava, embora tivesse estado muitas vezes em casas como aquelas. O que Alex ambicionava para si próprio era algo de muito diferente, algo que ele e Rachel nunca tiveram.
Era-lhe difícil imaginar-se novamente apaixonado, gostar profundamente de uma pessoa, olhá-la nos olhos e sentir-se explodir de alegria. Há muito que Alex não tinha nada disso e quase esquecera esses sentimentos. Por vezes nem sequer tinha a certeza de querer sentir tal coisa outra vez. Estava farto de conhecer mulheres que só se preocupavam com as suas carreiras, com os vencimentos que recebiam e com a maneira de conseguir uma rápida promoção. A maior parte delas não pensava em casar e ter filhos. O que ele queria era uma mulher antiquada, uma raridade, uma jóia. E não havia mulheres assim. Durante os últimos dois anos, Alex só conhecera imitações caras, e o que ele desejava era uma jóia verdadeira, um diamante perfeito, sem falhas, mas duvidava seriamente que alguma vez pudesse encontrar algum. No entanto estava certo de uma coisa: de que não aceitaria algo que ficasse aquém do seu sonho. E também não queria uma mulher como Rachel. Isso também ele sabia.
Afastou-se novamente dos seus pensamentos e ficou olhando para a vista a partir das escadas de Baker Street. Os degraus cavados na encosta do monte ligavam a Broadway a Valley Street, lá em baixo, e ele apreciava a vista e a brisa fresca, ao mesmo tempo que decidia não avançar mais e sentar-se no primeiro degrau. Enquanto estendia as compridas pernas, sorria para a cidade que adotara. Talvez nunca encontrasse a mulher certa e não voltasse a casar. E então? Tinha uma boa vida, uma bonita casa e sucesso na sua profissão. Que mais poderia desejar? Talvez não precisasse de mais do que isso e não tivesse direito a pedir mais.
Deixou o seu olhar vaguear pelas casas pintadas em tons pastel de marina, das pequenas vivendas vitorianas em Cow Hollow, semelhantes à sua, para o esplendor grego do Palácio das Belas-Artes que ficava mesmo por baixo dele; então, quando os seus olhos abandonaram a abóbada que Maybeck criara meio século antes, passou a olhar para os telhados situados mais abaixo, na encosta da colina, e subitamente a viu. Era uma mulher sentada num dos últimos degraus, dobrada sobre si mesma e imóvel, quase como se fosse uma estátua esculpida ali, uma estátua como a do Palácio das Belas-Artes, mas mais delicada, com a cabeça inclinada e o perfil iluminado pela luz que vinha do outro lado da rua. Alex ficou parado olhando-a, como se aquela mulher fosse uma escultura, uma estátua, uma obra de arte que alguém tivesse abandonado ali, um belo mármore na forma de uma mulher, esculpido com tanta perícia que parecia quase real.
A mulher não se mexeu, e Alex ficou olhando-a durante quase cinco minutos. Então, ela se endireitou e inalou profundamente o ar fresco da noite, exalando-o com lentidão, como alguém que tivesse tido um dia muito difícil. À volta dos ombros dela, via-se a mancha clara de um casaco de peles, e Alex observou o rosto que se destacava mais claramente no escuro da noite. Havia nela algo de invulgar que fazia com que Alex quisesse ver mais. Ficou sentado, incapaz de afastar os olhos. Era uma sensação estranha para Alex, e a situação parecia-lhe insólita. Ali estava, sentado, imóvel, olhando aquela desconhecida cujo rosto era iluminado pela pálida claridade das luzes da rua, sentindo-se atraído por ela. Quem seria? A presença dela parecia atingi-lo no mais profundo do seu ser e ele continuou sentado, imóvel, querendo saber mais acerca dela.
A pele parecia muito branca na obscuridade, e o cabelo escuro e brilhante dava a impressão de ser muito comprido e estar preso apenas por um ou dois ganchos bem colocados. Por momentos teve o louco desejo de descer correndo as escadas até junto dela, de lhe tocar e de tomá-la nos braços, soltando-lhe o cabelo escuro. Nessa altura, porém, como se tivesse percebido seu devaneio, a mulher pareceu despertar e olhou para cima, para o lugar onde ele estava. E então Alex viu o rosto mais belo que alguma vez observara. Um rosto que tinha, como ele suspeitara, as proporções perfeitas de uma obra de arte, feições pequenas e delicadas, um rosto onde brilhavam uns grandes olhos escuros e uma boca de curvas suaves. Alex sentiu-se atraído sobretudo pelos olhos, os olhos que pareciam ocupar todo o rosto e que refletiam um imenso desgosto. À fraca claridade da rua, Alex pôde ver que as lágrimas tinham deixado dois sulcos brilhantes nas faces muito brancas. Por um instante infindável, os olhos dos dois se encontraram e Alex sentiu que todo o seu ser ansiava por se aproximar daquela beldade desconhecida de olhos grandes e cabelo escuro. Ela tinha um aspecto frágil e vulnerável, ali sentada. Depois, como se sentisse embaraçada pelo que deixara transparecer, embora por breves instantes, baixou rapidamente a cabeça. Durante um momento, Alex não se moveu e subitamente sentiu-se novamente atraído por ela, como se tivesse de se aproximar. Olhou-a, tentando decidir o que fazer; de repente, ela levantou-se, envolvendo-se na pele. Era um casaco de marta que a cobria como uma nuvem. Os olhos dela dirigiram-se mais uma vez para Alex, mas dessa vez só por um instante. Depois, como se fosse apenas uma aparição, encaminhou-se para uma sebe e desapareceu.
Durante um longo momento, Alex olhou para o lugar onde ela estivera, como que preso ao degrau onde se encontrava sentado. Subitamente levantou-se e desceu correndo os degraus até onde ela estivera. Viu um caminho que ia dar em uma porta. Calculou que para além dessa porta houvesse um jardim e não tinha maneira de saber a que casa ele pertencia. Poderia pertencer a qualquer uma entre muitas outras. O mistério acabava ali. Durante uns instantes de impotência, Alex teve vontade de ir bater à porta por onde ela entrara. Talvez ela se encontrasse sentada no jardim oculto por trás da porta fechada. Teve uma sensação de desespero, pois sabia que não a veria mais. Depois, sentindo-se um tolo, lembrou a si mesmo que ela não passava de uma completa desconhecida. Ficou parado a olhar para a porta, pensativamente, durante longos minutos; em seguida, voltou-se devagar e começou a subir as escadas.
Enquanto metia a chave na fechadura da porta da sua casa, Alex continuava a pensar no rosto da mulher que chorava. Quem seria? Por que choraria? De que casa teria saído?
Sentou-se na pequena escada circular da entrada a olhar para a sala vazia, vendo o luar iluminar o soalho encerado. Nunca vira um rosto tão encantador. Era uma cara que ele poderia recordar toda a vida e ele sabia que a recordaria, se não toda a vida, pelo menos durante muito tempo. Nem sequer ouviu o telefone tocar alguns minutos mais tarde. Estava ainda imerso nos seus pensamentos, meditando sobre a visão que tivera. Quando por fim ouviu o telefone, subiu as escadas em dois saltos e chegou a tempo de levantar o fone antes que a pessoa que se encontrava do outro lado do fio desistisse.
— Olá, Alex. — Houve imediatamente um momento de tensão silenciosa. Era a irmã, Kay.
— Que se passa? — O que significava aquele telefonema? O que queria ela? Kay nunca telefonava para ninguém a não ser que quisesse ou precisasse de alguma coisa.
— Nada de especial. Onde estavas? Estou ligando para aí há meia hora. A moça que ficou trabalhando até tarde no teu escritório me disse que tinhas ido para casa.
Kay era sempre assim. Queria que tudo fosse feito conforme as suas conveniências, sem se preocupar em saber se isso convinha aos outros ou não.
— Fui dar uma volta.
— A estas horas? — Parecia desconfiada. — Por quê? Alguma coisa vai mal?
Alex suspirou. A irmã o cansava. Havia nela muito pouco a dar, muito pouca meiguice. Toda ela era ângulos frios, duros. Fazia-lhe lembrar um belo objeto de cristal aguçado que se colocasse em cima de uma escrivaninha. Muito bonito para a vista, mas nada em que apetecesse tocar. E há muitos anos se tornara óbvio que o marido pensava da mesma maneira.
— Não, nada vai mal, Kay — respondeu Alex, pensando que, apesar de ser uma pessoa indiferente aos sentimentos das outras pessoas, a irmã tinha um jeito especial para perceber quando ele se encontrava desanimado ou com problemas. — Precisava tomar ar. Tive um dia cansativo. — Depois, para mudar de conversa e desviar as atenções de si, perguntou: — Nunca dás um passeio, Kay?
— Em Nova Iorque? Deves estar doido. Só de respirar podia morrer.
— Para não falar dos roubos e violações. — Alex sorriu gentilmente para o telefone e percebeu que ela sorria também. Kay Willard não era mulher que sorrisse muitas vezes. Era demasiado ansiosa e andava sempre atarefada e preocupada demais para sorrir. — A que devo a honra deste telefonema? — Alex recostou-se para trás na cadeira e deixou o olhar vaguear pelo escritório enquanto esperava a resposta da irmã.
Durante muito tempo Kay lhe falara a respeito de Rachel. Mantivera-se sempre em contato com a ex-cunhada por razões óbvias. O pai de Rachel, o antigo governador, era uma pessoa que ela não queria perder de vista. E, se ela conseguisse convencer Alex a viver de novo com Rachel, agradaria ao velho senhor que ficaria satisfeito.
Para isso, precisava convencer Rachel de que Alex se sentia terrivelmente infeliz sem ela e que ficaria contente se ela quisesse tentar de novo. Kay não se importaria de tomar uma atitude dessas. Já manobrara para preparar um encontro entre os dois em ocasiões em que Alex fora a Nova Iorque. Contudo, embora Rachel estivesse disposta a aceitar esses convites, segundo Kay dizia, era óbvio que Alex não estava.
— Então, congressista Willard?
— Não é nada de especial. Gostaria de saber quando vens a Nova Iorque.
— Por quê?
— Não sejas tão direto. Gostaria de convidar umas pessoas para jantar.
— Quem, por exemplo? — Alex sabia quem e não conseguiu deixar de sorrir. Na verdade, a irmã era persistente. Tinha de reconhecer que ela nunca desistia.
— Não te ponhas na defensiva, Alex.
— Quem é que está na defensiva? Só quero saber quem queres que seja o meu par nesse jantar. Que mal há nisso? A não ser, claro, que haja alguém na lista dos convidados que nos possa fazer sentir desconfortáveis. Devo tentar adivinhar, para ser mais fácil, Kay?
Ela teve de rir, embora contra a sua vontade.
— Está bem, está bem. Já percebi. Mas digo-te que a encontrei no avião de Washington para Nova Iorque e a achei bem.
— Deve estar. Com o que ela ganha, tu também estarias.
— Obrigada, querido.
— Não tens de quê.
— Sabias que a convidaram a concorrer para o Congresso?
— Não. — Fez-se um longo silêncio. — Mas não fico surpreso. E tu?
— Não — respondeu a irmã com um suspiro. — Às vezes penso se percebeste bem o que perdeste divorciando-te dela!
— Claro que percebi, e todos os dias eu me sinto grato por isso. Não quero estar casado com uma política, Kay. É uma honra que deve ser reservada para homens como o George.
— Que diabo queres dizer com isso?
— Ele está sempre tão ocupado com os seus casos que tenho a certeza de que nem sequer repara quando tu não estás em Washington durante três semanas. Eu havia de reparar.
E Alex não disse à irmã que a filha dela também reparava. Sabia isso porque costumava ter demoradas conversas com a sobrinha quando ia a Nova Iorque. Levava-a para almoçar ou jantar e dava longos passeios com ela. Conhecia melhor a sobrinha do que os pais dela. Às vezes, achava que Kay não se importava com isso.
— A propósito, como está a Amanda?
— Está bem, creio.
— Crês? — Era fácil perceber a crítica na voz — Não a tens visto?
— Valha-me Deus! Acabei de sair do avião. Cheguei agora de Washington. Que queres que faça, Alex?
— Pouca coisa. Aquilo que fazes não me diz respeito. Mas o que fazes a ela já é outra coisa.
— Também não te diz respeito.
— Não? Então a quem diz? Ao George? Ele já reparou que tu não passas dez minutos com a tua filha? Creio que não.
— Ela tem dezesseis anos, Alex. Já não precisa de uma baby-sitter.
— Não, mas precisa desesperadamente de uma mãe e de um pai. Todas as adolescentes precisam.
— Nada posso fazer. Estou na política. Sabes como é um trabalho que exige muito de nós.
— Sim. — Abanou lentamente a cabeça e pensou que era o que ela queria para ele. Uma vida com Rachel Patterson, uma vida que o relegaria para o papel de marido da senadora ou coisa no gênero. — Tens mais alguma coisa para me dizer? — Não queria falar mais com Kay. Já ficara farto de ouvi-la naqueles cinco minutos.
— No próximo ano vou concorrer para o Senado.
— Felicitações — respondeu Alex sem emoção.
— Não fiques demasiado entusiasmado.
— Não. Estava a pensar na Mandy e no que isso poderá significar para ela.
— Se eu vencer, significará ser filha de uma senadora, nada mais. — Kay pareceu-lhe subitamente má, e Alex teve vontade de lhe bater.
— Achas que ela se preocupa realmente com isso, Kay?
— Talvez não. Ela anda de tal maneira nas nuvens que provavelmente também não daria importância, mesmo que eu concorresse à presidência. — Durante momentos, Kay pareceu triste e Alex abanou a cabeça.
— Não é isso que importa, Kay. Todos te apoiamos e amamos, mas há mais coisas do que isso. — Como lhe poderia explicar? Sabia que a irmã só se preocupava com a carreira, com o seu trabalho.
— Não creio que algum de vocês compreenda o que isto significa para mim, Alex... que saibam como tenho trabalhado para chegar onde estou. Tem sido uma luta terrível, mas consegui vencer. Vocês apenas falam para dizerem mal de mim como mãe. E a nossa própria mãe é ainda pior. O George está sempre tão ocupado a operar os seus doentes que nem quer saber se eu sou congressista ou presidente da Câmara. É um pouco desencorajador, rapazinho, para não dizer mais.
— Estou certo que sim, mas às vezes as pessoas ficam magoadas por causa de carreiras como a tua.
— Isso é de esperar.
— É? Achas que sim?
— Talvez. Não sei que dizer-te. Quem me dera saber. — Kay mostrou-se subitamente cansada. — E tu? Como tem sido a tua vida nestes últimos tempos?
— Nada de especial. Trabalho.
— És feliz?
— Às vezes.
— Devias voltar para a Rachel.
— Pelo menos vais rapidamente direta ao assunto. Não quero fazê-lo, Kay. Mas afinal o que é que te faz pensar que ela me quereria?
— Disse-me que gostaria de te ver.
— Oh, meu Deus. — Soltou um suspiro. — Nunca desistes, pois não? Por que é que não casas com o pai dela e me deixas em paz? Daria o mesmo resultado, não é?
— Talvez — respondeu Kay, e dessa vez riu.
— Esperas realmente dirigir a minha vida amorosa de acordo com as necessidades da tua carreira? — A idéia divertia-o, mas sabia que no fundo havia uma certa verdade nas palavras que pronunciara. — Creio que o que mais aprecio em ti, mana, é o teu atrevimento sem limites.
— Leva-me até onde eu quero chegar, irmãozinho.
— É certo que sim. Mas desta vez não será assim, querida.
— Não haverá jantar com a Rachel?
— Não, mas se voltares a vê-la dá-lhe os meus melhores cumprimentos. — Algo dentro de si se comprimiu ao ouvir mencionar o nome dela. Já não a amava, mas de vez em quando só ouvir o nome dela magoava-o.
— Farei isso. E pensa no que te disse. Poderei arranjar qualquer coisa quando estiveres em Nova Iorque.
— Provavelmente estarás em Washington ou demasiado ocupada para me veres sequer.
— Pode ser. Quando tencionas vir aqui?
— Provavelmente dentro de duas semanas. Terei de ir falar com um cliente em Nova Iorque. Sou um dos advogados dele num caso importante.
— Estou impressionada.
— Estás? — Alex franziu os olhos enquanto olhava para fora, através da janela. — Por quê? Será uma coisa boa para a tua campanha eleitoral? Creio que os leitores da nossa mãe te darão mais votos do que eu, não achas? — Havia um leve tom de ironia na voz dele. — A não ser, é claro, que eu tenha o bom senso de voltar a casar com a Rachel.
— Não te metas em nenhuma confusão.
— Alguma vez o fiz? — Alex parecia divertido.
— Não, mas se eu concorrer para o Senado todo o cuidado é pouco. Serei adversária de um verdadeiro puritano e se houver algum escândalo, mesmo remotamente relacionado comigo ou com a minha família, não terei hipótese.
— Não te esqueças de avisar a mãe — disse Alex, gracejando, mas a irmã respondeu-lhe imediatamente com seriedade.
— Já o fiz.
— Estás brincando? — Alex riu da idéia de que a sua elegante e inteligente mãe pudesse fazer alguma coisa que pusesse em causa a carreira da filha, quer fosse para concorrer ao Senado, quer a qualquer outra coisa.
— Não estou brincando. Falo sério. Não posso ter quaisquer problemas numa altura destas. Nada de escândalos, nem de disparates.
— Que pena.
— Que queres dizer?
— Estava pensando em ter um caso com uma ex-prostituta acabada de sair da prisão.
— Muito engraçado. Mas eu falo sério.
— Infelizmente, creio que sim. De qualquer modo, poderás dar-me a tua lista com instruções quando eu for a Nova Iorque. Até lá, procurarei portar-me bem.
— Faz isso e avisa-me quando vieres.
— Para quê? Para poderes arranjar um encontro com a Rachel? Receio ter de te dizer, mana congressista, que nem mesmo para o bem da tua carreira eu te faria a vontade.
— És um tolo.
— Talvez. — Mas não pensava assim e, depois de se despedir de Kay e de ela desligar, achou-se olhando para fora através da janela e pensando, não em Rachel, mas sim na mulher que vira sentada nos degraus. Com os olhos fechados conseguia continuar a vê-la, o seu perfil perfeito, os grandes olhos, a boca delicada. Nunca vira uma mulher tão bela, tão assombrosa. Permaneceu sentado à escrivaninha, com os olhos fechados, pensando nela. Depois, com um suspiro, abanou a cabeça, abriu os olhos e ergueu-se. Era ridículo ficar sonhando com uma mulher completamente desconhecida. Sentiu-se tolo e resolveu afastá-la dos seus pensamentos. Não valia a pena apaixonar-se por uma desconhecida. Porém, enquanto se dirigia para a cozinha para preparar qualquer coisa para comer, teve de se lembrar disso várias vezes.
A luz do Sol entrava pelas largas janelas do quarto e brilhava sobre a colcha de seda creme e sobre as cadeiras forradas da mesma seda. Era um quarto grande e bonito com janelas altas voltadas para a baía. Do quarto de vestir, contíguo ao quarto de dormir, via-se a Ponte Golden Gate. Nos dois aposentos havia lareiras de mármore branco idênticas. Nas paredes, viam-se quadros de pintores franceses, cuidadosamente escolhidos, e numa vitrina havia um vaso chinês de valor incalculável. Uma enorme escrivaninha Luís XV, que tomaria acanhado qualquer aposento de dimensões menores, fora colocada em frente das janelas. Tudo aquilo era bonito, grande e frio. Ao lado do quarto de vestir, havia ainda uma divisão menor com as paredes forradas de estantes de madeira cheias de livros escritos em inglês, francês e espanhol.
Os livros eram a própria essência da vida de Raphaella olhando, e foi à janela dessa pequena biblioteca que ela ficou por momentos as águas tranqüilas da baía. Eram nove horas, e Raphaella envergava um conjunto de saia e casaco preto, sóbrio e elegante, que realçava a sua figura graciosa. O conjunto fora confeccionado em Paris, como quase toda a sua roupa, com exceção da que comprava na Espanha. Raramente comprava roupa em São Francisco. Ali era quase invisível, um nome que poucas pessoas mencionavam e nunca viam. A maior parte das pessoas teria dificuldade em associar um rosto com o nome de Mrs. John Henry Phillips e certamente não aquele rosto. Seria difícil imaginar aquela beleza de conto de fadas, com grandes olhos negros. Quando ela casara com John Henry, um repórter escrevera que ela parecia uma verdadeira princesa e depois explicara que de certo modo o era... Mas os olhos que observavam as águas da baía, nessa manhã de outubro, não eram os de uma princesa de conto de fadas, mas sim os de uma jovem mulher solitária, fechada num mundo solitário.
— O seu desjejum está pronto, Mrs. Phillips. — Uma criada com um uniforme branco impecável estava à porta, e Raphaella pensou que se tratava mais de uma ordem do que de um anúncio, mas era sempre essa a impressão que lhe causavam os empregados da casa de John Henry. Sentira o mesmo em casa do pai dela, em Paris, e em casa do avô, na Espanha. Parecia-lhe sempre que eram os criados que davam as ordens, que lhe diziam quando devia levantar-se, preparar-se, almoçar ou jantar. «A senhora está servida... », eram as palavras que anunciavam o jantar em casa de seu pai, em Paris. Mas se a senhora não quisesse ser servida? Se quisesse comer apenas um sanduíche, sentada no chão em frente da lareira? E um sorvete ao desjejum em vez de torradas e ovos escaldados? Essa idéia a fez sorrir enquanto se dirigia para o quarto e olhava à sua volta. Estava tudo pronto. As malas preparadas estavam em um canto.
Eram duas bonitas malas de viagem de cabedal cor de chocolate e uma sacola macia, onde ela levava algumas lembranças para a mãe, para a tia e para as primas, além das suas jóias e qualquer coisa para ler no avião.
Ao olhar para a bagagem, Raphaella não sentiu qualquer excitação por ir viajar. Já quase nada lhe dava prazer. A vida dela não tinha sentido, parecia-lhe que fazia uma viagem infindável com um fim desconhecido, com o que de resto ela não se preocupava. Sabia que cada dia seria exatamente igual ao anterior. Faria todos os dias o mesmo que fizera nos últimos sete anos, exceto nas quatro semanas que passava na Espanha no verão e nos poucos dias em que ia a Paris visitar o pai, antes de seguir para a Espanha. Além disso, havia pequenas viagens ocasionais para ir ao encontro de parentes espanhóis de passagem por Nova Iorque. Parecia-lhe que não ia lá há muitos anos, que deixara a Europa havia uma eternidade, desde que se tornara mulher de John Henry. Agora era tudo muito diferente do que fora ao princípio.
Tudo sucedera como num conto de fadas. Ou como na fusão de duas grandes fortunas. Na história dela, havia um pouco das duas coisas. Tratara-se do casamento do Banco Malle em Paris, Milão, Madrid e Barcelona, com o Banco Phillips da Califórnia e Nova Iorque. Os dois impérios consistiam em bancos com investimentos de grandes proporções internacionais. E o primeiro negócio gigantesco do pai dela com John Henry merecera a cobertura da Time. Isso também fizera com que o pai dela e John Henry se encontrassem tantas vezes nessa primavera; e, à medida que os seus negócios começaram a prosperar, o relacionamento de John Henry com a filha única de Antoine foi-se aprofundando.
Raphaella nunca conhecera ninguém como John Henry. Era alto, bem-parecido, atraente, forte, e ao mesmo tempo gentil, amável, com uma voz amiga e um brilho malicioso iluminando seu olhar. Raphaella percebeu que ele gostava de brincar e gracejar. Era um homem com uma criatividade e imaginação extraordinárias, eloqüente, insinuante, com muita classe. Tinha tudo o que ela ou qualquer outra moça poderia desejar.
A única coisa que faltava a John Henry era juventude. E no princípio até isso era difícil de acreditar, ao ver o belo rosto magro ou ao observar os braços poderosos quando ele jogava tênis ou nadava. Possuía um corpo alto e esbelto, que homens com metade da idade dele teriam invejado.
Inicialmente, a idade o desencorajara de cortejar Raphaella; pouco a pouco, à medida que as suas viagens a Paris se tornavam mais freqüentes, foi achando-a cada vez mais encantadora, mais e mais simpática. E, apesar das suas idéias rígidas a respeito da filha, Antoine de Mornay-Malle não resistiu à perspectiva de ver a sua filha única casar com o seu velho amigo. Ele próprio tinha consciência da beleza da filha, da sua franqueza, do seu encanto inocente. Contudo, tinha também consciência do excelente partido que John Henry Phillips seria para qualquer mulher, apesar da diferença de idades. Também não lhe era indiferente o que tal casamento representaria para o futuro do seu banco, uma idéia que já uma vez pesara nas suas decisões. O seu próprio casamento fora baseado simultaneamente na afeição e no bom sentido para o negócio.
O marquês de Quadral, pai da mulher dele, fora no seu tempo um gênio financeiro que reinava em Madrid, mas os filhos não tinham herdado a sua paixão pelo mundo das finanças e haviam dirigido as atividades para outros campos. Durante vários anos, o marquês procurara alguém que lhe sucedesse na direção dos bancos que ele fundara no decorrer dos anos. Eventualmente, viera a conhecer Antoine, e o Banco Malle acabara por juntar as suas forças com o Banco Quadral.
Essa união quadruplicara rapidamente a fortuna e o poder de Antoine, encantara o marquês e fizera com que ele conhecesse a sua futura mulher. Antoine ficara imediatamente enfeitiçado por aquela espanhola de olhos azuis e cabelos louros. Precisamente nessa altura, começava a pensar em casar e ter um herdeiro.
Até os trinta e cinco anos estivera muito ocupado em transformar o negócio bancário da família num império, mas agora começava a levar outras coisas em consideração.
Alejandra era a perfeita solução para o problema, e uma linda solução, por sinal. Aos dezenove anos, era de uma beleza devastadora, uma beldade como Antoine nunca vira. Ele é que parecia espanhol ao lado dela, com o cabelo negro e olhos escuros. Juntos, formavam um par extraordinário.
Casaram sete meses depois de terem se conhecido, e o casamento deles foi o acontecimento social mais importante da estação. Em seguida, partiram em lua-de-mel para o sul da França, onde permaneceram durante um mês. Logo a seguir, apresentaram-se na propriedade do marquês situada na costa espanhola, em Santa Eugenia. A casa era um verdadeiro palácio e foi ali que Antoine começou a compreender bem o que significava estar casado com Alejandra. Agora era um membro da família, mais um filho do idoso marquês. Esperavam que ele aparecesse frequentemente em Santa Eugenia e em Madrid. Seria certamente o que Alejandra tencionava fazer; e, de fato, quando chegou a hora de regressarem a Paris, ela implorou ao marido que a deixasse ficar em Santa Eugenia durante mais umas semanas. Quando por fim ela voltou para Paris, seis semanas mais tarde do que havia prometido, Antoine compreendeu perfeitamente o que iria suceder depois disso. Alejandra iria passar a maior parte do tempo como sempre passara, rodeada pela família, nas suas propriedades em Espanha. Passara todos os anos da guerra ali seqüestrada e agora, apesar de já não haver guerra e de estar casada, desejava continuar vivendo da mesma maneira, no seu ambiente familiar.
Como era de prever, na altura do primeiro aniversário do seu casamento, Alejandra teve o seu primeiro filho, um rapaz ao qual deram o nome de Julien, e Antoine ficou feliz com isso. Tinha agora um herdeiro para o seu império, e ele e o marquês passeavam durante horas pelos terrenos de Santa Eugenia, conversando a respeito dos seus planos futuros para o bebê que tinha apenas um mês. Antoine tinha todo o apoio do marquês: desde o seu casamento com Alejandra, tanto o Banco Malle como o Banco Quadral tinham crescido.
Alejandra passou todo o verão em Santa Eugenia com os irmãos e irmãs, os filhos deles, primos, sobrinhos e amigos. E, quando Antoine regressou a Paris, Alejandra já engravidara outra vez. Dessa vez, Alejandra abortou espontaneamente e, quando voltou a ficar grávida, teve gêmeos que morreram à nascença. Houve então uma breve pausa em que Alejandra passou seis meses repousando junto da família, em Madrid. Quando voltou para Paris, para o marido, Alejandra ficou novamente grávida. Dessa quarta gravidez nasceu Raphaella, dois anos mais nova do que Julien. Houve depois mais dois abortos espontâneos e outro natimorto. Foi então que Alejandra declarou que o ar de Paris lhe fazia mal à saúde e que as irmãs achavam que ela seria mais saudável na Espanha. Tendo percebido, durante os anos em que estivera casado, o inevitável regresso de Alejandra à Espanha, Antoine aquiesceu calmamente. Era a maneira de ser das mulheres do país dela, e ele sabia que se tratava de uma batalha que ele nunca poderia vencer.
Daí em diante, contentou-se em vê-la em Santa Eugenia ou em Madrid, cercada pelas irmãs, primas e "duenas", contente por se encontrar rodeada pela família e pelas amigas. Tinha também alguns irmãos ainda solteiros, que a acompanhavam a concertos, óperas e peças de teatro. Alejandra era ainda uma das maiores beldades da Espanha e levava ali uma agradável vida de luxo e de indolência que a satisfazia plenamente. Para Antoine, não era grande problema voar para Espanha sempre que os seus negócios permitiam, o que sucedia cada vez menos. Na devida altura, Antoine convenceu-a a deixar que os filhos freqüentassem a escola em Paris, com a condição de irem passar todas as férias a Espanha, além dos quatro meses das férias grandes que passavam em Santa Eugenia. De quando em quando, Alejandra consentia em visitar o marido em Paris, embora se queixasse constantemente do clima que, segundo ela dizia, prejudicava a sua saúde. Depois do último bebê natimorto, não houvera mais filhos; com efeito, passara a existir apenas uma afeição platônica entre Alejandra e o marido, o que era perfeitamente normal, segundo lhe diziam as irmãs.
Antoine sentia-se contente com esse estado de coisas; quando o marquês morreu, ninguém se surpreendeu com as suas disposições. Alejandra e Antoine herdavam em conjunto o Banco Quadral. Os irmãos dela eram amplamente compensados, mas Antoine ficava com o império financeiro que tanto desejava juntar ao seu. Agora, à medida que prosseguia os seus esforços para aumentar esse império, Antoine pensava no filho que seria o seu herdeiro. Porém, o filho único de Antoine não estava destinado a ser seu herdeiro.
Julien de Mornay-Malle morreu aos dezesseis anos num acidente, jogando pólo, em Buenos Aires, deixando a mãe e o pai paralisados pelo desgosto e Raphaella como filha única.
E foi Raphaella quem consolou o pai e o acompanhou a Buenos Aires para trazer o corpo do irmão para França. Foi ela que deu a mão ao pai durante as horas infindáveis em que esperavam que o caixão fosse retirado do avião, em Orly. Alejandra foi para Paris, sempre rodeada por irmãs e primas e acompanhada por um dos irmãos, cercada por pessoas amigas, protegida como vivera durante toda a vida. E, algumas horas após o funeral, foram eles que a incitaram a regressar para a Espanha, ao que ela aquiesceu chorosamente. Alejandra tinha um verdadeiro exército para protegê-la, e Antoine não tinha ninguém, a não ser uma filha de catorze anos.
Essa tragédia apertou mais os laços existentes entre o pai e a filha. Era algo de que nunca falavam, mas que jamais esqueciam. A morte de Julien fortalecera também o elo já existente entre Antoine e John Henry, pois os dois homens descobriram que partilhavam desgostos semelhantes: a morte de seus filhos. O filho de John Henry morrera num desastre de aviação. Aos vinte e um anos, o rapaz já pilotava o seu próprio avião. Cinco anos mais tarde, falecera também a mulher de John Henry, mas fora a morte dos filhos que desferira sobre ambos um golpe intolerável. Antoine ficara com Raphaella para consolá-lo, mas John Henry não tinha mais filhos e, depois da morte da mulher, nunca mais voltara a casar.
Nos primeiros tempos da sua associação comercial, sempre que John Henry ia a Paris, Raphaella encontrava-se ausente na Espanha. John Henry começou a gracejar com Antoine, dizendo-lhe que ele tinha uma filha imaginária. Essa brincadeira durou até o dia em que o mordomo introduziu John Henry no escritório de Antoine e ele deparou com uma moça de uma beleza deslumbrante, que o olhou trêmula, quase como uma corça assustada. Raphaella sentiu-se atemorizada com a presença de um desconhecido. Estava preparando um trabalho para a escola e fora ao escritório do pai consultar uns livros que ele tinha ali. O longo cabelo negro caía-lhe sobre os ombros numa cascata sedosa e levemente ondulada. Durante uns momentos John Henry ficara imóvel, assombrado. Depois se recompôs rapidamente e o brilho afetuoso do seu olhar descansou Raphaella, que viu tratar-se de um amigo. Durante os meses que passava em Paris para estudar, ela via poucas pessoas, e na Espanha era tão bem guardada e protegida que era raro encontrar-se a sós com um homem, fosse onde fosse. Ao princípio, ficou sem saber o que dizer; passados alguns momentos de troca de banalidades, percebeu o cintilar malicioso nos olhos dele e riu. Antoine só chegou meia hora mais tarde, desculpando-se por ter se atrasado no banco. Quando se dirigia para casa, no carro, pensou se John Henry teria finalmente encontrado Raphaella, e teve de admitir a si próprio que desejava que isso tivesse sucedido.
Raphaella retirara-se pouco tempo após a chegada do pai, com as faces ligeiramente rosadas se destacando no rosto perfeito.
— Meu Deus, Antoine, ela é uma verdadeira beleza. — Olhou para o seu amigo francês com uma expressão estranha, e Antoine sorriu.
— Então, gosta da minha filha imaginária, não gosta? Ela não se mostrou terrivelmente tímida? A mãe a convenceu de que todos os homens que tentam falar com uma moça que esteja sozinha são assassinos ou pelo menos violadores. Às vezes fico preocupado com a expressão de terror que vejo nos olhos dela.
— O que esperava? Tem sido totalmente protegida durante toda a vida. Por isso, não é de admirar que seja tímida.
— Mas tem quase dezoito anos e vai ser um verdadeiro problema para ela, a não ser que passe o resto da vida na Espanha. Em Paris, devia ser capaz de falar com um homem sem ter pelo menos meia dúzia de mulheres na sala, a maior parte delas, ou mesmo todas, suas parentes. — Disse aquilo num tom divertido, mas havia algo de muito sério nos olhos dele. Fixava com gravidade John Henry, avaliando a expressão que permanecera nos olhos do americano. — Ela é encantadora, não é? Deve parecer-lhe falta de modéstia dizer isto da minha própria filha, mas... — Abriu os braços, encolheu os ombros e sorriu.
Dessa vez, John Henry sorriu também abertamente.
— Encantadora não é bem a palavra exata. — E então perguntou, de uma maneira tímida, quase como se fosse um rapaz: — Ela janta conosco hoje?
— Se não se importar... Pensei em jantarmos aqui e depois irmos ao clube. O Matthieu de Bourgeon estará lá esta noite e há meses que ando prometendo lhe apresentar o John da próxima vez que viesse aqui.
— Acho bem. — Mas não era em Matthieu de Bourgeon que John Henry pensava enquanto sorria.
Nessa noite, conseguira que Raphaella conversasse descontraidamente com ele, e isso sucedera de novo, dois dias mais tarde, quando ele fora tomar chá com ela. Tinha ido especialmente para conversar com ela e lhe levara dois livros de que lhe falara durante o jantar. Ela corara outra vez e ficara silenciosa, mas dessa vez John conseguira que ela começasse a falar e ao fim da tarde eram quase bons amigos. Durante os seis meses que se seguiram, Raphaella passou a considerar John Henry como um amigo muito querido, uma pessoa pela qual ela sentia quase tanto carinho e respeito como pelo pai e foi como se estivesse a falar de uma espécie de tio que ela se referiu a ele ao conversar a seu respeito com a mãe, em Espanha.
Durante essa viagem de Raphaella a Espanha, John Henry apareceu em Santa Eugenia em companhia de Antoine. Permaneceram ali apenas durante um breve fim-de-semana, durante o qual John Henry encantou Alejandra e todas as outras senhoras que se encontravam na propriedade nessa primavera. Foi nessa altura que Alejandra compreendeu as intenções de John Henry, mas Raphaella só veio a percebê-las no verão. Era a sua primeira semana de férias e ela devia partir de avião para Madrid, dentro de poucos dias. Entretanto, gozava os seus últimos dias em Paris e, quando John Henry chegou, convidou-o a ir dar um passeio com ela ao longo das margens do Sena.
Falaram sobre os artistas que pintavam na rua e sobre as crianças que brincavam, e o seu rosto iluminou-se ao falar dos seus primos em Espanha. Raphaella parecia ter uma paixão por crianças, e a sua beleza tornava-se ainda maior ao falar delas, olhando John com os seus grandes olhos negros.
— Quantos filhos quer ter quando for crescida, Raphaella?
— Eu já sou crescida.
— É? Aos dezoito anos? — John olhou-a divertida, e nos olhos dele apareceu uma expressão estranha que ela não compreendeu. Uma expressão cansada, sensata, velha e triste, como se por instantes ele tivesse pensado no filho. Também tinham falado dele. E Raphaella falara do irmão.
— Sim, já sou crescida. Neste outono, irei para a Sorbonne. — Tinham sorrido um para o outro, ele tivera de se conter para não beijá-la ali mesmo. Enquanto caminhavam lado a lado, John pensava na maneira de lhe dizer, mas ao mesmo tempo julgava-se completamente louco por pensar na hipótese de fazê-lo.
— Raphaella, já pensou na possibilidade de ir para os Estados Unidos?
Raphaella ergueu os olhos para ele, deixando de observar a flor que tinha na mão.
— Não creio que pudesse fazê-lo — respondeu.
— Por quê? O seu inglês é excelente.
— Ela abanou lentamente a cabeça e olhou-o com tristeza. — A minha mãe nunca o permitiria. Seria... seria tudo muito diferente da maneira de viver dela. E além disso é muito longe.
— Mas é isso que quer? A vida do seu pai também é diferente da de sua mãe. Gostaria de levar a vida que ela leva na Espanha?
— Não o creio — disse, calmamente. — Mas estou convencida de que não terei possibilidade de escolher. Creio que o papá sempre pensou em ter o Julien junto de si no banco e ficou combinado que eu iria para Espanha para perto da mama.
A idéia de vê-la rodeada por "duenas" o resto da vida o assustava. Como seu amigo, desejava mais para Raphaella do que isso. Queria vê-la livre e cheia de vida, risonha e independente, mas não enterrada em Santa Eugenia, como a mãe. Não estava certo fazer tal coisa àquela moça. Sentia-o na alma.
— Não penso que seja obrigada a fazer isso, se não quiser.
Raphaella sorriu com uma espécie de resignação misturada com sabedoria, apesar dos seus dezoito anos.
— Há deveres na vida, Mister Phillips.
— Na sua idade, não, pequenina. Por enquanto, não. Alguns deveres, sim. Estudar, por exemplo. E também ouvir os pais, até certo ponto. Mas não tem de seguir um determinado rumo na vida se não o desejar...
— Que farei então? Não conheço outra coisa.
— Isso não é desculpa. Sente-se feliz em Santa Eugenia?
— Às vezes. Outras vezes, não. Em certas ocasiões, acho aquelas mulheres aborrecidas. Mas a minha mãe gosta. Até faz viagens com elas. Viajam em grandes grupos, vão até o Rio e a Buenos Aires, até o Uruguai e Nova Iorque, e até quando vem a Paris as traz com ela. Fazem-me lembrar alunas de um colégio interno em excursão, tão... tão... — Os olhos negros fitaram-no como que a desculparem-se -... tão tolinhas. Não acha? — Olhou-o e ele disse que sim com a cabeça.
— Talvez um pouco. Raphaella... — Quando murmurou o seu nome, ela parou repentinamente de andar e voltou-se para encará-lo, ingênua, totalmente inconsciente da sua beleza, com o seu corpo gracioso inclinado para ele e fitando-o nos olhos com tal confiança que ele teve receio de dizer outra palavra.
— Sim?
Então ele foi incapaz de se conter. Não podia. Tinha de falar...
— Raphaella, querida, eu a amo. — As palavras não passavam de um sussurro no ar perfumado de Paris, e o atraente rosto de John aproximou-se do dela por um momento antes de beijá-la. Os lábios dele comprimiram com meiguice e intensidade os dela e a sua língua procurou a sua... Porém, os lábios de Raphaella permaneciam fechados, embora ela se apertasse contra ele e retribuísse o beijo. Depois, John afastou-a gentilmente, pois não queria que ela se apercebesse da intensidade do seu desejo. — Raphaella, há muito que desejava beijá-la. — Beijou-a de novo, agora com maior suavidade, e ela sorriu de uma maneira como ele nunca a vira sorrir.
— Eu também. — Baixou a cabeça como uma criança envergonhada, mas declarou: — Gostei de si desde a primeira vez que o vi. — Depois, sorriu corajosamente. — É tão belo. — E dessa vez foi ela que o beijou. Em seguida, deu-lhe a mão, como se quisesse continuar o passeio ao longo do Sena, mas ele a encaminhou para um banco.
— Precisamos conversar, primeiro. Quer sentar-se? Raphaella sentou-se ao lado de John Henry e olhou-o interrogativamente; viu nos olhos dele algo que a deixou perplexa.
— Passa-se alguma coisa?
— Não — respondeu ele. — Mas se julga que a trouxe até aqui para «namorar», como se dizia nos meus tempos, engana-se, minha pequenina. Há uma coisa que eu quero dizer-lhe e todo o dia tenho tido receio de fazê-lo.
— O que é? — perguntou Raphaella com o coração a bater apressadamente e falando com uma voz muito suave.
Ele olhou-a durante um momento que lhe pareceu infindável, com o rosto perto do dela e as mãos de Raphaella presas nas suas.
— Quer casar comigo? — Ouviu-a respirar fundo e fechou os olhos enquanto a beijava outra vez. Quando se afastou, lentamente, viu lágrimas nos olhos dela; ela sorria-lhe com suavidade, com um sorriso que ia aumentando gradualmente.
— Sim, quero... — afirmou.
O casamento de Raphaella de Mornay-Malle y de Santos y Quadral com John Henry Phillips IV foi de uma magnificência raramente vista. Teve lugar em Paris e houve um almoço para duzentas pessoas no dia do casamento civil, e um jantar para cento e cinqüenta membros da família e amigos "íntimos", nessa noite. No dia seguinte, compareceram em Notre-Dame mais de seiscentos convidados para a cerimônia religiosa. Antoine deu uma recepção no clube, e todos concordaram que tanto o casamento como a recepção tinham sido os mais belos que já haviam visto. Antoine fez um acordo com a imprensa, de modo que John Henry e Raphaella posaram para os fotógrafos e responderam às perguntas dos jornalistas durante meia hora e depois foram deixados em paz.
A cobertura do casamento apareceu na Vogue, na Women's Wear Dady, e na revista Time da semana seguinte. Durante toda a entrevista com a imprensa, Raphaella apertara quase desesperadamente a mão de John Henry e os seus olhos pareciam ainda maiores e mais escuros debaixo do véu de renda branca.
Foi nessa altura que John Henry jurou a si mesmo proteger Raphaella dos olhares indiscretos da imprensa. Não permitiria nada que pudesse torná-la infeliz ou trazer-lhe desconforto. Sabia bem como ela fora sempre cuidadosamente protegida durante toda a sua curta vida. O problema era que John Henry atraía as atenções da imprensa com alarmante freqüência e, ao casar com uma mulher com menos quarenta e quatro anos do que ele, essa mulher tornava-se também alvo das atenções. Fortunas com a dimensão da de John Henry eram quase inacreditáveis, e uma moça de dezoito anos, filha de uma marquesa espanhola e de um banqueiro francês, era também algo que parecia saído de um conto de fadas.
No entanto, graças aos esforços de John Henry, Raphaella continuava a ter uma vida protegida. Mantiveram os dois um anonimato que ninguém julgaria possível. Raphaella freqüentou mesmo a Universidade da Califórnia, em Berkeley durante dois anos, e tudo correu sem problemas. Ninguém sabia quem ela era. Raphaella não quisera ser conduzida para a universidade pelo motorista, e John Henry lhe comprara um carro pequeno que ela própria conduzia.
Era excitante estar entre os estudantes e ter um segredo, um homem que adorava. Porque ela amava realmente John Henry, e ele se mostrava meigo e apaixonado de todas as maneiras. Sentia que lhe fora dada uma dádiva preciosa, na qual mal se atrevia a tocar, tal a gratidão que experimentava por poder partilhar a sua vida com aquela moça maravilhosa e delicada. Raphaella era ainda, de certo modo, infantil, e depositava uma confiança ilimitada no marido. Talvez por isso, John Henry sentiu um profundo desgosto ao descobrir que se tornara estéril, provavelmente devido a uma grave infecção que tivera nos rins alguns anos antes. Sabia como Raphaella desejava ter filhos e sentia-se culpado por privá-la de algo que ela tanto queria. Quando ele lhe contou, Raphaella respondeu-lhe que não tinha importância, que tinha muitas crianças em Santa Eugenia, que poderia amar e estragar com mimos. Gostava de lhes contar histórias e de lhes enviar presentes. Tinha uma imensa lista com as datas dos aniversários de todas elas e enviava frequentemente um novo brinquedo fabuloso para Espanha.
Nem mesmo o fato de ele não poder ter filhos quebrou o elo que os unira durante anos. Era um casamento em que ela o idolatrava e ele a adorava; e, se a diferença de idades provocava comentários das outras pessoas, nunca foi coisa que os incomodasse. Quase todas as manhãs jogavam tênis e por vezes John Henry corria no Presídio ou ao longo da praia e Raphaella corria ao lado dele, como um cãozinho, rindo e gracejando. Outras vezes, apenas caminhavam em silêncio, lado a lado, de mãos dadas.
Raphaella tinha a vida preenchida com John Henry, com os seus estudos e as cartas que escrevia para a família, em Paris e em Espanha. Levava uma existência antiquada, muito protegida, e foi uma mulher, ou melhor, talvez uma moça feliz, até aos vinte e cinco anos.
Dois dias antes de fazer sessenta e nove anos, John Henry devia ir a Chicago para fechar um negócio importante. Há vários anos que ele falava em retirar-se dos negócios; porém, tal como sucedia com o pai dela, não se dispunha a fazê-lo. Tinha demasiada paixão pelo mundo das altas finanças, pela administração dos bancos, pela aquisição de novas empresas e pela compra e venda de grandes quantidades de ações. Gostava de realizar grandes operações financeiras como a que fizera a primeira vez com o pai dela. Não era capaz de aceitar a idéia de se retirar. Contudo, antes de partir para Chicago, tivera uma dor de cabeça e, apesar dos comprimidos que Raphaella lhe dera nessa manhã, a dor persistira e até piorara.
Aterrorizado, o seu secretário fretara um avião e regressara de Chicago com ele nessa tarde. John Henry estava quase inconsciente. Raphaella olhou para o seu rosto pálido, quando o retiraram do avião, numa maca. John sofria tanto que mal conseguia falar; no entanto, quando seguiam na ambulância a caminho do hospital, apertou-lhe a mão várias vezes. Raphaella, tentando conter as lágrimas que a sufocavam, reparou então que havia algo de estranho na boca dele. Uma hora mais tarde, todo o seu rosto estava estranhamente distorcido e pouco depois entrou em coma, do qual não saiu durante vários dias. John Henry Phillips sofrera uma trombose, foi explicado no noticiário dessa noite. Fora o seu gabinete que preparara o relatório para a imprensa, mantendo Raphaella, como sempre, afastada dos olhares curiosos dos jornalistas.
John Henry permaneceu no hospital durante quase quatro meses e teve mais dois ataques menos fortes. Quando o levaram para casa, perdera definitivamente o uso do braço e da perna direita, o rosto ainda atraente pendia-lhe dolorosamente para um lado, e a aura de força e de poder tinham desaparecido. John Henry Phillips transformara-se subitamente num velho. A partir desse momento, ficou alquebrado de corpo e espírito; no entanto, a sua vida continuou durante mais sete longos anos.
Não voltou mais a sair de casa. A enfermeira empurrava a cadeira de rodas até ao jardim, para apanhar um pouco de sol, e Raphaella ficava sentada junto dele durante horas a fio, mas o cérebro dele já não estava bem claro, e a vida dela, até então tão cheia, tão animada, alterara-se completamente. Agora do homem que ela conhecera, tão cheio de vida e de energia, restava apenas um corpo inerte e um espírito pouco lúcido. E era assim que Raphaella vivia, tratando o marido com dedicação e amor, lendo em voz alta para ele ouvir, falando com ele, confortando-o. Enquanto as enfermeiras que cuidavam dele, dia e noite, lhe tratavam do corpo doente, ela tentava consolar-lhe o espírito. Porém, a lucidez do seu espírito desaparecera, e Raphaella chegava a pensar se não teria sucedido o mesmo a ela. Tinham decorrido sete anos desde a primeira série de ataques. Depois disso, voltara a sofrer mais dois, que o tinham diminuído ainda mais. Conseguia falar, embora com dificuldade; mas a maior parte das vezes parecia nada ter a dizer. Parecia uma cruel ironia do destino que um homem tão cheio de vitalidade estivesse reduzido a tão pouco. Quando Antoine viera de Paris para vê-lo, saíra do quarto do doente com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, e as suas palavras para a filha tinham sido bem claras. Devia ficar junto desse homem que a amara e a quem ela amara, até ele morrer. Não devia queixar-se, nem fugir ao seu dever... que era evidente. E assim foi. Raphaella não se queixou, nem fugiu de maneira alguma às obrigações durante sete longos anos.
A única distração da sombria realidade da sua existência eram as viagens que fazia à Espanha no verão. Agora ia só por duas semanas, em vez de quatro. No entanto, John Henry insistia em absoluto para que ela fosse. Torturava-o pensar que a moça com quem casara estava tão prisioneira da sua enfermidade como ele próprio.
Era diferente mantê-la afastada dos olhos do mundo, com ele acompanhando-a e distraindo-a dia e noite, do que mantê-la fechada em casa com ele, enquanto o seu corpo ia definhando lentamente em torno da sua alma. Se tivesse arranjado maneira de fazê-lo, ter-se-ia morto, dizia muitas vezes ao seu médico, pelo menos para se libertar e a ela.... Falara disso uma vez a Antoine, que se sentira indignado com a idéia.
— Mas ela te adora! — gritara Antoine, e a sua voz ressoara pelas paredes do quarto do doente. — Não podes fazer uma loucura dessas!
— Não me adora assim. — As palavras foram ditas com dificuldade, mas totalmente compreensíveis. — É um crime fazer-lhe isto. Não tenho esse direito. — Ficara sufocado com as próprias lágrimas.
— Não tens o direito de privá-la de ti. Ela ama-te. Amou-te durante sete anos antes de isto suceder. É algo que não muda de um dia para o outro. Não se altera por tu estares doente. E se fosse ela que adoecesse? Deixavas de gostar dela?
John Henry abanou dolorosamente a cabeça.
— Ela devia ter casado com um homem novo, devia ter filhos.
— Ela precisa de ti, John. O lugar dela é a teu lado. Ela fez-se mulher contigo. Sentir-se-á perdida sem ti. Como podes pensar em deixá-la um minuto mais cedo daquilo que te está destinado? Ainda podes ter muitos anos de vida.
Antoine queria encorajá-lo, mas John Henry olhou-o com desespero. Anos... Que idade teria então Raphaella? Trinta e cinco? Quarenta? Quarenta e dois? Estaria totalmente despreparada para começar a construir uma nova vida. Esses pensamentos fizeram com que ele se sentisse ainda mais angustiado e desgostoso, não tanto por si mesmo, mas por ela. Começou a insistir com Raphaella para que ela saísse mais vezes, mas ela sentia remorsos por deixá-lo e além disso o afastamento não lhe causava qualquer alívio. John Henry estava sempre presente na sua memória.
No entanto, o marido intimidava-a insistentemente a sair da sua prisão. Sempre que sabia por Raphaella que a mãe ia estar uns dias em Nova Iorque, a caminho de Buenos Aires ou da Cidade do México, com o habitual acompanhamento de irmãs e primas, apressava-se a dizer a Raphaella que fosse ter com elas. Quer fosse por dois dias ou dez, queria sempre que Raphaella se juntasse a elas, que entrasse no mundo, mesmo que fosse só por uns momentos, e sabia que entre essas mulheres ela estaria sempre em segurança, bem protegida e acompanhada. Na verdade, Raphaella só se encontrava sozinha durante as viagens de avião para Nova Iorque ou para a Europa. O seu motorista a conduzia sempre ao aeroporto, e à chegada havia sempre um carro alugado, com motorista, à sua espera. A vida de Raphaella era ainda a de uma princesa... mas o conto de fadas mudara radicalmente. Os seus olhos pareciam cada vez maiores e mais tranqüilos. Ficava pensativa e silenciosa durante horas, olhando para a lareira ou para as águas da baía. O som do seu riso era agora quase uma recordação e, quando se ouvia por momentos, era como um engano.
Mesmo quando se juntava à família para passar alguns dias em Nova Iorque ou em qualquer outro sítio, era como se não estivesse ali. Desde a doença de John Henry, Raphaella tornara-se cada vez mais reservada, mais introvertida, até parecer haver pouca diferença entre o estado dela e o de John Henry. A vida dela parecia tão acabada como a dele. Com a diferença que a dela nunca começara de fato. Só em Santa Eugenia é que ela mostrava voltar à vida, com uma criança no colo, outra nos joelhos e mais três ou quatro à sua volta, enquanto ela lhes contava histórias maravilhosas e elas a olhavam com encantamento. Só junto das crianças é que Raphaella esquecia o desgosto do sucedido, a sua solidão e a sensação acabrunhante de perda. Junto dos adultos, mostrava-se sempre reservada e calada, como se nada tivesse para lhes dizer, e achava indecoroso tomar parte na alegria geral. Para Raphaella, era como se um funeral estivesse a decorrer há uma eternidade, ou mais precisamente há sete anos. Contudo, sabia bem como o marido se sentia culpado por estar inválido e como ele sofria por vê-la tão só. Por isso, quando estava com ele, falava-lhe com a maior ternura e rodeava-o de carinho. Mas o que John Henry via nos olhos dela dilacerava-o até ao mais fundo do seu ser. Não era só o fato de ele estar a morrer, mas o fato de ter morto uma moça muito nova e ter deixado no lugar dela uma mulher solitária, com os seus lindos olhos cada vez mais tristes. Era aquela a mulher que ele criara. Era o que ele fizera da moça que em tempos amara.
Quando Raphaella descia rapidamente as escadas atapetadas para o patamar de baixo, olhou rapidamente para o vestíbulo e viu o pessoal limpando as compridas mesas que se estendiam pelas vastas salas. A casa em que moravam fora construída pelo avô de John Henry quando fora viver em São Francisco depois da guerra civil. Sobrevivera ao terremoto de 1906 e era agora um dos mais importantes marcos arquiteturais de São Francisco, com as suas linhas majestosas e os seus cinco andares empoleirados junto do Presídio, dominando a baía. Era também uma casa invulgar por possuir os mais belos vitrais da cidade. Além disso, era uma raridade, por se encontrar ainda na posse da família que a mandara construir. Porém, não se tratava de uma casa na qual Raphaella pudesse se sentir feliz. Parecia-lhe mais um museu ou um mausoléu do que um lar. Parecia-lhe fria e pouco amigável, tal como o pessoal, que já se encontrava ali antes da sua chegada com John Henry. E nunca tivera oportunidade de decorar a seu gosto nenhuma das salas. A casa conservava-se exatamente como quando fora construída. Raphaella vivia ali há catorze anos e, no entanto, cada vez que saía de lá, sentia-se como uma órfã com a sua mala na mão.
— Mais café, Mrs. Phillips? — A criada idosa, que fora a criada de mesa durante trinta e seis anos, olhou para Raphaella como todos os dias. Raphaella vira aquela cara cinco dias por semana durante catorze anos; no entanto, a mulher continuava a ser uma estranha para ela e sempre seria. O nome dela era Marie.
Dessa vez, Raphaella abanou a cabeça.
— Hoje não. Estou com pressa. Obrigada.
Olhou para o relógio de ouro, muito simples, que trazia no pulso; pousou o guardanapo e levantou-se. Os pratos de porcelana com flores que se encontravam sobre a mesa tinham pertencido à primeira mulher de John Henry. Havia uma porção de coisas assim, ali em casa. Tudo parecia ser de qualquer outra pessoa. «A primeira Mistress Phillips», ou «a mãe de Mister Phillips», ou a avó... Às vezes, Raphaella Pensava que se uma pessoa estranha andasse pela casa fazendo perguntas sobre os quadros, os bibelôs ou mesmo sobre objetos sem importância, não encontraria uma pequena coisa de que se dissesse: «Oh, é de Raphaella»... Nada era de Raphaella, a não ser a sua roupa e os seus livros, além da grande coleção de cartas escritas por crianças espanholas, que ela guardava em caixas.
Os saltos dos sapatos de Raphaella fizeram um ligeiro ruído sobre o piso de mármore preto e branco da copa. Pegou num telefone interno que ali se encontrava e ligou um número. Um momento depois, a enfermeira de serviço nessa manhã atendeu no terceiro andar.
— Bom dia. Mister Phillips já acordou?
— Sim, mas ainda não está pronto. «Pronto para quê?», disse para consigo mesma Raphaella. Mas logo a seguir sentiu remorsos por esse pensamento. Como podia ficar aborrecida com John por ele estar doente? Que culpa tinha ele? Contudo, sentia-se um pouco revoltada por aquilo lhe ter sucedido. Durante os primeiros sete anos o seu casamento fora perfeito, maravilhoso...
— Gostaria de ir aí vê-lo durante alguns minutos antes de partir.
— Oh, vai partir hoje?
Raphaella olhou de novo para o relógio.
— Dentro de meia hora.
— Muito bem. Dê-nos então quinze ou vinte minutos e depois poderá passar por aqui antes de sair.
Pobre John Henry. Dez minutos e depois nada. Ninguém iria visitá-lo enquanto ela estivesse fora. Só estaria longe dele uns quatro ou cinco dias, mas mesmo assim pensou que talvez não devesse deixá-lo. E se sucedesse alguma coisa? E se as enfermeiras não prestassem atenção ao que estavam fazendo? Ficava sempre assim quando tinha de deixá-lo. Perturbada, sentindo-se culpada, atormentada, como se não tivesse direito a alguns dias de distração. No entanto, John Henry insistia sempre para que ela fosse, saindo da sua letargia o tempo suficiente para fazê-la afastar-se daquele pesadelo que ambos partilhavam há tanto tempo. Já nem sequer se tratava de um pesadelo, era um vazio, um limbo, um estado comatoso, enquanto as vidas deles continuavam a arrastar-se.
Raphaella entrou no elevador para o segundo andar e dirigiu-se para o seu quarto depois de dizer à enfermeira que iria ver o marido dentro de um quarto de hora. Olhou-se então demoradamente ao espelho, alisou o cabelo negro e sedoso, preso num largo coque sobre a nuca.
Tirou um chapéu do armário. Era um modelo bonito que comprara em Paris um ano antes de os chapéus voltarem a estar na moda. Quando o colocou na cabeça, inclinando-o a seu gosto, pensou entretanto para que o teria comprado. Quem iria reparar no seu bonito chapéu? O pequeno véu preto do chapéu parecia dar mais mistério aos seus grandes olhos amendoados e realçar a brancura da sua pele. Aplicou cuidadosamente uma leve camada de batom brilhante nos lábios e pôs umas pérolas nas orelhas. Passou uma mão pela saia, endireitou as meias e verificou se tinha dinheiro na bolsa da carteira preta de pele de lagarto, que a mãe lhe enviara de Espanha. Refletia-se no espelho a imagem de uma mulher incrivelmente elegante e bonita. De uma mulher que jantava no Maxim's e ia às corridas em Longchamps. Uma mulher que assistia a festas em Veneza, Roma, Viena e Nova Iorque. Uma mulher que freqüentava os teatros de Londres. Não era o rosto de uma mulher que vivera sempre na obscuridade e que estava casada com um inválido moribundo de setenta e seis anos. Raphaella pegou na carteira, sorriu para o espelho e pensou uma vez mais como as aparências podiam ser enganadoras.
Encolheu os ombros ao sair do quarto e, colocando um casaco comprido de vison num dos braços, subiu as escadas para o andar superior. O elevador fora montado por causa de John Henry, e Raphaella preferia quase sempre subir a pé. No terceiro andar, ficava a suite destinada ao marido e mais três quartos, um para cada uma das enfermeiras que cuidavam dele, em turnos. Eram três mulheres de meia-idade, contentes com os seus alojamentos, com o doente e com as suas obrigações. Eram bem pagas pelo seu trabalho, e, tal como a criada que servia à mesa, lá em baixo, os seus rostos conseguiam passar despercebidos no decorrer dos anos. Raphaella sentia frequentemente saudades das criadas impossíveis de Santa Eugenia. Na maioria, eram servis, mas algumas se mostravam rebeldes e infantis. Serviam a mãe e a família da mãe há muitos anos, ou até há várias gerações. Eram aguerridas e exaltadas, mas também carinhosas e amigas. Sentiam amor e dedicação pelas pessoas para quem trabalhavam. Não se pareciam em nada com as frias e calmas profissionais que trabalhavam para John Henry.
Raphaella bateu ao de leve à porta do quarto do marido, e um rosto apareceu rapidamente à porta.
— Bom dia, Mistress Phillips. Já está pronta, não está?
Raphaella disse que sim com a cabeça e entrou no pequeno vestíbulo que antecedia o quarto. Os aposentos do marido, tal como os dela, compunham-se do quarto, quarto de vestir e de uma pequena biblioteca. John Henry estava deitado na cama e olhava para a chama da lareira que já crepitava. Raphaella dirigiu-se lentamente para a cama e ele pareceu não dar por ela até Raphaella se sentar numa cadeira junto da cama e lhe pegar na mão.
— John Henry... — Depois de passar catorze anos em São Francisco, o sotaque dela era ainda perceptível, mas o seu inglês era perfeito desde há muitos anos. — John Henry... — Este voltou lentamente os olhos para ela sem voltar a cabeça, e o rosto cansado e envelhecido contorceu-se num meio sorriso.
— Olá, pequenina. — A voz dele era arrastada, mas ela compreendia-o perfeitamente e, como sempre, sentiu o coração destroçado ao ver o esforço que ele fazia para sorrir. — Estás muito bonita. — Depois, após outra pausa: — A minha mãe teve um chapéu como esse há muito tempo.
— Creio que em mim fica deslocado, mas... — Encolheu subitamente os ombros, parecendo de repente muito francesa ao sorrir hesitantemente. Porém, só a boca dela é que sorria. Os olhos raramente o faziam. E os dele também não, a não ser quando fitavam Raphaella.
— Vais hoje? — Parecia preocupado, e Raphaella pensou mais uma vez se devia cancelar a viagem.
— Sim. Mas queres que fique, querido?
Ele abanou a cabeça e sorriu outra vez.
— Não, nunca. Gostaria que saísses mais vezes. Faz-te bem. Vais ter com... — Pareceu desmemoriado durante um bocado, como se procurasse algo que obviamente não recordava.
— Com a minha mãe, a minha tia e duas primas.
John Henry fechou os olhos.
— Então, estarás em segurança.
— Estou sempre em segurança.
Ele disse novamente que sim com a cabeça, como se estivesse muito cansado, e Raphaella levantou-se, inclinou-se para beijá-lo na face e largou-lhe suavemente a mão. Por momentos, pensou que ele fosse adormecer, mas subitamente abriu os olhos e fitou-a.
— Tem cuidado, Raphaella.
— Prometo. E logo te telefono.
— Não precisas fazê-lo. Por que não esqueces tudo isto e te divertes um bocado? —
«Com quem? Com a mãe? Com a tia?» Raphaella quase deixou escapar um suspiro. — em breve estarei de volta e todos sabem onde estarei, se precisares de mim.
— Não preciso de ti... pelo menos não o suficiente para estragar a tua viagem.
— Nunca o fizeste. — Raphaella murmurou essas palavras inclinando-se para ele a fim de beijá-lo. — Vou ter saudades tuas.
Dessa vez ele abanou a cabeça e olhou para o lado oposto.
— Não...
— Querido... — Tinha de deixá-lo para ir para o aeroporto, mas de certo modo não achava correto abandoná-lo assim. Nunca achava. Devia ficar?
— John Henry... — Tocou-lhe de leve na mão e ele voltou-se de novo para ela. — Tenho de ir agora.
— Está bem, pequenina. Está bem. — A expressão dos olhos absolvia-a e dessa vez ele agarrou na mão dela, jovem e firme, com a sua mão descarnada, que fora macia e meiga. — Faz boa viagem. — Tentou tornar a sua voz convincente e abanou a cabeça quando viu que os olhos dela se enchiam de lágrimas. Sabia no que ela estava a pensar.
— Vai. Eu ficarei bem.
— Prometes? — Os olhos de Raphaella estavam brilhantes de lágrimas e John sorriu com muita meiguice ao beijar-lhe a mão.
— Prometo. Agora seja uma boa moça. Vai e diverte-te. Promete que irás comprar uma coisa muito bonita em Nova Iorque.
— O quê?
— Um casaco de peles ou uma jóia. — Pareceu pensativo por momentos. — Algo que gostasses que eu te comprasse. — Depois, fitou-a com ternura e sorriu.
Raphaella abanou a cabeça enquanto as lágrimas lhe rolavam pelas faces e o pequeno véu negro aumentava o mistério dos seus olhos.
— Nunca serei tão generosa como tu, John Henry.
— Tenta sê-lo. — John esforçou-se por falar de um modo imperativo e dessa vez riram os dois. — Prometes?
— Está bem. Prometo. Mas não outra pele.
— Então, alguma coisa que brilhe.
— Veremos. — Mais uma jóia. Mas... aonde iria usá-la? Ali em casa, sentada junto da lareira? A futilidade de todas essas coisas a acabrunhava; porém, continuava a sorrir enquanto ia saindo do quarto e lhe dizia adeus.
No aeroporto, o motorista parou o carro na área que indicava PARTIDAS e mostrou o seu passe especial a um polícia. Os motoristas de John Henry tinham passes especiais, emitidos pelo gabinete do governador, que eram renovados todos os anos. Isso lhes permitia estacionarem os carros onde fosse mais conveniente. Nessa ocasião, o motorista deixou a limusine parada numa curva, enquanto acompanhava Raphaella até o avião. A companhia aérea era sempre avisada da sua ida, e Raphaella podia entrar no avião antes de qualquer outra pessoa.
Enquanto caminhavam lentamente ao longo das imensas salas cheias de gente, muitos olhares se voltavam para observar aquela bela mulher com um luxuoso casaco de peles e um chapeuzinho com véu. Esse chapéu lhe dava uma aparência dramática que se acentuava ainda mais com as grandes olheiras que cercavam os profundos olhos negros. O motorista caminhava ao lado de Raphaella, levando na mão a sacola de viagem.
— Tom, pode esperar aqui por mim durante um minuto, por favor? — Raphaella tocara de leve no braço do motorista para fazê-lo parar; Tom ansiava por metê-la no avião o mais depressa possível, pois sabia que Mr. Phillips não gostava que ela se encontrasse em locais onde pudesse ser incomodada por jornalistas. No entanto, Raphaella estivera sempre tão afastada das atenções que os jornalistas já nem se lembravam dela.
Raphaella deixou o motorista junto de uma coluna e dirigiu-se rapidamente para uma livraria, olhando à sua volta, enquanto ele se mantinha no seu posto, encostado à parede e apertando bem numa mão a sacola de viagem. Do lugar onde se encontrava, podia admirar a elegância e beleza de Raphaella, que olhava os expositores cheios de livros, revistas e guloseimas. Tinha um aspecto muito diferente dos outros viajantes, quase todos com calças de brim, parcas e casacões próprios para andar de carro. De vez em quando, via-se uma mulher atraente ou um homem bem vestido, mas nada que se comparasse com Mrs. Phillips. Tom viu-a tirar um livro de uma prateleira, levá-lo à caixa e tirar o dinheiro da carteira.
Foi nessa altura que Alex Hale entrou apressadamente no aeroporto. Ainda era cedo, mas precisava telefonar para o escritório antes de apanhar o avião. Parou em frente de uma série de telefones, pousou a pasta e uma pequena mala no chão e levou a mão ao bolso das calças para tirar uma moeda. Marcou rapidamente o número, inseriu a moeda na ranhura e em seguida as outras moedas indicadas pela telefonista, enquanto a sua recepcionista atendia a chamada. Tinha várias mensagens de última hora para deixar aos seus sócios e havia uma em especial que queria explicar à secretária antes de embarcar, sentindo-se ansioso por saber se o telefonema que esperava de Londres chegara.
Quando se preparava para desligar, voltou-se e viu um exemplar do último livro escrito pela mãe mudando de mãos no balcão da livraria. A mulher que o estava comprando envergava um casaco de peles e tinha na cabeça um chapéu preto com um véu. Alex olhou-a, fascinado, enquanto a secretária, do outro lado da linha, lhe pedia para esperar um momento para atender outra chamada. Foi nessa altura que Raphaella começou a dirigir-se para onde ele se encontrava, com o ligeiro véu lhe cobrindo em parte os olhos, e o livro na mão enluvada. Quando ela passou junto dele, Alex percebeu o perfume que emanava dela. Então, subitamente, compreendeu que não era a primeira vez que via aqueles olhos.
— Oh, meu Deus! — As palavras dele não passaram de um sussurro. Era a mulher das escadas, que agora desaparecia entre a multidão que enchia o aeroporto, levando na mão o último livro que a mãe dele escrevera... Durante um momento louco desejou gritar: «Pare!»... mas estava preso ao telefone e não podia sair dali sem a secretária lhe dar as respostas que esperava. Os seus olhos perscrutavam desesperadamente a multidão em movimento constante. Num momento, apesar dos seus esforços para não perdê-la de vista, ela desapareceu. A secretária voltou a falar logo de imediato, mas deu-lhe uma resposta pouco satisfatória dizendo-lhe que precisava atender outro telefonema. — E por causa disto fez-me esperar tanto tempo ao telefone, Barbara?
Pela primeira vez durante muito tempo a moça notou que ele se mostrava zangado, mas só teve tempo de murmurar: — Desculpe — e em seguida atendeu outros dois telefonemas.
Então, como se achasse que era possível encontrar a mulher do chapéu com véu se ele se apressasse, Alex começou a avançar rapidamente por entre a multidão, procurando aquele ser que tanto o intrigara. Porém, passados alguns minutos, tornou-se óbvio que ela não se encontrava à vista. Que diferença lhe fazia isso, pensou. Quem seria ela? Ninguém. Uma desconhecida.
Troçou de si próprio, chamando-se de romântico por andar perseguindo uma mulher misteriosa pelo aeroporto. Era como procurar o coelho branco em Alice no País das Maravilhas, com a diferença de que no seu caso ele procurava uma linda mulher de olhos negros envergando um casaco de vison e tendo na cabeça um chapéu preto com um véu e, é claro, levando na mão "Lovers and Lies", o último livro de Charlotte Brandon. «Calma», disse para consigo ao passar pelos balcões das diversas companhias aéreas cheias de gente. As pessoas já começavam a fazer fila para mostrar os seus bilhetes e receber o talão para o embarque. Quando quis comprar o bilhete, havia muita gente à sua frente e, quando chegou a vez dele, o funcionário disse-lhe que só tinha lugares nas duas últimas filas.
— Por que não hão de meter-me no banheiro para fazer a viagem? — Olhou com ar desanimado para o funcionário que o estava atendendo, mas ele limitou-se a sorrir.
— Acredite que quem vier depois de si, ou vai para o banheiro ou para o porão. O avião está completamente cheio.
— Isso devia ser agradável.
O funcionário da companhia aérea sorriu com simpatia e abriu os braços.
— Teremos culpa de gostarem de nós? — Então riram ambos. Subitamente Alex se achou procurando-a ansiosamente com o olhar e mais uma vez sem êxito. Por momentos, esteve prestes a perguntar ao funcionário que o atendia se a vira. Mas logo a seguir reconheceu que seria loucura fazê-lo.
Alex recebeu o seu bilhete e momentos depois entrava na fila para se dirigir para a porta. Enquanto esperava, pensava no cliente com quem iria encontrar-se em Nova Iorque, na mãe, na irmã e na sobrinha Amanda. Contudo, de vez em quando, vinha-lhe à memória a bela desconhecida, tal como sucedera depois de tê-la visto chorar nas escadas. Ou estaria ele completamente doido e não se trataria da mesma mulher? Sorriu para si próprio. Essas fantasias é que faziam com que os livros que a mãe escrevia fossem comprados. Ou talvez fosse uma coisa psicológica e ele estivesse enlouquecendo. Mas essa perspectiva parecia diverti-lo, enquanto a fila avançava vagarosamente e ele tirava o cartão de embarque do bolso. Mais uma vez dirigiu os seus pensamentos para aquilo que teria de fazer em Nova Iorque.
Tom meteu a sacola de viagem debaixo do banco e Raphaella sentou-se. A aeromoça levou o belo casaco de vison escuro para guardá-lo. Todo o pessoal de bordo fora avisado de que transportariam um VIP na viagem para Nova Iorque, mas que viajaria em classe turística e não em primeira, por assim o desejar. Durante anos, ela insistira com John Henry que assim a viagem seria muito mais «discreta». Ninguém esperaria encontrar a mulher de um dos homens mais ricos do mundo, perdida entre secretárias, donas de casa e vendedores, na classe turística. Depois de a instalarem no avião antes da entrada dos outros passageiros, como sempre sucedia, sentou-se rapidamente na penúltima fila, onde habitualmente se sentava. Era um lugar tão discreto que se tornava quase invisível. Raphaella sabia também que o pessoal de bordo faria esforços para não colocar qualquer outro passageiro no lugar ao lado dela, por isso seria quase certo que faria toda a viagem sozinha. Agradeceu a Tom e ficou vendo-o sair quando os primeiros passageiros começaram a entrar no aparelho.
Alex seguiu entre os outros passageiros, avançando lentamente para a porta do avião, de onde as pessoas iam sendo encaminhadas para os seus lugares pelas aeromoças sorridentes que os recebiam. Os passageiros de primeira classe já se encontravam sentados, separados por uma cortina, encerrados no seu mundo privado e protegidos dos olhares curiosos dos outros passageiros. No corpo principal do aparelho, os outros passageiros estavam se instalando, colocando as malas no depósito lateral ou enfiando embrulhos ou pastas nas redes acima dos assentos, de modo que as aeromoças eram obrigadas a percorrer o avião de um extremo ao outro, pedindo às pessoas que pusessem todos os volumes debaixo das cadeiras e apenas chapéus e casacos na rede. Era uma velha cantilena para Alex, que procurava mecanicamente o seu lugar, por já saber onde ficava. Entregara a mala a uma aeromoça, à entrada, e iria pôr a pasta debaixo do assento, depois de escolher um ou dois dossiês que tencionava estudar durante a viagem. Era nisso que estava pensando enquanto abria caminho para a parte de trás do aparelho, tentando não trombar com os outros passageiros nem com os filhos deles enquanto avançava. Por instantes pensara outra vez na desconhecida, mas sabia que seria inútil procurá-la ali. Não a vira entre as pessoas que se preparavam para entrar no avião e sabia que ela não estaria lá.
Chegou junto do lugar que lhe fora destinado e colocou a pasta por baixo, preparando-se para se sentar. Reparou então que já havia qualquer coisa embaixo de um dos lugares ao lado do seu e percebeu com desagrado que não viajaria sozinho naquela fila.
Esperava que se tratasse de alguém que tivesse tanto que fazer como ele. Não queria ser incomodado com conversas durante a viagem. Sentou-se, retirou a pasta de baixo do assento, tirou de lá os dois dossiês que queria ler e verificou com satisfação que não se encontrava ali mais ninguém. Momentos depois sentiu movimento junto dele e desviou a atenção da folha que estava a ler e olhou para o chão. Ao fazê-lo, deparou com um par de bonitos e caros sapatos de pele de lagarto, pretos. «Gucci», pensou reparando nos pequenos rebordos dourados que enfeitavam os sapatos. Reparou então, numa fração de segundo, que os tornozelos eram ainda mais atraentes do que os sapatos.
Sentindo-se ligeiramente como um rapaz atrevido, achou-se observando as compridas e elegantes pernas até ao princípio da saia preta, e depois prosseguiu até chegar ao rosto que o olhava, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado. Parecia que ela lhe ia fazer uma pergunta, como se tivesse perfeita consciência de que ele estivera a examiná-la dos pés à cabeça. Mas ao ver o rosto dela, estampou-se na cara de Alex uma expressão de assombro total e, sem pensar, levantou-se.
— Meu Deus, é a senhora! — exclamou.
Ela pareceu igualmente assombrada, mas nada disse, tentando perceber o que ele quereria dizer e quem seria. Ele parecia julgar conhecê-la e por instantes imaginou, aterrorizada, que fosse alguém que tivesse visto uma fotografia dela ou lido qualquer coisa sobre ela na imprensa. Talvez fosse até um jornalista e por momentos teve a tentação de se voltar e fugir. No avião, porém, seria prisioneira dele durante horas. Ansiosa, começou a recuar para se afastar dele, com os olhos muito abertos e assustados, a carteira presa debaixo do braço. Ia procurar a aeromoça e insistir para que ela a pusesse na primeira classe. Ou talvez ainda não fosse tarde demais para a deixarem sair do avião. Poderia apanhar o próximo vôo para Nova Iorque.
— Eu... não... — murmurou em voz baixa ao mesmo tempo que se voltava, mas antes de poder dar um passo para se afastar, sentiu a mão dele no braço. Alex vira o terror nos olhos dela e sentia-se horrorizado com o que fizera.
— Não, não fuja.
Raphaella voltou-se para olhá-lo, sem saber bem que o fazia. Todos os seus instintos lhe diziam para fugir.
— Quem é o senhor?
— Alex Hale. Eu só... é que... — Sorriu gentilmente, desgostoso com o que via nos olhos daquela bonita mulher. Eram uns olhos cheios de dor e de tristeza. E também de terror. Alex não sabia o que se passava com ela, mas sabia que não queria que ela fugisse. — Vi-a comprar isso no aeroporto. — Apontou para o livro que ela colocara no lugar dela... Raphaella continuou a não compreender, mas ele prosseguiu: — E... vi-a uma vez nas escadas, em Broderick, há cerca de uma semana. Estava... — Como havia de lhe dizer que a vira chorar? Isso faria com que ela fugisse outra vez. Mas as palavras dele pareceram detê-la e ela fitou-o demoradamente. À medida que recordava essa noite, uma leve cor espalhou-se pelas faces de Raphaella.
— Eu... — Raphaella disse que sim com a cabeça e virou a cara. Talvez ele não fosse um jornalista. Talvez fosse um louco ou um tolo. Mas não queria viajar cinco horas sentada ao lado dele, pensando no motivo que o levara a dizer: «Meu Deus, é a senhora!» e a lhe agarrar o braço.
Estava parada, indecisa, quando se ouviu o último aviso para que os passageiros ocupassem os seus lugares e apertassem os cintos de segurança; Alex afastou-se para deixá-la ir para o lugar.
— Por que não se senta?
Alex manteve-se de pé, alto, de aspecto afetuoso e bem-parecido, e Raphaella, como não visse maneira de lhe fugir, passou silenciosamente em frente dele e sentou-se.
Já tinha tirado o chapéu que colocara na rede e agora o seu cabelo preto brilhava como seda enquanto ela conservava a cabeça inclinada e voltada para a janela. Alex também nada disse e sentou-se no seu lugar, deixando uma cadeira vaga entre os dois.
Alex sentia o coração a bater desordenadamente. Ela era tão bonita como ele julgara na noite em que a vira sentada nos degraus, rodeada pelas peles do casaco, os grandes olhos negros olhando para cima e as lágrimas correndo-lhe pelas faces. Era a mesma mulher que se encontrava agora sentada a pouca distância dele, e cada fibra do seu ser ansiava desesperadamente tocá-la, tomá-la nos braços. Era loucura e ele sabia. Tratava-se de uma perfeita desconhecida. Então, Alex sorriu para si mesmo. As palavras eram apropriadas. Ela parecia-lhe perfeita em todos os sentidos. Olhou de soslaio para o pescoço dela, para as mãos, a maneira como ela se sentava... e só viu perfeição. Quando viu o perfil dela, por instantes teve dificuldade em desviar o olhar. Apesar de tudo, Alex compreendeu que a devia estar perturbando e pegou os dossiês e fingiu começar a ler, esperando convencê-la de que as suas atenções se tinham virado para outro lado. Só depois de decolarem é que Alex viu que ela o olhava de soslaio, parecendo observá-lo demoradamente.
Sentindo-se incapaz de fingir indiferença por mais tempo, Alex voltou-se para ela olhando-a afetuosamente, com um leve sorriso nos lábios.
— Desculpe tê-la assustado há pouco. É que... Habitualmente não faço coisas destas. — O sorriso dele alargou-se, mas ela não o retribuiu. — Não... não sei como explicar. — Por momentos sentiu-se um verdadeiro tolo ao tentar dizer-lhe o que sentira quando a vira sentada nas escadas, olhando-o com um rosto sem expressão, onde brilhavam uns olhos cheios da mais profunda tristeza, que tanto o tinham comovido. — Quando a vi nessa noite nas escadas, quando estava... — Decidiu continuar: — ... quando estava chorando. Senti-me tão impotente quando a vi olhar-me e logo a seguir a vi desaparecer. Desapareceu como por magia. Isso me preocupou durante dias e eu fiquei a pensar em si, no seu olhar, nas lágrimas que lhe corriam pelas faces. — Enquanto falava, Alex julgou perceber que a expressão dela se suavizava, apesar de conservar o seu ar distante. Encolheu os ombros e sorriu. — Talvez eu não possa resistir a donzelas em aflição. Mas a verdade é que ocupou os meus pensamentos durante toda a semana. E há pouco, no aeroporto, enquanto telefonava para o meu escritório, reparei numa mulher que comprava um livro. — Olhou para a capa do livro e não lhe quis dizer logo como ele lhe era familiar. — Percebi então que era a mesma pessoa que eu vira nas escadas. Era uma coisa espantosa, parecia uma cena de um filme. Durante uma semana inteira fora assombrado por uma visão e agora ali estava ela, tal como eu a vira e igualmente bela.
Dessa vez Raphaella sorriu. Ele era simpático e devia ser muito novo; de uma maneira estranha fez-lhe lembrar o irmão que aos quinze anos se apaixonava todas as semanas por uma moça diferente.
— E depois... desapareceu outra vez — continuou Alex. — Desliguei o telefone e vi que a tinha perdido novamente de vista.
Raphaella não quis lhe dizer que entrara num gabinete e que fora conduzida ao avião por caminhos fechados ao público.
Alex mostrou-se perplexo por um momento.
— Nem sequer a vi entrar no avião. — Depois baixou a voz como se estivesse conspirando: — Diga-me a verdade, é mágica? — Parecia uma criança grande e ele não pôde deixar de sorrir.
Os olhos de Raphaella brilharam ao olhar Alex, já sem receio nem cólera. Ele era um pouco louco, um pouco romântico e muito novo, e ela sentia que ele não queria lhe fazer qualquer mal. Fitou-o e declarou com um meio sorriso:
— Sim, sou.
— Ah! Era o que eu pensava. Uma dama mágica. Isso é fantástico. — Recostou-se para trás na cadeira sorrindo abertamente e ela sorriu também. Era uma brincadeira divertida. E nenhum mal lhe podia suceder ali no avião. Tratava-se de um estranho e nunca mais o veria. As aeromoças fá-la-iam sair quase instantaneamente logo que chegassem a Nova Iorque e ela ficaria novamente em segurança em mãos familiares. Mas era divertida aquela conversa com um estranho. E agora se recordava de tê-lo visto na noite em que se sentira desesperadamente só e se sentara, para chorar, nos degraus de pedra que se estendiam ao longo da encosta do monte. Olhara para cima e o vira e antes que ele pudesse se aproximar fugira pela porta do jardim. Enquanto pensava nisso, reparou que ele sorria outra vez. — É difícil ser uma dama mágica?
— Às vezes. — Alex julgou perceber um leve sotaque estrangeiro nas palavras dela, mas não teve a certeza. Então, tentado pela segurança do jogo, decidiu-se.
— É uma dama mágica americana?
Raphaella abanou a cabeça.
— Não, não sou. — Apesar de ter casado com John Henry, continuara a ser cidadã de França e de Espanha. Não via qualquer mal em estar conversando com aquele desconhecido, que parecia examinar a coleção de anéis que ela tinha em ambas as mãos. Sabia o que ele procurava, mas tinha a certeza de que não descobriria o que queria.
Subitamente não quis que ele soubesse, não quis ser Mrs. John Phillips. Naquele instante, desejava ser apenas Raphaella, uma moça.
— Ainda não me disse de onde era, Dama Mágica.
Afastou os olhos das mãos dela. Decidira que, fosse ela quem fosse, a verdade é que não usava uma aliança de ouro em nenhuma das mãos. Ficara aliviado com isso. Resolvera que talvez ela tivesse um pai rico que lhe tornasse a vida difícil e fosse por isso que estivesse a chorar nas escadas quando ele a vira pela primeira vez. Ou talvez fosse divorciada. A verdade é que isso não o preocupava. Só lhe interessavam as mãos dela, os olhos, o sorriso, e a força que o impelia para ela.
Sentira isso mesmo à distância, e fora o que fizera com que ele quisesse aproximar-se dela. E agora estava muito mais perto dela, mas sabia que não podia tocá-la.
Tudo o que podia fazer era continuar o jogo.
Raphaella sorriu abertamente. Por momentos, tinham-se tomado quase amigos.
— Nasci na França.
— Sim? E ainda vive lá?
Ela abanou a cabeça como resposta, agora mais séria.
— Não, vivo em São Francisco.
— Foi o que pensei.
— Sim? — Olhou-o com surpresa. — Como é que sabia? — Havia nela algo de muito inocente ao fazer aquela pergunta. Contudo, ao mesmo tempo, a expressão dela era a de uma pessoa sensata. A sua maneira de falar com ele sugeria que ela não estivera muito exposta à maldade do mundo. — E eu tenho aspecto de quem vive em São Francisco?
— Não, mas calculei que vivesse. Gosta de São Francisco?
Ela disse que sim, com um baixar de cabeça, mas a expressão de uma profunda tristeza voltara a aparecer nos seus olhos. Falar com ela era como navegar por águas revoltas, sem nunca saber quando iria naufragar ou quando poderia navegar com segurança.
— Gosto, mas raramente vejo a cidade, agora.
— Não? — Alex receava fazer uma pergunta mais séria, como qual a razão que a impedia de ver a cidade. — E o que faz então? — A voz dele era meiga e parecia acariciá-la. Raphaella fitou-o com os maiores olhos que ele já vira.
— Leio. Leio muito. — Sorriu-lhe, e ela encolheu os ombros como se estivesse embaraçada. Corando de leve, virou o rosto para o lado e depois novamente para ele para lhe fazer uma pergunta. — E o senhor? — Sentia-se corajosa por fazer uma pergunta tão pessoal a um estranho.
— Sou advogado.
Ela sorriu calmamente. Gostara da resposta dele. Sempre achara as leis um assunto fascinante, e ser advogado parecia uma profissão adequada para aquele homem. Calculava que fosse mais ou menos da idade dela. Na verdade ele tinha seis anos mais do que ela.
— Gosta de ser advogado?
— Muito. E a senhora? Que mais faz além de ler, Dama Mágica?
Por momentos, com leve toque de ironia, ela esteve para dizer que era enfermeira. No entanto pareceu-lhe uma crueldade imerecida para John Henry, por isso ficou calada por momentos e limitou-se a abanar a cabeça. Depois olhou para Alex com franqueza e respondeu:
— Nada. Absolutamente nada.
Alex pensou novamente como seria a vida dela, o que faria durante todo o dia e por quê estaria chorando naquela noite. De repente isso o perturbou mais do que nunca.
— Viaja muito?
— De vez em quando. Mas só por alguns dias. — Olhou para as suas mãos, fixando o olhar no anel que formava um nó de ouro e diamantes no anelar esquerdo.
— Vai para França agora? — Calculara que ela fosse parisiense e claro que tinha razão. Mas ela abanou a cabeça.
— Para Nova Iorque. Só vou a Paris uma vez por ano, no verão.
— É uma linda cidade. Passei lá seis meses e gostei muito.
— Sim? Então fala francês?
— Não poderei dizer tal coisa. — O sorriso juvenil alargou-se. — Pelo menos não o falo tão bem como a senhora fala inglês.
Raphaella sorriu também e folheou o livro que comprara no aeroporto. Alex reparou nisso com um ar de satisfação.
— Lê muitos livros dela? — indagou.
— De quem?
— Da Charlotte Brandon.
— Sim. Gosto dela. Li todos os livros que ela escreveu. — Depois o olhou como que se desculpando. — Sei que não se trata de uma leitura muito séria, mas é uma maneira de fugir à realidade. Abro um dos livros dela e sinto-me imediatamente absorvida pelo mundo que ela descreve. Creio que os homens consideram tolo este gênero de livros, mas... — Não queria dizer-lhe que esses livros a tinham ajudado a manter o seu equilíbrio mental durante os últimos sete anos, pois ele julgaria que ela era louca. — Mas... eu os acho muito agradáveis.
— Eu sei. Também os tenho lido.
Raphaella olhou-o com assombro. Os livros de Charlotte Brandon não lhe pareciam apropriados para um homem. John Henry certamente nunca os tinha lido e o pai dela também não. Liam livros que não eram de ficção, acerca de economia ou sobre as guerras mundiais.
— Gosta deles?
— Muito. — Resolveu então prolongar um pouco o jogo. — Li-os todos.
— De verdade? — Os olhos de Raphaella abriram-se ainda mais. Parecia-lhe uma leitura estranha para um advogado. Sorrindo, estendeu o livro para ele. — Já leu este? É o mais recente. — Talvez ela tivesse acabado de encontrar um amigo.
Alex olhou para o livro.
— Creio que é o melhor. Vai gostar. É mais sério do que muitos dos outros. Trata-se de uma história relacionada com a morte. Não é apenas bonita. Ela quis dizer muito com isso. — Alex sabia que a mãe escrevera aquele livro no ano anterior, antes de fazer uma operação importante e que receara ser esse o seu último livro. Tentara dizer algo de importante através dele e o conseguira. O rosto de Alex tinha agora uma expressão grave. — Sei que este livro tem um grande significado para ela.
Raphaella olhou-o com estranheza.
— Como sabe isso? Conhece-a?
Houve uma pausa e o sorriso voltou ao rosto de Alex enquanto ele se inclinava e murmurava ao ouvido de Raphaella:
— Ela é minha mãe.
Dessa vez, Raphaella riu-se dele; o riso dela soou aos ouvidos de Alex com um som cristalino.
— É, pode crer que é — insistiu ele.
— Para advogado, é realmente muito tolo.
— Tolo? — Alex tentou mostrar-se ofendido. — Falo a sério. A Charlotte Brandon é minha mãe.
— E o presidente dos Estados Unidos é meu pai.
— Felicitações. — Alex estendeu-lhe a mão e ela deixou que ele pegasse na sua para darem um vigoroso aperto de mão. — A propósito, o meu nome é Alex Hale.
— Está vendo! — exclamou Raphaella rindo de novo. — Não se chama Brandon.
— Ela usa o seu nome de solteira. O nome dela é Charlotte Brandon Hale.
— Realmente... — Raphaella não conseguia parar de rir e de cada vez que o olhava ria mais. — Costuma contar sempre estas histórias?
— Apenas a desconhecidas. A propósito, Dama Mágica, qual é o seu nome?
Alex sabia que estava sendo ousado, mas desejava desesperadamente saber quem era ela. Queria que perdessem o mútuo anonimato. Queria saber o que ela fazia, onde vivia e onde poderia encontrá-la se ela parecesse esvair-se de novo no ar.
Ela pareceu hesitar por momentos em responder à pergunta de Alex.
— Raphaella. — murmurou.
Alex abanou a cabeça com um leve sorriso. — Isso me parece história. Não é um nome francês.
— Não, é espanhol. Eu sou apenas meio francesa.
— E meio espanhola?
Ela tinha os cabelos e os olhos muito pretos e a pele muito branca e ele atribuiu isso à sua parte espanhola. Não podia saber que essas cores lhe vinham do pai francês.
— Sim, sou meio espanhola.
— Qual das metades é espanhola? O coração ou o cérebro?
Era uma pergunta séria e ela franziu o sobrolho ao pensar na resposta.
— É uma pergunta difícil. Não tenho a certeza. Suponho que o meu coração é francês e o cérebro espanhol. Penso como espanhola, não tanto por querer, mas sim por hábito. Não sei por que, mas essa maneira de viver sobrepõe-se a tudo o resto.
Alex olhou por cima do ombro, com ar desconfiado.
— Não vejo nenhuma "duena" — murmurou.
Raphaella soltou uma gargalhada.
— Não, mas há de ver. O único lugar em que eu me encontro alguma vez sozinha é num avião.
— Isso é estranho e muito intrigante. — Gostaria de lhe perguntar a idade. Calculava que ela tivesse vinte e cinco ou vinte e seis anos e ficaria muito surpreendido se soubesse que tinha trinta e dois. — E não se importa de andar sempre acompanhada?
— Às vezes, mas sem isso talvez estranhasse. Estou habituada. Creio que poderia sentir receio se não andasse sempre protegida.
— Por quê? — Ela intrigava-o mais do que nunca. Era diferente de qualquer mulher que tivesse conhecido.
— Porque ficaria sem proteção.
— Mas quer proteger-se de quem?
Raphaella ficou por momentos pensativa e depois sorriu.
— De pessoas como o senhor... — disse suavemente.
Alex apenas sorriu, e durante longos minutos ficaram calados, mergulhados nos seus pensamentos e pensando na vida de um e do outro. Passado um bocado Raphaella perguntou:
— Por que me contou essa história acerca da Charlotte Brandon?
Ele limitou-se a sorrir.
— Porque é verdade. Ela é minha mãe, Raphaella... Diga-me a verdade, seu nome é realmente Raphaella?
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— É — limitou-se a dizer. Mas não acrescentou qualquer outro nome. Apenas Raphaella.
— Pode crer que ela é de fato minha mãe. — Apontou para a fotografia na contracapa do livro e depois olhou tranquilamente para Raphaella, que tinha ainda o livro na mão. — Havia de gostar muito dela. É uma mulher notável.
— Estou certa disso. — Era óbvio que ela continuava a não acreditar na história de Alex.
Então, com ar divertido, ele meteu a mão no bolso interior do casaco e tirou de lá a carteira de cabedal preto que Kay lhe oferecera no seu aniversário. Tinha o mesmo «G» entrelaçado que a carteira preta de Raphaella. Guccí. Tirou de lá duas pequenas fotos e entregou-as a Raphaella sem uma palavra. Ela olhou-as por instantes e os seus olhos abriram-se de admiração. Uma das fotografias era uma miniatura da que se encontrava na capa do livro, e na outra se via a mãe, rindo, com um braço por cima dos ombros dele. Do outro lado, estavam a irmã e o cunhado. — Retrato de família. Tiramo-lo o ano passado. A minha irmã, o meu cunhado, eu e a minha mãe. O que é que diz agora?
Raphaella sorriu e olhou para Alex com admiração.
— Oh, tem de me falar dela! É uma pessoa maravilhosa?
— Muito. É com efeito, minha querida — levantou-se, guardou as duas fotografias na carteira. Depois se sentou de novo, mas agora no lugar vazio ao lado dela. — Acho você também maravilhosa. E agora, antes de lhe falar mais sobre a minha mãe, posso convencê-la a tomar uma bebida antes do almoço? — Era a primeira vez que se servia do nome da mãe para fascinar uma mulher, mas não se importava. Precisava conhecer Raphaella tanto quanto lhe fosse possível até o avião aterrizar em Nova Iorque.
Durante as duas horas e meia seguintes, enquanto bebiam dois copos de vinho branco e depois enquanto comiam um almoço bastante agradável ao qual ambos prestaram pouca atenção, falaram sobre Paris, Roma e Madrid, sobre a vida em São Francisco, sobre livros, crianças e leis. Raphaella ficou sabendo que ele tinha uma bonita casa vitoriana de que muito gostava. Ele soube da vida dela na Espanha e em Santa Eugenia e ouviu falar de um mundo que ele julgara desaparecido há vários séculos e do qual nada conhecia.
Raphaella contou-lhe cenas com as crianças a quem ela tanto amava, falou-lhe das primas, das histórias ridículas de maledicência que existiam no gênero de vida que ela vivia na Espanha. Falou-lhe de tudo, menos de John Henry e da vida que ela levava agora. Porém isso não era vida, mas sim um vácuo, um vazio, uma não existência.
Não falou em nada disso, não por querer ocultar o que se passava, mas sim por ela própria não desejar pensar no assunto.
Quando por fim a aeromoça pediu para apertarem os cintos, pareceram ambos duas crianças a quem tivessem dito que a festa terminara e que era hora de irem para casa.
— O que vai fazer agora? — Alex sabia já que ela ia ao encontro da mãe, de uma tia e duas primas, à boa maneira espanhola, e que ficaria num hotel com elas.
— Agora? Vou encontrar a minha mãe no hotel. Ela já deve estar lá.
— Posso dar-lhe carona num táxi?
Raphaella abanou lentamente a cabeça.
— Virão buscar-me. — Olhou-o com pena. — Com efeito, desaparecerei logo que cheguemos.
— Poderei pelo menos ajudá-la a recolher a bagagem? — perguntou com uma voz que parecia suplicar.
Ela abanou outra vez a cabeça.
— Não. Serei acompanhada logo desde a saída do avião.
Alex tentou sorrir.
— Tem a certeza de não estar sob prisão e viajar sob vigilância?
— Pode ser isso. — A voz dela era tão triste como os seus olhos. Subitamente a alegria das últimas cinco horas desaparecera para ambos. O mundo real estava prestes a intrometer-se no seu pequeno jogo. — Lamento.
— Também eu. — Então Alex olhou-a gravemente. — Raphaella... poderei vê-la enquanto estivermos em Nova Iorque? Sei que irá estar ocupada, mas talvez para uma bebida, um... — Ela estava já a abanar a cabeça. — Por quê?
— Impossível. A minha família nunca compreenderia.
— Será possível? A Raphaella é uma mulher adulta.
— Precisamente. E as mulheres do mundo de onde eu venho não saem para tomar bebidas com desconhecidos.
— Eu não sou desconhecido. — Parecia outra vez um rapaz, e ela riu. — Está bem. Sou. E poderá ir almoçar comigo e com a minha mãe? Amanhã? — Estava a improvisar, mas seria capaz de obrigar a mãe a almoçar com ele nem que fosse preciso tirá-la do meio de uma reunião com os editores, arrastando-a pelos cabelos. Se era precisa a presença de Charlotte Brandon para servir de "duena", para que Raphaella pudesse ir almoçar com ele, Alex conseguiria isso mesmo. — Irá? No Four Seasons. À uma hora.
— Não sei, Alex. Tenho a certeza de que...
— Nem precisa prometer. Tente. Se conseguir aparecer, tudo bem. Se não conseguir... compreenderei. Veremos.
O avião tocou na pista e a voz dele tornou-se subitamente mais ansiosa.
— Não vejo como... — Os olhos dela tinham uma expressão infeliz.
— Não importa. Lembre-se de como deseja conhecer a minha mãe. No Four Seasons, à uma hora. Não esqueça.
— Sim, mas...
Alex levou um dedo aos lábios dela e os olhos dos dois encontraram-se durante longos momentos. Subitamente ele inclinou-se para Raphaella, tendo consciência de que desejava desesperadamente beijá-la. Mas, se o fizesse, talvez nunca mais a visse, e se não o fizesse poderia voltar a vê-la. Então falou em voz alta, fazendo-se ouvir acima do ruído do motor enquanto o avião rolava pela pista em direção ao terminal.
— Em que hotel vai ficar?
Raphaella olhou-o com os seus grandes olhos, hesitante, insegura. Com efeito, Alex estava a pedir-lhe que confiasse nele e ela queria fazê-lo, mas não tinha a certeza se devia. Contudo, as palavras saíram-lhe da boca quase como se ela não as pudesse controlar quando o avião parou.
— No Carlyle.
Logo a seguir, como obedecendo a um sinal previamente combinado, apareceram duas aeromoças. Uma entregou-lhe o casaco de peles, a outra tirou a sacola de viagem debaixo do banco. Como uma criança obediente, Raphaella pediu a Alex que lhe tirasse o chapéu que colocara na rede e sem dizer uma palavra o colocou, abriu o cinto e levantou-se.
Alex viu-a, como a vira nesse dia no aeroporto, envolta em peles caras, com os olhos velados pelo pequeno chapéu preto, o livro e a carteira nas mãos. Raphaella olhou para ele e depois lhe estendeu a mão enluvada.
— Obrigada.
O agradecimento era pelas cinco horas que ele lhe dera, por aqueles momentos de descontração, pela fuga à realidade e por uma pequena amostra daquilo que a vida dela poderia ser e não era. Os olhos dela se demoraram em Alex por um instante e, logo a seguir, voltou-lhe as costas.
As duas aeromoças que tinham ido buscar Raphaella estavam agora acompanhadas por um colega, que se manteve firmemente atrás dela, enquanto uma das saídas de emergência era aberta na parte de trás do aparelho, perto do lugar onde Raphaella e Alex se tinham sentado; os outros passageiros eram encaminhados para uma saída na frente.
A porta de trás abriu-se por breves momentos e Raphaella saiu rapidamente, acompanhada pelos três elementos da tripulação. Essa porta foi imediatamente fechada e apenas alguns passageiros da retaguarda se aperceberam de que uma senhora com um casaco de peles saíra por ali. Porém, todos estavam ocupados com os seus problemas, com os seus planos, e só Alex ficou parado olhando para aquela porta por onde Raphaella desaparecera. Mais uma vez aquela mulher maravilhosa, de uma beleza deslumbrante, lhe fugia. Mas agora sabia que ela se chamava Raphaella e que iria se hospedar no Carlyle.
Subitamente, com um sentimento de desânimo, lembrou-se de que não sabia o seu último nome. Raphaella. Raphaella quê? Como poderia perguntar por ela no hotel? A sua única esperança era que ela aparecesse no dia seguinte no Four Seasons. Se ela aparecesse, se pudesse livrar-se das parentes, se... Sentiu-se como um rapazinho aterrorizado, ao pegar na pasta e no casaco e ao dirigir-se lentamente para a saída.
O criado do Four Seasons acompanhou a senhora alta e atraente até à sua mesa habitual perto do bar. A decoração moderna servia de pano de fundo perfeito para a clientela colorida que povoava o restaurante de dia e de noite. Enquanto se dirigia para a mesa, a elegante mulher de cabelos brancos sorria, fazia um aceno, baixava a cabeça, retribuindo cumprimentos, ou parava para uma breve conversa com alguém. Charlotte Brandon era uma cliente habitual. Para ela era como ir almoçar no seu clube, e a sua silhueta alta e delgada movia-se à vontade por entre as mesas, envolta num bonito casaco curto, de pele, com um pequeno chapéu combinando. O vestido era azul-escuro, sóbrio e de bom corte, realçado pelos brincos com brilhantes e safiras. No pescoço tinha um colar de pérolas com três voltas, e no anelar da mão esquerda brilhava uma safira, um anel que ela oferecera a si própria quando fizera cinqüenta anos, depois de ter vendido o seu qüinquagésimo livro. Do livro anterior tinham sido vendidos mais de três milhões de exemplares e ela resolvera então que podia comprar aquele anel.
Ainda se surpreendia quando recordava que toda a sua carreira começara com a morte do marido, quando o avião dele caíra e ela tivera de arranjar o seu primeiro emprego, fazendo pesquisa para uma aborrecida coluna, o que nunca realmente apreciara. Do que ela gostava, como veio a descobrir, era de escrever e, quando começou o seu primeiro romance, sentira-se como se finalmente tivesse chegado em casa. O seu primeiro livro fora bem aceito e o segundo ainda melhor, mas o terceiro tornara-se rapidamente um best-seller e a partir daí trabalhara arduamente mas com satisfação. Cada vez gostava mais do seu trabalho, e cada novo livro lhe trazia uma maior sensação de realização. Há muitos anos que só lhe interessavam verdadeiramente os seus livros, os seus filhos e a neta Amanda.
Depois da morte do marido, nunca houvera ninguém realmente importante na vida dela; eventualmente, ela própria se forçava a sair com outros homens. Tinha bons amigos, relacionamentos afetuosos, mas nunca encontrara um homem com quem quisesse casar. Durante vinte anos os filhos tinham sido a sua desculpa, e agora era sempre o seu trabalho: «Sou uma pessoa com quem é difícil viver. As minhas horas são impossíveis. Escrevo toda a noite e durmo todo o dia. Ficaria louco e detestaria o que eu faço.» As desculpas dela eram numerosas e não muito válidas. Era uma mulher organizada e disciplinada, capaz de marcar as horas em que escrevia como um comandante de batalhão organiza as suas tropas. A verdade é que não queria voltar a casar. Nunca mais amaria ninguém depois de Arthur Hale. Fora ele a luz brilhante da vida dela, o modelo para o herói de muitos dos seus livros. E Alexander parecia-se tanto com ele que lhe causava sempre uma grande emoção vê-lo aparecer, alto e bem constituído, esbelto e atraente. Sentia um grande orgulho por aquele ser humano extraordinariamente bonito, afetuoso e inteligente ser seu filho. Era um sentimento muito diferente daquele que experimentava quando via a filha. Kay lhe fazia sempre sentir uns certos remorsos, dava-lhe a sensação de ter errado em qualquer coisa. Por que razão se tornara Kay tão azeda, tão fria, tão mal-humorada? O que a teria tornado assim? Seriam as longas horas de trabalho da mãe? A morte do pai? Rivalidade com o irmão? Charlotte tinha sempre uma sensação de fracasso ao olhar para os olhos frios de Kay, tão parecidos com os seus e onde no entanto não havia sombra de felicidade.
Era muito diferente do irmão, que agora se aproximava da mesa com um brilho de alegria no olhar ao ver a mãe.
— Meu Deus, mãe, está linda! — Inclinou-se para beijá-la e deu-lhe um pequeno abraço. Era a primeira vez desde há muitos meses que ele ia a Nova Iorque, mas ela nunca tinha a sensação de estar longe dele. Alex telefonava-lhe muitas vezes, para saber notícias, para lhe contar qualquer história, lhe falar de um caso que estivesse a ocupá-lo de momento, ou para inquirir sobre o que ela estava a escrever. Charlotte tinha a grande satisfação de sentir que fazia parte da vida dele, sem no entanto nenhum deles se impor ao outro. Era um relacionamento que lhe causava muita alegria.
Alex sentou-se do lado oposto da mesa, em frente dela, e nos olhos de Charlotte brilhou o contentamento por vê-lo. — Está com melhor aspecto do que nunca! — disse, olhando a mãe com visível orgulho.
— A lisonja é má... mas deliciosa, meu filho. Obrigada. — os olhos de Charlotte dançavam de satisfação, e Alex sorriu. Aos sessenta e dois anos, a mãe era ainda uma mulher atraente, alta, graciosa, elegante, com a pele macia de uma mulher com quase metade da sua idade. A cirurgia estética a ajudara a manter aquele rosto impecável, mas ela sempre fora uma linda mulher. Empenhada como estava na promoção das suas obras, não era de admirar que Charlotte Brandon quisesse manter um aspecto jovem.
No decorrer dos anos, a imagem de Charlotte Brandon tornara-se largamente conhecida, e uma parte importante dessa imagem era a energia e a vitalidade. Era uma mulher que as outras mulheres respeitavam e que havia conseguido captar a devoção dos seus leitores durante três décadas.
— Então, que tens feito? Estás também com excelente aspecto, devo dizê-lo.
— Tenho andado muito ocupado. Posso dizer que trabalho sem parar desde a última vez que a vi. — Enquanto dizia isto os seus olhos voltaram-se repentinamente para a porta. Por instantes julgara tratar-se de Raphaella.
Uma cabeça de cabelos escuros envolta num casaco semelhante ao dela aparecera à entrada da sala. Ao ver que não era Raphaella, Alex voltou-se de novo rapidamente para a mãe.
— Esperas alguém, Alex? — Detectara a expressão dos olhos dele e isso a fez sorrir. — Ou estás apenas cansado das mulheres da Califórnia?
— Não tenho tempo para mulheres. Trabalho noite e dia. — exclamou Alex.
— Não devias fazer isso. — Olhou para ele com tristeza. Desejava para o filho mais do que uma meia vida. Queria mais do que isso, tanto para o filho como para a filha, mas até agora nenhum deles parecia ter encontrado o que queria. Alex tivera um casamento falhado com Rachel, e Kay parecia devorada pela paixão da política e por uma tamanha ambição que a fazia esquecer tudo o resto. Por vezes, Charlotte julgava não os compreender. Ela conseguira criar os filhos, manter a família unida e ao mesmo tempo ter uma carreira de sucesso. Mas eles diziam-lhe que os tempos eram agora diferentes, que já ninguém conseguia fazer carreira como ela fizera. Teriam razão ou estariam apenas se iludindo acerca dos seus próprios fracassos? Ao observar o filho, pensava se ele seria feliz com a sua existência, ou se afinal desejaria algo diferente. Não sabia se ele tinha um relacionamento sério com uma mulher, com alguém a quem amasse verdadeiramente.
— Não fique preocupada, mãe. — Deu-lhe uma palmadinha na mão, fazendo sinal ao criado. — Uma bebida! — Charlotte disse que sim com a cabeça, e Alex pediu Bloody Marys para ambos. Depois se recostou para trás com um sorriso. Precisava lhe contar já, para o caso de Raphaella chegar na hora. Tinha-lhe dito à uma hora e chegara junto da mãe ao meio-dia e meia hora. Claro que era possível que Raphaella não aparecesse. Franziu a testa por momentos e em seguida fitou os olhos azuis da mãe.
— Convidei uma amiga para almoçar conosco, mas não sei se ela poderá vir. — Depois, mostrando um embaraço juvenil, olhou para baixo antes de erguer de novo os olhos para a mãe. — Espero que não se importe. — Mas Charlotte já estava rindo, com um riso jovem e feliz que enchia o ar e que sempre o fazia sorrir. — Não fique rindo de mim, mãe. — O riso dela era contagioso e daí a pouco Alex sorria abertamente, enquanto a mãe o olhava com ar divertido.
— Parece que tens catorze anos, Alex. Desculpa. Mas afinal quem convidaste para almoçar?
— Apenas uma amiga. Uma mulher. — E esteve prestes a acrescentar que a conhecera no avião.
— É alguém que vive aqui em Nova Iorque? — As perguntas eram apenas amigáveis, e Charlotte continuava a sorrir alegremente para o filho.
— Não. Vive em São Francisco. Veio passar aqui apenas alguns dias. Viemos no mesmo avião.
— Ah, sim? E o que faz ela? — Charlotte bebeu o primeiro gole da sua bebida, pensando se devia fazer mais perguntas ao filho, mas gostava de informar-se a respeito das pessoas que ele conhecia. Por vezes era difícil não agir como uma mãe; quando ela insistia muito, ele dizia-lhe sempre para parar, embora o fizesse com gentileza. Olhou-o com ar inquiridor, e Alex pareceu não se importar. Charlotte achava que ele parecia mais feliz do que nos últimos tempos e no olhar dele havia um brilho alegre e afetuoso. Nunca tivera aquela expressão com Rachel; pelo contrário, parecia sentir-se sempre inquieto e preocupado.
Subitamente, ocorreu-lhe a idéia de que talvez Alex tivesse alguma surpresa agradável para ela.
Em resposta às perguntas da mãe, Alex limitou-se a sorrir com ar divertido.
— Pode achar difícil de acreditar, famosa autora Charlotte Brandon, mas ela parece não fazer coisa alguma.
— Oh, oh, que decadente. — Mas Charlotte não pareceu ficar perturbada, embora sentisse curiosidade pelo que via nos olhos do filho. — É muito nova? — Isso explicaria o fato de nada fazer. Os muito jovens tinham o direito de levar algum tempo a pensar no que desejavam fazer na vida. Mas se fossem um pouco mais velhos seria de esperar que já tivessem encontrado o seu caminho, ou pelo menos qualquer ocupação.
— Não. Isto é, não será assim tão nova. Cerca de trinta anos. Mas é européia.
— Ah! — exclamou a mãe com ar compreensivo. — Então, está bem.
— Contudo, é estranho... — continuou pensativamente Alex. — Não conheço ninguém que tenha esse gênero de vida. O pai dela é francês e a mãe é espanhola, mas creio que ela tem passado a maior parte da vida fechada, rodeada de pessoas, escoltada por parentes e "duenas". Parece-me uma vida incrível.
— Como é que conseguiste então afastá-la de toda essa gente para travares conhecimento com ela? — Charlotte acenou distraidamente para uma amiga que se encontrava a meio da sala.
— Ainda não posso dizer que a conheço. Mas tenciono conhecê-la melhor. Foi essa uma das razões por que a convidei para almoçar hoje. Ela adora os seus livros.
— Oh, Alex! Uma dessas não, por amor de Deus. Como é que queres que coma com uma pessoa a fazer-me perguntas sobre quantos meses levo para escrever cada um dos meus livros e há quantos anos escrevo? — O tom era brincalhão e continuava a sorrir. — Por que não hás de interessar-te por moças que prefiram outros autores? Alguma moça simpática que goste de ler Proust, ou Balzac, ou Camus, ou que adore ler as memórias de Winston Churchill? Uma pessoa sensata.
Alex riu do ar sério da mãe e, de repente, por cima do ombro de Charlotte, vislumbrou-a entrando no Four Seasons. Charlotte julgou ouvi-lo conter a respiração e, seguindo a direção do olhar dele, voltou-se e viu uma mulher muito nova, alta, e extremamente bonita, que se encontrava parada no alto das escadas, parecendo muito frágil e ao mesmo tempo determinada. Era uma mulher de uma enorme beleza, e todos os olhares convergiram para ela com admiração. De cabeça bem erguida, o seu cabelo estava impecavelmente penteado numa trança arranjada no alto da cabeça, que parecia feita de seda preta. Usava um vestido justo de casimira cor de chocolate, quase da mesma cor do luxuoso casaco de peles. Trazia um lenço de seda creme formando um nó largo em volta do pescoço e nas orelhas uns brincos com pérolas e diamantes.
As pernas longas e elegantes estavam cobertas com meias da cor do vestido combinando com sapatos também castanhos. A carteira, igualmente cor de chocolate, tinha a marca Hermés. Era a mais bela e requintada criatura que Charlotte via desde há muito tempo e subitamente compreendeu a expressão extasiada do filho. O que a deixou perplexa, enquanto Alex se levantava da mesa para ir ao encontro da desconhecida, foi precisamente a idéia confusa de já ter visto aquele rosto em qualquer sítio. Ou talvez isso se devesse a ela ser uma beleza tão tipicamente espanhola. Reparou que se dirigia para a mesa com a atitude de uma jovem rainha, embora nos seus olhos se lesse uma grande doçura e timidez. Ao vê-la, Charlotte esteve prestes a soltar uma exclamação. A moça era tão bonita que não se podia fitar sem admiração.
E o fascínio de Alex era fácil de compreender.
— Mãe, quero apresentar-lhe a Raphaella. Raphaella, minha mãe, Charlotte Brandon. Durante instantes, Charlotte ficou surpreendida pela falta de um apelido, mas a questão foi logo esquecida quando ela olhou para os olhos escuros e melancólicos de Raphaella. De perto, parecia quase assustada e vinha mesmo um pouco ofegante, como se tivesse corrido. Apertou a mão a Charlotte, deixou que Alex lhe tirasse o casaco e sentou-se.
— Peço imensa desculpa por chegar atrasada, Mistress Brandon. — Fitou Charlotte, com as faces levemente rosadas. — Estava comprometida... Foi difícil... conseguir vir.
As pestanas velavam-lhe o olhar, e Alex sentiu-se enternecido ao observá-la. Era a mulher mais maravilhosa que já vira. E Charlotte, vendo-os lado a lado, não pôde deixar de pensar que faziam um belo par. As duas cabeças de cabelos pretos, os grandes olhos, os corpos jovens e esbeltos, as mãos graciosas. Pareciam dois jovens deuses da mitologia, destinados um ao outro. Charlotte forçou-se a manter a conversa, com um sorriso de satisfação.
— Não tem qualquer importância. O Alex chegou há pouco. Estávamos a conversar. Ele contou-me que também viajou ontem de São Francisco. Veio visitar pessoas amigas?
— Não. Vim encontrar-me com a minha mãe.
Raphaella começou a descontrair-se lentamente, embora tivesse recusado uma bebida quando se sentou.
— A sua mãe vive aqui?
— Não. Em Madrid. Está de passagem, a caminho de Buenos Aires. E pensou que... Bem, isso me dá oportunidade de vir passar uns dias em Nova Iorque.
— Eu também fico sempre feliz quando o Alex aqui vem e posso vê-lo. — Riram os três, e Alex sugeriu que era melhor pedirem o almoço antes de prosseguir a conversa.
Depois disso é que Raphaella confessou a Charlotte que os livros dela tinham um grande significado para si desde há muitos anos.
— Comecei por lê-los em espanhol e de vez em quando em francês. Quando vim viver neste país, o meu... — Corou e baixou os olhos por um momento. Estivera prestes a contar que o marido lhe comprara alguns livros de Charlotte Brandon em inglês, mas subitamente parou. Parecia-lhe desonesto, mas a verdade é que não queria falar sobre John Henry naquela altura. — Comprei-os em inglês e agora os leio sempre nesta língua. — Depois fitou Charlotte com uma expressão de profunda tristeza. — Não pode imaginar o que os seus livros têm feito por mim. Às vezes chego a pensar que eles é que... — A voz de Raphaella era tão baixa que se tornara quase inaudível. — Que eles... é que têm ajudado a manter-me viva.
Charlotte percebeu que a angústia que transparecia na voz de Raphaella era verdadeiramente genuína, e Alex lembrou-se da primeira vez que a vira nas escadas, chorando.
Pensou então qual seria o segredo que tanto pesava sobre a alma dela. Raphaella olhava agora para Charlotte com um leve sorriso de agradecimento e, sem pensar, a mãe de Alex estendeu a mão e acariciou a da jovem mulher.
— Também significam muito para mim quando os escrevo, mas o mais importante é que isso aconteça igualmente para pessoas como a Raphaella. Muito obrigada. Fez-me um belo cumprimento que de certo modo dá maior sentido à minha vida. — E então, como se tivesse se apercebido de algo oculto, algum desejo longínquo, algum sonho, fitou Raphaella. — Também escreve?
Raphaella limitou-se a abanar a cabeça e a sorrir, parecendo subitamente mais nova e menos sofisticada do que no princípio.
— Oh, não! — Soltou uma curta gargalhada. — Mas sou uma contadora de histórias.
— Esse é o primeiro passo.
Alex as observava em silêncio. Gostava de vê-las conversar. As duas faziam um grande contraste, embora fossem duas lindas mulheres. Uma... muito nova e frágil, e a outra madura e forte. A mãe com os seus cabelos brancos e Raphaella com os cabelos pretos. Alex conhecia bem uma delas, a mãe, e desejava vir a conhecer melhor a outra, pois por enquanto nada sabia dela. Observava-as enquanto ouvia a mãe perguntar:
— Que gênero de histórias costuma contar?
— Conto histórias às crianças. No verão. Conto-as aos meus priminhos. Passamos as férias juntos na nossa casa, na Espanha. Somos uma família muito numerosa e eu adoro crianças. Gosto de vê-las rir com as minhas histórias. É bom, faz-me bem à alma.
Charlotte sorriu da expressão utilizada por Raphaella e de repente, ao olhá-la, lembrou-se subitamente de algo... Raphaella... Raphaella... Espanha... uma grande casa familiar.. e Paris... um banco... Teve de se conter para não soltar uma exclamação. Calou-se e continuou a observar Raphaella, que conversava agora com Alex, e tentou imaginar se o filho conheceria essa história. Algo lhe dizia que não.
Uma hora depois de ter chegado ao restaurante, Raphaella olhou nervosamente para o relógio de pulso.
— Peço imensas desculpas, mas... receio ter de ir encontrar-me com a minha mãe, a minha tia e as minhas primas. Provavelmente já estão pensando que fugi. — Não explicou que utilizara como pretexto uma dor de cabeça para escapar ao almoço com os seus familiares.
Tinha um grande desejo de conhecer Charlotte Brandon e de voltar a ver Alex, pelo menos uma vez; por isso, servira-se daquele estratagema para poder ir almoçar com eles. Alex ofereceu-se para acompanhá-la ao táxi e, deixando a mãe em frente de uma segunda chávena de café, prometeu-lhe voltar imediatamente. Antes de sair do restaurante, Raphaella despedira-se de Charlotte com agradecimentos e, quando os olhos das duas se encontraram, foi como se Raphaella lhe contasse a sua história e Charlotte lhe dissesse que já a conhecia. Foi uma dessas comunicações silenciosas que por vezes se dão entre duas mulheres, e Charlotte sentiu todo o seu coração ir ao encontro daquela jovem mulher. Enquanto almoçavam, ela recordara toda a história de Raphaella, que para ela deixara de ser uma narrativa triste lida numa revista.
Agora compreendia bem a tragédia daquela jovem, a solidão em que se encontrava e por momentos desejou-lhe abraçá-la carinhosamente. Mas não o fez e limitou-se a apertar a mão fresca de Raphaella, ficando a ver o seu vulto elegante afastar-se, em companhia de Alex.
Raphaella e Alex saíram para a rua e pararam por momentos a respirar o ar fresco do outono. Alex sentia-se feliz e cheio de vida. Olhou ternamente para Raphaella e não pôde deixar de sorrir ao ver a expressão preocupada, mas ao mesmo tempo feliz, que transparecia no olhar dela.
— A minha mãe adorou conhecê-la.
— Não sei por quê. Mas eu também a adorei. É uma mulher encantadora, Alex. Tem todas as qualidades que uma mulher deve ter.
— Sim, é uma velhota bastante agradável. — Alex falou em tom de gracejo, mas não era na mãe que estava a pensar ao fitar Raphaella. — Quando a verei outra vez?
Ela desviou nervosamente o olhar antes de responder, observando a rua para ver se passava um táxi. Depois, ergueu os olhos para Alex, com uma expressão profundamente triste.
— Não posso, Alex. Tenho de estar com a minha mãe... e...
— Não pode estar com ela dia e noite. — Alex mostrava-se obstinado, e ela sorriu. Era impossível que ele compreendesse. Não tivera uma vida como a sua.
— Mas estou, em todos os momentos. E depois tenho de voltar para casa.
— Também eu. Vemo-nos então em São Francisco. E isso me faz lembrar, minha senhora, que se esqueceu de me dizer uma coisa quando me informou de que ficaria no Carlyle.
— O quê? — Raphaella pareceu subitamente perturbada.
— O seu apelido.
— Fiz isso? — Era impossível saber se a inocência dela era real ou fingida.
— Fez. E, se não tivesse aparecido hoje, eu me via forçado a ficar sentado todo o dia no vestíbulo do Carlyle à espera de vê-la passar. Nessa altura ajoelhar-me-ia a seus pés, em frente de sua mãe, embaraçando-a realmente, suplicando-lhe que me dissesse o seu nome!
Ambos riram com aquelas palavras e Alex agarrou-lhe meigamente na mão.
— Raphaella, quero voltar a vê-la.
Ela olhou-o, com os olhos a fundirem-se nos dele, querendo tudo quanto ele queria, mas sabendo que não tinha esse direito. Alex inclinou-se devagar para ela, querendo beijá-la, mas ela desviou a cabeça, enterrando o rosto no ombro dele e encostando a mão à lapela do casaco, para afastá-lo.
— Não, Alex, não.
Compreendeu então que, se o mundo dela estava cheio de "duenas", não era provável que beijasse um homem na rua.
— Está bem, mas quero voltar a vê-la, Raphaella. Que diz a logo à noite?
Raphaella soltou uma curta gargalhada e levantou a cabeça para o olhar.
— E a minha mãe, a minha tia e as minhas primas? — Ele era teimoso... mas também um dos homens mais interessantes que já conhecera.
— Leve-as consigo. Eu levo a minha mãe. — Alex estava brincando e ela sabia.
— É insuportável.
— Pois sou. E não aceito um não como resposta.
— Por favor, Alex! — Olhou novamente para o relógio e pareceu tomada de pânico. — Oh, meu Deus. já devem ter regressado do almoço.
— Então, prometa que nos encontramos esta noite para irmos tomar uma bebida. — Alex segurava-a com força por um braço e subitamente perguntou. — A propósito, qual é o seu apelido?
Raphaella largou-lhe a mão e chamou um táxi que passava. O carro parou junto dela com um ranger de freios e Alex apertou o braço de Raphaella com mais força.
— Não, Alex, eu tenho de...
— Não sem me... — Falava meio brincando meio sério e ela riu nervosamente e olhou-o de novo.
— Está bem, está bem. É Phillips.
— É com esse nome que está registrada no Carlyle?
— Sim, senhor doutor. — Raphaella pareceu hesitar por instantes e depois ficou novamente nervosa. — Alex, não posso voltar a vê-lo. Nem aqui nem em São Francisco. Nunca mais. Temos de dizer adeus.
— Por amor de Deus, que disparate. Isto é apenas princípio.
— Não, não é. — Olhou-o gravemente, enquanto o motorista do táxi começava a resmungar com impaciência. — Não é o princípio, Alex. É o fim. E eu tenho de ir agora.
— Desta maneira, não! — Alex mostrou-se repentinamente desesperado e lamentou não a ter beijado. — O quê? Só quis almoçar comigo para conhecer a minha mãe? Acha isso simpático? — Alex não falava sério, mas ela mostrou-se confusa.
— Oh, Alex, como pode...
— Voltaremos a ver-nos?
— Alex...
— Pronto. Às onze... Hoje. No Café Carlyle. Podemos conversar e ouvir o Bobby Short. E se não aparecer vou bater à porta do quarto da sua mãe. — De súbito, pareceu preocupado. — Conseguirá livrar-se delas a essa hora?
Alex teve de admitir a si próprio que aquilo era absurdo. Ela tinha trinta e dois anos e ele estava lhe perguntando se podia escapar à mãe.
— Vou tentar. — Olhou-o, parecendo de repente muito nova outra vez, mas com uma expressão de culpa nos olhos. — Não devíamos fazer isto.
— Por quê?
Ela esteve prestes a dizer-lhe, mas sabia que não podia fazer isso, ali no passeio, enquanto o táxi esperava. — Falamos a respeito disso logo à noite.
— Bom. — Alex sorriu. Então, ela iria ao encontro dele. E abriu a porta do táxi para Raphaella entrar, fazendo uma vênia. — Até logo, Miss Phillips. — Inclinou-se mais e deu-lhe um beijo na testa, de leve; um momento depois, a porta do táxi fechava-se e o motorista arrancava a toda a velocidade.
Raphaella sentia-se furiosa consigo mesma pela sua fraqueza. Nunca devia tê-lo iludido desde o início. Devia ter-lhe contado a verdade no avião e nunca ter ido almoçar com ele. Mas... por uma vez, pensou, tinha o direito de fazer alguma coisa louca, romântica e divertida. Ou não teria esse direito? O que lhe daria esse direito se John Henry se encontrava quase moribundo, sentado na sua cadeira de rodas? Como se atrevera ela a proceder assim? Enquanto o carro se aproximava do Carlyle, Raphaella jurava a si mesma contar tudo a Alex nessa noite. Não voltaria a vê-lo depois... mas precisava comparecer a esse encontro... E o coração dela batia com mais força ao pensar que ia voltar a ver Alex.
— Então? — Alex olhou vitoriosamente para a mãe e sentou-se. Ela sorriu-lhe e nesse momento sentiu-se subitamente muito velha. Como o filho era novo, como se encontrava feliz, cheio de esperanças, cego.
— Então... o quê? — Os olhos azuis eram meigos e tristes.
— O quê?! Não a acha espantosa?
— Sim — disse calmamente Charlotte. — É provavelmente a moça mais bonita que eu conheço. Além disso, é simpática, encantadora e gosto dela. Mas, Alex... — Hesitou durante um longo momento e depois decidiu falar. — Qual é o bem que tudo isso representa para ti?
— Que quer dizer com essas palavras? — Alex olhou para a mãe com ar aborrecido enquanto acabava de beber o seu café frio. — Ela é maravilhosa.
— Conhece-a bem?
— Não muito bem — disse com um sorriso. — Mas espero corrigir isso, apesar da mãe, da tia, das primas e das "duenas".
— E o marido?
Alex pareceu ter sido atingido por um tiro. Abriu muito os olhos, fixando a mãe, e depois os franziu com uma expressão de grande desconfiança.
— O que é que quer dizer com o "marido"?
— Alex, sabes quem ela é?
— É meio espanhola, meio francesa, vive em São Francisco, não é empregada e tem trinta e dois anos. Descobri há pouco o apelido dela. Chama-se Raphaella Phillips...
— E isso não te fez lembrar nada?
— Não. E por amor de Deus deixe de jogar esse jogo comigo. — Os olhos dele faiscavam. Charlotte recostou-se para trás na cadeira e suspirou. Tinha razão. O apelido dela confirmava o que pensava. Não sabia por quê, mas lembrava-se do rosto dela, embora não visse uma fotografia de Raphaella nos jornais há anos. Da última vez que isso sucedera fora talvez sete ou oito anos antes, ao sair do hospital onde John Henry Phillips ficara internado depois de ter a primeira trombose...
— Que diabo está querendo me dizer, mãe?
— Que ela é casada, querido, e com um homem muito importante. O nome de John Henry Phillips não te diz nada?
Alex fechou os olhos durante uma fração de segundo. Dizia a si mesmo que aquilo que a mãe estava lhe dizendo não podia ser verdade.
— Ele já morreu, não morreu?
— Tanto quanto sei, creio que não. Teve uma série de ataques há alguns anos e deve ser uma pessoa com quase oitenta anos. Mas ainda deve estar vivo. Se tivesse morrido com certeza se saberia.
— Mas o que a faz pensar que ela é a mulher dele? — Alex parecia completamente desorientado.
— Lembro-me de ter lido a história e de ver as fotografias nessa altura. Ela era lindíssima. Sei que fiquei chocada por uma moça com dezessete ou dezoito anos casar com um homem de tanta idade. Creio que ela é filha de um banqueiro francês. Mas, quando assisti a uma conferência de imprensa dada pelos dois, fiquei a pensar de modo diferente. John Henry Phillips era, naquela altura, realmente um homem extraordinário.
— E agora?
— Quem sabe? Sei que está inválido devido às várias tromboses, mas creio que não se conhecem mais pormenores. A mulher manteve-se sempre afastada dos olhares do público. Por isso é que eu não a reconheci logo. Mas é um rosto que não se esquece facilmente.
Os olhos de ambos encontraram-se, e Alex fez um gesto de concordância. Sabia que nunca poderia esquecê-la.
— Calculo que ela não tenha te contado nada disto. — Abanou novamente a cabeça. — Espero que o faça. — A voz de Charlotte era suave. — Ela é que devia contar-te. Talvez eu não o devesse ter feito... — Charlotte calou-se e fixou o filho.
— Por quê? Por que ela há de estar casada com esse velho? Tem idade suficiente para ser avô dela e está praticamente morto! — A injustiça da situação indignava-o.
— Por que ele há de ter a Raphaella?
— Mas ele ainda não morreu, Alex. Para falar com franqueza não percebo o que é que ela tem em mente contigo. Sinceramente creio que está confusa. Não sabe o que há de fazer. Lembra-te que ela tem tido sempre uma vida protegida do mundo exterior. O John Henry Phillips a manteve praticamente afastada de tudo durante quase quinze anos. Não creio que ela esteja habituada a encontrar advogados atrevidos e a ter aventuras. Pode ser que me engane, mas julgo que não.
— Também estou convencido disso. — Recostou-se para trás na cadeira com uma expressão infeliz. — E agora?
— Vais voltar a vê-la?
Ele disse que sim com a cabeça.
— Logo à noite. Ela disse que queria falar comigo. — Pensou se ela iria contar-lhe... E depois? — Enquanto se encontrava ali sentado a olhar para a mãe, Alex pensava que John Henry Phillips podia viver naquele estado mais vinte anos. Nessa altura, ele próprio teria quase sessenta e Raphaella cinqüenta e dois. Uma vida inteira à espera que um velho morresse.
— Em que pensas? — A voz da mãe era muito meiga.
Alex desviou lentamente o olhar e fitou a mãe.
— Em nada muito agradável. Sabe — prosseguiu lentamente -, uma noite a vi sentada nas escadas, perto da casa dela. Estava chorando, e pensei nela durante vários dias até que a encontrei no avião que vinha para aqui. Falamos e... — Alex olhou para a mãe com ar triste.
— Mas mal a conheces.
— Engana-se. Conheço-a. Parece-me que a conheço melhor do que qualquer outra pessoa. Conheço o coração, a alma e o espírito dela. Sei o que ela sente e como está só. Sei por quê. E sei mais outra coisa. — Alex olhou demoradamente para a mãe.
— O quê?
— Que a amo. Sei que isso parece loucura, mas é verdade.
— Não podes saber isso. É demasiado cedo. Ela é praticamente uma desconhecida.
— Não, não é. — E calou-se. Pagou a conta com o seu cartão de crédito, olhou para a mãe e declarou: — Havemos de resolver o caso.
Charlotte Brandon limitou-se a dizer que sim com a cabeça, pensando ser improvável que isso viesse a suceder.
Quando Alex a deixou em Lexington Avenue, alguns minutos mais tarde, a expressão do olhar dele disse-lhe que estava decidido. E ao caminhar pela avenida, sentindo um vento fresco bater-lhe na cara, Alex sabia que tudo faria para ter Raphaella. Nunca desejara uma mulher como a desejava. A luta para conquistá-la apenas começara, e Alex Hale não estava disposto a perdê-la.
Faltavam cinco minutos para as onze horas da noite quando Alex Hale, depois de uma rápida caminhada por Madison Avenue, voltou para a Rua 76 e entrou no Carlyle.
Reservara uma mesa no Café Carlyle, com a intenção de conversar com Raphaella durante uma hora e depois assistirem ao espetáculo de Bobby Short à meia-noite. Era um dos melhores espetáculos de Nova Iorque, e Alex ansiava por ouvi-lo ao lado de Raphaella. Dirigiu-se para a mesa marcada e sentou-se. Esperou dez minutos e começou a ficar preocupado quando viu que ela não aparecia. Às onze e meia, pensou em ligar para o quarto dela, mas percebeu que não o devia fazer. Especialmente agora, que já sabia que ela era casada. Tinha de continuar calmamente à espera de Raphaella.
Faltavam vinte minutos para a meia-noite quando a viu espreitando pela porta envidraçada, como se se preparasse para fugir. Alex tentou chamar a atenção dela, mas reparou que ela não o viu e desapareceu. Quase sem pensar, Alex levantou-se da mesa, correu para a porta e chegou ao vestíbulo a tempo de vê-la afastar-se.
— Raphaella! — chamou em voz baixa.
Ela voltou-se, com os grandes olhos assustados, o rosto muito pálido. Trazia um bonito vestido de cetim cinzento, direito, com uma orla preta a cair-lhe até aos pés. Sobre o ombro esquerdo via-se um alfinete com uma enorme pérola, rodeado de diamantes e ônix. Os brincos eram condizentes. O efeito era deslumbrante, e Alex reparou mais uma vez como ela era bonita. Raphaella parara ao ouvi-lo chamar e estava agora imóvel em frente dele. Alex olhou-a com ar grave.
— Não fuja. Vamos tomar uma bebida e conversar.
A voz dele soava com muita meiguice e ele tinha vontade de agarrá-la, mas nem sequer se atrevia a tocar-lhe na mão.
— Eu.... eu... não devia... não posso... desculpe... é tarde e...
— Raphaella, ainda nem sequer é meia-noite. Não poderemos conversar meia hora?
— Há aqui tanta gente... — Raphaella mostrava-se aflita e infeliz; subitamente, Alex lembrou-se do Bar Benelmans. Tinha pena de perder o espetáculo de Bobby Short com ela, mas era mais importante ouvir o que ela tinha para lhe dizer.
— Há outro bar com menos movimento onde poderemos falar calmamente. Vamos. — E, sem esperar pela resposta dela, meteu-lhe uma mão debaixo do braço e conduziu-a para um bar que ficava do lado oposto ao Café Carlyle. Aí se sentaram numa pequena mesa e Alex olhou-a com um sorriso calmo e feliz.
— Que quer tomar? Vinho? Um xerez? — Raphaella limitou-se a abanar a cabeça e ele percebeu que ela se encontrava ainda muito preocupada. Quando o criado se afastou, Alex voltou-se para Raphaella e perguntou em voz baixa: — Passa-se alguma coisa?
Ela disse que sim lentamente, baixando a cabeça e olhando para as mãos; Alex observou o seu perfil perfeito, que se destacava na obscuridade da sala.
Raphaella ergueu então os olhos para ele, como se esse simples gesto lhe provocasse uma grande dor. A expressão de desgosto era a mesma que ele observara no rosto dela quando a vira sentada nos degraus a chorar.
— Por que não falamos a respeito disso?
Ela respirou fundo e recostou-se para trás na cadeira, fitando-o.
— Devia ter-lhe contado mais cedo, Alex. Tenho sido... — Hesitou e logo a seguir continuou: — Tenho sido... enganadora. Não sei o que se passou comigo. Creio que me deixei arrastar pelas circunstâncias. O Alex mostrou-se tão simpático comigo no avião. A sua mãe foi tão encantadora. Mas eu fui desleal para consigo, meu amigo... — Os olhos dela estavam cheios de desgosto e Alex tocou-lhe docemente na mão. — Dei-lhe a impressão de ser livre. Fiz mal em proceder assim e peço-lhe desculpa. — Fitou-o timidamente e retirou a mão. — Sou casada, Alex. Devia ter-lhe dito isto logo de início. Não sei por quê entrei neste jogo consigo. Mas foi muito, muito mal feito. Não posso voltar a vê-lo.
Ela era uma mulher de honra e Alex sentiu-se profundamente comovido pela sinceridade com que ela o olhava agora, com as lágrimas a tremerem nas pontas das pestanas, os olhos muito grandes, as faces muito pálidas.
Alex falou-lhe então com gravidade, como fazia com Amanda quando ela era pequena.
— Raphaella, respeito-a muito pelo que acabou de fazer. Mas acha que isso pode afetar a nossa... a nossa amizade? Aceito a sua situação. Não poderemos continuar a ver-nos apesar disso? — Era uma pergunta honesta e Alex não deixaria que ficasse sem resposta.
Raphaella abanou novamente a cabeça,,
— Gostaria de vê-lo se... se eu fosse livre. Mas sou uma mulher casada. Não é possível. Não estaria certo.
— Por quê?
— Não seria leal para com o meu marido. E ele é tão... — Fez uma pausa, escolhendo as palavras. — É tão bom, tão leal... tão meu amigo... — Raphaella voltou a cara e Alex viu uma lágrima rolar pela face delicada. Estendeu a mão e tocou de leve, com as pontas dos dedos, na pele acetinada. De repente, teve vontade de chorar também. Não podia ser. Ela não podia querer continuar a ser fiel ao marido durante toda a vida. Começou a perceber o horror dessa idéia ao ver a expressão dela.
— Mas, Raphaella, não pode ser... Na noite em que a vi nas escadas... não estava feliz. Sei isso. Por que não havemos de continuar a nos ver e usufruir dessa felicidade?
— Porque eu não tenho esse direito. Não sou livre.
— Por amor de Deus... — Alex esteve prestes a dizer-lhe que já sabia tudo, mas ela deteve-o com uma mão, como se estivesse a defender-se de um agressor. Em seguida, com um movimento rápido levantou-se e olhou-o com as lágrimas a correrem-lhe pela cara.
— Não, Alex, não posso. Sou casada. E tenho muita, muita pena de ter deixado isto chegar tão longe. Não o devia ter feito. Fui desonesta por ter ido almoçar consigo e com a sua mãe...
— Deixe de se confessar e sente-se. — Agarrou-lhe gentilmente num braço e a fez sentar de novo e, por razões que não sabia explicar, Raphaella permitiu que ele o fizesse e lhe limpasse as lágrimas com a mão.
— Raphaella. — Alex falou em voz muito baixa para que mais ninguém pudesse ouvi-lo. — Amo-a. Sei que parece loucura. Mal nos conhecemos, mas eu amo-a. Há muitos anos que a procuro. Não pode abandonar-me agora. Pelo menos por causa daquilo que partilha com o seu... o seu marido.
— Que quer dizer com isso?
— Quero dizer que, pelo que ouvi à minha mãe, o seu marido é muito velho e está muito doente, há muitos anos. Quando a vi não fazia idéia de quem fosse, mas a minha mãe a reconheceu e falou-me de si e do seu marido.
— Então, ela sabia. Deve ter-me achado horrível. — Raphaella mostrava-se profundamente envergonhada.
— Não. — Alex falou com firmeza e pareceu ansioso ao inclinar-se para ela. Quase podia sentir o calor da pele sedosa de Raphaella e nunca experimentou tanto desejo por uma mulher como naquela altura, mas não era ocasião para mostrar paixão. Precisava lhe falar, fazê-la compreender. — Como é que alguém podia achá-la horrível? Tem sido fiel ao seu marido durante todos estes anos, não tem? — Tratava-se quase de uma pergunta retórica.
Ela disse lentamente que sim com a cabeça e suspirou.
— Tenho. Mas não há razão para deixar de ser agora. Não tenho o direito de proceder como se fosse livre, Alex. Não sou e não tenho o direito de levar a confusão à sua vida, nem de lhe transmitir o desgosto da minha.
— A razão que a leva a ter uma vida tão solitária é a maneira como a vive. Sozinha com um homem muito idoso e muito doente. A Raphaella tem o direito de fazer muito mais do que isso.
— Sim. Mas ele não tem culpa de as coisas se passarem assim.
— E a Raphaella também não. Acha que deve castigar-se por isso?
— Não, mas não posso castigá-lo a ele. — A maneira como ela o disse avisou Alex de que estava novamente perdendo a batalha e sentiu o coração apertado. Raphaella levantou-se outra vez, mas agora com grande determinação. — Tenho de ir agora. — Os olhos de Alex suplicaram-lhe que não fosse. — Tenho de ir.
E então, sem acrescentar uma única palavra, Raphaella deixou que os seus lábios pousassem de leve na testa de Alex, afastando-se em seguida rapidamente. Fez um gesto para detê-la, mas ela abanou a cabeça e fez-lhe sinal para se deixar ficar ali. Alex percebeu que ela estava de novo chorando e compreendeu que dessa vez tinha perdido. Ir atrás dela só faria com que ela se sentisse mais infeliz, e ele sabia que nada mais podia fazer. Apercebera-se disso ao ouvi-la falar. Raphaella estava ligada a John Henry Phillips pelo casamento e pela honra. Não era um elo que Raphaella estivesse preparada para quebrar, nem sequer para esquecer, e não o faria certamente por um desconhecido, um homem que encontrara no avião.
Depois de ter pago a bebida, Alex Hale esqueceu a mesa reservada e o espetáculo de Bobby Short e saiu para a rua, para Madison Avenue, estendendo maquinalmente um braço para chamar um táxi. E quando sentou, no banco de trás, o motorista olhou-o pelo espelho retrovisor e pareceu surpreendido.
— Deve estar muito frio lá fora, não? a única explicação óbvia que lhe ocorria para as lágrimas que saltavam dos olhos de Alex e lhe corriam pelas faces.
Alex e a sobrinha estavam de pé lado a lado, vendo os patinadores que deslizavam graciosamente, em círculos, no Rockfeller Center. Tinham acabado de jantar no Café Français e ele tinha de acompanhar a sobrinha até em casa antes de ir apanhar o avião das oito da noite.
— Gostava de poder passar a vida assim, tio Alex.
O rosto delicado, com uns olhos que pareciam de porcelana azul, rodeado por cabelos louros e encaracolados, ergueu-se para Alex com um sorriso.
— O quê? Patinando? — Alex sorriu, tanto do que ela acabara de dizer, como da sua figura delicada.
Tinham passado uma tarde agradável e como sempre Alex sentiu pena da solidão em que vivia aquela bonita adolescente que era sua sobrinha. Era muito diferente da mãe e do pai. Não se parecia nem com a avó nem com ele próprio. Era uma garota calma e dedicada, meiga, solitária e leal. Alex pensou que ela lhe fazia lembrar Raphaella. Talvez por ambas sofrerem com a vida que tinham. Ao olhar para a sobrinha, pensou se ela e Raphaella se sentiriam igualmente sós. Achava a sobrinha muito pensativa e tentava descobrir por quê. Amanda observava os patinadores com uma expressão distante e nostálgica. Alex desejou subitamente não ter de ir apanhar o avião nessa noite para poder passar mais tempo com ela. Talvez pudessem até ter alugado uns patins para patinarem ali.
— Da próxima vez que eu vier a Nova Iorque viremos patinar aqui — insistiu ele.
Ela sorriu.
— Eu agora patino bem, sabes?
— Ah, sim? Como foi isso?
— Sempre que posso vou patinar.
— Aqui? — Olhou com prazer para a mocinha graciosa que se encontrava a seu lado. Teve pena de não ter tempo para ver como ela patinava bem. Ela, porém, abanou a cabeça em resposta.
— Aqui não. A minha mesada não me permite vir aqui. Alex achou aquilo absurdo. O pai era um dos melhores cirurgiões de Manhattan e Kay também ganhava bastante dinheiro.
— Patino no parque, tio Alex. — Só de vez em quando é que ela o tratava assim.
— Sozinha? — Alex olhou-a horrorizado e ela sorriu com altivez.
— Algumas vezes. Agora já sou uma moça crescida.
— Suficientemente crescida para não seres assaltada? — Alex mostrava-se zangado e ela abanou a cabeça e riu.
— Parece mesmo a avó.
— Ela sabe que vais patinar sozinha no Central Park? E a tua mãe? — Afinal Kay voltara para Washington antes de ele chegar e não se tinham visto.
— Sabem os dois. E eu sou cuidadosa. Se patino à noite, saio do parque com outras pessoas, para não ter de andar sozinha.
— E como sabes se essas «outras pessoas» não irão te fazer mal?
— Por que o fariam?
— Então, Mandy, tens vivido sempre em Nova Iorque e sabes como é. Preciso de te explicar o que não se deve fazer?
— Oh, mas com uma garota como eu não é o mesmo. Que me poderiam roubar? Duas caixas de pastilhas, três dólares e as chaves?
— Talvez, ou... — Alex detestava ter de o dizer. — Ou algo muito mais precioso. Podiam fazer-te mal, — Não queria pronunciar a palavra «estupro» em frente daquele rosto inocente que o olhava com um sorriso. — Olha, faz-me um favor. Não voltes lá. — Depois, de sobrolho franzido, levou a mão ao bolso e pegou na carteira, de onde retirou uma nota nova, de cem dólares. Deu-a a Amanda com uma expressão grave, e os olhos da sobrinha abriram-se de espanto.
— O que é isso?
— É o teu dinheiro para a patinação. Quero que venhas aqui de vez em quando. E, quando, esse dinheiro acabar, quero que mo digas para eu te mandar mais. E isto fica apenas entre nós, minha menina, mas não quero que voltes a ir patinar ao Central Park. Entendido?
— Sim, senhor.. Mas estás doido, Alex! Cem dólares! — Amanda sorriu como se tivesse dez anos. — Huau! — E sem acrescentar mais nada, atirou os braços ao pescoço do tio e deu-lhe um grande beijo na cara. Depois, guardou cuidadosamente a nota de cem dólares na sua pequena bolsa de brim. O fato de ela ter aceitado o dinheiro fez com que Alex se sentisse melhor. No entanto, ficaria muito preocupado se soubesse que, dada a freqüência com que ela patinava, o dinheiro só iria durar algumas semanas. E, quando acabasse, ela não teria coragem de lhe pedir mais. Era uma moça pouco exigente e mostrava-se sempre grata pelo que lhe davam, sem pedir mais nada.
Alex olhou relutantemente para o relógio e depois para Amanda. A sua expressão de pena refletiu-se imediatamente no rosto de Amanda.
— Parece-me que temos de ir embora.
Ela disse que sim com a cabeça, sem nada proferir, pensando quando voltariam a encontrar-se. As visitas do tio eram sempre uma alegria para ela. Essas visitas e o tempo que passava com a avó tornavam a vida dela mais suportável e mais digna de ser vivida. Caminharam lentamente pela alameda que ia dar à Quinta Avenida e, quando lá chegaram, Alex chamou um táxi.
— Quando virás outra vez a Nova Iorque, Alex?
— Não sei. Não será daqui a muito tempo. Alex tinha sempre a mesma sensação de pena e remorso quando a deixava. Sentia que devia fazer mais por ela e censurava-se por não o fazer. Mas como proceder? Como substituir um pai cego e uma mãe insensível? Como dar a uma criança o que ela não tivera durante quase dezessete anos? E, apesar de ser baixa e delicada, Amanda já não era uma criança. Nem mesmo Alex podia ignorar isso. Era uma adolescente singularmente bonita. O que surpreendia era que ela própria ainda não se tivesse apercebido disso.
— Vens no Dia de ação de Graças?
— Talvez. — Viu o olhar suplicante da sobrinha e repetiu, embaraçado: — Talvez. Vou fazer o possível. Mas não prometo.
Tinham entretanto chegado junto da casa dos pais da jovem e Alex despediu-se dela com um pequeno abraço e um beijo. Reparou que as lágrimas brilhavam nos olhos da sobrinha enquanto ela lhe dizia adeus, mas ao mesmo tempo sorria com a alegria latente dos seus dezesseis anos e meio. Alex sentia-se sempre triste quando a deixava.
De certo modo, ela lhe lembrava sempre as oportunidades que perdera, os filhos que podia ter tido. Gostava que Amanda fosse sua filha. E esse pensamento irritou-o, como sempre. A irmã não merecia ter uma filha tão encantadora como Amanda. Deu o endereço do hotel ao motorista, foi buscar as malas, voltou para o táxi e com um suspiro de cansaço mandou seguir para o aeroporto. Pensou então que seria bom chegar em casa. Estivera em Nova Iorque apenas dois dias mas ficara esgotado. O encontro com Raphaella na noite anterior o fizera sentir-se triste e só. O assunto que ele fora ali tratar correra bem, mas perdera a relevância no meio do turbilhão emocional em que ele se encontrava. Pouco a pouco, à medida que o carro avançava, Alex pensava cada vez menos em Amanda e mais em Raphaella. Tinha pena dela e ao mesmo tempo estava zangado com ela. Por que motivo teimaria em manter-se fiel a um marido com idade suficiente para ser seu avô e que se encontrava já meio morto? Não fazia sentido. Era uma loucura... Recordou o rosto de Raphaella enquanto se afastava dele, na noite anterior. Vira-a na véspera e no entanto parecia-lhe que não a via há muito tempo. Subitamente, com um inexplicável acesso de raiva, perguntou a si próprio por que motivo deveria mostrar-se compreensivo, por quê havia de aceitar o que ela dissera. E afinal ela mandara-o embora, nem mais nem menos. De repente, decidiu não o fazer. Endireitou-se no assento, olhou à sua volta como se tivesse acabado de acordar e dirigiu-se ao motorista.
— Para o Carlyle!
— Agora? — O motorista pareceu assombrado.
Alex disse que sim com a cabeça, com determinação. — Agora.
— Já não quer ir para o aeroporto?
— Não! — Se perdesse o avião para São Francisco podia ficar no apartamento da mãe. Charlotte fora a Boston por causa da promoção do seu livro. Precisava voltar a ver Raphaella. Se ela estivesse no hotel podia descer para falar com ele. Se...
No seu quarto no Carlyle, Raphaella estava estendida em cima da cama tendo vestido um roupão de cetim cor-de-rosa por cima da roupa interior de renda creme. Pela primeira vez desde que chegara a Nova Iorque, estava sozinha. Despedira-se da mãe, da tia e das primas, que estavam naquela altura no aeroporto para embarcar para Buenos Aires. Partiria na manhã seguinte para São Francisco, mas nessa noite ficaria no Carlyle descansando, sem fazer absolutamente nada. Não precisaria ser paciente, nem agradável. Não teria de traduzir o que a mãe e as primas diziam numa dúzia de lojas elegantes. Não teria de pedir as refeições para elas, nem de guiá-las pela cidade. Estava deitada descansando e, dentro de poucos minutos, levar-lhe-iam o jantar ao quarto. Comeria sozinha na sala de estar esplendorosa da suite que ocupava sempre que ficava naquele hotel. Sentia uma mistura de exaustão e de alívio. Era bom não precisar fingir que estava a divertir-se, nem ter de ouvi-las tagarelar a toda hora. Não tivera um minuto para si própria desde que chegara. Era sempre assim. Nunca devia estar sozinha. Nunca. A mãe, a tia e as primas achavam que as mulheres não deviam estar sós. Precisavam ser sempre protegidas, guardadas. Claro que havia uma exceção quando se tratava de passar uma noite no hotel para partir na manhã seguinte. Permaneceria no quarto, jantaria no quarto e na manhã seguinte iria para o aeroporto numa limusine.
Na verdade, era necessário ter cuidado. Ela não o tivera e sabia o que lhe sucedera. Os seus pensamentos voaram para Alex, como sucedera mil vezes nas últimas quarenta e oito horas. Recordava o rosto dele, a expressão dos seus olhos, os ombros largos, o cabelo macio. Fora abordada por um estranho no avião. Tomara uma bebida com ele e apaixonara-se.
Lembrou mais uma vez a si própria a decisão que tomara, consolou-se pensando que era o que devia fazer e forçou-se a prestar atenção a outras coisas. Não havia razão para pensar em Alex Hale, disse para consigo. Não voltaria a vê-lo. A declaração que ele lhe fizera na noite anterior devera-se apenas a um entusiasmo passageiro. E fora uma loucura. Como poderia ele esperar que ela voltasse a vê-lo? O que o levaria a pensar que ela queria ter um caso com ele? Os seus pensamentos demoraram-se no rosto dele, e Raphaella pensou se a mãe teria alguma vez feito uma coisa semelhante. Teria conhecido alguém como Alex? Ou teria isso sucedido a qualquer das mulheres que ela conhecia em Espanha? Pareciam perfeitamente satisfeitas com as suas vidas recatadas, guardadas, gastando constantemente dinheiro, comprando jóias e peles, assistindo a festas, mas sempre rodeadas por outras mulheres, por detrás de muros bem vigiados. Que se passaria consigo? Por que se sentiria subitamente revoltada com tais tradições? As outras mulheres que ela conhecia em Paris, em Madrid, em Barcelona, tinham as festas, os divertimentos, as ocasiões de gala, que faziam com que os anos fossem passando.
E tinham filhos... filhos... Raphaella sentia sempre um aperto no coração quando pensava em crianças. Durante anos não conseguira ver uma mulher grávida sem sentir uma imensa vontade de chorar. Nunca dissera a John Henry como ficara desolada por não ter filhos. Mas sempre suspeitara de que ele sabia disso. Por isso é que a estragava com mimos e a rodeava de carinho e de amor.
Raphaella fechou os olhos e sentou-se na cama, zangada consigo mesma por permitir que os seus pensamentos tomassem tal rumo. Estava livre dessa vida durante mais uma noite. Não precisava pensar em John Henry, no sofrimento dele, na sua doença, no que sucederia a ela até ele morrer. Não tinha de pensar no que lhe faltava e no que já perdera. Não valia a pena pensar em festas a que nunca assistiria, em pessoas que nunca conheceria, em filhos que nunca teria. A vida dela estava delineada.
Era o seu destino, o seu caminho, o seu dever.
Com as costas da mão, Raphaella limpou uma lágrima que lhe umedecia a face e forçou-se a abrir o livro de Charlotte Brandon que comprara no aeroporto. Esses livros evitavam que ela tivesse pensamentos como os que acabara de ter, porque enquanto se encontrava absorvida nas intrincadas histórias esquecia tudo. Há muitos anos que os livros de Charlotte Brandon a ajudavam a fugir da triste realidade que era a sua vida. Com um suspiro de resignação, Raphaella iniciou a leitura, reconhecida pelo fato de Charlotte escrever dois novos livros por ano. Raphaella chegara a ler os mesmos livros duas e três vezes e em línguas diferentes. Lera apenas duas ou três páginas quando a campainha do telefone invadiu o mundo em que ela se refugiara.
— Alô? — Parecia-lhe estranho que alguém lhe telefonasse. A mãe já devia encontrar-se no avião e só lhe telefonariam de São Francisco se tivesse ocorrido algo de muito grave. Ela ligara para John Henry nessa manhã e a enfermeira dissera-lhe que estava tudo bem.
— Raphaella? — Ao princípio a voz não lhe pareceu familiar, mas logo a seguir o seu coração começou a bater desordenadamente.
— Sim? — Alex mal a conseguia ouvir.
— Eu... eu estava a pensar se poderíamos falar. Sei que me explicou tudo ontem à noite, mas talvez possamos voltar a conversar mais calmamente, e... Bem... talvez possamos ser apenas amigos.
O coração dele batia tão depressa como o dela. E se ela dissesse que não o queria ver? Não podia suportar a idéia de não voltar a vê-la.
— Raphaella? — Ela não respondera e ele receou que o telefone estivesse desligado. — Está aí?
— Sim... — Raphaella mal podia falar. Por que estaria ele fazendo aquilo? Ela estava resignada a cumprir as suas obrigações, o seu dever, e ele vinha escarnecer dela daquela maneira tão cruel. — Sim, estou aqui.
— Poderia... poderíamos... poderei vê-la? Parto... parto para o aeroporto dentro de minutos. Passei por aqui na esperança de vê-la. — Era só o que ele queria fazer. Falar uma vez mais com ela antes de apanhar o último avião.
— Onde está? — perguntou Raphaella com a testa franzida.
— Aqui em baixo. — Alex falou com uma timidez tal que ela se riu.
— Aqui? No hotel? — Raphaella sorria. Ele era ridículo, na verdade. Parecia um rapazinho.
— Alex, nem sequer estou vestida. — Era um pequeno detalhe e ambos sabiam que Alex havia ganho.
— O que tem isso? Por mim pode até estar embrulhada numa toalha... Raphaella? — Fez-se um longo silêncio entre eles e então Alex ouviu a campainha da porta da suite, ao longe. — É a sua mãe?
— Não é provável. Ela já partiu para Buenos Aires. Deve ser o meu jantar.
Um segundo mais tarde a porta da suite abriu-se e o criado entrou com o carrinho que trazia o jantar. Raphaella assinou a conta e voltou de novo a sua atenção para o telefone.
— Então, que fazemos? Vem aqui a baixo ou vou eu aí acima? Posso mascarar-me de criado e levar-lhe qualquer coisa. Que diz?
— Pare com isso, Alex. — Depois, mostrou-se séria outra vez. — Alex, já dissemos tudo quanto tínhamos a dizer ontem à noite.
— Não, não dissemos. Ainda não me explicou por que pensa assim.
— Porque amo o meu marido. — Fechou os olhos com força, querendo negar a si própria o que começava a sentir por Alex. — E não tenho por onde escolher.
— Isso não é verdade. Tem muito por onde escolher. Todos temos. Às vezes não queremos ver isso. Mas as escolhas existem. Compreendo o que sente e respeito isso. Mas não podemos pelo menos conversar? Ouça, eu vou aí acima. Não lhe tocarei. Só quero vê-la... Raphaella... por favor...
Havia lágrimas nos olhos de Raphaella quando ela respirou fundo e se preparou para lhe dizer que se fosse embora, que não era justo fazer-lhe aquilo; de repente, sem saber por quê, disse que sim.
— Está bem. Suba. Mas só por alguns minutos. — Quando desligou o telefone, sua mão tremia e ela sentia-se tão tonta que teve de fechar os olhos. Raphaella nem sequer teve tempo de vestir outra coisa antes de ele bater à porta. Limitou-se a fechar melhor o roupão e a alisar o cabelo solto, que a fazia parecer muito mais nova do que quando o usava elegantemente penteado sobre a nuca. Hesitou por um longo momento em frente da porta antes de abri-la, lembrando-se que podia ainda recusar-se a fazê-lo. No entanto, abriu-a e ficou olhando para o homem fantasticamente atraente que ali se encontrava. Alex permaneceu tão silencioso como ela, durante uns instantes; em seguida, Raphaella deu um passo atrás e fez-lhe sinal para entrar. Contudo, no rosto dela não havia um sorriso, mas sim uma expressão de grande gravidade.
— Olá. — Alex mostrou-se embaraçado ao parar longe de Raphaella, do outro lado da sala. — Obrigado por me ter deixado subir para vê-la. — E, ao olhá-la, interrogou-se de repente sobre o que teria ido fazer ali. O que iria dizer-lhe? Que poderia dizer-lhe, a não ser que cada vez que a via se sentia mais apaixonado por ela. E que, quando a não via, ela o assombrava como um fantasma sem o qual não pudesse viver. Mas limitou-se a repetir apenas: — Muito obrigado.
— Não tem importância. — A voz de Raphaella era muito calma. — Quer comer alguma coisa? — Apontou vagamente para a enorme mesa com rodas, mas ele recusou.
— Obrigado, jantei com a minha sobrinha. Não quero interromper o seu jantar. Por que não se senta e começa?
Raphaella abanou a cabeça e sorriu.
— O jantar pode esperar. — Após uma pequena pausa, Raphaella suspirou e começou a andar de um lado para o outro. Olhou para a rua com uma expressão distraída e em seguida voltou-se para ele. — Lamento, Alex. Sinto-me profundamente comovida pelo que sente por mim, mas nada posso fazer. — A voz que falou era a de uma princesa solitária, consciente das suas reais obrigações e lamentando nada mais poder fazer. Tudo nela era aristocrático: a postura, a expressão, os modos; mesmo vestindo um roupão de cetim cor-de-rosa, Raphaella Phillips parecia uma rainha. A única coisa a mostrar que ela sofria era a expressão de intenso desgosto que não conseguia ocultar.
— E o que diz sobre o que sente, Raphaella? O que é que diz?
— Eu? Sou o que sou e não posso alterar isso. Sou a mulher de John Henry Phillips... há quase quinze anos. Tenho de viver com isso, Alex. E viverei sempre.
— Isso não é suficiente para si? Diz que está a fazer o seu dever? Que é uma obrigação? Isso a consola pela sua juventude perdida? Que idade tem? Trinta e dois? Vive assim desde os vinte e cinco, Raphaella. Como pode continuar? Ela abanou a cabeça lentamente, com lágrimas nos olhos.
— Tenho de fazê-lo. Mais nada. O resto não interessa.
— Claro que interessa. Como pode dizer isso? — Aproximou-se e olhou-a meigamente. — Raphaella, estamos a falar da sua vida. E há quantos anos ele se encontra... como está agora? À mais de sete...
— Mas não posso escolher, Alex. É isso que não compreende. Talvez a maneira como a minha mãe vive seja melhor. Talvez até faça sentido. Daquela maneira não há tentações. Ninguém se aproxima o bastante para obrigá-las a escolher. E deixa de haver possibilidades de escolha.
— Lamento que isto seja tão doloroso para si. Mas por que há de tratar-se de uma escolha? Porque havemos de falar disso agora? Porque não havemos apenas de ser amigos? Não lhe peço coisa alguma. Podíamos encontrar-nos como amigos, talvez para almoçarmos juntos. — Era um sonho e ele sabia. Raphaella sabia também quando abanou a cabeça.
— Quanto tempo acha que isso duraria, Alex? Sei o que sente e penso que sabe que eu sinto o mesmo por si.
Ao ouvir aquelas palavras, Alex rejubilou e desejou apertá-la nos braços, mas não se atreveu.
— Não podemos esquecer isto? Fingir que não existe? — prosseguiu ela. — A expressão do rosto de Alex dizia-lhe que não era possível. — Creio que teremos de fazê-lo.
— E depois, com um sorriso, acrescentou: — Talvez dentro de alguns anos nos voltemos a encontrar.
— Onde? Em casa da sua família depois de a terem fechado lá outra vez? Quem é que está enganando, Raphaella? — Dirigiu-se para ela e colocou ternamente as mãos nos ombros de Raphaella, enquanto ela o olhava com os seus grandes olhos negros perturbados. — Raphaella, as pessoas passam a vida à procura de amor, querendo-o, necessitando dele, e na maior parte das vezes sem o encontrarem. Mas de quando em quando, de tempos a tempos, o amor bate-nos à porta e diz: «Aqui estou. Toma-me, sou teu.» Quando ele chega, como poderemos voltar-lhe as costas? Como pode dizer-me: «Agora não, talvez mais tarde?» Como pode correr esse risco, sabendo que essa nova oportunidade poderá nunca surgir?
— Às vezes, aproveitar uma oportunidade é um luxo, um luxo que não podemos permitir-nos. Eu não posso me permitir esse luxo. Não estaria certo, e o Alex sabe disso.
— Não, não sei. Se permitisse a si própria amar-me, isso tiraria alguma coisa ao seu marido? Far-lhe-ia realmente alguma diferença nas condições em que ele se encontra?
— Talvez. — Os olhos de Raphaella não vacilaram e ele não tirou as mãos dos seus ombros. Ficaram no meio da sala, olhando um para o outro. — Podia fazer uma grande diferença, se eu me tornasse insensível às necessidades dele, se nunca estivesse junto dele para ver se estava a ser bem tratado, se me envolvesse consigo e o esquecesse. Uma coisa dessas matá-lo-ia. Poderia significar a diferença entre a vida e a morte. Eu nunca deixaria que isso sucedesse.
— Eu nunca lhe pediria tal coisa. Nunca. Não compreende? Já lho disse, respeito o seu relacionamento com ele, respeito o que faz e o que sente. Compreendo isso. Estou apenas a dizer-lhe que tem direito a um pouco mais, assim como eu. E não é preciso mudar nada entre si e o seu marido. Juro, Raphaella. Quero apenas partilhar consigo algo que nenhum de nós tem, que talvez nunca tenhamos tido. Pelo que percebi, a Raphaella vive no vácuo. Eu também. De certo modo vivo assim há muito tempo.
Raphaella olhou-o dolorosamente.
— Como sabe que teremos algo a partilhar, Alex? Talvez o que sente seja uma ilusão, um sonho. Não me conhece. Tudo o que pensa de mim é fantasia.
Dessa vez, Alex limitou-se a baixar a cabeça e a aproximar suavemente a boca até mergulhar na dela. Durante uns instantes sentiu-a rígida, mas os seus braços rodearam-na tão fortemente que ela não pôde libertar-se, e momentos depois ela já não quis fazê-lo. Agarrou-se desesperadamente a ele e o corpo dela palpitou com uma paixão que até então desconhecera. Subitamente, Raphaella libertou-se dos braços de Alex, ofegante, e voltou a cabeça para o lado.
— Não, Alex. Não! — Voltou-se de novo para ele com um olhar ardente. — Não! Não faça isto! Não me tente com o que eu não posso ter. Não posso, bem sabe! — Depois baixou a cabeça e, com os ombros inclinados, suplicou com lágrimas nos olhos: — Por favor, vá-se embora.
— Raphaella...
Ela voltou-se lentamente para olhá-lo, com uma expressão de dor nos grandes olhos escuros. E, então, foi como se Alex a visse derreter-se em frente dos seus olhos.
O ardor desapareceu-lhe dos olhos e ela dirigiu-se para ele, abraçando-o, com os lábios procurando avidamente os dele.
— Oh, querida, amo-a... amo-a...
As palavras dele estavam cheias de meiguice e de ansiedade, e Raphaella abraçou-o e beijou-o com o desejo de amar acumulado há mais de sete anos. Então, sem pensar, Alex puxou-lhe o roupão de cetim para baixo e ajoelhou-se para lhe beijar o corpo; ela ficou direita em frente dele, como a deusa que ele venerava desde que pela primeira vez a vira a chorar nas escadas. Era a mulher pela qual ele ansiava, a mulher de que ele precisava e que amara quase instantaneamente. E, quando ele a tomou nos braços e a beijou, Raphaella compreendeu que estava a entregar-se a ele com todo o seu coração. Pareciam ter decorrido horas desde que tinham começado a se beijar, a tocar e a acariciar o corpo um do outro. Raphaella sentia as pernas trêmulas debaixo do corpo; subitamente, ele a ergueu nos braços, o roupão de cetim ficou caído no tapete, e dirigiu-se devagar para o quarto, deitando-a sobre a cama.
— Raphaella? — Alex murmurou o nome dela como uma pergunta e ela disse hesitantemente que sim, com um pequeno sorriso de deslumbramento. Então, Alex apagou a luz, despiu-se rapidamente e estendeu-se na cama ao lado dela.
Alex tocou a avidamente com a boca e com as mãos. Raphaella tinha a sensação de estar sonhando, como se aquilo não pudesse estar a suceder, como se fosse impossível ser real e, com um abandono que nunca experimentara antes, entregou-se a ele. O seu corpo vibrava e palpitava com um desejo que ela nunca julgara ser possível sentir.
E com o mesmo ardor Alex apertava-se contra ela, com o seu corpo preso ao lado, braços entrelaçados, as pernas parecendo pertencer a um só corpo. As suas bocas mantinham-se unidas num beijo sem fim, até que subitamente o momento final de prazer explodiu neles, dando-lhes a sensação de se elevarem no ar.
Depois ficaram estendidos ao lado um do outro e, à luz suave do candeeiro da mesa-de-cabeceira, Alex olhou para aquela mulher que amava. Por instantes, sentiu-se assustado. Que ele tinha feito e que ela faria agora? Iria detestá-lo? Estaria tudo acabado? Mas ao ver a doçura nos olhos dela compreendeu que não era o fim, mas sim o princípio; Raphaella chegou-se mais para ele, beijou-lhe os lábios e passou lentamente a mão ao longo das costas dele. Todo o seu corpo começou a palpitar e voltou a beijá-la, deitado de lado e vendo-a sorrir.
— Amo-te, Raphaella. — As palavras foram ditas em voz tão baixa que só ela podia ouvi-las. Ela disse que sim, sem falar, e o sorriso iluminou-lhe os olhos. — Amo-te! — repetiu Alex, e o sorriso tornou-se mais aberto.
— Eu sei. Eu também te amo. — Raphaella falou tão baixo como ele e subitamente Alex atraiu-a para si, apertando-a com força contra o seu corpo, como se quisesse que ela nunca mais o deixasse. Como se tivesse compreendido, Raphaella apertou-o também contra si. — Está bem, Alex... está bem.
Poucos minutos depois, as mãos dele começaram a acariciar outra vez o corpo de Raphaella.
— Raphaella? — Alex estava apoiado sobre um cotovelo, e a voz dele era apenas um sussurro. Não tinha a certeza de que ela estivesse acordada. Mas os olhos dela abriram-se lentamente com a primeira claridade da manhã e ela viu Alex, observando-a com uma expressão cheia de amor.
— Bom dia, minha querida. — Beijou-a e acariciou o longo cabelo sedoso de Raphaella, tão parecido com o dele. E subitamente ela viu-o sorrir e sorriu-lhe também.
— O que é que te fez rir?
— Estava pensando que se alguma vez tivermos filhos que não tenham cabelo preto, ficarás encrencada.
— Ah, sim? — Raphaella observou-o com ar divertido enquanto ele a acariciava.
— Claro que sim. — Alex olhou pensativamente para Raphaella, traçando uma linha, com um dedo, em volta dos seios dela e depois pelo meio do corpo até ao sítio onde as pernas se uniam. Em seguida muito devagar, fez subir de novo o dedo até aos seios. Parou por momentos, olhando-a. — Não queres ter filhos, Raphaella?
— Agora?
— Não. Mais tarde. Estava a pensar que... — Hesitou e depois decidiu fazer a pergunta: — Podes ter filhos?
— Creio que sim. — Não queria falar dessa fraqueza de John Henry e não disse mais nada.
— Nunca tiveste nenhum por não quereres ou... por outras razões? — Apercebera-se de que ela estava querendo ser discreta.
— Por outras razões.
— Também pensei isso. — Raphaella ergueu-se ligeiramente e beijou-o de leve nos lábios. Depois sentou-se na cama com uma expressão horrorizada, olhando para Alex com uma mão a cobrir-lhe a boca.
— Que se passa?
— Oh, meu Deus... perdi o avião!
Alex sorriu, sem se mostrar impressionado.
— Eu também perdi o meu, ontem à noite. Com efeito... — O sorriso tornou-se mais aberto. — Nem fui buscar a minha bagagem que deixei entregue ao porteiro.
No entanto, Raphaella não o ouvia.
— Que hei de fazer? Tenho de falar para a companhia aérea... Deve haver outro... Meu Deus, quando o Tom for me esperar no aeroporto...
Os olhos de Alex enevoaram-se logo que ela pronunciou essas palavras.
— Quem é o Tom?
Dessa vez foi Raphaella quem sorriu.
— É o motorista, tolo.
— Bom. De qualquer modo podes ligar para casa e dizeres que perdeste o avião. Diz-lhes que vais apanhar... — Ia dizer «o seguinte», mas subitamente teve uma idéia.
— Raphaella... E se... — Quase receava dizer o que pensava e estendeu lentamente a mão para ela. — E se só regressarmos amanhã e passarmos o fim-de-semana aqui, juntos? Podíamos...
— Não, não podemos. Tenho de ir... Estão à minha espera.
— Por quê? Não tens nada que fazer em casa. Tu mesma o disseste, e um dia, ou até dois, não fazem qualquer diferença. Não voltaremos a ter esta liberdade durante muito tempo. Estamos aqui... estamos sós... estamos juntos... Que dizes? Até amanhã? — Puxou-a para si enquanto falava, desejando que ela dissesse que sim. Mas Raphaella afastou-o meigamente, com uma expressão pensativa, mas insegura.
— Terei de lhes mentir. E se...
— Se suceder alguma coisa? — Ambos sabiam que ele se referia a John Henry. — Podes ir no próximo avião... Não é diferente do que foi enquanto aqui estavas com a tua mãe. A única diferença é que agora estás comigo. Por favor... — Alex olhava-a com uma ternura muito grande, e Raphaella não desejava nada mais do que ficar ali com ele; porém, tinha de pensar nas suas obrigações. John Henry... De repente, percebeu que dessa vez precisava fazer alguma coisa por si própria. Olhou para Alex e disse que sim com a cabeça. Parecia assustada mas feliz, e ele soltou um grito de alegria.
— Adoro-te, meu amor!
— És doido!
— Somos ambos. Vou tomar uma ducha, tu pedes o desjejum e depois vamos dar um passeio.
Nenhum deles se lembrara de como seria embaraçoso pedir um desjejum para dois. Por isso, ela encomendou um enorme desjejum; quando lhe perguntaram se era para duas pessoas, respondeu prontamente que era apenas para uma. Raphaella foi ter com Alex na ducha e olhou para ele com admiração. Alex era alto, forte e esbelto e fazia lembrar uma estátua de um jovem deus grego.
— Que está a ver, minha senhora? — perguntou ele com água correndo pelo rosto.
— Estou a observar-te. És bonito, Alex.
— Agora sei que és doida — replicou Alex com ar divertido. Depois a olhou mais gravemente. — Ligaste para casa? — Raphaella abanou a cabeça como uma criança recalcitrante e ele ficou muito quieto, enquanto a água lhe caía sobre o corpo. Raphaella não conseguia pensar na casa e em John Henry. Nada disso lhe parecia real. A realidade estava ali. — Por que não vais falar agora, querida?
Raphaella disse lentamente que sim com a cabeça e dirigiu-se para o quarto. Quando se sentou junto do telefone, deixou de pensar no belo corpo de Alex e de súbito passou a ser de novo Mrs. Raphaella Phillips. Que mentira iria dizer-lhe? A telefonista atendeu imediatamente e ela pediu a ligação para São Francisco. Momentos depois, ouvia a voz da enfermeira que lhe dizia que o marido estava ainda a dormir. Eram sete da manhã em São Francisco e ele ainda não acordara.
— Ele está bem? — Raphaella sentiu-se horrorizada. Talvez fosse ser punida. Talvez ele tivesse piorado por culpa dela. Mas a voz jovial da enfermeira a tranqüilizou rapidamente. Está ótimo. Ontem esteve sentado na cadeira durante uma hora. Creio que ficou contente. Li-lhe um pouco o jornal depois do jantar e logo a seguir deitou-se e adormeceu.
Então, continuava tudo na mesma como quando ela lá estava. Nada se modificara. Raphaella explicou que a mãe ficara mais um dia em Nova Iorque e que por isso só partiria no dia seguinte para São Francisco. Esperou um instante, como se estivesse à espera que a enfermeira lhe chamasse mentirosa, mas isso não sucedeu. Sabia que a mãe não lhe telefonaria da Argentina e que seria difícil virem a saber que ela mentira. Porém, sentia-se tão terrivelmente culpada que lhe parecia impossível que não soubessem o que ela estava a fazer. No entanto, disse à enfermeira para informar o motorista de que não devia ir esperá-la no aeroporto e que na manhã seguinte telefonaria para dizer qual a hora da chegada do avião a São Francisco. Passou-lhe pela cabeça que poderia ir de táxi com Alex, mas que isso poderia provocar suspeitas. Nunca na sua vida ela fora de táxi do aeroporto para casa. Agradeceu então à enfermeira e pediu-lhe para dizer a Mr. Phillips que ela telefonara e que estava bem. Quando desligou, ficou calada, com uma expressão grave.
— Há alguma coisa? — Alex saiu da casa de banho, penteado e com uma toalha em volta da cintura. Raphaella pareceu-lhe diferente do que estivera antes de ele lhe dizer para telefonar. — Que sucedeu?
— Nada... Falei com a enfermeira.
— Mas passa-se alguma coisa? — Havia na voz dele uma pergunta óbvia e Alex mostrava-se preocupado, mas ela abanou rapidamente a cabeça.
— Não, não, ele está bem. Mas eu... — Olhou-o com uma expressão infeliz. — Sinto-me culpada, Alex. Devia voltar já para lá.
A voz de Raphaella não era mais do que um sussurro angustiado, e Alex foi sentar junto dela. Ficou muito quieto e depois lhe rodeou o corpo com os braços e apertou-a contra si.
— Faz isso, se é o que realmente desejas fazer. Eu compreendo. Compreenderei sempre. — Raphaella olhou-o, cheia de confusão e Alex murmurou: — Está tudo bem, querida. Está tudo bem.
— Por que estás a ser tão bom para mim? — perguntou Raphaella escondendo o rosto no ombro nu de Alex.
— Porque te amo. Já te disse ontem. — Alex sorriu e beijou-lhe o cabelo.
— Mas mal me conheces.
— Ah, isso é que conheço. Conheço-te dos pés à cabeça.
Raphaella corou, mas compreendeu que as palavras dele tinham outro sentido, mais importante. E estranhamente, apesar de conhecê-lo há tão pouco tempo, acreditou nele. Ele a conhecia. Melhor do que qualquer outra pessoa. Melhor do que o marido.
— Ficas zangado comigo se eu regressar hoje? — Raphaella parecia ter pena do que estava a dizer e soltou um longo suspiro.
— Zangado? Não, apenas triste. Se é o que queres, está bem?
— Que vais fazer? Vais visitar a tua mãe ou a tua irmã?
— Não. A minha mãe foi a Boston, a minha irmã está em Washington e a minha sobrinha já deve ter planos para o fim-de-semana. Volto também para casa. Podemos ir no mesmo avião, se arranjarmos lugares ao pé um do outro. Achas bem? — Raphaella disse que sim com a cabeça. — Bom. — Levantou-se lentamente. — Telefona para a companhia de aviação. Eu vou fazer a barba.
Alex dirigiu-se para a casa de banho e fechou a porta. Raphaella ficou sentada, triste, como se acabasse de desistir da única coisa que realmente desejava: estar algum tempo com Alex. Juntos. Só os dois. Permaneceu imóvel durante um grande bocado e depois foi bater à porta da casa de banho.
— Posso entrar? — Alex abriu a porta e olhou-a com uma expressão que lhe dizia de novo que a amava.
— Claro que podes. Não precisas perguntar. Telefonaste?
Raphaella abanou a cabeça.
— Não quis fazê-lo — respondeu timidamente.
— Por quê? — O coração de Alex começou a bater com mais força enquanto esperava pela resposta.
— Porque não quero ir ainda. — Ela parecia uma mocinha, com o cabelo a cair-lhe sobre os ombros, ainda em desordem. — Quero ficar aqui contigo.
— Queres? — O rosto de Alex abriu-se num sorriso e ele largou o aparelho de barbear para estender a mão para ela, enquanto com a outra limpava o sabão do rosto com uma toalha. — Bem, nada poderia me agradar mais. — Beijou-a demoradamente e levou-a de novo para a cama.
Meia hora depois tinham acabado de fazer amor e logo a seguir chegou o criado com o desjejum.
Depois do criado sair, ambos sentaram em frente do copioso desjejum, ela com o roupão de cetim e ele com a toalha em volta da cintura. Sentiam-se felizes e começaram a fazer planos para esse dia. Dividiam os ovos mexidos pelos dois, sentindo-se como se sempre tivessem vivido juntos.
— Quero ir ao alto do Empire State Building, quero comer castanhas quentes e gostaria de ir patinar...
Alex riu.
— Pareces a minha sobrinha. Ela também gosta de patinar.
— Então podemos ir todos, mas primeiro quero ir ao Empire State Building.
— Sério? — perguntou Alex acabando de beber o café.
— Claro que falo sério. Nunca posso fazer essas coisas.
Alex inclinou-se sobre a mesa para beijá-la.
— Meu amor, és a mulher mais bela, mais encantadora que já conheci.
— Então és cego e doido e eu amo-te. — Mas pensava se não seria ela a louca. Aquilo era uma loucura completa. E a maior loucura era ela sentir que conhecera Alex toda a sua vida.
Em conjunto, arranjaram uma explicação para conseguir que levassem a bagagem de Alex para o quarto dela e, quando chegou, Alex vestiu-se enquanto Raphaella tomava banho. Guardaram as coisas dele no armário. Ao dirigirem-se para o centro da cidade, Raphaella observou que era como se estivessem em lua-de-mel. Alex levou-a obedientemente ao alto do Empire State Building, para almoçarem no Plaza e em seguida deram um belo passeio de carruagem pelo parque. Passaram duas horas a vaguear por entre as maravilhas do Metropolitan Museum e foram ao Parke-Bemet para assistir a um leilão de antiguidades francesas. Depois, felizes, relaxados e um pouco cansados, atravessaram a rua para o Carlyle e subiram no elevador para o quarto. Enquanto tirava o casaco e o pendurava, Raphaella bocejava e Alex estava já deitado na cama, sem casaco e sem sapatos, estendendo os braços para ela.
— Não sei o que se passa consigo, minha senhora, mas eu estou exausto. Creio que desde miúdo não fazia tanta coisa num só dia.
— Também eu. — De repente, Raphaella desejou poder ir com ele a Paris, a Barcelona e a Madrid para lhe mostrar as coisas de que mais gostava nessas cidades. Desejou também ir com ele a Santa Eugenia, para ele ver o sítio onde ela passava todos os verões, e onde convivia com as crianças pelas quais sentia tanto carinho. Era estranho pensar nessas crianças. Algumas a quem ela costumava contar histórias quando se casara, tinham também casado e eram já mães. Isso a fazia sentir-se muito velha, como se grande parte da sua vida tivesse passado ao lado.
— Em que é que estavas a pensar? — Por instantes, reparara na expressão melancólica do olhar dela.
— Pensava em Santa Eugenia.
— Por quê?
— Pensava nas crianças que lá vivem... Oh, Alex... não sabes como gosto delas.
Alex falou com voz calma e firme, segurando-lhe uma mão.
— Um dia teremos os nossos filhos.
Raphaella ficou calada. Era um assunto que não gostava de discutir. Há catorze anos que pusera essa idéia de parte.
— Não tem importância.
— Tem. Sim. Muita. Para os dois. Eu desejei muito ter filhos quando era casado.
— A tua mulher não podia tê-los? — perguntou com curiosidade Raphaella, na esperança de que tivessem isso em comum, como se ambos tivessem sido roubados pelo destino.
— Não. — Alex abanou a cabeça, pensativo. — Ela podia ter filhos, mas não queria tê-los. É estranho como as coisas se tornam diferentes com o decorrer dos anos. Se eu conhecesse agora uma mulher que não quisesse ter filhos, creio que não podia amá-la. Mas julguei que a Rachel mudaria de opinião. Mas não mudou.. Estava demasiado envolvida com o seu trabalho. Agora, olhando para trás, parece-me que foi bom não termos tido filhos.
— Que fazia ela?
— É advogada. — Raphaella pareceu ficar impressionada, e ele beijou-a meigamente nos lábios. — Mas não fiques assim, Raphaella. Ela não vale muito como mulher.
— Deixaste-a?
Alex abanou novamente a cabeça.
— Não. Ela é que me deixou.
— Por causa de outro homem?
— Não. — Alex sorriu sem azedume. — Por causa de um bom emprego. Era a única coisa que lhe interessava. Agora me sinto satisfeito por as coisas terem se passado assim. — Estavam deitados lado a lado, velhos amigos ou antigos amantes, e Alex sorriu.
— Ela tem muito sucesso?
— Provavelmente.
Raphaella baixou a cabeça.
— Às vezes também gostaria de ser uma mulher de sucesso. Aquilo que eu penso que teria feito bem me foi negado, e tudo o resto... Bem... não creio que possa fazer muito mais coisas.
— Sabes contar histórias para crianças.
Ela sorriu e mostrou-se embaraçada.
— Dificilmente se poderá chamar trabalho a isso.
Alex observava-a em silêncio, lembrando-se de qualquer coisa que a mãe dissera.
— Por que não escreves essas histórias? Podias escrever livros para crianças, Raphaella. — Os olhos dela brilharam ao pensar nessa possibilidade, mas Alex voltou-se para ela e tomou-a nos braços. — Espero que saibas que se nunca fizeres nada na vida a não ser amar-me, para mim será o suficiente.
— Sim? Não te aborrecerás? — Raphaella parecia preocupada.
— Nunca. É estranho, toda a minha vida tenho estado rodeado por mulheres ambiciosas, profissionais, mulheres com todo o gênero de carreiras. Nunca julguei poder compreender uma mulher diferente. E subitamente percebi que o que sempre quis foi uma mulher como tu. Não quero ter de competir para saber qual dos dois ganha mais. Quero apenas ser eu próprio com alguém de quem goste, com uma mulher meiga, inteligente e afetuosa com a qual eu me sinta bem... — Roçou-lhe os lábios pelo pescoço... — Alguém como tu.
Raphaella olhou-o inclinando a cabeça para um lado.
— Sabes uma coisa estranha? Sinto-me como se fosse esta a minha vida. Aqui. Contigo. Como se mais nada tivesse alguma vez existido, como se a minha vida em São Francisco não fosse real. Não é estranho?
Raphaella parecia perplexa e Alex tocou-lhe meigamente no rosto antes de beijá-la na boca. Depois se afastou um pouco com um leve sorriso.
— Não. Com efeito não acho nada estranho.
Os braços de Alex rodearam-lhe novamente o corpo e ele beijou-a avidamente enquanto as mãos dela lhe acariciavam suavemente as coxas.
A voz da aeromoça anunciou a chegada a São Francisco e Alex experimentou um sentimento de depressão que o ia invadindo à medida que o avião se aproximava da pista. Os dois dias passados com Raphaella tinham sido perfeitos, idílicos. Depois do jantar, na noite anterior, tinham ido ouvir Bobby Short, como ele anteriormente planejara.
E Raphaella adorara. Depois disso, a conversa entre ambos prolongara-se pela noite dentro. Enquanto se iam acariciando mutuamente, falavam sobre si próprios e sobre as suas respectivas vidas. Quando o sol nasceu, nessa manhã de domingo, Raphaella sabia tudo a respeito de Alex, da mãe, da irmã. Ela falou-lhe do pai, de Julien, o irmão que morrera aos dezesseis anos jogando pólo, do casamento dela com John Henry, como fora inicialmente e como era agora. Parecia-lhes que sempre tinham estado juntos, como se sempre tivessem pertencido um ao outro. E agora iam regressar a São Francisco e tinham de se separar, pelo menos durante uns tempos. E ele teria de contentar-se com o pouco tempo que ela lhe pudesse dispensar da sua outra vida em casa do marido. Pelo menos fora isso que eles tinham discutido na noite anterior.
— Em que pensas? Estás horrivelmente sério.
Alex olhou-a com tristeza quando se preparavam para aterrizar. Percebia que ela sentia o mesmo que ele. Os dias que tinham passado juntos lhes pareciam toda uma vida... e agora tudo ia mudar.
— Estás bem?
Raphaella olhou-o e disse que sim com a cabeça.
— Estava pensando...
— Em quê?
— Em nós. Em como irão ser agora as coisas.
Alex inclinou-se e falou-lhe ao ouvido de uma maneira calma e íntima, que a encantava. Mas abanou a cabeça.
— Não. Não poderá ser.
Alex prendeu-lhe uma mão na sua e apertou-a, procurando o olhar dela repentinamente e não gostando do que estava vendo. Supunha que ela estivesse outra vez a sentir-se acabrunhada por sentimentos de culpa, mas isso era de esperar, agora que estava a aproximar-se de casa. Ali ser-lhe-ia mais difícil pôr de parte as suas obrigações. Mas não precisaria fazê-lo. Havia espaço para ambos, ele e o marido, na vida dela.
— Alex... — Raphaella interrompeu-se, comovida. — Não vou ser capaz de fazê-lo. — Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.
— Que queres dizer? — Alex esforçou-se por combater o pânico que o assaltava e manter pelo menos uma calma exterior perante aquilo que ela dissera.
— Não posso.
— Não precisas de fazer coisa alguma por agora, a não ser descontraíres-te. — Era a sua melhor voz profissional, mas não pareceu acalmá-la, pois as lágrimas se espalharam pelas suas faces, indo cair lentamente sobre as mãos de Raphaella. — Poderemos falar do assunto mais tarde.
Raphaella abanou novamente a cabeça e as suas palavras não foram mais do que um sussurro.
— Não... Procedi mal... Não posso, Alex... Aqui, não. Na mesma cidade em que ele está. Não está certo.
— Raphaella, não... Dá a ti própria um tempo para te adaptares...
— A quê? — Por instantes, ela pareceu zangada. — Adaptar-me a atraiçoar o meu marido?
— Achas que é isso?
Ela abanou a cabeça outra vez, suplicando-lhe com o olhar que compreendesse.
— Que posso eu fazer?
— Espera. Tenta viver com a alegria que temos. Sê leal para com ele e para contigo. É o que desejo para todos nós... — Raphaella disse que sim lentamente, e Alex apertou-lhe a mão com força. — Queres dar-nos uma oportunidade?
Alex julgou decorrer uma eternidade até ouvi-la dizer:
— Vou tentar.
O avião aterrizou e logo a seguir apareceram duas aeromoças, uma delas com o casaco de peles. Raphaella levantou-se e vestiu-o rapidamente, não dando qualquer sinal de que o homem que estivera sentado a seu lado tivesse alguma importância para ela. Pegou na sacola de viagem, abotoou o casaco e depois baixou a cabeça. Só os olhos dela disseram «amo-te» ao dirigir-se para uma das saídas de emergência e desaparecer, como sucedera em Nova Iorque. Essa saída foi de novo fechada, e Alex sentiu-se envolvido pela solidão, uma solidão como ele nunca conhecera. Subitamente, verificou que tudo o que ele amava lhe estava sendo roubado e foi assaltado por uma vaga de terror. E se não voltasse a vê-la? Tinha de lutar contra o pânico enquanto esperava para desembarcar com os outros passageiros e se dirigia para a esteira das bagagens para recolher a sua mala. Reparou na comprida limusine preta, com motorista, que se encontrava junto do edifício, e ficou por momentos a olhá-la. O reflexo das luzes nos vidros não permitia que ele visse Raphaella, mas Alex não era capaz de se afastar dali. Como se tivesse sentido a ansiedade dele, Raphaella apertou um botão e os vidros das janelas baixaram. Olhou ansiosamente para fora, querendo, sem saber como, tocá-lo outra vez. Os olhos de ambos encontraram-se por um momento e então, como se o sol tivesse nascido para eles naquele instante, Alex sorriu-lhe docemente e voltando-se começou a andar em direção à garagem. No seu coração murmurava a palavra «amanhã», desejando que fosse essa noite.
Eram quase oito e um quarto da noite e Alex estava sentado na pequena sala, batendo de leve com os pés no chão. Sobre a mesa havia uma garrafa de vinho aberta, queijo e frutas. A lareira crepitava alegremente, a música tocava e ele estava terrivelmente nervoso. Raphaella dissera-lhe qualquer hora depois das sete e meia, mas não tivera notícias suas durante o dia inteiro e pensava se, por qualquer razão, ela não tinha podido sair. Parecera-lhe tão triste como ele quando lhe telefonara na noite anterior, e o seu corpo ansiava dolorosamente por poder tomá-la nos braços. Enquanto permanecia imóvel a olhar para o lume, pensava se alguma coisa teria sucedido, quando a campainha do telefone o fez dar um salto.
— Alex? — O seu coração começou a bater desordenadamente; logo a seguir, ficou desapontado. Não era Raphaella, era Kay.
— Olá!
— Passa-se alguma coisa? Pareces tenso.
— Não. Estou apenas atarefado. — Não estava com disposição para falar com a irmã.
— Trabalho?
— Sim... Não... Mais ou menos... Não interessa. Que há? Sucedeu alguma coisa?
— Não, felizmente ainda não! E ainda bem que eu sei mais a respeito de adolescentes do que tu. Não tinhas nada de lhe dar aqueles cem dólares, Alex.
— Que queres dizer? — A expressão de Alex endureceu ao ouvir a irmã.
— Quero dizer que ela tem dezesseis anos, e a única coisa que as moças da idade dela fazem com o dinheiro é comprar drogas.
— Foi ela que te disse que eu lhe dei o dinheiro? Pensei que fosse um segredo só entre mim e ela.
— Não interessa como eu soube. Estava a mexer numas coisas dela e encontrei-o.
— Que andas tu a fazer à garota, Kay? A espiá-la?
— Não. Mas esqueces como a minha posição é delicada, Alex. Não quero que ela tenha droga em casa.
— Falas como se ela fosse uma drogada.
— Nada disso. Mas tenho a certeza de que se eu a deixasse havia de ter qualquer espécie de droga, tal como tu ou eu temos o uísque.
— Alguma vez lhe falaste nisso?
— Já. E achas que os adolescentes fazem o que lhes dizemos? — O total desrespeito que a irmã mostrava em relação à filha punha-o doido e estava prestes a explodir ao ouvir as insinuações feitas pela irmã.
— Acho a tua atitude repugnante, Kay. A razão por que lhe dei o dinheiro foi para ela ir patinar ao Rockfeller Center. Ela contou-me que vai muitas vezes patinar, mas que o faz no Wollman Rink em Central Park. Como tio, achei que a podia ajudar a pagar as suas lições de patinação. Não fazia idéia de que tu pudesses tirar-lhe o dinheiro, pois se fizesse teria pensado noutra maneira qualquer de resolver a situação.
— Por que é que não me deixas ser eu a lidar com a minha filha, Alex?
— Por que é que não admites que não prestas para nada como mãe? — gritou Alex, exaltado, desejando poder fazer alguma coisa pela sobrinha. — Quero que deixes a Amanda ficar com esse dinheiro.
— Não me interessa o que tu queres ou não. Enviei-te hoje um cheque no valor de cem dólares.
— Eu trato do assunto com a Amanda.
— Não te incomodes, Alex. — A voz de Kay era gélida. — Eu vigio a correspondência dela. — Alex estava furioso, e a sua sensação de frustração dava-lhe uma idéia daquilo que Amanda devia sentir ao ser tratada daquela forma pela mãe.
— És má, sabes? E não tens o direito de tratar assim a tua filha.
— Como é que podes julgar a maneira como a trato? Tu não tens filhos! Como poderás entender alguma coisa a esse respeito?
— Talvez não entenda, irmã. E talvez nunca venha a ter filhos. Mas uma coisa eu sei, congressista Willard. Sei que não tens coração.
Kay desligou-lhe o telefone e no mesmo momento Alex ouviu tocar à porta. Sentiu-se sufocado pela emoção. Era Raphaella. Sabia-o. Afinal ela viera. O seu coração encheu-se de júbilo, mas mesmo assim não conseguiu esquecer a troca de palavras com a irmã por causa de Amanda. Pensou que precisava falar com a sobrinha. Desceu as escadas a correr e abriu a porta. Raphaella, imóvel, olhava-o. Ele ficou por momentos parado, feliz, confuso e ligeiramente embaraçado.
— Estava já preocupado com receio que tivesse sucedido alguma coisa.
Raphaella abanou a cabeça, sem nada dizer, mas o sorriso falou por si, e ela entrou rapidamente. Logo que fechou a porta, Alex apertou-a nos braços.
— Oh, querida, como senti a tua falta. Estás bem?
— Sim. — Ela falou num tom muito baixo, numa voz que parecia escondida debaixo do macio casaco de peles que a envolvia e se interpunha entre o corpo dela e o seu.
Raphaella vestia o mesmo casaco com que ele a vira sentada nas escadas. Então, Raphaella abraçou-o de novo, por iniciativa própria, mas Alex reparou que havia algo de triste e de cansado no olhar dela. Raphaella deixara um bilhete no quarto, dizendo apenas que ia dar um passeio e visitar umas pessoas amigas, para o caso de irem lá procurá-la. Dessa maneira, os criados não entrariam em pânico e não chamariam a Polícia se não a encontrassem no quarto. Ficavam sempre preocupados quando ela saía para dar um curto passeio, à noite, e John Henry, se soubesse, teria um ataque. — Julguei que o dia de hoje nunca mais passava. Esperei, esperei, e cada hora parecia uma eternidade.
— Foi o mesmo que eu senti hoje, no escritório. Vem. — Deu-lhe a mão e encaminhou-a para as escadas. — Quero mostrar-te o andar de cima. — Quando percorreram a casa, Raphaella reparou que a sala de estar estava sem móveis, mas apreciou o contraste formado pelo quarto e o pequeno escritório contíguo. Ambas as divisões estavam mobiliadas com móveis de madeira clara, cadeirões de cabedal macio e estantes com livros. Havia por toda a parte vasos com plantas. No quarto, a lareira acesa crepitava alegremente, e Raphaella sentiu-se imediatamente à vontade.
— Oh, Alex, que bonita casa! Confortável, alegre e quente!
Raphaella desembaraçou-se rapidamente do pesado casaco e sentou-se no chão, ao lado de Alex, em frente da lareira. Numa mesa de vidro, sobre o tapete, encontravam-se o vinho, o queijo e o patê que ele comprara antes de voltar para casa, nessa tarde.
— Gostas? — Alex olhou à sua volta, com satisfação. Fora ele que decorara a casa, quando casara.
— Gosto. — Mas estava estranhamente calada e Alex sentiu outra vez que algo corria mal.
— Que se passa, Raphaella? — A voz dele era tão meiga que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Apesar de ela se mostrar feliz com o ambiente daquela casa, percebera desde o primeiro instante que algo a perturbava profundamente. — Que se passa?
Raphaella fechou os olhos por um momento e depois os abriu, estendendo instintivamente a mão para Alex.
— Não posso fazer isto, Alex... Não posso. Eu queria... tinha planejado tudo... Queria passar o dia a fazer companhia ao John Henry e à noite saía para um «passeio» e depois vinha estar aqui contigo. E, quando pensava nisso — sorriu outra vez, com tristeza -, o meu coração voava. Sentia-me excitada, jovem e alegre. Feliz como... — Calou-se outra vez, com lágrimas nos olhos e expressão triste. — Como uma noiva... — Os olhos dela se voltaram para o lume, mas deixou a mão na dele. — Mas não sou nenhuma dessas coisas, Alex. Já não sou nova, ou pelo menos muito nova, e não tenho direito a essa espécie de felicidade, pelo menos contigo. E não sou uma noiva. Sou uma mulher casada. E tenho responsabilidades para com um homem muito doente. — A voz de Raphaella tornou-se mais forte, e ela retirou a mão. — Nunca mais voltarei aqui, Alex — concluiu num tom resoluto.
— O que é que te fez mudar de idéias?
— Vir para casa. Vê-lo. Recordar quem sou.
— E te esqueceste de mim no meio de tudo isso? — A voz de Alex parecia patética, mesmo aos seus próprios ouvidos, e ele sentiu-se irritado por dizer aquelas palavras, mas não pôde deixar de fazê-lo. A vida mostrava-se cruel para com ele. Amava desesperadamente aquela mulher e não estava destinado a tê-la.
Ela levou-lhe gentilmente a mão aos lábios e beijou-a enquanto abanava a cabeça.
— Não te esqueci, Alex. E nunca te esquecerei.
Quando acabou de dizer estas palavras, Raphaella ergueu-se para partir. Alex ficou sentado a observá-la, querendo detê-la, mas sabendo que nada podia fazer. Gostaria de fazer outra vez amor com ela, de passar a noite com ela, de conversar... de passar a vida com ela. Levantou-se devagar.
— Quero que saibas uma coisa, Raphaella. — Estendeu os braços e abraçou-a. — Que te amo. Mal nos conhecemos mas sei que te amo. Quero que vás para casa e penses no que estás a fazer... e se mudares de idéias volta. Para a próxima semana, para o próximo mês, para o próximo ano. Eu estarei aqui. — Apertou-a contra si durante um longo momento, pensando quanto tempo passaria até voltar a vê-la. Não podia suportar a idéia de que talvez não a visse mais. — Amo-te. Não esqueças isso.
— Não esquecerei. — As lágrimas corriam-lhe pelas faces. — Eu também te amo.
Desceram as escadas, como se ambos soubessem que não valia a pena continuarem ali, pois seria demasiado doloroso para eles. E com um braço em volta dos ombros dela e as lágrimas a brilharem-lhe nos olhos, Alex acompanhou-a até em casa. Ela voltou-se apenas uma vez à porta, acenou e desapareceu.
Durante os dois meses que se seguiram, Raphaella andou como se estivesse debaixo de água. Cada passo parecia-lhe penoso, e ela mostrava-se lenta e pesada. Não conseguia mexer-se, nem pensar, e mal conseguia falar com o marido, que se admirava, achando que se passara qualquer coisa em Nova Iorque. Algum episódio desagradável com a mãe, uma discussão familiar ou uma intriga. Decorreram semanas sem que ele se decidisse a abordar o assunto, mas quando o fez Raphaella pareceu quase não o ouvir.
— Sucedeu alguma coisa com a tua mãe, pequenina? Ela insistiu para que passes mais tempo na Espanha? — em vão tentou imaginar uma resposta, uma explicação para o desgosto que via nos olhos de Raphaella.
— Não... não... Não foi nada.
Houvera então qualquer coisa. Mas o quê?
— Alguém está doente?
— Não. — Raphaella sorriu corajosamente. — Não é nada. Estou apenas cansada, John Henry. Mas não te preocupes comigo. Preciso apanhar mais ar. — Mas nem sequer os passeios infindáveis a ajudavam. Em vão caminhava de uma extremidade à outra do Presídio, ou ia até ao pequeno lago do Palácio das Belas-Artes, ou mesmo até ao extremo da baía, voltando depois a subir a colina. No entanto, por mais cansada ou exausta que estivesse, Alex não lhe saía da cabeça. Pensava constantemente no que ele estaria a fazer, se estava bem, feliz, se estaria a trabalhar na sua bonita casa de Vallejo. Queria saber onde ele se encontrava a todas as horas do dia. E contudo sabia que o mais provável seria não voltar a vê-lo, nem tocá-lo, nem abraçá-lo. Essa idéia causava-lhe uma dor que a atingia até ao fundo do coração, e chegou a uma altura em que a dor era tal que ela se sentia como que atordoada, caminhando como uma sonâmbula, com os olhos vidrados.
No Dia de Ação de Graças, jantou junto de John Henry, movendo-se como um robô, com um olhar vago, ausente.
— Mais peru, Raphaella?
— Humm? — Olhou-o em resposta à pergunta dele, parecendo não compreender o que ele dissera. Uma das criadas encontrava-se junto de Raphaella com a travessa, tentando em vão captar a atenção dela, até que John Henry finalmente falou. Jantavam os dois no quarto dele, para que John Henry não tivesse de sair da cama. A saúde dele piorara ligeiramente nos últimos dois meses.
— Raphaella?
— Sim? Oh, não, não... Desculpa...
Recompôs-se, abanando a cabeça e ficou sentada, tentando conversar com o marido; nessa noite, ele estava muito cansado. Meia hora depois do jantar, o queixo pendeu-lhe lentamente para o peito, as pálpebras fecharam-se e ele começou a ressonar suavemente. A enfermeira, que se encontrava por perto, retirou o tabuleiro, desceu a cabeceira da cama e fez sinal a Raphaella de que ele já estava a dormir.
Raphaella percorreu o interminável corredor até aos seus próprios aposentos, com o pensamento cheio da imagem de Alex e então, como se estivesse hipnotizada, encaminhou-se para o telefone. Era errado e ela sabia-o. Mas podia telefonar-lhe para lhe desejar um bom Dia de ação de Graças.
Que mal havia nisso? Tudo, se o que ela queria era fugir de Alex. Sabia que bastaria o som da voz dele, a expressão dos seus olhos, o toque da sua mão, para prendê-la de novo na deliciosa teia de que ela tentara fugir. Por um sentimento de honra, pelo sentido do dever, esforçara-se com todas as forças para escapar-lhe, mas agora, ao ligar o número do telefone de Alex, compreendia que falhara. Não queria ficar longe dele nem mais um instante. Não podia. Não podia mesmo. O coração de Raphaella batia com força ao marcar o número. Pareceu-lhe uma eternidade até ele atender, mas agora que ligara para ele não ia desistir.
— Alô? — Raphaella fechou os olhos ao ouvir a voz de Alex, sentindo-se invadida por uma onda de alívio, de remorso e de excitação.
— Alô? — Alex não a reconheceu por um momento, mas logo a seguir os seus olhos abriram-se desmedidamente, e ele pareceu ficar em estado de choque.
— Oh, meu Deus!
— Não! — Raphaella sorriu docemente. — Sou apenas eu. Quero desejar-te um feliz Dia de Ação de Graças.
Houve uma pausa. Ele pareceu tenso.
— Como estás?
— Eu estou bem... — De repente, resolveu dizer-lhe. Não queria saber se ele tinha mudado de idéias, se ele já não a amava, se havia encontrado outra pessoa. Tinha de lhe dizer. Mesmo que fosse apenas aquela vez. — Não, não estou bem... Tem sido terrível... Não posso... — Então, toda a dor e toda a vacuidade da sua vida durante esses dois meses a comoveram e ela mal conseguiu murmurar: — Não posso viver mais assim... Não posso... Oh, Alex... — E, sem querer, começou a chorar, tanto de desgosto como de alívio. Pelo menos estava a falar com ele. Não queria saber do que pudesse acontecer. Sentia-se mais feliz do que há muito tempo se sentira.
— Onde estás? — A voz dele soava ansiosa.
— Em casa.
— Vou te encontrar na esquina daqui a cinco minutos. Raphaella ia dizer que não, ia dizer-lhe que não podia fazer isso, mas não teve coragem para lutar mais contra si própria. Não o queria fazer. Disse que sim com a cabeça, em silêncio e concordou.
— Lá estarei.
Correu para a casa de banho, lavou a cara com muita água, passou o pente pelos cabelos, abriu o armário, tirou de lá um casaco e depois saiu do quarto a correr, desceu as escadas e só parou na rua. Dessa vez não deixou nenhuma mensagem, nenhuma explicação. Não sabia quanto tempo demoraria... Talvez cinco minutos, talvez uma hora. Mas John Henry não precisava dela naquela altura. Dormia, tinha as enfermeiras para atenderem a todas as suas necessidades, as criadas, os médicos. E ela precisava de algo mais, muito mais. Descobriu isso ao correr para a esquina, com o cabelo negro a esvoaçar-lhe em volta do rosto, o casaco aberto, os lábios esboçando um meio sorriso. Ao virar da esquina, viu-o subitamente parado, com umas calças e um camisa de lã, os cabelos ligeiramente despenteados, os olhos brilhantes e a respiração ofegante. Alex correu para ela com tanta velocidade e puxou-a para si com tanta força que quase se chocaram um com o outro. Alex apertou-a nos braços, e o beijo que trocaram parecia não ter fim. Era um grande perigo que corriam, ali mesmo à esquina, mas felizmente ninguém os viu. E dessa vez Raphaella não se importou.
Como se tivessem tomado uma decisão de comum acordo, começaram a caminhar lentamente em direção à casa de Alex; quando ele fechou a porta, depois de entrarem, Raphaella olhou à sua volta e soltou um longo suspiro.
— Bem-vinda a casa.
Não lhe disse como sentira a falta dela. Guardou isso para quando estivessem lado a lado, na cama. Era como se durante dois meses eles tivessem vivido no limbo, mal vivendo, mal existindo, entre a dor constante e o atordoamento. Os dois meses em que tinham estado afastados contavam-se entre os piores momentos que Raphaella conseguia recordar. Com Alex sucedera o mesmo, mas agora era como se nada disso tivesse sucedido, como se nunca tivessem estado separados e nunca mais fossem voltar a estar. Alex queria perguntar-lhe o que iria suceder a seguir, mas não se atrevia a fazê-lo. Decidiu simplesmente gozar a felicidade daqueles momentos e rezar para que Raphaella estivesse agora pronta para ter mais do que tinham tido até ali.
— Feliz Dia de ação de Graças, meu amor... — Atraiu-a uma vez mais para os seus braços e fizeram outra vez amor.
Já passava das dez horas quando Alex se lembrou do peru que estava a assar no forno. Já lá estava há mais de uma hora do que seria aconselhável: porém, quando chegaram à cozinha e verificaram isso, nenhum deles se importou. Raphaella vestira o roupão dele e Alex umas calças de brim e uma camisa. Foi assim que comeram, conversaram e riram. Era na verdade um regresso a casa e dessa vez, ao contrário do que sucedera com o seu primeiro jantar desse dia, Raphaella comeu como se não visse comida há dias.
— E o teu trabalho? Vai bem? — Raphaella olhou-o, sorridente. Parecia uma criança, feliz e descontraída.
— Não direi isso. Se trabalhasse para outra pessoa, provavelmente teria perdido o emprego nos últimos dois meses.
— Não acredito, Alex.
— É verdade. Não tenho conseguido concentrar-me em coisa alguma.
Raphaella ficou subitamente séria.
— Nem eu... — Fitou-o outra vez e os seus olhos encheram-se de ternura. — Só pensava em ti. Era uma espécie de loucura que não me largava.
— E querias que te largasse?
— Sim. Pelo menos para eu deixar de sofrer. Foram... — Desviou o olhar, embaraçada. — Foram tempos muito difíceis para mim, Alex. Tenho lutado com a minha consciência desde a última vez que te vi.
— E hoje? O que te levou a telefonar?
— Não podia suportar mais tempo. Sentia-me morrer se não te visse esta noite.
Alex disse que sim com a cabeça, pois sabia bem o que ela sentira. Depois se inclinou e beijou-a.
— Graças a Deus que telefonaste. Eu também não poderia agüentar mais tempo. Desejava loucamente falar contigo. Peguei no telefone uma centena de vezes. Cheguei a teclar o teu número duas vezes, mas como não atendeste desliguei. Meu Deus, julguei que ia enlouquecer.
Raphaella fez um gesto de compreensão, em silêncio, e ele depois resolveu dar o passo seguinte.
— E agora? — Eram palavras aterradoras, mas Alex precisava saber. — Sabes o que queres fazer agora, Raphaella? — Estava permitindo que ela decidisse, mas já resolvera que dessa vez não a deixaria desaparecer tão facilmente. Mas não foi preciso lutar contra ela. Raphaella sorriu meigamente e pousou uma mão sobre a dele.
— Faremos o que temos a fazer... Procuraremos estar juntos sempre que isso for possível...
Alex ficou a olhá-la por um momento, como se receasse acreditar no que ela dizia.
— Queres mesmo isso?
— Sim. Ainda me queres? Do mesmo modo que disseste?
Aquilo que Alex fez a seguir respondeu à pergunta. Levantou-a da cadeira onde ela estava sentada e apertou-a nos braços com tanta força que ela mal podia respirar.
— Alex!
— Isto responde à tua pergunta? — Subitamente brilhou nos olhos dele uma alegria ardente, e exclamou: — Oh, como eu te amo! Sim, quero-te, preciso de ti, e estou disposto a aceitar tudo o que tu quiseres, de modo a não te magoar, nem ao... ao... — Raphaella deu a entender que percebia. Ele não queria mencionar o nome de John Henry. — Bem... — Levantou-se, abriu uma gaveta e tirou de lá uma chave. — Aqui tens a chave desta casa. Quero que venhas aqui sempre que te apeteça, quer eu esteja aqui ou não.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas e ele abraçou-a novamente. Daí a momentos ambos subiam as escadas para o andar de cima. Raphaella levava a chave no bolso do roupão e havia nos lábios dela um sorriso que nunca ali brilhara. Nunca se sentira tão feliz em toda a sua vida.
Passaram as três horas seguintes a fazer amor, ávidos, apaixonados, até que por fim ficaram estendidos lado a lado, ainda não completamente saciados mas contentes.
Raphaella deu um salto na cama quando ouviu tocar o telefone. Alex franziu a testa e sentou-se lentamente na cama para pegar no auscultador. Depois, à medida que ouvia o que lhe diziam, a sua expressão anuviava-se e, sem pensar, pôs-se de pé ainda com o telefone na mão, com uma expressão de terror na face.
— O quê?... Quando?... Oh, meu Deus. Como está ela? — As mãos dele tremiam ao segurar na caneta para escrever. A conversa prosseguiu em monossílabos durante mais alguns minutos e depois Alex desligou e sentou-se com a cara escondida nas mãos. Raphaella olhou-o, horrorizada. Só conseguia imaginar que tivesse sucedido alguma coisa à Mãe.
— Alex?... — A voz dela era meiga e assustada. — O que foi, querido?... Que sucedeu?... Diz-me... por favor. — As mãos dela acariciavam-lhe meigamente os cabelos e os ombros, e ele começou a chorar. Passado muito tempo é que ergueu os olhos para Raphaella.
— É a Amanda, a minha sobrinha — murmurou com voz rouca. Depois, com um enorme esforço, contou-lhe o resto. — Foi estuprada. Acabaram de encontrá-la. — Respirou fundo e fechou os olhos por um momento antes de voltar a abri-los e continuar. — Hoje, depois do jantar, ela saiu. Foi patinar... sozinha... em Central Park... e... — A voz falhou-lhe e teve grande dificuldade em prosseguir. — Foi espancada, partiram-lhe os braços e bateram-lhe na cara... segundo disse a minha mãe. E... — A voz não era mais do que um murmúrio. -... E violentaram-na... A pequena Mandy... — Não pôde continuar e Raphaella apertou-o nos braços com os olhos cheios de lágrimas.
Só uma hora mais tarde é que Alex se acalmou e Raphaella foi preparar-lhe uma chávena de café. Bebeu-o lentamente, sentado na cama, fumando um cigarro, enquanto Raphaella o olhava com uma expressão preocupada.
— Ainda poderás apanhar um avião esta noite?
Os grandes olhos negros estavam úmidos mas pareciam iluminados por uma luz interior. Alex olhou-a e sentiu que a presença dela apaziguava a sua fúria. Sem responder à pergunta dela, aproximou-se de Raphaella e tomou-a nos braços, apertando-a contra si. Permaneceram assim, enlaçados, durante longo tempo, como se ele não quisesse largá-la mais. Raphaella acariciava as costas de Alex, sem nada dizer, quando ele a afastou um pouco.
— Vens comigo a Nova Iorque, Raphaella? — perguntou ele.
— Agora? — Ela parecia ter ficado atordoada. No meio da noite? De repente? Que havia de dizer a John Henry? Não tinha tempo para preparar ninguém. O seu cérebro pensava vertiginosamente. Mas também ninguém preparara Amanda, a pobre criança. Olhou para Alex com uma expressão de desespero. — Alex, eu queria... gostaria de te acompanhar... mas não posso. — Dera um grande passo nessa noite, mas não estava preparada para mais. E não queria deixar John Henry.
— Eu compreendo — murmurou lentamente Alex. Olhou para aquela mulher que não era a sua, que era mulher de outra pessoa, e que no entanto tanto amava. — Posso estar fora um tempo. — Raphaella baixou a cabeça, em silêncio. Desejava desesperadamente ir com ele, mas ambos sabiam que não podiam fazê-lo. Sem uma palavra, apertou Alex nos braços, querendo confortá-lo.
— Lamento, Alex.
— Também eu. A minha irmã devia ser chicoteada pela maneira como cuida da filha.
— A culpa pode não ser dela. — Raphaella mostrou-se chocada. — Por que estava a menina sozinha? Onde se encontravam a mãe e o pai?... — Alex começou a chorar outra vez e Raphaella apertou-se mais contra ele.
Telefonaram três vezes para o hospital, e Amanda estava ainda considerada em estado crítico quando Raphaella foi para casa. Passava um pouco das quatro da manhã, e eles estavam ambos exaustos. Raphaella ajudara-o a fazer as malas e tinham estado conversando junto da lareira. Alex falara-lhe de Amanda quando era pequenina. Isso tornou bem claro para Raphaella o quanto ele gostava da sobrinha e como lamentava que a irmã e o cunhado nunca tivessem sido uns bons pais para ela.
— Alex... ? — Olhou-o com ar pensativo, à luz da lareira. Era a única luz que iluminava a pequena sala. — Por que não a trazes para aqui, quando ela melhorar?
— Para São Francisco? — Alex mostrou-se admirado. — Como poderia fazer isso? Não estou preparado... Não tenho... — Suspirou. — Estou todo o dia no escritório. Tenho de trabalhar.
— Também a mãe dela, mas a diferença é que tu te preocupas com ela. — Raphaella sorria docemente à claridade das chamas, e Alex pensou que nunca a achara tão bonita.
— Quando o meu irmão morreu e a minha mãe voltou para Santa Eugenia com as irmãs, eu e o meu pai só nos tínhamos um ao outro... — O seu olhar pareceu estar a ver uma cena longínqua. — E creio que nos ajudamos mutuamente.
Alex ficou pensativo durante um bocado.
— Duvido muito que os pais dela me deixem trazê-la para aqui.
— Depois do que sucedeu, poderão recusar? Não terão um pouco de culpa do que aconteceu à filha? Provavelmente nem sequer sabiam onde ela estava.
Alex disse que sim com a cabeça, em silêncio. Fora o que estivera a pensar toda a noite. Considerava que a irmã era a culpada. As suas desmedidas ambições faziam-na esquecer tudo o mais.
— Vou pensar nisso. — E depois acrescentou, com ar pensativo: — Podíamos arranjar o terceiro andar para ela, não podíamos?
Então, Raphaella sorriu.
— Sim, «podíamos». Conseguirei preparar tudo em poucos dias. Mas, Alex...
Havia nos olhos dela uma pergunta muda, e dessa vez foi Alex quem sorriu.
— Ela havia de gostar de ti. Tu és tudo o que a mãe dela sempre recusou ser.
— Mas a tua irmã pode não gostar, Alex. Afinal nós não somos... — Calou-se e ele abanou a cabeça.
— E então? Isso faz realmente muita diferença? Faz... para nós?
Ela abanou a cabeça.
— Não, mas para as outras pessoas, pessoas que interessam à Kay, pode parecer errado.
— Não quero saber disso — retorquiu Alex, agora com voz dura. Olhou com tristeza para Raphaella, enquanto pensava na família dele e na viagem que iria fazer para Nova Iorque. — Gostaria que fosses comigo. — Repetira isso várias vezes durante a noite, enquanto ela se vestia para ir para casa, e voltava a dizê-lo agora, ao separarem-se a curta distância da mansão onde ela vivia com John Henry.
Os olhos de Raphaella estavam úmidos e tinha a impressão de que os de Alex também. E isso não se devia ao nevoeiro da madrugada. De certo modo, tinham estado de vigília por causa de Amanda, mantendo-a viva nos seus pensamentos e nas suas palavras, querendo estar perto da criança ferida, magoada, que se encontrava tão longe. Mas não foi em Amanda que Raphaella pensou ao beijar Alex pela última vez.
— Quem me dera ir também. — Sentiu novamente a crueldade da sua situação, nas obrigações que tinha para com John Henry. Porém, sentia-se feliz por Alex ter entrado na vida dela, por poder partilhar com ele uma noite, ou até uns momentos. Só lamentava não poder acompanhar Alex na difícil viagem para Nova Iorque. — Estarás bem? — Ele dissera que sim, mas sem sorrir.
Ele estaria bem, mas Amanda? Tinham falado em trazê-la para São Francisco. Mas se ela não sobrevivesse. Essa idéia assaltou a ambos quando os lábios de Raphaella tocaram de leve nos de Alex.
— Posso telefonar-te?
Alex disse que sim, dessa vez com um sorriso.
Ambos sabiam que muitas coisas haviam mudado entre os dois numa noite. Fora um salto dado pelos dois, de mãos dadas.
— Ficarei em casa da minha mãe.
— Dá-lhe os meus cumprimentos. — Os olhos de ambos fitaram-se durante longo tempo e ela beijou-o uma última vez. — Não esqueças que te amo muito.
Alex beijou-a então longamente, e por fim, com um gesto rápido, ela largou-o e desapareceu. A pesada porta de carvalho fechou-se uns minutos depois e Alex regressou a casa, para tomar uma ducha e vestir-se antes de sair para apanhar o avião das sete para Nova Iorque.
Charlotte Brandon esperava nervosamente no vestíbulo do hospital, em frente da secretária da recepção e das máquinas automáticas que vendiam café e doces, enquanto Alex subia para ir ver Amanda pela primeira vez. As últimas informações que obtivera pelo telefone tinham sido que ela se encontrava um pouco melhor e um pouco mais desperta, visto já não estar totalmente sob a ação dos sedativos, mas que tinha dores. As visitas não eram encorajadas; porém, visto Alex ter vindo de tão longe para vê-la, permitiam que ele fosse à Unidade de Tratamento Intensivo, durante cinco ou dez minutos, não mais.
Alex subira no elevador e Charlotte ficou sentada sentindo-se atordoada e olhando o rosto das pessoas que passavam. Toda aquela gente andava apressada, saindo e entrando no vestíbulo, levando flores, presentes, ou comprando chinelos ou casaquinhos para vestir na cama. Por duas vezes vira passar mulheres grávidas, tensas, arrastando os pés e agarrando-se aos braços dos maridos que transportavam pequenas malas nas mãos livres. Charlotte recordou com ternura momentos como esses na sua própria vida, mas nessa noite sentia-se velha e cansada e só conseguia pensar na neta, estendida numa cama, noutro piso. E Kay ainda nem sequer vira a filha. Devia chegar de Washington dentro de poucas horas. George aparecera, claro, mas apenas para se informar sobre o estado dela e falar com médicos e enfermeiras, proporcionando pouco conforto à filha. George não era realmente a pessoa indicada para agir como pai naquelas circunstâncias. Não sabia como enfrentar os sentimentos dela.
— Mãe? — Sobressaltou-se ao ouvir a voz de Alex e quando se voltou viu a expressão de dor nos olhos dele. Isso fez com que se sentisse ainda mais aterrorizada.
— Como está ela?
— Na mesma. E onde diabo está a Kay?
— Como já te disse, está em Washington. O George telefonou-lhe logo que a Polícia lhe deu a notícia, mas ela só pôde vir hoje. — Tinham passado mais de vinte e quatro horas desde que o pesadelo começara. Os olhos de Alex brilhavam de furor.
— Ela devia levar um tiro. E o George, onde está ele? As enfermeiras disseram-me que ele vem frequentemente ver os boletins médicos.
— Também pouco mais pode fazer, não é?
— O que é que acha? — Ficaram ambos em silêncio. Alex não contou à mãe que Amanda soluçava de tal maneira quando ele chegara junto dela que tiveram de lhe dar outra injeção. Pelo menos, reconhecera-o e agarrara-se desesperadamente às mãos dele. Ao fitar o filho, os olhos de Charlotte Brandon encheram-se de lágrimas, e ela sentou-se numa das cadeiras de plástico alaranjado do vestíbulo e assoou-se.
— Oh, Alex, como é que sucedem coisas destas?
— Porque há gente louca, mãe, e porque os pais da Amanda não querem saber dela para nada.
Alex sentou-se na cadeira ao lado da mãe. — Acreditas realmente nisso? — perguntou ela.
— Não sei em que é que acredito, mas uma coisa eu sei. Seja o que for que a Kay sinta pela Amanda, no fundo do coração, não sabe ou não quer saber como criar uma filha. Mesmo que ela ache que gosta dela... e nem mesmo tenho a certeza disso... não faz a mínima idéia das obrigações que, como mãe, tem para com a filha. E o George é tão mau como ela.
Charlotte disse que sim com a cabeça, devagar. Também já pensara muitas vezes no assunto, mas nunca imaginara que pudesse suceder uma coisa daquelas. Olhou para Alex e viu uma expressão que lhe era desconhecida.
— Vais fazer alguma coisa a respeito disto, Alex. — Subitamente percebera o que se passava na cabeça do filho. Era como se soubesse.
— Vou — disse ele com calma e determinação.
— Que tens em mente? — Fosse como fosse, Charlotte sabia que seria radical e do interesse de Amanda. Tinha muita fé no filho.
— Vou levá-la comigo.
— Para São Francisco? Charlotte Brandon pareceu momentaneamente chocada. Podes fazer isso?
— Vou fazê-lo. Eles que tentem impedir-me. Vou fazer o maior escândalo que já se viu e depois verei se a minha querida irmã gosta disso.
— Mas achas que poderás tomar conta dela, Alex? Não é o mesmo que ter sofrido um acidente a patinar. Isto vai ter repercussões emocionais.
— Farei o melhor que puder. Arranjo-lhe um bom psiquiatra e hei de dar-lhe todo o carinho e atenção que ela merece. Não poderá fazer-lhe mal, nem ser pior do que aqui.
— Eu podia tê-la comigo...
— Não, não podia. — Olhou-a com franqueza. — A mãe nada pode contra a Kay. Uma semana depois, Amanda estava outra vez com eles.
— Não estou assim tão certa disso. — Charlotte pareceu ficar um pouco mal-humorada.
— Para quê arriscar? Assim corta-se o mal pela raiz. São Francisco fica muito longe.
— Mas tu vais ficar sozinho com ela, Alex... — Então, ao dizer essas palavras, Charlotte compreendeu subitamente, e os seus olhos fitaram o filho, fazendo-lhe perguntas silenciosas, enquanto ele começava a sorrir. Alex conhecia bem a mãe.
— Sim? — Nada tinha a esconder. Nunca escondera coisa alguma da mãe. Eram amigos e ele confiava nela, até mesmo tratando-se do segredo relativo a Raphaella.
Dessa vez Charlotte sorriu também.
— Não sei como dizer o que estou a pensar. A tua... humm... a tua... jovem amiga... humm...
— Valha-te Deus, mãe! — disse suavemente. — Se se refere a Raphaella, digo-lhe que sim, que continuamos a ver-nos. — Não quis dizer à mãe que Raphaella passara dois meses atormentada pelas dúvidas, numa separação angustiosa. Não queria que a mãe ou outra pessoa qualquer soubessem que Raphaella tivera dúvidas. Isso feria o seu orgulho, tanto como a sua alma, mas o fato de estar envolvido com uma mulher casada, e uma mulher tão conhecida como Raphaella, não era segredo que escondesse da mãe. Olhou para Charlotte com ar grave. — Falamos sobre tudo isto ontem à noite, antes de eu partir. Creio que a Raphaella poderá ajudar muito a Amanda.
— Não duvido. — Charlotte suspirou. — Mas, Alex... Ela tem outras responsabilidades... O marido dela é um homem muito doente.
— Bem sei. Mas têm enfermeiras. Ela não poderá estar dia e noite com a Amanda, mas passará algum tempo conosco. — Pelo menos ele rezava para que assim fosse. — E mesmo sem contar com a Raphaella, é uma coisa que eu quero fazer pela Amanda e por mim. Não poderei viver bem com a minha consciência se deixar essa criança aqui, com a Kay sempre ausente e o George perdido nas nuvens. Ela está a perder a alegria de viver por falta de atenção e merece mais do que aquilo que os pais têm para lhe dar.
— E tu pensas que podes fazê-lo?
— Penso é que vou tentar com todas as minhas forças.
— Bem! — Charlotte respirou fundo e olhou para o filho. — Desejo é que tudo corra bem. Estou convencida de que o que queres fazer está certo.
— Obrigado — Alex inclinou-se para beijar a mãe, e os seus olhos estavam enevoados pelas lágrimas. — Vamos. Vou levá-la a casa e depois volto aqui para ver novamente a Amanda.
— Deves estar exausto depois da viagem. — Olhou-o com ar preocupado ao reparar nas olheiras escuras que lhe rodeavam os olhos.
— Estou ótimo!
E ficou ainda melhor alguns minutos mais tarde quando, ao abrir a porta do apartamento da mãe, ouviu o telefone tocar ininterruptamente. Sem pedir licença para atender, Alex precipitou-se para o aparelho e o seu rosto iluminou-se instantaneamente. Era Raphaella.
— Como está ela?
O sorriso desapareceu quando os seus pensamentos se voltaram de novo para Amanda.
— Mais ou menos na mesma.
— Já viste a tua irmã?
— Ainda não — respondeu Alex com voz mais dura. Só chega hoje à noite de Washington.
Raphaella ficou chocada ao ouvir aquilo, mas Alex não a podia ver.
— Mas tu estás bem?
— Estou bem. E amo-te.
Raphaella sorriu.
— Também eu. — Sentira terrivelmente a falta dele durante todo o dia e dera vários passeios. Já estivera duas vezes em casa dele e não se sentia ali numa casa estranha. Pelo contrário, parecia-lhe ser sua. Limpara cuidadosamente a cozinha que ficara desarrumada depois do jantar da véspera e regara as plantas. Era espantoso como se integrara tão naturalmente na vida dele. — Como está a tua mãe?
— Bem.
— Dá-lhe cumprimentos meus. — Falaram durante mais alguns minutos e Alex disse a Raphaella que decidira levar Amanda consigo.
— Que achas?
— Que acho? — Raphaella pareceu surpreendida por ele lhe fazer a pergunta. — Acho maravilhoso. És tio dela e gostas dela. — E depois, timidamente, acrescentou: — Alex, posso preparar-lhe o quarto?
Alex disse que sim com a cabeça, lentamente, pensando. Queria dizer-lhe que esperasse até terem a certeza de que Amanda sobreviveria, mas não conseguiu pronunciar essas palavras. Disse outra vez que sim, com um gesto, como se quisesse forçar o destino.
— Com certeza, se o queres fazer. — E olhou para o relógio, lembrando-se que precisava voltar para o hospital. — Fala-me mais tarde, se puderes. Agora tenho de ir. — Era maravilhosa a presença de Raphaella na vida dele. Não havia silêncio, nem dúvidas, nem angústia. Era como se ela tivesse estado sempre a seu lado e sempre fosse estar. — Amo-te.
— Também te amo, querido. Cuida bem de ti.
Alex pousou devagar o fone. A mãe desaparecera discretamente na cozinha, para ir fazer chá. Quando voltou, alguns minutos depois, com duas chávenas fumegantes, viu que Alex já vestira novamente o casaco.
— Vais já para o hospital?
Alex disse que sim. Sem uma palavra, Charlotte pegou também no casaco dela. Mas Alex deteve-a. Ela passara toda a noite anterior no hospital. — Precisas descansar. — Não posso, Alex. E quando viu a expressão dos olhos dela, Alex calou-se. Beberam ambos um gole de chá quente e saíram para chamar um táxi.
Alex olhou para Amanda, da entrada do quarto, e só podia ver um estreito volume coberto com os lençóis brancos e o cobertor azul da cama. Do ângulo em que se encontrava, Charlotte não podia ver-lhe o rosto; ao aproximar-se de Alex, que se encontrava ao lado da cama, teve de se controlar para que a emoção que sentia não transparecesse no seu rosto. A sensação era a mesma que já experimentara na noite anterior.
O que via na sua frente era uma mocinha que mais parecia ter nove anos do que dezesseis, mas apenas pelo seu vulto e pelo tamanho das mãos e dos braços se poderia distinguir qual era o seu sexo e idade. Os braços estavam quase completamente engessados, as mãos descobertas e imóveis pareciam duas avezinhas adormecidas, e o rosto, deitado na almofada, encontrava-se cheio de feridas e nódoas negras. O cabelo emoldurava-lhe a cabeça como um halo dourado, e os olhos que se abriram eram de um azul-vivo que fazia lembrar porcelana. Pareciam-se um pouco com os de Charlotte e um pouco com os de Alex, mas agora era difícil dizer, pois estavam cheios de angústia e encheram-se rapidamente de lágrimas.
— Mandy? — A voz dele era apenas um sussurro e não se atreveu a tocá-la sequer com uma mão, por ter receio de magoá-la. Amanda olhou-o, mas não disse uma palavra.
— Voltei e trouxe a avó comigo.
Os olhos de Amanda se voltaram para a avó enquanto as lágrimas lhe corriam em fio, molhando a almofada. Não se ouvia o menor som enquanto os belos olhos azuis continuavam a fitar os rostos familiares. Depois, Amanda começou a soluçar e Alex acariciou-lhe os cabelos. Havia entre eles uma comunicação que dispensava as palavras.
Alex permaneceu de pé, olhando meigamente para a sobrinha e acariciando-lhe os cabelos sem dizer uma palavra. Daí a momentos, Amanda fechou os olhos e adormeceu tranquilamente. Passado um bocado, uma enfermeira fez-lhes sinal para saírem do quarto. Tinham ambos um aspecto exausto e terrivelmente preocupado, mas Alex sentia também uma fúria cada vez maior contra a irmã. Essa fúria não explodiu até chegarem ao apartamento de Charlotte, e nessa altura Alex sentia-se demasiadamente cansado, mesmo para falar.
— Sei o que pensas, Alex — disse-lhe a mãe. — Mas isso agora de nada serve.
— Por quê?
— Por que não te acalmas até poderes falar com a Kay? Nessa altura, poderás dizer-lhe o que pensas.
— E quando será isso? Quando é que «Sua Majestade» se dignará aparecer?
— Isso eu gostava de saber.
Kay só chegou no dia seguinte.
Alex bebia café numa chávena de plástico e Charlotte fora a casa descansar durante umas horas. Nessa manhã, tinham mudado Amanda para um quarto mais alegre, de paredes cor-de-rosa. Apesar de ter saído da Unidade de Tratamento Intensivo e de o ambiente ali ser mais acolhedor, ela tinha o mesmo aspecto angustiante, embora houvesse um pouco mais de vivacidade nos seus olhos claros. Alex falara-lhe da hipótese de ela ir com ele para São Francisco e ela se mostrara quase interessada.
Foi ao fim do dia que ela falou a Alex dos seus receios.
— O que é que eu vou dizer às pessoas? Como hei de explicar o que sucedeu? Sei que tenho marcas no rosto. Foi uma das enfermeiras que me disse. — Não lhe fora dado um espelho. — E olha para os meus braços? — Olhou para os braços metidos em gesso até aos cotovelos. Alex fez o mesmo mas fingiu não estar impressionado.
— Vais dizer que tiveste um acidente de carro no Dia de Ação de Graças. Nada mais. É perfeitamente plausível. — Depois, olhou a sobrinha bem nos olhos, com uma expressão cheia de significado e pôs-lhe uma mão num ombro. — Querida, ninguém precisa saber. Só saberão se tu o disseres e isso é contigo. Ninguém sabe além dos teus pais, da avó e de mim.
— E quem ler os jornais... — Depois, com um olhar de desespero: — Falaram disso no noticiário?
Alex abanou a cabeça.
— Não, não falaram. já te disse que ninguém sabe. Não precisas te sentir envergonhada. Não és diferente do que eras antes de vires para aqui. És a mesma, Amanda. Tiveste um terrível acidente e uma experiência horrível, mas mais nada. Tu não mudaste. A culpa não foi tua. As pessoas não vão tratar-te de maneira diferente. Tu és a mesma. Fora o que o terapeuta com quem falara nessa manhã lhe dissera, que deviam insistir com Amanda que ela não estava diferente e que a culpa não fora dela. Aparentemente, era comum as vítimas de estupro acharem que tinham sido responsáveis pelo que lhes sucedia, e em seguida pensarem que de certo modo se tinham tornado diferentes.
O caso de Mandy era provavelmente mais complicado do que a maioria, pois ela perdera a sua virgindade de uma forma violenta, sendo estuprada. Não restavam dúvidas de que essa experiência a afetaria gravemente; porém, com tratamento e muita compreensão, o psiquiatra pensava que ela acabaria por ficar bem. Lamentava não ter ainda podido falar com a mãe de Amanda. O Dr. Willard também não podia perder tempo, mas a secretária dele telefonara-lhe para lhe dizer que fosse ver Amanda.
— Mas não é só a vítima que precisa de ajuda nestes casos — acrescentara o psiquiatra. — É também a família. A atitude dos familiares para com a vítima influenciará fortemente o que ela vier a ser no futuro. — em seguida, olhara para Alex com um leve sorriso. — Estou satisfeito por ter falado consigo. E logo espero falar também com a avó. — Acrescentara depois uma frase que Alex há muito se habituara a ouvir: — A minha mulher tem lido todos os livros dela.
Contudo, naquela ocasião Alex não pensava nos livros da mãe. Perguntara também ao médico de Amanda quando é que ela podia ir para casa, e soubera que a jovem devia ter alta no fim dessa semana. Isso significava sexta-feira, se não antes, o que lhe calhava muito bem. Quanto mais depressa levasse Amanda para São Francisco, melhor se sentiria. E exatamente na altura em que ele estava a pensar nisso apareceu Kay. Vinha muito elegante, com um traje de calças e casaco enfeitado com pele de raposa-vermelha.
Os olhos de ambos encontraram-se durante um longo momento e Kay não disse uma palavra. Subitamente tinham-se tornado adversários e cada um deles tinha consciência de como o outro poderia ser letal.
— Olá, Kay. — Alex foi o primeiro a falar. Desejava perguntar por que levara tanto tempo a aparecer no hospital, mas não queria fazer uma cena em frente da sobrinha. Na verdade, não era preciso. Tudo o que ele sentia, toda a sua fúria, transparecia no seu olhar.
— Olá, Alex. Foi muito simpático da tua parte teres vindo de tão longe para ver a Amanda.
— E tu foste muito simpática por teres vindo de Washington. — Primeiro round. — Devias estar muito ocupada.
Amanda olhava para eles e Alex viu que ela empalidecia. Hesitou por instantes e em seguida ele abandonou o quarto. Quando Kay saiu de lá, alguns minutos depois, Alex esperava-a numa pequena sala ao fundo do corredor.
— Preciso falar contigo uns momentos — disse ele de imediato.
Kay olhou-o com uma expressão trocista.
— Já calculava. És um tio muito nervoso e preocupado com a tua sobrinha.
— Tens consciência de que a tua filha podia ter morrido, Kay?
— Perfeitamente. O George tem estado constantemente a par do estado de saúde dela. Se ela tivesse piorado, eu teria vindo mais cedo. Como não piorou, não vim porque estava muito ocupada. E tu não tens nada com isso.
— Por quê? E por que não vieste logo?
— Tive duas reuniões com o presidente. Estás satisfeito?
— Nem por isso. Reuniões no Dia de Ação de Graças?
— Exatamente. Em Camp David.
— Esperas que eu fique impressionado?
— Isso é contigo. Mas a minha filha é comigo.
— Não, não é, visto tu abdicares totalmente das tuas responsabilidades, Kay. Ela precisa de muito mais do que saber que o pai se encontra a par do seu estado de saúde. Precisa de amor, ternura, compreensão. Precisa que se interessem por ela e que lho mostrem. Meu Deus, Kay, ela é apenas uma criança. E foi espancada e violada. Serás capaz de imaginar o que isso possa ser?
— Perfeitamente. Mas nada do que eu agora faça pode alterar o sucedido. Ela terá de viver a vida inteira com a recordação desta experiência.
— E quanto tempo tencionas dedicar à tua filha?
— Não tens nada com isso.
— Mas decidi ter. — Os olhos de Alex pareciam de aço.
— Que queres dizer com isso?
— Vou levá-la comigo. Disseram-me que na sexta-feira ela poderia fazer a viagem.
— O diabo é que levas. Se levares a Amanda seja para onde for mando-te prender por rapto.
— Sua peste! — Os olhos de Alex franziram-se e ele fitou a irmã com dureza. — Com efeito, minha cara, a não ser que estejas preparada para responder em tribunal por maus tratos a uma criança, não penses nisso.
— O que é que queres dizer com maus tratos?
— Exatamente o que disse. Isso e negligência criminosa.
— Pensas realmente que podes levar isso para a frente? O meu marido é um dos mais proeminentes cirurgiões de Nova Iorque, um grande humanista, meu caro Alex.
— Ótimo. Provem isso em tribunal. Havias de gostar, não é verdade? Seriam notícias sensacionais para os jornais.
— Seu patife! — Kay começava a perceber que Alex estava de fato preparado para fazer o que dizia. — Que pretendes então fazer?
— Nada de complicado. A Amanda irá viver na Califórnia comigo. Permanentemente. E se precisares dizer alguma coisa aos teus votantes, explica-lhes que a tua filha sofreu um acidente grave e que precisa de um descanso prolongado num clima ameno.
— E que direi ao George?
— Isso é contigo.
Kay olhou-o com uma espécie de fascínio mórbido.
— Pensas realmente fazer isso?
— Sim.
— Por quê?
— Porque gosto da Amanda.
— E achas que eu não gosto? — Nem sequer se mostrava magoada, apenas aborrecida.
Alex suspirou.
— Creio que não tens tempo para gostar de quem quer que seja, Kay. Pode ser que gostes dos votantes. Preocupas-te em saber se eles estão dispostos a votar em ti. Não sei que mais possa fazer com que vibres, e não quero saber. Só me preocupa o fato de estares a destruir aquela criança, e não permitirei que isso aconteça... Não deixarei que o faças.
— E vais salvá-la? Que comovente! Não achas que seria mais saudável gastares as tuas energias emocionais com uma mulher adulta, em vez de ser com uma moça de dezesseis anos? Não percebes que tudo isto é um pouco doentio? — Não parecia genuinamente preocupada, e Alex sabia que ela não estava. Sentia-se apenas furiosa, visto não ver saída para o problema.
— Por que não guardas as tuas mesquinhas insinuações para ti, juntamente com as tuas ambições a respeito da minha ex-mulher?
— Isso nada tem a ver com o assunto. — Era óbvio que Kay mentia. — Acho que és bobo, Alex. E estás fingindo, tal como a Amanda.
— Achas que ela fingiu ser violada?
— Talvez. Os pormenores ainda não são bem claros. Talvez fosse o que ela queria. Para chamar as atenções. Para ser salva pelo seu belo tio. Talvez fossem esses os planos dela.
— Tu és doente.
— Achas? Bem, o que tu pensas não me preocupa. E vou deixar-te jogar o teu jogo durante uns tempos. Talvez lhe faça bem. Mas daqui a um mês ou dois irei buscá-la e será o fim da estada dela contigo. Não penses que vais ficar com ela permanentemente. Se julgas isso, és doido.
— Sou? Queres ter de responder às acusações que há pouco mencionei?
— Não te atreverias.
— Experimenta. — Ficaram frente a frente por momentos, igualmente antagônicos. Alex tinha vencido por agora. — A não ser que as coisas aqui mudem radicalmente, ela ficará comigo.
— Já lhe disseste que planejaste salvá-la de mim?
— Ainda não. Ela encontra-se em estado de choque ainda...
Kay não disse nada e olhou venenosamente para o irmão.
— Não penses que podes representar o papel de herói para sempre — prosseguiu ela. — Agora podes levá-la, mas quando eu quiser que ela regresse, regressa mesmo. Entendido?
— Creio que não compreendes a minha posição.
— E tu não compreendes a minha. Estás a fazer um jogo perigoso. Isso poderá prejudicar-me politicamente e eu não tolerarei tal coisa, nem ao meu próprio irmão.
— Então é bom que te mantenhas na linha, minha menina, e que não me ameaces. Ficas avisada!
Kay teve vontade de se rir dele mas não conseguiu. Pela primeira vez na sua vida tinha receio do irmão mais novo.
— Não entendo por que motivo fazes isto.
— Também acho. Mas eu entendo e o mesmo sucederá à Amanda.
— Lembra-te do que eu disse, Alex. Quando eu precisar que ela venha para casa, ela vem.
— Para quê? Para impressionares os votantes? Para mostrares que és uma boa mãe? Isso é obsceno.
Quando Alex disse isso, Kay deu um passo em frente como se fosse esbofeteá-lo; Alex segurou-lhe o pulso e fitou-a com um olhar que a aterrou.
— Não faças isso, Kay.
— Então, sai da minha vida.
— Com prazer! — Os olhos de Alex brilharam de alegria, e Kay voltou as costas e afastou-se rapidamente, entrando no elevador e pouco depois na limusine que a esperava.
Quando voltou ao quarto de Amanda, Alex viu que ela dormia tranquilamente; acariciou-lhe ao de leve o cabelo, pegou no casaco e saiu. Mas ao atravessar lentamente o vestíbulo decidiu que não podia esperar até chegar ao apartamento da mãe para telefonar a Raphaella. Ia correr o risco de lhe telefonar. Precisava partilhar com ela a alegria que sentia nesse momento. Com voz muito formal perguntou se podia falar com Mrs. Phillips. E momentos depois ela atendeu.
— Raphaella?
— Sim. — Alex ouviu-a respirar fundo ao perceber que era ele. — Oh... Há alguma... — Parecia assustada, como se receasse que Amanda tivesse morrido.
— Não, não, corre tudo bem, mas precisava dizer que a minha sobrinha vai comigo para São Francisco e que chegaremos no fim-de-semana. O seu pai pediu-me para lhe ligar quando chegasse aos Estados Unidos. — Se alguém estivesse ouvindo, acharia tratar-se de um recado perfeitamente respeitável. E Raphaella percebera muito bem qual a intenção de Alex, e não pudera deixar de sorrir.
— A sua sobrinha ficará muito tempo consigo?
— Bem... Eu... creio que sim...
— Oh... — Raphaella esteve prestes a dizer o nome dele, com a excitação. — Fico muito contente! — Depois, lembrou-se do quarto que prometera preparar. — Vou tratar dos alojamentos o mais rapidamente possível.
— Fico-lhe muito grato. Claro que a reembolsarei logo que chegue a São Francisco.
— Oh, não se preocupe. — Raphaella sorria para o telefone, e alguns minutos depois desligavam. Sexta-feira, fora o que ele dissera. Ou talvez sábado. Não tinha muito tempo.
Os dois dias seguintes foram um verdadeiro frenesi para Raphaella. Passou as manhãs a ler em voz alta para John Henry, segurando a mão dele na sua, até ele cair no sono e ela poder sair para ir fazer as compras necessárias. Nessas ocasiões, dizia ao motorista para não esperar, pois regressaria a casa de táxi. E mesmo que Tom achasse o procedimento dela um tanto estranho, era demasiadamente bem-educado para comentar o assunto fosse com quem fosse. Raphaella corria de loja em loja e voltava todas as tardes para a casa de Alex, carregada de embrulhos, embora os maiores volumes fossem entregues em domicílio. Comprara várias coisas em pequenas lojas de antiguidades, como um encantador lavatório antigo, com uma tampa de mármore, que adquirira numa loja de decoração, e um conjunto de cadeirões de vime, vitorianos, comprados num pequeno leilão. Ao fim do segundo dia, as compras amontoavam-se no terceiro andar e o caos era total. Raphaella quase chorou de alívio quando Alex lhe telefonou pedindo desculpa, pois só poderia regressar no domingo à noite. Mas, acrescentou, tinha muito boas notícias. Falara com George nessa manhã e correra tudo muito bem. George concordara que seria excelente para Amanda sair de Nova Iorque por uns tempos. Não tinham combinado exatamente quanto tempo, mas depois de Amanda se encontrar na Califórnia seria fácil prolongar a sua estada ali. Por agora, ele mencionara casualmente «alguns meses» e George não se opusera. Alex telefonara para uma das melhores escolas particulares de São Francisco e explicara que a sobrinha sofrera um «acidente», dissera as notas dela e informara a pessoa com quem falara do nome da mãe e da avó de Amanda. Com tudo isso, não lhe fora difícil fazer com que a aceitassem quase no meio do ano escolar. Começaria as aulas depois do Natal. Entretanto, descansaria, daria passeios para recuperar a saúde e faria o que fosse preciso para se recompor do choque de ter sido atacada e estuprada. Tinha um mês para se recompor antes de voltar às aulas. Quando Raphaella perguntou qual tinha sido a reação de Kay, Alex pareceu tenso.
— Foi menos agradável com ela do que com George — disse apenas.
— Que quer isso dizer, Alex?
— Quer dizer que eu não lhe dei qualquer hipótese de escolha.
— Ela está muito zangada?
— Mais ou menos. — Mudou rapidamente de assunto e quando desligou o telefone os pensamentos de Raphaella se voltaram para a jovem sobrinha de Alex, tentando imaginar como seria e se iria gostar dela.
Tinha a sensação de ter arranjado não só um amante, mas também uma família completa. E havia Kay a considerar. Alex dissera-lhe que ela viria eventualmente a São Francisco para ver Amanda. Raphaella pensou que poderiam vir a ser todos amigos. Afinal eram todos pessoas civilizadas, Kay tinha de ser uma mulher inteligente e Raphaella lamentava que ela e o irmão se tivessem indisposto. Talvez ela pudesse até fazer qualquer coisa para apaziguá-los. Entretanto, depois do telefonema de Alex, apressou-se a pôr ordem no caos que criara no terceiro andar da casa de Alex. Dissera-lhe que podia ligar-lhe para ali e quando deu por terminado o seu trabalho sentou-se na cama com um sorriso feliz. Em poucos dias, conseguira um pequeno milagre e sentia-se muito feliz com isso.
Transformara o quarto num ninho arejado, um quarto cheio de tecidos com flores, decorado com os sofás de vime e com um enorme tapete com motivos florais que comprara no Macy's e com o móvel antigo do lavatório, com tampo de mármore branco. Colocara um lindo vaso com azáleas na bacia do lavatório e nas paredes pusera pequenos quadros delicados com flores e molduras douradas. A cama tinha um dossel branco preso dos lados com laços cor-de-rosa e fora entregue só nessa manhã. Uma coberta acolchoada, de cetim rosa cobria a cama, e sobre uma cadeira via-se uma pequena manta de pele. Havia mais cadeirões de vime e tecidos floridos no pequeno escritório contíguo e o banheiro fora também recheada com lindos objetos femininos. Raphaella achava extraordinário ter conseguido fazer tudo aquilo em tão poucos dias, e o fato de ter levado os fornecedores a colocarem todas aquelas coisas ali em casa tão rapidamente ainda a espantava.
Pagara todas as compras com a avultada quantia que retirara do banco nessa quarta-feira, pois não quisera pagar coisa alguma com cheques. Todas as contas iam para o antigo escritório de John Henry e ela não teria podido explicar qual o motivo que a levara a comprar todas aquelas coisas. Se por acaso lhe fizessem perguntas sobre o levantamento do dinheiro, poderia dizer que fizera compras de Natal, ou talvez a secretária não se lembrasse se ela levantara o dinheiro antes ou depois da ida a Nova Iorque.
Só tinha com efeito de prestar contas a Alex e sentia-se um pouco nervosa com o que ele pudesse dizer. Na verdade, não gastara muito dinheiro, e fora ele que lhe pedira para comprar uma cama. Claro que ela fizera muito mais do que isso, mas a maior parte das coisas eram de fato simples. Fora preciso apenas muito interesse, estilo e bom gosto. A grande profusão de flores, as cortinas brancas que ela própria cosera e enfeitara com fitas cor-de-rosa, as almofadas que espalhara por toda a parte, os cadeirões de vime que pintara com spray, tudo isso dava um ambiente requintado, que agora parecia dispendioso, mas na realidade não fora. Esperava que Alex não ficasse aborrecido com as minúcias da decoração; Raphaella, porém, não fora capaz de parar sem ter transformado aqueles aposentos num porto de abrigo perfeito para a pobre moça. Depois do horror por que passara, precisava agora de um lugar onde pudesse sentir-se confortável e feliz, e Raphaella queria ajudá-la dessa maneira. Fechou a porta devagar e desceu para o andar de baixo, para o quarto de Alex. Olhou à sua volta, endireitou a colcha da cama e pegou o casaco para sair.
Com um suspiro, Raphaella entrou na mansão onde vivia com John Henry e subiu lentamente as escadas. Olhou para os reposteiros de veludo vermelho, para as tapeçarias medievais, para os candelabros, para o grande piano de vestíbulo, e teve de recordar a si mesma, uma vez mais, que era aquele o seu lar e não a casinha confortável em Vallejo, o lugar onde ela passara quase toda a semana, decorando um quarto para uma jovem que também não era sua sobrinha.
— Mistress Phillips?
— Sim? — Raphaella ergueu os olhos, surpresa. Dirigia-se para o quarto, pois estava quase na hora do jantar e ela precisava mudar de roupa. A enfermeira do segundo turno olhava-a, sorridente.
— Mister Phillips tem perguntado por si durante esta última semana. Talvez queira passar uns momentos com ele antes de mudar de roupa.
— Sim — murmurou calmamente Raphaella, encaminhando-se para a porta do quarto de John Henry. Bateu uma vez, deu a volta à maçaneta e entrou sem esperar resposta.
O fato de bater à porta era apenas uma formalidade, como tantas coisas na vida deles. John Henry estava estendido sobre a cama, resguardado com um cobertor e tinha os olhos fechados. O quarto encontrava-se iluminado apenas por uma luz muito suave.
— John Henry? — A voz de Raphaella era apenas um murmúrio e ela olhava com ar compadecido para aquele corpo alquebrado que ali se encontrava. Aquele fora antes o quarto de ambos, o quarto que ele também partilhara com a sua primeira mulher.
Inicialmente isso incomodara Raphaella, mas John Henry era um homem agarrado às tradições e quisera levá-la para ali. E na verdade todos os fantasmas tinham desaparecido quando eles ali estavam. Só agora é que Raphaella voltava a pensar neles. Agora que John Henry parecia quase fazer parte deles. — John Henry... — Raphaella sussurrou outra vez o nome dele e ele abriu os olhos. Quando a viu, abriu-os completamente, sorriu com os seus lábios deformados e fez-lhe sinal para que ela se sentasse a seu lado, na cama.
— Olá, pequenina. Já tinha perguntado por ti, mas disseram-me que tinhas saído. Onde estiveste? — Não era uma interrogação, mas apenas uma pergunta amigável; no entanto, sentiu o coração apertado ao ouvir aquelas palavras.
— Saí... Fui fazer compras... — Sorriu-lhe. — Para o Natal... — Ele não sabia que ela já enviara as encomendas para Paris e para Espanha quase há um mês.
— Compraste alguma coisa bonita? — Raphaella disse que sim com a cabeça. Sim, comprara coisas bonitas... para Amanda, a sobrinha do seu amante. A compreensão daquilo que estava a fazer atingiu-a como uma pancada física. — Qualquer coisa bonita para ti? — Ela abanou lentamente a cabeça, com os olhos muito abertos.
— Não tive tempo.
— Então quero que vás amanhã às compras e compres qualquer coisa para ti. — Raphaella olhou para o longo corpo anguloso do homem que era seu marido e sentiu-se mais uma vez devorada pela culpa.
— Prefiro passar aqui o dia contigo. Ultimamente tenho estado muitas vezes fora de casa... — Raphaella parecia querer desculpar-se, mas ele fechou os olhos e fez um gesto cansado.
— Não espero que fiques aqui sentada ao pé de mim, pequenina. — Fechou os olhos outra vez e abriu-os daí a momentos. Havia algo de infinitamente sábio no olhar que ele deitou a Raphaella. — Não espero que aqui fiques... nunca... nunca... Só tenho pena que demore tanto a chegar. — Raphaella pensou por instantes que a mente dele estivesse a divagar e olhou-o, subitamente preocupada. Mas ele sorriu. — A morte, minha querida... A morte... Tem sido uma longa espera. E tu tens sido uma moça muito corajosa. Nunca perdoarei a mim próprio o que fiz.
Raphaella olhou-o, horrorizada.
— Eu amo-te. Não quereria estar noutro lugar. — Mas isso seria verdade, agora? Não preferiria estar com Alex? Raphaella fez essas perguntas a si mesma enquanto estendia a mão para a dele e a acariciava meigamente. — Nunca lamentei coisa alguma, meu querido, a não ser... — Sentiu um aperto na garganta. — A não ser aquilo que te sucedeu...
— Devia ter morrido quando tive o primeiro ataque. Isso devia ter sucedido se a vida fosse mais justa e se tu e esse médico tolo que tu chamaste me tivessem deixado morrer.
— Estás a ser louco.
— Não, não estou, e tu bem o sabes. Isto não é vida para ninguém. Nem para ti, nem para mim. Conservo-te aqui, ano após ano, como minha prisioneira. Tu és pouco mais do que uma criança e eu estou desperdiçando os teus melhores anos. Os meus há muito que passaram. E eu... — Fechou os olhos por breves momentos, como se estivesse com dores, e Raphaella ficou preocupada. Mas John Henry voltou a abrir rapidamente os olhos e olhou-a de novo. — Fiz muito mal em casar contigo, Raphaella. Já era velho demais.
— Não fales nisso, John Henry. — Raphaella ficava assustada quando ele falava assim e ele não o fazia muitas vezes, mas ela desconfiava de que os pensamentos dele se centravam nesse tema. Beijou-o e olhou-o de novo atentamente. John Henry estava mortalmente pálido e ainda mais magro, na enorme cama. — Levaram-te para o jardim para apanhares ar, querido? Ou para o terraço?
Ele abanou a cabeça com a sombra de um sorriso.
— Não, Miss Nightingale, não levaram. E eu não quero que me levem. Sinto-me melhor aqui na cama.
— Não sejas tolo. O ar faz-te bem e tu gostas de estar no jardim. — Raphaella pensou, desesperadamente, que se não tivesse estado tanto tempo fora de casa saberia o que as enfermeiras andavam fazendo. Deviam levá-lo para fora de casa. Era importante que lhe fizessem movimento, que o mantivessem vivo e interessado na medida do possível. Sem isso, ele deixaria de tentar conservar-se vivo e mais cedo ou mais tarde desistiria de viver. O médico dissera-lhe isso mesmo muitos anos antes e ela estava agora vendo que acontecia assim. — Amanhã te levo para o jardim.
— Mas eu não quero ir. Já te disse que quero ficar na cama — disse com ar zangado.
— Mauzão!
John Henry olhou-a com ar sério, mas logo a seguir sorriu e roçou os lábios pelas mãos dela.
— Ainda te amo. Muito mais do que sou capaz de exprimir... muito mais do que tu podes saber. — Os olhos dele estavam ligeiramente enevoados. — Lembras-te dos nossos primeiros tempos em Paris? — Sorriu e Raphaella sorriu também. — Quando te pedi que casasses comigo... Meu Deus, eras ainda uma criança. — Olharam-se ternamente e ela inclinou-se para beijá-lo de novo na face.
— Bem, agora sou uma mulher velha e tenho sorte por tu ainda gostares de mim. — Depois se endireitou, ainda a sorrir. — É melhor eu ir vestir-me para o jantar ou tu ainda me mandas embora e arranjas uma moça nova.
John Henry soltou uma pequena gargalhada e quando ela saiu do quarto sentia-se melhor. Raphaella, por sua vez, censurava-se amargamente por tê-lo abandonado tanto tempo durante aquela semana e meia. Por que andara a comprar mobílias, tecidos e objetos para a sobrinha de Alex, para essa outra vida que tanto desejava? Enquanto se olhava ao espelho, atormentando-se por ter prestado pouca atenção ao marido durante dez dias, Raphaella pensava se teria direito à felicidade junto de Alex...
O seu destino era ficar junto de John Henry e nada mais. Mas devia desistir de Alex? Passados dois meses ainda não sabia bem se o suportaria.
Com um profundo suspiro, abriu o armário e tirou de lá um vestido de seda cinzento, sapatos pretos e roupa interior de um delicado tom cinza. Usaria também um belíssimo colar de pérolas acinzentadas que pertencera à mãe de John Henry e brincos a condizer. Pôs tudo sobre a cama e dirigiu-se para a casa de banho para tomar uma ducha, pensando no que andava fazendo, pensando no homem que quase esquecera e no outro que nunca esquecia, sabendo que ambos precisavam dela... John Henry mais do que Alex, claro, mas o pior é que ela sabia que também precisava dos dois.
Meia hora depois, encontrava-se diante do espelho que refletia uma visão de graça e elegância realçada pela suave seda cinzenta, com o cabelo elegantemente preso na nuca e as pérolas dos brincos a iluminarem-lhe o rosto. Porém, ao olhar-se ao espelho não teve nenhuma resposta às suas interrogações. Não havia maneira de conhecer o fim da história. Só podia esperar que ninguém ficasse magoado. No entanto, ao fechar a porta do quarto, sentiu-se tremer de medo, pois sabia que isso seria provavelmente pedir demasiado.
No domingo à noite, a enfermeira colocou John Henry na cama cerca das oito e meia, e Raphaella dirigiu-se devagar e pensativamente para o seu quarto. Pensara em Alex e em Amanda toda a tarde, tomando mentalmente nota de quando eles estariam saindo de Nova Iorque, — embarcando no avião. Nesse momento, encontrar-se-iam a duas horas de distância de São Francisco, mas Raphaella sentiu, pela primeira vez desde há muito tempo, que era como se estivessem noutro mundo. Ela passara o dia com John Henry, levara-o de manhã para o jardim, cuidadosamente envolto em mantas, com um lenço quente em volta do pescoço e chapéu, além de um casacão de lã preta por cima do roupão. À tarde, empurrara a cadeira de rodas até ao terraço, e ao fim do dia tivera de confessar a si mesma que o marido se encontrava mais descontraído e mais cansado quando o levaram para a cama. Era isso que ela devia fazer sempre, era o seu dever para com o marido. Para o melhor e para o pior... Mas os seus pensamentos voltavam-se constantemente para Alex e para Amanda. E cada vez mais, sentada no seu palácio de tijolo, ela tinha a sensação de estar enterrada num túmulo. Ao mesmo tempo, porém, sentia-se chocada com os seus próprios sentimentos, e de súbito o mal que fizera tomou aos seus olhos proporções que a assustaram. Já não tinha a certeza do que havia de fazer.
Às dez horas da noite, encontrava-se tristemente sentada no quarto, sozinha, sabendo que o avião acabara de aterrizar, que eles estariam a recolher a bagagem e a procurar um táxi. Às dez e um quarto, pensou que deviam estar a caminho de casa, e todo o seu ser ansiou por lá estar. Mas de repente o fato de se ter apaixonado por Alex pareceu-lhe errado e receou que com o decorrer do tempo John Henry pudesse ficar prejudicado, por falta de atenção e de carinho, falta da presença dela e de certos sentimentos que o mantinham vivo. Sem isso ele não viveria. Porém, não poderia fazer os dois felizes? Raphaella fez essa muda pergunta a si própria, mas não sabia se podia. Quando estava com Alex, era como se mais ninguém existisse no mundo e só queria ficar com ele e esquecer tudo o mais. Mas não podia esquecer John Henry, pois fazê-lo seria o mesmo que apontar-lhe uma arma à cabeça.
Raphaella permaneceu sentada olhando para a janela.
Depois, levantou-se e apagou a luz. Tinha ainda o mesmo vestido de cetim que vestira para jantar no quarto de John Henry, enquanto comiam e ele dormitava entre duas garfadas. Ficara exausto de passar o dia ao ar livre. Raphaella estava imóvel como se estivesse à espera de alguma coisa, como se Alex pudesse aparecer subitamente lá fora. Eram onze horas quando ouviu o telefone tocar. Apressou-se a levantar o fone e atender. Sabia que todo o pessoal estaria deitado, exceto a enfermeira do turno da noite, no quarto de John Henry. Não podia imaginar quem seria. Mas era Alex, e Raphaella estremeceu ao ouvir a voz dele.
— Raphaella? — Sentia-se assustada por estar a falar com ele ali, mas desejava desesperadamente comunicar com Alex.
Depois dos dois meses de separação, e de um único encontro nas escadas ele tivera de partir para ver Amanda e ela desejava ardentemente estar outra vez com ele. — O quarto da Amanda está fantástico! — Alex falou em voz baixa e Raphaella receou que alguém estivesse a ouvir a conversa, mas havia tal alegria na voz dele que não resistiu a perguntar — Ela gostou?
— Oh, está no sétimo céu. Foi a primeira vez em muitos anos que a vi tão contente.
— Ainda bem. — Raphaella ficou satisfeita e tentou imaginar a reação da jovem ao descobrir o quarto branco e cor-de-rosa. — Ela está bem?
Alex suspirou em resposta.
— Não sei, Raphaella. Creio que sim. Mas como poderá estar bem depois do que lhe sucedeu? A mãe fez-lhe uma cena terrível à partida. Tentou fazê-la sentir-se culpada por partir. Depois, é claro, acabou por admitir que receava a reação dos votantes quando se soubesse que a filha não vivia com ela, mas sim com um tio.
— Se ela souber fazer bem as coisas, isso poderá dar a idéia de que é por ela ter muito trabalho.
— Eu disse-lhe mais ou menos o mesmo. De qualquer modo foi desagradável, e Mandy ficou tão exausta que dormiu durante quase toda a viagem. Ver o lindo quarto que lhe arranjaste foi a melhor coisa que lhe sucedeu hoje.
— Ainda bem. — Ao dizer essas palavras, Raphaella sentiu-se terrivelmente só. Teria gostado de ver a cara de Amanda ao entrar no quarto. Gostaria de ter estado no aeroporto, de ter voltado com eles para casa no carro e de ter entrado em casa com eles. Gostaria de ter partilhado cada momento, de ter visto Amanda sorrir ao entrar no quarto. Subitamente, sentiu-se deixada de fora e ao ouvir a voz de Alex ao telefone experimentou uma terrível sensação de solidão. Era uma sensação quase esmagadora, que fez com que Raphaella recordasse a noite em que Alex a encontrara a chorar nas escadas... a noite em que o vira pela primeira vez... Parecia-lhe que fora há um século.
— Ficaste calada. Passa-se alguma coisa?
— Estava a pensar... na primeira noite em que te vi.
Alex sorriu também.
— Não me viste logo. Eu te vi primeiro.
Enquanto falavam, Raphaella começou a ficar nervosa por causa do telefone. Se algum dos criados estivesse acordado podia levantar o fone do telefone noutra parte da casa e ouvir a conversa.
— Talvez seja melhor falarmos acerca disto amanhã.
Alex compreendeu.
— Quando nos veremos?
A perspectiva de se encontrar com Alex fez com que Raphaella se sentisse menos só.
— Amanhã?
— A que horas?
Raphaella sorriu. Agora que o quarto de Amanda estava pronto ela nada tinha para fazer. Há anos que não se entregava a qualquer projeto de trabalho.
— Diz-me a que horas e eu lá estarei. Ou será melhor eu... — Subitamente ficou preocupada com Amanda. Talvez fosse demasiado cedo para se encontrar com ela. Provavelmente a jovem ficaria chocada por conhecer a amante do tio. Talvez quisesse o seu querido tio só para ela.
— Não sejas tola, Raphaella. Se fosse possível gostaria que viesses já. — Mas sabiam ambos que era tarde e que Amanda estava exausta. — E se viesses tomar o desjejum conosco? Poderás sair tão cedo?
Raphaella sorriu.
— Às seis da manhã? Às cinco e um quarto? Às quatro e meia?
— Acho ótimo! — Alex riu e fechou os olhos. Podia ver cada pormenor do rosto dela. Ansiava por ver de novo Raphaella, tocá-la, sentir o corpo dela entrelaçado no seu, como se sempre tivessem sido apenas um. — Na verdade, com a diferença horária, provavelmente estarei acordado às seis horas. Por que não vens quando acordares? Nem sequer precisas telefonar. Amanhã não vou ao escritório. Quero certificar-me de que a senhora que virá aqui ajudar Amanda é competente. — Com os dois braços partidos, Amanda estava quase completamente inválida, e Alex pedira à secretária que lhe arranjasse alguém que ajudasse a sobrinha e cuidasse da casa. Passado um momento, Alex continuou. — Fico à tua espera. — Raphaella percebeu pela voz que Alex estava tão desejoso de vê-la como ela a ele.
— Irei cedo. — Então, esquecendo a sua preocupação a respeito de quem pudesse estar a ouvi-la, Raphaella acrescentou: — Tive saudades tuas, Alex.
— Oh, querida. — O som da voz de Alex dizia tudo. — Se soubesses como senti a tua falta.
Desligaram uns momentos mais tarde e Raphaella ficou imóvel durante bastante tempo olhando para o telefone com um sorriso radiante. Depois se levantou, para se despir. Já passava da meia-noite, e daí a seis, sete ou oito horas estaria junto dele. Essa idéia fez com que o seu coração batesse mais depressa e os olhos lhe brilhassem de alegria.
Raphaella pusera o despertador para as seis e meia, e uma hora mais tarde saía sossegada de casa. Falara já com uma das enfermeiras de John Henry, explicando-lhe que ia à missa e depois daria um longo passeio. Parecia-lhe ser uma boa explicação para uma ausência de várias horas. Pelo menos ela esperava que fosse, enquanto caminhava apressadamente ao longo da rua no meio do nevoeiro matinal e do intenso frio de dezembro. Uma luz acinzentada banhava tudo o que se via. Chegou rapidamente à confortável casinha de Vallejo e ficou satisfeita ao ver que havia já muitas luzes acesas. Isso significava que Alex já estava levantado. Hesitou diante do batente de metal, pensando se devia bater ou tocar à campainha, ou servir-se da chave. Acabou por se decidir por um toque breve e ficou imóvel, ofegante e excitada, com um sorriso nos lábios. E de súbito a porta abriu-se e ela viu Alex, alto e bonito, também com um sorriso nos lábios e os olhos radiantes. Sem uma palavra, Alex puxou-a rapidamente para dentro, fechou a porta e apertou-a nos braços. Não trocaram uma palavra, mas os seus lábios uniram-se durante longo tempo. Depois, ele continuou a apertá-la contra si, acariciando-lhe o belo cabelo sedoso e olhando-a com admiração, como se lhe causasse assombro o fato de conhecê-la.
— Olá, Alex. — Raphaella olhou-o, feliz, com um brilho de alegria no olhar.
— Olá. — Alex afastou-se um pouco e observou-a: — Meu Deus, estás linda.
— A esta hora, não. — Mas estava. O aspecto de Raphaella era absolutamente deslumbrante. Os seus olhos brilhavam como pedras de ônix rodeadas por diamantes e tinha as faces rosadas do passeio matinal. Vestia uma blusa de seda cor de pêssego e calças creme com o casaco de pele de lince. E por baixo das calças Alex podia ver os sapatos de camurça cor de canela da Gucci. — Como está a Amanda? — Raphaella olhou para as escadas e Alex sorriu outra vez.
— Ainda dorme. — Mas ele não pensava em Amanda nesse momento. A única coisa em que podia pensar nessa manhã era na mulher incrivelmente bonita que se encontrava na sua frente, sem saber se havia de ir com ela para a cozinha para lhe oferecer um café, ou se a devia levar para o quarto, tendo em mente outras ocupações menos formais,
Ao perceber a indecisão dele, Raphaella sorriu.
— Hoje estás com um ar muito malicioso, Alex! — notou Raphaella com uma centelha de malícia nos olhos, enquanto tirava o pesado casaco de peles e o pendurava no cabide situado junto das escadas.
— Sim? — perguntou Alex mostrando-se inocente. Por quê?
— Não posso imaginar. Queres que prepare o café?
— Estava a pensar em fazer isso... — Alex parecia obviamente desapontado, e ela riu.
— Mas?
— Deixa... deixa. — Começou a descer as escadas para a cozinha, mas no primeiro degrau parou para beijá-la e ficaram enlaçados durante muito tempo, desejando não se largarem mais. E foi assim que Amanda os encontrou, quando parou no alto das escadas, com uma camisa azul com flores que a cobria até aos pés, o rosto sonolento e emoldurado pelos cabelos louros.
— Oh! — Foi um leve som de surpresa, mas Raphaella ouviu-o imediatamente e quase saltou dos braços de Alex. Voltou-se, corando ligeiramente, e viu que Amanda a observava com ar interrogador. Voltou-se em seguida para Alex como se ele lhe pudesse dar uma explicação. Raphaella olhou-a por sua vez e teve a impressão de que Amanda parecia quase uma criança. Dirigiu-se então para ela e tocou de leve nos dedos que saíam do gesso.
— Desculpa vir tão cedo. Acordei-te? Queria saber como estavas. — Sentia-se mortificada por ter sido encontrada beijando Alex nas escadas, mas Amanda tinha um ar tão frágil e tão inocente que não a intimidava. Ela é que receava tê-la perturbado com o seu aparecimento inesperado.
No entanto, Amanda sorriu, corando ligeiramente.
— Não faz mal. Desculpem. Eu não quis incomodá-los.
Ficara satisfeita por ver o tio abraçar aquela linda moça. Em casa dela nunca via manifestações de carinho. — Eu nem sabia que havia aqui alguém.
— Habitualmente não venho aqui tão cedo, mas...
Alex interrompeu-as rapidamente. Queria que Amanda soubesse quem era Raphaella e o que significava para ele. Amanda já tinha idade suficiente para compreender isso.
— É a fada madrinha que decorou os teus aposentos, Mandy. — A voz de Alex era terna e os seus olhos fitavam as duas com um carinho enternecido.
— Foi? De verdade?
Raphaella achou graça ao espanto que viu nos olhos da adolescente.
— Mais ou menos. Não sou decoradora, mas foi divertido arranjar o teu quarto.
— Como é que conseguiste fazer isso tão depressa? O Alex disse-me que não havia lá nada quando saiu daqui.
— Roubei tudo. — Riram e ela sorriu. — Gostas?
— Se gosto? É fabuloso!
Dessa vez foi Raphaella quem riu.
— Fico muito contente. — Teve vontade de abraçar Amanda, mas não se atreveu.
— Posso oferecer-lhes o desjejum, minhas senhoras? — perguntou Alex, sorrindo alegremente.
— Eu vou ajudar-te — disse Raphaella começando a descer as escadas.
— Eu também. — Mandy parecia descontraída pela primeira vez desde que se dera a tragédia. E mais feliz parecia ainda, uma hora mais tarde, quando se encontravam os três sentados em volta da mesa da cozinha, conversando e comendo os restos dos ovos estrelados com presunto e torradas. Mandy conseguira pôr manteiga nas torradas, apesar do gesso, Raphaella fizera o café e Alex tratara do resto.
— Excelente trabalho de equipe! — comentou Alex, enquanto elas o acusavam de ser um chefe muito imperioso. Mas o que se tornava evidente acima de tudo era que os três se sentiam bem juntos, e Raphaella achava ter recebido uma dádiva de valor incalculável.
— Posso ajudar-te a vestir, Mandy?
— Com certeza! — Os olhos de Amanda brilharam, e meia hora mais tarde, com a ajuda de Raphaella, estava vestida. Só quando a empregada chegou, às nove horas, é que Raphaella e Alex ficaram outra vez sozinhos.
— É uma moça encantadora, Alex.
— É, não é? — disse Alex, sorridente. — E, oh, Deus... É espantoso como ela está a recompor-se tão depressa do... da... do que lhe sucedeu. Foi só há uma semana. — O seu rosto tornou-se grave ao recordar-se.
Raphaella disse que sim com a cabeça, pensando na semana anterior.
— Ela vai ficar bem... graças a ti.
— Talvez graças a nós os dois. — Não esquecia a maneira carinhosa, meiga, como ela tratara a sobrinha. Sentira-se comovido e grato por isso, e esperava que o futuro trouxesse bons tempos para os três. Amanda fazia agora parte da vida dele, mas o mesmo sucedia com Raphaella, e significava muito para ele que os três se entendessem bem.
— Por que dizes que não gostas do anjo? — perguntou Alex, empoleirado na escadinha e enfeitando a grande árvore de Natal que dava nova vida à sala vazia. Raphaella e Mandy, de pé junto da árvore, iam dando indicações, e Mandy acabava de lhe dizer que o anjo lhe desagradava.
— Olha para ele. Está a sorrir, mas tem cara de bobo.
— E são vocês que o dizem? Também não me parecem muito espertas, brincando com trens.
Na verdade elas tinham estado sentadas no chão olhando para o trenzinho elétrico que fora do pai dele e que agora pertencia a Alex, e cujas linhas ele montara no chão da sala.
Alex desceu da escadinha e ficou observando a sua obra. Mandy e Raphaella tinham-se encarregado de quase toda a decoração enquanto ele estivera montando as linhas e o trenzinho com os seus inúmeros carros e estações. Era a antevéspera do Natal, e a mãe dele prometera-lhes uma visita para daí a dois dias. Entretanto estavam ali ele, Amanda e Raphaella. Esta passava com eles o maior tempo que podia, mas tinha as suas coisas para fazer.
Tentara tornar aquela época festiva um pouco mais alegre para John Henry, e Alex chegara a ir com ela escolher uma pequena árvore. Raphaella passara uma semana preparando uma festa para o pessoal, embrulhando presentes e arranjando engraçadas meias vermelhas com os nomes deles. Todos os elementos do pessoal apreciavam as festas de Raphaella, e os presentes que ela escolhia com todo o cuidado eram sempre úteis e caros e eles os apreciavam com carinho. Tudo era feito com um afetuoso fervor, um zelo muito especial. A casa estava bonita, enfeitada com pinhas, azevinho e pequenos pinheiros em vasos. Na porta principal, fora colocada uma bela coroa.
Nessa manhã, Raphaella levara John Henry a dar uma volta pela casa, na cadeira de rodas, e depois desaparecera e fora ter com ele levando consigo uma garrafa de champanhe. Mas reparou que John Henry olhava tudo com maior desinteresse que nos anos anteriores. Parecia afastado de toda a alegria do Natal.
— Sou demasiado velho para tudo isto, Raphaella. Já vi todas estas coisas vezes de mais. Não me interessam. — Raphaella reparou que ele parecia até ter dificuldade em falar.
— Não sejas tolo. Estás sempre cansado. Além disso não sabes o que te comprei. — Escolhera para ele um roupão de seda com o seu monograma, mas sabia que nem isso o animaria. Estava cada vez mais letárgico, mais mórbido e dava a impressão de já nada lhe interessar.
No entanto, com Alex, Raphaella encontrou o espírito do Natal, e em Amanda viu a filha que nunca tivera, viu a alegria infantil que tanto apreciava nos seus primos, em Espanha. Em casa de Alex as decorações incluíam longas grinaldas de bagas vermelhas, ramos de azevinho, compridas fitas com pipocas para enfeitar a árvore, além de outros enfeites feitos por eles.
Alguns dos presentes tinham sido comprados e outros feitos por eles. Durante semanas, tinham preparado tudo o que agora culminava com a decoração da árvore. Acabaram pouco antes da meia-noite. Os presentes estavam espalhados pela sala, em pequenas pilhas. Na sala vazia, a árvore parecia gigantesca, cheia de luzes esplêndidas, e o pequeno trem corria velozmente em volta dela.
— Feliz? — perguntou indolentemente Alex, quando já se encontravam sentados em frente da lareira do quarto de Alex, onde as achas ardiam irradiando uma alegre claridade.
— Muito. Achas que a Mandy vai gostar dos presentes dela?
— É melhor que goste, se não quer que eu a mande outra vez para a Kay — respondeu Alex com ar brincalhão. Comprara à sobrinha um casaco de pele de cordeiro, igual ao de Raphaella, e prometera pagar-lhe lições de direção logo que os seus braços estivessem bons, o que devia suceder dentro de duas semanas. Raphaella ia dar-lhe umas botas de esqui, que ela pedira a Alex, uma bonita camisa de caxemira azul-clara e vários livros.
— Sabes, — disse Raphaella sorrindo para Alex — não é a mesma coisa que fazer compras para os meus primos. Tenho a sensação de que a Amanda é... — Hesitou em dizer as palavras, sentindo-se tola. -... Que é como ter uma filha pela primeira vez na minha vida...
Alex sorriu meigamente.
— Eu sinto o mesmo. É bom, não é? Agora é que vejo como a casa estava vazia. É tão diferente... — Como para provar isso, um pequeno rosto travesso espreitou à porta.
As nódoas negras e as cicatrizes estavam desaparecendo, e o seu olhar deixara de ser angustiado. Durante o primeiro mês de permanência em São Francisco, Amanda repousara, dera longos passeios e conversara quase todos os dias com um psiquiatra que a ajudava a viver com o fato de ter sido violentada.
— Ei, posso entrar? Que estão a conspirar?
— Nada de especial. — O tio olhou-a com ar feliz. — Por que não estás ainda deitada?
— Estou demasiado excitada. — Com estas palavras entrou no quarto e tirou dois embrulhos que trazia escondidos atrás das costas. — Queria dar isto aos dois!
Raphaella e Alex olharam-na com surpresa e satisfação e estenderam as mãos para os presentes. Ela parecia ir explodir de excitação e sentou-se na beira da cama, balançando as pernas, afastando o comprido cabelo louro do rosto.
— Devemos abri-los agora? — gracejou Alex. — Ou devemos esperar? Que achas, Raphaella? — Mas esta já estava abrindo o presente dela, com um sorriso, até que tirou o papel e soltou uma pequena exclamação de espanto.
— Oh, Mandy... Olhou para a jovem sobrinha de Alex com assombro. Não sabia que pintavas! E com o gesso! — Mas não mostrou o seu presente a Alex, esperando que ele desembrulhasse o dele, pois suspeitava que fosse o par do seu, e um momento mais tarde viu que tinha razão. — Oh, são maravilhosos, Mandy. Muito obrigada! — Raphaella abraçou afetuosamente aquela moça de quem muito gostava, e no seu rosto transparecia alegria e afeto. Alex ficou parado, a olhar para o presente que Mandy lhe oferecera.
Mandy pintara os retratos de ambos sem eles perceberem isso. As duas aguarelas eram espantosas quanto à composição e às atitudes. Emoldurara-os e oferecera o retrato de Raphaella a Alex e o retrato de Alex a ela.
Ele olhava, pasmado, para o pequeno quadro que tinha nas mãos. Não só era minucioso nos pormenores como captara o espírito, a «alma» de Raphaella. Captara a tristeza, o amor e o afeto dos seus belos olhos negros, a macieza da pele aveludada. Parecia que a mulher ali representada pensava, respirava e movia-se. E fizera um trabalho igualmente bom em relação a Alex. Amanda tivera mais dificuldade em pintar Raphaella, visto estar menos tempo ali em casa e ela não querer ser uma intrusa e roubar-lhes o pouco tempo que tinham para estar juntos. Mas via claramente pelos rostos assombrados e encantados dos dois que os seus presentes tinham um enorme sucesso.
Alex levantou-se para abraçar e beijar a sobrinha e depois ficaram os três conversando, junto da lareira, durante muito tempo. Falaram da vida, dos sonhos, dos desapontamentos.
Amanda falou abertamente sobre o desgosto que a maneira de ser dos pais lhe causava. Alex ouviu-a e tentou explicar como Kay era quando nova. Falaram a respeito de Charlotte e de como fora tê-la como mãe, e Raphaella contou muitas coisas a respeito da rigidez do pai e de como se sentia pouco inclinada para levar a vida que a mãe lhe impunha em Espanha. Por fim falaram dela e de Alex, explicando abertamente a Amanda como se sentiam gratos por poderem passar algum tempo um com o outro. Ambos se surpreenderam por ela compreender isso, por não se mostrar chocada por Raphaella ser casada, e a própria Raphaella ficou admirada ao perceber que Amanda a considerava quase uma heroína por permanecer junto de John Henry naquelas condições.
— Mas é o meu dever. Ele é meu marido, embora... embora tudo tenha mudado.
— Pode ser, mas não creio que muitas mulheres fossem capazes de fazer isso. Ficariam com o tio Alex, que é novo e bonito. Deve ser difícil estar junto do marido, nessas condições, dia após dia.
Era a primeira vez que falavam abertamente do assunto, e por um momento Raphaella teve de se esforçar para não desviar a conversa e enfrentá-la junto daquelas duas pessoas que tanto gostava.
— É difícil. — Raphaella falou em voz baixa e triste, ao pensar no rosto cansado do marido. — Muito difícil, às vezes. Ele está tão doente. Parece que sou eu a única coisa que o prende à vida. Por vezes, acho difícil continuar a carregar o meu fardo. E se me sucede qualquer coisa, se eu tivesse de ir para longe... se... ? — Olhou mudamente para Alex e ele compreendeu, Raphaella abanou lentamente a cabeça. — Creio que ele morreria.
Amanda olhava para ela como se procurasse resposta para uma pergunta, como para entender aquela mulher a quem ela admirava e amava tanto.
— E se ele morresse, Raphaella? Talvez ele não queira viver mais. Estará certo forçá-lo? — Era uma pergunta tão velha como o tempo, à qual não se podia responder numa noite.
— Não sei, querida. Sei apenas que devo fazer aquilo que posso.
Amanda olhou-a com franca admiração, enquanto Alex as observava com orgulho.
— Mas também fazes tanto por nós.
— Não digas isso. — Raphaella ficou obviamente embaraçada. — Não faço coisa alguma. Apenas aqui venho todos os dias, como uma fada má, espreitando por cima dos vossos ombros, para ver se as roupas estão em ordem, para te dizer que arrumes o quarto — acrescentou, sorrindo para Alex.
— Sim, é só isso que ela faz, na verdade — interrompeu Alex com ar brincalhão. — Com efeito não faz coisa alguma a não ser comer a nossa comida e ver se temos os quartos arrumados, além de decorar a casa, ocasionalmente fazer-nos as refeições, limpar as pratas, ajudar-me no meu trabalho, ensinar a Amanda a tricotar, tratar do jardim, trazer-nos flores, e comprar-nos presentes. — Olhou para Raphaella, pronto a continuar.
— Realmente não é muita coisa. — Raphaella corou e ele puxou-lhe por uma madeixa do seu cabelo preto.
— Bem, se isto não é muita coisa, linda senhora, detestaria ver-te, em plena atividade. — Beijaram-se ternamente e Amanda dirigiu-se para a porta nas pontas dos pés.
— Boa noite para os dois — disse, já à porta.
— Eh, espera um minuto — disse Alex estendendo a mão para puxá-la. — Não queres agora o teu presente? — Ela riu e Alex levantou-se e ajudou Raphaella a pôr-se de pé. — Vamos, meninas, é Natal. — Sabia que no dia seguinte Raphaella só poderia estar com eles muito tarde.
Desceram os três as escadas, rindo e conversando. Depois começaram a abrir os presentes que tinham os nomes deles, com grande satisfação. Alex recebeu uma bonita camisa de lã irlandesa da mãe, um estojo de canetas de Amanda, além do quadro que esta já lhe dera lá em cima, uma garrafa de vinho do cunhado, nada da irmã e uma pasta Gucci de Raphaella, juntamente com uma gravata e um livro com encadernação de cabedal, um livro de poemas de que ele lhe falara um mês antes.
— Meu Deus, mulher, és doida! — Mas as censuras dele foram interrompidas pelos gritinhos de alegria de Amanda ao abrir os seus presentes.
Em seguida, foi a vez de Raphaella. Recebeu um frasco de perfume de Amanda, e um bonito lenço para o pescoço de Charlotte Brandon, o que muito a sensibilizou. Depois, Alex entregou-lhe uma pequena caixa, com um sorriso misterioso e um beijo.
— Vá, abre-a.
— Estou com medo de fazê-lo. — A voz dela era um sussurro, e Alex viu que as suas mãos tremiam ao abrir o embrulho e olhar para o estojo de veludo escuro.
Lá dentro, sobre o cetim de tom creme, repousava uma argola simples de ônix preto e marfim, debruada a ouro. Raphaella viu imediatamente que se tratava de uma pulseira e logo a seguir reparou que tinha brincos e um anel a condizer. Enfiou a pulseira, pôs o anel e os brincos e olhou-se ao espelho, com admiração. Servia-lhe tudo perfeitamente, mesmo o anel.
— Alex, o doido és tu! Como pudeste? — Mas eram tão lindos que ela teve dificuldade em censurá-lo por causa do dispendioso presente. — São lindíssimos, meu amor. Gosto muito. — Beijou-o demoradamente, na boca, e Amanda sorriu, pondo o pequeno trenzinho em movimento.
— Olhaste para a parte de dentro do anel?
Raphaella tirou o anel e olhou para a gravação feita no ouro que forrava o anel. Dizia: UM DIA. Apenas isso. Os olhos de Alex fitaram-na, cheios de significado.
Um dia ficariam juntos para sempre. Um dia ela seria dele e ele dela.
Raphaella ficou ali até depois das três horas da manhã, uma hora depois de Amanda se ter deitado. Foi uma linda noite de Natal e quando Alex e Raphaella se encontraram lado a lado, na cama, olhando para as chamas da lareira, Alex fitou-a.
— Um dia, Raphaella — murmurou -, um dia. — O eco das suas palavras ainda ecoava na cabeça dela ao percorrer o curto espaço entre o carro de Alex e a casa e ao desaparecer em seguida pela porta do jardim.
— Bem, meus filhos, se não morrer de velhice, morrerei sem dúvida devido à gulodice. Devo ter comido por dez pessoas.
Charlotte Brandon olhou à sua volta com uma expressão de grande prazer e as outras três pessoas mostravam-se igualmente contentes. Tinham devorado uma montanha de carne de caranguejo, e Raphaella servia agora um delicioso café em pequenas chávenas brancas e douradas. Fora das poucas coisas bonitas que Rachel não levara consigo para Nova Iorque.
Raphaella colocou a chávena de café em frente da mãe de Alex e as duas mulheres trocaram um sorriso. Havia um mudo entendimento entre as duas, baseado na partilha compatível de uma pessoa que ambas amavam. E agora havia outro elo a prendê-las: Amanda.
— Detesto perguntar isto, mãe, mas como está a Kay? — perguntou Alex, parecendo um pouco tenso. Charlotte fitou-o francamente e depois olhou para a neta.
— Creio que está ainda muito aborrecida por Amanda se encontrar aqui. E não creio que tenha perdido as esperanças de fazê-la regressar. — Os rostos dos seus ouvintes ficaram imediatamente tensos, mas Charlotte apressou-se a tranqüilizá-los. — Não penso que ela vá fazer alguma coisa por agora, mas acho que já percebeu o que perdeu. — Amanda não tivera notícias da mãe durante as quatro semanas decorridas desde a sua partida de Nova Iorque. — Julgo que ela não poderá pensar agora no caso. A campanha está prestes a começar. — Calou-se, e Alex fez um gesto de concordância, olhando para Raphaella que sorria, preocupada.
— Não fiques assustada, linda senhora. A bruxa má do Leste não virá fazer-te mal.
— Oh, Alex!
— Riram os quatro, mas Raphaella não se sentia completamente tranqüila. Tinha a estranha sensação de que Kay era capaz de tudo para atingir os seus fins. E, se o que ela queria era separá-la de Alex, talvez arranjasse maneira de fazer exatamente isso. Por isso é que não queriam que ela soubesse coisa alguma acerca deles e levavam uma vida totalmente oculta. Nunca andavam juntos em público. Só se encontravam em casa. Ninguém sabia nada sobre a relação deles, a não ser Charlotte e agora Amanda.
— Pensa que ela poderá ganhar a eleição, mãe? — Alex olhou interrogativamente para a mãe enquanto acendia um charuto, o que fazia raramente.. Só fumava charutos quando um amigo seu, que ia muitas vezes à Suíça, lhe comprava ali havanas, charutos longos e fortemente aromáticos.
— Não, Alex, estou convencida que não. Acho que desta vez a Kay não irá ganhar. O seu opositor é mais conhecido e tem muito mais probabilidades do que ela. No entanto, ela está a tentar com todas as suas forças, com muito trabalho e inúmeros discursos. Está também querendo conquistar o apoio de todos os políticos poderosos que conseguir encontrar.
Alex olhou-a pensativamente.
— Incluindo o meu ex-sogro?
— Com certeza.
— Valha-me Deus. Ela é incrível. Tem mais atrevimento do que qualquer outra pessoa que eu conheça. — Depois, voltou-se para Raphaella. — É um homem forte na política e foi essa uma das razões por que a Kay ficou tão aborrecida quando me divorciei da Rachel. Teve medo que o velho senhor ficasse zangado. E ficou. — Sorria para Raphaella, com ar divertido. Sei muito bem que ficou. — Depois olhou para a mãe. Ela encontra-se com a Rachel?
— Provavelmente. — Suspirou. A filha não se deteria perante coisa alguma para conseguir o que queria. Nunca o fizera.
Alex pegou na mão de Raphaella.
— Estás a ver como é a minha família — declarou ele. — E ainda tu dizias que o teu pai era peculiar. E devias conhecer alguns dos meus primos e tios. Céus, pelo menos metade deles não são bons da cabeça.
Até mesmo Charlotte riu e Amanda foi para a cozinha para começar a arrumar. Alex reparou nisso momentos depois e ergueu as sobrancelhas para Raphaella.
— Passa-se alguma coisa?
— Creio que a Amanda não gosta de ouvir falar da mãe — respondeu ela em voz baixa. — Talvez isso lhe lembre coisas desagradáveis.
Por instantes Charlotte Brandon pareceu ficar preocupada, mas depois deu-lhes a notícia.
— Detesto contar-lhes isto agora, meus filhos, mas a Kay disse-me que ia tentar estar aqui no fim da semana. Queria ver como está a Amanda.
— Oh, merda. — Alex deixou-se cair para trás na cadeira, com um gemido. — Por quê? Que diabo quer ela?
A mãe olhou-o com franqueza.
— A Amanda. O que é que achas? A Kay acha que a ausência da filha pode prejudicá-la politicamente. Receia que as pessoas pensem que se trata de um segredo, que a filha dela está grávida ou que se droga.
— Oh, pelo amor de Deus! — Quando ele disse isso, Raphaella levantou-se e foi para a cozinha. Via que a jovem estava perturbada por causa da conversa, mas pôs-lhe um braço por cima dos ombros e decidiu dizer-lhe, para que ela pudesse estar preparada.
— Amanda, a tua mãe deve vir dentro de dias.
— O quê? — Os olhos de Amanda abriram-se de espanto. — Por quê? Que quer ela? Não me pode levar... Eu não vou... Não pode... — Os seus olhos encheram-se instantaneamente de lágrimas e ela agarrou-se mais a Raphaella, que a apertou contra si.
— Não tens de ir com ela, mas deves vê-la.
— Não quero.
— Ela é a tua mãe.
— Não. Não é. — Os olhos de Amanda tornaram-se duros, e Raphaella sentiu-se chocada.
— Amanda!
— É verdade. Ter um filho não faz de uma mulher uma mãe. Cuidar dele, preocupar-se, estar junto dele quando está doente, fazê-lo feliz, ser seu amigo, isso é que é ser mãe. Ser mãe não é obter votos e ganhar eleições. Tu tens sido mais minha mãe do que ela alguma vez foi.
Raphaella sentiu-se profundamente comovida, mas não queria interpor-se entre as duas. Tinha sempre todo o cuidado com isso. À sua maneira, não podia ser mais do que uma companheira invisível na vida deles. Tanto em relação a Alex, como a Amanda. Não tinha o direito de ocupar o lugar de Kay.
— Talvez não estejas a ser justa para com a tua mãe, Amanda.
— Não? Fazes idéia de quantas vezes eu a vejo? É quando algum jornal quer fotografá-la em família, ou quando vai visitar qualquer agrupamento de juventude e precisa da minha presença. Quando, afinal de contas, eu faço com que ela pareça ser uma boa mãe, o que ela não é. Só nessas ocasiões é que a vejo. Ela já telefonou para aqui alguma vez?
— Gostarias que ela o tivesse feito? — retorquiu Raphaella.
Amanda foi sincera.
— Não, não gostaria.
— Talvez ela perceba isso.
— Só se isso lhe servisse para alguma coisa. — Amanda afastou-se, amuada, não como a moça compreensiva e sensível que era, mas como uma criança triste. — Não compreendes.
— Sim, compreendo. — E compreendia mais do que queria confessar a Amanda. — Tenho a certeza de que não é uma pessoa fácil, querida, mas...
— Não é isso. — Amanda voltou-se para ela com os olhos cheios de lágrimas. — Não se trata de ser difícil. A verdade é que ela não quer saber de mim. Nunca quis.
— Não sabes isso. — A voz de Raphaella era suave. — Não sabes o que se passa dentro da cabeça dela. Pode sentir muito mais do que tu pensas.
— Não acredito. — Amanda parecia assustada, e Raphaella aproximou-se dela, abraçando-a demoradamente.
— Gosto muito de ti, querida. E Alex também. E a tua avó. Tens todo o nosso amor.
Amanda disse que sim com a cabeça, esforçando-se por não chorar.
— Gostaria que ela não viesse.
— Por quê? Não pode fazer-te mal. Estás perfeitamente em segurança aqui.
— Mas ela assusta-me. Há de querer que eu vá com ela.
— Só vais se quiseres ir. És demasiado crescida para seres forçada a ires para onde não queres. Além disso, o Alex não permitirá que isso suceda.
Amanda disse que sim com a cabeça, mas quando ficou sozinha no quarto soluçou durante duas horas. A idéia de voltar a ver a mãe enchia-a de medo. E depois de Alex sair para o escritório, na manhã seguinte, ficou sentada junto da janela olhando para fora, para o nevoeiro que se adensava sobre a baía. Parecia-lhe um presságio de coisas desagradáveis, e subitamente pensou que devia fazer qualquer coisa antes de a mãe chegar ali.
Levou meia hora até a encontrar e quando conseguiu contatar a mãe pelo telefone, esta falou-lhe friamente.
— A que devo a honra, Amanda? Há um mês que não tenho notícias tuas.
Amanda não lembrou à mãe que ela também não lhe telefonara nem escrevera.
— A avó disse que vinhas.
— É verdade.
— Por quê? — A voz de Amanda tremia. — Isto é...
— O que queres dizer, Amanda? — Kay falou num tom gélido. — Há alguma razão para não quereres que eu aí vá?
— Não precisas de vir. Está tudo bem.
— Ótimo. Ficarei feliz por ver isso.
— Por quê? Mas por quê? — Sem querer, Amanda começou a chorar. — Não quero que venhas.
— Que comovente, Amanda. É bom saber que estás emocionada.
— Não é isso... É que... É que...
— O quê?
— Não sei. — A voz de Amanda era pouco mais do que um murmúrio. — É que me fazes lembrar Nova Iorque. — Recordava-lhe a sua solidão ali, o apartamento sempre deserto, o Dia de Ação de Graças que passara sozinha... e quando fora violentada.
— Não sejas infantil. Não estou a dizer-te para vires comigo. Vou apenas ver-te. Por que motivo isso há de fazer-te lembrar Nova Iorque?
— Não sei, mas lembrará.
— Isso é um disparate. Quero ver com os meus olhos como estás. O teu tio não se incomodou a dizer-me.
— Ele tem muito trabalho.
— Sim? Desde quando? — A voz de Kay revelava desdém e isso irritou Amanda.
— Ele tem tido sempre muito trabalho.
— Desde que perdeu a Rachel, não. Com quem é que ele tem estado ocupado?
— Não sejas maldosa, mãe.
— Cala-te, Amanda. Não te permito que me fales assim. Estás tão cega a respeito do teu tio que nem te apercebes dos defeitos dele. Não admira que ele te queira aí. Se não fosses tu, que faria ele? A Rachel contou-me que ele é tão introvertido que nem tem amigos. Claro que agora te tem a ti.
— Que coisa maldosa estás a dizer, mãe. — Como sempre, quando era confrontada com a mãe, Amanda sentia-se ferver de raiva. — Enganas-te! Ele é um bom advogado, trabalha muito e tem muitas coisas boas na sua vida.
— E como é que tu sabes isso, Amanda? — Havia na voz de Kay uma insinuação maldosa, que fez com que Amanda contivesse a respiração.
— Mãe! — gritou com voz indignada.
— Então — insistiu Kay, decidida a fazer a filha falar. — É verdade o que eu digo, não é? Logo que tu venhas embora, ele ficará sozinho outra vez. Por isso não admira que se agarre dessa maneira a ti.
— Pões-me doente, mãe. Pois fica sabendo que ele anda com uma mulher maravilhosa, que vale dez de ti e que tem sido para mim mais do que uma mãe.
— Sim? — Kay começou a mostrar-se interessada e o coração de Amanda apertou-se angustiosamente. Sabia que não devia ter falado, mas não podia suportar as insinuações da mãe. Tinha sido demasiado para si. — E quem é ela?
— Não tens nada com isso.
— Achas? Receio que estejas enganada, minha querida. Ela vive aí?
— Não. — Amanda mostrou-se nervosa. — Não, não vive. — Oh, Deus, que tinha feito? Percebeu instintivamente que fora um erro terrível contar à mãe, e subitamente ficou assustada, tanto por Alex e Raphaella como por si mesma. — Não interessa. Eu não devia ter dito coisa alguma.
— Por quê? É segredo?
— Não, claro que não. Pergunta ao Alex, se quiseres. Não me faças mais perguntas.
— Fá-lo-ei. E eu própria verei, quando aí estiver. — E assim fez.
Na noite seguinte, às nove e meia, sem aviso prévio, a campainha da porta tocou e Alex levantou-se para ir abrir a porta. Raphaella e Amanda estavam na cozinha a tomar chá e bolinhos em companhia de Charlotte. Não se encontravam de modo algum preparadas para a visão que momentos depois surgiu no alto das escadas que davam para a cozinha. Com efeito, era a mãe de Amanda que ali se encontrava, olhando-as com grande interesse, com o cabelo ruivo bem arranjado e vestindo um casaco de mohair cinzento-escuro a condizer com a blusa do mesmo tom. Era um trajo perfeito para uma política. Tinha um ar sério e dava-lhe uma aparência simultaneamente competente e feminina. Mas foram os seus olhos que intrigaram Raphaella quando se levantou para lhe apertar a mão, depois das respectivas apresentações.
— Como está, Mistress Willard? — saudou Raphaella estendendo-lhe graciosamente a mão.
Kay cumprimentou a mãe com frieza, dando-lhe um breve beijo na face, antes de apertar a mão de Raphaella.
Em seguida, Kay afastou-se, tentando lembrar-se se já vira aquele rosto perfeito noutro sítio. Parecia ser um rosto familiar, mas no entanto não se lembrava de o ter visto. Seria de uma fotografia? Isso a perturbava, enquanto ela se dirigia para onde estava a filha. Amanda não se dirigira para ela e, tanto quanto os outros sabiam, não tinham tido qualquer contato desde que Amanda partira de Nova Iorque. Ela não tivera coragem de contar que falara com a mãe pelo telefone e que mencionara Raphaella.
— Amanda? — Kay olhou interrogativamente para a filha, como se estivesse à espera que ela lhe falasse.
— Olá, mãe. — Forçou-se relutantemente a aproximar-se da mãe e parou a cerca de meio metro de distância.
— Estás com um ótimo aspecto.
Deu-lhe um beijo formal na testa e olhou por cima do ombro da filha para Raphaella. Era óbvio que o seu interesse por Raphaella era maior do que por qualquer outra pessoa que ali se encontrasse. Havia nela um ar de distinção e elegância que intrigava a irmã mais velha de Alex, mais do que se pudesse imaginar.
— Queres um café? — perguntou Alex, servindo-a. Raphaella teve de se dominar para não se mexer. Habituara-se de tal modo ao papel de dona de casa nesse último mês, que precisava recordar a si própria que não devia fazer nada que pudesse trair a sua posição. Ficou tranquilamente sentada à mesa, ao lado de Charlotte, como qualquer convidada.
A conversa prolongou-se sem interesse durante meia hora até que Raphaella se levantou, se despediu e saiu, explicando que estava a ficar tarde. Pouco passava das dez horas. E, logo que a porta se fechou sobre ela, os olhos de Kay pousaram sobre o irmão e ela sorriu com ar trocista.
— Muito interessante, Alex. Quem é ela?
— Uma amiga. Eu a apresentei.
Alex falou com um ar intencionalmente despreocupado e não reparou que Amanda corara.
— Não. Apenas me disse o seu nome próprio. E o apelido? É uma pessoa importante?
— Por quê? Vens aqui solicitar fundos para a tua campanha? Ela não vota neste país, Kay. Guarda a tua energia para qualquer outra coisa.
Charlotte parecia divertida e tossiu para encobrir isso.
— Algo me diz que há qualquer coisa de misterioso nela. — A maneira como a irmã falou irritou Alex, que olhou para Kay com ar zangado. Sentia-se preocupado por não ter acompanhado Raphaella a casa, mas concordara com ela que seria preferível não revelarem a Kay as suas intenções. Quanto menos ela soubesse, melhor.
— Isso é estúpido, Kay.
— É? — A irmã estava ali há menos de meia hora e Alex já não a podia suportar. — Então qual é o grande segredo acerca dela? Como se chama?
— O apelido é Phillips. O ex-marido é americano.
— Ela é divorciada?
— Sim — mentiu Alex. — Queres saber mais alguma coisa? Registro criminal, referências de emprego, qualificações acadêmicas?
— Ela tem algumas?
— Isso interessa?
Os olhos dos dois encontraram-se e ambos perceberam que estavam ainda em guerra. Kay queria saber por quê. O fim da sua viagem, o alegado interesse pela filha, foi esquecido. Kay só pensava agora em obter informações a respeito da misteriosa amiga do irmão.
— Tens alguma coisa com isso? — insistiu Alex.
— Penso que sim. Se ela está em contato com a minha filha, tenho o direito de saber quem ela é e o que faz. — Era a desculpa perfeita. A preocupação de mãe. Kay cobriu-se com ela como se se tratasse de uma sombrinha, e Alex olhou-a com ar trocista.
— Nunca mudas, pois não, Kay?
— Nem tu. Em nenhum dos casos se tratava de um cumprimento. Ela parece-me oca — continuou Kay. — Trabalha?
— Não. — Alex ficou imediatamente arrependido por ter respondido. Que tinha a irmã a ver com isso? Nada! Não tinha qualquer direito de perguntar.
— Suponho que achas que o fato de não trabalhar a torna imensamente feminina.
— Não penso coisa alguma. O assunto diz respeito a ela. Não a mim. Nem a ti. — E com estas palavras levantou-se, com a chávena na mão, e olhou para as três mulheres que ali se encontravam. — Suponho, Kay, que tenhas vindo aqui para visitar a tua filha. Por isso, vou deixá-las sós, embora deteste deixar a Amanda contigo. Mãe, quer vir lá para cima com a sua chávena de chá?
Charlotte Brandon disse que sim, olhou intensamente para a filha e para a neta e saiu da cozinha. Só no andar de cima é que Alex se mostrou novamente descontraído.
— Que quererá ela com todas aquelas perguntas, mãe? — perguntou.
— Não te preocupes. Ela quer apenas informar-se sobre a tua vida.
— É verdadeiramente insuportável!
Charlotte Brandon não respondeu, mas estava visivelmente incomodada.
— Espero que ela não perturbe muito a Mandy. Reparei que ela ficou perturbada quando a Kay apareceu.
— Não ficamos todos? — Olhava para o lume, com uma expressão distante. Pensava em Raphaella e desejava que ela não se tivesse ido embora. Porém, com o interrogatório que Kay lhe fizera, afinal talvez tivesse sido melhor ela ir.
Mais de uma hora depois, Amanda batia à porta do escritório do tio. Sentou-se pesadamente numa cadeira, exausta e com os olhos úmidos.
— Como estás, minha querida? — perguntou Alex, dando-lhe uma palmadinha na mão. Os olhos de Amanda encheram-se de lágrimas. — Que se passou?
— O de costume. — Amanda suspirou e prosseguiu: — Acabou agora de sair. Disse que amanhã vinha visitar-nos outra vez.
— Estou ansioso — declarou Alex, gracejando e despenteando o cabelo da sobrinha com ar brincalhão. — Não te preocupes. Ela não pode tirar-te daqui.
— Não? — Amanda pareceu ficar subitamente irada. — Ela disse-me que se eu não voltasse para casa no princípio de março me ia mandar para um colégio interno, ou para uma instituição qualquer, alegando que eu não estou boa da cabeça e fugi de casa.
— Que haverá em março? — Alex parecia perturbado mas achava que a sobrinha devia estar muito mais.
— Ela vai começar a fazer campanha nas escolas e universidades. Quer que eu a acompanhe. Acha que, se pensarem que ela tem um bom relacionamento com uma filha de dezesseis anos, também o poderá ter com elas. Se pudessem saber! Prefiro ficar fechada numa instituição qualquer. — Amanda olhou para o tio com uma expressão tal que parecia ter envelhecido dez anos. — Achas realmente que ela pode fazer isso, Alex?
— Claro que não. — Sorriu para a sobrinha. — O que é que achas que seria aparecer essa notícia nos jornais? Que diabo, terá muito melhor efeito o fato de te encontrares aqui.
— Não pensei nisso.
— Foi o que ela pensou. A Kay está apenas a tentar assustar-te.
— E conseguiu-o. — Pensou então em contar a Alex o que dissera à mãe, ao telefone, a respeito de Raphaella, mas não teve coragem para fazê-lo, e de resto talvez isso não fizesse grande diferença.
Na verdade não fez. Até às cinco horas da madrugada, altura em que Kay acordou no quarto do Hotel Fairmont. Em Nova Iorque eram oito horas e o hábito a fizera acordar à hora habitual. Lembrou-se então que se encontrava em São Francisco e que eram apenas cinco horas. Ficou deitada, quieta, a pensar em Raphaella... Os olhos negros... o cabelo preto... aquele rosto. E subitamente, como se alguém tivesse colocado uma fotografia na sua frente, lembrou-se.
— Meu Deus — disse em voz alta, sentando-se bruscamente na cama, a olhar para a parede, e deitando-se outra vez a seguir, com os olhos franzidos. Poderia ser?... Não era possível... Mas podia... George tomara parte num congresso, muitos anos antes, e fora nessa altura que ela fora apresentada a esse homem, um homem de idade, mas um dos mais importantes financeiros do país. Fora apresentada também à mulher dele, uma jovem de grande beleza. Nessa altura, era pouco mais do que uma criança e Kay era também muito nova. Não ficara especialmente impressionada com a beleza da jovem esposa do financeiro, mas recordava-se de o ter achado imensamente atraente. John Henry Phillips... Phillips... «Raphaella Phillips», dissera Alex. O ex-marido dela. Se fosse esse o caso, aquela mulher seria muito rica. Se se tivesse divorciado de John Henry Phillips teria milhões. Mas estaria de fato divorciada? Kay meditou um bocado sobre o assunto. Não ouvira falar em divórcio. Esperou uma hora e ligou para a sua secretária em Washington.
Calculava que seria fácil obter a informação. E tinha razão. A secretária telefonou-lhe uma hora mais tarde. Tanto quanto se sabia — e ela falara com várias pessoas que deviam estar bem informadas — John Henry Phillips ainda era vivo e nunca se divorciara. Fora viúvo durante vários anos e era casado com uma francesa chamada Raphaella, filha de um importante banqueiro francês, Antoine de Mornay-Malle. Ela devia ter cerca de trinta anos. O casal tinha uma vida muito retirada na costa ocidental.
Mr. Phillips encontrava-se doente há muitos anos. «Então é isso», murmurou Kay ao desligar o telefone no seu quarto de hotel, em São Francisco.
— Estás com a cabeça completamente perdida ou és incrivelmente estúpido? — Kay entrara no escritório de Alex, furiosa, poucos minutos após a chegada dele.
— Estás encantadora esta manhã. — Não se sentia com disposição para aturar a irmã, e especialmente daquela maneira. — Posso perguntar a que te referes?
— Refiro-me a andares metido com uma mulher casada, Alex. É a isso que me refiro.
— Estás a fazer afirmações disparatadas. Não estás? — Alex mostrava-se calmo mas zangado, enquanto Kay andava de um lado para o outro pela sala. Finalmente parou em frente da secretária dele.
— Não é verdade? És capaz de me dizer que não foi Mistress John Henry Phillips que me apresentaste ontem? E que não andas envolvido com ela?
— Não tenho de te dizer coisa alguma — respondeu Alex, embora tivesse ficado perplexo com a exatidão das informações da irmã.
— Não tens? E também não precisas de dizer nada ao marido dela?
— O marido dela, ela e eu, não são do teu interesse, Kay. A única coisa que te pode interessar é a tua filha. Nada mais! — Levantou-se para enfrentá-la, mas sabia que ela marcara um ponto. Perdera a filha, provavelmente para sempre, e ele a ameaçara de revelar as faltas dela publicamente. Mas isso não lhe importava. Não queria a amizade de Kay. Mas queria saber como é que ela descobrira quem era Raphaella. — O que queres dizer exatamente?
— Refiro-me ao fato de a Amanda dizer que há uma mulher na tua vida que vale dez vezes mais do que eu, como ela disse, e eu venho a descobrir que ela é a mulher de outro homem. Tenho o direito de saber quem anda com a minha filha. Sou mãe dela, apesar do que tu pensas de mim. E o George também não vai gostar da idéia de tu conservares a Amanda aqui para sempre, especialmente com a tua «ligação». A Amanda também é filha dele.
— Ficaria surpreendido se ouvisse dizer que ele se lembra disso.
— Oh, cala-te com as tuas graças sem graça. É fácil para ti fazer o papel do bom tio. Mas não tiveste de tomar conta dela durante quase dezessete anos.
— Nem tu.
— Vai para o diabo. A questão é esta: quem anda agora com a minha filha? Foi isso que eu vim saber aqui.
— E não achas Mistress Phillips a pessoa adequada? — Quase soltou uma gargalhada na cara da irmã.
— A questão também não é essa. A questão é que tu andas metido com a mulher de um dos homens mais influentes deste país e se isso se vier a descobrir será a minha morte política. Não por qualquer coisa que eu tenha feito, mas por tua causa. E eu não estou disposta a deixar-me morrer para a política devido a um escândalo imundo provocado por ti e pelas tuas aventuras.
As palavras de Kay foram demasiadas para Alex. Inclinou-se por cima da secretária e agarrou um braço de Kay.
— Agora, ouve-me bem, minha reles politiqueira. Aquela mulher não vale dez como tu, mas sim dez mil. É uma senhora dos pés à cabeça, e o meu envolvimento com ela não é da tua conta. No que diz respeito à tua filha, ela é nada menos que maravilhosa para ela. Quanto a mim, farei o que quiser fazer. Não tens nada com isso. A tua carreira política não me interessa. Gostarias que eu tivesse continuado casado com a Rachel para teu beneficio. Pois bem, não estou casado com ela e nunca mais voltarei a estar. E digo-te uma coisa: ela é quase tão peste como tu. Mas a mulher com quem estou envolvido é um ser humano extraordinário, e está casada com um homem há muito inválido, preso à cama e com quase oitenta anos. Quando ele morrer, eu hei de casar com a mulher que tu ontem conheceste, e se não gostares o problema é teu.
— Que adorável, Alex. E que fluente és. — Kay tentou soltar o braço, mas Alex não a largou. Pelo contrário, apertou-o ainda mais e fitou-a com um olhar duro. — Kay, porém, não desarmou. — A verdade, meu caro, é que o velhote ainda não morreu e se alguém descobre o que se passa há um escândalo dos diabos.
— Duvido. E na verdade isso não me preocupa, a não ser por Raphaella.
— Então é melhor começares a preocupar-te — disse com um olhar maldoso -, porque eu posso tratar do caso por ti.
— E cometeres um suicídio político? — Alex riu com amargura e largou o braço de Kay. Depois deu a volta à secretária e parou em frente da irmã. — Não estou preocupado com isso.
— Talvez devesses estar, Alex. Talvez eu tenha de tratar do caso e ir eu própria dizer ao velho.
— Não poderias aproximar-te dele.
— Não estejas tão certo disso. Se eu quiser, chego até ele. Ou até ela. — Ficou em frente do irmão, olhando-o com um ar de desafio, e ele teve de se conter para não a esbofetear.
— Sai do meu escritório.
— Com prazer. — Dirigiu-se para a porta. — Se fosse tu, pensava duas vezes no que andas fazendo. Estás travando um jogo importante e desta vez não vais ganhar, Alex. Não permitirei que me prejudiques. Tenciono ganhar a eleição e não quero ser prejudicada por andares brincando com dinamite por causa de uma prostitutazinha francesa.
— Sai! Sai! — gritou Alex, agarrando-a novamente por um braço e arrastando-a para a porta. — E afasta-te de mim. Afasta-te de todos nós. És uma porcaria!
— Adeus, Alex. — Olhou-o de frente, parada à porta. — Lembra-te do que te disse. Irei até ele se for preciso. Não esqueças!
— Sai! — Alex falou em voz baixa, e Kay deu meia volta e saiu.
Quando se sentou novamente, Alex viu que estava tremendo violentamente. Pela primeira vez na sua vida, tivera vontade de matar alguém. Apetecia-lhe apertar-lhe o pescoço por cada palavra porca que ela dissera. Sentia-se doente por pensar que Kay era sua irmã. Começou então a ficar preocupado com Amanda, pensando que talvez a irmã pudesse tentar forçá-la a voltar com ela para Nova Iorque. Após meia hora de intensas deliberações, disse à secretária que ia para casa e não voltaria nesse dia.
No momento em que Alex saiu do escritório, Raphaella atendia o telefone. Era a irmã de Alex e Raphaella ouviu-a de sobrolho franzido.
— Não, não se passa nada de especial. Pensei em convidá-la para tomar qualquer coisa. Talvez eu pudesse ir aí visitá-la.
— Receio que não. Eu... — Esteve prestes a dizer que o marido estava doente. — A minha mãe não está bem. Ela está agora aqui comigo. — Como teria ela sabido o número? Por Alex? Por intermédio de Mandy? Charlotte? A testa de Raphaella franziu-se mais.
— Compreendo. Podemos então encontrar-nos noutro lugar?
Raphaella sugeriu o bar do Fairmont e foi aí ter com Kay pouco antes da hora do almoço, e ambas pediram bebidas. No entanto, Kay não esperou pela chegada das bebidas para explicar o motivo que a levara ali.
— Quero que deixe de ver o meu irmão, Mistress Phillips.
Raphaella ficou siderada, assombrada pela ousadia daquela mulher.
— Posso perguntar por quê?
— Precisa realmente de fazê-lo? É casada e com um homem muito importante. Se o seu envolvimento com o Alex se tornar conhecido, será um escândalo para todos nós, não? — Foi nessa altura que Raphaella percebeu a maldade que brilhava nos olhos daquela mulher. Era verdadeiramente odiosa.
— Creio que seria um escândalo para si, não é? — disse delicadamente Raphaella, com um ligeiro sorriso.
Quando Kay respondeu, sorria também.
— Creio que o maior escândalo seria para si. Calculo que o seu marido e a sua família na Europa ficariam abalados com uma coisa dessas.
Raphaella ficou silenciosa uns momentos, tentando respirar fundo, enquanto o criado lhes trazia as bebidas e se afastava de novo.
— Não, realmente não gostaria que isso sucedesse, Mistress Willard. — Olhou diretamente para Kay. As duas mulheres observavam-se mutuamente. — Não entrei nisto de ânimo leve. Não queria envolver-me com o Alex, tanto por ele como por mim. O que lhe posso dar é muito pouco. A minha vida pertence inteiramente ao meu marido e ele é um homem muito doente. — Raphaella falou com tristeza e tinha os olhos cheios de lágrimas. — Mas estou apaixonada pelo seu irmão. Amo-o muito. Também amo o meu marido, mas... — Suspirou, ficando ainda mais encantadora com o seu ar melancólico, frágil e ao mesmo tempo forte.
Kay detestava tudo nela, porque Raphaella era tudo aquilo que ela nunca conseguiria ser.
— Não posso explicar o que sucedeu com o Alex, nem por quê. Sucedeu. E estamos a tentar proceder o melhor possível. Posso assegurar-lhe, Mistress Willard, que somos acima de tudo discretos. Ninguém saberá de coisa alguma.
— Isso é um disparate. A minha mãe sabe. A Mandy sabe. Outras pessoas hão de ficar sabendo. Não pode controlar isso. E não está brincando com o fogo. Brinca com a bomba atômica. Pelo menos, no que me diz respeito.
— Espera então que acabemos tudo? — Raphaella parecia cansada e aborrecida. Que mulher diabolicamente egoísta era Kay. Amanda tinha razão. Ela só pensava em si própria.
— Pois quero. E se o Alex não for suficientemente forte para fazê-lo, faça-o a senhora. Mas tem de terminar. Não só por mim, como por si. Não pode ser descoberta... e se for preciso eu própria direi ao seu marido.
Raphaella fitou-a, chocada.
— É doida? Ele está paralisado, inválido, tratado por enfermeiras, e queria dizer-lhe uma coisa destas? Matava-o! — Sentia-se indignada por Kay lhe fazer tal ameaça, mas parecia-lhe que era mulher para pôr em ação aquilo que dizia.
— Então é bom que pense nisso. Se isso o matava, seria como se ele morresse às suas mãos. Está ao seu alcance acabar com tudo agora, antes que alguém saiba. Além disso, pense no que está fazendo ao meu irmão. Ele quer ter filhos, precisa de uma esposa, sente-se só. O que é que pode dar-lhe? Algumas horas de quando em quando? Sabe bem que o seu marido poderá viver mais dez ou quinze anos. É o que quer oferecer ao Alex? Uma ligação ilícita por mais dez anos? Se o amasse, deixava-o. Não tem o direito de se agarrar a ele e estragar-lhe a vida.
As palavras de Kay feriram Raphaella no mais profundo do seu ser. Nesse momento não lhe ocorreu que Kay Willard não estava preocupada com o interesse de Alex, mas sim com o dela própria.
— Não sei que dizer-lhe, Mistress Wiliard. Nunca tive a intenção de prejudicar o seu irmão.
— Então, não o faça. — Raphaella sentiu-se atordoada. Kay estendeu a mão para a conta, assinou-a, escreveu o número do quarto e levantou-se. — Creio que nada mais temos a dizer uma à outra. Não acha?
Raphaella disse que sim com a cabeça, levantou-se e dirigiu-se para a porta, com os olhos cheios de lágrimas.
Kay foi ver Mandy nessa manhã. Alex já voltara para casa e encontrava-se calmamente sentado no escritório com Amanda, quando ela chegou. Não poderia levar Mandy consigo nessa altura. De resto, o seu interesse pela filha quase desaparecera. Resolvera voltar para Washington. Lembrou apenas a Amanda que pensasse no que ela lhe dissera a respeito de regressar a casa em março, despediu-se secamente de Alex e disse à mãe que a veria em Nova Iorque. Charlotte partiria na tarde seguinte.
Foi óbvia uma sensação de alívio em toda a gente quando a limusine alugada de Kay se afastou. Só quando Alex se apercebeu de que Raphaella não lhe telefonara durante toda a tarde é que começou a sentir-se inquieto. Calculou então o que se teria passado e ligou para Raphaella.
— Eu... Desculpa... Estive ocupada... Não pude telefonar... Eu... — Alex teve então a certeza do sucedido, pelo som da voz dela.
— Lamento, Raphaella... Preciso de te falar... É por causa da Mandy...
— Oh, meu Deus! Que aconteceu?
— Não posso explicar ao telefone.
Raphaella chegou vinte minutos depois, e Alex pediu-lhe desculpa por lhe ter mentido, mas percebera que era imperativo falar com ela, antes que ela se afastasse dele, que acabasse com uma ligação tão preciosa para os dois. Contou-lhe francamente o que se passara entre ele e a irmã e forçou-a a relatar-lhe a entrevista que tivera com Kay no bar do Fairmont.
— E acreditaste nela? Pensas realmente que estás me prejudicando? Meu amor, te garanto que há muitos anos não era tão feliz, ou melhor, que nunca fui tão feliz em toda a minha vida.
— Mas achas que ela será capaz? — Raphaella estava preocupada com a ameaça que Kay fizera de ir falar a John Henry.
— Não, não creio. Ela é má, mas não é completamente louca. E não há maneira de ir falar com ele.
— Poderá fazê-lo, sabes? Eu não tenho qualquer controle sobre a correspondência que lhe é endereçada. Os secretários dele entregam-na pessoalmente.
— Ela não ia escrever uma coisa destas numa carta. Certamente não o fará, até porque se preocupa demasiado com ela própria.
— Sim, acho que isso é verdade. — Raphaella soltou um longo suspiro e aninhou-se nos braços de Alex. — Meu Deus, que mulher incrível.
— Não — murmurou meigamente Alex -, tu é que és uma mulher incrível. — Olhou-a amorosamente e acrescentou: — Vamos esquecer o que se passou nestes últimos dois dias?
— Bem gostaria de fazê-lo, Alex. Mas deveremos? Como havemos de saber que as ameaças dela são vãs?
— Porque só há uma coisa que interessa à minha irmã, Raphaella. E é a sua carreira. Afinal é a única coisa que a faz correr e, para nos atingir, tinha de pôr a carreira dela em perigo, e ela não o fará. Acredita, meu amor, não o fará.
Raphaella, porém, não se sentia tão segura disso. Ela, Alex e Amanda prosseguiram as suas vidas como até então, mas as palavras ameaçadoras de Kay soavam sempre aos ouvidos de Raphaella como um eco. Só esperava que Alex tivesse razão e que as ameaças de Kay fossem de fato vãs.
— Amanda? — A voz de Raphaella ecoou pela casa logo que fechou a porta da rua. Eram quatro horas da tarde, mas sabia que Amanda já devia ter voltado da escola. Desde que Amanda vivia com Alex, Raphaella habituara-se a ir ali todas as tardes, por vezes antes de Mandy chegar da escola, para arrumar certas coisas, preparar uma refeição ligeira, ou sentar-se tranquilamente no pequeno jardim, ao sol, à espera que a jovem chegasse a casa. Tinham longas conversas acerca do que pensavam ser importante, e de vez em quando Mandy contava-lhe uma história engraçada a respeito de Alex. Ultimamente, Raphaella tinha-lhe mostrado trechos do livro para crianças em que trabalhava desde o Natal. Há cinco meses o andava escrevendo e esperava tê-lo pronto antes de partir para passar as férias na Espanha, em julho.
Nesse dia, não fora o seu manuscrito que levara consigo, mas sim um exemplar da revista Time. Na capa havia uma fotografia de Kay Willard e por baixo a legenda:
A CASA BRANCA em 1992... 96... 2000?
Raphaella lera o artigo todo e levara-o consigo ao ir encontrar Mandy. As suas visitas à pequena casa de Vallejo, durante o dia, tinham tido início pouco a pouco, e agora Mandy esperava vê-la ali diariamente. Geralmente saía quando John Henry estava a dormir a sesta. A verdade é que ele cada vez dormia mais horas, até que, ultimamente, era preciso acordá-lo às seis, para jantar.
— Amanda? — Raphaella ficou parada no vestíbulo durante bastante tempo, à espera da resposta de Amanda. Vestia um traje de saia e casaco de linho creme e tinha os cabelos presos numa rede da mesma cor. — Mandy? — Começou a subir lentamente as escadas, pois julgava ter ouvido um ligeiro ruído. Foi encontrar Amanda no terceiro andar, sentada num dos cadeirões de vime do quarto, com os pés metidos debaixo do corpo e o queixo nos joelhos. Raphaella reparou que ela tinha um ar sombrio.
— Amanda?... Que se passa, querida? — Raphaella sentou-se na cama, com a sua carteira de tom claro e a revista ainda debaixo do braço. — Sucedeu alguma coisa na escola? — Estendeu a mão para segurar a de Amanda. Esta a fixou e em seguida o seu olhar dirigiu-se para a revista.
— Já vejo que também leste.
— O quê? O artigo sobre a tua mãe? — A bonita adolescente de dezesseis anos disse que sim com a cabeça. — Foi isso que te perturbou? — Raphaella estranhara o silêncio de Amanda, porque sempre que ela chegava ali a casa a jovem descia as escadas correndo, sorridente e alegre, pronta a contar-lhe o seu dia na escola. Amanda disse que sim com a cabeça. — Não achei que contivesse nada de mal.
— Não. A não ser o fato de ser tudo mentira. Leste o que dizem sobre o terrível acidente de trânsito que eu tive o ano passado, do qual estou me recompondo lentamente, em casa de um tio, no clima ameno da costa ocidental? E dizem também que a minha mãe me vem visitar sempre que tem um momento livre? — Olhou com tristeza para Raphaella.
— Ela, que nunca mais veio ver-me desde o Natal! E a verdade é que estou contente com isso! — O fato é que não teria sido bem recebida. Depois da sua explosiva visita, Alex estava preparado para lhe dizer que se mantivesse afastada da casa dele. Mas, depois dos primeiros meses, Kay deixara até de telefonar. — Céus, Raphaella. Ela é odiosa e eu detesto-a!
— Não, não detestas. Talvez com o tempo se venham a compreender melhor uma à outra. — Raphaella não sabia que mais dizer. Ficou sentada junto de Amanda, em silêncio, durante mais uns minutos, e depois lhe tocou meigamente nas mãos. — Queres ir dar um passeio?
— Não.
— Por quê?
Amanda encolheu os ombros, obviamente deprimida, Raphaella compreendeu. Também tinha os seus próprios receios acerca de Kay Willard. Nada mais se passara, mas Raphaella tinha perfeita consciência de que ela poderia estar a tramar qualquer coisa. A conversa de Kay com Alex fora cheia de feias insinuações, mas afinal concordara em deixar Amanda com ele, durante um certo tempo.
Meia hora mais tarde, Raphaella conseguira convencer Amanda a ir dar um passeio. De braço dado, as duas desceram a Union Street, sob o sol esplendoroso de maio, vendo as montras e parando para tomarem um cappuccino com gelado no Coffee Cantata, colocando as pequenas coisas que tinham comprado sobre a cadeira vaga da mesa onde se sentaram.
— Achas que o Alex vai gostar do poster? — perguntou Amanda enquanto saboreava o café gelado. Ambas sorriram.
— Vai adorar. Vamos pendurá-lo na parede do escritório antes de ele chegar.
Era um grande poster que representava uma mulher sobre uma prancha de surf, numa praia do Havai, um poster de que só uma adolescente poderia gostar. Mas o importante era que as pequenas compras tinham feito com que Amanda se esquecesse completamente da mãe, e Raphaella ficou satisfeita com isso. Só chegaram a casa às cinco e meia e Raphaella deixou apressadamente Amanda, prometendo-lhe que voltaria, como habitualmente, à noite. Iniciou então o curto trajeto até à sua própria casa, pensando como a sua vida se encontrava agora totalmente ligada à de Mandy e Alex. Estava uma tarde linda, e a luz dourada do Sol refletia-se em todos os vidros das janelas, dando ao ambiente uma grande doçura e suavidade. Estava quase a chegar a casa quando ouviu a buzina de um carro atrás de si. Voltou-se e viu um Porsche preto, reparando logo a seguir que era Alex que estava ao volante.
Raphaella parou e os olhos dos dois encontraram-se por um longo momento, como se se vissem pela primeira vez. Ele parou o carro perto dela e debruçou-se sobre o assento de couro vermelho.
— Quer uma carona, minha senhora? — perguntou, com um sorriso.
— Não costumo conversar com estranhos.
Nenhum deles falou por instantes. Logo a seguir Alex perguntou, com uma expressão um pouco preocupada:
— Como está a Mandy? — Era como se tivessem uma filha adolescente. Intrometia-se constantemente nos seus pensamentos. — Sabes se leu o artigo da Time?
Raphaella disse que sim com a cabeça, aproximando-se do carro.
— Leu, sim. Estava em casa quando eu lá cheguei. Não sei o que hei de dizer-lhe mais. A Mandy mostra-se cada vez mais violenta para com a mãe. — Depois, com ar preocupado, perguntou: — Que havemos de lhe dizer a respeito de julho?
— Por enquanto, nada. Podemos dizer-lhe mais tarde.
— Quando?
— Dizemos-lhe em junho. — Mas pareceu também preocupado.
— E se ela não quiser ir?
— Tem de ir. Pelo menos, desta vez. — Depois, suspirou. — Falta só um ano para ela fazer os dezoito. Por isso, temos de ceder um pouco perante a Kay. Se a Mandy conseguir suportar mais esta visita, poderemos ter alguma paz. Visto ser um ano de eleições para ela e de ela considerar essencial a presença de Amanda, era até capaz de mandar raptá-la para tê-la em casa. Suponho que é melhor fazermos as coisas por bem.
Raphaella olhou-o com sinceridade.
— Se a Kay a tivesse forçado a voltar, não teria conseguido que ela ficasse em casa dela.
— Provavelmente por perceber isso é que ela não insistiu em levá-la. Mas nada podemos fazer quanto a este verão. Ela terá mesmo de ir.
Raphaella concordou. Era uma coisa que já tinham combinado há um mês. Amanda voltaria a casa dos pais antes do feriado do 4 de julho, passaria um mês com eles na casa que possuíam em Long Island, depois iria à Europa com a avó durante o mês de agosto, antes de regressar a São Francisco para novo ano escolar.
Alex considerava uma grande vitória o fato de Kay ter concordado com o regresso de Amanda a São Francisco, mas sabia que a sobrinha não aceitaria de bom grado a perspectiva de voltar a casa. Telefonara ao psiquiatra que a tratava, e ele dissera-lhe que a sobrinha poderia suportar bem o confronto com a mãe e que as seqüelas causadas pelo estupro já se encontravam muito diminuídas. No entanto, todos sabiam que Amanda se revoltaria com a idéia de deixar Alex para ir passar algum tempo com os pais. Tinham planejado que ela iria com Raphaella até Nova Iorque, onde ela própria passaria uma noite no Carlyle, antes de partir para Paris, onde iria ficar uma semana, e em seguida para Espanha, onde ficaria duas semanas, com a mãe. Era a sua peregrinação anual para ver os pais e passar algum tempo com o resto da família, em Santa Eugenia.
Nesse ano, iria ler o livro que tinha em preparação aos seus pequenos de Santa Eugenia e estava ansiosa por ver qual seria a reação deles. Iria traduzindo o que escrevera para espanhol, à medida que fosse lendo, como costumava fazer com alguns livros que comprava em inglês ou em francês. Contudo, nesse ano seria mais importante, porque as histórias eram escritas por si e, se as crianças gostassem delas, enviaria o livro ao agente de Charlotte, que talvez o publicasse no outono.
Raphaella olhou para Alex e viu que ele sorria.
— O que é que tem graça, Alexander?
— Somos nós. — Sorriu meigamente, com um brilho divertido no olhar. — Estamos para aqui a falar sobre a nossa filha adolescente. — Hesitou um instante e logo a seguir apontou para o lugar vago a seu lado. — Queres entrar um bocadinho?
Raphaella olhou para o relógio de pulso, para ver as horas, e em seguida viu se havia por perto alguém que a pudesse conhecer.
— Devia ir para casa... — Queria estar com John Henry quando lhe levassem o tabuleiro com o jantar, às seis horas.
— Não quero insistir, mas... — Os olhos dele fitavam-na com tanta ternura, ele era tão atraente e há tanto tempo que não estavam sós que Raphaella não foi capaz de recusar o convite.
— Temos tempo para um passeio rápido?
Ela disse que sim, sorrindo, sentindo-se ousada por isso, e Alex pôs rapidamente o carro em andamento, ganhando velocidade ao descer a colina e entrando depois no trânsito em Lombard Street. Passaram pelo Presídio, chegaram até às imediações da pequena fortaleza situada por baixo da Ponte Golden Gate, em Fort Point. Por cima deles, o tráfego processava-se velozmente em direção a Marin County. Aí havia barcos à vela na água, um ferry, vários pequenos barcos a motor, e uma ligeira brisa que fazia agitar o cabelo de Raphaella, agora livre do chapéu de palha.
— Queres sair do carro? — Ele beijou-a e Raphaella disse que sim. Saíram e caminharam lado a lado, de mãos dadas. Formavam um belo casal. Eram ambos altos, bonitos, de cabelos escuros. Ficaram parados um bocado a olhar para a baía. Raphaella sentia-se feliz, nesse momento. Pensou em como ela e Alex se tinham tornado tão íntimos, como já tinham passado tantas noites juntos, conversando, fazendo amor, correndo para a cozinha às duas da madrugada para preparar uma omelete, ou sanduíches, ou frutas batidas. Tinham tanto e contudo tão pouco... tantos sonhos... tão pouco tempo... e esperanças sem fim. Raphaella voltou-se para Alex enquanto os últimos raios de sol cintilavam sobre os barcos e as águas da baía, e pensou se alguma vez teriam mais. Alguns minutos, uma hora, as primeiras horas da madrugada, antes de o Sol nascer, momentos roubados e nunca muito mais do que isso. Nem sequer a jovem que era para eles como uma filha lhes pertencia, era apenas emprestada e daí a um ano partiria. Amanda já começara a pensar para que universidade iria, e Raphaella e Alex sentiam já a dor de perdê-la, desejando que ela ficasse com eles muitos anos mais.
— Em que estavas a pensar, Raphaella? — Alex olhou-a com amor e afastou-lhe cuidadosamente o cabelo dos olhos.
— Em Amanda. — Beijou ao de leve a mão que lhe roçou pelo rosto. — Gostava que ela fosse nossa.
Alex disse que sim, em silêncio.
— Também eu. — Tinha vontade de lhe dizer que um dia teriam filhos deles, dentro de poucos anos, talvez, mas calou-se, pois sabia como esse assunto a magoava. Todavia era um tema que abordavam muitas vezes. Ela sentia remorsos por o estar impedindo de casar com quem lhe pudesse dar filhos.
— Espero que ela passe bem o verão.
Começaram a caminhar lentamente pela beira da estrada, enquanto os salpicos do mar chegavam quase ao sítio onde eles passavam.
— Espero que tu também estejas bem — disse Alex, voltando-se para Raphaella. Pouco tinham falado acerca do tempo em que ela iria estar longe, mas Raphaella partiria dentro de seis semanas.
— Estarei bem, mas sentirei terrivelmente a tua falta, Alex.
Pararam e ele puxou-a para si.
— E eu... Oh, meu Deus, nem sei o que farei sem ti. — Habituara-se a vê-la todas as noites e agora lhe era difícil imaginar a vida sem ela.
— Não estarei fora mais de três semanas.
— Para mim será uma eternidade. E ainda por cima a Amanda também não estará aqui.
— Talvez possas trabalhar um pouco, para variar.
Alex sorriu e beijou-a longamente, enquanto os barcos passavam perto deles, devagar. Caminharam de braço dado durante meia hora e em seguida voltaram para o carro, lamentando não poderem continuar a passear. Fora um fim agradável para uma maravilhosa tarde de sol e quando Alex a deixou, perto de casa, Raphaella passou-lhe de leve os dedos pelos lábios e enviou-lhe um beijo com um sopro.
Viu-o seguir em direção a Vallejo e sorriu enquanto percorria os poucos metros que a separavam de casa. Era extraordinário como a vida dela se alterara nos últimos sete meses, desde que conhecera Alex. Era amante de um jovem advogado, a «filha por amor», como lhe chamava Charlotte, de uma romancista que sempre admirara, «mãe» de uma filha «emprestada», uma encantadora jovem de dezessete anos, e parecia-lhe que encontrara um lar na bonita casa de Vallejo, com o pequeno jardim e a cozinha cheia de tachos de cobre. E no entanto continuava a ser aquilo que sempre fora, Mrs. John Henry Phillips, a esposa francesa de um célebre financeiro, filha de um banqueiro francês, Antoine de Mornay-Malle. Ia, como sempre, visitar a mãe em Santa Eugenia. Enfim, fazia tudo o que sempre fizera, mas tinha muito mais coisas na sua vida. Era uma vida diferente, mais rica, mais cheia e feliz. Sorriu para consigo antes de virar a esquina para chegar a casa. Aquilo que ela tinha não prejudicaria John Henry?, dizia para si própria ao meter a chave na fechadura. Ainda passava várias horas com ele, de manhã, via se as enfermeiras eram atentas e cuidadosas, se as refeições eram como ele gostava e lia em voz alta para ele ouvir pelo menos uma hora por dia. A diferença era que ela agora tinha muito mais do que isso.
Depois das horas que passava de manhã com John Henry, Raphaella passava duas ou três horas no quarto dela a trabalhar no livro infantil que andava escrevendo e que queria mostrar às crianças de Santa Eugenia. E cerca das quatro horas da tarde, enquanto John Henry dormia a sesta, ia até à pequena casa de Vallejo. Quase sempre chegava antes de Amanda, de modo que a jovem tivesse alguém em casa que a recebesse com amor e não ficasse sozinha. Frequentemente, Alex regressava do escritório antes de Raphaella voltar para casa. Beijavam-se e cumprimentavam-se como duas pessoas casadas, com a única diferença de que Raphaella precisava ir passar uma ou duas horas com John Henry, conversar com ele, contar-lhe alguma história engraçada, se ele estivesse com disposição para isso, ou colocar a cadeira de rodas de modo que ele pudesse ver os barcos na baía. Jantavam sempre juntos, mas agora raramente utilizavam a sala de jantar. John Henry comia na cama, com um tabuleiro.
E, logo que Raphaella o via confortavelmente instalado, verificando se a enfermeira se encontrava junto dele e se a casa estava em ordem, Raphaella esperava meia hora no seu quarto e depois saía.
Tinha quase a certeza de que os criados desconfiavam das saídas dela, mas ninguém se atreveria a mencionar os seus desaparecimentos noturnos, e o som de uma porta abrindo ou fechando às quatro ou às cinco da manhã era algo que já ninguém questionava. Raphaella arranjara finalmente uma vida com a qual podia viver, após oito anos de intolerável solidão e amargura; uma vida em que ninguém era magoado, ninguém sofria. John Henry nunca saberia o que havia entre ela e Alex, e isso significava muito para eles. A única coisa que ocasionalmente a preocupava era a recordação do que Kay dissera, ao afirmar que ela estava a fazer com que Alex não se casasse com uma mulher com a qual pudesse ter uma vida normal e acima de tudo ter filhos. Porém, ele dissera-lhe que queria viver assim, e Raphaella sabia que o amava demasiado para poder desistir dele.
Ao subir as escadas para o quarto, Raphaella escolhia mentalmente o que iria vestir. Comprara um vestido de seda cor de turquesa de I. Magnin que realçava ainda mais a sua pele clara e o cabelo escuro. Ficava ainda melhor quando punha uns brincos com turquesas e diamantes.
Estava apenas dez minutos atrasada quando entrou no quarto de John Henry depois de bater de leve à porta. John Henry estava sentado na cama, recostado em almofadas, com o tabuleiro na sua frente. Raphaella observou os olhos encovados, o rosto magro e enrugado, com um dos lados descaído, um dos olhos meio fechado, e o corpo magro inclinado para a frente, e teve a sensação de que não o via há muito tempo. Parecia estar lentamente a perder a vontade de se agarrar à vida, que conservara durante tanto tempo.
— Raphaella? — olhou-a com estranheza enquanto dizia o nome dela com dificuldade, como sucedia há quase oito anos, e Raphaella olhou-o quase com espanto, lembrando-se mais uma vez que era ele o marido dela, que tinha deveres para com ele e que estava muito longe de ser mulher de Alex.
Voltou-se para fechar a porta devagarinho e ao mesmo tempo limpou as lágrimas que lhe enchiam os olhos.
Raphaella despediu-se de Alex às cinco da manhã, quando o deixou para ir para casa. Já fizera as malas na noite anterior e agora só tinha de ir para casa, deixar alguns recados escritos para os criados, vestir-se, tomar o desjejum e dizer adeus a John Henry antes de sair. As despedidas seriam simples e solenes, um beijo na face, um último olhar, um toque na mão e sempre a vaga sensação de culpa de que não devia deixá-lo, que devia ficar com ele e não ir para Espanha. No entanto, era um ritual a que estavam ambos habituados e tratava-se de algo que ela fizera sempre durante quinze anos. Deixar Alex era muito mais doloroso. Custava-lhe não poder vê-lo, nem que fosse só um dia. As semanas que se seguiriam pareciam-lhes quase insuportáveis enquanto se mantinham agarrados um ao outro, antes do primeiro alvor da madrugada. Era como se ambos receassem que algo pudesse separá-los para sempre, como se não fossem voltar a ver-se. Raphaella apertou-se contra ele, como uma segunda pele, e não tinha coragem de largá-lo. Olhou tristemente para Alex, com os olhos cheios de lágrimas e um sorriso infantil.
— Não sou capaz de te deixar.
Ele sorriu e puxou-a mais para si.
— Tu nunca me deixas, Raphaella. Eu estou sempre contigo, para onde quer que vás.
— Gostava que fosses comigo para a Espanha.
— Talvez um dia.
Sempre um dia... um dia... mas quando?
Era uma linha de pensamento a que ele não gostava de dar continuidade, porque fazia Raphaella pensar que esse «um dia» significaria que John Henry já teria morrido. Só pensar isso era quase matá-lo e ela não queria fazê-lo; por isso, vivia apenas no presente.
— Talvez. Eu escrevo-te.
— E eu, posso escrever-te? — Ela disse que sim com a cabeça.
— Não te esqueças de lembrar à Amanda a outra mala e a raqueta de tênis.
Alex sorriu.
— Sim, mãezinha. Eu lembro-lhe. A que horas devo chamá-la?
— Às seis e trinta. O avião parte às nove.
Alex iria levar Mandy ao aeroporto, mas seria pouco provável encontrar Raphaella que, como de costume, seria transportada de carro até ao aeroporto e entraria no avião antes dos outros passageiros. Mas tinham comprado o bilhete de Mandy para o mesmo vôo e ela iria na limusine alugada de Raphaella para o Carlyle. Charlotte iria lá buscá-la e acompanhá-la-ia ao apartamento de Kay. Amanda declarara peremptoriamente que não estava disposta a enfrentar a mãe sozinha. Não voltara a vê-la desde a visita que ela fizera a São Francisco, pouco depois do Natal, e não se mostrava muito disposta a ir para casa. George, como habitualmente, encontrava-se num congresso de medicina em Atlanta e não estaria em Nova Iorque para suavizar o embate.
— Alex — Raphaella olhou-o apaixonadamente. -Amo-te.
— Também te amo, meu amor. — Apertou-a com força. — Vai tudo correr bem. — Ela disse que sim em silêncio, sem saber a razão por quê se sentia tão preocupada com a viagem, mas a verdade é que detestava deixá-lo. Estivera acordada ao lado dele toda a noite. — Preparada para partir? — Raphaella disse que sim e Alex acompanhou-a quase até a casa.
Raphaella não viu Alex no aeroporto, mas quando Mandy entrou no avião e lhe sorriu, foi como se se sentisse em casa. Mandy trazia um chapéu de palha de abas largas, um vestido branco e umas bonitas sandálias brancas que as duas tinham ido comprar. Na mão, levava a raqueta que Raphaella receava que ela esquecesse.
— Olá, mamã. — Mandy sorriu e Raphaella também. A sobrinha de Alex era uma moça bonita. Se fosse mais alta e menos magra, pareceria mais mulher, assim, parecia ainda uma menina.
— Estou feliz por te ver. Começava já a sentir-me muito só.
— O mesmo sucede com o Alex. Queimou os ovos, entornou o café, esqueceu-se das torradas e quase ficou sem gasolina a caminho do aeroporto. Não creio que pensasse no que estava fazendo, para não dizer mais.
As duas trocaram um olhar de entendimento. Era reconfortante para Raphaella ter notícias de Alex. Era como se isso o aproximasse mais dela durante a viagem. Cinco horas mais tarde chegaram finalmente a Nova Iorque, no meio do calor e da confusão do verão. Era como se São Francisco não existisse, e elas nunca mais conseguissem voltar para lá. Raphaella e Mandy olharam uma para a outra, exaustas e com saudades de casa.
— Nunca me lembro como isto é aqui.
Mandy olhou à sua volta, para o movimento do aeroporto.
— Também eu. Isto é horrível.
Mas pouco depois apareceu o condutor da limusine e elas puderam sentar-se confortavelmente no ambiente fresco devido ao ar condicionado.
— Talvez afinal não seja tão mau assim.
Raphaella retribuiu o sorriso de Amanda e segurou-lhe na mão. A verdade é que daria tudo por estar no Porsche com Alex e Amanda, em vez de estar naquela limusine em Nova Iorque. Durante meses, a vida dupla que era obrigada a levar enervara-a. Tinha de iludir John Henry, fugir aos criados, à enorme casa. Ansiava por uma vida mais simples, como a que tinha na pequena casa de Vallejo, com Alex e Amanda.
Quando chegaram ao Carlyle esperava-as uma mensagem de Charlotte, dizendo que estava atrasada devido a uma reunião com um editor e que chegaria um pouco tarde. Amanda e Raphaella subiram para a suite, descalçaram os sapatos, tiraram os chapéus e pediram para lhes levarem limonadas.
— Fazes idéia do calor que está lá fora? — Amanda olhou-a com ar infeliz e Raphaella sorriu. Mandy já estava arranjando razões para detestar Nova Iorque.
— Em Long Island não será tão mau. Poderás nadar todos os dias. — Era como convencer uma criança de que seria agradável ir para um campo de férias, mas Amanda não se mostrou nada satisfeita com a perspectiva. Nesse momento a campainha da porta da suite tocou. — Devem ser as nossas limonadas.
Raphaella dirigiu-se rapidamente para a porta, com a carteira na mão, o traje de saia e casaco de seda vermelha que usara na viagem apenas ligeiramente amarrotado, e sempre bonita e elegante. Amanda ficava constantemente encantada com a beleza de Raphaella. Nunca se habituava àquela beleza espetacular e certamente sucedia o mesmo com Alex, pois ele parecia conter a respiração de cada vez que a via aparecer. E andava sempre tão bem arranjada, tão impecavelmente elegante. Amanda viu-a abrir a porta com um leve sorriso impessoal nos lábios, um ar de autoridade, preparada para ver entrar um criado com um tabuleiro com as limonadas frescas. Quem apareceu, porém, foi a mãe de Amanda, afogueada e um pouco desalinhada, envergando um traje de saia e casaco de linho verde, bastante feio, mas com um estranho sorriso de auto-satisfação nos lábios. Como se estivesse vitoriosa. Amanda sentiu um arrepio de medo percorrer-lhe as costas e Raphaella mostrou-se delicada, mas tensa. A última vez que se tinham visto fora no bar do Hotel Fairmont, seis meses antes, quando ela ameaçara revelar a John Henry a ligação entre ela e Alex.
— A minha mãe atrasou-se, por isso resolvi vir buscar a Amanda.
Olhou uns instantes para Raphaella e entrou na suite.
Raphaella fechou a porta e ficou a ver Kay atravessar a sala em direção à sua única filha, que ficara parada a olhar nervosamente para a mãe, sem fazer qualquer gesto para se aproximar dela e sem nada dizer, com os olhos muito abertos.
— Olá, Mandy. — Kay foi a primeira a falar e Amanda continuou calada. Raphaella reparou que ela parecia mais do que nunca uma criança assustada. Mostrava um ar infeliz enquanto a mãe se aproximava. — Estás com bom aspecto. Esse chapéu é novo?
Amanda disse que sim e Kay sentou-se. Nessa altura a campainha da porta tocou outra vez e Raphaella foi abrir. Eram as limonadas. Raphaella ofereceu uma a Kay, que recusou, e outra a Amanda, que a aceitou em silêncio, olhando para Raphaella com um olhar que parecia suplicante. Depois baixou os olhos e começou a beber lentamente a limonada. Foram uns minutos embaraçosos, e Raphaella apressou-se a manter a conversa, contando coisas sem importância a respeito da viagem. No entanto, ficou aliviada quando Kay se levantou para sair.
— Vão já para Long Island? — perguntou Raphaella à despedida, querendo confortar Amanda.
— Não. Com efeito, Mandy e eu vamos fazer uma pequena viagem.
Ao ouvir isso a filha olhou-a com hostilidade.
— Sim? Aonde?
— A Minnesota.
— Tem alguma coisa a ver com a campanha? — As palavras de Mandy foram ditas num tom que era um misto de acusação e de desdém.
— Mais ou menos. Há certas coisas que eu quero ver ali. Vais gostar.
O rosto de Kay mostrava que estava zangada, mas não deixou que isso transparecesse nas suas palavras. Raphaella olhou de relance para Amanda, que tinha um ar triste.
Sabia que ela só desejava voltar para São Francisco, para junto de Alex e dela própria, e Raphaella não pôde deixar de pensar que era também esse o seu desejo. Só a sua boa educação e os seus modos requintados, fizeram com que ela mostrasse delicadeza para com Kay.
Amanda pegou na mala e na raqueta de tênis e voltou-se para Raphaella. Ficaram assim um instante e depois Raphaella apertou-a rapidamente nos braços. Queria dizer-lhe para ser paciente e delicada, mas também para ser forte e não deixar que a mãe a magoasse; queria dizer-lhe mil coisas, mas não era nem a altura nem o local apropriado.
— Diverte-te, querida. — Depois, mais baixo, acrescentou: — Vou ter saudades tuas.
Porém, Amanda disse-o abertamente, com lágrimas nos olhos.
— Também vou ter saudades tuas.
Amanda chorava em silêncio ao afastar-se pelo corredor. Kay parou por momentos à porta, parecendo querer reter memória cada milímetro do rosto de Raphaella.
— Obrigada por tê-la trazido do aeroporto.
Nem uma palavra pelo que Raphaella fizera por ela, por seis meses de ternos cuidados maternais, pela ajuda que prestara a Alex para ele poder proporcionar todo o bem-estar àquela sobrinha de quem ambos tanto gostavam. Contudo, Raphaella não queria agradecimentos da parte daquela mulher. Desejava apenas que ela não magoasse mais a filha, mas não tinha maneira de fazê-lo, não havia qualquer possibilidade de ordenar a Kay que fosse boa para a sua própria filha.
— Espero que seja um bom mês para as duas.
— Vai ser — respondeu Kay com um sorrisinho enquanto olhava para Raphaella. Depois, quando já se afastava, ainda se voltou para dizer: — Divirta-se na Espanha.
E com essas palavras entrou no elevador com Amanda. Raphaella, sentindo-se subitamente cansada e vazia, ficou a pensar como é que Kay teria sabido que ela ia para a Espanha.
Na manhã seguinte, ao embarcar no avião para Paris, Raphaella nem sequer pensou que em breve iria ver as crianças de Santa Eugenia. Só lhe apetecia voltar para casa.
Aquela parte da viagem iria levá-la ainda para mais longe do lugar onde ficara o seu coração e ela sentia-se cansada e só. Fechou os olhos e tentou imaginar que ia a caminho da Califórnia e não da França.
Era uma viagem a que estava habituada e que de resto se passou sem qualquer incidente. Raphaella dormiu, como quase sempre sucedia, enquanto atravessavam o Atlântico.
Leu um pouco, almoçou, jantou e recordou a viagem em que conhecera Alex no outono anterior. Parecia-lhe inconcebível ter falado com um estranho e não percebia bem como isso pudera suceder. Não pôde deixar de sorrir para si mesma, enquanto o avião se preparava para aterrizar em Paris. Mas agora Alex já não era um estranho. Imaginou então o pai dela a perguntar-lhe: «Como é que se conheceram?» E ela respondendo: «Foi num avião, papá.» Raphaella quase soltou uma gargalhada ao imaginar esse diálogo, mas perdeu logo a vontade de rir quando, depois de sair do avião como habitualmente e passar pela alfândega, vislumbrou o pai. Antoine de Mornay-Malle arvorara uma expressão severa, quase zangada, e parecia uma estátua enquanto a via aproximar-se, com uma aparência tão sedutora que teria merecido pelo menos um sorriso apreciativo ao mais exigente dos homens. Com efeito, Raphaella estava muito elegante com a sua saia e casaco preto e blusa de seda branca. O conjunto ficava completo com um pequeno chapéu de palha preta enfeitado com um minúsculo véu. Quando viu o pai, o coração de Raphaella começou a bater de uma forma desordenada. Era óbvio que algo sucedera. O pai tinha más notícias para lhe dar. Talvez a mãe... ou John Henry... ou uma prima... ou...
— Bonjour, papá. — Ele mal se inclinou para ela poder beijá-lo e o seu vulto corpulento parecia mais rígido do que um rochedo. O rosto enrugado mostrava-se cansado, e os olhos azuis fitaram-na com frieza, quando Raphaella o olhou assustada. — Sucedeu alguma coisa?
— Falaremos disso em casa.
Oh, era com certeza John Henry, e o pai não lhe queria dizer ali. Subitamente esqueceu Alex. Todos os seus pensamentos voaram para o homem idoso que deixara em São Francisco, censurando-se, como sempre, por abandoná-lo.
— Papá... por favor... — Estavam ainda no aeroporto, parados em frente um do outro... — É ... é... — A voz dela era apenas um murmúrio. — O John Henry? — O pai apenas abanou a cabeça. Embora não a visse há um ano parecia nada ter para lhe dizer. Permaneceu como um muro de granito enquanto se sentavam no Citroên preto. Fez sinal ao motorista e este os conduziu em direção a casa.
Raphaella sentiu-se paralisada pelo terror durante toda a viagem de carro para Paris. Quando finalmente pararam em frente da casa do pai, Raphaella sentia as mãos trêmulas. O motorista, de farda preta, que condizia perfeitamente com o humor sombrio de Raphaella e do pai, abriu-lhes a porta com ar solene. Raphaella experimentou uma sensação estranha ao entrar no imponente vestíbulo daquela casa familiar. A grande sala estava mobiliada com mesas Luís XV com tampos de mármore, sobre as quais se viam espelhos com molduras douradas. Numa das paredes, via-se uma magnífica tapeçaria de Aubusson e pela porta avistava-se o jardim, mas o conjunto era frio e de certo modo tornava ainda pior a expressão severa do pai.
O banqueiro fez sinal a Raphaella para segui-lo ao seu escritório, começando a subir um lance de escadas com altos degraus de mármore. Era como se ela voltasse a ser criança outra vez e se apercebesse de que fizera algo de errado, embora desconhecesse o quê.
Raphaella seguiu o pai, levando a carteira e o chapéu nas mãos, decidida a esperar pela audiência privada com o pai, para descobrir o que tanto o perturbava. Talvez fosse algo que tivesse a ver com John Henry? Enquanto subia as escadas atrás do pai, Raphaella não conseguia imaginar de que se tratava, a não ser que tivesse sucedido qualquer coisa enquanto ela se encontrava em Nova Iorque. Talvez John Henry tivesse tido outro ataque. Mas não lhe parecia ser uma má notícia a que o pai lhe queria dar. Tinha a terrível sensação de que o pai estava zangado por causa de qualquer coisa que ela tivesse feito. Recordava aquela expressão no rosto do pai quando lhe ralhava, em criança.
O pai entrou solenemente no escritório, e Raphaella seguiu-o. Era uma sala de tetos muito altos, paredes com painéis de madeira e estantes repletas de livros por toda a parte. A secretária seria suficientemente grande para um presidente ou um rei. Com efeito, a mobília Luís XV, cheia de dourados, por si só já era impressionante.
Antoine de Mornay-Malle sentou-se à secretária e olhou a filha com ar austero, enquanto lhe indicava uma cadeira.
— Alors... — Não houvera uma só palavra de afeição entre eles. Nem um olhar amigo, nem sequer um abraço. Raphaella sabia que apesar de o pai não ser de modo algum um homem meigo ou dado a excessivas demonstrações de carinho, estava se mostrando, mesmo pelos padrões dele, excessivamente severo.
— Que se passa, papá? — Raphaella ficara muito branca desde que vira o pai no aeroporto e agora parecia ainda mais pálida enquanto esperava pela resposta dele.
— Que se passa? — repetiu com uma expressão enfurecida, fitando-a. — Estamos brincando?
— Mas, papá, eu não faço idéia...
— Nesse caso — quase gritou para a filha -, és totalmente desprovida de consciência. Ou talvez sejas demasiado ingênua se pensas que podes fazer tudo quanto te apetece em qualquer canto do mundo, e esperas que isso não seja conhecido. — Deixou que as suas palavras provocassem o efeito que esperava, e Raphaella sentiu-se quase desmaiando. — Compreendes-me? — Baixou a voz e fitou insistentemente a filha que abanava a cabeça. — Não? Então talvez eu deva ser mais honesto contigo do que tu és comigo ou com o teu pobre marido doente, deitado numa cama. — A voz do banqueiro estava cheia de desdém e de rancor e subitamente, como uma criança apanhada em falso, Raphaella sentiu-se terrivelmente envergonhada. O rosto pálido tornou-se intensamente rubro e Antoine de Mornay-Malle exclamou: — Vejo que já me compreendeste!
— Não, não o compreendi — respondeu Raphaella numa voz bem clara.
— Então és uma mentirosa, assim como uma enganadora! — As palavras soaram como sinos na sala austera. — Recebi — disse com lentidão, como se estivesse a dirigir-se ao parlamento e não à sua única filha -, recebi, há várias semanas, uma carta. De uma congressista americana, Madame Kay Willard! — Olhou atentamente para Raphaella e esta sentiu o coração parar.
Raphaella ficou à espera, incapaz de falar, mal podendo respirar.
— Devo dizer-te que foi uma carta muito dolorosa para mim — prosseguiu ele. — Dolorosa por diversas razões, mas principalmente porque fiquei sabendo coisas sobre ti, minha filha, que esperava nunca ouvir. Devo continuar?
Raphaella queria dizer-lhe que não continuasse, mas não foi capaz. O pai continuou, como ela sabia que sucederia:
— Ela explicou-me que tu não só andavas enganando o teu marido, um homem que tem sido sempre bom para ti desde que casaste com ele, quando eras pouco mais do que uma criança. Um homem que te ama e que precisa de ti a cada momento, precisa de todos os teus pensamentos, de todo o teu carinho para se conservar vivo. Se lhe deres menos do que isso, matá-lo-ás. Estou certo de que sabes bem isso. Assim, não só estás destruindo esse homem que te ama e que é o meu mais querido e antigo amigo, como estás também destruindo vidas de outras pessoas, de um homem que aparentemente tinha uma mulher que o amava e de quem tu o afastaste, impedindo-o de ter filhos e de levar uma vida decente. Madame Willard informou-me também que tem uma filha de dezesseis anos que sofreu o ano passado um grave acidente e que tem estado vivendo com o tio para se recompor. Receia que a tua presença escandalosa corrompa a filha e receia também que o escândalo que tu causas prejudique a vida política dela, visto estar no Congresso. Afirmou-me, na sua carta, que se tu e o irmão dela não deixarem de se ver terá de desistir da sua vida política, pois não poderá enfrentar as conseqüências de um escândalo que irá afetá-la a ela, ao marido, à mãe e à filha. Devo acrescentar que se esse desgraçado assunto se tornasse público afetaria também a minha imagem e a do Banco Malle, não levando já em consideração as repercussões que o teu comportamento teria na Espanha. Nem sei o que diriam de ti na imprensa.
Raphaella sentia-se como se tivesse sido crucificada. Não podia suportar as acusações do pai e a diabólica maldade de Kay. Que podia responder ao pai? Por onde havia de começar? A verdade era que Kay era uma mulher má, uma política sem escrúpulos que não hesitava perante coisa alguma para atingir os seus fins. Ela não tencionava demitir-se do seu lugar, mas sim concorrer novamente, agora para o Senado. E Amanda não fora «corrompida» por ela e por Alex. Pelo contrário, era profundamente amada por eles. Alex já não estava casado com Rachel quando ela o conhecera, e ela, Raphaella, continuava a dar a John Henry tudo o que ele precisava, mas a verdade é que amava Alex também. Raphaella queria dizer tudo isto ao pai, mas o seu rosto frio e hostil inibia-a de falar, paralisava-a. Limitou-se a olhar o pai com os olhos cheios de lágrimas, que depois lhe rolaram lentamente pelas faces.
— Devo dizer-te — continuou o pai, passado um momento — que não sou pessoa para acreditar naquilo que uma desconhecida me diz. Por isso contratei um detetive particular que durante os últimos dez dias te seguiu e confirmou o que essa mulher me disse. Chegas em casa... — A voz dele subiu de tom, com fúria. — Chegas em casa todos os dias às cinco da manhã. E mesmo não te importando com as pessoas que te rodeiam, Raphaella, sempre pensei que a tua reputação representasse algo mais para ti. Os teus criados hão de considerar-te uma mulher perdida, uma prostituta! — O pai levantara-se da cadeira e andava de um lado para o outro na sala. Raphaella ainda não pronunciara uma única palavra. — Como podes fazer tal coisa? Como pudeste descer tão baixo? — Voltou-se para ela com os olhos a brilharem de cólera.
Raphaella escondeu o rosto nas mãos. Momentos depois limpou as faces, assoou-se com o lenço de renda que tirou da mala e ergueu a cabeça para o pai.
— Papá, essa mulher odeia-me... O que ela disse...
— É verdade. Os relatórios do homem que eu contratei confirmam-no.
— Não! Raphaella levantou-se também e falou com veemência. Não. A única coisa verdadeira é que eu amo o irmão dessa mulher. Mas ele não é casado. Já era divorciado quando o conheci...
O pai interrompeu-a imediatamente.
— Mas tu és católica, ou já te esqueceste disso? E és uma mulher casada. Ou esqueceste-te também? Não quero saber se ele é um padre ou um zulu, o fato é que tu és casada com John Henry e não és livre para andares com quem queres. Nunca mais serei capaz de olhar para ele. Não posso olhar para o meu velho amigo, porque a minha filha é uma prostituta!
— Não sou uma prostituta! — gritou Raphaella soluçando. — E eu ainda amo o John Henry... Casei com ele porque o amava... mas...
— Não quero ouvir os teus disparates, Raphaella. Só quero que me digas uma coisa: que não voltarás a ver esse homem! — Olhou-a friamente e dirigiu-se para ela. — E, até me fazeres essa solene promessa, não és bem-vinda a minha casa. Com efeito... — Olhou para o relógio. — Tens um avião para Madrid dentro de duas horas. Quero que vás para lá e dentro de uns dias irei ter contigo. Quero que escrevas a esse homem e que lhe digas que está tudo acabado. E para ter a certeza de que cumpres a tua promessa, mandar-te-ei vigiar durante uns tempos.
— Por quê? Mas por quê?
— Porque se tu não tens honra, Raphaella, eu tenho. Estás a faltar às promessas que fizeste ao John Henry quando casaste com ele. Estás a desonrar-te a ti e a mim. E não quero ter uma prostituta como filha. E se não fizeres o que eu digo não terei outra alternativa que não seja a de dizer tudo ao John Henry.
— Por amor de Deus, papá... Por favor... — Raphaella soluçava quase histericamente. — A vida é minha... Vai matá-lo... Papá, por favor...
— Estás a desonrar o meu nome, Raphaella. — Olhou sem se aproximar e depois foi de novo sentar-se na cadeira.
Raphaella olhou-o, compreendendo bem o horror do que sucedera e pela primeira vez na sua vida sentiu ódio por uma pessoa. Se Kay ali estivesse, achava que seria capaz de matá-la com as próprias mãos. Voltou-se para o pai com um olhar de desespero.
— Mas, papá... Para que faz tudo isto? Eu sou uma mulher adulta... Não tem o direito...
— Tenho todos os direitos. É óbvio que estás a demasiado tempo na América. E provavelmente há demasiado tempo que andas com a rédea solta... desde que o teu marido está doente. Madame Willard disse-me na carta que falou contigo para que tu deixasses o irmão, mas tu não quiseste, e que se não fosses tu ele já teria voltado para a mulher, que assentaria e poderia ter filhos como era seu desejo. — Olhou-a com ar de profunda censura. — Como podes fazer isso a uma pessoa que dizes amar?
As palavras e a expressão do pai provocaram em Raphaella o efeito de punhaladas.
— Mas a minha preocupação não é com esse homem — continuou ele -, é com o teu marido. É para com ele que tu tens obrigações. E falo muito a sério, Raphaella, quando afirmo que lhe direi.
— Isso matá-lo-á... — murmurou Raphaella com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
— Sim — disse secamente o pai. — Matá-lo-á e serás tu a causadora da morte dele. Quero que penses nisso quando estiveres em Santa Eugenia. E quero que saibas a razão que me levou a marcar-te a viagem para Madrid hoje. Não quero ter uma prostituta debaixo do meu teto. — O rosto do pai parecia de granito. — Nem mesmo por uma noite!
Dirigiu-se então para a porta do escritório, abriu-a e fez sinal a Raphaella para sair. Olhou-a por um longo momento com o mesmo ar de ódio, e Raphaella sentiu-se tremer dos pés à cabeça. Estava exausta e devastada pela cena que acabara de ter lugar.
O pai limitou-se a dizer-lhe mais duas palavras:
— Boa tarde!
Logo a seguir fechou a porta e Raphaella ficou de pé, imóvel, sentindo-se desmaiar. Deu uns passos e sentou-se numa cadeira e permaneceu ali um bocado, horrorizada, ferida e zangada. Como podia o pai fazer-lhe uma coisa daquelas? Passou-se algum tempo sem que ela reagisse, tão atordoada se sentia. Depois olhou para o relógio. Visto o pai lhe ter mudado a viagem, precisava sair de casa daí a pouco, para ir de novo para o aeroporto.
Dirigiu-se lentamente para as escadas, com um último olhar para a porta do escritório do pai. Não desejava dizer-lhe adeus. Ele já lhe dissera tudo quanto tinha a dizer e sabia que iria aparecer em Santa Eugenia. Mas não queria dar importância ao que ele dissera. Não estava disposta a ceder perante as ameaças do pai. Ele não tinha o direito de interferir na sua vida com Alex. Dirigiu-se para o vestíbulo, pôs o chapéu e pegou na carteira. Reparou então que as malas dela não tinham sido tiradas do carro e que o motorista se encontrava junto da porta. Na verdade fora expulsa da casa do pai, mas estava tão zangada que não se importava. O pai tratara-a sempre como um objeto, uma peça de mobiliário, uma espécie de bem móvel, e ela não iria permitir que isso continuasse.
Ao mesmo tempo que Raphaella era conduzida ao aeroporto nos arredores de Paris, Alex, em São Francisco, recebia um telefonema invulgar. Era quase certamente relacionado com Raphaella, mas não sabia mais do que isso. E sentia uma estranha e terrível ansiedade à medida que se aproximava a hora marcada. Passavam apenas cinco minutos das nove horas, nessa manhã, quando um dos secretários lhe telefonara, pedindo-lhe que fosse à casa de Mr. Phillips, pois ele desejava falar-lhe sobre um assunto pessoal de grande importância. Não lhe fora dada mais nenhuma explicação e ele não se atrevera a pedi-la.
Imediatamente depois de desligar, Alex telefonara para a irmã, mas a congressista Willard não se encontrava disponível nessa manhã e ele não sabia onde poderia encontrá-la. Teria de esperar até falar com John Henry, daí a duas horas. Receava acima de tudo que alguém lhe tivesse contado algo a respeito dele e de Raphaella e que ele lhe dissesse para não voltar a vê-la. Talvez até tivesse falado com Raphaella e ela não lho tivesse dito. Provavelmente teria combinado com a família dela retê-la em Espanha. Apercebia-se da gravidade da situação que, devido à avançada idade de John Henry, se tornava ainda mais grave. Não pudera recusar-se a ir ver o velho senhor, embora tivesse vontade de fazê-lo, pensava Alex ao estacionar o carro em frente da porta.
Alex atravessou lentamente a rua em direção à grande porta de madeira de carvalho que tantas vezes via de longe. Tocou à campainha e esperou. Momentos depois a porta foi aberta por um mordomo de ar grave. Alex teve a sensação de que todos os membros do pessoal daquela casa conheciam o seu crime e que ia ser julgado por isso. Era como se fosse um rapazinho receoso de que lhe ralhassem por ter roubado maçãs... Mas não, aquilo era muito pior. Se não se dominasse, sentir-se-ia completamente aterrorizado; sabia, porém, que se tratava de uma instância onde não podia escolher. Devia a John Henry Phillips apresentar-se diante dele, fosse o que fosse que ele tivesse para lhe dizer.
O mordomo conduziu-o para o vestíbulo principal, e em seguida uma criada acompanhou-o ao andar onde ficavam os aposentos do dono da casa. Junto da porta, um homem idoso parecia esperá-lo. Agradeceu-lhe ter comparecido à entrevista marcada a tão curto prazo. Identificou-se como secretário de Mr. Phillips e Alex reconheceu a voz que falara ao telefone.
— Foi muito amável da sua parte. Mister Phillips não costuma pedir que venham falar com ele. Não o faz há anos. Mas creio tratar-se de um assunto pessoal e ele acha que talvez o senhor possa ajudá-lo. — Alex sentiu-se novamente preocupado.
— Com certeza — murmurou Alex, enquanto esperavam que a enfermeira abrisse a porta para entrarem.
— Mister Phillips está muito doente? — perguntou Alex, embora soubesse que era uma pergunta estúpida, pois ele tinha conhecimento do que se passava, por intermédio de Raphaella, mas sentia-se nervoso, por se encontrar ali, na casa «dela», na casa para onde ela voltava todas as noites depois de ter estado com ele, de ter feito amor com ele.
— Mister Hale...
A enfermeira abriu a porta e fez-lhe sinal para entrar. Por momentos, Alex sentiu-se fraquejar, mas dirigiu-se para a porta como um condenado à morte que caminhasse para o local da execução; contudo, conservou o seu aprumo. Não a envergonharia, mostrando ser um covarde, não indo ali, ou não se apresentando condignamente. Fora para casa mudar de roupa e vestira um terno escuro, com uma fina risca mais clara, que comprara em Londres, camisa branca e uma gravata Dior, mas isso não foi o suficiente para animá-lo ao entrar no quarto imponente, onde um vulto mirrado o esperava, deitado na enorme cama.
— Mister Phillips?
A voz de Alex era pouco mais do que um sussurro. Atrás dele o secretário e a enfermeira tinham desaparecido instantaneamente. Os dois homens que amavam Raphaella encontravam-se agora sós. Um, velho, doente e alquebrado. O outro, novo, forte e alto. Alex olhou para o homem com o qual Raphaella casara quinze anos antes.
— Faça o favor de entrar.
As palavras não eram muito inteligíveis e Alex percebeu que o homem que as pronunciara tinha dificuldade em falar; porém, Alex compreendeu-as bem, de tal modo se encontrava preparado para o que se seguisse. Fora ali decidido a enfrentar toda a cólera, todos os insultos que aquele homem pudesse atirar-lhe à cara, mas sentiu-se menos valente quando viu como o homem que tinha na sua frente se encontrava diminuído. John Henry apontou para uma cadeira colocada junto da cama e fez-lhe sinal para se sentar. Não viu sinais de debilidade nos olhos azuis que o seguiam, observando-o minuciosamente, como se lhe quisesse tirar as medidas, polegada a polegada, cabelo por cabelo. Alex sentou-se cautelosamente na cadeira, desejando que aquilo fosse um pesadelo e ele pudesse acordar na sua cama. Era um desses instantes na vida de uma pessoa que se quer apagar para sempre.
— Quero... — As palavras saíam-lhe com dificuldade, mas mesmo assim havia nele um ar de autoridade. Não se tratava de arrogância, mas sim de uma força calma, apesar da sua condição de doente irrecuperável; sentia-se que tinha sido um grande homem. Alex compreendia agora o que ele devia ter sido para Raphaella e por que motivo ela ainda gostava dele. Não se tratava apenas de lealdade, mas sim de algo muito especial e, por um instante, envergonhou-se do que tinham feito. — Quero... — John Henry continuava a lutar com o lado da sua boca que não se mexia. — ... Quero agradecer-lhe ter vindo. — Foi então que Alex compreendeu que os olhos que o fitavam eram não só penetrantes como também bondosos. Alex disse que sim com a cabeça, assombrado com aquele homem.
— O seu secretário disse que era importante.
Ambos sabiam que era verdade. Apesar da sua boca aleijada, John Henry tentou sorrir.
— É verdade, Mister Hale... É verdade. — Depois de uma breve pausa, continuou: — Espero... não o ter... assustado ao pedir-lhe... que viesse aqui. É muito importante... — acrescentou mais claramente — para os três... Não preciso lhe explicar.
— Eu... — Deveria negar?, pensou Alex. Mas não houvera qualquer acusação. Apenas a verdade. — Eu... compreendo.
— Bem... — John Henry disse que sim com a cabeça, parecendo satisfeito. — Amo muito a minha mulher, Mister Hale.... — Os olhos estavam estranhamente brilhantes. — Tem-me custado... muito... terrivelmente... mantê-la fechada aqui... enquanto eu sou também... prisioneiro deste corpo inútil... acabado... estando ela acorrentada a mim... — Parecia verdadeiramente pesaroso ao fitar mais uma vez Alex. — Não é vida para... para uma mulher jovem... como ela. Contudo... ela é muito boa para mim.
Alex não conseguiu calar-se e foi com voz rouca que murmurou:
— Ela o ama muito.
Sentia-se ali um intruso. Eles eram os apaixonados e ele o intrometido. Raphaella era a mulher daquele homem... não a sua. Ela vivia naquela casa e o lugar dela era ali. Mas seria realmente assim? John Henry era um homem muito velho, aproximando-se da morte a pequenos passos, bem medidos. Como ele próprio parecia reconhecer, era uma existência cruel para Raphaella.
— Foi uma coisa terrível fazer isto... a ela.
— Não queria que ela vivesse assim?
No rosto de John Henry passou a sombra de um sorriso.
— Não... não queria... mas sucedeu... E eu continuo a viver... e atormento-a.
— Isso não é verdade. — Falavam como dois velhos amigos, cada um a realçar a importância do outro; era um momento estranho na vida dos dois homens. — Ela não lamenta nunca o tempo que passa consigo. — Alex teve vontade de acrescentar a palavra «senhor», pois parecia-lhe adequada.
— Mas devia... lamentar. — Fechou os olhos por instantes. — Eu lamento... por ela... e por mim. Mas não lhe pedi para vir aqui para lhe falar... das minhas tristezas... Chamei-o para lhe fazer perguntas... sobre si próprio.
O coração de Alex batia com força quando decidiu tomar a ofensiva.
— Posso perguntar como soube... de mim? — Teria sabido desde o início? Mandá-la-ia seguir pelos criados, por rotina?
— Recebi... uma carta.
Alex sentiu uma estranha chama arder dentro dele.
— Posso perguntar de quem?
— Não... sei.
— Anônima?
John Henry disse lentamente que sim, com a cabeça.
— A carta dizia apenas que o senhor... e... — Parecia não querer dizer o nome dela na presença de Alex. Era suficiente estarem os dois falando a verdade. — Que andavam envolvidos... há... há quase um ano. — Começou a tossir em voz baixa, e Alex ficou preocupado, mas John Henry fez um gesto para indicar que estava tudo bem e momentos depois continuou: — Indicava o seu nome, endereço e número do telefone, explicando que o senhor era... advogado... e dizendo claramente que eu faria bem... em acabar... com isso. — Olhou para Alex com curiosidade. — A carta será... da sua... mulher? — Pareceu perturbado, e Alex abanou negativamente a cabeça.
— Não sou casado. Divorciei-me há muitos anos.
— Ela ainda... tem ciúmes?
— Não. Creio que a carta que recebeu foi escrita pela minha irmã. Ela está na política, no Congresso. Lamento dizê-lo mas é uma pessoa egoísta e má. Pensa que se alguém souber... se alguém tiver conhecimento do nosso... envolvimento, ela poderá ser prejudicada politicamente, devido ao escândalo.
— Provavelmente ela tem... razão — disse John Henry. — Mas... alguém sabe? — Achava que seria difícil. Sabia que Raphaella era discreta.
— Não — respondeu decididamente Alex. — Ninguém. Apenas a minha sobrinha, e ela adora Raphaella e é muito capaz de guardar um segredo.
— É uma criança pequena? — John Henry pareceu sorrir.
— Tem dezessete anos e é filha dessa mesma irmã. Nos últimos meses, essa minha sobrinha tem estado a viver comigo. Foi ferida no Dia de Ação de Graças e, apesar da mãe não ter sido nada boa para com ela, a sua... a Raphaella foi maravilhosa... — Os olhos de Alex brilharam afetuosamente ao dizer aquelas palavras e John Henry sorriu de novo.
— Ela seria sempre maravilhosa... num caso desses. Ela é uma... mulher invulgar... — Era algo com que ambos concordavam, mas logo a seguir o rosto de John Henry tomou uma expressão mais triste. — Ela devia... ter.. tido filhos. — Depois acrescentou: — Talvez... ainda... os venha a ter.
Alex ficou calado.
— Pensa então que foi... a sua irmã? — continuou John Henry.
— Sim. Havia alguma ameaça na carta?
— Não — John Henry mostrou-se chocado. — Ela apelava apenas para... para a minha... capacidade de pôr fim... a... isso. — Repentinamente pareceu achar graça e apontou para as pernas inúteis debaixo das mantas. — Estranha confiança essa... confiar num homem tão velho. — No entanto, ele não parecia assim tão velho de espírito. — Diga-me como... posso perguntar como... como começou?
— Encontramo-nos num avião, o ano passado. Não, não é verdade. — Alex fechou os olhos por um momento, recordando a primeira vez que a vira nas escadas. — Vi-a uma noite... sentada nos degraus, olhando para a baía. — Não quis dizer a John Henry que ela estava a chorar, embora não soubesse bem por quê. — Achei-a espantosamente bonita, mas mais nada. Não esperava voltar a vê-la.
— Mas viu-a? — John Henry mostrou-se intrigado.
— Sim, no avião, como já lhe disse. — Vi-a de relance no aeroporto e depois desapareceu.
John Henry sorriu com benevolência.
— O senhor deve ser... um romântico.
Alex sorriu timidamente e corou.
— Sou.
— Ela também. — Falava como um pai, mas não acrescentou que ele próprio também o era. — E depois?
— Conversamos. Falei na minha mãe. Ela estava lendo um dos livros dela.
— A sua mãe... escreve?
— Charlotte Brandon.
— Muito interessante... Li alguns dos seus primeiros livros... Gostaria de conhecê-la. — Alex queria poder dizer-lhe que seria fácil conhecê-la, mas calou-se. Ambos sabiam que isso não sucederia. — E a sua irmã é... membro do Congresso... Uma família notável. — Sorriu com a mesma benevolência e ficou à espera de ouvir o resto.
— Convidei-a para almoçar com a minha mãe em Nova Iorque e... — Fraquejou por uma fração de segundo. — Nessa altura, não sabia de quem se tratava. A minha mãe disse-me, depois do almoço.
— Ela sabia?
— Reconheceu-a.
— Estou surpreendido... Poucas pessoas a conhecem... Conservei-a bem escondida da... imprensa. — Alex disse que sim com a cabeça. — Ela não lhe... tinha dito?
— Não. Quando voltei a vê-la ela disse-me só que era casada e que não podia envolver-se comigo. — John Henry pareceu satisfeito ao ouvir aquelas palavras. — Mostrou-se decidida e eu... a pressionei.
— Por quê? — A voz de John Henry soou com aspereza no quarto silencioso.
— Desculpe. Não consegui evitá-lo... Como disse, sou um romântico... e apaixonei-me por ela.
— Tão depressa? — Parecia cético, mas Alex manteve o que disse.
— Sim. — Respirou fundo. Era-lhe difícil contar aquelas coisas ao marido de Raphaella. E por que motivo quereria ele saber tudo? Porém, continuou: — Vi-a outra vez e percebi que ela também se sentia atraída por mim. — Não ia contar que tinham ido para a cama logo em Nova Iorque. Também tinham direito à privacidade. Raphaella não era só de John Henry. Era também de Alex. — Voltamos para São Francisco no mesmo avião e tornei a vê-la outra vez aqui. Foi dizer-me que não podia voltar a ver-me. Não lhe queria ser infiel.
John Henry pareceu surpreendido.
— Ela é... realmente... uma mulher.. notável. — Era óbvio que Alex concordava. — E depois? Pressionou-a outra vez? — Não era uma acusação, mas apenas uma pergunta.
— Não. Não a pressionei mais. Ela telefonou-me dois meses depois. Tínhamo-nos sentido ambos igualmente infelizes.
— Foi então que começou? — Alex disse que sim com a cabeça. — E há quanto tempo dura?
— Quase oito meses.
John Henry disse que sim com a cabeça, devagar.
— Desejei muitas vezes... que ela encontrasse alguém. Sentia-se tão só... e eu nada podia fazer. Passado uns tempos, deixei... de pensar nisso... Ela parecia ter conseguido um equilíbrio na vida dela... — John Henry olhou novamente para Alex, sem que no seu olhar houvesse qualquer acusação. — Existe alguma razão para eu... dever acabar com... isso? Ela é infeliz? — Alex abanou lentamente a cabeça. — E o senhor?
— Não. — Alex suspirou. — Amo-a profundamente. Só lamento que isto tenha chegado ao seu conhecimento. Nós não queríamos magoá-lo. A Raphaella temia acima de tudo magoá-lo.
— Eu sei... — disse suavemente John Henry. — Eu sei... e não me magoaram... Não me tiraram coisa alguma. Ela é minha mulher... como sempre foi... É tanto minha mulher quanto pode ser... agora. É boa para mim como sempre foi... meiga... atenciosa. E se o senhor lhe pode dar algo mais... alegria, amor... como hei de ressentir-me disso? Não está certo... que um homem da minha idade... prenda uma mulher bonita e nova... como ela. Não! — A voz dele ecoou com força pelo quarto. — Não... não a deterei! — Depois, novamente com voz suave. — Ela tem direito a ser feliz... consigo... tal como outrora o foi comigo. A vida é uma série de estações em movimento... de fases em movimento... de sonhos... Nós temos de mudar com eles. Ficarmos encerrados no passado seria condená-la ao mesmo destino que o meu. Seria imoral permitir que ela fizesse isso... Isso é que seria um escândalo... — Sorriu gentilmente para Alex. -... E não aquilo que ela partilha consigo. — Depois, quase num sussurro: — Fico-lhe grato... se a tornou... feliz, e creio que sim. — Houve uma longa pausa e por fim John Henry perguntou: — E agora... que planejam fazer? — Parecia preocupado outra vez, como se quisesse traçar o futuro de uma filha muito querida.
Alex não sabia que dizer.
— Raramente falamos disso.
— Mas... pensam?
— Eu penso. — Alex foi honesto. John Henry tratara-o com demasiada bondade e merecia essa honestidade.
— Será capaz de... — Os seus olhos encheram-se de lágrimas. — Será capaz... de tomar conta dela... por mim?
— Se ela me permitir.
John Henry abanou a cabeça.
— Se eles... o permitirem... Se me suceder alguma coisa... eles... a família dela... vêm buscá-la e levam-na... — Suspirou. — Ela precisa de si... se for bom para ela... Ela vai precisar muito de si... tal como dantes... precisou de mim.
Os olhos de Alex estavam úmidos.
— Prometo-lhe que tomarei conta dela. E nunca, nunca a afastarei de si. Nem agora, nem mais tarde, nem daqui a cinqüenta, dez ou dois anos. Quero que saiba isso. — Estendeu a mão para a mão frágil de John Henry. — Ela é sua mulher e eu respeito isso. Sempre o fiz e sempre o farei.
— E um dia fará dela... sua mulher? — Os olhos dos dois encontraram-se e permaneceram assim durante uns minutos.
— Se ela quiser.
— Faça com... que queira. — Apertou com força a mão de Alex e fechou os olhos, como se estivesse exausto. Passados momentos, abriu-os e disse com um leve sorriso:
— O senhor é um bom homem, Alexander.
— Obrigado, senhor. — Finalmente dissera-o. E sentia-se melhor. Era como se fossem pai e filho.
— Foi corajoso em vir aqui.
— Tinha de vir.
— E a sua irmã? — Olhou Alex interrogativamente, mas ele apenas encolheu os ombros.
— Ela não pode prejudicar-nos. — Olhou para John Henry. — Que mais poderá fazer? Já lhe contou. Não pode tornar o assunto público, porque nessa altura os votantes ficariam sabendo. — Sorriu. — Não tem qualquer poder.
No entanto, John Henry mostrou-se preocupado.
— Pode magoar a Raphaella... — Falou tão baixinho que era quase um sussurro. Finalmente dissera o nome dela.
— Eu não permitirei que o faça! — Alex falou com tal veemência que John Henry pareceu ficar completamente descansado.
— Bom. — Passado um momento acrescentou: — Ela ficará em segurança consigo.
— Sempre.
John Henry olhou para Alex durante longos momentos e estendeu-lhe a mão. Alex apertou-a com ternura.
— Tem a minha bênção, Alexander... — murmurou o velho senhor. — Diga-lhe isso... quando chegar a hora.
Alex tinha lágrimas nos olhos ao beijar a frágil mão que segurava entre as suas, e alguns momentos depois saía, deixando o velho senhor a descansar.
Alex abandonou a majestosa mansão com um sentimento de paz que há muito não experimentava. Sem querer, a irmã oferecera-lhe uma dádiva preciosa. Em vez de fazer com que a sua ligação com Raphaella terminasse, dera-lhe a chave do futuro. De um modo estranho, como num ritual antigo, John Henry encarregara-o de cuidar de Raphaella, como se lhe passasse um testemunho. Não se tratava de lhe passar um fardo, nem de lhe transmitir uma posse, mas sim de depositar em suas mãos um tesouro precioso que cada um deles jurara amar e proteger.
— Raphaella, querida! — A mãe abraçou-a alegremente quando ela desembarcou do avião, em Madrid. — Mas que loucura foi esta? Por que não passaste a noite em Paris? Quando o teu pai me disse que tinhas embarcado para aqui pouco depois de teres chegado a Paris, disse-lhe que achava isso um disparate.
Alejandra de Mornay-Malle olhou para os círculos escuros por baixo dos olhos de Raphaella e ralhou-lhe gentilmente. A maneira como ela falou disse a Raphaella que a mãe nada sabia sobre a carta de Madame Willard, nem sobre a sua ligação com Alex, nem sequer sobre o que se passara com o pai.
Raphaella sorriu, cansada, desejando poder sentir-se feliz por estar em casa, por estar junto da mãe, longe da cólera do pai. Mas sentia apenas um imenso cansaço e ouvia constantemente, na cabeça, o eco da voz do pai: «Não quero uma prostituta debaixo do meu teto, nem sequer por uma noite.»
— Pareces exausta, querida. Tens a certeza de que não estás doente?
A beleza loura que fizera com que Alejandra de Santos y Quadral fosse famosa quando moça, apenas esmorecera um pouco na meia-idade. Era ainda uma mulher notavelmente bonita, mas a sua beleza era prejudicada pelo fato de ser uma pessoa insípida. Os belos olhos verdes não brilhavam com uma luz interior. Como estátua teria sido linda e ficaria bela numa grande variedade de retratos. Mas não possuía a beleza espiritual de Raphaella, nem o contraste entre os cabelos muito pretos e a pele cor de marfim. Não havia na mãe de Raphaella nada da profundidade da filha, nem da sua inteligência e espírito. Alejandra era apenas uma mulher muito elegante, com um bonito rosto, excelente educação, boas maneiras, bom coração e modos agradáveis.
— Estou bem, mãe. Apenas muito cansada. Mas não quis perder tempo em Paris, porque não posso demorar-me aqui muito tempo.
— Não podes? — A mãe pareceu ficar desanimada com a perspectiva de uma visita curta. Mas por quê? O John Henry está outra vez doente, querida?
Raphaella abanou a cabeça.
— Não. Mas não gosto de deixá-lo durante muito tempo.
Alejandra reparou que havia na filha uma expressão angustiada e tensa. No caminho para Santa Eugenia, no dia seguinte, continuou na mesma.
Na noite anterior, retirara-se cedo, dizendo que precisava de uma boa noite de descanso para ficar bem. Mas a mãe apercebera-se de uma certa reserva, de uma tensão interior que a preocupava, e quando chegaram a Santa Eugenia telefonou ao marido.
— Que se passa, Antoine? A Raphaella está muito triste por qualquer motivo. Não compreendo, mas vejo que há algo de muito estranho. Tens a certeza de que não é por causa do John Henry? — Depois do marido estar doente há oito anos parecia-lhe impossível que Raphaella se mostrasse agora tão abatida. Antoine contou-lhe então o que se passava e Alejandra murmurou: — Pobrezinha.
— Não, Alejandra, não. Não há que ter pena dela. Ela está a proceder de uma forma abominável e em breve o seu procedimento se tornará conhecido. Como é que te sentirás quando souberes do escândalo pelos jornais? Ou quando vires uma fotografia dela a dançar com um desconhecido numa festa qualquer? — Antoine falava como um homem muito velho e muito rígido; no fim da conversa, Alejandra encolheu os ombros e sorriu.
— Não acredito que a Raphaella proceda assim. Achas que ela o ama realmente?
— Duvido. Mas isso não é o que mais importa. Fiz-lhe ver muito claramente as coisas. Ela não tem alternativa.
Alejandra encolheu novamente os ombros. Provavelmente Antoine tinha razão. Quase sempre tinha. Assim como os irmãos dela. A maior parte das vezes.
Mais tarde, nessa noite, falou do assunto a Raphaella, que fora dar um passeio pelos jardins de complicada arquitetura. Nele havia palmeiras e altos ciprestes escuros, canteiros com flores e fontes, sebes na forma de aves, mas Raphaella não via nada disso enquanto caminhava, pensando em Alex. Só conseguia lembrar-se do que o pai lhe dissera por causa da carta de Kay; porém, dizia para consigo que não cederia perante as ameaças do pai, por mais peremptórias que elas fossem. Ela era, afinal, uma mulher adulta. Vivia em São Francisco, era casada e independente. Mas pensou também como era verdade o fato de a família dela a controlar demasiado, de ter demasiado poder sobre ela.
— Raphaella? — Sobressaltou-se quando ouviu o seu nome e viu a mãe com um comprido vestido de noite, branco, e um infindável colar de pérolas. — Assustei-te? Desculpa. — Sorriu e deu o braço à filha, com um gesto afetuoso. Tinha jeito para consolar e aconselhar outras mulheres. Passara a vida a fazê-lo, ali em Espanha. — Em que estavas a pensar?
— Em nada de especial... em certas coisas, em São Francisco... — Sorriu para a mãe, mas os seus olhos permaneceram tristes.
— No teu amigo? — Raphaella parou de repente e a mãe passou-lhe o braço por cima dos ombros. — Não te zangues. Falei com o teu pai hoje. Estava preocupada... Via-te tão perturbada. — Mas na voz da mãe não havia censura, apenas pena. — Lamento que tal coisa tenha sucedido — concluiu enquanto percorriam uma alameda perfumada.
Raphaella nada disse durante muito tempo; depois, anuiu com a cabeça, em silêncio.
— Também eu. — Não lamentava o que se passava por si mesma, mas sim por causa de Alex. Sempre se preocupara com ele, desde o início. — Ele é um homem maravilhoso. Merece muito mais do que aquilo que eu posso dar-lhe.
— Devias pensar nisso, Raphaella. Pesa bem o assunto na tua consciência. O teu pai receia a desonra, mas eu não creio que isso seja o mais importante. Podes estar estragando a vida de outra pessoa. Estás destruindo a desse homem? — Sorriu meigamente e apertou mais uma vez o ombro de Raphaella. — Toda a gente comete erros ao longo da vida, mas é importante que esses erros não magoem os outros. Faz mais sentido uma relação com alguém que se conheça bem, talvez um primo, um homem casado. Mas brincar com as vidas de pessoas livres, que possam ter esperanças de coisas que não lhes podes dar, é uma crueldade. Mais do que isso, Raphaella, é irresponsabilidade. Se é isso que estás a fazer, é errado amares esse homem.
A mãe juntara outro fardo ao enorme peso que ela sentia sobre si desde que ali chegara. Depois de se ter recomposto da cólera que lhe tinham causado as palavras do pai, reconhecera que pelo menos algumas das acusações eram verdadeiras. O fato de ela poder estar tirando qualquer coisa de John Henry, quer no tempo que lhe dedicava, quer nos seus pensamentos e sentimentos, a preocupava, assim como a idéia de que podia estar afastando Alex de uma relação amorosa mais compensadora.
Agora a mãe dizia-lhe para ter uma aventura com um primo ou com outro homem casado como ela, mas não com Alex. Faziam-na sentir que era cruel ao amar Alex. E subitamente Raphaella sentiu-se de tal modo acabrunhada pelas emoções que não suportou continuar a ouvir a mãe nem mais um segundo. Abanou a cabeça, apertou o braço da mãe e correu para casa. A mãe seguiu-a mais lentamente, com lágrimas nos olhos, pois vira a angústia estampada no rosto de Raphaella.
Os dias que Raphaella passou em Santa Eugenia nesse verão foram os mais infelizes que já passara ali. Cada dia pesava sobre ela como chumbo. Nesse ano nem sequer as crianças a encantaram. Estavam demasiado barulhentas e desobedientes, constantemente pregando partidas aos mais velhos e aborrecendo Raphaella de todas as maneiras possíveis. O único ponto positivo foi gostarem das histórias dela, mas nem mesmo isso lhe pareceu de grande importância nessa altura. Passados os primeiros dias, guardou o manuscrito na mala e recusou-se a lhes contar mais histórias durante o resto da sua estada. Escreveu duas ou três cartas a Alex, mas subitamente pareceram-lhe todas artificiais. Era-lhe impossível escrever-lhe sem lhe contar o que se passara, e ela não queria fazê-lo sem ter pensado bem no assunto e amadurecido uma tomada de posição. De cada vez que tentava escrever-lhe, sentia-se mais culpada, mais oprimida pelas palavras do pai e da mãe.
Foi quase um alívio quando o pai apareceu para passar ali um fim-de-semana; depois de um almoço formal que reuniu toda a família que ali se encontrava, trinta e quatro pessoas ao todo, o pai disse a Raphaella que fosse ter com ele em um pequeno solário contíguo à sala, porque precisava falar com ela. Quando Raphaella entrou no solário, o pai mostrou-lhe o mesmo ar severo e distante que já mostrara em Paris. Raphaella sentou-se numa cadeira de riscas verdes e brancas com a timidez de uma criança.
— Bem, já recuperaste o bom senso? — O pai foi direito ao assunto, e Raphaella sentiu-se tremer ao ouvir as suas primeiras palavras. Era ridículo isso suceder-lhe com a idade que tinha, mas ela passara anos demais a obedecer às ordens dele e não era capaz de se libertar do domínio que o pai exercia sobre ela, por ser pai dela e por ser homem. — Já?
— Não sei bem o que quer dizer, pai. Continuo a não concordar com a sua posição. O que eu fiz não magoou o John Henry, embora o pai desaprove.
— Não? Então como está a saúde dele, Raphaella? Segundo sei não se encontra muito bem.
— Não está muito mal, dadas as circunstâncias. — Levantou-se, deu uns passos pelo solário e finalmente parou em frente do pai. — Ele tem setenta e sete anos, papá, e está inválido há quase oito anos. Tem sofrido vários ataques e tem muito pouco desejo de continuar a viver assim. Acha que sou eu a culpada disso?
— Se ele tem tão pouco desejo de viver, como podes tu correr o risco de lhe tirar a pouca vontade que lhe resta? Como podes correr o risco de que alguém lhe vá contar o que tu fazes e que isso seja a última gota de água. Deves ser uma mulher muito corajosa, Raphaella. Se fosse eu, não correria esse risco, porque não saberia se conseguiria viver com a minha consciência se sucedesse alguma coisa, se o matasse... O que, dadas as circunstâncias, poderá muito bem suceder. Ou ainda não te ocorreu essa idéia?
— Sim... muitas vezes... — murmurou Raphaella com um suspiro. — Mas... papá... amo esse homem.
— Mas não o bastante para fazeres o que é melhor para ele. Isso me entristece. Julguei-te melhor do que és.
Raphaella olhou-o tristemente.
— Tenho de ser perfeita, papá? Acha que devo ser sempre forte? Fui forte durante oito anos... oito... — Não pôde prosseguir, estava a chorar outra vez. Depois olhou tremula para o pai e acrescentou: — Agora é tudo quanto tenho.
— Não! — O pai falou com firmeza. — Tens o John Henry. Agora não tens o direito a mais do que isso. Um dia, depois de ele desaparecer, podes pensar noutras possibilidades, que não estão neste momento ao teu alcance. E espero, para bem do John Henry, que isso não suceda durante muito tempo — concluiu com severidade.
Raphaella baixou a cabeça, depois olhou o pai e dirigiu-se para a porta.
— Obrigada, papá. — Disse essas palavras num murmúrio e saiu da pequena sala.
O pai partiu para Paris no dia seguinte. Estava convencido, assim como a mãe de Raphaella, que as palavras que dissera à filha tinham tido efeito. Raphaella deixara de lutar e, finalmente, após mais cinco dias em Santa Eugenia e cinco noites sem dormir, levantou-se da cama às cinco da manhã, dirigiu-se para a secretária que se encontrava no seu quarto e pegou numa folha de papel e numa caneta. Não se tratava de não poder lutar contra os pais, o que ela não conseguia era lutar contra a voz interior que eles tinham despertado em si. Como podia ela ter a certeza de que aquilo que andava fazendo não magoava John Henry? E o que eles diziam de Alex também era verdade. Ele tinha direito a mais do que ela lhe podia dar e provavelmente não teria liberdade de lhe oferecer mais durante muitos anos ainda.
Sentou-se à secretária, em frente do papel em branco, pensando no que havia de dizer. Não o fazia por causa do pai ou da mãe, ou de Kay Willard, mas sim por John Henry e Alex, por causa do que devia aos dois, dizia a si mesma. Levou duas horas a escrever a carta e, quando a acabou e finalmente a assinou, quase não podia ver.
As lágrimas corriam-lhe dos olhos tão copiosamente que via tudo enevoado. Dissera a Alex que não podiam continuar a ver-se, que pensara muito no assunto durante as férias em Espanha e que não havia razão para continuarem uma relação que não tinha futuro. Compreendera, dissera também, que ele não era a pessoa apropriada para ela, nem para a vida que ela teria um dia que fosse livre. Disse-lhe que se sentia feliz na Espanha no meio da família, que era ali o seu lugar e que como ela era católica e ele divorciado nunca poderiam vir a casar-se. Arranjou todas as desculpas, mentiras e insultos de que pôde lembrar-se, pois não queria que ele continuasse a ter esperanças, queria que ele se sentisse completamente liberto para poder procurar outra mulher e não esperar por ela. Queria dar-lhe liberdade total e, se para isso tinha de ser injusta e desagradável, estava disposta a sê-lo. Era um último presente que lhe dava. Contudo, a segunda carta que escreveu foi ainda mais difícil.
Foi uma carta para Mandy, que enviou para o endereço de Charlotte Brandon em Nova Iorque. Explicava-lhe que as coisas entre si e Alex tinham mudado, que não se veriam quando ela voltasse para São Francisco, mas que sempre seria amiga dela e que não esqueceria os tempos que tinham passado juntas.
Na altura em que Raphaella acabou de escrever as duas cartas eram oito horas da manhã e sentia-se como se tivesse sido torturada toda a noite. Vestiu um roupão turco e dirigiu-se ao vestíbulo, onde colocou as cartas numa salva de prata. Em seguida, encaminhou-se para o jardim e daí para um sítio remoto da praia, um local quase escondido, onde ela costumava refugiar-se em criança. Despiu o roupão e a camisa de noite, descalçou as sandálias e meteu-se na água. Começou então a nadar com força, afastando-se para o largo, como se isso representasse uma vingança. Acabara de renunciar àquilo que era toda a sua vida e agora não se importava de viver ou morrer.
Salvara a vida de John Henry por mais um dia, um ano ou dez, dera liberdade a Alex, para lhe permitir casar e ter filhos e ficara apenas com o vazio que consumira a sua vida durante os últimos oito anos.
Nadou até ao mais longe que pôde e depois voltou para trás, até cada polegada do seu corpo lhe doer. Saiu lentamente da água, enfiou o roupão e estendeu-se na areia, com as suas longas pernas brilhando ao sol da manhã, enquanto os seus ombros eram sacudidos pelos soluços. Ficou ali estendida durante quase uma hora, e quando voltou para casa viu que os criados já tinham tirado as duas cartas da bandeja de prata para as levarem para o correio. Já nada mais podia fazer.
Quando partiu da Espanha e voltou para São Francisco, os dias pareciam não ter fim. Ficava sentada junto de John Henry durante horas, todos os dias, lendo em voz alta, conversando com ele, e às vezes apenas pensando. Ia para o jardim com ele, lia-lhe trechos dos jornais, tentava encontrar livros que outrora lhe tinham agradado, ou lia algum livro de que ela própria gostasse, enquanto ele dormitava, o que sucedia cada vez mais frequentemente. Mas cada hora, cada minuto levava uma eternidade para passar, como se estivesse agrilhoado com pesadas correntes. Todas as manhãs acordava com a sensação de que não conseguiria suportar mais um único dia. E ao anoitecer sentia-se exausta pelo esforço que fizera apenas por estar sentada, mal se mexendo, com a sua própria voz a ecoar-lhe nos ouvidos, ou com o ressonar de John Henry, que por vezes dormia enquanto ela lia.
Sentia-se condenada a uma vida de lenta tortura. Era diferente do que fora antes de conhecer Alex. Nessa altura, não conhecia outra coisa, não tivera a alegria de estar com Alex, de preparar o quarto para Mandy, de sair com ela, de cozinhar para eles, de tratar do jardim. Não experimentara a sensação deliciosa de ver Alex chegar em casa, de rir com Amanda, ou de ver o sol nascer sobre a baía, ao lado de Alex. Agora tinha apenas a perspectiva de dias sempre iguais, dias vazios, intermináveis, sentada no jardim olhando para as nuvens brancas no céu azul, ou sentada no seu quarto, à noite, ouvindo as buzinas do nevoeiro lançarem os seus avisos, na baía.
Às vezes recordava-se dos verões passados outrora em Santa Eugenia, ou até de férias passadas no estrangeiro, com John Henry, há mais de dez anos. Porém, agora não nadava, não ria, não passeava numa praia com o vento lhe agitando os cabelos. Não tinha nada nem ninguém, a não ser John Henry, e ele também estava diferente de ano para ano. Mais cansado, mais introvertido, mais desinteressado do mundo que o rodeava para além dos limites da sua cama. Não se interessava pela política, nem pelos grandes negócios de petróleo com os Árabes, nem por qualquer catástrofe potencial que outrora o teria preocupado. Não lhe importava sequer a sua empresa, nem os seus sócios. Na verdade, nada lhe interessava, mas tornara-se rabugento se a mmenor coisa relacionada com a sua pessoa corresse mal. Era como se sentisse ressentimento contra tudo e contra todos, detestando-os pelos tormentos que passara naqueles oito anos. Estava cansado de morrer aos poucos.
— Já que tenho de morrer mais cedo ou mais tarde, o melhor seria morrer já — disse certa manhã a Raphaella.
Agora falava constantemente em desejar morrer, parecia detestar as enfermeiras e não queria que o empurrassem de um lado para o outro, na cadeira. Não queria nada que o incomodasse, conforme ele próprio dizia, e apenas com Raphaella é que se mostrava complacente, pois não queria que ela sofresse por causa do que ele sentia.
Mas tornava-se óbvio para toda a gente que ele se sentia imensamente infeliz. Raphaella recordava constantemente as palavras do pai. Talvez afinal ele tivesse razão.
John Henry precisava de fato de toda a sua atenção. Agora tinha toda, mas cada vez parecia precisar de mais. Ou talvez ela tivesse essa impressão por não ter mais nada que fazer. John Henry, contudo, parecia absorver cada momento e ela sentia-se obrigada a estar junto dele, a ficar sentada vendo-o dormir. Era como se tivesse desistido de viver para além dos limites daquela casa, como se quisesse dar a vida por aquele homem que já quase não vivia. John Henry parecia, ao mesmo tempo, ter perdido completamente todo o desejo de viver. Raphaella sentia isso. Ele estava cansado da vida. Que poderia ela fazer para que ele quisesse viver? Dar-lhe a sua juventude, a sua vitalidade, o seu desejo de viver? Mas a vida dela também não era feliz. Desde que desistira de Alex, Raphaella não via qualquer razão que justificasse a sua existência, a não ser a de incitar John Henry a continuar vivo. Havia dias em que ela julgava não poder agüentar mais.
Raphaella raramente saía e, quando o fazia, o motorista conduzia-a a qualquer lugar onde ela pudesse dar um longo passeio. Não fora ao centro da cidade desde que voltara da Espanha e receava passear pelos arredores da casa, mesmo ao anoitecer, pois se lembrava de que podia encontrar Alex. Este recebera a carta dela na véspera de ela partir de Santa Eugenia, e ela ficara por momentos paralisada de terror quando o mordomo fora avisá-la que havia uma chamada da América. Queria que fosse Alex, mas ao mesmo tempo receava isso. Não se atreveu a não aceitar a chamada, com receio de que fosse algo a respeito de John Henry.
Dirigira-se então ao telefone com as mãos tremendo e o coração batendo desordenadamente. Quando ouvira a voz de Alex, fechara os olhos, para tentar lutar contra as lágrimas. No entanto, conseguira falar calmamente e dissera-lhe que avaliara bem a situação deles e que não tinha mais nada a dizer-lhe além do que já lhe dissera na carta que ele recebera. Alex acusara-a de estar doida, dissera-lhe que a família dela é que a devia ter pressionado para fazer aquilo e perguntara-lhe se fora por alguma coisa que Kay lhe dissera em Nova Iorque. Raphaella garantira-lhe que não, que não havia sido nenhuma dessas coisas, que fora ela que tomara essa decisão.
Depois de desligar o telefone, chorara durante várias horas. Desistir de Alex era a decisão mais dolorosa de toda a sua vida, mas não podia correr o risco de que o seu comportamento abreviasse a morte de John Henry, nem podia continuar a privar Alex de ter a vida que merecia com outra pessoa. O pai dela e Kay tinham vencido.
E agora apenas restava a Raphaella viver com esse desgosto o resto dos seus dias. No fim do verão, Raphaella olhava para o futuro como uma série de salas frias e vazias.
Em setembro, quando John Henry passou a dormir também durante as manhãs, Raphaella foi buscar o manuscrito do seu livro, a fim de se manter ocupada. Escolheu a história de que mais gostava e dispôs-se a datilografá-la. Quando acabou o seu trabalho, enviou-o para um editor de Nova Iorque. A idéia fora de Charlotte Brandon. E achava, de um modo vago, que talvez fosse disparate fazer aquilo, mas nada tinha a perder e decidiu-se a enviar o livro.
Logo que esse trabalho acabou, Raphaella viu-se uma vez mais sem ter em que ocupar o seu tempo e voltou novamente a ser assombrada pelos acontecimentos do verão anterior.
Acima de tudo, sentia ressentimento contra o pai por aquilo que ele lhe dissera e duvidava que alguma vez lhe pudesse perdoar. Ele só se mostrara mais brando quando ela lhe dissera, ao telefone, que fizera o que ele queria. Porém declarara logo a seguir que não era coisa que merecesse elogios, pois ela não fizera mais do que o seu dever e que ficara desgostoso por ter de usar a força para ela proceder do modo como devia ter procedido sempre. Fizera notar que ela o desiludira terrivelmente.
Porém, mesmo as palavras da mãe, embora mais gentis, lhe tinham causado uma sensação de fracasso.
Era esse sentimento que ela trazia sempre dentro de si nesse outono, e que a fizera recusar a proposta da mãe para ir passar uns dias em Nova Iorque com ela, quando se encontrasse de passagem para a Argentina, acompanhada do grupo habitual.
Raphaella achava que já não tinha obrigação de se deslocar para Nova Iorque para estar com a mãe. O seu lugar era junto de John Henry e não o devia deixar até ele morrer.
Quem sabia se os meses que ela passara a dividir as suas atenções entre John Henry e Alex não tinham de certo modo apressado a morte do marido? Claro que não valia a pena fazer-lhe notar que essa aproximação da morte era verdadeiramente desejada por John Henry. Raphaella raramente o deixava, a não ser para algum passeio ocasional.
A mãe ficara vagamente perturbada pela recusa de Raphaella em se encontrar com ela em Nova Iorque e pensou por instantes se ela ainda estaria zangada com o pai por causa do que se passara entre eles em julho. Mas a carta de recusa de Raphaella não deixava transparecer coisa alguma. Dava-lhe apenas a impressão de que a filha estava mais introvertida do que nunca. Disse para consigo que lhe telefonaria de Nova Iorque para ver se estava tudo bem; porém, com as compras, as idas ao teatro, as conversas com as irmãs e as primas, acabara por partir para Buenos Aires sem telefonar a Raphaella.
De qualquer modo, isso não teria feito qualquer diferença a Raphaella. Não tinha qualquer desejo de falar com o pai nem com a mãe e decidiu mesmo que não voltaria à Europa, nem sequer após a morte de John Henry. Este parecia viver num estado de quase completa prostração, quase sempre a dormitar, sem querer comer, sempre a protestar com tudo quando estava acordado. Cada dia que passava parecia fazer desaparecer o pouco que restava das suas capacidades. O médico disse a Raphaella que era uma situação normal para uma pessoa daquela idade, vítima de uma série de tromboses. Só era de surpreender que a sua vivacidade de espírito não tivesse sido afetada há muito mais tempo. Parecia ironia o fato de ele ter piorado agora que Raphaella lhe dedicava todo o seu tempo. Porém, o médico também lhe dissera que após alguns meses de letargia era possível que ele viesse a ter melhoras. Era óbvio que Raphaella estava fazendo o impossível por tratá-lo, por animá-lo. Começara até a preparar-lhe pequenos manjares que outrora o deliciavam para ver se despertavam o seu apetite. Era uma vida que provocaria pesadelos em muita gente, mas que Raphaella parecia aceitar calmamente. Depois de desistir da única coisa que lhe importava na vida, das duas pessoas que amava, Alexander e Amanda, achava que não tinha qualquer importância a maneira como passava o tempo.
Novembro passou com a lentidão dos meses anteriores e já chegara dezembro quando Raphaella recebeu a carta do editor de Nova Iorque. Mostrava-se surpreendido por ela não ter um agente e encantado com o livro que ela lhe enviara. Oferecia-se para lhe pagar dois mil dólares adiantados pelo livro que iria ser ilustrado e publicado no outono seguinte. Por momentos, Raphaella ficou olhando para a carta com assombro e pela primeira vez em muito tempo o seu rosto iluminou-se por um largo sorriso. Quase como uma criança, subiu rapidamente as escadas para ir mostrar a carta a John Henry. Quando lá chegou, encontrou-o dormindo sentado na cadeira de rodas, com a boca aberta e o queixo pendente sobre o peito. Ficou algum tempo parada, olhando-o e de súbito sentiu-se terrivelmente só. Desejava tanto contar-lhe.
E não tinha mais ninguém a quem contar. Mais uma vez sentiu o desejo familiar de falar com Alex, mas afastou imediatamente esse pensamento, dizendo a si própria que com certeza ele já encontrara outra pessoa para substituí-la, que Mandy estaria feliz e que Alex já poderia até estar casado ou para casar. Daí a mais um ano, poderia até ter filhos. E pensou que afinal talvez tivesse feito o que era melhor para todos.
Dobrou a carta e voltou para o seu quarto. Pensando melhor, John Henry não sabia coisa alguma acerca das histórias que ela escrevera e podia ficar perturbado com a notícia de um livro. O melhor seria nada dizer. A mãe também não ficaria interessada e ela não tinha qualquer desejo de falar com o pai, nem de lhe escrever. Na verdade não tinha ninguém a quem dizer. Decidiu responder à carta, agradeceu o dinheiro adiantado, que aceitou, e só mais tarde tentou explicar a si mesma porque o fizera. Aquela satisfação pessoal parecia-lhe tolice. Estava tão habituada a negar a si própria qualquer prazer que depois de ter dado a carta ao motorista para colocá-la no correio chegou a arrepender-se de tê-lo feito.
Nessa tarde, enquanto John Henry dormia, Raphaella meteu-se no carro e disse ao motorista que a conduzisse até à praia. Queria apenas andar um pouco ao ar livre, ver os cães e as crianças, sentir o vento no rosto, longe do ar parado da casa. Teve de lembrar a si própria que estavam quase no Natal. Contudo, nesse ano isso não lhe importava. John Henry estava demasiado desinteressado de tudo para querer saber se celebravam ou não o Natal. Daí a pouco, achou-se recordando os momentos maravilhosos que passara com Alex e com Amanda, e mais uma vez se forçou a afastar esses pensamentos. Raramente permitia a si própria pensar nisso.
Eram quase quatro horas da tarde quando o motorista parou o carro junto dos automóveis novos e velhos que ali se encontravam. Sorrindo do aspecto incongruente que sabia ter, Raphaella calçou uns sapatos velhos, que costumava calçar para dar longos passeios em Santa Eugenia, e saiu do carro. Vestia um casaco curto, de pêlo de cordeiro, por cima de uma camisa de lã vermelha, de gola alta, e calças cinzentas. Já não se vestia tão elegantemente como dantes. Para passar os dias sentada junto de John Henry, que não reparava no que ela vestia, não valia a pena vestir-se com grande esmero, nem sequer à hora do jantar, que era sempre comido em tabuleiros, no quarto dele, enquanto olhavam desinteressadamente para a televisão. Tom, o motorista, viu Raphaella desaparecer nas escadas que iam dar ao extenso areal, e depois a viu outra vez passando junto da rebentação.
Dentro de alguns minutos, deixou de distingui-la entre as pessoas que ali passeavam e voltou para o carro, ligou o rádio e acendeu um cigarro. Nessa altura, Raphaella estava quase numa das extremidades da praia, observando três labradores que se perseguiam dentro e fora da água, perto de um grupo de jovens sentados sobre mantas, que bebiam vinho e tocavam guitarras.
O som do que eles cantavam seguiu-a enquanto ela avançava ao longo da praia, até que por fim se sentou num tronco e respirou profundamente o ar salgado. Era bom estar ali, sair de casa embora por pouco tempo, ver outros viverem, embora ela própria pouco pudesse viver. Deixou-se ficar sentada vendo casais passarem de braço dado, se beijando, rindo e conversando. Todos pareciam ir para qualquer lugar, e Raphaella pensou para onde iriam todos quando o sol se pusesse.
Foi então que reparou num homem que vinha correndo do lado oposto da praia. Corria em linha reta, quase como uma máquina, sem parar, até que por fim, continuando a se mover com a suavidade de um bailarino, abrandou o andamento e continuou a passo ao longo da praia. A fluidez dos seus movimentos a intrigara à distância, e quando ele se aproximou seguiu-o com o olhar durante muito tempo. A sua atenção foi momentaneamente distraída por um grupo de crianças e, quando voltou a olhar para ele, viu que vestia um casaco vermelho e era muito alto, mas as feições eram indistintas até ele se aproximar mais. Subitamente soltou uma exclamação abafada. Ficou sentada, imóvel, incapaz de se mexer ou de se voltar para ele não lhe ver o rosto. Limitou-se a ficar parada olhando enquanto Alex se aproximava, parando logo que a viu. Durante uns longos momentos, ficou parado, mas depois avançou devagar, deliberadamente, para o lugar onde Raphaella se encontrava. Ela quis fugir, desaparecer, correr, mas vira-o correr pela praia e sabia que não conseguiria fugir-lhe. Alex aproximou-se, passo a passo, e parou junto dela.
Durante um grande bocado nenhum deles falou e então, mesmo contra a sua vontade, Alex sorriu.
— Olá, como estás?
Era difícil acreditar que não se viam há cinco meses. Ao olhar para aquele rosto que tantas vezes via na sua memória, Raphaella teve a sensação de que tinham estado juntos na véspera.
— Estou ótima. E tu?
Alex suspirou.
— Estás ótima, Raphaella? — perguntou. — De verdade? — Raphaella disse que sim com a cabeça, pensando que Alex não dissera que estava bem. Não seria feliz? Não teria encontrado ninguém para substituí-la? Não fora para isso que ela o libertara? Certamente que o sacrifício dela dera frutos. — Continuo a não compreender por que fizeste aquilo. — Alex olhava-a diretamente, não mostrando que ia se afastar. Esperara cinco meses por aquele momento. Não teria ido embora naquela hora, nem que o arrastassem.
— Eu te disse. Somos demasiado diferentes.
— Somos? Dois mundos diferentes, não? — Parecia agora mais amargo. — Quem te disse isso? O teu pai? Ou outra pessoa? Talvez um dos teus primos espanhóis?
Raphaella queria responder, «Não, foi a tua irmã que nos fez isto. E o meu pai com a sua maldita vigilância e a ameaça de contar ao John Henry... e de isso o poder matar... Foi isso e a minha consciência... Quero que tenhas os filhos que eu nunca terei»...
— Não, ninguém me disse. Percebi que era o que devia fazer.
— Sim? Não achas que devias ter discutido o assunto comigo? Na minha terra, as pessoas falam das coisas antes de tomarem decisões que afetam as vidas dos outros.
Raphaella forçou-se a olhá-lo calmamente.
— Começava a afetar a vida do meu marido, Alex.
— Ah, sim? É estranho só teres reparado nisso quando estavas a seis mil milhas de distância dele, na Espanha.
Raphaella olhou-o com ar suplicante, e toda a angústia dos últimos seis meses transpareceu no seu olhar. Alex reparara já que ela estava muito mais magra, que tinha grandes olheiras e as mãos com um aspecto mais frágil.
— Por que estás me fazendo isto agora, Alex?
— Porque em julho não me deste oportunidade de fazê-lo. — Telefonara-lhe quatro ou cinco vezes e ela recusara-se a atender ao telefone. — Não sabias o que a tua carta iria fazer-me? Pensaste alguma vez nisso?
Subitamente, ao ver a expressão dele, Raphaella compreendeu. Primeiro fora Rachel que o deixara, sem lhe dar possibilidade de vencer o seu adversário invisível, um lugar que lhe renderia cem mil dólares por ano em Nova Iorque. Depois Raphaella fizera quase o mesmo, argumentando com a vida de John Henry e com as «diferenças» entre eles, para abandoná-lo. De repente viu o caso sob uma luz diferente e sentiu dor pelo que viu nos olhos dele. Baixou as pálpebras sob o olhar penetrante de Alex e tocou na areia com a sua fina mão magra.
— Desculpa... Oh, meu Deus... Desculpa-me...
Olhou-o de novo, com os olhos rasos de lágrimas. E a dor que ele viu nesses olhos fê-lo ajoelhar na areia, junto dela.
— Fazes idéia de como eu te amo?
Raphaella voltou a cabeça e ergueu a mão como se o quisesse impedir de falar.
— Alex... não... — murmurou. Mas ele segurou-lhe na mão e com a outra a obrigou a olhar novamente para ele.
— Ouves? Amo-te. Amava-te então, amo-te agora e continuarei a amar-te sempre. Talvez eu não te compreenda, talvez existam diferenças entre nós, mas posso aprender a entender melhor essas diferenças, Raphaella, se me deres oportunidade para isso.
— Mas por quê? Por que teres apenas meia vida comigo, se podes ter uma vida melhor, mais completa, com outra mulher?
— Então, foi por isso? — Chegara a pensar que fosse, algumas vezes, mas nunca pudera perceber qual o motivo que a levara tão rapidamente a quebrar os laços que os uniam. Tinha de ser mais do que apenas isso.
— Em parte — respondeu Raphaella com sinceridade. — Queria que tivesses mais do que aquilo que eu podia dar-te.
— Mas eu apenas queria a ti. — Depois, falou mais meigamente. — E só quero a ti agora.
Raphaella abanou lentamente a cabeça, em resposta.
— Não pode ser. — E depois, após uma longa pausa: — Não está certo.
— Por quê? — perguntou com irritação. — Por que hás de deixar o que temos por causa de um homem que está quase morto, um homem que, como tu própria disseste, sempre quis a tua felicidade e provavelmente te ama ainda o suficiente para te dar a liberdade, se pudesse?
Alex sabia que, em certo sentido, fora isso mesmo que John Henry fizera. Mas não podia contar a Raphaella o seu encontro com John Henry. O rosto dela mostrava bem a terrível tensão em que ela vivia. Não podia aumentar o sofrimento dela revelando-lhe que John Henry tinha conhecimento do que houvera entre eles.
Raphaella, porém, não queria ouvi-lo.
— Não foram esses os votos que eu fiz quando me casei. Para o melhor e para o pior... na doença e na saúde... até que a morte nos separe. Não se falou em solidão, em doença... Não posso permitir que isso não me deixe cumprir as minhas obrigações.
— Para o diabo com as tuas obrigações! — exclamou Alex.
Raphaella mostrou-se chocada e abanou a cabeça.
— Não. Se eu não honrar os meus votos para com ele... ele morrerá. Sei isso. O meu pai me disse neste verão e tem razão. O John Henry está preso à vida por um fio, bem vês...
— Mas isso nada tem a ver contigo, não percebes? Também permites que o teu pai dirija a tua vida? Vais passar a vida a ser perseguida pelos teus «deveres» e as tuas «obrigações» e pelo teu sentido de «noblesse oblíge»? E tu, Raphaella? E o que tu queres? Alguma vez te permites pensar nisso? — A verdade era que ela não permitia a si mesma pensar nesse aspecto, pelo menos nos últimos tempos.
— Não compreendes, Alex. — Raphaella falou em voz tão baixa que ele mal conseguiu perceber as palavras no meio do ruído do vento.
Alex sentou-se junto dela no tronco, e os seus corpos ficaram tão perto que ela estremeceu.
— Queres o meu casaco?
Ela abanou a cabeça.
— Compreendo — continuou ele. — Creio que cometeste uma loucura este verão, que fizeste um sacrifício gigantesco para te penitenciares pelo que consideraste um pecado gigantesco.
Raphaella abanou novamente a cabeça.
— A verdade é que não posso fazer isso ao John Henry.
Alex não podia dizer-lhe, embora tivesse vontade de fazê-lo, que a única constante da vida dela, o seu relacionamento com o marido, fora alterado.
— Fazer o quê ao John Henry? Passar algumas horas fora de casa? Queres amarrar-te aos pés da cama dele?
Ela disse lentamente que sim com a cabeça.
— De momento, sim. — Então, como se achasse que lhe devia uma explicação, proferiu: — O meu pai mandou-me seguir, Alex. Ameaçou contar tudo ao John Henry e isso seria a morte dele. Não tive alternativa.
— Oh, meu Deus! — Olhou-a com assombro. O que Raphaella não disse foi que essa vigilância se ficara a dever a uma carta da irmã dele, Kay. — Por que faria uma coisa dessas?
— Contar ao John Henry? Não sei se o faria, mas não pude correr esse risco. Ele disse que o faria, por isso tive de fazer o que fiz.
— Mas por que te mandaria seguir?
Raphaella encolheu os ombros e olhou-o.
— Não sei. Mas fê-lo.
— E agora estás sentada à espera.
Ela fechou os olhos.
— Não digas isso. Não estou à espera. Assim, parece que estou à espera que ele morra. Não estou. Estou simplesmente cumprindo a promessa que fiz há quinze anos... sendo a mulher dele.
— Não achas que as circunstâncias fizeram alterar um pouco as coisas, Raphaella? — A voz de Alex era suplicante, mas Raphaella abanou mais uma vez a cabeça. — Está bem. Não te pressionarei. — Compreendeu de novo que devia ter sido exercida uma grande pressão sobre ela, em Espanha. Era difícil imaginar como o pai pudera mandá-la seguir e ameaçá-la de contar ao marido que ela tinha uma ligação com outro homem.
Alex pensou no que gostaria de fazer ao pai de Raphaella, mas não o revelou. Depois a fitou nos olhos.
— Vou deixar a questão em aberto. Amo-te. Quero-te. Nos termos que tu quiseres, quando quiseres. Amanhã, ou daqui a dez anos. Basta bateres à minha porta e eu lá estarei. Compreendes, Raphaella? Sabes o que quero dizer?
— Sim, mas eu acho isso uma loucura. Tens a tua vida para viver.
— E tu?
— É diferente, Alex. Eu sou casada. Tu não.
Ficaram em silêncio durante uns momentos, olhando para o mar. Era bom estarem ali juntos, depois de tão longa separação. Raphaella queria prolongar aquele momento, mas a luz do dia começava já a empalidecer e o nevoeiro adensava-se.
— Ele continua mandando seguir-te?
— Não creio. Agora já não há razão para isso. — Sorriu-lhe afetuosamente, sentindo desejo de lhe tocar no rosto. Mas sabia que não podia permitir a si própria fazê-lo. Nunca mais. E aquilo que ele estava dizendo era uma loucura. Alex não podia ficar a vida inteira à espera dela.
— Vamos. — Levantou-se e estendeu a mão para ela. — Acompanho-te até ao carro. — Depois sorriu. — Ou não é boa idéia?
— Não é. — Raphaella sorriu também. — Mas podes ir comigo parte do caminho. — Estava a escurecer rapidamente, e Raphaella tinha um certo receio de ir sozinha até o carro. Olhou-o interrogativamente, com a testa franzida. Os seus olhos pareciam ainda maiores no rosto emagrecido. — Como está a Amanda?
Alex olhou meigamente para Raphaella.
— Sente a tua falta... Quase tanto como eu...
— Como passou o verão?
— Passou exatamente cinco dias com a mãe. A minha querida irmã planejara passar o mês inteiro mostrando-a aos eleitores. A Mandy experimentou uns dias e depois mandou-a passear.
— Veio ter contigo?
— Não. A minha mãe levou-a para a Europa mais cedo. Creio que passaram umas férias agradáveis.
— Ela não te contou?
Alex olhou longamente para Raphaella.
— Não creio que tenha prestado atenção a qualquer coisa que me tenham dito até mais ou menos novembro. — Raphaella disse que sim com a cabeça, mostrando que compreendia, e continuaram a andar. A determinada altura parou.
— É melhor eu ir sozinha a partir daqui.
— Raphaella... — Hesitou, mas decidiu falar. — Podemos encontrar-nos? Só para almoçar... ou para uma bebida...
— Não posso fazer isso.
— Por quê?
— Porque ambos íamos querer mais do que isso e tu o sabes bem. Tem de ser como é agora, Alex.
— Por quê? Sinto-me terrivelmente só sem ti, e tu estás a desperdiçar a tua vida. Tem de ser assim? Foi para isto que o teu pai ameaçou contar ao John Henry, para ter a certeza de que ambos viveríamos assim? Não queres mais do que isto, Raphaella? — Depois, incapaz de se deter, estendeu os braços e atraiu-a para si. — Não te lembras como era?
Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e ela enterrou a cara no ombro de Alex, dizendo que sim, mas sem lhe querer ver o rosto.
— Sim... sim... lembro-me... Mas isso acabou...
— Não, não acabou. Amo-te, Raphaella. Sempre te amarei.
— Não deves fazer isso. — Finalmente, ela olhou-o com uma expressão angustiada. — Deves esquecer tudo isso, Alex. Tens de esquecer.
Alex calou-se, mas logo a seguir perguntou:
— Que fazes no Natal?
Era uma pergunta estranha, e Raphaella olhou-o, perplexa, sem compreender o que ele estava a pensar.
— Nada. Por quê?
— A minha mãe vai levar a Amanda ao Havaí, no Natal. Partem na tarde do dia de Natal. Por que não vais à noite tomar um café comigo? Prometo que não te pressiono, nem te peço promessas. Quero apenas ver-te. Por favor, Raphaella... Isso significaria muito para mim...
Alex calou-se e ficou à espera. Raphaella ficou imóvel, calada; daí a pouco, lenta, dolorosamente, forçou-se a abanar a cabeça.
— Não. — A voz dela era pouco mais de um sussurro. — Não.
— Não te deixo fazer isso. Estarei lá. Sozinho. Sozinho em casa na noite de Natal. Pensa nisso. Estarei à espera.
— Não, Alex... por favor.
— Não importa. Se não apareceres não faz mal.
— Mas eu não quero que estejas à espera. Eu não irei.
Alex não disse nada, mas nos olhos dele brilhou uma esperança.
— Lá estarei. — Sorriu. — Agora adeus. — Beijou-lhe os cabelos e deu-lhe uma palmadinha no ombro com a sua grande mão. — Tem cuidado contigo, querida.
Raphaella olhou-o um momento. Depois, lentamente, começou a afastar-se.
Voltou-se uma vez e viu-o parado, com o seu casaco vermelho e o cabelo preto agitado pelo vento.
— Não irei, Alex.
— Não importa. Eu estarei lá, para o caso de ires.
E quando ela ia começar a subir as escadas que a levariam até ao carro, Alex gritou:
— Até ao Natal.
Enquanto a via subir as escadas, Alex pensava na dedicação dela para com John Henry, para com ele, para com todas as suas obrigações. Deixaria que ela tomasse as suas próprias decisões. Mas não podia deixar de amá-la.
A pequena árvore que tinham colocado sobre a mesa de jogo cintilava alegremente enquanto Raphaella e John Henry comiam o peru nos tabuleiros habituais. Ele parecia mais calmo do que nos últimos dias e Raphaella pensou se seria o dia de festa que o deprimiria, se estaria recordando os tempos da sua juventude, das viagens que fizera com ela, das férias na neve para esquiar, ou dos tempos em que o filho dele era criança e havia uma árvore de Natal gigantesca no vestíbulo.
— John Henry... querido... Sentes-te bem? — Inclinou-se afetuosamente para ele, mas o marido não respondeu, limitando-se a dizer que sim com a cabeça. John Henry pensava em Alex e na conversa que tinha tido com ele. Algo corria mal, mas sentira-se tão deprimido nos últimos meses que mal reparara no estado de Raphaella. Ela conseguia iludi-lo, decidida como estava a animá-lo, escondendo a sua própria dor. Recostou-se para trás na almofada com um suspiro.
— Estou tão farto de tudo isto, Raphaella.
— De quê? Do Natal? — Raphaella pareceu surpreendida. O único sinal de Natal que ali havia era a pequena árvore em cima da mesa, mas talvez as luzes lhe fizessem mal aos olhos.
— Não. De viver... de comer... de ver o noticiário na televisão... de falar... de dormir... — Fitou-a e nos olhos dele não havia qualquer sinal, mesmo remoto, de felicidade.
— Estás farto de mim? — Raphaella sorriu-lhe meigamente e fez menção de lhe dar um beijo na face, mas ele virou a cara.
— Não... faças isso... — A voz dele era fraca e abafada pelas almofadas.
— Que se passa, John Henry? — Raphaella parecia surpreendida e magoada, e ele voltou novamente a cara para ela.
— Como podes dizer isso? Como podes... continuar a viver assim? Como consegues suportar... esta vida? Às vezes penso... nesse antigo costume... na índia... quando as mulheres eram queimadas nas piras funerárias dos maridos. Eu não sou... melhor do que eles, Raphaella.
— Não digas isso. Não sejas tolo... Eu amo-te...
— Então, és doida. — Parecia zangado, não dizia aquilo por graça. — E se tu és, eu não sou. Por que não vais para qualquer lado? Passar umas férias... fazer qualquer coisa que te agrade... Não fiques aí sentada a desperdiçares a tua vida... A minha está acabada, Raphaella... — A sua voz baixou de tom até mal se ouvir. — A minha acabou... já acabou há anos.
— Isso não é verdade. — As lágrimas saltaram-lhe dos olhos ao ver a expressão do rosto dele.
— É verdade... E tu tens... de enfrentar isso. Estou morto... há anos. Mas o pior... é que estou a matar-te também. Por que não vais passar uns tempos em Paris? — Sabendo o que se passara entre ela e Alex, não queria fazer perguntas, porque nunca lhe poderia dizer que sabia.
— Por quê? — Pareceu surpreendida. — Para que hei de ir para Paris? — Para casa do pai? Depois do que se passara no verão? Só a idéia a punha doente. Mas John Henry olhou-a com determinação.
— Quero que saias daqui... por uns tempos.
Raphaella abanou a cabeça.
— Não irei — disse com firmeza.
— Vais sim. — Pareciam duas crianças a discutir, mas nenhum deles achava graça, nenhum deles sorria.
— Não, não vou.
— Mas eu quero que vás para algum lugar.
— Muito bem. Então vou dar um passeio. Mas esta é também a minha casa e não podes mandar-me embora. — Tirou-lhe o tabuleiro e colocou-o no chão. — Acho que estás apenas aborrecido comigo, John Henry. — Tentou gracejar com ele, mas os olhos de John Henry não se aperceberam do brilho malicioso dos dela. — Talvez precises é de uma nova enfermeira sexy.
Ele não achou graça. Limitou-se a olhá-la com ar irritado, como ultimamente sucedia.
— Deixa-te de disparates.
— Não estou dizendo disparates. — Raphaella falou com doçura, inclinando-se para ele. — Amo-te e não quero ir-me embora.
— Pois bem, mas eu quero que vás. — Sentou-se em silêncio a olhá-la e depois falou calmamente, destacando bem as palavras no silêncio do quarto: — Quero morrer, Raphaella. — Fechou os olhos enquanto começava a falar. — É só isso que desejo. E por que não hei de... Oh, meu Deus... por que não hei de morrer? — Abriu os olhos e olhou de novo para Raphaella. — Onde diabo está a justiça? Podes dizer-me por que razão continuo ainda vivo? — perguntou como se a acusasse.
— Porque eu preciso de ti — murmurou Raphaella.
Ele virou novamente a cabeça para o outro lado. Depois ficou calado durante longo tempo e quando ela se aproximou silenciosamente da cama viu que John Henry adormecera.
Raphaella sentiu-se triste por ver como ele era infeliz. Parecia que era ela que não fazia o suficiente para ele se sentir bem.
A enfermeira entrou no quarto em bicos dos pés e Raphaella fez-lhe sinal de que o marido estava dormindo. Saíram ambas e falaram em voz baixa. Estavam de acordo em que provavelmente ele já não acordaria nessa noite. O dia fora difícil, e devia estar muito cansado. O Natal já não lhe interessava. Nada lhe interessava.
— Se precisarem de mim estarei no meu quarto — murmurou Raphaella para a enfermeira, afastando-se pensativamente pelo corredor.
«Pobre John Henry, que existência terrível.» Raphaella achava que a injustiça não era ele ainda estar vivo, mas sim ele ter tido as tromboses que o tinham incapacitado. Se não fosse isso, com a idade dele ainda poderia ter uma vida ativa, não tanto como aos cinqüenta ou aos sessenta anos, mas em todo o caso com a possibilidade de viver ocupado e feliz. Assim, a existência dele arrastava-se, sem qualquer perspectiva, e isso lhe dava vontade de morrer.
Raphaella dirigiu-se lentamente para o seu pequeno escritório, pensando em John Henry e depois deixando os seus pensamentos desviarem-se para outros assuntos. A família festejando o Natal em Santa Eugenia, no pai e também inevitavelmente, para o Natal do ano anterior, que partilhara com Alex e com Amanda. Então, pela centésima vez desde essa manhã, recordou o que Alex lhe dissera três semanas antes, na praia. «Estarei lá... esperando ...» Ainda o ouvia repetir isso. Sentou-se à secretária e imaginou se ele realmente estaria lá.
Eram apenas sete e meia da tarde, uma hora respeitável, e ela poderia facilmente sair para ir dar um passeio. Mas onde a levaria isso? Que sucederia se ela fosse? Seria sensato? Faria algum sentido? Raphaella sabia que não, que o lugar dela era ali na grande casa vazia de John Henry. Enquanto os minutos iam passando lentamente, sentiu de súbito que tinha de ir lá, nem que fosse só por instantes, só para vê-lo. Era uma loucura e ela sabia, mas às nove e meia já não podia agüentar mais. Levantou-se da cadeira, incapaz de ficar naquela casa um minuto mais. Tinha de ir.
Enfiou rapidamente um casaco de lã vermelha sobre o vestido preto, simples, que trazia, calçou botas de cabedal preto, pôs a carteira da mesma cor ao ombro e passou um pente pelos cabelos. Sentia o coração palpitar com a perspectiva de ver Alex, censurando-se por ir ter com ele, mas sorrindo ao imaginar o momento em que ele abriria a porta. Deixou um bilhete no quarto explicando que ia dar um passeio e talvez passasse por casa de pessoas amigas, para o caso de alguém ir procurá-la ali, e os seus pés pareciam voar ao percorrer os poucos quarteirões que a separavam da pequena casa que ela não via há quase seis meses.
Quando avistou a casa, ficou parada olhando-a, e soltou um leve suspiro. Sentia-se como se tivesse andado perdida há quase meio ano e tivesse finalmente encontrado o caminho para casa. Incapaz de deixar de sorrir, atravessou a rua e tocou a campainha. Logo a seguir, ouviu passos rápidos nas escadas. Houve uma pausa e a porta abriu-se. Alex manteve-se imóvel, sem poder acreditar no que via, até que subitamente o sorriso de Raphaella se refletiu nos olhos dele.
— Feliz Natal! — disseram ao mesmo tempo, rindo, enquanto ele se afastava com uma pequena vênia para ela passar.
— Bem-vinda a casa, Raphaella. — Esta entrou sem dizer coisa alguma.
A sala encontrava-se agora mobiliada. Ele e Mandy tinham ido a leilões, a vendas feitas em garagens, aos grandes armazéns, a lojas de antiguidades, e o que tinham comprado formava uma agradável combinação do estilo rústico francês e do moderno americano. Havia na sala um bonito tapete felpudo, quadros de impressionistas franceses nas paredes, muitos objetos de prata e alguns de estanho, belos livros antigos e grandes jarras com flores sobre as mesas. Havia também plantas em profusão, nos cantos da sala e sobre o mármore da lareira. O sofá era de um branco-pérola, as pequenas almofadas tinham sido confeccionadas em pele, em tapeçaria e em tecidos variados. Raphaella reparou que também havia algumas bordadas à mão. Alex explicou-lhe que tinham sido feitas por Amanda enquanto andavam decorando a casa. Percebia-se que a ausência de Raphaella a fizera sentir na obrigação de tomar conta dele, visto ele não ter mais ninguém que o fizesse. Recomendava-lhe que comesse isto ou aquilo, que não esquecesse as vitaminas, que dormisse o suficiente, que não trabalhasse de mais, ou ralhava-lhe, por exemplo, por não tirar as ervas daninhas do jardim.
Ele gracejava com ela por causa dos namorados, da maneira como ela cozinhava, dava opiniões sobre a maquilagem ou as roupas que ela usava, e no entanto a fazia sentir-se a moça mais bonita da cidade. A sobrinha de Alex conseguira levar carinho e amor àquela casa, e Raphaella sentiu imediatamente isso ao entrar na sala.
— Alex, isto está encantador.
— Não está? Foi a Mandy quem arranjou quase tudo, depois das aulas.
Alex mostrava-se orgulhoso da sobrinha ausente, e Raphaella sentiu alívio quando ele a conduziu para a sala. Ao entrar, estava um pouco nervosa, receando que ele a levasse para o quarto para se sentarem em frente da lareira, como costumavam fazer. Também lhe custaria estar no pequeno escritório ou mesmo na cozinha, pois as recordações desses sítios eram muito fortes. A sala era perfeita, pois era linda, confortável, quente e nova.
Alex ofereceu-lhe café e brande. Raphaella aceitou o primeiro e recusou o último, sentando-se no bonito sofá, para examinar outra vez os pormenores da decoração da sala. Ele voltou daí a pouco com o café, e Raphaella reparou que as mãos dele tremiam tanto como as dela ao pousar as chávenas.
— Não tinha a certeza de que estarias aqui — disse nervosamente Raphaella. — Mas resolvi arriscar.
— Disse-te que estaria. Falava sério, Raphaella. Já devias saber isso. — Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, enquanto bebia o café bem quente.
— Como foi o Natal?
Alex sorriu e encolheu os ombros.
— Foi bom. A minha mãe esteve aqui e partiu hoje para o Havaí com a Mandy. Há anos que lhe andava prometendo esta viagem e achou que era agora uma boa hora. Além disso, ela acabou um livro e precisa descansar. Como se costuma dizer, não está ficando mais nova.
— A tua mãe? — Raphaella pareceu simultaneamente chocada e divertida. — Ela nunca envelhecerá. — Depois, lembrou-se de qualquer coisa que se esquecera de lhe dizer quando se tinham encontrado na praia. — Eu também vou publicar um livro. — Corou um pouco e riu. — Nada tão importante como um romance, claro.
— Um livro para crianças? — Os olhos de Alex brilharam de satisfação e ela respondeu que sim.
— Disseram-me há poucas semanas.
— Arranjaste um agente?
— Não. Foi sorte de principiante, creio. — Sorriram um para o outro e Alex recostou-se para trás na cadeira.
— Estou contente por estares aqui, Raphaella. Há muito que desejava mostrar-te esta sala.
— E eu desejava contar-te do livro.
Raphaella sorriu afetuosamente. Era como se tivessem os dois reencontrado um amigo. Mas que fariam agora? Não podiam voltar ao relacionamento antigo, Raphaella sabia isso. De permeio, estavam o pai dela, a mãe, Kay e John Henry. Raphaella tinha vontade de contar a Alex o pesadelo que fora para ela o verão anterior.
— Que estavas a pensar agora? — perguntou Alex, na expressão ausente e angustiada de Raphaella.
— No verão passado — respondeu ela com sinceridade. — Foi horrível.
Alex ficou pensativo e depois suspirou.
— Sinto-me feliz por teres voltado aqui, Raphaella. Pelo menos podemos conversar. O mais duro para mim foi não poder falar contigo... nem ver-te... saber que não estarias aqui quando eu regressava para casa. A Mandy disse-me que também era o pior para ela.
As palavras de Alex foram como virar o punhal na ferida que havia no coração de Raphaella e ela desviou o rosto para ele não ver o desgosto dela.
— Que fazes agora, Raphaella? — prosseguiu ele. A voz era meiga, e Raphaella olhou pensativamente para as chamas.
— Estou quase sempre junto do John Henry. Ele tem piorado nos últimos meses.
— Deve ser terrível para os dois.
— Sobretudo para ele.
— E tu?
Alex olhou-a insistentemente e ela não respondeu. Então, sem dizer nada, ele inclinou-se e beijou-a nos lábios. Ela não o deteve, não pensou no que estavam fazendo.
Beijou-o também, primeiro docemente e depois com a paixão, com o desejo acumulados nesses meses de solidão que ambos tinham vivido. Foi como se tudo se desvanecesse com esse primeiro beijo, e Raphaella sentia que Alex lutava também contra a sua própria paixão.
— Alex... não posso. Outra vez, não... — Não podia recomeçar, não o queria fazer.
— Eu sei... está bem.
Ficaram sentados durante um bocado, conversando, olhando para o fogo, falando a respeito de si próprios e um do outro, acerca do que lhes sucedera e daquilo que tinham sentido. E depois, subitamente, começaram a falar de outras coisas, de outras pessoas, de coisas que os tinham divertido, momentos engraçados, como se tivessem guardado tudo durante seis meses para contar um ao outro. Eram três horas da manhã quando Raphaella se despediu dele à esquina. Ele insistira em acompanhá-la a casa.
Então, como um rapazinho, decidiu-se a fazer a pergunta que lhe queimava os lábios:
— Posso voltar a ver-te? Para conversarmos... assim ... ?
Não queria assustá-la para ela não lhe fugir outra vez, apercebera-se das pressões que pesavam sobre ela, tanto reais como imaginárias. Ela pareceu ficar pensando uns momentos e depois disse que sim.
— Talvez possamos ir dar um passeio pela praia?
— Amanhã?
Ela riu.
— Está bem — respondeu.
— Venho aqui e vamos no meu carro. — Seria sábado e ele estaria livre. — Ao meio-dia?
— Está bem.
Raphaella sorriu e acenou, sentindo-se muito nova, como se fosse uma mocinha, e continuou a sorrir até entrar em casa. Nessa altura não pensava em John Henry, nem Kay Willard, nem em qualquer outra pessoa.
Pensava apenas em Alexander... Alex... e em vê-lo ao meio-dia do dia seguinte e em ir com ele para a praia.
Ao fim de uma semana, Raphaella e Alex encontravam-se todas as tardes, quer para darem um passeio pela praia, quer para se sentarem indolentemente em frente da lareira, bebendo café e falando sobre a vida. Raphaella mostrou-lhe o contrato para a publicação do livro, quando lhe enviaram de Nova Iorque, e ele lhe falou dos seus últimos casos. Estavam juntos durante algumas horas da tarde, quando ele não tinha trabalho, ou algumas horas à noite, depois de John Henry adormecer. Eram sempre horas em que ela não podia fazer companhia a John Henry por ele estar dormindo, pois assim ela não sentia que estava lhe roubando preciosos momentos de vida.
Dava a Alex o tempo livre, o tempo em que estaria sozinha, meia hora aqui, uma hora noutra ocasião, para sair, para falar, para se sentir viver. Foram algumas das horas mais felizes que passaram juntos, horas em que se conheceram mutuamente. Dessa vez descobriram mais um do outro do que tinham descoberto no ano anterior, ou talvez os meses dolorosos da separação os tivessem amadurecido. A sensação de perda fora devastadora tanto para um como para o outro, mas ao mesmo tempo lhes fizera dar um passo em frente para o futuro. Mesmo assim, o relacionamento deles era ainda muito tênue, muito novo e eles tinham medo.
Raphaella receava criar os mesmos problemas do ano anterior, receava a ira do pai, a maldade de Kay e continuava a recear prejudicar Alex, afastá-lo de uma vida mais compensadora. Alex, por seu lado, receava apenas assustá-la e fazê-la fugir de novo. Ele tinha, por assim dizer, a bênção de John Henry e por isso não sentia remorsos. Avançavam cuidadosamente cada um em direção ao outro até o dia seguinte ao Ano Novo, quando Raphaella lhe apareceu, no principio da tarde, depois de John Henry ter declarado que queria dormir toda a tarde e parecer decidido a fazê-lo.
Quando tocou à campainha, sem saber se ele estaria em casa, Raphaella não sabia bem que motivo a levara até ali. Daí a instantes, Alex abriu a porta e quando a viu sua expressão revelou imediatamente a alegria que lhe causava a visita.
— Que agradável surpresa. Passa-se alguma coisa?
— Lembrei-me de vir fazer-te uma visita. Venho incomodar? — Corou, pensando de repente que ele podia estar acompanhado por uma mulher. Mas Alex compreendeu imediatamente a expressão estampada no rosto dela e soltou uma gargalhada.
— Não, minha senhora, não me «incomoda» absolutamente nada. Deseja uma chávena de café? — Ela disse que sim e seguiu-o pelas escadas que iam dar à cozinha.
— Quem é que tem areado isto? — perguntou indicando tachos de cobre reluzentes.
— Eu.
— De verdade?
— Claro que sim. Tenho muitos talentos que tu ainda desconheces.
— Sim! Como por exemplo?
Alex entregou-lhe uma chávena de café bem quente e ela começou a beber ao mesmo tempo que o olhava com ar feliz.
— Não sei se devo revelar os meus segredos todos de uma vez.
Ficaram sentados à mesa durante um bocado, bebendo o café e gozando a companhia um do outro, antes de começarem, como de costume, a falar de uma dúzia de assuntos diferentes. Quando estavam juntos, o tempo parecia passar muito depressa. Então Alex lembrou-se do manuscrito do livro da mãe.
— Posso lê-lo, Alex? — Os olhos de Raphaella brilharam.
— Com certeza. Está lá em cima, na minha escrivaninha.
Pousaram precipitadamente as chávenas de café sobre a mesa e apressaram-se a subir ao andar de cima. Raphaella leu algumas páginas, gostou do que estava lendo e sorriu para Alex. Subitamente, percebeu que era a primeira vez, depois do reencontro dos dois, que se achava no quarto dele. Olhou cautelosamente para o quarto contíguo, onde ele dormia, e depois, vagarosamente, os olhos dos dois fitaram-se e permaneceram assim. Alex beijou-a longa e ardentemente, e as costas dela arquearam-se de prazer quando ele a tomou nos braços. Estava à espera que ela o mandasse parar, mas Raphaella não o fez e ele deixou que as suas mãos deslizassem pelo corpo dela. Então, como se fosse um acordo mútuo, se dirigiram lentamente para o quarto de cama.
Pela primeira vez na sua vida de adulto, Alex teve medo, medo do que estava a fazer, das conseqüências daquilo que ambos tinham descoberto de novo. Receava desesperadamente perdê-la mas foi ela que murmurou as palavras que o fizeram esquecer todos os receios.
— Está tudo bem, meu amor — sussurrou-lhe Raphaella enquanto ele lhe tirava a camisa. — Amo-te muito.
Alex despiu-a lentamente e ela foi tirando também a roupa dele, como se executassem um bailado. Fizeram amor lentamente, com um ardor que até então nunca tinham experimentado, acariciando-se mutuamente com avidez. Levaram toda a tarde fazendo amor e quando por fim se deitaram lado a lado, saciados, com os corações cheios de uma grande paz, ambos estavam mais felizes do que alguma vez tinham estado um com o outro. Apoiado sobre um cotovelo, Alex fitou Raphaella com um sorriso que ela ainda nunca vira.
— Fazes idéia de como me sinto feliz por estares aqui?
Raphaella sorriu.
— Senti tanto a tua falta, Alex... de todos os modos imagináveis.
Ele olhou-a apaixonadamente e os seus dedos começaram de novo a acariciar o corpo dela, a sua boca ficou de novo ávida e ele desejou possuí-la de novo. Parecia-lhe tomado de um desejo insaciável, como se receasse que ela desaparecesse e não a pudesse voltar a ter nos seus braços. Fizeram amor novamente, e outra e outra vez.
Depois, tomaram um banho juntos e Raphaella sentou-se junto dele, com um ar sonhador e os olhos meio fechados.
— Estás maravilhosa, meu amor.
— E cheia de sono — murmurou ela, sorrindo docemente. — Preciso acordar e ir para casa.
No entanto, parecia-lhe estranho ter de sair dali e mais estranho chamar casa ao edifício onde costumava viver. A casa dela era aquela, ali onde Alex vivia, onde eles partilhavam as suas vidas, as suas almas e os seus corpos. Onde vivia o seu amor.
E dessa vez ela não queria saber das ameaças do pai, nem das cartas de Kay. Não voltaria a deixar Alex. Precisava de Alex. E tinha direito a ele.
Beijaram-se outra vez e ela disse-lhe, gracejando, que se ele lhe tocasse de novo chamava a Polícia.
Alex, porém, estava tão cansado como ela e quando a levou a casa de John Henry, no carro, bocejou com ar contente. Depois a beijou e deixou-a percorrer a pé os poucos metros que a separavam de casa.
Logo que entrou, Raphaella apercebeu-se de um silêncio estranho, como se todos os relógios tivessem parado, como se um som que se encontrasse latente naquela grande mansão estivesse silenciado. Pensou que se tratava da sua imaginação e de pura exaustão e começou a subir as escadas sorrindo e abafando um bocejo. Mas ao chegar ao primeiro andar viu de repente duas das criadas e duas das enfermeiras formando um pequeno grupo junto da porta do quarto de John Henry. Por um momento, o coração pareceu que lhe ia saltar do peito e parou, no cimo das escadas, no instante em que elas a viram.
— Passa-se alguma coisa?
A enfermeira tinha os olhos vermelhos e Raphaella percebeu que ela estivera a chorar. — Foi o seu marido, Mistress Phillips.
— Oh, meu Deus! — murmurou em voz baixa. Logo que vira as caras das quatro mulheres, Raphaella percebera o que se tinha passado. — Ele... ? — Não pôde acabar a frase, e a enfermeira disse que sim com a cabeça.
— Faleceu. — Mas logo a seguir, dominada pela sua própria emoção, começou novamente a chorar, e a outra enfermeira abraçou-a, tentando consolá-la.
— Como foi? — Raphaella aproximou-se lentamente delas, falando com voz suave. Tinha os grandes olhos muito abertos. John Henry morrera enquanto ela estava na cama com Alex, fazendo amor com ele. A indecência do que sucedera atingiu-a em cheio como uma bofetada e nesse instante recordou as palavras do pai, no verão anterior. Chamara-lhe prostituta. — Teve outro ataque?
As quatro mulheres pareciam petrificadas, e a enfermeira que chorava começou a chorar ruidosamente, ao mesmo tempo que as duas criadas desapareciam. Foi então que a segunda enfermeira olhou para Raphaella e ela percebeu que sucedera algo de muito estranho enquanto ela estivera fora.
— O doutor quer falar consigo, Mistress Phillips. Está à sua espera há duas horas. Não sabíamos onde a senhora estava, mas encontramos o bilhete no seu quarto e pensamos que voltaria em breve para casa. — Raphaella sentiu-se quase desmaiar ao ouvir aquelas palavras.
— O doutor ainda está aqui?
— Sim. Encontra-se no quarto de Mister Phillips. Mas em breve virão buscá-lo. Ele quer que se faça uma autópsia para ter a certeza.
Raphaella olhou-a sem compreender e entrou apressadamente no quarto de John Henry. Aproximou-se da cama e fixou-o. Parecia dormir calmamente e por um instante ela julgou tê-lo visto mexer uma mão. Nem sequer reparou no médico que ali se encontrava. Só tinha olhos para John Henry, tão cansado, tão mirrado, tão velho e parecendo tranqüilo.
— Mistress Phillips ... ? Raphaella ... ?
Quando ouviu uma voz chamá-la Raphaella voltou-se rapidamente e suspirou quando viu que era o médico.
— Olá, Raphaella.
Logo a seguir, como se fosse atraída por um imã, os seus olhos voltaram-se de novo para o rosto do homem com quem estivera casada quinze anos. Ainda não tinha a certeza daquilo que sentia. Desgosto, vazio, pena, dor, qualquer coisa, mas não sabia bem o quê. Não compreendia bem que ele tivesse morrido. Apenas algumas horas antes, ouvira-o dizer que estava cansado e agora parecia ter adormecido.
— Raphaella, vamos para o outro quarto.
Ela seguiu o médico para o quarto de vestir, onde as enfermeiras costumavam ficar. Estavam ali, parados, como dois conspiradores; porém, o médico parecia ter mais alguma coisa desagradável a dizer.
— O que é? Que se passa que ninguém me diz? Não foi novo ataque, pois não? — Instintivamente, Raphaella compreendeu. Os seus piores receios confirmavam-se.
— Não, foi um acidente horrível. Um erro terrível, uma coisa quase imperdoável, embora não tenha sido feita com maldade e ninguém pudesse prever que ele fosse fazer uma coisa daquelas.
— O que é que estão querendo me dizer? — A voz dela subiu de tom e tinha a sensação de que a cabeça lhe ia explodir.
— Que o seu marido... o John Henry... que a enfermeira lhe deu um comprimido para dormir e deixou o frasco na mesa-de-cabeceira... — Houve uma pausa prolongada, e Raphaella olhou para o médico horrorizada. — Ele tomou os comprimidos, Raphaella. O frasco todo. Suicidou-se. Não sei que mais dizer.. Foi o que se passou.
Não pôde continuar, e Raphaella teve vontade de gritar. Ele matara-se... John Henry matara-se enquanto ela estava fora de casa... na cama com Alex... Fora ela quem o matara... Era como se o tivesse feito com as suas próprias mãos. Seria que... ele sabia o que se passava entre ela e Alex? Ter-se-ia apercebido de qualquer coisa?
Poderia ela ter evitado o ocorrido se estivesse em casa? Poderia... seria... e se... O cérebro dela trabalhava vertiginosamente enquanto os seus olhos se abriam de pavor com o que estava a pensar, mas não conseguia emitir qualquer som. Não conseguia falar. O pai tinha razão. Ela o matara. John Henry suicidara-se. Finalmente, forçou-se a olhar para o médico.
— Deixou algum bilhete?
O médico disse que não, abanando a cabeça.
— Nada.
— Oh, meu Deus! — disse quase para consigo, e logo a seguir caiu aos pés do médico, desmaiada.
Antoine de Mornay-Malle chegou de Paris às oito horas da tarde seguinte e foi encontrar Raphaella sentada, a olhar para a baía. Quando ouviu a voz do pai, levantou-se para lhe falar e quando o fez ele reparou que a filha tinha os olhos quase vidrados. Não se deitara na noite anterior e recusara a oferta de um sedativo feita pelo médico. Tinha um ar cansado e parecia muito mais magra com o vestido justo de lã preta, o rosto sem maquilagem e o cabelo severamente puxado para trás. Antoine reparou que a filha trazia também meias e sapatos pretos e a única Jóia que usava era o nó de ouro e brilhantes que trazia há quinze anos na mão esquerda.
— Papá... — Aproximou-se lentamente do pai e ele olhou-a com ar inquiridor. Percebera pela voz dela, quando ela lhe telefonara, que havia algo de grave, mais do que a morte do marido. Algo que ela não lhe revelara.
— Tenho muita pena, Raphaella... — murmurou o pai, sentando-se numa cadeira junto dela. — Foi... foi rápido?
Ela ficou calada, olhando para a baía e apertando com força a mão do pai.
— Não sei... creio que sim...
— Não estavas com ele? — Olhou-a e começou a franzir a testa. — Onde estavas?... — A voz dele tornou-se subitamente desconfiada e ela não conseguiu olhá-lo de frente.
— Tinha saído por um bocado.
— Foi outra trombose... ou o coração dele que fraquejou?
Como muitas pessoas da sua idade, queria saber exatamente como chegara ao fim, para saber o que esperar quando fosse a sua vez. Mas achou algo de estranho na expressão do rosto da filha. Raphaella ponderou seriamente a idéia de não lhe contar, mas conhecia o pai e sabia que ele falaria com toda a gente, com as enfermeiras, com o médico, com os criados e que eventualmente viria a conhecer a verdade. Ali em casa todos já sabiam. O médico concordara com ela em não dizer absolutamente nada sobre as circunstâncias em que ocorrera a morte de John Henry, mas as enfermeiras tinham dito ao mordomo, que transmitira a notícia ao motorista com assombro. E não tardaria muito que um deles contasse a um amigo e de imediato a causa da morte seria conhecida em toda a cidade. John Henry Phillips suicidara-se. Raphaella sabia que o pai também viria a descobrir.
— Papá... — Voltou-se lentamente para enfrentá-lo e por fim fitou-o nos olhos. — Não foi um ataque... — Fechou os olhos por um momento, agarrou-se à cadeira, abriu os olhos e continuou: -... Ele tomou comprimidos... — A voz dela mal se ouvia e o pai olhava-a sem compreender o que ela queria dizer. -... Eu... Ele andava deprimido... detestava... estar doente... ele queria... — Um soluço prendeu-lhe a garganta e as lágrimas impediram-na de falar.
— Que estás tentando me dizer? — O pai olhou-a, imóvel na cadeira.
— Estou a dizer-lhe que... — Raphaella respirou fundo. — Que a enfermeira deixou o frasco com os comprimidos para dormir em cima da mesa e... ele os tomou... todos.
— Suicidou-se? — O pai mostrou-se horrorizado, mas ela disse que sim com a cabeça. — Meu Deus, onde estavas tu? Por que não viste isso? Não estavas aqui?
— Não sei, papá... Ninguém sabia que ele pensava em matar-se. Isto é, eu sabia... Ele estava tão cansado e ultimamente tão farto de estar doente há tanto tempo. Mas ninguém pensava que... Não pensei... nunca julguei que ele...
— Meu Deus, tu és doida? Como é que não foste mais cuidadosa? Devias vigiar tudo o que as enfermeiras faziam. Era a tua responsabilidade... o teu dever... — Preparava-se para continuar, mas Raphaella saltou da cadeira, parecendo que ia começar a gritar.
— Cale-se, papá. Cale-se. Eu não podia evitá-lo. Não tive culpa... Não foi culpa de ninguém... Foi...
— Vais processar a enfermeira, não vais? — perguntou com ar calmo, sempre sentado na cadeira. Raphaella abanou a cabeça, mostrando-se de novo agitada e nervosa.
— Claro que não... Ela não podia prever... Foi um acidente, papá.
— Um acidente que matou o teu marido. — Os olhos dos dois encontraram-se e ficaram a fitar-se durante muito tempo. Como se tivesse percebido mais qualquer coisa que ela não lhe tivesse dito, o pai olhou-a com ar desconfiado e perguntou: — Há mais alguma coisa, Raphaella? Algo que não me tenhas contado? — Depois, como se de repente a idéia lhe ocorresse, perguntou:
— Onde estavas tu quando se deu o acidente? — Raphaella olhou para o pai, não como uma mulher, mas sim como uma criança apanhada em falta. — Onde estavas? — insistiu ele, dando uma ênfase horrível às palavras.
— Tinha saído.
— Com quem?
— Com ninguém. — Mas era inútil. Ele tinha percebido e ela sabia-o. Olhou para o pai com tal angústia e auto-recriminação que ele compreendeu que as suas suposições eram certas.
— Estavas com ele, não estavas, Raphaella? — A voz dele ergueu-se ameaçadoramente e incapaz de discernir claramente o que fazia, Raphaella disse que sim com a cabeça.
— Meu Deus! Então, o mataste. Compreendes isso? Sabes por que motivo ele tomou os comprimidos? — O pai olhou-a com repulsa, mas Raphaella abanou mais uma vez a cabeça.
— Ele não sabia de nada, papá. Tenho a certeza.
— Como podes ter a certeza? Os criados deviam saber e certamente que lhe contaram.
— Não lhe teriam feito isso e creio que não sabiam.
Encaminhou-se distraidamente para a janela. O pior estava passado. O pai já sabia a verdade. Nada mais podia dizer. Estava tudo sobre a mesa, a traição dela, a perfídia, o fracasso em dar felicidade a John Henry, o que o levara a morrer devido a ter ingerido os comprimidos e não pela vontade de Deus.
— Então me mentiste quando disseste que não voltarias a vê-lo?
— Não, disse-lhe a verdade. Nunca mais o vi até há cerca de duas semanas e o encontrei acidentalmente.
— E foste imediatamente para a cama dele.
— Por favor.. papá...
— Não foste? Não foi isso que matou o teu marido? Pensa bem nisso. Poderás viver com esse remorso?
Os olhos dela encheram-se outra vez de lágrimas.
— Não, não posso — murmurou ela.
— És uma assassina, Raphaella. — As palavras saíam-lhe da boca como cobras, envenenando tudo ao seu alcance. — Uma assassina e uma vadia. — Então, erguendo-se a toda a sua altura, olhou-a como se quisesse fulminá-la. — Desonraste-me e no meu coração repudio-te, mas para minha defesa e defesa da tua mãe não permitirei que voltes a fazê-lo. Não faço idéia do que tencionas fazer com o teu amante. Tenho a certeza de que gostarias de correr para ele logo que John Henry fosse enterrado. Mas isso, minha menina, não irá suceder. Pelo menos de momento. O que vieres a fazer mais tarde não é da minha conta, pois como me tens dito várias vezes és uma mulher adulta. Uma mulher repulsiva, imoral, mas adulta. Daqui a um ano, depois de um período de luto decente, podes voltar à prostituição. Mas, entretanto, durante um ano, serás decente para mim, para a tua mãe, e para a memória de um homem a quem eu muito estimava, embora não se passasse o mesmo contigo. Depois do funeral partirás para a Espanha com a tua mãe. Eu tratarei de todos os assuntos relacionados com os bens, visto ser eu o seu executor testamentário, o que deverá levar quase um ano. Depois poderás voltar para aqui ou fazeres o que quiseres. Mas um ano será a tua pena pela morte do homem que assassinaste. Se fosses para a prisão seria por toda a vida. E a verdade é, minha menina, que terás de viver toda a vida com aquilo que fizeste. — Dirigiu-se solenemente para a porta e quando lá chegou voltou-se. — Prepara-te para partires no dia do funeral. Não discutirei mais o assunto. Um ano de luto pela morte de um homem que levaste ao suicídio é uma pena leve.
Raphaella ficou parada a ver o pai sair da sala, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces.
Só na manhã seguinte é que ela teve notícias de Alex. Tinham conseguido que a notícia não aparecesse nos jornais durante um dia, mas na manhã seguinte ela encontrava-se na primeira página de todos os matutinos. John Henry Phillips falecera. O artigo explicava que ele se encontrava acamado desde a primeira trombose, à qual se tinham seguido várias, e que estava inválido há oito anos. O artigo quase não mencionava Raphaella. Referia apenas que Mr. Phillips não deixava filhos, mas apenas a viúva, a sua segunda mulher, Raphaella de Mornay-Malle y de Santos y Quadral, falando logo a seguir sobre as empresas fundadas por ele, a fortuna que herdara, os importantes negócios internacionais que realizara. Mas isso não interessava a Alex. Ao ler a notícia olhara com espanto para o jornal que acabava de comprar a caminho do escritório.
Depois de chegar ao seu gabinete, lera a notícia com atenção e em seguida fora ligar para Raphaella. Ficara à espera dela na noite anterior, receoso de que ela tivesse desistido de reatar as relações entre os dois, por se sentir novamente culpada. Agora pensava no que significaria para ela o fato de John Henry ter morrido quando ela estava longe de casa, com ele. Calculara isso pelo que lera no jornal, pois a notícia dizia que Mr. Phillips falecera durante a noite. Nessa altura, Raphaella encontrava-se com ele, ou chegara em casa pouco antes. Alex tentou imaginar a cena que se deparara a Raphaella ao regressar. Estremeceu só de pensar nisso e ligou para Raphaella. Ela levou vários minutos a atender, depois de o mordomo lhe ter perguntado com quem desejava falar; quando falou, a voz dela estava alheada, sem vida; Por seu lado, Raphaella, ao ouvir a voz de Alex sentiu-se estremecer. Era como uma lembrança brutal do que ela estivera a fazer enquanto o marido tomava os comprimidos mortais.
— Raphaella? — A voz dele era meiga e via-se que estava perturbado. — Li o jornal... lamento muito... Estás... bem?
Raphaella nada dissera a não ser «Está?».
— Sim — disse muito lentamente. — Desculpa. Estava ocupada... há pouco... — Estivera a escolher o terno com que iriam vestir John Henry e o pai se encontrava junto dela com uma expressão severa e ao mesmo tempo de desgosto pela perda do seu grande amigo. — O funeral é amanhã. — As palavras dela eram frias e distantes. Alex sentou-se com o telefone na mão e fechou os olhos. Era óbvio o que sucedera. Ela ficara acabrunhada pelos remorsos devido à morte do marido. Tinha de vê-la, de lhe falar, de saber como ela realmente estava.
— Posso ver-te depois do funeral, Raphaella? Só por um minuto? Só para ver se estás bem?
— Obrigada, Alex. Estou bem. — Parecia uma morta-viva, e Alex sentiu-se subitamente assustado. Dava a impressão de que lhe tinham dado um sedativo forte ou, pior ainda, que se encontrava em estado de choque.
— Posso ver-te?
— Parto amanhã para a Espanha.
— Amanhã? Por quê?
— Vou com os meus pais. O meu pai acha que eu devo passar ali o período de luto.
— Oh, Deus! — Alex sentia-se desorientado. Que se teria passado? Que lhe teriam feito? Que lhe teriam dito? — Qual é o período de luto?
— Um ano — respondeu inexpressivamente Raphaella.
Alex ficou estupefato. Um ano? Ela ia-se embora durante um ano? Percebeu que a perdera outra vez e agora para sempre. Se ela associasse a morte de John Henry com o reencontro deles, essas horas em que tinham estado juntos seriam sempre uma má recordação que ela procuraria esquecer. Sabia apenas que precisava vê-la. Por um minuto, dez segundos, qualquer coisa que a pudesse fazer voltar à realidade, para lhe lembrar que a amava realmente, que não tinham feito qualquer mal e que não tinham causado a morte de John Henry.
— Raphaella, preciso te ver.
— Não creio que possa. — Olhou por cima do ombro e viu o pai na sala contígua.
— Podes, sim. Nos degraus onde te vi a primeira vez. Fora do jardim. Vai até lá e eu irei ter contigo. Cinco minutos, Raphaella... Cinco minutos... sim? Por favor...
O tom da voz dele era tão suplicante que ela teve pena mas não sentia nada por ele, nem por ninguém, nem sequer por si própria ou por John Henry. Era uma assassina.
Uma mulher má. Sentia-se atordoada. Porém, não fora Alex quem matara John Henry. Fora ela. Não havia razão para puni-lo.
— Por que queres ver-me?
— Para falar contigo.
— E se alguém nos vê?
Porém, que importância teria isso, afinal? Ela já cometera o pior dos pecados. E o pai dela sabia que ela estivera com Alex quando John Henry tomara os comprimidos. Que diferença fazia agora que a vissem, se isso tornasse as coisas mais simples para Alex? No dia seguinte, partiria para a Espanha.
— Ninguém nos verá. E eu não ficarei aí mais de cinco minutos. Vais ter comigo?
— Sim — disse lentamente.
Desligaram, e dez minutos mais tarde Alex encontrava-se à espera no fundo das escadas onde a vira pela primeira vez. Mas não se encontrava de maneira nenhuma preparado para a visão que se encaminhava agora para ele. Raphaella descia os degraus com ar rígido e deprimido. Trazia um vestido preto, severo, meias pretas, sapatos pretos, não tinha maquilagem e a expressão dos seus olhos assustou-o profundamente. Nem sequer se atreveu a aproximar-se. Ficou parado, imóvel e esperou que ela se dirigisse para ele.
— Olá, Alex — murmurou Raphaella, com uma expressão de angústia terrível nos seus olhos negros. Era quase como se também ela tivesse morrido, e com efeito o pai... a matara.
— Raphaella... querida... — Queria lhe tocar mas não se atrevia a fazê-lo. Ficou a olhá-la com uma expressão de angústia quase igual à dela. Depois disse: — Sentemo-nos.
— Sentou-se num degrau e fez-lhe sinal para se sentar também. — Quero que me digas o que sentes. Acho que estás a censurar-te por uma coisa que não fizeste. O John Henry era velho, estava doente e cansado. Estava farto de viver daquela maneira. Tu própria me disseste. Ele queria morrer. A hora em que morreu foi apenas uma coincidência.
Raphaella sorriu debilmente e abanou a cabeça, como se o lamentasse por ele ser tão tolo.
— Não, não foi coincidência, Alex. Eu o matei. Não morreu durante o sono como dizem os jornais. Ou melhor, morreu, mas não foi um sono natural. Tomou um frasco inteiro de comprimidos para dormir. Esperou que ele absorvesse a informação e reforçou-a. Ele suicidou-se.
— Oh, meu Deus! — Alex ficou atordoado, como se alguém o tivesse esbofeteado, mas compreendeu então o que estava se passando com Raphaella, o motivo que a pusera assim.
— Mas tens a certeza? Ele deixou um bilhete?
— Não. Não precisou fazê-lo. Apenas se matou. Mas o meu pai tem a certeza de que ele sabia o que havia entre nós, por isso fui eu que o matei. O meu pai diz isso e tem razão.
Por momentos, Alex sentiu desejo de matar o pai dela. — Como é que ele sabe isso? — perguntou.
— Por que outro motivo o faria?
— Por estar cansado de viver como um morto, Raphaella. Quantas vezes ele te disse isso?
Raphaella abanou a cabeça. Não o quis ouvir. Alex proclamava a inocência deles, mas ela sabia bem demais a extensão do crime que tinham cometido. Se não ele, pelo menos ela.
— Não acreditas em mim, pois não?
Raphaella abanou lentamente a cabeça.
— Não, não acredito. O meu pai tem razão. Penso que alguém nos deve ter visto, os criados ou talvez algum vizinho, quando me vinhas trazer a casa, à noite.
— Não, Raphaella, estás enganada. Os criados não lhe disseram. — Olhou-a meigamente. — Quem lhe disse foi a minha irmã, quando foste para a Europa o verão passado.
— Oh, meu Deus! — Raphaella parecia que ia desmaiar, mas Alex estendeu a mão e agarrou-a.
— Não, não foi o que pensas. Ele queria que eu lá fosse. Um dos secretários dele telefonou-me e pediu-me para ir falar com o John Henry.
— E tu foste? — Raphaella mostrou-se chocada.
— Sim. Ele era um homem maravilhoso, Raphaella. — Agora havia lágrimas também nos olhos de Alex.
— Que sucedeu?
— Falamos durante muito tempo. Acerca de ti. Acerca de mim também... de nós. Ele deu-me a sua bênção, Raphaella. — As lágrimas deslizavam pelas faces de Alex. — Disse-me para cuidar de ti, depois de...
Estendeu de novo a mão para ela, mas Raphaella fugiu-lhe. Não, a bênção agora não contava. Até mesmo Alex o sabia. Era demasiado tarde para isso.
— Raphaella, não deixes que eles te magoem — prosseguiu Alex -, que te tirem aquilo que ambos queremos, que até mesmo o John Henry respeitava, uma coisa que está tão certa.
— Não, não estava certa. Estava muito, muito errada.
— Estávamos errados? Acreditas realmente nisso, Raphaella? — perguntou Alex, fitando-a.
— Que hei de pensar, Alex? Que posso pensar agora? Aquilo que fiz matou o meu marido, impeliu-o para o suicídio. Poderás dizer-me que não fiz nenhum mal?
— Sim. E o mesmo te diria qualquer outra pessoa que conhecesse a história. Estás inocente, Raphaella, diga a tua família o que disser. Estou certo de que se o John Henry fosse vivo te diria a mesma coisa. Com certeza que não te deixou nenhuma carta? — perguntou com curiosidade. Parecia-lhe estranho que John Henry não tivesse deixado uma carta a Raphaella. Parecera-lhe que ele era uma pessoa que o faria. Mas Raphaella limitou-se a dizer outra vez que não com a cabeça.
— Nada. O médico procurou e as enfermeiras também, mas não encontraram coisa alguma.
— Tens a certeza? — Ela fez um sinal afirmativo. — E agora? Vais para a Espanha com a tua mãe para expiares o teu pecado? E depois? Não voltas? — Alex resignou-se mentalmente a um longo ano solitário.
— Não sei. Terei de voltar aqui para resolver certos assuntos. Vou pôr a casa à venda após o meu pai tratar de todas as questões relativas à herança. Depois... — Calou-se e ficou a olhar para os pés... — Depois, voltarei para Paris ou talvez para a Espanha — acrescentou com voz monótona.
— Raphaella, isso é uma loucura. — Agarrou com força os dedos compridos e finos de Raphaella. — Amo-te. Quero casar contigo. Não há razão para não o fazermos. Não fizemos mal nenhum.
— Fizemos, sim, Alex. — Afastou-se dele muito lentamente, retirando as mãos. — Fizemos. Eu fiz algo de muito errado.
— E vais carregar com esse fardo por toda a vida?
No entanto, Alex sabia que ele lembraria sempre a Raphaella aquilo que ela considerava o seu grande pecado. Perdera-a. Perdera-a por uma fatalidade, por um golpe do destino, devido à loucura de um velho cansado de viver, por causa das diabólicas interpretações do pai dela. Então, como se soubesse o que ele estava a pensar, Raphaella levantou-se e ficou a olhá-lo demoradamente.
— Adeus — disse em voz muito baixa.
Não lhe tocou, nem o beijou, nem esperou pela resposta dele. Voltou-se apenas e começou a descer lentamente as escadas enquanto Alex ficava a olhá-la, petrificado, sabendo que a estava perdendo. Raphaella, com o seu severo traje preto, fazia-lhe lembrar uma freira. Era a terceira vez que a perdia, e sabia que agora seria para sempre. Quando chegou à bem oculta porta do jardim, Raphaella abriu-a e fechou-a logo a seguir. Não olhou para trás, para Alex, e depois de a porta se fechar não se ouviu mais nenhum som. Alex permaneceu ali durante um espaço de tempo que lhe pareceu horas e então, lentamente, sentindo-se também morrer, subiu devagar as escadas, entrou no carro e dirigiu-se para casa.
O funeral foi o mais privado possível, mas mesmo assim havia bem mais de uma centena de pessoas nos bancos da pequena igreja. Raphaella encontrava-se sentada à frente, entre a mãe e o pai. As lágrimas deslizavam pelas faces do pai e a mãe chorava abertamente por uma pessoa que mal conhecera. Nos bancos imediatamente atrás deles estava meia dúzia de parentes vindos da Espanha com a mãe de Raphaella. Um irmão, duas irmãs e um primo, acompanhado por um filho e uma filha. O grupo deslocara-se ali, alegadamente para dar apoio a Raphaella e a Alejandra, mas a primeira tinha a sensação de que eles eram os guardas que iam levá-la para a prisão, em Espanha.
Foi ela que se manteve de olhos enxutos durante o funeral, olhando sem ver para o caixão coberto de rosas brancas. A mãe se encarregara das flores, o pai tratara de todo o resto e Raphaella ficara sentada no seu quarto pensando no que fizera. De vez em quando, lembrava-se de Alex e do rosto dele quando o vira pela última vez, no que ele lhe dissera. Mas sabia que ele não tinha razão. Era óbvio que a culpada da morte de John Henry fora ela, tal como o pai dissera, e Alex tentava apenas apaziguar os seus sentimentos de culpa. Era estranho saber que perdera os dois ao mesmo tempo. Enquanto se mantinha rigidamente sentada, durante a cerimônia religiosa, Raphaella sabia que tanto perdera John Henry como Alex, e que não mais voltaria a ver qualquer dos dois. Foi então que as lágrimas lhe começaram a correr lentamente dos olhos, rolando-lhe pelas faces por baixo do espesso véu negro que as cobria e indo cair sobre as suas mãos delicadas, dobradas sobre as pernas. Não se mexeu uma única vez durante a cerimônia. Sentia-se como uma criminosa perante um tribunal, sem ter nada a dizer em sua defesa. Durante um instante de loucura, desejou levantar-se e gritar que não o matara deliberadamente, que estava inocente, que era tudo um engano. Porém, não estava inocente, recordava a si própria silenciosamente.
Era culpada e teria de pagar pelo seu crime.
Depois da cerimônia terminada, dirigiram-se para o cemitério em silêncio. John Henry ia ser enterrado ao lado da sua primeira mulher e do filho de ambos. Ao olhar para o local, Raphaella pensou que não seria enterrada junto deles. Era pouco provável que voltasse a viver na Califórnia. Regressaria ali por alguns meses, um ano talvez, para vir buscar as suas coisas e vender a casa, e um dia morreria e seria enterrada na Europa. Parecia-lhe mais apropriado. Não tinha o direito de repousar ali com eles. Era a mulher que fizera com que ele morresse, a sua assassina. Seria blasfêmia enterrá-la ali. E, no fim da oração fúnebre pronunciada pelo padre, o pai olhou-a como se estivesse a dizer-lhe a mesma coisa.
Regressaram para casa em silêncio e Raphaella voltou ao seu quarto. As suas malas estavam quase prontas. Nada tinha a fazer e não queria ver nem falar a ninguém. Toda a família sabia o que sucedera. As tias, os tios e os primos não tinham conhecimento do seu «caso», mas sabiam que John Henry se suicidara e os seus olhares pareciam acusar Raphaella, como se lhe repetissem que a culpada fora ela. Era mais fácil para Raphaella não os ver, não ver as caras, os olhos deles. Deixou-se ficar no quarto, como uma prisioneira, invejando John Henry pela coragem que tivera. Se possuísse um frasco de comprimidos iguais, também os tomaria. Não tinha nenhuma razão para viver e sentir-se-ia grata por morrer. Mas sabia também que tinha de ser punida, e a morte seria demasiado fácil. Teria de continuar a viver, sabendo o que fizera em São Francisco, e suportando os olhares e os murmúrios da família na Espanha. Sabia que quarenta ou cinqüenta anos mais tarde eles ainda contariam a história e suspeitariam que havia mais qualquer coisa que não sabiam. Nessa altura, talvez a existência de Alex já acompanhasse o resto da história. As pessoas falariam da tia Raphaella que enganara o marido... «Recordam-se... Ele suicidou-se... Não sei que idade ela teria... Talvez trinta... E foi ela que o matou, por assim dizer...»
Ao ouvir essas palavras dentro da sua cabeça, Raphaella escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. Chorava pelas crianças que nunca saberiam a verdade sobre o que realmente sucedera, nem a conheceriam, chorava por Alex e por aquilo que podia ter sido, por Mandy, a quem não voltaria a ver, e finalmente por John Henry... pelo que ele fizera... por aquilo que ele fora... pelo homem que a amara há tanto tempo e a pedira em casamento enquanto caminhavam ao longo do Sena. Sentada no seu quarto, sozinha, Raphaella chorou durante horas. Depois, dirigiu-se ao quarto de John Henry e olhou o que a rodeava pela última vez.
Às nove horas, a mãe entrou no quarto dela disse-lhe que era hora de partirem para apanhar o avião das onze e meia para Nova Iorque, onde chegariam por volta das seis da manhã, hora de Nova Iorque. Partiriam para a Espanha às sete. O avião chegaria a Madrid por volta das oito da noite, hora local. Raphaella tinha um longo dia à sua frente, uma viagem muito cansativa, e um longo ano. Enquanto um dos criados levava as malas para baixo, Raphaella desceu a escada principal, com a certeza de que nunca mais ali viveria. Os seus tempos em São Francisco estavam acabados. A sua vida com John Henry terminara. Os seus momentos com Alex tinham acabado num desastre. A vida dela, em certo sentido, chegara ao fim.
— Estás pronta?
A mãe olhou-a afetuosamente, e Raphaella ergueu para ela os olhos vazios que Alex vira na noite anterior, disse que sim com a cabeça, em silêncio, e saiu.
Na primavera, Raphaella recebeu, via São Francisco, um exemplar do livro para crianças que escrevera e que devia sair em finais de julho. Olhou-o calmamente, com uma sensação remota. Parecia-lhe que fora há mil anos que iniciara aquele projeto e agora não lhe dava qualquer importância. Não sentia nada por ele. Também nada sentia pelas crianças, pelos pais, pela família e por ela mesma. Durante cinco meses, movera-se como uma morta-viva. Levantava-se de manhã, vestia as suas roupas pretas de luto, tomava o desjejum, voltava para o quarto, respondia às cartas que ainda continuavam a enviar-lhe de São Francisco, todas elas cartas de condolências, às quais ela respondia com o papel tarjado de preto. À hora do almoço, saía novamente do quarto para lá voltar imediatamente em seguida. De quando em quando, dava um passeio solitário, mas tinha o cuidado de evitar qualquer companhia, e se alguém insistia em acompanhá-la ela pedia-lhe que não o fizesse.
Era bem claro que Raphaella não queria ver ninguém e que estava a levar muito a sério o ano de luto. Após a sua chegada a Madrid, decidira imediatamente não permanecer ali. Foi seqüestrar-se em Santa Eugenia, para estar sozinha, e os pais concordaram. Na Espanha, a mãe e a família estavam habituadas a lutos prolongados, e as viúvas e filhas das pessoas falecidas vestiam-se sempre rigorosamente de preto. Mesmo em Paris esses lutos não eram inusitados. Porém o zelo com que Raphaella tomou o luto causou estranheza a toda a gente. Era como se ela quisesse punir-se por pecados cometidos.
Passados os primeiros três meses, a mãe sugeriu-lhe que fosse a Paris, mas recebeu uma recusa peremptória. Queria ficar em Santa Eugenia e não desejava ir a qualquer outro lugar. Evitava a companhia de toda a gente, até a da mãe. Não fazia coisa alguma a não ser ficar fechada no quarto, escrever cartas de agradecimento às condolências e dar passeios solitários.
Entre as cartas recebidas por Raphaella, encontrava-se uma longa e afetuosa missiva de Charlotte Brandon. Nela lhe dizia sem rodeios que Alex lhe explicara as circunstâncias da morte do marido, mas que esperava que Raphaella fosse suficientemente sensata para não se culpar. Havia uma parte da carta cheia de filosofia, em que Charlotte lhe dizia que sabia que gênero de homem era John Henry quando novo, e que a enfermidade devia ser para ele, mais do que para qualquer outra pessoa, muito difícil de suportar; que, comparando o que ele fora em tempos e no que se tornara, a vida devia parecer-lhe uma prisão da qual ele desejava fugir, e que fora isso mesmo que ele fizera, embora tal fosse difícil de compreender para os que o rodeavam. «Embora fosse um ato egoísta», escreveu Charlotte a Raphaella, «espero que o possa vir a compreender e a aceitar sem o egocentrismo das auto-acusações e da expiação. » Intimava Raphaella a aceitar com simplicidade a morte do marido, ser leal para com a memória dele e para consigo própria. E para continuar a viver. Era um pedido para que Raphaella fosse boa para si própria.
Foi essa a única carta à qual Raphaella não respondeu imediatamente, sentada durante horas infindáveis na sua torre de marfim. A carta de Charlotte permaneceu durante semanas sobre a escrivaninha de Raphaella sem que ela lhe respondesse. A verdade é que Raphaella não sabia o que dizer. Por fim, limitou-se a responder com simplicidade, agradecendo as boas palavras e dizendo que se viesse à Europa e quisesse passar por Santa Eugenia teria muito gosto em vê-la. Apesar da associação de idéias que ao pensar em Charlotte a fazia pensar em Alex, Raphaella gostava suficientemente de Charlotte para desejar vê-la. Contudo, quando fez o convite não previu que iria receber um bilhete de Charlotte no final de junho. Ela e Mandy se encontravam em Londres para promover o último livro de Charlotte, como era costume. Iria também haver um filme baseado num dos seus livros, por isso ela estava muito ocupada. Planejava além disso uma viagem a Berlim e a Paris e gostaria de ir a Madrid ver pessoas amigas. Ela e Mandy ansiavam por ver Raphaella e gostariam de saber se poderiam atraí-la a Madrid ou se teriam de ir uma tarde a Santa Eugenia, para visitá-la. Estavam dispostas a fazer a viagem até Santa Eugenia para a verem, e Raphaella sentiu-se profundamente comovida com isso. Não se atreveu a recusar-se a vê-las, mas tentou dissuadi-las da visita com palavras amáveis, explicando que não podia sair de Santa Eugenia, porque fazia falta para ajudar a tomar conta das crianças e também para apoiar a mãe a receber os seus inúmeros convidados.
Desde que a família começara a chegar a Santa Eugenia para passar o verão, Raphaella mostrava-se mais fugidia do que nunca, chegando muitas vezes a comer as suas refeições no quarto. Os emotivos espanhóis não achavam muito estranho tal procedimento durante o luto, mas a mãe começava a sentir-se cada vez mais preocupada.
A carta que Raphaella endereçou a Charlotte, para Paris, foi colocada na habitual bandeja de prata, no vestíbulo. Nesse dia, porém, uma das garotas foi à vila mais próxima com as primas e os irmãos e levou as cartas na sua mochila para pô-las no correio. A carta para Charlotte devia ter-se perdido antes de chegar ao correio, ou pelo menos foi essa a única explicação que Raphaella conseguiu dar ao fato de Charlotte não a ter recebido até à altura em que telefonou semanas mais tarde.
— Podemos ir visitá-la? — Raphaella ficou calada durante longos momentos, sentindo-se ao mesmo tempo mal-educada e apanhada numa armadilha.
— Eu... Está tanto calor aqui, iam detestar. E... as estradas para aqui são más... Seria um grande incômodo.
— Então, venha ter conosco a Madrid. — A voz de Charlotte era decidida e jovial.
— Na verdade não posso sair daqui, embora gostasse. — Era uma mentira evidente.
— Bem, então parece que não temos alternativa, pois não? Podemos ir amanhã? Alugamos um carro e partimos daqui depois do desjejum. Que diz?
— Uma viagem de três horas, de carro, para me verem?... Oh, Charlotte, sinto-me mal...
— Não sinta. Nós queremos ir. Para si está bem? — Por momentos teve a impressão de que Raphaella não queria vê-las. Talvez estivesse insistindo, e ela preferisse não receber aquela visita. Talvez lhe fosse doloroso vê-las, por causa de Alex. Mas Raphaella respondeu de maneira que lhe tirou quaisquer dúvidas.
— Ficarei encantada por vê-las.
— Nós também estamos ansiosas por estarmos consigo. E mal vai reconhecer Mandy. Sabia que ela irá para Stanford em outubro?
Do outro lado do fio, Raphaella sorriu meigamente. Mandy... a sua Amanda... Gostava de saber que ela estava ainda vivendo com Alex. Ele precisava tanto da companhia dela como ela da dele.
— Fico contente. — E depois não pôde deixar de perguntar: — E a Kay?
— Perdeu a eleição. Mas a Raphaella deve ter sabido isso antes de deixar São Francisco. Isso foi o ano passado. — De fato soubera, lera a notícia nos jornais, mas Alex recusara-se a falar da irmã durante o breve período do reinício das suas relações. Houvera um rompimento irreparável entre Alex e a irmã por causa de Amanda, e Raphaella às vezes pensava no que faria Alex se tivesse sabido que a irmã é que escrevera a carta ao pai dela a denunciando. Seria capaz de matá-la. Todavia, Raphaella nunca lhe dissera e agora estava satisfeita por isso. Que interessava? A vida deles estava acabada e Kay era irmã dele.
— Amanhã falamos disto tudo, sim? Quer que lhe levemos alguma coisa de Madrid?
— Apenas as vossas pessoas.
Raphaella sorriu e desligou, mas durante o resto do dia andou nervosamente de um lado para o outro, no quarto. Por que as teria deixado ir? E que faria quando elas chegassem? Não queria ver Charlotte nem Amanda, não queria nenhuma recordação da sua vida passada. Levava agora uma nova vida em Santa Eugenia. Era tudo o que podia permitir a si própria. De que valia manter contato com o passado?
Quando Raphaella desceu para jantar, nessa noite, a mãe reparou no tremor das mãos dela e tomou mentalmente nota para falar a Antoine. Achava que Raphaella devia consultar um médico. Há muitos meses que ela tinha um aspecto horrível. Apesar do calor e do sol, permanecia todo o dia no quarto e estava cada vez mais pálida.
Perdera quase oito quilos desde que chegara de São Francisco e o seu aspecto era doentio, em comparação com a aparência saudável da família.
Raphaella disse à mãe que iria ter duas visitantes no dia seguinte.
— Estão em Madrid, mas são dos Estados Unidos — explicou.
— Sim? — A mãe olhou-a afetuosamente. Ficava satisfeita por a filha finalmente receber alguém. Nunca quisera sequer ver pessoas conhecidas da Espanha. Era o luto mais rigoroso que Alejandra alguma vez vira. — Quem são?
— A Charlotte Brandon e a neta.
— A escritora? — A mãe pareceu surpreendida. Lera alguns dos livros dela traduzidos para espanhol e sabia que Raphaella os lera todos. — Gostarias que passassem aqui a noite? — Raphaella abanou a cabeça com ar ausente e foi enfiar-se novamente no quarto. Encontrava-se ainda no quarto, na manhã seguinte, quando uma das criadas bateu suavemente à porta.
— Dona Raphaella... Tem visitas. — A porta se abriu e a mocinha de quinze anos, com a seu uniforme de criada, sorriu.
— Obrigada.
Raphaella sorriu e dirigiu-se para as escadas. Estava tão nervosa que sentia as pernas sem forças para se manter de pé. Era estranho, mas há tanto tempo que não falava com ninguém que não sabia o que havia de lhes dizer. Com um ar sério e um pouco assustado, envergando um bonito vestido de seda preto, dos muitos que a mãe lhe comprara em Madrid, Raphaella estava assustadoramente pálida.
Charlotte esperava-a no fundo das escadas e inconscientemente teve um sobressalto quando viu Raphaella aproximar-se. Nunca vira ninguém com um aspecto tão angustiado e infeliz. Era o retrato vivo do sofrimento, toda vestida de preto e com a dor estampada nos grandes olhos escuros rodeados de profundas olheiras.
Sorriu imediatamente para Charlotte, mas esse sorriso era como uma mensagem de desalento de alguém que se encontrasse do lado oposto de um abismo intransponível. Era como se Raphaella tivesse passado para outro mundo desde a última vez que ela a vira e, ao olhá-la, Charlotte sentiu uma irresistível vontade de chorar. Conseguiu contudo dominar-se e abraçou-a carinhosamente. Ao vê-la depois de abraçar Amanda, compreendeu que de certo modo ela estava agora ainda mais bela, mas era um gênero de beleza que apenas se pode ver, que não se pode tocar, nem conhecer realmente.
Durante toda a visita, Raphaella mostrou-se hospitaleira e graciosa, mostrando-lhes a casa, os jardins e a capela histórica mandada construir pelo seu bisavô. Em seguida, apresentou-lhes as crianças que brincavam sob a vigilância das suas amas num pequeno jardim feito especialmente para elas. Charlotte pensou que era um sítio fantástico para se passar um verão, mas não deixava de ser uma relíquia de outros tempos, não sendo de modo algum o lugar indicado para uma mulher jovem como Raphaella, se enterrar, e assustou-se ao ouvi-la dizer que tencionava ficar vivendo ali.
— Não vai voltar para São Francisco? — Charlotte mostrou-se perturbada.
— Não — disse Raphaella abanando a cabeça. — Eventualmente terei de ir lá, para fechar a casa e tratar de certos assuntos, mas talvez isso se possa fazer sem eu estar presente.
— Então irá para Madrid, ou Paris?
— Não! — declarou firmemente Raphaella, sorrindo para Amanda, que não tinha dito absolutamente nada. Desde que ali tinham chegado, ela se limitara a olhar para Raphaella. Era como se estivesse a ver o fantasma de alguém que tivesse conhecido. Quem ali estava não era a Raphaella, com quem convivera. Tinha a sensação de estar a ver um sonho desfeito. E, como Charlotte, passou a tarde tentando não chorar. Recordava-se dos tempos em que ela e Alex eram tão felizes com Raphaella, das tardes em que voltava das aulas e a encontrava à sua espera.
Agora, ao olhar para aquela mulher, via uma desconhecida, uma pessoa diferente, uma estranha. Parecia-se com Raphaella, mas nada mais do que isso. Foi um alívio quando Raphaella sugeriu que fosse nadar na piscina e, tal como Raphaella fazia antigamente, tentou gastar as suas forças nadando exaustivamente para não pensar.
Isso deu oportunidade a Charlotte para ficar a sós com Raphaella, uma coisa que desejara desde a sua chegada. Agora, sentadas lado a lado em cadeiras confortáveis, a um canto do jardim, Charlotte olhou-a com um sorriso terno.
— Raphaella, posso lhe falar como amiga?
— Com certeza. — A sua expressão de corça assustada apareceu imediatamente. Não queria responder a nenhuma pergunta, não queria ter de explicar as suas decisões. Agora era aquela a sua vida e não desejava ter de expor os seus sentimentos a ninguém.
— Creio que está se atormentando de uma forma inimaginável. Vejo no seu rosto, no seu olhar angustiado, no modo como fala... Raphaella... que lhe poderei dizer? Que poderá alguém dizer para libertá-la?
Tinha ido direita ao assunto e Raphaella voltou o rosto para que Charlotte não lhe visse as lágrimas nos olhos. Parecia estar olhando para o jardim, mas por fim abanou a cabeça devagar.
— Nunca mais serei livre, Charlotte — murmurou tristemente.
— Mas está se aprisionando nesta vida. Está se punindo por uma coisa de que não pode ter sido culpada. Nunca acreditarei nisso. Nunca. Estou convencida de que o seu marido estava cansado de viver assim e tenho a certeza de que, se pensar bem, há de concordar que eu tenho razão.
— Não sei isso. Não o saberei nunca. Também não importa. Tive uma vida boa. Fui casada durante quinze anos. Nada mais desejo. Agora voltei para casa.
— Mas esta já não é a sua casa, Raphaella. E está falando como uma velha.
Raphaella sorriu. — É como me sinto.
— Isso é loucura. — Então, numa inspiração súbita, perguntou: — Por que não vem conosco para Paris?
— Agora? — Raphaella, mostrou-se chocada.
— Voltamos hoje para Madrid e amanhã partimos para Paris. Que diz?
— Não me parece boa idéia — respondeu Raphaella, embora sorrindo gentilmente. Era uma perspectiva que não lhe agradava nada. Há um ano que não ia a Paris e não lhe apetecia nada lá ir.
— Quer pensar nisso?
Raphaella abanou tristemente a cabeça.
— Não, Charlotte. Quero ficar aqui.
— Mas por quê? Por que há de fazer isto? Não está certo para si.
— Sim. Está. — Depois, finalmente, fez a pergunta que desde o início lhe queimava os lábios: — Como está o Alex? Está bem? — Ele lhe escrevera duas vezes e ela não lhe respondera, mas percebera pelas cartas dele que ele se sentia infeliz pelo que sucedera, pelo afastamento dela e pela sua insistência em não voltarem a ver-se.
Charlotte baixou a cabeça.
— Está agüentando — murmurou. Charlotte sabia que o afastamento de Raphaella fora muito mais custoso para o filho do que a separação de Rachel e não tinha a certeza de que ele alguma vez voltasse a ser o mesmo. Não sabia se deveria ou não dizer isso a Raphaella, pois receava que ela não pudesse suportar um fardo mais pesado do que o que tinha sobre os ombros.
— Nunca lhe escreveu, pois não?
— Não. — Olhou Charlotte de frente. — Pensei que fosse melhor para ele cortar os laços entre nós de uma vez.
— Já em tempos tinha pensado isso e enganou-se, não foi?
— Isso era diferente.
Raphaella tinha um ar ausente, recordando a cena com o pai em Paris um ano antes. Como tudo fora intenso, importante, e como agora tudo mudara e nada tinha importância para ela. Kay perdera a eleição, ela perdera Alex... John Henry morrera...
Raphaella olhou para Charlotte.
— A Kay escreveu uma carta ao meu pai, contando-lhe a minha ligação com o Alex, pedindo-lhe que me fizesse acabar com tudo. E foi isso mesmo que ele fez.
Ao ver como Charlotte ficara chocada com a revelação, Raphaella absteve-se de lhe dizer que ela também escrevera a John Henry no mesmo sentido, o que fora uma crueldade ainda maior. Sorriu para a mãe de Alex.
— O meu pai ameaçou-me de que ia contar ao meu marido e mandou me seguirem. Disse-me também que eu estava destruindo a vida do Alex, impedindo-o de casar com outra mulher e ter filhos, insistindo que eu não passava de uma egoísta. Dessa vez eu não podia fazer outra coisa.
— E agora?
— O meu pai quis que eu viesse para cá por um ano. Acha que é o mínimo que eu posso fazer... — A voz dela tornou-se um leve murmúrio. — Depois de ter morto o John Henry...
— Mas não o matou. — Passaram-se alguns momentos e Charlotte insistiu: — E, passado esse ano, a sua família ficará muito triste se sair daqui?
— Não sei. Isso não faz qualquer diferença, Charlotte. Mas eu ficarei aqui. É onde devo ficar.
— Por quê?
— Não quero falar disso.
— Deixe de castigar a si mesma, que diabo! — exclamou Charlotte apertando as mãos de Raphaella nas suas. — A Raphaella é uma mulher nova e bonita, com uma boa cabeça e um excelente coração. Merece ter uma vida cheia, feliz, com um marido e filhos... Com o Alex ou com qualquer outro, isso é consigo, mas não pode enterrar-se aqui, Raphaella.
Raphaella retirou lentamente as mãos das de Charlotte.
— Sim, posso. Não poderei viver em qualquer outro lugar depois daquilo que fiz. Onde quer que tocasse, quem quer que amasse, com quem quer que casasse, havia de me lembrar sempre do John Henry e do Alex. Matei o primeiro e quase destruí o segundo. Que direito eu tenho de tocar na vida de outra pessoa?
— Mas não matou, nem destruiu ninguém. Meu Deus, como eu gostaria de fazê-la entender isso! — Mas sabia que era quase impossível. Raphaella estava encerrada na sua própria prisão e dificilmente ouviria o que lhe diziam. — Então não quer vir conosco para Paris?
— Não — Raphaella sorriu meigamente. — Mas agradeço o convite. E a Mandy está com um aspecto maravilhoso. — Era a maneira de Raphaella dizer que não queria falar mais sobre ela, que não queria discutir as suas decisões.
Sugeriu que fossem visitar os jardins mais distantes da propriedade. Depois disso foram ter com Amanda, e pouco mais tarde chegou a hora de partirem. Raphaella viu o carro que as levava afastar-se com uma expressão de pena. Em seguida, entrou na grande casa, atravessou o vestíbulo de mármore rosa e subiu devagar as escadas.
Logo que o automóvel conduzido por Charlotte passou pelo portão principal de Santa Eugenia, Amanda começou a chorar.
— Mas por que não quis ela vir conosco para Paris?
Charlotte tinha também lágrimas nos olhos.
— Porque não quis vir, Mandy. Ela quer enterrar-se viva ali.
— Não podias convencê-la? perguntou Mandy assoando-se e limpando os olhos. Meu Deus, ela tem um aspecto terrível. Parece que foi ela quem morreu.
— De certo modo penso que foi.
As lágrimas corriam silenciosamente pelas faces de Charlotte quando entrou na auto-estrada em direção a Madrid.
Em Setembro, Alejandra começou a insistir com Raphaella para que deixasse Santa Eugenia. O resto da família fora já para Barcelona e Madrid, mas Raphaella estava decidida a permanecer ali durante o inverno. Dizia querer trabalhar noutro livro de histórias para crianças, mas era uma fraca desculpa. Perdera o interesse em escrever e sabia. A mãe teimava em que ela a acompanhasse a Madrid.
— Não quero ir, mãe.
— Disparate. Será bom para ti.
— Por quê? Não poderei ir ao teatro, à ópera, ou a festas.
A mãe olhou pensativamente para o rosto magro e cansado da filha.
— Já passaram nove meses, Raphaella... Poderias ir comigo de vez em quando.
— Obrigada. — Olhou friamente para a mãe. — Prefiro estar aqui.
A conversa durara quase uma hora e logo a seguir, como de costume, Raphaella fechou-se no quarto. Ficava sentada durante horas olhando para o jardim, pensando, sonhando.
Agora tinha poucas cartas a que responder. E ela já não lia. Deixava-se apenas ficar quieta, pensando, umas vezes em John Henry, outras vezes em Alex e nos momentos que tinham passado juntos. Depois pensava na viagem para Paris, quando o pai a pusera fora de casa e lhe chamara prostituta. Pensava também na noite em que chegara em casa e encontrara... John Henry... e depois a chegada do pai... que lhe chamara assassina. Deixava-se ficar sentada recordando bons e maus momentos, olhando para fora sem ver, sem fazer nada, enquanto o tempo se escoava lentamente.
Alejandra receava deixar Santa Eugenia. Havia algo de assustador no comportamento de Raphaella. Mostrava-se distante, ausente, indiferente a tudo. Pouco comia e raramente falava com alguém se não se visse forçada a isso, nunca tomava parte em qualquer conversa e nenhum assunto parecia lhe interessar. Era terrível vê-la assim e, no fim de setembro, as insistências da mãe foram se tornando cada vez maiores.
— Não me interessa o que possas dizer, Raphaella. Vou levar-te comigo para Madrid. Lá, podes continuar a te fechares no quarto.
Alejandra estava cansada do outono passado no campo. Sentia-se desejosa de distrações. Não podia compreender como é que uma mulher de trinta e quatro anos podia suportar aquela vida. Raphaella fez as malas e acompanhou a mãe. Em Madrid, ocupou os mesmos aposentos de sempre, passando a vida encerrada neles, sem querer saber das pessoas que ali iam, tias, tios, primos ou primas. Toda a gente já a aceitava como ela era e ninguém parecia notá-la.
A mãe começou a temporada organizando duas festas. Raphaella apercebeu-se dos risos, da música, das vozes das pessoas que dançavam. Houve também várias idas à ópera, no meio de numerosos grupos de familiares e amigos, além de jantares, pequenos e grandes, que Alejandra organizava para receber um número infinito de amigos e conhecidos.
No princípio de dezembro, Raphaella já não podia suportar mais aquilo. Parecia-lhe que, cada vez que saía do quarto e descia as escadas para ir jantar, deparava com quarenta pessoas em traje de noite. A mãe não queria de modo algum que ela comesse no quarto, num tabuleiro, dizia que não era saudável e que, embora estivesse ainda de luto, podia pelo menos comer com os convidados da mãe. Além disso, insistia a mãe, fazia-lhe bem ver gente, mas Raphaella não concordava.
No fim da primeira semana de dezembro, decidiu ir-se embora. Pegou o telefone e reservou um lugar num avião para Paris, pensando que seria um alívio passar alguns dias na casa austera do pai. Sempre se admirara de os dois ainda continuarem casados, sendo a mãe tão amiga de reuniões sociais, mundanas, de divertimentos, e sendo o pai tão sério, tão austero. A resposta, é claro, era que a mãe vivia em Madrid, e o pai em Paris. Ultimamente raras vezes ia à Espanha. Achava-se demasiado velho para as frívolas distrações de Alejandra, e Raphaella tinha de admitir a si própria que sentia o mesmo.
Telefonou para casa do pai para avisá-lo da sua chegada, mas foi uma criada nova que atendeu. Raphaella decidiu então nada dizer e fazer-lhe uma surpresa, pois sabia que isso não representaria qualquer problema para ele. Também tinha um quarto que lhe era destinado em casa do pai, pois todos os anos costumava ir passar uns dias com ele em Paris, antes de ele ter conhecimento da sua ligação com Alex. Raphaella sabia que o pai aprovava a vida monástica que ela levara em Espanha, durante nove meses, e sentia um grande alívio por poder merecer a sua aprovação depois das ferozes acusações que ele lhe fizera.
O avião para Paris ia quase vazio. Raphaella tomou um táxi no aeroporto de Orly e quando chegou junto da casa ficou por momentos parada olhando o seu esplendor.
Fora ali que vivera em criança e nunca conseguia entrar lá sem ter a estranha sensação de que não era uma mulher adulta, mas novamente uma criança pequena. A casa fazia-lhe também lembrar John Henry, as suas primeiras viagens a Paris, os seus longos passeios nos jardins do Luxemburgo e ao longo das margens do Sena.
Tocou à campainha e a porta foi aberta por uma cara desconhecida. Era uma criada de uniforme engomado, com um ar azedo e sobrancelhas espessas, que se ergueram interrogativamente quando a viu parada à porta e o motorista pousou as malas junto dela.
— Sim?
— Sou Madame Phillips, filha de Monsieur de Mornay-Malle. — A moça olhou-a, não parecendo nem impressionada, nem interessada na chegada dela, e Raphaella sorriu.
— O meu pai está em casa?
A moça disse que sim com um olhar estranho.
— Sim... ele está lá em cima...
Era ao fim da tarde, e Raphaella não tinha a certeza de encontrar o pai em casa. Mas sabia que ele ou estaria em casa, a jantar sozinho, ou teria saído para ir passar o serão em qualquer lugar. Não corria o risco de cair no meio de uma festa animada como em casa da mãe, com pares a dançar, risos e gente em todas as salas.
O pai era muito menos sociável do que a mãe e preferia encontrar pessoas em restaurantes, em vez de ser em casa.
Raphaella sorriu para a moça.
— Vou ter com ele lá em cima — disse. — Pode fazer o favor de mandar pôr lá as malas? — Depois, pensando que talvez a criada nova não soubesse qual era o quarto, acrescentou: — É o quarto azul, no segundo andar.
— Oh! — exclamou a criada, tapando a boca com uma mão como se quisesse impedir-se de dizer algo mais. — Sim, madame.
Baixou a cabeça e afastou-se em direção à copa enquanto Raphaella começava a subir lentamente as escadas. Não sentia nenhuma alegria especial em voltar ali, mas pelo menos a casa era sossegada, o que era um alívio depois da constante agitação da casa na Espanha. Ao chegar ao segundo patamar, pensou que quando vendesse a casa de São Francisco teria de arranjar uma casa para si própria. Estava a pensar em comprar um pequeno terreno perto de Santa Eugenia e construir aí uma pequena casa. Enquanto estivesse em construção viveria tranquilamente em Santa Eugenia. Isso lhe daria uma desculpa perfeita para não viver na cidade. Tencionava falar do assunto com o pai. Era ele que administrava os bens dela desde a morte de John Henry e agora queria fazer o ponto da situação. Dentro de poucos meses iria à Califórnia e venderia a casa.
Hesitou por um momento em frente do quarto do pai, olhando para as portas trabalhadas, e em seguida dirigiu-se devagar para o seu próprio quarto, para tirar o casaco, lavar as mãos e pentear-se. Não tinha pressa em ver o pai. Calculava que ele estivesse a ler na biblioteca, ou a estudar alguns documentos, enquanto fumava um charuto.
Sem parar para pensar no que estava fazendo, girou a maçaneta da porta e entrou na antecâmara do seu antigo quarto. As portas que davam para o aposento também estavam fechadas e Raphaella abriu-as, entrando no quarto. Subitamente teve a terrível sensação de ter entrado no quarto errado. Sentada em frente do toucador, encontrava-se uma mulher alta e um tanto corpulenta, vestindo apenas um penteador de renda azul orlado de penas. Quando ela se levantou, com ar imperioso para observar Raphaella, esta viu que ela tinha nos pés umas chinelas de cetim, da mesma cor do penteador. Durante uns momentos que lhe pareceram infindáveis, Raphaella ficou imóvel, olhando a mulher, sem conseguir compreender quem poderia ser.
— Que deseja? — perguntou a outra com ar autoritário, e Raphaella esperou que ela lhe dissesse para sair do seu próprio quarto. Percebeu então que o pai tinha convidados em casa e que ela entrara ali sem se anunciar. Mas não havia problema. Poderia dormir no quarto de hóspedes, amarelo e dourado, no terceiro andar. Nesse momento não lhe ocorreu ser estranho que os convidados estivessem no quarto dela e não no quarto destinado aos hóspedes.
— Lamento imenso... Pensei... — Não sabia se devia apresentar-se, ou recuar e sair sem dizer mais nada.
— Quem a deixou entrar?
— Não sei. Parece haver uma criada nova. — Sorriu agradavelmente, mas a mulher avançou para ela cheia de cólera, como se Raphaella se tivesse introduzido na casa dela.
— Quem é a senhora?
— Raphaella Phillips.
Corou de leve e a mulher imobilizou-se. E, ao olhá-la melhor, Raphaella teve a sensação de já tê-la visto noutra ocasião. Havia algo de vagamente familiar no cabelo louro, cheio de laca, no formato dos olhos, mas não conseguia recordar-se de quando e onde a vira. Nesse momento, o pai entrou pela porta do quarto de vestir.
Vestia um pesado roupão de seda vermelho-escura, e estava perfumado e perfeitamente penteado, mas envergava apenas o roupão, ligeiramente aberto, com os cabelos do peito à vista. Tinha as pernas e os pés nus.
— Oh... — Raphaella recuou até à porta como se tivesse entrado num quarto onde nunca devia ter ido. Nessa altura, percebeu que fora exatamente isso que fizera.
Fora interromper uma entrevista amorosa e ao compreender isso se lembrou subitamente da identidade daquela mulher. — Oh, meu Deus! — Raphaella ficou petrificada, olhando para o pai e para a mulher loura, que era esposa de um dos mais importantes membros do Governo da França.
— Deixe-nos, por favor, Georgette. — Falou com um tom austero, mas estava visivelmente nervoso. A mulher corou e desapareceu pela porta que dava para o quarto de vestir. «Georgette...» Falara com ela com voz suave, mas logo que ela desapareceu apertou bem o roupão em volta do corpo e encarou a filha. — Posso perguntar-te o que fazes aqui, sem seres anunciada, e neste quarto?
Raphaella olhou-o durante um bom bocado antes de responder; subitamente, a raiva que devia ter sentido um ano antes se abateu sobre ela com uma força a que ela não foi capaz de resistir. Passo a passo, avançou para o pai com um brilho nos olhos que ele nunca vira antes. Instintivamente, ele apoiou as mãos nas costas de uma cadeira que se encontrava perto dele e sentiu-se tremer ao enfrentar a filha.
— Que estou fazendo aqui? Vim visitá-lo. Vim a Paris ver o meu pai. Acha surpreendente? Talvez devesse ter telefonado para poupar à senhora o embaraço de ser reconhecida, mas eu quis fazer-lhe uma surpresa. E a razão por que estou neste quarto, pai, é porque ele era o meu. Mas penso que o que deve perguntar-se é o que o pai está fazendo neste quarto. O pai, com os seus discursos sobre a moral e a santidade. O pai que me expulsou desta casa há um ano chamando-me prostituta. O pai que me chamou assassina, que me acusou de eu ter morto o meu marido, um homem de setenta e sete anos, inválido há quase nove. E, se o senhor ministro tiver amanhã um ataque e morrer, o pai será também um assassino? E se ele tiver um ataque cardíaco? E se ele descobrir que tem um cancro e se suicidar por não poder suportá-lo, então também se sentirá culpado e castigar-se-á como me castigou? E se o seu «caso» com essa senhora acabar com a carreira política do marido? E ela! O que é que ela faz aqui? Que direito tem ela em estar aqui enquanto a minha mãe se encontra em Madrid? Que direito tem o pai que eu não tinha há um ano com o homem que amava? Que direito... ? Como se atreve! Como se atreve!
Raphaella, parou em frente do pai, gritando e tremendo.
— Como se atreveu a me fazer o que me fez o ano passado? — prosseguiu. — Pôs-me fora desta casa e mandou-me para a Espanha porque não queria uma prostituta debaixo do seu teto. Pois bem, agora tem uma prostituta debaixo do seu teto! — Apontou histericamente para o quarto contíguo e, antes que o pai pudesse detê-la, abriu a porta e viu a mulher do ministro sentada numa cadeira Luís XV, chorando baixinho. — Bom dia, madame. — Depois se voltou para o pai. — E adeus. Não passarei a noite debaixo do teto de um prostituto. O prostituto aqui é o pai, não esta senhora, nem eu. É... é... — Começou a soluçar histericamente. — O que me disse o ano passado quase me matou... Durante quase um ano torturei-me pelo que o John Henry fez, enquanto toda a gente me dizia que eu estava inocente, que ele se matara por ser velho, doente e se sentir farto de viver assim. Só o pai me acusou de tê-lo morto e me chamou prostituta. Disse que eu o desonrei, que o fiz correr o risco de provocar um escândalo e de destruir o seu bom nome. E o pai? E ela? — Apontou vagamente para a mulher com o penteador azul.
— Não acha que este escândalo suplantaria qualquer outro escândalo? E os seus criados? E os criados do senhor ministro? E os eleitores? E os seus clientes do banco? Não se importa com eles? Ou só eu é que podia causar escândalo? Meu Deus, o que eu fiz foi muito menos do que isto. O pai tem o direito de fazê-lo, se quiser. Quem sou eu para lhe dizer o que deve ou não deve fazer, o que está errado e não está? Mas como se atreveu a chamar-me nomes. Como se atreveu a fazer-me o que me fez. — Deixou cair a cabeça, soluçando desesperadamente, mas depois olhou-o de novo com hostilidade. — Nunca lhe perdoarei... nunca...
Antoine de Mornay-Malle parecia ter envelhecido muitos anos quando olhou para a filha com a dor estampada no rosto devido às palavras que ouvira.
— Raphaella,... Raphaella... Eu estava errado... errado... Isto sucedeu mais tarde... no verão...
— Não quero saber quando começou. — Raphaella atirou as palavras ao pai como se fossem balas. — Quando eu fiz isso, chamou-me criminosa. Agora, que é o pai a fazê-lo, não faz mal. Poderia ter passado a minha vida inteira em Santa Eugenia, consumindo-me no meu próprio desgosto. E sabe por quê? Porque acreditei em si. Porque julguei que o pai tinha razão e sentia-me tão culpada que aceitava o meu infortúnio, sem me queixar.
Dirigiu-se para a porta e o pai seguiu-a hesitantemente; Raphaella, porém, olhou-o com uma expressão desdenhosa.
— Raphaella... lamento...
— O que é que lamenta? Que eu o tenha descoberto? Se eu não o tivesse feito, teria ido ter comigo para me dizer que não tinha razão, que eu não assassinei o meu marido? Ter-me-ia dito que se enganara? Quando é que me diria isso? Quando! Quando?
— Não sei... — A voz dele era um sussurro rouco. — Com o tempo... eu teria...
— Teria!? — Abanou a cabeça com firmeza. — Não acredito! Não o teria feito e entretanto continuaria aqui com a sua amante e eu ficaria enterrada na Espanha. Pode viver tendo consciência disso? A única pessoa que quase destruiu a vida de outra foi o pai. Quase destruiu a minha.
E com essas palavras bateu a porta. Desceu as escadas rapidamente e viu as malas ainda no vestíbulo. Com as mãos trêmulas pegou as malas, pôs a carteira ao ombro e saiu de casa em direção à praça de táxis mais próxima. Sabia que havia uma na esquina, mas mesmo que tivesse de ir a pé até o aeroporto estava decidida a regressar imediatamente a Espanha. Estava tremendo quando finalmente arranjou um táxi. Depois de dizer ao motorista que a levasse a Orly, descansou a cabeça nas costas do assento e fechou os olhos, enquanto as lágrimas lhe corriam em fio pela cara.
Sentia-se subitamente cheia de cólera e ódio contra o pai. Que hipócrita, que patife! E a mãe? E as acusações que ele lhe fizera? Todas as coisas que lhe dissera... ? Passado um bocado, Raphaella foi-se acalmando e acabou por chegar à conclusão de que ele era apenas humano, como a mãe também provavelmente o era, como ela própria fora e como talvez John Henry tivesse sido, em tempos. Talvez de fato ele não desejasse continuar a viver, e nada mais.
Durante a sua viagem para Madrid, olhando o céu noturno, Raphaella meditou sobre todos os acontecimentos passados e pela primeira vez durante um ano inteiro sentiu-se livre do peso angustiante do remorso e do desgosto. Sentiu até pena do pai; subitamente riu sozinha, ao lembrar-se da figura dele, de roupão vermelho, da mulher loura e corpulenta de penteador de renda azul e a gola de penas em volta do pescoço gordo. Quando o avião pousou em Madrid, Raphaella ria baixinho e estava ainda sorrindo quando desembarcou.
Na manhã seguinte, Raphaella desceu para o desjejum e, embora o seu rosto estivesse tão pálido e emagrecido como no dia anterior, havia uma luz diferente no seu olhar. Enquanto bebiam o café, disse à mãe, de uma forma descontraída, que resolvera todos os assuntos com o pai e decidira voltar para casa.
— Mas nesse caso por que não lhe telefonaste?
— Porque julguei que fosse mais complicado.
— Mas isso foi uma tolice. Então por que não ficaste passando uns dias com o teu pai?
Raphaella pousou calmamente a chávena.
— Porque queria voltar para aqui o mais depressa possível.
— Sim? — Alejandra percebeu que a filha estava pensando em qualquer outra coisa e olhou-a atentamente. — Por quê?
— Vou para casa.
— Para Santa Eugenia? — Alejandra mostrou-se aborrecida. — Não, outra vez não, por amor de Deus. Pelo menos fica em Madrid até o Natal e depois iremos todos para lá. Nesta época do ano Santa Eugenia é muito triste.
— Pois é, mas não é para lá que eu vou. Vou para São Francisco.
— O quê? — A mãe ficou admirada. — Foi nisso que falaste com o teu pai? Que disse ele?
— Nada. — Raphaella quase sorriu ao lembrar-se do roupão vermelho. — Tomei esta decisão. — O que soubera a respeito do pai libertara-a. — Quero voltar para casa.
— Não sejas ridícula. Esta é a tua casa, Raphaella. — Apontou vagamente para a mansão ancestral que pertencia à família há quinhentos anos.
— Sim, em parte. Mas lá tenho também uma casa. Resolvi voltar.
— Para fazeres o quê? — A mãe ficou triste. Primeiro a filha escondera-se em Santa Eugenia como um animal ferido e agora queria fugir-lhe. No entanto, reparou que havia um brilho novo no olhar da filha. Era um brilho fugidio, mas que fazia lembrar a mulher que Raphaella fora.
Conservava-se ainda estranhamente parada, reservada, sem dizer claramente o que tencionava fazer. Alejandra pensou se ela teria tido notícias do homem outra vez, se era por isso que queria voltar, e se fosse esse o caso não ficava muito satisfeita. Ainda não passara bem um ano desde a morte do marido, afinal.
— Por que não esperas até à primavera?
— Não, vou agora — respondeu firmemente Raphaella.
— Quando?
— Amanhã. — Decidiu isso nesse mesmo momento. Pousou a chávena e olhou a mãe bem nos olhos. — E não sei quanto tempo lá ficarei, ou quando voltarei. Pode ser que venda a casa, ou pode ser que não. Não sei. Apenas sei que me encontrava em estado de choque, quando saí de lá e abandonei tudo. Tenho de voltar.
A mãe sabia que era verdade e receava perdê-la. Não queria que Raphaella ficasse na América. A casa dela era na Espanha.
— Por que não deixas que o teu pai trate de tudo? — Era o que Alejandra teria feito.
— Não. — Raphaella olhou-a com firmeza. — Já não sou uma criança.
— Queres levar umas das tuas primas contigo?
Raphaella sorriu meigamente.
— Não se preocupe, mãe. Estarei bem.
Alejandra tentou várias vezes voltar ao mesmo assunto, mas em vão, e Antoine recebeu a mensagem dela já muito tarde. No dia seguinte, com as mãos trêmulas, pegou no telefone e ligou para a Espanha. Pensava que talvez Raphaella tivesse contado à mãe e que iria haver escândalo. Contudo, o que Alejandra lhe disse foi apenas que Raphaella partira para a Califórnia nessa manhã, e ela queria que o marido lhe telefonasse e lhe dissesse para voltar.
— Não creio que ela me dê ouvidos, Alejandra.
— Ela ouvir-te-á, Antoine.
Este escutou aquelas palavras, recordando a cena em que Raphaella saíra de casa dele, dois dias antes, e sentiu-se grato por a filha nada ter dito à mãe.
— Não creio que ela me dê ouvidos, Alejandra. Agora já não o fará.
O avião aterrou no aeroporto internacional de São Francisco às três horas de uma tarde luminosa de dezembro. Havia sol, a temperatura era amena, soprava um vento leve, e Raphaella respirou fundo, pensando como conseguira sobreviver sem aquele ar fresco. Sentia-se melhor só por estar ali; quando foi ela própria buscar as suas malas, teve a sensação de estar mais forte, livre e independente. À saída, chamou um táxi. Dessa vez não havia nenhuma limusine à espera dela, nem deixara o avião por uma porta especial. Ninguém a acompanhara para a passagem na alfândega. Fizera o mesmo que toda a gente e sentia-se bem com isso. Estava farta de estar escondida e de ser protegida. Sabia que chegara a hora de tomar conta de si própria. Telefonara para a sua antiga casa para avisar o pessoal da sua chegada. Agora esse pessoal estava bastante reduzido, claro. Muitos tinham partido, alguns com pensões, outros com pequenas quantias deixadas em testamento por John Henry, mas todos lamentando uma era que acabara. Todos pensavam que Raphaella nunca mais voltaria e foi com assombro que tomaram conhecimento do seu regresso.
Quando o táxi parou em frente da mansão e ela tocou à campainha da porta, foi recebida com sorrisos afetuosos e amigáveis. Sentiam-se felizes por a verem, por haver alguém ali em casa, além deles próprios, embora suspeitassem de que ela não iria ficar ali muito tempo. Nessa noite, prepararam-lhe um belo jantar, com peru recheado, batatas-doces e espargos, além de uma maravilhosa torta de maçã. Na copa comentaram o aspecto de Raphaella, admirando-se de ela ter emagrecido tanto e de ter um ar tão infeliz. Diziam nunca terem visto uns olhos tão tristes. Porém, Raphaella estava melhor do que alguma vez estivera durante todo o ano que passara em Santa Eugenia, embora nenhum deles pudesse saber isso.
Para lhes agradar, Raphaella comera na sala de jantar e depois passeara lentamente pela casa. Esta lhe parecia triste, vazia, uma relíquia de outras eras. Raphaella sabia que chegara a hora de fechá-la. Se ficasse nos Estados Unidos, o que não sabia ainda se sucederia, não precisaria de uma casa tão grande. Sabia que sempre se sentiria deprimida ali. Sempre lhe lembraria John Henry, doente e inválido, como estivera nos últimos anos.
De certo modo, sentia-se tentada a ficar em São Francisco, mas numa casa muito menor... como a de Alex... em Vallejo... Apesar de todos os seus esforços para não pensar nele, os seus pensamentos voltavam-se constantemente para Alex. Ao entrar no quarto dela, recordou de imediato as noites que ali passara à espera de ir ter com ele. Pensou então no que estaria ele a fazer nesse momento, o que teria sucedido, o que teria ele feito nesse último ano. Nunca mais tivera notícias de Charlotte nem de Amanda e suspeitava que nunca mais as veria. Não tencionava entrar em contacto com elas... nem com Alex... Não tencionava telefonar-lhe para dizer que estava de volta.
Já não se considerava uma criminosa; porém, se quisesse aceitar o que sucedera, precisava enfrentar os fatos de frente, quer ficasse em São Francisco, quer voltasse para a Espanha. O que sentisse a respeito do sucedido iria determinar o curso da sua vida. Sabia disso demasiado bem e enquanto andava de uma sala para outra, tentando não pensar em Alex, não permitia a si própria sentir-se culpada pela maneira como John Henry morrera.
Era quase meia-noite quando Raphaella teve finalmente coragem para entrar no quarto de John Henry. Permaneceu ali durante bastante tempo, olhando à sua volta, recordando as horas que ali passara com ele, lendo em voz alta, conversando, jantando junto dele, com um tabuleiro sobre uma pequena mesa.
Então, sem saber por quê, recordou os poemas de que ele mais gostava e, como se já tivesse intenção de fazer isso, dirigiu-se lentamente para a estante e começou a olhar para os livros. Encontrou o estreito volume na prateleira do fundo, onde alguém o colocara. John Henry costumava tê-lo quase sempre na mesa-de-cabeceira, junto da cama. Lembrava-se agora de tê-lo visto ali na manhã seguinte... depois da noite... Pensou se ele o teria lido antes de morrer. Era uma idéia estranha, romântica, que pouco teria a ver com a realidade; porém, Raphaella sentiu-se de novo perto de John Henry quando se sentou na cama com o livro na mão, recordando a primeira vez que o tinham lido juntos, durante a lua-de-mel no Sul de França. Ele comprara aquele livro quando ainda era muito novo.
Sorrindo docemente, Raphaella folheou-o e parou de repente num trecho familiar, marcado com uma folha azul. Quando o livro se abriu na página onde se encontrava o papel, o coração de Raphaella começou a bater desordenadamente, pois ela reparou que a folha azul estava coberta com a caligrafia difícil de perceber, que fora a de John Henry nos últimos anos. Era como se ele lhe tivesse deixado uma mensagem, umas últimas palavras... Então, ao começar a ler, Raphaella percebeu que fora isso mesmo que ele fizera, e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Leu novamente a carta, devagar, enquanto as lágrimas lhe corriam abundantemente dos olhos, impedindo-a quase de ver.
«Minha querida Raphaella
É uma noite infindável, em conclusão de uma vida que parece não ter fim. Uma vida rica. E mais rica por tua causa. Que dádiva preciosa tu foste para mim, meu amor.
Um diamante de valor inestimável, sem defeito algum. Nunca deixaste de me causar assombro, de me dar prazer e alegria. Agora só posso pedir-te que me perdoes. Há muito que penso nisto. Há longos anos que desejo libertar-me. Vou-me embora agora sem a tua permissão, mas, espero, com a tua bênção. Perdoa-me, meu amor. Deixo-te com todo o amor que sempre tive para te dar. E pensa em mim não como desaparecido, mas sim como liberto.
Com todo o meu coração,
John Henry»
Raphaella leu e releu aquelas palavras: «Pensa em mim não como desaparecido, mas sim como liberto.» Afinal, ele deixara-lhe uma carta. Pedira-lhe para lhe perdoar. Como tudo era absurdo. E como ela se enganara. Não desaparecido... mas liberto. Pensou nele dessa maneira e abençoou-o, como ele lhe pedira um ano antes. E a bênção foi retribuída. Porque subitamente, pela primeira fez durante todo aquele ano, Raphaella sentiu-se também liberta. Percorreu devagar a casa, sabendo que estavam ambos livres. Ela e John Henry. Ele deixara a prisão do seu corpo, como tanto ansiara fazer. Escolhera o caminho que para ele era correto. E agora ela era livre para fazer o mesmo. Era livre de escolher o seu caminho. Voltava a ser ela mesma de corpo inteiro. De repente teve vontade de telefonar a Alex para lhe dizer que recebera a carta de John Henry, mas sabia que não podia fazê-lo. Seria uma crueldade sem par voltar a entrar na vida dele passado tanto tempo. Contudo, tinha tanta vontade de lhe dizer. Afinal eles não tinham assassinado John Henry.
Ele resolvera simplesmente partir.
Ao encaminhar-se para o seu quarto, às três da manhã, Raphaella pensava ternamente nos dois homens, em John Henry e em Alex. Amava-os a ambos mais do que nunca.
Estavam todos livres... os três. Finalmente.
Na manhã seguinte, Raphaella telefonou para uma agência imobiliária e para vários museus, para as bibliotecas das universidades da Califórnia e Stanford. Ligou também para uma empresa de mudanças, pedindo que lhe enviassem pessoas, caixotes e artigos para fazer embalagens. Era chegada a hora de agir. Decidira-se a fazê-lo. Não sabia bem o que faria, mas devia deixar a casa que fora de John Henry e não a dela. Talvez devesse voltar para a Europa, mas também não tinha ainda a certeza de fazê-lo.
A carta de John Henry absolvera-a do seu «pecado». Dobrou-a cuidadosamente e guardou-a na carteira, entre os seus documentos pessoais. Iria guardá-la no banco com alguns papéis mais importantes. Era, na verdade, o papel mais importante que ela tinha.
No fim da semana, tinha terminado de enviar os objetos que escolhera para oferecer aos museus. As duas universidades tinham dividido entre si os livros que ela oferecera. Guardou apenas alguns que tanto ela como John Henry mais apreciavam e, é claro, o livro de poemas no qual ele deixara a carta que lhe escrevera na última noite.
O pai lhe telefonara e ela o informara da carta. Fizera-se um longo silêncio do outro lado da linha e, quando o pai falou, foi para lhe pedir desculpa, com voz abafada, de tudo o que lhe dissera. Raphaella assegurou-lhe que não lhe guardava rancor; quando desligaram, ambos pensaram como poderiam apagar um ano de vida, como poderiam fazer desaparecer palavras que nunca deviam ter sido ditas, como poderiam sarar feridas que nunca cicatrizariam. No entanto, fora John Henry que cobrira com bálsamo as feridas de Raphaella, fora ele que, com a sua carta, lhe oferecera o melhor presente de todos: a verdade.
Ainda lhe parecia um sonho quando, ajudada pelas criadas e pelos empregados da agência de mudanças, acabava de fechar os últimos caixotes. Tinham levado pouco mais de duas semanas e, na semana seguinte, a do Natal, Raphaella tencionava estar de regresso na Espanha. Já não tinha realmente razão para permanecer em São Francisco.
A casa estava quase vendida a uma senhora que se apaixonara perdidamente por ela, mas cujo marido pedira mais algum tempo para fazer uma oferta de compra definitiva.
O mobiliário iria ser leiloado, exceto algumas peças que Raphaella ia enviar para a Espanha. Nada mais lhe restava a fazer ali e dentro de poucos dias Raphaella mudar-se-ia para um hotel para passar as últimas noites, antes de deixar definitivamente São Francisco. Na antiga casa, só pairavam agora no ar as recordações, como velhos fantasmas.
Recordação dos jantares na grande sala de jantar, com John Henry, vestindo traje de noite e colares de pérolas... de serões em frente da lareira... Da primeira vez que vira a casa. Teria de reunir todas essas recordações e levá-las consigo, pensava Raphaella enquanto acabaram de preparar tudo, exatamente uma semana antes do Natal, à tarde. Já escurecera, e a cozinheira preparara-lhe um jantar de ovos e presunto, aquilo que ela queria. Sentada no chão, vestindo umas velhas calças de brim, Raphaella olhou para o que a rodeava. Estava tudo pronto para os homens da empresa de mudanças levarem, assim como os objetos destinados aos leilões e a serem enviados para a Espanha, para guardar em casa da mãe. Enquanto comia os ovos e o presunto, os seus pensamentos voaram de novo para Alex e para o dia em que se tinham encontrado de novo na praia, precisamente um ano antes. Pensou se voltaria a vê-lo se fosse à praia outra vez, mas sorriu dessa improbabilidade. Esse sonho acabara também.
Quando acabou de comer, Raphaella levou o prato para a cozinha. Os últimos elementos do pessoal partiriam em breve e Raphaella descobrira que era estranhamente agradável cuidar de si própria na velha casa vazia. Agora não havia cartas para responder, nem livros para ler, nem sequer televisão para ver. Pensou pela primeira vez em ir a um cinema, mas resolveu antes dar um curto passeio e depois deitar-se. Ainda tinha algumas coisas para fazer na manhã seguinte e depois iria à companhia de aviação comprar o bilhete para regressar à Espanha.
Olhando para a vista, de quando em quando, Raphaella desceu lentamente para o centro da cidade, olhando ao passar as antigas mansões, e sabendo que não sentiria a falta delas quando saísse dali. A casa de que ela tinha saudades era muito menor, muito mais simples, pintada de creme e branco, com um pequeno jardim que se enchia de flores quando chegava a primavera. Como se os seus pés soubessem o que a cabeça estava pensando, Raphaella achou-se a caminhar nessa direção, até virar a esquina e ver que se encontrava apenas a um quarteirão de distância. Não queria na verdade ver a casa, mas sabia que desejava estar lá, sentir de novo o amor que ali conhecera. Despedira-se da casa onde vivera com John Henry e agora lhe parecia que devia dizer adeus também à casa onde conhecera Alex. Talvez então ficasse livre para encontrar outra casa, desta vez sua, e talvez um dia um homem a quem pudesse amar, como amara John Henry e Alex.
Ao aproximar-se da casa, impelida por uma atração poderosa que não sabia explicar, Raphaella sentia-se quase invisível. Era como se tivesse caminhado toda a semana para chegar ali, para ver outra vez a casa, para compreender tudo o que ela significara para si, e para dizer adeus, não às pessoas, mas à casa. Não havia luzes nas janelas e Raphaella sentiu que lá não se encontrava ninguém. Pensou se Alex estaria fora, talvez em Nova Iorque, e lembrou-se então que Mandy fora para a universidade. Talvez Mandy tivesse ido para casa passar as férias de Natal com Kay, ou ido viajar com Charlotte.
Todas essas pessoas pareceram muito distantes da vida de Raphaella, e ela permaneceu ali durante muito tempo, olhando para as janelas, recordando, sentindo tudo o que ali sentira, desejando felicidades a Alex, onde quer que ele estivesse. O que ela não viu foi a porta da garagem se abrindo, nem o Porsche preto parado à esquina. O homem de cabelo escuro sentado ao volante a olhava, fascinado. Tinha quase certeza de que era Raphaella quem se encontrava parada do outro lado da rua olhando para a casa, mas sabia que isso não era possível, que se tratava de uma ilusão, de um sonho.
A mulher que ali estava, olhando para as janelas com ar sonhador, parecia-lhe muito mais alta e mais magra do que Raphaella, vestia calças de brim, uma camisa branca de lã e tinha o cabelo preso na nuca de um modo que lhe era familiar. A silhueta era muito semelhante à de Raphaella, assim como qualquer coisa na sua expressão, pelo que ele podia ver à distância... Mas sabia que Raphaella estava na Espanha e, segundo lhe dissera a mãe, praticamente desistira de viver.
Perdera qualquer esperança de voltar a vê-la. Ela nunca respondera às suas cartas e a mãe dissera que nada poderia demovê-la da vida de clausura que levava na Espanha. Desistira de tudo o que dantes lhe agradava, desistira de sonhar, de sentir, de existir. Isso quase o matara durante um ano, mas agora acabara por aceitar a realidade. Tal como aprendera que não podia continuar vivendo atormentado por causa de Rachel, aprendera também que não podia continuar para sempre à espera de Raphaella. Ela não queria que ele fizesse isso. Percebera isso e, assim, relutantemente, desistira. Mas havia de recordá-la sempre... sempre... Nunca amara nenhuma mulher como ela... nunca.
Então, chegando à conclusão de que a mulher ali parada não podia ser Raphaella, pôs novamente o carro em movimento em direção à garagem. Do outro lado da rua, o rapaz que tanto gostava do Porsche preto, ficou olhando com a habitual admiração. Ele e Alex tinham-se tornado amigos. Um dia Alex o levara para dar uma volta no quarteirão. Nessa hora não fora o rapaz que chamara a atenção de Alex. Foi o rosto da mulher que viu no espelho retrovisor. Era ela... era ela.
Saiu do carro tão depressa quanto as suas compridas pernas lhe permitiram e precipitou-se para a porta automática antes que ela se fechasse. E depois ficou parado, sem se mexer, olhando para ela, tal como ela olhava para ele, trêmula. O rosto dela estava muito mais magro, os olhos maiores; os ombros pareciam um pouco curvados e ela tinha um ar cansado. Mas... era Raphaella, a mulher com quem ele sonhara durante tanto tempo e que julgara não mais voltar a ver. E agora, subitamente, ela estava ali, olhava-o, e ele nem sabia se ela ria ou chorava. Havia um leve sorriso nos lábios dela, mas as luzes da rua faziam brilhar as lágrimas que lhe corriam pelas faces.
Alex não lhe disse nada. Ficou parado, imóvel, enquanto ela começava a avançar lentamente para ele, com cuidado, como se estivesse atravessando um rio a vau, um rio que corresse entre eles. As lágrimas saíam agora dos olhos dela em largo caudal, mas o sorriso se alargara e por fim Alex sorriu também. Não sabia bem por que motivo ela estava ali, se fora apenas vê-lo, ou se apenas recordava um sonho. No entanto, agora que a via de perto, não a deixaria partir mais. Não, dessa vez ela não mais partiria.
Subitamente transpôs o último espaço que os separava e apertou-a nos braços. Os lábios dele pousaram nos dela, enquanto sentia o seu próprio coração batendo loucamente e depois o dela, quando a apertou mais contra si e a beijou outra vez. Ficaram no meio da rua, se beijando, mas não havia ninguém ali, nem sequer carros passando. Na rua, além deles, encontrava-se apenas o rapazinho que viera admirar o Porsche e agora os via se beijarem. Porém, era o Porsche que o enchia de admiração, não aqueles dois adultos agarrados um ao outro no meio de Vallejo, rindo baixinho enquanto o homem limpava as lágrimas dos olhos da mulher.
Beijaram-se mais uma vez ali, depois entraram devagar no jardim, de braço dado, e desapareceram no interior da casa, enquanto o garoto encolhia os ombros e olhava mais uma vez para a garagem que guardava o carro dos seus sonhos.
Danielle Stell
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