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A HORA DAS BRUXAS-Volume II / Anne Rice
A HORA DAS BRUXAS-Volume II / Anne Rice

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A HORA DAS BRUXAS

Volume II

 

O desaparecimento de Stuart Townsend

Em 1929, Stuart Townsend, que vinha estudando todo o material sobre a família Mayfair há anos, solicitou ao conselho permissão para tentar um contato com a família. Era forte sua sensação de que a mensagem lacônica de Stella no verso fotografia significava que ela desejava um contato desses.

E Stuart estava também convencido de que os três últimos bruxos - Juli Mary Beth e Stella - não eram assassinos nem seres malévolos sob nenhum aspecto; que seria perfeitamente seguro contatá-los e que de fato "coisas maravilhosas" poderiam resultar.

Isso forçou o conselho a examinar a sério toda a questão e também reexaminar, como faz constantemente, as normas e os objetivos do Talama.

Embora exista uma quantidade imensa de materiais escritos nos arquivos relacionados a nossas normas e objetivos, aquilo que considerar aceitável e inaceitável, e embora esse seja um constante tópico tratado nas no reuniões de conselhos em todo o mundo, permitam-me resumir, expressam para esta narrativa, as questões que aqui se aplicam, todas elas levantadas Stuart Townsend em 1929.

Em primeiríssimo lugar, nós havíamos criado com o Arquivo sobre as Bruxas Mayfair uma história valiosa e impressionante de uma família com poderes paranormais. Havíamos provado a nós mesmos, sem sombra de dúvida, q' família Mayfair mantinha contato corno reino do invisível e que sabia manipular forças invisíveis para obter vantagens.

Havia, porém, muitas coisas sobre o eles faziam que nós simplesmente não sabíamos.

E se fosse possível convencê-los a conversar conosco? A compartilhar no segredos? O que poderíamos descobrir?

Stella não era a pessoa misteriosa ou reservada que Mary Beth havia sido. Se ela pudesse se convencer da nossa discrição e de nossos propósitos de estudiosos, talvez ela nos revelasse algo. Era possível que Cortland Mayfair também falasse conosco.

Em segundo lugar, e talvez com menos importância, nós certamente havíamos ao longo dos anos invadido a privacidade da família Mayfair com nossa vigilância. De acordo com Stuart, nós havíamos espionado todos os aspectos da vida da família. Na realidade, havíamos estudado essa gente como se fossem cobaias. Repetidamente, justificamos nossa atuação alegando que iremos colocar nossos registros à disposição das pessoas que estudamos, e é isso o que fazemos.

Bem, jamais havíamos agido assim com a família Mayfair. E talvez não houvesse agora desculpas para não tentar.

Em terceiro lugar, nosso relacionamento com a família Mayfair era absolutamente exclusivo já que o sangue de Petyr van Abel, nosso irmão, corria em suas veias. Seria possível dizer que eles "eram aparentados" nossos. Não deveríamos procurar esse contato mesmo que fosse apenas para lhes falar desse antepassado? E quem sabe o que poderia resultar disso?

Em quarto lugar, ao entrar em contato, poderíamos estar fazendo algo positivo? E aqui é claro que estamos abordando um dos nossos principais objetivos. Será que a irresponsável Stella poderia ser beneficiada ao saber de outras pessoas semelhantes a ela mesma? Ela não gostaria de saber que havia gente que estudava essas pessoas, com a intenção de compreender o reino do invisível? Em outras palavras, Stella não gostaria de conversar conosco, e não gostaria de saber o que nós sabemos sobre os poderes paranormais em geral?

Stuart argumentava com veemência que era nossa obrigação entrar em contato. Ele também levantou uma questão interessante: o que Stella já sabia? Ele também repetiu insistente que Stella precisava de nós, que todo o clã Mayfair precisava de nós, que especialmente a pequena Antha precisava de nós, e que já era hora de nos apresentarmos e de lhes oferecer o que sabíamos.

O conselho levou tudo o que Stuart dissera em consideração. Refletiu sobre o que já sabia das Bruxas Mayfair e concluiu que as alegações a favor do contato superavam de longe os motivos contrários a ele. A idéia de perigo logo foi descartada. E assim foi dito a Stuart que ele podia viajar até os Estados Unidos e que podia estabelecer contato com Stella.

Em grande agitação, Stuart zarpou para Nova York no dia seguinte. O Talamasca recebeu dele duas cartas remetidas de Nova York. Ele escreveu ainda uma vez, ao chegar a Nova Orleans, em papel do St. Charles Hotel, dizendo que havia entrado em contato com Stella, que ele a havia considerado extremamente receptiva e que iam se encontrar para almoçar no dia seguinte.

Nunca mais se viu Stuart Townsend ou se ouviu falar dele. Não sabemos onde, quando ou mesmo se sua vida terminou. Sabemos apenas que em algum momento de junho de 1929 ele desapareceu sem deixar pistas.

Quando voltamos a examinar essas reuniões do conselho, quando lemos as atas, é muito fácil ver que o Talamasca cometeu um trágico engano. Stuart estava realmente preparado para essa missão. Deveria ter sido redigida narrativa que abrangesse todos os materiais, para que a história da família pudesse ser vista como um todo. Do mesmo modo, a questão do perigo deveria ter sido avaliada com maior cuidado Em todo o histórico da família Mayfair ocorrem referencias à violência sofrida por inimigos das Bruxas Mayfair Para ser justo, porém, deve-se admitir que não havia nenhuma história semelhante associada a Stella ou a sua geração. E decerto nenhuma história semelhante com relação a outros residentes contemporâneos da casa de First Street. (As exceções são, naturalmente, as histórias do pátio da escola envolvendo Stella e Antha, foram acusadas de usar seu amigo invisível para machucar outras crianças. Ma Stella na idade adulta não há nada que se compare a isso.)

Além do mais, a história completa da babá de Antha que morreu de queda em Roma não era do conhecimento do Talamasca na época. E é possível que Stuart não soubesse absolutamente nada a respeito desse incidente.

Mesmo assim, Stuart não estava plenamente preparado para uma missão daquelas. E, quando se examinam seus comentários ao conselho e aos ou membros, fica óbvio que Stuart estava apaixonado por Stella Mayfair. E apaixonou por ela na pior das circunstâncias, ou seja, ele se apaixonou pela imagem em fotografias e pela Stella que surgia das descrições que as pessoas faziam dela. Ela havia se tornado um mito para ele. E assim, cheio de entusiasmo e paixão, ele foi se encontrar com ela, deslumbrado não só pelos seus poderes pelos seus encantos proverbiais.

Fica também óbvio para quem observa o caso imparcialmente que Stuart era a pessoa mais adequada para essa missão, por uma série de motivos.

E antes de irmos com Stuart até Nova Orleans, permitam-nos expor sucintamente quem Stuart foi. Existe nos nossos arquivos uma pasta com tudo sobre Stuart, e sem dúvida ela merece ser lida por si mesma. Durante cerca doze anos, ele foi um membro dedicado e consciencioso da Ordem, e investigações de casos de possessão cobrem cento e quatorze registros difere.

 

A VIDA DE STUART TOWNSEND

Até que ponto a vida de Stuart Townsend está relacionada ao que lhe aconteceu ou à história das Bruxas Mayfair, não sei dizer. Sei, sim, que estou incluindo nesta narrativa mais do que precisaria incluir. E especialmente tendo em o pouco que falo de Arthur Langtry, devo explicações.

Creio ter incluído aqui este material como uma espécie de homenagem póstuma a Stuart, e como uma espécie de advertência. Seja lá o que for..

A atenção da Ordem foi chamada para Stuart quando ele estava com vinte e dois anos de idade.

Nossos escritórios de Londres receberam de um dos nossos numerosos investigadores nos Estados Unidos um pequeno artigo de sobre Stuart Townsend ou "O garoto que foi outra pessoa durante dez anos”.

Stuart nasceu numa pequena cidade do Texas no ano de 1895. Seu pai era o médico da localidade, um homem amplamente respeitado e profundamente estudioso. A mãe de Stuart era de uma família próspera e se dedicava às obras de caridade do tipo que assenta bem a uma mulher da sua posição, tendo duas babás para cuidar dos seus sete filhos, dos quais Stuart era o primogênito. Viviam numa grande casa vitoriana com uma sacada com gradil na única rua elegante da cidade.

Stuart foi para o colégio interno na Nova Inglaterra quando tinha seis anos de idade. Ele foi desde cedo um aluno extraordinário, e durante suas primeiras férias de verão, ele ficou em casa meio como um recluso, lendo no seu quarto no sótão até tarde da noite. Ele realmente tinha alguns amigos entre a aristocracia reduzida porém vigorosa da cidadezinha - filhos e filhas de funcionários públicos, de advogados e de ricos fazendeiros. Parecia ser benquisto. Aos dez anos de idade, Stuart foi acometido por uma febre forte que não pôde ser diagnosticada. Seu pai acabou por concluir que ela deveria ter origem infecciosa, mas nenhuma explicação concreta jamais foi encontrada. Stuart entrou numa crise na qual delirou dois dias seguidos.

Quando se recuperou, não era mais Stuart. Era uma outra pessoa. Essa outra pessoa alegava ser uma jovem chamada Antoinette Fielding, que falava com um sotaque francês e tocava piano maravilhosamente. Ela aparentava estar confusa quanto à idade, ao lugar em que morava ou ao que estava fazendo na casa de Stuart.

O próprio Stuart sabia um pouco de francês, mas não sabia tocar piano. E, quando ele se sentou ao empoeirado piano de cauda na sala de estar e começou a tocar Chopin, a família achou que estava enlouquecendo.

Quanto ao fato de ele acreditar ser uma moça e chorar de tristeza ao ver sua imagem no espelho, sua mãe não pôde suportar isso e saiu correndo do quarto. Depois de uma semana de comportamento em parte histérico em parte melancólico, Stuart-Antoinette foi convencido a parar de pedir vestidos, a aceitar o fato de que seu corpo era de menino agora e a acreditar que ela agora era Stuart e devia voltar a fazer o que se esperava que Stuart fizesse.

No entanto, estava totalmente fora de cogitação qualquer volta à escola. E Stuart-Antoinette, que passou a ser chamado pela família de Tony, para simplificar, passava seus dias tocando piano sem parar e escrevendo suas memórias num enorme diário enquanto ele/ela tentava resolver o mistério da sua identidade.

O Dr. Townsend, ao ler essas memórias, percebeu que o francês no qual elas estavam escritas era muitíssimo superior ao nível de conhecimento alcançado por Stuart aos dez anos de idade. Ele também começou a perceber que as lembranças da criança eram todas de Paris, e de Paris na década de 1840, como revelavam com clareza as referências a óperas, peças e meios de transporte.

Descobriu-se a partir desses documentos que Antoinette Fielding havia sido filha de uma união entre um francês e uma inglesa, que seu pai francês não havia se casado com sua mãe inglesa- Louisa Fielding - e que a menina havia levado uma vida estranha e reclusa em Paris, como a filha mimada de uma prostituta de alta classe que procurava proteger sua filha única da imoralidade das ruas. Seu grande talento e consolo era a música.

O Dr. Townsend, fascinado, e garantindo à mulher que chegariam à raiz do mistério, começou uma investigação por correspondência com a intenção de descobrir se essa pessoa Antoinette Fielding havia existido um dia em Paris.

Esse esforço o ocupou por cerca de cinco anos.

Todo esse tempo, "Antoinette" permaneceu no corpo de Stuart, tocando piano obsessivamente, ousando sair só para se perder ou para entrar em alguma briga terrível com os valentões das redondezas. Afinal, Antoinette passou a não mais sair de casa, tornando-se algo como uma inválida histérica, exigindo que suas refeições fossem deixadas a sua porta e só descendo para tocar piano à noite.

Afinal, através de um detetive particular em Paris, o Dr. Townsend pode se certificar de que uma certa Louisa Fielding havia sido assassinada em Paris em 1865. Ela era na realidade uma prostituta, mas não havia absolutamente nenhuma prova de que tivesse uma filha. E assim o Dr. Townsend acabou chegando a um beco sem saída. A essa altura, ele já estava exausto de tentai resolver o mistério. Resolveu aceitar a situação da melhor maneira possível.

Seu belo e jovem Stuart estava perdido para sempre, e no seu lugar havia um inválido deformado e abatido, um rapaz de rosto muito branco, olhos ardente e uma estranha voz assexuada, que agora vivia o tempo todo com as janela fechadas. O médico e a esposa se acostumaram a ouvir os concertos noturnos. De quando em quando o médico subia para falar com a criatura "feminina" e de rosto pálido que morava no sótão. Ele não podia deixar de notar uma deterioração mental. A criatura já não conseguia mais se lembrar muito do "seu passado". Mesmo assim, eles mantinham uma conversa agradável por algum tempo. E então aquele jovem emaciado e perturbado se voltava para os livros como se o pai não estivesse ali, e o pai ia embora.

É interessante ressaltar que ninguém jamais aventou a possibilidade de Stuart estar "possuído". O médico era ateu; os filhos freqüentavam a igreja metodista. A família não conhecia nada a respeito dos católicos, dos ritos de exorcismo dessa religião ou de sua crença em espíritos demoníacos e possessões E ao que tenha chegado ao nosso conhecimento, o vigário local, que não tinha a simpatia da família, nunca foi consultado pessoalmente acerca do caso.

Essa situação persistiu até Stuart completar vinte anos de idade. Uma noite então, ele caiu da escada, sofrendo uma grave concussão. O médico, meio acordado e esperando que a inevitável música subisse da sala de estar, descobrira o filho inconsciente no patamar da escada e correu para o hospital, onde Stuart passou duas semanas em coma.

Quando acordou, ele era Stuart. Não tinha absolutamente nenhuma lembrança de jamais ter sido outra pessoa. Na verdade, ele acreditava ter dez anos e, quanto ouviu uma voz masculina sair da sua boca, ficou horrorizado. Quando descobriu que tinha o corpo de um adulto, ficou pasmo com o choque.

Estarrecido, ele ficou sentado na cama do hospital ouvindo as histórias que lhe acontecera durante os dez últimos anos. É claro que ele não compreendia o francês. Havia tido muita dificuldade com esse idioma na escola. E é claro que não sabia tocar piano. Ora, todo mundo sabia que ele não possuía talento musical.

Não tinha ouvido para a música.

Nas semanas seguintes, ele ficava sentado á mesa de refeições olhando espantado para seus irmãos e irmãs "enormes", seu pai agora grisalho e sua mãe, que não conseguia olhar para ele sem cair em lágrimas. Os telefones e os automóveis, que praticamente não existiam em 1905, quando ele havia deixado de ser Stuart, agora o assustavam o tempo todo. A luz elétrica o enchia de insegurança. No entanto, a fonte mais intensa de agonia era seu próprio corpo adulto. E a compreensão cada vez mais profunda de que sua infância e sua adolescência haviam desaparecido sem deixar rastros Ele então começou a enfrentar os problemas inevitáveis. Tinha vinte anos, mas suas emoções e sua instrução eram as de um menino de dez. Ele começou a ganhar peso; melhorou da palidez; saía a cavalgar nas fazendas próximas com seus antigos amigos. Contrataram-se professores particulares para sua instrução. Ele lia os jornais e as revistas nacionais o tempo todo. Dava grandes caminhadas durante as quais ensaiava os movimentos e os pensamentos de um adulto. Vivia, porém, num estado de perpétua ansiedade. Sentia uma atração apaixonada pelas mulheres mas não sabia como lidar com esse sentimento. Magoava-se com facilidade. Como homem, ele se sentia irremediavelmente inadequado. Afinal, começou a brigar com todos e, ao descobrir que podia beber impunemente, passou a "encher a cara" nos bares do lugarejo.

Logo, toda a cidadezinha conhecia a história. Algumas pessoas se lembravam da primeira vez, quando do nascimento de Antoinette. Outros apenas sabiam da história, ouvindo sua retrospectiva. Fosse o caso qual fosse, havia um falatório incessante. E embora, por deferência ao médico, o jornal local nunca fizesse menção a essa história absurda, um repórter de Dallas, Texas, veio a saber dela por diversas fontes e, sem a cooperação da família, escreveu um longo artigo que saiu publicado na edição de domingo de um jornal de Dallas em 1915. Outros jornais aproveitaram a história, e ela acabou sendo enviada para nós em Londres cerca de dois meses após sua publicação.

Enquanto isso, caçadores de curiosidades caíam sobre Stuart. Um escritor da região quis escrever um romance sobre ele. Representantes de revistas nacionais tocavam a campainha da sua porta. A família ficou furiosa. Mais uma vez, Stuart era forçado a permanecer dentro de casa. Ele ficava sentado no quarto do sótão, refletindo, olhando para os objetos queridos dessa pessoa estranha, Antoinette, e sentindo que dez anos da sua vida lhe haviam sido roubados e que ele era agora um desajustado irremediável, levado a brigar com todos os que conhecia.

Sem dúvida alguma, a família recebia grande quantidade de correspondência indesejada.

Por outro lado, as comunicações naquela época não eram o que são hoje. Fosse o caso qual fosse, uma remessa do Talamasca chegou ás mãos de Stuart no final de 1916, contendo dois livros famosos sobre casos de "possessão", acompanhados de uma carta nossa na qual lhe informávamos que dispúnhamos de vastos conhecimentos sobre essas coisas e que gostaríamos de conversar com ele a esse respeito, e a respeito de outras pessoas que haviam passado pela mesma experiência.

Stuart respondeu imediatamente. Ele se encontrou com nosso representante Louis Daly em Dallas no verão de 1917 e concordou, cheio de gratidão, em vir conosco para Londres. O Dr. Townsend, a princípio preocupadíssimo, foi finalmente conquistado por Louis, que lhe garantiu que nossa abordagem desses fenômenos era totalmente acadêmica. Stuart chegou afinal a nós em 1° de setembro de 1917.

Ele foi aceito pela Ordem na qualidade de noviço no ano seguinte, e ficou conosco daí em diante. Seu primeiro projeto foi naturalmente o de fazer um estudo meticuloso do seu próprio caso, bem como um estudo de todos os outros casos conhecidos de possessão nos nossos arquivos. Sua conclusão final, que foi a mesma a que chegaram outros estudiosos do Talamasca designados para essa área de pesquisa, foi a de que ele de fato havia sido possuído pelo espírito de uma mulher morta.

A partir daí ele sempre acreditou que o espírito de Antoinette Fielding poderia ter sido expulso do seu corpo, se qualquer pessoa familiarizada tivesse sido consultada, até mesmo um padre católico. Pois, embora a igreja católica afirme que tais casos são estritamente demoníacos com o que nós não concordamos, não há dúvida de que suas técnicas para exorcizar essas presenças estranhas realmente funcionem.

Durante os cinco anos seguintes, Stuart não fez outra coisa se não investigar casos anteriores de possessão no mundo inteiro. Ele entrevistou dezenas de vítimas, fazendo anotações volumosas.

Ele chegou á conclusão, há muito sustentada pelo Talamasca, de que há uma enorme variedade de entidades envolvidas na possessão. Algumas podem ser fantasmas; outras podem ser entidades que nunca foram humanas; e outras ainda podem ser "outras personalidades" inerentes ao hospedeiro. No entanto, ele não abandonou a convicção de que Antoinette Fielding havia sido um ser humano real e que, á semelhança de muitos fantasmas desse tipo, ela não sabia ou não compreendia que estava morta.

Em 1920, ele foi a Paris á procura de provas da existência de Antoinette Fielding. Não conseguiu descobrir absolutamente nada. No entanto, as parcas informações acerca da falecida Louisa Fielding combinavam como que Antoinette havia escrito sobre a própria mãe. Há muito, porém, o tempo havia apagado qualquer traço dessas pessoas. E Stuart continuou para sempre insatisfeito sob esse aspecto.

No final de 1920, ele se resignou á possibilidade de nunca chegar a saber quem foi Antoinette e resolveu se voltar para o trabalho de campo em nome do Talamasca. Ele saía com Louis Daly a fim de intervir em casos de possessão, realizando com ele uma forma de exorcismo que Daly empregava com muita eficácia para expulsar da vítima-hospedeiro essas presenças estranhas.

Daly estava muito impressionado com Stuart Townsend. Ele se tornou orientador de Stuart, que durante todos esses anos se salientou por sua compaixão, paciência e eficácia nessa área. Nem mesmo Daly conseguia consolar a vítima depois do exorcismo como Stuart conseguia. Afinal, Stuart havia passado por aquilo. Ele sabia.

Stuart trabalhou incansavelmente nessa atividade até 1929, lendo o Arquivo sobre as Bruxas Mayfair apenas quando sua movimentada programação o permitia. Então, ele apresentou sua solicitação ao conselho e foi atendido.

Aquela altura, Stuart estava com trinta e quatro anos. Tinha um metro e oitenta, cabelos de um louro acinzentado e olhos cinzentos. Era de compleição esguia e pele clara. Costumava se vestir com elegância e era um desses norte-americanos que admiram profundamente os modos e as atitudes dos ingleses e que procuram imitá-los.

Era um rapaz atraente. No entanto, sua maior qualidade, para amigos e conhecidos, era uma espécie de inocência e espontaneidade de menino. Faltavam realmente dez anos na vida de Stuart, e esses ele nunca recuperou.

Ele era às vezes capaz de agir com impetuosidade, de perder a cabeça, de ficar furioso ao se deparar até mesmo com obstáculos ínfimos aos seus planos. No entanto, controlava isso muito bem quando saía em campo. E quando tinha alguma crise dentro da casa-matriz, sempre pudemos fazê-lo voltar ao normal.

Ele era também capaz de se apaixonar profundamente, o que aconteceu com Helen Kreis, também membro do Talamasca, que morreu num acidente automobilístico em 1924. Ele pranteou a morte de Helen excessivamente e até com algum perigo para si mesmo durante dois anos.

Podemos nunca vir a saber o que houve entre ele e Stella Mayfair. Mas é possível fazer a conjectura de que ela foi o único outro amor da sua vida.

Gostaria, a esta altura, de acrescentar minha opinião pessoal no sentido de que Stuart Townsend nunca deveria ter sido enviado a Nova Orleans. Não era só por ele estar muito envolvido emocionalmente com Stella. Era que lhe faltava experiência naquele campo específicos

Durante seu noviciado, ele havia tratado de diversos tipos de fenômenos paranormais; e sem dúvida havia lido muito sobre o lado oculto em toda a sua vida. Ele examinou uma grande variedade de casos com outros membros da Ordem. E chegou a passar algum tempo com Arthur Langtry.

Na realidade, porém, ele não sabia nada sobre bruxas, em si. E á semelhança de tantos outros membros da nossa Ordem que só trataram de assombrações, possessões ou reencarnação, ele simplesmente não sabia do que as bruxas são capazes.

Ele não sabia que as manifestações mais fortes de entidades desencarnadas surgem através de bruxas mortais. Há mesmo algumas insinuações de que ele considerava o Talamasca arcaico e tolo por chamar de bruxas essas mulheres. E é muito provável que, apesar de aceitar as descrições do século XVII de Deborah Mayfair e da sua filha Charlotte, ele não conseguisse "associar" esse material a uma "boneca do jazz" do século XX, esperta e moderna como Stella, que parecia estar acenando para ele lá do outro lado do Atlântico com um sorriso e uma piscada de olho.

É claro que o Talamasca enfrenta uma certa incredulidade em todos os que trabalham recentemente no campo das bruxarias. O mesmo se aplica à investigação de vampiros.

Mais de um membro da Ordem precisou ver essas criaturas em ação para acreditar na sua existência. A solução para esse problema e, porém, a de introduzir nossos membros no trabalho de campo sob a orientação de pessoas experientes, e em casos que não envolvam contato direto.

Mandar um homem inexperiente como Townsend para entrar em contato com as Bruxas Mayfair é como mandar uma criancinha direto ao inferno para entrevistar o demônio. Em suma, Stuart Townsend partiu para Nova Orleans despreparado e sem precauções. Com todo o respeito pelos que comandavam a Ordem em 1929, não creio que uma coisa dessas acontecesse nos nossos dias.

Finalmente, permitam-me acrescentar que Stuart Townsend, ao que nos fosse dado saber, não possuía nenhum poder extraordinário. Ele não era um "paranormal", como costumam dizer. Não dispunha, portanto, de nenhuma arma extra-sensorial quando teve de enfrentar o inimigo, que ele nem percebia como seu inimigo.

O desaparecimento de Stuart foi comunicado à polícia de Nova Orleans em 25 de julho de 1929. Isso foi um mês inteiro após sua chegada á cidade. O Talamasca tentou entrar em contato com ele por telegrama e por telefone. Irwin Dandrich tentou em vão encontrá-lo. O St. Charles Hotel, do qual Stuart alegava ter escrito sua única carta de Nova Orleans, negava jamais ter registrado alguém com esse nome.

Nossos investigadores particulares não conseguiram descobrir nada que provasse que Townsend um dia havia chegado a Nova Orleans. E a polícia logo começou a duvidar dessa sua chegada.

No dia 28 de julho, as autoridades informaram aos nossos investigadores locais que não havia mais nada que pudessem fazer. Mesmo assim, sob forte pressão tanto por parte de Dandrich quanto por parte do Talamasca, a polícia concordou afinal em ir até a casa da família Mayfair e perguntar a Stella se ela havia visto o rapaz ou falado com ele. O Talamasca já não tinha mais esperanças a essa altura, mas Stella surpreendeu a todos, lembrando-se imediatamente de Stuart.

É, de fato, ela havia conhecido Stuart, o texano alto vindo da Inglaterra. Como poderia se esquecer de uma pessoa tão interessante? Eles haviam almoçado juntos, jantado juntos e passado a noite inteira conversando.

Não, ela não podia imaginar o que havia acontecido com ele. Na realidade, ela ficou de imediato visivelmente aflita com a possibilidade de ele ter sido vítima de algum crime.

É, ele estava hospedado no St. Charles Hotel. Ele mencionou o hotel para ela, e por que cargas d'água ele iria lhe mentir? Ela começou a chorar. Ah, ela esperava que nada lhe houvesse acontecido. Na verdade, ela ficou tão perturbada que a policia quase deu por terminada a entrevista. Ela, porém, os manteve ali fazendo-lhes perguntas. Eles haviam conversado com o pessoal do Court of Two Sisters?

Ela havia levado Stuart até lá, e ele havia gostado do lugar. Podia ser que ele tivesse voltado lá. E havia um bar clandestino em Bourbon Street onde eles haviam conversado na manhã do dia seguinte, depois que algum outro estabelecimento mais respeitável - lugar horrendo! - os havia mandado ir embora.

A polícia cobriu esses estabelecimentos. Todos conheciam Stella. É, era possível que Stella tivesse vindo ali com um homem. Stella estava sempre ali com algum homem.

Mas ninguém tinha uma lembrança específica de Stuart Townsend.

Outros hotéis da cidade foram investigados. Nenhum objeto de Stuart Townsend pôde ser encontrado. Motoristas de táxi foram inquiridos, mas com os mesmos resultados frustrantes.

Afinal, o Talamasca resolveu tomar as rédeas da investigação. Arthur Langtry zarpou de Londres para descobrir o que havia acontecido a Stuart. Ele sentia um peso na consciência por ter consentido que Stuart se encarregasse do caso sozinho.

 

CONTINUA A HISTÓRIA DE STELLA  - Relatório de Arthur Langtry

Arthur Langtry foi certamente uma dos investigadores mais capazes que o Talamasca jamais produziu. O estudo de algumas importantes "famílias de bruxas" foi o trabalho de toda a sua vida. A história da sua carreira de cinqüenta anos com o Talamasca é uma das histórias mais interessantes e espantosas contidas nos nossos arquivos, e os estudos minuciosos das famílias de bruxas às quais se dedicou estão entre os documentos mais valiosos que possuímos.

É uma enorme tristeza para aqueles de nós que sé preocuparam a vida inteira com as Bruxas Mayfair o fato de Langtry nunca ter podido devotar atenção prolongada à sua história. E nos anos que antecederam o envolvimento de Stuart Townsend, Langtry expressou seu pesar em relação a isso.

Langtry, no entanto, não devia desculpas a ninguém por não ter tempo nem vida suficiente para todas as famílias de bruxas nos nossos arquivos. Mesmo assim, quando Stuart Townsend desapareceu, Langtry se sentiu responsável, e nada poderia tê-lo impedido de viajar para a Louisiana em agosto de 1929. Como já foi mencionado, ele se culpava pelo desaparecimento de Stuart, por não ter se oposto à indicação do mesmo para a missão. E no fundo do coração ele sabia que Stuart não devia ter ido.

- Eu estava tão ansioso para que alguém fosse até lá - confessou ele antes de sair de Londres. - Eu estava tão ansioso para que alguma coisa acontecesse. E é claro que eu achava que não podia ir. E por isso, pensei, bem, talvez esse estranho rapaz texano consiga abrir uma brecha.

Langtry estava beirando os setenta e quatro anos de idade naquela época. Era homem alto, com os cabelos cinza-chumbo, rosto retangular e olhos fundos. Tinha uma voz extremamente agradável e perfeita educação. Sofria das costumeiras enfermidades da velhice, mas, levando-se tudo em consideração, gozava de boa saúde.

Durante seus anos de serviço, ele havia visto de "tudo". Era um médium poderoso; e não sentia absolutamente nenhum medo quando se tratava de alguma manifestação do sobrenatural. No entanto, nunca foi descuidado ou imprudente. Ele nunca subestimou nenhum tipo de fenômeno. Era, como suas próprias investigações demonstram, extremamente confiante e forte.

Assim que soube do desaparecimento de Stuart, ele se convenceu de que o rapaz estava morto. Com uma rápida leitura do material sobre a família Mayfair, ele percebeu o erro que a Ordem havia cometido.

Langtry chegou a Nova Orleans no dia 28 de agosto de 1929, registrando-se imediatamente no St. Charles Hotel e enviando uma carta para casa como Stuart havia feito. Ele deu o nome, o endereço e o número do seu telefone em Londres para algumas pessoas na recepção do hotel para que mais tarde não houvesse dúvidas quanto à sua presença ali. Ele deu um telefonema internacional para a casa- matriz, do seu quarto, informando o número do quarto e mais alguns detalhes sobre sua chegada.

Depois, ele foi se encontrar com um dos nossos investigadores, o mais competente dos detetives particulares, no bar do hotel, mandando cobrar a despesa na conta do quarto.

Pôde confirmar pessoalmente tudo o que a Ordem já sabia. Foi também informado que Stella não queria mais cooperar com as investigações, no pé em que estavam. Insistindo em que não sabia de nada e não podia ser de ajuda, ela afinal perdeu a paciência e se recusou a voltar a falar com os investigadores.

"Quando me despedi desse senhor", escreveu Langtry no seu relatório, "eu já tinha certeza de estar sendo vigiado. Não era mais do que uma sensação, mas uma sensação profunda. Também pressenti que isso estava associado ao desaparecimento de Stuart, embora eu mesmo não houvesse feito nenhuma pergunta acerca de Stuart para ninguém no hotel. A essa altura, senti uma forte tentação de percorrer as instalações, procurando detectar alguma indicação latente da presença de Stuart num ou noutro quarto. Mas era minha profunda convicção a de que Stuart não havia sofrido nada neste hotel. Pelo contrário, as pessoas que estavam me vigiando, na verdade, anotando todos os meus movimentos e atos, só o faziam porque alguém lhes havia pago para tal. Resolvi entrar em contato com Stella Mayfair imediatamente."

Langtry ligou para Stella do seu quarto. Embora já passasse das quatro horas, era óbvio que ela acabava de acordar ao atender seu telefone particular. Só com muita relutância ela permitiu que se falasse novamente no assunto. E logo ficou evidente que era genuína sua irritação.

- Olhe, não sei o que aconteceu a ele! - disse ela, começando a chorar. - Eu gostei dele.

Gostei mesmo. Era um homem tão estranho. Nós fomos para a cama, sabia?

Langtry não conseguiu pensar em nada que pudesse dizer diante de uma confissão tão franca. Mesmo a voz de Stella sem a presença do corpo tinha algo de encantador. E Langtry se convenceu de que suas lágrimas eram sinceras.

- Bem, fomos mesmo - continuou ela, impávida. - Levei-o a algum lugarzinho horrível no Quarter. Contei isso para a polícia. Seja como for, gostei dele muito mesmo! Disse-lhe para não se aproximar desta família. Eu o avisei! Suas idéias sobre as coisas eram estranhíssimas. Ele não sabia de nada. Disse-lhe que fosse embora. Talvez ele tenha ido mesmo. Foi isso o que pensei que houvesse acontecido, sabe, que ele simplesmente havia seguido meu conselho e ido embora.

Langtry implorou a Stella que ó ajudasse a descobrir o que havia acontecido. Explicou que era uma das pessoas que trabalhavam com Townsend, e que se conheciam profundamente.

- Trabalhou com ele? O senhor quer dizer que pertence aquele grupo. - Pertenço, se está falando do Talamasca...

- Psiu, preste atenção. Seja quem for, o senhor pode vir até aqui se quiser. Mas terá de ser amanhã á noite. É que vou dar uma festa, entende? O senhor pode simplesmente ser mais um convidado. Se alguém lhe perguntar quem o senhor é, o que é pouco provável, basta dizer que Stella o convidou. Peça para falar comigo. Mas, pelo amor de Deus, não diga nada a respeito de Townsend e não pronuncie o nome do seu... sei lá como se chama...

- Talamasca...

- Isso! Por favor, ouça o que estou lhe dizendo. Haverá centenas de pessoas aqui, desde gente de fraque até esmolambados, sabe, e seja discreto. Basta que se aproxime de mim e, ao me beijar, sussurre seu nome no meu ouvido. Como é mesmo seu nome?

- Langtry. Arthur.

- Hum, hum. Certo. É bem simples para eu me lembrar, não é? Agora, tenha muito cuidado. Não posso falar mais. Posso contar com a sua presença? Olhe, o senhor precisa vir!

Langtry afirmou que nada o impediria de comparecer. Perguntou-lhe se ela se lembrava da fotografia na qual havia escrito "Para o Talamasca, com amor, Stella! P.S. Há outros que observam, também."

- É claro que eu me lembro. Olhe, não posso falar sobre isso neste instante. Escrevi aquele recado há muitos e muitos anos. Minha mãe estava viva na época. Olhe, não dá para imaginar como as coisas estão péssimas para mim agora. Nunca estive numa situação pior. E não sei o que aconteceu a Stuart. Realmente não sei. Por favor, não deixe de vir amanhã á noite.

- Claro que irei - respondeu Langtry, esforçando-se em silencio para determinar se estava sendo atraído para alguma cilada ou não. - Mas por que precisamos ser tão cautelosos sobre tudo isso? Não vejo...

- Querido, ouça o que lhe digo - insistiu ela, abaixando a voz. - Tudo bem com essa sua organização, sua biblioteca e suas maravilhosas investigações de fenômenos paranormais. Mas não seja tolo. Nosso mundo não é um mundo de sessões espíritas, mediunidade e parentes mortos nos dizendo para procurar entre as páginas da Bíblia a escritura da propriedade da rua tal, ou coisa semelhante. Quanto aquela bobagem de vodu, aquilo foi só uma brincadeira. E por sinal, não temos nenhum antepassado escocês. Éramos todos franceses. Meu tio Julien inventou uma história de um castelo escocês que ele comprou quando foi à Europa. Por isso, por favor esqueça tudo isso. Mas há outras coisas que posso lhe contar! E é essa a questão. Venha cedo. Chegue por volta das oito, está bem? Mas seja pelo motivo que for, não seja o primeiro a chegar. Agora preciso desligar. Não pode imaginar como tudo está horrível agora. Vou lhe dizer francamente, nunca pedi para nascer nesta família de loucos! Verdade! Amanhã á noite serão trezentos os convidados, e eu não tenho um único amigo neste mundo. Ela desligou.

Langtry, que havia taquigrafado a conversa inteira, copiou-a imediatamente de próprio punho, com uma cópia em carbono, que remeteu para Londres, indo diretamente ao correio para fazê-lo já que não mais confiava na situação no hotel.

Em seguida, foi alugar um fraque e uma camisa de peitilho engomado para a festa da noite seguinte.

"Estou inteiramente confuso", ele havia escrito na carta. "Eu tinha certeza de ela estar envolvida no desaparecimento de Stuart. Agora não sei o que pensar. Ela não estava mentindo para mim, disso tenho certeza. Mas por que sente tanto medo? É claro que não posso fazer uma avaliação inteligente da sua pessoa antes de conhecê-la."

No final daquela tarde, ele ligou para Irwin Dandrich, o espião pago da alta sociedade, convidando-o para jantar num restaurante da moda no French Quarter, a alguns quarteirões do hotel.

Embora Dandrich não tivesse nada a dizer com relação ao desaparecimento de Townsend, ele pareceu apreciar muito a refeição, tagarelando sem parar sobre Stella. Dizia-se que Stella estava se acabando.

- Não se pode beber mais de um quarto de litro de conhaque francês por dia e querer viver para sempre- disse Dandrich, com gestos de tédio e escárnio, como se quisesse sugerir que o assunto fosse enfadonho, quando na verdade ele o adorava. - E o seu caso com Pierce Mayfair é revoltante. Ora, o menino acabou de fazer dezoito anos. Realmente é uma tamanha idiotice de Stella agir assim! Ora, Cortland era seu principal aliado contra Carlotta, e agora ela foi e seduziu o filho predileto de Cortland!

Acho que Barclay e Garland também não aprovam muito essa situação. E só Deus sabe qual é a posição de Lionel. Lionel é um monomaníaco, e o nome da sua monomania é Stella, é claro.

E Dandrich iria á festa?

- Eu não a perderia por nada neste mundo. Sem dúvida vai ser um espetáculo interessante. Stella proibiu Carlotta de tirar Antha da casa durante essas reuniões. Carlotta está bufando. Ameaçou chamar a polícia se os desordeiros não se comportarem.

- Como é Carlotta? - perguntou Langtry.

- Ela é Mary Beth com vinagre nas veias, em vez de vinhos finos. Tem uma inteligência brilhante, mas sem imaginação. É rica, mas não existe nada que ela queira mesmo.

É cansativamente prática, meticulosa e trabalhadeira. Enfim, uma chata insuportável. É claro que ela cuida de absolutamente tudo. Millie Dear, Belle, a pequena Nancy e Antha. E eles têm uns dois criados antigos lá que nem sabem mais quem são ou o que estão fazendo aqui. Carlotta cuida deles como de todos os outros. Stella só pode culpar a si mesma por isso tudo. Foi ela quem sempre deixou Carlotta contratar e dispensar, fazer os cheques e gritar. E agora então, com Lionel e Cortland se voltando contra ela, bem, o que ela pode fazer? Não, eu não perderia essa festa, se eu fosse você. Pode ser a última por um bom tempo.

Langtry passou o dia seguinte explorando os bares clandestinos e o pequeno hotel do French Quarter (uma espelunca) onde Stella havia levado Stuart. Ele era perseguido constantemente pela forte sensação de que Stuart havia mesmo estado naqueles lugares, que o relato de Stella das suas perambulações era a pura verdade.

As sete da noite, vestido e pronto para a noite, ele escreveu mais uma brevíssima carta para a casa-matriz, que enviou da agência dos correios em Lafayette Square, já a caminho da festa.

Quanto mais penso na nossa conversa ao telefone, mais fico preocupado. Do que essa mulher tem tanto medo? Considero difícil acreditar que sua irmã Carlotta possa lhe fazer algum mal. Por que ninguém contrata uma babá para a criança atormentada? Digo- lhe que me sinto como se estivesse sendo atraído descontroladamente pela situação. Sem dúvida era assim que Stuart se sentia.

Langtry pediu ao táxi que o deixasse na esquina de Jackson e Chestnut para que ele pudesse caminhar os dois últimos quarteirões até a casa, chegando pelos fundos.

As ruas estavam totalmente tomadas de automóveis. As pessoas se amontoavam entrando pelo portão dos fundos do jardim, e todas as janelas da casa estavam iluminadas. Eu ouvia os berros agudos do saxofone, muito antes de chegar à escada da entrada. Não havia ninguém á porta da frente, ao que eu pudesse perceber. Eu simplesmente entrei, abrindo caminho em meio a um verdadeiro congestionamento de jovens no corredor. Todos fumavam, riam e se cumprimentavam, sem nem notar minha presença.

A festa realmente admitiu qualquer tipo de traje, exatamente como Stella havia prometido. Havia até mesmo uma boa quantidade de gente idosa ali. E Langtry se sentia num confortável anonimato quando se dirigia ao bar na sala de estar, onde lhe serviram champanhe de excelente qualidade.

A cada minuto, chegava mais gente. Uma multidão dançava na parte frontal do salão. Na verdade, havia tanta gente por todos os cantos, tagarelando, rindo e bebendo numa espessa nuvem azulada da fumaça dos cigarros, que eu mal pude ter uma impressão razoável da mobília do aposento. Luxuosa, suponho, e bastante parecida com a do salão de um grande navio, com seus vasos de palmeirinhas, seus torturados lustres em estilo artdéco e suas cadeiras delicadas, vagamente helênicas. A banda, instalada na varanda lateral, logo atrás de duas portas-janelas, era ensurdecedora.

Eu não podia imaginar como as pessoas chegavam a conversar com o barulho. Eu próprio não conseguia sequer manter a coerência do raciocínio.

Eu estava a ponto de me afastar daquilo tudo quando meus olhos foram atraídos pelos casais que dançavam diante das janelas da frente, e logo percebi que estava olhando direto para Stella: uma mulher muito mais teatral do que qualquer retrato seu conseguiria ser. Ela estava usando seda dourada, um vestidinho de nada, pouco mais do que uma combinação, aparentemente com camadas de franjas, e que mal lhe cobria os joelhos bem- feitos. Minúsculas lantejoulas douradas cobriam suas meias finas, bem como o próprio vestido, e havia uma faixa de cetim dourado com flores amarelas nos seus cabelos negros, curtos e ondulados. Nos pulsos, ela usava delicadas pulseiras de ouro, e no pescoço, a esmeralda Mayfair, absurdamente antiquada, no entanto deslumbrante na sua velha filigrana, pousada no colo nu.

Uma mulher-criança, ela parecia. Esguia, sem seios, e no entanto perfeitamente feminina,  com os lábios pintados de um vermelho ousado e os enormes olhos negros cintilando como pedras preciosas enquanto ela recebia o olhar de adoração de todos, sem nunca perder o ritmo da dança. Seus pequenos pés em frágeis sapatos de salto alto batiam impiedosamente no assoalho encerado e, jogando a cabeça para trás, ela ria deliciada, dando uma pequena volta, a requebrar os ínfimos quadris, com os braços totalmente abertos.

“E isso aí, Stella!” urrou alguém; e um outro, "Isso mesmo, Stella!" E tudo isso sem sair do ritmo, se é que se pode imaginar. E Stella conseguia dar uma atenção carinhosa aos seus adoradores e, ao mesmo tempo, se entregar totalmente á dança, com o corpo flexível e delicado.

Se eu um dia cheguei a ver uma pessoa que apreciasse a música e a atenção com um abandono tão inocente, naquela hora não me lembrei, como não me lembro agora. Não havia nada de cinismo ou de vaidade na sua exibição. Pelo contrário, ela dava a impressão de estar muito acima dessas idiotices egoístas e de pertencer tanto aos que a admiravam quanto a si mesma.

Já seu parceiro, só o vi mais tarde, embora, em qualquer outra circunstância, eu o houvesse notado imediatamente, dado que ele era muito jovem e no fundo notavelmente parecido com ela, a mesma pele clara, os mesmos olhos e cabelos negros. Mas ele era pouco mais do que um menino. Seu rosto ainda tinha uma pureza de porcelana, e sua altura parecia estar levando vantagem sobre seu peso.

Ele explodia com a mesma vitalidade despreocupada de Stella. E quando a música terminou, ela jogou as mãos para o alto e se deixou cair, com total confiança, direto de costas para os braços que a esperavam. Ele a abraçou com uma intimidade escandalosa, deslizando as mãos pelo seu torso de menino e depois a beijando carinhosamente na boca. No entanto, isso foi feito sem nada de teatral. Na verdade, creio que ele não via mais ninguém no mundo a não ser ela.

As pessoas fecharam o círculo ao seu redor. Alguém derramava champanhe na boca de Stella enquanto ela como que se pendurava no rapaz, e a música voltava a tocar. Outros casais, todos muito modernos e alegres, começaram a dançar.

Essa não era uma boa hora para abordá-la, raciocinei. Eram só oito e dez, e eu queria tirar alguns momentos para dar uma olhada na casa. Além disso, fiquei temporariamente desconcertado com sua presença. Uma enorme lacuna havia sido preenchida. Tive certeza de que ela não havia feito nenhum mal a Stuart. E assim, ouvindo seu riso ainda mais alto do que a nova investida da banda, retomei minha caminhada na direção das portas do salão.

Permitam-me dizer aqui que essa casa é provida de um corredor extraordinariamente longo e de uma escada bem longa e reta. Eu calcularia que ela deve ter uns trinta degraus. (São na verdade vinte e sete.) O segundo andar parecia estar inteiramente às escuras, e a escada estava deserta, embora dezenas de pessoas passassem acotovelando-se por ela na direção de uma sala feericamente iluminada no final do corredor do térreo.

Eu pretendia seguir seu exemplo, e assim fazer uma pequena exploração do local; mas, quando toquei o balaústre do pé da escada, vi alguém lá em cima. Percebi subitamente que se tratava de Stuart. Meu choque foi tal que quase gritei seu nome. Foi quando notei que havia nele algo de muito errado.

Ele me parecia absolutamente real, isso vocês precisam entender. Na verdade, o jeito que a luz o atingia, vindo de baixo, não podia ser mais realista. No entanto, sua expressão me alertou imediatamente para o fato de eu estar vendo algo que não podia ser real. Pois, embora ele olhasse direto para mim e fosse óbvio que estava me reconhecendo, não havia no seu rosto nenhuma expressão de urgência, apenas uma tristeza profunda, uma dor imensa e extenuada.

Ele pareceu se demorar até se certificar de que eu o havia visto, e então abanou a cabeça, numa proibição exausta. Ele então ergueu a mão direita e fez um gesto nítido para que eu fosse embora.

Não ousei me mexer. Permaneci totalmente calmo, como sempre faço nesses momentos, resistindo ao inevitável delírio, concentrando-me no barulho, na pressão da multidão, até mesmo nos gritos agudos da música. E com muito cuidado gravei o que estava vendo. Suas roupas estavam sujas e desarrumadas. O lado direito do seu rosto estava machucado ou pelo menos desbotado.

Afinal, cheguei ao pé da escada e comecei a subir. Só então o fantasma despertou da sua aparente lassidão. Mais uma vez, ele abanou a cabeça e gesticulou para que eu fosse embora.

- Stuart - sussurrei. - Fale comigo, homem, se puder!

Continuei a subir, com os olhos fixos nele, enquanto sua expressão demonstrava pavor cada vez maior. Vi que ele estava coberto de poeira; que seu corpo, mesmo enquanto ele me encarava, demonstrava os primeiros sinais de apodrecimento. Pior, eu sentia o cheiro! E então aconteceu o inevitável. A imagem começou a se apagar. Implorei desesperadamente que não se fosse. Mas a figura escureceu, e de dentro dela, sem a menor consciência da sua presença, saiu uma mulher de carne e osso, de extraordinária beleza, que veio descendo a escada na minha direção e passou por mim, numa lufada de seda cor de pêssego e de jóias a tilintar, trazendo com ela uma nuvem de perfume adocicado.

Stuart não estava mais ali. O cheiro de carne em decomposição desapareceu. A mulher pediu desculpas baixinho ao passar por mim. Parecia que ela estava gritando para uma quantidade de pessoas no saguão lá embaixo.

Ela se voltou, então, e enquanto eu estava ali parado olhando lá para cima, totalmente esquecido dela, e com os olhos perdidos em nada a não ser nas sombras, senti sua mão agarrar meu braço.

- Ei, a festa é aqui embaixo - disse ela, dando- me um pequeno puxão.

- Estou procurando o banheiro - disse eu, pois naquele instante não pude pensar em nenhum outro motivo.

- Fica aqui embaixo, querido. Logo ali na biblioteca. Vou lhe mostrar onde é, bem atrás da escada.

Acompanhei-a desajeitado escada abaixo, demos a volta e entramos num aposento muito amplo porém pouco iluminado, voltado para o norte.Era a biblioteca, sim, sem nenhuma dúvida, com estantes que alcançavam o teto, mobília de couro escuro e apenas uma luz acesa, num canto distante da porta, ao lado de uma cortina vermelho sangue. Um imenso espelho escuro estava suspenso acima da lareira de mármore,  refletindo a luz do abajur como se fosse uma luz de santuário.

- É aqui - disse ela, indicando uma porta fechada e saindo rapidamente. Eu de repente percebi um homem e uma mulher, abraçados no sofá de couro, que se levantaram e se apressaram a sair. A festa, com sua alegria constante, parecia evitar esse aposento. Tudo aqui era poeira e silêncio. Dava para se sentir o cheiro do couro e do papel se desfazendo em pó. E eu senti imenso alívio por estar só.

Joguei-me na poltrona bergere diante da lareira, de costas para a multidão que passava pelo corredor, olhando para o seu reflexo no espelho, sentindo-me temporariamente em total segurança e rezando para que mais nenhum casal de namorados procurasse o abrigo dessas sombras.

Apanhei meu lenço e limpei o rosto. Eu suava terrivelmente e me esforçava para lembrar cada detalhe do que havia visto.

Agora, vocês sabem que todos nós temos nossas teorias acerca de assombrações: quanto ao motivo pelo qual assumem essa ou aquela aparência, ou por que fazem o que fazem. E é provável que as minhas não estejam de acordo com as de mais ninguém. Mas, sentado ali, eu tinha certeza de um ponto. Stuart havia optado por me aparecer num estado desarrumado e em decomposição por uma razão muito especial - seus restos estavam nessa casa! Mesmo assim, ele estava me implorando que fosse embora! Ele estava me avisando para sair.

Seria esse aviso para o Talamasca como um todo? Ou apenas para Arthur Langtry? Fiquei meditando, sentindo minha pulsação voltar ao normal e sentindo, como sempre acontece depois de experiências dessa natureza, uma onda de adrenalina, uma disposição a descobrir tudo o que está por trás do leve bruxuleio do sobrenatural que eu acabava de vislumbrar.

Eu estava também furioso, de uma forma profunda e rancorosa, com a pessoa ou a coisa que havia terminado com a vida de Stuart.

O que fazer a seguir era a pergunta crucial. É claro que eu devia falar com Stella. Mas até onde eu poderia explorar essa casa antes de me apresentar a ela? E o aviso de Stuart? Exatamente qual era o perigo para o qual eu devia estar preparado?

Estava considerando tudo isso, sem perceber nenhuma mudança na confusão no corredor ás minhas costas, quando de repente fui dominado pela impressão de que algo no meu ambiente imediato havia passado por uma mudança radical e significativa. Ergui os olhos lentamente. Havia no espelho o reflexo de alguém, aparentemente de uma figura solitária. Sobressaltado, olhei para trás por cima do ombro. Não havia ninguém ali. Voltei, então, ao espelho fosco, sombrio.

Um homem olhava cá para fora, da região incorpórea por trás do vidro. E, enquanto eu o examinava, com a adrenalina subindo e meus sentidos se aguçando, sua imagem foi ficando mais clara e brilhante, até que ele apresentou a aparência nítida e inquestionável de um rapaz de pele clara e olhos de um castanho escuro, que me encarava aqui embaixo com raiva e maldade inconfundíveis.

Afinal, a imagem atingiu sua força plena. E era tão cheia de vitalidade que parecia que um homem mortal havia se introduzido em algum aposento por trás do espelho e, tendo retirado o vidro, me espiava de dentro de uma moldura vazia.

Nunca em todos os meus anos no Talamasca eu havia visto uma assombração tão perfeita. O homem parecia ter talvez uns trinta anos de idade. Sua pele era deliberadamente impecável, embora meticulosamente colorida, com um rubor nas faces e um ligeiro empalidecimento nas olheiras. Seu traje era extremamente antiquado, com uma gola branca virada para cima e uma bela gravata de seda. Quanto ao cabelo, ele era ondulado e levemente despenteado, como se o homem tivesse acabado de passar os dedos por ele. A boca parecia carnuda, jovem e um pouco avermelhada. Dava para eu ver as linhas finíssimas nos lábios. Na verdade, eu via a ínfima sombra de uma barba recém-feita no seu queixo.

No entanto, o efeito era horrendo, porque não se tratava de ser humano, pintura ou reflexo; mas de algo infinitamente mais brilhante do que qualquer um desses e, apesar disso, de algo silenciosamente vivo.

Os olhos castanhos estavam cheios de ódio e, enquanto eu observava a criatura, sua boca sofreu um tremor levíssimo de raiva e, afinal, de fúria.

Bem devagar e deliberadamente, levei meu lenço á boca.

- Você matou meu amigo, espírito? - sussurrei. Raras vezes eu me senti tão estimulado, tão preparado para o confronto. - E então, espírito? - Perguntei novamente.

Vi que ele se enfraquecia. Vi que perdia sua solidez, na verdade, sua própria animação. O rosto, modelado com tanta beleza e exprimindo tanta emoção negativa, ia aos poucos perdendo a expressão.

- Não vai se livrar de mim assim tão facilmente, espírito - disse entre dentes. – Agora temos duas contas a acertar, ou não temos! Petyr van Abel e Stuart Townsend, concordamos quanto a esse ponto?

A ilusão pareceu incapaz de me responder. E de súbito o espelho estremeceu por inteiro, voltando a ser apenas um vidro escuro quando a porta do corredor se fechou com violência.

Ouvi passos no chão nu para lá da borda do tapete chinês. O espelho estava decididamente vazio, refletindo nada mais do que mobília e livros.

Voltei-me e vi uma mulher jovem que avançava pelo tapete, com os olhos fixos no espelho e toda a sua expressão revelando raiva, confusão, aflição. Era Stella. Ela parou diante do espelho, de costas para mim, examinando-o e depois se voltou.

- Bem, você pode descreve r isso para seus amigos de Londres, certo? - Ela parecia estar à beira da histeria. - Pode lhes contar o que viu!

Percebi que seu corpo todo tremia. O leve vestido dourado com suas fileiras de franjas tremia. E, ansiosa, ela agarrou a esmeralda monstruosa junto á garganta.

Esforcei-me para me levantar, mas ela me disse que ficasse sentado e imediatamente ocupou um lugar no sofá à minha esquerda, com a mão firme no meu joelho. Ela se aproximou muito de mim, tão perto que eu pude ver a máscara nos seus cílios longos e o pó no seu rosto. Ela era como uma enorme boneca a me olhar, uma deusa do cinema, nua na sua seda transparente.

- Ouça, pode me levar daqui? Para a Inglaterra, para essas pessoas, esse Talamasca? Stuart disse que poderia!

- Você me diz o que aconteceu com Stuart, e eu a levo para onde você quiser.

- Eu não sei! - disse ela, e seus olhos logo se encheram de lágrimas. - Olhe, preciso ir embora. Eu não fiz nada contra ele. Não faço esse tipo de coisa com as pessoas. Nunca fiz! Meu Deus, o senhor não está acreditando em mim? Não tem condição de saber que estou dizendo a verdade?

- Está bem. O que quer que eu faça?

- Basta que me ajude! Leve-me para a Inglaterra. Olhe, tenho passaporte, tenho bastante dinheiro... -A essa altura, ela se interrompeu, abriu uma gaveta na mesa de canto do sofá e tirou dela um verdadeiro maço de notas de vinte dólares. - Pronto. Pode comprar as passagens. Vou me encontrar com o senhor. Hoje á noite.

Antes que eu pudesse responder, ela ergueu os olhos, sobressaltada. A porta se abriu e por ela entrou o rapaz com quem ela estivera dançando antes, muito afogueado e cheio de preocupação.

- Stella, estive procurando por você...

- Ora, querido, já vou - disse ela, levantando-se de imediato e me lançando, por cima do ombro, um olhar significativo. - Agora volte lá fora e apanhe uma bebida para mim, querido. - Ela ajeitou sua gravata enquanto falava com ele e depois fez com que se virasse, com pequenos gestos rápidos que de fato o empurraram na direção. da porta.

O rapaz demonstrava muita suspeita, mas tinha evidentemente boas maneiras. Fez o que ela disse que fizesse. Assim que fechou a porta, ela voltou para perto de mim. Estava ruborizada, quase febril e absolutamente convincente. Na verdade, minha impressão dela era a de que ela era uma pessoa algo inocente, que acreditava em todo o otimismo e rebeldia dos 'filhos do jazz'. Ela parecia autêntica, se é que me entendem.

- Vá para a estação - implorou- me. - Compre as passagens. Vou me encontrar com o senhor no trem.

- Mas que trem? De que horário?

- Não sei que trem! - Ela torcia as mãos. - Não sei que horário! Preciso ir embora. Olhe, vou com o senhor.

- Esse me parece um plano melhor. Você poderia esperar por mim no táxi enquanto eu apanho minhas coisas no hotel.

- É, é uma idéia excelente! - sussurrou. - E sairemos daqui no primeiro trem que estiver partindo. Sempre podemos mudar nossa passagem mais adiante.

- E ele?

- Que ele? - perguntou, irritada. - Está falando de Pierce? Pierce não vai causar nenhum problema! Pierce é um amor de criatura. Posso me encarregar de Pierce.

- Você sabe que não estou falando de Pierce - disse eu. - Estou falando do homem que vi há alguns instantes no espelho, o homem que você forçou a desaparecer.

Ela parecia totalmente desesperada. Era um animal acuado, mas não creio que fosse eu que a estivesse acuando. Eu não conseguia compreender.

- Olhe, eu não fiz com que ele desaparecesse - disse ela, entre dentes. - Foi o senhor! – Ela fez um esforço consciente para se acalmar, pousando a mão por um momento no peito arquejante. - Ele não nos impedirá - prosseguiu. - Por favor, acredite no que lhe digo.

Nesse instante, Pierce voltou, abrindo a porta mais uma vez e deixando entrar a imensa cacofonia lá de fora. Grata, ela tomou da mão dele a taça de champanhe e bebeu metade de um gole.

-Vou conversar com você daqui a pouco - disse-me ela com uma doçura afetada. - Daqui a um pouquinho. Você vai estar bem aqui, não vai? Não, por sinal, por que não toma um pouco de ar fresco? Vá lá para a varanda da frente, querido, e eu vou conversar com você lá.

Pierce sabia que ela estava tramando alguma coisa. Ele olhou de mim para ela, mas era óbvio que se sentia totalmente incapaz de fazer qualquer coisa. Ela o pegou pelo braço e o levou consigo adiante de mim. Olhei para o tapete de relance. As notas de vinte dólares haviam caído e estavam espalhadas por toda parte. Eu as recolhi, apressado, pondo-as de volta na gaveta, e saí para o corredor.

Bem em frente à porta da biblioteca, vislumbrei um retrato de Julien Mayfair, uma tela muito bem pintada em óleos pesados e escuros ao estilo de Rembrandt. Desejei ter tempo para poder apreciá-lo.

Mas saí rápido de trás da escada e comecei a abrir caminho com a maior delicadeza possível na direção da porta da frente.

Três minutos deviam ter se passado, e eu só havia conseguido chegar a balaústre do pé da escada, quando vi o homem novamente, ou achei que o vi por um terrível instante, o homem de cabelos castanhos que eu havia visto n espelho. Dessa vez, ele me fitava por cima do ombro de alguém, parado no canto da frente do corredor.

Tentei discerni-lo mais uma vez, mas não consegui. As pessoas fazias pressão contra mim como se tivessem a intenção, que é claro que não tinham, d impedir meu avanço.

Percebi, então, que alguém à minha frente estava apontando para a escada Eu agora já havia passado dela e me encontrava a uns dois metros da porta. Voltei-me e vi uma criança no patamar, uma menininha loura muito bonita. Ser dúvida era Antha, embora me parecesse bem pequena para ter oito anos. Estava descalça e usava uma camisola de flanela. Estava chorando e olhava por cima d balaustrada para o salão da frente.

Eu também me voltei e olhei para o salão da frente, momento no qual alguém sufocou um grito e a multidão se abriu, com as pessoas ficando à direita e à esquerda da porta, aparentando medo. Um homem ruivo estava parado no portal, um pouco à minha esquerda, voltado para o salão. E enquanto eu olhava com horror e repulsa,  ele levantou uma pistola com sua mão direita e atirou. O estrondo ensurdecedor fez tremer a casa. Seguiu-se o pânico. Encheu-se o ar de berros. Alguém havia caído junto à porta da frente, e os outros simplesmente pisoteavam o pobre coitado. Algumas pessoas procuravam escapar voltando para o saguão.

Vi Stella caída no chão, no meio do salão da frente. Estava deitada de costa: coma cabeça virada para o lado, com os olhos fixos no saguão. Corri para lá, mas não a tempo de impedir o homem ruivo de ficar parado junto a ela e atirar novamente Seu corpo teve espasmos quando o sangue jorrou do lado da sua cabeça.

Agarrei o braço do filho da mãe, e ele atirou novamente quando minha ma apertou seu pulso. Essa bala, no entanto, não acertou nela e atravessou o pise Parecia que os gritos se redobravam. Vidros se quebravam. Na realidade, a janelas estavam se espatifando. Alguém tentou pegar o homem por trás, e eu nem sei como tirei a arma da sua mão, embora estivesse acidentalmente pisando em Stella, tropeçando de fato nos seus pés.

Caí de joelhos com a arma e depois a empurrei com determinação para outro lado do chão da sala. O assassino lutava agora em vão com uma meia dúzia de homens. Estilhaços de vidro das janelas caíam sobre todos nós. Vi que ele caiam como chuva sobre Stella. O sangue escorria do seu pescoço e sujava esmeralda Mayfair que estava jogada de lado no seu colo.

A primeira coisa que percebi foi uma trovoada monstruosa que superou o berros e gritos ensurdecedores vindos de todos os cantos. E senti que a chuva entrava em rajadas. Depois eu a ouvi caindo em todas as varandas ao redor. Em seguida, as luzes se apagaram. Relâmpagos repetidos me permitiram ver os homens arrastando o assassino para fora da sala. Uma mulher se ajoelhou ao lado de Stella, ergueu seu pulso sem vida e deu um grito agonizante.

Quanto à criança, ela havia entrado na sala e estava parada, descalça, olhando fixamente para a mãe. E então também ela começou a berrar. Sua voz se erguia aguda e penetrante acima das outras. 'Mamãe, mamãe, mamãe', como se a cada repetição sua percepção do ocorrido aprofundasse seu desamparo.

- Alguém leve a criança daqui! - exclamei. E de fato outras pessoas haviam se reunido em volta dela e tentavam afastá-la dali. Saí da frente, apenas me pondo em pé quando cheguei à janela que dava para a varanda lateral. A luz de mais um relâmpago, vi alguém apanhar a arma, que foi entregue a uma outra pessoa, que a passou a ainda uma outra, que a segurou como se ela estivesse viva. As impressões digitais não tinham mais nenhuma importância, se é que em algum momento tiveram, e havia inúmeras testemunhas. Não havia nenhum motivo para eu não ir embora enquanto podia. Voltando-me, saí para a varanda lateral e enfrentei o aguaceiro ao pisar no gramado.

Dezenas de pessoas estavam ali abraçadas. As mulheres, chorando; os homens, fazendo o possível para proteger as cabeças femininas com seus paletós. Todos, encharcados, trêmulos e perplexos. A luz tremeluziu por um segundo, mas um outro relâmpago violento assinalou a interrupção do serviço. Quando uma janela do andar superior estourou de repente numa chuva de estilhaços cintilantes, o pânico mais uma vez dominou a todos.

Corri na direção dos fundos da propriedade, pretendendo sair por ali sem ser observado. Isso implicou uma pequena corrida pelo caminho de lajes, a subida de dois degraus até o pátio ao redor da piscina e dali pude ver a alameda lateral até o portão esmo. Com a chuva pesada, pude ver que ele estava aberto e vi, para além dele, as pedras reluzentes da pavimentação da rua. Os trovões reverberavam acima dos telhados, e num instante um relâmpago iluminou apavorante todo o jardim, com suas balaustradas e altas camélias, com suas toalhas jogadas sobre o esqueleto de inúmeras cadeiras de ferro pretos Tudo era açoitado irremediavelmente pelo vento.

De repente, ouvi sirenes. E, quando me apressava a chegar à calçada, vislumbrei um homem parado imóvel, como que rígido, numa grande moita de bananeiras ao lado do portão.

Ao me aproximar, olhei para a direita, direto no rosto do homem. Era o espírito, mais uma vez visível aos meus olhos, embora por que motivo juro que não faço a menor idéia. Meu coração se acelerou perigosamente, e eu senti uma tontura momentânea e uma contração das têmporas como se a circulação do meu sangue estivesse sendo bloqueada.

Ele me apresentou a mesma figura de antes. Vi o inconfundível brilho do cabelo e dos olhos castanhos bem como os trajes escuros, que não chamavam a atenção, a não ser pela sua formalidade e por uma certa indefinição do conjunto. No entanto, gotas de chuva brilhavam ao tocar nos seus ombros e lapelas. Também brilhavam no seu cabelo.

Foi, porém, o rosto da criatura que me deixou fascinado. Estava monstruosamente transformado pela dor; e suas faces, molhadas com um pranto mudo enquanto ele me encarava nos olhos.

- Por Deus, fale se puder-disse eu. Praticamente as mesmas palavras que havia dito ao desesperado espírito de Stuart. E eu estava tão descontrolado por tudo que havia visto que investi contra ele, procurando agarrá-lo pelos ombros e fazer o possível para que me respondesse.

Ele desapareceu. Só que dessa vez eu o senti sumir. Senti o calor e o súbito movimento no ar. Foi como se alguma coisa tivesse sido aspirada dali, e as bananeiras balançaram com violência. Mas também o vento e a chuva as estavam castigando. De repente, eu não sabia o que havia visto, ou o que havia sentido. Meu coração saltava perigosamente. Senti mais um acesso de tontura. Hora de sair dali.

Fui apressado por Chestnut Street, passando por dezenas de indivíduos que vagueavam, estarrecidos, a chorar, e desci por Jackson Avenue já fora do alcance do vento e da chuva, entrando num trecho bastante claro e ameno, em que o trânsito seguia tranqüilo, aparentemente sem o menor conhecimento do que havia acontecido a apenas alguns quarteirões dali. Em questão de segundos, tomei um táxi até o hotel.

Assim que ali cheguei, arrumei meus pertences, carregando tudo com dificuldade até o andar térreo sem a ajuda de nenhum porteiro e imediatamente encerrei minha conta. Eu tinha o táxi que me levaria até a estação ferroviária, onde tomei o trem da meia-noite para Nova York, e agora estou no vagão dormitório.

Vou enviar esta carta assim que puder. E até essa ocasião, terei sempre a carta comigo, na minha roupa, na esperança de que, se algo me acontecer, a carta seja encontrada.

No entanto, agora que escrevi isso, não creio que nada me aconteça! Este capítulo está encerrado. Chegou a um final horrendo e sangrento. Stuart participou dele.

E só Deus sabe o papel que o espírito desempenhou. Mas eu não vou oferecer mais tentações ao espírito voltando para lá. Todos os impulsos no meu ser me dizem para escapar daqui. E se por um instante eu me esqueço disso, tenho a recordação obsessiva de Stuart a me guiar, Stuart, do alto da escada, fazendo um gesto para que eu fosse embora.

Se não voltarmos a conversar em Londres, por favor sigam o conselho que lhes estou dando. Não mandem mais ninguém a este lugar. Pelo menos, não por enquanto. Observem, aguardem, como está no nosso lema. Considerem as provas. Procurem extrair alguma lição do que já ocorreu. E acima de tudo, estudem o arquivo Mayfair. Estudem-no em profundidade e ponham em ordem seus diversos componentes.

Minha opinião, se é que vale alguma coisa, é que nem Lasher nem Stella tiveram influência na morte de Stuart. No entanto, seus restos mortais estão debaixo daquele teto.

O conselho pode, porém, examinar as provas demoradamente. Não enviem mais ninguém para cá.

Não podemos esperar pela justiça dos homens no que diz respeito a Stuart. Não podemos ter esperança nas decisões legais. Mesmo na investigação que inevitavelmente se seguirá aos horrores desta noite, não haverá nenhuma busca na casa da família Mayfair ou no seu terreno. E como poderíamos jamais exigir que uma medida dessas fosse tomada?

Nunca nos esqueceremos de Stuart, porém. E eu sou homem o bastante, mesmo no crepúsculo da minha vida, para acreditar que deve haver um ajuste de contas, tanto no caso de Stuart quanto no de Petyr, embora eu não saiba com quê ou com quem esse ajuste será feito.

Não estou falando de desforra. Não estou falando de vingança. Falo de esclarecimento, compreensão e, acima de tudo, solução do problema. Falo da definitiva luz da verdade.

Essas pessoas, a família Mayfair, não sabem mais quem são. Digo-lhes que a moça era inocente. Estou convicto disso. Mas nós sabemos. Nós sabemos; e Lasher sabe.

E quem é Lasher? Quem e esse espírito que decidiu me revelar sua dor, que optou por me mostrar suas próprias lágrimas?

Arthur enviou essa carta de St. Louis, Missouri. Uma péssima cópia em carbono foi enviada dois dias depois, de Nova York, com um breve pós-escrito, explicando que Arthur havia reservado a passagem para voltar para casa e que iria zarpar no final da semana.

Depois de dois dias no mar, Arthur ligou para o médico de bordo, queixando-se de dores no peito e pedindo um medicamento comum para má digestão. Meia hora depois, o médico encontrou Arthur morto, aparentemente de um ataque cardíaco. Eram seis e meia da noite de 7 de setembro de 1929.

Arthur havia escrito a bordo mais uma carta bem curta no dia anterior á sua morte. Ela foi encontrada no bolso do roupão que ele usava.

Nela, ele dizia que não se sentia bem, que sofria de enjôos terríveis, o que não lhe acontecia há anos. Havia horas em que ele temia estar realmente enfermo e não voltar a ver a casa-matriz.

Há tantas coisas que eu quero debater com vocês acerca da família Mayfair, tantas idéias que me passam pela cabeça. E se nós atraíssemos esse espírito? Quer dizer, e se nós o convidássemos a vir a nós?

"Seja qual for sua decisão, não mandem outro investigador a Nova Orleans. Pelo menos, não agora, não enquanto aquela mulher, Carlotta Mayfair, estiver viva."

Ele a beijava enquanto acariciava seus seios. O prazer era tão intenso. Paralisante. Ela tentou erguer a cabeça, mas não conseguiu se mexer. O ronco ininterrupto das turbinas a embalava. É, isso era um sonho. No entanto, parecia tão real, e ela já estava voltando a cair nele. Faltavam apenas quarenta e cinco minutos para o pouso no aeroporto internacional de Nova Orleans. Ela devia tentar acordar. Mas ele já a beijava de novo, forçando a língua delicadamente entre seus lábios, com tanta delicadeza e com tanta força. E os dedos lhe tocavam os bicos dos seios, beliscando-os como se ela estivesse nua por baixo da pequena manta de lã. Ah, ele sabia fazer isso, beliscar devagar mas com firmeza. Ela se voltou mais para a janela, suspirando, encolhendo os joelhos para encostá-los na parede da cabine. Ninguém a observava. Primeira classe, meio vazia. Faltava pouco. Mais uma vez, ele lhe apertou os bicos dos seios, só um pouco mais cruel, hum, que gostoso. A verdade é que a brutalidade nunca é demais. Beije com mais força. Encha minha boca com essa sua língua. Ela abriu os lábios encostados nos dele, e então ele lhe afagou os cabelos, fazendo brotar mais uma sensação inesperada, um leve formigamento. Estava aí o milagre, que houvesse uma tamanha variedade de sensações, como uma mescla de cores suaves e vibrantes, os calafrios que lhe percorriam as costas e os braços, além do fogo a pulsar entre as pernas. Entre em mim! Eu quero que me ocupe com a sua língua e com você. Com »cais força! Ele era enorme, mas entrou suave, banhado como estava pelos seus fluidos. Ela gozou em silencio, estremecendo por baixo da manta, com o cabelo caído sobre o rosto, só com a vaga consciência de que não estava nua, de que ninguém podia estar tocando seu corpo, de que ninguém podia estar criando esse prazer. No entanto, ele se prolongava, o coração parecendo parar, o sangue latejando no seu rosto, os espasmos que desciam pelas suas coxas e pernas.

Você vai morrer se isso não parar, Rowan. A mão dele lhe acariciou o rosto. Ele beijou suas pálpebras. Te amo...

De repente, ela abriu os olhos. Por um instante, não reconheceu nada. Depois viu a cabine. A janelinha estava fechada, e tudo à sua volta parecia ser de um cinza luminoso, imerso no ruído dos motores. Os espasmos ainda a percorriam. Ela se recostou na ampla poltrona do avião e se entregou a eles, como se fossem surtos brandos e maravilhosamente modulados de eletricidade. Seus olhos passeavam lânguidos pelo teto enquanto ela se esforçava para mantê-los abertos, para acordar.

Meu Deus, qual não seria sua aparência depois dessa pequena orgia? Seu rosto devia estar ruborizado.

Ela foi se sentando bem devagar, ajeitando o cabelo para trás com as duas mãos. Tentou relembrar o sonho, não peia sensualidade, mas pela informação. Tentou voltar ao centro do sonho, saber quem era o homem. Não era Michael. Não. Isso era desagradável. Meu Deus, pensou Rowan. Fui infiel a Michael com ninguém. Que estranho. Ela levou as mãos ao rosto. Estava muito quente. Ainda sentia aquele prazer surdo, vibrante, debilitante até mesmo agora.

- Falta quanto para o pouso em Nova Orleans? -perguntou à aeromoça que passava.

- Meia hora. Está com o cinto preso?

Ela se recostou, tateando à procura do cinto e depois se entregando a uma deliciosa lassidão. Pensou em como um sonho podia provocar aquilo. Como um sonho podia levar a coisa tão longe?

Aos treze anos, costumava ter esse tipo de sonho, antes de saber que eram naturais ou o que devia fazer a respeito deles. No entanto, sempre acordava antes de terminar.

Não conseguia agir de outro modo. Dessa vez, porém, o sonho havia chegado ao final. E o mais estranho era que ela se sentia violentada, como se o amante onírico a houvesse estuprado. Ora, isso era realmente o cúmulo do absurdo. Mas a sensação não era agradável e era de extrema intensidade.

Violentada...

Ela levou as mãos aos seios por baixo do cobertor, protegendo-os com carinho. Mas isso era tolice, não era? Além do mais, não se tratou de estupro. - Aceita uma bebida antes do pouso?

- Não. Um café. - Ela fechou os olhos. Quem havia sido esse seu amante do sonho?

Nenhum rosto, nenhum nome. Só a sensação de alguém mais delicado do que Michael, alguém quase etéreo, ou pelo menos era essa a palavra que agora lhe ocorria. O homem havia falado alguma coisa. Tinha certeza disso. Mas tudo lhe havia escapado a não ser a lembrança do prazer.

Só quando voltou a se sentar ereta para tomar o café, foi que percebeu uma leve sensibilidade entre as pernas. Talvez uma conseqüência das fortes contrações musculares.

Graças a Deus não havia ninguém por perto; ninguém ao seu lado ou do outro lado do corredor. Também ela nunca teria deixado a coisa ir tão longe se não estivesse escondida, por baixo da manta. Isto é, se tivesse conseguido se forçar a acordar. Se tivesse tido escolha.

Estava com tanto sono!

Bebeu devagar um gole do café e levantou a janelinha de plástico branco.

Lá embaixo um pântano verdejante ao sol polarizado da tarde. E o rio marrom escuro, sinuoso, acompanhando à distância as curvas da cidade. Ela sentiu uma súbita exultação. Faltava pouco. O ruído dos motores ficou mais forte, mais alto, com a descida do avião.

Ela não queria mais pensar no sonho. Desejava honestamente que ele nunca houvesse acontecido. Na realidade, ele lhe pareceu de repente terrivelmente repugnante. Ela se sentia suja, cansada e furiosa. Até um pouco enojada. Queria pensar na mãe e em ver Michael.

Havia ligado para Jerry Lonigan de Dallas. A funerária estava aberta. E os primos já chegavam. Haviam telefonado a manhã inteira. A missa estava marcada para as três da tarde, e ela não devia se preocupar. Bastava que viesse do Pontchartrain assim que chegasse.

- Onde você estará, Michael? - sussurrou ela, ao se recostar mais uma vez e fechar os olhos.

Estava lá em cima dançando ao som dos seus discos. "Procure estar apresentável na festa, Lionel, por favor." Pelo amor de Deus, será que ninguém sabia o que estava acontecendo?

- E Carl falando de mandar Stella para a Europa! Como alguma pessoa poderia jamais forçar Stella a fazer qualquer coisa? E que diferença faria o fato de Stella estar na Europa? Procurei falar com Pierce. Agarrei-o pelo pescoço e disse, "Vou fazer vote me ouvir." Eu teria atirado também nele, se tivesse conseguido. É o que eu teria feito, meu Deus. Por que me impediram? "Vote não está percebendo? É com Antha que ele está agora! Estão cegos?" Foi o que falei. E vocês me digam! Será que todos eles estão cegos?

Ao que nos relataram, ele permaneceu assim dias a fio. No entanto, o trecho citado é o único fragmento anotado ao pé da letra na sua ficha médica, após o que somos apenas informados de que o "paciente continua a falar de alguma mulher e de algum homem, sendo que uma dessas pessoas é supostamente o demônio". Ou então, "Delirando de novo, incoerente, insinuando que alguém o levou ao ato criminoso, mas sem deixar claro quem é essa pessoa."

Na véspera do enterro de Stella, três dias após o assassinato, Lionel tentou fugir. Daí em diante, ele foi mantido permanentemente sob controle.

- Como conseguiram arrumar o rosto de Stella, eu nunca vou saber - disse um dos primos, muito tempo depois. - Mas ela estava linda.

- Essa foi realmente a última festa de Stella. Ela havia deixado instruções detalhadas sobre como tudo deveria ser, e sabe o que eu ouvi dizer mais tarde? Que tudo aquilo ela escreveu aos treze anos de idade! Imagine, as idéias românticas de uma menina de treze anos!

Os Comentários nos meios jurídicos indicavam algo bem diferente. As instruções para o enterro de Stella (que não representavam absolutamente uma obrigação legal) haviam sido incluídas no testamento feito por ela em 1925, após a morte de Mary Beth. E apesar de todo o seu efeito romântico, elas eram de extrema simplicidade.

Stella deveria ser velada em casa. As floriculturas deveriam ser informadas de que a "flor preferida" seria o copo-de-leite ou algum outro lírio branco. O andar principal da casa deveria ser iluminado apenas por velas. Seria servido vinho. O velório deveria se estender desde a colocação do corpo no caixão até sua remoção para a missa de corpo presente na igreja.

Acabou sendo romântico, para os padrões de qualquer pessoa, com Stella vestida de branco num caixão aberto na extremidade frontal do longo salão, e dúzias de velas de cera emitindo uma luz fantástica.

- Vou lhe dizer como foi - comentou um dos parentes muito depois. - Como as procissões do mês de maio! Exatamente. Com todos aqueles lírios, todo aquele perfume e Stella, de branco, como a rainha da primavera.

Cortland, Garland e Barclay cumprimentavam os primos que chegavam às centenas. Foi permitido a Pierce prestar suas últimas homenagens, embora ele fosse imediatamente despachado para a família da sua mãe, em Nova York. Os espelhos estavam cobertos ao velho estilo irlandês, embora ninguém parecesse saber de quem havia partido a ordem.

Havia ainda mais gente na missa de corpo presente, já que alguns primos que Stella não havia convidado para a casa de First Street enquanto estava viva foram direto para a igreja. A multidão no cemitério era tão numerosa quanto a que compareceu ao enterro de Miss Mary Beth.

- É, mas você precisa compreender que se tratava de um escândalo! - disse Irwin Dandrich.

- Foi o assassinato de 1929! E Stella era Stella, sabe? Não poderia ter sido mais interessante para certo tipo de gente. Você sabia que, na própria noite do assassinato, dois rapazes que conheço se apaixonaram por ela? Dá para imaginar!

Nenhum dos dois a conhecia antes. Estavam brigando por sua causa, um exigindo que o outro o deixasse ter uma oportunidade com ela, e o outro dizendo que havia falado com ela primeiro. Meu caro, a festa começou às sete. E às oito e meia, ela já estava morta!

-Ele está ali, ele não quer me deixar em paz! - Lionel acordou no hospício, aos gritos, na noite após o enterro de Stella.

Antes do final da semana, ele já estava numa camisa-de-força e, finalmente, no dia 4 de novembro, foi preso numa cela acolchoada. Enquanto os médicos debatiam se tentavam o tratamento de eletrochoque, ou se apenas o mantinham sedado, Lionel ficava agachado num canto, sem poder soltar os braços da camisa-de-força, gemendo e procurando afastar a cabeça do seu torturador invisível.

As enfermeiras contaram a Irwin Dandrich que ele gritava para que Stella o ajudasse.

- Ele está me enlouquecendo, Stella. Em nome de Deus, por que ele não me mata? Stella, me ajude. Stella, diga a ele que me mate.-Seus gritos ecoavam nos corredores.

- Eu não quis mais lhe dar injeções - disse uma das enfermeiras a Dandrich. - Ele nunca chegava a dormir mesmo. Ficava lutando com seus demônios, resmungando e xingando. Acho que para ele foi pior assim.

"Consideram-no total e irremediavelmente louco", escreveu um dos nossos detetives particulares. "É claro que, na hipótese da sua cura, ele talvez tivesse de ser julgado por assassinato. Só Deus sabe o que Carlotta disse às autoridades. É possível que não tenha dito nada. É possível que ninguém tenha feito perguntas."

Na manhã do dia 6 de novembro, só e desacompanhado, Lionel entrou aparentemente em convulsões e morreu sufocado com a própria língua. Não houve velório algum na casa funerária de Magazine Street. Os primos não foram recebidos na manhã do enterro, sendo orientados a ir direto para a missa na igreja de Santo Afonso. Lá foram avisados por organizadores contratados a não prosseguirem até o cemitério, já que Miss Carlotta queria tudo discreto,

Mesmo assim, eles se reuniram nos portões de Prytania Street do cemitério de Lafayette n° 1, assistindo de longe enquanto o caixão de Lionel era posto junto ao de Stella.

 

Lendas de família:

Estava tudo acabado. Todos sabiam. Pierce, coitado, acabou conseguindo se recuperar. Estudou algum tempo em Columbia e entrou para Harvard no ano seguinte. No entanto, até o dia da sua morte, ninguém nunca pronunciou o nome de Stella diante dele. E como odiava Carlotta. A única vez que eu o ouvi tocar no assunto, ele disse que ela foi a responsável. Ela devia ter puxado o gatilho com as próprias mãos.

Pierce não só se recuperou, mas se tornou um advogado extremamente capaz, que desempenhou um papel importante na orientação e expansão da fortuna Mayfair ao longo das décadas. Morreu em 1986. Seu filho, Ryan Mayfair, nascido em 1936, é a espinha dorsal do escritório da Mayfair & Mayfair atualmente. O jovem Pierce, filho de Ryan, é no momento o rapaz mais promissor da firma.

Mas aqueles primos que disseram que "estava tudo acabado" tinham razão. Com a morte de Stella, o poder das Bruxas Mayfair foi efetivamente destruído. Stella foi a primeira das herdeiras dos dons de Deborah a morrer jovem. Ela foi a primeira a sofrer morte violenta. E nunca mais uma Bruxa Mayfair "governaria" a casa de First Street, ou assumiria a administração direta do legado. Na verdade, a atual beneficiária é uma catatônica muda, e sua filha, Rowan Mayfair, é uma jovem neurocirurgiã, que mora a quase quatro mil quilômetros de First Street e não sabe nada da sua mãe, da sua história de família, da sua herança ou da sua própria casa.

Como tudo chegou a esse ponto? E será que se pode atribuir a culpa a uma única pessoa?

São perguntas a respeito das quais poderíamos nos angustiar eternamente. Mas antes de as considerarmos em detalhe, recuemos no tempo e examinemos a posição do Talamasca após a morte de Arthur Langtry.

 

O ESTADO DA INVESTIGAÇAO EM 1929

Não foi realizada autópsia em Arthur Langtry. Seus restos mortais foram enterrados na Inglaterra no cemitério do Talamasca, como há muito tempo ele havia decidido que seriam. Não há nenhum indicio de que ele houvesse sofrido morte violenta. Na verdade, sua última carta, em que descreve o assassinato de Stella, demonstra que ele já estava com algum problema cardíaco. Pode-se dizer, porém, com alguma justificativa, que o estresse do que viu em Nova Orleans teve seu efeito nocivo. Arthur poderia ter vivido mais se nunca tivesse ido até lá. Por outro lado, ele não estava aposentado, e poderia ter se deparado com a morte, em atividade em algum outro caso.

Para o conselho diretor do Talamasca, no entanto, Arthur Langtry foi mais uma vítima das Bruxas Mayfair. E a rápida visão do espírito de Stuart por Arthur foi plenamente aceita por estes experientes investigadores como prova de que Stuart morreu dentro da residência da família Mayfair.

O Talamasca queria, porém, saber exatamente como Stuart morreu. Teria sido Carlotta? E, em caso afirmativo, por quê?

O argumento mais evidente em defesa de Carlotta talvez já esteja óbvio e ficará ainda mais com o prosseguimento desta narrativa. Carlotta havia sido a vida inteira uma católica praticante, uma advogada escrupulosamente honesta e uma cidadã cumpridora da lei. Suas críticas acirradas a Stella aparentemente se baseavam nas suas próprias convicções morais, ou pelo menos foi essa a suposição da família, de amigos e até mesmo de observadores informais.

Por outro lado, dezenas de pessoas afirmam que Carlotta levou Lionel a atirar em Stella, que fez tudo para isso menos pôr a arma nas suas mãos.

Mesmo que Carlotta tivesse mesmo posto a arma nas mãos de Lionel, um ato público e carregado de emoção, como o assassinato de Stella, é muito diferente da eliminação em segredo e a sangue- frio de um estranho que mal se conhece.

Teria Lionel talvez sido o assassino de Stuart Townsend? E o que dizer da própria Stella? E como podemos ignorar a possibilidade de ter sido Lasher? Se considerarmos que essa criatura tem uma personalidade, uma história, na verdade um perfil como se diz no mundo moderno, o assassinato de Townsend não combina em termos mais lógicos com o modus operandi do espírito do que com o de qualquer outro morador da casa?

Infelizmente, nenhuma dessas hipóteses justifica a tentativa de encobri mento, e certamente houve essa tentativa, com os funcionários do St. Charles Hotel sendo pagos para dizer que Stuart Townsend nunca se hospedou ali.

Talvez uma possibilidade aceitável seja uma que abrace todos os suspeitos envolvidos. Por exemplo, e se Stella realmente convidou Townsend para vir a First Street, onde ele encontrou a morte através de alguma intervenção violenta por parte de Lasher? E se uma Stella em pânico recorresse, então, a Carlotta, a Lionel ou mesmo a Pierce para ajudá-la a ocultar o corpo e a se certificar de que ninguém no hotel dissesse uma palavra sequer?

Infelizmente, essa possibilidade, como outras semelhantes, deixa um excesso de perguntas sem resposta. Por que, por exemplo, Carlotta teria participado de uma trapaça dessas? Ela não poderia ter usado a morte de Townsend para se livrar da sua irmãzinha de uma vez por todas? Quanto a Pierce, é extremamente improvável que um jovem tão inocente pudesse se envolver numa coisa dessas. (Dali em diante, Pierce levou uma vida muito respeitável.) E, quando pensamos em Lionel, devemos nos fazer a seguinte pergunta. Se ele teve algum conhecimento da morte ou do desaparecimento de Stuart, o que o impediu de dizer algo a respeito disso, quando ficou "louco delirante"?

Ele sem dúvida falou o suficiente sobre tudo o mais que ocorreu em First Street, ou é o que os registros demonstram. Afinal, deveríamos ainda nos perguntar, se uma dessas pessoas improváveis ajudou Stella a enterrar o corpo no quintal, por que se incomodaria de retirar todos os pertences de Townsend do hotel e de subornar os funcionários para que dissessem que ele nunca esteve lá?

Talvez o Talamasca esteja errado, em retrospectiva, por não trabalhar mais a questão de Stuart, por não exigir uma investigação em larga escala, por não forçar a polícia a fazer alguma coisa. O fato é que realmente pressionamos. Como também pressionou a família de Stuart, ao ser informada do seu desaparecimento. No entanto, como declarou ao Dr. Townsend um renomado escritório de advocacia de Nova Orleans.

"Nós não temos absolutamente nada em que nos basear. Não conseguimos provar nem que o rapaz um dia esteve aqui!"

E nos tempos que se seguiram ao assassinato de Stella, ninguém se dispunha a "incomodar" a família com ainda mais perguntas sobre um misterioso texano, vindo da Inglaterra. Nossos investigadores, incluindo-se alguns dos melhores do ramo, jamais conseguiram romper o silêncio dos funcionários do hotel, nem obter uma pista por menor que fosse de quem os teria subornado. irracional imaginar que a polícia pudesse ter melhores resultados.

Existe, porém, uma opinião interessantíssima a levar em consideração antes de deixarmos esse crime sem solução. Trata-se das palavras finais de Irwin Dandrich sobre o assunto, em conversa com um dos nossos detetives particulares num bar do French Quarter perto do Natal de 1929.

- Vou lhe dizer o segredo para compreender essa família - disse Dandrich. -E olhe que eu os observo há anos. Não só para aqueles esquisitões de Londres, veja bem.

Eu os observo como todo mundo os observa: perguntando-me sempre o que se passa por trás das janelas fechadas. O segredo reside em perceber que Carlotta Mayfair não é a mulher católica virtuosa e pura que sempre fingiu ser. Aquela mulher tem algo de misterioso e de maligno. Ela é destrutiva e rancorosa. Ela preferia ver a pequena Antha enlouquecer do que vê-la crescer para ser parecida com Stella. Ela prefere ter a casa escura e deserta do que ver as pessoas se divertindo.

Superficialmente, esses comentários. parecem simplistas, mas pode haver neles mais verdade do que as pessoas percebiam na época. Aos olhos do mundo, Carlotta Mayfair certamente representava a probidade, a sanidade, a virtude e coisas semelhantes. A partir de 1929, ela passou a ir à missa diariamente na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Prytania, fazia doações generosas á igreja e a todas as suas organizações e, embora estivesse envolvida numa guerra particular com a firma Mayfair & Mayfair quanto à administração do dinheiro de Antha, sempre foi extremamente generosa com seu próprio dinheiro. Ela emprestava dinheiro voluntariamente a todo e qualquer parente que dele necessitasse; enviava presentes discretos nos aniversários, casamentos, batizados e formaturas; comparecia a enterros e de vez em quando se encontrava com parentes fora da casa para almoçar ou tomar chá.

Para aqueles que haviam sido tão ofendidos por Stella, Carlotta era uma boa pessoa, o esteio da casa de First Street, quem cuidava com capacidade e interminável sacrifício da filha louca de Stella, Antha, e das outras dependentes, Millie Dear, Nancy e Belle.

Ela nunca foi criticada por não mais abrir a casa à família. Ou por sua decisão de não voltar a fazer reuniões e festinhas de qualquer tipo. Pelo contrário, todos compreendiam que "ela já tinha muito trabalho nas mãos".

Ninguém queria exercer nenhuma pressão sobre ela. Na verdade, ela se tornou para a família uma espécie de santa rabugenta com o passar dos anos.

Depois de quarenta anos de exame da família, a minha opinião, se é que tem algum valor, é de que há muita verdade na avaliação de Carlotta feita por Dandrich. Tenho a convicção pessoal de que ela representa um mistério tão grande quanto o de Mary Beth ou o de Julien. E nós apenas arranhamos a superfície do que ocorre ali.

 

MAIS ESCLARECIMENTOS ACERCA DA POSIÇAO DA ORDEM

Com relação ao futuro, foi decidido pelo Talamasca em 1929 que nenhuma outra tentativa de contato pessoal seria feita.

Nosso diretor, Evan Neville, acreditava que em primeiríssimo lugar deveríamos seguir o conselho de Arthur Langtry e, em segundo, deveríamos levar a sério o aviso do espectro de Stuart Townsend. Deveríamos nos afastar da família Mayfair por algum tempo.

Alguns membros mais jovens do conselho eram, porém, da opinião de que devíamos procurar estabelecer contato com Carlotta Mayfair através de correspondência. Que mal poderia resultar disso, argumentavam eles.E que direito nós tínhamos de não colocar nossas informações à sua disposição? Com que finalidade havíamos reunido todos esses dados? Devíamos preparar para ela um resumo sucinto das informações por nós compiladas. Sem dúvida, nossos registros mais antigos, as cartas de Petyr van Abe, deveriam ser colocados á sua disposição assim como as árvores genealógicas por nós elaboradas.

Isso provocou um debate cáustico e violento. Os membros mais velhos da Ordem relembraram aos mais novos que Carlotta Mayfair era com toda a probabilidade responsável pela morte de Stuart Townsend e que era mais do que provável que fosse responsável pela morte de sua irmã, Stella. Que obrigação poderíamos sentir para com uma pessoa dessas? Antha era a pessoa a quem devíamos revelar nossos dados, e uma atitude dessas não podia sequer ser cogitada enquanto ela não completasse vinte e um anos.

Além do mais, por não existir nenhum contato pessoal que nos orientasse, como essa informação seria dada a Carlotta Mayfair, e quais informações poderíamos pensar em lhe transmitir?

A história da família Mayfair, na apresentação que tinha em 1929, não estava de modo algum pronta para "olhos estranhos". Um resumo meticuloso teria de ser preparado, com a eliminação total dos nomes de testemunhas e de investigadores, e mais uma vez qual seria a finalidade de entregar isso a Carlotta? O que ela faria com ele?

De que modo ela poderia usá-lo no tocante a Antha? Qual seria sua reação inicial? E se íamos dar essa história a Carlotta, por que não dá-la também a Cortland e seus irmãos? Na verdade, por que não dá-la a cada membro da família Mayfair? E, se realmente agíssemos assim, quais seriam os efeitos dessas informações sobre essas pessoas? Que direito nós tínhamos de imaginar uma interferência tão espetacular nas suas vidas?

Na realidade, a natureza da história era tão especial, ela incluía material tão absurdo e aparentemente misterioso que sua revelação não podia ser cogitada arbitrariamente.

E assim prosseguia aceso o debate.

Como sempre ocorre em tais ocasiões, as normas, os objetivos e a conduta ética do Talamasca foram totalmente reavaliados. Fomos forçados a reafirmar para nós mesmos que a história da família Mayfair, devido á sua extensão e seus detalhes, era inestimável para nós, estudiosos do oculto, e que iríamos continuar a colher informações sobre a família, sem nos importar com o que dissessem os membros mais jovens do conselho acerca da ética e de tudo o mais. N entanto, nossa tentativa de "contato" havia sido um enorme fracasso. Espere ríamos até Antha completar vinte e um anos, e então pensaríamos num abordagem cuidadosa, dependendo de quem da Ordem estivesse disponível para uma missão dessas na ocasião.

Ficou também claro, enquanto o conselho prosseguia com suas querela que quase ninguém ali, nem. mesmo Evan Neville, conhecia a fundo a história completa das Bruxas

Mayfair. Houve, de fato, discussões consideráveis não sobre o que fazer e como deveria ser feito, mas sobre o que havia acontecido e em que época na família Mayfair.

É que o arquivo havia simplesmente crescida demais, ficando muito complexo para qualquer pessoa examinar com eficácia num período razoável de tempo.

Era óbvio que o Talamasca precisava encontrar um membro disposto assumir as Bruxas Mayfair como uma missão de dedicação integral. Alguém capaz de estudar o arquivo detalhadamente e depois tomar decisões inteligente e responsáveis sobre o que fazer no trabalho de campo. Considerando-se a trágica morte de Stuart Townsend, ficou estabelecido que essa pessoa deveria te excelente reputação como estudioso assim como ampla experiência prática. Na verdade, ele deveria provar seu conhecimento do arquivo, organizando todos o materiais numa longa narrativa, coerente e inteligível. Então, e só então, essa pessoa receberia permissão para ampliar seu estudo das Bruxas Mayfair através de investigações mais diretas com a intenção de um dia um contato acabar sendo feito.

Em suma, a enorme tarefa de transpor o arquivo para o formato de narrativa era considerada como uma preparação necessária para o envolvimento no campo. E havia grande sabedoria nessa abordagem.

A única triste falha no plano como um todo residiu no fato de essa pessoa só ter sido encontrada pela Ordem em 1953. E a essa altura, a trágica vida de Antha Mayfair já estava terminada. A beneficiária do legado era agora uma menina de doze anos, de rosto abatido, que já havia sido expulsa da escola por "conversar com seu amigo invisível", por fazer flores voarem pelo ar, por encontrar objeto; perdidos e por ler o pensamento dos outros.

- Seu nome é Deirdre - disse Evan Neville, com o rosto marcado de preocupação e tristeza - e está crescendo naquela casa velha e sombria exatamente como sua mãe cresceu, sozinha com aquelas velhas. E só Deus sabe o que elas conhecem ou pensam da história da família, dos poderes da menina e desse espírito que já foi visto ao lado da criança.

O jovem membro, profundamente instigado por essas palavras, por outras conversas anteriores e por leituras aleatórias dos documentos da família Mayfair. Resolveu que seria melhor agir logo.

Como é óbvio que eu sou esse membro, faço aqui uma pausa antes de relatai a história breve e triste de Antha Mayfair, para me apresentar.

 

ENTRA EM CENA O AUTOR DESTA NARRATIVA, AARON LIGHTNER

Uma completa biografia minha pode ser encontrada sob o título Aaron Lightner. Para os objetivos desta narrativa, o que se segue é mais do que suficiente.

Nasci em Londres em 1921. Tornei- me membro efetivo da Ordem em 1943, depois de terminar meus estudos em Oxford. Eu já vinha, porém, trabalhando com o Talamasca desde os sete anos de idade, e vivia na casa- matriz desde os quinze anos. Na realidade, eu havia sido levado à Ordem em 1928 por meu pai inglês (tradutor e estudioso do latim) e minha mãe americana (professora de piano), quando estava com seis anos de idade. Foi uma assustadora capacidade telecinética que fez com que procurassem ajuda externa. Eu conseguia mover objetos apenas ao concentrar sobre eles minha atenção ou ao lhes dar ordens para que se movessem. E, embora esse poder nunca fosse muito forte, ele se revelou muito perturbador para quem o viu em ação.

Meus pais preocupados suspeitavam que esse poder fosse acompanhado por outros traços paranormais, que eles de fato ocasionalmente vislumbravam. Fui levado a alguns psiquiatras em virtude dos meus estranhos talentos e afinal um deles disse que me levassem até o Talamasca; que meus poderes eram autênticos; e que eles eram os únicos que saberiam trabalhar com alguém como eu.

O Talamasca estava mais do que disposto a examinar a questão com meus pais, que sentiram imenso alívio.

- Se tentarem sufocar esse poder no seu filho - disse Evan Neville -, não chegarão a lugar nenhum. Na realidade, estarão pondo em risco seu bem-estar. Permitam que trabalhemos com ele. Permitam que o ensinemos a controlar e a usar seus dons paranormais. - Meus pais concordaram, relutantes.

Comecei a passar todos os sábados na casa-matriz na periferia de Londres, e aos dez anos de idade já passava os fins de semana e as férias de verão também. Meu pai e minha mãe faziam visitas freqüentes. Na realidade, meu pai começou a fazer traduções para o Talamasca a partir dos seus antigos registros em latim, que já se desfaziam, em 1935, e trabalhou para a Ordem até sua morte em 1972, época na qual já era viúvo e morava na casa-matriz. Meus pais adoravam a biblioteca geral da casa-matriz e, embora nunca procurassem ser membros efetivos da Ordem, fizeram parte dela, num sentido bastante concreto, até o fim das suas vidas. Eles não fizeram nenhuma objeção quando viram que eu era atraído para a ordem, insistindo apenas para que eu terminasse minha instrução e não permitisse que meus "poderes especiais" me afastassem precocemente do "mundo normal".

Meu poder telecinético nunca se tornou muito forte, mas, com o auxílio dos meus amigos da Ordem, percebi nitidamente que, sob certas circunstancias, eu conseguia ler a mente de outras pessoas. Aprendi também a encobrir meus pensamentos e sentimentos dos outros. Aprendi ainda a apresentar meus poderes ás pessoas no momento e no local mais adequados e a reservá-los essencialmente para uso construtivo.

Nunca fui o que as pessoas chamariam de um poderoso paranormal. Na verdade, minha limitada capacidade para a leitura da mente tem maior utilidade para mim na minha função de investigador de campo para o Talamasca, especialmente em situações que envolvam risco. E minha capacidade telecinética raramente se presta a qualquer ato de natureza prática.

Quando atingi os dezoito anos, já estava totalmente devotado ao estilo de vida da Ordem e aos seus objetivos. Era-me difícil conceber um mundo em que o Talamasca não existisse. Meus interesses eram os interesses da Ordem, e eu me sentia perfeitamente harmonizado com o seu espírito. Não importava onde eu fosse estudar; não importava para onde eu viajasse com meus pais ou com colegas de escola, a Ordem havia se tornado meu verdadeiro lar.

Ao completar meus estudos em Oxford, fui aceito como membro efetivo, mas já pertencia realmente á Ordem muito antes dessa época. As grandes famílias de bruxas sempre haviam sido meu campo preferido. Eu havia estudado amplamente a história das perseguições ás bruxas. E as pessoas que se adequavam á definição específica de bruxa exerciam sobre mim enorme fascínio.

Meu primeiro trabalho de campo foi relacionado a uma família de bruxas da Itália, sob a orientação de Elaine Barrett, que na época e ainda durante muitos anos foi a melhor investigadora de bruxas da ordem.

Foi ela quem primeiro me falou das Bruxas Mayfair, numa conversa informal ao jantar, contando-me logo o que havia acontecido a Petyr van Abel, Stuart Townsend e Arthur Langtry, e me sugerindo que começasse minha leitura dos materiais da família Mayfair nas minhas horas vagas. Foram muitas as noites durante o verão e o inverno de 1945 em que adormeci com os papéis do caso Mayfair espalhados por todo o chão do meu quarto. Em 1946, eu já estava fazendo anotações para uma narrativa.

O ano de 1947, no entanto, afastou- me completamente da casa- matriz e do Arquivo sobre as Bruxas Mayfair, para o trabalho de campo com Elaine. Só mais tarde percebi que esses anos me proporcionaram exatamente a folha de serviços que eu precisaria para minha aventura com as Bruxas Mayfair, e que se tornaria a missão da minha vida.

Recebi a indicação oficialmente em 1953: comece a narrativa; quando ela estiver pronta num formato aceitável, examinaremos a questão de enviá-lo a Nova Orleans para ver pessoalmente os moradores da casa de First Street.

Lembraram-me repetidas vezes que, não importa quais fossem minhas aspirações, eu só teria permissão para agir com cautela. Antha Mayfair havia sofrido morte violenta. O mesmo havia ocorrido com o pai de sua filha, Deirdre. Como também com um parente de Nova York, o Dr. Cornell Mayfair, que veio até Nova Orleans em 1945 expressamente para ver a pequena Deirdre, aos quatro anos de idade, e investigar a alegação de Carlotta de que Antha teria sido louca de nascença.

Aceitei os termos da indicação. Pus-me a trabalhar traduzindo o diário de Petyr van Abel. Nesse meio-tempo, recebi um orçamento ilimitado para expandir a pesquisa em toda e qualquer direção. Foi assim que também comecei uma investigação "a distância" para descobrir o atual estado das coisas com Deirdre Mayfair, a filha única de Antha, de doze anos de idade.

Gostaria de acrescentar, para concluir, que dois fatores parecem desempenhar um grande papel em qualquer investigação que eu empreenda. O primeiro deles parece ser o de que minha aparência e minhas maneiras deixam as pessoas à vontade, de uma forma quase inexplicável. Elas falam comigo com mais liberdade do que talvez falassem com outras pessoas. Para mim é muito difícil ou impossível determinar o quanto eu controlo esse aspecto por meio de algum tipo de "persuasão telepática". Em retrospectiva, eu diria que isso está mais relacionado ao fato de eu parecer ser um "senhor europeu", e de as pessoas imaginarem que sou fundamentalmente bom. Eu também me solidarizo intensamente com aqueles que entrevisto. Não sou um ouvinte antagônico.

Espero e rogo que, apesar das mentiras que tive de contar relacionadas ao meu trabalho, eu não tenha realmente traído a confiança de ninguém. Fazer o bem com o que eu sei é o lema da minha vida.

O segundo fator que influencia minhas entrevistas e meu trabalho de campo é minha leve capacidade de ler a mente. É freqüente que eu capte nomes e detalhes a partir do pensamento das pessoas. Em geral, não incluo essas informações nos meus relatórios. Ela é excessivamente falível. No entanto, minhas descobertas telepáticas sem dúvida me forneceram "pistas" significativas ao longo dos anos. E essa característica está decididamente ligada á minha aguda capacidade para pressentir o perigo, como a narrativa que se segue acabará revelando...

Já é hora de voltarmos á narrativa e de reconstituir a trágica história da vida de Antha e do nascimento de Deirdre.

 

AS BRUXAS MAYFAIR DE 1929 ATÉ O PRESENTE  - Antha Mayfair

Com a morte de Stella, encerrou-se uma era para a família Mayfair. E a trágica história da filha de Stella, Antha, e de sua filha única, Deirdre, permanece envolta em mistério até os dias de hoje.

A medida que os anos foram passando, a criadagem na residência de First Street reduziu-se a um par de empregados mudos, inacessíveis e totalmente leais. Os anexos, não mais necessários para criadas, cocheiros e cavalariços, caíram aos poucos em ruínas. As mulheres de First Street mantinham uma existência reclusa, sendo que Belle e Millie Dear se tornaram "doces velhinhas" do Garden District, caminhando diariamente para irá missa na capela de Prytania Street, ou parando sua jardinagem incessante e inútil para bater papo com os vizinhos que passavam pela cerca de ferro.

Apenas seis meses após a morte da mãe, Antha foi expulsa de um colégio interno no Canadá, que foi a última instituição pública que ela jamais freqüentaria. Foi surpreendentemente simples para um detetive particular descobrir a partir das conversas das professoras que Antha assustava as pessoas ao ler sei pensamentos, ao conversar com um amigo invisível e ao ameaçar quem risse de ou falasse mal dela pelas costas. Ela era descrita como uma menina nervos sempre chorando, queixando-se do frio em todos os tipos de temperatura sujeita a longas febres e calafrios inexplicáveis.

Carlotta Mayfair levou Antha para casa de trem desde o Canadá; e, ao que saibamos, Antha nunca mais passou uma noite sequer fora da casa de First Street até os dezessete anos.

Nancy, moça atarracada e mal-humorada, apenas dois anos mais velha do que Antha, continuou a freqüentar a escola todos os dias até completar dezoito anos. Com essa idade, ela foi trabalhar como arquivista no escritório de advocacia de Carlotta, onde ficou quatro anos. Todas as manhãs, sem falta, ela e Carlotta caminhavam da esquina de First e Chestnut até St. Charles Avenue onde apanhavam o bonde de St. Charles para o centro.

A essa altura, a casa de First Street já tinha assumido um ar de perpétua tristeza. Suas janelas nunca se abriam. Sua pintura de um lilás acinzentado começava a descascar, e seu jardim crescia desordenado ao longo das cercas c ferro, com os louros-cerejas e as sapucaias brotando em meio ás velhas camélias e gardênias, que anos antes eram tão bem cuidadas. Quando o antigo estábulo desocupado foi destruído por um incêndio em 1938, o mato logo ocupou espaço aberto nos fundos da propriedade. Pouco depois, mais uma construção em ruínas foi demolida, e não sobrou nada além da antiga garçonniére, e do carvalho belíssimo e imenso, com seus galhos voltados significativamente por cima do capim alto para a distante casa principal.

Em 1934, começamos a receber os primeiros relatos de operários que consideravam impossível realizar consertos ou outras pequenas obras na casa. Os irmãos Molloy contaram a todo mundo no Corona's Bar em Magazine Street que não tinham condição de pintar aquela casa porque, todas as vezes que se viravam as escadas tombavam, a tinta derramava ou os pincéis acabavam jogados na terra não se sabe como.

- Deve ter acontecido umas seis vezes - disse Davey Molloy. - Minha lata de tinta simplesmente virou, de cima da escada, derramando inteirinha no chão. Ora, eu sei que nunca na minha vida derrubei uma lata cheia de tinta! Foi isso o que ela me disse, a Miss Carlotta. "Foi você mesmo quem a derrubou, Pois bem, quando a escada virou comigo em cima, dei um basta. Larguei serviço."

Thompson Molloy, o irmão de Davey, tinha uma suspeita de quem seria responsável.

- É aquele cara de cabelo escuro, aquele que está sempre nos vigiando. E disse a Miss Carlotta. "A senhora não acha que ele pode estar fazendo tudo isso Aquele cara que está sempre ali debaixo daquela árvore?" Pois ela agiu como s não soubesse do que eu estava falando. Mas ele estava sempre vigiando Estávamos tentando consertar a parede de Chestnut Street, e eu vi que ele nos olhava pela veneziana da biblioteca. Me deu um calafrio daqueles. Quem é esse cara? É um dos tais primos? Eu não trabalho mais lá. Não me importa a dificuldade que eu esteja enfrentando. Não trabalho mais naquela casa.

Um outro operário, contratado apenas para pintar de preto os gradis de ferro fundido, relatou os mesmos "problemas". Ele desistiu depois de meio dia de trabalho em que caía entulho do telhado sobre ele e folhas não paravam de aparecer boiando na tinta.

Em 1935, já era de conhecimento geral no Irish Channel que nada podia ser feito "naquela casa velha". Quando dois rapazes foram chamados para limpar a piscina naquele mesmo ano, um deles foi jogado na água estagnada e quase se afogou. O outro teve uma dificuldade enorme para tirá-lo dali.

- Era como se eu não pudesse ver nada. Eu estava segurando firme e berrava para alguém vir ajudar. Mas nós dois estávamos afundando naquela água imunda e de repente, graças a Deus, ele conseguiu se segurar no lado da piscina e era ele quem estava me salvando. Aquela velha mulata, tia Easter, veio até ali fora com uma toalha para nós e só dizia, "Saiam de perto da piscina. Esqueçam a limpeza. Saiam já daí."

Até Irwin Dandrich ouviu os comentários.

- Estão dizendo que a casa está assombrada, que o espírito de Stella não quer deixar ninguém tocar em nada. É como se tudo estivesse de luto por Stella. - E Dandrich tinha ouvido falar num homem misterioso, de cabelos castanhos? - Eu ouço falar em todos os tipos de coisas. Há quem diga ser o fantasma de Julien. Que ele veio proteger Antha. Bem, se for verdade, ele não está sendo muito eficaz.

Pouco depois, foi publicada uma reportagem no Times-Picayune que descrevia vagamente uma "misteriosa mansão da cidade alta", na qual era impossível realizar qualquer tipo de trabalho. Dandrich recortou o artigo e o enviou a Londres com as palavras "Minha língua comprida" escritas na margem.

Um dos nossos detetives convidou a repórter para um almoço. Ela se dispôs a falar no assunto, e de fato se tratava da casa da família Mayfair. Todo mundo sabia.

Um bombeiro declarou ter ficado preso horas a fio debaixo daquela casa quando tentava consertar um cano. Ele chegou a perder a consciência. Quando afinal voltou a si e conseguiu sair dali, teve de ser levado para o hospital. Houve também o caso do homem da telefônica que foi chamado para consertar um aparelho na biblioteca.

Ele disse que nunca mais poria os pés naquela casa. Um dos quadros na parede olhou de verdade para ele. E ele estava certo de ter visto um fantasma naquele mesmo aposento.

- Eu poderia ter escrito muito mais - disse a moça. - Mas o pessoal do jornal não quer se indispor com Carlotta Mayfair. Eu lhe contei a história do jardineiro?

Ele vai lá regularmente para cortar a grama, sabe, e ele me disse uma coisa estranhíssima quando o procurei. "Ah,ele nunca me incomoda. Ele e eu nos damos muito bem. Ele e eu somos amigos." Agora, a quem você supõe que esse homem estava se referindo? Quando eu lhe fiz essa pergunta, ele me disse para ir até lá. "Pode ir que vai vê-lo. Ele está lá desde sempre. Meu avô costumava vê-lo. Ele não faz nada. Não consegue se mexer nem falar. Ele só fica ali parado, nas sombras, olhando para as pessoas. Num minuto ele está ali. No outro, já se foi. Ele não me incomoda. Por mim, tudo bem. Recebo bem para trabalhar lá. Sempre  trabalhei lá. Ele não me assusta."

O falatório em família no período descartava as "histórias de fantasmas". Da mesma forma agia a sociedade local, segundo Dandrich, embora ele também insinuasse que as pessoas eram ingênuas.

- Acho que a própria Carlotta começou todas essas histórias bobas de fantasmas - disse um dos primos, anos depois. - Ela queria manter as pessoas afastadas. Nós só ríamos quando ouvíamos alguma história.

- Fantasmas na casa de First Street? Foi nas mãos de Carlotta que a casa se transformou numa ruína. Aquela ali sempre fez economia. Essa é a diferença entre ela e a mãe.

No entanto, quaisquer que fossem as atitudes dos primos e da sociedade local, os padres na casa paroquial redentorista ouviam inúmeras histórias de fantasmas e de misteriosas diabruras na casa de First Street. O padre Lafferty costumava visitar a família regularmente, e o que se dizia era que ele não aceitava não ser recebido.

Sua irmã conversou com um dos nossos detetives.

- Meu irmão sabia muita coisa sobre o que acontecia, mas ele nunca falava nisso. Eu perguntava como Antha estava, e ele não me respondia. Mas eu sabia que ele visitava Antha. Ele entrava naquela casa. Depois da morte de Antha, ele veio aqui um domingo e só enfiou a cabeça nas mãos, sentado á mesa de jantar, e chorou. Foi essa a única vez que vi meu irmão, o padre Thomas Lafferty, perder o controle e chorar.

A família continuava preocupada com Antha durante todo esse período. A história oficial dizia que Antha era "desequilibrada" e que Carlotta sempre a levava a psiquiatras, mas que "isso não dava nenhum resultado". A criança havia sofrido um trauma irreparável com o assassinato da mãe. Ela vivia num mundo de fantasia povoado por fantasmas e companheiros invisíveis. Não podia ser deixada sozinha. Não podia sair da casa.

Os comentários nos meios jurídicos indicam que os primos costumavam ligar para Cortland Mayfair para lhe pedir que fosse ver Antha, mas Cortland já não era mais bem-vindo em First Street. Os vizinhos afirmam tê-lo visto diversas vezes não receber permissão para entrar.

-Ele costumava vir até aqui toda véspera de Natal - disse uma das vizinhas muito tempo depois. - O carro estacionava junto ao portão da frente, o motorista saltava, abria a porta e depois tirava todos os presentes da mala. Uma infinidade de presentes. Carlotta vinha, então, cá fora e lhe dava um aperto de mãos na própria escada.

Ele nunca entrava na casa.

O Talamasca jamais descobriu registros de médicos que teriam examinado Antha. É duvidoso que Antha tenha sido tirada da casa, a não ser para ir à missa de domingo.

Os vizinhos diziam vê-la com freqüência no jardim de First Street.

Ela lia livros debaixo do grande carvalho nos fundos da propriedade. Ficava sentada horas na varanda lateral, com os cotovelos nos joelhos. Uma criada que trabalhava do outro lado da rua relatou que a via conversando com "aquele homem o tempo todo. Sabe? Aquele homem de cabelos castanhos que está sempre lá visitando? Deve ser um dos primos. E ele sabe se vestir bem".

Quando Antha estava com uns quinze anos, ela já saía ás vezes pelo portão. Um carteiro mencionou o fato de vê-la com freqüência, uma moça magra, com um ar sonhador, que andava pelas ruas sozinha e ás vezes com um "cara bonito". "O cara bonito" tinha cabelos e olhos castanhos, e sempre usava paletó e gravata.

- Eles gostavam de me dar cada susto - disse um entregador de leite. - Uma vez, eu estava só assobiando sozinho, saindo do portão da casa do Dr. Milton em Second Street, e lá estavam os dois bem diante de mim, nas sombras, debaixo de uma magnólia. E ela estava totalmente imóvel. Ele, parado ao seu lado. Quase dei um encontrão neles. Acho que estavam só cochichando, e pode ser que eles tenham se assustado tanto quanto eu.

Nos nossos arquivos, não há nenhuma fotografia desse período, mas todas essas testemunhas e outras pessoas dizem que Antha era bonita.

- Antha tinha um ar distante - disse uma mulher que costumava vê-la na capela. - Não era vibrante como Stella. Parecia estar sempre imersa em sonhos e, para dizer a verdade, eu sentia pena dela, totalmente só naquela casa com aquelas mulheres. Não mencione que eu disse isso, mas aquela Carlotta é uma criatura cruel. É mesmo. Minha empregada e minha cozinheira sabem de tudo a respeito dela. Diziam que ela costumava agarrar a menina pelo pulso e enfiar as unhas no seu braço.

Irwin Dandrich relatou que antigos amigos de Stella procuravam visitar a menina de tempos em tempos, só para não serem recebidos. "Ninguém passa por Nancy ou pela criada mulata, tia Easter", escreveu Dandrich aos investigadores de Londres. "E o que se comenta é que Antha é uma verdadeira prisioneira naquela casa."

Além desses raros relances, não sabemos praticamente nada sobre Antha durante os anos de 1930 a 1938, e aparentemente ninguém na família sabia grande coisa. Podemos, porém, concluir que todas as referências ao "homem de cabelos castanhos" se aplicam a Lasher. E se for esse o caso, temos maior quantidade de aparecimentos de Lasher nesse período do que em todas as décadas anteriores.

Na realidade, são tão numerosos os exemplos de aparecimento de Lasher que nossos investigadores se habituaram a apenas fazer anotações simples, como "Criada que trabalha em Third Street diz ter visto Antha e o homem passeando juntos" ou "Mulher na esquina de First com Prytania viu Antha parada debaixo do carvalho conversando com o homem".

A casa de First Street apresentava agora um ar de mistério sinistro até para os descendentes de Rémy Mayfair e dos irmãos e irmãs de Suzette, que haviam sido muito íntimos no passado.

Foi então que, em abril de 1938, os vizinhos presenciaram uma violenta briga de família em First Street. Janelas se quebraram, as pessoas ouviram gritos, e afinal uma jovem desvairada, carregando apenas uma bolsa a tiracolo, foi vista saindo correndo pelo portão da frente, na direção de St. Charles Avenue. Sem sombra de dúvida, tratava -se de Antha. Até mesmo os vizinhos sabiam disso e ficaram olhando por trás de cortinas de renda quando um carro da polícia estacionou apenas alguns instantes depois e Carlotta veio até a beira da calçada para falar com os dois policiais, que partiram de imediato, com a sirene soando aparentemente á caça da menina fujona.

Naquela noite, parentes em Nova York receberam telefonemas de Carlotta com a informação de que Antha havia fugido de casa e de que estava seguindo para Manhattan.

Eles ajudariam a procurá-la? Foram esses primos de Nova York que contaram á família de Nova Orleans. Primos ligaram para primos. Pouco: dias depois, Irwin Dandrich escrevia a Londres que a "pobrezinha da Antha” havia dado um salto para a liberdade.

Havia fugido para a cidade de Nova York Mas até onde conseguiria chegar?

Como acabou se revelando, Antha chegou longe.

Durante meses a fio, ninguém soube onde estava Antha Mayfair. A polícia detetives particulares e membros da família não conseguiram uma pista seque: do seu paradeiro. Carlotta fez três viagens de trem a Nova York durante esse período e ofereceu recompensas substanciais a qualquer funcionário da polícia da cidade que pudesse lhe oferecer ajuda na busca. Ela telefonou para Amand. Grady Mayfair, que há pouco tempo havia deixado o marido, Cortland, e lhe fez ameaças.

- Foi simplesmente horrível - disse Amanda a um nosso "espião" na sociedade. - Ela me convidou para almoçar no Waldorf. Bem, é claro que ele não queria ir. Era parecido com um convite para passear na jaula do leão no zoológico e almoçar com ele. Mas eu sabia que ela estava perturbada com o caso de Antha e achei que queria lhe dizer umas verdades. Eu queria lhe dizer que ela mesma havia afastado Antha; que ela nunca deveria ter isolado a pobre criança dos seus tios, tias e primos que a amavam.

- Mas, assim que me sentei á mesa, ela começou a me ameaçar. "Ouça o que lhe digo, Amanda. Se você estiver abrigando Antha, posso lhe criar problema que você nem acreditaria." Tive vontade de jogar minha bebida em cima dela Eu estava furiosa. "Carlotta Mayfair, nunca mais tente falar comigo. Nunca mais me escreva, me telefone ou apareça em minha casa. Eu já estava cheia de você em Nova Orleans. Eu já estava cheia do que sua família fez com Pierce e com Cortland. Nunca mais volte a se aproximar de mim.”

Posso lhe garantir que ela estava soltando fumaça pelas orelhas quando saí do Waldorf. Mas sabe, essa uma tática normal de Carlotta. Ela faz uma acusação assim que vê a outra pessoa Aliás, ela vem fazendo isso há anos. Desse jeito, a pessoa não tem a oportunidade de fazer sua acusação contra ela.

No inverno de 1939, nossos detetives localizaram Antha através de um método muito simples. Elaine Barrett, nossa especialista em bruxaria, num reunião de rotina com Evan Neville, insinuou que Antha devia ter financiado sua fuga com as famosas jóias e moedas de ouro da família Mayfair. Por que não procurar as lojas de Nova York onde esses objetos podiam ser trocados rapidamente por dinheiro? Antha foi localizada em menos de um mês.

Ela vinha, de fato, vendendo moedas de ouro raras e belíssimas com certa regularidade para se sustentar desde a chegada, em 1939. Todos os negociantes de moedas de Nova York a conheciam: uma linda jovem, bem-educada e de sorriso franco que sempre trazia mercadorias raríssimas, da coleção da sua família na Virgínia, dizia ela.

- A princípio, achei que o material era roubado - disse um negociante de moedas. – Quer dizer, aquelas eram três das melhores moedas francesas que eu já havia visto.

Paguei-lhe apenas uma fração do que valiam e fiquei só esperando. Mas não aconteceu absolutamente nada. Quando fiz a venda, guardei uma porcentagem para ela. E, quando ela me trouxe umas moedas romanas maravilhosas, paguei-lhe o preço justo. Agora ela já é da minha absoluta confiança. Prefiro trabalhar com ela do que com algumas das outras pessoas que vêm aqui, isso eu lhe garanto.

Foi simples seguir Antha de uma dessas lojas até um amplo apartamento em Christopher Street, em Greenwich Village, onde ela estava morando com Sean Lacy, um pintor jovem e bonito, de origem irlandesa-americana, que se revelava bastante promissor e que já havia feito exposições com obras suas, tendo obtido algumas críticas favoráveis. A própria Antha havia se tornado escritora. Todo mundo no prédio e no quarteirão conhecia o jovem casal. Nossos detetives recolheram montanhas de informações quase que da noite para o dia.

Antha era o único meio de sustento de Sean Lacy, diziam abertamente os amigos. Ela comprava qualquer coisa de que ele precisasse, e ele a tratava como uma rainha.

-Na verdade, ele a chama de "minha beldade sulina" e faz tudo por ela. Mas também, por que ele não faria?

O apartamento era "um lugar maravilhoso", cheio de estantes até o teto e de grandes poltronas estofadas, muito confortáveis.

- Sean nunca pintou tão bem. Ele fez três retratos dela, todos muito interessantes. E dá para se ouvir a máquina de escrever de Antha o tempo todo. Eu soube que ela vendeu um conto para alguma revistinha literária do Ohio. Eles deram uma festa por isso. Ela estava tão feliz. Ela no fundo é um pouco ingênua, mas é ótima pessoa.

- Ela seria boa escritora se escrevesse sobre o que conhece - disse num bar uma jovem que alegava ter sido namorada de Sean. - Mas ela escreve essas fantasias mórbidas sobre uma velha casa lilás em Nova Orleans e sobre um fantasma que mora na tal casa. Tudo muito solene. Difícil de vender. Ela realmente devia esquecer essa droga e escrever sobre suas experiências aqui em Nova York.

Os vizinhos gostavam do jovem casal.

- Ela não sabe cozinhar, nem fazer nada de prático - informou uma pintora que morava um andar acima deles.-Mas também, para que precisaria? Não é ela quem paga as contas? Uma vez perguntei a Sean onde ela arranjava dinheiro. Ele disse que ela tem uma bolsa sem fundo. Tudo que ela precisa fazer é enfiar a mão. Ele então riu. Finalmente, no verão de 1940, Elaine Barrett, escrevendo de Londres, recomendou a nosso detetive particular mais responsável em Nova York que tentasse entrevistar Antha. Elaine queria desesperadamente ir até Nova York em pessoa, mas isso estava fora de cogitação. Por isso, ela falou por telefone com Allan Carver, homem amável e sofisticado, que já trabalhava conosco há muitos anos. Carver era um senhor dos seus cinqüenta anos, bem vestido e de boas maneiras. Ele considerou simples a tarefa de entrar em contato com Antha. Um prazer, na verdade.

Eu a segui até o Metropolitan Museum of Art e depois me deparei com ela quando ela estava sentada diante de um dos quadros de Rembrandt, com os olhos fixos na pintura, perdida nos seus pensamentos. Ela é bonita, muito bonita, mas muito boêmia. Naquele dia estava toda envolta em lã, com os cabelos soltos. Sentei-me ao seu lado, deixei que visse um exemplar de contos de Hemingway e comecei uma conversa a respeito dele. É, ela havia lido Hemingway e gostava dele. Ela gostava de Rembrandt?

Gostava. E de Nova York como um todo? Ah, ela adorava morar aqui. Ela não queria nunca estar em nenhum outro lugar. A cidade de Nova York era como uma pessoa para ela. Nunca antes ela havia sido tão feliz quanto estava sendo agora.

Não havia a menor chance de tirá-la do museu comigo. Ela era muito reservada, muito respeitável. Por isso, tentei aproveitar a oportunidade ao máximo.

Consegui que falasse sobre si mesma, sua vida, seu marido e seus escritos. E, ela queria ser escritora. E Sean também queria. Sean não se sentiria feliz se ela também não se realizasse. Sabe, a única profissão que posso seguir é a de escritora. Sou totalmente despreparada para qualquer outra coisa. Quando se levou o tipo de vida que eu levei, não se serve para nada. Só escrever pode salvar a pessoa. Era no fundo muito comovente seu jeito de falar nisso. Ela parecia totalmente indefesa e absolutamente autêntica. Acho que, se eu tivesse uns trinta anos a menos, eu teria me apaixonado por ela.

Mas que tipo de vida você levou? -  insisti. Não consigo definir seu sotaque. Mas sei que não é de Nova York.

Sou de lá do sul, disse ela. Trata-se de um outro mundo. Ela entristeceu instantaneamente, ficando mesmo agitada. Quero me esquecer daquilo tudo. Não quero parecer grosseira, mas criei essa norma para mim mesma. Eu me disponho a escrever sobre o meu passado, mas não a falar sobre ele. Vou transformá-lo em arte, se puder, mas não vou falar dele. É que não quero lhe conferir vida aqui, fora do universo da arte, se o senhor me entende.

Considerei sua decisão inteligente e interessante. Estava gostando da moça. Não posso lhe dizer o quanto estava gostando dela. E sabe, no meu ramo de atividade, a gente se acostuma tanto a só usar as pessoas!

Pois então me fale do que você escreve, pedi. Basta que me conte um dos seus contos, por exemplo, supondo-se que escreva contos, ou me fale de um poema seu.

Se eles tiverem algum valor, o senhor vai lê-los um dia desses, disse ela, dando-me um sorriso de despedida antes de ir embora. Acho que ela começou a suspeitar de alguma coisa. Realmente não sei. Ela olhava para os lados de um jeito defensivo o tempo todo em que conversamos. A certa altura, cheguei a lhe perguntar se estava esperando alguém. Ela disse que realmente não, mas que "nunca se sabe". Sua atitude era a de quem acha que está sendo vigiada. E é claro que meu pessoal a estava vigiando o tempo todo. Eu me senti numa situação bem desagradável naquela hora, posso garantir.

Durante meses, continuaram a chegar relatos da felicidade de Antha e Sean. Sean, um individuo grande e corpulento com um senso de humor contagiante, montou uma mostra individual no Village que foi um sucesso total. Antha teve um poema curto seu (de sete versos) publicado na revista The New Yorker. O casal estava extasiado. Só em abril de 1941 os comentários mudaram de tom.

- Bem, ela está grávida - disse a pintora do andar de cima. - E ele não quer o filho, sabe? E é claro que ela quer, e só Deus sabe o que vai acontecer. Ele conhece um médico que pode cuidar do caso, sabe? Mas ela não quer ouvir falar nisso. Detesto que ela esteja passando por tudo isso, de verdade. Ela é frágil demais. Eu a ouço chorar aqui embaixo a noite inteira.

No dia 1° de julho, Sean Lacy morreu num acidente de automóvel (causado por defeito mecânico) quando voltava de uma visita á sua mãe enferma na região norte do estado de Nova York. Antha foi hospitalizada, histérica, em Bellevue.

- Nós simplesmente não sabíamos o que fazer com ela - disse a pintora. - Ela berrou sem parar durante oito horas seguidas. Afinal, chamamos Bellevue. Nunca vou saber se essa foi a melhor maneira de agir.

Os registros de Bellevue indicam que Antha parou de berrar ou na verdade de emitir qualquer som ou fazer qualquer movimento assim que foi admitida. Permaneceu catatônica durante mais de uma semana. Escreveu, então, o nome "Cortland Mayfair" num pedaço de papel, com as palavras "Advogado, Nova Orleans". Entraram em contato com a firma de Cortland às dez e meia da manhã seguinte. Cortland ligou imediatamente para sua ex-esposa, Amanda Grady Mayfair, em Nova York e lhe pediu que fosse até Bellevue e cuidasse de Antha até ele próprio poder chegar.

Seguiu-se, então, uma batalha horrenda entre Cortland e Carlotta. Cortland, insistindo no ponto de que ele deveria se encarregar de Antha já que ela própria havia mandado chamá-lo. Mexericos da época afirmam que Carlotta e Cortland apanharam juntos o trem para Nova York, a fim de ir buscar Antha.

Num almoço em que se embriagou e se emocionou, Amanda Grady Mayfair contou toda a história ao seu amigo (e nosso informante) Allan Carver, que sempre fazia questão de perguntar pela sua velha família sulina e suas estripulias góticas. Amanda falou da sua pobre sobrinha internada em Bellevue.

-... Foi simplesmente horrível. Antha não conseguia falar. Não conseguia. Ela tentava dizer alguma coisa e só conseguia gaguejar. Estava tão fragilizada. A morte de Sean a havia arrasado. Ela demorou vinte e quatro horas para escrever o endereço do apartamento em Greenwich Village. Fui até lá imediatamente com Ollie Mayfair, sabe quem é? Uma das netas de Rémy. E apanhamos as coisas de Antha. Ai, foi tão triste. É claro que todos os quadros de Sean pertenciam a Antha, já que ela era sua esposa, imaginei. Mas os vizinhos vieram e nos contaram que Antha não havia se casado com Sean. A mãe e o irmão dele já haviam vindo ali e iam voltar com um caminhão para levar tudo embora. Parece que a mãe de Sean não gostava de Antha por acreditar que Antha havia levado seu filho a essa vida de artista em Greenwich Village.

- Eu disse a Ollie, bem, eles podem levar tudo, mas não vão levar os retratos de Antha. Apanhei esses quadros e todas as roupas e objetos de Antha, além de uma velha bolsa de veludo cheia de moedas de ouro. Agora, eu já havia ouvido falar nessa bolsa, e, se você conhece a família Mayfair, não me diga que nunca ouviu falar dela. E os seus escritos, isso mesmo, seus textos. Embrulhei tudo: seus contos, capítulos de um romance e uns poemas que ela havia escrito. E sabe que mais tarde eu descobri que um poema seu havia saído em The New Yorker. The New Yorker. Mas isso eu só soube quando meu filho, Pierce, me contou. Ele foi á biblioteca para procurá-lo. Era muito curto, algo sobre a neve caindo e o museu no parque. Nada que realmente se pudesse chamar de poema. Era mais como um fragmento de vida, por assim dizer. Mas saiu em The New Yorker. Isso era o que contava. Foi tão triste tirar tudo de dentro daquele apartamento. Como desmanchar uma vida, sabe?

- Quando voltei ao hospital, Carlotta e Cortland já estavam lá. Estavam brigando no corredor. Mas você precisava ver e ouvir uma briga entre Cari e Cort para poder acreditar. Tudo se resumia a sussurros, gestos mínimos e lábios comprimidos. Era digno de se ver. Mas lá estavam os dois, falando um com o outro desse jeito, e eu sabia que um estava pronto para matar o outro.

- "Vocês sabem que essa menina está grávida?" perguntei. "Os médicos lhes disseram?"

- "Ela tem de se livrar do bebê", declarou Carlotta. Achei que Cortland fosse morrer. Eu mesma fiquei tão chocada que não sabia o que dizer.

-Como eu odeio Carlotta! Não me importa quem saiba disso. Eu a detesto. E sempre a detestei a minha vida inteira. Tenho pesadelos só de pensar nela a sós com Antha.

Disse a Cortland ali mesmo diante dela, "A menina precisa ser bem cuidada."

- Mas Cortland já havia tentado obter a guarda de Antha. Isso ele havia tentado bem no início, e Carlotta havia ameaçado brigar com ele, expor todo tipo de coisa a nosso respeito, sabe? Ah, ela e medonha. E Cortland havia desistido. Acho que ele sabia que agora também não ia conseguir ficar com Antha. "Olhe, Antha agora é uma mulher", disse eu. "Pergunte a ela para onde quer ir. Se ela quiser ficar em Nova York, pode ficar comigo. Pode ir morar com Ollie". Nem morta!

- Carlotta entrava para conversar com os médicos. Ela fazia seu papel. Conseguiu alguma espécie de transferência oficial de Antha para um hospital psiquiátrico em Nova Orleans. Ela ignorou Cortland como se ele nem existisse. Eu telefonei para todos os primos em Nova Orleans. Liguei para todos eles. Liguei até para Beatrice Mayfair de Esplanade Avenue, a neta de Rémy. Contei que Antha estava doente, que estava grávida e que precisava de atenção e carinho.

- E aí aconteceu uma coisa tristíssima. Estavam levando Antha para a estação ferroviária. Ela fez um gesto para eu me aproximar e cochichou no meu ouvido, "Guarde as minhas coisas para mim, tia Mandy. Ela vai jogar tudo fora, se a senhora não guardar." E imaginar que eu já havia despachado tudo para Nova Orleans. Liguei para meu filho Sheffield e falei com ele sobre isso. Pedi que Sheffield fizesse o possível por ela quando ela chegasse.

Antha voltou para a Louisiana de trem com seu tio e sua tia e foi imediatamente internada no sanatório de Santa Ana, onde permaneceu um mês e meio. Inúmeros parentes vinham visitá-la. As conversas em família indicavam que ela estava muito pálida e que às vezes era incoerente, mas que estava se recuperando.

Em Nova York, nosso detetive Allan Carver providenciou mais um encontro casual com Amanda Grady Mayfair.

- E a sobrinha, como vai indo?

- Ai, é a pior história que posso lhe contar! - Lamentou-se Amanda. - Você não pode imaginar. Sabe que a tia da garota disse aos médicos do hospício que queria que eles fizessem um aborto nela? Que ela era louca de nascença e que nunca se deveria permitir que tivesse um filho? Você alguma vez ouviu alguma história pior do que essa? Quando meu marido me contou isso, eu lhe disse que, se ele não fizesse alguma coisa imediatamente, eu nunca o perdoaria. É claro que ele disse que ninguém ia tocar no bebê. Os médicos não fariam uma coisa dessas, não a pedido de Carlotta, nem a pedido de ninguém. E então, quando eu liguei para Beatrice Mayfair em Esplanada Avenue e contei tudo a ela, Cortland ficou furioso. "Não me ponha todo mundo em pé de guerra", disse ele. Mas é exatamente isso o que eu pretendia fazer. Eu disse a Bea que fosse visitá-la, que não deixasse ninguém a impedir de entrar.

O Talamasca nunca pôde corroborar a história do aborto sugerido. Mas enfermeiras do sanatório mais tarde contaram a detetives nossos que dezenas de parentes vieram visitar Antha no hospício.

"Eles simplesmente não aceitam uma resposta negativa", escreveu Irwin Dandrich. "Eles insistem em vê-la e, ao que todos dizem, ela está bem. Está entusiasmada com o bebê, e é claro que eles a estão inundando com presentes. Sua jovem prima, Beatrice, trouxe umas roupinhas de neném de renda antiga que pertenceram à tia-avó Suzette. É claro que é do conhecimento geral que Antha não se casou com o pintor de Nova York. Mas também, que diferença isso faz, quando seu sobrenome é, e sempre será, Mayfair."

Os parentes se revelaram tão ativos quanto antes quando Antha recebeu alta do sanatório e veio para casa em First Street, para convalescer no antigo quarto de Stella no lado norte da casa. Enfermeiras lhe faziam companhia o dia inteiro, e obter informações delas foi muito simples para nossos investigadores.

O lugar era descrito como "insuportavelmente lúgubre". Mas Millie Dear e Belle cuidavam muito bem de Antha. Na verdade, elas não deixavam sobrar muita coisa para as enfermeiras. Millie Dear costumava ficar sentada com Antha o tempo todo na pequena sacada do quarto. E Belle tricotava lindas roupinhas para o bebê. Cortland passava por lá todas as noites após o trabalho.

- A dona da casa não queria que ele viesse, é o que eu acho - disse uma das enfermeiras. - Mas ele vinha. Sem falta. Ele e um mais moço, acho que seu nome era Sheffield.

Todas as noites, eles se sentavam com a paciente para conversar um pouco. Os comentários na família diziam que Sheffield havia lido parte dos textos de Antha dos tempos em Nova York e que Antha era "muito boa". As enfermeiras falavam nas caixas de Nova York, caixotes cheios de livros e papéis, que Antha só olhava, mas que estava ainda fraca demais para desempacotar.

- Eu no fundo não vejo nada de errado com ela em termos mentais - disse uma das enfermeiras. - A tia nos leva até o corredor para fazer perguntas estranhíssimas.

Ela dá a entender que a moça é louca de nascença e que pode machucar alguém. Mas os médicos não nos disseram nada disso. Ela é calada e melancólica. Ela dá a impressão de ser muito mais nova do que é. Mas não é o que eu chamaria de louca. Deirdre Mayfair nasceu no dia 4 de outubro de 1941, no antigo Hospital da Misericórdia junto ao rio, que mais tarde foi demolido. O parto parece não ter apresentado nenhuma dificuldade especial, e Antha estava profundamente anestesiada, como era costume naquela época. Os parentes encheram os corredores do hospital durante as horas de visita nos cinco dias em que Antha ali esteve. Seu quarto estava repleto de flores.

O bebê era uma menina bonita e saudável.

No entanto, aquele fluxo de informações, que havia aumentado tanto com o envolvimento de Amanda Grady Mayfair, sofreu uma interrupção abrupta duas semanas depois de Antha voltar para casa. Os primos descobriam que a porta lhes era fechada pela criada negra, tia Easter, ou por Nancy, quando vinham fazer sua segunda ou terceira visita. Na realidade, Nancy deixou o emprego de arquivista para cuidar do bebê ("Ou para impedir que entremos!" disse Beatrice a Amanda num telefonema interurbano) e ela era inflexível ao dizer que a mãe e a criança não podiam ser perturbadas.

Quando Beatrice ligou para perguntar sobre o batizado, disseram- lhe que o bebê já havia sido batizado na igreja de Santo Afonso. Indignada, ela ligou para Amanda em Nova York. Uns vinte primos "invadiram" a casa numa tarde de domingo.

- Antha ficou felicíssima ao vê-los! - disse Amanda a Allan Carver. - Ela estava simplesmente emocionada. Não fazia a menor idéia de que eles tivessem ligado para ela e aparecido para visitar. Ninguém chegara a lhe dizer nada. Ela não sabia que era costume dar festas para celebrar batizados. Carlotta havia organizado tudo. Ficou magoada quando percebeu o acontecido, e todos mudaram de assunto imediatamente. Mas Beatrice ficou furiosa com Nancy, e Nancy só está fazendo o que Carlotta mandou.

No dia 30 de outubro daquele ano, Antha foi oficialmente declarada beneficiária e administradora geral do legado Mayfair. Ela assinou uma procuração em que nomeava Cortland e Sheffield Mayfair seus representantes legais para todas as questões financeiras; e solicitou que eles estabelecessem imediatamente um crédito vultoso destinado à administração da "restauração" da casa de First Street. Ela demonstrava preocupação com as condições da propriedade inteira.

Comentários nos meios jurídicos dão conta de que Antha ficou perplexa ao descobrir que era proprietária do imóvel. Isso nunca lhe havia passado pela cabeça. Ela queria redecorar, pintar, restaurar tudo.

Carlotta não estava presente á reunião de Antha com os tios. Carlotta havia exigido que o escritório de advocacia da Mayfair & Mayfair lhe fornecesse, em nome de Antha, uma auditoria completa de tudo que havia sido feito desde a morte de Stella, alegando que os registros atuais eram insuficientes. Recusou-se, portanto, a participar de qualquer entendimento legal até receber essa auditoria "para exame".

Sheffield contou mais tarde á mãe, Amanda, que Antha havia sido propositalmente enganada no que dizia respeito ao legado. Ela pareceu magoada e até um pouco chocada quando tudo lhe foi explicado. E era Carlotta quem a havia magoado. Mas tudo o que ela dizia era que Carlotta provavelmente estivesse apenas pensando no seu bem o tempo todo.

O grupo foi almoçar tarde no Galatoire's para celebrar a ocasião. Antha estava ansiosa por não estar com o bebê, mas pareceu estar se divertindo. Quando estavam saindo, Sheffield ouviu Antha fazer a seguinte pergunta ao seu pai.

- Quer dizer que ela não poderia ter me mandado embora se quisesse? Ela não poderia ter me posto no olho da rua?

- A casa é sua, ma cherie - respondeu Cortland. - Ela tem permissão para morar ali, mas isso depende totalmente da sua aprovação.- Ancha pareceu ficar tão triste.

- Ela costumava me ameaçar - disse, baixinho. - Costumava dizer que me poria na rua se eu não fizesse o que ela mandava.

Cortland, então, afastou Ancha do grupo e a levou sozinha para casa. Ancha e o bebê foram almoçar alguns dias depois com Beatrice Mayfair em outro restaurante da moda no French Qarter. Uma babá estava á disposição para levar o bebê a passear no seu belo carrinho de vime branco enquanto as duas mulheres apreciavam o peixe e o vinho. Quando Beatrice descreveu tudo isso para Amanda mais tarde, disse que Ancha estava realmente amadurecida. Estava escrevendo novamente. Estava trabalhando num romance. E ia mandar reformar a casa de First Street inteira. Ela queria consertar a piscina. E chegou a falar um pouco sobre a mãe, sobre como a mãe gostava de dar festas. Ela parecia estar cheia de vida.

Na verdade, diversos empreiteiros foram procurados para dar orçamentos para uma "restauração completa, incluindo-se pintura, carpintaria e algum trabalho de pedreiro".

Os vizinhos ficaram felizes de ouvir essa notícia dos criados. Dandrich escreveu que um famoso escritório de arquitetura havia sido consultado quanto á reconstrução do galpão de carruagens.

Ancha escreveu uma breve carta a Amanda Grady Mayfair em meados de novembro, agradecendo- lhe por toda a ajuda em Nova York. Ela agradeceu também por Amanda estar enviando toda a correspondência de Greenwich Village. Dizia estar escrevendo contos e trabalhando mais uma vez no seu romance.

Quando o carteiro, o Sr. Bordreaux, passou por ali como de costume às nove da manhã no dia 10 de dezembro, Antha estava á sua espera no portão. Trazia com ela alguns envelopes grandes de papel pardo, prontos para seguir para Nova York. Será que podia comprar os selos com ele? Os dois calcularam o peso aproximadamente (ela disse que não podia deixar o bebê para ir até o correio) e ele levou os envelopes. Antha também lhe entregou um maço de correspondência simples para vários endereços em Nova York.

- Ela estava toda entusiasmada - disse o carteiro. - Ela ia ser escritora. Uma menina tão meiga. Nunca vou me esquecer. Comentei alguma coisa sobre o bombardeio de Pearl Harbor, disse que meu filho havia se alistado no dia anterior, e que agora afinal estávamos na guerra. E sabe de uma coisa? Ela nunca havia ouvido uma palavra sobre o assunto. Não sabia nada do bombardeio ou da guerra. Como se estivesse vivendo no meio de um sonho.

A "menina meiga" morreria naquela mesma tarde. Quando o mesmo carteiro passou com a correspondência da tarde ás três e meia, caía um temporal sobre aquela área do Garden District. Chovia "canivetes". Mesmo assim, uma multidão estava reunida no jardim da família Mayfair, e o rabecão estava no meio da rua. O vento soprava "feroz".

O Sr. Bordreaux ficou por ali apesar da tempestade.

- Miss Belle estava na varanda, soluçando. E Miss Millie tentou me dizer o que estava acontecendo, mas não conseguiu dizer palavra. Miss Nancy veio, então, até a beira da varanda e gritou para mim, "Pode ir, Sr. Bordreaux. Tivemos uma morte aqui. Pode ir, e saia dessa chuva".

O Sr. Bordreaux atravessou a rua e procurou abrigo na varanda de uma casa vizinha. A governanta lhe disse pela porta de tela que Ancha Mayfair era quem havia morrido. Parecia que ela havia caído do telhado da sacada do terceiro andar. Era fortíssima a tempestade, segundo o carteiro, um verdadeiro furacão. Mesmo assim, ele ficou ali para ver enquanto um corpo era colocado no rabecão. Red Lonigan estava lá, com seu primo Leroy Lonigan. Então, o veículo foi embora. O Sr. Bordreaux voltou, afinal, a entregar a correspondência, e logo, mais ou menos ao chegar a Prytania Street, o tempo já estava limpo. No dia seguinte, quando passou por ali, a calçada estava coberta de folhas.

Ao longo dos anos, o Talamasca recolheu muitas histórias relacionadas á morte de Ancha, mas o que realmente aconteceu na tarde do dia 10 de dezembro pode nunca ser revelado. O Sr. Bordreaux foi o último "estranho" a ver ou a falar com Ancha. Naquele dia, a babá da criança, uma senhora idosa chamada Alice Flanagan, não foi trabalhar por estar doente.

O que se sabe, a partir dos registros da polícia e de conversas reservadas extraídas da família Lonigan e dos padres da paróquia, é que Ancha saltou ou caiu do telhado da sacada, abaixo da janela do sótão do antigo quarto de Julien em algum momento antes das três da tarde.

A versão de Carlotta, compilada a partir dessas mesmas fontes, foi como se segue. Ela vinha discutindo muito com Antha a respeito da criança, já que Antha havia chegado a um ponto de degeneração tal que nem alimentava o bebê.

- Ela não estava de modo algum preparada para ser mãe - disse Miss Carlotta ao policial. Antha passava horas batendo à máquina cartas, contos e poesia, e Nancy e as outras precisavam bater com força na porta do quarto para fazer com que ela percebesse que Deirdre estava chorando e que precisava que a amamentassem ou que lhe dessem uma mamadeira.

Antha ficou "histérica" durante essa última discussão. Ela subiu correndo os dois lances de escada até o sótão, gritando que a deixassem em paz. Carlotta, receando que ela se machucasse, o que acontecia com freqüência, segundo Carlotta, entrou atrás de Antha no antigo quarto de Julien. Ali, Carlotta descobriu que Antha havia tentado arrancar os próprios olhos e que havia de fato conseguido fazer brotar muito sangue.

Quando Carlotta procurou controlá-la, Antha se soltou com violência, caindo para trás pela janela em cima do telhado da sacada de ferro fundido. Ali ela pareceu conseguir engatinhar até a beirada, quando perdeu o equilíbrio ou pulou. Morreu instantaneamente quando sua cabeça atingiu as lajes três andares abaixo.

Cortland ficou fora de si quando soube da morte da sobrinha. Foi imediatamente para First Street. O que contou a sua mulher em Nova York mais tarde foi que Carlotta estava absolutamente tresloucada. O padre estava com ela, um certo padre Kevin, da paróquia redentorista. Carlotta não parava de repetir que ninguém compreendia como Antha era frágil.

- Eu tentei impedir! - disse Carlotta. - Em nome de Deus, o que se esperava que eu fizesse?

Millie Dear e Belle estavam por demais perturbadas para falar. Belle parecia estar confundindo tudo com a morte de Stella. Só Nancy tinha coisas abertamente desagradáveis a dizer. Queixava-se de que Antha havia sido mimada e protegida a vida inteira, que sua cabeça estava cheia de sonhos tolos.

Quando Cortland entrou em contato com Alice Flanagan, a babá, ela pareceu receosa. Já tinha alguma idade cera parcialmente cega. Disse não saber nada de Antha jamais ter se machucado, de ficar histérica, ou qualquer coisa parecida. Ela recebia ordens de Miss Carlotta. Miss Carlotta havia sido boa com sua família. Miss Flanagan não queria perder o emprego.

- Só quero cuidar daquele lindo bebê - disse ela á polícia. - Aquele pequeno bebê precisa de mim agora. - E ela de fato cuidou de Deirdre até a menina completar cinco anos de idade.

Afinal, Cortland disse a Beatrice e a Amanda que deixassem Carlotta em paz. Carlotta era a única testemunha do que havia acontecido. E, não importa o que houvesse acontecido naquela tarde, sem dúvida a morte de Antha havia sido um acidente horrível. O que se podia fazer?

Nenhuma investigação séria se seguiu á morte de Antha. Não houve autópsia. Quando o agente funerário teve suspeitas após examinar o cadáver e concluir que os arranhões no rosto de Antha não poderiam ter sido feitos por ela mesma, ele entrou em contato com o médico da família e recebeu o conselho ou a ordem de deixar para lá. Antha era louca. Esse era o diagnóstico informal. Durante toda a sua vida, ela fora desequilibrada. Ela havia sido internada em Bellevue e no sanatório de Santa Ana. Ela dependia dos outros para cuidar de si mesma e da sua filha.

Depois da morte de Stella, a esmeralda Mayfair nunca mais havia sido mencionada em associação ao nome de Antha. Nenhum parente ou amigo jamais relatou tê-la visto.

Sean Lacy nunca pintou Antha com a jóia. Ninguém em Nova York ouviu falar nela. No entanto, quando Antha morreu, estava com a esmeralda no pescoço. A pergunta é óbvia. Por que estaria Antha usando a esmeralda justo naquele dia? Teria sido o fato de estar usando a jóia que precipitou a discussão fatal? E se os arranhões no rosto de Antha não haviam sido feitos por ela mesma, teria Carlotta tentado arrancar os olhos de Antha? E em caso positivo, por que? Qualquer que tenha sido o caso, a mansão de First Street estava mais uma vez envolta em mistério. Os planos de Antha para uma restauração nunca foram concretizados.

Depois de violentas discussões nos escritórios da Mayfair & Mayfair (Carlotta uma vez saiu furiosa, batendo a porta com tanta força que quebrou o vidro), Cortland chegou a requerer a guarda de Deirdre, ainda bebê. Alexander, neto de Clay Mayfair, também se ofereceu. Ele e a mulher, Eileen, tinham uma linda mansão em Metairie. Poderiam adotar a criança oficialmente ou apenas recebê-la informalmente, dependendo da decisão de Carlotta.

- Cortland quer que eu volte para casa para cuidar do bebê. Eu lhe digo que sinto tanta pena da criança. Mas não posso voltar para Nova Orleans depois de todos esses anos - disse Amanda Grady Mayfair ao nosso espião na sociedade nova-iorquina, Allan Carver.

Carlotta quase riu diante de todas essas "almas caridosas", como os chamou. Ela disse ao juiz, e na verdade a qualquer um da família que lhe fizesse a pergunta, que Antha havia sido uma pessoa muito doente. Era loucura congênita sem a menor dúvida, e poderia aparecer também na sua filhinha. Carlotta não tinha nenhuma intenção de tirar Deirdre da casa da sua mãe, ou afastá-la da querida Miss Flanagan, da doce Belle ou da meiga Millie, que todas elas adoravam a menina e tinham tempo para cuidar dela dia após dia como nenhuma outra pessoa.

Quando Cortland se recusou a recuar, Carlotta o ameaçou diretamente. Sua mulher o havia deixado, não era verdade? Será que a família não ia querer saber depois de todos esses anos exatamente que tipo de homem Cortland era? Os primos ficaram pensando nas suas críticas e insinuações. O juiz se "impacientou". Na sua opinião, Carlotta Mayfair era mulher de virtude impecável e de excelente discernimento. Por que a família não podia aceitar a situação? Pelo amor de Deus, se cada bebê órfão tivesse tias tão boas quanto Millie, Belle e Carlotta, este mundo seria muito melhor. O legado ficou nas mãos da Mayfair & Mayfair, e a criança, nas mãos de Carlotta. E a questão foi encerrada abruptamente.

Apenas uma vez ocorreu outra investida contra a autoridade de Carlotta. Foi em 1945. Cornell Mayfair, um dos primos de Nova York e descendente de Lestan, acabava de terminar sua residência no Massachusetts General. Estava se formando em psiquiatria. Ele havia ouvido "histórias incríveis" sobre a casa de First Street da sua prima (por afinidade) Amanda Grady Mayfair. E também de Louisa Ann Mayfair, a neta mais velha de Garland, que estudou em Radcliffe e teve um caso com Cornell enquanto estava lá. Que história era essa de loucura congênita? Cornell estava fascinado. Ele também estava ainda apaixonado por Louisa Ann, que havia voltado para Nova Orleans, em vez de se casar com ele para morar em Massachusetts, e ele não conseguia entender a adoração da moça pela cidade natal. Teve vontade de visitar Nova Orleans e a família de First Street, e os primos de Nova York acharam que era uma boa idéia.

- Quem sabe? - perguntou ele a Amanda num almoço no Waldorf. - Talvez eu goste da cidade, e pode ser que Louisa Ann e eu consigamos descobrir um jeito de resolver as coisas.

No dia 11 de fevereiro, Cornell chegou a Nova Orleans, registrando-se num hotel no centro.

Ele pediu a Carlotta que conversasse com ele, e ela concordou com uma visita sua a First Street.

Como Cornell mais tarde relatou a Amanda num interurbano, ele permaneceu na casa talvez umas duas horas, tendo ficado sozinho com a pequena Deirdre, de quatro anos, por uma parte desse tempo.

- Não posso dizer o que descobri, mas essa criança precisa ser retirada daquele ambiente. E para ser franco, não quero envolver Louisa Ann nisso. Conto-lhe a história toda quando chegar a Nova York.

Amanda insistiu com ele para que ligasse para Cortland, a fim de transmitir a Cortland todas as suas preocupações. Cornell confessou que Louisa Ann lhe havia feito a mesma sugestão.

- Não quero fazer isso neste exato instante - disse Cornell. - Acabei de me encher com a tal Carlotta. Não quero conhecer mais nenhuma dessas pessoas hoje.

Com a certeza de que Cortland poderia ser útil, Amanda telefonou para ele e contou o que estava acontecendo. Cortland apreciou o interesse do Dr. Mayfair e ligou para Amanda naquela mesma tarde para lhe dizer que havia marcado um encontro com Cornell para jantar no Kolb's no centro. Ele voltaria a ligar para ela depois dessa conversa, mas até agora estava gostando do jovem médico. Estava ansioso para ouvir o que Cornell tinha a dizer.

Cornell não apareceu para o jantar. Cortland esperou uma hora no Kolb's Restaurant e ligou para o quarto de Cornell. Não houve resposta. Na manhã do dia seguinte, a camareira encontrou o corpo de Cornell. Estava completamente vestido deitado na cama desarrumada, com os olhos meio abertos e um copo meio vazio de bourbon na mesa-de-cabeceira. Não foi encontrada nenhuma causa imediata da sua morte.

Quando foi feita a autópsia, a pedido da mãe de Cornell bem como do médico-legista de Nova Orleans, descobriu-se nas veias do rapaz uma pequena quantidade de um poderoso narcótico, misturado ao álcool. O caso foi classificado como uma dose excessiva acidental, sem haver maiores investigações. Amanda Grady Mayfair nunca se perdoou por ter mandado o jovem Dr. Cornell Mayfair até Nova Orleans. Louisa Ann "nunca se recuperou" do choque e continua solteira até hoje. Cortland, perturbadíssimo, acompanhou o caixão na viagem de volta a Nova York. Teria sido Cornell vitima das Bruxas Mayfair? Mais uma vez somos forçados a admitir que não sabemos. Um detalhe, porém, nos dá alguma indicação de que Cornell não morreu da pequena quantidade de narcótico e álcool no seu sangue. O médico-legista que examinou o corpo antes que ele fosse retirado do quarto do hotel salientou que os olhos do morto estavam cheios de vasos sangüíneos estourados. Hoje sabemos que esse é um sintoma da asfixia. É possível que alguém tenha deixado Cornell completamente indefeso ao pôr uma droga na sua bebida (foi encontrado bourbon no copo sobre a mesa) e depois o sufocou com um travesseiro quando ele não podia mais se defender.

Quando o Talamasca procurou investigar o caso (através de um renomado detetive particular), as pistas já haviam se dissipado. Ninguém no hotel conseguiu se lembrar se Cornell Mayfair recebeu ou não visitas naquela tarde. Ele teria pedido o bourbon no serviço de copa? Ninguém jamais havia feito essas perguntas antes. Impressões digitais? Nem uma sequer havia sido tirada. Afinal, não se tratava de assassinato...

Agora, porém, já é hora de nos voltarmos para Deirdre Mayfair, a atual herdeira do legado Mayfair, órfã aos dois meses de idade, deixada nas mãos de tias idosas.

 

Deirdre Mayfair

A casa de First Street continuou a se deteriorar após a morte de Antha. A essa altura, a piscina já se havia transformado numa poça pantanosa e fétida cheia de lentilha-d'água e de íris silvestre, com seus chafarizes enferrujados a lançar jatos de água verde no caldo imundo. Mais uma vez foram aferrolhadas as janelas do quarto principal voltado para o norte. A tinta lilás-acinzentada continuou a descascar nas paredes de alvenaria.

A velha Miss Flanagan, quase totalmente cega no seu último ano, cuidou da pequena Deirdre até pouco antes do seu quinto aniversário. De vez em quando ela levava o bebê para uma volta ao quarteirão num carrinho de vime, mas nunca atravessava a rua. Cortland vinha no Natal. Ele tomava xerez no longo salão da frente com Millie Dear, Belle e Nancy.

- Eu lhes disse que desta vez iam ter de me permitir entrar - explicou ele ao filho, Pierce, que mais tarde contou a sua mãe. - Não, senhor. Eu queria ver aquela criança com meus próprios olhos no dia do seu aniversário e no Natal. Eu ia segurá-la nos meus braços. - Cortland fez declarações semelhantes às suas secretárias no escritório da Mayfair & Mayfair, que eram freqüentemente quem comprava os presentes que Cortland levava para First Street.

Anos mais tarde, Ryan Mayfair, neto de Cortland, tocou nesse assunto com um "conhecido" simpático numa festa de casamento.

- Meu avô detestava ir até lá. Nossa casa em Metairie sempre foi tão cheia de alegria. Meu pai dizia que vovô voltava para casa chorando. Quando Deirdre estava com três anos de idade, Vovô fez com que elas armassem sua primeira árvore de Natal em anos.

Ele levou para lá uma caixa de enfeites para ela. Comprou as lâmpadas na Katz and Bestoff e ele mesmo as instalou. É tão difícil imaginar as pessoas morando num ambiente tão lúgubre. Eu gostaria de ter realmente conhecido meu avô. Ele nasceu naquela casa. Já pensou? E o pai dele, Julien, havia nascido antes da Guerra de Secessão.

A essa altura, Cortland já era o retrato do seu pai, Julien. Fotografias dele, mesmo as de meados da década de 1950, mostram- no um homem alto, esguio, com cabelos negros, grisalhos apenas nas têmporas. Seu rosto de rugas profundas era extraordinariamente parecido com o do pai, a não ser pelo fato de seus olhos serem muito maiores, lembrando os olhos de Stella, embora ele tivesse a expressão amável de Julien e muitas vezes o mesmo sorriso alegre do pai.

Na opinião de todos, a família de Cortland o adorava. Seus empregados o idolatravam; e, embora o houvesse deixado anos antes, até mesmo Amanda Grady Mayfair parecia tê-lo amado sempre, ou foi o que ela disse a Allan Carver em Nova York no ano em que morreu. Amanda chorou no ombro de Allan pelo fato de seus filhos nunca terem compreendido por que ela abandonou o pai deles; e o pior era que ela não tinha nenhuma intenção de lhes contar.

Ryan Mayfair, que conheceu seu avô Cortland superficialmente, era extremamente afeiçoado a ele. Para ele e para seu pai, Cortland era um herói. Ele jamais conseguiu entender como sua avó pôde "desertar", indo para NovaYork.

Como era Deirdre durante esse período inicial? Foi- nos impossível descobrir uma única descrição dela nos seus cinco primeiros anos de vida, a não ser a lenda corrente na família de Cortland de que ela era uma menina muito bonita.

Seus cabelos negros eram finos e ondulados, como os de Stella. Os olhos eram grandes e de um azul-escuro.

A casa de First Street estava, porém, mais uma vez fechada para o mundo exterior. Uma geração de transeuntes havia se acostumado à sua fachada descuidada e ameaçadora. Novamente, os operários não conseguiam realizar consertos no imóvel. Um especialista em telhados caiu duas vezes da escada e se recusou a voltar ali. Somente o velho jardineiro e seu filho se dispunham a vir ocasionalmente para limpar o jardim coberto de mato.

À medida que foram morrendo os paroquianos, com eles morriam certas lendas acerca da família Mayfair. Outras histórias sofreram uma transformação tão infeliz com o tempo ao ponto de se tornarem irreconhecíveis. Novos detetives substituíam os antigos. Logo, ninguém a quem se fizesse uma pergunta acerca da família Mayfair citava mais os nomes de Julien, Katherine, Rémy ou Suzette.

Barclay, filho de Julien, faleceu em 1949. Seu irmão Garland, em 1951. Um filho de Cortland, Grady, morreu no mesmo ano de Garland, depois de cair de um cavalo no Audubon Park. Sua mãe, Amanda Grady Mayfair, faleceu pouco tempo depois, como se a morte do seu querido Grady tivesse sido mais do que ela pudesse suportar. Dos dois filhos de Pierce, somente Ryan Mayfair "conhece a história da família" e regala os sobrinhos mais novos, muitos dos quais não sabem absolutamente nada, com estranhas histórias.

Irwin Dandrich morreu em 1952. Seu papel já havia sido preenchido, no entanto, por uma "espiã de sociedade", uma mulher chamada Juliette Milton, que recolheu inúmeras histórias ao longo dos anos com Beatrice Mayfair e outros primos do centro da cidade, muitos dos quais almoçavam com Juliette com regularidade e não pareciam se importar com o fato de ela ser uma mexeriqueira que lhes contava tudo sobre todo mundo e contava a todo mundo tudo sobre eles. Como Dandrich, Juliette não era uma pessoa realmente maliciosa. Na verdade, ela nem mesmo parece ter sido pouco gentil. Ela adorava o melodrama, porém, e escrevia cartas incrivelmente longas aos nossos advogados em Londres, que lhe pagavam uma soma anual equivalente à pensão que antes havia sido sua única fonte de sustento.

Como também ocorreu co m Dandrich, Juliette nunca soube a quem estava fornecendo todas essas informações sobre a família Mayfair. E embora tocasse no assunto pelo menos uma vez por ano, ela nunca insistiu.

Em 1953, quando comecei a me dedicar integralmente à tradução das cartas de Petyr van Abel, eu lia os relatos acerca de Deirdre, que estava com doze anos, à medida que eles chegavam. Mandei detetives à cata de qualquer informação, por mínima que fosse.

- Pesquisem - dizia eu. - Contem- me tudo a seu respeito desde o início. Não há nada que eu não queira saber. - Liguei para Juliette Milton pessoalmente. Disse-lhe que pagaria bem por qualquer coisa nova que ela descobrisse.

Pelo menos, durante os primeiros anos da sua vida, Deirdre seguiu o exemplo da sua mãe, sendo expulsa de uma escola após a outra por suas "travessuras" e "comportamento estranho", por suas interrupções nas aulas e por estranhas crises de choro que nada conseguia acalmar.

Mais uma vez, a irmã Bridget Marie, então com seus sessenta anos, viu o "amigo invisível" em ação no pátio da escola de Santo Afonso, encontrando objetos para a pequena Deirdre e fazendo flores voar pelos ares. O Sagrado Coração, o das Ursulinas, o São José, o Nossa Senhora dos Anjos. Todos esses colégios expulsaram a pequena Deirdre em poucas semanas. A menina ficava em casa meses a fio. Os vizinhos a viam "correndo solta" no jardim ou subindo no grande carvalho nos fundos do terreno. Já não havia mais uma criadagem na casa de First Street. A filha de tia Easter, Irene, era quem cuidava da cozinha e da limpeza de tudo com afinco. Todos os dias de manhã ela varria as calçadas ou o passeio, como se chamava na época. Às três da tarde, via-se Irene torcendo o esfregão na torneira junto ao portão dos fundos do jardim.

Nancy Mayfair era na realidade a dona da casa, comandando tudo com um jeito brusco e ofensivo, ou pelo menos era o que diziam os entregadores e padres que de vez em quando apareciam por lá.

Millie Dear e Belle, duas velhinhas pitorescas, se não bonitas, cuidavam das poucas rosas junto à varanda lateral, que haviam sido salvas do mato que agora cobria a propriedade inteira, desde a cerca da frente até o muro dos fundos. Toda a família comparecia à missa das nove aos domingos na capela. A pequena Deirdre, linda no seu vestido azul- marinho em estilo marinheiro e chapéu de palha com fitas; Carlotta, num costume escuro, formal, e blusa de gola alta; e as duas velhinhas, Millie Dear e Belle, trajadas com perfeição nos seus vestidos de gabardine com renda, sapatos pretos de amarrar e luvas escuras.

Miss Millie e Miss Belle costumavam fazer compras juntas às segundas, pegando um táxi de First Street até Gus Mayer ou Godchaux's, as melhores lojas de Nova Orleans, onde compravam seus vestidos cinza-pérola, seus chapéus floridos com véus e outros acessórios elegantes. As atendentes do balcão de cosméticos as conheciam pelo nome. Vendiam-lhes pó-de-arroz, ruge cremoso e perfume Christmas Night. As duas velhinhas almoçavam na lanchonete da D. H. Holmes antes de apanhar um táxi para voltar para casa. E elas, e somente elas, representavam a família de First Street em enterros, ocasionalmente em batizados e até mesmo raras vezes num casamento ou outro, embora quase nunca fossem à recepção após a missa nupcial. Millie e Belle chegavam mesmo a comparecer a enterros de outros paroquianos e costumavam ir ao velório se fosse ali perto, na Lonigan and Sons. Freqüentavam a novena de terça- feira à noite na capela e às vezes no verão traziam debaixo da asa a pequena Deirdre, orgulhosas da menina, dando-lhe pedacinhos de chocolate durante o serviço para que ela ficasse quieta.

Ninguém mais se lembrava de algum dia ter havido algo de "errado" com Miss Belle. Na verdade, as duas senhoras conquistaram com facilidade o respeito e a benevolência do Garden District, especialmente entre as famílias que nada sabiam das tragédias e segredos da família Mayfair. A casa de First Street não era a única mansão que se reduzia a pó por trás de uma cerca enferrujada.

Nancy Mayfair, por outro lado, parecia ter nascido e crescido numa classe totalmente diferente. Suas roupas sempre foram desmazeladas. Não lavava os cabelos castanhos e só os penteava superficialmente. Teria sido fácil confundi-la com uma criada contratada. Mas ninguém jamais questionou o fato de ela ser irmã de Stella, o que naturalmente ela não era. Nancy começou a usar sapatos pretos de amarrar quando tinha só trinta anos. Resmungando, ela pagava aos entregadores t irando o dinheiro de uma carteira gasta. Ou gritava da varanda de cima para mandar embora algum ambulante que estivesse junto ao portão.

Era com essas mulheres que a pequena Deirdre passava seus dias quando não estava se esforçando para prestar atenção numa sala de aula superlotada, o que sempre terminava em fracasso e rejeição.

Repetidamente as mexeriqueiras da paróquia comparavam Deirdre à mãe. Os primos diziam que talvez fosse "loucura congênita", embora no fundo ninguém soubesse. No entanto, para aqueles que observavam a família mais de perto, apesar da distância de muitos quilômetros, certas diferenças entre mãe e filha ficaram aparentes desde cedo.

Enquanto Antha sempre foi magra e tímida por natureza, havia em Deirdre algo de rebelde e de inegavelmente sensual desde o início. Os vizinhos a viam com freqüência correr como "um menino" pelo jardim. Aos cinco anos de idade, ela conseguia subir no enorme carvalho até o alto. Às vezes, ela se escondia nos arbustos ao longo da cerca para poder assustar de propósito quem passasse por ali.

Aos nove anos de idade, ela fugiu pela primeira vez. Carlotta ligou para Cortland em pânico. Chamaram, então, a polícia. Finalmente, uma Deirdre tremendo de frio apareceu no alpendre do Orfanato de Santa Isabel em Napoleon Avenue, dizendo às irmãs que ela era "amaldiçoada" e "possuída pelo demônio". Precisaram chamar um padre para ela. Cortland veio com Carlotta para levá-la para casa.

- Excesso de imaginação - disse Carlotta. A frase iria se tornar um chavão.

Um ano depois, a polícia encontrou Deirdre perambulando na tempestade pelo Bayou St. John, tremendo e chorando, a dizer que tinha medo de voltar para casa. Durante duas horas, ela contou à polícia mentiras sobre seu nome e sua condição social. Ela era uma cigana que chegou à cidade com um circo. Sua mãe havia sido assassinada pelo domador de animais. Ela havia tentado "cometer suicídio com um veneno raro", mas havia sido levada para um hospital na Europa, onde tiraram todo o sangue das suas veias.

- Havia uma coisa tão triste e tão doida naquela criança - disse depois o policial a um investigador nosso. - Ela falava absolutamente a sério e uma expressão louquíssima aparecia nos seus olhos azuis. Ela nem ergueu os olhos quando o tio e a tia vieram apanhá-la.

Fingiu não os conhecer. Depois, disse que eles a mantinham acorrentada num quarto no segundo andar.

Aos dez anos de idade, Deirdre foi mandada para a Irlanda, para um colégio interno recomendado por um padre de origem irlandesa, da catedral de São Patrício, o padre Jason Power. Os comentários em família diziam que a idéia havia sido de Cortland.

-Vovô queria tirá-la daqui - comentou Ryan Mayfair alguns anos mais tarde.

Mas as irmãs em County Cork mandaram Deirdre de volta para casa em menos de trinta dias.

Durante dois anos, Deirdre estudou com uma preceptora chamada Miss Lampton, uma velha amiga de Carlotta, do Sagrado Coração. Miss Lampton disse a Beatrice Mayfair (de Esplanade Avenue, no centro da cidade) que Deirdre era uma menina encantadora e muito inteligente.

- Ela tem uma imaginação exagerada. É só isso que está errado com ela, e passa tempo demais sozinha.

Quando Miss Lampton se mudou para o norte para se casar com um viúvo que havia conhecido nas férias de verão, Deirdre chorou dias a fio.

Mesmo durante esses anos, houve brigas na casa de First Street. As pessoas ouviam os gritos. Deirdre muitas vezes saía de dentro de casa chorando. Ela costumava subir no carvalho até ficar fora do alcance de Irene ou de Miss Larnpton. Às vezes ficava lá em cima até depois do anoitecer.

Com a adolescência, porém, Deirdre sofreu uma mudança. Ela se tornou reservada, cheia de segredos, sem mais nada da menina levada. Aos treze anos de idade, ela era muito mais sensual do que Antha havia sido na idade adulta. Usava os cabelos negros e ondulados compridos e repartidos ao meio, presos por uma fita lilás. Seus grandes olhos azuis pareciam eternamente desconfiados e um pouco tristes.

Na verdade, a menina tinha uma aparência oprimida, segundo as mexeriqueiras que a viam na missa dominical.

- Ela já era uma linda mulher - disse uma das senhoras que freqüentavam a capela normalmente. - E aquelas velhinhas não percebiam. Costumavam vesti-la como se ainda fosse criança.

Os comentários nos meios jurídicos revelavam outros problemas. Uma tarde, Deirdre entrou correndo na sala de espera do escritório de Cortland.

- Ela estava histérica - disse mais tarde a secretária. - Durante uma hora inteira, ela gritou e chorou lá dentro com o tio. E vou lhe dizer mais uma coisa, uma coisa que só notei na hora em que ela estava indo embora. Os sapatos dela não formavam par! Estava com um mocassim marrom num pé e um sapato preto sem salto no outro.

Acho que nem ela percebeu. Cortland levou-a para casa. Não sei se ele chegou a perceber. Nunca mais a vi depois disso.

No verão antes do aniversário de quatorze anos de Deirdre, ela foi levada às pressas para o novo Hospital da Misericórdia. Havia tentado cortar os pulsos.

Beatrice foi visitá-la.

- Aquela menina tem uma disposição que Antha simplesmente não tinha - disse Beatrice a Juliette Milton. - Mas ela precisa de conselhos femininos. Ela queria que eu lhe comprasse cosméticos. Disse que só entrou numa farmácia uma vez na vida inteira.

Beatrice trouxe os cosméticos para o hospital só para ser informada de que Carlotta havia proibido todas as visitas. Quando Beatrice ligou para Cortland, este confessou não saber por que Deirdre cortara os pulsos.

- Pode ser que ela só quisesse sair daquela casa.

Naquela mesma semana, Cortland conseguiu que Deirdre fosse para a Califórnia. Ela foi de avião para Los Angeles para ficar com Andrea Mayfair, que havia se casado com um médico da equipe do Hospital Cedros do Líbano. Mas Deirdre estava de volta a casa, ao final de duas semanas.

Os parentes de Los Angeles não disseram nada a ninguém quanto ao que aconteceu, mas anos mais tarde seu único filho, Elton, contou a detetives que sua pobre prima de Nova Orleans era louca. Que ela acreditava ser amaldiçoada por algum tipo de herança; que ela havia falado em suicídio com ele, o que horrorizou seus pais. Que eles a haviam levado a médicos que afirmavam que ela nunca seria normal.

- Meus pais queriam ajudá-la, especialmente minha mãe. Mas a família ficou muito fragilizada. Acho que o que realmente deu um basta na história foi que eles a viram no quintal uma noite com um homem, e ela não quis confessar. Insistia em negar isso. E meus pais tiveram medo que alguma coisa acontecesse. Acho que ela estava com uns treze anos, e era muito bonita. Eles a mandaram de volta para casa. Beatrice contou mais ou menos a mesma história para Juliette Milton.

- Acho que Deirdre parece adulta demais para a idade - disse ela. Mesmo assim, não quis acreditar que Deirdre tivesse mentido acerca de companhias masculinas. - Ela só está confusa. - E Beatrice negava peremptoriamente que houvesse loucura congênita.

Aquilo era só uma lenda iniciada por Carlotta, uma lenda que deveria ser esquecida.

Beatrice foi até First Street para ver Deirdre e levar alguns presentes. Nancy não permitiu que entrasse.

A mesma misteriosa companhia masculina foi responsável pela expulsão mais traumatizante para Deirdre, a do colégio interno de Santa Rosa de Lima, quando estava com dezesseis anos de idade. Deirdre permaneceu nessa escola todo um semestre sem nenhum problema e estava no meio do trimestre da primavera quando ocorreu o incidente. Os mexericos em família diziam que Deirdre estava felicíssima no Santa Rosa, que ela havia dito a Cortland que não queria nunca voltar para casa. Mesmo no Natal, Deirdre havia ficado no colégio, só saindo com Cortland para uma ceia antecipada na véspera de Natal.

Deirdre adorava os balanços no pátio dos fundos, que eram grandes o suficiente para as crianças maiores, e ao entardecer ela costumava ficar ali cantando com uma outra menina, Rita Mae Dwyer (mais tarde Lonigan), que se lembrava de Deirdre como uma pessoa rara e especial; elegante e inocente; romântica e meiga.

Recentemente, em 1988, foram obtidos mais dados sobre essa expulsão diretamente com Rita Mae Dwyer Lonigan, em conversa com este investigador.

O "amigo misterioso" de Deirdre se encontrou com ela no jardim das freiras ao luar e falou baixinho, mas alto o suficiente para Rita ouvir.

- Ele a chamou de "minha amada" - disse- me Rita Mae. Ela nunca havia ouvido palavras tão românticas a não ser no cinema.

Indefesa e soluçando de tristeza, Deirdre não pronunciou uma palavra quando as freiras a acusaram de "trazer um homem para o recinto da escola". Elas haviam vigiado Deirdre e seu companheiro, espiando, pelas venezianas da cozinha do convento, o jardim onde os dois se encontravam no escuro.

- Não era nenhum menino - disse mais tarde uma das freiras, furiosa, às internas reunidas. - Era um homem! Um homem adulto!

Os registros da época são quase cruéis nas suas acusações.

-A menina é fingida. Ela permitiu que o homem a tocasse com indecência. Sua inocência é apenas de fachada.

Não pode haver nenhuma dúvida quanto a esse companheiro misterioso ser Lasher. Ele é descrito pelas freiras e mais tarde pela Sra. Lonigan como alguém de cabelos e olhos castanhos e belos trajes antiquados.

No entanto, o ponto digno de nota reside no fato de que Rita Mae Lonigan, a menos que esteja exagerando, realmente ouviu Lasher falar. Uma outra informação surpreendente que nos foi transmitida pela Sra. Lonigan é a de que Deirdre tinha a esmeralda Mayfair com ela no colégio interno, que a mostrou a Rita Mae e que lhe mostrou uma palavra gravada nas costas da jóia: "Lasher." Se a história de Rita Mae for verdadeira, Deirdre sabia muito pouco sobre sua mãe ou sobre sua avó. Ela compreendia que a esmeralda lhe chegara às mãos através das duas, mas nem sabia direito como Stella ou Antha haviam morrido.

Era de conhecimento geral da família em 1956 que Deirdre ficou arrasada com sua expulsão do Santa Rosa de Lima. Ela ficou internada no sanatório de Santa Ana durante seis semanas. Embora tenha se revelado impossível obter os registros, as enfermeiras comentavam que Deirdre implorava que lhe dessem o tratamento de choque, ao qual foi submetida duas vezes. Nessa época, ela estava com quase dezessete anos. A partir do que sabemos a respeito dos métodos desse período, podemos concluir com segurança que esses tratamentos envolviam uma voltagem maior do que a que é usada atualmente. Eles eram provavelmente muito perigosos e deviam resultar numa perda da memória de algumas horas, se não de dias.

Não sabemos por que motivo o tratamento completo não foi realizado como era costume na época. Cortland se opunha totalmente aos choques, ou pelo menos foi o que disse a Beatrice Mayfair. Ele não podia acreditar num tratamento tão drástico para alguém tão jovem.

- O que essa menina tem de errado? - perguntou Juliette a Beatrice afinal. - Ninguém sabe, querida - respondeu Beatrice. - Ninguém sabe. Carlotta trouxe Deirdre do sanatório para casa, onde ela passou mais um mês totalmente abatida.

Investigações sem trégua indicaram que uma figura sombria era vista com freqüência com Deirdre no jardim. Um entregador da mercearia Solari's ficou "apavorado" quando estava saindo da propriedade e viu "aquela moça de olhos enormes e aquele homem" na moita de bambu alto junto à velha piscina.

Uma solteirona que morava em Prytania Street viu o casal na capela depois de escurecer.

- Falei com Miss Belle. Parei no portão na manhã do dia seguinte. Achei que não estava certo. Aconteceu de noite, depois de escurecer. Entrei na capela para acender uma vela e rezar meu terço como sempre, e lá estava ela no último banco com aquele homem. A princípio eu mal os vi. Fiquei um pouco assustada. Depois, quando ela se levantou e saiu às pressas, eu a vi nitidamente à luz do poste. Era Deirdre Mayfair. Não sei o que aconteceu com o rapaz.

Diversas outras pessoas relataram visões semelhantes. As imagens eram sempre as mesmas:

Deirdre e o rapaz misterioso em algum lugar sombreado. Deirdre e o rapaz misterioso saindo assustados de onde estavam, ou olhando fixamente para o desconhecido de um jeito perturbador. Temos quinze versões diferentes desses dois temas. Algumas dessas histórias chegaram aos ouvidos de Beatrice em Esplanade Avenue.

- Não sei se alguém está tomando conta dela. E ela é tão... tão desenvolvida fisicamente - disse Beatrice a Juliette. Juliette a acompanhou numa visita a First Street.

- A menina perambulava pelo jardim. Beatrice foi até a cerca e a chamou. Durante alguns instantes ela pareceu não saber quem era Bea. Depois foi buscar a chave do portão. É claro que daí em diante só Bea falou. Mas a menina é de uma beleza espantosa. Tem mais a ver com a estranheza da sua personalidade do que com qualquer outra coisa. Ela parece rebelde e profundamente desconfiada das pessoas; e ao mesmo tempo demonstra um enorme interesse pelas coisas que a cercam. Ela se apaixonou por um camafeu que eu estava usando. Dei-lhe o camafeu, e seu prazer foi absolutamente infantil. Hesito em dizer que ela estava descalça e que usava um vestido de algodão imundo.

À medida que se aproximava o outono, houve mais relatos de brigas e de gritos. Os vizinhos chegaram ao ponto de chamar a polícia em duas ocasiões. Pude obter pessoalmente, dois anos depois, um relato completo da primeira chamada, no dia 1° de setembro.

-Não gostei da idéia de ir lá - disse- me o policial. -Sabe, incomodar essas famílias do Garden District não é meu estilo. E aquela senhora realmente nos pôs à prova à porta da frente. Era Carlotta Mayfair, a que chamam de Miss Carl, a que trabalha para o juiz.

- "Quem mandou vocês aqui? O que querem? Quem são vocês? Quero ver sua identificação. Vou ter de contar para o juiz Byrnes se vocês vierem aqui outra vez." Afinal, meu colega disse que alguém ouviu a moça da casa gritar e que nós gostaríamos de falar com ela para nos certificarmos de que estava tudo bem. Achei que Miss Carl ia matá-lo ali mesmo. Mas ela foi e trouxe a moça, Deirdre Mayfair, aquela de quem falam tanto. Ela chorava e tremia inteira. Ela disse ao meu colega, C. J., "Faça com que ela me dê as coisas da minha mãe. Ela apanhou as coisas da minha mãe."

- Miss Carl disse que para ela já chegava de "intromissão", que aquela era uma discussão de família e que a presença da polícia não era necessária. Se nós não fôssemos embora, ela iria chamar o juiz Byrnes. Foi então que a moça, Deirdre, saiu correndo da casa na direção da nossa viatura. "Levem- me daqui!" berrava ela.

- Nesse instante aconteceu alguma coisa com Miss Carl. Ela estava olhando para a mocinha parada na sarjeta junto ao nosso carro e começou a chorar. Ela tentou esconder.

Tirou o lenço e cobriu o rosto. Mas dava para ver que aquela senhora estava chorando. A menina havia deixado seus nervos à flor da pele.

- C. J. perguntou a Miss Carl o que ela queria que nós fizéssemos. Ela passou direto por ele, foi até a calçada e pôs a mão na menina, dizendo, "Deirdre, você quer voltar para o sanatório? Por favor, Deirdre, por favor." E então ela simplesmente desistiu. Não conseguia mais falar. A mocinha olhava para ela, com os olhos assustados, desvairada, e começou a soluçar. Miss Carl então a enlaçou e a levou escada acima para dentro de casa.

- Tem certeza de que era Miss Carl? - perguntei ao policial.

- Claro, todo mundo a conhece. Cara, eu nunca vou esquecer aquela mulher. No dia seguinte ela ligou para o comandante e tentou fazer com que C. J. e eu fôssemos expulsos.

Uma outra viatura policial atendeu ao chamado do vizinho uma semana mais tarde. Tudo o que sabemos sobre essa ocasião é que Deirdre estava tentando sair da casa quando a polícia chegou. Os policiais a convenceram a esperar sentada na escada da varanda até que seu tio Cortland chegasse.

Deirdre fugiu no dia seguinte. Comentários nos meios jurídicos dão conta de numerosos telefonemas de um lado para o outro, de Cortland a sair correndo para First Street e do pessoal da Mayfair & Mayfair ligando para os primos de Nova York à procura de Deirdre, como haviam feito quando Antha desapareceu anos antes. Amanda Grady Mayfair estava morta. A mãe do Dr. Cornell Mayfair, Rosalind Mayfair, não queria ter nada a ver com "aquela gente de First Street", como costumava chamar a família. Mesmo assim, ela ligou para os outros primos de Nova York. Depois, a polícia entrou em contato com Cortland em Nova Orleans. Deirdre havia sido encontrada vagando descalça e sem dizer coisa com coisa em Greenwich Village. Havia alguns indícios de que ela teria sido violentada. Cortland pegou um avião para Nova York naquela mesma noite. Na manha seguinte, ele trouxe Deirdre de volta.

A repetição da história completou o ciclo com a segunda internação de Deirdre no sanatório de Santa Ana. Ela recebeu alta uma semana depois e foi morar com Cortland na sua antiga residência em Metairie.

Os mexericos em família diziam que Carlotta estava arrasada e desanimada. Ela disse ao juiz Byrnes e à sua mulher que havia fracassado com a sobrinha. Ela receava que a menina "nunca seria normal".

Quando Beatrice Mayfair foi visitar Carlotta um sábado, encontrou-a sentada sozinha no salão de First Street com todas as cortinas fechadas. Carlotta se recusava a conversar.

- Mais tarde percebi que ela não tirava os olhos do local exato onde os caixões eram colocados antigamente, quando os velórios ainda eram em casa. Tudo o que ela me dizia era sim, não ou hum-hum, quando eu lhe fazia alguma pergunta. Afinal aquela mulher horrível, Nancy, veio me oferecer um chá gelado. Deu a impressão de se irritar quando aceitei. Eu lhe disse que eu mesma me servia, e ela disse que não, que tia Carl não ia permitir isso.

Quando Beatrice concluiu já ter aturado o suficiente de tristeza e de grosseria, ela foi embora. Dirigiu -se, então, a Metairie para visitar Deirdre na casa de Cortland em Country Club Lane.

Essa casa pertencia à família Mayfair desde que Cortland a havia construído quando ainda jovem. Uma mansão de tijolos com colunas brancas e portas-janelas, além de todos os "confortos modernos", ela mais tarde passou para Ryan Mayfair, filho de Pierce, que agora mora ali. Durante anos, Sheffield e Eugenie Mayfair viveram nela com Cortland. Sua filha única, Ellie Mayfair, a mulher que mais tarde adotaria a filha de Deirdre, Rowan, havia nascido naquela casa.

Nessa época, Sheffield Mayfair já havia morrido de um ataque cardíaco. Eugenie já estava morta há anos. Ellie morava na Califórnia, onde acabava de se casar com um advogado chamado Graham Franklin. E Cortland vivia sozinho na mansão de Metairie. Na opinião de todos, a casa era extremamente alegre, cheia de cores vivas, com papel de parede vistoso, mobília tradicional e livros. Grande quantidade de portas-janelas se abriam para o jardim, para a piscina e para o gramado da frente.

A família inteira parece ter considerado ser esse o melhor lugar para Deirdre. Metairie não tinha nada da melancolia do Garden District. Cortland garantiu a Beatrice que Deirdre estava descansando, que os problemas da menina haviam sido exacerbados por muito mistério e decisões erradas por parte de Cariotta.

- Mas ele não me diz no fundo o que está acontecendo - queixou-se Beatrice a Juliette. – Ele nunca diz. O que ele queria dizer com "mistério"?

Beatrice fazia perguntas à criada por telefone sempre que podia. Deirdre ia muito bem, dizia a criada. Estava com uma cor ótima. Havia até recebido uma visita, um rapaz de excelente aparência. A criada o havia visto apenas por um segundo ou dois, ele e Deirdre estavam no jardim, mas ele era um rapaz bonito, educado.

- Pois é, quem poderia ser esse aí? - perguntava-se Beatrice, durante um almoço com Juliette Milton. - Não aquele mesmo canalha que entrou se esgueirando no jardim das freiras para importuná-la no Santa Rosa de Lima!

"Parece- me", escreveu Juliette ao seu contato em Londres, "que essa família não percebe que a mocinha tem um amante. Estou falando de um único amante, muito distinto e fácil de ser reconhecido, que é visto repetidamente na sua companhia. Todas as descrições desse rapaz são idênticas!"

O ponto significativo neste relato está no fato de Juliette Milton nunca ter ouvido nenhum rumor sobre fantasmas, bruxas, maldições ou coisa semelhante em associação à família Mayfair. Ela e Beatrice realmente acreditavam que essa pessoa misteriosa era um ser humano.

No entanto, nessa mesma época, os velhos no Irish Channel fofocavam à mesa da cozinha sobre "Deirdre e o homem". E quando diziam "o homem", não estavam se referindo a um ser humano. A irmã idosa do padre Lafferty sabia da existência do "homem". Ela tentou tocar no assunto com o irmão, mas ele não quis lhe fazer confidências. Ela conversou com um amigo também idoso chamado Dave Collins e conversou com um detetive nosso, que a acompanhou por Constance Street no seu caminho da missa de domingo para casa.

Miss Rosie, que trabalhava na sacristia, trocando as toalhas do altar e cuidando do vinho dos sacramentos, também conhecia os fatos espantosos sobre a família Mayfair e "o homem".

- Primeiro, foi Stella, depois Antha e agora Deirdre - disse ela ao sobrinho, universitário em Loyola, que a considerou uma tola cheia de superstições.

Uma velha criada negra que morava no mesmo quarteirão sabia tudo sobre "aquele homem". Ele era o fantasma da família. Era isso o que era. E também o único fantasma que ela havia visto em plena luz do dia, sentado com a menina nos fundos do jardim.

Aquela menina ia para o inferno quando morresse.

Foi a essa altura, no verão de 1958, que me preparei para ir até Nova Orleans.

Eu acabava de reunir toda a história da família Mayfair numa primeira versão da narrativa precedente, que em essência era igual à que o leitor acaba de ler. E eu estava preocupado com Deirdre Mayfair de uma forma profunda e impulsiva.

Eu acreditava que seus poderes paranormais, e especialmente sua capacidade de ver espíritos e de se comunicar com eles, a estavam enlouquecendo. Depois de inúmeras conversas com Scott Reynolds, nosso novo diretor, e de algumas reuniões com todo o conselho, ficou decidido que eu faria a viagem e que eu usaria meu próprio discernimento para julgar se Deirdre Mayfair tinha maturidade suficiente ou era suficientemente equilibrada para ser abordada.

Elaine Barrett, um dos membros mais velhos e experientes do Talamasca, havia morrido no ano anterior, e eu era agora considerado (imerecidamente) o maior especialista em famílias de bruxas do Talamasca. Nunca foram questionadas minhas qualificações. E na verdade, aqueles que haviam mais se apavorado com as mortes de Stuart Townsend e de Arthur Langtry - e que teriam maior probabilidade de proibir minha ida a Nova Orleans - já não viviam mais.

 

A história de Deirdre Mayfair Totalmente revista - 1989

Cheguei a Nova Orleans em julho de 1958 e imediatamente me registrei num hotel pequeno e simples do French Quarter. Comecei, então, a me reunir com nossos detetives profissionais mais capazes, a consultar alguns registros públicos e a obter respostas para outras questões.

Ao longo dos anos, nós havíamos conseguido os nomes de diversas pessoas íntimas da família Mayfair. Procurei entrar em contato com elas. Com Richard Llewellyn tive pleno sucesso, como já foi descrito, e somente seu relato me ocupou alguns dias. Também consegui "me encontrar por acaso" com uma jovem professora leiga do Santa Rosa de Lima que havia conhecido Deirdre durante os meses que passou na escola e que lançou alguma luz sobre os motivos para a expulsão. Lamentavelmente, essa moça acreditava que Deirdre teria tido um caso com "um homem mais velho" e que era uma menina depravada e falsa. Outras alunas tinham conhecimento da esmeralda Mayfair. Concluiu-se que Deirdre a teria roubado da sua tia. Por que outro motivo ela estaria com uma jóia tão valiosa na escola?

Quanto mais eu conversava com a mulher, mais eu percebia que a aura de sensualidade de Deirdre havia impressionado os que a cercavam.

- Ela era tão... madura, sabe. Uma menina não tem por que ter seios enormes daquele jeito aos dezesseis anos de idade.

Pobre Deirdre. Descobri- me a ponto de perguntar se a professora considerava ou não que nessas circunstâncias a mutilação seria aconselhável, mas encerrei a entrevista. Voltei para o hotel, tomei um conhaque puro e me repreendi quanto aos perigos do envolvimento emocional.

Infelizmente, eu não estava nem um pouco menos emotivo quando visitei o Garden District no dia seguinte e no outro, quando passei horas caminhando pelas ruas tranqüilas e observando a casa de First Street de todos os ângulos. Depois de anos passados lendo a respeito dessa casa e dos seus moradores, essa observação era para mim extremamente emocionante. Mas se algum dia existiu uma casa com emanações malignas, essa era ela. Por quê? Perguntei-me.

A essa altura, ela estava muito descuidada. A tinta lilás ha via desbotado da alvenaria. Mato e samambaias minúsculas nasciam em rachaduras nos parapeitos. Trepadeiras floridas cobriam as varandas laterais de tal forma que mal se viam os gradis ornamentais; e os louros-cerejas exuberantes ocultavam o jardim de quem passasse. Mesmo assim, devia ter sido uma casa fantástica. No entanto, apesar do calor opressivo do verão, com o sol a brilhar preguiçoso e empoeirado através das árvores, a casa parecia úmida, sombria e decididamente desagradável. Durante as horas ociosas que passei a contemplá-la, observei que os transeuntes invariavelmente atravessavam a rua quando se aproximavam dela. E, embora sua calçada de lajes de pedra estivesse escorregadia do musgo e rachada em decorrência das raízes dos carvalhos, no mesmo estado se encontravam outras calçadas do bairro que as pessoas não procuravam evitar.

Algo de maligno vivia nessa casa, vivia e como que respirava; esperava e talvez chorasse seus mortos.

Acusando- me novamente, e com razão, de estar dominado pela emoção, defini meus termos. Essa coisa era maligna porque era destrutiva. "Vivia e respirava" no sentido de que influenciava o ambiente e de que sua presença podia ser sentida. Quanto à minha crença de que essa "coisa" chorava seus mortos, bastava que eu me lembrasse do fato de nenhum operário conseguir fazer qualquer conserto na casa desde a morte de Stella. Desde essa morte, a decadência havia sido progressiva, sem interrupções. Será que a criatura queria que a casa fosse se desfazendo ao mesmo tempo em que o corpo de Stella se decompunha no túmulo?

Ah, tantas perguntas sem resposta. Fui até o cemitério de Lafayette e visitei a cripta da família Mayfair. Um zelador simpático me forneceu a informação de que havia sempre flores novas nos vasos de pedra diante do jazigo, apesar de ninguém nunca ter visto quem as punha ali.

-Você acha que é algum antigo namorado de Stella Mayfair?- perguntei.

- Não - disse o velhote, com uma sonora risada. - Claro que não. É ele, sabe quem? O fantasma Mayfair. É ele quem põe as flores ali. E quer saber de uma coisa?

Às vezes ele as rouba do altar da capela. Sabe qual? A capela na esquina de Prytania e Third. Uma tarde o padre Morgan chegou aqui bufando de raiva. Parece que ele havia acabado de arrumar as palmas-de-santa-rita, e lá estavam elas nos vasos diante do jazigo da família Mayfair. Ele passou pela casa de First Street e tocou a campainha. Eu soube que Miss Carl o mandou ir para o inferno. - O homem ria e não parava de rir dessa idéia... de alguém mandar um padre ir para o inferno. Aluguei um carro, desci a estrada ribeirinha até Riverbend, examinei o que sobrou da fazenda e depois liguei para nossa espiã na sociedade, Juliette Milton, convidando-a para almoçar.

Ela teve o maior prazer em me apresentar a Beatrice Mayfair. Beatrice aceitou almoçar comigo, sem questionar em nada minha explicação superficial de que eu tinha interesse na história do sul e na história da família Mayfair.

Beatrice Mayfair tinha trinta e cinco anos de idade. Era uma mulher de cabelos escuros, muito bem- vestida, com um sotaque encantador que era uma mistura do sotaque do sul com o de Nova Orleans (Brooklyn, Boston). No que dizia respeito à família, ela era uma espécie de "rebelde".

Durante três horas ela falou comigo sem parar, no Galatoire's, despejando todo tipo de historinha sobre a família Mayfair e confirmando o que eu já suspeitava: que pouco ou nada se sabia na atualidade sobre o passado remoto da família. Era a espécie mais vaga de lenda de família, na qual os nomes são confundidos e os escândalos haviam se tornado ridículos.

Beatrice não sabia quem havia construído Riverbend, ou quando se realizou a obra. Nem sabia quem havia construído First Street. Ela achava que Julien havia construído a casa. Quanto às histórias de fantasmas e lendárias bolsas cheias de moedas de ouro, ela acreditava em tudo isso quando era criança, mas agora não. Sua mãe havia nascido em First Street (tratava -se de Alice Mayfair, a penúltima filha de Rémy Mayfair; Millie Dear, ou Miss Millie, como era conhecida, era a filha caçula de Rémy e, portanto, tia de Beatrice) e ela havia dito coisas estranhíssimas sobre a casa. No entanto, ela saiu dali com apenas dezessete anos para se casar com Aldrich Mayfair, um bisneto de Maurice Mayfair, e Aldrich não gostava quando a mãe de Beatrice falava sobre a casa.

- Meus pais são tão cheios de mistério - disse Beatrice. - Acho que meu pai já não se lembra de muita coisa mais. Ele já passou dos oitenta, e minha mãe simplesmente se recusa a me contar essas coisas. Eu mesma não me casei com um Mayfair, sabe? (Observação: o marido de Beatrice morreu de câncer na garganta na década de 1970.)

- Não me lembro de Mary Beth. Só tinha dois anos quando ela morreu. Tenho algumas fotos minhas aos seus pés numa daquelas reuniões, sabe, com todos os outros pequenos bebês da família. Mas eu me lembro de Stella. Eu adorava Stella. Adorava mesmo.

- Fico mortificada de não poder mais ir lá. Há anos parei de visitar tia Millie Dear. Ela é um amor de criatura, mas não sabe ao certo quem eu sou. Todas as vezes eu preciso dizer, sou filha de Alice, neta de Rémy. Ela se lembra por um curtíssimo espaço de tempo e logo se esquece. Além do mais, Carlotta não quer me ver por lá. Ela não quer ver ninguém. Ela é simplesmente horrível. Ela matou aquela casa!

Tirou da casa toda a sua vida. Não me importo com o que digam. A culpa é dela.

- Você acredita que a casa seja assombrada, que talvez haja algo de maligno...

- Ora, Carlotta! Ela é maligna! Mas, sabe, se é esse tipo de coisa que procura, bem, é uma pena que não possa conversar com Amanda Grady Mayfair. Foi mulher de Cortland. Morreu há anos. Ela acreditava em coisas bem fantásticas! Mas no fundo era interessante... Bem, sob um certo aspecto. Dizem que foi por isso que ela deixou Cortland. Ela dizia que Cortland sabia que a casa era assombrada. Que ele via espíritos e conversava com eles. Sempre fiquei chocada de que uma mulher adulta acreditasse nesse tipo de coisa. Mas ela estava totalmente convencida de alguma espécie de trama satânica.

Acho que foi Stella quem provocou tudo isso, inadvertidamente. Na época, eu era muito nova para saber mesmo. Mas Stella não era uma pessoa má. Não era nenhuma rainha do vodu. Stella ia para a cama com qualquer um e com todos; e, se isso for bruxaria, então metade da cidade de Nova Orleans devia arder na fogueira.

... E assim ela prosseguia, com os comentários ficando cada vez mais íntimos e irresponsáveis enquanto Beatrice comia aos pouquinhos e fumava cigarros Pall Mall.

- Deirdre é sensual demais - disse ela. - É só esse o problema da menina. Ela foi absurdamente protegida. Não é de estranhar que ande com homens desconhecidos. Confio em Cortland para cuidar dela. Cortland se tornou o venerável ancião da família. E sem dúvida ele é o único que pode enfrentar Carlotta. Olhe, essa é uma bruxa para mim. Carlotta. Ela me dá calafrios. Deviam afastar Deirdre dela.

Havia na verdade alguns comentários sobre uma escola no Texas, uma pequena universidade para a qual Deirdre poderia entrar no outono. Aparentemente, Rhonda Mayfair, uma bisneta de uma irmã de Suzette, Marianne (tia de Cortland, portanto), havia se casado com um rapaz no Texas que ensinava nessa faculdade. Tratava-se de fato de uma pequena instituição estadual para mulheres, muito bem subsidiada, e com muitas das tradições e confortos de uma caríssima escola particular. A questão era saber se aquele monstro da Carlotta deixaria Deirdre ir.

- Agora, Carlotta? Essa, sim, é uma bruxa!

Mais uma vez, Beatrice ficou toda nervosa ao mencionar Carlotta. Suas críticas iam desde o jeito de Carlotta se vestir (tailleur de mulher de negócios) até seu jeito de falar (direto ao assunto), quando de repente Beatrice se debruçou na mesa.

- E você sabe que aquela bruxa matou Irwin Dandrich, não sabe?

Eu não só não sabia, como nunca tinha ouvido a menor referência a uma coisa dessas. Em 1952 recebemos a notícia de que Dandrich havia morrido de um ataque cardíaco no seu apartamento em algum momento após as quatro da tarde. Era de conhecimento geral que ele sofria do coração.

- Eu conversei com ele - disse Beatrice, num tom de grande empáfia e drama pouquíssimo disfarçado.-Conversei com ele no dia em que morreu. Ele me contou que Carlotta havia telefonado. Carlotta o acusara de espionar a família e lhe dissera, "Bem, se você quer nos conhecer, venha até First Street. Vou lhe contar mais coisas do que você vai querer ouvir". Eu disse a ele que não fosse. "Ela vai processá-lo. Ela vai fazer alguma coisa terrível com você. Ela está fora de si." Mas ele não quis me dar ouvidos. "Vou ver aquela casa com meus próprios olhos", disse ele. "Ninguém que eu conheça entrou ali desde a morte de Stella." Fiz com que ele prometesse me ligar assim que voltasse para casa. Pois ele nunca me ligou. Morreu naquela mesma tarde. Ela o envenenou. Sei que foi ela. Ela o envenenou, e disseram que foi ataque do coração quando o encontraram. Ela o envenenou de um jeito que desse para ele chegar em casa sozinho para morrer na sua própria cama.

- O que a faz ter tanta certeza?

- O fato de não ser a primeira vez que acontece uma coisa dessas. Deirdre contou a Cortland que havia um corpo no sótão daquela casa de First Street. Isso mesmo, um corpo.

- Foi Cortland quem lhe contou isso? - Ela fez que sim com a cabeça, circunspeta. – Pobre Deirdre. Ela conta essas coisas aos médicos, e eles receitam eletrochoque!

Cortland acha que ela está vendo coisas! - Beatrice abanou a cabeça. - Cortland é assim. Ele acredita que a casa é assombrada, que há ali fantasmas com os quais se pode conversar! Mas um corpo no sótão? Não, nisso ele não acredita! - Ela riu baixinho, e depois ficou extraordinariamente séria. - Mas eu aposto que é verdade.

Eu me lembro de alguma coisa sobre um rapaz que desapareceu pouco antes de Stella morrer. Ouvi falar nisso anos depois. Tia Millie falou alguma coisa a respeito à minha prima Angela. Mais tarde, Dandrich me falou nisso. A polícia esteve à procura do rapaz. Detetives particulares também o procuraram. Um texano que veio da Inglaterra, disse Irwin, um rapaz que chegou a passar a noite com Stella e depois simplesmente desapareceu.

-Vou lhe dizer quem mais sabia dessa história. Amanda sabia. Da última vez que a vi em Nova York, nós estávamos reexaminando a história toda e ela disse, "E o que me diz daquele homem que desapareceu como por encanto!" É claro que ela fez uma associação com o caso de Cornell, sabe, o rapaz que morreu no hotel no centro depois de uma visita a Carlotta. Ouça o que lhe digo, ela os envenena, eles vão para casa e morrem. É algum produto químico com efeito retardado. Esse texano era algum tipo de historiador da Inglaterra. Conhecia o passado da nossa família...

De repente, ela percebeu a ligação. Eu era um historiador da Inglaterra. Ela riu. - Sr. Lightner, melhor tomar cuidado! - Ela se recostou na cadeira, rindo baixinho.

- Imagino que tenha razão. Mas não creio que acredite nisso tudo, Miss Mayfair. Ela pensou um pouco.

-Acredito e não acredito. - Ela riu mais uma vez. - Eu acho que Carlotta seria capaz de qualquer coisa. Mas para ser sincera, ela é muito lerda para chegar a envenenar alguém. Mas eu cheguei a pensar nisso! Isso me ocorreu quando Irwin Dandrich morreu. Eu adorava Irwin. E ele morreu logo depois de fazer urna visita a Carlotta. Espero que Deirdre vá para a faculdade no Texas. E, se Carlotta o convidar para um chá, não vá!

- Quanto ao fantasma especificamente... - disse eu. (Durante toda essa entrevista, raramente foi necessário que eu terminasse uma frase.)

- Qual deles? Tem o fantasma de Julien. Todo mundo já viu esse. Eu achei que o vi uma vez. E há também o fantasma que derruba a escada dos operários. Esse é invisível mesmo.

- Mas não há um que chamam de "o homem"?

Ela nunca havia ouvido falar nisso. Mas eu devia conversar com Cortland. Quer dizer, se Cortland se dispusesse a falar comigo. Não lhe agradava que estranhos lhe fizessem perguntas. Cortland vivia num universo da família.

Nós nos despedimos numa esquina enquanto eu a ajudava a entrar no táxi.

-Se conseguir falar com Cortland, não lhe diga que conversou comigo. Ele me considera uma terrível faladeira. Mas não deixe de lhe perguntar sobre o texano. Nunca se sabe o que ele pode dizer.

Assim que o táxi foi embora, liguei para Juliette Milton, nossa espiã na sociedade.

- Nunca chegue perto daquela casa - disse- lhe. - Nunca tenha nada a tratar pessoalmente com Carlotta Mayfair. Não volte a almoçar com Beatrice. Nós lhe daremos um cheque substancial. Basta que se afaste elegantemente.

- Mas o que foi que eu fiz? O que foi que eu disse? Beatrice fala demais. Ela conta essas histórias a todo mundo. Nunca transmiti nada que não fosse do conhecimento geral.

-Você fez bem seu trabalho. Mas existem perigos. Perigos bem definidos. Faça o que estou dizendo.

- Ai, ela lhe disse que Carlotta matou alguém. Isso é tolice. Carlotta é só uma chata. De ouvir Beatrice falar, daria para imaginar que Carlotta foi até Nova York e matou o pai de Deirdre, Sean Lacy. Ora, isso é pura bobagem.

Repeti meus avisos ou ordens, se é que tinham algum valor.

No dia seguinte, fui até Metairie, estacionei o carro e dei uma caminhada pelas ruas tranqüilas nas cercanias da casa de Cortland. A não ser pelos grandes carvalhos e pelo delicado veludo verde dos gramados, o bairro não tinha nada da atmosfera de Nova Orleans. Poderia muito bem ter sido um subúrbio de ricos perto de Houston, Texas, ou de Oklahoma City. Muito bonito, muito repousante, aparentando muita segurança. Não vi sinal de Deirdre. Esperava que ela estivesse feliz nesse lugar saudável. Eu tinha a convicção de que devia vê-la de longe antes de tentar lhe dirigir a palavra. Enquanto isso, procurei entrar em contato direto com Cortland, mas ele não me telefonou de volta. Afinal, sua secretária me disse que ele não queria falar comigo, que ele soube que eu havia conversado com seus primos e que desejava que eu deixasse sua família em paz.

Fiquei indeciso quanto a insistir com Cortland. As mesmas velhas perguntas que sempre nos assolam nessas ocasiões. Quais eram minhas obrigações? Minhas metas? Deixei, finalmente, um recado de que eu possuía grande quantidade de informações sobre a família Mayfair, remontando ao século XVII, e gostaria de conversar com ele. Nunca recebi resposta.

Na semana seguinte, soube através de Juliette Milton que Deirdre acabava de viajar para a Texas Woman's University, em Denton, Texas, onde o marido de Rhonda Mayfair, Ellis Clement, ensinava inglês para pequenas turmas de moças de fina educação. Carlotta se opôs terminantemente. Tudo foi feito sem sua permissão, e ela agora não falava mais com Cortland.

Cortland levou Deirdre para o Texas de automóvel e ficou lá o tempo necessário para se certificar de que ela estava bem na casa de Rhonda Mayfair e Ellis Clement, voltando então para Nova Orleans.

Não nos foi difícil verificar que Deirdre havia sido aceita como uma "aluna especial", que havia estudado apenas em casa. Designaram- lhe um quarto particular no dormitório das calouras, e ela foi matriculada num curso de rotina em tempo integral. Cheguei a Denton dois dias depois. Texas Woman's University era uma bela instituição escolar, localizada em colinas verdes e ondulantes, com prédios de tijolos aparentes cobertos de trepadeiras e gramados cuidados com perfeição. Era totalmente impossível acreditar que se tratasse de uma universidade pública.

Aos trinta e seis anos de idade, com os cabelos precocemente grisalhos e com a mania de usar ternos de linho, de bom corte, descobri que não precisava fazer nenhum esforço para passear pelo campus, provavelmente passando por professor a alguém que prestasse atenção. Eu ficava sentado em bancos por longos períodos escrevendo no meu caderno. Eu folheava os livros da pequena biblioteca. Perambulava pelos corredores dos velhos prédios, trocando gentilezas com algumas professoras idosas e com moças ingênuas, de saias pregueadas e blusas.

Vislumbrei Deirdre pela primeira vez inesperadamente no segundo dia após minha chegada. Ela saiu do dormitório das calouras, um prédio simples em estilo georgiano, e caminhou cerca de uma hora pelo campus. Era uma linda moça de cabelos negros longos e soltos, que passeava pelos caminhos sinuosos à sombra das velhas árvores. Usava o traje de todas, saia e blusa de algodão.

O fato de afinal vê-Ia me encheu de perplexidade. Eu estava olhando para uma grande celebridade. E enquanto eu a seguia de longe, sofri uma agonia inesperada quanto ao que eu estava fazendo. Eu não deveria deixá-la em paz? Eu não deveria lhe contar o que eu sabia da sua história inicial? Que direito eu tinha de estar aqui?

Em silêncio, eu a observei voltar para o dormitório. Na manhã do dia seguinte, eu a segui até a primeira das suas aulas. E depois até uma ampla área de cantina no subsolo, onde ela bebeu café sozinha numa pequena mesa e enfiou moedas na vitrola automática repetidamente para ouvir uma única música de novo: uma canção melancólica de Gershwin na voz de Nina Simone.

Parecia- me que ela estava aproveitando sua liberdade. Ela leu um pouco depois ficou ali sentada, olhando à sua volta. Descobri que eu era totalmente incapaz de me mexer da cadeira para ir na sua direção. Eu temia assustá-la. Que terrível descobrir que se está sendo seguido! Saí antes dela e voltei para meu pequeno hotel no centro.

Naquela tarde, voltei a perambular pelo campus. Assim que me aproxime: do seu dormitório, ela apareceu. Dessa vez, usava um vestido de algodão branco de mangas curtas, corpete perfeitamente ajustado e saia ampla e ondulante.

Ela parecia estar novamente andando a esmo. No entanto, dessa vez, ela pegou um caminho inesperado na direção do que se poderia chamar de fundo! do campus, para longe dos gramados manicurados e do movimento das pessoas, e eu logo me vi seguindo-a por um vasto jardim botânico, muito descuidado, uri lugar tão sombrio, selvagem e coberto de mato que temi por ela enquanto ela prosseguia, muito à minha frente, por uma trilha irregular.

Afinal, imensos bambuzais esconderam qualquer sinal dos distantes dormi tórios e apagaram o ruído das ruas ainda mais distantes. O ar estava pesado como me parecia em Nova Orleans, só que ligeiramente mais seco.

Desci por uma pequena passagem acima de uma pequena ponte e, ao erguei os olhos, dei com Deirdre me encarando, imóvel, parada debaixo de uma grande árvore florida.

Ela levantou a mão direita e acenou para que eu me aproximasse Os meus olhos estariam me enganando? Não. Ela estava olhando direto para mim.

- Sr. Lightner, o que o senhor quer? - Sua voz era grave e ligeiramente trêmula. Ela não aparentava nem raiva nem medo. Não consegui responder Percebi de repente que ela trazia no pescoço a esmeralda Mayfair. A jóia devia estar escondida pelo vestido quando ela saiu do dormitório. Agora estava bem vista.

Dentro de mim soou um pequeno aviso de perigo. Esforcei-me por dizer algo simples, franco e prudente.

- Estive seguindo você, Deirdre - disse eu, apesar do esforço.

- É - respondeu ela. - Eu sei.

Ela me voltou as costas, acenando para que eu a seguisse, e desceu por uma escada estreita coberta pelo mato até um lugar quase secreto onde bancos de cimento formavam um círculo, praticamente escondido da trilha principal. C bambu estalava suavemente com a brisa. O cheiro do laguinho próximo era desagradável. Mas o lugar tinha uma beleza inegável.

Ela se acomodou no banco, com o vestido branco refulgindo nas sombras a esmeralda cintilando no seu colo.

Perigo, Lightner, disse a mim mesmo. Você está correndo perigo.

- Sr. Lightner - disse- me enquanto eu me sentava à sua frente. - Basta que me diga o que quer!

- Deirdre, tenho conhecimento de muitas coisas. De coisas que dizem respeito a você, à sua mãe, à mãe da sua mãe e à mãe dela. Histórias, segredos; mexericos, árvores genealógicas... realmente todos os tipos de informação.

Numa casa em Amsterdã, existe um quadro de uma mulher, sua antepassada. O nome dela era Deborah. Foi ela quem comprou essa esmeralda de um joalheiro na Holanda há centenas de anos.

Nada disso a surpreendeu. Ela estava me estudando, obviamente à procura de mentiras e de más intenções. Eu mesmo estava inexplicavelmente abalado. Estava conversando com Deirdre Mayfair. Estava, finalmente, sentado com Deirdre Mayfair.

- Deirdre, diga- me se você quer saber o que eu sei. Você quer ver as cartas de um homem que amou sua antepassada, Deborah? Você quer saber de que forma ela morreu na França e como sua filha cruzou o oceano para chegar a saint-domingue? No dia em que ela morreu, Lasher provocou uma tempestade na aldeia... Eu me interrompi. Era como se as palavras tivessem secado na minha boca. Seu rosto havia sofrido uma mudança espantosa. Por um instante, achei que fosse uma raiva que a dominava. Percebi, depois, que era um dilema íntimo que a consumia.

- Sr. Lightner - disse, baixinho -, não quero saber. Quero me esquecer do que já sei. Vim para cá para fugir disso tudo.

- Ah! - disse eu, calando- me por algum tempo.

Eu sentia que ela estava se acalmando. Era eu quem não sabia o que fazer.

- Sr. Lightner - disse ela, então, com a voz muito firme, porém cheia de emoção -, minha tia diz que vocês nos estudam porque acreditam que somos especiais. Que, com sua curiosidade, vocês incentivariam o mal em nós, se pudessem. Não, não me compreenda mal. Ela quer dizer que, ao falar no demônio, vocês o estariam nutrindo. Ao estudá-lo, vocês lhe conferem mais vida. - Seus doces olhos azuis imploravam que eu compreendesse. Que notável serenidade ela aparentava ter! Que calma surpreendente!

- Entendo o ponto de vista da sua tia - disse eu. Na realidade, eu estava pasmo. Pasmo com o fato de Carlotta saber quem nós éramos ou de compreender nossos objetivos até aquele ponto. Foi quando me lembrei de Stuart. Stuart devia ter conversado com ela. Era essa a prova. Essa idéia e milhares de outras se amontoavam na minha cabeça.

- É como os espíritas, Sr. Lightner - disse Deirdre, no mesmo tom gentil e compreensivo. - Eles querem falar com os espíritos de antepassados mortos e, apesar de todas as suas boas intenções, apenas fortalecem entidades das quais nada entendem...

-É, sei do que está falando. Acredite que sei mesmo. Eu só queria lhe passar as informações; fazer você saber que, se você...

- Veja bem, eu não quero saber. Quero deixar o passado para trás. - Sua voz vacilou um pouco. - Não quero nunca mais voltar para casa.

- Muito bem. Compreendo perfeitamente. Mas você me fará um favor? Grave meu nome.

Fique com esse cartão meu. Guarde de cabeça os telefones que estão nele. Ligue para mim se algum dia precisar. Ela apanhou o cartão. Examinou-o algum tempo e depois o enfiou num bolso.

Descobri-me olhando para ela em silêncio, mergulhando nos seus olhos azuis grandes e inocentes, e procurando não me deter na beleza do seu corpo jovem, nos seios perfeitamente modelados no vestido de algodão. Seu rosto nas sombras me parecia cheio de tristeza.

- Ele é o diabo, Sr. Lightner. É mesmo.

- Então, minha cara, por que está usando a esmeralda? - Perguntei num impulso.

Um sorriso surgiu no seu rosto. Ela segurou a jóia, encerrando-a na mão direita, e puxou com força arrebentando a corrente.

- Por um motivo bem definido, Sr. Lightner. Era o modo mais simples de trazê-la até aqui, e eu pretendo entregá-la ao senhor. - Ela estendeu o braço e deixou a jóia cair na minha mão. Olhei para ela, mal acreditando que a jóia estivesse realmente comigo.

- Ele vai me matar, sabia? - disse eu de improviso. - Ele vai me matar para reavê-la.

- Não, ele não pode fazer isso! - disse ela, olhando para mim, sem qualquer expressão, como em estado de choque.

- É claro que pode - disse eu, apesar de estar envergonhado de fazer essa afirmação. - Deirdre, deixe-me lhe contar o que eu sei sobre esse espírito. Deixe-me lhe dizer o que eu sei sobre outras pessoas que vêem esse tipo de coisa. Nessa história, você não está só. Você não precisa lutar sozinha contra essa criatura.

- Ai, meu Deus - disse ela, baixinho, fechando os olhos por um instante. - Ele não pode fazer isso - disse ela, novamente, mas sem grande convicção. - Não acredito que ele possa fazer uma coisa dessas.

- Vou me arriscar com ele - disse eu. - Vou ficar com a esmeralda. Algumas pessoas têm suas próprias armas, por assim dizer. Posso ajudá-la a compreender as suas. A sua tia faz isso? Diga-me o que quer de mim.

- Que vá embora - disse ela, aflita. - Que o senhor... nunca mais fale comigo sobre essas coisas.

- Deirdre, ele pode fazer com que você o veja mesmo quando você não quer que ele apareça?

- Quero que pare com isso, Sr. Lightner. Se eu não pensar nele, se eu não falar nele – ela levou as mãos às têmporas -, se eu me recusar a olhar para ele, talvez...

- O que você quer? Para você mesma?

- A vida, Sr. Lightner. Uma vida normal. Não pode imaginar o que essas palavras representam para mim! Uma vida normal. Uma vida como a que as garotas lá do dormitório levam. Uma vida com ursinhos de pelúcia, namorados e beijos no banco de trás dos carros. Simplesmente viver!

Ela agora estava tão descontrolada, que eu também estava me descontrolando rapidamente. E tudo isso oferecia um perigo imperdoável. Mesmo assim, ela havia posto a jóia na minha mão! Eu a tateei, passando meu polegar por ela. Era tão fria, tão dura.

- Lamento, Deirdre. Lamento mesmo tê-la perturbado. Perdoe-me...

- Sr. Lightner, o senhor não tem como fazer com que ele desapareça? Vocês não conseguiriam fazer isso? Minha tia diz que não, que só um padre tem esse poder, mas nenhum padre acredita nele, Sr. Lightner. Não se pode exorcizar um espírito quando não se tem fé.

- Ele não aparece para o padre, aparece, Deirdre?

- Não - disse ela, com uma sombra de um sorriso irônico. - De que adiantaria se ele aparecesse? Ele não é nenhum espírito inferior que pode ser espantado com água benta e ave-marias. Ele ps faz de bobos. - Ela havia começado a chorar. Estendeu a mão para apanhar a esmeralda, puxou-a dos meus dedos pela corrente e depois a atirou o mais longe possível, pelo mato adentro. Ouvi quando atingiu a água com um ruído curto, grave. Deirdre tremia violentamente. - Ela vai voltar - disse ela.

- Vai voltar! Sempre volta!

- Talvez você possa exorcizá-lo! Você e só você!

-Ah, sim. É isso o que ela diz; o que sempre disse. "Não olhe para ele, não fale com ele, não permita que ele a toque!" Mas ele sempre volta. Ele não pede minha permissão! E...

- Sim?

- Quando estou só, quando estou triste...

- Ele aparece.

- É. Ele aparece.

Era um tormento para essa moça. Alguma coisa precisava ser feita!

- E se ele vem, Deirdre? O que estou perguntando é o que acontece se você não se opõe a ele, se você o deixa vir, se você permite que ele se torne visível. O que acontece?

- O senhor não sabe do que está falando - disse ela, perplexa e magoada, olhando para mim.

- Sei que você está enlouquecendo na tentativa de combatê-lo. O que acontece se você não resiste a ele?

- Eu morro - respondeu ela. - E o mundo à minha volta morre, e só existe ele. - Ela limpou a boca com as costas da mão.

Pensei no tempo que ela havia vivido com essa aflição. Em como era forte, indefesa e cheia de medo.

- É, Sr. Lightner, é verdade. Tenho medo. Mas não vou morrer. Vou combatê-lo. E vou vencer. O senhor vai me deixar. Nunca mais vai se aproximar de mim. E eu nunca mais vou pronunciar o nome dele, olhar para ele ou chamá-lo. E ele me deixará. Irá embora.

Encontrará outra pessoa para vê-lo. Outra pessoa... para amar.

- Ele a ama, Deirdre?

- Ama - respondeu ela, baixinho. Estava escurecendo. Eu não via mais suas feições com nitidez.

- O que ele quer, Deirdre?

- O senhor sabe o que ele quer! Ele me quer, Sr. Lightner. A mesma coisa que o senhor quer! Porque eu faço com que ele apareça. - Ela tirou do bolso um pequeno lenço amarfanhado e limpou o nariz. - Ele me disse que o senhor viria. E disse uma coisa estranha, uma coisa de que não me lembro bem. Era como uma maldição, o que ele disse. Era assim: "Estarei comendo a carne, bebendo o vinho e tendo a mulher quando ele estiver apodrecendo no túmulo."

- Já ouvi essas palavras antes - disse-lhe.

- Quero que vá embora. O senhor é uma boa pessoa. Gosto do senhor. Não quero que ele lhe faça mal. Direi a ele que ele não pode... - Ela parou, confusa.

- Deirdre, acredito que posso ajudá-la...

- Não!

- Posso ajudá-la a combatê-lo, se for essa sua decisão. Conheço pessoas na Inglaterra que...

- Não!

Esperei um pouco e depois falei com delicadeza.

- Se algum dia precisar de mim, pode ligar. - Ela não me respondeu. Eu percebia que estava totalmente exausta. Estava quase desesperada. Disse-lhe onde estava hospedado em Denton, que ficaria lá até o dia seguinte e que, se não tivesse notícias dela, iria embora. Eu me sentia um fracasso total, mas não podia magoá-la ainda mais!

Afastei o olhar na direção dos bambus sussurrantes. Estava cada vez mais escuro. E não havia iluminação naquele jardim exuberante.

- Mas sua tia está enganada a nosso respeito - disse eu, incerto da sua atenção. Contemplei o pedacinho de céu lá em cima, que agora estava bem branco. – Queremos lhe transmitir o que sabemos. Queremos lhe dar o que temos. É verdade que nos interessamos por você porque você e uma pessoa especial, mas nos interessamos muito mais por você do que por ele. Você poderia vir até nossa casa em Londres. Poderia ficar lá o tempo que quisesse. Nós a apresentaríamos a outras pessoas que viram coisas semelhantes, que lutaram com elas. Nós a ajudaríamos. E quem sabe, talvez conseguíssemos fazer com que ele desaparecesse. E a qualquer hora que você queira ir, nós a ajudaremos a ir. - (Ela não respondeu.) - Você sabe que estou dizendo a verdade. E eu sei que você sabe.

Olhei para ela, morrendo de medo de ver a dor no seu rosto. Ela olhava para mim com exatamente a mesma expressão de antes, com os olhos tristes e vidrados, e as mãos inertes no colo. E imediatamente atrás dela, estava ele, a uns dois centímetros se tanto, perfeitamente real, fixando seus olhos castanhos em mim.

Dei um grito antes de me controlar. Como um tolo, levantei-me de um salto.

- O que foi! - exclamou Deirdre, apavorada. Ela também se levantou de repente e se jogou nos meus braços. - Diga- me. O que foi?

Ele havia desaparecido. Uma brisa aquecida movimentou os brotos altíssimos do bambu.

Não havia nada ali a não ser a escuridão. Nada a não ser a proximidade do jardim selvagem. E uma lenta queda da temperatura. Como se a porta de uma fornalha acabasse de se fechar.

Fechei meus olhos, segurando-a com a maior firmeza possível, procurando não tremer demais e consolá-la, enquanto gravava na memória o que havia visto.

Um rapaz maldoso, sorrindo com frieza ali parado atrás dela, com as roupas escuras e formais sem muitos detalhes como se toda a energia da criatura estivesse sendo consumida pelos olhos brilhantes, pelos dentes brancos e pela pele reluzente. Em tudo o mais, era o homem que tantos outros haviam descrito.

Ela agora estava totalmente histérica. Sua mão cobria a boca, e ela sufocava soluços. Ela se afastou de mim com violência e subiu correndo pela pequena escada coberta de mato até a trilha.

- Deirdre! - gritei. Mas ela já estava fora do meu alcance visual na escuridão. Vislumbrei um borrão branco em meio às árvores ao longe, e em seguida deixei de ouvir suas passadas.

Eu estava só no jardim botânico, já era noite, e eu senti um medo terrível pela primeira vez na minha vida. Senti tanto medo que fiquei com raiva. Comecei a segui-la, ou melhor, a seguir a trilha tomada por ela, e me forcei a não correr, mas a dar um passo firme após o outro até que afinal vi ao longe as luzes dos dormitórios,

a estradinha por trás deles e ouvi o trânsito, sentindo- me mais uma vez em segurança. Entrei no dormitório das calouras e perguntei à mulher grisalha na recepção se Deirdre Mayfair havia acabado de entrar. Havia, sim. Sã e salva, imaginei.

- Esta é a hora do jantar, senhor. Se quiser, pode deixar um recado.

- Ah, é claro. Eu ligo para ela mais tarde. - Peguei um pequeno envelope em branco, escrevi nele o nome de Deirdre e depois escrevi um bilhete explicando mais uma vez que eu estava no hotel se ela quisesse entrar em contato comigo. Enfiei meu cartão no envelope junto com o bilhete, fechei o envelope, entreguei-o à mulher e fui embora.

Cheguei ao hotel sem maiores percalços, fui para meu quarto e liguei para Londres. Demorou uma hora para que a ligação fosse completada, tempo durante o qual fiquei ali deitado na cama, com o telefone ao meu lado, e tudo em que podia pensar era que eu o havia visto. Vi o homem. Eu mesmo vi o homem. Vi o que Petyr viu e o que Arthur viu. Vi Lasher com meus próprios olhos.

Scott Reynolds, nosso diretor, estava calmo mas irredutível quando finalmente consegui a ligação.

- Saia já daí. Volte para cá.

- Acalme-se, Scott. Eu não vim até aqui para ser espantado por um espírito que estudamos de longe há trezentos anos.

- É assim que você usa seu discernimento, Aaron? Você, que conhece a história das Bruxas Mayfair do começo ao fim? Essa coisa não está querendo assustá-lo. Ela está tentando atraí-lo. Ela quer que você atormente a moça com suas perguntas. A criatura a está perdendo, e você é sua única esperança de reavê-la. Não importa o que a tia seja, ela está farejando a verdade. Você faça com que a moça lhe fale de tudo que sofreu e estará dando ao espírito a energia que ele quer.

- Não estou tentando forçá-la a nada, Scott. Mas acho que ela não está tendo sucesso na sua luta. Vou voltar para Nova Orleans. Quero estar por perto.

Scott estava a ponto de me dar a ordem de voltar quando eu lhe lembrei minha antigüidade. Eu era mais velho do que ele. Eu havia recusado a indicação para diretor. Por isso, ele havia sido indicado. Eu não ia aceitar ordens de abandonar esse caso.

- Bem, o que vou dizer é meio como oferecer um tranqüilizante a alguém que está morrendo queimado, mas não volte para Nova Orleans de carro. Pegue um trem. Essa sugestão foi surpreendentemente agradável. Nada de estradas escuras, desoladas, sem acostamento, atravessando os pântanos da Louisiana. Mas um belo trem alegre e cheio de gente.

No dia seguinte, deixei um bilhete para Deirdre dizendo que estaria no Royal Court em Nova Orleans. Levei o carro alugado até Dallas e peguei naquela cidade o trem de volta. Foi uma viagem de oito horas, e eu pude escrever no meu diário durante todo o percurso.

Considerei, afinal, o que havia acontecido. A moça havia renunciado à sua história e aos seus poderes paranormais. A tia a havia criado para rejeitar o espírito, Lasher. No entanto, era óbvio que há anos ela vinha perdendo essa guerra. Mas e se nós lhe déssemos nossa ajuda? Será que a cadeia hereditária poderia ser rompida?

Será que o espírito abandonaria a família como um espírito que foge de uma casa em chamas que assombrou durante anos a fio?

Mesmo enquanto punha no papel esses pensamentos, eu era perseguido pela lembrança da aparição. A criatura era tão poderosa! Era aparentemente mais concreta e forte do que qualquer outra assombração que eu já tivesse visto. No entanto, a imagem havia sido incompleta.

Pela minha experiência, somente os fantasmas de pessoas que acabaram de morrer aparecem com tanta aparente substância. Por exemplo, o fantasma de um piloto morto em combate pode aparecer no exato dia da sua morte na sala de estar da sua irmã, e ela dirá mais tarde, "Puxa, ele era tão real! Eu vi até a lama nos seus sapatos!"

Aparições dos que já se foram há muito nunca apresentam essa densidade ou nitidez. E entidades incorpóreas? Elas podiam se apoderar, sim, dos corpos dos vivos e dos mortos, mas aparecer sozinhas com tanta solidez e intensidade?

Essa criatura gostava de aparecer, certo? É claro que sim. Era por esse motivo que tanta gente a via. Ela gostava de ter um corpo, mesmo que fosse por um átimo de segundo. Por isso, ela não se contentava em falar com uma voz silenciosa só com a bruxa, ou em criar uma imagem que existisse exclusivamente na sua cabeça. Não, a criatura conseguia de algum modo se materializar para que outros pudessem vê -Ia e até ouvi-Ia. E com grande esforço, talvez com um esforço imenso, ela conseguia dar a impressão de estar sorrindo ou chorando.

E então qual era o objetivo dessa criatura? Ganhar forças para poder fazer aparições de duração e perfeição cada vez maiores? E acima de tudo, qual era o significado da maldição, que na carta de Petyr dizia, "Estarei bebendo o vinho, comendo a carne e conhecendo o calor da mulher quando de você não restarem nem os ossos"?

E afinal de contas, por que não me atormentava, nem me instigava agora? Teria ele usado a energia de Deirdre ou a minha para fazer sua aparição? (Eu havia visto poucos espíritos na minha vida. Não era um médium poderoso. Na realidade, àquela altura, eu nunca havia visto uma aparição que não pudesse ser explicada como algum tipo de ilusão criada pelo jogo de luz e sombra ou pelo excesso de imaginação.)

Talvez por ingenuidade, tive a impressão de que enquanto me mantivesse afastado de Deirdre, a criatura não poderia me fazer mal. O que havia acontecido a Petyr van Abel estava relacionado aos seus poderes de mediunidade e à forma pela qual a criatura os manipulou. Eu possuía pouquíssimos poderes daquela natureza.

No entanto, seria um grave erro subestimar a criatura. Eu precisava me acautelar de agora em diante.

Cheguei a Nova Orleans às oito da noite, e coisinhas estranhas e desagradáveis começaram a acontecer imediatamente. Quase fui atropelado por um táxi em frente à Union Station. Em seguida, o táxi que ia me levar ao hotel quase bateu em outro carro quando parou junto à calçada.

No pequeno saguão do Royal Court, um turista embriagado deu um encontrão em mim e depois quis começar uma briga. Felizmente, sua mulher desviou sua atenção, pedindo desculpas repetidamente, enquanto os carregadores a ajudavam a levar o homem para o quarto. Mesmo assim, contundi o ombro nesse pequeno incidente. Eu já estava abalado com os acidentes por um fio envolvendo os táxis.

Pensei que fosse imaginação. No entanto, quando subi a escada para meu quarto no primeiro andar, um pedaço fraco do velho corrimão de madeira se soltou na minha mão. Eu quase perdi o equilíbrio. O carregador pediu desculpas imediatamente. Uma hora depois, enquanto estava anotando todos esses acontecimentos no meu diário, houve um princípio de incêndio no terceiro andar do hotel.

Fiquei parado na rua apertada do French Quarter, com outros hóspedes aflitos por quase uma hora antes de ficar esclarecido que se tratava de uma pequena labareda que havia sido apagada sem fumaça e sem que a água danificasse nenhum outro quarto.

- O que provocou o fogo? - perguntei. O funcionário embaraçado disse alguma coisa sobre lixo num depósito e me garantiu que tudo estava bem agora.

Durante muito tempo, refleti sobre a situação. Realmente tudo isso poderia ter sido coincidência. Eu não havia sofrido nada, da mesma forma que todos os outros envolvidos nesses pequenos incidentes, e o que se exigia de mim era uma disposição de espírito inabalável. Resolvi me movimentar pelo mundo só um pouco mais devagar, olhar à minha volta com mais cuidado e procurar ter consciência de tudo que estivesse acontecendo ao meu redor o tempo todo.

A noite passou sem outros inconvenientes, embora eu dormisse com dificuldade e acordasse muitas vezes. No dia seguinte, após o café da manhã, liguei para nossa agência de investigações em Londres, pedi- lhes que contratassem um detetive no Texas e que descobrissem o que pudessem sobre Deirdre Mayfair, com a máxima discrição.

Sentei- me, então, e escrevi uma longa carta a Cortland. Expliquei-lhe quem eu era, o que era o Talamasca e como vínhamos acompanhando a história da família Mayfair desde o século XVII, época em que um representante nosso salvou Deborah Mayfair de sério perigo na sua cidade natal de Donnelaith. Falei do Rembrandt de Deborah, em Amsterdã. Passei a esclarecer que tínhamos interesse nos descendentes de Deborah porque eles possuíam autênticos poderes paranormais, que se manifestavam em todas as gerações. Que desejávamos entrar em contato com a família com a intenção de compartilhar nossos registros com aqueles que se interessassem por eles e oferecer essas informações a Deirdre Mayfair, que parecia ser uma pessoa profundamente prejudicada por sua capacidade de ver um espírito que em tempos passados se chamava Lasher e que talvez ainda fosse Lasher até os dias de hoje.

“Nosso enviado, Petyr van Abel, vislumbrou esse espírito pela primeira vez em Donnelaith no século XVII. Ele foi visto inúmeras vezes na proximidade da residência da família em First Street. Eu só o vi uma vez, num outro local, com meus próprios olhos."

Copiei então uma carta idêntica para Carlotta Mayfair e, depois de muito refletir, escrevi o endereço e o número do telefone do hotel. Afinal de contas, qual seria o sentido de me esconder por trás de uma caixa postal?

Fui até a casa de First Street, pus a carta de Carlotta na caixa do correio e, em seguida, me dirigi até Metairie, onde enfiei a carta de Cortland na fenda para essa finalidade na sua porta. Depois disso, senti-me dominado por presságios e, embora voltasse ao hotel, não subi para meu quarto. Preferi dizer ao pessoal da recepção que me encontraria no bar do primeiro andar, onde permaneci boa parte da noite, saboreando lentamente uma boa marca de uísque do Kentucky e escrevendo no meu diário sobre todo o caso.

O bar era pequeno e tranqüilo, e dava para um pátio encantador. Embora eu estivesse de costas para essa vista, voltado para as portas do saguão por motivos que não sei explicar direito, eu estava gostando do lugar. A sensação de perigo estava se desfazendo lentamente.

Mais ou menos às oito, ergui os olhos do diário para perceber que alguém estava parado muito perto da minha mesa. Era Cortland.

Eu acabava de completar minha narrativa do arquivo Mayfair, como mencionei anteriormente. Eu havia examinado inúmeras fotografias de Cortland, mas não foi urna fotografia sua que me veio á mente quando nossos olhos se encontraram.

O homem alto de cabelos negros que sorria para mim era a imagem de Julien Mayfair, falecido em 1914. As diferenças pareciam não ter importância. Era Julien, sim, com olhos maiores, cabelos mais escuros e talvez lábios mais generosos. Mas, mesmo assim, Julien. E de repente o sorriso pareceu grotesco. Uma máscara.

Anotei mentalmente essas impressões estranhas, enquanto o convidava a sentar.

Ele usava um terno de linho, muito parecido com o meu, com uma camisa clara, cor de limão, e uma gravata também clara.

Graças a Deus não é Carlotta, pensei. Instante no qual ele falou.

- Não creio que vá ter notícias da minha prima Carlotta. Mas acho que já é hora de nós dois termos uma conversa. - Uma voz muito agradável e totalmente falsa. Profundamente sulino o sotaque, mas com um toque exclusivo de Nova Orleans. O brilho nos olhos escuros era simpático e ao mesmo tempo levemente desagradável. Ou esse homem me detestava, ou ele me considerava uma maldita amolação. Ele se voltou e chamou o garçom.

- Mais um drinque para o Sr. Lightner, por favor. E um xerez para mim. - Ele estava sentado diante de mim à pequena mesa de mármore, com as longas pernas cruzadas e viradas para um lado. - Não se incomoda que eu fume, certo, Sr. Lightner?

Obrigado. - Ele tirou do bolso uma bela cigarreira de ouro, colocou-a sobre a mesa, ofereceu-me um cigarro e, quando eu recusei, acendeu um para si mesmo. Mais uma vez seu ar simpático me pareceu totalmente fingido. Perguntei- me que impressão uma pessoa normal teria.

- Alegra-me que tenha vindo, Sr. Mayfair.

- Ora, pode me chamar de Cortland. Além do mais existem tantos senhores Mayfair. Eu sentia o perigo emanando daquela pessoa e fiz um esforço consciente para ocultar meus pensamentos.

- Se quiser me chamar de Aaron, eu o chamarei de Cortland com prazer.

Ele fez um pequeno gesto de concordância. Depois, deu um sorriso descuidado para a moça que trouxe nossos drinques e imediatamente tomou um golinho do xerez.

Era uma pessoa irresistivelmente atraente. Seus cabelos negros tinham brilho, e ele usava uma sombra de um bigode fino, meio grisalho. Parecia que as rugas do seu rosto eram uma forma de adorno. Pensei em Llewellyn e nas suas descrições de Julien, que eu havia ouvido poucos dias antes. Mas eu tinha de tirar tudo isso completamente da cabeça. Estava correndo perigo. Essa era minha intuição dominante, e o charme discreto do homem fazia parte dela. Ele se considerava muito atraente e muito esperto. E era as duas coisas.

Fiquei olhando a nova dose de bourbon com água. E de repente fiquei chocado com a posição da sua mão na cigarreira de ouro, a um centímetro ou dois do meu copo. Eu soube, com certeza absoluta, que esse homem pretendia me fazer algum mal. Como isso era inesperado! O tempo todo, imaginei que se tratasse de Carlotta.

- Ah, peço que me perdoe - disse ele com uma súbita expressão de surpresa, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa.-Um remédio que preciso tomar. Quer dizer, se eu conseguir encontrá-lo. - Ele tateou nos bolsos e depois tirou algo do paletó. Um pequeno frasco com comprimidos. - Que chateação - disse ele, abanando a cabeça. - Está gostando da estada em Nova Orleans? - Ele se voltou e pediu um copo d'água. - É claro que esteve também no Texas para ver minha sobrinha. Disso eu sei. Mas sem dúvida passeou pela cidade. O que acha desse jardim daqui? - Ele apontou para o pátio às minhas costas. - Uma senhora história a desse jardim. Já lhe contaram?

Virei minha cadeira um pouco e olhei para trás para ver o jardim. Vi o calçamento de lajes irregulares, uma fonte desgastada pela ação do tempo e mais adiante, em meio às sombras, um homem parado diante da porta com bandeira em semicírculo. Um homem magro e alto, com a luz vindo de trás. Sem rosto. Imóvel. O calafrio que me percorreu a espinha foi quase delicioso. Eu continuei a .olhar para o homem, e aos poucos a figura desapareceu completamente.

Esperei pela corrente de ar morno, mas não senti nada. Talvez estivesse longe demais da criatura. Ou talvez eu estivesse totalmente enganado quanto a quem ou a quê eu havia visto. Aparentemente, passou-se um século.

- Uma mulher cometeu suicídio nesse pequeno jardim - disse Cortland, quando eu me voltei para a mesa. - Dizem que a fonte fica vermelha uma vez por ano com o seu sangue.

- Interessante - disse eu, bem baixo. Fiquei olhando enquanto ele erguia o copo d'água e bebia a metade. Estaria engolindo os comprimidos? O pequeno frasco havia desaparecido. Olhei para meu bourbon com água. Eu não o teria tocado por nada neste mundo. Olhei, distraído, para minha caneta, ali ao lado do diário, e a enfiei no bolso. Eu estava tão absorto por tudo o que via e ouvia que não sentia o menor impulso de dizer uma palavra sequer.

- E então, Sr. Lightner, vamos ao assunto. - Mais uma vez, o sorriso, aquele sorriso radiante.

- Claro - respondi. O que eu estava sentindo? Estava curiosamente emocionado. Estava aqui sentado com o filho de Julien, Cortland, e ele havia acabado de derramar uma droga, sem dúvida fatal, no meu copo. Ele achava que não descobririam sua culpa. De repente, refulgiu na minha cabeça toda aquela história sinistra. Eu estava nela. Eu não estava lendo a seu respeito na Inglaterra. Eu estava aqui.

Talvez eu tivesse sorrido para ele. Eu sabia que uma aflição esmagadora se seguiria a esse estranho clímax de emoção. O maldito filho da puta estava tentando me matar.

- Estive examinando essa questão do Talamasca, etc. - disse ele num tom animado, artificial. - Não há nada que se possa fazer a respeito de vocês. Não podemos forçá-los a revelar suas informações sobre nossa família porque aparentemente são dados inteiramente particulares, não havendo nenhuma intenção sua de torná-los públicos ou de usá-los com fins nocivos. Também não podemos forçá-los a parar de compilar essas

informações desde que não desrespeitem a lei.

- É, imagino que seja verdade.

- No entanto, podemos causar inconvenientes, grandes inconvenientes, a vocês e seus enviados. Podemos tornar impossível seu acesso a tantos metros de propriedades nossas ou de membros da nossa família. Mas isso seria dispendioso, e na realidade não seria obstáculo para vocês, não se vocês são o que dizem ser. -Ele parou de falar, deu uma tragada no seu cigarro fino e escuro e olhou para o bourbon com água. – Será que pedi o drinque errado, Sr. Lightner?

- Não pediu nenhum drinque. O garçom trouxe mais um do que eu estive bebendo a tarde toda. Eu deveria tê-lo impedido. Já havia bebido o suficiente.

Seu olhar ficou mais duro enquanto ele me observava. Na realidade, sua máscara de sorriso sumiu totalmente. E num instante de falta de expressão e de falta de fingimento, ele pareceu quase jovem.

- O senhor não deveria ter feito aquela viagem ao Texas, Sr. Lightner - disse com frieza. - Não deveria ter perturbado minha sobrinha.

- Concordo. Eu não deveria tê-la perturbado. Eu estava preocupado com ela. Queria lhe oferecer ajuda.

-Muita presunção sua e dos seus amigos de Londres.-Um toque de raiva. Ou seria simplesmente irritação por eu não estar bebendo o bourbon. Contemplei-o por algum tempo, com minha mente se esvaziando até não haver a intromissão de nenhum som, nenhum movimento, nenhuma cor. Só seu rosto ali, e uma pequena voz na minha cabeça me dizendo o que eu queria saber.

- É. É presunção, não é? Mas sabe, foi nosso enviado Petyr van Abel quem foi o pai de Charlotte Mayfair, nascida na França em 1664. Quando ele mais tarde viajou até Saint-Domingue para ver a filha, ficou prisioneiro dela. E, antes que seu espírito, Lasher, o levasse à morte numa estrada solitária perto de Port-au-Prince, ele teve relações com a própria filha Charlotte, tornando-se pai de Jeanne Louise. Isso quer dizer que ele era o avô de Angélique e bisavô de Marie Claudette, que construiu Riverbend e criou o legado que o senhor hoje administra para Deirdre. Está me acompanhando?

Estava claro que ele não conseguia me responder. Estava imóvel, me olhando, com o cigarro esquecido na mão. Não percebi nenhuma emanação de maldade ou de raiva.

Prossegui, observando-o com atenção.

- Seus antepassados são descendentes do nosso enviado, Petyr van Abel. Estamos ligados, as Bruxas Mayfair e o Talamasca. Além disso, há outras questões que nos aproximam depois de tantos anos. Stuart Townsend, nosso enviado que desapareceu aqui em Nova Orleans depois de visitar Stella em 1929. Lembra-se de Stuart Townsend? O caso do seu desaparecimento nunca foi resolvido.

- Vocês estão loucos, Sr. Lightner - disse ele, sem qualquer mudança perceptível na expressão. Deu uma tragada e apagou o cigarro no cinzeiro, embora ele estivesse apenas pela metade.

- Esse seu espírito, Lasher, foi quem matou Petyr van Abel - disse eu calmamente. – Foi Lasher que vi há um instante? Logo ali? - Fiz um gesto indicando o jardim.

- Ele está enlouquecendo sua sobrinha, não está?

Uma mudança notável ocorria agora em Cortland. Seu rosto, perfeitamente emoldurado pelos cabelos escuros, pareceu de uma inocência total com sua perplexidade.

- O senhor está falando sério, não está? - Essas foram suas primeiras palavras sinceras desde que ele entrou no bar.

- Claro que estou. Por que eu ia querer tentar enganar pessoas que conseguem ler o pensamento dos outros? Seria uma tolice, não? - Olhei para o copo.-Meio parecido com o senhor esperar que eu beba esse bourbon e morra com o veneno que pôs nele, como Stuart Townsend morreu, ou como Cornell Mayfair, mais tarde.

Ele procurou ocultar seu espanto com uma expressão neutra, apática.

- A acusação que o senhor faz é muito grave - disse ele entre dentes.

- Todo esse tempo achei que fosse Carlotta. Nunca foi ela, não é? Era o senhor.

- Quem se importa com o que o senhor acha? Como ousa me fazer esse tipo de acusação! - Ele então refreou a raiva. Mexeu-se um pouco na cadeira, com os olhos fixos em mim enquanto abria a cigarreira e tirava mais um cigarro. Toda a sua atitude se modificou de repente para uma de questionamento franco. - Afinal, Sr. Lightner, o que deseja? - perguntou com sinceridade, baixando a voz. - A sério, o que é que o senhor quer?

Refleti por um instante. Eu vinha me fazendo essa mesma pergunta há semanas. O que nós realmente queríamos? O que eu queria?

- Queremos conhecê-los! - respondi, bastante surpreso ao ouvir minhas palavras. - Conhecê-los porque sabemos tanto a seu respeito e no entanto não sabemos absolutamente nada. Queremos lhes contar o que sabemos: todos os fragmentos de informações que recolhemos, tudo o que sabemos do seu passado remoto. Queremos lhes dizer tudo o que sabemos sobre o mistério de quem vocês são e do que ele é. E gostaríamos que vocês conversassem conosco. Gostaríamos que vocês confiassem em nós e se abrissem conosco! E, para concluir, queremos estender a mão a Deirdre Mayfair para lhe dizer que existem outras pessoas iguais a ela: outras pessoas que vêem espíritos. Que sabemos que ela está sofrendo e podemos ajudá-la. Que ela não está só.

Ele me examinava como os olhos aparentemente abertos, o rosto já fora do alcance do fingimento. Depois, retraindo-se um pouco e afastando o olhar, ele bateu a cinza do cigarro e fez um gesto pedindo mais um drinque.

- Por que não toma o bourbon? Não cheguei a tocar nele. - Mais uma vez eu me surpreendia, mas deixei a pergunta em suspenso. Ele olhou para mim.

- Não gosto de bourbon. Obrigado.

- O que pôs nele?

Ele se recolheu aos seus pensamentos. Parecia ligeiramente angustiado. Ficou olhando quando um rapaz trouxe seu drinque. Xerez, como antes, num copo de cristal.

- É verdade - perguntou, com os olhos fixos em mim - o que disse na carta? Sobre o retrato de Deborah Mayfair em Amsterdã? - Fiz que sim com a cabeça.

-Temos retratos de Charlotte, Jeanne Louise, Angélique, Marie Claudette, Marguerite, Katherine, Mary Beth, Julien, Stella, Antha e Deirdre...

Ele fez um gesto impaciente para que eu parasse.

- Olhe, vim aqui pensando em Deirdre. Vim porque ela está enlouquecendo. A moça com quem falei no Texas está à beira de um colapso nervoso.

- O senhor acha que a ajudou?

-Não, e lamento profundamente não ter conseguido ajudar. Compreendo que o senhor não queira nenhum contato conosco. Para que iria querer? Mas nós podemos ajudar Deirdre. Podemos mesmo.

Não houve resposta. Ele bebeu o xerez. Procurei encarar a situação a partir do seu ponto de vista. Não consegui. Eu nunca tentei envenenar ninguém. Não fazia a menor idéia de quem ele era de fato. O homem que eu conhecia dos relatos não era essa pessoa.

- Será que seu pai, Julien, teria falado comigo?

- De jeito nenhum - disse ele, erguendo os olhos como se estivesse despertando dos seus pensamentos. Por um instante, ele pareceu profundamente perturbado. – Mas vocês não descobriram com todas as suas observações que ele era um deles? - Novamente, aparentava uma franqueza total, com os olhos examinando meu rosto como se quisesse se certificar de que eu também estava sendo honesto.

- E o senhor não é um deles?

- Não - disse ele com uma ênfase surda, abanando a cabeça. - Não de verdade. Nunca fui! - Ele de repente ficou triste, e a tristeza o fez parecer velho. - Olhe, vigiem- nos se quiserem. Tratem- nos como se fôssemos a família real...

- Isso mesmo.

- Vocês são historiadores. É o que me dizem meus contatos em Londres. Historiadores, estudiosos, totalmente inofensivos, perfeitamente respeitáveis... - Sinto-me honrado.

-Mas deixem minha sobrinha em paz. Ela agora tem uma oportunidade de ser feliz. E essa história precisa ter um fim, entende? Precisa terminar. Talvez ela possa se encarregar disso.

- E ela é um deles? - perguntei, imitando sua entoação anterior.

- Claro que não! É exatamente essa a questão. Não existe nenhum deles nos dias de hoje!

Será que não compreendem isso? Qual tem sido o tema do seu estudo da nossa família? Vocês não perceberam a desagregação do poder? Stella também não era um deles. A última foi Mary Beth. Julien, quer dizer, meu pai, e depois Mary Beth.

- Isso eu percebi. Mas o que dizer do seu amigo espectral? Será que ele vai permitir que tudo se acabe?

-O senhor acredita nele?-Ele inclinou a cabeça com um leve sorriso, com as rugas se formando em volta dos olhos escuros num riso mudo. - Ora, Sr. Lightner! Não me diga que acredita em Lasher!

- Eu o vi - respondi simplesmente.

- Imaginação sua. Minha sobrinha me disse que era um jardim muito escuro.

- Ora, por favor. Será que chegamos tão longe para dizer esse tipo de coisa? Eu o vi, Cortland. Ele sorriu quando eu o vi. Ele conseguiu se apresentar com muita substância e nitidez.

O sorriso de Cortland se estreitou, ficou mais irônico. Ele ergueu as sobrancelhas e deu um pequeno suspiro.

- É, ele apreciaria sua escolha de palavras, Sr. Lightner.

- Deirdre tem condição de fazer com que ele desapareça e a deixe em paz?

- Claro que não. Mas ela consegue ignorá-lo. Ela consegue viver sua vida como se ele não existisse. Antha não conseguia. Stella não queria. Mas Deirdre é mais forte do que Antha, e mais forte do que Stella também. Deirdre tem nela muito de Mary Beth. É isso o que os outros muitas vezes não percebem... - Ele deu a impressão de estar de repente se flagrando no ato de dizer mais do que jamais havia pretendido dizer.

Ele me contemplou por algum tempo e depois, apanhando sua cigarreira e seu isqueiro, levantou-se lentamente.

- Não vá ainda - implorei.

- Mande-me sua história. Mande- me, e eu a lerei. Talvez depois possamos conversar novamente. Mas nunca mais se aproxime da minha sobrinha, Sr. Lightner. Quero que compreenda que eu faria qualquer coisa para protegê-la daqueles que pretendem explorá-la ou magoá-la. Absolutamente qualquer coisa!

Ele se virou para ir embora.

- E quanto à bebida? - perguntei, levantando-me, e indicando o bourbon. - Imagine se eu chamo a polícia e lhes forneço o drinque envenenado como prova?

- Sr. Lightner. Estamos em Nova Orleans! - Ele sorriu e piscou para mim, extremamente sedutor. - Agora, por favor, volte para sua torre de observação e para seu telescópio e nos observe de longe!

Fiquei olhando enquanto ele se afastava. Caminhava com elegância, a passos largos e relaxados. Olhou para trás de relance ao chegar à porta e me deu um aceno rápido e simpático.

Sentei-me, ignorando o bourbon envenenado, e escrevi um relato do caso todo no meu diário. Tirei, então, do bolso um pequeno frasco de aspirina, descartei os comprimidos e derramei um pouco do drinque nele. Tampei o frasco e o guardei.

Eu estava a ponto de pegar meu diário e minha caneta e me dirigir para a escada quando ergui os olhos e vi o carregador parado no saguão logo depois da porta. Ele se apresentou.

- Suas malas estão prontas, Sr. Lightner. Seu carro está esperando. - Um rosto simpático, agradável. Ninguém lhe havia dito que ele estava pessoalmente me expulsando da cidade.

-Verdade? Bem, e você arrumou tudo? - Olhei para as duas malas. É claro que meu diário estava comigo. Passei para o saguão. Pude ver uma velha limusine negra parando na estreita rua do French Quarter como uma rolha gigantesca.

- Sim, senhor. O Sr. Cortland me disse para eu me certificar de que o senhor não perdesse o vôo das dez para Nova York. Disse que alguém estaria esperando pelo senhor no aeroporto com a passagem. O senhor deve ter tempo suficiente.

- Quanta consideração! - Procurei umas notas no meu bolso, mas o rapaz as recusou.

- O Sr. Cortland já cuidou de tudo, senhor. É melhor se apressar. Não vai querer perder seu avião.

- E verdade. Mas eu tenho uma superstição com carros grandes e pretos. Arranje um táxi para mim e por favor aceite isso pelo trabalho.

O táxi me levou não ao aeroporto, mas à estação ferroviária. Consegui um leito para St. Louis e de lá viajei para Nova York. Quando falei com Scott, ele foi irredutível. Esses dados exigiam uma reavaliação. Não faça mais nenhuma pesquisa em Nova York. Volte para casa.

No meio da travessia do Atlântico, senti-me mal. Quando cheguei a Londres, já estava com febre alta. Uma ambulância me aguardava para me levar a um hospital, e Scott estava lá para me fazer companhia. Eu perdi e recobrei a consciência diversas vezes.

- Procurem algum veneno - disse eu.

Essas foram minhas últimas palavras durante oito horas. Quando finalmente acordei, ainda estava febril e me sentindo mal, mas bastante tranqüilizado por estar vivo e por ver Scott e mais dois bons amigos no quarto.

-Você foi mesmo envenenado, mas o pior já passou. Consegue se lembrar da última coisa que bebeu antes de entrar no avião?

- Aquela mulher...

- Fale.

- Eu estava no bar no aeroporto de Nova York e estava tomando um scotch com soda. Ela vinha cambaleando sozinha com uma bolsa enorme e me pediu que fosse buscar um carregador para ela. Ela tossia como se estivesse com tuberculose. Uma criatura de aparência pouquíssimo saudável. Sentou-se à minha mesa enquanto eu ia buscar o carregador. Provavelmente alguém contratado ali nas ruas.

- Ela colocou no seu copo um veneno chamado ricina, que é extraído da mamona. É poderosíssimo e extremamente comum. O mesmo que Cortland pôs no seu bourbon. O perigo

já passou, mas você ainda vai se sentir mal por uns dois dias.

- Meu Deus. - As cólicas voltavam a me atacar o estômago.

- Eles nunca vão querer conversar conosco, Aaron - disse Scott. - Como poderiam conversar? Eles matam as pessoas. Está encerrado. Pelo menos, por enquanto.

- Eles sempre mataram as pessoas, Scott - disse eu, ainda fraco. - Mas Deirdre Mayfair não mata gente. Preciso do meu diário. - As cólicas se tornaram insuportáveis.

O médico veio e começou a me preparar para uma injeção, que eu recusei.

- Aaron, ele é o chefe da toxicologia aqui. Tem uma reputação impecável. Já verificamos as enfermeiras. Nosso pessoal está aqui no quarto.

Só no final da semana, pude voltar para a casa-matriz. Eu mal conseguia me forçar a me nutrir. Estava convicto de que toda a casa-matriz logo seria envenenada. O que impediria aquela gente de contratar alguém que contaminasse nossos alimentos com toxinas comuns. A comida podia estar envenenada antes mesmo de chegar à nossa cozinha.

E, embora nada de semelhante acontecesse, demorou um ano para que eu me visse livre desse tipo de pensamento, tão abalado fiquei com o ocorrido.

Durante aquele ano, uma grande quantidade de notícias espantosas nos chegou de Nova Orleans...

Enquanto eu convalescia, repassei toda a história da família Mayfair. Revisei uma parte dela, acrescentando o depoimento de Richard Llewellyn e o de algumas outras pessoas que eu havia entrevistado antes de ir ao Texas para ver Deirdre. Concluí que Cortland havia acabado com a vida de Stuart Townsend e provavelmente com a de Cornell. Tudo fazia sentido. No entanto, restavam tantos mistérios. O que Cortland estaria protegendo ao cometer esses crimes? E por que ele vivia em constante confronto com Carlotta?

Nesse meio-tempo, recebemos notícias de Carlotta: uma verdadeira enxurrada de cartas ameaçadoras do seu escritório de advocacia para o nosso em Londres, exigindo que "cessemos e abandonemos" nossa "invasão" da sua privacidade, que "revelemos" toda e qualquer informação obtida sobre ela e sobre sua família, "que nos mantenhamos a uma distância de cem metros de qualquer pessoa da sua família, ou de qualquer propriedade da mesma, e que não façamos nenhuma tentativa de entrar em contato, por qualquer meio ou forma, com Deirdre Mayfair", e assim por diante, ad nauseam, sendo que nenhuma dessas ameaças ou exigências tinha o menor valor legal.

Nossos representantes legais receberam instruções no sentido de não dar nenhuma resposta. Debatemos, porém, a questão com o conselho reunido. Mais uma vez, havíamos tentado entrar em contato e havíamos sido repelidos. Continuaríamos a investigar, e para essa finalidade eu poderia receber plenos poderes, mas ninguém iria se aproximar da família no futuro previsível.

- Se é que algum dia isso poderá ocorrer - acrescentou Reynolds com grande ênfase. Não discuti. Eu ainda não conseguia beber um copo de leite sem me perguntar se ele ia causar minha morte. E não conseguia tirar da cabeça a lembrança do sorriso artificial de Cortland.

Dobrei a quantidade de detetives em Nova Orleans e no Texas, mas também avisei a essas pessoas pessoalmente por telefone que os alvos da sua observação eram hostis e potencialmente muito perigosos. Dei a cada um dos investigadores toda oportunidade de recusar a missão.

Acabou que não perdi nenhum investigador; mas alguns elevaram seu preço.

Quanto a Juliette Milton, nossa espiã infiltrada na sociedade, nós a aposentamos com uma pensão informal, apesar dos seus protestos. Fizemos tudo o que podíamos para que percebesse que certos membros dessa família eram capazes de violência.

Relutante, ela parou de nos escrever, implorando em sua carta de 10 de dezembro de 1958 para saber no que havia errado. No entanto, ainda teríamos notícias suas algumas vezes, ao longo dos anos. Ela está viva, em 1989, numa caríssima pensão para idosos em Mobile, Alabama.

 

CONTINUA A HISTORIA DE DEIRDRE

Meus investigadores no Texas eram três detetives altamente profissionais, dois dos quais haviam trabalhado para o governo dos Estados Unidos. Todos os três foram alertados para nunca perturbar ou assustar Deirdre com o que estávamos fazendo de nenhuma forma.

- Eu me importo muito com a felicidade dessa moça e com sua paz de espírito.

Compreendam, porém, que ela tem o poder da telepatia. Se vocês chegarem a quinze metros dela, é provável que ela saiba que está sendo vigiada. Por favor, tomem cuidado. Quer tenham acreditado em mim, quer não, eles seguiram minhas instruções. Mantiveram-se a uma distância segura, colhendo informações a seu respeito através de funcionários da faculdade e dos comentários das alunas; de senhoras que cuidavam da recepção no dormitório e de professores que falavam abertamente sobre ela enquanto tomavam café. Se Deirdre algum dia soube que estava sendo vigiada, nós nunca descobrimos. No semestre do outono, Deirdre se saiu bem na Texas Woman's University. Tirou notas excelentes. As colegas gostavam dela. Os professores gostavam dela. A cada seis semanas ela saía do dormitório para jantar com sua prima Rhonda Mayfair e o marido, o professor Ellis Clement, que na época lhe ensinava inglês. Há também um registro de um encontro no dia 10 de dezembro com um rapaz chamado Joey Dawson, mas ele só durou uma hora se formos acreditar no livro de registro.

O mesmo livro indica que Cortland visitava Deirdre com freqüência, muitas vezes se responsabilizando por levá-la numa sexta-feira ou sábado para uma noite em Dallas, da qual ela voltava antes de uma da manhã, última hora para registro de entrada. Sabemos que Deirdre foi passar o Natal em Metairie na casa de Cortland, e os mexericos em família davam conta de que ela se recusou a ver Carlotta quando esta veio fazer uma visita.

Os comentários nos meios jurídicos dão sustentação à idéia de que Cortland e Carlotta ainda não se falavam. Carlotta não respondia às ligações rotineiras de Cortland.

Cartas cáusticas eram trocadas entre os dois acerca das mínimas questões financeiras que envolvessem Deirdre.

- Ele está tentando obter o controle completo para o próprio bem da moça - disse uma secretária a uma amiga. - Mas a velha não quer aceitar. Ela está ameaçando levá-lo aos tribunais.

Quaisquer que tenham sido os detalhes dessa disputa, sabemos que o estado de Deirdre começou a se deteriorar durante o semestre da primavera. Começou a faltar às aulas. Companheiras de dormitório diziam que ela às vezes chorava a noite inteira, mas não atendia quando elas batiam à sua porta. Numa noite, ela foi recolhida pelos seguranças do campus num pequeno parque do centro da cidade, aparentando estar confusa quanto ao lugar onde estava.

Finalmente, ela foi chamada à reitoria para alguma punição disciplinar. Estava com um excesso de faltas. Foi colocada na lista de comparecimento obrigatório, e, apesar de conseguir aparecer na sala de aula, os professores diziam que estava dispersiva e talvez doente.

Em abril, então, Deirdre começou a ter náuseas todas as manhãs. As outras alunas do corredor ouviam seu sofrimento com os enjôos no banheiro comunitário. Foram falar com a encarregada do dormitório.

- Ninguém queria delatar Deirdre. Nós estávamos com medo. E se ela tentasse se machucar?

Quando a encarregada afinal sugeriu que ela pudesse estar grávida, Deirdre caiu a soluçar e teve de ser hospitalizada até Cortland poder vir buscá-la, o que ele fez no dia 12 de maio.

O que aconteceu depois permaneceu um mistério até os nossos dias. Os registros do novo Hospital da Misericórdia em Nova Orleans indicam que Deirdre foi provavelmente levada para lá assim que chegou do Texas, e que teria ficado num quarto particular. Comentários entre as velhas freiras, muitas das quais eram professoras aposentadas da escola de Santo Afonso e se lembravam de Deirdre, confirmaram rapidamente que foi o médico de Carlotta, o Dr. Gallagher, quem visitou Deirdre e declarou que ela ia mesmo ter um filho.

- Agora, essa moça vai se casar - disse ele às irmãs. - Não quero que digam nenhuma maldade. O pai é um professor universitário de Denton, Texas, e ele está agora vindo para Nova Orleans.

Quando Deirdre foi levada de ambulância para a casa de First Street três semanas mais tarde, fortemente sedada e com urna enfermeira formada para assisti-Ia, já cobriam toda a paróquia redentorista os comentários de que ela estava grávida, que logo ia se casar, e que o marido, o professor universitário, era um "homem casado".

Um perfeito escândalo para aqueles que vinham observando a família há gerações. As velhinhas cochichavam nos degraus da igreja. Deirdre Mayfair e um homem casado! As pessoas lançavam olhares furtivos a Miss Millie e Miss Belle quando elas passavam. Alguns diziam que Carlotta não queria saber da história. E então Miss Belle e Miss Millie levaram Deirdre até Gus Mayer e ali compraram para ela um lindo vestido azul, com sapatos azuis de cetim para o casamento, e uma bolsa e chapéu brancos.

- Ela estava tão dopada que acho que nem sabia onde estava - disse uma das vendedoras. - Miss Millie escolheu tudo para ela. Ela só ficou ali sentada, branca como um fantasma, dizendo, "Está bem, tia Millie", com a voz enrolada.

Juliette Milton não pôde deixar de nos escrever. Recebemos uma longa carta sua contando em detalhes que Beatrice Mayfair foi a First Street para ver Deirdre e lhe levou uma bolsa de compras cheia de. presentes.

"Por que cargas d'água ela foi voltar logo para aquela casa, em vez de ir para a de Cortland?", escreveu Juliette.

Existem algumas indicações de que Deirdre não teve muita escolha nesse caso. A medicina naquela época acreditava que a placenta protegia o bebê dos medicamentos administrados à mãe. E algumas enfermeiras disseram que Deirdre estava tão dopada ao sair do hospital que nem mesmo sabia o que estava acontecendo. Carlotta chegou no início da tarde, num dia de semana, e conseguiu sua alta.

- Pois não é que Cortland Mayfair veio procurar por ela naquela mesma noite? - Confidenciou-me a irmã Bridget Marie. - E ele não ficou como um louco ao descobrir que a menina não estava mais lá!

O disse-me-disse nos meios jurídicos aprofundavam o mistério. Cortland e Carlotta estariam berrando um com o outro ao telefone a portas fechadas. Cortland disse enfurecido à sua secretária que Carlotta achava que podia impedi-lo de entrar na casa em que ele havia nascido. Bem, ela estava fora de si, se acreditava que podia fazer isso!

- Diziam que simplesmente trancaram a casa para meu avô - comentou Ryan Mayfair anos mais tarde. - Ele foi até First Street, e Carlotta veio se encontrar com ele no portão, com ameaças. "Você entre aqui, e eu chamo a polícia", disse ela.

No primeiro dia de julho, mais uma torrente de informações agitou as mexeriqueiras da paróquia. O futuro marido de Deirdre, o "professor universitário" que estava deixando a mulher para se casar com ela, havia morrido quando vinha para Nova Orleans na estrada ribeirinha. A barra de direção do seu carro quebrou, e o carro saiu desgovernado para a direita em alta velocidade, bateu num carvalho e explodiu em chamas imediatamente. Deirdre Mayfair, solteira e ainda antes de completar os dezoito anos, ia entregar o bebê. Seria uma adoção dentro da família, e Miss Carlotta estava organizando tudo.

- Meu avô ficou indignado quando ouviu falar na adoção - disse Ryan Mayfair muitos anos mais tarde. - Ele quis conversar com Deirdre, ouvir dos seus próprios lábios que ela queria renunciar a essa criança. Mas ele ainda não conseguia entrar na casa de First Street. Afinal, ele procurou o padre Lafferty, o vigário, mas ele havia sofrido a influência de Carlotta. Estava totalmente a favor dela.

Tudo isso parece extremamente trágico. Parece que Deirdre quase teria escapado da maldição de First Street se ao menos o pai da criança, que vinha de carro do Texas para se casar com ela, não houvesse morrido. Durante anos, essa história triste e escandalosa foi repetida exaustivamente na paróquia redentorista. Mesmo em 1988, ela me foi recontada por Rita Mae Lonigan. Tudo indica que o padre Lafferty acreditava na história do pai texano da criança. E inúmeros relatos dão conta de que os parentes também acreditavam. Beatrice Mayfair acreditava. Pierce Mayfair, também.

Até mesmo Rhonda Mayfair e seu marido Ellis Clement, em Denton, Texas, pareceram acreditar nela, ou pelo menos na vaga versão que acabou chegando a eles. Mas a história não era verdadeira.

Praticamente desde o início, nossos investigadores abanaram a cabeça, perplexos. Professor universitário com Deirdre Mayfair? Quem poderia ser? A vigilância constante eliminava totalmente a possibilidade de se tratar do marido de Rhonda Mayfair, Ellis Clement. Esse mal conhecia Deirdre.

Na realidade, não havia nenhum homem semelhante em Denton, Texas, que se encontrasse com Deirdre Mayfair, ou que jamais houvesse sido visto na sua companhia por quem quer que fosse. Também não houve nenhum professor daquela universidade ou de qualquer outra instituição de ensino superior das vizinhanças que houvesse morrido num acidente de carro na estrada ribeirinha em 1959. Na verdade, ninguém morreu em acidente semelhante na estrada ribeirinha durante o ano de 1959. Haveria por trás dessa invencionice uma história ainda mais escandalosa e mais trágica? Demoramos para montar o quebra-cabeça. De fato, na ocasião em que soubemos do acidente automobilístico na estrada ribeirinha, a adoção do bebê de Deirdre já estava sendo providenciada. Quando soubemos que não havia ocorrido nenhum acidente na estrada, a adoção já era um fait accompli.

Registros oficiais indicam que em algum ponto do mês de agosto, Ellie Mayfair voou até Nova Orleans para assinar os documentos da adoção no escritório de Carlotta, embora ninguém da família parecesse ter conhecimento da presença de Ellie na cidade na época.

Graham Franklin, marido de Ellie, contou anos depois a um sócio que a adoção havia sido uma terrível embrulhada.

- Minha mulher teve de parar de falar com o avô de uma hora para a outra. Ele não queria que adotássemos Rowan. Felizmente o velho filho da mãe morreu antes mesmo de a criança nascer.

O padre Lafferty disse à sua irmã idosa no Irish Channel que aquela história toda era um pesadelo, mas que Ellie Mayfair era boa pessoa e levaria a criança para a Califórnia, onde ela teria uma oportunidade de uma nova vida. Todos os netos de Cortland aprovaram a decisão. Era só Cortland que insistia.

-Aquela menina não pode ficar com a criança. Ela é maluca - dizia o velho padre. Sentado à mesa da cozinha da irmã, ele comia feijão claro com arroz e bebia seu pequeno copo de cerveja. - Estou falando sério. Ela é maluca. Simplesmente tem de ser assim.

- Não vai funcionar - disse a velha mais tarde a um representante nosso. -Não se pode fugir de uma maldição de família com uma mudança para longe.

Miss Millie e Miss Belle compraram lindas camisolas eliseuses para Deirdre na loja Gus Mayer. As vendedoras perguntavam pela "pobre Deirdre".

- Ah, ela está se esforçando ao máximo - disse Miss Millie. - Foi uma coisa terrível, terrível. - Já Miss Belle contou a uma mulher na capela que Deirdre estava tendo "aquelas crises de novo".

- Metade do tempo ela nem sabe onde está! - resmungou Nancy, que estava varrendo a calçada quando uma das senhoras do Garden District passou pelo portão.

O que aconteceu mesmo nos bastidores durante todos esses meses em First Street? Pressionamos nossos investigadores para que descobrissem tudo o que pudessem. Somente uma pessoa que saibamos viu Deirdre durante os últimos meses da sua gravidez, que passou em isolamento, mas só entrevistamos essa pessoa em 1988.

Naquela época, o médico que a atendia ia e vinha em silêncio. Da mesma forma que a enfermeira que a acompanhava oito horas por dia.

O padre Lafferty disse que Deirdre estava resignada à idéia da adoção. Beatrice Mayfair foi informada de que não poderia ver Deirdre quando veio lhe fazer uma visita, mas tomou um copo de vinho com Millie Dear, que declarou que tudo aquilo era de partir o coração.

No entanto, no dia 1° de outubro, Cortland já estava desesperado de preocupação com a história. Suas secretárias relatam que ele fez diversas ligações para Carlotta, que tomou um táxi até First Street e que foi mandado embora repetidas vezes. Afinal, na tarde do dia 20 de outubro, ele disse à secretária que entraria naquela casa e veria sua sobrinha mesmo que tivesse de demolir a porta.

Às cinco da tarde, uma vizinha se deparou com Cortland sentado na sarjeta na esquina de First e Chestnut. Suas roupas estavam em desalinho e escorria sangue de um corte na sua cabeça.

- Chame uma ambulância - disse ele. - Ele me empurrou escada abaixo!

Embora a vizinha ficasse sentada com ele até a chegada da ambulância, ele não quis dizer mais nada. Foi levado às pressas de First Street para um ambulatório próximo. O interno de plantão verificou rapidamente que Cortland estava coberto de contusões graves, que seu pulso estava quebrado e que sangrava pela boca.

- Esse homem sofreu ferimentos internos - disse ele, pedindo ajuda imediata.

Cortland segurou então a mão desse interno, pediu- lhe que prestasse atenção, que era muito importante que ele ajudasse Deirdre Mayfair, que estava sendo mantida em cativeiro na sua própria casa.

- Vão levar embora seu bebê contra a sua vontade. Ajude-a! - disse Cortland, e então morreu.

Uma autópsia superficial indicou grande hemorragia interna e golpes fortes na cabeça.

Quando o interno insistiu em algum tipo de investigação policial, os filhos de Cortland o silenciaram imediatamente. Eles haviam conversado com sua prima Carlotta Mayfair. Seu pai caiu escada abaixo e recusou assistência médica, deixando a casa sozinho. Carlotta nunca imaginou que seus ferimentos fossem tão graves. Ela não sabia que ele ficou sentado na sarjeta. Ela estava fora de si de tristeza.

A vizinha devia ter tocado a campainha.

No enterro de Cortland, uma enorme cerimônia em Metairie, a família ouviu a mesma história. Enquanto Miss Belle e Miss Millie ficavam sentadas em silêncio em segundo plano, Pierce, filho de Cortland, dizia a todos que Cortland estava confuso quando fez uma declaração vaga à vizinha sobre o fato de um homem tê-lo empurrado escada abaixo. Na realidade, não havia em First Street nenhum homem que pudesse ter feito uma coisa dessas. A própria Carlotta o viu cair. Da mesma forma que Nancy, que se apressou para tentar segurá-lo, mas não conseguiu.

Quanto à adoção, Pierce apoiava a idéia com firmeza. Sua sobrinha Ellie proporcionaria ao bebê o ambiente exato para que o bebê tivesse as melhores oportunidades. Era trágico que Cortland tivesse se oposto à adoção, mas Cortland estava com oitenta anos. Seu discernimento já estava prejudicado há algum tempo.

A cerimônia prosseguiu, majestosa e sem incidentes, embora o agente funerário anos mais tarde se lembrasse de que alguns primos, homens de mais idade, em pé nos fundos do salão durante o "pequeno discurso" de Pierce, houvessem feito piadas amargas e sarcásticas entre si.

- Claro, naquela casa não tem nenhum homem - disse um deles.

- Não, de jeito nenhum. Nenhum homem. Só aquelas velhinhas simpáticas.

- Eu nunca vi homem nenhum lá, você viu? - E assim continuavam.

- Não, nenhum homem na casa de First Street. Não, senhor!

Quando os primos vinham fazer uma visita a Deirdre, ouviam mais ou menos a mesma história que Pierce contou na cerimônia fúnebre. Deirdre estava muito mal para vê-los. Ela nem quis ver Cortland naquele dia, de tão mal que estava. E ela não sabia, nem podia saber, que Cortland havia morrido.

- E olhe para essa escada escura - disse Millie Dear a Beatrice. - Cortland deveria ter usado o elevador. Mas ele nunca usava o elevador. Se ao menos o tivesse usado, não teria sofrido uma queda daquelas.

As lendas da família hoje em dia indicam que todos estavam de acordo quanto à adoção ser a melhor escolha. Cortland deveria ter ficado de fora.

- A coitada da Deirdre - disse Ryan, neto de Cortland - era tão talhada para ser mãe quanto a Louca de Chaillot. Mas acho que meu avô se sentia responsável. Ele havia levado Deirdre para o Texas. Acho que ele se culpava. Ele queria ter certeza de que ela queria mesmo entregar o bebê. Mas talvez o que Deirdre queria não tivesse importância.

Nessa época, eu temia cada notícia que chegava da Louisiana. Eu ficava deitado na cama à noite na casa-matriz pensando sem parar em Deirdre, perguntando a mim mesmo se não haveria alguma forma de descobrir o que ela queria ou sentia realmente. Scott Reynolds estava mais inflexível do que nunca na sua determinação de que não interferíssemos mais. Deirdre sabia como entrar em contato conosco. Cortland também. E Carlotta Mayfair também, se é que isso valia alguma coisa. Não havia nada mais que se pudesse fazer.

Somente em janeiro de 1988, quase trinta anos mais tarde, eu vim a saber numa entrevista com Rita Mae Dwyer Lonigan, uma ex-colega de escola de Deirdre, que Deirdre tentou desesperadamente entrar em contato comigo e não conseguiu.

Em 1959, Rita Mae acabava de se casar com Jerry Lonigan, da casa funerária Lonigan and Sons. Quando ela soube que Deirdre estava em casa, grávida, e que já havia perdido o pai do bebê, Rita Mae reuniu a coragem que tinha e foi fazer uma visita. Como aconteceu com tantos outros, ela não passou da porta, mas não antes de ver Deirdre no alto da escada. Deirdre gritou em desespero para Rita Mae.

- Rita Mae, eles vão levar meu bebê! Rita Mae, me ajude. - Enquanto Miss Nancy procurava forçar Deirdre a voltar para o segundo andar, Deirdre jogou um pequeno cartão branco para Rita Mae. - Entre em contato com esse homem. Faça com que ele me ajude. Diga- lhe que vão levar embora meu bebê.

Carlotta Mayfair atacou Rita Mae fisicamente e tentou arrancar o cartão dela, mas Rita, mesmo tendo os cabelos puxados e o rosto arranhado, não o soltou enquanto saía correndo pelo portão em meio a uma chuva de folhas.

Ao chegar em casa, descobriu que o cartão estava praticamente ilegível. Carlotta havia rasgado uma parte dele; e Rita inadvertidamente o prendeu na palma úmida da sua mão. Apenas se discerniam a palavra Talamasca e meu nome, escrito à mão no verso.

Só em 1988, quando conheci Rita Mae no enterro de Nancy Mayfair, e lhe dei um cartão idêntico ao destruído em 1959, foi que ela reconheceu os nomes e me chamou no hotel para relatar o que se lembrava daquele dia remoto.

Foi doloroso para este pesquisador saber do vão apelo de Deirdre por ajuda. Foi doloroso recordar aquelas noites trinta anos antes quando eu ficava deitado na cama em Londres pensando que não podia ajudá-la mas que deveria tentar. Mas como ousaria fazê-lo? E como seria possível ter sucesso?

O fato é que eu provavelmente não conseguiria fazer nada por Deirdre, por mais que tivesse me esforçado. Se Cortland não conseguiu impedir a adoção, é razoável supor que eu também não teria conseguido impedi-la. No entanto, nos meus sonhos eu me vejo tirando Deirdre da casa de First Street para levá-la para Londres. Vejo-a hoje uma mulher normal, saudável.

A realidade é completamente diferente.

No dia 7 de novembro de 1959, Deirdre deu à luz, às cinco da manhã, Rowan Mayfair, uma menina loura, saudável, de quatro quilos e duzentos gramas. Horas mais tarde, ao acordar da anestesia geral, Deirdre se descobriu cercada por Ellie Mayfair, pelo padre Lafferty, Carlotta Mayfair e duas das irmãs da Misericórdia, que mais tarde descreveram a cena em detalhe à irmã Bridget Marie.

O padre Lafferty segurava o bebê nos braços. Explicou que acabava de batizá-la na capela do hospital da Misericórdia, com o nome de Rowan Mayfair. Ele mostrou a Deirdre a certidão de batismo assinada.

- Agora, Deirdre, dê um beijo na sua filhinha - disse o padre Lafferty - e a entregue a Ellie. Ellie está pronta para partir.

Os mexericos na paróquia dão conta de que Deirdre obedeceu. Ela havia insistido para que a criança tivesse o sobrenome Mayfair e, uma vez cumprida essa condição, ela liberou a criança. Chorando tanto que mal conseguia enxergar, ela beijou o neném e deixou que Ellie Mayfair o tirasse dos seus braços. Depois, enfiou a cabeça no travesseiro, soluçando.

- Melhor deixá-la em paz - disse o padre Lafferty.

Mais de uma década depois, a irmã Bridget Marie explicou o significado do nome de Rowan.

-Carlotta foi madrinha da criança. Creio que chamaram algum médico da enfermaria para ser o padrinho, tão decididos estavam a batizá-la logo. E Carlotta disse ao padre Lafferty que o nome da criança seria Rowan, ao que ele lhe respondeu que aquele não era um nome de santa. Que lhe parecia mais um nome pagão.

- E ela retrucou ao seu modo, sabe do jeito que ela era, "Padre, o senhor não sabe que Rowan é o nome de uma árvore que era usada para afastar as bruxas e o mal de qualquer natureza? Não há uma choupana na Irlanda em que a dona da casa não ponha um galho dessa árvore por cima da porta para proteger a família de bruxas e de bruxarias, e isso sempre ocorreu durante toda a era cristã. Rowan será o nome da menina!" E Ellie Mayfair, indecisa que só ela, simplesmente concordou com um gesto de cabeça.

- Isso era verdade? - perguntei. - Costumavam por um galho dessa árvore acima da porta na Irlanda?

A irmã Bridget Marie fez que sim com a cabeça, com seriedade.

- E grande coisa adiantava!

Quem foi o pai de Rowan Mayfair?

Exame s de rotina para determinar o tipo sangüíneo indicam que o tipo de sangue do bebê combinava com o de Cortland Mayfair, que havia morrido menos de um mês antes. Permitam-nos repetir aqui que Cortland também pode ter sido pai de Stella Mayfair, e que informações recentes obtidas no Bellevue Hospital afinal confirmam que Antha Mayfair também podia ter sido sua filha.

Deirdre "enlouqueceu" antes mesmo de deixar o Hospital da Misericórdia depois do nascimento de Rowan. As freiras diziam que ela chorava o tempo todo e depois berrava sozinha no quarto, "Você o matou!" Um dia ela entrou por acaso na capela do hospital durante a missa, gritando novamente, "Você o matou. Você me deixou sozinha com meus inimigos. Você me traiu!" Ela teve de ser retirada à força, sendo rapidamente internada no Sanatório de Santa Ana, onde ficou catatônica antes de terminar o mês.

- Era o amante invisível - acredita a irmã Bridget Marie até hoje. - Ela gritava com ele e o amaldiçoava. Sabe por quê? Porque ele matou seu professor. Ele o matou porque a queria só para si. O amante demoníaco, é isso o que ele era, bem aqui na cidade de Nova Orleans. Passeando pelas ruas do Garden District à noite.

Um depoimento bonito e eloqüente, mas como é mais do que provável que o professor universitário nunca tenha existido, que outro significado podemos extrair das palavras de Deirdre? Teria sido Lasher quem empurrou Cortland escada abaixo ou que o assustou tanto que ele caiu? E em caso positivo, por quê?

No fundo, foi esse o fim da vida de Deirdre Mayfair. Durante dezessete anos ela foi encarcerada em várias instituições para tratamento mental, recebeu doses cavalares de medicamentos e séries impiedosas de eletrochoques, com apenas urna breve trégua quando voltava para casa, uma sombra da moça que havia sido. Afinal, em 1976, ela foi trazida de volta a First Street para sempre, uma inválida muda e de olhos assustados, num perpétuo estado de alerta, embora sem absolutamente nenhuma memória seqüencial.

A varanda lateral do térreo foi telada para ela. Durante anos, ela vem sendo levada até ali todos os dias, faça chuva ou faça sol, para ficar sentada imóvel numa cadeira de balanço, com o rosto ligeiramente voltado para a rua distante.

- Ela não consegue nem ter uma vaga lembrança de nada - declarou um médico.-Vive inteiramente no presente, de uma forma que simplesmente não Podemos imaginar. Seria possível se dizer que ali não existe mais o pensamento. -Trata-se de uma condição descrita em pessoas muito idosas que atingem esse mesmo estado na senilidade avançada e ficam sentadas, com os olhos parados, em hospitais geriátricos do mundo inteiro. Mesmo assim, drogas pesadas lhes são administradas para prevenir crises de "agitação", ou pelo menos foi o que disseram a vários médicos e enfermeiras. -

Como Deirdre Mayfair se tornou essa "imbecil apalermada", como as fofoqueiras do Irish Channel costumam chamá-la, esse "belo vegetal" sentado na sua cadeira? Os tratamentos com choques sem dúvida contribuíram para essa situação, séries e mais séries deles, aplicados por todos os hospitais em que ficou internada desde 1959.

Além disso, as drogas, doses maciças de tranqüilizantes fortíssimos, administrados em combinações espantosas, ou pelo menos é o que revelam os registros, à medida que continuamos a conseguir acesso a eles.

Como justificar tais tratamentos? Deirdre Mayfair deixou de falar com coerência já em 1962. Quando não estava sob o efeito de tranqüilizantes, ela gritava ou chorava sem cessar. De vez em quando, quebrava objetos. As vezes, ficava simplesmente deitada, revirando os olhos e uivando.

Com o passar dos anos, nós continuamos a recolher informações sobre Deirdre Mayfair. Praticamente todos os meses conseguimos "entrevistar" algum médico ou enfermeira, ou alguma outra pessoa que tenha estado na casa de First Street. No entanto, nossa compilação do que realmente aconteceu permanece incompleta. Naturalmente, os arquivos dos hospitais são de natureza confidencial e extremamente difíceis de serem obtidos. No entanto, em pelo menos dois dos sanatórios em que Deirdre foi tratada, nós agora sabemos não existir nenhum registro do seu tratamento.

A um desconhecido que lhe perguntou, um dos médicos admitiu claramente e de espontânea vontade ter destruído as fichas do caso de Deirdre. Um outro médico se aposentou pouco depois de tratar de Deirdre, deixando apenas algumas notas enigmáticas numa ficha sucinta. "Incurável. Trágico. Tia exige medicação permanente, mas descrição do comportamento pela tia não confiável."

Por motivos óbvios, continuamos a depender de relatos informais para nossa avaliação da história de Deirdre.

Apesar de Deirdre ter vivido num crepúsculo induzido por drogas toda a sua vida adulta, inúmeras vezes aqueles que a cercavam viram um "misterioso homem de cabelos castanhos". As enfermeiras no sanatório de Santa Ana alegavam ter visto "algum homem entrando no quarto dela! Agora, eu sei que vi". Num hospital do Texas, em que ela esteve confinada por pouco tempo, um médico alegou ter visto "um visitante misterioso" que sempre "parecia desaparecer de alguma forma quando eu pretendia lhe perguntar quem ele era".

Pelo menos uma enfermeira num sanatório no norte da Louisiana insistiu com seus superiores que havia visto um fantasma. Serventes negros nos diversos hospitais viam "aquele homem o tempo todo".

- Aquele não é humano. Percebi assim que o vi. Eu vejo espíritos. Eu chamo espíritos. Eu conheço aquele. Ele me conhece e não chega perto de mim.

A maioria dos operários não consegue trabalhar hoje na casa de First Street do mesmo jeito que não conseguia no tempo em que Deirdre era menina. São as mesmas velhas histórias. Ouviu-se até a conversa de que há "um homem por ali" que não quer que se façam consertos.

Apesar disso, alguns consertos foram feitos. Foi instalado ar condicionado em alguns quartos e foi realizada alguma reforma da instalação elétrica, sendo essas tarefas cumpridas quase invariavelmente sob a supervisão constante de Carlotta Mayfair.

O velho jardineiro ainda trabalha e de vez em quando pinta a cerca enferrujada. Não fosse por isso, a casa de First Street cochila à sombra dos carvalhos. Os sapos coaxam à noite em volta da piscina de Stella, com seus nenúfares e íris silvestres. O balanço de madeira de Deirdre já há muito caiu do carvalho nos fundos da propriedade. O assento de madeira, apenas um pedaço de tábua, está jogado no capim alto, desbotado e empenado.

Muita gente que pára para olhar Deirdre sentada na cadeira de balanço na varanda lateral chega a vislumbrar "um primo elegante" fazendo uma visita. Algumas enfermeiras largaram o serviço por causa "daquele homem que entra e sai como se fosse um fantasma", porque não paravam de ver alguma coisa com o canto dos olhos ou porque lhes parecia que estavam sendo vigiadas.

- Tem algum tipo de fantasma em volta dela - disse uma auxiliar de enfermagem que declarou à agencia que nunca mais voltaria àquela casa. - Eu o vi uma vez, em plena luz do dia. Foi a coisa mais apavorante que já vi. Quando, num almoço, perguntei a essa enfermeira sobre o fantasma, ela teve poucos detalhes a acrescentar.

- Só um homem. Um homem com cabelos castanhos, olhos castanhos, usando um paletó elegante e uma camisa branca. Deus do céu, nunca vi nada mais assustador na minha vida! Ele estava só ali parado ao sol ao lado dela, olhando para mim. Deixei cair a bandeja e gritei sem parar.

Muitos outros profissionais da saúde deixaram o serviço abruptamente. Um médico foi dispensado em 1976. Nós continuamos a procurar localizar essas pessoas, a tomar seu depoimento e a registrá-lo. Procuramos revelar o mínimo possível sobre os motivos que nos levam a querer saber o que eles viram e quando.

O que se conclui desses dados é uma possibilidade aterradora: a de que a mente de Deirdre tenha sido destruída a tal ponto que ela não consiga controlar sua evocação de Lasher. Ou seja, que no seu inconsciente ela lhe dê o poder de aparecer ao seu lado com um aspecto bem convincente; mas que ela não esteja consciente o bastante para controlá-lo a partir daí, ou para afastá-lo, se em algum nível não mais desejasse sua presença.

Em suma, ela é uma médium inconsciente; uma bruxa tornada inoperante e talvez à mercê do seu espírito, que está sempre por ali. Existe uma outra possibilidade: a de que Lasher esteja ali para consolá-la, para cuidar dela e para mantê-la feliz em termos que talvez não possamos compreender.

Em 1980, há mais de oito anos, pude obter uma peça de roupa de Deirdre, um quimono, ou qualquer peça larga, de algodão que havia sido jogado na lixeira nos fundos da casa. Levei essa peça comigo para a Inglaterra e a coloquei nas mãos de Lauren Grant, a pessoa de poder psicométrico mais forte na Ordem nos nossos dias. Lauren não conhecia nada sobre as Bruxas Mayfair, mas não se pode descartar a possibilidade de telepatia nesses casos. Procurei me afastar ao máximo em pensamento.

- Vejo felicidade - disse ela. - Essa roupa pertence a alguém de uma felicidade indescritível.

Ela vive em sonhos. Sonhos com jardins verdejantes, céus ao crepúsculo e pores-do-sol lindíssimos. Lá há galhos baixos de árvores. Há um balanço suspenso de uma bela árvore. Será uma criança? Não, é uma mulher. A brisa é agradável.

- Lauren amassou ainda mais a peça e apertou o tecido contra a pele do rosto. - É, e ela tem um lindo namorado. Que namorado! Parece um quadro: Steerforth, de David Copperfield, esse tipo de homem. Ele é tão delicado. E quando ele a toca, ela se entrega totalmente. Quem é essa mulher? Todo mundo gostaria de ser assim. Pelo menos por algum tempo.

Seria essa a vida subconsciente de Deirdre Mayfair? Ela própria nunca vai poder dizer. Para concluir, permitam-me acrescentar alguns detalhes. Desde 1976, Deirdre Mayfair, quer usando sua camisola de flanela branca, quer usando um quimono de algodão, sempre teve a esmeralda Mayfair ao pescoço. Desde 1976, eu próprio vi Deirdre algumas vezes a certa distância. Naquele ano, eu já havia feito três visitas a Nova Orleans para coleta de informações. Desde então, voltei muitas outras vezes.

Eu invariavelmente passo algum tempo caminhando pelo Garden District nessas visitas. Compareci aos enterros de Miss Belle, Miss Millie e Miss Nancy, bem como ao de Pierce, o último dos filhos de Cortland, que morreu do coração em 1984. Em todos os enterros, vi Carlotta Mayfair. Nossos olhares se cruzaram. Por três vezes nesta década pus meu cartão na sua mão ao passar por ela. Carlotta nunca entrou em contato comigo. Nunca mais fez ameaças por meios legais.

Ela está muito velha, de cabelos brancos e extremamente magra. Mesmo assim, ainda vai trabalhar todos os dias. Ela não consegue mais subir no estribo do bonde de St. Charles. Por isso, usa um táxi comum. Somente uma criada negra trabalha na casa normalmente, sem mencionar a dedicada enfermeira de Deirdre.

A cada visita, descubro alguma nova "testemunha" que pode me falar do "homem de cabelos castanhos" e dos mistérios que cercam a casa de First Street. As histórias são todas muito parecidas. Mas chegamos de fato ao fim da história de Deirdre, embora ela própria não tenha morrido.

É hora de examinar em detalhe sua única filha e herdeira, Rowan Mayfair, que nunca pôs os pés na sua cidade natal desde o dia em que foi levada dali, seis horas após seu nascimento, num avião a jato que atravessou o país.

E, embora seja cedo demais para tentar dar alguma forma coerente às informações que temos sobre Rowan, já fizemos algumas anotações de importância crucial a partir de materiais aleatórios, e são consideráveis os indícios de que Rowan Mayfair, que não conhece nada da sua família, da sua história ou da sua herança, pode ser a bruxa mais poderosa jamais gerada pela família Mayfair.

Era gostoso o ar condicionado depois do calor da rua. No entanto, enquanto parou um instante no vestíbulo da Lonigan and Sons, despercebida e portanto anônima, ela notou que o calor lhe havia causado um leve mal-estar. A corrente gelada de ar era agora um choque para ela. Ela sentiu aquele tipo de calafrio que se sente quando se tem febre. A enorme quantidade de gente que circulava lentamente a apenas alguns metros dali dava uma estranha impressão de pertencer a um sonho.

A princípio, quando ela saiu do hotel, a úmida tarde de verão lhe pareceu suportável. No entanto, quando passou pela casa escura na esquina de Chestnut e First, já sentia uma fraqueza e uma espécie de calafrio embora o próprio ar estivesse úmido, quente e denso, cheio do cheiro forte de terra e de plantas.

E, tudo isso parecia um sonho - essa sala agora, com suas paredes brancas adamascadas, seus pequenos lustres de cristal e aquelas pessoas ruidosas, bem-vestidas, em grupos que sempre se modificavam. Tudo parecia um sonho, como o universo sombreado daquelas casas antigas com cercas de ferro pelo qual ela acabava de passar. De onde estava, ela não conseguia ver o interior do caixão. Ele estava instalado junto à parede mais distante da segunda sala. À medida que a multidão barulhenta se movimentava lentamente aqui e ali, ela teve vislumbres da madeira muito bem lustrada, das alças prateadas e do cetim basteado na face interna da tampa aberta. Sentiu uma contração involuntária dos músculos do rosto. Dentro daquele caixão, pensou. Você precisa atravessar esta sala, depois a outra, e olhar. Ela sentia uma estranha rigidez no rosto. No corpo também. Basta que vá até o caixão. Não é assim que as pessoas fazem?

Ela via as pessoas agindo assim. Via que, um após o outro, eles se aproximavam do caixão e olhavam para a mulher ali dentro.

E mais cedo ou mais tarde, alguém iria perceber sua presença mesmo. Alguém talvez lhe perguntasse quem ela era. "Você me diga. Quem é toda essa gente? Será que eles sabem? Quem é Rowan Mayfair?"

Por enquanto, porém, ela estava invisível, a observar todos os outros: os homens nos seus ternos claros, as mulheres com vestidos bonitos, e tantas delas usando chapéu e até mesmo luvas. Havia anos que ela não via mulheres em vestidos coloridos com a cintura marcada e saias rodadas. Devia haver untas duzentas pessoas por ali, gente de todas as idades.

Ela viu velhos de carecas rosadas, de terno de linho branco e bengala; e meninos ligeiramente incomodados pelos colarinhos apertados e gravatas. As nucas dos velhos, como as dos meninos, pareciam igualmente nuas e vulneráveis. Havia até mesmo crianças pequenas brincando em volta dos adultos, bebês vestidos em renda branca quicando nos colos adultos, bebês um pouco maiores engatinhando no tapete vermelho-escuro.

E uma menina, talvez com seus doze anos, olhava fixamente para ela, com uma fita nos cabelos ruivos. Nunca em todos os seus anos na Califórnia ela havia visto uma menina daquela idade, ou, por sinal, uma criança de qualquer idade, com uma fita de verdade na cabeça. E essa aqui formava um grande laço de cetim cor-de-pêssego. Todos com a melhor roupa de domingo, pensou. Era assim que se dizia? E a conversa era quase festiva. Como um casamento, pareceu-lhe de repente, embora fosse preciso confessar que ela nunca havia comparecido a um casamento semelhante. Uma sala sem janelas, apesar de haver cortinas de damasco branco aqui e ali ocultando totalmente o que talvez pudesse ser uma janela.

A multidão se mexeu. Abriu-se um claro de tal modo que ela pôde ver o caixão quase inteiro. Um velhinho alquebrado num terno cinza deseersucker estava parado sozinho olhando para a morta. Com enorme esforço, ele se ajoelhou num estranho banquinho de veludo. Como é que era mesmo o nome que Ellie lhe havia dito. Quero um genuflexório junto ao meu caixão. Rowan nunca havia visto um terno de seersucker na sua vida. Mas ela sabia que era esse o tecido porque o havia visto no cinema, nos antigos filmes em preto e branco, em que os ventiladores giravam, o papagaio cacarejava no poleiro e Sidney Greenstreet dizia algo sinistro a Humphrey Bogart.

E a impressão era essa mesmo. Não o traço sinistro, apenas a localização no tempo. Ela havia voltado ao passado, a um mundo atualmente enterrado nas profundezas da Califórnia. E era por isso que ele lhe parecia reconfortante de uma forma tão inesperada, bem parecida com a daquele episódio de um seriado da televisão, o "Além da imaginação", em que um estressado homem de negócios salta do seu trem de luxo numa cidadezinha alegremente imobilizada no século XIX.

Nossos velórios em Nova Orleans eram do jeito que deve ser. Convide meus amigos. No entanto, a árida e desagradável cerimônia fúnebre de Ellie não havia sido em nada parecida com essa, com suas amigas magérrimas, bronzeadas, embaraçadas pela morte, sentadas cheias de indignação na borda das cadeiras dobráveis. Ela não queria que nós mandássemos flores, queria? "Acho que seria terrível se não houvesse flores..." A cruz de aço inoxidável, as palavras sem sentido, o homem que as pronunciava um perfeito desconhecido. Ah, e essas flores daqui! Para qualquer lugar que olhasse, ela as via: ramos imensos e deslumbrantes de rosas, lírios, palmas-de-santa-rita. Ela não sabia os nomes de algumas dessas flores. Grandes coroas apoiadas em suportes de ferro se aninhavam entre as pequenas cadeiras de pernas recurvas, por trás das cadeiras e amontoadas em grupos de cinco ou seis pelos cantos.

Salpicadas com cintilantes gotículas de água, elas estremeciam no ar gélido, cheias de fitas e laços brancos, e algumas dessas fitas traziam o nome Deirdre gravado em prateado. Deirdre.

De repente, ele estava para onde quer que olhasse. Deirdre, Deirdre, Deirdre, as fitas chorando em silêncio o nome de sua mãe, enquanto as senhoras de vestidos bonitos bebiam vinho branco em copos de pé, a menina com a fita no cabelo não tirava os olhos dela e uma freira, até mesmo uma freira, num vestido azul-escuro, com véu branco e meias pretas, estava sentada na borda de uma cadeira, apoiando-se numa bengala, com um homem cochichando algo no seu ouvido. Sua cabeça estava inclinada, seu pequeno nariz aquilino reluzia e algumas menininhas se reuniam à sua volta.

Estavam trazendo mais flores agora, pequenas árvores de arame exibindo rosas vermelhas e cor-de-rosa em meio a trêmulas samambaias. Um doce perfume pairava no recinto.

Agora Rowan compreendia. Era doce como o ar lá fora era quente e a brisa, úmida. Parecia que todas as cores à sua volta ficavam cada vez mais vibrantes.

No entanto, ela novamente sentia náuseas, e o perfume forte piorava a situação. O caixão estava longe. A multidão o encobria totalmente. Ela pensou mais uma vez na casa, a casa alta e sombria, na "esquina do lado do rio e do centro da cidade", como o recepcionista do hotel lhe havia descrito. Tinha de ser a casa que Michael não parava de ver. A menos que existissem milhares iguais a ela, milhares com um desenho de rosas no ferro da cerca e com a buganvília formando uma imensa cascata escura em contraste com a parede de um cinza desbotado. Ah, que casa mais linda!

A casa da minha mãe. A minha casa? Onde estava Michael? Houve uma súbita abertura na multidão, permitindo que ela mais uma vez visse a longa lateral do caixão. De onde ela estava, estaria vendo o perfil de uma mulher delineado no travesseiro de cetim? O caixão de Ellie não apareceu aberto. Graham não teve velório. Seus amigos se reuniram num bar no centro.

Você vai ter de ir até aquele caixão. Você vai ter de olhar ali dentro para vê-la. Foi para isso que veio. Foi por isso que quebrou sua promessa a Ellie e ignorou o documento no cofre: para ver com seus próprios olhos o rosto da sua mãe. Mas será que tudo isso está mesmo acontecendo ou estou só sonhando? Olhe para aquela menina com o braço nos ombros daquela velha. O vestido da menina tem uma faixa com um laço!

Ela está usando meias brancas. Se ao menos Michael estivesse aqui. Este era o mundo de Michael. Se Michael ao menos tirasse a luva e tocasse a mão da morta... Mas o que ele veria? Um embalsamador injetando nas suas veias o líquido para embalsamar? Ou o sangue escorrendo pelo ralo da mesa branca? Deirdre. Deirdre estava escrito em letras prateadas na fita branca suspensa na coroa de crisântemos. Deirdre, na fita sobre o enorme buquê de rosas cor-de-rosa...

Pois bem, o que você está esperando? Por que não se mexe? Ela recuou, encostando-se no batente da porta, a observar uma velha de cabelos de um amarelo pálido abrir os braços para três criancinhas. Uma após a outra, elas beijaram as bochechas flácidas da velha. Ela abaixou a cabeça. Seriam todas essas pessoas da família da minha mãe?

Ela visualizou novamente a casa, desprovida de detalhes, escura e de um tamanho fantástico. Ela entendia por que Michael adorava aquela casa, adorava aquele lugar.

E Michael não sabia que era a casa da sua mãe. Michael não sabia que tudo isso estava acontecendo. Michael havia desaparecido. E talvez tudo ficasse naquilo mesmo, só naquele fim de semana, e para sempre essa sensação de algo inacabado... Preciso voltar para casa. Não é só a história das visões; é também que este aqui não é mais meu lugar. Eu soube disso no dia em que fui olhar,o oceano...

Abriu-se a porta atrás dela. Ela saiu da frente em silêncio. Um casal mais velho passou por ela como se ela não estivesse ali: uma mulher imponente com um lindo cabelo cinza-chumbo preso para trás num coque, usando um impecável chemisier de seda, e um homem num terno branco amarfanhado, um homem de pescoço forte e voz suave, falando com a mulher.

- Beatrice! - Alguém a cumprimentou. Um belo rapaz veio beijar a mulher bonita com seu cabelo cinza-chumbo.

- Querida, entre - disse uma voz feminina. - Não, ninguém a viu. Ela deve chegar a qualquer instante. - Vozes como a de Michael, mas diferentes. Dois homens, numa conversa sussurrada enquanto bebiam seu vinho, vieram se colocar entre ela e o casal à medida que eles se dirigiam para o segundo salão. Abria-se mais uma vez a porta da frente. Uma lufada quente. O trânsito.

Ela conseguiu chegar ao canto dos fundos, e agora via o caixão com clareza, via que metade da tampa estava fechada cobrindo a parte inferior do corpo, e não soube dizer por que isso lhe pareceu grotesco. Havia um crucifixo na seda basteada acima da cabeça da mulher, não que ela estivesse vendo a cabeça, apenas sabia que estaria ali. Via somente uma pincelada de cor em contraste com o branco reluzente. Vamos, Rowan, vá até lá.

Aproxime-se do caixão. Será que isso era mais difícil do que entrar na sala de cirurgia? É claro que todos irão vê-Ia, mas não saberão quem você é. Voltou a contração, o retesamento dos músculos do rosto e da garganta. Ela não conseguia se mexer. E de repente alguém estava falando com ela, e ela sabia que devia virar a cabeça e responder, mas não o fez. A menina com a fita a observava. Por que ela não respondia, perguntou-se a menina.

-... Jerry Lonigan, posso lhe ser útil? A senhora não é a Dra. Mayfair, é?

Ela olhou para ele, apalermada. O homem corpulento, com o queixo forte e uns olhos lindos de um azul de porcelana. Não, eles eram mais como bolas de gude perfeitamente redondas e azuis.

- Dra. Mayfair?

Ela baixou os olhos até a mão do homem. Uma pata grande, pesada. Aperte a mão. Responda de algum jeito se não consegue abrir a boca. O retesamento no seu rosto piorou. Agora afetava seus olhos. O que está acontecendo? Seu corpo estava paralisado de medo enquanto seu pensamento estava em transe, nesse transe horrível. Ela fez um pequeno gesto com a cabeça na direção do caixão distante. Eu quero... mas as palavras não queriam sair. Vamos, Rowan, você não voou quase quatro mil quilômetros para isso!

O homem a enlaçou com delicadeza. Uma pressão nas costas.

- A senhora quer vê-Ia, Dra. Mayfair?

Vê-Ia, conversar com ela, conhecê-la, amá-la, ser amada por ela... Parecia que seu rosto era esculpido no gelo. E ela sabia que seus olhos deviam estar abertos demais.

Ela olhou de relance para os olhinhos azuis do homem e fez que sim, com a cabeça. Parecia que um silêncio caía sobre todos. Ela havia falado tão alto assim? Mas não havia dito absolutamente nada. Era certo que eles não a conheciam e, no entanto, todos se voltavam para olhar enquanto ela e esse homem atravessavam o primeiro salão. E a notícia era transmitida aos sussurros. Ela olhou com atenção para a menina ruiva com a fita quando passou por ela. Na realidade, até parou sem querer, paralisada na entrada do segundo salão, com esse homem simpático, Jerry Lonigan, ao seu lado.

Até as crianças pararam de brincar. O salão pareceu ficar escuro com as pessoas se movimentando em silêncio, bem devagar, apenas alguns passos.

- A senhora quer se sentar, Dra. Mayfair? - perguntou Jerry Lonigan.

Ela estava com os olhos fixos no tapete. O caixão estava a uns seis metros de distância. Não erga os olhos, não erga os olhos até chegar mesmo ao caixão. Não veja nada de horrível de longe. Mas o que era tão horrível nisso tudo? Em que isso podia ser mais horrível do que a mesa de autópsias, a não ser pelo fato de se tratar... da sua mãe.

Uma mulher veio se postar atrás da menina, pousando a mão no seu ombro.

- Rowan? Rowan. Sou Alicia Mayfair. Eu era prima em quarto grau de Deirdre. Esta é Mona, minha filha.

- Rowan, eu sou Pierce Mayfair - disse o belo rapaz à sua direita, estendendo a mão de repente. - Sou bisneto de Cortland.

- Querida, sou Beatrice, sua prima. - Um cheiro de perfume. A mulher com o cabelo cinza chumbo. A pele macia tocando o rosto de Rowan. Enormes olhos cinzentos.

- ...Cecilia Mayfair, neta de Barclay, meu avô foi o segundo filho de Julien e nasceu na casa de First Street. E aqui, irmã, venha. Esta é a irmã Marie Claire. Irmã, essa é Rowan, a filha de Deirdre!

Não havia algo especialmente respeitoso que se devia dizer a freiras, mas essa freira não poderia ter ouvido. Estavam gritando para que ela entendesse.

- A filha de Deirdre, Rowan!

- ...Timothy Mayfair, seu primo em quarto grau, estamos felizes de conhecê-la, Rowan...

- ...um prazer conhecê-la nesta triste...

- Peter Mayfair, conversamos mais tarde. Garland era meu pai. Ellie alguma vez lhe falou em Garland?

Meu Deus, eles eram todos parentes. Polly Mayfair, Agnes Mayfair, as filhas de Philip Mayfair e Eugenie Mayfair, e aquilo não tinha fim. Quantos eles seriam ao todo? Não uma família, mas um exército. Ela apertava uma mão após a outra, e ao mesmo tempo se apoiava na solidez do Sr. Lonigan, que a segurava com tanta firmeza.

Ela tremia? Não, sentia calafrios. Lábios roçavam seu rosto.

-...Clancy Mayfair, bisneta de Clay. Clay nasceu na casa de First Street antes da Guerra de Secessão. Minha mãe é Trudy Mayfair, aqui, mamãe, venha. Deixem mamãe passar...

- ...um prazer conhecê-la. Já esteve com Carlotta?

- Miss Carlotta está se sentindo mal - disse o Sr. Lonigan. - Ela irá nos encontrar na igreja...

- ...já está com noventa anos, sabe?

- ...aceita um copo d'água? Ela está pálida como cera. Pierce, apanhe um copo d'água para ela.

- Magdalene Mayfair, bisneta de Rémy. Rémy morou na casa de First Street durante anos. Este é meu filho, Garvey, e minha filha, Lindsey. Ei, Dan, Dan venha cumprimentar a Dra. Mayfair.. Dan é bisneto de Vincent. Será que Ellie lhe falou de Clay e Vincent e...

Não, nunca me falou de ninguém. Prometa que nunca irá lá, que nunca tentará descobrir. Mas por quê, em nome de Deus, por quê? Toda essa gente... Por que aquele papel?

Por que o segredo?

- ...Gerald está com ela. Pierce deu uma passada por lá. Ele a viu. Ela está bem. Virá até a igreja.

- Quer se sentar, querida?

- Você está se sentindo bem?

- Lily, meu amor, Lily Mayfair. Você não vai conseguir se lembrar dos nomes de nós todos. Nem tente.

- Robert, querida. Mais tarde conversamos.

- ...à disposição se você precisar de nós. Você está mesmo bem? Estou. Estou muito bem. E só que não consigo falar. Não consigo me mexer. Eu...

Mais uma vez se retesaram os músculos do seu rosto. Ela estava rígida. Toda rígida. Apertou mais a mão do Sr. Lonigan. Ele lhes dizia alguma coisa, que ela agora ia prestar suas homenagens. Ele estava dizendo para as pessoas se afastarem? Um homem tocou sua mão esquerda.

- Meu nome é Guy Mayfair, filho de Andrea, e esta é minha mulher, Stephanie. Ela é filha de Grady. Era prima em primeiro grau de Ellie.

Ela queria demonstrar alguma reação. Estaria apertando o suficiente cada mão? Estaria balançando a cabeça o suficiente? Estaria beijando direito a velhinha que a beijava? Um outro homem estava falando com ela, mas sua voz era baixa demais. Ele era velho e estava dizendo alguma coisa sobre Sheffield. O caixão estava no máximo a uns seis metros. Ela não ousava erguer os olhos, ou desviá-los dos parentes, com medo de vê-lo sem querer.

Mas foi para isso que você veio, e é o que precisa fazer. E eles estão aqui, às centenas...

- Rowan - disse alguém à sua esquerda -, este é Fielding Mayfair, filho de Clay. – Um homem tão velho, tão velho que ela conseguia ver todos os ossos do crânio através da pele clara, via os dentes inferiores e superiores e os sulcos em volta dos olhos fundos.

Ele estava apoiado nos outros. Não conseguia ficar em pé sem ajuda. E todo esse sacrifício, para poder vê-Ia? Ela estendeu a mão.

- Ele quer lhe dar um beijo, querida. - Ela roçou o rosto do velho com os lábios.

Ele falava baixo. Seus olhos pareceram amarelados quando ele olhou para ela. Ela procurou entender o que ele estava dizendo, algo sobre Lestan Mayfair e Riverbend.

O que era Riverbend? Ela concordou, com um gesto de cabeça. Ele era velho demais para ser tratado sem delicadeza. Ela precisava dizer alguma coisa! O homem era velho demais para estar se esforçando tanto só para lhe dar os pêsames. Quando ela apertou sua mão, sentiu que era macia, sedosa, nodosa e forte.

- Acho que ela vai desmaiar - sussurrou alguém. Sem dúvida não estavam falando dela.

- Você quer que eu a leve até o caixão? - Mais uma vez o rapaz, o rapaz bonito, com o rosto limpo de menino bem-comportado e os olhos brilhantes. - Sou o Pierce.

Acabei de me apresentar. - Um vislumbre de dentes perfeitos. - Primo de Ellie em primeiro grau.

É, até o caixão. Já é hora, não? Ela olhou naquela direção e alguém pareceu dar um passo atrás para que ela pudesse ver melhor. E então seus olhos subiram instantaneamente para além do rosto no travesseiro inclinado. Ela viu as flores agrupadas ao redor da tampa levantada, toda uma selva de flores, e bem à direita aos pés do caixão, um homem de cabeça branca que ela conhecia. A mulher morena ao seu lado chorava e rezava seu terço, e os dois estavam olhando para ela, mas como seria possível que ela conhecesse aquele homem ou qualquer outra pessoa aqui? No entanto, ela o conhecia!

Sabia que ele era inglês, fosse ele quem fosse. E sabia exatamente como seria o som da sua voz quando ele lhe dirigisse a palavra.

Jerry Lonigan a ajudou a dar um passo à frente. O belo Pierce estava ao seu lado.

- Ela está se sentindo mal, Monty - disse a senhora ainda bonita. - Vá buscar água para ela.

- Meu bem, talvez fosse bom você se sentar...

Ela abanou a cabeça, formando na boca a palavra não. Olhou novamente para o inglês de cabelos brancos, o que estava com a mulher que rezava. Ellie havia pedido o terço na última semana de vida. Rowan precisou ir a uma loja em San Francisco para comprar um. A mulher abanava a cabeça, chorava e limpava o nariz, e o homem de cabeça branca cochichava no seu ouvido, apesar de ter os olhos fixos em Rowan. Eu o conheço. Ele olhou para ela como se ela houvesse falado com ele, e então lhe ocorreu a lembrança do cemitério de Sonoma County, onde estavam enterrados Graham e Ellie. Era esse o homem que ela havia visto junto ao túmulo. Conheço sua família em Nova Orleans. E de uma forma totalmente inesperada, mais uma peça do mesmo quebra-cabeça se encaixava. Esse era o homem que estava parado em frente à casa de Michael duas noites antes em Liberty Street.

- Querida, não quer um copo d'água? - perguntou Jerry Lonigan.

Mas como isso podia estar acontecendo? Como podia ser que esse homem estivesse lá e aqui? O que tudo isso tinha a ver com Michael, que lhe havia descrito a casa com as rosas no gradil de ferro?

- Vamos deixar que ela se sente aqui mesmo. - Pierce disse que ia apanhar uma cadeira.

Ela precisava se mexer. Não podia simplesmente ficar aqui olhando para aquele inglês de cabelos brancos, querendo que ele se explicasse, que explicasse o que estava fazendo em Liberty Street. E com o canto do olho, algo que ela não conseguia agüentar ver, algo no caixão à espera.

- Pronto, Rowan, isso aqui está bem gelado. - Cheiro de vinho. - Beba um pouco, querida.

Eu gostaria, realmente gostaria, mas não consigo mexer minha boca. Ela abanou a cabeça, procurou sorrir. Acho que não consigo movimentar minha mão. E vocês todos estão esperando que eu me mexa. Eu realmente devia me mexer. Ela costumava achar que os médicos que desmaiavam numa autópsia eram na verdade uns bobos. Como uma coisa dessas poderia afetar alguém tanto em termos físicos? Se alguém me atingir com um bastão de beisebol, sou capaz de desmaiar. Meu Deus, o que você não sabe da vida está apenas começando a se revelar nesta sala. E sua mãe está naquele caixão.

O que você estava pensando, que ela fosse esperar aqui, viva, até você chegar? Até você afinal perceber... Bem aqui, nesta terra estranha! Ora, isso aqui era como um outro país, era sim!

O inglês de cabeça branca veio na sua direção. É, quem é o senhor? Por que está por aqui?

Por que me parece deslocado de uma forma tão drástica e grotesca? Por outro lado, ele não estava deslocado. Ele era exatamente como os outros, os habitantes deste país estranho, tão correto e delicado, sem uma sombra de ironia, de constrangimento ou de sentimentos falsos no seu rosto simpático. Ele se aproximou dela, fazendo com que o belo rapaz lhe cedesse o lugar.

Você se lembra daquelas expressões torturadas na cerimônia fúnebre por Ellie. Não havia ninguém ali que tivesse menos de sessenta anos, e no entanto não havia um fio de cabelo grisalho, um músculo flácido. Nada semelhante a isso aqui. Ora, é isso o que querem dizer quando falam do "povo".

Ela baixou os olhos. Fileiras de flores a cada lado do genuflexório de veludo. Deu um passo à frente, com as unhas cravadas no braço do Sr. Lonigan antes que pudesse se controlar. Fez um esforço enorme para relaxar a mão e, para total espanto seu, sentiu que ia cair. O inglês a segurou pelo braço esquerdo, enquanto o Sr. Lonigan a sustentava pelo direito.

- Rowan, preste atenção - disse o inglês, baixinho, no seu ouvido, naquele seu sotaque apocopado, apesar de melodioso. - Michael estaria aqui se fosse possível. Vim no seu lugar. Michael chegará hoje à noite, assim que puder.

Ela olhou para ele, espantada, com um alívio que quase a fez estremecer. Michael viria.

Michael estava em algum lugar por perto. Mas como isso poderia estar acontecendo?

- E, muito perto. E sua ausência foi inevitável - disse o homem com tanta sinceridade, como se acabasse de inventar essas palavras. - Ele ficou realmente aborrecido de não poder estar aqui...

Ela viu novamente a casa de First Street sombria, sinistra, descaracterizada. A casa sobre a qual Michael vinha falando o tempo todo. E, quando ela o viu pela primeira vez no mar, ele lhe pareceu um pontinho minúsculo de roupas boiando, não podia ser um afogado, não aqui tão longe, a tantas milhas da terra...

- Em que posso ajudá-la agora? - perguntou o inglês, em voz baixa, misteriosa e de uma solicitude perfeita. - Você quer se aproximar do caixão?

É, por favor, leve-me até ele. Por favor, me ajude. Faça com que minhas pernas se mexam. Mas elas já estavam se mexendo. Ele havia passado o braço pela sua cintura e a estava conduzindo, sem nenhum esforço, e graças a Deus a conversa havia recomeçado, embora fosse apenas um murmúrio em tom respeitoso, do qual ela conseguia extrair fiapos à vontade.

-...ela simplesmente não quis vir até a funerária. A verdade é essa. Ela está furiosa por nós todos estarmos aqui.

- Não diga isso. Ela está com noventa anos nas costas, e está fazendo quase quarenta graus lá fora.

- Eu sei, eu sei. Bem, todo mundo pode vir para minha casa depois, foi o que eu disse...

Ela não tirava os olhos das alças prateadas, das flores, do genuflexório de veludo agora bem à sua frente. Náuseas novamente. Náuseas do calor e desse ar fresco e imóvel com o perfume das flores pairando à sua volta como uma névoa invisível. Mas você tem de fazer isso. Tem de agir com calma e em silêncio. Não pode perder a oportunidade. Prometa que nunca voltará para lá. Que nunca tentará descobrir nada.

O inglês a estava segurando. Michael virá. Sua mão direita, encostada no braço de Rowan num gesto tranqüilizador. A mão esquerda firmava seu pulso esquerdo quando ela tocou a lateral coberta de veludo do ataúde. Lentamente, ela se forçou a erguer os olhos do chão até ver o rosto da morta, pousado bem ali no travesseiro de cetim. E bem devagar sua boca foi se abrindo, foi se abrindo até a rigidez se transformar num espasmo. Ela lutou com todas forças para não abrir a boca. Cerrou os dentes. E o tremor que a atingiu foi tão violento que o inglês apertou mais seu braço. Ele também estava olhando. Ele a havia conhecido!

Olhe para ela. Nada mais importa agora. Não é uma hora para se apressar, para pensar em outras coisas ou para se preocupar. Basta que olhe para ela, olhe para o seu rosto com todos os seus segredos agora guardados para sempre.

E o rosto de Stella estava tão lindo no caixão. Seus cabelos negros eram lindos...

- Ela vai desmaiar. Ajudem! Pierce, ajude.

- Não. Nós estamos com ela. Ela está bem - disse Jerry Lonigan.

Morta, tão perfeita e horrivelmente morta, e tão linda. Estava arrumada para a eternidade: com o batom cor-de-rosa cintilando na sua boca bem- feita, o ruge no rosto impecável de menina, os cabelos negros bem escovados sobre o cetim, como uma cabeleira de menina, solta e linda, e as contas do rosário, é, contas de rosário, enfiadas nos dedos, que pareciam de massa de pão, ali pousados sobre o peito. Não tinham nada de mãos humanas, mas de alguma escultura grosseira. -

Em todos esses anos, Rowan nunca havia visto nada semelhante. Ela havia visto cadáveres de afogados, de esfaqueados e dos que haviam morrido dormindo nas enfermarias.

Ela os havia visto já sem cor e cheios de produtos químicos, sendo retalhados após semanas, meses e até mesmo anos para a aula de anatomia. Ela os havia visto durante a autópsia, com os órgãos ensangüentados sendo retirados pelas mãos enluvadas do médico.

Mas nunca uma coisa dessas. Nunca essa coisa morta e bela usando seda azul e renda, cheirando a pó-de-arroz, com as mãos unidas sobre as contas do rosário. Ela aparentava não ter idade, quase como uma gigantesca menininha, com seus cabelos inocentes, seu rosto desprovido de rugas e até mesmo o batom, da cor de pétalas de rosa.

Ah, se ao menos fosse possível abrir seus olhos! Gostaria de poder ver os olhos da minha mãe! E nesta sala, repleta de pessoas idosíssimas, ela ainda é tão jovem...

Rowan se inclinou um pouco. Com a maior delicadeza, soltou as mãos das do inglês. Pôs as suas sobre as pálidas mãos da morta, aquelas mãos que se derretiam lentamente. Duras! Duras como as contas do rosário. Duras e frias. Ela fechou os olhos e pressionou aquela carne branca e inflexível. Tão irremediavelmente morta, tão distante de qualquer sopro de vida, tão decididamente acabada.

Se Michael estivesse aqui, será que ele poderia saber ao tocar suas mãos se ela havia morrido sem dor ou sem medo? Ele poderia ter descoberto o motivo para tantos segredos? Ele poderia tocar essa carne horrenda e sem vida, e ouvir ainda nela a canção da vida? Oh, Deus, quem quer que ela fosse, não importa o motivo pelo qual ela tenha me dado, espero que tenha morrido sem medo ou dor. Em paz, tão serena quanto seu rosto. Veja os seus olhos, a sua testa límpida.

Bem devagar, ela ergueu a mão e enxugou as lágrimas do rosto, percebendo que ele agora estava relaxado. Percebeu também que podia falar se quisesse, e que à sua volta outros também choravam, que a mulher de cabelo cinza-chumbo chorava, que a pobre mulher de cabelos negros que estivera chorando o tempo todo agora soluçava em silêncio encostada no peito do homem ao seu lado, e que a expressão no rosto daqueles que não estavam chorando - para onde quer que olhasse na claridade mais além do caixão - havia se tornado serena e pensativa, muito parecida com aqueles rostos em famosos quadros florentinos, nos quais criaturas passivas, ligeiramente tristes, contemplam o mundo daqui de fora da moldura, como se estivessem num sonho, espiando lânguidas com o canto dos olhos.

Rowan recuou, mas seus olhos permaneceram fixos na mulher no caixão. Ela deixou que o inglês a conduzisse novamente, dessa vez para uma saleta à sua espera. O Sr. Lonigan dizia que estava na hora de todos se aproximarem, um a um, que o padre havia chegado e que ele estava pronto.

Perplexa, Rowan viu um velho alto curvar-se com elegância e beijar a testa da morta.

Beatrice, a senhora bonita de cabelos cinzentos, veio em seguida e sussurrou alguma coisa enquanto beijava a morta do mesmo jeito. Uma criança foi erguida para fazer o mesmo. E o velho careca chegou, com sua barriga enorme e pesada o atrapalhando, mas conseguiu se inclinar para dar o beijo.

- Até logo, querida - sussurrou ele, com a voz rouca, para que todos o ouvissem.

O Sr. Lonigan a empurrou delicadamente para que se sentasse. Quando ele se virou, a mulher chorosa de cabelos negros se aproximou de repente, inclinou-se e olhou dentro dos seus olhos.

- Ela não queria renunciar a você - disse ela, numa voz tão fraca e rápida que parecia mais ter sido um pensamento.

- Rita Mae! - exclamou irado o Sr. Lonigan, voltando-se para ela, segurando-a pelo braço e a levando dali.

- Isso é verdade? - perguntou Rowan, estendendo a mão para tentar pegar a mão de Rita, que se afastava. O rosto do Sr. Lonigan enrubesceu. Seus maxilares tremiam ligeiramente. Ele empurrou para longe a mulher de cabelos negros, saindo por uma porta que dava para um pequeno corredor.

O inglês estava olhando para ela da porta do salão. Ele fez que sim com um pequeno gesto de cabeça e com as sobrancelhas se erguendo como se esse fato o enchesse de tristeza e assombro.

Aos poucos, Rowan afastou dele o olhar. Ficou observando a fila, que ainda chegava, um de cada vez, cada um se curvando como se quisesse beber no esguicho gelado de um bebedouro baixo.

- Adeus, Deirdre querida.

Será que todos sabiam? Será que todos se lembravam, os mais velhos, os que tinham se aproximado primeiro dela? Será que todas as crianças ouviram falar, de uma forma ou de outra, num momento ou noutro? O rapaz bonito a observava de longe.

- Adeus, minha querida... - E eles não paravam de chegar, em quantidades aparentemente intermináveis, com os salões parecendo escuros e apinhados à medida que a fila pressionava.

Não queria renunciar a você.

Como devia ser beijar aquela pele lisa e dura? E eles beijavam como se fosse a coisa mais natural do mundo, a mais simples, com o bebê erguido no alto, a mãe a se inclinar, o homem chegando tão rápido e depois uma velha com as mãos manchadas e o cabelo raleando.

- Ajude- me a subir, Cecil. - Com o pé no genuflexório de veludo. A menina de doze anos com a fita no cabelo estava nas pontas dos pés.

- Rowan, você quer ficar a sós com ela? - Era a voz de Lonigan. - Quando todos tiverem passado, será a sua vez no final. O padre espera. Mas você não é obrigada.

Ela olhou nos olhos cinzentos e amenos do inglês. Mas não era ele quem estava falando.

Era Lonigan, com seu rosto ruborizado e reluzente e seus olhinhos de porcelana.

No fundo do pequeno corredor estava sua mulher, Rita Mae, agora sem coragem para se aproximar.

- É, a sós, mais uma vez - respondeu Rowan, baixinho. Seus olhos procuraram os de Rita

Mae nas sombras do final daquele pequeno corredor.

- Verdade - disseram sem voz os lábios de Rita Mae, enquanto ela balançava a cabeça com seriedade.

É. Para lhe dar um beijo de despedida. Isso mesmo, como os outros a estão beijando...

 

Rowan Mayfair

RESUMO ESTRITAMENTE CONFIDENCIAL, ATUALIZADO EM 1989 VEJA ARQUIVO CONFIDENCIAL: ROWAN MAYFAIR, LONDRES, PARA QUAISQUER DADOS RELACIONADOS OBRIGATÓRIO USO DE SENHA PARA ACESSO

Rowan Mayfair foi legalmente adotada por Ellen Louise Mayfair e seu marido Graham Franklin, no dia do seu nascimento, 7 de novembro de 1959. Naquela ocasião, Rowan foi levada de avião para Los Angeles, onde viveu com seus pais adotivos até os três anos de idade. A família mudou-se então para San Francisco, Califórnia, onde moraram em Pacific Heights durante dois anos.

Quando Rowan estava com cinco anos de idade, a família fez sua mudança definitiva para uma casa no litoral de Tiburon, Califórnia - do outro lado da baía de San Francisco - que havia sido projetada pelos arquitetos Trammel, Porter e Davis expressamente para Graham, Ellie e sua filha. A casa é um prodígio de paredes de vidro, vigas expostas de sequóia e instalações hidráulicas e equipamentos modernos. Ela inclui deques enormes, um quebra-mar particular e um canal de navegação que é dragado duas vezes ao ano. Ela tem uma vista de Sausalito, do outro lado da baía de Richardson, e de San Francisco ao sul. Rowan agora mora sozinha nessa casa.

No momento em que escrevo, Rowan está com quase trinta anos. Ela tem um metro e setenta e cinco de altura. Usa o cabelo louro cortado curto em estilo pajem e tem olhos grandes de um cinza-claro. É inegável que seja atraente, com sua pele de uma beleza notável, sobrancelhas retas, cílios escuros e boca extremamente bem-feita.

No entanto, para se fazer uma comparação, não se pode dizer que ela tenha nada do encanto de Stella, da suavidade de Antha ou da sombria sensualidade de Deirdre.

Rowan é delicada, mas tem algo de menino. Em alguns dos seus retratos, sua expressão, em decorrência das sobrancelhas escuras e retas, lembra a de Mary Beth.

Na minha opinião, ela se parece com Petyr van Abel, mas existem diferenças nítidas. Ela não tem os olhos fundos de Petyr. E os cabelos de Rowan são de um louro-acinzentado em vez de dourado. No entanto, seu rosto é estreito como o de Petyr. E Rowan tem algo de nórdico, exatamente como Petyr nos seus retratos.

Rowan dá às pessoas a impressão de ser fria. Sua voz, porém, é afetuosa, grave e ligeiramente rouca, o que nos Estados Unidos se chama de "voz de uísque". As pessoas dizem que é preciso conhecê-la bem para se gostar dela. O que é estranho, já que nossas investigações indicam que pouquíssimas pessoas a conhecem, mas que quase todo mundo gosta dela.

 

RESUMO DOS DADOS SOBRE OS PAIS ADOTIVOS DE ROWAN: ELLIE MAYFAIR E GRAHAM FRANKLIN

Ellen Louise Mayfair foi a única filha de Sheffield, filho de Cortland Mayfair. Ela nasceu em 1923 e tinha seis anos de idade quando Stella morreu. Ellie viveu quase que exclusivamente na Califórnia desde a época em que entrou para a Universidade de Stanford aos dezoito anos de idade. Ela se casou com Graham Franklin, formado em direito por Stanford, aos trinta e um anos de idade. Graham era oito anos mais novo do que Ellie. Ellie parece ter tido pouquíssimo contato com a família mesmo antes de ir para a Califórnia, já que foi mandada para um colégio interno no Canadá aos oito anos de idade, seis meses após a morte da sua mãe.

Seu pai, Sheffield Mayfair, parece nunca ter se recuperado da perda da mulher e, embora visitasse Ellie com freqüência, levando-a em viagens para compras em NovaYork, ele a manteve afastada da cidade natal. Ele foi o mais calado e recluso dos filhos de Cortland, e possivelmente o mais decepcionante, já que trabalhava com afinco no escritório da família, mas nunca se sobressaiu ou participou de decisões importantes. Todos contavam com ele, disse Cortland após sua morte.

O que nos interessa nesta narrativa é que, após os oito anos de idade, Ellie esteve muito pouco com os parentes da família Mayfair, e que seus amigos da vida inteira na Califórnia eram pessoas que ela havia conhecido naquele estado, assim como algumas ex-alunas do colégio interno canadense com quem ela se mantinha em contato.

Ignoramos o que ela sabia da vida e da morte de Antha, ou mesmo da vida de Deirdre.

Seu marido, Graham Franklin, aparentemente não sabia nada a respeito da família de Ellie, e alguns dos comentários feitos por ele ao longo dos anos são pura fantasia.

"Ela vem de uma enorme fazenda lá no sul". "São daquele tipo de gente que guarda ouro debaixo do assoalho". "Acho que eles provavelmente descendem de piratas". "Ah, a família da minha mulher? Eles eram traficantes de escravos, não eram, querida? Todos eles têm sangue mestiço".

Os comentários em família na época da adoção davam conta de que Ellie havia assinado documentos para Carlotta Mayfair declarando que jamais deixaria Rowan descobrir nada sobre seus verdadeiros antecedentes e que nunca permitiria que ela voltasse à Louisiana.

Na realidade, esses documentos fazem parte dos registros oficiais da adoção, representando acordos formalizados entre as partes e envolvendo incríveis transferências de dinheiro.

Durante o primeiro ano da vida de Rowan, mais de cinco milhões de dólares foram transferidos da conta de Carlotta Mayfair em Nova Orleans para as contas de Ellie Mayfair na Califórnia, no Bank of America e no Wells Fargo Bank.

Ellie, que já era rica, pelos fundos deixados para ela por seu pai, Sheffield, e mais tarde pelo avô, Cortland (talvez Cortland houvesse alterado esse dispositivo, se houvesse tido tempo, mas a papelada já estava pronta há décadas), abriu um imenso fundo em custódia para sua filha adotiva, Rowan, ao qual metade dos cinco milhões foi acrescida durante os dois anos seguintes.

A outra metade foi transferida, à medida que chegava, diretamente para Graham Franklin, que investiu o dinheiro com prudência e sucesso, principalmente em imóveis (uma mina de ouro na Califórnia), e que continuou a investir o dinheiro de Ellie - pagamentos regulares do seu próprio fundo - em bens e investimentos em nome do casal ao longo dos anos. Embora recebesse muito bem como advogado bem-sucedido, Graham não tinha nenhuma herança de família, e a enorme fortuna acumulada até a.hora da sua morte, em comunhão com a mulher, resultou do seu talento para aplicar o dinheiro herdado por ela.

Existem indícios substanciais de que Graham se ressentia da mulher e que se ressentia da sua dependência financeira e emocional em relação a ela. Com sua renda, ele não poderia nunca ter sustentado aquele estilo de vida: iates, carros esportivos, férias extravagantes, uma mansão moderna em Tiburon. E ele drenava quantias enormes do dinheiro de Ellie, diretamente da sua conta conjunta para as mãos das diversas amantes que teve ao longo dos anos.

Algumas dessas mulheres nos disseram que Graham era um homem vaidoso e ligeiramente sádico. Elas, no entanto, o consideravam irresistível, desistindo dele apenas quando percebiam que ele realmente amava Ellie. Não era só o dinheiro dela. Ele não conseguia viver sem ela.

- Ele precisa de vez em quando compensar essa inferioridade, e é por isso que a engana.

Graham explicou uma vez a uma aeromoça, para quem mais tarde custeou a faculdade, que sua mulher o consumia, e que ele precisava ter "alguma coisa a mais" (querendo dizer uma mulher) ou se sentia um nada, uma total nulidade.

Quando descobriu que Ellie estava com um câncer incurável, ele entrou em pânico. Tanto seus sócios quanto seus amigos descreveram em detalhe sua "total incapacidade" para lidar com a doença de Ellie. Ele não tocava no assunto com ela; não queria ouvir o que diziam os médicos; recusava-se a entrar no seu quarto no hospital. Mudou sua amante para um apartamento em Jackson Street, bem em frente ao seu escritório em San Francisco, e ia até lá para vê-Ia até três vezes ao dia.

Forjou imediatamente um plano complicado para tirar de Ellie todos os bens da família, que agora somavam uma fortuna imensa; e estava tentando declarar Ellie incapaz, para poder vender a casa de Tiburon para sua amante, quando morreu repentinamente, dois meses antes de Ellie, de um derrame. Ellie herdou todos os bens.

A última amante de Graham, Karen Garfield, uma belíssima modelo de Nova York, lamentou sua desgraça para um dos nossos detetives enquanto tomavam coquetéis. Ela havia ficado com meio milhão, e isso era razoável, mas ela e Graham haviam planejado toda uma vida juntos: "as Ilhas Virgens, a Riviera, tudo enfim."

A própria Karen morreu de uma série de graves ataques cardíacos, sendo que o primeiro deles ocorreu uma hora depois de Karen visitar a casa de Graham em Tiburon para tentar "explicar as coisas" para sua filha Rowan.

- Aquela vaca! Ela não quis nem que eu apanhasse as coisas dele! Tudo o que eu queria era umas lembranças. Ela me disse, "Saia já da casa da minha mãe."

Karen ainda viveu duas semanas após a visita, tempo suficiente para dizer muitas coisas indelicadas sobre Rowan, mas Karen parece nunca ter relacionado sua súbita e inexplicável deterioração cardíaca àquela visita. Por que ela faria essa associação?

Nós, porém, a fizemos como será revelado no resumo que se segue.

Quando Ellie morreu, Rowan disse às amigas mais íntimas da mãe que havia perdido sua única amiga neste mundo. Isso era provavelmente verdade. Ellie Mayfair foi durante toda a vida um ser humano muito meigo e algo frágil, amada pela filha e por inúmeras amigas. De acordo com essas amigas, dela sempre emanou uma espécie de encanto de mocinha do sul, embora ela fosse uma mulher moderna e atlética, típica da Califórnia, passando facilmente por vinte anos a menos do que tinha, o que não era incomum entre as suas contemporâneas. Na verdade, a aparência jovem pode ter sido sua única obsessão, além do bem-estar da sua filha, Rowan.

Ela se submeteu a cirurgia plástica duas vezes entre os cinqüenta e os sessenta anos (para esticar o rosto); freqüentava caríssimos salões de beleza e usava o cabelo permanentemente tingido. Em fotografias com o marido, tiradas um ano antes da sua morte, ela parece ser a pessoa mais jovem dos dois. Totalmente dedicada a Graham e dependente dele, ela ignorava seus casos, e com razão.

- Ele sempre está em casa às seis para o jantar - disse ela a uma amiga. - E sempre está ali quando apago a luz.

Na verdade, a origem do encanto de Graham para Ellie e para outras, além da sua bela aparência, parecia estar no seu enorme entusiasmo pela vida e no carinho que ele dispensava à vontade àqueles que o cercavam, incluindo-se sua mulher.

Um dos seus amigos de toda a vida, um advogado mais velho, deu a seguinte explicação a um dos nossos detetives.

- Ele saía impune daqueles casos todos porque nunca foi desatencioso com Ellie. Alguns dos outros caras por aqui deveriam extrair daí uma lição. O que as mulheres odeiam é o fato de você demonstrar frieza. Se você as tratar como rainhas, elas deixarão que você tenha uma concubina ou duas fora do palácio.

A esta altura, simplesmente não sabemos se é importante colher maiores informações sobre Graham Franklin e Ellie Mayfair. O que parece nos interessar aqui é o fato de que eles eram californianos normais da classe média alta, e que viviam em extrema felicidade apesar das traições de Graham, até o último ano das suas vidas. Freqüentavam a ópera nas noites de terça; concertos sinfônicos aos sábados; e o balé de vez em quando. Possuíram uma deslumbrante sucessão de Bentleys, Rolls-Royces, Jaguars e outros carros de luxo. Chegavam a gastar dez mil dólares em roupas num mês. Nos deques da sua linda casa em Tiburon, costumavam receber amigos em reuniões modernas e pródigas. Viajavam de avião ate a Ásia ou a Europa, para férias curtas e luxuosas. Tinham um orgulho desmesurado "da nossa filha, médica", como se referiam a Rowan, alegremente, para seus numerosos amigos.

Embora Ellie tivesse o dom da telepatia, ele era mais no nível de brincadeiras. Ela sabia quem estava chamando quando o telefone tocava. Ela conseguia dizer que carta do baralho a pessoa estava segurando na mão. Fora isso, não havia nada de excepcional nessa mulher, a não ser talvez o fato de ela ser muito bonita, lembrando muitos outros descendentes de Julien Mayfair, e de ter herdado do bisavô seu jeito insinuante e seu sorriso sedutor.

A última vez que vi Ellie foi no enterro de Nancy Mayfair em Nova Orleans em janeiro de 1988. Na época ela estava com sessenta e três ou sessenta e quatro anos. Era uma mulher linda, com cerca de um metro e setenta de altura, a pele muito bronzeada e os cabelos muito negros. Seus olhos azuis estavam ocultos por trás de óculos de sol de armação branca. Seu elegante vestido de algodão realçava sua silhueta esbelta, e na realidade havia nela algo do glamour de uma atriz de cinema, ou seja, um certo brilho da Califórnia. Seis meses depois, ela estaria morta.

Quando Ellie faleceu, Rowan herdou tudo, incluindo-se o fundo de família de Ellie e mais um fundo que havia sido constituído no seu nascimento, do qual Rowan nada sabia.

Como Rowan era na época, como continua sendo, uma médica extremamente dedicada ao trabalho, essa herança praticamente não fez uma diferença apreciável na sua rotina diária. Falaremos mais sobre isso no momento propicio.

 

ROWAN MAYFAIR DA INFÂNCIA AO MOMENTO PRESENTE

Uma vigilância discreta de Rowan indicou que essa criança foi extremamente precoce desde o início, e que pode ter tido uma variedade de poderes paranormais que seus pais adotivos pareciam ignorar. Há também alguns indícios de que Ellie Mayfair se recusava a reconhecer qualquer coisa "estranha" a respeito da filha. Seja qual for o caso, Rowan parece ter sido "o orgulho e a alegria" tanto de Ellie quanto de Graham. Como indicado anteriormente, o vínculo entre mãe e filha foi extremamente íntimo até a morte de Ellie. No entanto, Rowan nunca teve o mesmo amor de sua mãe por festas, almoços, compras e outros interesses semelhantes; e nunca foi atraída para o amplo círculo de amizades femininas de Ellie, nem mesmo no final da adolescência e início da idade adulta.

Rowan compartilhou com os pais sua paixão pelo mar. Ela acompanhava a família em passeios de barco desde muito pequena e aprendeu a manobrar o pequeno veleiro de Graham, The Wind Singer, sozinha aos quatorze anos de idade. Quando Graham comprou uma lancha-cruzeiro, chamada Great Angela, a família inteira fazia longas viagens algumas vezes por ano.

Quando Rowan completou dezesseis anos, Graham já havia comprado para ela seu próprio iate, bimotor, com casco de deslocamento, que Rowan chamou de Sweet Christine. O Great Angela foi aposentado nessa ocasião, e a família inteira passou a usar o Sweet Christine, mas Rowan era o comandante inconteste. E apesar dos conselhos e objeções de todos, Rowan freqüentemente tirava a enorme embarcação da enseada sozinha.

Durante anos, foi hábito seu chegar em casa direto da escola e sair da baía de San Francisco para o mar aberto pelo menos por umas duas horas. Só eventualmente ela convidava uma amiga íntima para lhe fazer companhia.

- Nós nunca a vemos antes das oito - costumava Ellie dizer. - E eu me preocupo! Ah, como me preocupo! Mas tirar aquele barco de Rowan seria o mesmo que matá-la.

Eu simplesmente não sei o que fazer.

Embora seja excelente nadadora, Rowan não é uma navegadora ousada, por assim dizer. O Sweet Christine é uma lancha-cruzeiro de 40 pés, lenta e pesada, de construção holandesa, projetada para ter estabilidade em mares revoltos, mas não para a velocidade.

O que parece dar prazer a Rowan é o fato de estar só no barco, sem nenhuma visão da terra, em qualquer tipo de tempo. Como muitas pessoas que reagem bem ao tempo do norte da Califórnia, ela parece gostar da névoa, do vento e do frio.

Todos os que observaram Rowan parecem concordar quanto a ela ser uma pessoa solitária, uma pessoa extremamente calada que prefere o trabalho à diversão. Na escola, ela foi uma aluna compulsiva; e na universidade, uma pesquisadora compulsiva. Embora seu guarda-roupa fosse motivo de inveja entre suas colegas, ela sempre dizia que ele era obra de Ellie. Ela própria praticamente não tinha interesse algum por roupas. Seu traje característico de lazer é há anos tipicamente náutico: jeans, sapatos de iatismo, suéteres enormes, gorros de lã e uma japona de lã azul-marinho.

No mundo da medicina, especialmente no da neurocirurgia, os hábitos compulsivos de Rowan chamam menos atenção, considerando-se a natureza da profissão. No entanto, mesmo nesse campo, Rowan já foi considerada "obsessiva". Rowan parece de fato ter nascido para ser médica, embora sua opção pela cirurgia em detrimento da pesquisa tenha surpreendido muita gente que a conhecia.

- Quando ela estava no laboratório - disse um dos seus colegas-, sua mãe tinha de ligar para ela para lembrar que ela precisava reservar tempo para dormir ou para comer.

Uma das professoras de Rowan ainda na escola primária anotou na ficha, quando Rowan estava com oito anos, que "essa criança acredita ser um adulto. Ela se identifica com os adultos. Ela se impacienta com as outras crianças. Mas é bem comportada demais para deixar transparecer. Ela parece ser terrivelmente só".

 

PODERES TELEPÁTICOS

Os poderes paranormais de Rowan começaram a surgir na escola a partir dos seis anos de idade. Na realidade, eles podem ter surgido muito antes, mas nós não conseguimos descobrir provas antes dessa época. Professoras interrogadas informalmente (ou sub-repticiamente) acerca de Rowan contam histórias espantosas sobre a capacidade da menina para ler a mente.

No entanto, nada que tenhamos descoberto indica que Rowan jamais tenha sido considerada um pária, um fracasso ou uma desajustada. Em todos os seus anos de estudo, ela sempre superou as expectativas e teve um sucesso ilimitado. Seus retratos escolares mostram que ela sempre foi uma criança muito bonita, com a pele bronzeada e os cabelos louros descorados pelo sol. Nesses retratos, ela dá uma impressão de mistério, como se não estivesse gostando da invasão da câmera, mas nunca parece afetada ou constrangida.

A capacidade telepática de Rowan se tornou conhecida dos professores, em vez de dos outros alunos. Essa descoberta segue um padrão digno de nota.

- Minha mãe havia falecido - disse uma professora da primeira série. - Eu não podia voltar para Vermont para o enterro e me sentia péssima. Ninguém estava a par disso, entende? Mas Rowan chegou perto de mim no intervalo. Ela sentou ao meu lado e pegou minha mão. Eu quase explodi em lágrimas com sua ternura. "Lamento o que aconteceu com sua mãe", disse ela e ficou ali sentada em silêncio. Mais tarde, quando eu lhe perguntei como soube, ela disse, "Foi uma idéia que apareceu de repente."

Creio que aquela criança sabia todo tipo de coisa desse jeito. Ela sabia quando as outras crianças sentiam inveja dela. Como sempre foi uma criança só!

Numa outra ocasião, quando uma menina faltou à aula três dias seguidos sem explicação, e os funcionários da escola não conseguiram entrar em contato com a família, Rowan disse calmamente à diretora que não havia motivos para preocupação. A avó da menina havia morrido, e a família havia viajado para o enterro em outro estado, esquecendo-se totalmente de avisar a escola. Essa era mesmo a verdade. Mais uma vez Rowan não conseguiu explicar de que jeito soube, a não ser dizendo que a explicação surgiu de repente na sua cabeça.

Temos cerca de duas dúzia s de histórias semelhantes a essa, e o que caracteriza quase todas elas é o fato de envolverem não só a telepatia, mas a empatia e a solidariedade por parte de Rowan: um nítido desejo de consolar uma pessoa em sofrimento ou confusa ou de prestar auxílio a ela. Essa pessoa era invariavelmente um adulto. A capacidade telepática nunca está associada a brincadeiras, a dar sustos nas pessoas ou em brigas de qualquer natureza.

Em 1966, quando Rowan estava com oito anos, ela usou essa sua capacidade telepática pela última vez, ao que nós saibamos. Durante um semestre da quarta série numa escola particular em Pacific Heights, ela disse à diretora que uma outra menina estava muito doente e precisava ir a um médico, mas Rowan não sabia para quem poderia falar isso. A menina ia morrer.

A diretora ficou horrorizada. Chamou a mãe de Rowan e insistiu para que Rowan fosse levada a um psiquiatra. Só uma criança muito perturbada diria "uma coisa daquelas". Ellie prometeu conversar com Rowan. Rowan não disse mais nada. No entanto, a menina em questão uma semana depois recebeu o diagnóstico de uma forma rara de câncer ósseo. Morreu antes do final do semestre.

A diretora já contou essa história em jantares inúmeras vezes. Ela lamentou profundamente ter repreendido Rowan. Especialmente gostaria de não ter chamado a Sra. Mayfair, já que esta ficou terrivelmente contrariada.

Pode ter sido essa preocupação por parte de Ellie que pôs fim a esse tipo de incidente na vida de Rowan. Todas as amigas de Ellie sabiam do caso.

- Ellie por pouco não ficou histérica. Ela queria que Rowan fosse normal. Disse que não queria uma filha com dons estranhos.

Graham considerou a história toda uma coincidência, na opinião da diretora. Ele lhe passou um pito por ligar e contar para Ellie quando a pobrezinha morreu.

Coincidência ou não, toda essa história parece ter posto um fim nas demonstrações do poder de Rowan. É segura a suposição de que ela decidiu espertamente manter em segredo esse seu dom. Ou até mesmo que ela tenha reprimido deliberadamente esse poder a tal ponto que ele tivesse se tornado inexistente ou extremamente fraco.

Por mais que procuremos, nada encontramos sobre sua capacidade telepática daí em diante.

As recordações que as pessoas têm dela estão relacionadas à sua inteligência serena, à sua energia infatigável e ao seu amor pela ciência e pela medicina.

- Ela era aquela menina da escola que colecionava insetos e pedras, chamando tudo por um enorme nome em latim.

- Assustadora, absolutamente assustadora - disse seu professor de química no segundo grau. - Eu não teria ficado surpreso se ela reinventasse a bomba de hidrogênio durante o lazer do fim de semana.

Dentro do Talamasca, surgiram especulações no sentido de que a repressão do poder telepático por parte de Rowan talvez estivesse relacionada à expansão do seu poder telecinético; que de algum modo ela teria redirecionado a energia; e que os dois poderes representam os dois lados de uma mesma moeda. Expressando a mesma idéia em termos diferentes, Rowan abandonou a mente para se voltar para a matéria. A ciência e a medicina se tornaram suas obsessões a partir do início da adolescência.

O único verdadeiro namorado de Rowan durante -a adolescência também era inteligentíssimo e fechado. Ele parece ter sido incapaz de suportar a rivalidade com ela. Quando ela conseguiu entrar para a Universidade de Berkeley e ele não, o namoro terminou de uma forma desagradável. Os amigos culpavam o namorado. Ele mais tarde foi para o leste e se tornou um cientista dedicado à pesquisa em Nova York.

Ele "por acaso conheceu" um dos nossos investigadores na inauguração de um museu, e a conversa foi conduzida para o tema dos paranormais e de pessoas que conseguem ler a mente. O homem falou abertamente da sua ex- namorada do tempo de colégio, que era uma paranormal. Ele ainda tinha algum ressentimento.

- Eu adorava aquela garota. Gostava mesmo dela. Seu nome era Rowan Mayfair, e ela era bem diferente. Não era bonita segundo os padrões. Mas ela era impossível. Ela sabia o que eu estava pensando antes mesmo que eu soubesse. Ela sabia se eu havia saído com outra. E ela era tão calada a esse respeito que dava para apavorar. Soube que agora é neurocirurgiã. Isso é assustador. O que vai acontecer se o paciente tiver algum pensamento negativo sobre ela antes de ser anestesiado? Será que ela não vai querer cortar aquele pensamento direto do cérebro dele?

O fato é que ninguém que falasse de Rowan chegou a mencionar qualquer mesquinhez por parte dela. Descrevem- na como uma pessoa "tremenda", exatamente como Mary Beth foi descrita um dia, mas nunca mesquinha, vingativa ou indevidamente agressiva em termos pessoais.

Na época em que Rowan entrou para a Universidade de Berkeley em 1976, ela já sabia que queria ser médica. Ela tirou "A" em todas as matérias do programa preparatório para medicina, fez cursos de verão (apesar de ainda sair freqüentemente de férias com Graham e Ellie), pulou um ano inteiro e se formou em primeiro lugar em 1979. Entrou para a faculdade de medicina aos vinte anos de idade, aparentemente acreditando que dedicaria sua vida à pesquisa neurológica. Sua carreira acadêmica durante esse período foi considerada fenomenal. Muitos professores falam dela como "a maior inteligência a quem já ensinei". - Não é só que ela é inteligente. Ela usa a intuição! Ela faz associações espantosas. Ela não lê simplesmente um livro. Ela o devora e aparece com seis deduções diferentes a partir da teoria básica do autor com as quais o próprio autor nunca sonhou.

- Os alunos lhe deram o apelido de Dra. Frankenstein em virtude da sua conversa sobre transplantes de cérebros e sobre a criação de cérebros inteiros a partir de pedaços. Mas o ponto principal com Rowan é que ela é um ser humano. Nenhuma necessidade de se preocupar com uma inteligência sem emoção.

- Ah, Rowan. Se eu me lembro de Rowan? Você deve estar brincando! Rowan podia estar dando a aula no meu lugar. Quer saber uma história engraçada? Mas não vá me contar isso para mais ninguém! Eu precisei sair da cidade no final do semestre, e dei a Rowan os trabalhos da turma inteira para ela corrigir. Ela deu notas para sua própria turma! Bem, se alguém souber disso, estou acabado, mas foi um acordo, sabe? Ela queria a chave do laboratório para usá-lo no período do Natal. E eu lhe sugeri que corrigisse os trabalhos. E o pior de tudo é que foi a primeira vez que nenhum aluno sequer se queixou de uma nota. Rowan, gostaria de poder me esquecer dela. Gente como Rowan faz com que o resto de nós se considere uns idiotas.

-Ela não é inteligente. É isso o que as pessoas acham, mas a questão é outra. Ela é uma espécie de mutante. Não, estou falando sério. Ela consegue examinar os animais das pesquisas e dizer o que vai acontecer com eles. Ela costumava por as mãos neles e dizer, "esse medicamento não vai resolver". Vou lhe dizer mais uma coisa que ela fazia. Ela conseguia curar aqueles bichinhos. Conseguia, sim. Um dos médicos mais antigos me disse uma vez que, se ela não prestasse atenção, Rowan podia prejudicar as experiências com seu poder de cura. E eu acredito. Saí com ela uma vez, e ela não me curou de nada não, mas, cara, como era quente. Estou falando quente mesmo.

Foi como fazer amor com uma pessoa com febre. E é isso o que se diz das curandeiras, sabe, das que foram estudadas. Dá para se sentir um calor que emana das suas mãos. Acredito nisso. Só acho que ela não devia ter optado pela cirurgia. Deveria ter escolhido a oncologia. Nessa especialidade, ela realmente poderia ter curado as pessoas. A cirurgia? Qualquer um pode cortar os outros.

(Permitam-nos acrescentar que esse médico é ele próprio um oncologista, e que é freqüente que médicos não-cirurgiões teçam comentários extremamente pejorativos sobre os cirurgiões, chamando-os de encanadores e termos semelhantes. Os cirurgiões, por seu lado, fazem observações de igual teor depreciativo a respeito dos não-cirurgiões, dizendo coisas como "tudo o que eles fazem é preparar os pacientes para nós".)

 

O PODER DE ROWAN PARA A CURA

Assim que Rowan entrou para o hospital como interna (no seu terceiro ano da faculdade de medicina), relatos acerca dos seus poderes para a cura e para o diagnóstico se tornaram tão comuns que nossos investigadores podiam escolher à vontade o que queriam anotar.

Em suma, Rowan é a primeira bruxa Mayfair a ser descrita como curandeira desde Marguerite Mayfair em Riverbend, antes de 1835.

Praticamente qualquer enfermeira a quem se tenham feito perguntas sobre Rowan tem alguma história "fantástica" para contar. Rowan diagnosticava qualquer coisa.

Rowan sabia exatamente o que fazer. Rowan remendava pessoas que pareciam estar prontas para o necrotério.

- Ela consegue sustar hemorragias. Eu a vi fazendo isso. Ela segurou a cabeça de um menino e olhou para o seu nariz. "Pare", sussurrou ela. Eu a ouvi. E depois disso o menino simplesmente não sangrou mais.

Seus colegas mais céticos, incluindo-se aí alguns médicos e médicas, atribuem suas realizações ao "poder da sugestão".

- Ora, ela praticamente recorre ao vodu, sabe, quando diz para um paciente, agora vamos fazer essa dor parar! É claro que a dor pára. Ela hipnotizou o paciente. Enfermeiras negras mais antigas no hospital sabem que Rowan tem "o poder", e às vezes lhe pedem abertamente que "ponha as mãos" sobre elas quando estão sofrendo de uma crise de artrite ou outras dores desse tipo. Elas têm total confiança em Rowan.

- Ela olha nos olhos da gente e diz para a gente falar onde é que dói. Ela esfrega o lugar com as mãos, e não dói mais! É a pura verdade!

Na opinião geral, Rowan parece ter adorado trabalhar no hospital e ter passado por um conflito imediato entre sua devoção ao laboratório e seu entusiasmo recém-descoberto pelas enfermarias.

- Dava para se ver a cientista pesquisadora sendo seduzida! - Comentou com tristeza uma das suas professoras. - Eu sabia que nós a estávamos perdendo. E quando ela pisou na sala de cirurgia, aí tudo se acabou. Por mais que digam que as mulheres são emotivas demais para serem neurocirurgiãs, ninguém jamais diria uma coisa dessas de Rowan. Ela tem as mãos mais frias da especialidade.

(Observem a coincidência do uso de "frio" e "quente" com referência às mãos.)

Há indícios de que a decisão de Rowan de abandonar a pesquisa pela cirurgia teria sido difícil, se não traumática. Durante o outono de 1983, ela parece ter passado um tempo considerável com um certo Dr. Karl Lemle, do Instituto Keplinger de San Francisco, que estava pesquisando curas para o mal de Parkinson.

Rumores no hospital davam conta de que Lemle estaria tentando atrair Rowan, tirando-a do hospital universitário, com um salário altíssimo e condições ideais de trabalho, mas que Rowan não se sentia pronta para deixar o setor de emergência, a sala de cirurgia ou as enfermarias.

Durante o Natal de 1983, Rowan parece ter tido uma séria desavença com Lemle e daí em diante ela não atendeu mais seus telefonemas. Ou pelo menos era o que todos diziam no hospital universitário durante os meses seguintes.

Nunca pudemos saber o que aconteceu entre Rowan e Lemle. Aparentemente, Rowan aceitou um encontro para almoço com ele na primavera de 1984. Testemunhas viram os dois na lanchonete do hospital, onde se envolveram numa grande discussão. Uma semana mais tarde, Lemle deu entrada no hospital particular do Keplinger, tendo sofrido um pequeno derrame. Seguiu-se um outro, mais outro, e um mês depois ele estava morto.

Alguns dos colegas de Rowan lhe fizeram críticas severas pelo fato de não ter ido visitar Lemle. O assistente de Lemle, que mais tarde assumiu seu posto no Instituto, disse a um dos nossos detetives que Rowan era extremamente competitiva e que invejava seu chefe. Isso parece improvável. Ninguém, que tenha chegado ao nosso conhecimento, jamais associou a morte de Lemle a Rowan. Nós, no entanto, fizemos essa associação.

Independentemente do que possa ter acontecido entre Rowan e seu guru - ela costumava descrevê-lo assim antes da desavença -, Rowan passou a se dedicar à neurocirurgia pouco depois de 1983 e começou a operar exclusivamente o cérebro após completar sua residência em 1985. No momento em que escrevo, ela está terminando sua residência de especialização em neurocirurgia. Ela sem dúvida obterá seu registro no conselho e provavelmente será contratada como médica-assistente do hospital universitário ainda este ano.

O histórico de Rowan como neurocirurgiã até o presente momento - embora ela ainda seja residente e opere oficialmente sob a supervisão do assistente - é tão exemplar quanto seria de se esperar.

São inúmeras as histórias de vidas que ela salvou na mesa de operações, da sua excepcional capacidade para saber ainda no setor de emergência se uma cirurgia irá ou não salvar um paciente, das vezes em que ela consertou ferimentos de machados, tiros e fraturas de crânio resultantes de quedas ou de acidentes automobilísticos, de como ela operou dez horas seguidas sem desmaiar, do seu jeito sereno e eficaz de tratar internos assustados e enfermeiras irritadiças, bem como da censura de colegas e administradores que a aconselham de vez em quando a se arriscar menos.

Rowan, a que faz milagres, passou a ser uma forma comum de se referir a ela. Apesar do seu sucesso como residente na cirurgia, as pessoas continuam a gostar muito de Rowan. Ela é uma médica com a qual os outros podem contar. Da mesma forma, ela consegue despertar uma dedicação extraordinária nas enfermeiras com quem trabalha.

Na realidade, seu relacionamento com essas mulheres (existem alguns enfermeiros do sexo masculino, mas as mulheres ainda predominam na profissão) é tão excepcional que exige uma explicação.

E a explicação parece ser a de que Rowan se esforça ao máximo para criar um relacionamento pessoal com as enfermeiras e que, de fato, ela demonstra a mesma empatia extraordinária com relação aos problemas pessoais dessas profissionais que demonstrava para com suas professoras anos antes. Embora nenhuma dessas enfermeiras relate incidentes envolvendo telepatia, elas afirmam repetidamente que Rowan parece saber quando elas não estão bem, parece se solidarizar com suas dificuldades em família e que Rowan sempre encontra uma forma de expressar sua gratidão por serviços especiais, e isso vindo de uma médica intransigente que espera da sua equipe o mais alto nível de desempenho. A conquista das enfermeiras da sala de cirurgia por parte de Rowan, incluindo-se aquelas famosas por não cooperarem com mulheres cirurgiãs, é uma espécie de lenda no hospital. Enquanto outras cirurgiãs são criticadas por "serem implicantes", por agirem "com excesso de superioridade" ou por serem "simplesmente insolentes" - comentários que parecem refletir um preconceito considerável, no final das contas -, as mesmas enfermeiras falam de Rowan como se fosse um anjo.

- Ela nunca grita ou tem um ataque, como os homens fazem. Ela é boa demais para isso.

- Ela é tão franca quanto um homem.

- Eu prefiro trabalhar ali com ela do que com alguns desses médicos, isso eu lhe digo.

- É lindo trabalhar com ela. Ela é o que há de melhor. Adoro só vê-Ia trabalhando. É como um artista.

- Ela é o único médico que eu deixaria um dia abrir minha cabeça, posso lhe garantir.

Para colocar essas declarações numa perspectiva mais clara, ainda estamos vivendo num mundo em que as enfermeiras da sala de cirurgia às vezes se recusam a entregar os instrumentos a cirurgiãs; e em que os pacientes no setor de emergência se recusam a receber tratamento de médicas e insistem em que jovens internos os atendam enquanto médicas mais velhas, mais preparadas e mais competentes são forçadas a ceder lugar e ficar observando.

Rowan parece ter ultrapassado totalmente esse tipo de preconceito. Se existe alguma queixa contra ela entre os membros da sua profissão, é a de que ela é calada demais. Ela não fala o suficiente sobre o que está fazendo para os médicos mais novos que precisam aprender com ela. É muito difícil para ela. No entanto, ela se esforça ao máximo.

A partir de 1984, ela parecia ter escapado incólume da maldição da família Mayfair, sem ser atingida pelas experiências medonhas que perseguiram sua mãe e sua avó, e estar a caminho de uma carreira brilhante.

Uma investigação exaustiva da sua vida não havia descoberto nenhum indício da presença de Lasher, ou na realidade nenhuma ligação entre Rowan e fantasmas, espíritos ou assombrações.

E seus fortes poderes para a telepatia e para a cura pareciam ter sido aplicados numa atividade extraordinariamente produtiva, sua carreira como cirurgiã.

Embora todos à sua volta a admirassem por seus dons excepcionais, ninguém a considerava "estranha" ou "esquisita" sob nenhum aspecto ligado ao sobrenatural.

Como disse um médico, ao lhe pedirem que explicasse a reputação de Rowan.

- Ela é um gênio. O que mais se pode dizer?

 

DESCOBERTAS RECENTES

Existem, porém, mais elementos na história de Rowan, que só se revelaram nos últimos anos. Uma parte dessa história é exclusivamente pessoal e não diz respeito ao Talamasca. A outra parte nos alarmou muito além das nossas expectativas mais fantasiosas quanto ao que pode acontecer a Rowan no futuro.

Permitam-nos tratar em primeiro lugar da parte insignificante.

Em 1985, a total inexistência de uma vida social por parte de Rowan despertou nossa curiosidade. Pedimos aos nossos detetives que intensificassem sua vigilância.

Em poucas semanas, eles descobriram que Rowan, longe de não ter vida social, tem uma vida social de uma natureza muito específica, que inclui homens muito viris da classe operária, que ela conhece de vez em quando em qualquer um de quatro bares de San Francisco que freqüenta.

Entre esses homens predominam os bombeiros ou os policiais fardados. Eles são invariavelmente solteiros. Têm sempre uma belíssima aparência e o corpo extremamente bem-feito. Rowan os recebe apenas no Sweet Christine, no qual às vezes saem para o mar e outras permanecem atracados. E ela raramente vê qualquer um deles mais de três vezes.

Embora Rowan seja discreta e reservada, ela foi alvo de alguns mexericos nos bares que freqüenta. Pelo menos dois homens ficaram melindrados com sua inevitável rejeição e falaram abertamente com nossos investigadores, mas ficou evidente que eles não sabiam quase nada a respeito dela. Achavam que ela era uma "menina rica de Tiburon", que os havia desprezado, ou que os havia usado. Não faziam a menor idéia de que ela fosse médica. Um deles descreveu repetidamente o Sweet Christine como "o barco extravagante do papai".

Outros homens que conheceram Rowan foram mais objetivos.

- Ela é um lobo solitário. Só isso. Na verdade, eu gostei. Ela não queria nenhum compromisso. Eu também não. Talvez eu quisesse estar com ela mais uma vez ou duas, mas isso tem de ser de interesse mútuo. Eu a compreendo. Ela é uma moça instruída que gosta de homens à antiga.

Uma investigação superficial de doze homens diferentes vistos deixando a casa de Rowan entre 1986 e 1987 indicou que todos eram bombeiros ou policiais extremamente respeitados, alguns com fichas excelentes e condecorações. Todos eram considerados "caras legais" pelos seus colegas e futuras namoradas.

Investigações mais profundas também confirmaram que os pais de Rowan conheciam sua preferência por esse tipo de homem desde antes de se formar na faculdade. Graham comentou com uma secretária que Rowan se recusava até a falar com um rapaz de nível superior de instrução. Que ela só saía com "uns caras estranhos, de peito peludo" e que um dia desses ela ia descobrir que esses primatas débeis mentais eram perigosos.

Ellie também mencionou sua preocupação com as amigas.

-Ela diz que eles todos são policiais e bombeiros, e que esse tipo de homem só salva vidas.

Acho que ela não sabe o que está fazendo. Mas desde que não se case com um deles, acho que tudo bem. Você precisava ver o que ela trouxe para casa ontem à noite. Eu o vi de relance no deque lateral. Uns cabelos ruivos lindos e sardas. O policial irlandês mais bonitinho que já se viu.

No pé em que estão as coisas agora, interrompi essa investigação. Creio que não temos nenhum motivo para pesquisar mais esse aspecto da vida de Rowan. E, na realidade, os bares em que ela conhece seus policiais e bombeiros são tão poucos que fazer perguntas a seu respeito no fundo viola a sua privacidade, ao chamar a atenção para sua pessoa. E em alguns casos nossas perguntas estimularam conversas bastante degradantes por parte de homens grosseiros, que dela não sabiam nada, mas que alegavam ter ouvido de uma outra pessoa esse ou aquele detalhe vulgar. Não creio que esse aspecto da vida de Rowan seja da nossa conta, a não ser para salientar que seu gosto parece ser semelhante ao de Mary Beth Mayfair, e que um estilo desses de contatos aleatórios e limitados reforça a idéia de que ela é um ser solitário e um mistério para todos os que a conhecem. É óbvio que ela não fala de si mesma com esses parceiros sexuais. Talvez ela não consiga falar de si mesma com ninguém, e isso pode ser uma das chaves para a compreensão das suas compulsões e ambições.

 

O PODER TELECINÉTICO DE ROWAN

O outro aspecto da vida de Rowan, descoberto apenas recentemente, é muito mais importante e representa um dos capítulos mais perturbadores em toda a história da família Mayfair. Nós estamos agora somente começando a documentar esse segundo aspecto misterioso de Rowan, e nos sentimos forçados a prosseguir nossas investigações, e a considerar a possibilidade de um contato com Rowan no futuro próximo, embora tenhamos uma profunda preocupação com o fato de estarmos interferindo na sua ignorância quanto aos seus antecedentes familiares. E não podemos em sã consciência entrar em contato com ela sem perturbar essa ignorância. A responsabilidade envolvida é imensa.

Em 1988, quando Graham Franklin morreu de hemorragia cerebral, nosso investigador na área nos mandou uma breve descrição do ocorrido, acrescentando somente alguns detalhes, em especial que o homem morreu nos braços de Rowan. Como sabíamos da profunda dissensão entre Graham Franklin e sua mulher moribunda, Ellie, lemos esse relato com alguma reserva. Seria possível que Rowan tivesse de alguma forma provocado a morte de Graham? Estávamos curiosos por saber. À medida que nossos detetives iam procurando maiores informações sobre o plano de Graham no sentido de se divorciar, eles entraram em contato com a amante de Graham, Karen Garfield, e com o tempo informaram que Karen havia sofrido vários ataques cardíacos. Eles, então, relataram sua morte, dois meses após a morte de Graham. Sem dar absolutamente nenhuma importância ao fato, eles também haviam nos informado de um encontro entre Rowan e Karen no dia em que Karen foi levada às pressas para o hospital com seu primeiro ataque.

- Você é um cara legal. Gostei de você - havia dito Karen ao nosso investigador apenas horas depois de estar com Rowan. Ela na realidade estava conversando com ele quando teve de interromper a conversa por não estar passando bem.

Os investigadores não fizeram a associação, mas nós fizemos. Karen Garfield tinha somente vinte e sete anos. Os registros da sua autópsia, que obtivemos com bastante facilidade, indicaram que ela aparentemente sofria de uma fraqueza congênita do músculo cardíaco e de uma fraqueza congênita da parede da artéria. Ela sofreu uma hemorragia na artéria seguida de colapso cardíaco; e depois do dano inicial ao músculo cardíaco, ela simplesmente não conseguiu se recuperar. Colapsos cardíacos subseqüentes a debilitaram aos poucos até ela afinal falecer.

Somente um transplante poderia ter sido sua salvação e, como Karen tinha um tipo sangüíneo raro, ele ficou fora de cogitação. Além do mais, não havia tempo para isso.

O caso nos pareceu muito estranho, especialmente tendo em vista que a saúde de Karen nunca lhe havia causado preocupações antes. Quando estudamos a autópsia de Graham, descobrimos que ele também havia morrido de um aneurisma, ou enfraquecimento da parede da artéria. Uma forte hemorragia interna o matou quase instantaneamente. Demos ordens aos nossos investigadores para que voltassem a examinar a vida de Rowan com a maior profundidade possível, à procura de quaisquer mortes súbitas em decorrência de colapso cardíaco, acidente cérebro-vascular ou qualquer outro caso de trauma interno. Resumindo, isso significava fazer uma série de perguntas despreocupadas e discretas a professores que pudessem se lembrar de Rowan e dos seus colegas de turma, bem como a estudantes da Universidade de Berkeley ou do hospital universitário que pudessem se lembrar de um acontecimento dessa natureza. Nada de tão fácil, mas mais fácil do que as pessoas não familiarizadas com os nossos métodos possam imaginar. Na verdade, eu esperava que a investigação não revelasse nada. As pessoas que possuem esse tipo de poder telecinético - o poder de provocar graves danos internos - são praticamente inexistentes, mesmo nos anais do Talamasca.

E sem dúvida nós nunca havíamos visto ninguém na família Mayfair que pudesse causar a morte com esse tipo de força.

Muitos integrantes da família Mayfair moviam objetos, batiam portas, faziam com que as janelas tremessem. Mas em quase todos os casos, poderia ter sido pura bruxaria, ou seja, a manipulação de Lasher ou de outros espíritos inferiores, em vez de telecinesia pura. E se fosse telecinesia, era do tipo corriqueiro, nada mais do que isso.

Na verdade, a história da família Mayfair era uma história de bruxaria, com apenas leves toques de telepatia, poderes de cura ou outras capacidades paranormais acrescidos a ela.

Nesse meio-tempo, estudei todas as informações que tínhamos sobre Rowan. Eu não podia deixar de acreditar que Deirdre Mayfair ficaria feliz se lesse essa história, se pudesse saber que sua filha era tão profundamente admirada e tão realizada em tudo o que fazia. Jurei a mim mesmo nunca fazer nada que pudesse perturbar a felicidade ou a paz de espírito de Rowan Mayfair. Se a história da família Mayfair, como a conhecíamos e a compreendíamos, ia se encerrar na figura liberada de Rowan, nós só podíamos nos alegrar por ela e não devíamos fazer nada para afetar a história sob nenhum aspecto.

Afinal de contas, um ínfimo fragmento de informação do passado poderia mudar o curso da vida de Rowan. Não podíamos nos arriscar a fazer uma intervenção dessas.

Eu acreditava de fato que tínhamos de estar preparados para encerrar o arquivo sobre Rowan, e sobre as Bruxas Mayfair, assim que Deirdre falecesse. Por outro lado, tínhamos de nos preparar para fazer alguma coisa se, quando Ellie morresse, Rowan voltasse a Nova Orleans para descobrir seu passado.

Duas semanas após o enterro de Ellie, sabíamos que Rowan não pretendia voltar. Ela acabava de começar seu último ano de residência em neurocirurgia e lhe seria impossível arranjar tempo para a viagem. Além disso, nossos investigadores haviam descoberto que Ellie havia pedido a Rowan que assinasse um documento em que jurava formalmente nunca ir a Nova Orleans ou procurar saber quem eram seus verdadeiros pais. Rowan havia assinado o documento. Não havia nenhum indício de que ela não pretendesse honrá-lo.

Talvez ela nunca pusesse os olhos na casa de First Street. Talvez, de algum modo, "a maldição" fosse interrompida. E Carlotta Mayfair sairia, afinal, vitoriosa.

Por outro lado, era cedo demais para se saber. E o que iria impedir Lasher de se mostrar a essa jovem altamente paranormal que conseguia ler o pensamento dos outros talvez com maior precisão do que sua mãe ou do que sua avó, e cuja enorme força e ambição repercutiam a de antepassados como Marie Claudette, Julien ou Mary Beth, de quem ela nada sabia, mas sobre quem ela poderia em breve descobrir muitas coisas.

Enquanto eu fazia essas ponderações, eu também me flagrei pensando em Petyr van Abel, Petyr, cujo pai havia sido um grande cirurgião e anatomista em Leiden, com seu nome nos livros de história até os nossos dias. Eu ansiava por poder dizer a Rowan Mayfair, "Está vendo esse nome? O desse médico holandês famoso por seus estudos de anatomia. Ele é um antepassado seu. Seu sangue e seu talento talvez tenham chegado até você através de todos esses anos e de todas essas gerações."

Eram esses os meus pensamentos quando no outono de 1988 nossos detetives começaram a nos informar de descobertas espantosas relacionadas a mortes traumáticas no passado de Rowan. Aparentemente, uma menina que brigava com Rowan no pátio em San Francisco havia sofrido uma violenta hemorragia cerebral, morrendo a poucos metros de Rowan, que estava histérica, antes mesmo que uma ambulância pudesse ser chamada. Depois, em 1974, quando Rowan era adolescente, ela foi salva de uma agressão por parte de um estuprador condenado quando o homem sofreu um ataque cardíaco fatal enquanto Rowan lutava para escapar das suas mãos.

Em 1984, na tarde em que se queixou pela primeira vez de uma dor de cabeça fortíssima, o Dr. Karl Lemle, do Instituto Keplinger, disse à sua secretária, Berenice, que tinha acabado de encontrar Rowan por acaso e que não compreendia a animosidade que ela demonstrava com relação a ele. Ficou tão furiosa quando ele tentou falar com ela que se recusou a cumprimentá-lo diante dos outros médicos no hospital universitário. Na verdade, ela lhe havia provocado uma terrível dor de cabeça. Ele precisava tomar uma aspirina. Naquela noite, ele foi hospitalizado devido à primeira de uma série de hemorragias e morreria em questão de semanas.

Isso representava cinco mortes por acidente cardiovascular ou cérebro-vascular entre pessoas íntimas de Rowan. Três dessas pessoas haviam morrido na sua presença. Duas haviam estado com ela horas antes de adoecerem. Instruí meus detetives a fazerem uma verificação exaustiva de cada um dos colegas de trabalho e de estudo de Rowan, e a verificar cada um desses nomes nos registros de óbitos de San Francisco e da cidade de nascimento de cada um. É claro que a tarefa levaria meses.

No entanto, algumas semanas depois, eles se depararam com mais uma morte. Foi Owen Gander quem me ligou, um homem que trabalha diretamente com o Talamasca há vinte anos. Ele não é membro da Ordem, mas visitou a casa-matriz; é um dos nossos confidentes mais fiéis e um dos melhores investigadores que temos.

Foi o seguinte o seu relatório. Na Universidade de Berkeley em 1978, Rowan teve uma terrível discussão com uma colega em virtude de algum trabalho no laboratório.

Rowan achou que a outra havia mexido propositadamente no seu equipamento. Rowan perdeu o controle - algo extremamente raro de ocorrer -, jogou uma peça do equipamento no chão e voltou as costas para a garota. Esta começou a ridicularizar Rowan até outros alunos interferirem insistindo para que ela parasse.

A aluna foi para casa naquela noite em Palo Alto, Califórnia, já que as férias de primavera começavam no dia seguinte. Antes do final das férias, ela ha via morrido de hemorragia cérebro-vascular. Não havia o menor indício de que Rowan jamais tivesse sabido.

Quando li essas palavras, liguei imediatamente para Gander, de Londres.

- O que o faz pensar que Rowan não soube? - perguntei.

-Nenhum dos seus colegas soube. Depois que eu descobri a morte da moça nos óbitos de Palo Alto, fiz uma pesquisa sobre ela com amigos de Rowan. Todos se lembravam da briga, mas ninguém sabia o que aconteceu depois com a colega. Não houve um único que soubesse. Perguntei diretamente. "Nunca mais a vi." "Acho que largou a faculdade."

"Nunca a conheci muito bem. Não sei o que aconteceu com ela. Pode ser que tivesse voltado para Stanford." E é isso aí. Berkeley é uma universidade enorme. Poderia ter acontecido exatamente assim.

Aconselhei, então, ao investigador que prosseguisse com a máxima discrição e descobrisse se Rowan tinha conhecimento do que havia acontecido com a amante de Graham, Karen Garfield.

-Ligue para ela em alguma hora da noite. Peça para falar com Graham Franklin. Quando ela lhe disser que Graham morreu, explique que você está à procura de Karen Garfield. Tente incomodá-la o mínimo possível e não fique muito tempo na linha.

Na noite seguinte, o investigador ligou de volta.

- Você tem razão.

- Sobre o quê?

- Ela não sabe o que está fazendo! Ela não faz a menor idéia da morte de Karen Garfield.

Ela me disse que Karen morava em algum lugar em Jackson Street em San Francisco. Sugeriu que eu ligasse para a antiga secretária de Graham. Aaron, ela não sabe.

- Como lhe pareceu sua voz?

- Exausta, ligeiramente irritada, mas educada. Ela tem realmente uma bela voz. Uma voz extraordinária. Perguntei-lhe se conhecia Karen. Eu estava mesmo forçando um pouco. Ela disse que não conheceu Karen de verdade, que Karen havia sido amiga do seu pai. Acredito que estivesse sendo perfeitamente sincera!

- É, mas ela devia saber a respeito do pai adotivo e da menina no pátio da escola. E ela sem dúvida soube no caso do estuprador.

- Concordo, Aaron, mas é provável que nenhum desses tenha sido proposital. Você não percebe? Ela estava histérica quando a menininha morreu; estava histérica depois da tentativa de estupro. Quanto ao pai adotivo, ela estava fazendo tudo para ressuscitá-lo quando a ambulância chegou. Ela não sabe. Ou, se sabe, não tem controle sobre isso. Pode ser que isso a esteja deixando totalmente apavorada.

Dei instruções a Gander no sentido de que reexaminasse a questão dos rapazes com maior profundidade. Que procurasse por qualquer tipo de morte aplicável ao caso de Rowan entre policiais ou bombeiros de San Francisco ou de Marin County. Que voltasse aos bares freqüentados por Rowan. Que entabulasse conversa com um ex-namorado seu, dizendo que estava à procura de Rowan Mayfair. Alguém a teria visto? Alguém a conhece? Seja discreto e procure não chamar a atenção. Mas pesquise. Gander ligou quatro dias depois. Não havia encontrado nenhuma morte suspeita entre os rapazes das duas corporações que pudesse estar remotamente associada a Rowan. No entanto, um ponto importante havia surgido a partir da conversa do detetive no bar. Um jovem bombeiro, que confessou conhecer Rowan e gostar dela, disse que ela não era nenhum mistério para ele; que era mais como um livro aberto.

- Ela é médica. Gosta de salvar vidas, e aprecia nossa companhia porque nós fazemos o mesmo que ela.

- Rowan realmente disse isso para o rapaz?

- É, foi isso o que ela disse. Ele até fez piada sobre a história. "Imagine, eu fui para a cama com urna neurocirurgiã. Ela se apaixonou pelas minhas condecorações. Foi maravilhoso enquanto durou. Acha que, se eu salvar alguém de um prédio em chamas, ela me dá mais uma chance?" - Gander riu. - Aaron, ela não sabe. Sua obsessão é salvar vidas, e talvez ela nem saiba bem por quê.

- Ela tem de saber. É competente demais como médica para não saber - disse eu. – Lembre-se, ela é um gênio para diagnósticos. Ela deve ter sabido no caso do pai adotivo. A não ser, é claro, que estejamos redondamente enganados.

- Não estamos enganados, Aaron. O que temos nesse caso é uma brilhante neurocirurgiã, descendente de uma família de bruxas, que consegue matar com o olhar. E até certo ponto, ela sabe disso, tem de saber, e passa todos os dias da sua vida procurando compensar esse seu lado na sala de cirurgia. E, quando ela sai para se divertir, é com algum herói que acabou de salvar um menino de um sótão em chamas ou com um policial que impediu um bêbado de esfaquear a própria mulher. Ela é meio louca, essa moça. Talvez tão louca quanto todas as outras.

Em dezembro de 1988, fui à Califórnia. Eu estivera nos Estados Unidos em janeiro daquele ano para comparecer ao enterro de Nancy Mayfair, e muito me arrependi de não ter seguido até a costa oeste naquela ocasião para ver Rowan mesmo de relance. Mas naquela época ninguém podia imaginar que tanto Ellie quanto Graham estariam mortos dentro de seis meses. Rowan estava agora sozinha na casa de Tiburon. Eu queria dar uma olhada nela, mesmo que fosse de longe. Eu queria fazer algum tipo de avaliação que dependia de eu vê-Ia em carne e osso.

A essa altura, graças a Deus, não havíamos encontrado mais nenhuma morte no passado de Rowan. No seu último ano de residência em neurocirurgia, Rowan cumpria no hospital horários impossíveis, se não desumanos, e eu descobri ser muito mais difícil conseguir um relance dela do que jamais havia imaginado. Para sair do hospital, ela tirava o carro de um estacionamento coberto e, em casa, entrava numa garagem coberta.

O Sweet Christine, atracado quase à soleira da sua porta, ficava totalmente oculto por uma alta cerca de sequóias.

Afinal, entrei no hospital universitário, procurei a lanchonete dos médicos e fiquei por ali por perto numa pequena área para visitas durante sete horas. Ao que eu percebesse, Rowan nunca passou por ali.

Resolvi segui-la na saída do hospital, só para descobrir que não havia nenhum meio de descobrir a hora em que sairia. Sua hora de chegada era também um mistério.

Não havia nenhuma forma discreta para eu insistir com alguém que me desse detalhes. Eu não podia me arriscar a ficar perambulando na área próxima às salas de cirurgia.

O acesso era vedado ao público. A sala de espera para os membros da família dos pacientes submetidos a cirurgia era monitorada com rigor. E o restante do hospital me parecia um labirinto. Eu não sabia afinal o que fazer.

Fiquei consternado. Eu queria ver Rowan, mas receava perturbá-la. Não podia suportar a idéia de trazer as trevas até sua vida, de toldar aquele isolamento do passado que aparentava ter-lhe sido tão benéfico. Por outro lado, se ela realmente havia sido responsável pela morte de seis seres humanos! Bem, eu precisava vê-Ia antes de tomar uma decisão. Eu tinha de vê-Ia.

Incapaz de chegar a uma solução, convidei Gander para um drinque no hotel. Gander considerava Rowan profundamente perturbada. Ele a vinha observando esporadicamente há mais de quinze anos. A morte dos pais lhe havia tirado o entusiasmo, disse ele. E ele podia afirmar com bastante certeza que seus contatos aleatórios com os "rapazes de farda" como Gander chamava os namorados de Rowan, haviam se reduzido a nada nos últimos meses.

Eu disse a Gander que não deixaria a Califórnia sem pelo menos vê-Ia de vislumbre, mesmo que tivesse de ficar à espreita no estacionamento subterrâneo perto do seu carro (o pior meio possível para se conseguir ver alguém) até que ela aparecesse.

- Eu não tentaria fazer isso, meu velho - disse Gander. - Os estacionamentos subterrâneos podem ser extremamente fantasmagóricos. As pequenas antenas paranormais de Rowan irão detectá-lo de imediato. Ela pode, então, se enganar quanto à intensidade do seu interesse por ela, e você vai sentir uma súbita pontada na lateral da cabeça. Em seguida, você de repente...

-já entendi, Owen - respondi, desanimado. - Mas eu preciso dar uma boa olhada nela em algum lugar público onde ela não perceba minha pessoa.

- Ora, faça com que isso aconteça - disse Gander. - Recorra um pouco à bruxaria.

Sincronização? Não é assim que se chama?

No dia seguinte, resolvi fazer um serviço de rotina. Fui até o cemitério onde estavam enterrados Graham e Ellie, para fotografar as inscrições nas lápides. Eu havia pedido duas vezes a Gander que fizesse isso, mas não sei bem como, ele nunca chegou a ir lá. Creio que ele gostava muito mais dos outros aspectos da investigação.

Enquanto eu estava lá, aconteceu uma coisa incrível. Rowan Mayfair apareceu. Eu estava ajoelhado ao sol, fazendo algumas anotações sobre as inscrições, depois de ter tirado as fotografias, quando percebi uma moça alta de japona e jeans desbotados, subindo a ladeira. Por um instante, ela pareceu ser apenas pernas e cabelos esvoaçantes, uma linda jovem de rosto limpo. Impossível acreditar que já tivesse trinta anos de idade.

Pelo contrário, seu rosto praticamente não tinha rugas. Ela parecia exatamente igual às suas fotografias tiradas anos antes, e no entanto ela lembrava muito uma outra pessoa. Por um instante, essa semelhança me perturbou tanto que eu não consegui pensar em quem seria. Depois o nome da pessoa me ocorreu. Era Petyr van Abel. Rowan tinha a mesma aparência loura, de olhos claros, quase escandinava. Ela também parecia extremamente independente e forte.

Ela se aproximou do túmulo e parou a poucos metros de onde eu estava ajoelhado, obviamente fazendo anotações sobre a lápide da sua mãe adotiva.

Comecei imediatamente a falar com ela. Não consigo me lembrar exatamente do que disse. Eu estava tão agitado que não sabia o que devia dizer para explicar minha presença ali. E aos poucos pressenti o perigo, com a mesma certeza que o havia pressentido com Cortland tantos anos antes. Pressenti um perigo imenso. Na realidade, seu rosto liso com os enormes olhos cinzentos de repente parecia cheio de pura maldade. E então sua expressão ficou escondida atrás de uma muralha. Ela estava se fechando, como um gigantesco receptor que é desligado de repente e em silêncio. Percebi com horror que eu estivera falando da sua família. Eu lhe havia dito que conhecia sua família em Nova Orleans. Essa era minha desculpa capenga para o que estava fazendo ali. Ela queria tomar um drinque? Conversar sobre velhas histórias da família? Meu Deus! E se ela aceitasse!

Mas ela não disse nada. Absolutamente nada, pelo menos não em palavras, Eu poderia ter jurado, porém, que o receptor desligado de repente estava transformado num transmissor bem sintonizado, e ela me comunicava com bastante determinação que não podia aceitar meu convite, alguma coisa sinistra, terrível e dolorosa a impedia de aceitar. Em seguida ela pareceu estar totalmente confusa, perdida na sua tristeza. De fato, raramente se é que alguma vez na minha vida percebi uma dor tão pura. Ocorreu-me num lampejo mudo que ela sabia ter matado pessoas. Ela sabia que era diferente, de um jeito horrível e mortal. Ela sabia, e esse conhecimento a isolava como se ela estivesse enterrada viva dentro de si mesma.

Talvez não tivesse sido maldade o que senti apenas momentos antes. Mas não importa o que fosse, o encontro estava encerrado. Eu a estava perdendo. Ela se voltou para ir embora. Eu nunca iria saber por que ela havia vindo, o que pretendia fazer. Imediatamente, ofereci-lhe meu cartão. Coloquei-o na sua mão, mas ela o devolveu. Não com grosseria. Apenas o devolveu. Colocou-o de volta na minha mão. Saltou dela um rancor como um feixe de luz que sai por um buraco de fechadura. Depois ela se apagou. Seu corpo se retesou, e ela deu a volta e foi embora.

Eu estava tão abalado que por algum tempo não consegui me mexer. Fiquei ali parado no cemitério, observando enquanto ela descia a ladeira. Vi que ela entrava num jaguar verde. Saiu sem olhar para trás.

Eu estaria doente? Não estava sentindo uma dor forte em algum lugar? Eu estava a um passo da morte? É claro que não. Não havia acontecido nada disso. Mesmo assim, eu sabia o que ela podia fazer. Eu sabia, ela sabia e me havia contado! Mas por quê? Na hora em que afinal cheguei ao Campton Place Hotel em San Francisco, eu já estava completamente confuso. Resolvi que não faria mais nada por enquanto.

- Mantenha a vigilância - disse eu a Gander, quando me encontrei com ele. - Chegue o mais próximo que ousar. Esteja alerta para qualquer indício de que ela esteja usando o poder. Avise-me imediatamente.

- Quer dizer que você não vai estabelecer contato?

- Por enquanto não. Não tenho como justificá-lo. Não até que aconteça mais alguma coisa, e isso poderia ser das duas uma: ela mata mais alguém, por acidente ou por sua própria vontade; ou a mãe morre em Nova Orleans, e ela resolve voltar para lá.

- Aaron, isso é loucura! Você tem de estabelecer contato. Não pode esperar até ela voltar para Nova Orleans. Olhe, meu caro, você praticamente me contou a história inteira ao longo dos anos. E eu não quero dar a impressão de saber mais do que vocês sabem. Mas, a partir de tudo o que você me contou, essa é a paranormal mais poderosa que essa família jamais produziu. Quem vai negar que ela não é também uma bruxa poderosa? Quando a mãe afinal se for, por que esse espírito, Lasher, iria perder uma oportunidade dessas?

Não tive resposta, a não ser para dizer o que Owen já sabia. Não havia absolutamente nenhum vislumbre de Lasher na história da vida de Rowan.

- É porque ele está esperando a hora certa. A outra ainda está viva. Está com o colar.

Quando ela morrer, porém, terão de entregá-lo a Rowan. Pelo que você me disse, é essa a lei.

Liguei para Scott Reynolds em Londres. Scott já não é mais nosso diretor, mas é, depois de mim, a pessoa mais familiarizada na Ordem com o tema das Bruxas Mayfair.

- Concordo com Owen. Você precisa estabelecer contato. Precisa mesmo. O que disse a ela no cemitério foi exatamente o que devia ter dito, e em algum nível você tem consciência disso. Foi por isso que lhe falou da família. Foi por isso que lhe ofereceu o cartão. Converse com ela. É o que tem de fazer.

- Não, não concordo com vocês. Não há justificativa.

-Aaron, essa mulher é uma médica conscienciosa e no entanto sai matando as pessoas!

Você acha que ela quer que esse tipo de coisa aconteça? Por outro lado...

- ... O quê?

- Se ela realmente sabe, esse contato poderá ser perigoso. Devo confessar que não sei como me sentiria a respeito de toda essa história se estivesse aí, no seu lugar. Refleti muito. Resolvi que não entraria em contato com ela. Tudo o que Owen e Scott me haviam dito era verdade. Mas não passava de conjecturas. Nós não sabíamos se Rowan algum dia havia matado alguém de propósito . Era possível que ela não fosse responsável pelas seis mortes.

Não tínhamos como saber se ela algum dia poria as mãos no colar de esmeralda. Não sabíamos se ela um dia voltaria a Nova Orleans. Não sabíamos se os poderes de Rowan incluíam a capacidade de ver um espírito ou de ajudar Lasher a se materializar... É, mas é claro que podíamos muito bem supor que Rowan pudesse fazer tudo isso... Mas era essa exatamente a questão. Tratava-se de conjecturas. Nada mais do que conjecturas.

E aqui estava essa médica esforçada, salvando vidas diariamente num hospital de uma grande cidade. Uma mulher que não havia sido sequer tocada pelas trevas em que a casa de First Street se encontrava. É verdade que ela dispunha de um poder medonho e que poderia voltar a usá-lo, proposital ou acidentalmente. Se isso acontecesse, só então eu estabeleceria contato.

-Ah, já entendi, você quer mais um corpo no necrotério - brincou Owen.

- Não acredito que apareça mais um - disse eu, irritado. - Além do mais, se ela não sabe o que está fazendo, por que iria acreditar em nós?

- Conjecturas - disse Owen. - Como tudo o mais.

 

RESUMO

Até janeiro de 1989, não houve nenhuma associação do nome de Rowan com outras mortes suspeitas. Pelo contrário, ela vem trabalhando incansavelmente no hospital universitário, "fazendo milagres", e tem toda a probabilidade de ser nomeada médica assistente na neurocirurgia antes do final do ano.

Em Nova Orleans, Deirdre Mayfair continua sentada na sua cadeira de balanço, com os olhos fixos no jardim abandonado. A última aparição de Lasher "um belo rapaz parado de pé ao seu lado", foi comunicada há duas semanas.

Carlotta Mayfair está chegando aos noventa anos. Seu cabelo está totalmente branco, embora o penteado não tenha se alterado nos últimos cinqüenta anos Sua pele é opaca, e seus tornozelos aparecem permanentemente inchados acima dos sapatos simples de couro preto. Sua voz, porém, continua firme. E ela ainda comparece ao escritório todas as manhãs, trabalhando lá quatro horas. Às vezes ela almoça com os advogados mais novos antes de tomar o táxi de sempre de volta à casa. Aos domingos, ela caminha até a capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro para assistir à missa. Outros paroquianos já se ofereceram para levá-la de automóvel à missa e, na realidade, a qualquer outro lugar que ela gostaria de ir. Mas ela responde que gosta de caminhar. Que precisa do ar puro. Que isso a mantém em boas condições de saúde.

Quando a irmã Bridget Marie faleceu, no outono de 1987, Carlotta compareceu à cerimônia fúnebre com seu sobrinho (na verdade, seu primo Gerald Mayfair, um bisneto de Clay Mayfair). Dizem que ela gosta de Gerald Dizem que ela tem medo de não conseguir viver o suficiente para ver Deirdre em paz. Talvez Gerald tenha de cuidar de Deirdre quando Carlotta se for. Ao que saibamos, Rowan não conhece nenhuma dessas pessoas. Atualmente ela não sabe sobre sua família nada além do que sabia quando era pequena.

- Ellie tinha tanto medo de que Rowan procurasse descobrir quem eram seus pais verdadeiros - disse uma amiga recentemente a Gander. - A impressão que eu tenho é que se trata de uma história horrível. Mas Ellie nunca se dispunha a falar nela, a não ser para dizer que Rowan precisava ser protegida do passado a qualquer custo.

Eu me contento em manter vigilância e esperar.

A minha sensação, talvez irracional, é a de que isso eu devo a Deirdre. É para mim líquido e certo que ela não queria renunciar a Rowan. Não há a menos sombra de dúvida de que ela teria desejado para a filha uma vida normal. Há ocasiões em que eu me sinto tentado a destruir nosso arquivo sobre as Bruxa! Mayfair. Será que alguma outra história nos envolveu em tanta violência e tanta dor? É claro que uma atitude dessas é impensável. O Talamasca jamais permitiria. E jamais perdoaria, se eu agisse à sua revelia.

Ontem à noite, depois de terminar meu rascunho final desse resumo, sonhe; com Stuart Townsend, a quem vi apenas uma vez quando era menino. No sonho, ele estava no meu quarto e conversava comigo há horas. No entanto, quando acordei, só consegui recordar suas últimas palavras.

- Você entende o que eu estou dizendo? É tudo planejado! - Ele estava tremendamente irritado comigo.

- Não entendo! - disse em voz alta quando acordei. Na verdade, foi o som da minha voz que me acordou. Fiquei pasmo ao descobrir que estava num quarto vazio, que estivera sonhando, que Stuart não estava realmente ali.

Não entendo. Essa é a pura verdade. Não sei por que Cortland tentou me matar. Não sei por que um homem daqueles chegaria a um extremo tão medonho. Não sei o que realmente aconteceu a Stuart. Nem mesmo sei por que Stella estava tão desesperada para que Arthur Langtry a levasse embora. Não sei o que Carlotta fez com Antha, ou se Cortland foi o pai de Stella, de Antha e do bebê de Deirdre. Simplesmente não entendo!

Existe, porém, um ponto sobre o qual tenho certeza. Um dia, independentemente do que tenha prometido a Ellie Mayfair, Rowan pode voltar a Nova Orleans. E, se ela o fizer, vai querer algumas respostas. Dezenas e mais dezenas de respostas. E eu receio que atualmente eu seja o único - nós do Talamasca somos os únicos - que tenha condições de reconstituir para ela essa triste história.

 

Aaron Lightner, Talamasca Londres 15 de janeiro de 1989

E aquilo continuava sem parar, exótico e irreal na sua estranheza, um ritual de algum outro povo, esquisito e de uma beleza sinistra, à medida que toda aquela gente se derramava até o ar quente lá fora e depois entrava numa frota de limusines que os levavam silenciosamente por ruas estreitas, lotadas, nuas de árvores.

Diante de uma alta igreja de tijolos, a da Assunção de Santa Maria, a longa fila de carros reluzentes e lentos foi parando, esquecida dos prédios abandonados da escola com suas janelas quebradas e do mato a brotar vitorioso em cada fenda e rachadura.

Carlotta estava parada na escadaria da igreja, alta, rígida, com a mão magra cheia de manchas segurando firme a curva da sua lustrosa bengala de madeira. Ao seu lado, um homem atraente, de cabelos brancos e olhos azuis, talvez não muito mais velho do que Michael, que a velha dispensou com um gesto frágil enquanto acenava para Rowan acompanhá-la.

O homem mais velho recuou para ficar com o jovem Pierce, depois de apertar rapidamente a mão de Rowan. Havia algo de furtivo no seu jeito de sussurrar seu nome, "Ryan Mayfair", enquanto olhava ansioso para a velha. Rowan compreendeu que ele era o pai do jovem Pierce.

E entraram todos na imensa nave da igreja, todo o grupo acompanhando o caixão na sua mesa com rodinhas. Os passos ecoavam suaves e altos sob os graciosos arcos góticos, com a luz batendo brilhante nas magníficas janelas de vitral e nas estátuas dos santos delicadamente pintadas.

Raras vezes, mesmo na Europa, ela havia visto tanta elegância e grandiosidade. As palavras de Michael voltaram vagamente à sua lembrança: algo sobre a velha paróquia da sua infância; sobre as igrejas lotadas que eram grandes como catedrais. Teria sido esse o lugar?

Devia haver umas mil pessoas ali reunidas agora, crianças com seus gritos agudos antes que as mães as calassem, e as palavras do padre reverberando no amplo vazio como se fossem uma canção.

A velha de costas rígidas ao seu lado não lhe dizia nada. Nas suas mãos definhadas, frágeis, ela segurava com maravilhosa destreza um livro pesado, cheio de imagens coloridas dos santos. Seus cabelos brancos, puxados para trás num coque, pareciam grossos e pesados junto à cabeça pequena, abaixo do seu chapéu preto de feltro sem abas. Aaron Lightner ficou lá atrás, nas sombras, junto às portas da frente, embora Rowan tivesse preferido que ele se sentasse ao seu lado. Beatrice Mayfair chorava baixinho no segundo banco. Pierce estava do outro lado de Rowan, de braços cruzados, olhando sonhador para as imagens do altar, para os anjos pintados lá no alto. Seu pai parecia ter caído no mesmo tipo de transe, apesar de uma vez ele ter se virado e fixado seus penetrantes olhos azuis em Rowan, deliberadamente e sem constrangimento.

Eles se levantaram às centenas para receber a comunhão, os velhos, os moços e as criancinhas. Carlotta recusou ajuda ao se dirigir até a frente e depois voltar ao seu lugar, com a ponta de borracha da sua bengala batendo surda no chão. Deixou-se então cair no banco, com a cabeça baixa, enquanto dizia suas preces. Ela estava tão magra que o costume escuro de gabardine parecia vazio, como um traje num cabide, sem nenhum contorno de um corpo dentro dele. Suas pernas pareciam gravetos enfiados nos grossos sapatos de cadarço.

O cheiro de incenso subiu do turíbulo de prata enquanto o padre circundava o caixão. Afinal, a procissão saiu para a frota que aguardava na rua sem árvores. Dezenas de pequenas crianças negras, algumas descalças, algumas sem camisa, olhavam das calçadas quebradas diante de um ginásio esportivo abandonado, em péssimo estado. Mulheres negras estavam paradas de braços cruzados e cara amarrada, ao sol. Será que isso aqui era mesmo nos Estados Unidos da América?

Em seguida, a caravana mergulhou, um veículo quase grudado ao da frente, pelas densas sombras do Garden District, com dezenas de pessoas a acompanhando a pé, as crianças saltitando à frente, todos avançando por aquela profunda luz verde.

O cemitério murado era uma verdadeira cidade de túmulos com telhados em cumeeira, alguns com seus próprios jardins minúsculos, com os caminhos passando de um lado para o outro por essa cripta em ruínas ou por esse grande monumento aos bombeiros de uma outra era, aos órfãos desse ou daquele orfanato, ou aos ricos que tinham o dinheiro e o tempo para mandar gravar poesia nessas lápides, palavras agora cheias de pó e em lento desgaste.

O próprio jazigo da família Mayfair era enorme e cercado de flores. Uma pequena cerca de ferro encerrava a pequena construção, com urnas de mármore nos quatro cantos do seu peristilo de inclinação delicada. Seus três vãos continham doze criptas do tamanho de um caixão, e de uma delas havia sido removida a tampa de mármore liso, de tal forma que ela estava aberta, escura e vazia, para que o caixão de Deirdre Mayfair fosse ali colocado como uma enorme fôrma de pão.

Instada delicadamente a ficar lá na frente, Rowan estava parada ao lado da velha. O sol cintilava nos seus pequenos óculos prateados e redondos, enquanto ela olhava com ar lúgubre para a palavra "Mayfair", gravada em letras gigantescas dentro do triângulo achatado do peristilo.

E Rowan também olhou para ali, deslumbrada mais uma vez com as flores e os rostos à sua volta, quando numa voz respeitosa e contida o jovem Pierce lhe explicou que, apesar de haver apenas doze criptas, inúmeros membros da família Mayfair haviam sido ali enterrados, como revelavam as lápides da frente. Com o tempo, os caixões mais antigos eram abertos para ceder lugar a novos mortos. E os pedaços, bem como os ossos, eram jogados numa catacumba abaixo do jazigo. Rowan respirou levemente ofegante.

- Quer dizer que eles estão todos ali embaixo - disse ela, baixinho, meio perplexa. – Todos misturados ali por baixo?

-Não, eles estão no céu ou no inferno - disse Carlotta Mayfair, com a voz firme e atemporal como seus olhos. Ela nem mesmo voltou a cabeça para os dois.

Pierce recuou, como se tivesse medo de Carlotta, com um rápido sorriso constrangido lhe iluminando o rosto. Ryan olhava espantado para a velha. Agora, porém, o caixão estava sendo trazido, com os carregadores o sustentando nos ombros. Seus rostos estavam vermelhos com o esforço; o suor escorria das suas testas quando eles depositaram o enorme peso no carrinho.

Era a hora das últimas orações. O padre estava novamente ali com seu coroinha. O calor de repente pareceu impossível e imóvel. Beatrice enxugava as bochechas ruborizadas com um lenço dobrado. Os mais idosos, à exceção de Carlotta, estavam se sentando onde podiam nas saliências em volta dos túmulos menores.

Rowan deixou seus olhos vaguearem até o alto do jazigo, até o peristilo ornamentado com a palavra "Mayfair", e acima desse nome, em baixo relevo, uma porta aberta ao longe. Ou seria um grande buraco de fechadura aberto? Ela não soube dizer. Quando uma brisa leve e úmida começou a soprar, fazendo mexer as folhas rígidas das árvores ao longo do caminho, pareceu um milagre. Ao longe, junto aos portões da frente, com os súbitos lampejos de cor do trânsito às suas costas, Aaron Lightner estava parado ao lado de Rita Mae Lonigan, que havia esgotado as lágrimas e parecia simplesmente consternada como alguém que trabalhou a noite inteira em enfermarias de hospital com pacientes moribundos.

Mesmo o toque final deu a Rowan uma impressão de loucura pitoresca. Pois, à medida que saíam pelo portão principal, ficou claro que um pequeno grupo ia agora entrar num elegante restaurante bem do outro lado da rua!

O Sr. Lightner despediu-se dela discretamente, prometendo-lhe que Michael viria. Ela queria pressioná-lo, mas a velha o encarava com frieza e raiva; e estava óbvio que ele havia percebido essa atitude e que estava ansioso para se afastar. Desnorteada, Rowan deu um aceno de adeus. O calor novamente fazia com que se sentisse mal. Rita Mae Lonigan sussurrou uma despedida pesarosa. Centenas disseram adeus enquanto passavam rapidamente; centenas vieram abraçar a velha. Aquilo parecia não ter fim, o calor tornando o ar pesado e depois leve, as árvores gigantescas fornecendo uma sombra malhada. "Vamos nos ver outras vezes, Rowan". "Você vai ficar, Rowan?" "Até logo, tia Carl. A senhora cuidou dela." "Logo iremos visitá-la, tia Carl. A senhora precisa vir até Metairie". "Tia Carl, eu lhe telefono na semana que vem". "Tia Carl, a senhora está bem?"

Afinal, a rua ficou vazia a não ser pelo fluxo constante de veículos coloridos, barulhentos, indiferentes, e por algumas pessoas bem-vestidas que saíam do restaurante obviamente fino e espremiam os olhos com a luz forte do sol.

- Não quero entrar - disse a velha, olhando com frieza para os toldos brancos e azuis.

- Ora, tia Carl, por favor, só um pouquinho - disse Beatrice Mayfair.

- Por que não entramos por alguns minutos? - disse um rapaz esguio chamado Gerald, que segurava o braço da velha. - Depois eu a levo para casa.

- Agora quero ficar sozinha - disse a velha. - Quero ir para casa a pé sozinha. - Seus olhos se fixaram em Rowan. Espectrais, com sua inteligência imutável saindo em faíscas do rosto desgastado, encovado. - Fique com eles quanto tempo quiser - disse ela, como se fosse uma ordem - e depois venha me procurar. Estarei à sua espera.

Na casa de First Street.

- Quando a senhora quer que eu vá? - perguntou Rowan, com delicadeza. Um sorriso frio, irônico, tocou os lábios da velha, um sorriso atemporal como os olhos e a voz.

- Quando você quiser vir. Será uma boa hora. Tenho algo a lhe dizer. Estarei lá.

- Vá com ela, Gerald.

- Vou levá-la, tia Bea.

- Se quiser, você pode me acompanhar de carro - disse Carlotta, inclinando a cabeça e pousando a bengala no chão à sua frente. - Mas eu vou caminhar sozinha.

Quando as portas de vidro do restaurante chamado Commander's Palace haviam se fechado às suas costas, e Rowan percebeu que agora estavam num mundo levemente familiar de garçons uniformizados e toalhas de mesa brancas, ela olhou para trás através do vidro para o muro caiado do cemitério e para os pequenos telhados pontiagudos visíveis acima do muro.

Os mortos estão tão perto que podem nos ouvir, pensou ela.

- É, mas você sabe - disse Ryan, o homem alto de cabelos brancos, como se tivesse lido seu pensamento -, aqui em Nova Orleans nós nunca os deixamos totalmente de lado.

Um crepúsculo cinzento caía sobre Oak Haven. Já quase não se via o céu. Os carvalhos estavam negros e densos, com as suas sombras se ampliando de modo a engolir o último resquício da luz quente do verão que se aferrava à estrada de cascalho. Michael estava sentado na larga varanda da frente, com a cadeira inclinada para trás, os pés na balaustrada de madeira, um cigarro na boca. Ele havia acabado a história da família Mayfair, e estava se sentindo inexperiente, entusiasmado e cheio de uma tranqüila animação. Ele sabia que ele e Rowan constituíam agora o novo capítulo ainda por escrever, ele e Rowan, que haviam sido personagens dessa narrativa já há algum tempo.

Quase em desespero, ele se agarrou ao prazer do cigarro, e à observação das mudanças no céu crepuscular. A escuridão ia se adensando por toda parte agora na paisagem extensa, com a barragem sumindo de tal jeito que ele não conseguia mais divisar os carros que passavam pela estrada, mas apenas ver o brilho amarelo das suas luzes.

Cada som, cada perfume, cada nuança de cor despertava nele uma enxurrada de recordações agradáveis, algumas deslocadas e sem qualquer identificação. Era simplesmente a certeza da familiaridade, de que esse era o seu chão, que era aqui que as cigarras cantavam como em nenhum outro lugar.

No entanto, era uma agonia, esse silêncio, essa espera, essa quantidade de pensamentos amontoados na cabeça.

As lâmpadas acesas no quarto atrás dele ficaram mais fortes à medida que o dia terminava ao seu redor. Agora, a luz suave caía sobre as pastas de papel pardo no seu colo.

Porque Aaron não havia ligado para ele? Sem dúvida, o enterro de Deirdre Mayfair já havia terminado. Aaron devia estar voltando, e talvez Rowan estivesse com ele. Talvez Rowan houvesse perdoado Michael instantaneamente por não ter comparecido já que ele próprio não se havia perdoado - e estava vindo para cá para ficar com ele. Os dois iriam conversar esta noite, falar sobre tudo isso neste lugar seguro e saudável.

Havia, porém, mais uma pasta a ser lida, mais um apanhado de anotações, obviamente destinado aos seus olhos. Melhor acabar isso de uma vez. Ele apagou o cigarro, esmagando-o no cinzeiro sobre a pequena mesinha dobrável ao seu lado e, levantando a pasta para que a luz a atingisse, ele a abriu.

Papéis soltos, alguns manuscritos, alguns datilografados, alguns impressos. Ele começou a ler.

 

COPIA DE AEROGRAMA ENVIADO A CASA-MATRIZ DO TALAMASCA EM LONDRES POR AARON LIGHTNER

Agosto de 1989: Parker Meridien Hotel Nova York.

Acabei de completar entrevista obtida através de encontro casual com médico de Deirdre Mayfair (de 1983) aqui em Nova York, como planejado. Diversas surpresas.

Enviarei transcrição completa manuscrita da entrevista (fita perdida; médico a solicitou e eu a entreguei a ele), que completarei durante o vôo até a Califórnia. Quero, porém, comunicar uma novidade extremamente interessante e pedir uma busca nos arquivos e um estudo dos mesmos.

Esse médico alega ter visto Lasher não só junto a Deirdre, mas a alguma distância da casa de First Street, em duas ocasiões. E pelo menos numa dessas ocasiões, num bar em Magazine Street, está claro que Lasher se materializou. (Observe-se o calor, o deslocamento de ar, tudo perfeitamente descrito pelo homem.)

Além disso, o médico se convenceu de que Lasher estava tentando impedi-lo de dar a Deirdre a medicação tranqüilizante. E que, quando Lasher mais tarde lhe apareceu, ele estava tentando conseguir que o médico voltasse a First Street e de algum modo ajudasse Deirdre.

O médico só chegou a essas interpretações em época mais recente. Quando estavam ocorrendo as aparições, ele ficou assustadíssimo. Ele não ouvia palavras de Lasher; ele não recebia nenhuma mensagem telepática nítida. Pelo contrário, ele achava que o espírito estava procurando desesperadamente se comunicar e só conseguia fazê-lo por meio dessas aparições silenciosas.

Esse médico não demonstra absolutamente nenhuma evidência de ser algum tipo de médium natural.

Conduta recomendada: pinçar todas as aparições de Lasher desde 1958 e estudar cada uma cuidadosamente. Procurar qualquer aparição em que Deirdre não estivesse por perto. Preparar uma lista de todas as aparições, informando a distância aproximada de Deirdre.

No pé em que está o caso agora, antes da investigação solicitada, só posso concluir que Lasher pode ter acumulado uma força considerável nos últimos vinte anos, ou sempre teve mais força do que percebemos, e pode na verdade se materializar onde bem entenda.

Não quero me precipitar em chegar a essa conclusão. Mas isso me parece mais do que provável. E o fato de Lasher não conseguir implantar sugestões ou palavras claras na mente do médico só reforça minha opinião de que o próprio médico não era um médium natural e não poderia estar auxiliando essas materializações.

Como bem sabemos, no caso de Petyr van Abel, Lasher estava trabalhando com a energia e a imaginação de uma psique poderosa, com profundos conflitos e culpas morais.

Com Arthur Langtry, Lasher estava tratando com um médium experiente, e aquelas aparições e/ou materializações ocorreram apenas na propriedade de First Street, na proximidade de Antha e de Stella.

Será que Lasher pode se materializar quando e onde deseja? Ou será que ele simplesmente tem a força para tal feito a maiores distâncias da bruxa?

É o que temos de descobrir.

Seu no Talamasca, Aaron

P.S. Não procurarei ver Rowan Mayfair em San Francisco. Nesta viagem, a tentativa de contato com Michael Curry é prioritária. Telefonema de Gander hoje cedo, antes que eu deixasse Nova York, indica que Curry está agora quase inválido dentro de casa. No entanto, mantenham- me informado no Saint Francis Hotel de qualquer novidade no caso Mayfair. Permanecerei em San Francisco o tempo necessário para entrar em contato com Curry e lhe oferecer ajuda.

 

Notas aos arquivos, agosto de 1989 (Caprichosamente manuscritas, tinta preta em papel pautado)

Estou a bordo de um 747, a caminho da costa oeste. Acabei de reler a transcrição. Tenho a firme opinião de que há algo de extraordinário na história desse médico.

Enquanto repasso apressadamente o arquivo Mayfair, o que me chama a atenção é o seguinte:

Rita Mae Dwyer Lonigan ouviu a voz de Lasher em 1955-1956.

Esse médico alega ter visto Lasher a enorme distância da casa de First Street.

Talvez devêssemos tentar um encontro casual entre Gander e Rowan, para que Gander pudesse procurar determinar se Rowan viu ou não viu Lasher. Mas parece tão improvável...

Não posso tentar fazer isso eu mesmo. Não tenho nenhuma condição de fazer isso agora.

Situação de Curry de extrema importância.

Impressões sobre Curry... Continuo a acreditar que há algo de muito especial nesse homem, além da sua experiência angustiante.

Ele precisa de nós, sem a menor dúvida. Gander tem razão quanto a esse ponto. Mas minha impressão tem a ver com ele e conosco. Creio que ele talvez queira se tornar um de nós.

Como posso justificar essa sensação?

1) Reli todos os artigos relacionados à sua experiência diversas vezes; e há algo ali que não foi dito, algo relacionado com o fato de sua vida estar num ponto de estase quando ele se afogou. Tenho a forte impressão de que ele era um homem à espera de alguma coisa.

2) 0 currículo de Curry é notável, especialmente sua educação superior. Gander confirma sua formação em história, especialmente na história européia. Precisamos desesperadamente de alguém assim. Ele é fraco em línguas, mas hoje em dia todo mundo o é.

3) Mas a questão principal com relação a Curry é descobrir como vou conseguir vê-lo. Gostaria que toda a família Mayfair desaparecesse por algum tempo. Não quero pensar em Rowan enquanto trabalho com Curry...

Michael folheou rapidamente o restante da última pasta. Só artigos a sei: respeito, e artigos que ele havia lido antes. Duas grandes fotos lustrosas sua, da United Press International. Uma biografia datilografada, compilada principalmente a partir dos artigos anexos.

Bem, o arquivo sobre Michael Curry ele conhecia. Pôs tudo aquilo de lado, acendeu mais um cigarro e voltou ao relato manuscrito do encontro de Aaron com o médico no Parker Meridien.

A bela letra de Aaron era muito fácil. As descrições das aparições de Lasher estavam perfeitamente sublinhadas. Ele acabou de ler o relato, concordando com os comentários de Aaron.

Levantou-se, então, da cadeira da varanda, levando consigo a pasta, e entrou, dirigindo-se à escrivaninha. Seu caderno de capa de couro estava ali, onde o havia deixado. Sentou-se, olhando sem ver o quarto por um instante, sem realmente perceber que a brisa do rio enfunava as cortinas ou que a noite lá fora já era uma total escuridão. Sem notar que a bandeja do jantar estava no escabelo diante da poltrona bergère, da mesma forma de quando havia chegado, com os alimentos intactos debaixo das diversas cúpulas de prata.

Ele tomou a caneta e começou a escrever.

Eu tinha seis anos quando vi Lasher na igreja no Natal, atrás do presépio. Isso deve ter sido em 1947. Deirdre devia ter essa mesma idade, e talvez estivesse na igreja. Mas eu tenho a forte impressão de que ela não estava lá.

Quando Lasher apareceu para mim no Auditório Municipal, ela também podia estar presente. Mas, por outro lado, não temos como saber, para citar a expressão preferida de Aaron.

No entanto, as aparições em si não têm nada a ver com Deirdre. Nunca vi Deirdre no jardim de First Street, nem em lugar algum que eu soubesse.

Indubitavelmente, Aaron já escreveu o que eu lhe contei. E a mesma insinuação se aplica aqui: Lasher aparecia para mim quando ele não estava perto da bruxa. E provável que ele se materialize onde queira.

A questão é saber por que o faz. Por que eu? E outras associações são ainda mais torturantes e exasperadoras.

Por exemplo, isso pode não ter muita importância, mas eu conheço Rita Mae Dwyer Lonigan. Eu estava com ela e Marie Louise no barco na noite em que ela se embriagou com seu namorado, Terry O'Neill. Por esse motivo, ela foi estudar interna no Santa Rosa, onde conheceu Deirdre Mayfair. Eu me lembro de quando Rita Mae entrou para o Santa Rosa.

Será que isso significa alguma coisa?

E mais um ponto. E se meus antepassados trabalharam no Garden District? Não sei se trabalharam ou não. Sei que a mãe de meu pai foi uma órfã criada no orfanato de Santa Margarida. Acho que ela não tinha um pai legítimo.

Imaginemos que sua mãe tivesse sido criada na casa de First Street... mas acho que estou ficando louco.

Afinal de contas, olhem o que essas pessoas fizeram em termos de reprodução. O uso desse método com cavalos ou com cães é chamado de procriação por endogamia ou em linha direta.

Repetidamente, os melhores machos procriaram com as bruxas, de forma a reforçar na combinação genética certas características, que indubitavelmente incluíam traços paranormais, mas e o que dizer de outros traços? Se eu compreendi corretamente o que li, Cortland não foi apenas o pai de Stella e de Rowan. Ele também poderia ter sido o pai de Antha, embora todos imaginassem que fosse Lionel.

Ora, se Julien foi pai de Mary Beth, ah... tinham de fazer alguma espécie de estudo no computador só sobre esse aspecto, o da endogamia. Criar um mapa. E, se eles dispõem das fotografias, podem se aprofundar mais na ciência genética. Preciso contar tudo isso a Rowan. Rowan compreenderá tudo isso. Quando estávamos conversando, Rowan disse alguma coisa sobre o motivo pelo qual a pesquisa genética era tão impopular.

As pessoas não querem admitir o que podem determinar nos seres humanos em termos genéticos. O que me leva ao livre-arbítrio. E minha crença no livre-arbítrio faz parte dos motivos pelos quais estou ficando louco.

Seja como for, Rowan é a beneficiária genética de tudo isso: alta, esguia, sexy, extremamente saudável, inteligentíssima, forte e bem-sucedida. Um gênio da medicina com um poder telecinético para matar, que prefere, em vez disso, salvar vidas. E aí está o livre arbítrio, mais uma vez. O livre-arbítrio.

Mas, de que modo eu me encaixo nessa história com meu livre-arbítrio intacto? Quer dizer, o que está tudo planejado, para usar as palavras de Townsend no sonho? Meu Deus!

Será que eu de algum modo não sou parente dessas pessoas através de criados irlandeses que trabalharam para eles? Ou será que eles simplesmente procuram sangue novo quando precisam de energia? Mas qualquer um dos heróis policiais/bombeiros de Rowan teria cumprido a missão. Por que eu? Por que precisei me afogar, se de fato foram eles que me afogaram, o que ainda não acredito que tenham sido? E depois, a história de Lasher se revelar sozinho para mim todo esse tempo desde o início da minha infância.

Meu Deus, não existe uma interpretação única para nenhum aspecto dessa história. Talvez eu tenha sido destinado para Rowan desde o início, e meu afogamento não estivesse previsto, sendo por isso que aconteceu o salvamento. Não posso aceitar a hipótese de o afogamento ter sido predeterminado! Porque, se ele realmente foi, então praticamente tudo foi. E apavorante.

Não posso ler essa história e concluir que as terríveis tragédias nela contidas eram inevitáveis - como Deirdre morrer daquele jeito.

Eu poderia ir escrevendo assim durante três dias seguidos, divagando, examinando esse ponto ou algum outro. Mas estou ficando louco. Ainda não tenho a menor pista do significado do portal. Não houve uma palavra no que li que esclarecesse essa imagem única. Também não percebo o envolvimento de nenhum número na história. A não ser que o número treze esteja num portal, e que isso tenha algum significado.

Agora, o portal pode ser simplesmente o da entrada da casa de First Street, ou a própria casa poderia ser alguma espécie de portal. Mas estou forçando a conclusão.

O que digo não me transmite nenhuma impressão de acerto.

Quanto ao poder psicométrico das minhas mãos, ainda não sei como devo usá-lo, a não ser que seja para tocar Lasher quando ele se materializar, e descobrir assim o que esse espírito é realmente, de onde vem e o que quer das bruxas. Mas como poderei tocar Lasher a menos que Lasher queira ser tocado?

É claro que vou tiraras luvas e por as mãos em objetos relacionados a essa história, à casa de First Street, se Rowan, que agora é a proprietária, me permitir.

Não sei por que a perspectiva de fazê-lo me enche de pavor. Não consigo considerar esse poder a realização do meu objetivo. Considero-o como uma intimidade com inúmeros objetos, superfícies e imagens. Além disso, pela primeira vez, tenho medo de tocar objetos que pertenceram aos mortos. Mas preciso tentar. Preciso tentar tudo!

Quase nove horas. E Aaron ainda não chegou. Aqui, longe da cidade, está escuro, silencioso e arrepiante. Não quero imitar Marion Brando em On the Waterfront, mas os grilos me deixam nervoso também no campo. E estou meio assustado neste quarto, mesmo com suas belas luminárias de latão. Não quero olhar para os quadros na parede, ou para os espelhos, com medo de que alguma coisa me apavore.

Detesto me sentir assustado.

E não estou agüentando esperar aqui. Talvez seja injusto esperar que Aaron chegue no instante em que terminei a leitura. Mas o enterro de Deirdre já terminou, e aqui estou sentado à espera de Aaron, com um monte de Mayfairs na cabeça e apertando meu coração, mas espero! Espero porque prometi que esperaria, Aaron não ligou e eu preciso estar com Rowan.

Aaron vai ter de confiar em mim. Vai mesmo. Podemos conversar hoje, amanhã e depois, mas esta noite vou passar com Rowan.

Uma nota final: se eu me sento aqui, fecho os olhos e volto meu pensamento para as visões; se eu evoco aquela sensação, pois todos os fatos se perderam, ainda me descubro acreditando na bondade das pessoas que vi. Fui mandado de volta por um objetivo maior. E a escolha era minha - o livre-arbítrio - de aceitar a missão.

Agora, não consigo associar nenhum sentimento positivo ou negativo à idéia do portal ou do número treze. E isso é angustiante, profundamente angustiante. Continuo, porém, a acreditar que aquele meu pessoal lá em cima era bom.

Acredito que Lasher não seja bom. Decididamente. As provas parecem indiscutíveis de que ele teria destruído algumas dessas mulheres. Talvez ele tenha destruído cada uma que lhe ofereceu resistência. E a pergunta de Aaron. Quais são os planos desse ser, é o que importa. Essa criatura age por si só. Mas por que o estou chamando de criatura? Quem o criou? O mesmo que criou a mim? E quem haveria de ser, é o que me pergunto. Passo a chamá-lo de entidade.

Essa entidade é má.

Então, por que ela sorriu para mim na igreja quando eu tinha seis anos? Certamente ela não pode estar querendo que eu a toque e descubra seus planos. Ou será que pode?

Mais uma vez, as palavras ‘predestinado' e ‘planejado' estão me deixando louco. Em mim tudo se revolta contra uma idéia dessas. Posso acreditar numa missão, num destino, num objetivo importante. Todas essas expressões estão relacionadas à coragem, ao heroísmo e ao livre-arbítrio. Mas "predestinado" e "planejado" me enchem de desespero.

Seja qual for o caso, não me sinto em desespero agora. Sinto-me transtornado, incapaz de ficar neste quarto muito mais tempo, desesperado para chegar até Rowan.

Desesperado para armar o quebra-cabeça, para cumprir a missão que me foi confiada lá em cima, porque acredito que foi a melhor parte de mim que aceitou essa missão.

Por que estou ouvindo aquele cara lá de San Francisco, Gander ou sei lá qual era seu nome, dizendo, ‘Conjecturas'?

Queria que Aaron estivesse aqui. Que fique registrado que gosto dele. Que gosto deles. Entendo o que fizeram nesse caso. Entendo, sim. Nenhum de nós aprecia saber que está sendo vigiado, espionado, que escrevem a seu respeito, esse tipo de coisa. Mas eu compreendo. Rowan compreenderá. Ela tem de compreender.

O resultado dessa observação é simplesmente único, de enorme importância. E, quando penso em como estou profundamente implicado em tudo isso, em como fui envolvido desde o momento em que a entidade olhou para mim através da grade de ferro, bem, agradeço a Deus por eles existirem, por eles ‘observarem', como costumam dizer.

Por eles saberem o que sabem.

Porque, se não fosse isso... e Rowan irá compreender. Rowan irá compreender talvez melhor do que eu, porque ela vê coisas que eu não vejo. E talvez seja isso o que está planejado, mas lá vou eu novamente.

"Aaron! Volte logo!"

Ela ficou parada diante do portão de ferro enquanto o táxi se afastava devagar, com o silêncio farfalhante cercando-a por todos os lados. Impossível imaginar uma casa mais desolada ou ameaçadora. A luz impiedosa do poste se derramava como a lua cheia através dos galhos das árvores, caindo sobre as lajes rachadas e a escada de mármore coberta de folhas secas, sobre as pilastras caneladas altas e grossas, com sua tinta branca descascada e manchas pretas de apodrecimento, sobre as tábuas frágeis que seguiam irregulares até a porta aberta e a palidez opaca lá de dentro, com um levíssimo tremeluzir.

Aos poucos, ela deixou que seus olhos passeassem pelas janelas trancadas, pelo jardim denso e descuidado. Uma chuva fina havia começado a cair no instante em que saiu do hotel. E agora ela estava tão leve que parecia pouco mais do que uma neblina, emprestando seu brilho ao asfalto da rua, pairando sobre as folhas reluzentes acima da cerca, mal roçando seu rosto e seus ombros.

Aqui minha mãe acabou seus dias, pensou. E aqui a mãe dela nasceu, assim como sua mãe, anteriormente. Aqui nesta casa, onde Ellie se sentou junto ao caixão de Stella. Pois certamente só podia ter sido ali, embora durante a tarde inteira, com os coquetéis, a salada e a comida extremamente condimentada, eles só houvessem falado de temas superficiais. "Carlotta vai querer lhe contar..." "... depois de você conversar com Carlotta".

Estaria a porta agora aberta para ela? Haviam deixado o portão entreaberto para melhor recebê-la? O imenso batente de madeira da porta parecia um gigantesco buraco de fechadura, que se adelgaçava de uma base mais aberta para o topo mais estreito. Onde será que ela havia visto aquele mesmo portal com o formato de um buraco de fechadura? Esculpido no jazigo no cemitério de Lafayette. Que ironia, pois essa casa havia sido o túmulo da sua mãe.

Nem mesmo a chuva suave, silenciosa, havia conseguido amenizar o calor. Mas vinha agora uma brisa, a brisa do rio era como as pessoas a chamavam ao se despedir apenas a alguns quarteirões do hotel. E a brisa, com cheiro de chuva, envolveu Rowan tão deliciosa quanto a água. E o que era esse perfume de flores no ar, tão profundo e selvagem, tão diferente dos perfumes de floricultura que a haviam cercado mais cedo?

Ela não lhe ofereceu resistência. Ficou ali parada, sentindo-se leve e quase nua nos frágeis trajes de seda que acabara de vestir, procurando enxergar a casa escura, procurando respirar fundo, procurando represar a corrente de tudo que havia acontecido, tudo que havia testemunhado e compreendido apenas parcialmente.

Minha vida está partida ao meio, pensou. Todo o passado é a parte abandonada, que se afasta, como um barco que se desamarrou, como se a água fosse o tempo, e o horizonte, a fronteira demarcada do que continuaria tendo importância.

Ellie, por quê? Por que fomos afastadas? Por que, se todos eles sabiam?

Sabiam meu nome, sabiam o seu, sabiam que eu era filha dela! Que história era aquela daquela gente toda, às centenas, pronunciando tantas vezes aquele nome, Mayfair?

- Depois de conversar com ela, venha ao escritório no centro - dissera o jovem Pierce.

Pierce, com suas bochechas rosadas e já sócio da firma fundada há tanto tempo pelo seu bisavô.

- Avô de Ellie, também, sabe? - disse Ryan, o de cabelos brancos e feições cuidadosamente esculpidas, que havia sido primo em primeiro grau de Ellie. Ela não sabia.

Não sabia quem era quem, de onde todos vinham, o que aquilo significava e, acima de tudo, porque ninguém nunca lhe disse nada. Um lampejo de raiva. Porque Cortland isso, e Cortland aquilo... e Julien e Clay e Vincent e Mary Beth e Stella e Antha e Katherine.

Ah, que doce melodia sulina, as palavras ricas e profundas como a fragrância que respirava agora, como o calor que se grudava a ela, e que fazia até mesmo sua fina saia de seda parecer de repente pesada.

Será que todas as respostas estariam atrás daquela porta aberta? Estará o futuro além daquela porta? Pois afinal de contas, por que, apesar de tudo, este não podia se tornar um mero capítulo da sua vida, realçado e raramente relido, depois que ela voltasse para o mundo lá fora, onde havia sido mantida todos aqueles anos, fora do alcance dos sortilégios e encantamentos que agora a resgatavam? É, mas não ia ser assim. Porque, quando se cai presa de um encantamento tão forte, nunca mais se é a mesma pessoa. E cada instante neste estranho mundo da família, do sul, da história, do parentesco, da oferta de amor, a afastava mais um milênio de quem ela havia sido, ou de quem ela queria ser.

Eles saberiam, eles imaginavam por um segundo sequer, como tudo aquilo era sedutor? A que ponto ela havia se sentido inexperiente, enquanto eles lhe faziam convites, prometiam visitas e conversas futuras, prometiam o conhecimento, a lealdade e a intimidade da família?

Os parentes. Será que eles conseguiam adivinhar como aquilo tudo era indescritivelmente exótico depois daquele mundo árido e egoísta em que ela havia passado a vida, como uma planta de vaso que nunca viu um sol de verdade, nunca esteve na própria terra, nem ouviu a chuva a não ser quando batia nas janelas de vidraças duplas?

-Eu costumava às vezes olhar ao meu redor - havia dito Michael acerca da Califórnia – e tudo me parecia tão árido aqui. - Ela compreendia. Compreendia antes de chegar

a sonhar com uma cidade como esta, na qual cada textura, cada cor como que saltava aos olhos, na qual cada fragrância era inebriante e o próprio ar era algo vivo, que respirava.

Fui estudar medicina para encontrar o mundo visceral, pensou ela, e só nas salas de espera e nos corredores próximos ao setor de emergência cheguei a vislumbrar as reuniões de clãs, as gerações a chorar, a rir, a sussurrar, enquanto o anjo da morte passa sobre eles.

- Você está dizendo que Ellie nunca lhe disse o nome do seu pai? Ela nunca lhe falou de Sheffield, Ryan, Grady ou... ?-Repetidamente ela havia respondido que não.

No entanto, Ellie havia voltado, para assistir naquele mesmo cemitério ao enterro de tia Nancy, quem quer que fosse essa tia, e depois naquele mesmo restaurante ela lhes havia mostrado a fotografia de Rowan que trazia na carteira! Nossa filha, médica!

- Gostaria que me mandassem de volta para casa, mas não podem fazer isso. Eles não podem fazer isso - havia dito Ellie, moribunda, sob o efeito da morfina, a Rowan. Depois que a deixaram no hotel e depois que ela subiu para tomar um banho e trocar de roupa em virtude do excesso de calor, houve um momento em que sentiu tanto rancor que não conseguiu raciocinar, racionalizar ou sequer chorar. E é claro que ela sabia, sabia tão bem quanto qualquer outra coisa, que devia haver um enorme número deles que teria adorado nada mais nada menos do que fugir daquilo tudo, daquela imensa teia de laços de sangue e de recordações. No entanto, ela não conseguia realmente imaginar essa sensação.

Tudo bem, aquele havia sido o lado agradável, irresistível como o perfume dessa flor na escuridão, todos eles ali de braços abertos.

Mas quais seriam as verdades que a aguardavam atrás dessa porta? Sobre a mulher criança no ataúde? Durante muito tempo, enquanto eles falavam, com as vozes salpicando umas nas outras como champanhe, ela havia pensado, Será que algum de vocês por algum milagre sabe o nome do meu pai?

- Carlotta vai querer... bem... dar a sua versão.

-... tão nova quando você nasceu.

- Papai nunca chegou a nos contar...

Daqui, ao luar elétrico sobre as lajes quebradas, ela não conseguia ver a varanda lateral que Ryan e Bea haviam descrito para ela, a varanda na qual sua mãe havia ficado sentada numa cadeira de balanço treze anos a fio.

- Acho que ela não sofria.

Mas, tudo o que tinha de fazer agora era abrir esse portão de ferro, subir os degraus de mármore, atravessar as tábuas apodrecidas e empurrar mais a porta que havia sido deixada aberta. Por que não? Ela queria tanto experimentar aquela escuridão lá dentro que nem sentia saudade de Michael naquele instante. Ele não poderia acompanhá-la nessa missão.

De repente, como se houvesse sonhado, ela viu a luz clarear atrás da porta. Viu que a própria porta era afastada, e surgia ali a silhueta da velha senhora, pequena, magra. Sua voz pareceu firme e nítida na escuridão, quase com uma entonação irlandesa, sombria e grave.

- Você vai entrar ou não, Rowan Mayfair?

Ela empurrou o portão, que resistiu, e passou por ele assim mesmo. Os degraus estavam escorregadios. Subiu devagar e sentiu as tábuas gastas da varanda de madeira cederem ligeiramente sob seu peso.

Carlotta havia desaparecido, mas quando Rowan entrou no corredor viu sua pequena silhueta mal iluminada longe, bem longe, na entrada de uma sala imensa onde brilhava a única luz que iluminava toda aquela amplidão, de pé direito alto, diante dela.

Caminhou lentamente atrás da velha senhora.

Passou por uma escada, que subia reta e com uma altura impossível até um segundo andar sombrio, do qual ela nada podia ver, e por portas à sua direita que davam para uma ampla sala de estar. A iluminação da rua entrava pelas janelas desse aposento, tornando-as esfumaçadas e de um branco lunar, enquanto revelava um longo trecho de assoalho reluzente e algumas peças espalhadas de mobília não identificáveis.

Afinal, após uma porta fechada à esquerda, ela entrou numa área iluminada e viu que estava numa grande sala de jantar.

Havia duas velas sobre a mesa oval, e era a suave dança das suas chamas que fornecia a iluminação interior da sala toda. Parecia mesmo surpreendente que elas se erguessem finas de modo a revelar os murais nas paredes, imensas paisagens rurais de carvalhos adornados com musgos e de terras aradas. As portas e janelas altíssimas chegavam a mais de três metros e meio de altura. E, de fato, quando ela olhou para trás pelo corredor, a porta da frente lhe pareceu imensa, com seus batentes cobrindo a parede inteira até o teto sombrio.

Voltou-se, então, olhando fixamente para a mulher sentada à cabeceira da mesa. Sua cabeleira densa e ondulada estava muito branca na escuridão, emoldurando o rosto com mais suavidade do que antes, e as velas refletiam duas chamas distintas e assustadoras nos seus óculos redondos.

- Sente-se, Rowan Mayfair. Tenho muitas coisas a lhe dizer.

Teria sido uma teimosia sua que a fez lançar mais um longo olhar ao seu redor, ou teria sido apenas seu fascínio que não queria ser interrompido? Ela via que as cortinas de veludo estavam quase esfarrapadas em alguns lugares, e que o chão estava coberto com um tapete gasto. Um cheiro de poeira ou de mofo emanava dos assentos estofados das cadeiras torneadas. Ou seria do tapete talvez, ou das tristes cortinas?

Não importava. Estava por toda parte. Havia, porém, mais um cheiro, um perfume delicioso que a fazia pensar em madeira, sol e, por estranho que fosse, em Michael.

Era bom. E Michael, o carpinteiro, compreenderia qual era. O cheiro da madeira na casa antiga, e o calor que nela se havia acumulado o dia inteiro. Incorporava-se ligeiramente ao todo o cheiro das velas de cera.

O lustre escuro lá no alto captava a luz das velas e a refletia em centenas de gotas de cristal.

- Ele é para velas - disse a velha. - Já não tenho idade para subir para trocá-las. E Eugenia também está velha demais. Não tem mais condição de fazer isso. – Com um ínfimo gesto de cabeça, ela indicou um canto distante da mesa.

Sobressaltada, Rowan percebeu que uma negra estava parada ali, um espectro de criatura com cabelo ralo, olhos amarelados e braços cruzados, aparentemente muito magra, embora fosse difícil saber naquela escuridão. Das suas roupas nada se via a não ser um avental sujo.

- Pode ir agora, querida - disse Carlotta à negra. - A não ser que minha sobrinha queira aceitar algo para beber. Mas você não quer, não é, Rowan?

- Não, obrigada, senhorita Mayfair.

- Chame-me de Carlotta, ou Carl se quiser. Não importa. Existem milhares de senhoritas Mayfair.

A velha negra foi embora, passando pela lareira, pela mesa e saindo pela porta para o longo corredor. Carlotta ficou observando sua saída, como se quisesse estar totalmente a sós com Rowan antes de dizer mais uma palavra.

De repente, ouviu-se um ruído metálico, estranhamente familiar e no entanto, para Rowan, impossível de definir. Em seguida, o estalido de uma porta sendo fechada e a vibração surda e profunda de um enorme motor se esforçando nas profundezas da casa.

-Um elevador - disse Rowan, baixinho.

A velha dava a impressão de estar acompanhando o som. Seu rosto parecia murcho e pequeno abaixo da carapaça do cabelo. O ruído da parada do elevador pareceu satisfazê-la.

Ela ergueu os olhos para Rowan e fez um gesto indicando uma cadeira solitária junto à longa lateral da mesa.

Rowan foi até ela e se sentou, de costas para a janela que dava para o quintal. Ela virou a cadeira de modo a poder olhar para Carlotta.

À medida que foi levantando os olhos, teve uma visão maior dos murais. Uma casa de fazenda com colunas brancas e colinas ondulantes ao fundo.

Ela olhou para a velha adiante das velas e sentiu alívio ao não ver mais o reflexo das chamas minúsculas nas lentes dos óculos. Apenas o rosto encovado, os óculos reluzindo límpidos, o tecido escuro florido do vestido de mangas compridas da mulher e suas mãos magras que surgiam da renda nas mangas, segurando com dedos nodosos o que parecia um porta jóias de veludo.

Foi isso o que ela empurrou grosseiramente na direção de Rowan.

- E seu - disse ela. - É um colar com uma esmeralda. É seu, como esta casa é sua e o terreno em que ela foi construída, além de tudo o mais de qualquer valor que esteja aqui dentro. Afora isso, é sua uma fortuna cerca de cinqüenta vezes maior do que a que você já possui, talvez cem vezes maior, embora hoje em dia isso já esteja fora do alcance dos meus cálculos. Mesmo assim, ouça o que vou lhe dizer antes de reivindicar o que é seu. Ouça bem o que tenho de lhe contar.

Ela parou e examinou o rosto de Rowan. Aprofundou-se em Rowan a sensação da atemporalidade da voz da mulher, na verdade de toda a sua atitude. Era quase fantasmagórico, como se o espírito de alguém mais jovem estivesse ocupando aquele corpo idoso e lhe conferindo uma animação violenta e contraditória.

-Não - disse a mulher. - Estou velha, muito velha. O que me manteve viva foi esperar pela morte dela e pelo instante que eu mais temia, o instante em que você chegasse aqui. Pedi a Deus que Ellie tivesse uma vida muito longa, que Ellie se agarrasse a você durante todos aqueles anos até que Deirdre tivesse apodrecido no túmulo e a corrente estivesse rompida. Mas o destino me aprontou mais uma pequena surpresa. A morte de Ellie. Ellie, morta, e eu sem uma palavra sequer que me avisasse.

- Foi como Ellie quis - disse Rowan.

- Eu sei - suspirou a velha. - Sei que o que você diz é verdade. Mas não foi o fato de não me contarem; foi a própria morte de Ellie que foi o golpe. Mas está acabado, e não havia como impedir.

- Ela fez o que pôde para me manter longe daqui - disse Rowan, com simplicidade. – Ela insistiu comigo para que eu assinasse uma promessa de que nunca viria. Preferi quebrar essa promessa.

A velha ficou em silêncio algum tempo.

- Eu quis vir - disse Rowan e depois perguntou, com o máximo de delicadeza, como que implorando: - Por que quiseram me manter afastada? A história era tão terrível assim?

- Você é uma mulher forte - disse a velha, depois de contemplá-la algum tempo em silêncio. - Você é forte como minha mãe era forte. Rowan não respondeu.

- Você tem os olhos dela, alguém lhe disse isso? Será que alguém lá era velho o suficiente para se lembrar dela?

- Não sei - respondeu Rowan.

- O que você viu com esses seus olhos? - perguntou a velha. - O que você viu que sabia que não devia estar ali?

Rowan teve um sobressalto. A princípio, ela achou que entendeu mal as palavras. Depois, num átimo, percebeu que não; e se lembrou instantaneamente do fantasma que lhe havia aparecido às três da manhã, confundindo-o de repente e de forma inexplicável com seu sonho no avião, de alguém invisível que a tocava e a violentava.

Perplexa, ela viu o sorriso que se abria no rosto da velha. Mas não era um sorriso amargo ou vitorioso. Era apenas de resignação. Em seguida, o rosto voltou a ficar neutro, triste e pensativo. Com aquela iluminação fraca, a cabeça da velha pareceu uma caveira por um instante.

- Quer dizer que ele foi até você - disse ela, com um suspiro - e ele pôs as mãos em você.

- Não sei - disse Rowan. - Explique -me essa história. Mas a velha apenas olhava para ela e esperava.

- Era um homem, um homem magro e elegante. Ele apareceu às três horas da manhã. Na hora em que minha mãe morreu. Eu o vi tão nitidamente quanto estou vendo a senhora, mas só por um instante.

A mulher baixou os olhos. Rowan teve a impressão de que ela havia fechado os olhos, mas viu, então, um pequeno brilho abaixo das pálpebras. A mulher cruzou as mãos diante de si sobre a mesa.

- Era o homem - disse ela. - O homem que enlouqueceu sua mãe, e enlouqueceu sua avó. O homem que serviu minha mãe, que dominava todos os que a cercavam. Eles lhe falaram dele, os outros? Eles lhe deram algum aviso?

- Não me falaram nada - disse Rowan.

- É porque não sabem e afinal perceberam que não sabem. Agora deixam os segredos conosco, como sempre deveria ter sido.

- Mas o que foi que eu vi? Por que ele apareceu para mim? - Mais uma vez, ela pensou no sonho no avião, e não conseguia encontrar nenhum motivo para associar os dois.

- Porque ele acredita que agora você é dele - disse a velha. - Dele para ser tocada, para ser amada e dominada com suas promessas de servidão. Rowan sentiu novamente a confusão, e um calor difuso no rosto. Dele para ser tocada. A atmosfera obsessiva do sonho retornou.

- Ele lhe dirá que é o contrário - disse a velha. - Quando ele falar no seu ouvido para que ninguém o ouça, dirá que é seu escravo, que passou de Deirdre para você. Mas é mentira, querida, uma perversa mentira. Ele irá se apoderar de você e a levará à loucura se você se recusar a fazer o que ele quer. Foi o que fez com todas elas. - Ela fez uma pausa, franzindo as sobrancelhas enrugadas, com os olhos perdidos na superfície empoeirada da mesa. - À exceção daquelas que foram fortes o suficiente para refreá-lo e fazer dele o escravo que ele alegava ser, usando-o para atingir suas próprias metas... - Sua voz foi baixando. - Sua própria maldade infinita.

- Explique-me esse ponto.

- Ele a tocou, não é verdade?

- Não sei.

- Ah, sabe, sim. Seu rosto fica todo vermelho, Rowan Mayfair. Bem, permita-me lhe fazer uma pergunta, minha menina, minha menina independente que já teve tantos homens da sua própria escolha, foi tão bom quanto um homem mortal? Pense antes de falar. Ele lhe dirá que nenhum mortal poderia lhe proporcionar o prazer que ele proporciona. Mas será verdade? Ele tem um preço terrível, esse prazer.

- Pensei que fosse um sonho.

- Mas você o viu.

- Isso foi na noite anterior. Ele me tocou durante um sonho. Foi diferente.

- Ele a tocava até o final - disse a velha. -Não importava a quantidade de tranqüilizantes que lhe dessem. Por mais idiota que fosse seu olhar, por mais apático que fosse seu caminhar. Quando ela estava deitada na cama à noite, ele vinha, ele a tocava. Ela se retorcia na cama como uma prostituta vulgar, sob o efeito do seu toque... - Ela refreou suas palavras e depois o sorriso roçou seus lábios como a luz roçava.

- Isso a deixa zangada? Você tem raiva de mim por eu lhe contar isso?

Você acha que era bonito de se ver?

- Acho que ela estava doente e fora de si; e que era humano.

- Não, minha cara, suas relações nunca foram humanas.

- A senhora quer que eu acredite que o que eu vi foi um fantasma, que ele tocava minha mãe, que eu de algum modo o herdei.

- É, e trate de engolir essa sua raiva. Essa sua raiva perigosa.

Rowan ficou espantada. Uma onda de medo e confusão a atingiu.

- A senhora está lendo meus pensamentos. E esteve lendo o tempo todo.

- Ah, é claro. Na medida do possível, eu os leio. Eu gostaria de poder ler melhor. Sua mãe não era a única pessoa nesta casa com o poder. Três gerações antes, eu estava destinada ao colar. Eu o vi quando tinha três anos, com tanta nitidez e força que ele conseguia segurar minha mão com sua mão morna e me levantar no ar, é, levantar meu corpo, mas eu o recusei. Voltei-lhe as costas. Disse-lhe que voltasse para o inferno de onde havia vindo. E usei meu poder para combatê-lo.

- E esse colar agora vem para mim porque eu o vejo?

- Ele vai para você porque você é a única filha mulher, e não há possibilidade de escolha.

Ele seria seu por mais fracos que fossem os seus poderes. Mas isso não importa. Porque seus poderes são fortes, muito fortes, e sempre foram. - Ela se calou, examinando Rowan novamente, com o rosto por um instante indecifrável, talvez isento de qualquer opinião específica. - Imprecisos, sim; incoerentes, é claro; talvez incontroláveis; mas fortes.

-Não os superestime - disse Rowan, em voz baixa. - Eu nunca o faço.

- Há muito tempo, Ellie me contou tudo - disse a velha. -Ellie me disse que você conseguia fazer com que as flores murchassem. Que podia fazer a água ferver. "Ela é uma bruxa mais poderosa do que Antha ou do que Deirdre", foi o que ela me disse, chorando e me implorando um conselho sobre o que devia fazer. "Mantenha a menina afastada!", disse-lhe eu. "Certifique -se de que ela nunca volte para cá. De que ela nunca saiba! De que ela nunca aprenda a usar seus poderes."

Rowan suspirou. Ela ignorou a dor surda com a menção do nome de Ellie, com o fato de Ellie conversar com essas pessoas sobre ela. Totalmente isolada. E todos os outros aqui. Até mesmo essa velha desgraçada.

- É, e estou sentindo sua raiva de novo, sua raiva de mim, sua raiva pelo que você acha que sabe que eu fiz à sua mãe!

- Não quero ter raiva da senhora - disse Rowan, com a voz contida. - Só quero compreender o que está dizendo. Quero saber por que fui levada daqui...

Mais uma vez, a velha mergulhou num silêncio pensativo. Seus dedos adejaram sobre o porta jóias e depois o envolveram e ficaram imóveis, excessivamente parecidos com as flácidas mãos de Deirdre no ataúde.

Rowan desviou o olhar. Olhou para a parede mais distante, para o panorama do céu pintado acima da lareira.

- Mas será que minhas palavras não lhe proporcionam um mínimo consolo? Todos esses anos, você não se perguntou se era a única pessoa no planeta que lia o pensamento dos outros, a única que sabia quando alguém por perto ia morrer? A única que conseguia afastar uma pessoa de você só com a raiva que sentia? Olhe para aquelas velas.

Você pode apagá-las e pode acendê-las de novo. Faça isso. Rowan não fez nada. Ficou olhando fixamente para as pequenas chamas. Sentia que estava tremendo. Se a senhora soubesse de fato, se realmente soubesse o que eu podia lhe fazer agora...

- Mas eu sei. Veja, eu sinto sua força, porque eu também sou forte, mais forte do que Antha ou do que Deirdre. Foi assim que eu pude mantê-lo sob controle nesta casa; foi assim que impedi que ele me machucasse. Foi assim que consegui colocar trinta anos entre ele e a filha de Deirdre. Faça com que as velas se apaguem. Acenda-as de novo. Quero vê-Ia fazer isso.

- Não vou fazer nada. E quero que pare de brincar comigo. Fale o que tem a dizer. Mas pare com essas brincadeiras. Pare de me torturar. Nunca lhe fiz nada. Diga-me quem ele é, e por que a senhora me separou da minha mãe.

- Mas já lhe disse. Separei vocês duas para poder afastar você dele, deste colar, desta herança de maldições e da fortuna criada a partir do poder e da interferência dele. - Ela estudou a expressão de Rowan e prosseguiu, com a voz mais grave, embora com a mesma nitidez. - Separei você dela para alquebrar sua vontade e para afastá-la de uma muleta na qual ela poderia se apoiar, de um ouvido no qual ela pudesse derramar sua alma torturada, de uma companhia que ela poderia deformar e perverter com sua fraqueza e sua aflição.

Paralisada de raiva, Rowan não deu nenhuma resposta. Entristecida, ela via mentalmente a mulher de cabelos negros no caixão. Via também o cemitério de Lafayette, só que envolto pela escuridão da noite, tranqüilo e deserto.

- Trinta anos você teve para crescer forte e direita, longe desta casa, longe do mal dessa história. E o que você se tornou? Uma médica incomparável até para seus colegas de profissão; e, quando praticou o mal com seu poder, você recuou numa virtuosa condenação de si mesma, com uma vergonha que a impulsionou para um sacrifício ainda maior.

- Como a senhora sabe essas coisas?

- Eu vejo. O que vejo é impreciso, mas vejo. Vejo o mal, embora não consiga ver os atos em si, pois eles estão ocultos pela própria culpa e vergonha que os anunciam.

- Então, o que quer de mim? Uma confissão? A senhora mesma disse que voltei as costas ao que fiz de errado. Procurei alguma outra coisa, algo infinitamente mais exigente, algo superior.

- "Não matarás" - sussurrou a velha.

Um choque de pura dor trespassou Rowan e, consternada, ela viu que os olhos da velha se dilatavam, escarnecendo dela. Confusa, Rowan compreendeu o estratagema e se sentiu indefesa. Pois num átimo de segundo, a mulher, com suas palavras, havia feito surgir na mente de Rowan a imagem exata daquilo que estava procurando. Você matou. Em acessos de raiva e fúria, você tirou a vida. Foi proposital. É essa a força que você tem.

Rowan mergulhou mais fundo em si mesma, espiando os óculos redondos e planos que captavam a luz e a liberavam, e os olhos escuros difíceis de divisar por trás deles.

- Será que eu lhe ensinei alguma coisa? - perguntou a mulher.

- A senhora está pondo minha paciência à prova. Permita- me relembrar que não lhe fiz nada. Não vim aqui exigir respostas suas. Não lhe fiz nenhuma censura. Não vim para reivindicar essa jóia, esta casa ou qualquer objeto que nela se encontre. Vim ver o enterro da minha mãe, e entrei pela porta da frente porque a senhora me convidou. Estou aqui para ouvir, mas não vou aceitar ser seu brinquedo muito tempo mais.

Nem por todos os segredos deste mundo. Também não tenho medo desse seu fantasma, mesmo que ele ostente o pau de um arcanjo.

A velha a encarou um instante. Depois, ergueu as sobrancelhas e riu, uma risadinha curta, repentina, com uma nota surpreendentemente feminina. Ela prosseguiu, sorrindo.

- Palavras acertadas, minha cara - disse ela. - Há setenta e cinco anos minha mãe me disse que ele poderia fazer os deuses gregos chorarem de inveja, tão lindo era ao entrar no seu quarto. - Ela relaxou lentamente, na cadeira, retesando os lábios e depois voltando a sorrir. - Mas ele nunca a afastou dos seus lindos mortais.

Ela gostava do mesmo tipo de homem que você aprecia.

- Ellie lhe contou isso também?

- Ela me contou muitas coisas, mas nunca me disse que estava doente. Nunca me disse que estava à morte.

- Quando as pessoas estão morrendo, elas ficam com medo - disse Rowan. – Estão inteiramente sós. Ninguém pode morrer no lugar delas.

A velha baixou os olhos. Ficou imóvel por algum tempo. Depois suas mãos afagaram o tampo macio do porta-jóias e, segurando-o com força, ela o abriu. Ela o virou ligeiramente para que a luz das velas refulgisse na esmeralda que estava ali dentro, presa num emaranhado de corrente de ouro. Era a maior pedra preciosa que Rowan jamais havia visto.

- Eu costumava sonhar com a morte - disse Carlotta, contemplando a pedra. - Eu já a pedi nas minhas orações. - Ela ergueu os olhos lentamente, avaliando Rowan, e mais uma vez eles se dilataram, com a pele frágil e macia da sua testa se enrugando excessivamente acima das sobrancelhas grisalhas. Sua alma parecia agora fechada e imersa na tristeza. Foi como se por um instante ela houvesse se esquecido de se ocultar de algum modo de Rowan, por trás da crueldade e da inteligência. Ela apenas a contemplava.

- Venha - disse a velha, endireitando-se com dificuldade. - Deixe- me lhe mostrar o que tenho de lhe mostrar. Acho que não resta muito tempo agora.

- Por que diz isso? - disse Rowan em voz baixa, com um tom insistente. - Por que me olha desse jeito?

A mulher apenas sorriu.

- Venha. Traga a vela se quiser. Algumas das lâmpadas ainda acendem. Outras estão queimadas ou os fios já há muito se desgastaram e se soltaram. Acompanhe-me.

Levantou-se da cadeira, tirou cuidadosamente a bengala de madeira que estava enganchada no encosto e caminhou com uma firmeza surpreendente, passando por Rowan que a observava parada, protegendo a chama frágil com a mão esquerda em curva.

A luz ínfima cresceu parede acima enquanto as duas seguiam pelo corredor. Ela brilhou um instante na superfície reluzente de um velho retrato de um homem que de repente pareceu estar vivo, olhando para Rowan. Ela parou, voltando a cabeça de maneira brusca, para olhar e ver que havia sido apenas uma ilusão.

- O que foi? - perguntou Carlotta.

- Só que eu pensei... - Rowan olhou para o retrato, muito bem pintado, que mostrava um homem sorridente, de olhos negros, decididamente ninguém vivo, soterrado por baixo de camadas de verniz quebradiço, todo rachado.

- Pensou o quê?

-Nada de importante - disse Rowan, prosseguindo, com a mão a proteger a vela como antes.

- A luz fez com que ele parecesse ter se movimentado.

A mulher voltou o olhar, fixando-o no retrato, com Rowan parada ao seu lado.

- Você verá muitas coisas estranhas nesta casa - disse ela. - Você pode passar por aposentos vazios só para dar meia-volta porque acha que viu uma silhueta em movimento, ou uma pessoa olhando para você.

Rowan examinou seu rosto. Carlotta agora não parecia perversa, nem brincalhona, apenas solitária, pensativa, abismada.

- Você não tem medo do escuro? - perguntou Carlotta.

- Não.

- Então, enxerga bem no escuro.

- Enxergo. Melhor do que a maioria das pessoas.

A mulher voltou a andar, dirigindo-se para a porta alta ao pé da escada, e ali apertou o botão. Com um estrépito abafado, o elevador desceu até o térreo e parou pesado, aos trancos. A mulher virou a maçaneta, abrindo a porta e revelando uma porta pantográfica, que abriu com esforço.

Entraram, pisando num retalho de tapete gasto, cercadas por paredes forradas de um tecido escuro, com uma lâmpada fraca acesa no teto.

- Feche as portas - disse a mulher, e Rowan obedeceu, estendendo a mão para puxar a maçaneta e fechando a porta pantográfica. - É bom que aprenda a usar o que é seu - acrescentou a velha.

Uma fragrância delicada emanava das suas roupas, algo doce como Chanel, misturada ao perfume inconfundível de pó-de-arroz. Ela apertou um pequeno botão preto de borracha, à sua direita. E lá foram subindo, velozes, com um impulso que surpreendeu Rowan.

O corredor do segundo andar estava imerso numa escuridão ainda mais impenetrável do que o do térreo. O ar estava mais aquecido. Nenhuma porta ou janela deixava passar um feixe de luz que fosse da rua, e a luz da vela lançava uma claridade fraca sobre as inúmeras portas de almofadas brancas e mais uma escada que subia.

- Entre aqui - disse a velha, abrindo uma porta à esquerda e seguindo à frente, com a bengala batendo de leve no espesso tapete florido.

Cortinas, escuras e podres, como as da sala de jantar lá embaixo, e uma cama estreita de madeira, com um dossel, aparentemente entalhado com a imagem de uma águia. A cabeceira também era entalhada com um desenho semelhante, simétrico.

- Nesta cama, sua mãe morreu - disse Carlotta.

Rowan olhou para o colchão nu. Viu uma enorme mancha escura no pano listrado que tinha um brilho quase cintilante na escuridão. Insetos! Minúsculos insetos pretos se alimentavam diligentemente na mancha. Quando ela deu um passo adiante, a luz fez que fugissem em disparada para os quatro cantos do colchão.

Ela arfou e quase.deixou cair a vela.

A velha parecia mergulhada nos seus pensamentos, de algum modo protegida daquele horror.

- Isso é repugnante - disse Rowan entre dentes. - Alguém devia limpar este quarto!

- Você pode mandar limpá-lo se quiser- respondeu a velha. - Ele agora é seu.

O calor e a visão das baratas fizeram com que Rowan se sentisse mal. Ela recuou e encostou a cabeça no batente da porta. Outros cheiros subiam, ameaçando lhe provocar náuseas.

- O que mais quer me mostrar? - perguntou, com calma. Refreie sua raiva, dizia ela a si mesma, enquanto seus olhos corriam as paredes desbotadas, a mesinha-de-cabeceira apinhada de imagens de gesso e velas. Tudo lúgubre, feio, imundo. Morta nesta imundície. Morreu aqui. No abandono.

Não - disse a velha. - Não no abandono. E o que é que ela percebia do ambiente à sua volta no final da vida? Leia você mesma os registros médicos. - A velha passou mais uma vez por ela, voltando ao corredor. - E agora precisamos subir essa escada, porque o elevador só vem até aqui.

Reze para não precisar de ajuda minha, pensou Rowan. Ela se retraía só de se imaginar tocando a velha. Procurou respirar fundo, para acalmar o tumulto no seu íntimo. O ar, pesado, viciado e cheio de levíssimos indícios de cheiros ainda piores, parecia estar grudado a ela, às suas roupas, ao seu rosto.

Ficou olhando a mulher subir, galgando cada degrau lentamente mas com competência.

- Venha comigo, Rowan Mayfair- disse ela, olhando para trás. - Traga a vela. As antigas luminárias a gás daqui de cima foram desligadas há muito tempo.

Rowan a acompanhou. O ar ficava cada vez mais quente. Parada no pequeno patamar, ela viu mais um lance curto de degraus e depois o último patamar, no terceiro andar.

Enquanto subia, parecia que todo o calor da casa devia estar concentrado ali.

Através de uma janela nua à sua direita entrava o clarão incolor da luz do poste da rua lá embaixo. Havia duas portas, uma à esquerda e uma diretamente à sua frente.

Foi a porta da esquerda que a velha abriu.

- Está vendo ali dentro o lampião sobre a mesa? Acenda-o.

Rowan largou a vela e ergueu a camisa do lampião. O cheiro do óleo era ligeiramente desagradável. Ela tocou com a vela acesa o pavio queimado. A chama grande e brilhante ficou ainda mais forte quando ela baixou a camisa. Rowan segurou a lâmpada no alto para iluminar um aposento espaçoso, de pé direito baixo, cheio de pó, umidade e teias de aranha. Mais uma vez, pequenos insetos fugiram da luz. Um farfalhar seco a assustou, mas o cheiro agradável do calor e da madeira era forte ali, ainda mais forte do que o cheiro de mofo e de panos estragados.

Ela viu que havia baús encostados nas paredes; que caixotes de mudança estavam apinhados sobre uma cama de latão no canto mais distante abaixo de uma das duas janelas quadradas. Um denso emaranhado de trepadeiras encobria metade da vidraça, com a luz refletindo nas gotas de chuva ainda agarradas às folhas, tornando-as ainda mais visíveis. As cortinas haviam caído há muito tempo e estavam ainda amontoadas no peitoril das janelas.

Livros forravam a parede à direita, cercando a lareira e seu pequeno consolo de madeira, em prateleiras que chegavam ao teto. Havia livros espalhados a esmo nas velhas poltronas estofadas que agora pareciam macias, esponjosas com a umidade e a idade. A luz do lampião reluziu no latão opaco da velha cama.

Refletiu também no couro embaçado de um par de sapatos, aparentemente jogados junto a um tapete comprido e grosso, amarrado num rolo irregular e empurrado de encontro à lareira desativada.

Havia algo de estranho nesses sapatos, algo de estranho naquele rolo cheio de saliências. Seria o fato de o tapete estar preso por uma corrente enferrujada, em vez da corda que pareceria mais provável?

Rowan percebeu que a velha a observava.

- Este foi o quarto de meu tio Julien - disse a mulher. - Foi por aquela janela que sua avó Antha saiu para o telhado da varanda e caiu para morrer lá embaixo nas lajes.

Rowan firmou o lampião, segurando-o melhor pela cintura marcada da sua base de vidro. Não disse nada.

- Abra o primeiro baú aí à sua direita - disse a velha.

Hesitando por um instante, embora não soubesse dizer por quê, Rowan se ajoelhou no piso nu e empoeirado, pôs o lampião ao lado do baú e examinou a tampa e a tranca arrombada. O baú era de lona reforçada com couro e tachas de latão. Ela ergueu a tampa sem esforço e a encostou delicadamente na parede para não arranhar o reboco.

- Está vendo o que está aí dentro?

- Bonecas - respondeu Rowan. - Bonecas feitas de... de cabelo e osso.

- É, ossos e cabelos humanos, de pele humana e aparas de unhas. Bonecas das suas antepassadas tão antigas que não se sabem os nomes das mais velhas, e elas se desfarão em pó se você as tocar.

Rowan examinou todas elas, dispostas cuidadosamente em fileiras numa camada de morim ralo, cada boneca com seu rosto meticulosamente desenhado e sua longa mecha de cabelo, algumas com varinhas para lhes servir de braços e pernas, outras molengas e quase amorfas. A mais nova e mais elegante de todas era feita de seda com uma pérola costurada ao vestido. Seu rosto era de osso reluzente, com os olhos, o nariz e a boca desenhados com tinta de um marrom escuro, talvez mesmo com sangue.

- É - disse a velha. - E sangue. E essa é sua bisavó Stella.

A bonequinha pareceu sorrir para Rowan. Alguém havia grudado os cabelos negros à cabeça de osso com cola. Saíam ossos da bainha do tubinho de seda.

- De onde vieram esses ossos?

- De Stella.

Rowan estendeu a mão e recuou, com os dedos se retraindo. Ela não conseguia se forçar a tocar a boneca. Hesitante, ela ergueu a ponta do morim, para ver ali embaixo mais uma camada, e nessa as bonecas estavam rapidamente se transformando em pó. Elas haviam afundado no pano, e era bem provável que não pudessem ser tiradas intactas dali.

-Elas remontam aos tempos da Europa. Enfie a mão. Pegue a mais velha. Você consegue ver qual é?

-Não adianta. Ela se desfará se eu a tocar. Além do mais, nem sei qual delas é a mais velha.

- Ela recolocou o pano no lugar, acertando a camada superior com cuidado.

E, quando seus dedos tocaram nos ossos, ela sentiu uma vibração súbita e desagradável. Era como se uma luz forte houvesse lampejado diante dos seus olhos. Sua mente registrou as possibilidades médicas... convulsão, perturbação do lobo temporal. No entanto, o diagnóstico parecia tolo, por pertencer a um outro universo.

Ela olhou fixamente para as pequenas carinhas. - Qual é a finalidade? Por que isso?

-Para falar com elas, se você quiser; e para invocar sua ajuda, de tal modo que elas saiam do inferno para satisfazer sua vontade. - A mulher retesou os lábios enrugados numa leve expressão de escárnio, com a luz, de baixo, deformando seu rosto grotescamente. - Como se elas fossem sair das chamas do inferno para satisfazer um pedido de quem quer que fosse.

Rowan deu um longo suspiro depreciativo olhando novamente para as bonecas, para o rosto horrendo e nítido de Stella.

- Quem fez essas coisas?

- Todos eles, o tempo todo. Cortland veio se esgueirando à noite e cortou o pé da minha mãe, Mary Beth, enquanto ela jazia no caixão. Foi Cortland quem tirou os ossos de Stella. Stella queria ser enterrada em casa. Stella sabia o que ele faria, porque sua avó Antha era pequena demais para isso.

Rowan estremeceu. Baixou a tampa do baú, levantou-se, erguendo cuidadosamente o lampião, e espanou o pó dos joelhos.

- Esse Cortland, o homem que fez essas coisas, quem ele era? Não o avô do Ryan que conheci no enterro?

- É, minha querida, o próprio - disse a velha. - Cortland, o belo, Cortland, o perverso, Cortland, o instrumento daquele que conduz esta família há séculos. Cortland, que violentou sua mãe quando ela se agarrou a ele à procura de ajuda. Estou falando do homem que copulou com Stella para gerar Antha, que por sua vez deu à luz Deirdre, que dele concebeu você. Ao mesmo tempo, filha e bisneta.

Rowan ficou calada, visualizando a disposição dos nascimentos e dos entrelaçamentos.

- E quem fez uma boneca da minha mãe? - perguntou, olhando fixamente para o rosto da velha, que agora parecia medonho no jogo de luz e sombra do lampião.

- Ninguém. A não ser que você mesma queira ir até o cemitério, soltar a lápide e tirar as mãos dela de dentro do caixão. Você acha que conseguiria fazer uma coisa dessas? Ele a ajudará, sabia, o homem que você já viu. Ele aparecerá se você puser o colar e o invocar.

- A senhora não tem nenhum motivo para querer me magoar. Não faço parte disso tudo.

- Estou lhe dizendo o que sei. Magia negra era o negócio deles. Sempre foi. Eu lhe digo o que você precisa saber para fazer sua escolha. Você se curvaria a essa imundície? Você daria continuidade a isso tudo? Você ergueria aqueles fragmentos deploráveis e invocaria os espíritos dos mortos para que todos os demônios no inferno fizessem de você um joguete?

- Eu não acredito nisso - disse Rowan. - E não creio que a senhora acredite.

- Eu acredito no que vi. Acredito no que sinto quando toco nessas bonecas. Elas são dotadas de perversidade, como as relíquias sacras são dotadas de santidade. Mas as vozes que falam por elas são todas dele, a voz do demônio. Você não acredita no que viu quando ele lhe apareceu?

- Vi um homem de cabelos escuros. Não era um ser humano. Era algum tipo de alucinação.

- Era Satã. Ele lhe dirá que isso não é verdade. Ele lhe dará um lindo nome. Ele dirá poesia para você. Mas ele é o diabo dos infernos por um simples motivo. Ele mente e destrói. E ele destruirá você e seus descendentes se conseguir, pois seus objetivos, os objetivos dele são o que importa.

- E quais são esses objetivos?

- Ter vida, como nós temos vida. Realizar-se, ver e sentir o que nós vemos e sentimos. – A mulher lhe voltou as costas e, meneando a bengala à sua frente, caminhou até a parede da esquerda, junto à lareira, parando diante do tapete mal enrolado e depois olhando para os livros que forravam as estantes dos dois lados da chaminé revestida de lambri acima do consolo da lareira.

Histórias - prosseguiu ela. - Histórias de todos os que vieram antes de nós, escritas por Julien. Este foi o quarto de Julien, o retiro de Julien. Aqui dentro, ele escreveu suas confissões. De como com sua irmã Katherine ele gerou minha mãe Mary Beth; e depois com Mary Beth gerou minha irmã Stella. E quando ele quis se deitar comigo, eu cuspi na sua cara. Tentei arrancar seus olhos com minhas unhas. Ameacei matá-lo. - Ela se voltou e olhou fixamente para Rowan.

Magia negra, feitiços maléficos, registros de suas pequenas vitórias de quando castigava seus inimigos e seduzia seus amantes. Nem todos os serafins nos céus poderiam saciar sua luxúria. Não a de Julien.

- Tudo isso está registrado aí?

- Tudo isso e algo mais. Mas eu nunca li seus livros, nem nunca vou ler. Já me bastava ler seus pensamentos quando ele ficava sentado um dia após o outro na biblioteca lá embaixo, mergulhando a pena no tinteiro e rindo consigo mesmo enquanto dava asas à fantasia. Isso foi há muitas décadas. Esperei tanto tempo por este momento.

- E por que os livros ainda estão aqui? Por que não os queimou?

- Porque eu sabia que, se um dia você viesse, teria de ver com seus próprios olhos. Nenhum livro tem a força de um livro incinerado! Não....Você precisa ler sozinha o que ele era, pois o que ele diz com suas próprias palavras não pode ter outro efeito a não ser o de culpá-lo e condená-lo. - Ela fez uma pausa. - Leia e escolha. Antha não tinha condições de escolher. Deirdre não tinha condições de escolher. Mas você tem. Você é forte, inteligente e sábia, apesar da pouca idade, sábia. Isso eu vejo em você.

Ela pousou as duas mãos sobre o cabo da bengala e olhou para outro lado com o canto dos olhos, meditando. Mais uma vez, seu capacete de cabelo branco parecia pesar sobre o rosto pequeno.

- Eu fiz minha escolha - disse ela, baixinho, quase triste. - Fui até a igreja depois que Julien tocou em mim, depois que ele cantou suas canções e disse suas mentiras.

Acredito francamente que ele imaginava conseguir me seduzir com seus encantos. Fui até o altar de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e ali me ajoelhei e rezei. E uma verdade poderosíssima me foi revelada. Não importava que Deus no céu fosse católico, protestante ou hindu. O que importava era alguma coisa mais profunda, mais antiga e mais forte do que qualquer imagem dessas: um conceito do bem baseado na afirmação da vida, na repulsa à destruição, à perversidade, ao uso e abuso do homem pelo homem. Era a afirmação do humano e do natural. - Ela ergueu os olhos para Rowan. - Pedi a Deus que me ajudasse. Que Nossa Senhora me amparasse. Que me permitissem usar meu poder para combatê-los, para derrotá-los, para vencê-los.

Mais uma vez, seus olhos se desfocaram, talvez contemplando o passado. Pairaram por algum tempo sobre o tapete aos seus pés, com seus círculos apertados de corrente enferrujada.

- Eu sabia o que me esperava, mesmo naquela época. Anos depois, aprendi o que precisava.

Aprendi os mesmos feitiços e segredos que eles empregavam. Aprendi a invocar os mesmos espíritos inferiores que eles comandavam. Aprendi a lutar com ele, em toda a sua glória, com espíritos féis a mim, que eu depois podia dispensar com um estalar de dedos. Em suma, usei suas armas contra eles mesmos.

Ela parecia taciturna, distante, estudando as reações de Rowan apesar de aparentar indiferença com relação a elas.

- Eu disse a Julien que não teria nenhum filho incestuoso dele. Que não me descrevesse fantasias do futuro. Que não aplicasse seus truques comigo, transformando-se num rapaz nos meus braços, quando eu podia sentir sua carne murcha e sabia que ela estava ali o tempo todo. "Você acha que eu me importo com você ser o homem mais lindo do mundo? Você ou seu guardião maléfico? Você acha que eu tomo minhas decisões com tanta vaidade e complacência?" Foi o que eu disse a ele. Se ele me tocasse novamente, eu usaria o poder de que dispunha para afastá-lo. Eu não precisaria de mãos humanas para me ajudar. E eu vi medo nos seus olhos; medo, muito embora eu mesma ainda não houvesse aprendido o suficiente para fazer valer minhas ameaças; medo de um poder que ele sabia existir mesmo que eu ainda não me sentisse segura dele. Mas talvez fosse apenas medo de alguém que ele não conseguia seduzir, não conseguia confundir, não conseguia conquistar. - Ela sorriu, com os lábios finos revelando uma reluzente dentadura perfeitamente nivelada. - Sabe, isso é terrível para alguém que vive exclusivamente pela sedução.

Ela silenciou, talvez dominada pelas lembranças.

Rowan respirou fundo, ignorando o suor grudado ao seu rosto e o calor do lampião. Ao olhar para a mulher, o que sentia era angústia, angústia, desperdício e longos anos de solidão. Anos vazios, anos de uma rotina enfadonha, de rancor e de uma crença feroz, uma crença com o potencial para matar...

- É, matar - suspirou a mulher. - Também fiz isso. Para proteger os vivos daquele que nunca viveu, e que se apossaria deles se pudesse.

- Por que nós? - perguntou Rowan. - Por que nós somos os joguetes desse espírito de que a senhora fala? Por que logo nós no mundo inteiro? Não somos os únicos que conseguem ver espíritos.

A velha deu um longo suspiro.

- A senhora alguma vez falou com ele? Disse que ele lhe apareceu quando ainda era criança, que falava no seu ouvido palavras que ninguém ouvia. Alguma vez a senhora lhe perguntou quem ele era e o que realmente queria?

- Você acha que ele teria me contado a verdade? Ele não lhe dirá a verdade, lembre-se do que lhe digo. Você só o alimenta quando lhe faz perguntas. Você lhe dá combustível como se ele fosse a chama no lampião.

A velha de repente se aproximou ainda mais de Rowan.

- Ele retirará da sua mente a resposta mais adequada para enganá-la, para deixá-la fascinada. Ele tecerá uma teia de falsidades tão densa que você não conseguirá ver o mundo através dela. Ele quer sua força e dirá o que for preciso dizer para obtê-la. Quebre a corrente, menina! Você é a mais forte de todas elas! Quebre a corrente, e ele terá de voltar para o inferno, pois ele não tem mais nenhum lugar para onde ir no mundo inteiro para encontrar uma força como a sua. Você não percebe?

Foi ele quem criou essa força. Cruzando irmão com irmã, tio com sobrinha e filho com mãe, é, até isso, quando precisava, para criar uma bruxa ainda mais poderosa, só fracassando de vez em quando, e reconquistando o que havia perdido numa geração com um poder ainda maior na próxima. Qual foi o custo de Antha e Deirdre se ele podia ter uma Rowan.

- Bruxa? A senhora disse a palavra bruxa?

- Todas eram bruxas, todas elas, está me entendendo? - Os olhos da velha esquadrinhavam o rosto de Rowan. - Sua mãe, sua avó, sua bisavó, e até Julien, aquele ser desprezível, pai de Cortland, que foi seu pai. Eu também estava destinada a isso até me rebelar.

Rowan cerrou o punho esquerdo, enfiando as unhas na palma da mão, encarando a velha nos olhos, com repulsa por ela e no entanto incapaz de se afastar.

- O incesto, minha cara, foi o menor dos seus pecados, mas seu projeto mais importante: incesto para fortalecer a linhagem, para multiplicar os poderes, para purificar o sangue, para dar à luz uma bruxa terrível e esperta a cada geração, há tanto tempo que os primórdios se perderam na história da Europa. O inglês que lhe fale a esse respeito, o inglês que veio com você à igreja, o inglês que estava segurando seu braço.

Deixe que ele lhe diga os nomes das mulheres cujas bonecas estão naquele baú. Ele lhe venderá sua especialidade na magia negra, sua genealogia.

- Quero sair deste quarto - disse Rowan, baixinho. Ela se voltou, lançando o feixe de luz no patamar da escada.

- Você sabe que é verdade - disse a velha atrás dela. - No fundo você sempre soube que vivia em você o mal.

- A senhora escolheu mal suas palavras. Está querendo dizer o potencial para o mal.

- Bem, saiba que pode dar um basta nisso! Esse pode ser o significado da sua força superior, o de que você pode agir como eu agi, voltando sua força contra ele. Voltando-a contra eles todos!

A velha passou bruscamente por Rowan, com a bainha do seu vestido roçando-lhe o tornozelo, e a bengala batendo surda no chão enquanto ela saía para o patamar e fazia um gesto para que Rowan a seguisse.

Entraram na única porta remanescente no andar, dela saindo um cheiro fortíssimo e revoltante. Rowan recuou, praticamente sem poder respirar, e então fez o que sabia que devia fazer. Respirou fundo aquela fedentina e engoliu em seco, pois não havia nenhum outro modo para tolerá-la.

Erguendo bem alto o lampião, ela viu que aquele era um depósito estreito. Estava cheio de frascos e vidros em prateleiras improvisadas, e os frascos e vidros estavam cheios de um líquido escuro, turvo. Havia espécimes nesses recipientes. Coisas pútridas, estragadas. O cheiro forte do álcool e de outros produtos químicos, e acima de todos o de carne em putrefação. Insuportável a idéia de que esses recipientes de vidro fossem abertos e do horrível fedor do seu conteúdo.

- Pertenceram a Marguerite - disse a velha - e Marguerite foi a mãe de Julien e de Katherine, que foi minha avó. Não espero que você guarde todos esses nomes. Você vai encontrá-los nos registros lá do outro quarto. Mas preste atenção ao que eu lhe digo.

Marguerite encheu esses vidros com coisas horrorosas. Você verá quando derramar o conteúdo. E veja bem, faça isso você mesma se não quiser ter problemas. Coisas horrendas nesses frascos... e logo ela, a curandeira! - Ela quase cuspiu a palavra, com desprezo. - Com o mesmo dom poderoso que você tem agora, de pôr as mãos sobre os enfermos e de reunir as células para consertar a fratura ou o câncer.

E foi isso o que ela fez com seu dom. Traga o lampião mais para perto.

- Não quero ver isso agora.

-Não? Você é médica, não é? Você não dissecou os mortos de todas as idades? Você não corta as pessoas agora?

- Sou cirurgiã. Opero para preservar e prolongar a vida. Não quero ver essas coisas agora...

No entanto, mesmo enquanto falava, estava examinando os frascos, olhando para o maior deles no qual o líquido ainda estava claro o suficiente para permitir ver a coisa macia, vagamente arredondada que nele flutuava, meio oculta pelas sombras. Mas era impossível o que estava vendo. Aquilo parecia ser exatamente uma cabeça humana. Ela recuou como se tivesse se queimado.

- Diga-me o que viu.

- Por que está fazendo isso comigo? - perguntou, em voz baixa, com os olhos fixos no frasco, nos olhos escuros apodrecidos, boiando no líquido, e nos cabelos de alga. Ela voltou as costas ao frasco e encarou a velha. - Foi hoje o enterro da minha mãe. O que a senhora quer de mim?

- Já lhe disse.

- A senhora está me castigando por ter vindo; está me punindo só por eu querer saber; por eu ter estragado seus planos.

Teria sido aquilo um sorriso no rosto da velha?

- A senhora não compreende que agora eu estou totalmente só lá na Califórnia? Quero conhecer minha família. A senhora não pode fazer com que eu me curve à sua vontade.

Silêncio. Aquilo ali era uma fornalha. Rowan não sabia quanto tempo mais iria agüentar.

- Foi isso o que fez com minha mãe? - perguntou, com a voz como que se extinguindo de raiva. - A senhora fez com que ela cumprisse a sua vontade?

Ela deu um passo atrás, como se sua raiva a forçasse a se afastar da velha; com a mão segurando desconfortavelmente o lampião de vidro, que agora estava quente com o pavio aceso, tão quente que ela mal conseguia mantê-lo na mão.

- Vou passar mal neste quarto.

-Pobrezinha--disse a velha. -O que você viu no frasco era uma cabeça de homem. Pois olhe com cuidado para ele quando chegar a hora. Olhe também para os outros que encontrar ali.

- Estão todos podres, deteriorados. São tão velhos que já não servem para nada, se é que algum dia serviram. Quero sair daqui.

Mesmo assim, seus olhos voltavam ao frasco, dominados pelo pavor. Sua mão esquerda tapou sua boca, como se de algum modo pudesse protegê-la. E, olhando para o líquido turvo, ela viu mais uma vez o buraco escuro da boca na qual os lábios estavam se deteriorando lentamente e os dentes brancos reluziam com perfeição. Viu o brilho gelatinoso dos olhos. Não, não olhe mais. Mas o que era aquilo dentro do vidro? Havia coisas que se mexiam no líquido, vermes. A vedação havia sido quebrada.

Ela se volto u e saiu do quarto, apoiando-se na parede, de olhos fechados, com o lampião a lhe queimar a mão. Seu coração batia forte nos ouvidos, e por um instante pareceu que as náuseas iam dominá-la. Ela ia vomitar no próprio chão no alto dessa escada imunda, com essa mulher desgraçada e perversa ao seu lado. Anestesiada, ouviu a mulher passar novamente por ela. Ouviu seu movimento ao descer a escada, dando passos mais lentos do que antes e somente recuperando um pouco a velocidade ao chegar ao patamar.

- Desça, Rowan Mayfair. Apague o lampião, mas acenda a vela antes e traga-a com você.

Rowan foi se recuperando lentamente. Passou a mão esquerda pelos cabelos. Lutando contra uma outra crise de náusea, ela entrou devagar no quarto. Pôs o lampião na pequena mesa junto à porta de onde o havia tirado, bem no momento em que achou que seus dedos não agüentariam mais a temperatura e ficou segurando a mão direita junto à boca, procurando aliviar a sensação de queimadura. Depois, ergueu a vela devagar e a mergulhou na camisa de vidro do lampião, pois sabia que o vidro estaria quente demais para ser tocado. O pavio acendeu, com um pouco de cera escorrendo, e então ela apagou o lampião. Ficou ali parada um pouco, com os olhos sobre o  tapete enrolado e o par de sapatos de couro jogado junto a ele.

Não, não estavam jogados, pensou. Não. Foi lentamente na direção dos sapatos. Estendeu, devagar, seu próprio pé esquerdo até tocar num dos sapatos e deu um chute nele. Percebeu que ele estava preso em alguma coisa, no mesmo instante em que ele se soltou, deixando ver o osso branco e reluzente da perna que saía da calça dentro do tapete enrolado.

Ficou paralisada, olhando espantada para o osso. Para o próprio tapete enrolado. E então, indo até a outra extremidade, ela viu ali o que não via antes, o brilho escuro de cabelos castanhos. Alguém embrulhado no tapete. Alguém morto, morto há muito tempo, e olhe, a mancha no piso, a mancha escura no lado do tapete, perto do chão, onde os fluidos escorreram e secaram há muito. E veja, até mesmo os minúsculos insetos esmagados, presos no líquido viscoso há tanto tempo.

Rowan, prometa que nunca voltará para lá, prometa.

De algum lugar distante lá embaixo, ela ouviu a voz da velha, tão fraca que parecia mais um pensamento seu.

- Desça, Rowan Mayfair. Rowan Mayfair, Rowan Mayfair, Rowan Mayfair...

Recusando-se a se apressar, ela saiu, com apenas um último olhar ao morto escondido no tapete, à vareta de osso branco que dele saía. Ela fechou, então, a porta, e desceu a escada, apática.

A velha estava parada diante do elevador aberto, apenas observando, com a feia luz dourada da lâmpada do elevador a iluminá-la em cheio.

- A senhora sabe o que encontrei - disse Rowan, endireitando-se ao chegar ao pé da escada. A pequena vela bruxuleou um instante, lançando pálidas sombras translúcidas no teto.

- Você encontrou o cadáver enrolado no tapete.

- Pelo amor de Deus, o que andou acontecendo nesta casa! - Exclamou Rowan, ofegante. Vocês são todos loucos?

Como a velha parecia fria e controlada. Como parecia totalmente indiferente. Ela indicou o elevador aberto.

- Venha comigo - disse ela. - Não há nada mais a ser visto e só um pouco mais a ser dito...

- Ah, mas muitas coisas ainda precisam ser ditas - contestou Rowan. - Diga-me, a senhora contou essas coisas à minha mãe? A senhora lhe mostrou aqueles frascos e aquelas bonecas horríveis?

- Eu não enlouqueci sua mãe, se é isso o que quer dizer.

- Acho que qualquer um que crescesse nesta casa poderia ficar louco.

- Sou da mesma opinião. Por isso, mandei você para longe. Agora venha.

- Diga-me o que aconteceu com minha mãe.

Ela entrou atrás da velha na pequena cabine empoeirada, fechando a porta de madeira e a pantográfica com raiva. Enquanto desciam, ela se voltou e examinou o perfil da mulher. Velha, velhíssima. A pele amarelada como pergaminho. O pescoço, tão fino e fraco, com as veias saltadas sob a pele frágil. É, tão frágil.

- Diga-me o que aconteceu - insistiu Rowan, com os olhos fixos no chão, sem ousar olhar a mulher de perto de novo. - Não me fale de como ele a tocava quando dormia, mas o que aconteceu, o que aconteceu realmente!

O elevador parou com um tranco. A mulher abriu a porta pantográfica, empurrou a de madeira e saiu para o corredor.

Quando Rowan fechou a porta, a lâmpada se apagou como se o elevador e sua lâmpada nua nunca houvessem existido. A escuridão pareceu envolvê-la com um leve frescor, recendendo à chuva para além da porta aberta. A noite reluzia lá fora, com seus ruídos tranqüilizadores.

- Diga- me o que aconteceu - insistiu Rowan, em voz baixa, amarga.

Atravessaram o longo salão da frente, com a velha servindo de guia, ligeiramente inclinada para a esquerda acompanhando sua bengala e Rowan, seguindo, paciente, atrás dela.

A luz fraca da vela ia se arrastando devagar pelo salão inteiro, mal chegando a iluminar o teto. Mesmo abandonado, era um lindo salão, com suas lareiras de mármore e os altos espelhos acima dos consolos refulgindo em meio às sombras lúgubres. Todas as janelas iam até o chão. Nas duas extremidades, havia espelhos que se olhavam cobrindo toda a extensão do aposento. Rowan percebeu vagamente que os lustres eram refletidos infinitamente. Sua própria silhueta pequena estava lá, repetida inúmeras vezes até finalmente desaparecer na escuridão.

- É - disse a velha. - É uma ilusão interessante. Darcy Monahan comprou esses espelhos para Katherine. Darcy Monahan tentou afastar Katherine de todo o mal que a cercava. Mas ele morreu nesta casa, de febre amarela. Katherine chorou pelo resto da sua vida. Mas os espelhos continuam até hoje, de um lado e do outro, e acima das lareiras, como Darcy os instalou.

Ela suspirou, mais uma vez descansando as mãos no cabo da bengala.

- Todos nós... de tempos em tempos... estivemos refletidos nesses espelhos. E agora você está se vendo neles, enquadrada na mesma moldura.

Rowan não respondeu. Entristecida, distante, ela ansiava por ver aquele salão iluminado, ver os entalhes nas lareiras de mármore, ver o estado das longas cortinas de seda, ver os florões de gesso no teto altíssimo.

A velha avançou até a mais próxima dentre duas janelas laterais que vinham até o chão.

- Levante-a para mim - disse a velha. - Ela desliza para cima. Você tem força suficiente. -- Ela apanhou a vela que Rowan levava e a colocou numa mesinha junto à lareira.

Rowan estendeu a mão para soltar a trava simples e ergueu a pesada janela de nove vidraças, empurrando-a com facilidade até que ela estivesse quase acima da sua cabeça.

Ali ficava a varanda telada, A noite lá fora, o ar tão puro quanto agradável e cheio da promessa de mais chuva. Rowan sentiu uma onda de gratidão e ficou parada em silêncio, deixando que o ar beijasse seu rosto e suas mãos. Ela abriu caminho quando a velha passou.

A vela, esquecida, lutou com uma corrente de ar erradia e se apagou. Rowan saiu para a escuridão. Mais uma vez, aquele perfume forte veio com a brisa, com sua doçura inundante.

- O jasmim da noite - disse a velha.

Em toda a volta do gradil dessa varanda cresciam trepadeiras, com suas gavinhas dançando com a brisa, folhinhas minúsculas parecendo inúmeras asas de insetos batendo na tela. Flores tremeluziam no escuro, brancas, delicadas, lindas.

-Era aqui que sua mãe ficava sentada, um dia após o outro -disse a velha. - E ali, ali naquelas lajes foi onde sua avó morreu. Morreu ao cair daquele quarto lá de cima que havia sido de Julien. Eu mesma a forcei a sair pela janela. Creio que a teria empurrado com minhas próprias mãos se ela não tivesse pulado. Com minhas próprias mãos, eu havia tentado arranhar seus olhos, como também havia feito com Julien.

Fez uma pausa. Ela estava olhando para a noite lá fora através da tela oxidada, talvez contemplasse as formas altas e indistintas das árvores em contraste com o céu mais claro. A luz fria do poste da rua se estendia iluminando a parte da frente do jardim. Brilhava sobre a grama alta, abandonada. Refletia até mesmo no espaldar alto da cadeira de balanço de vime branco.

A noite parecia terrível e desamparada aos olhos de Rowan. Medonha e lúgubre, esta casa, um lugar apavorante e devorador. Ah, viver e morrer aqui, passar uma vida inteira nesses cômodos tristes, assustadores. Morrer naquela imundície lá em cima. Era execrável. E o horror subia dentro de Rowan como um volume negro e denso, ameaçando impedir sua respiração. Ela não tinha palavras para descrever o que sentia. Não tinha palavras para o ódio que sentia em seu íntimo pela velha.

- Eu matei Antha - disse a velha, de costas para Rowan, com a voz baixa, as palavras confusas. - Eu a matei tanto quanto se a tivesse empurrado. Eu queria que ela morresse. Ela estava balançando Deirdre no berço, e ele estava ali, ao seu lado. Ele olhava para o bebê e fazia o bebê rir! E Antha estava deixando. Ela conversava com ele com sua vozinha fraca, afetada, e lhe dizia que ele era seu único amigo agora que seu marido estava morto, que era seu único amigo no mundo inteiro. Ela me disse que a casa era dela, que podia me pôr para fora se quisesse. Disse isso para mim. E eu disse que arrancaria seus olhos fora se ela não desistisse dele. "Sem olhos, você não o verá. Não deixará que o bebê o veja".

A velha fez uma pausa. Cheia de repugnância e tristeza, Rowan esperou naquele silêncio abafado dos ruídos noturnos, de coisas que se mexiam e cantavam no escuro.

- Você alguma vez viu um olho humano arrancado da órbita, pendurado no rosto de uma mulher por fios ensangüentados? Foi o que fiz com ela. Ela gritava e soluçava como uma criança, mas eu fiz isso. Arranquei seu olho e a persegui escada acima enquanto ela fugia de mim tentando segurar seu precioso olho nas mãos. E você acha que ele procurou me impedir?

- Eu teria tentado - disse Rowan, em voz baixa, amarga. - Por que está me contando essa história?

- Porque você quis saber! E para saber o que aconteceu com uma, você precisa saber o que aconteceu com a que veio antes dela. E você precisa saber, acima de tudo, que foi isso o que fiz para quebrar a corrente.

A mulher se voltou e encarou Rowan, com a fria luz branca refletindo nos seus óculos e os transformando momentaneamente em espelhos cegos.

- Isso eu fiz por você, por mim e por Deus, se é que Deus existe. Eu a fiz sair pela janela.

"Vamos verse você, cega, ainda o vê", gritei. "Vamos verse você o faz aparecer!" E sua mãe... sua mãe berrava no berço naquele exato quarto. Eu deveria ter lhe tirado a vida. Deveria tê-la sufocado naquele momento, quando Antha jazia morta lá fora nas lajes. Como eu queria ter tido a coragem!

Mais uma vez a velha se calou, erguendo ligeiramente o queixo, com os lábios finos mais uma vez se abrindo num sorriso.

- Sinto sua raiva. Sinto sua condenação.

-Dá para ser diferente?

A velha inclinou a cabeça. A luz da rua caía sobre os cabelos brancos, deixando o rosto sombreado.

- Eu não poderia matar uma coisinha tão pequena - disse ela, exausta. - Não consegui me forçar a pegar um travesseiro e tapar com ele o rosto de Deirdre. Lembrei-me das histórias antigas a respeito de bruxas que haviam sacrificado bebês, que haviam derretido a gordura do bebê no caldeirão nos Sabás. Nós da família Mayfair somos bruxos. E era eu quem ia sacrificar essa coisinha tão pequena, como os antigos faziam? Eu estava ali parada, pronta para tirar a vida de um bebê, uma criancinha que chorava, e eu não conseguia me forçar a fazer o que os outros haviam feito. Mais uma vez, o silêncio.

- E é claro que ele sabia que eu não conseguiria fazer aquilo! Ele teria destruído a casa para me impedir se eu tivesse tentado.

Rowan esperou até não conseguir esperar mais, até que o ódio e a raiva dentro dela a estivessem sufocando.

- E mais tarde - perguntou ela, com a voz embargada- o que a senhora fez com a minha mãe para quebrar a corrente, como a senhora disse? Silêncio.

- Fale.

A velha suspirou. Voltou a cabeça muito de leve, olhando através da tela oxidada.

- Desde quando era muito pequena e brincava ali no jardim, eu lhe implorava que lutasse contra ele. Eu lhe dizia para não olhar para ele. Eu lhe ensinei a rejeitá-lo!

E eu havia vencido minha luta, havia superado seus ataques de melancolia, de loucura e de choro, bem como suas revoltantes confissões das batalhas que havia perdido e de como havia permitido que ele entrasse na cama com ela. Eu havia vencido até Cortland a violentar! E então eu fiz o que tinha de fazer para me certificar de que ela renunciaria a você e nunca a procuraria.

Fiz o que tive de fazer para garantir que ela nunca recuperasse forças para fugir, para ir à sua procura, para apanhá-la de volta e trazê-la para o meio da sua loucura, da sua culpa e da sua histeria. Quando se recusavam a lhe dar tratamento com choques num hospício, eu a levava para outro. E eu dizia aos médicos o que tinha de dizer para fazer com que a amarrassem na cama, lhe dessem tranqüilizantes, lhe aplicassem choques. Eu dizia a ela o que tinha de dizer para fazer com que ela berrasse e os convencesse a fazer o que eu queria!

- Não me diga mais nada!

- Por que não? Você queria saber, não queria? E também, quando ela se contorcia debaixo dos lençóis como uma gata no cio, eu mandava que lhe dessem injeções, que lhe dessem...

- Pare!

- ... duas ou três vezes ao dia. Não me importa que ela morra. Podem aplicar. Não quero que ela fique aí deitada, como joguete dele, contorcendo-se no escuro, não quero...

- Pare. Pare com isso.

- Por quê? Até o dia em que morreu, ela foi dele. Sua última e única palavra foi o nome dele. De que valeu tudo isso, a não ser por você, por você, Rowan!

- Pare com isso! - disse Rowan, sibilando, com as mãos erguidas no ar, impotentes, os dedos muito abertos. - Pare  com isso. Eu poderia matá-la pelo que está me dizendo! Como a senhora ousa falar em Deus e na vida, quando fez isso com uma menina, uma menina que criou nesta casa imunda? E fez isso com ela quando ela estava indefesa, doente... Deus que a perdoe! A senhora é a bruxa, uma velha doente e cruel! Como pôde fazer isso com ela? Deus que a perdoe! Deus que a perdoe! Que o diabo a leve!

Um choque sombrio passou pelo rosto da velha. Por um segundo, à luz fraca, ela pareceu perder a expressão, com seus olhos de vidro redondo brilhando como dois botões e sua boca, frouxa, vazia.

Rowan gemia. Suas próprias mãos foram para os lados da cabeça, enfiando-se no cabelo. Seus lábios estavam cerrados com força para reter suas palavras, para reter a dor e a mágoa.

-Que vá arder no inferno pelo que fez! - exclamou, engolindo em parte as palavras, com o corpo curvado por uma raiva que não conseguia refrear.

A velha franziu o cenho. Estendeu o braço, e a bengala caiu da sua mão. Deu um único passo arrastando o pé para a frente. E então sua mão direita fraquejou e mergulhou na direção do braço esquerdo da cadeira de balanço à sua frente. Seu corpo frágil foi  virando lentamente e afundou na cadeira. Quando sua cabeça bateu no espaldar alto, ela parou de se mexer. Sua mão escorregou do braço da cadeira e ficou pendurada ao lado.

Não havia o menor barulho na noite. Só um chiado constante e indefinido como se os insetos e as rãs estivessem cantando, e os carros e motores distantes, onde quer que estivessem, também acompanhassem a melodia. Um trem pareceu passar ali por perto, com seus estalidos rítmicos e velozes abafados pela música. E ecoou o ruído longínquo e surdo de um apito, como um soluço gutural na escuridão.

Rowan estava paralisada, com os braços caídos, inertes e inúteis, a olhar espantada pela malha oxidada da tela para o delicado movimento rendilhado das árvores em contraste com o céu. O canto grave das rãs aos poucos se isolou dos outros sons noturnos e desapareceu. Um carro veio pela rua vazia do outro lado da cerca da frente, com os faróis devassando a folhagem densa e molhada.

Rowan sentiu a luz na sua pele. Viu a luz passar de relance sobre a bengala de madeira, caída no chão da varanda, sobre o sapato preto e fechado de Carlotta, dolorosamente torcido como se seu tornozelo magro estivesse quebrado.

Será que alguém viu através dos arbustos cerrados a mulher morta na cadeira? E a figura loura e alta logo atrás dela?

Rowan estremeceu toda. Esticou-se para trás, com a mão esquerda subindo e agarrando um punhado do seu cabelo para puxá-lo até a dor no couro cabeludo ficar tão forte que ela mal pudesse suportar.

A fúria havia desaparecido. Mesmo o traço mais leve da raiva estava extinto. Rowan estava parada, sozinha e com frio, no escuro, agarrando-se à dor enquanto segurava firme o cabelo com os dedos trêmulos; sentindo frio como se o calor da noite não existisse; sozinha como se aquela escuridão fosse a escuridão abissal na qual não havia restado nenhuma esperança de luz, nenhuma promessa de esperança ou de felicidade. O mundo acabado. O mundo com toda a sua história, toda a sua lógica inútil, todos os seus sonhos e realizações.

Lentamente, ela limpou a boca com as costas da mão, de um jeito desleixado, como uma criança, e ficou ali parada olhando a mão inerte da morta, com os dentes matraqueando à medida que o frio se aprofundava nela, realmente enregelante. Ajoelhou-se, então, e segurou a mão para procurar sentir a pulsação, que sabia não estar lá. Pousou a mão no colo da velha e viu o sangue que lhe escorria do ouvido, pelo pescoço abaixo, e entrava pela gola branca.

- Eu não queria... - sussurrou, mal conseguindo formar as palavras.

Atrás dela, a casa escura bocejava, à espera. Rowan não conseguia suportar a idéia de se voltar. Espantou-se com algum ruído distante, não identificável, que a encheu de medo. Estava com um medo verdadeiro, o pior medo que jamais havia sentido de um lugar em toda a sua vida. E, quando pensava nos cômodos escuros, não conseguia dar meia-volta. Não conseguia voltar a entrar na casa. E a varanda fechada era para ela uma armadilha.

Ergueu-se devagar e olhou lá para fora por cima da grama alta, para além de uma trepadeira emaranhada que se agarrava à tela e que estremecia ali com suas minúsculas folhas pontiagudas. Olhou para as nuvens que se movimentavam mais além das árvores e ouviu um som baixo e terrível que saía dos seus próprios lábios, uma espécie de gemido desesperado, apavorante.

- Eu não queria... - repetiu.

É numa hora dessas que se reza, pensou ela, aflita, em silêncio. E numa hora dessas que se reza para que o nada e ninguém eliminem o pavor do que se fez, dêem um jeito, façam com que nunca se houvesse vindo até aqui.

Ela viu o rosto de Ellie no leito do hospital. Prometa que você nunca, nunca...

- Eu não queria fazer isso! - Sua voz saiu tão baixa que só Deus poderia tê-la ouvido. – Meu Deus, eu não queria. Juro. Eu não queria fazer isso mais uma vez.

Muito ao longe, em algum ponto de um outro universo, existiam outras pessoas. Michael, o inglês, Rita Mae Lonigan e os parentes reunidos à mesa do restaurante. Até mesmo Eugenia, perdida em algum canto daquela casa, dormindo e talvez sonhando. Todos esses outros.

E ela parada ali sozinha. Ela, que havia matado essa velha cruel e perversa. Que a havia matado com tanta crueldade quanto a que a própria velha havia usado para matar. Que Deus a mandasse para o inferno por aquilo tudo. Que fosse arder no inferno por tudo o que disse e fez. Que fosse para o inferno. Mas não era minha intenção, juro...

Mais uma vez, ela passou a mão pela boca. Cruzou os braços sobre os seios, encolheu os ombros e estremeceu. Tinha de se voltar e penetrar na casa sombria. Voltar até a porta e sair dali.

Ah, mas não conseguia fazê-lo. Precisava chamar alguém, contar a alguém, gritar por aquela mulher, Eugenia, e fazer o que devia ser feito, o que era correto. No entanto, a agonia de ter de falar com desconhecidos agora, de ter de pronunciar mentiras oficiais, era mais do que ela poderia suportar.

Deixou a cabeça pender, frouxa, para um lado. Ficou olhando fixamente para o corpo inútil, caído e quebrado dentro do saco do vestido. Os cabelos brancos tão limpos e aparentemente sedosos. Toda aquela vida mesquinha e desgraçada vivida nesta casa, toda a sua vida mal-humorada e infeliz. E assim tudo termina para ela.

Ela fechou os olhos, exausta, erguendo a s mãos até o rosto, e as preces surgiram. Ajude-me porque não sei o que fazer, não sei o que fiz e não sei desfazer o que está feito. E tudo o que a velha disse era verdade, e eu sempre soube, soube que o mal estava dentro de mim e dentro deles, e que foi por isso que Ellie me levou embora. O mal.

Ela viu o fantasma pálido e magro do lado de fora da vidraça em Tiburon. Sentiu as mãos invisíveis que a tocavam, como no avião. O mal.

- E onde é que está você? - Sussurrou ela na escuridão. - Por que eu deveria ter medo de voltar,para dentro desta casa?

Ela ergueu a cabeça. De dentro do longo salão atrás dela, veio outro leve estalido. Como uma tábua velha cedendo sob o peso de alguém. Ou teria sido apenas o som de um caibro? Tão baixo que poderia ter sido um rato no escuro, esgueirando-se pelo assoalho com suas patinhas repugnantes. Mas ela sabia que não era. Com todos os seus instintos, ela sentia ali uma presença, alguém por perto, alguém na escuridão, alguém no salão. Não a velha negra. Não era o arrastar dos seus chinelos.

- Apareça para mim - disse ela, baixinho, com seu último resquício de medo se transformando em raiva. - Apareça agora.

Mais uma vez, ela ouviu o ruído. E foi se voltando lentamente. Silêncio. Olhou uma última vez para a velha sentada. E depois entrou no longo salão da frente. Os espelhos altos e estreitos se encaravam na calma sombria. Os lustres empoeirados atraíam a luz para si mesmos, soturnos na escuridão.

-Não estou com medo de você. Não estou com medo de nada aqui neste lugar. Apareça como apareceu antes.

Os próprios móveis pareceram vivos por um instante carregados de perigo, como se as pequenas cadeiras recurvas a estivessem observando, como se as estantes com suas portas de vidro tivessem ouvido seu vago desafio e quisessem testemunhar qualquer coisa que ocorresse.

- Por que você não vem? - disse ela, sussurrando, mais uma vez. - Está com medo de mim?

- O nada. Um estalido surdo de algum lugar lá em cima.

Com passos silenciosos e uniformes, ela se dirigiu até o corredor, aguçadamente consciente do som da sua própria respiração difícil. Contemplou calada a porta da frente aberta. Era leitosa a luz que vinha da rua; eram escuras e reluzentes as folhas gotejantes dos carvalhos. Ela deu um longo suspiro, quase involuntário, e depois se voltou, afastando-se dessa luz tranqüilizadora, atravessando de volta o corredor, mergulhando nas sombras mais densas para chegar à sala de jantar vazia, onde a esmeralda estava à espera, no porta jóias de veludo.

Ele estava aqui. Tinha de estar.

- Por que você não aparece? - sussurrou, surpresa com a fragilidade da própria voz. As sombras pareceram se mexer, mas nenhuma forma se materializou. Talvez uma brisa ínfima houvesse atingido as cortinas empoeiradas. Ouviu-se um estalo seco no assoalho onde ela pisava.

Ali sobre a mesa estava o porta-jóias. Cheiro de cera pairando no ar. Seus dedos tremiam quando ela abriu a tampa e tocou a própria pedra.

- Vamos, seu demônio - disse ela, erguendo a esmeralda, vagamente impressionada pelo seu peso, apesar da sua aflição. Ela a ergueu cada vez mais até que a luz atingisse a pedra e a pendurou no pescoço, manejando com facilidade o fecho pequeno e forte na sua nuca.

Depois, num momento estranhíssimo, ela se viu fazendo isso. Viu a si mesma, Rowan Mayfair, arrancada do passado, que havia sido tão distante de tudo isso que agora parecia ter perdido os detalhes, parada como um caminhante perdido nesta casa escura e estranhamente familiar.

E era familiar, ou não era? Essas portas altas e afiladas eram suas conhecidas. Parecia que seus olhos já haviam passeado milhares de vezes por esses murais. Ellie havia caminhado por aqui. Sua mãe havia vivido e morrido aqui. E como lhe parecia pertencer irrecuperavelmente a um outro mundo aquela casa de sequóia e vidro lá na distante Califórnia. Por que ela havia esperado tanto para voltar?

Ela havia entrado por um desvio na trajetória sombria e reluzente do seu destino. E o que eram todas as suas vitórias passadas em comparação com o confronto com esse mistério? E pensar que esse mistério com todo o seu esplendor sinistro lhe pertencia por direito. Ele havia esperado todos esses anos para que ela viesse reivindicá-lo; e agora ela, afinal, estava aqui.

A esmeralda pesava sobre a seda macia da sua blusa. Seus dedos pareciam incapazes de resistir a ela, pairando sobre ela como se fosse um ímã.

- É isso o que você quer? - perguntou ela, baixinho.

Ali atrás no corredor, um ruído inconfundível lhe deu resposta. A casa inteira ressoou com ele, como a caixa de um grande piano ressoa com o menor toque a uma corda que seja. E logo em seguida, ele se repetiu. Um ruído suave porém definido. Havia alguém ali.

Seu coração batia quase com dor. Ela estava parada, sem saber o que fazer, com a cabeça baixa e, como num sonho, ela se voltou e ergueu os olhos. Distinguiu a poucos passos uma figura sombria e indistinta: o que parecia ser um homem alto.

Todos os sons mais ínfimos da noite pareceram desaparecer, deixando-a num vazio enquanto ela se esforçava para discernir aquela criatura da escuridão espessa em que estava enredada. Rowan estaria se iludindo ou aquilo não seria o esboço de um rosto?

Pareceu-lhe que um par de olhos escuros a observava, que ela mal vislumbrava o contorno de uma cabeça. Talvez até estivesse vendo a curva branca de um colarinho duro.

-Não me venha com brincadeiras - disse ela, baixinho. Mais uma vez, a casa inteira reverberou com seus estalidos e suspiros aleatórios. E então, de uma forma assombrosa, a figura se iluminou, confirmou sua presença mágica e, no entanto, no momento em que Rowan arfava de surpresa, ela começou a se desfazer.

- Não, não vá! - implorou Rowan, de repente duvidando de ter visto alguma coisa. E, enquanto não tirava os olhos daquela confusão de luz e sombra, numa procura desesperada, uma forma mais escura surgiu subitamente em contraste com a luz fraca e opaca da porta distante. Aproximava-se cada vez mais em meio aos turbilhões de poeira, a passos pesados, nítidos. Sem a menor possibilidade de engano, ela viu os ombros poderosos, os cabelos negros, crespos.

- Rowan? É você quem está aí, Rowan?

Sólido, conhecido, humano.

- Ah, Michael - exclamou Rowan, com a voz baixa, embargada. Ela foi até os braços que a esperavam. - Michael, graças a Deus.

Bem, pensava ela consigo mesma, em silêncio, sentada debruçada sozinha à mesa de jantar, suposta vítima dos horrores desta casa sinistra, estou me tornando uma dessas mulheres que simplesmente se jogam nos braços de um homem e deixam que ele se encarregue de tudo.

No entanto, era bonito ver Michael em ação. Ele fez as ligações para Ryan Mayfair, para a polícia e para a Lonigan and Sons. Ele falava a mesma língua dos policiais à paisana que vinham subindo pela escada. Se alguém percebeu suas luvas pretas, ninguém disse nada, talvez porque ele estivesse falando rápido demais, dando explicações e facilitando as coisas para apressar as conclusões inevitáveis.

- Ora, ela acabou de chegar aqui. Não faz a menor idéia de quem seja esse cara lá no sótão.

A velha não lhe contou. E ela está em estado de choque agora. A velha simplesmente morreu ali fora. Agora, esse corpo no sótão já está lá há muito tempo; e o que eu peço a vocês é que não mexam em mais nada no quarto, se for possível tirar apenas os restos mortais; e ela quer saber quem era esse homem tanto quanto vocês querem saber.

E olhe, Ryan Mayfair está chegando. Ryan, Rowan está ali dentro. Está péssima. Antes de morrer, Carlotta lhe mostrou um corpo lá em cima.

- Um corpo. Você está falando sério?

- Precisam removê-lo. Será que você ou Pierce podiam ir até lá, para se certificar de que eles não mexam em todos aqueles registros antigos e todas aquelas coisas?

Rowan está ali na sala. Está exausta. Ela conversa com vocês amanhã.

Pierce aceitou imediatamente a missão. Tropel pela velha escada acima. Michael e Ryan conversavam com a voz contida. Cheiro de fumaça de cigarro no corredor. Ryan entrou na sala de jantar e falou, baixinho, com Rowan. - Amanhã, ligo para você no hotel. Tem certeza de que não quer vir comigo e com Pierce para ficar em Metairie?

- Tenho de ficar por perto. Quero vir aqui amanhã de manhã. - Seu amigo da Califórnia é simpático; é daqui. - E. Gentileza sua.

Mesmo com a velha Eugenia, Michael agiu como o protetor, pondo o braço no seu ombro enquanto a acompanhava para ver "a velha Miss Carl" antes que Lonigan tirasse o corpo da cadeira de balanço. Pobre Eugenia, que chorava sem emitir nenhum som.

- Querida, você quer que eu chame alguém para vir buscá-la? Você não vai querer passar a noite na casa sozinha, vai? E só dizer o que quer que eu faça. Posso conseguir alguém para vir para cá passar a noite com você.

Com Lonigan, seu velho amigo, ele logo se entendeu. Perdeu tudo o que era da Califórnia na sua voz para falar igualzinho a Jerry e a Rita, que acompanhava o marido no rabecão. Velhos amigos, Jerry bebia cerveja com o pai de Michael na frente de casa trinta e cinco anos atrás; e Rita e Michael saíam em grupos de quatro para namorar nos tempos de Elvis Presley. Rita lhe deu um abraço.

- Michael Curry.

Chegando até a frente da casa, Rowan os havia visto iluminados pelas luzes intermitentes. Pierce estava falando ao telefone na biblioteca. Ela ainda nem havia visto a biblioteca. Agora uma luz opaca inundava o aposento, iluminando o couro antigo e os tapetes chineses.

-... pois bem, Mike - dizia Lonigan -, você precisa falar com a Dra. Mayfair que essa mulher estava com noventa anos de idade, que só havia uma coisa que a mantinha viva, Deirdre. O que eu quero dizer é que era apenas uma questão de tempo depois que Deirdre se foi, e que ela não deve se culpar por nada que possa ter acontecido aqui nesta noite. O que eu estou dizendo, Mike, é que ela é médica, mas não faz milagres. Não, não muitos, pensou Rowan.

- Mike Curry? Você não é o filho de Tim Curry? - perguntou o policial uniformizado. – Me disseram que era você. Você sabia que meu pai e seu pai eram primos em terceiro grau? Pois eram. Meu pai conhecia bem o seu. Costumavam beber cerveja juntos no Corona's.

Afinal, o cadáver do sótão, embalado e etiquetado, foi levado embora; e o pequeno corpo ressequido da velha foi colocado na maca branca acolchoada como se ainda estivesse vivo, embora estivesse apenas sendo transportado para o rabecão, talvez para jazer na mesma mesa de embalsamamento onde Deirdre estivera um dia antes.

Nenhum velório, nem cerimônia fúnebre, nada, informou Ryan. Isso ela mesma havia dito a ele um dia antes. Também havia feito a mesma recomendação a Lonigan, disse o homem.

- Haverá uma missa em sua memória daqui a uma semana - disse Ryan. - Você ainda estará por aqui?

Para onde eu poderia ir? Por quê? Descobri meu lugar. Nesta casa. Sou uma bruxa. Sou uma assassina. E dessa vez agi deliberadamente.

-... E sei como tudo isso foi terrível para você.

Perambulando de volta à sala de jantar, Rowan ouviu o jovem Pierce na porta da biblioteca.

- Agora, ela não está pensando em passar a noite nesta casa, está?

- Não, nós vamos voltar para o hotel - disse Michael.

- É só que ela não devia ficar aqui sozinha. Esta casa pode ser muito perturbadora. Uma casa verdadeiramente perturbadora. Você acharia que eu sou louco se eu lhe dissesse que agorinha mesmo quando entrei na biblioteca havia um retrato de alguém acima da lareira e que agora o que há ali é um espelho?

- Pierce - disse Ryan, irado.

- Desculpe, papai, mas...

- Agora não, meu filho, por favor.

- Acredito em você - disse Michael, com um risinho. - Vou ficar com ela.

- Rowan? - Ryan a abordava mais uma vez com cuidado. Ela, a órfã, a vítima, quando na realidade era a assassina. Agatha Christie teria sabido. Mas nesse caso eu teria de ter usado um castiçal.

- Sim, Ryan.

Ele se sentou à mesa, procurando não tocar a superfície empoeirada com a manga do seu terno de corte impecável. O terno do enterro. A luz atingiu seu rosto bem-educado, seus frios olhos azuis, de um azul muito mais claro do que o de Michael.

- Você sabe que esta casa é sua? - Ela me disse.

O jovem Pierce estava parado, no portal, em atitude de respeito. - Bem, há muito mais na história. - Dívidas, hipotecas?

- Não - disse ele, abanando a cabeça. - Acho que você nunca vai precisar se preocupar com esse tipo de coisa enquanto viver. Mas a questão é que, quando você quiser, pode vir até o centro para examinar tudo.

- Meu Deus - exclamou Pierce -, essa aí é a esmeralda? - Ele havia vislumbrado o porta-jóias nas sombras do outro lado da mesa. - E com toda essa gente passando por aqui!

Seu pai lhe lançou um olhar paciente, contido.

- Ninguém vai roubar essa esmeralda, meu filho - disse ele com um suspiro. Olhou, então, ansioso para Rowan. Apanhou o porta jóias e olhou para ele como se não soubesse ao certo o que devia fazer.

- O que há de errado? - perguntou Rowan. - Qual é o problema?

- Ela lhe falou sobre o colar?

- E alguém algum dia falou sobre ele com você? - perguntou Rowan, sem nenhum tom de desafio.

- Uma história e tanto - disse ele, com um sorriso sutil, forçado. Ele pôs o porta-jóias diante dela, dando-lhe um tapinha. Ela se levantou.

- Já sabem quem era o homem no sótão? - perguntou ela.

- Logo saberão. Havia um passaporte e outros documentos no cadáver, ou no que restou dele.

- Michael está aonde?

- Aqui, querida, bem aqui. Olhe, você está querendo ficar sozinha? - No escuro, suas mãos enluvadas estavam quase invisíveis.

- Estou cansada, podemos voltar para o hotel? Ryan, posso ligar para você amanhã?

- Quando você quiser, Rowan.

A porta, Ryan hesitou um pouco. Olhou de relance para Michael. Michael fez menção de sair. Rowan estendeu a mão e conseguiu agarrar a dele, espantando-se com o couro.

- Rowan, ouça o que vou lhe dizer - disse Ryan. - Não sei o que tia Carl acabou lhe contando. Não sei como aquele corpo foi aparecer lá em cima, ou o que isso significa; nem mesmo sei o que ela lhe disse a respeito do legado. Mas você precisa limpar essa velharia, tem de queimar aquele lixo todo lá de cima, arrumar gente para vir aqui, Michael pode ajudá-la nisso, para jogar as coisas fora, todos aqueles livros velhos, aqueles frascos. Você precisa arejar a casa e fazer uma avaliação. Você não precisa examinar a casa inteira, inspecionando cada partícula de poeira, de sujeira, de feiúra. Ela é uma herança, mas não é uma maldição. Pelo menos, não precisa ser.

- Eu sei - disse ela.

Barulho à porta da frente.

Os dois rapazes negros que vieram apanhar vovó Eugenia estavam agora parados no corredor. Michael subiu para ajudá-la. Ryan e depois Pierce se abaixaram para beijar o rosto de Rowan. Pareceu-lhe de repente que era igual a quando beijavam um defunto. Percebeu então que era exatamente o contrário. Aqui eles beijavam os mortos da mesma forma que beijavam os vivos.

O calor das mãos e o sorriso de despedida de Pierce que lampejou no escuro. Amanhã, telefone, almoço, conversa e tudo o mais.

Ruído do elevador na sua descida infernal. Era verdade que no cinema as pessoas iam para o inferno de elevador.

- E você tem sua chave, Eugenia. Você pode vir amanhã, pode entrar como sempre entrou, se precisar de alguma coisa. Agora, querida, você precisa de algum dinheiro?

- Recebi meu pagamento, Sr. Mike. Obrigada, Sr. Mike.

-Muito obrigado, Sr. Curry - disse o rapaz negro. Voz educada, gentil. O policial mais velho voltou. Ele devia estar no saguão de entrada porque ela mal o ouvia.

- É, Townsend.

-... passaporte, carteira, tudo bem ali na camisa.

Portas fechadas. Escuridão. Silêncio.

Michael, vindo pelo corredor.

E agora somos só nós dois, e a casa está vazia. Ele parou no portal da sala de jantar olhando para ela.

Silêncio. Ele tirou um cigarro do bolso, enfiando o maço de volta de qualquer jeito. Não podia ser fácil com aquelas luvas, mas elas não pareciam atrapalhá-lo.

- E o que você acha de sairmos de uma vez daqui? - perguntou ele. Bateu o cigarro no mostrador do relógio. Explosão de um fósforo, e o brilho da luz nos olhos azuis quando ele olhou para cima, observando novamente a sala de jantar, os murais. Existem olhos azuis e olhos azuis. Será que o seu cabelo poderia ter crescido tanto em tão pouco tempo? Ou seria apenas a umidade do ar quente que o tornava tão denso e crespo?

O silêncio ecoava nos seus ouvidos. Todos haviam ido embora mesmo.

E a casa inteira estava ali vazia e vulnerável ao toque de Rowan, com suas inúmeras gavetas, cômodas, armários, potes e caixas. No entanto, era-lhe repugnante a idéia de tocar em qualquer coisa. Nada era dela. Tudo aquilo pertencia à velha, úmido, estragado e horrível, como a velha. E Rowan não tinha nenhum ânimo de se mexer, nenhum ânimo para subir novamente as escadas, para ver absolutamente nada.

- O nome dele era Townsend? - perguntou.

- É, Stuart Townsend.

- Você faz alguma idéia de quem ele podia ser?

Michael pensou um pouco, limpou um cisco de fumo do lábio, mudou o peso de uma perna para a outra. Belo corpo musculoso, pensou ela. Decididamente pornográfico.

- Sei quem ele era - disse Michael, com um suspiro. - Aaron Lightner, está lembrada dele?

Ele sabe tudo a respeito de Townsend.

- Do que é que você está falando?

- Você quer conversar aqui? - Seus olhos passearam mais uma vez pelo teto, parecendo antenas. - Estou com o carro de Aaron aí fora. Podemos voltar para o hotel ou ir a algum lugar no centro.

Seus olhos se detinham carinhosos no florão de gesso, no lustre. Havia algo de furtivo, de culpado, no seu jeito de admirar a casa mesmo em meio a uma crise dessas.

Mas ele não precisava esconder isso dela.

- E esta a casa, não é? A casa da qual você me falou na Califórnia?

Os olhos se voltaram para ela. Os dois se encararam.

- É, é esta a casa. - Ele deu um sorrisinho triste e abanou a cabeça. - É esta mesmo. – Ele bateu a cinza na palma da mão, formando uma concha com ela, e foi devagar da mesa na direção da lareira. O movimento pesado dos quadris, do seu grosso cinto de couro, tudo perturbadoramente erótico. Ela o observou enquanto ele jogava as cinzas na lareira vazia, as pequenas cinzas invisíveis que possivelmente não fariam nenhuma diferença se lhes fosse permitido cair no assoalho empoeirado.

- O que você quis dizer com o Sr. Lightner saber quem aquele homem era?

Ele pareceu constrangido. Extremamente sexy e muito constrangido. Deu mais uma tragada no cigarro, e olhou em volta, refletindo.

- Lightner pertence a uma organização - disse, afinal. Procurou no bolso da camisa e tirou um cartãozinho, que pôs sobre a mesa. - Eles a consideram uma ordem. Como uma ordem religiosa, mas ela não é religiosa. O nome é Talamasca.

- Amantes da magia negra?

- Não.

- Foi o que a velha me disse.

- Pois foi uma mentira. Eles acreditam na magia negra, mas não são nem amantes nem praticantes.

- Ela me disse um monte de mentiras. Havia verdade no que ela dizia, também, mas o tempo todo a verdade estava emaranhada no ódio, na perversidade, na virulência e em mentiras horrendas, horrendas. - Ela estremeceu. - Estou com calor e estou com frio - disse ela. - Vi um desses cartões antes. Ele me deu um na Califórnia.

Ele lhe contou isso? Eu o conheci na Califórnia.

- Junto ao túmulo de Ellie - acrescentou Michael, embaraçado.

- Bem, como isso é possível? Que você seja amigo dele, e que ele saiba toda a história do homem no sótão? Estou cansada, Michael. Tenho a impressão de que poderia começar a gritar sem conseguir nunca mais parar. Tenho a sensação de que, se você não começar a me contar... - Ela se interrompeu, olhando apática para a mesa. - Não sei o que estou dizendo.

- Esse homem, esse Townsend - disse Michael, apreensivo - ele era membro da Ordem. Ele veio para cá em 1929, para tentar entrar em contato com a família Mayfair.

- Por quê?

- Eles vêm observando essa família há trezentos anos, compilando sua história. Vai ser difícil para você compreender tudo isso...

- E só por coincidência esse homem é seu amigo?

-Não. Não se precipite. Nada disso foi coincidência. Eu o conheci aqui na frente desta casa na noite em que cheguei aqui. Eu o vi em San Francisco, também. Você o viu, você se lembra, na noite em que me apanhou para ir até sua casa, mas nós dois pensamos que ele fosse um repórter. Eu nunca havia falado com ele e, antes daquela noite, eu nunca o havia visto.

- Eu me lembro.

- E então, ele estava ali fora. Eu estava bêbado. Bebi no avião. Você se lembra de que eu prometi que não me embriagaria, mas foi o que eu fiz. Cheguei aqui e vi esse... esse outro homem no jardim. Só que não era um homem de verdade. Pensei que fosse, e depois percebi que não era. Eu costumava ver esse cara quando eu era pequeno. Eu o via todas as vezes que passei por esta casa.

Já lhe falei dele, você se lembra? Pois bem, o que eu preciso explicar de alguma forma é que... ele não é real.

- Eu sei - disse ela. - Eu mesma o vi. - Uma sensação eletrizante passou por ela. - Continue, por favor. Vou lhe contar tudo quando você terminar.

Só que ele não conseguia prosseguir. Olhava, ansioso, para ela. Estava frustrado, preocupado. Encostado no consolo da lareira, olhava para ela, com a luz do corredor iluminando parte do seu rosto, e os olhos dardejando pela mesa até voltarem finalmente a ela. Uma ternura imensa brotava em Rowan ao ver em Michael esse sentido de proteção, ao ouvir na sua voz a delicadeza e o medo de magoá-la.

- Conte-me o resto - disse ela. - Olhe, você não está entendendo? Tenho coisas horríveis a lhe contar, porque você é a única pessoa com quem posso falar. Por isso, conte-me logo sua história porque, com isso, estará facilitando as coisas para mim. Porque eu nem sabia como ia lhe falar de ter visto o tal homem. Eu o vi depois que você foi embora, no deque lá em Tiburon. Eu o vi no momento exato em que minha mãe morria em Nova Orleans. E eu nem sabia que ela estava morrendo. Eu não sabia absolutamente nada a respeito dela.

Ele fez que sim, com a cabeça, mas ainda se sentia confuso, sem saída.

- Se eu não puder confiar em você, para o que der e vier, não quero falar com mais ninguém. O que você está me escondendo? Basta que fale. Diga-me por que aquele homem, Aaron Lightner, foi gentil comigo hoje à tarde no enterro quando você não pôde vir? Quero saber quem ele é e como você o conheceu. Tenho direito a essa pergunta?

- Meu amor, você pode confiar em mim. Não se zangue comigo, por favor.

- Ora, não se preocupe. É preciso mais do que uma briga de namorados para eu fazer explodir a carótida de uma pessoa.

- Rowan, não foi isso...

-Eu sei, eu sei! -disse ela, sussurrando. -Mas você sabe que eu matei aquela velha.

Ele fez um pequeno gesto de negação e abanou a cabeça.

- Você sabe que fui eu. - Ela olhou para ele. - Você é a única pessoa que sabe. - De repente, ocorreu-lhe uma terrível suspeita. - Você não contou a Lightner as coisas que eu lhe disse? Sobre o que eu posso fazer?

- Não - respondeu ele, sacudindo a cabeça com veemência, implorando-lhe em silêncio que acreditasse nele. - Eu não disse nada, mas ele sabe, Rowan.

- Sabe o quê?

Ele não respondeu. Encolheu os ombros de leve, apanhou mais um cigarro e ficou ali parado, com o olhar perdido, aparentemente refletindo, enquanto pegava a carteirinha de fósforos e, sem sequer perceber, fazia aquele maravilhoso truque de dobrar um fósforo, fechar a carteirinha, curvar o fósforo, riscá-lo e levar a chama ao cigarro, usando apenas uma das mãos.

- Não sei por onde começar - disse ele. - Talvez pelo início. - Ele soltou a fumaça, voltando a encostar o cotovelo na lareira. - Amo você. Amo mesmo. Não sei como tudo isso foi acontecer. Tenho um monte de suspeitas e estou apavorado. Mas amo você. Se isso foi predeterminado, quer dizer, se foi o destino, bem, então, sou um homem perdido. Realmente perdido, porque não posso aceitar essa história de destino. Mas não vou renunciar ao amor. Não me importa o que aconteça. Você ouviu o que eu disse?

Ela fez que sim.

- Você tem de me falar tudo sobre essas outras pessoas - disse ela, mas também disse sem palavras, Você sabe o quanto eu o apto e o desejo?

Ela se virou de lado na cadeira para olhar melhor para ele. Esfregou as costas dos braços, novamente, e descansou o salto do sapato na travessa da cadeira. Erguendo os olhos até ele, ela viu seus quadris de novo, a inclinação do cinto, a camisa apertada no peito. Não conseguia parar de desejá-lo fisicamente. Melhor acabar logo com isso, não era? Ah, é claro, vamos comer esse sorvete delicioso inteirinho só para nos livrarmos dele. E assim você pode me dizer do que está falando com tudo isso, e eu posso lhe falar também. Do homem no avião. E da pergunta da velha. Foi melhor do que com um mortal?

Seu rosto se anuviou ao olhar para ela. Ele a amava. Amava, sim. Esse homem, simplesmente o melhor homem que ela jamais havia conhecido, tocado ou desejado. Como teria sido tudo isso sem ele?

- Michael, fale comigo sem rodeios, por favor.

- Claro, Rowan. Mas não vá me dar uma de louca. Ouça com atenção o que eu tenho a dizer.

Ele pegou uma das cadeiras da sala de jantar que estavam encostadas na parede, virou-a de modo que o encosto ficasse de frente para ela e montou a cadeira em estilo vaqueiro, cruzando os braços sobre o encosto, enquanto olhava para ela. Isso também era pornográfico.

- Os dois últimos dias, estive enfurnado num lugar a uns cem quilômetros daqui, lendo a história da família Mayfair compilada por esse pessoal. - O Talamasca.

- Isso. Agora, deixe-me lhe explicar. Há uns trezentos anos, viveu um homem chamado Petyr van Abel. O pai dele havia sido um cirurgião famoso na Universidade de Leiden, na Holanda. Existem ainda livros de autoria desse médico, Jan van Abel.

- Esse eu conheço - disse ela. - Ele era anatomista. Ele sorriu e abanou a cabeça. - Pois é, querida, ele é seu antepassado. Você se parece com o filho dele. Pelo menos é o que Aaron diz. Ora, quando Jan van Abel morreu, Petyr ficou órfão e se tornou membro do Talamasca. Ele conseguia ler a mente das pessoas. Ele via fantasmas. Era o que outras pessoas poderiam ter considerado um bruxo, mas o Talamasca lhe deu abrigo. Ele acabou trabalhando para eles, e parte do seu trabalho consistia em salvar pessoas acusadas de bruxaria em outros países. E, se essas pessoas tivessem dons reais, sabe, os dons que você e eu temos e que Petyr van Abel tinha, ele ajudava essas pessoas a chegarem à casa-matriz e do Talamasca em Amsterdã.

Ora, esse Petyr van Abel foi à Escócia procurar interferir no julgamento de uma bruxa chamada Suzanne Mayfair. Só que ele chegou tarde demais, e tudo o que pôde fazer, que acabou se revelando ser bastante, foi tirar sua filha Deborah da cidadezinha, onde ela poderia acabar sendo também queimada, e trazê-la para a Holanda.

Antes, porém, de fazer isso, ele viu esse homem, esse espírito. Percebeu também que a menina Deborah o viu. E Petyr levantou a hipótese de que Deborah havia feito com que a criatura aparecesse, o que se revelou ser verdade.

Deborah não ficou na Ordem. Ela acabou seduzindo Petyr e teve dele uma filha chamada Charlotte. Charlotte foi para o Novo Mundo, e foi ela quem fundou a família Mayfair. No entanto, quando Deborah morreu na França, condenada por bruxaria, o homem de cabelos castanhos, aquele mesmo espírito, foi até Charlotte. Da mesma forma que a esmeralda que está bem aí no porta-jóias. Ela passou, junto com o espírito, para Charlotte.

Todos os Mayfair desde então são descendentes de Charlotte. E a cada geração desses descendentes até os nossos tempos, pelo menos uma mulher herdou os poderes de Suzanne e de Deborah, que incluem, entre outras coisas, a capacidade de ver esse homem de olhos castanhos, esse espírito. E elas todas são o que o Talamasca chama de Bruxas Mayfair.

Ela emitiu um barulhinho, meio de surpresa, meio de nervosismo divertido. Ajeitou-se na cadeira e ficou olhando as ínfimas mudanças no seu rosto enquanto ele organizava tudo o que queria dizer. Depois, decidiu não dizer nada.

- O Talamasca -- disse ele, escolhendo as palavras com cuidado. - Eles são estudiosos, historiadores. Eles documentaram milhares de ocorrências de aparecimento desse homem de cabelos castanhos dentro e por perto desta casa. Há trezentos anos em Saint-Domingue, quando Petyr van Abel foi até lá para conversar com sua filha Charlotte, esse espírito o enlouqueceu. E acabou por matá-lo.

Ele deu mais uma tragada no cigarro, com os olhos passeando pela sala novamente, mas dessa vez sem ver a sala, mas vendo alguma outra coisa, e depois voltando a ela.

- Pois bem, como lhe expliquei antes, eu vejo esse homem desde que eu tinha uns seis anos de idade. Eu o vi todas as vezes que passei por esta casa. E ao contrário das inúmeras pessoas entrevistadas pelo Talamasca ao longo dos anos, eu também o vi em outros lugares. Mas a questão é que... no outro dia quando voltei aqui à noite, depois de tantos anos, vi o homem de novo. E quando contei a Aaron o que vi, quando lhe contei que via esse homem desde que era desse tamanho, e quando lhe disse que você me havia salvado do mar, bem, aí ele resolveu me mostrar o arquivo do Talamasca sobre as Bruxas Mayfair.

- Ele não sabia que era eu quem o havia içado do mar? Michael abanou a cabeça.

- Ele veio a San Francisco para me ver por causa das minhas mãos. É esse o campo de ação deles, por assim dizer, pessoas que têm poderes especiais. Era uma viagem de rotina. Ele estava vindo me oferecer ajuda, talvez da mesma forma que Petyr van Abel foi tentar interferir na execução de Suzanne Mayfair. Foi aí que ele a viu diante da minha casa. Viu que você veio me apanhar, e sabe que ele imaginou que você me havia contratado para vir até aqui? Pensou que você havia contratado um paranormal para voltar aqui e investigar seus antecedentes.

Michael deu uma última tragada no cigarro e o atirou na lareira.

- Bem, pelo menos por algum tempo, foi isso o que ele pensou. Até eu lhe dizer o motivo real pelo qual você veio me ver; como você nunca havia visto esta casa, nem mesmo em fotografia. Pois aí está, você me entende?

- E agora o que você precisa fazer é ler o Arquivo sobre as Bruxas Mayfair. Mas ainda há outros aspectos... no que me diz respeito. Quer dizer, os outros aspectos têm mais a ver comigo.

- As visões.

- Exatamente. - Ele sorriu, com uma expressão afetuosa, linda. - Exatamente! Porque você se lembra de eu lhe dizer que vi uma mulher e que havia uma jóia...

- E você está dizendo que é essa esmeralda.

-Não sei, Rowan, não sei. E de repente sei. Sei com a mesma certeza que tenho de estar sentado aqui que foi Deborah Mayfair que eu vi lá do outro lado, Deborah, e que ela estava usando a esmeralda no pescoço, e que eu fui enviado aqui para fazer alguma coisa.

- Para lutar com esse espírito?

Ele abanou a cabeça.

- É mais complicado do que isso. É por isso que você precisa ler o arquivo. E Rowan, você precisa ler. Você não pode se ofender com a existência de um arquivo desses. Você tem de lê-lo.

- E qual é o interesse do Talamasca nisso tudo? - perguntou ela.

- Nenhum - respondeu ele. - Saber. É, eles gostariam de saber. Eles gostariam de compreender. É como se eles fossem investigadores paranormais. - E suponho que sejam podres de ricos.

- Ah, são - disse ele, concordando com a cabeça. - Podres, cheios da nota.

- Você está brincando.

- Não. Eles têm dinheiro como você tem. Têm dinheiro como a igreja católica. Como o Vaticano. Olhe, isso não tem nada a ver com a possibilidade de eles quererem alguma coisa de você...

- Está bem. Eu acredito. É só que você é ingênuo, Michael. É mesmo. Você é realmente ingênuo.

- O que a faz dizer isso, Rowan! Por Deus, onde você foi arrumar a idéia de que eu sou ingênuo? Você já disse isso antes, e é um verdadeiro absurdo!

- Michael, você é. É mesmo. Está bem, diga-me a verdade, você ainda acredita que aquelas visões eram boas? Que as pessoas que lhe apareceram eram seres superiores?

- Acredito - respondeu ele.

- Essa mulher de cabelos negros, condenada por bruxaria, como você disse, com a jóia, era boa... a mesma que o derrubou da rocha para dentro do oceano Pacífico, onde...

- Rowan, ninguém pode provar uma cadeia de acontecimentos controlados desse jeito! Tudo o que sei...

- Você viu esse espírito quando estava com seis anos de idade? Pois vou lhe dizer uma coisa, Michael, esse homem não é bom. E você o viu aqui há duas noites? E essa mulher de cabelos negros também não é boa.

- Rowan, é cedo demais para que você faça essas interpretações.

- Está bem. Concordo. Não quero deixá- lo furioso. Não quero que se zangue nem por um segundo. Estou tão feliz por você estar aqui. Você não imagina como estou feliz com a sua presença aqui nesta casa, comigo aqui, feliz por você entender tudo isso e por você... ah, é uma coisa horrível de dizer, mas estou feliz por não estar nisso sozinha. E quero você aqui, essa é a pura verdade.

- Eu sei, eu compreendo. O que importa é que estou aqui e que você não está sozinha.

- Mas não vá você também fazer suas interpretações. Existe aqui alguma coisa terrivelmente perversa, algo que eu posso sentir como sinto o mal em mim. Não, não diga nada. Só me escute. Há algo tão maligno aqui que poderia transbordar e machucar muita gente. Mais do que jamais machucou no passado. E você parece um cavaleiro idealista que acabou de sair do castelo pela ponte levadiça!

- Rowan, isso não é verdade.

- Tudo bem, tudo bem. Eles não o afogaram lá na Califórnia. Eles não fizeram nada disso.

E o fato de você conhecer todas essas pessoas, Rita Mae e Jerry Lonigan, isso não tem nenhuma relação com nada.

- Tem relação, sim, mas a questão é saber que tipo de relação. É essencial não chegar a conclusões precipitadas.

Ela se virou de novo para a mesa, descansando os cotovelos nela e segurando a cabeça nas mãos. Não fazia idéia de que horas seriam. A noite parecia mais quieta do que antes. De vez em quando alguma coisa na casa estalava ou rangia. Mas eles estavam a sós. Totalmente a sós.

- Sabe - disse ela. - Eu penso naquela velha, e é como se caísse sobre mim uma nuvem de perversidade. Estar com ela foi como caminhar com o mal. E ela achava que pertencia ao bem. Ela achava que estava combatendo o demônio. Tudo está emaranhado, mas de um modo ainda mais obscuro do que esse.

- Ela matou Townsend - disse Michael.

- Você tem certeza disso? - perguntou Rowan, voltando-se novamente para ele.

- Pus minhas mãos nele. Senti nos ossos. Foi ela. Ela o amarrou naquele tapete. Pode ser que ele estivesse dopado na hora, não sei. Mas ele morreu no tapete. Disso tenho certeza. Ele abriu um buraco no tapete com os dentes.

- Meu Deus! - Ela fechou os olhos, com a imaginação compreendendo as implicações com um excesso de nitidez.

- E havia gente na casa o tempo todo, mas ninguém o ouvia. Não sabiam que ele estava morrendo lá em cima. Ou se sabiam, não fizeram nada a respeito.

- Por que razão ela faria uma coisa dessas?

- Porque ela nos detestava. Quer dizer, ela detestava o Talamasca. - Você disse "nos detestava".

- Foi um lapso, mas um lapso muito esclarecedor. Sinto - me como se pertencesse à Ordem.

Eles me procuraram e me convidaram para entrar, mais ou menos. Eles confiaram em mim. Mas talvez o que eu quisesse dizer era que ela detestava qualquer um de fora que soubesse alguma coisa. Ainda há perigos para as pessoas de fora. Aaron corre perigo. Você me perguntou o que o Talamasca leva nisso tudo. Bem, ele corre o risco de perder mais um membro.

- Explique melhor.

- A caminho de casa, voltando do enterro para o interior para me apanhar, Aaron viu um homem na estrada e desviou dele, capotou duas vezes e mal havia saído do carro quando este explodiu. Foi aquele espírito. Sei que foi. Aaron também acha que foi. Imagino que, qualquer que seja esse plano maior, esse emaranhado, Aaron já cumpriu sua função.

- Ele está machucado?

Michael abanou a cabeça.

- Ele sabia o que estava acontecendo, no instante em que tudo estava se passando. Mas não podia correr o risco. Imagine se não fosse uma assombração e ele tivesse atropelado uma pessoa de verdade. Ele simplesmente não podia correr esse risco. Ele também estava usando o cinto. Acho que bateu forte com a cabeça.

- Levaram-no a um hospital?

- Sim, doutora. Ele está bem. Foi por isso que demorei tanto para chegar aqui. Ele não queria que eu viesse. Queria que você fosse para lá, para o campo, e lesse o arquivo lá. Mas eu vim de qualquer jeito. Eu sabia que essa coisa não ia me matar. Eu ainda não cumpri minha missão.

- O objetivo das visões.

- Não. Ele tem seu objetivo. Elas têm o delas. E os dois não se completam. Um trabalha contra o outro.

- O que acontece se você fugir para o Tibete?

- Quer vir junto?

- Se eu for com você, você não estará fugindo. Mas, sério, o que aconteceria se você realmente fugisse?

- Não sei. Não pretendo fugir; por isso, não dá para calcular. O pessoal das visões quer que eu o combata, que eu lute contra ele e essa maquinação que ele vem preparando o tempo todo. Disso estou convencido.

- Querem que você quebre a corrente - disse ela. - Foi isso o que a velha falou. Ela me disse para quebrar a corrente, ou seja, interromper esse legado que vem desde o tempo de Charlotte, acho, apesar de ela não ter falado de ninguém no passado tão remoto.

Ela disse que ela própria tentou. E que eu poderia conseguir.

- Essa é a resposta óbvia, é claro. Mas nisso aí há ainda outros aspectos, coisas relacionadas ao homem e aos motivos pelos quais ele apareceu para mim.

- Pois bem - disse ela. - Agora você me ouça. Vou ler aquele arquivo, página por página.

Mas eu vi também essa criatura. E ela não aparece simplesmente. Ela afeta a matéria.

- Quando você o viu?

- Na noite em que minha mãe morreu, no exato instante. Tentei ligar para você. Telefonei para o hotel, mas você não atendia. Fiquei apavorada. Mas a aparição não é a parte importante. O que aconteceu a mais, sim. Ele afetou a água em volta da casa. Causou uma tamanha turbulência na água que a casa oscilava nas estacas. Não houve absolutamente nenhuma tempestade naquela noite na baía de Richardson ou na de San Francisco. Não houve nenhum terremoto ou qualquer outro motivo natural para que aquilo acontecesse. E ainda tem mais uma coisa. Na vez seguinte, senti essa criatura me tocar.

- Quando foi isso?

- No avião. Achei que era um sonho. Mas não era. Fiquei dolorida depois, como se eu tivesse tido relações com um homem grande.

- Você não quer dizer que a criatura...?

- Eu achava que estava dormindo, mas a distinção que estou tentando fazer é que essa coisa não se limita a aparecer. Ela está envolvida com o físico de algum modo específico. E o que eu preciso compreender são seus parâmetros.

- Bem, essa é uma elogiável atitude científica. Eu posso saber se esse seu contato provocou alguma outra reação, menos científica?

- Claro que provocou. Foi agradável porque eu estava meio adormecida. Mas, quando acordei, eu me senti como se tivesse sido estuprada. Odiei.

- Maravilha - exclamou Michael, ansioso. - Maravilha. Bem, você tem o poder para fazer essa coisa parar com esse tipo de violação.

- Eu sei, e agora que eu sei que é isso, vou fazer com que pare. Mas se anteontem alguém tivesse tentado me dizer que algum ser invisível ia se enfiar por baixo das minhas roupas num vôo até Nova Orleans, eu não teria estado nem um pouco mais preparada, porque não teria acreditado. Mas nós sabemos que ele não quer me machucar. E temos quase certeza de que ele não quer machucar você. O que precisamos ter em mente é que ele realmente ataca qualquer um que pareça interferir com seus planos, e que agora seu amigo Aaron está incluído nessa categoria.

- Certo - disse Michael.

- Mas você parece estar cansado, como se fosse você quem precisasse ser levado de volta ao hotel para ser posto na cama. Por que não vamos agora? Ele não respondeu. Sentou-se ereto e esfregou a nuca com as mãos. - Tem uma coisa que você não está dizendo.

- O quê?

- E que eu também não estou dizendo.

- Então fale - disse ela, baixinho, com paciência.

- Você não quer falar com ele? Você não quer lhe perguntar quem ele é e o que ele é? Você não acha que pode se comunicar com ele melhor e com maior franqueza talvez do que qualquer uma das outras? Talvez você, não. Mas eu, sim. Eu quero conversar com ele. Quero saber por que ele aparecia para mim quando eu era menino. Quero saber por que ele chegou tão perto de mim naquela noite em que eu quase o toquei, quase toquei seu sapato. Quero saber o que ele é. E eu sei, não importa o que Aaron tenha me dito, ou o que Aaron vá me dizer, acho que sou inteligente o suficiente para me comunicar com essa coisa, para ponderar com ela, e talvez seja exatamente esse tipo de soberba que a criatura espera encontrar em todos os que chegam a vê -Ia. Pode ser que ela já conte com isso.

Agora, se isso não lhe ocorreu, bem, então, você é muito mais forte e inteligente do que eu, mas muito mesmo. Eu nunca cheguei a falar com um fantasma ou espírito, ou seja lá o que for. E a verdade é que eu não perderia essa oportunidade, nem mesmo sabendo o que eu sei e sabendo o que ele fez com Aaron.

Ela concordou.

- É, você realmente compreendeu bem o caso. E pode ser que ele conte mesmo com isso, com a vaidade que existe em alguns de nós, de que não agiremos como os outros. Mas existe mais uma coisa entre mim e esse ser. Ele me tocou. E me deixou com a sensação de ter sido violentada. Eu não gostei.

Ficaram ali sentados em silêncio por um instante. Ele olhava para ela, e ela quase conseguia ouvir o funcionamento das engrenagens na cabeça dele.

Ele se levantou e estendeu o braço para pegar o porta-jóias, deslizando-o pela superfície lisa da mesa. Abriu-o e contemplou a esmeralda.

- Vamos - disse ela. - Toque a jóia com a mão.

- Ela não é parecida com o desenho que eu fiz - sussurrou ele. - Eu a estava imaginando, quando fiz o desenho. Não era uma lembrança. - Ele abanou a cabeça. Parecia estar a ponto de fechar a tampa do porta-jóias de novo, quando tirou a luva e pôs os dedos sobre a pedra.

Calada, ela esperava. Mas podia dizer, só pela expressão dele, que ele estava decepcionado e ansioso. Quando ele suspirou e fechou o porta-jóias, ela não o pressionou.

- Vi uma imagem sua - disse ele. - Você punha a esmeralda no pescoço. Eu me vi parado diante de você. - Ele calçou a luva cuidadosamente.

- Foi quando você chegou.

- É - disse ele, concordando. - Eu nem percebi que você estava com ela.

- Estava escuro.

- Eu só via você.

- Que diferença faz? - disse ela, encolhendo os ombros. - Eu a tirei e guardei no estojo.

- Não sei.

- E logo agora, quando a tocou, viu mais alguma coisa?

Ele abanou a cabeça.

- Só que você me ama - disse ele, com a voz tímida. - Me ama de verdade.

- Basta tocar em mim, para saber isso.

Ele sorriu, mas um sorriso triste, confuso. Enfiou as mãos nos bolsos, como se estivesse tentando se livrar delas, e abaixou a cabeça. Ela esperou algum tempo, detestando vê-lo angustiado.

- Venha, vamos embora - disse ela. - Esta casa o está afetando mais do que a mim. Vamos voltar para o hotel.

Ele concordou.

- Preciso beber água - disse ele. - Será que tem água gelada nesta casa? Estou com sede e com calor.

- Não sei. Nem sei se ela tem cozinha. Talvez, um poço com um balde coberto de musgo.

Quem sabe, uma fonte mágica.

Ele riu baixinho.

- Venha, vamos procurar a água.

Ela se levantou e o acompanhou pela porta dos fundos da sala de jantar. Um espécie de copa, ali, com uma pequena pia e altos armários envidraçados repletos de porcelana.

Ele passou devagar. Parecia estar medindo a espessura das paredes com as mãos.

- É aqui atrás - disse ele, passando pela porta seguinte. Ele apertou um antigo interruptor preto de parede. Acendeu-se uma lâmpada suja no teto, fraca e lúgubre, revelando um longo aposento de dois níveis: a parte superior, um árido local de trabalho; a parte inferior, dois degraus abaixo, uma pequena copa para o café da manhã, provida de lareira.

Uma longa série de portas envidraçadas permitia a visão do quintal coberto pelo mato lá fora. Parecia que o canto das rãs aqui era mais forte, mais nítido. A silhueta escura de uma árvore imensa impedia totalmente a visão do canto norte da paisagem. A própria copa e a cozinha eram muito limpas e aerodinâmicas, num estilo antiquado. De grande eficiência.

A geladeira embutida ocupava metade da parede interna, com uma porta enorme e pesada, como as portas de câmaras frigoríficas de restaurantes.

- Não diga nada se houver um corpo aí dentro. Eu não quero saber - disse ela, exausta.

- Não, só alimentos - respondeu ele, sorrindo - e água gelada. - Ele apanhou a garrafa de vidro transparente. - Vou lhe contar uma coisa sobre o sul. Aqui sempre se tem uma garrafa de água gelada. - Ele saiu a procurar num dos armários acima da pia do canto, e pegou dois copos de geléia com a mão direita, pondo-os sobre o balcão limpíssimo.

A água gelada estava deliciosa. Ela então se lembrou da velha. A casa era realmente dela; talvez, o copo também. Um copo usado pela velha. Rowan foi dominada pela repulsa, e pôs o copo na pequena pia de aço à sua frente.

É, como num restaurante, pensou, distanciando-se lentamente, com rebeldia. A casa foi muito bem equipada há muito, muito tempo, quando alguém mandou arrancar as instalações vitorianas tão veneradas atualmente em San Francisco, substituindo-as por todo esse aço reluzente.

- O que vamos fazer, Michael? - perguntou ela.

Ele olhou para o copo na sua mão. Depois olhou para ela, e imediatamente a ternura e o desejo de proteger que transpareciam nos olhos de Michael a enterneceram.

- Vamos nos amar, Rowan. Vamos nos amar. Você sabe, com a mesma certeza que tenho a respeito das visões, tenho certeza de que o fato de que nós realmente nos amamos não estava nos planos de ninguém.

Ela se aproximou dele e o abraçou. Ela sentiu as mãos que subiam pelas suas costas e que se fechavam com amor e carinho na sua nuca e no seu cabelo. Era delicioso seu jeito de abraçá-la apertado. Ele enfurnou o rosto no pescoço de Rowan e depois deu um beijo delicado na sua boca.

- Quero que você me ame, Rowan. Que confie em mim e me ame - disse ele, com uma voz dolorosamente sincera. Ele se afastou e pareceu mergulhar em si mesmo um pouco.

Pegou, então, a mão de Rowan e a levou lentamente na direção da porta envidraçada. Ficou ali parado, olhando para a escuridão lá fora. Abriu a porta. Não havia tranca.

Talvez não houvesse tranca em nenhuma delas. - Podemos ir ali fora? - perguntou.

- Claro que podemos. Por que está me perguntando?

Ele olhou para ela como se quisesse beijá-la, mas não a beijou. E então ela o beijou, mas bastou sentir como era delicioso para que todo o resto voltasse à sua mente. Ela se aconchegou junto a ele por algum tempo. E depois foi a primeira a sair. Descobriram que a cozinha dava para uma varanda telada, muito menor do que aquela na qual a velha havia morrido, e saíram por mais uma porta, igual a muitas portas antiquadas de tela, até mesmo com a mola que fazia com que se fechasse após sua passagem. Desceram pelos degraus de madeira até as lajes.

- Tudo isso aqui está bem. No fundo, não está em mau estado.

- Mas e a casa em si? Ela pode ser salva, ou já se deteriorou demais?

- Esta casa? - Ele sorriu, abanando a cabeça, com os olhos azuis lindos, brilhantes, ao olhar para ela e depois para a estreita varanda aberta lá no alto. - Querida, esta casa está perfeita, simplesmente perfeita. Ela estará aqui quando você e eu já não estivermos mais vivos. Nunca entrei numa casa dessas. Mesmo em todos os meus anos em San Francisco. Amanhã, vamos voltar aqui, e eu vou lhe mostrar esta casa à luz do dia. Vou lhe mostrar a espessura dessas paredes. Se você quiser, eu lhe mostro os caibros debaixo dela. - Ele se calou, envergonhado por se deliciar tanto, e mais uma vez envolvido pela tristeza e respeito pela morte da velha, exatamente como acontecera a Rowan. Além disso, ainda havia Deirdre, e tantas perguntas ainda sem resposta sobre ela. Tantas coisas nessa história descrita por ele, e no entanto parecia que a jornada mais sombria... Muito melhor olhar para ele e ver nele o entusiasmo ao examinar as paredes, ao inspecionar os batentes das portas, os peitoris e os degraus.

- Você a adora, não?

- Sempre a adorei desde que era menino. Eu a amei quando a vi dois dias atrás. E a amo agora muito embora eu saiba todos os tipos de coisas que aconteceram nela, mesmo o que aconteceu àquele cara no sótão. Eu amo esta casa porque ela é sua. E porque... porque é linda, não importa o que as pessoas tenham feito dentro dela, ou com ela. Ela era linda quando foi construída. E será linda daqui a cem anos.

Ele a enlaçou novamente, e ela se grudou a ele, aconchegando-se nele e sentindo que ele beijava seu cabelo. Os dedos enluvados tocavam seu rosto. Ela teve vontade de arrancar aquelas luvas. Mas não disse nada.

- Sabe - disse ele. - É uma coisa engraçada. Em todos os anos que passei na Califórnia, trabalhei em muitas casas. E gostei de todas elas. Mas nenhuma jamais me fez sentir minha mortalidade. Elas nunca faziam com que eu me sentisse pequeno. Esta casa me dá essa sensação. Ela me passa essa sensação porque vai estar aqui depois que eu me for.

Eles se voltaram e se embrenharam mais no jardim, descobrindo as lajes apesar do mato que procurava encobri-las, e das bananeiras tão densas e baixas que as grandes folhas laminares roçavam nos seus rostos.

Os arbustos encobriram a luz da cozinha atrás deles à medida que eles iam subindo por uma escada baixa de pedra. Aqui estava escuro, escuro como no campo.

Subiu um cheiro fétido, forte, como o cheiro de um pântano, e Rowan percebeu que estava olhando para uma longa piscina. Estavam parados à borda dessa enorme piscina negra. O mato a encobria tanto que a superfície da água só aparecia em vagos vislumbres.

Os nenúfares refulgiam despudorados à ínfima luz do céu distante. Insetos zumbiam, invisíveis, em grande número. As rãs coaxavam, e havia coisas que se mexiam dentro d'água fazendo com que a luz tocasse de repente a superfície, mesmo em meio ao mato alto. Ouvia -se um som contínuo de gotejamento, como se a poça fosse alimentada por fontes. E, quando forçou os olhos, Rowan viu os bicos que derramavam seus jatinhos cintilantes.

- Foi Stella quem a construiu - disse Michael. - Há mais de cinqüenta anos. Não era para ser nada parecido com isso aqui. Era uma piscina. E agora o jardim tomou conta. A terra voltou a ocupá-la.

Como ele parecia estar triste. Era como se ele houvesse visto a confirmação de algo em que não acreditava totalmente. E imaginar o impacto desse nome nela quando Ellie o pronunciou nas semanas finais de febre e delírio. "Stella no caixão."

Ele agora estava olhando para a frente da casa; e, quando ela seguiu a direção do olhar, viu a alta cumeeira do terceiro andar com suas duas chaminés flutuando com o céu como pano de fundo, e o lampejo da lua ou das estrelas, ela não sabia dizer qual, nas janelas quadradas lá em cima, no quarto onde o homem havia morrido e de onde Antha havia fugido de Carlotta. Toda aquela altura ela havia caído, passando pelas varandas de ferro, até atingir as lajes, até seu crânio rachar nas lajes e o tecido delicado do cérebro ser esmagado, com o sangue escorrendo.

Ela se encostou mais em Michael. Juntou as duas mãos atrás dele, descansando seu peso contra ele.

Olhou direto para o céu pálido lá em cima e suas poucas estrelas espalhadas porém nítidas, e então a lembrança da velha voltou. Era como se a nuvem maléfica não quisesse soltá-la. Ela pensou na expressão no rosto da velha ao morrer. Pensou nas palavras. E o rosto da sua mãe no ataúde, cochilando para sempre sobre o cetim branco.

- O que foi, querida? - Um ronco baixo no seu tórax.

Ela apertou o rosto de encontro à camisa de Michael. Começou a tremer como estivera tremendo a intervalos a noite inteira e, quando sentiu que os braços dele a abraçavam apertado, quase com força, ela adorou.

Aqui as rãs cantavam, aquela canção alta, repetitiva, do mato, e ao longe uma ave gritou na noite. Impossível acreditar que havia ruas bem ali perto, e que outras pessoas viviam logo depois das árvores; que as luzinhas amarelas e distantes que cintilavam aqui e ali através das folhas lustrosas eram as luzes das casas de outras pessoas.

- Amo você, Michael. Amo de verdade.

No entanto, ela não conseguia se livrar da sensação maligna. Ela parecia fazer parte do céu e da árvore gigantesca que se erguia acima da sua cabeça, bem como da água reluzente no fundo do mato viçoso e selvagem. Mas não fazia parte de nenhum lugar específico. Estava nela, era parte dela. E Rowan percebeu, com a cabeça imóvel sobre o peito de Michael, que não se tratava apenas da lembrança da velha e de sua maldade frágil e individual, mas de um presságio. Os esforços de Ellie haviam sido em vão, pois Rowan tinha esse presságio já há muito tempo. Talvez, mesmo durante a vida inteira, ela soubesse que um segredo sinistro e medonho esperava por

ela, e que ele era um segredo enorme, imenso, voraz e cheio de camadas, que, uma vez aberto, continuaria a se desenrolar para sempre. Era um segredo que se transformaria no mundo, com suas revelações encobrindo a própria luz da vida de rotina.

Este longo dia na agradável cidade tropical, cheio de rituais e cortesias antiquadas, havia sido apenas o primeiro desdobramento. Até mesmo os segredos da velha não passavam de um começo.

E esse grande segredo extrai sua força, da mesma raiz da qual eu extraio a minha, tanto para o bem quanto para o mal, porque no final eles não podem ser separados.

- Rowan, deixe- me tirá-la deste lugar. Nós já devíamos ter saído. A culpa é minha.

-Não, não faz diferença sair daqui. Gosto daqui. Não faz diferença para onde eu vá. Então, por que não ficar aqui, onde está escuro, tranqüilo e lindo?

Surgiu novamente o perfume daquela flor, aquela que a velha havia chamado de jasmim da noite.

- Ah, você está sentindo esse perfume, Michael? - Ela olhava para os nenúfares brancos na escuridão.

- Esse é o perfume das noites de verão em Nova Orleans - respondeu ele. - De caminhar sozinho, assobiando e batendo nas grades de ferro com uma varinha. - Ela adorava a vibração profunda da sua voz de dentro do peito. - Esse é o perfume de caminhar por todas essas ruas. - Ele baixou o olhar até ela, parecendo se esforçar para discernir seu rosto. - Rowan, não importa o que aconteça, não abandone essa casa. Mesmo que você tenha de sair dela e nunca mais voltar a vê-Ia, mesmo que você venha a detestá-la. Não se desfaça dela. Nunca a deixe cair nas mãos de quem não a ame. Ela é bonita demais. Ela tem de sobreviver a tudo isso, exatamente como nós.

Ela não respondeu. Não confessou o medo sinistro de que não iriam sobreviver, de que, de algum modo, tudo que lhe havia servido de lenitivo seria perdido. Lembrou-se, então, do rosto da velha, lá em cima no quarto da morte, onde o homem havia morrido anos e anos atrás, e das suas palavras, "Você pode escolher. Pode romper a corrente!" A velha, tentando transpor sua própria casca de maldade, perversidade e frieza. Procurando oferecer a Rowan algo que ela considerava puro e brilhante. E no mesmo quarto em que o homem havia morrido, amarrado indefeso no tapete, enquanto a vida prosseguia normal na casa abaixo dele.

- Vamos embora, querida. Vamos para o hotel. Tenho de insistir. Vamos nos enfiar numa daquelas camas enormes e macias e nos aconchegar um ao outro.

- Podemos ir a pé, Michael? Podemos ir bem devagar no escuro?

- Claro, querida, se você preferir.

Não tinham chaves para trancar nada. Deixaram as lâmpadas acesas por trás de janelas imundas ou providas de cortinas. Desceram pelo caminho e saíram pelo portão enferrujado.

Michael abriu o carro e tirou uma valise, que mostrou a Rowan. Era a história inteira, disse ele, mas ela não podia ler antes de ele explicar alguns pontos. Havia coisas ali dentro que a chocariam, que talvez a perturbassem. Amanhã, conversariam a respeito durante o café da manhã. Ele havia prometido a Aaron que não lhe entregaria o arquivo sem explicações, e era por ela que ele estava fazendo isso. Aaron queria que ela compreendesse.

Ela concordou. Não sentia nenhuma desconfiança de Aaron Lightner. Era impossível que alguém a enganasse, e Lightner não tinha necessidade de enganar ninguém. E, ao pensar nele agora, ao se lembrar da sua mão no seu braço na cerimônia fúnebre, ela teve a sensação desagradável de que ele também era um inocente, inocente como

Michael. E o que os tornava inocentes era o fato de eles realmente não compreenderem a maldade nas pessoas.

Ela estava tão cansada agora. Não importa o quanto se veja, se sinta ou se venha a descobrir, o cansaço acaba chegando. Não se pode sofrer sem parar, uma hora após a outra, um dia após o outro. No entanto, olhando de volta para a casa, ela pensou na velha, fria, pequena e morta na cadeira de balanço, uma morte que nunca seria compreendida ou vingada.

Se eu não a houvesse matado, poderia tê-la odiado com tanta liberdade! Mas agora sinto essa culpa por causa dela, além de todas as outras dúvidas e desgraças que ela trouxe à tona.

Michael estava parado, olhando fixamente para a porta da frente. Ela deu um pequeno puxão na sua manga ao se aproximar mais dele.

- Parece um enorme buraco de fechadura, não é? - disse ela.

Ele fez que sim, mas parecia distante, perdido nos seus pensamentos. - Era assim que costumavam chamar esse estilo de portal. Fazia parte da mixórdia de estilos egípcio, grego e romano que adoravam tanto quando construíram esta casa.

- Bem, até que o resultado foi bom - disse ela, exausta. Quis lhe contar que a porta estava entalhada no jazigo no cemitério, mas estava cansada demais.

Caminharam juntos, devagar, seguindo até Philip Street, depois até Prytania e de lá até Jackson Avenue. Passaram por lindas casas na escuridão. Passaram por muros de jardins. Desceram, então, pela St. Charles, pelas lojas e bares fechados e por enormes prédios de apartamentos na direção do hotel, com apenas um carro ou outro

passando veloz; e o bonde aparecendo apenas uma vez com um enorme estrondo metálico quando fez a curva e seguiu barulhento até desaparecer, com as janelas vazias cheias de uma luz amarela como manteiga.

No chuveiro, fizeram amor, apressados e desajeitados nos seus beijos e carícias. A sensação das luvas de couro excitavam Rowan quase até a loucura quando tocavam nos seus seios e desciam entre suas pernas. Não havia mais casa, nem velha, nem a pobre e linda Deirdre. Só Michael existia, só esse peito rijo com o qual ela andava sonhando, e esse pau grosso nas suas mãos, a se erguer do seu ninho de pêlos escuros, lustrosos, crespos.

Anos antes alguma amiga idiota lhe havia dito, tomando café na universidade, que as mulheres não achavam bonito o corpo do homem, que o que importava era o que o homem fazia. Pois bem, ela sempre havia gostado dos homens tanto pelo que faziam quanto pelo corpo que tinham. Ela adorava esse corpo, adorava sua firmeza e seus mamilos minúsculos, macios e sedosos; seu ventre rijo e esse pau, que ela punha na boca. Ela adorava sentir essas coxas fortes sob seus dedos, o pêlo macio na curva das nádegas. Firmes e sedosos, era isso o que os homens eram. Ela desceu as mãos pelas coxas de Michael, arranhando a parte traseira do joelho e apertando os músculos das pernas. Tão fortes. Ela o empurrou contra os azulejos, sugando com movimentos mais longos e deliciosos, com as mãos em concha para segurar as bolas e suspendê-las de encontro à base do pau.

Ele tentou levantá-la com delicadeza, mas ela queria que ele gozasse na sua boca. Ela puxou seus quadris mais para perto de si. Não quis soltá-lo, e então ele gozou, e o gemido foi tão bom quanto tudo o mais. Mais tarde, quando se enfiaram na cama, já secos e aquecidos, com o ar condicionado soprando de leve, Michael tirou as luvas. E começaram de novo.

- Não consigo parar de tocar em você - disse ele. - Não dá para agüentar, e tenho vontade de lhe perguntar como foi quando aconteceu aquilo, mas sei que não devia lhe fazer essa pergunta. E você sabe, é como se eu conhecesse o rosto do homem que tocou em você...

Ela estava deitada no travesseiro, olhando para ele no escuro, adorando a sensação deliciosa do seu peso sobre ela e das suas mãos quase lhe puxando o cabelo. Ela fez um punho com a mão direita e roçou os nós dos dedos no seu queixo escuro e cheio de sombras com a barba por fazer.

- Foi como fazer sozinha - disse ela, baixinho, esticando-se para segurar sua mão esquerda e puxando-a para baixo para poder beijar sua palma. Ele se enrijeceu encostado na sua coxa. -Não foi a turbulência de uma outra pessoa. Não eram células vivas contra células vivas.

- Uummmm, adoro essas células vivas - disse ele, rouco, no seu ouvido, beijando-a com violência. Ele a machucava com seus beijos; e Rowan revidava com o mesmo desrespeito, a mesma fome e insistência.

Quando acordou, eram quatro da manhã. Hora de ir para o hospital. Não. Michael dormia profundamente. Ele nem sentiu o beijo delicadíssimo que ela lhe deu no rosto.

Ela vestiu o pesado roupão branco de toalha que encontrou pendurado no armário e saiu em silêncio para a sala de estar da suíte. A única luz vinha da avenida.

Estava um deserto lá embaixo. Tranqüilo como um cenário de teatro. Ela adorava as ruas de madrugada, quando ficavam desse jeito, quando a impressão era a de que seria possível descer e sair dançando nelas, se quisesse, como se fossem um palco, porque as linhas brancas e os sinais de trânsito não significavam nada.

Ela se sentia bem, lúcida e em segurança aqui. A casa estava à espera, mas a casa já esperava há muito tempo.

A telefonista lhe disse que ainda não havia café. Havia, porém, um recado para ela e para o Sr. Curry, de um certo Sr. Lightner, no sentido de que ele voltaria para o hotel mais tarde naquele mesmo dia e que poderia ser encontrado pela manhã no retiro. Ela anotou o número.

Entrou na pequena cozinha, encontrou utensílios e café e o preparou ela mesma. Voltou, então, e fechou com cuidado a porta do quarto e a porta do pequeno corredor entre o quarto e a sala de estar.

Onde estava o Arquivo sobre as Bruxas Mayfair? O que Michael havia feito com a valise tirada do carro?

Ela examinou a pequena sala, com seu sofá e suas poltronas. Olhou no pequeno banheiro, nos armários e até na cozinha. Depois voltou para o corredor e ficou apreciando Michael adormecido à luz que vinha da janela.

Cabelos crespos na nuca.

No armário, nada. No banheiro, nada.

Muito esperto, Michael. Mas eu vou encontrá-la. Foi quando viu a ponta da valise. Ele a enfiara atrás da poltrona.

Ele não demonstra grande confiança, mas também eu estou fazendo exatamente o que mais ou menos prometi que não faria. Ela apanhou a valise, parando para ouvir o ritmo da sua respiração profunda, e depois fechou a porta. Foi na ponta dos pés pelo corredor, fechou a segunda porta e pôs a valise na mesa de centro à luz do abajur. Apanhou, então, seu café e seus cigarros e se sentou no sofá, olhando para o relógio. Eram quatro e quinze. Ela adorava essa hora do dia, simplesmente adorava. Era uma boa hora para ler. Havia sido, também, sua hora preferida para dirigir até o hospital, varando um sinal vermelho após o outro no enorme vácuo silencioso, com a cabeça repleta de pensamentos detalhados e organizados das operações à sua espera. Mas essa hora era ainda melhor para a leitura.

Rowan abriu a valise e retirou a grande pilha de pastas, cada uma com seu estranho título: Arquivo sobre as Bruxas Mayfair. Isso a fez sorrir. Era tão literal.

- Inocentes - sussurrou. - São todos inocentes. O homem no sótão, provavelmente inocente.

E aquela velha, uma bruxa até os ossos. - Ela parou, deu a primeira tragada no cigarro e se perguntou como compreendia aquilo tão perfeitamente e por que tinha tanta certeza de que eles, Aaron e Michael, não compreendiam.

Essa convicção se manteve.

Folheando rapidamente as pastas, ela avaliou o original, como sempre fazia com os textos científicos que queria devorar de uma assentada. Depois inspecionou uma página qualquer para verificar a proporção de abstrações para termos concretos, e concluiu que essa proporção era confortável, sendo que estes últimos superavam as abstrações num grau extremamente alto.

Uma brincadeira cobrir tudo em quatro horas. Se tivesse sorte, Michael dormiria o tempo necessário. O mundo dormiria. Ela se aconchegou no sofá, pôs os pés descalços na beirada da mesinha de centro e começou a ler.

Às nove, ela vinha caminhando lentamente de volta a First Street até chegar à esquina de Chestnut. O sol da manhã já estava alto no céu, e os pássaros cantavam quase com fúria no túnel folhoso dos galhos lá em cima. O grito agudo de um corvo sobressaiu do coro mais suave. Esquilos corriam apressados ao longo dos galhos grossos e pesados que se estendiam longe por cima das cercas e dos muros. As calçadas de tijolos bem varridas estavam desertas; e o lugar todo parecia pertencer às suas flores, árvores e casas. Até mesmo o barulho do trânsito eventual era engolido pela vegetação e pela quietude envolventes. O céu azul e límpido brilhava através da folhagem alta, e a luz, mesmo na sombra, parecia de algum modo pura e brilhante.

Aaron Lightner já estava à sua espera junto ao portão, um homem de ossos pequenos, usando leves trajes tropicais, com uma aparência britânica formal, até a bengala na sua mão.

Ela havia ligado para ele às oito, pedindo esse encontro. E mesmo à distância ela percebia que ele estava profundamente preocupado com sua reação ao que havia lido. Ela atravessou o cruzamento com calma. Aproximou-se dele devagar, com os olhos baixos, a cabeça ainda tonta com a longa história e todos os detalhes que havia absorvido com tanta rapidez.

Quando se encontrou parada diante dele, ela pegou sua mão. Não havia ensaiado o que pretendia dizer. Seria uma tortura para ela. Mas era bom estar aqui, estar segurando sua mão, apertando-a afetuosamente, enquanto examinava a expressão no seu rosto franco e simpático.

- Obrigada - disse ela, com a voz lhe parecendo fraca e inadequada. - Vocês responderam a todas as perguntas mais terríveis e torturantes da minha vida. Na realidade, vocês não podem saber o que fizeram por mim. O senhor e seus observadores. Eles descobriram minha parte mais sombria. E o senhor sabia qual era e a iluminou, fazendo sua ligação a algo maior, mais antigo e tão verdadeiro quanto ela. - Ela abanou a cabeça, ainda segurando sua mão, num esforço para prosseguir. - Não sei como dizer o que quero dizer - confessou. - Não me sinto mais sozinha! Estou falando de mim, de meu eu total, não apenas o nome e a parte que a família quer. Estou falando de quem eu sou. - Ela deu um suspiro. As palavras eram tão toscas, e o sentimento por trás delas, tão enorme, enorme como seu alívio. - Eu lhes agradeço por não terem guardado segredo. Agradeço do fundo do coração.

Ela percebia o assombro de Lightner e sua ligeira confusão. Bem devagar, ele abaixou a cabeça. E ela sentiu sua bondade, e acima de tudo sua disposição de confiar.

- Em que posso ajudá-la agora? - perguntou ele, com um tom afável de franqueza total.

- Entre - disse ela. - Vamos conversar.

Onze horas. Ele se sentou na cama no escuro, olhando espantado para o relógio digital na mesa. Como foi que conseguiu dormir tanto? Havia deixado as cortinas abertas para que a luz o acordasse. Mas alguém as havia fechado. E as luvas? Onde estavam suas luvas? Ele as encontrou e as calçou para só depois sair da cama.

A valise havia sumido. Ele soube antes de olhar atrás da poltrona. Frustrado. Imediatamente, vestiu o roupão e saiu pelo corredor até a sala de estar. Ninguém ali. Só o cheiro chamuscado de café velho que vinha da cozinha, e o aroma remanescente de um cigarro. Fez com que ele quisesse fumar um logo.

E ali na mesinha de centro, a valise esvaziada e o arquivo: pastas de papel pardo em duas pilhas bem arrumadas.

-Ah, Rowan- gemeu ele. E Aaron nunca o iria perdoar. E Rowan havia lido a parte a respeito de Karen Garfield e do Dr. Lemle que morreram depois de estar com ela. Ela havia lido todos os deliciosos mexericos compilados ao longo dos anos com Ryan Mayfair, com Beatrice e com outros que ela com toda a certeza havia conhecido no enterro. Isso e milhares de outras coisas que ele não conseguia imaginar naquele instante.

Se ele entrasse no quarto e descobrisse que todas as roupas dela haviam desaparecido...

Mas as roupas de Rowan não estavam aqui mesmo; estavam no seu próprio quarto.

Ele ficou ali coçando a cabeça, sem saber o que fazer, ligar para o quarto dela, telefonar para Aaron, enlouquecer de vez. Foi quando viu o bilhete.

Estava bem ao lado das duas pilhas de pastas de papel pardo: uma única folha de papel de carta do hotel, coberta com uma letra muito nítida e retilínea.

Oito e meia da manhã.

Michael,

Li o arquivo. Amo você. Não se preocupe. Vou me encontrar às nove com Aaron. Você pode vir me ver na casa às três? Preciso passar algum tempo sozinha lá. Estarei esperando por você por volta das três. Se não puder, deixe um recado para mim aqui.

A pitonisa de Endor

- A pitonisa de Endor. - Quem seria a pitonisa de Endor? Ah, sim, a mulher que o rei Saul procurou para conjurar o rosto dos seus ancestrais? Não exagere na interpretação.

Isso só quer dizer que ela sobreviveu ao arquivo. A menina prodígio. A neurocirurgiã. Li o arquivo! Ele havia levado dois dias. Li o arquivo!

Ele tirou a luva da mão direita e pôs a mão no bilhete. Relance de Rowan, vestida, curvando-se diante da escrivaninha na saleta junto à sala de estar. Em seguida, relance de alguém que havia posto o papel de carta ali já há dias, uma arrumadeira de uniforme, e outras coisas tolas, chegando aos borbotões, nenhuma com qualquer importância. Ele ergueu os dedos e esperou até que o formigamento parasse.

- Quero Rowan - disse, tocando novamente o papel. Rowan, e Rowan sem raiva, mas profundamente misteriosa e... o quê? No meio de uma aventura?

É, o que ele estava sentindo era um entusiasmo estranho, cheio de desafio. E isso ele compreendia perfeitamente. Ele a viu novamente, com uma nitidez chocante, só que em algum outro lugar, mas imediatamente a imagem ficou confusa, ele a perdeu e calçou de novo a luva.

Ficou ali sentado um instante, mergulhado em si mesmo, odiando instintivamente esse poder, mas mesmo assim pensando na questão do entusiasmo. Lembrou-se do que Aaron lhe havia dito na noite anterior.

- Posso ensiná-lo a usar esse poder, mas ele nunca será exato. Sempre haverá confusão. Meu Deus, como Michael o detestava. Odiava até mesmo a forte sensação de Rowan que o invadira e que não o largava. Ele teria preferido muito mais as lembranças viscerais do quarto e da sua voz grave e aveludada falando com tanta delicadeza, tanta franqueza e simplicidade. Preferia muito mais ouvi-la dizer com seus próprios lábios.

Entusiasmo!

Chamou o serviço de copa.

- Mandem-me um café da manhã, ovos, aveia, é, um bom prato de aveia, uma porção extra de presunto, torradas e um bule de café. Diga ao garçom para usar a chave-mestra. Vou estar me vestindo. E por favor some uma gorjeta de vinte por cento para o garçom. E que ele traga água bem gelada.

Ele leu o bilhete mais uma vez. Aaron e Rowan estavam juntos agora. Isso o enchia de apreensão. E agora ele compreendia o medo de Aaron quando Michael começou a ler o arquivo. E naquela hora ele não queria dar ouvidos a Aaron. Só queria ler. Bem, ele não podia culpar Rowan.

Também não conseguia se livrar dessa sensação incômoda. Rowan não compreendia Aaron. E Aaron sem sombra de dúvida não a compreendia. E ela achava que ele era ingênuo. Ele abanou a cabeça. E ainda havia Lasher. O que Lasher estaria pensando?

- Era o homem - disse Aaron, na noite anterior, antes de Michael sair de Oak Haven. - Eu o vi iluminado pelos faróis. Sabia que era uma artimanha. Mas não podia me arriscar.

- E então o que vai fazer? - perguntou Michael.

- Vou tomar cuidado - disse Aaron. - O que mais eu poderia fazer? E agora ela queria que ele fosse se encontrar com ela na casa às três da tarde porque precisava passar algum tempo ali sozinha. Com Lasher? Como Michael iria represar suas emoções até as três da tarde?

Bem, companheiro, você está em Nova Orleans, não está? Ainda não esteve no seu velho bairro. Talvez já seja hora de ir até lá.

Ele saiu do hotel às quinze, para o meio-dia, e o calor envolvente foi uma surpresa agradável no instante em que pisou lá fora. Depois de trinta anos em San Francisco, ele havia se preparado instintivamente para o frio e o vento.

E, enquanto caminhava na direção da cidade alta, descobriu que, no mesmo nível subconsciente, havia se preparado para uma subida ou uma descida. As calçadas largas e planas lhe pareciam maravilhosas. Era como se tudo fosse mais fácil: cada vez que se respirava a brisa agradável, cada passo que se dava, cada travessia de rua,

olhar despreocupado para os velhos carvalhos de casca preta que modificavam a paisagem urbana no instante em que ele atravessou Jackson Avenue. Nenhum vento cortante no rosto; nenhum brilho desagradável do céu da costa do Pacífico a ofuscá-lo.

Para a caminhada até o Irish Channel, ele preferiu Philip Street, e seguiu por ali sem pressa como teria feito nos velhos tempos, sabendo que o calor ficaria mais intenso, que suas roupas ficariam pesadas e que até mesmo o interior dos seus sapatos ficaria úmido em pouquíssimo tempo. Mais cedo ou mais tarde, teria de tirar seu blusão safári para pendurá-lo num dos ombros.

No entanto, ele logo se esqueceu disso tudo. Este era o cenário de muitas recordações felizes. Ele conseguia afastar da sua mente a preocupação com Rowan, a preocupação com o homem. Ele estava só voltando ao passado, perambulando por esses muros antigos, cobertos de hera, e pelas extremosas jovens, crescendo esguias em meio ao mato, cheias de flores oscilantes. Ele precisava afastá-las à medida que avançava. Ocorreu- lhe novamente, com a mesma força de antes, que a saudade não havia embelezado nada. Graças a Deus, muita coisa ainda estava ali! As altas casas vitorianas no estilo Queen Anne, tão maiores do que as de San Francisco, permaneciam em pé ao lado das casas anteriores à Guerra de Secessão com suas colunas e paredes de alvenaria, sólidas e magníficas como a casa de First Street.

Ele afinal atravessou Magazine, alerta para o trânsito veloz, e foi entrando no Irish Channel. As casas pareceram encolher. Colunas cederam lugar a esteios de madeira.

Já não havia mais carvalhos; até mesmo os olmos

imensos desapareciam depois da esquina de Constance Street. Mas até aí tudo bem; tudo bem mesmo. Esta era a sua parte da cidade. Ou pelo menos havia sido. Annunciation Street o deixou desconsolado. As boas restaurações e pinturas recentes que havia visto em Constance e Laurel eram raras nessa rua maltratada. Os terrenos baldios estavam cheios de lixo e de pneus velhos. A casa geminada em que ele havia crescido estava abandonada, com grandes pedaços de compensado velho cobrindo todas as portas e janelas. E o quintal no qual ele havia brincado estava agora coberto por mato e cercado com uma feia tela de arame. Ele não viu sombra das velhas maravilhas que floriam perfumadas, em tons de rosa, no inverno e no verão. Também haviam sumido as bananeiras que ficavam junto ao velho barracão nos fundos da entrada lateral.

A pequena mercearia da esquina estava deserta e trancada a cadeado. E o velho bar da esquina não demonstrava o menor sinal de vida. Aos poucos, ele percebeu que era o único homem branco à vista.

Pareceu ir mergulhando cada vez mais nessa tristeza e nessa sujeira. De longe em longe, via-se uma casa com pintura recente. Uma bonita criança negra com os cabelos trançados e olhos redondos e serenos estava agarrada a um portão, olhando fixamente para ele. Mas todas as pessoas que ele poderia ter conhecido haviam ido embora muito tempo atrás.

E ver a lamentável decadência de Jackson Avenue nessa região o deixou magoado. Mesmo assim, ele prosseguia na direção das moradias de tijolo do St. Thomas Project. Aqui já não morava mais nenhum branco. Ninguém precisava lhe dizer isso. Aqui ficava a cidade do homem negro, e ele sentia frios olhos a observá-lo quando virou a

esquina de Josephine Street na direção das velhas igrejas e da velha escola. Mais chalés de madeira vedados com tábuas; o piso inferior de um prédio totalmente esvaziado. Móveis quebrados e inchados, empilhados junto à sarjeta. Apesar do que já havia visto antes, o estado lamentável dos prédios abandonados da escola foi um choque para ele. Havia vidraças quebradas nas janelas das salas nas quais ele havia estudado tantos anos antes. Além disso, o ginásio que ele havia ajudado a construir parecia tão envelhecido, tão obsoleto, tão absolutamente esquecido.

Somente as igrejas de Santa Maria e de Santo Afonso permaneciam orgulhosas e aparentemente indestrutíveis. Mas suas portas estavam trancadas. E no pátio da sacristia de Santo Afonso, o mato alcançava a altura dos seus joelhos. Ele viu as antigas caixas de luz, abertas e enferrujadas, com os fusíveis arrancados.

-Quer ver a igreja?-Ele se voltou. Um pequeno homem com um início de careca, uma barriga arredondada e um rosto rosado e suarento estava falando com ele. – Pode ir até a casa paroquial, e eles o deixarão entrar - disse o homem. Michael fez que sim.

Até mesmo a casa paroquial estava trancada. Era preciso tocar uma campainha e esperar.

E a mulherzinha de lentes grossas e cabelo castanho curto falou por trás de uma vidraça.

- Gostaria de fazer uma doação - disse ele, tirando um maço de notas de vinte dólares. - Gostaria de ver as duas igrejas se possível.

- Não poderá ver a de Santo Afonso. Não é mais usada. Não é segura. O reboco está caindo.

O reboco! Ele se lembrava dos maravilhosos afrescos no teto, com os santos olhando para ele de um céu azul. Debaixo daquele teto, ele havia sido batizado, havia feito a primeira comunhão e, mais tarde, havia sido crismado. E naquela sua última noite em Nova Orleans, ele vinha pelo corredor central de Santo Afonso, com sua beca e chapéu brancos, com os outros formandos, nem mesmo pensando em dar uma última olhada ao seu redor, com todo aquele entusiasmo por estar indo com a mãe para a costa oeste.

- Para onde foi todo mundo? - perguntou Michael.

- Mudaram-se daqui - disse ela, fazendo um gesto para que ele a acompanhasse. Ela ia levá-lo até o interior da igreja de Santa Maria, passando por dentro da própria casa paroquial. - E os negros não freqüentam.

- Mas por que está tudo trancado?

- Tivemos um roubo atrás do outro.

Ele não conseguia conceber essa história de não se poder entrar à vontade numa igreja silenciosa e sombreada a qualquer hora do dia. Não se poder fugir à rua barulhenta e causticante, para sentar na quietude escurecida, a conversar com os anjos e com os santos, enquanto velhas de vestidos floridos e chapéus de palha rezavam seus terços sussurrando com lábios murchos. Ela o conduziu, passando pelo altar. Ele havia sido coroinha aqui. Havia preparado o vinho do sacramento. Sentiu um pequeno espasmo de felicidade quando viu as fileiras de santos de madeira, quando viu a nave longa e alta com seus sucessivos arcos góticos. Tudo esplêndido, tudo intacto.

Graças a Deus, ela ainda estava em pé. Ele estava a ponto de chorar. Enfiou as mãos nos bolsos e baixou a cabeça, só olhando para cima bem devagar por baixo das sobrancelhas. Estavam totalmente embaralhadas suas recordações de missas aqui e de missas do outro lado da rua na igreja de Santo Afonso. No seu tempo já não havia mais nenhuma briga entre irlandeses e alemães; eram só os nomes de origem alemã ou irlandesa misturados de qualquer jeito. A escola primária usava a outra igreja para a missa matinal. A de Santa Maria ficava cheia com os alunos do segundo grau.

Não era preciso nenhuma imaginação para voltar a ver os estudantes uniformizados saindo enfileirados dos bancos para comungar. As meninas, de blusa branca e saia de lã azul; os meninos, de calças e camisa cáqui. No entanto, a memória continuava a esquadrinhar todos aqueles anos. Aos oito anos de idade, ele havia balançado o turíbulo fumegante aqui, nessa escada, para a bênção.

- Pode ficar o tempo que quiser - disse a mulherzinha. - Basta que volte por dentro da casa paroquial quando terminar.

Durante uma meia hora, ele ficou sentado no primeiro banco. Não sabia exatamente o que estava fazendo. Talvez gravando na memória os detalhes que não teria conseguido extrair das suas lembranças. Para nunca mais se esquecer dos nomes entalhados no piso de mármore daqueles que haviam sido enterrados debaixo do altar. Para nunca mais se esquecer talvez dos anjos pintados lá em cima. Ou do vitral lá à sua direita no qual os anjos e os santos usavam sapatos de madeira! Que estranho! Será que alguém poderia ter uma explicação para isso? E imaginar que ele nunca havia percebido o detalhe antes... e quando pensava em todas aquelas horas passadas nesta igreja...

Pensar em Marie Louise, com seus seios grandes por baixo da blusa branca engomada do uniforme, lendo seu missal. E Rita Mae Dwyer, que já parecia uma mulher adulta aos quatorze anos. Ela usava saltos muito altos e enormes brincos dourados com o vestido vermelho aos domingos. O pai de Michael era um dos homens que passava pelos bancos com a cesta da coleta num cabo comprido, enfiando-a numa fileira após a outra, com a expressão adequadamente solene. Naquele tempo você sequer cochichava numa igreja católica, a menos que fosse absolutamente necessário.

O que ele estava achando, que todos estariam aqui à sua espera? Uma dúzia de Rita Mães em vestidos floridos, fazendo uma visita ao meio-dia?

- Não volte lá, Mike - havia Rita Mae dito ontem à noite. - Guarde a lembrança do jeito que era antes.

Ele afinal se pôs de pé. Caminhou pelo corredor na direção dos velhos confessionários de madeira. Encontrou na parede a placa com a relação daqueles que haviam contribuído para a restauração no passado recente. Fechou os olhos, e só por um instante imaginou ouvir crianças brincando nos pátios da escola, aquele burburinho de vozes misturadas ao meio-dia.

Não havia nenhum ruído semelhante. Nenhum chiado pesado das portas abertas à medida que os paroquianos entravam e saíam. Apenas o lugar vazio e imponente. E a Virgem com sua coroa no altar- mor.

Pequena, distante, parecia a imagem. Ocorreu- lhe em termos racionais que deveria rezar para ela. Deveria perguntar à Virgem ou a Deus por que havia sido trazido de volta; qual era o significado de ser arrancado das frias garras da morte. Mas ele não tinha nenhuma fé nas imagens no altar. Não lhe voltava nenhuma recordação da fé infantil.

Em vez disso, a lembrança que lhe ocorreu foi específica e incômoda; suja e mesquinha.

Ele e Marie Louise haviam se encontrado para conversar em segredo bem atrás daquelas altas portas da frente. Chovia a cântaros. E Marie Louise havia confessado, com certa relutância, que não estava grávida. Ela estava furiosa por ser forçada a confessar, furiosa por ele estar tão aliviado.

- Você não quer se casar? Por que entramos nessa brincadeira idiota?

O que teria acontecido com ele se houvesse se casado com Marie Louise? Ele via seus olhos castanhos, grandes e emburrados. Sentia sua irritação, sua decepção. Não conseguia imaginar uma coisa dessas. A voz de Marie Louise voltou.

- Você sabe que vai se casar comigo mais cedo ou mais tarde. Estamos destinados um ao outro.

Destinados. Teria sido o destino que o havia tirado daqui, o destino que o levou a fazer as coisas que fez na sua vida, o destino que o fez ir tão longe? Estaria ele destinado a cair do rochedo no mar e a ser lentamente carregado para longe, para longe das luzes da terra?

Pensou em Rowan, não apenas na imagem visual, mas em tudo o que Rowan significava para ele agora. Pensou na sua doçura, na sua sensualidade, no seu mistério. No seu corpo esguio, em boa forma, aconchegado ao dele debaixo dos lençóis; na sua voz aveludada e nos seus olhos frios. Pensou no jeito de Rowan olhar para ele antes de fazerem amor, tão despreocupada, totalmente esquecida do seu próprio corpo, absorta no dele. Olhando para ele, enfim, como um homem olharia para uma mulher. Com a mesma fome e a mesma agressividade e, no entanto, entregando-se como por mágica nos seus braços.

Ele ainda olhava fixamente para o altar, para toda a igreja ampla e profusamente ornamentada.

Ele gostaria de acreditar em alguma coisa. Percebeu, então, que acreditava. Ainda acreditava nas visões, na bondade das visões. Acreditava nelas e na sua bondade com tanta firmeza quanto outras pessoas acreditam em Deus ou em santos, na correção divina de um certo caminho, tanto quanto acreditam numa vocação.

E isso lhe pareceu tão tolo quanto as outras crenças. "Mas eu vi, mas eu achei, mas eu me lembro, mas eu sei..." Pura baboseira. Afinal de contas, ele não conseguia se lembrar. Nada em toda a história da família Mayfair havia realmente feito com que ele voltasse àqueles momentos preciosos, a não ser a imagem de Deborah. E apesar de toda a sua certeza de que havia sido ela quem se aproximara dele, ele não possuía nenhum detalhe verdadeiro, não se lembrava realmente de momentos ou de palavras.

Num impulso, com os olhos ainda fixos no altar, ele fez o sinal da cruz.

Quantos anos haviam se passado desde a época em que ele fazia esse sinal todos os dias, três vezes ao dia? Curioso, pensativo, ele repetiu o gesto.

- Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. - Seus olhos ainda fixos na Virgem. – O que eles querem de mim? - perguntou, baixinho. E ao tentar reinvocar o pouco que conseguia das visões, percebeu em desespero que a imagem da mulher de cabelos escuros havia sido substituída pela imagem de Deborah descrita na história.

Uma havia eliminado a outra! Com a leitura, em vez de obter mais alguma coisa, ele havia perdido.

Depois de mais algum tempo, parado ali em silêncio, com as mãos enluvadas enfiadas nos bolsos, ele voltou lentamente pelo corredor central, até chegar à mesa da comunhão, subiu os degraus de mármore, atravessou o altar e encontrou o caminho de saída passando pela casa paroquial.

O sol batia sobre Constance Street como sempre. Feio e impiedoso. Não havia árvores aqui.

E o jardim da casa paroquial estava escondido por trás de um muro alto de tijolos; e o gramado ao lado da igreja de Santa Maria ardia, cansado e empoeirado.

A loja de artigos religiosos na esquina ao longe, com todas as suas imagens pequenas e bonitas e seus santinhos, não existia mais. Tábuas cobriam as vitrines. Uma placa de imobiliária na parede de madeira pintada.

O homenzinho careca de rosto vermelho e suarento estava sentado na escada da casa paroquial, com os braços cruzados sobre os joelhos, os olhos acompanhando uma revoada de pombos de asas cinzentas diante da lamentável fachada descascada da igreja de Santo Afonso.

- Deviam envenenar esses pombos - disse ele. - Eles deixam tudo imundo.

Michael acendeu um cigarro e ofereceu um ao homem, que o aceitou. Michael também lhe deu a carteirinha de fósforos quase vazia.

- Filho, por que você não tira esse relógio de ouro e guarda num bolso? Não saia por aqui com esse negócio no pulso, está n!e entendendo?

- Quem quiser meu relógio leva junto meu pulso e o punho que está preso a ele.

O homem apenas encolheu os ombros e abanou a cabeça.

Já na esquina de Magazine e Jackson, Michael entrou num bar escuro, de aparência desagradável, num prédio velho e miserável de ripas desengonçadas. Em todos os seus anos em San Francisco, ele nunca havia visto um estabelecimento tão depauperado. Um homem branco parecia uma sombra ao fundo, olhando para ele com olhos que cintilavam num rosto encovado e cheio de rugas. O balconista do bar também era branco.

- Dê-me uma cerveja - disse Michael.

- Que marca?

- Tanto faz.

Sua cronometragem foi perfeita. Faltando três minutos para as três, ele estava atravessando Camp Street, caminhando lentamente, para que o calor não o matasse, e mais uma vez se sentindo acalmado pela sombra agradável e pela beleza aleatória do Garden District. É, tudo isso era como sempre havia sido.

E imediatamente ele se sentiu bem; sentiu imediatamente que estava onde queria estar e talvez mesmo onde deveria estar, se fosse possível a cada um determinar sua trajetória.

Exatamente às três da tarde, ele estava diante do portão aberto. Era a primeira vez que via a casa à luz do dia, e seu pulso se acelerou. Aqui, aqui mesmo. Mesmo no seu estado de abandono, ela era majestosa, imponente, apenas hibernando por trás das cortinas de trepadeiras, com suas janelas altas cobertas de tinta verde descascada e no entanto ainda perfeitamente aprumadas nas suas dobradiças de ferro. À espera...

Uma tontura o dominou enquanto olhava para ela, um súbito prazer por ter voltado, pelos motivos que fossem. Por estar fazendo o que devia estar fazendo...

Ele subiu a escada de mármore e empurrou a porta. Quando ela se abriu, ele entrou no corredor longo e amplo. Nunca em San Francisco ele havia estado numa construção com uma estrutura dessas; nunca havia estado em aposentos com o pé-direito tão elevado ou visto portais tão graciosos e altos.

Um brilho profundo aparecia no assoalho de cerne de pinho apesar da margem de poeira grudenta ao longo das paredes. A tinta estava descascando das sancas lá no alto, mas as próprias sancas estavam perfeitas. Ele sentia amor por tudo o que via: pela perfeita execução dos portais em formato de buraco de fechadura, e a beleza da balaustrada da longa escada interna. Estava gostando de sentir o chão sólido sob seus pés. E o perfume bom da madeira da casa o encheu com uma satisfação súbita e agradável. Uma casa tinha um cheiro desses só num único lugar no mundo inteiro.

- Michael? Entre, Michael.

Ele caminhou até a primeira das duas portas da sala de estar. Ainda escura e sombria, embora Rowan houvesse aberto todas as cortinas. A luz entrava em listras pelas lâminas das venezianas e chegava abrandada pela tela suja da varanda para onde davam as janelas laterais. Uma aragem de madressilva. Tão doce e agradável. E aquela seria uma coroa- imperial explodindo numa infinidade de raminhos cor-de-rosa ao longo da tela? Ele não havia visto essa linda trepadeira em todo o tempo que passou fora.

Ela estava sentada, pequena e muito bonita, no longo sofá de veludo marrom, de costas para a frente da casa. Era lindo o jeito do seu cabelo cair junto ao rosto. Ela estava usando um daqueles camisões soltos de algodão enrugado, leve como a seda, e seu rosto e seu pescoço pareciam ter um forte bronzeado em contraste com a camiseta branca que usava por baixo. Suas pernas muito longas nas calças brancas; os dedos dos pés nus e surpreendentemente sexy, com um leve relance de esmalte vermelho, nas sandálias brancas.

- A pitonisa de Endor - disse ele, abaixando-se para beijar seu rosto e segurá-lo na mão esquerda, com ternura e carinho.

Ela o agarrou pelos punhos, grudando-se a ele, beijando-o na boca com violência e doçura. Ele sentia o tremor nos braços de Rowan, a febre. - Você ficou aqui sozinha?

Ela se recostou quando ele se sentou ao seu lado.

- E por que não? - perguntou ela, com a voz baixa, grave. - Larguei o hospital oficialmente hoje à tarde. Vou procurar um emprego por aqui. Vou ficar aqui, nesta casa.

Ele deu um suspiro longo e assobiante e sorriu. Está falando sério?

- Bem, o que você acha?

-Não sei. Todo o caminho até aqui... voltando do Irish Channel, eu não parava de pensar que talvez você já estivesse aqui com as malas prontas para voltar.

- Não. Não há a menor chance. Já considerei três ou quatro hospitais diferentes aqui com meu ex-chefe em San Francisco. Ele vai dar uns telefonemas para mim. Mas o que me diz de você?

- O que você está querendo dizer com isso? Rowan, você sabe por que estou aqui. Para onde poderia pensar em ir? As visões me trouxeram para cá. Não estão me mandando ir para nenhum outro lugar. Na verdade, não estão me dizendo nada. Eu ainda não consegui me lembrar. Li quatrocentas páginas da história, mas não me lembro. Foi Deborah quem eu vi, até aí eu sei. Mas realmente não sei o que ela disse.

- Você está cansado e com calor - disse ela, tocando- lhe a testa com uma das mãos. – Não está falando coisa com coisa.

Ele deu um risinho de surpresa.

- Ouçam só o que ela diz, a pitonisa de Endor. Você não leu a história? O que está acontecendo? Você não leu aquilo tudo? Estamos numa gigantesca teia de aranha e não sabemos quem a teceu. - Ele estendeu as mãos enluvadas, olhando para os dedos. - Simplesmente não sabemos!

Ela lhe lançou um olhar sereno, distante, que fez seu rosto parecer frio, muito embora ele estivesse corado e seus olhos cinzentos estivessem maravilhosamente iluminados.

- Bem, você leu, não leu? O que pensou quando leu? O que achou?

- Michael, acalme-se. Você não está me perguntando o que pensei. Está me perguntando como estou me sentindo. O que estive dizendo é o que eu penso. Não estamos presos em nenhuma teia, e ninguém a está tecendo. E, se quer um conselho, esqueça essas pessoas. Esqueça o que elas querem, essas pessoas que apareceram nas suas visões.

Esqueça-as a partir de agora.

- O que você quer dizer com "esquecer"?

- Está bem, ouça o que lhe digo. Estou aqui sentada pensando há horas, pensando nisso tudo. Minha decisão é a seguinte. Vou ficar aqui, vou ficar aqui porque esta casa é minha e porque gosto dela. Gosto também da família que conheci ontem. Gosto deles. Quero conhecê-los. Quero ouvir suas vozes, reconhecer seus rostos e aprender o que eles tiverem a me ensinar. Além do mais, eu sei que não seria capaz de me esquecer daquela velha e do que lhe fiz, não importa para onde eu fosse. - Ela fez uma pausa, com o rosto transfigurado por um instante num súbito lampejo de emoção, que logo desapareceu, deixando-a tensa e fria. Ela cruzou os braços levemente, com um dos pés na beira da mesinha de centro. - Você está prestando atenção?

- Claro que estou.

- Pois bem, eu também quero que você fique aqui. Espero que você fique e torço para isso.

Mas não por causa desse modelo, dessa teia, ou seja lá o que for. Não por causa das visões ou por causa do homem. Já que não existe absolutamente nenhum meio de se descobrir o que essas coisas querem dizer, Michael, ou de se descobrir o que foi predeterminado, para usar a palavra que você escreveu nas suas anotações, ou mesmo por que você e eu acabamos nos conhecendo. Não há meios de se saber.

- Ela parou, examinando a expressão de Michael atentamente e depois prosseguiu. - Por isso, tomei uma decisão - declarou, falando mais devagar - com base no que posso saber, no que posso ver, definir e compreender; e ela é que este é o meu lugar porque quero que o seja.

- Estou entendendo - disse ele, fazendo que sim com a cabeça.

- O que estou dizendo é que vou ficar aqui apesar desse homem e do seu aparente projeto, dessa coincidência de eu o salvar do afogamento, sendo você quem é.

Ele concordou novamente, um pouco hesitante, e depois se recostou no sofá, respirando fundo, sem tirar os olhos dela.

- Mas você não pode me dizer que não quer se comunicar com essa criatura, que não quer compreender o significado disso tudo...

- Claro que quero compreender - disse ela. - Quero mesmo, mas apenas isso não me manteria aqui. Além do mais, para essa criatura não importa se estamos em Montcleve, na França, em Tiburon, na Califórnia, ou em Donnelaith, na Escócia. E quanto ao que importa para aqueles seres que você viu, eles vão ter de voltar e lhe dizer o que interessa! Você simplesmente não sabe.

Ela fez uma pausa, procurando deliberada e obviamente abrandar suas palavras como se temesse que elas fossem por demais ferinas.

- Michael, se você quiser ficar, tome essa decisão com base em alguma outra coisa. Como talvez querer ficar aqui por minha causa, porque foi aqui que nasceu, ou por acreditar que será feliz aqui. Porque esse bairro foi o primeiro que você amou, e talvez pudesse voltar a amar.

- Nunca deixei de amar esse lugar, Rowan.

- Mas não faça nada mais para obedecer às visões! Faça as coisas apesar de elas existirem. - Rowan, estou aqui agora nesta sala por causa delas. Não perca esse fato de vista. Nós não nos conhecemos no iate clube, Rowan. Ela fez uma longa expiração.

- Insisto em perdê-lo de vista.

- Aaron conversou com você sobre tudo isso? Foi esse o conselho que lhe deu?

- Não pedi conselhos a ele - respondeu ela, cheia de paciência. - Encontrei-me com ele por dois motivos. Em primeiro lugar, eu queria conversar com ele mais uma vez e me certificar de que ele era honesto.

- E então?

-Ele é tudo o que você disse. Mas eu precisava vê-lo mais uma vez, para conversar de verdade com ele. - Ela se interrompeu. - Ele tem um jeito fascinante de falar.

- Eu sei.

- Senti isso quando o vi no velório; e houve também aquela outra vez quando o vi junto ao túmulo de Ellie.

- E você agora está tranqüila quanto a ele?

- Agora eu o conheço - disse ela, concordando. - Ele não é tão diferente de mim e de você.

- Como assim?

- Ele é dedicado - disse ela, encolhendo um pouco os ombros. - Do mesmo jeito que eu sou dedicada à cirurgia, e que você é dedicado quando está devolvendo a vida a uma casa como esta. - Ela pensou um pouco. - Ele tem ilusões, como você e eu as temos.

- Compreendo.

- O segundo motivo consistia em eu querer lhe dizer que sentia gratidão por tudo o que ele me havia dado na história. Que ele não precisava se preocupar com ressentimentos ou com revelações indevidas de minha parte.

Michael estava tão aliviado que nem a interrompeu, mas estava intrigado.

- Ele preencheu a lacuna maior e mais crucial da minha vida - disse ela.

-Creio que nem mesmo ele compreenda o que isso significou para mim. Ele é muito desconfiado. E no fundo não conhece a solidão. Está com o Talamasca desde quando era menino.

- Sei do que você está falando. Mas acho que ele realmente compreende.

- Mesmo assim, ele desconfia. Essa coisa, essa encantadora aparição de cabelos castanhos, seja lá o que for, tentou matá-lo de verdade, sabia?

- Eu sei.

- Mas eu tentei fazer com que ele entendesse minha gratidão. Que eu não o criticava sob nenhum aspecto. Há dois dias, eu era uma pessoa sem família e sem passado.

E agora tenho tanto uma quanto o outro. As questões mais torturantes da minha vida foram respondidas. Creio que ainda não absorvi o significado total. Não paro de me lembrar da minha casa em Tiburon e a cada vez percebo que não preciso mais voltar para lá, que não preciso mais ficar lá sozinha. E o impacto maravilhoso se repete.

- Nunca imaginei que sua reação fosse essa. Tenho de confessar. Imaginei que você se zangasse, que talvez se sentisse ofendida.

- Michael, não estou ligando para o que Aaron fez a fim de obter as informações. Não me importo com o que os seus colaboradores tenham feito, ou com o que fizeram desde o princípio. A questão é que a informação seria absolutamente inexistente se ele não a houvesse compilado. A mim restaria aquela velha e as coisas nocivas que ela disse. E todos os primos radiantes, sorridentes e oferecendo solidariedade, mas incapazes de contar a história toda por não a conhecerem. Eles só conhecem pequenos trechos cintilantes. - Ela respirou fundo. - Sabe, Michael, algumas pessoas não sabem receber presentes. Elas não sabem tomar posse e fazer uso deles. Eu preciso aprender a receber presentes. Esta casa é um presente. A história foi outro. E a história torna possível que eu aceite a família! E meu Deus, eles são o maior presente de todos.

Mais uma vez, ele sentiu alívio, um profundo alívio. Suas palavras como que o fascinavam. Mesmo assim, ele não conseguia superar a surpresa.

- E a parte do arquivo a respeito de Karen Garfield? E o Dr. Lemle? Tive tanto medo por você quando lesse isso.

A centelha de dor no seu rosto dessa vez foi mais forte, mais clara. Ele imediatamente lamentou sua falta de tato. De repente, pareceu imperdoável ter falado sem pensar.

- Você não me compreende - disse ela, com a voz tão neutra quanto antes. - Não entende o tipo de pessoa que eu sou. Eu queria saber se tinha aquele poder ou não!

Fui procurá-lo porque imaginei que, se você me tocasse com as suas mãos, poderia me dizer se esse poder realmente existia. Bem, você não pôde dizer isso. Mas Aaron me disse. Aaron me deu uma confirmação. E nada, nada poderia ter sido pior do que suspeitar e não ter certeza.

- Compreendo.

- Será? - Ela engoliu em seco, com o rosto de repente se esforçando muito para conservar sua expressão de tranqüilidade. E então seus olhos ficaram baços por um instante e só voltaram a brilhar com um óbvio ato de determinação. Ela prosseguiu, num sussurro áspero. - Odeio o que aconteceu a Karen Garfield. Detesto mesmo.

Já Lemle? Lemle já estava doente. Ele havia sofrido um derrame no ano anterior. Sobre Lemle não tenho certeza, mas com Karen Garfield... ali fui eu, sim. E Michael, aconteceu porque eu não sabia!

- Entendo - disse ele, baixinho.

Por algum tempo, ela se esforçou em silêncio para reconquistar a serenidade. Quando voltou a falar, sua voz estava exausta e um pouco rouca. - Eu ainda tinha mais um motivo para querer ver Aaron.

- Qual era?

Ela pensou um pouco antes de responder.

-Não estou em comunicação com esse espírito, e isso quer dizer que não tenho como controlá-lo. Ele ainda não se revelou a mim, não de verdade. E pode ser que não o faça.

- Rowan, você já o viu, e além do mais ele está à sua espera.

Ela refletia, com a mão mexendo à toa num pequeno fio de linha na barra da camisa.

- Eu sou hostil a ele, Michael. Não gosto dele. E acho que ele sabe. Estive aqui sentada horas a fio, sozinha, convidando-o a se achegar e, ainda assim, sentindo ódio e medo dele.

Michael ficou intrigado com isso.

- Talvez ele tenha exagerado - disse ela.

- Você está se referindo ao jeito com que ele tocou em você...

- Não. Estou querendo dizer que ele pode ter exagerado em mim. Ele pode ter ajudado a criar exatamente a médium que não pode ser seduzida por ele ou enlouquecida por ele. Michael, se com esse meu poder invisível eu posso matar um ser humano de carne e osso, como você imagina o impacto da minha hostilidade sobre Lasher?

Ele espremeu os olhos, olhando atento para ela.

- Não sei - confessou ele.

A mão de Rowan tremia ligeiramente quando ela empurrou para trás o cabelo que caía sobre o rosto. A luz do sol se refletiu nele por um instante, tornando-o realmente louro.

- Minhas aversões são muito profundas. Sempre foram. Elas não mudam com o tempo.

Sinto uma aversão arraigada por essa criatura. Ah, eu me lembro do que você disse ontem à noite, a respeito de querer conversar com a criatura, argumentar com ela, descobrir o que ela quer. Mas neste exato momento a repulsa é o que há de mais forte.

Michael ficou observando Rowan por algum tempo, em silêncio. Ele sentiu uma aceleração estranha, quase inexplicável, do seu amor por ela.

- Sabe, você estava certa no que disse antes. Eu realmente não a compreendo, nem compreendo que tipo de pessoa você é. Eu a amo, mas não a entendo.

- É que você pensa com o coração - disse ela, tocando delicadamente no seu tórax com o punho fechado. - É isso o que o faz tão bom. E tão ingênuo. Já eu não ajo assim. Existe em mim algo de mau igual ao mal das pessoas ao meu redor. Elas raramente me surpreendem. Mesmo quando me deixam furiosa.

Ele não quis discutir com ela. Mas não era ingênuo, não!

- Estou há horas pensando em tudo isso - disse ela. - Nesse poder de romper vasos sangüíneos e aortas, provocando a morte como que por uma praga rogada. Se esse poder que tenho servir para alguma coisa, talvez ele sirva para destruir essa entidade. Talvez ele possa atuar sobre a energia controlada pela criatura, da mesma forma que atua sobre as células de seres vivos.

- Isso nunca chegou a me passar pela cabeça.

- É por isso que temos de pensar com independência - disse ela. - Antes de mais nada, sou médica. Sou mulher e pessoa, em segundo lugar. E para mim, na qualidade de médica, é perfeitamente fácil ver que essa entidade existe em alguma espécie de relação contínua com o mundo físico. É cognoscível o que esse ser é. Cognoscível como o enigma da eletricidade era cognoscível no ano 700 da era cristã, embora ninguém o conhecesse.

Michael concordou.

- Seus parâmetros. Você usou essa palavra ontem à noite. Não paro de me perguntar sobre seus parâmetros. Se ele é sólido o suficiente quando se materializa para que eu o toque.

- Isso. Exatamente. O que ele é quando se materializa? Tenho de descobrir seus parâmetros.

Meu poder também funciona de acordo com as normas do nosso mundo físico.

E eu tenho de aprender os parâmetros do meu poder também.

A dor voltou ao seu rosto, mais uma vez como um lampejo de luz, algo que deformava sua expressão e que depois se ampliava até que o rosto liso parecesse ameaçado de murchar como o de uma boneca no fogo. Só aos poucos, ela voltava a uma expressão neutra, calma, bonita e calada. Sua voz era um fio quando ela prosseguiu.

- Essa é a minha cruz, o meu poder. Da mesma forma que a sua cruz é o poder que tem nas mãos. Nós vamos aprender a controlar essas coisas para podermos decidir quando e onde usá-las.

- É, é isso mesmo o que temos de fazer.

- Quero lhe dizer uma coisa sobre aquela velha, Carlotta, e sobre meu poder...

- Você não precisa falar se não quiser.

- Ela sabia que eu ia fazer aquilo com ela. Ela previu e, calculista, me provocou. Eu poderia jurar que foi isso o que fez.

- Por quê?

- Fazia parte dos planos dela. Eu não paro de pensar nisso. Talvez ela pretendesse me deixar abatida, destruir minha confiança. Ela sempre usou a culpa para magoar Deirdre, e é provável que a tenha usado também com Antha. Mas não vou me deixar atrair pelas longas articulações dos seus planos. Seria errado que agíssemos assim agora, que falássemos neles, em Lasher, nas visões e na velha, e no que eles querem. Eles traçaram um monte de círculos para nós, e eu não quero andar em círculos.

- É... Como eu entendo o que você quer dizer.

Devagar, ele deixou de olhar para ela e tentou apanhar cigarros no bolso. Restavam três. Ele lhe ofereceu um, mas ela recusou. Estava a observá-lo.

- Algum dia - disse ela - vamos poder sentar à mesa e beber vinho branco, cerveja, seja o que for, juntos, e falar neles. Conversar sobre Petyr van Abel, Charlotte, Julien e tudo o mais. Mas não agora. Agora eu quero separar o que vale a pena do que não vale, o que tem substância do que é místico. E eu gostaria que você fizesse o mesmo.

- Estou seguindo seu raciocínio - disse ele, procurando os fósforos. Ah, não tinha nenhum.

Dera os fósforos àquele velho.

Ela enfiou a mão no bolso da calça, tirou dali um delicado isqueiro de ouro e acendeu o cigarro.

- Obrigado - disse ele.

- Sempre que focalizamos a atenção neles, o efeito é o mesmo. Ficamos passivos e confusos.

- Você tem razão, Rowan. - Ele estava pensando em todo o tempo que havia passado no quarto escurecido em Liberty Street, tentando se lembrar, tentando compreender. Mas aqui estava ele, afinal, nesta casa. E ainda não havia tirado as luvas, a não ser por duas situações na noite anterior, quando havia tocado nos restos mortais de Townsend e na esmeralda. A simples idéia já o apavorava. Tocar os batentes das portas, as mesas e as cadeiras que haviam pertencido à família Mayfair, tocar os objetos mais antigos, o baú de bonecas no sótão, que Rowan lhe havia descrito, e os frascos, aqueles frascos fedorentos...

- Nós nos tornamos passivos e confusos - disse ela novamente, exigindo sua atenção. - E não pensamos mais com independência, que é exatamente o que devemos fazer.

- Concordo com você - disse ele. - Só gostaria de ter a sua calma.

Gostaria de saber todas essas meias-verdades e não sair feito um tonto em meio à escuridão, procurando compreender tudo.

- Não seja joguete de ninguém, Michael. Procure a atitude que lhe dê o máximo de força e de dignidade, não importa o que possa estar acontecendo por fora.

- Você está querendo dizer que devemos lutar pela perfeição.

- O quê?

- Na Califórnia, você disse que achava que todos nós deveríamos ter como alvo a perfeição.

-É, eu disse isso mesmo? Bem, acredito nisso aí. Estou tentando descobrir qual é o procedimento perfeito nesse caso. Por isso, não aja como se eu fosse uma louca só porque não estou chorando, Michael. Não pense que eu não saiba o que fiz a Karen Garfield, ao Dr. Lemle ou àquela garotinha. Eu sei. Sei mesmo.

- Eu não quis dizer...

- Ah, quis, quis, sim - retrucou ela com uma leve aspereza. - Não goste de mim mais quando eu choro do que quando eu não choro.

- Rowan, eu não...

- Chorei um ano inteiro antes de conhecer você. Comecei a chorar quando Ellie morreu.

Depois chorei nos seus braços. Chorei quando recebi o telefonema de Nova Orleans com a notícia da morte de Deirdre, e eu nem a havia conhecido, falado com ela ou posto meus olhos sobre ela. Chorei sem parar. Chorei quando a vi no caixão ontem. Chorei por ela ontem à noite. E chorei também pela velha. Pois bem, não quero continuar chorando. O que eu tenho aqui é a casa, a família e a história que Aaron me entregou. Tenho você. Uma verdadeira oportunidade com você. E que motivos tenho para chorar, é o que gostaria de saber.

Ela olhava para ele, séria, obviamente frigindo de raiva e do conflito em seu íntimo, com os olhos cinzentos faiscando na direção dele na penumbra.

- Você vai me fazer chorar, Rowan, se não parar.

Ela riu apesar de si mesma. Sua expressão se abrandou maravilhosamente, com a boca formando um sorriso involuntário.

- Está bem - disse ela. - E tem mais uma coisa que poderia me fazer chorar. Acho que devo lhe dizer isso para ser perfeitamente franca. É que... eu choraria se perdesse você.

- Que bom - disse ele, baixinho, beijando-a rapidamente antes que ela o impedisse.

Ela fez um pequeno gesto para que ele voltasse a se sentar, para que ficasse sério e ouvisse com atenção. Ele fez que sim e deu de ombros.

- Quero que me diga o que você quer fazer. Ou melhor, o que você quer fazer? Não estou me referindo ao que aqueles seres querem de você. O que está aí na sua cabeça agora?

- Quero ficar aqui. Como gostaria de não ter morado longe tanto tempo! Não sei por que fiz isso.

- Certo, agora você está falando. Está falando de alguma coisa real.

- Sem a menor dúvida - disse ele. - Estive andando lá pelas ruas onde cresci. Já não é mais o mesmo bairro. Nunca foi bonito, mas agora está miserável, em ruínas... destruído.

Ele viu imediatamente a preocupação nos olhos de Rowan.

- É, bem, está tudo mudado - prosseguiu ele, com um pequeno gesto cansado de aceitação. - Mas Nova Orleans nunca foi para mim apenas aquele bairro. Nunca foi Annunciation Street. Nova Orleans estava aqui no Garden District, na parte alta da cidade; estava no French Quarter, no centro; estava em todos esses locais lindos. Eu adoro a cidade. Estou feliz por estar aqui de volta. Não quero sair daqui outra vez.

-Tudo bem, Michael. - Ela sorriu, e a luz delineou a curva do seu rosto e a beira da sua boca.

- Sabe, eu não parava de pensar, estou de volta. Voltei. E não importa o que aconteça com todo o resto, não quero sair mais daqui.

- Eles que vão para o inferno, Michael. Quem quer que sejam, que vão para o inferno, pelo menos até que nos dêem alguma razão para pensar de outra forma.

- Palavras acertadas - disse ele, sorrindo.

Como Rowan era misteriosa, uma mistura desconcertante de suavidade e aspereza. Talvez seu erro estivesse em ter sempre confundido a força com a frieza nas mulheres. Talvez a maioria dos homens confundisse.

- Eles voltarão a aparecer - disse ela. - Terão de aparecer. E quando o fizerem, então vamos pensar e decidir que atitude tomar.

- É, isso mesmo - disse ele. E se eu tirasse minhas luvas? Será que eles me apareceriam agora?

- Mas não vamos ficar sem respirar até isso acontecer. - Não. - Ele sorriu.

Michael ficou calado, cheio de ansiedade, e ainda assim cheio de preocupação, embora cada palavra que ela dizia o alegrasse e lhe desse a impressão de que essa ansiedade ia se dissipar a qualquer instante.

Ele se flagrou olhando para o espelho lá nos fundos da sala e vendo sua minúscula imagem nele, bem como os lustres repetidos, presos pelos dois espelhos, em meio a um clarão prateado, num avanço infindo até a eternidade.

- Você gosta de me amar? - perguntou ela.

- Como assim?

- Você gosta? - Pela primeira vez, sua voz demonstrava claramente um tremor.

- Gosto. Eu adoro gostar de você. Mas é apavorante, porque você é diferente de qualquer outra pessoa que eu conheci. Você é tão forte.

- Sou mesmo - disse ela, com a voz gutural. - Porque eu poderia matá-lo agora mesmo se quisesse. Toda a sua força masculina não lhe serviria de nada.

-Não, não foi isso o que eu quis dizer. - Ele se voltou e olhou para ela, por um instante na penumbra seu rosto pareceu indescritivelmente frio e ardiloso, com as pálpebras semi-cerradas e os olhos reluzindo. Ela parecia perigosa como havia parecido por um átimo na casa em Tiburon, à luz fria que entrava pela vidraça na sala escurecida.

Ela se sentou ereta, com um levíssimo farfalhar do tecido, e ele se flagrou recuando dela, instintivamente, todo arrepiado. Era aquela cautela que se sente quando se vê uma cobra na grama a cinco centímetros do sapato, ou quando se percebe que o homem na banqueta ao lado no bar acabou de se virar para você com um canivete aberto.

- O que está acontecendo com você, Rowan?

Foi quando ele percebeu. Viu que ela estava tremendo, e que seu rosto estava manchado de cor-de-rosa e ao mesmo tempo de uma palidez mortal. Suas mãos se estenderam para ele e depois se encolheram. Ela olhou para elas e as juntou como se estivesse tentando conter algo indescritível.

- Meu Deus, e eu nem odiava Karen Garfield. Não mesmo! Deus me perdoe, eu...

- Não, querida, foi um erro, um erro terrível, e você nunca mais vai cometer um erro desses.

- Não, nunca mais. Mesmo com a velha, eu juro que não acreditava.

Ele queria desesperadamente ajudá-la, mas não sabia o que fazer. Ela tremia como uma chama nas sombras, mordendo o lábio inferior, e a mão direita apertando cruelmente a esquerda.

- Pare com isso, meu bem. Pare. Você está se machucando - disse ele. Mas, quando ele a tocou, ela lhe deu a impressão de ser de aço, inflexível.

- Juro que não acreditei. É como um impulso, sabe, e não dá para acreditar que seja possível... Fiquei tão furiosa com Karen Garfield. Era uma afronta ela vir até ali, ela entrar na casa de Ellie, era uma afronta absurda!

- Eu sei. Estou entendendo.

- O que eu faço para neutralizar essa força? Será que ela volta para dentro de mim e começa a me queimar por dentro?

- Não.

Ela afastou o olhar, recolhendo os joelhos junto ao corpo e examinando a sala sem grande interesse, um pouco mais calma agora, embora seus olhos estivessem extraordinariamente dilatados e seus dedos continuassem a se movimentar com ansiedade.

- Fico surpresa por você ainda não ter descoberto a resposta óbvia, - disse ela. - A resposta mais clara e perfeita.

- Do que está falando?

- Talvez seu objetivo seja simples. Talvez seja o de me matar.

- Meu Deus, como você pôde pensar uma coisa dessas? - Ele se aproximou dela, afastando o cabelo do seu rosto e procurando aconchegar seu corpo. Ela o olhava como se estivesse a uma enorme distância.

- Querida, ouça o que lhe digo. Qualquer um pode tirar a vida de um ser humano. É fácil. Muito fácil. Há milhões de métodos. Você conhece meios que eu desconheço porque você é médica. Aquela mulher, Carlotta, por pequena que fosse, matou um homem forte o suficiente para estrangulá-la com uma das mãos. Quando durmo com uma mulher, ela pode me matar se quiser. Você sabe disso. Um bisturi, um alfinete de chapéu, um pouco de veneno mortal. É fácil. E nós não fazemos esse tipo de coisa.

Nada neste mundo pode fazer a maioria de nós sequer chegar a pensar nisso. E foi assim a vida inteira para você. Agora você descobriu que tem um poder mutante, algo que se situa além das leis da escolha, do impulso e do autocontrole, algo que exige uma compreensão mais sutil, e você tem essa compreensão. Você tem o poder para conhecer seu próprio poder.

Ela concordou, em silêncio, mas tremia de corpo inteiro. E ele sabia que ela não acreditava nele. E de certo modo, ele não tinha certeza se acreditava em si mesmo. De que adiantava negar? Se ela não controlasse esse poder, inevitavelmente acabaria por usá-lo outra vez.

No entanto, ele ainda tinha mais uma coisa a dizer, algo relacionado às visões e ao poder das suas mãos.

- Rowan - disse ele -, você me pediu que tirasse as luvas na noite em que nos conhecemos.

Que segurasse suas mãos. Já fiz amor com você sem luvas. Só o seu corpo e o meu; nossas mãos se tocando e as minhas tocando todo o seu corpo. E o que é que eu vejo, Rowan? O que é que eu sinto? Sinto bondade e amor.

Ele beijou seu rosto. Beijou seu cabelo, afastando-o da testa com a mão.

- Você tem razão em muitas coisas do que disse, Rowan, mas não nesse ponto. Não estou destinado a atingi-Ia. Eu lhe devo a minha vida. - Ele virou a cabeça dela na sua direção e a beijou, mas ela ainda estava fria e trêmula, e muito longe do seu alcance. Ela segurou suas mãos e as empurrou para baixo e para longe de si, com leveza, concordando com ele, e então lhe deu um beijo delicado, mas não queria que ele a tocasse agora. Não adiantava nada.

Ele ficou ali algum tempo sentado, a pensar, olhando o aposento comprido e pomposo.

Olhando para os espelhos altos nas suas sombrias molduras trabalhadas, para o empoeirado piano Bôzendorfer lá no fundo e para as cortinas como longas pinceladas de cor desbotada na penumbra.

Pôs-se, então, de pé. Não agüentava mais ficar sentado. Andou de um lado para o outro diante do sofá e acabou parado junto à janela lateral, olhando para a varanda de tela empoeirada ali fora.

- O que foi que você disse agora mesmo? - perguntou ele, voltando-se para ela. - Você disse alguma coisa sobre passividade e confusão. Pois é nisso que estamos, Rowan, na confusão.

Ela não respondeu. Estava ali sentada, encolhida, com os olhos fixos no chão.

Ele voltou até ela e a levantou do sofá, abraçando-a. Seu rosto ainda estava manchado de cor-de-rosa e muito pálido. Seus cílios pareciam longos e escuros enquanto ela olhava para baixo.

Ele apertou os lábios contra os dela, com delicadeza, sem sentir nenhuma resistência, quase como se ela não percebesse, como se fosse a boca de uma pessoa inconsciente ou em sono profundo. Depois, lentamente, ela se reanimou. Subiu as mãos pelas suas costas até chegar à nuca e o beijou também.

- Rowan, existe um esquema - sussurrou ele no seu ouvido. - Existe uma grande teia, e nós estamos nela. Mas acredito agora, como acreditava antes, que elas eram boas, aquelas pessoas que nos reuniram. E o que querem de mim é bom. Preciso descobrir o que é, Rowan. Preciso. Mas sei que é bom. Da mesma forma que sei que você é boa.

Ele a ouviu suspirar, sentiu o peso dos seus seios quentes pressionando o tórax. Quando ela afinal se afastou, foi com enorme ternura, beijando os dedos dele enquanto os soltava.

Ela caminhou até o centro do longo aposento. Parou abaixo do grande arco que dividia o espaço em dois salões e olhou para os belos desenhos em alto-relevo no gesso e para a curva delicada do arco para encontraras cornijas dos dois lados. Ela parecia estar inspecionando essa parte, parecia estar perdida na contemplação da casa.

Ele se sentia vulnerável e fechado. Aquela conversa o havia magoado. Não conseguia se livrar de uma sensação.de infelicidade e suspeita, embora não suspeitasse dela.

- Quem se importa! - exclamou ela, baixinho, como se estivesse falando consigo mesma, mas ainda parecia frágil e insegura.

O pôr-do-sol empoeirado entrava pela varanda telada e revelava a cera âmbar sobre o velho assoalho. Partículas de pó turbilhonavam à sua volta.

- Palavras, palavras, palavras - disse ela. - O próximo passo é deles. Você já fez o que podia. E eu também. E aqui estamos nós. Eles que venham nos procurar.

- É, eles que venham.

Ela se voltou para ele, convidando-o em silencio a se aproximar mais, com uma expressão de súplica e quase de tristeza. Uma fisgada de medo o atingiu e o deixou vazio. O amor que sentia por ela era tão valioso e, no entanto, ele sentia medo, medo de verdade.

- Michael, o que vamos fazer? - perguntou ela, dando de repente um sorriso lindo e carinhoso. Ele riu baixinho.

- Não sei, meu amor. - Encolheu os ombros e abanou a cabeça. - Não sei.

- Você sabe o que eu quero de você neste instante?

- Não, mas seja o que for, é seu.

Ela estendeu a mão para pegar a dele.

- Fale- me desta casa - disse ela, erguendo os olhos para encará-lo. - Diga- me tudo o que sabe a respeito de uma casa como esta. Quero saber se ela realmente tem salvação.

- Querida, ela só está esperando por isso, só esperando. Ela é tão sólida quanto qualquer castelo de Montcleve ou de Donnelaith.

- E você poderia se encarregar disso? Não estou dizendo que seja com suas próprias mãos...

- Eu simplesmente adoraria fazê-lo com minhas próprias mãos. - Ele olhou para elas de repente, essas miseráveis mãos enluvadas. Há quanto tempo não segurava num martelo e pregos, no cabo de um serrote, ou passava uma plaina na madeira. Ele olhou, então, para o arco pintado acima deles, para a longa extensão do forro com sua tinta rachada e descascada. - Ah, como eu adoraria.

- E se você tivesse carta branca? E se você pudesse contratar quem quer que fosse necessário: gessistas, pintores, telhadores, gente que devolvesse a vida a tudo, que restaurasse todos os cantinhos e frestas...

Suas palavras prosseguiam lentas e exuberantes. Mas ele sabia tudo o que ela dizia. Ele compreendia. E se perguntava se seria possível que ela compreendesse tudo o que aquilo representava para ele. Sempre havia sido seu maior sonho trabalhar numa casa como esta. Mas não se tratava de uma casa como esta; tratava-se desta casa.

E sua memória viajava cada vez mais longe no passado, até quando era menino, ali do lado de fora do portão, um menino que ia até a biblioteca para retirar das estantes os antigos livros cheio de ilustrações que mostravam esta casa, este mesmo salão, aquele corredor, porque ele nunca havia imaginado ver esses aposentos a não ser em livros.

E na visão, a mulher havia dito, convergindo para este exato ponto no tempo, nesta casa, neste instante crucial em que...

- Michael? Você quer fazer a restauração?

Através de um véu, ele via que seu rosto se iluminava como o de uma criança. Mas ela parecia tão distante, tão radiante, feliz e longínqua. É você, Deborah?

- Michael, tire essas luvas - disse Rowan, assustando-o com sua súbita rispidez. - Volte a trabalhar! Volte a ser você mesmo. Há cinqüenta anos ninguém é feliz nesta casa; ninguém ama nesta casa; ninguém tem sucesso aqui! Chegou a nossa hora de amar e de vencer aqui. Chegou a nossa hora de conquistar a própria casa de volta.

Eu soube disso quando terminei o Arquivo sobre as Bruxas Mayfair. Michael, esta é a nossa casa.

Mas você pode alterar... Nunca pense por um instante sequer que não tem o poder, pois o poder deriva de...

- Michael, me responda.

Alterar o quê? Não vão embora assim. Contem-me!

Mas eles haviam desaparecido, como se nunca houvessem se aproximado, e aqui estava ele, com Rowan, ao sol, pisando no chão aquecido, cor de âmbar, e ela esperava que ele respondesse.

E a casa esperava, a linda casa, por baixo das camadas de ferrugem e sujeira, por trás das sombras e do emaranhado das trepadeiras, com seu calor e sua umidade, ela esperava.

- Ah, sim, querida, quero, sim - disse ele, como se estivesse acordando de um sonho, com os sentidos subitamente inundados pela fragrância da madressilva nas telas, pelo canto das aves lá fora e pelo calor do próprio sol que entrava, chegando até eles.

Ele se voltou no meio do longo salão.

- A luz, Rowan. Vamos deixar a luz entrar - disse ele, pegando sua mão. - Vamos ver se essas venezianas velhas ainda abrem.

Em silêncio reverente, eles começaram a explorar a casa. A princípio, era como se houvessem escapado dos guardas de um museu e não ousassem abusar da sua liberdade acidental.

Sentiam respeito demais para tocar nos pertences pessoais daqueles que um dia haviam vivido ali. Uma xícara de café numa mesa de vidro no jardim de inverno. Uma revista dobrada numa cadeira.

Passaram, sim, pelos quartos e corredores, abrindo cortinas e venezianas, apenas espiando de vez em quando nos armários, cômodas e gavetas, com o máximo cuidado. Aos poucos, porém, à medida que o calor sombrio se tornava mais familiar, os dois foram ficando mais ousados.

Só na biblioteca permaneceram uma hora, examinando as lombadas dos clássicos encadernados em couro e os antigos livros de registros da fazenda de Riverbend, entristecidos ao notar que as páginas estavam esponjosas e arruinadas. Quase nada das antigas anotações estava legível.

Não tocaram nos papéis em cima da escrivaninha, que Ryan Mayfair viria recolher e examinar. Inspecionaram os retratos emoldurados nas paredes.

- Esse é Julien, tem de ser. - De uma beleza sinistra, sorrindo para os dois ali parados no corredor. - O que é aquilo em segundo plano? - Estava tão escurecido que Michael mal pôde discernir. Depois, percebeu. Era Julien em pé na varanda da frente da casa.

- É, e ali, aquela velha fotografia parece ser Julien com seus filhos. O que está mais perto de Julien é Cortland, meu pai. - Também ali estavam agrupados na varanda, sorrindo através da sépia desbotada. E como pareciam alegres, até mesmo cheios de vida. E o que você veria se tocasse neles, Michael? E como você sabe que não é isso o que Deborah quer que faça?

Ele se voltou rapidamente. Queria ir atrás de Rowan. Adorava o jeito de caminhar de Rowan, seus longos passos flexíveis, o balanço do seu cabelo com o ritmo do movimento. Ela parou junto ao portal da sala de jantar e sorriu para ele. Você vem?

Na pequena despensa de pé-direito alto, descobriram prateleiras e mais prateleiras de porcelana maravilhosa: Minton, Lenox, Wedgwood, Royal Doulton, com motivos florais, motivos orientais, frisos dourados e prateados. Louça branca, porcelana chinesa, Blue Willow e Spode antigos.

Havia caixas e mais caixas de prata de lei, pesadas peças trabalhadas às centenas, aninhadas em feltro, incluindo conjuntos antiqüíssimos com as marcas inglesas e a inicial M, ao estilo europeu, gravada no verso.

Michael era quem conhecia esse tipo de coisa. Seu longo caso de amor com os objetos da era vitoriana sob todas as formas agora lhe era valioso. Ele sabia identificar as facas para peixe, os garfos para ostras, as colheres para geléia e dezenas de outros minúsculos itens específicos, dos quais havia uma infinidade em mais de dez desenhos diferentes.

Encontraram candelabros de prata, tigelas de ponche e travessas trabalhadas, cestas para pão, manteigueiras, velhas jarras de água, cafeteiras, bules e garrafas.

Motivos delicadíssimos. Como por mágica, os objetos mais escuros, com uma esfregada do dedo, revelavam o velho brilho da pura prata por baixo.

Tigelas de cristal lapidado de todos os tamanhos estavam no fundo dos armários; pratos e travessas de cristal esmaltado.

Apenas as toalhas de mesa e as pilhas de guardanapos não tinham mais salvação, tendo o linho e a renda apodrecido na umidade inevitável, com a letra M aparecendo orgulhosa aqui e ali por baixo das manchas escuras de mofo.

No entanto, mesmo alguns deles haviam sido cuidadosamente conservados numa gaveta seca, forrada de cedro, embrulhados em papel azul. Rendas antigas pesadas que haviam adquirido um lindo tom amarelado. E jogados ali no meio, porta-guardanapos de marfim, de prata e de ouro.

Tocar neles? Será que o MBM significava Mary Beth Mayfair? E aqui, aqui está um com as letras JM, e você sabe a quem deve ter pertencido. Michael o devolveu ao seu lugar, com os dedos enluvados agora tão ágeis quanto os dedos nus, muito embora suas mãos estivessem quentes e o incomodassem; e a cruz, como Rowan a chamava, pesasse cortante sobre ele.

O sol do final da tarde entrava em raios longos, oblíquos, pelas janelas da sala de jantar. Olhar para você novamente neste cenário. Rowan Mayfair. Os murais ganhavam vida, revelando toda uma população de pequenas figuras perdidas nos belos campos da fazenda. A imensa mesa retangular estava ali firme e sólida, como devia estar talvez há um século. As cadeiras Chippendale, com o encosto intrincadamente entalhado, estavam enfileiradas ao longo das paredes.

Será que iremos jantar aqui em breve à luz trêmula de velas altas?

- Claro - sussurrou ela. - Claro que vamos.

Depois, na copa, encontraram os cristais delicados, em quantidade suficiente para o banquete de um rei. Encontraram finos copos de pé e outros de fundo grosso desenhados com flores: copos para xerez, para conhaque, para champanhe, para vinho branco e vinho tinto, para provas e para sobremesas, acompanhados de garrafas ornamentadas, com tampas de vidro, jarras de cristal lapidado e, novamente, belos pratos, em pilhas, refletindo a luz.

Tantos tesouros, pensou Michael, e tudo aquilo aparentemente esperando pelo toque de uma varinha de condão para voltar ao uso.

- Estou imaginando festas - disse Rowan - festas como nos velhos tempos, para reunir todo mundo e lotar a mesa de comida. Parentes e mais parentes.

Michael contemplava seu perfil em silêncio. Ela estava segurando um delicado copo de pé com a mão direita, deixando que a luz frágil do sol o atingisse.

- É tudo tão gracioso, tão sedutor - disse ela. - Eu não sabia que a vida podia ser do jeito que parece ser aqui. Eu não sabia que havia casas assim em parte alguma dos Estados Unidos. Como tudo isso é estranho. Viajei pelo mundo inteiro, e nunca estive num lugar como este. É como se o tempo houvesse se esquecido completamente deste lugar.

Michael não pôde deixar de sorrir.

- As coisas aqui mudam muito devagar - disse ele. - Graças a Deus.

- Só que é como se eu tivesse sonhado com esses aposentos e com um estilo de vida que pode ser vivido aqui e nunca me lembrasse ao despertar. Mas alguma coisa em mim devia se lembrar. Alguma coisa em mim se sentia estranha e perdida no mundo que criamos lá na Califórnia.

Saíram juntos para o pátio ao sol, vagando por perto da antiga piscina e pelo vestiário em ruínas.

- Tudo isso aqui está sólido - explicou Michael enquanto examinava as portas de correr, a pia e o chuveiro. - Tem conserto. Olhe, isso aqui foi construído com cipreste.

E os canos são de cobre. Nada destrói o cipreste. Eu poderia consertar esses encanamentos em dois dias.

Voltaram pela grama alta passando por onde antes ficavam os anexos. Não restava nada a não ser uma solitária construção de madeira triste e caindo aos pedaços bem nos limites dos fundos do terreno.

- Não está em mau estado. Não tão mau assim - disse Michael, espiando pelas telas empoeiradas. - Talvez os criados do sexo masculino morassem aqui. É uma espécie de garçonnière.

Aqui estava o carvalho no qual Deirdre procurava abrigo, chegando talvez a mais de vinte e cinco metros de altura. A folhagem estava escura, empoeirada e ressecada com o calor do verão. Na primavera, iria se abrir num maravilhoso verde novo. Imensas moitas de bananeiras surgiam como capins monstruosos em trechos de sol. E um longo muro de tijolos, de perfeita construção, se estendia nos fundos da propriedade, de um lado ao outro, coberto de hera e de glicínias emaranhadas até as dobradiças dos portões de Chestnut Street.

- As glicínias estão em flor - disse Michael. - Adoro essas flores. Como eu gostava de tocá-las, quando saía a passear, para ver as pétalas estremecerem.

Por que cargas d'água você não pode tirar essas luvas um instante, só para sentir aquelas pétalas delicadas na sua mão.

Rowan estava parada de olhos fechados. Estaria ouvindo os passarinhos? Ele se descobriu examinando a longa ala posterior da casa principal, as sacadas dos criados com seus gradis de madeira pintada de branco e sua treliça branca que servia de divisória.

Só ver essa treliça o conquistou e fez com que ele se sentisse feliz.

Essas eram todas as cores e texturas aleatórias de casa.

Casa. Como se algum dia tivesse morado num lugar assim. Bem, será que algum observador errante teria amado esta casa mais do que ele? E de certo modo ele sempre havia vivido nela. Ela era o lugar de que sentia saudades quando foi embora, o lugar com que sonhava...

Você não pode imaginar a violência do ataque... - Michael?

- O que é, querida? - Ele a beijou, sentindo o perfume delicioso do sol no seu cabelo. O calor emprestava um brilho à sua pele. Mas a comoção das visões continuava.

Ele abriu bem os olhos, deixando a luz queimada da tarde enchê-los, deixando o suave zumbido dos insetos embalá-lo. um emaranhado de mentiras...

Rowan ia à sua frente no capim alto.

- Há-lajes aqui, Michael - disse ela, com a voz se tornando aguda ao ar livre. - Tudo isso aqui é de lajes. Estão só encobertas.

Ele seguia atrás dela, de volta ao jardim da frente. Encontraram pequenas estátuas gregas, sátiros de cimento deixados lindos pelas intempéries, espiando com seus olhos cegos por trás do buxo crescido demais. Uma ninfa de mármore perdida no meio das camélias de folhas escuras e ceráceas; e as minúsculas flores amarelas do cambará exibindo sua beleza onde quer que o sol batesse.

- Costumávamos chamar essa florzinha de "bacon com ovos" - disse ele, apanhando um raminho para Rowan. - Está vendo as pequenas pétalas amarelas e marrons, misturadas com o laranja? E ali, ali está a variedade azul. E aquela flor lá, aquela é o beijo-de-frade, e olhe, aquele é o malvavisco, aquelas grandes flores azuis junto à varanda, mas nós sempre a chamamos de altéia.

- Altéia, lindo.

- Aquela trepadeira ali é a coroa- imperial ou coroa de coral, mas nós a chamávamos de rosa de Montana.

Eles apenas vislumbravam o borrão branco da velha cadeira de balanço de Deirdre acima da renda das trepadeiras.

- Elas devem ter sido podadas para ela poder olhar aqui para fora - disse ele. - Está vendo como cresceram mais do outro lado, lutando com a buganvília? Ah, mas essa é a rainha de todas, não é?

Quase violento o roxo fluorescente das brácteas que todos imaginavam ser flores.

- Meu Deus, quantas vezes procurei pôr tudo isso em algum pequeno quintal na Califórnia, antes de entregar a chave ao novo proprietário. Depois de ter pendurado as cortinas de renda nas janelas, depois de ter encerado o piso com Minwax Golden Oak e de ter encontrado a banheira antiga no ferro-velho. Mas essa casa é outra coisa, é autêntica...

- E é sua, também - disse ela. - Sua e minha. - Quanta inocência ela aparentava agora! Como seu sorriso delicado parecia cheio de sinceridade! Ela o enlaçou novamente, apertando com os dedos nus sua mão enluvada. - Mas, e se por dentro estiver toda estragada, Michael? O que seria necessário para consertar tudo o que estiver errado?

- Venha cá, fique aqui parada e olhe. Está vendo como as sacadas dos criados estão em perfeito prumo ali em cima? Não há nenhum problema absolutamente com os alicerces dessa casa. No térreo não se vê nenhum vazamento, nenhuma infiltração. Nada! E nos velhos tempos essas sacadas eram os corredores pelos quais os criados passavam de um lado para o outro. É por isso que são tantas as portas e as janelas que vão até o chão. E por sinal, todas as portas e janelas que examinei estão no prumo. Além disso, a casa é toda aberta do lado de cá para receber a brisa do rio. Por toda a cidade, você constatará isso: as casas se abrem para o lado do rio para receber a brisa do rio.

Ela ergueu os olhos até o antigo quarto de Julien. Estaria pensando novamente em Antha?

- Sinto que a maldição está abandonando essa casa. Era isso o que eu queria, que você e eu viéssemos morar aqui e nos amar aqui.

É, acredito nisso, pensou ele, mas por algum motivo nada disse. Talvez a quietude ao seu redor lhe parecesse viva demais; talvez ele sentisse medo de desafiar alguma coisa invisível que observava e escutava.

- Todas essas paredes são de tijolo maciço, Rowan, e algumas delas chegam a ter cinqüenta centímetros de espessura. Eu as medi com minhas próprias mãos quando passei por vários portais. Cinqüenta centímetros de espessura. Elas receberam reboco externo de modo a dar a impressão de que a casa era feita de pedra, porque era essa a moda na época. Está vendo os riscos na tinta? Para dar a aparência de uma mansão construída com grandes blocos de pedra?

Ela é uma poliglota - confessou ele - com seu rendilhado de ferro fundido, suas colunas coríntias, dóricas e jônicas, seus portais em forma de buraco de fechadura...

- É, buracos de fechadura - concordou Rowan. - E vou lhe falar de um outro lugar onde vi um portal igual. É no jazigo. B_ em no alto do jazigo da família Mayfair.

- O que você quer dizer com bem no alto?

- É só o alto-relevo de um portal, como os portais dessa casa. Tenho certeza de que era isso o que era, a não ser que a intenção tivesse sido a de um buraco de fechadura mesmo. Vou lhe mostrar. Hoje ou amanhã podemos dar uma caminhada até lá. Fica bem junto ao caminho principal.

Por que isso o enchia de apreensão? Um portal entalhado no jazigo? Ele odiava cemitérios, odiava jazigos. No entanto, mais cedo ou mais tarde, ele teria de vê-lo, não teria? Continuou a falar, sufocando esse sentimento, querendo apenas aquele momento e a visão da casa à sua frente, banhada pelo sol delicioso.

- Depois temos essas janelas curvas, em estilo romano, voltadas para o norte, e isso já é uma outra influência arquitetônica. Mas no final, ela forma um todo. Funciona porque funciona. Foi construída para este clima, com seus pés-direitos de mais de quatro metros e meio. Ela é um enorme alçapão para a luz e as brisas frescas, uma fortaleza contra o calor.

Com o braço em volta dele, Rowan o acompanhou de volta para dentro de casa, e foram subindo pela escada alta e sombria.

- Está vendo? Esse emboço está firme. Tenho quase certeza de ser o original, mas foi feito por pedreiros magistrais. É provável que tenham feito aquelas sancas à mão. Não se vêem nem mesmo as rachaduras ínfimas que seriam de se esperar pelo assentamento. Quando eu entrar por baixo da casa, vou descobrir que essas paredes são de segurança e que vão direto até o chão; e que as vigas que sustentam a casa são enormes. Têm de ser. Tudo está firme, nivelado.

- E eu achei que ela não tinha mais jeito quando a vi pela primeira vez.

- Imagine esse papel de parede arrancado - disse ele. - Pinte as paredes em cores claras e alegres. Visualize toda a madeira limpa, pintada de branco.

- Ela agora é nossa - disse Rowan, baixinho. - Sua e minha. De agora em diante, nós estamos escrevendo o arquivo.

- O Arquivo sobre Rowan e Michael - disse ele com um leve sorriso, parando no alto da escada. - Aqui no segundo andar, as coisas ficam mais simples. O pé-direito é aproximadamente uns trinta centímetros mais baixo, e não se têm as sancas enfeitadas. Tudo numa escala menor.

Ela riu e abanou a cabeça.

- E qual é a altura desses cômodos menores? Talvez uns quatro metros?

Eles se voltaram e foram pelo corredor até o primeiro quarto bem na frente da casa. As janelas se abriam para a sacada da frente e para a lateral. O livro de orações de Belle estava em cima de uma cômoda, com seu nome gravado na capa em ouro. Havia fotografias em molduras douradas por trás de vidro fosco, suspensas em correntes escurecidas e enferrujadas.

-Julien mais uma vez. Tem de ser ele - disse Michael. - E Mary Beth, olhe, Rowan, essa mulher é parecida com você.

- Foi o que me disseram - disse ela, baixinho.

O rosário de Belle, com o nome gravado nas costas do crucifixo, ainda estava sobre o travesseiro da cama de dossel. A poeira subiu do edredom de plumas quando Michael tocou nele. Uma guirlanda de rosas o espiava de cima do dossel de cetim. Tudo parecia melancólico, com o papel de parede florido desbotado, e os pesados armários inclinados ligeiramente para a frente; o tapete, gasto e já da cor da própria poeira. Os galhos dos carvalhos lembravam fantasmas por trás das cortinas de pongê. O banheiro estava limpo e era muito sem graça. Michael calculou que os azulejos fossem da época de Stella. Uma imensa banheira velha, das que de vez em quando se encontram em hotéis antigos, uma pia alta com pedestal e pilhas de toalhas, cobertas de pó, numa prateleira de vime.

- Mas, Michael, este é o melhor quarto de todos - disse Rowan por trás dele. - Este é o quarto que dá para o sul e para o oeste. Venha me ajudar com esta janela.

- Os dois forçaram o cordão da guilhotina.

- Parece que estamos numa casa na árvore - disse ela, ao sair para a varanda da frente. Ela pôs a mão na coluna canelada e ficou olhando para os galhos retorcidos dos carvalhos. - Olhe, Michael, há samambaias crescendo nos ramos, centenas de samambaias minúsculas. E olhe ali, um esquilo. Não, são dois. Nós os assustamos. Isso é tão estranho. É como se estivéssemos no mato e pudéssemos dar um pulinho ali para começar a subir. Podíamos subir até o céu por essa árvore.

Michael testava os caibros por baixo do assoalho.

- Estão firmes, como tudo o mais. E a grade trabalhada não está realmente enferrujada. Só precisa de uma pintura. - Também não havia infiltrações no teto.

Só à espera, todo esse tempo esperando para ser restaurada. Ele parou e tirou o blusão safári. O calor afinal o atingia, mesmo aqui onde as brisas do rio passavam à vontade.

Ele jogou o blusão sobre o ombro e o enganchou num dedo.

Rowan estava parada, de braços cruzados, encostada no gradil de ferro. Ela olhava lá fora a esquina tranqüila, serena.

Através dos ramos das pequenas oliveiras, Michael contemplava lá embaixo o portão da frente. Ele estava se vendo menino, parado ali, estava se vendo com enorme nitidez.

Ela agarrou sua mão de repente e o puxou para dentro de casa.

- Veja, aquela porta dá para o quarto seguinte. Ele poderia ser uma sala de estar, Michael. E os dois aposentos dão para a varanda lateral.

Ele estava olhando fixamente para as fotografias ovais. Stella? Tinha de ser Stella.

- Não seria maravilhoso? - dizia Rowan. - Aqui tem de ser a sala de estar.

Ele baixou os olhos mais uma vez até a capa de couro branco do livro de orações com a inscrição Belle Mayfair em ouro. Só por um segundo, pensou. Toque no livro.

E imaginar que Belle era tão doce, tão boa.

Como Belle poderia fazer mal a alguém? Você está nesta casa e não está usando seu poder.

- Michael?

Mas ele não conseguia. Se começasse, como poderia parar? E aquilo acabaria por matá-lo, aqueles choques elétricos que passavam por ele, e a cegueira, a cegueira inevitável quando as imagens flutuavam à sua volta

como água suja, e a cacofonia de todas as vozes. Não. Você não precisa. Ninguém lhe disse que você tem de fazer isso.

A súbita idéia de que alguém pudesse obrigá-lo a tocar os objetos, que lhe arrancasse a luva e forçasse sua mão sobre eles, fez com que ele se encolhesse. Sentia-se covarde. E Rowan o estava chamando. Olhou de novo para o livro de orações enquanto se afastava.

- Michael, este deve ter sido o quarto de Millie. Ele também tem lareira. - Ela estava parada diante de uma cômoda alta, segurando um lencinho com monograma. – Esses quartos são como santuários.

Do lado de fora da longa janela, a buganvília crescia tão densa sobre a varanda lateral que a parte inferior do gradil não estava mais visível. Essa era a varanda acima da de Deirdre. Era aberta, porque só a parte do térreo havia sido telada.

-É, todos esses quartos têm lareiras - disse ele, distraído, com os olhos nos botões de um roxo fluorescente da buganvília. - Vou dar uma olhada nos tijolos refratários das chaminés. Essas grelhas nunca foram usadas para lenha; eram usadas para carvão.Agora abrigavam aquecedores a gás, e Michael até que gostava daquilo, pois em todo aquele tempo ele nunca havia visto um aquecedorzinho a gás ligado no escuro aconchegante do inverno, com todas aquelas chaminhas azuis e douradas.

Rowan estava parada à porta do armário.

- Que cheiro é esse, Michael?

- Meu Deus, Rowan Mayfair, você nunca sentiu o cheiro de cânfora num armário velho?

- Eu nunca vi um armário velho, Michael Curry - respondeu ela, rindo baixinho. – Nunca morei numa casa velha ou me hospedei num hotel velho. A última palavra em tudo era o lema do meu pai adotivo. Restaurantes em terraços, muito vidro e metal. Você não pode imaginar o esforço que ele fazia para manter esses padrões. E Ellie não suportava ver nada velho ou usado. Ellie jogava fora todas as roupas após um ano de uso.

- Você deve achar que caiu num lugar fora do planeta.

- Não, no fundo não. Só caí numa outra interpretação - disse ela, com a voz diminuindo.

Pensativa, ela tocou nas roupas velhas ali penduradas. Ele só via sombras.

- E imaginar - sussurrou ela - que o século já está quase terminando, e ela passou a vida inteira bem aqui neste quarto. - Ela deu um passo atrás. - Meu Deus, eu detesto esse papel de parede. Olhe, uma infiltração ali.

- Nada de importante, querida. Só um pequeno vazamento. É de se esperar que haja um ou mais numa casa deste tamanho. Isso não é nada. Mas acho que o emboço está acabado ali em cima.

- Acabado? O que você quer dizer com acabado?

-Velho demais para aceitar um remendo. Veja só como está esfarelando. Por isso, vamos ter de fazer um teto novo - disse ele, dando de ombros. - Dois dias de trabalho.

- Você é um gênio.

Ele riu e abanou a cabeça.

- Olhe, aqui também tem um banheiro. Cada quarto tem seu próprio banheiro. Estou tentando ver tudo limpo e terminado...

- Eu vejo - disse ele. - Vejo tudo pronto a cada passo que dou.

O quarto de Carlotta era o último quarto principal no final do corredor.

Parecia uma caverna imensa e sinistra, com sua cama preta de dossel, seus babados de tafetá desbotado e algumas poltronas tristes com capas soltas. Um cheiro desagradável subia à volta deles. Numa estante, livros de direito e de consulta. E logo ali, o rosário e o livro de orações, como se ela tivesse acabado de largá-los. As luvas brancas enroladas, um par de brincos de camafeu e um cordão de contas de azeviche.

- Costumávamos chamá-las de contas da vovó - disse Michael com uma leve surpresa. – Eu já me havia esquecido delas. - Ele fez menção de tocar nelas e depois recolheu a mão enluvada como se tivesse chegado perto de algo muito quente.

- Eu também não estou gostando daqui deste quarto - cochichou Rowan. Ela estava mais uma vez abraçando o próprio corpo, naquele seu gesto aflito, de frio. Talvez de apavoramento. - Não quero tocar no que pertenceu a ela - disse Rowan, aparentando uma vaga repulsa pelos objetos espalhados sobre a cômoda, repulsa pela mobília antiga, por linda que fosse.

Ryan vai se encarregar disso - prosseguiu ela, cada vez mais constrangida. - Ele disse que Gerald Mayfair virá para levar embora as coisas dela. Carlotta deixou seus objetos pessoais para a avó de Gerald. - Ela afinal se virou como se alguma coisa a tivesse assustado e, então, olhou quase com raiva para o espelho entre as duas janelas laterais. - Aquele cheiro de novo, cânfora. E mais alguma coisa.

- Verbena e água de rosas - disse ele. - Está vendo o frasco? Eles agora plantam essas coisinhas em graciosas pensões do norte da Califórnia. Eu já as plantei em muitas mesas de tampo de mármore. E lá estão elas. As plantas de verdade.

- Aqui tudo é real demais. É lúgubre e triste.

Eles se dirigiram até a porta dos fundos do quarto que se abria para um pequeno corredor, cora uma escadinha, e levava a dois quartos pequenos, um após o outro.

- As criadas dormiam aqui antigamente - explicou Michael. - Eugenia ficou com aquele último quarto ali. Em termos técnicos, estamos examinando a ala dos criados.

E eles jamais teriam usado essa porta de acesso, porque ela não existia até há bem pouco tempo. Tiveram de quebrar a parede de alvenaria para sua instalação. Antigamente, os criados teriam entrado no corpo principal da casa através da varanda.

No final da ala, via-se uma lâmpada fraca acesa.

- Ali fica a escada que desce para a cozinha. E aquele velho banheiro lá ao fundo era de Eugenia. Antigamente, os moradores do sul tinham um banheiro separado para os criados negros. Imagino que sobre isso você tenha ouvido falar o suficiente.

Os dois voltaram para o quarto maior. Rowan atravessou com cuidado o tapete desbotado, e Michael a seguiu até a janela, afastando com delicadeza a cortina frágil para que pudessem olhar lá embaixo as calçadas de tijolo de Chestnut Street e a elaborada fachada da mansão do outro lado.

- Está vendo? Ela se abre para o lado do rio - disse Michael, contemplando essa outra construção. - E olhe para os carvalhos naquele terreno. E o velho galpão de carruagens ainda está de pé. Está vendo o reboco se soltando dos tijolos. Aquele ali também foi feito para dar a impressão de pedra.

- De todas as janelas, a gente vê os carvalhos - disse Rowan, falando baixo como se não quisesse perturbar a poeira. - E o céu é de um azul tão profundo. Até a luz do sol aqui é diferente. É como a luz suave de Florença ou de Veneza.

- É mesmo.

Mais uma vez, Michael se flagrou olhando com apreensão para os pertences daquela mulher. Talvez o desconforto de Rowan houvesse sido transmitido a ele. Ele imaginava, compulsiva e dolorosamente, ter de tirar a luva e pôr sua mão nua nos objetos que haviam pertencido a Carlotta.

- O que foi, Michael?

- Vamos sair daqui - respondeu ele, entre dentes, segurando sua mão e voltando para o corredor principal.

Só com relutância ela o acompanhou quando ele entrou no antigo quarto de Deirdre. Ali sua confusão e sua revolta pareciam se intensificar. Mesmo assim, ele sabia que ela se sentia obrigada a fazer essa visita. Ele via como seus olhos passavam famintos pelas fotografias emolduradas e pelas pequenas cadeiras vitorianas de assento de palhinha. Michael a abraçou com força enquanto ela olhava fixamente para a terrível mancha no colchão.

- Isso é um absurdo - disse Michael. - Preciso chamar alguém para limpar isso tudo.

- Eu mesma chamo.

- Não, eu vou fazer isso. Lá embaixo você me perguntou se eu podia assumir o comando, contratar as pessoas de que precisasse para restaurar a casa inteira. Bem, eu posso cuidar disso também.

Ele olhou para a mancha, um grande oval marrom, com o centro pegajoso. Será que a mulher havia sofrido uma hemorragia ao morrer? Ou será que ela havia ficado ali deitada com as excreções vazando no calor deste quarto horroroso?

- Eu não sei - respondeu Rowan, sussurrando, embora ele não houvesse verbalizado a pergunta,. Ela deu um longo suspiro. - Já pedi para ver as fichas médicas. Ryan está solicitando tudo por vias legais. Conversei com ele hoje. Liguei para o médico. Falei também com a enfermeira, Viola. Uma velha simpática. Ela falou pelos cotovelos. Tudo o que o médico disse foi que não havia nenhum motivo para levá-la para o hospital. A conversa foi totalmente absurda.

Ele não gostou das minhas perguntas. Insinuou ser errado da minha parte fazê-las. Disse que foi uma caridade deixá-la morrer.

Ele a abraçou mais forte, roçando os lábios no seu rosto.

- Para que servem aquelas velas? - perguntou Rowan, olhando espantada para o pequeno altar ao lado da cama. - E aquela imagem horrenda. O que é aquilo?

- A Virgem Santa - disse ele. - Quando ela está com o coração descoberto daquele jeito, acho que se chama Imaculado Coração de Maria. Já não me lembro ao certo.

As velas são velas consagradas. Eu as vi tremeluzindo aqui em cima quando estava lá fora na noite em que cheguei. Nunca imaginei que ela estivesse morrendo. Se eu tivesse sabido, eu... eu não sei. Eu nem sabia quem morava aqui quando vim pela primeira vez.

- Mas por que acendia m essas velas consagradas?

- Para confortar os moribundos. O padre vem. Ele lhe dá o que chamam de extrema-unção.

Eu acompanhei o padre algumas vezes quando era coroinha.

- Fizeram isso por ela, mas não a levaram para o hospital.

- Rowan, se você tivesse sabido a tempo, se você tivesse vindo, acha que poderia tê-la reanimado? Acho que não, querida. E agora, acho que não faz mais diferença.

- Ryan insiste que não. Que ela estava desenganada. Diz que uma vez há uns dez anos, Carlotta suspendeu os medicamentos. Não houve reação a nenhum estímulo, a não ser reflexos. Ryan diz que fizeram tudo o que podiam, mas o caso é que Ryan está protegendo Ryan, certo? Mas eu vou saber quando vir o prontuário. E aí vou me sentir melhor... ou pior.

Ela se afastou da cama, com os olhos vagando lentamente pelo quarto. Ela parecia estar se forçando a avaliá-lo do mesmo jeito que havia avaliado todo o resto.

Hesitante, ele chamou a atenção dela para o fato de somente neste quarto estar repetida a ornamentação comum a todo o térreo. Mostrou-lhe os arabescos que encimavam as janelas. Um lustre de cristal, coberto de poeira, estava suspenso de um rebuscado florão de gesso. A própria cama era imensa e meio feia.

- Ela não é como as outras, as de dossel - disse ela.

-É mais nova, de produção em série - explicou Michael. - É americana. Esse era o tipo de mobília comprada aos milhões perto do final do século passado. E provável que Mary Beth a tivesse comprado, e que na época ela fosse a última moda.

- Ela parou o tempo, não é?

- Mary Beth?

- Não, aquela detestável Carlotta. Ela fez o tempo parar aqui. Ela fez tudo ficar imobilizado. Imagine meninas crescendo numa casa como esta. Não há o menor indício de que elas jamais tivessem alguma coisa bonita, especial ou típica do seu tempo.

- Ursinhos de pelúcia - sussurrou Michael. Deirdre não havia dito alguma coisa sobre ursinhos de pelúcia naquele jardim no Texas? Rowan não o ouviu.

- Bem, seu reinado terminou - disse ela, mas sem tom de triunfo ou de coragem.

De repente, ela se adiantou, apanhou a Virgem de gesso com o coração vermelho exposto e a atirou do outro lado do quarto. A imagem caiu no piso de mármore do banheiro aberto, com o corpo se quebrando em três pedaços irregulares. Michael quis dizer alguma coisa, alguma palavra mágica ou oração que desfizesse o mal. Mais ou menos, como bater na madeira ou jogar sal por cima do ombro. Foi quando seus olhos vislumbraram algo cintilando na penumbra. Uma pilha de pequenos objetos faiscantes na mesinha-de-cabeceira do outro lado da cama.

- Olhe, Rowan - disse ele, baixinho, passando os dedos pela sua nuca. - Olhe ali na mesinha, do outro lado.

Era o porta jóias, aberto. Era a bolsa de veludo. Moedas de ouro empilhadas por toda a parte, cordões de pérolas e pedras preciosas, centenas de pequenas pedras que refulgiam.

- Meu Deus - exclamou ela, num sussurro. Rowan deu a volta na cama e ficou olhando fixamente para os objetos, como se tivessem vida.

- Você não acreditava? - perguntou Michael. Mas agora ele não tinha certeza se ele próprio havia acreditado ou não. - Parecem falsas, não é?

Como os tesouros nos filmes. Impossível que fossem verdadeiras. Ela olhou para ele por cima da cama vazia, árida.

- Michael, você tocaria nelas? Você... poria suas mãos nelas? Ele abanou a cabeça.

- Eu não tenho vontade, Rowan.

Ela se calou, aparentemente mergulhando em si mesma, com os olhos perdendo o foco e a nitidez. Envolveu o corpo com os braços mais uma vez, como sempre fazia quando estava aborrecida, como se sua tristeza interior lhe desse frio.

- Michael - insistiu ela, com delicadeza -, você tocaria em alguma coisa que tenha pertencido a Deirdre? Uma camisola. Talvez a cama.

- Não tenho vontade, Rowan. Nós dissemos que não...

Ela baixou os olhos, com o cabelo os encobrindo para que ele não pudesse vê-los.

- Rowan, eu não sei interpretar o que vejo. É apenas uma confusão. Vou ver a enfermeira que a vestia, talvez o médico, talvez um carro que passava quando ela estava sentada lá embaixo, olhando. Eu não sei usar o poder. Aaron me ensinou alguma coisa, mas ainda não sou muito bom nisso. Vou ver alguma coisa feia e sentir ódio.

Fico apavorado também porque ela morreu. Toquei em todo tipo de coisa para as pessoas no início. Mas agora não consigo. Acredite em mim. Eu... Quer dizer, quando Aaron me ensinar...

- E se você visse felicidade? Se você visse algo lindo como o que a mulher em Londres viu ao tocar o roupão para Aaron?

- Você acreditou naquilo, Rowan? Eles não são infalíveis, esse pessoal do Talamasca. São só seres humanos.

-Não, não são só seres humanos, Michael. São gente como você e como eu. Eles têm poderes paranormais como você e eu temos.

Sua voz era amena, não desafiadora. Mas ele compreendia o que ela sentia. Olhou novamente para as velas consagradas e depois para a imagem quebrada, que mal podia discernir nas sombras por trás de Rowan no piso do banheiro. Relance da procissão de maio e da imagem gigantesca da Virgem que se inclinava enquanto era carregada pelas ruas afora. Milhares de flores. E ele pensou novamente em Deirdre. Deirdre no jardim botânico, falando na penumbra com Aaron. "Eu quero uma vida normal".

Ele deu a volta na cama e foi até a cômoda antiquada. Abriu a gaveta superior. Camisolas de flanela branca e macia, perfume de sache, muito adocicado. E roupas mais leves de verão de seda verdadeira.

Ele ergueu uma dessas camisolas, uma fina e sem mangas com flores aplicadas em tons pálidos. Ele a largou deixando um montinho amarrotado sobre a cômoda e tirou as luvas. Juntou as mãos com força durante um segundo e depois segurou a camisola com as duas mãos, de olhos fechados.

- Deirdre - disse ele. - Só Deirdre.

Abriu-se diante dele um enorme espaço. Através da iluminação ofuscante, ele via centenas de rostos; ouvia vozes gritando e uivando. Um barulho insuportável. Um homem veio na sua direção, pisando nos corpos dos outros! "Não. Pare com isso!". Ele havia largado a camisola. Ficou ali parado, de olhos fechados, tentando se lembrar do que acabara de vislumbrar, embora não pudesse suportar a idéia de ser cercado por aquilo tudo de novo. Centenas de pessoas em movimento, e alguém falando com ele num tom desagradável, debochado. "Meu Deus, o que era?" Ele olhou espantado para as próprias mãos. Havia ouvido um tambor por trás daquilo tudo, uma cadência de marcha, um som que ele conhecia.

O carnaval, anos atrás. A corrida pela rua no inverno com a mãe. "Vamos ver a Mystic Krewe of Comus." É, era aquele mesmo o ritmo do tambor. E a claridade vinha dos archotes fumarentos e bruxuleantes.

- Não estou entendendo - disse ele.

- O que você está dizendo?

- Não vi nada que fizesse sentido. - Ele olhou com raiva para a camisola. Bem devagar, estendeu a mão até ela. - Deirdre, nos últimos dias - disse ele. - Só Deirdre nos últimos dias. - Ele tocou o pano macio e amarfanhado com muita delicadeza. – Estou vendo a vista da varanda, do jardim - sussurrou. É, a trepadeira coroa- imperial, e ali uma borboleta subindo pela tela, e a mão dele bem ao seu lado. - Lasher está junto. Ela está feliz com a sua presença. Ele está bem ao lado dela. - E se ele virasse a cabeça para olhar para cima da cadeira de balanço, veria Lasher. Michael soltou novamente a camisola. - E tudo era sol e flores, e ela estava... estava bem.

- Obrigada, Michael.

- Não quero voltar a fazer isso, Rowan. Desculpe, mas não posso fazer isso. Não quero mais.

- Eu compreendo - disse ela, aproximando-se dele. - Lamento muito. - Sua voz estava grave, sincera e reconfortante, mas seus olhos estavam cheios de perplexidade.

Ela queria saber o que ele havia visto da primeira vez.

Ele também. Mas que chance tinha ele de saber?

No entanto, ele estava aqui, dentro da casa, e tinha o poder, que lhe fora conferido, supostamente, por eles! E estava agindo como um covarde com esse poder. Ele, Michael Curry, um covarde, e não parava de dizer que pretendia fazer o que eles queriam que fizesse.

Será que eles não haviam querido que ele viesse aqui? Será que eles não queriam que ele tocasse os objetos? E Rowan queria. Como poderia não querer?

Ele estendeu a mão e tocou o pé da cama de Deirdre. Relance do meio-dia, enfermeiras, uma faxineira empurrando um aspirador cansado, alguém se queixando, sem parar, um gemido. Tudo acabou vindo tão rápido que perdeu a nitidez. Passou os dedos pelo colchão: uma perna branca como que feita de massa de pão, e Jerry Lonigan ali, erguendo o corpo, falando baixinho com seu auxiliar, olhe só para esse lugar, você quer olhar. E, quando tocou as paredes, de repente o rosto de Deirdre, o sorriso idiota, a baba no queixo. Ele tocou a porta do banheiro, uma enfermeira branca mandona, que lhe dizia para vir, para mexer com os pés, ela sabia que Deirdre podia andar, a dor dentro de Deirdre, a dor que lhe devorava as entranhas, a voz de um homem, a faxineira indo e vindo, a descarga, o zumbido dos mosquitos, a visão de uma ferida nas suas costas, meu Deus, olhe só isso, no lugar que ela roçou na cadeira de balanço ao longo dos anos, uma ferida ulcerosa, coberta de talco infantil, mas vocês estão loucas, e a enfermeira só a segura no vaso. Eu não posso... Ele se voltou e passou correndo por Rowan, afastando sua mão quando ela tentou fazê-lo parar. Ele tocou o balaústre da escada. Relance de um vestido de algodão que passava por ele. Batidas de passos no tapete velho.

Alguém gritando, chorando.

- Michael!

Ele correu escada acima atrás deles. O bebê berrava no berço. O choro ecoava desde o salão lá embaixo até o terceiro lance de escadas. Cheiro forte de produtos químicos, uma podridão imunda naqueles frascos. Ele havia visto de relance essa podridão na noite passada; ela lhe havia falado disso, mas agora ele precisava ver, não é? E tocar. Tocar os frascos repulsivos de Marguerite. Ele havia sentido o cheiro na noite anterior quando subira para encontrar o cadáver de Townsend, só que o cheiro não era do corpo. Com a mão no corrimão, viu Rowan de relance, com o lampião. Rowan, furiosa e entristecida, procurando fugir da velha, que a espancava com palavras, perversidade, e em seguida a negra com seu esfregão, e um carpinteiro instalando uma vidraça na janela que dava para o alto do telhado. Meu Deus, aqui tem um cheiro insuportável, madame. Faça seu trabalho. O quarto de Deirdre, um encontro estridente de outras vozes, que subiam ao máximo e depois iam desaparecendo, para que outra onda viesse. E a porta, a porta ali em frente, alguém rindo, um homem falando francês, o que está dizendo, deixe- me ouvir uma palavra que seja com nitidez, o fedor está por trás.

Mas não, primeiro o quarto de Julien, a cama de Julien. As risadas cada vez mais altas, mas havia um choro de bebê misturado a elas, alguém subindo pela escada bem atrás dele. A porta lhe deu Eugenia mais uma vez, tirando o pó, queixando-se do fedor, a cantilena da voz de Carlotta, palavras indistinguíveis, e então aquela mancha medonha ali no escuro em que Townsend morreu, respirando pela última vez através do buraco no tapete, e do consolo da lareira, um relance trêmulo de Julien! O mesmo homem, é, o mesmo homem que havia visto ao segurar a camisola de Deirdre, é, você, Julien, olhando fixamente para ele, estou vendo você, e depois passadas de alguém correndo, não, não quero ver isso, mas ele estendeu a mão para o peitoril da janela, agarrou o pequeno cordão da cortina, e ela subiu, batendo ruidosa no alto e revelando as vidraças sujas.

Ela passou voando por ele, Antha, atravessando o vidro, escapulindo pelo telhado ali fora, apavorada, com o cabelo desgrenhado caído no rosto molhado, o olho, olhe para o olho, está na bochecha, meu Deus. Soluços. "Não me machuque, não me machuque! Lasher, me ajude!"

- Rowan!

- Julien, por que ele não fazia nada? Por que só ficava ali parado chorando calado, sem fazer nada? "Você pode invocar o diabo no inferno e os santos nos céus, que eles não a ajudarão", disse Carlotta, rosnando enquanto saía pela janela.

Julien, impotente. "Eu mato você, sua cadela. Eu a mato. Você não vai..."

Ela se foi, ela caiu, seu grito se desdobrando como uma enorme bandeira vermelha ondulante, em contraste com o céu azul. Julien com as mãos no rosto. Inútil. Sem brilho, uma testemunha fantasma. Mais uma vez o caos, Carlotta desaparecendo. Ele agarrou a cama de ferro com as mãos. Julien sentado ali, tremulante porém nítido por um momento. Eu o conheço, olhos escuros, boca sorridente, cabelos brancos, é, você, não toque em mim! "Eh bien, Michel, finalmente!"

Sua mão atingiu os caixotes de embalagem que estavam em cima da cama, mas ele não os via. Não via nada a não ser a luz que bruxuleava e formava a imagem do homem ali sentado debaixo dos lençóis, de repente nada, de repente ele estava lá. Julien tentava se levantar da cama... Não, não chegue perto de mim.

- Michael!

Ele havia empurrado os caixotes com violência de cima da cama. Tropeçava nos livros. As bonecas, onde estavam as bonecas? No baú. Julien disse isso, não foi? Em francês. Riso, um coro de risadas. Um farfalhar de saias à sua volta. Algo que se quebrava. O joelho bateu em alguma coisa pontuda, mas ele continuou a engatinhar na direção do baú. Os fechos enferrujados, não faz mal, jogue a tampa para trás.

Tremeluzindo, desaparecendo, Julien estava ali, a apontar com um gesto de consentimento para o baú.

As dobradiças enferrujadas quebraram totalmente quando a tampa bateu de encontro à parede antiga e se soltou. O que era aquele farfalhar, como o de tafetá, à sua volta, pés se arrastando pelo chão ao seu redor, figuras que se avultavam acima dele, como lampejos de luz através de venezianas, aparecendo e desaparecendo, deixe-me respirar, deixe-me ver. Era parecido com o farfalhar dos hábitos das freiras quando ele estava na escola e elas vinham barulhentas pelo corredor para bater nos meninos, para fazer com que os meninos voltassem à forma, um ruído de contas, de pano, de anáguas...

Mas aqui estão as bonecas.

Olhe, as bonecas! Cuidado, elas são tão velhas e tão frágeis, com seu rosto bobo feito de rabiscos olhando para você, e olhe aquela ali, aquela com os olhos de botão, as tranças grisalhas nas suas perfeitas roupinhas de homem de tweed, até as calças. Meu Deus, ossos ali dentro!

Ele a segurou. Mary Beth! As nesgas ondulantes da sua saia batiam nele. Se ele olhasse para cima, poderia vê-Ia a olhar para baixo. Ele a viu mesmo. Não havia limites para o que ele podia ver. Ele via suas nucas quando eles o cercavam, mas nada se mantinha firme por um instante sequer. Tudo era diáfano. Sólido por um segundo, e no seguinte, nada. O quarto cheio de um nada empoeirado e ao mesmo tempo apinhado ao ponto de transbordar. Rowan apareceu como se estivesse abrindo um buraco num tecido, agarrando-o pelo braço, e num relance cintilante ele viu Charlotte, sabia que era Charlotte. Ele havia tocado a boneca? Procurou ver, mas elas estavam todas amontoadas e tão frágeis no colchão de morim.

Mas onde estará Deborah? Deborah, você precisa me dizer... Ele afastou o pano, jogando as bonecas mais novas umas contra as outras, elas estariam chorando? Alguém estava chorando. Não, aquilo era o bebê berrando no berço ou Antha no telhado. Ou as duas. Mais um relance de Julien, falando rapidamente em francês, abaixado sobre um só joelho ao seu lado. Não consigo entender o que diz. Um átimo de segundo ali, e depois sumia. Você está me enlouquecendo. O que vou poder fazer por você ou por qualquer um se estiver louco?

Afastem essas saias de mim! Era tão parecido com as freiras. - Michael!

Ele tateou por baixo do pano, onde? Era fácil saber porque ali jazia a mais velha de todas, um simples boneco de varetas de ossos, e duas depois dela o cabelo louro de Charlotte, o que queria dizer que aquela coisinha frágil entre as duas era a sua Deborah. Baratinhas minúsculas saíram correndo de debaixo dela quando ele a tocou.

O cabelo estava se desintegrando, ai, meu Deus, ela está se desfazendo, os próprios ossos estão se esfarelando. Horrorizado, ele recuou. Havia deixado sua impressão digital no rosto de osso. O calor do fogo o atingiu, ele sentia o cheiro. O corpo de Deborah todo enroscado como algum objeto de cera no alto da pira, e aquela voz em francês a lhe ordenar a fazer alguma coisa, mas o quê?

- Deborah - disse ele, tocando novamente nela, tocando no seu vestidinho esfarrapado de veludo. - Deborah! - Ela era tão velha que o sopro da respiração de Michael ia lançá-la à distância. Stella riu. Stella a segurava. "Fale comigo", disse Stella, com os olhos fechados enquanto o rapaz ao seu lado ria. "Você não acha mesmo que isso vá funcionar!" O que querem de mim?

As saias se aproximaram ainda mais, vozes misturadas em inglês e em francês. Ele procurou agarrar Julien dessa vez. Foi como tentar agarrar um pensamento, uma lembrança, algo que adeja na nossa mente quando se ouve música. Sua mão estava na pequena boneca de Deborah, esmagando-a contra o fundo do baú. A boneca loura caiu encostando-se nele. Eu as estou destruindo.

- Deborah!

Nada, nada.

O que eu fiz que agora você não quer me dizer!

Rowan o chamava. Ela o sacudia. Ele quase bateu nela.

- Pare! - gritou ele. - Elas estão todas aqui, nesta casa! Você não compreende? Elas estão esperando, elas... elas... existe uma palavra certa, elas estão pairando... estão presas à terra!

Como Rowan era forte! Ela não desistia. Ela o puxou até ele se levantar.

- Quero que me solte! - Ele as via para onde quer que olhasse, como se elas estivessem entretecidas num véu que se movia ao vento.

- Michael, pare com isso. Já chega. Pare...

Preciso sair daqui. Ele tentou se agarrar ao batente da porta. Quando olhou de volta para a cama, viu apenas os caixotes. Olhou espantado para os livros. Ele não havia tocado nos livros. O suor escorria pelo seu rosto, pelas roupas. Olhe para as roupas. Ele passou as mãos nuas pela camisa, trêmulo, relance de Rowan, bruxuleio de todas elas ao seu redor novamente, só que ele não conseguia discernir seus rostos e estava cansado de procurar por eles, cansado daquelas sensações que o atingiam, que o exauriam.

- Eu não sei fazer isso, droga! - gritou. Era como se estivesse debaixo d'água, até mesmo as vozes que ouvia quando colava as mãos nos ouvidos eram ocas e oscilantes como as vozes debaixo d'água. E o fedor, impossível evitá-lo. O cheiro fétido dos frascos que esperavam, os frascos...

É isso o que você queria de mini? Que voltasse aqui, tocasse nesses objetos, descobrisse e soubesse? Deborah, onde você está?

Eles estariam rindo dele? Relance de Eugenia com o esfregão. Você não! Vá embora!

Quero ver os mortos, não os vivos. E aquela era a risada de Julien, não era? Decididamente, alguém estava chorando, um bebê chorava num berço, e uma voz baixa e sem graça dizia em inglês, matar você, matar você, matar você.

- Já basta. Pare. Não...

- Não, não basta. Os frascos estão ali. Ainda não terminei. Deixe-me acabar, de uma vez por todas, com tudo isso.

Ele a afastou com um empurrão, mais uma vez assombrado com a força com a qual ela procurava fazer com que parasse, e abriu com violência a porta do quarto dos frascos. Se ao menos eles se calassem, se ao menos o bebê parasse de chorar, e a velha de amaldiçoar, e aquela voz em francês...

- Eu não consigo...

Os frascos.

Uma lufada de ar subiu pelo poço da escada e afastou o cheiro pesado por um instante. Ele estava parado com as mãos cobrindo as orelhas, olhando para os frascos. Respirou fundo, mas o cheiro horrível entrou nos seus pulmões. Rowan o observava. É isso o que vocês querem que eu toque? E as visões queriam voltar, como um imenso véu viscoso a envolvê-lo, mas ele não permitia. Ele focalizou melhor. Os frascos apenas. Respirou novamente.

O cheiro já bastava para matar uma pessoa, mas isso não é possível. Ele realmente não pode lhe causar nenhum mal. Olhe. E agora àquela luz feia e ondulante, ele pôs a mão no frasco lúgubre e, através dos dedos espalmados, viu um olho que o observava. Meu Deus, é a cabeça de um ser humano, mas o que ele estava recebendo do próprio vidro, através dos seus dedos torturados, nada, nada a não ser imagens tão fracas que eram como aquela coisa ali dentro, como uma nuvem a cercá-lo, uma nuvem na qual o visual e o auditivo estavam mesclados e sempre se dissolvendo, procurando ser sólido e se desfazendo novamente. O frasco estava ali, reluzente. Aqueles eram os seus dedos rompendo o lacre de cera.

E a bela mulher de carne e osso na porta era Rowan.

Ele abriu a vedação e mergulhou a mão no líquido, enquanto suas emanações lhe penetravam pelo nariz como gás venenoso. Ele sentiu uma náusea súbita, mas isso não o deteve. Agarrou a cabeça ali dentro pelos cabelos embora ela escorregasse dos seus dedos, como se fossem algas.

A cabeça estava viscosa e se desfazendo. Pedaços subiam de encontro ao vidro, empurrando seu pulso. Mas ele a agarrou firme, com o polegar enfiado na bochecha apodrecida.

Ele a puxou de dentro do frasco, batendo com o mesmo no chão de tal forma que o líquido fétido respingou na sua roupa. Ele segurou a cabeça, um vago relance da cabeça falando, da cabeça rindo, das feições se mexendo embora a cabeça estivesse morta, e o cabelo fosse castanho, os olhos injetados porém castanhos e o sangue escorrendo da boca morta que falava.

É, Michael, de carne e osso quando de você não restarem mais do que os ossos. O corpo inteiro do homem estava sentado na cama, nu e morto, e no entanto vivo com Lasher dentro dele, com os braços se agitando e a boca se abrindo. E ao seu lado, Marguerite, com seu cabelo de megera e as mãos nos ombros do homem, com suas amplas saias de tafetá formando um círculo de luz vermelha à sua volta, segurando o morto da mesma forma que Rowan tentava segurá-lo agora.

A cabeça escorregou das suas mãos e deslizou na sujeira no chão. Ele caiu de joelhos. Meu Deus! Estava passando mal. Ia vomitar. Sentiu a violenta convulsão e a dor num círculo ao redor das suas costelas. Vamos, vomite. Não consigo deixar de vomitar. Ele se voltou para um canto, tentou se afastar, engatinhando...

Tudo jorrou de dentro dele.

Rowan o segurava pelo ombro. Quando se está passando tão mal assim, não se dá a menor importância a quem nos toca, mas novamente ele viu o morto na cama. Tentou contar a Rowan. Sua boca estava azeda e cheia de vômito. Meu Deus. Olhe para as suas mãos. Havia sujeira por todo o chão, nas suas roupas.

Mas ele se pôs de pé, com os dedos escorregando na maçaneta da porta. Afastando Julien da sua frente, afastando Mary Beth e depois Rowan, tentando apanhar a cabeça caída, a fruta esmagada no chão, que se desfazia como um melão.

- Lasher - disse-lhe ele, tentando limpar a boca. - Lasher, naquela cabeça, no corpo daquela cabeça.

E os outros frascos? Olhe para eles, cheios de cabeças. Olhe só! Ele agarrou mais um, espatifou-o contra a madeira da estante, de tal modo que seu conteúdo esverdeado foi deslizando até o chão, mole e apodrecido, como uma gigantesca gema de ovo verde, escorrendo de dentro do crânio que apareceu escuro e murcho quando ele o pegou e segurou, com o rosto se desfazendo em gotas.

É, Michael, quando você não passar de ossos, como os ossos que está segurando agora.

- E isso é carne? - exclamou Michael. - Isso é carne! - Ele deu um chute na cabeça em decomposição. Jogou o crânio no chão e também o chutou. Como borracha. – Você não vai ficar com ela, não para isso, nem para mais nada.

- Michael!

Ele sentia náuseas novamente, mas não ia se entregar. Sua mão procurou a beirada da prateleira. Relance de Eugenia.

"Eu detesto o cheiro deste sótão, Miss Carl." "Deixe para lá, Eugenia."

Ele se voltou e começou a limpar as mãos no blusão, começou a limpá-las furiosamente.

- Ele entrava nos corpos dos mortos - disse a Rowan. - Ele se apossava deles. Olhava através dos seus olhos, falava através das suas cordas vocais e os usava, ma:s não conseguia fazer com que voltassem a viver, não conseguia fazer com que as células voltassem a se multiplicar. E ela guardava as cabeças. Ele entrava nas cabeças, muito depois de os corpos não existirem mais, e olhava pelos olhos.

Voltando-se, ele apanhou um frasco após o outro. Ela estava ao seu lado. Os dois espiavam através do vidro, e o brilho das imagens quase o ofuscava para o que pretendia ver, mas estava determinado a ver. Cabeças com cabelos castanhos, e olhe, uma cabeça loura com faixas castanhas, e aqui, o rosto de um negro com manchas de pele branca e mechas de cabelos mais claros, e ainda mais uma, com os cabelos brancos riscados de castanho.

- Meu Deus, você não está entendendo? Ele não só entrava nos cadáveres. Ele alterava os tecidos, fazia com que as células reagissem. Ele os modificava mas não conseguia mantê-los vivos.

Cabeças, cabeças e mais cabeças. Ele teve vontade de destruir todos os frascos.

- Você viu isso? Ele provocou uma mutação, um novo crescimento de células! Mas não era nada, nada em comparação com estar vivo! Eles entravam em decomposição. Isso ele não conseguia impedir! E eles se recusam a me dizer o que querem que eu faça!

Seus dedos escorregadios formaram um punho fechado. Ele golpeou um dos frascos e o viu cair. Rowan não tentou detê-lo. Mas estava com os braços em volta do seu corpo e lhe implorava que saísse do quarto com ela, arrastando-o. Se não cuidasse, os dois poderiam cair naquela sujeira, naquela imundície toda.

- Mas olhe! Está vendo aquela lá? - Bem no fundo da prateleira, atrás do frasco que acabara de quebrar. O melhor de todos, o líquido límpido, a grossa vedação intacta, parecendo alcatrão. Em meio à vibração de sons e imagens sem sentido, indiscerníveis, ele a ouviu.

- Abra esse aí. Quebre-o.

Foi o que fez. O vidro se partiu sem ruído caindo no colchão de cinzas das vozes sussurrantes, e ele segurou a cabeça, sem ligar mais para o cheiro fétido ou para a textura esponjosa, farelenta, do que estava segurando.

Mais uma vez, o quarto, Marguerite junto à penteadeira, de cintura fina, saias volumosas, voltando-se para sorrir para ele, desdentada, com os olhos escuros e rápidos; o cabelo, uma feia e enorme cascata de barba-de-velho. E Julien, magro como um caniço, de cabelos brancos e jovem, de braços cruzados, seu demônio. Deixe-me vê-lo, Lasher. E então, o corpo na cama, acenando para que ela se aproximasse, e ela se deitando ao seu lado. Os dedos mortos, em decomposição, rasgando o corpete e tocando nos seios vivos. O pau morto ereto entre as pernas. "Olhe para mim, mude-me. Olhe para mim, mude-me."

Julien teria virado as costas? Nem pensar. Ele estava aos pés da cama, com as mãos nas colunas, o rosto iluminado pela luz fraca da vela que tremia ao vento das janelas abertas. Fascinado, destemido.

É, e agora olhe para essa coisa nas suas mãos. Este era o rosto dele, não era? Seu rosto! O rosto que você viu no jardim, na igreja, no teatro, o rosto que viu tantas vezes. E o cabelo castanho, ah, sim, o cabelo castanho.

Ele deixou que ela escorregasse até o chão com as outras. Recuou dela, mas os buracos dos olhos o encaravam, e os lábios se mexiam. Rowan estaria vendo?

- Você está ouvindo a cabeça falar?

Vozes em toda a sua volta, mas havia apenas uma, uma voz clara, muda, cortante. Você não pode me deter. Você não pode impedi-la. Você faz o que eu quero. Minha paciência é como a do Todo-Poderoso. Eu vejo o final. Vejo o número treze. Serei carne quando você já estiver morto.

- Ele está falando comigo, o demônio está falando comigo! Você está ouvindo?

Ele saiu pela porta afora e escada abaixo antes de perceber o que estava fazendo, ou notar que seu coração batia como um tambor nos ouvidos e que mal conseguia respirar. Ele não agüentava mais. Sempre soubera que seria assim, o mergulho no pesadelo, e isso bastava, não? O que eles queriam dele? O que ela queria? Aquele filho da mãe havia falado com ele! Aquela criatura que ele costumava ver parada no jardim lhe havia dirigido a palavra, e através daquela cabeça em decomposição! Ele não era nenhum covarde, era um ser humano! Não conseguia suportar mais nem um instante.

Ele arrancou o blusão e o jogou no canto do corredor. Ah, a sujeira nos seus dedos. Ele não conseguia limpá-los.

O quarto de Belle. Limpo e tranqüilo. Desculpe-me por essa imundície. Por favor, deixe-me deitar na cama limpa. Ela o ajudava, graças a Deus, em vez de tentar impedi-lo.

A colcha era limpa, branca e empoeirada, mas a poeira era limpa, e o sol que entrava pelas janelas abertas era lindo e cheio de poeira. Belle. Belle era o que ele estava tocando agora, o doce e manso espírito de Belle.

Estava deitado de costas. Ela lhe trazia as luvas. Ela limpava suas mãos com um esfregão morno umedecido, com tanto carinho, e seu rosto, cheio de preocupação. Ela fez pressão no seu pulso com os dedos.

- Fique quieto, Michael. As luvas estão aqui comigo. Fique quieto.

O que era aquela coisa fria e dura encostada no seu rosto? Ele estendeu a mão. O rosário de Belle, dolorosamente embaraçado no seu cabelo quando ele o soltou, mas tudo bem. Era o que queria.

E Belle estava lá. Ah, que linda.

Ele tentou dizer a Rowan que Belle estava ali parada. Rowan estava tomando seu pulso. Mas Belle desapareceu. Ele estava com o rosário nas mãos. Havia sentido suas contas frias junto ao rosto, e Belle estivera ali, a conversar com ele. Lá estava ela de novo.

- Descanse, Michael - disse Belle. Voz doce e trêmula como a de tia Viv. Ela estava sumindo, mas ele ainda a via. - Não tenha medo de mim, Michael. Não faço parte deles. Não é por isso que estou aqui.

- Faça com que falem comigo. Faça com que me digam o que querem. Não eles, mas os que apareceram para mim. Teria sido Deborah?

- Fique quieto, Michael, por favor.

O que você disse, Rowan? A boca de Michael não se havia mexido.

- Não fomos feitos para ter esses poderes - disse ele. - Eles destroem o humano em nós. Você é um ser humano quando está no hospital. Eu era humano quando estava com o martelo e os pregos nas mãos.

Tudo parecia escorrer diante dele. Como poderia explicar a Rowan que havia sido como a escalada de uma montanha, que havia sido como todo o trabalho físico a que ele jamais havia dedicado as mãos e as costas também, tudo comprimido numa única hora.

Mas ela não estava mais ali. Ela lhe havia dado um beijo, estendido um acolchoado sobre ele e saído porque ele estava dormindo. Belle estava sentada junto à cômoda, uma imagem tão bonita. Durma, Michael.

- Você estará aqui quando eu acordar?

- Não, querido, na verdade eu não estou aqui agora. A c asa é deles, Michael. Eu não faço parte.

Sono.

Ele agarrava as contas do rosário. Millie Dear dizia que era hora de ir para a igreja. Os quartos são tão limpos e tranqüilos. Elas se amam. Gabardine cinza pérola. Tem de se tornar nossa casa. É por isso que eu gostava tanto dela quando era pequeno e passava por aqui. Eu a adorava. Nossa casa. Nunca uma briga sequer entre Belle e Millie Dear. Tão simpáticas... Algo quase adorável em Belle, com seu rosto tão bonito apesar da idade, como uma flor prensada num livro, ainda com sua cor e seu perfume.

Deborah lhe falava ...um poder incalculável, o poder de transubstanciar... Ele estremeceu.

... nada fácil, tão difícil que você mal pode imaginar o que seja, talvez a coisa mais difícil que você...

Posso fazer isso, sim!

Sono.

E mesmo adormecido ele ouviu o ruído reconfortante de vidro quebrando.

Quando acordou, Aaron estava ali. Rowan havia trazido uma muda de roupas do hotel, e Aaron o ajudou a entrar no banheiro para que pudesse tomar um banho e se trocar. Ele era espaçoso e no fundo confortável.

Todos os seus músculos doíam. Suas costas doíam. Suas mãos ardiam. Ele sentiu aquele formigamento terrível que havia sentido em todas aquelas semanas em Liberty Street, até calçar as luvas de novo e tomar um gole da cerveja que Aaron lhe deu a pedido seu. A dor nos seus músculos era tremenda, e até seus olhos estavam cansados, como se ele tivesse estado lendo por horas a fio com uma iluminação insuficiente.

- Não vou me embriagar - disse aos dois.

Rowan explicou que seu coração estivera acelerado; que, não importa o que houvesse acontecido, aquilo havia significado um extremo esforço físico, que uma pulsação daquelas era algo que se esperava de um homem que houvesse corrido um quilômetro em dois minutos. Era importantíssimo que ele descansasse e que não tirasse mais as luvas. Por ele, tudo bem. Mais do que qualquer outra coisa, ele teria preferido encerrar suas mãos em concreto!

Voltaram juntos para o hotel, pediram o jantar e ficaram sentados tranqüilamente na sala de estar da suíte. Durante duas horas, ele lhes contou tudo o que havia visto.

Falou-lhes dos pequenos fiapos das visões que estavam voltando à sua mente antes mesmo que ele houvesse tirado as luvas. Falou-lhes da primeira visão quando segurou a camisola de Deirdre, e de como era Julien que ele havia visto no lugar infernal, assim como no andar de cima.

Falou e falou. Descreveu sem parar. Desejava que Aaron dissesse alguma coisa, mas compreendia por que ele não o fazia.

Contou-lhes a desagradável profecia de Lasher, e a estranha sensação de intimidade que agora tinha com a criatura embora não houvesse tocado o próprio Lasher, mas apenas aquela cabeça pútrida e fétida.

Afinal, ele lhes falou de Belle e, então, exausto de tanto falar, ficou ali sentado, querendo mais uma cerveja, mas com medo de que eles fossem pensar que ele era um bêbado se tomasse mais uma, depois cedendo à vontade, levantando-se e tirando uma da geladeira sem se importar com o que pensassem.

- Não sei por que estou envolvido, da mesma forma que antes - disse ele. -Mas sei que estão ali, naquela casa. Vocês se lembram de Cortland ter dito que não era um deles. Belle também me disse que não fazia parte deles... se é que não foi imaginação minha... pois bem, os outros que fazem parte deles estão lá! E aquela criatura alterou a matéria, só um pouco, mas alterou. Ele se apossou dos cadáveres e começou a trabalhar nas células.

Ele quer Rowan, sei que quer. Ele quer Rowan para usar seu poder no sentido de alterar a matéria! Rowan tem mais desse poder do que qualquer uma das outras que vieram antes dela. Com os demônios! Ela sabe o que as células são, como funcionam, como são estruturadas!

Rowan pareceu ficar abalada com essas palavras. Aaron explicou que, depois que Michael adormeceu, e que Rowan teve certeza de que seu pulso havia voltado ao normal, ela havia ligado para Aaron, pedindo- lhe que viesse até a casa. Ele havia trazido engradados de gelo para embalar os espécimes no sótão, e juntos eles haviam aberto cada frasco, fotografado o conteúdo e depois embalado tudo.

Os espécimes estavam em Oak Haven agora. Estavam congelados. Seriam enviados para Amsterdã pela manhã, de acordo com a vontade de Rowan. Aaron havia também retirado os livros de Julien e o baú de bonecas, e eles também iriam para a casa-matriz. No entanto, Aaron queria fotografar as bonecas primeiro e examinar os livros; e é claro que Rowan havia concordado com aquilo tudo, ou não teria sido assim. Por enquanto, os livros pareciam não ser mais do que anotações contábeis, com vários assentamentos enigmáticos em francês. Se existia uma autobiografia, como Richard Llewellyn havia mencionado, ela não estava naquele quarto do sótão.

Michael sentiu um alívio irracional ao saber que aqueles objetos não estavam mais na casa.

Ele estava agora na quarta cerveja, enquanto estavam ali sentados nos sofás de veludo. Ele não estava ligando para o que fossem pensar. Apenas uma noite de paz, pelo amor de Deus, pensou ele. E precisava descansar o cérebro para poder pensar melhor. Além do mais, ele não estava se embriagando. Não queria ficar bêbado.

Mas que diferença ia fazer mais uma cerveja agora? E além disso eles estavam ali, em segurança.

Afinal, eles se calaram. Rowan olhava fixamente para Michael, e de repente Michael sentiu uma vergonha mortal por todo aquele desastre.

- E você, querida, como está? - perguntou ele. - Depois de toda essa loucura. Não estou sendo de grande ajuda, estou? Devo tê-la deixado apavorada. Você não preferia ter seguido o conselho da sua mãe adotiva e ficado na Califórnia?

- Você não me assustou - disse ela, com carinho. - E eu gostei de cuidar de você. Já lhe disse isso uma vez antes. Mas estou pensando. Todas as engrenagens na minha cabeça estão girando. É uma mistura estranhíssima de elementos, essa história toda.

- Explique.

- Eu quero minha família - disse ela. - Quero meus primos, todos aqueles novecentos ou sei lá quantos sejam. Quero minha casa. - Quero minha história, e estou me referindo à que Aaron nos deu. Mas não quero essa criatura maldita, esse ser secreto, misterioso e perverso. Eu não o quero e, no entanto, ele é... tão sedutor!

Michael sacudiu a cabeça.

- É como eu lhe disse ontem à noite. Ele é irresistível. - Não, irresistível não, mas sedutor.

- E perigoso? - sugeriu Aaron. - Acho que agora temos mais certeza disso do que nunca antes. Creio que agora sabemos que estamos falando de uma criatura que tem o poder de alterar a matéria.

- Não tenho tanta certeza assim - disse Rowan. - Examinei aquelas coisas podres o melhor que pude. As alterações eram insignificantes. Eram mudanças no tecido superficial.

Mas é claro que os espécimes estavam irremediavelmente velhos e corroídos...

- E o que dizer daquele com o rosto igual ao de Lasher? - perguntou Michael. - O sósia?

Ela abanou a cabeça.

- Não há nada que comprove não se tratar de uma pessoa parecida - disse ela. – Julien também se parecia com Lasher. Uma semelhança notável. Nesse caso também as alterações podem ter sido apenas no nível da pele. É impossível saber.

- Tudo bem, no nível da pele, mas o que dizer disso? - insistiu Michael. - Você alguma vez ouviu falar de uma criatura que conseguisse fazer uma coisa dessas? Não estamos falando de um pouco de cor; estamos falando de alguma coisa permanente! Alguma coisa que está ali depois de um século.

- Você sabe do que a mente é capaz - disse Rowan. - Não preciso lhe dizer que as pessoas podem controlar seu corpo a um ponto surpreendente pelo pensamento. Elas podem se fazer morrer se quiserem. Dizem que algumas conseguem se fazer levitar, se acreditarmos nos relatos. A interrupção dos batimentos cardíacos e a elevação da temperatura já estão bem documentadas. Os santos nos seus êxtases podiam fazer surgir nas suas mãos as feridas dos estigmas. Eles também conseguem fazer fechar essas mesmas feridas. A matéria é submissa à mente, e nós só estamos começando a entender a extensão disso. Além do mais, sabemos que, quando essa criatura se materializa, ela tem um corpo sólido. Pelo menos, ele aparenta ser sólido. Pois então a criatura alterou o tecido subcutâneo de um cadáver. E daí? Não era nem mesmo um corpo vivo, pelo que você me disse. Tudo é muito primitivo e impreciso.

- Você me deixa assombrado - disse Michael, quase com frieza.

- Por quê?

- Não sei. Desculpe. Mas tenho uma sensação horrível de que tudo foi planejado, você ser quem você é, você ser uma médica brilhante! Tudo planejado.

- Acalme-se, Michael. Há falhas demais nessa história para tudo ter sido planejado. Nada é planejado nessa família. Estude a história.

- Ele quer ser humano, Rowan - disse Michael. - É esse o significado do que ele disse a mim e a Petyr van Abel. Ele quer ser humano e quer que você o ajude. O que o fantasma de Stuart Townsend lhe disse, Aaron? Que tudo estava planejado.

- É - concordou Aaron, pensativo. - Mas é um erro exagerar na interpretação daquele sonho.

E eu creio que Rowan está certa. Não se pode supor que se saiba o que foi planejado. E por sinal, se é que minha opinião tem algum valor, não creio que essa criatura possa se tornar humana. Ele quer ter um corpo, talvez, mas não creio que jamais chegasse a ser humano.

- Ah, isso é lindo - disse Michael. - Lindo mesmo. E eu continuo achando que ele planejou tudo. Planejou que Rowan fosse afastada de Deirdre. Por isso, matou Cortland.

Planejou que Rowan permanecesse longe até se tornar não só uma bruxa, mas uma médica bruxa. Planejou o exato momento da sua volta.

- E então - perguntou Rowan - por que ele se revelou a você? Se você deve interferir nos seus planos, por que ele se revelou a você?

Ele suspirou. Esmorecido, pensou nos seus apelos a Deborah, pensou no instante em que tocou na velha boneca de Deborah e não a viu nem ouviu sua voz. O delírio voltou, o cheiro fétido do quarto, o horror dos espécimes em decomposição. Lembrou-se do enigma do portal. Das estranhas palavras do espírito, Eu vejo o número treze.

- Eu vou prosseguir com o meu próprio plano - disse Rowan, calmamente. - Vou receber o legado e a casa, como lhe disse. Ainda quero restaurar a casa. Quero morar nela. Nada me fará mudar de idéia. - Ela olhou para Michael, esperando que ele dissesse alguma coisa. - E esse ser, por mais misterioso que seja, não vai atrapalhar meus planos, se eu tiver o poder de decidir.

Já lhe disse que ele exagerou comigo. - Ela olhou para Michael, quase com raiva. - Você está me entendendo?

- Estou entendendo, sim, Rowan. Eu amo você! E acho que está certa em ir em frente.

Podemos começar na casa assim que você quiser. É o que eu quero também.

Ela ficou feliz, imensamente feliz, mas a calma de Rowan o angustiava. Ele olhou para Aaron.

- O que você acha, Aaron? Sobre o que a criatura disse, sobre meu papel nisso tudo? Você deve ter alguma interpretação.

- Michael, o importante é que você faça sua interpretação. Que você adquira uma compreensão do que lhe aconteceu. Eu não tenho nenhuma interpretação exata de nada.

Pode lhe parecer pavorosamente estranho, mas, na qualidade de membro do Talamasca, de irmão de Petyr, de Arthur e de Stuart, já cumpri minhas metas mais importantes aqui. Consegui entrar em contato com vocês dois. A história da família Mayfair foi entregue a Rowan. E vocês agora têm algum conhecimento, por parcial e fragmentário que seja, para ajudá-los.

- Vocês são uns monges - disse Michael, emburrado. Ele ergueu a cerveja num brinde informal. - "Nós observamos, e estamos sempre presentes".  Aaron, por que tudo isso aconteceu?

Aaron riu bem- humorado, mas abanou a cabeça.

- Michael, os católicos sempre querem que lhes ofereçamos os consolos da igreja. Nós não podemos fazer isso. Eu não sei por que tudo aconteceu. Sei apenas que posso ensiná-lo a controlar o poder das suas mãos, a como que desligá-lo para que ele pare de ser um tormento.

- Pode ser - respondeu Michael, exausto. - Neste exato momento, eu não tiraria essas luvas nem para dar um aperto de mãos no presidente dos Estados Unidos.

- Quando você quiser mexer com isso, estou à sua disposição. Estou aqui por vocês dois. - Aaron olhou para Rowan por algum tempo e depois voltou a olhar para Michael.

- Não preciso avisá-la para ter cuidado, certo?

- Não - disse Rowan. - Mas e você? Aconteceu mais alguma coisa depois do acidente?

- Coisinhas ínfimas - disse Aaron. - Cada uma em si sem importância. E também poderia ser imaginação minha. Sou tão humano quanto qualquer um, sob esse aspecto.

Sinto, porém, que estou sendo vigiado e ameaçado de uma forma bem sutil.

Rowan ia interrompê-lo, mas ele fez um gesto pedindo silêncio.

- Estou na defensiva. Já estive em situações semelhantes antes. E um aspecto muito estranho dessa história toda é que, quando estou com vocês, com qualquer um dos dois, não sinto essa... essa presença perto de mim. Sinto - me em perfeita segurança.

- Se ele o atingir, Aaron, estará cometendo seu último e trágico erro.

Porque nunca mais me dirigirei a ele ou o reconhecerei em nenhuma hipótese.

Tentarei matá-lo quando o vir. Todas as suas maquinações terão sido em vão. Aaron refletiu um pouco.

- Você acha que ele sabe disso? - perguntou Rowan.

- E possível - respondeu Aaron. - Mas é como todas as outras coisas.

Um enigma. Um esquema pode ser um quebra-cabeça. Ele pode envolver um ordenamento enorme e complicado. Ou pode ser um labirinto. Eu sinceramente não sei o que ele sabe. Acredito que Michael esteja mesmo com a razão. A criatura quer um corpo humano. Disso parece não haver dúvida. Mas o que esse ser sabe e o que não sabe... Isso eu não sei dizer. Nem sei o que ele realmente é. Imagino que ninguém saiba.

Ele tomou um golinho de café e afastou a xícara. Em seguida, olhou para Rowan.

- Não há a menor dúvida de que ele vai abordá-la, é claro. Você percebe isso. Essa antipatia que sente por ele não o manterá à distância para sempre.

Duvido que ela o esteja mantendo à distância mesmo agora. Ele está simplesmente à espera de uma boa oportunidade.

- Meu Deus - sussurrou Michael. Era como saber que um agressor iria em breve atacar a pessoa que ele mais amava neste mundo. Ele sentiu uma raiva e um ciúme frustrante. Rowan olhava para Aaron.

- O que você faria no meu lugar?

-Não sei bem-respondeu Aaron. - Mas nunca é demais ressaltar que a criatura é perigosa.

- A história me mostrou isso. - E que é traiçoeira.

- Isso também está na história. Você acha que eu devia procurar entrar em contato com ele?

- Não, não mesmo. Acho que o melhor que tem a fazer é deixar que ele apareça. E pelo amor de Deus, procure sempre manter o total controle da situação.

- Não há como escapar dele?

- Creio que não. E posso tentar adivinhar o que ele fará ao abordá-la. - E o que é?

- Ele exigirá segredo e cumplicidade. Ou ele se recusará a se revelar ou a revelar seus objetivos por inteiro.

- Ele irá afastá-la de nós - disse Michael. - Exatamente - concordou Aaron. - Por que você acha que ele agirá assim?

- Porque é assim que eu agir ia se estivesse no lugar dele - disse Aaron, dando de ombros.

- Qual é a chance de expulsá-lo? De um exorcismo direto?

- Não sei - disse Aaron. - Esses rituais sem dúvida funcionam, mas

eu mesmo não sei fazê-los funcionar. Também não sei quais seriam os efeitos sobre uma entidade tão poderosa. Veja bem, é isso que é notável. Essa criatura é um monarca entre os espíritos. Uma espécie de gênio. Ela riu baixinho.

- Ele é tão esperto e imprevisível - disse Aaron. - Eu já estaria morto se ele me quisesse ver morto. No entanto, ele não me mata.

- Pelo amor de Deus, Aaron - disse Michael. - Não o desafie.

- Ele sabe que eu o odiaria - disse Rowan - se ele o atacasse.

- É, isso talvez explique por que ele não seguiu adiante. Mas cá estamos nós novamente, onde começamos. Não importa o que você faça, Rowan, nunca perca de vista a história. Lembre-se do destino de Suzanne, de Deborah, de Stella, de Antha e de Deirdre. Talvez, se realmente conhecêssemos a história de Marguerite, de Katherine, de Marie Claudette ou das outras de Saint-Domingue, veríamos que suas vidas foram igualmente trágicas. E se um personagem no drama pode ser responsabilizado por tanto sofrimento e morte, ele é Lasher.

Rowan pareceu perdida nos seus pensamentos por um instante.

- Meu Deus, como gostaria que ele desaparecesse - disse ela, baixinho.

- Creio que seria demais pedir isso - disse Aaron. Ele suspirou, tirou do bolso o relógio e se levantou do sofá. - Vou deixá-los agora. Estarei aqui em cima na minha suíte, se precisarem de mim.

- Graças a Deus que você vai ficar - disse Rowan. - Eu receava que você fosse voltar para Oak Haven.

-Não. Os livros de Julien estão aqui em cima comigo e acho que deveria ficar na cidade por enquanto. Desde que eu não esteja incomodando.

- Você não nos incomoda de jeito nenhum - disse Rowan.

- Deixe-me lhe perguntar mais uma coisa - disse Michael. - Quando você esteve na casa, qual foi sua impressão?

Aaron deu um risinho e abanou a cabeça. Refletiu por um instante.

- Acho que você pode imaginar - disse com delicadeza. - Mas uma coisa realmente me surpreendeu: que ela fosse tão bonita, tão majestosa e ao mesmo tempo tão acolhedora, com todas as janelas abertas e o sol entrando. Acho que imaginava que ela seria ameaçadora. Mas eu não poderia estar mais longe da verdade.

Era essa a resposta que Michael esperava, mas ele ainda estava alterado pela longa tortura daquela tarde, e não se alegrou com ela.

- E uma casa maravilhosa - disse Rowan. - E já está se modificando. Já a estamos tornando nossa. Quanto tempo vai levar, Michael, para deixá-la do jeito que deveria ser?

-Não muito, Rowan. Dois, três meses, talvez menos. Na época do Natal, ela já deveria estar terminada. Estou louco para começar. Se ao menos eu perdesse essa sensação...

- Que sensação?

- A de que tudo foi planejado.

- Esqueça essa história - disse Rowan, irritada.

- Permitam- me uma sugestão - disse Aaron. - Tenham uma boa noite de sono e depois sigam em frente com o que realmente tem de ser feito. Com as questões legais prementes, com a regularização da herança, talvez com a casa. Enfim, tudo de positivo que têm a fazer. E estejam alerta. Estejam alerta, sempre. Quando nosso amigo misterioso aparecer, insistam em impor suas condições.

Michael ficou sentado, aborrecido, olhando para a cerveja, enquanto Rowan acompanhava Aaron até a porta. Ela voltou, acomodou-se ao seu lado e o enlaçou.

- Estou apavorado, Rowan. E detesto essa sensação. Simplesmente detesto.

- Eu sei, Michael, mas nós vamos vencer.

Naquela noite, depois de Rowan já estar dormindo há horas, Michael se levantou, foi até a sala de estar e tirou da valise o caderno que Aaron lhe havia dado no retiro. Ele agora se sentia normal. E as anormalidades do dia lhe pareciam estranhamente distantes. Embora o corpo todo ainda lhe doesse, ele se sentia repousado. E era reconfortante saber que Rowan estava a apenas alguns metros dele, e Aaron dormia no apartamento de cima.

Michael escreveu, então, tudo o que lhes havia contado. Repassou cada detalhe ao escrever, como havia feito ao falar, só que com maior reflexão. E conversou consigo mesmo sobre o acontecido, como faria num diário, pois era isso o que o caderno se havia tornado.

Anotou tudo o que conseguiu recordar dos ínfimos fragmentos que lhe ocorriam antes de tirar as luvas. E não foi surpresa que ele praticamente não se lembrasse de nada. Depois, o início da catástrofe, quando segurou a camisola de Deirdre.

"Os mesmos tambores do desfile de Comus. Ou de qualquer outro desfile semelhante. A questão é que é um som terrível, apavorante, um som que tem a ver com alguma energia funesta e potencialmente destrutiva." Ele parou um pouco e prosseguiu. Estou me lembrando de mais uma coisa agora. Aconteceu na casa de Rowan em Tiburon. Depois que fizemos amor. Acordei achando que a casa estava pegando fogo e havia todo tipo de gente no andar de baixo. Lembro-me agora. Era o mesmo ambiente, o mesmo tipo de luz fantástica, a mesma qualidade sinistra.

E a verdade era que Rowan estava simplesmente ali embaixo, junto ao fogo que havia acendido na lareira.

Mas a sensação foi a mesma. Fogo e gente, muita gente, uma multidão, uma turba à luz bruxuleante.

E eu não tive nenhuma impressão de reconhecimento quando vi Julien lá em cima, ou quando vi Charlotte, Mary Beth, ou Antha, a pobre e trágica Antha, procurando fugir pelo telhado. Ver uma coisa dessas é o mesmo que senti-la. Ela devora a pessoa. Não sobra nada no seu íntimo enquanto se está vendo aquilo.

Mas eles não estavam nas minhas visões. Nenhum deles. E Deborah era apenas um corpo ressequido na pira. Ela não estava lá parada com eles. Ora, isso certamente tem seu próprio significado.

Ele releu o que havia escrito. Queria acrescentar alguma coisa mas desconfiava da possibilidade de enfeitar demais. Desconfiava da lógica. Deborah não faz parte deles? É por isso que ela não estava lá?

Passou a descrever o restante.

Antha estava usando um vestido de algodão. Eu vi o cinto de verniz que ela usava. Quando engatinhou pelo telhado, ela rasgou as meias. Seus joelhos sangravam. Mas o rosto, isso seria difícil de esquecer, com o olho arrancado da órbita. E o som da sua voz.

Levarei aquela voz comigo para o túmulo. E Julien. Julien parecia tão concreto quanto ela, enquanto observava. Julien estava de preto. E era jovem. Não um menino, de jeito nenhum. Mas um homem vigoroso, não um velho. Mesmo na cama, ele não era velho.

Mais uma vez, ele parou.

E o que mais Lasher disse que era diferente? Algo sobre a paciência, sobre esperar... e depois a menção ao número treze.

Mas o número treze do quê? Se for um número num portal, eu não o vi. Os frascos, não eram treze. Eles me pareceram mais vinte, mas vou verificar isso com Rowan.

Ele voltou a parar, pensou nos acréscimos, mas não os incluiu.

O demônio brincalhão não disse uma palavra sobre um portal. Não, apenas a ameaça de que eu estarei morto quando ele estiver vivo, de carne e osso.

Mortos. Túmulos. Algo que Rowan havia dito antes que o dia se espatifasse como um pedaço de vidro. Ou como um frasco de vidro. Alguma coisa a respeito de um portal com o formato de buraco de fechadura entalhado no jazigo da família Mayfair.

Amanhã irei lá, para ver com meus próprios olhos. Se o número treze estiver gravado em algum lugar desse portal, espero em Deus que isso me ilumine mais do que o ocorrido hoje.

Aconteça o que for, não importa o que eu veja, ou o que eu pense ser seu significado, começo a fazer um trabalho sério amanhã. E Rowan também. Ela vai cedo para o centro com Ryan e Pierce para conversar sobre o legado. Eu começo a conversar com outros empreiteiros da cidade. Começo um trabalho verdadeiro, real, honesto na casa.

E isso me parece melhor do que qualquer outra atitude. Parece-me uma espécie de salvação.

"Vamos ver se Lasher vai apreciar isso. Vamos ver o que ele vai optar por fazer."

Michael deixou o caderno na mesa e voltou para a cama. Dormindo, o rosto de Rowan era tão liso e sem expressão que ela parecia um perfeito manequim de cera sob os lençóis. O calor da sua pele o surpreendeu quando ele a beijou. Movendo-se lentamente, ela se voltou, pôs os braços em volta dele e se aconchegou junto ao seu pescoço.

- Michael - sussurrou ela, com uma voz sonolenta. - São Miguel, o arcanjo... - Os dedos tocaram seus lábios, como se estivesse tateando no escuro para saber se ele estava realmente ali. - Amo você.

- Amo você também, querida - disse ele, baixinho. - Você é minha, Rowan. - E ele sentiu no braço o calor dos seus seios, quando a puxou para mais perto. Ela se voltou, e seu sexo macio e peludo era uma pequena chama encostada na coxa dele, enquanto ela voltava a adormecer.

O legado.

Em algum momento durante a noite ocorrera a Rowan como que um sonho de hospitais e clínicas, laboratórios magníficos, com equipes de pesquisadores brilhantes...

E tudo isso você pode fazer.

Eles não compreenderiam. Aaron e Michael compreenderiam. Mas todos os outros não conseguiriam compreender por desconhecerem os segredos do arquivo. Por não saberem o que estava naqueles frascos.

Alguma coisa eles sabiam, mas não tinham conhecimento de tudo através dos séculos até Suzanne de Mayfair, parteira e curandeira na sua imunda aldeia escocesa, ou até Jan van Abel, na sua mesa de trabalho em Leiden, fazendo sua límpida ilustração a tinta de um torso dissecado de modo a revelar as camadas de músculos e veias.

Eles não ouviram falar de Marguerite e do cadáver a se debater na cama rugindo com a voz de um espírito, ou de Julien que observava. Julien, que havia posto os frascos no sótão em vez de destruí-los há quase um século.

Aaron sabia e Michael sabia. Eles compreenderiam o sonho de hospitais, clínicas e laboratórios, de mãos que sabem curar postas sobre corpos machucados, doloridos, aos milhares.

Que peça a pregar em você, Lasher!

O dinheiro não era mistério para ela. O legado não a assustava. Ela já conseguia imaginar os limites do que lhe seria permitido. O dinheiro nunca a havia seduzido tanto quanto a anatomia, a microcirurgia, a biofísica ou a neuroquímica. Mas ele não representava nenhum mistério. Ela já o havia estudado antes, e o estudaria agora.

E o legado era algo que podia ser dominado como qualquer outro tema... para ser convertido em hospitais, clínicas, laboratórios... e vidas salvas.

Se ao menos ela conseguisse expulsar da casa a recordação da velha. Pois era essa a verdadeira assombração para ela, não os fantasmas que Michael havia visto. E, quando pensava no sofrimento de Michael, ela mal conseguia agüentar. Era como se estivesse vendo tudo o que amava nele morrendo por dentro. Ela teria afastado dele todos os espíritos do mundo se pelo menos soubesse como fazê-lo.

Já a velha... A velha ainda se encontrava na cadeira de balanço como se nunca fosse sair dali. E o seu fedor era pior do que o cheiro pútrido dos frascos porque Rowan era responsável pelo seu assassinato. O crime perfeito.

O fedor contaminava a casa; contaminava a história; contaminava o sonho dos hospitais. E Rowan esperava à porta.

Queremos entrar, velha. Quero minha casa e minha família. Os frascos foram destruídos e seu conteúdo já se foi daqui. Estou com a história nas minhas mãos, brilhante como uma pedra preciosa. Procurarei reparar tudo. Deixe-me entrar para eu poder iniciar minha luta.

Por que elas não eram amigas, ela e a velha? Rowan sentia apenas desprezo pela voz malévola, rancorosa, que havia provocado Michael de dentro do conteúdo dos frascos quebrados.

E o espírito sabia que ela o detestava. Que, quando se lembrava do seu toque furtivo, ela o odiava.

Sozinha, no dia anterior, horas antes de Michael chegar, ela havia ficado ali sentada, à espera de Lasher, prestando atenção a cada sussurro e a cada estalido nas velhas paredes.

Se você acha que pode me apavorar, está cometendo uni erro trágico. Não sinto nenhum medo de você, e também nenhuns amor. Você é misterioso. É mesmo. E eu sou curiosa. Mas isso é muito relativo para uma pessoa de mentalidade científica como eu. Significa muito pouco mesmo. Você está entre mim e as coisas que mais amo.

Ela deveria ter destruído os frascos naquela hora. Jamais deveria ter insistido com Michael para que ele tirasse as luvas, e nunca mais o faria, disso tinha certeza.

Michael não conseguia suportar o poder das suas mãos. Ele realmente não conseguia lidar com a recordação das visões. Aquilo fazia com que sofresse. E ela se enchia de pavor ao vê-lo com medo.

Foi o fato do afogamento que os reuniu, não aquelas misteriosas forças sinistras que se ocultavam na casa. Vozes que falavam de cabeças apodrecidas dentro de frascos.

Fantasmas usando tafetá. A força de Michael e a de Rowan, essa havia sido a origem do seu amor. E o futuro estava na casa, na família, no legado que levaria os milagres da medicina a milhares, talvez a milhões.

O que eram todos os fantasmas e lendas sinistras na terra em comparação com essas realidades concretas e cintilantes? Em sonho, ela via o surgimento de prédios.

Via a imensidão. E as palavras da história passavam pelos seus sonhos. Não, nunca pretendi matar a velha, o terrível erro. Matar alguém. Ter feito algo tão condenável...

Às seis, quando o café da manhã chegou, o jornal veio junto.

 

ENCONTRADO ESQUELETO EM FAMOSA MANSÃO DO GARDEN DISTRICT

Bem, isso era inevitável, não era? Parece que Ryan lhe havia avisado que não poderiam abafar a história. Como que anestesiada, ela leu rapidamente o! diversos parágrafos, divertindo-se a contragosto com o desdobramento da história gótica num estilo jornalístico estranho e antiquado.

Quem poderia contestar a declaração de que a mansão da família Mayfais sempre estivera associada à tragédia? Ou de que a única pessoa que poderia ter lançado alguma luz sobre a morte do texano Stuart Townsend era Carlotta Mayfair, que havia morrido na mesma noite em que os restos mortais foram descobertos, depois de uma longa e ilustre carreira de advogada.

O restante era uma elegia a Carlotta, que encheu Rowan de frieza e culpa. Sem dúvida, alguém do Talamasca estaria recortando o artigo. Talvez Aaron o estivesse lendo nos seus aposentos ali em cima. O que ele escreveria no arquivo a respeito do artigo? Pensar no arquivo era reconfortante.

Na realidade, ela agora se sentia numa posição muito mais cômoda do que uma pessoa mentalmente sã deveria se sentir. Pois, não importa o que estivesse acontecendo, ela era uma Mayfair, em meio a todos os seus parentes; e suas mágoas secretas estavam entrelaçadas com mágoas mais antigas, mais complexas.

Ontem mesmo, quando Michael estava destruindo os frascos e lutando com o seu poder, aquilo não havia sido o pior para ela, de jeito algum. Ela o tinha, tinha a Aaron e a todos os seus primos. Não estava só. Mesmo com o assassinato da velha, ela não estava só.

Ficou sentada parada por algum tempo depois de ler o artigo, com as mãos unidas sobre o jornal dobrado, enquanto a chuva caía forte lá fora, e o café da manhã esfriava sobre a mesinha.

Não importa o que mais pudesse estar sentindo, ela devia prantear em silêncio a morte da velha. Ela devia deixar a tristeza se coagular na sua alma. E aquela mulher agora ia ficar morta para sempre, certo?

A verdade era que tantas coisas estavam lhe acontecendo, e com tanta rapidez, que ela não conseguia mais classificar suas reações ou mesmo chegar a manifestar alguma reação. Ela entrava e saía dos estados emocionais. Ontem, quando Michael estava deitado na cama, com o pulso acelerado e o rosto afogueado, ela chegou a ficar nervosíssima.

Havia pensado, se eu perder esse homem, morrerei com ele. Juro. E uma hora mais tarde, ela quebrava um frasco atrás do outro, derramando o conteúdo na bacia branca de lavar louça e fisgando os espécimes com um furador de gelo enquanto os examinava, antes de entregá-los a Aaron para serem embalados no gelo. Fria como qualquer clínico. Absolutamente sem nenhuma diferença.

Em meio a esses momentos de crise, ela ia à deriva, olhando, gravando, porque tudo era tão diferente, tão absolutamente incomum e, no final das contas, simplesmente demais.

Nessa manhã, ao despertar às quatro, ela não sabia onde estava. Depois, tudo lhe voltou à mente, a enxurrada de bênçãos e maldições, seu sonho a respeito de hospitais, Michael ao seu lado, e o desejo por ele como uma droga.

Não era realmente culpa de Michael que cada gesto, palavra, movimento ou expressão facial sua fosse para ela de um erotismo tão eletrizante, não importando o que mais pudesse estar acontecendo. Ele era um objeto sexual, deliciosamente inconsciente disso, porque na sua inocência ele realmente não compreendia a voracidade do desejo de Rowan.

Sentada na cama, com os braços envolvendo os joelhos, ela se perguntava se isso sob certo aspecto não era pior para as mulheres do que para os homens, já que a mulher podia considerar extremamente eróticas as menores coisas num homem como o jeito do seu cabelo crespo se grudar à testa, ou o cachinho que formava na nuca. Os homens não seriam um pouquinho mais diretos a respeito dessas coisas? Será que eles ficavam loucos pelo tornozelo de uma mulher? Aparentemente Dostoievski teria dito que sim. Rowan, porém, duvidava. Para ela era uma tortura olhar para a penugem escura no dorso do pulso de Michael, ver a pulseira de ouro entrando nela, imaginar seu braço mais tarde, com a manga da camisa arregaçada, o que por algum motivo o tornava ainda mais sexy do que quando o braço estava nu, e o rápido movimento dos seus dedos quando ele acendia cigarros. Tudo erótico, com um efeito direto, genital. Tudo dotado de uma força especial, um impacto. Ou sua voz grave, rouca, cheia de ternura, quando falava ao telefone com sua tia Viv.

Quando ele estava de joelhos naquele quarto feio e imundo, estava lutando, se debatendo. E depois, na cama empoeirada, ele lhe parecera irresistível, exausto, com as mãos grandes, fortes, enroscadas vazias sobre a colcha. Abrir o grosso cinto de couro e o zíper dos jeans, tudo erótico; pensar que essa criatura poderosa de repente estivesse dependente dela. No entanto, o terror a havia dominado quando ela tomou seu pulso.

Ficara ali sentada com ele durante um longo período de tensão, até que a pulsação se normalizasse; até sua pele voltar à temperatura normal. Até ele respirar com regularidade, adormecido. De uma beleza tão perfeita e tosca ele era, com a camiseta branca esticada sobre o tórax, apenas um homem de verdade e tão primorosamente misterioso aos seus olhos, com aqueles pêlos escuros no peito e no dorso dos braços, com as mãos tão maiores do que as dela.

Somente o medo em Michael resfriava a paixão de Rowan, e esse medo nunca durava muito tempo.

Naquela manhã, e?a teve vontade de acordá-lo com a boca grudada no seu pau. Mas ele agora precisava de sono depois de tudo o que havia acontecido. Precisava muito de sono. Ela só esperava que ele encontrasse a paz nos seus sonhos. Além do mais, ela iria se casar com ele assim que parecesse de bom tom pedir sua mão. E os dois teriam pela frente uma vida inteira para fazer esse tipo de coisa na casa de First Street, não teriam?

E parecia errado fazer o que ela havia feito algumas manhãs com Chase, seu velho amigo policial palomino de Marin County, que consistia em rolar até junto dele, grudar os quadris ao lado do seu corpo e o rosto ao seu braço bronzeado e prender as pernas bem juntas até o orgasmo atravessá-la como uma onda de luz ofuscante.

Também não era muito gostoso fazer isso. Na realidade, não era nada em comparação com ser pregada ao colchão por algum brutamontes adorável com um pequeno crucifixo de ouro suspenso de uma corrente no pescoço. Michael nem mesmo se mexeu quando o trovão ribombava lá em cima, quando o estrondo era tão alto e súbito que dava a impressão de tiros destruindo o telhado.

E agora, duas horas depois, com a chuva caindo e o café da manhã esfriando, ela sonhava ali sentada. Sua mente examinava todo o passado e todas as possibilidades, bem como essa reunião crucial que logo deveria começar.

O telefone a assustou. Ryan e Pierce estavam no saguão, prontos para levá-la até o centro da cidade.

Ela escreveu um rápido bilhete para Michael, dizendo que estava saindo para resolver assuntos jurídicos de família e que estaria de volta para o jantar, antes das seis.

"Por favor, não se afaste de Aaron e não vá até a casa sozinho".  Ela assinou com amor.

- Quero me casar com você - disse em voz alta, ao colocar o bilhete na mesinha-de-cabeceira. Michael roncava baixinho no travesseiro. - O arcanjo e a bruxa - disse, com a voz ainda mais alta. Ele continuou a dormir. Ela arriscou um beijo no seu ombro nu, tocou com delicadeza o músculo do seu braço, o que era suficiente para arrastá-la direto para a cama se demorasse um pouco mais, e saiu, fechando a porta.

Desprezando o elegante elevador de lambris, ela desceu pela escada atapetada, com os olhos fixos por um instante no rosto bem-escanhoado de Ryan e no seu belo filho, como se eles fossem alienígenas de algum outro universo, nos seus ternos de tropical, com suas melodiosas vozes sulinas, que estavam ali para conduzi-la a uma nave espacial disfarçada de limusine.

Os pequenos prédios de tijolos antigos de Carondelet Street passavam velozes num estranho silêncio, com o céu parecendo uma pedra polida para além do delicioso aguaceiro, com o raio abrindo um veio na pedra e o trovão estourando ameaçador para depois se extinguir.

Chegaram, afinal, a uma região de arranha-céus esplêndidos, uma América reluzente por dois quarteirões, seguidos de um estacionamento subterrâneo que poderia pertencer a qualquer lugar do mundo.

Nenhuma surpresa nos espaçosos escritório s do trigésimo andar da Mayfair & Mayfair, com sua mobília tradicional e seus tapetes espessos, nem mesmo o fato de dois dos advogados ali reunidos serem mulheres, e um dos outros ser um senhor de idade. Ou de a vista, através das altas janelas de vidro, ser do rio cinzento como o céu, salpicado com barcaças e rebocadores, por trás do véu de prata da chuva.

Depois, café e conversa da natureza mais vaga e frustrante com Ryan, seus cabelos brancos e olhos de um azul-claro, inexpressivos como bolas de gude, a discorrer interminavelmente sobre "investimentos consideráveis", "títulos a longo prazo", "extensões de terras cuja propriedade remonta a mais de um século" e investimentos pesados em setores seguros "maiores do que você poderia imaginar".

Ela esperava. Eles tinham de lhe fornecer mais do que isso. Claro que tinham. E assim, como um computador, ela passou a analisar os nomes e detalhes preciosos quando ele afinal começou a deixá-los escapar.

E, finalmente, ela podia ver os hospitais e clínicas tremeluzindo no horizonte do sonho, embora continuasse ali sentada, imóvel, sem nenhuma expressão, deixando que Ryan prosseguisse.

Quarteirões de imóveis no centro de Manhattan e de Los Angeles? A principal fonte de financiamento para a cadeia internacional de hotéis Markham Harris Resorts? Shopping centers em Beverly Hills, Coconut Grove, Boca Raton e Palm Beach? Condomínios fechados em Miami e Honolulu? E mais uma vez as referências aos – significativos - investimentos pesados em letras do tesouro, em francos suíços e em ouro.

Seu pensamento vagueava, mas nunca muito longe. Quer dizer que as descrições de Aaron no arquivo haviam sido perfeitamente exatas. Ele lhe havia proporcionado o pano de fundo e o arco do palco para melhor apreciar essa pequena peça. Na verdade, ele lhe havia fornecido conhecimentos que esses advogados corretíssimos nos seus belos trajes claros de trabalho não poderiam imaginar.

E mais uma vez, ocorreu-lhe como era decididamente estranho que Aaron e Michael houvessem receado aborrecê-la ao colocar um instrumento tão poderoso nas suas mãos. Eles não compreendiam o poder, era esse o problema deles. Eles nunca haviam feito um corte num cerebelo.

E este legado era um cerebelo, não era?

Ela bebia seu café em silêncio. Seus olhos examinavam rapidamente os parentes ali reunidos, que também estavam sentados em silêncio, enquanto Ryan continuava a esboçar vagos quadros de títulos municipais, contratos para exploração de petróleo, algum financiamento prudente na indústria do entretenimento e ultimamente na tecnologia de computação. De vez em quando, ela fazia um gesto de cabeça, concordando, e escrevia uma pequena anotação com sua caneta de prata.

É claro que ela compreendia que a firma se encarregava de tudo há mais de um século. Isso merecia um gesto de concordância e um sussurro sincero.

Julien a havia fundado para administrar o legado. E é claro que ela bem podia imaginar como o legado estava entrelaçado com as finanças da família como um todo.

-... tudo em prol do legado, é claro. Pois ele tem a importância suprema, mas nunca houve conflitos. Na realidade, falar em conflitos demonstraria uma falta de compreensão da abrangência...

- Compreendo.

- Nossa abordagem sempre foi cautelosa. No entanto, para avaliar plenamente o que estou dizendo, é preciso compreender o que uma abordagem dessas significa quando se está falando de uma fortuna dessa magnitude. Pode-se pensar, realisticamente, em termos de um pequeno país produtor de petróleo, e eu não estou exagerando. E nas políticas que se propõem a preservar e a proteger em vez de expandir e desenvolver, porque, quando um capital desses é adequadamente protegido da inflação, ou de qualquer outro tipo de erosão ou de abuso, é praticamente impossível deter sua expansão, e o desenvolvimento em todas as direções é inevitável. Temos de enfrentar a questão diária de investir rendimentos tão altos que...

- Você está falando em bilhões - disse ela, com a voz tranqüila.

Ondulações silenciosas perturbaram a reunião. Uma gafe de ianque? Ela não captava nenhuma vibração de desonestidade, apenas de confusão e de medo dela e do que ela poderia acabar fazendo. Afinal, eles pertenciam à família Mayfair, não pertenciam? Eles a estavam inspecionando da mesma forma que ela os inspecionava.

Pierce olhou de relance para o pai, Pierce, que dentre eles era o mais idealista e o menos contaminado. Ryan olhou para os outros. Ryan, que compreendia a dimensão do que estava em jogo de uma forma que os outros talvez não compreendessem. Mas nenhuma resposta se apresentava.

- Bilhões - repetiu Rowan. - Apenas em imóveis.

- Bem, na verdade, sim. Devo dizer que a estimativa está correta. Bilhões, apenas em imóveis.

Como todos pareciam estar embaraçados e em situação incômoda, como se um segredo estratégico houvesse sido revelado.

De repente, ela farejou o medo, a repulsa de Lauren Mayfair, a advogada mais velha, loura, talvez com seus setenta anos, com a pele macia enrugada e empoada, que a examinava da cabeceira da mesa e a imaginava fútil, mimada e programada para ser totalmente ingrata pelo que a firma havia feito. E à sua direita Anne Marie Mayfair, de cabelos escuros, bonita, com seus quarenta anos ou mais, maquiada com esmero e trajada com perfeição, um costume cinza e uma blusa de seda cor-de-açafrão, demonstrando uma curiosidade mais aberta, ao olhar para Rowan o tempo todo através dos seus óculos de tartaruga, mas convencida de que algum tipo de catástrofe devia estar à espera no futuro.

E Randall Mayfair, neto de Garland, esguio, com um venerável topete grisalho e um pescoço como um caniço saindo do colarinho, que apenas estava ali sentado, com os olhos sonolentos sob as grossas sobrancelhas e as pálpebras ligeiramente violáceas, sem medo, porém alerta e resignado, por natureza.

E, suando seus olhos se encontraram, Randall lhe deu uma resposta muda. E claro que você não compreende. Como poderia compreender? Quantas pessoas conseguem compreender? E por isso, você vai querer o controle; e por isso, estará fazendo uma bobagem. Ela pigarreou, ignorando o gesto revelador com o qual Ryan juntou as mãos logo abaixo do queixo como um campanário de igreja e ficou olhando firme para ela com aqueles seus olhos de gude azuis.

- Vocês estão me subestimando - disse ela, em tom neutro, com os olhos passando por todo o grupo. - Eu não os estou subestimando. Só quero saber no que consiste o legado. Não posso manter uma atitude passiva. A passividade seria irresponsável.

Momentos de silêncio. Pierce ergueu sua xícara de café e bebeu sem nenhum ruído.

- O que nós realmente queremos dizer - prosseguiu Ryan, em tom calmo e gentil, tendo o campanário caído - é que, para se ser totalmente prático, uma pessoa pode viver num luxo principesco com uma fração dos juros auferidos com o reinvestimento de uma fração dos juros auferidos com o reinvestimento... e assim por diante, se você está me entendendo, sem que o capital principal jamais seja tocado em nenhuma circunstância e por nenhum motivo...

- Mais uma vez, eu não posso me manter passiva, complacente ou ignorante por negligência. Não acredito que eu deva agir assim.

Silêncio, e mais uma vez Ryan a rompê-lo. Em tom conciliador e cavalheiresco.

- Especificamente o que você gostaria de saber?

- Tudo, as engrenagens. Ou talvez eu devesse dizer a anatomia. Quero ver o corpo por inteiro como se estivesse esticado em cima de uma mesa.

Quero examinar o organismo como um todo.

Uma rápida troca de olhares entre Randall e Ryan. E Ryan novamente a responder.

- Bem, isso é perfeitamente razoável, mas talvez não seja tão simples quanto você imagina...

- Mesmo assim, a fortuna deve ter um princípio em algum lugar e, num certo ponto, um

fim.

- Claro, sem sombra de dúvida, mas creio que você está visualizando a coisa, digamos, de um ponto de vista equivocado.

- Um ponto específico: quanto desse dinheiro é aplicado em medicina? Há alguma instituição médica envolvida?

Como ficaram espantados. Parecia uma declaração de guerra, ou pelo menos era isso o que dizia o rosto de Anne Marie Mayfair, que olhava de Lauren para Randall, na primeira exibição de hostilidade não disfarçada que

Rowan testemunhava desde sua chegada a esta cidade. Lauren, a mais velha com um dedo formando um gancho abaixo do lábio inferior, os olho estreitos, era educada demais para uma demonstração dessa natureza apenas olhava fixamente para Rowan, com esse olhar de vez em quando só transferindo lentamente até Ryan, que mais uma vez começou a falar.

-Nossas atividades filantrópicas no passado não envolveram a medicina diretamente. A Fundação Mayfair se envolveu mais com as artes e com educação, especialmente com a televisão educativa, bem como com fundo, para bolsas em diversas universidades. É claro que doamos somas enormes a diversas instituições de caridade estabelecidas, sem qualquer ingerência da Fundação, mas tudo isso, veja bem, é cuidadosamente estruturado e não implica a cessão do controle do dinheiro em questão, mas a cessão dos lucros...

- Sei como isso funciona - disse ela, calmamente. - Mas estamos falando de bilhões de dólares, e hospitais, clínicas e laboratórios são instituições lucrativas.

Eu não estava realmente pensando no lado filantrópico. Estava pensando em toda uma área de envolvimento, que poderia ter um considerável impacto benéfico na vida de seres humanos.

Como esse momento era estranhamente frio e excitante. Como era íntimo também. Muito parecido com a primeira vez em que se aproximara da mesa de operações, segurando os instrumentos microscópicos nas suas próprias mãos.

- Não foi nossa tendência aplicar em medicina - disse Ryan, num tom conclusivo. – Esse campo exigiria estudos intensos; exigiria toda uma reestruturação... e Rowan, você sem dúvida percebe que essa rede de investimentos, se é que posso chamá-la assim, evoluiu ao longo de um século. Esta não é uma fortuna que possa ser perdida se o mercado da prata entrar em colapso, ou se a Arábia Saudita inundar o mundo com petróleo de graça. Estamos falando aqui de uma diversificação que é praticamente inigualável nos anais financeiros, e de manobras cuidadosamente planejadas que se revelaram lucrativas durante duas guerras mundiais e incontáveis distúrbios de menores proporções.

- Eu entendo - disse ela. - Entendo mesmo. Mas quero essas informações. Quero ter conhecimento de tudo. Posso começar pela declaração de imposto de renda para usá-la como base. Talvez o que eu queira seja uma espécie de treinamento, uma série de reuniões nas quais possamos debater diversas áreas de envolvimento. Acima de tudo, quero estatísticas, porque no final as estatísticas são a realidade...

Mais uma vez, o silêncio, a confusão interior, os olhares que ricocheteavam uns nos outros. Como a sala havia ficado pequena e cheia demais.

- Você quer um conselho meu? - perguntou Randall, com a voz mais grave e mais dura do que a de Ryan, mas com idêntica paciência nas suas melodiosas cadências sulinas.

- Você está pagando por ele, no fundo; por isso bem que podia ouvi-lo.

- Fale, por favor - disse ela, abrindo as mãos.

- Volte à neurocirurgia. Estipule uma renda para tudo que um dia possa vir a precisar. E esqueça essa história de entender de onde vem o dinheiro. A não ser que você queira deixar de ser médica para se tornar o que nós somos: gente que passa a vida em reuniões de diretoria, a conversar com consultores de investimentos, corretores de valores, outros advogados e contadores com pequenas máquinas de somar de dez dígitos, que é o que você nos paga para que façamos.

Ela o examinou, os cabelos de um grisalho escuro, desalinhados, os olhos caídos, as grandes mãos enrugadas agora entrelaçadas sobre a mesa. Um homem simpático. É, um homem bom. Que não estava mentindo. Nenhum deles mentia. Nenhum deles roubava.

A administração inteligente desse dinheiro exigia todos os seus talentos e lhes proporcionava lucros muito além dos sonhos daqueles com uma queda para a roubalheira. No entanto, todos eles são advogados. Até mesmo o jovem e bonito Pierce, com sua pele de porcelana, é advogado. E os advogados têm uma definição da verdade que pode ser surpreendentemente flexível e diferente da definição de qualquer outra pessoa. No entanto, eles têm sua ética. Esse homem tem sua ética, mas é profundamente cauteloso, e aqueles que são profundamente cautelosos não gostam de intervir. Não são cirurgiões. Eles nem mesmo pensam em termos do bem maior, da salvação de milhares, talvez milhões, de vidas. Eles não podem imaginar o que significaria se esse legado, essa fortuna monumental e notória, pudesse ser devolvido às mãos da parteira escocesa e do médico holandês a se aproximarem do leito do enfermo, com as mãos estendidas para curar.

Ela olhou para longe, para o rio lá fora. Por um instante, sua emoção a havia ofuscado. Ela queria que o calor sumisse do seu rosto. Uma redenção, sussurrava ela no fundo da alma. E não era importante que eles compreendessem. O importante era que ela compreendesse, que eles não lhe escondessem nada, e que, à medida que as coisas fossem sendo removidas do seu controle, eles não se sentissem magoados ou diminuídos, mas que eles também fossem redimidos.

- Qual é o valor total? - perguntou ela, com os olhos fixos no rio, na longa barcaça escura sendo empurrada rio acima pelo rebocador velho, de nariz arrebitado.

Silêncio.

- Você está usando uma perspectiva errada - disse Randall. - Tudo é uma coisa só, uma grande teia...

- Posso imaginar. Mas quero saber, e vocês não devem me condenar por isso. A quanto monta minha fortuna?

Nenhuma resposta.

- Sem dúvida, vocês podem fazer uma estimativa.

- Bem, eu não gostaria, porque ela poderia ser totalmente irreal, se fosse vista de um...

- Sete bilhões e meio - disse Rowan. - Essa é a minha estimativa.

Um silêncio prolongado. Um vago espanto. Ela havia chegado bem perto não? Bem perto talvez de alguma cifra de imposto de renda, que havia surgido numa daquelas cabeças hostis e parcialmente fechadas.

Foi Lauren quem respondeu. Lauren, cuja expressão mudou quase imperceptivelmente quando ela se endireitou mais para junto da mesa segurou o lápis com as duas mãos.

- Você tem direito a essas informações - disse ela, com ume delicada, de uma feminilidade quase estereotipada, uma voz que combinava bem com os cabelos louros bem penteados e os brincos de pérola. Você tem todos os direitos legais de saber o que lhe pertence. E não estou falando apenas por mim ao dizer que iremos cooperar plenamente com você, pois é nossa obrigação ética. Devo, porém, confessar que eu particularmente considero sua atitude bastante interessante em termos morais. Fico feliz oportunidade de conversar com você sobre todos os aspectos do legado nos detalhes mais ínfimos. Meu único receio é que você se canse desse muito antes de todas as cartas estarem na mesa. Mas estou mais do disposta a tomar a iniciativa e começar.

Será que ela percebia como sua atitude era condescendente? Ro duvidava. Afinal de contas, o legado pertencia a essas pessoas há mais de cinqüenta anos, não é? Todos eles mereciam paciência. No entanto, ela podia realmente lhes dar o que eles mereciam.

- Na verdade, nenhuma de nós duas tem uma alternativa - disse Rowan. - Não é apenas interessante em termos morais que eu queira saber no que tudo consiste; é um imperativo moral que eu descubra.

A mulher preferiu não responder. Sua feições delicadas continua tranqüilas, com os pequenos olhos claros ligeiramente dilatados e as n magras tremendo muito de leve enquanto seguravam as duas extremidade lápis. Os outros ao redor da mesa a observavam, embora cada um a seu m procurasse disfarçar.

E então Rowan percebeu. Esse é o cérebro por trás da firma, essa mulher, Lauren. E o tempo todo, Rowan havia pensado se tratar de Ryan. Ela reconhecia calada seu engano, perguntando-se se a mulher tinha alguma condição de calar seus pensamentos. Nós nos equivocamos uma a respeito da outra.

Mas qualquer interpretação seria possível num rosto tão impassível, numa atitude tão lenta e graciosa.

- Posso lhe fazer uma pergunta? - disse a mulher, ainda olhando para Rowan. - É uma pergunta estritamente profissional, compreende?

- Claro.

- Você agüenta ser rica? Estou falando em ser realmente rica. Você condições de lidar com isso?

Rowan sentiu a tentação de sorrir. Era uma pergunta tão revigorante e ao mesmo tempo tão superior e ofensiva. Ocorreu-lhe uma infinidade respostas, mas ela preferiu a mais simples.

- Tenho - disse Rowan. - E quero construir hospitais. Silêncio.

Lauren aprovou, com a cabeça. Ela cruzou os braços sobre a mesa, com os olhos cobrindo o grupo inteiro.

- Bem, não vejo nenhum problema nisso - disse ela, com calma. - Parece uma idéia interessante. E nós estamos aqui para fazer o que você quiser, é claro.

É, ela era o cérebro da firma. E havia permitido que Ryan e Randall falassem. Mas era ela quem seria o mestre e, no final, o obstáculo. Não importava. Rowan tinha o que queria. O legado era tão concreto quanto a casa; era tão real quanto a família. E o sonho ia ser realizado. Na verdade, ela sabia que ele era exeqüível.

- Acho que agora podemos falar dos problemas imediatos, não?-disse Rowan. - Vocês vão precisar fazer um inventário dos objetos que estão na casa? Creio que alguém mencionou isso. E também, o que pertenceu a Carlotta. Será que alguém quer retirar tudo de lá?

- Claro, e quanto à casa em si - disse Ryan - você já tomou alguma decisão?

- Quero restaurá-la. Quero morar nela. Vou me casar em breve com Michael Curry.

Provavelmente antes do final do ano. A casa será nosso lar.

Foi como se uma lâmpada forte se acendesse de repente, banhando a cada um deles com seu calor e sua luz.

- Mas isso é esplêndido - disse Ryan.

- Que bom receber essa notícia - exclamou Anne Marie.

- Você não sabe o que aquela casa representa para nós - atalhou Pierce. - Eu me pergunto se você tem idéia do quanto todos ficarão felizes ao saber disso - comentou Lauren.

Só Randall estava calado. Randall, com suas pálpebras pesadas e suas mãos roliças. E então, até ele falou, quase com tristeza. - É, isso seria simplesmente maravilhoso.

- Mas será que alguém poderia ir buscar o que pertenceu à velha e levar tudo embora? - perguntou Rowan. - Eu não quero entrar lá antes que isso seja feito.

- Claro que sim - disse Ryan. - Começaremos o inventário amanhã. E Gerald Mayfair irá lá imediatamente recolher os objetos de Carlotta.

- E uma equipe de faxina. Preciso de uma equipe profissional para fazer uma limpeza total num quarto do terceiro andar e para retirar todos os colchões.

- Aqueles frascos - disse Ryan, com ar de nojo. - Aqueles frascos repugnantes.

- Já esvaziei todos eles.

- O que estava dentro deles? - perguntou Pierce.

Randall a examinava com seus olhos pesados e flácidos a meio-pau.

- Estava tudo podre. Se conseguirem eliminar o cheiro horrível e retirar os colchões, podemos começar a restauração. Todos os colchões, acho...

- Começar com tudo novo, certo. Eu me encarrego disso. Pierce pode ir até lá agora.

- Não, eu mesma vou.

- Bobagem, Rowan, deixe que eu cuido disso - disse Pierce, já em pé. - Você vai querer substituir os colchões? São de casal, não são, aquelas camas antigas? Deixe-me ver, são quatro. Posso mandar entregar e instalar os colchões hoje à tarde.

- Maravilha - aprovou Rowan. - O quarto da empregada não precisa ser tocado, e a velha cama de Julien pode ser desarmada e guardada.

- Entendido. No que mais eu posso ajudá-la?

- Isso já é mais do que o suficiente. Michael cuidará do resto. Michael vai se encarregar pessoalmente da reforma.

- É, ele é bom mesmo nisso, não é? - disse Lauren, baixinho. Imediatamente ela percebeu o deslize. Baixou os olhos e depois encarou Rowan, procurando disfarçar sua ligeira confusão.

Eles já o haviam investigado, não é? Haviam descoberto a história das mãos?

- Apreciaríamos se ficasse um pouco mais - disse Ryan rapidamente. - São somente alguns documentos que precisamos lhe mostrar, relacionados ao espólio, e talvez alguns documentos essenciais pertinentes ao legado...

- E, é claro. Ao trabalho. É do que eu mais gosto.

- Então, está acertado. Depois, vamos levá-la para almoçar. Queríamos levá-la ao Galatoire's, se você não tem nenhuma outra idéia.

- Parece ótimo.

E assim tudo começou.

Eram três da tarde quando ela chegou à casa. Sob o pleno calor do dia, embora o céu ainda estivesse nublado. O calor parecia estar reunido e estagnado abaixo dos carvalhos. Ao descer do táxi, Rowan viu as nuvens de insetos minúsculos nos bolsões de sombra. Mas a casa cativou sua atenção no mesmo instante. Aqui sozinha mais uma vez. E os frascos não estavam mais lá, graças a Deus; nem as bonecas; e muito em breve tudo o que pertencera a Carlotta. Tudo retirado.

Ela estava com as chaves na mão. Haviam lhe mostrado os documentos relativos à casa, que havia sido vinculada ao legado no ano de 1888 por Katherine. Era dela e só dela. Da mesma forma que todos os outros bilhões, que eles não queriam mencionar em voz alta. Tudo meu.

Gerald Mayfair, um rapaz bem-apessoado com um rosto afável e feições indefiníveis, saiu pela porta da frente. Ele explicou rapidamente que já estava de saída, que acabava de pôr a última caixa com objetos pessoais de Carlotta na mala do carro.

A equipe de limpeza havia terminado uma meia hora antes.

Ele olhou para Rowan um pouco nervoso quando ela lhe ofereceu a mão para cumprimentá-lo. Não podia ter mais de vinte e cinco anos e não se parecia com a família de Ryan. Suas feições eram menores, e ele não tinha o equilíbrio que ela havia observado nos outros. Mas parecia simpático, o que se poderia chamar de um cara legal. Sua voz era sem dúvida agradável.

Ele explicou que Carlotta queria que sua avó ficasse com seus objetos pessoais. E claro que a mobília ficaria. Pertencia a Rowan. Tudo era bem antigo do tempo em que a avó de Carlotta, Katherine, havia mobiliado a casa.

Rowan agradeceu por ele ter resolvido as coisas com tanta rapidez. Assegurou-lhe que compareceria à missa em memória de Carlotta.

-Você sabe se ela foi... enterrada? - Seria esse o termo correto para ser enfiada numa daquelas gavetas de pedra?

Foi, disse ele. Ela havia sido sepultada pela manhã. Ele havia comparecido com a mãe.

Receberam o recado para vir buscar as coisas quando chegavam em casa de volta.

Ela lhe disse como estava grata, como queria conhecer toda a família. Ele fez que sim, com a cabeça.

- Foi gentil que seus dois amigos comparecessem - disse ele. - Meus amigos?

Comparecessem a quê?

- Hoje de manhã ao cemitério, o Sr. Lightner e o Sr. Curry.

- Ah, sim, é claro. Eu... eu mesma deveria ter ido.

-Não tem importância. Ela não queria nenhuma movimentação, e francamente...

Ele ficou calado algum tempo na calçada de lajes, olhando para a casa, e querendo dizer alguma coisa, mas aparentemente incapaz de falar. - O que foi? – perguntou Rowan.

Talvez ele houvesse ido até lá em cima e visto todo aquele vidro quebrado antes da chegada da equipe de faxina. Sem dúvida, ele teria querido ver onde o "esqueleto" estava, quer dizer, isso se houvesse lido os jornais ou se os outros parentes lhe houvessem contado, o que podiam ter feito.

- Está pensando em morar nela? - perguntou ele, de repente.

- Em restaurá-la, em fazer com que readquira o antigo esplendor. Meu marido... o homem com quem vou me casar é um especialista em casas antigas. Ele garante que ela está perfeitamente sólida. Ele está louco para começar.

Mesmo assim, ele continuou calado naquele ar sufocante, com o rosto ligeiramente lustroso e uma expressão cheia de expectativa e hesitação.

- Você sabe que ela presenciou muitas tragédias - disse ele afinal. - Era isso o que tia Carlotta sempre dizia.

- E o mesmo que disse o jornal da manhã - respondeu ela, sorrindo. - Mas ela também presenciou muita felicidade, não? Nos velhos tempos, durante décadas a fio. Quero que ela veja a felicidade de novo. – Rowan esperou cheia de paciência e, finalmente, perguntou. - O que é que você realmente quer me dizer?

Os olhos do rapaz passaram pelo rosto de Rowan e depois, com u pequeno movimento dos ombros e com um suspiro, ele voltou a olhar para casa.

- Acho que eu devia lhe dizer que Carlotta... Carlotta queria que filha queimasse a casa depois da sua morte.

- Você está falando sério?

- Nunca tive a menor intenção de fazer sua vontade. Contei para Rowan e para Lauren. Contei para os meus pais. Mas achei que devia lhe contar. E era inabalável nesse ponto. E me disse como proceder. Que eu começasse incêndio pelo sótão com um lampião que estava lá em cima, que eu desces para o segundo andar e pusesse fogo nas cortinas, e que afinal descesse a térreo. Ela me fez prometer e me deu uma chave.

Ele entregou a chave a Rowan.

- Você realmente não vai precisar dela - prosseguiu ele. - A porta da frente não é trancada há uns cinqüenta anos, mas Carlotta tinha medo de que alguém a trancasse.

Ela sabia que não morreria antes de Deirdre, e eram essa as suas instruções.

- Quando foi que ela lhe disse isso?

- Muitas vezes. A última foi há uma semana ou talvez menos. Pouco antes de Deirdre morrer... quando descobriram que ela estava à morte. Ela me ligou tarde da noite e me relembrou a ordem de queimar tudo.

- Ela teria magoado todo mundo se tivesse feito isso! - sussurro Rowan.

-Eu sei. Meus pais ficaram horrorizados. Eles receavam que ela própria incendiasse. Mas o que podiam fazer? Ryan garantia que ela não poria fog na casa. Que ela não teria pedido que eu fizesse isso se ela própria pudesse fazê-lo. Ele me disse para não contrariá-la e dizer que eu faria sua vontade só para ela ter certeza e não cometer uma loucura.

- Um conselho prudente.

Ele concordou, baixando ligeiramente a cabeça, e depois seus olhos s afastaram dos de Rowan e voltaram a contemplar a casa.

- Eu só queria que você soubesse - disse ele. - Eu achava que você devia saber.

- E o que mais você pode me dizer?

- O que mais? -- Ele deu de ombros. Depois olhou para ela e, embora quisesse ir embora, continuou ali. Ele a encarou. - Tenha cuidado - disse ele. - Tenha muito cuidado. Ela é velha, é sombria e... e talvez não seja o que parece ser.

- Como assim?

- Não se trata absolutamente de uma ilustre mansão. Ela é algum espécie de abrigo para alguma coisa. Pode-se dizer que é uma armadilha. Ela é composta de todos os tipos de desenhos. E os desenhos formam uma espécie de armadilha. - Ele abanou a cabeça. -Não sei o que estou dizendo. Estou falando sem pensar. É só que... bem, todos nós temos um certo talento para sentir coisas...

- Eu sei.

- Pois bem, acho que só queria alertá-la. Você não sabe nada a nosso respeito.

- Foi Carlotta quem lhe falou dessa história dos desenhos, de a casa ser uma armadilha?

-Não, é só uma opinião minha. Eu vinha aqui mais do que os outros. Eu era a única pessoa que Carlotta se dispunha a receber nos últimos anos. Ela gostava de mim.

Não sei por quê. Às vezes, eu só estava ali por curiosidade, embora quisesse ser leal a ela. Eu realmente queria. Foi como uma nuvem sobre a minha vida.

- Você está feliz por ter acabado.

- É, estou. É horrível dizer isso, mas também ela não queria mais continuar a viver. Ela mesma me disse. Estava cansada. Queria morrer. Mas um dia à tarde, quando eu estava sozinho aqui, esperando por ela, ocorreu-me que a casa era uma armadilha. Uma enorme, imensa armadilha. Não sei no fundo o que estou querendo dizer. Só estou dizendo que talvez, se você sentir alguma coisa, não a ignore...

- Você alguma vez viu alguma coisa quando estava por aqui?

Ele pensou um pouco, tendo obviamente captado o sentido do que ela queria dizer sem nenhuma dificuldade.

- Talvez uma única vez - disse ele. - No corredor. Mas também pode ter sido imaginação minha.

Ele se calou, e ela também. Era o final da conversa, e ele queria ir embora. - Foi bom conversar com você, Rowan - disse ele, com um sorriso indeciso. - Ligue para mim se precisar.

Ela entrou pelo portão e ficou observando quase furtivamente enquanto sua Mercedes prateada, um grande sedã, se afastava devagar. Vazia agora. Em silêncio.Ela sentia o cheiro de óleo de pinho. Subiu a escada e passou rapidamente de um quarto a outro. Colchões novos, ainda envoltos em plástico brilhante, em todas as camas. Lençóis e colchas dobrados e empilhados com perfeição de um lado. Pisos varridos. Cheiro de desinfetante vindo do terceiro andar. Ela subiu, penetrando na brisa da janela do patamar. O piso do pequeno cômodo dos frascos estava imaculadamente limpo a não ser por uma nódoa escura que provavelmente nunca iria sair. Não se via um caquinho de vidro sequer à luz da janela.

E o quarto de Julien, varrido, arrumado, com as caixas empilhadas, a cama de latão desarmada e encostada na parede abaixo das janelas, que também estavam limpas. Os livros, endireitados. A velha substância viscosa, eliminada do local em que Townsend havia morrido.

Tudo o mais, intocado.

Descendo de volta ao quarto de Carlotta, ela encontrou as gavetas vazias, a cômoda nua, o guarda-roupa sem nada dentro a não ser alguns cabides de madeira. Cânfora. Tudo muito quieto. Ela viu sua imagem no espelho da porta do guarda-roupa e se espantou.

Seu coração bateu forte por um instante. Não havia mais ninguém ali.

Ela desceu ao térreo e seguiu pelo corredor até a cozinha. Haviam passado esfregão no chão e limpado as portas de vidro dos armários. Mais uma vez, o cheiro gostoso de cera, de óleo de pinho e da própria madeira. Aquele perfume delicioso.

Havia um velho telefone preto sobre o balcão na copa.

Ela ligou para o hotel.

- O que você está fazendo? - perguntou.

- Estou aqui deitado na cama, sentindo-me só e com pena de mim mesmo. Hoje de manhã fui até o cemitério com Aaron. Estou exausto. Ainda sinto dores no corpo inteiro, como se tivesse andado brigando. Onde você está? Não está lá na casa, está?

- Estou, sim, e ela está vazia e acolhedora. Tudo que pertencia à velha foi levado daqui. Retiraram todos os colchões, e o quarto do sótão está perfeitamente limpo.

- Você está aí sozinha?

-Estou. E é lindo. O sol está saindo. - Ela ficou parada, olhando ao seu redor, para a luz que se derramava pelas portas-janelas, entrando na cozinha, para a luz que caía sobre o assoalho da sala de jantar. - Sou positivamente a única pessoa por aqui.

- Quero ir até aí - disse ele.

- Não, já estou saindo para voltar a pé até o hotel. Quero que descanse. Quero que vá fazer um checkup.

- Você está brincando.

- Você alguma vez na vida fez um eletrocardiograma?

- Vai me deixar tão apavorado que vai me dar um ataque do coração. Fiz tudo isso depois que me afoguei. Meu coração está perfeito. O que preciso é de exercícios eróticos em grandes doses por tempo ilimitado.

- Depende da sua pulsação quando eu chegar aí.

- Ora, Rowan. Eu não vou fazer checkup nenhum. Se você não estiver aqui dentro de dez minutos, vou buscá-la.

- Estarei aí antes disso.

Ela desligou.

Por um instante, pensou num trecho que havia lido no arquivo, algo que Arthur Langtry havia escrito a respeito da experiência de ver Lasher, algo sobre seu coração ratear perigosamente e sobre uma tontura. Mas também,

Arthur já era muito velho na época.

A paz aqui. Só os gritos das aves do jardim.

Ela atravessou lentamente a sala de jantar e passou pelo alto portal em forma de buraco de fechadura, olhando para trás para apreciar a altura descomunal do portal e sua própria aparente pequenez. A luz entrava pelo jardim de inverno, brilhando sobre o chão encerado.

Dominou-a uma enorme sensação de bem-estar. Tudo meu.

Ela ficou imóvel alguns segundos, ouvindo, sentindo. Procurando se apossar plenamente daquele momento; procurando se lembrar da aflição de ontem e anteontem e apreciar, em comparação, essa maravilhosa sensação de leveza. E mais uma vez, toda aquela história trágica e lúgubre a reconfortava porque ela, com todos os seus segredos sinistros, encontrava ali um lugar. E ela redimiria aquela história. Isso era o mais importante de tudo.

Ela se voltou para ir até a frente da casa e pela primeira vez percebeu um alto vaso de flores na mesa do hall. Será que Gerald as havia posto ali? Talvez ele houvesse se esquecido de mencioná-las.

Ela parou, examinando as flores lindas, letárgicas, todas elas de um vermelho sangue, e muito parecidas com as perfeitas flores de floricultura para os mortos, pensou ela, como se tivessem sido tiradas daqueles belos buquês deixados no cemitério. E então, com um calafrio, ela se lembrou de Lasher. Flores atiradas aos pés de Deirdre. Flores colocadas no jazigo. Na realidade, ela sofreu um susto tão violento que por um instante pôde ouvir novamente seu coração, a bater no silêncio. Mas que idéia absurda. Era provável que Gerald houvesse posto as flores ali. Ou Pierce, quando estava resolvendo o assunto dos colchões. Afinal de contas, esse era um vaso comum, cheio até a metade com água, e essas não passavam de rosas de floricultura.

Mesmo assim, a coisa lhe parecia medonha. Na verdade, à medida que seu coração foi voltando ao normal, ela percebeu que havia algo de nitidamente estranho naquele ramo. Ela não era uma grande conhecedora de rosas, mas geralmente ela s não eram menores do que isso? Como essas flores pareciam grandes e desengonçadas. E uma cor tão escura de sangue. E olhe para essas hastes, e as folhas. As folhas das rosas eram invariavelmente amendoadas, não eram? E essas aqui tinham muitas pontas. Por sinal, não havia uma folha no buquê inteiro que apresentasse o mesmo desenho ou o mesmo número de pontas que uma outra folha. Estranho. Como alguma coisa que se torna selvagem, que fica louca em termos genéticos, cheia de mutações aleatórias e esmagadoras.

Elas estavam se mexendo, não estavam? Inchando. Não, apenas desabrochando, como é comum que aconteça com as rosas, abrindo-se aos poucos até se desfazer numa cascata de pétalas machucadas. Ela abanou a cabeça. Estava um pouco tonta.

Era provável que Pierce as houvesse deixado ali. E que importância tinha isso? Ela ligaria para ele do hotel só para se certificar e dizer que havia apreciado o gesto.

Ela passou para a frente da casa, tentando reconquistar a sensação de bem-estar, respirando fundo aquele calor exuberante ao seu redor. Muito parecida com um templo, esta casa. Ela olhou de volta para a escada. Daqui de baixo, Arthur Langtry havia visto Stuart Townsend lá em cima.

Bem, agora não havia ninguém lá.

Ninguém. Ninguém no longo salão. Ninguém lá fora na varanda onde trepadeiras se espalhavam pela tela.

Ninguém.

- Você está com medo de mim? - perguntou ela, em voz alta. E te uma curiosa sensação de formigamento ao dizer essas palavras. - Ou se que você esperava que eu tivesse medo de você, e está zangado por eu não te E isso, não é?

Só o silêncio lhe respondia. E o suavíssimo farfalhar das pétalas de rosas a cair sobre a mesa de mármore.

Com um leve sorriso, ela voltou às rosas, tirou uma do vaso e, segurando-a com delicadeza junto aos lábios para sentir suas pétalas sedosas, saiu pela porta da frente.

Realmente, era só uma rosa enorme, e olhe quantas pétalas, e como pareciam estranhamente confusas. E a coisa já estava murchando.

De fato, as pétalas já estavam marrons nas bordas que se enrolavam. E saboreou o doce perfume por mais um segundo e deixou a flor cair dentro doc jardim ao sair pelo portão.

 

BEM-VINDO A MINHA CASA

A loucura da restauração começou na manhã de terça-feira, embora na noite anterior, durante o jantar em Oak Haven com Aaron e Rowan, Michael houvesse começado a esboçar os passos que daria. No que dizia respeito ao jazigo e a todas as suas idéias sobre o mesmo, sobre o portal e o número treze, tudo isso ele havia registrado no caderno e não queria mais se deter no assunto.

Toda a incursão ao cemitério havia sido lúgubre. A própria manhã estava nublada, apesar de linda, é claro, e ele havia apreciado a caminhada com Aaron, que lhe ensinava a bloquear algumas das sensações que lhe chegavam através das mãos. Ele ensaiou andar sem as luvas, tocando em mourões aqui e ali, ou colhendo raminhos de cambará, e desligando as imagens, exatamente como se costuma evitar um pensamento mau ou obsessivo, e para surpresa sua pareceu funcionar.

Quanto ao cemitério, ele o detestou. Odiou sua romântica beleza em ruínas; odiou a imensa montanha de flores a murchar, remanescentes do enterro de Deirdre, que ainda cercavam o jazigo. E odiou a cova aberta onde Carlotta Mayfair seria em breve posta a descansar, por assim dizer.

E então, enquanto estava parado ali, percebendo numa espécie de aflição assombrada que eram doze gavetas no jazigo e que o portal entalhado no alto completava a soma de treze, lá veio seu velho amigo Jerry Lonigan acompanhado de alguns membros muito pálidos da família Mayfair e de um caixão sobre um carrinho que só poderia ser o de Carlotta, que foi posto na abertura vazia após uma cerimônia brevíssima oficiada pelo sacerdote.

Doze gavetas, o portal em forma de buraco de fechadura e depois aquele caixão deslizando ali para dentro com estrondo. E os seus olhos subindo mais uma vez até o portal, que era exatamente idêntico aos da casa, mas por quê? E em seguida, todos estavam indo embora, com uma rápida troca de gentilezas, já que os parentes supunham que ele e Aaron estivessem ali para o sepultamento e manifestaram seu reconhecimento antes de se afastarem.

- Venha tomar uma cerveja um dia desses - disse Jerry.

-Recomendações a Rita.

O cemitério havia mergulhado num silêncio atordoante, perturbador. Nada que ele houvesse presenciado desde o início dessa odisséia, nem mesmo as imagens dos frascos, o apavorou tanto quanto a visão desse túmulo.

- Ali está o número treze - disse ele a Aaron.

- Mas tantos foram enterrados nesse jazigo - explicou Aaron. - Você sabe como funciona.

- É um conjunto - sussurrou, meio desanimado, sentindo o sangue lhe fugir do rosto. – Olhe bem, doze gavetas e um portal. Ouça o que lhe digo, é um conjunto. Eu sabia que havia uma vinculação entre o número e o portal. Só não sei o que significam.

Depois, naquela tarde, à espera de Rowan, enquanto Aaron batucava no computador na sala da frente, supostamente acerca da história da família Mayfair, Michael desenhou o portal no seu caderno. Ele o odiava. Detestava aquele vazio no seu centro, pois era assim que ele estava representado no baixo relevo. Não como uma porta, mas como um portal.

"E já vi esse portal em algum outro lugar, em alguma outra ilustração", escreveu ele. "Só não sei onde."

Ele não gostava nem de pensar na imagem. Nem mesmo a criatura que estava tentando se tornar humana não lhe havia causado tanta apreensão.

No entanto, durante o jantar no pátio em Oak Haven, com o crepúsculo cinzento a cercá-los e as velas tremeluzindo dentro das camisas de vidro, Michael e Rowan resolveram não perder mais nem um minuto com interpretações. Seguiriam em frente como combinado. Os dois passaram a noite no quarto da frente da sede da fazenda, uma agradável variação do hotel, e pela manhã, quando Michael acordou às seis com o sol lhe batendo no rosto, Rowan já estava na varanda, saboreando seu segundo bule de café e louca para começar.

Assim que ele chegou a Nova Orleans, às nove, o trabalho teve início.

Nunca havia se divertido tanto.

Alugou um carro e vagueou pela cidade, anotando os nomes dos empreiteiros que estavam trabalhando nas melhores casas da cidade alta e nas requintadas restaurações em curso no Quarter, no centro. Saltou do carro para conversar com mestres e peões. Às vezes ele entrava na obra com os mais expansivos que se dispunham a lhe mostrar o trabalho em execução, examinando as expectativas e os níveis salariais vigentes e pedindo o nome de carpinteiros e pintores que estivessem procurando serviço.

Ligou para os escritórios de arquitetura que eram famosos por cuidarem das grandes mansões e solicitou diversas recomendações. Só a amabilidade das pessoas já o espantava. E a simples menção da casa da família Mayfair despertava entusiasmo. As pessoas estavam mais do que dispostas a lhe dar conselhos.

Apesar de todas as obras em andamento, a cidade estava cheia de operários desempregados.

O boom do petróleo da década de 1970 e dos primeiros anos da década de 1980 havia gerado enorme interesse e atividade no campo das restaurações. E agora a cidade estava sob a nuvem da depressão do petróleo, com uma economia prejudicada por inúmeras execuções de hipotecas. O dinheiro estava escasso. Havia mansões à venda pela metade do preço que valiam.

Antes de uma da tarde, ele já havia contratado três turmas de excelentes pintores e uma equipe dos melhores aplicadores de reboco da cidade - mestiços descendentes de famílias de cor que já eram livres muito antes da Guerra de Secessão, e que rebocavam os tetos e paredes das casas de Nova Orleans há mais de sete ou oito gerações. Ele também havia selecionado duas turmas de bombeiros hidráulicos, uma excelente firma especializada em telhados e um conhecidíssimo paisagista da cidade alta para começar a limpeza e a renovação do jardim. As duas da tarde, o paisagista caminhou pela propriedade com Michael durante uma meia hora, apontando para as azaléias e camélias gigantescas, para a flor-de-noiva e as rosas antigas, que poderiam ser todas preservadas.

Duas faxineiras também haviam sido contratadas - com a recomendação de Beatrice Mayfair - para começara tirar meticulosamente o pó da mobília, para polir a prataria e lavar a porcelana que se encontrava sob uma camada de pó já há muitos anos. Estava marcado que uma equipe especial viria na sexta- feira para começar a esvaziar a piscina e ver o que precisava ser feito para reformá-la e renovar seu equipamento antiquado. Um especialista em cozinhas deveria vir também na sexta. Engenheiros viriam examinar os alicerces e as varandas. E um excelente carpinteiro e pau para toda obra chamado Dart Henley estava pronto para ser o imediato de Michael.

Às cinco, quando ainda estava bem claro, Michael entrou debaixo da casa com uma lanterna e uma máscara contra o pó e, depois de quarenta e cinco minutos de um exame rigoroso, de gatinhas, confirmou que de fato as paredes internas eram paredes de segurança, que desciam direto até o chão, que o piso inferior estava seco e limpo, e que havia espaço mais do que suficiente para um sistema de aquecimento e de ar condicionado central.

Enquanto isso, Ryan Mayfair passava pela casa para levantar o inventário oficial e legal do espólio de Deirdre e de Carlotta Mayfair. Uma equipe de jovens advogados, na qual se incluíam Pierce, Franklin, Isaac e Wheatfield Mayfair - todos descendentes dos irmãos que haviam fundado a firma -, acompanhava um grupo de avaliadores

e antiquários que identificavam, avaliavam e etiquetavam cada lustre, quadro, espelho e poltrona.

Inestimáveis antiguidades francesas foram trazidas do sótão, incluindo-se algumas belas cadeiras que só precisavam de um estofamento novo e mesas em perfeito estado.Os tesouros art-déco de Stella, igualmente delicados e igualmente bem conservados, também foram trazidos à luz.

Descobriram-se dezenas de quadros a óleo antigos; assim como tapetes enrolados com bolas de cânfora, velhas tapeçarias, e todos os lustres de Riverbend, cada um embalado e identificado.

Já estava escuro quando Ryan terminou.

- Bem, minha cara, alegro-me em informar: não há mais nenhum corpo.

Na realidade, uma ligação sua mais tarde naquela noite confirmou que o enorme inventário era praticamente igual ao que havia sido elaborado na ocasião da morte de Antha. As coisas nem haviam mudado de lugar.

- Tudo o que fizemos a maior parte do tempo foi ticar os itens na lista - disse ele. Até mesmo o cálculo do ouro e das jóias era idêntico. Ele já estava com o inventário pronto para ela.

A essa altura, Michael já estava de volta ao hotel, já havia se deliciado com uma refeição do Caribbean Room, servida na suíte, e estava examinando todos os livros de arquitetura que havia escolhido nas livrarias da cidade, mostrando a Rowan as fotografias das diversas casas que ficavam próximas à dela bem como as outras mansões espalhadas por todo o Garden District.

Ele havia comprado um caderno especial para a construção de uma casa na loja K & B de Louisiana Avenue e estava fazendo listas do que pretendia fazer. Teria de procurar azulejistas bem cedo no dia seguinte e dar uma examinada mais cuidadosa nos velhos banheiros porque os acessórios eram simplesmente maravilhosos, e ele não queria trocar o que não precisasse ser trocado.

Rowan estava lendo alguns dos documentos que teria de assinar. Ela havia aberto uma conta conjunta no Whitney Bank naquela tarde exclusivamente para as reformas, tendo depositado trezentos mil dólares nela, e estava com os cartões de assinatura para Michael e um talão de cheques.

- O que gastar na restauração estará bem gasto - disse ela. - A casa merece o melhor. Michael deu uma risadinha de prazer. Esse sempre havia sido o seu sonho: o de trabalhar sem os limites de um orçamento, como se se tratasse de uma obra de arte, sendo todas as decisões tomadas com os objetivos mais puros.

Às oito, Rowan desceu para tomar uns drinques no bar com Beatrice e Sandra Mayfair. Voltou uma hora depois. No dia seguinte, ela tomaria o café da manhã com mais duas primas. Era tudo muito agradável e tranqüilo. As outras falavam. E Rowan gostava de ouvir suas vozes. Ela sempre havia gostado de ouvir os outros, especialmente quando eles falavam tanto que ela não precisasse contribuir em nada para a conversa.

- Mas vou lhe dizer uma coisa, Michael, elas sem dúvida sabem de alguma coisa e não estão me dizendo o que sabem. E elas sabem que os mais velhos sabem. É com eles que eu tenho de conversar. Preciso conquistar sua confiança.

Na sexta-feira, enquanto a propriedade formigava com bombeiros e telhadistas, os aplicadores de reboco entravam com seus baldes, escadas e lonas, e um equipamento barulhento começava a bombear a água da piscina, Rowan foi para o centro assinar alguns papéis.

Michael começou a trabalhar com os azulejistas no banheiro da frente. Eles haviam resolvido arrumar primeiro o quarto e o banheiro da frente para que pudessem se mudar o mais rápido possível. E Rowan queria um chuveiro, sem mexer na velha banheira. Isso implicava arrancar alguns azulejos, instalar outros e adaptar portas de vidro à banheira.

- Em três dias, estará pronto - prometeu o operário.

Os pedreiros já estavam retirando o papel de parede do teto do quarto. Teriam de chamar um eletricista, já que a fiação do velho lustre de latão nunca havia sido corretamente isolada. E Rowan e Michael queriam um ventilador de teto no lugar do velho lustre. Mais anotações.

Em algum momento, por volta das onze, Michael foi até a varanda telada ao lado do salão. Duas faxineiras trabalhavam tagarelando alegremente no grande aposento às suas costas. O decorador recomendado por Bea estava tirando as medidas das janelas para novas cortinas.

Esqueci essas telas velhas, pensou Michael, fazendo uma anotação no caderno. Olhou para a cadeira de balanço. Estava perfeitamente limpa, e a varanda havia sido varrida. As abelhas zumbiam nas trepadeiras. Através da densa moita de bananeiras à sua esquerda, ele via eventuais relances dos homens em volta da piscina. Estavam tirando meio metro de terra que se assentara sobre as lajes do pátio. Na verdade, a área calçada era muito maior do que se supunha.

Michael respirou fundo, olhando para a extremosa do outro lado do gramado.

- Nenhuma escada derrubada ainda, certo, Lasher? - Seu sussurro pareceu se extinguir no vazio.

Nada a não ser o zumbido das abelhas e os ruídos combinados dos operários: o ronco grave de um cortador de grama sendo ligado, e o ruído dos aspiradores de folhas a diesel a navegar pelos caminhos. Ele olhou de relance para o relógio. Os homens do ar condicionado estavam para chegar a qualquer instante. Ele havia esboçado um sistema para oito bombas de calor diferentes que serviriam tanto para aquecer quanto para resfriar, e o pior problema seria a localização do equipamento, com os sótãos já cheios de caixas, mobília e outros objetos. Talvez pudessem ficar imediatamente abaixo do telhado.

Havia ainda os assoalhos. É, ele precisava avaliar os assoalhos imediatamente. O do salão ainda apresentava um belo acabamento, aparentemente do tempo em que Stella o usava como pista de dança. Já os outros estavam muito encardidos e opacos. É claro que ninguém iria fazer qualquer pintura interior ou acabamento de piso enquanto os pedreiros estivessem ali. Eles criavam muita poeira. E os pintores? Ele precisava ir ver como eles estavam indo na parte externa. Tinham de esperar até que os telhadistas vedassem as paredes de sustentação do telhado lá no alto. Mas os pintores tinham muito a fazer lixando e preparando as janelas e venezianas. E o que mais? Ah, o sistema de comunicação, é, Rowan queria algo que fosse a última palavra.

Quer dizer, a casa era tão grande. E depois havia ainda o vestiário da piscina e aquela antiga construção para domésticos bem ao fundo. Ele agora estava pensando em entregar aquele prédio nas mãos de um empreiteiro, para uma reforma total.

É, ele estava se divertindo. Mas por que estava conseguindo se safar? Era essa a pergunta.

Quem estava esperando a sua vez?

Ele não queria confessar a Rowan que não conseguia se livrar de uma apreensão sub-reptícia, uma certeza latente de que estavam sendo observados. De que a própria casa era algo com vida. Talvez fosse apenas uma impressão residual das imagens lá do sótão, de todas as saias que se reuniam ao seu redor, de todas elas presas à terra, aqui. Ele realmente não acreditava em fantasmas nesse sentido. Mas o lugar havia absorvido as personalidades de todos os Mayfair, como se imagina que aconteça com as casas antigas, ou não? E toda vez que se voltava, Michael tinha a sensação de estar a ponto de ver algo ou alguém que realmente não estava ali!

Que surpresa entrar no salão e ver apenas o sol e a mobília solene e abandonada. Os espelhos enormes, dominando o aposento como guardiões. Os velhos quadros opacos e sem vida nas suas molduras. Durante algum tempo ele contemplou o delicado retrato de Stella, uma fotografia pintada. Um sorriso tão doce, e os cabelos negros frisados.

Com o canto dos olhos, ela olhava para ele através da sujeira grudada ao vidro embaçado.

-O senhor queria alguma coisa, Sr. Mike? -perguntou a jovem faxineira. Ele abanou a cabeça.

Voltou-se e olhou para a cadeira de balanço vazia. Ela teria se mexido? Bobagem. Estava querendo que algo acontecesse. Fechou o caderno e voltou ao trabalho. Joseph, o decorador, estava à sua espera na sala de jantar.

E Eugenia estava ali também. Eugenia queria trabalhar. Sem dúvida havia alguma coisa que ela podia fazer. Ninguém conhecia a casa melhor do que ela; trabalhava há cinco anos na casa, trabalhava, sim. Eugenia havia dito ao filho naquela manhã mesmo que não estava velha demais para trabalhar, que iria trabalhar até cair morta.

A Dra. Mayfair queria seda nas cortinas? Pergunto u o decorador. Ela já estava decidida?

Ele dispunha de uma quantidade de veludos e adamascados para lhe mostrar que não custariam a metade.

Quando Michael foi se encontrar com Rowan nos escritórios da Mayfair & Mayfair, ela ainda estava assinando papéis. Ele ficou surpreso com a naturalidade e a confiança com que Ryan o cumprimentou e começou a dar explicações.

- Sempre foi costume antes de Antha e de Deirdre fazer doações em ocasiões como esta - disse ele. - E Rowan quer que retomemos o costume. Estamos preparando uma lista dos parentes que poderiam aceitar uma doação, e Beatrice já está ao telefone falando com todo mundo da família. Por favor, entenda que isso não é tão irracional quanto parece ser. A maioria dos parentes tem dinheiro no banco e sempre teve. Mesmo assim, alguns primos estão na faculdade, uns dois ou três estudando medicina, e outros economizando para comprar a casa própria. Você sabe, esse tipo de coisa. Considero elogiável o desejo de Rowan de restaurar o costume. E é claro, levando-se em consideração a importância do espólio...

Mesmo assim, havia em Ryan algo de esperto, algo calculista e alerta. E isso não era natural? Ele parecia estar testando Michael com essas informações embaralhadas.

Michael fazia apenas um gesto de aprovação e encolhia os ombros.

- Parece ótimo - disse ele.

Antes do entardecer, Michael e Rowan estavam de volta à casa, em conferência com os homens ao redor da piscina. O fedor do lodo que havia sido dragado do fundo era insuportável. Descalços e sem camisa, os homens o levavam embora em carrinhos de mão. Não havia realmente nenhum vazamento no antigo concreto. Dá para se ver por não haver nenhum encharcamento do solo em parte alguma. O encarregado disse a Michael que tudo poderia estar consertado e rebocado novamente antes da metade da semana seguinte.

- Se for possível, ainda antes - disse Rowan. - Não me incomodo de pagar extra para que trabalhem no fim de semana. Quero que a recuperem rápido. Não agüento ver essa piscina no estado em que está.

Eles gostaram do pagamento extra. Na verdade, praticamente todos os operários da obra trabalharam durante o fim de semana com prazer.

Estavam sendo instalados equipamentos novos para aquecimento e filtragem da água da piscina. Os encanamentos do gás estavam satisfatórios. Já estava sendo providenciada uma nova instalação elétrica.

E Michael foi para o telefone para conseguir mais uma turma de pintores para o vestiário. Sem dúvida, trabalhariam no sábado, por cinqüenta por cento a mais. Não tomaria muito tempo pintar as portas de madeira, e consertar o chuveiro, o banheiro e os pequenos vestiários.

- E qual é a cor que você quer para a casa? - perguntou Michael. - Vão começar a pintura externa antes do que você pensa. E você vai querer o vestiário e as dependências dos fundos pintados da mesma cor, certo?

- Diga- me o que você quer - disse ela.

-Eu deixaria o lilás de sempre. As janelas verde-escuras combinam muito bem com ele. Na verdade, eu manteria todo o arranjo: azul para os telhados das varandas, cinza para os pisos das varandas e preto para o ferro fundido. Por falar nisso, descobri um homenzinho que pode substituir as peças de ferro que estejam faltando.

Ele já está preparando as fôrmas. A oficina fica lá perto do rio. Alguém já lhe falou da cerca de ferro em volta desta propriedade?

- Não.

- Ela é ainda mais velha do que a casa. Era a versão da malha em forma de corrente existente no início do século XIX. Ou seja, ela era pré-fabricada. Ela se estende ao longo de First Street e vira em Camp, porque essa era a extensão da propriedade um dia. Agora, precisamos pintá-la. Uma boa camada de tinta preta é tudo de que precisa, da mesma forma que os gradis...

- Contrate todo o pessoal que for necessário - disse ela. - O lilás está perfeito. E, se você tiver de tomar uma decisão sem mim, pode torná-la. Faça com que a casa se apresente como você acha que deveria ser. Gaste o que você achar que deveria ser gasto.

- Você é o sonho do construtor, querida. Estamos começando muito bem. Tenho de ir. Está vendo aquele homem que acabou de sair pela porta dos fundos? Ele está vindo me contar que encontrou um problema nas paredes do banheiro lá em cima. Eu sabia que isso ia acontecer.

- Não se canse demais - disse ela no seu ouvido, com aquela voz grave, aveludada, a lhe dar calafrios. Uma deliciosa excitação o atingiu entre as pernas quando ela roçou os seios no seu braço. Não tinham tempo.

- Cansar demais? Estou só no aquecimento. E vou lhe dizer mais uma coisa, Rowan. Tem umas duas casas praticamente irresistíveis nesta cidade que eu gostaria de atacar quando terminarmos aqui. Estou vendo o futuro, Rowan. Vejo a Grandes Esperanças com escritórios em Magazine Street. Eu poderia reformar essas casas devagar e com carinho e superar as más condições do mercado. Esta casa é apenas a primeira.

- De quanto você precisa para reformá-las?

- Querida, eu tenho dinheiro para isso - disse ele, dando-lhe um beijo rápido. – Tenho bastante dinheiro. Pergunte ao seu primo Ryan, se não acredita em mim. Se ele ainda não mandou levantar meu cadastro, eu ficaria muito surpreso.

- Michael, se ele for grosseiro com você...

- Rowan, estou no paraíso. Fique tranqüila!

O sábado e o domingo passaram no mesmo ritmo. Os jardineiros trabalharam até escurecer cortando ervas daninhas e desenterrando a antiga mobília de ferro fundido de dentro do mato.

Rowan, Michael e Aaron arrumaram a velha mesa e suas cadeiras no centro do gramado, e ali almoçavam todos os dias.

Aaron estava fazendo algum progresso com os livros de Julien, mas eles, na sua maioria, eram compostos de listas de nomes, com afirmações curtas e enigmáticas. Absolutamente nada a ver com uma autobiografia de verdade.

- Até agora, minha suposição mais indelicada é a de que se trata de listas de vinganças realizadas. - Ele leu uma amostra.

- "4 de abril de 1889, Hendrickson, desforra merecida."

- "9 de maio de 1889, Carlos, pago na mesma moeda."

- "7 de junho de 1889, furioso com Wendell por seu ataque de raiva de ontem. Ensinei- lhe umas verdades. Por esse lado, não há mais motivo para preocupação".  E assim por diante - disse Aaron - página após página, livro após livro. Eventualmente surgem pequenos mapas e desenhos, assim como anotações financeiras. Mas, em geral, é só isso. Eu diria que são uns vinte e dois registros por ano. Ainda não encontrei um parágrafo completo, coerente. Não, se a autobiografia existe, ela não está ali.

- E o sótão? Já está com coragem para subir lá? - perguntou Rowan. - Por enquanto não. Sofri uma queda ontem à noite. - Do que você está falando?

- Na escada interna do hotel. Fiquei impaciente com o elevador. Caí até o primeiro patamar. Poderia ter sido pior.

- Aaron, por que você não me contou?

- Bem, essa é a primeira oportunidade. Não houve nada de extraordinário com a queda, a não ser o fato de eu não me lembrar de ter perdido o equilíbrio. Mas meu tornozelo está doendo, e eu preferia adiar minha subida ao sótão.

Rowan estava desconcertada, furiosa. Ela ergueu os olhos até a fachada da casa. Operários por toda a parte. Nas muretas, nas varandas, nas janelas abertas dos quartos.

-Não fique indevidamente alarmada - disse Aaron. - Quero que você saiba, mas não quero que se atormente.

Para Michael, era óbvio que Rowan estava pasma. Ele sentia sua ira. Sentia como seu rosto se desfigurava de raiva.

- Por aqui, não vimos nada - disse Michael a Aaron. - Absolutamente nada. Também ninguém mais viu nada, ou pelo menos ninguém viu nada digno de ser mencionado a um de nós dois.

- Você foi empurrado, não foi? -perguntou Rowan, em voz baixa.

- Talvez - respondeu Aaron.

- Ele o está perseguindo.

- Creio que sim - disse Aaron, com uma pequena inclinação da cabeça. - Ele também gosta de desarrumar os livros de Julien quando tem a oportunidade, que parece ser sempre que eu saio do quarto. Mais uma vez, acho importante que você saiba, mas não quero que se torture por isso.

- Por que ele está fazendo isso?

- Talvez ele queira chamar sua atenção - sugeriu Aaron. - Mas não tenho certeza. Seja qual for o motivo, confie em mim, eu sei me proteger. O trabalho por aqui sem dúvida parece estar indo muito bem.

- Sem nenhum problema - disse Michael, mas estava mergulhado em tristeza.

Depois do almoço, Michael acompanhou Aaron até o portão.

- Estou me divertindo demais, não acha? - perguntou.

- Claro que não - respondeu Aaron. -Que coisa mais esquisita para você dizer!

- Gostaria que essa história chegasse logo ao desfecho - disse Michael. - Acho que vou sair vencedor, quando isso acontecer. Mas essa espera está me deixando louco.

Afinal de contas, o que ele está esperando?

- E as suas mãos? Queria tanto que você tentasse andar sem luvas.

- Mas eu tento. Tiro as luvas todos os dias por umas duas horas. Não consigo me acostumar com o calor e o formigamento, mesmo quando consigo bloquear todo o resto.

Olhe, você não quer que eu o acompanhe até o hotel?

- Claro que não. Podemos nos ver lá hoje à noite se você tiver tempo para um drinque.

- E, é como um sonho que se realiza, não é? - perguntou Michael, pensativo. – Estou falando por mim.

- Não, por nós dois - contestou Aaron.

- Você confia em mim?

- Por que essa pergunta absurda?

= Você acha que vou vencer? Acha que vou conseguir fazer o que eles querem de mim?

- E você, o que acha?

- Que ela me ama e que o que acontecer será maravilhoso. - Concordo.

Ele se sentia bem, e cada hora lhe proporcionava uma nova percepção disso. Além do mais, durante seu tempo na casa não houve mais recordações fragmentárias das visões.

Nenhum sinal dos fantasmas.

Era gostoso estar com Rowan a cada noite. Era bom estar na suíte velha e espaçosa, fazer amor, levantar-se de novo e voltar a trabalhar com os livros e com as anotações.

Era gostoso estar cansado de um dia de esforço físico e sentir seu corpo se recuperando daqueles dois meses de torpor e de excesso de cerveja.

Ele agora bebia pouca ou nenhuma cerveja. E, com a retirada do entorpecimento do álcool, seus sentidos estavam maravilhosamente aguçados. Ele não se cansava do corpo esguio, de menina, de Rowan, e da sua energia inesgotável. Sua total falta de narcisismo ou de pudor despertava nele uma violência que ela parecia adorar. Havia horas em que o sexo que faziam era como uma brincadeira grosseira, e até mais violento do que isso. Mas sempre terminava em ternura e num abraço febril, de uma forma tal que ele se perguntava como havia dormido todos esses anos sem os braços de Rowan a envolvê-lo.

A hora que tirava para si mesma ainda era a madrugada. Não importava até que horas ficasse lendo, abria os olhos às quatro da manhã. E, por mais cedo que tivesse ido dormir, Michael dormia como um anjo até as nove, a menos que alguém o sacudisse ou gritasse com ele.

Isso era ótimo. Rowan dispunha, assim, do espaço de silêncio que sua alma exigia. Ela nunca havia conhecido um homem que a aceitasse tão completamente como era. Mesmo assim, havia momentos em que precisava se isolar de todos. Amando-o esses últimos dias, ela havia compreendido pela primeira vez por que sempre havia tomado seus homens em pequenas doses. Isso era uma escravidão, essa paixão persistente - a incapacidade de sequer olhar para suas costas nuas e lisas ou para a correntinha de ouro no pescoço forte sem desejá-lo; sem ranger os dentes em silêncio com a idéia de enfiar a mão por baixo dos lençóis, acariciar os pêlos em volta das bolas e sentir o pau endurecer na sua mão. O fato de a idade de Michael lhe dar alguma vantagem sobre ela - como a de poder dizer depois da segunda vez, com ternura e firmeza, não, não consigo mais - ainda o tornava mais torturante, talvez pior do que um rapaz que a provocasse. Apesar de no fundo ela não saber, porque nunca havia sido provocada por um rapazinho. No entanto, quando ela pensava na delicadeza, na suavidade, na total ausência do egoísmo e da hostilidade natural de um rapaz, a troca da idade pela energia ilimitada lhe parecia um negócio perfeito.

- Quero passar o resto da minha vida com você - disse ela, baixinho, nessa manhã, passando o dedo pela sombra escura da barba por fazer que lhe cobria não só o queixo,

mas o pescoço, sabendo que ele não se mexeria. - É, me u corpo e minha consciência precisam de você. Tudo o que eu vou ser um dia precisa de você.

Ela chegou mesmo a beijá-lo sem correr o risco de acordá-lo.

Agora, porém, era sua hora de solidão, com Michael em segurança, longe dos olhos, longe do coração.

E era uma hora tão extraordinária para sair andando pelas ruas desertas, bem quando o sol ia nascendo, para ver os esquilos correndo pelos carvalhos e ouvir as aves impetuosas gritando tristes e até em desespero.

As vezes, uma neblina ia se arrastando pelas calçadas de tijolos. E as cercas de ferro cintilavam com o orvalho. O céu mostrava traços e mais traços de vermelho, um vermelho sangrento como o do pôr-do-sol, que se desbotava lentamente transformado na luz azul do dia.

Nessa hora, a casa estava fresca.

E nessa manhã isso lhe agradava, porque o calor em geral começava a lhe dar nos nervos. E a tarefa que tinha a cumprir não lhe dava nenhum prazer.

Ela deveria ter tratado disso antes, mas era uma daquelas coisinhas que ela preferia ignorar, eliminar de todo o resto que lhe estava sendo oferecido. Agora, porém, ao subir as escadas, ela se descobria quase ansiosa. Uma pequena pontada de entusiasmo a pegou de surpresa. Entrou no antigo quarto principal, que havia pertencido à sua mãe, e foi até o outro lado da cama, onde a bolsa de veludo de moedas de ouro ainda estava, esquecida, sobre o tampo de mármore da mesinha-de-cabeceira. O porta jóias também estava lá. Com toda aquela movimentação, ninguém havia ousado tocar naqueles objetos.

Pelo contrário, no mínimo uns seis trabalhadores diferentes avisaram que os objetos estavam ali e que alguém devia fazer alguma coisa a respeito deles.

E, alguma coisa a respeito deles.

Ela olhou fixamente para as moedas de ouro, que transbordavam da velha bolsa de veludo numa pilha encardida. Só Deus sabia de onde teriam realmente vindo.

Recolheu então a bolsa, pôs dentro dela as moedas soltas, apanhou o porta-jóias e desceu com eles para seu aposento preferido, a sala de jantar.

A luz suave da manhã quase não passava pelas janelas sujas. Uma lona de pedreiro cobria metade do assoalho, e uma escada alta e fina alcançava os remendos inacabados no teto.

Ela afastou a lona que cobria a mesa e tirou a capa da cadeira. Sentou-se, então, com seus tesouros e os dispôs à sua frente.

- Você está aqui - sussurrou ela. - Sei que está. Está me vigiando. - Ela sentiu frio ao dizer isso. Espalhou um punhado de moedas e as afastou umas das outras para examiná-las melhor na luz que ia ficando mais forte. Moedas romanas. Não era preciso ser um especialista para saber. E aqui, esta era espanhola, com letras e números espantosamente nítidos. Ela enfiou a mão no saco e pescou mais um pequeno punhado. Moedas gregas? A respeito destas, ela não tinha certeza. Havia uma espécie de viscosidade grudada nelas, em parte umidade, em parte sujeira. Dava vontade de poli-las.

Ocorreu-lhe de repente que seria uma boa tarefa para Eugenia, a de polir todas as moedas. E mal a idéia lhe havia provocado um sorriso, quando ela acreditou ter ouvido um ruído na casa. Um vago farfalhar. Só as tábuas rangendo, diria Michael se estivesse ali. Ela não prestou atenção.

Recolheu todas as moedas e as enfiou de volta na bolsa, pôs a bolsa de lado e apanhou o porta-jóias. Era muito velho, retangular, com dobradiças manchadas. O veludo estava tão puído em alguns lugares a ponto de mostrar a madeira por baixo, e ele era bem fundo com seis grandes divisões.

No entanto, as jóias estavam em desordem total. Brincos, colares, anéis, alfinetes, todos emaranhados. E no fundo da caixa, como se fossem simples seixos, o que parecia ser gemas brutas, com um brilho opaco. Seriam rubis de verdade? Esmeraldas? Ela não podia imaginar. Ela não sabia reconhecer uma pérola verdadeira de uma falsa. Nem o ouro, de uma imitação. Mas os colares eram jóias finas, primorosamente trabalhadas, e uma espécie de reverência e tristeza a dominou ao tocar neles.

Pensou em Antha correndo pelas ruas de Nova York com um punhado de moedas para vender. E sentiu uma punhalada de dor. Pensou na sua mãe, jogada na cadeira de balanço na varanda, com a baba escorrendo pelo queixo, e toda essa fortuna tão à mão. E a esmeralda Mayfair no pescoço, como alguma quinquilharia de criança.

A esmeralda Mayfair. Ela nem havia mais pensado nela desde a primeira noite em que a havia escondido na despensa, no armário das porcelanas. Levantou-se e foi direto à despensa, aberta esse tempo todo como tudo o mais - e lá estava o pequeno estojo de veludo na prateleira de madeira por trás da porta envidraçada, entre os pires e xícaras Wedgwood, exatamente onde ela o havia deixado.

Rowan o levou até a mesa, colocou-o sobre ela e o abriu com cuidado. A mais preciosa das pedras: grande, retangular, refulgindo maravilhosa no seu engaste de ouro escuro. E agora que ela conhecia a história, como havia mudado sua atitude com relação à jóia.

Naquela primeira noite, ela lhe parecera irreal e levemente repulsiva. Agora ela lhe parecia um ser vivo, com uma história toda sua a contar, e Rowan descobriu estar hesitando em removê-la do veludo sujo. Era claro que ela não lhe pertencia! Pertencia a quem nela havia acreditado e que a havia usado com orgulho, àquelas que queriam que ele lhes aparecesse.

Por um instante, ela sentiu o desejo de fazer parte desse grupo. Tentou negar, mas foi o que sentiu, um anseio por aceitar toda a herança de coração aberto.

Ela estava corando? Sentiu o calor no rosto. Talvez fosse apenas o ar úmido e o sol nascendo lentamente lá fora; o jardim se enchendo de uma luminosidade que dava vida às árvores lá fora e que tornava o céu de repente azul nas vidraças mais altas das janelas.

Mas era mais provável que o que estava sentindo fosse vergonha. Vergonha de que Aaron ou Michael pudessem saber o que ela andara pensando.

Desejando o demônio como uma bruxa. Ela riu baixinho.

E de repente lhe pareceu injusto, muito injusto que ele fosse seu inimigo jurado antes mesmo de se conhecerem.

-O que você está esperando? -perguntou ela em voz alta. - Você é como o vampiro tímido do mito que precisa ser convidado a entrar? Acho que não. Esta é a sua casa.

Você está aqui agora. Está me ouvindo e me vigiando.

Ela se recostou na cadeira, passeando os olhos pelos murais à medida que eles iam lentamente adquirindo vida à luz fraca do dia. Pela primeira vez, ela discerniu uma minúscula mulher nua à janela da pálida casa de fazenda representada na pintura. E mais um nu desbotado sentado às margens de um verde-escuro da pequena lagoa.

Isso fez com que sorrisse. Era como descobrir um segredo. Ela se perguntou se Michael havia visto essas duas beldades trigueiras. Ah, a casa estava cheia de coisas a serem descobertas, da mesma forma que o Jardim triste e melancólico.

Lá fora, o louro-cereja subitamente começou a se inclinar com a brisa. Na verdade, ele começou a dançar, como se um vento se houvesse apossado dos seus ramos escuros e rígidos. Ela o ouviu afagar a balaustrada da varanda. Ele arranhou o telhado ali em cima e depois se acalmou, enquanto o vento parecia seguir em frente até a extremosa distante.

Era fascinante o movimento dos ramos finos e altos, cheios de flores rosadas, entregues à dança, e a árvore inteira se batia contra o muro cinzento da casa vizinha, soltando uma chuva de folhas malhadas, trêmulas. Como se fossem simplesmente a luz caindo em minúsculos pedaços.

Seus olhos se anuviaram levemente. Ela teve consciência do relaxamento dos seus membros, de estar se entregando a um vago devaneio. É, olhe a dança da árvore. Olhe novamente para o louro-cereja, e para a chuva verde caindo no assoalho da varanda. Olhe para os ramos finos que se estendem até aqui dentro para arranhar as vidraças.

Com um vago espanto, ela procurou focalizar os olhos, fixando-os nos galhos, vigiando sua movimentação deliberada, orquestrada, enquanto afagavam o vidro.

- É você - sussurrou ela.

Lasher nas árvores. Lasher, como Deirdre o fazia aparecer do lado de fora do colégio interno. E Rita Mae nunca soube o que realmente descrevera a Aaron Lightner.

Ela agora estava rígida na cadeira. A árvore se inclinava muito perto e depois voltava a se afastar com uma graça extrema, e dessa vez os galhos praticamente esconderam o sol, com as folhas caindo pela vidraça abaixo, soltas e turbilhonantes. E no entanto, a sala estava quente e abafada.

Ela não se lembrava de ter se levantado, mas estava em pé. É, ele estava ali. Ele estava fazendo com que as árvores se mexessem, pois nada mais na terra poderia fazer com que se movimentassem daquele jeito. E os pequenos pêlos no dorso dos seus braços estavam arrepiados. Ela sentiu um estranho calafrio no couro cabeludo, como se algo a estivesse tocando.

Pareceu-lhe que o ar à sua volta mudava. Não uma brisa, não. Mais como uma cortina roçando nela. Ela se voltou e ficou olhando para Chestnut Street pela janela vazia. Será que alguma coisa havia estado por ali, uma sombra densa e enorme por um instante, uma coisa que se concentrou e depois se expandiu, como um sinistro animal marinho provido de tentáculos? Não. Nada a não ser o carvalho do outro lado da rua. E o céu cada vez mais luminoso.

- Por que você não fala? - disse ela. - Eu estou aqui, sozinha.

Como sua voz lhe pareceu estranha.

Agora, porém, outros sons vinham perturbá-la. Ela ouvia vozes lá fora. Um caminhão havia parado; e ela ouviu o ruído do portão que agarrava nas lajes quando os operários o abriram. E enquanto esperava, com a cabeça baixa, giraram a maçaneta.

- Olá, Dra. Mayfair.

- Bom dia, Dart. Bom dia, Rob. Bom dia, Billy.

Passos pesados subiram pelas escadas. Com uma vibração suave e profunda, o pequeno elevador desceu, e logo sua porta de latão foi aberta com o conhecido ruído metálico.

É, a casa agora era deles.

Ela se voltou, preguiçosa, quase teimosa, e recolheu novamente todo o tesouro. Levou-o para o armário das porcelanas na despensa, guardando-o na grande gaveta onde as velhas toalhas estavam mofando antes de serem jogadas fora. A chave antiquada ainda estava na fechadura. Ela trancou a gaveta e guardou a chave no bolso. Depois, saiu, andando devagar, constrangida, deixando a casa entregue aos outros. No portão, ela se voltou e olhou para trás. Absolutamente nenhuma brisa no jardim. Só para ter certeza do que havia visto, ela se virou e seguiu o caminho que circundava a antiga varanda da sua mãe e levava até o corredor externo, para uso dos domésticos, ao longo da sala de jantar.

É, ele estava coberto de folhinhas verdes, encrespadas. Algo roçou nela de novo, e ela se voltou, com o braço para cima como se quisesse se defender de uma teia de aranha.

Uma quietude pareceu cair ao seu redor. Nenhum som a acompanhava aqui fora. A folhagem crescia alta e densa cobrindo a balaustrada.

- O que o impede de falar comigo? - sussurrou ela. - Você está realmente com medo?

Nada se mexia. O calor parecia estar subindo das lajes aos seus pés. Minúsculos borrachudos se reuniam nas sombras. Os lírios brancos, grandes e sonolentos, se inclinavam até bem perto do seu rosto, e um estalido surdo aos poucos atraiu seu olhar para os fundos do jardim, para um emaranhado sombrio do qual surgia um exótico íris roxo, trêmulo e selvagem, uma horrenda boca em forma de flor, com sua haste agora voltando à posição como se um gato a correr pelo meio do mato a houvesse derrubado sem querer.

Ela viu a flor balançar, se ajeitar e ficar imóvel, apenas com as pétalas irregulares tremendo. Parecia sinistra. Rowan sentiu o impulso de pôr o dedo nela como se ela fosse um órgão. Mas o que estava acontecendo com a flor? Rowan fixou o olhar, com o calor pesando nas pálpebras, os borrachudos subindo de tal modo que ela ergueu a mão direita para afastá-los. Estaria aquela flor realmente crescendo?

Não. Algo a havia ferido, e ela estava caindo da sua haste, só isso. E como parecia monstruosa e enorme. Mas tudo isso, a partir da perspectiva de Rowan. O calor, a tranqüilidade, a súbita chegada dos homens como invasores dos seus domínios exatamente no seu momento de maior paz. Ela não tinha certeza de nada. Tirou do bolso o lenço e secou o rosto. Depois, seguiu pelo caminho até o portão. Sentia-se confusa, indecisa. Uma certa culpa por ter vindo sozinha, e uma incerteza quanto a ter ou não acontecido algo de extraordinário.

Voltaram-lhe todos os seus muitos planos para o dia. Tantas coisas a fazer, tantas coisas concretas a fazer. E Michael deveria estar se levantando exatamente agora.

Se ela se apressasse, poderiam tomar o café da manhã juntos.

Na manhã de segunda- feira, Michael e Rowan foram até o centro juntos para providenciar suas carteiras de motorista da Louisiana. Não se podia comprar um carro ali sem ter a carteira de motorista estadual.

E, quando entregaram suas carteiras da Califórnia, o que eram obrigados a fazer para receber a da Louisiana, o gesto teve um quê de ritual, de definitivo, de um estranho entusiasmo. Como quando se renuncia a um passaporte ou a uma cidadania, talvez. Michael se descobriu espiando Rowan e viu seu secreto sorriso de prazer.

Fizeram uma leve refeição na noite de segunda no Desire Oyster Bar. Uma sopa de quiabo extremamente quente, cheia de camarões e lingüiça de porco, acompanhada de cerveja geladíssima. As portas do restaurante estavam abertas para Bourbon Street; os ventiladores de teto renovavam o ar fresco à sua volta; o jazz agradável e despreocupado se derramava do bar do Mahogany Hall do outro lado da rua.

- Esse é o som de Nova Orleans - disse Michael. - Esse jazz com uma melodia de verdade, uma joie de vivre. Nada de melancólico nele. Nada de lamento, jamais. Nem mesmo quando estão tocando em enterros.

- Vamos dar uma volta - disse ela. - Quero ver todas essas espeluncas com meus próprios olhos.

Passaram a noite no Quarter, afastando-se afinal das luzes ofuscantes de Bourbon Street, passando pelas elegantes vitrines de Royal e Chartres para depois voltar até o mirante do rio do outro lado de Jackson Square.

Era óbvio que as dimensões do Quarter deixaram Rowan assombrada, da mesma forma que a impressão de autenticidade que de algum modo havia sobrevivido às reformas e às diversas benfeitorias. Michael descobriu estar novamente dominado pelas recordações inevitáveis: domingos por ali com sua mãe. Ele não podia reclamar da reforma de sarjetas e dos postes da rua, e o novo calçamento de pedras arredondadas em volta de Jackson Square. Muito pelo contrário, todo o lugar parecia agora mais cheio de vida do que no seu passado mais desmazelado e irreverente.

Era tão agradável, depois da longa caminhada, sentar no banco à beira-rio, apenas olhando para o cintilar escuro da água, os barcos enfeitados com luzes como grandes bolos de casamento, que passavam dançando pelas formas distantes e indefiníveis da outra margem.

Predominava uma alegria entre os turistas que iam até o mirante e voltavam dele.

Conversas baixas e estouros de risos ao acaso. Casais abraçados nas sombras. Um saxofonista solitário tocava uma canção comovida, desafinada, pelas moedas que as pessoas jogavam no chapéu aos seus pés.

Afinal, os dois voltaram para o meio do movimento de pedestres, abrindo caminho até o velho e sujo Café du Monde para tomar o famoso café au lait acompanhado de sonhos açucarados. Ficaram algum tempo sentados no calor ao ar livre, enquanto os outros vinham para. as mesinhas pegajosas à sua volta e iam embora. Depois, perambularam entre as lojas sofisticadas que agora enchem o antigo French Market, do outro lado das construções tristonhas e graciosas de Decatur Street, com suas sacadas de ferro trabalhado e suas esguias colunas de ferro.

Como Rowan pediu, ele a levou para um passeio de automóvel pelo Irish Channel, evitando as ruínas sombrias e contemplativas do St. Thomas Project, e acompanhando o rio com seus armazéns desertos até onde foi possível. Annunciation Street pareceu um pouco melhor à noite, talvez, com luzes animadas nas janelas das casinhas.

Seguiram adiante, na direção da cidade alta, por uma rua estreita e arborizada, entrando no setor vitoriano, onde as casas espalhadas eram cheias de adornos exagerados e arabescos, e ele lhe mostrou suas velhas preferidas, bem como as que gostaria de restaurar.

Como era extraordinária a sensação de estar com dinheiro no bolso r sua cidade natal. Saber que ele poderia comprar essas casas, exatamente como havia sonhado na desesperança e desespero da sua infância distante

Rowan parecia animada, feliz, curiosa a respeito do que a cercava. Aparentemente nada a lamentar. Mas ainda era tão cedo...

Ela falava de vez em quando em repentes despreocupados, com sua voz grave e aveludada sempre o encantando e o distraindo ligeiramente c conteúdo do que ela estava dizendo. Ela concordava, as pessoas aqui era incrivelmente amáveis. Elas não se apressavam em nada do que faziam; demonstravam tamanha falta de mesquinhez que era quase difícil imagina Os sotaques dos parentes a deixavam perplexa. Beatrice e Ryan falavam co um traço de Nova York na voz. Louisa tinha um sotaque totalmente diferente e o jovem Pierce não falava como seu pai. E todos eles, mais cedo ou ma tarde, lembravam Michael um pouquinho em certas palavras.

- Não lhes diga isso, querida - alertou ele. - Sou do outro lado c Magazine Street, e eles sabem disso. Não pense que não saibam.

-Eles o consideram maravilhoso -respondeu ela, ignorando seu comentário. - Pierce diz que você é um homem à antiga.

- Bem - disse ele, rindo. - Talvez eu seja mesmo.

Ficaram acordados até tarde, bebendo cerveja e conversando. A velha suíte era do tamanho de um apartamento, com seu banheiro e sua cozinha, além da sala de estar e do quarto. Ele não andava bebendo nesses últimos dias, e sabia que ela percebia isso, mas ela não dizia nada, o que até era bom. Falavam sob a casa e todas as pequenas coisas que pretendiam fazer.

Ela sentia falta do hospital? Sentia. Mas isso não tinha importância exata mente agora.

Rowan tinha um plano, um grande projeto para o futuro, que revelaria na hora certa.

- Mas você não pode renunciar à medicina. Não é isso o que pretende.

- Claro que não - disse ela, paciente, baixando um pouco a voz para dar maior ênfase. – Pelo contrário. Venho pensando na medicina de uma perspectiva totalmente diferente.

- Como assim?

- É cedo demais para explicar. Eu mesma não tenho certeza. Mas questão do legado muda as coisas; e, quanto mais eu descobrir acerca do legado, mais as coisas vão mudar. Estou passando por uma nova especialização na Mayfair & Mayfair. E a matéria é dinheiro. - Ela indicou com u gesto os documentos sobre a mesa. - E tudo está caminhando muito bem.

- Você realmente tem vontade de fazer isso?

- Michael, tudo que fazemos na vida, fazemos com certas expectativas. Eu sempre tive dinheiro. Isso significa que pude estudar medicina e seguir direto para uma longa residência em neurocirurgia. Eu não tinha marido ou filhos com que me preocupar. Não tinha nada com que me preocupar. Mas agora montantes mudaram radicalmente. Com uma fortuna como o dinheiro do legado Mayfair, seria possível financiar projetos de pesquisa, construir laboratórios inteiros. É provável que se pudesse instalar uma clínica, anexa a um centro médico, para trabalhar em apenas uma especialidade da neurocirurgia. - Ela encolheu os ombros. - Você está me entendendo?

- Estou, mas se você se envolver desse jeito, isso vai tirá-la da sala de cirurgia, certo? Você terá de ser uma administradora.

- Possivelmente - disse ela. -A questão é que o legado representa um desafio. Tenho de usar minha imaginação, como se diz.

- Entendo o que está dizendo - respondeu ele, com um gesto de aprovação. - Mas será que vão lhe causar alguma dificuldade?

- Em última análise, sim. Mas não tem importância. Quando eu estiver pronta para fazer meus movimentos, isso não terá mais importância. E eu vou realizar as mudanças com o máximo possível de tato e de suavidade.

- Que mudanças?

- Mais uma vez, é cedo demais. Ainda não estou pronta para elaborar um grande projeto. Mas estou pensando num centro neurológico aqui em Nova Orleans, com os melhores equipamentos disponíveis e laboratórios para pesquisa independente.

- Deus do céu, nunca pensei em nada nesse nível.

- Até agora, eu nunca havia tido uma oportunidade remotíssima de abrir um programa de pesquisas e de ter controle completo sobre ele. Sabe? Determinar os objetivos, os padrões, o orçamento. - Seu olhar estava distante. - O importante é pensar nos termos do tamanho do legado. E usar minha própria cabeça.

Michael foi acometido de um vago desconforto. Não sabia por quê. Sentiu um calafrio subir pela sua nuca enquanto a ouvia falar.

- Isso não seria uma redenção, Michael? Se o legado Mayfair fosse aplicado na medicina?

Sem dúvida, você deve perceber. Desde os tempos remotos de Suzanne e de Jan van Abel, o cirurgião, até um centro médico imenso e inovador, dedicado naturalmente a salvar vidas.

Ele ficou ali sentado, meditando, incapaz de responder.

Ela encolheu os ombros ligeiramente e levou as mãos às têmporas.

- Ah, tenho tanto a estudar, tanto a aprender. Mas você não percebe a continuidade?

- É, a continuidade - disse ele, em voz baixa.

Como a continuidade de que ele tinha tanta certeza ao acordar no hospital depois do afogamento: tudo vinculado. Eles me escolheram por causa de quem eu era, e tudo está relacionado...

- Tudo isso é possível - disse ela, à procura de uma reação sua. Uma pequena chama dançava no seu rosto, nos seus olhos. - Praticamente perfeito - disse ele.

- E então por que você está com essa cara? Qual é o problema? - Não sei.

- Michael, pare de pensar naquelas visões. Pare de pensar em seres invisíveis no céu a dar significado a nossas vidas. Não temos fantasmas no sótão! Pense com sua própria cabeça.

- Estou pensando, Rowan. Estou mesmo. Não se zangue. É uma idéia espantosa. É perfeita.

Não sei por que ela me deixa tão preocupado. Tenha um pouco de paciência comigo, querida. Como você disse, os nossos sonhos têm d estar na proporção dos nossos recursos.

E isso é um pouco fora do meu alcance.

- Tudo o que tem de fazer é me amar, me ouvir e me deixar pensar em voz alta.

- Estou ao seu lado, Rowan. Sempre. Acho maravilhoso.

- Você está com dificuldade para imaginar a coisa - disse ela. - E compreendo. Eu mesma apenas comecei. Mas, puxa, Michael, o dinheiro está ali. Existe algo de decididamente obsceno quanto ao montante desse dinheiro. Há duas gerações, esses advogados cuidaram da fortuna, permitindo que ela se alimentasse de si mesma e se multiplicasse como um monstro.

- É, eu sei.

- Há muito tempo, eles perderam de vista o fato de se tratar da propriedade de um indivíduo. A fortuna pertence a si mesma de um certo modo horrível. Ela é maior do que o que qualquer ser humano devia possuir ou controlar.

- Muita gente concordaria com você - comentou ele.

Mesmo assim, ele não conseguia se livrar da recordação de estar deitado no leito no hospital em San Francisco, acreditando que sua vida inteira tinha um significado, que tudo que ele havia sido e feito estava a ponto de ter uma redenção.

- É, isso redimiria tudo, não?

Se era assim, por que ele ficava vendo o jazigo em pensamento, com suas doze gavetas, e o portal lá em cima, com o nome Mayfair gravado em letra, grandes e as flores murchando no calor sufocante?

Ele se forçou a tirar essa imagem da cabeça, e procurou a melhor distração que conhecia. A de olhar para ela, só olhar e ficar pensando em tocá-la, e resistir ao impulso, embora ela estivesse apenas a centímetros dele, disposta, sim, quase com certeza, disposta a ser tocada.

Estava funcionando. Um pequeno interruptor foi de repente ligado no mecanismo implacável do seu cérebro. Ele estava pensando em como suas pernas nuas ficavam à luz do abajur, e em como seus seios eram cheios e delicados por baixo da camisola curta de seda.

Os seios sempre lhe pareceram um milagre. Quando eram tocados ou chupados, pareciam deliciosos demais para serem mais do que momentâneos. Como sorvete ou creme chantilly, esperava-se que derretessem na boca. O fato de eles permanecerem no lugar, dia após dia, apenas à sua espera, fazia parte da total impossibilidade do sexo feminino para ele. Era essa toda a ciência que ele conhecia. Ele se inclinou para a frente, encostou os lábios no pescoço de Rowan e deu um rosnado baixinho e determinado.

- Pronto, agora você conseguiu - sussurrou ela.

- É, bem, já está na hora - respondeu ele, com a mesma voz grave. - O que acha de ser levada no colo para a cama?

- Eu adoraria. Você só fez isso na primeira vez.

- Meu Deus! Como pude ser tão desatencioso! Que tipo de homem à antiga eu sou? – Ele empurrou seu braço esquerdo por baixo das coxas sedosas e aninhou os ombros no seu braço direito, beijando-a enquanto a levantava, exultante em segredo por não perder o equilíbrio e se estatelar no chão. Mas ele a levava, leve, agarrada a ele e de repente com uma docilidade febril. Chegar à cama foi café pequeno.

Na terça, o pessoal do ar condicionado começou a trabalhar. Havia telhados de varandas e sacadas em quantidade suficiente para todo o equipamento. Joseph, o decorador, havia levado toda a mobília francesa que precisava ser restaurada. Os belos conjuntos de quarto, todos do tempo da fazenda, não precisavam de nada mais do que um polimento. E as faxineiras podiam se encarregar disso.

Os pedreiros haviam terminado o trabalho no quarto da frente. E os pintores isolaram a área com cortinas de plástico para poderem fazer um serviço limpo apesar da poeira do trabalho em curso no restante da casa. Rowan havia escolhido um champanhe claro para as paredes do quarto, e branco para o teto e para as madeiras. O pessoal havia vindo medir o andar superior para a instalação de carpetes. Os calafates estavam lixando o piso da sala de jantar, onde por algum motivo haviam aplicado um lindo piso de carvalho sobre o velho assoalho de cerne de pinho, que precisava apenas de uma camada de poliuretano.

Michael havia verificado ele mesmo as chaminés a partir do telhado. As lareiras de lenha na biblioteca e no salão duplo estavam todas em perfeitas condições com uma tiragem excelente. As restantes já há muito haviam sido adaptadas para gás, e algumas delas estavam vedadas. Decidiu-se trocar os aquecedores pelos mais bonitos que davam a impressão de carvões de verdade.

Enquanto isso, os equipamentos da cozinha haviam sido todos substituídos. As velhas superfícies de trabalho de madeira resistente estavam sendo lixadas. Estariam envernizadas antes do final da próxima semana.

Rowan estava sentada de pernas cruzadas no chão do salão, com o decorador, cercada por amostras de tecidos de cores brilhantes. Foi uma seda bege que ela escolheu para as cortinas da sala da frente. Ela queria um adamascado mais escuro para a sala de jantar, algo que combinasse co m os murais desbotados com cenas da fazenda. No andar de cima, tudo seria alegre e claro.

Michael folheou livros de amostras de tinta e escolheu delicados tons de pêssego para o térreo, um bege escuro para a sala de jantar, que repetiria uma das cores principais dos murais, e branco para a cozinha e para as despensas. Ele estava solicitando orçamentos de firmas de limpeza de janelas e de limpeza de lustres. O relógio de pêndulo do salão estava sendo consertado. No final da manhã de sexta-feira, a governanta de Beatrice, Trina, já havia comprado roupas de cama para os diversos quartos, incluindo-se novos travesseiros e edredons de plumas, e tudo havia sido guardado com saches nos armários e nas gavetas das cômodas. Nos sótãos estava terminada a instalação dos dutos. O antigo papel de parede havia sido arrancado nos quartos de Millie, da doente e de Carlotta, e os pedreiros quase haviam terminado a preparação das paredes para receberem tinta.

O sistema de alarme contra ladrões também estava instalado, e incluía detectores de fumaça, sensores nas vidraças e botões para chamar assistência médica de emergência.

Enquanto isso, mais uma turma de pintores trabalhava no salão.

O único defeito do dia talvez tivesse sido a discussão de Rowan ao meio-dia, por telefone, com o Dr. Larkin, de San Francisco. Ela lhe havia dito que estava tirando umas férias prolongadas. Ele era da opinião de que ela se havia vendido. Urna herança e uma bela casa em Nova Orleans a haviam seduzido, afastando-a da sua verdadeira

vocação. Era óbvio que suas vagas declarações quanto aos seus objetivos e seu futuro só o irritaram ainda mais. Afinal, ela se exasperou. Não estava dando as costas à missão da sua vida. Estava pensando em termos de novos horizontes e, quando quisesse conversar com ele a respeito, ela o avisaria.

Quando desligou o telefone, estava exausta. Não ia nem mesmo voltar à Califórnia para esvaziar definitivamente a casa de Tiburon.

- Sinto arrepios só de pensar nisso. Não sei por que isso me afeta tanto. Simplesmente não quero nunca mais ver aquele lugar. Não consigo acreditar que escapei de lá. Eu poderia me beliscar para ter certeza de não estar sonhando.

Michael compreendia; mesmo assim, ele a aconselhou a deixar passar algum tempo antes de vender a casa.

Ela deu de ombros. Ela estaria à venda amanhã, se Rowan já não a houvesse alugado ao Dr. Slattery, seu substituto em San Francisco. Em troca de um aluguel extremamente baixo e de Rowan ter abdicado de qualquer depósito adiantado, Slattery havia concordado em embalar tudo o que fosse de natureza pessoal na casa e despachar as caixas para o sul. Ryan já havia providenciado a armazenagem.

- É provável que essas caixas fiquem lá intactas - disse ela - pelos próximos vinte anos. Mais ou menos às duas horas de sexta-feira, Michael foi com Rowan até a concessionária Mercedes-Benz em St. Charles Avenue. Essa, sim, foi uma tarefa agradável.

A loja ficava no mesmo quarteirão do hotel. Quando era menino e voltava para casa vindo da velha biblioteca em Lee Circle, ele costumava entrar nesse grande salão, abrir as portas dos carros alemães de uma beleza espantosa e ficar ali desmaiado o tempo que pudesse aproveitar antes que um vendedor percebesse. Ele não se incomodava em mencionar isso. A verdade era que Michael tinha uma recordação para cada quarteirão por onde passassem, para tudo o que fizessem.

Ele apenas ficou olhando, num divertimento mudo, quando Rowan fez um cheque para dois automóveis: o vistoso 500 SL, um conversível para duas pessoas, e o sedã de quatro portas, grande e cheio de classe. Ambos em cor creme com o estofamento em couro cor de caramelo, porque era isso o que tinham ali em exposição.

Um dia antes, ele próprio havia comprado uma caminhonete americana perfeita, reluzente e luxuosa, na qual ele podia carregar tudo o que quisesse, e ainda assim correr por aí confortável e tranqüilo, com o ar-condicionado ligado e o rádio alto. Ele achava divertido que Rowan não parecesse considerar nada notável a experiência da compra desses dois carros. Ela não parecia nem mesmo considerá-la interessante.

Rowan pediu ao vendedor que entregasse o sedã em First Street, que entrasse pelos portões de veículos dos fundos e que deixasse as chaves no Pontchartrain. O conversível, eles levariam agora.

Ela o retirou da concessionária e subiu por St. Charles Avenue até parar em frente ao hotel.

- Vamos passar o fim de semana fora - disse ela. - Vamos deixar de lado a casa e a família.

- Já? - perguntou Michael. Ele estava pensando em pegar uma das barcaças para passeio e jantar naquela noite.

- Vou lhe dizer o motivo. Fiz a interessante descoberta de que as melhores praias de areias brancas da Flórida ficam a menos de quatro horas daqui. Você sabia?

- Você tem razão. Isso mesmo.

- Há umas casas à venda numa cidade da Flórida chamada Destin, e uma delas tem seu próprio embarcadouro ali perto. Soube tudo isso com Wheatfield e Beatrice. Wheatfield e Pierce costumavam ir para Destin nas férias da primavera. Beatrice vai o tempo todo. Ryan deu uns telefonemas para o corretor de imóveis para mim. O que você acha?

- Bem, claro, por que não?

Mais uma lembrança, pensou Michael. Aquele verão quando ele estava com quinze anos e a família vinha de carro a essas praias muito brancas nessa faixa de território da Flórida que ficava mais perto. Águas verdes sob um pôr-do-sol vermelho. E ele estivera pensando nisso no dia em que se afogou lá em Ocean Beach, quase exatamente uma hora antes de conhecer Rowan Mayfair.

- Eu não sabia que estávamos tão perto do Golfo, Michael. Ora, o Golfo é água de verdade.

Quer dizer, como o Pacífico é água de verdade.

- Eu sei. - Ele deu uma risada. - Eu reconheço água de verdade só de ver. - Riu, então, à vontade.

- Olhe, Michael, estou morrendo de vontade de ver o Golfo. - Claro.

- Não estive no Golfo desde a época em que estava no ginásio e íamos ao Caribe. Se a água for tão morna quanto eu me lembro... -É, isso decididamente vale a viagem.

- Sabe, é provável que eu consiga alguém para trazer o Sweet Christine até aqui, ou, melhor ainda, posso comprar um novo barco. Alguma vez fez um cruzeiro no Golfo ou no Caribe?

- Não. - Ele sacudiu a cabeça. - Eu devia ter imaginado, depois conhecer aquela casa em Tiburon.

- Só quatro horas, Michael. Vamos. Não vamos gastar nem quinze minutos para fazer as malas.

Deram uma última parada na casa.

Eugenia estava junto à mesa da cozinha, polindo toda a prataria das gavetas da cozinha.

- É uma alegria ver esta casa sendo recuperada - disse ela.

- É mesmo, não é? - disse Michael, abraçando delicadamente seus ombros magros. - O que acha de se mudar para seu velho quarto, Eugen. Você gostaria?

Ah, sim, ela disse que adoraria. Sem dúvida, já ficaria o fim de semana. Estava velha demais para todas aquelas crianças na casa do filho. Andy gritando demais com elas. Ela gostaria de voltar. E ela ainda tinha as chaves.

- Mas ninguém nunca precisa de chaves por aqui.

Os pintores iam trabalhar até tarde lá em cima. O pessoal do pátio também ficaria ali até escurecer. Dart Henley, o imediato de Michael, concordou c prazer em supervisionar tudo durante o fim de semana. Nada com que preocupar.

- Olhe, a piscina está quase terminada - disse Rowan. Na verdade todos os remendos internos haviam sido feitos, e agora estavam aplicando camada final de tinta.

Todo o mato havia sido retirado das calçadas de lajes, os trampos haviam sido reformados e a graciosa balaustrada de pedra calcária havia sido descoberta no jardim inteiro. O grosso buxo havia sido eliminado. as cadeiras e mesas de ferro fundido haviam sido encontradas à medida que o mato desaparecia. E a escada de lajes de pedra na parte inferior da vara lateral telada havia sido descoberta, provando que antes de Deirdre ela era uma varanda aberta. Mais uma vez, era possível sair pelas portas-janela DO salão, atravessar o pátio de lajes e chegar ao gramado.

- Devíamos deixar a varanda assim, Rowan. Ela precisa ficar aberta disse Michael. – Além do mais, já temos aquela varandinha telada fundos da cozinha. Lá, eles já instalaram a tela nova. Venha dar uma olhada.

-Você acha que vai conseguir sair daqui? -perguntou Rowan, joga as chaves do carro para ele. - Por que não vai dirigindo? Acho que eu o de nervoso.

- Só quando desrespeita sinais de trânsito e placas de parada obrigatória em alta velocidade.

Você sabe, o que me deixa nervoso é a transgressão simultânea a duas leis.

- Está bem, lindo, desde que você nos leve até lá em quatro horas.

Ele lançou mais um último olhar à casa. A luz aqui era como a luz em Florença, quanto a isso ela estava com a razão. Derramando-se pela alta fachada sul, ela fazia com que ele pensasse nos palácios da Itália. E tudo estava indo tão bem, tão maravilhosamente bem.

Ele sentiu uma dor estranha no íntimo, uma mistura de tristeza e de pura felicidade.

Estou aqui, estou aqui de verdade, pensou em silêncio. Não mais sonhando em algum lugar distante, mas aqui. E as visões lhe pareceram remotas, pálidas, irreais. Há tanto tempo ele não tinha um relance delas.

Mas Rowan estava esperando, e as límpidas praias brancas do sul estavam esperando. Mais uma parte a ser resgatada desse fantástico mundo antigo. Passou-lhe pela cabeça de repente que seria uma delícia fazer amor com ela em mais outra cama.

Eles entraram na cidadezinha de Fort Walton, na Flórida, às oito da noite, depois de um longo engarrafamento desde a saída de Pensacola. Todo mundo havia descido para a praia nessa noite, com um pára-choque colado no outro. Se forçassem a chegada até Destin, corriam o risco de não encontrar acomodações.

O fato é que a ala antiga de um Holiday Inn era o que restava. Nem todo o dinheiro do mundo conseguiria uma suíte nos hotéis melhores. E a pequena cidade desordenada, apesar de todos os seus luminosos de néon, era um pouquinho deprimente no seu desmazelo de beira de estrada.

O próprio quarto parecia quase insuportável, mal iluminado e com cheiros desagradáveis, a mobília em mau estado e as camas grumosas. Eles vestiram os trajes de banho e saíram pela porta de vidro no final do corredor, descobrindo que estavam na praia.

O mundo se estendia, quente e assombroso sob um céu de estrelas brilhantes. Até mesmo o verde cristalino da água estava visível ao luar que se derramava. A brisa não tinha o menor toque de frio. Ela era ainda mais suave do que a brisa do rio em Nova Orleans. E a areia era de um branco puro e absurdo, e fina como açúcar sob os seus pés.

Saíram andando juntos até a arrebentação. Por um instante, Michael não pôde acreditar mesmo na temperatura deliciosa da água, nem na sua delicadeza transparente e luminosa ao se enroscar nos seus tornozelos. Num estranho momento de tempo circular, ele se viu em Ocean Beach, do outro lado do continente, com os dedos enregelados, o rigoroso vento do Pacífico açoitando seu rosto, a pensar neste mesmo lugar, neste lugar aparentemente mítico e impossível, abaixo das estrelas.do sul. Se ao menos elas pudessem captar tudo isso, segurá-lo em seu seio e mantê-lo, eliminando todas as coisas obscuras que estavam à espera, incubando, e que sem dúvida iriam se revelar...

Rowan se jogou para dentro d'água, com uma risada agradável, preguiçosa. Ela cutucou a perna de Michael com um pé, e ele se deixou cair nas ondas mornas, rasas, ao lado dela. Descansando sobre os cotovelos, ele deixou que a água lhe banhasse o rosto.

Saíram nadando juntos, com braçadas longas e lentas, atravessando ondas brandas, onde seus pés ainda arranhavam o fundo, até finalmente chegarem a um ponto tão fundo que podiam ficar em pé com a água pelos ombros.

As dunas brancas ao longo da praia reluziam como a neve ao luar, e as luzes distantes dos hotéis maiores cintilavam delicadas e mudas sob o céu negro e estrelado. Ele abraçou Rowan, sentindo as pernas molhadas grudadas às suas. O mundo parecia totalmente impossível: algo imaginado na sua total serenidade, na sua ausência de todos os obstáculos, de todas as dificuldades ou das violências contra os sentidos ou contra a carne.

-Isso aqui é o paraíso. É mesmo. Meu Deus, Michael, como você pôde um dia ir embora daqui? - Ela se afastou dele, sem esperar resposta, e nadou com braçadas fortes e rápidas na direção do horizonte.

Ele ficou onde estava, com os olhos examinando os céus, discernindo a grande constelação de Orion, com seu cinturão de jóias. Se na sua vida ele havia sido tão feliz assim, não conseguia se lembrar. Absolutamente não conseguia. Ninguém jamais havia provocado nele a felicidade que ela provocava. Nada jamais havia gerado nele a

felicidade desse momento: esse frescor, essa beleza, esse carinho materno.

É, estou de volta ao meu lugar, ela está comigo, e eu não me importo com mais nada. Não agora... pensou ele.

Passaram o sábado olhando as propriedades à venda. Grande parte da beira-mar desde Fort Walton até Seaside estava tomada pelos grandes balneários e pelos condomínios de prédios altíssimos. As casas isoladas eram poucas, e a preços exorbitantes.

Por volta das três, eles entraram "na casa": uma moderna construção espartana, com o pé direito baixo e severas paredes brancas. As janelas retangulares transformavam a vista do Golfo numa série de quadros em molduras simples. O horizonte cortava esses quadros exatamente ao meio. Lá fora, muito abaixo dos deques da frente, ficavam as dunas, que, segundo a explicação que lhes deram, deviam ser conservadas por servirem de proteção contra as ondas fortes provocadas pelos furacões.

Por uma longa passarela, eles passaram por cima das dunas e desceram por uma escada de madeira castigada pelo tempo até a praia em si. Com o sol ofuscante, a brancura era mais uma vez inacreditável. A água era de um perfeito verde espumante.

Muito ao longe, na praia, dos dois lados, prédios altos interrompiam a paisagem com suas torres brancas, aparentemente tão geométricas e simples quanto a própria casa. Uma total ausência dos penhascos, rochedos e árvore da Califórnia. Era um ambiente totalmente diferente, que fazia lembrar as ilhas gregas, apesar da sua planura, uma paisagem cubista de luz deslumbrante e de linhas bem marcadas.

Ele gostou. Disse a Rowan imediatamente que estava gostando, sim, e que essa casa seria perfeita.

Acima de tudo, ele apreciava o contraste com a exuberância de Nova Orleans. A casa era bem construída, com pisos de cerâmica cor de coral e grossos tapetes, e uma cozinha reluzente, de aço inoxidável. É, cubista e austera. E inexplicavelmente linda ao seu próprio modo.

A única decepção para Rowan consistia na impossibilidade de atacar um barco ali. Ela teria de dirigir uns quatro quilômetros até a marina que dava para a baía, no outro lado da estrada, e tirar o barco passando pela enseada de Destin para entrar no Golfo. Mas isso não era um incômodo tão terrível quando comparado ao luxo desse longo trecho de praia imaculada. Enquanto Rowan e o corretor redigiam uma proposta de compra, Michael saiu até o deque descorado pelo tempo. Ele protegeu os olhos enquanto examinava a água. Procurou analisar a sensação de serenidade que ela lhe transmitia, que sem dúvida estava associada ao calor e ao profundo brilho das cores. Em retrospectiva, Michael tinha a impressão de que os tons e matizes de San Francisco sempre estavam misturados a cinzas, e que o céu lá sempre. estava meio invisível por trás de uma névoa, de uma neblina forte ou de um manto de nuvens desinteressantes.

Ele não conseguia associar esta brilhante paisagem marinha ao Pacífico frio e cinzento, às suas parcas e terríveis lembranças do helicóptero de salvamento, ou de estar ali deitado, gelado e cheio de dores na maca, com as roupas encharcadas. Esta aqui era a sua praia e a sua água, que não iria machucá-lo. Ora, talvez ele até pudesse aprender a gostar de estar no Sweet Christine aqui no sul. Mas ele devia confessar que essa idéia o deixava ligeiramente mareado.

No final da tarde, almoçaram num pequeno restaurante especializado em peixes, perto da marina de Destin, um lugar muito simples e barulhento com a cerveja servida em copos de plástico. O peixe fresco estava ótimo. Ao pôr-do-sol, eles estavam novamente na praia do motel, jogados nas velhas espreguiçadeiras de madeira. Michael fazia anotações sobre coisas lá de First Street. Rowan dormia, com a pele bronzeada nitidamente escurecida pela última semana de atividades ao ar livre e talvez por essa última hora na praia escaldante. Havia faixas de amarelo no seu cabelo. Doeu-lhe olhar para ela, perceber como ela ainda era jovem.

Ele a acordou com delicadeza quando o sol começou a se pôr. Enorme e vermelho sangue, ele desenhou seu caminho espetacular no esmeralda cintilante do mar. Afinal, Michael fechou os olhos porque isso era demais. Ele precisou desviar a atenção e depois voltar bem devagar, enquanto a brisa morna despenteava seu cabelo. Às nove da noite, depois de terem feito uma refeição razoável num restaurante à beira da baía, veio o telefonema do corretor. A proposta de Rowan para compra da casa havia sido aceita. Sem nenhuma complicação. A mobília de vime e de madeira pintada estava incluída. Os acessórios da lareira, a louça, tudo iria ficar. Eles providenciariam a liberação da escritura o mais rápido possível. Ela provavelmente poderia receber as chaves em duas semanas.

Na tarde de domingo, Michael e Rowan visitaram a marina de Destin. As opções de barcos à venda eram fabulosas. Mas Rowan ainda estava pensando em mandar buscar o Sweet Christine. Ela queria uma embarcação para mar aberto. E realmente ali não havia nada que superasse o luxo e a solidez do velho Sweet Christine.

Começaram a viagem de volta no final da tarde. Com o rádio tocando Vivaldi, viram o pôr-do-sol enquanto seguiam a toda velocidade pela baía de Mobile. O céu parecia infinito, brilhando com uma luz mágica por trás de um imenso território de nuvens escurecidas. O cheiro da chuva misturado ao calor.

Meu lugar. Onde eu me sinto bem. Onde o céu tem a aparência de que eu me lembrava. Onde a planície se estende sem fim. E o ar é meu amigo.

Mudo e veloz, seguia o trânsito pela rodovia interestadual. O Mercedes Benz baixo e confortável mantinha facilmente a velocidade de 130 quilômetros por hora. A música cortava o ar com o acorde de agudos violinos. Afinal, o sol desapareceu num banho de ouro ofuscante. Os escuros arvoredos pantanosos se fecharam à sua volta à medida que eles foram entrando no Mississipi, com as enormes carretas passando barulhentas, e as luzes das pequenas cidades tremeluzindo por um instante antes de desaparecer, enquanto se extinguia o último resquício da claridade.

Ela sentia falta dos contrastes da Califórnia? Perguntou- lhe Michael. Falta dos penhascos e dos morros amarelos?

Ela estava olhando para o céu da mesma forma que ele. Nunca se via um céu desses por lá. Não, respondeu ela, baixinho. Ela ia navegar por outras águas, águas mais mornas.

Depois de muito tempo, quando já estava escuro mesmo, e a única paisagem era o brilho das lanternas traseiras adiante deles, ela voltou a falar.

- Esta é a nossa lua-de-mel, não é?

- Acho que é.

- Quer dizer, é a parte fácil. Antes de você perceber o tipo de pessoa que eu sou realmente.

- E que tipo é esse?

- Você quer arrasar com a nossa lua-de-mel?

- Ela não seria arrasada. - Ele olhou para ela de relance. - Rowan, do que é que você está falando? -Nenhuma resposta. - Você sabe que é a única pessoa neste mundo que eu realmente conheço agora. Você é a única pessoa com quem posso lidar literalmente sem luvas de pelica. Sei mais sobre você do que você imagina, Rowan.

- O que seria de mim sem você? - sussurrou ela, ajeitando-se no banco e esticando as pernas compridas.

- O que você quer dizer com isso?

- Não sei. Mas descobri uma coisa.

- Estou com medo de perguntar.

- Ele não vai aparecer enquanto não estiver pronto. - Eu sei.

- Ele quer que você esteja aqui neste momento. Está afastado para abrir lugar para você. Ele apareceu para você naquela primeira noite só para seduzi-lo.

- Isso está me dando calafrios. Por que ele estaria tão disposto a compartilhar você comigo?

- Não sei. Mas já lhe dei oportunidades, e ele realmente não aparece. Acontecem coisas estranhas, absurdas, mas nunca tenho certeza... - Como que tipo de coisa?

-Nada digno de atenção. Olhe, você está cansado. Quer que eu dirija um pouco?

- Meu Deus, não. Não estou cansado. Só não quero a presença dele aqui neste instante, nesta conversa. Tenho a impressão de que ele vai aparecer logo, logo.

Tarde naquela noite, ele acordou na grande cama do hotel sozinho. Encontrou-a sentada na sala de estar. Percebeu que ela havia estado chorando. - Rowan, o que foi?

- Nada, Michael. Nada que não aconteça a uma mulher uma vez por mês. - Ela deu um sorrisinho forçado, ligeiramente triste. - É só que... bem, é provável que você vá achar que eu enlouqueci, mas eu tinha a esperança de estar grávida.

Ele pegou sua mão, sem saber se beijá-la seria a atitude correta. Ele também estava decepcionado, mas o que era mais importante era sua felicidade ao saber que ela realmente queria um filho. Todo esse tempo, ele havia sentido medo de perguntar quais eram seus sentimentos sobre esse assunto. E seu próprio descuido o vinha preocupando.

-Teria sido maravilhoso, querida. Simplesmente maravilhoso. - Você acha? Você teria ficado feliz?

- Sem a menor dúvida.

- Michael, então, vamos seguir em frente. Vamos nos casar.

- Rowan, nada me faria mais feliz - disse ele com simplicidade. -Mas você tem certeza de que é isso o que você quer? Ela lhe deu um sorriso paciente, preguiçoso.

- Michael, você não vai fugir - disse ela, franzindo o cenho, de um jeito brincalhão. - Qual é o sentido de esperar? Ele não pôde deixar de rir.

- E o que dizer da Mayfair Ilimitada, Rowan? Os primos e a companhia, Você sabe o que eles vão dizer, querida?

Ela sacudiu a cabeça, com o mesmo sorriso cúmplice de antes.

- Você quer saber o que eu tenho a dizer? Estaremos sendo uns bobos se não nos casarmos.

Seus olhos cinzentos ainda estavam avermelhados, mas seu rosto agora estava tranqüilo, bonito de se olhar e suave ao toque. Tão diferente do rosto de qualquer pessoa que ele houvesse conhecido, amado ou mesmo imaginado.

- Ora, eu quero, sim - sussurrou ele. - Mas estou com quarenta e oito anos, Rowan. Nasci no mesmo ano em que sua mãe nasceu. É, quero, sim. É que desejo do fundo do coração, mas tenho de pensar em você.

- Vamos fazer o casamento na casa de First Street, Michael, - disse ela com sua voz baixa, rouca, e os olhos se franzindo um pouco. -O que acha? Não seria perfeito? Naquele belo gramado lateral?

Perfeito. Como o projeto para os hospitais construídos com o dinheiro d legado Mayfair. Perfeito.

Ele não sabia por que hesitava. Não podia resistir à idéia. E no entanto tudo era bom demais para ser verdade, gostoso demais, a franqueza e o amor de Rowan, e o orgulho que despertava nele o fato de que logo essa mulher entre tantas precisasse dele e o amasse exatamente como ele precisava de e a amava.

- Aqueles seus primos vão redigir todo tipo de documento para protege-Ia... você sabe, a casa, o legado. Tudo isso.

- Isso é automático. Tudo está vinculado ou coisa parecida. Mas é bem provável que eles produzam uma enorme quantidade de papéis de uma natureza ou de outra.

- Eu me comprometo a assinar.

- Michael, os papéis realmente não significam nada. O que eu tenho é se - O que eu quero é você, Rowan.

Seu rosto se iluminou. Ela recolheu os joelhos, voltando-se de lado no sofá para encará-lo, inclinou-se para a frente e lhe deu um beijo.

De repente, ele percebeu o impacto, forte e delicioso. Casar-se. Casar com Rowan. E a promessa, a promessa absolutamente deslumbrante de um filho. Esse tipo de felicidade lhe era tão desconhecido que ele quase teve medo, Quase, mas não exatamente.

Parecia ser o passo que deviam dar a qualquer preço. Proteger o que tinha e o que queriam da corrente sinistra que os havia reunido. E quando Michael pensava nos anos à sua frente, em todas as possibilidades simples e dolorosamente importantes, sua felicidade era grande demais para ser expressa.

Era melhor nem chegar a tentar. Depois de alguns instantes de silêncio ocorreram-lhe trechos de poemas, pequenas frases que mal chegavam a capta a luz do seu contentamento como um pedacinho de vidro capta a luz. E seguida, eles o abandonaram. Ele ficou satisfeito e vazio, cheio de nada a não ser um amor mudo e tranqüilo.

Aparentemente, em perfeita harmonia, eles se olharam. Não tinham importância as questões de fracassos, da pressa, de todas as conjecturas da vida. O silêncio nela estava falando com o silêncio nele.

Quando entraram no quarto, ela disse que queria passar a noite de núpcias na casa e depois seguir para a Flórida para a lua-de-mel. Essa não seria a melhor solução?

A noite de núpcias debaixo daquele teto e depois fugir para longe.

Sem dúvida, os operários conseguiriam terminar o quarto da frente em duas semanas.

- Garanto que sim - respondeu ele.

Naquela grande cama antiga do quarto da frente. Ele quase ouvia as palavras do fantasma de Belle, "Que lindo para vocês dois”.

Um sono desassossegado. Ela se mexeu, se virou e pôs o braço sobre as costas de Michael, passando os joelhos por baixo dos dele, aconchegada e aquecida novamente. O ar-condicionado era quase tão bom quanto a brisa do Golfo na Flórida. Mas o que era isso incomodando no seu pescoço, algo que se enroscava no seu cabelo e que a machucava? Ela fez um gesto para afastar o que fosse, para soltar o cabelo. Alguma coisa fria fazia pressão contra seu peito. Ela não estava gostando.

Ela se virou de costas. Mais uma vez sonhava que estava na sala de cirurgia, e que essa seria uma tarefa dificílima. Ela precisava visualizar cuidadosamente o que pretendia fazer, guiando as mãos a cada passo com a mente, ordenando ao sangue que estancasse, ordenando aos tecidos que se unissem. E o homem estava ali aberto desde as virilhas até o alto da cabeça, com todos os minúsculos órgãos expostos, trêmulos, vermelhos, impossivelmente pequenos para o seu tamanho, esperando que ela de algum modo fizesse com que eles crescessem.

- Isso é demais. Não tenho como fazer isso. Sou uma neurocirurgiã, não uma bruxa!

Ela agora podia ver cada vaso nos seus braços e nas suas pernas, como se ele fosse um daqueles bonecos de plástico transparente todos atravessados de fios vermelhos usados para demonstrar a circulação para crianças. Seus pés tremiam. Eles também eram pequenos, e ele estava mexendo com os dedos na tentativa de fazer com que crescessem. Como era vazia a expressão no seu rosto, e no entanto ele estava olhando para ela.

E novamente aquele puxão no cabelo, algo que repuxava o cabelo. Mais uma vez, ela procurou afastar o que a incomodava e seu dedo se prendeu em alguma coisa, o que era, uma corrente?

Ela não queria perder o sonho. Agora sabia que era um sonho, mas queria saber o que ia acontecer com esse homem, como essa operação deveria terminar.

- Dra. Mayfair, largue o bisturi - disse Lemle. - Não precisa mais dele.

- Não, Dra. Mayfair - disse Lark. - Não pode usá-lo aqui.

Eles estavam com a razão. A cirurgia não estava ao alcance de algo tão tosco quanto a pequena lâmina de aço tremeluzente. Essa não era uma questão de cortar, mas de construir. Ela olhava fixamente para o ferimento aberto, para os órgãos tenros tremendo como plantas, como o íris monstruoso no jardim. Seu pensamento corria veloz com as especificações à medida que ela guiava as células, explicando seu procedimento para que os médicos mais novos compreendessem.

- Aqui há células em quantidade suficiente, estão vendo? Na realidade, há uma profusão delas. O importante é lhes fornecer um DNA superior, por assim dizer, um estímulo novo e imprevisto para a formação de órgãos do tamanho correto. -E pasmem, o ferimento estava se fechando sobre órgãos do tamanho certo. O homem estava virando a cabeça e seus olhos abriam e fechavam mecanicamente como os olhos de um boneco.

Aplausos à sua volta. Ao olhar para cima, Rowan ficou espantada de ver que todos ali eram holandeses, reunidos em Leiden. Até ela própria usava o grande chapéu preto e as mangas lindas e gordas. E é claro que esse era um quadro de Rembrandt, Aula de anatomia, e era por isso que o corpo parecia tão perfeito, embora esse fato não explicasse por que motivo ela conseguia ver através da pele.

- Ah, você tem o dom, minha filha. Você é bruxa - disse Lemle.

-É verdade - concordou Rembrandt. Um velhinho tão meigo. Ele estava sentado num canto, com a cabeça pendendo para um lado e o cabelo ruivo agora ralo, com a velhice.

- Não deixem que Petyr ouça o que dizem - recomendou Rowan.

- Rowan, tire essa esmeralda - disse Petyr, em pé na outra extremidade da mesa. - Tire-a, Rowan. Ela está no seu pescoço. Arranque-a!

A esmeralda?

Ela abriu os olhos. O sonho perdeu sua tensão como um véu de seda esticada que de repente é solto e se enrola. A escuridão estava viva à sua volta Muito lentamente, os objetos conhecidos se revelaram. As portas do armário, a mesinha-de-cabeceira, Michael, seu querido Michael, dormindo ao seu lado.

Ela sentiu algo frio no peito nu; sentiu alguma coisa enredada no cabelo E soube o que era. - Meu Deus! - Ela cobriu a boca com a mão esquerda, mas não antes de um gritinho escapar. Sua mão direita arrancou a coisa do pescoço como se fosse um inseto odioso.

Ela se sentou, encolhida, contemplando a jóia na palma da mão. Como um coágulo de sangue verde. Sua respiração estava como que paralisada, ela percebeu que havia quebrado a velha corrente e que sua mão tremia descontrolada.

Michael teria ouvido sua exclamação? Ele não se mexeu nem quando ela se encostou nele.

-Lasher! -sussurrou ela, erguendo o olhar como se pudesse encontrá-lo nas sombras. –Você quer que eu o odeie? - Suas palavras foram um silvo. Por um segundo, as imagens do sonho voltaram a ser nítidas, como se a tela houvesse sido baixada mais uma vez. Todos os médicos estavam deixando a mesa.

-Pronto, Rowan. Magnífico, Rowan.

- Uma nova era, Rowan.

- Simplesmente um milagre, minha cara - disse Lemle. - Jogue-a fora, Rowan - disse Petyr.

Ela atirou a esmeralda por cima dos pés da cama. Ela atingiu o tapete em algum lugar do pequeno corredor, com um pequeno ruído surdo e impotente. Ela levou as mãos ao rosto e depois, febril, tateou o pescoço, tateou os seios, como se aquela coisa maldita pudesse ter deixado uma camada de pó ou de sujeira sobre ela.

- Odeio você por isso - sussurrou ela novamente no escuro. - Era isso o que queria?

Ela pareceu ouvir muito ao longe um suspiro, um farfalhar. Através da outra porta do corredor, ela mal discernia as cortinas da sala de estar iluminadas pela luz da rua. E elas se mexeram como se agitadas por uma corrente de ar, e foi esse o ruído que ouviu, não foi?

Isso e a lenta canção ritmada da respiração de Michael. Ela se sentiu tola por ter atirado longe a pedra. Ficou ali sentada, com as mãos cobrindo a boca, os joelhos encolhidos, olhando fixamente para as sombras.

Ora, você não acreditou nas velhas histórias? Por que está tremendo desse jeito? Só um dos seus truques, e não mais difícil para ele do que fazer a dança do vento nas árvores. Ou do que fazer aquele íris se mexer no jardim. Mexer. Ele fez mais do que se mexer, não foi? Ele na realidade... E então ela se lembrou das rosas, daquelas rosas enormes e estranhas na mesa do hall. Ela nunca havia perguntado a Pierce de onde elas apareceram. Nem a Gerald.

Por que está tão assustada?

Levantou-se, vestiu o roupão e foi descalça até o hall. Michael dormia, imperturbável, na cama atrás dela.

Ela apanhou a pedra e enrolou os dois fios da corrente quebrada ao seu redor com todo o cuidado. Parecia horrível ter quebrado aqueles elos frágeis, antiqüíssimos.

- Mas você foi tão idiota de fazer isso - sussurrou ela. - Nunca mais vou usá-la, não por minha própria vontade.

Com um levíssimo ranger das molas, Michael virou na cama. Ele havia murmurado alguma coisa? Seu nome, talvez?

Ela voltou em silêncio para dentro do quarto e, de joelhos, encontrou sua bolsa no canto do armário, colocando o colar no bolso externo fechado por zíper.

Ao nascer do sol, sentada sozinha na sala de estar, ela pensava em todos os velhos retratos na casa, aqueles que ela vinha examinando, limpando e preparando para que fossem pendurados, aqueles muito antigos que ela sabia identificar enquanto ninguém no resto da família conseguia. Charlotte, com seus cabelos louros, tão descorada por baixo do verniz que parecia um fantasma. E Jeanne-Louise, com seu irmão gêmeo parado atrás dela. E Marie Claudett grisalha, com o pequeno quadro de Riverbend na parede acima da sua cabeça.

Todas elas usavam a esmeralda. Tantas pinturas daquela jóia única. Ela fechou os olhos e cochilou no sofá de veludo, querendo café, mas sonolenta demais para fazê-lo.

Ela estivera sonhando antes que isso acontecesse, ma o sonho era sobre o quê mesmo? Algo a ver com o hospital e uma operação mas agora ela não conseguia se lembrar.

Lemle estava lá. Lemle, que ela detestava tanto...

E aquele íris de boca escura que Lasher havia feito...

É, eu conheço seus truques. Você fez com que ele se inchasse e caísse da haste, não foi? Ah, ninguém realmente compreende o poder que você tem. Faz folhas inteiras aparecerem na haste de uma rosa morta. De onde você tira seu belo formato quando aparece, e por que não faz isso para mim? Está com medo de que eu vá espalhá-lo aos quatro ventos, e que você nunca mais tenha força para se concentrar e aparecer?

Ela estava novamente sonhando, não estava? Imagine, uma flor se modificar como aquele íris, alterando-se diante dos seus olhos, com as células realmente se multiplicando e em mutação...

A não ser que fosse apenas um truque. Uma brincadeira como a de pôr e colar no seu pescoço enquanto ela dormia. Mas será que tudo não passava de truques?

Bem, meninos e meninas disse Lark uma vez, quando eles estavam parados em volta da cama de um moribundo em coma , fizemos todos os nossos truques, certo?

O que teria acontecido se ela tivesse acrescentado alguns dos seus? Como mandar que as células do moribundo se multiplicassem, entrassem em mutação, se reestruturassem e fechassem o tecido afetado. Mas ela na época não sabia. Ainda não sabia até onde podia ir.

E, sonhando. Todos caminhando pelos corredores em Leiden. Você sabe o que fizeram com Michael Servetus na Genebra calvinista? Quando ele descreveu com exatidão a circulação do sangue em 1553, eles o queimaram na fogueira com todos os seus livros heréticos. Tenha cuidado, Dra. van Abel.

Não sou bruxa.

Claro. Nenhum de nós é. É uma questão de uma reavaliação constante do nosso conceito dos princípios naturais.

Já não tremia mais. Mas seu medo havia se transmutado em fúria. E ela soube que não conseguiria dormir mais.

Nada de natural naquelas rosas.

E agora o ar aqui dentro, movimentando-se desse jeito, enfunando as cortinas para fazer com que dancem, mexendo nos papéis na mesinha de centro em frente a ela, até mesmo levantando os cachos do seu cabelo e a resfriando. Seus truques. Ela não queria mais esse sonho. Será que os pacientes em Leiden sempre se levantam e saem andando depois da aula de anatomia?

Mas você não quer ousar aparecer, quer?

Ela se encontrou com Ryan às dez da manhã e lhe disse tudo sobre os planos para o casamento, procurando dar à decisão um tom de naturalidade, algo de definitivo, de modo a inspirar o mínimo possível de perguntas.

- E tem uma coisa que eu gostaria que fizesse por mim - disse ela, tirando o colar da esmeralda da bolsa. - Você poderia guardar isso em algum tipo de cofre? Basta que fique trancado onde ninguém tenha acesso a ele.

- É claro que posso guardá-lo aqui no escritório, mas, Rowan, tenho alguns pontos a lhe explicar. Esse legado é muito antigo. Você precisa ter um pouco de paciência agora. As normas e os procedimentos, por assim dizer, são estranhos e absurdos, mas, mesmo assim, explícitos. Receio que seja uma exigência o uso do colar da esmeralda na cerimônia do casamento.

- Não está falando sério.

- Você deve compreender, naturalmente, que essas pequenas exigências provavelmente sejam vulneráveis a contestações ou revisões por um tribunal, mas o motivo para segui-las ao pé da letra está, e sempre esteve, em evitar até mesmo a possibilidade mais remota de alguém um dia questionar a herança em qualquer ponto da sua história. E, com uma fortuna pessoal dessas proporções...

E ele continuou interminavelmente no seu conhecido estilo de advogado, mas ela compreendeu. Lasher havia vencido esse round. Lasher conhecia as condições do legado, não conhecia? Ele apenas lhe dera o melhor presente de casamento.

Sua raiva foi fria, sinistra e isoladora, exatamente como havia sido nos seus piores momentos. Ela olhou para longe, para fora da janela do escritório, sem nem mesmo ver o céu suave, cheio de nuvens, ou o talho sinuoso e fundo do rio sob o céu.

- Vou mandar consertar essa corrente de ouro - disse Ryan. - Parece estar quebrada.

Era uma da tarde quando ela chegou a First Street com o almoço num saquinho de papel pardo: dois sanduíches e umas duas garrafas de cerveja holandesa. Michael estava todo animado. Haviam descoberto um tesouro de antigos tijolos vermelhos de Nova Orleans, debaixo da terra no terreno dos fundos. Tijolos lindos, do tipo que não se fazia mais. Agora podiam construir os novos pilares para os portões com o material perfeito. E também haviam encontrado escondido no sótão um maço de velhas plantas.

- Parecem ser as plantas originais - disse ele. - Podem ter sido desenhadas pelo próprio Darcy. Vamos. Eu as deixei lá em cima. São tão frágeis.

Ela subiu a escada com ele. Como tudo parecia diferente com a pintura nova. Até o quarto de Deirdre estava lindo agora, como sempre deveria ter sido.

- Você não está com nenhum problema, está?

Será que ele não saberia? Pensou ela. Será que ele não teria de perceber? E imaginar que ela seria forçada a usar aquela jóia maldita no casamento. Seu grande sonho do Centro Médico Mayfair e tudo o mais poderiam desaparecer se ela não a usasse. Ele ficaria louco quando ela lhe contasse. E ela não agüentava ver o pavor nos seus olhos novamente. Ela não suportava vê-lo agitado e fraco, essa era a pura verdade.

- Não, nenhum problema. É que eu passei a manhã inteira no centro com os advogados de novo, e senti sua falta. - Ela o abraçou, aconchegando a cabeça debaixo do seu queixo. - Senti mesmo sua falta.

Ninguém pareceu menos surpreso com a notícia. Aaron fez um brinde a eles durante o café da manhã e depois voltou para o trabalho na biblioteca de First Street, onde, a convite de Rowan, estava catalogando os livros raros.

Ryan, da fala mansa e dos frios olhos azuis, apareceu na tarde de terça, para cumprimentar Michael. Numa agradável troca de palavras, ele deixou claro estar impressionado com o currículo de Michael, o que naturalmente só podia querer dizer que Michael havia sido investigado, através dos canais financeiros normais, exatamente como se estivesse se candidatando a um emprego.

- Tenho certeza - admitiu Ryan, finalmente - de que é assim meio ofensivo investigar o noivo de uma beneficiária do legado Mayfair. Mas veja bem, nesse caso eu não tenho muita escolha...

- Eu não me importo - disse Michael, sorrindo. - Qualquer coisa que você não tenha conseguido descobrir e quiser saber, basta perguntar.

- Bem, para começar, como você conseguiu se sair tão bem sem cometer nenhum crime?

Michael descarto u o elogio com uma risada.

- Quando você vir esta casa dentro de uns dois meses, irá entender. - No entanto, Michael não era tolo o suficiente para imaginar que sua modesta fortuna havia impressionado esse homem. O que eram dois milhões em ações de primeira linha em comparação com o legado Mayfair? Não, essa era mais uma referência à geografia de Nova Orleans, ao fato de ele ter vindo do outro lado de Magazine Street e de ainda ter o Irish Channel na voz. Michael havia, porém, passado muitos anos lá no oeste para se preocupar com uma coisa dessas.

Eles caminharam juntos sobre a grama recém-aparada. Os novos buxos, pequenos e bem podados, estavam agora plantados por todo o jardim. Dava para se ver como os canteiros de flores haviam sido projetados um século atrás. Viam-se também as quatro pequenas estátuas gregas nos quatro cantos do pátio.

Na verdade, todo o projeto clássico ressurgia. O longo formato octogonal do gramado era o mesmo formato da piscina. As lajes perfeitamente quadradas haviam sido dispostas num desenho de losango junto às balaustradas de pedra calcária que dividiam o pátio em retângulos distintos e demarcavam caminhos que se encontravam em ângulos retos, emoldurando tanto o jardim quanto a casa. Velhos caramanchões haviam sido recompostos de tal modo que mais uma vez definissem os portais. E, à medida que a tinta preta ia cobrindo as grades trabalhadas de ferro fundido, ela dava vida ao seu desenho repetitivo e enfeitado de arabescos e rosetas.

É, motivos, para qualquer canto que olhasse, ele discernia motivos, desenhos em contraste com a extremosa esparramada, as camélias de folhas lustrosas, a rosa antiga que se esforçava por subir no caramanchão e as pequenas maravilhas que brigavam pela luz nos trechos onde o sol brilhava direto.

Beatrice, muito exagerada num enorme chapéu cor-de-rosa e grandes óculos quadrados de armação prateada, veio se encontrar com Rowan às duas para falar sobre o casamento.

Rowan havia marcado a data para uma semana depois do sábado seguinte.

- Menos de quinze dias! - exclamou Beatrice, alarmada. Não, tudo tinha de ser feito do jeito certo. Rowan não compreendia o que o casamento iria representar para a família? As pessoas iam querer vir de Atlanta e de Nova York.

Não poderia ser antes do final de outubro. E sem dúvida Rowan ia querer que a reforma da casa estivesse terminada. Ver a casa significaria tanto para todos.

Está bem, disse Rowan. Ela achava que ela e Michael podiam esperar todo esse tempo, especialmente se fosse para que pudessem passar a noite de núpcias na casa, e a recepção fosse realizada ali.

Perfeitamente, disse Michael. Isso lhe daria quase oito semanas inteiras para pôr as coisas em ordem. Com toda a certeza, o andar principal poderia ser terminado e o quarto da frente lá em cima.

- Seria uma dupla comemoração, não é? - disse Bea. - A do seu casamento e a da reabertura da casa. Queridos, vocês deixarão todos tão felizes.

E é claro que todos os Mayfair no universo deveriam ser convidados.

Beatrice passou, então, para sua lista de bufês. A casa podia receber mil pessoas se fossem instalados toldos no gramado e junto à piscina. Não, nada com que se preocupar. E as crianças poderiam nadar, certo?

E, seria como nos velhos tempos, seria como nos dias de Mary Beth. Rowan gostaria de ver algumas velhas fotografias das últimas festas dadas antes da morte da Stella?

-Vamos juntar todas essas fotografias para a recepção - disse Rowan. - Pode ser uma reunião. Vamos expor as fotografias para que todos possam apreciar.

- Vai ser maravilhoso.

De repente, Beatrice estendeu a mão e segurou a de Michael.

- Posso lhe fazer uma pergunta, querido? Agora que você faz parte da família? Por que afinal você usa essas luvas horríveis?

- Eu tenho visões quando toco nas pessoas - respondeu Michael antes que pudesse se controlar.

Os grandes olhos cinzentos de Beatrice se iluminaram.

- Ah, mas isso é superinteressante. Você sabia que Julien tinha esse poder? Foi o que sempre me disseram. E Mary Beth também. Ai, querido, por favor, deixe. – Ela começou a enrolar o couro a partir do punho, com suas longas unhas amendoadas, cor-de-rosa, arranhando de leve a pele. - Por favor. Posso? Você não se incomoda?

- Ela arrancou a luva e a exibiu com um sorriso triunfal, embora inocente.

Ele não fez nada. Continuou passivo, com as mãos abertas, os dedos ligeiramente dobrados.

Ficou olhando quando ela pôs a mão sobre a sua e depois a apertou com firmeza. Num relance, as imagens aleatórias invadiram sua cabeça. A confusão surgiu e desapareceu tão rápido que ele não captou nada, apenas a atmosfera, a sanidade, o equivalente do sol e do ar puro, bem como a impressão bem nítida de Inocente. Não faz parte deles.

- O que você viu? - perguntou ela.

Ele viu seus lábios pararem de se mexer antes de as palavras soarem claras.

- Nada - disse ele, recuando. - Considera-se que essa seja a absoluta confirmação de bondade e de boa sorte. Nada. Nenhuma aflição, nenhuma tristeza, nenhuma doença, absolutamente nada. - E de certa forma, essa era a pura verdade.

- Ai, mas você é uma gracinha - disse ela, perplexa e sincera, aproximando-se para lhe dar um beijo. - Onde você foi descobrir uma pessoa assim? - perguntou ela a Rowan e prosseguiu, sem esperar pela resposta. - Gosto de vocês dois! Isso é ainda melhor do que amá-los, porque, sabe, já era esperado que os amasse. Mas gostar de vocês, que surpresa interessante. Vocês realmente formam o casal mais adorável, você, Michael, com esses seus olhos azuis, e você, Rowan, com essa voz formidável, caramelada! Eu tenho vontade de beijá-lo nos olhos cada vez que você sorri para mim, e não vá sorrir agora, como ousa? E tenho vontade de beijá-la no pescoço cada vez que ela diz uma palavra! Uma única palavra que seja!

- Posso lhe dar um beijo, Beatrice? - perguntou ele, com ternura.

-Prima Beatrice para você, seu belo pedaço de homem -disse ela, com um pequeno tapinha teatral no peito arfante. - Vamos! - Ela fechou bem os olhos e depois os abriu com mais um sorriso radiante, exagerado.

Rowan apenas sorria para os dois numa atitude indecisa, pasma. E agora já era hora de Beatrice levá-la ao centro até o escritório de Ryan. Intermináveis questões legais. Que horrível. Lá foram as duas.

Michael percebeu que a luva preta havia caído na grama. Ele a apanhou e a calçou.

Não faz parte deles...

Mas quem estivera falando? Quem estivera digerindo e transmitindo essa informação?

Talvez ele simplesmente estivesse se aperfeiçoando, aprendendo a fazer perguntas, como Aaron lhe havia tentado ensinar a fazer.

A verdade era que ele não havia prestado muita atenção a esse aspecto das aulas. Seu desejo principal era o de bloquear o poder. Fosse qual fosse o caso, pela primeira vez desde o desastre com os frascos, havia surgido uma mensagem clara e distinta. Na verdade, ela era infinitamente mais concisa e peremptória do que a maioria dos terríveis sinais que havia recebido naquele dia. Ao seu modo, ela havia sido tão clara quanto a profecia de Lasher.

Ele ergueu os olhos devagar. Sem dúvida havia alguém na varanda lateral, escondido nas sombras, a observá-lo. Mas ele não viu nada. Só os pintores a trabalhar na grade de ferro. A varanda estava esplêndida agora que haviam arrancado a velha tela e removido a moldura improvisada de madeira. Ela era agora uma ponte entre o longo salão duplo e o belo gramado.

E aqui nós nos casaremos, pensou ele, sonhador. Como em resposta, as grandes extremosas começaram a dançar com a brisa, suas leves flores cor-de-rosa movimentando-se graciosamente em contraste com o céu azul.

Quando ele chegou de volta ao hotel naquela tarde, havia um envelope à sua espera, de Aaron. Ele o rasgou antes mesmo de chegar à suíte. Uma vez fechada a porta, isolando-o do mundo lá fora, ele tirou do envelope a lustrosa foto colorida e a segurou de modo que fosse bem iluminada.

Uma linda mulher morena o contemplava de dentro da divina escuridão tecida por Rembrandt: viva, sorrindo exatamente o mesmo sorriso que ele acabara de ver nos lábios de Rowan. A esmeralda Mayfair refulgia nesse crepúsculo magistral. A ilusão era tão dolorosamente real que ele teve a impressão de que o papel da fotografia poderia se desfazer e deixar o rosto a flutuar, diáfano como o de um fantasma, no ar.

Mas seria essa a sua Deborah, a mulher que ele havia visto nas visões?Ele não sabia. Não lhe ocorria nenhum choque de reconhecimento por mais que ele examinasse o retrato.

Retirar as luvas e manusear a foto não produziu nada, só as imagens enlouquecedoras e sem significado de intermediários e pessoas sem importância que a essa altura ele já esperava. E, sentado no sofá com a fotografia nas mãos, ele sabia que teria sido igual se houvesse tocado o próprio quadro a óleo.

- O que você quer de mim? - sussurrou ele.

Inocente e atemporal, a menina de cabelos escuros sorria de volta para ele. Uma desconhecida. Captada para sempre na sua infância breve e desesperada. Aprendiz de feiticeira e nada mais.

Mas alguém lhe havia dito uma coisa nessa tarde quando a mão de Beatrice tocou na sua!

Alguém havia usado seu poder com algum objetivo. Ou teria sido simplesmente sua própria voz interior?

Ele pôs de lado as luvas, como estava acostumado a fazer quando ficava só, apanhou seu caderno e sua caneta e começou a escrever.

"E, creio ter sido um pequeno uso construtivo do poder. Porque as imagens se subordinavam à mensagem. Não tenho certeza se isso alguma vez ocorreu antes, nem mesmo no dia em que toquei nos frascos. As mensagens estavam misturadas com as imagens, e Lasher falava diretamente comigo, mas tudo estava misturado. Isso aqui era bem diferente".

E se ele tocasse a mão de Ryan hoje à noite no jantar, quando todos estivessem reunidos em volta da mesa à luz de velas no Caribbean Room ali embaixo? O que sua voz interior lhe diria? Pela primeira vez, ele se descobriu ansioso por usar o poder. Talvez por sua pequena experiência com Beatrice ter dado tão certo.

Ele gostava de Beatrice. Ele talvez tivesse visto o que queria ver. Um ser humano comum, parte da grande onda do real que significava tanto para ele e para Rowan.

"Caso-me antes de 1 ° de novembro. Meu Deus, preciso ligar para tia Viv. Ela vai ficar tão decepcionada se eu não ligar."

Ele pôs a fotografia na mesinha-de-cabeceira de Rowan para que ela a visse.

Havia ali um linda flor, uma flor branca que parecia um lírio normal, mas que tinha algo de diferente. Ele a apanhou, examinando-a na tentativa de descobrir por que ela parecia tão estranha, e percebeu, então, que ela era muito mais longa do que qualquer lírio que um dia houvesse visto, e que suas pétalas pareciam extraordinariamente frágeis.

Bonita. Rowan devia tê-la apanhado no caminho de volta da casa. Ele entrou no banheiro, encheu um copo com água, pôs o lírio nele e o trouxe até a mesinha.

Ele não se lembrou da história de tocar a mão de Ryan até muito depois de terminado o jantar, quando estava sozinho ali em cima com seus livros. Alegrou-se por não tê-lo feito. O jantar havia sido divertidíssimo, com o jovem Pierce os regalando com antigas lendas de Nova Orleans, todo o folclore de que Michael se lembrava, mas de que Rowan nunca havia ouvido falar, e pequenas anedotas engraçadas sobre os diversos primos, tudo concatenado sem rigidez, num estilo natural e sedutor. No entanto, a mãe de Pierce, Gifford, uma mulher morena bem-vestida e bem tratada, que também era uma Mayfair de nascimento, passara a refeição inteira olhando fixamente para Michael e Rowan, em silêncio e com ar de medo, sem dizer praticamente nada.

E é claro que o jantar em si era para ele mais um daqueles momentos de satisfação íntima, em comparação com a ocasião na sua infância em que tia Viv viera de San Francisco para visitar sua mãe e ele jantara num restaurante de verdade - o Caribbean Room - pela primeira vez.

E imaginar que tia Viv estaria aqui antes do final da semana seguinte. Ela estava confusa, mas viria. Um peso que lhe saía da cabeça.

Ele a acomodaria em algum condomínio simpático e confortável em St. Charles Avenue, numa das novas casas de tijolos com os bonitos telhados de mansarda e as portas envidraçadas. Num lugar próximo ao desfile de Carnaval para que ela pudesse assistir da sacada. Na verdade, ele devia estar procurando nos classificados neste exato instante. Ela poderia pegar táxis para onde quer que precisasse ir. E depois ele lhe informaria com extrema delicadeza o seu desejo de que ela ficasse por aqui pelo sul, que ele não queria voltar para a Califórnia, que a casa de Liberty Street não representava mais um lar para ele.

Por volta da meia- noite, ele largou os livros de arquitetura e entrou no quarto. Rowan estava apagando a luz naquele momento.

- Rowan, se você visse aquela criatura, você me diria, certo? - Do que você está falando, Michael?

- Se você visse Lasher, você me contaria. Imediatamente.

- Claro que sim. Por que você chegou a me fazer essa pergunta? Por que não guarda os livros e vem dormir?

Ele viu que o retrato de Deborah estava em pé encostado no abajur. E que o belo lírio branco no copo d'água estava em frente à fotografia.

- Ela era linda, não? - comentou Rowan. - Imagino que não haja meios neste mundo de se conseguir que o Talamasca se desfaça do quadro original.

- Não sei. Talvez seja bem improvável. Mas você sabe que essa flor é realmente extraordinária. Hoje à tarde, quando a coloquei no copo, eu poderia jurar que era apenas uma flor, e agora são três. Olhe só. Eu devo não ter percebido os botões. Rowan pareceu intrigada. Ela estendeu a mão, tirou a flor da água com cuidado e a examinou.

- Que tipo de lírio é esse? - perguntou.

- Bem, é meio parecido com o que costumávamos chamar de lírio da Páscoa, mas esses não dão flor nesta época do ano. Não sei o que é. Onde você o apanhou?

- Eu? Eu nunca o havia visto antes.

- Imaginei que você o tivesse apanhado em algum lugar.

-Não, não fui eu. - Seus olhos se encontraram. Ela foi a primeira a desviar o olhar, erguendo suas sobrancelhas lentamente e depois inclinando de leve a cabeça.

Pôs o lírio de volta no copo. - Talvez um pequeno presente de alguém.

- Por que eu não o jogo fora? - sugeriu Michael.

- Não se aborreça, Michael. É só uma flor. Ele é cheio de truques, está lembrado?

-Não estou aborrecido, Rowan. É só que a flor já está murchando. Olhe, está ficando marrom e tem uma aparência esquisita. Não gosto dela.

- Está bem - disse ela, com muita calma. - Jogue-a fora. - Ela deu um sorriso. - Mas não se preocupe com nada.

- Claro que não. O que há para que eu me preocupe? Só um espírito de trezentos anos de idade, com uma personalidade independente, que sabe fazer com que as flores voem de um lado para o outro. Por que eu não deveria me regozijar por um estranho lírio surgir do nada? Ora, talvez ele tenha feito isso por Deborah. Quanta gentileza. Ele se voltou e olhou novamente para a fotografia. Como uma centena de outros assuntos de Rembrandt, sua Deborah dos cabelos escuros parecia estar a encará-lo de frente. Ele se espantou com a risada de Rowan.

- Sabe, Michael, você fica uma gracinha quando se zanga. Olhe, talvez haja uma perfeita explicação para como essa flor apareceu aqui.

- E, é isso o que sempre dizem nos filmes. E a platéia sabe que estão loucos. Ele levou o lírio para o banheiro, deixando-o cair na cesta de lixo. Já estava murchando mesmo. Nenhum desperdício, não importava de onde tivesse vindo, concluiu Michael.

Ela estava à sua espera quando ele voltou, com os braços cruzados, muito serena e convidativa. Ele se esqueceu totalmente dos livros na sala de estar.

Na noite seguinte, ele caminhou sozinho até First Street. Rowan havia saído com Cecília e Clancy Mayfair, para dar um passeio pelos shopping centers da moda na cidade. A casa estava vazia e em silêncio quando ele chegou. Até mesmo Eugenia estava fora nessa noite, com seus dois filhos e os netos. A casa era toda sua.

Embora a obra estivesse avançando num ritmo maravilhoso, ainda havia escadas e lonas praticamente por toda parte. As janelas ainda estavam sem cortinas, e era cedo demais para limpá-las. As altas venezianas, retiradas para serem lixadas e pintadas, jaziam uma ao lado da outra como enormes pranchas sobre a grama.

Ele entrou no salão, ficou olhando muito tempo para seu próprio reflexo sombrio no espelho acima da primeira lareira, com a minúscula luz vermelha do cigarro lembrando um vaga-lume no escuro.

Uma casa como esta nunca fica em silêncio, pensou ele. Mesmo agora, ele ouvia, baixinho, uma melodia de rangidos e estalidos nos caibros e nos pisos antigos. Qualquer pessoa mais inexperiente juraria que alguém estava andando no andar superior. Ou que lá nos fundos, na cozinha, alguém acabava de fechar uma porta. E ainda aquele ruído estranho, como um bebê chorando, muito ao longe.

Mas não havia mais ninguém ali. Essa não era a primeira noite em que ele escapulia para testar a casa e a si mesmo. E ele sabia que não seria a última.

Sem pressa, ele voltou passando pela sala de jantar, pela cozinha sombria e saindo pelas portas envidraçadas. Uma iluminação suave banhava a noite à sua volta, derramando-se das lanternas no vestiário recém-restaurado e das lâmpadas do fundo da piscina. Ela brilhava nas cercas-vivas e nas árvores bem podadas e nos móveis de ferro fundido, todos lixados e pintados, arrumados em pequenos grupos nas lajes varridas.

A própria piscina estava totalmente recuperada e cheia. Parecia muito atraente, aquele longo retângulo de água azul e funda, ondulando e cintilando ao crepúsculo.

Ele se ajoelhou e pôs a mão na água. No fundo, um pouco quente demais para esse tempo de início de setembro, que não estava nem um pouco mais fresco do que agosto, quando se analisava bem. Mas ótimo para nadar no escuro.

Ocorreu-lhe uma idéia. Por que não mergulhar na piscina agora? Num certo sentido,

parecia- lhe errado sem Rowan. O primeiro mergulho era um daqueles momentos que deviam ser compartilhados. Mas e daí? Rowan estava se divertindo, sem dúvida, com Cecília e Clancy. E a água estava uma tentação. Ele não nadava numa piscina há anos.

Olhou de relance para as poucas janelas iluminadas na parede lilás escuro da casa.

Ninguém que pudesse vê-lo. Tirou rapidamente o casaco, a camisa, as calças, os sapatos e as meias. Tirou a cueca. E, caminhando até o lado mais fundo, mergulhou sem pensar em mais nada.

Meu Deus! Isso sim era a vida! Mergulhou até suas mãos tocarem no fundo azul, e depois se virou para poder ver a luz cintilando na superfície lá em cima.

Subiu, então, deixando que sua leveza natural o levasse até a superfície, sacudindo a cabeça e boiando em pé, enquanto erguia os olhos para as estrelas. Havia barulho à sua volta! Risos, conversas, gente falando com vozes altas, animadas, e, por trás daquilo tudo, o lamento acelerado de uma banda de Dixieland.

Voltou-se, espantado, e viu o gramado enfeitado com lanternas e apinhado de gente. Por toda parte, jovens casais dançavam nas lajes ou mesmo direto na grama. Todas as janelas da casa estavam iluminadas. Um rapaz de smoking preto mergulhou de repente na piscina bem diante dele, deixando-o ofuscado com a violência da pancada na água.

Sua boca de repente estava cheia d'água. O barulho era ensurdecedor. Na outra ponta da piscina, um homem de casaca e gravata branca estava parado, acenando para ele.

- Michael! - gritava o homem. - Saia daí logo, homem, antes que seja tarde!

Um sotaque britânico. Era Arthur Langtry. Ele começou a nadar rapidamente para a outra ponta. Mas antes de dar três braçadas, perdeu o fôlego. Uma dor aguda o atingiu nas costelas, e ele deu uma guinada para o lado.

Quando atingiu a borda da piscina e parou ali, a noite à sua volta estava silenciosa e vazia.

Durante um segundo, não fez nada. Ficou ali, ofegante, tentando controlar as batidas do coração, e esperando que a dor nos pulmões passasse. Enquanto isso, seus olhos cobriam o pátio deserto, as janelas áridas, o vazio do gramado.

Tentou, então, se erguer e sair da piscina. Seu corpo tinha um peso impossível e, mesmo com o calor, ele sentia frio. Ficou ali tremendo por um instante. Depois entrou no vestiário e apanhou uma das toalhas sujas que usava durante o dia quando vinha aqui lavar as mãos. Secou-se com ela e voltou a sair, olhando para o jardim vazio e a casa às escuras. As paredes recém-pintadas de violeta estavam agora da cor exata do céu crepuscular.

Sua própria respiração ruidosa era o único som no silêncio. Mas agora seu peito não doía mais, e ele se forçou a respirar fundo algumas vezes.

Estava apavorado? Estava furioso? Ele sinceramente não sabia. Talvez estivesse num estado de choque. Também não tinha certeza quanto a isso. Parecia que havia corrido de novo os dois quilômetros em quatro minutos, disso tinha certeza. E sua cabeça começava a doer. Ele apanhou as roupas e começou a se vestir, recusando-se a se apressar, recusando-se a ser expulso dali. Depois, ficou por algum tempo sentado no banco de ferro encurvado, fumando um cigarro e examinando as coisas ao seu redor, procurando se lembrar exatamente do que havia visto. A última festa de Stella. Arthur Langtry.

Mais um dos truques de Lasher?

Ao longe, depois do gramado, lá junto à cerca da frente, entre as camélias, ele achou ter visto alguém se mexendo. Ouviu o ressoar de passos. Mas era apenas alguém a dar um passeio noturno; talvez a espiar por entre as folhas.

Ele prestou atenção até não escutar mais os passos distantes, e percebeu que estava ouvindo o ruído do trem que passava à beira-rio, exatamente como o ouvia em Annunciation Street, quando era menino. E novamente aquele som, o de um bebê chorando. Esse era apenas um apito de trem.

Pôs-se de pé, esmagou o cigarro e voltou para dentro de casa.

- Você não me assusta - disse ele, em tom despreocupado. - E não acredito que aquele fosse Arthur Langtry.

Alguém havia suspirado na escuridão? Ele deu meia-volta. Nada, a não ser a sala de jantar vazia ao seu redor. Nada a não ser o grande portal em formato de buraco de fechadura que dava para o corredor. Ele foi em frente sem se incomodar em dar passos mais leves, deixando que ressoassem ruidosos e invasores.

Um pequeno estalido. Uma porta que se fechava? E o ruído de uma janela sendo erguida, toda uma vibração de madeira e vidraças.

Ele se voltou e subiu a escada. Foi até o quarto da frente e depois passou por todos os quartos vazios. Não se deu ao trabalho de acender a luz. Ele conhecia bem o caminho, desviando-se da velha mobília, fantasmagórica sob as lonas plásticas. A luz pálida do poste da rua a entrar pelos portais era mais do que suficiente para ele.

Afinal, depois de cobrir cada metro da casa, ele desceu de volta ao térreo e saiu pela porta.

Ao chegar ao hotel, chamou Aaron do saguão e o convidou para vir até o bar tomar um drinque. O bar era pequeno e simpático, bem à frente, com algumas mesinhas aconchegantes e iluminação discreta, e raramente estava cheio.

Ocuparam uma mesa no canto. Bebendo meia cerveja em tempo recorde, ele contou a Aaron o que havia acontecido, descrevendo o homem de cabelos grisalhos.

- Sabe, eu nem quero contar para Rowan - disse ele. - Por que não?

- Porque ela não quer saber. Ela não quer me ver agitado de novo. Ela fica louca com isso.

Ela procura ser compreensiva, mas as coisas não a afetam do mesmo jeito. Eu me descontrolo. Ela fica furiosa.

- Acho que deve contar.

- Ela vai me dizer para ignorar tudo e para continuar a fazer o que me deixa feliz. Às vezes, eu me pergunto se nós não devíamos nos mandar daqui, Aaron, se alguém não devia... - Ele se interrompeu.

- Devia o quê, Michael?

- Ah, é absurdo. Eu poderia matar quem tentasse destruir aquela casa.

- Fale com ela. Basta que lhe conte num to m simples e sereno o que aconteceu. Não transmita a reação que irá perturbá-la, a não ser que ela lhe peça. Mas também não guarde segredos, Michael, especialmente um segredo dessa natureza.

Ele ficou calado muito tempo. Aaron já havia quase terminado seu drinque.

- Aaron, o poder que ela tem. Existe algum meio para testá-lo, trabalhar com ele ou descobrir o que ele pode fazer?

Aaron fez que sim.

- Existe, mas Rowan acha que trabalhou com ele a vida inteira ao fazer curas. E tem razão.

Quanto ao potencial negativo, ela não quer desenvolvê-lo. Ela quer refreá-lo totalmente.

- E, mas seria de se esperar que ela quisesse mexer com ele de vez em quando, numa situação de laboratório.

- Talvez, com o tempo. Neste exato momento, acho que ela está totalmente concentrada na idéia do centro médico. Como você disse, ela tem vontade de estar com a família e de levar a cabo esses planos. E eu devo admitir que a idéia do Centro Médico Mayfair é magnífica. Acho que o pessoal da Mayfair & Mayfair está impressionado, embora eles relutem em confessar. - Aaron terminou seu vinho. - E você? - Aaron fez um gesto indicando as mãos de Michael.

- Ah, está bem melhor. Estou tirando as luvas cada vez com freqüência maior. Eu não sei...

- E quando estava nadando?

- Bem, acho que estava sem elas. Meu Deus, nem pensei nisso. Eu... Você não está pensando que isso esteja relacionado às luvas, está?

- Não, acho que não. Mas tenho a impressão de que você pode estar bastante certo ao supor que poderia não ter sido Langtry. Talvez seja mais do que uma sensação, mas não creio que Langtry tentasse aparecer dessa forma. Mas não deixe de contar a Rowan. Você espera que ela seja perfeitamente franca com você, não espera? Conte-lhe tudo.

Ele sabia que Aaron tinha razão. Estava vestido para o jantar e esperava na sala de estar da suíte quando Rowan chegou. Preparou-lhe uma água mineral gasosa com gelo e explicou o incidente com a maior concisão possível.

Percebeu imediatamente a ansiedade no seu rosto. Era quase uma decepção que alguma coisa feia, sinistra e horrível mais uma vez toldasse sua insistência de que tudo estava correndo bem. Ela parecia incapaz de dizer uma palavra sequer. Ficou apenas sentada no sofá, ao lado da pilha de embrulhos que trazia ao chegar. Não tocou na água.

- Acho que foi um dos truques de Lasher - disse Michael. - Foi essa a minha impressão. O lírio, aquilo foi um tipo de truque. Acho que devíamos simplesmente seguir em frente.

Era isso o que ela queria ouvir, não era?

- É, é exatamente isso o que devíamos fazer - disse ela, com uma leve irritação. - E isso o perturbou? Acho que eu teria ficado louca ao ver uma coisa dessas.

-Não. Foi chocante, mas foi como que fascinante. Acho que me deixou com raiva. Eu tive assim... bem, quer dizer, eu tive um daqueles ataques...

- Meu Deus, Michael.

-Não, não! Sente-se e relaxe, Dra. Mayfair. Estou bem. É só que quando essas coisas acontecem:, elas provocam um esforço, uma reação geral do organismo, ou coisa que o valha. Não sei. Talvez eu fique apavorado e não saiba. E provável que seja isso. Uma vez, quando eu era menino, estava andando na montanha-russa em Poitchartrain Beach. Chegamos bem lá no alto e eu pensei, bem, dessa vez não vou me retesar todo. Vou só me deixar mergulhar, totalmente relaxado. Bem, aconteceu uma coisa estranhíssima.

Senti umas cãibras no estômago e no peito. Que dor! Foi como se meu corpo se retesasse por mim, sem minha permissão. Foi mais ou menos isso. Na verdade, foi exatamente assim.

Ela estava realmente perdendo a paciência. Estava ali sentada de braços cruzados, com a boca tensa, e estava perdendo mesmo.

- As pessoas morrem de ataques do coração em montanhas-russas - disse ela, afinal. - Da mesma forma que morrem de outros tipos de estresse. - Eu não vou morrer.

- O que lhe dá tanta certeza?

- O fato de já ter morrido antes. E de saber que ainda não chegou a hora. - Muito engraçado - disse ela, com um sorrisinho irônico. - Estou falando sério.

- Não vá mais lá sozinho. Não dê à criatura nenhuma oportunidade de fazer isso com você.

- Bobagem, Rowan! Não tenho medo dessa criatura maldita. Além do mais, eu gosto de ir até lá. E...

- E o quê?

- A coisa vai se mostrar mais cedo ou mais tarde.

- E o que lhe dá tanta certeza de que era Lasher? - perguntou ela, com a voz calma. E o rosto subitamente sereno. - E se fosse Langtry mesmo, e Langtry quisesse que você me deixasse?

- Isso não faz sentido.

- É claro que faz.

- Olhe. Vamos deixar isso de lado. Só quero ser franco com você, dizer tudo o que aconteceu, não esconder uma história dessas. E também não quero que você me esconda nada.

- Não vá até lá novamente - disse ela, com a expressão se anuviando. - Não sozinho, não à noite, não à procura de encrenca. Ele fez um barulhinho zombeteiro.

Mas ela havia se levantado e saído da sala com passos decididos. Ele nunca a havia visto se comportar daquele jeito. Logo ela ressurgiu, com a bolsa preta de couro na mão.

- Abra a camisa, por favor. - Ela estava tirando o estetoscópio da bolsa. - O quê? O que é isso? Você deve estar brincando.

Ela estava parada à sua frente, segurando o estetoscópio e olhando para o teto. Depois, baixou os olhos até ele e sorriu.

- Vamos brincar de médico, está bem? Agora abra a camisa. - Só se você abrir a sua também.

- Eu abro logo em seguida. Na verdade, se você quiser, pode escutar meu coração também.

- Bem, se é assim. Meu Deus, Rowan, esse troço está gelado.

- Eu só o aqueço nas mãos para crianças, Michael.

- Bem, você acha que marmanjos corajosos como eu não sentem frio ou calor?

- Pare de tentar me fazer rir. Respire fundo bem devagar. Ele fez o que ela pediu.

- E então, o que ouviu aí dentro?

Ela se levantou, pegou o estetoscópio com uma das mãos e o guardou na bolsa. Sentou-se ao seu lado e apertou seu pulso com os dedos.

- E daí?

- Você parece estar bem. Não ouvi nenhum sopro. Não percebi nenhum problema congênito, nenhuma disfunção ou fragilidade de espécie alguma.

- Esse é o Michael Curry que eu conheço! E o que lhe diz seu sexto sentido?

Ela estendeu as mãos, colocando-as no seu pescoço, deslizando os dedos pelo colarinho aberto e afagando delicadamente sua pele. Era um toque tão delicado e tão diferente do seu jeito habitual que lhe deu calafrios nas costas e atiçou a paixão nele acendendo rapidamente um fogo que o surpreendeu.

Ele estava a um passo de se transformar num perfeito animal, ali sentado, e ela sem dúvida devia estar percebendo isso. Mas seu rosto era uma máscara. Com o olhar vidrado fixo nele e as mãos ainda o segurando, ela estava tão imóvel que ele quase se alarmou.

- Rowan? - disse ele, baixinho.

Ela retirou as mãos devagar. Parecia ter voltado a si e deixou os dedos caírem brincalhões e com uma delicadeza enlouquecedora no seu colo, fingindo arranhar o volume nas suas calças.

- E então o que diz o seu sexto sentido? - perguntou ele, novamente, resistindo ao impulso de lhe arrancar as roupas imediatamente.

- Que você é o homem mais lindo, mais sedutor com quem já fui para a cama - disse ela, preguiçosa. - Que me apaixonar por você foi uma idéia espantosamente inteligente.

Que nosso primeiro filho será incrivelmente belo, lindo e forte.

- Você está me provocando? Claro que não viu isso?

-Não vi, mas é o que vai acontecer- disse ela, encostando a cabeça no seu ombro. – Vão acontecer coisas maravilhosas - prosseguiu ela, enquanto ele a abraçava mais forte. - Porque nós vamos fazer com que aconteçam. Vamos entrar ali agora e fazer uma coisa maravilhosa acontecer debaixo dos lençóis.

Antes do final da semana, a Mayfair & Mayfair realizou sua primeira reunião formal dedicada inteiramente à criação do centro médico. De acordo com o parecer de Rowan, foi decidido autorizar alguns estudos coordenados para examinar a viabilidade, as dimensões ótimas do centro e a melhor localização possível em Nova Orleans. Ryan programou para Anne Marie e Pierce viagens para coleta de dados aos principais hospitais de Houston, Nova York e Cambridge. A nível municipal, estavam sendo organizadas reuniões para examinar a possibilidade de afiliação a universidades ou instituições existentes na cidade.

Rowan estava trabalhando muito na leitura de textos sobre técnicas hospitalares. Ela conversava por horas a fio no interurbano com Larkin, seu ex-chefe, e outros médicos do país inteiro, pedindo sugestões e idéias.

Estava se tornando óbvio para ela que seu sonho mais grandioso poderia ser realizado com apenas uma fração do capital, se é que o capital chegaria a ser envolvido. Pelo menos, era assim que Lauren e Ryan Mayfair interpretavam seus sonhos, e era melhor deixar que as coisas avançassem dessa forma.

- Mas e se algum dia cada centavo desse dinheiro fosse aplicado na medicina? – Cogitava ela em segredo com Michael. - Fosse aplicado na criação de vacinas e antibióticos, salas de cirurgia e leitos hospitalares?

A reforma estava indo tão bem que Michael teve tempo para dar uma olhada em mais umas duas propriedades. Antes de meados de setembro, ele já havia comprado uma loja espaçosa, comprida e poeirenta em Magazine Street, para a nova Grandes Esperanças, a apenas alguns quarteirões de First Street e do lugar onde havia nascido. Ela ficava num prédio antigo, com um apartamento no sobrado e uma varanda de ferro que cobria a calçada. Mais um daqueles momentos perfeitos.

É, tudo estava indo às mil maravilhas, e Michael estava adorando. O salão estava quase pronto. Alguns dos tapetes chineses e das belas poltronas francesas de Julien haviam voltado para lá. E o relógio de carrilhão estava funcionando novamente.

É claro que a família os assediou para que deixassem as acomodações do Pontchartrain e viessem para uma casa ou outra até o casamento. Mas eles estavam tão bem acomodados na grande suíte que dava para St. Charles Avenue. Adoravam o Caribbean Room e o pessoal do hotel pequeno e elegante. Gostavam até do elevador de lambris, com as flores pintadas no teto, e o pequeno salão de chá onde às vezes tomavam o café da manhã. Além do mais, Aaron ainda ocupava a suíte do andar de cima, e os dois haviam se afeiçoado muito a ele. Um dia não parecia completo sem um café, um drinque ou pelo menos uma conversinha com Aaron. E se ele continuava a sofrer aquele tipo de acidente, não estava dizendo.

As últimas semanas de setembro foram mais frescas. E muitas noites eles ficavam em First Street, depois da saída dos trabalhadores, tomando vinho à mesa de ferro e olhando o sol se pôr por trás das árvores.

O último traço de luz se refletia nas altas janelas do sótão que davam para o sul, deixando as vidraças douradas.

De uma imponência silenciosa, a buganvília produzia suas flores roxas numa profusão deslumbrante, e cada aposento recém-terminado, ou trecho de grade pintada, os deixava animados e cheios de sonhos com o que estava por vir.

Enquanto isso. Beatrice e Lily Mayfair haviam convencido Rowan a fazer um casamento de vestido de noiva na igreja da Assunção de Nossa Senhora. O legado parecia estipular uma cerimônia católica. E os detalhes externos do ritual eram considerados absolutamente indispensáveis para a felicidade e a satisfação do clã como um todo. Rowan parecia feliz quando afinal cedeu.

E Michael estava eufórico, em segredo.

Aquilo o emocionava mais do que ele ousava admitir. Ele nunca havia esperado ter na vida nada tão elegante ou tradicional. E é claro que a decisão cabia à mulher, e ele não quis pressionar Rowan de forma alguma. Mas que maravilha só imaginar um casamento formal na velha igreja em que ele havia ajudado a missa.

À medida que os dias iam esfriando cada vez mais e eles entravam no lindo e refrescante mês de outubro, Michael de repente percebeu como estava perto seu primeiro Natal juntos, que iam passar nesta casa. Imagine a árvore que poderiam ter naquele salão enorme. Seria maravilhoso. E tia Viv estava afinal se acomodando no novo condomínio. Ela ainda reclamava da falta de objetos pessoais, e Michael agora prometia ir a San Francisco qualquer dia desses para buscá-los, mas ele sabia que ela estava gostando da cidade. E estava gostando da família Mayfair.

É, o Natal, como ele sempre havia imaginado que devia ser. Numa casa magnífica, com uma árvore esplêndida, e um fogo aceso na lareira de mármore.

O Natal.

Era inevitável que a lembrança de Lasher na igreja voltasse à sua mente.

A presença inconfundível de Lasher, associada ao cheiro dos pinheiros e das velas, e a imagem do Menino Jesus, de gesso, a sorrir na manjedoura.

Por que Lasher havia olhado para Michael com tanto amor naquele dia distante em que aparecera no altar junto ao presépio?

Por que tudo isso? Era essa a pergunta no final das contas.

E talvez Michael nunca viesse a saber. Talvez, pudesse ser que ele já houvesse de certo modo cumprido o objetivo em troca do qual sua vida lhe havia sido devolvida.

Talvez ele não fosse nada mais do que voltar para aqui, amar Rowan e que os dois vivessem felizes nesta casa.

Mas ele sabia que não podia ser tão fácil assim. Simplesmente não fazia sentido desse jeito.

Seria um milagre se isso durasse para sempre. Um milagre, como eram milagres a criação do Centro Médico Mayfair, o fato de Rowan querer um filho e de que em breve a casa seria deles....Como ver um fantasma era um milagre: um fantasma que sorria radiante para você do altar de uma igreja, ou debaixo de uma extremosa nua numa noite fria.

Muito bem, lá vamos nós de novo, pensou Rowan. Era o quê? A quinta reunião em homenagem aos noivos? Haviam tido o chá de Lily, o almoço de Beatrice, o jantarzinho de Cecília no Antoine's. E a festinha de Lauren, no centro, naquela adorável casa antiga em Esplanade Avenue.

Dessa vez, era em Metairie, na casa de Cortland, como ainda a chamavam, muito embora ela fosse há anos o lar de Gifford e Ryan, e do seu filho mais novo, Pierce.

E o límpido dia de outubro estava perfeito para uma recepção ao ar livre para cerca de duzentos convidados.

Não importava que só faltassem dez dias para o casamento, que seria no dia 10 de novembro, dia de Todos os Santos. A família Mayfair ainda realizaria mais dois chás até lá e mais um almoço em algum lugar, devendo o local e a data ser confirmados mais tarde.

- Qualquer coisa é pretexto para uma festa! - explicou Claire Mayfair. - Querida, você não sabe há quanto tempo estamos esperando por algo assim.

Agora moviam-se lentamente em círculos no gramado aberto abaixo das pequenas magnólias podadas com perfeição e pelas salas espaçosas e baixas da elegante casa de tijolos em estilo Williamsburg. E Anne-Marie, com seus cabelos escuros, pessoa de uma honestidade extrema que agora parecia estar totalmente encantada com os projetos hospitalares de Rowan, a apresentou a dezenas das mesmas pessoas que havia conhecido no enterro, bem como a dezenas de outras que ela nunca havia visto antes.

Aaron acertara na mosca na sua descrição de Metairie, um subúrbio tipicamente norte-americano.

Aquelas pessoas poderiam estar em Beverly Hills ou Sherman Oaks em Houston. A não ser talvez pelo fato de o céu aqui ter aquela aparência cristalina que ela não havia visto em nenhum outro lugar com exceção do Caribe. E as velhas árvores que se alinhavam ao longo do meio-fio serem tão veneráveis quanto as do Garden District.

A casa em si era, no entanto, um puro exemplo da elite dos subúrbios americanos, com suas antiguidades da Filadélfia do século XVIII e o chão acarpetado; com todos os retratos de família, cuidadosamente emoldurados e iluminados; e o suave e insinuante saxofone de Kenny G se derramando de alto-falantes ocultos nas paredes divisórias brancas.

Um garçom muito preto com uma cabeça perfeitamente redonda e um melodioso sotaque do Haiti servia o bourbon e o vinho branco em copos de cristal. Duas cozinheiras de pele morena, usando uniformes engomados, viravam os camarões cor-de-rosa gordos e apimentados na grelha fumegante. E as mulheres da família nos seus delicados vestidos em tons pastel pareciam flores entre os homens de ternos brancos; alguns bebês peque nos faziam travessuras na grama, ou enfiavam as mãozinhas rosadas no jato da pequena fonte no centro do gramado.

Rowan encontrou um lugar confortável numa cadeira branca debaixo da maior das magnólias. Ela bebericava o bourbon enquanto apertava as mãos de um primo após o outro.

Estava começando a apreciar o sabor desse veneno. Estava mesmo um pouco alta. Antes, naquele mesmo dia, quando experimentava o vestido de noiva e o véu para a prova final, descobriu-se inesperadamente emocionada com essa ostentação e grata por ela lhe ter sido mais ou menos imposta.

"Princesa por um dia" era como ia ser, como se entrasse num carro alegórico e saísse dele. Mesmo o fato de usar a esmeralda não seria no fundo uma tortura, especialmente considerando-se que ela se mantivera em segurança dentro do seu estojo desde aquela noite horrível. E Rowan nunca havia chegado a falar com Michael sobre seu aparecimento misterioso e indesejado. Ela sabia que devia ter contado, e algumas vezes esteve a ponto de fazê-lo, mas simplesmente não conseguia.

Michael havia adorado a idéia do casamento na igreja. Todos podiam constatar isso. Os seus pais haviam se casado na paróquia, da mesma forma que os seus avós antes deles. É, ele gostava da idéia, talvez mais do que ela. E a menos que alguma outra coisa acontecesse com aquele colar apavorante, por que estragar tudo para ele?

Por que estragar tudo para os dois? Ela sempre poderia explicar depois, quando a jóia já estivesse trancada em segurança num cofre. E, não uma falsidade; apenas um pequeno adiamento.

Além disso, nada mais havia acontecido desde então. Nada de flores deformadas na mesinha-de-cabeceira. Na realidade, o tempo voava, com as obras a todo vapor, e a casa na Flórida mobiliada e pronta para sua lua-de-mel oficial.

Mais outro acaso feliz era o fato de Aaron ter sido plenamente aceito pela família, e de agora estar rotineiramente incluído em todas as reuniões. Beatrice estava apaixonada por ele, ao que ela mesma dizia, e o provocava impiedosamente acerca dos seus modos de solteirão britânico e acerca das viúvas disponíveis no seio da família Mayfair. Ela havia chegado ao ponto de levá-lo a um concerto com Agnes Mayfair, uma prima mais velha, muito bonita, cujo marido morrera um ano antes.

Rowan se perguntava como Aaron ia lidar com Beatrice. Mas a essa altura ela já sabia que Aaron conseguiria agradar a Deus no céu ou ao Diabo no inferno. Até mesmo Lauren, aquele iceberg de advogada, parecia gostar de Aaron. No outro dia num almoço, Lauren falou com ele o tempo todo sobre a história de Nova Orleans. Ryan gostava dele. Isaac e Wheatfield gostavam dele. E Pierce o interrogava implacável a respeito das suas viagens pela Europa e pelo Oriente.

Aaron era também uma companhia perfeitamente fiel à tia Vivian, de Michael. Rowan imaginava que todo mundo devia ter uma tia Vivian, uma pessoa frágil e pequena, como uma boneca, transbordando de amor e doçura, com uma adoração por qualquer coisa que Michael dissesse. Ela lembrava Rowan das descrições que Aaron havia feito

de tia Belle e Millie Dear na história. No entanto, a mudança não havia sido fácil para tia Vivian. E embora a família Mayfair a houvesse recebido com extremo carinho, ela não conseguia acompanhar seu ritmo frenético e suas conversas agitadas. Nesta tarde ela havia implorado para ficar em casa, organizando os poucos objetos que havia trazido. Ela sempre pedia a Michael que fosse até lá e embalasse tudo o que estava na casa de Liberty Street, e ele estava adiando a viagem, apesar de tanto ele quanto Rowan saberem que ela era inevitável.

Ver Michael com tia Viv era amá-lo por todo um conjunto diferente de razões, pois ninguém poderia ser mais delicado ou mais paciente.

- Ela é o que resta da min ha família, Rowan. - Havia ele comentado um dia. - Todos os outros se foram. Sabe, se as coisas não tivessem dado certo entre nós dois, eu agora estaria no Talamasca. Eles se teriam tornado a minha família.

Como Rowan entendia isso! Com um choque, aquelas palavras a transportavam de volta à sua própria solidão amarga de meses antes.

Meu Deus, como queria que as coisas dessem certo aqui! E o fantasma de First Street estava se mantendo reservado, como se ele também quisesse que tudo funcionasse.

Ou será que a raiva de Rowan o havia afastado? Durante dias a fio após o aparecimento do colar, ela o havia amaldiçoado entre dentes pelo que havia feito.

A família até estava aceitando a idéia do Talamasca, embora Aaron insistisse em ser vago quanto ao que ela realmente era. Os parentes talvez não compreendessem nada além de que Aaron era um estudioso e uma pessoa que viajava pelo mundo, que ele sempre se havia interessado pela história da família Mayfair por ser ela uma família sulina antiga e ilustre.

E qualquer estudioso que, pudesse revelar uma antepassada da beleza surpreendente de Deborah, imortalizada por nada mais nada menos do que o famoso Rembrandt, com sua autenticidade confirmada sem a menor sombra de dúvida pela inconfundível esmeralda Mayfair no seu colo, era o seu tipo preferido de historiador. Eles ficavam deslumbrados pelos fragmentos da sua história à medida que Aaron os revelava. Meu Deus, eles achavam que Julien havia inventado todas aquelas tolices sobre antepassados na Escócia.

Enquanto isso, Bea havia mandado copiar em óleo a fotografia do Rembrandt de Deborah, para que o quadro pudesse estar pendurado na parede de First Street no dia da cerimônia. Ela ficou furiosa com Ryan por não ter recomendado a aquisição do original.

A verdade é que o Talamasca não queria se desfazer do quadro. Graças a Deus, depois de Ryan calcular o preço inevitável, o assunto foi definitivamente esquecido. É, eles adoravam Aaron, Michael e Rowan.

Adoravam Deborah também.

Se sabiam alguma coisa sobre o que havia acontecido entre Aaron e Cortland ou Carlotta anos atrás, não diziam uma palavra sequer. Eles não sabiam que Stuart Townsend era membro do Talamasca. Na verdade, estavam totalmente confusos quanto à descoberta daquele corpo misterioso. E estava ficando cada vez mais óbvio que eles imaginavam ter sido Stella a responsável pela sua presença no sótão.

- É provável que ele tenha morrido lá em cima, de ópio ou de bebida, numa daquelas festas desvairadas e que ela simplesmente o tivesse enrolado no tapete e esquecido da sua existência.

- Ou quem sabe ela não o estrangulou. Lembra aquelas festas que ela costumava dar?

Rowan se divertia ao ouvir sua conversa, suas tranqüilas explosões de riso. Nunca lhe chegava a mais ínfima vibração telepática negativa. Ela agora captava suas boas intenções, sua alegria festiva.

Mas eles tinham seus segredos, alguns tinham, especialmente os mais velhos. A cada nova reunião, ela detectava indícios mais fortes. Na verdade, à medida que a data do casamento se aproximava, Rowan tinha certeza de que alguma coisa estava avultando.

Os mais velhos não estavam vindo visitar First Street só para desejar felicidade ou para se encantar com a restauração. Eles estavam curiosos. Estavam receosos.

Havia segredos que queriam lhe confiar, ou conselhos que talvez quisessem oferecer. Ou ainda, perguntas que quisessem fazer. E talvez estivessem apenas testando os poderes de Rowan, porque eles próprios tinham os seus. Ela nunca havia estado com gente tão carinhosa e tão capaz de esconder suas emoções negativas. Era interessante. Mas quem sabe hoje não seria o dia em que algo de extraordinário ia acontecer?

Os mais velhos estavam aqui, havia bebida à vontade e, depois de uma série de dias frescos de outubro, a temperatura estava novamente agradável. O céu estava de um perfeito azul de porcelana, e as imensas nuvens onduladas passavam velozes, como graciosos galeões impelidos por ventos alísios.

Ela tomou mais um bom gole do bourbon, adorando a sensação de calor no seu peito, e olhou em volta à procura de Michael.

Lá estava ele, ainda preso como estava há uma hora pela irresistível Beatrice e por Gifford, com sua beleza admirável, Gifford, cuja mãe descendia de Lestan Mayfair, cujo pai descendia de Clay Mayfair e que naturalmente se casara com o neto de Cortland, Ryan. Aparentemente havia outras linhagens da família Mayfair enredadas na história, também, mas Rowan havia tido sua atenção desviada naquele ponto da conversa, com seu sangue fervilhando ao ver os dedos pálidos de Gifford segurando o braço de Michael, sem nenhum bom motivo.

E então o que achavam de tão fascinante no seu querido para não soltarem suas garras dele?

E por que Gifford era assim tão nervosa, para começo de conversa? Pobre Michael. Ele não sabia o que estava acontecendo. Ficava ali sentado, com as mãos enluvadas enfiadas nos bolsos, baixando a cabeça e rindo com as piadinhas delas. Ele não percebia o aspecto coquete dos seus gestos, a luz que chamejava nos seus olhos, o tom alto e sedutor dos seus risos.

Acostume-se. O filho da mãe é irresistível para mulheres sofisticadas. Todas elas se deram conta dele agora, de que ele é o guarda-costas que lê Dickens.

Ontem, ele subiu pela escada fina e alta encostada na lateral da casa como se fosse um pirata subindo pela escada de corda do navio. E depois, que cena, ele sem camisa, com o pé na mureta do telhado, o cabelo desfeito pelo vento, uma das mãos acenando como se não fizesse a menor idéia de que essa seqüência de gestos despreocupados a estivesse enlouquecendo lentamente.

- Puxa, como ele é bonito, sabia? - dissera Cecília, olhando lá para cima.

Sei, resmungara Rowan.

O desejo que sentia por ele em momentos como esse era uma tortura. E agora ele estava ainda mais sedutor no seu novo terno de colete, de linho branco ("Você está querendo que eu me vista de sorveteiro?"), que Beatrice o fizera comprar, arrastando-o até a Perlis. ("Querido, agora você é um senhor do sul!"). Pornográfico, era o que ele era. Pornografia ambulante. Pense nas vezes em que ele arregaçava as mangas e enfiava os cigarros Camel na dobra do braço direito e o lápis atrás da orelha, e ficava discutindo com um dos carpinteiros ou dos pintores, e depois punha um pé à frente e erguia a mão de repente como se quisesse fazer o queixo do outro sair pelo alto da cabeça.

Além disso, aqueles mergulhos nus na piscina depois de todos irem embora (nenhum fantasma desde aquela primeira vez), e o fim de semana em que foram para a Flórida, para tomar posse da nova casa, ele dormindo nu no deque, sem nada a não ser seu relógio de ouro e a correntinha no pescoço. A nudez total não poderia ser mais tentadora.

E a felicidade dele era tão incrível. Talvez ele fosse a única pessoa do mundo que amava aquela casa mais do que os membros da família Mayfair. Sentia uma obsessão por ela. Aproveitava todas as oportunidades de meter a mão na massa com os homens. E agora guardava as luvas cada vez com maior freqüência. Aparentemente, ele podia esgotar as imagens de algum objeto se se esforçasse, e daí em diante bastava mantê-lo afastado das mãos dos outros, para que o objeto permanecesse seguro, por assim dizer. Ele agora tinha toda uma caixa de ferramentas que usava sem luvas, com regularidade.

Graças a Deus, os fantasmas e assombrações estavam deixando os dois em paz. E Rowan tinha de parar de se preocupar com Michael logo ali com seu harém. Melhor se concentrar no grupo que estava se formando ao seu redor: a velha e majestosa Felice que acabava de trazer uma cadeira, Margaret Ann, bonita e tagarela, que estava se acomodando na grama mesmo e a melancólica Magdalene, a que parecia ser jovem mas não era, que já estava ali há algum tempo, observando os outros num silêncio insólito.

De quando em quando, uma cabeça se virava, uma dessas pessoas olhava para ela, e Rowan captava um vago vislumbre de conhecimento ilícito e talvez uma pergunta, para depois se extinguir. Mas era sempre dos mais velhos: Felice, que era a filha mais nova de Barclay e estava com setenta e cinco anos; ou Lily, com setenta e oito, diziam, neta de Vincent; ou Peter Mayfair, idoso e careca, com os olhos úmidos, brilhantes e o pescoço grosso apesar de seu corpo ser forte e ereto, filho caçula de Garland, sem dúvida um ancião cauteloso e sagaz.

E havia ainda Randall, talvez mais velho do que seu tio Peter, de olhos caídos e aparentemente sábio, jogado sobre um banco de ferro num canto distante, olhando fixamente para ela, sem se importar com quantos pudessem

bloquear sua visão de vez em quando, como se quisesse lhe dizer alguma coisa de enorme importância mas não soubesse por onde começar.

Eu quero saber. Quero saber tudo.

Pierce agora a encarava com uma admiração indisfarçada, totalmente conquistado para o sonho do Centro Médico Mayfair, e quase tão ansioso quanto ela para torná-lo realidade. Pena que ele houvesse perdido parte do carinho despreocupado que demonstrava antes e que agora quase lhe pedisse desculpas ao trazer uma série de rapazes para lhe serem apresentados, explicando sucintamente o grau de parentesco e a ocupação atual de cada um. ("Somos uma família de advogados", ou "O que faz um homem de bem quando não tem de fazer nada?") Havia algo perfeitamente adorável em Pierce no que dizia respeito a Rowan. Ela queria deixá-lo novamente à vontade. Sua amabilidade era do tipo que não escondia nenhum traço de egoísmo.

Ela percebeu com prazer também que, após cada apresentação, ele apresentava exatamente a mesma pessoa a Michael, com uma cordialidade simples, inexplicada. Na verdade, todos eles estavam sendo gentis com Michael. Gifford não parava de servir bourbon no seu copo. E Anne Marie estava agora acomodada ao seu lado, conversando séria com ele, com o ombro roçando no seu ombro.

Desligue-se, Rowan. Você não pode trancar o belo animal no sótão.

Em grupos, eles a cercavam e depois se afastavam para que um novo grupo se formasse. E o tempo todo falavam da casa de First Street, acima de tudo da casa.

Pois a restauração em curso lhes dava uma alegria que não disfarçavam.

A casa de First Street era seu ponto de referência, sim, e como todos haviam detestado ver sua decadência. Como haviam detestado Carlotta! Rowan captava essa mensagem por trás dos parabéns que recebia. Ela percebia isso quando olhava nos seus olhos. A casa estava afinal liberada de uma servidão desprezível. E era surpreendente tudo que eles sabiam das mudanças e descobertas mais recentes. Eles sabiam até mesmo as cores que Rowan havia escolhido para quartos que ainda não haviam visto.

Que maravilha que Rowan tivesse mantido toda a mobília antiga dos quartos. Ela sabia que Stella havia dormido na cama de Carlotta? E que a cama no quarto de Millie havia pertencido a vovó Katherine? E que o tio -avô Julien havia nascido na cama do quarto da frente, que agora seria de Michael e Rowan?

O que eles achavam do seu projeto de um grande hospital? Nas conversas breves e raras fora da firma, ela os descobria espantosamente receptivos à idéia. O nome, Centro Médico Mayfair, era muito do seu agrado.

Era de importância crucial para ela que o centro abrisse novos campos, havia ela explicado a Bea e Cecília na semana anterior, que ele suprisse necessidades a que os outros não se houvessem dedicado. O ambiente ideal para a pesquisa, certo, isso era obrigatório, mas esse instituto não deveria ser uma torre de marfim. Deveria ser um hospital de verdade, com uma grande proporção de leitos reservados para pacientes sem condições de pagar. Se ele pudesse reunir os melhores neurologistas e neurocirurgiões do país e se tornar o centro mais completo, mais eficaz e mais inovador para o tratamento de problemas neurológicos, com um conforto incomparável e os equipamentos mais modernos, seu sonho estaria transformado em realidade.

- Parece incrível, se você quer saber - dissera Cecília.

- Acho que já estava na hora - comentou Carmen Mayfair, no almoço. - Sabe, a Mayfair & Mayfair sempre distribuiu milhões de dólares, mas essa é a primeira vez que alguém demonstra esse tipo de iniciativa.

E é claro que isso seria apenas o começo. Não havia necessidade de explicar tão cedo que ela previa experiências na estrutura e organização de unidades de tratamento intensivo e de centros de tratamento de doentes graves; que ela queria arquitetar um meio revolucionário de abrigar as famílias dos pacientes, com programas especiais para reeducar cônjuges e filhos que devessem participar da reabilitação contínua daqueles portadores de invalidez ou de enfermidades incuráveis.

A cada dia, porém, seu sonho ganhava mais ímpeto. Ela imaginava um programa de ensino humanitário, destinado a corrigir todos os horrores e abusos que haviam se tornado lugares-comuns na medicina moderna. Planejava uma escola de enfermagem na qual pudesse ser criado um novo tipo de super enfermeira, capaz de toda uma nova gama de responsabilidades.

As palavras "Centro Médico Mayfair" poderiam passar a representar os melhores, os mais sensíveis e mais humanos profissionais do ramo.

É, todos sentiriam orgulho. Como poderiam não sentir?

- Mais um drinque?

- Quero, sim, obrigada. O bourbon está bom. Bom demais. Risos.

Ela tomou mais um golinho enquanto cumprimentava com a cabeça o jovem Timmy Mayfair, que havia vindo lhe dar um aperto de mãos. É, e mais um alô para Bernardette Mayfair, que havia conhecido rapidamente na cerimônia fúnebre, e para a linda menina de cabelos ruivos e fita na cabeça, que se chamava Mona Mayfair, filha de CeeCee, e para Jennifer Mayfair, com seus modos de menino, melhor amiga de Mona e sua prima em quarto grau, é, já nos conhecemos, é claro. Jenn tinha a voz como a sua, pensou, grave e rouca.

O bourbon era melhor bem gelado. Mas também era traiçoeiro quando gelado. E ela sabia que estava bebendo só um pouquinho demais. Tomou mais um gole, retribuindo um pequeno brinde de lá do outro lado do jardim. Fazia-se um brinde atrás do outro à casa e ao casamento. Será que alguém aqui falava sobre algum outro assunto?

- Rowan, eu tenho fotografias que são do tempo...

- ...e minha mãe guardou todos os artigos dos jornais...

- Sabe, ela está nos livros sobre Nova Orleans. Está, sim, eu tenho alguns livros muito antigos. Posso deixá-los para você no hotel...

- ...você entende, não vamos estar batendo à sua porta noite e dia, mas só de saber!...

- Rowan, nossos bisavós nasceram naquela casa... todo mundo que você está vendo aqui...

- Ai, a pobrezinha da Millie Dear não viveu para ver o dia...

- ...um pacote de daguerreótipos... Katherine e Darcy, e Julien. Você sabe que Julien era sempre fotografado diante da porta da frente. Já vi sete retratos diferentes dele diante da porta da frente.

Porta da frente?

Cada vez chegavam mais parentes. E afinal lá estava o velho Fielding, o filho de Clay, totalmente careca, com sua pele fina, translúcida e olhos injetados, e eles o estavam trazendo para cá, para se sentar ao lado dela.

Mal ele estava acomodado na cadeira, os jovens começaram a lhe prestar homenagens como haviam feito com Rowan.

Hercules, o criado haitiano, pôs o copo de bourbon na mão do velho.

- Está bem assim, Sr. Fielding?

- Está, Hercules, não quero comer. Enjoei de comida. Comi o suficiente para a vida inteira.

Sua voz era grave e atemporal, como a voz da velha.

- Quer dizer que não temos mais Carlotta - disse ele, soturno, para Beatrice, que viera lhe dar um beijo. - E eu sou o único a restar dos velhos.

- Não fale assim. Você vai ficar com a gente para sempre - disse Bea, com seu perfume os envolvendo, doce, de flores e caro como seu brilhante vestido de seda vermelha.

- Não sei se você é assim tão mais velho do que eu - declarou Lily Mayfair, sentando-se ao seu lado, e na verdade, por um instante, ela aparentou, sim, a mesma idade dele, com seus cabelos brancos ralos e luminosos, o rosto encovado e a mão ossuda que pousou no braço dele.

- Quer dizer que está restaurando First Street - disse Fielding, voltando-se para Rowan. - Você e esse seu companheiro vão morar ali. E até aqui as coisas foram bem?

- Por que não iriam? - perguntou Rowan, com um sorriso delicado.

Mas ela se comoveu de repente com a bênção que Fielding lhe deu quando descansou a mão sobre a sua.

- Ótimas notícias, Rowan - disse ele, com sua voz grave ganhando ressonância agora que ele se recuperava da longa odisséia da porta da frente até ali. - Ótimas notícias.

- O branco dos seus olhos estava amarelado, apesar de sua dentadura brilhar de tão branca. - Todos esses anos, ela não quis deixar ninguém tocar na casa – disse ele, com um traço de raiva. -Uma bruxa velha, era isso o que ela era. Gritinhos sufocados das mulheres à sua esquerda. Ah, mas era exatamente isso o que Rowan queria. Que se rompesse o verniz da superfície.

- Vovô, pelo amor de Deus. - Era Gifford junto ao seu cotovelo. Ela apanhou a bengala caída na grama e a pendurou no encosto da cadeira. Ele a ignorou.

- Ora, é a verdade - disse ele. - Ela deixou a casa ficar em ruínas! É um assombro que ela ainda possa ser recuperada.

- Vovô - implorou Gifford, quase em desespero.

- Querida, deixe seu avô falar - atalhou Lily, com a cabeça pequena ligeiramente trêmula, os olhos passeando cintilantes por Rowan, a mão magra segurando firme o copo.

- Você acha que alguém ia conseguir me calar - disse o velho. - Ela dizia que era ele que não a deixava fazer nada. Ela punha toda a culpa nele. Ela acreditava nele e o usava quando tinha lá suas razões.

Um silêncio caiu sobre os que se encontravam ao seu redor. Parecia que também estava escurecendo um pouco quando os outros foram se aproximando mais. Rowan percebeu vagamente com o canto do olho o movimento cinza-escuro da silhueta de Randall.

- Vovô, eu preferia que o senhor não... - disse Gifford. Ah, mas eu preferia que o senhor falasse!

- Era ela - disse Fielding. - Ela queria que a casa desmoronasse à sua volta. Às vezes eu me pergunto por que ela não a incendiou, como aquela governanta perversa em Rebecca. Eu costumava me preocupar com essa possibilidade. Que ela queimasse todos aqueles retratos antigos. Já viu os retratos? Viu Julien e os filhos parados

diante do portal?

- Do portal? Está falando da porta em formato de buraco de fechadura da frente da casa?

Será que Michael tinha ouvido? Tinha. Ele estava vindo na direção deles, obviamente procurando calar Cecília, que cochichava sem parar no seu ouvido, sem perceber a expressão no seu rosto. E Aaron estava parado não muito longe, debaixo da magnólia, despercebido, com os olhos fixos no grupo. Se ao menos ela pudesse lançar um feitiço sobre todos eles para que não vissem Aaron.

Mas eles não estavam percebendo nada a não ser uns aos outros. Fielding, baixando a cabeça em sinal de confirmação, e Felice, erguendo a voz, com suas pulseiras de prata retinindo enquanto ela apontava para Fielding.

- Conte-lhe tudo - disse Felice. - Acho que você devia. Quer saber minha opinião? Carlotta queria aquela casa. Queria mandar naquela casa. Foi ela quem mandou ali até o dia da sua morte, não foi?

- Ela não queria nada - resmungou Fielding, com um gesto largo e desdenhoso da mão esquerda. - Era essa sua sina. Ela só queria destruir.

- E o portal? - perguntou Rowan.

- Vovô, vou levá-lo...

- Você não vai me levar para lugar nenhum, Gifford - disse ele, com a voz quase juvenil na sua determinação. - Rowan vai se mudar de volta para aquela casa. Tenho coisas a dizer a ela.

- Em particular! - declarou Gifford.

- Deixe-o falar, querida. Que mal há nisso? - disse Lily. - E esta conversa é particular. Todos aqui somos da família.

- É uma linda casa. Ela vai adorá-la! - afirmou Magdalene, com aspereza. - O que vocês estão querendo fazer? Deixá-la apavorada?

Randall estava parado atrás de Magdalene, com as sobrancelhas erguidas, os lábios ligeiramente retesados, todas as rugas no seu rosto velho e flácido bem marcadas, enquanto ele olhava para Fielding.

- Mas o que o senhor ia dizer? - perguntou Rowan.

- É só um monte de velhas lendas - disse Ryan, com um leve traço de irritação, embora estivesse falando mais devagar, num esforço óbvio de refreá-la. - Lendas tolas sobre um portal, e elas não querem dizer nada.

Michael parou atrás de Fielding, e Aaron se aproximou um pouco mais. Mesmo assim, os outros não se deram conta da sua presença.

- Eu no fundo quero saber - disse Pierce. Ele estava em pé, atrás de Felice e ao lado de Randall. Felice olhava atentamente para Fielding, com a cabeça balançando muito de leve porque estava alta. - Meu bisavô foi retratado diante do portal – prosseguiu Pierce. - Esse quadro está lá dentro. Eles estavam sempre diante daquele portal.

- E por que não estariam parados na varanda da frente da casa nesses retrato s? – questionou Ryan. - Eles moravam ali. Temos de nos lembrar de que, antes de Carlotta, a casa era do nosso tataravô.

- Foi isso - sussurrou Michael. - Foi aí que eu vi a porta. Nos retratos. Meu Deus, eu devia ter dado uma olhada melhor naqueles retratos...

Ryan olhou para ele de relance. Rowan estendeu a mão, fez um gesto para que ele viesse para perto dela, e os olhos de Ryan o acompanharam enquanto Michael dava a volta até chegar atrás da cadeira de Rowan. Pierce estava falando novamente quando Michael se sentou na grama ao lado de Rowan, de tal modo que ela pudesse pousar a mão no seu ombro. Aaron estava agora muito perto.

- Mas mesmo nas fotos antigas - dizia Pierce - eles estão diante da porta. Sempre de uma porta em forma de buraco de fechadura. Fosse a da frente, fosse qualquer uma das outras...

- É, a porta - comentou Lily. - A porta está no jazigo. O mesmo tipo de portal foi entalhado lá no alto das gavetas. E ninguém nem sabe quem mandou fazer isso.

- Bem, é claro que foi Julien - declarou Randall, com sua voz grave, retumbante. Todos voltaram rapidamente a atenção para ele. - E Julien sabia o que estava fazendo, porque o portal tinha um significado especial para ele e para todos os daquela época.

- Se vocês lhe contarem essa loucura toda - disse Anne Marie -, ela não vai...

- Mas eu quero saber - insistiu Rowan. - Além do mais, nada irá nos impedir de ir morar naquela casa.

- Não tenha tanta certeza assim - disse Randall, em tom solene.

Lauren lhe lançou um olhar frio, de desaprovação.

- Isso não é hora para histórias de terror - sussurrou ela.

- Por que temos de desenterrar toda essa sujeira! - exclamou Gifford. Era óbvio que ela estava perturbada. Rowan percebia a preocupação de Pierce. Mas ele estava do outro lado do pequeno círculo, longe da mãe. Ryan estava perto dela. Ele segurou seu braço e cochichou alguma coisa no seu ouvido.

Ela vai tentar impedir essa conversa, pensou Rowan.

- O que significa o portal? - perguntou Rowan. - Por que eles sempre se postavam diante dele?

- Eu não gosto de falar nessas coisas - queixou-se Gifford. - Não entendo por que temos de mergulhar no passado toda vez que nos reunimos. Deveríamos estar pensando no futuro.

- Nós estamos falando do futuro - disse Randall. - A moça deveria ser informada de certas coisas.

- Eu gostaria de saber a história da porta - disse Rowan.

- Bem, vão em frente, vocês todos, seus velhotes - disse Felice. - Se é que pretendem dizer alguma coisa agora, depois de todos esses anos em que se omitiram...

- O portal estava relacionado ao pacto e à promessa - disse Fielding. - E foi um segredo transmitido de geração a geração desde os tempos mais remotos.

Rowan olhou de relance para Michael, que estava sentado com os joelhos recolhidos e os braços pousados sobre eles, apenas com os olhos voltados para Fielding. No entanto, mesmo de cima, ela via a expressão de pavor e confusão no seu rosto, a maldita expressão que o dominava sempre que ele falava das visões. Era uma expressão tão atípica que ele parecia ser outra pessoa.

- Nunca ouvi ninguém falar de promessa nenhuma - disse Cecília. - Nem de pacto, nem de portal, ao que me conste.

Peter Mayfair agora se reunia a eles, careca como Fielding, e com os mesmos olhos penetrantes. Na verdade, todos estavam se aproximando, formando uma roda de três a quatro pessoas de fundo. Isaac e Wheatfield se comprimiam por trás de Pierce.

- Isso é porque eles não falavam nisso - explicou Peter, numa voz trêmula e levemente teatral. - Era o segredo deles, e eles não queriam que ninguém soubesse.

- Mas de quem você está falando? Quem eram eles? - perguntou Ryan. - Está falando do meu avô? - Sua voz estava ligeiramente enrolada pela bebida. Ele tomou mais um gole apressado. - Está falando de Cortland?

- Eu não quero... - sussurrou Gifford, mas Ryan fez um gesto para que ela se calasse.

Fielding também mandou Gifford se calar. Na realidade, o olhar que ele lhe lançou foi feroz.

- É claro que Cortland fazia parte deles - disse Fielding, olhando para Peter e sua careca. – E todo mundo sabia.

- Ai, mas isso é uma coisa medonha de se dizer - contestou Magdalene, cheia de raiva. – Eu adorava Cortland.

- Muitos de nós também - disse Peter, furioso. - Eu teria feito qualquer coisa por Cortland, mas Cortland fazia parte deles, sim. Fazia. Assim como seu pai, Ryan.

O velho Pierce fez parte deles pelo menos enquanto Stella estava viva. Da mesma forma que o pai de Randall. Não estou com a razão?

Randall fez com a cabeça um gesto entediado de confirmação, tomando um lento gole do seu bourbon, com o criado escuro passando despercebido enquanto voltava a encher o copo de Randall e derramava em silêncio doses de bourbon dourado nos copos dos outros.

-O que significa fazer parte? -Pierce quis saber. -A vida inteira ouvi isso, faz parte, não faz parte. O que isso significa?

- Nada - respondeu Ryan. - Eles tinham um clube, um clube social.

- Tinham nada - retrucou Randall.

- Tudo isso morreu junto com Stella - disse Magdalene. - Minha mãe era amiga de Stella.

Ela freqüentava aquelas festas. Não havia nada de treze bruxas! Tudo era conversa!

- Treze bruxas? --- perguntou Rowan. Ela sentia a tensão em Michael. Através de uma pequena brecha na roda, podia ver Aaron, que havia voltado as costas para a árvore e olhava para o céu como se não os estivesse ouvindo, mas Rowan sabia que ele estava.

- Faz parte da lenda - explicou Fielding, frio, firme, como se quisesse se distinguir dos que o cercavam. - Parte da história do portal e do pacto.

- Que história? - perguntou Rowan.

- A de que todos se salvariam através do portal e das treze bruxas - disse Fielding, erguendo mais uma vez os olhos para Peter. - Essa era a história e a promessa.

- Era um enigma - disse Randall, abanando a cabeça. - Stella nunca soube ao certo o que significava.

- Que todos se salvariam? - perguntou o jovem Wheatfield. - Vocês querem dizer se salvar, como um cristão se salva?

- Salvos! Aleluia! -- exclamou Margaret Ann, engolindo o que lhe restava no copo e deixando que algumas gotas respingassem no seu vestido. - A família Mayfair vai para o paraíso! Eu sabia que, com todo esse dinheiro, alguém ia acabar dando um jeitinho!

- Você está bêbada, Margaret Ann - cochichou Cecília. - E eu também. - As duas fizeram com que seus copos se tocassem num brinde.

- Naquelas festas, Stella estava tentando reunir as treze bruxas? - perguntou Rowan.

- Estava - respondeu Fielding. - Era exatamente isso o que estava tentando. Ela se intitulava bruxa, da mesma forma que Mary Beth, sua mãe. Ela nunca escondeu nada; dizia que tinha o poder e que via o homem.

- Não vou permitir isso... - interrompeu Gifford, com a voz subindo num tom histérico.

- Por quê? Por que é tão apavorante? - perguntou Rowan, baixinho. - Por que essas não são simplesmente velhas histórias? E quem é o homem?

Silêncio. Todos a estudavam, cada um talvez esperando que o outro falasse. Lauren parecia quase zangada enquanto olhava para Rowan. Lily demonstrava uma leve suspeita.

Eles sabiam que ela os estava enganando.

- Você sabe que não são velhas histórias - disse Fielding, entre dentes.

- Porque eles acreditavam! - respondeu Gifford, com o queixo erguido e os lábios trêmulos.

- Porque as pessoas agiram mal em nome da crença nessas velhas tolices.

- Mas agiram mal, como? - Quis saber Rowan. - Está falando do que Carlotta fez com a minha mãe?

- Estou falando do que Cortland fez - esclareceu Gifford. Ela agora tremia por inteiro, nitidamente à beira de um ataque histérico. - É disso que eu estou falando.

- Olhou furiosa para Ryan, para o filho Pierce e voltou a olhar para Rowan. - E de Carlotta também. Todos traíram sua mãe. Ai, são tantas as coisas que você não sabe.

- Cale-se, Gifford, você bebeu demais - sussurrou Lily. - Vá lá para dentro, Gifford – disse Randall.

Ryan pegou a mulher pelo braço, curvando-se para falar no seu ouvido. Pierce saiu de onde estava e deu a volta para ajudar. Juntos, eles afastaram Gifford do grupo.

Felice cochichava ansiosa com Magdalene, e alguém na periferia da roda estava tentando arrebanhar as crianças para afastá-las dali.

- Mas eu quero saber... - disse uma menininha de avental.

- Eu quero saber - disse Rowan. - O que foi que eles fizeram?

- É, fale-nos de Stella - pediu Beatrice, olhando preocupada para Gifford, que agora estava chorando no ombro de Ryan enquanto ele tentava levá-la mais para longe.

- Eles acreditavam em magia negra, era isso o que faziam - disse Fielding. - E acreditavam nas treze bruxas e no portal, mas nunca descobriram como fazer tudo funcionar.

- Bem, eles achavam que significava o quê? - perguntou Beatrice. - Estou achando tudo isso fascinante. Fale por favor.

- Para você ir contar para todo mundo - disse Randall - como sempre contou.

- E por que não? - retrucou Beatrice. - Alguém vai querer nos queimar na fogueira?

Gifford estava sendo forçada a entrar na casa por Ryan. Pierce fechou as portas envidraçadas atrás deles.

- Não, eu quero saber - insistiu Beatrice, dando um passo adiante e cruzando os braços. - -

Se Stella não sabia o significado, quem sabia?

- Julien - respondeu Peter. - Meu avô. Ele sabia. Sabia e contou para Mary Beth. Ele deixou por escrito, mas Mary Beth destruiu o documento e contou tudo para Stella, mas Stella no fundo nunca entendeu.

- Stella nunca prestava atenção a nada - declarou Fielding.

- Não, nunca a nada mesmo - disse Lily, com tristeza. - Coitada da Stella. Ela achava que tudo na vida eram festas, bebidas ilícitas e aqueles seus amigos desvairados.

- Ela de fato não acreditava em tudo - disse Fielding. - Foi exatamente esse o problema. Ela queria brincar com a história e, quando alguma coisa não dava certo, sentia medo e afogava seu medo no champanhe contrabandeado. Ela viu coisas que teriam convencido qualquer um, mas mesmo assim ela não acreditou no portal, na promessa ou nas treze bruxas até ser tarde demais e Julien e Mary Beth já não estarem mais vivos.

- Quer dizer que ela interrompeu a cadeia de informações? - perguntou Rowan. - É isso o que estão dizendo. Eles lhe haviam passado os segredos junto com o colar e com todo o resto?

- O colar nunca foi tão importante assim - disse Lily. - Carlotta dava importância demais a ele. A questão é só que não se pode tirar o colar... bem, não se deve tirar o colar de quem o herdar. O colar é seu, e Carlotta tinha a idéia de que, se guardasse o colar, daria um fim a todos os acontecimentos estranhos. Ela transformou isso em mais uma das suas batalhas pequenas e inúteis.

- E Carlotta sabia - disse Peter, olhando com um pouco de desdém para Fielding. – Ela conhecia o significado do portal e das treze bruxas.

- Como você sabe isso? - Era Lauren falando de uma pequena distância. - Sem dúvida, Carlotta nunca falou em nada parecido.

- É claro que não. Por que ela o faria? - retrucou Peter. - Sei porque Stella se queixou com a minha mãe. Carlotta sabia e Carlotta não queria ajudá-la. Stella estava procurando cumprir a velha promessa. E por sinal, ela não tinha nada a ver com salvações e aleluias. A questão não era essa absolutamente.

- Quem disse? -- indagou Fielding.

- Sou eu quem diz.

- Ora, o que você sabe sobre tudo isso? - perguntou Randall, baixinho, com um traço de sarcasmo na voz. - O próprio Cortland me disse que, quando se reunissem as treze bruxas, o portal entre os mundos se abriria.

- Entre os mundos! -- debochou Peter. - E o que isso tem a ver com a salvação é o que eu gostaria de saber. Cortland não sabia de nada. Nada além do que Stella sabia. Com Cortland, foi tudo em retrospectiva. Se ele tivesse conhecimento, teria ajudado Stella. Cortland estava lá. Eu também.

- Lá onde? - perguntou Fielding, irônico.

- Você não está falando das festas de Stella - disse Lily.

- Stella estava tentando descobrir o significado quando dava aquelas festas - disse Peter. – E eu estava presente.

- Eu nunca soube disso - comentou Magdalene. - Nunca soube que você compareceu.

- Como você poderia ter estado lá? - perguntou Margaret Ann. - Isso foi há cem anos.

- Não, não foi, não. Foi em 1928, e eu estava lá - disse Peter. - Eu tinha doze anos quando fui, e meu pai ficou furioso com minha mãe por ter permitido, mas eu fui. E Lauren também. Lauren estava com quatro anos.

Lauren confirmou com um ínfimo gesto da cabeça. Seus olhos pareciam sonhadores, como se ela estivesse se lembrando, mas não participasse do drama do momento atual.

- Stella escolheu treze de nós - disse Peter - com base nos nossos poderes, sabe, nossos velhos dons paranormais, o de ler a mente, o de ver espíritos e o de mover a matéria.

- E eu imagino que você possa fazer tudo isso - escarneceu Fielding. - É por isso que eu sempre o venço no pôquer.

Peter abanou a cabeça.

- Não havia ninguém que pudesse usar os dons como Stella. A não ser Cortland, talvez, mas até mesmo Cortland era mais fraco do que Stella. Depois, o velho Pierce, esse tinha o dom, tinha mesmo, mas era jovem e se encontrava totalmente dominado por Stella. O resto de nós era apenas o melhor que ela conseguiu reunir. Era por isso que ela precisava de Lauren. Lauren tinha um dom muito forte, e Stella não queria desperdiçar nenhuma opor unidade. Estávamos todos reunidos na casa, e o nosso objetivo era o de abrir o portal. E quando formávamos o círculo e começávamos a visualizar o objetivo, ele devia aparecer, e devia se materializar e ficar conosco.

E não seria mais um fantasma. Estaria entrando no nosso próprio mundo.

Um pequeno silêncio caiu sobre eles. Beatrice olhava fixamente para Peter, como se ele próprio fosse o fantasma. Fielding também examinava Peter, com aparente incredulidade e talvez mesmo algum sarcasmo. A expressão de Randall era impassível por trás das suas inúmeras rugas.

- Rowan não sabe do que vocês estão falando - disse Lily.

-Não, e eu acho que devíamos parar com tudo isso - acrescentou Anne Marie.

- Ela sabe - disse Randall, olhando direto para Rowan.

- O que você quis dizer com essa história de que ele entraria para o nosso próprio mundo? - perguntou Rowan, olhando para Peter.

- O que eu quis dizer é que ele não seria mais um espírito. Não apenas algo que aparece, mas que permanece, que é... físico.

Randall estava examinando Rowan, como se houvesse alguma coisa que ele não pudesse determinar com exatidão.

Fielding deu uma risadinha seca, uma risada de superioridade.

- Stella deve ter inventado essa parte. Não foi isso o que meu pai me disse. O que ele disse foi que se salvariam. Que todos os que fizessem parte do pacto se salvariam.

Eu me lembro de ter ouvido quando ele falava com a minha mãe.

- O que mais seu pai lhe contou? - Perguntou Rowan.

- Ai, mas você não está acreditando nisso tudo! - exclamou Beatrice. - Pelo amor de Deus, Rowan.

- Não leve essas coisas a sério, Rowan - pediu Anne Marie.

- O caso de Stella foi uma tristeza, querida - disse Lily.

Fielding sacudiu a cabeça.

- Que se salvariam, foi isso o que meu pai disse. Todos seriam salvos quando o portal se abrisse. E era um enigma, e Mary Beth não sabia o significado verdadeiro da mesma forma que qualquer outra pessoa. Carlotta jurava tê-lo descoberto, mas isso não era verdade. Ela só queria atormentar Stella. Creio que riem o próprio Julien soubesse.

- Vocês conhecem as palavras do enigma? - perguntou Michael.

Fielding se voltou para a esquerda e olhou para Michael ali embaixo. De repente, todos pareceram perceber Michael e concentrar nele sua atenção. Rowan escorregou a mão mais para perto do seu pescoço, segurando-o com carinho e aproximando as pernas dele, como se o abraçasse e o declarasse parte de si mesma.

- É, quais eram as palavras do enigma? - insistiu Rowan.

Randall olhou para Peter, e os dois olharam para Fielding, que mais uma vez abanou a cabeça.

- Eu nunca soube. Nunca ouvi falar que houvesse palavras específicas. Era só que quando houvesse treze bruxas, o portal afinal se abriria. E na noite em que Julien morreu, meu pai disse, "agora é quê eles nunca vão conseguir as treze, não sem Julien.”

- E quem lhes falou do enigma? Teria sido o homem? - perguntou Rowan.

Mais urna vez, todos olharam espantados para ela. Até mesmo Anne Marie pareceu apreensiva e Beatrice, confusa, corno se alguém houvesse cometido uma terrível transgressão das normas de etiqueta. Lauren a contemplava de um modo estranho.

- Ela nem mesmo sabe do que estamos falando - declarou Beatrice.

- Acho que devíamos esquecer isso tudo - sugeriu Felice.

- Por quê? por que deveríamos esquecer? - contestou Fielding. - Vocês não acham que o homem aparecerá para ela como apareceu para todas as outras? Qual é a diferença?

- Você vai apavorá-la! - afirmou Cecília. - E para ser sincera você está me apavorando.

- Foi o homem quem lhes ensinou o enigma? - insistiu Rowan.

Ninguém respondeu.

0 que ela poderia dizer para fazer com que eles voltassem a falar, para fazer com que eles revelassem o conhecimento que possuíam?

- Carlotta me falou do homem - disse Rowan. -Não tenho medo dele.

Como o jardim parecia tranqüilo. Todos os parentes estavam reunidos na roda, à exceção de ryan, que havia levado Gifford para dentro. Até mesmo Pierce estava de volta, parado logo atrás de Peter. Estava quase na hora do crepúsculo. E os criados haviam desaparecido como se soubessem que sua presença não era desejada.

Anne Marie apanhou uma garrafa de uma mesa próxima e encheu seu copo com um gorgolejo alto. Alguém mais estendeu a mão para pegar uma garrafa. E mais um. Mas os olhos de todos permaneciam fixos em Rowan. - Vocês todos querem que eu tenha medo? - perguntou ela. - Não, claro que não - respondeu Lauren.

- Não mesmo! - garantiu Cecília. - Acho que esse tipo de conversa poderia atrapalhar tudo.

-...numa casa grande e sombria como aquela.

- ...bobagem, se quer saber a minha opinião.

Randall abanou a cabeça; Peter disse não num sussurro; mas Fielding apenas olhava para ela.

Mais uma vez, caiu um silêncio como um manto de neve sobre o grupo. Uma escuridão farfalhante parecia estar se condensando sob as pequenas árvores. Uma luz se acendeu do outro lado do gramado, por trás das pequenas vidraças das portas-janelas.

- Alguém aqui viu o homem algum dia? - perguntou Rowan.

O rosto de Peter estava solene e indecifrável. Ele não pareceu perceber quando Lauren serviu mais bourbon no seu copo.

- Puxa, como eu queria tê-lo visto - disse Pierce -uma vez que fosse! - Eu também! – disse Beatrice. - Eu nem pensaria em tentar me livrar dele. Eu conversaria com ele...

- Ora, Bea, cale a boca - disse Peter, de repente. - Você não sabe do que está falando.

Nunca sabe!

- E eu imagino que você saiba - retrucou Lily, com aspereza, numa óbvia proteção de Bea. - Venha para cá, Bea, sente-se com as mulheres. Se vamos ter uma guerra, fique do lado certo.

Beatrice se sentou na grama ao lado da cadeira de Lily.

- Seu velho idiota, eu o odeio - disse ela a Peter. - Eu queria ver o que você faria se um dia visse o homem.

Ele a ignorou com uma sobrancelha erguida e tomou mais um gole. Fielding sorriu, zombeteiro, enquanto resmungava alguma coisa entre dentes.

- Eu estive lá em First Street - disse Pierce - e fiquei parado horas a fio ali pela cerca, procurando vê-lo. Se ao menos tivesse tido um vislumbre...

- Pelo amor de Deus! - exclamou Anne Marie. - Como se você não tivesse nada melhor a fazer.

- Não deixe que sua mãe saiba disso - recomendou Isaac.

- Vocês todos acreditam nele - disse Rowan. - Sem dúvida, alguns de vocês o viram.

- O que a faria pensar assim? - cogitou Felice, risonha.

- Meu pai diz que é uma fantasia, uma história da carochinha - declarou Pierce.

- Pierce, o melhor que você tem a fazer - disse Lily - é parar de atei tudo o que sai da boca do seu pai como se fossem as santas escrituras, porque não é.

- Tia Lily, a senhora o viu? - perguntou Pierce.

- Vi, sim, Pierce - respondeu Lily em voz baixa. - Vi, sim.

Os outros demonstraram franca surpresa, à exceção dos três anciãos, q se entreolharam. A mão esquerda de Fielding tremulou, como se ele quisesse fazer um gesto, falar, mas não o fez.

- Ele existe - disse Peter, em tom solene. - Existe tanto quanto relâmpagos. Tanto quanto o vento. - Ele se virou e olhou firme para o jovem Pierce e depois para Rowan, como se estivesse exigindo sua total atenção confiança nele. Seus olhos, então, pousaram em Michael. - Eu o vi. Eu o na noite em que Stella nos reuniu. Também o vi depois disso. Lily o vi Lauren também. Você, Felice, também; eu sei que viu. E perguntem Carmen. Por que não se abre, Felice? E você, Fielding? Você o viu na noite em que Mary Beth morreu em First Street. Você sabe que o viu. Quem dente nós não viu o homem? Só os mais novos. - Ele olhou para Rowan. - Pergunte. Todos irão lhe dizer.

Um murmúrio alto percorreu o perímetro da roda porque muitos dos mais novos, Polly, Clancy, Tim e outros que Rowan não conhecia, não haviam visto o fantasma, e não sabiam se acreditavam ou não no que estavam ouvindo. A pequena Mona, com a fita no cabelo, de repente forçou passagem até a primeira fileira da roda, com Jennifer,

mais alta do que ela, logo atrás.

- Conte-me o que viu - disse Rowan, olhando diretamente para Peter - Não está querendo dizer que ele entrou pela porta na noite em que Stell reuniu vocês todos.

Peter não se apressou. Olhou ao seu redor, com os olhos se demorando em Margaret Ann, depois em Michael e afinal em Rowan. Ele ergueu o copa Acabou de beber e só então falou.

- Ele estava lá, uma presença resplandecente, tremeluzente, e durante aqueles breves instantes eu poderia ter jurado que ele era tão sólido quanto qualquer homem de carne e osso que eu tenha visto. Eu o vi se materializar Senti o calor quando isso aconteceu. E ouvi seus passos. É, eu ouvia os seu pés que batiam no piso daquele corredor da frente enquanto ele caminhava na nossa direção. Ele ficou ali parado, tão real quanto você ou eu, e olhou par. cada um de nós. - Ele mais uma vez ergueu o copo, tomou mais um gole i o baixou enquanto seus olhos percorriam a pequena platéia. Deu um suspiro - Depois ele desapareceu, como sempre acontecia. O calor novamente. O cheiro de fumaça, e a brisa correndo pela casa afora, afastando as próprias cortinas das janelas. Mas ele não estava mais lá. Ele não conseguia permanecer. E nós não éramos fortes o suficiente para ajudá-lo a permanecer. Éramos treze, sim, treze bruxas, como dizia Stella. E Lauren só com quatro anos de idade! A pequena Lauren. Mas não tínhamos a mesma garra de Julien ou de Mary Beth, ou mesmo da velha vovó Marguerite, de Riverbend. E não conseguimos. E Carlotta? Carlotta, que era mais forte do que Stella, e vocês ouçam o que digo, porque era, sim, Carlotta não quis ajudar. Ficou deitada na cama no andar de cima, com os olhos fixos no teto, a rezar seu rosário. E depois de cada ave-maria, ela dizia, "Mande-o de volta para o inferno, mande-o de volta para o inferno!" E seguia adiante para a próxima ave-maria.

Ele fechou a boca e franziu o cenho para o copo vazio, balançando-o em silêncio para que os cubos de gelo girassem. Depois, seus olhos percorreram a roda, cobrindo todos, até mesmo a pequena Mona, com seus cabelos ruivos.

- Que fique registrado que Peter Mayfair o viu - declarou Peter, endireitando-se, com uma sobrancelha novamente erguida. - Lauren e Lily podem falar por si mesmas. Randall também. Mas quero que fique registrado que eu o vi. E isso vocês podem contar para os seus netos.

Mais uma pausa. A escuridão se adensava. E de muito longe vinha o zunir das cigarras.

Nenhuma brisa chegava ali. A casa agora estava cheia de uma luz amarela em todas as suas numerosas janelas pequenas e perfeitas.

- É - disse Lily com um suspiro. - É melhor que você saiba logo, minha querida. – Seus olhos se fixaram em Rowan, e ela sorriu. - Ele está lá. E todos nós o vimos muitas vezes desde aquela noite, embora talvez não da mesma forma que o vimos então, não por tanto tempo, nem com tanta nitidez.

- A senhora estava lá também? - perguntou Rowan.

- Estava. Mas não foi só naquela vez, Rowan. Nós o vimos na velha varanda telada com Deirdre. - Ela ergueu os olhos até Lauren. - Nós o vimos quando passamos pela casa. Às vezes nós o vimos quando não queríamos.

- Não se apavore com ele, Rowan - disse Lauren, com um tom de superioridade.

- Ah, agora vocês vão lhe dizer isso - protestou Beatrice. - Seus monstros supersticiosos!

- Não deixe que eles a afastem da casa - disse Magdalene, rapidamente.

- Não, não nos deixe fazer isso - insistiu Felice. - E se quer um conselho, esqueça as lendas.

Esqueça essas velhas tolices das treze bruxas e do portal. E esqueça que ele existe! Ele é só um fantasma, e nada mais. E você pode achar que isso parece estranho, mas no fundo não é.

- Ele não pode lhe fazer nada - disse Lauren, com um sorriso sarcástico.

- Não, não pode, - acrescentou Felice. - Ele é como a brisa.

- E um fantasma, - disse Lily. - Isso é tudo o que ele é, e tudo o que sempre será.

- E quem sabe? - cogitou Cecília. - Talvez ele não esteja mais lá. - Todos olharam fixamente para ela. - Bem, ninguém o viu desde a morte de Deirdre.

Uma porta bateu com violência. Ouviu-se um ruído tilintante de vidro caindo e uma movimentação na parte externa da roda. As pessoas se mexiam, saíam da frente. Gifford abriu caminho até o centro, com o rosto molhado e manchado, as mãos trêmulas.

-Não pode fazer nada! Não pode machucar ninguém! É isso o que estão lhe dizendo? Não pode fazer nada! Ele matou Cortland, foi só isso o que fez! Depois que Cortland violentou sua mãe! Você sabia disso, Rowan?

- Cale-se, Gifford! - rugiu Fielding.

- Cortland era seu pai - berrou Gifford. - Pois sim, que ele não pode fazer nada! Expulse-o, Rowan! Volte sua força contra ele e o expulse! Mande exorcizar a casa! Queime-a se for necessário... Destrua a casa num incêndio!

Um clamor de protesto veio de todas as direções, com vagas expressões de indignação e desdém. Ryan apareceu e procurou novamente conter Gifford. Ela se voltou e lhe deu um tapa no rosto. Exclamações de espanto por toda parte. Pierce estava obviamente mortificado e sem saber o que fazer.

Lily se levantou e deixou o grupo, assim como Felice, que quase caiu com a pressa. Anne Marie se ergueu do chão com esforço e ajudou Felice a se afastar. Mas os outros ficaram firmes, até mesmo Ryan, que simplesmente limpou o rosto com o lenço, como se quisesse recuperar sua compostura enquanto Gifford continuava ali parada, com os punhos cerrados, a boca trêmula. É claro que Beatrice estava louca para ajudar mas não sabia o que fazer.

Rowan se levantou e caminhou na direção de Gifford.

- Gifford, preste atenção. Não tenha medo. E com o futuro que nos importamos, não com o passado. - Ela segurou Gifford pelos dois braços, e Gifford, relutante, a encarou. - Eu vou fazer o que for bom - prosseguiu Rowan -, o que for certo e o que for bom e certo para a família. Você está entendendo o que eu estou dizendo?

Gifford começou a soluçar, com a cabeça inclinada como se seu pescoço fosse fraco demais para sustentá-la. O cabelo lhe caía nos olhos.

- Só gente má pode ser feliz naquela casa - disse ela. - E eles eram maus. Cortland era mau!

- Tanto Pierce quanto Ryan a cercavam com os braços. Ryan estava começando a se irritar. Mas Rowan não a soltava.

-Bebeu demais -- disse Cecília. Alguém havia ligado as luzes do pátio. Gifford pareceu desmaiar de repente, mas Rowan ainda a segurava.

- Não, Gifford. ouça o que digo, por favor - disse Rowan, mas na verdade estava se dirigindo aos outros. Ela viu Lily parada bem perto dali e Felice, ao seu lado.

Viu os olhos de Beatrice fixos nela. E Michael estava em pé, olhando para ela, atrás da cadeira de Fielding.

- Estive ouvindo vocês todos com atenção e aprendendo com vocês. Mas tenho algo a dizer.

A forma de se sobreviver a esse estranho espírito e a suas maquinações consiste em encará-lo dentro de uma perspectiva maior. Ora, a família e a própria vida fazem parte dessa perspectiva. E nunca se deve permitir que ele diminua a família ou diminua as possibilidades da vida. Se ele existe, como vocês dizem, então seu lugar é nas trevas.

Randall e Peter a observava m atentamente. Lauren também. Aaron estava bem perto de Michael, e ele também estava escutando. Só Fielding era frio e irônico, e não olhava para Rowan. Gifford a contemplava como atordoada.

Acho que Julien e Mary Beth sabiam disso. Pretendo seguir seu logo. Se alguma criatura aparecer na minha frente saindo das sombras de Street, não importa o quanto possa ser misteriosa, ela não irá ofuscar o sol maior, a luz maior. Vocês, sem dúvida, estão me acompanhando. GliIford parecia quase enfeitiçada. E muito lentamente Rowan percebeu que esse momento havia se tornado singular. Percebeu como suas palavras eram estranhas; e o quanto ela deveria ter parecido estranha aos olhos deles, fazendo esse discurso extraordinário enquanto segurava pelos braços aquela mulher frágil, histérica. Na realidade, todos tinham os olhos fixos nela como se eles também tivessem sido enfeitiçados. Com delicadeza, ela soltou Gifford, que deu um passo para trás e caiu nos de Ryan, embora seus olhos continuassem dilatados, vazios e fixos em Rowan.

Eu estou assustando vocês, não estou? - perguntou Rowan. Não, não, tudo está bem agora - disse Ryan.

É, está tudo bem - confirmou Pierce.

GifIford, porém, estava calada. Todos se sentiam confusos. Quando i olhou para Michael, viu a mesma expressão atordoada e, por trás dela, na aflição turbulenta e sinistra. Beatrice sussurrou umas desculpas por tudo que havia acontecido. Ela se orou e levou Gifford embora. Ryan foi com elas. E Pierce ficou imóvel, olhou ao redor, aparentemente confusa por um instante, e depois pediu a Hercules para por favor trazer seu casaco.

Randall, Fielding e Peter ficaram naquele sossego. Outros se demoravam nas sombras. A menininha com a fita olhava de longe, com seu rosto redondo e parecendo uma chama na escuridão. A criança mais alta, Jenn, parecia estar chorando. De repente, Peter segurou firme a mão de Rowan.

Foram sábias as suas palavras. Estaria desperdiçando a vida se se deixasse enredar nisso tudo.

Isso mesmo - acrescentou Randall. - Foi isso o que aconteceu com O mesmo com Carlotta. Ela desperdiçou a vida! A mesma história. - e estava ansioso, com uma pressa excessiva para se retirar. Ele se virou de mansinho sem se despedir.

Vamos, rapaz, ajude-me a me levantar - disse Fielding a Michael. - . acabou e, por sinal, parabéns pelo casamento. Talvez eu viva o suficiente comparecer à cerimônia.

E, por favor, não convidem o fantasma. Michael parecia desorientado. Olhou para Rowan, depois para o velho e com muita delicadeza, ajudou o velho a ficar em pé. Em seguida, olhou Rowan novamente. A confusão e o medo estavam lá como antes.

Alguns dos mais novos se aproximaram para dizer a Rowan que não ficasse desanimada com toda essa loucura da família Mayfair. Anne Marie lhe implorou que prosseguisse com seus planos. Uma leve brisa chegou afinal, com apenas um sopro de frescor.

- Todo mundo vai morrer de tristeza se vocês não se mudarem para a casa - disse Margaret Ann.

- Vocês não vão desistir dela, certo? - perguntou Clancy.

- Claro que não - disse Rowan, com um sorriso. - Que idéia absurda!

Aaron estava ali parado, observando Rowan, impassível. E Beatrice voltou com uma enxurrada de desculpas por Gifford, implorando a Rowan que não se perturbasse.

Os outros estavam voltando. Traziam suas capas de chuva, suas bolsas, o que tivessem ido apanhar. Já era noite fechada agora, e o ar estava fresco, deliciosamente fresco. A festa havia acabado.

Durante trinta minutos, os primos se despediram, todos dando os mesmos conselhos. Fique, não vá. Restaure a casa. Esqueça essas histórias antigas. E Ryan pediu desculpas por Gifford e pelas coisas horríveis que ela havia dito. Sem dúvida, Rowan não devia levar a sério as palavras de Gifford. Rowan fez um gesto de não estar preocupada com isso.

- Obrigada, muito obrigada por tudo, Ryan, e não se preocupe. Eu queria conhecer as velhas histórias. Eu queria saber o que família andava dizendo. E agora eu sei.

-Não há fantasma nenhum por lá - disse Ryan, encarando-a abertamente.

Rowan não se incomodou em responder.

- Vocês serão felizes em First Street - disse Ryan. - Vão mudar a imagem. – Quando Michael se aproximou de Rowan, Ryan lhe deu um aperto de mãos.

Voltando-se para ir embora, Rowan viu que Aaron estava junto ao portão da frente, conversando logo com Gifford e Beatrice. Gifford parecia perfeitamente acalmada. Ryan esperava paciente, uma silhueta à porta da frente da casa.

- Não se preocupe absolutamente com nada - dizia Aaron a Gifford, no seu fascinante sotaque britânico.

De repente, Gifford o abraçou. Ele retribuiu o abraço com elegância e beijou sua mão ao se afastar. Beatrice foi somente um pouco menos efusiva. E então as duas recuaram, Gifford, com o rosto pálido e exausto, quando a limusine preta de Aaron veio se arrastando até o meio - fio.

- Não se preocupe com nada disso, Rowan - disse Beatrice, animada. - Almoço amanhã, não vá se esquecer. E esse casamento será lindíssimo.

- Tudo bem, Bea - respondeu Rowan, sorrindo.

Rowan e Michael se sentaram no longo banco traseiro enquanto Aaron ocupava seu lugar preferido, de costas para o motorista. E o automóvel se afastou devagar.

O ar muito frio foi uma bênção para Rowan. A umidade contínua e a atmosfera do jardim ao crepúsculo pareciam estar grudadas nela. Ela fechou os olhos por um instante e respirou fundo.

Quando abriu os olhos novamente, viu que estavam na estrada de Metairie, passando velozes pelos novos cemitérios da cidade, que pareciam sinistros e sem memória através dos vidros escurecidos do veículo. O mundo sempre dava uma impressão tão medonha através dos vidros escuros de uma limusine, pensou Rowan. A pior escuridão imaginável. De repente, ela lhe dava nos nervos.

Rowan se voltou para Michael e, ao ver de novo aquela terrível expressão no seu rosto, ficou impaciente. Ela só havia ficado animada com as suas descobertas. Suas decisões continuavam as mesmas. Na realidade, ela considerava toda a experiência fascinante.

- As coisas não mudaram - disse ela. - Mais cedo ou mais tarde, ele virá; ele lutará comigo pelo que quer; e sairá perdendo. Tudo o que fizemos foi conseguir mais informações sobre o número e o portal, e era isso o que queríamos. - Michael não respondia. - Mas na verdade nada mudou - insistiu ela. - Absolutamente nada. Mesmo assim, Michael nada dizia.

- Não fique cismado - disse Rowan, asperamente. - Você pode ter certeza de que eu não vou reunir nenhum conciliábulo de treze bruxas. Tenho coisas muito mais importantes do que isso a fazer. E não tive a intenção de assustar ninguém ali presente. Acho que falei errado, que disse as palavras erradas.

- Eles estão enganados - disse Michael, como que sussurrando. Olhava fixamente para Aaron, que estava sentado, impassível, a observá-los. E ela podia garantir, pela voz de Michael, que ele estava extremamente perturbado.

- O que você está querendo dizer?

- Ninguém precisa reunir treze bruxas - disse Michael, com os olhos azuis refletindo a luz dos carros que passavam enquanto olhava para ela. - Não era essa a solução do enigma. Eles se enganaram porque não conhecem a própria história.

- Do que você está falando?

Ela nunca o havia visto tão ansioso desde o dia em que espatifara os frascos. Sabia que, se segurasse seu pulso, sentiria como ele estava acelerado. Ela odiava tudo isso. Estava vendo o sangue latejando no rosto de Michael.

- Michael, pelo amor de Deus!

- Rowan, conte suas antepassadas! A criatura esperou por treze bruxas, desde o tempo de Suzanne até o presente, e você é a décima terceira. Basta contar. Suzanne, Deborah e Charlotte; Jeanne Louise, Angélique e Marie Claudette; seguidas na Louisiana por Marguerite, Katherine e Mary Beth. Depois vêm Stella, Antha, Deirdre e, afinal, você, Rowan! A décima terceira é simplesmente a mais forte, Rowan, a que pode ser o portal para a travessia dessa criatura. Você é o portal, Rowan. É por isso que havia doze gavetas e não treze no jazigo. A décima terceira é o portal.

- Está bem - disse ela, num enorme esforço para não se impacientar, erguendo as mãos num gesto delicado de súplica. - E nós sabíamos disso antes, não sabíamos? E o diabo previu isso. Ele vê longe, como lhe disse, ele vê o número treze, mas ele não vê tudo. Não vê quem eu sou.

- Não, não foram essas as palavras dele - disse Michael. - Ele disse que vê o final! Disse também que eu não poderia impedir você, nem a ele. Disse que sua paciência era como a do Todo-Poderoso.

- Michael - atalhou Aaron. - Essa criatura não tem nenhuma obrigação de lhe dizer a verdade! Não caia nessa armadilha. Ele brinca com as palavras. É um mentiroso.

- Eu sei, Aaron. O diabo mente. Eu sei! Eu ouvia isso desde quando era menino pequeno. Mas, por Deus, o que é que ele está esperando? Por que nos está sendo permitido seguir adiante, um dia após o outro, enquanto ele espera a ocasião propícia? Isso está me deixando louco.

Rowan estendeu a mão até segurar seu pulso, mas quando Michael percebeu que ela estava contando suas pulsações, ele se afastou.

- Quando eu precisar de um médico, eu falo, está bem?

Ela ficou magoada e recuou, voltando-se para o outro lado. Estava com raiva de si mesma por não conseguir ser paciente. Detestava o fato de ele estar tão perturbado.

E se odiava por estar tão angustiada e receosa.

Ocorreu-lhe que, todas as vezes que ele reagia dessa forma, estava fazendo o jogo das forças invisíveis que procuravam controlá-los; que talvez ele houvesse sido escolhido para suas brincadeiras por ser manipulável com tanta facilidade. Mas seria terrível dizer uma coisa dessas. Ele se sentiria insultado e magoado, e ela não suportava vê-lo magoado. Ela não tolerava vê-lo enfraquecido.

Ficou ali, derrotada, olhando para as mãos pousadas inertes no colo. E o espírito havia dito, "Eu serei carne quando você estiver morto". Ela quase ouvia as batidas do coração de Michael. Embora sua cabeça estivesse virada para o outro lado, ela sabia que ele estava sentindo uma tontura, até mesmo um enjôo. Quando você estiver morto. Seu sexto sentido lhe dizia que ele era saudável, forte, vigoroso como um homem com a metade da sua idade, mas lá estavam novamente os sintomas de um estresse enorme a deixá-lo devastado.

Meu Deus, como tudo havia acabado mal, toda a experiência. Como os segredos do passado haviam envenenado a festa toda. Não era o que ela queria, não, muito pelo contrário. Talvez tivesse sido melhor se eles não tivessem dito nada. Se tivessem seguido a recomendação de Gifford, continuando naquele sonho etéreo e luminoso, a falar da casa e do casamento.

- Michael - disse Aaron, com sua voz tipicamente tranqüila. - Ele provoca e mente. Que direito ele tem de fazer profecias? E que objetivo ele poderia ter a não ser o de, com suas mentiras, tentar fazer cumprir suas profecias.

- Mas onde é que ele está? - perguntou Michael. - Aaron, pode ser que eu esteja me agarrando a coisas ínfimas, mas naquela primeira noite, quando eu fui até a casa, ele teria falado comigo se você não estivesse ali? Por que ele apareceu só para sumir como fumaça?

- Michael, eu poderia dar diversas explicações para cada vez que ele apareceu. Mas não tenho certeza de estar com a razão. O importante é manter uma trajetória equilibrada, perceber que ele é um trapaceiro.

- Isso mesmo - disse Rowan.

- Meu Deus, que espécie de brincadeira é essa? - sussurrou Michael. - Eles me dão tudo o que sempre quis, a mulher que eu amo, minha cidade natal de volta, a casa com que sonhava quando era menino. Nós queremos ter um filho, Rowan e eu! Que tipo de brincadeira é essa? Ele fala, e os outros que me procuraram se calam. Meu Deus, se eu ao menos perdesse essa sensação de que tudo foi planejado, como Townsend disse no seu sonho, tudo planejado. Mas quem está planejando?

- Michael, você tem de se controlar- disse Rowan. - Tudo está saindo maravilhosamente bem, e fomos nós que conseguimos isso. Tudo vai às mil maravilhas desde a morte da velha. Você sabe, às vezes eu acho que estou fazendo o que minha mãe teria querido.

Isso parece absurdo? Acho que estou fazendo aquilo com que Deirdre sonhou todos aqueles anos.

Não houve resposta.

- Michael, você não ouviu o que eu disse aos outros? Você não acredita em mim?

- Só me prometa uma coisa, Rowan - disse ele, segurando sua mão e enfiando os dedos entre os dela. - Prometa que não vai guardar segredo se você vir a criatura. Você vai me contar. Não vai me esconder nada.

- Meu Deus, Michael, você está parecendo um marido ciumento.

-Você sabe o que aquele velho disse? -perguntou Michael. -Quando eu o ajudei a entrar no carro?

- Você está falando de Fielding?

- E. Ouça o que ele disse. "Tenha cuidado, meu rapaz." O que será que ele quis dizer com isso?

-Ele que vá para o inferno por dizer uma coisa dessas -murmurou Rowan. De repente ela estava furiosa. Livrou-se da mão de Michael. - Quem ele pensa que é, velho filho da mãe! Como ele ousou dizer isso para você! Ele não virá ao nosso casamento. Ele não vai poder passar pelo nosso portão da frente... - Ela parou, engasgando com as palavras. A raiva era forte demais. Sua confiança na família havia sido total. Ela só estava absorvendo tudo aquilo, aquele amor, e agora se sentia como se Fielding a houvesse apunhalado. E o pior era que estava chorando, e não tinha um lenço.

Tinha vontade... de dar um tapa em Michael. Mas era o velho que ela gostaria de atingir. Que audácia!

Michael tentou segurar sua mão novamente. Ela o repeliu. Por um instante, sentiu tanta raiva que não conseguia nem pensar. E estava furiosa por estar chorando.

- Tome aqui, Rowan, por favor- disse Aaron, pondo o lenço na sua mão.

Ela mal foi capaz de agradecer, baixinho. Usou o lenço para cobrir os olhos.

- Desculpe, Rowan - disse Michael.

- Que vá para o inferno você também, Michael! Você devia era fazer frente a eles. Você devia parar de girar como uma barata tonta cada vez que se encaixa mais um pedaço do quebra-cabeça. Não foi a Santa Virgem Maria que você viu lá nas visões! Eram só eles e todas as suas trapaças.

- Não, isso não é verdade.

Ele parecia triste e pesaroso, além de totalmente inexperiente. Seu coração se apertou ao ouvir o que ele dizia, mas ela não cedeu. Estava com medo de dizer o que realmente pensava: Ouça, eu amo você, mas já lhe ocorreu que o seu papel nisso tudo foi só o de garantir que eu voltasse, que eu ficasse e que eu tivesse um filho para herdar o legado? Esse espírito podia ter armado seu afogamento, seu salvamento, as visões, tudo. E foi por isso que Arthur Langtry lhe apareceu. Foi por isso que ele lhe deu o aviso para que você se afastasse antes que fosse tarde.

Ela ficou ali, refreando essas palavras, envenenada por elas, esperando que não fossem a verdade e sentindo medo.

- Por favor, parem com isso - disse Aaron com delicadeza. - O velho foi um pouco bobo, Rowan. - Sua voz era como uma melodia tranqüilizante, a extrair a tensão dela.

- Fielding queria se sentir importante. Foi uma competição de bravatas entre os três: Randall, Peter e Fielding. Não seja rigorosa com ele. Ele está simplesmente... velho demais. Acredite em mim, eu sei. Eu mesmo já estou quase chegando lá. Ela limpou o nariz e olhou para Aaron. Ele estava sorrindo, e ela sorriu também.

- Eles são boas pessoas, Aaron? O que você acha? - Ela estava ignorando Michael de propósito por enquanto.

- ótimas pessoas, Rowan. Muito melhores do que a maioria, minha cara. E eles a amam.

Eles a adoram. O velho a ama. Você é a coisa mais interessante que aconteceu a ele nos últimos dez anos. Os outros não o convidam muito. Ele estava saboreando a atenção. E é claro que, apesar de todos os seus segredos, eles não sabem o que você sabe.

- Você tem razão - disse ela, baixinho. Sentia-se agora exausta e péssima. As explosões emocionais com ela nunca provocavam catarse. Elas sempre a deixavam abalada e infeliz.

- Está bem - disse ela. Eu até o convidaria a me levar ao altar, só que tenho em mente um outro amigo muito querido. - Ela enxugou os olhos mais uma vez, com o lenço dobrado, e secou os lábios. - Estou falando de você, Aaron. Sei que está muito em cima da hora, mas você vai querer ir até o altar comigo?

-Querida, seria uma honra. Nada me daria maior prazer. -Ele segurou sua mão com firmeza. - Agora não pense mais naquele velho bobo.

-- Obrigada, Aaron - disse ela, recostando-se e respirando fundo antes de se voltar para Michael. Na verdade, ela o estivera deixando de lado deliberadamente, e agora de repente sentia uma pena imensa. Ele parecia tão abatido e tão pacífico. - Bem, você já se acalmou ou será que teve um ataque do coração? Está terrivelmente calado.

Ele riu baixinho, animando-se imediatamente. Seus olhos eram de um azul tão brilhante quando ele sorriu.

- Sabe, quando eu era criança - disse ele, pegando novamente a sua mão -, eu costumava pensar que seria maravilhoso ter um fantasma na família! Eu costumava desejar conseguir ver um! Eu pensava, ah, viver numa casa mal-assombrada, não seria fantástico!

Era o velho Michael novamente, alegre e forte, embora tivesse algumas arestas brutas. Ela se inclinou e deu um beijo no seu rosto um pouco áspero. - Desculpe-me por ter ficado zangada.

- Desculpe-me, você também, querida. Lamento mesmo. Aquele velho não tinha nenhuma intenção má. Todos eles têm uma pequena loucura. Acho que é o sangue irlandês.

Não tive muito contato com irlandeses da gema nos últimos anos. Acho que eles são tão malucos quanto todos os outros.

Havia um pequeno sorriso no rosto de Aaron a observá-los, mas agora eles estavam todos abalados e cansados. Essa conversa havia exaurido os seus últimos resquícios de vigor.

Pareceu a Rowan que caía mais uma vez uma escuridão. Se ao menos o vidro das janelas não fosse tão escuro...

Ela relaxou no assento, deixando a cabeça descansar no couro e ficou olhando passar a cidade triste e desmazelada, as ruas da periferia com seus chalés de madeira, geminados e estreitos, com arabescos de madeira e janelas pequenas, e os prédios baixos de alvenaria, inclinados, que de algum modo não pareciam pertencer ao mundo dos carvalhos rebeldes e do mato alto. Lindo, tudo lindo. A camada superficial do seu perfeito universo californiano havia se rachado, fazendo com que ela afinal caísse na verdadeira textura da vida real.

Como é que ela conseguiria que aqueles dois entendessem que tudo ia dar certo, que ela sabia que no final sairia vitoriosa, que nenhuma tentação concebível poderia seduzi-la a ponto de afastá-la do seu amor, dos seus sonhos, dos seus planos?

A criatura viria, e a criatura lançaria seus encantos, como o demônio e as velhas da aldeia, e seria de se esperar que ela' sucumbisse, mas ela não sucumbiria, e o poder dentro dela, alimentado pelas doze bruxas, seria suficiente para destruir a criatura. O número treze dá azar, seu demônio. E a porta é a porta do inferno. Ah, isso, era exatamente isso. A porta era a porta do inferno. Mas Michael só acreditaria quando tudo estivesse terminado. Ela não disse mais nada. Lembrou-se mais uma vez das rosas no vaso na mesa do hall. Flores horríveis, e aquele íris com a boca negra e trêmula? Horrendo. E o pior de tudo, a esmeralda no seu pescoço no escuro, fria e pesada na sua pele nua. Não, nunca lhe fale disso. Não fale mais sobre nada disso.

Ele era bom e corajoso, mais do que qualquer pessoa que houvesse conhecido. Mas agora, ela precisava protegê-lo, porque ele não podia protegê-la, isso estava evidente. E ela percebeu pela primeira vez que quando as coisas realmente começassem a acontecer, ela provavelmente estaria totalmente só. Mas isso não havia sido sempre inevitável?

 

A NOIVA DO DEMONIO

Ela se perguntava se mais tarde se lembraria desse dia como um dos mais felizes da sua vida. Os casamentos devem exercer sua magia sobre todas as pessoas. Mas ela imaginava ser mais suscetível do que a maioria por ser a cerimônia tão exótica, tão do Velho Mundo, tão antiquada e fora de moda. E ela, apesar de vir do mundo dos frios e dos solitários, ela a queria tanto.

Na noite anterior, havia vindo aqui à igreja para rezar sozinha. Michael ficou surpreso. Ela estaria realmente rezando para alguém?

-Eu não sei -disse ela. Queria apenas sentar na igreja escura, que já estava arrumada para a cerimônia com as fitas e os laços brancos e o tapete vermelho até o altar, e falar com Ellie, tentar explicar a Ellie por que havia quebrado sua promessa, por que estava fazendo isso e como tudo ia acabar funcionando.

Ela explicou o casamento formal, como era o que a família queria, e ela havia cedido com prazer aos metros e metros de renda de seda e ao véu cheio e cintilante.

Deu explicações também sobre as damas de honra, todas da família, é claro; Beatrice, a madrinha; e como Aaron ia levá-la ao altar.

Explicou e explicou. Falou até mesmo da esmeralda.

- Esteja ao meu lado, Ellie. Dê-me seu perdão. Preciso tanto dele.

Depois, conversou com sua mãe. Falou com simplicidade e sem palavras, só se sentindo próxima da mãe. E tentou apagar da memória toda e qualquer lembrança da velha. Pensou nas amigas da Califórnia, para quem havia ligado nas últimas semanas e com quem tivera conversas maravilhosas. Todas estavam felizes por ela, embora não compreendessem plenamente o quanto era rico e vital esse mundo antiquado daqui. Barbara queria vir, mas as aulas já haviam começado em Princeton. Janie estava de viagem marcada para a Europa. E Mattie ia ter um bebê qualquer dia desses. Elas lhe mandaram presentes incríveis, apesar de Rowan tê-las proibido. E Rowan tinha a sensação de que se veriam no futuro, pelo menos antes que começasse a trabalhar de verdade no sonho do Centro Médico Mayfair.

Finalmente, ela terminou suas orações de uma forma estranha. Acendeu velas para suas duas mães. E uma para Antha. E até mesmo uma para Stella. Era um ritual tão confortante, ver os pequenos pavios se acenderem, ver a dança do fogo diante da imagem da Virgem. Não era de surpreender que agissem assim, esses católicos sábios e velhos. Quase que dava para se acreditar que a chama graciosa era uma oração viva.

Ela então saiu para ir procurar Michael, que estava se divertindo muito na sacristia com reminiscências da paróquia com o padre velho e simpático.

Agora, à uma hora, a cerimônia finalmente começava.

Rígida e imóvel no seu vestido branco, ela esperava, sonhadora. A esmeralda descansava na renda que lhe cobria o colo, e seu brilho verde era a única cor sobre Rowan.

Mesmo seus cabelos e olhos acinzentados lhe haviam parecido pálidos no espelho. E a jóia fez com que se lembrasse, estranhamente, das imagens católicas de Jesus e Maria, com os corações expostos, como a que ela havia destroçado com tanta raiva no quarto da mãe.

Agora, porém, todos esses pensamentos desagradáveis estavam muito longe dela. A imensa nave da igreja da Assunção de Nossa Senhora estava apinhada de gente. Haviam vindo parentes de Nova York, de Los Angeles, de Atlanta e de Dallas. Eram mais de dois mil. E uma a uma, ao som dos pesados acordes do órgão, as damas de honra, Clancy, Cecília, Marianne, Polly e Regina, seguiam na direção do altar. Beatrice estava ainda mais esplêndida do que as mais jovens. E os pajens, todos d e sobrenome Mayfair, é claro, e que bela turma formavam, estavam a postos para dar o braço às damas, uma a uma. Mas agora chegara o momento...

Pareceu-lhe que ia se esquecer de como se põe um pé diante do outro. Mas isso não ocorreu. Ela ajeitou rapidamente o véu branco, longo e amplo. Deu um sorriso para Mona, sua pequena daminha, linda como sempre com a costumeira fita nos cabelos ruivos. Deu o braço a Aaron, e juntos seguiram atrás de Mona, acompanhando o compasso da música solene. Os olhos de Rowan passeavam indistintamente pelas centenas de rostos de cada lado, ofuscados, por trás da névoa branca do véu, pelas fileiras de lâmpadas e velas no altar lá adiante.

Será que ela se lembraria disso para sempre? Do buquê de flores brancas na sua mão, do sorriso delicado e radiante de Aaron a olhar para ela e da sua própria sensação de estar linda, como as noivas sempre deviam se sentir?

Quando afinal viu Michael, tão perfeitamente adorável, no seu fraque cinza com plastrom, sentiu as lágrimas lhe subirem aos olhos. Como era realmente magnífico esse seu amado, seu anjo, a sorrir para ela do seu lugar ao lado do altar, com as mãos, sem as luvas horrendas, entrelaçadas à sua frente, a cabeça ligeiramente inclinada como se ele precisasse proteger a alma da luz que brilhava sobre ele, embora seus próprios olhos azuis fossem para ela a luz mais forte de todas.

Ele se aproximou e parou ao seu lado. Uma calma deliciosa se abateu sobre Rowan quando ela se voltou para Aaron e ele levantou o véu e o jogou elegantemente para trás sobre seus ombros, fazendo com que caísse com delicadeza atrás dos seus braços. Rowan estremeceu. Sua vida nunca havia incluído nenhum gesto consagrado pela tradição como esse. E não se tratava do véu da virgindade, ou do seu pudor, mas era o véu da sua solidão que havia sido erguido. Aaron pegou sua mão e a levou à mão de Michael.

- Seja sempre bom para ela, Michael - sussurrou Aaron. Ela fechou os olhos, desejando que essa mera sensação durasse eternamente, e depois os ergueu devagar para o altar resplandecente, com suas fileiras e mais fileiras de lindos santos de madeira.

Quando o padre começou a proferir as palavras tradicionais, ela percebeu que também os olhos de Michael estavam vidrados de lágrimas. Ela sentia que ele tremia enquanto apertava mais sua mão.

Ela receava que a voz lhe faltasse. Havia tido uma ligeira indisposição pela manhã, talvez de preocupação, e sofria agora uma leve tontura.

No entanto, o que lhe ocorreu num instante de serenidade e distanciamento foi que essa cerimônia transmitia um poder imenso, que ela envolvia os noivos com alguma invisível força protetora. Como seus velhos amigos haviam zombado dessas coisas! Como ela própria um dia as havia considerado inimagináveis! E agora, no próprio centro da cerimônia, Rowan a saboreava e abria seu coração para ela para receber toda a graça que ela podia conceder.

Afinal, os termos do velho legado Mayfair, dominando a cerimônia e a reformulando, estavam agora sendo recitados.

- ...agora e para sempre, na vida pública e na particular, diante da família e de todos os outros, sem exceção, e em todas as circunstâncias, será conhecida pelo nome de Rowan Mayfair, filha de Deirdre Mayfair, filha de Antha Mayfair, embora seu legítimo esposo vá usar seu próprio sobrenome...

- Aceito.

- Ainda assim, e de coração aberto, aceita esse homem, Michael James Timothy Curry...

- Aceito.

Afinal, tudo terminou. As últimas palavras ecoaram sob o teto alto e abobadado. Michael se voltou e a tomou nos braços, como havia feito milhares de vezes na escuridão íntima do seu quarto de hotel. E entretanto, como era intenso agora esse beijo público e ritual. Ela se entregou completamente, com os olhos baixos e a igreja como que dissolvida no silêncio. Ela o ouviu, então, cochichar.

- Amo você, Rowan Mayfair.

- Amo você também, Michael Curry, meu arcanjo - respondeu ela. E, encostando mais nele, apesar da rigidez dos seus trajes formais, ela o beijou novamente.

Os primeiros acordes da marcha nupcial soaram altos, agudos, triunfantes. Um grande sussurro encheu a igreja. Ela se voltou, encarando a enorme multidão e o sol que se derramava pelos vitrais, e de braços dados com Michael começou a longa e rápida caminhada até a porta.

Dos dois lados, ela via sorrisos, gestos de aprovação, a expressão irresistível da mesma emoção, como se a igreja inteira estivesse impregnada dom a mesma felicidade simples e assoberbante que ela sentia.

Só quando entraram na limusine à espera, com os parentes jogando sobre eles uma chuva de arroz, em meio a um exuberante coro de vivas, só então ela pensou na cerimônia fúnebre nessa igreja, só então se lembrou do cortejo de carros pretos e reluzentes.

E agora passar por essas mesmas ruas, pensou ela, aninhada na seda branca em toda a sua volta, com Michael a beijá-la de novo, nos olhos, no rosto. Ele lhe dizia baixinho todas aquelas bobagens maravilhosas que os maridos deveriam dizer a suas noivas, que ela era linda, que ele a adorava, que nunca havia sido mais feliz, que, se esse não era o dia mais perfeito da sua vida, ele não podia imaginar qual seria. E o principal não era o que ele dizia, mas o quanto ele próprio estava feliz.

Ela se recostou no seu ombro sorrindo, com os olhos fechados, pensando deliberadamente e em silêncio em todos os momentos marcantes da sua vida, sua formatura em Berkeley, o primeiro dia em que entrara numa enfermaria como interna, o primeiro dia em que entrara na sala de operações, a primeira vez que ouvira as palavras ao final da cirurgia, Muito bem, Dra. Mayfair, pode fechar.

- É, esse é o dia mais feliz de todos - disse ela, baixinho. - E ele mal acaba de começar.

Centenas de pessoas circulavam pelo gramado, sob os enormes toldos brancos instalados para cobrir o jardim, a piscina e o gramado diante das dependências dos fundos.

As mesas do bufê ao ar livre, com suas toalhas brancas de linho, mal agüentavam o peso dos lautos pratos sulinos: lagostins no vapor, camarão à moda crioula, massas, ostras assadas, peixe defumado e até mesmo o humilde e apreciado feijão mulatinho com arroz. Garçons uniformizados serviam champanhe em taças finas e altas. Nos bares bem providos no salão, na sala de jantar e ao lado da piscina, atendentes preparavam coquetéis a pedido. Crianças finamente trajadas, de todas as idades, brincavam de pique entre os adultos, escondendo-se por trás dos vasos de palmeiras espalhados por todo o térreo, ou subiam e desciam a escadaria em bandos, para mortificação total dos vários pais, gritando que acabavam de ver "o fantasma!".

A banda de Dixieland tocava com alegria e vigor sob seu toldo branco diante da cerca da frente, e a música de quando em quando era superada pela conversa animada e barulhenta.

Durante horas a fio, Michael e Rowan, de costas para o longo espelho na extremidade de First Street do longo salão, receberam os cumprimentos de um parente após o outro, apertando mãos, fazendo agradecimentos, ouvindo pacientes o esclarecimento de linhagens e o rastreamento de parentescos e interparentescos.

Muitos dos ex-colegas de ginásio de Michael haviam vindo, graças aos diligentes esforços de Rita Mae Lonigan, e eles formaram seu próprio grupo ruidoso e folgazão, a contar velhas histórias de jogos de futebol, ali por perto. Rita havia até conseguido localizar dois primos há muito sem contato: uma senhora simpática chamada Amanda Curry, de quem Michael se lembrava com carinho, e um Franklin Curry, que havia freqüentado a escola com o pai de Michael.

Se alguém ali estava apreciando tudo isso mais do que Rowan, era Michael, e ele era muito mais expansivo do que ela. Beatrice vinha lhe dar um abraço exagerado pelo menos duas vezes a cada meia hora, sempre conseguindo extrair dele algumas lágrimas envergonhadas, e era óbvio que ele estava emocionado com o carinho com que Lily e Gifford estavam cuidando da tia Vivian.

Era, porém, um momento de muita emoção para todos. Parentes de várias outras cidades abraçavam primos que não viam há anos, prometendo voltar a Nova Orleans com maior freqüência. Alguns combinaram ficar uma semana ou duas com esse ou aquele ramo da família. Era constante o espocar dos flashes. Câmeras de vídeo grandes, negras e desajeitadas passeavam lentamente pela multidão cintilante.

Afinal, terminaram os cumprimentos. E Rowan ficou livre para perambular de um grupo a outro, sentir o sucesso da reunião e aprovar o desempenho dos organizadores do bufê e da banda, como achava que devia fazer.

O calor do dia havia desaparecido totalmente graças a uma brisa suave. Alguns convidados já estavam se despedindo. A piscina estava cheia de pequenas criaturas semi-nuas, a berrar e espirrar água umas nas outras, algumas nadando apenas de roupa de baixo, e de alguns adultos altos que se jogaram na água vestidos.

Mais comida estava sendo colocada aos montes nos réchauds. Mais caixas de champanhe estavam sendo abertas. Os quinhentos e poucos parentes do núcleo da família, que Rowan já conhecia pessoalmente, circulavam inteiramente à vontade, sentando-se na escada para conversar, perambulando de um quarto a outro a admirar as mudanças maravilhosas, ou rondando a imensa e vistosa exposição de presentes caríssimos.

Por toda parte, admirava-se a restauração: o delicado tom de pêssego das paredes do salão e as cortinas de seda bege; o verde escuro e sombrio da biblioteca e as madeiras de um branco reluzente em toda a casa. As pessoas contemplavam os velhos retratos, limpos, re-emoldurados e pendurados cuidadosamente por todo o corredor e os aposentos do térreo. Reuniam-se em adoração ao quadro de Deborah, que agora estava acima da lareira da biblioteca. Lily e Beatrice ajudaram Fielding numa turnê completa, levando-o ao andar superior no velho elevador, para que ele pudesse ver cada um dos quartos.

Peter e Randall se acomodaram na biblioteca com seus cachimbos, discutindo acerca dos diversos retratos, sua idade aproximada e qual havia sido feito por quem. E qual seria o preço se Ryan quisesse tentar adquirir esse "pretenso" Rembrandt?

Com a primeira rajada de chuva, a banda veio para dentro para os fundos do salão e os tapetes chineses foram enrolados enquanto os jovens, alguns tirando os sapatos de qualquer jeito na balbúrdia, começavam a dançar.

Era o charleston. E os próprios espelhos retiniam com o som turbulento dos pistons e o ribombar constante do sapateado.

Cercada ininterruptamente por grupos de rostos animados, cheios de entusiasmo, Rowan perdeu Michael de vista. Houve um momento em que ela escapou para o pequeno banheiro da biblioteca, dando um aceno de passagem para Peter, que agora estava só e aparentemente cochilava.

Ela ficou ali em silêncio, com a porta trancada, o coração batendo forte, apenas se olhando no espelho.

Estava agora desbotada, amassada, parecida com o buquê que teria de jogar mais tarde do alto da escada. O batom havia desaparecido, o rosto estava pálido, mas seus olhos brilhavam como a esmeralda. Hesitante, ela tocou a pedra, ajeitando-a na renda do vestido. Fechou os olhos e pensou no quadro de Deborah. É, havia agido certo ao usá-la. Certo fazer tudo do jeito que eles queriam. Ela voltou a olhar para si mesma, agarrando-se ao momento, tentando guardá-lo para sempre, como um instantâneo enfiado nas páginas de um diário. Este dia, entre eles, todos reunidos.

Sua felicidade não foi afetada quando, ao abrir a porta que dava para a biblioteca, ela topou com Rita Mae Lonigan, que chorava baixinho ao lado de Peter. Foi mais do que um prazer apertar a mão de Rita e falar com ela.

- É, eu mesma pensei muito em Deirdre hoje.

Porque era verdade. E Rowan havia gostado de pensar em Deirdre e eu pensei até mesmo em Antha, arrancando-as das tragédias em que estavam enredadas e as abraçando junto ao coração.

Talvez em algum ponto frio e racional da sua mente, ela compreendesse por que as pessoas fugiam da família e da tradição à procura do mundo elegante e frágil em que ela havia crescido na Califórnia. No entanto, ela sentia pena dessas pessoas, sentia pena de qualquer um que nunca houvesse conhecido essa estranha intimidade com tantos outros do mesmo sobrenome e do mesmo clã. Ellie sem dúvida compreenderia. De volta ao salão, e à algazarra da banda e dos dançarinos, ela procurou por Michael, e de repente o viu totalmente só encostado na segunda lareira com os olhos fixos na outra ponta da sala apinhada. Rowan conhecia aquela expressão no seu rosto, o rubor e a agitação. Ela entendia o jeito dos seus olhos de estarem atraídos para algum ponto distante aparentemente banal.

Ele mal percebeu quando ela chegou ao seu lado. Ele não a ouviu quando ela sussurrou seu nome. Ela acompanhou a trajetória do seu olhar. Tudo o que viu foram os casais dançando e os cintilantes borrifos da chuva nas janelas da frente.

- Michael, o que foi?

Ele não se mexeu. Ela puxou o seu braço. Depois, erguendo a mão direita, ela virou o seu rosto com muita delicadeza e ficou olhando para ele e repetindo seu nome com clareza. Ele se voltou bruscamente, voltando a olhar para a frente do salão. Nada, dessa vez. O que quer que fosse havia terminado. Graças a Deus.

Ela via as gotas de suor na sua testa e no lábio superior. Seu cabelo estava úmido como se ele tivesse andado lá fora, o que obviamente não havia acontecido. Ela se aproximou mais um pouco, descansando a cabeça no seu peito.

- O que foi? - perguntou.

- Nada, é verdade... - disse ele, baixinho. Sentia dificuldade para recuperar o fôlego. – Achei que vi... não importa. Não está mais lá.

- Mas o que era?

- Nada. - Ele a tomou pelos ombros, beijando-a com um pouco de violência. - Nada vai estragar este dia para nós, Rowan. - Ele ficou com a voz embargada enquanto continuava a falar. - Nada de louco e estranho hoje.

- Fique comigo - disse ela. -Não me deixe mais. - Ela o puxou pelo braço para que saíssem do salão, entrassem na biblioteca e no seu pequeno banheiro, onde poderiam ficar sozinhos. O coração de Michael ainda estava acelerado quando ela o abraçou, calada, prendendo-o nos braços, com o barulho e a música abafados e distantes.

- Está tudo bem, querida - disse ele, finalmente, com a respiração menos ofegante. – Tudo bem mesmo. As coisas que eu estou vendo não significam nada. Não se preocupe, Rowan. Por favor. É como as imagens. Estou colhendo impressões de coisas que aconteceram há muito tempo. Só isso. Vamos, querida, olhe para mim. Me dê um beijo. Eu amo você e este é o nosso dia. A festa entrou noite adentro louca e animada. O casal cortou afinal o bolo sob uma saraivada de flashes e de risos embriagados. Ofereceram-se docinhos em bandejas. O café estava sendo preparado em enormes cafeteiras. Parentes engajados em longas conversas emocionadas se acomodavam em diversos cantos, em sofás e em grupos ao redor das mesas. Lá fora, chovia forte. O trovão ia e vinha com um eventual estrondo violento. E os bares permaneceram abertos, pois a maioria dos convidados continuava a beber.

Afinal, como Rowan e Michael só iam viajar para a lua-de-mel na Flórida no dia seguinte, foi resolvido que Rowan deveria jogar o buquê do alto da escada "agora". Subindo até a metade e olhando para o mar de rostos lá embaixo, que se espalhava em todas as direções e alcançava o salão, Rowan fechou os olhos e jogou o buquê para o alto. Houve muita gritaria cordial e até empurrões e briguinhas. De repente, a linda Clancy Mayfair exibiu o buquê, em meio a gritos de aprovação. E Pierce a abraçou, declarando abertamente ao mundo inteiro seu prazer pessoal e egoísta pela sorte de Clancy.

Ah, quer dizer que são Pierce e Clancy? Pensou Rowan, em silêncio, descendo de volta. E ela não havia percebido nada antes. Nem havia imaginado. Mas agora parecia não lhe restar nenhuma dúvida, enquanto ela olhava os dois se afastando sorrateiros. Bem ao longe, junto à segunda lareira, Peter estava parado, sorrindo, enquanto Randall parecia discutir acaloradamente com Fielding, que havia sido posto ali há algum tempo numa poltrona de tapeçaria.

A nova banda da noite acabava de chegar. Ela começou tocando uma valsa. Todos aplaudiram ao ouvir a melodia suave e antiquada, e alguém escureceu os lustres até que eles emitissem uma luz fraca, rosada. Os casais mais velhos se levantaram para dançar.

Michael imediatamente tirou Rowan e a conduziu ao centro do salão. Foi mais um momento perfeito, terno e delicioso como a música que os transportava. Logo, o salão à sua volta estava lotado de pares a dançar. Beatrice com Randall. E tia Vivian com Aaron. Todos os velhos dançavam, e depois até os mais novos foram atraídos, a pequena Mona com o idoso Peter, e Clancy com Pierce.

Se Michael havia visto mais alguma coisa horrível e indesejável, ele não deu sinal disso. Na realidade, seus olhos estavam fixos, com devoção, em Rowan.

Quando soaram as nove horas, alguns parentes choravam, tendo atingido algum ponto crucial de confissão ou de compreensão numa conversa com um primo não visto já há muito; ou simplesmente por todos terem bebido demais, dançado demais, e algumas pessoas terem a impressão de que deviam chorar. Rowan não sabia ao certo. Era só que isso parecia perfeitamente natural em Beatrice, enquanto ela se debulhava no sofá abraçada a Aaron; bem como em Gifford, que há horas vinha explicando alguma coisa de aparente importância a uma tia Viv paciente e assombrada. Lily havia se metido numa discussão ruidosa com Peter e Randall, ridicularizando-os como o pessoal do "eu me lembro de Stella".

Rita Mae Lonigan ainda estava chorando quando foi embora com o marido, Jerry. Amanda Curry, acompanhada de Franklin Curry, também fez uma despedida lacrimosa.

Às dez, a multidão já estava reduzida talvez a uns duzentos. Rowan havia tirado os sapatos altos de cetim branco. Estava sentada numa poltrona bergère junto à primeira lareira do salão, com as mangas compridas arregaçadas, fumando um cigarro, com os pés enrodilhados debaixo do corpo, ouvindo Pierce falar da sua última viagem à Europa. Ela nem conseguia se lembrar de quando ou onde havia tirado o véu. Talvez Bea o houvesse levado quando ela e Lily subiram para preparar a "câmara nupcial", sabe-se lá o que isso significava. Seus pés doíam mais do que depois de uma cirurgia de oito horas. Ela estava faminta, e só haviam sobrado os doces. Além do mais, o cigarro a estava enjoando. Ela o apagou.

Michael e o velho padre grisalho da paróquia estavam absortos em conversa diante da lareira na outra ponta do salão. O conjunto havia passado de Strauss para canções sentimentais mais recentes e populares. Aqui e ali vozes cantarolavam trechos de "Blue Moon" ou "The Tennessee Waltz". O bolo do casamento, a não ser por um pedaço guardado por motivos sentimentais, havia sido devorado até o último farelo.

Um grupo da família Grady, parentes afins de Cortland, cuja viagem de Nova York havia atrasado, entrou pela porta da frente inundando a casa com desculpas e exclamações. Outros se apressaram a cumprimentá-los. Rowan pediu desculpas por estar descalça e despenteada enquanto recebia seus beijos. E na sala de jantar aos fundos, uma grande turma reunida para uma série de fotografias começou a cantar "My Wild Irish Rose".

Às onze, Aaron deu um beijo de despedida em Rowan ao sair para levar tia Vivian para casa. Ele estaria no hotel se precisassem dele, e lhes desejou uma boa viagem até Destin no dia seguinte.

Michael foi até a porta da frente com Aaron e sua tia. Seus velhos amigos saíram afinal para continuar a beber no bar Parasol's no Irish Channel, depois de extraírem de Michael a promessa de que iria jantar com eles dentro de duas semanas. Mesmo assim, a escada ainda estava interditada com casais absortos a conversar. E, na cozinha, o pessoal do bufê estava "arrumando alguma coisa" para a família Grady de Nova York.

Afinal, Ryan ficou em pé, exigiu silêncio e declarou terminada a festa! Todos deveriam procurar seus sapatos, casacos, bolsas, o que fosse, e sair para deixar os recém-casados a sós. Apanhando mais uma taça de champanhe de uma bandeja que passava por ali, ele se virou para Rowan.

- Aos recém-casados - brindou ele, com a voz superando com facilidade a algazarra. - À sua primeira noite nesta casa.

Vivas mais uma vez. Todos querendo um último drinque, e uma centena de repetições do brinde, com os copos tilintando ao se tocarem.

- Deus abençoe a todos nesta casa! - disse o padre, que por acaso estava saindo pela porta.

E uma dúzia de vozes diferentes repetiram a bênção.

- A Darcy Monahan e a Katherine - gritou alguém.

- A Julien e Mary Beth... a Stella...

As despedidas, como era costume nessa família, demoraram mais de meia hora, tanto pelos beijos, quanto pelas promessas de reuniões futuras e pelas conversas que se retomavam à saída do banheiro, à saída da varanda e à saída do portão.

Enquanto isso, o pessoal do bufê passava pela casa inteira, recolhendo silenciosamente cada último copo e guardanapo, afofando almofadas, apagando velas, espalhando os arranjos de flores antes agrupados,

Afinal, tudo terminou. Ryan foi o último a sair do bufê e se certificar de que tudo estava em ordem na sala quase vazia!

- Boa noite, meus queridos! - disse fechou lentamente.

Ah, quer dizer que são Pierce e Clancy? Pensou Rowan, em silêncio, descendo de volta. E ela não havia percebido nada antes. Nem havia imaginado. Mas agora parecia não lhe restar nenhuma dúvida, enquanto ela olhava os dois se afastando sorrateiros. Bem ao longe, junto à segunda lareira, Peter estava parado, sorrindo, enquanto Randall parecia discutir acaloradamente com Fielding, que havia sido posto ali há algum tempo numa poltrona de tapeçaria.

A nova banda da noite acabava de chegar. Ela começou tocando uma valsa. Todos aplaudiram ao ouvir a melodia suave e antiquada, e alguém escureceu os lustres até que eles emitissem uma luz fraca, rosada. Os casais mais velhos se levantaram para dançar.

Michael imediatamente tirou Rowan e a conduziu ao centro do salão. Foi mais um momento perfeito, terno e delicioso como a música que os transportava. Logo, o salão à sua volta estava lotado de pares a dançar. Beatrice com Randall. E tia Vivian com Aaron. To dos os velhos dançavam, e depois até os mais novos foram atraídos, a pequena Mona com o idoso Peter, e Clancy com Pierce.

Se Michael havia visto mais alguma coisa horrível e indesejável, ele não deu sinal disso. Na realidade, seus olhos estavam fixos, com devoção, em Rowan.

Quando soaram as nove horas, alguns parentes choravam, tendo atingido algum ponto crucial de confissão ou de compreensão numa conversa com um primo não visto já há muito; ou simplesmente por todos terem bebido demais, dançado demais, e algumas pessoas terem a impressão de que deviam chorar. Rowan não sabia ao certo. Era só que isso parecia perfeitamente natural em Beatrice, enquanto ela se debulhava no sofá abraçada a Aaron; bem como em Gifford, que há horas vinha explicando alguma coisa de aparente importância a uma tia Viv paciente e assombrada. Lily havia se metido numa discussão ruidosa com Peter e Randall, ridicularizando-os como o pessoal do "eu me lembro de Stella".

Rita Mae Lonigan ainda estava chorando quando foi embora com o marido, Jerry. Amanda Curry, acompanhada de Franklin Curry, também fez uma despedida lacrimosa. Às dez, a multidão já estava reduzida talvez a uns duzentos. Rowan havia tirado os sapatos altos de cetim branco. Estava sentada numa poltrona bergère junto à primeira lareira do salão, com as mangas compridas arregaçadas, fumando um cigarro, com os pés enrodilhados debaixo do corpo, ouvindo Pierce falar da sua última viagem à Europa. Ela nem conseguia se lembrar de quando ou onde havia tirado o véu. Talvez Bea o houvesse levado quando ela e Lily subiram para preparar a "câmara nupcial", sabe-se lá o que isso significava. Seus pés doíam mais do que depois de uma cirurgia de oito horas. Ela estava faminta, e só haviam sobrado os doces. Além do mais, o cigarro a estava enjoando. Ela o apagou.

Michael e o velho padre grisalho da paróquia estavam absortos em conversa diante da lareira na outra ponta do salão. O conjunto havia passado de Strauss para canções sentimentais mais recentes e populares. Aqui e ali vozes cantarolavam trechos de "Blue Moon" ou "The Tennessee Waltz". O bolo do casamento, a não ser por um pedaço guardado por motivos sentimentais, havia sido devorado até o último farelo.

Um grupo da família Grady, parentes afins de Cortland, cuja viagem de Nova York havia atrasado, entrou pela porta da frente inundando a casa com desculpas e exclamações.

Outros se apressaram a cumprimentá-los. Rowan pediu desculpas por estar descalça e despenteada enquanto recebia seus beijos. E na sala de jantar aos fundos, uma grande turma reunida para uma série de fotografias começou a cantar "My Wild Irish Rose".

Às onze, Aaron deu um beijo de despedida em Rowan ao sair para levar tia Vivian para casa. Ele estaria no hotel se precisassem dele, e lhes desejou uma boa viagem até Destin no dia seguinte.

Michael foi até a porta da frente com Aaron e sua tia. Seus velhos amigos saíram afinal para continuar a beber no bar Parasol's no Irish Channel, depois de extraírem de Michael a promessa de que iria jantar com eles dentro de duas semanas. Mesmo assim, a escada ainda estava interditada com casais absortos a conversar. E, na cozinha, o pessoal do bufê estava "arrumando alguma coisa" para a família Grady de Nova York. Afinal, Ryan ficou em pé, exigiu silêncio e declarou ter minada a festa! Todos deveriam procurar seus sapatos, casacos, bolsas, o que fosse, e sair para deixar os recém-casados a sós. Apanhando mais uma taça de champanhe de uma bandeja que passava por ali, ele se virou para Rowan.

- Aos recém-casados - brindou ele, com a voz superando com facilidade a algazarra. - À sua primeira noite nesta casa.

Vivas mais uma vez. Todos querendo um último drinque, e uma centena de repetições do brinde, com os copos tilintando ao se tocarem.

- Deus abençoe a todos nesta casa! - disse o padre, que por acaso estava saindo pela porta.

E uma dúzia de vozes diferentes repetiram a bênção.

- A Darcy Monahan e a Katherine - gritou alguém.

- A Julien e Mary Beth... a Stella...

As despedidas, como era costume nessa família, demoraram mais de meia hora, tanto pelos beijos, quanto pelas promessas de reuniões futuras e pelas conversas que se retomavam à saída do banheiro, à saída da varanda e à saída do portão.

Enquanto isso, o pessoal do bufê passava pela casa inteira, recolhendo silenciosamente cada último copo e guardanapo, afofando almofadas, apagando velas, espalhando os arranjos de flores antes agrupados sobre as mesas do banquete e limpando qualquer coisa que houvesse derramado.

Afinal, tudo terminou. Ryan foi o último a sair, depois de pagar o pessoal do bufê e se certificar de que tudo estava em perfeita ordem. A casa estava quase vazia!

- Boa noite, meus queridos! - disse ele, e a alta porta da frente se fechou lentamente.

Durante algum tempo, Rowan e Michael olharam um para o outro, e depois caíram a rir. Michael a segurou no ar e rodou com ela até colocá-la delicadamente de volta no chão. Ela se encostou nele, abraçando-o do jeito que mais gostava, com a cabeça descansando no seu peito. Estava fraca de tanto rir.

-Nós conseguimos, Rowan! Do jeito que todos queriam, conseguimos! Pronto, acabou.

Ela ainda ria calada, deliciosamente exausta e animada ao mesmo tempo. Mas o relógio estava batendo as horas.

- Ouça, Michael - disse ela, baixinho. - É meia-noite.

Ele a tomou pela mão, apertou o interruptor que desligava a luz e os dois subiram juntos pela escada às escuras.

Apenas um quarto no segundo andar lançava luz sobre o corredor, e era o deles.

Caminharam em silêncio até a soleira.

- Rowan, olhe o que elas fizeram.

O quarto havia sido perfeitamente preparado por Bea e Lily. Um enorme e perfumado buquê de rosas cor-de-rosa estava no consolo da lareira entre os dois candelabros de prata.

Na penteadeira, o champanhe esperava no seu balde de gelo com duas taças ao lado, numa bandeja de prata.

A própria cama estava pronta, com a colcha de renda virada, os travesseiros afofados e as delicadas cortinas brancas do dossel abertas e amarradas às colunas maciças da cabeceira.

Um bonito conjunto de camisola e peignoir de seda branca estava dobrado de um lado da cama, e um par de pijamas de algodão branco, do outro lado. Uma rosa solitária havia sido posta sobre os travesseiros, com um laço de fita, e uma vela também solitária estava na mesinha de cabeceira da direita.

- Que idéia mais encantadora - disse Rowan.

- E assim, Rowan, esta é a nossa noite de núpcias. O relógio acabou de bater. É a hora das bruxas, querida, e ela é toda nossa.

Mais uma vez, eles se olharam e começaram a rir baixinho, com o riso de um alimentando o do outro, incapazes de parar. Estavam cansados demais para fazer qualquer outra coisa além de se enfiar debaixo das cobertas, e os dois sabiam disso.

- Bem, pelo menos devíamos beber o champanhe - disse Rowan - antes de desmaiar.

Ele concordou, jogando para um lado o fraque e dando puxões no plastrom.

- Vou lhe dizer uma coisa, Rowan, um homem tem de amar alguém muito para usar um traje desses!

- Ora, Michael, todo mundo aqui faz isso. Aqui, o zíper, por favor. - Ela voltou as costas para ele e sentiu a armação dura do corpete se soltar afinal, com o vestido caindo frouxo aos seus pés. Despreocupada, ela abriu o fecho da esmeralda e a colocou na ponta do consolo.

Finalmente, tudo foi recolhido e guardado, e os dois se sentaram na cama juntos para beber o champanhe, que era seco e delicioso e estava muito frio, tendo formado muita espuma nas taças como deveria. Michael estava nu, mas ele adorava acariciá-la por cima da camisola de seda, e por isso ela não a tirou. Afinal, por mais cansados que estivessem, eles foram envolvidos pelo prazer da cama nova, da luz fraca da vela, e seu fogo costumeiro estava atingindo o ponto de ebulição.

Foi rápido e violento, como Rowan adorava; a gigantesca cama de mogno, sólida como se tivesse sido entalhada na pedra.

Depois, ela ficou encostada nele, cochilando satisfeita, prestando atenção ao ritmo compassado do seu coração. Sentou-se, então, alisou a camisola amarfanhada e bebeu um bom gole de champanhe.

Michael se sentou ao seu lado, nu, com um joelho dobrado, e acendeu um cigarro, deixando a cabeça rolar encostada na alta cabeceira da cama.

- Ah, Rowan, nada deu errado, sabe, absolutamente nada. Foi o dia perfeito. Meu Deus, como um dia poderia ser tão perfeito.

Só que você viu alguma coisa que o apavorou. Mas ela não disse nada. Porque o dia havia sido perfeito, mesmo com aquele estranho momento. Perfeito! Nada que pudesse estragá-lo.

Ela tomou mais um golinho do champanhe, apreciando o sabor e seu próprio cansaço, e percebendo que ainda estava excitada demais para fechar os olhos.

Uma tontura de repente a atingiu, com um levíssimo toque da náusea que havia sentido pela manhã. Ela abanou a mão para afastar a fumaça do cigarro.

- O que foi?

- Nada, só os nervos, acho. Subir até aquele altar foi parecido com segurar o bisturi ou coisa semelhante pela primeira vez.

- Entendo o que você quer dizer. Vou apagar o cigarro.

-Não, não é isso. O cigarro não me incomoda. Eu mesma fumo de vez em quando. – Mas era a fumaça, não era? A mesma coisa que havia acontecido mais cedo. Ela se levantou, com a leve camisola de seda dando a impressão de não ser nada ao cair ao redor do seu corpo, e foi descalça até o banheiro.

Não havia Alka-Seltzer, a única solução para um momento desses. Mas ela se lembrava de ter trazido alguns para cá. Estavam no armário da cozinha, junto com a aspirina, os Band-Aids e todos os outros artigos domésticos. Ela voltou, calçou os chinelos e vestiu o peignoir.

- Onde é que você vai?

- Lá embaixo, pegar um Alka-Seltzer. Não sei o que está acontecendo comigo. Volto já.

- Espere aí, Rowan. Eu vou.

- Fique onde está. Você não está vestido. Volto daqui a dois segundos. Talvez pegue o elevador, sei lá.

A casa não estava realmente escura. Uma luz fraca entrava do jardim pelas numerosas janelas, iluminando o chão encerado do corredor, a sala de jantar e até a despensa.

Foi fácil avançar sem ter de acender nenhuma lâmpada.

Ela encontrou um Alka-Seltzer no armário assim como um dos novos copos de cristal que havia comprado numa saída com Lily e Bea. Encheu o copo na pequena pia do centro da cozinha, e ficou ali parada bebendo o AlkaSeltzer, de olhos fechados.

É, melhor. Era provável que fosse puramente psicológico, mas se sentia melhor.

- Ótimo. Fico feliz por você estar se sentindo melhor.

- Obrigada - disse ela, pensando que linda voz, tão suave e com um leve sotaque escocês, não era? Uma voz bonita e melodiosa.

Ela abriu os olhos e, com um violento sobressalto, recuou de qualquer jeito contra a porta da geladeira.

Ele estava parado do outro lado do balcão. A cerca de um metro de distância. Seu sussurro havia sido sincero, sentido. Mas a expressão no seu rosto era um pouco mais fria, e perfeitamente humana. Ligeiramente magoada, talvez, mas não de súplica, como a daquela noite em Tiburon. Não, nem um pouco parecida.

Isso tinha de ser um homem de verdade. Era algum tipo de brincadeira. Era um homem real. Um homem parado aqui na cozinha, a encará-la, um homem alto, de cabelos castanhos, com grandes olhos escuros e uma boca sensual e muito bem-feita.

A luz que entrava pelas portas envidraçadas revelava com clareza a camisa e o colete de couro cru que ele usava. Roupas velhíssimas, roupas feitas com pontos à mão e costuras irregulares, com mangas amplas.

- E então? Onde está sua determinação de me destruir, minha bela? - sussurrou ele, com a mesma voz grave, vibrante e desconsolada. - Onde está seu poder de me devolver aos infernos?

Ela tremia descontrolada. O copo escorregou dos seus dedos molhados e bateu no chão com um ruído surdo, virando de lado. Ela deu um suspiro profundo e descompassado, sem tirar os olhos dele. Seu lado racional observava que ele era alto, talvez com mais de um metro e oitenta, que seus braços eram muito musculosos e suas mãos, fortíssimas. Que seu rosto era perfeito nas proporções, e que seu cabelo era ligeiramente despenteado, como se por um vento. Nada daquele delicado ser andrógino que ela havia visto no deque, não.

- Para melhor amá-la, Rowan! - sussurrou ele. - Qual é a aparência que você preferiria para mim? Ele não é perfeito, Rowan. É humano, mas não é perfeito. Isso não.

Por um instante, seu medo foi tão grande que ela sentiu um forte aperto por dentro como se fosse morrer. Reagindo contra isso, desafiadora e irada, ela avançou, com as pernas trêmulas, estendeu a mão por cima do balcão e tocou seu rosto.

Áspero, como o de Michael. E os lábios, macios. Meu Deus! Mais uma vez, ela recuou de qualquer jeito, paralisada e incapaz de falar. Tremores percorriam seus membros.

- Você tem medo de mim, Rowan? - disse ele, com os lábios mal se mexendo, quando ela concentrou neles sua atenção. - Por quê? Você me ordenou que deixasse em paz seu amigo Aaron, e eu obedeci, não foi?

- O que você quer?

- Ah, isso gastaria muito tempo para explicar - respondeu ele, com o sotaque escocês se acentuando. - E ele está à sua espera, o seu amado, o seu marido, nesta sua noite de núpcias. Ele está ansioso porque você não volta.

A expressão se abrandou, de repente dilacerada pela dor. Como uma ilusão podia ser tão cheia de vida?

- Vá, Rowan, volte para ele - disse ele, com tristeza. - E se você lhe contar que eu estou aqui, você o fará mais infeliz do que você mesma imagina. E eu voltarei a me esconder de você. O medo e a suspeita irão corroê-lo por dentro. E eu só virei quando eu quiser.

- Está bem, não vou contar nada para ele - disse ela, entre dentes. - Mas não vá você lhe fazer nenhum mal. Não lhe cause o menor medo ou preocupação. E os outros truques, pare com eles também. Não o persiga com brincadeiras! Ou eu lhe juro que nunca, nunca falarei com você. E que o repelirei.

O lindo rosto ficou trágico, e os olhos castanhos se abrandaram, com uma tristeza infinita.

- E Aaron, você nunca deve fazer mal nenhum a Aaron. Nunca. Nunca deve fazer mal a ninguém, está me ouvindo?

- Como você queira, Rowan - disse ele, com as palavras fluindo como música, cheias de mágoa e de uma força serena. - O que me resta no mundo inteiro a não ser agradar a Rowan? Venha me procurar quando ele estiver dormindo. Hoje, amanhã, quando quiser.

O tempo não existe para mim. Eu existo quando você diz meu nome. Mas não me traia, Rowan. Venha sozinha e em segredo. Ou eu não responderei. Amo você, minha bela Rowan. Mas tenho vontade própria. Tenho, sim.

A figura de repente tremeluziu como se uma luz indefinível houvesse caído sobre ela. Ela se iluminou, e milhares de detalhes ínfimos ficaram subitamente visíveis.

Tornou-se, então, transparente; e uma lufada de ar quente atingiu Rowan, assustando-a e em seguida a deixando só na escuridão, sem nada por perto.

Ela levou a mão à boca. A náusea lhe voltou. Ficou ali parada, esperando que passasse, trêmula e a ponto de começar a gritar, quando ouviu os passos macios, mas inconfundíveis, de Michael que vinha pela despensa e entrava na cozinha. Ela se forçou a abrir os olhos.

Ele havia se enfiado nos jeans, sem camisa e descalço.

- O que houve, querida? - perguntou. Ele viu o brilho do copo no escuro, junto aos pés da geladeira. Abaixou-se, passando por ela, pegou o copo e o colocou na pia.

- Rowan, qual é o problema?

- Nada, Michael - disse ela, emocionada, procurando controlar o tremor, com as lágrimas lhe subindo aos olhos. - Estou enjoada, só um pouco enjoada. Estive assim hoje de manhã, à tarde e ontem também. Não sei o que é. Há pouco, foi o cigarro. Vou melhorar, Michael, sério. Vou mesmo. - Você não sabe o que é? - perguntou ele.

- Não, eu só... acho que... os cigarros nunca me causaram isso antes... - Dra. Mayfair, tem certeza de que não sabe?

- Do que é que você está falando? Eu só estou precisando dormir, ir lá para cima.

- Você está grávida, meu amor. Vá se olhar num espelho. - E com muita delicadeza ele tocou nos seus seios, e ela própria sentiu como estavam cheios, ligeiramente sensíveis, e soube, soube com certeza absoluta por todos os outros pequenos sinais imperceptíveis, que ele estava com a razão. Com toda a razão.

Ela se desmanchou em lágrimas. Deixou que ele a apanhasse no colo e a carregasse devagar pela casa afora. Seu corpo doía da tensão daqueles instantes terríveis na cozinha, e seus soluços passavam secos e dolorosos pela garganta. Ela não acreditava ser possível que ele a carregasse subindo aquela longa escada, mas foi o que ele fez. E ela deixou que fizesse, chorando encostada no seu peito, com os dedos firmes em volta do seu pescoço.

Ele a deitou na cama e lhe deu um beijo. Sonolenta, ela ficou olhando enquanto ele apagava as velas e voltava até ela.

- Eu a amo tanto, Rowan - disse ele, chorando também. - Eu a amo tanto. Nunca fui tão feliz... A felicidade vem em ondas, a cada vez acho que atingi o ponto mais alto, e lá vem mais outra. E logo nesta noite saber... Meu Deus, que presente de casamento, Rowan. Gostaria de saber o que eu fiz na vida para merecer tanta felicidade.

- Eu o amo também, meu querido. É... tão feliz. - Quando ele entrou debaixo das cobertas, ela se virou para o outro lado, grudando-se a ele de costas e sentindo os joelhos recolhidos sob os seus. Ela chorou no travesseiro, pegando sua mão e cobrindo com ela os seios.

- Como tudo está perfeito - sussurrou ele.

- Sem nada para estragar. Absolutamente nada.

Ela acordou antes dele. Após a primeira crise de náuseas, fez as malas rapidamente, com todas as pilhas de roupas previamente dobradas. Depois desceu até a cozinha.

Tudo estava limpo e tranqüilo à luz do dia. Nenhum sinal do que havia se passado na noite anterior. E a piscina cintilava lá fora, para além da varanda telada. O sol batia suave, filtrado pelas telas, na mobília de vime branco.

Ela inspecionou o balcão. Examinou o piso. Não conseguiu detectar nada. Depois, cheia de repulsa e raiva, preparou o café o mais rápido possível, para poder sair dali, e o levou até Michael no andar de cima. Ele estava começando a abrir os olhos.

- Vamos viajar agora - disse ela.

- Pensei que fôssemos zarpar à tarde - disse ele, sonolento. - Mas é claro que podemos ir agora, se você quiser. - Seu herói cordato de sempre. Ele lhe deu um beijo delicado no rosto, arranhando-a deliciosamente com a barba por fazer. - Como está se sentindo?

- Agora estou bem. - Ela estendeu a mão e tocou no pequeno crucifixo de ouro enredado nos pêlos escuros do seu peito. - Passei mal por cerca de meia hora. É provável que isso volte. Quando voltar, vou dormir. Eu adoraria chegar a Destin a tempo de caminhar na praia ao sol.

- E o que acha de ir a um médico antes da viagem?

- Eu sou médica - respondeu ela, com um sorriso. - E está lembrado do meu sentido especial? O bebê está muito bem lá dentro.

- O seu sentido especial lhe diz se ele é menino ou menina?

- Se ele é menino ou menina? - Ela riu. - Bem que eu gostaria. Mas de repente pode ser que eu queira ter uma surpresa. E você?

- Não seria fantástico se fossem gêmeos?

- É, seria maravilhoso.

- Rowan, você não está... chateada com o bebê, está?

- Não, pelo amor de Deus! Michael, eu quero o bebê. É só que ainda estou um pouco enjoada. As náuseas vão e voltam. Olhe, eu não quero contar para os outros por enquanto. Não antes de voltarmos da Flórida. A lua-de-mel estará arruinada se contarmos.

- De acordo. - Hesitante, ele pôs a mão quente na sua barriga. - Ainda vai demorar um pouco para se poder sentir o bebê aí dentro, certo?

- Ele está com menos de um centímetro de comprimento - disse ela, sorrindo novamente. - Ele não pesa nem trinta gramas. Mas eu consigo sentir sua presença. Ele está flutuando num estado de pura felicidade, com todas as suas minúsculas células se multiplicando.

- E qual é a aparência dele agora?

- Bem, é como se fosse um minúsculo ser aquático. Ele poderia se esticar todo na unha do seu polegar. Ele já tem olhos e até mesmo mãozinhas arredondadas, mas sem dedos de verdade ou mesmo braços por enquanto. Seu cérebro já está ali, pelo menos os rudimentos de um cérebro, já dividido em dois hemisférios. E por algum motivo que ninguém na terra conseguiu explicar, todas as suas células diminutas sabem o que devem fazer. Elas sabem exatamente para onde ir para continuar a formar órgãos que já estão ali e que só precisam se aperfeiçoar. Seu coraçãozinho está batendo dentro de mim já há um mês.

Michael deu um suspiro profundo e satisfeito.

- Que nome vamos lhe dar?

- O que acha de Little Chris? - disse ela, encolhendo os ombros. - Isso seria... difícil para você?

- Não, seria ótimo. Little Chris. E será Christopher se for menino, e Christine se for menina.

Com quanto tempo estará no Natal? - Ele começou a fazer cálculos.

- Bem, é provável que ele esteja com entre seis e sete semanas agora. Talvez oito. Na realidade, podem muito bem ser oito. Isso quer dizer... quatro meses. Ele terá todos os órgãos, mas seus olhos ainda estarão fechados. Por quê? Você está querendo saber se ele iria preferir um carro do corpo de bombeiro ou um bastão de beisebol?

Ele riu baixinho.

-Não. É só que esse é o melhor presente de Natal que eu possa imaginar. O Natal sempre teve um significado especial para mim, especial de um jeito quase pagão. E este vai ser o maior Natal que eu já tive, quer dizer, até o ano que vem quando ele já estiver andando por aí batendo no seu pequeno carro de bombeiros com o bastão de beisebol.

Ele parecia tão vulnerável, tão inocente, tão perfeitamente confiante nela. Quando olhava para ele, Rowan quase conseguia esquecer o que havia acontecido na noite passada. Ela quase conseguia se esquecer de tudo. Ela lhe deu um beijo rápido, entrou no banheiro e ficou parada com as costas na porta trancada, de olhos fechados. Seu demônio, sussurrou ela, você realmente calculou bem o tempo, não? Você gosta do meu ódio? É com ele que você estava sonhando?

E então ela se lembrou do rosto na cozinha escura e da voz desconsolada e suave, como dedos a tocá-la. O que me resta no mundo inteiro a não ser agradar a Rowan?

Eles saíram em viagem às dez. Michael dirigia. E Rowan, a essa hora, já estava se sentindo melhor e conseguiu dormir umas duas horas. Quando abriu os olhos, já estavam na Flórida, descendo pelo escuro bosque de pinheiros que vai da rodovia interestadual até a estrada litorânea. Sua cabeça estava desanuviada e revigorada. E, ao ter o primeiro vislumbre do Golfo, ela se sentiu em segurança, como se a sinistra cozinha de Nova Orleans e a aparição não mais existissem.

Fazia frio, mas não estava mais frio do que qualquer revigorante dia de verão no norte da Califórnia. Eles vestiram suéteres pesados e saíram a caminhar pela praia deserta. Ao pôr-do-sol, fizeram um lanche junto à lareira, com as janelas abertas para a brisa do Golfo.

Aproximadamente às oito, Rowan começou a trabalhar no seu projeto para o Centro Médico Mayfair, prosseguindo nos seus estudos das grandes cadeias de hospitais "com fins lucrativos", em comparação com os modelos "sem fins lucrativos", que eram mais do seu interesse.

Mas sua mente divagava. Ela realmente não conseguia se concentrar nos artigos de difícil compreensão sobre lucros e perdas, bem como sobre os abusos cometidos dentro dos diversos sistemas.

Afinal, ela fez algumas anotações e foi para a cama, ficando horas deitada no quarto às escuras, enquanto Michael trabalhava nos seus planos de restauração no outro quarto, ouvindo o bramido do Golfo pelas portas abertas e sentindo a brisa envolvê-la. O que iria fazer? Contar a Michael e a Aaron, como havia jurado fazer? E depois ele se retrairia e talvez ficasse pregando suas peças, fazendo com que a tensão aumentasse a cada dia.

Pousando os dedos na barriga, ela pensou mais uma vez no seu pequeno filhinho. Provavelmente concebido logo depois de ela ter pedido Michael em casamento. Ela sempre havia tido ciclos extremamente irregulares, e achava que sabia a noite exata em que aquilo havia acontecido. Naquela noite, ela havia sonhado com um bebê. Mas realmente não conseguia se lembrar.

Ele estaria sonhando dentro dela? Ela visualizou as minúsculas ligações do seu cérebro em desenvolvimento. A essa altura não mais um embrião, mas um feto completo.

Ela fechou os olhos, ouvindo, sentindo. Tudo certo. E então seu próprio sentido telepático aguçado começou a assustá-la.

Teria ela dentro de si o poder de machucar essa criança? A idéia era tão apavorante que ela não conseguia suportar. E, quando pensou novamente em Lasher, ele também lhe pareceu uma ameaça a essa criaturinha frágil e atarefada, porque Lasher representava uma ameaça a Rowan, e Rowan era todo o universo do seu bebê.

Como poderia protegê-lo das suas próprias forças sinistras, e da história sinistra que procurava enredá-lo? Little Chris. Você não vai crescer em meio a maldições, espíritos e ruídos, assustadores. Ela eliminou da cabeça os pensamentos sombrios e turbulentos. Imaginou o mar lá fora, batendo interminavelmente na praia, nenhuma onda igual a nenhuma outra, e no entanto todas pertencendo à mesma força imensa e monótona, cheia de um ruído agradável e tranqüilizador bem como de variações incalculáveis.

Destrua Lasher. Seduza-o, sim, como ele está procurando seduzi-la. Descubra o que ele é e o destrua! Você é a única que pode conseguir. Fale com Michael ou com Aaron, e ele se retrairá. Você precisa enganar com um objetivo, e cumpri-lo.

Quatro da madrugada. Ela devia ter dormido. Aquele pedaço irresistível de homem estava deitado encostado nela, com o braço grande e forte a protegendo e a mão segurando seus seios. E um sonho acabava de se apagar, cheio de aflição, com aqueles holandeses com seus chapéus pretos e altos e, lá fora, uma multidão aos gritos pedindo a cabeça de Jan van Abel.

- Eu descrevo o que vejo - dissera ele. - Não sou nenhum herege! Como poderemos aprender se não abandonarmos os dogmas de Aristóteles e de Galeno?

Você tem razão. Mas agora havia desaparecido, junto com aquele corpo sobre a mesa, com todos os órgãos minúsculos como se fossem flores. Ah, ela detestava esse sonho!

Levantou-se, atravessou o tapete espesso e saiu para o deque de madeira. Será que existia um céu mais vasto e límpido, cheio de estrelinhas cintilantes? Totalmente branca, a espuma das ondas negras. Tão branca quanto a areia que refulgia ao luar. Entretanto, ao longe na praia havia uma figura solitária, um homem alto e esguio, que olhava na sua direção. Maldito seja. Ela viu a figura se rarefazer lentamente e depois desaparecer.

Baixando a cabeça, ela tremia em pé, com as mãos na amurada de madeira.

Você virá quando eu o chamar.

Eu a amo, Rowan.

Ela percebeu, horrorizada, que a voz não vinha de nenhuma direção. Era um sussurro dentro dela, ao seu redor, íntimo e audível só para ela. Eu espero só por você, Rowan.

Deixe-me, então. Não diga neva mais uma palavra, nem apareça de novo, ou eu nunca o chamarei.

Furiosa, irritada, ela se virou e voltou para o quarto escuro, com o tapete quente e macio aos seus pés; e entrou na cama baixa ao lado de Michael. Agarrou-se a ele na escuridão, com os dedos apertando-lhe o braço. Em desespero, ela quis acordá-lo para lhe contar o que havia acontecido.

Mas isso ela precisava fazer sozinha. Ela sabia. Sempre soubera.

E uma terrível sensação de fatalidade a atingiu.

Dê-me só esses últimos dias antes da luta, pedia ela. Ellie, Deirdre, me ajudem. Ela sentiu náuseas todas as manhãs durante uma semana. Depois, elas a deixaram em paz, e os dias que se seguiram foram magníficos, como se as manhãs houvessem sido redescobertas, e estar com a cabeça desanuviada fosse uma bênção dos deuses.

Ele não voltou a falar com ela. Ele não apareceu mais. Quando Rowan pensava nele, imaginava sua raiva como um calor causticante, a atingir as células misteriosas e inclassificáveis da sua forma e a ressecá-las como cascas minúsculas. Mas na maior parte das vezes em que pensava nele, era com medo.

Enquanto isso, a vida continuava porque ela mantinha o segredo trancado no seu íntimo. Por telefone, ela marcou uma consulta com um obstetra de Nova Orleans, que tomou as providências para que os primeiros exames de sangue fossem realizados ali mesmo em Destin, e os resultados fossem enviados a ele. Tudo estava normal como Rowan esperava.

Mas quem poderia esperar que as pessoas compreendessem que, com seu sentido para o diagnóstico, ela teria sabido se o pequeno neném tivesse algum problema?

Os dias de calor eram raros e espaçados, mas ela e Michael tinham a praia fantástica praticamente só para si. E o puro silêncio da casa isolada acima das dunas era mágico. Quando a temperatura estava alta, ela ficava horas sentada na praia sob um guarda-chuva branco enorme e charmoso, lendo suas revistas de medicina e os diversos materiais que Ryan lhe mandava por mensageiro.

Lia, também, os livros sobre bebês que conseguia encontrar nas livrarias locais.

Sentimentais e pouco precisos, mas gostosos de ler. Em especial os retratos de bebês com seus rostos pequenos e expressivos, seus pescoços gordos com dobrinhas e seus adoráveis pés e mãos. Ela estava louca para contar para a família. Beatrice e ela se falavam quase dia sim, dia não. Mas era melhor manter o segredo. Imagine a dor que ela e Michael sentiriam se algo desse errado; e, se os outros soubessem, isso só iria agravar a perda para todos.

Eles caminhavam na praia horas a fio nos dias em que estava frio demais para nadar. Saíam a fazer compras e traziam coisinhas para a casa. Adoravam suas paredes brancas e nuas e sua mobília escassa. Era como um lugar de diversão depois da seriedade de First Street, dizia Michael. Ele gostava de cozinhar com Rowan: cortar, picar, refogar, fazer churrasco. Tudo era fácil e gostoso.

Os dois jantaram em todos os restaurantes finos e deram passeios de automóvel pelos pinheirais, além de explorar as grandes estâncias balneárias com suas quadras de tênis e campos de golfe. Na maior parte do tempo, entretanto, ficavam felizes dentro de casa, com o mar infinito ali bem perto.

Michael estava bastante ansioso quanto aos seus negócios: ele estava com unia equipe trabalhando no chalé geminado de Annunciation Street, e havia aberto sua nova loja da Grandes Esperanças em Magazine Street, e precisava resolver todas as pequenas emergências por telefone. Além disso, é claro que ainda havia pintura em andamento na casa, lá em cima no antigo quarto de Julien, bem como consertos no telhado nos fundos. O estacionamento de tijolos nos fundos da casa ainda não estava pronto, e as antigas dependências de domésticos ainda estavam em reforma. Calculavam que a construção se revelaria uma excelente casa para caseiro. Michael estava em desassossego por não estar lá em pessoa.

Era perfeitamente óbvio que ele não precisava de uma lua-de-mel neste exato instante, especialmente não uma lua-de-mel sendo prorrogada a cada dia por Rowan.

No entanto, era tão cordato. Ele não só fazia o que ela queria, mas parecia ter uma capacidade ilimitada para aproveitar ao máximo o momento, quer estivessem passeando de mãos dadas na praia, degustando uma refeição apressada de frutos do mar numa pequena taberna, examinando os barcos à venda na marina, quer estivessem lendo, sozinhos, nos vários cantos preferidos da espaçosa casa.

Michael era uma pessoa satisfeita por natureza. Ela soube disso quando o conheceu. Ela compreendia por que a ansiedade era tão terrível para ele. E agora ela se enternecia tanto ao vê-lo absorto nos seus projetos, fazendo desenhos para a reforma do pequeno chalé de Annunciation Street, recortando ilustrações de revistas com as pequenas coisas que pretendia fazer.

Tia Viv estava bem lá em Nova Orleans. Lily e Bea não a deixavam em paz, segundo sua própria confissão. E Michael achava que isso era a melhor coisa do mundo para ela.

- Ela parece tão mais jovem agora quando falo com ela - disse ele. - Parece que entrou para algum clube de jardinagem e para algum comitê dedicado à proteção dos carvalhos. Ela realmente está se divertindo.

Tão amoroso, tão compreensivo. Mesmo quando Rowan não quis voltar para a cidade para o dia de Ação de Graças, ele cedeu. Tia Viv foi jantar na casa de Bea, é claro.

E todos perdoaram os recém-casados por ficarem na Flórida, pois afinal de contas era a lua-de-mel deles, e eles podiam prorrogá-la o quanto quisessem.

Fizeram seu próprio e tranqüilo jantar de Ação de Graças no deque voltado para a praia. Depois, naquela noite, uma tempestade fria, ruidosa e cheia de relâmpagos atingiu Destin. O vento fazia tremer as portas de vidro e as janelas. Acabou a energia no litoral tanto numa direção quanto na outra. Foi uma escuridão natural, perfeitamente divina.

Ficaram horas sentados junto ao fogo, falando de Little Chris e do quarto que deveria ser seu. De como Rowan não permitiria que o Centro Médico Mayfair interferisse nos primeiros dois anos; de como passaria todas as manhãs com o bebê, só saindo para o trabalho ao meio-dia, e é claro que eles contratariam todo o pessoal necessário para tudo correr bem.

Graças a Deus, ele não lhe perguntou diretamente se ela havia "visto aquela coisa maldita". Ela não sabia o que faria se fosse forçada a dizer uma mentira proposital. O segredo estava trancado dentro de um pequeno compartimento da sua cabeça, como a câmara secreta do Barba-Azul, e a chave havia sido jogada no fundo do poço. Estava ficando cada vez mais frio. Logo, não haveria mais desculpa para permanecerem ali. Ela sabia que deviam voltar.

E o que estava fazendo com essa história de não contar a Michael e de não contar a Aaron?

Fugindo desse jeito, para se esconder?

Mas quanto mais ela ficava ali, mais ela começava a compreender seus conflitos e seus motivos.

Ela queria conversar com aquele ser. A lembrança da sua presença na cozinha a inundava com uma sensação poderosa, ainda mais especial porque ela havia ouvido a ternura da sua voz. É, ela queria conhecê-lo! Era exatamente como Michael havia previsto naquela terrível primeira noite quando a velha acabava de morrer. O que era Lasher? De onde ele vinha? Que segredos ficavam por trás do seu rosto trágico e impecável? O que Lasher diria a respeito do portal e das treze bruxas?

E tudo o que ela precisava fazer era chamá-lo, como Próspero invocando Ariel. Guarde o segredo e diga seu nome.

Ah, mas você é uma bruxa, disse ela a si mesma à medida que sua culpa se aprofundava. E todos eles sabiam. Souberam naquela tarde em que você falou com Gifford; souberam pelo poder puro e cintilante que emanava de você, aquilo que todos consideram frieza e esperteza, mas que nunca foi outra coisa a não ser uma força indesejada.

O velho Fielding estava certo ao dar o aviso. E Aaron sabe, não sabe? Claro que sabe. Todos menos Michael, e Michael é tão fácil de enganar. Mas e se ela resolvesse não enganar ninguém, não cooperar? Talvez estivesse procurando a coragem de tomar essa decisão. Ou talvez estivesse simplesmente resistindo.

Talvez estivesse fazendo o demônio esperar do mesmo jeito que ele a havia feito esperar.

Fosse qual fosse o caso, ela não sentia mais por ele aquela aversão, aquela repulsa terrível que se havia seguido ao incidente no avião. Ela ainda sentia raiva, mas pesavam mais a curiosidade e a atração cada vez maior...

Era o primeiro dia realmente frio quando Michael saiu até a praia, sentou-se ao seu lado e disse que tinha de voltar. Ela no fundo estava adorando o ar frio, tomando banho de sol com um grosso suéter de algodão e calças compridas, como poderia ter feito na Califórnia no seu deque varrido pelos ventos.

- Olhe, isso é o que está acontecendo - disse ele. - Tia Viv quer as suas coisas lá de San Francisco, e você sabe como os velhos conseguem ser. Além disso, Rowan, não há ninguém que possa esvaziar a casa de Liberty Street, a não ser eu. Também preciso tomar algumas decisões sobre minha antiga loja lá. Meu contador acabou de me ligar mais uma vez acerca de uma pessoa que quer alugá-la, e eu tenho de voltar lá para verificar o estoque em pessoa.

Ele continuou, falando da venda de uns imóveis na Califórnia, da necessidade de despachar certas coisas, de alugar a casa, esse tipo de coisa. E a verdade era que sua presença era necessária em Nova Orleans. Seu novo negócio em Magazine Street precisava dele. Se ele quisesse que desse certo...

- A verdade é que eu prefiro voar até lá agora do que mais tarde. Estamos quase em dezembro, Rowan. O Natal está chegando. Você sabia?

- Claro, eu compreendo. Voltamos hoje à noite.

- Mas você não precisa voltar, querida. Pode ficar aqui na Flórida até eu chegar de volta, ou enquanto você quiser.

- Não, eu vou com você, Michael. Vou subir e fazer as malas daqui a pouco. Além do mais, já está na hora de voltar. Agora está fazendo calor mas estava realmente um gelo hoje de manhã cedo quando saí pela primeira vez. - Ele fez que sim com a cabeça.

- Você não odiou? - Ela deu uma risada.

- Mesmo assim nada tão frio quanto qualquer dia de verão lá na Califórnia -- disse ela. Ele concordou.

- Vou lhe dizer uma coisa, Rowan. Vai ficar ainda mais frio. Muito mais frio. O inverno no sul vai surpreendê-la. Estão dizendo que este pode ser um inverno rigoroso em todos os estados do sul. Sob um certo aspecto, eu simplesmente adoro isso. Primeiro, um calor escaldante, e depois as janelas foscas com o frio.

- Entendo o que quer dizer. - E eu o amo. Amo você mais do que qualquer outra pessoa que eu tenha amado.

Ela se recostou na cadeira de praia de madeira enquanto ele se afastava, e deixou a cabeça virar para o lado. O Golfo estava agora de um prata opaco, como era freqüente acontecer quando o sol atingia o ponto mais alto. Ela deixou a mão esquerda cair na areia fofa e solta. Enfiou os dedos nela e recolheu um punhado, deixando que ela escorresse entre os dedos.

- Real - sussurrou. - Tão real.

Mas não era simplesmente certinho demais que ele tivesse de ir embora agora e que ela fosse ficar sozinha na casa de First Street? Não dava a impressão de que alguém havia organizado as coisas daquele jeito? E esse tempo todo, ela achava que era ela quem dava as cartas.

-Não exagere, meu amigo - sussurrou ela para a fresca brisa do Golfo. -Não machuque o meu amor, ou eu nunca o perdoarei. Certifique-se de que ele volte para mim, em total segurança.

Só partiram na manhã do dia seguinte.

Enquanto iam se afastando, ela sentiu uma ínfima pontada de emoção. Num relance, viu seu rosto novamente como lhe aparecera na cozinha às escuras; ouviu a melodia suave e ressoante das suas palavras. Uma carícia. Mas não conseguia suportar pensar nessa parte. Só depois que Michael estivesse em segurança na Califórnia, só quando ela estivesse sozinha na casa...

Doze horas. Por que essa parecia a hora certa? Talvez porque Pierce e Clancy tivessem ficado até tão tarde, e ela sentisse necessidade dessa hora de sossego. Na Califórnia, eram só dez da noite, mas Michael já havia ligado e, exausto do longo vôo, provavelmente já estivesse dormindo.

Ele parecia tão animado com o fato de tudo lhe parecer tão pouco atraente e de ele estar tão ansioso por voltar. Era excruciante já estar sentindo tanta falta dele, estar deitada sozinha nessa cama enorme e vazia.

Mas o outro esperava.

Quando as suaves badaladas do relógio se dissiparam, ela se levantou vestiu o peignoir de seda sobre a camisola, calçou os chinelos de cetim e s do quarto, descendo a longa escada.

E onde nos encontraremos, meu amante demoníaco?

No salão, entre os espelhos gigantescos, com as cortinas fechadas para não deixar passar a luz da rua? Parecia um lugar melhor do que a maior. Ela caminhava cuidadosa pelo piso de pinho encerado, com os pés afundando no tapete chinês quando se aproximou da primeira lareira. Os cigarros de Michael em cima da mesa.

Um copo de cerveja pela metade. Cinzas do fogo aceso mais cedo, nesta sua primeira noite de frio de verdade aqui no sul.

E, era o dia 1° de dezembro, e o bebê já tinha suas pálpebras pequeninas dentro dela; e as orelhas começaram a se formar.

Absolutamente nenhum problema, disse o médico. Pais fortes e saudáveis, sem doenças, e o corpo da mãe em excelentes condições. Coma c sensatez e, por sinal, o que você faz na vida?

Conto mentiras.

Hoje, ela por acaso ouvira Michael em conversa com Aaron ao telefone.

-Tudo bem. Quero dizer que está surpreendentemente bem, acho eu. mais completa paz. A não ser, é claro, por aquela terrível visão de Stella dia do casamento. Mas isso eu podia ter imaginado. Com todo o champanhe que bebi. [Pausa] Não. Absolutamente nada.

Aaron percebia a mentira, não? Aaron sabia. Mas o problema com es sinistros poderes sobre-humanos era que nunca se sabia quando eles estava funcionando. Eles abandonavam a pessoa no momento em que ela rr dependia deles. Depois de todos os relances aleatórios e percepções declaradamente desagradáveis dos pensamentos alheios, de repente o mundo está cheio de rostos impassíveis e vozes neutras. E você se descobria só.

Talvez Aaron estivesse só. Ele não havia encontrado nada de útil velhos cadernos de Julien.

Nada nos livros da biblioteca, a não sei previsíveis anotações contábeis de uma fazenda. Ele nada havia encontrado nos alfarrábios e demonologias colecionados ao longo dos anos, a não ser informações publicadas sobre a bruxaria que qualquer um podia obter.

E agora a casa estava perfeitamente acabada, sem cantos escuros ou explorados. Até mesmo os sótãos brilhavam de tão limpos. Ela e Michael haviam subido para verificar o último trabalho antes que ele saísse para o aeroporto. Tudo estava em ordem. O quarto de Julien era agora apenas bom ambiente de trabalho para Michael, com uma prancheta para descobrir arquivos para plantas e as estantes cheias dos seus muitos livros.

Ela ficou parada no centro do tapete chinês. Estava de frente pa lareira. Havia inclinado a cabeça e juntado as mãos, como que em ora com os dedos encostados nos lábios. O que estava esperando? Por que dizia logo, Lasher? Bem devagar, ela olhou para o espelho acima da lareira.

Ali estava ele, atrás dela, no portal em forma de buraco de fechadura, a observá-la, com a luz da rua entrando pelas vidraças de cada lado da porta da frente apenas o suficiente para que ela pudesse vê-lo.

Seu coração batia forte, mas ela não fez menção de se voltar. Contemplou-o através do espelho, calculando, avaliando, definindo, tentando com todos os seus poderes, humanos e sobre-humanos, captar a matéria de que era feita essa criatura, o que era esse corpo.

- Vire-se para mim, Rowan. - Uma voz como um beijo na escuridão. Não uma ordem, nem uma súplica. Algo íntimo como o pedido de um amante cujo coração se partirá se não for atendido.

Ela se voltou. Ele estava encostado no batente da porta, com os braços cruzados. Usava um terno escuro antiquado, muito semelhante aos que Julien usava nos retratos da década de 1890, com o colarinho branco alto e a gravata de seda. Uma bela imagem. E num contraste adorável, suas mãos fortes, como as de Michael, e as feições grandes e marcantes. Havia mechas louras no seu cabelo, e a pele era ligeiramente mais morena. Ao olhar para ele, ela se lembrou de Chase, seu antigo namorado policial.

- Mude o que quiser - disse ele, com delicadeza.

E, antes que pudesse responder, ela viu que a figura se alterava, viu que ela era como algo em silenciosa ebulição nas sombras, à medida que o cabelo ia ficando ainda mais claro, mais perfeitamente louro, e a pele adquiria o bronzeado da pele de Chase.

Ela viu que os olhos se animavam: Chase, por um instante, em perfeita representação. Em seguida, uma outra série de características humanas permeou a imagem, alterando-a mais uma vez, até ele voltar a ser o mesmo homem que lhe aparecera na cozinha, possivelmente o mesmo homem que havia aparecido a todas elas ao longo dos séculos, só que era mais alto e ainda mantinha a bela coloração de Chase.

Rowan percebeu que havia se aproximado. Estava parada a menos de um metro da criatura. Ela não estava com medo, mas, sim, emocionada. Seu coração ainda batia forte, mas ela não tremia. Ela estendeu a mão como havia feito naquela noite na cozinha, e tocou no seu rosto.

Barba por fazer, pele, mas não era pele. Seu aguçado sentido de diagnóstico lhe dizia que não era pele e que não havia ossos nesse corpo, nem órgãos internos. Isso era uma casca para um campo energético.

- Mas com o tempo, haverá ossos, Rowan. Com o tempo, todos os milagres serão realizados.

Os lábios mal se mexeram com essas palavras; e a criatura já estava perdendo sua forma. Estava exausta.

Ela olhou firme para a figura, procurando retê-la, e viu que ela readquiria sua solidez.

- Ajude-me a sorrir, minha bela - disse a voz, dessa vez sem nenhum movimento da boca. - Eu gostaria de sorrir por você e pelo seu poder se eu conseguisse.

Agora ela estava tremendo mesmo. Com todas as fibras do seu corpo, ela se concentrou em infundir vida às feições da criatura. Ela quase sentia a energia que fluía de si mesma, quase a sentia reunindo a estranha substância para moldá-la. Era mais pura e mais refinada do que seu conceito de eletricidade. E um enorme calor a envolveu quando ela viu os lábios começarem a se abrir num sorriso.

Sereno, sutil, como o sorriso de Julien nas fotografias. Os grandes olhos verdes, inundados de luz. As mãos se ergueram e se estenderam para ela. Rowan sentiu um calor delicioso à medida que elas se aproximavam, quase tocando nos lados do rosto. E então a imagem tremeluziu e se desintegrou de repente. A lufada de ar quente foi tão forte que ela recuou um passo, com o braço levantado para proteger os olhos enquanto se virava para se afastar.

O aposento parecia estar vazio. As cortinas haviam se movimentado e agora ainda dançavam em silêncio. Só muito aos poucos o salão foi ficando frio de novo.

De súbito, ela sentiu frio no corpo inteiro. Sentia-se exausta. E, ao olhar para a própria mão, percebeu que estava tremendo. Foi até a lareira e se jogou de joelhos no chão.

Sentia vertigens. Por um instante, quase teve uma tontura e se sentiu incapaz de se localizar com relação ao que acabava de acontecer. Aos poucos, então, sua cabeça se desanuviou.

Pôs uns gravetos dentro da pequena grelha e uns galhinhos e uma pequena acha por cima. Depois, riscou um fósforo e acendeu o fogo. Num segundo, os gravetos estavam estourando e estalando. Ela ficou olhando para as chamas ali embaixo.

- Você está aqui, não está? - sussurrou ela, com os olhos fixos no fogo que ficava mais forte e mais luminoso, com as chamas lambendo a casca seca da acha.

- É, estou aqui.

- Onde?

- Perto de você, ao seu redor.

- De onde vem sua voz? Qualquer um poderia ouvi-lo agora. Você está realmente falando.

- Você deveria compreender como isso acontece melhor do que eu.

- É isso o que você quer de mim?

Ele deu um longo suspiro. Ela ouvia com atenção. Nenhum som de respiração, apenas o som de uma presença. Pense em todas as vezes que você soube que alguém estava por perto, e não foi por ter ouvido um coração bater, um passo ou uma respiração. Você ouviu algo mais delicado, mais sutil. É esse o som.

- Eu a amo - disse ele.

- Por quê?

- Porque você é linda para mim. Porque você me vê. Porque você é todas as coisas de um ser humano que eu mesmo desejo. Porque você é humana, quente e macia. E eu a conheço, e conheci as outras antes de você.

Ela não disse nada. Ele prosseguiu.

- Porque você é filha de Deborah, filha de Suzanne, de Charlotte, e de todas as outras cujos nomes você sabe. Mesmo que você se recuse a aceitar a esmeralda que dei à minha Deborah, eu a amo. Eu a amo sem a jóia. Eu a amei desde o primeiro instante em que soube da sua vinda. Eu vejo longe. Eu a vi chegando de longe. Eu a amava em probabilidade.

O fogo estava agora queimando forte, com o aroma delicioso a tranqüilizando, enquanto a acha grande e grossa era devorada pelas chamas alaranjadas. Mas ela estava numa espécie de delírio. Mesmo sua própria respiração lhe parecia lenta e estranha. E agora ela não sabia ao certo se a voz era audível, ou se seria audível a outros se houvesse alguém mais ali.

Para ela, no entanto, era clara e extremamente sedutora.

Devagar, ela se sentou no chão aquecido ao lado da lareira, recostando-se no mármore, que também se aquecia, e ficou observando as sombras abaixo do arco no próprio centro do salão.

- Sua voz me acalma. Ela é linda. - Ela suspirou.

- Eu quero que ela seja linda para você. Eu quero lhe dar prazer. Fiquei triste por você me odiar.

- Quando?

- Quando eu a toquei.

- Explique-me tudo, tudo.

- Mas há muitas explicações possíveis. Você influencia a explicação pela pergunta que faz.

Posso falar com você com minha própria vontade, mas o que eu lhe disser terá sido moldado pelo que aprendi através das perguntas de outras pessoas ao longo dos séculos. Trata-se de uma síntese mental. Se você quiser uma nova síntese, fale.

- Quando você começou?

- Não sei.

- Quem o chamou de Lasher pela primeira vez? - Suzanne.

- Você a amava?

- Eu amo Suzanne.

- Ela ainda existe.

- Ela se foi.

- Começo a compreender. Não há no seu mundo necessidade física, conseqüentemente o tempo não existe. Uma mente sem um corpo. - Precisamente. Esperta. Inteligente.

- Uma dessas palavras serviria.

- Sim - disse ele em tom simpático. - Mas qual? - Você está brincando comigo.

- Não. Eu não brinco.

- Quero ir fundo nessa história, compreender você, seus motivos, o que você quer.

- Eu sei. Eu sabia antes que você falasse - disse ele, com o mesmo tom gentil, sedutor. -- Mas você é inteligente o bastante para saber que no reino em que eu existo não há fundo. - Ele fez uma pausa e depois prosseguiu devagar como antes. -- Se você me instigar a falar usando frases sofisticadas e completas, abrindo espaço para seus persistentes enganos, erros ou distinções toscas, isso eu posso fazer. Mas o que eu disser pode não estar tão próximo da verdade quanto você gostaria.

- Mas como você fará isso?

- Naturalmente, a partir do que aprendi a respeito do raciocínio humano e com outros humanos. O que estou dizendo é que escolha: comece do início comigo se quiser a pura verdade. Irá receber respostas enigmáticas e misteriosas. Elas poderão ser inúteis, mas serão verdadeiras. Ou comece do meie e receberá respostas cultas e sofisticadas. Seja como for, você só saberá de mim o que eu aprender de mim mesmo com você.

- Você é um espírito?

- O que vocês chamam de espírito, eu sou. - O que você se chamaria? - Eu não me chamo.

- Entendo. No seu reino, não há a necessidade de um nome.

- Nem mesmo a compreensão do que seja um nome. Mas de fato simplesmente nenhum nome.

- Mas você tem desejos. Você quer ser humano.

- Quero. - Seguiu-se algo como um suspiro, uma tristeza eloqüente.

- Por quê?

- Você não ia querer ser humana, se estivesse no meu lugar, Rowan?

- Não sei, Lasher. Talvez eu quisesse ser livre.

- Dói-me o quanto anseio por isso - disse a voz, lenta e entristecida.

- Por sentir o calor e o frio; conhecer o prazer. Rir, ah, como deve ser rir. Dançar, cantar e ver com nitidez com olhos humanos. Sentiras coisas. Existir em meio às necessidades, às emoções e ao tempo. Satisfazer as ambições, ter sonhos e idéias próprias.

- Ah, sim, estou compreendendo bem. - Não tenha tanta certeza. - Você não vê com clareza? - Não do mesmo jeito.

- Quando você olhou através dos olhos do morto, viu com clareza?

- Vi melhor, mas não com clareza. E a morte estava sobre mim, grudada em mim, a minha volta, trabalhando veloz. Afinal, fiquei cego por dentro.

- Dá para imaginar. Você entrou no sogro de Charlotte enquanto ele estava vivo.

- Entrei. Ele sabia que eu estava ali. Ele estava fraco, mas feliz de pode caminhar e levantar objetos com as próprias mãos mais uma vez.

- Interessante. O que chamamos de possessão.

- Correto. Vi coisas distintas com os olhos dele. Vi cores brilhante senti o perfume das flores e vi pássaros. Ouvi pássaros. Toquei Charlotte coisa com a mão. Conheci Charlotte.

- Você agora não ouve? Você não está vendo a luz desse fogo?

- Sei tudo sobre o fogo, mas não o vejo, não o ouço, nem o sinto como vocês, Rowan.

Mesmo assim, ao me aproximar de você, eu posso ver o que você vê, conhecer você e seus pensamentos.

Ela sentiu um forte espasmo de medo.

- Estou pegando a idéia.

- Você acha que está. Mas trata-se de algo mais amplo e de maior duração.

- Eu sei. Sei, mesmo.

- Nós sabemos, nós somos. Mas com vocês nós aprendemos o pensamento linear e aprendemos o tempo. Também aprendemos a ambição. Para a ambição, devem-se conhecer os conceitos de passado, presente e futuro. Deve-se planejar. E estou falando apenas daqueles de nós que têm vontade. Aqueles que não têm vontade, não aprendem, pois de que lhes serviria? Mas quando digo "nós", estou fazendo uma comparação. Não existe "nós" para mim porque estou só e afastado dos outros semelhantes a mim e vejo só você e sua espécie.

- Compreendo. Quando você estava nos cadáveres... nas cabeças no sótão...

- Sim?

- Você alterou os tecidos naquelas cabeças?

- Alterei. Mudei os olhos para marrom. Mudei a cor do cabelo em mechas. Isso me custou enorme calor e concentração. A concentração é o segredo para tudo o que faço.

Eu reúno.

- E no seu estado natural?

- Vasto, infinito.

- Como você alterou a pigmentação?

- Entrei nas partículas da carne. Alterei as partículas. Mas sua compreensão disso é maior do que a minha. Você usaria a palavra mutação. Eu não conheço palavras melhores. Você conhece os termos científicos. Os conceitos.

- O que o impediu de dominar o organismo por inteiro?

- Ele estava morto. Aos poucos acabou e ficou pesado; e eu, cego e mudo. Não consegui lhe devolver a centelha da vida.

- Compreendo. E no sogro de Charlotte, você mudou alguma coisa no seu corpo?

- Isso eu não pude fazer. Não sabia nem como tentar. E eu não poderia fazê-lo agora, se estivesse lá naquela hora. Está me entendendo?

- Entendo. Você é perene, e no entanto nós estamos dentro do tempo. Entendo. Mas você está dizendo que não consegue alterar tecidos vivos?

- Não os daquele homem. Não os de Aaron quando me incorporo nele.

- Quando você se incorpora em Aaron?

- Quando ele está dormindo. Essa é a única hora em que consigo entrar.

- Por que faz isso?

- Para ser humano. Para estar vivo. Mas Aaron é forte demais para mim.

Aaron organiza e comanda os tecidos de Aaron. O mesmo acontece com Michael. E com quase todos. Até mesmo com as flores.

- Ah, sim, as flores. Você fez uma mutação nas rosas.

- Fiz. Por você, Rowan. Para lhe mostrar meu amor e meu poder. - E para me mostrar sua ambição?

É...

-Não quero que nunca mais entre em Aaron. Não quero que nunca faça mal a ele ou a Michael.

- Eu a obedecerei, mas gostaria de matar Aaron.

- Por quê?

- Porque Aaron está acabado. Aaron tem muito conhecimento e mente para você.

- Como assim, acabado?

- Ele fez o que eu vi que ele faria e quis que ele fizesse. Por isso digo acabado. Agora ele pode fazer o que eu posso ver e não quero que faça, que atrapalha minha ambição. Eu o mataria se isso não fosse lhe dar tristeza e ódio de mim.

- Você consegue sentir a minha raiva, não consegue?

- Ela me magoa profundamente, Rowan.

- Eu ficaria louca de dor e raiva se você fizesse algum mal a Aaron. Mas vamos falar mais sobre ele. Quero que você esclareça bem. O que você queria que Aaron fizesse que ele já fez?

- Que lhe entregasse seu conhecimento. Suas palavras escritas segundo a linearidade do tempo.

- Você está falando da história da família Mayfair em ordem cronológica?

- É. Da história. Você disse que eu esclarecesse; por isso não usei a palavra história.

Ela riu, baixinho.

- Você não precisa esclarecer tanto. Prossiga.

- Eu queria que você lesse essa história dada por ele. Petyr viu minha Deborah ser queimada, minha Deborah querida. Aaron viu minha Deirdre chorar no jardim, minha linda Deirdre. Suas reações e decisões recebem uma influência inestimável de uma história dessas. Mas essa missão de Aaron está cumprida.

- Entendo.

- Cuidado.

- De pensar que estou entendendo?

- Exatamente. Não pare de perguntar. Palavras como "reações" e "inestimável" são vagas.

Eu não esconderia nada de você, Rowan.

Ela o ouviu suspirar mais uma vez, mas foi um suspiro longo e delicado, que aos poucos se transformou num som diferente. Era como um suspiro do vento. Ela continuou recostada na lareira, deliciando-se com o calor do fogo, enquanto fixava nas sombras os olhos muito abertos. Parecia que ela sempre estivera aqui falando com ele, com essa voz incorpórea, porém com sua própria ressonância.

O som do suspiro quase lhe havia tocado o corpo inteiro, como o vento.

Ela deu um sorriso de prazer. Se se esforçasse, conseguiria vê-lo no salão; ver ondulações no ar, algo que se avolumava e preenchia o ambiente. - É... - disse ele. - Adoro seu riso. Não sei rir.

- Eu posso ajudá-lo a aprender.

- Eu sei.

Eu sou o portal?

- É.

- Sou a décima terceira bruxa?

- É.

- Então Michael estava certo na sua interpretação.

- Michael raramente se engana. Michael vê com clareza. - Você quer matar Michael?

-Não. Eu amo Michael. Gostaria de caminhar e conversar com Michael. - Por que, por que logo Michael?

- Não sei.

- Ora, você deve saber.

- Amar é amar. Por que você ama Michael? A resposta é a verdade? Amar é amar. Michael é inteligente e lindo. Michael ri. Michael tem muito do espírito invisível nele, impregnado nos seus membros, nos seus olhos e na voz. Você entende?

- Acho que sim. É o que chamamos de vitalidade. - Exato.

Mas essa palavra havia algum dia sido empregada com tanto significado?

- Eu vi Michael desde o início - prosseguiu ele. - Michael foi uma surpresa. Michael me vê.

Michael veio até a cerca. Além disso, Michael tem ambição e é forte.

Michael me amava. Agora Michael tem medo de mim. Você veio se colocar entre mim e Michael, e Michael receia que eu venha me colocar entre você e ele.

- Mas você não vai lhe fazer nenhum mal.

Nenhuma resposta.

- Você não vai lhe fazer nenhum mal.

- Mande-me não lhe fazer nenhum mal e eu obedecerei.

- Mas você disse que não queria! Por que faz as coisas andarem em círculos?

- Não há círculo nenhum. Eu lhe disse que não queria matar Michael. Michael pode ser ferido. O que devo fazer? Mentir? Eu não minto. Aaron mente. Eu não. Não sei mentir.

- Nisso eu não acredito. Mas pode ser que você acredite. - Você me magoa.

- Diga-me como isso irá terminar.

- Isso o quê?

- Minha vida com você, como irá terminar? Silêncio.

- Não quer me dizer? - Você é o portal.

Ela ficou sentada, imóvel. Sentia a própria cabeça funcionando. O soltava estalidos e as chamas dançavam diante dos tijolos. O movimento parecia lento demais para ser real. Mais uma vez o ar tremeluziu. Ela podia ver as longas gotas de cristal do lustre se mexendo, girando, refletindo pequenos fragmentos de luz.

- O que significa ser o portal? - Você sabe o que significa. - Não, não sei.

- Você pode alterar a matéria, Dra. Mayfair.

- Não tenho certeza se posso. Sou uma cirurgiã. Trabalho com instrumentos precisos.

- Ah, mas sua mente é muito mais precisa.

Ela franziu o cenho. A conversa estava trazendo de volta aquele sons estranho, o sonho de Leiden...

- Na sua vida, você estancou hemorragias - disse ele, sem se apresse com sua fala lenta e macia. - Fechou ferimentos. Fez com que a matéria me obedecesse.

O lustre criou uma melodia tilintante no silêncio. Ele refletia a dança das chamas.

- Você acalmou o coração disparado dos seus pacientes. Desobstrui vasos bloqueados no cérebro.

- Nem sempre eu tinha consciência...

- Você fez essas coisas. Você tem medo do seu poder, mas você possui. Vá lá fora no jardim à noite. Você poderia fazer com que as flores se abrissem. Você pode fazer com que elas se alonguem, como eu fiz.

- Ah, mas você fez isso só com flores mortas.

- Não, fiz com as vivas também. Com o íris que você viu, embora aquilo me deixasse exausto e ferido.

- E então o íris morreu e caiu da haste. - Foi. Eu não pretendia matá-lo.

- Você o fez atingir seus limites, sabe? Foi por isso que ele morreu. - E, eu não conhecia seus limites.

Ela se virou de lado. Tinha a impressão de estar num transe, e no entanto, como sua voz era perfeitamente nítida, como era exata sua pronúncia.

- Você não forçou apenas as moléculas nessa ou naquela direção - disse ela.

- Não, eu penetrei na estrutura química das células, exatamente com você faz. Você é o portal. Você compreende o próprio núcleo da vida.

- Não, você está superestimando meus conhecimentos. Não há quer compreenda isso.

Voltou-lhe a atmosfera do sonho, todos reunidos às janelas da Universidade de Leiden. O que era aquela turba na rua? Gente que considerava Jan van Abel um herege.

- Você não sabe o que está dizendo - disse ela.

- Eu sei. Eu vejo longe. Vocês me deram as metáforas e os termos. Através dos seus livros, eu também absorvi conceitos. Eu vejo o final. Eu sei. Rowan tem a capacidade de alterar a matéria. Rowan pode tomar milhares e milhares de células ínfimas e as reorganizar.

- E qual é o final? Eu vou fazer o que você quer? Mais uma vez, ele suspirou.

Sons farfalhantes nos cantos do salão. As cortinas enfunando-se com violência. E o lustre novamente cantando baixinho, com o vidro tocando no vidro. Aquilo seria uma camada de vapor que subia até o teto, que se ampliava até as paredes claras, cor de pêssego? Ou seria apenas a luz do fogo a dançar no canto dos seus olhos?

- O futuro é um tecido de possibilidades que se entrelaçam - disse ele. - Algumas vão aos poucos se tornando prováveis; algumas vão se tornando inevitáveis; mas existem surpresas inseridas na trama e na urdidura que podem rasgar o tecido.

- Graças a Deus por essa parte - disse ela. - Quer dizer que você não consegue ver o final.

- Vejo e não vejo. Muitos seres humanos são inteiramente previsíveis. Você não é previsível. Você é forte demais. Você pode ser o portal se quiser.

- Como?

Silêncio.

- Você afogou Michael no mar?

- Não.

- Alguém fez isso?

- Michael caiu de um rochedo no mar porque foi descuidado. Sua alma doía, e sua vida não era nada. Tudo isso estava escrito no seu rosto e nos seus gestos. Não seria necessário um espírito para perceber.

- Mas você chegou a perceber.

- Vi muito antes que acontecesse, mas não fiz com que acontecesse. Eu sorri. Porque vi você e Michael reunidos. Vi isso quando Michael era pequeno, me via e olhava para mim através da cerca do jardim. Vi a morte de Michael e seu salvamento pelas mãos de Rowan.

- E o que Michael viu quando se afogou?

- Não sei. Michael não estava vivo.

- O que você está querendo dizer?

-Que ele estava morto, Dra. Mayfair. Você sabe o que significa a morte. As células param de se dividir. O corpo já não se encontra mais sujeito a uma força organizadora ou a um complexo conjunto de ordens. Ele morre. Se eu tivesse entrado no seu corpo, poderia ter erguido seus braços e ouvido com seus ouvidos, porque o cadáver era recente, mas era um cadáver. Ele havia desocupado o corpo.

- Você tem certeza disso?

- Eu vejo a cena agora. Eu a vi antes que ocorresse. Eu a vi enquanto ocorria.

- Onde você estava enquanto aquilo estava acontecendo?

-Estava ao lado de Deirdre, para fazer Deirdre feliz, para fazê-la sair.

- Ah, quer dizer que você vê mesmo longe.

- Rowan, isso não é nada. Estou dizendo que vejo longe no ten espaço também não é linear para mim.

Mais uma vez, ela riu baixinho.

- Sua voz é tão linda que dá vontade de abraçar.

- Eu sou lindo, Rowan. Minha voz é a minha alma. Sem dúvida, eu uma alma. O mundo seria cruel demais se eu não tivesse.

Ela sentiu uma tristeza tão funda ao ouvir isso. Estava novamente com os olhos fixos no lustre, nas centenas de chamas minúsculas refletidas no cristal.

O ambiente parecia imerso em calor.

- Quero que me ame, Rowan - disse ele, com simplicidade. - Sou mais poderoso imaginável no seu universo e sou só eu para você, minha amada. Era como uma canção sem melodia. Era como uma voz compondo silêncio e música, se é possível se imaginar algo assim.

- Quando eu for carne, serei mais do que humano; serei algo de novo o sol. E muito mais importante para você do que Michael. Eu sou um misi infinito. Michael já lhe deu tudo o que pode dar. Não haverá mais mistério com seu Michael.

- Não, isso não pode ser verdade - sussurrou ela. Percebeu que h fechado os olhos. Estava com tanto sono. Forçou-se a olhar novamente o lustre. - Existe o infinito mistério do amor.

- O amor precisa ser cultivado, Rowan.

- Você está dizendo que eu tenho de escolher entre você e Michael.

Silêncio.

- Você forçou as outras a escolher? - Ela estava pensando em J Beth, em especial, e nos homens de Mary Beth.

- Eu vejo longe, como já lhe disse. Quando Michael parou diante portão anos atrás no tempo de vocês, eu vi que você faria uma escolha.

- Não me diga mais nada do que viu.

- Muito bem. Falar sobre o futuro sempre traz infelicidade aos s humanos. Seu ímpeto tem como base o fato de eles não conseguirem longe. Falemos do passado. Os humanos gostam de compreender o passado.

- Você tem outro tom de voz que não seja esse tom lindo e agradável; Você poderia ter dito essas últimas palavras com sarcasmo? Era esse o que você pretendia para elas?

- Posso ter a voz que eu queira, Rowan. Você ouve o que eu sinto nos meus pensamentos, no que eu sou, dor e amor. Emoções.

- Você está acelerando um pouco suas palavras. - Sinto dor.

- Por quê?

- Porque quero acabar com suas interpretações equivocadas. - Você quer que eu o torne humano.

- Quero ter um corpo.

- E eu posso lhe dar um corpo?

- Você tem o poder. E uma vez que uma coisa dessas se realize, outras semelhantes podem ser realizadas. Você é a décima terceira; você é a porta. - O que você quer dizer com "outras semelhantes"?

- Rowan, estamos falando de fusão; de transformações químicas; de reinvenção estrutural das células; de um novo relacionamento entre matéria e energia.

- Entendo o que está querendo dizer.

-Então, você sabe que, à semelhança da fissão, se isso for realizado uma vez, poderá ser realizado de novo.

- Por que ninguém mais pôde fazer isso antes de mim? Julien era poderoso.

- E o conhecimento, Rowan? Julien nasceu cedo demais. Permita-me mais uma vez usar o termo fusão, com um significado ligeiramente diferente. Até agora, falamos da fusão dentro das células. Vamos falar agora de uma fusão entre o seu conhecimento da vida, Rowan, e o seu poder inato. Aí está o segredo. É isso o que possibilita que você seja o portal.

- O conhecimento deste seu tempo era inimaginável até para Julien, que viu enquanto viveu invenções que pareciam simplesmente mágicas. Julien poderia ter previsto um coração aberto sobre uma mesa de operações? Um bebê concebido numa proveta? Não. E depois de você virão outros cujo conhecimento será vasto o suficiente até mesmo para definir o que eu sou.

- Você consegue se definir para mim?

- Não, mas tenho certeza de ser definível. E, quando eu for definido pelos mortais, então poderei me definir. Aprendo com vocês tudo que está relacionado a esse tipo de compreensão.

- É, mas você sabe algo de si mesmo que pode me dizer agora em linguagem precisa.

- ... que eu sou imenso; que preciso me concentrar para sentir minha força; que posso exercer a força; e que posso sentir dor na minha parte pensante.

- Ah, sim, e qual é essa parte pensante? E de onde vem a força que você exerce? Essas são as perguntas cabíveis.

- Eu não sei. Quando Suzanne me invocou, eu me reuni. Eu me comprimi bastante como se fosse para passar por um túnel. Senti que tinha uma forma e me fiz preencher a estrela do pentagrama que ela desenhou. E cada uma das suas pontas eu alonguei. Fiz com que as árvores tremessem e as folhas caíssem, e Suzanne me chamou de seu Lasher.

- E você gostou do que fez?

- Gostei. Que Suzanne visse. Que Suzanne gostasse. Se não fosse assim eu nunca mais teria feito aquilo, e sequer me lembraria disso.

- O que em você é físico, além da energia?

- Eu não sei! - A voz era baixa, mas cheia de desespero. - Você i diga, Rowan. Quero que me conheça. Acabe com a minha solidão.

O fogo estava se extinguindo no braseiro, mas o calor estava espalha por todo o salão. Ele a cercava e a abrigava como um cobertor. Ela se sentia sonolenta, mas intensamente alerta.

- Voltemos a Julien. Julien tinha tanto poder quanto eu.

- Quase, minha amada. Mas não a alcançava. E havia em Julien uma alma brincalhona e irreverente que dançava de um lado para o outro mundo, e que gostava de destruir tanto quanto de construir. Você é m, lógica, Rowan.

- E isso é uma qualidade?

- Você tem uma determinação inflexível, Rowan.

- Compreendo. Não prejudicada pelo humor, como podia acontecer com a de Julien.

- Exatamente, Rowan!

Ela riu baixinho. Depois, ficou calada, olhando fixamente para o ar que cintilava.

- Deus existe, Lasher?

-Não sei, Rowan. Com o tempo, formei uma opinião positiva, mas ele me enche de ódio.

- Porquê?

- Porque estou sofrendo. E, se Deus existe, ele criou meu sofrimento.

- É, isso eu entendo perfeitamente, Lasher. Mas ele criou o amor, também, se ele existe.

- É. O amor. O amor é a fonte do meu sofrimento. Ele é a fonte de toda a minha entrada no tempo, da minha ambição e dos meus planos. Todos os meus desejos têm origem no amor. Seria possível dizer que o que eu era quando eu era apenas eu, foi contaminado pelo amor; que, com a invocação de Suzanne, eu despertei para o amor e para o pesadelo do desejo. Mas eu amei. Eu vim.

- Você me deixa triste - disse ela, de repente.

- O amor me transformou, Rowan. Ele gerou minha primeira insatisfação.

É.

- E agora eu procuro me transformar em carne, e essa será a consumação do meu amor.

Esperei tanto por você. Presenciei tanto sofrimento antes de você. Se eu tivesse tido lágrimas para chorar, elas teriam sido derramada Deus sabe que para Langtry eu criei uma ilusão de mim mesmo chorando. E uma imagem verdadeira da minha dor.

Chorei não apenas por Stella, mas pc todas elas, as minhas bruxas. Quando Julien morreu, foi uma agonia. Foi tão imensa a minha dor que eu poderia ter me afastado, voltado para o mundo da lua, das estrelas e do silêncio. Mas já era tarde para mim. Eu não suportava minha solidão.

Quando Mary Beth me invocou, voltei para ela. Correndo. Olhei para o futuro. E vi mais uma vez o número treze. Vi a força cada vez maior das minhas bruxas.

Ela havia fechado os olhos novamente. O fogo já estava apagado. O salão, cheio do espírito de Lasher. Ela o sentia na pele embora ele não se mexesse, e a sua textura era tão leve quanto o próprio ar.

- Quando eu for de fato de carne, as lágrimas e o riso brotarão de mim por reflexo, como ocorre em você ou em Michael. Serei um organismo complexo.

- Mas não humano.

- Melhor do que humano.

- Mas não humano.

- Mais forte, mais resistente, pois serei a inteligência organizadora e meu poder é imenso, maior do que o poder em qualquer ser humano vivo. Serei uma coisa nova, como já lhe disse. Serei uma espécie que até o momento não existe.

- Você matou Arthur Langtry?

- Não foi necessário. Ele estava morrendo. O que viu acelerou sua morte.

- Mas por que apareceu para ele ?

- Porque ele era forte e podia me ver. Eu queria atraí-lo para dentro para que ele pudesse salvar Stella, pois eu sabia que Stella corria perigo. Carlotta era inimiga de Stella. Carlotta era tão forte quanto você, Rowan.

- Por que Arthur não ajudou Stella?

- Você conhece a história. Era tarde demais. Sou como uma criança em ocasiões como essas, no tempo. Fui derrotado pela simultaneidade porque estava atuando no tempo.

- Não estou entendendo.

- Enquanto eu aparecia para Langtry, os tiros estavam sendo dados no cérebro de Stella, provocando a morte instantânea. Eu vejo longe, mas não vejo todas as surpresas.

- Você não sabia.

- E Carlotta me enganou. Carlotta me induziu ao erro. Não sou infalível. Na verdade, posso me confundir com uma facilidade incrível. - Como assim?

- Por que eu lhe deveria dizer? Para que você me controle melhor? Você sabe como.

Através das emoções. Carlotta concebeu o assassinato como um ato de amor. Ela ensinou a Lionel aquilo em que ele devia pensar ao segurar o revólver e atirar em Stella. Não fui alertado pelo ódio, nem pela má intenção. Não prestei nenhuma atenção aos pensamentos amorosos de Lionel. E então Stella jazia ali à morte, chamando por mim em silêncio, com os olhos abertos, com um ferimento mortal, sem esperanças. E Lionel deu o segundo tiro, que expulsou o espírito de Stella do seu corpo para sempre.

- Mas você matou Lionel. Você o levou à morte.

- Matei.

- E Cortland? Você matou Cortland.

-Não. Eu lutei com Cortland, e ele procurou usar seu poder contra mim.

Fracassou e caiu na luta. Eu não matei o seu pai.

- Por que brigaram?

- Eu avisei a ele. Ele acreditava poder me dominar. Ele não era a minha bruxa. Deirdre era a minha bruxa. Você é minha bruxa. Cortland, não.

- Mas Deirdre não queria renunciar a mim. E Cortland estava defendendo os desejos dela.

- Com seus próprios objetivos. - Que eram quais?

- Isso agora é passado, sem importância. Você teve sua liberdade, para poder ser forte ao voltar. Você ficou fora do alcance de Carlotta.

- Mas você garantiu que isso acontecesse, e isso ia contra a vontade tanto de Deirdre quanto de Cortland.

- Por você, Rowan. Eu a amo.

- É, mas você percebe que aqui temos um modelo, não temos? Você não quer que eu o entenda. Depois que a criança nasce, você fica com a criança, não com a mãe. Foi isso o que aconteceu com Deborah e Charlotte, não foi? - Você me interpreta mal. Quando estou agindo no tempo, às vezes faço o que é errado.

- Você desrespeitou a vontade de Deirdre. Você se certificou de que eu fosse afastada. Você deu prosseguimento ao seu plano das treze bruxas, e isso foi para satisfazer seus objetivos. Você sempre trabalhou pelos seus próprios

objetivos, certo?

- Você é a décima terceira e a mais forte. Você sempre foi meu objetivo, e eu lhe servirei. Os seus objetivos e os meus são idênticos.

- Acho que não.

Ela agora sentia a sua dor; sentia a turbulência no ar; sentia a emoção como se fosse a vibração grave de uma corda de harpa, que tocasse para seu ouvido inconsciente. Uma melodia de dor. As cortinas balançaram mais uma vez, com uma corrente quente, e os dois lustres dos salões dançaram nas sombras, cheios de estilhaços de luz branca, já que o fogo se apagara, levando consigo as cores. – Você alguma vez foi um ser humano vivo? - Não sei.

- Você se lembra da primeira vez em que viu seres humanos? - Lembro.

- O que pensou?

- Que era impossível que o espírito se originasse da matéria; que era uma piada. O que você chamaria de ridículo, ou de trapalhada.

- Ele se originou da matéria.

-É verdade. Ele emergiu da matéria quando a organização atingiu o ponto apropriado para que ele surgisse, e nós ficamos surpresos com essa mutação.

- Você e os outros que já existiam.

- Na atemporalidade, já existíamos.

- E isso chamou sua atenção?

- Chamou. Porque era uma mutação e totalmente nova. Também porque fomos chamados a observar.

- Como?

-As inteligências recém-emergentes do homem, presas à matéria, mesmo assim nos perceberam e, com isso, fizeram que percebêssemos a nós mesmos. Insisto, essa é uma frase sofisticada e, portanto, parcialmente inexata. Durante milênios, essas inteligências espirituais humanas se desenvolveram. Elas pressentiram nossa existência.

Elas nos deram nomes, falaram conosco e procuraram nos seduzir. Quem prestasse atenção mudaria. Passamos a pensar em nós mesmos.

- Portanto, vocês aprenderam a consciência de si mesmos conosco. -Aprendemos tudo com vocês. A vergonha, o desejo, a ambição. Vocês são mestres perigosos. E ficamos insatisfeitos.

- Então, existem outros da sua espécie com ambição.

- Julien dizia que a matéria criou o homem e que o homem criou os deuses. Isso está parcialmente correto.

- Você alguma vez falou com um ser humano antes de Suzanne? - Não.

- Por quê?

- Não sei. Ouvi e vi Suzanne. Amei Suzanne.

- Quero voltar a Aaron. Por que você afirma que Aaron diz mentiras? - Aaron não revela o objetivo geral do Talamasca. - Você tem certeza disso?

- Claro. Como Aaron poderia mentir para mim? Eu sabia da chegada de Aaron antes que ele existisse. As advertências de Arthur Langtry eram para Aaron, quando ele nem mesmo sabia de Aaron.

- Mas por que Aaron mente? Quando, e em relação a quê, ele mentiu?

- Aaron tem uma missão. Da mesma forma que todos os irmãos do Talamasca. Eles a mantêm em segredo. Eles guardam segredo sobre grande parte do que sabem. São urna ordem ocultista, para usar termos que você entenda.

- Qual é esse conhecimento secreto? Essa missão?

- A de proteger o ser humano de nós. A de se certificar de que não haja mais portais.

- Você quer dizer que houve portais anteriormente?

- Houve. Houve mutações. Mas você é o maior de todos os portais. O que você pode realizar comigo será incomparável.

-Espere aí. Você quer dizer que outras entidades incorpóreas consegui ram penetrar no reino da matéria?

- Estou.

- Mas quem? O que elas são?

- Riso. Elas se escondem muito bem.

- Riso. Por que você disse isso?

- Porque estou rindo da sua pergunta, ma s não sei produzir o ruído da risada. Por isso, digo a palavra. Estou rindo de você por você não acredita que isso tenha ocorrido antes. Você, uma mortal, com todas as histórias fantasmas, de monstros da noite, e outros horrores semelhantes. Você não pensou que houvesse um fundo de verdade em todas essas histórias antiga Mas isso não é importante. A nossa fusão será mais perfeita do que qualquer outra no passado.

- Aaron sabe disso, é isso o que está dizendo? Que outros conseguir fazer a travessia?

- É.

- E por que ele quer me impedir de ser o portal?

- Por que você acha?

- Porque ele acredita que você seja maligno.

- Que eu não seja natural, é o que ele diria, o que é uma tolice, porque eu sou tão natural quanto a eletricidade, tão natural quanto as estrelas, tão natural quanto o fogo.

- Não natural. Ele teme o seu poder.

- É, mas ele é um bobo.

- Por quê?

- Rowan, como já lhe disse antes, se essa fusão puder ser feita uma vez poderá ser realizada novamente. Você não está me entendendo?

- Estou. No cemitério, são doze gavetas e uma porta.

- Isso, Rowan. Agora você está pensando. Quando você leu pe primeira vez seus livros de neurologia, quando pisou pela primeira vez r laboratório de pesquisas, qual foi sua impressão? A de que o homem ha v apenas começado a perceber as possibilidades da ciência atual, de que novos seres poderiam ser criados por meio de transplantes, enxertos, experiências in vitro com genes e células. Você viu a abrangência das possibilidades. Sua mente era jovem; sua imaginação, enorme. Você era o que os homens temem o cientista com a visão de um poeta. E você voltou as costas aos seus sonhos Rowan.

No laboratório de Lemle, você poderia ter criado novos seres a parte de seres existentes. Você preferiu recorrer a instrumentos brutais portanto temia o que poderia fazer.

Você se escondeu por trás do microscópio cirúrgico e substituiu seu poder pelos toscos micro-instrumentos de aço com os quais você corta os tecidos, em vez de criá-los.

Mesmo agora, você age partir do medo. Você quer construir hospitais onde as pessoas possam si curadas, quando você poderia criar novos seres, Rowan.

Ela continuou sentada, imóvel e calada. Ninguém jamais lhe havia falado com tanta precisão acerca dos seus pensamentos mais íntimos. Ela sentia calor e o tamanho da sua própria ambição. Sentia dentro de si a criança amor que havia sonhado com enxertos cerebrais e com seres sintéticos, antes que o adulto apagasse a chama.

- Será que você não tem um coração para entender os motivos, Lasher?

- Eu vejo longe, Rowan. Vejo um imenso sofrimento no mundo. Vejo o caminho dos acidentes e dos erros, e o que ele criou. Não me deixo ofuscar por ilusões. Ouço por toda parte os gritos de dor. E sei da minha própria solidão. Sei do meu próprio desejo.

- Mas a que você estará renunciando quando se tornar de carne e osso? Qual será o preço para você?

- Não me esquivo ao preço. Uma dor física não poderia ser pior do que o que sofri durante esses três séculos. Você gostaria de ser o que eu sou, Rowan? Um ser à deriva, solitário e eterno, que ouve as vozes carnais do mundo, isolado, e que anseia por amor e compreensão?

Ela não soube responder.

- Esperei toda a eternidade para ter um corpo. Esperei mais do que alcança a memória.

Esperei até que o frágil espírito do homem afinal adquirisse o conhecimento para que a barreira caísse. E eu serei carne, e será perfeito.

Silêncio.

- Compreendo por que Aaron tem medo de você.

-Aaron é pequeno. O Talamasca é pequeno. Eles não são nada! -A voz ficou fraca de raiva. O ar no salão estava quente e se movimentava como a água numa panela se movimenta antes de ferver. Os lustres se mexiam, embora não emitissem som, como se o som fosse levado embora pelas correntes de ar.

- O Talamasca tem o conhecimento - prosseguiu ele. - Eles têm o poder de abrir portais, mas se recusam a fazê-lo para nós. Eles são nossos inimigos. Preferem manter o destino do mundo nas mãos dos cegos e dos sofredores. E mentem. Todos eles mentem. Eles preservaram a história das Bruxas Mayfair porque ela é a história de Lasher, e eles lutam contra Lasher. É esse seu objetivo declarado. E eles a enganam com essa atenção voltada para as bruxas. E o nome de Lasher que deveria estar gravado nas capas das suas preciosas pastas encadernadas em couro. O arquivo está em código. Ele é a história do crescente poder de Lasher. Você não consegue ver o que se esconde por trás do código?

- Não faça nenhum mal a Aaron.

- Seu amor é irracional, Rowan.

- Você não gosta do meu lado bom, não é isso? Você gosta do que é mau.

- O que é o mal, Rowan? A sua curiosidade é má? O fato de você querer me estudar como estudou o cérebro de seres humanos? O fato de você querer aprender com as minhas células tudo o que fosse possível para beneficiar a grande causa da medicina? Eu não sou o inimigo do mundo, Rowan. Só quero fazer parte dele!

- Agora você está com raiva.

- Estou sofrendo. Eu a amo, Rowan.

- Querer não é amar, Lasher. Usar não é amar.

- Não, não fale assim comigo. Você me magoa. Você me fere.

- Se você matar Aaron, eu nunca serei seu portal.

- Uma coisa tão pequena com conseqüências tão grandes. - Lasher, mate-o, e eu não serei o portal.

- Rowan, estou sob suas ordens. Eu já o teria matado se não estivesse - O mesmo vale para Michael.

- Está bem, Rowan.

- Por que você disse a Michael que ele não poderia me impedir?

- Porque eu esperava que ele não pudesse e queria assustá-lo. Ele está sob a influência de Aaron.

- Lasher, de que modo eu deverei ajudá-lo?

- Eu saberei quando você souber, Rowan. E você sabe. Aaron sabe. - Lasher, nós não sabemos o que é a vida. Nem com toda a nossa ciência e todas as nossas definições sabemos o que a vida é ou como começou. O momento em que ela surgiu a partir de materiais inertes é um mistério total - Eu já estou vivo, Rowan.

- E como vou poder torná-lo carne? Você já entrou nos corpos dos mortos e dos vivos, mas não consegue se fixar neles.

- Isso pode ser feito, Rowan. - Sua voz estava tão baixa quanto um sussurro. - Com o meu poder e o seu, e com a minha fé, pois eu devo me entregar para concretizar o vínculo. E só nas suas mãos será possível a fusão total.

Ela contraiu os olhos, procurando ver formas, desenhos na escuridão. - Eu a amo, Rowan.

Você está cansada agora. Deixe-me acalmá-la, Rowan. Deixe-me tocá-la. - A ressonância da voz estava mais grave.

- Eu quero, eu quero uma vida feliz com Michael e com nosso filho. Turbulência no ar, algo que se concentrava, que se intensificava. Ela sentiu que o ar se aquecia.

- Minha paciência é infinita, Rowan. Eu vejo longe. Eu posso esperar. Mas você perderá o interesse pelos outros agora que me viu e que falou comigo.

- Não tenha tanta certeza, Lasher. Sou mais forte do que as outras. Sei muito mais do que elas.

- É verdade, Rowan. - A turbulência sombria estava ficando mais densa, como uma grande coroa de fumaça, só que não era fumaça, a circulai o lustre, afastando-se. Como teias de aranha numa corrente de ar.

- Eu posso destruir você? - Não.

- Por quê?

- Rowan, você está me torturando. - Por que não posso destruí-lo?

- Rowan, o seu dom é o de alterar a matéria. Eu não tenho nenhuma matéria que você possa atacar. Você pode destruir a matéria que eu organiza a fim de criar minha imagem, mas isso eu mesmo faço quando me desintegro.

Você já viu. Você poderia atingir minha imagem transitória num desses momentos de materialização, e você já o fez. Quando eu lhe apareci pela primeira vez. Quando a procurei junto da água. Mas você não pode destruir a mim. Eu sempre existi. Eu sou eterno, Rowan.

- E suponhamos que eu dissesse que está terminado agora, Lasher, que eu nunca mais o reconheceria. Que eu não seria o portal. Que sou, sim, o portal para a família Mayfair entrar nos séculos futuros, o portal para meu filho que ainda não nasceu e para as coisas com as quais sonho com minha ambição.

- Coisas pequenas, Rowan. Nada que se compare aos mistérios e possibilidades que eu ofereço. Imagine, Rowan, quando a mutação estiver completa e eu tiver um corpo, inspirado por meu espírito atemporal, imagine o que você poderá aprender com tudo isso.

- E, se isso acontecer, Lasher, se o portal for aberto e a fusão realizada, e você estiver diante de mim, em carne e osso, como você irá me tratar então?

- Eu a amaria com uma intensidade inimaginável, Rowan, pois você seria minha mãe, minha criadora e minha mestra. Como eu poderia deixar de amá-la? E como será trágica minha necessidade de você. Eu me agarrarei a você para aprender a me movimentar com meus novos membros, a ver, a falar e a r ir. Eu serei tão indefeso quanto um bebê nas suas mãos. Será que você não entende? Eu a adoraria, Rowan, minha amada. Eu seria seu instrumento para qualquer coisa que você quisesse, e teria vinte vezes mais força do que tenho agora. Por que está chorando? Por que está com lágrimas nos olhos?

- E uma ilusão. É uma ilusão de som e de luz, o encantamento que você provoca.

- Não. Eu sou o que sou, Rowan. É o seu raciocínio que a enfraquece. Você vê longe.

Sempre viu. Doze gavetas e um portal, Rowan.

- Não estou entendendo. Você está brincando comigo. Está me confundindo. Não consigo acompanhá-lo mais.

Silêncio, e mais uma vez aquele som, como se todo o ar estivesse suspirando. Uma tristeza, uma tristeza que a envolvia como uma nuvem, e as camadas ondulantes de sombras esfumaçadas que percorriam o salão, que se entrelaçavam nos lustres e enchiam os espelhos de escuridão.

- Você está em toda a minha volta, não está?

- Eu a amo -- disse ele, e sua voz era novamente baixa como um sussurro e muito próxima.

Ela achou que sentia lábios tocando seu rosto. Enrijeceu-se, mas estava com tanto sono.

-Afaste-se de mim - disse ela. -Quero ficar sozinha agora. Não tenho obrigação de amá-lo.

- Rowan, o que posso lhe dar? Que presente posso lhe trazer?

Mais uma vez, algo lhe roçou o rosto, algo a tocou, dando-lhe calafrios no corpo todo. Os bicos dos seios estavam duros sob a seda da camisola, e uma pulsação surda começou dentro dela, uma fome que ela sentia no peito e na garganta.

Ela procurou desanuviar a visão. Estava escuro aqui dentro agora. O fogo estava apagado. Mas apenas instantes atrás havia labaredas.

- Você está brincando comigo. - O ar parecia tocar todo o seu corpo.

- Você andou brincando com Michael.

- Não. - Foi um beijo delicado no seu ouvido. - Quando ele se afogou, as visões. Você as criou!

- Não, Rowan. Ele não estava aqui. Eu não podia acompanhá-lo para onde ele foi. Pertenço somente aos vivos.

- Você criou os fantasmas que ele viu quando estava sozinho aqui naquela noite, quando mergulhou sozinho na piscina?

- Não.

Ela estremeceu por inteiro, erguendo as mãos para afastar as sensações como se estivesse presa em teias de aranha.

- Você viu os fantasmas que Michael viu?

- Vi, mas foi através dos olhos de Michael que eu os vi. - O que eram eles?

- Não sei.

- Por que não sabe?

- Eram imagens dos mortos, Rowan. Eu sou desta terra. Não conheço os mortos. Não me fale dos mortos. Não sei nada de Deus ou de qualquer outra coisa que não pertença à terra.

- Meu Deus! Mas o que é esta terra? - Algo tocava sua nuca, erguendo delicadamente as mechas do seu cabelo.

- Isso aqui, Rowan, o universo em que você existe e o universo em que eu existo, paralelos e entrelaçados embora separados, no mundo físico. Eu pertenço ao mundo físico, Rowan. Sou tão natural quanto qualquer outra coisa nesta terra. Ardo de amor por você, Rowan, com uma pureza na qual o fogo não tem fim neste nosso mundo.

- Os fantasmas que Michael viu na noite do nosso casamento neste mesmo salão. Você fez com que ele os visse.

- Não.

- E você mesmo os viu? - Como uma pluma a afagar seu rosto.

- Através dos olhos de Michael. Eu não tenho todas as respostas que você quer de mim.

Algo a tocar seus seios; algo a acariciar seus seios e suas coxas. Ela se sentou sobre as pernas dobradas. O chão junto à lareira estava frio agora. - Afaste-se de mim! - sussurrou ela. - Você é maligno. - Não.

- Você veio do inferno?

- Você está brincando. Eu estou no inferno, querendo lhe dar prazer. - Pare com isso. Quero me levantar agora. Estou com sono. Não quero ficar aqui.

Ela se virou e olhou para a lareira enegrecida. Não havia mais brasas. Seus olhos estavam pesados, assim como suas pernas. Ela lutou para se por em pé, agarrando-se ao consolo da lareira, mas sabia que não conseguiria chegar à escada.

Deu a volta, caiu novamente de joelhos e se deitou no macio tapete chinês.

Como seda debaixo dela, e a solidez e o ar frio estavam tão gostosos. Ela teve a impressão de estar sonhando quando ergueu os olhos até o lustre. O medalhão de gesso branco parecia estar se mexendo, com suas folhas de acanto se contorcendo e se enroscando.

Todas as palavras que ela havia ouvido estavam de repente flutuando no seu cérebro. Algo a tocar seu rosto. Seus seios latejavam; seu sexo latejava. Pensou em Michael a quilômetros e mais quilômetros dali, e ficou angustiada. Como havia errado ao subestimar essa criatura!

- Eu a amo, Rowan.

- Você está acima de mim, não está? - Ela fixava os olhos nas sombras, agradecida pelo frio porque estava queimando por dentro como se houvesse absorvido todo o calor do fogo. Ela sentiu a umidade que a inundava e seu corpo, que se abria como uma flor. A carícia na parte interna das coxas, onde a pele era sempre mais macia e sem penugem; e as pernas que iam se abrindo como pétalas.

- Estou lhe dizendo que pare, que vou odiar.

- Eu a amo, minha querida. - Beijos nos ouvidos, nos lábios e depois nos seios. Ele chupava com força e ritmo, e os dentes lhe arranhavam os bicos.

-Não consigo agüentar mais - disse ela, baixinho, mas querendo dizer o contrário, que gritaria de agonia se ele parasse.

Seus braços foram abertos, e a camisola foi levantada. Ela ouviu a seda que se rasgava, e depois o tecido se soltava e ela estava deliciosamente nua, ali deitada, com mãos que lhe afagavam o sexo, só que não eram mãos. Era Lasher, Lasher, que a chupa ia e que a acariciava, com os lábios nos seus ouvidos, nas suas pálpebras, com toda a sua imensa presença a envolvê-la, até mesmo debaixo dela, acariciando-lhe a cintura e abrindo seu traseiro para afagar os lábios inferiores. E, abrindo-se como o grande íris roxo no jardim. Como as rosas que explodiam nas extremidades das suas hastes escurecidas e ásperas e as folhas com tantas pontas e veias minúsculas. Ela se debateu e se contorceu no tapete.

E quando ela se contorcia como unia gata no cio... Vá embora, velha. Você não está aqui!

Agora a minha vez.

- É a sua vez, a nossa vez.

Línguas lhe lambiam os bicos dos seios, bocas se fechavam sobre eles, puxando-os, arranhando-os com os dentes.

- Com mais força, mais violência. Violente-me, vamos! Use seu poder. Ele a ergueu de modo que sua cabeça caísse para trás, com os cabelos em cascata, os olhos fechados, as mãos abrindo o sexo, abrindo as coxas.

- Entre em mim, com força. Faça-se homem para mim, um homem duro! As bocas atacaram os bicos com mais força, com as línguas lambendo os seios, o ventre, os dedos puxando seu traseiro e arranhando suas coxas.

- O pau - sussurrou ela. Foi quando o sentiu, duro e enorme a penetrá-la. - Vamos, me rasgue, vamos! Me esmague! - Seus sentidos foram inundados pelo cheiro de um corpo limpo e rígido e de cabelos limpos, quando o peso caiu sobre ela e o pau a penetrou com violência, é, com mais força, como um estupro. Relance de um rosto, olhos de um verde-escuro, lábios. E depois um borrão quando os lábios abriram os seus.

Seu corpo estava pregado ao tapete, e o pau a queimava ao entrar, arranhando seu clitóris, mergulhando mais fundo na vagina. Eu não agüento mais. Não consigo suportar. E, parta-me ao meio. Devastada. O orgasmo a inundou; sua cabeça, vazia a não ser pela louca enxurrada de cores como ondas, enquanto a sensação turbulenta se espalhava para cima pelo seu ventre, seus seios, seu rosto, e para baixo pelas coxas, enrijecendo suas pernas e os músculos dos pés. Ela ouvia seus próprios gritos, mas eles eram distantes, sem importância, saindo da sua boca num prazer divino; e seu corpo sacudia indefeso, desprovido de vontade e de raciocínio.

Repetidas vezes, a explosão a escaldou. Inúmeras vezes, até que todo o tempo, toda a culpa, todo o pensamento fosse eliminado.

Manhã. Havia um bebê chorando? Não. Só o telefone a tocar. Sem importância.

Ela estava deitada na cama, debaixo das cobertas, nua. O sol se derramava pelas janelas da frente da casa. A lembrança do que acontecera lhe voltou, e uma pulsação dolorida teve início. O telefone, ou seria um bebê chorando? Um bebê dentro da casa, em algum lugar distante. Meio sonolenta, ela via suas perninhas se mexendo, com os joelhos dobrados, os pezinhos rechonchudos.

- Minha querida - sussurrou ele.

- Lasher - respondeu ela.

O choro havia desaparecido. Seus olhos se fecharam com a visão das vidraças brilhantes e do emaranhado de galhos de carvalho diante do céu.

Quando ela os abriu novamente, olhou espantada para seus olhos verdes, para seu rosto sombrio, de belas feições. Tocou a seda da sua boca com um dedo. Toda a solidez do seu peso fazia pressão sobre ela, com o pau entre suas pernas.

- Meu Deus, como você é forte.

- Para você, minha bela. - Os lábios revelavam um ínfimo brilho de dentes brancos quando as palavras eram pronunciadas. - Para você, minha divina.

E então veio o calor, o vento quente a soprar para trás seu cabelo e o turbilhão abrasador. E no límpido silêncio da manhã, à luz do sol que entrava pelas vidraças, tudo estava acontecendo de novo.

Ao meio-dia, ela estava sentada lá fora, junto à piscina. Subia um vapor da água para a luz fria do sol. Hora de desligar o aquecimento. O inverno havia realmente chegado.

No entanto, ela estava aquecida no seu vestido de lã. Escovava os cabelos. Ela o sentiu por perto e contraiu os olhos. É, podia ver mais uma vez a perturbação no ar, na realidade com muita nitidez, enquanto ele a envolvia como um véu que fosse lentamente enrolado nos seus ombros e braços.

- Afaste-se de mim - sussurrou ela. A substância invisível ficou grudada. Ela se sentou ereta e dessa vez sibilou as palavras. - Fora, eu já disse!

O que viu foi o bruxuleio de um fogo ao sol. E depois o frio, quando o ar recuperou sua densidade normal, quando voltaram as sutis fragrâncias do jardim.

- Eu lhe direi quando você pode aparecer. Não estarei à mercê dos seus caprichos ou da sua vontade.

- Como quiser, Rowan. - Era aquela voz interior que ela havia ouvido antes em Destin, a voz que parecia estar dentro da sua cabeça. - Você vê e ouve tudo, não é?

- Até mesmo seus pensamentos.

Ela sorriu, mas foi um sorriso frágil, feroz. Estava tirando os longos fios de cabelo da escova.

- E no que eu estou pensando?

- Está querendo que eu a toque novamente, que eu a cerque de ilusões. Que você gostaria de saber como é ser homem, e que eu a tomasse como faria com um homem.

O sangue lhe subiu ao rosto. Ela juntou os poucos cabelos louros da escova e os deixou cair no jardim cheio de samambaias ao seu lado, onde eles desapareceram em meio às folhagens escuras.

- Você pode fazer isso?

- Nós podemos fazer isso juntos, Rowan. Você pode ver e sentir muitas coisas.

- Fale comigo primeiro.

- Como queira. Mas você anseia por mim, Rowan.

- Você está vendo Michael? Sabe onde ele está?

- Estou, Rowan. Eu o estou vendo. Ele está em casa, organizando seus numerosos pertences. Está confuso entre recordações e expectativas. Está consumido pelo desejo de voltar para você. Ele só pensa em você. E você está pensando em me trair, Rowan. Está pensando em contar ao seu amigo Aaron que andou me vendo. Você sonha com a traição.

- E o que vai me impedir se eu quiser falar com Aaron? O que você pode fazer?

- Eu a amo, Rowan.

- Você agora não poderia ficar longe de mim, e você sabe disso. Você virá quando eu o chamar.

- Quero ser seu escravo, Rowan, não seu inimigo.

Ela se levantou, olhando para cima através da delicada folhagem da oliveira para os pedacinhos do céu pálido. A piscina era um enorme retângulo de uma vaporosa luz azul. O carvalho do outro lado oscilou com a brisa, novamente ela sentiu uma alteração no ar.

- Não se aproxime - disse ela.

Veio o inevitável suspiro, tão eloqüente de dor. Ela fechou os olhos. Em algum lugar muito ao longe um bebê estava chorando mesmo. Ela estava ouvindo. Devia ser numa daquelas casas grandes e silenciosas, que sempre pareciam tão desertas no meio do dia.

Ela entrou, fazendo com que os saltos dos sapatos batessem forte no chão Tirou a capa do armário do hall, toda a proteção de que precisava contra o frio e saiu pela porta da frente.

Durante uma hora, caminhou pelas ruas calmas e vazias. De quando em quando, um transeunte a cumprimentava com uma leve inclinação da cabeça Ou um cachorro atrás de uma cerca se aproximava para ganhar um carinho Ou ainda um carro passava ruidoso.

Ela procurava apenas ver as coisas, concentrar sua atenção no musgo que crescia nos muros ou na cor do jasmim emaranhado imóvel numa cerca. Procurava não pensar nem entrar em pânico. Procurava não querer voltar para dentro de casa. Afinal, porém, seus passos a levaram naquela direção, e ela estava parada diante do seu próprio portão.

Sua mão tremia quando ela enfiou a chave na fechadura. Nos fundos do hall, na porta da sala de jantar, ele estava parado, a observá-la.

- Não! Só quando eu mandar! - disse ela, e a força do seu ódio partiu à sua frente como um feixe de luz. A imagem desapareceu; e um súbito cheiro acre chegou às suas narinas. Ela tapou a mão com a boca. Em todo o ambiente ela sentiu o levíssimo movimento ondulante no ar. E depois nada. A casa estava em silêncio.

Novamente aquele som, o do bebê chorando.

- É você que está fazendo isso - sussurrou ela. Mas o som desapareceu. Ela subiu a escada até o quarto. A cama agora estava feita com esmero; as roupas de dormir, guardadas. As cortinas, abertas.

Ela trancou a porta. Tirou os sapatos de qualquer jeito, deitou-se sobre a colcha, abaixo do dossel branco, e fechou os olhos. Não podia mais resistir. A lembrança do prazer da noite passada provocou nela um calor profundo, causticante, uma dor, e ela enfiou o rosto no travesseiro, procurando se lembrar e não se lembrar, com os músculos se retesando e se relaxando.

- Venha então - sussurrou. Imediatamente, a substância suave e sobrenatural a envolveu.

Ela tentou ver o que estava sentindo, tentou entender. Algo diáfano e imenso, solte na sua textura ou na sua organização, para usar suas próprias palavras, e agora ele estava se concentrando, tornando-se denso, como o vapor se adensa para se transformar em água, como a água se adensa para virar gelo.

- Quer que eu assuma uma forma para você? Que crie ilusões?

- Não, ainda não. Seja como você é, e como você foi antes com todo o seu poder. - Ela já sentia as carícias no peito do pé e por baixo dos joelhos.

Dedos delicados que entravam deslizantes entre os seus dedos dos pés, e depois o náilon das meias que estalava, era rasgado e puxado. E sua pele respirando e formigando por inteiro nas pernas nuas.

Ela sentiu o vestido que se abria. Sentiu os botões que deslizavam das casas.

- E, um estupro de novo - disse ela. - Forte, violento e demorado.

De repente, ela foi jogada de costas na cama, com a cabeça forçada para um lado contra o travesseiro. O vestido estava rasgando, e as mãos invisíveis desciam pelo seu ventre. Alguma coisa parecida com dentes arranhava seu sexo nu; unhas roçavam suas pernas.

- É - disse ela, com os dentes cerrados. - Um sexo cruel.

 

Quantos dias e quantas noites se passaram? Ela francamente não sabia. A correspondência fechada estava empilhada sobre a mesa no hall. O telefone que tocava de vez em quando, em vão.

- É, mas quem é você? Por baixo de tudo isso. Quem está aí?

- Já lhe disse. Esse tipo de pergunta não significa nada para mim. Posso ser o que você quer que eu seja.

- Não basta.

- O que eu era? Um espectro. Infinitamente satisfeito. Não sei de onde surgiu a capacidade de amar Suzanne. Ela me ensinou o que era a morte quando foi queimada.

Ela soluçava enquanto a arrastavam até a pira. Ela não podia acreditar que fossem fazer aquilo com ela. Ela era uma criança, a minha Suzanne, uma mulher sem nenhuma compreensão da maldade humana. E minha Deborah foi forçada a assistir. E, se eu tivesse provocado a tempestade, as duas teriam sido queimadas.

Mesmo na sua agonia, Suzanne me controlou, para proteger Deborah.  Ela enlouqueceu, e sua cabeça batia com violência no poste ao qual estava amarrada. Até mesmo os aldeões estavam apavorados. Mortais grossos e estúpidos, que estavam ali para beber vinho e rir enquanto ela ardia. Mesmo essa gente não pôde suportar o som dos seus gritos. Depois eu vi a bela forma de carne e osso que a natureza lhe havia dado consumida pelo fogo como palha de milho num campo em chamas. Vi seu sangue se derramando sobre as achas ensurdecedoras. Minha Suzanne. Na perfeição da juventude e da força, queimada como uma vela de cera por uma turba de aldeões imbecis reunidos no calor da tarde.

Quem eu sou? Sou aquele que chorou por Suzanne quando ninguém mais chorou. Sou aquele que sentiu uma agonia infinita, quando até mesmo Deborah estava ali entorpecida, com os olhos fixos no corpo da mãe a se contorcer no fogo.

Sou aquele que viu o espírito de Suzanne deixar o corpo devastado pela dor. Vi que ele alçava vôo, liberto, sem preocupações. Eu tenho uma alma se ela pôde experimentar essa alegria, a de que Suzanne não mais sofreria. Tentei alcançar seu espírito, ainda com o formato do seu corpo, pois ela ainda não sabia que aquela forma já não era mais exigida, e procurei penetrar e me concentrar para tomar para mim o que agora era como eu.

Mas o espírito de Suzanne passou por mim. Não prestou a mim uma atenção nem um pouco maior do que a que prestou à casca que ardia na fogueira. Subiu para além de mim e para longe de mim, e não houve mais Suzanne.

Quem eu sou? Sou Lasher, que se espalhou por todo o mundo, atravessado pela dor da perda de Suzanne. Sou Lasher, que se concentrou, criou tentáculos com seu poder, e açoitou a aldeia até seus moradores correrem à procura de abrigo, assim que minha querida Deborah foi levada embora. Devastei a aldeia de Donnelaith. Persegui o juiz de bruxas pelo s campos afora, a pedradas. Quando eu terminei, não sobrava ninguém para contar a história. E minha Deborah, levada por Petyr van Abel, para sedas e cetins, esmeraldas e homens que pintariam seu retrato. Eu sou Lasher, que chorou pela tola Suzanne e jogo u suas cinzas aos quatro ventos. Foi assim meu despertar para a existência, para a consciência de mim mesmo, para a vida e a morte, para prestar atenção.

Aprendi mais naquele período de vinte dias do que em toda a graciosa eternidade em que havia observado os mortais ocupando a face da terra, como uma raça de insetos, com a mente que brota da matéria, mas que fica atrelada a ela, inútil como uma mariposa cuja asa foi pregada na parede.

Quem eu sou? Eu sou Lasher, que desceu para se sentar aos pés de Deborah e aprender a ter um objetivo, a atingir metas, a cumprir a vontade de Deborah com perfeição para que ela não sofresse. Lasher, que tentou e fracassou.

Volte as costas a mim. Volte. O tempo não é nada. Esperarei que venha uma outra tão forte quanto você. Os humanos estão mudando. Seus sonhos estão cheios de previsões dessas mudanças. Ouça as palavras de Michael. Michael sabe. Os mortais sonham sem parar com a imortalidade, à medida que suas vidas se alongam. Eles sonham com um vôo sem obstáculos. Virá uma outra que derrubará as barreiras entre o que tem corpo e o que não tem corpo. Eu farei a travessia. E que eu quero isso demais para que não dê certo. Além disso, sou muito paciente, muito esperto no que aprendi e muito forte.

O conhecimento está aqui agora. A explicação completa da origem da vida material está à mão, sim. A criação de réplicas é possível, sim. Se quiser, volte os olhos ao quarto de Marguerite naquela noite em que a tive no corpo de um morto e que forcei meu cabelo a assumir a cor que eu queria para mim.

Volte a atenção àquela experiência. No tempo ela está mais próxima dos selvagens pintados que viviam em cavernas e caçavam com lanças do que de você, no seu hospital e no seu laboratório.

É o seu conhecimento que intensifica o seu poder. Você entende o que é o núcleo e o protoplasma. Você sabe o que são os cromossomos, o que são os genes, o que é o DNA.

Julien era forte. Charlotte era poderosa. Petyr van Abel era um gigante entre os homens. E em você ainda há uma outra espécie de força. Uma audácia, uma fome e uma solidão. E essa fome e essa solidão eu conheço e beijo com os lábios que não tenho, abraço com braços inexistentes, aperto de encontro ao coração em mim que não está ali para pulsar com calor.

Pode me evitar. Pode ter medo de mim. Eu espero. Não vou fazer nenhum mal ao seu precioso Michael. Mas ele não pode amá-la como eu posso porque ele não pode conhecê-la como eu a conheço.

Rowan, conheço as entranhas do seu corpo e do seu cérebro. Eu queria ser carne, Rowan; queria me fundir com a carne e ser sobre-humano na carne. E quando isso for feito, que metamorfose pode ser a sua, Rowan? Reflita sobre o que estou dizendo.

Eu vejo o seguinte, Rowan. Como sempre vi, que a décima terceira seria a força para abrir a porta. O que eu não consigo ver é como existir sem o seu amor. Pois sempre amei você. Amei aquela parte sua presente naqueles que vieram antes. Amei você em Petyr van Abel, que de todos foi o mais parecido com você. Amei você até mesmo na minha doce Deirdre, inválida, indefesa, a sonhar com você. Silêncio.

Há uma hora, não se ouvia nenhum som, nem vibração no ar. Só a casa de novo, com o frio do inverno do lado de fora, clara, limpa, sem ventos.

Eugenia não estava. O tele fone tocava novamente no vazio.

Ela estava sentada na sala de jantar, com os braços pousados na mesa encerada, olhando a extremosa ossuda, desfolhada e lustrosa, tentando arranhar o céu azul.

Levantou-se, afinal. Vestiu o casaco de lã vermelha, trancou a porta atrás de si e saiu pelo portão aberto, seguindo pela rua.

O ar frio dava uma sensação gostosa e purificante. As folhas dos carvalhos, com o avanço do inverno, estavam escurecidas e encolhidas, mas ainda verdes.

Ela entrou em St. Charles e caminhou até o Pontchartrain Hotel.

No pequeno bar, Aaron já estava esperando à mesa, com um copo de vinho, o caderno de couro aberto, a caneta na mão.

Ela parou diante dele, consciente da surpresa no seu rosto quando olhou para ela. Será que seu cabelo estava despenteado? Estaria parecendo cansada?

- Ele sabe tudo que eu penso, tudo que eu sinto, o que tenho a dizer.

- Não, isso não é possível, Rowan. Sente-se. Fale para mim.

-Não consigo controlá-lo. Não consigo expulsá-lo. Acho... acho que o amo - disse ela, baixinho. - Ele ameaçou ir embora se eu contasse para você ou para Michael. Mas ele não quer ir. Ele precisa de mim. Precisa que eu o veja e esteja perto dele. Ele é esperto, mas não tão esperto assim. precisa que eu lhe proporcione um objetivo e que o aproxime da vida.

Ela olhava fixamente para o comprido bar, para o homenzinho careca extremidade do balcão, uma criatura gorducha com uma boca praticamente sem lábios, e para o barman, que dava brilho em algum objeto como sempre fazem seus colegas de profissão. Fileiras de garrafas cheias de veneno. L silêncio aqui. Pouca iluminação.

Ela se sentou, virou e olhou para Aaron.

- Por que mentiu para mim? Por que não me disse que foi enviado pa cá para deter Lasher?

- Não vim para cá para detê-lo. Nunca menti.

- Você sabe que ele pode fazer a travessia. Você sabe que é esse objetivo dele, e se dedica a impedi-lo. Sempre se dedicou.

- Sei do que li na história, da mesma forma que você. Eu lhe entreguei tudo.

- É, mas você sabe que isso já aconteceu antes. Você sabe que existem no mundo criaturas semelhantes a ele que encontraram um portal.

Não houve resposta.

- Não o ajude - disse Aaron.

- Por que não me contou?

- Você teria acreditado se eu lhe tivesse contado? Não vim para lhe contar fábulas. Não vim para induzi-la a entrar para o Talamasca. Dei-lhe informação que tinha sobre sua vida, sua família, o que era real para você.

Ela não respondeu. Ele estava dizendo parte da verdade, aquela conhecida por ele, mas escondia algo. Todos escondiam algo. As flores sobre mesa escondiam algo.

Que toda vida é um processo impiedoso. Lasher era um processo.

- Essa criatura é uma imensa colônia de células microscópicas. Elas se alimentam de ar como uma esponja se alimenta do mar, devorando partícula! tão minúsculas que o processo é contínuo e passa perfeitamente despercebido do organismo, das próprias organelas ou de qualquer coisa presente no ambiente. No entanto, todos os ingredientes básicos da vida estão ali estrutura celular, com quase toda certeza, aminoácidos e DNA, bem come uma força organizadora que aglutina o todo, independentemente do sei tamanho, e que agora reage com perfeição à consciência do ser que pode reformular a entidade inteira à sua vontade.

Ela parou, examinando seu rosto para descobrir se ele estava oi: não entendendo. Mas isso importava? Ela agora compreendia. Isso era c principal.

- Ele não é invisível; é simplesmente impossível de se ver. Ele não é sobrenatural. É apenas capaz de atravessar a matéria mais densa por suas células serem muitíssimo menores. Mas elas são eucariontes. As mesmas células que compõem o seu corpo ou o meu. De que modo ele adquiriu inteligência? Como chega a pensar? Não sei dizer, da mesma forma que não sei lhe dizer como as células do embrião sabem formar olhos, dedos, fígado, coração e cérebro. Não há na face da terra um cientista que saiba por que um ovo fertilizado gera um pintinho, ou por que uma esponja, mesmo pulverizada, volta à sua forma perfeita, com cada célula fazendo exatamente o que deve, num período de dias apenas.

Quando soubermos isso, saberemos por que Lasher tem intelecto, pois ele possui uma força organizadora semelhante, sem um cérebro discernível. Basta dizer por agora que ele é pré-cambriano e auto -suficiente e que, se não for imortal, sua vida talvez possa durar bilhões de anos. É concebível que ele tenha absorvido sua consciência da espécie humana; que, se a consciência emite alguma energia palpável, ele se alimentou dessa energia e uma mutação criou sua mente. Ele continua a se alimentar da consciência das Bruxas Mayfair e seus companheiros, e daí brota seu conhecimento, sua personalidade e sua vontade.

É também concebível que ele tenha começado um processo rudimentar de simbiose com formas superiores da matéria, capazes de atrair estruturas moleculares mais complexas para ele quando se materializa, simbiose que ele, então, desfaz antes que suas próprias células fiquem irremediavelmente presas a essas partículas mais pesadas. E essa dissolução se realiza num estado que beira o pânico. Pois ele teme uma união imperfeita, da qual não possa se livrar.

Mas seu desejo de ser carne é tão forte que ele agora se dispõe a arriscar tudo para ter sangue quente e ser antropomórfico.

Ela parou mais uma vez.

- Talvez todas as formas de vida sejam pensantes - prosseguiu ela, com os olhos passeando pelo ambiente pequeno, pelas mesas vazias. - Talvez as flores nos observem.

Talvez as árvores pensem e nos odeiem por podermos andar. Ou talvez, talvez elas não se importem. O que é apavorante em Lasher é que ele começou a se importar!

- Detenha-o - disse Aaron. - Agora você sabe o que ele é. Detenha-o. Não permita que ele assuma a forma humana.

Ela não disse nada. Olhou para a lã vermelha do casaco, de repente espantada com a cor. Nem mesmo se lembrava de tê-lo tirado do armário. Estava com a chave na mão, mas não trazia bolsa. Só sua conversa era real, e ela estava consciente da sua própria exaustão, da fina camada de suor nas suas mãos e no rosto.

- O que você disse é brilhante, Rowan. Você o tocou e o entendeu. Agora use o mesmo conhecimento para mantê-lo afastado.

- Ele vai matá-lo - disse ela, sem olhar para ele. - Sei que vai. É o que quer. Posso refreá-lo, mas o que posso usar para negociar com ele? Ele sabe que estou aqui. - Ela deu um risinho, com os olhos percorrendo o teto Ele está conosco. Ele conhece todos os truques de que disponho. Está em parte. Como Deus. Só que não é Deus!

- Não. Ele não sabe tudo. Não permita que ele a engane. Examine a história. Ele comete erros demais. E você tem seu amor para manipular criatura. Use sua determinação para entrar em acordo com ele. Além do rr por que ele ia querer me matar? O que posso fazer contra ele? Convencê-la a não ajudá-lo? Seu sentido de moral é mais forte e mais preciso do que o nosso.

- O que o fez pensar uma coisa dessas? - disse ela. - Que senso moral? - Ocorreu-lhe que estava a ponto de entrar em colapso, que precisava sair dali e voltar para casa, onde pudesse dormir. Mas ele estava lá, à espera. Ele estaria onde quer que ela fosse. E ela havia vindo ali por motivo: o de avisar Aaron. O de dar a Aaron uma última oportunidade.

Mas seria tão bom voltar para casa, dormir de novo, se ao menos ela i ouvisse aquele bebê chorando. Sentia que Lasher a envolvia com s, inúmeros braços, aconchegando-a num calor etéreo.

- Rowan, preste atenção.

Ela despertou como se de um sonho.

- Em todas as partes do mundo, existem seres humanos com pode excepcionais - dizia ele. - Mas você é um dos mais raros por ter encontrado um meio de usar seu poder para fazer o bem. Você não examina uma bi de cristal em troca de dólares, Rowan. Você cura. Você conseguiria atraí• para acompanhá-la nessa atividade? Ou será ele que vai afastá-la disto para sempre? Será que ele não vai extinguir seu poder com a criação de alga tipo de monstro mutante que o mundo não quer e que não pode suporte Destrua-o, Rowan. Para o seu próprio bem. Não para o meu. Destrua-o e nome do que você sabe ser certo.

- É por isso que ele vai matá-lo, Aaron. Eu não consigo detê-lo se você o provoca. Mas por que é tão errado? Por que você se opõe tanto a isso? Por que mentiu para mim?

-Eu nunca menti. E você sabe por que isso não deve acontecer. Ele se uma coisa sem uma alma humana.

- Isso é religião, Aaron.

- Rowan, ele não seria natural. Não precisamos de mais nenhum monstro. Nós mesmos já somos monstruosos o suficiente.

- Ele é tão natural quanto nós. É isso o que venho tentando lhe diz,

- Ele é tão diferente de nós quanto um inseto gigante, Rowan. Você criaria uma coisa desse tipo? Isso não era para acontecer.

- Não era. E as mutações são para acontecer? A cada segundo de cada minuto de cada dia, as células estão em mutação.

- Dentro de certos limites. Dentro de uma trajetória previsível. Os gatos não voam. Não nascem chifres nos homens. Existe um programa geral, e nós podemos passar a vida inteira a estudá-lo e a nos maravilharmos com o fato de ele ser tão magnífico. Lasher não faz parte desse programa.

- É o que você acha, mas e se não houver programa nenhum? E se o que houver for apenas um processo, apenas células que se multiplicam, e a sua metamorfose for tão natural quanto um rio que muda seu curso e encobre lavouras, casas, gado e pessoas? Como um cometa que colidisse com a terra?

- Você não procuraria salvar seres humanos que estão se afogando? Você não tentaria salvá-los do fogo do cometa? Está bem. Diga que ele é natural. Consideremos, então, que somos melhores do que natural. Nós almejamos mais do que o simples processo.

Nossa moral, nossa compaixão, nossa capacidade de amar e de criar uma sociedade civilizada nos fazem melhores do que a natureza. Ele não tem nenhuma reverência por nada disso, Rowan. Olhe o que ele fez à família Mayfair.

- Ele a criou, Aaron!

- Não, não posso aceitar isso. Não posso.

- Você ainda está falando de religião, Aaron. Está falando com um moralismo empedernido. Não existe nenhum raciocínio lógico seguro para condenar Lasher.

- Mas existe. Tem de existir. A peste é natural, mas ninguém soltaria os bacilos da proveta para destruir milhões. Rowan, pelo amor de Deus, nossa consciência foi educada pela carne da qual surgiu. Como nós seríamos sem a capacidade de sentir dor física? E essa criatura, Lasher, nunca sangrou do menor ferimento que fosse. Ele nunca foi castigado pela fome nem estimulado pela necessidade de sobreviver. Ele é uma inteligência imoral, Rowan, e você sabe disso. Você sabe. E é isso o que eu chamo de não natural, por me faltar um termo melhor.

- Mera poesia moralista - disse ela. - Você me decepciona. Eu esperava que você me desse argumentos em troca do meu aviso. Esperava que você fortalecesse minha alma.

- Você não precisa dos meus argumentos. Examine sua própria alma. Você sabe o que eu estou tentando lhe dizer. Ele é um raio laser provido de ambição. É uma bomba com raciocínio próprio. Permita sua passagem, e o mundo irá pagar por isso. Você será a mãe de uma catástrofe.

- Catástrofe - sussurrou ela. - Que linda palavra.

Como ele lhe parecia frágil. Pela primeira vez ela via sua idade nas rugas fundas do seu rosto, nas bolsas macias de carne em volta dos olhos claros, suplicantes.

De repente, ele lhe pareceu fraco, tão desprovido da sua habitual eloqüência e graça. Apenas um velho de cabelos brancos, a observá-la, cheio de um espanto infantil.

Sem absolutamente nenhuma sedução.

- Você sabe o que isso poderia acabar representando, não sabe? - perguntou ela, entediada. -

- Quando se consegue eliminar o medo?

- Ele está mentindo para você. Está dominando sua consciência.

- Não ouse, me dizer isso! - disse ela, sibilante. - Não é coragem da sua parte, é burrice. - Ela se encostou na cadeira procurando se acalmar. Em outros tempos, havia amado esse homem. Mesmo agora, não queria que sofresse nenhum mal. - Você não consegue ver o fim inevitável? - perguntou ela, conciliadora. - Se a mutação tiver sucesso, ele poder, propagar. Se as células puderem ser enxertadas e multiplicadas em outros corpos humanos, todo o futuro da espécie humana pode ser alterado. Estar falando de acabar com a morte. - O eterno fascínio - comentou Aaron, em tom amargo. - A eterna mentira.

Ela sorriu ao ver que ele perdia o controle.

- Seu excesso de devoção me cansa. A ciência sempre foi o segredo. bruxas sempre foram simplesmente cientistas. A magia negra era um esforço no sentido da ciência.

Mary Shelley viu o futuro. Os poetas sempre vêem as crianças na terceira fileira do cinema sabem disso, quando vêem o Frankenstein criar o monstro e erguê-lo em meio a uma tempestade elétrica.

- É uma história de horror, Rowan. Ele alterou a sua consciência.

- Não me insulte desse modo outra vez - disse ela, debruçando-se por cima da mesa. - Você é velho, e não lhe restam muitos anos de vida. Gosto de você pelo que você me deu, e não quero machucá-lo. Mas não me provoque e não provoque Lasher. O que estou dizendo é a verdade.

Ele não lhe respondeu. Caiu num desconcertante estado de calma. E descobriu que seus pequenos olhos de avelã de repente se tornavam indecifráveis e ficou assombrada com a força de Aaron. Isso fez com que sorrisse.

- Você não acredita no que estou lhe dizendo? Você não quer registre nos seus arquivos?

Percebi isso no laboratório de Lemle quando vi aquele feto ligado a todos aqueles pequenos tubos. Você nunca soube por que e matei Lemle, não é? Sabia que fui eu, mas não conhecia o motivo. Lemle estava no comando de um projeto no Instituto. Ele colhia células de fetos vivos e as usava em transplantes. Isso está sendo feito também em outros lugares. Dá para se ver as possibilidades, mas imagine experiências que envolvessem as células de Lasher, células que resistiram e sustentaram consciência por bilhões de anos.

- Quero que ligue para Michael e lhe peça que volte para casa.

- Michael não tem condições de detê-lo. Só eu posso detê-lo. Michael que fique onde não corre perigo. Você quer que Michael morra também?

- Preste atenção. Você pode fechar sua mente para essa criatura. Você pode esconder seus pensamentos dele com um simples ato da sua vontade. Existem técnicas tão antigas quanto as religiões mais antigas da terra destinadas a nos proteger dos demônios. Ele só lê na sua mente o que você projeta até ele. Não é diferente da telepatia. Experimente e verá.

- E por que eu deveria fazê-lo?

- Para se permitir tempo. Para se proporcionar um lugar seguro para uma decisão moral.

-.Não, você não compreende o poder que ele tem. Nunca compreende E não sabe como ele me conhece bem. Eis a questão. O que ele sabe de mim - Ela abanou a cabeça.

-Não quero fazer o que ele quer. Não quero mesmo. Mas é irresistível, entende?

- E os seus sonhos do Centro Médico Mayfair?

- Ellie estava com a razão - disse ela, recostando-se na parede e desviando novamente o olhar, com as luzes do bar ligeiramente embaçadas. - Ellie sabia. O sangue de Cortland corria nas suas veias, e ela podia prever o futuro. Talvez fossem apenas formas e sensações indefinidas, mas ela sabia. Eu nunca deveria ter voltado para cá. Ele usou Michael para garantir que eu viesse. Eu sabia que Michael estava em Nova Orleans e, como uma cadela no cio, voltei por esse motivo!

- Você não está dizendo a verdade. Quero que suba e que fique comigo.

- Você é tão bobo. Eu poderia matá-lo aqui neste instante, e ninguém jamais saberia. Ninguém a não ser a sua confraria e o seu amigo Michael Curry. E o que eles poderiam fazer? Está tudo terminado, Aaron. Eu posso lutar, posso recuar alguns passos e posso até conquistar uma vantagem ocasional. Mas está acabado. Michael estava destinado a me trazer de volta e me manter aqui, e cumpriu sua missão. Ela começou a se levantar, mas ele segurou sua mão. Ela olhou para os dedos. Tão velhos. Sempre se pode dizer a idade de uma pessoa pelas mãos. E os outros estariam prestando atenção a eles? Não importava. Nada importava neste pequeno ambiente. Ela começou a se afastar.

- E seu filho, Rowan?

- Michael lhe contou?

- Não precisou me contar. Michael foi enviado para amá-la para que você pudesse expulsar essa criatura de uma vez por todas. Para que você não tivesse de lutar sozinha.

- Você soube isso também sem que lhe dissessem? - E, da mesma forma que você sabe. Ela conseguiu soltar a mão.

- Vá embora, Aaron. Vá para bem longe. Vá se esconder na casa-matriz em Amsterdã ou em Londres. Esconda-se. Você vai morrer se não se esconder. E, se ligar para Michael, se você o chamar de volta para cá, eu lhe juro que eu mesma o mato.

 

Absolutamente tudo havia dado errado. O telhado em Liberty Street estava vazando quando ele chegou, alguém havia arrombado a loja de Castro Street por um mísero punhado de dólares na caixa. Seu imóvel em Diamond Street também havia sofrido vandalismo, e ele levou quatro dias para deixá-lo limpo antes de pô-lo à venda. Some-se a isso uma semana para encaixotar as antiguidades de tia Viv, e embalar todas as suas bugigangas para que não quebrassem. E ele receava confiar no pessoal da mudança. Depois, teve de trabalhar com o contador três dias inteiros para ordem seus impostos. Já 14 de dezembro, e ainda havia tanta coisa a fazer.

Praticamente o único ponto positivo foi o de tia Viv ter recebido primeiras caixas intactas e ter ligado para dizer como estava feliz p novamente com seus objetos queridos. Michael sabia que ela havia para um clube de costura com Lily, e lá faziam petit point ao som de Ela achava extremamente elegante. E agora que sua mobília estava vindo, ela podia convidar todas aquelas simpáticas senhoras da família T para vir à sua casa. Michael era um amor. Simplesmente um amor.

- E eu vi Rowan no outro domingo, Michael. Ela estava dando um passeio, neste frio terrível, mas sabe, ela afinal está começando a ganhar peso. Eu não quis dizer isso antes, mas ela andou tão magra e tão pálida. É maravilhoso ver uma cor de verdade no seu rosto.

Ele teve de rir com isso, mas sentia uma falta insuportável de Rowan havia planejado ficar longe tanto tempo. Cada telefonema só piorava com aquela famosa voz aveludada o deixando louco.

Ela era compreensiva acerca das catástrofes imprevistas, mas ele sabia da preocupação por trás das suas perguntas. E ele não conseguia fazer nada depois das ligações. Ficava fumando um cigarro atrás do outro, bebendo cerveja demais e prestando atenção à interminável chuva de inverno.

San Francisco estava agora na estação úmida, e a chuva não parava sua chegada. Nem um pouco de céu azul, nem mesmo acima do mor Liberty Street, e o vento parecia querer rasgar suas roupas quando ele pôs os pés na rua. Agora usava as luvas o tempo todo só para se manter aquecido.

Agora, afinal, a velha casa estava quase vazia. Não restava nada a abrir nas duas últimas caixas no sótão. E, por uma curiosa coincidência, pequenos tesouros eram o que ele havia vindo buscar para levar consigo para Nova Orleans. Ele estava ansioso para terminar.

Como tudo lhe havia parecido estranho: os cômodos menores do que lembrava e a calçada em frente tão suja. A minúscula aroeira plantada parecia estar a um passo da morte. Era impossível que ele tivesse vivido tantos anos aqui dizendo a si mesmo que era feliz.

Impossível, também, que ele precisasse ter de passar mais uma se matando de trabalhar, fechando e rotulando caixas na loja, examinando recibos de impostos e preenchendo vários formulários. É claro que ele mandar a firma de mudança fazer isso, mas não valia a pena levar alguns itens. E a separação era um pesadelo, com todas aquelas pequenas decisões.

- Melhor fazer agora do que deixar para depois. - Rowan lhe disse naquela tarde quando ele ligou para ela. - Mas quase não dá para agir.  Diga uma coisa, você não mudou de idéia? Estou querendo falar de toda a mudança. Não há momentos em que você simplesmente preferia continuar no lugar em que largou, como se não existisse Nova Orleans?

- Você está maluca? Eu só penso em voltar para você. Vou sair daqui antes do Natal. Não importa o que esteja acontecendo.

- Amo você, Michael. - Ela podia dizer isso mil vezes, que sempre parecia espontâneo. Era uma agonia não poder abraçá-la. Mas não havia um tom sombrio na sua voz, algo que ele não havia notado antes?

Michael, queime tudo o que sobrou. É só fazer uma fogueira no quintal, pelo amor de Deus. Venha logo.

Ele lhe prometeu que terminaria na casa nessa noite, nem que morresse de tanto trabalhar.

- Não aconteceu nada, certo? Quer dizer, você não está assustada, está, Rowan?

-Não, não estou assustada. É a mesma casa lindíssima que você deixou. Ryan mandou entregarem uma árvore de Natal. Você precisa ver. Ela alcança o teto. Está só ali no salão, esperando que você e eu a decoremos. O perfume das folhas do pinheiro está em todos os cantos da casa.

- Isso é maravilhoso. Tenho uma surpresa para você... para a árvore.

- Tudo o que eu quero é você, Michael. Volte logo.

Quatro da tarde. A casa estava agora realmente vazia, oca e cheia de ecos. Ele parou no seu antigo quarto, que dava uma vista dos telhados escuros e reluzentes espalhados morro abaixo no bairro de Castro e, mais ao longe, os grupos de arranha-céus cinza chumbo do centro da cidade.

Uma grande cidade, sim, e como ele poderia não se sentir grato por todas as coisas maravilhosas que ela lhe havia proporcionado? Uma cidade talvez incomparável.

Mas já não era mais sua cidade. E sob um certo aspecto, nunca havia sido. Voltar para casa.

Mas ele havia se esquecido novamente. As caixas no sótão, a surpresa, os objetos que ele queria acima de tudo.

Levando consigo o plástico de embalagens e uma caixa de papelão vazia, ele subiu pela escada, curvando-se sob o telhado inclinado, e ligou a lâmpada. Tudo estava limpo e seco, agora que o vazamento havia sido consertado. E o céu era da cor da ardósia do outro lado da janela da frente. E as duas últimas caixas, identificadas com a palavra "Natal" em tinta vermelha. As lâmpadas para a árvore ele deixaria para o pessoal que ia alugar a casa. Sem dúvida, teriam uso para elas.

Mas os enfeites, ele agora recondicionaria com cuidado. Não podia suportar a idéia de perder um sequer. E imaginar que a árvore já estava lá. Arrastando a caixa para perto da lâmpada descoberta, ele a abriu e jogou fora o velho papel de seda. Ao longo dos anos, ele havia colecionado centenas de minúsculos enfeites de porcelana, adquiridos nas lojas especializadas da cidade. De quando em quando, ele próprio os vendia na Grandes Esperanças. Anjos, velhinhos, casinhas, cavalos de carrossel e outros penduricalhos delicados em biscuit primorosamente pintado. Ornamentos autênticos da era vitoriana não poderiam ter sido mais bem-feitos ou mais frágeis. Havia pequenos pássaros com penas de verdade, bolas de madeira decoradas c esmero com rosas exuberantes, bengalas de açúcar cande de porcelana, estrelas prateadas. Ocorreram-lhe lembranças de Natais com Judith e com Elizabeth; e mesmo do tempo em que sua mãe ainda vivia.

No entanto, ele se lembrou principalmente dos últimos Natais da sua vida sozinho. Ele se forçava a cumprir os antigos rituais. E muito depois de tia Viv ter ido dormir, ele ainda estava sentado junto à árvore, com um copo de vinho mão, perguntando-se para onde sua vida estava indo e por que motivo.

Bem, este Natal seria totalmente diferente. Todos aqueles enfeites maravilhosos teriam agora um objetivo. E, pela primeira vez, haveria uma árvore grande o suficiente para exibir a coleção por inteiro, bem como um ambiente imponente e magnífico com o qual os adornos realmente combinavam.

Aos poucos, ele começou a trabalhar, removendo cada enfeite do papel e reembalando-o no plástico e o guardando num pequeno saco plástico. Imagine a casa de First Street na véspera de Natal, com a árvore no sal Imagine-a no ano seguinte, com a presença do bebê.

De repente, parecia impossível que sua vida pudesse ter sofrido u mudança tão radical e fantástica. Eu devia ter morrido lá no mar, penso. E viu, não o mar de súbito no seu pensamento, mas a igreja no N< quando era criança. Viu o presépio junto ao altar, e Lasher ali parado, Lasher olhando para ele, quando Lasher era só o homem de First Street, alto, cabelos escuros e uma palidez aristocrática. Sofreu um calafrio. O que estou fazendo aqui? Ela está lá sozinha. Impossível que ele não tenha aparecido para ela.

A sensação foi tão sinistra, tão cheia de convicção, que o contaminou. Apressou-se com a embalagem. E, quando afinal terminou, ele limpou tu jogou o lixo pela escada abaixo, pegou a caixa dos enfeites e fechou o só pela última vez.

A chuva havia amainado quando ele chegou à agência dos correios Eighteenth Street. Ele já estava esquecido de como era dirigir nesse trânsito engarrafado, movimentar-se eternamente em meio a multidões em ruas feias e estreitas, sem árvores. Até mesmo o bairro de Castro, que ele sempre ha adorado, agora lhe pareceu triste no trânsito do final da tarde.

Ficou na fila tempo demais para despachar a caixa, irritado cor habitual indiferença do funcionário, uma forma brusca que ele não ha encontrado uma vez sequer no sul desde sua volta, e depois saiu às pres no vento enregelante, na direção da sua loja mais acima em Castro.

Ela não lhe mentiria. Não faria isso. A criatura estava com as suas velhas artimanhas. Mesmo assim, porque aquela aparição naquele Natal longínquo Por que aquela expressão radiante, acima do presépio? Droga, talvez significasse nada. Afinal de contas, ele também havia visto o homem naquela noite inesquecível em que ouvira pela primeira vez a música de Isaac Stern. Ele havia visto o homem centenas de vezes ao passar a pé por First Street.

No entanto, não conseguia suportar esse pânico. Assim que chegou à loja e trancou a porta, apanhou o telefone e ligou para Rowan.

Nenhuma resposta. Era o meio da tarde em Nova Orleans, e lá fazia frio também. Talvez ela estivesse tirando uma soneca. Ele deixou tocar umas quinze vezes antes de desistir.

Olhou à sua volta. Tanta coisa ainda por fazer! Encontrar destino para toda a coleção de acessórios para banheiro de latão, e o que dizer das janelas de vitral em pilhas encostadas na parede dos fundos? Por que o arrombador não levou aquilo tudo?

Resolveu afinal encaixotar os papéis da escrivaninha, até mesmo o que iria para o lixo. Não havia tempo para organizar as coisas. Desabotoou os punhos da camisa, arregaçou as mangas e começou a enfiar os envelopes de papel pardo nas caixas de papelão.

No entanto, por mais rápido que trabalhasse, sabia que não conseguiria sair de San Francisco antes de mais uma semana, na melhor das hipóteses.

Eram oito da noite quando finalmente saiu dali, e as ruas ainda estavam molhadas da chuva e apinhadas com a inevitável multidão a pé das noites de sexta-feira. As vitrinas iluminadas pareciam alegres aos seus olhos, e ele até gostou da música ensurdecedora dos bares gays. É, de vez em quando ele sentia falta desse movimento da cidade grande, isso tinha de admitir. Sentia falta da comunidade gay de Castro Street, bem como da tolerância que sua presença assinalava.

Estava, porém, cansado demais para pensar muito nisso e, com a cabeça baixa para se proteger do vento, foi subindo a ladeira para o lugar onde havia deixado o carro.

Por um instante não pôde acreditar no que estava vendo: os dois pneus da frente haviam sido arrancados do velho sedã, a mala estava arrombada, e aquilo debaixo do pára-choque dianteiro era seu próprio macaco.

- Malditos filhos da puta - xingou ele, baixinho, enquanto saía do fluxo de pedestres da calçada. - Não poderia ser pior se alguém tivesse planejado.

Algo planejado.

-Eh bien, monsieur, mais um pequeno desastre - disse alguém que lhe roçou o ombro.

- E, e eu que o diga -.resmungou ele, entre dentes, sem se incomodar em erguer os olhos e mal percebendo o sotaque francês.

- E muito azar, monsieur, tem razão. Talvez alguém tenha planejado mesmo.

- E, era isso o que eu mesmo estava pensando - disse ele com um pequeno sobressalto.

- Volte para casa, monsieur. É lá que a sua presença é necessária. - Ei!

Ele se voltou, mas a criatura já estava seguindo adiante. Relance de cabelos brancos. Na realidade, a multidão praticamente o havia engolido.

Tudo o que Michael viu foi sua cabeça de costas, afastando-se rapidamente, e o que lhe pareceu ser um paletó escuro.

Saiu correndo atrás do homem.

- Ei! - gritou novamente. Mas, ao chegar à esquina de Eighteenth e Castro, não viu mais a pessoa em parte alguma. Uma enorme multidão passava pelo cruzamento. E a chuva havia recomeçado. O ônibus, que mal começava a se afastar do meio-fio, soltou um arroto de fumaça negra.

Em desespero, os olhos de Michael passaram indiferentes pelo ônibus, quando ele se virou para voltar até o carro, e só por acaso ele viu de relance pelo vidro traseiro um rosto conhecido que o contemplava. Olhos negros, cabelos brancos.

Com os instrumentos mais simples e mais antigos às suas mãos, pois com esses poderá vencer, mesmo quando a vitória lhe pareça impossível...

- Julien!

... incapaz de acreditar nos seus próprios sentidos, mas confie no que sabe ser a verdade e no que sabe estar certo; acredite que tem o poder, o mero poder humano...

- E, concordo. Compreendo...

Com um movimento repentino e violento, ele foi levantado do chão. Sentiu um braço ao redor da cintura e uma pessoa de uma força enorme que o arrastava para trás.

Antes que pudesse raciocinar ou começar a resistir, o pára-lama vermelho vibrante de um carro subiu no meio-fio, batendo com estrondo no poste de luz. Alguém gritou.

O pára-brisa do automóvel pareceu explodir, com pepitas prateadas de vidro voando em todas as direções.

- Meu Deus! - Ele não conseguiu recuperar o equilíbrio. Caiu de volta sobre o mesmo cara que o havia tirado do caminho. As pessoas corriam na direção do carro. Alguém estava se mexendo ali dentro. O vidro ainda caía por toda a calçada.

- Você está bem?

- E. Estou. Estou bem. Tem uma pessoa presa ali dentro.

A luz intermitente de uma viatura da polícia o deixou ofuscado de repente. Alguém gritou para que o policial chamasse uma ambulância.

- Cara, ela quase o pegou - disse o homem que o havia tirado da frente do carro: um negro grande, de compleição fortíssima, com um casaco de couro, que sacudia a cabeça grisalha. - Você não viu aquele carro que vinha exatamente na sua direção?

- Não. Você salvou minha vida, sabia?

- Ora, eu só o tirei da frente. Não foi nada. Nem pensei no que estava fazendo. - Um aceno de quem não dá importância, enquanto seguia em frente, com os olhos se detendo um pouco no carro vermelho e nos dois homens que tentavam tirar de dentro a mulher aos berros. Juntou mais gente, e uma policial começou a gritar para que todos recuassem.

Agora um ônibus estava bloqueando o cruzamento, e mais uma viatura da polícia acabava de parar. Os jornais da máquina de vender jornais derrubada estavam jogados pela calçada inteira, e o vidro cintilava na chuva como diamantes espalhados.

- Olhe, não sei como lhe agradecer - gritou Michael.

Mas o negro já estava longe, subindo Castro a passos largos, com apenas um olhar de relance para trás e um último aceno despreocupado.

Michael ficou ali trêmulo encostado na parede do bar. As pessoas passavam empurrando aquelas que haviam parado para olhar. Ele sentiu o peito espremido, não exatamente uma dor, mas um aperto, o pulso forte e uma dormência que subia pelos dedos da mão esquerda.

Meu Deus, o que havia acontecido realmente? Ele não podia passar mal aqui. Tinha de voltar para o hotel.

Ele saiu desajeitado pela rua e passou pela policial, que lhe perguntou de supetão se ele havia visto o carro bater no poste. Não, ele tinha de admitir que não havia visto. Um táxi logo ali. Pegar o táxi.

O motorista podia tirá-lo dali se voltasse de ré por Eighteenth e fizesse uma curva acentuada para entrar em Castro.

- Preciso ir até o St. Francis, Union Square. - Está passando bem?

- Estou. Mais ou menos.

Julien havia falado com ele, disso não tinha dúvida. Julien, que ele vira através da janela do ônibus! Mas e aquele maldito carro?

Ryan não poderia ter sido mais obsequioso.

- E claro que podíamos tê-lo ajudado com tudo isso antes, Michael. É para isso que estamos aqui. Amanhã de manhã, uma pessoa estará aí para preparar um inventário e mandar encaixotar todo o estoque. Vou procurar um corretor de imóveis de confiança, e podemos examinar os preços a pedir quando você chegar aqui.

- Não me agrada incomodá-lo, mas não consigo entrar em contato com Rowan, e estou com uma impressão de que tenho de voltar para aí.

- Bobagem, estamos aqui para cuidar das coisas para vocês, das grandes e das pequenas.

Agora, você fez reserva para voltar? Por que não me deixa cuidar disso para você? Não saia daí e espere meu telefonema.

Ficou, então, deitado na cama, fumando seu último Camel, olhando para o teto. A dormência na mão esquerda havia passado, e ele agora se sentia bem. Nenhuma náusea ou tontura ou qualquer outra coisa de importância, no que lhe dizia respeito. E ele não se importava. Aquela parte não era real.

Real era o rosto de Julien na janela do ônibus. E depois aquele fragmento das visões que o dominou, mais forte do que nunca.

Mas será que tudo aquilo não havia sido planejado, só para levá-lo àquela esquina perigosa? Só para deslumbrá-lo e deixá-lo plantado imóvel na trajetória daquele carro desgovernado? Do mesmo jeito que havia sido colocado no trajeto do barco de Rowan?

Ah, como a recordação havia sido envolvente! Ele fechou os olhos, novamente seus rostos, de Deborah e Julien, ouviu suas vozes.

...que você tem o poder, o simples poder humano...

Tenho, tenho, sim. Acredito em vocês! E uma guerra entre vocês e ele mais uma vez vocês se esforçaram e me tocaram no exato momento do are de Lasher, no instante em que o desastre cuidadosamente orquestrado por e estava ocorrendo.

Tenho de acreditar nisso. Porque, se não acreditar, vou enlouquece Volte para casa, monsieur. É lá que a sua presença é necessária.

Ele estava ali deitado, com os olhos fechados, cochilando, quando telefone tocou.

- Michael? - Era Ryan.

- Eu mesmo.

- Ouça. Consegui que você volte num avião particular. Assim é muito mais simples. É o avião da cadeia de hotéis Markham Harris, e eles terão maior prazer em nos ajudar.

Uma pessoa está indo apanhá-lo. Se precisar de ajuda com a bagagem...

- Não, basta que me diga a hora, e eu estarei pronto. - Que cheiro era aquele? Ele não havia apagado o cigarro.

- O que você acha de daqui a uma hora? Vão ligar para você do saguão. E Michael, por favor, de agora em diante, não hesite em nos pedir qualquer coisa, qualquer ajuda mesmo.

- Está bem, Ryan, obrigado. E, muita gentileza sua. - Ele estas olhando para o buraco em brasa na colcha no lugar em que havia deixado cair o cigarro quando adormeceu.

Meu Deus, era a primeira vez que fazia uma coisa desse tipo! E o quarto já estava cheio de fumaça. - Muito obrigado Ryan, obrigado por tudo!

Desligou, foi até o banheiro, encheu o balde de gelo com água e espalhe a água rapidamente sobre a cama. Puxou, então, a colcha queimada e os lençóis e derramou mais água no furo escuro e fedorento no colchão. Se coração batia descompassado novamente.

Ele foi até a janela, tentou força-la, percebeu que não ia abrir e depois se jogou numa poltrona olhando fumaça aos poucos se dissolver.

Quando as malas estavam prontas, ele tentou mais uma vez falar com Rowan. Ninguém atendia. Deixou tocar quinze vezes, e nada. Estava a ponto de desistir quando ouviu sua voz grogue.

- Michael? Eu estava dormindo. Desculpe, Michael.

- Querida, preste atenção. Sou irlandês e muito supersticioso, como nós dois sabemos.

- Do que você está falando?

- Estou passando por um período de má sorte, de azar mesmo. Faça uma pequena bruxaria para mim, Rowan, por favor. Jogue uma luz branca ao meu redor. Já ouviu falar nisso?

- Não. Michael, o que está acontecendo?

- Estou voltando para casa, Rowan. Agora querida, basta que imagine uma luz branca à minha volta, que me proteja de tudo de mau neste mundo até eu chegar aí. Entendeu o que estou dizendo? Ryan conseguiu um avião para mim. Embarco dentro de uma hora.

- Michael, o que está acontecendo?

Será que ela estava chorando?

- Faça o que lhe pedi, Rowan, acerca da luz branca. Confie em mim nesse ponto. Esforce-se para me proteger.

- Uma luz branca - sussurrou ela. - Em toda a sua volta.

- Isso. Uma luz branca. Amo você, querida. Já estou voltando.

- Ah, este é o nosso pior inverno - disse Beatrice. - Sabe que estão dizendo que até podemos ter neve? - Ela se levantou e pôs o copo de vinho no carrinho. - Bem, querida, você teve uma enorme paciência. E eu estava tão preocupada. Agora que vi que você está bem, e que essa casa imensa está bem aquecida e alegre, vou embora.

- Não foi nada, Beatrice - disse Rowan, apenas repetindo o que já havia explicado. - Só uma depressão por Michael ficar tanto tempo longe. - E a que horas você espera que ele chegue?

- Ryan disse antes do amanhecer. O vôo deveria ter decolado há uma hora mas o Aeroporto Internacional de San Francisco está fechado por causa da neblina.

- Detesto o inverno!

Rowan não se deu ao trabalho de esclarecer que o San Francisco era freqüentemente fechado para pouso e decolagem também no verão. Simplesmente ficou olhando Beatrice vestir a pelerine de cashmere, cobrindo com o capuz gracioso seus cabelos cinzentos muito bem-penteados.

Ela acompanhou Beatrice até a porta.

- Bem, não se esconda dentro da concha desse jeito. Nos deixa preocupados demais. Ligue para mim quando estiver triste, que eu a animo. - Você é maravilhosa – disse Rowan.

- Só não queremos que você fique assustada aqui. Ora, eu devia ter aparecido antes.

- Não estou assustada. Adoro a casa. Não se preocupe. Ligo para você amanhã a qualquer hora. Assim que Michael chegar, tudo estará bem. Vamos decorar a árvore juntos. Você precisa vir vê-Ia, é claro.

Ficou olhando Beatrice descer a escada de mármore e sair pelo portão, com uma corrente de ar gelado entrando pelo corredor. Depois fechou a porta da frente.

Permaneceu ali parada muito tempo, com a cabeça baixa, deixando que o calor a envolvesse, e depois voltou para o salão e ficou olhando a enorme árvore verde. Ela estava logo depois do arco, tocando o teto. Nunca havia visto uma árvore de Natal com um triângulo mais perfeito. Ela encobria toda a janela que dava para a varanda lateral. E pouquíssimas folhas haviam caído no chão encerado abaixo dela. Parecia selvagem, primitiva, como se parte da floresta estivesse ali dentro da casa.

Foi até a lareira, sentou-se e pôs mais uma pequena acha no fogo.

- Por que você tentou ferir Michael? - Sussurrou ela, olhando para as chamas.

- Não tentei feri-lo.

- Você está mentindo para mim. Tentou ferir Aaron também?

- Faço o que você manda, Rowan. - A voz era grave e suave, como sempre. - Minha vida é lhe agradar.

Ela se sentou sobre os calcanhares, de braços cruzados, com os olhos se enevoando de tal modo que as chamas se dissolveram num grande borrão bruxuleante.

- Ele não deve suspeitar de nada, você está me ouvindo?

- Eu sempre a ouço, Rowan.

- Ele tem de acreditar que tudo está como antes.

- É esse o meu desejo, Rowan. Estamos de acordo nesse ponto. Temo a inimizade de Michael porque isso a fará infeliz. Só farei o que você quiser.

Só que isso não poderia se perpetuar, e de repente o medo que se abateu sobre ela foi tão completo que ela não pôde falar nem se mexer. Não pôde tentar disfarçar seus sentimentos. Não pôde se retirar para um santuário íntimo na sua mente, como Aaron lhe havia recomendado. Ficou ali sentada, trêmula, olhando para as chamas. - Como isso vai terminar, Lasher? Eu não sei fazer o que você quer que eu faça.

- Você sabe, Rowan.

- Levaria anos de estudo. Sem uma compreensão maior de você, não sei nem por onde começar.

- Ah, mas você sabe tudo de mim, Rowan. E você quer me enganar. Você me ama, mas não me ama. Você me atrairia para um corpo se soubesse como fazer isso, só para me destruir.

- Eu faria isso?

- Faria. É uma agonia sentir seu medo e seu ódio, quando sei a felicidade que nos espera.

Quando vejo tão longe.

- E o que você quer? O corpo de um homem vivo? Tornado inconsciente por algum tipo de trauma, para que você pudesse começar sua fusão sem o obstáculo da mente? Isso é assassinato, Lasher.

Silêncio.

- É isso o que você quer? Que eu cometa um assassinato? Porque nós dois sabemos que poderia ser feito assim.

Silêncio.

- E eu não vou cometer nenhum crime por você. Não vou matar nenhum ser vivo para você poder viver.

Ela fechou os olhos. Conseguia ouvi-lo se concentrando, ouvir a pressão aumentando, o farfalhar das cortinas quando ele passava por elas, contorcendo-se e preenchendo o salão ao seu redor, roçando no seu cabelo e no seu rosto.

- Não. Deixe-me em paz - suspirou ela. - Quero esperar por Michael. - Agora, Rowan, ele não será mais suficiente para você. Sinto dor ao vê-la chorar, mas estou dizendo a verdade.

- Meu Deus, como eu o odeio! - sussurrou ela, limpando os olhos com o dorso da mão.

Através das lágrimas, ela olhou para a enorme árvore verde.

- É, mas você não me odeia, Rowan. - Dedos que lhe acariciavam os cabelos, afastando-os da testa; dedos que lhe afagavam o pescoço.

- Deixe-me em paz agora, Lasher- implorou ela. - Se me ama, deixe-me em paz.

Leiden. Ela sabia que era o sonho de novo e queria acordar. Além disso, o bebê precisava dela. Ela o ouvia chorar. Quero sair do sonho. Mas eles estavam todos reunidos às janelas, horrorizados com o que estava acontecendo a Jan van Abel, com a multidão a esquartejá-lo.

- Não guardaram segredo - disse Lemle. - E impossível que os ignorantes compreendam a importância das experiências. O que se faz ao manter segredo é apenas assumir a responsabilidade plena.

- Em outras palavras, protegê-los - disse Larkin.

Ele apontou para o corpo sobre a mesa. Quanta paciência a do homem que estava ali deitado, com os olhos abertos e todos aqueles minúsculos órgãos que lembravam botões de flores a tremer. E as pernas e braços tão pequenos.

- Não consigo pensar com o bebê chorando.

- Você precisa ter uma visão geral, da vantagem maior.

- Onde está Petyr? Petyr deve estar enlouquecido depois do que aconteceu com Jan van Abel.

- O Talamasca irá cuidar dele. Estamos esperando que você comece.

Impossível. Ela não tirava os olhos do homenzinho de pernas e braços deformados e órgãos diminutos. Só a cabeça era normal. Aquela era uma cabeça de tamanho normal.

- Um quarto do tamanho do corpo, para ser exato.

É, a proporção conhecida, pensou ela. Depois, o horror a dominou enquanto ela olhava para o corpo. Mas estavam quebrando as janelas. A multidão invadia os corredores da Universidade de Leiden, e Petyr vinha na sua direção.

- Não, Rowan. Não.

Ela acordou sobressaltada. Passos na escada. Saiu da cama.

- Michael?

- Sou eu, querida.

Só uma grande sombra no escuro, cheirando ao frio do inverno, e dei as mãos quentes e trêmulas que a tocavam. Ásperas e ternas, e o rosto apertado contra o dela.

- Ah, meu Deus, Michael, como você demorou! Por que me deixou?

- Rowan, querida...

- Por quê? - Ela soluçava. - Não me solte, Michael, por favor. Não me solte.

Ele a aconchegou nos braços.

- Você não devia ter ido, Michael. Não devia. - Ela chorava e sabia que ele não podia nem mesmo entender o que ela estava dizendo, que não deveria estar dizendo, e afinal apenas o cobriu de beijos, saboreando o sal e a aspereza da sua pele e a delicadeza desajeitada das suas mãos.

- Fale qual foi o problema. O que houve?

- É que amo você. Que, quando você não está aqui, é como... como você não existisse.

Ela estava meio acordada quando ele saiu de mansinho. Ela não quer que o sonho voltasse.

Antes estava deitada ao seu lado, aconchegada ao seu peito, como duas colheres, segurando firme seu braço, e agora, quando ele saiu da cama, ela ficou espiando de um jeito quase furtivo enquanto ele vestia os jeans e enfiava pela cabeça a camisa de rúgbi de mangas compridas.

- Fique aqui - sussurrou ela.

- A campainha está tocando. É a minha pequena surpresa. Não, não levante. Não é nada, verdade. Só uma coisa que eu trouxe de San Francisco Por que você não continua dormindo?

Ele se abaixou para lhe dar um beijo e ela puxou seu cabelo. Trouxe mais para perto de si com seus dedos insistentes, até sentir o cheiro morno c sua testa e beijar sua pele lisa, com o osso por baixo como uma pedra. Ela não sabia por que gostava tanto dessa sensação, a pele tão úmida, tão quente, tão real. Beijou-o com força na boca.

Antes mesmo que seus lábios se afastassem, o sonho voltou.

Não quero ver aquele homúnculo na mesa.

- O que ele é? Não pode estar vivo.

Lemle estava com o guarda-pó, a máscara e as luvas para a cirurgia. Ele olhou para ela por baixo das sobrancelhas musgosas.

- Você nem fez a assepsia. Lave-se. Preciso de você. - As lâmpadas eram como dois olhos impiedosos voltados para a mesa.

Aquela coisa com seus órgãos reduzidos e seus olhos enormes.

Lemle segurava alguma coisa com a pinça. E o pequeno corpo aberto a meio na incubadora fumegante ao lado da mesa era um feto, que dormia com o peito arfando. Aquilo na pinça era um coração, não era? Monstro, por fazer uma coisa dessas.

- Vamos ter de trabalhar rápido enquanto o tecido está no ponto ótimo.

- É muito difícil a travessia para nós - disse a mulher.

Rembrandt estava sentado à janela, tão cansado na sua velhice, com o nariz abatatado, o cabelo ralo. Ele ergueu os olhos para ela, sonolento, quando ela lhe perguntou o que achava. Depois, ele pegou a mão de Rowan e a colocou sobre seu peito.

- Conheço esse quadro, a jovem noiva.

Ela acordou. O relógio havia batido as duas. Dormindo, ela havia esperado, achando que haveria mais batidas, talvez dez, o que significaria que ela havia dormido até tarde. Mas duas? Era tão tarde!

Ela ouviu a música ao longe. Um cravo tocava, e uma voz grave cantava uma canção de Natal lenta e lamentosa, uma antiga canção de Natal céltica, sobre uma criança posta na manjedoura. Cheiro da árvore de Natal, uma fragrância delicada, e da lareira acesa.

Uma delícia de calor.

Ela estava deitada de lado, olhando para a janela, para a camada de gelo que se grudava nas vidraças. Bem devagar, uma figura começou a se formar, um homem, com as costas para o vidro e com os braços cruzados.

Ela contraiu os olhos, observando o processo: o rosto bem bronzeado que entrava em foco, com bilhões de células ínfimas a formá-lo, e o profundo brilho verde dos olhos. A perfeita réplica dos jeans e da camisa. Detalhes como os de uma fotografia de Richard Avedon, na qual cada fio de cabelo tem brilho e nitidez. Ele relaxou os braços e se aproximou dela. Ela via e ouvia o movimento das roupas. Quando ele se debruçou sobre ela, ela viu os poros da sua pele.

Quer dizer que estamos com ciúme, é verdade? Ela tocou seu rosto, tocou sua testa como havia tocado a de Michael e sentiu uma pulsação nela, como se houvesse realmente ali um corpo.

- Minta para ele - disse ele, em voz baixa, mal mexendo com os lábios. - Se você o ama, minta para ele.

Ela quase sentia a respiração lhe tocar o rosto. Depois, percebeu que via através do rosto, que via a janela ali atrás.

- Não, não relaxe. Segure firme.

No entanto, a imagem inteira sofreu uma convulsão. Depois estremeceu como um recorte de papel ao vento. Ela sentiu seu pânico em espasmos de calor.

Estendeu a .não para pegar seu pulso, mas a mão se fechou no nada. Uma corrente de ar quente passou por ela e por cima da cama, as cortinas se enfunaram por um instante, e a condensação aumentou e ficou mais branca nas vidraças.

- Beije-me - sussurrou ela, fechando os olhos. Como madeixas de cabelo a lhe roçar o rosto e os lábios. - Não. Isso não basta. Quero que me beije. - Só muito devagar a densidade aumentou e o toque ficou mais palpável. Ele estava cansado da materialização.

Cansado e ligeiramente assustado. As suas células e as outras quase haviam sofrido uma fusão molecular. Devia ter sobrado algum resíduo em algum canto, ou os minúsculos fragmentos de matéria haviam se dispersado tanto ao ponto de penetrarem pelas paredes e pelo teto do mesmo jeito que ele penetrava. - Beije-me! - Ela exigiu. Sentiu que ele se esforçava. E só então conseguiu criar lábios invisíveis para o beijo, empurrando uma língua invisível para dentro da sua boca.

Minta para ele.

Claro. Eu amo vocês dois, não amo?

Ele não a ouviu descer a escada. As cortinas estavam totalmente fechadas, e o corredor escuro, silencioso e aquecido. A lareira da frente do salão estava acesa.

E a única outra iluminação vinha da árvore, que agora estava enfeitada com inúmeras lâmpadas que piscavam.

Ela ficou no portal a olhar para ele, sentado no alto da escada de madeira, fazendo algum pequeno ajuste e assoviando baixinho a acompanhar a gravação da velha canção de Natal irlandesa.

Tão triste. Ela fazia com que Rowan se lembrasse de um bosque antigo e denso no inverno.

E o assovio era um som tão baixo, tranqüilo e quase inconsciente. Ela já conhecia aquela canção. Tinha uma vaga recordação de tê-la ouvido com Ellie, e de Ellie ter chorado com ela.

Encostou-se no batente da porta, apenas olhando para aquela árvore imensa, toda salpicada de pequenas lâmpadas como estrelas, e sentindo seu forte perfume de mato.

- Ah, aqui está ela, minha bela adormecida. - Ele lhe deu um daqueles seus sorrisos cheios de carinho e proteção que faziam com que ela tivesse vontade de correr para os seus braços. Mas não se mexeu. Ficou olhando enquanto ele descia da escada, com movimentos rápidos e ágeis, e se aproximava dela. - Está melhor, agora, minha princesa?

- Ela é tão linda. E a canção é tão triste. - Ela o enlaçou pela cintura e encostou a cabeça no seu ombro enquanto olhava para a árvore. - A decoração está perfeita.

- E, mas agora vem a parte interessante - disse ele, dando-lhe um beliscão na bochecha, puxando-a para dentro do salão e na direção da pequena mesa junto às janelas.

Uma caixa de papelão estava aberta, e ele fez um gesto para ela olhar ali dentro.

- Não são uma gracinha? - Ela pegou um pequeno anjo de biscuit branco, com as bochechas ligeiramente rosadas e asas douradas. E aqui, um pequeno Papai Noel, lindo, com todos os detalhes, um pequeno boneco de porcelana vestido com veludo vermelho de verdade. - Ah, são perfeitos. De onde foi que vieram? - Ela apanhou a maçã dourada e uma bela estrela de cinco pontas.

- Eu já os tenho há anos. Estava na universidade quando comecei a coleção. Nunca imaginei que fossem para esta árvore e para esta sala, mas eram. Pronto, você escolhe o primeiro. Estava esperando por você. Achei que devíamos pôr os enfeites juntos.

- O anjo - disse ela. Ela o pegou pelo gancho e o levou até junto da árvore, para melhor vê-lo à luz suave. Ele segurava uma pequena harpa dourada, e até seu rostinho estava pintado com uma delicada boca vermelha e olhos azuis. Ela o levantou o mais alto que pôde e passou o gancho sobre a parte mais grossa de um galho trêmulo. O anjo oscilou, com o gancho quase invisível no escuro, e ficou ali suspenso, como um beija- flor adejando.

- Você acha que os anjos fazem isso, param em pleno ar como os beija-flores? – perguntou ela, baixinho.

- Provavelmente sim. Você conhece os anjos. É bem provável que sejam uns exibicionistas e que possam fazer o que quiserem. - Ele parou atrás dela e lhe beijou os cabelos.

- O que eu pude fazer sem você aqui? - disse ela. Quando os braços de Michael envolveram sua cintura, ela os segurou com as mãos, apreciando os músculos rijos, os dedos grandes e fortes que a apertavam.

Por um instante, as dimensões da árvore e o belo jogo das luzes que piscavam nos galhos densos e sombrios encheram completamente sua visão. E a música tristonha do cântico de Natal encheu seus ouvidos. O instante ficou em suspenso, como o anjinho delicado. Não havia futuro, nem passado.

- Estou tão feliz por você estar de volta - sussurrou ela, fechando os olhos. - Aqui estava insuportável sem você. Nada faz sentido sem você. Não quero nunca mais ficar sem você. - Um grande espasmo de dor passou por ela, um tremor terrível e cruel que ela prendeu dentro de si, ao se voltar mais uma vez para encostar a cabeça no peito de Michael.

23 de dezembro. Frio intenso nesta noite. Lindo, quando todos os parentes estavam sendo esperados para coquetéis e cânticos de Natal. Imagine todos aqueles carros vindo pelas ruas geladas. Mas era maravilhoso ter esse tempo limpo e frio para o Natal. E havia previsões de neve.

- Um Natal com neve, dá para você imaginar? - disse-lhe Michael. Ele olhava lá para fora pela janela do quarto da frente enquanto vestia o suéter e o casaco de couro.

-- Talvez até neve hoje à noite.

- Isso seria fantástico para a festa, fantástico para o Natal.

Ela estava aconchegada na poltrona junto ao aquecedor a gás, com um acolchoado sobre os ombros, seu rosto estava rosado e ela simplesmente estava mais delicada e arredondada. Dava para se ver. Uma mulher com um neném ali dentro, positivamente radiante, como se tivesse absorvido a luz do fogo.

Ela nunca lhe havia parecido mais despreocupada e alegre.

- Seria mais um presente de Natal para nós, Michael.

- É, mais um - disse ele, olhando pela janela. - E você dizendo que vai acontecer. E vou lhe dizer mais uma coisa, Rowan tivemos um Natal com neve no ano em que fui embora.

Ele tirou o cachecol de lã da gaveta da cômoda e o ajeitou dentro do casaco. Depois, apanhou as luvas grossas, forradas de lã.

- Nunca vou me esquecer - prosseguiu ele. - Foi a primeis vi neve. Saí passeando por aqui por First Street e, quando cheguei descobri que meu pai havia morrido.

- Como foi que aconteceu? - Ela aparentava tanta compaixão olhos levemente contraídos.

Seu rosto era tão sereno que, quando menor perturbação, parecia que uma sombra caía sobre ela.

-Um incêndio num grande armazém em Tchoupitoulas. Eu não sei dos detalhes. Parece que o comandante deu ordem para que eles saíssem do telhado, que ele estava a ponto de desmoronar. Um cara cai lá o que, e meu pai voltou correndo para ajudá-lo, e foi ai que o telhado começou a vergar. Dizem que ele simplesmente rolou como uma oceano e caiu. O armazém inteiro explodiu. Na realidade, perde bombeiros naquele dia, e lá estava eu passeando no Garden Dis apreciando a neve. Foi por isso que fomos para a Califórnia. Todos os parentes estavam mortos, todos aqueles tios e tias. Enterrados no cemitério de São José. Todos, pela Lonigan & Sons.

- Deve ter sido tão horrível para você.

Ele abanou a cabeça.

- A pior parte foi a alegria por estar indo para a Califórnia com a consciência de que nunca teríamos podido ir se ele não tivesse morrido.

- Venha, sente-se e tome seu chocolate. Ele está esfriando. Beatrice e estarão aqui a qualquer instante.

- Preciso ir andando. Coisas demais a fazer. Tenho de ir até lá ver se as caixas já chegaram.

Ah, preciso confirmar com o pessoal do bi; me esqueci de ligar para eles.

- Não precisa ligar. Ryan já se encarregou. Disse que você fazia coisas demais sozinho. Disse que você devia ter mandado um bombeiro consertar os canos todos.

- Gosto de fazer esse tipo de coisa. Esses canos vão consertar de qualquer jeito. Droga. Este deve ser o pior inverno nos últimos cem anos.

- Ryan diz que você deve considerá-lo uma espécie de administrador particular. Ele disse ao pessoal do bufê que chegasse às seis. Se alguém chegar antes da hora...

- Boa idéia. Vou estar de volta antes disso. Tudo bem. Ligo pra você mais tarde da loja. Se precisar que eu traga alguma coisa...

- Ei, você não pode sair deste quarto sem me dar um beijo.

- Claro que não. - Ele se inclinou e a cobriu de beijos apressados, fazendo com que ela risse baixinho. Depois beijou sua - Até logo, Little Chris. Já estamos quase no Natal, Little Chris.

À porta, ele parou para calçar as luvas grossas, e lhe mandou mais um beijo. Ela parecia um quadro na poltrona bergère de espaldar alto, sentada sobre os próprios pés. Até sua boca estava com um belo colorido. E, quando ela sorriu, ele viu as covinhas no seu rosto.

Sua respiração fazia vapor no ar quando ele pôs os pés fora de casa. Havia anos que ele não sentia um frio desse tipo, tão revigorante. E o céu era de um azul tão vivo. Iam perder as bananeiras, e ele odiava essa idéia; mas as lindas camélias e azaléias estavam agüentando bem. Os jardineiros haviam plantado grama de inverno, e o gramado parecia um veludo.

Ele olhou por um instante para a extremosa nua. Estaria ouvindo novamente aqueles tambores do Carnaval nos ouvidos?

Deixou a caminhonete se aquecer por uns dois minutos antes de sair. Depois, saiu direto na direção da ponte. Levaria uns quarenta e cinco minutos para chegar a Oak Haven se conseguisse desenvolver uma boa velocidade na estrada ribeirinha.

- Quais foram o pacto e a promessa? - perguntou ela.

Estava parada no quarto do sótão, tão limpo e árido com suas novas paredes brancas, suas janelas que davam vista para os telhados. Nenhum traço de Julien. Nem de todos os livros antigos.

- Isso agora não tem importância - respondeu ele. - A profecia está a um passo de ser cumprida, e você é a porta.

- Eu quero saber. Qual foi o pacto?

- Essas foram palavras transmitidas por lábios humanos através das gerações.

- É, mas o que significara?

- Foi o pacto que fiz com a minha bruxa, de que obedeceria às suas ordens mais ínfimas se ela apenas gerasse uma menina que herdasse seu poder e o poder de me ver e de me dar ordens. Eu lhe traria toda a riqueza; eu lhe concederia todos os favores. Eu examinaria o futuro para que ela pudesse conhecê-lo. Eu retribuiria todos os insultos e desfeitas. E em troca a bruxa se esforçaria para ter uma filha que eu pudesse amar e servir como havia feito com a bruxa, e essa criança me veria e me amaria.

- E essa criança deveria ser mais forte do que a mãe, levando na direção do número treze.

- É, com o tempo cheguei a ver o treze.

- Não foi desde o início?

-Não. Com o tempo eu vi. Vi o poder que se acumulava e se aperfeiçoava. Vi que ele era alimentado pelos homens fortes da família. Vi Julien com um poder tão imenso que suplantou o da sua irmã, Katherine. Vi Cortland no caminho até o portal. E agora você está aqui.

- Quando você falou às suas bruxas sobre o treze?

-Na época de Angélique. Mas você deve ter em mente como era simples meu próprio entendimento do que eu via. Eu mal podia explicar. As pala eram uma novidade total para mim. O processo de pensar cronologicamente era novo. E, por isso, a profecia foi encoberta de mistério, não por intenção minha, mas por acaso. Mesmo assim, ela agora está a um passo de se realizar.

- Você prometeu apenas seus serviços ao longo dos séculos?

- E isso não seria suficiente? Você não vê o que meus serviços produziram? Você está na casa criada por mim e pelos meus serviços. Você sonha com hospitais que irá construir com a fortuna proporcionada por mim. Você mesma disse a Aaron que eu havia criado as Bruxas Mayfair. Estou dizendo a verdade. Olhe para as numerosas ramificações dessa família. Toda essa riqueza teve origem em mim. Minha generosidade alimentou e vestiu inúmeros homens e mulheres do mesmo sobrenome, que nada sabem de mim. Basta que você me conheça.

-Você não prometeu nada mais?

- O que ma is eu posso dar? Quando eu for de carne, serei seu servo co sou agora. Serei seu amante, seu confidente, seu discípulo. Ninguém pode derrotá-la se você me tiver.

- Salvas. O que tinha a ver com isso a história de ser salvas, o velho doido de que, quando a porta se abrisse, as bruxas seriam salvas?

- Mais uma vez, você me vem com palavras desgastadas e velhos fragmentos.

- É, mas você se lembra de tudo. Esclareça para mim a origem de idéia, de que as bruxas seriam salvas.

Silêncio.

- As treze bruxas seriam elevadas naquele instante do meu triunfo. Com o prêmio a Lasher, seu fiel criado, a perseguição a Suzanne e a Deborah seria vingada. Quando Lasher passar pelo portal, Suzanne não terá morri em vão. Deborah não terá morrido em vão.

- E esse é o total significado do termo "salvas"?

- Você agora tem a explicação completa.

- E como isso deverá acontecer? Você me diz que quando eu souber você saberá; e eu lhe digo que não sei.

- Lembre-se da sua conversa com Aaron. Que eu estou vivo e pertenço à vida. Que minhas células podem se fundir com as células dos corpos, e que isso se dá através da mutação e da entrega.

- Ah, mas aí está o segredo. Você tem medo dessa entrega. Você tem medo de ficar preso a uma forma da qual não possa escapar. Você percebe, não é verdade, o que significa ser de carne e osso? Que você pode perder sua imortalidade? Que, mesmo na transmutação, você poderia ser destruído?

- Não. Não vou perder nada. E, quando eu for criado na minha nova forma, abrirei o caminho de uma nova forma para você. Você sempre soube. Soube quando pela primeira vez ouviu a antiga lenda dos seus parentes. Você soube por que razão eram doze gavetas e um portal.

- Você está dizendo que eu posso me tornar imortal.

- É.

- É isso o que você vê?

- É isso o que sempre vi. Você é a minha companheira perfeita. Você é a maior de todas as bruxas. Tem a força de Julien e de Mary Beth. Tem a beleza de Deborah e de Suzanne. Todas as almas das mortas estão na sua alma. Viajando pelo mistério das células, elas chegaram até você, para moldá-la e aperfeiçoá-la. Você tem o mesmo brilho de Charlotte. É mais bonita do que Marie Claudette ou Angélique. Você tem aí dentro um fogo mais quente do que o de Marguerite ou do que o de Stella, com seu triste destino. A sua visão é muito maior do que a da minha querida Antha ou de Deirdre. Você é única.

- As almas dos mortos estão nesta casa?

- As almas dos mortos se foram desta terra.

- Então, o que Michael viu neste quarto?

- Viu impressões deixadas pelos mortos. Essas impressões ganharam vida a partir dos objetos que ele tocava. Elas são como os sulcos de um disco. Você leva a agulha ao sulco, e a voz canta. Mas o cantor não está ali.

- Mas por que elas se reuniram à sua volta, quando ele tocou nas bonecas?

- Como eu disse, elas eram impressões. E então a imaginação de Michael as elaborou como se fossem marionetes. Toda a sua animação tinha origem nele.

- Por que, então, as bruxas guardavam as bonecas?

- Para isso mesmo. Como se você guardasse uma fotografia da sua mãe e, ao erguê-la junto a uma lâmpada, os olhos lhe parecessem animados. Também para acreditar que a alma do morto pudesse de alguma forma ser alcançada, que para lá desta terra existe o reino da eternidade. Não vejo nenhuma eternidade desse tipo com meus olhos. Vejo apenas as estrelas.

- Creio que elas invocavam as almas dos mortos através das bonecas.

- Como uma oração, já lhe disse. E para se sentirem aquecidas com as impressões. Além disso, nada mais é possível. As almas dos mortos não estão aqui. A alma da minha Suzanne passou por mim, lá para cima. A alma da minha Deborah alçou vôo como se tivesse asas quando seu corpo frágil caiu das ameias da igreja. As bonecas são recordações, nada mais. Mas você não entende? Nada disso importa agora. As bonecas, as esmeraldas, elas são símbolos. Estamos saindo deste reino de símbolos, recordações e profecias. Estamos nos encaminhando para uma nova existência. Visualize o portal se quiser. Passaremos por ele, saindo desta casa para entrar no mundo.

-E a transmutação poderá ser repetida. É nisso que você está me levam a acreditar?

- É isso o que você sabe, Rowan. Li o livro da vida espiando por cima dos seus ombros.

Todas as células vivas se multiplicam. Na minha forma humana, eu me multiplicarei. E minhas células poderão ser enxertadas nas suas, Rowan. Existem possibilidades com as quais nem começamos a sonhar.

- E eu serei imortal.

- Isso. Minha companheira. Minha amante. Imortal como eu.

- Quando isso deverá acontecer?

- Quando você souber, eu saberei. E você saberá muito em breve.

- Você tem tanta confiança em mim, não tem? Eu não sei como fazer isso. Já lhe disse.

- O que os seus sonhos lhe dizem?

- Eles são pesadelos. São cheios de imagens que não compreendo. Não sei de onde vem o corpo que está em cima da mesa. Não sei por que motivo Lemle está presente. Não entendo o que querem de mim, e não quero ver Ja van Abel ser atacado novamente. O lugar não significa nada para mim.

-Acalme-se, Rowan. Deixe-me acalmá-la. Os sonhos lhe mostram. Mas com maior exatidão, você acabará por mostrar a si mesma. Do caldeirão d sua própria mente, sairá a verdade.

- Não, afaste-se de mim. Só fale comigo. E o que quero de você agora.

Silêncio.

- Você é o portal, minha amada. Anseio por ser de carne. Estou cansado da minha solidão. Você não sabe que a hora está quase chegando? Minha bela... Esta é a época para que eu renasça.

Ela fechou os olhos, sentindo seus lábios na nuca, seus dedos a percorre sua espinha. Sentiu a pressão de uma mão quente a lhe segurar o sexo, com os dedos que deslizavam para dentro dela, lábios forçando seus lábios. Dedos que davam em seus seios beliscões deliciosamente doloridos.

- Deixe que eu a envolva com os meus braços - sussurrou ele. - Os outros vão chegar. E você irá pertencer a eles por horas a fio. E eu deverei pairar faminto à distância, a observá-la, a colher cada palavra que cair dos seus lábios como se fossem gotas d'água para saciar minha sede. Deixe-me abraçá-la agora. Dê-me essas horas, minha linda Rowan...

Ela sentiu que era erguida, que seus pés não mais tocavam o chão. A escuridão turbilhonava à sua volta, mãos fortes a viravam e acariciavam se corpo inteiro. Não havia mais gravidade. Ela sentia o poder de Lasher aumentando, seu calor aumentando.

O vento frio fez matraquear as vidraças da janela. A casa imensa e vazia parecia cheia de sussurros. Ela flutuava no ar. Virou-se, tateando no emaranhado de braços de sombra que a sustentava, sentindo que suas pernas eram forçadas a se afastar, que sua boca era aberta. É, continue.

- Como pode estar chegando a hora? - perguntou ela, baixinho.

- Logo, minha querida.

- Não vou conseguir.

- Ah, vai, sim, minha bela. Você sabe. Você vai ver...

O dia estava escurecendo e o vento era impiedoso quando ele saiu do carro, mas a casa da fazenda parecia alegre e acolhedora, com todas as suas janelas iluminadas por uma luz quente, amarela.

Aaron esperava por ele à porta, usando camadas de lã por baixo do cardigã cinza, com um cachecol de cashmere enrolado no pescoço.

- Olhe, isso aqui é para você - disse Michael. - Feliz Natal, meu amigo. - Ele colocou nas mãos de Aaron uma pequena garrafa, embrulhada num papel verde de motivos natalinos. - Receio que não seja uma grande surpresa. Mas é o melhor conhaque que consegui encontrar.

- Muita gentileza sua - disse Aaron, com um sorriso discreto. - Vou apreciá-lo imensamente. Gota a gota. Vamos entrar para sair desse frio. Eu também tenho uma coisinha para você. Depois eu lhe mostro. Vamos, entre.

O ar aquecido estava delicioso. E havia uma árvore alta e cheia instalada na sala de estar, esplendidamente decorada com enfeites dourados e prateados, o que surpreendeu Michael porque ele não sabia como o Talamasca celebraria uma festividade dessas, se é que chegavam a celebrar esse tipo de coisa. Até os arcos estavam decorados com ramos de azevinho. E um bom fogo estava aceso na grande lareira da sala de estar.

- É uma festa antiqüíssima - disse Aaron, prevendo sua pergunta, com um pequeno sorriso.

Ele pôs o presente em cima da mesa. -- Ela remonta a muito tempo antes de Cristo. O solstício de inverno, uma época na qual todas as forças da terra estão mais fortes. Talvez tenha sido por isso que o Filho de Deus escolheu essa época para nascer.

- E, bem, até que me seria útil um pouco de crença no Filho de Deus neste momento – disse Michael. - Ou um pouquinho de crença nas forças da terra.

Ali dentro estava mesmo muito agradável. Dava a impressão de uma boa e aconchegante casa de campo, em comparação com First Street, com seus pés-direitos mais baixos, suas sancas mais simples e a lareira grande e funda, construída não para carvão, mas para um bom fogaréu de lenha.

Michael tirou o casaco de couro e as luvas, entregou tudo a Aaron com gratidão e estendeu as mãos para aquecê-las ao calor do fogo. Não havia mais ninguém nos cômodos principais da casa, ao que ele pudesse ver, embora ele ouvisse ruídos leves provenientes da cozinha dos fundos. O vento batia nas portas envidraçadas. Embora as vidraças estivessem emolduradas pelo gelo, elas ainda assim deixavam ver o verde pálido da paisagem distante.

A bandeja de café estava à sua espera, e Aaron com um gesto indicou Michael que se sentasse na poltrona à esquerda da lareira.

Assim que estava sentado, ele sentiu que se desfazia o nó que trazia dentro de si. Sentiu que ia cair a chorar. Respirou fundo, com os olho passando de um lado para o outro, vendo tudo e não vendo nada, e depois começou, sem qualquer preâmbulo.

- Está acontecendo - disse ele, com a voz trêmula. Mal podia acredita que houvesse chegado a esse ponto, que estivesse falando dela desse jeito Mesmo assim, prosseguiu.

- Ela está mentindo para mim. Ele está lá com ela, e ela mente. Está mentindo noite e dia desde que voltei para casa.

- Diga-me o que houve - disse Aaron, com uma expressão ponderada e cheia de uma solidariedade imediata.

- Ela nem me perguntou por que voltei tão depressa de San Francisco Nem tocou no assunto. Era como se soubesse. E eu estava nervosíssimo quando liguei para ela do hotel de lá. Ora, eu lhe contei por telefone o que aconteceu. Achei que a tal criatura estava tentando me matar. Ela não chegou a me perguntar o que havia ocorrido.

- Descreva tudo de novo para mim, tudo.

- Meu Deus, Aaron, agora sei que eram Julien e Deborah que estavam nas minhas visões.

Não tenho mais nenhuma dúvida. Não sei o que significou o pacto ou a promessa.

Mas sei que Julien e Deborah estão do meu lado. E vi Julien. Vi que ele olhava para mim pela janela do ônibus; e o mais estranho Aaron, era que parecia que ele queria falar e se mexer, mas não conseguia. Era como se fosse difícil para ele aparecer.

Aaron não disse nada. Estava sentado com o cotovelo pousado no braço da poltrona, e um dedo dobrado debaixo do seu lábio inferior. Pareci cauteloso, alerta e pensativo.

- Prossiga - disse ele.

- Mas a questão é que esse vislumbre específico foi o suficiente para trazer tudo de volta. Não que eu me lembrasse de tudo que foi dito. Mas recapturei a sensação.

Eles querem que eu interfira. Disseram alguma coisa sobre "antiqüíssimas ferramentas humanas de que disponho". Ouvi novamente essas palavras. Ouvi Deborah falando comigo. Era Deborah. Só que ela não se parecia com o quadro, Aaron. Vou lhe passar a prova mais convincente.

- Sim...

- O que Llewellyn lhe disse. Você se lembra. Disse que viu Julien num sonho, e que Julien não era o mesmo Julien de quando estava vivo. Lembre se? Pois bem, está vendo, esse é o segredo. Nas visões, Deborah era um ser diferente. E naquela maldita esquina lá em San Francisco, senti a presença dos dois, e eles eram como eu me lembrava deles: sábios, bons e perspicazes Aaron. Sabiam que Rowan estava correndo enorme perigo e que eu tinha que interferir. Meu Deus, quando penso na expressão de Julien naquela janela Era tão... urgente apesar de tranqüila. Não tenho palavras para descrevê-la. Demonstrava preocupação e ao mesmo tempo tanta serenidade...

- Acho que entendo o que você está querendo dizer.

- Volte para casa, disseram, volte. É lá que a sua presença é necessária. Aaron, por que ele não olhou direto para mim na rua?

- Poderia haver um monte de razões. Tudo está relacionado ao que você disse. Se eles existem em alguma parte, é difícil para eles aparecerem aqui. Não é difícil para Lasher. E esse ponto é crucial para nossa compreensão do que está acontecendo. Mas volto a falar nisso depois. Prossiga...

- Você pode adivinhar, não? Volto para casa, de avião particular, limusine, tudo organizado pelo primo Ryan, como se eu fosse um maldito astro do rock, e ela nem mesmo me pergunta o que houve. Porque ela não é Rowan. Ela é Rowan, enredada em alguma coisa. Rowan, sorrindo, fingindo e olhando para mim com aqueles olhos cinzentos enormes e tristes. Aaron, o pior é que...

- Fale, Michael.

- Ela me ama, Aaron. E é como se ela estivesse me implorando em silêncio que não entre em confronto com ela. Ela sabe que percebi a mentira. Meu Deus, quando a toco, eu sinto! Ela sabe que eu sinto. E fica me implorando, calada, que eu não a deixe acuada, que eu não a force a mentir. É como uma súplica, Aaron. Ela está desesperada. Eu poderia jurar que ela está até mesmo com medo.

- É. Ela está totalmente envolvida. Falou comigo a respeito disso. Alguma espécie de comunicação começou assim que você foi embora. Talvez mesmo antes de você viajar.

- Você sabia? Por que não me contou?

- Michael, estamos lidando com uma criatura que sabe o que estamos dizendo um para o outro neste exato momento.

- Meu Deus!

- Não há nenhum lugar em que possamos nos esconder dele - declarou Aaron. - A não ser, talvez, no santuário das nossas mentes. Rowan me disse muitas coisas, mas o principal é que agora toda essa luta está nas mãos dela.

- Aaron, tem de haver alguma coisa que se possa fazer. Nós sabíamos que isso ia acontecer.

Sabíamos que ia dar nisso. Você sabia que ia dar nisso antes de pôr os olhos em mim pela primeira vez.

- Michael, é exatamente esse o ponto principal. Ela é a única pessoa que pode fazer alguma coisa. E você, com seu amor e sua presença junto a ela, está usando as antiqüíssimas ferramentas humanas à sua disposição.

- Isso não pode ser suficiente! - Ele mal conseguia suportar tudo isso. Levantou-se, andou de um lado para o outro e depois acabou parando com as mãos no consolo da lareira, e os olhos fixos no fogo. - Você devia ter me chamado, Aaron. Você devia ter me contado.

- Olhe, descarregue sua raiva em mim se isso fizer com que se sinta melhor, mas o fato é que ela me ameaçou para me proibir de contatá-lo. Ela estava cheia de ameaças.

Algumas delas foram feitas sob o disfarce de avisos, que seu amigo invisível queria me matar e logo o faria, mas eram ameaças verdadeiras.

- Meu Deus, quando isso aconteceu?

- Não importa. Ela me mandou voltar para a Inglaterra enquanto ainda era tempo.

- Ela lhe disse isso? O que mais ela disse?

- Preferi não voltar. Mas, francamente não sei mais o que eu posso fazer aqui. Sei que ela queria que você continuasse na Califórnia porque achava que você lá estava em segurança. Você me entende? Esta situação se tornou complicada demais para uma interpretação simples ou literal do que ela disse.

- Não sei o que você está querendo dizer. O que é uma interpretação literal? Que outro tipo de interpretação existe? Não estou entendendo.

- Michael, ela falou em linguagem cifrada. Não foi tanto uma conversa quanto uma demonstração de um conflito. Mais uma vez, tenho de lhe relembrar que esse ser, se assim desejar, pode estar conosco nesta sala. Não temos nenhum local seguro no qual possamos conspirar contra ele. Imagine uma luta de boxe na qual os adversários consigam ler o pensamento um do outro. Imagine uma guerra, na qual todas as estratégias concebíveis sejam conhecidas através da telepatia desde o começo.

- Isso aumenta os riscos, aumenta o interesse, mas não é impossível.

- Concordo com você, mas de nada adianta eu lhe transmitir tudo que Rowan me disse.

Basta dizer que Rowan é o adversário mais capaz que essa criatura jamais teve.

- Aaron, você a avisou há muito tempo para que não permitisse que essa coisa a afastasse de nós. Você lhe disse que a criatura procuraria separá-la daqueles que ela ama.

- É verdade. E tenho certeza de que ela se lembra, Michael. Rowan é um ser humano no qual praticamente nada se perde. E acredite em mim, já discuti com ela desde então. Disse-lhe com palavras claríssimas por que ela não deveria permitir que essa criatura passasse pela mutação. Mas a decisão cabe a ela.

- Você no fundo está dizendo que temos de esperar e deixar que ela lute sozinha.

- No fundo, estou dizendo que você está fazendo o que deveria fazer. Ame Rowan. Fique ao seu lado. Use sua presença para relembrá-la do que é natural e inerentemente bom. Esta é uma guerra entre o natural e o não natural, Michael. Não importa qual seja a composição dessa criatura, não importa de onde ela venha, trata-se de uma luta entre a vida normal e a aberração. Entre a evolução de um lado, e a intromissão catastrófica do outro. E os dois lados têm seus mistérios e seus milagres; e ninguém sabe disso melhor do que a própria Rowan.

Ele se levantou e pôs a mão no ombro de Michael. - Sente-se e preste atenção ao que estou dizendo.

- Eu estou prestando atenção - disse Michael, irritado, porém obediente.

Sentou-se bem na beira da poltrona, sem conseguir deixar de formar um punho fechado com a mão direita, forçando-o contra a palma da mão esquerda.

- A vida inteira, Rowan se defrontou com essa divisão entre o natural e a aberração – disse Aaron. - Rowan é essencialmente um ser humano conservador. E seres como Lasher não conseguem mudar a natureza básica de uma pessoa. Eles só conseguem influenciar os traços que já estão ali. Ninguém quis mais aquele lindo casamento formal do que Rowan. Ninguém quer mais a família do que ela. Ninguém quer mais aquele bebê ali dentro do que ela.

- Ela sequer fala no bebê, Aaron. Ela não chegou a mencionar sua existência desde que voltei. Eu queria contar para a família hoje à noite na festa, mas ela não quer. Diz que não está pronta. E essa festa, sei que é uma agonia para ela. Ela só está agindo maquinalmente. Foi Beatrice quem a instigou.

- É, eu sei.

- Eu falo no bebê o tempo todo. Beijo-a e chamo o neném de Little Chris, que é o nome que lhe dei, e ela ri, e é como se ela não fosse Rowan. Aaron, vou perdê-la e ao bebê se ela for derrotada por ele. Não consigo pensar em nada além disso. Não sei de nada acerca de mutações, monstros e... e fantasmas que querem ter vida.

- Vá para casa e fique lá com ela. Fique perto dela. Foi o que lhe mandaram fazer.

- E não devo enfrentá-la? É isso o que está dizendo?

- Se agir assim, você a forçará a mentir. Ou a alguma coisa pior.

- E se você e eu voltássemos lá juntos e tentássemos argumentar com ela, tentássemos conseguir que ela desse as costas à criatura? Aaron abanou a cabeça.

-Ela e eu já tivemos nosso confronto, Michael. Por isso, pedi desculpas a Bea por não poder comparecer hoje à noite. Eu a estaria desafiando e ao seu sinistro companheiro se aparecesse por lá. Mesmo assim, se eu achasse que seria de alguma ajuda, eu iria.

Arriscaria qualquer coisa se achasse que poderia ajudar. Mas não posso.

- Mas, Aaron, o que lhe dá tanta certeza?

- Já não estou mais no jogo, Michael. Não vi as visões. Você as viu. Julien e Deborah falaram com você. Rowan ama você. - Não sei se posso agüentar tudo isso.

- Acho que pode. Faça o que for preciso para agüentar. E fique perto dela. Diga-lhe de alguma forma, sem palavras ou sei lá como, que ela pode contar com você.

Michael fez que sim.

- Está bem, Aaron. Você sabe que é como se ela estivesse me traindo. - Você não deve encarar desse modo. Não deve sentir raiva. - Não paro de me dizer essas mesmas coisas.

- Ainda tenho algo a lhe dizer. Talvez não tenha importância em última análise. Mas quero passar a informação adiante. Se algo me acontecer, bem, é alguma coisa que eu gostaria que você soubesse, mesmo sem saber seu valor.

- Você não está achando que alguma coisa vai acontecer?

- Sinceramente não sei. Mas preste atenção ao que vou lhe dizer. Há séculos, ficamos intrigados com a natureza dessas entidades aparentemente incorpóreas. Não existe uma cultura sobre a face da terra que não reconheça sua existência. Mas ninguém sabe o que elas são realmente. A Igreja Católica as considera demônios. Eles têm complexas explicações teológicas para sus existência. E consideram que todas elas são malignas e voltadas para destruição. Agora tudo isso seria fácil de descartar, não fosse o fato de Igreja Católica demonstrar profundo conhecimento do comportamento e das fraquezas desses seres. Mas estou fugindo do assunto.

A questão é que nós, no Talamasca, sempre partimos do pressuposto de que esses seres eram muito semelhantes aos espíritos dos mortos ainda presos à terra. Acreditávamos ou tínhamos como certo que ambos eram essencialmente incorpóreos dotados de inteligência e presos a algum tipo de universo ao redor dos vivos.

- E Lasher poderia ser uma alma penada. É isso o que você está dizendo

- E. Mas o que é mais importante é que Rowan parece ter dado um grande de passo para a descoberta do que esses seres são. Ela alega que Lasher possui uma estrutura celular, e que os componentes básicos de toda vida orgânica estão presentes nele.

-Então, ele é só algum tipo de criatura bizarra. É isso o que está dizendo

- Eu não sei. Mas o que me ocorreu é que talvez os supostos espírito dos mortos também possuam os mesmos componentes. Talvez a nossa parti dotada de inteligência, ao deixar o corpo, leve consigo alguma porção viva Talvez nós só passemos por uma metamorfose, em vez de uma morte física E todos os termos antiqüíssimos, corpo etéreo, corpo astral, espírito, sejam simplesmente palavras que designam essa fina estrutura celular que persiste quando a carne acabou.

- Isso está fora da minha compreensão, Aaron.

- E, estou sendo muito teórico, não é? Acho que a idéia que quero transmitir é que tudo que essa criatura pode fazer os mortos também podem. Ou talvez ainda mais importante, mesmo que Lasher possua essa estrutura, ele ainda poderia ser o espírito malévolo de alguém que um dia viveu.

- Isso aí é para sua biblioteca em Londres, Aaron. Um dia, quem sabe vamos nos sentar junto à lareira em Londres e conversar sobre isso. Ma agora vou voltar para casa e ficar junto a ela. Vou fazer o que você me disse que fizesse, e o que eles me recomendaram. Porque é o máximo que posso fazer por ela. E por você. Não posso acreditar que ela vá deixar aquela coisa fazer algum mal a você, a mim ou a qualquer pessoa. Mas, como você disse o melhor que posso fazer é estar por perto, à disposição dela.

- É, você tem razão, Michael. Mas não consigo parar de pensar no que aqueles velhos disseram. Aquela história de salvação. Uma lenda muito estranha.

- Eles estavam enganados sobre essa parte. Ela é o portal. De um jeito ou de outro, eu soube quando vi o jazigo da família.

 

Aaron apenas suspirou e abanou a cabeça. Michael percebia que ele estava insatisfeito, que havia outras coisas que gostaria de considerar. Mas de que importava isso agora? Rowan estava sozinha naquela casa com aquele ser, e o ser a estava afastando de Michael. E Rowan agora já sabia todas as respostas, certo? A criatura estava lhe explicando o significado de tudo, e Michael tinha de voltar para casa para estar com ela.

Olhou ansioso quando Aaron se levantou, com uma ponta de formalidade, e foi até o armário apanhar o casaco e as luvas. Michael estava parado na entrada, apreciando a árvore de Natal, com suas luzes brilhando fortes mesmo à luz do dia.

- Por que teve de começar tão cedo? - sussurrou. - Por que agora, nesta época do ano? - Mas ele sabia a resposta. Tudo que estava acontecendo estava de certo modo vinculado. Todas essas dádivas estavam relacionadas a algum desenlace final. Até mesmo sua incapacidade de agir estava relacionada.

- Por favor, tenha cuidado - disse Aaron.

- É, vou pensar em você amanhã à noite. Sabe, para mim a véspera de Natal sempre foi como a véspera do Ano Novo. Não sei por que razão. Deve ser o sangue irlandês.

- Ou o sangue católico - disse Aaron. - Mas eu compreendo.

- Se você for abrir esse conhaque amanhã, faça um brinde por mim. - É o que vou fazer.

Pode contar com isso. E Michael... se por algum motivo neste mundo, você e Rowan quiserem vir para cá, você sabe que as portas estão abertas. Noite e dia. Pense nesta casa como um refúgio. - Obrigado, Aaron.

- E mais uma coisa, se você precisar de mim, se realmente quiser que eu vá e acreditar que eu deva ir, bem, nesse caso, irei.

Michael estava a ponto de protestar, de dizer que aqui era o melhor lugar para Aaron, mas Aaron já havia desviado o olhar. Sua expressão se iluminou, e de repente Aaron apontou para a bandeira da porta da frente.

- Está nevando, Michael. Olhe, está nevando de verdade. Não dá para acreditar. Não está nevando nem em Londres e, olhe, aqui está.

Ele abriu a porta, e os dois saíram para a larga varanda da frente. A neve caía em flocos grandes, que desciam com uma lentidão e graça impossíveis, pelo ar sem vento na direção da terra. Ela caía sobre os galhos negros dos carvalhos, cobrindo-os com uma espessa camada de brancura brilhante, e formando um caminho branco e fofo entre as duas fileiras de árvores dali até a estrada.

Ela caía sobre os campos que já estavam cobertos da mesma brancura, e o céu lá em cima brilhava sem cor, parecendo dissolver-se na neve que caía.

- E bem um dia antes da véspera de Natal, Aaron - disse Michael. Ele tentou visualizar todo o espetáculo, essa avenida famosa e venerável de árvores velhas com seus braços escuros e nodosos erguidos para os flocos de neve que caíam em delicados remoinhos. - Que milagre que ela chegue logo agora. Meu Deus, seria tão maravilhoso se...

- Que todos os nossos milagres sejam pequenos, Michael.

- É, os pequenos milagres são os melhores, não são? Olhe só, ela não está derretendo ao tocar no chão. Está realmente ficando ali. Vamos ter um Natal com neve, sem a menor dúvida.

- Mas espere aí - disse Aaron. - Eu quase ia me esquecendo. Seu presente de Natal, e ele está aqui comigo. - Ele enfiou a mão no bolso do suéter e tirou um embrulhinho achatado. Não era maior do que uma moeda de meio dólar. - Abra. Sei que nós dois estamos morrendo de frio, mas preferia que o abrisse.

Michael rasgou o fino papel dourado e viu imediatamente que era uma velha medalha de prata numa corrente.

- É São Miguel Arcanjo - disse ele, sorrindo. - Aaron, é um presente perfeito. Você falou direto à minha supersticiosa alma irlandesa.

- Ele está expulsando o demônio para o inferno - disse Aaron. - Encontrei-a numa lojinha em Magazine Street, quando você estava fora Logo pensei em você. Imaginei que talvez gostasse de tê-la.

- Obrigado, amigão. - Michael examinava a imagem tosca. Estava desgastada como a de uma moeda antiga. Mas ele via Miguel com suas asas e seu tridente, por cima do diabo chifrudo que jazia de costas nas chamas. Ele ergueu a corrente, que era tão longa que ele não precisou abri-la, passou-a pela cabeça e deixou a medalha cair dentro do suéter.

Ficou olhando para Aaron por mais algum tempo, e depois lhe deu um forte abraço.

- Tenha cuidado, Michael. Ligue para mim logo.

O cemitério estava fechado para a noite, mas isso não tinha importância. A escuridão e o frio não importavam. No portão lateral, a tranca estaria quebrada, e seria muito simples para ela empurrar o portão e depois fechá-lo seguindo pelo caminho coberto de neve.

Ela sentia frio, mas isso também não tinha importância. A neve estava tão linda. Ela queria ver o jazigo coberto de neve.

- Você vai encontrá-lo para mim, não vai? - sussurrou ela. Já estava quase totalmente escuro agora, e eles estariam chegando logo. Não tinha muito tempo.

Você sabe onde ele fica, Rowan, disse ele naquela bela voz delicada, de dentro da sua cabeça.

 

E sabia. Era verdade. Ela estava parada em frente ao jazigo, e o vento a enregelava, passando direto pela sua camisa fina. Havia doze pequenas lápides, uma para cada câmara, e acima o entalhe do portal.

- Não morrer nunca.

É essa a promessa, Rowan, é esse o pacto que existe entre nós dois. Estamos quase na hora de começar...

- Não morrer nunca, mas o que você prometeu às outras? Alguma coisa você prometeu.

Está mentindo.

Não, minha amada. Agora ninguém mais interessa, a não ser você. Todas elas estão mortas.

Todos os ossos ali embaixo na escuridão enregelada. E o corpo de Deirdre, ainda perfeito, todo injetado com produtos químicos, frio na caixa forrada de cetim. Frio e morto.

- Mãe.

Ela não tem como ouvir você, minha linda. Ela se foi. Você e eu estamos aqui. - Como vou poder ser o portal? Será que eu sempre estive destinada a ser o portal?

Sempre, minha querida, e a hora quase já chegou. Mais uma noite você irá passar com seu anjo de carne e osso, e depois será minha para sempre. As estrelas estão se movendo nos céus. Estão chegando à configuração perfeita.

- Não as vejo. Tudo o que estou vendo é a neve que cai.

É, mas elas estão lá. Estamos na parte mais intensa do inverno, quando tudo que deve renascer dorme em segurança na neve.

O mármore parecia gelo. Ela pôs os dedos dentro das letras, DEIRDRE MAYFAIR. Não conseguiu alcançar o entalhe do portal em forma de buraco de fechadura.

Agora venha, querida, volte para a casa e para o calor. Já está quase na hora. Todos virão, os meus filhos, o grande clã Mayfair, todos os meus descendentes, que prosperaram á sombra acolhedora das minhas asas. Agora, volte ao lar, minha amada, mas amanhã, amanhã, você e eu deveremos estar sós na casa. E você deve mandar embora seu arcanjo.

- E você me ensinará a ser o portal?

Você sabe, minha querida. Nos seus sonhos e no seu coração, você sempre soube.

Ela caminhava apressada pela neve, com os pés úmidos, mas isso não importava. As ruas estavam desertas e reluzentes naquele crepúsculo cinzento. A neve era tão leve que parecia uma miragem. Logo eles estariam chegando.

E o pequeno bebê dentro dela estaria sentindo frio?

- Há milhares deles - dissera Lemle -, milhões, jogados como lixo nos esgotos do mundo inteiro: todos aqueles minúsculos cérebros e órgãos perdidos.

Estava escuro, e todos eles viriam. Era essencial fingir que tudo estava normal. Ela caminhava o mais rápido que podia. Sua garganta ardia. Mas o ar frio lhe fazia bem, gelando-a por inteiro, aplacando sua febre interior.

E lá estava a casa, sombria, à espera. Chegara a tempo. Estava com a chave na mão.

- E se eu não conseguir fazer com que ele vá embora amanhã? - sussurrou ela. Estava parada junto ao portão, olhando para as janelas vazias. Como naquela primeira noite em que Carlotta lhe dissera, venha me procurar. Faça sua escolha.

Mas você tem de fazer com que ele saia. Antes de escurecer amanhã, querida. Ou eu o matarei.

- Não, você não deve nunca fazer isso. Não pode nem dizer isso. Está me ouvindo? Nada pode acontecer a Michael, nunca. Está me entendendo?

Estava na varanda, falando em voz alta com ninguém. E em toda a sua volta a neve caía. A neve no paraíso, magoando as folhas congeladas das bananeiras, passando pelas hastes altas e grossas do bambu. Mas o que teria sido o paraíso sem a beleza da neve?

- Você está me compreendendo, não está? Você não pode lhe fazer nenhum mal. Você não pode lhe fazer absolutamente nenhum mal. Prometa. Faça esse pacto comigo. Nada de mal acontece a Michael.

Como você quiser, minha querida. Eu o amo de verdade. Mas ele não pode nos atrapalhar na maior de todas as noites. Os astros estão se aproximando da configuração perfeita. Eles são minhas testemunhas eternas, antigos como sou, e eu gostaria que eles brilhassem sobre mim no momento perfeito. No momento da minha escolha. Se você quer salvar seu amor mortal da minha ira, certifique-se de que ele não apareça diante de mim.

Eram duas da manhã antes que todos fossem embora. Ele nunca havia visto tanta gente feliz, totalmente alheia ao que realmente estava acontecendo. Mas o que estava realmente acontecendo? Era uma casa imensa e acolhedora, cheia de risos e cantorias, com suas numerosas lareiras acesas. E lá fora a neve caía devagar, cobrindo as árvores, os arbustos e os caminhos com uma brancura luminosa. E por que eles todos não deveriam estar se divertindo a valer?

Como riam quando escorregavam nas lajes cobertas de neve, e passavam ruidosos esmagando o gelo nos regos. Havia nevado o suficiente para que as crianças fizessem bolas de neve. Com seus gorros e luvinhas, elas corriam

pela crosta gelada que cobria o gramado.

Até tia Viv adorou a neve. Ela havia bebido um pouco demais do xerez, e nesses momentos despertava em Michael uma lembrança assustadora da sua mãe, embora Bea e Lily, que eram agora suas melhores amigas, não parecessem se importar.

Rowan estivera perfeita a noite inteira, entoando cânticos de Natal com eles ao piano, posando para fotografas diante da árvore.

E era esse o seu sonho, não era? Um Natal cheio de rostos radiantes e vozes vibrantes, de pessoas que sabiam apreciar esse momento: copos que retiniam em brindes, lábios que beijavam bochechas e a melancolia das velhas canções.

- Que delicadeza a de vocês de fazerem esta festa tão logo depois do casamento...

- ...Todos reunidos como nos velhos tempos.

- O Natal do jeito que devia ser.

E eles haviam admirado tanto os preciosos enfeites. Embora tivessem sido avisados para não fazê-lo, empilharam presentinhos debaixo da árvore.

Houve momentos em que ele não conseguia suportar a tensão. Subia até o terceiro andar e saía para o telhado acima do quarto voltado para o norte, parando junto á mureta, a olhar para o centro da cidade e suas luzes. Neve no alto dos telhados, neve realçando os peitoris das janelas, as cumeeiras e chaminés. E mais neve, caindo fina e linda, até onde ele pudesse enxergar.

Era tudo que ele sempre quis. Um Natal tão pleno e intenso quanto a cerimônia do casamento, e nunca havia se sentido tão infeliz. Era como se aquela criatura estivesse com a mão em volta da sua garganta. De tão ansioso, ele poderia ter dado um soco numa parede. Era amargo, amargo como a dor.

E, nos intervalos de tranqüilidade em que se afastava dos outros e subia para ali, ele parecia sentir a criatura. Quando tocava os batentes e as maçanetas das portas com os dedos nus, ele parecia receber fortes vislumbres da criatura nas sombras.

- Você está aqui, Lasher. Sei que está.

Algo recuou diante dele nas sombras, brincando com ele, deslizando pelas paredes escuras acima, afastando-se para depois se dispersar, de modo que ele se encontrou no corredor lá em cima, na penumbra, sozinho.

Qualquer um que o estivesse espiando teria pensado que ele estava louco. Ele riu. Era essa a impressão que Daniel McIntyre dava na sua velhice, a perambular bêbado?

E o que dizer de todos os outros maridos eunucos que pressentiam o segredo? Eles escapavam para os braços de amantes, e aparentemente para a morte certa, ou caíam no esquecimento. O que iria acontecer com ele?

Mas este não era o final. Era apenas o começo, e Rowan tinha de estar procurando ganhar tempo. Ele precisava acreditar que, por trás das suas súplicas mudas, seu amor esperava para poder se revelar de verdade.

Afinal, eles se foram.

Os últimos convites para a ceia de Natal foram delicadamente recusados, e promessas foram feitas para futuras reuniões. Tia Viv ia cear com Bea na véspera de Natal, e ninguém precisava se preocupar com ela. Podiam ter o Natal só para si.

Trocaram-se fotos Polaroid, e crianças adormecidas foram recolhidas dos sofás. Abraços de última hora, e então todos saíram para aquele frio límpido e luminoso. Exausto da tensão e dominado pela preocupação, ele se demorou a trancar a casa. Nenhuma necessidade de sorrir agora. Nenhuma necessidade de fingir. E meu Deus, como não deveria ter sido a tensão para ela?

Tinha medo de subir a escada. Passou pela casa inteira verificando as janelas, os minúsculos pontinhos verdes de luz no painel do alarme e abrindo as torneiras para que os canos não congelassem.

Parou, afinal, no salão, diante da sua linda árvore iluminada.

Alguma vez havia passado um Natal tão triste e solitário quanto este? Teria ficado furioso, se isso adiantasse alguma coisa.

Ficou algum tempo deitado no sofá, deixando que o fogo se apagasse na lareira, em muda conversa com Julien e Deborah, perguntando-lhes, como fizera milhares de vezes nesta noite, como deveria agir.

Afinal, subiu a escada. O quarto estava escuro e em silêncio. Ela estava toda envolta em cobertores, de tal modo que ele via apenas o cabelo sobre o travesseiro e o rosto virado para o outro lado.

Quantas vezes nesta noite ele não havia tentado olhar nos seus olhos, sem conseguir? Será que alguém havia notado que eles dois não trocaram uma única sílaba? Todos tinham certeza demais da sua felicidade. Exatamente da mesma forma que ele havia tido. Ele caminhou em silêncio até a janela da frente e abriu a pesada cortina de damasco para dar uma última olhada na neve que caía. Já passava muito da meia-noite, já era véspera de Natal. E hoje à noite viria aquele momento mágico em que ele avaliaria sua vida e suas realizações, em que daria forma aos sonhos e planos do ano vindouro.

Rowan, não vai terminar assim. É só um pequeno conflito. Nós sabíamos no inicio, tanto mais do que os outros...

Ele se voltou e viu sua mão no travesseiro, linda e longa, com os dedos ligeiramente dobrados.

Sem ruído ele se aproximou dela. Queria tocar sua mão, sentir o calor nos seus dedos, agarrá-la como se ela estivesse sendo levada para longe num mar sombrio e cheio de perigos. Mas não ousou.

Seu coração estava descompassado, e ele sentiu aquela dor morna no peito quando voltou a olhar para a neve. Depois, seus olhos pousaram no rosto de Rowan.

Os olhos estavam abertos. Ela estava olhando fixamente para ele na escuridão. E seus lábios formaram lentamente um sorriso malévolo, duradouro.

Ele ficou petrificado. O rosto de Rowan estava branco à luz fraca de lá de fora, e duro como o mármore. O sorriso parecia paralisado, e os olhos reluziam como pedaços de vidro. Seu coração se acelerou e a dor morna se espalhou pelo peito. Ele continuou a olhar, incapaz de tirar os olhos dela. E de repente sua mão saiu veloz, antes que ele a pudesse controlar, e agarrou o pulso de Rowan.

Ela se contorceu de corpo inteiro, e a máscara malévola no seu rosto se desfez totalmente.

Ela se sentou na cama, ansiosa e confusa.

- O que foi, Michael? - Ela ficou olhando para o pulso, e ele a soltou bem devagar. – Que bom que você me acordou. - Seus olhos estavam dilatados, e a boca tremia.

- Eu estava tendo um sonho dos mais terríveis.

- Com que estava sonhando, Rowan?

Ela estava sentada, imóvel, olhando direto para a frente, e então começou a torcer as mãos como se uma quisesse rasgar a outra. Michael tinha a vaga lembrança de já ter visto nela esse gesto desesperado.

- Eu não sei. Não sei o que era. Era um lugar... há séculos, e alguns médicos estavam reunidos ali. E o corpo sobre a mesa era tão pequeno. - Sua voz estava baixa e cheia de agonia. De repente, as lágrimas se derramaram quando ela ergueu os olhos para ele.

- Rowan.

Ela levantou a mão. Quando ele se deixou cair no lado da cama, ela apertou os dedos contra os lábios de Michael.

- Não diga nada, Michael, por favor. Não diga. Não diga uma palavra sequer.

Ela sacudia a cabeça, nervosíssima.

E ele, dominado pelo alívio e pela mágoa, apenas deslizou os dedos pelo seu pescoço. E, quando ela inclinou a cabeça, ele procurou também não chorar.

Você sabe que eu a amo; você sabe todas as coisas que eu quero dizer. Quando ela estava mais calma, ele segurou suas duas mãos, apertou-as com força e fechou os olhos.

Confie em mim, Michael.

- Está bem, querida - disse ele, baixinho. - Está bem. - Tirou as roupas, desajeitado, e entrou debaixo das cobertas ao lado dela, sentindo o perfume limpo e quente da sua pele. Ficou ali, de olhos abertos, imaginando que nunca teria descanso, sentindo que ela estremecia junto ao seu corpo, e depois, aos poucos, à medida que as horas foram passando, à medida que o corpo de Rowan relaxou e ele viu que seus olhos estavam fechados, Michael caiu num sono irrequieto.

Já passava do meio-dia quando ele acordou. Estava sozinho, e fazia um calor sufocante no quarto. Tomou um banho de chuveiro, vestiu-se e desceu. Não conseguiu encontrá-la.

As luzes da árvore estavam acesas, mas a casa estava vazia. Ele examinou cada um dos cômodos.

Saiu para o frio e caminhou por todo o jardim congelado, onde a neve havia se transformado numa dura camada de gelo reluzente sobre os caminhos e sobre o gramado. Nos fundos por trás do carvalho, ele procurou por ela, mas ela não se encontrava em parte alguma.

Afinal, vestiu o casaco pesado e foi dar uma volta.

O céu era de um azul profundo e imóvel. E o bairro estava esplêndido, todo vestido de branco, exatamente como naquele Natal remoto, o último que havia passado ali. Um pânico o dominou.

Era véspera de Natal, e eles não haviam feito nenhum preparativo. Michael tinha um presentinho para ela, escondido na despensa, um espelho de bolsa de prata que ele havia encontrado na sua loja em San Francisco e embrulhado com carinho muito antes de voltar, mas que importância isso tinha diante de todas as jóias, todo o ouro e todas as riquezas inimagináveis que ela possuía? E ele estava só. Seus pensamentos giravam em círculos.

Véspera de Natal, e as horas escorriam como água.

Ele entrou no mercado em Washington Avenue, que estava apinhado de consumidores de última hora, e meio atordoado comprou o peru e os outros ingredientes, procurando nos bolsos as notas necessárias, como um bêbado à procura do último centavo para uma garrafa que não tinha como comprar. As pessoas riam e tagarelavam sobre a nevasca.

Um Natal com neve em Nova Orleans. Ele se flagrou olhando para elas como se fossem animais estranhos. E todos os seus ruídos esquisitos só faziam com que ele se sentisse pequeno e só. Ele segurou a bolsa pesada debaixo de um braço e começou a voltar para casa.

Deu apenas alguns passos dali e avistou o quartel no qual seu pai havia servido. Estava todo reformado. Ele mal o reconhecia agora, a não ser por estar no mesmo lugar e por ainda haver aquele enorme arco pelo qual o caminhão dos bombeiros saía ruidoso para a rua quando ele era menino. Ele e o pai costumavam ficar sentados em cadeiras de espaldar reto ali fora na calçada.

Agora devia estar parecendo um bêbado, sem dúvida perdido por ali, com os olhos fixos no quartel do corpo de bombeiros, quando os próprios bombeiros tinham o bom senso de ficar lá dentro, ao abrigo do frio. Há todos aqueles anos, no Natal, seu pai morrendo naquele incêndio.

Quando ergueu os olhos para o céu, percebeu que ele agora estava da cor da ardósia, e que a luz do dia estava desaparecendo. Era véspera de Natal, e absolutamente tudo dera errado.

Ninguém respondeu ao seu chamado quando ele entrou pela porta. Só a árvore emitia uma

claridade suave no salão. Limpou os pés no capacho e voltou pelo longo corredor,

com as mãos e o rosto doendo do frio. Tirou as compras da bolsa e abriu o peru, imaginando que executaria todos os passos, que agiria como sempre, e que hoje, à meia-noite, o banquete estaria pronto, exatamente naquela hora na qual antigamente todos eles estariam apertados na igreja para a Missa do Galo.

Não era a Santa Comunhão, mas era a sua ceia juntos. Era Natal, e a casa não estava assombrada, em ruínas, sinistra.

Fingir que tudo deu certo.

Como um padre que vendeu a alma ao diabo e se apresenta no altar de Deus para rezar a missa.

Ele guardou as compras no armário. Não, estava cedo demais para começar. Apanhou as velas. Tenho de encontrar os castiçais para elas. E sem dúvida ela estava aqui em algum lugar. Talvez tivesse saído para dar um passeio e agora estivesse de volta. A cozinha estava escura. A neve caía novamente. Ele quis acender a luz. Na verdade, quis acender todas as lâmpadas, para encher a casa de luz. Mas não se mexeu. Ficou muito quieto na cozinha, olhando pelas portas envidraçadas para o jardim dos fundos, olhando a neve derreter ao tocar na superfície da piscina. Uma orla de gelo havia se formado em volta da água azul. Ele viu seu brilho e imaginou como a água devia estar fria, de um frio terrivelmente doloroso.

Fria como o Pacífico naquele domingo de verão em que ele havia ficado parado ali, vazio e ligeiramente receoso. O percurso desde aquele instante parecia infinitamente longo. E era como se toda a energia ou vontade o abandonassem agora, e aquele cômodo frio o mantivesse cativo, sem que ele erguesse um dedo que fosse para se sentir mais seguro, mais confortável ou aquecido.

Passou-se muito tempo. Michael se sentou à mesa, acendeu um cigarro e ficou olhando a noite cair. A neve havia parado, mas o chão estava coberto com uma nova camada de brancura limpa.

Hora de fazer alguma coisa, de começar a ceia. Ele sabia disso, mas não conseguia se mexer. Fumou mais um cigarro, distraído pela visão da minúscula brasa vermelha, e depois, ao apagá-lo, ficou apenas sentado imóvel, sem fazer nada, como havia acontecido por horas a fio no seu quarto de Liberty Street, mergulhando num pânico mudo e dele saindo, incapaz de pensar ou de agir.

Ele não sabia quanto tempo ficou sentado ali. Mas em algum momento, as luzes da piscina se acenderam, a iluminar brilhante a escuridão da noite, tornando a piscina um grande pedaço de vidro azul. A folhagem escura salpicada de branco, ao seu redor ganhou vida. E o chão assumiu um espectral tom lunar.

Ele não estava sozinho. Sabia disso. E, à medida que a percepção se aprofundava, ele se deu conta de que bastava virar a cabeça e a veria parada ali no portal da despensa, com os braços cruzados, a cabeça e os ombros delineados tendo ao fundo os armários claros, com a respiração fazendo um som levíssimo, ínfimo.

Esse era o pavor mais absoluto que jamais havia sentido. Levantou-se, guardou no bolso o maço de cigarros e, quando ergueu os olhos, ela não estava mais lá.

Foi atrás dela, passando rápido pela sala de jantar às escuras e voltando pelo corredor. Foi quando a viu na outra ponta, iluminada pela árvore, parada diante da grande porta branca da frente.

Ele viu o formato nítido e perfeito do portal a emoldurá-la, e como ela parecia pequena nele. E á medida que ele foi se aproximando, sua imobilidade o assustou. Ele estava apavorado com o que ia ver quando afinal chegasse perto o suficiente para discernir as suas feições nas sombras.

No entanto, não era aquele terrível rosto de mármore que ele havia visto na noite anterior. Ela apenas olhava para ele, e a iluminação suave e colorida da árvore enchia seus olhos de reflexos pálidos.

- Eu ia preparar a ceia. Comprei tudo. Está lá na cozinha. - Como ele parecia inseguro. Aflito. Procurou recompor-se. Respirou fundo e enganchou os polegares nos bolsos dos jeans. - Olhe, posso começar agora. E só um peru pequeno. Estará pronto em duas ou três horas, e eu tenho tudo. Está tudo lá. Vamos pôr a mesa com a porcelana fina. Nunca usamos nenhum dos aparelhos. Nunca fizemos uma refeição à mesa. É... hoje é véspera de Natal. -  você tem de ir - disse ela.

- Eu... eu não estou entendendo. - Você tem de sair daqui agora. - Rowan?

- Tem de ir embora, Michael. Preciso ficar aqui sozinha agora. - Querida, não compreendo o que você quer dizer.

- Vá embora, Michael - Sua voz baixou ainda mais, ficando mais dura.

- Eu quero que você vá.

- E Natal, Rowan. Eu não quero ir.

- A casa é minha, Michael. Estou dizendo para sair daqui. Estou lhe dizendo para dar o fora.

Ele olhou espantado para ela por um instante. Ficou observando o rosto de Rowan se alterar, a torção dos seus lábios tensos, a contração dos seus olhos e seu jeito de baixar um pouco a cabeça e olhar para ele por baixo das sobrancelhas.

- Você... você não está dizendo coisa com coisa, Rowan. Você tem consciência do que disse?

Ela deu alguns passos na sua direção. Ele se preparou, recusando-se a ter medo. Na verdade, seu medo estava se transformando em raiva.

- Dê o fora, Michael - disse ela, entre dentes. - Saia desta casa e me deixe aqui para fazer o que tenho de fazer.

De repente, sua mão subiu e veio para a frente. Antes que ele percebesse o que estava acontecendo, sentiu o choque da bofetada no rosto.

Adoro atingiu. A raiva aumentou, mas era mais amarga e dolorosa do que qualquer outra raiva que já houvesse sentido. Chocado e furioso, ele olhou com espanto para ela.

- Não é você, Rowan! - disse ele, estendendo o braço para segurá-la.

Sua mão se ergueu e, quando ele tentou se defender do golpe, sentiu que ela o empurrava contra a parede. Irado e confuso, ele olhou para ela. Ela se aproximou, com os olhos refletindo a iluminação que vinha do salão.

- Saia já daqui - sussurrou ela. - Você está me ouvindo?

Atordoado, ele ficou olhando enquanto ela lhe cravava as unhas no braço e o empurrava para a esquerda, na direção da porta da frente. Sua força o espantava, mas a força física não tinha nada a ver com isso. Era mais a maldade que emanava dela; era a velha máscara de ódio mais uma vez a encobrir suas feições.

- Saia desta casa agora. Estou mandando que saia - disse ela, soltando os dedos do seu braço, para segurar a maçaneta, girá-la e abrir a porta para no vento frio.

- Como você pode fazer isso comigo? Rowan, responda. Como pode estar agindo assim?

Desesperado, ele tentou agarrá-la, e dessa vez nada o impediu. Ele a segurou e a sacudiu. Sua cabeça caiu para um lado por um instante e então ela se voltou para ele, com o olhar fixo, desafiando-o a continuar, forçando-o em silêncio a soltá-la.

- Do que você me vale morto, Michael? Se me ama, vá embora agora. Volte quando eu o chamar. Preciso fazer isso sozinha. - Não posso ir. Não vou.

Ela lhe voltou as costas e seguiu pelo corredor. Ele a acompanhou.

- Rowan, eu não vou embora, está me ouvindo? Não me importa o que aconteça, não vou deixá-la. Você não pode me pedir que a deixe.

- Eu sabia que você não iria - disse ela, baixinho, quando ele entrou na biblioteca atrás dela.

As pesadas cortinas de veludo estavam fechadas, e ele mal conseguia ver sua silhueta quando ela se aproximou da escrivaninha.

- Rowan, não podemos continuar se m falar nisso. Isso está nos destruindo, Rowan. Ouça o que lhe digo.

- Michael, meu anjo lindo, meu arcanjo - disse ela de costas para ele, com a voz abafada. - A confiar em mim, você prefere morrer, não é?

- Rowan, eu luto com ele com as minhas próprias mãos se for preciso. - Ele veio na sua direção. Onde ficavam os abajures daqui? Ele estendeu a mão, tentando alcançar o abajur de latão ao lado da poltrona. Foi quando ela deu meia-volta e o atacou.

Ele viu a seringa erguida.

- Não, Rowan.

A agulha penetrou no seu braço no mesmo instante.

- Meu Deus, o que você fez comigo? -Mas ele já estava caindo de lado, como se não tivesse pernas. Em seguida, o abajur virou e caiu no chão, e ele estava deitado ao seu lado, olhando direto para o fragmento pálido e afiado da lâmpada quebrada.

Tentou dizer o nome ele Rowan, mas seus lábios não se mexeram.

- Durma, meu querido. Amo você. Eu o amo do fundo da minha alma.

Longe, muito longe, ele ouviu o ruído das teclas do telefone. Sua voz estava muito baixa, e as palavras... O que ela estava dizendo? Estava falando com Aaron. É, Aaron.

E, quando o levantaram, ele pronunciou o nome de Aaron.

- Você vai ficar com Aaron, Michael. Ele vai cuidar de você.

Não sem você, Rowan, ele tentou dizer, mas já estava desmaiando de novo, o carro estava saindo e ele ouviu uma voz masculina.

- Sr. Curry, tudo vai dar certo. Vamos levá-lo até o seu amigo. Basta que fique deitado aí. A Dra. Mayfair garantiu que o senhor vai ficar bom. Bom, bom, bom...

Seus mercenários. Não estão entendendo nada. Ela é uma bruxa e me encantou com seu veneno, como Charlotte fez com Petyr, e o que ela lhes disse foi pura mentira.

 

Só a árvore estava acesa, e a casa inteira dormitava aquecida na escuridão, a não ser por aquela suave guirlanda de luz. O frio batia nas vidraças mas não conseguia entrar.

Ela estava sentada no meio do sofá, com as pernas e os braços cruzados, olhando ao longo do salão para o espelho alto, mal discernindo o pálido brilho do lustre.

Os ponteiros do relógio de carrilhão se aproximavam lentamente da meia-noite.

E esta era a noite que significava tanto para você, Michael. A noite na qual você queria que estivéssemos juntos. Não poderia estar mais distante de mim, nem se estivesse do out ro lado do planeta. Todas essas coisas simples e graciosas estão distantes de mim. E esta véspera de Natal está parecida com aquela em que Lemle me levou por todas aquelas portas até seu laboratório escuro e secreto. O que esses horrores todos têm a ver com você, meu querido?

Toda a sua vida, fosse longa, curta ou estivesse quase terminando, enfim durante todo o restante da sua vida, ela se lembraria da expressão no rosto de Michael quando ela o esbofeteou. Ela se lembraria do tom da sua voz ao fazer suas súplicas. Ela se lembraria da expressão de espanto no instante em que ela lhe enfiou a agulha no braço.

E então por que não havia nenhuma emoção? Por que apenas esse vazio e essa serenidade atrofiante dentro dela? Seus pés estavam descalços; a camisola de flanela macia caía solta à sua volta; e o sedoso tapete chinês por baixo dos seus pés estava aquecido. Mesmo assim, ela se sentia nua e isolada, como se nada jamais pudesse aquecê-la ou confortá-la.

Algum movimento no centro do salão. Todos os ramos da árvore estremeceram, e os minúsculos sinos de prata emitiram uma música quase imperceptível no silêncio. Os anjinhos, com suas asas douradas, dançaram suspensos nos fios de ouro.

Uma escuridão se concentrava e se adensava.

- Estamos perto da hora, minha amada. A hora da minha escolha.

- Ah, você tem a alma de um poeta - disse ela, ouvindo o leve eco da sua própria voz nesse grande ambiente.

- Minha poesia aprendi com os humanos, amada. Com aqueles que, há milhares de anos, amaram esta noite mais do que todas as outras.

- E agora você quer me ensinar ciência, já que não sei como trazê-lo para cá.

- Não sabe? Você nunca entendeu?

Ela não respondeu. Parecia que ganhava corpo à sua volta o filme dos seus sonhos, imagens que se formavam e desapareciam, de tal modo que seu frio interno e sua solidão se agravaram, tornando-se quase insuportáveis.

A escuridão se adensou mais. Concentrou-se numa forma. E, na densidade do turbilhão, ela acreditou ver o esboço de ossos humanos. Os ossos pareciam estar dançando, reunindo-se. Depois veio a carne sobre eles, como a luz da árvore a se derramar sobre o esqueleto, e de repente os olhos verdes e brilhantes olhavam para ela de um rosto formado.

- Está quase chegando a hora, Rowan.

Assombrada, ela viu os lábios que se mexiam. Viu o reluzir dos dentes. Percebeu que havia ficado em pé e que estava muito perto dele. A mera beleza do seu rosto a assustava. Ele olhou para ela, com os olhos ficando um pouco mais escuros, e os cílios louros, dourados pela luz.

- É quase perfeito - sussurrou ela.

Tocou seu rosto lentamente, deixando o dedo correr até parar na firmeza do maxilar. Pôs a mão esquerda com extrema delicadeza sobre o peito. Fechou os olhos, ouvindo as batidas do coração. O que estava vendo era o órgão ali dentro, ou seria a réplica de um órgão? Fechando os olhos com mais força, ela o visualizou com suas artérias e válvulas; com o sangue passando rápido por ele para percorrer o corpo inteiro.

- Tudo o que tem a fazer é se entregar! - Ela estava em pé, olhando para ele, vendo sua boca se abrir imenso sorriso. - Relaxe! Não está vendo? Você conseguiu!

- Tudo? - perguntou ele, com o rosto funcionando com perfeição; os músculos delicados se retesando e se soltando; os olhos se contraindo como se contrairiam os olhos de qualquer ser humano nessa concentração. - Você acha que isso é um corpo? Isso é uma réplica. Uma escultura, uma estátua. Não é nada, e você sabe disso.

Acha que pode me atrair para essa concha de minúsculas partículas sem vida, só para me dominar? Para que eu seja um robô seu? Para que possa me destruir?

- O que você está dizendo? - Ela deu um passo atrás. - Não posso ajudá-lo. Não sei o que quer de mim.

- Para onde está indo, minha querida? - perguntou ele, com as sobrancelhas levemente erguidas. - Acha que pode fugir de mim? Olhe para o mostrador do relógio, minha bela Rowan. Você sabe o que eu quero. É véspera de Natal, minha amada. A hora das bruxas está chegando, Rowan, a hora na qual Cristo nasceu para este mundo, quando o Verbo afinal se fez carne, e eu quero nascer também, minha bela bruxa. Cansei de esperar.

Ele investiu contra ela, com a mão direita prendendo seu pescoço e a outra sobre o seu ventre. Um calor causticante penetrou nela, causando-lhe náuseas, mesmo enquanto ele a segurava.

- Afaste-se de mim! - disse ela, entre dentes. - Não sei o que devo fazer. - Ela invocou sua raiva e sua vontade, com os olhos penetrando nos da criatura diante dela. - Você não pode me forçar a fazer o que não quero! E, sem mim, você não conseguirá nada.

- Você sabe o que eu quero e o que sempre quis. Não quero mais cascas, Rowan. Não quero mais ilusões toscas. Quero a carne que está viva dentro de você. Que outro corpo em todo o mundo estaria tão pronto para mim, tão flexível e adaptável, formigando com milhões e milhões de células minúsculas que não irá usar no seu desenvolvimento?

Que outro organismo cresceu milhares de vezes seu próprio tamanho nas primeiras semanas, e está agora pronto para desabrochar, alongar-se e inflar à medida que as minhas células forem entrando em fusão com as dele?

- Afaste-se de mim. Afaste-se do meu filho! Você é uma criatura estúpida, ensandecida.

Não vai tocar no meu filho! Não vai tocar em mim! - Ela tremia como se sua raiva fosse grande demais para ser contida. Ela a sentia fervendo nas veias. Seus pés estavam molhados e escorregavam no assoalho enquanto ela recuava, recolhendo sua raiva, procurando dirigi-la contra a criatura.

- Você achou que podia me enganar, Rowan? - disse ele, com aquela voz linda, lenta, paciente, mantendo sua bela imagem. - Com as cenas que fez para Aaron e para Michael? Você achou que eu não poderia ler nas profundezas da sua alma? Eu criei sua alma. Escolhi os genes que se combinaram em você. Escolhi seus pais, seus antepassados. Eu a criei, Rowan. Conheço o ponto em que a carne e a mente se encontram em você. Conheço sua força como ninguém. E você sempre soube o que eu queria de você. Soube quando leu a história. Você viu o feto de Lemle cochilando na caminha de tubos e produtos químicos. Você sabia! Quando fugiu correndo do laboratório, você sabia o que a sua inteligência e a sua coragem poderiam ter feito, mesmo sem mim, sem saber que eu esperava por você, que eu a amava e que tinha o maior dos presentes a lhe dar, Rowan. Eu mesmo. Você vai me ajudar, ou essa criancinha aí em crescimento vai morrer quando eu entrar nela! E isso você nunca iria permitir.

- Meu Deus! Deus me ajude! - sussurrou ela, passando as mãos em movimentos cruzados pela barriga, como se quisesse evitar um golpe, com os olhos fixos nele. Morra, seu filho da mãe, morra!

Os ponteiros do relógio deram seu pequeno estalido quando se moveram, com o menor se colocando exatamente alinhado com o maior. Soou a primeira badalada.

- Cristo nasceu, Rowan - exclamou ele, com a voz fortíssima enquanto a imagem do homem se dissolvia numa enorme nuvem de trevas fervilhantes, escondendo o relógio, subindo até o teto, voltando-se para dentro de si mesma, como um funil. Ela berrou, procurando recuar, encostada na parede. Um choque fez vibrar os caibros, o reboco.

Ela o ouviu como o ronco de um terremoto.

-Não, meu Deus, não! - Ela berrava num pânico to tal. Voltou-se e saiu correndo pela porta do salão até o corredor. Procurou alcançar a maçaneta da porta da frente.

- Deus me ajude. Michael! Aaron!

Alguém tinha de ouvir os seus gritos. Pareciam ensurdecedores aos seus próprios ouvidos. Eles a estavam rasgando por dentro.

Mas o ronco estava mais alto. Ela sentiu as mãos invisíveis nos seus ombros. Foi atirada para a frente, com força contra a porta, e sua mão escapuliu da maçaneta quando ela caiu de joelhos, com a dor subindo veloz pelas suas coxas. A escuridão crescia em toda a sua volta, e o calor aumentava.

- Não, meu filho, não! Vou destruir você, nem que eu morra. Vou destruí-lo. - Ela se virou com uma fúria desesperada, encarando a escuridão, cuspindo de ódio, desejando sua morte, enquanto os braços a envolviam e a atiravam ao chão.

A cabeça foi arrastada contra a madeira da porta e depois caiu com estrondo nas tábuas do assoalho, enquanto suas pernas eram puxadas para a frente. Ela olhava fixamente para cima, esforçando-se para se levantar, com os braços em movimentos desconexos, e a escuridão borbulhante sobre ela.

- Maldito! Que vá para o inferno, Lasher, que morra. Morra como aquela velha! Morra! - berrava ela.

- É, Rowan, o seu filho, o filho de Michael.

A voz a cercava, como a escuridão e o calor. Sua cabeça foi forçada de novo para trás, jogada contra o chão de novo; e seus braços, pregados, abertos e indefesos.

- Você, minha mãe, e Michael, meu pai! É a hora das bruxas, Rowan. O relógio está tocando. Eu vou ser de carne. Eu vou nascer.

A escuridão como que voltou a se enrolar em si mesma, recolhendo-se para depois descer veloz. Ela a penetrou, num estupro, rasgando-a ao meio, como um punho gigantesco enfado com violência no seu útero, e seu corpo sofreu convulsões à medida que a dor a envolvia num grande círculo de açoites que ela via, brilhante, nas pálpebras fechadas.

O calor era insuportável. A dor voltou, em ondas e mais ondas, e ela sentia o sangue a jorrar dela, e água do útero, jorrando também sobre o assoalho.

- Você o matou, criatura maldita. Você matou meu filho. Vá arder no inferno! Deus me ajude! Deus, leve-o de volta para o inferno! - Suas mãos batiam na parede, lutavam para se firmar no chão molhado e escorregadio. E o calor lhe fazia mal. Agora atrapalhava seus pulmões enquanto ela procurava respirar arquejante.

A casa estava em chamas. Tinha de estar. Ela estava em chamas. O calor pulsava dentro dela, e ela imaginou estar vendo as chamas subindo, mas foi apenas uma grande explosão de luz vermelha. E de algum modo havia conseguido se firmar de quatro, e agora sabia que seu corpo estava vazio, que o bebê estava perdido e que agora lutava apenas para fugir, procurando mais uma vez a maçaneta da porta, em desespero, com uma dor feroz e sem trégua.

- Michael, Michael, me ajude! Ai, meu Deus, eu tentei enganá-lo, tentei matá-lo. Michael, ele está no bebê. - Mais um espasmo de dor a atingiu, e mais um jorro de sangue saiu dela.

Aos soluços, ela se deixou cair, tonta, incapaz de comandar os braços ou as pernas, com o calor a atordoá-la, e um choro forte a lhe encher os ouvidos. Era o choro de um bebê. Era o mesmo som horrível que ela costumava ouvir repetidamente no seu sonho. O choro lamentoso de um bebê. Ela procurou tapar as orelhas, sem conseguir suportá-lo, gemendo para que parasse, com o calor a sufocá-la.

- Deixe-me morrer - sussurrou ela. - Que o fogo me queime. Que me leve para o inferno. Deixe-me morrer.

Rowan, me ajude. Estou na carne. Ajude-me ou eu morrerei. Rowan, você não pode me dar as costas.

Ela tapou melhor os ouvidos, mas não conseguiu bloquear a vozinha telepática que aumentava e diminuía com os soluços do bebê. Sua mão escorregou no sangue e ela caiu com o rosto nele, pegajoso e molhado. Virou então de costas, vendo mais uma vez o bruxuleio do calor. Os gritos do bebê cada vez mais altos, como se estivesse morrendo de fome ou de dor.

Rowan, me ajude! Sou seu filho! Filho de Michael, Rowan, preciso de você. Ela sabia o que ia ver antes mesmo de olhar. Através das lágrimas e das ondulações do calor, viu o homúnculo, o monstro. Não do meu corpo, não nascido de mini. Eu não...

Jazia de costas, com a cabeça do tamanho da cabeça de um homem virando de um lado para o outro com o choro, os braços finos se alongando no instante mesmo em que ela olhava, dedinhos abertos, mexendo-se, crescendo, pezinhos dando chutes no ar, como os de um bebê, com as pernas se esticando, o sangue e o muco escorrendo dele, escorrendo das bochechas gorduchas e do cabelo escuro e liso. Todos aqueles pequenos órgãos como botões de flores ali dentro. Todos aqueles milhões de células se dividindo, entrando em fusão com as células dele, como uma explosão nuclear acontecendo dentro dessa coisa de carne e osso, dessa coisa mutante, dessa criança que havia saído de dentro dela.

Rowan, estou vivo, não me deixe morrer. Não me deixe morrer, Rowan. O seu poder é o de salvar a vida, e eu estou vivo. Ajude-me.

Ela se esforçou na sua direção, com o corpo ainda sofrendo espasmos de dor forte, com a mão estendida para aquela perninha escorregadia, aquele pezinho que não parava de se mexer no ar, e então, quando sua mão se fechou segurando a carne macia e lisa do bebê, a escuridão caiu sobre ela. Na tela das suas pálpebras fechadas, ela viu a anatomia, viu a trajetória das células, viu os órgãos em desenvolvimento e o eterno milagre das células que se reuniam, que formavam moléculas, tecido subcutâneo, tecido ósseo, as fibras dos pulmões, do fígado e do estômago, e que se fundiam com as células de Lasher, com o seu poder, com o DNA se fundindo, e as minúsculas cadeias de cromossomos movendo-se com rapidez, flutuando, enquanto os núcleos se fundiam, e tudo guiado por ela, todo o conhecimento dentro dela como o conhecimento da sinfonia está no compositor, nota após nota, barra após barra, um crescendo após o outro.

A carne pulsava sob seus dedos, viva, respirando pelos poros. Seus gritos foram ficando mais roucos, mais graves, ecoando enquanto ela desmaiava e despertava novamente, com a outra mão a tatear no escuro à procura da testa, encontrando a massa densa de cabelos masculinos, encontrando os olhos com cílios que tremulavam na palma da sua mão, encontrando a boca, meio fechada agora, com os soluços que saíam dela, encontrando o peito e o coração dentro dele, com braços longos e musculosos que se debatiam contra o assoalho. É, essa criatura agora tão grande que ela podia descansar a cabeça no seu peito pulsante, e o sexo entre as pernas, sim, e as coxas.

Forçando-se a subir, ela se deitou por cima dele, com as duas mãos nele, sentindo o movimento da sua respiração por baixo dela, os pulmões que se enchiam e aumentavam, o coração que batia, e os pêlos escuros e sedosos brotando em volta do sexo. E de repente tudo voltou a ser uma tela, uma tela a brilhar na escuridão, cheia de química, mistério e certeza, e ela se deixou afundar nas trevas, no silêncio.

Uma voz estava falando com ela, íntima e suave. - Pare o sangue.

Ela não conseguia responder.

- Você está sangrando. Pare a hemorragia.

- Não quero viver - disse ela. Sem dúvida, a casa estava em chamas. Venha, velha, com seu lampião. Incendeie as cortinas.

-Eu nunca disse que era impossível, sabe? - dizia Lemle. - A questão é que, uma vez que um avanço seja imaginado, ele se torna inevitável. Milhões de células. O embrião é o segredo da imortalidade.

- Você ainda pode matá-lo - disse Petyr. Estava parado acima dela, olhando para ela ali embaixo.

- São invenções da sua imaginação, da sua consciência. - Eu estou morrendo?

- Não. - Ele riu. Uma risada tão suave e sedosa. - Você está me ouvindo, Rowan? Estou rindo. Agora sei rir.

Leve-me para o inferno agora. Deixe-me morrer.

- Não, minha querida, minha bela e preciosa, pare a hemorragia.

O sol a acordou. Estava deitada no chão da sala de estar, no macio tapete chinês, e seu primeiro pensamento foi o de que a casa não havia se incendiado. O terrível calor não a havia destruído. De algum modo, ela havia sido poupada. Por um instante não compreendeu o que estava vendo.

Um homem estava sentado ao seu lado, olhando para ela. E sua pele era a pele lisa e perfeita de um bebê, cobrindo a estrutura do rosto de um homem, mas o rosto era parecido com o dela. Ela nunca havia visto um ser humano que se parecesse tanto com ela.

Mas havia diferenças bem definidas. Os olhos eram grandes, azuis e emoldurados por cílios negros, e os cabelos eram negros como os de Michael. Era o cabelo de Michael. O cabelo e os olhos de Michael. Mas ele era esguio como Rowan. Seu tórax liso e sem pêlos era estreito como o de Rowan havia sido na infância, com dois mamilos rosados, e seus braços eram finos, embora com músculos perfeitos, e os dedos delicados da mão, que ele passava nos lábios, pensativo, enquanto olhava para ela, eram finos e parecidos com os dedos de Rowan.

Mas ele era maior do que ela; era grande como um homem. E o sangue e o muco secos pareciam um mapa de um vermelho escuro a cobri-lo por inteiro.

Ela sentiu que um gemido saía da sua garganta, forçando a passagem pelos seus lábios. Seu corpo inteiro se agitou com ele, e de repente ela deu um berro. Levantando-se do assoalho, ela berrou. Com mais força, por mais tempo e mais descontrolados do que os seus berros na noite anterior, com todo o medo que havia sentido. Ela era esse grito que a deixava, que abandonava tudo que havia visto e de que se lembrava em pavor total.

A mão dele tampou sua boca, empurrando-a de volta ao tapete. Ela não podia se mexer. O berro girava dentro dela, como um vômito que poderia sufocá-la. Um forte espasmo de dor a trespassou. .Ela ficou inerte, em silêncio.

-Não grite - sussurrou ele, debruçando-se sobre ela. A voz conhecida. É claro, a mesma voz, com sua modulação inconfundível.

O rosto liso parecia perfeitamente inocente, a imagem do espanto, com suas bochechas perfeitas e radiantes, seu nariz fino e delicado e os grandes olhos azuis que piscavam para ela. Que se abriam e se fechavam como os olhos do homúnculo sobre a mesa nos seus sonhos. Ele sorriu.

- Eu preciso de você - disse ele. - Eu amo você e sou seu filho.

Depois de algum tempo, ele afastou a mão.

Ela se sentou. Sua camisola estava impregnada de sangue seco e duro. O cheiro de sangue estava por toda a parte. Como o cheiro do Setor de Emergência.

Ela voltou um pouco no tapete e se inclinou para a frente, com o joelho dobrado, a observá-lo.

Mamilos, perfeitos; sexo, perfeito, é, embora a prova real seria quando estivesse ereto. Os cabelos, perfeitos, é, mas e por dentro? E a precisão do entrelaçamento de todas as petinhas?

Ela se aproximou mais, olhando para seus ombros, observando o movimento do tórax com a respiração, e depois olhando nos seus olhos, sem ver se ele olhava para ela, sem se importar, apenas estudando a textura da carne e dos lábios.

Ela pôs a mão no seu peito e escutou. Um ritmo forte e regular vinha dali. Ele não fez menção de impedi-la quando ela pôs as mãos nos dois lados do seu crânio.

Macio, como o crânio de um bebê, capaz de se recuperar depois de golpes que matariam um homem de vinte e cinco anos. Meu Deus, mas quanto tempo ele continuaria assim?

Ela levou um dedo ao seu lábio inferior, abrindo-lhe a boca e examinando sua língua. Sentou-se novamente para trás, com as mãos inertes sobre as pernas cruzadas.

- Está sentindo alguma dor? - perguntou ele. Sua voz era muito carinhosa. Ele contraiu os olhos e, por um instante, seu rosto demonstrou um traço de expressão madura para em seguida voltar ao assombro infantil. - Você perdeu tanto sangue.

Ela ficou olhando para ele muito tempo, em silêncio. Ele apenas a observava, à espera.

-Não, não sinto dor- sussurrou ela. Ficou novamente olhando para ele por um tempo enorme. - Preciso de coisas - disse ela, afinal. - Preciso de um microscópio. Preciso de amostras de sangue. Preciso ver de fato o que são os tecidos agora! Meu Deus, preciso de todas essas coisas! Preciso de um laboratório perfeitamente equipado.

E temos de sair daqui.

- É - disse ele, concordando com a cabeça. - Esse deveria ser nosso próximo passo. Sair daqui.

- Você consegue ficar em pé?

- Não sei.

- Bem, você vai tentar. - Ela se pôs de joelhos e depois, agarrando-se á beirada do consolo de mármore, ficou em pé. Segurou a mão dele, um aperto firme, agradável.

- Vamos, levante-se. Não pense. Basta que se levante. Confie que seu corpo saiba. Os músculos estão aí. É isso o que o diferencia totalmente de um recém-nascido: você tem o esqueleto e a musculatura de um homem.

- Está bem. Vou tentar - disse ele. Parecia assustado e estranhamente deliciado.

Estremecendo, ele se esforçou para ficar primeiro de joelhos, como Rowan havia feito, e depois ficou em pé, só para cair para trás, evitando a queda dando passos acelerados para trás.

- Uuuuuuh... Estou andando. Estou, sim. Estou andando...

Ela se apressou até ele, enlaçou-o com um braço e deixou que ele se agarrasse a ela. Ele se acalmou olhando para ela e depois ergueu a mão para acariciar seu rosto, num gesto de coordenação imperfeita, muito parecido com o de um bêbado, mas os dedos eram sedosos e vibrantes.

- Minha bela Rowan. Olhe, as lágrimas sobem aos meus olhos. Lágrimas de verdade. Ah, Rowan.

Ele tentou ficar em pé sem apoio e se inclinar para beijá-la. Ela o segurou e o firmou quando seus lábios se juntaram aos dela, e foi atingida por aquele mesmo choque sensual poderoso que sempre ocorria quando ele a tocava.

- Rowan - gemeu ele, em voz alta, esmagando-a contra seu corpo e depois escorregando para trás até ela o fazer parar novamente nos seus braços.

- Venha, não temos muito tempo - disse ela. - Temos de encontrar algum lugar seguro, algum lugar completamente desconhecido...

- É, querida, claro, mas você entende que tudo isso é tão novo e tão lindo. Deixe-me abraçá-la de novo, deixe- me beijá-la...

-Não temos tempo - disse ela, mas os lábios macios de bebê já estavam grudados nos seus, e ela sentia o pau fazendo pressão contra seu sexo, fazendo força ali onde doía. Ela se afastou, puxando-o atrás dela.

- Isso mesmo - disse ela, observando seus pés. - Não pense. Só olhe e ande.

Por um instante, quando se descobriu debaixo do portal, consciente do seu formato de buraco de fechadura, e das velhas discussões sobre o seu significado, toda a aflição e a beleza da sua vida passaram diante dos seus olhos, toda a sua luta e todos os seus juramentos anteriores.

Mas esta era de fato uma nova porta. Era a porta que ela havia vislumbrado há milhões de anos, na infância, quando abriu pela primeira vez os mágicos volumes do conhecimento científico. E agora estava aberta, muito para além dos horrores do laboratório de Lemle e dos holandeses reunidos em volta da mesa numa Leiden mítica.

Ela o conduziu lentamente pela porta e escada acima, caminhando com paciência, passo a passo, ao seu lado.

Ele estava tentando acordar mas, cada vez que chegava perto da superfície, afundava novamente, sonolento, pesado, mergulhando nas cobertas leves e macias da cama. O desespero o dominava e depois desaparecia.

Foi a náusea que afinal o acordou. Pareceu- lhe ter ficado sentado uma eternidade no piso do banheiro, encostado na porta, vomitando com tanta violência que uma dor o cingia pelas costelas a cada ânsia que sentia. Depois, não havia mais nada a expelir, e a náusea simplesmente caiu sobre ele sem nenhuma promessa de alívio.

O banheiro estava se inclinando. Haviam, afinal, arrancado a fechadura da porta e o estavam levantando do chão. Ele quis pedir desculpas por ter trancado a porta, um ato reflexo. Havia tentado alcançar a maçaneta para abrir a porta, mas não conseguiu emitir nenhuma palavra.

Meia-noite. Ele viu o mostrador do relógio na cômoda. Meia-noite da véspera de Natal. E ele se esforçou por dizer que aquilo tinha um significado, mas foi-lhe impossível fazer mais do que pensar naquela criatura parada por trás do presépio, no altar. E ele foi afundando mais uma vez quando sua cabeça bateu no travesseiro.

Quando abriu os olhos de novo, o médico estava falando com ele, mas ele não conseguia se lembrar exatamente de onde havia visto o médico antes.

- Sr. Curry, faz alguma idéia de qual poderia ser o conteúdo da injeção?

Não. Achei que ela estava me matando. Achei que ia morrer. Só o esforço para mover os lábios já o deixava enjoado. Ele só abanou a cabeça, mas isso também lhe causou náuseas. Ele via a escuridão da noite lá fora através do gelo nas janelas.

- ...pelo menos mais oito horas - disse o médico.

- Durma, Michael. Não se preocupe agora. Durma.

- Tudo o mais normal. Líquidos leves, se ele por acaso pedir algo para beber. Se houver a menor alteração...

Bruxa traiçoeira. Tudo destruído. O homem sorrindo para ele por trás do presépio. É claro, era a hora. A hora exata. Soube que a havia perdido para sempre. A Missa do Galo estava terminada. Sua mãe chorava pela morte do seu pai. Nada voltará a ser como antes agora.

- Basta que durma. Estamos aqui com você.

Eu fracassei. Não o impedi. Eu a perdi para sempre.

- Há quanto tempo estou aqui?

- Desde ontem à noite.

Era a manhã de Natal. Ele olhou pela janela, com medo de se mexer para não sentir náuseas novamente.

-Não está nevando mais, está? - Ele mal ouviu a resposta de que a neve havia parado antes do amanhecer.

Ele se forçou a sentar na cama. Não tão mal quanto antes. Uma dor de cabeça, sim, e a visão um pouco embaçada. Nada pior do que uma ressaca.

- Espere, Sr. Curry, por favor. Deixe-me chamar Aaron. O médico vai querer vê-lo.

- É, isso seria bom. Mas vou me vestir.

Todas as suas roupas estavam no armário. Um simpático conjunto de viagem em plástico em cima da cômoda do banheiro. Tomou um banho de chuveiro, lutando com uma eventual tontura, fez a barba rápido e sem cuidado com o pequeno aparelho descartável e depois saiu do banheiro. Tinha vontade de mergulhar de novo na cama, sem a menor dúvida.

- Preciso voltar lá - disse, no entanto. - Quero saber o que aconteceu.

-Eu lhe imploro que espere-disse Aaron. -Que coma alguma coisa, veja como se sente.

-Não importa como eu me sinta. Pode me arrumar um carro? Vou pedir carona se você não puder.

Olhou pela janela. A neve ainda estava no chão. As estradas estariam perigosas. Tinha de ir agora.

- Olhe, nem sei como lhe agradecer por ter cuidado de mim desse jeito.

- O que você pretende fazer? Você não faz a menor idéia do que irá encontrar. Ontem á noite, clame disse que, se eu gostasse de você, devia fazer o possível para que não voltasse lá.

- Para o inferno o que ela disse. Eu vou.

- Então eu vou também.

-Não, você fica aqui. Esse assunto é entre mim e Rowan. Preciso de um carro, agora. Estou de saída.

Era um Lincoln seda, grande, cinzento, pesadão, que dificilmente seria o veículo da sua escolha, embora o assento de couro macio fosse confortável e a máquina realmente atingisse boa velocidade quando ele finalmente chegou à rodovia interestadual. Até aquele ponto, Aaron o acompanhava na limusine. Mas agora não havia sinal dele, á medida que Michael ultrapassava um carro após o outro.

A neve estava suja dos dois lados da estrada, mas o gelo havia desaparecido. E o céu era daquele azul impecável, desafiador, que fazia com que tudo parecesse limpo e amplo. A dor de cabeça o atacava, lançando sobre ele uma crise de tontura e náusea a cada quinze minutos. Ele simplesmente a ignorava e não tirava o pé do acelerador.

Estava a quase cento e cinqüenta por hora quando chegou a Nova Orleans, passando pelos cemitérios de Metairie, pelos telhados e pelo ridículo espetáculo surrealista do anfiteatro do Superdome, que parecia um disco voador acabando de pousar ali entre arranha-céus e campanários de igrejas.

Freou rápido demais, quase derrapando, ao pegar a saída para St. Charles Avenue. O trânsito ia a passo de tartaruga em meio ás faixas congeladas de neve suja.

Cinco minutos depois, fez a curva à esquerda para entrar em First Street, e o carro mais uma vez derrapou perigosamente. Freou e seguiu devagar pelo asfalto liso, até ver a casa erguida como uma fortaleza sinistra na sua esquina escura, sombria, coberta de neve.

O portão estava aberto. Ele enfiou a chave na porta da frente e entrou.

Por um instante, ficou paralisado. Havia sangue pelo chão todo, em borrões e faixas, e a impressão de uma mão ensangüentada no batente da porta. Alguma coisa que parecia fuligem cobria as paredes, raleando para um tom de encardido ao se aproximar do teto.

O cheiro era fétido, como o do quarto no qual Deirdre havia morrido.

Manchas de sangue no portal da sala de estar. Pegadas de pés descalços. Sangue por todo o tapete chinês, e alguma substância viscosa, semelhante ao muco, lambuzada no assoalho. E a árvore de Natal, com todas as suas lâmpadas acesas, como uma sentinela distraída no final do salão, uma testemunha cega e muda que não poderia descrever nada.

Sua cabeça explodia de dor, mas ela não era nada em comparação com a dor no seu peito e a pulsação acelerada do seu coração. A adrenalina inundava suas veias. E sua mão direita formava convulsivamente um punho.

Ele se voltou, saiu do salão para o corredor e se encaminhou para a sala de jantar.

Sem nenhum ruído, uma figura apareceu no alto portal em forma de buraco de fechadura, olhando para ele, com uma das mãos esguias subindo pelo batente.

Era um gesto estranho. Havia algo nitidamente vacilante nessa figura, como se ela também estivesse sofrendo choques. E, quando ela surgiu à luz do jardim de inverno, Michael parou, examinando-a, esforçando-se por entender o que estava vendo.

Era um homem, usando calças e camisa largas e desalinhadas, mas Michael nunca havia visto um homem assim. Ele era muito alto, talvez um metro e oitenta e cinco, e desproporcionadamente esguio. As calças eram grandes demais para ele e estavam aparentemente amarradas na cintura, e a camisa era de Michael, uma velha camiseta. Caía como uma túnica sobre sua estrutura magra. Cabelos negros, crespos e abundantes, e olhos azuis muito grandes, mas, fora isso, ele se parecia com Rowan. Era como um gêmeo masculino de Rowan! A pele era a pele jovem e lisa de Rowan, só que ainda mais jovem do que a dela, que encobria os malares de Rowan. E essa era a boca de Rowan, só que um pouco mais cheia e mais sensual. E os olhos, embora grandes e azuis, tinham Rowan neles. E Rowan também estava no súbito sorriso frio e discreto do homem.

Ele deu mais um passo na direção de Michael, e Michael viu que ele não tinha firmeza nos pés. Um brilho emanava dele. E Michael percebeu o que aquilo era, contradizendo a razão e a experiência, mas perfeitamente óbvio de um modo horrendo. A criatura parecia recém-nascida; apresentava o suave brilho duradouro de um bebê. Suas mãos longas e magras eram lisas como as de um bebê, da mesma forma que seu pescoço. E seu rosto não tinha absolutamente nenhum traço de personalidade.

No entanto, a expressão no seu rosto não era nenhuma expressão de bebê. Ela era cheia de assombro, de um amor aparente e de um terrível escárnio.

Michael investiu contra ele, apanhando-o de surpresa. Ele segurou seus braços magros e poderosos, e ficou assustado e horrorizado com a gargalhada viril emitida por ele.

Lasher, vivo antes, vivo novamente, de volta á carne, para derrotá-lo! Seu filho, seus genes, a sua carne e a dela. Eu o amo, eu o venci, eu o usei. Obrigado, pai que escolhi para mim.

Cego de raiva, Michael ficou parado, incapaz de se mexer, com as mãos agarrando os braços da criatura, enquanto ela lutava para se livrar, até de repente se soltar com um grande gesto em arco, como o recuar de um pássaro feito de aço e borracha, que se curva e se endireita.

Michael soltou um rugido grave, horrorizado.

- Você matou meu filho! Rowan, você lhe entregou nosso filho! - Seu grito foi gutural e angustiado, com as palavras se atropelando nos seus ouvidos como puro barulho.

- Rowan!

A criatura saiu correndo para longe dele, batendo desajeitada na parede da sala de jantar, e mais uma vez jogou as mãos para cima e riu. Ela de repente esticou o braço e sua mão lisa e enorme atingiu o peito de Michael e o lançou sobre a mesa de jantar.

- Sou seu filho, Pai. De um passo atrás. Olhe para mim!

Michael se levantou de qualquer jeito.

- Olhar para você? Vou é matá-lo!

Michael investiu contra a criatura, mas ela recuou dançando para dentro da despensa, curvando as costas e estendendo as mãos como se quisesse provocar. Saiu valsando de costas pela porta da cozinha. Suas pernas se emaranhavam e depois se endireitavam como se fossem de um boneco de palha. Mais uma vez, fez-se ouvir a risada, forte, profunda, cheia de uma alegria louca. A risada era enlouquecida como os olhos da criatura, cheia de um prazer louco e irresponsável.

- Ora, Michael, vamos! Não quer conhecer seu próprio filho? Você não pode me matar!

Não pode matar quem tem seu próprio sangue! Tenho os seus genes em mim, Michael.

Eu sou você, eu sou Rowan. Sou filho de vocês dois.

Num novo ataque, Michael o agarrou e o atirou contra as portas envidraçadas, sacudindo com estrépito as vidraças. Lá no alto na frente da casa, o alarme soou disparado pelos sensores nos vidros, somando seu ruído exasperante ao rebuliço. A criatura ergueu seus braços longos e desengonçados, olhando para Michael espantada, enquanto as mãos de Michael se fechavam em volta do seu pescoço. Formou então punhos com as duas mãos e golpeou com eles o maxilar de Michael. Michael perdeu o equilíbrio, mas, ao atingir o chão, ele imediatamente rolou e se pôs de quatro. A porta envidraçada estava aberta, o alarme ainda estava tocando, e a criatura estava dançando, girando e brincando, com uma graça horrenda, na direção da piscina.

Quando ele foi atrás dela, viu com o canto do olho Rowan descendo apressada pela escada da cozinha. Ouviu seu grito.

- Michael, não chegue perto dele!

- Você fez isso, Rowan. Você lhe deu nosso filho! Ele está no nosso filho! - Ele se voltou, com o braço erguido, mas não pôde bater nela. Paralisado, ficou olhando para ela. Rowan era a própria imagem do terror, com o rosto descorado e a boca úmida e trêmula. Indefeso, com calafrios, a dor apertando seu peito como um fole, ele se voltou e olhou com raiva para a criatura.

Ela saltitava de um lado para o outro nas lajes cobertas de neve ao lado da água azul ondulante. Empurrando a cabeça para a frente e pondo as mãos nos joelhos, para depois apontar para Michael. Sua voz, alta e nítida, superava a histeria do alarme.

- Isso passa, como dizem os mortais. Você vai entender, como dizem os mortais! Você criou um belo filho, Michael. Michael, eu sou sua obra. Eu amo você. Sempre o amei. O amor foi a definição da minha ambição, os dois são a mesma coisa para mim. Eu me apresento a você com amor.

Michael saiu pela porta quando Rowan correu na sua direção. Ele foi direto atacar a criatura, escorregando na neve congelada, livrando-se dela quando ela tentou detê-lo. Ela caiu no chão como se fosse de papel, e uma dor cortante atingiu o pescoço de Michael. Ela havia segurado a medalha de São Miguel pela corrente, e agora tinha nas mãos a corrente quebrada, enquanto a medalha havia caído na neve. Ela soluçava e implorava que ele parasse.

Não tinha tempo para ela. Ele deu meia-volta, e seu poderoso gancho de esquerda atingiu o lado da cabeça da criatura. Ela soltou mais uma gargalhada mesmo enquanto o sangue vermelho brotava da carne ferida. Perdeu o equilíbrio e virou, escorregou no gelo e tombou sobre as cadeiras de ferro, derrubando-as de qualquer jeito.

- Ai, olhe só o que você fez! Você não pode imaginar a sensação que me dá! Ai, eu vivi por este instante, por este instante extraordinário!

Com um pivô repentino, a criatura investiu contra o braço direito de Michael, agarrando-o e o torcendo com violência para trás. Suas sobrancelhas estavam erguidas, os lábios repuxados num sorriso, dentes perolados reluzindo brancos em contraste com a língua rosada. Tudo novo, tudo brilhante, tudo puro, como num bebê.

Michael deu mais um soco de esquerda no peito da criatura, sentindo a força dos ossos.

- É, você está gostando, seu maldito. Então, morra, seu filho da puta! - Ele cuspiu na criatura, dando mais um soco de esquerda, já que a criatura não soltava seu pulso direito, como se fosse uma bandeira desfraldada amarrada a ele. O sangue jorrou pela boca. - É, isso mesmo! Você não está na carne? Então, morra nela!

- Estou perdendo minha paciência com você! - Uivou a criatura, olhando espantada para o sangue que escorria da sua boca e manchava toda a sua camisa. - Ai, olhe só o que você fez! Que pai furioso! Que pai severo! - disse a criatura, sacudindo Michael para a frente, de modo a lhe tirar o equilíbrio, apertando seu pulso como uma tenaz.

- Você gosta? - gritou Michael. - Você gosta da sua carne sangrando? Da carne do meu filho, da minha carne! - Tentando livrar a mão direita em vão, ele fechou os dedos da mão esquerda em torno da garganta lisa da criatura, empurrando o polegar na sua traquéia, enquanto dava uma forte joelhada no escroto. - Ah, quer dizer que ela o fez realmente por inteiro, até com a instalação hidráulica, hem?

De relance ele viu Rowan novamente, mas dessa vez foi a criatura que a derrubou quando afinal soltou a mão de Michael. Rowan caiu sobre a balaustrada. A criatura berrava de dor, revirando os olhos azuis. Antes que Rowan pudesse se pôr de pé, ela recuou, com os ombros se erguendo como asas, e gritou, abaixando a cabeça.

- Você está me ensinando, Pai. Ah, está me ensinando muito bem! - Uma espécie de rosnado superou as palavras, e a criatura investiu contra Michael, atingindo-o no peito com a cabeça, dando-lhe um belo golpe que o fez saltar do chão e cair dentro da piscina.

Rowan deu um grito ensurdecedor, muito mais alto e agudo do que a sirene do alarme. Mas Michael já havia caído na água gelada. Ele foi afundando, afundando, ali no lado mais fundo, com a superfície azul cintilando acima da sua cabeça. A temperatura enregelante lhe tirou o fôlego. Ele estava imóvel, impregnado pelo frio, incapaz até mesmo de mexer os braços, até que sentiu seu corpo arranhar o fundo.

Então, numa convulsão desesperada, ele começou a subir, com suas roupas parecendo dedos a agarrá-lo e segurá-lo ali embaixo. E, quando sua cabeça atravessou a superfície entrando na luz ofuscante, ele sentiu mais um golpe violento e afundou de novo, subindo só para ser empurrado para baixo, com as mãos para cima, soltas no ar, tentando em vão agarrar a criatura que o segurava, e engolindo cada vez mais água gelada.

Estava acontecendo de novo, mais uma vez se afogava, e essa água tão fria. Não, assim não, novamente assim não. Ele tentou fechar a boca, mas a dor que explodia no seu tórax era forte demais, e a água entrou livremente nos seus pulmões. Suas mãos não sentiam nada lá em cima; e ele também não via nem cor nem luz; nem tinha

mais a sensação do que estava acima ou abaixo. E de súbito ele vislumbrou mais uma vez o Pacífico, infinito e cinzento, e as luzes da Cliff House ficavam mais fracas e desapareciam à medida que as ondas cresciam ao seu redor.

De repente, seu corpo se relaxou. Ele não estava lutando desesperadamente para respirar ou para subir, nem tentava agarrar nada. Na realidade, ele não estava de fato no próprio corpo. Ele conhecia essa sensação, essa leveza, essa sublime liberdade. Só que não estava se elevando, nem subindo em liberdade, como havia feito naquele dia distante, até as nuvens e o céu de chumbo, de onde ele podia ver toda a terra lá embaixo, com seus milhões e mais milhões de seres minúsculos.

Dessa vez, ele estava num túnel, e estava sendo sugado para baixo. Era escuro e apertado, e a viagem parecia não ter final. Envolto num silêncio imenso, ele caía, completamente sem vontade e cheio de um vago assombro.

Afinal, uma grande luz vermelha o cercou. Havia caído num lugar conhecido. É, os tambores, ele ouvia os tambores, a velha e conhecida cadência de marcha dos tambores do Carnaval, o barulho do desfile de Comus que passava veloz pela escuridão do inverno no final cansado e lúgubre da noite da terça-feira gorda. E o bruxuleio das chamas vinha dos archotes abaixo dos galhos retorcidos dos carvalhos. E o seu medo era o medo onisciente do menino de há tanto tempo. E tudo estava aqui, tudo o que temia, acontecendo afinal, não apenas um vislumbre à beira de um sonho, ou com a camisola de Deirdre nas mãos, mas aqui, em toda a sua volta.

Seus pés bateram no chão fumegante e, enquanto ele tentava se levantar, viu que os galhos dos carvalhos subiam e atravessavam direto o teto de gesso do salão, envolvendo o lustre num emaranhado de folhas e roçando os altos espelhos. E isso aqui era de fato a casa. Inúmeros corpos se contorciam no escuro. Estava pisando neles! Formas nuas, cinzentas, copulavam e se retorciam nas chamas e nas sombras, com os rolos de fumaça escondendo o rosto de todos os que o cercavam e que olhavam para ele. Mas ele sabia quem eram. Saias de tafetá, o pano que roçava nele. Ele tropeçou e tentou recuperar o equilíbrio, mas sua mão atravessou a pedra ardente; seus pés afundaram na lama fumegante. As freiras vinham chegando num círculo, figuras altas, trajadas em negro, com toucas brancas engomadas, freiras cujos nomes e rostos ele conhecia da infância, com os rosários matraqueando, os pés batendo forte no assoalho de cerne de pinho à medida que se aproximavam e fechavam o círculo ao seu redor. Stella desrespeitou o círculo, os olhos cintilantes, o cabelo frisado reluzindo com brilhantina. De repente, ela estendeu a mão e o puxou para perto de si.

- Deixe-o em paz. Ele pode se levantar sozinho - disse Julien. E lá estava ele, o próprio Julien, com seus cabelos brancos cacheados e seus olhinhos negros faiscantes.

As roupas perfeitas e imaculadas, e a mão se erguendo enquanto ele sorria e acenava. - Vamos, Michael, levante-se - disse ele, com seu forte sotaque francês. – Você agora está conosco. Tudo terminou. E pare imediatamente de brigar.

- É, levante-se, Michael - disse Mary Beth, roçando no seu rosto uma saia de tafetá escuro. Mulher alta e imponente, com o cabelo todo riscado de grisalho.

- Você agora está conosco, Michael. - Era Charlotte, com sua cabeleira loura e radiante, os seios apertados pelo decote de tafetá, erguendo-o embora ele se esforçasse para escapar. A mão de Michael lhe atravessou o peito.

- Parem com isso! Afastem-se de mim! - gritou ele. - Fora!

Stella estava nua a não ser pela pequena combinação que lhe caía dos ombros. Todo o lado da sua cabeça gotejava com o sangue da bala.

- Vamos, Michael querido, você agora está aqui, para ficar, não percebe? Acabou, querido. Missão cumprida.

Os tambores batiam cada vez mais perto, contrapondo-se à música animada de uma banda de Dixieland, e o caixão estava aberto no final do salão, com as velas à sua volta. As velas iam atingir as cortinas e incendiar a casa!

- Ilusões, mentiras - gritou ele. - É uma brincadeira. - Ele procurou ficar em pé, descobrir alguma direção para onde pudesse correr, mas para onde olhasse, só via as janelas de nove vidraças, os portais em forma de buraco de fechadura, os galhos de carvalho a perfurar o teto e as paredes, e a casa inteira como uma armadilha monstruosa que recuperava sua forma em volta das árvores retorcidas, esforçadas, com as chamas se refletindo nos espelhos altos e estreitos, sofás e poltronas encobertos pela hera e pelas camélias em flor. A buganvília escondia todo o teto, fazendo arabescos juntos aos consolos de mármore, com as pequenas pétalas roxas caindo trêmulas nas chamas fumarentas.

A mão da freira de repente atingiu o lado do seu rosto como uma tábua. A dor o chocou e o deixou furioso.

- O que está dizendo, menino! É claro que está aqui, levante-se. - Uma voz grosseira, como um rugido. - Menino, responda!

- Afaste-se de mim! - Ele tentou empurrá-la, em pânico, mas sua mão a atravessou. Julien estava ali parado com as mãos unidas atrás das costas, abanando a cabeça. E atrás de Julien, estava o belo Cortland, com a mesma expressão do pai e o mesmo sorriso zombeteiro do pai.

- Michael, devia estar perfeitamente óbvio para você que seu desempenho foi magnífico - disse Cortland. - Você a levou para a cama, você a trouxe de volta a Nova Orleans, você a engravidou. Exatamente o que nós queríamos que fizesse.

- Não queremos brigar - disse Marguerite, com seu cabelo de megera escondendo o rosto quando ela estendeu a mão na sua direção. - Estamos todos do mesmo lado, Michael. Levante-se, por favor. Venha até nós.

- Vamos, Michael. Você sozinho está criando toda essa confusão - disse Suzanne, com seus grandes olhos de tola brilhando e piscando enquanto ela o ajudava a se levantar, os seios mal cobertos pelos trapos imundos que usava.

- Bem, meu filho, você conseguiu - disse Julien. - Eh bien, vocês dois foram maravilhosos, você e Rowan. Fizeram exatamente aquilo que nasceram para fazer.

-E agora você pode fazer a travessia de volta conosco -disse Deborah. Ela levantou as mãos para que os outros abrissem espaço, com as chamas se erguendo às suas costas e a fumaça formando rolos acima da sua cabeça. A esmeralda piscava e cintilava sobre o azul-escuro do seu vestido de veludo. A menina do quadro de Rembrandt, tão linda com suas bochechas rosadas e seus olhos azuis, tão bela quanto a esmeralda. - Você não compreende? Foi esse o pacto.

Agora que ele fez a travessia, todos nós vamos fazê-la! Rowan sabe o que é preciso para nos trazer de volta, da mesma forma que ela agiu com Lasher. Não, Michael, não se oponha. Você quer ficar conosco, aqui preso à terra, à espera da sua vez? A alternativa é permanecer morto para sempre.

- Estamos todos salvos, agora, Michael - disse a frágil Antha, parada como uma menina num simples vestido florido, com o sangue lhe escorrendo pelos dois lados do rosto do ferimento profundo no alto da cabeça. - E você não pode imaginar quanto tempo esperamos. Costuma -se perder a noção do tempo aqui...

- É, salvos - disse Marie Claudette. Estava sentada numa grande cama de dossel, com Marguerite ao seu lado e as chamas se enroscando nas colunas, devorando as cortinas. Lestan e Maurice estavam parados atrás da cama, observando com expressão de ligeiro enfado, a luz refulgindo nos seus botões de latão, as chamas lambendo a barra dos seus casacos de corte evasê.

- Fomos expulsos de Saint-Domingue pelo fogo - disse Charlotte, segurando com elegância as pregas da sua saia delicada. - E o rio tomou nossa velha fazenda.

- Mas esta casa durará para sempre - disse Maurice, em tom grave, passando os olhos pelo teto, pelos medalhões, pelos lustres inclinados - graças aos seus esforços no sentido de restaurá-la. E nós temos esse lugar maravilhoso e seguro onde podemos esperar nossa vez de voltar á carne.

- Estamos tão felizes por tê-lo conosco, querido - disse Stella, com o mesmo ar de tédio, mudando de repente o peso de uma perna para a outra, o que fez com que o lado esquerdo do seu quadril sobressaísse na combinação de seda. - Você sem dúvida não vai deixar passar uma oportunidade dessas?

- Eu não acredito em vocês! Vocês são de mentira, produtos da imaginação! - Michael deu meia-volta, e sua cabeça atravessou com força a parede de alvenaria cor de pêssego. O vaso de samambaia virou, caindo ao chão. Os casais que se contorciam diante dele rosnavam quando seu pé os trespassava, atravessando as costas do homem e o ventre da mulher.

Stella riu e correu pelo salão, jogando-se de costas no caixão forrado de cetim, tateando à procura da sua taça de champanhe. Os tambores estavam cada vez mais altos.

Por que tudo não pega fogo, por que a casa não se incendeia?

- Porque estamos no inferno, querido - disse a freira, que levantou a mão para lhe dar mais um tapa. - E aqui tudo queima interminavelmente. - Parem com isso! Deixem-me ir embora!

Ele deu um encontrão em Julien, caindo para a frente, com as chamas aumentando numa rajada ardente bem no seu rosto. Mas a freira o segurou pelo colarinho. Ela estava com a medalha de São Miguel na mão.

- Você deixou isso cair, não foi? E eu lhe disse que cuidasse dela, não disse? E onde foi que eu a encontrei? Jogada no chão, foi assim que a encontrei! - E mais uma bofetada o atingiu, feroz e dolorida, deixando-o espumando de raiva. Ela o sacudiu quando ele caiu de joelhos, lutando com as mãos para afastá-la dali.

- Tudo o que pode fazer agora é ficar conosco e fazer a travessia de volta! - disse Deborah.

- Você não compreende? O portal está aberto. É apenas uma questão de tempo. Lasher e Rowan vão nos levar de volta. Suzanne, primeiro. Depois, eu. E depois...

- Não, espere aí. Eu nunca fiz nenhum acordo sobre nenhuma ordem dessas – disse Charlotte.

- Nem eu - acrescentou Julien.

- Quem foi que disse uma palavra sobre uma ordem! - Rugiu Marie Claudette, livrando as pernas do acolchoado ao se sentar para a frente na cama.

- Por que vocês têm de ser tão bobos? - comentou Mary Beth, com um ar entediado e prático. - Meu Deus, tudo foi realizado. E não há nenhum limite a quantas vezes a transmutação possa ser efetuada. E vocês podem imaginar a qualidade superior da carne e dos genes resultantes, não podem? Na realidade, esse e um avanço científico de um brilho espantoso.

- Tudo natural, Michael, e compreender isso é compreender a essência do universo, que as coisas são... bem, mais ou menos predeterminadas - disse Cortland. – Você não sabe que estava nas nossas mãos desde o início?

-Esse e o ponto crucial que você deve compreender-disse Mary Beth, num tom comedido.

- O incêndio que matou seu pai - disse Cortland. - Aquilo não foi acidente nenhum...

- Não me digam esse tipo de coisa! - berrou Michael. - Vocês não provocaram aquilo. Não acredito. Não aceito!

..para posicioná-lo com exatidão, e garantir que você tivesse a combinação desejada de sofisticação e charme, de modo a atrair a atenção de Rowan e fazer com que ela se abrisse para você...

- Não se dêem ao trabalho de falar com ele - disse a freira alta, em tom áspero, com as contas do rosário batendo umas nas outras, suspensas do seu grosso cinto de couro. - Ele é incorrigível. Deixem, que eu cuido dele. Vou tirar essa rebeldia a bofetadas.

- Não é verdade - disse ele, procurando proteger os olhos do brilho ofuscante das chamas, com os tambores parecendo entrar pelas suas têmporas. -Não é essa a explicação –gritou ele. - Não é esse o significado final. - Seus gritos superavam o barulho dos tambores.

- Michael, eu lhe avisei - disse a vozinha lamentável da irmã Bridget Marie, que espiava por trás da freira cruel. - Eu lhe disse que havia bruxas naquelas ruas escuras.

- Venha logo para cá e tome um pouco de champanhe - disse Stella. - E pare de criar essas imagens infernais. Você não entende? Quando se está preso à terra, você cria o próprio ambiente.

- É, você está fazendo isso aqui ficar tão feio! - disse Antha.

- Aqui não temos chama nenhuma - disse Stella. - Isso aí é da sua cabeça. Vamos dançar ao som dos tambores. Passei a adorar essa música. Eu realmente gosto dos seus tambores, dos seus loucos tambores de Carnaval!

Ele agitava os dois braços, com os pulmões ardendo e o peito a ponto de estourar.

-Não quero acreditar nisso. Vocês todos não passam de uma brincadeira, um truque, uma invenção dele.

-Não, mon cher -disse Julien -, nós somos o significado e a resposta final.

- Sempre fomos - disse Mary Beth, olhando para ele e abanando a cabeça com tristeza.

- Pois sim!

Ele afinal estava em pé. Conseguiu se livrar da freira, evitando sua bofetada seguinte e deslizando através dela. Passou correndo pela forma adensada de Julien, cego por um instante, mas saindo livre do outro lado, ignorando o riso e os tambores.

As freiras formaram uma barreira, mas ele a atravessou. Nada iria detê-lo. Ele estava vendo a saída. Via a luz que se derramava pelo portal. - Não quero, não vou acreditar...

-Querido, procure se lembrar do primeiro afogamento -disse Deborah, de repente ao seu lado, tentando agarrar sua mão. - Foi o que nós lhe explicamos antes, quando estava morto, que precisávamos de você, e você concordou, mas é claro que você estava só negociando pela sua vida, que estava mentindo para nós, sabe, e nós sabíamos que, se não provocássemos o esquecimento, você nunca, nunca iria cumprir...

- Mentira! Mentiras de Lasher! - Ele se livrou dela.

Apenas mais alguns passos até a porta, e isso estava ao seu alcance. Ele se atirou para a frente, tropeçando novamente nos corpos espalhados no chão, pisando em costas, ombros e cabeças, com a fumaça a arder nos seus olhos. Mas estava mais perto da luz.

E surgiu uma figura no portal. Ele conhecia aquele capacete, aquela longa capa. Conhecia aquele uniforme. É, ele era seu conhecido; era-lhe muito familiar. – Já estou chegando - exclamou.

Mas seus lábios mal se mexeram.

Ele estava deitado de costas.

Seu corpo era incessantemente trespassado pela dor, e o silêncio congelado se fechava ao seu redor. E o céu lá em cima era de um azul estonteante. Ouviu a voz do

homem debruçado sobre ele.

- Está bem, rapaz. Agora, respire!

É, ele conhecia aquele capacete e aquela capa, porque era o uniforme dos bombeiros. E ele estava deitado junto à piscina, esticado sobre as lajes geladas, com o peito ardendo, braços e pernas doendo, e um bombeiro sc debruçava sobre ele, aplicando a máscara de oxigênio no seu rosto c espremendo a bolsa ao seu lado. Um bombeiro, com um rosto igual ao do seu pai.

- É isso aí, rapaz. Respire - dizia ele novamente.

Os outros bombeiros estavam em pé em volta, grandes formas escuras contra o pano de fundo das nuvens que passavam. Todos conhecidos, em virtude dos capacetes e dos casacos, enquanto o estimulavam com vozes tão parecidas com a do seu pai.

Cada vez que respirava, sentia um forte espasmo de' dor, mas ele sugava o ar até os pulmões e, quando o levantaram do chão, fechou os olhos.

- Estou aqui, Michael - disse Aaron. - Estou ao seu lado.

A dor no seu peito era enorme e fazia pressão nos pulmões. Seus braços estavam dormentes. Mas a escuridão era limpa e quieta, e a maca dava a impressão de voar enquanto os bombeiros o transportavam.

Discussão, conversa, o ruído de equipamentos de walkie-talkie. Mas nada disso importava. Ele abriu os olhos e viu o brilho do céu lá no alto. O gelo pingando da buganvília murcha e congelada, com todas as suas flores mortas quando passaram por ela. Portão afora, rodas trepidando nas lajes irregulares.

Alguém apertou a pequena máscara no seu rosto enquanto o enfiavam na ambulância.

- Emergência cardíaca, dando entrada agora, exigindo... - Cobertores á sua volta.

Mais uma vez a voz de Aaron, e depois uma outra.

- Ele está fibrilando novamente! Droga! Vamos!

As portas da ambulância bateram com violência, seu corpo oscilou um pouco para o lado quando eles se afastaram do meio-fio.

O punho desceu forte no seu peito, uma vez, duas vezes, mais outra. Bombeavam o oxigênio para dentro dele pela máscara de plástico, como uma língua gelada.

O alarme ainda soava, ou seria a sirene que tocava daquele jeito, num grito distante, como os gritos daqueles pássaros desesperados na madrugada, gralhas grasnando nos grandes carvalhos, como se tentassem arranhar o céu róseo, arranhar o silêncio escuro, profundo, coberto de musgo.

 

Em algum momento antes do entardecer, ele compreendeu que estava na unidade de tratamento intensivo, que seu coração havia parado dentro da piscina, mais uma vez a caminho do hospital e uma terceira vez na Emergência. Agora estavam regulando sua pulsação com uma droga poderosa chamada lidocaína, que era a razão pela qual ele estava com a mente como que nublada, incapaz de se manter focalizada numa única idéia completa.

Permitiam que Aaron entrasse para vê-lo cinco minutos a cada hora. A certa altura, tia Viv esteve ali também. E depois Ryan chegou.

Vários rostos se debruçaram sobre sua cama. Vozes diferentes falaram com ele. Já era dia novamente quando o médico explicou que a fraqueza que ele sentia era o que devia se esperar. A boa notícia era que o músculo cardíaco havia sofrido relativamente pouco dano. Na realidade, ele já estava se recuperando. Iriam mantê-lo com drogas reguladoras, anticoagulantes e medicamentos para dissolver o colesterol. Repouse e se recupere foram as últimas palavras que ouviu antes de adormecer novamente. Devia ter sido na véspera de Ano-Novo que afinal lhe explicaram o que aconteceu. A essa altura, a medicação já havia sido reduzida e ele podia acompanhar o que estavam dizendo.

Não havia ninguém na casa quando o carro do corpo de bombeiros chegou. Só o alarme disparado. Não só os sensores nos vidros haviam sido acionados, mas alguém havia pressionado as teclas auxiliares usadas para incêndio, polícia e emergência médica.

Entrando correndo pelo portão e pelo caminho lateral, os bombeiros logo viram o vidro quebrado nas portas abertas, a mobília virada na varanda e o sangue nas lajes. Localizaram, então, a forma escura que boiava logo abaixo da superfície da piscina.

Aaron chegara mais ou menos quando estavam reanimando Michael. Da mesma forma que a polícia. Procuraram pela casa toda, mas não encontraram ninguém. Havia sangue inexplicado na casa, e indícios de algum tipo de incêndio. Armários e gavetas estavam abertos no andar superior, e uma mala arrumada pela metade estava aberta em cima da cama. Mas não havia nenhuma evidência de luta.

Foi Ryan quem descobriu, mais tarde naquele mesmo dia, que o Mercedes conversível de Rowan havia desaparecido, e que sua bolsa, com toda e qualquer identificação sua, também havia sumido. Ninguém conseguiu encontrar sua maleta de médico, embora os primos tivessem certeza de ter visto algo semelhante.

Sem nenhuma explicação coerente para o que havia acontecido, a família entrou em pânico.

Era cedo demais para dar Rowan por desaparecida. Mesmo assim, a polícia começou uma busca informal. Seu carro foi encontrado no estacionamento do aeroporto antes da meia-noite; logo foi confirmado que ela havia comprado duas passagens para Nova York na tarde daquele mesmo dia, e que seu avião havia aterrissado no horário.

Um funcionário se lembrava dela e de que ela estava viajando com um homem alto. As aeromoças se lembravam dos dois, de que conversaram e beberam o vôo inteiro.

Não havia nenhuma evidencia de coação ou de violência. A família não podia fazer nada a não ser esperar que Rowan entrasse em contato, ou que Michael explicasse o que havia acontecido.

Três dias mais tarde, no dia 29 de dezembro, chegou um telegrama de Rowan da Suíça, no qual ela explicava que ficaria na Europa por algum tempo e que enviaria instruções quanto aos seus assuntos pessoais. O telegrama continha uma de uma série de senhas conhecidas apenas pela beneficiária do legado e pela firma Mayfair & Mayfair.

E isso confirmou a todos os envolvidos que o telegrama realmente vinha de Rowan. No mesmo dia, foram recebidas instruções no sentido de uma substancial transferência de fundos para um banco em Zurique. Mais uma vez foram usadas as senhas corretas. A Mayfair & Mayfair não tinha nenhuma base para questionar as instruções de Rowan. No dia 6 de janeiro, quando Michael saiu da unidade de tratamento intensivo para um quarto particular normal, Ryan veio visitá-lo, aparentando estar extremamente confuso e constrangido com as mensagens que devia transmitir. Ele usou do máximo tato possível.

Rowan estaria ausente por um tempo "indefinido". Sua localização específica não era conhecida, mas ela estava em contato freqüente com a Mayfair & Mayfair através de um escritório de advocacia de Paris.

O direito total à propriedade da casa de First Street deveria ser dado a Michael. Ninguém da família deveria questionar seu direito pleno e exclusivo ao imóvel.

A casa permaneceria nas suas mãos, e apenas nas suas mãos, até o dia em que morresse, quando então voltaria, segundo a lei, ao legado.

Quanto ás despesas de Michael, deveriam lhe conceder carta branca para gastar o que os recursos de Rowan permitissem. Em outras palavras, ele devia receber todo o dinheiro que quisesse ou que pedisse, sem limites especificados. Michael não disse nada ao ouvir isso.

Ryan lhe garantiu que estava ali para fazer cumprir as menores vontades de Michael, que as instruções de Rowan haviam sido extensas e explícitas, e que a Mayfair & Mayfair estava preparada para executá-las até os menores detalhes. Quando Michael estivesse pronto para ir para casa, tudo seria preparado para lhe proporcionar conforto.

Michael nem ouviu a maior parte do que Ryan disse. Não havia nenhuma necessidade de explicar a Ryan, ou a qualquer outra pessoa, toda a ironia do curso dos acontecimentos; ou como todos os dias seus pensamentos, nublados pela medicação, percorriam as reviravoltas da sua vida desde as suas lembranças mais remotas.

Quando fechava os olhos, Michael via a todas elas de novo, em meio ás chamas e à fumaça, as Bruxas Mayfair. Ele ouvia o rufar dos tambores, sentia o cheiro forte das chamas e ouvia o riso cristalino de Stella.

Depois, tudo sumia.

A tranqüilidade retornava, e ele estava de volta à infância, caminhando por First Street naquela remota noite de Carnaval com a sua mãe, pensando. Ah, que casa linda. Pouco mais tarde, quando Ryan parou de falar e ficou sentado paciente no quarto apenas observando Michael, com um monte de perguntas obviamente ocupando seu pensamento, todas as quais ele tinha medo de formular, Michael lhe perguntou se a família detestava a idéia da sua presença na casa. Se a família queria que ele abrisse mão dela.

Ryan respondeu que absolutamente não acontecia nada disso. Que a família esperava que Michael fosse morar na casa. Que eles tinham esperança de que Rowan voltaria, de que algum tipo de reconciliação fosse possível. E então Ryan pareceu não ter como se expressar. Embaraçado e obviamente muito constrangido, ele disse, com voz emocionada, que a família "simplesmente não entendia o que havia acontecido".

Uma série de respostas possíveis passou pela cabeça de Michael. Com distanciamento e frieza, ele se imaginou fazendo comentários misteriosos que alimentariam as antigas lendas da família; alusões obscuras ao número treze, ao portal e ao homem; comentários que talvez fossem debatidos por anos a fio nos gramados e nos jantares, bem como nos funerais. Mas isso era realmente inimaginável. Na realidade, era absolutamente crucial que ele se mantivesse em silêncio. Foi quando ouviu sua própria voz, declarando com extraordinária convicção.

- Rowan vai voltar. - E não disse mais nada depois disso.

No dia seguinte pela manhã, quando Ryan veio visitá-lo novamente, Michael fez um pedido, que sua tia Vivian se mudasse para a casa, se fosse da sua vontade. Ele não via mais nenhuma razão para ela ficar sozinha no apartamento na avenida. E, se Aaron pudesse ser seu hóspede na casa, isso também o deixaria feliz. Ryan enveredou por uma confirmação jurídica extremamente elaborada de que a casa pertencia a Michael, e de que Michael não precisava pedir a permissão ou a aprovação de ninguém para implementar sua vontade, tanto em detalhes ínfimos quanto em pontos de maior importância, no que dissesse respeito à casa de First Street. Ryan ainda acrescentou que fazia questão de que Michael contasse com ele para "absolutamente qualquer coisa".

Afinal, no silêncio que se seguiu, Ryan se descontrolou. Disse que não conseguia entender onde ele e a família haviam desapontado Rowan. Rowan começara a transferir enormes quantias das mãos da firma. Os planos para o Centro Médico Mayfair estavam em suspenso. Ele simplesmente não conseguia entender o que havia acontecido.

- Não foi culpa sua - disse Michael. - Vocês não tiveram nada a ver com isso. - E, depois de muito tempo, em que Ryan ficou ali sentado, aparentemente envergonhado do seu desabafo, dando a impressão de estar confuso e derrotado, Michael insistiu. - Ela vai voltar. Espere e verá. Essa história ainda não acabou.

No dia 10 de fevereiro, Michael recebeu alta do hospital. Ainda estava muito fraco, o que lhe causava frustração, mas seu músculo cardíaco havia demonstrado uma melhora notável. Sua saúde geral estava boa. Ele foi para a cidade alta numa limusine com Aaron.

O motorista do carro era um mulato claro chamado Henri, que iria morar nas dependências dos fundos, por trás do carvalho de Deirdre, e que cuidaria de tudo para Michael.

O dia estava claro, e fazia calor. Haviam tido mais um período de frio intenso logo após o Natal, e algumas chuvas com inundações, mas agora o tempo dava a impressão de já ser primavera, e as azaléias cor-de-rosa e vermelhas estavam floridas em todos os cantos da propriedade. A oliveira havia recuperado suas bonitas folhas verdes após o frio, e uma nova cor forte surgia nos carvalhos.

Todos estavam alegres, explicou Henri, porque o Carnaval estava chegando. Os desfiles iriam começar qualquer dia desses.

Michael foi dar um passeio pelo jardim. Todas as plantas tropicais mortas haviam sido removidas, mas as novas bananeiras já brotavam dos tocos escuros, mortos pelo frio, e até mesmo as gardênias estavam voltando, deixando cair suas folhas murchas marrons para uma nova brotação escura e lustrosa. As esqueléticas extremosas brancas ainda estavam nuas, mas isso era de se esperar. Ao longo da cerca da frente, as camélias estavam cobertas de flores de um vermelho escuro. E os tulipeiros da Virgínia acabavam de deixar cair suas grandes flores semelhantes a pires; as lajes estavam cobertas com suas grandes pétalas rosadas.

A própria casa estava imaculadamente limpa e em perfeito estado.

Tia Vivian ocupava o quarto que havia pertencido a Carlotta, e Eugenia ainda estava bem no final do segundo andar, perto da escada da cozinha. Aaron dormia no segundo quarto da frente, o que havia pertencido a Millie Dear.

Michael não quis voltar para o quarto da frente, e eles aprontaram o antigo quarto de casal do lado norte para ele. Estava bastante acolhedor, mesmo com aquela cama de madeira de cabeceira alta, na qual Deirdre havia morrido, agora coberta com edredons brancos e travesseiros de plumas. Ele gostou especialmente da pequena sacada voltada para o norte, onde podia ficar sentado à mesa de ferro olhando para a esquina. Durante dias, houve uma procissão de visitas. Bea veio com Lily, e depois Cecilia, Clancy e Pierce. Randall passou por ali com Ryan, que lhe trazia alguns documentos para assinar, e outros vieram, mas ele enfrentava dificuldade para se lembrar dos seus nomes. As vezes, ele conversava com eles; às vezes, não. Aaron era muito hábil em cuidar de tudo para ele. Tia Vivian era também muito experiente em receber as pessoas.

Ele percebia, no entanto, como os primos estavam profundamente perturbados. Estavam moderados, constrangidos e, acima de tudo, perplexos. Não se sentiam à vontade na casa; e às vezes até pareciam um pouco assustados.

O mesmo não acontecia com Michael. A casa estava vazia e limpa no que lhe dizia respeito. E ele conhecia cada conserto mínimo que havia sido feito; cada tom de tinta que havia sido usado; cada pedacinho restaurado no reboco ou nas madeiras. Ela era sua maior realização, até as novas calhas de cobre e os pisos de cerne de pinho que ele mesmo havia lixado e tingido. Ele se sentia muito bem ali.

- Fico feliz de ver que você não está mais usando aquelas luvas horrorosas - disse Beatrice. Era domingo, a segunda vez que ela vinha visitá-lo, e eles estavam sentados no quarto.

- Não preciso mais delas. É estranhíssimo mas, depois do acidente na piscina, minhas mãos voltaram ao normal.

- Você não tem mais as visões?

-Não. Talvez eu nunca tenha usado direito aquele poder. Talvez eu não o tenha usado a tempo. E por isso ele me foi retirado.

- Parece uma bênção - disse Bea, tentando esconder sua perplexidade.

- Agora não faz mais diferença - disse Michael.

Aaron acompanhou Beatrice até a porta. Só por acaso Michael passou pelo alto da escada e ouviu o que ela dizia a Aaron.

- Ele parece dez anos mais velho. - Bea na realidade estava chorando. Ela implorava a Aaron que lhe contasse como essa tragédia havia acontecido. - Eu poderia acreditar que esta casa é amaldiçoada. Ela é cheia de tudo que é maligno. Eles nunca deveriam ter planejado morar nela. Nós deveríamos tê-los impedido. Você devia fazer com que ele saísse daqui. Michael voltou para o quarto e fechou a porta.

Quando olhou no espelho da velha cômoda de Deirdre, constatou que Bea tinha razão. Ele realmente parecia mais velho. Não havia percebido os cabelos grisalhos nas têmporas. Havia um pouco de grisalho salpicado em todo o resto também. E talvez ele tivesse algumas rugas a mais no rosto do que tinha antes.

Talvez até muitas delas. Especialmente em volta dos olhos. De repente, ele sorriu. Nem havia notado o que estava vestindo nesta tarde. Agora via que era um casaco de cetim escuro com lapelas de veludo, que Bea havia mandado para ele no hospital. Tia Viv havia arrumado a roupa que ele ia vestir. Imaginem, Michael Curry, o menino do Irish Channel, usando um traje desses, pensou. Aquilo devia pertencer a Maxim de Winter em Manderley. Ele deu um sorriso melancólico para sua própria imagem, com uma das sobrancelhas erguida. E o grisalho nas têmporas dava uma impressão de quê? De distinção.

-Eh bien, monsieur- disse ele, procurando imitar para si mesmo a voz de Julien que ouvira na rua em San Francisco. Até sua expressão estava um pouco mudada. Ele sentia nela um toque da resignação de Julien.

É claro que esse era o seu Julien, o Julien que vira no ônibus, e que Richard Llewellyn havia visto uma vez em sonho. Não o Julien sorridente e brincalhão dos seus retratos, nem o Julien ameaçador e gargalhante daquele lugar sinistro e infernal, cheio de fogo e fumaça. Aquele lugar não existia realmente.

Ele desceu devagar, como o médico recomendava, e entrou na biblioteca. Não havia nada na escrivaninha desde que ela havia sido esvaziada após a morte de Carlotta, e ele se apropriara dela, mantendo ali o seu caderno. O seu diário.

Era o mesmo diário que ele havia iniciado na primeira visita a Oak Haven. E ele continuava a escrever nele, fazendo registros quase todos os dias, porque era o único lugar em que podia expressar o que realmente sentia acerca do que havia acontecido. É claro que havia contado tudo a Aaron. E Aaron era a única pessoa a quem jamais contaria.

Mesmo assim, ele precisava dessa relação serena e contemplativa com a página em branco para se abrir por inteiro. Era delicioso ficar ali sentado, erguendo os olhos só de vez em quando para ver os transeuntes que iam na direção de St. Charles Avenue para ver o desfile de carnaval. Só mais dois dias para a terça-feira gorda.

No entanto, uma coisa que não lhe agradava era o fato de que ás vezes ele ouvia os tambores em meio ao silêncio. Isso havia acontecido ontem, e ele odiou.

Quando estava cansado de escrever, ele apanhava na prateleira seu volume de Grandes Esperanças, sentava-se no sofá de couro mais próximo à lareira e começava a ler. Calculava que daí a pouco Eugenia ou Henri viriam, trazendo-lhe algo para comer. Talvez ele comesse, talvez não.

 

Terça-feira, 27 de fevereiro, noite da terça-feira de Carnaval.

Nunca vou acreditar que o que vi da segunda vez foi uma visão verdadeira. Sustento agora, e sempre sustentarei, que foi obra de Lasher. Aquelas não eram as Bruxas Mayfair, porque elas não estão aqui, presas à terra, à espera de passar pelo portal, embora essa possa ser uma mentira que ele lhes contou durante a vida de cada uma, parte do pacto a que recorreu para conquistar sua cooperação.

Creio que, à medida que cada um morria, ele ou ela deixava de existir ou atingia um conhecimento maior. E não havia nenhuma intenção de cooperar com qualquer plano nesta terra. No máximo, houve tentativas no sentido de frustrar o plano.

Uma tentativa desse tipo ocorreu quando Deborah e Julien me procuraram pela primeira vez. Eles me falaram do plano e disseram que eu tinha de intervir, de atrair Rowan para que Rowan não fosse seduzida por Lasher e por suas táticas enganosas. E em San Francisco, quando me disseram que voltasse para casa, eles estavam mais uma vez procurando fazer com que eu interferisse.

Acredito nisso porque não há nenhuma outra explicação sensata. Eu nunca teria concordado com nada tão perverso quanto a paternidade da criança através da qual aquele monstro voraz pudesse se realizar. E se eu estivesse informado de um horror desses, não teria despertado com uma sensação de obrigação e objetivo, mas, sim, num pânico total e com uma repulsa profunda por aqueles que haviam tentado me usar.

Não. Foi obra de Lasher, essa última visão alucinante de almas infernais, presas à terra, e sua moralidade feia e ignorante. E não sei por que Aaron não consegue perceber, mas é claro que o sinal foi a aparição das freiras na visão. Pois e mais do que certo que as freiras estavam deslocadas ali. E os tambores de carnaval, eles também estavam deslocados. Ambos pertenciam aos meus medos da infância.

Todo aquele espetáculo infernal teve origem nos receios e pavores da minha infância, e Lasher misturou tudo aquilo com as Bruxas Mayfair, para criar um inferno para mim, que me manteria morto, afogado, em desespero.

Se o seu plano tivesse funcionado, é claro que eu teria morrido, sua visão do inferno teria desaparecido e talvez, só talvez, em alguma vida futura eu chegasse a encontrar a verdadeira explicação.

No entanto, é difícil imaginar esta última parte. Porque não morri. E o que tenho agora, se é que vale alguma coisa, e uma segunda chance de parar Lasher, simplesmente por estar vivo e por estar aqui.

Afinal, Rowan sabe que eu estou aqui, e eu não posso acreditar que nela se extinguiu o último vestígio de amor por mim. Isso não bate com o que me dizem os meus sentidos.

Pelo contrário, Rowan não só sabe que eu estou esperando; ela quer que eu espere. E foi por isso que me deu a casa. Ao seu próprio modo, ela me pediu que ficasse aqui e que continuasse a acreditar nela.

Meu pior medo, porém, é que, agora que aquele ser voraz tem um corpo, ele fará algum mal a Rowan. Ele atingirá algum estágio no qual não precise mais de Rowan e tentará se livrar dela. Só posso esperar e rezar para que ela destrua a criatura antes que chegue essa hora, embora quanto mais eu reflita sobre o assunto, mais eu me conscientize de como será difícil para Rowan conseguir isso.

Rowan sempre tentou me avisar que nela havia uma propensão para o mal que não existia em mim. É claro que eu não sou o inocente que ela supunha. E ela não é má na realidade. Mas o que ela é é brilhante e puramente científica. Ela está apaixonada pelas células da criatura. Sei que está, de uma perspectiva estritamente científica, e ela as está estudando. Está estudando todo o organismo, como ele se comporta e como ele se movimenta no mundo, e concentra sua atenção em saber se ele é ou não é uma versão aperfeiçoada de um ser humano, e se for, o que esse aperfeiçoamento representa e como ele poderá ser usado para o bem.

Também não entendo por que Aaron não consegue aceitar isso. Ele é tão solidário, mas tão persistente em não se comprometer. O Talamasca é mesmo um monte de monges e, apesar de ele não parar de me pedir para eu ir para a Inglaterra, isso simplesmente não é possível. Eu jamais conseguiria viver com eles. Eles são distanciados demais; e por demais teóricos.

Além do mais, é absolutamente essencial que eu espere aqui por Rowan. Afinal de contas, apenas dois meses se passaram, e pode demorar anos até Rowan finalmente ter condições de resolver esse caso. Ela tem só trinta anos, e ter essa idade nestes nossos tempos significa ser realmente jovem.

Conhecendo Rowan como eu conheço, sendo a única pessoa que a conhece de verdade, estou convencido de que Rowan acabará por atingir a verdadeira sabedoria.

Portanto, essa é a minha visão do que ocorreu. As Bruxas Mayfair, como um conciliábulo de mortos presos à terra, não existem e nunca existiram, e o pacto foi uma mentira. Minhas primeiras visões eram de seres bons que me enviaram aqui na esperança de encerrar um reino do mal.

Será que elas estão zangadas comigo agora? Será que me voltaram as costas por esse meu fracasso? Ou será que aceitam que tentei, usando os únicos instrumentos que possuía? E talvez percebam, o que eu antevejo, que Rowan irá voltar e que a história não terminou?

Não tenho como saber. Mas sei, sim, que não há nenhum mal à espreita nesta casa, nenhuma alma perambulando por seus quartos. Pelo contrário, ela dá uma impressão maravilhosamente limpa e luminosa, exatamente como eu pretendia.

Ando examinando os sótãos aos poucos, descobrindo coisas interessantes. Encontrei todos os contos de Antha, e eles são fascinantes. Fico sentado lá em cima, no quarto do terceiro andar, e os leio à luz do sol que entra pelas janelas. E sinto Antha que me envolve, não um fantasma, mas a presença viva da mulher que escreveu aquelas frases delicadas, procurando exprimir sua agonia e sua luta, bem como sua alegria por ser livre por tão pouco tempo em Nova York.

Quem sabe o que mais vou encontrar lá em cima? Talvez a autobiografia de Julien, enfiada por trás de uma viga.

Se eu ao menos tivesse mais energia, se ao menos não tivesse de fazer tudo tão devagar e um passeio por isso aqui tudo não fosse uma tarefa tão pesada.

 É claro que este é o lugar mais extraordinário onde se possa dar um passeio. Sempre soube disso.

O velho roseiral está voltando à vida, exuberante, nestes últimos dias de calor; e bem ontem, tia Viv me disse que sempre havia sonhado com a idéia de ter rosas para cuidar na velhice, e que de agora em diante ela cuidaria dessas flores, que o jardineiro só precisava ajudá-la um pouquinho. Parece que ele se lembrou da "velha miss Belle", que havia cuidado daquelas flores no passado, e agora fica enchendo a cabeça de tia Viv com os nomes das diversas variedades.

Acho maravilhoso que ela goste tanto daqui.

Eu mesmo prefiro as flores mais silvestres, menos cuidadas. Na semana passada, depois que instalaram de volta as telas na antiga varanda de Deirdre e que comprei uma nova cadeira de balanço para ali, percebi que a madressilva estava se espalhando pela nova balaustrada de madeira com toda a força e que subia para o ferro fundido, exatamente como estava quando chegamos aqui.

E lá fora, nos canteiros, abaixo das sofisticadas camélias, as boninas silvestres estão voltando, da mesma forma que o pequeno cambará que chamávamos de "bacon com ovos", por suas flores marrons e cor de laranja. Disse aos jardineiros que não toquem nessas plantas. Que deixem voltar aquela velha aparência selvagem. Afinal, neste momento, os desenhos sobressaem demais.

Tenho a impressão de estar me movimentando de losangos para retângulos e quadrados quando caminho ali fora, e quero o jardim suavizado, escondido, mergulhado no verde, como o Garden District sempre esteve na minha lembrança.

Além disso, não há privacidade. Logo hoje, quando as pessoas passavam em grandes grupos pelas ruas, dirigindo-se ao local do desfile em St. Charles Avenue simplesmente para perambular por lá com suas fantasias, muitas cabeças se voltaram para espiar através da cerca. Isso aqui devia ser mais reservado.

Na realidade, quanto a esse mesmo ponto, aconteceu a coisa mais estranha hoje à noite. No entanto, vou resumir o dia, por ter sido a terça-feira de Carnaval, o dia mais importante de todos.

Os quinhentos parentes mais chegados estiveram aqui cedo, já que o desfile passa por St. Charles Avenue por volta das onze. Ryan havia organizado tudo, com um belo bufê para o café da manhã a partir das nove, seguido por almoço ao meio-dia e um bar servindo chá e café o dia inteiro.

Perfeito, especialmente por eu não ter de fazer absolutamente nada a não ser descer de vez em quando no elevador, dar alguns apertos de mão, beijar algumas bochechas e depois alegar cansaço, o que não era nenhuma mentira, e voltar lá para cima para repousar.

A minha idéia exata de como administrar esta casa. Ainda mais, com Aaron ali para ajudar, e tia Vivian adorando cada minuto da reunião.

Das varandas de cima, fiquei olhando as crianças que corriam daqui até a avenida e vice-versa, que brincavam lá fora no gramado e até nadavam já que o dia estava realmente lindo. Eu não me aproximaria daquela piscina por nada neste mundo, mas é bom ver as crianças espadanando na água; é bom mesmo.

Uma maravilha perceber que a casa propicia tudo isso, quer Rowan esteja aqui, quer não. Quer eu esteja aqui, quer não.

Por volta das cinco horas, quando tudo estava se acalmando, e algumas das crianças cochilavam, enquanto todos esperavam pelo desfile, toda aquela paz e serenidade terminou.

Ergui os olhos de Guerra e Paz para ver Aaron e tia Viv parados ali, diante de mim e, antes que falassem, eu já sabia o que iam dizer.

Eu devia me trocar, devia comer alguma coisa, devia pelo menos experimentar os pratos sem sal que Henri havia preparado com tanto cuidado para mim. Eu de via descer.

E eu devia pelo menos caminhar até a avenida para ver, disse tia Viv, exatamente o último desfile da noite da terça-feira gorda. Como se eu não soubesse.

Aaron ficou em silêncio todo esse tempo, sem dizer nada, e depois sugeriu que talvez me fizesse bem ver o desfile depois de todos esses anos e como que desfazer a fantasia que havia se criado em torno dele. É claro que ele estaria lá ao meu lado o tempo todo.

Não sei o que me deu, mas concordei.

Vesti um terno escuro, gravata, todo elegante, penteei o cabelo, adorando a idéia do grisalho e, constrangido e desconfortável depois de semanas só de robes e pijamas, desci. Montes de beijos e abraços, além de cumprimentos carinhosos das dezenas de parentes que perambulavam por toda a parte. E eu não estava bonito? E eu não aparentava estar muito melhor? E todos aqueles comentários bem-intencionados, porém cansativos. Michael, o inválido por problemas cardíacos. Eu estava sem fôlego só de descer a escada! Fosse qual fosse o caso, antes das seis e meia comecei a caminhar lentamente na direção da avenida com Aaron. Tia Viv havia saído antes com Bea, Ryan e um batalhão de outros. E logo vieram os tambores, sim, aquela feroz cadência diabólica, como o acompanhamento de uma bruxa condenada a caminho da fogueira numa carroça.

Odiei aquilo do fundo do coração. E odiei ver as luzes lá no alto, mas eu sabia que Aaron tinha razão. Eu devia ver o desfile. Além do mais, eu não estava mesmo com medo. O ódio é uma coisa. O medo, outra. Como eu me sentia perfeitamente calmo nesse meu ódio.

A multidão era menor já que estávamos chegando ao final do dia e do próprio Carnaval, e não tivemos nenhum problema para encontrar um lugar confortável para ficar no canteiro central, em meio a toda a grama destruída e todo o lixo do rebuliço do dia inteiro. Acabei me encostando num poste da linha dos bondes, com as mãos nas costas, quando começavam a surgir os primeiros carros alegóricos.

Horrendas, horrendas, como haviam sido na minha infância, essas gigantescas estruturas oscilantes de papier-mâché que vinham lentamente pela avenida para além das cabeças da turba exultante.

Lembrei-me de meu pai me passando um sabão quando eu tinha sete anos. Michael, você não tem medo de nada que seja real, sabia? Mas precisa superar esse seu pavor maluco dos desfiles.' E é claro que ele estava certo. Aquela altura eu já sentia um medo terrível dos desfiles, parecia um bebê chorão no que se relacionasse a eles e simplesmente acabava com o Carnaval do meu pai e da minha mãe. Essa era a pura verdade. Logo, logo superei isso. Ou pelo menos aprendi a esconder meus sentimentos com o passar dos anos.

Bem, o que eu estava vendo agora que os portadores dos archotes vinham marchando e se exibindo, com aquelas tochas lindas e fedorentas, e o ruído dos tambores aumentava mais com a aproximação da primeira banda grande e altiva de alunos do segundo grau? Só um espetáculo maluco e bonito, não era? Em primeiro lugar, a iluminação era muito mais forte, com as luzes da rua, e os velhos archotes eram incluídos apenas em nome da tradição, não para clarear nada. Além disso, os rapazes e as moças que tocavam os tambores não passavam de moças e rapazes bonitos e animados.

Depois, veio o carro do rei, em meio a aplausos e gritos, um grande trono de papel, alto, enfeitado e esplendidamente decorado, com o próprio rei muito elegante com sua coroa de pedrarias, máscara e longa peruca encaracolada. Quanta extravagância, todo aquele veludo. E é claro que ele acenava com o cetro com uma serenidade perfeita, como se aquela não fosse uma das cenas mais esdrúxulas deste mundo.

Inócuo, tudo aquilo era inócuo. Nada de sinistro ou terrível; e ninguém estava a ponto de ser executado. A pequena Mona Mayfair de repente puxou minha mão. Queria saber se eu podia levantá-la nos ombros. Seu pai lhe havia dito que estava cansado.

Claro que sim, disse eu. O difícil foi colocá-la nos ombros e conseguir voltar a me erguer.

Não foi nada bom para meu velho coração. Eu quase morri! Mas, afinal, consegui, e ela se divertiu muito, pedindo presentes aos gritos e se esticando para pegar as contas de fantasia e os copos plásticos que caíam como chuva dos carros alegóricos que passavam diante de nós.

E como eram bonitos e antiquados os carros. Como os da nossa infância, explicou Bea, sem nada dessas aparelhagens mecânicas ou elétricas modernas. Apenas elaboradas criações de árvores delicadas e trêmulas, flores e pássaros, primorosamente emolduradas em laminado cintilante. Os homens do desfile, mascarados e com trajes de cetim, davam duro lançando suas quinquilharias e seu lixo ao mar com as mãos ansiosas.

Afinal, tudo acabou. A terça-feira gorda terminava. Ryan ajudou Mona a descer dos meus ombros, censurando-a por me incomodar, e eu protestei dizendo que havia sido divertido.

Voltamos devagar a pé, Aaron e eu ficando para trás. E depois, quando a turma entrou para um pouco de champanhe e música, aconteceu uma coisa estranha, que relato a seguir.

Dei meu passeio de costume pelo jardim escuro, apreciando as belas azaléias brancas todas floridas, assim como as bonitas pecúnias e outras flores anuais que os jardineiros haviam plantado nos canteiros. Quando cheguei junto à grande extremosa nos fundos do gramado, percebi pela primeira vez que ela afinal voltava a brotar.

Estava toda coberta por minúsculas folhas verdes, embora, á luz da lua, ainda parecesse nua e esquelética.

Fiquei ali parado debaixo da árvore alguns minutos, olhando na direção de First Street, vendo os últimos retardatários que passavam pela cerca de ferro. Acho que estava me perguntando se poderia arriscar um cigarro aqui fora sem ninguém para me flagrar e me impedir de fumar, e depois me dei conta de que Aaron e tia Viv, seguindo ordens do médico, haviam jogado todos os cigarros fora.

Fosse o caso qual fosse, estava ali, nos meus devaneios e adorando o calor da primavera, quando percebi que uma mulher e um menino passavam apressados lá fora, e que a criança, ao me ver debaixo da árvore, apontou para mim e disse á mãe alguma coisa sobre ‘aquele homem'.

Aquele homem. Isso me atingiu como uma piada. Eu era ‘aquele homem'. Eu havia trocado de lugar com Lasher. Agora eu era o homem do jardim. Eu havia assumido sua velha posição e seu papel. Eu era sem sombra de dúvida o homem de cabelos escuros de First Street, e essa idéia e a ironia dessa imagem me fizeram rir muito.

Não era de estranhar que o filho da puta dissesse que me amava. Devia mesmo. Ele roubou meu filho, minha mulher e amante, e me deixou aqui plantado no seu lugar.

Ele tirou de mim a vida e me deu em troca o local que assombrava. Por que ele não haveria de me amar por tudo isso?

Não sei quanto tempo fiquei ali, sorrindo para mim mesmo, rindo em silencio na escuridão, mas aos poucos fui sentindo um cansaço. Ficar em pé por algum tempo já me deixa exausto.

Foi quando uma tristeza profunda se abateu sobre mim, porque tudo parecia ter um significado, e achei que talvez tivesse estado errado o tempo todo e afinal as bruxas existissem mesmo. E todos nós estivéssemos amaldiçoados.

Mas não acredito nisso.

Prossegui com meu passeio noturno e mais tarde me despedi de todos aqueles parentes simpáticos, prometendo visitá-los, sim, quando me sentisse melhor, e lhes garantindo que teríamos mais uma grande festa aqui no dia de São Patrício, daqui a algumas semanas.

A noite finalmente ficou vazia e silenciosa como qualquer outra noite aqui no Garden District, e o desfile de carnaval, em retrospectiva, pareceu ainda mais irreal na sua beleza e no seu exagero, como algo que não poderia ter acontecido com toda aquela pompa e seriedade num mundo adulto.

É, conquistei mesmo o antigo medo indo lá. Espero e rogo que tenha calado para sempre aqueles tambores.

E não acredito que tudo foi projetado, planejado, destinado. Não acredito.

Talvez Aaron, com a sua atitude de aceitação e sua tolerância dogmática possa acalentar a idéia de que tudo tenha sido planejado, de que até a morte do meu pai fez parte disso e de que eu fui destinado simplesmente a ser um macho reprodutor para Rowan, um pai para Lasher. Mas isso eu não aceito.

E não é só que eu não acredite. Eu não consigo acreditar.

Não posso acreditar porque minha razão me diz que um sistema desses, no qual alguém determina todos os movimentos, seja ele um deus ou um demônio, seja nosso subconsciente ou a tirania dos nossos genes, um sistema desses é simplesmente impossível.

A própria vida deve ter como base a infinita possibilidade da escolha e do acaso. E, se não pudermos provar isso, devemos acreditar que é assim. Precisamos acreditar que podemos mudar, que podemos controlar, que podemos dirigir nossos próprios destinos.

As coisas poderiam ter sido diferentes. Rowan podia ter se recusado a ajudar aquele ser. Ela poderia tê-lo matado. E ainda pode matá-lo. E por trás dos seus atos pode estar a trágica possibilidade de que, uma vez que a criatura houvesse se tornado carne, Rowan não conseguiu se forçar a destruí-la.

Recuso-me a julgar Rowan. A raiva que senti por ela agora desapareceu.

E foi de livre e espontânea vontade que optei por ficar aqui, à sua espera, acreditando nela. Essa confiança em Rowan é o primeiro mandamento do meu credo. E por mais complexa e imensa avie pareça a teia dos acontecimentos, por mais que se assemelhe aos desenhos das lajes, das balaustradas e dos ferros fundidos repetitivos que dominam este pequeno terreno, mantenho-me fel ao meu credo.

Acredito no Livre-Arbítrio, a Força Todo-poderosa pela qual nos conduzimos como se fôssemos filhos e filhas de um Deus justo e sábio, mesmo que não exista esse Ser Supremo. E pelo livre-arbítrio, podemos optar por fazer o bem nesta terra, sem nos importarmos com o fato de que todos morreremos, e de que não sabemos para onde vamos quando morrermos, nem se nos aguarda alguma justiça ou explicação.

Acredito que, através da razão, podemos saber o que é o bem. Acredito na comunhão de homens e mulheres, na qual o perdão dos erros sempre terá maior significado do que a vingança. E acredito que, no belo universo natural que nos cerca, nós representamos os seres melhores e mais perfeitos, pois só nós podemos ver essa beleza natural, apreciá-la, aprender com ela, chorar por ela e procurar conservá-la e protegê-la.

Acredito, finalmente, que somos a única força moral verdadeira no mundo físico, criadores da ética e dos conceitos morais, e que devemos ser tão perfeitos quanto os deuses que criamos no passado para nos orientar.

Acredito que, através dos nossos melhores esforços, acabaremos por conseguir criar o paraíso na terra; e que já o fazemos sempre que amamos, sempre que abraçamos, sempre que nos comprometemos a criar em vez de destruir, sempre que pomos a vida acima da morte, e o natural acima do que não é natural, na medida em que sejamos capazes de fazer essa distinção.

E acho que acredito, em última análise, que é possível se atingir uma paz de espírito diante dos piores horrores e das maiores perdas. Ela pode ser atingida através da crença na mudança, na vontade e no acaso; e através da crença em nós mesmos, que iremos com maior freqüência agir com correção diante da adversidade.

Pois é nosso o poder e a glória, porque somos capazes de visões e idéias que são basicamente mais fortes e mais perenes do que nós mesmos.

Esse e o meu credo. É por isso que acredito na minha interpretação da história das Bruxas Mayfair.

É provável que ela não se sustentasse diante dos filósofos do Talamasca. Talvez nem chegue a entrar no arquivo. Mas é a minha crença, por menor que seja seu valor, e é nela que me apóio. E se eu fosse morrer neste exato instante, não sentiria medo. Porque não posso acreditar que nos espere o caos ou o horror.

Se é que nos aguarda algum tipo de revelação, ela deve ser tão boa quanto nossos ideais e nossa melhor filosofia. Pois sem dúvida a natureza deve abranger o visível e o invisível, e não poderia ser inferior a nós. Aquilo que faz com que as flores se abram e que os focos de neve caiam deve conter uma sabedoria e um segredo final tão elaborado e lindo quanto a camélia florida ou as nuvens que se reúnem lá em cima, tão brancas e puras na escuridão.

Se isso não for verdade, somos vítimas de uma ironia assombrosa. E todos os demônios dos infernos bem poderiam estar dançando no salão. O diabo poderia existir. Não haveria nada de errado com as pessoas que queimam outras até a morte. Qualquer coisa valeria. Mas o mundo é simplesmente lindo demais para isso.Pelo menos, é assim que me parece agora que estou sentado na varanda telada, na cadeira de balanço, com todo o barulho do Carnaval já extinto há muito tempo, escrevendo à luz distante do salão atrás de mim. Só a nossa capacidade para o bem é tão perfeita quanto essa brisa sedosa que vem do sul, tão perfeita quanto o cheiro da chuva que começa a cair, com um chiado leve ao atingir as folhas reluzentes, tão delicada, tão suave quanto a visão da própria chuva como prata salpicada no tecido da escuridão envolvente.“Volte para casa, Rowan. Estou à espera".

 

                                                                                            Anne Rice

 

 

                      

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