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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Asas / Danielle Stel
Asas / Danielle Stel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Asas

 

          

 

A estrada para o Aeroporto O'Malley era um caminho estreito, longo e poeirento que parecia desviar-se para a esquerda e para a direita e fazer um looping preguiçoso à volta dos campos de milho. O aeroporto era um pequeno pedaço de terra seca perto de Good Hope, no município de McDonough, trezentos quilômetros a sudoeste de Chicago. Quando Pat O'Malley o viu pela primeira vez no Outono de 1918, aqueles trinta e dois hectares de terreno árido eram a visão mais bela que já tinha tido. Nenhum agricultor de bom senso o teria comprado. De fato, ninguém tinha. A terra era barata e Pat O'Malley pagou-a com a maior parte das suas poupanças. O restante foi utilizado para a compra de um pequeno e velho Curtiss Jenny, um excedente de guerra. Era um avião de dois lugares com controles duplos que ele usava para dar lições de vôo aos raros visitantes que podiam pagar uma lição ou duas, para, de vez em quando, levar um passageiro a Chicago ou transportar pequenas cargas para os locais a que se destinavam.

O Curtiss Jenny levou-o praticamente à falência, mas Oona, a sua querida e ruiva esposa de há dez anos, era a única pessoa que conhecia que não o achava completamente louco. Sabia quão desesperadamente ele desejava voar, desde que tinha visto o seu primeiro avião em exibição numa pequena pista de aterragem em New Jersey. Tivera dois empregos até conseguir dinheiro suficiente para pagar as lições e arrastara-a até São Francisco à Exposição Panama-Pacific de 1915, apenas para poder conhecer Lincoln Beachey. Beachey levara Pat no seu avião, o que tornara ainda mais dolorosa a sua morte dois meses mais tarde. Beachey tinha acabado de fazer três loopings de cortar a respiração no seu avião experimental quando tudo aconteceu.

Pat também conhecera o famoso aviador Art Smith na exposição e um batalhão de outros fanáticos por aviões como ele. Eram uma irmandade de temerários, a maioria dos quais preferia voar a qualquer outra coisa. Só a voar parecia estarem vivos. Viviam-no, falavam sobre isso, respiravam-no e sonhavam-no. Sabiam tudo sobre as complicações de cada máquina voadora alguma vez construída e qual a melhor maneira de a pilotar. Contavam histórias e trocavam conselhos, além de as mais diminutas quantidades de informação sobre aviões, novos e velhos, e detalhes mecânicos. Não era surpreendente que poucos se interessassem por algo que não fosse voar, nem que não conseguissem manter um emprego que pouco ou nada tivesse a ver com a aviação. Pat estava sempre no meio deles, descrevendo algo de incrível que tinha visto ou algum avião notável que tivesse sido capaz de ultrapassar os efeitos do anterior.

Sempre jurara que havia de ter o seu próprio avião e até mesmo uma frota. Os amigos riam-se e os parentes diziam que ele era parvo. Apenas a doce e querida Oona acreditava nele. Ela seguia tudo o que ele dizia e fazia-o com uma lealdade e adoração totais. Quando as filhas nasceram, Pat tentou que ela não se apercebesse, para não a magoar, da sua desilusão pelo fato de nenhum dos seus filhos ser homem.

No entanto, por muito que amasse a mulher, Pat O'Malley não era homem para desperdiçar o seu tempo com as filhas. Era um homem íntegro, de precisão e grande habilidade. O dinheiro que tinha gasto nas lições de vôo fora rapidamente compensado. Era um daqueles pilotos que sabia instintivamente como dirigir quase todos os aviões, e ninguém se surpreendeu quando ele foi o primeiro americano a oferecer-se como voluntário, mesmo antes de os Estados Unidos entrarem na Primeira Guerra Mundial. Lutou na Esquadrilha Lafayette e foi transferido para o recém-formado 94.0 Esquadrão Aéreo, voando sob o comando de Eddie Rickenbacker.

Tinha sido uma fase muito excitante da sua vida. Então com trinta anos, era bem mais velho do que qualquer dos outros homens que se ofereceram como voluntários, em 1916. Rickenbacker também era mais velho que a maior parte dos homens. Ele e Pat tinham em comum a idade e o amor pelos aviões e, tal como Rickenbacker, Pat O'Malley também sabia o que estava a fazer. Era duro, esperto e seguro. Corria riscos sem conta e os homens diziam que ele tinha mais coragem do que qualquer outro no esquadrão. Adoravam voar com ele e próprio Rickenbacker tinha afirmado que Pat era um dos maiores pilotos do mundo. Depois da guerra, tentou encorajar Pat a ficar com ele, pois havia fronteiras a explorar, desafios a enfrentar e novos mundos a descobrir.

Pat sabia que, para ele, esse tipo de aviação tinha acabado. Fosse qual fosse a sua perícia como piloto, os grandes anos eram coisa do passado. Era preciso cuidar de Oona e das raparigas. Em 1918, quando a guerra terminou, tinha trinta e dois anos e era altura de começar a pensar no futuro. O pai já tinha morrido, deixando-lhe uma pequena quantia de dinheiro. Oona conseguira poupar qualquer coisa para eles e foi esse dinheiro que usou quando foi ver as terras agrícolas a oeste de Chicago. Um dos homens com quem tinha voado dissera-lhe que ali a terra se comprava ao preço da uva se não fosse apropriada para a agricultura. E foi assim que tudo começou.

Tinha comprado trinta e dois hectares de terra agrícola miserável a um bom preço e pintado à mão a tabuleta que ainda estava de pé, passados dezoito anos. Dizia simplesmente «Aeroporto O'Malley», e nos últimos dezoito anos um dos «l» e o «y» tinham desaparecido.

Em 1918 comprara o Curtiss Jenny com o dinheiro que lhe restava e conseguira trazer Oona e as crianças pelo Natal. Havia uma pequena cabana na ponta mais distante, perto do ribeiro à sombra de velhas árvores. Era ai que viviam enquanto ele voava com alguém que tivesse dinheiro para pagar o aluguer, e fazia vários vôos de entrega de correio no velho Jenny. Era um pequeno avião de muita confiança e ele poupava todo o dinheiro que podia. Na Primavera conseguiu comprar um De Havilland DH4 que utilizava para transportar correio e carga.

Os contratos governamentais que obtivera para transportar correio eram lucrativos, mas levavam-no para bem longe de casa. Por vezes, Oona era obrigada a gerir o aeroporto e ainda a tomar conta das crianças. Aprendera a abastecer os aviões e a responder a telefonemas que diziam respeito a contratos ou alugueres. O que sucedia com mais freqüência, enquanto Pat estava fora a transportar correio, passageiros ou carga, era ser a própria Oona a sinalizar a entrada de um avião na pista estreita.

Ficavam espantados quando viam que a pessoa que os estava a conduzir era uma bela jovem de cabelo ruivo, especialmente nessa primeira Primavera em que ela estava grávida. Engordara bastante nessa altura e chegara a pensar que poderiam ser gêmeos, mas Pat sabia que não eram. Era o sonho da sua vida: o filho que voaria com ele e o ajudaria a gerir o aeroporto. Era o rapaz por quem tinha esperado durante dez anos.

O próprio Pat ajudara ao parto, na pequena cabana que começara lentamente a acrescentar. Nessa altura já tinham o seu próprio quarto e as três raparigas partilhavam o outro. Havia uma cozinha quente e acolhedora, além de uma sala grande e espaçosa. A casa em que viviam nada tinha de especial e haviam trazido poucas coisas com eles. Todos os seus esforços e tudo o que possuíam estava enterrado no aeroporto.

O seu quarto filho tinha chegado numa noite quente de Primavera, num parto que durou pouco mais de uma hora, depois de um longo e tranqüilo passeio ao lado do campo de milho do vizinho. Tinha estado a falar com ela sobre a compra de outro avião, e Oona contara-lhe que as raparigas estavam muito excitadas com o novo bebê. Tinham cinco, seis e oito anos de idade e, para elas, era como se estivessem à espera de uma boneca e não de um verdadeiro irmão ou irmã. Oona também se sentia um pouco assim, pois há cinco anos que não tinha um bebê nos braços e estava desejosa que este chegasse. E chegou com um longo e gostoso grito pouco antes da meia-noite. Oona gritou quando olhou para ele e o viu pela primeira vez. Depois largou a chorar, sabendo que Pat ficaria muito desiludido. Não era o rapaz que Pat há muito esperava, mas sim outra rapariga. Uma linda menina grande e rechonchuda, de quatro quilos e meio, com grandes olhos azuis, pele sedosa e o cabelo tão brilhante como o cobre. Mas, apesar do seu aspecto, Oona apenas sabia, demasiado bem, quão desesperadamente ele queria um filho e como estava desiludido por não ter tido um.

- Não faz mal, pequenina - disse ele, vendo-a virar-lhe as costas enquanto ele embalava a sua nova filha. Era muito bonita, provavelmente a mais bonita de todas, mas não era o rapaz que tinham planejado. Tocou o rosto da esposa, puxou-lhe o queixo e forçou-a a olhar para ele.

- Não faz mal, Oona. É uma menina saudável. Um dia ainda te orgulharás dela.

- E tu? - perguntou tristemente. - Tu não podes dirigir isto sozinho para sempre.

Ele riu-se com a sua preocupação, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Era uma boa mulher e ele amava-a. Se não estavam destinados a ter um filho homem, paciência, mas tinha ainda uma pequena dor no coração, onde antes estivera o sonho de um filho. Nem ousava pensar que pudesse haver outro filho. Tinham agora quatro e até esta nova boca para alimentar seria um problema para eles. Não estava a enriquecer com o aeroporto.

- Vais ter de continuar a ajudar-me a abastecer os aviões, Oona. Terá de ser assim - disse ele para a arreliar quando a beijou e saiu do quarto, a fim de ir tomar um gole de uísque. Merecera-o. Enquanto estava de pé a olhar para a Lua, depois de mãe e filha terem adormecido, perguntou a si próprio por que razão o destino lhe tinha ironicamente mandado quatro filhas e nenhum filho. Não lhe parecia justo, mas não era homem para perder tempo a preocupar-se com o que não tinha remédio. Havia um aeroporto para gerir e uma família para alimentar. E, nas seis semanas que se seguiram, esteve tão ocupado que mal teve tempo para ver a família, quanto mais para se lastimar sobre o rapaz que acabara por ser uma linda e saudável rapariga.

Quando a viu de novo, parecia ter o dobro do tamanho e Oona já recuperara o seu corpo de menina. Ficava maravilhado com a capacidade de recuperação das mulheres. Há seis semanas, ela estava pesada, vulnerável, enorme. Agora parecia novamente jovem e bonita, e o bebê já era um pequeno diabinho ruivo de temperamento fogoso. Se a mãe e as irmãs não atendessem imediatamente às suas necessidades, todo o estado de Illinois e a maior parte do lowa a poderia ouvir.

- Penso que ela é a que grita mais. Não achas, querida? - disse Pat uma noite, exausto de um longo vôo de ida e volta a Indiana. - Tem uns belos pulmões! - Sorriu para a mulher com um copo de uísque irlandês na mão.

- Hoje tem estado muito calor e ela está com urticária. Oona tinha sempre uma explicação para o fato de as crianças estarem irrequietas, e Pat ficava maravilhado com a sua paciência aparentemente infinita. Mas ela também era paciente com ele. Era uma daquelas pessoas calmas que falava pouco, via muito e raramente dizia algo de indelicado a alguém ou sobre alguém. Nos quase onze anos de casamento, raramente houvera desavenças. Tinham casado aos dezessete anos e ela tinha sido a companheira ideal para ele. Agüentara todas as suas peculiaridades e planos especiais, além da sua paixão infinita pela aviação.

Mais tarde nessa semana, houve um daqueles dias de junho quentes e sem vento, em que o bebê resmungara toda a noite e Pat tivera de se levantar de madrugada para uma rápida viagem a Chicago. Nessa tarde, ao voltar para casa, descobriu que tinha de sair novamente daí a duas horas para uma entrega de correio que não estava planejada. Eram tempos difíceis, mas ele não podia dar-se ao luxo de recusar trabalho. Foi um dia em que desejou, mais do que nunca, ter ali alguém que o ajudasse, porém havia poucos homens a quem confiasse os seus preciosos aviões, nenhum que tivesse visto recentemente e, certamente, nenhum dos que tinham solicitado emprego no aeroporto.

- Tem aviões para alugar, mister? - grunhiu uma voz junto dele, enquanto Pat estava debruçado sobre o seu diário de bordo, a verificar os papéis que se encontravam sobre a secretária. Ia começar a explicar, como sempre fazia, que o podiam alugar a ele, mas não aos aviões. E depois levantou os olhos da secretária e sorriu de espanto.

- Meu grande filho da mãe. - Pat sorriu deliciado para um jovem em cujo rosto estava um largo sorriso e que tinha uma madeixa de cabelo escuro caída sobre os olhos azuis. Era um rosto que conhecia bem e do qual gostava muito, desde os tempos turbulentos que haviam passado juntos no 94. 0 Esquadrão Aéreo. - O que se passa, miúdo? Não tens dinheiro para cortar o cabelo?

Nick Galvin tinha uma cabeleira lisa e negra, possuindo a beleza de um irlandês de olhos azuis e cabelo negro. Nick fora quase um filho para Pat, quando voara com ele. Alistara-se aos dezessete anos, sendo agora apenas um ano mais velho. No entanto, tornara-se um dos pilotos mais notáveis do esquadrão e um dos homens de confiança de Pat. Tinha sido alvejado duas vezes pelos Alemães, mas em ambas conseguira voltar com o motor parado e aterrar, salvando-se a si e ao avião. Os homens do esquadrão passaram a chamar-lhe «Stick», mas Pat chamava-lhe «filho» a maior parte das vezes. Não conseguia deixar de perguntar a si próprio, agora que o seu último filho era uma rapariga se Nick não seria o filho que desejava desesperadamente.

- Que estás a fazer aqui? - perguntou Pat, inclinando-se na cadeira e sorrindo para o rapaz que tinha desafiado a morte quase tantas vezes como ele.

- A visitar velhos amigos. Queria ver se te tinhas tornado gordo e preguiçoso. Aquele De Havilland que está lá fora é teu?

- É. Comprei-o o ano passado com o dinheiro dos sapatos das minhas filhas.

- A tua mulher deve ter ficado muito contente. - Nick sorriu, e Pat lembrou-se de todas as raparigas em França que o tinham desejado. Nick Galvin era um rapaz muito bonito, com uns modos muito persuasivos em relação às senhoras. Fora bem sucedido na Europa. Dissera à maioria que tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos e elas pareciam acreditarem nele.

Oona conhecera-o em Nova Iorque, depois da guerra, e achara-o muito atraente. Dissera, corada, que o achava excepcionalmente bonito. A sua beleza ultrapassava sem dúvida a de Pat, mas havia algo de sedutor e sólido num homem mais velho que compensava a falta de uma beleza de estrela de Hollywood. Pat era um homem muito bem-parecido, com cabelo castanho-claro, olhos castanhos e um sorriso irlandês que conquistara o coração de Oona. Mas Nick tinha aquele tipo de beleza que fazia derreter os corações das jovens.

- A Oona já abriu os olhos e já te deixou? Pensei que não demorasse muito tempo depois de a trazeres para aqui - disse Nick casualmente, deixando-se cair na cadeira que estava em frente à secretária de Pat enquanto acendia um cigarro. O seu velho amigo riu-se e abanou a cabeça em resposta.

- Para te dizer a verdade, eu também pensei o mesmo. Mas não deixou e não me perguntes porquê. Quando a trouxe para aqui vivíamos numa barraca onde o meu avô costumava guardar as vacas e eu não teria podido comprar-lhe um jornal, se ela o desejasse. Graças a Deus não aconteceu. É uma mulher espantosa.

Durante a guerra, dissera sempre o mesmo da mulher, e Nick pensara o mesmo quando a conhecera. Os seus pais haviam falecido e ele não tinha família nenhuma. Andara por aí desde o fim da guerra, arranjando empregos de curta duração em pequenos aeroportos. Aos dezoito anos não tinha para onde ir, onde estar, nem ninguém à sua espera num lar. Pat sentira sempre uma certa pena de Nick quando os homens falavam sobre as famílias. Nick não tinha irmãs ou irmãos e os pais haviam morrido quando ele tinha catorze anos. Permanecera num orfanato estatal até se alistar. A guerra mudara tudo para ele e Nick adorara. Mas agora não havia uma casa para onde ir.

- Como estão as miúdas? - Nick fora muito carinhoso com elas quando as conhecera. Adorava crianças e tinha visto muitas no orfanato. Fora sempre ele a tomar conta das crianças más novas, a ler-lhes histórias à noite, a contar-lhes aventuras loucas, ou a agarrá-las a meio da noite quando acordavam a gritar pelas mães.

- Estão ótimas! - Pat hesitou, mas apenas por um momento. - Tivemos outro há um mês. Outra rapariga. Desta vez, muito grande. Pensei que pudesse ser um rapaz, mas não era. - Tentou não parecer desiludido, mas Nick conseguia detectar este fato na sua voz e ele percebeu.

- Parece que terás de ensinar as tuas filhas a voar. Não é, Ás? - disse-lhe ele a brincar, enquanto Pat rolava os olhos com um ar irritado. Pat nunca se deixara impressionar nem pelas mais extraordinárias mulheres-pilotos.

- Não é provável,  filho. E tu? O que andas a pilotar agora?

- Caixotes de ovos. Sucata de guerra. Tudo aquilo em que consigo pôr as mãos. Há muita sucata de guerra por aí e muita gente a querer usá-la. Tenho andado pelos aeroportos. Tens alguém a trabalhar contigo? - perguntou ele ansiosamente, esperando que não tivesse.

Pat abanou a cabeça, observando-o e perguntando a si próprio se aquilo era um sinal, uma mera coincidência ou apenas uma breve visita. Nick era ainda muito novo e tinha feito muitas asneiras durante a guerra. Adorava correr riscos e fazer aterragens perigosas. Era muito duro com os aviões, mas ainda mais duro consigo próprio. Nick Galvin não tinha nada a perder e ninguém para quem viver. Tudo o que Pat possuía eram aqueles aviões e não podia dar-se ao luxo de os perder, por muita afeição que tivesse pelo rapaz -ou desejasse ajudá-lo.

- Ainda continuas a correr riscos?

Uma vez, Pat quase o matara depois de o ver entrar demasiado rente ao chão sob um banco de nuvens durante uma trovoada. Desejou abaná-lo até os dentes lhe saltarem, mas estava tão aliviado por Nick ter sobrevivido que acabara por descompô-lo. Era desumano correr os riscos que ele corria. Porém, fora isso que o tornara grandioso durante a guerra. No entanto, em tempos de paz quem poderia suportar a sua fanfarronice? Os aviões eram demasiado dispendiosos para se brincar com eles.

- Só corro riscos quando é necessário,  As.

Nick adorava Pat. Admirava-o mais do que qualquer homem que conhecera ou com quem tivesse voado.

- E quando não é necessário, Nick? Ainda gostas de brincar?

Os seus olhos encontraram-se e mantiveram-se fixos. Nick sabia a que é que Pat se referia. Ele não queria mentir-lhe, ainda gostava de fazer das suas, ainda adorava o perigo, brincar e correr riscos, mas respeitava demasiado Pat e nunca faria nada que o prejudicasse. Tinha amadurecido. Agora que pilotava os aviões de outros, era muito mais cuidadoso. Ainda gostava de aventuras, mas não o suficiente para querer lesar o futuro de Pat. Nick tinha vindo de Nova Iorque, com o seu último dólar, para ver se havia possibilidade de Pat o contratar.

- Eu sei portar-me bem se for preciso - disse ele calmamente, sem que os seus olhos azuis de gelo deixassem de fixar os ternos olhos castanhos de Pat.

Havia algo de juvenil e terno em Nick, mas, no entanto, ele já era um homem. Já existira uma altura em que tinham sido quase irmãos. Nenhum deles conseguia esquecer essa altura. Era um laço que nunca mudaria e ambos o sabiam.

-Se não te portares bem, atiro-te do Jenny a três mil metros de altitude sem pensar duas vezes. Sabes que o faço, não sabes? - Pat estava com ar sério. - Não vou deixar que ninguém destrua o que estou a tentar fazer aqui. - Suspirou. - Tenho de ser honesto e admitir que há trabalho de mais para um homem só. E irá continuar a haver demasiado trabalho para um ou talvez para dois, se estes contratos de entrega de correio continuarem a chegar desta maneira. Parece que passo a minha vida a voar. Não tenho mãos a medir. Faz-me falta um homem que fizesse alguns desses vôos, que são duros e longos. Especialmente no Inverno, deparamos com muito mau tempo e todos se estão nas tintas. Ninguém se importa com a dificuldade. O correio tem de chegar. Depois, há ainda os carregamentos, os passageiros, as pequenas viagens para aqui e para ali, os que buscam alguma excitação, desejando apenas levantar vôo e olhar para baixo, e as lições ocasionais.

- Parece que estás realmente com muito trabalho. - Nick sorriu-lhe. Estava a adorar tudo o que ouvia. Era isto que ele procurara. Isso e as memórias do Ás. Nick precisava desesperadamente do emprego e Pat estava feliz por tê-lo ali.

- Isto não é um jogo. É um negócio sério que estou a tentar construir. Um dia quero pôr o Aeroporto O'Malley no mapa. Mas - explicou Pat - isso nunca acontecerá se destruíres os meus aviões ou até mesmo um só, Nick. Tudo depende daqueles dois que estão lá fora e deste bocado de terra seca com a tabuleta que viste quando chegaste.

Nick acenou com a cabeça, compreendendo tudo o que ele dizia e amando-o mais do que nunca. Havia algo que apenas ligava os aviadores: laços muito estreitos. Era algo que eles compreendiam, um laço de honra ímpar.

- Queres que faça algumas dessas viagens mais longas por ti? Poderias passar mais tempo com a Oona e as miúdas. Eu poderia fazer os trabalhos noturnos. Começaria com esses para ver o que tu pensas - pediu-lhe Nick, nervoso.

Desejava desesperadamente conseguir um emprego junto dele e receava talvez não o conseguir. Mas claro que Pat O'Malley o contrataria. Só queria ter a certeza de que Nick entendia as regras básicas. Pat teria feito tudo por Nick. Dar-lhe-ia um lar, um emprego e até o adotava se fosse preciso.

- Os vôos noturnos podem ser um bom começo. - Olhou seriamente para o seu jovem amigo. Tinham catorze anos de diferença, mas a guerra fizera desaparecer, há muito, essa diferença entre eles. - Se bem que em certas noites seja o lugar mais sossegado. Se o novo bebê não começar rapidamente a dormir toda a noite, vou começar a dar-lhe uísque. Oona diz que é do calor, mas juro que é do cabelo ruivo e da sua própria disposição. Oona é a única ruiva que conheci que tem modos calmos e gentis. Esta é um verdadeiro diabinho.

Mas, apesar das queixas, Pat parecia apaixonado por ela, tendo ultrapassado a sua desilusão de não ter tido um filho, especialmente agora que Nick estava ali. A sua chegada fora a oferta divina pela qual tanto havia rezado.

- Como é que ela se chama? - Nick estava com um ar divertido. Adorava aquela família desde o momento em que olhara para ela.

- Cassandra Maureen. Chamamos-lhe Cassie. - Olhou de novo para o relógio. - Vou levar-te até casa e podes jantar com a Oona e as miúdas. Tenho de voltar para aqui às cinco e meia. - Estava com ar de quem pede desculpa. -E tens de descobrir um sítio para ficar, na cidade. Há alguns quartos para alugar em casa da velha Mistress Wilsone, eu não tenho lugar para ti aqui, a não ser uma rede no hangar onde guardo o Jenny.

- Isso chega. Pelo menos é quente. Não me importo de dormir na pista de aterragem.

- Há um velho chuveiro nas traseiras e uma casa de banho aqui, mas. é um pouco primitiva - disse Pat hesitantemente, e Nick sorriu ao vê-lo encolher os ombros.

- Tal como o meu orçamento, até começares a pagar-me.

- Podes dormir no sofá se Oona não se importar. Ela gosta de ti, está sempre a dizer-me que és bonito e que as raparigas têm muita sorte com um rapaz como tu. Tenho a certeza que não se importará que durmas no sofá, até teres possibilidades de alugar um quarto em casa de Mistress Wilson.

Ele, porém, nunca fez nem uma coisa nem outra. Dirigiu-se imediatamente para o hangar, e um mês depois tinha construído uma pequena cabana para si. Era pouco mais do que um alpendre, suficientemente grande, que mantinha arrumado e limpo, apesar de ter passado todos os momentos disponíveis no ar, a voar para Pat e a ajudá-lo a construir o negócio.

Na Primavera seguinte, conseguiram comprar outro avião: um Handley Page. Tinha maior alcance do que o De Havilland ou o Jenny e mais capacidade para passageiros e carga. Nick passava a maior parte do tempo a voar nele, enquanto Pat ficava mais perto de casa, fazia os vôos mais curtos e dirigia o aeroporto. O acordo estava a funcionar perfeitamente para ambos. Era como se tudo o que tocassem se transformasse como por magia. Os negócios estavam a correr lindamente. A sua reputação espalhou-se de imediato pelo Midwest. O rumor de que dois ases estavam a operar em Good Hope parecia chegar a todas as pessoas importantes. Eles lidavam com carga, passageiros, lições, correio e, pouco tempo depois, começaram a ter um lucro bastante razoável.

Depois aconteceu o maior golpe de sorte. Treze meses após o nascimento de Cassie, apareceu uma frágil e pequena criança de pele enrugada e muito chorona: Christopher Patrick O'Malley. Os pais nunca tinham visto nada mais bonito enquanto as suas quatro irmãs olhavam espantadas para a sua anatomia pouco familiar. Nada poderia ter provocado maior confusão no Aeroporto O'Malley do que a chegada de Christopher Patrick O'Malley.

Foi içada uma grande bandeira azul e todos os pilotos que lá passaram durante o mês seguinte recebiam um charuto do radiante pai. Tinha valido a pena esperar. Finalmente, depois de quase doze anos de casamento, o seu sonho concretizara-se: um filho para pilotar os seus aviões e dirigir o aeroporto.

- Acho que mais vale fazer as malas e ir-me embora -disse Nick a brincar no dia seguinte ao nascimento de Chris. Acabara de receber uma encomenda de um enorme carregamento a ser entregue na costa oeste até ao domingo seguinte. Era a maior encomenda que tinham recebido e uma grande vitória para eles.

- O que queres dizer com ir-me embora? - perguntou Pat, com uma terrível ressaca devido à celebração do nascimento do filho e um olhar de pânico. - O que raio queres dizer com isso?

- Bem, agora que o Chris chegou, acho que os meus dias estão contados.

Nick sorria-lhe. Estava muito contente por ambos e excitadíssimo por ser o padrinho de Chris. Mas quem lhe tinha roubado o seu coração, desde o primeiro momento em que a vira, fora Cassie. Ela era exatamente como Pat descrevera: um pequeno monstro e tudo aquilo que sempre se dissera sobre uma ruiva. Mas Nick adorava-a. Às vezes quase sentia que ela era a sua irmã mais nova. Se fosse sua filha não teria mais amor por ela.

- Sim! Os teus dias estão contados - grunhiu Pat. - Durante os próximos cinqüenta anos. Por isso levanta esse rabo preguiçoso da cadeira, Nick Galvin, e vai ver o correio que acabaram de deixar na nossa pista.

- Sim, senhor... Ás. Senhor... Vossa Eminência... Vossa Excelência...

- Pára com as adulações! - Pat gritava já para as suas costas, enquanto se servia de uma chávena de café; Nick correu para a pista para se encontrar com o piloto antes de ele voltar a descolar. Nick era o que Pat sempre esperara: uma dádiva de Deus. E não tinha havido brincadeiras no ano que passara. Correra muitos riscos nos vôos, com mau tempo no Inverno anterior, e ambos haviam feito as aterragens forçadas necessárias e reparações de emergência. Mas não havia nada de realmente perigoso de que Pat se pudesse queixar, que ele próprio não tivesse feito ou que realmente prejudicasse um dos seus preciosos aviões. Nick amava aqueles aviões tanto quanto Pat. A verdade era que a presença de Nick permitira a Pat aumentar o seu negócio.

E foi exatamente o que continuaram a fazer nos dezessete anos seguintes. Os anos tinham passado por eles mais depressa do que os seus aviões a descolar das quatro pistas meticulosamente tratadas do Aeroporto O'Malley. Tinham construído três pistas em forma de triângulo e a quarta, no sentido norte-sul, cortava-o ao meio, o que significava que podiam aterrar com quase todos os tipos de vento e nunca precisavam de fechar o aeroporto devido ao bloqueio das pistas. Possuíam agora uma frota de dez aviões. Nick comprara dois; os restantes eram de Pat. Nick apenas trabalhava para ele, mas Pat fora sempre generoso. Eram grandes amigos, depois de muitos anos a trabalhar juntos na construção do aeroporto e, mais de uma vez, perguntara a Nick se queria ser seu sócio, mas este sempre dissera que não desejava ter as dores de cabeça que vinham com o cargo. Afirmava que gostava de ser empregado, se bem que todos soubessem que ele e Pat O'Malley se movimentavam como se fossem a mesma pessoa. Se alguém fizesse com que um se zangasse, correria risco de morte às mãos do outro. Pat O'Malley era um homem especial, Nick adorava-o como pai, irmão e amigo e amava os seus filhos como se fossem dele. Gostava de tudo o que dizia respeito a Pat.

No entanto, para além de Pat, as famílias e relações não eram o ponto forte de Nick. Tinha-se casado uma vez, em 1922, aos vinte e um anos. Durara seis meses, e a sua noiva de dezoito anos voltara a correr para casa dos pais no Nebrasca. Nick conhecera-a no único restaurante da cidade, onde fora fazer uma entrega de correio, do qual eram proprietários o pai e a mãe da rapariga.

A única coisa que ela odiara mais do que Illinois era tudo o que tivesse a ver com voar. Enjoava sempre que Nick a levava, gritava cada vez que via outro avião e chorava cada vez que ele saía para um vôo. Não era decididamente mulher para ele. Nick ficara mais aliviado do que a noiva quando os pais a vieram buscar. Nunca fora tão infeliz e jurara que nunca mais tal aconteceria. Desde então tivera outras mulheres, mas mantivera os seus casos em segredo. Haviam surgido boatos sobre ele e uma mulher casada noutra cidade, mas ninguém tinha a certeza se eram verdadeiras ou não, e Nick nunca dissera nada a Pat. Transformara-se num homem muito bonito, contudo nunca ninguém sabia da sua vida. As mulheres da sua intimidade não eram óbvias. Ninguém podia dizer fosse o que fosse sobre ele, a não ser que trabalhava muito e que passava muito tempo com os O'Malley. Na realidade, passava a maior parte do seu tempo livre com eles e as crianças. Era como um tio para elas. Há muito que Oona desistira de o juntar com uma das suas amigas. Tentara até começar algo entre ele e a irmã mais nova, quando esta viera visitá-los há alguns anos. Ela era bonita, jovem e viúva, mas há muito que era notório que Nick Galvin não estava interessado em casar-se. Nick interessava-se por aviões e pouco mais. À exceção, é claro, dos O'Malley e de um ocasional romance discreto. Vivia sozinho, trabalhava muito e tratava da sua vida.

- Ele merece muito mais do que isso: - Há anos que Oona se queixava disso a Pat.

- E o que te faz pensar que o casamento é melhor? -Pat estava a brincar, mas, por muito convencida que ela estivesse sobre o que era melhor para ele, já nem dizia nada a Nick. Desistira. Aos trinta e cinco anos, sentia-se feliz, além de demasiado ocupado para devotar tempo e atenção a uma esposa e filhos. Na maioria dos dias, passava quinze a dezesseis horas no aeroporto de Pat, e a única pessoa que lá passava tanto tempo como ele era Cassie.

Estava agora com dezessete anos e durante quase toda a sua vida Cassie tinha sido uma ajuda preciosa no aeroporto. Sabia abastecer quase todos os aviões, assinalar a sua aterragem e prepará-los para descolar. Tratava das pistas, limpava os hangares, lavava os aviões e passava todos os momentos livres na companhia de pilotos. Conhecia os motores e o funcionamento de todos os aviões que possuíam. Tinha uma intuição peculiar em relação aos problemas mecânicos. Não havia pormenor, por muito pequeno e complexo que fosse, que escapasse à sua atenção. Reparava em tudo sobre cada avião e talvez tivesse sido capaz de descrever quase tudo de olhos fechados durante um vôo. Era espantosa em muitos aspectos, o que levava Pat a brigar muitas vezes com ela para a obrigar a ir para casa ajudar a mãe. Ela retorquia sempre que as irmãs estavam lá e que a mãe não precisava dela. Pat não a queria por ali, mas sim em casa. No entanto, se a conseguia afastar um dia, na manhã seguinte, tal como o Sol, ela regressava às seis da manhã para passar uma ou duas horas no aeroporto antes de ir para a escola. Chegou uma altura em que Pat desistiu e passou a ignorá-la.

Aos dezessete anos, ela era uma ruiva de olhos azuis, alta, vistosa e bonita. Contudo, a única coisa que Cassie conhecia e gostava era de aviões. Nick sabia, sem nunca a ter visto pilotar um avião, que ela era um piloto nato. Achava que Pat também o devia saber, mas continuava inflexível em relação ao fato de deixar Cassie aprender a voar. Estava-se nas tintas para Amelia Earhart ou Jackie Cocliran ou Nancy Love, Louise Thaden ou quaisquer outras mulheres-pilotos, ou mesmo para o Wornen's Air Derby. Filha sua não voaria e isso era definitivo. Ele e Nick tinham ocasionalmente discutido o assunto, mas este também já começara a perceber que era uma batalha perdida. Naqueles tempos já havia muitas mulheres na aviação, sendo a maior parte bastante boas, mas Pat O'Malley pensava que as coisas já tinham ido demasiado longe e, no que lhe dizia respeito, jamais uma mulher pilotaria tão bem como um homem. Além disso, mulher nenhuma pilotaria os seus aviões; muito menos Cassie O'Malley.

Nick falara com ele mais do que uma vez, salientando que, na sua opinião, algumas mulheres-pilotos atuais eram melhores que Lindberg. Pat ficara tão furioso que quase dera um soco a Nick. Charles Lindberg era o deus de Pat, apenas superado por Rickenbacker na Primeira Guerra Mundial. De fato, Pat tirara uma fotografia com Lindy quando ele aterrara no O'Malley, em 1927, durante a sua viagem de três meses ao país. A fotografia ainda estava pendurada, nove anos depois, cheia de pó e muito reverenciada sobre a secretária de Pat em lugar de destaque.

No espírito de Pat não havia qualquer dúvida de que a perícia e valor de Charles Lindberg seria impossível de suplantar ou de igualar por qualquer mulher-piloto. A própria mulher de Lindberg era apenas navegadora e operadora de rádio. Para Pat, Lindy era uma espécie de deus, e comparar alguém a Lindberg não passava de um sacrilégio que ele não tencionava ouvir da boca de Nick Galvin. Nick riu-se ao observar a excitação de Pat, pois adorava irritá-lo. Mas sabia que era uma discussão que nunca venceria. Segundo Pat, as mulheres não tinham aptidão para isso. Não interessava a quantidade de horas de vôo, os recordes que batiam, as corridas que ganhavam ou como ficavam bonitas em uniforme de vôo. Segundo Patrick O'Malley, as mulheres não deviam ser pilotos.

- E tu - disse ele, olhando diretamente para Cassie no momento em que ela chegava da pista com o seu velho macacão, tendo acabado de abastecer o Ford trimotor antes de este partir para Roosevelt Field, em Long Island - devias estar a ajudar a tua mãe a fazer o jantar.

Era um refrão familiar que ela quase sempre ignorava, e hoje não fora diferente. Passeou-se pela sala, quase tão alta como os homens que trabalhavam para ele.. Tinha um cabelo ruivo até aos ombros, luminoso como chamas, e grandes e vivos olhos azuis que encontraram os de Nick que sorria maliciosamente por trás do pai.

- Já volto para casa, pai. Só quero acabar de fazer algumas coisas.

Aos dezessete anos, era uma verdadeira beldade, mas não estava consciente disso, o que fazia parte do seu encanto. O macacão que usava moldava-lhe a figura de uma maneira que apenas irritava mais o pai. Segundo Pat, aquele não era o lugar dela. Não era uma opinião susceptível de modificação; aquela discussão entre eles era algo que todos já tinham ouvido pelo menos mil vezes, se já tivessem estado no Aeroporto O'Malley, assim, naquela altura não seria diferente. Estava um quente dia de junho e ela encontrava-se de férias de Verão. A maioria dos amigos tinha empregos de férias no drugstore, na cafeteria ou em lojas, mas tudo o que ela desejava fazer era ajudar, sem remuneração, no aeroporto. Dedicava-se de corpo e alma, e só trabalhava noutros sítios quando necessitava desesperadamente de algum dinheiro. Nenhum emprego, nenhum amigo, nenhum rapaz nem nenhum divertimento a afastariam do aeroporto durante muito tempo. Não conseguia resistir.

- Porque não fazes algo de útil em vez de seres um empecilho aqui? - gritou o pai do outro extremo do escritório.

Ele nunca lhe tinha agradecido pelo trabalho que fazia. Pura e simplesmente não a queria ali.

- Só vim buscar um dos diários de carregamentos, pai. Preciso de fazer algumas anotações. - Disse-o calmamente, procurando o livro e depois a página que precisava. Estava familiarizada com todos os seus diários e procedimentos.

- Tira as mãos dos meus diários! Não sei o que estás a fazer!

Ele estava furioso como era habitual. Tornara-se irascível com os anos, se bem que aos cinqüenta ainda fosse um dos melhores pilotos que havia. Ninguém o demovia das suas idéias, mas também ninguém, nem mesmo Cassie, lhes dava muita atenção. No aeroporto, a sua palavra era lei, mas a sua batalha contra as mulheres na aviação e as discussões com ela eram infrutíferas. A jovem sabia que a melhor atitude era não discutir com ele. A maior parte das vezes parecia nem estar a ouvi-lo. Continuava calmamente a fazer o que tinha a fazer, pois para Cassie o único negócio que interessava era o aeroporto do pai.

Quando era mais pequena, fugira várias vezes durante a noite, indo olhar para os aviões que brilhavam ao luar. Eram tão bonitos que tinha de os ver. Pat encontrara-a uma noite, depois de a procurar durante horas, mas Cassie reverenciava tanto os aviões do pai, temendo tanto por eles como ele, que Pat não tivera coragem de lhe bater, apesar do susto que lhes pregara com o seu desaparecimento. Dissera-lhe para nunca mais fazer aquilo e levara-a para junto da mãe sem falar mais no assunto.

Oona também sabia o quanto Cassie adorava aviões, mas, tal como Pat, achava que não era próprio. O que pensariam as pessoas, vendo a sua aparência e cheiro quando voltava para casa depois de abastecer os aviões, de colocar os carregamentos e correio dentro do porão ou, ainda pior, trabalhar nos motores? Mas Cassie sabia mais sobre o funcionamento interno dos aviões do que a maioria dos homens conhecia o dos seus carros. Adorava tudo neles. Era capaz de desmontar um motor e voltar a montá-lo ainda mais depressa e melhor do que a maior parte dos homens, e pedira emprestado e lera mais livros sobre aviões do que Nick ou os pais suspeitavam. Os aviões eram o seu grande amor e paixão.

Apenas Nick parecia compreender o seu amor por eles, mas nem ele conseguira nunca convencer o pai de que era um passatempo apropriado para ela. Quando voltou para a secretária para terminar um trabalho, encolheu os ombros e Cassie regressou à pista. Há muito que sabia que, se se mantivesse afastada de Pat, conseguia estar durante horas no aeroporto.

- Não sei o que se passa com ela... Não é natural... -queixou-se Pat. - Acho que o faz apenas para irritar o irmão.

Nick, porém, sabia melhor que ninguém que Chris não dava importância aos aviões. Estava tão interessado em voar como em chegar à Lua ou em tornar-se uma espiga de milho. Ia ocasionalmente ao aeroporto para agradar ao pai e, agora que já tinha dezesseis anos, estava a receber lições de vôo apenas para o satisfazer. Mas a verdade era que Chris não sabia nada sobre aviões e também não se importava com o fato. Tinha tanto interesse neles como no grande autocarro amarelo que o levava para a escola todos os dias. Porém, Pat convencera-se de que um dia Chris se tornaria um grande piloto.

Chris não possuía o instinto de Cassie, o seu amor apaixonado pela máquina ou o seu gênio em relação a motores, e estava esperançado que o interesse de Cassie pelos aviões fizesse com que o pai o largasse. Mas, pelo contrário, isto parecia torná-lo ainda mais ansioso para que Chris se tornasse piloto. Queria que Chris se transformasse naquilo que Cassie era. Ele queria ser arquiteto e construir edifícios, não tendo o menor desejo de pilotar aviões, mas, até agora, ainda não ousara dizê-lo ao pai. Cassie sabia. Adorava os desenhos e os modelos para a escola que o irmão fazia. Tinha construído uma cidade inteira com caixinhas muito pequenas, latas e frascos e, para terminar, tinha até usado as tampas das garrafas e todos os tipos de dispositivos ínfimos da cozinha da mãe. Ela andara semanas à procura das coisas. As caricas das garrafas, bem como vários pequenos instrumentos e utensílios, tinham desaparecido. Mas finalmente tudo reaparecera na notável criação de Chris. O único comentário do pai fora perguntar por que razão não fizera a maqueta de um aeroporto. Era uma idéia intrigante, e Chris ainda respondeu que ia tentar. Mas a verdade era que absolutamente nada que dissesse respeito a aviação lhe interessava. Era inteligente, preciso e ponderado, todavia, as lições de pilotagem que estava a receber eram incrivelmente aborrecidas. Nick já o levara dúzias de vezes, por isso ele já tinha algumas horas de vôo. Mas nada disso despertava o seu interesse. Era como conduzir um automóvel. E depois? Não significava nada para ele. Para Cassie era a própria vida. Mais do que isso: era magia.

Nessa tarde, manteve-se afastada do escritório do pai, e às seis horas Nick viu-a ao longe na pista a ajudar um avião a aterrar, desaparecendo depois num dos hangares com o piloto. Procurou-a pouco depois, encontrando-a com óleo no rosto e o cabelo apanhado no alto da cabeça, num carrapito. Tinha uma grande mancha de gordura no nariz e as mãos estavam nojentas. Não conseguiu evitar o riso quando olhou para ela. Estava numa linda figura!

- Qual é a piada?

Parecia cansada, mas feliz, quando lhe sorriu. Nick fora sempre como um irmão para ela. Cassie sabia que ele era muito bonito, mas isso não significava nada. Eram bons amigos e ela adorava-o.

- A piada és tu. Já te viste ao espelho hoje? Tens mais óleo em cima do que o meu Bellanca. O teu pai vai adorar.

- O meu pai quer-me com uma bata a limpar a casa e a cozer batatas.

- Isso também é útil.

- Ah, sim? - Inclinou a cabeça para o lado, numa intrigante combinação de absurdo e pura beleza. - Sabes cozer batatas, Stick? - Ela às vezes chamava-lhe «Stick» e isso fazia-o sempre sorrir e o mesmo aconteceu ao responder-lhe:

- Se for preciso. Também sei cozinhar.

- Mas não tens de o fazer. E quando é que limpaste a casa pela última vez?

- Não sei... - Ficou com um olhar pensativo. - Há uns dez anos... por volta de mil novecentos e vinte seis. - Estava a sorrir, acabando ambos a rir.

- Estás a perceber o que quero dizer?

- Sim. Mas também percebo o que ele quer. Não sou casado, não tenho filhos, e ele não quer que tu acabes como eu. A viver numa barraca ao pé da pista e a entregar correio em Cleveland. - A sua «barraca» já estava, nessa altura, muito confortável, se não mesmo luxuosa.

- Por mim, tudo bem. - Ela sorriu-lhe. - Refiro-me às entregas de correio, é claro.

- É precisamente esse o problema.

- Ele é que é o problema - discordou ela. - Existem inúmeras mulheres que voam e que têm vidas interessantes. A Noventa e Nove está cheia delas. - Referia-se a uma organização fundada por noventa e nove mulheres-pilotos.

- Não tentes convencer-me. Diz-lhe.

- É inútil. - Ela parecia desiludida quando olhou para o seu velho amigo. - Só espero que ele me deixe estar aqui todo o Verão.

Era tudo o que desejava durante as férias até ao fim de Agosto. Seria um longo Verão a esconder-se dele e a tentar evitar confrontos.

- Não queres arranjar um emprego noutro sítio para que ele não nos leve à loucura?

Contudo, ambos sabiam que ela preferia não ter dinheiro a passar um único momento fora do aeroporto.

- Não me apetece fazer mais nada.

-Eu sei. Não precisas de o dizer.

Ele conhecia melhor do que qualquer outra pessoa toda a amplitude da sua paixão. Tinha sofrido da mesma doença, mas tivera sorte. A guerra, o seu sexo e Pat O'Malley tinham-lhe tornado possível passar o resto da vida a voar. No entanto, não pensava que Cassie O'Malley fosse ter sorte. Estranhamente, teria adorado levá-la no avião apenas para verificar a qualidade da sua pilotagem, mas era uma dor de cabeça que não necessitava e sabia que Pat o mataria. Não queria meter-se na vida familiar de Pat. Nick tinha o seu próprio trabalho e isso era coisa que não faltava no aeroporto.

Quando Nick voltou para a secretária para terminar o trabalho, viu chegar Chris. Era um rapaz bem-parecido, louro e de traços finos, com a poderosa constituição da mãe e do pai e quentes olhos castanhos. Era esperto, simpático, e toda a gente gostava dele. Tinha tudo no mundo a seu favor, exceto amor pelos aviões. Arranjara um emprego de férias num jornal, fazendo layouts, e dava graças a Deus por não ter de trabalhar no aeroporto.

- A minha irmã está cá? - perguntou ele a Nick hesitantemente.

O seu rosto quase parecia desejar que Nick dissesse que não. Estava com um ar de quem já não podia esperar mais para deixar o aeroporto. Cassie estava à espera dele há uma hora e já perguntara impacientemente a Nick se o tinha visto.

- Está. - Nick sorriu-lhe. Manteve a voz baixa para não irritar Pat no caso de estar a ouvi-lo. - Está ao fundo do hangar com um piloto que acabou de aterrar.

- Eu descubro-a! - Chris acenou a Nick, que prometeu levá-lo consigo dentro de alguns dias quando voltasse de uma entrega em San Diego. - Estarei aqui. Vim praticar os meus solos - disse ele solenemente.

- Estou muito impressionado! - Nick ergueu uma sobrancelha, espantado pela maneira óbvia como o rapaz queria agradar ao pai. Não era segredo para Nick que Chris não gostava das lições. Não tinha medo. Apenas o aborreciam. Para ele, voar nada significava. - Até logo!

Chris encontrou Cassie facilmente e esta afastou-se de imediato do seu recente amigo assim que viu o irmão. Começou logo a descompô-lo.

- Estás atrasado! Assim chegaremos tarde para o jantar. O pai vai ter um ataque.

- Então não o façamos! - Encolheu os ombros. Ele até nem quisera abandonar o seu emprego tão cedo, mas sabia que ela iria ficar furiosa se isso não acontecesse.

- Vamos embora! - disse-lhe ela. - Tenho estado à espera todo o dia! - Deitou-lhe um olhar zangado e resmungou. Chris conhecia a irmã muito bem. Não havia escapatória possível quando Cassie tomava uma decisão. - Não vou para casa sem o fazermos.

- Está bem! Está bem! Mas não podemos ficar lá em cima muito tempo.

- Meia hora!

Ela estava a pedir, a suplicar e fixava os enormes olhos azuis implorantemente nos gentis olhos castanhos do irmão.

- Está bem! Mas se fazes alguma coisa que nos meta em sarilhos, Cass,  juro que te mato. O pai dava cabo de mim.

- Prometo! Não faço nada.

Olhou-a bem nos olhos quando ela prometeu e quis, acima de tudo, acreditar nela. Mas não acreditava.

Juntos caminharam até um velho Jenny que o pai possuía há muitos anos. Tinha sido construído para treino de militares e Pat tinha dito a Chris que o podia usar sempre que quisesse praticar. Apenas tinha de avisar Nick, e ele acabara de o avisar. Chris possuía uma cópia da chave e tirou-a do bolso. Cassie quase salivou quando a viu. Estava junto do irmão e conseguia sentir o coração aos pulos quando Chris abriu aporta da pequena carlinga do avião.

- Importas-te de parar com isso? - Olhou aborrecido para ela. - Sinto a tua respiração no meu pescoço.

Enquanto andavam à volta do avião a verificar os fios e os allerons, ele sentia-se a ajudar um viciado. Chris colocou o capacete, óculos e luvas, subindo para o assento traseiro do avião; Cassie subiu rapidamente para a sua frente, tencionando parecer um passageiro, mas não parecia. Até no lugar dianteiro tinha um ar demasiado sabedor e confortável, especialmente depois de colocar o capacete e os óculos.

Ambos apertaram os cintos. Cassie sabia que o avião estava cheio de gasolina, pois parte do seu acordo com o irmão constava em fazer todo o trabalho pesado por ele. Tinha-o feito nessa tarde. Tudo estava pronto e ela inalou o familiar cheiro a óleo característico do Jenny. Cinco minutos depois já rolavam pela pista com Cassie a observar criticamente o estilo de Chris. Ele era sempre demasiado cauteloso, demasiado lento; ela virou-se, fazendo-lhe sinal para ir mais depressa e descolar. Não se importava que alguém a visse. Sabia que não havia ninguém a ver, pois tudo o que sabia fora aprendido através das observações e das conversas que escutara. Sempre observara o pai, Nick, além dos pilotos em trânsito. Tinha conseguido adquirir verdadeiros conhecimentos, alguns truques, voando por instinto e mera intuição. Chris é que tivera lições, mas, no entanto, era Cassie que sabia exatamente o que fazer, e ambos sabiam que ela teria facilmente pilotado o avião sozinha e com muito mais suavidade.

De vez em quando, ela gritava com ele devido ao ruído do motor e Chris acenava com a cabeça, desejando que ela não fizesse nenhuma loucura. Mas ambos sabiam exatamente por que razão tinham subido. Chris estava a ter lições com Nick e, por sua vez, estava a dar lições a Cassie. De fato, o que estava realmente a acontecer era Chris levá-la no aeroplano, mas deixá-la pilotar à vontade. Era ela que lhe dava lições ou gozava apenas a oportunidade de voar. Parecia saber fazer tudo muito melhor que Chris. Era uma aviadora nata, tendo prometido pagar-lhe vinte dólares por mês por oportunidades ilimitadas de voar com ele no avião do pai. O rapaz queria o dinheiro para gastar com a namorada e, como tal, concordara. Era um acordo perfeito. Cassie trabalhara bastante durante o Inverno, em vários empregos, tais como baby-sitter, carregar mercearias ou a remover neve, para poupar dinheiro.

Cassie lidava facilmente com os comandos. Fez algumas curvas em S e oitos suaves, depois passou para as curvas mais apertadas, que fazia com cuidado, com uma precisão incrível. Até Chris estava impressionado com o estilo fácil e cuidadoso; subitamente ficou-lhe grato pelo fato de ela causar tão boa impressão a qualquer um que os estivesse a observar do solo. Era um piloto, espantoso. Passou para um looping e ele começou a ficar nervoso. Tinham voado juntos várias vezes, mas detestava que ela fizesse habilidades. A irmã era demasiado boa e rápida, contudo tinha medo que Cassie pudesse perder completamente o controlo e fazer algo de realmente assustador. Por vinte dólares, não estava disposto a deixar-se aterrorizar. Mas ela nem reparava. Estava concentrada na sua pilotagem. Portanto, apenas conseguia ver a parte de trás do seu capacete e o cabelo vermelho da irmã a voar com o vento. De quando em vez, se já estava completamente farto dela, batia-lhe no ombro. Era altura de voltar e ela sabia-o. Mas, durante alguns momentos, fingia ignorá-lo.

Queria fazer um parafuso, mas não havia tempo e sabia que Chris teria um ataque se ela o tentasse.

Porém, nos seus momentos mais calmos, o jovem tinha de admitir que a irmã era um piloto extraordinário, apesar de lhe pregar grandes sustos. No entanto, não confiava nela. A qualquer momento, era perfeitamente capaz de fazer uma loucura. Havia algo nos aviões que lhe subia à cabeça e ela deixava de ser racional.

Cassie perdeu altitude com cuidado e, antes de aterrarem, deixou Chris assumir novamente o controlo do avião. O resultado foi uma aterragem muito menos suave do que a dela teria sido. Aterraram com demasiada força, fazendo com que o avião desse alguns saltos na pista. Ela tentou que Chris fizesse uma boa aterragem, mas o rapaz não possuía o instinto da irmã. Conseqüentemente, fizera uma «panqueca», atingindo o chão com muita força, depois de ter nivelado o avião a uma altitude que não lhe permitia uma aterragem decente.

Quando saíram do avião, ficaram surpreendidos por ver Nick e o pai em pé junto da pista. Tinham estado a observá-los, e Pat sorria largamente para Chris, enquanto Nick parecia estar a olhar para Cassie.

- Bom trabalho, filho - disse Pat com um sorriso luminoso. - És um piloto nato. - Pat parecia imensamente satisfeito, não ligando à aterragem deficiente. Nick tinha estado a observar o rosto de Chris, mas parecia muito mais atento a Cassie do que tinha estado desde o momento em que ela saíra do avião.

- Como te sentiste lá em cima com o teu irmão, Cass? perguntou-lhe o pai com um sorriso.

- Muito bem, pai. Foi realmente divertido.

Nick viu os olhos dela brilharem como uma árvore de Natal. Pat conduziu Chris para o escritório, enquanto Nick e Cass os seguiam em silêncio.

- Gostas de voar com ele, Cass? - perguntou Nick com cuidado quando caminhavam para o escritório.

- Muito. - Ela sorriu para Nick e, por razões que só ele conhecia, apetecia-lhe abaná-la. Sabia que a jovem estava a mentir e perguntava a si próprio como é que Pat conseguia ser tão facilmente enganado. Talvez o quisesse ser. Mas aquele tipo de jogos eram perigosos e até fatais.

- Aquele looping estava muito bem feito ~ disse Nick calmamente.

- Também achei bem - retorquiu ela sem o olhar.

- Aposto que sim - afirmou, observando-a por um momento. E abanando a cabeça voltou para o escritório.

Alguns minutos mais tarde, Pat levou os filhos para casa.

Quando Nick ouviu o carro partir, sentou-se à secretária pensando neles e no vôo que acabara de ver. Abanou a cabeça com um sorriso amargo. De uma coisa tinha a certeza: Chris O'Malley não tinha estado a pilotar aquele avião. Não conseguiu deixar de sorrir para si próprio quando percebeu que Cassie havia descoberto uma maneira de estar aos comandos de um avião e talvez, apenas talvez, depois de todo o trabalho que tivera para lá chegar, ela o merecesse. Talvez ele não a desafiasse durante uns tempos. Talvez apenas observasse e verificasse os seus progressos. Sorriu para si próprio, pensando no looping que a tinha visto fazer. Pouco faltava para a ver voar num espetáculo de aeronáutica. E porque não? Por que diabo? Tudo nela lhe dizia que era um piloto nato. Era mais do que isso. Sentia instintivamente que, mulher ou não, ela precisava de voar, tal como ele.

 

Quando Pat, Cassie e Chris entraram em casa nessa noite, todas as irmãs de Cassie estavam na cozinha a ajudar a mãe. Glynnis era parecida com Pat e, aos vinte e cinco anos, já tinha quatro filhas, sendo casada há seis anos. Megan era tímida como a mãe e possuía os seus traços fisionômicos, apesar de o cabelo ser castanho. Com vinte e três anos, já tinha três filhos, tendo-se casado seis meses depois de Glynnis. Os maridos eram agricultores e possuíam pequenas propriedades nas redondezas. Eram homens decentes, trabalhadores, e as raparigas estavam muito contentes com os seus casamentos. Colleen tinha vinte e dois anos, era loura, mãe de um rapaz e de uma menina que ainda mal sabiam andar, e casara-se havia três anos com o professor de Inglês da escola local. Queria ir para a faculdade, mas estava novamente grávida. Com três crianças em casa não havia possibilidade de ir fosse para onde fosse, exceto se os levasse com ela. Não seria justo deixar três crianças com a avó todos os dias só para poder ir para a escola e, de qualquer modo, o pai nunca a teria deixado fazê-lo. Talvez quando as crianças fossem mais velhas. De momento, a faculdade era apenas um sonho. A realidade da sua vida eram três bebês e muito pouco dinheiro. Pat dava-lhes pequenos «presentes» de tempos a tempos, mas o marido de Colleen era muito orgulhoso e detestava aceitá-los. Mas, com um ordenado tão baixo e com outro filho dentro de algumas semanas, precisavam de toda a ajuda que conseguissem, por isso a mãe de Colleen tinha-lhe dado algum dinheiro nessa tarde. Sabia que eles precisavam de comprar coisas para o bebê. Os ordenados dessa época de depressão tinham chegado às escolas, e eles mal conseguiam comer com o que David ganhava, até mesmo com as prendas regulares dos pais, ou os alimentos que as irmãs lhes ofereciam.

As três raparigas iam ficar para jantar com os pais, pois os maridos tinham outros planos nessa noite. Para além disso, era vulgar as raparigas virem muitas vezes a casa dos pais. Oona adorava ver os netos, se bem que todos ao mesmo tempo em casa tornasse a hora de jantar bastante caótica e barulhenta.

Pat foi mudar de roupa e Chris foi para o quarto enquanto Cassie tentava entreter as crianças. Todas as outras mulheres da família cozinhavam e dois dos seus sobrinhos achavam que a sujidade que Cassie tinha no rosto era histericamente divertida. Uma das sobrinhas também o achava e Cassie começou a persegui-los pela sala, fingindo ser um monstro. Chris só voltou a aparecer quando foi chamado para jantar, olhando para Cassie ao chegar. Estava ainda aborrecido com ela por causa do looping que esta fizera, mas, por outro lado, Cassie tinha conseguido que o pai o visse com outros olhos. Assim sendo, não ousava queixar-se muito. Ambos estavam a conseguir o que queriam com o acordo: ela queria voar e ele queria o dinheiro. O louvor do pai tinha sido um bônus.

Meia hora mais tarde, sentaram-se perante uma enorme refeição de carne de porco com milho, broa e purê de batata. Glynnis tinha trazido a carne de porco, Megan. o milho e as batatas eram da colheita de Oona. Todos cultivavam os seus próprios alimentos, mas quando necessitavam de mais iam comprá-los ao Strong. Era a única mercearia num raio de quilômetros e a melhor da região. Os Strong estavam bem na vida, até em épocas mais duras, e o seu negócio era sólido. Oona disse o mesmo quando terminaram a refeição, enquanto Cassie ouviu o som familiar de um motor lá fora. Era fácil adivinhar quem era. Ele aparecia quase todas as noites depois de jantar, especialmente agora que ambos estavam de férias.

Cassie conhecia Bobby Strong, o filho único do merceeiro local, desde criança. Era um bom rapaz e há anos que eram grandes amigos. Mas nos últimos dois anos tinham sido mais do que isso, se bem que Cassie insistisse em dizer que não sabia exatamente o quê. A mãe e Megan estavam sempre a lembrar-lhe que tinham casado aos dezessete anos e que, portanto, era melhor que soubesse o que estava a fazer com Bobby. Ele era sério e responsável, Pat e Oona gostavam dele, mas Cassie não estava pronta para admitir a si própria, nem a ele, que o amava.

Gostava de estar com Bobby. Gostava dele e dos seus amigos. Apreciava as suas boas maneiras, gentileza, consideração e paciência. Tinha um coração de ouro, e ela adorava o modo como ele lidava com as sobrinhas e sobrinhos. Cassie gostava de muitas coisas nele, mas ainda não era tão excitante como os aviões. Nunca tinha conhecido um rapaz que o fosse. Talvez não existisse tal coisa. Talvez fosse algo que era preciso aceitar. Porém, não gostaria de conhecer um rapaz que fosse tão excitante como um Gee Bee Super Sportster ou um Beech Staggerwing ou um avião de corrida Wedell-Williams. Bobby era um bom rapaz, mas não tinha comparação com um avião.

- Olá, Mistress O'Malley... Glynn... Meg... Colleen... Ena! Parece estar para breve!

Colleen parecia enorme enquanto tentava reunir, com a ajuda da mãe, os filhos para ir para casa.

- Talvez seja esta noite se eu não parar de comer a torta de maçã da minha mãe - sorriu Colleen.

Ela só era cinco anos mais velha do que eles, mas Cassie sentia que tinham anos-luz de diferença. As irmãs estavam todas casadas, instaladas na vida e eram muito diferentes. Sabia instintivamente que, de um modo ou de outro, nunca poderia ser como elas. Por vezes, perguntava a si própria se teria sido amaldiçoada, se o fato de o pai tanto querer um rapaz a havia prejudicado antes de nascer. Talvez fosse uma degenerada. Gostava de rapazes, especialmente de Bobby, mas adorava aviões e ainda mais a sua independência.

Bobby apertou a mão a Pat, cumprimentou Chris, enquanto todas as crianças se agarraram a ele. Pouco depois, a mãe e as irmãs mais velhas foram limpar a cozinha, mas Oona disse a Cassie que não se preocupasse e que ficasse junto de Bobby. Nessa altura, ela já tinha lavado a cara, contudo ainda era possível ver os vestígios da gordura que lá tinha estado antes do jantar.

- Como foi o teu dia? - perguntou ele com um sorriso. Era desajeitado, mas agradável, tentando ser tolerante em relação às suas idéias estranhas e ao seu fascínio pelos aviões do pai. Fingia interessar-se ouvindo-a falar sobre o novo avião que tinha passado por ali ou sobre o arriado Vega do pai. Mas, na verdade, ela até podia estar calada. O rapaz apenas queria estar junto dela. Aparecia, fielmente, quase todas as noites, e Cassie ainda parecia surpreendida com isso, o que divertia bastante os pais.

Não estava pronta para enfrentar a seriedade do seu compromisso nem para aceitar o significado das suas visitas persistentes. Ela terminaria o curso dos liceus no ano seguinte e, se ele continuasse a visitá-la com tanta freqüência, poderia esperar que casassem assim que terminassem o liceu. Ficava aterrorizada só de pensar nisso. Desejava muito mais do que aquilo. Tempo, espaço, a faculdade, e a sensação que tinha quando fazia um looping ou um parafuso. Estar com Bobby era como ir de carro para Ohio: seguro, sólido e monótono. Não era como voar para qualquer lado. No entanto, sabia que, se ele deixasse de a visitar, sentiria a sua falta.

- Hoje subi no Jenny com o Chris. - Informou-o de tudo tentando parecer casual. Ser demasiado séria com Bobby assustava-a. - Foi divertido! Fizemos alguns oitos e um looping.

- Parece que o Chris está a tornar-se um bom piloto! - disse Bobby educadamente, mas, tal como Chris, os aviões não lhe diziam muito. - Que mais fizeste?

Ele estava sempre interessado nela e secretamente achava-a linda. Ao contrário, os outros rapazes achavam-na demasiado alta ou com o cabelo demasiado ruivo, ou então apenas gostavam dela pela sua esplêndida figura, ou pensavam que ela era estranha porque sabia muito sobre aviões. Bobby gostava dela por ser quem era, mesmo que por vezes reconhecesse a possibilidade de não a compreender. Mas isso fazia parte do seu caráter terno, para além de muitas outras coisas, sendo por isso que a jovem se sentia confusa sobre os seus sentimentos por ele. A mãe dizia-lhe que tinha sentido o mesmo com Pat, no início da sua relação. Os compromissos são sempre difíceis, dizia Oona, o que tornava tudo ainda mais complicado para Cassie. Ela não sabia que pensar sobre o que sentia por Bobby.

- Não sei... - Cassie continuou a responder à sua pergunta, tentando lembrar-se de tudo o que fizera. Tudo tinha a ver com aviões. - Meti gasolina numa série de aviões, afinei o motor do Jenny antes de o Chris o levar e acho que conseguia tê-lo arranjado. - Tocou no rosto conscientemente e sorriu. - Fiquei com muita gordura na cara. O meu pai teve um ataque quando me viu. Não consegui tirá-la toda. Devias ter-me visto antes de jantar!

- Pensei que estavas a ficar com sardas - retorquiu ele maliciosamente, fazendo-a sorrir. Era um bom companheiro e sabia como os sonhos de Cassie, tais como ir para a faculdade, eram importantes para ela. Ele próprio não tencionava fazê-lo. Ia ficar em casa e ajudar o pai nos negócios, tal como fazia todos os dias depois da escola e durante todo o Verão. - No sábado à noite vai passar no cinema o novo filme do Fred Astaire, Siga a Marinha. Queres ir? Dizem que é um grande filme. - Bobby olhou-a esperançosamente, ela acenou lentamente com a cabeça e sorriu-lhe.

- Gostava muito.

Alguns minutos mais tarde saiu a última das suas irmãs juntamente com os filhos, e Cassie e Bobby ficaram novamente sozinhos no alpendre. Os pais estavam na sala. Sabia que eles podiam vê-los do sítio onde estavam sentados, mas os pais eram sempre discretos quando Bobby a visitava. Gostavam dele e Pat não teria ficado infeliz se eles decidissem casar em junho, quando ela acabasse o liceu. Desde que não se metessem em sarilhos, podiam passar o tempo que quisessem a namorar no alpendre. Para ele estava tudo bem. Era melhor do que tê-la no aeroporto.

No interior, Pat estava a contar a Oona o looping que Chris fizera nessa tarde. Estava muito orgulhoso dele.

- O rapaz tem um talento natural, Oona. - Sorriram um para o outro e ela deu graças por terem tido o filho que ele sempre desejara tão desesperadamente.

Sob o alpendre, Bobby estava a falar sobre o seu dia na mercearia e sobre o modo como a depressão estava a afetar os preços da comida em Illinois e em todo o país. Sonhava em abrir uma cadeia de lojas em várias cidades, talvez até em Chicago. Mas toda a gente tem sonhos. Os de Cassie eram bastante mais incomuns e mais difíceis de expressar. Os dele eram apenas ambiciosos sonhos de juventude.

- Já alguma vez pensaste em fazer algo de totalmente diferente e não o que o teu pai faz? - perguntou ela, intrigada com a idéia, se bem que, quanto a si, desejasse seguir as passadas do seu pai. Mas essas passadas eram-lhe completamente interditas, o que as tornava muito mais apelativas.

- Na realidade, não - respondeu Bobby calmamente. - Eu até gosto do negócio dele. As pessoas precisam de alimentos. De bons alimentos. Nós fazemos algo de importante pelas pessoas, mesmo que não pareça muito estimulante. Mas talvez pudesse ser.

- Talvez! - Ela sorriu-lhe. Subitamente ouviu um zumbido por cima da cabeça e olhou na direção do familiar som dos motores. - É o Nick! Está a caminho de San Diego com um carregamento. De regresso parará em São Francisco para trazer o correio de um dos nossos contratos. - Sabia que ele estava a pilotar o Handley Page, pois distinguia perfeitamente o som dos motores.

- Provavelmente, ele também se cansa disso - disse Bobby sabiamente. - A nós parece excitante, mas para ele é apenas um emprego como o do meu pai.

- Talvez! - Mas Cassie sabia que não. Voar não era assim. - Os pilotos são de uma raça diferente. Amam o que fazem. É quase como se não conseguissem suportar a idéia de fazer outra coisa qualquer. Está-lhes no sangue! Vivem-no e respiram-no. Amam-no mais do que qualquer outra coisa no mundo, - Os seus olhos brilharam ao dizer isto.

- É provável! - Bobby estava espantado com o que ela acabara de dizer. - Não posso dizer que o compreenda.

- Eu acho que a maioria das pessoas não o compreende. É como um fascínio misterioso. Uma dádiva maravilhosa, Para as pessoas que adoram voar, o céu significa mais do que qualquer outra coisa.

Ele riu-se suavemente no ar quente da noite:

- Acho que tens uma maneira demasiado romântica de ver as coisas. Não estou certo que todos vejam as coisas da mesma maneira. Podes crer, para eles, é apenas um emprego.

- Talvez - disse ela, não querendo discutir com Bobby, mas sabendo muito mais do que dizia. A aviação era como uma irmandade secreta, a que ela desejava desesperadamente pertencer e até agora ninguém a tinha deixado. Mas tudo o que importava eram os poucos momentos que estivera no ar nesse dia, quando Chris a deixara pilotar o avião.

Ficou sentada durante muito tempo a pensar nisso e a olhar para a escuridão para além do alpendre, esquecendo-se da presença de Bobby. Subitamente, quando o ouviu mexer-se, lembrou-se.

- Acho que me vou embora. Deves estar cansada de abastecer tantos aviões - disse ele para a arreliar. Mas na realidade ela queria estar só para pensar no que tinha significado pilotar um avião. Aqueles poucos minutos tinham sido maravilhosos. - Até amanhã, Cass.

- Boa noite.

Ele agarrou-lhe na mão por breves instantes e passou os lábios pelo rosto dela antes de voltar para o velho caminhão Modelo A de seu pai, onde estava escrito «Mercearia Strong». Durante o dia, usavam-no para entregas. À noite, deixavam Bobby usá-lo.

- Até amanhã!

Ela sorriu e acenou-lhe enquanto o rapaz se afastava. Depois caminhou lentamente para casa, pensando na sorte que Nick tinha em estar a voar pela noite fora, a caminho de San Diego.

 

Nick regressou da costa oeste no domingo à noite, depois de largar carga e correio em Detroit e Chicago. Às seis da manhã de segunda-feira, já estava sentado à secretária com um ar repousado e enérgico. Era um dia de muito trabalho, pois tinham entrado novos contratos e havia sempre mais correio e carga para transportar. Tinham muitos pilotos ao seu serviço e aviões suficientes, mas Nick ainda se oferecia para fazer as viagens de longo percurso, as mais difíceis de pilotar. Dava-lhe uma enorme satisfação entrar num avião e voar pela noite fora, especialmente com mau tempo. Pat era o perfeito oposto. Era um gênio administrativo. Ainda gostava de voar, mas tinha menos tempo e, de certo modo, menos paciência. Dava-lhe cabo do juízo quando algo corria mal com um avião, se atrasavam ou os horários não eram cumpridos. Não tinha paciência para os pequenos truques dos pilotos, obrigando-os a andar na linha e a ser cem por cento fiáveis. De outro modo, nunca mais voariam para o O'Malley.

- É melhor teres cuidado, Ás - dizia-lhe Nick de vez em quando. - Estás a começar a ficar como o Rickenbacker. - Referia-se ao antigo comandante.

- Podia ser muito pior, Stick, e tu também - retorquia Pat, usando a velha alcunha de guerra de Nick.

A sua história da guerra era tão colorida como a de Pat. Uma vez, Nick tinha enfrentado o famoso piloto alemão Errist Udet, e conseguira corajosamente trazer o avião, apesar de estar ferido. Mas tudo isso pertencia ao passado. A única altura em que Nick pensava na guerra era quando lutava contra as condições climatéricas ou quando tinha de aterrar um avião sem uma roda. Tivera algumas dificuldades durante os dezessete anos em que trabalhara para Pat, mas nenhuma fora tão dramática como as aventuras de guerra.

Nick recordara-se de uma delas ao fim da tarde, enquanto observava uma tempestade a começar a leste, e mencionou-a a Pat. Tinha sido apanhado numa tempestade terrível, durante a guerra, que o obrigara a voar tão baixo para atravessar as nuvens que quase raspara com a barriga do avião no solo. Pat riu-se ao recordá-lo. Zangara-se imenso com Nick por ter voado tão baixo, mas Nick conseguira salvar-se a si e ao avião. Dois outros homens tinham-se perdido na mesma tempestade e nunca voltaram.

- Apanhei o maior susto da minha vida - admitiu Nick duas décadas mais tarde.

- Se bem me lembro, estavas verde quando chegaste.

Pat picou-o um pouco enquanto observavam as enormes nuvens negras a juntarem-se à distância. Nick ainda estava cansado do longo vôo até à costa oeste, no dia anterior, mas queria acabar de tratar dos papéis antes de ir para casa dormir. Quando voltou para o escritório com Pat, após verificarem o estado de alguns aviões, reparou em Chris e Cassie ao longe a conversar. Pareciam embrenhados na conversa e não deram por ele. Não conseguia imaginar qual seria o tema da conversa, mas isso também não o preocupava. Sabia que o tempo estava demasiado ominoso para Chris ir com ele treinar ou fazer um solo.

Cassie e Chris ainda estavam a conversar quando Nick entrou no escritório, mas Cassie gritava com o irmão sobre o ruído de alguns motores próximos.

- Não sejas estúpido! Só temos de subir e descer durante alguns minutos. A tempestade ainda está muito distante. Esta manhã ouvi todos os boletins meteorológicos. Não sejas tão covarde, Chris.

- Não quero voar com este tempo, Cass. Podemos ir amanhã.

- Quero ir agora! - As negras nuvens que passavam sobre as suas cabeças só parecia excitarem-na ainda mais. - Vai ser divertido.

- Não, não vai ser divertido! E, se eu ponho o Jenny em risco, o pai vai ficar furioso comigo. - Tanto ele como Cassie conheciam bem o pai.

- Não sejas parvo! Não estamos a arriscar nada. As nuvens ainda estão bem lá no alto. Se formos agora, estaremos de regresso dentro de meia hora e é perfeitamente seguro.

Ele olhou-a nos olhos com alguma infelicidade, detestando-a por ser tão persuasiva. Sempre lhe fizera isso. De qualquer modo, era a irmã mais velha. Ele sempre a ouvira e, freqüentemente, as suas idéias davam mau resultado, especialmente quando o impelia a confiar nela. Cassie era o diabo ousado da família, enquanto ele era sempre hesitante e cauteloso. Mas Cassie nunca ouvia a voz da razão. Por vezes, era mais fácil ceder do que continuar a discutir. Os seus olhos azuis suplicavam, sendo óbvio que ela não ia aceitar um não como resposta.

- Só quinze minutos - concedeu ele finalmente com um ar infeliz -, e sou eu que decido quando voltamos. Não me interessa se achas que é muito cedo ou se ainda não estás satisfeita. Quinze minutos e voltamos. É assim, Cass, ou então esquece. De acordo?

- De acordo. Só quero ver como é com este tempo.

Ela parecia uma rapariguinha com namoro novo. Os seus olhos luminosos bailavam.

- Acho que és louca - disse ele, mal disposto. Mas parecia mais fácil acabar com tudo do que estarem ali a gritar um com o outro até a tempestade desabar.

Foram até ao local onde o Jenny estava guardado, empurraram-no para fora do hangar e fizeram as verificações necessárias, saltando depois para os respectivos lugares. Cassie sentou-se novamente à frente e Chris atrás, no lugar do instrutor. Em teoria, tal como anteriormente, ela era apenas um passageiro e, como ambos tinham comandos, ninguém podia ver quem estava a pilotar.

Alguns minutos mais tarde, Nick ouviu o ruído de um avião por cima dele, mas não prestou muita atenção. Pensou que era algum louco a tentar chegar a casa antes que a tempestade desabasse. Pela primeira vez, o problema não era seu. Todos os seus pilotos estavam pousados nos locais que Nick determinara, depois de ouvir o boletim noticioso meia hora antes. Mas ao ouvir o barulho podia ter jurado que estava a ouvir o Jenny. Parecia impossível, contudo foi até à janela e então viu-os. Descortinou o cabelo ruivo de Cassie no lugar da frente e Chris logo atrás. Este estava a pilotar o avião, ou pelo menos assim parecia, e o vento batia-lhes com tanta força que quase parecia arrastá-los depois da descolagem. Estavam a voar a uma velocidade surpreendente; depois, Nick viu-os subir drasticamente, devido provavelmente a uma súbita rajada. Observou-os, espantado, incapaz de acreditar que Chris tivesse sido tão corajoso e tão louco para descolar com uma tempestade de vento como aquela. Quase no momento em que desapareceram numa nuvem, Nick reparou na chuva que caía como se alguém no céu tivesse aberto uma torneira.

- Merda! - murmurou ele para si próprio, enquanto se apressava a sair para verificar o lugar onde estivera o Jenny, mas não conseguia distinguir nada. A tempestade estava a mover-se rapidamente, com ventos aterradores e relâmpagos. Alguns minutos mais tarde, estava encharcado e não havia qualquer sinal de Chris ou Cassie.

Chris lutava com os controles à medida que ganhavam altitude, e Cassie tinha-se virado para lhe gritar alguma coisa, mas, com a tempestade e o barulho do motor, não a conseguia ouvir.

- Deixa-me levá-lo! - gritava ela. Finalmente, Chris compreendeu quando ela fez sinais gestuais. Abanou a cabeça, mas ela continuou a acenar-lhe, sendo óbvio que ele estava a ser rapidamente superado pelas forças da Natureza. A força do vento e da tempestade eram demasiadas para si, enquanto o avião estava a ser atirado para um lado e para outro como um brinquedo nas mãos de uma criança, devido à sua falta de perícia. Então, sem lhe dizer uma palavra, Cassie virou a atenção para os controles e com força pura superou-o e assumiu-os. Começou a pilotar o avião com as suas fortes mãos sobre os controles e, dentro de alguns instantes, apesar dos ventos ferozes, o avião quase tinha estabilizado. Nessa altura, Chris parou de lutar com ela e, quase em lágrimas, deixou cair as mãos dos controles, permitindo que a irmã pilotasse. Talvez esta soubesse menos do que ele, mas parecia ter uma relação com o avião à qual ele nem perto chegava. Chris sabia que, nas suas mãos, quase decerto seriam destruídos. Talvez nas mãos de Cassie houvesse mais esperança. Por um instante, fechou os olhos e rezou, desejando não ter sido convencido a levantar vôo durante uma tempestade.

Estavam ambos encharcados na carlinga aberta. Quanto ao avião subia e descia devido às rajadas aterradoras. Caíam cerca de trinta metros e subiam outra vez, se bem que mais devagar. Era como cair de um edifício e depois gatinhar outra vez para cima para cair novamente como se fosse um boneco de papel. As nuvens estavam quase negras enquanto Cassie lutava com a alavanca de comando, mas parecia sentir a altitude instintivamente. Tinha um sentido  estranho sobre a maneira como o avião cooperava e parecia funcionar em conjunto com o avião para chegar aonde queria. Mas já não faziam idéia de onde estavam, qual a distância percorrida e qual altitude a que se encontravam. O altímetro  avariara. Cassie tinha alguma idéia, mas ver o solo tornara-se completamente impossível. A linha de nuvens que se movia a uma rapidez incrível tinha-os desorientado completamente.

- Estamos bem - gritou ela encorajadoramente para Chris mas este não conseguia ouvi-la. - Vai estar tudo bem - continuava ela a dizer consigo própria,  começando depois a falar com o próprio Jenny, como se o pequeno avião conseguisse seguir as suas instruções. Tinha ouvido falar sobre alguns truques do pai e de Nick, e sabia que havia um que os tiraria desta confusão se, antes disso, a tempestade não os matasse. Tinha de confiar nos seus instintos e estar muito, muito segura... Cassie falava consigo própria enquanto começava a descer dramaticamente. Andava à procura da parte mais baixa das nuvens, contando encontrá-la antes de tocarem o solo. Mas tivesse demasiado baixa e ela descesse muito depressa ou se perdesse o controlo por um único momento... Chamava-se corrida rápida... Morreriam. Era tão simples como isso; ambos o sabiam à medida que o pequeno Jenny descia em direção ao solo, tão depressa quanto Cassie o permitia. Enquanto voavam através daquela escuridão molhada, a velocidade era aterrorizadora e o som do vento ensurdecedor. Parecia estarem a cair num buraco sem fundo pleno de sons horríveis e sentimentos assustadores. Subitamente antes de os poder ver, ela sentiu a linha das árvores, o solo e o aeroporto. Puxou a alavanca com força e levantou o avião mesmo antes de ele atingir as árvores. Por alguns momentos, perderam-se novamente nas nuvens, mas sabia agora onde estavam e como chegar ao aeroporto. Fechou os olhos por um segundo para sentir onde estava e a que velocidade podia descer e viu de novo as árvores.

Desta vez, o avião estava completamente sob controlo. Entrou a rasar as árvores, com o vento a soprar nas asas, as quais foram quase derrubadas. Subiu e circulou novamente o aeroporto, perguntando a si própria se conseguiriam aterrar ou se seria impossível devido à força de ventos imprevisíveis. Cassie não tinha medo. Estava apenas a pensar com calma. Depois viu-o. Era Nick a acenar freneticamente com os braços. Tinha visto a manobra: atravessar as nuvens e quase atingir o solo. Estava a menos de quinze metros do chão. Ele correu para o sítio onde ela deveria estar e tentou sinalizá-la na pista mais longínqua. Naquele local, o ângulo do vento era menor, o que lhe permitiria fazer uma aterragem de cortar a respiração. O pequeno Jenny guinchou durante todo o percurso da pista, o vento batia-lhes com força nas faces, e Cassie cerrou tanto os dentes que lhe doía o rosto. Tinha o cabelo colado à cabeça e as mãos dormentes de agarrar a alavanca. Chris estava sentado atrás dela com os olhos fechados. Balançaram bastante quando atingiram o solo, e Chris abriu os olhos. Não conseguia acreditar que ela houvesse conseguido aterrar e tivera a certeza de que iam morrer. Ainda estava em choque quando Nick chegou perto deles e fisicamente o arrastou do avião, enquanto Cassie ficou sentada a tremer.

- Que raio é que vocês estavam a tentar fazer? Suicidar-se ou bombardear o aeroporto?

Tinham rasado o telhado na descida, mas Cassie havia decidido que esse era o menor dos seus problemas. Ainda estava espantada por os ter conseguido trazer e teve de lutar para reprimir um sorriso de alívio. Assustara-se bastante e, no entanto, parte dela permanecera tranqüila. Tudo o que conseguia fazer era pensar numa maneira de sair dali e falar com o pequeno avião.

- Estão loucos? - Nick estava a abanar o rapaz e a olhar para ela espantado, quando Pat chegou a correr ao aeroporto

- O que se está a passar? - gritou ele a todos, enquanto o vento o fustigava. Cassie começou a preocupar-se com o avião; não queria que ele se virasse e se danificasse enquanto eles estavam ao vento na pista.

- Estes teus dois loucos foram dar uma voltinha no meio desta tempestade. Acho que estão a tentar matar-se ou destruir os teus aviões. Não tenho a certeza qual, mas penso que deviam levar um pontapé no rabo. - Nick estava tão furioso que mal conseguia falar, e Pat não podia acreditar no que estava a ver.

Olhou para Chris com a mais inacreditável expressão de espanto.

- Vocês saíram no meio disto? - referia-se ao tempo e não ao avião como Chris já entendera.

- Eu... eu pensei que conseguíamos subir e descer logo... e... - Só lhe apetecia chorar e dizer: «Mas, pai, a Cassie obrigou-me», tal como fizera em criança. No entanto, não disse uma palavra, pois o pai estava a tentar esconder o orgulho que sentia dele. O miúdo tinha coragem e era um piloto dos diabos.

- E aterraram no meio disto? Não sabes como é perigoso voar com este tempo? Podiam ter morrido. Pat não conseguia esconder o orgulho na voz, pois era algo que o ultrapassava.

- Eu sei, pai. Desculpe.

Chris estava a lutar para não chorar, mas Cassie observava o rosto do pai. Ela sabia muito bem o que vira ali. Era puro orgulho nas proezas do filho. Deveria ser para ela, mas foi para Chris porque ele era rapaz. Era assim que as coisas funcionavam e sempre tinham funcionado. Fosse o que fosse que ela fizesse na vida, sabia que tinha de o fazer sozinha e não para ele, porque o pai nunca o compreenderia ou lhe daria crédito. Para o pai, ela era «apenas uma rapariga» e sempre o seria.

Pat virou-se então para olhar para Cassie quase como se conseguisse ouvi-la pensar. Depois olhou novamente para o filho com um ar zangado.

- Nunca devias tê-la levado no meio desta tempestade. É demasiado perigoso para os passageiros estar no ar com más condições climatéricas. Tu próprio não devias ter subido. Mas nunca leves um passageiro com um tempo como este.

Ela era alguém a proteger, mas nunca admirada. Era o seu destino e sabia-o.

- Sim senhor.

Os olhos de Chris estavam rasos de lágrimas quando o pai olhou para o avião e para o filho com um ar espantado.

- Vai guardá-lo.

E com isso, afastou-se, ficando Nick a observar Chris e Cassie a empurrar o avião. Chris parecia tão abalado que mal conseguia falar; Cassie, porém, estava calma enquanto tirava a água da chuva do avião e verificava o motor. O irmão apenas olhou para ela zangado, depois foi-se embora determinado a nunca lhe perdoar por quase o ter morto. Nunca esqueceria como tinham estado perto da morte e tudo devido a um dos seus caprichos. A irmã era completamente louca e tinha-o provado.

Ela arrumou as últimas ferramentas, mas ficou surpreendida quando se virou e viu Nick em pé mesmo atrás dela. Estava com um ar muito semelhante ao da tempestade que ela acabara de atravessar. O irmão tinha partido, e o pai estava à espera deles dentro do aeroporto.

- Nunca mais faças isso! Es uma louca e podias ter morrido. Aquele pequeno truque só funciona de vez em quando para os grandes pilotos e normalmente nem para eles. Nunca mais funcionará para ti, Cass. Não experimentes.

Contudo, tinha resultado com ele mais do que uma vez há alguns anos atrás. Pat observara-o e tinha ficado tão furioso como Nick estava agora. Os seus olhos pareciam aço a olhar para ela. Estava furioso, mas havia mais qualquer coisa. Quando reparou nisso, o coração de Cassie deu um pequeno salto. Era o que ela sempre desejara de Pat e sabia que nunca o teria: admiração e respeito. Era tudo o que queria.

- Não sei a que te referes!

Desviou o olhar. Agora que estava com os pés em terra, sentia-se esgotada. A excitação já quase desaparecera e o que sentia agora era a ressaca do terror e a exaustão.

- Sabes muito bem a que me refiro - gritou-lhe ele, agarrando-lhe num braço. O cabelo negro caía-lhe sobre o rosto. Tinha estado a olhar para o avião, desejando que ela entrasse, que ela encontrasse o buraco nas nuvens para o conseguir. Não conseguiria suportar perder os dois. Vê-los morrer por causa de uma brincadeira... Na guerra não tinham escolha. Mas agora era diferente. Era completamente irracional.

- Larga-me! - Estava zangada com ele. Estava zangada com todos. O irmão ficara com os louros e não sabia nada sobre pilotagem. O pai estava obcecado com ele e não conseguia ver mais nada. Nick pensava saber tudo. Era o clube secreto. Tinham todos os brinquedos e nunca a deixavam brincar. Só servia para abastecer os aviões, trabalhar nos motores e ficar com óleo e gordura no cabelo, mas nunca para pilotar os aeroplanos. - Deixa-me em paz! -. gritou-lhe ela. Nick agarrou-lhe o outro braço. Nunca a vira assim e não sabia se lhe devia bater ou abraçá-la.

- Cassie! Eu vi o que fizeste lá em cima! - Ainda estava a gritar com ela. - Eu não sou cego! Sei que o Chris não consegue pilotar assim. Sei que eras tu que estavas aos comandos, mas és louca. Podias ter morrido... Não podes fazer isso...

Ela olhou-o com um ar tão infeliz que o seu coração se juntou ao dela. Tinha desejado dar-lhe uma surra por quase ter morrido e agora, em vez disso, sentia pena dela. Percebia agora o que a jovem desejava e até que ponto iria para o conseguir.

- Cassie! Por favor... - Continuou agarrado aos seus braços e puxou-a para si. - Por favor... Nunca mais faças uma coisa destas. Eu próprio te ensinarei. Prometo. Deixa o Chris. Não lhe faças isso. Eu ensino-te. Se o desejas tão desesperadamente, fá-lo-ei.

Nick segurava-a perto de si, embalando-a como a um bebê e grato por ela não ter morrido devido a uma brincadeira louca, mas ousada. Sabia que não conseguiria suportar esse desgosto. Olhou para ela com um ar infeliz e manteve-a perto de si. Estavam ambos muito abalados com o que acontecera. Ela apenas abanava a cabeça. Sabia que era impossível. Era a única maneira de conseguir voar.

- O meu pai nunca vai deixar que me ensines, Nick - disse num lamento, deixando de negar que fora ela a aterrar o avião. Nick sabia a verdade. já não havia razão para lhe mentir. Tinha sido ela.

- Eu não disse que ia pedir-lhe, Cass. Só afirmei que o faria, mas não aqui. - Ele sorriu-lhe e entregou-lhe uma toalha lavada para secar o cabelo. - Pareces uma ratazana afogada.

- Pelo menos não tenho óleo na cara, para variar - replicou ela timidamente. Sentia-se mais perto dele do que nunca... e diferente. Estava a secar o cabelo quando o olhou de novo. Não conseguia acreditar no que estava a ouvir. - O que queres dizer com «aqui não»? Para onde iríamos?

Subitamente sentiu-se adulta e fazendo parte de uma conspiração. Algo mudara entre eles de uma maneira muito subtil.

- Existem várias pistas para onde podemos ir. Pode não ser fácil, mas podes apanhar a camioneta para Prairie City, depois da escola, e eu posso encontrar-me contigo lá. Entretanto, talvez o Chris possa deixar-te lá durante o Verão a caminho do trabalho. Creio que ele prefere fazer isso a arriscar a vida várias vezes por semana para voar contigo. Eu preferiria.

Cassie sorriu. Pobre Chris. Tinha-lhe pregado o susto da sua vida e sabia-o. Tinha parecido uma idéia muito boa e durante alguns minutos fora divertido. Depois tornara-se a coisa mais assustadora que ela jamais fizera e também a mais excitante.

- Estás a falar a sério? - Estava espantada, mas, de fato, ambos estavam. Ele próprio sentia-se um pouco surpreendido com a oferta que fizera.

- Acho que sim. Nunca pensei fazer algo deste tipo, mas acho que algumas instruções te manterão afastada de muitos problemas. Depois, quando já voares como uma pessoa respeitável... - Olhava-a fixamente. - Talvez possamos falar com o Pat e ver se te deixa voar aqui. Ele é capaz de o permitir. Tem de ser capaz.

- Não acho que o permita - retorquiu ela com um ar lúgubre quando saíram para a chuva para ir ter com o pai ao escritório. Então, mesmo antes de lá chegarem, novamente ensopados, a rapariga parou e olhou para Nick com um sorriso que lhe derreteu a alma. Ele não queria ter tais sentimentos em relação a ela e isso assustou-o. Todavia, tinham passado por muito naquela noite e tudo os tinha aproximado.

- Obrigada, Nick.

- Não tens de quê. E farei o que prometi.

O pai estrangulá-lo-ia se soubesse das lições. Passou a mão pelo cabelo molhado e encaminhou-a até ao escritório do pai. Chris estava com um ar abalado e cinzento, e o pai acabara de dar-lhe um gole de brande.

- Estás bem, Cass?

Pat olhou para ela, mas viu que a filha não estava com mau aspecto, ao contrário do irmão. A responsabilidade e a aterragem no aeroporto eram dele. Pelo menos era isso o que o pai pensava e Chris não lhe tinha dito o contrário.

- Estou bem, pai - assegurou ela.

- És uma rapariga muito corajosa - retorquiu Pat com admiração, mas não com a admiração suficiente.

Só Nick a tinha compreendido. Nick que tinha concordado em dar-lhe aquilo com que ela sempre sonhara. O seu sonho tornara-se realidade e estava subitamente contente por ter subido no meio de uma tempestade, mesmo tendo corrido um enorme risco. Vistas bem as coisas, talvez tivesse valido a pena.

Pat levou Chris e Cassie para casa, onde a mãe os esperava. Assim que se sentaram para jantar, o pai contou toda a história a Oona. Ou aquilo que ele pensava ser toda a história: como Chris fora extraordinário, como tinha voado por mero instinto e força e, depois da parvoíce inicial de levantar vôo no meio de uma tempestade, os tinha trazido para casa em segurança. O pai estava tão orgulhoso dele que Chris nada disse. Apenas se dirigiu ao quarto, deitou-se na cama e chorou, com a porta fechada.

Algum tempo depois, Cassie foi vê-lo. Bateu à porta durante muito tempo. Finalmente, ele deixou-a entrar com um olhar que combinava angústia e fúria.

- O que é que queres?

- Pedir-te que me desculpes por te ter assustado e quase nos termos matado. Desculpa, Chris. Não devia tê-lo feito.

Podia agora dar-se ao luxo de ser magnânima. Agora que Nick concordara com o que ela sempre desejara.

- Nunca mais subo num avião contigo - disse ele com ar amuado, olhando para ela como um irmão muito mais novo que tinha sido usado e traído por uma irmã mais velha, mais esperta.

- Não precisas - afirmou Cassie calmamente, sentada à beira da cama a olhá-lo.

- Vais desistir de voar? - Nunca acreditaria nisso.

- Talvez... por agora... - Encolheu os ombros como se isso não tivesse importância, mas ele conhecia-a bem.

- Não acredito.

- Depois verei. Agora não tem importância. Só queria pedir-te desculpa.

- E devias - atacou ele rapidamente, recuando logo depois, tocando-lhe o braço. - De qualquer modo, obrigado... por nos teres salvo lá em cima. Cheguei a pensar que estávamos condenados.

- Eu também - sorriu ela, excitada. - Durante algum tempo, pensei igualmente que tudo estava acabado. - Riu-se novamente.

- Sua louca! És um piloto incrível, Cass. Um dia terás de aprender a sério e não fazer todas estas coisas nas costas do pai. Ele tem de te deixar voar. És dez vezes melhor piloto do que eu jamais serei. Aposto que és tão boa como ele - afirmou Chris com admiração.

- Duvido, mas tu ficas bem. Es um bom piloto, Chris. Não queiras é fazer coisas muito difíceis.

- Claro! Obrigado! - Ele sorriu-lhe já sem vontade de a matar. - Eu lembrar-te-ei isso na próxima vez que quiseres levar-me e matar-me.

- Não o farei durante algum tempo - afirmou ela angelicamente, mas o irmão conhecia-a.

- O que se passa? Estás a aprontar alguma, Cass.

- Não, não estou. Vou portar-me bem... por algum tempo...

- Deus nos ajude! Avisa-me quando decidires enlouquecer de novo. Afastar-me-ei do aeroporto. Acho que também devias fazer isso durante uns tempos. Ia jurar que aqueles fumos todos te subiram à cabeça.

- Talvez - disse ela com um ar sonhador.

No entanto, era mais do que isso e sabia-o. Tinha aqueles gases no sangue e sabia, melhor do que nunca, que jamais lhes escaparia.

Bobby Strong apareceu nessa noite depois de jantar. Ficou horrorizado quando ouviu a história de Pat e furioso com Chris quando o viu.

- A próxima vez que levares a minha miúda e quase a matares, terás de me prestar contas - disse ele para grande espanto de Chris e Cassie. - Foi uma coisa muito parva e tu sabe-lo.

Chris teve vontade de lhe contar que Cassie o tinha desejado e muitas outras coisas que não podia referir.

- Claro - murmurou vagamente o irmão mais novo enquanto voltava para o quarto. Eram todos doidos: Bobby, Cass, o pai e Nick. Nenhum sabia a verdade, nenhum sabia de quem era a culpa. O pai pensava que ele era um criminoso e Cassie tinha-os enganado a todos. Mas apenas Cassie sabia a verdade e agora também Nick desde que lhe prometera lições de pilotagem.

Nessa noite, Bobby repreendeu-a sobre os perigos da aviação, a sua inutilidade e o disparate que era. Disse que as pessoas envolvidas eram imaturas e que brincavam como se fossem crianças. Esperava que com os acontecimentos dessa noite ela tivesse aprendido a lição e que no futuro tentasse ser mais racional sobre as suas estadas no aeroporto. Explicou-lhe que esperava isso dela. Como é que ela poderia esperar ter um futuro se passava a vida coberta de gordura e óleo, estando disposta a arriscar a vida numa aventura selvagem com o irmão? Além disso, era uma rapariga e isso não era decente.

Tentou concordar com ele porque sabia que Bobby lhe queria bem, mas ficou aliviada quando este partiu. Nessa noite, deitada na cama a ouvir a chuva, só conseguia pensar no que Nick lhe tinha prometido e no momento em que voariam juntos. Mal conseguia esperar. Esteve acordada durante horas a pensar no assunto e a recordar-se da sensação do vento no rosto enquanto descia pelas nuvens no Jenny à procura das árvores, à espera de fugir mesmo antes de tocar o solo, depois subirem e finalmente aterrarem em segurança. Tinha sido um dia extraordinário e ela sabia que, dissessem o que dissessem sobre o perigo e a indecência, nunca abdicaria de voar. Por nenhum deles. Era simplesmente impossível.

 

Três dias após a tempestade que acabara por se transformar num tornado a vinte quilômetros de Blandinsville, Cassie levantou-se, fez as suas tarefas habituais e quando estava para sair disse à mãe que ia à biblioteca, depois iria visitar uma colega que se tinha casado nessa Primavera e que esperava o primeiro filho. Depois iria até ao aeroporto. Tinha embrulhado uma maçã e um sanduíche num saco de papel e retirara um dólar das suas poupanças, escondendo-o no bolso. Não tinha a certeza do preço do bilhete da camioneta, mas queria estar certa de que possuía o suficiente para chegar a Prairie City. Prometera encontrar-se com Nick ao meio-dia e, enquanto caminhava para o terminal de camionetas sob o sol de Verão, arrependeu-se de não ter posto um chapéu, mas sabia que se o tivesse feito a mãe teria suspeitado. Ela nunca usava chapéu.

À medida que caminhava, parecia uma rapariga alta que ia ter com os amigos. Aparentava a idade que tinha, mas era extraordinariamente bonita. Ainda mais bonita do que a mãe: mais alta e mais magra e com uma figura imponente. Mas a sua aparência era algo com que Cassie nunca se preocupava. O aspecto era para aquelas raparigas que não tinham mais nada nas cabeças, ou como as irmãs que queriam casar e ter filhos. Cassie sabia que queria filhos ou, pelo menos, pensava que os queria, no entanto, desejava primeiro muitas outras coisas que provavelmente nunca obteria, como excitação, liberdade e voar. Adorava ler histórias sobre mulheres aviadoras e lia tudo o que podia sobre Amelia Earhart e Jackie Coclíran. Também lera We, de Lindbergh, que narrava o seu solo sobre o Atlântico em 1927, e o livro da esposa do famoso aviador, North to the Orient, que saíra no ano anterior. Lera ainda o livro de Earhart, The Fun of It. Todas as mulheres aviadoras eram as suas heroínas. Perguntava freqüentemente a si própria por que razão elas tinham podido realizar aquilo com que ela apenas podia sonhar. Mas talvez agora com a ajuda de Nick, se ela pudesse voar, se pudesse levantar vôo como tinha feito com Chris, conseguisse pairar preguiçosamente pelos ares para sempre.

Estava tão perdida nos seus pensamentos que quase perdeu a camioneta, tendo de correr para a apanhar. Ficou aliviada por verificar que não havia ninguém conhecido. A viagem de quarenta e cinco minutos até Prairie City naquela camioneta dilapidada decorreu calmamente, e o bilhete só custara quinze cêntimos. Passou toda a viagem a divagar sobre as lições.

Desde a paragem da camioneta até à pista era uma longa caminhada, mas Nick dissera-lhe exatamente como lá chegar. Presumira que ela conseguiria uma boleia de alguém. Nunca lhe passara pela cabeça que Cassie iria caminhar os últimos quatro quilômetros para ir ter consigo. Quando chegou, estava cheia de calor, suada e coberta de pó. Ele estava calmamente sentado numa rocha a beber uma soda com o Jenny estacionado no final da pista deserta. Não estava mais ninguém. Apenas os dois. Era uma pista ocasionalmente usada por pulverizadores de colheitas, portanto pouco utilizada, mas estava em bom estado. Nick sabia que era o lugar ideal para as lições.

- Estás bem? - Olhou para Cassie com um ar paternal, enquanto ela tirava o seu brilhante cabelo ruivo do rosto e o prendia no pescoço. O sol estava tórrido. - Pareces vir do inferno. Toma! Bebe alguma coisa. - Nick deu-lhe uma Coca-Cola, olhando-a com admiração enquanto ela bebia um longo trago. Tinha um pescoço longo e gracioso e a sua brancura sedosa lembrava-lhe mármore cor-de-rosa. Era uma rapariga vistosa e, ultimamente, havia momentos em que quase desejava que ela não fosse filha de Pat. Todavia, estava sempre a dizer a si próprio que não lhe serviria de nada. Tinha trinta e cinco anos e ela dezessete, o que não fazia dela uma presa justa para um homem da sua idade. Porém, era tentador.

- O que é que tu fizeste, minha palerma? - perguntou ele aliviando a tensão do momento. Era estranho estar ali, os dois sozinhos na sua missão secreta. - Vieste a pé desde Good Hope?

- Não - respondeu ela com um sorriso. - Só de Prairie City. Isto é mais longe e mais quente do que eu pensava.

- Desculpa - disse ele. Sentia-se mal por a ter trazido para tão longe, mas parecera o local perfeito para os seus encontros com o avião do pai e para as lições secretas.

- Não faz mal - sorriu ela, bebendo outro gole da sua Coca-Cola. - Valeu a pena.

Nick conseguia facilmente ler nos seus olhos o quanto tudo significava para ela. Era louca por aviões e completamente apaixonada pela aviação. Exatamente como ele fora na sua idade, arrastando-se de aeroporto em aeroporto, feliz por nada fazer exceto estar junto de aviões e ter uma oportunidade de os pilotar de vez em quando. A guerra fora como um sonho realizado, voando no 94.0 com homens que quase se tinham tornado lendas. Mas Nick tinha pena de Cassie. Não seria nada fácil, sobretudo se Pat estivesse determinado a impedi-la de voar. Nick esperava que um dia pudesse convencê-lo. Entretanto, ensinar-lhe-ia as coisas mais importantes para que ela não se matasse a tentar realizar truques loucos ou fugir com o irmão. Ainda tremia quando pensava nela a voar pelas nuvens, há três dias atrás, quase a rasar o solo e a movimentar-se como uma bala. Pelo menos, agora, passaria a saber o que fazia.

- Vamos dar uma volta? - perguntou ele, apontando para o Jenny que ali estava à espera dos seus dois velhos amigos.

Cassie sentia-se demasiado excitada até para falar, à medida que caminhavam pela pista em direção ao tão familiar avião. Tinha-o abastecido milhares de vezes, limpo o motor, amorosamente lavado as asas e voado meia dúzia de vezes com Chris, que fingia estar a levar a irmã num pequeno passeio. Mas o Jenny nunca parecera tão belo a Cassie como agora. Deram uma volta pelo avião e verificaram o trem de aterragem para ter a certeza de que não tinha ficado danificado na aterragem. Era um avião baixo, com grande largura de asas, o que o fazia parecer maior, mas não intimidava Cassie. Ela subiu para o seu lugar e apertou o cinto. Sabia que os céus em breve seriam dela e tinha tanto direito a eles como os outros. Depois ninguém conseguiria fazê-la parar.

- Tudo a postos? - Nick gritou-lhe ao primeiro ruído do motor.

Cassie acenou com a cabeça, sorrindo, e ele saltou para o assento de trás. Inicialmente seria ele a pilotar o avião e, assim que estivessem no ar, passar-lhe-ia os comandos. Desta vez ela não teria de os arrancar das suas mãos, tal como fizera com Chris. Desta vez tudo seria claro e, ao deslizarem ao longo da pista, Cassie virou-se para o ver. O rosto de Nick era-lhe muito familiar. No entanto, ao olhar para ele agora, sentia-se imensamente feliz, e a única coisa que lhe apetecia fazer era atirar-se ao seu pescoço e beijá-lo.

- O que foi? - Ela disse algo que ele não conseguiu ouvir à primeira. Não pensava que se passasse alguma coisa, pois Cassie parecia demasiado feliz para haver qualquer problema. Mas ela inclinou-se para que a ouvisse melhor. O seu cabelo negro voava ao vento, os olhos tinham a cor de um céu de Verão e estavam semicerrados devido à luz do Sol.

- Eu disse... obrigada!...

Ela gritou-lhe com os olhos tão cheios de alegria que lhe tocou o coração. Apertou-lhe gentilmente o ombro e Cassie virou-se novamente para a frente, colocando as mãos nos comandos. Mas desta vez não havia dúvida sobre quem estava a pilotar. Era Nick.

Este empurrou a alavanca do acelerador para a frente e usou os pedais da direção. Momentos mais tarde, levantaram suavemente da pista, elevando-se no ar e, enquanto o faziam, Cassie sentia o coração a pairar nos ares com o velho Jenny. Sentia a mesma excitação sempre que descolava. Estava a voar!

Ele começou uma curva para se afastar da pequena pista, rolou as asas para estabilizar o avião e tocou no ombro de Cassie. Esta olhou e Nick indicou-lhe que assumisse o controlo do avião. Ela acenou com a cabeça e, quase como por instinto, Cassie apossou-se dos comandos. Sabia o que era necessário fazer e voaram através de um brilhante céu azul. Parecia que tinha voado toda a vida e, de certo modo, até tinha. Ele estava espantado com a sua habilidade e instintos naturais. Tinha apanhado muitos dos truques de Nick e do pai apenas por observação e parecia possuir um estilo próprio surpreendentemente suave e fácil. Apresentava-se completamente à vontade aos comandos do pequeno avião, e Nick decidiu apreciar o que ela conseguiria fazer na primeira lição.

Mandou-a fazer curvas e inclinações laterais diferentes, movimentando-se para a esquerda e depois para a direita. Ia-lhe a dizer para conservar direita a frente do avião para manter altitude, mas ela parecia saber automaticamente que o avião cairia durante as curvas, sem que ele lhe dissesse nada. O seu instinto natural para pilotar era inquietante. Ela conservou a alavanca de comando firmemente puxada para trás, e a frente do avião manteve-se levantada como resposta aos seus movimentos.

Nick mandou-a fazer curvas em S e, usando uma pequena estrada de terra como guia, verificava o modo como ela as fazia e o seu controlo fácil da altitude. Ela raramente parecia olhar para os instrumentos e, no entanto, sabia quando era preciso compensar ou elevar-se no céu. Parecia voar primariamente, por instinto e visão, o que era um sinal seguro de um piloto natural. Era raro ver alguém como Cassie e ele sabia que tinha visto muito poucos durante a vida.

Há algum tempo que estava a voar em círculos à volta de um silo, que haviam detectado numa quinta distante, mas ela queixou-se de que era aborrecido. Porém, ele queria verificar a sua precisão. Era cuidadosa, precisa e espantosamente correta, especialmente para alguém que poucas vezes tinha pilotado. Finalmente, deixou-a tentar um looping e o duplo looping com que ela tinha querido aterrorizar o irmão. Depois, ensinou-a a recuperar de uma perda de altitude, que era bem mais importante. Mais uma vez por instinto, ela parecia sabê-lo. A sua calma ao perder altitude impressionou-o, quando o Jenny começou a cair de focinho para baixo em vôo picado, ora sobre uma asa ora sobre a outra. Mas segundos depois, ela aliviou a pressão na alavanca de comando que tinha provocado a perda de altitude e, num movimento completamente temerário, permitiu o mergulho para aumentar a velocidade. Ele tinha explicado como fazê-lo, mas a rapariga pareceu não ter qualquer problema na sua execução nem falta de coragem durante o processo. A maioria dos pilotos ficava aterrorizada com a queda e com a súbita gravidade 0. Cassie não temia nenhuma delas e, quando o Jenny ganhou velocidade suficiente, empurrou o acelerador, imprimiu-lhe força de motor e nivelou-o como se se tratasse de uma águia bebê, deixando o avião elevar-se até ao ponto que ela queria, sem um murmúrio.

Nick nunca ficara tão impressionado, tendo-a obrigado a fazê-lo novamente para verificar se ela conseguia manter a mesma frieza e reações rápidas ou se tinha sido apenas sorte de principiante. Mas a segunda queda e recuperação ainda foram mais suaves do que a primeira. Levantou o avião novamente de uma perda brusca de altitude que até chegara preocupá-lo. Ela era boa. Muito boa. Era brilhante.

Mandou-a fazer alguns oitos, um Immelmann, e o último exercício do dia foi a recuperação de um parafuso. Não era muito diferente de uma queda, mas primeiro tinha de usar o pedal de direção direito para induzir a curva para a direita e depois o pedal esquerdo para recuperar. Fê-lo na perfeição. Nick e Cassie sorriam de orelha a orelha quando o avião aterrou. Nunca se tinha divertido tanto, e a sua única queixa residia no fato de ter querido tentar fazer rolamentos e Nick não a ter deixado. Ele achava que ela tinha feito o suficiente para a lição. e disse-lhe que deviam guardar algo para a próxima Também queria fazer uma aterragem sem motor, a especialidade de Nick, à qual devia a sua alcunha, mas também havia tempo para isso. Havia tempo para tudo. Era uma estudante fantástica.

Nick ficou algum tempo sentado no avião a olhar para ela, incapaz de acreditar no que Cassie tinha aprendido com os anos, só observando. Todas as vezes que Pat ou Nick a tinham levado consigo, todos os momentos, todos os gestos e todos os processos tinham sido absorvidos e, de algum modo, ao observá-los, tinha aprendido a pilotar. A jovem era realmente aquilo que ele sempre suspeitara: um piloto nato. Alguém que nascera para voar e seria um sacrilégio afastá-la.

- Que tal? - Ela virou-se no assento depois de pararem e terem desligado o motor.

- Horrível - afirmou Nick, sorrindo, ainda incapaz de acreditar no que vira. Ela tinha um sentido natural da altitude, uma noção incrível de direção, um instinto tanto mental como manual para pilotar o avião, sabendo exatamente o que fizera. - Acho que nunca mais poderia voar contigo - disse para a arreliar, mas o seu rosto espelhou tudo o que ela queria saber, o que a fez soltar um grito de alegria no meio da pista silenciosa. Nunca estivera tão contente em toda a sua vida. Nick era o seu melhor amigo. Proporcionara-lhe o sonho da sua vida e aquilo era apenas o início. - Tu és boa, miúda - referiu ele calmamente.

Entregou-lhe outra Coca-Cola que trouxera consigo. Ela bebeu um longo trago, saudando-o, e devolveu-a ao seu novo instrutor.

- Mas não deixes que isso te suba à cabeça. Podem ser palavras muito perigosas. Nunca confies demasiado em ti e nunca partas do pressuposto que podes fazer tudo o que queres. Não podes. Este pássaro é apenas uma máquina e, se a tua cabeça subir demasiado alto, o chão ficará muito mais perto e acabarás com uma árvore entre as orelhas. Nunca te esqueças disso.

- Sim, senhor. - Ela estava demasiado feliz para ligar aos seus avisos. Sabia o cuidado que devia ter e estava preparada para isso. Mas, acima de tudo, sabia que tinha nascido para voar e que, agora, Nick também sabia. Talvez um dia ele conseguisse convencer o pai a deixá-la voar. Entretanto, aprenderia tudo o que pudesse e seria a melhor mulher-piloto do mundo. Melhor do que Jean Batten, Louise Thaden ou qualquer das outras. - Quando poderemos voltar a voar? - perguntou ansiosamente. Tudo o que desejava era subir novamente e não queria esperar muito tempo. Por outro lado, Nick pagava o combustível e ela não queria que isso lhe custasse muito caro. Mas, tal como o viciado, queria mais e ele sabia-o.

- Queres voltar a voar amanhã, não queres?

Sorriu-lhe. Fora exatamente igual quando tinha a idade dela. De fato, tinha praticamente a idade dela quando circulara por todo o país, depois da guerra, tentando encontrar emprego em aeroportos, chegando finalmente a Illinois para voar com o seu velho amigo Pat O'Malley.

- Não sei, Cass. - Nick pensou alguns instantes. - Talvez pudéssemos ter outra aula daqui a uns dias. Não quero que o Pat comece a pensar porque é que estou a sair com o Jenny. Eu não saio com ele muitas vezes.

Decididamente não queria que Pat suspeitasse deles. Queria que ela tivesse bastantes lições antes de o confrontarem com a sua habilidade, da qual não havia dúvidas. Era mil vezes melhor piloto do que o irmão e mil vezes melhor do que as pessoas que ele ensinara. Mas era preciso convencer Pat e ambos sabiam que não ia ser fácil.

- Não podias dizer-lhe que estás a dar lições a alguém aqui? Ele não precisa de saber que sou eu. Terias então uma desculpa para trazer o avião sempre que quisesses.

- E onde está o dinheiro, minha menina? Não quero que o teu pai pense que estou a enganá-lo.

Nick e Pat ficavam com uma percentagem dos rendimentos dos aviões de cada um, quando Nick aceitava charters ou dava lições em horários que poderia ter usado ao serviço do Aeroporto O'Malley. Cassie estava um pouco desmoralizada.

- Talvez eu pudesse pagar-te... das minhas poupanças... - Estava a ficar seriamente preocupada, e Nick tocou-lhe no brilhante cabelo ruivo, fazendo-lhe uma festa.

- Não te preocupes. Consigo trazê-lo. Teremos muitas mais lições.

Cassie sorriu-lhe e o seu coração deu um pequeno salto. Era todo o pagamento que Nick desejava.

Ajudou-a a sair do avião e reparou que havia uma árvore frondosa ali perto.

- Trouxeste alguma coisa para comer? - Ela anuiu com a cabeça e foram-se sentar debaixo da árvore. Cassie partilhou o sanduíche com ele, que partilhou a Coca-Cola. Nick bebia muita Coca-Cola e, ao contrário de Pat que gostava de um bom uísque de vez em quando, Nick nunca bebera muito. Passava demasiado tempo no ar para poder dar-se ao luxo de consumir bebidas alcoólicas. Estava sempre a ser arrastado da cama devido a uma emergência ou a um vôo especial de correio ou para transporte de carga de longa distância com destino ao México ou Alasca. Nunca poderia ter pilotado se estivesse inesperadamente bêbedo ou de ressaca. Pat também era cuidadoso. Nunca bebia quando sabia que ia voar.

Falaram durante muito tempo sobre aviação e sobre a família e o quanto a última tinha significado para ele, quando chegara a Illinois. Disse que tinha vindo de Nova Iorque apenas para trabalhar com o pai dela.

Foi muito bom para mim durante a guerra. Eu era um miúdo e louco. Fico feliz por nunca teres de entrar numa situação de combate, a trinta mil metros, com uma série de alemães malucos. Parecia um jogo e, por vezes, era difícil lembrarmo-nos de que era real. Era demasiado excitante.

Os seus olhos brilhavam enquanto falava. Para muitos deles, tinha sido a altura perfeita e tudo o que acontecera depois não tinha comparação. Cassie achava que o pai sentia do mesmo modo e suspeitava que se passava o mesmo com Nick.

Deve fazer com que tudo o resto pareça tremendamente aborrecido. Pilotar o Jenny ou as entregas de carga na Califórnia no Handley não podem ser realmente estimulantes.

- Não, não são. Mas é confortável. É onde preciso de estar. Nunca me sinto tão bem quando estou em terra, Cass, por muito louco que pareça. A minha vida é no ar. - Ao dizê-lo olhou para o céu. - É o que eu faço bem. - Suspirou, inclinando-se contra o tronco da árvore sob a qual estavam sentados. - Não sou tão bom no resto das coisas.

- Como por exemplo? - perguntou curiosa. Conhecia-o desde que nascera, mas ele sempre a tinha tratado como uma criança. Agora que partilhavam um segredo, pela primeira vez, pareciam quase iguais.

- Não sei. Não sou muito bom no que diz respeito ao casamento, às pessoas e aos amigos, a não ser outros pilotos e fulanos com quem trabalhei.

- Foste sempre espetacular conosco. - Ela sorriu-lhe inocentemente e Nick ficou maravilhado por ver como era bom ter dezessete anos.

- Isso é diferente. Vocês são a minha família. Mas não sei... Por vezes é difícil relacionarmo-nos com as pessoas que não voam. Dificilmente as compreendo, e os outros não me compreendem a mim. Especialmente as mulheres.

Nick sorriu. Isso não o incomodava. A sua vida era assim e estava satisfeito com ela. Havia gente da terra, os que estavam confinados à Terra de corpo e alma, e havia os outros.

- E o Bobby? - perguntou ele inesperadamente. Sabia do namorado. Vira-o freqüentemente lá em casa quando visitava Pat ou quando era convidado para jantar. - O que acharia ele da tua paixão pelos aviões? Tu és boa, Cass. Se aprenderes como deve ser, podes mesmo conseguir. - Mas conseguir o quê? Esse era o problema. O que pode uma mulher fazer, a não ser bater recordes? - Que diria ele? - insistiu Nick.

- O que toda a gente diz. Que eu sou maluca. - Cassie riu-se. - Mas não sou casada com ele, sabes! É apenas um amigo.

- Não será apenas um «amigo» para sempre. Mais cedo ou mais tarde, ele quererá ser muito mais. Pelo menos é isso que o teu pai pensa. - Era o que toda a gente pensava e ela sabia-o.

- Sim? - A sua voz ficou subitamente gelada, e Nick sorriu perante o seu ar cerimonioso.

- Não te atrevas a armar-te em fria comigo. Sabes o que quero dizer. Vai ser um pouco estranho se quiseres ser outra Earhart. Terás de saber viver com isso e nem sempre é fácil.

Sabia-o muito bem. Conhecia muitas coisas que subitamente quis partilhar com ela. A nova dimensão da sua amizade excitava-o e assustava-o. Não conseguia imaginar onde isso os podia levar.

- Por que razão é assim tão importante? - inquiriu ela sem perceber, pensando nas perguntas de Nick sobre Bobby. Não faziam sentido. O que haveria de errado em gostar de voar?

- Acho que é muito importante porque é diferente - explicou Nick. - Os homens foram feitos para andar na terra. Se queres passar a vida a voar, eles podem achar que deverias ter penas ou simplesmente achar-te estranha. Mas que sei eu?

Nick sorriu-lhe e esticou as longas pernas. Era divertido falar com Cassie, pois era muito esperta, jovem, viva e exuberante sobre a vida que tinha à sua frente. Ele invejava-a. A vida de Cassie estava plena de desafios e novos começos. Mesmo aos trinta e cinco anos, a maior parte da exuberância da sua vida parecia já pertencer ao passado.

Acho que as pessoas têm uma atitude estúpida em relação aos aviões. São apenas aviões e nós somos apenas pessoas - disse ela simplesmente.

- Não, não somos - retorquiu. - Nas suas cabeças somos super-heróis porque fazemos algo que eles não conseguem e da qual a maioria tem medo. Somos qual domadores de leões ou equilibristas. É tudo muito misterioso e excitante, não é?

Cassie pensou naquilo durante alguns minutos e depois acenou com a cabeça e devolveu-lhe a lata de Coca-Cola. Nick deu um gole e acendeu um cigarro, mas não lhe ofereceu um. Ela podia estar a aprender a voar, mas ainda não era assim tão crescida.

- Acho que é realmente excitante e misterioso - concedeu ela, enquanto o observava a fumar. - Talvez seja por isso que eu adoro voar. Sabe tão bem, sentimo-nos livres, vivos, tão...

Não conseguia encontrar as palavras corretas e Nick sorriu. Sabia exatamente o que ela queria dizer. Ainda sentia o mesmo. Cada vez que o seu avião descolava, fosse qual fosse o que estava a pilotar no momento, sentia sempre a mesma sensação selvagem de liberdade. Fazia com que tudo o resto parecesse brando e desinteressante. Tinha afetado toda a sua vida, tudo o que fizera, tudo o que vira e tudo o que desejara fazer. Alterara todas as suas relações e um dia afetaria as dela. Nick sentia que a devia avisar disso, mas não sabia exatamente como o dizer. Ela era muito jovem, cheia de esperança, e parecia quase um erro avisá-la'.

- Mudará a tua vida, Cass. - Foi tudo o que conseguiu dizer. - Tem cuidado.

Cassie acenou com a cabeça, pensando que compreendera, mas, de fato, tal não acontecera.

- Eu sei - afirmou, olhando para ele com uns olhos tão sábios que quase o assustaram -, mas é isso que eu quero. É por isso que estou aqui. Não sei viver sobre a terra como os outros. - Cassie era um deles, estava a dizer-lho, e Nick sabia que era verdade. Por essa razão tinha concordado em ensiná-la.

Nesse dia passaram muito tempo a conversar, e Nick detestou ter de a deixar sozinha para caminhar três quilômetros até ao lugar onde apanharia a camioneta para casa, mas não teve opção. Viu-a afastar-se com um longo aceno e, momentos mais tarde, descolou; fazendo um pequeno parafuso, mostrou-lhe que ia partir. A jovem observou-o, durante muito tempo, ainda incapaz de acreditar no que ele tinha feito por ela. Tinha transformado toda a sua vida numa única tarde e ambos o sabiam. Era um empreendimento de coragem para ambos, mas era algo a que nenhum deles conseguia resistir por razões diferentes.

O longo e quente caminho de regresso à paragem da camioneta pareceu-lhe feito a dançar. Só conseguia pensar nos feitos que realizara, no toque do avião, e finalmente, na expressão dos olhos de Nick. Ele estava orgulhoso dela e isso fazia com que se sentisse muito bem.

Subiu para a camioneta, fazendo um largo sorriso ao condutor e quase se esquecendo de pagar os quinze cêntimos. Quando chegou a casa, era demasiado tarde para ir para o aeroporto. Em vez disso, foi ajudar a mãe e até isso não lhe pareceu tão terrível. Tinha alimentado a sua alma e, fosse qual fosse o preço a pagar, valia a pena.

Nessa noite, esteve calada durante o jantar, mas ninguém reparou. Todos tinham algo a dizer. Chris estava muito excitado com o trabalho no jornal, o pai tinha conseguido um novo contrato do Governo para transporte de correio, o bebê de Colleen nascera na noite anterior e a mãe queria contar-lhes tudo. Apenas Cassie estava estranhamente calada e, no entanto, era ela que tinha as melhores notícias, mas não podia partilhá-las.

Bobby chegou depois de jantar, como era hábito, e conversaram durante algum tempo. Cassie não parecia ter muito para lhe dizer. Estava perdida nos seus pensamentos e a única coisa que realmente lhe disse foi que mal conseguia esperar até ao festival aéreo. Seria logo depois do 4 de julho desse ano. Bobby nunca assistira, mas estava a pensar ir para que Cassie pudesse explicar-lhe tudo sobre os aviões. Porém, para ela, a perspectiva de ir com um novato e explicar-lhe tudo não parecia muito estimulante. Ela preferia ir com Nick e ouvi-lo. Mas não lhe passava pela cabeça que as mudanças tinham começado. Nessa tarde, lançara-se numa longuíssima e interessante viagem, mas muito solitária.

 

As lições continuaram durante todo o mês de julho no mais completo segredo. Mas o festival aéreo e a exaltação de Cassie com a perspectiva não eram segredo. Todos foram assistir: toda a família, Nick, alguns dos pilotos do aeroporto, Bobby e a sua irmã mais nova. Foi excitante para todos, mas nada era mais importante para Cassie do que as lições com Nick. Nem mesmo o Blandinsville Air Show. Em finais de julho, ela já dominava uma impressionante aterragem sem motor. Também aprendera a rolar, a fazer aberturas, folhas de trevo e outras manobras ainda mais complicadas.

Cassie era o aluno com que cada instrutor de vôo sonhava. Uma esponja humana desesperada para aprender tudo com as mãos e mente de um anjo. Ela conseguia pilotar quase tudo e, em Agosto, Nick começou a trazer o Bellanca em vez do Jenny, pois era mais difícil de pilotar e ele queria dar-lhe a oportunidade de ter esse desafio. Também tinha a velocidade necessária para que aprendesse as manobras e truques mais complicados. Pat ainda não suspeitava e, apesar das demoradas viagens de camioneta e do longo caminho a pé, as lições de vôo eram freqüentes e fáceis.

Em Agosto, Cassie e Nick ficaram profundamente consternados quando um dos pilotos que voava para o pai morreu devido a uma falha de motor num vôo de regresso do Nebrasca. Todos foram ao funeral, e Cassie estava ainda deprimida quando tiveram a lição seguinte. O pai tinha perdido um bom amigo e um dos seus dois DH4. No Aeroporto 0'Malley estavam todos profundamente comovidos.

- Nunca te esqueças que estas coisas acontecem, Cass - recordou Nick calmamente, enquanto se sentavam para almoçar debaixo da sua árvore favorita, depois de uma lição no último dia de Agosto. Para Cassie, o Verão tinha sido maravilhoso e nunca se sentira, tão perto de Nick que era o seu amigo mais querido, o único verdadeiro, e mentor. Pode acontecer a qualquer um de nós. Um mau motor, mau tempo, azar. É um risco que todos nós corremos. Precisas de enfrentar isso.

- Já o fiz - disse ela tristemente, pensando no Verão mais maravilhoso da sua vida que estava quase a acabar. - Mas acho que preferia morrer assim do que de qualquer outra maneira. Voar é tudo o que eu desejo, Nick - afirmou firmemente, mas ele já sabia. Não era preciso fazer nada para o convencer. já o convencera com as suas capacidades, habilidade natural, extraordinária facilidade de aprendizagem e com a sua paixão genuína pelos aviões. Nick estava convencido de muitas coisas sobre ela.

- Eu sei, Cass. - Olhou longa e duramente para ela. Cassie era a única pessoa com quem se sentia verdadeiramente à vontade, para além de Pat e dos homens com quem voava. Era a única mulher que parecia partilhar a sua visão da vida e os seus sonhos. O fato de ser muito mais nova do que ele e filha do seu melhor amigo era puro azar. Não havia esperança de alguma vez ser mais do que isso. Mas gostava da sua companhia e de conversar com ela; e ensiná-la a voar significara bastante para Nick. - O que pretendes fazer com as lições quando começares as aulas? - perguntou ele quando terminaram de almoçar.

Cassie regressava às aulas no dia seguinte, para o seu último ano de liceu. Parecia difícil acreditar que ela já era uma finalista. Sempre a vira como uma rapariguinha, mas agora conhecia-a muito melhor. De muitas maneiras, era mais adulta do que a maioria dos homens que conhecia e era uma grande mulher. No entanto, tinha também o seu lado infantil. Cassie adorava pregar partidas e arreliar as pessoas, ria-se com facilidade e adorava brincar com ele. De certa maneira, não era muito diferente do bebê que fora.

- Que tal aos sábados? - perguntou ela pensativamente, ou domingos?

Aquilo significava que voariam juntos com menor freqüência, mas pelo menos era alguma coisa. Ambos tinham começado a contar com aquelas longas horas que passavam juntos, a sua fé inabalável nele, a sua confiança em tudo o que Nick dizia e o prazer dele em ensinar-lhe as maravilhas da pilotagem. Era um dom que partilhavam e cada um o enaltecia.

- Aos sábados, posso - afirmou ele decididamente, pois o tom que empregou não deu a entender que alguma coisa o impediria. Ela era agora a sua aluna dileta e, para além disso, eram grandes amigos e parceiros numa amada conspiração que ambos guardavam carinhosamente. Nenhum deles desistiria facilmente nem tencionavam fazê-lo. - Não sei como é que vais caminhar quatro quilômetros até à camioneta quando o tempo piorar.

Nick preocupava-se, por vezes, com o fato da rapariga ter de caminhar quatro quilômetros, se bem que ela pudesse aborrecer-se com semelhante preocupação. Era um espírito independente e estava convencida que podia lidar com tudo. Mas só de pensar nela sozinha numa estrada de campo, Nick ficava bastante nervoso.

- Talvez o pai ou o Bobby me possam emprestar o caminhão...

Nick acenou com a cabeça, mas pensar em Bobby também o irritava. Sabia que não tinha o direito de colocar objeções a qualquer dos pretendentes de Cassie, contudo Bobby não parecia ser a pessoa certa para Cassie. Era tão enfadonho e tão agarrado à terra!

- Sim, talvez - disse ele descomprometidamente, lembrando-se que tinha o dobro da idade dela e Bobby não.

- Eu resolvo. - Ela sorriu-lhe sem mostrar qualquer preocupação. Era difícil não ficar encantado com a sua beleza.

Ambos perguntavam a si próprios como conseguiriam continuar a encontrar-se numa pista deserta para as lições. Até agora tudo tinha corrido bem, mas ambos sabiam que seria mais difícil durante o Inverno. Se não houvesse mais nada, já as condições climatéricas seriam um grande problema.

Surpreendentemente, as coisas resultaram muito bem e encontraram-se com regularidade todos os sábados. Disse ao pai que tinha um colega de escola com quem se encontrava para fazer os trabalhos de casa e ele emprestava-lhe o caminhão todos os sábados à tarde. Ninguém parecia importar-se, e ela chegava sempre a casa a horas, com os braços cheios de livros e cadernos e muito bem-disposta.

A sua capacidade de vôo tinha melhorado ainda mais, e Nick estava justificadamente orgulhoso dela. Afirmava repetidas vezes que teria dado tudo para a pôr no ar durante o festival aéreo. Chris já estava a preparar-se para o próximo com precisão e confiança, mas, como sempre, muito pouco excitado e não possuindo o talento natural e instintivo da irmã. Ambos sabiam que, se Pat não o tivesse pressionado, Chris nunca teria pilotado um avião. já tinha admitido a Nick, mais do que uma vez, que realmente não gostava.

Cassie e Nick sentavam-se e almoçavam dentro do caminhão quando o tempo resfriava e, por vezes, quando o tempo estava bom, iam passear para junto da pista.

Em Setembro, falaram sobre o fato de Louise Thaden ter sido a primeira mulher a entrar na corrida denominada Bendix Trophy, e em Outubro sobre Jean Batten se ter tornado a primeira mulher a voar de Inglaterra à Nova Zelândia. Falavam sobre muitas coisas. Sentavam-se em árvores caídas e falavam durante horas; à medida que os meses passavam, aproximavam-se cada vez mais. Pareciam concordar em tudo, se bem que ela pensasse que ele era, politicamente, demasiado conservador, e ele pensasse que ela era demasiado jovem para sair com rapazes, tendo-o afirmado.

Cassie troçou dele, mas Nick adorava a sua irreverência. Comunicou-lhe então que a última rapariga com quem o vira era a mulher mais feia do mundo. Nick respondeu-lhe que Bobby Strong era claramente o mais fastidioso. Cassie nunca soube se ele estava a falar a sério. Apenas adoravam voar, conversar e partilhar as suas visões da vida. Tudo parecia estar bem sincronizado: os seus interesses, preocupações, o fato de partilharem a paixão por tudo o que voava e até o seu quase idêntico sentido de humor. Era quase sempre difícil superar a separação ao fim da tarde de sábado, pois sabiam que era preciso esperar uma semana para poderem encontrar-se novamente assim. Por vezes, ele não podia estar presente, pois havia vôos de longo alcance e não conseguia voltar a tempo. Mas isso raramente acontecia porque ele organizara o seu horário de acordo com as lições.

Como era habitual, Nick juntou-se à família dela no dia de Ação de Graças. Cassie arreliou-o sem mercê. Riam-se sempre muito um com o outro, mas as suas trocas de palavras pareciam um pouco mais manhosas e íntimas do que tinham sido antes das lições. Pat disse-lhes que eram pouco civilizados, enquanto Oona perguntava a si própria se não estaria a notar algo de diferente. Depois de todos aqueles anos, parecia difícil de acreditar, mas eles pareciam mais próximos do que nunca. Quando Oona o referiu a Colleen, esta riu-se e disse que Cassie apenas estava a divertir-se. Nick era como um irmão mais velho. Mas Oona não estava enganada. O tempo que passavam juntos, as coisas que Cassie aprendera e as longas conversas sob a árvore, nos últimos seis meses, tinha-os aproximado bastante.

Nick estava deitado no sofá, dizendo que morreria se comesse mais. Cassie, sentada a seu lado, brincava com ele, dizendo-lhe que a gula era um pecado e que deveria ir confessar-se. Sabia como ele detestava ir à igreja e Nick estava a fingir ignorá-la, sorrindo-lhe apreciativamente, quando Bobby surgiu à porta e entrou, escovando a neve do chapéu e ombros. Era um rapaz alto e bem-parecido e, só de olhar para eles, Nick sentia-se mil anos mais velho.

- Está um frio de rachar - queixou-se Bobby, sorrindo amavelmente para todos, mas com um certo receio, para Nick. Havia algo nele que fazia com que Bobby se sentisse desconfortável, se bem que não tivesse a certeza do que era. Talvez fosse o fato de ele estar sempre tão à vontade com Cassie. - A comida chegou para todos? - perguntou, orgulhoso do fato de lhes ter mandado um peru de treze quilos. Todos grunhiram como resposta. Tinham-no convidado para jantar, mas Bobby ficara com os pais e com a irmã.

Convidou Cassie para dar um passeio, mas esta não aceitou, ficando a ouvir a mãe tocar piano. Glynnis cantava e Megan e o marido juntaram-se a ela. Megan tinha acabado de participar a sua nova gravidez. Cassie ficou feliz, mas era um tipo de notícia que sempre a fazia sentir-se diferente. Nem daqui a anos-luz se imaginava casada e com filhos. Não era o que desejava fazer da vida. «Mas o que faria da vida?», perguntou a si própria. Sabia que nunca seria uma Amelia Earhart, uma Bobbi Trout ou Arny Mollison. Essas eram estrelas e ela sabia que nunca o seria. Parecia não haver meio-termo: ou fazia o que as irmãs faziam, casavam-se assim que acabavam a escola, tinham filhos e instalavam-se, numa vida monótona, ou fugia e tornava-se uma espécie de superestrela. Mas não havia dinheiro para ela comprar aviões, entrar em corridas e estabelecer recordes. Mesmo que o pai a ajudasse, os aviões eram velhos e de serviço e, decerto, não os que usaria para se tornar mundialmente famosa.

Ultimamente, e mais do que era habitual, conversava com Nick sobre o que ia fazer da sua vida. Daí a seis meses acabaria o liceu. E depois? Ambos sabiam que não havia um emprego à sua espera no aeroporto. Ela também falara com um dos seus professores e estava perto de saber o que desejava. Se não pudesse voar profissionalmente, e de momento não via grandes possibilidades, pelo menos iria para a faculdade. Estava a pensar tornar-se professora e para sua grande alegria soubera que várias escolas para professores, especialmente o Bradley College em Peoria, ofereciam cursos de Engenharia e Aeronáutica. Estava à espera de se candidatar no Outono e, se conseguisse uma bolsa de estudos, coisa que os professores achavam possível, tiraria o curso de Engenharia Aeronáutica. De momento, era a única maneira de estar próxima dos aviões. Se não pudesse ganhar a vida a pilotar um avião, tal como um homem, poderia pelo menos ensinar tudo sobre eles. Ainda não contara aos pais os seus planos, mas parecia-lhe uma boa decisão. Só Nick sabia, mas os seus segredos estavam seguros com ele. Nessa noite, olhou para ela quando se levantou para sair, lançando um olhar depreciativo a Bobby que estava a falar sobre a torta de abóbora com que a mãe ganhara um prêmio. Bobby Strong nunca cessava de o aborrecer.

Nick beijou Cassie no rosto ao sair, e Bobby ficou consideravelmente mais tranqüilo. Aquele homem mais velho deixava-o sempre nervoso. Mas Cassie parecia distante, após a saída de Nick. Parecia estar a pensar em muita coisa e mandou Bobby calar-se quando este começou a falar do fim do ano letivo. Detestava falar sobre esse assunto. Todos tinham planos concretos e ela não. Tudo o que possuía eram esperanças, sonhos e segredos.

Já era tarde quanto Bobby finalmente foi para casa e, quando ele saiu, Chris começou a picá-la, perguntando-lhe quando seria o casamento. Cassie apenas fez uma careta e simulou um gesto de agressão.

- Mete-te na tua vida - rosnou ela.

O pai riu-se dos dois.

- Acho que o rapaz não está enganado, Cassie. Dois anos a aparecer quase todas as noites deve significar alguma coisa. Estou espantado por ainda não te ter feito o pedido.

Todavia, Cassie estava aliviada por ele não o ter feito. Não saberia que responder. Sabia o que supostamente devia responder, mas isso não encaixava nos seus planos, que agora incluíam a faculdade. Talvez depois. Mas quatro anos era pedir de mais. Pelo menos, por ora, não teria de se preocupar com isso.

Ela e Nick voaram bastante nas três tardes de sábado que se seguiram, apesar do tempo estar difícil. Dois dias antes do Natal, subiram no Bellanca e, alguns minutos depois, já tinham gelo nas asas. Cassie pensou que os dedos iam congelar dentro das luvas enquanto segurava a alavanca de comando. Subitamente ouviu o motor a parar e perder velocidade quando estavam a começar um vôo picado. Tudo aconteceu com uma velocidade incrível.

Nick assumiu os comandos, mas era óbvio que estava a lutar com eles enquanto o ajudava a segurá-los. Recuperaram do mergulho, o que já era um grande feito, mas, nessa altura, a hélice parou e ela soube imediatamente o que isso significava. Teriam de fazer uma aterragem forçada. O vento zunia-lhes nos ouvidos e Nick não tinha maneira de lhe dizer fosse o que fosse, mas ela sabia instintivamente como ele ia agir. Tudo o que Cassie podia fazer era dar-lhe apoio, mas percebeu subitamente que estavam a cair demasiado depressa. Virou-se, fez-lhe um sinal e, durante alguns momentos, ele discordou dela. Depois acenou com a cabeça, decidindo confiar na sua decisão. Nick levantou o avião como pôde, mas o solo aproximava-se muito depressa. Durante um segundo, a jovem teve a certeza de que iam despenhar-se, mas, no último minuto, o avião roçou o cume das árvores, o que de algum modo amorteceu a queda. Aterraram com demasiada força, mas não se magoaram. Só uma roda ficou danificada. Tinham tido uma sorte fabulosa. Deixaram-se ficar sentados, a tremer, percebendo, então, como tinham estado perto da morte.

Cassie ainda estava a tremer quando saíram do avião, mas era tanto de frio como de comoção. Nick olhou para ela e puxou-a com força para os seus braços numa onda de alívio. Durante vários minutos, tivera a certeza de que, por muito que fizesse, ia matá-la.

- Desculpa, Cass! Nunca devíamos ter subido com este tempo. É uma lição para ti. Nunca aprendas a voar com um velho louco que pensa que sabe mais do que o clima. Obrigado por me teres feito sinal quando estávamos a cair. - O seu extraordinário sentido de altitude e velocidade tinha-os salvo. - Não te farei isto novamente! juro. - Ainda tremia enquanto a segurava nos braços. Era difícil ignorar o que a rapariga significava para ele; Nick olhou para Cassie e sentiu o coração a bater. Apenas quisera salvá-la e não a si próprio. Teria prontamente dado a sua vida para salvar a de Cassie.

Ela então olhou-o e sorriu, ainda nos seus braços.

- Foi divertido - disse rindo, e ele só teve vontade de a estrangular.

- Es louca! lembra-me para não tornar a voar contigo. - Mas era uma louca que significava tudo para ele. Depois libertou-a lentamente.

- Talvez precisasses de receber uma ou duas lições - disse ela para o arreliar. Em vez disso, ajudou-o a atar o Bellanca a uma árvore e a colocar pedras debaixo das rodas. Depois, deu-lhe boleia até ao aeroporto do pai. Ninguém pareceu questionar o fato de chegarem juntos, e ele mandou-a ir para casa aquecer-se. Tinha medo que ela adoecesse por causa do frio. Entrou no escritório para tomar um pouco do uísque irlandês de Pat. Ainda estava muito abalado com o fato de quase a ter morto nessa tarde.

- O que é que estiveste a fazer esta tarde? - perguntou o pai quando ela chegou a casa. Pat tinha acabado de chegar com a árvore de Natal, e os sobrinhos e sobrinhas de Cassie iam ajudar a decorá-la e ficar para jantar.

- Nada de especial - retorquiu, tentando parecer descontraída. Tinha rasgado as luvas ao rebocar o avião e tinha óleo nas mãos.

- Estiveste no aeroporto?

- Por pouco tempo. - Subitamente, pensou se ele saberia alguma coisa, mas o pai apenas acenou com a cabeça enquanto levantava a árvore de Natal no canto da sala com a ajuda de Chris. Parecia estar bem-disposto e pouco inclinado a interrogar Cassie.

Esta tomou um banho quente, pensando sobre o susto dessa tarde. Fora aterrorizador, mas a coisa mais estranha era o fato de não se importar de morrer num avião. Era o sítio onde desejava estar e parecia um bom lugar para morrer. No entanto, sentia-se muito contente por isso não ter acontecido.

E Nick também. Ainda estava profundamente perturbado com o que acontecera. Às dez horas da noite estava completamente bêbedo, sentado na sua sala, perguntando a si próprio como é que Pat sobreviveria se o seu mais velho amigo tivesse morto a filha. Isso fê-lo pensar duas vezes sobre as lições de vôo, mas sabia que não conseguiria parar. Tinha de o fazer e não só por ela. Era quase como se precisasse de estar com a jovem, do seu espírito e humor, da sua sabedoria, dos seus grandes olhos e do seu ar belíssimo sempre que a via. Adorava a maneira como ela pilotava, o seu conhecimento instintivo e como trabalhava tanto para aprender aquilo que não sabia. O problema consistia agora no fato de ter percebido, nessa tarde, que adorava demasiadas coisas nela.

A árvore de Natal dos O'Malley estava linda. As crianças tinham-na enfeitado como sabiam, e os tios, tias e avós ajudaram. Penduraram o conjunto dos velhos enfeites feitos à mão. Todos os anos, Oona fazia alguns enfeites novos e, nesse ano, a estrela do espetáculo era um grande anjo de seda que pendurou no topo da árvore. Cassie estava a olhar para ele com admiração quando Bobby entrou, carregado de sidra e bolos de gengibre feitos em casa.

Oona fez um grande espalhafato com ele, enquanto as filhas saíam pouco depois para deitar as crianças. Pat e Chris foram apanhar mais madeira para a lareira e Cassie encontrou-se subitamente sozinha com Bobby na cozinha.

- Foi simpático da tua parte trazeres os bolos de gengibre e a sidra - agradeceu ela com um sorriso.

- A, tua mãe disse que adoravas bolos de gengibre quando eras pequena - retorquiu ele timidamente, com o cabelo louro a brilhar e olhar de criança. No entanto, era tão alto e tão sério que havia algo de bastante másculo nele. Acabara de fazer dezoito anos, mas podia-se já adivinhar qual seria o seu aspecto aos vinte e cinco ou trinta anos. O pai era ainda um homem muito bem-parecido e a mãe bastante bonita. Bobby também era um belo rapaz e exatamente o tipo de pessoa com quem os pais desejariam que ela casasse. Tinha um futuro sólido, uma família decente, bons valores morais, bom aspecto e até era católico.

Cassie sorriu, pensando novamente nos bolos de gengibre.

- Uma vez comi tantos que fiquei doente durante dois dias e não pude ir à escola. Pensei que ia morrer!

Porém, nessa tarde quase tinha morrido. Quase tinha morrido com Nick dentro de um avião e agora estava a conversar com Bobby sobre bolos. A vida era por vezes muito estranha, absurda e insignificante, mas de repente tornava-se excitante.

- Eu... - Ele olhou para ela desajeitadamente, não sabendo bem o que dizer e pensando se seria uma boa idéia. Conversara primeiro com o pai, e Tom Strong pensava que sim. Mas era muito mais difícil do que julgara, especialmente quando olhou para Cassie. Estava muito bonita, com um par de calças pretas e uma camisola azul-clara, o brilhante cabelo ruivo contornando-lhe o rosto, semelhante a um dos anjos de seda branca de Oona. - Cass... Não sei bem como dizer isto, mas... eu... - Aproximou-se, agarrou-lhe a mão. Ambos podiam ouvir o pai e o irmão a mexer-se na sala, tendo cuidadosamente deixado os dois jovens namorados sozinhos na cozinha. - Eu... eu amo-te, Cass! - afirmou Bobby com um tom de voz que subitamente pareceu mais forte e de um homem mais velho. - Amo-te muito e gostaria de me casar contigo quando acabares o liceu em junho.

Pronto! Estava dito e ele parecia extraordinariamente orgulhoso de si. Cassie olhou-o fixamente, empalideceu, os seus olhos azuis plenos de consternação. Os seus maiores receios tinham-se concretizado. Agora era preciso enfrentá-los.

- Eu... Obrigada! - afirmou ela, desejando ter-se despenhado nessa tarde. Teria sido mais simples.

- E então? - Ele fixou-a com os olhos cheios de esperança, ansiando que Cassie lhe desse a resposta esperada. - - O que achas? - Estava tão orgulhoso de si que quase gritava. Mas a sua excitação não era partilhada. Tudo o que Cassie sentia era desânimo e terror.

- Acho que és maravilhoso... - Por alguns instantes, ficou estático com o que ela acabara de lhe dizer. - E acho que o teu pedido foi muito bonito. Eu... eu ainda não sei o que vou fazer em junho. - junho não era a questão. O problema era o casamento. - Bobby! Eu... eu quero ir para a faculdade. - Disse isto como que exalasse, aterrorizada com o fato de mais alguém a ouvir.

- Queres? Porquê? - Bobby estava estupefato.

Nem o pai dela, nem a mãe nem nenhuma das irmãs o tinha feito. A sua pergunta era pertinente e ela nem sequer sabia se havia uma resposta. «Porque não posso voar profissionalmente ... » Não parecia uma boa resposta, e casar imediatamente após o final da escola nunca lhe parecera uma opção agradável.

- Acho que devo. Há umas semanas atrás estive a falar com Mistress Wilcox e ela acha que devo. Depois, se quiser, poderei dar aulas. - «E não teria que me casar e ter filhos imediatamente.»

- É isso que queres? - Parecia surpreendido. Nunca tinha contado com o fato de ela querer ir para a faculdade, e isso alterava-lhe os planos. Todavia, também era possível casar-se e freqüentá-la. Conhecia pessoas que o tinham feito. - Queres ser professora?

- Ainda não tenho a certeza. Apenas não quero casar-me e ter filhos assim que sair do liceu e nunca fazer nada da minha vida. Quero mais do que isso.

Estava a tentar explicar, mas era muito mais fácil explicá-lo a Nick. Era muito mais velho e sensato do que Bobby.

- Podias ajudar-me com o negócio. Há muita coisa que poderias fazer na loja. O meu pai diz que se quer reformar dentro de alguns anos. - Subitamente, teve uma idéia que lhe pareceu brilhante. - Podias estudar contabilidade e fazer a escrita. O que achas, Cass?

Achava que ele era um bom rapaz, mas não queria fazer a escrita.

- Quero ir para engenharia - disse ela.

Bobby ficou com um ar ainda mais confuso. Sabia que ela sempre fora uma mulher cheia de surpresas. Pelo menos não lhe dissera que queria ser Amélia Earhart. Não proferira uma única palavra sobre aviões. Apenas sobre a escola e agora sobre engenharia. Mas isso também era um disparate. Não tinha a certeza do que iria dizer ao pai.

- O que vais fazer com um curso de Engenharia, Cass?

Ele estava compreensivelmente admirado.

- Ainda não sei.

- Parece-me que precisas de pensar um pouco. - Sentou-se à mesa da cozinha e puxou-a para uma cadeira ao lado da sua. Segurava-lhe a mão e tentava sensibilizá-la para a perspectiva de um futuro juntos. - Podíamos casar e continuavas a poder ir para a faculdade.

- Até ficar grávida. Quanto tempo demoraria? - Ele corou com a sua franqueza e era claro que não queria discutir mais esse assunto. - Provavelmente, nunca acabaria o primeiro ano. Depois ficaria como a Colleen: sempre a pensar em voltar para a faculdade e demasiado ocupada com os filhos.

- Não precisamos de ter tantos filhos como ela. Os meus pais só tiveram dois. - Ele ainda tinha esperança.

- São dois a mais do que aqueles que quero ter durante algum tempo. Bobby... não posso. Agora não. Ainda não. Não seria justo para contigo. Estaria sempre a pensar no que não conseguira fazer ou no que desejaria ter feito. Não posso fazer isso a nenhum de nós.

- Os aviões têm alguma coisa a ver com tudo isto? - perguntou com algumas suspeitas, mas ela abanou a cabeça. Nunca lhe diria tudo o que já tinha feito, o que também constituía um problema. Não conseguia imaginar-se casada com um homem em quem não podia confiar. Nick e ela eram apenas amigos, mas não havia nada que não lhe pudesse dizer.

- Não estou preparada. - Estava a ser honesta com ele.

- Quando estarás? - inquiriu Bobby tristemente. Era uma desilusão e sabia que os seus pais também ficariam desiludidos. O pai já se tinha oferecido para o ajudar a escolher e a pagar o anel de noivado. Agora não haveria anel.

- Não sei. Talvez daqui a muito tempo.

- Se já tivesses feito a faculdade, casarias comigo? - perguntou-lhe ele frontalmente, o que a deixou admirada.

- Provavelmente. - Não teria qualquer desculpa para não o fazer. Não que precisasse de uma desculpa. Cassie gostava dele. Apenas não se queria casar com ninguém. Ainda não, agora muito menos e provavelmente durante muito tempo. Repentinamente, Bobby ficou com uma expressão de esperança.

- Então, eu espero!

- Mas isso é uma loucura. - Ela estava embaraçada por o ter encorajado. Como é que poderia saber o que ia sentir quando acabasse a faculdade?

- Ouve! Estou apaixonado por ti! Não estou à espera de uma noiva por correspondência que vou levantar em junho. Se tenho de esperar, fá-lo-ei, mas preferia não ter de esperar os quatro anos de faculdade. Talvez pudéssemos comprometer-nos daqui a um ou dois anos e pudesses terminar o curso quando nos casássemos. Pelo menos pensa no assunto. Não é preciso ser tão terrível. E... - Ele corou furiosamente. -Não é preciso ter um filho imediatamente. Há maneiras de o evitar - disse quase chocado.

Ela estava tão emocionada com o que ouvira e com a generosidade dos sentimentos de Bobby que o abraçou e beijou.

- Obrigada por seres tão justo.

- Amo-te - disse ele honestamente, ainda corado com o que acabara de lhe dizer. Propor-lhe casamento e ser rejeitado fora a coisa mais difícil que jamais fizera.

- Eu também te amo - sussurrou ela, subjugada pela culpa, ternura e um redemoinho de emoções.

- É tudo o que preciso de saber - retorquiu ele calmamente.

Ficaram muito tempo sentados na cozinha a conversar calmamente sobre outras coisas. Antes de se ir embora, beijou-a no alpendre, sentindo que tinham chegado a um acordo. A decisão não seria tomada agora, mas sim mais tarde. Tudo o que precisava de fazer era convencê-la de que mais valia mais cedo do que mais tarde. No calor do momento, parecia apenas uma pequena tarefa.

 

A classe de 1937 caminhou lentamente pela ala do auditório do liceu Thomas Jefferson. Os rapazes e raparigas, aos pares, de mão dada, as raparigas transportando um ramo de margaridas. Elas estavam com um aspecto lindo e puro, os rapazes mostravam um ar muito jovem e esperançoso. Ao observá-los, Pat recordou-se dos rapazes que tinham voado para ele durante a guerra. Eram da mesma idade e muitos tinham morrido.

Toda a classe cantou a canção do liceu pela última vez. As raparigas e as mães choravam. Até os pais tinham lágrimas nos olhos quando os diplomas foram entregues. Subitamente, a cerimônia terminou e foi o caos. Trezentos adolescentes tinham acabado o liceu e iriam continuar a sua vida, sendo o destino da maioria casar e ter filhos. Apenas quarenta e um dos trezentos e catorze iriam para a faculdade. Dos quarenta e um, todos menos um iam para a universidade estatal de Macomb e apenas três eram mulheres. Claro que uma delas era Cassie, sendo a única que ia para Peoria freqüentar a faculdade de Bradley. Seria um longo caminho todos os dias, bem mais de uma hora para cada lado no velho caminhão de seu pai, mas ela estava convencida que valia a pena pela possibilidade de tirar os cursos de Aeronáutica que ofereciam e aprender alguma engenharia.

Cassie tivera de lutar bastante por isso. O pai pensava que era um desperdício de tempo e que ficaria bem melhor se casasse com Bobby Strong. Ficou furioso com ela por declinar o pedido e apenas recuou porque Oona lhe afirmara seriamente que tinha a certeza que eles acabariam por se casar se ela não fosse pressionada. Cassie apenas precisava de tempo. Fora Oona que prevalecera e convencera Pat a deixá-la ir para a faculdade. Não seria prejudicial, mas Cassie teve de se comprometer em escolher o curso de Inglês e não o de Engenharia. Se acabasse o curso, poderia ensinar, mas ela tinha ainda concorrido para Aeronáutica. Nenhuma mulher se candidatara a esse curso e fora-lhe dito que era preciso esperar para ver se o professor achava que ela podia freqüentar a aula. Mas Cassie tencionava falar com ele assim que chegasse à escola, em Setembro.

Depois da cerimônia de graduação no liceu, houve uma recepção, e Cassie já tinha ido ao baile do liceu com Bobby. Nos últimos seis meses, ele parecia ter aceite o seu destino, mas na noite em que se graduaram, voltou a falar-lhe no assunto, para o caso de Cassie ter mudado de idéias e desistido da faculdade.

- Não, não mudei - retorquiu ela com um sorriso gentil. O rapaz era-lhe tão fiel e tão honesto que por vezes a fazia sentir-se culpada. Mas ela comprometera-se com outras coisas e não queria perdê-las de vista. Não importava a sua doçura e gentileza, nem a culpa que ela sentia, nem a adoração que o pai lhe manifestava.

Ele saiu cedo nessa noite, pois a avó estava na cidade e Bobby precisava de ir para casa, a fim de estar com ela. Pat resmungou com Cassie depois de Bobby sair. Ela ainda trazia o vestido branco que usara sob a capa negra e estava muito bonita.

- És uma parva, Cassie O'Malley, se deixares esse rapaz fugir-te.

- Ele não o fará, pai. - Era a única coisa que conseguia dizer. Parecia preconceituoso, mas era melhor do que dizer que não se importava, o que o teria realmente enraivecido. Mas, na verdade, importava-se. Havia alturas em que pensava que realmente o amava, especialmente quando ele a beijava.

- Não tenhas tanta certeza - ralhou o pai. - Nenhum homem espera para sempre. Mas talvez quando terminares o curso de professora já não te importes. Talvez tenhas em mente tornar-te uma velha professora solteirona. Isso é realmente um ótimo desejo para o futuro.

Pat ainda estava zangado com a filha devido à ida para a faculdade. Em vez de se sentir orgulhoso, tal como acontecia com os pais das outras duas raparigas, achava que era parva. Mas Nick estava muito contente com isso. Há muito que percebera como ela era inteligente e capaz, e não parecia justo, mesmo para si, pressioná-la a casar-se e a ter filhos. Nick também estava aliviado por ela não ter decidido casar com Bobby Strong imediatamente a seguir ao liceu. Isso teria mudado tudo e ele não o teria suportado. Cassie sabia que eventualmente as coisas mudariam, mas pelo menos, os seus sagrados sábados estavam seguros, bem como as suas preciosas horas de vôo.

Nessa noite, Cassie sentou-se junto da telefonia depois de todos saírem. Estivera toda a tarde à espera para o fazer, mas sabia quanto isso aborreceria o pai. Amelia Earhart: descolara nessa tarde de Miami, com Fred Noonan, num Lockheed Electra de dois motores. Ia fazer a volta ao mundo, e a expedição tinha sido altamente publicitada pelo marido, George Putnam. A viagem fora estranhamente planejada devido à ameaça de guerra, e havia áreas que era necessário evitar. Haviam escolhido o caminho pelo equador, que era o mais longo, e sobrevoar os países mais perigosos, mais isolados e subdesenvolvidos, o que oferecia menos pistas de aterragem e menos oportunidades de reabastecimento. Não era uma tarefa fácil, e Cassie estava deliciada com tudo aquilo. Tal como muitas raparigas da sua idade e metade do mundo, Cassie estava apaixonada pela coragem e estímulo de Amelia Earhart.

- O que estás a fazer, querida? - perguntou 'a mãe ao passar por ela em direção à cozinha. Fora um dia emocionante para Oona, e achava que Cassie também estava com um ar cansado.

- Estou apenas a ver se há notícias da Amelia Earhart.

- Não a esta hora - sorriu a mãe. - Haverá bastantes no noticiário de amanhã. É uma rapariga muito corajosa.

Ela era obviamente muito mais do que uma rapariga. Faltava apenas um mês para completar quarenta anos, o que para Cassie parecia bastante idade. Mas apesar disso continuava a ser excitante.

- Que sorte - disse Cassie baixinho, desejando poder fazer algo como Earhart estava a fazer. Mais do que tudo na vida, gostaria de dar a volta ao mundo, estabelecer recordes e voar distâncias incríveis sobre terras estranhas e rios que não estavam no mapa. Isso não a assustava minimamente. Apenas a entusiasmava.

Disse-o a Nick no dia seguinte, depois de terem feito curvas à volta de uma marca sobre a pista.

- És tão louca como ela - disse Nick, fazendo um gesto casual em relação à loucura de Earhart. - Nem é o grande piloto que Putnam afirma. já se despenhou mais vezes do que metade das outras mulheres que voam e aposto um dólar que naquele Electra ela sairá de qualquer pista. É uma máquina muito pesada, Cass, e tem o motor Wasp da Lockheed mais pesado que existe. Isso é muito difícil para uma mulher da sua estatura e constituição física. Esta viagem é apenas um truque para fazer dela a primeira mulher a dar a volta ao mundo. já foi feita por homens e não vai ter qualquer influência no progresso da aviação. Apenas para o progresso da Amelia Earhart. - Ele parecia pouco impressionado, mas Cassie não se deixava intimidar.

- Não sejas burro, Nick. Só estás zangado por ela ser mulher.

- Não estou. Se me dissesses que a Jackie Cocliran iria fazer esta viagem, eu diria que era ótimo. Só acho que a Earhart não tem o estofo necessário para a fazer. Em Chicago, falei com um fulano que a conhece e me disse que ela e o avião não estavam preparados. Mas Putmam quer espremer toda a publicidade que puder. Na verdade, até sinto pena dela. Acho que está a ser usada e levada a tomar decisões péssimas.

- Isso soa a azedume, Nick - disse Cassie para o irritar, enquanto partilhavam uma Coca-Cola. Os seus vôos juntos tinham-se tornado um ritual muito querido que nenhum deles teria perdido por nada deste mundo. já durava há um ano. - Engolirás essas palavras quando bater todos os recordes - concluiu Cassie, confiante, enquanto ele abanava a cabeça.

- Não fiques à espera. - Sorriu-lhe com os cantos dos olhos a brilhar, tal como acontecia quando tinha o Sol pela frente durante um vôo. - Preferia apostar em ti dentro de alguns anos. - Estava a brincar com ela, mas era verdade.

- Claro que sim! E o meu pai estará a receber as apostas, não é? - Eles ainda não tinham descoberto uma maneira de lhe contar que Cassie voava e muito menos que Nick achava que Cassie era um dos melhores pilotos que conhecia. Mas ele tinha prometido que, um dia, quando fosse a melhor altura, o fariam.

O festival aéreo de Peoria era daí a duas semanas e ele estava a trabalhar com Chris, agora no melhor da sua forma e tão desinteressado como sempre. Ia participar no festival aéreo apenas para agradar ao pai. Tentaria estabelecer um recorde de altitude, se bem que não pensasse consegui-lo. Esse tipo de habilidades não era o seu ponto forte e a pilotagem temerária ainda o assustava. No entanto, tinham reforçado a estrutura do Bellanca de Nick e colocado um turbo compressor no motor para aumentar a potência.

- Adorava poder voar nele - disse Cassie, e Nick desejou o mesmo.

- Também eu. Para o ano! - prometeu ele e disse-o a sério.

- Achas mesmo que conseguiria? - A rapariga parecia esmagada de excitação. Se bem que estivesse a um ano de distância, era algo para desejar ainda mais do que a faculdade.

- Não vejo qualquer razão para que isso não aconteça, Cass. Tu voas muito melhor do que qualquer dos tipos que lá vão. Seria uma sensação e espantá-los-ia a todos. Acredita em mim. Eles precisam disso.

- Há fulanos muito bons no festival - disse Cassie respeitosamente. Tinha visto pilotagens brilhantes ao longo dos anos, mas também sabia que voava tão bem ou melhor do que a maioria desses homens. Cassie também vira terríveis tragédias ao longo dos anos. Não era estranho haver fatalidades nesse tipo de espetáculo. Oona tinha finalmente forçado Pat a desistir porque os truques eram demasiado perigosos. Mas ele adorava vê-lo.

- Não me queres voltar a subir e proporcionar-me mais alguns arrepios? - perguntou Nick depois de almoço. Por vezes, voltavam a descolar, se as condições climatéricas estivessem boas e tivessem tempo, o que era o caso nessa tarde. - Precisas de trabalhar as descolagens e aterragens com ventos cruzados. - Tinham estado a trabalhar as descolagens com reduções de potência.

- Um raio é que preciso. As minhas aterragens são melhores que as tuas - discordou Cassie com um sorriso.

- Não sejas tão modesta. - Ele desordenou-lhe o cabelo com a mão e sentou-se no banco de trás. Como era habitual, ela não o desiludiu. Era fabulosa. Naturalmente fabulosa. Era tão simples como isso. Continuou a ter pena de não conseguir inscrevê-la no festival desse ano.

Porém, dois dias antes do festival, Cassie estava sentada junto da telefonia, incapaz de acreditar no que estava a ouvir. Amelia Earhart tinha caído algures perto de Howland Island, no Sul do Pacífico. Parecia-lhe inacreditável, e para todos os que ouviram as notícias, menos para o pai que repetia constantemente que o lugar das mulheres era na cozinha e não aos comandos de um avião. As Skygids talvez fossem uma exceção e até isso não lhe parecia apropriado. Mas Cassie também se recordou do que Nick lhe dissera: Earhart não era muito boa a lidar com aviões pesados. Além disso, várias pessoas que a conheciam bem tinham afirmado que ela não estava preparada. Parecia uma terrível tragédia e o Governo cooperou imediatamente nas buscas. Dois dias mais tarde, no dia do festival, ainda não a tinham encontrado.

O estado psicológico de Cassie não era dos melhores enquanto observava os truques e acrobacias no festival.

- Anima-te! - Ouviu uma voz familiar atrás de si. - Não estejas com esse ar tão soturno.

Era Nick. Tinha um cachorro numa mão e uma cerveja noutra e na cabeça um chapéu de papel alusivo ao 4 de julho. Aqueles espetáculos aéreos eram sempre festivos.

- Lamento - desculpou-se ela com um sorriso cansado. Não se deitava há dois dias para ouvir as notícias sobre Amelia Earhart, mas estas não surgiram. Não tinham encontrado nada. Desaparecera completamente. - Só estava a pensar em...

- Eu sei no que estavas a pensar. Na mesma coisa em que vens a pensar desde que ela levantou vôo. Mas não vai servir-te absolutamente de nada ficar doente por causa dela. Lembra-te do que eu disse. Há riscos que todos corremos e aceitamo-los. Ela fez o mesmo. Estava a fazer o que queria.

Ofereceu-lhe uma dentada do cachorro, que ela aceitou com um ar pensativo. Talvez Nick tivesse razão. Talvez ela tivesse o direito de morrer daquela maneira. Se lhe houvessem dado a escolher entre uma velhice tranqüila numa cadeira de balouço ou uma saída rápida num Lockheed, provavelmente escolheria a segunda. Mas Cassie continuava a detestar pensar que ela tivesse caído. Era a morte de uma lenda.

- Talvez tenhas razão - retorquiu Cassie em voz baixa -, mas é muito triste.

- É muito triste - concordou ele. - Ninguém disse que não era. É terrível quando alguém se despenha, mas é um risco que todos corremos e que, simultaneamente, amamos. Tu também. - Colocou-lhe a mão sob o queixo e recordou-lhe silenciosamente como adorava voar e estava disposta a correr riscos. - Se te dessem essa possibilidade, tu farias o mesmo, minha pequena doida! Se alguma vez tentares fazer uma dessas disparatadas voltas ao mundo, deito-te fogo ao avião. Podes contar com isso.

- Obrigada! - Ela sorriu-lhe e depois apertou-lhe o braço com a excitação.

- Olha! Olha para aquilo! Lá vai o Chris! Vá... vá lá! Focinho para cima!

Ele estava a tentar ganhar o troféu de altitude no avião de Nick e quase desapareceu enquanto eles o observavam. Tinha umas mãos firmes e uma circunspeção que o tornavam perfeito para aquele tipo de competição. Não tinha o mesmo tipo de agitação ou garra de Cassie. Tudo o que possuía era resistência. Quando Chris aterrou, Nick ficou espantado com a altitude que alcançara. Apressaram-se ajuntar-se a Pat Oona e a algumas das irmãs que estavam com os filhos. Glynnis e Megan estavam, de novo, enormemente grávidas e Colleen tinha um ar doentio, o que fez com que Oona suspeitasse que estava de novo grávida e que ainda não o participara. Eram um grupo muito prolífero. Este seria o quarto para Megan e Colleen e o quinto para Glynnis.

- Ainda bem - sussurrou Cassie enquanto conversava com Nick - que não tenciono ter filhos. No que me diz respeito, elas podem ter os filhos que quiserem. - Ultimamente começara a pensar que nunca casaria ou teria filhos.

- Também terás filhos. Não te iludas. Porque não?

Nick nunca acreditava em Cassie sempre que esta afirmava que nunca casaria ou teria filhos. Ela também não acreditava muito nela própria, mas sabia que não desejava nada disso para já. Tudo o queria era aviões.

- O que te dá tanta certeza que eu terei filhos, Nick? perguntou com ar de desafio.

- Porque vens de uma família que se multiplica como coelhos.

- Muito obrigada.

Ainda estava a rir quando Bobby Strong a descobriu e olhou estranhamente para Nick. Tinha sempre a sensação que Nick não gostava dele. Alguns instantes mais tarde, tendo falado muito pouco com qualquer um deles, Nick foi juntar-se aos outros pilotos.

Meia hora depois, anunciaram que Chris ganhara o prêmio do recorde de altitude e o pai ficou fora de si de contentamento. Foi tentar descobrir Chris, enquanto Oona ia buscar bebidas para as filhas e netos. Bobby ficou a ver o espetáculo com Cassie, em que pequenos aviões vermelhos, azuis e prateados faziam acrobacias e movimentos de rotação, piruetas lentas no ar, oitos e oitos duplos e mais alguns truques de que Cassie nunca ouvira falar. Só de os ver ficava sem respiração, e a multidão gritou mais do que uma vez quando o desastre parecia iminente. Depois, quando no último segundo recuperavam, aplaudia. Ela estava habituada, mas era sempre excitante.

- Em que estavas a pensar agora mesmo? - Bobby tinha começado a observar o seu rosto. Estava cheio de luz e com uma expressão de total enlevo enquanto observava um avião a fazer um looping exterior. Era uma habilidade que Jimmy Doolitde inventara há uns dez anos e que a impressionava bastante. O piloto acabou com um floreado, fazendo uma passagem invertida a baixo nível longe da multidão para que ninguém ficasse em perigo. Bobby observou com fascínio a expressão do seu rosto. Depois, ela virou-se e sorriu-lhe quase com tristeza.

- Estava a pensar que queria estar lá em cima a fazer aquilo - disse ela honestamente. - Deve ser muito divertido. Tudo o que Cassie queria era ser um deles.

Acho que ficaria doente - afirmou ele com a mesma honestidade. Ela sorriu-lhe enquanto um vendedor apregoava algodão doce.

- Provavelmente ficarias. Eu quase fiquei algumas vezes.

- Quase falou de mais nessa altura, e teve de se lembrar que era preciso ter cuidado. - Os Gs negativos provocam isso. Fazem-se durante uma perda de altitude, mesmo antes do momento da recuperação. É como se o estômago nos saísse pela boca. Mas não sai. - Voltou a sorrir.

- Não sei como podes gostar de tudo isto, Cass. A mim assusta-me terrivelmente.

Ele era louro, bem-parecido e com um ar muito jovem, e ela tornava-se, dia após dia, uma linda mulher.

- Acho que me está no sangue!

Bobby acenou com a cabeça, preocupado com o fato de poder ser verdade.

- Foi uma pena o caso de Amelia Earhart.

Ela também acenou com a cabeça.

- Realmente foi! O Nick diz que todos os pilotos aceitam essa possibilidade. Pode acontecer a qualquer um. - Olhou para o céu. - A qualquer um daqueles. Penso que acham que vale a pena.

- Não há nada que valha o risco da tua vida - discordou Bobby -, a não ser que seja durante uma guerra ou para salvar alguém que ames.

- Essa é a dificuldade. - Cassie olhou para ele com um sorriso triste. - A maioria dos pilotos arriscaria tudo para voar, mas as outras pessoas não compreendem isso.

- Talvez seja por isso que as mulheres não devem voar, Cass - disse ele calmamente.

- Pareces o meu pai.

- Talvez devesses prestar-lhe mais atenção.

Gostaria de dizer: «Não posso», mas sabia que não devia fazê-lo. Apenas podia dizê-lo a Nick. Este era o único ser humano que sabia toda a verdade sobre ela e a aceitava. Mais ninguém a conhecia e muito menos Bobby.

Entretanto, viu Chris a caminhar na sua direção e correu para ele. Trazia a sua medalha e o rosto a brilhar de orgulho, enquanto Pat parecia nas nuvens.

- A primeira medalha aos dezessete anos! - declarava este a todos os que ouvissem. - É assim mesmo! - Estava a oferecer cervejas e a dar palmadas nas costas de todos, incluindo Chris e Bobby. Chris estava exposto ao calor do amor e aprovação do pai. Cassie observava-os, fascinada pelo desespero com que o pai desejava o sucesso de Chris na aviação e simultaneamente inflexível em relação à possibilidade de ela o poder alcançar. Era dez vezes melhor piloto do que Chris, ou ainda mais, mas o pai nunca o reconheceria ou saberia.

Nick foi apertar a mão a Chris. O rapaz estava extasiado com a sua vitória e depois foi com Nick conhecer alguns dos pilotos. Era um dia muito importante para Chris e também o dia por que Pat O'Malley esperava há cinqüenta e um anos. Naquilo que lhe dizia respeito, aquela vitória era apenas o princípio, não conseguindo ver que aquilo era o máximo que Chris conseguia fazer. Queria mais. já estava a falar do ano seguinte, e Cassie sentiu então pena de Chris. Ela sabia quanto o pai significava para o irmão, que, custasse o que custasse, faria tudo para lhe agradar.

O clã O'Malley estava de muito bom humor. Foram praticamente os últimos a sair, e Bobby foi jantar com eles. Nick saiu para celebrar com os amigos; já estava muito bem bebido quando abandonou o campo do festival, mas não se preocupou, pois sabia que Chris levaria o Bellanca para o aeroporto e iria para casa no caminhão de Pat.

De manhã, antes de saírem, Oona fizera galinha frita, havendo ainda milho, salada, batatas assadas e também presunto. Quando chegou a casa, fez uma torta de framboesas e gelado. Era um verdadeiro festim, tendo Pat oferecido a Chris um copo cheio de uísque irlandês.

- Bebe, rapaz! Es o próximo ás desta família.

Chris lutou com a bebida enquanto Cassie os observava, sentindo-se triste. De certo modo, achava-se posta de lado. Ela deveria ter voado com eles e estar incluída no orgulho do pai, mas sabia que era impossível. Perguntou a si própria se alguma vez se realizaria. O único caminho que parecia estar à sua frente era igual ao das irmãs: ter um filho todos os anos e estar condenada à cozinha. Parecia-lhe uma vida horrível, se bem que amasse as irmãs e a mãe, mas preferia morrer a passar a vida daquela maneira.

Cassie notou também que Bobby estava muito simpático com todos eles. Foi gentil com as irmãs e adorável com as crianças. Era um cavalheiro e daria um fantástico marido. A mãe salientara-o de novo quando Cassie estava a ajudar a limpar a cozinha. Depois os dois foram dar um longo passeio, e Bobby surpreendeu-a quando lhe falou de aviões.

- Hoje estive a observar-te, Cass, e percebi o que tudo aquilo significa para ti. Podes pensar que estou louco, mas quero que me prometas que nunca farás nenhuma daquelas loucuras. Na realidade, eu não quero que tu voes. Podes divertir-te à vontade, mas não quero que te aconteça o que aconteceu com a Amelia Earhart.

Parecia razoável e comoveu-a, mas Cassie riu-se nervosamente. A idéia de prometer fosse a quem fosse que não voaria fê-la estremecer.

- Se é isso que te preocupa, não vou dar a volta ao mundo de avião - respondeu com um sorriso ansioso. Mas ele abanou a cabeça. Estava a referir-se a muito mais do que isso e ela sabia-o.

- Não é isso que quero dizer. Não quero mesmo que voes. - Bobby apenas tinha visto o perigo de relance, mas ao apreciar as acrobacias do festival aéreo ficara convencido. Não havia dúvidas sobre os perigos da aviação e, dois anos antes, dera-se uma terrível tragédia no mesmo espetáculo. Bobby não era parvo e conhecia a magia que voar constituía para ela. Resumindo, não a queria perder. - Não quero que aprendas a voar, Cass. Sei que o desejas, mas é demasiado perigoso. O teu pai tem razão. É demasiado perigoso para uma mulher.

- Não acho que seja um pedido razoável - disse ela calmamente. Não queria mentir-lhe, mas também não queria dizer que voava regularmente com Nick há já um «no. - Acho que deves confiar no meu bom senso em relação a isso.

- Quero que prometas que não voarás - afirmou ele, mostrando uma força e uma teimosia que a jovem nunca vira. Estava impressionada, mas não prometeria.

- Isso é um exagero. Sabes como adoro voar.

- É por isso que te peço que prometas, Cass. Acho que serias pessoa para correr riscos.

- Acredita que não. Sou cuidadosa e sou boa... isto seria. olha, Bobby! Por favor não faças isso.

- Então quero que penses no assunto. É muito importante para mim.

Queria gritar que voar também era importante para si. Era a única coisa que importava e ele queria tirar-lha. O que se passava com todos eles? Bobby, o pai e até Chris. Por que razão queriam tirar-lhe uma coisa que ela amava tanto? Apenas Nick compreendia. Era o único que sabia e se importava com os seus sentimentos.

Mas, nesse preciso instante, Nick Galvin estava a dormir nos braços de uma rapariga que conhecera no festival, que tinha um brilhante cabelo ruivo e lábios pintados. Ao aninhar-se junto dela, sorriu e sussurrou: «Cassie.»

 

O horário de Cassie em Bradley era mais exigente do que o do último ano de liceu, mas ela conseguiu cumpri-lo e encontrar-se com Nick duas vezes por semana: aos sábados e, às vezes, numa manhã de um dia de semana. O pai não sabia exatamente o horário, sendo, como tal, fácil para ambos. Tinha começado a trabalhar como criada de mesa para pagar o combustível a Nick, mesmo que não pudesse pagar-lhe as lições, mas ele nunca esperara qualquer tipo de pagamento. Fazia-o meramente por amor e prazer.

Cassie melhorava sempre que voava, aperfeiçoando alguns aspectos e pilotando todos os aviões que podia para aprender as suas diferenças e subtilezas. Voou com o Jenny, o velho Cipsy Moth, o Bellanca de Nick, o De Havilland 4 e até o velho Handley. Nick queria que ela pilotasse todos os aviões disponíveis, conseguindo que aperfeiçoasse com grande precisão todas as técnicas e competências. Até lhe tinha ensinado algumas técnicas de salvamento e informou-a de todos os pormenores das suas aterragens forçadas mais famosas, durante a guerra com os Alemães. Havia muito pouco que ela não soubesse sobre o Jenny, o Bellanca ou mesmo o Handley, o qual Nick trouxera consigo por ser muito mais pesado e difícil de pilotar devido aos seus dois motores.

Cassie passava agora menos tempo no aeroporto do pai porque a distância para a escola era maior. Todavia, ainda andava por lá sempre que podia, trocando sorrisos de conspiração com Nick quando se cruzavam.

Um dia, estava a trabalhar num motor no hangar traseiro, quando, surpreendida, viu entrar o pai e Nick. Estavam a falar da compra de um novo avião, e o pai pensava que era demasiado dispendioso. Era um Lockheed Vega usado.

- Vale a pena, Pat. É um avião pesado, mas é uma bela máquina. Vi um a última vez que fui a Chicago.

- E quem pensas que o vai pilotar? Tu e eu. Os outros só conseguirão despenhá-lo nas árvores. É uma máquina muito boa, Nick, e não há cinco homens em quem confiasse para o pilotar. Talvez nem dois.

Porém, enquanto O Pai proferia estas palavras, Cassie viu Nick a olhar para ela com uma expressão estranha e sentiu o terror a subir-lhe pela espinha. Soube instintivamente o que ele ia fazer. Quis dizer-lhe que parasse, mas, por outro lado, desejava que o fizesse. Não se podia esconder eternamente. Mais cedo ou mais tarde, o pai teria de saber, e Nick continuava a falar sobre a sua participação no próximo festival aéreo.

Pode não haver cinco homens aqui que o consigam pilotar, Pat, mas posso apontar-te uma mulher que o, consegue fazer de olhos fechados.

- O que quer isso dizer? - O pai resmungou, já aborrecido com a referência a uma mulher que conseguia pilotar fosse o que fosse e quanto a um homem mais um avião o qual não confiaria

Nick disse-o muito devagar e calmamente enquanto Cass os observava, aterrorizada e a rezar para que o pai ouvisse.

- A tua filha é o melhor piloto que conheço, Pat. Há mais de um ano que voa comigo. Para ser exato há um ano e meio. Ela é o melhor piloto que tu e eu já vimos desde 1917. Estou a falar a sério.

- Tu o quê? - Pat olhou para o seu velho amigo e sócio completamente ultrajado. - Tens andado a voar com ela? Sabendo o que eu sinto sobre isso? Como te atreves!

- Se eu não me atrevesse, ela atrever-se-ia. Ter-se-ia matado há um ano atrás, pressionando o irmão a levá-la e a deixá-la pilotar qualquer coisa em que conseguisse pôr as mãos. Estou a afirmar-te que ela é o melhor piloto nato que já vi, e tu és parvo se não a deixares mostrar-te o que vale, Pat. Dá uma hipótese à miúda. Se fosse rapaz, fá-lo-ias e sabes disso.

- Eu não sei o que sei - disse irado a ambos -, a não ser que vocês são dois grandes mentirosos. A ti, Cassandra Maureen, digo-te já que te proíbo de voar. - Olhou diretamente para ela e depois para Nick. - E não vou aturar disparates teus, meu grande idiota, Nick Galvin. Estás a ouvir?

- Estás completamente enganado! - Nick insistia, mas Pat estava demasiado lívido para ouvir.

- Não me interessa o que pensas. Ainda és mais idiota do que ela. Ela não pilotará os meus aviões no meu aeroporto. Se és suficientemente louco para voar com ela num outro sítio qualquer, responsabilizo-te se a matares. Se ela te matar a ti a culpa será tua. Não há uma mulher viva que consiga pilotar decentemente e tu sabe-lo. - Tinha acabado de deitar abaixo, com um só golpe, uma geração inteira de mulheres extraordinárias, sendo a filha uma delas. Mas ele não se importava. Era naquilo que acreditava e ninguém lhe ia provar que era diferente.

- Deixa-me levá-la e mostrar-te, Pat. Ela consegue pilotar tudo o que nós temos. Tem uma noção de velocidade e altitude que lhe está no sangue e nos olhos e não no que ela vê no painel de controles. Pat, ela é fabulosa.

- Tu não vais mostrar-me nada e eu não quero ver. Que par de idiotas... Suponho que ela te convenceu de tudo isto.

Olhou para a filha na mais completa fúria. Segundo Pat, a culpa era toda dela. Cassie era um pequeno monstro teimoso, determinada a matar-se com os aviões do pai e no seu próprio aeroporto.

- Ela não me convenceu de nada. Eu vi-a fazer uma descida há um ano naquela tempestade em que se meteu com o Chris e percebi imediatamente que não era este que estava a pilotar. Achei que, se não interviesse, ela mataria ambos, por isso comecei a ensiná-la nessa altura.

- Era o Chris que estava a pilotar durante a tempestade do ano passado  argumentou o pai com ar de desafio.

- Não era! Nick gritou-lhe, já furioso pela falta de compreensão de Pat que apenas queria sustentar uma posição completamente desatualizada. - Como consegues ser tão cego! O rapaz não tem coragem nem mãos. Tudo o que consegue fazer é subir e descer como um elevador, tal como fez no festival. Em nome de Deus, o que te faz pensar que ele conseguiria salvá-los daquela tempestade? Foi a Cassie. - Nick olhou possessivamente para esta e ficou surpreendido ao ver que ela estava a chorar devido à fúria do pai.

- Fui eu, pai - disse, baixo. - Fui eu! O Nick sabia. Confrontou-me com o fato quando descemos e...

- Não quero ouvir isto. Além de tudo o mais, és mentirosa, Cassandra Maureen, ao tentares retirar a glória ao teu irmão. - A força das suas acusações cortou-lhe a respiração e mostrou-lhe novamente como era inútil tentar convencê-lo. Talvez um dia. Agora não. E isso parecia cada vez mais provável.

- Dá-lhe uma oportunidade, Pat. - Nick estava novamente a tentar acalmá-lo, mas era inútil. - Por favor! Deixa-a mostrar o que sabe. Ela merece-o! No ano que vem gostaria de a inscrever no festival aéreo.

- Estão os dois parvos. Completamente parvos. O que te faz pensar que ela não se mataria juntamente com mais uma dúzia de assistentes do festival, incluindo nós dois?

- O fato de ela pilotar melhor do que qualquer um dos que já lá vi. - Nick tentou manter-se calmo, mas estava lentamente a perder o controlo. Pat não era um homem fácil e o assunto era muito espinhoso. - Ela voa melhor do que o Rickenbacker,  por Deus. Deixa-a mostrá-lo.

No entanto, ele tinha cometido um sacrilégio ao invocar o nome do comandante do 94. “Esquadrão Aéreo”. Nick sabia que tinha ido longe de mais, pois Pat virou as costas, voltando para o escritório. Nunca olhou para trás e não disse nem mais uma palavra à filha.

Esta estava a chorar copiosamente e Nick colocou-lhe o braço sobre os ombros.

- Jesus! O teu pai é um homem muito teimoso. Tinha-me esquecido como consegue ser impossível quando alguma coisa o irrita. Mas eu ainda consigo convencê-lo. Prometo! - Apertou-a contra si e ela sorriu através das lágrimas.

Se fosse Chris, o pai tê-la-ia deixado mostrar qualquer coisa. Mas agora não! Nunca! Tudo porque era uma rapariga. Era muito injusto, mas ela sabia que nada o faria mudar de opinião.

- Ele nunca aceitará, Nick.

- Não tem de aceitar. Tens dezoito anos. Podes fazer o que quiseres. Não estás a cometer nenhum crime. Estás a ter lições de vôo. E depois? Está bem? Descansa. - Receberia o seu brevet muito em breve, pois estava mais do que apta para tal. Quando Pat começara a voar em 1914 nem precisara de um brevet para voar.

- E se ele me expulsa de casa?

Parecia assustada, mas Nick riu-se. Conhecia bem Pat e ela também. Fazia muito barulho e era bastante limitado nas suas idéias e crenças, mas adorava os filhos.

- Nunca o fará, Cass. Poderá tratar-te mal durante uns tempos, mas nunca te expulsará. Ele adora-te.

- Ele ama o Chris - contrapôs a jovem, com um ar triste.

- Mas também te ama. Só está um pouco atrasado no tempo e é teimoso como o diabo. Por vezes, leva-me à loucura.

- A mim também. - Ela sorriu, assoou o nariz e olhou para Nick com uma expressão preocupada. - Continuas a ensinar-me?

- Claro. - Sorriu com um ar de rapazinho malandro e depois fingiu olhar para ela muito sério. - Mas não deixes que tudo o que eu disse te suba à cabeça. Tu não voas como o líder do grande 94.0 - disse com um ar carregado, sorrindo depois. - Contudo poderias ser melhor do que ele foi, se melhorasses algumas das tuas curvas e ouvisses o teu instrutor.

- Sim senhor.

- Vai lavar a cara. Estás com um ar horrível. Encontramo-nos amanhã na pista, Cass. - Sorriu. - Não te esqueças! Temos de nos preparar para o festival aéreo.

Cassie olhou para Nick com uma expressão de agradecimento quando ele se foi embora, pensando no que seria preciso para convencer Pat O'Malley.

Decerto que ainda não estava convencido quando, nessa noite, se recusou a dirigir a palavra a Cassie durante o jantar. Contara tudo a Oona e a mãe soltou um grito quando ouviu. Há muito que Pat a tinha convencido de que as mulheres não tinham constituição física nem mental para pilotar aviões.

- É muito perigoso - tentou ela explicar a Cassie mais tarde no quarto. Com as irmãs casadas e fora de casa, Cassie há muito que tinha o seu próprio quarto.

- Não é mais perigoso para mim do que para Chris - disse Cassie novamente a chorar. Estava exausta de lutar contra eles e sabia que nunca ganharia. Até Chris nada dissera em sua defesa. Detestava discutir com os pais.

- Isso não é verdade - contrapôs a mãe. - O Chris é um homem. É menos perigoso para um homem do que para uma mulher - disse a mãe como se de uma verdade do Evangelho se tratasse, pois aprendera-a com o marido.

- Como pode dizer isso? É um disparate.

- Não é. O teu pai diz que as mulheres não possuem a mesma concentração.

- Isso é mentira, mãe. juro. Olhe para a quantidade de mulheres que voam. Grandes mulheres. -

- Olha para a Amelia Earhart, querida. Ela é o exemplo perfeito daquilo que o teu pai afirma. É óbvio que se perdeu ou ficou sem presença de espírito e levou aquele pobre homem com ela.

- Como sabes se o desaparecimento não foi culpa dele? - insistiu Cassie. - Ele era o navegador. Também pode ter sido abatida - disse Cassie tristemente. Sabia que não chegaria a lado nenhum. A mãe estava completamente convencida daquilo que o marido sempre lhe dissera.

- Tens de parar de te comportar desta maneira, Cassie. Nunca te devia ter deixado andar pelo aeroporto todos estes anos. Mas gostavas tanto que pensei ser agradável para o teu pai. Tens de acabar com esses sonhos disparatados, Cassie. És uma universitária e um dia serás professora. Não podes andar a voar por aí como uma cigana.

- Posso sim, com um raio. Posso sim. - Cassie levantou a voz à mãe, e, alguns instantes mais tarde, o pai estava no quarto a dizer-lhe para pedir desculpa à mãe. Nessa altura, ambas as mulheres choravam enquanto Pat estava completamente furioso e claramente lívido.

- Desculpa, mãe - disse ela com pesar.

- Acho muito bem que te desculpes - afirmou o pai antes de sair e bater com a porta. Momentos depois, a mãe saiu do quarto e Cassie deitou-se na cama a soluçar de pura frustração por não conseguir lidar com os pais.

Mais tarde, quando Bobby Strong chegou, Cassie pediu a Chris que lhe dissesse que estava com uma dor de cabeça terrível. Ele foi-se embora preocupado, depois de lhe deixar um bilhete a desejar-lhe rápidas melhoras e a dizer que voltaria no dia seguinte.

- Amanhã se calhar estou morta - disse ela tenebrosamente ao ler o bilhete que o irmão lhe tinha entregue. - Talvez fosse melhor!

- Descansa, mana. Aquilo passa-lhes - disse Chris calmamente.

- Não. Não passa. Ao pai nunca passará. Recusa-se a acreditar que as mulheres conseguem pilotar e acha que só servem para fazer malha e ter filhos.

- Isso parece ser ótimo. E como vai o teu tricô? - disse-lhe para a arreliar. Ela atirou-lhe com um sapato enquanto o irmão fechava a porta para fugir dela.

No dia seguinte, sentia-se melhor. Sentia-se como ela própria, assim que descolou no Bellanca com Nick. Este achava que não a deveria deixar pilotar os aviões do pai. Como era habitual, fez uma pilotagem muito competente e só o fato de estar no ar com Nick melhorava-lhe o estado de espírito. Depois, sentaram-se no velho caminhão a conversar, mas Cassie parecia muito triste. Ainda estava perturbada com a reação do pai.

- Com que então sou tão boa como o Rickenbacker? - disse a Nick para o arreliar.

- Eu disse-te para não deixares que isso te subisse à cabeça. Só estava a mentir para o impressionar.

- Ele pareceu bastante impressionado. Não achas?

Cassie sorriu pesarosamente e Nick riu-se. Ela era uma boa companheira e, mais cedo ou mais tarde, conseguiriam convencer Pat, que não podia ficar eternamente com a cabeça enterrada na areia. Ou podia?

O seu horário de vôo pouco mudou. A única vez que aconteceu foi quando Nick fez vôos de longo alcance ou quando ela tinha demasiado trabalho de casa. Mas como nenhum deles estava disposto a faltar às lições, faziam sempre primeiro as suas outras obrigações. O mais interessante é que o pai nunca perguntou a nenhum deles se estavam a continuar com as lições.

Nick juntou-se-lhes no dia de Ação de Graças, como era habitual. Pat estava com um comportamento mais frio do que o normal em relação aos dois. Ainda não lhes tinha perdoado pelo que considerava uma traição. No aeroporto, Nick caminhava sobre ovos e, em casa, Pat mal dirigira duas palavras a Cassie desde Outubro. Estava a tornar-se cada vez mais difícil, mas no Natal ele parecia mais tranqüilo. Rendeu-se finalmente quando Bobby Strong ofereceu um pequeno anel de brilhantes a Cassie, na véspera de Natal.

Bobby disse que sabia que era uma longa espera, mas que se sentiria melhor se já fossem noivos. Namoravam há três anos, por isso não achava que fosse demasiado cedo. Estava com um ar tão sério e tão apaixonado que Cassie não teve coragem de o recusar. Não tinha a certeza do que sentia, a não ser confusão, no momento em que o deixou colocar-lhe o anel lentamente no dedo. Sentia-se muito culpada e infeliz com tudo desde que os pais tinham feito todo aquele espalhafato pelo fato de ela voar. O noivado parecia modificá-los e instalá-la, de novo, nas suas boas graças.

Ficaram muito contentes. Anunciaram o noivado ao resto da família no dia seguinte, durante o jantar de Natal. Nick também estava lá e pareceu muito surpreendido com as notícias. Apenas olhava para Cassie, perguntando a si próprio se aquilo mudaria tudo entre eles. Estranhamente, ela não teve um comportamento diferente. Não parecia estar mais perto nem mais confortável com Bobby e, como sempre, estava muito à vontade com Nick., De fato, muito pouco mudara. Bobby apenas ficou um pouco mais no alpendre antes de se ir embora, mas não era o que a própria Cassie teria esperado de um noivado. Quanto a Nick, ainda estava a pensar nisso quando se encontraram novamente na pista deserta.

- O que é que isso significa? - Apontou para o anel.

Ela hesitou por alguns instantes e encolheu os ombros. Cassie não queria ser má, mas não reagia como as pessoas esperavam.

- Não tenho a certeza - disse honestamente. O fato de ter o anel no dedo não a fazia sentir-se diferente em relação a Bobby. Gostava dele, mas não conseguia imaginar ser mais para ele do que era agora. Tinha aceite o noivado apenas porque parecia ser importante para Bobby e para os pais. Parecia, sobretudo, ser importante para Bobby e ela compreendia-o. - Não tive coragem de o devolver. - Olhou envergonhadamente para Nick enquanto vigiava o Bellanca. Tinham feito um bom vôo nesse dia e ela aperfeiçoara alguns aspectos sobre a aterragem com ventos cruzados. - Ele sabe que eu quero acabar a faculdade - disse com um ar indefeso. Mas a faculdade não era realmente o problema.

- Pobre tipo! Vai ser o noivado mais longo da história. Quanto tempo é? Três anos e meio?

- Sim. - Ela sorriu maliciosamente para Nick.

Este não conteve o riso enquanto resistia ao impulso de a beijar. Estava muito aliviado. Ficara doente quando vira o anel de noivado. Detestava a idéia de Cassie se casar com alguém, ou até de estar noiva, mas Bobby não era afinal uma grande ameaça. Mais cedo ou mais tarde, Cassie teria de resolver o problema sozinha, mas, nessa altura, outro seria o problema. Sabia o quanto isso o ia incomodar quando acontecesse.

- Muito bem! Mexe-me esse rabo, O'Malley. Vamos lá ver outra aterragem sem motor. - Ia subir com ela novamente.

- Deves pensar que vou passar metade da minha vida em terra e não no ar. Não sabes ensinar mais nada, Stick? - Ela enfatizou a palavra. - Ou é o único truque do teu repertório? - Adorava irritá-lo, adorava estar com a única pessoa no mundo que realmente a compreendia. E ainda era melhor se estivessem a voar.

Daquela vez, ele mandou-a sozinha e observou a sua perfeita aterragem sem motor, mais uma vez sem uma única falha, e finalmente, sem pestanejar, com ventos cruzados.

Deu por si novamente a pensar que era uma pena o pai recusar-se a vê-la voar. Ter-lhe-ia dado muito prazer.

- Estás pronta para acabar por hoje? - perguntou ele enquanto caminhavam para o caminhão que a levaria de volta a Good Hope.

- Sim. Acho que sim - disse ela tristemente. - Detesto sempre ter de aterrar. Gostava de continuar para sempre.

- Talvez fosse melhor seres uma Skygirl quando cresceres - arreliou-a ele novamente. Cassie bateu-lhe com as luvas, mas estava com uma expressão triste. De fato, não tinha opções. Se não fosse Nick, ela nunca voaria.

- Tem calma, miúda - disse este gentilmente. - O teu pai vai aceitar.

- Não. Não vai - respondeu a jovem que conhecia o pai.

Nick tocou-lhe na mão e os seus olhos encontraram-se. Ela estava-lhe grata por tudo o que ele lhe dera e pela sua bondade. Tinham aquele tipo de amizade que nunca encontrara noutra pessoa. Cassie era uma grande mulher e uma boa amiga e tinham-se divertido muito nas tardes roubadas e passadas na sua pista secreta. Nick apenas desejava que pudesse continuar para sempre. Não conseguia imaginar não a encontrar mais daquela forma, ou não a ter para voar consigo e partilhar os seus pensamentos. De todas as maneiras importantes, era a única pessoa com quem ele realmente desabafara. Ele também era o seu único amigo. A única tragédia para ambos residia no fato de não terem mais nada no seu futuro.

Ao fim da tarde, foi para casa sozinha, a pensar nele. Começou a nevar assim que chegou. Entrou em casa e ajudou a mãe a fazer o jantar para os quatro, mas o pai estava atrasado. Uma hora mais tarde, ainda não tinha chegado. Finalmente, Oona mandou Chris ao aeroporto para tentar encontrar Pat.

Chris voltou vinte minutos mais tarde para levar comida para si e para o pai. Tinha havido um desastre de comboios, trezentos e sessenta quilômetros a sudoeste, com centenas de feridos, e estavam a pedir equipas de salvamento de todo o lado. Pat estava a organizar equipas de salvamento no aeroporto e queria que Chris ajudasse. Nick também lá estava, tentando chamar todos os pilotos. Mas três estavam em casa, demasiado doentes para poderem ir, e ainda não tinham conseguido localizar os outros. Ainda estavam à espera que alguns chegassem. Pat dissera a Chris para comunicar à mãe que não iriam para casa à noite. Oona acenou com a cabeça, habituada a estas coisas, e embalou alguns alimentos para comerem no aeroporto.

- Espera! - disse Cassie quando Chris ia a sair. - Vou contigo.

- Não devias... - Oona começou a objetar, mas, ao ver a expressão no rosto da filha, encolheu os ombros. Não fazia mal. Tudo o que ela poderia fazer era ficar sentada no aeroporto. - Está bem. Vou embrulhar algo para comeres.

Deu-lhes um cesto cheio de comida, e ambos foram-se embora, derrapando de vez em quando na velha estrada que ia dar ao aeroporto. Estava uma noite gelada e a neve caía há duas horas. Perguntava a si própria se conseguiriam descolar. As condições climatéricas não estavam nada boas e o pai parecia preocupado quando ela e Chris entraram no escritório do aeroporto.

_ Olá, miúdos. - Empurrou a comida para o lado. Ele e Nick estavam a falar ansiosamente sobre os aviões que poderiam usar e os homens que precisavam. Estavam a tentar mandar quatro aviões com mantimentos e equipas de salvamento. Tudo e todos estavam reunidos, exceto os pilotos. Até agora, ainda faltavam dois homens que tentavam contatar. Pat iria pilotar o novo Vega com Chris. No entanto, se fosse necessário, Pat voaria sozinho. Outro dos seus melhores homens tinha chegado com o co-piloto e a cada um estava destinado um avião. Mas precisavam de mais dois homens para pilotar o velho Handley. Era difícil de dirigir e, devido à sua idade, tamanho, além das condições climatéricas, era melhor levar dois homens. Nick poderia tê-lo pilotado sozinho, mas não seria uma decisão sábia. Além disso, queria alguém muito bom para voar com ele. Silenciosamente, olhou para Cassie, mas nada disse.

Pouco depois, tiveram notícias de mais dois homens. Um estava completamente exausto, depois de uma viagem de dezesseis horas pelo país a entregar correio com um tempo terrível, e o outro admitiu ;imediatamente que estivera a beber.

- Só nos resta um - disse Nick, infeliz. Um homem de quem precisavam ter notícias. Por volta das dez horas, este finalmente ligou, dizendo que tinha uma terrível dor de ouvidos. - Chegamos ao fim da linha, O'Malley - afirmou Nick vincadamente. Faltava-lhes um homem para a missão. Pat leu-lhe facilmente o pensamento e começou a abanar a cabeça, mas desta vez Nick não o ouviu.

- Vou levar a Cassie comigo - disse ele calmamente quando Pat ia começar a refilar. - Não percas tempo, Ás. Estão centenas de pessoas feridas à espera de ajuda e mantimentos e não vou discutir contigo. Sei o que estou a fazer e ela vem comigo. - A outra opção era deixá-la ser co-piloto do Vega com o pai, mas Nick sabia que ele não o permitiria.

Nick agarrou no casaco e encaminhou-se para a porta. Susteve a respiração quando viu Pat olhar para ele, zangado, sem fazer qualquer objeção.

- Es um louco, Nick - rosnou-lhe Pat, mas não disse mais nada enquanto juntavam as coisas e telefonava a Oona para lhe pedir que esperasse por eles no aeroporto.

Cassie seguiu Nick em silêncio até ao avião, sentindo algo a tremer dentro de si e, só por um instante, viu o pai a olhar fixamente para ela com uma expressão de raiva e traição. Quis dizer-lhe qualquer coisa, mas não sabia o quê. Instantes depois, ele desaparecia com Chris no Vega.

- Ele fica bem - disse Nick enquanto a ajudava a subir para o lugar, mas a jovem apenas abanou a cabeça. Como sempre, Nick tinha-o enfrentado. Acreditava nela e não receara dizê-lo. Era um homem espantoso, e ela apenas esperava não o deixar ficar mal ao pilotar o velho avião, com aquele mau tempo, até ao Missouri.

Fizeram as habituais verificações no solo e depois no interior. Ela conhecia bem o avião, graças a Nick, e, enquanto apertava o cinto, ficou subitamente muito excitada com o que iam fazer e esqueceu-se completamente do pai. Transportavam mantimentos de emergência que lhes tinham sido trazidos ao aeroporto. Os outros aviões também transportavam mantimentos, dois médicos e três enfermeiras. Estava a chegar auxílio de quatro estados. Havia quase mil pessoas feridas.

Nick descolou cautelosa mas suavemente. Não havia gelo nas asas e a neve já não caía com tanta intensidade. Tinha quase parado quando chegaram à sua altitude final de oito mil pés e voaram para sudoeste em direção a Kansas City. Era um vôo de duas horas e meia, se bem que Pat e Chris o fizessem em pouco mais de uma hora no Vega. Houve quase sempre turbulência, mas isso não perturbou Cassie ou Nick. Cassie estava atordoada com a beleza da noite e com o fato de ser tão pacífico estar ao comando de um avião numa noite cheia de estrelas, agora. Era como estar à beira do mundo num universo infinito. Nunca se sentira tão pequena, tão livre e tão viva como naquele momento.

Nick deixou-a pilotar a maior parte do tempo e, quando chegaram a um campo com área suficiente, perto dos destroços do comboio, ele aterrou o avião.

Quando chegaram ao comboio, havia feridos por todo o lado, os mantimentos estavam a chegar e o pessoal médico tentava ajudar pessoas deitadas no chão e crianças que choravam. Nick, Cassie e os outros ficaram a ajudar até de madrugada e, nessa altura, a polícia estatal parecia ter tudo sob controlo. Tinham surgido ambulâncias e pessoal médico oriundos de todo o estado. As pessoas tinham vindo de carro ou de avião e chegado o mais depressa possível. De manhã, Nick e Cass voaram para casa com os outros. Mal vira o pai durante a noite, enquanto faziam tudo o que podiam para ajudar as equipas de salvamento.

O Sol nasceu no momento em que descolaram, e no caminho de regresso Nick deixou-a pilotar e fazer uma aterragem perfeita, apesar dos ventos fortes e do gelo na pista. Nick apertou-lhe a mão depois de ela desligar os motores e cumprimentou-a por um trabalho bem feito. Ela sorria ao descer do avião e ficou surpreendida quando quase chocou com o pai. Este estava de pé ao lado do avião, olhando para Nick com uma expressão cansada. Depois ladrou uma pergunta.

- Quem aterrou este avião? - O avião era dele e Cassie sentiu imediatamente que ia haver problemas.

- Fui eu - disse Cassie calmamente, pronta a assumir a responsabilidade por algum erro que tivesse cometido. Levava tudo aquilo muito a sério e com calma.

- Fizeste um belíssimo trabalho - disse Pat estranhamente. Depois virou-se e foi-se embora.

Ela tinha provado tudo o que Nick afirmara e ambos ficaram a pensar no que Pat faria agora. Era difícil saber. Não era possível prever Pat O'Malley. Enquanto observava o pai à distância, tinha lágrimas nos olhos. Fora o único elogio significativo que partira da boca do pai e desejou gritar de contentamento. Em vez disso, sorriu para Nick, reparando que ele tinha um largo sorriso estampado no rosto. Dirigiram-se de braço dado para o escritório.

A mãe tinha trazido café e pão com manteiga para todos, e Cassie sentou-se calmamente a bebê-lo e a conversar com Nick sobre o que tinham visto. Fora uma noite longa e dura, mas pelo menos tinham sido úteis.

- Com que então pensas que és muito boa. - Ouviu as palavras do pai que estava em pé junto dela e olhou para ele. já não tinha uma expressão zangada.

- Não, pai. Não acho. Apenas quero voar - disse Cassie suavemente.

- Não é natural. Isso é que é a verdade. Olha o que aconteceu à pobre Earhart. - Cassie já ouvira várias vezes aquele discurso e estava preparada para tal, mas não se sentia, de modo algum, pronta para o que ouviu a seguir, abrindo a boca de espanto quando olhou para Nick para ter a certeza que tinha ouvido corretamente. - Eu dou-te trabalho aqui depois da escola. Nada de especial. Apenas pequenas coisas. Não posso dar-me ao luxo de ter o Nick a voar por todo o lado e a gastar gasolina e tempo para te dar lições. - Ela sorriu quando olhou o pai, e Nick soltou um grito de contentamento que fez com que os outros homens olhassem confusos para ele.

Ela atirou-se ao pescoço do pai, Nick apertou-lhe a mão e Chris dirigiu-se à irmã e abraçou-a. Nunca fora tão feliz. Ia deixá-la voar. O pai ia deixá-la voar e dar-lhe pequenas tarefas no aeroporto.

- Espera até ao festival aéreo de julho - sussurrou ela a Nick enquanto o abraçava com força e este sorria. O pai ia ter uma grande surpresa. Aquilo era, decerto, um excelente começo.

 

Nos seis meses que se seguiram, os dias de Cassie pareciam voar. Conduzia para Bradley todos os dias, trabalhava num restaurante três tardes por semana para pagar a Nick a gasolina das lições e depois tentava chegar ao aeroporto antes do cair da noite. Fazia o que podia para ajudar, mas a maior parte do trabalho para o pai, como piloto, realizava-se aos fins-de-semana. Eram os seus dias mais felizes. Nick até a levou em algumas viagens de transporte de carga para Chicago, Detroit e Cleveland.

A sua vida nunca parecera tão perfeita. Tinha saudades das secretas lições de vôo com Nick e dos momentos que haviam partilhado juntos. Mas, agora, ele ensinava-a abertamente quando tinham tempo, descolando do aeroporto do pai. Apesar de Pat nunca lhe ter dito nada, era óbvio que aprovava o seu estilo e, uma vez, admitira secretamente a Nick que ela era um grande piloto. Todos os seus elogios iam para Chris que tentava, mas realmente não os merecia. Mas isso já não incomodava Cassie. Tinha tudo o que queria.

O seu único problema era o fato de o noivo não aprovar a permissão de Pat. No entanto, já que o fizera, havia muito pouco que Bobby poderia dizer, exceto recordar-lhe constantemente a sua reprovação. A própria mãe pensava que era apenas uma fase passageira, e que Cassie se desinteressaria quando casasse e tivesse filhos.

A maior notícia dessa Primavera foi a tomada da Áustria por Hitler, em Março. Pela primeira vez, havia uma séria preocupação em relação à possibilidade de uma guerra, se bem que a maioria das pessoas ainda acreditasse em Roosevelt. Este dissera que não haveria guerra e que, mesmo que houvesse, a América nunca entraria. Uma vez bastara para aprender a lição.

Nick, porém, não pensava que isso fosse assim tão simples. Lera alguma coisa sobre Hitler e não confiava nele. Também tinha amigos que se tinham oferecido como voluntários para a Guerra Civil de Espanha, havia dois anos, e acreditava que, muito em breve, toda a Europa estaria em grandes sarilhos. Nick conseguia facilmente visionar o novo envolvimento dos Estados Unidos, apesar das promessas e protestos de Roosevelt.

- Não acredito que entremos novamente. E tu, Nick? perguntou Cassie muito séria, depois de terem praticado para o festival.

- Eu acredito - respondeu ele honestamente -, e acho até que o faremos. Penso que o Hitler irá longe de mais e teremos de nos envolver para apoiar os Aliados.

- Isso é difícil de acreditar - disse Cassie.

Era ainda mais difícil acreditar que o pai não tivesse colocado entraves à sua participação no festival. Nick tinha-o convencido e agora, mais do que nunca, Pat tinha medo de ficar envergonhado. já vira que ela era muito segura, tinha boas mãos e havia sido bem ensinada. E se as coisas corressem mal? Se tudo corresse tão mal ao ponto de ele não conseguir erguer a cabeça?

- O Chris não te deixará ficar mal - dissera Nick para o encorajar e Pat tinha ingenuamente acreditado.

Nick tinha muitas mais certezas a respeito de Cass, mas não se teria atrevido a dizê-lo ao pai. Pat ainda queria acreditar que Chris tinha um grande futuro aos comandos de um avião e recusava-se a ver que o filho não dava qualquer importância à aviação. Com toda a justiça, Chris não deixava transparecer os seus verdadeiros sentimentos. Tinha medo.

Quando finalmente chegou o grande dia, todas as previsões de Nick estavam certas. Chris ganhou novamente o prêmio de altitude, mas Cassie ganhou o segundo lugar em velocidade e o primeiro numa corrida em circuito fechado. Durante a tarde, quando anunciaram os vencedores, Pat não conseguia acreditar no que estava a ouvir e Cassie também não. Ela e Nick dançavam como duas crianças, abraçando-se e beijando-se, e largando gritos de contentamento. O jornal local tirou uma fotografia de Cassie sozinha e depois outra ao lado do pai. Chris não ficara enciumado com nada do que acontecera. Sabia quanto aquilo significava para ela. Era toda a sua vida. Pat não conseguia acreditar no que ela fizera, mas Nick conseguia. Sempre o soubera e não se surpreendeu quando um dos juízes afirmou que nunca tinha visto um piloto tão bom em curvas a alta velocidade como Cassie.

- Conseguiste, miúda - disse Nick, sorrindo, enquanto a conduzia para casa ao fim do dia, depois de terem pilotado todos os aviões do pai de regresso ao aeroporto.

- Eu ainda não acredito - afirmou ela, observando fixamente Nick, olhando depois para longe pela janela.

- O teu pai também não. - Ele sorriu.

- Devo-te tudo a ti - disse ela seriamente, mas Nick apenas abanou a cabeça.

- Tu deves tudo a ti própria. É a essa pessoa a quem tu deves tudo. Eu não te dei o dom. Foi Deus que to deu. Eu apenas ajudei.

- Tu fizeste tudo. - Ela virou-se para olhá-lo, sentindo-se subitamente triste. E se ele a deixasse de ensinar? E se deixassem de passar tempo juntos? - Ainda virás voar comigo?

- Claro. Se prometeres não me assustar. - Nessa altura disse-lhe o que o juiz referira, com um verdadeiro orgulho nela.

Ela deu uma gargalhada ruidosa e depois quase gemeu quando viu Bobby Strong à sua espera no alpendre. Este tivera tanto medo que algo lhe acontecesse que se recusara a ir ao festival. Havia coisas que ela tinha de admitir, mas nunca tivera a coragem, e ele nunca quisera ouvir. Bobby não queria acreditar no quanto significava para Cassie voar, e até que ponto desejava fazer outras coisas para além de ser mulher e mãe. Naquele momento, Cassie só desejava reviver cada momento do festival com Nick e que este lhe assegurasse que os seus momentos juntos não iriam acabar. Em vez disso, teria de lidar com Bobby.

- Ali está o teu amigo - disse Nick calmamente. - Vais casar-te com ele? - Fora algo em que Nick sempre pensara.

- Não sei - respondeu honestamente com um suspiro. Era quase sempre honesta com ele, mas Bobby não queria respostas honestas. Ela tinha dezenove anos e não se sentia preparada para se ligar a ninguém. No entanto, era o que todos queriam. - Todos continuam a dizer-me que mudarei e que casar e ter filhos altera tudo. Acho que é disso que tenho medo. A minha mãe diz que é tudo o que as mulheres desejam. Então como é que se compreende que tudo o que eu desejo é o que tive hoje, além de um hangar cheio de aviões?

- Não posso dizer que tenha sentido as coisas de outra maneira - sorriu ele, ficando subitamente pensativo. - Não. Não é verdade. Senti a vida de outras maneiras quando tinha mais ou menos a tua idade. Esforcei-me muito, mas não resultou. Desde então, tenho um medo horrível. Não há espaço para família e aviões na minha vida, o que não significa que tu sejas diferente, Cassie. - De certo modo, queria que ela fosse diferente, mas não com Bobby.

_ O meu pai conseguiu conjugar bem as duas coisas - disse sorrindo. - Talvez sejamos ambos estranhos ou talvez apenas covardes. Às vezes, é mais fácil amar aviões do que pessoas.

No entanto, ela sabia que o amava. Era o amigo mais querido que tinha e também sabia que Bobby a amava desde criança. O problema agora era que Cassie já não era uma criança.

- Sabes - acenou pensativamente com a cabeça, respondendo ao fato de ela se ter apelidado de covarde -, foi exatamente o que eu disse hoje a mim próprio quando te vi fazer aquele looping triplo seguido de um parafuso invertido antes de passares para as rotações na corrida acrobática. Disse para mim próprio: «Ena! Nunca pensei que a Cassie fosse covarde.»

Ela riu-se com a expressão do seu rosto e deu-lhe um empurrão.

- Sabes muito bem o que quero dizer. Talvez sejamos covardes com as pessoas - disse Cassie cautelosamente.

- Talvez só não sejamos estúpidos. Acho que casar com a pessoa errada é o pior que pode acontecer. Acredita em mim. Eu tentei.

- Estás a tentar dizer-me que Bobby é a pessoa errada para mim? - inquiriu Cassie com um tom de voz mais baixo, enquanto o rapaz esperava pacientemente no alpendre. já soubera que ela ganhara dois prêmios no festival.

- Não posso dizer-te isso, Cass. Só tu podes saber e não deixes que ninguém te diga que ele é a pessoa certa. É preciso que tu percebas. Se isso não acontecer, virás a arrepender-te bastante.

A jovem acenou com a cabeça perante a inesperada sabedoria das suas palavras e depois abraçou-o novamente, agradecendo-lhe tudo o que fizera por ela.

- Vejo-te amanhã no trabalho.

Trabalharia no aeroporto todo o Verão. O pai ia deixá-la despedir-se do emprego no restaurante e trabalhar para ele. Perguntou a si própria se Pat a deixaria fazer transportes sozinha e se a sua performance no festival iria mudar alguma coisa.

Saltou do caminhão, olhando uma última vez para Nick, indo depois falar com Bobby, que tinha esperado bastante tempo por Cassie e estava contente por ela ter ganho. Mas, quando Cassie correu para ele, estava com um ar aborrecido. Toda a tarde, na loja do pai, estivera muito preocupado e aterrorizado com o fato de poder ouvir dizer que houvera um desastre no festival. E agora, ali estava ela com um ar muito feliz e despreocupado, como se tivesse ido às compras à cidade com as irmãs.

- Não é justo, Cass - disse calmamente. - Estive toda a tarde preocupado. Tu não sabes o que é pensar em todas as coisas horríveis que te poderiam acontecer.

- Desculpa, Bobby - disse ela devagar -, mas foi um dia muito especial para mim.

- Eu sei - acenou com a cabeça, mas não parecia contente. Se nenhuma das irmãs voava, o que é que ela estava a tentar provar? Realmente não queria que continuasse a voar e tinha-lho dito. Mas aquela não era a altura ideal para o dizer e Cassie ficou subitamente com um ar muito zangado.

- Como podes dizer-me uma coisa dessas?

Ela já tinha ido longe de mais: o festival aéreo, o pai e todos aqueles anos de lições com o Nick. Nunca mais deixaria de voar. Estava lá em cima e iria lá ficar quer Bobby gostasse ou não. Pensara que eventualmente conseguiria que ela mudasse de idéias, mas, no fim do Verão, percebera que a rapariga se tinha aliado à família dos pilotos e que o sangue era mais forte do que os compromissos. De momento, tudo o que poderia fazer era pedir-lhe para ter cuidado. É claro que Cassie era cuidadosa, mas não por causa de Bobby. Apenas era muito boa naquilo que fazia e estava constantemente no ar. No Outono, quando Jackie Cochran ganhou a corrida do Bendix Trophy, de Burbank até Cleveland, Cassie estava a começar a entregar correio por conta do pai. Ele já parecia certo das suas capacidades e dera-lhe vôos para todo o estado. Finalmente, admitira que Nick tinha razão. Era uma coincidência e não se podia realmente ter a mesma confiança numa mulher como num homem, mas ela era um piloto excelente. Obviamente, Pat nunca dissera isso a Cassie.

Ela ficou em Bradley a fazer o segundo ano e trabalhou no aeroporto durante todo o Inverno. Ajudava em várias emergências, voava com Nick sempre que podia, e, na Primavera, foi aceite como membro da equipa do aeroporto. Voava para todos os lados, fazia vôos curtos e longos e estava novamente a praticar para o festival aéreo de Verão. Por vezes, saía com Nick para praticar, e o tempo que passavam juntos faziam-na lembrar os seus anos de lições. Mas agora, enquanto trabalhavam no aeroporto, tinham tempo para falar e, mais do que uma vez, Cassie fora com ele entregar carga ou correio.

Ainda estava noiva de Bobby Strong, mas o pai dele estivera doente todo o ano e Bobby tinha agora mais responsabilidades na loja. Visitava Cassie com menos freqüência, porém esta andava tão atarefada que por vezes nem reparava.

Em Março, Hitler ocupou o resto da Checoslováquia e tornou-se uma grande ameaça. Mais uma vez se falou de guerra e do medo do envolvimento americano. Roosevelt continuava a prometer que tal não aconteceria, e Nick continuava a não acreditar.

Quando Charles Lindbergh regressou da Europa, na Primavera de 1939, era o mais falado campeão americano que não entraria na guerra. Pat ficou feliz quando o soube. Acreditava naquilo que o famoso aviador dizia. Para Pat O'Malley o nome de Lindbergh era ainda sagrado.

- Nós não pertencemos à próxima guerra, Nick. Aprendemos a lição na última. - Pat foi inflexível. Tinha a certeza de que os Estados Unidos nunca seriam puxados para mais uma guerra na Europa, apesar de já estarem a surgir problemas entre os Chineses e os japoneses, Mussolini tomara a Albânia, e Hitler parecia estar a visar a Polônia.

Nessa altura, porém, a única coisa em que Cassie pensava era no festival aéreo de Verão. Trabalhara bastante para aprender rotações e curvas e outras acrobacias que vira numa pequena pista em Ohio, onde fora com Nick. Estava a trabalhar na velocidade e a praticar sempre que tinha tempo para isso. Em junho, acabou o segundo ano e pensou que estava pronta para o festival.

Bobby sentia-se aborrecido com a sua participação no espetáculo, mas tinha os seus próprios problemas na mercearia e há muito que compreendera que Cassie era impossível quando se falava em voar. Foram ver o novo filme de Tarzan, em junho, tendo sido a única coisa que compartilharam enquanto ela se preparava para o festival.

Finalmente, chegou o grande dia e, às quatro da manhã, Cassie já estava com Nick no aeródromo de Peoria. O irmão viria mais tarde com o pai, mas não estava especialmente entusiasmado por voar no festival desse ano. Ficara tão excitado com o início da faculdade na Western Illinois University, em Macomb, que mal praticara. Pat ainda colocava todas as suas esperanças nele e, apesar das impressionantes vitórias de Cassie no ano anterior, raramente se referia à sua participação no festival.

Nick ajudou-a a abastecer o avião e a verificar tudo, e às seis horas foram tomar o pequeno-almoço.

- Calma - sorriu ele, lembrando-se como ele próprio estivera a primeira vez que voara numa exibição, depois da guerra.

Pat tinha ido com ele, e Oona trouxera as crianças para o verem. Cassie também estivera lá, mas tinha apenas dois anos. Essa recordação fê-lo sentir-se subitamente velho. Desde que começara a ensiná-la a voar, há alguns anos atrás, tinham-se aproximado muito. Haviam desenvolvido um laço emocional que nunca perderiam, mas, todavia, era-lhe por vezes penoso lembrar-se que tinha idade para ser pai dela. Cassie já tinha vinte anos e a diferença entre ambos era de dezoito anos. Ele ainda se sentia um rapaz e parecia muito mais novo do que realmente era. Cassie acusava-o constantemente de agir como uma criança, mas, de fato, tinha trinta e oito anos e ela apenas vinte. Nick teria dado tudo para cortar ao meio a diferença entre os dois, apesar de ela não parecer incomodar-se com o fato. Mas ele importava-se. Por outro lado, a jovem ainda era a filha do seu melhor amigo e nada mudaria esse fato. Pat nunca compreenderia aquela ligação ou a aproximação entre eles. Nick sabia que era uma barreira que nunca ultrapassariam, ao contrário do que acontecera com os aviões. Pat tinha ido até ali, mas não iria mais longe.

Nick pediu um prato de ovos com salsichas, uma torrada e uma chávena de café, mas, assim que tudo apareceu na mesa, Cassie pôs tudo de lado.

- Não consigo, Nick. Não tenho fome.

- Tens de te alimentar. Mais tarde, vais precisar. Sei o que estou a dizer-te, miúda. Senão, vais-te abaixo das pernas quando estiveres a fazer os loopings e a agüentar os Gs negativos no festival. Sê boa menina e come. De contrário, terei de te meter a comida pela goela abaixo e a empregada pode não entender.

Olhou-a de uma maneira que mostrava quanto a estimava e ela sorriu-lhe alegremente.

- Tu és horrível.

- E tu és gira. Especialmente quando consegues o primeiro prêmio. Eu gosto disso numa rapariga. De fato, estou a contar que os ganhes.

- Sê simpático e não me pressiones. Farei o que puder.

Contudo, ela também queria ganhar o primeiro prêmio e talvez, quem sabe, vários. Por Nick, por ela e sobretudo para impressionar o pai.

- Ele continua a amar-te. Apenas não suporta admitir que estava errado, mas sabe que tu és boa. A semana passada, ouvi-o dizê-lo a alguns fulanos lá no aeroporto. Apenas não o quer admitir perante ti. É só isso.

Nick compreendia-o melhor do que Cassie. Apesar de tudo o que dizia sobre as mulheres-pilotos, Pat estava desesperadamente orgulhoso dela e também demasiado envergonhado para o admitir.

- Se hoje eu conseguisse ganhar um monte de prêmios, talvez ele finalmente admitisse, perante mim, e não a um monte de tipos, que eu vôo bem.

Ainda parecia zangada quando falava disso. O pai estava sempre a gabar Chris, que nem sequer gostava de voar, e isso enlouquecia-a.

- Será que é tão importante ouvir essas palavras? - perguntou Nick enquanto comia ovos estrelados e um bife. Ele não ia fazer loopings, mas tinha exigido a si próprio um pequeno-almoço saudável.

- Talvez. Gostaria de as ouvir só pelo prazer disso e para saber o que se sente.

- E depois?

- Depois volto a voar para ti, para ele e para mim. Acho que não é grande coisa.

- E acabas a faculdade e tornas-te professora.

Nick gostava de dizer as palavras, mas ambos sabiam que ela não acreditava nisso.

- Gostaria de ser instrutora de vôo como tu - disse Cassie honestamente, dando um gole no café quente.

- Claro! E transportar correio. É uma grande vida para uma universitária.

- Não fiques tão impressionado. Não aprendi nada a não ser o que me ensinaste.

E era verdade. Mas antes de ele poder deglutir aquele elogio foram interrompidos por um grupo de jovens que tinham acabado o pequeno-almoço. Pareceu hesitarem perto da mesa, andando aos círculos como jovens pássaros, olhando para Nick e para Cassie.

- Conheces aqueles fulanos? - inquiriu Nick em voz baixa. Ela abanou a cabeça. Nunca os vira, mas finalmente um deles aproximou-se da mesa de Cassie. Olhou para ela e depois para Nick e ficou subitamente com um ar muito jovem quando conseguiu ter coragem de se dirigir a eles.

- Vocês são... Stick Galvin? - perguntou hesitantemente, olhando depois para ela. - E Cassie O'Malley?

- Sou - respondeu Cassie antes de Nick.

- Eu sou Billy Nolan. Venho da Califórnia. Vamos voar no festival. Vi-a no festival, o ano passado. - Corou furiosamente. - Você foi extraordinária. - Parecia ter cerca de catorze anos e Nick quase resmungou. Tinha de fato vinte e quatro, mas não parecia. Era louro e jovem, o cabelo parecia o de uma criança e tinha o rosto cheio de sardas. - O meu pai conheceu-o - disse ele a Nick. - Voou no 94. 0 consigo. Foi abatido. Provavelmente não se lembra dele. Tommy Nolan.

- Oh, meu Deus. - Nick sorriu ao estender-lhe a mão e convidou-o a sentar-se. - Como é. que ele está?

- Muito bem. Coxeia bastante desde a guerra, mas isso não parece incomodá-lo. Temos uma sapataria em São Francisco.

- Ótimo! E ele continua a voar? - Nick lembrava-se bem dele, e o mais engraçado era que Billy era extremamente parecido com o pai.

Billy disse que ele já não voava há anos e que não estava muito entusiasmado com o fato de Billy ter apanhado o vício. Nessa altura, os amigos de Billy estavam a observá-lo e ele chamou-os. Eram quatro, todos da mesma idade e provenientes de várias partes da Califórnia. Na sua maior parte, pareciam vaqueiros.

- Em que corridas está inscrita? - Dirigiram-se a Cass e esta respondeu-lhes. Velocidade, acrobacia e muitas outras, o que Nick pensava ser um pouco ambicioso. Mas significava muito para ela, que adorava participar no festival. Como tal, não quis desmoralizá-la. Esperara muito tempo por isso e gostava bastante.

Billy apresentou-os a todos. Eram um grupo simpático e, pela segunda vez nessa manhã, Nick Galvin sentiu-se velho. A maior parte dos rapazes era quinze anos mais novo do que ele. Estavam bem mais perto da idade de Cassie e no momento em que abandonaram o restaurante estavam a rir, a conversar e a falar sobre o festival. Pareciam miúdos a caminho da feira da escola e a divertir-se imenso.

- Devia deixar-vos ir brincar - disse Nick a sorrir mas se calhar a Cassie esquecia-se de voar. É melhor ficar por aqui a ver se se portam bem e se se lembram do festival. - Todos se riram e a maioria tinha milhares de perguntas a fazer sobre o 94º Esquadrão e sobre os alemães que Nick abatera durante a guerra. - Esperem um pouco, rapazes. Um de cada vez. - E contou-lhes outra história.

Tratavam-no como um herói e o bom humor reinava quando chegaram ao recinto da feira. Aquilo era o verdadeiro significado de voar: a camaradagem, o divertimento, as pessoas que se conheciam em momentos como aquele e as experiências que partilhavam. Não significava apenas longos vôos, solidão e o céu noturno que fazia com que se sentissem donos do mundo. Era tudo junto: os altos e baixos, o terror e a paz e os contrastes incríveis.

Desejaram sorte a Cassie e foram verificar o avião. Iam voá-lo à vez e estavam inscritos em diversas provas. Mas apenas Billy ia voar contra Cassie.

- É muito simpático - disse ela facilmente quando eles se foram embora e Nick olhou-a por cima do ombro.

- Não te esqueças de que estás noiva - disse educadamente. Ela riu-se do olhar pio de Nick, pois não era nada o seu gênero. Na maior parte do tempo, ele não se interessava minimamente por Bobby Strong ou pela sua fidelidade ao noivado.

- Por amor de Deus! Apenas quis dizer que ele era simpático para conversar, por exemplo. Não estava a planejar fugir com ele.

Estava a abastecer o avião e subitamente perguntou a si própria se Nick teria ciúmes., Era uma idéia ridícula que afastou imediatamente.

- Tu podias fugir com ele - insistiu Nick. - Tem a idade certa e voa. Isso poderia ser refrescante - disse com ar inocente.

- Estás a ver se me arranjas casamento? - Ela estava divertida. - Não sabia que isso fazia parte dos teus serviços - referiu calmamente.

- O que os meus serviços fornecem será acorrentar-te ao chão se não preparares bem o avião. Não brinques, Cass. Vais esforçar muito a máquina e a ti própria. Toma atenção!

- Sim senhor.

As brincadeiras tinham terminado. Mas, por uma fração de segundo, poderia ter jurado que ele tinha ciúmes, se bem que não tivesse razão para isso. Estava comprometida com outro e eram apenas amigos como sempre tinham sido. Cassie interrogou-se sobre se ele ficaria aborrecido por vê-la travar amizade com outros pilotos. Nick estava muito orgulhoso de todas as suas proezas e talvez fosse isso que o incomodava. Foi difícil perceber enquanto ele a ajudava a verificar o avião. Alguns minutos mais tarde, viram o pai e o irmão. Nessa altura, já eram quase oito horas. As corridas começavam às nove, se bem que a sua primeira intervenção fosse apenas às nove e meia.

- Tudo pronto, Cass? - perguntou o pai com um nervoso. - Verificaste tudo?

- Tudo - respondeu na defensiva. Seria que pensava que ela não era capaz de o fazer? E, se se importava tanto, por que razão não a tinha vindo ajudar em vez de ajudar Clinis? Ele podia ter dado atenção a ambos, mas não o fizera. Todas as suas preocupações eram com Chris que, cada vez mais, parecia desejar não estar ali. Naquele ano, concorria a uma única prova e Cassie esperava que ele a ganhasse.

- Boa sorte - disse-lhe o pai calmamente, deixando-a para se juntar a Chris no outro extremo do aeródromo.

- Porque é que ele se dá ao trabalho de vir até aqui? - murmurou ela ao afastar-se do avião.

- Porque te ama e não sabe como dizê-lo afirmou Nick gentilmente.

- Às vezes tem uma maneira muito estranha de o mostrar.

- Ah, sim? Talvez seja Porque o mantiveste acordado toda a noite quando nasceste. Talvez o mereças.

Sorriu com a resposta. Nick fazia sempre com que ela se sentisse bem e era reconfortante saber que ele sempre estivera ali.

Cassie viu Billy Nolan e os rapazes antes da sua primeira prova. Estavam aos gritos, a rir e a fazer um escarcéu dos diabos. Era difícil acreditar que estavam a competir a sério, mas tinham participado nas corridas mais difíceis.

- Espero que eles saibam o que estão a fazer - disse Nick.

Pareciam crianças, mas não era fácil perceber. Ele conhecera verdadeiros ases que pareciam vaqueiros. Porém, ninguém queria assistir a uma tragédia, que era o que habitualmente acontecia quando as pessoas sobreestimavam as suas capacidades e não conheciam os limites das máquinas que pilotavam.

Devem estar bem - disse Cassie confiadamente. - Qualificaram-se.

- Tu também e que significa isso?

- Burro! - Ela riu-se, e meia hora mais tarde estava a caminho. Era quase a sua vez. já tinham assistido a acrobacias bastante impressionantes, a grandes sustos e a alguns gritos. Tudo isso fazia parte de um dia de trabalho no festival aéreo.

- Mostra-lhes como é! - Gritou-lhe Nick quando saiu de junto dela; enquanto Cassie fazia deslizar o avião pela curta pista no Moth para a prova acrobática. Pela primeira vez, deu consigo a rezar. No ano anterior não estivera tão nervoso, mas, este ano, temia que ela fosse demasiado longe para lhe provar, ou ao pai, alguma coisa. Tudo o que ela desejava era ganhar e Nick sabia-o.

Cassie começou com alguns loopings lentos, depois um duplo e uma rotação. Fez todo o repertório de trás para a frente, incluindo um oito e uma folha morta e, enquanto ele a observava, cada exercício era completado com perfeição. Então fez um triplo e uma queda, e algures perto dele uma mulher gritou, não percebendo que num instante Cassie recuperaria... e claro que o fez. Na perfeição. Era a mais bela demonstração que jamais vira, tendo-a terminado com um looping exterior que deliciou toda a gente. Quando aterrou, Nick olhava para ela radiante.

- Nada mau para começar, Cass. Muito bem feito. - Os olhos de Nick brilhavam enquanto a elogiava.

- Só isso? - A sua excitação e adrenalina transformaram-se instantaneamente em desilusão, mas ele deu-lhe um grande abraço, afirmando que tinha sido fantástica. - Foste a melhor - disse ele honestamente. Meia hora mais tarde, os juízes confirmaram-no. O pai cumprimentou-a delicadamente quando se cruzaram. Mas o seu elogio era mais para Nick do que para Cassie. Estava orgulhoso dela, mas ainda o irritava o fato de ela estar a equiparar-se aos homens com a sua pilotagem.

- Deves ter tido um belíssimo instrutor.

- E eu tive uma boa aluna - corrigiu Nick. Os dois homens sorriram, mas o pai nada mais disse a Cassie.

A seguir era a corrida de Chris que tentou, mas perdeu. Nem sequer conseguiu um lugar no pódio e, na verdade, não se importava. Para ele, os dias de piloto tinham acabado. Estava muito mais interessado nas aulas e em tudo o que estivesse longe de aviões e aeroportos. Pura e simplesmente não possuía aquele bichinho. A única coisa que detestava era desiludir o pai.

- Desculpe, pai - desculpou-se ele depois de parar o avião. - Acho que devia ter praticado mais. - Tinha pilotado o Bellanca de Nick que Cassie também iria pilotar.

- Sim. Devias, meu filho - disse Pat tristemente. Detestava vê-lo perder, pois sabia que, com um pequeno esforço, Chris poderia ter sido um grande piloto. Pelo menos, era assim que Pat pensava. Mas era a única pessoa que sustentava aquela ambição em relação a Chris. Todos os outros sabiam a verdade: Chris não era um aviador. Contudo, Cassie deu-lhe os parabéns.

- Bom trabalho, irmãozinho. Foi um belo vôo.

- Parece que não foi o suficiente - disse ele com um sorriso desmaiado, cumprimentando-a, depois, pelo seu primeiro lugar na prova anterior.

Alguns minutos mais tarde, ela viu um dos amigos de Billy Nolan ficar em segundo lugar. Tinha feito uma bela pilotagem.

A próxima corrida de Cassie era às dez horas e desta vez mais difícil. Envolvia velocidade, por isso sentia-se preocupada com a possibilidade de o Vega não ter capacidade suficiente. Era um avião rápido, mas alguns dos outros aviões eram mais rápidos.

- Ele responde-te se o trabalhares bem - prometeu Nick ao falar com Cassie mesmo antes da descolagem. O Vega era uma grande máquina e Cassie pilotava-o bem. Nick sabia que, para aquela corrida, o Vega era melhor do que o Bellanca. - Mantém-te calma, Cass! Não te deixes assustar. - Ela acenou com a cabeça e não disse uma palavra. Instantes mais tarde, estava no ar a pilotar notavelmente. Nick nunca vira nada, de tão preciso ou rápido, além da realização de algumas manobras extraordinariamente complicadas. Não conseguia tirar os olhos dela e reparou que Pat também a observava atentamente. Isto para já não contar com um jovem louro de casaco e calças brancas. Este observava-a com atenção através dos binóculos e falava com um homem que estava a tirar notas. Como não estava no meio da assistência, Nick deduziu que pertencesse a um dos jornais de Chicago.

Cassie ganhou o segundo lugar, mas apenas porque não tivera um avião mais rápido. Superara todos os handicaps do Vega e Nick ainda não conseguia acreditar. Nunca esperara que ela ganhasse a corrida e acabara por ficar num bom lugar. Quando Cassie desceu, Billy chegou-se e deu-lhe os parabéns. Ficara novamente em terceiro lugar. Havia um bom grupo de pilotos, mas Nick gostara do que vira Billy fazer. Era cuidadoso e seguro e ganhara, apesar de ter um avião inferior. Tal como Cass, tinha levado a máquina até ao limite.

Nesse dia, Cassie tinha ainda mais duas corridas. Uma ao meio-dia, que correu bem, e a última à tarde. Nick não gostara que se tivesse inscrito. Ela e Nick almoçaram com Billy Nolan e os amigos. Chris juntou-se-lhes e, quando o pai passou, ele apresentou-os ao famoso Pat O'Malley. Gostou de todos os jovens e Billy passou mais algum tempo a falar com ele sobre o pai. Pat lembrava-se bem dele e tinha pena de lhe ter perdido o rasto nos últimos vinte anos. Gostava verdadeiramente dele.

E chegou a altura da corrida de Cassie. Quando Pat soube que ela se tinha inscrito, ficou furioso e os seus olhos chispavam enquanto discutia com o sócio.

- Não a proibiste de o fazer? - ladrou ele a Nick, que parecia aborrecido e infeliz com a reação de Pat. já se sentia muito culpado por ter permitido que ela se inscrevesse e Pat não estava a ajudar nada.

- Sai ao pai, Pat. Faz o que quer.

- Ela não tem avião nem experiência para isso.

- Eu disse-lho, mas praticou bastante e acho que é suficientemente esperta para desistir se não for capaz. Não vai até ao limite, Pat. Eu próprio lhe disse para não o fazer. - Nick só rezava para que ela o tivesse ouvido.

Os dois homens, Chris, Billy e os amigos e ainda o homem das calças brancas ficaram a olhar para o céu com uma expressão muito infeliz. Era uma prova temerária, habitualmente empreendida por velhos pilotos acrobáticos com aviões destinados para o efeito, o que não era o caso do Bellanca de Nick. Todavia, Cassie queria desesperadamente tentar a sua sorte naquela corrida. Permitia-lhe mostrar tudo o que fazia de melhor e conseguir um milagre ou dois se o avião cooperasse com ela nas baixas altitudes. Sabia que seria assustador, mas estava preparada para desistir da corrida se fosse caso disso.

Tinha de fazer pelo menos doze movimentos, todos impressionantes e assustadores, e executou os primeiros seis sem um único problema. Pat até já estava a sorrir enquanto a observava. Depois, no mergulho final, pareceu perder o controlo. O avião mergulhou com as asas de lado e Nick perguntou a si próprio se ela estaria a entrar em pânico, se se esquecera de tudo o que lhe fora ensinado ou se tinha desmaiado. Não estava a fazer absolutamente nada para se salvar. Ninguém se mexeu quando viram, horrorizados, o que iria transformar-se numa tragédia em poucos momentos. Subitamente, com um rugido, ela acelerou ao máximo e levantou o avião pouco acima das cabeças de uma multidão aterrorizada e elevou-se, completando com uma tripla rotação que fez com que todos ficassem sem respirar. Finalizou cada movimento e fez um looping final que a fez ganhar a corrida mesmo antes da opinião dos juízes.

Nick tinha um nó na garganta do tamanho de um ovo e Pat estava cinzento, mas, quando percebeu o que ela fizera, Nick só desejou espancá-la pelo susto que lhe pregara. Como é que ela tivera coragem de os assustar daquela maneira? Nem o primeiro prêmio valia isso. Correu para o lugar onde ela aterrara e quase a arrancou da carlinga.

- Que diabo estavas tu a fazer, minha louca? Atentar suicidar-te para dar espetáculo? Não percebes que mais trinta centímetros e já não conseguias levantar o avião?

- Eu sei - disse ela calmamente e espantada por perceber que estava a tremer. Fizera tudo intencionalmente e com um cálculo infalível.

- És louca! Não és humana e não tens o direito de estar dentro de um avião.

- Perdi? - Estava com um ar agonizante e, mais do que nunca, Nick quis abaná-la, enquanto o pai observava à distância com uma expressão de fascínio. Ao olhar para o rosto de Nick, Pat percebeu que estava a ver algo que nunca vira e perguntava a si próprio se Nick estaria consciente disso.

- Se perdeste? - continuou Nick furioso e firmemente agarrado ao braço de Cassie. - Estás doida? Quase perdeste a vida e matavas cerca de cem pessoas.

- Desculpa, Nick. - Subitamente, pareceu constrangida. - Pensei que conseguia fazê-lo.

- E conseguiste, diabos te levem. Foi a pilotagem mais fabulosa que vi na vida, mas se o fizeres mais alguma vez eu mato-te.

- Sim, senhor.

- Ótimo. Agora sai do raio do avião e vai pedir desculpa ao teu pai.

Surpreendentemente, Pat foi muito mais gentil para ela, se bem que estivesse tão assustado como Nick e desse graças a Deus por Oona não estar a assistir. Tinha ficado em casa com Glynnis, de novo grávida, pois todos os seus cinco filhos estavam com papeira. Mas Pat vira o que Nick fizera e achou que já se dissera o suficiente. Assim, deu os parabéns à filha pelo seu estilo e coragem.

- Afinal, acho que o Nick tinha razão - afirmou ele quase humildemente. - Es um piloto e tanto, Cass.

- Obrigada, pai. - Ele deu-lhe um abraço que constituiu o momento mais maravilhoso da sua vida.

Depois disso, observaram Billy Nolan a voar, que também ganhou o primeiro prêmio da sua corrida. Cassie ganhara um segundo e três primeiros lugares, o que era muito melhor do que sonhara. Os jornais estavam constantemente a tirar-lhe fotografias.

Estavam todos a beber cerveja e a ver a última prova quando, subitamente, Cassie reparou que os maxilares de Nick estavam tensos. Seguiu os olhos dele para o céu, viu fumo e, tal como todos os outros, ficou assustada.

- Ele está em apuros - sussurrou-lhe Nick. Todos sabiam quem era. Um jovem piloto chamado Jim. Bradshaw. Tinha mulher e dois filhos e um avião que nada valia, mas adorava os festivais aéreos.

- Oh, meu Deus!

Cassie proferiu as palavras enquanto todos observavam assustados o momento em que ele começou a cair em espiral, tal como ela fizera, mas desta vez era verdade e o fumo que saía da fuselagem assegurou-lhes que não era um truque. Era um> desastre. A multidão começou a fugir do local onde o avião parecia estar, e as pessoas começaram a gritar. Cassie descobriu que estava incapaz de se mexer, e tudo o que conseguia fazer era olhar para aquela ave preguiçosa que vinha a caminho do solo e subitamente o atingiu, provocando um barulho tremendo e uma explosão. As pessoas fugiam, enquanto Nick e Billy foram dos primeiros a chegar, tentando retirar Jim dos destroços, mas era demasiado tarde. Estava completamente queimado e era óbvio que morrera com o impacto. A mulher soluçava histericamente com os filhos ao colo e outras duas amparavam-na.

As ambulâncias já lá estavam, mas foi um fim sombrio para um dia tão excitante. Era uma maneira de os recordar do perigo que corriam constantemente.

- Acho melhor irmos para casa - disse Nick em voz baixa e Pat concordou. Nesse dia, Pat tinha temido que Cassie tivesse o mesmo fim. Teve vergonha de admitir como estava grato por ser outra pessoa e não a filha.

Billy veio despedir-se deles enquanto carregavam e amarravam firmemente os seus três aviões.

- Gostaria de o visitar no aeroporto antes de me ir embora - disse ele a Pat depois de apertarem as mãos.

- Sempre que queiras. Vais regressar a São Francisco?

- Na realidade, estava a pensar ... Estava à espera que lhe Pudesse fazer falta outro par de mãos ... Eu não me importaria de ficar e voar um pouco.

- Faz-nos falta um piloto como tu, rapaz. Aparece, amanhã de manhã, para falar comigo.

Billy agradeceu-lhe profusamente e despediram-se de novo. Os amigos regressavam a casa no dia seguinte e Billy parecia muito emocionado por ficar.

- Para que é que precisamos de outro miúdo? - perguntou Nick a Pat com um ar aborrecido.

- Estás a planejar passar o resto da tua vida a voar à noite? - perguntou Pat com um ar divertido. - Não te preocupes. Não acho que seja o tipo dela. - Sorriu e, pela primeira vez em anos, Nick corou e virou as costas ao seu velho amigo, - E é melhor recordar-te, Nick Galvin, que ela está noiva do Bobby Strong e que, no que depender de mim, casará com ele. Precisa de um homem com os pés assentes na terra e não no céu como nós. - Estava a falar a sério, pois o que vira nos olhos de Nick nesse dia intrigara-o. Havia algo de muito poderoso entre os dois, apesar de suspeitar que Cassie fosse demasiado jovem para o saber. Mas ele também sabia que Nick era suficientemente esperto para não se deixar levar pelas emoções.

Dirigiram-se à residência dos O'Malley, onde Oona iria cozinhar o jantar.

Quando chegaram a casa, ficou boquiaberta ao saber das vitórias de Cassie. De muitas maneiras, tinha sido um belo dia, mas a morte de Jim Bradshaw estragara o prazer a todos, e depois, a meio do jantar, Bobby chegara com um ar enlouquecido. Irrompeu pela sala e pediu desculpa quando viu que estavam todos a jantar. Dirigiu os olhos para Cassie e estava quase a chorar. Parecia tão perturbado que Oona se levantou para se aproximar dele, mas ele saiu da sala e ficou em pé à porta.

- Desculpem! Disseram-me que tinha havido um acidente... - Os olhos encheram-se-lhe novamente de lágrimas e todos sentiram pena dele. Era fácil ver em que é que ele pensara; então Cassie levantou-se e dirigiu-se-lhe.

- Desculpa. Foi o Jim Bradshaw - disse ela suavemente.

- Oh, meu Deus. Pobre Peggy! Ficava viúva aos dezenove anos e sozinha no mundo com dois filhos. Bobby parecia muito transtornado com o assunto, mas o que o tinha perturbado terrivelmente fora o medo de Cassie ter sido a vítima. Além disso, ninguém com quem falara parecia saber o que acontecera.

Foram-se sentar no alpendre e Cassie fechou a porta. Não se conseguia ouvir nada lá dentro, mas podiam ver como o rapaz estava transtornado a falar com ela. Cassie apenas acenava com a cabeça.

Estava a dizer-lhe que não conseguia viver só com o compromisso de noivado, que não iam a lado nenhum não casando, pois ele não estava completamente seguro de que iriam ter um futuro. Sabia que ela queria terminar a faculdade, mas não tinha a certeza de conseguir esperar mais dois anos. O pai estava muito doente e a mãe muito dependente dele. Bobby parecia esmagado por tudo aquilo e era óbvio que precisava dela para o ajudar. No entanto, era patente que Cassie não estava preparada para desistir de tudo e ser o que ele desejava.

- E esta história dos aviões! - Olhou para ela com os olhos cheios de angústia. - Não consigo viver assim--- Estou sempre a pensar que vais morrer e hoje podias ter morrido. Podias... - Começou a chorar e ela abraçou-o.

- Pobre Bobby! Pobre Bobby! Está tudo bem! Chhh... - Era como consolar um dos seus sobrinhos, mas compreendia agora que o rapaz tinha uma grande carga sobre os ombros e ela era apenas parte dessa carga. Ele precisava desesperadamente de alguém que o ajudasse. Tinha apenas vinte e um anos e era pouco mais do que um rapaz. Merecia muito mais do que o que ela tinha para dar, e ambos o sabiam. Enquanto o confortava, tirou o anel de noivado do dedo e meteu-lho na mão. - Tu mereces muito mais! - murmurou-lhe. - Tu mereces tudo e eu tenho um caminho bem longo à minha frente. Agora já tenho a certeza.

Queria a vida, liberdade e voar. Agora que o pai aceitava, talvez conseguisse ter tudo isso. Apenas não tinha possibilidade de dar a Bobby Strong o que este merecia e, na verdade, era a última coisa que queria.

- Tu vais continuar a voar, Cass? - inquiriu ele num tom lamentoso, fungando como uma criança, enquanto os membros da família que estavam na sala tentavam ignorá-los.

- Vou - disse ela acenando com a cabeça. - Tenho de o fazer. É a minha vida.

- Não te magoes! Oh, Deus, Cassie não te magoes. Eu amo-te. Hoje pensei que tinhas morrido. - Continuava a soluçar e ela sentia-se muito mal. Só conseguia imaginar o que deveria ter sido, tal como fora para Peggy Bradshaw.

- Estou bem! Estou ótima! - Sorriu-lhe com lágrimas nos olhos., - Tu mereces coisas maravilhosas, Bobby, e não alguém como eu. Encontra uma boa esposa, Bobby Strong. Tu merece-lo!

- Vais continuar a viver aqui? - perguntou ele curiosamente, o que Cassie achou estranho. Não tinha para onde ir e sempre vivera ali.

- Para onde iria?

- Não sei. - Sorriu tristemente segurando no anel. já estava com saudades dela. - Pareces tão afastada de mim. Às vezes, detesto aquela mercearia e todos os problemas que arrasta.

- Farás grandes coisas - afirmou ela, sabendo que estava a mentir, mas Bobby precisava de todo o encorajamento que lhe pudessem dar.

- Achas que sim, Cass? - Suspirou, pensando na sua vida. - O mais divertido é que a única coisa que desejo é casar e ter filhos.

- E eu não quero. - Ela sorriu. - Esse é o problema.

- Espero que um dia queiras. Talvez nos encontremos novamente - disse ele cheio de esperança, continuando a perseguir o sonho. Cassie sempre lhe parecera muito estimulante. Talvez até de mais.

Cassie, porém, abanou a cabeça, olhando para ele. Era mais sensata do que Bobby.

- Não esperes por isso. Vai em busca do que desejas.

- Eu amo-te, Cass.

- Eu também te amo - murmurou ao abraçá-lo, levantando-se depois. - Queres entrar? - perguntou, mas ele abanou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas.

- Acho melhor ir para casa.

Ela acenou a cabeça, vendo-o meter o anel no bolso. Parou durante alguns momentos e olhou novamente para Cassie. De repente virou-se e correu antes de começar de novo a chorar. Cassie voltou para dentro e sentou-se. Ninguém fez perguntas, mas todos conseguiam adivinhar o que acontecera. Nick olhou-lhe para o dedo e ficou surpreendido por não ver o anel. Na realidade, estava aliviado por não o ver. Agora a sua única preocupação era Billy Nolan.

 

Na manhã seguinte, enquanto Cassie estava deitada a pensar nos acontecimentos da véspera, percebeu com espanto que já não estava noiva. Não tinha a certeza se algo iria mudar, mas sentiu subitamente que não pertencia a ninguém. Em parte era entusiasmante, mas, por outro lado, fazia-a sentir-se muito só.

Sempre soubera que era um erro, mas não tivera a coragem de o dizer. Nessa noite, parecera-lhe muito cruel continuar a torturá-lo, a fazê-lo esperar mais dois anos e depois dizer-lhe que ainda não estava preparada. Pensava que nunca ia estar preparada para levar uma vida como a dele e para ele, e agora sabia-o de fato.

Fez o seu pequeno-almoço e viu um bilhete da mãe a dizer que tinha saído para tomar conta dos filhos de Glynnis e que calculava não estar em casa a tempo para fazer o jantar. Chris deixara outro bilhete a dizer que tinha saído com os amigos. Uma hora e meia mais tarde, Cassie já tinha tomado uma ducha, já se vestira e já estava no aeroporto. Vestiu um macacão limpo, abasteceu alguns aviões, quando, ao meio-dia, finalmente viu Nick e o pai.

A dormir até ao meio-dia, Cass? - disse Nick para a irritar. - Ou estiveste apenas a repousar sobre os louros da vitória?

- Não sejas parvo. Às nove já aqui estava. Estive a trabalhar no hangar de trás.

- Ah, sim? Bem! Se quiseres, tenho hoje um vôo para ti.

- Para onde? - Estava intrigada.

- Indiana. Um pequeno carregamento, algum correio e uma paragem rápida em Chicago no regresso. Não deve ser muito demorado. Deves estar em casa à hora de jantar. levas o Handley.

- Por mim, está bem - sorriu ela. Nick disse-lhe onde levantar o diário, e o pai saiu do escritório nessa altura para mandar Billy colocar a carga no avião. Este aparecera subitamente e trabalhara bastante durante todo o dia. Cassie ficou surpreendida quando o pai disse a Billy para ir com ela.

- Posso ir sozinha, pai.

- Claro que podes, mas ele precisa de conhecer as nossas rotas e não gosto muito da idéia de ires a Chicago. - Rolou os olhos, ela fez uma careta, mas pelo menos não estava a colocar entraves. Tudo estava bem, e Nick olhou para ela e Billy como se fossem crianças traquinas.

- Portem-se bem. Nada de acrobacias e de rotações. - Virou-se para Billy. - E cuidado com os loopings duplos dela.

- Se tentar alguma coisa, tiro-a do avião por uma orelha - sorriu Billy, parecendo-se cada vez mais com o irmão de todos.

Enquanto se dirigiam para o avião, Nick ficou em pé por alguns instantes a observá-los. Pareciam tão contentes como duas crianças. Nick não conseguia imaginar que Cassie se apaixonasse pelo rapaz, mas já tinham acontecido coisas mais estranhas. Na realidade, mesmo que isso não acontecesse, nada mudaria para ele. Não tinha o direito de perseguir uma rapariga daquela idade e nunca o faria. Ela merecia muito mais do que a vida numa barraca no Aeroporto O'Malley, e Nick tinha consciência disso.

Haviam acabado de descolar quando chegou um Lincoln Zephyr verde, completamente novo, e dele saiu um homem de fato cinzento que olhou à sua volta. Olhou prazenteiramente para Nick e para o pequeno edifício que alojava os escritórios.

- Sabe onde poderei encontrar Cassie O'Malley? - perguntou numa voz suave. Tinha o cabelo louro ondulado e o aspecto de uma estrela de cinema. Subitamente" Nick ficou a pensar se alguém iria oferecer a Cassie uma carreira cinematográfica. Aquele era o homem que Nick vira de fato branco, na véspera, no festival. Agora já não parecia um repórter, mas sim um homem de negócios ou talvez um agente.

Nick apontou para o céu.

- Acabou de descolar para uma entrega de correio. Posso ser-lhe útil?

- Gostaria de falar com ela. Sabe quando voltará?

- Daqui a, sete ou oito horas. Provavelmente, durante a noite. Quer que lhe transmita alguma mensagem?

Entregou o seu cartão-de-visita a Nick. Chamava-se Desmond Williams; e o cartão dizia «Williams Aircraft» com uma morada em Newport Beach, na Califórnia. Nick sabia muito bem quem era. Era o jovem milionário que herdara uma fortuna e uma companhia de aviação por morte do pai. já não era assim tão novo. Devia estar perto da idade de Nick. De fato, tinha trinta e quatro anos e, na opinião de Nick, demasiado velho para Cassie.

- Faça-me o favor de lhe entregar este cartão! Estou no Portsmouth. - Era o melhor hotel da cidade e, mesmo assim, não era grande coisa. Era o melhor que Good Hope tinha para oferecer.

- Dir-lhe-ei - assegurou-lhe Nick, morrendo de curiosidade. - Mais alguma coisa? - Williams abanou a cabeça e olhou para Nick com interesse. - Gostou do festival aéreo? - Nick não conseguira resistir. - Nada mau para uma cidade pequena, pois não?

- Muito interessante - concedeu Williams com um sorriso. Depois mediu Nick de alto a baixo e decidiu fazer-lhe uma pergunta. Todo o estilo de Williams era muito frio, tudo nele era perfeito e imaculado, completamente calculado e previsto. Era um homem que nunca cometia erros ou se dava ao luxo de se deixar levar pelas emoções. - É você o instrutor dela?

Nick acenou a cabeça com orgulho.

- Era. Agora é, ela que pode ensinar-me a voar.

- Duvido - disse Desmond Williams educadamente. Tinha uma pronúncia do leste, apesar da sua morada de Los Angeles. Acabara o curso superior em Princeton há doze anos. - Ela é muito boa. Fez justiça ao seu instrutor.

- Obrigado - disse Nick calmamente, pensando no que aquele homem quereria de Cassie. Havia algo de ominoso nele, de incrivelmente frio e estranhamente excitante. E muito bonito e aristocrático, mas tudo nele dizia que o que desejava era um bom negócio.

Não disse nem mais uma palavra a Nick e voltou para o carro que acabara de comprar em Detroit há alguns dias, abandonando o aeroporto.

- Quem era? - perguntou Pat quando saiu. - Não há dúvida que levantou muita poeira. Não, consegue ir mais depressa? - O carro era a última maravilha da Ford com um motor V- 12.

- Era Desmond Williams. - Nick respondeu à pergunta, olhando com uma expressão preocupada para o seu velho amigo. - Andam atrás dela, Pat. Nunca pensei que acontecesse, mas agora acho ser possível. Ela mostrou-se bastante no festival.

- Já temia isso. - Pat olhou para Nick com um ar infeliz. Não queria que ela fosse explorada ou usada e sabia como era fácil tal acontecer. Cassie era bonita, jovem, inocente e um piloto incrível. Era uma combinação perigosa e ambos o sabiam. - Onde é que ela está? - perguntou Pat.

- Já saiu. Ela e o Nolan descolaram no momento em que este chegou.

- Ótimo. - Pat olhou para o cartão, agarrou-o e rasgou-o. - Esquece-o.

- Não vais dizer-lhe? - Nick olhou para ele, espantado. Fosse qual fosse a sua opinião, nunca teria a coragem de o fazer. Por outro lado, não era pai dela.

- Não. Não vou - respondeu Pat. - E tu também não. Não é verdade, Stick?

- Sim, senhor. - Nick bateu-lhe a pala com um sorriso e ambos voltaram para o trabalho.

No regresso de Chicago, Cassie entregou os comandos a Billy para ver como é que ele lidava com o avião. Ficou impressionada com a sua habilidade. Billy disse-lhe que o pai o tinha ensinado aos catorze anos e já voava há dez. Pela maneira como pilotava era fácil acreditar nele. Tinha umas mãos seguras, bons olhos, voava com firmeza e bem, e ela sabia que o pai ficaria impressionado. Billy ia ser uma grande aquisição para o aeroporto. Além disso, era um tipo impecável, inteligente e uma companhia agradável. Passaram um bom dia, durante o vôo, a trocar histórias.

- Ontem reparei que estás noiva - mencionou ele casualmente no caminho para casa. - Mas hoje já não vejo o anel. Vais casar em breve?

- Não - respondeu a jovem, pensando em Bobby. - Já não estou noiva. Entreguei o anel ontem à noite.

Não sabia bem por que razão estava a contar-lhe aquilo, mas ele estava ali, tinham quase a mesma idade, e gostava dele. Além disso, Cassie não ficara com a impressão de ele estar interessado nela. Apenas queria ser amigo e isso parecia confortável e fácil.

- Estás preocupada com isso? Achas que é recuperável?

- Não - respondeu novamente quase sentindo pena de si própria. - Ele é um ótimo rapaz, mas odeia que eu voe. Está com muita pressa para se casar e eu quero acabar a faculdade. Não sei. Não estava certo. Nunca esteve e eu nunca tive coragem para lho dizer.

- Eu sei o que isso é. já estive noivo duas vezes e ambas me assustaram.

- E o que fizeste?

- Da primeira vez, fugi - admitiu ele honestamente com o seu sorriso de rapazinho no rosto cheio de sardas.

- E da última vez? Casaste? - Cassie parecia surpreendida porque ele não parecia ter sido casado.

- Não - disse ele tranqüilamente. - Ela morreu no festival aéreo de San Diego, no ano passado. - Disse-o com muita calma, mas Cassie conseguiu ver a dor nos seus olhos.

- Lamento. - Não havia mais nada a dizer. Todos tinham perdidos amigos em festivais aéreos. Era terrível, mas era pior para ele se a tivesse amado.

- Também eu. Mas, até certo ponto, já aprendi a viver com isso. Desde essa altura que nunca mais saí com ninguém e acho que nem quero.

- Isso é um aviso? - sorriu ela.

- É - disse Billy com os olhos cheios de malícia. - Não fosses pensar que podias atirar-te a mim a dez mil pés de altitude. Tenho vindo toda a viagem com medo disso. - A maneira como o disse fê-la rebentar a rir, e cinco minutos mais tarde estavam ambos a rir. Na altura em que chegaram a casa estavam tão à vontade um com outro que pareciam velhos amigos. Na opinião de Cassie não havia nada de romântico em Billy Nolan. Cassie apenas gostava dele e Billy era uni excelente piloto. O pai tivera sorte e achava que Nick também iria gostar dele.

Aterraram no aeroporto por volta das nove horas, e Cassie ofereceu-lhe boleia para a residencial onde estava hospedado. Os amigos tinham regressado à Califórnia com o caminhão e o avião, e ele precisava de poupar dinheiro para comprar um carro, o que não estava longe, tendo em conta o salário que Pat pagava.

- Quanto tempo pensas ficar? - perguntou ela.

- Não sei. Uns trinta ou quarenta anos ou talvez para sempre - disse sorrindo.

- Claro. - Ela riu-se com a resposta.

- Não sei. Algum tempo- Eu precisava de me afastar. A minha mãe morreu, e com o caso da Sally o ano passado achei que precisava de sair da Califórnia. Tenho saudades do meu pai, mas ele compreende.

- A sorte foi nossa - disse ela sorrindo-lhe. - Hoje foi divertido. Até amanhã.

Disse-lhe adeus e foi para casa. Nessa altura, a mãe já chegara e fez um sanduíche a Cassie. O pai estava sentado na cozinha a beber cerveja. Perguntou-lhe como correra o vôo e ela respondeu-lhe que estava muito impressionada com a pilotagem de Billy. Disse-lhe porquê e Pat acenou com a cabeça, contente com o seu relatório, se bem que tivesse de ver com os seus próprios olhos. Mandou-a ir para a cama depois de comer e nunca mencionou a visita de Desmond Williams ao aeroporto.

 

No dia seguinte, Cassie estava deitada sob um Electra, com o rosto completamente coberto de óleo depois de estar a trabalhar na roda traseira, quando olhou para cima e reparou num par de calças de linho de um branco imaculado. Não pôde deixar de sorrir ao olhar para elas, pois pareciam muito incongruentes ali. O mesmo acontecia com os sapatos brancos sobre os quais as calças assentavam. Olhou para cima com curiosidade e ficou surpreendida ao ver um atraente homem louro a olhá-la com uma expressão incrédula. Cassie estava quase irreconhecível, com o cabelo apanhado no alto da cabeça, gordura no rosto e um velho macacão azul que pertencera ao pai.

- Miss O'Malley? - perguntou ele de sobrolho franzido.

Ela sorriu. Parecia uma personagem cômica de vaudeville, com os dentes brancos a brilhar no meio de um rosto negro. Aquele homem de ar polido não conseguiu evitar um sorriso.

- Sim. Sou Miss O'Malley. - Ainda estava deitada de costas a olhar para ele e subitamente percebeu que era melhor levantar-se e saber o que ele queria. Pôs-se facilmente de pé e hesitou em cumprimentá-lo. Parecia tão limpo e incrivelmente engomado que tudo nele estava perfeito., Perguntou a si própria se ele quereria alugar um avião e esteve quase a enviá-lo ao pai. - Em que posso ajudá-lo?

- Chamo-me Desmond Williams e via-a no festival aéreo há dois dias. Gostaria de falar consigo, se for possível. - Olhou à volta do hangar e depois novamente para a jovem. - Existe algum local onde possamos conversar?

Ela ficou espantada com a pergunta- Nunca ninguém a visitara e o único local em que poderiam falar em privado era o escritório do pai.

- Se o barulho dos aviões não o incomodar, podemos ir para junto da pista. - Não sabia que mais lhe oferecer.

Começaram a caminhar lado a lado e ela quase se riu ao pensar como deviam parecer diferentes! Ele extraordinariamente limpo e ela incrivelmente suja. Mas forçou um ar sério. Cassie não sabia se ele possuía sentido de humor. Reparou que Billy os tinha visto e que lhe acenara, mas ela apenas acenou com a cabeça.

- Você foi impressionante no festival - afirmou Desmond Williams, enquanto caminhavam ao longo dos campos e os seus sapatos começavam a ficar cobertos de poeira.

- Obrigada.

- Acho que nunca vi ninguém ganhar tantos prêmios e, decerto, nunca uma rapariga da sua idade. A propósito. Que idade tem? - Observava-a cuidadosamente e ao seu ar sério, mas rapidamente lhe sorriu. Ela ainda não sabia o que queria.

- Tenho vinte anos. No Outono estarei no terceiro ano da faculdade.

- Entendo - acenou ele com a cabeça como se isso fizesse uma grande diferença. Parou e olhou para Cassie antes de formular a pergunta seguinte. - Miss O'Malley. já alguma vez pensou num futuro na aviação?

- Em que sentido? - Estava completamente atordoada e, subitamente, interrogou-se sobre se ele fora ali perguntar-lhe se queria ser uma Skygirl, mas, até para Cassie, isso não parecia muito provável. - O que quer dizer com isso?

- Quero dizer voar. Como emprego de futuro. Fazer o que gosta mais ou, pelo menos, o que pensa que gosta mais. Você voa como se os aviões fossem tudo para si.

Cassie agitou a cabeça com um sorriso e ele observou-lhe o rosto fixamente. Até agora gostava do que via.

- Estou a falar em pilotar aviões fantásticos, aviões que mais ninguém possui, testá-los, estabelecer recordes e tornar-se uma parte importante da aviação moderna, como Lindbergh.

- Como Lindbergh? - Estava completamente estarrecida. Aquele homem não podia estar a falar a sério. - E para quem estaria a voar? O senhor está a dizer-me que alguém me daria esses aviões ou que eu teria que os comprar? - Talvez ele estivesse a tentar vender-lhe um novo avião, mas Desmond Williams sorriu perante a sua inocência. Estava contente por ninguém a ter abordado antes dele.

- Estaria a voar para mim. Para a minha companhia, a Williams, Aircraft. - Assim que ouviu o nome, a rapariga percebeu quem ele era. Só não conseguia acreditar que ele estivesse a falar com ela e a compará-la a Charles Lindbergh.

Há um futuro maravilhoso para alguém como você, Miss O'Malley. Poderá fazer grandes coisas e pilotar aviões que, de outro modo, nunca estariam disponíveis para si. O melhor que há. Isso é extremamente emocionante. Não como estes. - Olhou à sua volta distraidamente e, por um momento, ela sentiu-se magoada por causa do pai. Aqueles aviões eram seus amigos, e o pai tinha muito orgulho neles. - Estou a falar de aviões a sério - continuou Williams. - Aqueles em que se conseguem estabelecer recordes mundiais.

- E o que é que eu teria de fazer para conseguir esse emprego? - perguntou ela com algumas suspeitas. - Terei de lhe pagar?

Nunca ninguém lhe oferecera algo assim e não fazia a menor idéia de como as coisas funcionavam. Sempre pensara que os pilotos importantes possuíam os seus próprios aviões. Nunca lhe ocorrera que eram dados ou emprestados por companhias de aviação como aquela. Tinha muito que aprender e ele estava mais do que disposto a ensiná-la. Ela era o primeiro rosto fresco que via desde que assumira a liderança da companhia do pai.

- Não terá de me pagar nada. - Sorriu-lhe. - Eu é que lhe pagarei e muito bem. Estarão sempre a tirar-lhe fotografias, terá muita publicidade, e, se é tão boa como eu penso que é, tornar-se-á uma figura importante da aviação. É claro que... - olhou para ela cuidadosamente. - Bem, é claro que será necessário lavar o rosto mais vezes do que agora - disse ele a brincar, e subitamente a jovem lembrou-se que provavelmente estava coberta de óleo. Limpou o rosto com a manga e ficou espantada com o que viu. Mas ele ficou muito mais impressionado com aquele rosto que agora podia ver mais claramente. Era exatamente o que sempre procurara. Era a rapariga dos seus sonhos. Tudo o que precisava agora era fazê-la assinar o contrato.

- Quando começaria? - perguntou Cassie curiosa. Era a coisa mais fantástica que já ouvira e estava ansiosa por dizer a Nick e ao pai.

Amanhã ou para a semana. Assim que conseguir chegar a Los Angeles. É claro que pagaremos a sua deslocação e poremos um apartamento à sua disposição.

- Um apartamento? - A sua voz mal se ouviu enquanto acenava com a cabeça.

- Em Newport Beach, sede da Williams Aircraft. É um sítio lindíssimo e fica perto da cidade. O que me diz? Quer o emprego? - Trouxera o contrato consigo e esperava que a rapariga o assinasse sem hesitações. Mas ela hesitou por uns instantes.

- Sim. Mas tenho de falar com o meu pai. Teria de desistir da faculdade e ele pode não gostar. - Especialmente quando se tratava de trocar a faculdade por um emprego na aviação, e apesar do pai nunca se ter mostrado muito entusiasmo com o fato de ela freqüentar a faculdade. No entanto, também poderia não gostar daquilo.

- Nós podemos providenciar para que tenha aulas sempre que estiver livre, mas, a maior parte do tempo, estará bastante ocupada. Trata-se de muita boa vontade, muitas fotografias e, para falar com franqueza, bastantes vôos.

Tudo aquilo parecia extremamente fantástico.

- Na realidade, vim cá ontem, mas o homem que estava no escritório disse que você tinha saído. Deixei o meu cartão e pedi-lhe para que você me telefonasse. Provavelmente chegou demasiado tarde, por isso pensei que seria melhor voltar cá, não fosse ele perder o cartão. - Sorriu com uma expressão vencedora enquanto Cassie o olhava pensativamente.

- Deu-o a um homem? - Teria de ser Nick ou o pai.

- Sim, e disse-lhe que estava no Portsmouth. Telefonou para lá? Talvez não tenha recebido o recado.

- Não. Não telefonei - afirmou ela honestamente. - Não recebi nem o cartão nem o recado.

- De qualquer modo, não faz mal. Estou contente por a ter encontrado hoje. Eis aqui o contrato, para que o estude com o seu pai.

- O que diz o contrato? - perguntou ela inocentemente.

- Compromete-a a um ano de vôos de teste e publicidade para a Williams Aircraft. Nada mais. Não acho que encontre nada de incorreto - disse ele confiantemente. De certo modo, conseguira transmitir-lhe, apenas olhando para ela, que era uma excelente oportunidade que adoraria.

Cassie segurou o contrato com mãos nervosas, pensando no que tudo aquilo significava e por que razão ele tinha vindo. Não podia ser assim tão simples.

- Eu mostro-o ao meu pai - declarou ela. Também queria saber a sua opinião. Porque é que ele e Nick lhe tinham omitido a visita de Desmond Williams? Para lhes dar o benefício da dúvida, talvez se tivessem esquecido. Mas algo lhe dizia que era mais do que isso. Eles não queriam que ela soubesse. Mas porquê? Parecia tão bom...

- Pensem bem no assunto e voltaremos a conversar amanhã de manhã. Que me diz a um pequeno-almoço no meu hotel às oito e meia? Depois tenho de voltar para a costa oeste. Espero, porém, que você também lá esteja dentro de alguns dias. - Sorriu, e Cassie notou que havia algo nele de muito persuasivo. Era um homem muito bonito e muito calmo, o que fazia com que ela sentisse que não conseguiria resistir-lhe e que certamente não o faria. - Amanhã às oito e meia? - inquiriu ele contundentemente. Ela anuiu com a cabeça. Apertaram as mãos e, instantes mais tarde, Williams já voltara para o carro e partira.

Enquanto olhava fixamente, o Lincoln desapareceu no horizonte. Tentou lembrar-se de tudo o que já ouvira sobre Desmond Williams. lera algures que este tinha trinta e quatro anos, era um dos homens mais ricos do mundo e herdara um império. A sua companhia fabricava os melhores aviões e constava que era impiedoso nos negócios. Vira uma fotografia dele com algumas estrelas de cinema. Ela não conseguia imaginar o que quereria de Cassie O'Malley.

Caminhou lentamente para o pequeno edifício onde Nick e o pai trabalhavam, a pensar em tudo o que Williams dissera e no que poderia significar para si. Era uma oportunidade que não voltaria. Ainda não conseguia acreditar que aquele momento tivesse chegado.

Entrou, usando ainda o velho macacão do pai, e este olhou para o seu rosto manchado de óleo e cabelo despenteado; perguntou-lhe se havia algum problema com o De Havilland. Se estivesse preparado, precisavam dele ao meio-dia para um vôo de longa distância. Mas ela não estava a prestar-lhe atenção e olhava fixamente para o pai. Segurava o contrato na mão.

- Porque é que não me disseram que alguém me visitara ontem? - perguntou ela. Pat ficou espantado.

- Quem te disse isso? - Se Nick o tivesse traído, ia haver confusão. Mas Nick estava a olhar para eles e vira a expressão no rosto de Cassie quando esta entrara no escritório.

- A questão não é essa. O homem veio cá ontem e deixou um cartão para mim e nenhum dos dois mo disse. - Olhou para Nick com uma expressão zangada, acusando-o também, e ambos os homens se sentiram desconfortáveis com aquele olhar. - É como se me tivessem mentido. Porquê?

O pai tentou parecer despreocupado.

- Não pensei que fosse importante. Provavelmente esqueci-me.

- Sabe quem ele é? - Olhava para um e para outro, incapaz de acreditar que tivessem sido tão ignorantes. - E Desmond Williams, da Williams Aircraft. - Era um dos maiores fabricantes de aviões do mundo e o segundo nos Estados Unidos. Desmond Williams era certamente uma pessoa a quem se poderia chamar importante.

- O que é que ele queria? - perguntou Nick casualmente, sempre a observá-la, mas já percebera, pelo comportamento de Cassie, o que Williams supostamente dissera.

- Nada de importante. Apenas me quer dar um monte de aviões espantosos para pilotar, que faça vôos de teste, estabeleça recordes e verifique como se comportam os aviões. Nada de importante. Apenas um pequeno emprego que dá uma enormidade de dinheiro e direito a um apartamento.

Os dois homens trocaram um olhar sombrio. Era exatamente o que eles tinham temido.

- Parece bom - concordou Nick facilmente. - Qual é a rasteira?

- Não há.

- Há, sim - disse Nick, rindo. Cassie era ainda uma criança e ele sabia que os dois precisavam de fazer tudo para a proteger. Desmond Williams andava por todo o país à procura de pessoas que lhe fizessem publicidade e, assim que a agarrasse, usá-la-ia até ela cair. Não eram só os vôos de teste, mas também documentários, anúncios e infinitas sessões de fotografias. Na opinião de Nick, ela ia apenas ser uma outra espécie de Skygirl. - Ele deu-te um contrato? - perguntou Nick casualmente e Cassie acenou de imediato com o documento.

- Claro que deu.

- Importas-te que o leia? - Ela entregou-lho, e Pat olhou para ambos. Era exatamente aquilo que ele nunca desejara.

- Tu vais recusar, Cassandra Maureen - afirmou o pai calmamente enquanto Nick lia o contrato.

Nick não era advogado, mas parecia-lhe bastante bom. Ofereciam-lhe um carro, um apartamento para sua utilização e não como presente, deveria voar tudo o que eles achassem apropriado e fazer vôos de teste. A segunda parte do contrato dizia que ela estaria disponível para publicidade ilimitada relacionada com os aviões. Tinha de estar também disponível para acontecimentos sociais, estatais e até federais e para fotografias. Seria a porta-voz da Williams Aircraft e esperavam que agisse como tal. Não podia fumar ou beber em excesso, havia um subsídio para o guarda-roupa e fornecer-lhe-iam os uniformes de vôo. Tudo estava exposto com clareza. O contrato era por um ano, e ofereciam-lhe cinqüenta mil dólares por ano com opção de renovação para um segundo ano, se ambas as partes concordassem, com um ordenado mais alto a ser negociado. Era o melhor contrato que Nick lera e uma oportunidade que poucos homens recusariam. Mas o contrato também esclarecia que a Williams; Aircraft estava à procura de uma mulher. Podia ser uma oportunidade difícil de recusar, apesar do fato de ela ser parte piloto e parte modelo. Mesmo assim, ainda suspeitava bastante de Desmond Williams.

- O que achas, Pat? - Nick olhou para este, esperando curiosamente a sua reação.

- Ela vai ficar aqui. É isso que eu penso. Não vai para lado nenhum e muito menos para a Califórnia para viver num apartamento.

Cassie olhou para o pai, cega de raiva por ele não lhe ter dito que Desmond Williams a visitara.

- Ainda não decidi, pai. Vou ter com ele amanhã de manhã.

- Não, não vais - disse Pat O'Malley firmemente à filha.

Nick não quis discutir com ele em frente de Cassie. Achava existirem muitas possibilidades naquele negócio e valia a pena analisá-lo. Seria divertido para ela e, durante um ano, pilotaria aviões fantásticos. Era muito estimulante. Até estavam a testar aviões para os militares e a competir abertamente com os Alemães, e o dinheiro que ela ganharia dava-lhe para viver durante muito tempo. Parecia injusto afastá-la disso ou, pelo menos, não o considerar cuidadosamente.

- E a faculdade? - perguntou Nick calmamente, enquanto o pai voltava para o escritório e batia com a porta.

- Ele disse que eu poderia ter aulas quando tivesse tempo.

- Não me parece que consigas, pois terás o tempo bastante ocupado. Quando não estiveres a voar, estarás a fazer publicidade. Tens a certeza de que é isto que desejas, Cassie? - indagou ele cuidadosamente.

A jovem olhou para ele com um ar pensativo. Nunca quisera deixar a casa dos pais, mas a sua vida não estava a ir a lado nenhum. Gostava de andar pelo aeroporto e divertira-se bastante no festival aéreo. Mas não queria ensinar. Não queria casar com Bobby Strong ou com qualquer outro dos seus colegas de escola. O que iria fazer com o resto da sua vida? Por vezes, pensava nisso e até ela sabia que a vida era muito mais do que lubrificar e abastecer os aviões do pai ou voar até Indiana com Billy Nolan.

- Qual é o meu futuro aqui? - perguntou ela honestamente.

- Andar por aí comigo - disse ele com um ar triste. Se ela pudesse fazê-lo para sempre, Nick adoraria.

- A pior parte é deixar-vos todos aqui. Seria perfeito se os pudesse levar.

- O contrato diz que te emprestam um avião para vir a casa de vez em quando. Mal posso esperar. Que tal trazer um XW-1 Phaeton para um fim-de-semana calmo?

- Se quisesses, até te traria um Starlifter. Até o roubaria.

- É uma boa idéia. Isso talvez acalmasse o teu pai. Estamos a precisar de aviões novos. Talvez nos quisessem dar um ou dois - disse ele a brincar, mas sentia-se devastado só de pensar na sua partida. Cassie fazia parte da sua vida diária e tinham voado tantas vezes juntos nos últimos três anos que não conseguia suportar o fato de ela ir para Los Angeles. Nunca esperara nada disso.

E Pat também não. Não tinha a menor intenção de perder a sua menina. já era suficientemente mau o fato de Chris querer ir para a Europa estudar arquitetura durante um ou dois anos, mas isso ainda vinha longe. Isto estava a acontecer agora e não era a Chris. Era a Cassie.

- Não vais a lado nenhum - reiterou ele essa tarde e é definitivo.

Ela pensava que teria ainda de tomar uma decisão. Falou novamente com Nick e este via, de fato, possibilidades de a usarem, mas havia tantas vantagens para ela no processo que ele não tinha bem a certeza de que o resto fosse importante. O dinheiro, a fama, os aviões, os vôos de teste e os recordes que estabeleceria... As vantagens para Cassie pareciam infinitas. Seria impossível recusar, no entanto não fazia a menor idéia de como convencer o pai.

Falou com Billy sobre o assunto, que conhecia a reputação de Desmond Williams. Alguns diziam que era um homem justo é~ outros não gostavam nada dele. Oferecera um emprego a uma rapariga de São Francisco, conhecida de Billy, e ela tinha detestado. Dissera que havia demasiado trabalho e sentia-se possuída por eles. Porém, Billy confidenciou a Cass que ela era um péssimo piloto. Para alguém como Cassie, seria a oportunidade de uma vida.

- Tu realmente poderias ser uma nova Mary Nicholson - disse ele, mencionando uma das estrelas da atualidade, mas Cassie nem imaginasse vir a ser tão famosa.

- Duvido ~ respondeu. A dificuldade da decisão estava a enlouquecê-la. Não queria deixar a casa e a, família, mas também sabia que se ficasse teria muito pouco. Se queria voar, a Williams Aircraft era o local certo para estar, não importando a quantidade de fotografias que lhe tirariam ou as entrevistas que teria de dar. Queria pilotar aviões e a Williams tinha os melhores.

- Pensa bem no assunto. Podes não ter outra oportunidade - aconselhou Billy num tom solene, enquanto nos escritórios Nick dizia a Pat praticamente a mesma coisa. Ela era um piloto brilhante e ali não ia a lado nenhum. Andaria toda a vida pelo aeroporto, a percorrer rotas difíceis pelo Midwest com um monte de fulanos que nunca pilotariam tão bem como ela.

- Eu disse-te para não a ensinares a voar - rosnou Pat subitamente zangado com todos: Nick, Cassie, Chris e todos os outros. A culpa tinha de ser de alguém e o último culpado era o próprio diabo: Desmond Williams. - Se calhar ele é um criminoso que persegue raparigas inocentes para lhes roubar a virtude.

Nick sentiu pena dele. Depois de todos aqueles anos, e quase sem aviso, Pat estava prestes a perder a sua menina. Nick compreendia o que Pat sentia. Detestava Desmond Williams tanto quanto Pat, mas também sabia que eles não tinham o direito de a reter. Ela precisava de voar como uma ave e chegara a altura de pairar com as águias.

- Não a podes impedir, Pat - afirmou Nick calmamente, desejando poder dizer como isso o magoava. - Não é justo. Ela merece muito mais do que aquilo que lhe oferecemos.

- A culpa é tua - gritou Pat de novo. - Não devias ter-lhe ensinado a voar tão bem. - Nick riu-se da recriminação e Pat tomou um gole de uísque. Sabia que não iria voar nesse dia e estava profundamente perturbado por perder Cassie. Ainda tinha de informar Oona da visita de Desmond Williams.

Nessa noite, quando o fez, Oona ficou chocada. Imaginou todo o tipo de coisas imorais. Não conseguia conceber que Cassie vivesse noutro lado que não em casa e certamente nunca em Los Angeles, vivendo sozinha como piloto de testes e porta-voz publicitária para Desmond Williams.

- As raparigas fazem esse tipo de coisas? - perguntou ela a Pat com um ar infeliz. - Pousar para fotografias e tudo isso? Estão vestidas?

- Claro, Oona. Não é um salão de striptease. O homem constrói aviões.

- Então o que é que eles querem da nossa menina? - A tua menina - disse ele num tom lamuriento - é o melhor piloto que já vi, incluindo o Nick Galvin ou o Rickenbacker. É o melhor que há, e o Williams não é parvo, sabe ver isso. Ela deu um espetáculo fabuloso há dois dias no festival elevando-se de um parafuso a pouco mais de cento e cinqüenta metros do solo. Eu quase morri. Mas ela conseguiu e nunca hesitou. Também fez muitas acrobacias loucas, mas na perfeição.

- Ele quer a Cassie para vôos acrobáticos?

- Não. Apenas para testar aviões e tentar estabelecer alguns recordes. Li o contrato e parece justo. Só que não gosto da idéia de ela partir e já sabia que tu também não ias gostar.

- O que é que ela quer fazer? - perguntou a mãe, tentando assimilar tudo aquilo, mas havia muito para absorver num período tão curto. Todos sabiam que Cassie teria de tomar uma decisão antes de amanhecer.

Eu acho que ela quer ir. Diz que quer ir e afirma desejar a liberdade de decidir o seu próprio destino.

- E o que é que disseste? - perguntou Oona com os olhos muito abertos.

- Eu proibi-a de ir, tal como a proibi de voar.

- Isso não te levou muito longe - sorriu Oona -, e suponho que irá acontecer o mesmo.

- O que devemos dizer?

Ele virou-se para a mulher à espera de um conselho. Confiava mais no seu julgamento do que pensava e, por vezes, mais do que desejava. Confiava nela sobretudo no que dizia respeito às filhas.

- Acho que a devemos deixar fazer o que quer. Ela fá-lo-á de qualquer modo, Pat. Ficará mais feliz se sentir que pode tomar as suas próprias decisões. Por muitos aviões que pilote na Califórnia, voltará para nós porque sabe que nós a amamos.

Chamaram-na ao quarto e Oona deixou que o pai lhe transmitisse a sua decisão.

- A tua mãe e eu queremos que... - Hesitou e olhou para Oona rapidamente. - Bem... Queremos que tomes as tuas decisões. Seja o que for que decidires, nós apoiamos-te. Mas se fores - avisou ele -, é melhor voltares e com muita freqüência.

Pat tinha lágrimas nos olhos quando a abraçou e Cassie agarrou-se a ele e abraçou a mãe, que estava a chorar.

- Obrigada. Obrigada. - Abraçou-os a ambos e sentou-se aos pés da cama com um suspiro. - Foi uma decisão difícil.

- Já decidiste o que vais fazer? - perguntou Oona. Pat não ousou perguntá-lo, mas já suspeitava qual fora a decisão de Cassie, quando esta acenou com a cabeça e olhou para eles a tremer de excitação.

- Vou para Los Angeles.

No entanto, deixá-los era mais difícil do que ela temera. Na manhã seguinte, encontrou-se com Desmond Williams no Portsmouth e assinou o contrato. Comeu torradas com café, pois estava demasiado nervosa para comer mais, e os pormenores que ele lhe transmitia eram tão animadores que começou a ficar confusa. Ele ia-lhe arranjar um vôo de Chicago para Los Angeles, haveria um apartamento, um carro, uniformes, uma dama de companhia, sempre que achassem necessário, um guarda-roupa completo, acompanhantes e uma casa de fim-de-semana em Malibu. Haveria ainda um avião para seu uso pessoal sempre que quisesse vir a casa. Acima de tudo, dispunha dos aviões que sempre quisera pilotar.

O seu plano de trabalho começava dentro de cinco dias. Haveria uma conferência de imprensa, um documentário e um vôo de teste de um novo Starlifter que acabara de ser construído. Ele queria que Cassie mostrasse a toda a América como era boa, mas primeiro queria mostrar-lhe as capacidades dos seus aviões. Passaria as duas primeiras semanas com ela e sobretudo a voar.

- Não consigo acreditar - disse ela a Billy mais tarde nessa manhã, enquanto estavam deitados ao sol numa parte da pista que não era utilizada.

- Tiveste muita sorte - afirmou ele com inveja. Mas estava feliz ali e de momento não desejava voltar para a Califórnia.

- Daqui a duas semanas venho a casa, aconteça o que acontecer - prometeu ela a todos.

Nessa noite e antes de partir, os pais deram um grande jantar em sua honra, em que juntaram as irmãs, os cunhados e os sobrinhos, Cliris, Nick e Billy. Claro que Bobby não estava presente, se bem que Cassie o tivesse visto dois dias antes no velório de Jim Bradshaw. Ele estivera a conversar calmamente com Peggy, tendo ao colo um dos seus filhos.

Porém, foi ao lado de Nick que ela esteve toda a noite, pois não suportava ter de o deixar. Vivera tantos anos com o conforto e apoio de Nick que agora não sabia como iria sobreviver sem ele.

Na manhã seguinte, estavam todos no aeroporto quando ela partiu. Nick ia levá-la a Chicago no Vega e, depois de ter beijado a mãe, as irmãs e Chris, dirigiu-se ao pai. Ambos tinham lágrimas nos olhos. Pat queria pedir-lhe para mudar de idéias, mas nunca o faria.

- Obrigada, pai - sussurrou-lhe ela enquanto o abraçava.

- Tem cuidado, Cassie. Toma atenção. Nunca te desleixes num daqueles aviões finos. Eles nunca te perdoarão.

- Prometo, pai.

- Desejava acreditar em ti - sorriu ele - numa mulher-piloto.

Pat ria-se através das lágrimas e deu-lhe outro abraço de urso, mandando-a depois embora. Chris e Billy estavam a acenar da pista quando eles descolaram e Cassie deu um enorme suspiro. Tinha sido mais difícil do que sonhara deixar a casa paterna, e só conseguia pensar nas pessoas que estava a deixar e não nos lugares para onde iria. Quando se virou para olhar para Nick, o seu coração ficou ainda mais pesado. Ela queria agarrar-se a todos os momentos que tinha com ele.

- És uma rapariga de sorte - recordou-lhe Nick enquanto subiam e para que ela não pensasse na família que ainda estava a acenar. - Mas merece-lo. Tens o que é preciso, Cass. Apenas não deixes que esses fulanos da cidade te usem.

Desmond Williams era de fato bastante esperto, mas também parecia justo e honesto. Tinha-lhe dito exatamente o que pretendia dela. Queria o melhor piloto do mundo, a mulher mais bonita e mais bem-comportada que pudesse encontrar para representar o seu produto. Queria estabelecer novos recordes e manter os seus aviões ilesos e bem considerados pelo público americano. Era uma tarefa difícil, mas ela era capaz de a levar a cabo. E Williams era suficientemente inteligente para sentir isso. Ela era o melhor piloto que já vira e uma bonita mulher, o que para Williams era já um bom começo. Para Nick era um fim, mas estava disposto a sacrificar-se pelo futuro dela. Era a sua última dádiva de amor a Cassie. Primeiro, voar e, finalmente, a liberdade.

- Não deixes que ele te dê ordens - lembrou-lhe Nick. - És uma grande rapariga e, se eles forem demasiado duros contigo, manda-os para o inferno e volta para casa. Só precisas telefonar. Eu irei buscar-te. - Parecia uma loucura, mas era bastante reconfortante.

- Virás visitar-me?

- Claro. Sempre que tiver de ir para esses lados, farei um pequeno desvio.

- Então não dês ao Billy os vôos para a Califórnia. Fá-los tu. - Ele sorriu perante a sua admoestação e reparou que ela ficara subitamente muito nervosa.

- Eu pensei que gostasses de o ver mais vezes - disse Nick, falando de Billy tão casualmente como podia, o que significava não muito à vontade. - Estou errado?

Ficou aliviado com o que ela respondeu, mas já tinha começado a suspeitar que Billy era um amigo e não um romance, tal como Pat previra. Todavia, era agradável ouvi-la confirmar. O que ele queria dela era o celibato e a adoração total e reconhecia que isso era uma loucura. Um dia, Cassie encontraria um marido e teria filhos. Sabia que não seria ele, mas desejava poder ser.

- Billy e eu somos apenas amigos - disse ela. - Tu sabes!

- Sim, talvez saiba.

- Tu sabes muitas coisas - continuou ela gravemente. - Sobre mim, a minha vida e sobre o que é e não é importante. Ensinaste-me muitas coisas, Nick. Fizeste com que toda a minha vida tivesse significado. Deste-me tudo.

- Gostaria de ter dado, Cass, mas eu próprio não me saí muito bem. Ninguém o merece mais do que tu.

- É verdade. Deste-me tudo - afirmou, sendo óbvia a sua admiração e o seu amor por ele.

- Eu não sou um Desmond Williams, Cass - disse ele honestamente. Não era pretensioso.

- Será que alguém é? A maioria das pessoas não tem tanta sorte.

- Pode ser que tu tenhas, Cass. Podes tornar-te muito importante.

- Por estar em documentários e por me tirarem fotografias? Duvido. Isso é fingido. Não é verdadeiro. Até aí chego eu.

- És uma rapariga muito esperta, Cass. Não mudes. Não deixes que te estraguem.

Aterraram em Chicago pouco depois, e ele acompanhou-a até ao avião, levando-lhe a mala. Cassie trazia vestido um fato azul-escuro que tinha sido da mãe. Parecia um pouco fora de moda e demasiado grande para ela, mas era difícil que Cassie O'Malley parecesse outra coisa que não uma mulher muito bonita. Aos vinte anos de idade, conseguia fazer parar o trânsito com o seu brilhante cabelo ruivo, os seus grandes olhos azuis, os seios bem feitos, pernas longas e cintura estreita, à volta da qual ele adorava pôr as mãos quando a ajudava a descer do avião. Porém, neste momento, ela olhava para Nick com uma admiração infantil, e tudo o que ele parecia dever fazer era levá-la para a mãe. Cassie tinha os olhos cheios de lágrimas, mas não estava a chorar por eles. Estava a chorar por Nick. Não queria deixá-lo.

- Vem ver-me, Nick. Vou ter muitas saudades tuas. Estarei sempre contigo, miúda. Não te esqueças.

- Não me esquecerei.

Fungou e ele abraçou-a. Não lhe disse mais nada. Apenas a beijou no alto da cabeça e foi-se embora. Nada mais havia para dizer e sabia que se o fizesse, a voz o trairia. Ele nunca a deixaria.

 

Quando o vôo proveniente de Chicago aterrou em Los Angeles, estavam três pessoas à sua espera: um motorista, um representante da companhia e a secretária de Mr. Williams. Cassie ficou surpreendida ao vê-los. Ele dissera-lhe que iria esperá-la ao avião, mas ela não imaginara uma recepção tão oficial ou com tantas pessoas.

No caminho para Newport Beach, o representante da companhia deu-lhe uma lista de compromissos para toda a semana: um estudo sobre os seus últimos aviões, o vôo de teste de cada um, uma conferência de imprensa com todos os membros mais importantes da imprensa local e um documentário cinematográfico. A secretária entregou-lhe então uma lista de acontecimentos sociais em que ela deveria estar presente, com ou sem um dos vários acompanhantes, e alguns com Mr. Williams. Era mais do que esmagador. Mas ainda ficou mais aflita quando viu o apartamento que tinham alugado para ela. Era em Newport Beach e tinha um quarto, uma sala e uma casa de jantar, todos com vista para o mar. Tinha vistas espetaculares e um terraço a rodeá-lo. O frigorífico estava cheio, a mobília era linda e as gavetas encontravam-se cheias de roupa de cama italiana. Foi-lhe dito que a criada atenderia a todas as suas necessidades se ela desejasse ter convidados e que limparia diariamente o apartamento.

- Eu... Oh, meu Deus! - exclamou Cassie quando abriu uma gaveta que estava cheia de toalhas de mesa de renda. A mãe teria dado o seu braço esquerdo para ter apenas uma e Cassie não conseguia imaginar por que razão ela as possuía. - Para que é isto?

- Mr. Williams pensou que gostasse de receber visitas - disse Miss Fitzpatrick, secretária pessoal de Williams. Tinha o dobro da idade de Cassie e freqüentara a escola de Miss Porter, no Leste. Sabia muito pouco sobre aviões, mas sabia tudo o que havia a saber sobre assuntos sociais e as regras básicas da etiqueta.

- Mas eu não conheço ninguém aqui - disse Cassie, rindo enquanto andava de um lado para o outro a olhar para o apartamento. Nunca sonhara com nada assim. Estava morta por dizer ou mostrá-lo a alguém. Billy, Nick, as irmãs, a mãe... mas não estava ali ninguém. Apenas Cassie e o seu séqüito. Quando olhou para o quarto, viu toda a sua nova roupa muito bem arranjada e arrumada. Havia quatro ou cinco fatos muito bem cortados, numa variedade de cores discretas, vários chapéus a condizer, um vestido de noite negro, comprido, e dois curtos. Até havia sapatos e algumas malas. Tudo tinha os tamanhos que ela lhe fornecera. Num armário, encontrou todos os seus uniformes de vôo. Eram em azul-escuro e pareciam extremamente oficiais. Havia até um pequeno chapéu especialmente desenhado e sapatos regulamentares. Por uns instantes, ela quase sentiu o coração a afundar-se. Talvez Nick tivesse razão. Talvez fosse apenas uma skygirl.

Tudo estava regimentado e preparado. Tudo aquilo parecia um sonho estranho. Era como cair na vida de outra pessoa com a sua roupa e o seu apartamento. Mal conseguia acreditar que tudo aquilo fosse dela.

À espera de Cassie estava também uma jovem, muito bem vestida, com um fato cinzento e chapéu a condizer. Tinha um sorriso amistoso, olhos azuis muito vivos e um cabelo castanho-claro bem cortado, até aos ombros, semelhante a um pajem. Parecia ter trinta e poucos anos.

- Esta é Nancy Firestone - explicou Miss Fitzpatrick. - Será a sua dama de companhia sempre que Mister Williams decidir que é necessária. Ajudá-la-á em tudo o que for preciso, a lidar com a imprensa, ir consigo a reuniões e almoços.

A jovem apresentou-se a Cass e sorriu-lhe enquanto lhe mostrava o apartamento. Uma dama de companhia? O que faria com ela? Deixá-la na pista enquanto testasse os aviões? Depois de ver tudo aquilo, Cassie estava a começar a perguntar a si própria se teria tempo para voar.

- Ao principio, é tudo um pouco esmagador - disse simpaticamente Nancy Firestone. - Porque é que não me deixa desfazer-lhe as malas? Durante o almoço falaremos sobre o seu plano de trabalho - continuou Nancy enquanto Cassie olhava à sua volta, sentindo-se perdida. Reparara que na cozinha estava uma criada a fazer sanduíches e salada. Era uma mulher de uma certa idade, de uniforme negro, e parecia estar muito à vontade, o que era mais do que Cassie sentia naquele momento. Não conseguia deixar de pensar no que iria fazer com toda aquela gente. Era óbvio que estavam lá para ajudar, e Desmond Williams tinha, decerto, providenciado o conforto de todos. Fizera mais do que isso: proporcionara-lhe o sonho da sua vida. Mas subitamente tudo o que Cassie sentiu foi uma solidão desesperada entre todos aqueles estranhos. Nancy Firestone pareceu sentir isso. Era essa a razão por que Williams a contratara. Conhecia-a bem e avaliara instantaneamente que era exatamente o que Cassie precisava.

- Ainda vamos hoje ver os aviões? - inquiriu Cassie. Pelo menos era algo de que estava a par e sentia-se muito mais interessada em aviões do que no que vira no armário. Pelo menos os aviões eram-lhe familiares e aquele tipo de vida sofisticada não era. Ela não tinha vindo para a Califórnia para brincar aos vestidos. Viera para pilotar aviões. No meio de todos os chapéus, sapatos e luvas e das pessoas que estavam ali para tomar conta dela, pensou se iria ter oportunidade de pilotar um que fosse. De repente, Cassie apenas ambicionou uma vida simples no Illinois e um hangar cheio de aviões do pai.

- Iremos até ao campo de aviação amanhã - informou Nancy amavelmente. Sabia instintivamente, a partir do que Desmond dissera, que devia tratar Cassie com calma. Era um mundo completamente novo, e avisara Nancy de que a rapariga era uma estranha em relação a tudo aquilo e que no início se assustaria um pouco. Avisara-a também que era teimosa e independente. Ele não queria que a jovem decidisse que aquele mundo não lhe servia. O seu objetivo era levá-la a gostar. - Mister Williams não quis que se cansasse no seu primeiro dia - continuou Nancy com um sorriso caloroso, enquanto se sentavam e serviam de sanduíches. Mas Cassie não tinha fome. - Tem uma conferência de imprensa às cinco horas. A cabeleireira vem às três. Temos muito que conversar antes disso.

Disse-o como se fossem apenas duas raparigas a prepararem-se para uma festa, mas, enquanto ouvia, a cabeça de Cassie estava às voltas. A secretária de Williams, Miss Fitzpatrick, abandonou o apartamento depois de apontar para uma pilha de papéis informativos sobre os seus aviões, que Mister Williams desejava que Cassie lesse, e referiu rapidamente que Mister Williams, viria buscá-la entre as quatro e as quatro e meia.

Ele vai consigo à conferência de imprensa - explicou Nancy depois de a porta se fechar atrás de Miss Fitzpatrick. Aquilo parecia uma grande honra e Cassie sabia que o era. Tudo e todos a aterrorizavam, e o que Cassie podia fazer na altura era olhar para Nancy Firestone com espanto e desânimo. O que era aquilo? O que significava? O que estava ali a fazer? O que é que tudo aquilo tinha a ver com aviões? Nancy leu-lhe facilmente os pensamentos e tentou tranqüilizá-la.

- Eu sei que tudo isto é um pouco assustador - disse Nancy, sorrindo gentilmente.

Era uma mulher bonita, mas havia algo de triste nos seus olhos e que Cassie notara assim que a vira. Mas parecia determinada em fazer com que Cassie se sentisse à vontade naquele espaço estranho.

- Eu nem sei por onde começar - admitiu Cassie, sentindo subitamente uma vontade esmagadora de chorar, mas sabia que não podia. Estavam todos a ser muito bons para ela, porém havia muito para absorver e compreender: a roupa, os compromissos, o que esperavam dela e o que devia dizer à imprensa. Tudo o que ela realmente desejava era aprender mais sobre aviões e, em vez disso, tinha de se preocupar com a sua aparência, com a maneira de vestir e se parecia suficientemente inteligente ou adulta. Era pavoroso, e até o calor de Nancy Firestone pouco a confortava.

À primeira vista, quase parecia que a tinham trazido para um espetáculo e não para voar.

- O que querem de mim? - perguntou Cassie honestamente enquanto estavam sentadas a olhar para o oceano Pacífico. - Porque é que ele me trouxe para aqui? - Já estava quase arrependida de ter vindo. Era demasiado assustador.

- Ele trouxe-a - respondeu Nancy - porque, segundo sei, você é um dos melhores pilotos que ele já viu. Deve ser mesmo muito boa, Cassie. Desmond não se impressiona com facilidade. Ainda não parou de falar de si desde que a viu no festival. Ele também a trouxe porque você é uma mulher e não só um piloto espantoso. Para Desmond é muito importante. - De certa maneira, as mulheres eram importantes para ele; de outra, não o interessavam. Mas Nancy não explicou o segundo aspecto a Cassie. Desmond Williams gostava de ter mulheres à sua volta quando serviam os seus objetivos, mas não se ligava a ninguém. - Ele acha que as mulheres vendem melhor aviões do que os homens por serem mais excitantes. Pensa que as mulheres, mulheres como você, é claro, são o futuro da aviação. Você é um bônus incrível para a imprensa e um grande empurrão para as relações públicas. - Não disse a Cassie que também era devido à sua beleza, mas isso fazia parte de tudo. Ela era realmente bonita e, se não o fosse, não estaria ali. Nancy sabia que Williams procurava alguém como ela há muito tempo, que falara com muitas mulheres-pilotos e que fora a muitos festivais aéreos antes de a encontrar. Era uma idéia que ele tinha há anos, mesmo antes de George Pumam descobrir Amelia Earhart.

- Mas porquê eu? Quem se importa comigo? - indagou Cassie inocentemente, ainda com um ar aterrado, apesar das explicações e encorajamento de Nancy. Ainda não compreendia. Não era estúpida, mas sim ingênua e, para a maioria das pessoas, era muito difícil conceber uma mente como a de Desmond Williams.

Antes de morrer a testar um dos aviões de Williams, o marido de Nancy tinha-lhe contado muitas coisas sobre ele. Outros pilotos que ela conhecia também a tinham informado, bem como a sua própria experiência desde a morte de Skip. Desmond Williams fizera muito para ajudar. De várias maneiras, fora uma dádiva de Deus. No entanto, havia coisas muito enervantes no seu caráter. Possuía uma franqueza que, por vezes, era assustadora. Quando queria alguma coisa, ou pensava que algo seria bom para a companhia, não olhava a meios para a alcançar.

Fora muito bom para Nancy depois da morte de Skip e fizera os impossíveis por ela e pela filha. Dissera-lhe que ambas faziam parte da «família» e que a Williams Aircraft tomaria conta delas para sempre. Abrira-lhes uma conta bancária e tudo o que necessitassem seria providenciado. A educação de Jane e a pensão de Nancy estavam asseguradas. Skip morrera a trabalhar para Desmond Williams e este nunca se esqueceria disso. Até lhes comprara uma pequena casa e redigido um contrato. Ela permaneceria como funcionária da Williams Aircraft durante os próximos vinte anos, executando projetos como o de Cassie, nada de muito complicado ou de muito exaustivo, mas projetos que requeriam inteligência e lealdade. Recordou-lhe sutilmente o que fizera por elas, e subitamente Nancy percebeu que não tinha escolha: devia fazer o que ele queria. Skip deixara-lhes dívidas e doces recordações. Agora, depois de tudo o que fizera por ela e por Jane, Desmond Williams possuía-as. Mantinha-a numa pequena gaiola dourada, fazia bom uso dela, era justo, ou pelo menos parecia ser, mas nunca a deixava esquecer que era propriedade dele. Não podia ir a lado nenhum nem sair de Los Angeles. Se o fizesse ficariam na miséria. Não tinha treino específico para nada, e arranjar um emprego seria um golpe de sorte. Além disso, Janie nunca iria para a faculdade. Se ficasse poderia ter tudo o que ele lhe dava. Williams via algo de útil nela, tal como em Cassie. Tinha o que queria. Comprava de uma maneira justa e pagava um alto preço por tudo. Mas não havia dúvida da sua propriedade assim que o contrato era assinado e a transação completada. Era um homem esperto e sabia sempre o que queria.

- A seu tempo, todos gostarão de si - disse Nancy gentilmente. Sabia mais sobre os planos de Williams, mas não tencionava partilhar tudo com Cassie. Ele era um gênio a lidar com a imprensa e em criar um conceito enorme a partir do nada. - O público americano virá a adorá-la. Mulheres e aviões são o nosso futuro. A Williams Aircraft fabrica os melhores aviões, mas fazer com que isso entre em casa do público através dos seus olhos, ou seja, através de si, é uma coisa muito poderosa. Vê-la identificada com os aviões dar-lhes-á um certo apelo e uma magia especial. - Desmond Williams, sabia-o e era isso que ele queria de Cassie. Há anos que procurava uma mulher que encarnasse o sonho americano: jovem, bela, uma rapariga simples muito bonita, uma boa cabeça e um piloto brilhante. Para espanto de todos, tinha-o finalmente encontrado em Cassie O'Malley. E haveria melhor destino para ela? Que mais poderia ela desejar? Nancy sabia que Cassie era uma rapariga de sorte e, mesmo que eventualmente houvesse outros compromissos e ele quisesse uma lealdade vitalícia, compensá-la-ia. Seria famosa, rica, e transformar-se-ia numa lenda se jogasse bem aquele jogo. Até aos olhos de Nancy, que sabia como esses laços podiam ser apertados, Cassie O'Malley estava numa situação invejável. Desmond ia fazer dela uma estrela ímpar.

- No entanto, quando se pensa nisso parece muito estranho - disse Cassie, olhando pensativamente para Nancy. - Eu não sou ninguém. Não sou Jean Batten, Amy Jolinson ou qualquer outra mulher importante. Sou uma rapariga do Illinois que ganhou quatro prêmios num festival aéreo local. E depois? - perguntou ela modestamente, dando finalmente uma dentada num sanduíche de galinha perfeitamente cortada.

- Você já não é «apenas uma rapariga» - afirmou Nancy. - Deixará de ser, depois das cinco horas de hoje. - Sabia o cuidado com que Desmond tinha começado a aplanar o terreno desde que Cassie assinara o contrato. - E como é que pensa que as outras mulheres começaram? Sem alguém como Desmond a fazer-lhes publicidade, elas nunca teriam sido ninguém. - Cassie ouvia, mas não concordava com ela. A reputação dessas mulheres tinha sido construída com base na sua perícia e não só na publicidade, mas Nancy acreditava piamente no que Williams estava a fazer. - A Earhart foi o que George Putnam fez dela. Isso sempre fascinou Desmond. Sentia sempre que ela não era tão bom piloto como Putnam afirmava e talvez tivesse razão. - Skip tivera a mesma opinião e, enquanto Nancy pensava nisso, olhou tristemente para a jovem.

Cassie estava intrigada com Nancy, se bem que houvesse muita coisa que lhe agradava. No entanto, havia uma parte de Nancy que parecia estar muito longe. Mostrava-se muito entusiasmada com o futuro de Cassie e, por outro lado, parecia ter ciúmes. Fazia com que tudo parecesse uma grande coisa e falava de Desmond como se o conhecesse melhor do que queria admitir. Ao observá-la, Cassie não pôde deixar de pensar se haveria algo entre eles ou se era apenas uma grande admiração, querendo ter a certeza que Cassie apreciava tudo o que ele fizera por ela. Tudo isto era difícil de absorver e analisar numa tarde. Enquanto separavam as coisas de Cassie, Nancy tentou explicar-lhe a importância do marketing. Tal como Desmond, Nancy pensava que o marketing era tudo. Era o que fazia com que as pessoas comprassem produtos fabricados por outras pessoas e, neste caso, aviões. Cassie fazia parte de um plano bem mais vasto. Ela era e seria sempre um instrumento para vender aviões. Era uma idéia muito estranha para Cassie, e, quando a cabeleireira chegou, ela ainda estava a tentar entendê-la.

Nancy tinha-lhe contado a história do marido e de Jane. Explicara simplesmente que Skip morrera num acidente há um ano, durante um vôo de teste sobre Las Vegas. Falou sobre o assunto com muita calma, mas havia desolação nos seus olhos quando falava nele. De certo modo, a sua vida acabara quando ele morrera ou, pelo menos, era assim que o sentia. Mas alguns dias depois, Desmond Williams já mudara tudo isso.

- Ele tem sido muito bom para mim - afirmou ela tranqüilamente - e para a minha filha.

Cassie acenou com a cabeça, observando-a, e depois a cabeleireira distraiu ambas com os seus planos para a ruiva e brilhante melena de Cassie. Queria fazer-lhe um bom corte para que o usasse comprido como Lauren Bacall. Até disse que havia uma certa semelhança, o que fez rir Cassie. Sabia que Nick teria rido a bom rir se tivesse ouvido aquilo, pelo menos era o que ela pensava. Mas Nancy levou a cabeleireira muito a sério e aprovou tudo o que esta pensava fazer.

- O que é que eles realmente querem de mim? - perguntou Cassie com um suspiro nervoso, enquanto a cabeleireira cortava e aparava com determinação, sob o olhar supervisor de Nancy.

Esta conseguiu olhar para Cassie com um sorriso e respondeu-lhe o melhor que podia.

- Eles querem que você esteja bonita, pareça inteligente, que saiba portar-se bem em público e voe como um anjo. É tudo. - Sorriu novamente e Cassie fez um trejeito irônico perante a descrição. Nancy tornava tudo surpreendentemente simples.

Isso não deve ser muito difícil. Pelo menos, a parte dos vôos. O comportamento deve estar bom, se isso significar não cair para o lado de bêbeda ou andar com homens. Não tenho a certeza do que significa «parecer inteligente» e pode ser um pouco complicado. «Bonita» poderá não ter solução. - Cassie sorriu para a sua nova amiga. Quando deixasse de se sentir aterrorizada, tudo pareceria muito excitante. Como é que aconteciam coisas destas? Era quase como entrar num filme. Havia uma sensação de irrealidade, à qual ela já não conseguia fugir.

- Tenho a impressão de que você não olha para o espelho há algum tempo - disse Nancy honestamente, e Cassie corroborou com um aceno de cabeça.

- Nunca olhei. Tenho estado muito ocupada a pilotar e reparar aviões no aeroporto do meu pai.

- Agora terá de aprender a olhar para o espelho. - Esta era a razão por que Williams tinha tanta fé em Nancy. Tinha muito tacto, era uma senhora, inteligente, e fazia o que lhe mandavam, sabendo o que era esperado dela. Desmond Williams conhecia bem o seu pessoal e sabia sempre o que estava a comprar. Nunca duvidara que Nancy lhe seria útil quando assinaram o contrato. - Sorria apenas e pense que algumas fotografias não lhe farão mal. No tempo restante, poderá pilotar o que quiser. É uma oportunidade que quase ninguém tem, Cassie. Você teve muita sorte - encorajou Nancy. Ela sabia exatamente de que é que gostavam os fanáticos dos aviões e como persuadir Cassie a fazer o que não gostava, tal como as conferências de imprensa planejadas, as entrevistas, os documentários e as festas em que Desmond desejava que ela fosse vista. Miss Fitzpatrick tinha até fornecido uma lista de acompanhantes.

- Porque é que tenho que ir a essas festas? - perguntou Cassie com algumas reservas.

- Porque as pessoas precisam de saber o seu nome. Mister Williams teve muito trabalho para a incluir e você não o pode desiludir. - Disse isto com uma firmeza surpreendente

- Oh! - exclamou Cassie com uma expressão atônita Não queria parecer ingrata e já começava a confiar nas opiniões de Nancy. Tudo estava a acontecer muito rapidamente, e Nancy era a única amiga que ali tinha. O que dissera era verdade: Williams estava a fazer muito por ela e talvez devesse aceitar os convites. No entanto, quando Cassie olhou para a lista, as obrigações sociais pareciam infinitas. Mas Desmond Williams e Nancy sabiam exatamente o que estavam a fazer.

Quando a cabeleireira terminou, todas gostaram do cabelo de Cassie. Subitamente, ficou com um ar mais sofisticado, mas elegante e simples. Depois, a cabeleireira ajudou Cassie a maquiar-se. Às três e um quarto tomou banho e às três e quarenta e cinco vestiu a roupa interior e as meias de seda que lhe tinham sido deixadas. Às quatro horas, quando vestiu o fato verde-escuro estava uma verdadeira estampa.

- Ena! - disse Nancy, ajustando cuidadosamente a blusa de Cassie e verificando se os sapatos combinavam com o fato e com a mala.

- Meias de seda! - Cassie irradiava alegria. - Espere até eu dizer à minha mãe! - Tinha um sorriso aberto de criança. Nancy riu-se e perguntou-lhe se ela tinha brincos. Cassie ficou desorientada e depois abanou a cabeça. A mãe tinha um par que pertencera à avó, mas Cassie e as irmãs nunca haviam possuído nenhuns.

- Terei de avisar Mister Williams.

Nancy tomou nota disso. Também precisava de um colar de pérolas. Ele dissera a Nancy qual a figura exata que desejava em Cassie. Nada de macacões cheios de óleo ou roupa de trabalho. Poderiam deixar isso para uma fotografia rara, talvez para a Life, como parte de algo mais importante. Quando não estava a voar, ele queria que Cassie parecesse uma verdadeira lady, se bem que, ao olhar para Cassie, Nancy só conseguisse ver Rita Hayworth.

Desmond Williams chegou pontualmente às quatro horas e ficou muito satisfeito com o que viu. Entregou-lhe algumas fotografias e pormenores do Phaeton e do Starlifter que ela iria pilotar nessa semana para se familiarizar com eles. Na semana seguinte, teria testes importantes a fazer num avião de grande altitude que ele estava a tentar converter para o Corpo Aerotransportado do Exército. Mas quando Cassie olhou para as fotografias não conseguiu deixar de pensar no marido de Nancy. E se os aviões de Williams fossem demasiado perigosos e os riscos a correr demasiado grandes? Tal como qualquer bom piloto de testes, ela juntava a coragem à cautela. Decidiu, enquanto olhava para as fotografias do Phaeton experimental, que não tinha medo de pilotar nenhum avião.

- Vai deixar-me pilotar isto? - Sorriu-lhe, e ele acenou com a cabeça. - Ena! E que tal agora? Esqueça a imprensa. Vamos voar! - Cassie fez um sorriso largo e, como por magia, desapareceram todas as suas preocupações e hesitações.

Ele riu-se. Adorava a sua nova aparência, e Nancy tinha-o informado que Cassie cooperara completamente com ela. Desmond estava muito contente com ambas. Era o melhor plano de publicidade que tivera e sabia-o.

- Nunca se esqueça da imprensa, Cassie. Ela pode construir ou destruir um negócio. Pelo menos o meu. Nós queremos ser sempre muito agradáveis para ela.

Olhou para Cassie sagazmente, e ela acenou com a cabeça, sentindo receio dele. Trazia vestido um fato azul-escuro impecavelmente cortado e sapatos negros, feitos à mão, brilhantemente engraxados. O seu cabelo louro estava perfeitamente penteado e tudo nele tinha goma, estava passado a ferro na perfeição e imaculado. Era o homem mais bem vestido que conhecera e ela observava-o com grande fascínio. Tudo nele era calculado e bem concebido, pensando até ao enésimo grau. Mas ela era muito jovem para compreender aquilo. Apenas via o produto acabado. O que ele queria que ela visse. E era isso que Desmond queria ensinar-lhe: mostrar ao mundo exatamente a imagem que queria. Uma rapariga de uma pequena cidade, sorridente, que pilotava melhor do que qualquer homem com ousadia para tudo e que saía da carlinga do avião com um grande sorriso e um cabelo ruivo perfeitamente penteado. Dentro de seis meses, todos os homens do país estariam apaixonados por ela, se demorasse tanto, e iria ser o ídolo de todas as mulheres. Para o conseguir, Cassie teria de se comportar na perfeição, possuir uma aparência espetacular e pilotar os aviões de maneira a fazer tremer até os pilotos mais duros. Ele tinha estudado os erros de toda a gente e não tencionava cometê-los. Desmond Williams não iria falhar, e Cassie também não, se ele a controlasse. A jovem tornar-se-ia a maior figura do país. Ele ia criá-la e, à sua pequena maneira, Nancy Firestone ajudá-lo-ia, confortando-a e observando-a- Ele não permitiria que os seus sonhos fossem destruídos: nem por uma bebedeira de Cassie, nem por praguejar contra alguém, ou tivesse um ar horrível depois de um longo vôo, ou se envolvesse com um vagabundo. Teria de ser perfeita.

- Pronta para o grande momento? - disse ele sorrindo.

A jovem estava bonita, de fato até mais do que isso, mas ainda havia lugar para alguns melhoramentos. Cassie possuía a sua própria beleza, mas o fato era um pouco grande para ela, e mais tarde diria a Nancy para tratar das alterações. Ela era apenas um pouco mais magra do que a imagem que Desmond gravara na memória e bastante mais bonita. Precisava de algo um pouco mais vistoso e que a tornasse um pouco mais jovem. Quando a conhecera em Good Hope, não se apercebera de que a rapariga possuía uma figura tão espetacular. Queria fazer o seu jogo sem a rebaixar ou até aproximá-la do vulgar. Mas havia uma figura que queria alcançar e ainda não tinham lá chegado. No entanto, e para começar, ela estava ótima.

Cassie lidou com a conferência de imprensa bastante melhor do que ele esperara, a qual teve lugar numa grande sala de conferências, mesmo ao lado do seu escritório.

Tinha escolhido vinte dos mais impressionáveis membros da imprensa: homens que gostavam bastante do sexo feminino, mulheres. Não escolhera nenhum dos grandes cínicos. Então, apresentou-a. Ela entrou com um ar assustado e pálido, sentindo-se um pouco estranha naquela sua roupa e com aquele batom vermelho-vivo. No entanto, estava muito bonita com o seu novo corte de cabelo e fato verde. A sua beleza natural e natureza calorosa brilhavam.

Encantou-os. Deu-lhes as informações sobre o festival aéreo e foi muito humilde. Explicou que estivera no aeroporto do pai toda a vida a trabalhar em motores e a abastecer aviões.

- Passei a maior parte da minha infância coberta de óleo. Apenas descobri que tinha cabelo ruivo quando aqui cheguei - disse ela a brincar e todos adoraram. Tinha um estilo fácil e, assim que se habituou a eles, tratou-os como velhos amigos, o que fez os repórteres adorarem. Desmond Williams estava tão estupefato que não conseguia parar de sorrir.

No final, teve de a arrancar dali. Teriam ficado toda a noite a ouvir as histórias de Cassie. Ela até lhes tinha referido o fato de o pai não querer que ela voasse e que apenas o convencera depois da noite em que voara com Nick, através de uma tempestade de neve para tentar salvar os feridos de um desastre de comboios.

- Que avião pilotava, Miss O'Malley?

- Um velho Handley do meu pai.

Houve um olhar de apreciação nos membros da assistência. Era um avião difícil de pilotar, mas todos sabiam que ela tinha de ser muito boa porque, de outro modo, Williams nunca a teria trazido.

Na altura em que Cassie os deixou, já a tratavam pelo nome próprio. Ela era, na verdade, despretensiosa e totalmente ingênua. No dia seguinte, quando chegou aos cabeçalhos do Los Angeles Times, a fotografia estava sensacional e a história falava de uma bomba ruiva que ia atingir Los Angeles e tomar o mundo de assalto. Mais valia terem feito um cabeçalho a dizer: «Amamos-te, Cassie!», pois era óbvio. A campanha começara. A partir daí, Desmond Williams manteve-a muito ocupada.

No seu segundo dia em Los Angeles, Cassie «visitou» todos os aviões. É claro que a imprensa estava presente, bem como os membros da Movietone para rodar um documentário.

Quando o documentário foi lançado, a mãe levou as filhas e os netos para o verem. Cassie queria que Nick e o pai também o vissem, mas tudo o que lhe chegou foi um postal de Nick que dizia: «Temos saudades tuas, skygirl!», o que a aborreceu. Ela sabia que no documentário estava de uniforme, mas também sabia que os aviões tinham de o impressionar. Eram perfeitamente fantásticos.

Os seus primeiros vôos foram no Phaeton, em que estavam a trabalhar, e depois no Starlifter que ele lhe tinha mostrado. Depois disso, deixou-a pilotar um avião de grande altitude e tomar notas extensivas para entregar aos engenheiros. Tinha ido até aos quarenta e seis mil pés e fora a primeira vez que usara uma máscara de oxigênio ou um fato de vôo climatizado. Porém, fora capaz de reunir informações muito importantes. O objetivo era converter o avião num bombardeio de alto nível para o exército. Era um empreendimento difícil e Cassie assustou-se uma ou duas vezes, mas Desmond Williams ficara muito impressionado. Os engenheiros e um dos pilotos tinham ido com ela e descrito a sua pilotagem como melhor que a. de Lindbergh. Além disso, um deles destacara que ela era mais bonita. Mas isso Williams sabia. Aquilo que mais lhe agradou ouvir foi que as suas capacidades estavam para além das expectativas.

Na segunda semana, Cassie estabeleceu um recorde de altitude e, três dias mais tarde, um recorde de velocidade no Phaeton. Ambos foram confirmados pela FAI, tornando-se oficiais. Aqueles eram os aviões com que sempre sonhara.

A única coisa que a abrandava eram as constantes conferências de imprensa, sessões de fotografia e documentários. Eram muito fastidiosos e, por vezes, a imprensa impedia-a de fazer muita coisa., Estava em Los Angeles há três semanas e a imprensa já começava a segui-la para todo o lado. Começava a tornar-se uma notícia. Se bem que tentasse ser agradável para eles, o fato aborrecia-a deveras. Cassie quase atropelara um deles na véspera, durante uma descolagem.

- Importam-se de os tirar da pista, meu Deus? - gritou da carlinga antes da descolagem. Não queria ferir ninguém e eles tinham-na assustado por se terem chegado tão perto do avião. Mas os homens apenas encolheram os ombros. já estavam a habituar-se. O frenesi, provocado por Cassie não era comparável a nada jamais visto. Estavam constantemente a surgir notícias e fotografias dela. O público adorava-a e Desmond Williams continuava a dar-lhe exatamente o que aquele queria. O suficiente para os excitar e manter viva a relação amorosa, mas nunca ao ponto de se poderem cansar dela. Era uma arte requintada, mas Desmond era brilhante na sua prática. Nancy Firestone informava-o de todos os pequenos pormenores pessoais necessários, continuando a ser uma enorme ajuda para Cassie.

Ia fazer um anúncio sobre cereais de pequeno-almoço para crianças e um anúncio na sua revista favorita. Um dia, quando Nick a viu no aeroporto, atirou-a para o lixo. Ficou furioso e descarregou em Pat.

- Como é que a deixas fazer isto? O que é que ela está a fazer? A vender cereais ou a voar?

- A mim parece-me que está a fazer as duas coisas. - Pat não se importava. De qualquer modo, não pensava que as mulheres pertencessem a uma aviação séria. - A mãe adora!

- Quando é que ela tem tempo para voar? - gritou Nick, mas Pat sorriu.

- Não sei, Stick. Porque não vais até lá e lhe perguntas?

Agora que Cassie estava na Califórnia, Pat andava surpreendentemente calmo em relação ao assunto. A única coisa de que tinha pena era o fato de Cassie não conseguir ir à faculdade. Mas estava a pilotar aviões tremendamente bonitos. Não conseguia deixar de estar orgulhoso dela, se bem que nunca o referisse.

Nick já pensara várias vezes em ir vê-la, mas não tinha tido tempo para se afastar do aeroporto. Com Cassie longe, ele estava a fazer muitos mais vôos, apesar da presença útil de Billy Nolan. O negócio estava a expandir-se no O'Malley, e Pat era o primeiro a reconhecer que o estrelato súbito de sua filha talvez não os tivesse afetado. Os repórteres também tinham aparecido algumas vezes, mas não havia muito que os interessasse. Depois de algumas fotografias, em especial da casa onde ela crescera, os rapazes da imprensa voltavam para Chicago.

A vida de Cassie na costa oeste parecia movimentar-se ainda mais depressa do que os aviões. Ela mal conseguia agüentar entre vôos de teste e vôos curtos para verificar novos instrumentos e reuniões com os engenheiros para que lhe explicassem a aerodinâmica do avião. Também tinha ido a algumas reuniões de desenvolvimento para compreender melhor os objetivos da Williams Aircraft, e o próprio Desmond não conseguia acreditar na extensão do seu envolvimento. Ela queria saber tudo sobre os aviões. Desmond sentiu-se elogiado e impressionado e estava muito orgulhoso do seu discernimento. Tinha herdado um império que duplicara num curtíssimo espaço de tempo. Aos trinta e quatro anos, era um dos homens mais ricos do país, se não do mundo, e poderia ter tido ou feito quase tudo o que quisesse. já se casara e divorciara duas vezes. Não tinha filhos e a única coisa de que gostava com paixão, era do seu negócio. As pessoas entravam e saíam da sua vida, havendo sempre muito falatório sob as suas mulheres. A única coisa com que se importava era os seus aviões e estar no topo do negócio da aviação. De momento, Cassie O'Malley estava a ajudá-lo a chegar onde queria.

Williams adorava a maneira notável 'como Cassie compreendia os aviões e as suas percepções ingênuas, mas claras, sobre o negócio. Não tinha medo de se exprimir e, quando necessário, de o enfrentar. Gostava de a ver nas reuniões, do fato de ela se importar o suficiente para estar ali, e mostrava-se entusiasmado com os recordes de vôo que a jovem estabelecera. Cassie não tinha medo de nada dentro do razoável. A única coisa perante a qual parecia hesitar e tentava quase sempre evitar era estar presente em ocasiões sociais, mas Desmond insistia que eram vitais, enquanto Cassie pensava serem um disparate.

- Mas porquê? - argumentava ela constantemente com Nancy Firestone. - Não posso passar a noite fora. Vôo inteligentemente às quatro da manhã.

- Então comece mais tarde. Mister Williams compreenderá. Ele quer que você saia esta noite.

- Mas eu não quero. - A teimosia natural de Cassie não havia ficado em Illinois e tinha intenção de ganhar. - Prefiro ficar em casa a ler sobre os aviões.

- Não é isso que Mister Williams quer - disse Nancy firmemente e, até à altura, ganhara todas as discussões.

Algumas vezes, Cassie conseguira fugir-lhe. Preferia caminhar na praia ou estar sozinha à noite a escrever a Nick, às irmãs ou à mãe. Tinha muitas saudades da família e das pessoas com quem tinha crescido. Até escrever a Nick lhe partia o coração. Por vezes, quando lhe escrevia a contar o que andava a fazer, parecia que o ar estava a ser empurrado para fora dela. Tinha saudades de voar com ele, de discutir com ele e de lhe dizer que estava enganado ou que era parvo. Queria transmitir-lhe as saudades que tinha dele, mas parecia sempre estranho numa carta. freqüentemente, a carta era rasgada e apenas lhe contava tudo sobre os aviões que pilotava.

Nunca mencionou a vida social a ninguém, pois não significava nada para ela, se bem que escrevessem muito sobre isso nos jornais. Nancy descobrira bastantes jovens para lhe servirem de acompanhantes, mas a maioria nada sabia sobre aviões e alguns eram atores que precisavam de ser vistos em público. Tudo girava à volta do «ser visto», dos locais para onde ia e com quem era vista. Cassie não queria ser vista com nenhum deles; na maioria dos casos, apenas pousavam para as fotografias e depois levavam-na a casa. Ela atirava-se para cima da cama, aliviada por se livrar deles. A única coisa que realmente gostava na sua nova vida de estrela de cinema era voar.

Os vôos eram inacreditáveis. Descolar de madrugada no Phaeton e bater todos os recordes de velocidade eram as coisas mais doces que fizera e provavelmente as mais perigosas. Mas, para sua surpresa, aquelas máquinas incríveis estavam a aperfeiçoar as suas capacidades. Andava a aprender como lidar com máquinas muito pesadas, a compensar os problemas que tivessem e a assinalá-los e corrigi-los juntos dos engenheiros. As suas informações e opiniões eram valorizadas, adoravam a maneira como ela voava e compreendiam tudo o que a rapariga queria. Estar no lugar dela era o sonho de todos os pilotos e enquanto estivesse no ar não havia dúvidas sobre isso. Ela adorava.

Uma tarde, estava a descer de um avião de perseguição, do exército, com o motor Merlin para maior velocidade, depois de um pequeno vôo sobre Las Vegas para tirar algumas notas destinadas à equipa de construção, quando uma mão se estendeu e a ajudou a descer. Ficou surpreendida ao ver que era Desmond Williams. Estava, como sempre, impecável e o cabelo caía-lhe um pouco para o rosto com o vento; pareceu-lhe subitamente menos rígido e muito mais novo do que das outras vezes.

- Fez um bom vôo?

- Fiz. Mas o motor Merlin é uma desilusão. Ainda não nos deu o que queremos deste avião. É preciso tentar outra coisa. Porém, tenho algumas idéias que quero expor amanhã à equipa de construção. O avião estava a puxar para bombordo, inclusive na descolagem, o que constitui um sério problema.

 Pensava sempre nos aviões e nos problemas que estes precisavam de superar. À noite sonhava com eles e de dia levava-os até aos seus limites. Enquanto Desmond olhava para ela, sentia-se cada vez mais impressionado com o que ouvia. É uma mina de ouro.

- Parece-me que está a precisar de um intervalo. - Williams sorriu enquanto ela tirava o cabelo dos olhos e alisava o uniforme. Às vezes, ainda sentia saudades dos macacões e dos velhos tempos em que não se importava com o seu aspecto quando voava. Para Cassie não era importante. - Quer jantar comigo esta noite?

Ficou surpreendida com o convite e perguntou a si própria se ele teria algo em mente. Se calhar não estava contente consigo. Nunca a tinha convidado para sair e o seu convívio sempre fora estritamente profissional.

- Passa-se alguma coisa, Mister Williams?

Parecia preocupada e ele riu-se da pergunta. Até chegou a pensar se a ia despedir, mas ele abanou a cabeça e olhou-a com ar divertido.

- A única coisa errada é que você trabalha de mais e não faz a mais pequena idéia do milagre que constitui para nós. Claro que não se passa nada. Só pensei que poderia ser agradável jantar.

- Com certeza - disse ela timidamente, perguntando a si própria como é que seria jantar com Desmond. Era tão bonito, tão perfeito, tão inteligente e tão rico que a assustava. Nancy sempre dissera que ele era uma companhia boa e agradável e esta parecia conhecê-lo bem. Todavia, Williams ainda assustava Cassie.

- O que prefere? Comida francesa? Italiana? Há ótimos restaurantes em Los Angeles. Imagino que já os conheça todos.

- Sim, conheço. - Olhou-o nos olhos, superando a sua timidez por alguns instantes. - Mas desejava não os conhecer.

- Foi o que me constou. - Desmond sorriu-lhe. Soube que o seu plano social não lhe agrada. - Durante alguns instantes, ficou com um ar quase paternal, apesar da idade, e Cassie percebeu então a razão por que Nancy gostava dele.

- Isso é pouco. Apenas não entendo por que razão tenho de sair todas as noites se vou voar para si às quatro da manhã.

- Talvez devesse começar mais tarde - disse ele pragmaticamente, mas Cassie não gostou da resposta.

- Isso é o que Nancy diz, mas voar é a parte mais importante. Sair não me interessa.

Ele parou de caminhar e olhou-a; Cassie ficou muito surpreendida ao perceber que Desmond era muito mais alto do que ela. Era um homem de grande estatura em vários aspectos.

- Tudo é importante, Cassie. Tudo. Não só voar. Sair também é. Olhe o que os jornais dizem de si, o que o público pensa e como gosta de si. Repare no que isso significa, no acesso que o público tem à sua personalidade, e qual o peso que você já tem junto dele em apenas um mês. Querem saber o que você come, lê e o que pensa. Nunca subestime isso. É o poder do público americano.

- Não percebo - contrapôs Cassie, com ar de rapariguinha, e ele sorriu-lhe. Desmond já a conhecia bastante bem, pois tinha uma excelente percepção em relação às pessoas.

- Percebe, sim - disse este calmamente. - Apenas não quer perceber. Você quer jogar com as suas próprias regras, mas no final conseguirá muito mais se jogar à minha maneira. Confie em mim.

- Jantar no Cocoanut Grove ou no Mocambo não vai fazer de mim um melhor piloto.

- Não, mas torná-la-á mais excitante e sofisticada. Alguém que as pessoas querem conhecer melhor. Isso fará com que elas a ouçam e, enquanto a estiverem a ouvir, você pode dizer o que quiser.

- E não ouvirão se eu estiver a dormir em casa?

Sorriu, mas percebera onde ele queria chegar. No entanto, isso intrigava-a.

- Nessa altura, tudo o que eles ouvirão, Miss O'Malley, é o seu ressonar.

Cassie riu-se e ele deixou-a no hangar alguns minutos mais tarde. Prometeu ir buscá-la às sete, dizendo-lhe que diria mais tarde qual o restaurante onde iriam jantar.

Quando chegou a casa, Cassie informou Nancy com quem ia jantar, mas esta já soubera por Miss Fitzpatrick quais eram os seus planos. Não havia segredos na Williams Aircraft e ela já suspeitava em que restaurante iriam jantar. Provavelmente, no Perino. Nancy ajudou-a a escolher um vestido especialmente sofisticado e assegurou a Cassie que era o tipo de vestido que Williams gostava.

- Porque acha que ele quer jantar comigo? - perguntou Cassie com alguma preocupação. Ainda estava a pensar se Desmond se sentiria secretamente descontente consigo. Talvez estivesse aborrecido com o fato de ela se queixar das saídas noturnas e quisesse ralhar-lhe.

- Eu acho que ele quer sair consigo porque você é muito feia - disse Nancy para a arreliar. Começara a tratar Cassie como uma filha. De certo modo, Cassie ainda era uma criança e não muito diferente de Janie. De fato, Jane e Cassie tinham-se dado muito bem nas duas ocasiões em que Nancy a convidara para jantar. Tê-la-ia convidado com mais freqüência, mas Cassie nunca tinha tempo para uma noite em privado. - Agora vá lavar a cara e pare de se preocupar. Ele é um cavalheiro. - Fossem quais fossem os seus desejos, negócios ou prazer, era sempre um cavalheiro. Desmond Williams tinha uma mente brilhante e modos impecáveis. O que ele não tinha era coração. Pelo menos, era o que as mulheres diziam. Se o tinha, ainda ninguém o encontrara. Todavia, Nancy sabia que Desmond não queria o coração de Cassie. Desejava a sua lealdade, a sua vida, a sua mente, a sua avaliação dos aviões e a sua coragem. Era o que ele queria de todos. Desejava tudo, exceto o mais importante e, na volta, Desmond tomaria conta dela à sua maneira: com contratos e dinheiro.

Cassie estava pronta a horas quando ele apareceu lá em baixo com um Packard novo. Era um homem que gostava de máquinas e comprava todos os bons carros que existiam. O Zephyr com que ela o tinha visto em Illinois já tinha sido expedido para a Califórnia.

Cassie trajava um vestido negro muito justo, que Nancy escolhera, com meias de seda negras e sapatos de cetim negro de salto alto, o que a fazia parecer ainda mais alta. De qualquer modo, ele era ainda mais alto do que Cassie, e aquele vestido negro dava-lhe uma figura fabulosa. O cabelo estava apanhado no alto da cabeça, caindo em caracóis soltos e, durante aquele primeiro mês em Los Angeles, aprendera a maquiar-se na perfeição.

- Ena! Que vestido espantoso! - Desmond olhava radiante para ela enquanto se dirigiam à cidade.

- Eu tencionava vestir o meu macacão - disse ela maliciosamente -, mas Nancy tinha-o mandado para a lavanderia.

- Não posso dizer que esteja desiludido - replicou ele. Conversaram calmamente, durante todo o caminho, sobre o novo avião que estavam a construir. Havia perguntas que ela quis fazer sobre a fuselagem, e as suas dúvidas sobre o design impressionavam-no profundamente.

- Como é que você conseguiu saber tanto sobre aviões, Cass?

- Apenas gosto muito deles. É como as bonecas para algumas miúdas. Toda a vida brinquei com aviões. Consegui montar o meu primeiro motor aos nove anos. Faço-o, desde que me conheço. O meu pai pôs-me a trabalhar quando eu tinha cinco anos, mas depois ficou furioso quando aprendi a voar. Montar e desmontar motores estava bem, mas voar era para homens e nunca para mulheres.

- É difícil de acreditar. - Ele estava com um ar divertido. Para Desmond tudo o que estava a ouvir parecia um conto da Idade Média.

- Eu sei. - Cassie sorriu, pensando carinhosamente no pai. - Ele é um velho dinossauro adorável e eu amo-o. No primeiro dia em que você foi ao aeroporto, ele deitou o seu cartão fora.

- Pensei que pudesse fazer algo de semelhante. Ele e o sócio. Foi por essa razão que lá voltei. - Olhou-a no momento em que chegaram a Los Angeles. - Estou feliz por o ter feito. Quando penso no que perderia e no que este país perderia, seria uma tragédia.

Disse-o com um expressão muito dramática e ela riu-se. As suas palavras eram assustadoras, mas sempre lhe parecera um disparate. Ela sabia o que valia ou, pelo menos, pensava que sabia. Era um piloto muito bom, mas não era o oráculo nem o gênio nem a beldade que ele pretendia que fosse, mas os Americanos já começavam a pensar de outra maneira. Concordavam com Desmond Williams.

- Onde vamos esta noite? - inquiriu ela com um pouco de curiosidade. Reconhecera o bairro, mas não adivinhara qual o restaurante. Ele tinha-lhe dito que iriam ao Trocadero.

E, assim que entraram, Cassie viu instantaneamente como era sofisticado e luxuoso. As luzes estavam baixas e a orquestra tocava uma rumba.

- Ainda não tinha vindo a este restaurante. Pois não, Cassie?

Abanou a cabeça, visivelmente impressionada com o que a rodeava e por estar ali com ele. Tinha vinte anos e nunca vira nada assim.

- Não, senhor - disse. Ele chegou-se mais para a jovem e tocou-lhe no braço.

- Pode chamar-me Desmond. - Sorriu-lhe e ela corou. Aquela atitude tão amistosa era estranha. Ele era um homem muito importante, seu patrão e muito mais velho.

- Sim, Sir. Quero dizer, Desmond. - Ainda estava corada na semiescuridão, enquanto eram conduzidos para a melhor mesa da casa.

- Claro que Sir Desmond soa muito bem. Ainda não tinha pensado nisso.

Ele fazia-a rir com facilidade e ajudou-a a encomendar o jantar. Fazia-a sentir surpreendentemente confortável, se bem que toda aquela experiência fosse nova para ela. No entanto, nunca a fez sentir-se ignorante ou ridícula. Tudo era uma grande oportunidade para ambos. Dizia-lhe sempre como se sentia um felizardo por estar ali com ela. Era um mestre na requintada arte de a pôr à vontade e, antes do jantar ser servido, Cassie já se ria e dançava completamente à vontade. Tanto assim que dançou nos seus braços como se o fizesse há muitos anos. Quando os fotógrafos apareceram depois de jantar, conseguiram uma bela fotografia em que sorria para ele como se o adorasse.

No dia seguinte, a caminho do trabalho, sentiu-se desconfortável quando viu os jornais. A fotografia conseguia, de certo modo, transmitir a impressão de que estava envolvida com ele, o que não era, de todo, verdade. Mas havia algo de muito íntimo na maneira como ele a olhava. No entanto, nada acontecera de inapropriado ou fugazmente romântico. Ela trabalhava para Desmond, para o homem que a descobrira e lhe dera aquela fantástica oportunidade, e Cassie estava-lhe muito grata. Mas não havia absolutamente mais nada entre eles. Perguntou-se se alguém na fábrica comentaria o fato, mas ninguém o fez. O único comentário surgiu três dias depois, quando recebeu um telefonema de Nick. Nessa noite, faria um vôo de entrega de correio para San Diego e podia ir vê-la na manhã seguinte. Era sábado e Cassie estava livre para passar o dia com ele. Tinha um baile de caridade, onde iria nessa noite com um dos jovens amigos de Nancy, mas, por Nick, cancelaria tudo.

- Então! O Williams está a atirar-se a ti ou és tu que estás a apaixonar-te por ele? - perguntou sem cerimônias, depois de lhe dizer que iria ter ao apartamento assim que chegasse de San Diego.

 - O que queres dizer com isso? - Ficou aborrecida com a afirmação.

- Estive ontem em Chicago, Cass. Vi a fotografia dos dois no jornal. Muito romântico... - Havia uma expressão cortante na sua voz que ela nunca ouvira e não gostava.

- Eu trabalho para ele e levou-me a jantar. Foi só isso. Tem tanto interesse em mim como nos engenheiros dele. Portanto, pára com isso.

- Acho que estás a ser ingênua, e aquela roupa não era exatamente trajo de trabalho.

Estava zangado e enciumado e com pena de o pai a ter deixado ir para ali. Os vôos que Cassie fazia para Williams eram demasiado perigosos. Todavia, não estava apenas incomodado com os vôos, mas com a expressão do rosto de Desmond ao olhar para ela.

- Foi apenas um jantar de negócios, Nick. Apenas tentou ser simpático. Provavelmente estava profundamente aborrecido. Acredites ou não, aquela é a minha roupa de trabalho. - Referia-se ao vestido negro justo que trazia. - A minha dama de companhia compra-me tudo e depois faz-me sair todas as noites, como se eu fosse um cão amestrado, para que me mostre e me tirem fotografias. Chamam-lhe relações públicas.

- Isso não me soa a trabalho ou a pilotagem.

Ele estava consumido de ciúmes e com o fato de não a ver há mais de um mês. Estava louco para a ver, mas Cassie ainda não tivera tempo para ir a casa. Ficara chocado quando descobriu as saudades que tinha dela. Era como se tivesse perdido um braço ou uma perna ou o seu melhor amigo, e não gostava da idéia de Williams a levar a jantar.

- Falaremos disso quando chegares - disse ela calmamente, parecendo mais adulta do que em casa. já mudara, mas não se apercebera. Também já adquirira parte da educação social de uma grande cidade. - Quanto tempo podes ficar?

- Tenho de voltar às seis horas. Preciso de voltar com mais correio.

Ela ficou imediatamente desiludida, pois não teria nenhuma desculpa para cancelar o baile de beneficência para crianças com paralisia infantil.

- Faremos o melhor que pudermos. Tenta chegar cedo.

- Tão cedo quanto puder, miúda. Não estou a pilotar um dos teus aviões.

- Não precisas deles. Com a tua habilidade podias pilotar caixas de ovos e conseguir melhor do que aquilo que vejo aqui - disse calorosamente.

- Pára de lisonjear um velho - contrapôs Nick com uma expressão mais suave do que no início do telefonema. - Até amanhã.

Ela mal podia esperar e, como era hábito, estava levantada às três e meia, ansiando pela sua chegada. O tempo parecia não passar até ele tocar à campainha, às sete e um quarto da manhã. Cassie desceu as escadas a correr e atirou-se para os braços de Nick com tanta força que quase caíram os dois. Ficou muito impressionado com a sua beleza e com a força do seu afeto. Ela também tivera saudades dele, mais do que imaginara. Tivera saudades das suas confidências, das longas conversas e dos vôos.

- Eh! Espera um pouco. Dá-me uma oportunidade antes de me sufocares. - Ela estava a beijá-lo e a abraçá-lo como uma criança perdida que finalmente encontrara os pais. - Está tudo bem! Está tudo bem! - Cassie estava agarrada a Nick de lágrimas nos olhos, e este abraçava-a com muita força, desejando não ter de a largar nunca. Nick nunca a vira tão bonita e ela nunca se sentira tão bem nos seus braços. Teve de se forçar a afastar-se e a largá-la, pois gostaria de ficar assim para sempre. - Estás muito bonita! - Nick sorriu. Reparou no corte de cabelo, na maquiagem, e nas calças cremes e na sweater branca que ela usava. Parecia-se bastante com a Hepburn ou a Hayworth. - Não pareces ter estado a sofrer - disse ele para a arreliar. Depois assobiou quando viu o apartamento. - Meu Deus! E ainda se diz que as pessoas passam mal.

- Não é fantástico? - perguntou Cassie, radiante, mostrando-lhe a casa. Nick ficou muito impressionado, mas lembrou-se que aquela era a menina que conhecia desde bebê e não uma estrela de cinema que acabara de conhecer. Aquela era a filha de Pat O'Malley.

- Parece que te saiu a sorte grande, Cass - disse, pensando que ela o merecia. Não havia motivo para que ela não tivesse tudo aquilo. No entanto, Nick ainda estava preocupado. Eles tratam-te bem?

- Fazem tudo por mim. Compram-me o vestuário, alimentam-me e tenho uma criada que é a pessoa mais amorosa que conheço. Chama-se Lavinia. Tenho uma dama de companhia, chamada Nancy, que me compra a roupa e me trata de tudo, como todos os acontecimentos sociais onde devo estar presente, de todos os acompanhantes e das pessoas que conheço. - Cassie continuou a falar e Nick olhou para ela com uma expressão estranha.

- Os teus acompanhantes? Eles marcam-te compromissos com homens? - Estava espantado e muito desagradado, enquanto ela lhe servia o pequeno-almoço que fizera.

- Mais ou menos, mas não é bem isso. Muitos deles não são realmente... quero dizer, não gostam de mulheres, mas são amigos ou conhecidos da Nancy. Outros são atores que precisam de ser vistos e nós... eu... nós vamos a eventos sociais ou festas e tiram-nos fotografias juntos. - Parecia envergonhada ao explicar a situação, pois era a parte do seu trabalho de que gostava menos, mas, depois da explicação de Desmond na noite em que saíram, estava a tentar aceitar o fato. - Eu não gosto, mas é importante para Desmond.

- Desmond? - Nick levantou uma sobrancelha enquanto comia os ovos que ela lhe estrelara. Estavam deliciosos. Mas a súbita menção de Williams em termos tão familiares fê-lo parar de comer.

- Ele acha que as relações públicas são o aspecto mais importante de um negócio.

- E os vôos? São importantes ou nem consegues pilotar?

- Vá lá, Nick. Sê justo. Tenho de fazer o que me pedem. Olha para tudo isto. - Ela apontou para a espaçosa e moderna cozinha e para o resto do apartamento. - Olha o que eles estão a fazer por mim. Se querem que eu saia e tire fotografias, devo-lhes isso. Não é nada do outro mundo. - Mas ele ouvia-a com um ar zangado.

- Isso é treta e tu sabes disso. Não vieste para aqui para ser modelo ou para freqüentar uma escola de aperfeiçoamento, Cass. A única coisa que lhes deves é arriscar a vida a testar os aviões e bater os recordes que consigas. É isso que lhes deves. O resto é contigo ou, pelo menos, deveria ser. O Williams não é teu dono. Ou é?

Nick olhou-a com um ar desconfiado, mas ela abanou a cabeça. Ele fê-la sentir vergonha por concordar com o plano, Mas sentia realmente que lhes devia isso e compreendia o que Williams desejava. Queria que ela se tornasse uma estrela para lhe proporcionar uma grande carreira na aviação e para fazer publicidade aos aviões. Não considerava que fosse propriamente um erro, pois as outras mulheres aviadoras também tinham passado pelo mesmo. Fazia o que era necessário fazer.

- Não acho que estejas a ser justo - disse com calma.

- Acho que estás a ser usada e isso enfurece-me - retorquiu Nick, empurrando o prato e tomando um gole de café. - Ele quer usar-te, Cass. É óbvio.

- Não é verdade. Ele quer ajudar-me, Nick. Mal cheguei e já fez muito por mim.

- O quê? Levar-te a dançar uma noite? Quantas vezes fez isso?

Apenas uma vez. Estava a ser simpático. Tentava explicar-me como são importantes os acontecimentos de caráter social, pois a Nancy disse-lhe que eu os detestava.

- Bem! Pelo menos já sei que não foste completamente levada. Quantas vezes saíste com ele? - perguntou Nick sagazmente e Cassie fixou-o quando respondeu.

- Já te disse que só saí com ele uma vez e ele foi educado e respeitador. Um perfeito cavalheiro. Dançou comigo duas vezes e acontece que na segunda vez nos tiraram uma fotografia.

- Suponho que isso foi um acidente.

Nick ficava maravilhado com a sua inocência. Era tudo tão óbvio para ele. Ao princípio, pensara que seria uma grande oportunidade, mas apenas se o seu alvo principal fosse voar. Todo aquele disparate social, sair e cortejar a imprensa, dizia-lhe algo de muito diferente. Dizia-lhe que Williams estava a usá-la num sentido bem mais lato e Nick sabia que Cassie era demasiado jovem para o entender. Que mais quereria Williams? Quereria Cassie para si próprio? Com a sua juventude e ingenuidade, ficaria inevitavelmente inebriada, e subitamente Nick entendeu que também não gostava dessa possibilidade. Cassie era demasiado jovem para estar envolvida com um homem como aquele. Além disso, Desmond Williams não a amava. Nick dissera tudo isso a Pat e até sugerira que Williams poderia ter desígnios desapropriados para ela, tentando avisar Pat do fato. Mas o pai estava sob a magia de Oona, que estava completamente siderada por ver a filha em documentários cinematográficos. Pat nunca faria nada que interferisse. Cassie estava segura, bem e, pelo que dizia nas cartas, era tratada como uma rainha. Se até tinha uma dama de companhia, como é que as coisas poderiam ser impróprias? Além disso, pagavam uma enorme soma. Que mais queria ela?

- Não percebes que... - pressionou Nick - ... ou o fulano está apaixonado por ti ou então montou todo este estratagema para que todos o pensassem, levando-te a um sítio onde pudesses ser vista e fotografada. Provavelmente, informou-os de que vocês estariam naquele restaurante. Assim, toda a América fica com mais do que um rosto bonito. Fica com um romance. O elegante milionário corteja a querida do midwest americano e ás da aviação Cassie O'Malley. Cassie acorda! O homem está a usar-te e é muito bom nisso. Está a resultar. Vai transformar-te num grande nome até apenas vender os aviões. E depois? - Era isso que preocupava Nick. E se casassem? Ficava doente só de pensar nisso, mas nada é o problema? O que há de errado nisso? - Cassie não via todos os perigos que Nick via.

- Ele está a fazer tudo por si próprio e pelo negócio. Não é por ti. Não está a ser sincero. Está-se nas tintas. Para ele isto é negócio. Está a explorar-te, Cass, e isso assusta-me. - Tudo em Williams e os aviões de Cassie o assustavam.

- Porquê? - Era isso que ela não entendia. Por que razão estava Nick contra? Por que motivo suspeitava tanto de Desmond Williams? Só lhe proporcionara coisas boas, mas Nick via outros perigos.

- Olha o que aconteceu à Earhart. Tornou-se demasiado grande e fez algo que nunca devia ter feito. Muitos pensavam que ela não era capaz de fazer aquela última viagem e foi óbvio que não era. O que acontecerá se Williams te fizer o mesmo? E não será exatamente isso que pretende? Tu sairás magoada, Cass.

Sentiu o coração apertado ao pensar nisso, e tudo o que desejava era levá-la para Good Hope, onde sabia que ela estaria segura para sempre.

- Ele não está a fazer isso, Nick. juro. Que eu saiba, não tem planos para mim. De qualquer modo, sou melhor piloto do que Earhart. - Era uma coisa horrível de dizer e riu-se ao dizê-lo. Mas Nick levou-a a sério enquanto a observava. Ela ficara ainda mais bonita naquele mês em que não a vira e nem o sabia.

- De fato, és mais rápida. De qualquer modo, não sabes quais são os planos de Williams. Ele não faz nada sem receber algo de grande em troca. Deve ter em mira um grande acontecimento.

- Talvez tenhas razão - retorquiu Cassie com reservas. Talvez tivesse em mente uma volta ao mundo. - Se ele disser alguma coisa, eu digo-te. Prometo.

- Tem cuidado.

Nick franziu o sobrolho, ainda preocupado, e acendeu um cigarro. Ela fechou os olhos e sentiu o aroma familiar dos seus Camel. Faziam-na lembrar o aeroporto do pai, Nick e os velhos tempos em que se encontravam na pista de Prairie City. Só o fato de estar ali sentada com ele causava-lhe saudades de casa, dele e de todas as pessoas que amava. Mas, acima de tudo, sentia saudades de Nick.

No fim, ele descontraiu-se e gozou o fato de estar finalmente com Cassie. Estar longe tanto tempo quase o levara à loucura. Dia após dia, pensara nas novas intrigas que Williams pudesse estar a chocar para a explorar. Parou de a aborrecer com os possíveis planos de Williams em relação a ela e com o fato de Cassie estar a ser usada, e tiveram uma tarde agradável. Deram um longo passeio na praia, depois sentaram-se na areia, sob o sol de Agosto, a olhar para o oceano. Sabia bem estarem de novo ali sentados, lado a lado, e mantiveram-se muito tempo em silêncio.

- Vai haver uma guerra na Europa em breve - disse ele à laia de profecia, quando começaram novamente a conversar. - Os sinais são tão claros como o Sol - acrescentou com um ar infeliz. - Não conseguem controlar Hitler. Terão de o fazer parar.

- Achas que entraremos? - Adorava falar com ele sobre política. Não tinha ninguém com quem conversar. Estava demasiado só e ocupada. Nancy falava com ela sobre roupa, e os acompanhantes apenas pousavam para fotografias.

- A maioria das pessoas pensa que nós não entraremos, mas acho que será inevitável.

- E tu? - Ela conhecia-o bem. Demasiado bem. Pensou se o que Nick estava a tentar dizer era que sentia a mesma atração que sentira há vinte anos. Cassie esperou que não fosse isso. - Irás?

- Provavelmente estou demasiado velho. - Tinha trinta e oito anos e não era nada velho. Mas, se quisesse, poderia ficar em casa. Pat estava demasiado velho para entrar noutra guerra, mas Nick tinha outras hipóteses. - Se calhar, até ia. - Sorriu-lhe, com o cabelo a voar com o ar do mar. Estavam sentados na areia, lado a lado, e os ombros e mãos tocavam-se. Era muito reconfortante tê-lo ao pé de si. Confiara e aprendera muito com ele durante muito tempo. Sentia mais saudades de Nick do que de qualquer outra pessoa, enquanto este descobrira que a ausência de Cassie era como uma dor física que ainda não desaparecera.

- Não quero que vás - disse ela com um ar triste, olhando para os olhos azuis que conhecia tão bem, com os pequenos pés-de-galinha nos cantos. Não conseguia suportar a idéia de os perder. Queria fazê-lo prometer que não iria para outra guerra na Europa.

- Não conseguiria suportar que te acontecesse alguma coisa, Nick. - Cassie disse-o tão suavemente que Nick mal a conseguiu ouvir.

- Todos os dias corremos os mesmos riscos - afirmou ele honestamente. - Tanto tu como eu podemos ter um acidente amanhã. Acho que ambos o sabemos.

- Isso é diferente.

- Não completamente. Também me preocupo contigo. Pilotar aqueles aviões é um negócio arriscado. Estás a lidar com altas velocidades, máquinas pesadas e motores alterados a altitudes não habituais. Andas a detectar problemas e a tentar estabelecer recordes. Maior perigo do que esse não existe - disse ele taciturnamente. - Estou sempre a pensar que vais despenhar-te num desses aviões de teste. - Nick olhou para ela com uma expressão séria e ambos reconheceram o perigo. - Além disso, o teu pai diz que as mulheres não sabem pilotar. Ele sorriu e Cassie riu-se.

- Obrigada.

- Eu conheço o péssimo instrutor que tiveste.

- Claro. - Sorriu e tocou-lhe o rosto com os dedos. - Tenho muitas saudades tuas e dos dias em que saíamos e ficávamos a conversar na pista.

- Eu também - afirmou ele num tom baixo, enrolando os dedos nos dela. - Foi uma altura muito especial. - A jovem acenou com a cabeça e nenhum abriu a boca durante bastante tempo.

Caminharam pela praia, falando sobre a família e os amigos. O irmão não voava desde o festival, e o pai parecia não se importar. Chris estava muito ocupado com os estudos.

Colleen estava novamente grávida e Cassie achava que era um poço sem fundo. Bobby começara a sair com Peggy Bradshaw. Esta estava viúva e sozinha com dois filhos e Nick vira-o mais do que uma vez a caminho da sua pequena casa.

- Será a mulher ideal para ele - disse Cassie, querendo ser justa, mas surpreendida com o pouco que sentia por Bobby. Era espantoso, pois tinham estado noivos durante um ano e meio, o que nunca deveria ter acontecido. - Agora Peggy detestará a aviação tanto como ele - referiu tristemente, recordando o terrível acidente ocorrido durante o festival aéreo. Fora horrível.

- Tu terias sido muito infeliz com Bobby - afirmou Nick, olhando para ela com uma expressão de posse. Só queria ficar ali para a proteger e não a deixar ser usada ou posta em perigo.

- Eu sei. Acho que já sabia nessa época. Apenas não sabia como sair sem o ferir. Pensei realmente que tinha de casar com ele. Não sei o que vou fazer - disse olhando para o horizonte. - Um destes dias, todos vão querer que eu cresça e que saia dos céus. Que farei então, Nick? Acho que não o suportarei.

- Talvez consigas arranjar uma maneira de ter as duas coisas ao mesmo tempo: uma vida normal e voar. Eu nunca as tive, mas tu és mais esperta do que eu. - Era sempre honesto com ela. A maior parte dos aviadores optava e ele fizera a sua opção. De momento, Cassie também.

- Não percebo por que motivo não podes ter ambas as coisas, mas mais ninguém parece acreditar nisso.

- Não é uma grande vida para os companheiros, e a maioria das pessoas é suficientemente esperta para o saber. O Bobby foi e a minha mulher também.

- Sim - disse ela acenando a cabeça. - Acho que sim.

Depois, voltaram para o apartamento e continuaram a conversar. Nick prometeu dizer à mãe tudo sobre onde ela vivia. Depois, levou-o ao aeroporto. Entrou com ele no Bellanca que conhecia tão bem e quase chorou. Era como se voltasse para casa. Ficou ali sentada durante muito tempo, depois, finalmente, saiu, quando ele já estava na pista.

Nick olhou-a com o sorriso que ela conhecia e amara toda a vida e teve vontade de chorar e de suplicar que a levasse com ele. Mas eles tinham as suas vidas. Nick precisava de voltar para Illinois e ela assinara um contrato com Desmond Williams. A maioria das pessoas teria dado a vida pelo que lhe fora proporcionado, mas parte dela desejava desistir de tudo e voltar para casa, onde tudo era mais simples.

- Toma conta de ti, miúda. Não os deixes tirar muitas fotografias.

Ele sorriu-lhe. Ainda não confiava naquilo que Williams teria na manga. Porém, depois de a ver, sentia-se melhor em relação a Cassie. Esta tinha a cabeça bem assente nos ombros e não seria esmagada por ninguém. Também não parecia estar apaixonada por Desmond Williams.

- Volta em breve Nick.

- Tentarei. - Olharam-se durante muito tempo. Tinha muito para lhe- dizer, mas não era o momento.

- Diz olá a todos. À mãe, ao pai, ao Chris e ao Billy. - Estava a tentar arrastar o tempo, desejando que ele ficasse, mas sabia que Nick não podia.

- Está bem. - Ele olhou para a jovem, querendo levá-la consigo. Há muito que desejava fazê-lo, mas agora sabia que nunca o faria. Não estava nos seus destinos. Tudo o que precisava de fazer era aceitar o fato. - Vê lá se não foges com Desmond Williams. Irei atrás de ti se o fizeres. É claro que a tua mãe é capaz de me dar um tiro por destruir a tua grande oportunidade.

- Diz-lhe que não se preocupe. - Cassie riu-se. Era algo que tinha a certeza que nunca ocorreria. - Diz-lhe que a amo. - Enquanto ele acelerava os motores, teve de o dizer. - Amo-te, Nick. Obrigada por teres vindo.

Ele acenou com a cabeça, querendo dizer-lhe que também a amava, mas não o fez. Cumprimentou-a, fez-lhe sinal para recuar e alguns minutos mais tarde, circulava preguiçosamente sobre o aeroporto de Pasadena. Cassie observou-o até ele parecer apenas um pequeno ponto no horizonte.

 

Exatamente duas semanas depois de Nick ir a Los Angeles, a Alemanha invadiu a Polônia e o mundo ficou horrorizado com a destruição causada por Hitler. Dois dias depois no dia três de Setembro, a Grã-Bretanha e a França declararam guerra à Alemanha. Finalmente acontecera. A Europa estava em guerra.

Cassie telefonou para casa quando soube, mas Nick tinha saído e o pai fora levar uns passageiros a Cleveland. Nesse dia almoçou com Desmond, que tinha falado com o presidente dos Estados Unidos de manhã. Não havia dúvida: os Estados Unidos estavam a planejar ficar de fora. Fora um alívio ouvir aquilo.

- Ela disse-lhe que queria ir a casa, e Desmond emprestou-lhe um dos seus aviões particulares durante o fim-de-semana. Desde julho que estava a planejar ir a casa passar um fim-de-semana, mas ainda não tivera tempo. Aquela oportunidade era perfeita e ninguém objetou.

Cassie aterrou no aeroporto do pai na sexta-feira à noite. Saíra de Los Angeles ao meio-dia e chegou a Good Hope às oito e meia, hora local. Não estava lá ninguém, mas ainda era dia quando aterrou na longa pista leste-oeste e deslizou até parar. Estacionou o avião e encaminhou-se para o velho caminhão que o pai mantinha ali, Não avisara ninguém da sua chegada. Queria surpreendê-los e conseguiu. Entrou em casa depois das nove horas da noite. Os pais já estavam na cama e a mãe quase desmaiou quando ela saiu do quarto em camisa de noite, na manhã seguinte.

- Oh, meu Deus! - gritou a mãe. - Pat! - Este saiu a correr do quarto e sorriu quando a viu.

- Olá, mãe! Olá, pai! Pensei fazer-vos uma visita. - Cassie sorria radiosamente para eles.

- Tu és muito manhosa. - O pai abraçou-a com um largo sorriso, a mãe fez-lhe um enorme pequeno-almoço e acordou Chris que ficou muito contente de a ver.

- Como é que te sentes como estrela de cinema? - disse o pai para a arreliar. Ainda não sabia se deveria aprovar ou> não, mas toda a gente na cidade pensava ser uma grande coisa, o que era difícil de ignorar.

- O Nick diz que vives num palácio - disse a mãe enquanto mirava Cassie atentamente. Parecia saudável e bem e, para além do belo corte de cabelo e de umas unhas vermelhas maravilhosamente tratadas, não parecia diferente.

- É uma casa muito bonita - concedeu Cassie com um sorriso. - Estou contente por saber que ele gostou.

Sentaram-se durante algum tempo a falar da sua vida em Los Angeles, depois vestiu-se e foi com o pai para o aeroporto. Estava feliz por ver todos os seus velhos amigos e Billy largou um grande grito de alegria quando a viu. Vestiu um macacão velho e foi trabalhar com ele num dos aviões. Meia hora mais tarde ouviu o velho caminhão de Nick a chegar. Olhou para cima e esboçou um sorriso. No entanto, só à hora de almoço é que ele foi ao hangar vê-la. Achou que devia estar ocupado e que o veria em breve, mas estava feliz só por saber que estava perto dele.

- Aqui começa-se a trabalhar tarde - disse ela quando o viu. - Todos os dias às quatro da manhã eu já estou a catorze mil pés de altitude.

- Sim? E como é que vais à cabeleireira? - perguntou Nick a sorrir e obviamente deliciado com a sua presença. Os seus olhos dançavam e o coração batia com força enquanto a olhava. Os seus sentimentos estavam a começar a preocupá-lo. O fato de Cassie estar a viver na Califórnia talvez fosse bom nesse aspecto. Ultimamente, estava a ser cada vez mais difícil controlar o que sentia por ela.

- Muito engraçado.

- Ouvi dizer que os fulanos da Movietone estarão aqui às três horas. - Sorriu para Billy e para dois dos outros homens. - É melhor vestir roupa lavada.

- Será uma boa mudança em ti, Stick - disparou Cassie imediatamente. Nick encostou-se ao avião em que ela estava a trabalhar com Billy e olhou-a com uma expressão de aprovação. Estava muito mais bonita.

- Trouxeste a tua dama de companhia?

- Achei que conseguia lidar contigo sozinha.

- Sim - acenou ele lentamente com a cabeça. - Se calhar até podes. Queres ir comer qualquer coisa? - O convite foi feito num tom de voz pouco habitual nele. Era raro levá-la fosse onde fosse. Normalmente, apenas andavam juntos no aeroporto.

- Claro. - Seguiu-o até ao caminhão e ele levou-a à confeitaria Paoli que tinha uma sala de jantar nas traseiras e faziam uns bons sanduíches e gelado caseiro.

- Espero que sirva. Não é exatamente o Brown Derby.

- Serve. - Cassie estava tão contente por estar com ele que teria ido a qualquer lado e adorado.

Nick pediu sanduíches de carne assada para os dois e um batido de chocolate para ela. Para si só queria café.

- Não faço anos, sabes? - lembrou-lhe. Ainda estava impressionada com o fato de Nick a convidar para almoçar. já nem se lembrava da última vez que o fizera, se é que o tinha feito.

- Achei que estás tão mimada que almoçar nas traseiras do hangar não seria apropriado. - Nick encolheu os ombros, mas estava desesperadamente feliz por a ver. Estavam a meio do almoço, quando notou que ele não estava a comer quase nada. Percebeu então que aquilo não tinha sido apenas um convite para almoçar. Subitamente, Nick ficara pouco à vontade e um pouco preocupado.

- O que se passa, Stick? Roubaste um banco?

- Ainda não, mas estou a pensar nisso. - No entanto, as brincadeiras terminaram ali. Nick olhou-a nos olhos, e Cassie percebeu tudo no momento em que olhou para ele; disse-o ainda antes dele.

- Vais? - As palavras ficaram-lhe entaladas na garganta e o batido imediatamente se lhe azedou no estômago quando ele acenou com a cabeça. - Oh, Nick, não. Não tens de ir. Nós não temos nada a ver com essa guerra.

- A seu tempo teremos. Assim que eles o disserem. Aposto que Williams também o sabe e está a contar com isso. Venderá muitos aviões. Não acredito nessa história de os Estados Unidos ficarem de fora e também não me interessa se ficarem. Eles precisam de ajuda. Vou para Inglaterra para me juntar à RAF. Fiz algumas perguntas e soube que precisam de todos os homens que conseguirem. Tenho o que eles necessitam e ninguém precisa de mim aqui. Não precisam de um gênio para fazer entregas de correio em Cincinnati.

- Mas também não precisam que sejas abatido numa guerra que não é nossa. - Os olhos de Cassie estavam cheios de lágrimas. - O pai sabe?

Nick acenou com a cabeça. Tinha detestado dizer-lho, mas queria ser ele próprio a fazê-lo. Tinha-o dito a Pat no momento em que soube que ela estava em casa e Pat concordara.

- Disse-lho ontem. De qualquer modo ele já sabia. - Olhou para Cassie com uma expressão estranha. - Eu volto, Cass. Ainda tenho muitos anos para fazer este tipo de coisas. Quem sabe? Talvez eu cresça. Há coisas que não fiz na minha vida depois da última guerra.

- Podes fazê-las aqui. Não tens de arriscar a vida para mudar aquilo de que não gostas nela.

- Não gosto da preguiça em que tenho andado nem da calma com que tenho vivido. Apenas passei pelos últimos vinte anos da maneira mais fácil. Passaram tão depressa que me esqueci onde estava. Agora estou a meio caminho e perdi muito tempo. Não voltarei a fazer isso.

Cassie não tinha a certeza do que Nick queria dizer, mas era óbvio que tinha pena de não ter feito certas coisas e de não se ter incomodado com algumas relações. Sempre pensara que havia tempo, mas, de certo modo, faltara-lhe a coragem. Nunca mais quisera casar, gostar demasiado de alguém, envolver-se de mais ou ter filhos. Em terra nunca quisera arriscar nada. Não queria perder, mas não se importava de morrer. Era uma forma estranha de cobardia, peculiar à maioria dos aviadores:  eram corajosos no ar, mas em terra uns covardes tremendos.

- Não vás - sussurrou ela sobre os restos do almoço. Não sabia que dizer para o convencer, mas era tudo o que desejava. Não queria perdê-lo.

- Tenho de ir.

- Não. Não tens! - Levantou a voz e as pessoas viraram-se nas mesas. - Não tens de fazer nada!

- Tu também não - replicou ele subitamente zangado-, mas fizeste as tuas opções de vida. Também tenho o direito de as fazer. Não vou ficar aqui sentado enquanto há uma guerra para travar. - Levaram a batalha para a rua e gritaram um com o outro sob o sol de Setembro.

- Achas que és assim tão importante? Que és o único aviador que fazes bem as coisas? Por amor de Deus, Nick! Cresce! Fica aqui! Não te mates por uma coisa que não é tua nem nossa. Nick... Por favor!

Cassie já chorava e ele não se apercebeu que já estava a abraçá-la e a dizer como a amava. Prometera a si próprio que nunca o faria, mas já não conseguia suportar mais.

- Querida! Não chores, por favor! Amo-te muito, mas preciso de fazer isto. Quando voltar as coisas serão diferentes. Talvez já não sejas a skygirl de Desmond Williams e eu tenha aprendido algo que nunca percebi. Quero muito mais do que tenho agora e nunca percebi como o obter, Cassie.

- Tudo o que tens a fazer é agarrá-lo. É só isso. - Cassie abraçava-o e tudo o que desejava era fugir com ele para qualquer lado e esquecer a guerra, mas agora não havia lugar algum para fugir.

- Não é assim tão simples - afirmou Nick lentamente, olhando para ela. Queria dizer-lhe muita coisa, mas não ousava. Talvez nunca se atrevesse. Não tinha respostas para lhe dar.

Caminharam de mão dada de volta ao caminhão e, quando chegaram ao aeroporto, dirigiram-se ao hangar onde estava o Jenny. Era o avião em que ele a ensinara a voar e ela percebeu imediatamente para onde iam. Cassie subiu para o lugar da frente, por deferência a ele, pois o instrutor sentava-se sempre no assento de trás. Alguns minutos mais tarde, já tinham feito todas as verificações e deslizavam na pista. Pat viu-os levantar vôo e não disse nada. Sabia que Nick já lhe dissera que ia para Inglaterra.

Chegaram à velha pista. Nick deixou-a aterrar e depois sentaram-se por baixo da sua árvore. Ela encostou a cabeça no ombro de Nick, sentados na erva macia a olhar para o céu. Era difícil acreditar que algures havia uma guerra e que Nick iria juntar-se aos combatentes.

- Porquê? - perguntou, desesperada, algum tempo depois, com as lágrimas a rolar-lhe lentamente pelas faces. Ele pensou que o seu coração se iria quebrar enquanto lhe tocava o rosto e ternamente lhe limpava as lágrimas. - Porque é que tens que ir? - Durante todo aquele tempo Nick nunca lhe dissera que a amava e agora ia partir, quem sabe, para sempre.

- Porque acredito no que estou a fazer. Acredito em homens livres, na honra e num mundo seguro. Vou defender tudo isso nos céus de Inglaterra.

- Já o fizeste uma vez. Deixa que outro o faça agora, Nick. Não é problema teu.

- É, sim. Não tenho nada de importante a fazer aqui, mesmo que isso seja da minha responsabilidade.

- Então vais porque estás aborrecido. - Havia sempre um pouco disso em todos os homens. Isso e o espírito de caçador. No entanto, Cassie também sabia que existiam bons motivos. Apenas achava uma loucura ir naquele momento e não queria que lhe pudesse acontecer alguma coisa. Nick jurou que isso não aconteceria.

- Sou demasiado bom para ser ferido - disse ele, arreliando-a.

- Tu voas muito mal quando estás cansado - retorquiu, não acreditando completamente no fato, mas ele riu-se.

- Farei tudo para dormir bastante. E tu? - perguntou de sobrolho franzido. - Estás a pilotar aqueles aviões pesados sobre o deserto e não penses que ignoro os perigos que corres quando os testas. já muitos morreram a fazê-lo e provavelmente voavam melhor do que tu.

Aquela afirmação fê-la lembrar-se do marido de Nancy e acenou com a cabeça. Não podia negar os perigos do seu emprego, mas era muito boa no que fazia, e não havia alemães a disparar sobre ela por cima de Las Vegas.

- Eu tenho cuidado.

- Todos temos, mas por vezes não é o suficiente. Às vezes é preciso um pouco de sorte.

- Por favor, tem sorte - sussurrou ela.

Nick olhou para Cassie durante muito tempo e depois, sem uma palavra, fez o que desejava fazer há muito tempo e nunca ousara. O que nunca tinha permitido a si próprio fazer e julgava que nunca permitiria. Agora, porém, sabia que tinha de o fazer. Não podia ir-se embora sem que ela soubesse como a amava. Inclinou-se com uma profunda gentileza e beijou-a. Ela devolveu-lhe o beijo como nunca fizera com nenhum homem. Aliás nunca houvera nenhum homem. Apenas um rapaz. Agora havia Nick, o homem que ela amava desde sempre.

- Amo-te - sussurrou ele quase sem fôlego, desejando que pudesse haver mais e sabendo que era impossível. - Sempre te amei, sempre te amarei. Quero dar-te tudo, Cass, mas não tenho nada para te dar.

- Como podes dizer isso? - Aquelas palavras quebraram-lhe o coração. - Eu estou apaixonada por ti desde os cinco anos. Sempre te amei. Só precisamos disso. Não quero mais nada.

- Devias ter muito mais do que isso. Devias ter uma casa e filhos. Muita coisa, como tudo o que te deram na Califórnia e que deveriam vir de um marido.

- Os meus pais nunca tiveram grandes coisas e não se importaram. Tinham-se um ao outro e construíram o negócio do meu pai a partir de um monte de terra. Eu não me importo de começar do nada.

- Não poderia permitir que o fizesses e, além disso, o teu pai matava-me. Sou dezoito anos mais velho do que tu.

- E depois? - Cassie não estava impressionada. Tudo em que pensava era no fato de ele a amar e não o queria perder. Nunca, depois de tudo o que já tinham passado.

- Sou um velho - tentou Nick objetar com pouca convicção. - Pelo menos, ao pé de ti. Deverias casar com alguém da tua idade e ter um monte de filhos, tal como fizeram os teus pais.

- Provavelmente enlouqueceria se o fizesse, e nunca quis um rancho de filhos. Um ou dois seria o suficiente. - Com Nick, até a perspectiva de ter filhos não era tão assustadora como pensara.

Ele sorriu-lhe ternamente enquanto a ouvia tentar convencê-lo de algo impossível. Ia para a guerra e Cassie tinha um contrato para pilotar aviões na Califórnia. No entanto, tinha de admitir que gostava do que estava a ouvir. Talvez um dia, mas duvidava. Ele nunca seria esse sortudo ou esse louco Cassie merecia muito mais do que ele podia dar-lhe.

- Adorava dar-te filhos, Cassie. Adorava dar-te tudo que tenho para dar, mas nunca vou ter nada senão um punhado de aviões velhos e uma barraca no aeroporto do teu pai-

- Tu sabes que ele te daria metade de tudo. Ganhaste-o. Mereceste, pois construíste o negócio com ele. Sabes bem que sempre quis que fosses sócio.

- É engraçado. Eu era tão jovem quando comecei que nunca quis ser mais nada para além de empregado. Agora tenho pena. Talvez estejas a fazer o melhor para ti naquele emprego louco, Cass. Faz um monte de dinheiro, poupa-o e volta para o teu lugar com algo para mostrar. Não tenho nada e nunca me importei, a não ser quando cresceste e percebi tudo aquilo que não tinha para te dar. Isso e o fato de eu ter quase o dobro da tua idade e o teu pai, provavelmente, me matar por isso.

- Duvido - disse Cassie sabiamente. Era mais esperta do que Nick no que respeitava ao pai. - Sempre pensei que ele não ficaria surpreendido. Acho que preferia que eu fosse feliz do que casar com o homem errado e ser uma desgraçada.

- Tu devias casar-te com um homem como Desmond Williams - afirmou com uma expressão infeliz, que a fez rir. Ele odiava a idéia, mas Williams tinha muito para lhe dar.

- E tu devias casar-te com a rainha de Inglaterra. Não sejas estúpido, Nick. Quem é que se importa? - Cassie sorriu-lhe, mas ele não estava convencido.

- Importar-te-ás quando fores mais velha. Es apenas uma miúda. Achas que as tuas irmãs ou a tua mãe são felizes sendo pobres?

- A minha mãe não se queixa de nada e acho que é feliz. Se as minhas irmãs deixassem de ter um filho por ano talvez não fossem tão pobres. - Cassie sempre pensara que elas tinham demasiados filhos. Um ou dois parecia sensato, mas Glynnis estava à espera do sexto e Colleen e Megan do quinto. A Cassie sempre parecera excessivo e um pouco assustador.

Nick beijou-a novamente, pensando nos filhos que gostaria de ter tido com ela e que nunca teria. Nunca permitiria a si próprio o comodismo ou egoísmo de casar com Cassie, não importando o amor que lhe tinha, ou talvez precisamente por isso. Ela merecia muito mais.

- Eu amo-te, Nick Galvin. Não vou fugir e não vou deixar que fujas de mim. Vou lá ter para te descobrir, se for preciso. - E Nick sabia que Cassie o faria.

- Não te atrevas. Eu mando-te expulsar de Inglaterra e não te atrevas a deixar que Williams te convença a fazer uma volta ao mundo. Tenho quase a certeza de que é isso que ele pretende. Com a guerra na Europa não estarás segura em lado nenhum: nem no Pacífico nem na Europa. Fica em casa, Cass. Promete-me. - Parecia desesperadamente preocupado e ela acenou com a cabeça.

- Promete tu também - pediu suavemente, beijando-o depois. Nick teve de se controlar ao sentir a paixão de Cassie ir ao encontro da sua. Estava deitado no chão com Cassie nos braços e apenas desejava que aquele momento pudesse ser eterno. - Quando partes? - perguntou ela finalmente com uma voz rouca enquanto se mantinham na mesma posição.

Ele hesitou durante algum tempo e depois respondeu-lhe.

- Daqui a quatro dias.

- O pai sabe? - Sabia que seria difícil para Pat e tinha pena de não poder estar ali para o ajudar.

- Sabe, sim. O Billy disse que tratava das coisas. É um bom rapaz e um belíssimo piloto. Acho que apenas precisa de se afastar do pai. Às vezes, os velhos pilotos tornam a vida difícil aos filhos, mas acho que tu sabes bem disso, não é verdade?

Ela sorriu, pensando nas atitudes do pai, mas ultimamente achava-o mais condescendente.

Sentou-se e olhou para Nick, querendo saber como as coisas estavam entre eles.

- O que é que tudo isto significa, Nick? Nós descobrimos que nos amamos e tu vais-te embora? E agora? O que farei sem ti?

- O mesmo que fazias antes - disse ele finalmente. - Sai e sorri para as câmaras.

- O que é que isso significa?

- Exatamente o que disse. Nada mudou. Tu és livre e eu vou para Inglaterra.

- Tretas! - gritou Cassie. - É só isso? Eu amo-te, tu amas-me, até à vista, adeus. Vou para a guerra, tem uma boa vida e vejo-te quando voltar. Se calhar.

- É isso mesmo. - Nick ficou subitamente com uma expressão endurecida, mas há muito tempo que tomara essa decisão e não voltaria atrás. Por ela.

- E depois o que acontece? Voltas para casa e, se tivermos sorte, encontramo-nos novamente e começamos tudo outra vez?

- Não - disse ele tristemente. - Se tiveres sorte encontramo-nos novamente e tu apresentas-me ao teu marido e filhos se eu estiver fora muito tempo, e se isso não acontecer apenas me apresentas ao teu marido.

- O que é que tu tens? Estás louco ou doente?

Cassie parecia ultrajada ao olhá-lo, desejando subitamente bater-lhe. Que tipo de jogo era aquele? Mas, para ele, aquilo não era um jogo. Há anos que Nick Galvin prometera a si próprio não arruinar a vida de Cassie, apenas pelo fato de a amar.

- Não tens estado a ouvir-me? - Estava a gritar com ela, no seu lugar secreto, e não havia ninguém para os ouvir. Ali estavam à vontade. - Não tenho nada para te dar, Cass, e isso não vai mudar enquanto estiver fora e não irá melhorar quando voltar, a não ser que roube um banco ou tenha sorte em Las Vegas. É muito provável que faças mais dinheiro do que eu.

- Então, vai trabalhar para Desmond Williams - afirmou ela, zangada. Como podia ele ser tão estúpido?

- As minhas pernas não são suficientemente bonitas. Para ele és uma mercadoria. És um gênio a pilotar e bonita. É uma boneca que sabe pilotar. És ouro no banco para ele Cass. Eu sou apenas mais um piloto.

- E a culpa é minha? - disse ela, zangada. - Porquê que estás a vingar-te em mim? Que mal fiz eu para além de ter sorte?

Agora, Cassie já chorava e tremia de raiva e frustração. Porque é que os homens eram tão injustos? Era cansativo ser mulher.

- Tu não fizeste nada. O problema reside no fato de eu nada ter feito nos últimos vinte anos a não ser pilotar um monte de aviões velhos e estar com o teu pai. Diverti-me, fizemos coisas muito boas, sendo a melhor ensinar-te a voar, ou, talvez seja mais correto dizer, ensinar-te a não te despenhares, porque tu ensinaste-te a ti própria. Mas isso não chega, Cass. Não vou casar contigo sem dinheiro no banco e de bolsos vazios.

- És um idiota! - Gritou-lhe por entre lágrimas. - Tens três aviões e construíste um aeroporto ao meu pai.

- Eu posso não voltar, Cass - disse ele calmamente. Havia também essa parte. Não ia deixá-la ali à espera. Com a idade dela não era justo. - Isso é um fato. Posso estar fora durante cinco anos e posso ficar fora para o resto da vida. Vais esperar porquê? Com a vida e oportunidades que tens agora é isso que queres? Esperar por um fulano que tem o dobro da tua idade e que pode deixar-te viúva e sem um tostão antes de começar? Esquece! Esta é a minha vida, Cass. Foi o que eu fiz dela. É isto que quero: apenas voar, sem compromissos nem promessas. É tudo. Esquece.

- Como podes dizer uma coisa dessas? - Cassie estava louca de raiva, mas ele olhava-a tranqüilamente.

- É muito fácil: porque te amo de mais. Quero que saias para o mundo e que sejas muito bem sucedida. Quero que consigas tudo o que puderes, que pilotes tudo em que puderes pôr as mãos, desde que em segurança, e quero que sejas feliz para sempre. Não quero preocupar-me contigo enquanto estiver a voar atrás de algum Kraut, por cima do canal da Mancha.

- És incrivelmente egoísta - disse, irada.

- A maior parte das pessoas são-no - afirmou ele honestamente. - Especialmente os aviadores. Se não fossem não voariam. Não assustariam as pessoas que amam, arriscando a vida todos os dias ou a matar-se perante os olhos daqueles que amam em festivais aéreos. Pensa nisso. Pensa no que fazemos às pessoas que amamos.

- Já pensei nisso e muito. Mas ambos sabemos que isso é uma vantagem. Estamos quites.

- Não, não estamos. Tu tens vinte anos, uma vida inteira à tua frente, e não quero que esperes por mim. Se eu voltar e ganhar alguma coisa enquanto lá estiver, nós falamos.

- Odeio-te - disse Cassie, furiosa, incapaz de o demover. Nick era tão teimoso como ela.

- Calculei que isso acontecesse. Apercebi-me quando te beijei. - Beijou-a novamente, e toda a fúria, raiva e pena explodiram numa onda de paixão que ela também sentiu. Gostaria de ter mudado muitas coisas, mas sabia que não podia. Queria abraçá-la e fazer amor com ela até ambos morrerem de prazer. Mas fez um esforço para a largar antes que fosse demasiado tarde para parar. Esse momento estava cada vez mais perto para ambos.

- Escreves-me? - inquiriu ela um pouco depois, quase sem fôlego.

- Se puder, mas não contes com isso. Não te preocupes se não tiveres notícias minhas. É precisamente isso que eu não quero. Não quero que esperes por mim. É a história de amor mais curta do mundo. Eu amo-te. Fim. E provavelmente nunca deveria ter-to dito.

- Então porque o fizeste? - perguntou com um ar infeliz.

- Porque sou um filho da mãe egoísta e já não conseguia suportar não o dizer. Tinha de lutar comigo próprio para não o fazer cada vez que vínhamos para aqui. E quase morri quando foste para a Califórnia. Há muito que tenho necessidade de to dizer, mas isso não muda nada, Cass. É bom saber, mas vou-me embora.

Continuaram às voltas com a conversa durante muito tempo, mas ela não conseguiu convencê-lo a ficar. Acabaram por voltar para o aeroporto depois de se beijarem durante muito tempo e quase rasgarem as roupas um do outro.

Foi um fim-de-semana longo e triste, mas Cassie passou muito tempo com Nick. Na tarde de domingo, quando partiu, a despedida deixou-a completamente desfeita. O pai tinha-se apercebido do que acontecera e falara com a filha antes de esta partir. No entanto, a conversa não a ajudara muito. Fê-la sentir-se mais perto dele, mas nada mudou em relação a Nick. Estavam apaixonados um pelo outro e ele dizia-lhe para o esquecer. Cassie não o disse ao pai de um modo muito explícito, mas Pat compreendeu.

- Ele é assim, Cass. Precisa de liberdade para fazer aquilo em que acredita.

- A guerra não é nossa.

- Mas ele quer que seja dele e é muito bom nisso. O Nick é um bom homem, Cass.

- Eu sei. - Olhou então para o pai com uma expressão infeliz. - Ele acha que é muito velho para mim.

- E é. Eu preocupava-me com a possibilidade de se apaixonar por ti - admitiu Pat -, mas também penso que seria muito bom para ti. Mas não podemos convencer um homem disso. É preciso que ele o descubra por si próprio.

- Pensa que ficarás zangado com ele.

- O Nick sabe que isso não é verdade. O problema está na cabeça dele. Não vais encontrar respostas agora, Cass. Se tiveres sorte, ele voltará e poderão discutir isso mais tarde.

- E se não volta? - perguntou ela muito consternada.

- Nesse caso, terás sido amada por um bom homem e tiveste muita sorte em conhecê-lo.

Agarrou-se ao pai, achando que as lições que precisava de aprender ultrapassavam as suas capacidades.

Cassie despediu-se da família em casa, e Nick levou-a ao aeródromo. Ajudou-a a preparar o avião e a fazer todas as verificações em terra, admirando a extraordinária máquina que ela trouxera consigo; mas, enquanto Cassie acelerava os motores, puxou-a para si e abraçou-a.

- Toma conta de ti - pediu ela, angustiada. - Eu amo-te.

- Eu também te amo. Agora sê uma boa menina e faz uma boa pilotagem. já percebi porque tens uma dama de companhia - disse ele para a arreliar e ajudar a suavizar o momento. Nesse fim-de-semana, tinham estado, mais do que uma vez, muito perto de perder a cabeça.

- Escreve-me. Manda dizer onde estás - implorou enquanto as lágrimas lhe corriam pela cara abaixo.

Ele apontou para o céu com um sorriso triste. Os olhos de Nick disseram-lhe tudo o que Cassie precisava de saber e não conseguia dizer. Estava a deixá-la e, se voltasse, ninguém sabia o que o futuro contemplava. Não havia promessas nem compromissos. Havia apenas o presente e, naquele momento, naquele preciso momento, amava-a como nunca amara ninguém e nunca mais amaria.

Tem calma, Cass - disse ele suavemente ao afastar-se dela. - Não te deixes ir abaixo. - Nick sorria, mas também tinha lágrimas nos olhos. - Amo-te - sussurrou e afastou-se do avião. Ela olhou para ele durante um longo e doloroso momento com os olhos tão cheios de lágrimas que mal conseguia ver  enquanto deslizava pela pista. Foi a única vez em sua vida em que descolar não fora uma excitação. Balançou as asas em sinal de despedida, e dirigiu-se para oeste enquanto ele a observava.

 

As primeiras semanas depois da partida de Nick foram muito difíceis para Cassie. Estava sempre a pensar nele e tinha de se esforçar para se concentrar noutras coisas enquanto voava. Voava de manhã à noite e, em Setembro, estabeleceu mais dois recordes no Phaeton. Em Outubro, a Polônia caiu definitivamente nas mãos dos Alemães. Cassie sabia que Nick estava no aeródromo de Hornchurch, destacado como instrutor numa unidade de caças. Estava a treinar jovens pilotos para a mesma tarefa que ele desempenhara na última guerra e, até ao momento, não tinha missões. O pai dizia que a idade poderia mantê-lo fora da ação, mas achava pouco provável devido à sua extraordinária reputação. Pelo menos, estava em segurança. Não lhe escrevera, mas tinha contactado com Pat através de outro piloto, o que já era alguma coisa.

A sua vida em Los Angeles tinha a agitação habitual e os fotógrafos e os acontecimentos sociais parecia serem cada vez mais. Porém, Desmond continuava a insistir na sua importância, levando-a a almoçar de tempos a tempos para trocar impressões sobre os aviões e ouvir os comentários de Cassie, que não cessavam de o espantar. Simultaneamente, queria mostrar-lhe a importância das relações públicas. As suas conversas eram quase sempre sobre aviões. Tratava-a com um parceiro de negócios. Havia também um respeito mútuo e, por vezes, ele parecia um pouco mais amigável. Os negócios eram o seu único interesse e, para alguém que tinha um interesse tão forte pela publicidade, Cassie ficava surpreendida com a raridade com que a sua vida pessoal surgia nos jornais.

Continuava a ser muito generoso com ela, dando-lhe uma grande recompensa financeira cada vez que ela estabelecia um novo recorde e encorajando-a ainda a pilotar todos os seus aviões. No dia de Ação de Graças, foi para casa num Williams P-6 Storm Petrel. Era esguio e negro, e Pat ficou completamente estarrecido com a beleza da máquina. Ela subiu com o pai e também convidou Chris, mas este estava muito ocupado. Tinha uma namorada nova em Walnut Grove e não queria desperdiçar tempo no aeroporto. Todavia, Billy estava muito ansioso por subir com ela. Tinha notícias de Nick. Parecia que todos tinham menos Cassie. Estava a tentar provar um ponto de vista, mas há muito que ela compreendera a mensagem. Tudo estava a desenrolar-se exatamente como ele afirmara, apesar das suas súplicas. «Eu amo-te. Adeus. Fim da história.» Cassie nada podia fazer e não sabia se alguma vez o conseguiria. Uma noite falou com Billy sobre o assunto e este disse-lhe que Nick era o homem mais incrível que conhecera, mas epítome de um solitário.

- Eu acho que está louco por ti, Cass. Percebi-o no dia em que vos conheci. Achei que tu também sabias e fiquei surpreendido quando vi que não. Penso que ele tem medo. Não está habituado a ter alguém consigo e deve ter pensado que não voltaria. Nunca te faria uma coisa dessas.

- Ótimo. Então diz que me ama e rejeita-me.

- Ele acha que deves casar com alguém importante em Los Angeles.

- Essa decisão foi muito agradável da sua parte - queixou-se ela, mas não podia fazer nada. Falar com Billy ajudara. Era quase como um irmão, alguém que gostava de voar quase tanto como ela. Estava a planejar ir vê-la a Los Angeles antes do Natal.

Quando Cassie partiu, prometeu voltar nas férias do Natal. Até lá, tinha muito que fazer. Williams ia apresentar dois aviões novos e ela era uma parte importante dessa apresentação. Iria fazer vôos de teste, dar entrevistas e posar para fotografias. No entanto, achou que, pelo Natal, o pior já teria passado. Desmond já concordara em dar-lhe uma semana de férias entre o Natal e o Ano Novo.

Os Russos invadiram a Finlândia no dia em que ela regressou do feriado, sendo óbvio que as coisas não iam bem na Europa. isso preocupava-a por causa de Nick, mas, com o trabalho que tinha, mal conseguia ter tempo para se manter a par das notícias.

Ficou aliviada por saber que, de momento, Nick era apenas um instrutor.

Quando Billy a foi visitar em meados de Dezembro, levou-o nos seus melhores aviões. Ele ficou completamente atordoado com o que Cassie andava a pilotar.

- Vocês têm grandes máquinas, Cass.

Os seus olhos brilharam como uma árvore de Natal quando viu a variante de patrulha marítima que Williams desenvolvera a partir de um outro transporte, indo buscar inovações ao fabuloso barco de corrida de Howard Hughes.

- Se quisesses, dar-te-iam emprego como piloto de testes - sugeriu ela. Mas, se ela o atraísse, o pai ficaria decerto muito zangado. Billy sabia que Pat agora só o tinha a ele.

- Nunca o deixaria - sorriu Billy. - Ficarei feliz se, de vez em quando, trouxeres para casa um destes meninos.

Entretanto, Cassie apresentou-o a Desmond Williams e, no dia em que almoçaram no escritório, disse-lhe que Billy era um piloto extraordinário. Desmond mostrou algum interesse nele, mas o seu verdadeiro interesse era Cassie. Não podia imaginar outro piloto que voasse tão bem como a jovem. Também falaram bastante sobre a guerra na Europa. Williams esperava vender aviões para o estrangeiro e, tal como Nick, achava que os Estados Unidos acabariam por se envolver.

- Penso que seremos obrigados a entrar por vergonha em relação aos Aliados - disse calmamente. Na última guerra acontecera exatamente o mesmo.

- Tenho um amigo em Inglaterra - admitiu Cassie, um dia. - Está destacado como instrutor na RAF. Está em Hornchurch. - Era um daqueles raros dias em que falavam sobre alguma coisa que não fosse negócio.

- Parece ser um homem nobre - comentou Desmond, enquanto um criado lhes servia café no seu escritório.

- Não. É apenas outro louco como todos nós - disse Cassie com um ar pesaroso, e ele riu-se. Ambos sabiam que os pilotos eram uma raça especial.

- E você, Cass? Não tem idéias grandiosas e planos nobres? Desde que aqui está já conseguiu muito. Isso não lhe traz grandes idéias?

Ela não tinha a certeza do que Desmond queria dizer, mas parecia ter uma idéia que ainda não estava preparado para discutir.

- De momento, não - afirmou honestamente. - Sou feliz aqui. Você tem sido muito para mim, Desmond.

Ele não pôde deixar de reparar que ela crescera muito durante aqueles cinco meses em Los Angeles. Estava com um aspecto mais sofisticado e polido, o que se devia, em parte, à ajuda de Nancy. No entanto, Cassie já tinha as suas próprias idéias em relação ao vestuário. Lidava lindamente com a imprensa, e o público adorava-a. Para o gosto de Desmond, a maior parte ainda não a conhecia, mas na Primavera ele queria que Cassie começasse a fazer uma ronda aos festivais aéreos locais. Por vezes, ela perguntava a si própria que diferença faria esse tipo de publicidade, se realmente fazia com que os aviões se vendessem. A maioria dos festivais parecia demasiado local e de pequena escala, mas era importante para Desmond, que lhe recordou esperar que ela fizesse uma ronda a vários hospitais e orfanatos para o documentário de Natal.

- Deverá ter tempo para isso antes de ir para casa - disse ele firmemente.

- Não se preocupe. Eu trato disso.

Ela sorriu-lhe e foi correspondida. O olhar de Cassie era sempre malicioso, o que ele achava atraente. Sabia que a jovem discordava das suas idéias publicitárias e estava sempre à espera que ela o contrariasse. Mas, no fim, Cassie sempre fazia o que era esperado dela.

- A propósito. Em janeiro você vai a Nova Iorque - disse ele casualmente, mas, daquela vez, com um brilho nos olhos. - Será um encontro entre a rainha da carlinga, Cassie O'Malley, e o ilustre Charles Lindbergh.

Cassie sabia que o pai ficaria muito emocionado quando lhe desse a notícia. Até ela se sentia muito impressionada, enquanto ouvia as explicações de Desmond.

Levariam o mais recente avião de Williams, e Cassie faria um vôo de demonstração para Lindbergh. Depois, ele endossaria tanto o piloto como o avião. já o prometera a Desmond, pois eram velhos amigos. Tal como Desmond, Charles Lindbergh conhecia o valor das relações públicas. Além disso, Lindy estava interessado em conhecer a lendária e jovem piloto de Williams.

Cassie conseguiu fazer a planejada ronda dos hospitais, e Desmond ficou bastante contente com o resultado do documentário. Depois, Cassie foi para casa durante uma semana. A mãe estava com gripe, mas conseguiu levantar-se a tempo para fazer o jantar de Natal. O pai estava em forma. Billy também fora visitar o pai a São Francisco, e Chris andava tão envolvido com a nova namorada de Walmit Grove que ela não tinha com quem divertir-se. De qualquer modo, estava feliz. Deu um longo passeio na véspera de Natal e, à noite, foi à igreja com as irmãs. De regresso, parou no aeródromo para verificar o avião. Sentia-se sempre muito responsável pelos aviões que trazia para casa, pois eram muito valiosos e não lhe pertenciam. Mas era divertido pilotá-los.

Cassie confirmou se tudo estava em ordem, se as janelas estavam fechadas e se o motor estava protegido. O pai abrira o seu melhor hangar para arrumar o avião e ela sabia que os amigos viriam ver a máquina que trouxera para casa. Pouco a pouco, estava a tornar-se uma lenda.

Depois de verificar o avião, caminhou lentamente através do ar noturno, que estava frio e vivificante, havendo neve no chão. Fazia-lhe lembrar Natais da sua infância em que viera para o aeroporto com Nick e o pai. Era difícil não pensar nele ali. Nick fazia parte de muitas das suas recordações. Olhou para o céu, pensando nele, e quase deu um pulo quando ouviu uma voz atrás de si a sussurrar: «Feliz Natal.» Virou-se para ver quem era e ficou muito admirada quando o viu ali, em uniforme. Era como uma visão.

- Oh, meu Deus! - Cassie olhou para ele, descrente. - O que estás a fazer aqui? - perguntou ela a Nick, quase sem fôlego, atirando-se para os seus braços.

- Devo ir-me embora? - perguntou com um sorriso, parecendo ainda mais bonito do que era enquanto a abraçava.

- Não. Nunca mais - respondeu Cassie enquanto se abraçavam. Ele nunca se sentira tão feliz como naquele momento em que a beijou.

Foram dias maravilhosos. Falaram, riram, voaram, deram longos passeios, foram patinar para o lago, e até ao cinema ver Ninotchka, com a Garbo. Tudo parecia um sonho. O tempo em que estavam juntos era precioso, curto e idílico. Se bem que se sentassem, beijassem e abraçassem durante horas, ele não queria que ninguém soubesse como as coisas tinham mudado entre eles.

- O meu pai já sabe. Que diferença faz? - Como sempre foi muito objetiva, mas ele era persistente e estava convencido de que tinha razão.

- Eu não quero arruinar a tua reputação.

Por me beijares? Como se pode ser tão antiquado? --Não importa. O mundo inteiro não precisa de saber que te apaixonaste por um velho.

- Prometo não lhes dizer a tua idade.

- Obrigado.

Como habitualmente, Nick era muito teimoso. Não havia laços, promessas ou futuro à sua frente. Havia apenas o presente e a infinita beleza e dor do momento. Beijavam-se sempre que estavam sozinhos e controlava-se para que não fosse mais longe. A última coisa que ele queria era deixá-la grávida.

Na véspera da partida, Nick abordou o assunto da guerra. Disse que as condições em Inglaterra eram boas e, até agora, ainda não voara numa única missão.

- Eles provavelmente nunca me deixarão voar em missão por causa da idade e ter-me-ás de volta são e salvo no fim da guerra. Verás que te arrependes, minha amiga - avisou ele. Mas aquilo era tudo o que Cassie almejava.

- E depois? - Ela tentou encostá-lo à parede, mas Nick não permitiu.

- Depois, convenço-te a casar com Billy, coisa que deverias fazer por iniciativa própria e não com um velho bode como eu.

Aos trinta e oito anos, Nick não era um velho, mas, independentemente do que sentia, ainda estava convencido de que era demasiado velho para Cassie. Por vezes, perguntava a si próprio se sentiria de maneira diferente se não a tivesse conhecido de fraldas.

- Eu não amo o Billy - explicou ela com um sorriso enquanto caminhavam junto ao lago.

- Isso não tem a menor importância. De qualquer modo, terás de casar com ele.

- Obrigada.

- Não tens de quê.

- Achas que o devemos avisar? - Cassie adorava estar com Nick, pois fazia-a rir, mesmo quando a fazia chorar, o que ultimamente acontecia com demasiada freqüência.

- A seu tempo. É melhor deixar o rapaz descansado durante algum tempo. Além disso, poderia fugir se soubesse.

- É muito lisonjeiro da tua parte.

Ela deu-lhe um empurrão que quase o fez tropeçar no gelo. Nick devolveu-lhe o empurrão e, alguns minutos mais tarde, já rolavam na neve aos beijos.

Foram dias perfeitos que acabaram demasiado depressa. Quase tão depressa como tinham começado. Cassie levou-o a Chicago para apanhar o comboio para Nova Iorque, de onde regressaria a Inglaterra.

- Terás possibilidade de voltar em breve? - perguntou-lhe enquanto esperavam pelo comboio na Union Station.

- Não sei. Terei de ver o que acontece quando chegar a Hornchurch. - Ela acenou com a cabeça em sinal de compreensão.

Mais uma vez não houve promessas. Apenas lágrimas e o sentimento doloroso de saber que ele poderia não voltar e que aquela poderia ser a última vez que o via. Beijou-a uma última vez antes de partir. Ela correu ao lado do comboio até poder e, quando o perdeu de vista, ficou sozinha na estação.

Foi um vôo solitário até Good Hope; no dia seguinte regressaria a Los Angeles. Sentia umas saudades loucas dele e estava cansada de sofrer com a preocupação de não saber se Nick estava bem, se voltaria ou se alguma vez encontrariam uma maneira de estar juntos. Perguntou a si própria se ele alguma vez superaria as objeções em relação à diferença de idades, mas era muito difícil saber o que o futuro lhes destinava.

Em janeiro, foi para Nova Iorque com Desmond no avião novo, para fazer a demonstração a Charles Lindbergh. Apareceram muitos fotógrafos e rodaram imensos documentários. Depois, a Primavera foi longa e solitária, apesar dos grandes vôos, dos testes constantes e das verificações e reverificações do novo equipamento. A sua reputação aumentava cada vez mais, devido à sua perícia e paixão pelos aviões. já conhecera algumas das mulheres sobre quem lera durante anos, como Pancho Bames e Bobbi Trout. Tinham dado uma nova dimensão à sua vida. Também passou algum tempo com Nancy e Jane Firestone. Era divertido estar com elas, se bem que percebesse que nunca seria uma verdadeira amiga de Nancy. Talvez a diferença de idades fosse demasiado grande.

Uma noite, em Abril, saiu novamente para jantar com Desmond e ele surpreendeu-a ao perguntar-lhe se tinha algum envolvimento amoroso. Dada a relação de negócios que partilhavam, a pergunta pareceu-lhe estranha, mas disse-lhe que não e que Nancy ainda escolhia os seus acompanhantes.

- Estou surpreendido - disse ele com um certo contentamento.

- Acho que devo ser demasiado feia - afirmou Cassie a sorrir, e ele não conseguiu deixar de rir com a brincadeira. Na verdade, ela estava espetacular. Tornara-se uma mulher muitíssimo bonita, e Desmond nunca estivera tão contente com nenhum dos seus planos ou projetos.

- Talvez trabalhe de mais - disse-lhe atenciosamente, olhando-a diretamente nos olhos. - Ou há alguém em casa?

- Já não há - sorriu ela tristemente. - Está em Inglaterra e não é meu - acrescentou Cassie. - É muito dele próprio.

- Entendo. Talvez as coisas mudem.

Desmond estava intrigado. Cassie era muito boa como piloto, até melhor do que qualquer homem na sua profissão, e levava-a muito mais a sério. Parecia não se preocupar com a vida social e muito menos com a fama. Isso fazia parte do seu encanto e do que o público sentia por ela. Por isso a adoravam. Apesar do seu incrível sucesso e da exposição a que estivera sujeita nos últimos nove meses, conseguira manter-se modesta. Ele não conhecia muitas mulheres assim. Gostava de muitas coisas nela, e o fato deixou-o surpreendido. Era raro ter um interesse pessoal pelos seus empregados, exceto em casos pouco habituais como o de Naney.

- A guerra provoca coisas estranhas nas pessoas - disse. Por vezes, mudam e percebem o que é importante.

- Sim - ripostou Cassie com um sorriso. - Os seus bombardeiros. Acho que os aviadores são uma raça diferente. Pelo menos, todos os que conheço. Até as mulheres. São todos um pouco loucos.

- Faz parte do seu encanto. - Sorriu-lhe, parecendo subitamente mais descontraído do que o habitual.

- Terei de me lembrar disso - afirmou ela, tomando um gole de vinho e observando-o. Interrogou-se sobre o comportamento de Desmond, mas não havia maneira de saber. As suas guardas não baixavam até quando estava a ser amável. Realmente não havia maneira de o conhecer. Era muito cuidadoso e mantinha as distâncias. Nancy falara-lhe disso e finalmente Cassie apercebia-se.

- E depois existimos nós. - Ele sorriu-lhe novamente. - Os que vivem na terra. De maneira simples e baixa.

- Eu não diria isso - contrapôs calmamente enquanto Desmond a observava. - Talvez sejam mais sensatos. Mais racionais em relação à vida e mais direcionados para os seus objetivos. Há muito mérito nisso.

- E você? Onde está você no meio disso tudo, Cass? No céu ou na terra? Pelo que já reparei, você parece viver bastante bem nos dois mundos. - Sabia que ela preferia o céu' vivendo para voar. Tudo o que fazia em terra era passar o tempo até conseguir voltar para os céus e voar como as aves.

Decidiu então expor-lhe uma idéia. Ainda era prematuro para a concretizar, mas não era cedo para plantar aquela preciosa semente.

- O que pensa de uma volta ao mundo? - perguntou cuidadosamente, e ela olhou-o, espantada. Nick tinha-a avisado disso e dos perigos que acarretava. Dissera-lhe que era isso que Williams tinha em mente. Mas como o soubera? Ela estava com um ar espantado enquanto lutava para lhe dar uma resposta.

- Agora? Não seria muito difícil? - Os Alemães já tinham invadido a Noruega e a Dinamarca e avançavam para a Bélgica e Holanda. - A maior parte da Europa está inacessível e o Pacífico é terrivelmente sensível. - Afetara a rota de Earhart e já tinham passado três anos. Agora as coisas estavam muito piores.

- Talvez pudéssemos evitá-la. Não seria fácil, mas poderíamos fazê-lo se fôssemos obrigados a isso. No entanto, sempre pensei que fosse o objetivo final. A volta ao mundo feita corretamente. Tem de ser cuidadosamente planejada e brilhantemente executada. Claro que não é para agora. Levaria, pelo menos, um ano a planejar.

- Sempre pensei que seria fantástico, mas, neste momento, ou até daqui a um ano, não consigo imaginar como a poderemos fazer. - Ficara intrigada e nervosa com a idéia e pensava nos avisos de Nick. Porém, Desmond parecia muito seguro do que queria.

- Eu preocupo-me com isso, Cass - disse ele, tocando-lhe na mão com um ar muito entusiasmado que a jovem nunca vira. Era o sonho de Desmond e, tinha-o partilhado com ela. - Tudo o que você tem a fazer é pilotar o melhor avião do mundo. Com o resto preocupo-me eu, se você alguma vez o quiser fazer.

- Terei de pensar no assunto.

Iria certamente mudar a sua vida. O seu nome passaria a ser uma palavra utilizada em todas as casas, tal como Cocliran, Lindberg, Elinor Smith ou Helen Richey.

- Falaremos novamente no Verão. - Ambos sabiam que o contrato seria ou não renovado nessa altura e não havia motivo para não o renovarem. O amor que Cassie tinha pelo que fazia não era segredo para ninguém, porém a volta ao mundo era outra coisa. Também era o seu sonho, mas Nick tinha sido muito incisivo sobre o fato de ela não a fazer para Williams. «Ele está a usar-te.» Ela ainda conseguia ouvir as suas palavras: «Não o faças, Cassie. Não o faças. Isso assusta-me.» E porque não? O que havia de errado nisso? Por que razão não o deveria fazer? Nick estava a fazer o que queria. Não estava? E nem sequer se dava ao trabalho de lhe escrever. Desde o Natal, apenas recebera duas cartas e só lhe contava o que fazia e não o que sentia por ela. Nick não estava a fazer nada para manter a sua relação. Achava que não era o homem certo para ela e recusava-se a encorajá-la ou a pedir-lhe que esperasse por ele. As suas cartas pareciam boletins de uma escola de vôo.

Nessa noite, Desmond levara-a a dançar e, enquanto giravam na pista de dança de Mocambo, a única coisa em que falava era na volta ao mundo. Agora que a tinha partilhado com Cassie, não podia parar de falar nisso, esperando que ficasse tão entusiasmada como ele.

Na semana seguinte, mencionou-o novamente, apenas de passagem, não para a tentar pressionar, mas como se fosse um segredo que ambos partilhavam e um objetivo que ambos desejavam alcançar. Era óbvio que aquilo significava muito para ele e, agora que o partilhara com Cassie, sentia-se mais perto dela.

Dadas as suas inúmeras ocupações, Cassie ficou estupefata quando Desmond lhe perguntou se a podia convidar para sair no dia do seu vigésimo primeiro aniversário. Ficou surpreendida com o fato de ele saber, mas Desmond empregava exércitos de pessoas para o informarem dos mais pequenos pormenores. Os pormenores eram importantes para ele e ficava fascinado com o mais pequeno elemento de qualquer coisa, pensando que isso era o aspecto que distinguia o vulgar da perfeição.

Não tendo ninguém em especial com quem celebrar, Cassie ficou muito contente por ele se ter lembrado. Levou-a ao Restaurante Victor Hugo e, mais tarde, a dançar ao Ciro, proporcionando-lhe uma noite que a comoveu profundamente. Desmond encomendara um bolo de aniversário no restaurante e, tanto aí como no Ciro, fora servido champanhe. É claro que tinha consultado Nancy Firestone sobre as coisas favoritas de Cassie e toda a refeição fora planejada de acordo: o seu jantar favorito, o bolo preferido e as canções prediletas. Cassie sentia-se uma menina a ter um aniversário mágico. Depois, Desmond ofereceu-lhe um alfinete em forma de avião, com o número vinte e um gravado nas asas e a palavra Cassie inscrita de lado. Mandara-o fazer há meses na Cartier. Disse-lho depois de Cassie abrir o presente, e esta não conseguia acreditar que ele se tivesse dado a tanto trabalho.

- Como pôde fazer isto? - Corou ao olhar para a jóia. Nunca vira nada de tão belo e, de certo modo, sentia que não a merecia.

Porém, Desmond estava a olhar para ela com um ar muito sério. Cassie só lhe vira aquela expressão quando olhava para um avião em estudo e antes de o voltar a desenhar.

- Sempre soube que, um dia, você seria muito importante para mim. Soube isso no primeiro dia em que a conheci. - Disse com a mesma expressão séria, mas Cassie riu-se lembrando-se do momento.

- De macacão e óleo a cobrir-me o rosto? Devo ter causado uma grande impressão. - Ela ria-se, segurando o alfinete que lhe parecia tão notável. Até a hélice se movimentava quando era tocada.

- Causou - admitiu ele. - Você é a única mulher que conheço que fica bonita com o rosto completamente negro.

- Desmond! Você é horrível.

Cassie riu-se, sentindo-se mais próxima dele. Era estranho, mas, apesar da distância entre eles, sentia-se sua amiga. Desmond era um dos poucos amigos que Cassie tinha ali. Além dele, só havia Nancy e um ou dois dos outros pilotos, mas ninguém com quem passasse os momentos livres. Tinha um enorme respeito por Desmond, pelas suas idéias e pela maneira árdua como trabalhava para as concretizar. Ele acreditava na excelência, a qualquer preço, em relação a si próprio e à companhia. Apenas aceitava a perfeição, tal como o demonstrava o pequeno avião com que a tinha presenteado: era perfeito.

- Sou assim tão terrível, Cass? - perguntou muito sério depois do comentário de Cassie. - Os peritos já me disseram isso e provavelmente têm razão. - Desmond disse-o de uma maneira tão triste que ela sentiu pena dele. Percebeu que era um homem solitário, apesar da sua importância e de todos os luxos que o rodeavam. Não tinha filhos, nem esposa, poucos amigos e, de acordo com os jornais, nem mesmo uma namorada. Tudo o que possuía era aviões e a empresa.

- Você sabe que não é horrível - disse Cassie suavemente.

- Eu gostaria de ser seu amigo, Cass - afirmou honestamente, segurando-lhe a mão. Cassie não tinha a certeza do que aquilo significava, mas ficou profundamente comovida por tudo o que Desmond já fizera por ela e pelo gesto de amizade.

- Eu sou sua amiga, Desmond. Você tem sido muito bom para mim. Mesmo antes disto, nunca achei que o merecesse.

- É por isso que eu gosto de si - declarou ele, sorrindo. - Não espera nada e merece tudo. - Desmond agarrou no pequeno alfinete e colocou-lho no vestido. - Você é uma rapariga muito especial, Cass. Nunca conheci ninguém como você. - Cassie sorriu-lhe, emocionada com as suas palavras e grata pela sua amizade.

Nessa noite, levou-a a casa e subiu. Não pediu para entrar e nunca se referiu à volta ao mundo, mas surpreendeu-a no dia seguinte ao mandar-lhe flores ou quando lhe telefonou no domingo, convidando-a para dar um passeio. Cassie nunca se interrogara sobre o que ele faria aos fins-de-semana. Normalmente, e se tivesse tempo, ela ia voar ou Nancy marcava-lhe compromissos de caráter social onde Cassie precisava ser vista com uma longa lista de acompanhantes.

Desmond foi buscá-la às duas horas. Dirigiram-se a Malibu e deram um passeio pela praia. Estava um dia muito bonito e a praia estava quase deserta. Ele falou um pouco sobre a sua juventude, sobre os seus anos no colégio interno e em Princeton. Viera a casa bastantes vezes durante essa época. Desmond era muito novo quando a mãe falecera e o pai se enterrara no negócio. Tinha construído um império, mas, durante o processo, esquecera-se do seu único filho. Nunca se incomodara em ter Desmond em casa durante as férias. Ele ficava nas suas várias escolas: primeiro, em Fessenden, depois em St. Paul, e finalmente em Princeton. Nessa altura, ele já não se importava e, durante as ferias, saía sozinho ou com os amigos.

- Você não tinha família nenhuma? - Cassie parecia horrorizada com a história de uma infância desesperadamente solitária.

- Nenhuma. Ambos os meus pais eram filhos únicos e os meus avós morreram antes de eu nascer. Nunca tive ninguém para além do meu pai e, na realidade, nunca o conheci. Penso que seja essa razão por que nunca quis filhos. Não quereria infligir-lhes esse tipo de dor. Sou feliz assim e nunca desiludiria uma criança. - Havia algo de muito triste nele e agora Cassie compreendia-o melhor. Era a solidão que ela tinha intuído e um isolamento que durava há anos. Tinha feito bom uso dele, mas fora muito doloroso. Todavia, Desmond ainda tinha um ar muito jovem.

- Você nunca desiludiria ninguém, Desmond. Tem sido tão bom para mim.

E tinha. Todos os seus contactos com ele tinham sido muito agradáveis. Era um cavalheiro, um amigo e um patrão perfeitos. Não havia razão para que não fosse um marido ou pai perfeito. Sabia que ele casara duas vezes e sempre soubera que não tinha filhos. As revistas que lera faziam questão em dizer que não havia herdeiros para aquela gigantesca fortuna. Mas agora Cassie sabia a razão: ele não queria ter filhos.

- Casei muito novo - explicou quando, finalmente, se sentaram na areia a olhar para o mar. - Ainda estava em Princeton e foi incrivelmente estúpido. A Amy era uma rapariga adorável e completamente mimada pelos pais. Quando me formei, voltamos para aqui e ela detestou. - Olhou para Cass subitamente divertido. - Eu tinha a sua idade, mas com tremendas ilusões de que era adulto e que sabia o que fazia. Ela queria que nos mudássemos para Nova Iorque e eu não quis. Queria estar perto da família e eu achei isso muito estranho. Em vez disso, levei-a a um safári em África e depois à índia durante seis meses. Posteriormente, fomos a Hong Kong, onde ela apanhou o primeiro navio para voltar para casa dos pais. Disse-me que eu a estava a torturar e a levá-la a locais horríveis. Chegou a dizer que fora refém dos selvagens.

Sorriu devido ao absurdo da questão, e Cassie riu-se. Desmond fazia com que tudo parecesse muito divertido. - Quando voltei, os advogados do meu sogro já tinham iniciado o processo de divórcio. Suponho que nunca compreendi porque ela desejava estar perto da mãe e eu queria mostrar-lhe algo de mais estimulante.

«A minha segunda mulher era muito mais intrigante. Eu tinha vinte e cinco anos e ela era uma fascinante inglesa de Banguecoque. Era dez anos mais velha do que eu e aparente mente levava uma vida muito agitada. Acabei por descobri que já era casada, e o marido surgiu inesperadamente quando já estávamos a viver juntos. Não ficou nada satisfeito e o nosso casamento foi anulado. Depois voltei para aqui e assentei. Gostei de algumas coisas, mas receio que nenhum deles tenham sido verdadeiros casamentos. Aqui, nunca realmente tentei nem fiz o que era esperado. Quando herdei o negócio não tinha tempo para todos esses disparates. Não tinha tempo para nada, exceto para o negócio. Portanto, aqui estou, dez anos mais tarde, sozinho e muito aborrecido.

- Eu não lhe chamaria aborrecido. Safáris, Índia, Banguecoque... De fato, ficam muito longe do meu Illinois natal. Sou a quarta de cinco filhos e passei toda a minha vida num aeroporto. Tenho dezesseis sobrinhas e sobrinhos. É o mais mundano que se consegue ser. Sou o primeiro membro da família a freqüentar a universidade, a primeira mulher a pilotar um avião, a primeira pessoa a sair de casa, se bem que o meu pai e a minha mãe fossem originários, respectivamente, de Nova Iorque e da Irlanda. É terrivelmente vulgar e não tem uma ponta de aventura ou sofisticação.

- Agora é uma mulher sofisticada, Cass - disse em voz baixa, observando-a. Ele parecia estar sempre muito interessado nas suas reações.

- Eu não acho. Sei que ainda sou a rapariga de macacão com óleo no rosto.

- O que os outros vêem é bastante diferente.

- Talvez eu não compreenda.

- Não se pode dizer que tenhamos muito em comum - disse ele atenciosamente -, mas por vezes funciona - comentou, pensativo. - Na realidade, eu já não tenho a certeza do que funciona. já passou tanto tempo desde que deixei de pensar nisso que já nem me lembro. - Sorriu, e subitamente ela sentiu-se como se estivesse a ser entrevistada, mas não tinha a certeza de qual era o emprego a que estava a candidatar-se. - E você, Cass? Por que razão é que com vinte e um anos e dois dias ainda não se casou? - Desmond só estava meio a brincar. Queria saber se ela estava livre. Nunca tivera a certeza, se bem que ela não parecesse estar demasiado ligada a ninguém, a não ser ao piloto da RAF, em Inglaterra.

- Ninguém me quer - explicou facilmente, rindo e fazendo-o rir. Estava surpreendentemente à vontade com ele.

- Arranje outra desculpa. - Ele deitou-se na areia a olhá-la com uma expressão muito divertida e bastante descontraído devido à presença pouco afetada de Cassie. - Diga-me algo em que eu acredite. - Ela era demasiado bonita para que ninguém a quisesse.

- É verdade. Os rapazes da minha idade ficam aterrorizados com as mulheres que pilotam, a não ser que também voem. Nessa altura, a última coisa que querem é competição.

- E os rapazes da minha idade? - perguntou cautelosamente e ela lembrou-se que Desmond era apenas quatro anos mais novo do que Nick, que tinha agora trinta e nove.

- Parece que ficam muito incomodados com a diferença de idades. Pelo menos, alguns, sobretudo os que são quatro anos mais velhos do que você.

- Entendo. Pensam que você é imatura? - Porém, não o era.

- Não. Pensam que são demasiado velhos, mas ainda não chegaram a um ponto da sua vida em que tenham algo para me oferecer. Fogem para Inglaterra e dizem-me para ir brincar com os miúdos da minha idade. Nada de promessas nem esperança.

- Compreendo. E você brinca com os rapazes da sua idade? - Desmond estava intrigado com a história. Perguntou imediatamente a si próprio se ela não se estava a referir ao sócio do pai, mas não lhe fez qualquer pergunta. Partiu desse pressuposto, depois de ver a maneira como o indivíduo a tinha tentado proteger no dia em que ele fora ao aeroporto.

- Não - respondeu honestamente. - Não tenho tido tempo para rapazes da minha idade. Tenho estado demasiado ocupada a voar para si e a freqüentar todos aqueles eventos sociais que você diz serem importantes. - Ela também não queria envolver-se com ninguém. Estava demasiado apaixonada por Nick para se importar com outras pessoas, mas não o referiu.

- Os eventos sociais são importantes, Cassie.

- Para mim não são - disse, sorrindo.

- Você não é fácil de agradar, Miss Cassie O'Malley. Há quase um ano que sai cinco noites por semana com um homem diferente. Será que não se sentiu atraída por ninguém?

- Acho que não. Demasiado ocupada, sem tempo e sem interesse. Todos me aborrecem.

Não se deu ao trabalho de lhe dizer que, na sua maioria, eram modelos masculinos ou menos do que atores. Não que isso lhe fizesse diferença.

- Você está muito mimada. - Ele abanou um dedo o que a fez rir.

- Se estou, a culpa é sua. Olhe o que fez por mim: apartamentos, roupa, todos os aviões que sempre desejei pilotar, incluindo um de brilhantes. - Sorriu com gratidão, pois, nessa manhã, escrevera-lhe um bilhete de agradecimento. - Carros, hotéis e restaurantes chiques. Quem não ficaria mimada?

- Você - afirmou ele simplesmente, dizendo a verdade, Depois ajudou-a a levantar-se e caminharam descalços pela praia, contando histórias disparatadas um ao outro. jantaram num pequeno restaurante mexicano próximo do apartamento de Cassie, mas Desmond disse-lhe que a comida era terrível. Contrariamente, Cassie adorou-a. Levou-a a casa e prometeu visitá-la na manhã seguinte.

- Vou trabalhar às quatro da manhã - informou ela. - Não estarei aqui.

- Eu também - disse Desmond, sorrindo. - Ambos trabalhamos para o mesmo tirano. Virei vê-la às três e meia.

Ficou surpreendida quando ele apareceu. Era uma pessoa muito estranha e solitária. As histórias da sua infância tinham-na deixado muito triste. Não era de espantar que nunca tivesse amado ninguém, pois ninguém o amara. Isso fazia com que ela desejasse protegê-lo e desfazer toda a mágoa, mas simultaneamente ele fazia coisas por ela. Era uma combinação pouco habitual de calor e frio, invulnerabilidade e de profunda dor.

Nessa tarde, foi buscá-la ao aeroporto e levou-a a casa, mas não entrou. A partir daí, visitava-a todos os dias e levava-a a jantar várias vezes por semana a locais sossegados. Nunca fez mais do que isso, e Cassie nunca sentiu que fossem mais do que amigos. No entanto, pouco tempo depois, já eram muito bons amigos. Ele nunca mais mencionara a volta ao mundo, mas, por vezes, quando voava, Cassie pensava nisso e em todos os avisos de Nick. Achava que ele se preocupara de mais. Desmond não tencionava fazer nada que a magoasse ou pressionasse. Cassie tinha a certeza de que este apenas queria o melhor para ela. Antes de mais, Desmond era agora um amigo. Aparecia nos momentos mais estranhos: quando a rapariga estava a largar um avião ou às quatro da manhã quando saía. Estava ali para ela, se fosse preciso, nunca impunha a sua presença ou pedia mais do que aquela podia dar. Parecia querer muito pouco dela, mas, no entanto, Cassie intuía sempre a sua presença.

Em finais de junho, o próprio Desmond lhe trouxe o novo contrato e, nessa altura, ficou espantada com o que leu. As condições eram quase as mesmas, à exceção do fato de os acontecimentos sociais serem opcionais e a remuneração a duplicar. Prometia deixá-la testar todos os seus melhores aviões e queria que ela garantisse que faria um mínimo de anúncios por ano. Todavia, a última cláusula do contrato foi a que a deixou mais espantada: dizia que por mais cento e cinqüenta mil dólares, comissões e outros benefícios, lhe oferecia uma volta ao mundo daí a um ano, no melhor avião que possuísse, pela rota mais segura que pudessem planejar e que o embarque seria no dia dois de julho de 1941, quase exatamente um ano depois, e no quarto aniversário do desaparecimento de Amelia Earhart. Seria a volta mais publicitada de todos os tempos e ela estabeleceria, sem dúvida, novos recordes. A perspectiva era muito tentadora, mas ela achou que devia discutir o assunto com o pai. De qualquer modo, ia para casa nessa semana para assistir ao festival aéreo.

- Acha que ele não vai aprovar? - perguntou Desmond nervosamente antes de ela partir, parecendo um rapazinho aterrorizado com o fato de alguém lhe poder tirar o seu brinquedo favorito. Ela sorriu e tentou acalmá-lo.

- Acho que não. Pode pensar que é perigoso, mas, se você diz que pode ser feita com segurança, eu acredito. - Desmond nunca lhe mentira, atraiçoara ou iludira. Nunca a desiludira como amigo ou como patrão e passavam bastante tempo juntos. A sua relação era muito estranha para uma rapariga da idade dela e para um homem da idade dele, pois baseava-se no negócio e na amizade. Nada mais. Ele nem sequer tentara beijá-la e, no entanto, queria saber se a jovem estava livre. Ficara visivelmente mais tranqüilo quando soubera que sim, à exceção de Nick, que não lhe escrevia havia meses. Cassie sabia como ele reprovaria violentamente aquele contrato. - O meu pai é muito razoável - confirmou ela para o confortar.

- Sempre foi o meu sonho, Cassie. Mas nunca apareceu ninguém que pudesse ou em quem eu confiasse ou que quisesse trabalhar para mim. Confio em si completamente e nunca conheci nenhum piloto como você. - Ela não pôde deixar de se sentir elogiada com as suas palavras.

- Falaremos quando eu voltar - prometeu. Apenas precisava de alguns dias para pensar, mas Desmond sabia que ela estava muito tentada.

- Não vai participar no festival deste ano, pois não? Parecia preocupado antes de a deixar, mas ela rapidamente abanou a cabeça. A vida de Cassie era um festival quotidiano e, além disso, não praticara. Não tivera tempo, mas estava ansiosa por ir.

- Não, mas o meu irmão vai. Deus sabe porquê. Não gosta de voar e só o faz para agradar ao meu pai.

- Não é diferente de todos nós. Pratiquei luta em Princeton porque o meu pai também a praticara. É o desporto mais horrível do mundo e detestei todos os minutos. No entanto, pensei que ele iria ficar muito contente. Nem sequer tenho a certeza se soube e lembro-me de todos os torcicolos e hemorragias nasais que tive para não mencionar as nódoas negras.

Cassie riu-se com a descrição e prometeu que telefonaria de casa para lhe contar o que acontecera no festival aéreo.

- Vou ter saudades suas, sabia? Não tenho mais ninguém a quem telefonar às três da manhã.

- Pode telefonar-me - disse generosamente. - Eu levanto-me para falar consigo. Em Illinois são cinco da manhã.

- Limite-se a divertir-se - disse ele, sorrindo -, e volte para assinar o contrato da volta ao mundo. Se não o fizer - disse com uma expressão subitamente séria -, continuaremos amigos. Compreenderei se você resolver não a fazer.

O modo como o disse fez com que Cassie desejasse abraçá-lo e dizer-lhe que o amava. Ele era uma alma muito solitária, desejava desesperadamente fazer o mais correto e ser justo. Queria aquela volta ao mundo com tal desespero que ela não queria desiludi-lo.

- Tentarei não o desiludir, Desmond. Prometo. Só preciso de algum tempo para pensar. - Ficou contente por não ter de enfrentar Nick e vê-lo entrar em erupção qual vulcão.

- Compreendo.

Desmond beijou-a na face, pediu-lhe para desejar sorte ao irmão e ela prometeu que o faria.

Voou para casa num dos aviões de Desmond, perguntando a si própria qual seria a opinião do pai sobre a volta ao mundo. Não havia dúvida de que era muito perigoso, mesmo sem guerras e os problemas no Pacífico. Voar distâncias tão longas poderia ser desastroso, se a situação não fosse perfeitamente dominada ou se tivesse um grande azar que a obrigasse a enfrentar tempestades inesperadas. Nunca ninguém percebera o que acontecera a Amelia Earhart. O desaparecimento não tinha uma explicação racional, a não ser uma falta de combustível que a fizesse despenhar sem deixar rasto. Era a única razão aceitável. Também havia adeptos de teorias mais selvagens, mas Cassie nunca acreditara nelas. No entanto, a volta ao mundo assombrou Cassie durante todo o vôo até casa.

Perigosa ou não, estava louca para a fazer.

 

O Festival Aéreo de Peoria continuava a ser o mesmo circo maravilhoso de que Cassie se recordava. Nunca fora tão feliz como naquele momento em que lá estivera com Billy e com o pai. A mãe e as outras raparigas tinham ido passear com as crianças e Chris andava nervosamente de um lado para o outro a comer cachorros-quentes.

- Estás a pôr-me mal disposta - ralhou Cassie. Ele sorriu e comprou algodão doce.

Todos os seus velhos amigos, os recrutas do pai e os aviadores mais jovens estavam presentes. A maior parte dos fanáticos tinham-na visitado na véspera, por insistência do pai. O Festival Aéreo de Peoria era um acontecimento importante no campo da aviação. Nesse ano, até participavam uma ou duas raparigas, e Chris era candidato ao seu habitual prêmio de altitude na última corrida da tarde. Não ligava muito àquelas coisas, mas todos sabiam que ele agradaria ao pai.

- Não queres tentar alguma coisa, mana? O pai emprestava-te um avião.

O que Cassie tinha levado para casa era demasiado grande e desajeitado e valia muito mais dinheiro. Pertencia a Desmond. Tinha-o testado quando começara a trabalhar para a Williams e apenas recentemente tinham conseguido aperfeiçoar as alterações que Cassie recomendara. Para uma rapariga de vinte e um anos, tinha um emprego extraordinariamente importante. Ali todos conheciam a sua fama e falava-se muito da sua presença. Por sugestão de Desmond, a imprensa aparecera em força para a cumprimentar.

Cassie respondeu imediatamente ao irmão que não entraria no festival.

- Já não sou suficientemente boa. Tenho pilotado aqueles aviões durante todo o ano, além disso, não pratiquei Chris.

- Eu também não - disse ele com um sorriso. Era extremamente parecido com o pai aos vinte anos. Estava a ir muito bem na escola e ainda tencionava tornar-se arquiteto se conseguisse uma bolsa para a universidade de Illinois, dali a um ano ou dois. Atualmente, passava todos os momentos livres com Jessie. Eram adoráveis, e Pat dizia que não se surpreenderia se eles se casassem.

Billy não parecia mais velho do que Chris. Naquele ano, aparentava ter ainda mais sardas, mas era óbvio, a partir da sua performance nas duas primeiras corridas, que, ao contrário do irmão, tinha praticado. Ganhou dois primeiros prêmios e, meia hora depois, outros três nas competições mais difíceis.

- O que tens estado a fazer? A praticar o ano inteiro? Vocês têm realmente muito tempo livre - disse-lhe para o arreliar, abraçada a ele. Um dos fotógrafos tirou imediatamente uma fotografia. Cassie teve o cuidado de lhes dar o nome de Billy, soletrando-o corretamente, e de lhes lembrar que, naquela manhã, o rapaz tinha ganho três primeiros prêmios.

- E o dia ainda não acabou - retorquiu ele, piscando o olho a Cassie.

-E Miss O'Malley? - perguntou um dos repórteres. - Não voa hoje?

- Hoje não. Hoje o espetáculo é do meu irmão e de Mister Nolan.

- Existem laços românticos entre Miss O'Malley e Mister Nolan? - perguntou sagazmente. Ela sorriu-lhe enquanto Billy fingia que se engasgava com a limonada.

- Nem um único - respondeu friamente.

- E entre si e Mister Williams?

- Somos grandes amigos - disse ela com um sorriso.

- Mais nada? - O homem continuou a pressioná-la, e até o pai perguntou a si próprio como é que Cassie o suportava. Mas foi muito paciente e graciosa com o repórter. Desmond tinha-a ensinado bem, e ela sentia-se na obrigação de se portar bem perante a imprensa, se bem que um pouco de malícia fosse sempre tentadora. Ao contrário de Cassie, eles levavam tudo muito a sério.

- Não que ele me tenha dito - afirmou Cassie agradavelmente, retirando-se depois para ir ter com uns amigos, o que fez com que, por fim, os repórteres a deixassem em paz.

- Que chatos são - comentou Billy com um ar desagradado. - Não te enervam?

- Sim, mas Mister Williams pensa que são vantajosos para o negócio.

- A propósito! Há alguma verdade no que disseram? - perguntou Billy quando se encontraram de novo sozinhos. - Existe alguma coisa entre ti e o Williams?

- Não - respondeu ela cautelosamente. - Somos apenas amigos. Acho que não quer envolver-se com ninguém. Penso que sou tão chegada a ele como ele é às outras pessoas. É um homem muito solitário. Às vezes sinto pena dele declarou em voz baixa para que mais ninguém a pudesse ouvir. Mas Billy não estava na disposição de ter uma conversa séria e era sempre irreverente quando se falava em pessoas que valiam mais do que um bilhão de dólares.

- Também tenho muita pena dele, de todo aquele dinheiro de que ele tem de tomar conta, e de todas as estrelas de cinema com quem ele deve sair. Pobre tipo!

- Cala-te!

Cassie deu-lhe um empurrão enquanto Chris vinha ao seu encontro. Estava novamente a comer, e Cassie fez uma careta ao observá-lo. Desde os catorze anos que comia assim, continuando magro como um espantalho. Jessie estava ao seu lado, irradiando numa adoração silenciosa. Trabalhava na biblioteca local. Era uma rapariga séria e dava todo o dinheiro que ganhava aos pais para ajudar a sustentar as quatro irmãs mais novas. Tornava-se óbvio para todos que estava louca por Chris. Era muito terna com todos os O'Malley e especialmente com as crianças.

- Será que não paras de comer? - inquiriu Cassie com uma irritação fingida.

- Só se o puder evitar. Com um timing perfeito é possível começar a comer quando nos levantamos e só parar quando voltamos para a cama. A mãe diz que eu como mais do que a família inteira.

- Ainda acabas por ser um velho gordo - avisou Billy, piscando o olho a Jessie, que deu uma pequena gargalhada.

Estavam todos de bom humor e houve alguns feitos realmente gloriosos, mas nenhum que se equiparasse aos de Cassie no ano anterior: o seu mergulho aterrorizante e aquela recuperação no último segundo.

- Detestei quando fizeste aquilo - admitiu Chris. - O meu estômago até deu uma volta. Pensei que ias despenhar-te.

- Sou demasiado esperta para isso - disse ela. No entanto, estava muito contente por ele não ir fazer nada de perigoso. A altitude nunca dava muito trabalho, não era muito emocionante, mas ela ficava feliz por saber que o irmão estava em segurança e não corria riscos.

- Então! O que está a acontecer em Los Angeles? - perguntou Billy. Ela falou-lhe do seu trabalho e dos aviões novos, mas não mencionou a volta ao mundo. Queria falar primeiro com o pai. Depois falaria com Billy. já pensara bastante no assunto e, se a fizesse, queria que ele fosse o seu co-piloto. Era o melhor piloto que conhecia. Mesmo depois de estar um ano em Los Angeles a voar com grandes pilotos, ainda pensava que Billy era melhor.

Billy voltou a levantar vôo depois de conversarem durante algum tempo e ganhou outro primeiro prêmio, o que provava a opinião de Cassie. Pouco depois, esteve prestes a haver um desastre, quando dois aviões quase colidiram. Conseguiram salvar-se no último instante e, depois de alguns gritos na assistência, tudo ficou bem. No entanto, fez com que todos recordassem o ano anterior em que Jimmy Bradshaw se despenhara no festival. Escusado será dizer que Peggy não aparecera naquele ano, mas Cassie já soubera por Chris que ela e Bobby Strong se iam casar. Cassie não estava arrependida em relação a Bobby. Desejava o seu bem e que fosse feliz com Peggy.

Chris estava com a irmã mesmo antes da prova, a conversar sobre velhos amigos. Pouco depois chamaram o seu grupo para os aviões.

- Boa sorte, miúdo. Quando voltares, arranjamos-te algo para comeres. Tenta agüentar até lá.

- Obrigado. - Sorriu para Cassie, e Jessie foi ter com uma das irmãs.

Enquanto ele se afastava, e sem qualquer motivo especial, a não ser o orgulho que tinha nele, Cassie gritou-lhe: «Amo-te!» Ele virou-se, fez-lhe sinal de que tinha ouvido e depois desapareceu. Finalmente, chegou a sua vez de subir no pequeno avião vermelho que se elevava e continuava a elevar sob o olhar fixo da irmã. Nessa altura, ela pensou ver alguma coisa e semicerrou os olhos contra o sol. Quase dirigiu a palavra a Billy. Por vezes, sentia coisas mesmo antes de as ver. Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, viu aquilo que temera: uma fina réstia de fumo. Deu por si a olhar para o avião e a desejar que Chris regressasse ao solo o mais depressa e suavemente que pudesse. Ainda não tinha a certeza de qual poderia ser o problema, mas momentos depois Cassie teve a certeza. O motor incendiara-se e, instantes mais tarde, começou a cair mais depressa do que subira. Ouviram-se os sons familiares que significavam que algo estava a correr mal. Cassie pedia-lhe mentalmente que levantasse o avião e agarrou-se ao braço de Billy sem nunca tirar os olhos do avião do irmão. Finalmente despenhou-se numa coluna de chamas. Cassie e todos os outros homens correram para o avião. As chamas eram muitas e o fumo muito negro. Billy foi o primeiro a chegar com Cassie mesmo ao seu lado. juntos arrastaram Chris para fora das chamas, mas este já estava morto e também em chamas. Alguém correu para junto deles com um cobertor para abafar as chamas, enquanto Cassie soluçava com o irmão nos braços. Nem sequer se apercebeu de que tinha uma grave queimadura no braço. Não se apercebeu de nada, a não ser que Chris estava nos seus braços e que nunca mais veria, riria, choraria, se tornaria adulto, seria malcriado para ela ou casaria. Não conseguia parar de chorar com o irmão nos braços, quando ouviu um grito gutural por cima dela logo que o avião explodiu e pedaços de metal caíram sobre a multidão. Billy puxava-a para se afastarem, mas ainda estava abraçada ao irmão quando o pai tentou retirá-lo dos seus braços.

- O meu menino! - Soluçava. - O meu menino! Oh, Deus! Não! O meu filho! - Ambos estavam a abraçá-lo, e as pessoas corriam e gritavam à sua volta. Depois, uns braços poderosos levantaram Chris, o pai foi afastado e, à distância, conseguia ver Jessie a chorar, e tudo o que Cassie conseguia perceber era que Billy estava a abraçá-la. Depois viu a mãe a soluçar nos braços do pai. À sua volta todos choravam. Acontecera o mesmo no ano anterior, mas isto fora muito pior, pois tratava-se de Chris, o seu irmão mais novo.

Nunca teve a certeza do que aconteceu depois. Recordava-se apenas de estar no hospital e de ter Billy com ela. o braço não lhe doía, mas as pessoas estavam a tratá-la. Alguém disse que era uma queimadura de terceiro grau e continuavam a falar do acidente. O acidente... O avião... Mas ela não se tinha despenhado. Continuava a dizer a Billy que não se tinha despenhado.

- Eu sei, Cass. Eu sei, querida. Tu não fizeste nada.

- O Chris está bem?

Subitamente lembrou-se que algo não estava bem com ele, mas não conseguia recordar-se. Billy apenas acenava com a cabeça. Ela estava em estado de choque desde o acidente. Deram-lhe um sedativo e, quando acordou, o braço doía-lhe terrivelmente, mas não se importou. Agora lembrava-se de tudo.

Billy ainda lá estava e choraram juntos. Os pais também já lá estavam. Tinham voltado para a ver. A mãe estava quase histérica e o pai inconformado. Glynnis, e o marido, Jack, também lá se encontravam, e todos choravam. Glynnis disse-lhe que Jessie tinha ido para casa com amigos de Chris e que os pais tinham sido obrigados a chamar o médico.

Como Chris estava muito queimado, o caixão ficou fechado, o velório realizou-se na noite seguinte na casa funerária de Good Hope, e o funeral seguiu na manhã seguinte para St. Mary. Todos os amigos, companheiros de escola e Jessie estavam presentes. Esta estava muito abatida, rodeada pelas irmãs, e Cassie fez questão em dar-lhe um beijo. Era um acontecimento terrível para uma rapariga de dezenove anos.

Bobby Strong estava presente e foi falar com Cassie, mas Peggy não conseguiu. Alguns dos colegas de faculdade também tinham comparecido, bem como quase todas as pessoas que estavam presentes no festival, tal como acontecera no ano anterior em relação a Jim. Parecia um desperdício e uma maneira estúpida de morrer: subir aos céus para provar até onde podia ir e sem o conseguir.

Cassie sentia como se parte dela tivesse morrido e, enquanto seguia o caixão à saída da igreja, teve de ajudar o pai a segurar Oona. Foi a coisa mais terrível que Cassie já vira e a Pior pela qual passara.

Só quando estavam a sair da igreja é que viu Desmond Williams. Não conseguia imaginar como soubera, mas depois lembrou-se que os serviços de telégrafo tinham estado no festival e que provavelmente já estava em todos os jornais. Ela agora era uma estrela e a morte do irmão no festival era notícia de primeira página. De qualquer modo, Cassie estava contente por Desmond ter vindo. Havia algo de reconfortante na sua presença. Quando saíram da igreja, Cassie estendeu-lhe a mão e agradeceu-lhe a sua comparência. Pediu-lhe que fosse lá a casa depois do funeral e, quando chegasse, poderia dizer-lhe como fora importante a sua presença. Acenou com a cabeça enquanto a jovem recomeçava a chorar. Desmond abraçou-a e sentiu-se embaraçado. Não sabia que dizer ou fazer. Apenas a abraçava, esperando ser o suficiente. Depois reparou no braço dela e afastou-a suavemente.

- Você está bem? É grave? - Ficara muito preocupado quando soubera que Cassie se tinha queimado a tentar salvar o irmão.

- Estou bem. O Billy e eu tirámo-lo do avião e... e ele ainda estava a arder.

A imagem que ela criou era tão horrenda que ele quase se sentiu doente. Todavia, ficou mais tranqüilo quando Cassie lhe disse que os médicos não estavam preocupados com ela. Desmond informou-a de que, quando voltasse, queria que ela fosse vista em Los Angeles e fez questão em falar com os pais e de conversar com Billy durante algum tempo. Depois partiu. Disse que regressaria nessa noite. Apenas quisera estar ali para a confortar e estava feliz por ter ido. Cassie respondeu-lhe que significara muito para ela.

- Muito obrigada por tudo, Desmond.

Não mencionou a volta ao mundo, mas Cassie sabia que ele não pensava noutra coisa e, como tal, ainda planejava falar com o pai sobre o assunto. já dissera a Desmond que ficaria em casa mais uma ou duas semanas ao que ele lhe respondera que ficasse o tempo que quisesse.

Acompanhou-o à porta. Desmond abraçou-a e partiu com um ar muito sombrio. Quando Cassie voltou para dentro, o pai estava a chorar e a dizer que Chris fizera aquilo para lhe agradar e que nunca o devia ter permitido.

- Ele fê-lo porque quis, pai - disse Cass calmamente. - Todos nós o queremos e o pai sabe. - Era verdade no caso dela, mas não no de Chris. No entanto, era o mínimo que podia fazer pelo pai. - Antes de levantar vôo, ele disse-me que queria fazer porque gostava. - Era uma mentira piedosa.

- Ele disse isso? - O pai parecia surpreendido, mas aliviado enquanto enxugava os olhos e tomava outro gole de uísque.

- Foi uma atitude muito bonita - disse-lhe Billy mais tarde. Ela apenas acenou com a cabeça, pois estava a pensar noutra coisa.

- Desejava que o Nick estivesse aqui - afirmou em voz baixa. Nessa altura, Billy decidiu confessar o que tinha feito.

- Mandei-lhe um telegrama na noite em que tudo aconteceu. Acho que eles não levantam muitos problemas na concessão de licenças aos voluntários. Não sei. Apenas pensei... - Billy não tinha a certeza se ela iria ficar zangada, mas agora era óbvio que não ficara.

- Ainda bem que o fizeste - declarou ela em agradecimento e ficou ali a olhar para os amigos.

Era uma razão horrível para se reunirem. Pensou então se Nick viria, se conseguisse a licença.

Nessa noite, ficou junto dos pais durante horas a falar de Chris e das coisas que este fizera quando era criança. Choraram e riram e recordaram aquelas pequenas coisas que agora tanto significavam para eles.

Na manhã seguinte, Cassie passou pelo hospital para que lhe observassem o braço. Mudaram-lhe as ligaduras e ela voltou para casa para junto dos pais.

Desde o acidente que o pai não ia ao aeroporto, mas Billy estava a tomar conta de tudo. Cassie passou por lá, e Billy perguntou-lhe como estava Pat.

- Não está muito bem.

Nessa manhã, depois do pequeno-almoço, estivera a beber. Ainda não conseguia enfrentar o que acontecera. Pat só bebia em momentos de muito stress ou celebrações. Quando ela regressou, o pai estava sozinho na sala a chorar.

- Olá, pai - disse ela ao entrar. Cassie passara a noite em branco a pensar nas situações em que se zangara com o irmão, nas inúmeras vezes em que pensara que o pai gostava mais dele. Perguntou a si própria se Chris alguma vez o percebera e esperava que não. - Como se sente?

Pat encolheu os ombros e não respondeu. Então ela falou sobre algumas das visitas e no fato de ter ido ver Billy ao aeroporto. Pela primeira vez, o pai não perguntou como tudo estava a correr.

- Viu Desmond Williams ontem? - perguntou, à procura de coisas para lhe contar. Ele olhou para cima com uma expressão vazia, mas pelo menos respondeu.

- Esteve cá? - Ela acenou com a cabeça e sentou-se a seu lado. - Foi simpático da parte dele. Que tipo de pessoa é ele, Cass? - O pai falara brevemente com Desmond, mas a dor era tanta que não se lembrava.

- É muito calmo, honesto, trabalhador e solitário. - Aquelas referências em relação à pessoa para quem trabalhava pareciam estranhas. - Acho que a palavra correta seria... impelido, pois vive para o negócio. E tudo para ele.

- É triste - disse Pat, olhando para Cassie e recomeçando a chorar. O pobre miúdo só tinha vinte anos. - Podias ter sido tu, Cass - disse através das lágrimas. - O ano passado podias ter sido tu. Nunca tive tanto medo na vida como quando te observei.

- Eu sei - disse ela sorrindo. - Também preguei um susto horrível ao Nick, mas sabia o que estava a fazer.

- É o que todos nós pensamos - afirmou ele tristemente. - O Chris provavelmente também o pensava.

- Mas nunca o soube, pai. Ele não era como nós.

- Eu sei - concordou ele. Todos o sabiam. Chris nunca soubera exatamente o que estava a fazer. - Não consigo deixar de pensar no aspecto dele quando tu e o Billy o tiraram do avião. - Ficou com uma expressão nauseada. Sem saber que fazer, Cassie preparou-lhe outra bebida. À hora do almoço, já estava pouco consciente e quase a dormir. Finalmente, adormeceu, e ela deixou-o ficar ali sentado. Talvez a melhor coisa a fazer era deixá-lo dormir. Quando a mãe regressou nessa tarde na companhia de duas das filhas, Pat já estava acordado e sóbrio. Cassie fez-lhes algo para comer e sentaram-se na cozinha a conversar calmamente.

Era estranho estar com todos eles, e Cassie percebeu que parecia estarem à espera de alguma coisa. Era como se a realidade da morte de Chris ainda não se tivesse instalado, estando todos à espera que ele voltasse para casa ou que alguém lhes dissesse que nada acontecera. Mas acontecera. Fora horrível e não podia ter sido pior, a não ser que ele tivesse sofrido.

Glynnis e Megan saíram quando Colleen chegou com os filhos. Aquele breve caos fez-lhes bem, mas depois saíram e eles ficaram de novo sós. Cassie fez o jantar para os pais; estava contente por estar ali com eles. Não fazia idéia quando regressaria a Los Angeles. A mãe recomeçou a chorar à hora da refeição, e Cassie levou-a para a cama. O pai parecia estar melhor naquela noite. Estava mais calmo e consciente e queria falar com Cassie depois de Oona se deitar. Fez-lhe perguntas sobre o seu trabalho, se gostava do que fazia, que tipo de aviões pilotava e se gostava da vida em Los Angeles. Sabia que o primeiro ano terminara e queria saber se Cassie ficaria em Los Angeles ou voltaria para casa. Com Chris morto, a suas preocupações eram mais pungentes.

- Ofereceram-me um novo contrato - respondeu Cassie diretamente.

- O que é que ele te oferece? - perguntou Pat com interesse.

- O dobro do salário do ano passado - respondeu ela com orgulho -, mas tencionava mandar-vos a diferença pois não me faz falta.

- Pode vir a fazer - disse-lhe o pai bruscamente. - Nunca se sabe o que pode acontecer. As tuas irmãs têm os maridos, mas tu e o Chris... - Deu novamente por si com os olhos cheios de lágrimas. Ela deu-lhe a mão, que Pat agarrou firmemente. - Por vezes esqueço-me - disse Pat entre lágrimas.

- Eu sei, paizinho. Eu também me esqueço.

Estivera a pensar em Chris toda a tarde e passara-lhe pela cabeça que ele estaria em Walnut Grove com Jessie. De repente, lembrou-se. Era como se o coração e a mente não

quisessem aceitar. Nessa tarde, telefonara a Jessie e ela também sentia o mesmo. Disse que estava sempre à espera de ou vir o ruído do caminhão. Todos estavam.

- De qualquer modo, quero que fiques com o dinheiro - disse Pat firmemente.

- Isso é um disparate.

- Porque é que ele está a oferecer-te tanto dinheiro? - perguntou de sobrolho franzido. - Não está a obrigar-te a fazer algo de desonesto ou demasiado perigoso? Pois não, Cass?

- Nada de mais perigoso do que a qualquer outro dos seus pilotos de testes. Provavelmente até menos. Eu sou um grande investimento. Acho que ele pensa que sou útil para a companhia por ser mulher, por causa da publicidade e porque os recordes que estabeleço são importantes para os seus aviões. - Nessa altura, Cassie olhou para o pai, pensando se seria demasiado cedo para lhe falar da volta ao mundo. Mas queria dizer-lhe agora, pois desejava assinar o contrato assim que regressasse. Pensara muito no assunto, apesar da morte de Chris, e já sabia o que queria.

- Ele quer que eu faça a volta ao mundo, pai - revelou ela calmamente. Durante alguns instantes, houve um longo silêncio.

- Que tipo de volta ao mundo? Há uma guerra na Europa, sabias?

- Eu sei. Desmond disse que teríamos de planejar bem a rota, mas pensa que pode ser executada com segurança.

- George Putriam também o fez - disse o pai com um ar grave. Tinha acabado de perder um filho e não estava disposto a perder outro. - Não há maneira de fazer uma volta ao mundo em segurança, Cass. Com guerra ou sem guerra. Existem demasiadas variáveis e perigos. Os motores podem falhar. Poderás fazer uma navegação errada. Podes deparar com uma tempestade. Poderão surgir milhões de coisas inesperadas.

- Não seria tão grave num dos aviões de Desmond e se levasse comigo a pessoa certa.

- Tens alguém em mente? - Pensou instantaneamente em Nick, mas agora este não podia ir.

Cassie acenou com a cabeça.

- Pensei no Billy. - Pat hesitou enquanto pensava no assunto e acenou com a cabeça.

- Ele é muito bom - concordou Pat -, mas é muito jovem. - Depois reconsiderou. Se calhar é preciso ser. Ninguém mais velho do que vocês seria suficientemente louco para o querer fazer. - Nesse momento, quase sorriu, e Cass sentiu-se melhor. Era como se aprovasse. Cassie desejava que ele o fizesse. Queria que lhe desse a sua bênção. - É por isso que estão a pagar-te tanto?

- Não - disse a rapariga, abanando a cabeça. - Ainda me pagam mais se fizer a volta ao mundo. - Nem lhe disse quanto. Cento e cinqüenta mil dólares soar-lhe-ia a muito dinheiro e era. Além disso, Cassie não queria que ele pensasse que o seu motivo era ganância, pois não se tratava disso. - E como resultado haverá bônus e patrocínios. É um belo negócio - explicou modestamente. Mas até ela ficava assustada ao falar de somas tão elevadas.

- Não será um bom negócio se morreres - disse Pat francamente. Ela acenou com a cabeça. - É melhor pensares nisso com muito cuidado, Cassandra Maureen. Não é uma brincadeira. Ficarás com a vida nas mãos se o fizeres.

- O que acha que devo fazer, pai? - Ela sabia que lhe estava a suplicar a aprovação.

- Realmente não sei - disse, fechando os olhos para pensar. Abriu-os novamente e segurou-lhe as mãos. - Tens de fazer o que achas que deves, Cass. Aquilo que o teu coração e a tua cabeça mandarem. Não posso colocar-me entre ti e um grande futuro. Mas, se te acontecer alguma coisa, nunca me perdoarei ou ao Desmond Williams. Gostaria que ficasses aqui e que não corresses riscos, especialmente depois do que aconteceu ao Chris. Mas isso não seria correto. Tens de seguir o teu coração; Disse o mesmo ao Nick quando decidiu ir para Inglaterra. Es jovem e, se fores bem sucedida, poderá ser um grande feito; se não, um grande desgosto. - Olhou demorada e duramente para ela, não sabendo que mais lhe deveria dizer. Cassie tivera razão ao ir para Los Angeles no ano anterior, mas agora não sabia.

- Eu gostaria de o fazer, pai - disse calmamente. E acenou com a cabeça.

- Na tua idade, eu teria sentido o mesmo. Se alguém me tivesse oferecido isso, seria a maior oportunidade da minha vida. Mas ninguém o fez. - Sorriu, parecendo-se mais consigo próprio. - És uma rapariga de sorte, Cassie. Aquele homem deu-te uma enorme oportunidade para te tornares importante. É uma dádiva, mas perigosa. Espero que ele saiba o que está a fazer.

- Também eu, pai, mas confio nele. É demasiado esperto para correr riscos. Acredita completamente no que está a fazer.

- Quando será realizada?

- Só daqui a um ano. Quer planejar tudo com o máximo cuidado.

- Gosto de ouvir isso - disse Pat. - Pensa no assunto e diz-me o que decidires. Se decidires fazê-la, só direi à tua mãe daqui a algum tempo. - Cassie acenou com a cabeça e, um pouco mais tarde, apagaram as luzes e foram para a cama. Estava muito aliviada por ter falado com o pai e ainda mais por ele não se ter zangado. Parecia ter finalmente aceite quem ela era e o que estava a fazer. Tinha percorrido um longo caminho desde a altura em que a proibira de voar ou de ter lições. Agora, tudo isso a fazia sorrir.

No dia seguinte, falou com Billy sobre o assunto, e ele ficou delirante quando Cassie lhe contou que tinha sugerido o seu nome como navegador e co-piloto.

- Queres que eu vá? - gritou ele, atirando-se ao pescoço dela e beijando-a.

- Queres vir?

- Estás a brincar? Quando partes? Vou fazer as malas.

- Tem calma - disse ela, rindo-se. - Só daqui a um ano. Para ser exata, no dia dois de julho de mil novecentos e quarenta e um. Desmond quer começar a viagem no dia do aniversário do desaparecimento da Amelia Earhart. É um pouco assustador, mas ele é assim mesmo. - Teria de haver muita publicidade à volta do assunto e nisso Cassie confiava no bom senso de Desmond.

- Porquê tanto tempo? - Billy parecia desiludido.

- Quer planejar tudo com muito cuidado e testar o avião apropriado. Está a pensar em usar o Starfliter, o que seria um grande golpe publicitário para o avião, no que concerne a distância e resistência. - Essa era a questão, mas, se eles conseguissem, as suas vidas nunca mais seriam as mesmas. Além disso, ainda referiu a Billy que o seu bônus seria de cinqüenta mil dólares.

- Poderia divertir-me imenso com todo esse dinheiro. - Mas, tal como Cassie, não o faria por dinheiro, mas sim pela excitação e desafio. Era o mesmo que a atraía para Desmond e que até fizera saltar uma pequena faísca no pai. - Depois comunica-me a tua decisão.

Tal como Pat, Billy suspeitava que ela já decidira. Era verdade, mas estava a pensar nisso e a tentar ter a certeza de que se queria comprometer. Uma coisa era trabalhar para Desmond durante mais um ano; mas concordar com uma volta ao mundo era completamente diferente. Sabia que os riscos e as vantagens eram igualmente grandes. Imaginem no que a Earhart se teria tornado se tivesse sido bem sucedida? Era difícil imaginar a sua lenda ser ainda mais forte do que já era, mas teria sido.

Billy foi rapidamente a Cleveland naquela tarde, enquanto Pat ainda estava em casa. Assim, Cassie ofereceu-se para tomar conta das coisas e fechar o escritório. Arrumou alguns papéis, vestiu um macacão e saiu para abastecer alguns aviões. Não tinha mais nada para fazer e pouparia trabalho a Billy na manhã seguinte.

Tinha acabado os abastecimentos e de arrumar algumas ferramentas quando viu um pequeno avião a aproximar-se da pista principal. Aterrou e depois deslizou até ao hangar mais distante. Cassie perguntou a si própria se seria um cliente habitual, pois tudo o indicava. já não os conhecia a todos. Este sabia exatamente para onde ir e o que fazer. Observou-o durante alguns instantes, mas o sol batia-lhe nos olhos. Então viu-o. Não podia ser. Não podia. Tinha regressado. Era Nick e, enquanto corria na sua direção, Cassie estava banhada em lágrimas. Voou para os seus braços, acautelando o braço ferido. Estar de novo ali com ele fez com que tudo voltasse: a pena, a dor e o choque de ter perdido Chris misturou-se com o prazer de ver Nick. Ele beijou-a longamente, e subitamente Cassie sentiu-se segura e em paz, sabendo que Nick estava em casa.

- Eles deram-me licença assim que soube – explicou ele -, mas foi muito difícil chegar a Nova Iorque. Tive de voar até Lisboa e só cheguei a Nova Iorque a noite passada. Aluguei este caixote esta manhã. Pensei que nunca mais chegava. Mal consegui levantar vôo em New Jersey.

- Estou tão feliz por estares aqui. - Abraçou-o, aliviada por vê-lo. Estava muito bonito no seu uniforme da RAF, mas parecia também muito preocupado.

- Como está o teu pai?

- Não está muito bem - disse ela honestamente. - Ficará muito contente por te ver. Vou levar-te a casa. Podes lá ficar. - Engasgou-se com as palavras. - Podes ficar no quarto de Chris ou no meu. Eu durmo no sofá. - Billy estava a viver na antiga barraca de Nick e seria muito apertado para dois.

- Eu durmo no chão - disse ele sorrindo. - Não é problema. Os Britânicos são conhecidos pela falta de conforto das suas casernas. Não durmo decentemente desde Setembro passado.

- Quando voltas para casa? - perguntou Cassie enquanto o conduzia a casa dos pais.

- Quando a guerra acabar. - Mas não acabaria em breve. A França caíra nas mãos dos Alemães há três semanas e Hitler controlava agora a maior parte da Europa. Os Ingleses estavam a tentar que ele não apanhasse o resto da frota francesa no Norte de África. Os problemas estavam longe de estar solucionados.

Nick perguntou-lhe como estava o braço e ela admitiu que ainda doía, mas que estava a melhorar.

Quando chegaram a casa, Pat estava sentado numa cadeira no alpendre com um ar doloroso.

- Dás abrigo a um soldado, Ás? - perguntou Nick calmamente enquanto subia para o alpendre, caminhava devagar até ao seu velho amigo e o abraçava. Os dois homens choraram, partilhando a dor um do outro, e Cassie deixou-os sozinhos para que falassem à vontade enquanto fazia o jantar. A mãe estava na cama com uma terrível dor de cabeça. Ainda parecia, compreensivelmente, muito abalada. Era o seu filho mais novo e morrera apenas com vinte anos.

Cassie fez sanduíches para os dois e abriu duas cervejas.

A mãe já preparara uma grande salada para o caso de ser necessária. Era o suficiente. Ninguém estava com muita fome. Enquanto comiam, Nick contou-lhes o que estava a passar-se na Europa. Ouvira algumas histórias sobre a tomada de França há três semanas e da pungente queda de Paris. Os Alemães estavam por todo o lado, e os Britânicos receavam, com alguma razão, ser os seguintes, mas ninguém o admitia.

- Já estás a voar em missão? - perguntou Pat, sorrindo ao recordar os dias em que tinham voado, no final da guerra anterior.

- São demasiado espertos para isso, Ás. Sabem que estou arrumado.

- Com a tua idade, não. Dá-lhes tempo. Quando precisarem de pilotos, atiram-te logo para dentro de um caça e põe-te no ar.

- Espero que não. - Cassie estava zangada de os ouvir. Todos gostavam tanto da guerra e, na sua opinião, podiam-se correr riscos desde que fossem eles a corrê-los.

Nessa noite, deixou-os a conversar no alpendre. Também gostaria de ter falado com Nick, mas sabia que o pai precisava mais dele. Ela tinha tempo. Nick ficaria três dias e poderia falar com ele mais tarde.

No dia seguinte, Pat foi finalmente para o escritório e ficou muito contente por encontrar tudo em ordem. Billy tinha tomado bem conta dos aviões, da secretária e todos os pilotos estavam à espera de ordens. Fez-lhe bem voltar e, a meio da manhã, Cassie ficou surpreendida com o telefonema de Desmond. Perguntou se podiam falar à vontade e ela fechou a porta do escritório.

- Estou bem. Foi muito amável da sua parte.

- Tenho estado preocupado consigo, Cass, mas não queria interferir numa altura como esta. Como está o braço?

- Está ótimo. - Não queria preocupá-lo, dizendo que a queimadura era grave, mas estava a sarar muito bem. - Está tudo bem por aí? - inquiriu ela, sentindo-se culpada por estar afastada há tanto tempo. Estava em casa há quase uma semana, mas ele dissera-lhe que ficasse o tempo que fosse preciso. Pediu novamente desculpa e Desmond reiterou o que já dissera.

- Como estão os seus pais?

- Não estão muito bem. O meu pai regressou ao trabalho hoje. Penso que lhe fará bem, especialmente quando alguém o irritar com qualquer coisa. Terá outras coisas em que pensar. - Desmond riu-se do que ela acabara de dizer e perguntou-lhe se já pensara na volta ao mundo. Ela sorriu e respondeu afirmativamente. - já falei com o meu pai.

- Imagino a felicidade com que ele ouviu a notícia. O seu timing foi perfeito, Miss O'Malley. - Quase rosnou ao pensar na reação de Pat. Quase conseguia imaginar as palavras do pai. No entanto, Cassie surpreendeu-o.

- Na realidade, e depois de falarmos algum tempo, ele não se opôs completamente. Penso que esteja preocupado com muitas coisas, mas foi bastante razoável. Acho que vê a volta ao mundo como uma grande oportunidade para mim. Disse-me que deveria ser eu a decidir.

- E já decidiu? - perguntou, sustendo a respiração. Desde que ela partira que Desmond andava ansioso, tendo ficado surpreendido com as saudades que sentia dela. Estava até preocupado com o fato de ela não voltar para Los Angeles ou não renovar o contrato depois da morte do irmão. Cassie era uma parte importante da sua vida.

- Quase - disse para o arreliar. - Quero pensar sobre o assunto enquanto estou aqui. Informá-lo-ei da minha decisão assim que chegar, Desmond. Prometo.

- Mal consigo agüentar. - Estava a dizer a verdade. Estava a levá-lo à loucura.

- Acho que a resposta vai compensar o sofrimento da espera - continuou ela, arreliando-o, e Desmond sorriu. Gostara da maneira como ela o dissera. Não conseguia deixar de pensar no seu aspecto enquanto falava com a jovem. Até no funeral do irmão, com o rosto pleno de dor e o braço ligado, estava lindíssima, mas não lhe parecia correto pensar assim naquele momento.

- Promessas! Volte depressa para casa. Tenho saudades suas.

- Eu também. - Disse-o como o diria a um amigo, a Chris ou a Billy. Tinha saudades de conversar com ele nos momentos mais loucos, em que ambos estavam acordados, e sobre coisas de que ambos gostavam: aviões.

- Espero vê-la em breve, Cass.

- Cuide de si. Obrigada por ter telefonado. - Desligou e voltou para junto do pai e de Nick. O pai perguntou-lhe quem telefonara e ela respondeu-lhe.

- O que é que ele queria? - perguntou Nick com um ar aborrecido.

- Falar comigo - respondeu friamente. Não gostara da maneira como Nick fizera a pergunta. Estava a agir como se a possuísse e, para um homem que nem se quer se tinha dado ao trabalho de lhe escrever durante meses, estava a exigir de mais.

- Sobre o quê? - insistiu Nick.

- Negócios - disse duramente e mudou de assunto.

Pat sorriu e afastou-se. Começara a ver uma tempestade a aproximar-se e a única coisa que conseguia fazer era sorrir. Ela era decididamente uma O'Malley.

- Como está o braço? - perguntou Nick quando ficaram sozinhos.

- Vai andando - respondeu honestamente. - Está a começar a doer muito, mas eles dizem que é um bom sinal. - Cassie encolheu os ombros, olhou para ele e convidou-o para dar um passeio. Nick concordou e foram até aos campos situados nos limites do aeroporto.

- O que andas a fazer agora, Cass? - Estava mais gentil do que há alguns momentos atrás e, assim que Nick se aproximou dela e lhe colocou o braço sobre os ombros, o seu coração voltou a derreter-se.

- A mesma coisa: pilotar aviões e passar para além dos limites. O meu contrato acaba na próxima semana. Ofereceram-me um novo.

- Nos mesmos termos? - perguntou ele diretamente.

- Melhores. - Também sabia ser direta.

- Vais assiná-lo?

- Acho que sim.

Então Nick fez-lhe uma pergunta que Cassie não esperava.

- Estás apaixonada por ele, Cass? - Fez a pergunta com um ar preocupado, e Cassie sorriu perante a sua franqueza. - Pelo Desmond? Claro que não. Somos apenas amigos. É tudo. Ele é um homem muito só.

- Eu também. Em Inglaterra. - Mas não parecia ter pena de si próprio ao dizê-lo. Parecia zangado e com ciúmes de Desmond.

- Aparentemente não estás suficientemente só para te dares ao trabalho de me escrever - afirmou Cassie. Detestava não ter notícias dele, especialmente porque, às vezes, ele escrevia a Pat e a Billy.

- Sabes o que eu sinto sobre isso. Não há motivo para te arrastar comigo ou para nos ligarmos, Cass. Comigo não tens futuro.

- Continuo a não perceber porquê, a não ser que não me ames. Isso eu entenderia, mas isto não consigo. É uma loucura.

- É muito simples. Eu posso morrer para a semana.

- Eu também. E depois? Somos aviadores. Estou disposta a correr o risco. Estás disposto a corrê-los comigo?

- Tu sabes que a questão não é essa. Se eu tiver sorte e sobreviver, o que acontecerá? Vais viver numa barraca e passar fome o resto da vida? Parabéns à grande vencedora. Sou um aviador, Cass. Nunca vou ter um monte de dinheiro. Até agora nunca me importei e nunca prestei muita atenção, tal como o Billy está a fazer. Está a divertir-se. Eu também estava e ainda estou. E depois? Não é futuro para ti, Cass. Não o farei. Além disso, o teu pai matar-me-ia se eu te deixasse fazer isso a ti própria.

- Poderá matar-te mais cedo se não ficares comigo. Ele acha que somos ambos loucos: eu por te amar e tu por fugires.

- Talvez tenha razão, mas é assim que eu vejo as coisas.

- E se eu poupar dinheiro? - Era uma questão interessante.

- Ótimo. Goza-o bem. Espero que o faças. Neste momento és quase uma estrela de cinema. Cada vez que vejo um documentário americano, sei mais de ti do que do Hitler.

- Muito obrigada.

- É verdade. O Williams sabe muito bem o que faz. O que estás a pedir-me? Se estou disposto a viver à tua custa se enriqueceres à custa dele? A resposta é não, se for essa a pergunta.

- Tu não facilitas nada, pois não? - Cassie estava a começar a ficar irritada. Nick tornava tudo impossível. «Se for caras eu ganho, coroa perdes.» Viciara os dados e ela não conseguia ganhar uma única vez. Cassie já começava a estar farta. - Estás a dizer que, se tivesses poupado dinheiro nos últimos anos, virias para casa e casarias comigo. Mas tal não aconteceu, e o fato de eu ter dinheiro já não é a mesma coisa. É isso?

- Isso mesmo - disse ele. Resolvera não lhe arruinar a vida e estava decidido a fazer tudo para manter a decisão. - Eu não vivo à custa de mulheres.

- Também não estás a fazer muito sentido. És o único homem que conheço que consegue ser mais teimoso do que o meu pai, mas, com a idade, ele está um pouco mais sensato. Quanto tempo terei de esperar por ti? - Disse-o com impaciência.

- Até eu ficar mole dos miolos respondeu ele com um sorriso -, e já não tarda muito. Estava cansado de discutir com ela. Tudo o que desejava era abraçá-la e beijá-la. Ficava furioso quando a via nos documentários cinematográficos. Só queria gritar: «Esta é a minha miúda!», mas não era. Ele não deixava que fosse. Era a filha do seu melhor amigo e a rapariga por quem estava apaixonado desde que ela tinha três anos. E tentar explicar isso a um monte de fulanos da RAF? Ficara muito abalado quando percebera. Dois ou três dos seus companheiros tinham posters dela pendurados nas paredes.

- Chega cá - disse Nick, enquanto ela estava a alguns metros de distância com os braços cruzados e a bater o pé. - E não olhes para mim. assim.

- Porquê? - Cassie ralhou-lhe.

- Porque eu posso ser um idiota chapado e querer que cases com um tipo com metade da minha idade e tenhas dez filhos. No entanto, eu amo-te, Cass. Tu sabes que sempre amarei.

- Oh, Nick. - A sua zanga desapareceu imediatamente ao ver a expressão de Nick. Ela só o queria a ele. Beijaram-se durante muito tempo, esquecendo as palavras, as discussões e os problemas. Depois, caminharam lentamente até ao aeroporto.

Pat viu-os do escritório e pensou que eles tinham resolvido as coisas. Perguntou a si próprio quando é que eles iam perceber que tinham entre si uma coisa rara e importante. Mas ambos eram teimosos que nem mulas e Pat não se meteria entre eles. Pensou ainda se Cassie já teria falado a Nick sobre a volta ao mundo e na resposta que este lhe teria dado. Porém, o assunto só foi discutido no dia seguinte enquanto estavam todos sentados no escritório de Pat.

- De que estão a falar? - perguntou Nick, confuso. Pat mencionara o assunto, e Nick não percebera de que é que Pat estava a falar.

Então, Pat olhou para a filha e levantou uma sobrancelha.

- Não vais dizer-lhe?

- Dizer-me o quê? ótimo. Qual é o grande segredo? - Nick sabia que ela não estava apaixonada ou até a sair com mais ninguém, se bem que lhe dissesse para o fazer, o que a deixara severamente escandalizada. Decerto não estava grávida, pois ele tinha quase a certeza da sua virgindade. Não houvera ninguém na vida de Cassie para além de Bobby e Nick, e com Bobby as coisas não tinham passado de alguns beijos no alpendre. Nick nunca lhe teria tocado. - Afinal o que se passa?

Cassie decidiu dizer-lhe. Ainda não era um fato consumado, mas era mais do que certo. Iria participá-lo a Desmond quando chegasse a Los Angeles.

- A Williams Aircraft fez-me uma oferta muito interessante.

- Eu sei. Mais um ano de contrato. já me tinhas dito - afirmou com um ar presunçoso. Cassie apenas olhou para ele e abanou a cabeça sob o olhar do pai.

- Não. Para uma volta ao mundo daqui a um ano. Tenho estado a pensar no assunto e falei com o pai antes de chegares. No entanto, queria tomar uma decisão antes de te contar.

- Uma volta ao mundo? Levantou-se rapidamente com uma expressão ultrajada.

- Exatamente, Nick disse Cassie num tom calmo. Não lhe referiu o montante que iriam pagar-lhe, pois não fora importante para a decisão e soaria muito vulgar.

- Eu disse-te que aquele filho da mãe tinha isso em mente desde o início. Diabos te levem, Cassie. Não ouviste? - Estava furioso com ela e a gesticular. - É essa a razão de ser de todos aqueles documentários e da constante publicidade. Ele queria fazer o teu nome e agora vai explorar-te até onde puder e colocar a tua vida em risco. Há uma guerra na Europa. Como pensas ultrapassar esse problema, mesmo que consigam planejar uma rota perfeitamente louca, o que duvido? Raios te partam, Cass. Não permitirei que o faças.

- A decisão é minha, Nick - disse ela com suavidade. - A tua opinião tem tanta importância como a minha teve quando decidiste juntar-te à RAF. Nós tomamos as nossas decisões.

- Ótimo! É então esta a vingança por eu me ter oferecido como voluntário? Ou por não te escrever? Não entendes o que esse tipo está a fazer? Está a usar-te, Cass. Por amor de Deus, acorda antes que isso te mate. - Nick estava em fúria com o que Williams estava a fazer, e Cass recusava-se a perceber.

- Ele não vai matar-me. Isso é ridículo.

- Estás louca? Sabes o perigo que essa viagem constitui com ou sem guerra? É suicídio e não a farás. Não tens resistência ou experiência.

- Agora tenho.

- Tretas! Tu só fazes vôos de teste, o que não se compara. Quando foi a última vez que fizeste uma longa distância?

- A semana passada quando vim para casa. Faço-o muitas vezes, Nick.

- Vais matar-te, minha louca. E tu? - Virou-se para Pat com uma expressão furiosa no olhar. - Estás disposto a permitir uma coisa destas?

- Não estou muito contente com o fato - disse Pat tristemente. Vistas bem as coisas, acabara de perder um filho, mas aprendera bastante nos últimos anos e em grande parte com Cassie. - Ela já tem idade suficiente para tomar as suas próprias decisões, Nick. Más ou boas. Não tenho o direito de interferir. - Quando o ouviu, Cassie teve vontade de aplaudir.

- O que te aconteceu? - Nick estava espantado. - Como podes falar assim?

- Porque estou mais velho e mais sensato. Por um lado, dizes que ela está por conta própria e que não casam porque és demasiado velho para ela ou Deus sabe porquê; por outro, exiges que Cass faça o que queres. As coisas não são assim, Nick. Mesmo que casasses com ela não tinhas o direito de exigir fosse o que fosse. Cassie faz parte da nova geração de mulheres. Estou a aprender depressa e posso dizer-te que estou muito contente por ter conseguido a Oona naquela altura. As mulheres de hoje são muito complicadas.

- Não acredito no que estou a ouvir. Desististe. Deixaste que a tua filha te convencesse.

- Não. - Pat foi incisivo. - Ela ainda nem me disse se o faria. A decisão é dela, Nick. Toda dela. Não é minha nem tua. Não quero ser o homem que a impediu e tu também não o deves ser.

- E se morrer? - perguntou Nick contundentemente.

- Nessa altura, nunca me perdoarei - respondeu Pat com franqueza. - Mesmo assim, não posso interferir. - Estava com lágrimas nos olhos, e Cassie aproximou-se e beijou-o.

Nick estava a olhar fixamente para ela.

- Vais fazê-la? - Ambos os homens sustiveram a respiração enquanto esperavam, depois ela acenou com a cabeça. Nick ficou à beira das lágrimas.

- Vou, sim. Mas ainda não disse ao Desmond.

- Não admira que ele tenha telefonado ontem. - Nick estava muito angustiado. Não conseguia acreditar que Cassie fosse cometer uma tal loucura. Ele fora o seu instrutor. Sabia que a rapariga era capaz de grandes coisas, mas não disso. Pelo menos, ainda não e provavelmente nunca.

- Ele telefonou para perguntar se estava tudo bem comigo e com o pai.

- Que comovente. - Depois olhou para ela com raiva. - E esse será o próximo passo, não é?

- O quê? - Nem ela nem Pat o compreenderam, mas Nick já estava a falar de outro assunto.

- Mais publicidade. Mais habilidades. Quando o ano passado te levou a jantar e a dançar e vos tiraram uma fotografia juntos, não foi um mero acidente. Manteve as coisas vivas e misteriosas para a imprensa. Agora terá de ir muito mais longe para tornar as coisas interessantes. Quanto queres apostar em como vai pedir-te em casamento? - disse Nick com uma raiva desmedida. Cassie olhou para ele enojada, e o pai estava com um ar divertido. Nunca vira o amigo ter um ataque de ciúmes e era claro que o era.

- É a coisa mais nojenta que já ouvi - acusou Cassie, mas Nick tinha a certeza.

Pat partilhou com Nick algumas palavras sábias.

- Se lhe disseste que quando voltares não casarás com ela em circunstância alguma e nem sequer escreves à rapariga, de que estás à espera? Que entre para um convento e seja virgem toda a vida? Ela tem direito a viver, Nick. Se não for contigo será com outra pessoa. Na minha opinião, ele parece um homem decente, sejam quais forem os motivos comerciais desta viagem. Vende aviões. Tem de fazer o que pode para tornar as coisas interessantes. Se colocar uma linda rapariga aos comandos, que por acaso é um piloto excelente, funciona, então terá mais poder. Se tu não queres casar com ela e ele quiser, não acho que tenhas muito a dizer sobre o assunto, pois não?

Cassie teve de esconder um sorriso ao ouvir Pat. Nunca o pai fizera um discurso daqueles e a melhor parte era o fato de ele ter razão. Mas Nick não o queria admitir.

- Ele não a ama, Pat. Eu amo.

- Então casa com ela - disse Pat suavemente, saindo da sala para os deixar sozinhos. Nunca conhecera duas pessoas que precisassem tanto de estar sós. Todavia, uma hora mais tarde, ainda estavam a discutir e não tinham chegado a lado nenhum. Nick acusava-a de ser ingênua ou de dar esperanças a Desmond e ela acusava-o de ser infantil. Foi uma tarde diabólica e, ao fim do dia, estavam ambos exaustos e Nick tinha de voltar para Nova Jersey na manhã seguinte.

Conversaram quase toda a noite, mas nada ficou resolvido. Ele continuava a lembrar-lhe que era um homem de trinta e nove anos, que não casaria com uma criança nem lhe destruiria a vida.

- Então deixa-me em paz! - gritou-lhe, indo finalmente para a cama. Na manhã seguinte, antes de ele partir, ainda estavam zangados um com o outro.

- Proíbo-te de fazeres essa volta ao mundo - disse Nick antes de descolar no seu avião alugado. Cassie rogou-lhe que fosse razoável e que não fizesse ultimatos.

- Será que não podemos esquecer isso por agora? É só daqui a um ano e tu vais regressar a Inglaterra.

- Nem que fosse para a Lua. Não quero que assines o contrato.

- Não tens o direito de dizer isso. Pára, Nick.

- Não. Não paro enquanto não concordares em desistir.

- Não vou desistir! - Cassie gritava com os seus cabelos ruivos a voar ao vento. Nick agarrou-a e puxou-a para si.

- Vais sim. - Beijou-a, mas continuaram a discutir.

- Não vou.

- Cala-te!

- Eu amo-te.

- Então desiste.

- Por amor de Deus! - Beijou-a novamente, mas quando Nick partiu nada ficara resolvido. Quando ele descolou, Cassie ficou a chorar na pista. Cinco minutos mais tarde, entrou de rompante no escritório do pai. - Aquele homem leva-me à loucura.

- Um destes dias vocês matam-se. Até estou espantado como é que ainda não aconteceu - disse Pat a sorrir. - Teimosos como mulas. Será uma pena se vocês não se casarem. Merecem-se um ao outro. Qualquer um de vós consumiria qualquer pessoa normal. - Olhou então seriamente para a filha. - Achas que ele tem razão quando diz que o Williams te pedirá em casamento apenas para fazer publicidade à viagem?

- Não acredito. - Cassie estava exasperada. - O homem tem um medo pavoroso de se envolver com alguém. Teve dois casamentos desastrosos e acho que, se casar novamente, terá de ser por amor.

- Espero que sim. - Sentiu-se melhor ao ouvir as palavras da filha. - Ele já manifestou algum interesse especial em ti, Cassie? - Para além de ter vindo ao funeral de Chris, que Pat achou ser uma atitude muito bonita.

- Não exatamente. Somos apenas amigos. O Nick não sabe o que está a dizer.

- Bom! Podias ficar muito pior se não casares com aquele doido quando voltar de Inglaterra. juro, aquele homem ainda me mata. Antigamente, costumávamos ter discussões assim. É o filho da mãe mais teimoso que já conheci. - Cassie não discordou do pai e voltou para casa para ver como estava mãe.

Abandonou Illinois na semana seguinte e regressou para Newport Beach, para o apartamento, para o trabalho e para assinar o novo contrato por mais um ano com o dobro do salário. No dia em que chegou, foi ao escritório falar com Desmond a sós.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou ele nervosamente, levantando-se quando a jovem entrou. Levantava-se sempre que ela entrava em qualquer lado e Cassie gostava. - A Fitzpatrick disse que era urgente.

- Depende da perspectiva - disse Cassie tranqüilamente. - Julgava que queria a resposta sobre a volta ao mundo. - Subitamente, ele pressentiu, pela expressão do rosto de Cassie, que ela não a queria fazer e o coração caiu-lhe aos pés.

- Eu... eu compreendo, Cass. Pensei que provavelmente depois da morte do seu irmão... Os seus pais não devem ter ficado muito satisfeitos. Não seria justo para com eles. - Estava a tentar aceitar graciosamente a decisão de Cassie, mas era uma enorme desilusão e muito dolorosa. Era uma coisa que Desmond desejara toda a vida.

- Não. Não seria justo para com eles - concordou ela e o meu pai não ficou muito contente. - Tinham concordado em não dizer nada à mãe tão cedo. - No entanto, disse-me que era uma decisão totalmente minha e tomei-a. - Ele olhou-a sem dizer uma palavra e Cassie deu um passo em frente. - Faço-a, Desmond.

- O quê? - sussurrou ele.

- Faço a volta. Quero fazê-la por si.

- Oh! Meu Deus!

Caiu na cadeira com os olhos fechados e depois olhou para cima e viu-a. Pôs-se em pé num salto e saiu da secretária para a beijar. Era um beijo casto, mas continha toda a fervorosa gratidão que sentia. Nunca nada fora tão importante para ele e, depois disto, nada mais seria. Trataria disso. Tinha milhares de planos e tencionava partilhar todos com ela. Iria ser um ano incrível. Quando se sentou e começou a contar-lhe o que tinha em mente, continuava com a mão de Cassie firmemente entre as suas num contínuo agradecimento. Cassie estava muito contente por ter decidido positivamente. Ao diabo com Nick. Aquela era a sua vida.

 

A publicidade da volta ao mundo começou quase de imediato, com um anúncio numa conferência de imprensa em Newport Beach. A isto seguiram-se vários anúncios e breves conferências feitas por Cassie, todas orquestradas e organizadas por Desmond. Falou a grupos masculinos e femininos, em associações políticas e em clubes. Foi entrevistada na rádio e foi rodado um documentário especial sobre ela. Duas semanas depois, a imprensa estava saturada com notícias sobre a volta ao mundo. Subitamente, em meados de Agosto, Cassie saiu das primeiras páginas dos jornais devido ao agravamento da guerra na Europa. Começara a batalha de Inglaterra ou, como era mais conhecido, o blitz. A Luftwaffe estava a bombardear Inglaterra na esperança de a destruir e Cassie sabia que, só pelo fato de lá estar, Nick encontrava-se em perigo. Por muito zangada que estivesse com ele, as notícias aterrorizaram-na e só pensava em Nick.

Telefonou ao pai para saber se havia notícias dele, mas não iria haver até ao final de Agosto.

- Não vejo como possa ter acontecido alguma coisa, Cass. Tens de acreditar que ele está bem. Estou listado como seu único parente e serei imediatamente avisado. - Era um pequeno encorajamento e o pai teve de admitir que Nick já deveria ter sido chamado para o serviço ativo. já não devia estar como instrutor. Estaria a pilotar bombardeiros ou caças. O objetivo da Luftwaffe era destruir a RAF e, como tal, Cassie sabia que Nick tinha de estar a lutar para a defender. O fato era uma preocupação constante e parecia ainda mais horrível pois tinham-se separado zangados. Só queria que Nick estivesse bem. Nada mais importava.

Apesar da guerra, Desmond continuava a planejar cuidadosamente e com tremenda precisão a volta ao mundo. já tinham concordado sobre o avião que ela usaria, que já estava a ser equipado e preparado com extraordinários novos instrumentos, tanques de gasolina suplementares e com dispositivos de vigia de longo alcance. Com a meticulosa atenção que Desmond dava aos pormenores, Cassie estava certa que estavam a proceder bem.

A única verdadeira dificuldade era a rota devido à guerra na Europa. Em 1940, a guerra espalhara-se a demasiados locais. Havia falta de segurança em certas áreas no Pacífico, em vastas zonas do Norte de África e, é claro, em toda a Europa. Tornara-se impossível pensar em circular o Globo, mas havia ainda recordes extraordinários para estabelecer e enormes distâncias a cobrir. Como Desmond se interessava muito por aviões de guerra, estava ansioso por provar que eram muito seguros para sobrevoar grandes extensões de oceano. Em resumo, iriam circular o Pacífico, fazendo oito etapas em dez dias e cobrindo quinze mil quinhentas e cinqüenta milhas. O avião iria de Los Angeles à cidade da Guatemala e daí para os Galápagos. Das ilhas dos Galápagos até à ilha de Páscoa, seguindo para o Taiti. Do Taiti para Pago Pago e depois para a ilha de Howland, onde Desmond já estava a planejar uma breve cerimônia em honra de Amelia Earhart. De Howland iriam para Honolulu, onde haveria mais celebrações. Nesse ponto, Desmond iria ao seu encontro e regressariam juntos a São Francisco, a final e triunfante etapa da volta. Ficou desiludido por ela não poder circular o Globo, mas a volta ao Pacífico, como era agora chamada, concretizava quase os objetivos. A volta ao mundo teria de ser adiada até ao final da guerra na Europa, e voar quase dezesseis mil milhas faria praticamente o mesmo à reputação de Cassie e à dos aviões. Cassie também estava impressionada com a sensibilidade que Desmond manifestara ao fazer o ajuste. De certa maneira, provava que tudo o que Nick dissera sobre Desmond estava errado: ele não era um louco que apenas queria matá-la. Nesse ano, ninguém, louco ou não, teria tentado sobrevoar a Europa.

Desmond marcou mais conferências de imprensa no Outono e fez os possíveis para que ela fosse sempre notícia. Queria todas as atenções centralizadas nela. Também era uma boa diversão em relação à guerra na Europa. Era algo de saudável, de esperançoso e estimulante, além de que ela estava sempre tão bonita nas fotografias que todos estavam apaixonados e queriam que fizesse a viagem. Agora, as pessoas abordavam-na na rua e os homens saíam dos carros para a cumprimentar. As pessoas pediam-lhe autógrafos. Nesse aspecto, Nick tinha razão: estava a ser tratada como uma estrela de cinema. Nos últimos tempos, Desmond tinha travado um pouco a sua vida social. Parecia querer mantê-la «pura» e livre do falatório romântico. Nancy Firestone ainda estava a trabalhar com ela, mas já não lhe arranjava acompanhantes. Agora, quando Cassie ia a qualquer lugar importante, era acompanhada por Desmond. Dizia que controlava melhor as coisas se estivesse presente. Foram a estréias em Hollywood e saíam à noite para dançar e ir ao teatro. Era uma excelente companhia e Cassie gostava de estar com ele. Como se levantava tão cedo quanto ela, não se importava de ir para casa cedo. Era um arranjo perfeito.

Entretanto, a Grã-Bretanha continuava a ser bombardeada sem mercê pela Luftwaffe, e Cassie soube que o pai tivera finalmente noticias de Nick, que, em princípios de Outubro, continuava em segurança. Estava a pilotar Spitfires no 54.0 Esquadrão e ainda estacionado no aeródromo de Horrichurch. Parecia estar a gostar e prometeu que, no que dependesse dele, os Britânicos em breve dariam cabo dos Alemães. Apenas mencionou Cassie para dizer a Pat que desse um beijo àquela filha pouco razoável. Assim, a batalha entre eles ainda não terminara, mas pelo menos estava vivo, o que já era um grande alívio para os O'Malley.

Até Desmond tivera a amabilidade de perguntar por ele, e Cassie reportara-lhe as notícias que obtivera. Em Novembro, a Luftwaffe parecia estar a aliviar um pouco os ataques. Até lá, os bombardeamentos tinham sido incessantes e implacáveis. Tinham começado a chegar crianças aos Estados Unidos para que tomassem conta delas até ao fim da guerra, e Colleen tinha acolhido duas crianças, o que comoveu profundamente Cassie. Eram adoráveis e ainda estavam completamente aterrorizadas quando Cassie as foi ver no dia de Ação de Graças. Curiosamente, ambos eram ruivos como ela. Annabelle tinha três anos e Humplirey, quatro. Eram irmãos, os pais tinham perdido tudo em Londres e não tinham parentes no país. A Cruz Vermelha havia conseguido que viessem para

Nova Iorque e Billy fora lá buscá-los. Na viagem de regresso, Billy ficou muito chocado quando eles lhe perguntaram se ia bombardear o aeroporto.

Cassie apaixonara-se completamente por eles. Ter ali as duas crianças fazia com que a mãe tivesse algo com que se preocupar e tomar conta, fazendo-a esquecer um pouco a morte de Chris. Aquele dia de Ação de Graças foi especialmente difícil para todos, mas conseguiram passá-lo graças uns aos outros. Cassie também foi visitar Jessie que parecia estar a superar a morte de Chris melhor do que os O'Malley. Era jovem e, eventualmente, apareceria outra pessoa. Cassie nunca teria outro irmão.

Também passou por casa de Bobby e Peggy, pois quase que adivinhara que Peggy estava grávida. Deu-lhe os parabéns; Bobby parecia ter crescido e prosperado desde o casamento. O pai morrera e a mercearia era agora dele. Ainda sonhava com uma cadeia de lojas espalhadas pelo estado de Illinois, mas de momento estava muito excitado com o bebê.

- E tu, Cass? - perguntou ele, hesitante. Não queria meter-se na vida dela e ouvira falar da volta ao mundo, mas perguntava a si próprio que mais faria ela na vida para além de voar.

- Estou muito ocupada a preparar-me para a volta ao Pacífico - respondeu ela, honestamente, e Bobby sentiu pena dela. Há muito que Bobby concluíra que Cassie provavelmente nunca casaria nem sentiria a felicidade como a que ele tinha agora com Peggy.

A volta não lhe parecia grande coisa, mas era espantoso o número de horas que passavam a ler relatórios, a verificar o avião e a analisar cada pequena alteração que os engenheiros faziam. Ela também estava a fazer viagens de longa distância para se preparar para a volta, familiarizando-se com os pormenores da rota do Pacífico.

Explicou-a ao pai, que ficou fascinado com todos os preparativos. Estava ansioso por ver o avião e ela convidou-o a ir à Califórnia visitá-la. Porém, Pat insistiu que não tinha tempo, pois havia muito que fazer no aeroporto e ainda iria ter mais. Billy foi para Newport Beach logo a seguir ao Natal, a fim de se preparar para a viagem. Estava tão excitado que não falava noutra coisa. Por outro lado, Pat resmungava constantemente sobre a falta que ele lhe iria fazer durante aqueles sete ou oito meses. Esperavam que a viagem propriamente dita levasse menos de um mês a completar, mas depois haveria conferências de imprensa e entrevistas. Isto se eles voltassem. Billy tornar-se-ia um herói ao lado de Cassie e iria ter melhores ofertas do que o Aeroporto O'Malley, mas Pat detestava a idéia de o perder.

Em Dezembro, Cassie tentou fazer milhares de coisas antes de ir para casa passar o Natal. Os dias nunca eram suficientemente longos, por isso decidiu mandar Nancy comprar brinquedos para as sobrinhas, sobrinhos, Annabelle e Humplirey. Ela própria comprou as prendas das irmãs, cunhados e dos pais. Ficou triste quando se apercebeu de que naquele ano não haveria um presente para Chris e que nunca mais haveria. Quando Chris era pequeno, Cassie costumava dar-lhe carrinhos, pelos quais trocava as suas bonecas. Na altura, teria feito tudo por ele. Agora, estava morto. Ainda não conseguia acreditar.

Sabia que o Natal daquele ano iria ser difícil, e ficou muito comovida quando Desmond aparecera, na noite anterior à sua partida, para lhe entregar um presente. Cassie comprara-lhe um lindíssimo cachecol azul de caxemira na boutique de Edward Bursal, em Beverly Hills, e uma linda pasta na loja de bagagens de <beverly Hills, onde Nancy comprava tudo o que necessitava. Não imaginava oferecer-lhe algo de frívolo, como uma gravata ou outra coisa qualquer. Só a idéia a fazia rir, portanto ficou muito contente ao ver que Desmond gostara dos presentes. Não eram pessoais, mas eram úteis e Desmond gostava disso.

Os presentes que lhe oferecera fizeram com que Cassie se lembrasse de como ele era atencioso. Dera-lhe o livro Listen! the Wind, de Anne Morrow Lindbergh a mulher do famoso aviador, e ela própria piloto qualificado, e uma linda aquarela da praia de Malibu, pois sabia que Cassie gostava muito do local. Depois, entregou-lhe uma pequena caixa e Cassie sorriu ao desembrulhá-la.

- Não tenho a certeza se irás gostar - disse ele ansiosamente, o que não era hábito. Subitamente, impediu-a de continuar e agarrou-lhe na mão. - Se não gostares, Cass, devolve-a que eu compreenderei. Não te sintas obrigada a aceitá-la.

- Não consigo imaginar-me a devolver qualquer presente que me ofereças - retorquiu gentilmente, e ele deixou-a continuar. Por baixo do papel vermelho havia uma pequena caixa negra, mas Cassie não conseguia adivinhar o que estaria lá dentro. Ele fê-la parar novamente e segurou-lhe em ambas as mãos. Estava pálido e Cassie ficou preocupada, pois não era uma característica de Desmond. Era como se se tivesse arrependido de lhe oferecer o presente ou receasse a sua reação.

- Eu nunca fiz uma coisa destas - disse, muito nervoso. - Podes pensar que estou louco.

- Não te preocupes - respondeu ela. O rosto de Cassie estava muito perto do dele e, pela primeira vez naquele ano e meio, Cassie sentiu uma estranha ligação entre eles. - Seja o que for, tenho a certeza de que gostarei - prometeu, falando com muita suavidade. Desmond pareceu mais aliviado, mas ainda inseguro. Era um homem poderoso, porém, naquele momento, parecia muito vulnerável. Cassie não conseguia perceber o que estava a passar-se ou por que razão. Pensou se os feriados seriam difíceis para ele por estar sozinho. Sentiu pena ao ter aquele pensamento e depois sorriu-lhe.

- Está tudo bem, Desmond. Prometo. - Queria dar-lhe um pouco de confiança. Eles eram amigos e a longa preparação para a volta ao Pacífico ainda os aproximara mais.

- Não digas isso até olhares para o presente.

- Está bem. Então deixa-me abri-lo - declarou ela calmamente. Desmond retirou as mãos das dela que, finalmente, abriu a caixa. Tudo o que conseguiu fazer foi olhar fixamente para o conteúdo. Era um anel de noivado com um grande brilhante de quinze quilates. Enquanto Cassie o olhava com descrédito, ele meteu-lho no dedo.

- Desmond, eu... - Não sabia o que dizer, pois não estava à espera daquilo. Ele nem nunca a beijara.

- Por favor não te zangues comigo - suplicou. - Não tencionava fazer isto, pelo menos desta maneira, mas Cass... - Olhou para ela implorante, parecendo subitamente muito vulnerável e exposto. - Apaixonei-me perdidamente por ti. Nunca esperei que isso acontecesse. Pensei que seriamos apenas amigos e depois não sei o que aconteceu. Mas, se não quiseres casar comigo, compreenderei. Continuaremos como sempre, faremos a volta... Cass! Por favor! Diz alguma coisa.

Enterrou o rosto nos seus cabelos e Cassie ficou esmagada pela ternura que sentiu por ele. Não o amava como a Nick, o que seria impossível, mas amava-o como se ama um amigo muito querido ou alguém que precise terrivelmente de nós. Queria que tudo corresse bem para ele, estar ali por ele e ajudá-lo. Desejava até, se pudesse, apagar a dor do passado. Todavia, nunca pensara em casar.

- Oh, Desmond! - disse suavemente enquanto ele se afastava para olhar o rosto dela e ouvir o que Cassie queria dizer.

- Estás zangada comigo?

- Como poderia estar? - Estava estupefata. Não sabia o que dizer.

- Oh, Cassie! Como eu te amo - sussurrou ele, beijando-a pela primeira vez sem esperar que ela lhe dissesse se ficaria com o anel. Cassie ficou espantada com a extensão da sua paixão. Desmond era profundamente emocional. Muito mais do que ela imaginara. Há anos que tinha tudo fechado dentro dele. Beijou-a novamente e Cassie ficou surpreendida quando respondeu ao beijo. Estava quase sem fôlego quando se afastaram. Toda a experiência era estonteante, e estava confusa com tudo o que estava a sentir. Desmond era uma pessoa muito mais poderosa do que ela.

- Acho que isto deveria ser o noivado e não a lua-de-mel - disse. Ele sorriu com um ar juvenil e com excitação no olhar.

- Sim? É o noivado, Cass? - Não conseguia acreditar no que estava a ouvir. Queria que fosse, mas ela ainda não tinha a certeza. Fora tudo muito inesperado.

- Não sei. Eu... eu não estava à espera. - Mas não parecia zangada e ainda não dissera não.

- Não espero que me ames já. Sei do teu amigo da RAF. Se... se achas que... Cassie! Tens de fazer o que é melhor para ti. E ele? - Precisava de saber e a jovem queria ser honesta com ele.

- Ainda o amo. - Não conseguia imaginar amar outro que não Nick. Sempre o amara. - Mas diz que nunca casará comigo. A última vez que o vi, foi-se embora furioso por causa da viagem e desde então não soube nada dele. Acho que não saberei. - Cassie olhou para Desmond com um ar desolado, recordando a última vez que estivera com Nick. Porém, com Desmond tudo era diferente.

- Como é que isso nos deixa? - perguntou ele serenamente.

Olhou-o e tremeu. Desmond era muito bom e compreensivo com ela, e Cassie sabia que não podia abandoná-lo depois de tudo o que fizera por si. No entanto, não lhe parecia correto amar um homem e casar com outro. Não era justo para com Desmond, mas este parecia estar disposto a aceitar a situação. De qualquer modo, Cassie sabia que Nick nunca casaria consigo. Era o homem mais teimoso do mundo. Ela e Desmond tinham muito em comum: partilhavam o negócio e a volta. juntos poderiam fazer grandes coisas. Se não podia ter Nick, então o melhor que podia fazer era casar com um bom amigo. Não lhe parecia possível encontrar outro homem que amasse tanto como a Nick, mas, com o tempo, e apesar de ser pouco provável, talvez conseguisse amar Desmond da mesma maneira. De certo modo, já gostava profundamente de Desmond. O casamento poderia ser um laço mais profundo entre eles. No entanto, doía pensar em casar com alguém que não fosse Nick Galvin.

- Não tenho a certeza. - Olhou honestamente para Desmond. - Não quero enganar-te. já tiveste dois casamentos dos quais saíste a perder. Eu... - Olhou-o nos olhos e viu toda aquela esperança desesperada. Ele suplicava sem proferir uma palavra e Cassie apenas queria agradar-lhe. Queria ajudá-lo e estar a seu lado. Talvez isso significasse amor.

- Eu sei quanto ele deve significar para ti - disse Desmond compreensivamente. - Não estou à espera de o substituir da noite para o dia, Cass. Eu compreendo. Apenas te amo.

- Eu também te amo - disse suavemente. E era verdade. Dava muito valor à sua amizade e lealdade. Respeitava e admirava tudo nele. Desmond só lhe fizera coisas boas. Fora maravilhoso desde o momento em que se conheceram e agora queria dar-lhe tudo: queria que ela se tornasse Mrs. Desmond Williams. Não pôde deixar de sorrir ao pensar nisso. Era um pouco mais do que surpreendente.

- Se o casamento não resultar para ti, pedirei o divórcio disse ele como que para a acalmar, mas parecia horrorizado com a idéia.

Nunca faria isso. - Tinha o casamento dos pais como exemplo. - Não quero parecer ingrata ou hesitante. - Estava à procura das palavras exatas enquanto ele a observava. os olhos de Desmond não deixavam os seus e sentia-se penetrada pelo poder do seu desejo. Ficou admirada com a intensidade quando lhe agarrou a mão e se sentou junto dela. Conseguia sentir a intensidade do seu desejo e de tudo o que queria dar-lhe.

- Nunca te farei mal, Cass, e nunca irei interferir na tua individualidade. És demasiado importante para mim para te tentar cortar as asas. Se nos casarmos, podes ser e fazer tudo o que quiseres.

- Queres ter filhos? - Sentiu-se envergonhada ao perguntar. A questão era mais íntima do que a relação que tinham tido até ao momento.

- Não são importantes - disse ele honestamente. - Talvez um dia, se quiseres e, não estiveres demasiado ocupada com os teus vôos. Mas acho que deves pensar no assunto. Tenho imensas coisas importantes para fazer contigo. Ter filhos é capaz de ser mais apropriado para mulheres como as tuas irmãs. É o emprego delas. Tu tens o teu que é muito importante, mas não estou a dizer-te que não tenhas um filho. Apenas me pergunto se é realmente isso que queres.

- Nunca tive a certeza. Costumava pensar que não queria. - Depois, com Nick, começara a pensar que gostaria de ter filhos dele. Não se sentia preparada para desistir definitivamente da idéia. Cassie sabia que era demasiado cedo e ainda muito jovem para decidir.

- Tens muito tempo para tomar as tuas decisões. Aos vinte e um anos não é muito importante. Tens de pensar na viagem. - Fora a volta que os aproximara e não conseguia imaginar estar ainda mais junto dele se casassem.

- Desmond! Não sei que dizer. - Estava quase a chorar e ele abraçou-a.

- Diz que casas comigo - pediu, colocando-lhe o braço à volta dos ombros e apertando-a junto a si. - Diz que confias em mim. Diz que, mesmo que não tenhas a certeza agora, acreditas que um dia poderás amar-me. Eu amo-te, Cass. Amo-te mais do que tudo na vida.

Como é que ela podia negar aquilo? Como poderia desiludi-lo e fugir dele? Como poderia esperar por Nick uma vida inteira se sabia que este não casaria consigo? O pai dissera-lhe o mesmo, a última vez que Nick fora a casa. Se Nick não casava com ela, não tinha o direito de interferir no seu futuro ou nas suas decisões.

- Sim. - A palavra não passou de um sussurro e ele olhou-a espantado. - Sim - repetiu em voz muito baixa. Sem mais uma palavra, ele beijou-a. Pareceu durar horas e Cassie tremia de emoção.

- Os meus pais vão ficar estupefatos - afirmou, parecendo subitamente uma criança. Ocorrera-lhe agora que tudo iria ser diferente.

- Porque não vens comigo a casa passar o Natal? - Queria levá-lo para junto da família. Se se iam casar, era importante que Desmond os conhecesse e passasse algum tempo com eles. Os pais nem sequer se lembravam de o ter visto quando Chris morrera, e o anúncio do casamento tornaria o Natal dos O'Malley particularmente feliz.

Desmond, porém, não pareceu muito à vontade com o convite. Não tinha um Natal em família há anos e já não lhe fazia falta.

- Eu não quero impôr a minha presença, querida. Especialmente este ano. Pode ser de mais para os teus pais, e este tipo de festas não são o meu ponto forte.

Ela ficou terrivelmente desiludida.

- Desmond, por favor. Vão pensar que inventei tudo e que roubei o anel.

- Não, não vão. Telefonar-te-ei três vezes por dia. Tenho imenso trabalho e tu sabes isso melhor do que ninguém. Quando voltares, iremos fazer esqui no fim-de-semana.

A última coisa que ele queria era passar o Natal em Illinois com os O'Malley. Só a idéia lhe dava uma sensação desesperada de desconforto e nenhum dos argumentos de Cassie o convenceu.

- Não quero ir esquiar. Quero que venhas a casa comigo - insistiu ela com lágrimas nos olhos. Ficou subitamente esmagada pelos acontecimentos e emoções. Estava noiva de Desmond Williams. Era espantoso e, no meio de tudo aquilo Cassie esforçava-se por não pensar em Nick Galvin.

- Prometo que irei no ano que vem - retorquiu ele firmemente.

- Espero bem que sim - disse, chocada com a idéia de não irem. - Não vais só ter-me a mim. Vais ter também a minha família e somos muitas pessoas. - Estava radiante com a idéia de anunciar o seu noivado.

- Para mim, há apenas uma - disse com intensidade, beijando-a de novo e, por uma fração de segundo, ela pensou em Nick, sabendo que o tinha traído. Enquanto pensava nele, lembrou-se dos avisos em relação a Desmond, mas Nick errara no seu juízo. Desmond era um homem decente. Amava-a e ela sabia que, com o tempo, teriam uma boa vida juntos.

- Para quando marcamos a data? - disse Desmond, interrompendo-lhe os pensamentos e enchendo-lhe o copo com champanhe. - Não esperemos muito tempo. Não sei se o suportarei. Terás de manter a Nancy junto de ti para te proteger. - Desmond sorriu intencionalmente e ela corou.

- Terei o cuidado de a avisar - respondeu Cassie suavemente. Era feliz com ele, sempre fora e até naquele momento pareciam mais dois amigos do que dois amantes, à exceção do súbito fervor dos seus beijos.

- Que tal no dia de São Valentim? - sugeriu ele. - É um bocado antiquado, mas gosto da idéia. O que achas? - Parecia estar a planejar a viagem, mas ela não se importou. Estava habituada a ver Desmond controlar tudo, contudo sabia que ele respeitava as suas opiniões.

Era também muito romântico. Ia casar com o homem que qualquer mulher do mundo desejaria e este queria casar-se no dia de São Valentim. Perguntou a si própria se haveria algo mais perfeito. Só se Nick tivesse tido outra atitude. Mas Cassie não queria pensar nisso. Não podia. Agarrar-se-ia para sempre, ao sonho, pois não passava disso.

- O dia de São Valentim. é daqui a menos de dois meses - disse, com um olhar espantado. - Teremos um grande casamento? - Estava a olhar para o anel e a vê-lo brilhar, pois parecia um farol. Tudo parecia tão irreal. Fora uma noite notável.

Gostas? - perguntou Desmond, puxando-a novamente para si e beijando-a.

- Adoro-o. - Nunca vira um brilhante daquele tamanho. Era muito mais do que espantoso, à semelhança de Desmond Williams.

- Em resposta à tua pergunta - disse ele com um sorriso, enquanto a jovem fazia brilhar o anel e bebia champanhe -, não. Acho que não devemos ter um grande casamento. Penso que devemos juntar apenas as pessoas mais chegadas. - Beijou-a novamente e explicou o motivo. - Este pode ser o teu primeiro casamento, meu amor, mas não é o meu. Penso que à terceira vez deve ser-se discreto para não causar muitos comentários.

- Ah! - Não se lembrara que ele era divorciado e que não podiam casar na igreja. Perguntou a si própria se os pais se importariam muito, se bem que nunca tivessem sido muito religiosos. - Qual é a tua religião? - perguntou inocentemente. Nunca se lembrara de lhe perguntar. - Eu, sou católica.

Ele sorriu. Por vezes, ainda se comportava como uma criança, porém adorava essa faceta de Cassie.

- Pertenço à Igreja Episcopal, mas penso que um juiz de paz servirá muito bem, não achas? - Sentindo-se arrastada pelas suas ondas, Cassie apenas acenou com a cabeça. - E precisarás de um lindo vestido. Algo de curto, mas elegante, em cetim branco e um chapéu com um pequeno véu. É uma pena não podermos encomendá-lo em Paris. - Chapéus de Paris, brilhantes de quinze quilates, casamento com Desmond Williams no dia de São Valentim. De repente, Cassie ficou a olhar para ele, perguntando a si própria se tinha sonhado. Desmond estava ali sentado a falar de vestidos brancos. e de chapéus com véus e ela tinha no dedo o maior brilhante que já vira. Olhou para cima com os olhos cheios de lágrimas, parecendo uma criança.

- Desmond! Diz-me que não estou a sonhar.

- Não estás a sonhar, meu amor. Estamos noivos e, dentro em breve, estarás casada comigo para sempre, para o melhor ou para o pior. - Estava com um ar triunfante e muito contente.

- Queres casar-te aqui? - perguntou ela em voz baixa, encostando-se-lhe. Era demasiado para si e quase se sentia fraca ao olhar para ele. De repente, entendeu como Desmond era poderoso e bonito. Possuía uma sexualidade calma que mantinha sempre controlada, mas agora Cassie sentia a sua proximidade e interesse. Ainda não parara de a beijar desde que pedira a sua mão e ela sentia-se estonteada.

- Acho que devíamos casar aqui. Não é como se nos casássemos pela igreja em Illinois, Cass. Penso que assim é mais simples, mais discreto e não precisamos de dar tantas explicações.

- Tens razão. Espero que os meus pais venham.

- Claro que virão. Iremos lá buscá-los. Podem ficar no Beverly Hills.

- A minha mãe vai morrer de contentamento - disse ela sorrindo.

- Espero que não. - Depois, tomou-a novamente nos braços e esqueceu-se de todos os preparativos. Ela era tão nova, tão doce, tão pura, que quase se sentia culpado de a beijar. No entanto, agora desejava tudo. Mas sabia que ainda era muito cedo.

Nessa noite, teve de se forçar a sair, telefonou-lhe assim que chegou a casa e, como sempre, às três e meia da manhã. Conversaram como velhos amigos, sendo excitante saber que em breve ela seria sua mulher e que partilharia a sua vida para sempre. Decidiram, de comum acordo, não dizer a ninguém até Cassie comunicar aos pais. Ambos sabiam que todo o país ficaria muito contente.

Levou-a ao aeroporto e, como era habitual, ela já preparara um avião para ir a casa. Porém, desta vez, ele pediu-lhe repetidamente para ter cuidado.

- Isto não me afetou o cérebro. Ou talvez sim. - Sorriu, beijando-o novamente. Viu um dos membros do pessoal de terra a olhar para eles e a sorrir. - Se não tiveres cuidado, aparecerá em todos os jornais.

Algo de mais dramático poderá aparecer nos jornais se não casares comigo rapidamente, Miss O'Malley.

- Só me pediste a noite passada! Por amor de Deus, dá-me oportunidade de arranjar um vestido e um par de sapatos. Não estás à espera que me case de uniforme, pois não?

- Provavelmente. Ou até com menos. Talvez fosse melhor ir para Illinois contigo. - Estava apenas a brincar. Ela sabia que Desmond tinha demasiados afazeres com a volta ao Pacífico para poder ir fosse onde fosse. No entanto, tinha pena que ele não fosse.

- Os meus pais vão ficar muito desiludidos - afirmou sinceramente. Em especial, quando ouvissem as notícias. Ela própria ainda não conseguia acreditar, mesmo quando olhava para o anel que tinha no dedo. Nunca esqueceria a ternura com que Desmond lhe fizera o pedido de casamento.

- Vai com cuidado, meu amor - avisou Desmond novamente. Alguns minutos mais tarde, afastou-se do avião e ficou a acenar enquanto a observava da pista. Ela descolou facilmente e o vôo foi tranqüilo. Tinha muito tempo para pensar nele e em Nick durante o caminho. Ainda estava a sofrer por causa de Nick, mas este fizera a sua escolha. Agora, ambos teriam de continuar com as suas vidas.

O vôo até Good Hope levou exatamente sete horas. Aterrou à hora de jantar, e a primeira pessoa que viu no aeroporto foi Billy.

- Estás pronto para vir para a semana para a Califórnia? - perguntou, mas era uma pergunta desnecessária. Estava pronto para partir naquela noite. Havia semanas que não pensava noutra coisa e, ao assinar o diário de vôo de Cassie, reparou no anel e ficou estupefato.

- O que é isso? Um disco voador?

- Mais ou menos. - Sorriu-lhe, sentindo-se subitamente embaraçada, mas, mais cedo ou mais tarde, teria de lhe dizer. - É o meu anel de noivado. Desmond e eu ficamos noivos a noite passada.

- Ficaram? - Olhou-a, incrédulo, sabendo que era impossível. Ou não era? E o Nick?

- O que tem ele? perguntou Cassie friamente.

- Tudo bem. Desculpa a pergunta, mas ele sabe? Disseste-lhe? - Ela abanou a cabeça. - Vais dizer-lhe? Escreveste-lhe?

- Ele não me escreve - disse tristemente. Porque é que Billy estava a fazê-la sentir-se culpada? - Mais cedo ou mais tarde, saberá.

- Acho que sim - disse Billy, confuso com o que Cassie fizera. Desde que a conhecera que sabia que ela e Nick se amavam. - Ele vai ficar muito transtornado, não vai? - disse Billy calmamente. Cassie acenou com a cabeça, lutando para não chorar. Tomara a sua decisão e não podia desiludir Desmond que a queria para sua mulher. Nick afirmara que não queria. Todavia, estar ali tornava mais real a presença de Nick, o que dificultava um pouco as coisas.

- Não posso evitar que Nick fique perturbado - disse calmamente a Billy. - Não queria qualquer tipo de laços quando partisse. Disse-me para casar com outro. - Cassie olhou para Billy com uma expressão triste.

- Espero que tenha sido sincero - retorquiu Billy. Depois, conduziu-a a casa dos pais. Todos estavam à sua espera e foi apenas uma questão de segundos até uma das irmãs gritar e apontar-lhe para o dedo.

- Meu Deus! O que é? - perguntou Megan enquanto Glynnis e Colleen chamavam a atenção da mãe, que estava a brincar com as crianças.

- Acho que é uma lâmpada - explicou o marido de Colleen.

- Só pode ser - disse Megan a brincar, enquanto os pais trocavam olhares. Cassie não lhe dissera nada pelo telefone.

- É o meu anel de noivado - disse Cassie calmamente.

- Isso já eu tinha percebido - retorquiu Glynnis. - Quem é o felizardo? Alfred Vanderbilt? Quem é?

- Desmond Williams. - No momento em que proferiu o seu nome, o telefone tocou. Era Desmond. - Acabei de lhes dizer - explicou. - As minhas irmãs ficaram em choque quando viram o anel.

- Que disseram os teus pais?

- Ainda não tiveram oportunidade de dizer nada.

- Posso falar com o teu pai, Cassie? - pediu Desmond Cassie passou o telefone a Pat e depois a Oona as irmãs já deliravam e os cunhados brincavam com ela. Dissera-lhes que casaria em Los Angeles no dia de São Valentin e que Desmond mandaria buscar os pais para o casamento.

Pat e Oona regressaram do telefone. A mãe chorava um pouco, que era o que ela mais fazia nos últimos tempos, e abraçou Cassie.

- Parece um homem muito simpático. Prometeu-me que sempre cuidaria de ti como se fosses uma menina. - Beijou Cassie, e Pat também parecia contente. Desmond dissera-lhe tudo o que queria ouvir, mas, nessa noite, quando ficou a sós com a filha, fez-lhe algumas perguntas, cujas respostas precisava de saber.

- E o Nick, Cass? Se Deus quiser, ele regressará. Não podes ficar zangada para sempre e não podes casar com outro homem por estares zangada com ele. É uma atitude muito infantil e Mister Williams não o merece. - Gostara de Desmond, mas queria ter a certeza que a filha estava a ser honesta com ele e consigo própria.

- Juro que não vou casar por vingança. Ele só me fez o pedido ontem à noite e apanhou-me de surpresa. Mas está sozinho e teve uma vida muito solitária... É uma pessoa decente, quer casar comigo e, de certo modo, eu amo-o. Não como amo Nick. Somos amigos e eu devo-lhe muito.

- Não deves tanto a ninguém, Cassie O'Malley. Ele paga-te um salário e tu merece-lo.

- Eu sei, pai, mas Desmond tem sido muito bom para mim. Quero estar junto dele e, sabe.... além disso, compreende o caso com Nick. Acho que com o tempo poderei realmente vir a amá-lo.

- E o Nick? Que farás com ele? - Fixou-a nos olhos. Consegues dizer-me que não o amas?

- Ainda o amo, pai - suspirou ela. - Mas nada mudará. Vai regressar a casa e dizer-me novamente a razão por que não casa comigo. É demasiado velho e pobre. Talvez não me ame sinceramente. Não me escreveu desde que se foi embora, e antes de partir continuava a afirmar que não queria ligações, laços ou um futuro. Ele não me quer, pai, e o Desmond quer. Precisa de mim.

- E consegues viver com isso? Sabendo que amas outro homem?

- Acho que sim, pai - disse suavemente. Mas só de pensar em Nick ficava com as pernas bambas. Voltar a casa, tornava a sua presença mais acutilante, mas sabia que, por Desmond, devia afastá-lo do pensamento.

- É melhor teres a certeza absoluta antes de casares com este homem, Cassie O'Malley.

- Tenho a certeza. Serei justa com ele. Prometo.

- Não vou permitir que andes a enganá-lo ou que partas com Nick quando este voltar. Nesta casa, uma mulher casada é uma mulher casada.

- Sim, senhor. - Ficou impressionada com o que o pai lhe dissera e com a maneira como o dissera.

- O casamento é um voto sagrado seja onde for.

- Eu sei, pai.

- Não te esqueças disso e não desonres esse homem. Parece amar-te.

- Não o desiludirei, nem a si. Prometo.

O pai acenou com a cabeça, satisfeito com as respostas, mas agora havia outra coisa que desejava saber. Talvez fosse injusto, mas tinha de fazer a pergunta.

- Lembras-te do que o Nick disse antes de partir? Que o Williams tentaria casar contigo para publicitar ainda mais a volta ao mundo? Achas que o está a fazer ou está a ser sincero? Eu não conheço o homem, Cassie, e quero que penses um pouco e que mo digas. - As palavras de Nick tinham-lhe vindo à cabeça nessa noite, quando Cassie participara que ia casar-se com Desmond Williams.

Afinal, ela só tinha vinte e um anos e era ainda muito ingênua. Williams tinha trinta e cinco e muito mundano. Enganá-la teria sido uma brincadeira de crianças. Mas, ao pensar no assunto, Cassie abanou a cabeça. Desta vez, Cassie tinha a certeza de que Nick estava enganado.

- Não acredito que me fizesse uma coisa dessas. É apenas uma coincidência. Temos trabalhado juntos desde que lhe disse que faria a volta, e ele é um homem muito só. Acho que foi um acidente, e o fato de Nick o ter afirmado é apenas uma coincidência. Foi muito mauzinho. Estava com ciúmes.

Pat acenou com a cabeça, ansioso por acreditar nela e aliviado, mas depois teve de lhe sorrir.

- Isso não é nada, comparado com o ataque que vai ter quando voltar para casa e descobrir que te casaste. Eu avisei-o.

- Bem sei. Penso que ele não quer estar ligado a ninguém e muito menos a mim - afirmou Cassie, parecendo agora aceitar o seu destino, que era muito bom. O pai parecia estar satisfeito com o que ela dissera.

Olhou ternamente para ela, na véspera de Natal, deu-lhe a mão e beijou-a na face. Havia lágrimas nos olhos de Pat quando lhe falou e nos dela quando o ouviu.

- Cassandra Maureen, tens a minha bênção.

 

Cassie ficou em casa até ao dia 31 de Dezembro e, de manhã, ela e Billy voaram juntos para Los Angeles. Ficaram todos muito emocionados quando eles partiram. Desta vez, a maior parte da família foi ao aeroporto. Até os pequenos Annabelle e Humplirey. Cassie queria passar a véspera de Ano Novo com Desmond e, quando chegou, ele estava à sua espera na pista. Trazia um casaco azul-escuro que flutuava com a brisa, enquanto o Sol se punha atrás dele. Estava muito bonito e com um ar muito distinto. Era um homem extremamente aristocrático e faziam um casal fulgurante.

Desmond subiu facilmente para a carlinga, assustando-a ao beijá-la nos lábios e ao sorrir-lhe mesmo antes de ela sair do lugar. Parecera não reparar em Billy que virou a cara com um sorriso enquanto eles se beijavam.

- Olá, Miss O'Malley. Tive saudades tuas.

- Eu também - disse ela com um sorriso tímido. jantara com toda a família na noite anterior e todos tinham brindado ao seu noivado. Estavam muito entusiasmados com o casamento, que teria lugar daí a seis semanas, e todos queriam conhecê-lo. Subitamente, ela era a mais bem sucedida. Era a estrela mais brilhante, e o seu anel de noivado brilhava de maneira impressionante na sua mão esquerda como que a prová-lo.

- Tenho uma surpresa para ti - disse ele com um grande sorriso, depois de finalmente cumprimentar Billy. Este estava a juntar as suas coisas e pronto a sair do avião.

- Mais uma surpresa - afirmou Cassie, radiante, inclinando-se no assento. - Na última semana a minha vida tem estado recheada de surpresas. - Ainda era difícil acreditar que estavam noivos há apenas uma semana. Já parecia que lhe pertencia para sempre. Cassie estava a habituar-se e gostava. Era muito excitante estar noiva daquele homem.

Pensara muito em Nick durante a estada em Illinois, mas esforçara-se por se recordar que este queria que ela casasse com outro. Desistira dela intencionalmente, e Desmond queria-a muito e precisava dela. Sorriu-lhe ao pensar nisso e ele voltou a beijá-la, tocando-lhe gentilmente o rosto com os dedos. O pessoal de terra esperava cá fora respeitosamente. Já se sabia do seu caso: a O'Malley seria a próxima Mrs. Williams.

- Qual é a surpresa? - perguntou Cassie muito excitada enquanto Billy a observava. Williams parecia estar mesmo louco por ela, mas Billy ainda tinha pena de Nick Galvin. Aquilo iria destruí-lo.

- Temos uns amigos à nossa espera lá fora - explicou.

- Quando é o grande dia? - gritou o representante do L. A, Times, enquanto outro do Pasadena Star News tentava furar para tirar outra fotografia. O New York Times tirou mais duas, e o San Francisco Chronide quis informações sobre a volta ao Pacífico e sobre a lua-de-mel.

- Esperem lá. Esperem! - Desmond sorriu-lhes amigavelmente. - O grande dia é no dia de São Valentim, a volta ao Pacífico é em julho e não vamos passar a lua-de-mel no North Star. - Era o nome do avião que ela escolhera para a viagem. Desmond, deixando cair a cabeça com um sorriso que a fez rir. - Acho que fiquei tão entusiasmado que falei demais. Alguns dos rapazes da American Press querem tirar-nos uma fotografia juntos. Todos querem ser os primeiros, e eu disse -lhes que tu não estavas cá, mas que voltavas esta noite. Quando cheguei, eles já cá estavam. Importas-te muito, Cass? Estás muito cansada do vôo? Estou tão orgulhoso que não consegui deixar de lhes dizer que estávamos noivos. - Desmond parecia ainda mais vulnerável e infantil. Havia alturas em que parecia um grande milionário ou até mesmo um frio homem de negócios; havia outras em que parecia um rapazinho, e Cassie tinha uma vontade imensa de o abraçar.

- Não faz mal. Também estou muito entusiasmada. Disse a toda a gente em Illinois. Acho que, se a imprensa lá estivesse, não sairia da nossa porta. - Levantou-se na carlingal agarrou no seu saco com mapas e com o diário de bordo, e Desmond tirou-lho das mãos. Depois olhou para Billy como se subitamente se tivesse lembrado de que ele estava ali.

- Acho que não deve fazer mal termos o nosso co-piloto conosco. Por favor, junte-se a nós. - Convidou Billy com um sorriso, mas o jovem ficou com um ar envergonhado.

- Não quero intrometer-me.

- De modo algum. - Insistiu em incluí-lo enquanto Cassie se penteava e pintava os lábios.

Desmond foi o primeiro a sair do avião com Cassie imediatamente atrás. Quando ela apareceu, dispararam centenas de flashes que quase a cegaram. Ambos acenaram para os repórteres e depois ele virou-se e beijou-a. Quando pisou a pista, ficou atordoada ao verificar que deviam lá estar cerca de vinte fotógrafos. Nem sequer repararam em Billy.

Depois fizeram mais cem perguntas e, durante todo aquele tempo, Desmond manteve-se ao lado de Cassie, sorrindo e rindo para a imprensa, enquanto ela tentava compreender tudo o que estava a acontecer.

- Acho que é tudo, rapazes - disse Desmond finalmente - A minha noiva fez um longo vôo. Temos de ir para casa para ela descansar. Obrigado por terem vindo.

Tiraram mais uma dúzia de fotografias enquanto o casal entrava para o Packard, e um dos membros do pessoal de terra dava boleia a Billy. Cassie acenou ao afastarem-se. Da noite para o dia, tornara-se a noiva do ano e a namorada da América em uniforme de vôo.

- Parece tão estranho, não parece? - perguntou Cassie, ainda lutando para absorver tudo aquilo. - Eles agem como se fôssemos estrelas de cinema, Estão todos muito excitados.

Em Illinois as pessoas abordavam-na na rua para fazer perguntas sobre a volta ao Pacífico e ainda nem sequer sabiam que estava noiva.

- As pessoas adoram contos de fadas, Cass - disse Desmond enquanto a conduzia a casa. Deu-lhe umas palmadinhas no joelho, pois Cassie estava sentada ao seu lado. Tivera realmente muitas saudades dela. - É bonito ser capaz de lhes proporcionar isso.

- Provavelmente. Mas é estranho ser vista como tal. Continuo a achar que eu sou apenas eu, mas eles agem como se... Não sei... Como se eu fosse outra pessoa. Alguém que eu nem sequer conheço. Agora querem saber e tomar parte em tudo. - Era como se quisessem possuí-la e isso fazia com que se sentisse desconfortável. Uma noite tentara explicá-lo ao pai, e Pat lembrou-lhe que ainda seria pior depois da volta e que visse o preço que o pobre Lindy tinha pago: o filho raptado e assassinado. O preço da fama podia ser assustador, mas Pat esperava que Desmond a protegesse.

- Tu agora pertences-lhes, Cass - afirmou Desmond como se acreditasse no fato. O que era ainda mais estranho é que parecia aceitá-lo. - Eles querem-te. Não é justo recuar. Querem partilhar a tua felicidade e é bonito deixá-los. - Desmond parecia sempre sentir que devia muito ao público.

Todavia, Cassie não estava preparada para a intensidade da sua atenção durante as seis semanas que faltavam para o casamento. Era seguida e fotografada por todo o lado: no hangar, no escritório enquanto revia as cartas e mapas com Billy, fora do apartamento, a caminho do trabalho, nos grandes armazéns, a comprar o vestido de noiva e sempre que aparecia em público com Desmond.

Agora andava sempre com Nancy Firestone e, por vezes, tentava esconder-se por baixo de um grande chapéu ou com um lenço e óculos escuros. Mas a persistência da imprensa era impressionante. Penduravam-se nas escadas de emergência e nos parapeitos das janelas, saltavam de toldos, deitavam-se sob arbustos e escondiam-se dentro dos carros. Surgiam constantemente à sua frente, vindos não se sabia de onde e, em princípios de Fevereiro, Cassie já pensava que estava a enlouquecer; pela primeira vez, Nancy não conseguia ajudá-la em nada. Como era muito organizada, Nancy parecia ter muito em que pensar e parecia estar pouco interessada nos pormenores do casamento de Cassie. Desmond dissera a Cassie para não se preocupar e mandara Miss Fitzpatrick e uma assistente tratar de todos os pormenores. Cassie já tinha muito que fazer, pois era obrigada a lidar com a imprensa e a preparar a volta ao Pacífico. Não queria que ela se distraísse com a organização do casamento.

Quando Cassie tentava falar-lhe sobre Nancy Firestone, Desmond nunca a levava a sério. Ela tentava explicar-lhe que, ultimamente, Nancy parecia estar aborrecida e não sabia porquê. Desde o anúncio do noivado de Cassie e Desmond que Nancy se tornara irritável e fria, sem haver uma explicação racional para isso. A própria Nancy parecia passar menos tempo com ela e, uma noite em que Cassie a convidara para jantar, insistira que precisava de ficar em casa e ajudar Jane a fazer os trabalhos da escola.

- Não sei o que se passa com Nancy. Sinto-me muito mal. Por vezes, penso que me odeia. - Nunca se tinham aproximado tanto como Cassie gostaria quando a conhecera, mas haviam tido uma relação agradável e gostavam da companhia uma da outra quando trabalhavam juntas.

- Provavelmente, é o casamento que está a perturbá-la - disse Desmond com a racionalidade de um homem que analisa uma situação. - Talvez lhe faça recordar o marido e ela tenha recuado para não se envolver ou perturbar. Provavelmente, traz-lhe recordações dolorosas - disse ele, sorrindo para a noiva. Era muito jovem e havia muitas coisas que não lhe ocorriam. - Já te disse que trabalhes com Miss Fitzpatrick.

- Está bem. Deves ter razão. Sinto-me estúpida por não ter pensado nisso.

Quando a viu novamente, percebeu que a explicação de Desmond se encaixava perfeitamente. Nancy foi seca com ela mais de uma vez e até um pouco agressiva quando Cassie pediu um conselho sobre um pormenor do casamento. A partir daí, e para bem de Nancy, Cassie seguiu o conselho de Desmond e manteve as distâncias. Fez o melhor que pôde para agüentar sozinha com a imprensa, mas às vezes era completamente impossível suportá-los.

- Será que eles não param? - perguntou Cassie um dia, já irritada, entrando a correr pela cozinha da casa de Desmond e caindo exausta numa cadeira. Estava a tentar retirar algumas coisas do seu apartamento, mas alguém os alertou. Tinham chegado em massa antes de ela sair a porta e, a partir daí, fora um circo.

Meia hora mais tarde, Desmond entrou pela porta principal e eles fizeram-lhe um cerco. Finalmente, conseguiu convencer Cassie a sair e a posar com ele para os fotógrafos para acabar com aquilo. Dava-lhes sempre o suficiente para os manter felizes.

- Já está nervosa? - gritou um dos repórteres. Ela sorriu-lhes e acenou com a cabeça.

- Só com o fato de vocês poderem fazer-me cair no dia do meu casamento. - Eles riram-se.

- Lá estaremos - gritaram.

Desmond e Cassie voltaram para dentro alguns minutos mais tarde, e os repórteres abandonaram o local até à manhã seguinte.

Os pais chegaram na véspera do casamento. Desmond tinha reservado uma suíte no Beverly Wilshire. As irmãs não tinham vindo, pois era muito complicado por causa das crianças. Cassie estava especialmente comovida por Desmond ter convidado Billy para seu padrinho. A equipa da casa estaria toda no seu casamento. O pai conduzi-la-ia ao altar, se bem que a cerimônia fosse realizada por um juiz, e pedira a Nancy Firestone para ser a sua dama de honra. Nancy recusara, dizendo que o lugar deveria ser preenchido por uma das irmãs, mas finalmente aceitou, depois de Desmond falar com ela. Tinham escolhido um vestido de cetim cinzento para Nancy e um maravilhoso vestido branco para Cassie, da Casa Schiaparelli. Magnin fizera-lhe um pequeno chapéu com um véu curto, a condizer, e Cassie levaria nas mãos um bouquet de orquídeas brancas, lírios-do-vale, criados localmente, e rosas brancas.

Desmond oferecera-lhe um colar de pérolas que pertencera à mãe e um espetacular par de brincos com pérolas e brilhantes.

- Serás a noiva do ano - disse a mãe orgulhosamente quando olhou para ela, no hotel. Oona tinha lágrimas nos olhos, pois nunca vira Cassie tão bonita. Estava radiante e muito excitada. - Estás tão bonita, Cass - disse a mãe num suspiro. - Cada vez que olho para um jornal ou revista, vejo a tua fotografia - acrescentou, orgulhosa.

O dia seguinte foi tudo o que tinham esperado. Fotógrafos, repórteres e equipas cinematográficas esperavam à porta da residência do juiz, onde iria realizar-se a cerimônia. Até a imprensa internacional estava presente. Atiraram-lhe arroz e flores quando todos saíram para regressar ao Beverly Wilshire, onde Desmond preparara uma pequena recepção privada. Havia uma multidão à frente do hotel e junto à recepção, pois alguém soubera que eles iriam para ali.

Desmond convidara cerca de uma dúzia de amigos e vários dos seus projetistas mais importantes, especialmente o homem que concebera o avião de Cassie para a volta ao Pacífico. Era um grupo impressionante, e Cassie parecia a estrela de um filme. Era a coisa mais bonita que Desmond já vira e estava radiante enquanto dançavam o Danúbio Azul.

- Estás deslumbrante, minha querida - disse ele orgulhosamente com um sorriso ainda mais largo. - Como é possível imaginar que aquele pequeno macaquinho cheio de óleo, que vi debaixo de um avião há menos de dois anos, se tornara uma tamanha beldade? Gostava de ter uma fotografia tua daquele dia. Nunca o esquecerei.

Cassie deu-lhe uma pequena pancada no ombro com o bouquet e sorriu de felicidade perante o olhar dos pais.

Foi um dia perfeito e, depois de Desmond, dançou com o pai e depois com Billy. Estava muito bonito com o fato novo que comprara para a ocasião. Divertia-se imenso em Los Angeles, especialmente devido ao dinheiro que ganhava e também porque estava a gozar os melhores vôos da sua vida nos aviões que sempre desejara.

- Tem uma filha muito bonita, Mistress O'Malley - disse Desmond calorosamente à sua recente sogra. Cassie comprara-lhe um vestido do azul dos seus olhos e um pequeno chapéu a condizer. Oona estava muito bonita e muito parecida com a filha.

- É uma rapariga de sorte - afirmou Oona timidamente. Estava tão impressionada com a elegância e o ar sofisticado de Desmond que mal conseguia falar com ele, que foi sempre muito bem-educado e amigável.

- Eu é que tive sorte - discordou ele. Pouco depois, Pat fez-lhes um brinde, desejando-lhes muitos anos felizes e muitos filhos.

- Só depois da volta ao Pacífico - impôs Desmond como condição e todos riram. - Mas imediatamente depois!

- Viva! - disse Pat orgulhoso.

Desmond decidira deixar entrar a imprensa para tirar fotografias. Estavam à entrada do hotel, por isso pensou que era melhor fazê-lo de uma maneira controlada. Chegaram em massa, conduzidos por Nancy Firestone e conseguiram uma fotografia muito bonita da noiva a dançar com Desmond e depois com o pai. Fizeram um grande alarido por ele ser um ás da aviação durante a última guerra, e Cassie forneceu-lhes todos os pormenores, sabendo que o pai se sentiria importante.

Finalmente, os noivos fugiram para uma limusine que os esperava sob uma chuva de pétalas e arroz. Cassie usava agora um fato cor de esmeralda e uma capelina. As fotografias ficaram espetaculares quando Desmond a levantou nos braços e a colocou dentro da limusine. Ao partirem, acenaram pela janela traseira, enquanto a mãe chorava e acenava. O pai estava ao lado da esposa e tinha lágrimas nos olhos.

Os recém-casados passaram a noite no Hotel Bel Air, mas na manhã seguinte voaram até o México para uma praia deserta, numa pequenina ilha ao largo de Mazadán, onde Desmond alugara todo o hotel só para eles. Era pequeno, mas completamente privado. A praia era branca como pérolas e o Sol estava brilhante e quente, correndo sempre uma brisa ligeira. À noite, os mariachis faziam-lhes serenatas. Era o local mais romântico que Cassie jamais conhecera e, enquanto estavam deitados na areia a conversar, Desmond recordou-lhe que alguns dos locais por onde passaria na viagem seriam ainda mais bonitos e mais exóticos.

- Vais fazer algo de incrivelmente importante para a aviação, Cassie. Isso é o que conta mais. - Disse-o com firmeza, como se falasse com uma criança que não estava a prestar atenção aos trabalhos de casa.

- Nada é mais importante do que nós - corrigiu ela, mas Desmond abanou a cabeça.

- Estás enganada, Cass. O que vais fazer é muito mais importante. As pessoas recordar-te-ão durante centenas de anos. Homens tentarão seguir o teu exemplo. Os aviões terão o teu nome e serão concebidos a partir do teu. Terás provado que viagens de avião sobre grandes extensões de água são perfeitamente seguras desde que no avião apropriado. Uma miríade de pessoas e idéias será afetada. Não penses nem por um instante que não é da maior importância.

Ele fazia com que tudo soasse tão sério e solene que nem parecia tratar-se de um vôo. Por vezes, Cassie perguntava a si própria se ele não estaria a dar demasiada importância, qual um jogo que deixara de ser divertido e se tornara vital para a vida das pessoas. É claro que a dela e a de Billy dependiam disso, mas, mesmo assim, ela nunca perdera de vista a alegria que proporcionava. Desmond já a perdera.

- Continuo a pensar que tu és mais importante. - Virou-se de costas dentro do seu novo fato de banho branco e apoiou-se nos cotovelos. Ele sorriu quando a viu.

- És demasiado bonita, sabias? - disse, admirando a ligeira clivagem entre os seus seios. Tinha um corpo desejável - Distrais-me.

- Ótimo - disse Cassie confortavelmente. - Estás precisar.

- Não tens vergonha?

Inclinou-se e beijou-a e pouco depois voltaram para o quarto. Ambos estavam admirados com a facilidade com que se tinham adaptado. Inicialmente, Cassie tivera medo dele e do que poderia ser o amor físico, mas Desmond surpreendera-a por não a ter forçado e ter passado a noite no Hotel Bel Air apenas abraçado a ela, fazendo-lhe festas e falando das suas vidas, sonhos e futuro. Tinham até falado da viagem e do que significava para eles.

Isso fizera com que Cassie se sentisse, como sempre, à vontade com ele. Só na tarde seguinte, quando chegaram ao hotel no México, é que ele se permitiu despi-la. Tirou-lhe a roupa gentilmente e ficou a olhar para o seu corpo maravilhoso. Era alta e magra, com seios redondos e firmes, uma estreita cintura que conduzia a umas ancas estreitas mas atraentes, e umas pernas quase tão altas como as dele. Possuíra-a lenta e cuidadosamente e, naquela semana, mostrara-lhe os maravilhosos êxtases da união dos seus corpos. Como tudo o que fazia, Desmond fê-lo com perícia, bem e com uma precisão extraordinária, e Cassie tinha estado à sua espera. Quisera ser sua mulher, estar junto dele, fazer amor com ele e provar-lhe que alguém o amava. Cassie era saudável, jovem, viva e excitante. Desmond era mais controlado, mas ela levara-o a pontos que já esquecera há muito, dando por si a gozar a juventude e a entrega inesperada que Cassie lhe trouxera.

- Eu não sei - disse nessa tarde depois de fazerem amor, - mas tu és perigosa.

Adorava fazer amor com ela. Muito mais do que esperara. Havia um calor e uma sinceridade nela que, juntamente com a paixão, o surpreendiam e comoviam.

- Talvez devêssemos desistir de voar e passar a vida na cama a fazer bebês - afirmou ela. Depois resmungou consigo própria, ao pensar que estava a tornar-se como as irmãs. Fê-la pensar se fora isso que lhes acontecera. Era muito fácil ficar arrebatada nos braços do homem amado e abandonar-se aos prazeres da carne e às conseqüentes recompensas naturais.

- Sempre pensei que elas estavam a perder muita coisa ao casarem tão cedo e terem tantos filhos - explicou-lhe ela enquanto estavam deitados lado a lado na praia com os corpos quentes, úmidos e satisfeitos. - Penso que agora percebo como acontece. É tão fácil deixar as coisas acontecerem, ser mulher, casar e ter filhos.

Desmond, porém, abanou a cabeça ao ouvi-la.

- Nunca poderás fazer isso, Cass. O teu destino reserva-te coisas bem mais importantes.

- Talvez. Para já. - Se ele o dizia... Naquele momento, sentia que só estava destinada a estar nos seus braços e não desejava mais nada. Apenas ser dele para sempre. A súbita apresentação ao seu lado físico levara-a a lugares que nunca conhecera, e gostava. - Mas um dia gostaria de ter filhos. - Desmond respondeu-lhe que estaria disposto a isso se ela o desejasse.

- Antes disso ainda tens muito a fazer. Coisas importantes - disse ele, voltando a parecer um professor. Cassie sorriu e virou-se para o olhar e passar sedutoramente um dedo pelo seu corpo.

- Consigo pensar em coisas muito importantes... - disse maliciosamente, enquanto ele se ria e a deixava fazer o que queria. Os resultados eram inevitáveis. O Sol estava a pôr-se na sua ilha deserta quando se largaram novamente como dois pedaços de destroços sem vida no oceano.

- Que tal foi a lua-de-mel? - gritaram os repórteres que estavam no relvado da casa quando eles chegaram. Como era habitual, tinham conseguido saber quando é que os Williams chegariam e, quando a limusine surgiu, os repórteres avançaram. Por vezes, Cassie perguntava-se como é que eles sabiam onde estavam e para onde iam.

Mal conseguiram chegar até à porta e depois, também como era hábito, Desmond parou alguns instantes para falar com eles. Enquanto o fazia, tiraram milhares de fotografias. A que surgiu na capa da Life, na semana seguinte, mostrava Desmond a entrar em casa com a noiva ao colo.

No entanto, a partir desse momento ` a lua-de-mel tinha terminado para Cassie. Tinham estado fora durante duas idílicas semanas mas, na primeira manhã depois da chegada, Desmond acordou-a às três, e às quatro horas ela já estava a treinar no North Star.

O seu horário era cada vez mais severo, e tanto ela como Billy recapitulavam os seus passos milhares de vezes. Simulavam todos os acidentes possíveis, descolar e aterrar só com um motor, depois com os dois, voar sem ambos os motores, e praticavam as aterragens em pistas curtíssimas e com os mais ferozes ventos cruzados. Também simulavam aterragens com todos os tipos de condições climatéricas, desde o difícil ao quase impossível. Faziam ainda vôos de longa distância durante horas a fio. Sempre que não estavam no ar, estavam debruçados sobre cartas, mapas climatéricos e tabelas de combustível. Encontravam-se com os construtores e engenheiros e aprendiam todas as reparações possíveis com os mecânicos. Billy passava horas a praticar com o equipamento de rádio, e Cassie no Link Trainer a aprender a pilotar sem visibilidade em todo o tipo de condições.

Cassie e Billy voavam muito e bem. Constituíam uma grande equipa e, em Abril, já faziam habilidades que teriam sido o espanto de qualquer festival aéreo. Passavam catorze horas por dia juntos. Desmond trazia-a para o trabalho às quatro da manhã e ia buscá-la pontualmente às seis da tarde. Levava-a para casa, onde ela tomava banho e faziam uma refeição ligeira. Depois, ele ia para o escritório com a pasta cheia de notas e planos para a viagem e, mais recentemente, com o pedido de vistos. Estava também ocupado a enviar combustível para cada um dos locais onde aterrariam e a negociar contratos para artigos e livros que surgissem depois. Geralmente, trazia documentos para ela ler sobre as condições climatéricas em todo o mundo, sobre as evoluções mais importantes na aviação ou sobre áreas em que deveriam ser cautelosos durante a viagem, dada a sensibilidade da situação mundial. Era como fazer os trabalhos de casa todas as noites, mas, depois de passar o dia inteiro a voar, Cassie normalmente não tinha paciência para o fazer. Queria jantar fora com ele de vez em 'quando ou ir ao cinema. Era uma rapariga de vinte e um anos, mas ele estava a tratá-la como um robô. As únicas vezes que saíram foi para assistirem a festas sociais importantes em que a sua presença seria útil.

- Será que não podemos fazer alguma coisa que não tenha a ver com a viagem? - queixou-se ela uma noite em que Desmond trouxera uma pilha impressionante de papéis e lhe lembrou que precisavam da sua atenção imediata.

- Agora não. Podes brincar no próximo Inverno, a não ser que tenhas planejado bater mais algum recorde. Agora temos de tratar de negócios - disse firmemente.

- É só isso que temos feito - queixou-se ela. Desmond olhou-a com reprovação.

- Queres acabar como a Star of the Pleiades? - perguntou, zangado. Era o avião da Earhart, e havia alturas em que Cassie já estava farta de ouvir dizer aquilo.

Tirou-lhe os papéis das mãos e voltou para cima, batendo com a porta do escritório. Pediu-lhe desculpa mais tarde e, como sempre, Desmond foi muito compreensivo.

- Quero que estejas preparada de todas as maneiras possíveis para que não haja qualquer dissabor, Cassie. - Mas ambos sabiam que existiam elementos que ele não poderia prever, como tempestades ou problemas de motor. Porém, até agora, ele pensara em tudo até ao mais ínfimo pormenor.

Até Pat ficou muito impressionado com o que Cassie lhe contou sobre os preparativos. O homem era um gênio em planejamento e precisão e, sobretudo, em relações públicas. Mesmo que fosse compulsivo com todos os seus aviões, tinha em mente a sua segurança e bem-estar.

Para a recompensar do seu trabalho árduo, em finais de Abril levou-a para um fim-de-semana romântico em São Francisco, que Cassie adorou, à exceção do fato de Desmond lhe ter marcado três entrevistas.

Em Maio, a publicidade subiu radicalmente. Havia conferências de imprensa todas as semanas e metragens dos seus vôos em documentários. Ela e Billy apareciam em todo o lado: na rádio e em clubes femininos, davam autógrafos e posavam constantemente para fotografias. Por vezes, Cassie sentia que não tinha vida própria e, de fato, não tinha. O imenso trabalho e a proximidade da viagem faziam com que ela e Desmond se vissem cada vez menos. À noite, ele ia durante algumas horas ao clube para descontrair. Em finais de Maio, ficava a ler documentos no escritório, acabando por aí adormecer     .

Cassie estava tão farta que Desmond sugeriu que fosse passar um fim-de-semana a casa, em Maio, e ela sentiu-se aliviada por ir. Ficou muito feliz por ver os pais. Desta vez, significava não passar o seu aniversário com Desmond, mas, antes de ela partir, ele oferecera-lhe uma linda pulseira de safiras e dissera-lhe que estariam juntos nos próximos cinqüenta aniversários. Até Cassie sentiu não ser uma tragédia não passar o dia com ele. Estava demasiado tensa com a viagem para o gozar plenamente. Ela e Desmond parecia estarem muito distantes, pois só pensavam na viagem.

Era ridículo. Ia fazer vinte e dois anos e estava casada com um dos homens mais importantes do mundo. Ela própria era uma mulher muito célebre, mas sentia-se angustiada e infeliz Desmond só falava na viagem, passava o tempo a ler sobre a mesma, só queria que Cassie posasse para fotografias e passasse quinze horas por dia a voar. A vida era mais do que isso. Pelo menos, pensava que sim, mas ele parecia não saber que ela estava viva. De certo modo, não estava. Nas suas vidas, não havia lugar para o romance. Apenas a viagem e uma enorme quantidade de preparativos.

- Será que ainda teremos de voar mais? - queixou-se ela a Billy a caminho de casa. Este tinha decidido ir com ela passar o fim-de-semana. - Juro que às vezes sinto que odeio Voar.

- Sentir-te-ás melhor quando estivermos a caminho Cass. A espera é muito dura. - Só faltavam cinco semanas para a volta e estavam ambos muito tensos. Cassie conseguia sentir a tensão. Além disso, estava casada há três meses e meio e não estava mais próxima de Desmond. As suas noites juntos eram tudo menos românticas, pensava ela enquanto voava para leste, mas nada referiu a Billy.

Em vez disso, falaram das conferências de imprensa que Desmond marcara em Nova Iorque e Los Angeles. Depois do fim-de-semana, queria que eles fossem a Chicago dar uma entrevista, mas até agora Cassie não concordara.

- Deus! É cansativo, não é? - Sorriu para Billy quando já estavam a meio do caminho. Estava muito contente por ir a casa. Precisava de ver os pais.

- Acho que mais tarde vamos pensar que tudo valeu a pena - sugeriu Billy para a encorajar. Cassie encolheu os ombros e sentiu-se melhor.

- Espero que sim.

Continuaram o vôo em silêncio e depois Billy olhou para ela. Ultimamente andava com um ar especialmente cansado e infeliz. Suspeitava que fosse devido à pressão constante da imprensa. Como ele não se importavam tanto, mas devoravam Cassie, e Desmond nunca parecia protegê-la deles. Pelo contrário: até gostava.

- Estás bem, Cass? - perguntou Billy algum tempo depois. Ela era como uma irmã mais nova e a sua melhor amiga. Passavam praticamente todo o dia juntos e nunca discutiam ou se cansavam da presença um do outro. Seria a companhia perfeita para a volta ao Pacífico, e Billy estava cada vez mais feliz por participar.

- Sim. Estou bem. Estou a sentir-me melhor. Será bom chegar a casa e ver a família.

Ele acenou com a cabeça. Na semana anterior, Billy tinha ido a São Francisco ver o pai, que estava muito orgulhoso dele, e Billy sabia como a família era importante para Cassie. Estava a precisar de vê-los, tal como ele precisara de ver o pai. Subitamente, sozinhos no avião, quis fazer-lhe uma pergunta que nunca fizera por vergonha. Mas Cassie agora parecia mais descontraída.

- Tens tido notícias do Nick? - perguntou, como por acaso. Ela olhou fixamente para as nuvens durante bastante tempo e depois abanou a cabeça.

- Não, não tenho. Ele queria que ambos fôssemos livres. Acho que conseguiu o que queria.

- Já sabe? - inquiriu Billy serenamente, com pena que a relação não tivesse resultado. Nick era um homem fabuloso e Billy sentira, desde o dia em que os conhecera, o amor que Cassie tinha por ele. Era como se pertencessem um ao outro.

- Do Desmond? - perguntou Cassie, e ele anuiu com a cabeça. - Não. Como ele não queria escrever, achei que acabaria por saber. Não quis escrever para lhe contar. - Cassie também não lhe queria escrever para não perturbar o equilíbrio. Uma coisa daquelas seria suficiente para cometer um erro fatal ao pilotar um caça e ela não queria que isso acontecesse. - Já deve saber. Sei que escreve ao meu pai. - Mas nunca perguntara a Pat se lhe dissera. Pensar nisso era ainda doloroso e esforçou-se para não pensar nele enquanto sobrevoava o Kansas.

A imprensa estava à espera deles quando aterraram em Ilinois. Tinha passado todo o dia à espera deles no aeroporto do pai. Sabia que só iria ter paz depois da volta ao Pacífico. Estava demasiado próxima.

Fez o que Desmond sempre quisera que fizesse: deu-lhes bastante tempo, deixou-os tirar fotografias, satisfê-los com as respostas a algumas perguntas e depois terminou, dizendo que estava ansiosa por chegar a casa e ver a mãe.

Pat tinha estado à sua espera, e tanto ele como Billy posaram com ela para os fotógrafos. Finalmente, abandonaram o aeroporto, ela então deu um suspiro de alívio enquanto atiravam as malas para o caminhão do pai. Pat olhou-a com um longo e lento sorriso. No entanto, assim que chegaram, notara que o pai estava com mau aspecto.

- Sente-se bem, pai? - Pat estava com uma cor acinzentada, e ela não gostou nada disso, mas pensou que poderia ter tido gripe. Soubera que a mãe a apanhara ao regressar da Califórnia, enquanto o pai trabalhava de mais para um homem da idade dele. Agora trabalhava ainda mais, sem Nick, Billy, Chris ou ela. Confiava tudo a empregados e às habituais tripulações nômades de vagabundos do ar.

- Estou ótimo - disse ele de modo pouco convincente. Depois olhou ansiosamente para a filha, Oona afirmará que lhe devia ter dito ao telefone, mas não sabia o que dizer. Pat também nada dissera a Nick e, surpreendentemente, mais ninguém o tinha feito. Só chegara na noite anterior.

- Passa-se alguma coisa? - Ela sentira a sua hesitação. Billy não estava a prestar atenção e olhava para a paisagem pela janela.

- O Nick está cá - disse ele, olhando em frente.

- Está? Onde está? - perguntou ela, mostrando um certo desconforto.

- Em casa dele. Mas penso que passará lá por casa. Achei melhor avisar-te.

- Disse-lhe que eu vinha? - Pat abanou a cabeça, e Billy olhou-a nos olhos. Acabara de ouvir as palavras de Pat e esperava que isso não a perturbasse demasiado.

- Ainda não. Chegou a noite passada. Só vai ficar alguns dias. Não tive oportunidade de lhe contar. - Cassie não ousou perguntar ao pai se lhe comunicara o seu casamento.

Ela não disse nem mais uma palavra, e alguns minutos mais tarde estava nos braços da mãe. Billy transportou as bagagens e Pat conduziu-o ao quarto de Chris. As coisas dele ainda lá estavam e era um choque entrar e vê-las. Cassie sentiu uma dor no coração quando olhou à sua volta. Era como se ele fosse chegar a casa a qualquer momento.

Instalou-se no seu quarto, mas a mãe já tinha o jantar à espera deles. Era uma refeição quente e simples composta dos alimentos preferidos de Cassie: frango frito, uma maçaroca de milho e purê de batata.

- Se vivesse aqui já estava do tamanho da casa - disse Cassie, feliz entre garfadas.

- Eu também - repetiu Billy com um sorriso feliz. A mãe sentiu-se muito lisonjeada.

- Estás mais magra - criticou Oona com o sobrolho franzido. Billy explicou imediatamente.

- Temos trabalhado muito, Mistress O'Malley. Vôos de teste de quinze horas por dia e vôos de longo alcance por todo o país. Estamos a testar tudo o que podemos antes de julho.

- Fico contente de o saber - disse Pat.

Enquanto Oona levantava a mesa e se preparava para servir torta de maçã com gelado de baunilha feito em casa, ouviram passos no alpendre e Cassie sentiu o coração parar. Estava a olhar para o prato e teve de se forçar a olhar para ele quando Nick entrou a porta. Não queria vê-lo, mas sabia que era impossível. Quando aconteceu, ficou sem fôlego. Estava ainda mais bonito, com o seu cabelo negro, brilhantes olhos azuis e muito bronzeado. Quase arquejou quando o viu e depois corou muito. Ninguém se mexeu ou disse uma palavra. Era como se todos soubessem o que ia acontecer.

- Interrompi alguma coisa? - perguntou Nick desajeitadamente. Conseguia sentir a tensão que pairava na sala. Depois viu Billy. - Olá, miúdo. Como estás? - Atravessou a sala para lhe apertar a mão, e Billy levantou-se, sorrindo, com o rosto cheio de sardas e os olhos a refletir o prazer de o ver.

- Está tudo ótimo. E tu, Stick?

- Estou a começar a parecer um marinheiro inglês.

Nessa altura, e inevitavelmente, Nick olhou para Cassie, e os seus olhos encontraram-se. Os dela estavam cheios de tristeza e os dele espantados. Sentira mais saudades dela do que desejara. - Olá, Cass - disse em voz baixa. - Estás com bom aspecto. Deves andar a preparar-te para a viagem. - O último documentário que vira falava do assunto, mas já fora há cinco meses. Por razões óbvias, estavam um pouco atrasados no tempo em Hornchurch. No último ano, Nick não fizera mais nada senão voar a todos os momentos, horas e segundos. Voar e retirar cadáveres de mulheres e crianças de edifícios a arder em Londres. Fora um ano muito duro, mas sentira-se útil. Era melhor do que estar ali sentado a palitar os dentes e à espera de entregas de correio no Minnesota,

Oona ofereceu-lhe a sobremesa e ele sentou-se cuidadosamente. Apercebia-se que tinha interrompido alguma coisa, ou que ninguém se sentia bem com a sua presença, mas podia estar a imaginar coisas. Não tinha a certeza, mas conversou amigavelmente com Billy e Pat. Cassie não abriu a boca. Foi para a cozinha ajudar a mãe, mas teria de voltar enquanto todos comiam a sobremesa. Não tocou na sua torta de maçã, apesar de a mãe saber que adorava. Pat e Billy percebiam o que se passava com ela, mas Nick não sabia o que acontecera.

Depois, acendeu um cigarro, levantou-se e espreguiçou-se. Também emagrecera bastante e estava com um aspecto jovem, firme, esbelto e muito saudável.

- Queres ir dar uma volta? - perguntou-lhe casualmente. Porém, não havia nada de descontraído na pergunta. Sabia que se passava alguma coisa e queria ser ele próprio a perguntar. Durante alguns terríveis instantes, perguntou a si próprio se ela se teria apaixonado por Billy. Desde a morte de Chris, há quase um ano, que Nick não vinha a casa, e fora uma estranha ironia do destino terem ido a casa simultaneamente. Mas, como sempre, estava muito contente de a ver. Mais do que isso: enchia a sua alma com luz e ar e tudo o que desejava era beijá-la. Nick percebeu, porém, que ela estava a evitá-lo. Pensou que Cassie pudesse estar zangada, pois nunca lhe escrevera no último ano. Não queria dar-lhe esperanças, porque o que ele dissera antes de se ir embora era irreversível.

- Passa-se alguma coisa, Cass? - perguntou ele finalmente quando chegaram ao riacho que corria junto ao final da propriedade do pai. Cassie ainda não dissera uma palavra.

- Não exatamente - disse ela com suavidade, tentando não o olhar, mas sendo obrigada a isso. Não conseguia tirar os olhos de Nick. Não interessava o que dissera a si própria durante o passado ano sobre estar pronta para continuar, sobre Desmond e o fato de este precisar dela. Tinha a certeza que ainda estava apaixonada por Nick, quer ele estivesse ou não. Era assim que as coisas eram entre eles, mas ela nunca trairia Desmond. lembrou-se das palavras do pai, quando lhe comunicara que queria casar com Desmond, e iria honrar o seu casamento, mesmo que isso a matasse. Percebeu que isso seria possível quando olhou para Nick. Só olhar para ele causava-lhe uma imensa dor no coração.

- O que é, querida? Seja o que for, podes contar-me. Afinal, somos velhos amigos. - Nick sentou-se a seu lado sobre um velho tronco, agarrou-lhe na mão e, quando olhou para baixo, viu-a. A fina linha de ouro no terceiro dedo da sua mão esquerda. Cassie não levara o anel de noivado, Apenas a aliança que já dizia tudo. Os seus olhos encontraram-se e ela acenou com a cabeça. - Casaste? - Nick parecia ter levado um soco.

- Casei - disse tristemente, sentindo que o tinha traído, apesar de todas as explicações que tentava dar a si própria e do fato de ele lhe ter dito para continuar a sua vida. Ela podia ter esperado e não esperara. - Casei-me há três meses. Ter-te-ia dito, mas tu não escreves e eu não sabia o que dizer. - As lágrimas rolaram-lhe pelo rosto e ficou sem voz.

- Com quem? - Billy tinha parecido pouco à vontade com ela e tinham vindo para casa juntos. Nick sempre sentira que estavam muito bem um para o outro e, além disso, tinham a mesma idade. Era o que quisera para ela, mas doía tanto pensar nisso que ficou com lágrimas nos olhos. - O Billy? - perguntou, com a voz presa na garganta, tentando ter um ar nobre, mas daquela vez Cassie riu-se através das lágrimas e retirou gentilmente a mão.

- Claro que não. - Hesitou durante muito tempo, olhando para outro lado e, finalmente, virou-se para ele. Tinha de lhe dizer. - O Desmond.

Houve um silêncio infinito no ar quente da noite e depois um grito de incredulidade, quase de dor, quando ele percebeu.

- Desmond Williams? - Como se houvesse mais dez com o mesmo nome próprio. Olhou para ela em agonia e viu-a acenar com a cabeça. - Por amor de Deus, Cassie. Como pudeste ser tão louca? Eu disse-te, não disse? Por que raio pensas tu que ele casou contigo?

- Porque queria, Nick - afirmou num tom aborrecido. - Precisa de mim e, à maneira dele, ama-me. - Se bem que soubesse melhor do que ninguém que, a maior parte das vezes, só havia lugar na vida de Desmond para aviões e papéis.

- Ele não precisa de nada a não ser de um diretor de vôo e equipa de filmagens. Durante este ano, não vi um único documentário que não tivesse mais de cinco meses, mas aposto que aproveitou bem o fato de casar contigo. Deves ter tirado mais fotografias do que a Garbo.

- Estamos a cinco semanas da volta, Nick. O que esperavas?

- Esperava que tivesses mais miolos para o veres como ele é. É um charlatão e disse-o desde o dia em que o conheci. Vai usar-te até secares ou fazer-te voar até caíres. Ele só se preocupa com uma coisa: publicidade e a maldita companhia. O homem é uma máquina e um gênio da publicidade. Não passa disso. Estás a dizer-me que o amas? - Nick estava a gritar, e ela vacilou quando aquele se colocou mesmo à sua frente a insultar o marido.

- Amo, sim. E ele também me ama. Pensa em mim constantemente, toma conta de... Claro que dá importância aos aviões e à volta, mas está a fazer os impossíveis para me proteger.

- Como, por exemplo? Vai mandar contigo máquinas fotográficas à prova de água e uma equipa de mergulhadores? Por favor, Cassie. Acorda. Estás a tentar dizer-me que ele não fez uma tremenda publicidade ao vosso casamento? Ainda não vi nada, mas aposto que aqui já viram. Deves ter atirado o bouquet direto às câmaras.

- E depois? - Nick estava mais perto da verdade do que pensava, mas Desmond estava sempre a dizer-lhe para cooperar e ter paciência e que a imprensa e a volta ao Pacífico eram uma parte importante das suas vidas. No entanto, ela tinha a certeza que Desmond não casara consigo por causa disso. Metia-lhe nojo ouvir Nick e zangou-se. Que direito tinha ele de criticar? Nem sequer lhe tinha escrito. - O que tens a ver com isso? - gritou ela. - Não me quiseste. Não quiseste casar comigo ou até dar-me qualquer esperança de que o farias se regressasses da guerra. Tudo o que desejas é armar-te em ás na guerra dos outros. Então, vai, aviador. Não me quiseste e disseste-mo. Só querias andar aos beijos enquanto cá estavas e depois ias fazer a tua vida. Continua, mas eu também tinha o direito de ter uma vida e agora tenho-a.

- Não, não tens - disse ele maldosamente. - O que tens é... fruto da tua imaginação. Assim que terminarem a volta e Desmond já não precisar de ilusões para alimentar a imprensa, deita-te imediatamente fora ou então mantém-te, mas ignorar-te-á.

Era o que Desmond estava a fazer agora, mas ela sabia que era devido ao trabalho que tinha a organizar a viagem. Cassie queria que Nick estivesse enganado. Tudo o que dissera era injusto, porque não sabia perder e estava zangado.

Depois, Nick deu mais um passo na direção de Cassie para fazer ainda pior. Queria arrancá-la do tronco e puxá-la para os seus braços, mas não o fez por respeito.

- Ouvi dizer que ele tem meia dúzia de amantes cuidadosamente guardadas, Cass. já alguém te disse isso ou já descobriste sozinha? - Disse-o por maldade, mas também parecia acreditar no que estava a dizer.

- Isso é ridículo. Como poderias saber?

- Rumores. Não é o santo nem o marido que parece ser disse ele tristemente. Desejava ter casado com ela, mas parecera-lhe muito errado quando partira e ainda pensava o mesmo. No entanto, também tinha a mesma opinião sobre o seu casamento com Desmond. - O tipo é um filho da mãe, Cass. Provavelmente, nem sequer te ama. Encara isso. Ele é um empresário de espetáculos e um vigarista. Tu não casaste com ele. Tudo o que fizeste foi juntar-te ao circo.

Mas ouvir Nick dizer aquelas coisas sobre Desmond assustava-a tanto que a única coisa que tinha vontade de fazer era bater-lhe para o fazer parar. Levantou a mão para o esbofetear com toda a força, mas ele foi mais rápido. Agarrou-lhe o braço, puxou-lho para trás das costas e aí não conseguiu controlar-se. Beijou-a com força, com mais força do que teria ousado em qualquer outro momento, mas ela já não era uma rapariguinha. Era uma mulher. Sem pensar, sentiu-a responder-lhe e, durante o que pareceu uma eternidade, estiveram agarrados um ao outro numa paixão desabrida. Finalmente, Cassie afastou-se com as lágrimas a correr pelas faces. Detestava o que estava a acontecer-lhes e o que lhe tinha feito, mas casar com Desmond tinha-lhe parecido acertado. Talvez não tivesse sido.

Porém, agora não era esse o problema. O problema era Nick e aquilo a que eles já não tinham direito.

- Eu amo-te, Cassie - disse Nick com urgência enquanto a abraçava de novo. Desta vez não a beijou. - Sempre te amei e sempre te amarei. Não queria arruinar a tua vida, mas nunca pensei que fizesses algo tão estúpido. Pensei que acabarias com o Billy.

Ela riu-se da idéia e sentou-se novamente no tronco a seu lado, pensando na confusão que criara. Estava apaixonada por dois homens, ou talvez apenas por um, mas estava obcecada por um e casara com outro.

- Casar com Billy seria como casar com o Chris - disse Cassie, rindo tristemente.

- E casar com ele? - perguntou Nick com a voz estrangulada. Agora queria saber.

- Ele é muito sério - suspirou ela -, e tudo o que faz neste momento é pela viagem. Acho que está a fazê-lo por mim. Não sei. Talvez eu tenha cometido um erro. Não sei.

- Cancela a viagem - disse ele urgentemente. - Divorcia-te. - Nick estava a entrar em pânico. Naquele momento faria tudo. Casaria com Cassie se ela quisesse, mas todas as fibras do seu ser lhe diziam que ela estava em perigo.

- Não posso fazer isso, Nick - disse Cassie. - Não seria justo. Ele casou comigo de boa-fé. Não o posso abandonar agora. Devo-lhe demasiado. Tem tudo a girar à volta desta viagem e investiu muito nela. Não foi só o avião.

- Não estás preparada para isso.

Mas ela sabia que estava.

- Estou, sim.

- Tu não o amas. - Subitamente pareceu muito jovem e vulnerável. Cassie desejava ter esperado por ele, mas não esperara.

- Não estou apaixonada por ele. Nunca estive. Ele sabia. Falei-lhe de ti e aceitou tudo. Todavia, amo-o. Tem sido demasiado bom para mim para eu não o amar. Não posso desiludi-lo, Nick.

- E depois? O que acontece? Ficas agarrada a ele para sempre?

- Não sei, Nick. Não há respostas fáceis.

- Serão, se tu quiseres - afirmou Nick teimosamente.

- Isso foi o que eu te disse há dois anos, antes de partires, Nick. Tu também não me deste ouvidos.

- Às vezes, as coisas podem parecer mais complicadas do que são. Somos nós que as complicamos, mas não é forçoso que isso aconteça - disse ele subitamente.

- Casei com ele, Nick. Para o mal e para o bem, amando-te ou não. Não o posso abandonar só porque tu o desejas.

- Talvez não - disse Nick rispidamente -, mas abandonar-te-á um dia, se não fisicamente, emocionalmente, quando tudo isto acabar. É tudo publicidade. Verás, Cass. Eu sei.

- Talvez, mas até lá, devo-lhe alguma coisa e não vou quebrar a minha palavra e traí-lo. É o meu marido e merece mais do que ser traído por nós. Não o farei.

Nick olhou para ela durante muito tempo e pareceu cair em si com a força das suas palavras.

- És uma boa rapariga, Cass. Ele é um homem de sorte. Acho que fui um louco. Pensei que era velho e pobre de mais para ti e demasiado idiota. De qualquer modo, em parte tinha razão. - Depois não conseguiu resistir a um golpe baixo. - Qual é a sensação de estar casada com um dos homens mais ricos do mundo?

- Se estivesse casada contigo não seria diferente - devolveu ela rapidamente. - Vocês são ambos meninos mimados que querem que tudo seja feito à vossa maneira. Talvez todos os homens sejam assim. Ricos ou pobres - afirmou Cassie, olhando-o nos olhos, e Nick riu-se. Não tinha perdido a personalidade.

- Touché. Gostaria muito de me sentir feliz por ti, mas não estou, Cass.

- Tenta. Não temos outra hipótese. - Ela tinha de assumir a escolha que fizera para bem de todos. Era uma mulher honrada. Nick acenou com a cabeça e regressaram lentamente de mão dada a conversar sob o céu estrelado. Apercebeu-se mais do que nunca que tinha sido um idiota, mas tomara as suas decisões por ela e eis o resultado. Pat tivera razão. Ele tinha-a libertado e Cassie casara com outro. Mas Desmond Williams... Nick detestava tudo o que sabia dele e estava completamente convencido de que estava a usar Cassie, que era demasiado jovem e inocente para perceber. Nick estava com quarenta anos e conseguia ler Desmond tão facilmente como a primeira página do New York Times. Até agora, não gostara do cabeçalho.

Cassie despediu-se no alpendre e não voltaram a beijar-se Só quando ela entrou é que Nick reparou no seu velho amigo que estava ali sentado a observar.

- Estás a tomar conta de mim, As? - perguntou Nick com um sorriso cansado, sentando-se na cadeira perto dele.

- Estou. Disse à Cassie há meses que não permitiria que traísse o seu casamento.

- Ela não o fará. É uma boa rapariga e eu sou um parvo. Tinhas razão, Pat.

Tinha receio de a ter. - Depois, foi honesto com o seu velho amigo, o rapaz que fora o seu protegido durante a outra guerra, há vinte e cinco anos atrás. - O pior é que a Cassie ainda te ama e tu sabes. Será que é feliz com ele? - perguntou-lhe Pat com um ar de conspiração.

- Não acho, mas pensa que lhe deve tudo.

- Deve-lhe muito, Nick. Isso não se pode negar.

- E se lhe acontece alguma coisa? - Nick não quis usar a palavra «morrer» em frente de Pat, mas poderia acontecer. - O que é que ficamos a dever-lhe?

- Tu sabes que é um risco que todos corremos, Nick. Ela sabe o que quer e o que faz. A única coisa de que não tem a certeza é em relação a ti.

- Eu também não. Eu ainda não teria casado com ela, pois não a queria deixar viúva. - Riu-se inexpressivamente. - Pensei que era muito velho, mas ele é quase tão velho como eu.

- Somos todos loucos. Eu quase não casei com a Oona há trinta e dois anos. Achava que era demasiado boa para mim e a minha mãe disse-me que era doido. Disse-me para casar, mas eu tinha razão: ela é demasiado boa para mim, por isso eu amo-a. Até hoje, ainda não me arrependi de um único dia do nosso casamento. - Pat nunca dissera isso a Oona e, por ora, o conselho vinha tarde para Nick. Mas se Nick tivesse razão sobre Desmond Williams, ao dizer que ele ia abandonar Cassie, talvez um dia ela voltasse a ser livre. Agora era difícil saber.

Ficaram sentados no alpendre e conversaram durante muito tempo. Quando se levantaram, Nick reparou que Pat estava com um pouco de falta de ar. Nick não sabia o que era, mas não gostou.

- Tens estado doente, As?

- Nada de mais. Um pouco de gripe e alguma tosse. Estou a ficar muito gordo com os cozinhados da Oona. Às vezes fico sem fôlego. Não é nada.

- Toma cuidado - recomendou Nick, preocupado.

- Diz isso a ti próprio, que andas aos tiros aos Alemães todos os dias - disse Pat rindo. - Acho que tens mais com que te preocupar do que eu.

Nick acenou com a cabeça, grato por tudo o que ele lhe tinha dito sobre Cassie.

- Boa noite, Ás. Até amanhã.

Nick voltou a pé para a sua barraca. Tudo nela tinha pó. Não vinha a casa há um ano, mas sabia bem estar ali. Sentia-se bem com tudo, exceto com o fato de Cassie se ter casado. Ainda não conseguia acreditar. Nessa noite, ficou deitado, sofrendo por causa dela e incapaz de acreditar que, agora, ela pertencia a outro. Aquele rosto doce, a menina que ele tanto amara já não era sua. Era de Desmond. Adormeceu com as lágrimas a rolarem-lhe pelas faces para a almofada.

 

O fim-de-semana em casa acabou por ser muito difícil para ambos. Cassie fez tudo para não estar junto de Nick, mas o seu mundo era muito pequeno, o que os fazia encontrarem-se em todo o lado: em casa, no aeroporto e até na mercearia, quando Cassie foi fazer umas compras para a mãe. Nick tentava ser respeitador por ela, não por Desmond, mas era impossível. Na véspera da sua partida, acabaram novamente nos braços um do outro. Era a noite do seu vigésimo segundo aniversário. Nick jantara com ela e com a família. Durante toda a refeição estiveram inexoravelmente impelidos um para o outro como ímãs. Sabiam que era a última noite em que estavam juntos e poderia não haver outra oportunidade. Só a idéia os punha em pânico.

- Não podemos fazer isto, Nick - disse Cassie depois de o beijar prolongadamente. - Prometi ao pai que não o faria e não posso fazê-lo a mim ou ao Desmond. - Da maneira como a imprensa a seguia, haveria, decerto, um escândalo. Naquele dia, tinham tentado tirar fotografias de todos no aeroporto, mas Nick desapareceu discretamente para a sua barraca e, quando os fotógrafos partiram, emergiu novamente. Cassie ficou-lhe grata. Sabia que Desmond ficaria muito perturbado se visse Nick nas fotografias, pois não lhe dissera que este estava em casa quando lhe telefonou.

- Eu sei, Cassie. Eu sei. - Nick não discutiu com ela, porque não queria magoá-la e sentaram-se no alpendre a conversar. Os pais tinham ido para a cama há uma hora e não fizeram comentários quando viram que Nick ia ficar a falar com Cassie. Ela partiria no dia seguinte e era a última oportunidade de estarem juntos.

- Tens a certeza de que estás preparada para a volta ao Pacífico? O Billy diz que o teu avião é muito pesado.

- Sei lidar com ele.

Desta vez, Nick não discutiu com ela.

- A tua rota é segura?

- É melhor que seja. O Desmond trabalha nela todas as noites até à meia-noite.

- Isso deve ser muito divertido para ti - disse ele vivamente, mas sorrindo com amargura. - Sua idiota! Podias ter ficado com o Bobby Strong a vender cebolas e, em vez disso, o que fazes? Casas com o maior milionário do país. Será que não acertas em nada, Cassie? - continuou ele para a arreliar, o que a fez rir-se. O assunto nada tinha de divertido, mas, se não se rissem, chorariam. Nos poucos dias em que estiveram na cidade, ficou claro que estavam condenados a amarem-se para sempre. Todas as vezes que se encontravam ou se olhavam, o poder dos seus sentimentos ainda os aproximava mais. Não havia por onde fugir, e Cassie percebia agora que aquilo não era algo que passasse com o tempo. Ela e Nick faziam parte um do outro e sempre fariam. já não era possível negá-lo. Cada vez o amava mais, mas agora teria de viver com a agonia de o amar e de não querer trair Desmond.

Naquela última noite, ambos sabiam que era a sua única oportunidade de estarem juntos e, quem sabe, a última. Nick voltava para arriscar a vida na guerra e ela ia correr todos os riscos possíveis voando sobre o Pacífico. Era demasiado tarde para jogos ou zangas. Tinham de viver com o que tinham feito, sabendo que haviam sido loucos.

- O que vamos fazer, Cass? - perguntou ele com uma expressão de infelicidade, enquanto olhavam para a lua cheia no céu estrelado. Estava uma noite perfeita para amar, mas a sua história já não era simples. Ambos recordavam com saudade os primeiros tempos em que haviam passado horas juntos na pista deserta. Poderiam ter feito tudo nessa altura. Em vez disso, tinham optado estupidamente: Nick quisera ir lutar numa guerra que não era dele e ela casara com um homem de quem gostava, mas não amava. Cassie sabia perfeitamente bem que, apesar da sua lealdade a Desmond, Nick era o único homem que amava e que sempre amaria. Talvez um dia tudo mudasse, mas tal ainda não acontecera e provavelmente nunca aconteceria. Iludira-se ao casar com Desmond e agora, que vira Nick de novo, entendera-o.

- Gostaria de ir para Inglaterra contigo - disse ela tristemente.

- Eu também. Lá não há mulheres a voar em combate. Pelo menos por enquanto. Os Ingleses têm um espírito muito aberto.

- Talvez eu devesse fugir e alistar-me na RAF - afirmou ela com alguma seriedade. Não sabia como iria viver agora. De certo modo, estava grata por ir fazer a volta ao Pacífico. Mantê-la-ia ocupada e longe de Desmond.

- Talvez eu nunca devesse ter ido - disse Nick, surpreendendo-a completamente. Ouvi-lo preocupava-a. Se ele agora perdesse a força, poderia acontecer alguma coisa. já tinha ouvido falar de muitos homens que tinham morrido em combate depois de perderem as namoradas ou mulheres.

- Agora é tarde de mais para o dizer - ralhou Cassie, - É melhor prestares atenção ao que fazes.

- Olha quem fala! - riu-se ele, pensando no que ela ia enfrentar dali a um mês. Pensar nisso ainda o preocupava muito e Nick convidou-a a dar um passeio. Caminharam lentamente de casa dos pais até ao aeroporto. Era como se fosse um ímã. Ele contou-lhe o que sentia sobre Inglaterra, e Cassie falou-lhe da volta e da rota pelo Pacífico.

- É uma pena a guerra não te deixar fazer uma verdadeira volta ao mundo. Ficaria menos preocupado do que com esses longos vôos sobre o Pacífico. - Mas era aí que residia a glória e ambos o sabiam.

Estavam no aeroporto a falar do assunto e quase sem pensar dirigiram-se ao Jenny. Estava uma noite quente e a Lua estava tão brilhante que se conseguia ver todo o aeroporto.

- Queres ir dar uma volta? - perguntou, hesitante. Ela tinha o direito de o mandar para o inferno, mas ambos sabiam que não o faria. Queria estar sozinha com Nick e esquecer a sua outra vida e o fato de se separarem no dia seguinte, talvez para sempre.

- Era bom - disse Cassie suavemente. Sem mais palavras, ela ajudou-o a empurrar o avião para fora do hangar e fazer a revisão de terra. Voaram facilmente pelo céu da meia-noite com todos os seus sons e sentimentos familiares. Mas era diferente fazê-lo à noite. Lá em cima, estavam no seu mundo próprio, um mundo cheio de estrelas e sonhos e onde ninguém lhes podia tocar ou magoar.

Ele hesitou brevemente ao sobrevoar a velha pista onde costumavam encontrar-se e aterrou o pequeno avião à luz do luar. Depois, desligou o motor e ajudou Cassie a sair. Não faziam idéia para onde iam. Só sabiam que precisavam de estar juntos no seu mundo e longe de todos. Ali tudo era muito tranqüilo. Sem pensar, caminharam até ao lugar onde costumavam sentar-se e conversar durante horas. Cassie sentia-se muito mais velha e muito mais triste. O irmão morrera, e ela perdera toda a esperança de ficar com Nick. Fora ali que ele a beijara pela primeira vez e lhe dissera que a amava. Fora no dia em que Nick lhe participara que se alistara na RAF. A partir daí, só tinham tomado decisões erradas.

- Às vezes não gostavas de poder andar para trás no tempo? - perguntou, olhando para ele.

- Farias algumas coisas de diferente, Cass?

- Ter-te-ia, dito há muito tempo quanto te amava. Nunca pensei que ligasses, porque eu era apenas uma miúda. Achei que te ias rir de mim. - Estava linda, de pé a seu lado.

- Eu pensei que o teu pai me mandasse prender. - Era estranho perceber agora que se amavam há tanto tempo e que Pat não teria posto obstáculos. Cassie estava presentemente casada com outro e tudo era uma loucura.

- Agora é que o meu pai pode mandar prender-te - sorriu -, mas acho que nessa altura não. - Porém, nem tinha a certeza se ele agora objetaria. Sabia como eles se amavam, se bem que isso fosse exatamente o que Pat afirmara não querer, mas tinha mudado muito com os anos. Era agora o seu amigo mais íntimo, especialmente desde que Nick partira. Pat fora surpreendentemente compreensivo em relação a tudo o que ela fizera. Ainda conseguia surpreendê-la.

Caminharam até ao seu velho tronco; a erva estava úmida. Nick despiu o seu casaco de aviador para ela se sentar. Depois, sentou-se a seu lado, abraçou-a e beijou-a. Ambos sabiam porque tinham ido ali. Eram adultos e não precisavam de autorização ou de mentir, pelo menos naquela noite. Estavam ali porque se amavam e precisavam de levar algo consigo.

- Não quero fazer nenhum disparate - disse Nick enquanto ela se aconchegava, e ficou preocupado. Era a mesma preocupação que sentira quando partira para Inglaterra. No entanto, as coisas eram agora suficientemente diferentes para justificar o risco e, de certo modo, quase desejava deixá-la grávida. Talvez assim ela fosse obrigada a deixar Desmond

Enquanto Cassie estava deitada a seu lado e sentia os fortes braços de Nick abraçarem-na enquanto a beijava, desejou o mesmo. Momentos depois, o seu futuro empalideceu em relação ao presente. Ao beijarem-se, ela sentia chamas devoradoras trespassarem-lhe o corpo e, minutos mais tarde, a sua carne prateada brilhava ao luar ao lado de Nick. Era uma noite que nunca esqueceriam, e ambos sabiam que essa noite os teria de sustentar durante anos ou talvez para sempre.

- Cassie! Amo-te tanto - sussurrou ele ternamente, abraçando-a e sentindo o seu corpo junto do seu na noite quente. Enquanto estavam deitados com as roupas espalhadas pela erva, Nick percebeu que ela era muito mais bonita do que ele sonhara. - Fui um louco. - Estava deitado a seu lado a olhá-la e gravando todos os momentos na memória. À luz do luar parecia uma deusa.

- Eu também fui louca - sussurrou ela quase a dormir. Mas naquele momento não se importava, desde que estivesse nos seus braços e perto dele. Era tudo o que ela queria. Naquele momento, era tudo o que importava.

- Um destes dias talvez sejamos espertos... ou tenhamos sorte - afirmou Nick, duvidando, no entanto, do que dissera. Tudo era agora demasiado complicado. Tudo o que possuíam era aquela noite de luar.

Ficaram deitados durante muito tempo ao lado um do outro e, antes do nascer do Sol, fizeram amor novamente. Tinham adormecido e acordado nos braços um do outro, desejando-se. O Sol nasceu, sorrindo-lhes, e desta vez ele viu os seus membros graciosos serem beijados pela luz dourada da aurora. Depois ficaram abraçados durante muito tempo, desejando permanecer assim para sempre.

Quando regressaram ao aeroporto do pai, o céu estava listado de rosa, ouro e malva; quanto a eles apresentavam um ar muito calmo enquanto amarravam o Jenny. Cassie virou-se para ele com um longo e lento sorriso. Não estava arrependida do que tinham feito. Era o seu destino.

- Amo-te, Nick - disse Cassie com a felicidade estampada no rosto.

- Sempre te amarei - respondeu ele, e regressaram a casa dos pais. Agora pertenciam um ao outro e o laço entre ambos era inquebrável.

A casa estava silenciosa quando chegaram. Ainda era cedo e ninguém estava acordado, então Nick abraçou-a, fez-lhe festas no cabelo, tentando não pensar no futuro ou em Desmond Williams. Ficaram ali muito tempo, não querendo afastar-se; ele beijou-a novamente e Cassie continuou a dizer-lhe quanto o amava.

Finalmente, Nick foi-se embora quando ouviram os pais levantar-se. Não estavam arrependidos. Precisavam da força um do outro para olhar novamente para as suas vidas com todos os horrores e desafios que iam enfrentar.

- Irei ver-te antes de partir - prometeu ela num sussurro. Abraçou-o e beijou-o nos lábios com uma suavidade agonizante. Nick perguntou a si próprio como era possível deixá-la novamente ou permitir que partisse, sabendo que ela ia voltar para o marido.

- Não posso deixar que partas, Cass.

- Eu sei - disse ela, infeliz -, mas tenho de ir. - Ambos sabiam que não havia nada a fazer.

Nick foi-se embora e Cassie caminhou lentamente para o quarto que fora dela enquanto criança, pensando nele e desejando que tudo fosse diferente.

Tomou uma ducha e vestiu-se, pensando em Nick, e depois acompanhou os pais ao pequeno-almoço. Tal como Nick já notara, reparou que o pai respirava com dificuldade, mas insistia em dizer que não era nada. Assim que acabaram de comer, o pai levou Cassie e Billy ao aeroporto. Prometeu telefonar à mãe com freqüência antes da viagem e até regressar, se pudesse. Contudo, perguntou a si própria se Desmond o permitiria. Ver o pai tão pálido fê-la pensar que devia regressar.

Nick estava no escritório quando chegaram e olhou-a longamente quando se despediram. Caminhou com eles até ao avião, conversando casualmente com Billy. Contudo, em todos os momentos, Cassie sentia-o perto de si, sentia o acetinado do corpo dele no seu e o intenso prazer. O verdadeiro laço que partilhavam era o tempo, o amor e a paixão, e Cassie sabia agora que a chama do seu amor jamais se apagaria.

- Tenham cuidado - admoestou Nick. - Vê lá se ela não se mete entre duas árvores - disse a Billy à laia de aviso.

Depois, enquanto observava Cassie fazer as verificações de solo, apertou-lhe a mão. Nick não conseguia tirar os olhos de Cassie e ela adorava senti-lo perto de si.

Cassie beijou o pai enquanto Billy se instalava; não havia maneira de fugir: chegara a altura de se despedir de Nick. Os seus olhos encontraram-se, as suas mãos tocaram-se e ele puxou-a para os seus braços e beijou-a gentilmente em frente de todos. já não se importava. Só queria ter a certeza de que Cassie sabia que a amava.

- Toma conta de ti, Cass - sussurrou ele por entre os seus cabelos depois de a beijar. - Não faças loucuras durante a viagem. - Ainda desejava que ela não fosse, mas sabia que não conseguiria impedir.

- Amo-te - disse ela suavemente com os olhos cheios de lágrimas, que eram o espelho do que Cassie estava a sentir. - Manda notícias quando puderes. - Nick acenou com a cabeça e ela subiu para a carlinga enquanto apertavam as mãos pela última vez. Agora, era quase impossível separarem-se. Pat observou-os com pena, mas não fez qualquer crítica.

Pat e Nick ainda estavam na pista enquanto ela deslizava no enorme avião da Williams Aircraft: que pedira emprestado a Desmond. Quando levantou vôo, balançou as asas em sinal de despedida e seguiu. Nick ficou a olhar para o céu durante muito tempo. Já Pat voltara para o aeroporto e há muito que o avião desaparecera no horizonte. A única coisa em que conseguia pensar era em estar deitado a seu lado ao luar. De certa maneira, estava aliviado por voltar na manhã seguinte para Inglaterra. Não conseguia suportar estar ali sem ela.

Cassie e Billy não falaram muito durante a viagem de regresso a Los Angeles. Oona dera-lhe um termo com café e frango frito, mas nenhum deles tinha fome. Os olhos de Cassie contavam milhares de histórias, mas o rapaz não lhe perguntou nada nas primeiras duas horas. Finalmente, não suportou mais o silêncio.

- Como te sentes? - Ela percebeu o que Billy estava a perguntar e suspirou antes de responder.

- Não sei. Estou feliz por o ter visto. Pelo menos agora já sabe. - Estava simultaneamente cheia de esperança e de desespero, sendo difícil explicá-lo a Billy. Nick já sabia o que acontecera com Desmond, mas, conseqüentemente, o tempo que haviam passado juntos tornava mais difícil o seu regresso à Califórnia.

- Como é que reagiu?

- Tão bem como pôde. Primeiro, ficou furioso e disse muitas coisas. - Cassie hesitou e olhou tristemente para o amigo. - Pensa que o Desmond casou comigo como golpe publicitário e para tornar a nossa viagem mais apelativa para o público.

- É isso que tu pensas? - inquiriu ele imediatamente Ela pensou e hesitou. Não queria ter essa opinião. - A mim soa-me a azedume. Talvez o Nick tenha dificuldade em acreditar que o fulano realmente te ama.

«Mas será que ama?» Este pensamento atormentou-a. Desmond andava muito frio com ela agora e muito preocupado com a viagem. «E se o Nick tem razão?», perguntou Cassie a si própria. Era difícil saber e de ver com clareza, especialmente depois da noite que passara com Nick na velha pista. No entanto, tinha a certeza que não podia pensar mais nisso. Queria ser justa com Desmond e devia pensar na viagem. O resto resolveria depois.

Ao pensar na viagem, recordou-se imediatamente de tudo o que devia a Desmond. Nick não estava a ser justo; não acreditava que o marido tivesse outras mulheres. Estava completamente absorvido e obcecado pelo trabalho, o que constituía o maior problema dela, para além de Nick Galvin. Contudo, Cassie estava a regressar a Los Angeles determinada a jogar limpo. Não permitiria que Nick ensombrasse o seu casamento.

Porém, desde o momento em que chegou, Desmond fez tudo o que Nick previra: só falava na imprensa e na volta ao Pacífico. Nem lhe perguntou como fora o seu fim-de-semana com os pais. Assim, e mesmo sem querer, deu consigo a suspeitar da frieza de Desmond e do seu constante romance com os fotógrafos e equipas de cinema. Interrogou-o sobre umas entrevistas que ele marcara, reclamando sobre a sua necessidade, e as tensões entre eles tornaram-se imediatamente aparentes.

- De que estás a queixar-te? - perguntou Desmond com maus modos, à meia-noite do dia seguinte ao seu regresso. Cassie estava exausta de um vôo de doze horas, seguido de cinco horas de reuniões, tendo acabado o dia rodeada de um enxame de fotógrafos e repórteres.

- Estou farta de tropeçar em fotógrafos cada vez que saio da cama ou entro para a banheira. Estão por todo o lado e estou farta. Livra-me deles - terminou ela rapidamente com um ar irritado.

- Quais são as tuas objeções? - disse ele, zangado. - O fato de seres o nome que mais aparece nos jornais ou estares na capa da Lyte duas vezes por ano? Qual é exatamente o problema?

- O meu problema é estar exausta e farta de ser tratada como um cão amestrado. - Os avisos de Nick estavam a afetá-la e percebeu que estava a suspeitar de Desmond. Mas, na realidade, estava farta de repórteres.

Era claro que Desmond não gostava de ser desafiado. Ficou furioso com ela. Depois de mais uma hora de discussão, ele mudou-se para o pequeno quarto de hóspedes ao lado do escritório. Passou o resto da semana a dormir e a trabalhar ali, afirmando que tinha demasiado trabalho para voltar para o quarto do casal. Cassie sabia, contudo, que ele estava a castigá-la pelas suas queixas, o que não deixava de ser um alívio, dando-lhe tempo para resolver as suas próprias confusões. Estar com Nick tinha tornado as coisas ainda mais difíceis, mas Cassie sabia que parte era da sua responsabilidade.

Ao fim de algum tempo, a situação com Desmond acabou por acalmar. As tensões eram muitas e os nervos estavam à flor da pele por causa da viagem, mas ele pediu-lhe desculpa por ser tão irascível. Tentou explicar-lhe novamente o valor da imprensa e Cassie decidiu que Nick não tinha razão a respeito de Desmond. Havia uma certa verdade naquilo que o marido dizia: a publicidade era uma parte importante da volta ao Pacífico e não havia necessidade de se queixar em silêncio.

Cassie sabia que Desmond era um homem decente. Apenas tinha opiniões irreversíveis, sabendo obviamente o que fazia.

No entanto, apesar do seu tratado de paz em relação à imprensa, outras coisas não melhoraram. Há meses que não tinham qualquer tipo de vida amorosa. Mais do que uma vez, Cassie perguntou a si própria se algo não estava bem com ele ou consigo, mas nunca se atrevera a perguntar. A imensa paixão da sua lua-de-mel estava há muito esquecida e ela sabia que, em parte, a situação a tornara mais vulnerável a Nick No entanto, Cassie estava consciente que Desmond nada tinha a ver com o amor que sentia por Nick. Mas a falta de relações físicas com Desmond tornava quase impossível uma maior proximidade e, por vezes, desejava ter alguém com quem falar. Pensou em dizer algo a Nancy Firestone, mas desde que se casara com Desmond, Nancy colocara uma barreira definitiva entre ambas. Era como se fosse desconfortável ser amiga da mulher do patrão. Ter apenas Billy como amigo e Desmond assim tão frio faziam com que se sentisse mais só do que nunca.

Apesar das tensões existentes, tudo estava a andar conforme previsto. Faltava uma semana para a viagem e estavam prontos.

Os fotógrafos seguiam-na para todo o lado, fazendo a crônica da sua semana antes da viagem: todas as ações, movimentos e reuniões. Sentia como se passasse toda a vida a sorrir e a acenar. Não havia privacidade nem momentos tranqüilos com Desmond. Só se falava da volta ao Pacífico e dos seus infindos preparativos. Esta era a sua vida.

Tudo estava a ficar muito emocionante. Cassie mal conseguia dormir e faltavam cinco dias quando Glynnis lhe telefonou, ao fim da tarde, e a apanhou no aeródromo. Cassie ficou surpreendida e a pensar se acontecera alguma coisa

- Olá, Glynn. Passa-se alguma coisa?

- É o pai - respondeu aquela rapidamente. Começou a chorar antes de conseguir proferir outra palavra e foi como se uma seta de aço tivesse penetrado o coração de Cassie quando ouviu o resto. - Teve um ataque esta manhã. Está no Hospital Mercy e a mãe está com ele. - Oh, Deus! Não O pai não.

- Vai ficar bom? - perguntou Cassie rapidamente à irmã mais velha.

- Ainda não sabem - disse Glynnis novamente por entre lágrimas.

- Irei a casa assim que puder. Esta noite. Direi ao Desmond e partirei daqui a pouco. - Sem um momento de hesitação, Cassie sabia que devia estar presente.

- Podes fazer isso? - Glynnis parecia preocupada, fora obrigada a telefonar-lhe. Inicialmente, tinham-lhe dito que o pai não sobreviveria, mas o seu estado estabilizara na última hora, o que os deixava mais esperançados. - Quando partes para a volta?

- Daqui a cinco dias. Tenho tempo, Glynn. Vou para aí. Amo-te. Diz ao pai que o amo. Diz-lhe que espere, que por favor não morra. - Cassie soluçava.

- Eu também te amo, querida - disse Glynnis com a sua voz forte. - Vejo-te mais tarde. Tem cuidado.

- Diz à mãe que também a amo. - Ambas choravam quando desligaram. Cassie foi dizer a Billy o que estava a passar-se e que ia a casa ver o pai. Sem hesitar por um instante, Billy disse que a acompanhava. Tinham-se tornado inseparáveis, qual gêmeos siameses. Nos últimos seis meses de treino, pareciam a sombra um do outro. Às vezes, era como se lessem o pensamento um do outro.

- Encontramo-nos aqui dentro de meia hora. Faz-me um favor. Abastece o Phaeton. Vou dizer ao Desmond. - Cassie pensou que ele entenderia, pois sabia o que o pai significava para ela.

Porém, quando chegou ao escritório, teve uma surpresa.

- Claro que não vais - disse ele friamente. - Ainda tens cinco dias de treino e de reuniões, duas conferências de imprensa e temos de delinear a rota final de acordo com o tempo.

- Volto dentro de dois dias - retorquiu Cassie calmamente. Não conseguia acreditar que estivesse a discutir com ela sobre algo tão importante.

- Não vais - replicou ele firmemente enquanto Miss Fitzpatrick se esgueirava discretamente da sala.

- O meu pai teve um ataque de coração, Desmond. Pode não sobreviver. - Cassie achou que a sua incompreensão era óbvia, mas ele entendia perfeitamente.

- Vou ser o mais claro possível, Cass. Tu não vais. Estou a ordenar-te que fiques aqui. - Parecia um marechal da aviação durante uma guerra. Era ridículo. Era seu marido. Que estava ele a dizer? Olhou para Desmond, confusa.

- Estás o quê? - Ele repetiu o que dissera, e Cassie olhou-o fixamente. - O meu pai pode morrer, Desmond. Vou ter com ele, quer queiras quer não. - Algo lhe endureceu o olhar ao dizê-lo.

- Contra a minha vontade e nunca num dos meus aviões - afirmou ele friamente.

- Se for preciso, roubo um - disse ela furiosamente. - Não sei como podes dizer tudo isto. Deves estar cansado ou doente. O que se passa contigo? - Tinha lágrimas nos olhos, mas Desmond não se demoveu. A volta significava tudo para ele. Mais do que o pai. Quem era aquele homem com quem casara?

- Fazes idéia da quantidade de dinheiro que está envolvida nesta viagem? Importas-te? - disse ele como se cuspisse.

- Claro que me importo e nunca faria nada para o por em perigo. Mas estamos a falar do meu pai. Eu volto daqui a dois dias. Prometo. - Tentou acalmar-se e lembrar-se que estavam ambos sob uma grande tensão.

- Não vais - repetiu ele friamente.

Era ridículo. O que é que ele estava a tentar fazer? Ao olhá-lo, começou a tremer.

- Não tens alternativa! - gritou-lhe ela, perdendo finalmente o controlo. - Vou, e o Billy vem comigo.

- Não o permitirei.

- O que pensas fazer? - Subitamente, ela viu-o com outros olhos. Nunca o vira tão cruel. Era uma nova característica de Desmond. - Despedes-nos? Não estamos um pouco perto de mais da viagem ou achas que consegues substituir-nos? - Não estava contente com o comportamento dele.

- Toda a gente pode ser substituída. E, já que estamos a falar do assunto, deixa-me explicar-te uma coisa, Cass. Se não voltares, peço o divórcio e processo-te por quebra de contrato. Fiz-me entender? Tens um contrato comigo para a realização desta volta e tenciono prender-te a ele.

Cassie não acreditava no que estava a ouvir. Quem era ele? Se estava a falar a sério, o homem era um monstro.

A viagem. Não se importava com ela, com os seus sentimentos nem com o fato de o pai estar a morrer. Divorciar-se-ia se ela cancelasse a viagem. Era incrível, tal como tudo o que dissera até agora.

Caminhou lentamente até à sua secretária e olhou para ele, perguntando a si própria se o conhecia.

- Farei a volta para ti, porque quero. Depois, tu e eu teremos uma longa conversa. - Ele não lhe respondeu e Cassie voltou-se e saiu do escritório. Estava a ameaçar a única coisa com que Desmond se importava: a sua preciosa volta ao Pacífico. Mas o maior choque consistia no fato de ser mais importante do que o casamento.

Não disse uma palavra a Billy enquanto subiam para o avião e assinou, como necessário, a saída do avião. De repente, sentiu-se apenas uma empregada. O seu rosto estava tenso e zangado quando descolaram; Billy observava-a. Ela queria pilotar e, como tal, não se ofereceu para assumir os comandos. Isso mantinha-a ocupada, tentando não se preocupar com o pai, o que era impossível. No entanto, estava com uma expressão mais zangada do que preocupada, e o rapaz perguntou a si próprio o que teria acontecido.

- O que é que ele disse?

- Estás a referir-te ao Desmond? - replicou ela friamente; ele acenou com a cabeça. - Disse que pediria o divórcio se eu não fizesse a volta e que me processaria por quebra de contrato. - Foram precisos alguns instantes até Billy reagir.

- Disse o quê? Devia estar a brincar.

- Não estava a brincar. Estava a falar muito a sério. Se a cancelarmos, ele processa-nos. Pelo menos, a mim. Pelos vistos, a volta significa mais para ele do que eu pensei. São grandes vôos, Billy. Grandes investimentos, muito dinheiro, muitas apostas e grandes castigos se não a conseguirmos. Talvez processe as nossas famílias se lhe partirmos o avião - disse ela sarcasticamente; Billy ouvia, estupefato. Cassie estava zangada e amargamente desiludida.

- Mas tu és mulher dele, Cass. - Estava confuso com o que ouvira.

- Aparentemente não sou - afirmou em tom lastimoso. Sou apenas uma empregada. - Desmond tinha-a desiludido terrivelmente, mas, por outro lado, a família não era o seu forte. - Disse-lhe que voltaríamos dentro de dois dias. Estamos metidos em sarilhos se não o fizermos. - Cassie sorriu-lhe. Estavam metidos em sarilhos até às orelhas, mas pelo menos estavam juntos, e sentia-se muito grata por ele a ter acompanhado. Billy era realmente o único amigo que tinha.

- Voltaremos a tempo. O teu pai vai ficar bom. - Tentou dar-lhe coragem.

Porém, quando chegaram ao Hospital Mercy, Pat estava tudo menos bom. Tinha três freiras à cabeceira e um padre já lhe dera a extrema-unção. Todas as filhas e netos estavam lá, e Oona chorava.

Cassie afastou primeiro as crianças e mandou-as sair com Billy. Sabia que ele conseguia tomar conta delas, pois lidava muito bem com crianças e um dos cunhados propôs-se acompanhá-lo. Depois pediu à mãe para sair e conversou em voz baixa com as irmãs. Pat não estava a restabelecer-se e também não recuperara a consciência desde o telefonema de Glynnis. Alguns minutos depois, o médico veio falar com ela e disse estar com reservas sobre a sobrevivência de Pat.

Cassie não conseguia acreditar no que estava a ouvir nem no que acontecera ao pai. Tinha estado com ele há quatro semanas e não estava com muito bom aspecto, mas não fazia idéia de que estivesse doente. Aparentemente, o coração já estava a causar-lhe problemas há algum tempo, mas Pat ignorava-o, apesar das súplicas de Oona.

Cassie, a mãe e três das irmãs estiveram com ele toda a noite, e de manhã ainda não havia melhoras. No final do dia seguinte, Pat recuperou os sentidos e sorriu brevemente para Oona. Era o primeiro sinal de esperança, duas horas mais tarde, abriu os olhos, apertou a mão de Cassie e disse-lhe que a amava. Ela só conseguia pensar em como o amara durante a infância, como tinha sido bom para ela e como adorara voar com ele. Pensava em milhares de coisas e em centenas de momentos especiais.

- Vai ficar bom? - perguntou ao médico quando lá foi nessa tarde, e este respondeu que ainda era muito cedo para saber. Mas, depois de mais uma noite em branco para todas, milagrosamente, na manhã seguinte, enquanto as freiras continuavam a rezar o terço a seu lado, Pat estabilizou e o médico disse que se salvaria. Iria ser uma longa luta, mas previa, pelo menos, dois meses de repouso absoluto, a maior parte do qual em casa, na cama. Depois, e com alguma sorte, ficaria como novo. Porém, deveria tomar conta de si: não fumar muito, reduzir o álcool e o gelado caseiro de Oona. Foi a maior sensação de alívio que Cassie sentiu na vida, enquanto chorava no corredor com as irmãs. A mãe ainda estava no quarto a dar-lhe a notícia sobre o gelado.

- Quem irá dirigir o aeroporto? - perguntou Megan enquanto estavam no corredor. Pat não tinha ninguém que o assistisse e desde que Nick, Cass e Billy tinham partido, toda a responsabilidade caíra sobre os seus ombros. O médico pensava que talvez tivesse contribuído para o problema. Não havia mais ninguém para o ajudar a gerir o aeroporto.

- Conheces alguém? - perguntou ela a Billy em voz baixa. Este tinha ficado estoicamente junto deles durante dois dias, tal como Chris teria feito. Todavia, também não conhecia ninguém. Muitos dos jovens pilotos que costumavam andar por aí também se tinham alistado na RAF.

- Estou perplexo - disse ele sob o olhar de Cassie. Tinham de estar em Los Angeles naquela noite e começariam a volta ao Pacífico dentro de três dias. Enquanto Billy olhava para ela, leu-lhe o pensamento, ou pensou que o fizera, mas não conseguiu acreditar que Cassie fosse capaz de o fazer. - Estás a pensar no que eu estou a pensar que estás a pensar?

- Talvez. - Estava com um ar muito sério. Era um grande passo, especialmente depois do que Desmond lhe dissera antes de partir. Era realmente um grande passo. Se ele quisesse o divórcio, pior para ele. Era do pai que se tratava. - Não precisas de ficar comigo. Podes voltar para que ele não se zangue contigo. - As coisas iam ficar muito feias quando lhe desse a notícia.

- Não posso ir sem ti - disse Billy calmamente.

- Talvez ele consiga outro piloto. - Estava a ser ingênua, e Billy percebeu-o. Depois de toda a publicidade feita no último ano e de toda a cuidadosa orquestração, nunca teria o mesmo impacto sem ela, e Desmond sabia-o.

- O que tencionas fazer? - perguntou Billy, preocupado. Não queria que ela sofresse por causa da decisão que tomara, mas também sabia o que o pai significava para Cassie e quais as suas prioridades. Não havia dúvida sobre o que tencionava fazer. Apenas sobre a maneira como o faria.

- Vou telefonar e dizer-lhe que adie a viagem. Só serão precisos dois meses, no máximo três, para que o pai fique bom, e ficarei aqui a dirigir o aeroporto.

- Fico contigo. Se calhar permanentemente - sorriu ele. - Daqui a dez minutos, poderemos estar sem emprego. - Mas para Cassie significava mais do que um emprego. O seu casamento também acabaria. No entanto, depois das ameaças de Desmond, já não sabia se teria um casamento ou se alguma vez ele existira. Talvez Nick sempre tivesse tido razão no que dizia respeito a Desmond ou talvez este houvesse deixado que as suas emoções o dominassem e já estivesse arrependido. O certo é que nem sequer tinha telefonado a Cassie desde que esta partira. Não sabia dele há dois dias e quando lhe telefonou do hospital, cinco minutos depois, Miss Fitzpatrick respondeu-lhe num tom gelado e foi chamá-lo.

Atendeu quase imediatamente, e Cassie teve pena da falta de privacidade da recepção do hospital, mas não havia solução. Tinha de lho dizer o mais depressa possível e não queria fazer todo aquele caminho até ao aeroporto para telefonar do escritório do pai.

- Onde estás? - foram as suas primeiras palavras.

- No hospital em Good Hope com o meu pai. - Como se ele não se lembrasse. Não lhe perguntou pelo sogro ou por ela. No que lhe dizia respeito, o pai já estaria morto, mas continuou sem nada perguntar. - Lamento ter de fazer isto, Desmond.

- Não vou ouvir o que estás a dizer-me, Cassie - respondeu ele num tom gelado. - Lembra-te do que te disse quando partiste e lembra-te que eu não estava a brincar.

Cassie fez uma pausa apenas para respirar e para se lembrar que aquele era o homem com quem casara há quatro meses e meio. Subitamente, era difícil de acreditar. Ele era tudo o que Nick dissera.

- Lembro-me perfeitamente de tudo o que disseste. - gritou ela devido à má ligação. - Parece que ainda me lembro de ter casado contigo. Aparentemente, esqueceste-te. A vida é apenas feita de voltas ao mundo. Eu não sou uma máquina, um aviadorzeco de saias, nem apenas um empregado. Sou um ser humano com família, e o meu pai quase morreu há dois dias. Não vou deixá-lo. Quero que adies a viagem para daqui a dois ou três meses. Irei em Setembro ou Outubro. Depois decidirei qual a melhor altura. Faz as alterações necessárias às condições climatéricas e à rota. Faz o que quiseres, mas não partirei daqui a três dias. Precisam de mim aqui e não os abandonarei.

- Sua filha da mãe! - gritou ele. - Grande cadela egoísta! Fazes idéia do que investi em tudo isto não só em dinheiro, mas em tempo, amor e esforço? Não fazes idéia do que significa para mim e para o país. Tudo o que te interessa é a tua vidinha patética com a idiota da tua família e o vergonhoso aeroporto do teu pai. - Desmond falou com um extremo desprezo sobre ela e a família, enquanto Cassie não conseguia acreditar no que estava a ouvir. Para lhe dizer tudo aquilo, só podia ser um filho da mãe cruel e impiedoso. Era quase impossível acreditar nas suas palavras. Ao ouvi-lo, Cassie sentiu uma dor física quando entendeu que ela e Desmond Williams nunca tinham tido um casamento. Ela servira apenas de instrumento para ele conseguir o que queria.

- Não me interessam os nomes que me chamas, Desmond - gritou ela, ouvindo-se em todo o vestíbulo, já estando completamente indiferente para quem a ouvia. - Adia a viagem ou cancela-a. É contigo. Neste momento não vou. Pilotarei o que quiseres no Outono, mas daqui a três dias não vou. Ficarei com o meu pai.

- E o Billy? - perguntou ele, furioso. Queria despedir ambos, mas sabia que não podia.

- Vai ficar comigo e com a minha família vergonhosa no nosso vergonhoso aeroporto. Aviso-te já que não farei a volta sem ele, Desmond. Tens-nos se nos quiseres, mas mais tarde. Comunica-me a tua decisão. Sabes onde estarei.

- Nunca te perdoarei, Cassie.

- Já percebi. - E não conseguiu deixar de fazer a pergunta. - Porque é que estás tão zangado, se já concordei em fazer a viagem mais tarde, Desmond?

- O embaraço, o adiamento. Por que motivo temos de aturar a tua estupidez infantil?

- Porque posso ter adoecido. Sou humana. É isso mesmo. Porque não dizes à imprensa que eu estou doente? - Riu-se sem expressão, sabendo que, de momento, estava para além do impossível. - Diz-lhes que estou grávida.

- Não tem graça nenhuma.

- Lamento sabê-lo. Também não te acho muita graça. De fato, és uma verdadeira desilusão. Telefona-me quando decidires o que vais fazer. Estarei no aeroporto durante os próximos dois meses. Telefona-me quando quiseres - disse Cassie com lágrimas nos olhos, desligando o telefone com força. Queria dizer-lhe que lamentava ter de adiar a viagem, mas Desmond tratara-a tão abominavelmente que Cassie acabara por não o fazer. Realmente lamentava ter de a adiar, pois sabia que seria uma desilusão para todas as pessoas envolvidas, mas não podia abandonar o pai. Ele sempre estivera a seu lado, e Cassie queria agora retribuir. Porém, os seus olhos estavam cheios de lágrimas de raiva e derrota quando desligou o telefone, e tinha as mãos a tremer. Quando pousou o auscultador, olhou para a velha freira que operava o P13X. Ela fez-lhe um sinal de vitória.

- Diga-lhes - rosnou ela. - A América ama-a, Cass. Podem esperar mais dois ou três meses. Faz muito bem em ficar com o seu pai. Deus a abençoe!

Cassie sorriu-lhe com gratidão e voltou para dar as notícias a Billy.

- O que é que ele respondeu? - perguntou, ansioso.

- Ainda não tenho a certeza. Disse-lhe para adiar a viagem e que a faríamos em Setembro ou Outubro. Insultou-me de tudo. Não posso dizer que ele tenha ficado muito contente. Disse-lhe ainda que tu ficarias aqui comigo e que não faria a próxima viagem sem ti. É um negócio por atacado. - Billy assobiou perante a sua coragem e deu-lhe uma palmada no ombro. - Mas se quiseres regressar, eu compreendo. Até podes fazer a viagem sozinho, se quiseres. - Cassie tinha agora muito em que pensar: sobre a viagem, o seu casamento, sobre tudo o que Desmond lhe dissera e não dissera. Tinha-se exposto completamente, o que não lhe deixava muitas ilusões.

Depois de quatro meses e meio, o casamento acabara na realidade, mas não legalmente.

O que Cassie não previra fora a chegada de Desmond a Good Hope no dia seguinte, trazendo consigo mais de cem repórteres e duas equipas de filmagem. Anunciou a partir dos degraus do Hospital Mercy, que, devido a circunstâncias que o ultrapassavam, a volta ao Pacífico seria adiada até Outubro. Explicou que o sogro estava em estado crítico e que Cassie não podia abandoná-lo. Iria gerir o aeroporto do pai durante os próximos dois meses, voltando em Setembro aos treinos para a viagem. Apanhou-a completamente de surpresa e provou mais uma vez que era tudo aquilo que Nick dissera dele. Era um grande filho da mãe e uma fraude e, no meio de tudo, ainda fingia estar preocupado com o sogro.

Nem sequer a avisara de que iria. Apenas aparecera no hospital, perguntara por ela e, quando ela saiu para o ver com um ar surpreendido, encontrou-o à espera no vestíbulo juntamente com os repórteres. Preparara uma conferência de imprensa na escadaria do hospital sem a avisar. Cassie estava exausta e com mau aspecto, que era exatamente o que ele queria. Queria que toda a América sentisse pena dela, para que perdoassem o cancelamento da viagem. Mas não havia qualquer problema. Eles teriam perdoado fosse o que fosse. Só Desmond não perdoava. Cassie estava tão subjugada, cansada, emotiva e tão zangada com ele que acabou por chorar quando os repórteres lhe perguntaram como estava o pai. Era exatamente o que Desmond queria.

Quando a imprensa saiu, ele levou-a até à rua e explicou-lhe muito concretamente o que esperava dela. Tinha exatamente dois meses de «dispensa». No dia 1 de Setembro, voltaria para Los Angeles para recomeçar os treinos e participar em reuniões, e no dia 4 de Outubro partiriam com a mesma rota e apenas alguns ajustes devido às condições climatérias. Qualquer alteração a estes planos ou a não comparência dela em Los Angeles na data marcada teria como conseqüência um processo em tribunal. Para ter a certeza de que Cassie entendera perfeitamente, trouxera contratos para que ela e Billy assinassem e disse-lhe que iria levar o avião que Cassie trouxera.

- Mais alguma coisa? Queres a minha roupa interior e os meus sapatos? Acho que também os pagaste. Deixei o meu anel de noivado em Los Angeles, mas podes ficar com ele. É teu. Também podes ficar com a minha aliança. - Retirou a aliança da mão a tremer e estendeu-lha. Tudo o que acontecera nos últimos dias fora um pesadelo, e agora ele olhava-a com uma expressão totalmente vazia de emoção. Era um homem que não sentia nada por ninguém, nem mesmo pela rapariga com quem casara.

- Sugiro que a mantenhas no dedo até ao regresso da volta para que não haja falatório. Depois disso, se quiseres, podes deitá-la fora. É contigo - disse ele friamente.

- Era esse o teu objetivo, não era? Era tudo um truque publicitário para a volta. A namorada da América e o grande milionário. Porque te deste a tanto trabalho e o que te aconteceu? Por que motivo estás agora tão disposto a expor-te? Só porque a adiei? Será isso um pecado tão mortal? Sei que não é conveniente e que é dispendioso alterar os planos. E se houvesse um problema com o avião, se eu adoecesse ou se ficasse grávida?

- Nunca houve esse perigo. Eu não posso ter filhos. - Também não lhe dissera isso. Deixara-a pensar que era uma opção e que, um dia, quando ela estivesse preparada, pensariam no assunto. Não conseguia acreditar no modo como ele lhe mentira e como o admitia agora com tanta facilidade. Mostrara-lhe completamente os seus intentos e não se importava. Tudo o que queria dela era a viagem e sabia que podia processá-la e destruí-la publicamente se Cassie não a realizasse. No entanto, a coisa mais estúpida é que ela não se importava com o que Desmond podia fazer-lhe. Estava apenas preocupada com as suas mentiras. Pedira-lhe que casasse com ele, dissera-lhe que a amava e fingira gostar dela. Não se importava com mais nada a não ser com a sua volta ao mundo, COM os aviões que conseqüentemente venderia e com a publicidade que obteria ao organizá-la do princípio ao fim.

- O que queres de mim? - Cassie olhou para ele tristemente.

- Quero que voes. É tudo o que sempre quis de ti. Quero que voes e que todos se apaixonem por ti. Se eu me apaixonei ou não, nunca foi muito importante.

- Era importante para mim - disse de lágrimas nos olhos, pois acreditara nele.

- És muito jovem, Cassie - respondeu Desmond calmamente. - Um dia sentir-te-ás feliz por ter feito isto.

- Não precisavas de casar comigo para que eu pilotasse a viagem. Tê-lo-ia feito de qualquer modo.

- Não teria o mesmo impacto sobre o público - disse ele com um tom descontraído. O seu casamento tinha sido totalmente calculado. Cassie perguntou a si própria se, em algum momento, ele gostara dela. Agora sentia-se estúpida, crédula e usada. Era vergonhoso pensar nas suas relações físicas. Até a lua-de-mel fora calculada e, depois disso, apenas negócio. Não perdera muito tempo com o romance.

- Nunca levaste a viagem a sério e o adiamento prova-o. Devia ter escolhido outra pessoa, mas tu parecias perfeita. - Olhava como se ela o tivesse enganado e Cassie contemplou-o, espantada.

- Gostava que tivesses escolhido outra pessoa - acabou ela por dizer.

- Agora é demasiado tarde para ambos. Temos de a levar a cabo. já fomos demasiado longe.

_ Disso não há dúvidas. - Admirou-o com um ar grave. Pelo menos, ele havia ido longe de mais.

Desmond nada mais tinha para lhe dizer: um pedido de desculpas, uma palavra de arrependimento ou de conforto. Apenas lhe disse para estar em Los Angeles no dia 1 de Setembro, como previsto, e Cassie e Billy assinaram os contratos. Desmond voltou para o aeroporto e uma hora depois tinha partido. Conseguira o que queria: um juramento e mais uma rodada de publicidade à custa de Cassie. Na semana seguinte, todo o país sabia do ataque de coração de Pat, já a vira chorar e todos estavam com ela. Apenas tornava a viagem mais excitante.

No Hospital Mercy, Pat era bombardeado com flores, presentes e cartões desejando-lhe as melhoras. Foram obrigados a oferecê-los a outros doentes e começar a mandar os arranjos de flores em caminhões para outros hospitais e igrejas. Cassie nunca esperara uma reação daquelas, mas Desmond sim. Como sempre, sabia exatamente o que estava a fazer.

Continuava a contar histórias à imprensa e a dar entrevistas em Los Angeles sobre o duro trabalho de Cassie e sobre os desenvolvimentos que tinham feito no seu avião. Mas interessantemente, em finais de Agosto, um dos mecânicos detectou uma falha num dos motores. Estavam a fazer ensaios num túnel de vento, no Instituto de Tecnologia da Califórnia, quando o motor se incendiou, causando imensos danos ao avião. Foi dito à imprensa que havia reparação, mas o adiamento da volta tinha sido providencial. Cassie só soube do acidente quando o leu no jornal; contou a Billy, que assobiou.

- Que bonito, hem? Gostarias de ter urinado sobre o motor número um a sobrevoar o Pacífico? - perguntou ela de sobrolho levantado.

- Dêem-me cerveja suficiente que eu consigo fazer muitas coisas, comandante. - Sorriu e ela riu-se. Ambos estavam preocupados e falaram várias vezes com os mecânicos sobre o assunto. Todos lhe asseguraram que o problema fora resolvido.

Foi um Verão difícil para Cassie. Ainda estava em choque com o que acontecera com Desmond. Pensava muito em Nick e queria escrever-lhe, não sabendo, contudo, o que dizer. Era estranho ter de admitir que Desmond era tão mau como Nick afirmara. Fazia com que ela parecesse patética. Finalmente, acabou por escrever sobre o pai e disse que a viagem fora adiada e que sempre o amaria. Decidiu desvendar-lhe o resto quando o visse novamente. Pensou em oferecer-se como voluntária para a RAF, mas só queria pensar nisso depois da volta ao Pacífico. Talvez em Novembro conseguisse ir até Inglaterra para o ver. Já não tinham notícias de Nick há dois meses, se bem que fosse habitual. A guerra na Europa continuava devastadora e só podiam partir do pressuposto de que ele estava bem, pois, de contrário, já teriam sido notificados. Cassie tinha muitas saudades dele e fia tudo o que podia sobre a guerra aérea em Inglaterra.

A volta ao Pacífico já deixara de ser excitante. Fazê-la sob ameaças era muito diferente do que fazê-la por amor ou como um projeto partilhado. No entanto, sabia que seria interessante e tudo o que desejava era acabar com aquilo. Nessa altura, poderia continuar a sua vida.

O pai melhorara bastante depois de voltar para casa. Perdera algum peso, deixara de fumar e raramente bebia. Parecia mais saudável e forte de dia para dia. Em finais de Agosto, voltou para o aeroporto e parecia melhor do que nunca. Ficou espantado com tudo o que Cassie e Billy tinham feito e muito grato a Billy por ter ficado com ela. Mas fora Cassie que lhe conquistara ainda mais o coração. Dizia a todos que era uma rapariga rara e maravilhosa e que tinha adiado a volta ao Pacífico por sua causa, como se todos não soubessem. Cassie nada lhe dissera sobre os problemas com Desmond, mas há muito que Pat pressentia que algo a incomodava e pensou se seria Nick ou outro qualquer. Cassie só lhe revelou o acontecido na véspera da sua partida.

- É o Nick que está a incomodar-te, Cass? - Sabia que ela vivia a pensar em Nick e estava preocupado com o que obviamente tinha acontecido da última vez que tinham estado juntos. Era uma pena as coisas não terem resultado entre eles, mas Cassie não podia esperar indefinidamente, quando Nick lhe dissera para não o fazer. Pat tentara dizer-lhe que era um erro libertá-la daquela maneira, mas os jovens nunca ouvem. Nick já tinha idade suficiente para saber algumas coisas, contudo, tal como a maioria dos homens, não sabia lidar com mulheres. - Não podes consumir-te por ele, Cassie, Especialmente casada com outro homem.

Ela acenou com a cabeça, ansiosa por lhe contar a verdade. Estava muito envergonhada, pois Desmond tinha-a enganado completamente.

- Há algo que não estás a dizer-me, Cassandra Maureen - espicaçou Pat. Finalmente, Cassie acabou por contar, e Pat ficou atordoado com as suas revelações. As previsões e avisos de Nick estavam corretos.

- Ele tinha razão, pai. Toda a razão.

- O que vais fazer agora? - Pat só tinha vontade de o matar. Que partida tão aviltante! Explorá-la até à medula para seu proveito e glória.

- Não sei. Fazer a volta, obviamente. Devo-lhe isso. Se bem que ele não saiba, eu nunca o deixaria ficar mal. Fá-la-ei. Depois - respirou fundo, pois não havia muito por onde escolher -, pediremos o divórcio. Tenho a certeza de que ele irá fazer tudo para me responsabilizar de algo terrível.

- Manipulará a imprensa em seu proveito. É muito mais complicado e mau do que eu pensei.

- Achas que te dará alguma coisa? - perguntou Pat. Era um homem muito rico e poderia pagar bem a desilusão de Cassie.

- Duvido. Ganharei o prêmio da volta que ele ia reduzir devido ao adiamento, mas não o fez. Considera-o uma grande dádiva. Não preciso de mais e não quero nada dele. Já foi suficientemente generoso. - Poderia viver durante anos com a carreira que ele lhe possibilitara, o que já era um bom pagamento. Não queria mais nada de Desmond.

- Lamento, Cassie. Lamento muito. - Estava profundamente consternado com o que ouvira e ambos concordaram em não perturbar a mãe.

- Tem cuidado contigo durante a viagem. É a única coisa que importa. Poderás resolver o resto mais tarde.

- Quando voltar talvez vá pilotar bombardeiros em Inglaterra como Jackie Cocliran. - No mês de junho, ela tinha sido o co-piloto de um bombardeiro Lockheed Hudson, provando, de uma vez por todas, que as mulheres conseguiam pilotar aviões pesados.

- Não digas disparates - resmungou o pai, rolando os olhos. - Pilotar bombardeiros em Inglaterra! Vais provocar-me outro ataque de coração. juro que me fazes arrepender do dia em que te levei comigo num avião. Será que não consegues fazer nada de vulgar por uns tempos? Atender telefones, cozinhar ou ajudar a tua mãe a limpar a casa? - Mas ela sabia que o pai a estava a arreliar. Pat sabia que não havia esperança de ela deixar os céus. - Vai com cuidado, Cass - avisou ele antes de ela partir. - Tem cuidado. Mantém os teus sentidos aguçados. - Pat sabia que ela era muito boa e nunca vira um piloto tão bom.

Na manhã seguinte, à partida, todos choraram, sabendo o perigo que ela corria durante a volta ao Pacífico, e Cassie e Billy choraram com eles. Pat e outro piloto levaram-nos a Chicago, onde apanharam o vôo comercial para Los Angeles. Era agradável para variar. As Skygirls fizeram-lhe uma grande festa, e depois Cassie e Billy sentaram-se a conversar sobre o mês de treino que tinham à sua frente. Havia sido muito agradável passar o Verão no aeroporto, como nos velhos tempos. Agora estavam mais maduros. Tinham dias muito excitantes à sua frente e, apesar de Desmond, Cassie estava a ficar muito entusiasmada com a viagem.

- Onde tencionas ficar quando voltares a Newport Beach? - inquiriu Billy calmamente durante o vôo.

- Ainda não pensei nisso. Não sei. Acho que posso ficar num hotel. - Cassie suspeitava que Desmond não iria gostar disso por causa do escândalo. Mas não conseguia imaginar-se em casa dele, depois de tudo o que acontecera. Desmond não telefonara uma única vez em dois meses, e as únicas cartas que recebera eram dos advogados ou do escritório.

- Se quiseres podes ficar comigo. Se alguém descobrir podes dizer que faz parte do treino. O que achas?

- Penso que gostaria - disse ela honestamente. Não tinha lugar onde ficar.

Nessa noite, foi para casa com Billy, levando alguma roupa que trouxera de Illinois e alguns uniformes de vôo. No dia seguinte, foi com Billy para o emprego no seu velho carro. Apesar de todo o dinheiro que ganhara, Billy ainda não tinha comprado um carro decente nem planejava fazê-lo. Adorava o seu velho Modelo A, se bem que metade das vezes ele não pegasse.

- Para um tipo que pilota os melhores aviões, como podes conduzir este carro? - perguntou ela às três e meia da manhã.

- É fácil - sorriu ele. - Adoro-o.

Já haviam trabalhado bastante quando o Sol nasceu e só terminaram ao fim da noite. Também tinham um vôo noturno de treino. Cassie só viu Desmond no segundo dia e pelo único motivo de ter chocado com ele à saída de um hangar, perto do seu escritório. Ficou surpreendida por vê-lo ali, mas ele estava a mostrar as instalações a alguém. Foi vê-la mais tarde. Queria ter a certeza de que Cassie não diria nada de pouco apropriado à imprensa, não sendo mais simpático do que fora da última vez.

- Onde estás a morar? - Desmond suspeitara que Cassie não voltaria para ele e também não se importava, desde que a rapariga nada dissesse. Tinha embalado e armazenado num dos hangares os haveres de Cassie em caixas codificadas. A única coisa que não queria era um escândalo. Porém, conhecia-a suficientemente bem para saber que ela nunca o provocaria. Era demasiado íntegra e orgulhosa. Queria fazer a volta ao Pacífico para ele e fazê-la como devia ser. Não desejava causar nada que o magoasse.

Estou em casa do Billy - disse Cassie com um ar digno, usando um dos seus velhos fatos de vôo.

Tenta ser discreta - afirmou ele firmemente, sabendo, contudo, que até um pequeno arrufo de namorados relatado na imprensa não os atingiria.

- É óbvio. Acho que ninguém suspeita que estou em casa do Billy. - Cassie pensara em falar com Nancy Firestone antes de tomar a decisão, mas sentira vergonha de pedir para ficar com ela e Jane. já não eram muito chegadas, e Billy convidara-a a ficar em sua casa. A única coisa que ela não poderia fazer era ficar num hotel, pois teria aparecido imediatamente nos jornais, a não ser que Desmond estivesse com ela, o que não estava de todo a acontecer.

Por estranho que pareça, Cassie encontrou Nancy Firestone ao fim do dia, depois de ter chocado com Desmond. Nancy estava a deixar a empresa e Cassie tinha ido comprar algo para ela e Billy comerem, antes das reuniões da noite.

- Está a aproximar-se, não está? - perguntou Nancy com um sorriso. Todos na Williams Aircraft estavam a contar os dias e os minutos, e Cassie tinha um ar cansado e contraído quando sorriu e acenou com a cabeça. Ver Desmond ao fim de um dia longo não fizera nada para lhe levantar o moral. Tinha sido pouco amável e frio com ela, sendo impossível imaginar que alguma vez houvera qualquer coisa mais íntima entre eles. Pelo menos, Nancy Firestone fora mais calorosa com Cassie e tinha sido bom encontrá-la.

- Está cada vez mais perto - sorriu Cassie. - Como está a Jane? Tenho saudades dela. Já não a vejo há imenso tempo.

- Está ótima. - As duas mulheres ficaram de pé a olhar uma para a outra durante muito tempo, e Cassie percebeu que Nancy a olhava com um ar estranho. Parecia que queria dizer-lhe alguma coisa, mas não tinha a certeza. Por um instante, Cassie perguntou a si própria se teria feito algo que a ofendesse. Desde o seu casamento com Desmond que, Nancy se comportava de uma maneira muito fria. Talvez fosse devido à nova posição de Cassie. Esta sorriu só de pensar nisso. Se era isso que a afligia, bem podia estar descansada.

- Podíamos estar juntas um dia destes - disse Cassie calorosamente, tentando ser amistosa em memória dos velhos tempos. Fora Nancy que a fizera sentir-se em casa quando chegara a Los Angeles e se sentira tão sozinha.

Nancy, porém, olhava para ela como se não conseguisse acreditar no que Cassie estava a dizer.

- Ainda não percebeste. Pois não, Cass?

- Perceber o quê? - Cassie estava com ar de parva, mas tinha muitas outras coisas em mente para brincar às adivinhas com Nancy.

- Ele não é o que sempre pensaste dele. Muito poucos conhecem o verdadeiro Desmond. - Cassie endireitou-se perante aquela oblíqua referência a Desmond. Não iria ser levada a discutir o assunto com Nancy. Perante todos, ele ainda era seu marido.

- Não sei a que te referes - disse Cassie friamente, olhando de alto a baixo para a outra mulher. De súbito, percebeu que havia muito mais do que imaginara. Havia raiva, ciúmes e inveja. Estaria Nancy apaixonada por ele? Teria tido ciúmes de Cassie? Cassie entendeu de repente como tinha sido ingênua em relação a todos eles. Parecia que nenhum fora o que parecera.

- Acho que não devíamos falar do Desmond - disse Cassie em voz baixa. - A não ser que queiras discutir o assunto diretamente com ele.

- É uma possibilidade - afirmou Nancy com um sorriso desdenhoso. - Eu sabia que ele não iria ficar muito tempo contigo. Tudo era um circo. É pena que nunca o tenhas percebido, Cass.

Mas o que saberia ela sobre o assunto? O que é que Desmond lhe teria dito?

Cassie corou e encolheu os ombros.

- Acho que é um pouco complicado para mim. Na minha terra as pessoas casam-se por outras razões.

- Tenho a certeza de que ele se sentiu atraído por ti e talvez tivesses conseguido agarrá-lo se tivesses jogado bem o jogo. Mas ele não gosta de jogar com crianças. Penso que, acima de tudo, tu o aborrecias, Cass.

Então, enquanto Cassie olhava para Nancy, percebeu o que esta estava a dizer. Entendeu tudo: como tinham sido maus e corruptos.

- E tu não o aborreces, Nancy? É isso?

- Parece que não. Mas eu sou um pouco mais madura. Sei jogar melhor do que tu.

- qual é o jogo? - quis Cassie saber.

- É o jogo de fazer exatamente o que ele quer, quando quer e exatamente do modo que ele quer. - Tudo aquilo soou a Cassie como um serviço e não como um casamento.

- É esse o teu contrato com ele? Foi assim que conseguiste a tua casa e a faculdade para a Janie? Sempre pensei que ele era muito generoso, mas agora acho que há muita coisa que não encaixa. - Era exatamente o que Nick lhe dissera. Desmond Williams tinha amantes, a quem pagava muito generosamente para estarem prontas para o receber e fazer o que ele queria. Para Nancy significara fazer de dama de companhia a Cassie, e esta percebeu como aquilo a devia ter irritado. De certo modo, se não fosse tão nojento, quase seria divertido.

- O Desmond é muito generoso comigo, mas não tenho ilusões a respeito dele - disse Nancy friamente, olhando de frente para Cassie. - Nunca casará comigo e nunca se envolverá comigo em público, mas sabe que estou ali para ele e é bom para mim. Tem resultado muito bem para ambos. - Ao ouvir a fria simplicidade das coisas, o vazio calculado que alegadamente satisfazia as suas necessidades, Cassie só teve vontade de a esbofetear.

- Ele ia ter contigo enquanto estava casado comigo? - perguntou Cassie com a voz estrangulada, aterrorizada com a conversa.

- Obviamente. Onde achas que ia à noite quando não estava a trabalhar? E porque pensas que ele não dormia contigo? Eu avisei-te, Cassie. Desmond gosta de brincar com as crianças e não é tão mau como parece. Achava que não havia razão para dormir contigo ou enganar-te mais. Foi tudo por causa da viagem. De certa maneira, Desmond é um purista.

- Filho da mãe. - As palavras saíram da boca de Cassie sem pensar e, quando olhou para Nancy, odiou-os a ambos. Ela tinha sido uma brincadeira para os dois. Tudo fazia parte da volta ao Pacífico e o esquema principal era vender aviões.

O seu casamento tinha sido apenas uma pequena parte do plano, um golpe publicitário, e durante todo aquele tempo Desmond dormira com Nancy. Já não a admirava o fato de Nancy ter ficado tão fria com ela desde que se casara. Talvez, por alguns instantes, Nancy tivesse ficado preocupada. Era dez anos mais velha do que Cassie, mas não era tão excitante ou bonita.

- Não tiveste medo que ele se apaixonasse por mim?

Cassie observou-a atentamente e ficou contente por ver a mulher mais velha contorcer-se com a pergunta.

- Não. Nós falávamos de ti e tu não és o tipo dele, Cass.

- De fato, e dadas todas as informações que possuo, considero isso um cumprimento. - Cassie olhou-a friamente e decidiu agredir ligeiramente a sua adversária. - Não estás sozinha. Não és a única que tem esse tipo de compromisso com Desmond.

- O que é que isso quer dizer?

- Há outras como tu, com casas, contratos e compromissos. O Desmond não é homem para se satisfazer só com uma mulher. - Cassie sentiu-se recompensada com a expressão de terror que viu.

- Isso é ridículo. Quem te disse isso?

- Alguém que sabe. Disse-me que as outras são bastante numerosas. É como uma pequena competição.

- Não acredito. - Mas as suas palavras soavam a bravata.

- Eu também não acreditei em nada, Nancy. No entanto, sei. Foi bom ver-te - sorriu ela. - Diz olá ao Desmond por mim. - Com isto, entrou apressadamente no edifício.

Já não queria nada para comer. Nancy Firestone tinha-lhe tirado o apetite. Sentia-se doente quando foi ter com Billy ao hangar.

- Onde está o meu jantar? - Ambos tinham de estar presentes numa reunião daí a meia hora e ele estava morto de fome.

- Comi-o no regresso - mentiu, mas estava mortalmente pálida. Billy notou-o de imediato e ficou preocupado.

- Estás bem, Cass? Parece que viste um fantasma. Houve algum telefonema sobre o teu pai?

- Não. Ele está bem. Falei com a minha mãe esta manhã.

- Então o que aconteceu? - Ela hesitou durante muito tempo, sentou-se numa cadeira e contou-lhe tudo o que Nancy Firestone lhe dissera.

- Que filho da mãe! - comentou Billy de lábios cerrados. - Tem a jogada muito bem montada, não tem? É pena que para isso tenha de arruinar a vida de outras pessoas. Era bom que ele ficasse com pessoas da mesma laia.

- Acho que fica. Pelo menos, parte do tempo. - Nancy Firestone não tinha sido a amiga que parecera. - Depois da viagem, quero sair de Los Angeles e ir para casa. Acho que não tenho mais nada a fazer aqui. - Parecia esgotada quando olhou para ele e o viu acenar com a cabeça. Billy estava com pena dela, pois Cassie não merecia o que lhe acontecera.

Para Cassie, tudo aquilo explicava porque já nunca mais tinham feito amor e por que razão ele não mostrara um verdadeiro interesse nela depois da lua-de-mel. Desmond continuara a estar com Nancy e Deus sabe quem mais. Talvez Cassie tivesse tido sorte por ele não se ter dado ao trabalho de passar tempo na cama com ela. Se o tivesse feito, ela sentir-se-ia pior. Pelo menos, suspeitava que sim. Cassie sentia-se agora atraiçoada e um pouco mais do que idiota. O pior é que Cassie acreditara naquele filho da mãe.

- O que fazemos agora? - perguntou Billy, preocupado com ela. Billy continuava a perguntar a si próprio se, devido à traição de Desmond, ela desistiria da viagem com ou sem contrato. Mas Cassie não fazia as coisas dessa maneira. Fazia tenção de terminar o que começara, e Billy admirava-a por isso.

- Acabaremos a corrida, miúdo. Foi para isso que voltamos. O resto era a cobertura do bolo. - E para Cassie o bolo estava envenenado, mas nunca ninguém chamaria covarde a Cassie O'Malley.

- Linda menina! - Billy deu-lhe um abraço e levou-a a jantar, mas ela mal lhe tocou.

Depois do ocorrido, houve uma conferência de imprensa todas as semanas, e Desmond fazia questão em ser amigável com ela em público. Havia muitos gracejos, algumas histórias divertidas sobre ela e pouca amostra de afeto. Era tudo muito comovente, se não se soubesse o que realmente estava a acontecer, e era bastante credível para alguém que não os conhecesse.

Cassie parecia mais séria do que anteriormente, o que era facilmente explicável devido às tensões resultantes da viagem. Tinha uma tarefa muito importante à sua frente. Treinava muito e Desmond lembrava freqüentemente à imprensa que Cassie passara todo o Verão a tomar conta do pai.

- Como está o seu pai, Cass? - inquiriu um dos repórteres.

- Está muito bem. - Depois agradeceu a todo o país os presentes, postais e cartas. - Ajudaram-no muito. já recomeçou a voar com um co-piloto - disse orgulhosa. Eles acreditaram, tal como acreditavam em tudo o que Desmond lhes dizia. Cassie agora conhecia o jogo, e Billy ficava maravilhado com a sua destreza quando a observava.

- Estás bem? - perguntou ele em voz baixa depois de uma das conferências de imprensa. Desmond fora especialmente amável com ela, e Billy dera-se conta que o fato a perturbara bastante.

- Sim. Estou bem - disse Cassie, mas Billy sabia como estava magoada e como se sentia traída. Odiava toda aquela hipocrisia e vergonha. À noite, tinha pesadelos, pois, uma noite, ele ouvira-a gritar no quarto ao lado.

Nunca mais estivera com Desmond a sós, até à véspera da volta. Tinha havido uma enorme conferência de imprensa nessa tarde e, depois, ela e Billy saíram para jantar tranqüilamente no seu restaurante mexicano favorito.

Quando regressaram, Desmond estava à sua espera, sentado no carro. Quando saiu, disse a Billy que queria falar com Cassie.

- Só queria desejar-te sorte para amanhã. Estarei no aeroporto antes da descolagem, mas queria que soubesses que tenho pena que as coisas não tenham resultado como planejamos. - Estava a tentar ser magnânimo, mas o modo como agiu irritou-a.

- Quais eram exatamente os teus planos? Eu planejei ter uma vida, marido e filhos. - Ele planejara ter uma volta ao mundo, uma amante e uma esposa de cartão que arrastava para documentários.

- Então acho que devias ter casado com outro. Eu estava à procura de uma sociedade e não muito mais do que isso. Isto era um negócio. E o casamento não o será, Cassie? - Desmond estava a tentar mostrar que as coisas não tinham resultado e que não mentira sobre tudo, incluindo o fato de ser estéril. Cassie teria conseguido viver com isso e com muitas outras coisas, se ele tivesse sido honesto. Ambos sabiam que nunca o tinha sido.

- Acho que não fazes a mínima idéia do que é um casamento, Desmond.

- Talvez não - disse ele sem vergonha. - Para te dizer a verdade, é algo que eu nunca quis.

- Então para que te deste ao trabalho? Eu teria feito esta viagem sem serem necessários os disparates, as mentiras e o casamento. Não precisavas de ir tão longe. Tu usaste-me - disse ela, aliviada por finalmente o poder dizer.

- Usamo-nos um ao outro. Tu vais ser a maior estrela da aviação daqui a dois meses e fui eu que te pus lá, num dos meus aviões. Estamos quites. - Parecia contente consigo próprio, pois era tudo o que desejava. Cassie nada significava para ele e nunca significara. Era esse o aspecto mais difícil de suportar.

- Parabéns. Espero que possas gozar tanto como esperavas.

- E gozarei. - Tinha a certeza. - E tu e Billy também. Nesta parada, todos seremos vencedores.

- Se tudo correr bem. Estás a partir de grandes pressupostos - disse ela cautelosamente.

- Tenho esse direito. Vais pilotar um avião notável e és um grande piloto. Nada mais é necessário, a não ser a Senhora da Sorte e bom tempo. - Olhou longa e duramente para a jovem, desejando que fizesse tudo bem por ele, mas nada lhe oferecendo em troca a não ser glória e dinheiro. O amor não fazia parte do plano. Não o tinha dentro de si. - Boa sorte, Cass - disse.

- Obrigada - respondeu Cassie, subindo para o apartamento de Billy.

- O que é que ele queria? - perguntou Billy, desconfiado. Estava preocupado com o fato de Desmond poder ter dito a Cassie algo que a perturbasse.

- Apenas desejar-nos sorte à sua maneira. Não existe ninguém dentro dele. Finalmente percebi: aquele homem está completamente vazio. - Era uma grande verdade. Desmond Williams não tinha alma. Apenas ganância, calculismo e paixão avassaladora por aviões e não por pessoas. Ela fora apenas um instrumento, qual uma chave de fendas com que se afina um motor. Era o veículo do seu sucesso. Nada mais. O dente da roda de uma das suas máquinas e, pelos vistos, muito pequeno. Era ele quem manobrava os fantoches, o desenhador e o espírito de tudo. Aos seus olhos, Cassie não era nada.

O North Star descolou na manhã de 4 de Outubro, tal como planejado, com centenas de pessoas a observar. O cardeal de Los Angeles abençoou o avião. Houve champanhe para todos e Cassie descolou para uma rota de circuito, destinada a quebrar recordes de distância e acomodar os caprichos da política mundial do momento.

Voaram primeiro em direção ao Sul, para a cidade de Guatemala, cobrindo quatro mil quilômetros de um só golpe e sem reabastecimento. Quando chegaram, consultaram os mapas e o tempo, passando algum tempo a investigar a área e falando com os nativos. As pessoas estavam fascinadas com o avião e chegaram ao aeroporto em bandos para o ver. Desmond tinha feito bem o seu trabalho de casa. Todo o mundo sabia da viagem de Cassie.

A imprensa estava em massa à espera deles no aeroporto da cidade de Guatemala, juntamente com embaixadores, enviados, diplomatas e políticos. Havia uma banda de marimbas a tocar e Cassie e Billy posaram para os fotógrafos. Ninguém fora tanto o alvo das atenções a não ser Charles Lindbergh.

- Não é uma vida nada má, pois não? - Cassie disse-o para arreliar Billy, enquanto descolavam, no dia seguinte, em direção a San Cristóbal, nas ilhas dos Galápagos. Eram uns meros mil e setecentos quilômetros, que venceram apenas em três horas no extraordinário avião que a Williams Aircraft construíra para eles. Desta vez, Desmond conseguira o seu primeiro desejo: tinham acabado de estabelecer um recorde de velocidade e distância.

- Talvez fosse bom pararmos algures e tirar umas férias - sugeriu Billy. Ela sorriu-lhe enquanto era recebida por personalidades do Equador, pessoal militar americano e nativos. Havia mais fotógrafos e o governador das ilhas convidou-os para jantar.

A viagem estava a decorrer lindamente e passaram lá um dia a verificar pormenorizadamente o avião e a consultar os mapas e as condições climatéricas. As coisas não podiam estar melhores.

 

Dos Galápagos, voaram mais três mil e oitocentos quilômetros até à ilha de Páscoa, em exatamente sete horas, mas, desta vez, depararam com ventos inesperados e não conseguiram bater o recorde.

- Melhor sorte para a próxima - disse Billy, brincando enquanto deslizavam pela pista de aterragem da ilha de Páscoa. - Aquele teu marido é capaz de pegar fogo às nossas casas se não conseguirmos bater mais alguns recordes. - Ambos sabiam que Desmond estava atento aos japoneses que tinham estado a trabalhar num avião que fazia um vôo direto de Tóquio a Nova Iorque, numa distância de onze mil quilômetros, mas até agora só tinham surgido problemas, apenas conseguindo voar até ao Alasca. O seu primeiro vôo de teste estava marcado para daí a um ano, e Desmond estava decidido a superá-los. Era esse o motivo daqueles longos vôos sobre o Pacífico.

Enquanto reabasteciam o avião, acharam a ilha de Páscoa um lugar fascinante. Estava cheia de gente inocente e bonita e de intrigantes estátuas. As lendas contavam que as estátuas datavam da Pré-História e havia mistérios que Cassie teria adorado explorar se tivesse tempo para lá ficar.

Permaneceram apenas uma noite na ilha de Páscoa, a fim de se prepararem para a grande distância que os separava de Papeete, no Taiti. Desta vez, conseguiram quase bater o recorde. Viajaram os quatro mil e trezentos quilômetros em sete horas e catorze minutos sem um único problema.

Aterrar no Taiti foi como a chegada ao paraíso, e enquanto Billy observava as raparigas alinhadas nas pistas de aterragem, vestidas com sarongues, a acenar-lhes e transportando leis, aqueles colares floridos, soltou um grito que fez com que Cassie se risse à gargalhada.

- Meu Deus! E ainda nos pagam para fazer isto, Cass? Eu não acredito.

- Porta-te bem ou ainda nos prendem se saíres do avião com esse ar. - Billy estava praticamente a babar-se. Era como uma criança grande e Cassie adorava voar com ele. Além disso, era um navegador espantoso e um mecânico brilhante.

De fato, tinha ouvido um ruído de que não gostou no momento em que descolaram da ilha de Páscoa e, depois de prestar a devida homenagem às raparigas locais, quis voltar ao avião e ver o que era. Mencionaram o fato quando telegrafaram para casa nessa noite, mas asseguraram a todos que não era um problema sério. Mandavam relatórios diários dos seus progressos e ficaram aliviados ao anunciar que tinham acabado de bater outro recorde.

Em Papeete, quase toda a gente falava francês e Billy apenas falava o suficiente para se desembaraçar. O embaixador francês ofereceu-lhes um jantar, mas Cassie pediu desculpa por não ter nada para vestir a não ser o uniforme de vôo. Alguém lhe emprestou um lindo sarongue para substituir aquele, e levava uma grande flor cor-de-rosa no cabelo quando Billy a acompanhou ao jantar.

- Não te pareces nada com Lindy - disse ele com admiração, colocando o braço à sua volta enquanto caminhavam do hotel até à embaixada. Mas a sua relação era estritamente fraternal. Depois do jantar, enquanto caminhavam pela praia e falavam da viagem, Cassie disse com tristeza que desejava que Nick ali estivesse. Papeete era um local mágico e as pessoas maravilhosas. Era o lugar mais bonito que ela conhecia e resistiu à comparação com a lua-de-mel no México. Era uma recordação que queria esquecer.

Nessa noite, Cassie e Billy sentaram-se na praia a conversar sobre as pessoas que tinham conhecido e do que tinham visto. O jantar na embaixada fora impressionantemente civilizado e, até de sarongue, Cassie se sentiu deslocada, quanto mais em uniforme de vôo.

- Por vezes, as coisas que fazemos ainda me espantam - disse Cassie com um sorriso, apontando para a flor que usara naquela noite. - Como é que tivemos tanta sorte? Olha para o avião que estamos a pilotar e os lugares onde vamos. É como se fosse a vida de outra pessoa. Como é que chegamos aqui? já sentiste isto, Billy? - Por vezes, sentia-se muito jovem. e, outras, muito velha. Aos vinte e dois anos, e tendo tudo em consideração, sentia que tivera muita sorte e pouco azar, mas aquela era a sua maneira de ver as coisas.

- Eu diria que pagaste muito caro por esta viagem, Cass. Mais caro do que eu - respondeu Billy, muito sério, pensando no casamento dela. - No entanto, acho que sinto o mesmo. Estou sempre à espera que alguém me agarre e me diga: «O que é que o miúdo está a fazer aqui? Não faz parte disto.»

- Tu fazes parte disto - disse Cassie calorosamente. - És do melhor que há. Não teria feito a viagem sem ti. - A única pessoa com quem gostaria de ter voado era Nick. Talvez um dia.

- Em breve estará tudo acabado e tu sabes disso, Cass Pensei nisso quando aterramos aqui. Zip! Acabou. Planeja-se, pratica-se e sua-se durante um ano e depois, em dez dias, acabou. - Estavam quase a meio do caminho e Cassie ficou triste ao pensar nisso. Não queria que a viagem terminasse tão depressa.

Regressavam lentamente para o hotel quando ela disse algo a Billy que o surpreendeu.

- Acho que devo estar grata ao Desmond por tudo isto e estou. Contudo, já não parece a viagem dele. Contou-me todas aquelas mentiras, levou avante os seus esquemas, mas é a nossa viagem. Nós é que estamos a realizá-la. Nós é que estamos aqui e não ele. Subitamente, Desmond parece muito pouco importante. - Era um alívio para ela, e Billy ficou contente por Cassie não se estar a atormentar sobre o terrível negócio que fizera com o marido.

- Esquece-o, Cass. Quando voltarmos, tudo isso pertencerá ao passado. Tu terás toda a glória.

- Acho que nunca quis a glória - disse ela honestamente. - Só queria a experiência e saber que a conseguia fazer. - Mas não o suficiente para arruinar a vida de outra pessoa.

- Eu também - concordou ele, mas também era realista sobre a confusão que viria mais tarde. - Mas a glória também não é nada má. - Sorriu parecendo um rapazinho. Cassie riu-se, olhando depois para ele muito séria.

- Eu ia iniciar o processo de divórcio antes de partirmos, mas decidi esperar até voltarmos, no caso de algum repórter mais curioso vir a saber de alguma coisa. Não quis dar cabo das coisas mexendo-me demasiado cedo. Todavia, os papéis estão todos prontos e assinados. - Suspirou quando se lembrou da ida ao escritório do advogado. Fora uma experiência muito dolorosa contar a Desmond o que tinha feito.

- Que motivo vais dar para te divorciares dele? - perguntou Billy com interesse. Conseguia, pelo menos, meia dúzia de motivos, nenhum dos quais agradável, começando com adultério e terminando com o desgosto que causara a Cassie, se é que isso era agora um motivo legal para o divórcio.

- Para começar, fraude. Soa horrivelmente, mas o advogado diz que existem possibilidades. - E depois havia Nancy. - Acho que vamos tentar chegar a um acordo. Talvez nos divorciemos em Reno, se ele concordar. Pelo menos, seria rápido.

- Claro que seria - disse Billy sensatamente. Depois, dirigiram-se aos respectivos quartos, encontrando-se novamente na manhã seguinte para tomar o pequeno-almoço no terraço.

- E se nós lhes dissermos que podem ficar com o seu precioso avião e ficarmos aqui? - Billy sorriu-lhe, enquanto comia uma omelete, croissants e uma chávena de café forte, servido por uma rapariga de dezesseis anos que tinha um corpo de cortar a respiração.

- Não achas que te fartavas? - Cassie sorriu e sentou-se a seu lado. Também gostava de estar ali, mas estava ansiosa por continuar para Pago Pago e depois para a ilha Howland.

- Nunca me fartaria - disse ele, sorrindo para a rapariga e olhando de soslaio para Cassie. - Acho que gostaria de acabar os meus dias nesta ilha. E tu?

- Talvez. - Não parecia muito convencida e sorriu-lhe. - Penso que terminarei os meus dias da mesma maneira que os comecei: sob a barriga de um avião. Talvez me construam uma cadeira de rodas especial.

- Parece ótimo. Eu construo-te uma.

- Talvez seja melhor fazeres primeiro as verificações ao North Star.

- Estás a dizer que não posso ficar na praia todo o dia? - Fingiu um ar chocado, mas, meia hora mais tarde, estavam a passar o avião a pente fino e com toda a seriedade. Tinha acabado a brincadeira e, como seria de prever, os fotógrafos e visitantes vieram observá-los.

Transportavam muito poucas coisas no North Star, exceto uma grande quantidade de combustível, mantimentos de emergência, um rádio, coletes de salvação e uma jangada. Tinham tudo o que precisavam, mas cada vez que paravam sentiam a enorme tentação de comprar recordações de viagem. Porém, não havia espaço e não queriam carregar o avião com coisas que não fossem absolutamente essenciais.

Nessa noite, partilharam um jantar sossegado no hotel, enquanto observavam um pôr do Sol extravagantemente belo. Depois deram um passeio na praia e deitaram-se cedo. Na manhã seguinte, descolaram para Pago Pago.

Fizeram o troço em quatro horas e meia e não bateram qualquer recorde, mas foi um vôo simples, à exceção de um pequeno ruído que Billy pensou ouvir num dos motores. Era o mesmo ruído que ouvira na véspera e que persistia.

Pago Pago era um lugar fascinante, apesar de só terem lá passado uma noite, a maior parte da qual no aeroporto. Billy queria encontrar o motivo do ruído que tinha estado a incomodá-los e à meia-noite pensou tê-lo localizado. Estava a aborrecê-lo, mas continuava convencido de que não era um problema de maior.

Voltaram a telegrafar para casa, tal como faziam em cada paragem, e de manhã partiram para a ilha Howland. já tinham feito mais de catorze mil quilômetros e Cassie achara que estavam quase a chegar, se bem que ainda faltassem quase cinco mil quilômetros para chegarem a Honolulu. Como já tinham feito mais de metade da viagem e sabiam que estavam a aproximar-se da ilha Howland, onde se acreditava que Earhart se tinha despenhado, ficaram nostálgicos.

- Que vais fazer depois de tudo isto? - perguntou ela a Billy duas horas depois de terem saído de Pago Pago e enquanto comiam um sanduíche. A dona do sítio onde tinham ficado fora muito gentil e insistira em dar-lhes um cesto de fruta e sanduíches deliciosas.

- Eu? - Billy pensou no assunto. - Não sei. Talvez invista o dinheiro como fez o teu pai. Gostaria de ter um serviço de charter em qualquer lado. Talvez até num lugar como o Taiti. - Gostara realmente de Papeete. - E tu, Cass? - O que mais tinham era tempo para partilhar o cesto de fruta enquanto voavam sobre o brilhante Pacífico.

- Não sei. Às vezes sinto-me confusa. Por vezes, acho que os aviões, os vôos de teste e os aeroportos acabaram para mim; outras, pergunto-me se não deverei fazer outras coisas, como casar e ter filhos. - Ficou triste por uns momentos, olhando para o horizonte. - Pensei que isso iria acontecer com O Desmond, mas tal não sucedeu. Não sei - disse ela, encolhendo os ombros. - Terei de pensar nisso quando chegar a casa. Perdi esta parada.

- Acho que tiveste uma boa idéia, mas encontraste o tipo errado. Acontece. E o Nick?

- O que tem o Nick? - Ela ainda não tinha respostas. Nick não quisera casar com ela, mas agora, depois de Desmond, talvez fosse diferente. Cassie ainda não lhe dissera e nem sabia quando o veria novamente. Quem é que sabia alguma coisa, a não ser o que estavam a fazer? De momento, a vida era muito simples.

A paragem na ilha Howland foi muito emocionante para Cassie por causa de Amelia Earhart. Ela e Billy transportavam uma grinalda de flores para deitar do avião antes de chegarem à ilha.

Billy abriu-lhe a janela mal começaram a sobrevoar terra, e Cassie deixou-a cair, fazendo uma prece silenciosa por uma mulher que nunca conhecera, mas que admirara toda a vida. Agradeceu-lhe o fato de ter sido um exemplo para si, esperava que tivesse tido uma morte suave e que a sua vida tivesse valido a pena. Ao olhar para vidas como a dela, era difícil saber o que as pessoas sentiam ou quem realmente eram. Agora que Cassie fora devorada pela imprensa, sabia que a maior parte das coisas não significava nada. No entanto, Cassie sentiu uma estranha proximidade com o seu ídolo, quando com Billy aterraram suavemente depois de um vôo de quase vinte mil quilômetros. Fora muito simples para eles e correra muito bem. Por que motivo não tinha sido assim para Amelia Earhart?

Billy deu-lhe uma palmada no joelho quando o avião parou. Era fácil verificar tudo o que Cassie estava a sentir e Billy adorava-a por isso.

Na ilha Howland estavam fotógrafos à sua espera, por cortesia de Desmond Williams, e foram estabelecidos os esperados paralelos entre Cassie e Amelia Earhart.

Estavam a planejar ficar só uma noite antes do vôo de mais de três mil quilômetros até Honolulu, sendo lá que se realizariam os planos de Desmond: cerimônias e acontecimentos sociais, prêmios e honras, conferências de imprensa, filmes e até uma demonstração do North Star para o exército, no campo aéreo de Hickam. Parecia excitante, mas também um pouco assustador. Ali, tudo era muito mais simples e, de certo modo, seria a última noite de paz que teriam nos tempos mais próximos. Cassie detestava a idéia de ver Desmond novamente e só de pensar nisso ficava deprimida.

Cassie esteve calada durante o jantar dessa noite; Billy não estava surpreendido, devido ao que tinham à sua frente e ao fato de ela ainda estar muito emocionada com Earhart.

- É assustador voltar novamente para tudo aquilo, não é? - perguntou depois de jantar, enquanto tomava café.

- E, mas também é excitante. - Era muito menos complicado para ele, pois não sofria por causa de Desmond. - Tudo terminará em breve como um raio de luz - disse o rapaz, radiante -, como o espetáculo de fogo-de-artifício do quatro de julho. Seremos famosos por uns segundos e depois tudo desaparecerá - continuou Billy profeticamente -, até alguém fazer uma viagem mais longa e mais rápida. - Mas eles seriam lembrados durante muito tempo. A sua fama não desapareceria tão depressa como ele pensava. Desmond tinha razão em algumas coisas e o que estavam a fazer era importante.

- Amanhã à noite, por esta hora, estaremos em Honolulu, Miss O'Malley - disse, fazendo-lhe um brinde com um pequeno copo de vinho. Bebera muito pouco, pois sabia que no dia seguinte iria voar. - Pensa na fanfarra e no entusiasmo. - Os olhos de Billy dançavam e ela sorriu.

- Preferia que não acontecesse. Fico pálida só de pensar nisso. Talvez fosse melhor voltar para trás e regressar a casa pelo mesmo caminho. É uma idéia. - Cassie riu-se da idéia e ele abanou a cabeça, divertido. O tempo que passavam juntos era sempre muito divertido.

- Lamento, Mister Williams, mas o meu piloto ficou confuso. Sabe como é. É apenas uma rapariga e toda a gente sabe que as raparigas não sabem voar. Na realidade, ela tinha o mapa às avessas. - Ambos se riram, divertidos com os seus próprios esquemas, mas, no dia seguinte quando descolassem, algumas das coisas que Cassie afirmara provaram-se proféticas.

Deram inesperadamente de caras com uma tempestade a pouco mais de trezentos quilômetros da ilha e, depois de avaliarem a situação e os ventos, concordaram em regressar à ilha. Quando tentaram aterrar surgiu uma tempestade tropical de dimensões surpreendentes e Cassie não pôde deixar de pensar se não teria sido isso que acontecera a Noonan e Earhart. Cassie teve muito trabalho a aterrar o avião no meio de ventos ferozes que quase a varreram da ilha. Finalmente, desceram pesada e rapidamente com ventos cruzados e quase falharam a pista. Foi preciso tudo o que sabia para aterrar o North Star e, quando pararam, estavam apenas a alguns centímetros da água.

- Devo lembrar-te - disse Billy casualmente enquanto ela lutava para virar o avião - que, se este avião cair na água, estaremos em muitos maus lençóis com Mister Williams.

Cassie não conseguiu deixar de rir com o aviso e não tinha muita pena de passar outra noite na ilha Howland. Estava longe de ser um local excitante, mas, pelo menos, tinha paz, provavelmente pela primeira vez. Não imaginava o que seria das suas vidas depois de Honolulu.

Já tarde, nessa noite, a tempestade acalmou, mas na manhã seguinte descobriram que ela havia danificado o radiogomómetro que não tinha reparação. Ambos acharam que seria seguro continuar a viagem, mas enviaram uma mensagem via rádio para Honolulu, dizendo que precisavam de um rádiogomómetro novo assim que chegassem. O dia estava brilhante e soalheiro quando iniciaram o vôo de dois mil e novecentos quilômetros até Honolulu. Mas a quinhentos quilômetros da ilha Howland depararam com outro problema. Um dos motores parecia não estar a funcionar bem. Billy verificou se havia alguma fuga de óleo e ela observava-o enquanto verificava os manômetros.

- Queres voltar para trás? - perguntou ela calmamente, mantendo os olhos nos instrumentos.

- Ainda não tenho a certeza - respondeu Billy, ainda intrigado.

Continuou a verificar um dos motores, ouvindo, arranjando e ajustando e, cem quilômetros à frente, Billy assegurou-lhe que estava tudo sob controlo. Acenou a cabeça e manteve-se atenta aos instrumentos de bordo, pois queria ter a certeza de que concordava com ele.

Cassie não deixava nada ao acaso, sendo essa a razão da sua tremenda capacidade. Billy parecia ser muito mais casual do que ela, mas também era extraordinariamente cuidadoso, possuindo um apurado sexto sentido, sendo por isso que Cassie adorava voar com ele. Formavam a equipa perfeita.

Ela alterou ligeiramente a rota para evitar algumas nuvens pesadas à sua frente, que parecia provocarem mau tempo. Ao princípio da tarde, ele olhou para o céu de Outono e depois para a bússola.

- Tens a certeza que estás na rota correta? A mim não me parece.

- Confia na bússola - respondeu com voz de instrutor, enquanto lhe sorria. Era o único instrumento em que ela sempre confiava e a única informação fidedigna que tinham, pois tanto o sextante como o radiogomómetro se tinham avariado durante a tempestade.

- Confia nos teus olhos, no teu nariz e no teu instinto e depois na bússola. - Billy tinha razão. Com o vento tinham saído ligeiramente da rota, mas não o suficiente para os preocupar. Depois de verificar os instrumentos, olhou para cima e viu fumo no motor número dois e pequenos fios de gasolina a escorrer sobre o número um.

- Merda - murmurou ela, apontando-o a Billy. Desligou o motor número dois, parando a hélice. já estavam muito longe da ilha Howland. - É melhor voltarmos para trás. - Estavam no ar há duas horas e já fora do alcance do rádio.

- Não há nada mais perto? - Ele olhou para o mapa e viu uma pequena ilha. - O que é isto?

- Não tenho a certeza. Parece caca de pássaro.

- Muito divertido. Dá-me uma leitura. Onde estamos? - Ela leu-lhe a bússola, enquanto Billy olhava para o motor. Não estava a gostar do que via e muito menos sabendo que transportavam mil e quinhentos litros de combustível perto do motor.

Continuaram a voar por mais alguns minutos e decidiram tentar a ilha que viram no mapa, mas Cassie estava preocupada em pousar o North Star naquele sítio. Se a ilha fosse demasiado pequena, com o avião demasiado grande, não conseguiriam. Concordaram em aterrar na praia se fosse necessário. Estavam fora do alcance do rádio. Billy verificou novamente o motor, mas os resultados não foram os melhores. Colocou depois os auscultadores e tentou enviar pedidos de socorro a navios que pudessem estar nas proximidades.

Quando olharam pela janela, viram que o motor estava a arder.

- Parabéns, Cass. E aquilo não é um bolo.

- Merda.

- Precisamente a que distância estamos da ilha Caca de Pássaro?

- Mais ou menos oitenta quilômetros.

- Ótimo. Era só o que precisávamos. Mais quinze minutos com mil e quinhentos litros de combustível debaixo dos braços. Que bom!

- Vai fazer qualquer coisa - disse ela calmamente.

- Tens sempre umas idéias horríveis - respondeu, mexendo em algumas alavancas e verificando o outro motor. - Não admira que não consigas ter um trabalho decente. - Estavam a brincar, mas não estavam divertidos. O North Star estava com problemas.

Dez minutos mais tarde, a ilha surgiu no horizonte e eles observaram-na. Não havia terreno plano. Só árvores e o que parecia uma pequena montanha.

- Sabes nadar bem? - perguntou ele, entregando-lhe um colete de salvação por uma questão de rotina. Sempre soubera que era uma excelente nadadora. - Parece que vamos aterrar na praia.

- Talvez, cowboy. Talvez. - Estava concentrada em manter a estabilidade do avião. Começara a puxar com força e O outro motor já se encontrava a fumegar. - O que achas que está a acontecer? - Não percebiam bem o que estava a suceder, só o saberiam ao certo quando chegassem ao solo, o que já não estava longe. Inicialmente, Billy pensara que as condutas de combustível estivessem entupidas, mas não estavam- Havia um defeito qualquer excesso de gasolina para isqueiro?

- Então não acendas nenhum Lucky agora - avisou ela preparada para aterrar. Circulou a ilha duas vezes, tentou a aterragem na praia uma vez e voltou a subir com os dois motores a arder. Sabia que era preciso largar combustível, mas já não havia tempo.

- Queres tentar chegar a Nova Iorque? - perguntou Billy calmamente, observando-a a manobrar aquele avião tão pesado sobre uma ilha minúscula.

- Talvez seja melhor Tóquio - respondeu ela, nunca tirando os olhos do que estava a fazer. - Tachikawa vai pagar uma fortuna pelo vôo de teste.

- Boa idéia. Tentemos. Quem precisa do Desmond Williams?

- Bom. Aqui vamos - disse Cassie, concentrando-se em cada pormenor. - Deus! Aquela praia é muito curta. - Os motores estavam quentes e a arder.

- Detesto ter de dizer isto, minha querida - informou Billy calmamente, vestindo o seu colete de salvação -, mas se não aterras depressa vamos provocar uma vergonhosa explosão nesta ilha. Poderá causar uma má impressão aos nativos.

- Estou a tentar - disse ela por entre dentes.

- Queres ajuda?

- De um miúdo como tu? Não, obrigada. - Desceu o mais baixo que pôde e colocou toda a sua força na alavanca. Estavam quase no chão e acabavam de ultrapassar a praia quando atingiram a água. O avião parou e mergulhou lentamente num metro e meio de água, enquanto ela desligava todos os interruptores na esperança que não explodisse, mas agora não havia garantias.

- Bela aterragem. Agora vamos embora, rápido. - Ele agarrou-a e empurrou-a para fora do avião antes que Cassie conseguisse agarrar em fosse o que fosse. Instintivamente, agarrou no kit de emergência enquanto ele lutava para abrir a porta. Ambos os motores estavam a arder e já se conseguia sentir o calor na carlinga. Conseguiu abrir a porta e gritou-lhe.

- Sai!

Empurrou-a e afastou-a do avião sem que ela tivesse tempo de perceber o que acontecera. Na mão tinha o diário de bordo e um pequeno saco com o dinheiro que possuíam. Caminharam pela água o mais depressa que puderam e dirigiram-se à praia a correr. Correram mais uns metros e, ao chegarem ao fim da praia, ouviu-se uma explosão enorme. Viraram-se e viram todo o avião envolto em chamas e alguns pedaços a cair sobre as árvores e na água. Havia uma enorme coluna de fumo sobre ele devido ao combustível e ardeu durante horas, enquanto eles o observavam em estado de choque.

- Adeus, North Star - disse Billy enquanto o resto do avião desaparecia na água. Só restava uma sombra daquilo que fora. Tantos homens e tanto trabalho, todos aqueles meses e horas e cálculos terminaram num momento. Tinham feito dezessete mil e setecentos quilômetros e acabara. Estavam vivos. Tinham sobrevivido e só isso interessava.

- E eis-nos aqui - declarou Billy casualmente enquanto lhe dava um rebuçado -, na ilha Caca de Pássaro. Espero que tenhas umas boas férias. - Cassie olhou para ele e riu-se. Estava demasiado cansada e perturbada para chorar ou gritar. Tudo o que Cassie esperava era que alguém percebesse que tinham desaparecido, quando não aterrassem em Honolulu, e mandassem tropas à sua procura. Ela sabia dos esforços que tinham feito para encontrar Earhart há quatro anos atrás, mas também sabia que se tinha falado sobre a despesa que causara. Nem que fosse apenas pela publicidade que os rodeava e para recuperar o avião, Cassie sabia que Desmond faria tudo para os encontrar. Falaria com o próprio Roosevelt: se fosse preciso. Apostaria forte no fato de Cassie ser a namorada da América e de o povo a adorar. Teriam de a encontrar.

- Bem, Miss O'Malley! Que tal telefonarmos para o serviço de quartos e pedirmos uma bebida? - Já lá estavam há quatro horas, vendo o avião desintegrar-se, simultaneamente com a sua esperança de sair dali. Agora teriam de ser salvos. - Não teria sido uma verdadeira viagem para estabelecer recordes, se isto não tivesse acontecido - disse ele. Tinha a certeza que seriam salvos daí a um ou dois dias e seria muito excitante contar a história.

O Desmond vai pensar que fiz isto por vingança - advertiu Cassie, sorrindo. Também havia um certo lado divertido em tudo aquilo. Se não tivessem cuidado, poderiam ter ficado seriamente preocupados. Cassie perguntou a si própria se teria acontecido o mesmo a Noonan e a Earhart, ou se teria sido mais dramático e rápido. Talvez tivessem morrido com o impacto ou talvez ainda estivessem à espera numa ilha como aquela. Era uma idéia intrigante, mas pouco provável.

- Também calculei que fizeste isto por vingança - comentou Billy casualmente. - Não posso dizer que não tens razão, mas preferia que o tivesses feito um pouco mais perto de Taiti. A criada era uma estampa.

- Como todas as raparigas desde Los Angeles. - Cassie estava menos alegre do que Billy, mas grata pelo seu sentido de humor.

- Aqui decerto que não. - A ilha era completamente deserta.

Fizeram uma missão de reconhecimento e descobriram um pequeno riacho e muitos arbustos com bagas. No que dizia respeito a ilhas desertas, era razoavelmente confortável e tinha tudo o que precisavam. Havia frutos que eles não conheciam, mas quando os provaram, nessa noite, acharam-nos deliciosos. Era estranho estar ali, mas não parecia terrível desde que não ficassem lá para sempre. Só a idéia era um pouco mais do que assustadora, mas Cassie tentava não pensar nisso, enquanto estavam deitados ao lado um do outro dentro de uma gruta que tinham encontrado.

Estiveram acordados durante muito tempo e finalmente ela decidiu fazer a pergunta.

- Billy?

- Sim?

- E se eles não nos encontram?

- Vão encontrar.

- E se não encontram?

- Têm de encontrar.

- Porquê? - Os seus olhos estavam enormes na escuridão e Billy segurou-lhe a mão gentilmente. - Porque é que nos têm de encontrar?

- Porque o Desmond deve querer processar-te. Ele não vai poupar-te. - Billy sorriu no escuro e ela riu-se.

- Cala-te!

- Vês? Não te preocupes. - Mas virou-se para o lado e abraçou-a, não lhe dizendo que também estava com medo. Nunca estivera tão assustado em toda a sua vida e não podia fazer mais nada por ela senão abraçá-la.

 

Desmond foi chamado a meio da noite, exatamente vinte e duas horas depois da partida do avião da ilha Howland. As autoridades locais já tinham a certeza absoluta de que o North Star tinha desaparecido ou provavelmente caído no oceano Pacífico, mas não havia quaisquer sinais dele e ninguém fazia a mínima idéia do que acontecera.

- Merda. - Ele chamou toda a gente para ajudar. Era preciso implementar um plano de emergência. Ligaram para a marinha, as autoridades estrangeiras e o Pentágono. O vôo do North Star fora notícia a nível mundial e agora todos os que tinham ouvido falar dele, e até alguns que não tinham, desejavam encontrá-lo.

Havia um porta-aviões perto do local onde se supunha ter sido a queda; então, quarenta e um aviões e dois contratorpedeiros iniciaram as buscas. Não era diferente das buscas que tinham sido levadas a cabo há quatro anos, mas agora estavam mais bem treinados e equipados. Fizeram todos os esforços possíveis e utilizaram todos os homens que tinham. O presidente dos Estados Unidos telefonara a Desmond e aos O'Malley, em Illinois. Estes, quando souberam, ficaram em estado de choque. Não conseguiam acreditar que poderiam perder Cassie, e Oona ficou especialmente preocupada com o coração de Pat, que, no entanto, parecia estar a agüentar com alguma calma. Temia desesperadamente pela filha, mas tinha muita confiança nas forças armadas. Só desejava que Nick lá estivesse para ajudar.

As buscas continuaram durante dias e cobriram centenas de quilômetros. Durante todo esse tempo, Cassie e Billy estavam a tentar manter-se de bom humor e comiam bagas. Cassie ficara com um caso grave de disenteria e, no dia seguinte ao acidente, Billy tinha feito um profundo arranhão na perna enquanto nadava por cima de corais. Para além disso, estavam em boa forma. Comiam todos os frutos que encontravam, tinham muita água, mas não havia sinal das equipas de salvamento. Nem aviões, nem navios, nem nada que se parecesse.

Como Cassie alterara ligeiramente a sua rota antes de se despenharem e os ventos os tinham empurrado ainda mais para fora dela, as buscas estavam a ser conduzidas a oitocentos quilômetros do local onde tinham caído. O rádio tinha morrido antes de caírem e ficara destruído na explosão, o que os impossibilitava de fornecer a sua localização. Na altura, não estava nenhum navio nas proximidades. Eles próprios não tinham a certeza de onde estavam, mas também não tinham maneira de dizer a alguém, mesmo que soubessem.

Em Los Angeles, Desmond estava a fazer tudo o que podia para manter as buscas, mas a imprensa já começara a questionar os seus custos incríveis e virava-se para Desmond. Alegavam a futilidade das buscas e a possibilidade de terem morrido no acidente ou já estarem mortos. As buscas continuaram a todo o vapor durante catorze dias, tendo sido feitas algumas observações durante mais uma semana. Dois dias depois, as buscas foram completamente canceladas. Fazia precisamente um mês que eles tinham saído de Los Angeles. Terminara.

- Eu sei que ela está viva - insistia Desmond, mas ninguém acreditava. - Está demasiado bem treinada. Não acredito. - Mas os peritos partiram do pressuposto que haveria algo de errado com o avião. Poderia ter existido um defeito desconhecido e fatal Ninguém questionava a perícia de Cassie, mas havia sempre o elemento destino ou sorte.

Os pais ficaram inconsoláveis quando souberam que as buscas tinham sido canceladas sem terem encontrado Cassie e Billy. Parecia impossível acreditar que tinham perdido outro filho e de uma maneira tão cruel. A mãe passava as noites em branco a pensar se Cassie estaria viva algures e eles não a tinham encontrado. Todavia, o pai pensava ser muito pouco provável.

No dia de Ação de Graças, Cassie e Billy já estavam desaparecidos há seis semanas e, nesse ano, o feriado foi muito lúgubre para todos. Mal o celebraram, jantando calmamente na cozinha.

- Não consigo acreditar que ela esteja morta - disse a mãe, soluçando nos braços de Megan. Era uma altura terrível para eles.

Para Desmond fora o fim do sonho de uma vida. Estava constantemente a atormentar-se sobre o que poderia ter acontecido. Se soubessem... se encontrassem alguma coisa, mas não havia destroços nem provas, nenhum pedaço do avião ou das suas roupas. Isso levava-o a pensar que esta riam vivos algures. Como tal, estava constantemente a falar para o Pentágono, mas para eles as buscas tinham terminado. Estavam convencidos que o North Star se tinha afundado sem deixar vestígios e tinham a certeza de que não havia sobreviventes.

A fotografia de Cassie surgia em todos os lados: revistas e jornais. Seis semanas depois do seu desaparecimento, a sua identidade parecia tão viva como sempre. A imprensa fora muito devotada a Cass e, como era apropriado, Desmond retratava-se como o viúvo desolado. Naquele ano, Desmond não teve dia de Ação de Graças, o mesmo acontecendo com Nick, em Inglaterra. Soubera do desaparecimento de Cassie uma semana depois do acidente, pois era um acontecimento tão importante que chegou aos cabeçalhos dos jornais ingleses. Não conseguiu acreditar quando ouviu as notícias. Oferecera-se como voluntário para as missões mais perigosas, até que alguém explicou a situação ao comandante. Deram-lhe uma licença de três dias e pediram-lhe que tirasse umas férias. Era óbvio para todos que algo estava a perturbá-lo, correndo demasiados riscos. Nick discutira com eles, mas não o ouviram. Pensou em ir para casa durante alguns dias, mas sabia que ainda não conseguia enfrentar Pat depois do que acontecera. Que louco tinha sido! Que covarde! Nunca se perdoaria por não ter casado com Cassie, deixando-a para Desmond Williams. Nunca lhe ocorreu que ela não quisesse e que desejasse fazer a volta ao mundo sozinha. Também era uma decisão dela e Cassie era demasiado independente.

Porém, achou que Pat também nunca lhe perdoaria. Se tivesse casado com ela, tudo poderia ter sido diferente.

Tinha visto uma fotografia de Desmond a sair de uma missa por alma de Cassie, com uma expressão de dor, usando um chapéu de feltro, e odiou-o por ter dado a Cassie o avião e a oportunidade de se matar. Sabia melhor que ninguém que provavelmente fora Desmond que a impelira a fazer a viagem para obter todos os louros. Cada vez estava mais convencido disso.

Na ilha sem nome, Cassie servia a Billy o jantar de Ação de Graças, constituído por bagas, uma banana e água. Há um mês que comiam a mesma coisa e raramente chovia, mas iam sobrevivendo. Billy ficara com uma infecção na perna que arranhara no recife de corais e tinha estado a lutar com a febre. Cassie trazia algumas aspirinas no kit de emergência, mas há muito que tinham acabado. Ela teve problemas com uma picada de aranha, mas, para além de estarem muito queimados do sol, a sua forma mantinha-se, à exceção das febres de Billy.

Haviam conseguido manter-se a par da data desde o dia em que se despenharam e sabiam que era dia de Ação de Graças. Falaram do peru, da torta de abóbora e da ida à igreja, das famílias e amigos. Billy estava preocupado com o fato de o pai estar completamente só e Cassie pensava constantemente nos pais, irmãs, cunhados e sobrinhos e nas saudades que sentia deles. Falou de Annabelle e de Humpèrey, as duas crianças que tinham vindo de Inglaterra e que a faziam pensar em Nick. Agora estava sempre a pensar nele.

- O que é que tu achas que eles pensam que nos aconteceu? - perguntou ela enquanto partilhava uma banana com Billy, reparando que estava novamente corado e febril.

- Que estamos mortos - disse ele honestamente. Nos últimos tempos, já não brincava tanto. Tudo o que podia fazer era ficar à espera, pensar e passar a vida a comer o mesmo tipo de bagas. Não havia mais nada para comer na ilha e até então ainda não tinham conseguido pescar nada, mas não passavam fome.

Dois dias depois, desabou uma tempestade e a temperatura desceu mais do que era habitual. Cassie ainda usava o seu uniforme, mas estava rasgado e pouco limpo. Billy tinha apenas os calções e T-shirt. Na manhã seguinte à baixa de temperatura, Cassie notou que até ao sol Billy tremia.

- Estás bem? - perguntou ela, tentando não parecer tão preocupada como na realidade estava.

- Estou ótimo - respondeu o rapaz a brincar. - Vou buscar bananas. - Tinha de subir a uma árvore para as apanhar, mas desta vez não conseguiu passar do chão. A perna estava muito inchada e a deitar pus e, quando voltou com uma banana que caíra, coxeava muito.

Cassie já não sabia o que fazer por ele. A perna estava a piorar e percebia-se que a febre aumentava. Banhou-lhe a perna em água salgada, mas não resultou. Não tinha mais nada para lhe dar. Billy dormiu bastante nessa tarde e, quando acordou, os olhos ainda estavam mais vidrados. Cassie colocou-lhe a cabeça no colo e fez-lhe festas na testa. Quando o Sol começou a pôr-se, Billy começou novamente a tremer de frio. Ela deitou-se a seu lado e tentou mantê-lo quente com o calor do seu corpo.

- Obrigado, Cass - sussurrou na escuridão da sua gruta, e ela continuou a abraçá-lo, rezando para que os encontrassem. No entanto, isso já parecia impossível. Perguntou a si própria se ficariam ali durante anos, acabando por morrer Não parecia provável saírem daquela ilha. Cassie sabia muito bem que as buscas já teriam sido canceladas. Partiam do pressuposto que estavam mortos, como já acontecera a outros. Billy sentia os dentes baterem durante toda a noite e a manhã seguinte. Delirava enquanto ela lhe colocava compressas frias na testa. Houve uma tempestade naquele dia e Cassie bebeu demasiada água da chuva, acabando novamente com uma violenta disenteria. Com ás bagas, a água e as folhas que comiam, Cassie estava permanentemente doente. Pelo fato que trazia, podia verificar que perdera muito peso desde que tinham chegado à ilha.

~ Billy manteve-se inconsciente durante todo o dia e noite, e Cassie manteve-se abraçada a ele, chorando. Nunca se sentira tão sozinha em toda a sua vida e, para piorar as coisas, também se sentia febril. Pensou se não teria apanhado uma doença tropical. Billy tinha uma infecção, mas ambos estavam doentes.

De manhã, Billy parecia estar melhor e muito mais lúcido. Levantou-se, caminhou pela gruta e depois olhou para ela e disse-lhe que ia nadar. Estava frio lá fora, mas Billy insistiu que sentia calor, tornando-se subitamente muito argumentador e poderoso. Cassie não conseguiu impedi-lo. Entrou para a água no local onde estava o casco queimado do avião. Nem as tempestades ainda o tinham levado e ali ficara, como que a exprimir censura e como recordação de tudo o que tinham tido e perdido. Para Cassie, era a última recordação de Desmond.

Viu Billy nadar para além do avião e voltar. Quando saiu da água, ela reparou que Billy tinha ferido a outra perna, mas parecia não o sentir. Ele insistiu que não era nada, e Cassie viu-o subir a uma árvore e comer uma banana. Parecia estar com uma energia fora do vulgar e uma estranha forma de demência. Pelo que dizia, Cassie conseguia perceber que Billy não estava em si. Estava muito nervoso, com um olhar selvagem e, ao cair da noite, estava deitado na gruta a tremer, a falar com alguém sobre um carro, uma vela e um rapazinho. Ela não fazia idéia de que é que o rapaz estava a falar. Mais tarde, olhou-a com uma expressão muito estranha e ela perguntou a si própria se Billy a estava a reconhecer.

- Cass?

- Sim, Billy? - Estava deitada abraçada a ele, sentindo todo o seu corpo a tremer.

- Estou cansado.

- Está tudo bem. Dorme. - Não tinham mais nada para fazer e estava muito escuro.

- Está mesmo tudo bem?

- Sim.

- Fecha os olhos.

- Estão fechados - disse ele, mas Cassie podia ver que estavam abertos.

- Está muito escuro aqui dentro. Fecha os olhos. Amanhã sentir-te-ás muito melhor. - «Será que alguma vez iriam sentir-se melhor», pensou ela. Sentia a temperatura do seu corpo novamente a subir e tremia quase tanto como ele.

- Amo-te, Cassie - disse ele suavemente alguns instantes depois. Parecia uma criança, e Cassie deu por si a pensar nos sobrinhos e sobrinhas, como eles eram queridos e na sorte que as irmãs tinham em os ter.

- Eu também te amo, Billy - respondeu gentilmente.

Billy ainda estava enrolado nos seus braços quando Cassie acordou na manhã seguinte. Doía-lhe a cabeça, o pescoço estava muito tenso e sabia que estava lentamente a ficar tão doente como ele. Pensou que Billy já estava acordado, pois estava muito quieto e a olhar para ela. Subitamente, Cassie deu um grito quando percebeu que, apesar dos olhos abertos, não estava a respirar. Tinha morrido nos seus braços durante a noite. Agora Cassie estava sozinha.

Ficou ali sentada durante muito tempo a olhar para ele, sem saber o que fazer e não querendo que Billy a deixasse. Ficou a chorar, agarrada aos joelhos e a balançar-se para trás e para a frente. Sabia que tinha de fazer algo, tirá-lo dali ou enterrá-lo, mas não conseguia suportar a idéia de ficar sozinha.

Nessa tarde, puxou-o lentamente para fora da gruta e fez uma sepultura superficial com as mãos na areia mais grossa, perto das rochas, e colocou-o lá dentro. Só conseguia pensar no fato de ele lhe ter dito que queria acabar os seus dias naquela ilha. E acabara. Mas tudo isso parecia ter ocorrido há muito tempo, como se fizesse parte de outra vida, num lugar que ela nunca mais veria. Sabia que também iria morrer.

Ajoelhou-se junto ao corpo e olhou para ele: tinha os olhos fechados e as sardas pareciam maiores no rosto magro. Depois tocou-lhe a face pela última vez e passou-lhe a mão pelo cabelo.

- Amo-te, Billy - disse Cassie tal como o dissera na noite anterior, mas desta vez ele não respondeu. Cobriu-o gentilmente com areia e deixou-o.

Nessa noite, sentou-se sozinha na gruta, com fome, frio e a tremer. Não comera durante todo o dia. Estava demasiado doente para comer e profundamente triste por causa de Billy. Também não bebera água. Na manhã seguinte, sentia-se fraca e confusa, pois estava sempre a ouvir a voz da mãe a chamar por ela. Fosse qual fosse a doença que tinha, estava a matá-la. Interrogou-se sobre quanto tempo demoraria e até mesmo se isso era relevante. Já não tinha razões para viver: Chris e Billy tinham morrido, Nick estava perdido, o seu casamento acabara e despenhara o avião de Desmond. Desiludira todos. Tinha falhado.

Cambaleou até à praia, caindo várias vezes, pois estava demasiado fraca para subir às rochas e beber água, mas já não se importava. Dava muito trabalho manter-se viva e já ouvia as vozes de muitas pessoas. Viu o Sol nascer e quando se levantou viu um navio no horizonte. Era um grande navio que se aproximava, mas não importava, pois nunca a veriam.

O Lexington estava em manobras naquela área. Passava regularmente por aquelas ilhas, mas já não navegava até lá há bastante tempo, pois tinha sido destacado para outros locais. Cassie não se incomodou. Voltou para a gruta e deitou-se. Estava demasiado frio lá fora e já ouvia muitas vozes.

O Lexington continuou a cruzar aquelas águas e junto dele estavam dois navios mais pequenos. Foi o vigia do mais pequeno que detectou o casco queimado do North Star a boiar na água a quinhentos metros da ilha.

- O que é aquilo, Sir? - perguntou a um oficial que estava junto dele e que sorriu. - Parece um espantalho. - Àquela distância e daquele ângulo até parecia. Parte já se tinha afundado, mas sobrara tão pouco que o esqueleto conseguira manter-se a flutuar. Depois de olhar novamente, o oficial deu uma série de ordens rápidas.

- Poderá ser o avião da O'Malley e do Nolan, Sir? - perguntou excitado um jovem oficial.

- Acho que não. Caíram a cerca de oitocentos quilômetros daqui. Não sei o que será, mas é melhor vermos mais de perto.

Avançaram lentamente na sua direção, e mais alguns membros da tripulação dirigiram os binóculos para o objeto, mas quando conseguiram focá-lo, o esqueleto fugiu-lhes da vista, entrando e saindo da água, mas era óbvio que fazia parte de um avião. Metade da carlinga ainda existia e uma das asas fora arrancada. A outra ardera e derretera-se.

- O que é aquilo? - gritou um dos homens para outro.

- Quero alguns homens na água! - ordenou um oficial. - Quero aquilo a bordo. - Meia hora mais tarde, tinham os restos do avião de Cassie espalhados pelo convés. Não sobrara muito, mas havia um pedaço que dizia tudo e estava ali pintado a verde-claro e amarelo. Eram essas as cores de Cassie e ainda se via a palavra Star. Chamaram o comandante para examinar o que tinham encontrado e este não teve dúvidas: tinham encontrado os restos do que fora o North Star. Ficara completamente queimado e era óbvio que sofrera uma terrível explosão, mas não havia qualquer sinal de vida ou de resíduos de seres humanos. Verificaram cuidadosamente e não havia sinais de Cassie ou Billy.

Comunicaram via rádio para os navios que os acompanhavam e para outros que navegavam nas redondezas e, à tarde, estavam todos a explorar as águas em busca de corpos ou coletes de salvação. Também tinham comunicado para terra e houve um boletim noticioso em Los Angeles que Desmond ouviu antes de lhe telefonarem. Tinham sido encontrados bocados do avião, mas não havia sinais de vida. Já estavam perdidos há várias semanas e era pouco provável que estivessem vivos, mas não era impossível. A busca de O'Malley e Nolan recomeçara.

Foram organizadas equipas de desembarque para examinar todas as ilhas circundantes. Duas eram relativamente grandes, e uma tão pequena que não parecia provável estar lá alguém. Decidiram que não havia vegetação suficiente para alimentar ninguém durante uma semana e muito menos um mês, mas o oficial encarregado mandou-os procurar, se bem que não houvesse nada: nem sinais de vida, nem roupas nem utensílios.

Cassie detectou novamente ruídos e depois mais vozes. Imaginou se Billy teria ouvido as mesmas coisas antes de morrer, mas esquecera-se de perguntar. Havia apitos, sinos e pessoas a chamar e percebeu que estava a morrer quando uma luz muito brilhante lhe iluminou o rosto. Havia novamente vozes e pessoas a chamar e aquela luz no seu rosto. Voltou a adormecer enquanto olhava para ela. Dava demasiado trabalho continuar a ouvi-las. Então, sentiu que estavam a mexer nela. Estava a ser transportada, tal como transportara Billy.

- Sir! Sir! - O apito soou três vezes pedindo ajuda, e mais quatro homens vieram a correr na direção do apito. Havia uma pequena gruta e um dos homens estava de lágrimas a correr pelas faces.

- Encontrei-a, Sir! Encontrei-a! - Estava quase inconsciente, falando sem coerência, repetindo vezes sem conta o nome de Billy. Estava magríssima e desesperadamente pálida, mas todos reconheceram o cabelo ruivo e o uniforme de vôo.

- Oh, meu Deus! - disse um dos oficiais. Cassie estava muito suja, cheirava muito mal e estava mortalmente doente, mas ainda respirava» O pulso mal se sentia, a respiração era difícil e não havia a certeza de que fosse resistir. O oficial ordenou ao jovem alferes que sinalizasse um pedido de socorro. Colocaram-na rapidamente dentro de um barco e deixaram três homens na ilha a continuar as buscas., Queriam-na no navio o mais depressa possível.

Davam e gritavam ordens; Cassie foi içada para o navio numa maca e chamaram o pessoal médico do Lexington para os ajudar. Cassie tinha uma placa de identificação à volta do pescoço, que a identificou como Cassie O'Malley Williams. Minutos depois, o Pentágono já sabia que ela tinha sido encontrada quase morta, mas que não havia sinais de Billy Nolan.

No entanto, a equipe que ficou na ilha levou menos de meia hora a encontrá-lo. Trouxeram-no para o navio. Nessa altura, Cassie já estava no Lexington, se bem que não tivesse consciência disso. Uma equipa de dois médicos e três para-médicos estavam a fazer tudo o que podiam para a reanimar. Estava desidratada, a delirar e tinha uma febre incontrolável.

- Como é que ela está? - perguntou o comandante nessa noite ao pessoal médico.

- Não há nada de certo - respondeu o médico calmamente -, mas também ainda nada está perdido.

O Ministério da Marinha acabara de avisar os pais e depois veio a vez de Desmond. Nessa noite, a notícia espalhou-se por todos os serviços noticiosos. Era um milagre. As preces da nação tinham sido ouvidas: Cassie O'Malley fora encontrada numa gruta, numa ilha do Pacífico, em estado de saúde crítico. Ainda não se sabia se sobreviveria, mas era sabido que Billy Nolan morrera. Já tinham telefonado ao pai em São Francisco, que ficara desolado ao ouvir as notícias. Aos vinte e seis anos, Billy era um herói, mas morrera, apenas um ou dois dias antes de os encontrarem. Fora a conclusão a que tinham chegado, pois Miss O'Malley não lhes dissera nada. Estava inconsciente.

Na residência dos O'Malley tudo estava sossegado. Oona e Pat estavam sentados a olhar fixamente um para o outro, incapazes de acreditar no que lhes fora transmitido. Cassie estava viva e o Lexington navegava a todo o vapor para o Havaí com ela.

- Oh, Pat! É como se fosse uma segunda oportunidade disse Oona quase sem respiração - É um milagre. - Sorriu através das lágrimas, rezando em silêncio pela vida de Cassie, com as contas do terço nos dedos, e Pat deu-lhe gentilmente uma palmadinha na mão.

- Não fiques muita esperançada. Já a perdemos uma vez. Ela pode não resistir, Oona. Está naquela ilha há muito tempo e não sabes em que estado ficou quando se despenhou. Pode ter ficado muito ferida nessa altura e isso já foi há um mês. - O desastre fora há sete semanas, o que era muito tempo para viver de água da chuva e bagas.

Ainda não tinham pormenores e até Desmond tivera muito trabalho em extorquir informações ao Pentágono. Ainda não sabiam o suficiente para o tranqüilizar.

Na manhã seguinte, as notícias que vieram do Lexington não eram muito boas. Cassie ainda estava inconsciente, a febre não baixara e havia outras complicações.

- Que raio significa isso? - gritou Desmond. - Que tipo de complicações?

- Não me informaram, Sir - respondeu-lhe educadamente a mulher que estava ao telefone.

A febre de Cassie não reagira a nenhum dos remédios e a sua desidratação era quase fatal. Ainda estava a delirar e tinha uma disenteria violenta que já começara a ser de sangue. Um dos médicos disse que era o sinal do fim.

- Pobre miúda - disse um dos marinheiros. - Tem a idade da minha irmã, que nem sequer sabe conduzir um carro

- Parece que Cassie também não conduzia lá muito bem brincou outro, mas tinha lágrimas nos olhos quando o disse Todo o navio, o país e o mundo falava dela e rezava por ela.

Em Inglaterra, Nick fora chamado ao seu comandante em Hornchurch. Tinha-se sabido que ele era muito amigo de Cassie O'Malley, se bem que ninguém soubesse pormenores e ele estivesse em péssimas condições desde o seu desaparecimento em Outubro. Acabaram por deixá-lo voar novamente, mas Nick fora bastante duro com os seus homens e há muito tempo que estava perigosamente disposto a correr riscos pouco naturais.

- Eu não ficaria muito esperançado, major Galvin, mas achei que devia saber. Acabamos de saber que a encontraram.

- Encontraram quem? - Nick parecia confuso. Tinha estado a dormir depois de fazer duas missões noturnas sobre a Alemanha, quando o mandaram ir falar com o comandante.

- Penso que a O'Malley é uma grande amiga sua, não é? - Os rumores já se tinham espalhado por todo o exército até ao escritório do comandante.

- A Cassie? - Nick ficou com o ar de quem levara um choque elétrico, quando percebeu o que- o comandante lhe estava a comunicar. - A Cassie está viva? Encontraram-na?

- Sim. Está em estado crítico num dos vossos navios de guerra no Pacífico. Pelo que ouvi, parece que não vai resistir. Se quiser, mantê-lo-emos informado da evolução.

- Ficaria muito grato, Sir - disse Nick, empalidecendo, enquanto o comandante o observava.

- Parece que precisa de descansar, major. Talvez seja a altura certa, dependendo dos resultados.

- Não saberia que fazer com o tempo livre, Sir - respondeu Nick honestamente. Agora tinha medo de ir para casa. Para ele, não havia nada em casa. Se sobrevivesse, Cassie ficaria com Desmond e esperava... sacrificaria a sua própria vida para que ela vivesse. Estava disposto a fazer qualquer coisa para que ela sobrevivesse, até vê-la com Desmond Williams para o resto da vida. Qualquer coisa era melhor do que saber da sua morte ou temê-la, como acontecera nas últimas sete semanas. No último mês, tinha perdido a esperança. Era impossível ainda estarem vivos algures no Pacífico. - Há notícias do navegador?

O comandante acenou com a cabeça. Todos já estavam habituados a perder amigos, mas esta era uma maneira muito dura.

- Não sobreviveu. Encontraram-no na ilha com ela. Receio não saber os pormenores.

- Obrigado, Sir. - Nick levantou-se para se ir embora, exausto mas com esperança. - Informa-me assim que se souber mais alguma coisa?

- Assim que soubermos, major. Chamá-lo-emos imediatamente.

- Obrigado, Sir. - Bateram pala um ao outro, e Nick caminhou lentamente para a caserna, pensando em Cassie. Só conseguia pensar naquela noite em Maio que tinham passado na pista, ao luar. Se ele tivesse conseguido convencê-la... se a tivesse impedido de ir... se ela vivesse. Pela primeira vez em vinte anos, deu por si a rezar; as lágrimas corriam-lhe pelo rosto quando voltou para a caserna.

 

Três dias depois de terem descoberto Cassie na gruta, o Lexington entrou em Pearl Harbor. Ela acordara uma vez, mas perdera novamente os sentidos. Foi transferida para o hospital naval numa ambulância. Quando lá chegou, Desmond estava à sua espera. Voara de Los Angeles, deixando Nancy Firestone a controlar os membros da imprensa que estavam à espera da chegada de Cassie a Los Angeles.

Os médicos forneceram a Desmond o relatório médico inicial, e ele explicou aos repórteres o que acontecera, mas ainda não tinham ouvido nada da boca de Cassie.

- Ela vai ficar boa? - perguntaram com lágrimas nos olhos. Desmond também as tinha. Estava muito comovido com o estado da mulher.

- Ainda não sabemos.

Um pouco depois, saiu para ver o que sobrara do avião, cujos destroços também tinham sido transportados no Lexington e agradeceu ao comandante o fato de ter trazido Cassie para casa.

- Só tenho pena de não a ter encontrado mais cedo. É uma grande rapariga. Estamos todos a torcer por ela. Diga-lhe isso, assim que estiver em condições de ouvir.

- Dir-lhe-ei, Sir - disse Desmond, enquanto tiravam mais uma fotografia dele e do comandante. Depois, Desmond voltou para o hospital para aguardar mais notícias e, uma ou duas horas depois, permitiram que ele a visse.

Cassie parecia devastada por tudo o que lhe acontecera e tinha cateteres intravenosos em ambos os braços: um com medicação e outro com soro. Mas não se mexeu e ele não lhe tocou. Ficou ali simplesmente a olhá-la, e as enfermeiras não conseguiam adivinhar quais seriam os seus pensamentos.

Nesse dia, o corpo de Billy Nolan foi enviado para São Francisco num vôo que Desmond preparara, e o funeral estava marcado para daí a dois dias. Em todas as igrejas, as pessoas rezavam por Cassie.

Tudo isto aconteceu debaixo dos flashes dos fotógrafos.

Estava-se a quatro de Dezembro e falava-se do Natal por todo o país, mas os O'Malley só conseguiam pensar em Cassie, que estava em coma no Havaí. Todos os dias de manhã e à noite telefonavam para Honolulu para saber dela. Pat queria levar toda a família para lá, mas o médico afirmou não ser aconselhável. Pat já pensara até em telefonar ao miserável do genro para que lhe emprestasse um avião, mas soubera que Desmond já se encontrava em Honolulu. Estava a conseguir toda a publicidade que podia e, no dia cinco de Dezembro, o médico do hospital naval telefonou-lhes novamente. Sempre que o telefone tocava, Oona tremia e simultaneamente desejava-o. Estava desesperada por não ter notícias de Cassie.

- Mistress O'Malley?

- Sim. - Reconheceu instantaneamente a má ligação de longa distância. - Está aqui alguém que gostaria de falar consigo. - Oona pensou ser Desmond e não queria falar com ele, mas talvez tivesse notícias da filha. Foi então que ouviu a voz de Cassie. Estava tão fraca que mal se ouvia, mas era ela. Oona chorava tanto que não conseguia dizer a Pat o que estava a acontecer.

- Mamã? - disse Cassie em voz muito baixa, e a mãe acenou com a cabeça, forçando-se depois a falar através das lágrimas. Pat percebeu e começou a chorar.

- Cassie? Oh, minha filha! Minha querida! Amamos-te muito! Estávamos tão preocupados!

- Estou bem - disse ela, perdendo as forças quase imediatamente. O médico tirou-lhe o telefone da mão e a enfermeira explicou que Miss O'Malley estava demasiado fraca, mas que estava a progredir muito bem. Depois Cassie insistiu em pegar de novo no telefone para dizer à mãe que a amava.

- ...e diz ao pai... - Sussurrava, mas ele conseguia ouvi-la, enquanto Oona e Pat partilhavam o auscultador e ele chorava abertamente a ouvi-la. - Diz... que também o amo. - Quis falar-lhes de Billy, mas não teve forças, e a enfermeira tirou-lhe novamente o telefone. Pouco depois, deixaram-na ver Desmond. A enfermeira ficou no quarto com eles, pois Cassie necessitava de estar sob constante observação. Estava tão fraca que, por vezes, tinha dificuldade em respirar.

Desmond ficou a seu lado, olhando-a com uma expressão de infelicidade. Não sabia que dizer-lhe, a não ser que estava contente por ela ter sobrevivido. Era um momento embaraçoso para ambos. Tudo o que ele deveria ter sentido ou dito estava errado devido às circunstâncias, mas parecia aliviado por Cassie estar viva. Não conseguia deixar de pensar se ela teria sido descuidada com o avião ou teria havido uma falha fatal de que não se tivesse apercebido antes da partida... Mais cedo ou mais tarde, teria de lhe perguntar, mas não era o momento.

- Lamento... pelo avião - disse ela com esforço, e Desmond acenou com a cabeça.

- Repetirás a viagem noutra altura - disse ele, confiante, mas ela abanou a cabeça. No final, Cassie já nem tinha querido fazer esta. Tinha-a feito por ele e porque sentia que devia. Tinha sempre sido a idéia, o sonho, o projeto de Desmond, mas no final ela sentira que lha devia. Nunca mais a repetiria: nem por ele, por ninguém e muito menos sem Billy. - O que aconteceu? - perguntou Desmond sob o olhar de reprovação da enfermeira. Cassie precisava desesperadamente de descansar e ninguém a poderia perturbar. Muito menos o marido. A enfermeira notara que ele nem sequer a beijara e enquanto esteve a seu lado nunca lhe tocara ou se aproximara.

Porém, Cassie estava a tentar desesperadamente responder à pergunta.

- ...primeiro fumo, depois fogo no motor número dois - explicou ela dolorosamente. - Depois, fogo no número um... demasiado longe de terra... demasiada gasolina... aterrei onde pude... ilha muito pequena... atingi a praia... depois de sairmos... uma tremenda explosão.

Ele acenou com a cabeça, desejando saber o que causara o incêndio no motor dois, mas Cassie não sabia. A enfermeira disse-lhe então que ela já estava demasiado cansada e devia descansar. Poderia voltar mais tarde. Desmond era muito correto, bem-educado e polido com todos, mas era frio como o gelo e não dissera uma única palavra amável a Cassie. Era difícil acreditar que fosse seu marido. Quando o viu afastar-se, Cassie perguntou a si própria se a sua morte não teria sido mais fácil para Desmond. Agora ele teria de enfrentar o mundo quando ela pedisse o divórcio.

No dia seguinte, Cassie sentou-se na cama e telefonou novamente aos pais. Ainda estava muito fraca, mas sentia-se muito melhor. Contraíra uma doença tropical, mas o mais grave tinha sido a desidratação, a falta de nutrição e a prolongada exposição ao sol. Ainda levaria algum tempo a voltar ao normal. Estava tão fraca que não se conseguia sentar na cama sem ajuda. Nessa tarde, Desmond apareceu com alguns fotógrafos, mas a enfermeira recusou-se a deixá-los ver Cassie. Ele ameaçou fazer queixa aos seus superiores, mas aquela respondeu-lhe que lhe era completamente indiferente. O médico dera ordens para que apenas a família mais chegada a pudesse visitar e era isso que tencionava fazer.

Desmond ficou furioso e foi-se embora. Cassie desatou a rir.

- Obrigada, tenente Clarke. Continue a cumprir as suas ordens.

- Acho que não deve estar com membros da imprensa. - Cassie ainda estava muito magra, pálida e com os cabelos em desalinho. Nessa tarde, deram-lhe um banho e lavaram-lhe o cabelo e, à noite, quase se sentia novamente humana. Felizmente, Desmond não voltou para a ver. Fora muito decente com ela, mas era óbvio que o único interesse que tinha na recuperação de Cassie residia naquilo que esta poderia dizer aos jornais. Ele até lhes falara na coroa de flores que a tripulação do Lexington lhe deixara antes de se fazer ao mar. A sua sobrevivência era assunto de todos os jornais do mundo e, em Hornchurch, Nick chorara ao saber a notícia.

No sábado, Desmond tentou novamente introduzir os membros da imprensa no quarto de Cassie e mais uma vez a indômita tenente Clarke o tinha impedido. Estava a tornar-se um jogo, e Cassie adorava-o.

- Ele parece muito determinado em deixar a imprensa vê-la - disse a tenente Clarke cuidadosamente, perguntando a si própria o que é que Cassie vira nele, mas não formulou a pergunta. Para além das roupas caras e da boa aparência, parecia ter um coração de pedra. Só se mostrava caloroso com a imprensa e nunca com Cassie. Esta estava muito divertida, pois a sua enfermeira era perita em aborrecê-lo. Cassie ainda não queria ver ninguém, a não ser os pais, mas estes tinham decidido esperar que ela fosse para casa.

Nessa tarde, e pela primeira vez, a tenente Clarke ajudou-a a caminhar pelo corredor e o médico disse que Desmond a poderia levar para casa no final da semana. Precisava de ganhar forças e queriam ter a certeza de que a febre não voltava. Durante todo esse dia não teve febre, sentindo-se muito melhor.

No hospital, alguns homens reconheceram-na, enquanto caminhava desajeitadamente pelo corredor, pois estava ainda muito fraca, apertaram-lhe a mão e mostraram-se felizes por ela ter sobrevivido. Era uma heroína só pelo fato de estar viva e, mais do que nunca, desejou que Billy também estivesse. Mandara um telegrama ao pai de Billy, exprimindo a sua dor.

- Estávamos todos a rezar por si, Cassie - diziam-lhe as pessoas nos corredores, e Cassie agradecia calorosamente. Choviam cartas e telegramas, e até o Presidente e a senhora Roosevelt lhe tinham telefonado. No entanto, Cassie não achava justo ter sobrevivido e Billy não. Sentia-se muito culpada e infeliz e chorava sempre que alguém falava no assunto. Ainda estava emocionalmente desfeita com tudo o que acontecera.

A maior parte das vezes ficava sentada no quarto muito pensativa, e as enfermeiras não a queriam perturbar. Viam que ela ainda estava muito perturbada e exausta. Só sabiam que o co-piloto morrera, desconhecendo outros pormenores, e Cassie não mencionava nada a ninguém. Pensava muito e dormia, ou dava por si a pensar em Nick e a perguntar-se onde ele estaria. Nunca tivera a oportunidade de lhe dizer como tivera razão sobre Desmond, mas talvez já não tivesse importância. Tinham as suas vidas para viver. Nick queria a sua vida e ela precisava de tempo para recuperar de tudo o que acontecera. Quando se sentisse melhor, desejava visitar Jackie Cocliran e saber tudo sobre os aviões que ela pilotara em Inglaterra.

Nessa noite, Cassie voltou a telefonar aos pais e disse-lhes que provavelmente estaria em casa daí a uma semana, passando o Natal com eles. Já não havia motivo para ficar em Los Angeles, não queria voar para Desmond e tinha a certeza que ele concordaria que o contrato tinha sido cumprido à risca. Estava tudo acabado.

Os pais disseram-lhe ao telefone que tinham recebido um telegrama de Nick, manifestando a sua felicidade, mas a Cassie não mandara nada. Provavelmente por causa de Desmond.

- Ele diz quando regressa? - perguntou Cassie casualmente, e o pai riu-se.

- Es muito manhosa, Cassie O'Malley.

- De qualquer modo já deve estar casado - disse ela com ligeireza, esperando que isso não tivesse sucedido.

- Nenhuma mulher no seu juízo perfeito o quererá.

- Espero que não. - Pat riu-se. Ela estava muito mais bem-disposta e, depois de uma breve conversa, deitou-se cedo. Não fazia idéia do que Desmond estava a fazer em Honolulu, pois nem sequer a vinha ver. Supunha que estava a dar a corda à imprensa e a planejar entrevistas para quando ela melhorasse, mas ia ter uma surpresa. Cassie daria uma última conferência de imprensa para lhes contar tudo o que queriam saber. Depois iria para casa, terminando o espetáculo. Fora muito caro: a vida de Billy e quase a sua. Cassie não sabia o que queria fazer, mas, fosse o que fosse, seria a uma escala bem mais humana. Ganhara muito dinheiro, mas perdera um amigo muito querido e quase a própria vida. Desta vez, os riscos tinham tido um preço muito elevado e ela precisava de tempo para recuperar.

A tenente Clarke apareceu às sete horas da manhã seguinte e acordou-a ao afastar as cortinas e levantar os estores. Estava um dia lindo, e Cassie sentia-se desejosa de se levantar e andar por ali. Até queria tomar uma ducha e vestir-se, mas a tenente Clarke não quis que ela abusasse.

Comeu o pequeno-almoço às sete e um quarto, que consistia de ovos escalfados e três fatias de bacon. Era bem diferente da dieta de bananas e bagas. Nunca mais queria vê-las. Quando terminou o pequeno-almoço deu uma vista de olhos no jornal.

Percebeu imediatamente que Desmond voltara a fazer das suas. Dera uma entrevista ao Honolulu Star Bulletin, falando-lhes do seu estado, mas não dizia muito do que acontecera na ilha. Cassie suspeitou que ele quisesse largar qualquer tipo de bomba numa grande conferência de imprensa. Desmond pensava em tudo, exceto no bem-estar dela. Era tudo negócio e publicidade, aviões e lucro. Nick nunca tivera tanta razão nas suas percepções e previsões.

Ainda estava a ler o jornal quando ouviu passar o primeiro avião. Pensou ser um exercício dos pilotos da marinha. o hospital era relativamente perto do aeródromo. Todavia, enquanto os escutava, ouviu uma explosão à distância e depois outras. Era estranho; então levantou-se, foi até à janela e viu-os: ondas e ondas de bombardeiros. Percebeu imediatamente e com espanto que estavam a ser atacados. Eram sete horas e cinqüenta e cinco minutos do dia 7 de Dezembro.

O céu estava negro de tantos aviões que parecia zumbirem continuamente, enquanto voavam por cima do porto, bombardeando sistematicamente todos os navios que viam. Também atacaram o aeroporto e destruíram tudo o que ali viram.

A tenente Clarke entrou a correr, e Cassie explicou rapidamente o que estava a ver. Sem pensar, correu para o armário e encontrou as roupas que Desmond lhe trouxera. Não havia muita coisa. Apenas uma saia, uma blusa e um par de sapatos. Tirou apressadamente o roupão e a camisa de dormir e vestiu-se.

No hospital, as pessoas apinhavam-se nos corredores e corriam sem saber para onde. As enfermeiras e ordenanças tentavam manter a calma entre os doentes, e Cassie juntou-se a eles quase que instintivamente. Estavam a ser atacados há uma hora e o Arizona já estava a arder juntamente com outros navios mais pequenos e grandes áreas do porto. As notícias entravam rapidamente e muitas incorretas. A rádio explicava que tinham sido atacados pelos japoneses e só alguns momentos mais tarde é que as ambulâncias começaram a chegar com os feridos. Havia queimaduras terríveis, homens cobertos de óleo, com feridas na cabeça, com feridas de balas e muitos em choque traumático. As enfermeiras comam por todo o lado, e os doentes como Cassie estavam a dar as suas camas aos homens que estavam a ser trazidos do porto.

Cassie trabalhou ao lado da tenente Clarke, cortando ligaduras e pedaços de pano limpos. Ajudou a colocar os homens feridos nas camas e fez tudo o que pôde para ajudar. Mal tinham tratado de metade dos homens quando os japoneses atacaram novamente. Daquela vez atingiram o Nevada.

Subitamente, já havia três mil homens feridos ou semimortos, sangrando por todos os lados, a entrar no hospital ou a ser levados para o navio-hospital, Solace.

Rebecca Clarke só olhou para Cassie uma vez com uma expressão de preocupação e admiração, pois ela trabalhava incansavelmente ajudando os feridos. Era uma grande mulher. Não era para admirar que o país gostasse tanto dela.

- Você está bem? - perguntou a enfermeira depois de Cassie ter trazido para a sala de tratamentos um caso especialmente grave de queimadura. O homem estava a gritar, e havia carne pendurada por todo o lado e até em cima de Cassie.

- Estou ótima - disse esta calmamente. Lembrava-se do irmão e de o ter retirado do avião em chamas. Ainda tinha a cicatriz da queimadura no braço. - Diga-me apenas o que fazer.

- Está a fazer exatamente o que é preciso - afirmou a tenente Clarke firmemente. - Não pare a não ser que se sinta mal e, se isso acontecer, diga-me.

- Não haverá problema - respondeu Cassie, esforçando-se por não se sentir mal enquanto ajudava os feridos, entre os quais algumas mulheres. Começaram também a entrar civis. Havia feridos por todo o lado e algum tempo depois já não tinham espaço para os colocar. O segundo bombardeamento durou até pouco depois das dez horas; em seguida, foram-se embora, deixando a ilha e toda a nação em estado de choque.

Cassie trabalhou fervorosamente durante toda a tarde, fazendo o que podia. Quando finalmente se sentou às quatro horas, mal se podia ter em pé. Não parara e não comera nada desde o pequeno-almoço. A tenente Clarke trouxe-lhe uma chávena de chá e foram juntas verificar se havia mais feridos. Os últimos tinham sido transferidos para o Solace há uma hora. O hospital estava simplesmente a abarrotar.

De momento não havia nada para ela fazer, exceto oferecer conforto a quem podia e, enquanto o fazia, Desmond chegou com um único fotógrafo a seu lado. Todos os outros tinham ido para o porto ver os estragos, mas ele prometera ao jovem uma fotografia de Cassie O'Malley se viesse com ele. Atravessou o vestíbulo até chegar a Cassie, enquanto a tenente Clarke sentava uma grávida. Tinha vindo saber do marido a tenente Clarke prometera encontrá-lo.

Está ali - Desmond apontou dramaticamente para ela. Querida, estás bem? - perguntou ele, olhando para Cass com um ar terno enquanto o repórter a fotografava de saia e blusa já cobertos com o sangue de outros. Tudo o que conseguiu fazer foi olhar para Desmond e para o fotógrafo com nojo.

- Por amor de Deus, Desmond - disse com desdém, não me chateies. Porque não vais fazer algo de útil em vez de te exibires para a imprensa? E você? - Apontou um dedo para a máquina fotográfica; e o rapaz estava demasiado espantado para fazer fosse o que fosse. - Porquê que não ajuda alguém em vez de estar para aí a tirar-me fotografias? Fomos bombardeados, seu idiota! Largue a máquina e mexa-se! - E com isso saiu do vestíbulo com a tenente Clarke, deixando os dois homens de boca aberta. Nesse dia, ganhara o coração de Rebecca Clarke para sempre. Sabia que, por muito que vivesse, nunca esqueceria aquela incansável ruiva a ajudar feridos e a tratar queimaduras. Oferecera o seu quarto a quatro feridos, tendo ela própria transportado as macas que fizera com os lençóis que encontrara ou roubara de outras camas.

O diretor do hospital agradeceu-lhe pessoalmente nessa tarde. Descobriram uma cama desdobrável, que ela colocou numa arrecadação para dormir um pouco. Precisavam de dar atenção a pessoas mais doentes e ela sentir-se-ia culpada se lhes roubasse a atenção. No dia seguinte, ficou para ajudar e ouviram dizer, sem que isso os surpreendesse, que o Presidente tinha declarado guerra ao Japão na segunda-feira. Ouviu-se um grito de alegria no hospital quando foi anunciada. Na terça-feira, registrou-se no Hotel Royal Hawaiian e telefonou aos pais. já lhes telefonara para dizer que estava bem, mas agora queria comunicar-lhes que ia tentar ir para casa o mais depressa possível.

O hotel prometeu arranjar-lhe uma cabina no Mariposa, que partia na véspera de Natal. Era o primeiro navio a sair e a única coisa de que queria ter a certeza era que Desmond não ia nele.

Não tinha qualquer simpatia por ele, pois achava que se tinha comportado de maneira abominável. Apenas estava interessado em tirar tudo o que pudesse da história de Cassie, o que era repugnante.

Desmond foi vê-la nessa tarde e disse-lhe que o Pentágono lhe tinha prometido um lugar num vôo militar para São Francisco dentro de alguns dias, e que poderia conseguir outro para ela, visto Cassie ser praticamente uma heroína nacional. Porém, ela foi incisiva ao dizer-lhe que não desejava ir a lado nenhum com ele.

- Qual é a diferença? - Desmond estava zangado com a sua decisão. A imprensa ficaria muito mais impressionada se eles fossem juntos para casa, se bem que ele já tivesse uma explicação no caso de Cassie não ir. Poderia até afirmar que ela não se sentia bem no ar ou colocar as culpas no seu estado de saúde. Mas ela não ficou muito satisfeita com qualquer das suas desculpas.

- Tenho más notícias para ti, Desmond. O mundo não está a observar-te a ti nem a mim. Estão a pensar na guerra em que acabamos de entrar, se bem que não pareças ter notado.

- Pensa no que poderias fazer agora para os esforços de guerra - disse ele na esperança de conseguir ainda mais publicidade para si e para os aviões. No entanto, no que dizia respeito a Cassie, acabara de dar a sua contribuição nos últimos três dias no hospital naval. Não que entendesse a sua ajuda como tal, mas o almirante Kimmel agradecera-lhe pessoalmente.

- Farei exatamente o que quero fazer - respondeu num tom desagradável -, e não irás pôr anúncios, vender, comunicar, usar ou explorar. Percebeste? Acabou-se. Terminei o meu contrato.

- Não o completaste - disse ele suavemente enquanto Cassie o olhava, incrédula.

- Estás a brincar? Quase me matei por tua causa.

- Fizeste-o por ti e pela tua própria glória - corrigiu Desmond.

- Fi-lo porque adoro voar e achei que te devia isso. Achei que realizar a viagem por ti seria a coisa mais honrada que poderia fazer, para não mencionar o fato de teres afirma         do que me processarias se não a fizesse. Achei que os meus pais não precisavam de mais uma dor de cabeça.

- E agora precisam? O que mudou? - Nick tinha razão. Desmond era mau.

- Voei quase dezoito mil quilômetros, fiz o melhor que pude, despenhei-me no teu precioso avião e consegui sobreviver durante quarenta e cinco dias numa ilha do tamanho de um prato e a morrer à fome. Além disso,- vi o meu melhor amigo morrer-me nos braços. Não chega? Eu diria que sim e penso que sou quem melhor pode avaliar a situação.

- Um contrato é um contrato - disse ele friamente. - O teu diz que voarias vinte e quatro mil quilômetros sobre o Pacífico no meu avião.

- O teu avião incendiou-se como uma caixa de fósforos.

- Tenho outros, e o teu contrato diz ainda que farias publicidade ilimitada e patrocínios.

- Estamos em guerra, Desmond. Ninguém está interessado e, mesmo que estejam, não o farei. Processa-me!

- Talvez o faça. Vou pensar no assunto durante o caminho de volta.

- Eu não perderia o meu tempo a pensar nisso. Quando chegar, falarei com o meu advogado por vários motivos - disse ela incisivamente.

- Teremos de discutir isso. A propósito: há pouco falaste no Billy em termos muito comoventes. Era o teu melhor amigo ou teu namorado? Acho que não te compreendi bem.

- Percebeste-me perfeitamente, seu filho da mãe, e se estás a falar de adultério porque é que não o discutes com a Nancy Firestone? Foi muito clara quando se intitulou tua amante. Já falei nisso ao meu advogado.

Pela primeira vez Desmond ficou pálido, e Cassie sentiu-se muito contente por o ter perturbado.

- Não sei de que estás a falar. - Estava furioso com Nancy por ter falado com Cassie.

- Pergunta à Nancy. Tenho a certeza de que ela te explicará. Foi muito direta comigo.

Os olhos de Desmond mostraram-lhe que a odiavam, mas Cassie não se importou. Não queria vê-lo mais depois de Honolulu.

Passou as duas semanas e meia seguintes a oferecer-se para ajudar no hospital naval e no navio-hospital Solace. Era devastador ver o que acontecera no porto. O Arizona, o Curtiss, o West Virgínia, o Oklahoma, o Chetv, o Oglada tinham sido todos destruídos pelos japoneses. Havia 2898 mortos e 1178 feridos. Fora devastador e agora o país estava em guerra. Perguntou a si própria o que aquilo significaria para Nick, se se manteria na RAF ou se se juntaria às Forças Armadas Americanas. Tudo estava ainda muito confuso.

Na véspera de Natal, quando o Mariposa, o Monterey e o Lurline finalmente largaram, ficou comovida ao ver Rebecca Clarke que viera despedir-se dela e agradecer-lhe tudo o que fizera desde o bombardeamento. Cassie não fizera mais nada senão tratar dos feridos desde que os japoneses tinham bombardeado Pearl Harbor.

- Foi uma honra conhecê-la - disse Rebecca Clarke sinceramente. - Espero que chegue bem a casa.

- Eu também - afirmou Cassie honestamente. Estava ansiosa por regressar a Illinois para ver os pais e conversar com o advogado para saber qual a melhor maneira de fugir às obrigações que tinha para com Desmond.

Ficou muito aliviada quando notou que os membros da imprensa não tinham ido ao cais, mas, como Desmond partira na semana anterior para São Francisco no avião militar, não se tinham dado ao trabalho. Estava feliz por não ter ido com ele, mesmo que de navio a viagem fosse mais longa e potencialmente mais arriscada. Viajavam em grupo para assegurar uma maior segurança.

A tenente Clarke deixou-a no navio e largaram uma hora depois. Todos estavam ansiosos com a viagem e com receio que os Japoneses voltassem e os afundassem. Os blackouts eram totais à noite e todos usavam, dia e noite, os coletes de salvação, o que era muito enervante. Havia muitas crianças no navio, o que causava muito barulho e stress aos outros passageiros, mas as famílias que tinham parentes no continente estavam ansiosas por sair do Havaí. Agora era muito perigoso. Todos sentiam que seriam atacados a qualquer momento. O Lurline, o Mariposa e o Monterey fizeram-se rapidamente ao mar com uma escolta de contratorpedeiros, que os acompanhou até meio do caminho para a Califórnia, deixando-os depois para terminarem a viagem sozinhos.

Os navios ziguezagueavam suavemente pelo Pacífico para evitar os submarinos. Não havia festas às noite, pois ninguém estava com estado de espírito para isso. Queriam apenas chegar a São Francisco em segurança, e Cassie estava espantada com o tempo da viagem. Depois de uma vida a voar para todo o lado, uma viagem de navio parecia interminável e perfeitamente fastidiosa. Esperava não ter de a repetir. Cinco dias mais tarde, todos os passageiros deram um grito de alegria quando passaram pela Golden Gate e se dirigiram ao porto de São Francisco.

Ficou ainda mais surpreendida quando começou a descer a escada de portaló, transportando uma pequena mala, e viu o pai. Viajara sob o nome de Cassandra Williams e só meia dúzia de pessoas tinham percebido quem ela era e conversado com ela. De resto, tinha estado bastante reservada. Havia muito em que pensar e ainda sofria bastante. Quando viu o pai, e a mãe atrás deste, o alívio transformou-se em excitação.

- O que estão a fazer aqui? - perguntou ela de olhos muito abertos, os quais se encheram rapidamente de lágrimas. Todos choravam enquanto se abraçavam e falavam. Era a reunião que ela desejara milhões de vezes enquanto estivera na ilha. Depois, enquanto se abraçavam e falavam, Cassie viu Desmond. Tinha estabelecido uma enorme conferência de imprensa para lhe dar as boas-vindas. Havia, pelo menos, oitenta membros da imprensa para a cumprimentar e fazer-lhe perguntas. Quando Cassie reparou neles, viu a boca do pai cerrada de raiva. Não iria permitir que aquilo acontecesse. Desmond Williams tinha ido longe de mais e não passaria dali.

- Bem-vinda, Cassie! - gritou-lhe uma manada de repórteres, enquanto o pai a agarrava firmemente pelo braço e a levava através da multidão, parecendo um arado de neve. Oona seguia-os de perto, e Pat dirigia-se ao carro com condutor que alugara para a vir buscar. Antes de os repórteres poderem dizer fosse o que fosse, Cassie estava a ser empurrada para dentro do carro e Desmond dirigia-se a eles.

- São muito simpáticos - dizia Pat calorosamente aos membros da imprensa -, mas a minha filha não está bem. Continua doente e teve uma experiência muito traumatizante no hospital durante o bombardeamento de Pearl Harbor. Obrigado. Muito obrigado. - Acenou-lhes, empurrou a mulher para o carro atrás da filha e entrou, dizendo ao condutor que saísse dali o mais depressa possível. Cassie ria-se da expressão de Desmond quando partiram. Tinham conseguido enganá-lo.

- Será que aquele homem não pára? - gritou o pai, irritado. - Será que não tem coração?

- Nem uma ponta - assegurou Cassie.

- Não entendo porque casaste com ele.

- Eu também não - suspirou ela -, mas nessa altura foi muito convincente. Depois achou que já não era preciso esconder as mentiras. - Cassie contou ao pai as ameaças de a perseguir com advogados.

- Não lhe deves nada! - disse Pat enraivecido depois de ouvir o que Cassie dissera.

- Cuidado com o teu coração, querido - avisou Oona, mas ele estava bem desde o Verão. Até durante o problema com Cassie se agüentara surpreendentemente bem e agora só estava zangado.

- É melhor que ele tenha cuidado com o meu punho e não com o meu coração - disse Pat enquanto se dirigiam ao Fairmont. Os pais tinham alugado uma suíte para os três e passaram dois dias a celebrar o regresso de Cassie. Antes de voltarem para casa, foram visitar o pai de Billy Nolan. Foi uma visita difícil e triste, e Cassie disse ao pai de Billy que ele tinha morrido tranqüilamente nos seus braços sem sofrer. Mesmo assim, era difícil consolá-lo.

Mais tarde, Cassie recordou-se que muitos jovens como Billy morreriam agora durante a guerra. Era um pensamento horrível, por isso nunca se sentira tão feliz em ir para casa como no presente.

O pai trouxera um co-piloto e pilotara o Vega. A meio do caminho para Illinois, Pat passou-lhe os comandos e perguntou-lhe se gostaria de pilotar. Para grande surpresa dos dois, Cassie hesitou, mas ele fingiu ignorar.

- Não é tão requintado como os outros, Cass, mas voltar a voar far-te-á bem ao coração. - Era um avião agradável de pilotar, e o pai tinha razão: ela adorou a sensação de voar. Há dois meses e meio, desde que se despenhara no North Star, que não entrava num avião e era estranho estar a pilotar, mas ainda adorava fazê-lo. Estava-lhe no sangue tal como no do pai.

No caminho contou-lhe então tudo sobre o acidente, discutindo sobre o que poderia ter causado o incêndio nos motores, mas não passavam de suposições. Desmond trouxera os destroços do avião e esperava vir a saber o que acontecera, mas não era provável que encontrassem grande coisa, pois a explosão fora tremenda.

- Vocês tiveram muita sorte - disse o pai, abanando a cabeça, enquanto ela pilotava o avião. - Poderiam ter morrido antes de chegar a terra ou não encontrar uma ilha para aterrar.

- Eu sei - disse ela tristemente, pois nada disso ajudara Billy. Não conseguia superar a sua morte. Sabia que nunca o esqueceria e, nessa noite, enquanto ajudava o pai a arrumar o avião no hangar, ele ofereceu-lhe um emprego no aeroporto. Disse que precisava de ajuda com as viagens para entrega de carga e de correio, especialmente agora que todos os jovens capazes estavam a alistar-se. A maioria dos seus pilotos era mais velha, mas ainda havia lugar para ela, e Pat gostaria imenso de a ter consigo.

- A não ser que vás fazer muitos anúncios de pasta de dentes e carros. - Ambos se riram.

- Acho que não, pai. Acho que já tive o suficiente para durar uma vida. - Nem tinha a certeza se queria entrar em festivais aéreos devido à morte de Chris. Apenas queria voar.

- Gostaria muito de te ter comigo. Pensa nisso, Cass.

- Pensarei, pai. Sinto-me muito honrada.

Foram para casa no caminhão, e as irmãs e respectivas famílias estavam à espera deles em casa. Era véspera de Ano Novo e eles nunca lhe pareceram tão bem como naquele momento. Todos choraram, se abraçaram, gritaram, e os miúdos corriam por todo o lado, parecendo loucos. Pareciam mais crescidos, e Annabelle e Humphrey estavam muito bem. Era uma cena que Cassie nunca pensara ver de novo. Caiu então a soluçar enquanto as irmãs a seguravam. Desejava que Chris, Billy e Nick pudessem estar presentes. Já faltavam muitas pessoas, mas ela estava lá e todos agradeceram a Deus as Suas bênçãos.

 

Uma semana depois do Ano Novo, Cassie começou a ajudar o pai no aeroporto, mas antes disso, Pat levou-a a um advogado em Chicago. Era caro, mas possuía uma boa reputação, e o pai dissera-lhe que não poderia ter um advogado inferior se queria defender-se de Desmond Williams.

Cassie explicou-lhe a situação e o advogado aconselhou-a a nada temer. Não haveria um juiz ou júri no país que sentisse que ela não cumprira o seu contrato de boa-fé e com grande risco pessoal.

- Ninguém vai tirar-lhe dinheiro, pô-la na cadeia ou forçá-la a voar novamente para ele. Esse homem parece ser um monstro.

- Isso leva-nos a outro assunto - disse Pat incisivamente. O divórcio. Seria mais complicado, mas não era de todo impossível. Levaria tempo, mas seria fácil afirmar que o casamento não tinha sobrevivido ao trauma do acidente de Cassie e, decerto, ninguém o contestaria. Até seria mais simples acusá-lo de adultério e fraude, e o advogado tencionava colocá-lo perante esses fatos, pensando poder obter toda a cooperação possível por parte de Desmond.

Disse a Cassie que fosse para casa e que não se preocupasse. Três semanas mais tarde, chegaram alguns papéis para ela assinar, que dariam andamento ao processo. Algum tempo depois, Desmond telefonou-lhe.

- Como estás, Cass?

- Porquê?

- É uma pergunta perfeitamente razoável. - Parecia muito alegre, mas ela conhecia-o. Queria alguma coisa. Pensou que ele tivesse telefonado para discutir o divórcio, mas não conseguia imaginar porquê. Não queria continuar casada com ele e vice-versa e nem estava a pedir-lhe dinheiro. Para sua surpresa, mandara-lhe a quantia devida pela volta ao Pacífico, apesar de não a ter completado, depois de ter sido contatado pelo advogado de Cassie, que lhe afirmara que tentar ludibriá-la ficaria muito mal aos olhos do público americano, depois de tudo o que ela passara. Desmond ficara furioso, mas o cheque de cento e cinqüenta mil dólares foi depositado na sua conta bancária e Pat ficou muito contente. Cassie merecia-o.

- Apenas pensei que gostasses de dar uma pequena conferência de imprensa para dizer ao mundo o que aconteceu. - Inicialmente ela planejara fazê-lo, mas entretanto decidira-se pelo contrário. A sua carreira de estrela de cinema acabara.

- Souberam de tudo através do Ministério da Marinha depois de me terem salvo. Não há mais nada a dizer. Achas que querem saber como o Billy morreu nos meus braços ou como foi a minha disenteria? Eu penso que não.

- Não precisas de mencionar esses aspectos.

- Não, não posso e não tenho nada a dizer. Fiz a viagem. Despenhamo-nos e tive a sorte de voltar, ao contrário do Billy, Noonan, da Earhart: e de todos os loucos como nós, e não quero falar mais sobre o assunto. Acabou, Desmond. Passou à história. Tenta encontrar outra pessoa que consigas transformar em estrela de cinema. Talvez a Nancy.

- Tu eras boa - disse ele nostalgicamente. - A melhor.

- E eu gostava de ti - afirmou tristemente. - Amei-te - disse Cassie em voz muito baixa, mas não havia ali ninguém para amar.

- Lamento que tenhas ficado desiludida - protestou ele. Eram novamente estranhos. Tinham dado a volta completa e Desmond percebera que era inútil pressioná-la. - Se mudares de idéias, avisa-me. Poderás ter uma grande carreira se a levares a sério - disse ele, e Cassie sorriu. Tinha sido o mais sério possível e salvara-se por milagre.

- Não contes com isso. - Sabia que ele detestava pessoas como ela. Para Desmond, era uma covarde, mas não estava muito interessada no que ele pensava.

- Adeus, Cassie. - Fim de carreira, fim de casamento e fim de pesadelo.

Desligaram, e Desmond nunca mais lhe telefonou. O advogado comunicou-lhe que Mr. Williams concordara com o divórcio, oferecendo até uma pequena doação se ela fosse a Reno. Cassie não aceitou o dinheiro, pois ganhara o suficiente a voar para ele, mas, em Março, foi a Reno passar seis semanas e quando voltou estava livre. Tal como era de prever, Desmond fez um anúncio à imprensa, dizendo que

Cassie ficara tão traumatizada com a experiência no Pacífico que lhe era impossível continuar com o casamento e estava a viver «em retiro com os pais».

- Quase dá a entender que estou louca - queixou-se Cassie.

- E depois? - perguntou o pai. - Estás livre dele para sempre.

Após a declaração de Desmond, a imprensa telefonara algumas vezes, mas ela recusou-se sempre a falar com eles ou a vê-los. Tinham escrito sobre ela com simpatia, mas não a perseguiram durante muito tempo. Por muito que a tivessem amado antes da viagem, agora tinham outros peixes para fritar.

Cassie não tinha saudades deles nem de Desmond, mas tinha-as dos amigos. Sem Billy, o aeroporto estava demasiado calmo. Estava tão acostumada a voar com ele todos os dias que agora era estranho estar ali sem ele. Em Abril, quando regressara de Reno, todos os rapazes que conhecia tinham sido recrutados ou se tinham alistado. Até dois dos seus cunhados tinham partido, se bem que o marido de Colleen tivesse ficado devido ao pé chato, problemas de visão e outros. No entanto, as duas irmãs mais velhas e os filhos passavam a maior parte do tempo lá por casa. Na Primavera, os pais de Annabelle e de Humplirey foram mortos num bombardeamento a Londres. Colleen e o marido decidiram adotá-los e, ao pensar no assunto, Cassie desejou poder ficar com eles.

De vez em quando, e não com muita freqüência, já tinham notícias de Nick. Ainda estava em Inglaterra, a fazer raids e a abater todos os alemães que podia, «tal como nos velhos tempos». Aos quarenta e um anos, já estava velho para esse tipo de jogos, mas, com a América na guerra, tinha um estatuto militar total no Exército americano. Também já não conseguia obter licenças. Não em tempo de guerra. Cassie sabia que ainda estava em Hornchurch. Nunca lhe escrevia. Só a Pat. Cassie também nunca lhe escrevera, contando-lhe a traição e o divórcio com Desmond, mas ainda não tinha a certeza do que havia de lhe dizer, se é que ele se importava. Não sabia se o pai lhe contara alguma coisa, mas duvidava. Pat não gostava muito de escrever cartas ou de discutir os assuntos das outras pessoas. Tal como todos os homens, discutia os acontecimentos mundiais e política, mas Cassie achava que devia dizer a Nick o que acontecera. A questão era quando e como. Ela tinha de partir do pressuposto de que Nick já teria escrito se estivesse interessado nela. já não o via há um ano e só Deus sabia o que Nick estaria a pensar.

Cassie não saía com namorados. Apenas com amigos ou com as irmãs e trabalhava muito para o pai no aeroporto. Era quase uma vida para ela, mas era preciso admitir que tinha saudades de pilotar os exóticos aviões de Desmond. Porém, não era possível ter tudo, e, além disso, gostava da sua vida tal como estava. A imprensa começara a esquecê-la, deixaram de telefonar e, ocasionalmente, pediam-lhe para avalizar alguma coisa, o que Cassie declinava. Levava uma vida tranqüila, mas o pai preocupava-se com ela e dizia-o a Oona.

- Ela passou por muito - confessou um dia. Todos tinham passado.

- A Cassie é uma rapariga forte - afirmou a mãe, ternamente. - Vai ficar bem. - Estava sempre bem. Apenas se sentia sozinha sem as pessoas com quem crescera: o irmão, Nick, Bobby e até Billy, que chegara depois. Todavia, Cassie tinha saudades deles e da camaradagem que partilhavam de maneiras diferentes. Ela era agora mais um piloto que voava para Chicago e Cleveland, mas era bom estar de novo com a família. Era muito reconfortante.

Em Agosto, recebeu um telefonema que a deixou espantada. O pai atendeu o telefone e entregou-lho com um ar descontraído. Ele nem reconheceu o nome, o que fez com que Cassie desse um pequeno grito. Algumas coisas nunca mudavam. Era Jackie Cocliran.

- Está a falar a sério? - Inicialmente, Cassie pensara que o pai estava a brincar. Acabara de chegar de uma viagem a Las Vegas e estava muito calor. Quando atendeu o telefone, Jackie Cocliran, disse-lhe que queria encontrar-se com ela o mais depressa possível. Disse-lhe que sempre a admirara e pediu-lhe que fosse a Nova Iorque ter com ela, se pudesse. - Claro - concordou Cassie, não ligando a pormenores importantes. Concordara em ir para Nova Iorque daí a dois dias, pois era o seu dia de folga e não tinha nada para fazer. Talvez pudesse fazer algumas compras; tinha o dinheiro da volta no banco e nunca gastara um centavo. Há séculos que Cassie queria conhecer Jackie Cocliran, mas era engraçado, quando voltara para casa, instalara-se e nunca mais fizera nada.

Pensou em convidar a mãe a ir a Nova Iorque com ela; depois decidiu ir sozinha. Não fazia idéia do que Jackie Cocliran queria, mas achava que poderia ser algo com que a mãe não concordasse.

Quando se despediu, Cassie ficou fascinada. Admitira imediatamente que se sentia aborrecida em casa e estava ansiosa por fazer outro tipo de vôos. Oito meses depois de ter sido salva no Pacífico, já estava pronta para alargar as asas e fazer algo de mais excitante. O que Jackie Cocliran tinha em mente era exatamente isso.

Jackie queria que Cassie se encarregasse de formar um pequeno grupo de mulheres-pilotos experientes sob o nome de Army Air Force Flying Training Command, para mandar aviões para onde fossem mais necessários. As mulheres envolvidas voariam como civis, mas teriam uniformes e um posto honorífico. Cassie seria o comandante. Havia outro corpo aerotransportado feminino, o WAFS, Women's Auxiliary Flying Squadron, se ela o preferisse, a ser organizado por Nancy Harkness Love, para pilotar aviões da fabrica até ao campo operacional a nível doméstico. Era outra extraordinária mulher-piloto. Mas Cassie gostou da idéia de transportar aviões para Inglaterra, passando pelos Alemães. Sabia que os pais iriam ficar preocupados se ela saísse de casa, mas era algo em que Cassie acreditava. Tinha um objetivo, não sendo frívolo ou para crédito próprio, tal como fora a volta ao Pacífico, que apenas dera muito dinheiro a ganhar a pessoas gananciosas. Aquilo era uma coisa que poderia fazer pelo país e, se morresse, estava preparada para aceitar o fato. Chris também o fizera, tristemente Billy também e agora até Bobby Strong. Fora morto seis semanas depois de se ter alistado. Peggy estava novamente viúva, mas agora com quatro filhos. A vida nunca era simples.

O WAFS começaria os treinos em New Jersey durante oito semanas, em Setembro, mas ela mal conseguia esperar. Já era altura de Cassie responder novamente a desafios e, pela primeira vez, estaria a voar com outras mulheres. Nunca tivera a oportunidade de o fazer.

Jackie Cocliran levou-a a jantar no 21 e conversaram sobre os aviões. Cassie não se recordava de ter desejado tanto alguma coisa, nem a volta ao mundo. Isto era diferente.

Era exatamente o que ela desejara e esperara. Era altura de Cassie continuar. No dia seguinte, quando regressou a casa, ainda estava a sorrir ao pensar no assunto.

O pai encontrava-se no aeroporto quando ela chegou. Cantarolava para si próprio enquanto preenchia alguns papéis. Cassie não queria tirar-lhe o bom humor e, como tal, decidiu esperar e dizer-lhe depois de jantar.

- Como estava Nova Iorque?

- Ótima - disse ela, radiante.

- Vá lá! já me cheira a romance. - Cheirava-lhe a felicidade, mas não a romance. Aviões, mas não a rapazes. Cassie estava exatamente no mesmo lugar onde estivera inicialmente. Apaixonada por voar.

- Não. Não é romance - sorriu ela misteriosamente. Tinha vinte e três anos, estava divorciada, e sentia-se livre, independente e prestes a fazer o que queria.

Mal conseguiu conter-se depois de jantar e, quando contou tudo aos pais, eles ficaram a olhar para ela, incrédulos.

- Vai começar tudo de novo. - Pat estava com um ar zangado mesmo antes de Cassie explicar. - O que queres fazer agora? - Ela tinha nadado toda a vida contra a corrente, o que não era novidade para eles ou para Cassie.

- Quero juntar-me, ou melhor, juntei-me ao Army's Flying Training Command - disse muito contente e explicou-lhes o que era.

- Espera lá! Vais pilotar bombardeiros para Inglaterra? Fazes idéia como são pesados e difíceis de pilotar?

- Eu sei, pai. - Sorriu. Já pilotara quase todos os aviões existentes no céu quando trabalhara para a Williams Aircraft.

- Terei uma co-piloto. - Sabia que o pai ficaria mais descansado.

- Provavelmente outra mulher.

- Às vezes.

- És louca - disse ele firmemente. - Patriota, mas louca.

Nessa altura, Cassie olhou para ele com dureza. Era preciso que o pai compreendesse. Ela era adulta e tinha o direito de fazer aquilo, mas também os tinha feito passar por muito e não queria magoá-los. Preferia ter o seu consentimento, mas a mãe já estava a chorar.

- Tu e a tua mania dos aviões - disse Oona tristemente ao marido, e Pat fez-lhe uma festa na mão.

- Então, Oona. Sempre nos proporcionou uma boa vida. - E proporcionara a Cassie uma pequena fortuna, mas a que preço.

Cassie explicou-lhes novamente o que era o Flying Command, eles disseram-lhe que iam pensar no assunto, mas Cassie lembrou-lhes que já assinara os papéis. Pat e Oona olharam um para o outro. Não restava mais nada senão apoiar Cassie. Ela estava-lhes sempre a fazer a mesma coisa. Sempre a arriscar a vida, levando-a até ao limite.

- Quando precisam de ti? - perguntou o pai, com um ar deprimido. Também detestava perder a sua ajuda no aeroporto.

- Começo daqui a duas semanas: no dia um de Setembro, em New Jersey. - E depois acrescentou: - Se fosse homem também seria recrutada.

- Mas, graças a Deus, não és e não serás. Já é uma desgraça ter lá os teus cunhados e o Nick. - Nick era como um filho para ele.

- Se pudesses também lá estarias - salientou ela ao pai, e este olhou-a com uma expressão muito estranha. Ela tinha razão. Estaria. Nick oferecera-se como voluntário há muito tempo e nem sequer precisava de ir.

- Porque é que não posso ir? Por que razão não posso fazer algo pelo meu país? Voar é a única coisa que sei fazer e faço-o bem. Porque não posso oferecer isso ao meu país? Tu fá-lo-ias. Devo ser impedida disso só porque sou uma mulher?

- Oh, Deus - disse o pai. - Voltamos às sufragistas. Onde foste buscar isso? A tua mãe e as tuas irmãs nunca falaram desse disparate. Ficam em casa, que é onde devem estar.

- Eu não pertenço à casa. Sou piloto como tu. É essa a diferença. - Era difícil discutir com ela. Era esperta, tinha razão e muita coragem. Ela ensinara-lhe muito ao longo dos anos e Pat ainda a amava mais por isso.

- É perigoso, Cass, porque irás pilotar bombardeiros Lockeed Hudson. São aviões muito pesados. E se te despenhas novamente?

- E se tu te despenhares amanhã sobre Cleveland? Qual é a diferença?

- Talvez nenhuma. Vou pensar nisso. - Pat sabia que a filha estava aborrecida por fazer vôos para entregar correio depois dos aviões que pilotara, mas pelo menos ali estava segura.

Pensou no assunto durante alguns dias, mas finalmente sentiu mais uma vez que não tinha o direito de a impedir. Em Setembro, Cassie foi para New Jersey. Oona também estava orgulhosa dela e os pais acompanharam-na até lá.

- Toma cuidado contigo, pai - disse Cassie antes de os deixar. Deu-lhes um beijo de despedida e o pai ficou a sorrir para a filha.

- Tenta não seres uma vergonha para a aviação - disse-lhe a brincar e ela riu-se.

- Vê se te portas bem!

- E tu também! - Saudou-a e partiu. Quando a viu novamente, estava a rebentar de orgulho. Cassie usava um uniforme com um brilhante par de asas prateadas, parecendo mais velha e madura que nunca. Ficava com uma figura sensacional de uniforme.

Os pais tinham ido a Nova Iorque porque ela ia para Inglaterra no fim-de-semana seguinte, se bem que a visita fosse breve. Ela andaria a levar e trazer aviões para os locais onde seriam necessários, mas a sua primeira missão seria apresentar-se em Hornchurch com um bombardeiro.

Jantou com os pais na noite anterior à partida e levou-os a um pequeno restaurante italiano que freqüentava sempre que estava em Nova Iorque com os outros pilotos. Apresentou alguns deles aos pais, e estes conseguiam ver que ela nunca fora tão feliz. Apesar da dificuldade dos treinos, Cassie sentia quase sempre que estava num campo de férias para mulheres-pilotos. Gostava das mulheres com que voava, e o desafio de transportar os bombardeiros através de perigosos espaços aéreos convinha-lhe perfeitamente. Estava habituada a vôos difíceis e gostava do fato de ser obrigada a estar com todos os seus sentidos bem aguçados. Para esta primeira viagem, durante a qual passariam pela Groelândia, fora-lhe atribuído um co-piloto masculino.

- Vê se consegues encontrar o Nick - disse o pai quando a deixou na caserna, e ela prometeu escrever de Inglaterra. Não pensava lá ficar muito tempo, mas ainda não tinha a certeza. Iria voar em missão e teria de esperar um destacamento para regressar aos Estados Unidos. Poderia lá ficar apenas uma ou duas semanas ou três ou quatro meses. Não havia maneira de saber. De uma coisa Cassie tinha a certeza: durante todo o treino, não pensara em mais nada senão em Nick Galvin.

Pensara muito e tomara algumas decisões.

Durante toda a vida fora obrigada a esperar que os outros tomassem decisões sobre a sua vida, agora não estava disposta a deixar que isso voltasse a acontecer. Tivera de pagar ao próprio irmão para mentir e levá-la no Jenny para que ela aprendesse a voar. Tivera de esperar que Nick notasse o desespero com que ela desejava aprender para concordar em dar-lhe lições às escondidas do pai. Fora obrigada a esperar que o pai reconsiderasse e a deixasse voar para ele.

Tivera de esperar que Nick dissesse que a amava e depois partisse como membro da Royal Air Force, e fora obrigada a esperar que Desmond a deixasse pilotar os seus aviões, mentir-lhe e usá-la, dizendo-lhe finalmente que ela representava muito pouco para ele. Toda a vida esperara pelas decisões e manipulações dos outros. Até agora, que Nick sabia onde ela estava e o que sentia por ele, continuava a não lhe escrever. A única coisa que Nick provavelmente não sabia, graças às boas relações de Desmond com a imprensa, era que se tinha divorciado.

No entanto, Cassie não estava disposta a esperar mais tempo. Desta vez, não esperaria a decisão de ninguém. Era a sua vez e, desde que soubera que Desmond fora um filho da mãe, só desejava ir para Inglaterra. Não fazia idéia do que aconteceria quando chegasse ou qual seria a reação de Nick. Não se importava se era velho ou novo ou com o dinheiro que tinha ou não tinha. Apenas sabia que tinha de lá estar. Tinha o direito de saber o que ele sentia por ela. Decidira que tinha direito a muitas coisas e chegara a altura de as conseguir. Aquela viagem era uma delas. Era exatamente o que queria fazer naquele momento.

Partiram às cinco horas da manhã seguinte. Achou a pilotagem desafiadora, mas, por vezes, aborrecida. Ela e o co-piloto conversaram durante algum tempo e este ficou impressionado quando percebeu quem ela era.

- Uma vez vi-a num festival aéreo. Limpou os prêmios todos. Acho que foram três primeiros e um segundo. - Fora a sua última participação, mas ele recordava-se com exatidão.

- Já não participo há muito tempo.

- Tornaram-se desinteressantes.

- Perdi o meu irmão no do ano seguinte. A partir daí, deixou de ser divertido.

- Acredito. - Depois, lembrou-se com admiração da partida que ela tinha pregado a todos. - Dessa vez, você quase mordeu o pó.

- Não. Foi apenas um truque - disse Cassie modestamente. Ele riu-se.

- Raparigas com coragem. Vocês são todas iguais: muita coragem e pouco cérebro. - Riu-se e ela sorriu. Para Cassie aquilo era quase um cumprimento. Gostou da referência à coragem.

- Muito obrigada. - Cassie sorriu-lhe e, por um instante, fez-lhe lembrar Billy.

- Não há problema.

Na altura em que chegaram a Inglaterra já eram amigos e Cassie esperava voar com ele novamente. Era do Texas e, como qualquer texano, voava desde o momento em que tivera idade para subir para a carlinga. Prometeu procurá-la quando voltasse a New Jersey.

Tinham tido sorte nessa noite, pois não havia pilotos alemães a fazer vôos de reconhecimento. Já estivera envolvido em combates e ficou feliz por isso não acontecer a Cassie no seu primeiro vôo.

- Não foi nada de especial - assegurou. Para a delícia de Cassie, deixou-a aterrar o avião, o que não constituiu qualquer problema, apesar dos avisos do pai. Era ótimo ser tratada como um par.

Levou os papéis ao escritório onde a mandaram apresentar-se.

Agradeceram-lhe educadamente a entrega dos documentos e entregaram-lhe um pedaço de papel referente ao aquartelamento. Cassie saiu, e o piloto com quem voara convidou-a a tomar o pequeno-almoço, mas ela disse-lhe que tinha outros planos. Tinha-os, mas não tinha a certeza onde deveria começar a procurar. Possuía a morada de Nick, mas isso nada significava para ela. Pelo menos, por agora. Puxou do pedaço de papel onde a tinha escrito e estava a olhar para ele, lutando contra a exaustão do vôo, quando alguém lhe deu um encontrão. Ela olhou a pessoa com irritação e depois com estupefação.

Era ridículo. As coisas não aconteciam assim. Era demasiado fácil. Ele estava ali de pé, olhando para Cassie como se estivesse a ver um fantasma. Ninguém o avisara que ela viria e ali estava Cassie, de uniforme, olhando para os olhos espantados do major Nick Galvin.

- O que estás aqui a fazer? - Disse-o como se fosse o proprietário daquele local, e ela riu-se dele com o cabelo ruivo destacando-lhe o rosto.

- O mesmo que tu. - Mais ou menos. A tarefa dele era bem mais perigosa do que a dela, mas ambos tinham as suas tarefas e missões. Vários pilotos de transporte já tinham sido mortos pelos Alemães.- Deixa-me agradecer-te as cartas que me enviaste. Gostei muito de as receber. - Tentou aliviar a dor causada pelo seu silêncio.

Nick sorriu infantilmente ao ouvir o comentário. Estava tão esmagado por vê-la novamente que mal conseguiu ouvi-la. A última vez que a vira... fora na manhã seguinte à noite que haviam passado na velha pista.

- Agradou-me imenso escrevê-las. - Recuou, mas a única coisa que desejava fazer era tocar-lhe. Não conseguia afastar dela os olhos, os braços, o coração e os dedos. Instintivamente, esticou o braço e tocou-lhe o cabelo. Ainda parecia seda e fogo.

- Como estás, Cass? - disse Nick suavemente, enquanto muitas pessoas em uniforme passavam por eles. Hornchurch era muito agitado, mas nenhum deles parecia notar. Não conseguiam tirar os olhos um do outro. Apesar das dificuldades que ambos tinham passado, nada parecia ter mudado entre eles.

- Estou bem - respondeu, enquanto ele a conduzia para um sítio mais sossegado e se sentavam num muro a conversar. Havia muito a dizer e, subitamente, Nick sentiu-se culpado pelo seu silêncio.

- Fiquei morto de preocupação quando caíste - disse. Ela afastou o olhar, lembrando-se de Billy.

- Não foi muito divertido - respondeu ela honestamente. - Foi muito duro e... - Tinha dificuldade em falar e, sem pensar, Nick agarrou-lhe a mão e apertou-a na sua. -... Foi terrível quando o Billy...

- Eu sei. - Não era preciso dizê-lo por palavras. Ele percebia perfeitamente. - Não te podes culpar, Cass. Avisei-te há muito tempo. Todos fazemos o que é preciso. Corremos os nossos riscos. O Billy sabia o que estava a fazer. Decidiu, por ele e não por ti, fazer a viagem contigo. - Ela acenou com a cabeça, reconhecendo a sabedoria daquelas palavras, mas não a confortavam muito.

- Nunca achei justo que ele morresse e eu voltasse. - Era a primeira vez que dizia aquilo a alguém e nunca o teria dito senão a Nick. Sempre lhe contara tudo o que estava a sentir.

- É a vida. Não é uma decisão nossa. É Dele. - Nick apontou para os céus e ela acenou com a cabeça.

- Porque não telefonaste quando regressei? - perguntou Cassie tristemente. Tinham ido direitos às coisas importantes e sempre o tinham feito. Ele era assim.

- Pensei muito nisso e algumas vezes estive quase a telefonar - confessou ele, sorrindo -, quando já estava meio bêbado, mas achei que o teu marido não ficaria muito contente. Onde é que ele está? - A sua pergunta confirmou as suspeitas de Cassie, que lhe sorriu. Era divertido estar ali sentada a conversar com Nick, como se ele estivesse estado à espera da sua chegada. De repente, tudo pareceu muito simples. Estavam ali, a mais de seis mil quilômetros de casa, a conversar num muro de pedra sob o sol de Outono.

- Está em Los Angeles. - Com a Nancy Firestone ou alguém como ela...

- Estou surpreendido que te tenha.. deixado fazer isto, mas, por outro lado, não estou - disse Nick com uma expressão azeda. O pensamento de a ter perdido tinha-lhe partido o coração, e aquele filho da mãe tinha-a feito arriscar a vida para vender aviões

Era a Desmond que ele quisera telefonar para lhe dizer que era um grande sacana, mas nunca o fizera. - Deve ter pensado que tudo isto ia ficar muito bem nos documentários. Patriótico... Um dos jovens... De quem foi a idéia? - Queria que fosse dela, pois desejava respeitá-la por isso.

- Foi minha, Nick. Desde a volta que queria fazer isto, mas quando voltei não achei bem deixar o meu pai. Mesmo assim foi difícil para ele. Não tem ninguém para o ajudar.

É provável que tenha de empregar algumas mulheres, mas a maioria está a juntar-se ao WAFS, à FTC ou ao Flying Training Command, como eu.

- O que queres dizer com não achares bem deixar o teu pai? Ficaste com eles quando voltaste? - O crápula do Desmond nem tivera a decência de tomar conta dela e devia ter estado bem doente depois de sete semanas a passar fome num atol.

- Sim. Voltei para casa - disse ela calmamente, olhando-o e recordando a sua única noite de felicidade ao luar. - Deixei o Desmond, Nick. Deixei-o quando o pai teve o ataque de coração.

Já tudo tinha acabado há um ano, mas Nick ficou pasmado ao perceber que nunca o soubera.

- Quando voltei para Los Angeles - prosseguiu ela depois da última vez que te vi, tudo aconteceu como tu previras. Pressionava-me com conferências de imprensa, vôos de teste em pistas e documentários. Tudo foi como tu disseste que seria, mas só se revelou quando o pai adoeceu. «Ordenou-me» que fizesse a volta na altura prevista e «proibiu-me» de ir ver o meu pai.

- Mas tu foste, não foste? - Sabia que a viagem fora adiada, pois vira um documentário rodado no hospital.

- Sim. Fui e o Billy foi comigo. O Desmond disse que nos processaria se não fizéssemos a volta e obrigou-nos a assinar contratos que a faríamos em Outubro, acontecesse o que acontecesse.

- Que tipo porreiro!

- Eu sei. Nunca mais voltei para ele e nem sequer me telefonou. Tudo o que queria era que a imprensa não soubesse até eu voltar. E também tinhas razão sobre as mulheres. A Nancy Firestone era sua amante. Aparentemente, a única razão que o levou a casar-se comigo foi a publicidade à viagem, tal como tu afirmaste. Ele disse que não teria «o mesmo impacto sobre o público». O casamento foi uma aldrabice completa. Depois, quando me salvaram, ele disse-me no Havaí que eu ainda trabalhava para ele e que ia processar-me por quebra de contrato. Prometera-lhe vinte e quatro mil quilômetros no North Star e só tinha voado dezessete mil antes de me despenhar. Nessa altura, achou que conseguiria mais publicidade à minha custa, mas já tudo acabara. O pai levou-me a um advogado em Chicago e divorciei-me.

Nick estava completamente estupefato com o que Cassie estava a contar-lhe, se bem que não fosse novidade para Nick o fato de Williams ser um filho da mãe, mas era muito pior do que até Nick suspeitara.

- Como conseguiste manter o silêncio antes de partires?

- Ele é muito bom nisso. É a sua profissão. Quando voltei para Los Angeles antes da viagem, fiquei em casa do Billy. Ninguém sabia de nada. De qualquer modo, partimos algumas semanas depois de ter voltado de Good Hope, e Desmond vestiu tudo de lavado. É um réptil, Nick. Tinhas razão e sempre te quis dizer isso, mas não sabia exatamente o que dizer ou como dizê-lo. Inicialmente, o meu orgulho estava ferido e tive vergonha de admitir que tudo não passara de uma farsa. Depois, pensei que tu não estivesses interessado em saber. Foste muito definitivo em relação a mim. Não sei. Achei que era melhor estar calada. Fiquei à espera que viesses a casa para podermos falar, mas depois de Pearl Harbor não deves ter podido.

- Já não temos licenças, Cass. E o que queres dizer com «fui tão definitivo em relação a ti»? Lembras-te daquela noite?

Parecia magoado com as palavras de Cassie.

- Lembro-me de cada minuto dela. Por vezes, era a única coisa que me mantinha viva na ilha. Pensar em ti... recordar. Foi o que me deu forças para muitas coisas, incluindo deixar o Desmond. Ele é um nojo.

- Então porque não me escreveste?

Ela suspirou, pensando nisso, e depois olhou-o honestamente.

- Achei que irias dizer-me de novo que eras demasiado velho e pobre e que eu devia estar com um miúdo como o Billy.

Ele sorriu perante a veracidade das suas palavras. Talvez tivesse sido suficientemente estúpido para o fazer, antes de Cassie quase ter morrido e de ele ter percebido a sua asneira. Estar ali sentado a olhar para ela fê-lo perceber como tinha sido louco em deixá-la.

- E encontraste? Um miúdo como o Billy? - Estava com uma expressão tão preocupada que, durante alguns instantes, Cassie desejou ter coragem para lhe causar ciúmes.

- Devia dizer-te que tenho saído com todos os homens de sete estados.

- Acho que não acreditaria. - Nick sorriu e acendeu um cigarro, enquanto se encostava ao muro e a mirava com prazer. Era tão bom voltar a vê-la! Aquela era a menina que ele sempre amara.

- Porque não? Achas que sou demasiado feia para que os homens não queiram sair comigo? - disse ela para o arreliar.

- Não és feia. Apenas difícil. É preciso um homem de uma certa idade e sofisticação para lidar com uma rapariga como tu, Cass. Não há muitos homens no condado de McDonough que o conseguissem fazer.

- És tão vaidoso! isso significa que agora já tens a idade correta ou ainda és demasiado velho para mim? - perguntou ela incisivamente, querendo saber em que pé estavam.

- Costumava ser. Sobretudo, costumava ser demasiado estúpido - disse Nick com honestidade. - Quase foram obrigados a reformar-me quando tu caíste, Cass. Pensei que ia enlouquecer. Devia ter ido a casa assim que soube, pois teria estado em Honolulu, quando chegaste.

- Teria sido maravilhoso - sorriu ela gentilmente, sem o acusar de nada. Apenas queria saber o que aconteceria entre eles.

- Presumo que o Desmond estava lá com os repórteres afirmou ele com um ar aborrecido.

- Claro. Mas eu tinha uma grande enfermeira que os mantinha afastados do meu quarto assim que tentavam dar um passo. Detestava o Desmond. Foi nessa altura que ele ameaçou processar-me por quebra de contrato. Acho que está convencido que fiz explodir o avião de propósito. Foi terrível, Nick - disse Cassie solenemente -, com ambos os motores a arder. Penso que ainda não perceberam o que aconteceu e acho que nunca chegarão a qualquer conclusão. - O seu olhar ficou longínquo por uns instantes e Nick puxou-a para si.

- Não penses mais nisso, Cass. Acabou. - E também muitas outras coisas. Para ela terminara toda uma vida e era altura de começar de novo. Olhou para ela com um sorriso, sentindo o calor do seu corpo junto do dele, e lembrou-se daquela noite de Verão há quase dois anos, que o sustentara desde então. - Quanto tempo vais ficar?

- Recebo as minhas ordens na quinta-feira - disse ela, perguntando a si própria o que lhes estaria reservado, se seria novamente o mesmo jogo ou se ele finalmente crescera. - Poderei cá estar uma ou duas semanas ou três meses, mas voltarei com bastante assiduidade. Estou no esquadrão de transporte para o ultramar e é isso que fazemos: serviço de transporte de New Jersey para Hornchurch.

- A maioria das vezes, isso vai ser muito maçador para ti, Cass. - Estava aliviado por ela não ter encontrado algo de mais perigoso para fazer. Era a pessoa indicada. Para Desmond testara aviões de combate a serem adaptados para o exército, mas isso acabara.

- Por agora, chega. E tu? Onde estás agora? - perguntou Cassie com um olhar que lhe perscrutava a alma. Não havia maneira de fugir à pergunta.

Ao princípio, Nick não percebeu o que ela estava a perguntar-lhe, mas depois riu-se e olhou para ela. Percebera perfeitamente. O fato de ela estar ali não era acidental. A única coincidência fora o fato de Nick a encontrar tão depressa.

- O que é que estás a perguntar-me, Cassie?

- És corajoso? Não ficaste mais esperto aqui, a arriscar a vida contra os Alemães?

- Estou mais esperto do que era, se é essa a pergunta. Estou um pouco mais velho, igualmente pobre... - Lembrou-se facilmente das suas próprias palavras e de como fora idiota ao proferi-las. - E tu? És corajosa, pequena Cassie? É idiota? É isso que queres? Depois de tudo o que fizeste, tiveste e foste nos últimos dois anos, é ainda isso que queres? A mim e ao velho Jenny? É tudo o que tenho. Isso e o Bellanca. Nunca irá ser luxuoso. - Mas ambos sabiam que Cassie tivera o luxo e não era isso que desejava. Queria Nick e tudo o que ele significava para ela. Nada mais.

- Se quisesse o luxo, estaria em Los Angeles.

- Não, não estarias - disse Nick, calmo e com aquele olhar teimoso que ela tão bem conhecia.

- Porque não?

- Porque eu não te deixaria. Nunca te deixarei voltar para aquilo e, à partida, nunca devia ter-te deixado ir. - Ambos tinham aprendido lições muito caras, mas agora estavam mais sábios. Tinham ido muito longe e pago caro por tudo o que tinham aprendido e querido. - Amo-te, Cass. Sempre amei - disse ele em voz baixa enquanto a puxava para junto de si. Ela olhou-o e sorriu. Era o rosto que conhecia muito bem e que amava desde criança. As mesmas rugas ao redor dos olhos, o mesmo rosto com que ela crescera. Era um rosto bonito, com caráter, bondade e objetivo. Era o único para o qual queria olhar durante toda a sua vida. Tinha ido ali para o encontrar e encontrara. Com Nick tinha o que queria.

- Também te amo, Nick - afirmou ela pacificamente, enquanto ele a puxava para mais perto de si, sentindo o seu calor e a intimidade que tantas vezes desejara. Tinha sido um inferno estar longe dela, um inferno que ele próprio provocara, do qual estava amargamente arrependido, mas não sabia como sair dele. Fora preciso Cassie ir ao seu encontro.

- E se algum de nós não sobrevive a isto? - perguntou ele honestamente. - E então? - Ainda não queria arruinar a vida de Cassie, ligando-se a ela para morrer depois. Esse era freqüentemente o preço que as mulheres pagavam por casar com um aviador.

- É um risco que ambos corremos todos os dias. Sempre o corremos e foste tu que mo ensinaste. Se é isso que queremos, temos de ter a coragem de viver com tal e permitirmos que cada um faça o que deve. - Era um preço muito alto a pagar pelo amor de alguém, mas eles sempre tinham estado dispostos a pagá-lo.

- E depois? - Nick ainda estava preocupado, mas há muito que ela atravessara aquelas pontes e era completamente irrelevante que ele não tivesse nada.

- Depois, voltamos para casa, o meu pai reforma-se e dá-nos o aeroporto. Se tudo o que tens é uma barraca, assim seja. Não me importo. Se tivermos de o fazer, mudamo-la. - Desta vez Nick não discutiu com ela. Desta vez, sabia que era suficiente para os dois. Já tinham tido mais e menos nas suas vidas e não se tinham importado. Tudo o que precisavam era o que tinham: um ao outro e um céu para voar.

Nick beijou-a gentilmente e depois olhou para o céu de Outono e sorriu, lembrando-se das horas que tinham passado no velho Jenny. Cassie recordou os seus primeiros loopings e parafusos, e ele riu-se.

- Costumavas assustar-me imenso.

- Uma ova. Disseste-me que eu era um piloto nato. - Fingiu-se insultada quando se levantaram e Nick a conduziu lentamente para a caserna. Tinham resolvido muitas coisas naquela manhã.

- Só o disse porque estava apaixonado por ti. - Riu-se de felicidade, sentindo-se muito jovem. Cassie sempre lhe provocara aquela sensação.

- Não, não disseste. Não estavas apaixonado por mim nessa altura - argumentou ela com um largo sorriso, perguntando a si própria se estaria ou não.

- Estava, sim. - Nick estava feliz, tranqüilo e sentia-se jovem e incomensuravelmente orgulhoso por caminhar a seu lado.

- Verdade?

Riram-se, caminharam e brincaram como crianças. Subitamente, a vida tornara-se muito fácil. Cassie fizera o que tinha vindo fazer. Encontrara Nick e tudo o que ele sempre fora para ela. Finalmente estava em casa. Ambos estavam.

 

                                                                                            Danielle Stel

 

 

                      

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