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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Avó Dan / Danielle Stel
A Avó Dan / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Avó Dan

 

          

 

   

    A caixa chegou numa tarde nervosa duas semanas antes do Natal. Muito bem embrulhada e atada com cordel, estava à minha espera na soleira da porta quando cheguei a casa com as crianças. Tínhamos parado no parque no caminho para casa e eu ficara sentada num banco a olhar pelas crianças e a pen­sar de novo nela. Desde o serviço religioso, há uma semana atrás, que povoava todos os meus pensamentos. Havia tanta coisa sobre ela que eu desconhecia, que apenas podia imaginar, tantos mistérios que só ela podia desvendar. O meu maior desgosto era não lhe ter perguntado nada sobre a sua vida enquanto tivera oportunidade, partindo simplesmente do pressuposto de que não era importante. Afinal de contas, já era velha, que importância poderia a sua vida ter? Pensava que sabia tudo sobre ela.

 

Era a avó de olhos brilhantes que adorava andar de patins comigo, mesmo aos oitenta anos, que fazia deliciosos biscoi­tos e conversava com as crianças da cidade onde vivia como se fossem adultos e a entendessem perfeitamente. Era muito sensata e divertida, as crianças adoravam-na e ficavam fascina­das com os truques com cartas que executava, quando a con­seguiam convencer a isso.

 

Tinha uma voz meiga, tocava balalaica e cantava baladas antigas em russo. Parecia estar sempre a cantar ou a trautear. Permaneceu elegante e ágil até ao fim, amada e admirada por todos os que a conheceram. A igreja estivera surpreendente­mente cheia para uma mulher de noventa anos. No entanto, nenhum de nós a conhecia na realidade, ninguém sabia quem fora ou sequer imaginava o extraordinário mundo de onde viera. Sabíamos que nascera na Rússia, que chegara a Vermont em 1917 e que casara com o meu avô pouco tempo depois. De resto, achávamos que sempre ali estivera e fizera parte das nossas vidas. Como sempre fazemos com os mais velhos, partíramos do princípio de que sempre fora velha.

 

    Nenhum de nós a conhecia verdadeiramente e o que não me saía da cabeça eram as perguntas por responder. Interrogava-me por que razão nunca antes me ocorrera colocar-lhe essas questões, porque jamais procurara as respostas para essas perguntas?

 

A minha mãe falecera dez anos antes e talvez nem mesmo ela conhecesse as respostas, ou quisesse sequer conhecê-las. Fora sempre mais parecida com o seu pai, uma pessoa cir­cunspecta, urna mulher sensata, uma verdadeira natural de Nova Inglaterra, embora o seu pai o não fosse. Tal como ele, era uma mulher de poucas palavras e de sentimentos imperscrutáveis. Acreditava que quanto menos se revelasse melhor e, da mesma forma, pouco interesse demonstrava na vida de outras pessoas. Ia ao supermercado quando os tomates ou os morangos estavam em promoção, era uma pessoa prática que vivia no mundo material e que pouco tinha em comum com a sua mãe. A palavra que melhor a descrevia era «pragmática», um termo que ninguém utilizaria para descrever a sua mãe, a avó Dan, como eu lhe chamava.

 

A avó Dan era uma pessoa mágica. Parecia composta de ar, pós de perlimpimpim e asas de anjo. Mãe e filha pareciam não ter nada em comum e, na realidade, sempre me identifiquei mais com a minha avó, cuja ternura e carinho me toca­ram de forma indelével. A avó Dan era a pessoa que eu mais amava e de quem sentia tanta falta naquela tarde nervosa no parque. Falecera dez dias antes, com noventa anos de idade.

 

Quando a minha mãe morreu, com cinqüenta e quatro, fiquei obviamente triste. Sabia que sentiria saudades dela, que sentiria falta da estabilidade e segurança que representava para mim. O meu pai casou com a melhor amiga da minha mãe um ano após a sua morte e nem isso me chocou muito. Ti­nha sessenta e cinco anos e um problema cardíaco, por isso, precisava de alguém que lhe cozinhasse as refeições. Connie era uma velha amiga e fazia bem as vezes da minha mãe. A si­tuação nunca me incomodou, compreendia-a até muito bem. Nunca sofri muito com a perda da minha mãe, mas já com a morte da avó Dan o mundo perdera para mim alguma da sua magia. Sabia que nunca mais a escutaria a cantar as suas melo­dias russas ou tocar a balalaica e que os meus filhos nunca se aperceberiam do que haviam perdido. Para eles, ela era ape­nas uma senhora muito velhinha com um olhar muito meigo e uma pronúncia divertida, mas eu sabia exatamente o que perdera e nunca mais recuperaria. A avó Dan era um ser hu­mano admirável, uma alma gentil, difícil de esquecer.

 

A caixa ficou em cima da mesa da cozinha durante bas­tante tempo, enquanto as crianças viam televisão, clamavam pelo jantar e eu acabava de prepará-lo. Tinha ido ao super­mercado naquela tarde e comprara os ingredientes necessários para confeccionar bolinhos de Natal. Planeáramos fazê-los na­quela noite para que os pudessem levar para a escola no dia seguinte. Katie preferia fazer queques, mas Jeff e Mathew concordaram em fazer bolinhos em forma de sino, com deco­rações encarnadas e verdes. Era a noite ideal para os fazer, pois Jack, o meu marido, ausentara-se por três dias para uma série de reuniões em Chicago. Acompanhara-me ao funeral na semana anterior e mostrara-se carinhoso e compreensivo. Sabia o quanto ela significava para mim, porém, tal como a maioria das pessoas, tentara convencer-me de que a avó Dan tivera uma vida longa e cheia de alegrias, pelo que era aceitá­vel que tivesse chegado ao fim. Aceitável para ele, não para mim. Sentia-me defraudada com a sua perda.

 

Mesmo aos noventa anos, a avó era ainda bela. Usava os seus longos cabelos brancos entrançados e, em ocasiões espe­ciais, formava um coque com a trança. Toda a vida usara o cabelo daquela maneira. Para mim, tivera sempre o mesmo aspecto. As costas muito direitas, o corpo esguio, os olhos azuis que brilhavam quando olhava para nós. Também fazia os mesmos biscoitos que eu planeara fazer naquela noite e en­sinara-me a confeccioná-los, mas quando os fazíamos punha os seus patins e dançava graciosamente por toda a cozinha. A avó fazia-me rir e, por vezes, chorar com as suas maravi­lhosas histórias sobre bailarinas e príncipes.

    

      Foi ela que me levou ao bailado pela primeira vez e, se ti­vesse tido oportunidade, teria adorado dançar com ela. Po­rém, não havia nenhuma escola de bailado em Vermont e a minha mãe não queria que ela me ensinasse. Bem tentou uma vez ou duas, mas a minha mãe achava que era mais importan­te fazer os trabalhos de casa e ajudar o meu pai com as duas vacas que tínhamos no celeiro. A dança não fez parte da mi­nha vida enquanto criança, nem a música. A magia e o mistério, o encanto e a arte, a curiosidade por mundos de horizon­tes mais alargados que o meu foram-me despertadas pela avó Dan ao longo de todas as horas que passava sentada na cozi­nha a ouvi-la.

 

Andava sempre de preto e parecia ser dona de um sem--número de vestidos negros já gastos e de chapéus bastante curiosos. Arranjava-se sempre bem e dela emanava uma espé­cie de elegância natural, embora o seu guarda-roupa nunca ti­vesse sido muito espetacular.

 

O seu marido, o meu avô, morrera de pneumonia quan­do eu era criança. Certa vez, quando tinha doze anos, per­guntei-lhe se o amara, se o amara de verdade. Fez um ar sobressaltado quando a surpreendi com a pergunta, mas aos poucos começou a sorrir, hesitando um pouco antes de me responder.

 

— Claro que sim — asseverou no seu sotaque russo. — Ele era muito bom para mim, um homem encantador.

 

Não era bem a resposta que esperava. Queria era saber se se apaixonara loucamente, como uma das princesas das histó­rias que costumava contar-me.

 

O meu avô nunca me parecera muito garboso e era bas­tante mais velho do que ela. Das fotografias que vira concluí que se parecia bastante com a minha mãe, com um ar sério e até um pouco severo. Naquela época não era costume as pes­soas sorrirem para as fotografias. Era difícil imaginar o meu avô com a minha avó. Quando se conheceram em 1917, o ano em que ela desembarcou na América vinda da Rússia, o avô tinha mais vinte e cinco anos que ela e perdera a mu­lher alguns anos antes. Não tinha filhos e não voltara a casar. A avó dizia que, quando se conheceram, estava muito sozi­nho e fora muito bom para ela, embora nunca revelasse mais pormenores. A avó devia ser linda nessa altura e ele deve ter ficado deslumbrado. Casaram dezasseis meses depois de se conhecerem. A minha mãe nasceu um ano depois e não tive­ram mais filhos. O meu avô adorava a filha, provavelmente por esta se parecer tanto com ele. Era tudo o que eu sabia e sempre soubera. O que eu desconhecia era o que acontecera antes disso, quem era a avó Dan enquanto jovem, de onde viera exatamente e porquê. Os pormenores históricos pare­ciam-me insignificantes quando era criança.

 

Sabia que freqüentara uma escola de bailado em Sampetersburgo e que conhecera o czar, mas a minha mãe não gos­tava que me contasse essas coisas. Dizia que isso só me enche­ria a cabeça de idéias sobre pessoas e lugares que nunca conheceria e a minha avó respeitava os desejos da filha. Falá­vamos das pessoas que conhecíamos em Vermont, dos lugares onde tinha estado, do que fazia na escola. Quando íamos pa­tinar no lago gelado, ficava sempre com um ar sonhador du­rante algum tempo e eu percebia que estava a pensar na Rús­sia e nas pessoas que lá conhecera. Independentemente do que dissesse, tudo isso fazia ainda parte dela e eu via que essas pessoas lhe eram ainda caras, mesmo passados cinqüenta anos. Sabia que toda a sua família, o pai e os quatro irmãos, haviam morrido durante a guerra, combatendo pelo czar. Viera para a América, nunca mais vira nenhum deles e refizera a sua vida em Vermont. Mesmo assim, as pessoas que conhecera e ama­ra permaneceram no seu coração, fazendo sempre parte de si, uma parte que não podia ser negada, por muito que a escon­desse.

 

Certo dia, quando procurava no sótão um dos seus vesti­dos antigos para usar numa peça da escola, encontrei as suas sapatilhas num baú aberto. Estavam bastante gastas e pareciam minúsculas na minha mão. Apesar do cetim já coçado, não deixavam de ter um aspecto mágico. Mais tarde perguntei-lhe se eram suas.

 

— Bem — respondeu, surpreendida ao princípio, mas sorrindo depois, ao pensar nelas. — Usei-as na última noite em que dancei com a Companhia de Bailado de Sampetersburgo no Teatro Mariinsky. A czarina estava lá, bem como as grã-duquesas. — Desta vez esqueceu-se de pôr o seu ar cul­pado enquanto me revelava estas coisas. — Dançámos O Lago dos Cisnes. Foi um espetáculo maravilhoso. Na altura, não sabia que seria o meu último. Nem sei porque guardei as sa­patilhas. Tudo se passou há tanto tempo, querida...

 

Com isto fechou a porta às suas memórias e entregou-me uma caneca de chocolate quente com uma montanha de natas batidas enfeitadas com raspas de chocolate e canela.Queria fazer-lhe mais perguntas sobre o bailado, mas de­sapareceu durante alguns momentos e regressou com o seu bordado enquanto eu fazia os trabalhos de casa na mesa da cozinha. Nessa noite já não tive oportunidade de lhe voltar a perguntar e, por fim, acabei por esquecer o assunto. Sabia que dançara numa grande companhia de bailado, todos sabía­mos, mas era difícil imaginá-la como prima ballerína. Era a mi­nha avó, a avó Dan, a única na cidade com o seu próprio par de patins, que usava orgulhosamente com um dos seus vesti­dos pretos. De cada vez que ia à cidade, em especial ao ban­co, punha sempre um chapéu e luvas, os brincos prediletos e o ar de quem ia fazer alguma coisa importante. Mesmo quan­do me ia buscar à escola no seu carro antigo tinha um ar dig­no e ficava sempre muito feliz por me ver. Era tanto mais fá­cil ver quem ela era na altura e tanto mais difícil recordar quem fora. Compreendo agora que nunca quis que nos recordássemos. Era aquilo em que se tornara: a viúva do meu avô, a mãe da minha mãe, a avó que fazia biscoitos russos.

 

Por vezes, punha-me a imaginar se a avó Dan ficava acor­dada à noite a pensar no seu passado, a recordar o que sentira quando dançara O Lago dos Cisnes para a czarina e para as fi­lhas. Teria esquecido tudo isso, grata pela vida que levava conosco em Vermont? As suas duas vidas tinham sido com-pletamente diferentes, de tal forma que nos permitiu esquecer o seu passado, acreditar que era uma pessoa diferente do que havia sido na Rússia. Deixou-nos acreditar nisso durante os anos que passou conosco e nós, em troca, permitimos que se esquecesse também, ou forçamo-la a isso, tornando-a a pessoa que queríamos que fosse. Aos meus olhos, ela nunca fora jo­vem. Aos olhos da minha mãe, nunca fora bela, encantadora e bailarina. Aos olhos do seu marido, nunca fora senão sua. Nem sequer gostava de ouvir falar do seu pai e dos irmãos, pois faziam parte de um mundo ao qual não queria que ela pertencesse mais. Talvez não quisesse que recordasse o passado.

 

Foi sua até ao dia em que morreu e no-la deixou, se bem que acabasse por ser mais minha do que da minha mãe. Elas nunca foram muito chegadas, ao contrário de nós. A avó Dan significava tudo para mim, as suas extravagâncias fizeram de mim o que sou, foi a sua sagacidade que me encorajou a sair de Vermont. Depois de acabar a universidade fui para Nova Iorque, arranjei um emprego na área da publicidade, casei e tive três filhos. O meu marido é um homem bom, tenho uma vida que adoro e há sete anos que não trabalho. Planeio voltar a fazê-lo um dia, quando as crianças forem mais velhas e não precisarem tanto de mini, quando já não sentir que de­vo estar em casa com elas a fazer biscoitos.

 

Quando for velha, quero ser como a avó Dan. Quero an­dar de patins na minha cozinha, ir patinar no gelo, como fazia com ela. Quero fazer rir os meus filhos e os meus netos e re­cordar as coisas que fazia por eles. Quero que se lembrem dos biscoitos de Natal em forma de sino, de decorarmos a árvore juntos, do chocolate quente que, tal como ela, lhes preparo enquanto fazem os trabalhos de casa. Quero que a minha vida signifique alguma coisa para eles e que o tempo que passamos juntos seja importante. Porém, também pretendo que saibam quem eu fui, porque vim para aqui, e que amo muito o pai deles.

 

Não existem mistérios na minha vida ou histórias secretas. Não posso gabar-me de proezas como as dela, de dançar O Lago dos Cisnes enquanto a Rússia imperial se encaminhava para uma revolução. Não consigo sequer imaginar como a sua vida terá sido ou o quanto terá deixado para trás quando veio para a América. Não sei o que será nunca mais falar so­bre isso e perder todas as pessoas que amamos, ou como será para uma pessoa vinda da Rússia chegar a um local como Vermont. Gostava de saber por que motivo a avó nunca falou comigo sobre isso. Talvez porque não queríamos que fosse Danina Petroskova, a bailarina. Apenas desejávamos que fos­se a avó Dan, a nossa mãe, a nossa esposa, a nossa avó. Isso tornava as coisas mais fáceis para nós, não tínhamos de sentir que éramos menos importantes do que a sua vida passada, ou do que ela. Não precisávamos de conhecer ou sentir a sua dor, o seu sofrimento se, pura e simplesmente, não o conhe­cêssemos. Agora, porém, desejava ter sabido mais sobre ela, tê-la conhecido nessa altura.

 

Coloquei o embrulho de lado enquanto fazia os sinos de Natal com Jeff e Matt. Depois, fiz os queques com Katie que conseguiu espalhar a farinha por cima dela e por toda a cozinha.Já era tarde quando deitei finalmente as crianças e Jack telefonou de Chicago. Tivera um dia cansativo, mas as reuniões tinham corrido bem. Já me esquecera por completo do embrulho e só quando fui à cozinha buscar qualquer coisa para beber, passava já da meia-noite, voltei a lembrar-me dele. Es­tava ainda ali à minha espera, com um pouco de massa de queque no cordel e pó verde e vermelho dos enfeites dos si­nos no papel.

 

Peguei no embrulho, sacudi-lhe a sujidade e sentei-me à mesa da cozinha com ele à frente. Demorei ainda alguns mi­nutos a abri-lo. Fora enviado da casa de repouso onde a avó Dan passara o último ano de vida. Já lá tinha ido após o fune­ral buscar todos os seus pertences e agradecer tudo o que fize­ram por ela. A maior parte das suas coisas estava muito gasta e pouco pôde ser aproveitado, apenas um molho de fotografias dos miúdos e alguns livros. Fiquei com uma coletânea de poesia russa que a avó gostava muito e deixei os outros para as enfermeiras. Tudo o que guardei da avó, e que era impor­tante para ela, foi a sua aliança de casamento, o relógio de ouro que o meu avô lhe oferecera antes de casarem e um par de brincos. A avó dissera-me certa vez que o relógio fora o primeiro presente que o meu avô lhe dera. Nunca fora muito generoso com ela em termos de presentes ou jóias, embora nunca lhe deixasse faltar nada. Havia ainda uma coberta de cama em renda que trouxe comigo e guardei no meu armá­rio, mas tudo o resto foi doado, por isso, não podia imaginar o que estaria dentro do embrulho.

 

O papel escondia uma caixa quadrada grande e quando lhe peguei, constatei que era pesada. Um bilhete colado à tampa afirmava que fora encontrada por cima do guarda--vestidos da avó. Quando retirei a tampa, o que o interior da caixa me revelou fez-me suster a respiração durante um mo­mento. Estavam exatamente como as recordava, as pontas gastas e um pouco coçadas, as fitas desbotadas e sem brilho. Eram as sapatilhas de pontas da avó, as que eu vira anos antes no seu sótão. Eram o último par que usara antes de deixar a Rússia. Havia ainda um medalhão de ouro com a fotografia de um homem de barba e bigode bem aparados e um ar bas­tante elegante. Os olhos brilhavam, como os da avó, e pare­ciam sorrir para nós, embora na verdade o homem não esti­vesse a sorrir. Encontrei ainda fotografias de outros homens fardados que presumi serem o seu pai e irmãos. Um dos rapa­zes parecia-se incrivelmente com ela. Havia também um pe­queno retrato da sua mãe, que me pareceu já ter visto, o pro­grama da sua última atuação em O Lago dos Cisnes e uma fotografia de um grupo de bailarinas sorridentes. No centro destacava-se uma rapariga muito bela, cujos olhos e feições nada mudaram desde então. Era fácil perceber que era Danina. Estava lindíssima e obviamente feliz, sorria e todas as res­tantes raparigas olhavam para ela com carinho e admiração.

 

No fundo da caixa descobri um maço grosso de cartas atadas com uma fita azul já desbotada. Verifiquei que estavam em russo, numa caligrafia simples, elegante e ao mesmo tempo masculina. Percebi que a resposta a todas as minhas perguntas se encontrava ali, a revelação dos segredos que ela nunca par­tilhara depois de deixar a sua terra natal. Tantas faces alegres, tantas pessoas que amara e abandonara por uma vida que não poderia ter sido mais diferente.

 

Peguei nas sapatilhas e acariciei cuidadosamente o cetim, pensando nela. Como fora corajosa, forte e o quanto deixara para trás. Perguntava-me se algumas daquelas pessoas estariam ainda vivas, se a avó fora igualmente importante para elas, se também guardariam fotografias suas. Pus-me a imaginar o ho­mem que escrevera todas aquelas cartas, o que teria represen­tado para ela e o que lhe teria acontecido, mas só pela forma cuidadosa como a avó atara a fita, pelo fato de ter guardado as cartas durante quase um século e as ter levado para a casa de repouso, percebi, mesmo sem ser capaz de ler o seu con­teúdo, que aquele homem fora muito importante para ela e que a amara profundamente.

 

A avó tivera uma outra vida antes de entrar na minha, nas nossas vidas, marcada pela magia, pelo encanto, pela beleza, e tão diferente da que tivera em Vermont. Recordei-me do ar austero que o meu avô tinha nas fotografias e desejei que aquele homem tivesse trazido alguma felicidade à avó, a tives­se amado. A avó levara os seus segredos consigo para o túmu­lo e agora deixava-os a mim, com as suas sapatilhas, o progra­ma d'O Lago dos Cisnes e as cartas dele.Olhei mais uma vez para a fotografia no medalhão e per­cebi instintivamente que as cartas eram dele. Mais uma vez era assolada por mil perguntas para as quais não havia respos­ta. Lembrei-me de mandar traduzir as cartas para saber o que diziam, mas, ao mesmo tempo, senti que invadir os segredos que estas continham representava uma espécie de intrusão. A avó não me tinha dado as cartas, apenas as deixara, porém, sabendo como éramos chegadas, esperava que não se impor­tasse. Afinal de contas, éramos almas gêmeas. Deixara-me centenas de recordações dos tempos que passamos juntas, das coisas que fizemos, dos contos de fadas que me contava. Tal­vez não se importasse de partilhar comigo também aquela parte da sua vida. Esperava que não. O entusiasmo resultante da descoberta das cartas e das fotografias era indomável. Não havia como escapar às verdades que a avó escondera toda uma vida.

 

Para mim, foi sempre velha, sempre minha, sempre a avó Dan, mas numa outra época, num outro local, tivera uma ou­tra vida, marcada pelo bailado, pela felicidade, pelo amor, muito antes de entrar na minha, nas nossas vidas. Apenas me deixara alguns vestígios dessa vida, a lembrar-me que também fora jovem. Quando finalmente compreendi isso, olhei para a jovem bailarina sorridente no centro da fotografia e senti uma lágrima correr-me pela face abaixo ao mesmo tempo que sor­ria e segurava as sapatilhas. Enquanto o velho cetim cor-de-rosa me acariciava a face, olhei para o molho de cartas na es­perança de que este me revelasse por fim a sua história. Senti que havia muito para contar.

 

Danina Petroskova nasceu em Moscovo em 1895. O seu pai era oficial do Regimento de Litovsky e os quatro irmãos eram também militares. Altos, elegantes e muito amigos, tra­ziam-lhe chocolates sempre que a visitavam. O mais novo ti­nha mais doze anos do que Danina. Quando estavam em casa cantavam, brincavam com ela, deixavam-na empoleirar-se nas suas costas a fazer de conta que eram os seus cavalos e faziam sempre muito barulho. Danina adorava ser o centro das aten­ções dos irmãos. Era óbvio para qualquer pessoa que a ama­vam muito.

 

O que Danina recordava da mãe era o seu belo rosto e os modos brandos, um perfume que cheirava a lírios e que can­tava para ela adormecer depois de lhe ter contado bonitas his­tórias sobre a sua infância. Estava sempre a rir e Danina ado­rava-a. Morreu de febre tifóide quando a filha tinha cinco anos e, a partir daí, tudo mudou na vida da pequena Danina.O pai não fazia a mínima idéia do que fazer com a filha. Não estava preparado para tomar conta de uma criança, espe­cialmente tão nova e rapariga. Visto que tanto ele como os fi­lhos estavam no exército, contratou uma mulher para tomar conta da filha, mas ao fim de dois anos percebeu que a situa­ção não podia continuar daquela forma e que tinha de a re­solver depressa. Por fim, encontrou o que lhe pareceu ser a solução perfeita e partiu para Sampetersburgo para tratar dos preparativos. Ficou muito bem impressionado com Madame Markova; era uma mulher extraordinária e a escola e compa­nhia de bailado que dirigia proporcionariam a Danina não só um lar, como também um bom futuro. Se esta provasse ter o talento necessário, poderia ali viver enquanto pudesse dançar. Seria uma vida difícil e que requereria muitos sacrifícios, con­tudo o pai de Danina acreditava que a filha seria capaz. A sua esposa também gostava muito de ballet e teria ficado muito contente com a sua decisão. Seria muito dispendioso mante-la ali, mas achava que o sacrifício que teria de fazer seria bem recompensado se, no futuro, a filha se revelasse uma grande bailarina, o que considerava muito provável, pois Danina era uma menina invulgarmente graciosa.

 

O pai e dois dos irmãos acompanharam-na a Sampetersburgo em Abril, depois de ela ter completado sete anos. En­quanto contemplava a sua nova casa, todo o seu corpo tre­mia. Estava aterrorizada e não queria que a deixassem ali, mas não havia nada que pudesse fazer ou dizer para os impedir. Ainda em Moscovo, suplicara ao pai que não a mandasse para a escola de bailado; ele limitara-se a argumentar que era uma oportunidade que mudaria a sua vida, que um dia se tornaria uma grande bailarina e ficaria feliz por ter ido para lá.

 

No entanto, no dia fatídico não conseguia pensar na vida que estava a ganhar, apenas no que estava a perder. Manteve --se muito direita, segurando a sua pequena mala, enquanto uma senhora já idosa lhes abria a porta. Conduziu-os através de um vestíbulo escuro e Danina escutou alguém a gritar ao longe, o som de música, vozes, e alguma coisa a bater ruido­samente no chão. Todos os sons em seu redor lhe pareceram estranhos e sinistros, as salas que atravessavam escuras e frias. Chegaram por fim ao gabinete onde eram aguardados por Madame Markova. Era uma mulher de cabelo escuro, que usava penteado em rolo, rosto pálido sem rugas, e olhos azuis que pareciam atravessar Danina. Assim que pôs os olhos na criança, esta sentiu uma enorme vontade de chorar, mas não se atreveu a tal, pois estava demasiado assustada.

 

— Bom dia — cumprimentou Madame Markova num tom áspero. — Estávamos à tua espera — disse, soando a Danina como o Diabo às portas do Inferno. — Terás de traba­lhar arduamente se quiseres viver conosco — advertiu en­quanto Danina acenava que sim com a cabeça, já que o nó que tinha na garganta a impedia de falar. — Compreendes o que te digo? — Falava de forma muito clara e Danina olhou para ela com o terror que sentia estampado no rosto. — Dei­xa-me olhar para ti — disse então, rodeando a secretária. Vestia uma saia preta comprida e um pequeno casaco, tam­bém preto, sobre um maillot. A roupa era exatamente da mesma cor do cabelo. Examinou as pernas de Danina, levan­tou-lhe a saia para as observar melhor e pareceu satisfeita com o que viu. Olhou para o pai de Danina e acenou com a cabeça.

 

Depois informamo-lo do progresso da menina, coro­nel. Como lhe disse, o bailado não é para qualquer um.

 

Ela é uma boa menina — observou com carinho, e ambos os irmãos sorriram orgulhosamente.

 

Agora,  podem  deixar-nos  —  disse   então  Madame Markova, percebendo que a criança estava prestes a entrar em pânico.  O pai e os irmãos despediram-se dela. As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Pouco tempo depois, deixaram-na sozinha com a mulher que a partir daí comandaria a sua vida. Um profundo silêncio instalou-se no gabinete depois de eles partirem. Nem a professora nem Danina pronunciaram uma única palavra e o único som que se ouvia eram os soluços reprimidos da criança.

 

Agora podes não acreditar em mini, minha querida, mas serás feliz aqui. Um dia, esta será a única vida que quererás ou conhecerás.

 

Danina olhou para ela com desconfiança. Madame Mar­kova levantou-se, deu a volta à secretária e estendeu a Danina a sua longa e graciosa mão.

 

— Vem comigo, vamos conhecer os teus futuros amigos.

 

Não era a primeira vez que Madame Markova acolhiacrianças tão novas. Na verdade, até preferia que tal aconteces­se, pois, se fossem de fato

dotadas, essa era a única maneira de as treinar convenientemente, de fazer com que o ballet fos­se a sua única vida, o seu único mundo, a única coisa a que aspirariam. Para além disso, existia qualquer coisa na criança que a intrigava. Havia nela algo de resplandecente e de mági­co e, enquanto percorriam os corredores longos e frios de mãos dadas, a professora sorria de satisfação sem que Danina disso se apercebesse.

 

     Pararam em cada aula durante breves momentos, come­çando pelos que já entravam em espetáculo. Madame Markova queria que ela visse aquilo por que teria de lutar, a emo­ção da forma como dançavam, a perfeição do estilo e a disciplina necessária para a atingir. Daí, passaram para os baila­rinos mais novos, já artistas dignos de honra e que a podiam inspirar. Por fim, pararam na aula com a qual ela iria exerci­tar-se e dançar. Ao observá-los, Danina nem conseguia ima­ginar como seria algum dia capaz de dançar como eles. Ou viu-se então uma pancada seca que fez Danina estremecer de medo. Madame Markova acabava de bater no chão com a bengala que transportava para esse fim.

 

A professora fez sinal à classe para parar e Madame Mar­kova apresentou Danina, explicando que viera de Moscovo para viver ali com eles. Seria agora a aluna mais nova e pro­vavelmente a mais infantil, já que os outros estavam habitua­dos a ser regidos por uma disciplina severa que os fazia pare­cer mais velhos. O aluno mais novo até então era um rapaz da Ucrânia que tinha nove anos. Havia algumas raparigas com quase dez e uma com onze. Já dançavam há dois anos e Da­nina teria de trabalhar muito para conseguir acompanhá-los. À medida que o resto das crianças sorria para ela e se apresen­tava, uma a uma, Danina começou a sorrir timidamente. Era como ter muitas irmãs em vez de apenas irmãos, pensou. Quando, após o almoço, a levaram para ver o seu lugar no dormitório, já se sentia integrada. À noite, quando se foi dei­tar na sua cama pequena, dura e estreita, adormeceu a pensar no pai e nos irmãos. Tinha muitas saudades deles, mas a rapa­riga da cama ao lado, ao ouvi-la chorar, levantou-se e foi consolá-la e, em pouco tempo, havia mais raparigas sentadas em seu redor. Contaram-lhe várias histórias de bailados, das maravilhosas coisas que partilhavam, da emoção de dançar Coppélia e O Lago dos Cisnes para o czar e a czarina. O que contavam era tão emocionante que Danina em breve esque­ceu as suas tristezas e adormeceu.

 

No dia seguinte, acordaram-na às cinco da manhã e de­ram-lhe o seu primeiro maillot e um par de sapatilhas. Toma­vam o pequeno-almoço todos os dias às cinco e meia e, às seis, estavam já na sala de aula a fazer exercícios de aqueci­mento. Por volta da hora do almoço, Danina sentia-se já completamente integrada.

 

Madame Markova viera repetidas vezes ver como ela estava e todos os dias observava o seu progresso, pois queria certificar-se de que aprendia bem a téc­nica antes de começar sequer a dançar. Percebeu de imediato que a pequena menina receosa que viera de Moscovo era uma criança extraordinariamente graciosa e com um corpo perfeito para ser bailarina. Estava talhada para a vida que o pai escolhera para ela e, em pouco tempo, tornou-se claro paratodos os professores que Danina Petroskova nascera para ser bailarina.

 

Tal corno Madame Markova prometera no primeiro dia, a vida de Danina na escola era muito rigorosa, exigindo tra­balho árduo e sacrifícios maiores a cada dia que passava. Nos primeiros três anos, a sua determinação nunca fraquejou ou diminuiu. Aos dez anos vivia apenas para dançar e lutava constantemente pela perfeição. Os seus dias contavam catorze horas de trabalho passadas quase exclusivamente na sala de au­las. Parecia nunca se cansar e sempre determinada em ultra­passar o que aprendera. Madame Markova estava muito satis­feita com ela e não se cansava de o repetir ao seu pai nas visitas regulares que este lhe fazia. Também ele ficava sempre muito contente com os progressos da filha e feliz por ter to­mado a decisão certa.

 

Quando veio assistir à sua primeira grande atuação em palco, tinha ela catorze anos, Danina interpretou o papel da rapariga que dança a mazurca com Franz, no bailado Coppelia. Por esta altura, fazia já parte do corpo de bailado, não sendo mais uma mera aluna, e isso agradava bastante ao pai. Foi uma atuação maravilhosa e Danina esteve magnífica. A sua preci­são, elegância, estilo e talento não passaram despercebidos a ninguém. Havia lágrimas nos olhos do pai quando a viu dan­çar e nos de Danina quando o abraçou nos bastidores após o espetáculo. Fora a noite mais bela da sua vida e tudo o que queria fazer era agradecer ao pai por a ter trazido para a escola de bailado. O ballet era a única vida que conhecia e a única que desejava.

 

Dançou o papel da Fada dos Lilases em A Bela Adormecida um ano mais tarde e, aos dezesseis anos, fez um desempenho notável em La Bayadère. Aos dezessete era já prima ballerina e a sua atuação em O Lago dos Cisnes foi de tal forma deslum­brante, que ninguém a esqueceu. Madame Markova sabia que, em alguns aspectos, faltava a Danina uma certa maturi­dade, pois pouco conhecia da vida ou do mundo. No entan­to, a sua técnica e o seu estilo eram tão extraordinários que a distanciavam das suas colegas.

 

Por essa altura, a czarina tinha já reparado nela, bem co­mo as suas filhas. Com dezenove anos, em Abril de 1914,

Danina dançou numa atuação privada para o czar no Palácio de Inverno. Em Maio, foi mais uma vez convidada a dançar para a família imperial na sua residência de Peterhof e a jantar com eles juntamente com Madame Markova e mais algumas estrelas do corpo de bailado. Foi uma festa e uma homena­gem com um significado maior para si do que para qualquer outro dos presentes. Ser reconhecido pelo czar e pela czarina era a maior honra, o único tributo que ansiara, por isso, colo­cou uma pequena fotografia da família imperial ao lado da sua cama. Gostara especialmente de conhecer a grã-duquesa Olga, alguns meses mais nova do que ela, e o czaréviche, que ti­nha apenas nove anos, mas que achou Danina muito bela, tal como toda a gente que a conhecia.

 

À medida que atingia a maturidade, Danina adquiriu uma graciosidade rara, uma docilidade e porte, alguma malícia e um esplêndido sentido de humor. Não era pois de admirar que o czaréviche a adorasse. Era um rapaz muito delicado e estivera doente durante toda a infância. Apesar da sua fragili­dade, Danina brincava com ele e tratava-o como uma pessoa normal. Era uma criança sensata com uma grande nobreza de sentimentos e falava constantemente de Danina. Ela parecia-Ihe tão forte, tão saudável.

 

Danina prometeu a Alexei que o deixaria assistir a uma das suas aulas, se a sua saúde e Madame Markova o permitis­sem, embora não lhe passasse pela cabeça que recusasse uma visita de tal importância. Devido à hemofilia de que sofria, havia sempre dois médicos perto dele para se certificarem de que não lhe acontecia nada. Tinha um ar tão doente, tão frá­gil, e, ao mesmo tempo, tão caloroso, afável e afetuoso. A czarina ficara muito enternecida ao ver a dedicação que Danina demonstrava pelo filho.Em conseqüência, Madame Markova recebeu um convite da czarina para que viesse passar uma semana a Livadia, a residência de Verão da família imperial na Crimeia, e trouxesse Danina com ela. Era uma honra enorme, mas, ainda assim, Danina sentiu alguma relutância em aceitar o convite. Não suportava a idéia de abandonar as aulas e os ensaios por sete dias. A sua vida, monástica, severa, esgotante, austera e bru­talmente exigente, reclamava tudo dela e ela concedia-lhe tudo o que tinha, por isso, há muito que excedera as expectativas de Madame Markova. Esta levou cerca de um mês a convencê-la a aceitar o convite e, mesmo assim, só porque lhe fez ver que seria uma afronta para a czarina não aceitar.

 

Foram as suas primeiras férias, a primeira vez na vida, des­de os sete anos de idade, em que os seus dias não começavam às cinco da manhã com exercícios de aquecimento, aulas às seis e ensaios às onze, em que não esforçava o corpo até ao li­mite durante catorze horas. Foi a primeira vez que Danina se atreveu a brincar e adorou.

 

Parecia quase infantil aos olhos de Madame Markova. Brincava com as filhas do czar no mar, rindo e chapinhando com elas. Era sempre muito meiga com Alexei, demonstran­do por ele um afeto muito maternal, que comovia a czarina. Todas as crianças ficaram espantadas ao perceber que Danina não sabia nadar. A vida austera e disciplinada que levava nun­ca lhe deixara tempo livre para aprender mais nada a não ser dançar.

 

No quinto dia de férias, Alexei adoeceu de novo na seqüência de uma pequena pancada que recebera na perna quando se levantava da mesa de jantar, ficando confinado à cama durante os dois dias que se seguiram. Danina fazia-lhe companhia, contando-lhe histórias da sua infância com o pai e os irmãos, da vida na escola e dos restantes bailarinos. Ele escutava-a durante horas até adormecer de mãos dadas com ela, que depois saía do quarto pé ante pé para se juntar aos outros. Sentia muita pena dele, lamentando as limitações que a doença impunha à sua vida. Era tão diferente dos seus ir­mãos ou dos rapazes com quem treinava na escola, vigorosos e saudáveis.

 

Alexei estava ainda fraco, mas sentindo-se melhor, quan­do Danina e Madame Markova deixaram Livadia em meados de Julho e embarcaram no comboio imperial de regresso a Sampetersburgo. Haviam sido umas férias maravilhosas e Danina jamais esqueceria ter brincado com a família imperial co­mo se fossem amigos de longa data, a beleza da paisagem e Ale­xei a tentar ensiná-la a nadar sentado numa cadeira de jardim.

 

— Não, não é assim, minha pateta... Assim... — gritava enquanto lhe demonstrava as braçadas e ela tentava pôr emprática os ensinamentos.

 

Depois, ambos riam descontrolada-mente quando Danina não conseguia e se punha a fingir que se afogava. Alexei escreveu-lhe certa vez uni pequeno bilhete decla­rando que sentia a sua falta. Era óbvio que, embora tivesse apenas nove anos, estava apaixonado por Danina. Divertida com a descoberta, a mãe confessou-o a uma amiga. O filho estava a ter a sua primeira paixoneta, aos nove anos, por uma bailarina que era muito bela e uma pessoa extraordinária. Duas semanas após a sua estada idílica em Livadia, o mundo transformava-se num turbilhão e os tristes eventos de Sarajevo catapultaram finalmente o país para a guerra. No dia um de Agosto a Alemanha declarou guerra à Rússia. Ninguém acre­ditava que o conflito durasse muito tempo, presumindo que as hostilidades terminassem com a batalha de Tannenberg, no final de Agosto. Contrariamente ao que se previa, a situação piorou.

 

Apesar da guerra, Danina dançou Giselle, Coppélia e La Bayadère mais uma vez naquele ano. As suas capacidades atin­giam um ponto alto e nunca havia o mínimo elemento de desilusão nas suas atuações, eram tudo o que deviam ser e mais. O que Danina levava para o palco era precisamente o que Madame Markova pressentira anos antes. Para além de tudo, possuía a dedicação e resolução necessárias. Danina não se permitia distrações e não demonstrava qualquer interesse por namoros ou pelo mundo fora das paredes da escola. Vi­via, respirava, trabalhava e existia apenas para o ballet, ao con­trário de algumas das suas colegas que Madame Markova olhava com desdém. Apesar do talento e trabalho árduo, dei­xavam-se demasiadas vezes distrair ou encantar por homens e por promessas de amor. Para Danina, o ballet era o que im­pulsionava a sua vida, o que a fazia viver, era a verdadeira es­sência da sua alma. Não havia nada mais para além do ballet, era a única coisa para a qual vivia. Em resultado, era uma bai­larina perfeita.

 

O espetáculo da véspera de Natal desse mesmo ano foi magnífico. O pai e os irmãos estavam na primeira fila e o czar e a czarina também não faltaram. Todos ficaram deslumbra­dos com a forma como dançou; fora, sem dúvida, a sua melhor atuação de sempre. No final, foi cumprimentá-los ao camarote imperial e perguntou imediatamente por Alexei. Deu à czarina uma das rosas que lhe haviam oferecido com a recomendação de que a levasse ao filho. Quando regressou aos bastidores, Madame Markova percebeu que estava mais cansada que o habitual. Fora uma noite longa e estafante e, se bem que Danina não o admitisse, sentia-se exausta.

 

No dia seguinte, levantou-se como habitualmente às cin­co da manhã, embora fosse dia de Natal, e às cinco e meia es­tava já a fazer exercícios de aquecimento. As aulas só começa­riam ao meio-dia, mas não concebia desperdiçar uma manhã inteira. Temia perder alguma das suas capacidades, se não treinasse meio dia, ou um minuto que fosse, mesmo no dia de Natal.

 

Madame Markova deu por ela às sete da manhã e, depois de observá-la durante algum tempo, achou que os seus exer­cícios pareciam um pouco estranhos. Havia em Danina uma rigidez e deselegância pouco características. Depois, muito devagar, como que em câmara lenta, começou a resvalar em direção ao solo. Os seus movimentos eram tão graciosos que a sua queda parecia ensaiada e absolutamente perfeita. Só de­pois de permanecer caída durante o que lhe pareceu uma eternidade é que Madame Markova e duas outras alunas per­ceberam que estava inconsciente. Correram para ela imediata­mente e ajoelharam-se ao seu lado no chão. As mãos de Ma­dame Markova tremiam quando as encostou às faces e costas da sua pupila e sentiu o calor ardente que o seu corpo ema­nava. Quando Danina abriu os olhos, a sua mentora percebeu que estavam febris e vítreos e que durante a noite fora consu­mida por alguma doença misteriosa.

 

Danina, porque te levantaste da cama, se estavas tão doente? — lamentou Madame Markova, fora de si. Todos ti­nham já ouvido falar da gripe que grassava por Moscovo, mas até então ainda não se registrara qualquer caso em Sampetersburgo. — Não devias ter vindo dançar — repreendeu-a carinhosamente e temendo o pior. Parecia que Danina nem se­quer a escutava.

 

Tinha de ser... Tinha de ser — sussurrou Danina. Per­der uma aula, um ensaio, ou mesmo um único exercício, era mais do que podia suportar. — Tenho de me levantar... — disse, começando depois a balbuciar. Um dos jovens rapazes que costumava dançar com ela ergueu-a nos braços e, sob a direção de Madame Markova, levou-a para a cama. Deixara o grande dormitório no ano anterior e dormia agora num quarto com apenas seis camas. Era tão espartano e gelado co­mo o dormitório onde vivera durante onze anos, mas sempre tinha um pouco mais de privacidade. As restantes bailarinas vieram todas acotovelar-se para a entrada do quarto para ve­rem como Danina estava. A notícia do seu desmaio espalhara--se já por toda a escola.

 

«Ela está bem?», «O que aconteceu?», «A Danina está tão pálida, madame», «O que irá acontecer», «Temos de chamar um médico», diziam as colegas. A própria Danina estava de­masiado cansada para explicar, demasiado confusa para reco­nhecer alguém. A única coisa que conseguia vislumbrar era a figura esguia e alta de Madame Markova, que amava como se fosse sua mãe, de pé ao fundo da cama. Estava, porém, muito cansada para ouvir o que lhe dizia.

 

Madame Markova mandou toda a gente sair do quarto, receando que mais alguém fosse contagiado, e pediu a uma das professoras que trouxesse chá. Quando levou a chávena aos lábios de Danina, esta nem sequer conseguiu sorver o chá. Estava demasiado doente e fraca e quando tentou sentá-la, se­gurando-a nos seus braços, Danina quase desmaiou. Nunca na vida se sentira tão doente. Nessa tarde, quando o médico chegou, já sabia que iria morrer, e nem sequer se importava. Doía-lhe cada centímetro do corpo e parecia-lhe que os bra­ços e pernas lhe haviam sido cortados à machadada. Cada to­que, cada movimento, cada vez que a sua pele roçava contra os lençóis ásperos, sentia o corpo a arder. A única coisa em que pensava ali deitada entre o delírio e a dor era que, se não regressasse às aulas e aos ensaios rapidamente, morreria.

 

O médico confirmou os receios iniciais de Madame Mar­kova e pouco fez para a acalmar. Era, de fato, gripe, e o mé­dico admitiu que nada poderia fazer pela bailarina. Havia pes­soas a morrer às centenas em Moscovo. Madame Markova chorava ao ouvir as duras palavras do médico. Tentou incen­tivar Danina a ser forte, mas esta começara a sentir que não seria capaz de ganhar aquela batalha e isso aterrorizava ainda mais a sua mentora.

 

Tenho o mesmo que a mamã, tenho febre tifóide? — murmurou, demasiado fraca para falar alto ou esticar o braço e tocar em Madame Markova, ali mesmo ao seu lado.

 

Claro que não, querida. Isto não é nada — mentiu. — Tens trabalhado de mais, é só isso. Tens de descansar durante alguns dias e depois ficarás boa.

 

As palavras de Madame Markova não enganavam nin­guém, e menos ainda Danina que, mesmo delirante, conse­guia aperceber-se da situação desesperada em que se encon­trava.

 

Estou a morrer — disse serenamente nessa noite e com tal convicção que a professora que lhe fazia companhia saiu do quarto a correr para ir chamar Madame Markova. Ambas as mulheres choravam quando entraram no quarto; Madame Markova secou as lágrimas antes de se sentar ao lado de Dani­na. Levou um copo de água aos lábios dela, mas esta nem os conseguiu abrir. Não tinha nem vontade, nem força para be­ber. A febre continuava altíssima, os olhos vidrados.

 

Estou a morrer, não é? — murmurou para a sua men­tora

 

Não o permitirei — disse Madame Markova. — Ainda não dançaste Raimonda e eu planeava que isso acontecesse este ano. Seria uma pena morreres sem sequer teres tentado. — Danina tentou sorrir, embora não conseguisse. Sentia-se de­masiado doente para responder.

 

Não posso faltar aos ensaios amanhã — pressagiou Da­nina algum tempo depois enquanto Madame Markova lhe fa­zia companhia. Era como se sentisse que, se não dançasse, morreria.  O  ballet era o sangue que corria

nas suas veias.

 

        O médico regressou na manhã seguinte, aplicou vários cataplasmas e deu-lhe algumas gotas de um líquido azedo para beber. No entanto, a situação parecia não se alterar. No final da tarde, Danina estava muito pior e à noite estava completa-mente delirante, gritando coisas sem sentido, murmurando entre dentes e rindo de pessoas que imaginava ver ou de coi­sas que só ela ouvia. Foi uma noite interminável para toda a gente, e de manhã Danina parecia devastada. A febre estava tão alta que era difícil imaginar que tivesse sobrevivido tanto tempo e impossível acreditar que não a matasse.

 

— Temos de fazer alguma coisa — disse Madame Markova, visivelmente perturbada. O médico insistira que não havia mais nada que pudesse fazer, mas talvez outro médico se lem­brasse de tentar outra coisa. Num ato desesperado, Madame Markova enviou nessa mesma tarde um bilhete à czarina ex­plicando-lhe a situação e perguntando se não teria nenhuma sugestão ou saberia de alguém que pudesse ajudar Danina. Fora montado um hospital numa parte do Palácio de Catarina em Tsarskoie Selo, no qual a czarina e as grã-duquesas trata­vam dos soldados feridos. Talvez houvesse aí alguém que pu­desse ter alguma idéia para salvar Danina. Madame Markova estava disposta a tentar fosse o que fosse para salvar a sua pu­pila. Algumas pessoas tinham conseguido sobreviver à gripe em Moscovo, todavia tal parecia ser mais uma questão de sor­te do que algo mais científico.

 

A czarina não perdeu tempo a escrever uma resposta e en­viou imediatamente o mais novo dos dois médicos que cuida­vam do seu filho. O mais velho, o venerável Dr. Botkin, fora também acometido por uma ligeira gripe, mas o Dr. Nikolai Obrajensky, que Danina conhecera naquele Verão em Livadia, estava à porta da escola de ballet a perguntar por Madame Mar­kova muito antes da hora do jantar. Ficou muito aliviada ao vê-lo, murmurando qualquer coisa sobre a generosidade da czarina enquanto o cumprimentava. Estava ainda tão preo­cupada com o estado de Danina, que nem reparou nas extraor­dinárias semelhanças entre o médico e o próprio czar.

 

Como está ela? — perguntou o médico. Era fácil per­ceber pela expressão de Madame Markova que a jovem baila­rina não estava melhor. Nem mesmo ele, tendo já visto vários casos de  gripe no hospital,  esperava encontrar Danina tão doente, tão esgotada pela doença que a consumia há já dois
dias. Estava desidratada, delirante e, quando lhe mediu a tem­peratura, teve de repetir a operação para acreditar no que o termómetro indicava. Depois de a ter examinado cuidadosa­mente, as suas esperanças que sobrevivesse eram escassas. Vol­tou-se  então  para  Madame  Markova  com uma  expressão
sombria:

 

Já deve adivinhar o que lhe vou dizer, não é? — disse num tom complacente. Via nos olhos de Madame Markova o quanto amava Danina. Era como uma filha para ela.

 

—  Por favor... Não vou suportar tal coisa... — declarou, enterrando a cara nas mãos, demasiado exausta para agüentar o golpe que estava prestes a sofrer. — Ela é tão jovem, tão ta­lentosa, só tem dezanove anos... Não pode morrer... Não po­de deixar que isso aconteça — disse furiosamente, olhando de novo para o médico, desejando ler nos seus olhos o que as palavras não lhe concediam: esperança, já que não lhe podiam garantir certezas.

 

—  Não posso fazer nada por ela — declarou com sinceri­dade. — Nem sequer aguentaria a viagem até ao hospital. Talvez, se resistir mais alguns dias, possamos levá-la — acres­centou numa tentativa de animar Madame Markova, mas sa­bia que as hipóteses de isso acontecer eram quase nulas e ela também.

      — O que podemos fazer é tentar mante-la fresca com compressas molhadas em água fria para fazer baixar a fe­bre e obrigá-la a beber o máximo que conseguir. O resto está nas mãos de Deus, tnadame. Talvez Ele precise mais dela do que nós. — O seu tom era amável, porém não podia mentir.
Ele próprio se admirava que Danina tivesse resistido até àque­le momento. Sabia de pessoas que morriam no primeiro dia em que a gripe se manifestava e Danina já ia no segundo.

 

—  Faça o que puder, mas lembre-se de que não poderá operar milagres. Agora, só nos resta rezar e esperar que Deus nos ouça — acrescentou o Dr. Obrajensky melancolicamen­te. Não acreditava que Danina sobrevivesse.

 

— Compreendo — anuiu Madame Markova.

Sentou-se perto de Danina de novo e voltou a medir-lhea temperatura. Subira um pouco, mas Madame Markova esta­va já a aplicar-lhe as compressas frias.

 

Eram os alunos que lhas traziam, embora não permitisse que entrassem no quarto com medo que Danina os contagiasse. As cinco raparigas que ocupa­vam o quarto de Danina tinham sido mudadas para o dormi­tório principal.

 

— Como está ela agora? — inquiriu Madame Markova uma hora depois de estar a aplicar as compressas no peito, braços e testa de Danina.  Tremia constantemente e estava branca como os lençóis em que repousava.

 

—  Está mais ou menos na mesma — respondeu o médico após a ter examinado. Não queria confessar a Madame Markova que, na realidade, até lhe parecia um pouco pior.

 

—  Não melhorará assim tão depressa. — Se é que alguma vez melhoraria, pensou o médico. Ficou deslumbrado com a for­mosura de Danina ali deitada e inanimada à sua frente. Era de uma beleza rara, as suas feições muito delicadas, o corpo ele­gante e gracioso.  Os longos cabelos escuros espalhavam-se por toda a almofada, o seu semblante era o de alguém às por­tas da morte. O médico tinha agora a certeza de que Danina não sobreviveria até ao dia seguinte.

 

—  Não  há  mais  nada que possamos fazer? — inquiriu Madame Markova, desesperada.

 

—  Reze — disse com convicção. — Já chamou os pais dela?

 

—  Só tem o pai e quatro irmãos. Pelo que ela me contou,foram enviados para a frente.

 

A guerra rebentara alguns meses antes e o regimento a que o pai e os irmãos pertenciam fora um dos primeiros a ser enviado para combater. Danina sentia muito orgulho nisso e mencionava-o frequentemente.

 

—  Então, não há mais nada que possa fazer. Temos de es­perar e ver o que acontece. — Olhou depois para o relógio.

 

—  Estava com Danina há já três horas.  Tinha  de regressar a Tsarskoie Selo para examinar Alexei e ainda demoraria uma hora a chegar. — Voltarei de manhã — prometeu, embora temesse que por essa altura Deus já tivesse tomado conta do as­sunto.

 

      —Mande-me chamar, se achar que precisa de mim. — Deu-lhe então as indicações para sua casa, se bem que, quan­do regressasse talvez fosse já tarde de mais para Danina. Vivia para lá de Tsarskoie Selo com a mulher e dois filhos. Tinha apenas trinta e nove anos, mas era extremamente responsável, competente e bondoso, razões pelas quais estava encarregue de velar pela saúde do czaréviche. Parecia-se muito com o czar, tinha as mesmas feições distintas, a mesma altura e até usava a barba cortada da mesma forma, embora o cabelo fosse mais escuro, quase da mesma cor do de Danina.

 

Obrigada por ter vindo, doutor Obrajensky — disse Madame Markova enquanto o acompanhava à porta. O percurso até à porta principal era longo e afastava-a de Danina, todavia, percorrer os corredores frescos era um alívio e, ao abrir a pesada porta, a lufada de ar frio que entrou surpreen­deu-a e reanimou-a ao mesmo tempo.

 

Gostava de poder fazer mais alguma coisa por ela e por si... — acrescentou o médico. — Vejo que a situação é muito dolorosa.

 

Ela é como uma filha para mini — balbuciou Madame Markova com os olhos cheios de lágrimas. O médico tocou-Ihe então no braço para a encorajar.  Sentia-se totalmente impotente.

 

Talvez Deus seja misericordioso e decida poupá-la —opinou o Dr.  Obrajensky.

 

Madame Markova só conseguiu assentir com a cabeça, a emoção impedia-a de proferir uma única palavra. — Voltarei amanhã de manhã bem cedo.

 

Ela começa os aquecimentos às cinco da manhã —disse Madame Markova, como se isso fosse ainda relevante.

Ambos sabiam que não.

 

Ela trabalha muito, não é? É uma bailarina extraordi­nária — elogiou, embora não acreditasse que a voltasse a ver dançar.

 

Alguma vez a viu dançar? — inquiriu Madame Mar­kova.

 

Apenas uma vez, em Giselle. Foi um espetáculo mara­vilhoso — respondeu. Era fácil perceber como aquele assunto era difícil para Madame Markova.

 

É ainda melhor em O Lago dos Cisnes e A Bela Ador­mecida — acrescentou com um sorriso triste.

 

Estou ansioso por ver — disse gentilmente enquanto se despedia de Madame Markova que, depois de fechar a porta,se encaminhou a passos largos de volta ao quarto de Danina.

 

Foi uma noite inesquecível de tristeza e desespero para Madame Markova, e de febre, delírio e terror para Danina. Por fim, quando a manhã despontou, Danina parecia já não pertencer ao mundo dos vivos. A sua mentora continuava à sua cabeceira, exausta, sem se atrever a deixá-la nem por ins­tantes. O médico regressou às cinco da manhã.

 

Obrigada por ter vindo tão cedo — sussurrou. A at­mosfera era já de perda e tristeza. Até Madame Markova reconhecia agora que Danina não conseguiria ganhar aquela ba­talha.  Estava inconsciente desde  a manhã do  dia anterior.

 

Estive toda a noite preocupado com ela — admitiu o médico. Percebia pela cara de Madame Markova que a noite fora longa. Danina quase não respirava. Tomou-lhe o pulso, mediu-lhe a temperatura e ficou surpreendido ao descobrir que estava um pouco mais baixa, embora o pulso estivesse fraco e irregular.

 

Está a lutar bravamente. É uma sorte ser jovem e saudável.

 

Porém, mesmo os mais jovens estavam a morrer aos mi­lhares em Moscovo, em especial as crianças.

 

Ela ingeriu alguma água? — inquiriu o médico.

 

Há várias horas que não — confessou Madame Marko­va. — Não consigo fazê-la engolir e tenho medo que sufoque.

 

O médico concordou. Não havia mesmo mais nada que pudessem fazer, mas, ainda assim, organizara o seu dia de mo­do a que pudesse ficar na escola de ballet durante várias horas. O seu colega, o Dr. Botkin, melhorara o suficiente para ser capaz de olhar por Alexei, se fosse necessário. O Dr. Obrajensky queria estar com Danina caso esta morresse, quanto mais não fosse para consolar a sua mentora.

 

Ficaram sentados silenciosamente lado a lado durante ho­ras. O médico ia observando Danina e, após algum tempo, sugeriu a Madame Markova que aproveitasse para ir descan­sar, mas ela recusava-se a abandonar a sua amada bailarina.

 

Era já meio-dia quando Danina emitiu um som angustia­do e se agitou um pouco. Parecia estar em sofrimento; contu­do, quando o médico a examinou mais uma vez, não notou qualquer alteração no seu estado. Apenas se admirava como conseguira resistir tanto tempo. Era uma verdadeira homena­gem à sua juventude, à sua força e à sua condição física. Até então, mais ninguém da escola fora contagiado, só Danina.

 

Às quatro da tarde, o Dr. Obrajensky continuava ali, não querendo ir-se embora antes de tudo terminar. Madame Mar­kova acabara por se deixar dormir sentada na cadeira. Danina começou a ficar agitada, gemendo e mexendo-se desconforta-velmente, mas Madame Markova estava demasiado exausta para a ouvir. O médico examinou-a e verificou que o seu coração estava fraco e irregular e que, para além disso, eviden­ciava dificuldades em respirar. Tinha a certeza de que era um sinal de que o fim estava próximo. Eram os sintomas que es­perava. Desejava poder minimizar o seu sofrimento, embora não houvesse nada que pudesse fazer, a não ser estar ali. Se­gurou-lhe na mão, depois de lhe tomar o pulso mais uma vez, e acariciou-lha suavemente enquanto observava o seu belo rosto, tão doente e tão atormentado. Era penoso olhar para ela e não poder fazer nada para a salvar. Queria fazer com que Danina desejasse viver e acariciou a sua testa ao de leve. Ela agitou-se de novo e balbuciou qualquer coisa. Pare­cia estar a falar com um amigo ou com algum dos seus ir­mãos. Depois, disse uma única palavra, abriu os olhos e olhou para o médico. Era algo que ele presenciara centenas de ve­zes, era uma última centelha de vida antes do fim. Ainda com os olhos bem abertos, Danina proferiu:

 

Mamã, estou a ver-te.

 

Está tudo bem, Danina, eu estou aqui. Daqui a pouco tudo terá terminado.

Quem é você? — perguntou Danina com uma voz rouca e rude, como se conseguisse vê-lo claramente. O seu delírio fazia-a ver alguém, mas era muito improvável que fos­se o médico quem vislumbrava.

 

Sou o seu médico — respondeu. — Estou aqui para a ajudar.

 

Ah... — retorquiu, fechando de novo os olhos e recli­nando a cabeça na almofada. — Vou ver a minha mãe.

 

O médico recordou-se do que Madame Markova dissera sobre Danina já só ter o pai e os irmãos e entendeu o que ela queria dizer, mas não a deixou continuar.

 

Não quero que faça isso — exclamou com firmeza. — Quero  que  fique  aqui  comigo.  Precisamos  de si,  Danina.

 

Não, tenho de ir... — asseverou, ainda com os olhos fechados e voltando a cabeça para o outro lado. — Vou chegar atrasada às aulas e Madame Markova vai zangar-se comigo.

 

Eram as únicas frases que pronunciara em dois dias e era óbvio que Danina queria abandoná-los, ou sabia que teria de o fazer.

   

     —Tem de ficar aqui para poder ir às aulas ou Madame Markova e eu ficaremos muito zangados. Abra os olhos, Danina... Abra os olhos e veja-me!

 

Para grande surpresa do Dr. Obrajensky, Danina abriu-os e olhou diretamente para ele.

 

Quem é o senhor? — perguntou de novo, com uma voz muito fraca. Desta vez, o médico tinha a certeza de que ela conseguia vê-lo. Encostou a palma da mão contra a sua testa e, pela primeira vez em dois dias, verificou que estava bastante mais fresca.

 

Sou o Nikolai Obrajensky, o seu médico. Foi a czarina que me enviou para cuidar de si.

 

Ela acenou com a cabeça e fechou de novo os olhos du­rante um instante. Depois, abriu-os e sussurrou-lhe:

 

— Eu vi-o com o Alexei no Verão passado, em Livadia.

 

Recordava-se. Era sinal que ganhara a batalha. Havia ain­da um longo caminho a percorrer, mas, incrivelmente, pare­cia que o feitiço se quebrara. O médico queria gritar de ale­gria, porém considerou que seria melhor não comemorar antes do tempo. Podia ser ainda a tal última centelha de vida antes do final. Não confiava por completo no que os seus olhos acabavam de testemunhar.

 

Ensina-la-ei a nadar este Verão, se ficar aqui — brin­cou o médico, lembrando-se de como se haviam divertido.

Danina tentou esboçar um sorriso, mas estava ainda demasia­ do doente para conseguir fazer algo mais que olhar para ele.

 

Tenho de dançar — disse, soando preocupada. — Não
tenho tempo para aprender a nadar.

 

Claro que tem.   Terá de descansar durante bastante tempo.

 

Ela abriu bem os olhos enquanto o ouvia e Nikolai sen­tiu-se novamente encorajado. Danina estava bem consciente do que ele lhe dizia.

 

Amanhã tenho de ir às aulas.

 

Acho que ainda devia ir esta tarde — troçou, e desta vez ela sorriu, embora, na realidade, não passasse de um esgar.

 

Está a ficar muito preguiçosa — continuou o médico, sorrin­do e sentindo-se como se tivesse ganho a maior das batalhas.Não tivera a menor esperança de vencer. Há uma hora atrás,Danina parecia morta e agora estava ali, consciente e a falar.

 

Acho que está a ser muito pateta — murmurou. Hoje não posso ir às aulas.

 

Porque não?

 

Não tenho pernas — disse, preocupada. — Acho que caí, não as sinto.

 

O médico assustou-se e deslizou a mão por baixo dos len­çóis para lhe tocar nas pernas. Perguntou-lhe se sentia alguma coisa. Sentia tudo, estava apenas fraca de mais para as mexer.

 

— Está apenas debilitada, Danina — assegurou. — Não se
preocupe que vai ficar boa.

 

O Dr. Obrajensky também sabia que se de fato ela so­brevivesse, o que parecia possível, embora não estivesse ainda totalmente fora de perigo, a sua convalescença levaria meses e Danina teria de ser tratada com muito cuidado para que a re­cuperação fosse completa.

 

Vai ter de se portar muito bem, dormir muito, alimen­tar-se como deve ser e beber muitos líquidos — recomendou e,  como  que para lho provar,  ofereceu-lhe um pouco de água. Ela bebeu apenas um gole, mas já era qualquer coisa.

Quando pousou o copo na mesa-de-cabeceira, Madame Markova acordou sobressaltada, temendo que alguma coisa terrí­vel tivesse acontecido enquanto dormia. Ao invés, viu Danina, ainda fraca, porém viva, a sorrir para o médico.

 

Meu Deus, é um milagre — exclamou, tentando re­primir lágrimas de alívio e exaustão. Estava quase tão esgotada quanto Danina e devastada pelo terror de quase ter perdido a sua bailarina preferida        

 

    — Minha filha, sentes-te melhor?

 

Um pouco — asseverou, e depois, olhando de novo para o médico, proferiu: — Acho  que me salvou a vida.

 

Não, não fui eu. Bem gostaria de receber os louros por tal vitória, mas não fiz nada. Limitei-me a ficar aqui sen­tado.  Madame Markova fez bem mais por si  do  que  eu.

 

Foi Deus — argumentou Madame Markova — e a tua própria força.

 

Madame Markova queria perguntar ao médico se Danina estava fora de perigo, contudo sabia que não lhe podia fazer tal pergunta em frente dela. Danina parecia estar bem melhor, plenamente consciente e mais forte. O risco de a perder fora tão grande que Madame Markova estava ainda a tremer.

Quando poderei voltar a dançar? — perguntou Danina, fazendo Madame Markova e o médico rirem. Estava de fato melhor.

 

Posso garantir-lhe que na próxima semana ainda não poderá dançar — confessou ele, sorrindo.

 

Na realidade, não poderia voltar a dançar nos próximos meses, mas o médico sabia que era ainda demasiado cedo para lho dizer. Pressentia que, se lhe dissesse a verdade, ficaria ar­rasada.

Se prometer portar-se bem e fazer tudo o que eu dis­ser, em breve estará de pé e a dançar.

 

Tenho um ensaio importante amanhã — insistiu Danina.

 

Acho que terá de faltar. Não tem pernas, lembra-se?

 

Como? — perguntou Madame Markova, preocupada. O Dr. Obrajensky apressou-se a explicar.

 

Há pouco, a Danina não sentia as pernas, mas está tu­
do bem. Está apenas muito fraca por causa da febre.

 

Algum tempo depois, quando tentaram sentá-la para que bebesse mais água, descobriram que nem sentar-se conseguia. Mal aguentava levantar a cabeça da almofada.

 

Sinto-me um pedaço de cordel — disse Danina elo­quentemente, fazendo o médico sorrir.

 

Olhe que não se parece nada com um. Tem muitomelhor aspecto. De fato, acho que vou voltar aos meus res­tantes doentes antes que se esqueçam de mim.

 

Passava das seis da tarde e ele já ali estava há treze horas. Prometeu voltar na manhã seguinte. Enquanto se encaminha­vam para a porta, Madame Markova agradeceu-lhe profusa­mente e perguntou-lhe o que deveria esperar de agora em diante.

 

— Uma demorada convalescença — confessou. — Deve­rá ficar pelo menos um mês na cama ou arrisca-se a ficar doente de novo e, desta vez, poderá não ter tanta sorte.

 

Madame Markova tremeu só de pensar nisso.

 

Passar-se-ão vários meses até que possa voltar a dançar.Talvez três ou quatro, ou até mais — advertiu o médico. Se for necessário, atamo-la à cama. Já viu como ela é.Amanhã de manhã já estará a suplicar que a deixemos dançar.Ela própria ficará surpreendida ao perceber como está debilitada. Terá de ser muito paciente, pois a recuperação le­vará tempo.

 

— Compreendo — disse Madame Markova, agradecen­do-lhe uma vez mais quando se despedia. Depois de fechar a porta, dirigiu-se ao quarto de Danina, pensando no que acontecera e na sorte que tinham tido. Estava também eterna­mente grata à czarina por lhes ter enviado o médico. Pouco pudera fazer, mas tê-lo ali fora uma enorme ajuda, já para não falar da sua dedicação.

 

Madame Markova ficou à porta do quarto de Danina, olhando para a jovem que tanto amava. Parecia uma criança ali deitada na cama, a dormir com um sorriso no rosto.

 

Fiel à sua promessa, o Dr. Obrajensky voltou para exami­nar Danina no dia seguinte, mas desta vez só chegou depois de almoço, pois sabia que a sua doente estava fora de perigo. Ficou muito satisfeito ao verificar que Danina já se alimentava e bebia bastante água. Mal tinha ainda força para levantar a cabeça da almofada, porém sorriu assim que ele entrou no quarto. Estava obviamente feliz por vê-lo.

 

Como está o Alexei? — perguntou-lhe logo que o
viu.

 

Está muito bem. Bem melhor do que a Danina. Estava a jogar às cartas com as irmãs, e a ganhar, quando o vi esta manhã. Pediu-me que lhe desejasse rápidas melhoras. É tam­bém esse o desejo da czarina e das grã-duquesas.

 

O Dr. Obrajensky era também o portador de uma carta que a czarina enviara a Madame Markova. O médico conhe­cia o conteúdo de tal missiva, já que a czarina lhe pedira con­selho sobre o assunto.

 

Madame Markova não abandonara ainda a cabeceira de Danina, mas parecia bem mais recomposta. Quando leu a carta da czarina, abriu muito os olhos, como que não acredi­tando no que lia. Olhou para o Dr. Obrajensky, surpreendi­da, e ele respondeu-lhe afirmativamente com um aceno de cabeça. A idéia fora dele. A czarina convidava Danina a con­valescer numa das suas pequenas casas reservadas a hóspedes. Ali poderia ser bem tratada e fazer a demorada recuperação de que necessitaria sem se atormentar dia após dia com a vi­são das colegas a prepararem-se para as aulas e para os ensaios. Tsarskoie Selo era um local sossegado onde poderia ser bem vigiada, tratada e poderia convalescer da melhor forma para que voltasse a dançar.

 

Depois de deixarem o quarto de Danina naquela tarde, o médico perguntou a Madame Markova o que achava do con­vite da czarina. Estava ainda bastante surpreendida, porém, não restavam dúvidas de que era um convite muito lisonjeador. No entanto, Madame Markova não fazia idéia de como Danina reagiria à idéia. Era tão apegada ao ballet, que não imaginava afastar-se dele nem que fosse por um instante, mesmo não podendo dançar. Ainda assim, Madame Markova concordava que estar ali, ver as colegas e não poder dançar com elas a levaria à loucura em pouco tempo.

 

Talvez lhe faça bem afastar-se por uns tempos — ad­mitiu Madame Markova —, mas não sei se conseguiremos convencê-la a ir. Mesmo sem poder dançar, suspeito que pre­ferirá ficar. Há doze anos que não sai daqui, exceto no Ve­rão passado quando esteve em Livadia.

 

Mas ela gostou de lá estar, não gostou? Seria uma con­tinuação das férias.  Para além disso, lá conseguirei vigiá-la melhor. Será difícil para mini vir até aqui tantas vezes e du­rante tanto tempo como nos dois últimos dias. Tenho as mi­nhas responsabilidades para com o czaréviche.

 

Tem sido muito amável — admitiu Madame Marko­va. — Não sei o que teríamos feito sem si.

 

Não fiz absolutamente nada — confessou com modés­tia —, a não ser rezar, tal como a senhora. Ela teve muita sorte. Receio que a czarina e os filhos fiquem muito desa­pontados se não aceitar o convite.

 

Em seguida, relembrou a Madame Markova algo que ela já sabia.

 

E um convite bastante invulgar. Acho que a Danina iria gostar.

 

Quem não gostaria? — riu Madame Markova. — Te­nho pelos menos uma dúzia de bailarinas, se não mais, que fi­cariam mais do que felizes de poder tomar o lugar da Danina em Tsarskoie Selo. O problema é que a Danina é diferente. Não quer sair daqui, pois teme perder alguma coisa. Nunca sai para ir a uma loja, para passear, ou sequer para ir ao teatro.Só dança, dança, dança, e quando não está a dançar está a ob­servar os outros a fazê-lo. Para além de tudo, é muito apegada a mim, talvez por já não ter mãe.

 

Era óbvio que Madame Markova a amava muito.

 

       —Há quanto tempo está ela aqui? — perguntou o médi­co. Sentia-se fascinado pela bailarina e via-a como uma deli­cada ave que aterrara aos seus pés com uma asa partida. Que­ria fazer tudo o que pudesse para a ajudar, até interceder por ela junto do czar e da czarina, o que não era difícil, pois tam­bém gostavam muito de Danina. Era impossível não admirar alguém com uni talento tão grande.

 

—  Está conosco há doze anos — respondeu Madame Markova.  -— Desde  os  sete.   Agora tem  dezenove,  quase vinte.

 

—  Talvez umas pequenas férias lhe façam bem — afir­mou o médico num tom sério, pois achava realmente que tal seria importante para a sua recuperação.

 

—  Concordo, o problema será convencê-la. Falarei com ela quando estiver um pouco mais forte.

 

O médico continuou a visitá-la todos os dias e, quando Danina se sentia um pouco melhor, Madame Markova abor­dou o assunto. Danina ficou surpreendida e feliz com o con­vite, mas não fazia qualquer tenção de o aceitar.

 

—  Não posso deixá-la — disse simplesmente a Madame Markova. Também se sentia desanimada com o fato de ter estado às portas da morte e considerava a escola de bailei o seu lar. Para além disso, não queria convalescer no meio de estra­nhos, ainda que pertencentes à realeza.

 

—  Não  me vai obrigar a ir,  pois  não? — perguntou, preocupada. Contudo, assim que tentou levantar-se, aperce­beu-se da gravidade da sua doença, bem como Madame Markova.   Nem  sequer  conseguia  sentar-se  numa  cadeira  sem quase desmaiar e ter de ser amparada para não cair. Também tinha de ser carregada ao colo até à casa de banho.

 

—  Precisa de cuidados constantes — explicou-lhe o mé­dico numa das suas visitas. — E ainda vai precisar durante al­gum tempo, Danina. Será um fardo muito grande para as pes­soas  do  ballet.  Estão  todas  muito  ocupadas  para  cuidarem de si.

 

Danina sabia que isso era verdade e que tinha já sido um estorvo para todos, principalmente para Madame Markova, mas, ainda assim, não queria deixá-los. A escola de ballet era a sua casa e os colegas e professores a sua família. Não suporta­va a idéia de os deixar e, nessa noite, quando Madame Mar­kova voltou a falar no assunto, Danina chorou.

 

     — Porque não aceitas ir apenas por algum tempo? — su­geriu Madame Markova. — Só até estares um pouco mais forte. É um convite tão amável e de certeza que acabarás por gostar de lá estar.

 

— Tenho medo — declarou.

No dia seguinte, Madame Markova insistiu com Danina para que aceitasse o convite. Para além de acreditar que seria bom para ela, temia ofender a czarina ao declinar tão genero­sa oferta. Era raro, se não inaudito, ser convidado para conva­lescer em Tsarskoie Selo e Madame Markova estava muito grata ao Dr. Obrajensky por ter tido semelhante idéia. Prova­ra ser não só muito amável, mas deveras solícito e genuina­mente preocupado com o bem-estar de Danina. As suas visi­tas diárias animavam-na muito. Em termos psicológicos estava quase bem, só o seu corpo não estava capaz de se recompor tão depressa.

 

Acho que devias ir — afirmou Madame Markova se­riamente. No final da semana, chegou a um acordo com o médico. Danina tinha de ir, quer quisesse quer não. Era para seu próprio bem. Sem os cuidados necessários, poderia nunca recuperar por completo e arriscar-se-ia a jamais voltar a dan­
çar. Madame Markova acabou por ter de dizer tudo isto a Danina.

 

E se a tua teimosia te custar o bailei? — inquiriu aspe­ramente.

 

Crê que isso pode acontecer? — perguntou Danina.
Os seus olhos espelhavam o terror que a idéia lhe causara.

 

Pode acontecer, sim — respondeu Madame Markova preocupada. — Estiveste muito, muito doente, minha queri­da. Não deves agora tentar o destino sendo teimosa ou insen­sata.

 

Danina fora convidada a ficar indefinidamente, até estar recuperada e apta a regressar ao ballet. Era um convite excep­cional e ela bem o sabia. Estava a ser infantil ao não querer abandonar a segurança do ambiente familiar e das pessoas que conhecia.

 

E se for apenas por algumas semanas? — perguntou.
Era uma pequena concessão da sua parte, mas, pelo menos, já era um começo.

 

Ainda não conseguirás dançar daqui a algumas sema­nas. Vai pelo menos por um mês e depois veremos como te sentes nessa altura. Se não gostares de lá estar, podes sempre regressar e continuar a tua convalescença aqui. Fica pelo me­nos um mês. Sabes que se quiseres podes ficar mais tempo. Prometo que te vou visitar sempre que puder.

 

Era um compromisso difícil para Danina, porém acabou por concordar. No dia da partida chorou ao pensar que iria abandonar os amigos e a sua mentora.

 

Não te estamos a enviar para a Sibéria — protestou Madame Markova carinhosamente.

 

É como me sinto — confessou Danina, sorrindo por entre as lágrimas. — Vou ter tantas saudades suas — disse, se­gurando a mão de Madame Markova com firmeza.

 

A czarina enviara um trenó coberto especial para levar Danina. Era quente e confortável e fora revestido com peles e pesados cobertores. A czarina não poupara nada. O Dr. Obrajensky viera para a acompanhar durante a viagem, mas antes verificara se tudo estava a postos na casa de hóspedes. Trazia também uma mensagem de Alexei, que mal podia esperar para a ver e afirmava ter um novo truque de cartas para lhe ensinar.

 

Todas as bailarinas e bailarinos vieram à porta para se des­pedir dela e todos acenaram quando o trenó partiu. Danina estava tão nervosa que o Dr. Obrajensky teve de lhe dar a mão e, mesmo antes de chegarem a Tsarskoie Selo, sentia-se já exausta das emoções provocadas pela partida.

 

O ballet é toda a minha vida. Não conheço mais nada. Estou lá há tanto tempo que não imagino estar em mais lado nenhum, nem apenas por minutos — explicou durante o ca­minho, mas ele já se tinha apercebido disso e, como sempre, mostrou-se amável e compreensivo.

 

Não perderá nada por se afastar uns tempos. Pelo con­trário, recuperará a sua força e eles estarão à sua espera quan­do regressar.  Será ainda melhor do que nunca,  confie em mim.

 

Ela assim fez e sentiu-se grata pelo seu apoio e companhia durante a viagem. Era tão agradável estar com ele. Era fácil perceber por que motivo toda a família imperial gostava do Dr. Obrajensky.

 

Assim que chegaram, instalou-a confortavelmente na pequena casa de hóspedes, mais luxuosa do que ela alguma vez imaginara. O quarto estava todo revestido a cetim cor-de-rosa e a sala de estar a azul e amarelo. Havia antiguidades por todo o lado, uma cozinha para preparar as suas refeições, qua­tro criados para a servirem e duas enfermeiras. Meia hora de­pois de chegar, a czarina veio visitá-la, trazendo Alexei consi­go para que lhe pudesse mostrar o tal truque. Ambos ficaram estupefatos ao ver quanto a doença a debilitara e contentes por ter aceite convalescer ali. Não ficaram muito tempo para não a cansar e quando partiram o médico saiu com eles, pro­metendo voltar na manhã seguinte para ver se ela estava a «portar-se bem».

 

Era estranho encontrar-se ali naquela noite, sem todas as pessoas que conhecia em seu redor e as raparigas que habi­tualmente dormiam no seu quarto. Apesar do ambiente lu­xuoso, sentia-se sozinha. Ficou surpreendida quando a enfer­meira entrou no quarto, pouco depois de a ter ajudado a deitar, e lhe anunciou que tinha uma visita. O Dr. Obrajensky voltara para a ver. Eram oito horas e ela apenas o esperava na manhã seguinte, por isso, ficou surpreendida com a visita.

 

— Ia para casa — explicou — e lembrei-me de vir ver como estava.

 

Olhou para ela atentamente de onde se encontrava e con­firmou as suas suspeitas. Danina estava um pouco melancó­lica.

 

Pressenti que estaria a sentir-se sozinha.

 

E verdade — confessou, interrogando-se como conseguira adivinhar.  Parecia compreendê-la tão bem. — Deve achar-me tola — acrescentou, envergonhada por parecer tão ingrata.

 

Claro que não — acalmou-a ele, puxando uma cadeira para junto da cama dela. — Está habituada a viver rodeada de muita gente. — Vira o quarto em que dormia com outras cinco bailarinas e apercebera-se das condições de vida ofereci­ das pela escola.

 

     — É uma grande mudança para si ver-se aqui sozinha — disse. Danina era ainda tão jovem, tinha apenas dezenove anos. Em alguns aspectos era muito disciplinada e madura, mas infantil e superprotegida noutros. — Há alguma
coisa que possa fazer para tornar as coisas mais fáceis?

 

Não. Gosto muito das suas visitas — disse Danina, sor­rindo para o médico. A visita daquela noite enternecera-a muito, pois ele parecia ter entendido exatamente o que ela estava a sentir.

 

Então, terei de a visitar mais vezes — prometeu ele.
Era-lhe mais fácil agora ir vê-la, pois a casa ficava apenas a uma curta distância a pé do Palácio de Alexandre. Sabia que Alexei e as irmãs estavam já a planear fazer-lhe companhia, era essa a intenção deles e o objetivo da vinda dela para ali. Não ficará sozinha durante muito tempo e em breve po­derá dar passeios e ir até ao palácio, quando estiver mais forte.

 

—  Danina ainda não conseguia atravessar o quarto sem ajuda.

 

—  Prevejo que em pouco tempo se sentirá melhor.

 

De repente começou a sentir-se uma tola por achar que estava sozinha. Toda a gente se mostrava tão atenciosa com ela. Apesar de ter saudades dos amigos e de Madame Markova, sentia-se feliz por haver decidido ir.

 

— Obrigada por ter tratado de tudo — disse, agradecida.—         Estou muito feliz por aqui estar.

Estou feliz que tenha vindo, Danina — afirmou sere­namente,  parecendo  ao mesmo  tempo  descontraído  e  um pouco cansado. Era o final de um dia bastante longo para o médico, e Danina tinha a certeza de que deveria estar desejo­so de voltar para casa para junto da mulher e dos filhos. Sen­tia-se culpada por o reter ali, mas gostava muito da sua com­panhia. — Teria ficado muito desapontado, se não  tivesse vindo.

 

Também eu — admitiu Danina com um sorriso que tocou profundamente o coração do médico, embora ela não o soubesse.

 

— Esta casa é magnífica — admirou, olhando em seu redor ainda maravilhada com o luxo que a cercava. Nunca vira uma coisa assim.

 

Logo vi que ia apreciar — sorriu ele.

 

Era difícil não gostar — confessou.

 

Vai ter muitas saudades de dançar, não é? — pergun­tou ele, conhecendo já a resposta, porém fascinado com a sua vida no ballet.

Vivo para dançar — disse Danina. — É a única vida que conheço, a única que desejo. Não imagino existir sem o ballet. Não ser capaz de dançar representaria talvez a minha morte.

 

Ele anuiu com a cabeça, observando os seus olhos, as suas faces. Adorava falar com ela e agora que se sentia melhor de­monstrava um sentido de humor encantador.

— Voltará a dançar em breve, Danina. Prometo.

Tinha ainda um longo caminho a percorrer antes de estar bem forte para o fazer e ambos sabiam disso.

 

Terá de se entreter com outra coisa entretanto — re­matou ele. Tinha já trazido uma pilha de livros e Danina pro­metera a si mesma que os iria ler. No ballet nunca tinha tempo para ler nada.

 

Gosta de poesia? — perguntou cautelosamente,  não querendo parecer pedante, embora a poesia fosse uma das suas paixões.

 

Muito — disse ela.

 

Trarei alguns livros de poesia amanhã. Gosto muito de Pushkin. Talvez também aprecie.

 

Danina lera alguns poemas de Pushkin há alguns anos e adoraria conhecer melhor a sua obra, já que agora tempo era coisa que não lhe faltava.

 

— Venho visitá-la amanhã depois de examinar o Alexei.
Talvez possa almoçar aqui consigo, para que não se sinta tão sozinha.

 

Em seguida levantou-se, mas parecia relutante em ir-se embora.

 

Ficará bem esta noite, não é? — inquiriu. Estava preo­cupado com ela, não queria que se sentisse infeliz.

 

Fico bem — garantiu com um sorriso. — Prometo. Agora, vá para casa para junto da sua família ou pensarão que sou muito aborrecida.

 

Eles compreendem o que é viver com um médico.
Vejo-a então amanhã — disse já à porta. Ela acenou-lhe da cama, pensando mais uma vez como era amável e a sorte que tinha em conhecê-lo.

 

O livro que o Dr. Obrajensky trouxe no dia seguinte era tão belo que quando ele lhe leu algumas passagens Danina não conseguiu conter as lágrimas. Estava lentamente a abrir-Ihe a porta para um mundo que ela desconhecia. Começara a ler naquela manhã um dos romances que o médico lhe trouxera e, durante o almoço, conversaram sobre ele. Tal co­mo os livros de poesia que lhe emprestara, aquele romance era um dos preferidos de Nikolai. O tempo que passaram a conversar voou como se fossem minutos e ambos ficaram sur­preendidos ao verificar que eram já quatro da tarde.

 

O Dr. Obrajensky teve de partir e Danina, embora o mé­dico detestasse ter de admiti-lo, estava exausta.

 

Não deveria cansá-la — confessou com remorsos. — Logo eu, o seu médico!

 

Sinto-me bem — afirmou, tendo adorado o tempo que passaram a conversar. Almoçara na cama e ele ficara nu­ma pequena mesa ao pé dela.

 

Agora, quero que durma — disse o médico carinhosa­
mente. Depois ajudou-a a deitar-se e arranjou-lhe as almofa
das. Era uma tarefa que uma enfermeira poderia fazer, porém gostava de o fazer por Danina. — Durma o máximo que conseguir. Vou jantar ao palácio hoje à noite, mas venho ver como se sente quando regressar a casa, se não se importar.

 

Tinha feito o mesmo na noite anterior e ela adorara, pois fizera-lhe ver que não estava sozinha.

 

— Gostava muito — disse Danina, já sonolenta. Ele desligou as luzes e saiu pé ante pé do quarto. À porta, voltou-se para lhe dizer adeus. Os seus olhos estavam já fechados e, quando o médico deixou a casa de hóspedes, Danina estava já a dormir profundamente, só acordando por volta da hora do jantar.

Quando abriu os olhos viu um desenho ao seu lado. Alexei viera visitá-la durante a tarde e a enfermeira dissera-lhe que estava a dormir. Deixara-lhe então um desenho que a re-tratava a tentar nadar, corno no Verão anterior. Tal como a maioria dos rapazes da sua idade, Alexei adorava provocá-la. Sentia-se à vontade com ela, pois Danina era da mesma idade das suas irmãs.

 

Tomou uma sopa ao jantar e estava a beber um chá quan­do o Dr. Obrajensky voltou para a visitar depois do jantar no palácio. Estava muito bem-disposto e contou-lhe todos os pormenores da noite. Jantava com a família imperial várias vezes por semana.

 

— São pessoas maravilhosas — declarou. Era um grande admirador do czar e da czarina. — Têm tantas responsabilidades, tantas preocupações. Os tempos são difíceis, especialmente agora com a guerra. Tem também havido alguma agitação nas cidades e, claro, a saúde do Alexei preocupa-os muitís­
simo.

 

A hemofilia de que o czaréviche sofria era um problema que exigia a presença constante de um médico ao seu lado. Era por este motivo que o Dr. Obrajensky passava tanto tem­po com a família imperial, embora partilhasse tal responsabili­dade com o Dr. Botkin.

 

— Deve ser duro para si — disse Danina — ter de estar tanto tempo afastado da sua família, dos seus filhos.

 

Danina sabia que a sua esposa era inglesa e que tinham dois rapazes, com doze e catorze anos.

 

— O czar e a czarina compreendem a minha situação e convidam sempre a Marie, mas ela nunca me acompanha, de­ testa eventos sociais. Prefere estar em casa com os rapazes, ou sentada a coser. Não tem qualquer interesse pelo meu trabalho ou pelas pessoas para quem trabalho.

 

Danina quase não acreditava no que ouvia, especialmente porque o médico não era um empregado como outro qual­quer. Interrogava-se se a mulher não teria ciúmes. Era difícil acreditar que fosse assim tão anti-social. Talvez fosse tímida ou não se sentisse à vontade em tais ocasiões.

 

— Também não fala muito bem russo, o que ainda lhe dificulta mais as coisas. Nunca se deu muito ao trabalho de aprender.

 

Era um motivo de discórdia entre os dois, embora não o tivesse admitido. Seria um pouco desleal queixar-se de Marie a Danina. As duas mulheres pareciam tão diferentes. Uma tãocheia de vitalidade, a outra tão cansada, infeliz, entediada, constantemente desencantada com a vida.

 

Mesmo após a doença, a energia e entusiasmo de Danina eram contagiantes. As suas longas conversas com o médico eram também uma nova experiência. Para além dos rapazes com quem dançava na escola, nunca tivera amigos ou sequer um namorado, e quanto aos irmãos, raramente os via. Esta­vam sempre demasiado ocupados para a visitar. Vinham a Sampetersburgo vê-la dançar uma vez por ano e o pai pouco mais do que isso. As responsabilidades que detinham no exér­cito impediam-nos de se afastarem muitas vezes.

 

Com Nikolai Obrajensky tudo era diferente. Estava a tor­nar-se um amigo, alguém com quem podia conversar. Con­fessou-lho naquela noite e ele ficou muito contente. Adorava conversar com ela, partilhar os seus livros, as suas opiniões so­bre poesia e, naquela noite, verificou que a amizade que par­tilhavam era muito agradável. Quase falara de Danina a Marie antes de ela vir para a casa de hóspedes. Já o fizera uma vez, embora só de passagem, referindo que fora chamado à escola de ballet por uma das bailarinas ter apanhado gripe. Marie nunca lhe perguntara nada sobre o assunto e, assim que Dani­na melhorou, decidiu não dizer mais nada. Em alguns aspec­tos, era melhor manter a amizade que os unia em segredo.

 

Há anos atrás não o teria feito, mas agora, ao fim de quin­ze anos, descobrira que pouca ou nenhuma vontade tinha de contar a Marie fosse o que fosse sobre a sua vida. Ela não de­monstrava qualquer interesse nele e a maior parte do tempo não tinha nada para lhe dizer. Houve um período em que passaram um mau bocado, pois Marie queria voltar para In­glaterra ou, pelo menos, mandar os filhos estudar para lá. Ni­kolai opunha-se à idéia, queria os rapazes perto dele. Agora, ela nem sequer estava zangada por causa disso, era-lhe com-pletamente indiferente, embora não perdesse uma oportuni­dade para lhe dizer o quanto detestava a Rússia. Pelo contrá­rio, o tempo que passava com Danina era muito agradável. Esta adorava a sua vida, não se queixava, era uma pessoa feliz.

 

Os seus filhos são parecidos consigo? — perguntou Danina por acaso.

 

 

As pessoas dizem que sim — afirmou sorrindo. — Eu

não penso assim. Acho que se parecem mais com a mãe. São umas crianças maravilhosas. Estão a tornar-se uns homens. Ainda os vejo como crianças e tenho de me lembrar conti­nuamente de que já não o são. Ficam muito zangados comigo quando os trato assim. São bastante independentes. Em breve serão uns homens e irão para o exército servir o czar.

 

Ao escutá-lo, Danina lembrou-se dos irmãos. Tinha sau­dades deles e, desde que a guerra fora declarada no Verão an­terior, preocupava-se ainda mais com o seu bem-estar.

 

Falou-lhe então deles e o médico sorria ao ouvi-la, po­rém, quando o tratava por «doutor» olhava-a tristemente. Fa­zia-o sentir-se tão velho, tão distante, e não o amigo que ela via nele.

 

Embora se tivessem conhecido no Verão anterior, só ago­ra, desde que adoecera, o conhecera melhor. A amizade que os unia crescia cada vez mais.

 

— Podia tratar-me por Nikolai — propôs. — Parece-me mais simples.

 

Era também muito mais pessoal, mas isso nem sequer pas­sou pela cabeça de Danina, pois o médico sugerira-o de for­ma bastante natural. Sorriu, parecendo mais uma criança que uma jovem mulher. A amizade deles era perfeitamente ino­cente e inofensiva.

 

Claro, se prefere assim. Posso continuar a tratá-lo de modo mais formal em frente de outras pessoas — disse Danina, consciente da sua posição e da diferença de idades entre eles. O médico tinha mais vinte anos do que ela.

 

Parece-me razoável — concordou,  contente  com o acordo que haviam firmado.

 

Terei a oportunidade de conhecer a sua esposa enquanto aqui estiver? — inquiriu Danina com alguma curiosidade.

 

Duvido — disse com sinceridade. — Ela raramente vem ao palácio. Tal como disse, detesta sair e declina todos os convites da czarina, exceto talvez uma vez por ano, quando se sente obrigada.

 

Isso prejudicá-lo-á junto da família imperial? — perguntou Danina sem rodeios. — A czarina não se aborrece com isso? —           Que eu saiba, não. De qualquer forma, é demasiado discreta para o demonstrar. Acho que compreende que a minha esposa não é uma pessoa de trato fácil.

 

Era o primeiro verdadeiro vislumbre que tinha da sua vi­da privada. Na realidade, embora falassem sobre muitas coisas, Danina nada sabia sobre a vida pessoal do médico. Imaginava--o com uma família carinhosa e uma vida familiar feliz.

 

A sua esposa deve ser muito tímida — concluiu Da­nina.

 

Não, não me parece — confessou com um sorriso triste. Havia tantas diferenças entre Danina e Mane. — Ela não gosta de usar roupa de cerimônia ou vestidos de noite. E tipicamente inglesa. Gosta de andar a cavalo, de caçar e de estar na propriedade do seu pai em Hampshire. Tudo o resto a
aborrece.

 

Não referiu «incluindo eu», mas gostaria de o ter feito. Há muito tempo que o casamento deles era uma desilusão para ambos, especialmente para ele, e a única exceção eram os rapazes. Nikolai e Marie eram muito diferentes. Ele era emotivo, sincero, bondoso. Ela era fria, distante e indiferente. Detestava a vida do marido e, quando se zangavam, chamava-Ihe o cãozinho de salão do czar. Nikolai estava farto de a ouvir queixar-se. Era fácil perceber por que motivo Marie não tinha amigos, sendo tão fria e ciumenta. Até os filhos não suportavam mais as suas queixas. Tudo o que queria era vol­tar para Inglaterra e esperava que o marido largasse tudo e a seguisse. Certa vez, Nikolai avisara-a de que, se quisesse re­gressar definitivamente, teria de o fazer sem ele.

 

Por que razão detesta assim tanto a Rússia? — perguntou Danina.

 

Diz que é por causa do Inverno. Em Inglaterra o tempo também não é muito melhor, embora aqui seja mais frio. Não gosta das pessoas nem do país e até a comida detesta —lamentou, esboçando depois um sorriso. Era uma antiga litania que ambos conheciam.

 

Talvez começasse a gostar mais, se aprendesse russo —
sugeriu Danina.

 

—Já lhe tentei explicar isso. É a forma de ela não se comprometer a ficar. Enquanto não falar russo, não pertence rá verdadeiramente a este lugar, ou pelo menos é o que pen­sa, embora isso não lhe torne a vida mais fácil.

Haviam sido uns longos quinze anos de casamento, mas não contara nada disso a Danina, nem o quanto se sentia sozi­nho, ou feliz por estar ali a conversar com ela. Se não fossem os filhos, há muito que teria deixado Mane regressar a Inglaterra. Não havia já nada entre eles, a não ser as crianças.

 

— O pai começou a assustá-la com a guerra. Afirma que um dia haverá uma revolução. Diz que o país é grande de mais para ser controlado e que o czar não tem punho forte para o fazer, o que é ridículo. No entanto, acredita piamente nisto.

 

Danina escutou-o, preocupada. Não percebia nada de po­lítica. Estava sempre muito ocupada com a dança para se aperceber do que se passava no mundo.

 

Também acredita nisso? — perguntou com um ar grave. — Acha que vai haver uma revolução? — inquiriu, confiando plenamente na opinião de Nikolai.

 

Nem por um instante — respondeu. — O meu sogro sempre foi um pouco alarmista. A Rússia é demasiado pode­ rosa para deixar que uma coisa dessas aconteça, tal como o czar. E só mais uma desculpa para ela se queixar do país. Afirma que estou a arriscar a vida dos nossos filhos. Sempre se
deixou influenciar muito pelo pai.

 

Danina tinha sempre ideias tão novas e um espírito tão aberto. Fora exposta a tão pouco, para além do bailado, que era como observá-la a descobrir o mundo em seu redor, um mundo que ele adorava partilhar com ela.

 

Comparada com Danina, Marie parecia tão extenuada, revoltada e amarga, e viver na Rússia não melhorara nem um pouco a sua maneira de ser.

 

Outrora, Marie fora uma mulher bela e interessada. A medicina e a carreira do marido fascinavam-na, mas agora tinha ciúmes da posição que detinha junto da família impe­rial, bem como de várias outras coisas. Danina não era nada assim, mas também não podia esquecer de que Marie era dezessete anos mais velha do que ela. Nikolai tinha trinta e nove e a mulher era três anos mais nova.

 

Danina ficou aliviada com o que o médico dissera sobre a revolução. Acha que a guerra terminará brevemente? — perguntou-lhe, e ele sorriu para a tranquilizar, embora o número de baixas fosse até então enorme. Toda a gente esperara que a guerra tivesse acabado há meses, todavia, não mostrava sinais de terminar tão cedo.

 

Espero que sim — alvitrou.

 

Estou preocupada com o meu pai e com os meus ir­mãos — admitiu Danina.

 

Vão ficar bem, vai ver.

 

Conversar com ele fazia-a sentir-se muito melhor. Nikolai fez-lhe companhia durante mais algum tempo e depois le­vantou-se para ir embora. Danina estava de novo cansada e ele tinha de regressar a casa. Não podia adiar a partida para sempre.

 

— Vemo-nos amanhã — prometeu enquanto saía.

Danina ficou a pensar nas coisas que Nikolai dissera sobrea mulher. Parecia preso numa situação difícil e Danina inter­rogava-se se não haveria alguma coisa que ele pudesse fazer para a melhorar. Talvez insistir para que Marie aprendesse russo, ou viajar de vez em quando com ela até Inglaterra. Pa­recia-lhe estranho que Marie não quisesse partilhar da posição que o marido detinha. Depois começou a pensar se Nikolai não estaria desnecessariamente deprimido com o assunto. Tal­vez estivesse apenas cansado, pensou para consigo. A guerra desanimava qualquer um. Era possível que os seus comentá­rios sobre a esposa estivessem relacionados com isso e com outras preocupações que não mencionara.

 

Nunca lhe ocorreu, nem por um instante, que o médico quisesse mais alguma coisa dela ou que a visse como algo mais que uma amiga. Afinal de contas, era casado e tinha uma fa­mília e mesmo que tivesse algumas queixas da esposa, as coi­sas não seriam tão más como as pintava. Como o seu mundo se circunscrevia ao ballet, para Danina tudo era muito simples e o casamento sagrado. Tinha a certeza de que Nikolai era mais feliz com Marie do que admitia.

 

Nas duas semanas que se seguiram, Nikolai não voltou a falar da esposa. Danina era já capaz de tomar as refeições à mesa e, numa tarde soalheira de Janeiro, levou-a a dar um pequeno passeio pelos jardins da casa de hóspedes. O ar pare cia retemperar-lhe a força e, de braço dado, riam e conversa­vam. Ela já lera algumas coletâneas de poesia que ele lhe emprestara, bem como quatro dos seus romances preferidos. Nessa tarde, quando Alexei veio tomar chá com Danina, Nikolai fez-lhes companhia. Depois do chá jogaram às cartas e Alexei ganhou, protestando alegremente quando Danina o acusou de ter feito batota.

 

Isso é que não! — ripostou. — Tu é que jogaste mui­to mal,  Danina — explicou sem rodeios  e Danina fingiu ofender-se.

 

Como te atreves! Joguei muito bem. Estou convencida de que fizeste batota.

 

Nikolai divertia-se a observar a boa disposição que reina­va entre ambos.

 

Não fiz nada batota e, se continuas a acusar-me, quando for czar mando cortar-te a cabeça.

 

Acho que isso já não. se faz, pois não? — respondeu Danina, voltando-se depois para Nikolai.

 

Se eu quiser, faço — anunciou Alexei, maravilhado com a possibilidade. — E talvez mande também cortar-te os pés, para que não possas mais dançar, e as mãos, para que nunca mais jogues às cartas.

 

De qualquer maneira, se me decapitares, acho que não poderei fazer nenhuma dessas coisas. A decapitação resolveria logo o problema — disse Danina, sorrindo.

 

Por via  das  dúvidas,  mando  cortar-te  o  resto!  —
A idéia parecia-lhe fantástica. Depois, de repente, olhou para
ela com interesse e perguntou-lhe: — Posso ir um dia a Sam
petersburgo ver-te dançar? Gostaria muito.

 

Também eu — respondeu Danina, enternecida.

 

Mas só quero que regresses daqui a muito tempo. —
E depois lembrou-se. — A minha mãe pediu-me que te perguntasse se já te sentes suficientemente bem para vires jantar conosco — despejou de uma só vez e depois voltou-se para Nikolai. — Pode ser?

 

— Talvez na próxima semana. Ainda é um pouco cedo.
Danina só ali estava há duas semanas e ainda não parecia
muito forte.

 

— Não trouxe nada para usar — lamentou ela.   -

 

—  Podes ir de camisa de noite — disse Alexei pronta­mente. — De certeza que ninguém reparará.

 

—  Que vergonha! — exclamou Danina, rindo da idéia, embora, na verdade, não tivesse nenhum vestido que se adequasse a um jantar com a família imperial.

 

—  Tenho a certeza de que uma das minhas irmãs poderá
emprestar-te qualquer coisa — ofereceu Alexei, educadamente, já que a grã-duquesa Olga tinha mais ou menos a mesma estatura de Danina

—  Também lá estará? — perguntou Danina a Nikolai.
Sentia-se tão bem ao seu lado, que seria mais fácil se ele também estivesse presente. Jantar com a família imperial era ainda bastante intimidante.

 

—  E provável — respondeu. — Ainda não ouvi nada sobre o assunto, mas, se estiver de serviço nessa noite, lá estarei.

 

Nikolai sabia que, mesmo que não tivessem planeado inclui-lo, poderia fazer uns ajustes na escala de turnos de modo a que estivesse de serviço naquela noite. Ambos os médicos eram bastantes flexíveis em termos de horário, e o seu colega tinha mais motivos para ir para casa à noite do que ele.

 

Nikolai levou por fim Alexei de volta ao palácio e Danina deitou-se para dormir um pouco. Quando acordou, ficou surpreendida por ver o médico de novo ali e, ainda por cima, de sobrancelhas franzidas.

 

—  Passa-se alguma coisa? — perguntou, preocupada. Não percebia o que significava a expressão nos seus olhos e ele também não sabia bem como dizer-lhe.

 

—  Queria apenas ver como estava. Temia que a Danina tivesse andado demasiado esta tarde, tendo em conta que foi a primeira vez que saiu.

 

—  Estou bem — garantiu, sentando-se na cama e olhando para ele. Estava ansiosa por começar a fazer exercício, mas sabia que ainda não podia e isso era muito frustrante. Interrogava-se sobre quanto tempo demoraria até que pudesse recomeçar a dançar. Receava que os seus músculos e ligamentos
tivessem esquecido que era uma bailarina. — Dormi duas horas. Foi divertido jogar às cartas com o Alexei.

 

A propósito, ele faz mesmo batota. Consegue ganhar-me sempre — disse o médico com um sorriso largo. —- A Danina bem o encostou contra a parede, e ele adorou. Fa­lou todo o caminho em decapitá-la e de como isso seria sangrento e o quanto iria adorar.

 

Não sei se isso será um comportamento muito imperial — sorriu Danina ironicamente, gostando de ver Nikolai de novo e interrogando-se se ia a caminho do palácio para jantar. Naquela noite era a sua vez de ficar de serviço.

 

Tentarei vir ver como se sente depois do jantar, mas talvez já seja tarde e, para além disso, acho que se sentirá cansada por causa do passeio de hoje.

 

A enfermeira trouxe-lhe o tabuleiro com o jantar. Danina estava a recuperar muito bem. Recebera nessa tarde unia car­ta de Madame Markova que lhe dizia para não ter pressa em regressar. Ainda assim, Danina sentia-se culpada por não dançar.

 

Madame Markova contara-lhe todas as novidades e disse­ra-lhe que uma das bailarinas também apanhara gripe, embo­ra, felizmente, não fosse grave. Estivera doente durante dois dias e nunca tivera febre. Fora bem mais afortunada do que Danina.

 

O médico deteve-se ali durante mais algum tempo à con­versa e depois, com alguma relutância, partiu para jantar no palácio. Danina ficou sentada na cama a beber o seu chá e a pensar nele. Era um homem amável, com um bom coração e ela sentia-se grata pela sua amizade. Se não fosse ele, nem se­quer estaria ali, na casa de hóspedes do czar, rodeada de luxo e mimada por todos. Era extraordinário pensar como tinham sido carinhosos e a sorte que tivera em ter sobrevivido e vin­do para ali.

 

Nikolai não voltou para a ver naquela noite e Danina presumiu que o jantar terminara muito tarde ou que Alexei não estivesse bem ou que ele tivera que dar atenção à família para a qual trabalhava tão diligentemente. Ficou na cama a ler um dos livros que o médico lhe emprestara e permaneceu acordada até tarde para o terminar. Na manhã seguinte, aca­bara ela de se vestir, Nikolai passou pela casa de hóspedes pa­ra ver como se sentia a sua doente.

 

— Dormiu bem? — perguntou, solícito. Danina sorriu,
disse que sim e devolveu-lhe o livro, declarando que gostara muito. Satisfeito, ele entregou-lhe mais três.

 

A czarina falou sobre si a noite passada. Quer fazer uma pequena festa em sua honra, apenas com alguns amigos de Sampetersburgo, nada de muito cansativo. Acha que já se sente com forças para tal? — perguntou, parecendo preocupado. Advertira a czarina de que talvez fosse ainda cedo de
mais.

 

Talvez daqui a uns dias... O que acha?

 

Acho que está a fazer excelentes progressos. Só não quero que se canse. Eu próprio a levarei e, assim que se sentir fatigada, trago-a de volta.

 

Obrigada, Nikolai — disse ternamente.

 

Depois foram dar um pequeno passeio pelo jardim. Estava frio e o vento soprava mais forte do que no dia anterior, por isso, trouxe-a de volta para dentro dali a poucos minutos. Nikolai segurava-lhe ainda a mão quando entraram, mas ne­nhum deles parecia dar-se conta disso. As faces de Danina es­tavam bem rosadas e os olhos brilhavam.

 

Parecia bem mais saudável, embora estivesse ainda longe de poder regressar ao ballet. Começara a exercitar-se meia ho­ra por dia com o consentimento do médico; no entanto, na opinião deste, apenas poderia voltar a dançar em Abril. Teria de estar completamente curada e bem forte antes de sequer começar a pensar nisso. Tinha ainda longos meses de recupe­ração à sua frente, todavia, nem um nem o outro achava a idéia desencorajante. Danina sentia saudades das pessoas do ballet, que eram no fundo a sua família, mas, em poucas sema­nas, começara a sentir-se em casa ali. E agora o jantar que a czarina queria organizar intrigava-a.

 

Nikolai almoçou com ela naquele dia, como fazia habi­tualmente, e partiu pouco tempo depois para tratar dos seus afazeres no palácio, regressando no final da tarde e mais uma vez depois de jantar. Era uma rotina com a qual ambos se sentiam bem.

 

No dia seguinte, Nikolai tinha já dado permissão à czarina para organizar o jantar em honra de Danina. Apenas os ami­gos mais íntimos seriam convidados, bem como alguns fami­liares e, claro, as crianças. O czar estava mais uma vez na frente de batalha com as suas tropas, por isso, não iria estar presente.

 

Na semana seguinte, as grã-duquesas mandaram a Danina alguns vestidos para ela experimentar. Dois deles ficavam-lhe muito bem. Era um pouco mais magra do que as grã-duquesas, especialmente desde que adoecera, mas, fazendo uns ajustes, o preferido de Danina servia-lhe na perfeição. Era um vestido de veludo azul debruado a pele de marta que lhe realçava muito bem as formas. Tinha também uma capa, um chapéu e um regalo a condizer, o que permitiria que percorresse a pe­quena distância entre a casa de hóspedes e o palácio sem apa­nhar frio.

 

Na noite do jantar, Danina estava tão entusiasmada que mal conseguia conter-se. Deixara-se ficar na cama toda a tar­de para estar bem descansada. Nikolai veio buscá-la ainda ela estava a acabar de se arranjar. Enquanto esperava, folheou uni dos livros de poesia que emprestara a Danina e serviu-se de uma chávena de chá do samovar de prata que se encontrava em cima da mesa. Quando sentiu a porta do quarto a abrir--se, olhou para cima, segurando ainda a chávena, e sorriu ma­ravilhado. Danina estava deslumbrante e os seus sedosos cabe­los escuros eram da mesma cor da pele que debruava o vestido.

 

Está magnífica — declarou com um olhar de admiração. — Receio que vá fazer sombra a toda a gente, incluindo as grã-duquesas e a czarina.

 

Duvido, mas é muito amável da sua parte — agradeceu com uma vénia, como faria em palco, porém, quando se ergueu sentiu como as suas pernas estavam ainda fracas. Não havia palavras que descrevessem o que Nikolai sentira quando olhou para ela. Não podia imaginar por que motivo aquela criatura tão delicada, tão elegante, graciosa e encantadora surgira na sua vida. Ficara tão deslumbrado pela sua beleza como pelo seu caráter e energia. Nunca conhecera ninguém assim.

 

Está realmente linda, minha querida. Vamos? — perguntou. Ela acenou com a cabeça e ele ajudou-a a pôr a capa de pele enquanto Danina comentava mais uma vez a generosidade das grã-duquesas.

 

Percorreram a pequena distância até ao palácio no trenó de Nikolai, que não se esqueceu de trazer um cobertor bem espesso para a tapar. A noite estava fria, mas o céu mostrava-se limpo e muito estrelado. Cada uma das estrelas parecia re­fletir-se nas velas que bruxuleavam nas janelas do palácio. Levou-a depressa para dentro e conduziu-a a um grande salão todo decorado a seda e brocado, mármore, malaquite e peças de arte. Era, ainda assim, uma divisão menos formal que mui­tas outras e, com o fogo a arder na lareira, as velas e a caloro­sa recepção que recebeu, Danina nunca se sentira tão bem e tão feliz.

 

Estar ali com a família imperial e Nikolai era como um sonho.Alexei não a largou durante todo o jantar. Ficou sentado a um dos lados, como havia pedido, e Nikolai no outro, para que pudesse observar o seu «estado de saúde» de mais perto. Porém, tudo o que havia para observar naquela noite era a alegria e o prazer que todos sentiam em conhecê-la. Toda a gente a achava graciosa, bela e encantadora.

 

Fizeram-lhe perguntas sobre o ballet e ficaram surpreendi­dos ao ver que estava bem informada sobre muitos outros as­suntos. Graças a Nikolai, lera e aprendera bastante nas últimas semanas. Absorvia novas informações muito rapidamente e recordava-se de tudo o que lhe ensinavam. Ao escutá-la ago­ra, Nikolai sentia-se muito orgulhoso, como se ela fosse sua filha.

 

Por fim, um pouco depois das onze, quando reparou que Danina começara a ficar um pouco pálida e menos animada, decidiu que era mais sensato levá-la de volta. Disse qualquer coisa discretamente à czarina e depois informou Danina que era melhor retirar-se. Fora uma noite muito excitante e, em­bora tivesse adorado cada minuto, não o contrariou. Por mais que detestasse admiti-lo, sentia-se exausta e Nikolai sabia-o. Sorria ainda quando, já a caminho de casa, recostou a cabeça para trás e admirou as estrelas.

 

Enquanto a conduzia para dentro, manteve-se muito jun­to a ela e colocou-lhe o braço em redor dos ombros. Danina inclinou a cabeça contra o seu braço, cansada e grata por tudo o que fizera por ela.

 

— Diverti-me tanto, Nikolai. Obrigado por ter permitido que eu fosse. Toda a gente foi tão amável comigo, foi uma noite maravilhosa. É uma pena que o czar não tenha podido estar presente. Toda a gente sentiu a falta dele — comentou.

Depois, sorriu para Nikolai e tornou a repetir: — Foi uma festa inesquecível.

— Toda  a  gente  ficou  deslumbrada  consigo,   Danina.

O conde Orlovsky achou-a deveras encantadora.O conde já tinha mais de oitenta anos e namoriscara des­caradamente Danina toda a noite, todavia, até a própria espo­sa se divertira com a situação, pois durante os sessenta e cinco anos de casamento fizera o mesmo, e nada mais, com cada mulher bonita que conhecia.

 

—  O Alexei ficou muito triste por não ter jogado às car­tas com ele — lembrou enquanto tirava a capa. Era uma sensação estranha regressarem assim a casa juntos e falarem sobre a festa como se fossem um casal. — Não joguei às cartas, pois não queria parecer indelicada com os outros convidados — explicou.

 

—  Podem jogar às cartas um outro dia. Talvez amanhã, se ambos se sentirem bem. Receio que ele vá estar bastante cansado. E a Danina? — inquiriu, olhando para ela, preocupado.

 

— Como se sente?

 

Os seus olhos resplandeciam de emoção e pareciam mais azuis do que nunca quando lhe respondeu.

 

— Sinto-me feliz e maravilhosa, como se tivesse tido a noite mais bonita da minha vida.

 

Continuou a sorrir para Nikolai enquanto este caminhava na sua direção.

 

— Nunca conheci ninguém como a Danina — confessou quando já se encontravam frente a frente, e naquele momento esqueceu por completo quem ela era. Não era uma prima ballerina ou sequer a sua doente. Era a amiga, a mulher por quem se sentia deslumbrado e começara a amar, mesmo sem esperar que tal acontecesse. — É verdadeiramente extraordinária — murmurou, e depois surpreendeu-a com o que declarou em seguida: — Danina, amo-a.

 

E, sem esperar por uma resposta, inclinou-se para ela, tomou-a nos braços e beijou-a. Danina ficou surpreendida ao perceber como ele era forte e, sem pensar, abraçou-o com força e beijou-o de volta, mas, no instante seguinte, libertou--se dos seus braços e olhou para ele, aterrorizada. O que fora aquilo? O que iriam fazer agora?

 

Eu não... Não podemos... Não sei como isto aconteceu — gaguejou, angustiada. As lágrimas começavam a correr-lhe pelas faces abaixo. Era o primeiro homem que beijara
ou que a beijara a ela. Aos dezenove anos, abrira-lhe uma porta que sempre se mantivera fechada e, agora, Danina não sabia o que havia de fazer.

 

Sei  como  isto  aconteceu,  Danina — disse  Nikolai, aparentando estar mais calmo do que na realidade se sentia.

 

O seu coração batia apressadamente ao pensar que podia per­ dê-la, pois, com aquele gesto ousado, talvez a tivesse afastado para sempre.

 

Acontecesse o que acontecesse, não poderia per­dê-la. — Apaixonei-me por si no primeiro instante em que a vi.  Nunca pensei que sobrevivesse àquela noite, mas a sua imagem perseguia-me. Era uma ave ferida que eu achava que não seria poupada. Não fazia idéia de quem era, não sabia na­da sobre si até agora, até ter vindo para aqui e termos conversado todos os dias. Agora, amo tudo em si, o seu coração bondoso, a sua vivacidade... Danina, não posso viver sem si.

 

— Era ao mesmo tempo uma confissão de amor e um pedido de clemência, e ela sabia-o.

 

Mas o Nikolai é casado — contrapôs com um olhar triste. — Não podemos fazer isto, temos de esquecer o que aconteceu.

 

O meu casamento não passa de uma formalidade. Deve ter percebido isso do pouco que lhe contei. Nunca fiz nada assim na vida, juro. É a primeira mulher que amo verdadeiramente. Não sei se eu e a Marie alguma vez nos amamos, pelo menos desta forma. Hoje em dia, então, apenas nos tole­ramos. Danina, juro-lhe, ela odeia-me.

 

Talvez esteja enganado e não compreenda a fundo os sentimentos dela ou a infelicidade que sente por viver na Rússia.  Talvez não fosse má idéia mudarem-se para Inglaterra.

 

Danina andava de um lado para o outro, agitada e pertur­bada e, mais do que nunca, Nikolai temia perdê-la. Depois, voltou-se para ele e proferiu as palavras que ele mais receava. Não declarou que não o amava, pois assim que Danina o bei­jara percebera que o sentimento era recíproco, embora ela não o admitisse.

 

Tenho  de  regressar a  Sampetersburgo.  É imperativo que vá. Não posso ficar aqui.

 

Não pode, não está ainda suficientemente forte para viver naquelas casernas gélidas ou voltar a dançar. A sua recuperação ainda demorará meses. Vai ficar doente de novo e isso será desastroso para si — argumentou com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces. — Peco-lhe, não se vá embora —implorou, não suportando a idéia de se afastar dela.

 

Não posso estar perto de si... Ambos sabemos que os nossos  corações  ocultam  um  terrível  segredo,  um  pecado monstruoso pelo qual seremos castigados.

 

Há quinze anos que suporto a minha penitência. Não pode condenar-me a essa vida para sempre.

 

O que quer dizer com isso? — inquiriu, abrindo os olhos de espanto e cobrindo a boca com a mão, como que horrorizada com o que ele lhe propunha.

 

Que farei qualquer coisa por si. Deixo a minha mulher, a minha família... Danina, farei qualquer coisa para ficar consigo.

 

Não pode fazer isso ou sequer afirmá-lo. Não suporto pensar que faria uma coisa tão horrível... Nikolai, pense nos seus filhos!

 

Pensei neles um milhão de vezes todos os dias desde que a conheci, mas já não são crianças. Têm doze e catorze anos e em pouco tempo serão uns homens. Não posso viver com uma mulher que não suporto para o resto da minha vida por causa deles... Ou renegar a única mulher que alguma vez
amei. Danina, não se afaste de mini, por favor... Conversaremos melhor sobre isto. Prometo que não farei nada que não queira.

Então, não deverá voltar a falar sobre o que aconteceu. Nunca mais. Temos ambos de esquecer o que me disse. Não posso ser mais nada para si do que já sou. A sua vida é aqui, com o czar e a sua família. A minha é no ballet. Não me posso entregar a si. Não tenho nada para lhe oferecer. A minha vida pertence ao ballet, até ser velha de mais para dançar e então, entrega-la-ei às crianças, como Madame Markova.

 

Está a dizer-me que tem de ser freira para ser bailarina? — perguntou. Era a primeira vez que ouvia tal idéia, embora soubesse, pelas longas conversas que haviam tido, que Danina nunca antes estivera apaixonada.

 

Madame Markova afirma que uma vida impura, uma vida que envolva homens, é uma fonte de distrações. Não se pode ser uma grande bailarina e, ao mesmo tempo, uma meretriz — declarou  Danina rudemente,   surpreendendo  Nikolai.

 

Não  sugeri  que  se  tornasse  uma meretriz,  Danina. O que quis dizer foi que a amava e que quero casar consigo, se a Marie aceitar o divórcio.

 

E eu estou a dizer-lhe que não posso. Pertenço ao ballet, é a minha vida, é tudo o que conheço, nasci para dançar. Para além disso, não deixarei que destrua a sua vida por mini.

 

Nasceu para amar e para ser amada, para estar cercada por um marido e filhos que a adorem, e não para dançar em salas cheias de correntes de ar e pôr em risco a sua saúde até morrer ou até estar demasiado velha e desgastada para servir para mais alguma coisa. Merece mais do que isso e quero ser eu a dar-lho.

 

Mas não pode — protestou Danina com uma voz angustiada. — E se a Marie não concordar com o divórcio?

 

Ela vai adorar poder regressar a Inglaterra. O divórcio é um preço que não se importará de pagar para reconquistar a sua liberdade.

 

E o escândalo? O czar já não permitirá que se aproxime da família. Tornar-se-ia um proscrito. Não permitirei que o faça. Tem de me esquecer — rematou em pranto.

 

Esquecerei tudo o que dissemos esta noite — proferiu a custo —, se prometer ficar aqui. Não falarei mais no assunto. Tem a minha palavra de honra.

 

Está bem — concordou Danina.

 

Suspirou e voltou-se de costas. Parecia desesperadamente infeliz, mas não tanto quanto ele. Nikolai desejava abraçá-la, mas sabia que não podia.

 

— Vou pensar nisso — conseguiu ainda dizer, porém não se voltou para olhar para ele. Não podia, pois continuava a chorar. — Agora, é melhor ir.

 

Ele não lhe viu o rosto, apenas as costas muito direitas e o cabelo brilhante que lhe caía em cascata pelos ombros. Ansia­va tocá-los, abraçá-la.

 

— Boa noite, Danina — despediu-se, com uma voz que espelhava a tristeza que sentia. Um instante depois, ela es­cutou a porta fechar-se e voltou-se, soluçando.

 

Danina ainda não acreditava no que tinham feito e no que ele dissera; no entanto, o pior de tudo, era saber que também o amava. Para além disso, era um homem casado e ela não podia deixar que destruísse a sua vida, perdesse o seu trabalho ou os filhos por causa dela. Amava-o demasiado para permitir tal coisa. Também tinha as suas obrigações para com o ballet. Lembrava-se bem dos constantes e terríveis avisos de Madame Markova. A sua mentora sempre lhe dissera que era diferente, que não precisava de um homem, que deveria manter-se pura e viver para a sua arte; o ballet deveria vir pri­meiro que qualquer outra coisa na sua vida. Assim fora até então; porém, com Nikolai percebera que as coisas poderiam ser diferentes. Uma vida com ele significaria a felicidade eter­na, mas preferia renunciar a ela, se, para a ter, ele tivesse de abandonar tudo o que mais amava.

 

Sabia que deveria regressar a Sampetersburgo, mas não suportava deixá-lo, nem a ideia de não o ver todos os dias. O mesmo acontecia com ele. Agora, tudo o que tinham a fa­zer era fingir que nada acontecera, o que não seria fácil, po­rém Danina estava determinada em consegui-lo. Enquanto se encaminhava para o quarto e despia o vestido, sentiu os joe­lhos a tremer violentamente e teve de sentar-se. Pensou nos lábios dele junto aos seus e recordou o que sentira quando es­te a beijara, mas, independentemente do que sentia, sabia que nunca poderiam ficar juntos. No entanto, se permanecesse ali, poderiam pelo menos ver-se. Ao espelho, olhando o seu pró­prio reflexo, Danina interrogou-se mais uma vez como as coisas haviam chegado àquele ponto. Fazer de conta que nada acontecera iria ser uma tarefa bem difícil.

 

Nikolai não veio vê-la nos dois dias que se seguiram e nem sequer compareceu no palácio. Finalmente, enviou-lhe dois livros com um bilhete onde explicava que apanhara uma constipação e que não quisera contagiá-la. Afirmava ainda que iria vê-la assim que pudesse. Danina não sabia se isso seria verdade ou não, mas, ainda assim, a sua ausência era conve­niente, dando aos dois tempo para se controlarem e tentarem esquecer o que acontecera.

 

Só que, sem as visitas de Nikolai, deambulava pela casa, tentava em vão dormir e, no fim do primeiro dia, tinha uma terrível dor de cabeça e recusou tomar qualquer coisa que a aliviasse. As enfermeiras acharam-na estranhamente irritável e rabugenta e ela desculpou-se mil vezes pelo seu mau humor, culpando a enxaqueca. No fim do segundo dia estava desani­mada, perguntando-se se ele não estaria zangado, se se arre­pendera de tudo o que fizera e dissera, se nunca mais o veria. Suportava enterrar o segredo que partilhavam no fundo do seu coração, mas, compreendia agora, o que não aguentava era não voltar a vê-lo.

 

Quando ele apareceu por fim, Danina encontrava-se na pequena sala de estar a ver a neve cair no jardim e a pensar nele e não o sentiu entrar. Quando se voltou e o viu ali, cor­reu sem pensar para os seus braços, dizendo-lhe que sentira muito a sua falta. Ao princípio, Nikolai não entendeu o que queria dizer. Não percebia se ela mudara de idéias e queria aceitar a sua proposta ou se aquelas palavras apenas significa­vam que tivera saudades dele.

— Também tive saudades tuas — proferiu numa voz ain­da enrouquecida. Danina percebeu que a sua desculpa para a não ter vindo ver fora sincera e ficou aliviada. — Muitas — reafirmou, sorrindo. Desta vez não cometeu a imprudência de a beijar. Resolvera aceitar a sua sugestão e estava determi­nado a não pisar de novo o risco, a menos que ela tomasse a iniciativa de o fazer. Danina também não fez menção de o beijar, dirigindo-se diretamente ao samovar para lhe servir uma chávena de chá. A mão tremia-lhe ao estender-lha, mas estava radiante.

 

—  Estou tão contente por teres estado realmente doente... Não era bem isto que queria dizer... — corrigiu, rindo pela primeira vez em dois dias. — Temia que não quisesses voltar a ver-me.

 

—  Sabes que isso não é verdade — confessou com um olhar que lhe dizia tudo o que desejava ouvir. Estava muito contente por vê-lo. — Não queria que ficasses doente depois de tudo por que passaste. Já me sinto bem melhor.

 

—  Fico contente por sabê-lo — disse Danina, um pouco constrangida ali perto dele, mas continuando a olhá-lo intensamente. Nikolai parecia-lhe ainda mais formoso, alto e forte.

 

No fundo do seu coração, sabia que ele agora lhe pertencia, o que o tornava ainda mais perfeito.

 

—  Estiveste muito doente? — perguntou solicitamente.
Estava deslumbrante no seu vestido de lã cor-de-rosa que a
fazia parecer ainda mais nova. Na noite do jantar no palácio, o vestido de veludo azul conferira-lhe uma aparência mais madura. Agora parecia uma rapariguinha e Nikolai teve vontade de a beijar.

 

—  Não estive tão doente como tu, graças a Deus. Já estou bem.

 

—  Não devias andar na rua com esta neve — admoestou.

 

—  Queria ver como estava o Alexei — explicou ele, embora os seus  olhos  também dissessem outra  coisa.  Quisera principalmente vê-la a ela.

 

—  Ficas para o almoço? — perguntou Danina educada­ mente. Ele respondeu que sim com um aceno de cabeça e sorriu satisfeito com o convite.

 

Gostava muito — disse então, e ambos pensaram que podiam passar algum tempo juntos, como tinham feito até àquele momento, sem revelar o seu segredo mesmo um ao outro. Todavia, Danina começara já a interrogar-se sobre o que aconteceria quando regressasse a Sampetersburgo dali a um mês ou dois. Esquecer-se-iam um do outro ou ele iria visitá-la?  O  tempo  e  o  amor que partilhavam tornar-se-iam apenas uma lembrança agradável? A idéia de partir era já penosa. Conversaram até quase ao fim da tarde. Danina devolveu-Ihe alguns dos livros e ele prometeu vir vê-la de novo quan­do saísse do palácio. Quando partiu, tudo parecia ter voltado ao normal. Não regressou naquela noite, mas enviou-lhe um bilhete. Alexei não estava bem e Nikolai e o Dr. Botkin iam passar a noite no palácio. A hemofilia de que Alexei sofria fa­zia com que necessitasse de cuidados constantes e Nikolai achara que não era sensato deixá-lo naquela noite. Danina compreendeu e enroscou-se na cama com um dos livros que ele lhe trouxera, aliviada por o ter visto de manhã. A sua ausência depois do que se passara na noite do jantar fora bastan­te penosa. A dor de cabeça havia desaparecido no momento em que o vira.

 

Foi novamente um alívio vê-lo reaparecer na manhã se­guinte para tomar o pequeno-almoço, mas não pôde deixar de reparar que, de repente, havia algo de mais intenso entre ambos. Embora tivessem concordado não voltar a discutir o que sentiam um pelo outro, era óbvio que as visitas de Niko­lai eram tudo para si e que este ficava ansioso quando não es­tava perto dela. No entanto, estavam ainda convencidos de que conseguiriam controlar a chama que ardia entre eles. Da­nina mostrava-se decidida a conter-se e nunca mais falar sobre isso até que morresse, mas Nikolai duvidava cada vez mais que o conseguisse, embora soubesse que teria de fazê-lo ou arriscar-se-ia a perder Danina para sempre.

 

Naquele dia, Nikolai falou longamente sobre Alexei e ex­plicou-lhe em pormenor a natureza da sua doença. Tal le­vou-os a uma discussão sobre o prazer de ter filhos. Nikolai disse-lhe que não deveria privar-se desse prazer e que tinha a certeza de que seria uma mãe extremosa. Danina apenas aba­nou a cabeça e recordou-lhe o seu compromisso para com o ballet. Ele respondeu-lhe mais uma vez que considerava o seu zelo pouco razoável e pouco saudável.

 

—  Madame Markova nunca me perdoaria se eu deixasse o ballet — explicou. — Dedicou-nos toda a sua vida e continuará a fazê-lo. Espera o mesmo de mim.

 

—  Porquê de ti mais do que dos outros? — perguntou de forma contundente. Ela respondeu com um olhar traquinas:

—  Porque sou a melhor bailarina da companhia.

 

E também a mais modesta — brincou. — Tens razão, és mais dotada, mas, ainda assim, isso não é motivo para que desistas da tua vida.

 

O ballet è mais do que dançar, Nikolai. É uma forma de vida, um sentimento, uma parte da nossa alma, uma religião.

 

Es doida, Danina Petroskova, mas eu amo-te — rema­tou. As palavras escaparam-se-lhe sem querer. Olhou na direção de Danina, aterrorizado; porém, ela nada disse. Sabia que fora um acidente, por isso decidira ignorá-lo.

 

Como, após um nevão de dois dias, parara de nevar, deci­diram passear pelo jardim. Uns instantes depois, Danina co­meçou a bombardeá-lo com bolas de neve. Nikolai adorava estar com ela. O seu espírito infantil e a imensa dedicação àquilo em que acreditava tornavam-na uma jovem extraor­dinária. Quando a deixou naquela tarde depois de ter passado a noite de serviço no palácio, ambos se sentiam novamente à vontade um com o outro. A nuvem que se abatera sobre eles nos últimos dias parecia ter-se dissipado e ambos se sentiam confiantes de que conseguiriam viver de acordo com as restri­ções impostas por Danina. No final de mais uma semana, tu­do parecia ter voltado ao normal.

 

Nikolai vinha visitá-la duas vezes por dia ou mais, sempre que podia. Almoçavam ou jantavam juntos frequentemente e, por vezes, chegava ainda a tempo de tomar o pequeno-almoço com ela.

 

O tempo foi impiedoso naquele mês, o que os forçou a estar sempre dentro de casa; porém, no final de Janeiro, o tempo começou a melhorar, tal como a saúde de Danina. A sua convalescença progredia muito bem, mas o seu regresso ao ballet estava ainda longe e Danina também não o forçava. Quando viera, pedira a Madame Markova que apenas a dei­xasse ficar um mês, embora o médico tivesse recomendado que ficasse até Março ou Abril. Quando voltou a escrever a Madame Markova, disse-lhe que concordara em ficar até o médico achar que estava curada. Era exatamente o que pre­cisava e Madame Markova ficou aliviada ao sabê-lo.

 

As grã-duquesas vinham tomar chá com Danina sempre que não estavam ocupadas a tratar dos feridos de guerra ou a estudar. Alexei também adorava vir jogar às cartas com ela. Danina parecia um membro da família e era tratada como tal. Foi Alexei quem lhe anunciou certo dia que queria que ela fosse ao baile que iria ser organizado pelo czar e pela czarina no dia um de Fevereiro. Era o primeiro que davam em largos meses. A czarina entristecera-se ao ver que as filhas há muito não se divertiam, sempre ocupadas com as suas funções no hospital, e convencera o marido de que um baile alegraria to­da a gente. Depois de convidar Danina, Alexei informou a mãe de que gostaria que ela fosse convidada.

 

A czarina afirmou que nada lhe daria mais prazer e, sem mesmo esperar por uma resposta, enviou-lhe, como anterior­mente para o jantar informal, uma série de vestidos. Desta vez, eram ainda mais deslumbrantes e Danina ficou maravi­lhada.

 

Havia vestidos de seda, de cetim, de veludo e brocado, dignos de uma rainha ou de uma czarina. Danina quase se sentia constrangida de os usar. Por fim, escolheu um de cetim branco, com um corpete de brocado entretecido de fios de ouro e bem justo à cintura. Parecia, como Alexei comentara quando ela o experimentou, uma princesa de um conto de fadas. Nikolai ainda não o tinha visto, mas já ouvira comentar que o vestido era maravilhoso. A capa de cetim branco que fazia conjunto com o vestido era revestida com o mesmo brocado do corpete e guarnecida a arminho.

 

O vestido era, de fato, deslumbrante e, com os seus ca­belos escuros, Danina estava mais bela que nunca. O vestido parecia-lhe o mais belo que jamais vira ou alguma vez sonha­ra usar. Nikolai ficou contente por saber que ela aceitara o convite da czarina. Tal como anteriormente, advertiu-a de que não se cansasse e que regressasse a casa assim que se sen­tisse fatigada, mas não tinha quaisquer objeções a que com­parecesse ao baile e ofereceu-se mais uma vez para a acom­panhar.

 

O baile era um evento raro nos dias que corriam, pois a família imperial cancelara todos os acontecimentos sociais for­mais devido à guerra. Poderia passar-se muito tempo até que se organizasse outro. O czar regressaria da frente expressa­mente para a ocasião e toda a gente se alegrava com o fato de ele estar presente.

 

A tua mulher não virá nem a este baile? — perguntou Danina cautelosamente a Nikolai no dia anterior ao baile. Ele abanou a cabeça com um ar aborrecido. No passado, teria dito a Marie que era muito indelicado da sua parte recusar o convite, contudo, desta vez nem sequer se importava, por razões óbvias para Danina. Já prometera a si mesma que dança­ ria com ele uma ou duas vezes, se a convidasse, mas que isso não significaria nada. A revelação que lhe fora feita há duas semanas parecia ter passado para segundo plano. Eram mais uma vez apenas amigos e nada mais comprometedor.

 

Claro que não — respondeu Nikolai. — Ela detesta bailes e qualquer coisa que não envolva cavalos. — Depois, mudou de assunto e sorriu ao revelar-lhe que Alexei confessara que Danina estava «muito bem» no vestido que a mãe lhe emprestara. Só que «muito bem» não preparara de forma al­guma Nikolai para o que veria quando Danina emergiu do quarto com o vestido de cetim branco e brocado debruado a arminho. Parecia uma jovem rainha com o cabelo preso em cima, formando uma coroa de pequenos caracóis, e os brincos de pérola que eram a única coisa que a mãe lhe deixara. Danina estava contente por se ter lembrado de os trazer consigo.

 

Nikolai ficou sem fôlego quando a viu e, durante um momento, não foi capaz de pronunciar uma única palavra. Tinha os olhos marejados de lágrimas e só rezava para que Danina não reparasse.

 

Estou bem? — perguntou nervosamente, como faria a um dos irmãos.

 

Nem sei o que dizer. Nunca vi ninguém tão belo como tu.

 

Não sejas pateta — repreendeu, sorrindo —, mas obrigada. O vestido é maravilhoso, não achas?

 

Em ti, sim.

 

A cintura dela era do tamanho da de uma criança e o corpete revelava um pouco do seio, sem ser vulgar ou ofensivo. De fraque, Nikolai era o acompanhante perfeito e, de braço dado, encaminharam-se para o Palácio de Catarina. O palácio ficava também em Tsarskoie Selo. Era bem mais grandioso e ornamentado que o Palácio de Alexandre, onde a família imperial residia, e fora remodelado por Catarina, a Grande. O projeto original era da autoria de Rostrelli. As belíssimas cúpulas de ouro tornavam-no extremamente formal e ceri­monioso. A czarina preferia usar o Palácio de Catarina apenas para eventos oficiais, embora atualmente parte dele estivesse a ser utilizado para cuidar dos soldados feridos que voltavam da frente.

 

Mesmo entre os magníficos vestidos, jóias e membros de famílias reais, Danina causou grande sensação. Toda a gente queria saber quem era, de onde vinha. Vários jovens nobres estavam convencidos de que era uma princesa. O seu porte régio e a forma graciosa como se movia atraíam a atenção de todos. Assim que viu a czarina, agradeceu-lhe discretamente o vestido que escolhera.

 

— Fique com ele, minha querida.  Nenhuma de nós o
conseguirá usar da mesma forma que a Danina.

 

Percebeu de imediato que a czarina estava a ser sincera, ficando ainda mais sensibilizada com a sua contínua generosi­dade e bondade.

 

O jantar para quatrocentos convidados foi um sucesso. Após o jantar, os cavalheiros retiraram-se durante um curto espaço de tempo para a famosa Sala de Âmbar, juntando-se novamente aos restantes convidados na Sala do Trono onde decorreu o baile. Foi uma noite magnífica. O entusiasmo e energia de Danina pareciam intermináveis. Estava emociona­da só de estar ali. Era uma noite que jamais esqueceria.

 

Quando Nikolai a convidou para dançar sentiu o coração agitar-se, mas nem por um instante permitiu que se recordas­se do que ele lhe confessara há duas semanas atrás. Esse capí­tulo da vida deles estava já encerrado. Tudo o que agora exis­tia entre ambos, dizia Danina para consigo mesma, era camaradagem e amizade. No entanto, o olhar dele enquanto dançavam dizia algo bem diferente. Nikolai sentia-se extre­mamente orgulhoso dela e o modo como a segurava expres­sava a Danina tudo o que não lhe podia dizer. Até o czar co­mentou qualquer coisa com a esposa enquanto dançavam.

 

—  Parece-me que o Nikolai está apaixonado pela nossa hóspede — disse em jeito de observação.

 

—  Não creio, meu querido — negou a czarina. Vira-os juntos em várias ocasiões e nunca reparara em nada de impró­prio na amizade ou no comportamento deles.

 

—  É uma pena que esteja casado com aquela desagradável inglesa — disse o czar, e a czarina respondeu-lhe com um sorriso. Também não gostava de Marie.

 

—  Acho que o Nikolai está apenas preocupado com o bem-estar da Danina — declarou, totalmente convencida do que afirmava.

 

—  Está lindíssima naquele vestido. É um dos teus?

 

A czarina trazia um espetacular vestido de veludo ver­melho ornamentado com um conjunto de jóias de rubis pertencentes à mãe do czar. Era uma mulher muito bela e o czar amava-a muito. Ambos estavam felizes por ele se encontrar de novo em casa e poderem esquecer a guerra por alguns momentos.

 

—  Na verdade, o vestido é da Olga, mas assenta muito bem à Danina. Disse-lhe para ficar com ele.

 

—  Ela é muito bonita — confessou e depois sorriu para a mulher. — Mas também tu, meu amor. Os rubis da minha mãe ficam-te muito bem.

 

Por fim, pararam de dançar para circularem entre os con­vidados. A festa estava a ser um sucesso. Nikolai e Danina dançaram durante metade da noite. Era difícil acreditar que estivera tão doente e, nos braços dele, não se sentia nem um pouco cansada. Já passava da meia-noite quando ele finalmen­te insistiu para que ela se sentasse um pouco a fim de descan­sar antes que ficasse completamente exausta. Danina estava a divertir-se tanto que não queria parar de dançar nem por um minuto.

 

Nikolai trouxe-lhe uma taça de champanhe. As faces de Danina estavam coradas, os olhos mais azuis do que nunca e o peito atraente e macio. Nikolai teve de se obrigar a desviar o olhar durante um momento; porém, quando olhou nova­mente para ela, descobriu que não conseguia resistir-lhe e, instantes depois, estavam a dançar outra vez e ela parecia-lhe mais feliz e bela que nunca.

 

— Sinto-me um fracasso como guardião da tua saúde — confessou Nikolai enquanto dançavam mais uma valsa. A única vez que dançara com a mulher fora no dia do casamento.

 

— Deveria obrigar-te a ir para casa descansar, mas não consi­go. Receio que vás ficar exausta ao ponto de te sentires doente amanhã.

 

— Terá valido  a pena — argumentou,  olhando-o  nos olhos.  Nikolai desejou que a noite não terminasse nunca.

 

Passava já das três horas da manhã quando resolveram par­tir, contando-se entre os últimos convidados a sair da festa. Fora uma noite inesquecível. O czar e a czarina agradeceram a presença de Danina e, tal como Nikolai, exprimiram o de­sejo de que não tivesse prejudicado a sua saúde ao deixar-se ficar até tão tarde quando talvez devesse estar a descansar.

— Amanhã fico o dia todo na cama — prometeu, e a czarina recomendou-lhe que fizesse isso mesmo. Seria uma pena se adoecesse de novo por causa da festa.

 

Sentiu-se ainda bem-disposta quando chegaram a casa. A noite estava maravilhosa, o céu estrelado, o chão coberto de neve e Danina não deixava de pensar na festa. Tinha dan­çado com várias pessoas, mas a maior parte da noite fora passada nos braços de Nikolai, o que muito lhe agradara. Co­mentava ainda alegremente a festa quando entraram em casa e ele a ajudou a tirar a capa de arminho. Tal como acontecera durante toda a noite, não conseguia tirar os olhos dela e dei­xar de admirar a sua beleza. Era, sem dúvida, a mulher mais encantadora que estava na festa.

 

—  Queres beber alguma coisa? — perguntou Danina. Es­tava demasiado excitada para ir dormir e não queria que a noite terminasse ainda. Nikolai era da mesma opinião, por isso, serviu-se de um pouco de brande e foram sentar-se frente à lareira a conversar sobre a festa. Danina surpreendeu-o sen­tando-se aos seus pés com o seu magnífico vestido e recostando a cabeça nos seus joelhos. Pensava no baile e sorria distraidamente para a lareira enquanto ele lhe acariciava o cabelo e saboreava o prazer de a ter ali encostada a si.

 

—  Nunca esquecerei esta noite — asseverou Danina, feliz por estar ali com ele, não desejando mais nada.

Nem eu — declarou Nikolai, acariciando-lhe o braço com a mão e pousando-a depois sobre o seu ombro. Danina parecia-lhe  tão  delicada,  tão  frágil.  —  Sinto-me  tão  feliz quando estou contigo — confessou, temendo ir novamente longe de mais e  ofendê-la.  Era tão  difícil reprimir o que sentia.

 

—  Também eu, Nikolai. Somos muito afortunados por
nos termos encontrado — disse, não tencionando provocá-lo, mas antes celebrar a amizade que os unia. Só que as palavras dela tornavam a situação ainda mais difícil para Nikolai.

 

—  Fazes-me sonhar de novo — afirmou tristemente — com coisas das quais desisti há muito. — Aos trinta e nove anos, sentia que grande parte da sua vida pertencia já ao passado, um passado de esperanças perdidas, desilusões, dissabores. Agora, desde que a conhecera, atrevera-se a sonhar de
novo, mas não podia concretizar tal sonho ao lado da mulher que amava. — Adoro estar contigo.

 

Depois, sentindo-se demasiado longe dela, deixou-se es­corregar para o chão e ficaram, lado a lado, olhando o lume e pensando nos seus sonhos. Colocou então o braço em redor dos ombros dela e disse-lhe:

 

—  Não quero magoar-te nunca, Danina. Quero que sejas sempre feliz.

—   

—  Sinto-me feliz aqui — disse do fundo do coração, embora também fosse feliz no ballet. Na verdade, nunca conhecera a infelicidade, apenas longas e árduas horas de trabalho, uma severa disciplina e uma grande devoção pela razão da sua vida, o bailado. A sua vida fora sempre marcada pela paixão.

—  Voltou-se  para  ele  e  reparou  que  havia  lágrimas  nos  seus olhos,  como ao princípio  da noite,  quando a vira sair do quarto. Desta vez via-as claramente.

— Estás triste, Nikolai?

— Sabia que a vida dele não era fácil. Embora preferisse não pensar nisso, sabia que era muito infeliz em casa com uma mulher que não o amava.

 

—  Talvez um pouco, mas feliz por estar aqui contigo.

 

 

—  Mereces mais do que isso — confessou-lhe, percebendo que Nikolai exigia muito pouco dela e, todavia, lhe entregava o seu coração completamente. De repente, sentiu-se in­justa para com ele. Silenciara-o por motivos egoístas, para não se sentir incomodada, pois não sabia como agir, mas, no fundo, obrigara-o a negar os seus sentimentos. — Mereces ser muito feliz por todo o bem que fazes a todos que te rodeiam. Dás tanto de ti a tanta gente... E a mim — acrescentou.

 

—  Desejava ter mais para te dar. A vida por vezes é cruel, não achas? Só encontramos aquilo que procuramos quando já é tarde de mais para o termos.

—  Talvez  não  seja  —  murmurou  Danina,   sentindo-se atraída por ele como nunca se sentira por nenhum homem, exceto quando a beijara. Nikolai não se atreveu a perguntar-Ihe o que queria dizer com aquilo, limitando-se a olhá-la intensamente. Os olhos de Danina chamavam-no com uma sinceridade e amor tão evidentes, que não havia maneira de interpretar mal o convite que lhe dirigiam.

 

—  Não quero magoar-te... Ou aborrecer-te. Amo-te demasiado para o fazer — disse, tentando reprimir tudo o que sentia por ela.

 

—  Amo-te, Nikolai — declarou e, sem hesitações ou receios, tomou-a carinhosamente nos braços e beijou-a. Era tu­do o que ambos sonhavam. Ao contrário da primeira vez, não foram apanhados de surpresa.

 

Beijaram-se longamente frente ao lume e mantiveram-se abraçados até que o fogo se extinguiu e Danina começou a tremer, de frio e da emoção que sentia.

 

— Vem, ainda te constipas, meu amor. Vou deitar-te e depois vou-me embora — murmurou ele, conduzindo-a de­ pois ao quarto. — Queres que te ajude a tirar o vestido? — perguntou solicitamente quando reparou que era uma tarefa complicada para uma só pessoa. Danina aceitou a ajuda, pois, de outra forma, teria de dormir com o vestido, já que não havia nenhuma empregada ali àquela hora para a ajudar.

 

Danina mais parecia uma criança enquanto ele a desabo­toava e ajudava a sair do vestido, que revelava o corpo jo­vem, elegante e ágil de uma bailarina. Ela mirava-o com um olhar que era um misto de inocência e desejo.

 

—Já é muito tarde para ires para casa — sussurrou caute­losamente, não sabendo bem o que lhe dizer, ou como dizê-lo. Nunca fizera nada assim e nem imaginava como seria, mas também não conseguia imaginar não estar com ele.

 

—  O que queres dizer? — segredou Nikolai, parecendo confuso.

 

—  Fica comigo. Não temos de fazer nada que não queiramos. Apenas te quero aqui comigo. — O lugar dele era ali e ambos o sabiam.

 

Oh, Danina — exclamou, sabendo que era o início de uma nova vida e o fim de anos de desilusão. Era para ambos um momento pleno de esperança.

 

Quero tanto ficar aqui contigo. — Era tudo o que sempre desejara desde o momento em  que a conhecera e mais ainda desde que chegara ali. Nikolai compreendia agora que fora por isso que fizera tudo o que estava ao seu alcance para a trazer para ali.

 

Despiram-se lentamente e, algum tempo depois, encon­travam-se na sua cama grande e confortável, aconchegados debaixo dos cobertores. Danina olhou para ele por entre a es­curidão e soltou umas risadinhas.

 

De que te ris, minha tonta? — perguntou ele, ainda sussurrando, como se alguém os pudesse ouvir, embora àquela hora não houvesse ali ninguém. Estavam completamente
sozinhos com o segredo e o amor que partilhavam.

 

É engraçado... Tinha tanto medo do que sentia por ti e dos teus sentimentos  e agora,  aqui  estamos,  como  duas crianças atrevidas.

 

Crianças atrevidas não, meu amor, crianças felizes. Ao fim e ao cabo, talvez tenhamos direito a isto... Talvez fosse o que o destino ditou para nós. Nunca amei nenhuma mulher como te amo a ti, Danina. — E com isto beijou-a intensa­ mente e a paixão que sentiam fez com que lhe ensinasse tudo o que ela nunca conhecera ou sonhara vir a conhecer. A paixão, o encanto e o amor que ambos haviam desejado estavam presentes, à espera que ela os descobrisse. Enquanto Danina dormia nos seus braços abraçou-a carinhosamente e sorriu, agradecendo a generosidade dos deuses por a terem colocado no seu caminho.

 

—  Boa noite, meu amor — segredou-lhe antes de adormecer.

 

O segredo que partilhavam cresceu entre eles como um prado de flores silvestres na Primavera. Nikolai vinha vê-la todos os dias, como habitualmente, mas agora ficava durante mais tempo, conciliando as suas visitas com as suas obrigações no palácio. A noite, quando terminava os seus afazeres, volta­va para perto dela e dormiam juntos. Dissera à esposa que agora precisava de ficar no palácio todas as noites por causa de Alexei. Marie parecia nem sequer importar-se com isso; por­tanto, não tinha quaisquer objeções a que ficasse fora toda a noite.

 

Danina estava maravilhada. Nikolai ensinara-lhe coisas que a uniriam a ele de alma e coração para sempre. Partilha­vam tudo, as esperanças, os sonhos, os medos de infância. Apenas temiam perder-se um ao outro. Não tinham ainda re­solvido o que aconteceria quando Danina regressasse ao ballet, embora ambos soubessem que, mais tarde ou mais cedo, esse dia chegaria. Nessa altura, teriam então de decidir alguma coisa relativamente ao futuro; por enquanto, Nikolai não ti­nha dito ainda nada à sua mulher.

 

Até lá, queriam apenas desfrutar do amor que sentiam um pelo outro, livres de qualquer decisão definitiva. No meio de tanta felicidade, Fevereiro passou a correr e Março também. Estava ali há três meses quando começou finalmente a falar, com mágoa, do regresso ao ballet. Só a idéia fazia-a tremer. Madame Markova já lhe perguntara várias vezes quando pla­neava regressar aos treinos e às aulas. Levaria meses a recupe­rar o que perdera durante a convalescença. Comparados com a esgotante rotina do ballet, os modestos exercícios que ali praticava não representavam nada. Por fim, com muita pena sua, prometeu que regressaria a Sampetersburgo no final de Abril; porém, a idéia de deixar Nikolai era agora quase insu­portável.

 

Falaram seriamente sobre o seu regresso três semanas antes de Danina partir. Nikolai achava que estava na altura de falar com Marie. Ia sugerir-lhe que regressasse a Inglaterra com os filhos. O malogro em que o seu casamento se transformara devia terminar. No entanto, não tinha ainda a certeza do que Danina queria fazer quanto ao bailei. Era urna decisão que só ela poderia tomar.

 

—  O que achas que a Marie dirá quando lhe contares?

—  Acho que ficará aliviada — disse completamente convencido disso, embora não tivesse a certeza de que ela concordasse com o divórcio. Nikolai preferia não lhe falar de Danina por enquanto. Havia razões mais do que suficientes para pôr fim ao casamento sem ter de complicar ainda mais as
coisas.

 

—  E os rapazes? Achas que irá deixar-te vê-los? — perguntou com um ar preocupado. Era com isto que se atormentara antes de iniciarem a relação e o motivo por que hesitara tanto em se entregar a Nikolai. Todavia, como ele mesmo afirmara, tal não podia ter sido evitado, pois o destino assim o ditara. Danina percebia agora que a sua hesitação não passara de uma fantasia.

 

—  Não sei o que fará em relação aos rapazes. Talvez só os possa ver quando forem mais velhos. — A angústia que tal lhe provocava era óbvia nos seus olhos e não passou despercebida a Danina. — E Madame Markova? — perguntou ele de volta. Era uma questão igualmente complicada para ela,
embora mais simples aos olhos de Nikolai.

 

—  Falarei com ela quando regressar a Sampetersburgo — respondeu, tentando acalmar o receio que sentia ou a sensação de que iria traí-la. Madame Markova esperava tanto dela e dera-lhe tanto, que ficaria devastada se Danina abandonasse o bailei. Contudo, para Danina tudo mudara entretanto. A sua, vida pertencia agora a Nikolai e não podia ignorar tal fato.

 

Miraculosamente, o amor que partilhavam parecia ter pas­sado despercebido a todos, exceto pelas criadas da casa de hóspedes que, até então, se haviam demonstrado muito dis­cretas. Ninguém da família imperial comentara fosse o que fosse com Nikolai, e mesmo Alexei, que passava bastante tempo com ambos, não notara nada de diferente entre eles.

 

Nas últimas três semanas que antecederam a separação, uma espécie de desespero apoderou-se dos dois amantes. Os tempos idílicos e perfeitos que haviam passado estavam prestes a terminar. Era o início de uma nova vida e Danina estava preocupada. Se abandonasse o ballet para ficar com Nikolai, onde iria viver e quem a sustentaria? Se ele conseguisse o di­vórcio, o escândalo não lhe custaria a posição que detinha junto da família imperial? Havia muita coisa a ponderar, mas ele já lhe prometera que encontraria uni local para viver e a sustentaria, embora Danina não quisesse transformar-se num fardo para ele. Por isso, achava melhor permanecer no ballet até Marie partir para Inglaterra.

 

Nikolai decidiu falar com Marie apenas depois de Danina partir, de modo a protegê-la do escândalo que a sua resolução pudesse provocar em casa e no palácio. Parecia a ambos a de­cisão mais sensata. Ele iria vê-la à escola de ballet assim que pudesse para lhe comunicar o que acontecera e, então, pode­riam fazer planos para o futuro. O ballet também precisava de tempo para encontrar uma substituta para Danina. Embora ti­vesse estado doente durante meses, continuavam ainda a con­tar com ela para espetáculos nesse Verão e no Inverno se­guinte. Era possível, explicara a Nikolai, que tivesse de esperar até ao fim do ano para deixar o ballet, mas ele compreendera a situação. Apesar das obrigações de cada um — Nikolai no palácio e Danina nas longas sessões de treinos a que teria de dedicar-se — tentariam passar o máximo de tem­po possível juntos. Danina sentia-se pronta para tudo, forte e mais feliz do que nunca com o amor que sentia por ele e as promessas que haviam feito um ao outro.

 

Apesar disso, a última semana foi uma agonia para os dois. Passavam todos os momentos que podiam juntos e, pela pri­meira vez, a czarina notou que havia algo que os unia e con­cordou com o que o marido lhe dissera durante o baile. Tinha quase a certeza de que Danina e Nikolai estavam apaixona­dos. Na altura, o czar encontrava-se em Sampetersburgo de licença e a czarina comentou com ele as suas suspeitas.

 

Não o censuro — disse à esposa uma noite, enquanto Nikolai e Danina passavam uma das últimas noites juntos na casa de hóspedes. — Ela é muito bela. Achas que ele deixará a esposa? — perguntou a czarina. O czar respondeu-lhe que não podia adivinhar as loucuras alheias. — E se o fizer; isso incomoda-te? — questionou-o mais uma vez e o chefe da família imperial ponderou a ques­tão, indeciso quanto ao que faria relativamente ao assunto.

 

— Depende do modo como o fizer. Se for feito de forma discreta, talvez não tenha grandes conseqüências, mas se se tornar um escândalo com grandes repercussões, terei de pensar melhor.

 

Era uma decisão sensata que tranqüilizou um pouco mais a czarina. Não queria perder Nikolai como médico de Alexei. Interrogava-se também se Danina deixaria o bailei. Era ainda muito jovem, dedicara toda a sua vida à dança e era a mais famosa prima ballerina da companhia de bailado. Para a czarina, a opção de Danina seria um pouco como abandonar o convento, ou seja, uma decisão bem difícil de tomar. Sabia também que o ballet tudo faria para não a deixar partir, por is­so, tinha pena de Danina e esperava que tudo corresse bem a ambos se, de fato, decidissem embarcar numa nova vida a dois. Todos se haviam afeiçoado muito a Danina nos meses que ali passara.

 

Na noite anterior à sua partida, a família imperial deu um pequeno jantar em que estiveram presentes as grã-duquesas e o czaréviche, alguns amigos mais chegados, os dois médicos e uma mancheia de pessoas que também tinham simpatizado muito com Danina. Foi com grande emoção que agradeceu a presença de todos, se despediu e prometeu voltar. A czarina convidou-a a ir passar o Verão a Livadia, como acontecera no ano anterior, e prometeu que a iriam ver dançar assim que regressasse aos palcos.

 

Desta vez, ensino-te mesmo a nadar — prometeu Alexei e presenteou-a com unia coisa que Danina sabia lhe era muito querida. Era um pequeno sapo de jade de Fabergé que Alexei adorava por achá-lo muito feio. Ainda assim, ofereceu-lho embrulhado num desenho que fizera para esse efeito.
As irmãs ofereceram-lhe poemas e aquarelas feitos especialmente para ela, bem como unia fotografia da família com Danina. Estava ainda muito comovida quando chegou à casa de hóspedes na companhia de Nikolai para a sua última noite juntos. Não suporto imaginar que nos vamos separar amanhã — disse ela tristemente depois de terem feito amor. Permane­ceram nos braços um do outro a conversar até de manhã. Danina não podia acreditar que a sua estada ali tivesse termina­do, mesmo com a perspectiva de uma nova vida juntos. Na noite anterior, quando regressaram do jantar, Nikolai oferece­ra-lhe um medalhão de ouro preso a uma corrente com a fo­tografia dele. Parecia-se tanto com o czar naquela fotografia que, ao princípio, Danina até ficou um pouco confusa. Mas era de fato Nikolai e ela prometeu-lhe que o usaria sempre.

 

As últimas horas foram uma agonia e ambos choravam quando ele a colocou no comboio que faria o curto percurso de volta a Sampetersburgo. Danina não quisera que Nikolai a acompanhasse com medo que Madame Markova percebesse imediatamente o que acontecera entre ambos. Acreditava que a sua mentora possuía poderes ocultos e que era onisciente e onividente. Nikolai concordara, pois ia nessa mesma tarde falar com Marie. Prometeu a Danina que lhe comunicaria de imediato o resultado da conversa.

 

Contudo, enquanto permanecia na plataforma a ver o comboio afastar-se e a acenar-lhe, sentia que um capítulo da sua vida que tanto amara, estava prestes a encerrar-se. Danina manteve-se debruçada na janela até já não o distinguir. Ace­nava-lhe de volta e com a outra mão apertava o medalhão. Enquanto o comboio se afastava, Nikolai ainda gritara que a amava e beijara-a tantas vezes antes de saírem de casa, que ela tivera de pentear-se duas vezes e ainda sentia os lábios dori­dos. Eram como duas crianças forçadas a separar-se dos pais. A idéia fez Danina recordar-se do dia em que o pai a levara para ir viver na escola de bailei. Estava agora tão aterrorizada como nesse dia, possivelmente até mais.

 

Madame Markova encontrava-se à sua espera na estação quando chegou a Sampetersburgo. Parecia mais alta, mais magra e mais severa do que nunca. Danina achou que a sua mentora envelhecera e sentiu-se como se tivesse estado au­sente durante muitos anos. Madame Markova beijou-a terna-mente e parecia muito contente por vê-la. Apesar de tudo o que acontecera enquanto estivera fora, sentira muitas saudades da sua mentora.

 

— Estás com ótimo aspecto, Danina. Pareces feliz e des­cansada.

 

Obrigada, Madame Markova. Toda a gente foi muito simpática para mim.

 

Foi o que depreendi das tuas cartas — disse Madame Markova. A sua voz revelava um tom, uma severidade que Danina esquecera. Era o que levava toda a gente a exceder as suas capacidades para lhe agradar. A viagem de táxi até à es­cola decorreu calmamente e Danina tentou preencher os si­lêncios que se instalavam com as suas aventuras no seio da família imperial e as festas a que fora, mas ficou com a distinta impressão de que, de alguma forma, desagradara à sua mento­ra. Tal fez com que ansiasse ainda mais pela vida que deixara para trás em Tsarskoie Selo. No entanto, sabia que agora era altura de voltar às suas obrigações.

 

Quando recomeçarei as aulas? — perguntou Danina enquanto o táxi percorria as ruas que ela tão bem conhecia.

 

Amanhã de manhã. Sugiro que comeces a exercitar-te esta tarde para te preparares. Presumo que nada fizeste para manter a forma durante a tua convalescença — alvitrou Madame Markova. Para além dos poucos exercícios diários quem Danina executara, Madame Markova presumira bem e não pareceu nada satisfeita quando Danina o confirmou, acenando que sim com a cabeça.

 

O médico não achou prudente, madame — explicou e nem sequer se deu ao trabalho de mencionar a meia hora de exercícios que fazia diariamente, pois sabia que, para a sua mentora, isso representaria um esforço insignificante.

 

Madame Markova continuou a olhar em frente e nada disse. O ambiente entre ambas anuviava-se.

 

Quando Danina começou a vislumbrar o velho edifício da escola de ballet, o seu coração encheu-se de tristeza. Fora colocada no seu antigo quarto; porém, em vez de sentir que regressava a casa, apercebeu-se de forma ainda mais intensa da distância que a separava de Nikolai e das noites que haviam passado na magnífica casa de hóspedes. Não imaginava passar uma noite sem ele, mas teria de ser. Tinham ambos um longo caminho a percorrer individualmente até que pudessem estar de novo juntos, talvez para sempre.

Danina pensara dizer alguma coisa a Madame Markova sobre os seus planos assim que chegasse; porém, decidira esperar até ter notícias de Nikolai sobre o divórcio e o regresso de Marie a Inglaterra. Tudo dependeria do andamento das coisas, mas, por baixo da blusa, o medalhão dava-lhe algum conforto e esperança.

 

Toda a gente estava a fazer aquecimentos, ou a ensaiar, ou a exercitar-se quando Danina chegou e não havia nin­guém no quarto que deixara há quatro meses atrás. Este pare­cia-lhe agora estranho e feio. Apressou-se a vestir um maillot e a colocar as sapatilhas e correu escada abaixo para o estúdio onde habitualmente fazia os aquecimentos. Quando lá che­gou, viu Madame Markova sentada a um dos cantos a obser­var os outros. A sua presença fez Danina sentir-se um pouco constrangida, mas não perdeu tempo e foi fazer exercícios pa­ra a barra. Ficou estupefata ao descobrir que o seu corpo se tornara pouco flexível, os movimentos desajeitados e que as pernas se recusavam a fazer aquilo para que haviam sido trei­nadas.

 

—  Tens muito trabalho à tua frente, Danina — comentou Madame Markova asperamente. Era verdade.  O corpo tornara-se seu inimigo em apenas quatro meses, e não fazia nada do que esperava dele. Nessa noite, quando se foi deitar, cada músculo que usara pela primeira vez em quatro meses estava dorido. Mal conseguiu dormir com tantas dores e custou-lhe muito levantar-se no dia seguinte. O efeito dos últimos meses de indolência e felicidade fora brutal, não menos que o rigoroso treino a que se entregou às cinco da manhã. Estava na primeira aula às seis e trabalhou até às nove horas da noite, quase sempre sob a vigilância de Madame Markova.

 

—  Parece que o teu dom não se desperdiçou — disse de forma bem severa após a primeira aula, avisando-a depois, ainda mais rispidamente, que nunca recuperaria o que havia perdido se não ultrapassasse os seus limites. — Se não estiveres disposta a pagá-lo com sangue, Danina, não o mereces —continuou, visivelmente furiosa, ao ver o que a sua pupila preferida perdera nos meses em que estivera ausente. Recordou-lhe ainda que o seu lugar como prima ballerina não era al­go que o ballet lhe devesse, mas uma honra que teria de conquistar se pretendesse recuperar a sua posição.

 

Danina estava em lágrimas quando se deitou naquela noite. Então, no final do segundo dia, completamente exausta, escreveu a Nikolai a contar-lhe os horrores por que estava a passar e o quanto sentia a falta dele, mais do que julgara possí­vel quando se haviam separado.

 

A tortura a que a sujeitaram continuou e, no final da pri­meira semana, Danina lamentava já ter regressado ao ballet, principalmente porque o iria deixar. Para que servia tudo aquilo e o que teria de lhes provar, se ia voltar para Nikolai e deixar de dançar? No entanto, achava que devia terminar de forma honrosa, que o devia ao ballet, e, mesmo que isso a matasse, estava determinada a cumpri-lo. No entanto, no es­tado de exaustão e de sofrimento em que se encontrava, esse objetivo parecia-lhe não só desejável como altamente provável.

 

No fim da segunda semana, Madame Markova chamou-a ao seu gabinete. Danina estranhou, interrogando-se sobre o que isso quereria dizer. Nos últimos treze anos, raramente lá tinha estado, embora soubesse de outras bailarinas que emer­giam de lá sempre em lágrimas para, muitas vezes, abandona­rem o ballet em poucas horas. Danina questionava-se se era esse o seu destino agora. Madame Markova estava sentada muito hirta à sua secretária, frente a Danina, e olhou-a bem fundo nos olhos antes de começar a falar.

 

—Já percebi o que aconteceu pela forma como danças e pelo modo como tens trabalhado. Não precisas de me contar nada, se não quiseres — disse sem rodeios. Danina planeava contar-lhe tudo, embora não dessa forma, não naquele mo­mento. Esperava notícias de Nikolai; porém, até então, nem um bilhete enviara e já começava a ficar preocupada. Mada­me Markova tinha razão: por vezes, o seu amor por Nikolai distraía-a e não lhe permitia que se entregasse completamente à dança como outrora. Era mais um fenômeno espiritual do que físico, o que tornava ainda mais espantoso o fato de a sua mentora ter descoberto.

 

— Não estou a entender, madame. Tenho trabalhado ar­duamente desde que cheguei — retorquiu Danina com vonta­de de chorar. Não estava habituada a ser repreendida ou a ver o seu trabalho depreciado pela sua mentora. Madame Markova sempre se orgulhara muito dela. Agora era óbvio que já não. Na verdade, estava furiosa com Danina.

 

Tens trabalhado muito, mas não o suficiente. Falta-te a convicção, não te entregas totalmente. Sempre te disse que a menos que estejas disposta a conceder cada gota de sangue, cada pedaço de alma e coração, não serás nada. Não te maces com o bailado, vai vender flores para a rua, vai limpar casas de banho para qualquer parte que sempre serás mais útil. Não há nada pior do que uma bailarina sem nada para dar.

 

Estou  a  esforçar-me,   madame.  Estive  ausente  muito tempo. Não estou ainda tão forte como antes — explicou-se Danina, já com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo.
Todavia, Madame Markova não demonstrava qualquer emoção para além de desdém e raiva. Olhava para Danina como se esta a tivesse traído.

É do teu coração que estou a falar, da tua alma, não das tuas pernas. Essas recuperarão, o teu coração jamais, se o deixaste  em outra parte.  Tens  de  escolher,  Danina.   Com o bailado  é  sempre uma questão  de  opção.  A menos que queiras ser como as outras. Nunca o foste. Eras diferente.
Não podes ter ambas as coisas. Não podes ter um homem, ou homens, e ser uma grande prima ballerina. Nenhum homem vale a tua carreira... Nenhum homem merece o bailado. No final, acabarão por te desiludir. Estás a enganar-te a ti mesma. Voltaste para mim completamente oca, como uma qualquer bailarina do corpo de baile. Não és ninguém. Já não és uma prima ballerina — bradou Madame Markova. Foi um choque tremendo para Danina,  que quase lhe quebrou o coração.

 

Isso não é verdade. Ainda tenho o meu dom, apenas tenho de trabalhar mais.

 

Já te esqueceste de como isso se faz. Já não te preocupas. Há algo na tua vida que amas mais do que o ballet. Posso vê-lo, até cheirá-lo. A tua dança tornou-se patética. — Só de ouvi-la, Danina arrepiava-se, e ao olhar para os olhos da sua mentora percebeu que não tinha segredos para ela. —
É um homem, não é? Por quem te apaixonaste? Que homem vale isto tudo? Será que também te ama? És louca se sacrificares tudo por ele.

 

Houve então um grande silêncio entre as duas, enquanto Danina pesava as palavras e o que iria dizer-lhe.

 

—  É um homem maravilhoso — revelou finalmente — e amamo-nos muito.

 

Agora és uma meretriz como as outras, as mais reles que dançam para se divertirem e para quem o ballet nada significa. Devias era estar a dançar nas ruas de Paris e não no Mariinsky. Não pertences aqui. Fartei-me de te dizer que não podias ser como elas. Tens de escolher, Danina.

 

Não posso desistir da minha vida para sempre, madame, por muito que ame o bailado. Quero fazer o que está certo, quero ser uma grande bailarina, quero ser justa para consigo, mas também o amo.

 

Então, o melhor é ires embora agora. Não me faças perder tempo ou o dos teus professores.  Ninguém te quer aqui a menos que sejas o que foste anteriormente. Menos que isso, não vale a pena. Tens de escolher, Danina, e se o escolheres a ele, estarás a tomar a decisão errada. Posso garantir-to. Ele nunca te poderá dar o que aqui te damos. Nunca mais terás a sensação de estares no palco consciente de que ninguém esquecerá a tua atuação. Eras assim quando partiste. Agora, não passas de uma simples bailarina.

 

Danina não podia acreditar no que estava a ouvir, embora as palavras já lhe fossem familiares. Já conhecia de cor a opi­nião de Madame Markova para quem o bailado era uma reli­gião sagrada à qual se devia sacrificar a própria vida. Ela assim fizera, por isso esperava que toda a gente seguisse o seu exemplo. Danina também o fizera até então, mas agora já não podia. Queria que a sua vida fosse algo mais do que a atua­ção perfeita.

 

Quem é esse homem? — perguntou Madame Markova por fim. — Se é que isso importa...

 

Para mim importa, madame — rematou Danina respeitosamente, ainda acreditando que podia fazer as duas coisas, terminar tudo de forma honrosa e partir para os braços de Nikolai.

 

Que quer ele de ti?

 

Casar comigo — confessou Danina a meia voz, enquanto Madame Markova olhava para ela com repugnância.

Então, o que fazes aqui?

 

Era muito complicado explicar e Danina também não o queria fazer.

    

      — Queria terminar as coisas consigo de forma honesta, talvez continuar durante o próximo ano, se me quiserem, se trabalhar arduamente e melhorar.

 

Porquê incomodares-te? — perguntou. Depois olhou desconfiada para Danina e provou mais uma vez ser onisciente, tal como sempre suspeitara.

Ele já é casado?

 

Seguiu-se mais um profundo silêncio, mas, desta vez, Da­nina não respondeu.

 

— Es ainda mais tola do que eu pensava, pior do que qualquer uma dessas meretrizes. A maioria delas ainda arranja marido, engorda e tem filhos. Não valem nada, mas tu então, desperdiças o teu talento num homem que já tem mulher. Enoja-me pensar no que andas a fazer e não quero saber mais nada sobre isso. Agora, Danina, quero que trabalhes como costumavas, como és capaz de fazer, como me deves, e dentro de dois meses quero que me digas que tudo está termina­do e que sabes que esta é a tua vida e sempre será. Tens de sacrificar tudo por ela, tudo... E só então terá valido a pena, só então conhecerás o verdadeiro amor. O bailado é o teu amor, o teu único amor. Esse homem é um disparate. Não significa nada para ti, apenas te magoará. Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre isto. Agora, volta ao trabalho. — Com um aceno de mão, indicou-lhe a porta de forma tão direta e intransigente que Danina saiu do gabinete de imediato e voltou às aulas a tremer com o que acabara de ouvir.

 

Era esse o tipo de sacrifício que a sua mentora esperava. Queria que desistisse de tudo, até de Nikolai, mas Danina não podia, não queria. Não lhes devia isso. Não tinham o di­reito de esperar isso dela. Não queria ser mais uma louca fa­nática sem vida para além do bailado, sem filhos, sem marido, sem recordações para além dos espetáculos que se sucediam ao longo do ano e que, no fundo, nada significavam.

 

Danina tentara explicar isso a Nikolai, tentara dizer-lhe o que o bailei esperava dela; porém, ele não acreditara. Era isto que queriam, a sua alma e a promessa de que terminaria tudo com Nikolai, mas ela não o faria, independentemente do que isso lhe custasse. A raiva que sentia fê-la trabalhar ainda com mais afinco nas aulas e na barra. Começou a fazer os aqueci­mentos às quatro da manhã e continuava a treinar até às dez da noite. Não comia, não parava, não dormia. Não fazia mais nada a não ser impelir o seu corpo a ultrapassar o limite. Era o que queriam dela.

 

Duas semanas mais tarde, quando Madame Markova a chamou novamente ao seu gabinete, estava escanzelada e exausta e não fazia a mínima idéia do que a mentora lhe teria para dizer desta vez. Talvez lhe fosse ordenar que deixasse o ballet, o que até seria um alívio. Era incapaz de se esforçar mais e ainda não tivera notícias de Nikolai. Já se tinham pas­sado três semanas desde a separação e o silêncio dele quase a levava à loucura. Não respondera a nenhuma das suas cartas. De repente, interrogou-se se haviam sequer sido enviadas. Deixara-as no salão de entrada, como sempre fizera, junto do restante correio do ballet, mas talvez estivessem a ser postas de parte e colocadas no lixo. Pensava sobre isso quando entrou no gabinete de Madame Markova e estremeceu quando o viu ali sentado. Era Nikolai e parecia estar em amena conversa com Madame Markova. Quando Danina entrou, voltou-se para ela e sorriu. Só de o ver ali, sentiu o coração bater mais forte e as pernas quase sem força.

 

O que está a fazer aqui? — indagou, espantada. Inter­rogava-se se Nikolai contara tudo à sua mentora, mas compreendeu imediatamente pelo olhar dele que nada revelara. Apressou-se a explicar a sua presença, ou antes o pretexto que o levara ali, para que Danina soubesse o que haveria de dizer.

 

Vim ver como estava, Miss Petroskova, por ordem do próprio czar, visto que ninguém soube nada de si desde que partiu.  A czarina andava muito  preocupada — esclareceu, sorrindo amavelmente para Madame Markova, que fez um ar um pouco  constrangido  e  desviou  o  olhar por alguns  segundos.

Não receberam as minhas cartas? Ninguém? — espantou-se Danina com um olhar horrorizado quando ele confirmou as suas suspeitas. — Tenho-as deixado para serem envia­das, como sempre faço. Talvez não estejam a ser enviadas — protestou Danina. Madame Markova continuou a olhar para
a secretária e não pronunciou uma única palavra.E como se tem então sentido? Está bastante pálida e bem mais magra do que quando nos deixou. Receio que esteja a esforçar-se demasiado. É isso? Não pode exagerar dessa forma depois de ter estado tão doente.

 

Ela tem de treinar de novo — declarou Madame Markova bruscamente — e ganhar disciplina. O corpo dela esqueceu quase tudo o que aprendeu. — Todavia, Danina sabia tão bem como a sua mentora que isso não era verdade. Nikolai parecia preocupado.

 

Tenho a certeza de que recuperará a sua antiga forma muito em breve — asseverou de forma amável. — Ainda as­sim, não deverá exagerar. Sabe disso com certeza, Madame Markova — concluiu com um sorriso, parecendo muito for­mal e profundamente preocupado. — E agora, poderia conversar em privado com a minha doente? Trago uma mensagem pessoal do czar e da czarina.

 

Era impossível lutar contra um argumento daqueles e, apesar do olhar de desaprovação de Madame Markova, Dani­na e Nikolai deixaram o gabinete juntos. Era óbvio que des­confiava do médico, mas não tinha a certeza se seria ele a ra­zão por que Danina a atraiçoara e, claro, não se atrevia a acusá-lo de nada. Ao invés, deixou-os abandonar o seu gabi­nete calmamente. Danina conduziu-o ao pequeno jardim no andar térreo. Fazia ainda um pouco de frio e teve de colocar um xaile sobre os ombros. Nikolai estava preocupado por vê--la tão magra e cansada e ansiava por abraçá-la.

 

Estás bem? — sussurrou enquanto se sentavam no banco do pequeno jardim. — Sinto tanto a tua falta... E fiquei tão preocupado quando não tive notícias tuas.

 

Devem deitar as minhas cartas fora. A partir de agora, passarei a enviá-las eu mesma — declarou, embora só Deus soubesse quando lhe dariam algum tempo livre para o fazer.

 

— O que aconteceu? — perguntou, preocupada, mas sorrindo para ele. Estava tão feliz por o ver. — Está tudo bem contigo, Nikolai?

 

Claro...   Danina,   amo-te...  —  declarou,   angustiado. A dor que a ausência dela lhe provocara fora quase insuportável.

 

Também te amo — murmurou ela e entrelaçaram os dedos. Sem que disso se apercebessem, Madame Markova vigiava-os de uma janela do andar superior e, embora não conse­guisse perceber o que diziam, viu-os de mãos dadas e teve as­sim a confirmação das suas suspeitas. Apertou então os lábios, que formaram um traço fino de desprezo e determinação.

 

—Já falaste com a Marie? — perguntou Danina.

 

O sobrolho de Nikolai carregou-se antes de acenar que sim com a cabeça.

 

Uns dias depois de tu partires — confirmou, mas não parecia contente com o resultado da conversa. Danina percebeu de imediato que algo não correra bem.

 

O que disse ela?

 

Fora uma horrível troca de palavras e a desunião entre ambos acentuara-se desde então, mas Nikolai não fazia ten­ções de perder aquela batalha.

 

— Não vais acreditar, Danina. Ela não quer regressar a Inglaterra. Pretende ficar na Rússia. Depois de quinze anos a ameaçar que se ia embora e a atirar-me à cara o quanto de­ testava viver aqui,  agora que lhe ofereço a liberdade,  não quer ir-se embora.

 

Danina estava obviamente desiludida com o que acabara de ouvir e teve mesmo de fazer um esforço para conter as lá­grimas.

 

E o divórcio?

 

Também não quer divorciar-se. Não vê razão para nos separarmos. Admite estar tão infeliz quanto eu, mas afirma que a felicidade no casamento já não lhe diz nada e que não quer passar pela humilhação de um divórcio. Ainda que queiramos viver juntos, não posso casar contigo, Danina.

 

Nikolai parecia devastado. Nunca esperara uma tal rea­ção da esposa. Quisera dar-lhe tudo, uma casa, respeitabilida­de, segurança, filhos, uma vida completamente nova, mas, agora, tudo o que Danina poderia ser para ele era uma aman­te. Seria ela a humilhada e não Marie.

 

Alguém sabe de nós? O czar? — perguntou Danina, preocupada.

 

Acho que suspeita de alguma coisa, porém não creio que desaprove. Gosta verdadeiramente de ti e tem feito questão de mo dizer mais do que uma vez. Não te preocupes :— confortou-o Danina com um suspiro. — Tudo se há-de resolver a seu tempo. De qualquer forma, tenho de terminar as coisas por aqui. Estão muito des­contentes comigo por ter estado tanto tempo ausente e Ma-dame Markova ameaça pôr-me no corpo de baile e não per­mitir que dance como prima ballcrina. Diz que já não danço como dantes. Gostaria de voltar a dançar como quando saí daqui e isso sempre te daria mais tempo para convencer a Marie a partir ou a dar-te o divórcio. Ternos de ser pacientes — continuou, tentando corajosamente parecer mais otimista.

 

— Não sei se consigo ser paciente — reclamou Nikolai com um olhar infeliz. — Sinto tanto a tua falta. Quando poderás voltar a visitar-nos?

 

Os dias sem ela eram mais intoleráveis do que imaginara.

 

Talvez este Verão, se me deixarem ter férias. Madame Markova fala em obrigar-me a ficar aqui a treinar sozinha quando os outros partirem de férias para compensar o tempo que perdi durante a convalescença.

 

Ela pode fazer isso? Não é justo — protestou Nikolai, revoltado. Queria tê-la junto dele.

Pode fazer o que bem entender. Nada é justo aqui. Veremos. Falarei com ela quando a altura se aproximar. Por agora, temos de ter paciência e esperar.

 

De qualquer forma, Nikolai queria mais tempo para con­versar calmamente com Marie e tentar pelo menos que partis­se para Inglaterra ou concordasse com algum tipo de sepa­ração.

 

Venho ver-te de novo daqui a poucas semanas, «por ordem do czar» — disse, sorrindo. — Receberás as cartas que eu te enviar?

 

Talvez, se as colocares num sobrescrito com o selo imperial — respondeu ela com um olhar matreiro que o fez sorrir.

 

Pedirei ao Alexei que as enderece por mim. — E de­ pois, sem dizer mais nada, inclinou-se para ela e beijou-a. — Não  te  preocupes,  meu amor,  arranjaremos  uma solução. Não poderão manter-nos afastados para sempre. Apenas necessitamos de mais tempo para encontrar a melhor solução. Mas não demasiado tempo, não suporto estar longe de ti. —

 

Estava prestes a beijá-la de novo, quando sentiram a porta que dava para o jardim abrir-se e viram Madame Markova a olhar fixamente para eles.

 

— Pretendes passar o resto do dia com o teu médico, Da- nina, ou a trabalhar? Talvez devesses estar num hospital, se estás ainda tão doente e o czar está tão preocupado contigo. Tenho a certeza de que encontraremos um bom hospital público para ti, se preferes isso a dançar aqui.

 

Danina estava já de pé ao lado de Nikolai, que falou antes de ela poder.

 

Lamento, madame, se tomei demasiado do tempo de Miss Petroskova. Não era a minha intenção. Estava simples­ mente preocupado.

 

Então, bom dia, doutor Obrajensky.

Toda a sua gratidão por ter salvo a vida de Danina há cin­co meses atrás desaparecera, especialmente agora que sabia que era ele o inimigo que teria de combater para reaver a sua melhor bailarina. Já não lhe restavam quaisquer dúvidas sobre isso.

 

Nikolai beijou Danina na face antes de partir. Ela reco­mendou-lhe que mandasse cumprimentos seus a todos e, com um último aperto de mão, abandonou o jardim e regressou às aulas. Nikolai sentiu-se despojado ao abandonar o edifício onde ela vivia e trabalhava como escrava dezoito horas por dia. Só desejava poder levá-la consigo, em vez de se ver obri­gado a deixá-la ali.

 

De volta às aulas, Danina tentava desesperadamente con­centrar-se e não pensar nele enquanto Madame Markova a observava. Era implacável na sua vigilância. Quando, duas horas depois, fez por fim um intervalo, a sua mentora mirou--a com um claro desprezo, desaprovação e raiva.

 

     — Então,   ele  disse-te  que  não  pode  deixar a  mulher?
Que ela não concorda com o divórcio? Que palerma, Danina Petroskova. Isso é uma história muito, muito antiga. Vai continuar a fazer-te promessas e a quebrá-las até te partir o coração e te custar a tua carreira como bailarina. Nunca deixará a mulher, acredita! — exclamou Madame Markova, que pare­
cia falar por experiência. Alguma coisa muito amarga do seu passado a magoara, algo que jamais perdoara ou esquecera. — Foi isso que ele te disse?

 

Madame Markova pressionava Danina, mas esta nunca admitiria que fora isso mesmo que Nikolai lhe viera dizer. Sabia que nunca a magoaria e não se preocupava com o que a sua mentora pensava dele ou com os fantasmas que do passa­do a assombravam.

 

Trazia uma mensagem para mini do czar e da czarina — respondeu Danina calmamente.

 

E o que dizia? — inquiriu. Danina não lhe revelou que queriam que os fosse visitar nesse Verão. Isso seria o gol­pe final na relação entre ambas. Sabia que não lho podia dizer já.

 

Apenas que têm saudades minhas e que estavam preocupados com a minha saúde.

 

Que simpático da parte deles. Que amigos tão importantes tens agora! Olha que já não te ajudarão quando não puderes dançar, não te quererão para nada, e por essa altura o teu médico já te terá esquecido há muito — ripostou Madame Markova com uma amargura que Danina desconhecia na sua mentora.

 

Não  necessariamente,   madame — retorquiu  Danina com altivez. Depois, rodou nos calcanhares e dirigiu-se para a aula seguinte. Já não estava para aguentar tudo o que lhe dizia calada e não se importava que Marie não concordasse com o divórcio ou não quisesse partir para Inglaterra. Podiam, ainda assim, ter uma vida a dois. Estava disposta a ficar com ele, casado ou não.

 

A partir dessa altura, cada dia daquele mês de Maio foi uma agonia, agravada pelas críticas e acusações constantes de Madame Markova. Danina era acusada de ter o passo trocado, de estar fora de tempo e de os seus movimentos serem uma desgraça. Madame Markova gritava-lhe que os seus braços se moviam como dois troncos de madeira, que as pernas estavam sempre hirtas e que os saltos eram patéticos. Fazia tudo o que podia para levar Danina ao ponto de ruptura. Queria que lutasse pela dança e desistisse de tudo o resto.

 

Apesar de tudo, Danina agüentou, e Nikolai veio vê-la novamente em Junho, trazendo uma carta pessoal da czarina. Era o convite para que fosse passar o mês de Agosto inteiro a Livadia com a família imperial. Danina não acreditava que tal fosse possível. Nada mudara em relação a Nikolai no mês que passara. Marie estava cada vez mais inflexível em mudar-se para Inglaterra e tornava as coisas muito difíceis no que dizia respeito aos filhos, o que surpreendia Nikolai ainda mais.

 

Deve ser comum as pessoas fazerem isso. Têm de tornar as coisas mais dolorosas, como Madame Markova tem feito comigo. É o seu tipo de vingança pessoal, pois na idéia deles já não lhes pertencemos. Se a czarina quiser realmente que eu vá, terá de ordenar a Madame Markova que me deixe ir, pois, caso contrário, não poderei aceitar o convite.

 

Não podem fazer-te isso — queixou-se Nikolai. — Não és escrava deles.

— Mais valia ser — disse com um ar exausto.

Quando partiu, prometeu a Danina que seria o próprioczar a dar essa ordem a Madame Markova.

 

Ao chegar ao palácio, Nikolai contou tudo ao czar e pediu a sua ajuda para levar Danina para Livadia. O czar ficou bastante comovido com as palavras do médico e prometeu fa­zer o que pudesse, embora, do que conhecia do ballet, sou­besse que eram muito rigorosos e exigentes com os seus me­lhores bailarinos.

 

— Talvez nem me dêem ouvidos. Acham que apenas respondem a Deus e nem sei se a Ele o escutam — avisou o czar, sorrindo.

 

A carta que chegou às mãos de Madame Markova em Ju­lho não podia ser ignorada, nem mesmo por ela. O czar ex­plicava que a saúde do czaréviche dependia da presença de Danina em Livadia, pois Alexei apegara-se extraordinaria­mente à bailarina e ficara inconsolável com a sua ausência. Assim, o czar pedia a Madame Markova que permitisse a Da­nina juntar-se a eles.

 

Quando Danina foi chamada ao gabinete da sua mentora, os olhos desta faiscavam de raiva que tentava conter, cerrando os lábios. As suas únicas palavras foram que acompanharia Danina durante a sua estada de um mês em Livadia. Todavia, não era isso que Danina queria ouvir e estava disposta a lutar pelo que achava justo. Trabalhara arduamente para o ballet durante três meses quase até ao ponto de exaustão e agora de­viam-lhe esse tempo junto de Nikolai. Era tudo o que queria e não se contentava com menos.

 

Não, madame — declarou, apanhando a mentora completamente de surpresa.  O seu tom era o de uma mulher adulta e já não o de uma criança obediente.

 

Não irás? — perguntou Madame Markova, estupefata. A batalha estava ganha, pensou, e os seus lábios começa­ram a esboçar um pequeno sorriso, o primeiro que Danina vislumbrava desde que voltara, em Abril, a sua mentora encarando Danina como uma traidora. — Não queres vê-lo? —
indagou. Era tudo o que desejava ouvir, a guerra fora ganha mais facilmente do que esperara.

 

Não, quero ir sozinha. Não há razão nenhuma para que também venha. Não preciso de acompanhante, madame, mas agradeço a gentileza de se oferecer para me acompanhar.
Já me sinto bastante à vontade com a família imperial e acho que pretendem que vá sozinha.

De fato, o convite não mencionava Madame Markova e ambas o sabiam.

Não permito que vás sem mim — declarou Madame Markova, enraivecida.

 

Então, terei de explicar ao czar que não poderei acatar a sua ordem — retorquiu Danina com um olhar de determinação que Madame Markova nunca antes vira na sua pupila. Ficou ainda mais decepcionada com Danina, mirando-a com um olhar glacial.

 

Muito bem. Poderás ir por um mês, porém, não te garanto que ainda sejas prima ballerina quando estrearmos Giselle em Setembro. Pensa muito bem nisso, Danina, antes de te precipitares.

 

Não há nada para pensar, madame. Se for essa a sua decisão, submeter-me-ei a ela.

 

Todavia, ambas sabiam que Danina estava a dançar melhor do que nunca. Reconquistara toda a sua força e mestria e acrescentara-lhe algumas técnicas novas e bem mais difíceis. A sua arte era agora uma mistura de maturidade, disciplina e talento, e os resultados do seu trabalho e amadurecimento não podiam ser ignorados.

 

—  Começamos os ensaios no dia um de Setembro, como sabes. Quero-te aqui no último dia de Agosto. — Foi tudo o que Madame Markova lhe disse antes de sair de rompante do gabinete, deixando Danina sozinha.

 

Duas semanas mais tarde, Danina estava a bordo do com­boio, sem acompanhante, e a caminho de Livadia, pensando na amizade perdida entre si e a sua mentora. Tinha a certeza de que Madame Markova nunca lhe perdoaria. Não dirigira uma única palavra a Danina antes de esta partir e evitara-a propositadamente quando fora despedir-se dela. A amizade entre ambas terminara por causa do seu amor por Nikolai, mas agora Danina não faria nada para o perder ou deixaria es­capar uma oportunidade de estar com ele. Não havia nada mais importante do que isso. Nem mesmo o ballet.

 

O tempo que Danina e Nikolai passaram juntos em Livadia foi idílico. Ficaram numa casa de hóspedes, pequena e discreta, onde viveram juntos, desta vez abertamente, e eram tratados como marido e mulher tanto pelo czar como pela czarina, que pareciam compreender a situação em que os amantes se encontravam.

 

O tempo esteve ótimo, as crianças estavam maravilhadas por vê-la de novo e, fiel à sua palavra, Alexei até a «ensinou» a nadar e Nikolai ajudou «um pouco».

 

A única coisa que agora lamentava era que não tivesse co­nhecido os seus filhos; porém, isso não era por enquanto pos­sível. Marie ainda não concordara com o divórcio, mas, pelo menos, tinha ido passar o Verão com o pai a Hampshire e levara os rapazes com ela. Nikolai esperava que estar de novo em Inglaterra a recordasse do quanto gostava da sua terra natal e a fizesse querer mudar-se para lá. Contudo, tal parecia-Ihe uma perspectiva demasiado otimista, já que Marie fazia tenções de continuar casada com ele, nem que fosse só para o atormentar.

 

Não importa, meu amor. Somos felizes assim, não somos? — recordou-lhe Danina quando voltaram a falar no divórcio. Estavam tão felizes por poderem estar juntos durante um mês inteiro. Tomavam todos os dias o pequeno-almoço sozinhos no terraço e o resto das refeições com a família imperial. Passavam o dia todo com eles, mas as longas e apaixonadas noites eram passadas nos braços um do outro.

 

Quero dar-te mais do que uma casa de empréstimo por bondade do czar — disse Nikolai melancolicamente uma manhã, odiando Marie mais do que nunca por não lhe dar a liberdade que merecia.

 

Um dia teremos mais do que isso e eu posso continuar a dançar enquanto tiver de o fazer — confortou-o Danina, mais  conformada com o  seu  destino  do  que  ele.  Nikolai preocupava-se com ela.

Aquela mulher ainda acaba por te matar se continuares por lá durante muito mais tempo — queixou-se. O que quer que Madame Markova sentisse por Nikolai, esse sentimento era recíproco. Desde que Danina regressara ao bailei, há qua­tro meses atrás, estava mais magra do que nunca e ficara exausta com a viagem desde Sampetersburgo. Era desumana a forma como a obrigavam a trabalhar.

 

Desta vez, Danina teve o cuidado de se exercitar bem to­dos os dias para que não perdesse a tonicidade muscular du­rante a sua estada em Livadia. A czarina até mandara instalar uma barra especialmente para ela. Alexei adorava passar horas a vê-la praticar e dançar. Depois dos exercícios, dava longos passeios a pé com Nikolai.1 Estava em perfeita forma física quando o mês chegou ao fim, mas, após aquele período de felicidade completa, não suportava a idéia de o deixar outra vez.

 

—  Não podemos continuar assim para sempre, a ver-nos apenas por alguns minutos uma vez por mês quando me vais visitar. Não me importa ter de dançar, mas não suporto estar longe de ti — disse-lhe Danina tristemente. E não existiriam mais férias até Dezembro. A família imperial já a convidara a passar o Natal com eles em Tsarskoie Selo. Podia até ficar na mesma casa de hóspedes onde convalescera. Porém, o Natal estava ainda a quatro meses de distância e, até lá, Danina teria de suportar muita coisa. Seriam quatro meses de inferno às mãos de Madame Markova, a ser castigada por amar um homem mais do que o ballet. Era uma forma de vida doentia.

 

—  Quero que deixes de dançar no Natal — disse-lhe finalmente Nikolai na última noite que passaram juntos. — Havemos de encontrar uma maneira de resolver a situação. Talvez possas ensinar ballet às grã-duquesas ou a algumas das damas de companhia. Pode ser que eu te consiga arranjar uma pequena casa perto do palácio, para que possas ficar perto de
mim. — Era a única esperança que lhes restava, se Marie não
concordasse mesmo com o divórcio.

 

—  Logo veremos — volveu ela. — Não deves arriscar to­ da a tua vida por mim. A Marie pode arranjar-te problemas junto do czar ou provocar um terrível escândalo. Não precisas disso.

 

—  Falarei com ela novamente quando regressar de Inglaterra e depois irei visitar-te.

 

Contudo, assim que Danina partiu para Sampetersburgo, Alexei adoeceu e a presença de Nikolai foi necessária a toda a hora durante as seis semanas que se seguiram. O mês de Ou­tubro ia já a meio quando pôde finalmente ir vê-la. Madame Markova mantivera Danina como prima ballerina, e esta dan­çara Giselle, como prometido.

 

Desta vez, Nikolai só trazia más notícias: Alexei continua­va doente, embora um pouco melhor — o suficiente para que pudesse ausentar-se por umas horas — e duas das grã--duquesas tinham apanhado gripe, o que também o mantinha bastante ocupado. Danina achou-o muito cansado e triste, embora obviamente feliz por a ver.

 

Marie regressara de Inglaterra há duas semanas ainda mais convencida a não se divorciar. Começara a ouvir boatos sobre Danina e ameaçava provocar um grande escândalo. Na verda­de, Marie estava a fazer chantagem com o marido, a mante-lo como refém e, quando este lhe perguntara a razão, declarara que ele tinha a obrigação de a tratar com respeito e de não envergonhar os filhos, embora admitisse nunca o ter amado. Achava humilhante ser trocada por outra mulher, especial­mente uma bailarina, e dissera-o como se Danina fosse uma prostituta, o que o enraiveceu ainda mais. Seguiu-se uma in­terminável discussão que não os conduziu a parte alguma. Danina percebeu que Nikolai estava bastante deprimido por causa disso.

 

Voltou mais uma vez em Novembro e Madame Markova quase não o deixou vê-la; porém, Nikolai foi tão insistente que, por fim, Madame Markova já não tinha mais desculpas para lhe dar. No entanto, só permitiu que Danina o visse por meia hora, devido aos ensaios. O único consolo para ambos era saberem que estariam juntos durante três semanas no Natal e no Ano Novo. Por agora, só viviam para isso.

 

Nikolai vinha assistir a todas as suas atuações, ou a tantas quantas podia. O pai de Danina veio também assistir a uma, como fazia todos os anos, mas infelizmente não estiveram no mesmo espetáculo, por isso não pôde apresentá-lo ao pai.

 

A tragédia abateu-se sobre a família de Danina na semana antes do Natal. O irmão mais novo, e o seu preferido, foi morto na frente oriental durante uma batalha e Danina estava de luto por ele quando da sua última atuação e continuava ainda muito triste quando Nikolai veio buscá-la para a levar para Tsarskoie Selo. Saber que não voltaria a ver o seu queri­do irmão magoava-a muito e até Alexei comentou com os pais que Danina parecia muito abatida e bem mais calada do que o habitual quando regressou da visita que lhe fez mal ela chegou.

 

Porém, o Natal com a família imperial era mágico e a sua disposição melhorou na companhia de Nikolai. Mais uma vez, como acontecera durante o Verão em Livadia, Danina e Nikolai ficaram juntos na casa de hóspedes. Falavam do amor que sentiam um pelo outro e de como era maravilhoso o tempo que passavam juntos, mas pouco podiam dizer sobre o futuro.

 

Marie continuava firme na sua decisão. Ainda assim, Nikolai começara a ver pequenas casas para Danina e estava de­terminado em poupar dinheiro suficiente para lhe comprar uma, de modo a que pudesse deixar de dançar e começassem a viver juntos. Todavia, ambos sabiam que isso levaria o seu tempo, talvez até bastante. Danina prometera a si mesma, e a Nikolai, que continuaria a dançar até à Primavera e talvez até ao final do próximo ano.

 

Assim que regressou ao ballet, começou a sentir-se doente. Comia ainda menos do que anteriormente e, quando Nikolai a visitou no final de Janeiro, ficou bastante preocupado com a sua aparência. Estava magra e pálida.

 

—  Trabalhas demasiado — queixou-se, como era habitual, embora desta vez com mais veemência. — Acabarão por te matar se não parares, Danina.

Não se morre por dançar — brincou, detestando ter de admitir que não se sentia bem. Não queria ser mais uma preocupação para ele, com Marie ainda intransigente e o czaréviche doente outra vez. Nikolai já tinha problemas de sobra, mas a verdade é que Danina se sentia cada dia com mais
vertigens e quase desmaiara duas vezes numa aula. Ninguém
parecia notar que não andava bem. Em Fevereiro sentia-se tão doente que certa manhã nem conseguiu levantar-se da cama. Nessa tarde ainda se obrigou a dançar, mas, quando Madame Markova a viu, estava completamente pálida e sentada numa banco com os olhos fechados.

 

Estás doente outra vez? — perguntou Madame Markova com um tom acusador, ainda relutante e incapaz de lhe perdoar por manter um caso amoroso com o médico do czar.
Nem sequer tentava esconder o fato de achar tudo aquilo uma vergonha e distanciara-se de Danina.

 

Não, estou bem — disse, quase sem voz. No entanto, Madame Markova ficou preocupada e decidiu vigiá-la nos dias que se seguiram. Quando Danina quase desmaiou num dos ensaios ao fim da noite, Madame Markova apercebeu-se disso instantaneamente e correu a ajudá-la.

 

Queres que chame um médico? — perguntou, desta vez com melhores modos. Danina estava a dar ao ballet tudo o que tinha e mais, mas isso já não chegava para satisfazer a dívida que Madame Markova achava que tinha para com ela.

 

Fora impiedosa, porém, ao vê-la tão doente até ela se compadecera. — Queres que chame o doutor Obrajensky? — perguntou, para desânimo da sua pupila.

 

Danina teria ficado mais do que feliz por ter uma descul­pa para o ver; todavia, não queria assustá-lo, pois tinha a cer­teza de que estava muito doente. Já passara mais de um ano desde que adoecera com gripe e, nos dez meses que haviam decorrido desde que regressara ao ballet, esforçara-se tão vio­lentamente que agora começava a acreditar que acabaria por destruir a sua saúde, tal como Nikolai previra.

 

Sentia a cabeça constantemente à roda, já não conseguia comer nada sem vomitar e mal conseguia pôr um pé frente ao outro. No entanto, continuava a dançar dezesseis e dezoito horas por dia e, à noite, quando se deitava para dormir, sentia que acabaria por morrer durante o sono. Talvez Nikolai ti­vesse razão, pensou uma noite deitada na cama com vontade de vomitar, mas sem forças para se levantar. Talvez o ballet acabasse mesmo por matá-la.

 

—  Cinco dias mais tarde, era incapaz de se levantar da cama e sentia-se tão mal que nem se importava com o que Madame Markova decidisse fazer com ela. Tudo o que Danina queria era ficar ali deitada e morrer. Apenas lamentava não voltar a ver Nikolai e interrogava-se sobre quem iria dar-lhe a notícia depois de falecer.

 

Estava deitada de olhos fechados, semí-inconscíente, vendo o quarto rodar à sua volta sempre que os abria, quando começou a sonhar que Nikolai estava ali junto à sua cama. Sabia que isso não podia ser verdade; pensou se não estaria novamente delirante, como quando tivera gripe. Até o ouvia falar com ela, chamar o seu nome e depois virar-se para falar com Madame Markova, perguntando-lhe por que razão não o tinham chamado mais cedo.

 

—  Ela não queria que eu o chamasse — ouviu a visão de Madame Markova responder. Depois abriu os olhos e viu-o ali. Mesmo que a visão não fosse real, pensou, era tal e qual Nikolai. Sentiu então o calor da sua mão enquanto lhe tomava o pulso e viu-o inclinar-se até junto de si e perguntar-lhe se conseguia ouvi-lo. Danina foi apenas capaz de assentir com a cabeça, pois estava demasiado fraca até para falar.

 

—  Temos de a levar para o hospital — disse de imediato a visão. Desta vez, Danina não tinha febre.

 

Nikolai não sabia o que se passava com ela, exceto que estava muito doente e que não conseguia agüentar nada no estômago há já tantos dias que parecia estar a morrer. Enquanto a examinava, os seus olhos encheram-se de lágrimas.

 

—  Obrigaram-na a trabalhar até à morte, madame — declarou Nikolai com uma fúria que quase não controlava. — Se ela morrer, terá de prestar contas a mim, e ao czar — acrescentou ainda. Ao ouvi-lo falar, Danina apercebeu-se de que não era nenhuma visão e que não estava a sonhar. Era mesmo Nikolai.

 

—  Nikolai? — chamou debilmente. Ele segurou-lhe na mão outra vez e sussurrou ao aproximar-se dela.

 

—  Não fales, meu amor, tenta descansar. Eu estou aqui. — Ouviu-o então falar de ambulâncias e hospitais e tentou dizer-lhe que não precisava, que era desnecessário, pois apenas queria ficar ali deitada na cama e morrer com ele ao seu lado a segurar-lhe a mão.

 

Nikolai mandou então toda a gente sair e examinou-a calmamente, recordando com saudade o seu belo corpo. Há dois meses que não a via e nada mudara entre eles. Continua­vam a amar-se como sempre, mas, por enquanto, Danina ain­da pertencia ao ballet e ele a Marie. Ambos se começavam a interrogar se alguma vez ficariam juntos, ou se seria sempre assim.

 

O que aconteceu? Consegues dizer-me?

 

Não sei... Sempre a sentir-me mal... — murmurou, adormecendo  enquanto falava e acordando outra vez com vômitos violentos. No entanto, há muito que o seu estômago nada tinha para vomitar, nem bílis. Para Danina era mais fácil não comer nem beber para não ter de andar a vomitar a toda a hora, mas continuava a dançar dezesseis horas por dia e a es­ forçar-se até não poder mais.

 

Fala comigo, Danina — insistiu, acordando-a de novo.

Começava a temer que entrasse em coma devido à inanição, desidratação e grau de exaustão em que se encontrava. O ballet forçara-a a dançar até ao limite e agora o seu corpo estava a ceder à constante pressão e à falta de alimento. — O que sentes? Há quanto tempo estás assim? — insistia Nikolai, já muito inquieto.

 

Madame Markova continuava à espera que decidisse se queria ou não levá-la para o hospital, para que chamasse uma ambulância. Nikolai não tinha a certeza, mas estava a ficar cada vez mais assustado.

 

Há quanto tempo te sentes assim? — perguntou mais uma vez. Não estava assim tão mal da última vez que a vira, embora não tivesse bom aspecto e até lhe tivesse confessado que nos últimos tempos não andava a sentir-se muito bem.

 

Um mês... dois meses — respondeu a custo.

Andas a vomitar desde essa altura? — inquiriu, já horrorizado. Há quanto tempo não se alimentaria convenientemente?  E  quanto  tempo  sobreviveria  assim?  Agradeceu  a Deus que Madame Markova o tivesse por fim mandado chamar. Na verdade, esta temera as conseqüências de não o fazer, dada a ligação de Danina à família imperial. Para além disso, apesar da raiva que sentia contra a sua pupila, ainda a amava e ficou aterrorizada com o aspecto dela.

 

Danina,  fala  comigo.   Quando  é  que  isto  começou exatamente? Tenta recordar-te pressionou-a enquanto ela abria os olhos e tentava lembrar-se de quando começara a sentir-se doente. Parecia-lhe há uma eternidade.

 

Em Janeiro, quando regressei das férias de Natal — afirmou,  por fim. Já se tinham passado  quase  dois meses. Tudo o que Danina queria agora era dormir e que Nikolai parasse de falar.

 

— Sentes dores em algum lado? — perguntou ele enquanto lhe apalpava o corpo. Ela não se queixava de nada.

Estava apenas excessivamente fraca e mal-nutrida, famélica na realidade. Nikolai ainda pensou que fosse o apêndice, embora não houvesse sinais de infecção, ou uma úlcera que tivesse rebentado. No entanto, Danina garantiu-lhe que nunca vomitara sangue ou qualquer coisa escura e estranha.

 

Não havia outros sintomas para além do fato de andar a vomitar há cerca de dois meses e de estar quase inconsciente e demasiado fraca para se mexer. Nikolai nem se atreveu a levá-la para o hospital até perceber melhor o que se passava. Não acreditava que fosse tuberculose ou tifo, embora não fosse impossível e, nesse caso, já estaria em fase terminal. No entanto, Nikolai achava que não era isso.

 

Auscultou-lhe os pulmões e o coração. O pulso estava fraco, mas continuava sem perceber o que se passava. Por fim, perguntou-lhe uma coisa que sabia que ela ia achar indelicada; porém, não era apenas o seu amante, era também o seu médico e precisava saber a resposta. O corpo estava tão esgotado que não era invulgar que a sua natureza feminina dei­xasse de se manifestar mês após mês. Depois lembrou-se de outra coisa. Tinham sido sempre tão cuidadosos... Exceto depois do Natal e apenas uma vez ou duas.

 

Examinou-a mais uma vez e percebeu de imediato o que se passava. Suavemente, apalpou-lhe o fundo do abdômen e sentiu uma pequena protuberância, grande o suficiente para lhe confirmar o que nem suspeitara. Danina estava quase de certeza grávida de dois meses e esforçara-se tanto que poderia ter morrido. Caso estivesse grávida, no estado em que se encontrava, era um milagre que não tivesse perdido o bebe.

 

— Danina — sussurrou quando ela voltou a acordar —, acho que estás grávida.

 

Danina abriu os olhos, espantada. Pensara nisso uma vez ou outra, mas pusera de parte tal idéia. Não podia ser, não podia pensar nisso; porém, quando ele lho disse, percebeu que era verdade e fechou os olhos outra vez, deixando esca­par uma lágrima.

 

—  O que faremos agora? — murmurou, olhando para ele desesperada. Isto destruiria a vida de ambos e agora é que Marie, por vingança, nunca consentiria no divórcio.

 

—  Tens de regressar comigo. Podemos viver na casa de hóspedes até te sentires mais forte — sugeriu ele, mas isso era apenas uma solução temporária e ambos o sabiam. Tinham agora problemas bem maiores a resolver.

 

—  E depois? — inquiriu Danina com um olhar triste. — Não posso ir viver contigo, tu não podes casar comigo, o czar tira-te o cargo, não temos ainda dinheiro para comprar uma casa e, se o teu diagnóstico se confirmar, não poderei dançar por muito mais tempo. — Sabia de várias raparigas que continuavam a dançar enquanto podiam, mas eram inevitavelmente descobertas depois de um mês ou dois e banidas. Algumas até perdiam os bebés devido aos árduos treinos e ensaios. A situação piorara para os dois.

 

—Juntos encontraremos uma solução — confortou-a Nikolai, muito preocupado.

 

Não podia sequer dar-lhe um lugar para morar, quanto mais um lar para criarem o bebe, mas não imaginava nada mais belo do que uma criança nascida do amor entre ambos. Como haveriam de o sustentar quando já não pudesse dançar? As poupanças de ambos eram mínimas e ela ganhava mais fa­ma do que dinheiro. Marie e os rapazes também consumiam tudo o que ele ganhava.

 

— Logo veremos o que havemos de fazer — repetiu Nikolai carinhosamente enquanto  a abraçava,  mas  ela apenas abanava a cabeça e chorava. Estava desesperada. — Deixa-me levar-te comigo. Ninguém precisa de saber por que motivo estás doente. Temos de falar sobre isto.

 

Contudo, ela sabia melhor do que ninguém que não ha­via nada a conversar. A concretização dos seus sonhos estava ainda bem longe no futuro.

 

— Tenho de ficar — declarou Danina, pois a idéia de se mover dali fazia-a sentir-se ainda mais doente. Desta vez, não podia ir com Nikolai, embora ele detestasse ter de a deixar, principalmente  agora,  sabendo  que  esperava um filho seu.

 

Ficou com ela até bem tarde e disse a Madame Markova que receava uma úlcera grave e que seria melhor levá-la para a casa de hóspedes do palácio até ela melhorar. Foi Danina quem o contrariou e disse a Madame Markova que não que­ria sair dali, que se sentia demasiado doente e que poderia convalescer tão rapidamente ali como em Tsarskoie Selo, o que não era verdade, e todos o sabiam. É claro que Madame Markova ficou muito satisfeita e tomou a recusa como um si­nal de que a relação com Nikolai estava a chegar ao fim. Era a primeira vez que Danina contrariava uma decisão tomada por ele.

 

Somos perfeitamente capazes de cuidar bem dela aqui, doutor, embora talvez sem o conforto de Tsarskoie Selo — disse Madame Markova com um tom sarcástico. Nikolai ficou zangado por Danina não querer ir consigo e, depois de Madame Markova deixar o quarto, tentou ainda, em vão, convencê-la.

 

Quero-te comigo. Quero cuidar de ti, Danina. Tens de vir comigo.

 

Por quanto tempo? Um mês, dois? E depois? — perguntou, lastimosa.  Para ela havia apenas uma solução, mas não disse nada a Nikolai. Sabia de outras raparigas que o ha­viam feito e sobrevivido. Também queria acima de tudo ter aquele bebé, porém não tinham hipóteses de o criar. Talvez mais tarde, mas não agora, nas circunstâncias em que se encontravam. Tinham de enfrentar a realidade e talvez Nikolai não estivesse pronto para a encarar. Na verdade, nem ela sabia bem se estaria.

 

Tens de ir,  Nikolai.  Podes voltar daqui a uns dias.

 

Voltarei amanhã — declarou e partiu extremamente alarmado com a situação. Apenas se tinham descuidado uma vez ou duas e aquilo era a última coisa que esperara. Agora,
tinha de a ajudar a encontrar uma solução. Sabia bem que a culpa era sua, mais do que dela, portanto, sofria ao pensar que era Danina quem estava a pagar por isso.

 

Quando regressou no dia seguinte, nenhum dos dois ti­nha uma solução simples para resolver a situação. Não po­diam sustentar um bebé, nem sequer um local onde este pu­desse viver. Danina bem sabia que não era possível, embora ele insistisse que sim, e nem sequer tentou argumentar com ele. Limitava-se a ficar ali deitada, sentindo-se muito infeliz, chorando silenciosamente e continuando a vomitar. Nikolai obrigava-a a comer e a beber o máximo que conseguisse e parecia-lhe um pouco mais forte, mas sentia-se tão mal que quase não acreditava que estava a melhorar. Também ele chorava, sentindo-se impotente. Sabia que Danina iria ficar melhor dentro de um mês ou dois; por enquanto, porém, era obrigado a vê-la sofrer.

 

Quando partiu, Danina foi falar com uma das outras bai­larinas. Segundo o que ouvira dizer, a rapariga com quem ia falar, Valeria, já o tinha feito duas ve/es. Valeria disse-lhe on­de deveria ir e com quem deveria falar e até se ofereceu para a acompanhar. Danina aceitou e agradeceu a ajuda da colega.

 

As duas raparigas saíram discretamente na manhã seguinte quando os restantes se encontravam na igreja. Era domingo e Madame Markova estava na missa, como era seu hábito. Da­nina encontrava-se demasiado doente para ir e Valeria inven­tou uma enxaqueca. Tiveram quase de atravessar a cidade e Danina parava de cinco em cinco minutos para vomitar, mas por fim chegaram ao seu destino, um bairro pobre e cheio de lixo por toda a parte.

 

Era uma casa pequena e sombria com umas cortinas mui­to sujas na janela. O aspecto da mulher que abriu a porta fez Danina estremecer; porém, Valeria garantiu que seria rápido e bem feito. Trouxera todas as suas economias, e ficara horrori­zada ao saber quanto lhe iria custar.

 

A mulher que se autodenominava «enfermeira» fez a Da­nina uma série de perguntas. Queria ter a certeza de que a gravidez não ia já muito avançada, mas dois meses pareceram não a preocupar. Depois de lhe pedir metade do dinheiro que trouxera, conduziu-a a um quarto no fundo da casa. Os len­çóis e cobertor pareciam imundos e havia manchas de sangue no chão que ninguém se preocupara em limpar depois da saí­da da última pessoa que recorrera aos serviços da «enfer­meira».

 

A mulher, já de uma certa idade, lavou as mãos numa ba­cia de água que se encontrava no canto do quarto e aproxi­mou um tabuleiro de instrumentos, garantindo que estavam lavados. Danina achou-os horríveis e voltou a cara para o ou­tro lado.

 

— O meu pai era médico — explicou a «enfermeira», mas Danina não queria saber as referências da mulher, apenas que tudo terminasse depressa.

 

Sabia que, se Nikolai desconfiasse das suas intenções, tudo faria para a impedir e que, se descobrisse, talvez nunca lhe perdoasse. Não podia pensar agora nisso. O pior era que am­bos desejavam esse bebé, embora não o pudessem ter. Tinha de fazer aquilo pelos dois, por mais terrível que fosse e ainda que a pudesse matar. Enquanto pensava nisto, a «enfermeira» ordenou-lhe que tirasse a roupa. As mãos de Danina tremiam descontroladamente. Deitou-se então na cama imunda apenas de camisola, a mulher examinou-a e acenou com a cabeça, sentindo, tal como Nikolai, o pequeno inchaço no fundo da sua barriga.

 

Nada por que já passara durante a vida a preparara para aquela humilhação e horror. A repugnância que sentia fê-la vomitar; porém, isso não era uni entrave para a «enfermeira» que assegurou a Danina que tudo seria muito rápido. Disse--Ihe ainda que podia ficar uns instantes até se sentir com for­ças para andar, mas que depois teria de partir. Se surgisse al­gum problema, deveria chamar um médico e nunca regressar ali. Depois do trabalho feito, o resto ficava à responsabilidade de Danina. Não a deixaria entrar se resolvesse regressar, disse-Ihe a mulher, de forma um pouco sombria.

 

— Vamos então começar — disse a «enfermeira» com um ar decidido. Gostava de tratar das suas «doentes» rapidamente, antes que lhe causassem problemas, e o fato de Danina continuar a vomitar não a impediu de prosseguir. No entanto,Danina pediu-lhe que esperasse um minuto e depois fez-lhe sinal com a mão que já estava pronta, demasiado assustada pa­
ra falar.

 

Seguindo as instruções da «enfermeira», agarrou-se aos ferros da cama. Depois, com um braço, esta segurou-lhe uma das pernas para baixo ao mesmo tempo que lhe ordenava que não se mexesse. O problema era que as pernas de Danina não paravam de tremer.

 

O que Valeria lhe contara não a preparara para a intensa dor que sentiu quando a mulher introduziu dentro si um dos seus instrumentos. Danina tentou não gritar ou sufocar no seu

próprio vomito. A dor parecia não terminar e o quarto co­meçou a rodar à sua volta, até que, por sorte, desmaiou. De repente, a mulher estava a abaná-la e havia uma compressa húmida sobre a sua testa. A «enfermeira» declarou-lhe que já podia levantar-se. Tinha terminado.

 

— Acho que ainda não consigo pôr-me de pé — disse Danina, ainda débil.

 

O cheiro a vomitado empestava o quarto e a visão de uni balde de sangue perto da cama quase a fez desmaiar de novo. Sem esperar, a mulher ajudou-a a pôr-se de pé e a vestir-se. Cambaleava enquanto a mulher lhe punha um amontoado de trapos entre as pernas. Era tudo demasiado insuportável. Ar­rastou-se então para a outra sala onde a amiga a esperava, mas mal conseguia distingui-la de tão tonta que se sentia. Ficou estupefata ao perceber que não tinha ainda sequer passado uma hora desde que chegaram. Valeria parecia preocupada, embora aliviada. Tendo já passado pelo mesmo, sabia melhor do que ninguém o inferno por que Danina passara.

 

—  Leva-a para casa e deita-a — disse a «enfermeira», segurando a porta da rua para elas passarem. Tiveram sorte em encontrar um táxi por ali. Mais tarde, Danina nem se lembrava da viagem de regresso à escola de ballet, apenas de subir para a cama e sentir os trapos entre as pernas e a dor lancinante que a mulher lhe deixara no interior. Não conseguia pensar em nada, nem em Nikolai, nem no bebé, nem no que acabara de fazer. Limitou-se a estender-se na cama com um
gemido e, no espaço de segundos, ficou inconsciente.

 

Quando Nikolai veio visitá-la nessa tarde, encontrou-a a dormir profundamente com a roupa vestida. Não fazia ideia de onde teria ido ou o que fora fazer, por isso, ficou aliviado por estar ao menos a dormir, até olhar para ela com mais atenção. A sua cara estava muito pálida e os lábios um pouco arroxeados. Quando lhe tomou o pulso ficou apavorado e quando a tentou acordar descobriu que não conseguia. Perce­beu de imediato que não estava a dormir, mas inconsciente. E quando, quase por instinto, lhe puxou os cobertores para baixo, verificou que estava imersa numa poça de sangue que alastrara em seu redor. Estava a perder sangue há horas.

 

Desta vez não hesitou um segundo. Mandou uma das bai­larinas chamar uma ambulância e começou a despir Danina. Estava quase morta e não fazia ideia da quantidade de sangue que perdera, embora o que via em seu redor lhe parecesse imenso. Os trapos que lhe encontrou no meio das pernas re­velaram-lhe tudo o que acontecera.

 

— Oh, meu Deus... Danina.

 

Não havia nada que pudesse fazer para travar a hemorra­gia. Precisava de ser operada e talvez nem isso a salvasse. As­sim que soube o que se passava, Madame Markova correu pa­ra o quarto de Danina. A cena que lá se lhe deparou não deixava margens para dúvidas. Nikolai estava sentado ao seu lado, segurando-lhe na mão enquanto as lágrimas lhe corriam pela face abaixo. O seu ar de desespero chegou mesmo a co­mover Madame Markova, mas, assim que esta entrou no quarto, a angústia e a aflição de Nikolai transformaram-se ra­pidamente em raiva.

 

Quem é que a deixou fazer isto? — berrou. — Sabia de alguma coisa? — continuou num tom de acusação e fúria.

 

Não sabia de nada — protestou Madame Markova. — Provavelmente ainda menos do que o doutor. Deve ter saído quando estávamos na missa — explicou, temendo pela vida
de Danina.

 

Há quanto tempo foi isso?

 

—  Há quatro ou cinco horas.

 

—  Meu Deus... Não compreende que isto pode matá-la?

 

—  Claro que sim!

 

O terror que sentiam quase os levava a estrangular-se um ao outro, mas, felizmente, a ambulância chegou e Danina foi levada para um hospital que Nikolai conhecia bem e este contou à equipa médica o pouco que sabia sobre o sucedido. Danina não voltou a recuperar a consciência até à operação, e só passadas duas horas é que o cirurgião veio falar com ele e com Madame Markova, sentados em silêncio na sala de es­pera vazia, olhando um para o outro.

 

—  Como está ela? — perguntou Nikolai imediatamente; porém,  o  cirurgião  não parecia nada satisfeito.  Fora quase uma tragédia e Danina estava a receber a quarta transfusão de sangue.

 

—  Se ela sobreviver — disse o médico com um ar grave —, ainda poderá ter filhos, mas é muito cedo para tirar conclusões. Perdeu uma enorme quantidade de sangue e, quem quer
que lhe tenha feito aquilo, é um carniceiro.

 

Descreveu então a situação a Nikolai em termos médicos e, para além da hemorragia que se recusava a estancar, te­miam também uma grave infecção.

 

—  Não será fácil para ela — explicou o cirurgião a Madame Markova, que já não conseguia conter as lágrimas. — De­verá permanecer aqui durante várias semanas, talvez até mais.
Saberemos melhor amanhã de manhã, se sobreviver. Por ago­ra, fizemos tudo o que podíamos por ela.

 

—  Posso vê-la? — perguntou Nikolai, aterrorizado com o fato de o cirurgião não lhes poder dar garantias de que Danina sobreviveria.

 

—  Não pode fazer nada por ela agora — explicou o médico. — Ainda não está consciente e talvez não fique tão de­ pressa.

 

—  Gostava de estar junto dela quando acordasse — pediu Nikolai. Estava horrorizado com o que acontecera. Recriminava-se por não ter suspeitado de nada e não ter podido impedi-la. Teriam pensado numa solução. Danina não precisava de ter arriscado a vida para resolver o problema. Tudo se re­ solveria, pensava ele. Toda a noite refletira na maneira de resolver o problema.

      

 Deixaram Nikolai entrar na sala de cirurgia onde Danina estava a recuperar. Ainda lhe parecia pálida, apesar de todas as transfusões que já recebera. Sentou-se silenciosamente ao seu lado e segurou-lhe na mão. Apertou-a com carinho ao mes­mo tempo que chorava e se recordava dos momentos que ha­viam passado juntos e do quanto a amava. Queria matar quem a tinha posto assim.

 

Na sala de espera, Madame Markova parecia devastada e partilhava dos mesmos sentimentos de Nikolai. No entanto, era impossível consolarem-se mutuamente. Apesar de unidos pela mesma mágoa e pelo amor à mesma pessoa, encaravam--se como inimigos.

 

Era já quase meia-noite quando finalmente Danina se me­xeu, emitindo um gemido dorido. Os seus lábios estavam se­cos e mal conseguia abrir os olhos; porém, quando voltou a cabeça viu-o ali ao seu lado e sentiu um nó formar-se na gar­ganta, ao lembrar-se vagamente do que acontecera e do que fizera ao filho de ambos.

 

—  Oh, Danina... perdoa-me... — disse Nikolai de imediato chorando como uma criança. Depois abraçou-a e implorou que lhe perdoasse por a ter colocado naquela situação.Nem sequer a recriminou pelo que fizera. Era demasiado tarde para isso e Danina tinha já pago um preço muito elevado pela decisão que tomara. — Como é que isto aconteceu? Porque não falaste comigo antes de o fazer?

 

—  Sabia... que nunca... permitirias... Desculpa — explicou também no meio de lágrimas. Ambos choraram pelo filho que perderam. Nikolai sabia, só de olhar para ela, que de­ correria  muito   tempo  até   que  se  recompusesse   do   que acontecera. De manhã, o cirurgião declarou que Danina estava fora de perigo e Nikolai quase chorou de alívio. Por respeito, foi dar a notícia a Madame Markova que, pouco de­pois, partiu sem ver Danina.  O médico dissera que estava ainda muito doente para receber visitas e Nikolai concordou com ele.

 

Não saiu do seu lado durante toda o dia e só no princípio da noite é que foi a casa mudar de roupa, ver como estava Alexei e perguntar ao Dr. Botkin se este poderia continuar a substituí-lo. Explicou que tinha uma amiga gravemente doente no hospital e que precisava de estar com ela e, embora o colega não o perguntasse, sabia de quem se tratava.

 

Ela vai ficar bem? — perguntou o Dr. Botkin, assusta­
do com o ar angustiado e destroçado do seu colega. Fora urna
noite de agonia para Nikolai.

 

Espero que sim — respondeu.

 

Voltou para o hospital já a noite ia avançada e ficou junto dela toda a noite, mais uma vez sem dormir. Danina alternava entre períodos inconscientes e conscientes, murmurando, fa­lando com pessoas que só ela via. Gritou o seu nome mais do que uma vez, pedindo-lhe ajuda. Dilacerava-lhe o coração vê-la naquele estado, mas não arredou pé dali, acariciando-lhe a mão e pensando no futuro e nos filhos que esperava ainda pudessem ter.

 

Só dois dias depois é que a hemorragia parou por com­pleto e as transfusões começaram a ajudá-la. Estava ainda muito fraca para se sentar e era ele quem a alimentava. Dor­mia numa cama improvisada ao seu lado. Depois de a ver um pouco melhor, atreveu-se por fim a dormir. Estava exausto, mas eternamente grato por Danina ter sobrevivido.

 

Como te sentes hoje? — perguntou-lhe num tom carinhoso,  observando os círculos negros em torno dos seus olhos. Estava ainda um pouco pálida.

 

Um pouco melhor — mentiu. Não se lembrava de outras raparigas que tivessem ficado tão mal numa situação semelhante, embora não fosse raro ouvir-se falar de mulheres
que  acabavam por morrer.  Na verdade,  Danina nunca se apercebera verdadeiramente do risco que corria e, ainda que soubesse, teria tomado a mesma decisão. Não tivera escolha e, mesmo agora, com Nikolai ao seu lado, sabia que nunca poderiam ter tido aquele filho. Teria destruído tudo, a carreira dele, a dela. Não havia espaço para uma criança nas suas vi­das. Mal havia para ambos, apesar de se amarem muito. Era uma vida de momentos roubados, apenas com a esperança e a promessa de um futuro. Não era ainda uma vida na qual pudessem incluir uma criança.

 

Quero que venhas comigo para Tsarskoie Selo — disse-lhe sabendo  que ela o estava a ouvir.  Danina abriu os olhos. — Podes ficar de novo na casa de hóspedes. Ninguém precisa de saber por que motivo estás doente ou o que acon­teceu. — Porém, Nikolai sabia que durante bastante tempo estaria fraca de mais para sair do hospital e havia ainda o risco de infecção, que poderia ser fatal. Tanto Nikolai como o ci­rurgião estavam ainda muito preocupados com o seu estado de saúde.

 

—  Não posso fazer isso outra vez. Não posso abusar da boa vontade da czarina — explicou, embora não houvesse nada que mais desejasse do que estar com ele. Adorava a doçura que se instalava quando estavam juntos, mas não podia abandonar novamente o ballet, pois sabia que desta vez Madame Markova não  a  aceitaria  de volta nem lhe perdoaria, doente ou não. Pagara um preço elevado pela última convalescença e precisava do ballet. Nikolai não podia ajudá-la, não era livre para casar com ela ou capaz de a sustentar. Tinha de contar consigo mesma.

 

—  Só poderás voltar a dançar daqui a muito tempo — disse ele carinhosamente. Depois decidiu contar-lhe a idéia que tivera. — Quero que penses uma coisa. Considerei milhares de maneiras de resolver o nosso problema enquanto não acordavas. Não podemos continuar assim. A Marie nunca consentirá no divórcio e Madame Markova nunca permitirá que abandones o ballet. Quero estar contigo, Danina, quero que tenhamos uma vida juntos, longe de tudo isto e das pe­ssoas que nos querem separar.  Quero estar contigo sempre, longe daqui,  num local onde possamos começar de novo. Não podemos casar,  mas ninguém precisa de o saber. — E depois acrescentou: — Num outro local até poderíamos ter os nossos próprios filhos.

 

Danina baixou os olhos quando o ouviu pronunciar aquelas palavras e Nikolai apertou-lhe a mão. Ambos sentiam a perda daquele filho.

Não existe nenhum lugar onde possamos fazer isso. Para onde iríamos? Como nos sustentaríamos? Se Madame Markova decidir desacreditar-me, nenhuma outra companhia de ballet me aceitará. — Danina pensava em Moscovo e noutras cidades da Rússia, ele não. O seu plano era bem mais audacioso. Tenho  um primo na América,  num local chamado Vermont. Fica no Nordeste da América que ele afirma ser muito parecido com a Rússia. Tenho dinheiro guardado sufi­ciente para as passagens até lá. Poderíamos viver com ele nos primeiros tempos. Eu encontrarei um emprego e tu podes ensinar ballet algures, a crianças.

 

Danina sabia que Nikolai falava inglês perfeitamente por causa da mulher, mas ela não. Para além disso, não se imagi­nava a viver num mundo tão distante do seu e só a mera idéia era assustadora.

 

Como haveríamos  de fazer,  Nikolai? Podes praticar medicina lá? — perguntou,  estupefata com a  idéia  dele.

 

A seu tempo, sim. Teria de voltar a estudar lá. Claro que levaria algum tempo, mas entretanto poderia fazer outras coisas.

O quê, perguntava-se enquanto o escutava. Limpar estábulos? Tratar de cavalos? A situação parecia-lhe insolúvel. Não havia com certeza nenhuma escola de ballet em Vermont, onde quer que isso fosse. Quem ensinaria? Quem con­trataria qualquer um dos dois? Como chegariam à América?

 

— Tens de deixar-me ir para a frente com isto. E a nossa
única  esperança,   Danina.   Não  podemos permanecer  aqui.

 

Todavia, partir implicava uma série de traições e abando­nos: os filhos e a mulher, o czar e a família que haviam sido tão amáveis com ele, Madame Markova e o ballet. Dera-lhes tudo, a sua vida, a sua alma, o seu coração, o seu corpo e em troca o ballet dera-lhe uma vida, a única que conhecia, e um lar. O que faria nessa terra chamada Vermont? E se ele se far­tasse e a abandonasse lá? Era a primeira vez que pensava nisso; porém, a idéia assustava-a e Nikolai podia ver perfeitamente o medo nos seus olhos.

 

Não sei... É tão longe... E se o teu primo não nos quiser lá?

 

—  Vai  querer  com  certeza.   É  um  homem  generoso. Ê mais velho do que eu, viúvo e sem filhos. Já me convidou repetidas vezes para o ir visitar. Se eu lhe disser que precisa­mos da ajuda dele, não hesitará em fazê-lo. Tem uma casa grande e algum dinheiro. É dono de um banco e vive sozinho. Vai receber-nos com prazer. Danina, é a única esperança que temos de um futuro juntos. Temos de começar algures e esquecer tudo o que conhecemos aqui.

    

 Por muito que Danina quisesse estar com ele, não tinha a certeza de ser capaz de abandonar tudo e partir para o desco­nhecido.

 

—  Não penses nisso agora. Primeiro tens de ficar boa e depois logo falaremos outra vez.  Entretanto,  escreverei ao meu primo e verei o que me diz — rematou Nikolai.

 

—  Ninguém nos perdoaria — lembrou, aterrorizada.

 

—  E se ficarmos aqui... o que teremos? Alguns minutos juntos, alguma semanas por ano quando a czarina te convidar para Tsarskoie Selo ou para Livadia?  Quero ter uma vida contigo. Quero acordar ao teu lado todas as manhãs, cuidar de ti quando estiveres doente.... Não quero que uma coisa destas volte a acontecer-te.... Danina, quero ter filhos contigo — declarou do fundo do coração. Também desejava a vida que ele acabara de descrever, mas teriam de magoar toda a gente que amavam para poderem ser livres.

 

—  E o meu pai e os meus irmãos? — argumentou. A sua família, a sua vida estavam aqui, na Rússia. Não podia voltar as costas a tudo isso por amor a ele, e, no entanto, Nikolai es­tava disposto a fazê-lo, e tinha tanto a perder quanto ela. Te­ria de abandonar os filhos, a mulher e a carreira para poder concretizar esse sonho.

 

—  Tu própria me disseste que nunca vês a tua família — recordou-lhe e, na verdade, há dois anos que os irmãos e o pai estavam na frente. — De certeza que ficariam felizes por ti — declarou Nikolai, esforçando-se ao máximo para a convencer. — Não poderás dançar para sempre, Danina.

 

Quando ouviu isto, lembrou-se de tudo o que Madame Markova sempre lhe dissera.

—  Depois posso dedicar-me ao ensino,  como Madame Markova.

 

—  Também podes ensinar em Vermont. Talvez até possas abrir uma escola de ballet. Eu ajudar-te-ei — afirmou Nikolai.
Parecia tão seguro de que tudo correria bem.

 

—  Tenho de pensar nisso — disse ela, exausta só com a perspectiva de ter de tomar uma decisão de tal monta e acarretar com as consequências para o resto da vida.

    

     —  Descansa agora. Falaremos melhor mais tarde. Danina acenou que sim com a cabeça e deixou-se novamente dormir. Todavia, teve pesadelos horríveis, com lugares desconhecidos e assustadores. Não parava de sonhar que se desencontrava de Nikolai e que percorria ruas e ruas à sua procura, sem nunca o encontrar. Acordou a chorar e assusta­da, mas Nikolai não estava ao seu lado. Deixara-lhe uma mensagem a dizer que fora ver como estava Alexei e que vol­taria na manhã seguinte.

 

Permaneceu no hospital durante duas semanas e, quando teve alta, o médico ordenou-lhe que ficasse na cama outros quinze dias. Nikolai queria que ela fosse para Tsarskoie Selo, porém Madame Markova opôs-se terminantemente. Queria Danina no ballet e contrapôs que a viagem seria muito exte­nuante. Desta vez, Danina nem sequer tinha forças para a contrariar. A sua mentora estava muito determinada e relu­tante em deixá-la escapar-se das suas mãos outra vez. Não a queria mais quatro meses a «recuperar» em Tsarskoie Selo com o amante. Desta vez foi intransigente e, face à ferocidade das suas objeções, Danina voltou para o ballet.

 

Tal como acontecera quando adoecera com gripe, Niko­lai vinha vê-la todos os dias e fazia-lhe companhia até serem horas de ir tratar das suas obrigações. Ficava sentado ao seu lado no quarto enquanto ela descansava ou davam pequenos passeios pelo jardim da escola de ballet. Nikolai aproveitava para lhe ir falando de Vermont e do seu primo. Estava con­vencido de que esta era a única solução e queria partir assim que pudessem. Sugeriu que embarcassem no princípio do Ve­rão, ou seja, dali a poucos meses.

 

— Nessa altura, a temporada já terá acabado. Poderás as­sim terminar o que estás a fazer, Danina. Tens de te decidir por uma data e depois fazer por cumpri-la. Não haverá nunca o momento ideal para partir, temos de aproveitar o momento enquanto podemos — explicou.

 

Nessa altura, Danina já teria vinte e dois anos e ele faria quarenta e um, uma boa altura para começarem uma vida no­va na América. Centenas de outros já o haviam feito, alguns por razões tão ou mais complicadas que as suas.

 

Danina prometeu pensar nisso, e era o que fazia, a toda a hora. Não parava de refletir no que seria mudar-se para uma terra que desconhecia. Madame Markova percebeu facilmente que algo se passava. A sua pupila continuava cansada e páli­da e, por vezes, quando o médico partia, parecia muito infe­liz. Nikolai pedia-lhe que o seguisse até ao fim do mundo, que confiasse cegamente nele; porém, apesar de todo o seu amor por ele, achava o pedido muito ambicioso.

 

— Estás preocupada, Danina — disse-lhe cautelosamente Madame Markova uma tarde quando veio visitá-la. Nikolai acabara de sair e, mais uma vez, tinham falado da mesma coisa, do futuro, de Vermont, do primo, de abandonar a Rússia e o ballet.

 

 — Ele está a pedir-te que nos deixes, não é? —perguntou, mas Danina não lhe respondeu. Não queria mentir ou dizer-lhe a verdade. — É sempre assim. Apaixonam-se por quem somos e depois querem tirar-nos isso mesmo. Garanto-te que se nos deixares isso acabará por te matar, Danina. Não serás nada e, quando ele te abandonar por alguém mais fascinante ou mais jovem, lamentarás toda a tua vida a decisão que tomaste — concluiu.

 

As palavras de Madame Markova soavam como uma sen­tença de morte e, de certa forma, até o eram. Todavia, Dani­na estava a trocar a vida que conhecia ali por algo que tam­bém desejava ardentemente. Seria o fim da sua vida como bailarina, mas o início de uma outra ao lado de Nikolai. No entanto, para a alcançar teria de sacrificar tudo o que conquis­tara até então, tal como ele.

 

Se o Nikolai te amasse de verdade, Danina, não te pe­ diria que nos deixasses — argumentou a sua mentora.

 

E quando for velha, o que terei se ficar aqui?

 

Uma vida que te orgulharás de recordar, em vez de uma vida de desonra, que é tudo o que te poderá dar. Ê um homem casado e a sua mulher nunca o deixará. Serás sempre a sua amante, a bailarina com quem ele dorme, nada mais.

 

Todavia, o que existia entre ambos era bem mais do que isso e Danina sabia-o.

 

A madame faz as coisas parecerem vulgares, mas não o são — disse com um tom infeliz. Mas é precisamente o que são sempre, não te enganes! Muito românticas ao princípio, um sonho que parece tornar-se realidade e um dia, quando se acorda, descobre-se que, afinal, era um pesadelo. Esta é a única vida que alguma vez terás e que significará alguma coisa para ti. Foi para isto que trabalhaste e treinaste tão arduamente. Vais deitar tudo a per­der por um homem que nem sequer pode casar contigo? Olha bem para o que te aconteceu. Achas que foi muito bo­nito? Muito romântico?

 

Eram palavras muito cruéis que desanimavam Danina e ainda lhe colocavam mais dúvidas no coração. E se Madame Markova tivesse razão? E se Nikolai a abandonasse um dia? E se detestasse Vermont, se se arrependesse de ter abandona­do o ballet e não fossem felizes juntos? Quem poderia saber a resposta a essas perguntas? Não havia certezas nos planos de Nikolai, apenas promessas, esperanças, sonhos e anseios. No entanto, estava disposto a desistir da medicina por ela, da se­gurança que tinha, da vida que conhecera durante quinze anos com a família. Estava pronto a sacrificar tudo por ela. Porque não podia fazer o mesmo por ele?

 

— Tens de pensar nisso muito cuidadosamente e tomar a decisão certa — advertiu Madame Markova, para quem a re­solução correta era, claro, ficar no ballet e esquecer Nikolai. Porém, Danina sabia que não podia fazer isso. Deixar o ballet agora poderia destruir a sua vida, mas perder Nikolai seria a sua morte. Enquanto pensava nisso, apercebeu-se do meda­lhão por baixo da blusa e sentiu-se reconfortada. Amava-o profundamente, talvez até o suficiente para arriscar tudo e se­gui-lo. Agora, o que tinha a fazer era pensar e escutar o seu coração.

 

Madame Markova deixou-a então entregue aos seus pen­samentos. Já espalhara as sementes que queria e esperava que germinassem e vingassem. Queria que Danina sentisse o hor­ror de abandonar tudo por uma vida de arrependimento e in­felicidade. Valia certamente a pena meditar sobre isso.

 

O bailado era também a única vida que Madame Markova conhecia, a única que alguma vez desejara. Esse era o lega­do que pretendia deixar a Danina, o elo sagrado passado de professora para aluna e assim sucessivamente. Era um voto quase divino.

 

Ficar significava desistir da esperança de um futuro com Nikolai. De certa forma, significava perder a esperança; porém, deixar a Rússia implicava desistir de quem era para sem­pre. Era uma escolha angustiante e, fosse qual fosse o caminho que decidisse tomar, exigiria sacrifícios quase insuportáveis. Tudo o que Danina podia fazer era rezar para que tomasse a decisão correta.

 

Danina esteve um mês sem dançar e só regressou às aulas no primeiro dia de Abril. Teve de novo de se esforçar bastan­te para recuperar o que havia perdido, embora desta vez o te­nha conseguido mais rapidamente. Estava mais forte e a sua saúde bem melhor.

 

Dali a uma semana voltou aos ensaios e, nos princípios de Maio, estava de volta aos palcos. Já se passara mais de um ano desde a sua longa convalescença na casa de hóspedes do czar. Num ano, pouco mudara entre ambos. Ainda se amavam lou­camente, Nikolai continuava casado e a viver com a mulher e os filhos e ela andava ainda no ballet; porém, não estavam mais próximos de encontrar uma solução para o seu proble­ma. Marie Obrajensky estava mais do que nunca convencida a não conceder o divórcio ao marido, e as poupanças dos dois amantes não chegavam para enfrentarem o futuro juntos. Tudo o que sabiam com certeza era que continuavam a querer uma vida a dois. Como consegui-la era o desafio que lutavam constantemente por vencer.

 

Danina não se decidira ainda a partir com Nikolai para Vermont. Achava que era um risco muito grande, uma terra muito longínqua, desconhecida e demasiado estranha. Ele continuava a tentar convencê-la, da forma mais diplomática que conseguia.

 

Uma das grã-duquesas adoeceu em Junho e ambos os mé­dicos ficaram bastante ocupados. Nikolai tinha muito pouco tempo livre para visitar Danina e, por mais que quisesse, não podia abandonar o palácio. No princípio de Julho deu-se mais uma tragédia: o irmão mais velho de Danina foi morto em Czernoivitz. Era o segundo que perdia e pela carta do pai percebeu que ficara devastado com a morte do filho. Estava junto dele quando haviam sido bombardeados e, por milagre, fora poupado, mas o seu filho primogênito não e morrera instantaneamente. Danina não recebeu bem a notícia e du­rante semanas andou deprimida e sem reação. A guerra afetava toda a gente, mesmo no ballet. Havia bailarinas que tínham perdido irmãos, amigos, pais, e uma das professoras perdera ambos os filhos em Abril. Mesmo no pequeno e iso­lado mundo do ballet, era impossível ignorar a guerra.

 

Nesse ano Danina só ansiava por mais umas férias com Nikolai e com a família imperial em Livadia. Desta feita, Madame Markova não fez qualquer tentativa de se opor. Desde a última doença de Danina, fizera umas espécies de pazes com Nikolai. Sabia que de bom grado lhe roubaria a sua bailarina, mas esta não dava sinais de querer sair dali ou abandonar o ballet por ele. Acreditava que Danina nunca teria a coragem suficiente para partir e, por isso, sentia-se segura. Afinal, a vi­da de ambas era o ballet.

 

O czar estava com as suas tropas em Mogilev e não pode­ria juntar-se à família nesse Verão; por isso, a czarina e os fi­lhos tiveram apenas a companhia de ambos os médicos e de Danina. Eram já todos velhos amigos e Danina e Nikolai sen­tiam-se mais felizes do que nunca. Era sempre uma época perfeita para ambos, um período que parecia suspenso no tempo, protegido de um mundo hostil e aparentemente lon­gínquo. Na segurança de Livadia, sentiam-se escudados dos problemas que habitualmente enfrentavam.

 

Faziam piqueniques todas as tardes, davam longos passeios a pé e de barco e nadavam. Danina sentia-se de novo uma criança e não deixava de brincar com Alexei. A sua saúde não estivera famosa naquele ano e o czaréviche não tinha ainda muito bom aspecto; porém, rodeado pela família e pelas pes­soas que amava, parecia feliz.

 

Nikolai tentou abordar de novo o assunto da partida para Vermont, mas as respostas de Danina eram sempre muito va­gas. Tinham-lhe sido atribuídos papéis importantes em todos os bailados que iam fazer naquele ano. Madame Markova sa­bia exatamente como mante-la em Sampetersburgo. Con­cordaram então em não voltar a falar de Vermont até ao Na­tal, ou seja, até ao final da primeira parte da temporada. Era um acordo que angustiava Nikolai e que apenas fizera porque não a queria pressionar de mais.

O acordo acabou no entanto por se revelar uma bênção, pois o seu filho mais novo adoeceu com febre tifóide em Se­tembro e esteve às portas da morte. Foi necessária toda a perícia de Nikolai e do Dr. Botkin para o salvar. Danina ficou aterrorizada e enviava diariamente cartas a Nikolai, preocupa­da com o rapaz e apoiando-o naquele momento de aflição, pois sabia o quanto amava os filhos. Teria sido desastroso, di­zia para si mesma, se estivessem em Vermont e o rapaz aca­basse por não resistir. Nikolai nunca se perdoaria por não ter podido fazer nada pelo filho. A situação só serviu para a con­vencer ainda mais de que seria um erro fugirem para a Amé­rica. Todas as pessoas que amavam estavam ali e tinham de­masiadas obrigações que não podiam ignorar ou abandonar.

 

Apesar da doença que a enfraquecera no ano anterior, a sua técnica melhorara e Danina dançava ainda melhor do que anteriormente. Cada vez que atuava, as pessoas falavam dela durante semanas e o seu nome era conhecido por toda a Rús­sia. Era de fato a maior jovem bailarina da sua época. Niko­lai orgulhava-se muito disso e estava cada vez mais apaixona­do pela sua bailarina. Sempre que podia, ia assistir aos seus espetáculos e, em Novembro, acabou por conhecer o pai e um dos irmãos de Danina. Já só tinha dois e o outro fora feri­do há pouco tempo, mas estava em Moscovo a recuperar bem.

 

O pai e o irmão não faziam idéia do que Nikolai repre­sentava para Danina ou do quanto ela o amava, mas simpati­zaram muito com ele. Nikolai desejou-lhes sorte quando par­tiram e felicitou o coronel pela sua talentosa e extraordinária filha, o que fez o velho senhor brilhar de orgulho. Não era difícil perceber o quanto a amava. Sempre soubera que trazê-la para o ballet em criança fora a decisão mais correta. Acre­ditava que Danina ali permaneceria para o resto da vida, nun­ca lhe ocorrendo que considerava abandonar a dança um dia.

 

Por fim, quando o Natal chegou, Danina só queria partir para Tsarskoie Selo para estar junto de Nikolai na pequena casa de hóspedes. Tudo seria tão simples se viver ali fosse uma possível solução, mas não era. Apenas podiam estar verdadei­ramente juntos quando Danina ia passar férias com a família imperial.

 

Nikolai foi o seu acompanhante ao baile de Natal. A fa­mília imperial já não dava os grandiosos bailes que costumava organizar antes da guerra, mas, ainda assim, reuniu mais de uma centena de amigos.

 

Danina parecia uma princesa com o vestido que a czarina lhe ofereceu. Era de veludo vermelho guarnecido a arminho branco. Estava tão deslumbrante como a czarina num dos seus espetaculares vestidos. Os convidados não paravam de co­mentar a sua beleza, a sua elegância, o seu talento, e Nikolai sentia-se um príncipe garboso ao seu lado.

 

— Diverti-me muito esta noite! E tu, Nikolai? — perguntou-lhe enquanto se dirigiam para casa depois da festa. Estavam também convidados para almoçar no palácio no dia seguinte.   Os  bailes  da  família  imperial  eram  sempre  muito animados e, com Nikolai ao seu lado, sentira que formavam
um verdadeiro casal. Estavam juntos há quase dois anos.

 

A única coisa que perturbara a festa tinham sido uns pe­quenos grupos aqui e ali a discutirem rumores recentemente surgidos sobre a eventualidade de uma revolução. Parecera-Ihe absurdo, embora já se tivessem registrado distúrbios em várias cidades e o czar se recusasse a controlá-los. Afirmava que as pessoas tinham o direito de se expressar e que assim sempre existia a oportunidade de demonstrarem o que pensa­vam. Só que os tumultos já se haviam estendido a Moscovo e o exército estava cada vez mais preocupado. O pai e o irmão de Danina referiram esse fato na última visita que lhe tinham feito.

 

Danina e Nikolai falavam sobre isso quando chegaram à casa de hóspedes e, desta vez, Nikolai admitiu que começava a ficar inquieto com o estado do país.

 

— Acho que o problema é bem maior do que a maioria pensa — disse com a testa franzida. — E o czar está a ser ingênuo ao recusar-se a pôr um fim à contestação.

 

Ou talvez não pudesse. Tinha tantas outras coisas com que se preocupar, como a guerra e o número gigantesco de baixas sofridas na Polônia e na Galícia, que a agitação em Moscovo lhe parecia insignificante quando comparada com a guerra e o que esta já custara a tantas famílias russas.

 

A idéia de uma revolução parece tão absurda — acrescentou Danina. — Não consigo sequer imaginar que uma tal coisa possa suceder aqui. O que aconteceria? Quem sabe? Talvez não muita coisa. Provavelmente nada. É um bando de descontentes a fazer barulho. Pode ser que incendeiem algumas casas, roubem uns tantos cavalos e jóias, dêem uma lição aos mais ricos, e voltem para as suas terras. Talvez não passe daí. A Rússia é um país demasiado grande e poderoso para alguma vez mudar, embora uma tal revolução possa tornar a vida mais complicada e perigosa para o czar e a família. Felizmente, estão bem protegidos.

 

Se  acontecer alguma coisa — disse-lhe Danina enquanto ele a ajudava a tirar o vestido —, quero que tenhas muito cuidado. — Compreendia que as coisas também podiam complicar-se muito para ele.

 

Há um solução simples para esse problema — declarou, abordando de novo o assunto de Vermont. Prometera não falar mais sobre isso até ao Natal e cumprira a sua parte no acordo. Para além disso, pensara mais cuidadosamente na questão desde que a haviam discutido pela última vez em Setembro e continuava esperançado em conseguir convencê-la da sensatez do seu plano.

 

Que solução? — perguntou inocentemente ao mesmo tempo que tirava os brincos, um presente de Natal de Nikolai. Eram umas pérolas com dois pequeninos rubis presos por baixo. Danina adorava-os e ficavam-lhe muito bem.

 

Vermont — recordou-lhe ele. — Não há revoluções na América e também não têm uma guerra à porta. Podíamos ser felizes lá e tu sabe-lo.

 

Danina já não tinha mais desculpas para adiar aquela con­versa e queria muito ficar com ele; no entanto, parecia nunca haver um momento em que se sentisse pronta para deixar o ballet e fazer uma coisa tão drástica como a que Nikolai lhe pedia. A situação entre ambos era agora mais ou menos con­fortável e talvez um dia Mane concordasse com o divórcio.

 

Talvez um dia — disse melancolicamente. Queria ter a coragem suficiente para o acompanhar, mas, ao mesmo tempo, não conseguia imaginar-se a abandonar o mundo que tão bem conhecia. Havia um número igual de razões que a puxavam em ambas as dire que Danina jamais abandonasse o ballet e nunca pudessem ter mais do que tinham agora, a não ser que a sua mulher mor­resse ou mudasse de ideias, ou ele herdasse uma grande soma de dinheiro. Porém, nenhuma dessas hipóteses parecia prová­vel. Ali, Danina apenas poderia ser sua amante e não pode­riam viver juntos, a menos que deixasse o ballet. Ainda assim, Nikolai não poderia comprar-lhe uma casa e sustentá-la e ambos sabiam disso. Vermont era a única esperança que ti­nham de alguma vez poderem ficar juntos e começarem uma nova vida. Os sacrifícios que tal exigia de cada um ainda a fa­zia recuar perante uma decisão.

 

Começo outra vez os ensaios depois do Dia de Reis... — disse Danina, em jeito de desculpa.

 

Claro, e continuarás a dançar até ser Verão outra vez, depois virá a temporada de Outono, dançarás O Lago dos Cisnes de novo, e em seguida mais um Natal. Ficaremos velhos, a continuar assim — queixou-se, olhando para ela com a tristeza e a angústia que sentia espelhadas nos olhos. — Nunca ficaremos juntos, se ficarmos aqui.

 

Não posso simplesmente desaparecer, Nikolai — argumentou com carinho, pois compreendia bem o que ele lhe pedia e o que isso implicava. — Tenho uma dívida para com o ballet.

 

Tens  uma  dúvida  ainda  maior para  contigo,   meu amor. E para comigo. Eles não farão nada por ti quando fores velha e já não puderes dançar. Ninguém te ajudará nessa altura e já não poderás contar com Madame Markova. Temos de contar um com o outro.

 

Poderás contar sempre comigo — prometeu Danina.

Ele pegou-lhe então ao colo e levou-a até à cama onde ha­viam feito amor pela primeira vez. Tinham uma vida maravilhosa nos poucos momentos em que estavam juntos, tão diferente da que ele conhecia com Marie ou da que ela alguma vez sonhara vir a ter.

 

Talvez um dia te fartes de mim — disse já ensonada e enroscada nos braços dele depois de terem feito amor.

 

Não te preocupes com isso — assegurou ele, sorrindo e beijando-lhe o

ombro. — Nunca me fartarei de ti, Danina. Vem comigo — sussurrou-lhe ao ouvido e ela acenou que sim com a cabeça antes de se deixar dormir. Madame Markova e o ballet de um lado, e Nikolai e tudo o que lhe prometia do outro. Uma vida feliz a dois numa nova terra e o ballet, a razão da sua vida. Prometeste-me que falaríamos sobre isto no Natal — relembrou-lhe  um pouco  desanimado.  Começava a temer Irei uni dia — murmurou ainda.

 

Não demores muito, meu amor — recomendou ele,receoso. Queria abandonar a Rússia com Danina antes que acontecesse alguma coisa. Parecia difícil de imaginar, mas era possível que os rumores de uma revolução se tornassem realidade. Havia já pessoas em cargos elevados que o confirmavam, embora o czar se recusasse a admiti-lo. As pessoas começavam a ficar preocupadas, mas Nikolai não queria alarmar Danina, embora pretendesse levá-la para longe antes que fosse tarde de mais ou acontecesse alguma tragédia.  Não queria contar-lhe muitos pormenores, pois os seus receios pareciam ainda disparatados e tudo o que Danina conhecia era o ballet.

Pouco ou nada sabia sobre o mundo em seu redor, um mundo que se tornava mais assustador a cada dia que passava.

 

Tal como planeado, no dia seguinte almoçaram com a fa­mília imperial, e Danina ensinou a Alexei um truque de ma­gia que aprendera com um bailarino parisiense que viera a Sampetersburgo. Alexei mostrou-se maravilhado com o tru­que. Foi uma tarde muito agradável. Desta vez, Danina ficou durante mais de duas semanas e só regressou ao ballet no dia anterior aos ensaios. Não esquecera os seus exercícios diários, mas antes do início da temporada havia sempre longos dias de ensaios.

 

— Tenho mesmo de regressar aos ensaios e aos treinos — explicou enquanto fazia as malas no último dia. Detestava ter de se ir embora e já alargara a sua estada até ao limite do razoável, pois estava a dançar tão bem que decidira ampliar as férias de Natal, encurtando assim um pouco o período de ensaios. — Odeio ter de te deixar — admitiu.

 

Passaram o resto da tarde na cama a fazer amor, a proferir promessas e a partilhar segredos. Nunca fora tão feliz com ele e nunca se tinham amado tanto como naquele momento.

 

Quando Danina partiu no dia seguinte, Nikolai prometeu ir assistir ao seu próximo espetáculo.

 

Primeiro temos de ensaiar — lembrou-lhe antes de se despedirem na estação.

Irei ver-te daqui a alguns dias.

 

Fico à tua espera — advertiu ela.

 

Fora um dos períodos mais felizes que jamais haviam tido e Danina estava decidida a pedir a Madame Markova que lhe concedesse outra semana de férias na Primavera. Tinha a cer­teza de que a sua mentora ficaria furiosa com a idéia; porém, se dançasse bem nos próximos três meses, talvez concordasse. Até então, mostrava-se muito satisfeita por Danina não ter feito nada de insensato ou drástico e estava quase convencida de que nunca o faria. A altura para tal parecia já ter passado e Madame Markova esperava só que se fartassem um do outro. Permitir que Danina o visse ocasionalmente parecia satisfazê-los e, a seu tempo, sem dúvida que se cansariam de uma re­lação que não teria futuro. Madame Markova sabia que no coração de Danina o ballet acabaria por sair vencedor. Tinha a certeza.

 

Danina começou a exercitar-se nessa mesma tarde assim que chegou. Às quatro da manhã do dia seguinte estava no­vamente a trabalhar e às sete tiveram início os ensaios. Es­tava em boa forma e já conhecia tão bem o papel que iria desempenhar que parecia até um pouco desatenta. Brincou com algumas das outras bailarinas nas costas da professora e executou uns passos novos. Fez então um salto que des­lumbrou toda a gente e um bonito pás de deux com um dos bailarinos.

 

Era já quase noite quando pararam para comer alguma coisa. Estavam a dançar há quase dez horas, o que não era invulgar, e Danina sentia-se cansada, embora não excessiva­mente. Executou ainda um salto antes de parar, mas alguém se sobressaltou ao vê-la desequilibrar-se na chegada ao chão e escorregar ao longo do estúdio com um dos pés num ân­gulo pouco natural. Um profundo silêncio abateu-se sobre a sala enquanto esperavam que se levantasse. Danina estava muito branca e agarrada ao tornozelo em silêncio. Toda a gente correu então para ela e a professora atravessou o estú­dio para ver o que acontecera. Estava à espera de encontrar uma distensão grave ou uma bailarina que estaria muito do­rida na manhã seguinte; todavia, contrariamente ao que es­perava, o que viu foi o pé de Danina num ângulo quase impossível com a perna. Estava, como é óbvio, em choque e quase inconsciente.

 

Levem-na para a cama já — gritou então a professora.

Os dentes de Danina estavam cerrados, a sua face branca co­mo a cal. Ninguém tinha dúvidas do que acontecera. Tinha partido,  e  não  distendido,  o  tornozelo.  Uma sentença  de morte, caso se confirmasse, para uma prima ballerina ou para qualquer bailarina. Não se ouvia um único som, uma só palavra, apenas o ocasional arquejar de Danina enquanto a trans­portavam para o quarto. Um momento depois encontrava-se estendida na sua cama. Sem uma palavra, a professora cortou-Ihe os collants, usando um pequeno canivete afiado que trazia sempre consigo para situações como aquela. O tornozelo in­chara já muito e o pé continuava no mesmo ângulo horrível.
Danina olhou para ele horrorizada.

 

Chamem um médico já! — gritou uma voz da entra­da. Era Madame Markova. Havia um médico que costumavam chamar nessas situações. Era muito bom a tratar de distensões,  entorses e ligamentos e já os ajudara em ocasiões anteriores. No entanto, o que Madame Markova viu quando
entrou no quarto quase lhe partiu o coração. Num único instante, com um único salto, tudo terminara para Danina.

 

O médico não tardou a confirmar os piores receios. O tornozelo estava, de fato, gravemente partido e Danina teria de ser levada para o hospital para ser operada, de modo a que o osso fosse recolocado 110 seu lugar. Não havia mais na­da a fazer. Uma dezena de mãos apertaram a de Danina en­quanto a transportavam para a ambulância. Toda a gente cho­rava, embora ninguém de forma tão desesperada como Danina. Já vira aquilo acontecer outras vezes e sabia exatamente quais as conseqüências. Depois de quinze árduos anos dentro daquelas quatro paredes, a sua promissora carreira ter­minava aos vinte e dois anos.

 

Foi operada naquela noite e a perna foi imobilizada e en­gessada. Para qualquer pessoa, a operação teria sido um suces­so. A perna manter-se-ia direita e, mesmo que ficasse a co­xear um pouco, seria quase imperceptível. No caso de Danina, era uma tragédia. O tornozelo ficara danificado e não seria capaz de suportar o seu peso de modo a que pudesse voltar a dançar. Não havia maneira de recuperar a flexibilida­de e força necessárias e não existiam palavras para a consolar.

 

A sua carreira chegara ao fim com um pequeno e disparatado salto. Para além do tornozelo, também a sua vida ficara des­truída naquele instante.

 

Chorou toda a noite, quase tão desesperadamente como quando perdera o filho de Nikolai. A vida que perdera desta vez era a sua. Era o fim de um sonho, um final trágico que se contrapunha a um começo brilhante. Madame Markova esta­va ao seu lado, lutando para conter as lágrimas. Danina fizera os sacrifícios necessários, empenhara-se de alma e coração, mas o destino não lhe sorrira. A sua vida como bailarina, a única que conhecera e pela qual estivera disposta a morrer durante quinze anos, chegara ao fim.

 

No dia seguinte foi enviada de volta à escola de ballet. As restantes bailarinas vinham visitá-la ao quarto, sozinhas ou aos pares, com flores, com palavras carinhosas, com pena, como se a viessem chorar. Na verdade, sentia-se como se estivesse morta e, de certa forma, estava. Já sentia que não pertencia ali e era apenas uma questão de tempo até que tivesse de reunir as suas coisas e partir. Era demasiado jovem para ensinar e, de qualquer maneira, não podia. Era o fim, a morte de um sonho.

 

Só dois dias depois reuniu coragem para escrever a Niko­lai que, assim que recebeu a carta, veio imediatamente, inca­paz de acreditar no que acontecera, apesar de toda a gente lho ter explicado em pormenor logo que chegou. Todas as baila­rinas o conheciam e simpatizavam muito com ele e conta­ram-lhe vezes sem conta como Danina caíra e a sua expres­são, tombada no chão agarrada ao tornozelo.

 

Vê-la ali deitada com a perna toda engessada e um olhar de desespero no rosto confirmou tudo o que as bailarinas lhe haviam dito. Todavia, por muito terrível que a situação fosse para Danina, para ele representava um raio de esperança. Era a sua única hipótese de uma nova vida. Sem isso ela nunca teria abandonado o ballet, mas Nikolai sabia que não poderia falar-lhe do assunto por agora.

 

Desta vez, quando sugeriu levá-la com ele, Madame Mar­kova não discordou. Sabia que seria melhor para a sua prote­gida não estar ali, pelo menos por enquanto, a ouvir os sons, as vozes e as pessoas que lhe eram familiares a irem e virem das aulas e dos ensaios. Já não pertencia ali. Podia um dia voltar, embora não para dançar, mas, por agora, era menos doloroso que não estivesse ali. Para seu próprio bem, o passa­do tinha de ser enterrado o mais cedo possível. Dois terços da sua vida, e a única que conhecera até se apaixonar por Niko-lai, estavam irremediavelmente perdidos.

 

     Danina ficou muito aliviada por regressar à casa de hóspe­des, e toda a família ficou contente de a ver e a acarinhou. A recuperação foi lenta e dolorosa e quando finalmente pôde tirar o gesso, mais de um mês depois de ter caído, o tornoze­lo parecia fraco e encolhido. Mal conseguia firmar-se na per­na esquerda e chorou da primeira vez que caminhou. Coxea­va tanto que o seu corpo parecia deformado. Era uma mera sombra da ave graciosa que fora.

 

— Vais melhorar, Danina, prometo — garantiu Nikolai. — Acredita em mim. Tens de ter coragem e esforçar-te bastante.

 

Mediu-lhe ambas as pernas e verificou que tinham o mes­mo tamanho, por isso, o coxear advinha meramente do fato de a sua perna estar ainda muito fraca. Nunca mais dançaria, mas continuaria a andar de forma normal. A czarina e as crianças mostraram-se muito solícitas.

 

Só várias semanas depois é que Danina conseguiu atraves­sar o quarto sem bengala e ainda coxeava quando, no final de Fevereiro, recebeu uma carta que a informava que Madame Markova adoecera. Tinha pneumonia e, embora não fosse muito grave, já não era a primeira vez que adoecia e Danina sabia que podia ser perigoso. Apesar de não ter muita força na perna e não se equilibrar muito bem, insistiu em ir tratar dela. Ainda usava a bengala para percorrer distâncias maiores e o médico recomendara-lhe que não se esforçasse muito, porém achava que devia regressar ao ballet pelo menos até Madame Markova recuperar. A sua mentora estava mais debilitada do que aparentava e Danina temia pela sua vida.

 

—  É o mínimo que posso fazer — argumentou com Nikolai que,  embora  compartilhasse dos seus sentimentos,  se opunha à sua ida. Tinham-se já registrado tumultos em Sampetersburgo e em Moscovo e não gostava muito da idéia de a ver partir sozinha. Alexei não estava bem, por isso ele não a poderia acompanhar.

—  Não sejas tonto, vai correr tudo bem — insistiu Danina e, depois de um dia a argumentar com ele, conseguiu que concordasse em deixá-la ir sozinha. — Estou de volta daqui a uma semana ou duas, assim que ela melhorar. Madame Markova fez o mesmo por mim.

 

Nikolai compreendia bem o poderoso laço que as unia e também sabia que Danina ficaria destroçada se não pudesse ir.

 

Levou-a ao comboio no dia seguinte, aconselhou-a a ter cuidado e a não se cansar, entregou-lhe a bengala e despediu--se dela com um beijo e um abraço. Danina garantiu-lhe que ficaria bem. Detestava vê-la afastar-se de si e tinha pena de não poder acompanhá-la, mas compreendia a situação e fê-la prometer que apanharia um táxi diretamente da estação para a escola de ballet.

 

Para sua surpresa, quando chegou a Sampetersburgo viu grupos de pessoas nas ruas a gritar e a manifestar-se contra o czar e soldados a tentar manter a ordem. Não ouvira nada so­bre aquilo em Tsarskoie Selo e ficou espantada por se lhe de­parar aquele clima de tensão na cidade. Afastou rapidamente a preocupação da sua mente e dirigiu-se à escola de ballet. Pen­sava apenas em Madame Markova e a sua esperança era que a sua mentora e velha amiga não estivesse muito doente. Ficou desanimada ao verificar que estivera muito mal e que a doen­ça a debilitara extraordinariamente.

 

Danina mantinha-se ao seu lado todos os dias, alimentava--a e tentava animá-la. Ficou mais aliviada quando, ao fim de uma semana, começou a ver algumas melhoras, mas Madame Markova parecia ter envelhecido anos em poucas semanas e mostrava-se muito deprimida. O movimento constante para cá e para lá enquanto tratava de Madame Markova fez com que o tornozelo inchasse e lhe provocasse dores. À noite, ia deitar-se exausta e os dias pareciam passar num ápice. Dormia numa cama improvisada no gabinete da sua mentora, pois a sua antiga cama tinha já sido confiada a outra bailarina.

 

Estava a dormir profundamente na manhã do dia onze de Março quando uma multidão de pessoas se concentrou numa rua não muito longe da escola de ballet. Os gritos e os primei­ros tiros acordaram-na e fizeram-na levantar-se para ver o que se passava. Muitas bailarinas tinham já abandonado as salas de aula e concentravam-se no grande salão de entrada. As mais corajosas espreitavam pelas janelas e diziam que apenas se viam alguns soldados a passar apressadamente a cavalo. Nin­guém fazia idéia do que estava a acontecer e só mais tarde se soube que o czar ordenara por fim ao exército que travasse a revolução e que mais de duas centenas de pessoas tinham sido mortas. Os tribunais, o arsenal, o Ministério do Interior e vá­rias esquadras de polícia tinham sido incendiadas. As prisões haviam sido abertas à força pelo povo.

 

Ao fim da tarde, os tiros deixaram de se ouvir e, apesar das alarmantes notícias daquele dia, a noite passou-se com re­lativa calma. No entanto, na manhã seguinte, soube-se que os soldados se tinham recusado a acatar as ordens de disparar contra os manifestantes e haviam retirado para os quartéis. Era o início da Revolução.

 

Alguns dos bailarinos aventuraram-se a sair da escola nessa tarde; porém, regressaram rapidamente e barricaram as portas do edifício. Estavam em segurança ali, mas as notícias que re­cebiam eram cada vez mais assustadoras.

 

A quinze de Março souberam que o czar abdicara em seu nome e do czaréviche em favor do seu irmão, o grão-duque Mikhail, e que regressa­va da frente para Tsarskoie Selo para ser preso. Era impossível compreender, quanto mais assimilar, o que estava a acontecer em seu redor. Tal como os outros, Danina não conseguia en­tender tudo o que se passava. As informações eram contradi­tórias e confusas.

 

Só uma semana mais tarde, a vinte e dois de Março, é que Danina recebeu finalmente um bilhete de Nikolai, trazido por um guarda que fora autorizado a abandonar Tsarskoie Selo.

 

«Estamos sob prisão domiciliária. Posso entrar e sair, mas não sou capaz de abandonar a família. Todas as grã-duquesas apanharam sarampo e a czarina está muito preocupada com elas e com o Alexei. Fica onde estás, em segurança, meu amor. Irei ter contigo assim que puder. Rezo para que possa­mos estar novamente juntos em breve. Não te esqueças que te amo, mais do que à própria vida. Não te aventures para o meio do perigo. Acima de tudo, mantém-te em segurança até eu chegar. Com todo o meu amor, N.»

 

Leu o bilhete vezes sem conta, segurando-o entre as mãos trémulas. Era inacreditável. O czar tinha abdicado e o resto da família estava sob prisão domiciliária. Danina arrependeu-se de os ter deixado. Se estavam em perigo, preferia estar junto deles e morrer ao lado de Nikolai, caso fosse necessário.

 

Nikolai veio ter com ela já quase no final de Março. Vie­ra a cavalo desde Tsarskoie Selo, pois essa era a única forma de poder viajar, e tinha um ar exausto. Os soldados que guar­davam a família imperial haviam-no deixado sair e promete­ram-lhe que poderia regressar. Foi com um olhar de desespe­ro que lhe disse, bem claramente, à porta do gabinete de Madame Markova, que teriam de abandonar a Rússia assim que tratasse de tudo.

 

—  Aproximam-se tempos terríveis. Não há forma de prever o que acontecerá. Já convenci a Marie a partir para Inglaterra com os rapazes. Partem na próxima semana. Ela ainda é inglesa, por isso não terá problemas em abandonar o país, mas poderão não ser tão simpáticos conosco, se ficarmos aqui.
Quero só esperar até que as grã-duquesas melhorem e assegurar-me de que a família fica em segurança. Depois tratarei das passagens para a América e iremos para junto do meu primo Viktor.

 

—  Não acredito no que se está a passar — confessou Da­ nina, horrorizada com o que ouvia. Parecia que, numa questão de semanas, o mundo que conheciam se transformara de
forma irreconhecível. — Como estão eles? Muito assustados?
— perguntou, preocupada. Tinham já passado por tanto no último mês.

 

—  Não, são todos extremamente corajosos — respondeu, também apreensivo. — Assim que o czar regressou, toda a gente ficou mais calma.  Os guardas são bastante razoáveis, mas a família não pode abandonar o palácio.

 

—  O que lhes irão fazer? — inquiriu, temendo pelos seus amigos.

 

—  Nada, com certeza.  Foi todavia um grande choque. Fala-se na ida deles para Inglaterra, para junto dos primos, mas terá ainda de haver negociações. Talvez fiquem em Livadia enquanto esperam. Se isso acontecer, acompanhá-los-ei e depois voltarei para aqui.  Tens de te preparar,  meu amor.

 

Desta vez Danina não contrapôs argumentos ou ponderou a sua decisão. Sabia com certeza que iria com ele. Antes de partir naquela noite, Nikolai depositou nas suas mãos um rolo de notas. Disse-lhe que comprasse as passagens para ambos, de forma a que pudessem partir nas próximas semanas. Tinha a certeza de que, por essa altura, a família imperial já estaria confortavelmente instalada e poderia deixá-los para se juntar a ela.

 

Foi com uma sensação de medo que Danina o viu partir. E se lhe acontecesse alguma coisa? Depois de montar o cava­lo, voltou-se e sorriu para ela, dizendo-lhe que não se preo­cupasse, pois junto da família imperial estava ainda mais segu­ro do que ela. Afastou-se então a galope e Danina voltou para dentro agarrando firmemente o dinheiro que lhe deixara.

 

Foi um longo e angustiante mês à espera de notícias de Nikolai e tentando perceber o que se passava pelos rumores que se ouviam nas ruas. O destino do czar parecia ainda in­certo e dizia-se que ficariam em Tsarskoie Selo, que iriam pa­ra Livadia ou para Inglaterra. Não havia notícias certas, apenas rumores, e as duas cartas que recebera de Nikolai também não adiantavam mais nada ao que já sabia. Mesmo em Tsars­koie Selo, nada era definitivo ou certo, ninguém sabia onde ou como tudo terminaria.

 

Danina poupou o máximo que pôde enquanto esperava por notícias mais concretas de Nikolai e foi com grande pesar que vendeu o pequeno sapo de Fabergé que Alexei lhe dera, pois sabia que assim que estivessem em Vermont precisariam de todo o dinheiro que pudessem juntar.

 

Conseguiu contatar o pai através do seu regimento e, numa breve carta, contou-lhe o que planeava fazer. Porém, mais uma vez, a carta que recebeu dele era portadora de más notícias. O terceiro dos seus quatro irmãos fora morto e o pai exortava-a a fazer o que Nikolai sugeria. Lembrava-se de o ter conhecido, embora ainda não fizesse idéia de que ele era casado. Encorajava-a portanto a ir com ele para Vermont e disse-lhe que a contataria lá. Poderiam regressar assim que a guerra terminasse. Pedia-lhe entretanto que rezasse pela Rússia, desejava-lhe boa viagem e declarava que a amava.

 

Danina ficou em choque quando leu a carta, incapaz de acreditar que perdera mais um dos seus irmãos. De repente foi invadida pela idéia de que nunca mais voltaria a ver o pai ou o irmão que lhe restava. Os dias eram uma constante agonia, sempre preocupada com a família imperial e com Nikolai. Comprou por fim as passagens para um navio que partiria no final de Maio, mas só no dia um desse mês teve novas de Nikolai. A sua carta era mais uma vez curta, pois quisera en­viá-la o mais rápido possível.

«Por aqui está tudo bem e continuamos a aguardar notí­cias. Todos os dias nos dizem uma coisa diferente e ainda não há nada definido quanto à ida para Inglaterra. É uma situação um pouco constrangedora para eles, mas toda a gente se man­tém bem-disposta. Parece que partirão para Livadia em Junho. Tenho de ficar com eles até lá. Não posso abandoná-los agora, como compreenderás. A Maríe e os rapazes partiram a semana passada. Irei juntar-me a ti em Sampetersburgo no final de Ju­nho, prometo. Até lá, meu amor, mantém-te em segurança e pensa apenas em Vermont e no nosso futuro lá. Se puder, irei ver-te por algumas horas.»

As mãos tremiam-lhe enquanto lia a carta e não conse­guiu conter as lágrimas ao pensar nele, nos irmãos que perde­ra, em todos os homens que haviam morrido e nos sonhos que ficavam por cumprir. Acontecera tanta coisa em tão pou­co tempo. Era impossível ficar indiferente.

 

No dia seguinte, Danina foi trocar os bilhetes para um navio que largava para Nova Iorque no final de Junho.

 

Madame Markova tinha entretanto recuperado da pneu­monia e, tal como toda a gente, estava muito preocupada com o futuro. Danina contou-lhe tudo o que planeava fazer com Nikolai e a sua mentora não se opôs a que partisse com o amante. Já não podia dançar e o perigo em Sampetersburgo e por toda a Rússia era considerável. Madame Markova ficou até aliviada por saber que Danina ficaria em segurança e ad­mitiu finalmente que acreditava que Nikolai seria bom para ela, quer casassem ou não, embora tivesse esperança de que um dia isso acontecese.

 

Contudo, mesmo sabendo que partiria para um lugar seguro com ele dentro de um mês, Danina não deixava de se sentir constantemente perseguida por tudo o que deixaria pa­ra trás: a família, os amigos, a sua terra natal e o único mundo que conhecera, o ballet.

 

Nikolai já lhe revelara que o primo lhe oferecera empre­go no seu banco e que viveriam com ele o tempo que quises­sem até terem dinheiro suficiente para comprar uma casa. Pa­ra além disso, Nikolai planeava frequentar as aulas que fossem necessárias para que um dia pudesse exercer medicina na América. As perspectivas eram animadoras. Tudo parecia cui­dadosamente planeado, embora Danina soubesse que demora­ria muito tempo até que conseguissem atingir os seus objetivos. Por agora, o único pensamento que lhe ocupava o espírito era sair da Rússia, mas Vermont parecia-lhe tão dis­tante, que bem poderia ser num outro planeta.

 

Uma semana antes de partirem, Nikolai veio vê-la de no­vo e mais uma vez com notícias pouco animadoras. A czarina adoecera há alguns dias. Estava exausta e sob uma enorme pressão e, embora o Dr. Botkin estivesse ainda com a família imperial, Nikolai não tinha coragem de os abandonar. A via­gem para Livadia fora adiada mais uma vez, estando agora marcada para Julho. Continuavam também à espera que os primos ingleses concordassem com a sua transferência para Inglaterra, mas, até agora, não tinham chegado a nenhum acordo.

 

Só quero vê-los bem instalados — explicou, e Danina acenou afirmativamente com a cabeça, pois também se preocupava com os seus amigos. Estiveram uma hora a conversar, a abraçar-se, a beijar-se e a aproveitar o pouco tempo que estavam juntos. Madame Markova foi preparar qualquer coisa para Nikolai comer. Fora uma longa e poeirenta cavalgada desde Tsarskoíe Selo.

 

Eu  compreendo,  meu  amor — assegurou  Danina, apertando-lhe a mão. Só desejava poder voltar com ele para Tsarskoie Selo e ver de novo a família imperial. Escreveu uma carta às grã-duquesas e a Alexei, expressando a sua com­preensão e prometendo que voltariam a ver-se. Nikolai dobrou-a e colocou-a no seu bolso.

 

Explicara a Danina toda a situação e o que a prisão domiciliária implicava. Podiam passear pelos jardins e por todo o recinto do palácio, mas não podiam abandoná-lo. Disse-lhe ainda que havia pessoas que se iam colocar junto aos portões em sinal de solidariedade ou para os criticar por coisas que não tinham feito. As palavras de Nikolai feriam-lhe o coração e, mais do que nunca, desejou estar junto deles para lhes po­der dar o seu apoio e fazer tudo o que pudesse por eles.

 

Foi mais uma vez com o coração desfeito que viu Nikolai partir naquela noite, embora soubesse que tinha mesmo de regressar a Tsarskoie Selo. Desta vez, trocou os bilhetes para um navio que partiria no dia um de Agosto. Nikolai prome­tera que já estaria de volta a Sampetersburgo nessa altura. Era a terceira vez que adiavam a partida e tinham já passado três meses desde o início da revolução. Uma eternidade, pensava Danina, que continuava à espera de Nikolai.

 

Por essa altura, alguns dos bailarinos e bailarinas tinham já partido para as suas terras e os seus países, embora a maioria tivesse decidido ficar. Todos os espetáculos haviam sido can­celados há meses, mas Madame Markova prometera que, as­sim que se sentisse com mais força, as aulas seriam retomadas ao ritmo normal e convidou Danina a assistir às aulas. Era a única coisa que poderia agora fazer no ballet, mas já nem se importava. Tudo em que pensava agora, à medida que os dias se arrastavam, era em Nikolai e nos seus amigos. O fim do mês aproximou-se e ele regressou para a visitar. Desta vez, o futuro da família imperial estava decidido. A viagem para Livadia fora vetada pelo governo provisório por se considerar demasiado perigosa, visto que teriam de atravessar algumas ci­dades consideradas hostis. Assim sendo, partiriam para Tobolsk, na Sibéria, no dia catorze de Agosto. Nikolai olhou então cautelosamente para Danina, pois havia mais qualquer coisa que lhe queria dizer e não sabia bem como reagiria à sua decisão.

 

Irei com eles — comunicou de forma tão natural que a princípio Danina pensou que não tinha compreendido bem.

 

Para a Sibéria? — perguntou, chocada. O que queria ele dizer com isso?

 

Consegui permissão para os acompanhar na viagem e regressar imediatamente a seguir. Danina, não os posso abandonar agora. Tenho de ir até ao fim e assegurar-me de que fi­cam em segurança. Até haver notícias dos seus primos ingle­ses, ficarão exilados em Tobolsk. Livadia seria um local mais agradável, mas o governo pretende que fiquem o mais isola­dos possível, para sua própria segurança. A família está muito angustiada com a situação e não tenho coragem de os aban­donar assim. Têm sido como uma família para mim.

 

Eu compreendo — disse com os olhos a encherem-se de lágrimas. — Tenho tanta pena deles. Os guardas são compreensivos?

 

Bastante. Muitos dos empregados já se foram embora, mas, para além disso, pouco mudou dentro do palácio.

 

Ambos sabiam que a vida na Sibéria seria bem diferente e, tal  como  Nikolai,  Danina  estava preocupada  com  Alexei.

 

— E por isso que pretendo ir — asseverou. — O doutor Botkin também vai e ficará com eles. A decisão foi dele e, de certa forma, isso permite-me deixá-los para me vir juntar a ti.

 

Danina ia acenando com a cabeça à medida que o escuta­va, mas havia ainda algo mais a dizer.

 

— Danina... — começou, e ela pressentiu de imediato que havia algo de ameaçador na sua voz. Podia quase adivinhar o que estava prestes a dizer-lhe. — Não quero que vás trocar as passagens de novo. Quero que embarques sem mim. A cidade está cada vez mais perigosa. Pode acontecer-te alguma coisa e eu não posso vir ter contigo ou proteger-te, especialmente quando estiver a caminho da Sibéria.

 

Mesmo naquele momento, ir e vir de Tsarskoie Selo para Sampetersburgo tornara-se uma provação.

 

Quero que partas para a América no dia um de Agosto como planeado. Eu irei para a Sibéria com a família imperial daqui a umas semanas e apanharei um barco para me juntar a ti assim que regressar a Sampetersburgo. Sentir-me-ei muito melhor se souber que estás lá e o Viktor olhará por ti. Não me contraries, e faz o que te peço — disse Nikolai severa­mente, antecipando a resistência que ela iria oferecer, mas,para sua surpresa, e com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces, Danina concordou.

Eu compreendo. Ficar aqui é perigoso. Irei... E tu irás ter comigo assim que possível. — Sabia que não valia a pena argumentar com ele, pois Nikolai tinha razão. O que a ator­mentava era a idéia de partir sem ele, mas, visto que Nikolai ia para a Sibéria com o czar, era melhor partir antes dele. — Quando achas que poderás embarcar para te juntares a mim?

 

— No final de Setembro, tenho a certeza. Ficarei muito mais descansado se souber que estás em segurança longe daqui — confessou. Abraçou-a então enquanto ela chorava, ansiando pelo momento em que ficariam finalmente juntos. Nikolai já sabia que Marie e os rapazes estavam bem e felizes por voltar a Inglaterra. Agora, queria ver também Danina em segurança. Sabia que o primo cuidaria bem dela. Viktor tinha já prometido fazer tudo o que pudesse por eles e Nikolai confiava nele. Podia assim viajar para a Sibéria com a família imperial, livre de preocupações. Partiria depois para a América
onde recomeçaria uma nova vida.

 

Contara a Marie os seus planos antes de ela partir e, sur­preendentemente, esta mostrara-se bastante compreensiva e prometera que o deixaria ver os filhos sempre que quisesse, embora Nikolai soubesse, tal como ela, que se passariam vá­rios anos até que pudesse regressar à Europa. A farsa em que o seu casamento se tornara tinha já ido longe de mais e, no seu coração, Nikolai sentia-se mais casado com Danina do que com Marie. As formalidades e as burocracias já não signi­ficavam nada para si.

 

Marie desejara-lhe sorte antes de partir, e ele e os rapazes choraram na despedida. Marie não. Estava aliviada por deixar a Rússia e há muito que não sentia mais nada pelo marido. Nikolai sentia-se agora livre para continuar a sua vida, assim que cumprisse as suas obrigações para com a família imperial.

 

— Regressarei daqui a um dia ou dois — prometeu antes de voltar para Tsarskoie Selo. — Poderemos ficar num hotel até tu partires. — Queria estar com ela de novo, tê-la nos seus braços e vê-la partir para um local seguro. Dali a cerca de um mês estariam de novo juntos, mas antes precisava de estar com ela. Tinham-se passado cinco meses desde que chegara a Sampetersburgo para vir tratar de Madame Markova, e esse tempo parecia a ambos uma eternidade.

 

O mundo que os rodeava mudara completamente no es­paço desses cinco meses e mudaria de novo quando se reunissem em Vermont. Nada seria o mesmo para eles, talvez fosse melhor, rezava Nikolai. Preferia partir com Danina; porém, a sua consciência nunca lho permitiria. Primeiro tinha de se as­segurar de que a família imperial ficava em boas mãos. Era o mínimo que podia fazer por eles, depois de toda a generosi­dade e compreensão que sempre haviam manifestado para com ele durante todos os anos em que estivera ao serviço da família.

 

Como prometido, voltou para junto de Danina três dias antes de ela embarcar. Danina estava a observar uma aula com Madame Markova quando ele chegou. Olhou instintivamente para a porta e viu-o ali a olhar para ela.

 

Chegara o momento da partida e das despedidas, o momento que Danina sempre temera. Madame Markova apercebeu-se do mesmo e ficou paralisada no banco em que ambas estavam sentadas. Danina olhou para ela durante um bocado e depois levantou-se e ca­minhou na direção de Nikolai. Tinha já as malas feitas e es­tava pronta para partir. Enquanto guardava o resto das suas coisas e Nikolai a esperava na entrada, Madame Markova veio ter com ela ao quarto e ficou a olhar para as suas malas. Tudo o que Danina possuía coubera facilmente em duas ma­las velhas. Olharam então uma para a outra, mas nenhuma pronunciou uma única palavra durante algum tempo. Danina estava sem coragem para falar e a mulher que fora como uma mãe para ela durante quinze anos parecia devastada.

 

Nunca pensei que este dia chegasse — disse Madame Markova com uma voz trémula. — E nunca pensei que te deixaria ir quando o momento chegasse... Agora, estou contente por ti. Quero que sejas feliz, Danina, e, para isso, tens de partir.

 

Vou sentir tanto a sua falta — balbuciou Danina, dando dois passos na sua direção e abraçando-se a ela. — Volta­rei para a visitar — prometeu, mas, no fundo do seu coração, Madame Markova sabia que a sua bailarina preferida não voltaria. Não podia acreditar que a criança que amava, agora
uma mulher, partiria para sempre. Era a última vez que se veriam.

Nunca esqueças tudo o que aqui aprendeste, o que significou para ti, o que foste quando aqui estavas. Leva tudo contigo no teu coração. Não poderás deixar o ballet para trás, pois ele faz parte de ti.

 

Não quero deixá-la — lamentou-se Danina, angustiada.

 

Tem de ser. O Nikolai juntar-se-á a ti na América as­sim que puder e lá terás uma vida boa com ele. Acredito nisso e desejo-o para ti.

 

Quem me dera poder levá-la comigo — murmurou Danina, abraçando-se mais a ela, relutante em deixá-la.

 

Estarei sempre contigo e uma parte de ti estará sempre comigo. Aqui — disse, apontando para o coração. — Agora, é melhor ires. — Agarrou então uma das malas de Danina e dirigiram-se para a sala onde Nikolai as esperava. Percebeu de imediato que a despedida fora difícil e foi ajudá-la com as
malas.

 

Estás pronta? — perguntou. Danina assentiu com a cabeça e encaminhou-se para a porta da frente. Madame Markova seguiu-a lentamente, não tirando os olhos dela, aproveitando cada segundo da sua presença.

 

Assim que chegaram à porta, esta abriu-se de repente, deixando entrar uma criança. Tinha oito ou nove anos e tra­zia uma mala. A mãe colocou-se orgulhosamente ao seu lado. Era uma menina muito bonita com duas longas tranças loiras que olhava expectante para Danina.

 

És bailarina? — perguntou, sem embaraço.

 

Fui, mas já não sou mais — respondeu. Madame Markova e Nikolai aperceberam-se do quanto lhe custou pronunciar aquelas palavras.

 

Eu vou ser bailarina e vou viver aqui para sempre —
adiantou a menina com um sorriso.

 

Danina sorriu também e recordou-se do dia em que o pai a trouxera para a escola de ballet. Estava bem mais assustada do que aquela menina, era bastante mais nova e não tinha mãe para a acompanhar.

    

     — Acho que serás muito feliz aqui — assegurou-lhe Danina, sorrindo entre as lágrimas. — Terás de trabalhar muito, muito, muito todos os dias, a toda a hora. Terás de amar o ballet mais do que qualquer coisa no mundo, ser capaz de renunciar a tudo o que mais gostas e acreditar que esta será a
tua vida a partir de agora.

 

Como se explica isto a uma criança de nove anos? Como se consegue que ame o ballet acima de tudo o resto? Como se ensina a sacrificar e a dar tudo o que se tem até quase à mor­te? Será que se ensina ou já nasce conosco? Danina não ti­nha a resposta. Afagou apenas os cabelos da menina quando passou por ela e olhou para Madame Markova a chorar. Sabia ainda menos como dizer adeus após tantos anos de sacrifício, de trabalho, de amor. Para Danina era o final da história. Para si o ballet terminara, para aquela criança ia começar.

    

       — Olhe bem por ela — disse Madame Markova carinho­samente a Nikolai enquanto a mãe e a criança entravam no edifício. Depois, apertando a mão de Danina pela última vez, voltou-se e afastou-se para que não a vissem chorar. Danina ficou ainda a olhar para ela durante um bocado e depois abandonou o edifício pela última vez. Já não pertencia ao bal­let e jamais voltaria a pertencer. Aquele era o momento que receara toda a sua vida. Já não fazia parte daquele mundo e ia abandoná-lo para sempre. A porta do edifício fechou-se então silenciosamente atrás de si.

 

Passaram o último dia em Sampetersburgo a passear pelas ruas e a visitar locais de que ambos gostavam. Era uma litania de recordações e angústias e, a certa altura, Danina já nem se lembrava do motivo por que tinha de partir. Se gostavam tanto daquela cidade, porquê partir? No entanto, não podiam iludir-se mais. Era altura de abandonar o seu país natal, prin­cipalmente agora com a revolução no seu auge. Sem ela, no entanto, Marie nunca teria partido para Inglaterra e nunca libertaria Nikolai, e Danina não teria para onde ir, agora que já não podia dançar. Não deixava de ser irônico. Tinham de percorrer milhares de quilômetros para um mundo novo para que pudessem ter uma vida a dois, mas sabiam que valia a pe­na. A partida era o que mais custava; porém, mais um dia e estaria no navio e dali a um mês Nikolai estaria com ela. De certa forma, parecia uma grande aventura.

 

De regresso ao hotel onde se haviam instalado sob o no­me dele, compraram o jornal e leram as últimas notícias da guerra. Eram angustiantes e impossíveis de ignorar.Nessa noite jantaram no quarto para aproveitar os últimos momentos em que estavam juntos. Tinham tanto para dizer um ao outro, tantas promessas a formular, tantos sonhos para construir. Os três dias e noites que passaram juntos haviam voado num ápice. Mal tinham dormido nesse tempo para não perder um único instante. As malas de Danina estavam feitas, os seus poucos tesouros e recordações prontos a seguir consi­go. Levava até os vestidos que a czarina lhe oferecera, embora soubesse que faziam agora parte do passado. Nikolai aprovei­tava para mandar também duas malas, como que para lhe provar que iria mais tarde ter com ela.

Por vezes, Danina questionava-se sobre a forma como iriam explicar aos seus filhos, se tivessem algum, como fora a sua vida. Iriam com certeza achar que se assemelhava a um conto de fadas. Talvez tudo o que houvesse a fazer era esque­cê-la, guardar as recordações, os programas dos espetáculos, as fotografias, os vestidos, as sapatilhas, e espanejá-los de quando em vez só para olhar para eles. Ou talvez até isso fos­se demasiado doloroso. Sabia que quando deixassem Sampetersburgo teria de fechar a porta ao passado, para sempre.

 

Nessa noite deitaram-se cedo e ficaram nos braços um do outro sem dormir, mas o Sol nasceu rapidamente e, para grande pesar de ambos, tiveram de se levantar para enfrentar a despedida. Danina antecipava já a dor que a ausência de Nikolai lhe provocaria.

 

O carregador levara todas as malas para baixo e Danina sentia-se como uma criança prestes a abandonar o lar para sempre.

 

— Prometo, Danina, irei ter contigo o mais rápido possível, independentemente da situação do país. Nada me impe­dirá — garantiu a caminho do porto, lendo a inquietação nos seus olhos. O coração de Danina despedaçava-se de cada vez que pensava que o ia deixar para trás, especialmente sabendo que viajaria para a Sibéria com a família imperial e que depois teria de regressar a Sampetersburgo.

 

Nikolai ajudou-a a instalar-se no camarote. Danina ia par­tilhá-lo com outra mulher, mas, como esta ainda não chegara, escolheu a cama que preferia. De repente, começou a temer a viagem e confessou-o a Nikolai. Sem ele, sentir-se-ia muito sozinha e estaria sempre preocupada com o seu bem-estar.

 

— Também terei muitas saudades tuas — disse, sorrindo.
— A cada instante. Tem muito cuidado contigo, minha que­rida. Vais ver, estarei junto de ti num piscar de olhos.

 

A sirena do navio fez-se então ouvir, indicando aos visi­tantes que estava na altura de irem para terra. Nikolai abra­çou-a ainda durante um grande bocado. Já não se importa­vam que fossem vistos abraçados em público, pois aos olhos um do outro eram já marido e mulher.

 

Amo-te, nunca te esqueças disso. Irei assim que puder. Cumprimentos ao meu primo. Ele é um pouco calado, mas boa pessoa. Vais com certeza simpatizar com ele — garantiu Nikolai.

 

Vou sentir tanto a tua falta — confessou, já a chorar. A emoção era mais forte do que ela. Eu sei — disse ele com carinho. — Também eu. — E beijou-a longamente enquanto a sirena tocou pela última vez e as pranchas de embarque começaram a ser retiradas. Deixa-me ficar contigo — disse, desesperada, tentando convencê-lo. — Não quero partir. Talvez me deixem ir contigo para a Sibéria — continuou. Teria feito qualquer coisa para ficar com ele.

 

Nunca o permitiriam, Danina, sabes bem — contrapôs. Não queria dizer-lhe que era uma viagem perigosa, mas isso não era segredo para ninguém.

 

Lembra-te apenas do quanto te amo — recordou-lhe ele. — Lembra-te disso até eu estar junto de ti. Amo-te mais do que qualquer coisa na vida, Danina Petroskova... — Seria a  última vez  que  a  trataria  assim.   Tinham já  concordado que em Vermont ela usaria o seu nome, Obrajensky, para que
ninguém desconfiasse de que não eram casados.

 

Amo-te tanto, Nikolai — declarou e, instintivamente, levou a mão ao medalhão. Estava ali, seguro em torno do seu pescoço.

 

Ver-te-ei em breve — prometeu uma última vez; beijou-a e desceu a correr a última prancha de embarque. Danina chegou-se à amurada e ficou a vê-lo no porto a olhar para ela.

 

Amo-te! — gritou ela. — Tem cuidado!!! — Acenou-Ihe adeus e ele acenou-lhe de volta. Momentos depois o navio começou a afastar-se do porto. Danina sentiu o coração disparar e interrogou-se por que fora tão estúpida a ponto de o deixar convencê-la a partir sozinha. Tinha a sensação de ter tomado a decisão errada, mas sabia que agora devia de ser corajosa por ele. Haviam já passado por tanto, que bem podia fazer mais aquele sacrifício, deixá-lo terminar a sua missão e
depois juntar-se a si em Vermont, para que pudessem por fim
começar uma nova vida como marido e mulher.

 

Ficou a dizer-lhe adeus até já quase não o distinguir, mas Nikolai continuava lá a acenar-lhe, elegante e forte, o ho­mem que conquistara o seu coração há dois anos atrás e que ela sabia que iria amar para sempre.

     — Amo-te, Nikolai — murmurou para o vento. Ficou ainda na amurada durante bastante tempo com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto e a pensar nele enquanto segurava o medalhão. Nem sequer sabia ao certo por que chorava. Nikolai tinha razão. Havia tanto por que ansiar, tanto pelo qual deviam estar agradecidos, tanta coisa à sua espera em Vermont. Estava tudo apenas a começar. Não tinha razões para chorar, mas temia que esta fosse a última vez que o tivesse visto. Que disparate, pensou para si mesma, que motivos teria para pensar tal coisa? Olhou então para o céu à medida que as últimas gaivotas se despediam do navio. Não podia perdê-lo agora. Tal não podia acontecer, e, com um suspiro e um últi­mo olhar para o seu país natal, dirigiu-se para o camarote. Não podia perder Nikolai, disse para si mesma. Independen­temente do que acontecesse, amá-lo-ia sempre e não haveria nada que os separasse.

 

As respostas, como sempre acontece, estavam bem perto de mim. Mandei traduzir as cartas e todas elas eram cartas de amor que Nikolai Obrajensky escrevera à minha avó. Conta­vam uma história que me comoveu muito e explicavam mui­ta coisa.

 

O resto soube através de duas das suas amigas com quem conversei quando voltei a Vermont no Verão seguinte para passar uma semana na casa da avó com os meus filhos e o meu marido.

Encontrei os vestidos da czarina num baú no sótão, o mesmo em que a avó os trouxera. Estavam muito desbotados e o arminho já tinha amarelecido e, sessenta anos volvidos, mais pareciam trajes de teatro. Fiquei surpreendida por nunca os ter descoberto nas minhas incursões pelo sótão quando era criança, mas o baú estava velho e gasto e escondido num can­to. As malas dele também ainda lá estavam, cuidadosamente etiquetadas: Dr. Nikolai Obrajensky. A avó nunca tivera co­ragem de as desfazer depois de chegar a Vermont.

 

Os programas do ballet e as fotografias dela com as outras bailarinas tinham agora um novo significado para mim e as sapatilhas de pontas pareciam, de alguma forma, sagradas. Nunca me apercebera da importância que tinham para ela. Sabia que fora bailarina, porém nunca compreendera o que tivera de sacrificar para o ser. Tentei explicá-lo aos meus fi­lhos e os olhos deles abriram-se de curiosidade enquanto lhes contava a história. Quando mostrei as sapatilhas a Katie e lhe disse que tinham sido da avó Dan, ela inclinou-se e beijou-as. O gesto teria feito a minha avó sorrir.

 

Tal como temera quando o navio partiu em Setembro de 1917, nunca mais voltou a ver Nikolai. Foi para Tobolsk com a família imperial conforme combinado, mas as circunstâncias fizeram com que acabasse por ficar também sob prisão domi­ciliária. A sua devoção pela família imperial acabou por lhe custar a liberdade e, em Julho de 1918, foi executado junta­mente com eles. Uma breve carta de alguém que não reconheci informou a avó da morte de Nikolai quatro meses de­pois. Posso apenas imaginar o que a leitura de tal carta lhe terá provocado, pois mesmo eu, passados todos estes anos, fi­quei com os olhos cheios de lágrimas quando li a tradução. Deve ter sentido que o mundo terminava também para ela.

 

Porém, antes de morrer, avisara-a na sua última carta de que havia rumores de uma execução. Por muito cruel que tal pudesse parecer, ele tentara prepará-la. Apesar de tudo, as pa­lavras de Nikolai revelavam um tom surpreendentemente animador e corajoso. Dizia-lhe que não devia desistir de lutar, que tinha de encontrar felicidade na sua nova vida e lembrar--se dele e do seu amor com alegria e não tristeza. Confessava-Ihe ainda que, no seu coração, se sentira casado com ela des­de o dia em que a conhecera, que lhe concedera os anos mais felizes da sua vida e que a única coisa que lamentava era não ter embarcado naquele navio com ela. Nesse dia, a avó deve ter percebido que nunca mais o veria. O destino não podia ser alterado. O destino dela era ter uma outra vida, com todos nós, num local bem distante e diferente de tudo o que co­nhecia. O destino dele não era ficar com ela.

 

O pai e o único irmão que lhe restava foram mortos no final da guerra e Madame Markova morreu de pneumonia dois anos depois de a avó partir.

 

Uma a uma, perdeu todas as pessoas que amara. Perdeu tudo, o seu país, a carreira, a família, o ballet e o homem que amava.

No entanto, nunca houve nada de trágico ou triste na avó. Deve ter sentido muito a falta deles, em especial de Ni­kolai. O seu coração devia doer de cada vez que pensava ne­les, mas nunca me disse nada. Era simplesmente a avó Dan, com os seus chapéus engraçados, os patins, os olhos brilhantes e os biscoitos deliciosos. Como pudemos ser tão cegos? Co­mo pudemos pensar que aquilo era tudo o que a avó era? Como pude acreditar que a velha senhora que usava aqueles vestidos negros já gastos era a mesma pessoa que sempre fora? Por que motivo achamos que as pessoas idosas foram sempre idosas? Porque não fui capaz de imaginá-la no seu vestido de veludo vermelho guarnecido a arminho ou a dançar O Lago dos Cisnes para o czar? Porque nunca me disse nada? Guardou todos os seus segredos para si mesma.

Viveu com o primo de Nikolai durante onze meses en­quanto esperava por ele e mais um mês até saber que fora executado. Tal como Nikolai lhe prometera, o primo foi muito amável. Era um homem calado, com as suas próprias memórias, os seus desgostos, as suas perdas. A avó deve ter si­do como um raio de sol para ele, embora lhe parecesse uma criança. Era vinte e cinco anos mais velho. Tinha quarenta e sete quando ela chegou e ela vinte e dois. Deve ter sabido sempre o quanto Nikolai significava para ela. Cinco meses após a morte de Nikolai, dezesseis depois de ter chegado a Vermont, casou com o primo dele, o meu avô, Viktor Obrajensky. Até hoje, não sei ao certo se alguma vez o amou. Pre­sumo que sim. Devem ter sido amigos. O avô era sempre muito gentil com ela, embora muito calado, e a avó falava dele sempre com carinho e admiração; porém, agora não consigo deixar de me perguntar se alguma vez amou o meu avô como amou o seu primo. Duvido, embora acredite que, de alguma forma, o amasse. Nikolai fora a paixão da sua vida, o sonho da sua juventude.

 

Tanta coisa que nunca soube, tantos sonhos que nunca imaginei. A avó era de fato um mistério. Tenho agora as pe­ças desse mistério: o baú, as sapatilhas, o medalhão e as cartas, mas a avó manteve o resto com ela — as memórias, as con­quistas, as pessoas que tanto amou. A única coisa que lamento foi ter sabido tão pouco sobre ela enquanto ainda estava conosco.

 

A avó Dan, o que representou para mim, viverá no meu coração para sempre. A mulher que foi antes disso pertenceu a outras pessoas e manteve-as junto a si no seu coração, nas suas memórias, nas cartas e no medalhão. Ainda o deveria amar para levar as cartas consigo para a casa de repouso. De­veria continuar a lê-las ainda, ou então, de tanto as ler, já as sabia de cor.

Agora, quando fecho os olhos, a avó não é velha, os seus vestidos não são pretos ou gastos e já não está a fazer biscoi­tos... Está a sorrir para mim, bela e jovem como outrora, a dançar com as suas sapatilhas, e Nikolai Obrajensky sorri e observa-a. Acredito que, algures, estão finalmente juntos.

 

                                                                                            Danielle Stell

 

 

                      

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