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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Abade Negro / Edgar Wallace
O Abade Negro / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Abade Negro

 

                  

 

—   Tomás!

—   Pronto, Excelência.

Tomás, o lacaio, com um olhar de interesse concentrado no rosto antipático, ficou esperando, enquanto o homem pálido atrás da grande escrivaninha da biblioteca separava uma pilhazinha de notas do Tesouro.

A caixa de aço judiada de que elas haviam sido tiradas estava cheia, até a tampa, de notas de Banco e do Tesouro, de todas as denominações, em tremenda confusão.

—   Tomás! — voltou ele, em tom absorto.

—   Sim, Excelência.

—   Ponha este dinheiro naquele envelope... naquele não, seu idiota, no cinzento. Está sobrescritado?

—   Está, Excelência: "Herr Lubitz, Frankforterstrasse, 35, Lípsia".

—   Feche o envelope, leve a carta ao correio e mande-a registrada. O Sr. Richard está no escritório dele?

—   Não, Excelência, o Sr. Richard saiu há uma hora.

Harry Alford, 18º Conde de Chelford, suspirou. Ainda não completara trinta anos. Sobre o rosto magro e pálido como o dos homens votados aos estudos, o cabelo de um negro luzidio lhe realçava a macilência da pele. A biblioteca em que trabalhava era uma sala muito alta, com as paredes divididas em duas partes iguais por uma galeria que percorria três lados do aposento e à qual se chegava mediante uma escada circular de ferro, num dos cantos do cômodo. Do teto ao chão, cada polegada de espaço da parede estava coberta de estantes de livros, com essa notável exceção. Acima da grande lareira de pedra havia um retrato de corpo inteiro de uma formosa mulher. Quem quer que tivesse visto Sua Excelência não poderia enganar-se quanto à relação que existia entre ele e a beldade de olhar desvairado. Era sua mãe; possuía os mesmos traços delicados, o mesmo cabelo preto, os mesmos olhos negros e insondáveis. Lady Chelford havia sido a mais famosa debutante do seu tempo e o seu trágico fim causara sensação no princípio da década de 1890. Não havia outro quadro na sala.

Os olhos dele buscaram o quadro. Ao ver de Harry Alford, a Mansão de Fossaway, com toda a sua beleza e todo o seu encanto, era um pífio escrínio para uma jóia daquelas.

Na sóbria libré preta, o cabelo empoado de branco, o lacaio demorava-se.

—   É só, Excelência?

—   É só, — respondeu Sua Excelência, gravemente.

Entretanto, quando o homem se endereçou, sem fazer barulho, à porta:

—   Tomás! Ouvi casualmente umas coisas quando você passou pela minha janela, hoje cedo, com Filling, o cavalariço...

—   Ele estava me falando a respeito do Abade Negro, Excelência.

O rosto pálido crispou-se espasmodicamente. Até à luz do dia, com o sol a jorrar pelas janelas coloridas e a traçar, no soalho, arabescos escarlates, azuis e cor de ametista, a simples menção do Abade Negro fez-lhe o coração pulsar mais depressa.

—   Qualquer empregado meu que discutir o Abade Negro será imediatamente despedido. Faça-me o favor de dizer isso aos seus colegas de serviço, Tomás. Um fantasma! Misericórdia! Vocês enlouqueceram?

O rosto se acarminara, as veiazinhas das têmporas latejavam e, sob o império da cólera, os olhos escuros pareciam refluir para dentro da cabeça.

—   Nem uma palavra! Entendeu? É mentira! Uma deslavada e maldosa mentira dizer-se que Fossaway é assombrada! Uma cretinice desses salafrários que andam por aí. E basta!

Despediu da sua presença, com um gesto, o homem que se inclinara e voltou ao estudo do livro de letras pretas, chegado da Alemanha naquela manhã.

Depois de fechar a porta da biblioteca, Tomás pôde dar-se ao luxo de contrair os traços amarelados num sorriso que lhe mostrava todos os dentes. Mas só por um segundo, pois, logo a seguir, reassumiu a expressão de gravidade. Devia haver quase mil libras na caixa de aço e Tomás já cumprira três anos de cadeia por um décimo daquela soma. Nem o Sr. Richard Alford, que sabia quase tudo, tivera conhecimento desse fato interessante.

Tomás precisava escrever uma carta, pois mantinha lucrativa correspondência com alguém que consagrava especial interesse à Mansão de Fossaway mas, primeiro, teria de retratar o essencial da conversação ao Sr. Glover, o mordomo.

—   Pouco me importa o que diz Sua Excelência (e também não sei por que haveria ele de dizer isso a um lacaio e não a mim); mas o fantasma existe e toda a gente já o viu! Eu não andaria pela Alameda dos Olmos, de noite, sozinho, nem por cinqüenta milhões de libras!

O imponente homem sacudiu a cabeça que os anos haviam prateado.

—   E Sua Excelência também acredita. Eu quisera que ele estivesse casado, isso sim. Teria muito mais bom senso do que temi. - E nós estaríamos livres do Sr. Chato Alford... hein, Sr. Glover?

O mordomo fungou, desdenhoso.

—   Há os que gostam dele, e há os que não gostam, — sentenciou o oráculo. — Nunca trocamos uma palavra mais ríspida, Tomás... Há alguém à porta.

Tomás precipitou-se para a entrada da sala e abriu a porta enorme. Estava lá uma moça. Uma moça bonita, de beleza atrevida, lábios vermelhos, olhos brilhantes, que vestia roupas caras.

Tomás sorriu, reconhecendo-a.

—   Bom dia, Srta. Wenner... que surpresa!

—   Sua Excelência está, Tomás?

O lacaio franziu os lábios dubiamente.

—   Estar, está, senhorita, mas receio não poder levá-la até ele. Não me censure, por favor, são ordens do Sr. Alford.

—   Do Sr. Alford! — sorriu ela com desprezo. — Você está querendo dizer-me que fiz toda a viagem de Londres até aqui e não posso ver Lorde Chelford?

Tomás, contudo, não tirou a mão da porta. Gostava da jovem que, no tempo em que fora secretária de Sua Excelência, nunca se dera ares de importância (o pecado imperdoável para a sala dos criados), e sempre tivera um sorriso para o mais humilde dos funcionários domésticos. Tê-la-ia deixado entrar prazerosamente e sabia que Sua Excelência se teria agradado de vê-la por ali, mas em algum lugar, pairava Dick Alford, homem de poucas palavras, não só capaz de mostrar-lhe a porta da rua, mas também de fazê-lo voar por ela com um pontapé.

—   Sinto muito, senhorita, muito mesmo; mas ordens são ordens, como sabe.

—   Entendo! — voltou ela, com um inclinação pressaga de cabeça. — Ordens para que eu seja enxotada do que poderia ter sido a porta da minha casa, Tomás.

Ele procurou expressar fisionomicamente toda a sua simpatia, mas só conseguiu assumir um ar pateta. Ela sorriu-lhe, apertou-lhe amavelmente a mão e afastou-se da entrada.

—   A Srta. Wenner, — relatou Tomás, — aquela que Alford despediu porque Sua Excelência começou a embeiçar-se por ela...

Nesse momento soou a campainha da biblioteca e Tomás deu- -se pressa em atender ao chamado.

—   Quem era aquela dama... que vi pela janela?

—   A Srta. Wenner, Excelência.

Uma sombra perpassou pelo rosto de Harry Alford.

—   Você... não lhe pediu para entrar?

—   Não, Excelência; o Sr. Alford deu ordens...

—   Ah! Naturalmente... sim. Eu me havia esquecido. Talvez seja melhor assim. Obrigado.

Ele abaixou o abajur verde sobre os olhos, pois até durante o dia trabalhava com luz artificial, tamanha era a escuridão da biblioteca, e tornou ao estudo do livro.

Entretanto, o seu espírito não estava todo concentrado no trabalho. A certa altura levantou-se e pôs-se a andar de um lado para outro da sala, as mãos enclavinhadas à sua frente, o queixo encostado no peito. Deteve-se diante do retrato da mãe, suspirou e voltou para a escrivaninha. Havia uma notícia, que ele recortara de um jornal de Londres e que leu pela terceira vez, agradavelmente surpreendido pela insólita experiência de ver-se objeto de um comentário de jornal e, não obstante, irritado pelo assunto em que se baseava a notícia.

Chelfordbuiy, sossegada aldeia de Sussex, está empenhada no emocionante esporte da caça aos fantasmas. Após um período de        inatividade, o Abade Negro de Fossaway voltou a aparecer. Reza a lenda que, há setecentos anos, Hubert de Redruth, Abade de Chelfordbuiy, foi assassinado por ordem do segundo Conde de Chelford. A partir de então, de tempos a tempos, o seu "fantasma" tem sido visto. No curso dos últimos anos circularam pela região histórias horripilantes de um Ser Invisível que gritava e uivava como um demônio, porém o barulhento trasgo só foi realmente visto na semana passada.

Mas a Mansão de Fossaway não tem apenas almas do outro mundo. De acordo com a lenda, há quatrocentos anos, um grande tesouro em ouro foi ali escondido em algum lugar; tão bem escondido, na verdade, que nunca se descobriu, embora sucessivos Condes de Chelford tivessem diligenciado encontrar o ouro amealhado.               

O atual Conde de Chelford, que, a propósito, está noivo da Srta. Leslie Gine, única irmã do Sr. Artur Gine, o conhecido advogado, informou ao nosso representante local que não duvidava que a aparição do Abade Negro fosse uma brincadeira, de muito mau gosto, de alguns jovens patuscos da vizinhança.            

Ele fez menção de rasgar o pedaço de papel mas, pensando melhor, colocou-o debaixo de um peso de papéis.

Aquela referência às brincadeiras dos rapazes da aldeia era tranqüilizante e poderia ser confortadora quando chegasse a noite e ele necessitasse de coragem.

Pois Lorde Chelford acreditava no Abade Negro tão piamente quanto proclamava o seu ceticismo.

A mão irrequieta aproximou-se do botão da campainha sobre a mesa.

—   O Sr. Richard já voltou?

—   Ainda não, Excelência.

Visivelmente agastado, Lorde Chelford bateu na mesa com a palma da mão.

—   Onde, diabo, se mete ele todas as manhãs? — perguntou, em tom irritado.

Muito sabiamente, Tomás fingiu não ter ouvido.

 

 

Dick Alford estava sentado num torniquete, no topo de um morrinho, de onde avistava o distrito de Sussex numa extensão de quinze milhas. Bastava-lhe virar a cabeça para enxergar a herdade e os telhados e cúpulas verdes da Mansão de Fossaway, com os seus vastos relvados e as suas sebes de teixos aparados. Mas nem o trigal, nem os pastos, nem a mansão, nem os jardins lhe inte­ressavam naquele instante. Pois tinha os olhos e a mente fitos na jovem que caminhava a passos rápidos pelo caminho tortuoso que a traria, dali a pouco, à sua presença.

—   Espião! — saudou-o ela, em tom de censura.

Não era tão alta quanto a rapariga inglesa comum, mas a esbeltez a fazia parecer mais alta, e a agilidade dos movimentos supunha uma energia maior do que a sugerida pelo corpo frágil. Delicadamente modelado, o rosto patenteava o requinte sutil da sua classe. Mãos e pés pequenos e belos, a cabeça bem posta, olhos cinzentos e profundos, uma boca vermelha que sorria com faci­lidade, Leslie Gine, ainda que vestisse farrapos teria sido, indisfarçavelmente, uma formosa dama.

Lá estava ela, com o chapeuzinho de amazona meio de través, o traje preto e bonito de montaria suavizado pela gola de linho.

Do seu posto de observação em cima do torniquete, Dick Alford tinha uma haste de capim entre os dentes brancos e obser­vava-a com ar de aprovação.

—   Esteve cavalgando, Leslie?

—   Estive cavalgando, — replicou ela gravemente. E ajun­tou: — um cavalo.

Ele circunvagou os olhos com expressão de inocência.

—   E onde está o venturoso animal? — perguntou.

Ela examinou-o, desconfiada, mas nem um músculo do rosto trigueiro e magro se mexeu.

—   Apeei para apanhar umas flores do campo e o bandido fugiu. Você o viu! — acusou ela.

—   Vi qualquer coisa com jeito de cavalo correndo para Willow House, — confessou ele. — Pensei que a tivesse derrubado.

Ela inclinou a cabeça.

—   Pois só por causa disso você pode ir procurá-lo... Ficarei esperando aqui, — disse a jovem e, quando ele saltou do torni­quete com um gemido, prosseguiu: — Eu pretendia mesmo pedi-lo a você. Assim que o vi, disse entre mim: "Lá está um homem preguiçoso que precisa de exercício!" Afinal de contas, as futuras cunhadas têm privilégios.

Ele estremeceu. E ela talvez notasse a sombra que lhe toldou momentaneamente o rosto, pois estendeu a mão e reteve-o.

—   Deixe, Dick. Um dos cavalariços saberá encontrá-lo. O coisa ruim é tão esfomeado que, a esta hora, deve estar a caminho da cocheira. Não, não me refiro ao cavalariço. Sente-se, quero falar com você.

Num salto, encarapitou-se no torniquete que ele deixara vago.

—   Richard Alford, não me parece que você esteja satisfeito com a perspectiva de ver-me senhora da Casa de Fossaway.

—   Mansão, — corrigiu ele.

—   Não fuja do assunto... Está ou não está?

—   Não vejo a hora, — volveu o rapaz, em tom displicente.

—   Verdade?

Ele tirou do bolso da calça uma cigarreira amolgada de prata, escolheu um cigarro, e acendeu-o.

—   Minha querida Leslie... — principiou, mas ela sacudiu a cabeça. Agora estava séria.

—   Você acha que eu... interferirei nas coisas? Na administração da propriedade... Sei que o pobre Harry seria incapaz de administrar uma chacrinha... na... bem, em todas as espé­cies de coisas...? Pois acho que você se engana.

Ele soprou três anéis de fumaça antes de responder.

—   Eu gostaria que você administrasse a propriedade, — replicou tranqüilamente. — Seria uma bênção para mim. Não, não é isso o que me preocupa. Com o dinheiro que você tem... per­doe-me a brutalidade... a propriedade pouco importa. Um admi­nistrador seria capaz de fazê-lo tão bem quanto qualquer filho segundo!

 

 

Ele falara sem azedume, sem qualquer vestígio de autocomiseração, e ela o ouvira em silêncio. Richard era filho de um segundo casamento, e isso piorara as coisas para ele. Quando o velho Lorde Chelford seguira ao túmulo a mãe de Dick, fora seu o quinhão do filho segundo. A propriedade, o título, o próprio carro que usara como seu, passaram às mãos de seu irmão. Uma propriedade minúscula em Hertfordshire, que rendia duzentas libras por ano, algumas jóias antigas de sua mãe e mil libras em dinheiro era quanto cabia ao filho segundo. E as mil libras nunca tinham sido pagas. Misteriosamente, haviam sumido.

O Sr. Artur Gine se encarregara do inventário. Em quaisquer circunstâncias, Dick se sentia melhor quando não se lembrava das mil libras. Entretanto, fosse por que fosse, estava pensando nelas naquele momento e, como se lhe tivesse adivinhado vagamente os pensamentos e lhe associasse a reserva com a lembrança de seu irmão, Leslie perguntou:

—   Você não gosta de Artur, gosta?

—   Por que pergunta? — volveu ele, genuinamente surpreso. Nunca deixara transparecer a sua aversão ao casquilho advogado.

—   Eu sei, — volveu ela, inclinando a cabeça. — Ele, às vezes, me exaspera e não me admiraria que um homem como você o odiasse.

Dick sorriu.

—   Seja como for, Harry não o odeia, e é ele a pessoa que importa.

Leslie o fitou, balançando, distraída, o chicotinho.

—   Não consigo capacitar-me de que estou prestes a casar... foi uma proposta tão engraçada, Dick, tão formal, tão... irreal! Creio que, se tivesse sido feita de qualquer outra maneira...

E abanou a cabeça.

Dick perguntou a si mesmo, com tal ou qual melancolia, como teria seu irmão feito a proposta. Harry era meio bisonho no jogo do amor; tivera, de uma feita, uma bonita secretária e, numa tarde cálida de junho, Dick interrompera o que equivalia a uma proposta de casamento da arrojada jovem. O desconcertado Harry teria anuído às suas sugestões matrimoniais, não fora o casual apare­cimento de Dick... E a calculista Srta. Wenner deixara a Mansão de Fossaway um tanto ou quanto à pressa. O episódio voltou-lhe à mente.

—   Então, se ele lhe tivesse proposto casamento da maneira convencional, você não o teria aceitado?

—   Não sei, — retrucou a jovem, em tom de dúvida. — Mas foi extravagante e... esquisito. Gosto imensamente de Harry. E muitas vezes me tenho perguntado se ele gostaria de mim se. — Ela não concluiu a sentença.

—   Se você não fosse tão horrivelmente rica? — voltou Dick com um sorriso. — A sua pergunta não é muito lisonjeira para ele.

A moça estendeu os braços e o rapaz ajudou-a a descer, se bem que isso não parecesse necessário, pois era, por via de regra, uma criaturinha muito ágil.

—   Dick, perguntou ela quando ele transpôs o torniquete e ambos se encaminharam, lado a lado, para a estrada, o que é que eu devo fazer?

—   A respeito do quê?

—   A respeito de Harry e de tudo o mais.

Ele não encontrou resposta para isso.

—   Artur deseja muito que eu me case, continuou ela. E, francamente, não sou avessa a esse casamento... ou, pelo menos, não creio que o seja. Julgo que a maioria das moças na minha posição tem os seus casamentos arrumados como se arru­mou o meu e, até há pouco tempo, eu aceitava a idéia como parte do inevitável.

—   E por que mudou de idéia agora? indagou ele de supetão, vendo o rubor inundar o rosto dela.

—   Não sei.

A resposta foi muito breve, quase rude.

E ela, então, viu a expressão nos olhos dele o desejo ardente, infinito, e a total desesperança. E, num lampejo, veio-lhe o conhecimento de si mesma.

Por algum motivo que não conseguiu entender, sentiu-se repentinamente sem fôlego, e quase encontrou dificuldade para falar. Teve a impressão de que as batidas do seu coração deviam ser audíveis e lutou, desesperadamente, para recobrar o equilíbrio. Vívida, diante dos olhos, surgiu-lhe a imagem do noivo, o jovem magro e irritadiço o fraco que possuía tudo o de que precisa o homem, exceto a virilidade. Uma criatura digna de dó, torturada pelos nervos, ora súplice, ora ameaçadora que não se dava conta da impressão que causava à mulher destinada a partilhar da sua vida. E dessa imagem mental, os olhos dela passaram, meca­nicamente, para o homem ao seu lado; calmo, sereno, radiante de força e de confiança em si.

Dez minutos depois, ela regressava a Willow House, pelejando, em seu coração, com um problema que lhe parecia prati­camente insolúvel.

Guiando devagar para casa, Dick Alford divisou a figura alta e mapa do irmão, à espera, na extremidade da alameda dos olmos.

O vento lhe agitava as abas da longa sobrecasaca; quando se , erguia em pé, encurvava-se um pouco e tinha o cacoete de projetar a cabeça para a frente, o que lhe emprestava a aparência de um grande pássaro desajeitado. Ao aproximar-se, Dick percebeu que o rosto dele estava escuro de raiva.

- — Eu o incumbi de muitos encargos, Richard, mas entenda que eu mesmo quero tratar dos meus casos de amor!

O sangue afluiu ao rosto de Dick Alford, mas ele não deu outra demonstração da sua mágoa nem da sua cólera.

—   Não o admitirei... compreendeu? — A voz de Lorde Chelford estridulava de fúria infantil. — Não quero que você inter­fira nos meus assuntos particulares. Você já afastou uma moça de mim, mas agora não me tomará Leslie!

—   Mas eu não estou... — acudiu o irmão, com ímpeto.

—   Está... está! Você não quer que eu me case! Não sou bobo, Dick! Você é o segundo na lista dos herdeiros! Pois eu vou-me casar com Leslie Gine... ponha isso na cabeça! Você não desmanchará o nosso noivado.

—   Mas por que é. que você está dizendo essas coisas horrí­veis? — acudiu Dick. — Livrei-me de Wenner porque ela não era a esposa para você...

—   Você não queria que eu me casasse! Está à espera dos meus sapatos, dos sapatos de um morto! — volveu o irmão mais velho, quase a berrar. — A última coisa que você quer ver no mundo é uma nova Condessa de Chelford. Você sabe disso, você sabe disso!

Dick Alford não respondeu. Deus era testemunha de que seu irmão falava a verdade. Seria para ele deplorável o dia em que Harry Alford trouxesse uma esposa àquele casarão, para compartir do medonho segredo que pairava, como uma nuvem, sobre a Mansão de Fossaway.

 

 

Os olhos azuis de Dick Alford examinaram o lacaio com um sorriso de arrelia, enquanto empurrava para um lado a dilapidada e velha máquina de escrever, reacendia o cachimbo e esticava o corpo.

—   O Abade Negro? Não me diga! Você o viu, Tomás?

—   Não, senhor, eu não o vi. Mas o Sr. Cartwright, o ven­deiro lá na aldeia de Chelford...

E fez uma descrição gráfica do horror, do assombro e da confusão do Sr. Cartwright.

—   Eles telefonaram lá do "Leão Vermelho" para perguntar se Sua Excelência ouvira alguma coisa a respeito. — O próprio Tomás, que não acreditava em nada a não ser em Tomás, estre­meceu. — É a primeira vez que ele foi visto depois de muitos anos, segundo dizem todos, muito embora tenha sido ouvido uivando e gemendo. Ninguém sabe quem pôs fogo na residência do vigário quando se achava de férias, na praia...

—   Chega, Tomás. Quanto a Cartwright, ou estava bêbedo, — atalhou Dick, jovialmente, — ou viu uma sombra.

Através da janela, olhou para o relvado, banhado pelos raios alvacentos da lua cheia.

—   A gente vê coisas ao luar que nunca existiram na terra nem no mar. Suponho que Sua Excelência tenha dito que o Abade Negro não deve ser discutido?

—   Disse, sim, senhor.

—   Então cale a boca! — ordenou Dick.

Mastigando o cachimbo, atravessou a sala e entrou na biblioteca penumbrosa.

Lorde Chelford mexeu-se, constrangido, na poltrona. Depois, estendendo a mão, Abriu uma caixa de ouro e dela tirou um cigarro.

—   O meu cachimbo contra os seus fedidos. Vale cem libras! — exclamou Dick, com um sorriso prazenteiro. — Cigarros ainda tolero, mas cigarros perfumados...

—   Se não gosta deles, Dick, pode sair, — resmoneou, agas­tado, Sua Excelência. E, logo, à sua maneira brusca: — Você já viu esse recorte de jornal?

Tirou o pedaço de papel de sob o peso de cristal e Dick leu-o por alto.

—   Estamos ficando famosos, Harry, — disse ele, — mas não há nada sobre mim, o que não é gentil.

—   Não seja idiota. Como é que isso foi parar nos jornais?

—   Como é que as coisas vão parar nos jornais? — pergun­tou Dick, preguiçosamente. — A nossa assombração é quase tão útil quanto um agente de publicidade.

Harry Chelford afastou-se com um gesto de profundo cansaço, tocou com os dedos o manuscrito que estava ao alcance de sua mão e olhou do irmão para a porta. Era um gesto de despe­dida e Dick levantou-se.

—   Você não acha que já trabalhou demais por esta noite? — indagou, solícito. — Parece completamente exausto.

—   Nunca me senti melhor em minha vida, — redarguiu o outro, enfático.

Dick virou a cabeça para ler a página impressa que seu irmão mais velho estivera copiando, e viu de pronto que o seu esforço fora baldado; o livro era escrito em alemão antigo, e as habili­dades lingüísticas de Dick não iam além de um relativo domínio do francês dos restaurantes. Lorde Chelford depôs o livro com um suspiro e voltou a sentar-se na poltrona almofadada.

—   Você, com certeza, me considera um idiota que está perdendo tempo com isto, — disse ele, erguendo a mão para as estantes enfileiradas, — quando poderia estar-me divertindo a valer com Leslie?

Dick assentiu com a cabeça.

—   Acho que você poderia empregar-se mais proveitosamente fora de casa. Com efeito, para um futuro nubente, é o mais pacato que já conheci.

Havia superioridade no sorriso de Harry Chelford.

—   Felizmente, Leslie já sabe que vai desposar um rato de biblioteca e não um atleta, disse ele. Ato contínuo, erguendo-se, acercou-se da poltrona em que Dick se sentara e deixou cair a mão sobre o ombro dele. Que me diria você se eu lhe contasse que estou a pique de descobrir o verdadeiro tesouro de Chelford?

Dick sabia exatamente o que diria, mas replicou, diplomaticamente:

—   Eu diria que você está quase descobrindo a pedra filosofal, respondeu ele.

Mas o irmão falava sério. Pôs-se a andar de um lado para outro da biblioteca, as mãos nas costas, o queixo no peito.

—   Eu esperava que você dissesse uma coisa dessas. Aliás, ficaria muito admirado se não o fizesse. Mas o tesouro de Chelford existe, Dick, e, em algum lugar, com ele, está o maior tesouro de todos!

O irmão ouvia, paciente. Já sabia de cor a história das mil barras de ouro puro, cada uma das quais pesava trinta e cinco libras. A lenda do tesouro de Chelford era inseparável dos domí­nios de Chelford.

Harry caminhou a passos rápidos para a sua mesa, abriu uma gaveta e dela retirou um livrinho de capa de pergaminho. As pági­nas, amarelecidas pela idade, estavam cobertas de uma escrita que desbotara e assumira um tom verde pálido.

—   Ouça, disse ele, e pôs-se a ler.

No décimo quinto dia do mês, que era o dia da festa de São Tiago, chegou Sir Walter Hythe Kt. ds seu cruzeiro pelos mares da Espanha, para cujo custeio levantei primeiro três mil e oito­centas libras e oito mil libras de Bellitti o Lombardo, e Sir Walter Hythe trouxe consigo, em dez carroças, mil lingotes de ouro, pesando, cada um, trinta e cinco libras, que ele tirara dos dois navios espanhóis "Esperanza" e "Escurial", e os citados lingotes ele os colocará em lugar seguro se o tempo estiver seco e a seca continuar, se bem as chuvas estejam próximas, a julgar pelos presságios, julgando prudente não dar parte do caso a Lorde Burleigh, à conta de Sua Majestade a Rainha e da sua cupidez. Ele trouxe também o frasco dé cristal da Água da Vida, que foi dado a Don Cortes pelo sacerdote do povo asteca, uma gota da qual deixada cair sobre a língua ressuscitará os próprios mortos, segundo o jurou Fra Pedro de Sevilha. Isto esconderei com sumo cuidado no sítio secreto em que o ouro será guardado. A Sir Walter Hythe Kt. outorguei permissão para ficar com cem barras do mesmo peso, o que ele fez, agradecendo-me civilmente e zar­pando de Chichester em seu navio o "Bom Pai", navio esse que soçobrou nas costas de Kent, tendo perecido no naufrágio Sir Walter Hythe, o comandante do seu navio e toda a sua companhia. Tal foi o seu terrível infortúnio. Quanto a mim, estando em algum perigo à conta da parte que representei no promover o bem-estar da minha verdadeira e soberana senhora, Mary...

Lorde Chelford ergueu os olhos e encontrou o olhar decidido do irmão.

—   O escrito termina aqui, — disse ele. — Tenho a certeza de que não foi interrompido pela chegada dos soldados de Elizabeth a fim de prendê-lo por haver participado da conspiração para por Mary no trono. Ele deve ter tido tempo para esconder o tesouro. Onde está o frasco de cristal?

—   Pergunte antes onde está o ouro, — sobreveio o prático Dick. — Se bem conheço a Rainha Elizabeth, ela ficou com ele! Ninguém jamais o encontrou. .. há quatrocentos anos os nossos respeitáveis antepassados têm procurado esse ouro...

Lorde Chelford fez um gesto colérico.

—   Ouro... ouro... ouro! Você não pensa em outra coisa! Maldito seja o ouro! Encontre-o e guarde-o. É o frasco que eu quero! — A voz tornou-se-lhe um murmúrio, o rosto se lhe umedeceu de repente. — Dick, eu tenho medo da morte! Santo Deus! Você não sabe quanto! O medo dela me persegue dia e noite... Fico aqui sentado, contando as horas, perguntando a mim mesmo em qual delas o meu espírito se apartará de mim!

Dick ouvia, e os seus olhos não deixavam o rosto do irmão. Aquele seria o marido de Leslie. A idéia fê-lo estremecer.

 

 

Se o Honorável Richard Fallington Alford tivesse sido considerado pelos compiladores de tais volumes suficientemente impor­tante para ter a sua biografia incluída numa obra popular de con­sulta, o trabalho da sua vida, o seu passatempo favorito e a sua recreação seriam definidos como "tomar conta dos domínios de Chelford". Diziam os seus intendentes que ele conhecia cada haste de relva; os seus arrendatários juravam-no capaz de avaliar uma safra pendente até o último penny.Conhecia a Mansão de Fossaway, a sua força e a sua fraqueza, melhor do que o arquiteto que a, levantara — era capaz de indicar os pontos em que os alicerces haviam sido mal feitos pelos construtores elisabetanos. Sabia dizer onde se tinham erguido os muros do antigo castelo que Ricardo de Iorque queimara e arrasara, decapitando o quarto conde pela sua aleivosia, debaixo do grande.arco, um de cujos pilares em ruínas ainda mostrava a cabeça cinzenta e escalavrada acima das rosas que agora o cercavam. Consagrava às amplas terras de Chelford um amor leal e apaixonado, que qualquer amante invejaria.

Ele se achava a caminho da herdade, e o motivo que ali o levava era prosaico. Uma vaca morrera durante a noite e o retireiro o informara de que descobrira sintomas de febre aftosa.

As ruínas familiares da abadia avultavam pouco adiante; o arco partido ao meio, como enorme ponto de interrogação, pren­deu-lhe a atenção e voltou a suscitar o tão discutido problema da restauração. Algum dia, quando chovesse na horta de Chelford; quando ficasse provada a existência daquele veio de carvão; ou quando Harry casasse com mulher rica. Este último era um pen­samento desagradável. Apertou os lábios num esgar de repugnância.

Sobresteve, de repente. Uma figura caminhava por entre as ruínas — uma mulher. Estava de costas para ele e, manifestamente, não se dera conta da sua presença. Qualquer coisa lhe pareceu familiar — Dick afastou-se do caminho e partiu na sua direção.

Era evidente que ela não o ouvira pois, quando o rapaz lhe falou, estremeceu, despediu um gritinho e voltou-se para encará-lo, assustada.

—   Bom dia, Srta. Wenner, — disse ele, polido. — Pelo visto, a senhorita madrugou.

Não lhe foi preciso perguntar a si mesmo se a moça já lhe perdoara a penosíssima entrevista que precedera o seu afastamento da Mansão de Fossaway. Ao reconhecê-lo, os seus olhos fuzilaram de ódio.

—   Bom dia, Sr. Alford, — respondeu ela, com idêntica polidez. — Estou hospedada na aldeia e deu-me vontade de vir aqui para rever o lugar.

Ele concordou gravemente com a cabeça.

—   A senhorita teve a mesma vontade ontem, — disse, — e tentou avistar-se com meu irmão.

—   E daí? — voltou ela, em tom de desafio.

Já lhe dei a entender, Srta. Wenner, que todos seríamos muito mais felizes se a senhorita nunca mais transpusesse a portaria, — retrucou ele, com calma. — Detesto precisar dizer isso a uma mulher, mas a senhorita deveria ser a primeira a reconhecer a posição sumamente desagradável em que me coloca. Cuidei que tivesse compreendido.

—   O senhor estragou e arruinou a minha vida, — volveu a formosa criatura de cabelinho na venta, — com a sua interferência, depois de todo o meu trabalho! Depois de todas elas... refiro-me às horas que passei com Sua Excelência trabalhando no Tesouro, e ele me disse que fui a mais valiosa secretária que ele já teve...

Dick deixou-a falar até romper numa crise de soluços incoerentes.

—   Imagino que o senhor queira que eu me retire agora, disse ela afinal, engolindo em seco, e ele fez que sim com a cabeça.

—   Irei consigo até o Corte de Fontwell pelo caminho mais curto para a aldeia, — ofereceu-se o moço. Mas a Srta. Wenner estava tão absorta na sua desgraça manufaturada que nem sequer se doeu do oferecimento.

Que estaria fazendo a jovem tão cedinho nas ruínas da abadia? Ele sabia que não adiantaria perguntar-lhe.

Ao passarem pelo íngreme caminho que levava à estrada, ela falou com maldade na voz, sem olhar para o companheiro:

—   Eu não me casaria com ele nem por um milhão de libras! Ele vai-se casar com Leslie, não vai? Pois que seja muito feliz!

—   Transmitirei a ele o seu bondoso recado, volveu Dick com ironia; mas a resposta foi imprudente, porque a deixou possessa.

—   Pois ele que tome cuidado para não a perder, é só o que digo! berrou a jovem. Eu sei! Toda a gente sabe! O senhor também está querendo o dinheiro dela... o filho segundo está apaixonado por ela... Bonita perspectiva para Harry Alford!

Ele deixou-se ficar, balançando as pernas, sentado no alto da ribanceira, observando-a, até perdê-la de vista.

Toda a gente sabia que ele amava Leslie Gine! E ele mesmo só viera a sabê-lo naquele momento!

 

 

Em toda a cidade de Londres não haveria talvez escritório mais elegante do que aquele em que passava as suas horas de tranquilo expediente o Sr. Artur Gine. Era uma sala ampla, apai- nelada de madeira branca, com mísulas róseas folheadas de prata nas paredes. Cobria o soalho grosso tapete cor-de-rosa em que os pés da gente afundavam como afundam num velho gramado; e o mobiliário que guarnecia a sala figurava entre os mais finos e mais caros. Os visitantes e clientes que tinham negócios com o elegante advogado eram avisados, à entrada, de que não deviam fumar em sua augusta presença.

O Sr. Gine raras vezes comparecia aos tribunais. O seu principal funcionário, homem rijo e grisalho de cinqüenta anos, que, no entender dos colegas do Sr. Gine, era o cérebro do negócio, redigia quase todos os arrazoados, entrevistava a maioria dos clien­tes, deixando ao patrão apenas os mais importantes.

O Sr. Gine passou os olhos pelas cartas que haviam sido abertas para a sua inspeção e pô-las de lado. Apertou por duas vezes o botão de ônix de uma companhia, segundos depois, entrava na sala o funcionário de rosto duro, sobraçando uma pasta de papéis.

—   Feche a porta, Gilder. Que é isso?

Gilder atirou os papéis sobre a mesa envernizada.

—   Intimações, quase tudo, — retrucou, lacônico.

—   Para mim?

Gilder fez um gesto afirmativo com a cabeça e Artur Gine folheou, displicente, os documentos.

—   Teremos dores de cabeça um dia se algumas destas intimações forem a juízo, — observou Gilder. — Até agora tenho conseguido mantê-las fora dos tribunais, mas há aí pelo menos três que precisam ser pagas. Ainda não tive ocasião de conversar com você depois que voltei das férias. Perdeu muito em Goodwood?

—   Oito ou nove mil, — disse Artur Gine, indiferente. — Pode ter sido mais e pode ter sido menos.

—   Isso quer dizer que não sabe porque não pagou, — voltou Gilder com rudeza.

—   Paguei algumas... as mais urgentes, — afirmou o outro. — E que é isto?

Tornou a percorrer as intimações com o dedo manicurado a primor.

—   Uma delas é muito séria, — explicou Gilder, separando-a das restantes. — Os depositários dos bens de Wellman estão lhe cobrando três mil libras... o empréstimo que Wellman lhe fez.

—   E você não pode dar um jeito neles?

Gilder abanou a cabeça.

—   Você sabe que não posso dar jeito em depositários. E isso ficará muito feio se chegar ao tribunal.

Artur Gine deu de ombros.

—   Um empréstimo não é feio...

—   Você era advogado de Wellman, — atalhou Gilder. — E Wellman era incapaz de gerir os seus negócios. Repito que vai ficar feio, e a Ordem dos Advogados começará a fazer perguntas. Você terá de arrumar o dinheiro para resolver o assunto fora do tribunal.

—   Que são as outras? — perguntou Artur Gine, acasmurrado.

—   Há uma de mil e duzentas libras, correspondente à mobília fornecida a Willow House, e outra do vendedor de Willow House, exigindo a parte do preço da venda que ainda não foi paga.

Artur Gine recostou-se na poltrona, tirou do bolso um palito de ouro e pôs-se a mastigá-lo.

—   Qual é o total?

—   Umas seis mil libras, — respondeu Gilder, juntando as intimações. — Você não pode arranjá-las?

O patrão sacudiu negativamente, a cabeça.

—   Uma promissória?

—   E quem é que vai avalizá-la? — perguntou o advogado, erguendo os olhos.

Gilder coçou o queixo.

—   Que tal Lorde Chelford? — perguntou.

 

 

Artur Gine riu-se.

—   E que imagina você que me diria Chelford se eu lhe apresentasse uma proposta dessa natureza? Você parece esquecer-se, meu caro, de que, para Chelford, sou o irmão de uma jovem que, ao completar vinte e cinco anos, entrará na posse de pouco menos de um milhão de libras. E não sou apenas o irmão, sou também o depositário do dinheiro dela. De mais a mais, estou adminis­trando os bens da mãe dele. Que pensaria ele? Chelford é um tolo, mas não é tão tolo assim, e eu gostaria de recordar-lhe que todos os negócios dele estão nas mãos do Filho Segundo.

—   Você se refere a Alford. Por que lhe chama assim?

—   Porque ele sempre foi conhecido como Filho Segundo, desde criança, — tornou o outro, impaciente. — É um demônio astuto, não se esqueça, Gilder. Não sei se desconfia de que sou um impostor, e de que a fortuna de Leslie é um mito, mas mo­mentos houve em que ele me fez algumas perguntas sumamente embaraçosas.

—   A fortuna é um mito? — inquiriu Gilder, e o outro olhou-o com ar sonso.

—   Você devia saber, meu amigo, — respondeu. — Há oito anos que temos vivido dela! Os crupiês de Monte Carlo recolheram ao seu tesouro boa parte dessa fortuna... e vários bookmakers que eu poderia citar construíram com ela belos palacetes. Mito? Não era mito há dez anos. Eram duzentas mil libras bem contadinhas. Mas hoje...

Ele abriu os braços e considerou as intimações com um sorriso cerebrino.

—   O que é que você espera conseguir de Chelford... ele não tem dinheiro? — indagou Gilder.

O Sr. Gine riu-se sem abrir a boca.

—   Você pode estar certo de que, antes de dar-me a despesa e o trabalho de comprar, ou quase, uma casa perto dos domínios de Chelford, e antes de preocupar-me em colocar Leslie e ele em contato, tomei a precaução elementar de calcular-lhe a posição. Ele é relativamente pobre, porque o irmão não quer vender nenhuma das propriedades. Tem a obsessão da família... a divisa deles é "Agüenta Firme". Harry Chelford vale um quarto de milhão... fora o tesouro enterrado!

Riram-se ambos.

—   Você teve sorte até certo ponto, — acudiu Gilder, em tom sério. — Foi sorte sua herdar o cargo de advogado dele...

Nesse momento, entrou um funcionário com algumas cartas para assinar. Depois que ele se foi, Gilder perguntou:

—   Sua irmã ainda pensa que vai herdar alguma coisa?

—   Ela tem essa ilusão, — retorquiu o outro, friamente. — É claro que pensa! Você não imagina, por acaso, que Leslie se prestaria a essa espécie de extorsão, imagina?

Tirou uma caneta de uma bandeja de prata, que se achava à sua frente, mergulhou-a no tinteiro e, puxando para junto de si um pedaço de papel, rabiscou uns números.

—   Seis mil libras é muito dinheiro, — disse, por fim. — Perdi três vezes essa quantia quando Black Satin perdeu por cabeça no Grande Prêmio de Drayton. A única coisa a fazer é apressar o casamento.

—   E que me diz da propriedade de Yorkshire? — sugeriu o gerente da firma.

Artur Gine fez uma careta.

—   Mandei um homem comprá-la. Eu poderia ter tido um lucro de vinte mil libras na compra. Ali há carvão à beça; isso eu já averigüei. Mas o maldito Filho Segundo me atrapalhou o negócio!

Seguiu-se longo silêncio.

—   O que é que você vai fazer? — inquiriu Gilder.

—   Não sei. Não consigo pensar em mais nada. — Artur Gine deixou cair a caneta. — Esta situação é uma terrível tortura para um homem com a minha sensibilidade. Você não sugere nada?

—   Dê-me cinco minutos, — pediu Gilder, e saiu.

Enquanto Gilder se encaminhava para a sua sala, um empregado entregou-lhe uma carta. Era dirigida a ele pessoalmente e escrita por mão pouco afeita a escrever. Fechada a porta do seu escritório particular, abriu o envelope.

A carta principiava, sem mais preâmbulos:

Sua Excelência ainda está trabalhando no Tesouro. Recebeu um livro velho mandado da Alemanha na última terça-feira, escrito por um alemão que esteve neste país há centenas de anos. Não consegui ler o título por causa das letras engraçadas, que parecem inglês antigo. Sua Excelência recebeu também, mandado por um livreiro de Londres, um plano da Mansão de Fossaway. O irmão de Sua Excelência, o Sr. Alford, vendeu a Quinta Vermelha ao Sr. Leonard por 3.500 libras (nesse ponto o Sr. Gilder sorriu). A Srta. Gine veio tomar chá ontem com Sua Excelência e o Sr. Alford e, depois do chá, a Srta. Gine e Sua Excelência foram dar um passeio no parque. Há por aí um falatório, segundo o qual o Abade Negro teria sido visto perto da velha abadia. Foi visto por Tomás Elwin, o filho abobado de Elwin, o retireiro de Sua Excelência, mas ninguém dá atenção a isso. Ele foi visto agora pelo Sr. Cartwright, o vendeiro. Sua Excelência recebeu uma oferta pela sua propriedade de Yorkshire, mas ouvi o Sr. Alford aconselhá-lo a não vender, pois tem a certeza de que ali existe carvão.

Gilder meneou a cabeça, compreendendo como o plano do seu patrão dera em água de barreia.

... Quando eu estava levando chá para a biblioteca, ouvi Sua Excelência dizer que desejava que o casamento se realizasse em outubro, mas a Srta. Gine disse que gostaria que fosse depois do Natal. Sua Excelência disse que não tinha importância porque ele estava mesmo muito ocupado. O Sr. Alford disse que achava que o contrato de casamento devia ser redigido por Sampson & Howard, que eram os antigos advogados de Lorde Chelford, mas Sua Excelência respondeu que o contrato estaria melhor nas mãos do Sr. Gine. Não ouvi mais porque o Sr. Alford me mandou embora da sala. A Srta. Wenner, que costumava ser secretária de Sua Excelência, chegou ontem de Londres, mas o Sr. Alford deu ordens para não a deixar entrar. Sua Excelência não a viu...

O espia do Sr. Fabrian Gilder dava outros informes sobre assuntos secundários, menos interessantes. O destinatário releu a carta, enfiou-a no bolso e manteve-se atarefado à sua mesa durante cinco minutos.

Voltou para encontrar o patrão inclinado sobre a escrivaninha, com a cabeça entre as mãos, e colocou um pedaço de papel à sua frente.

—   Que é isso? — perguntou Gine, assustado.

—   Uma promissória, pagável em seis meses, de sete mil libras. Acrescentei mil para dar sorte, — respondeu Gilder friamente.

Gine leu o documento. Era uma nota promissória, precisava apenas da sua assinatura e da de Harry, Conde de Chelford, para poder converter-se em metal sonante.

—   Não me atrevo a fazê-lo... simplesmente não me atrevo a fazê-lo!

—   Mas você não precisa dizer-lhe que se trata de uma promissória — volveu Gilder. — Pode chamá-lo de parte, contar-lhe uma história... você tem a imaginação fértil... Sugiro, porém, que lhe diga que precisa da assinatura dele para liberar algumas propriedades de sua irmã, e depois que o nome dele estiver nas costas do título.

Artur Gine ergueu rapidamente a vista. Teria sido, porven­tura, mera coincidência a sugestão daquele estratagema? Não havia nada no rosto do outro que desse a entender o contrário.

—   E quando se vencer? — perguntou, irresoluto, enquanto virava e revirava o documento nas mãos,

—   Daqui a seis meses ele estará casado e, se as coisas não tiverem melhorado para você, seu cunhado terá de pagar a pro­missória ou abafar o caso.

Os olhos dos dois homens se encontraram.

—   Você está à beira da ruína, meu jovem amigo, — instou Gilder, — e confesso que estou preocupado. Se você afundar, lá se vai o meu ganha-pão.

O quanto isso era verdadeiro, só o soube Artur num dia muito amargo.

—   Você se saiu melhor do que eu, — resmungou ele, escrevendo o nome de um banco no rosto do título.

—   Acontece que eu gasto menos do que você e, quando ganho algum, sei guardá-lo.

—   Você mesmo poderia levantar essa importância, — voltou o patrão, num tímida tentativa de piada.

—   Poderia, — anuiu Gilder em tom severo, — mas, como eu já disse, sei zelar do que é meu, e emprestar dinheiro a você não é bem a minha idéia de um bom investimento.

Ele saíra da sala mas, logo depois, voltou e, fechando a porta com cuidado atrás de si, perguntou:

—   Você conhece uma tal Srta. Wenner?

O Sr. Gine franziu o cenho.

—   Conheço. O que é que ela quer?

—   Ela diz que precisa vê-lo sobre um assunto urgente e pessoal. É uma de suas... amigas?

Artur sacudiu a cabeça.

—   N... não... Fui apresentado a ela. Era secretária de Chelford. Você não pode descobrir o que ela quer?

—   Tentei, mas parece que o negócio é com você mesmo. Quer vê-la? Não será difícil despistá-la.

Artur refletiu por um momento. Ela talvez tivesse alguma coisa importante para dizer-lhe.

—   Faça-a entrar, — ordenou.

Minutos depois, Mary Wenner entrava na sala e cumprimentava-o com um gesto familiar.

—   Bem, minha querida, isso é o que chamo um prazer inesperado. Cada vez que a vejo, você me parece mais bonita.

Ela aceitou o cumprimento como coisa que lhe era devida e sentou-se na borda da mesa.

—   Estive em Fossaway, Artur, — disse ela.

—   Tolinha, sorriu ele. Eu supunha que aquele caso estivesse liquidado. Você precisa ser boazinha, Mary. Chelford vai casar com minha irmã.

—   Que maravilha! Pois isso não me surpreende. Eu vi você trabalhando quando estive em Fossaway.

Ela escorregou de cima da mesa e colocou as mãos nos ombros

dele.

—   Artur, estou cansada de bater à máquina! E sinto uma vontade danada de vingar-me daquele cachorrão sem entranhas do Dick Alford. Fui despedida uma vez por haver pedido um homem em casamento... Pois faço questão de ter uma segunda oportunidade. Temos sido bons amigos, Artur.

Alarmado, ele murmurou qualquer coisa.

—   Ouça... não rejeite um bom negócio. Case comigo e eu lhe trarei um dote muito maior que o que sua irmã levará a Harry Alford.

Ele encarou com ela.

—   Você? Um dote? tartamudeou.

Ela acenou lentamente com a cabeça.

—   Case comigo, que eu o levarei a um lugar onde você poderá por as mãos em quinze toneladas de ouro espanhol... o tesouro de Chelford! Dois milhões e meio de libras!

 

 

Quinze toneladas de ouro! Dois milhões e meio de libras esterlinas!

Artur Gine fitou, incrédulo, a jovem. Mas ela não estava falando por falar; via-se-lhe claramente pelo rosto corado e pelos olhos brilhantes que acreditava no que dizia. Por um momento, ele não pôde falar.

—   Quinze toneladas de ouro? Artur franzia o cenho e sorria ao mesmo tempo. Você ficou louca, Mary?

—   Louca, eu? A jovem sacudiu energicamente a cabeça. Sim, admito que você pense assim, mas não pensará por muito tempo! Estou-lhe dizendo que encontrei o tesouro de Chelford.

O advogado recostou-se pesadamente na poltrona, os olhos. pasmados ainda fitos nos dela, incapaz de dizer o que quer que fosse.

—   Tolice! conseguiu murmurar, afinal. Não existe nenhum tesouro de Chelford! Convivendo tanto tempo com Harry Alford, você deve ter ficado tão doida quanto ele!

Ela encaminhou-se lentamente para a escrivaninha e, com as palmas das mãos sobre o ressalto da mesa, inclinou-se para ele.

—   É o que você pensa, não é? — principiou com voz firme.

—   Fui secretária de Lorde Chelford por três anos, e é verdade que ele me impingia de manhã à noite essa história do tesouro. A vista de um livro de letras pretas até hoje ainda me faz mal, e os planos da Mansão de Fossaway que estudei... bem, não gosto nem de pensar neles! Vivi com esse tesouro durante três anos, Artur, e havia momentos em que sentia vontade de gritar quando se falava nele. Fiquei de tal jeito que cheguei até a gostar de Dick Alford só porque nunca me falava sobre isso. Depois, um belo dia, chegou um pacote de planos de Londres... Harry dera ordens a um velho livreiro que lhe mandasse tudo o que encontrasse a respeito de Chelfordbury ou da Mansão de Fossaway. Harry fora à cidade naquela manhã e, como eu não tinha outra coisa que fazer, comecei a examinar as velhas folhas empoeiradas para arrumá-las em ordem alfabética. E na terceira folha encontrei uma coisa que me abriu os olhos.

—   O que foi? — perguntou Artur, despreocupado.

Ela olhou para ele com um sorriso calmo.

—   Muita coisa terá de acontecer antes que eu lhe conte isso.

—   disse ela. — Artur, se eu lhe der esse dinheiro, ou reparti-lo com você, casará comigo?

—   Se você pudesse colocar ao meu alcance um milhão, ou meio milhão, — respondeu ele, devagar, — eu me casaria com você nem que fosse a mulher mais feia da terra, quanto mais sendo o mais saudável, o mais bonito dos anjinhos...!

—   Deixe essas coisas para depois, — atalhou ela, prática.

Abriu a bolsa e tirou dela um papel, que ele observou fascinado. Mas se esperava ver à sua frente, preto no branco, o tesouro de Chelford, Artur Gine ficaria decepcionado.

—   Não entendo muito de advocacia, — disse Mary, alisando o pedaço de papel e colocando-o sobre a mesa, — mas acho que isto obriga dos dois lados.

Ele apanhou o papel com ar desapontado e leu-o:

Em consideração por receber a metade do tesouro de Chelford, eu, Artur Gine, de Willow House, Chelfordbury, Sussex, concordo em unir-me com Mary Agnes Wenner pelos sagrados laços do matrimônio, um mês depois de ter sido o tesouro achado e divi­dido.

—   Isso está em ordem? — perguntou ela, observando-lhe o rosto.

Ele depôs o papel sobre a mesa.

—   Minha querida menina... — principiou, no mais suave dos seus tons.

—   Ouça, Artur, — sobreveio a rapariga, voltando a encarapitar-se na mesa. — Este é o momento para dizer "sim" e "não", "farei" e "não farei". Não estou apaixonada por você, e você não está apaixonado por mim. Mas quero um lar e uma posição. Eu talvez não seja uma dama, mas sei me portar como tal, e já vivi o tempo suficiente com gente cheia de nós pelas costas para não dar cincadas. É sim ou não?

Artur voltou a olhar para o papel.

—   Não lhe parece, — disse ele, — que o tesouro de Chelford não é seu nem meu para podermos dividi-lo? Que ele pertence a Lorde Chelford, aos seus herdeiros e aos seus sucessores?

—   É tesouro achado, — disse ela, surpreendentemente. — Conheço as leis do país, porque conversei com Harry sobre esse assunto uma porção de vezes. Tesouro que se encontra escondido, depois de centenas de anos, tem de ser dividido entre o Estado e a pessoa que o achar.

Ele abanou a cabeça com um sorriso.

—   A nossa Mary é advogada! — disse em tom galhofeiro, — Engana-se, minha querida, Isso é só quando não se encontra o dono do dinheiro. No caso presente, não há dúvida nenhuma de que o tesouro pertenceria a Chelford.

Ele viu a consternação estampar-se no rosto dela e prosseguiu:

—   Não creio que isso seja um grande inconveniente para nós, — ajuntou, fitando nos dela os seus olhos. — Não se pode perder o que nunca se teve, não é mesmo?

A Srta. Wenner despediu um suspiro profundo de alívio.

—   Imagino que seja de Harry, naturalmente, mas depois do jeito que ele me tratou e de tudo o que fiz por ele...

—   Claro, claro, — tornou Artur, apaziguante. — Não precisamos preocupar-nos com Harry. A única coisa que importa é a seguinte: você achou mesmo o tesouro?

Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça.

—   Você o viu?

—   Não, — hesitou Mary. — Não vi. Não tive tempo. Mas vi as caixas através das grades. A porta estava fechada, e fiquei tão excitada que precisei sair para andar um pouco. Nisso, Dick Alford me avistou.

Artur sentia-se perplexo. Conhecia a jovem; tinham-se dado muito bem no tempo em que ela fora secretária de Chelford, quando lhe prestara bons serviços.

—   Bem, vamos então ao que interessa, — sobreveio ele, bruscamente. — Onde e quando você viu esse tesouro?

—   Eu lhe direi quando. Foi há dois dias, — retrucou a jovem, para surpresa dele, que supunha que ela se reportasse ao tempo em que morava na Mansão de Fossaway.

—   Há dois dias?

—   Há dois dias, — confirmou ela. — Quanto ao lugar, há um questão que precisa ficar esclarecida antes de chegarmos a esse ponto, Artur. Você vai assinar o acordo?

Ele tornou a olhar para o papel. A sua experiência jurídica, os seus instintos naturais contrários à aposição do seu nome a qualquer documento capaz de comprometê-lo, levavam-no a con­temporizar.

—   É sim ou não, — disse ela, como se lhe tivesse lido a mente. — Não estou disposta a bancar a boba com você por aí, a não ser que o veja disposto a agir. Levarei o caso a Harry e, se eu o colocar de posse desse dinheiro, talvez ele mesmo case comigo.

E, vendo que ele não se mexia, pegou o papel, dobrou-o com determinação e tornou a enfiá-lo na bolsa.

—   Que pressa é essa? — acudiu Artur, alarmado. — Mary, você está maluca se espera que eu tome uma decisão importante assim sem haver refletido maduramente no caso. Não compreende o que está-me pedindo para fazer? Está-me propondo um roubo puro e simples e quer que eu me torne seu cúmplice. Afinal de contas... — interrompeu-se, encolhendo os ombros.

—   Se a consciência o atormenta, — volveu ela, — deixemos as coisas neste pé. Não sou da espécie de moça que se atira aos braços de qualquer homem. Levarei o caso a Harry e verei se a consciência dele está ocupada.

Voltou-se para sair mas, antes que chegasse à porta, ele a deteve.

—   Não seja boba e não seja desarrazoada. — O advogado estava visivelmente agitado. — É uma coisa muito grande que você está pedindo...

—   E é uma coisa muito grande que estou dando, — tornou ela, impaciente. — Dois milhões e meio de libras. Não há nada mesquinho nisso.

Ele travou-lhe o braço e fê-la voltar.

—   Sente-se e não seja tola. Eu já lhe disse que me casarei com você amanhã, e digo mais: nunca houve momento em que o dinheiro me fosse mais oportuno do que este.

—   Você assinará aquela nota?

Ele releu-a numa volta de mão, assegurando-se mentalmente de que não assumia obrigação alguma se o tesouro não se mate­rializasse, tomou de uma caneta, fez uma pequena emenda, en­quanto ela o observava desconfiada, e assinou, com um floreio.

—   O que foi que você pôs no papel? — indagou a moça.

—   Uma saída para Artur Gine, — replicou ele, com um sorriso cerebrino. — Reza agora o documento: "Em considera­ção por receber, por conta de meu cliente Lorde Chelford, etc., etc."

A princípio, ela não compreendeu. Logo, porém, um lento sorriso lhe aclarou o rosto.

—   Entendo. Isso quer dizer que, se alguma coisa acon­tecer, você estará agindo em nome dele, e não no seu. Artur, há momentos em que o julgo inteligente!

—   Eu lhe direi o quanto sou inteligente quando tiver nas mãos a primeira barra do tesouro de Chelford. E você saberá o quanto é inteligente depois que eu tiver empregado a última. Diga-me agora: onde está esse ouro?

Ela considerou-o por um segundo e, a seguir, abaixando a voz:

—   Nos subterrâneos da Abadia de Chelford.

Por um segundo ninguém falou. Logo:

—   O senhor quer receber sua irmã, Sr. Gine? Ela acaba de chegar.

Artur Gine girou sobre si mesmo, com uma imprecação nos lábios. Gilder entrara silenciosamente na sala, os olhos inescru­táveis parados no patrão. Nenhum músculo do seu rosto indicava se ele ouvira ou não as últimas palavras.

 

 

A resolução de Leslie Gine de ir à cidade naquela manhã foi obra de um súbito impulso. O dia era todo seu e poderia fazer dele o que bem entendesse. Por uma razão qualquer, a idéia de almoçar sozinha não lhe agradou. Acudiu-lhe a lembrança maluca de ir à Mansão de Fossaway, mas lembrou-se de que aquela quarta-feira era o dia inteiramente consagrado por Dick Alford às visitas aos seus arrendatários. E não tentou sequer explicar a si mesma por que a perspectiva de almoçar tête-à-tête com o noivo era ainda mais desagradável que a de almoçar sozinha.

A caminho da estação, cuidou ver uma forma familiar atravessando o campo na direção da estrada, um quarto de milha mais adiante, e o coração entrou a bater-lhe mais depressa sem nenhum motivo conhecido. O alto barranco do corte por onde passava a estrada bloqueou-lhe a visão mas, quando emergiu e desceu a íngreme ladeira que conduzia à estrada da aldeia, conhe­ceu que não se enganara, e freou o carro no momento em que Dic Alford abria uma porteira.

Ele cortejou-a com um gesto e um sorriso e, para sua consternação, teria passado adiante se ela não o chamasse.

—   Você estava nervoso e enfezado hoje cedo, — disse ela e, para surpresa sua, ele o reconheceu, se bem a jovem não tivesse notado em suas maneiras nada que justificasse a observação.

—   Estou, de fato, aborrecido. Se há uma coisa que não quero ver são as nossas boas quintas transformadas em casas de campo dos fidalgos da cidade! Vendi a Quinta Vermelha ao Sr. Leonard na semana passada, com a impressão de que o velho... — ia dizer uma palavrão, mas conteve-se a tempo — cavalheiro tencionava ampliar a sua propriedade, muito embora eu não ati­nasse com o motivo do seu desejo de comprar a Quinta Vermelha, que são as terras mais fracas da redondeza. Pois ele acaba de revendê-la a um sujeito qualquer de Londres... se bem o com­prador não saiba que a venda não terá valor sem a minha assi­natura.

—   Um estranho? — inquiriu ela.

—   É um cara que esteve morando aqui durante o verão. Tem um chalé nos arredores.

—   No Ribeirão dos Corvos? — voltou ela, surpresa.

—   Esse mesmo. Nunca o vi. Mas supus que só pretendesse demorar-se alguns meses. Agora vejo que o miserável comprou a Quinta Vermelha e tenciona construir uma casa de estuque e janelas salientes! E garanto que mandará cavar um lago artificial, plantará um roseiral e transformará a terra produtiva de Deus numa estufa de flores desenxabidas!

—   E por que não? — perguntou Leslie, e Dick olhou para ela. — Afinal de contas, você mesmo disse que aquelas eram as piores terras do lugar; ora, se não podem ser úteis poderão, ao menos, ser bonitas. Eu gosto de lagos artificiais e canteiros de rosas.

A despeito do seu mau humor, ele pôs-se a rir.

—   Então é provável que você vá à festa de inauguração do Sr. Gilder, — disse.

Ela espantou-se.

—   De quem?

—   Do Sr. Gilder. Ele é qualquer coisa em Londres... talvez seja até um camarada importante no ramo dele, mas eu gostaria que tivesse ido cantar em outra freguesia. Quanto a Leonard eu já lhe declarei que não irei ao seu enterro.

—   Você devia envergonhar-se disso, Dick! — voltou ela, indignada. — Pobre velho! — Logo, em tom diferente: — Você não sabe o primeiro nome dele?

—   De quem?... De Leonard?

—   Não seja estúpido.. . Do Sr. Gilder.

Dick franziu o cenho.

—   Fabrian, disse, afinal. Que pelo nome não se perca! Até parece uma sociedade secreta!

Leslie perguntou a si mesma se Artur saberia desse empreendimento do seu gerente: era pouquíssimo provável que o Sr. Gilder comprasse alguma propriedade naquelas redondezas sem consultar o chefe. Naquele momento, porém, pareceu-lhe de bom alvitre mudar de assunto.

—   Se você fosse amável, bondoso e fraterno, propôs, iria comigo até a estação e guardaria o meu carro como um homem gentil.

Ele não respondeu de pronto e, por um instante, ela zan­gou-se com a implícita recusa. Logo, porém:

—   Estou gastando o tempo do meu amo, disse ele, mas há ocasiões em que o prazer precisa interferir na obrigação, e esta é uma delas. Não se incomoda que eu dirija? Não tenho confiança em mulheres motoristas.

—   Você é muito rude, tornou a jovem; não obstante, afastou-se para deixá-lo tomar o volante.

Atravessaram lentamente as alamedas umbrosas, passaram por um trecho de mato, todo verde-oliva, castanho amarelado e púr­pura com o fim do outono, e chegaram à estação dez minutos adiantados.

—   Você não recebeu mais visitas do seu Abade Negro? indagou Leslie, enquanto se encaminhavam para a plataforma da estação.

Ele sacudiu a cabeça.

—   Não; a polícia apareceu ontem à noite para investigar. Mas não creio que isso vá muito longe. Você leu a história no jornal, com certeza?

Ela fez que não com a cabeça.

—   Falatório de criados, explicou.

—   Pois eu francamente não acredito no tal Abade Negro, continuou Dick. O estranho é que Harry tenha medo dessa assombração. Nunca sai de casa quando há notícia de que o velho Abade está por perto.

—   Você também não acredita?

Ele apertou os lábios.

—   Quando eu vir um fantasma, acreditarei nele. Enquanto isso, continuo polidamente cético.

Quando o trem saiu da estação, ela pôs a cabeça para fora da janela e olhou para trás. Ele continuava em pé, imóvel, na plataforma, onde ela o deixara; se bem não pudesse ver-lhe o rosto, percebeu que ele não tirava os olhos dela e cuidou distinguir-lhe certa tensão na atitude tudo o que, somado, era muito agradável à Srta. Leslie Gine.

 

 

Por estranho que possa parecer, ela nunca visitara o escri­tório do irmão em High Holborn. Deixou o táxi parado à porta e subiu de elevador aos seus magníficos aposentos. O motivo da visita era prosaico. Saíra de casa sem um níquel: fato de que só se apercebeu quando o cobrador, percorrendo os vagões, chegou ao compartimento em que ela estava e despertou-a do seu devaneio para constatar que não tinha passagem nem dinheiro para pagá-la. Deu ao cobrador o seu cartão e um táxi a levou a Holborn.

Lá a esperava outra experiência inédita. Um homem alto, vigoroso, de cabelo grisalho e rosto forte, simpático, fora recebê-la na sala de espera. Ela lembrou-se do pescador solitário que se quedava, horas e horas, à margem do Ribeirão dos Corvos, aparentemente sem pescar coisa alguma. Com que, então, era aquele o temível Sr. Gilder, de quem Artur falara tantas vezes! Tinha o queixo quase quadrado e a boca tão apertada que se diria desprovida de lábios; um nariz grande, um par de olhos cinzentos penetrantes debaixo de sobrancelhas irregulares e desi­guais; tudo isso e mais a largura dos ombros transmitiam uma impressão imponderável de força.

—   É a Srta. Gine, naturalmente? — disse ele. — Eu lhe teria reconhecido o parentesco com seu irmão ainda que não soubesse o seu nome.

Leslie sentiu um pequenino choque ao saber-se, de alguma forma, parecida com Artur, pois a beleza de Artur pertencia a uma variedade que ela não invejava nem admirava.

—   Ele está ocupado neste momento. Se a senhorita quiser fazer o favor de sentar-se, irei avisá-lo.

Os olhos dele não deixavam o rosto dela. A jovem encontrara inúmeras vezes, em histórias, a palavra "devorar" empregada para descrever certa intensidade de olhar, e pensou, naquele instante, que os personagens de ficção deviam olhar mais ou menos como o Sr. Gilder eslava olhando. Não que ele a encarasse com imper­tinência; era a concentração, a sondante investigação daqueles olhoa cinzentos e brilhantes que a faziam contorcer-se por dentro.

—   Ouvi dizer que o senhor vai morar perto de nós, Sr. Gilder? — indagou ela, e ele se sentiu obviamente desconcertado.

—   Bem... sim... — respondeu, muito sem jeito, — Com­prei um pedacinho de terra perto de sua casa. Gosto muito daquela região.

—   Seremos vizinhos, — voltou ela, com um sorriso, conquanto a perspectiva não lhe desse prazer.

—   Sim... sim... Creio que o seremos, Srta. Gine.

—   Será ótimo para Artur. Imagino que tenha sido por sugestão dele que o senhor resolveu comprar?

Ele tinha o cacoete de cofiar um bigode invisível, pois trazia todo o rosto escanhoado.

—   Bem... não, — retrucou. — Ainda não contei ao Sr. Gine que comprei a propriedade. Julguei que outra ocasião seria mais oportuna. Comprei-a por uma ninharia... três mil e quinhentas libras.

Ela ergueu rapidamente os olhos.

—   Uma ninharia meio cara, — observou, e percebeu incontinenti que cometera um erro.

Desta vez ele se mostrou visivelmente desconcertado.

—   Sim; arranjei o dinheiro emprestado.

Ela teve a impressão de que ele estava querendo pedir-lhe um favor e adivinhou qual seria: Leslie possuía o dom misterioso de ler a mente dos outros e de reunir-lhes os pensamentos super­ficiais; naquele momento em que Fabrian Gilder deixou cair a máscara a leitura foi mais fácil ainda. Ele entreabriu os lábios para falar, pensou melhor, percebendo talvez a gélida atmosfera de uma recusa que ainda não se efetivara, e disse:

—   Vou ver se seu irmão pode atendê-la.

Ato contínuo, dirigiu-se à sala de Artur Gine, a cabeça ainda zonza da visão que lhe surgira por entre a névoa cinzenta da sua monótona existência.

Dia após dia a observara, sem que ela o soubesse. Deixava a vara e a linha espetadas atrás das árvores para vê-la passar. Ela era o amor in excelsis — a perfeita realização de trinta anos de sonhos.

Levou um segundo para reaprumar-se antes de girar a maçaneta da porta e entrar, e emudeceu de espanto ante as palavras que lhe chegaram aos ouvidos.

 

 

—   Minha irmã? — repetiu Artur. Olhou de Gilder para Mary , Wenner. — Venha ver-me mais tarde, — ajuntou em voz baixa. — Gilder, acompanhe a Srta. Wenner pela porta lateral.

Gilder abriu a porta particular e acompanhou a jovem até o corredor.

—   Onde é que a senhorita está morando? — perguntou. Havia em sua voz um tom de tamanha autoridade que a rapariga, momentaneamente, se sentiu perplexa.

—   Cranston Mansions, 37. Por quê? — inquiriu, com certa malícia que, embora indicasse ressentimento, era um convite a nova investida.

—   Porque quero vê-la, — respondeu Gilder. — Posso passar pelo seu apartamento numa destas noites?

A Srta. Wenner sentiu-se um tanto ou quanto chocada com aquilo. Momentos havia em que o seu senso de propriedade era facilmente ultrajado. Mas, curiosa também, longe de agastar-se contra a abordagem autoritária, agradou-se dela.

—   Pode, sim, quando quiser, contanto que me avise antes. Pedirei a uma amiguinha que me faça companhia.

Os lábios duros de Gilder se crisparam.

—   A menos que a senhorita faça absoluta questão de uma dama de companhia, não arranje nenhuma, — disse ele. — Tenho muita coisa para dizer-lhe e eu não quero que os outros a ouçam.

 

—   Você foi uma patetinha vindo à cidade sem dinheiro, — disse Artur, enquanto tirava três notas da carteira. — Aqui está o bastante para fazê-la feliz pelo resto da vida.

—   Quinze libras farão isso? — riu-se ela; e já se dispunha a partir, quando se lembrou.

Artur ouviu, assombrado, as notícias.

—   Gilder comprou uma casa em Chelfordbury? Não é possível! — exclamou. — Ele me teria contado. Por que diabo quer ele uma casa?... De mais a mais, não tem dinheiro.

—   Não tem? — perguntou ela, surpresa.

Artur coçou o queixo, irritado.

—   Imagino que tenha; mas uma casa em Chelfordbury... isso é extraordinário! Eu nem sequer imaginava que ele conhecesse o lugar.

—   Pois é o homem que esteve no Ribeirão dos Corvos o verão inteiro, — disse ela.

—   O pescador! — Artur assobiou. — Que sujeito miste­rioso! Está visto, — apressou-se a ajuntar — que não há mal nenhum em querer alguém morar em Chelfordbury, e não vejo motivo por que ele não haveria de comprar uma casa. Mas, sim, senhor! que venha raposa matreira!

O homem estava perturbado; ela percebeu que ele procurava esconder a preocupação atrás de uma frivolidade de atitudes trans­parente demais para ela.

—   É claro que eu sabia que alguém alugara o chalé do pescador, como lhe chamam, mas pensar que ele esteve lá esses três meses e nem uma vez se deixou identificar!

—   Ele tem um carro, se é o mesmo homem que morava no chalé, — confirmou Leslie. — Dick Alford está furioso!

Artur riu-se intimamente.

—   Pobre Dick! exclamou, em tom bem-humorado. — Ele detesta essa história de casas de campo e, quando lhe propus lotearmos uma das suas propriedades ao norte em chácaras resi­denciais, quase me arrancou a cabeça do lugar. Harry teria feito isso imediatamente, e eu espero, minha querida, que você, depois que estiver casada, consiga persuadi-lo.

Ele interrompeu-se, com ar expectante.

—   Pois sim... quando eu estiver casada, assentiu ela, e o tom da sua voz fez o irmão considerá-la atentamente.

—   Menina, acudiu ele, afaste os seus pensamentos do filho segundo! É um sujeito bem apessoado, não há termo de com­paração entre ele e o irmão! Mas é um filho segundo, o que quer dizer que pouco falta para estar arruinado. E você não pode viver de bonitezas ou de...

Ouvindo-o, ela ergueu lentamente os olhos.

—   O que é que você quer dizer... que eu não posso viver de bonitezas? Por que acentua tanto o fato de Dick Alford ser pobre? Por acaso não tenho a minha herança?

Ele não respondeu de pronto; mas, pouco depois, deixando cair as mãos, disse, a rir:

—   É claro que tem, gatinha. Só que... bem, quero que você faça alguma coisa por si. Conquiste um nome na região. Já não será pouca coisa ocupar a posição que Harry lhe oferece. Dick é um ótimo sujeito... um dos melhores, embora não vá muito com a minha cara. Mas não tem um gato para puxar pelo rabo, Leslie. Seria o mesmo que você casar com um fidalgote arruinado da província...

Ele se deteve diante do olhar firme da irmã.

—   Outra vez, Artur! Sem dar a entender que eu preferiria casar com Dick Alford, fico a perguntar-me por que o problema da pobreza dele o interessa tanto. Se você lhe chamasse um plebeu, ou joão-ninguém, eu compreenderia, mas você insiste em falar na riqueza do meu noivo, e isso me parece estranho.

Artur despediu uma longa e sonora gargalhada, mas a alegria dele soou insincera aos ouvidos sensíveis da irmã.

—   Você devia ser advogada, Leslie! Palavra de honra, estou pensando seriamente em fazê-la preparar-se para um exame! Você ficaria linda de peruca e beca! E agora, menininha, trate de dar o fora daqui, porque tenho muitíssimo trabalho para fazer.

Ele colocou o braço sobre o ombro dela e acompanhou-a até a porta. Depois, quando ouviu gemer o elevador que a levava para o andar térreo, suspirou, aliviado. Fechou a porta do escri­tório, tocou a campainha e pediu ao funcionário que se apresentou:

—   Faça o favor de pedir ao Sr. Gilder que venha cá.

 

 

Ouvindo o recado, Gilder conheceu que a jovem contara ao irmão; e se bem possuísse um generoso quinhão de coragem moral, foi-lhe necessário fazer um esforço consciente para responder ao chamado.

—   Gilder, que história é essa de você ter comprado a Quinta Vermelha? — perguntou Artur, áspero.

—   E por que não deveria eu comprar a Quinta Vermelha? — respondeu Gilder no mesmo tom.

—   Não sei de razão alguma por que você não deveria com­prá-la, — voltou Artur, depois de refletir por um momento; — mas é curioso que não me tenha dito nada.

—   Julguei que você pudesse objetar. Os homens de negócios não gostam que os companheiros chatos de trabalho morem perto deles. Foi estupidez minha não lhe ter contado. Há três meses que tenho vivido num chalé em Chelfordbury... e isso, porventura, também seria objetável? Peço-lhe que me perdoe se o digo, mas embora eu sempre tenha tido por você o respeito que se deve a um patrão, nunca o considerei como o meu senhor feudal!

Artur sorriu por um segundo.

—   Eu ignorava que você estivesse tão bem de vida, Gilder!

O Sr. Gilder inclinou a cabeça.

—   Já lhe dei a entender que amealhei somas consideráveis. Aliás, também não me pareceu necessário mantê-lo a par da minha conta-corrente bancária.

—   Você tem recebido um salário modesto, — disse Artur em tom significativo. — Eu mesmo reconheço que não é uma quantia generosa; e por certo não é uma quantia que permita a um homem poupar o suficiente para comprar, reconstruir e manter a Quinta Vermelha.

Por única resposta, Gilder meteu a mão no bolso e, sacando de um caderninho de couro da Rússia, depô-lo sobre a mesa. O nome, em letras de ouro, que se lia na capa era o de um bookmaker que tinha uma das mais vultosas contas do seu patrão. Com essa firma perdera Artur as suas maiores apostas, pois Truman lhe oferecera facilidades que as outras firmas lhe haviam negado.

—   Truman? — Ele carregou o sobrolho. — O que é que tem isso com o caso? Você andou apostando em cavalos?

Gilder sacudiu a cabeça.

—   Não, — disse simplesmente. — Eu sou Truman.

Artur Gine contemplava-o, boquiaberto. Truman! O bookmaker a quem, semanas após semanas, ele viera pagando milhares e milhares de libras!

—   Então, o dinheiro que você tem... é o meu dinheiro!

—   O seu dinheiro? volveu o outro, calmo. Se Truman não o tivesse tomado, outro bookmaker o teria feito. Todas as vezes que você ganhou, recebeu... tem alguma queixa?

—   O meu dinheiro! murmurou Artur.

Gilder devolveu o caderninho ao bolso.

—   Você se lembra de que, há cinco anos, se queixou de que não conseguia encontrar bookmakers que aceitassem apostas gran­des por telegrama, poucos minutos antes da corrida? Pois essa conversinha me deu uma idéia. Eu sabia que você perdia regu­larmente, que era uma dessas pessoas... infelizes...

—   Diga "idiotas"... é a palavra que está nos seus lábios.

—   A palavra era "otário", volveu o Sr. Gilder com muita calma. Eu sabia que você era uma dessas pessoas que não podem parar de apostar. Por isso Truman passou a existir. Você recebeu o regulamento da firma, em que se destacava a importante concessão que lhe permitiria apostar grandes somas de dinheiro, por telegrama, minutos antes da corrida. Sabe quanto perdeu nos últimos cinco anos?

Artur estava pálido de fúria mas, dominando-se, abanou nega­tivamente a cabeça.

—   Sessenta e três mil libras, só para Truman, disse o outro devagar. E eu as ganhei!

—   Suponho que você não seja também Rathbura & Cia.? perguntou Artur, mencionando outra firma de bookmakers que embolsara boa parte dos seus recursos.

Para assombro seu, Gilder fez um sinal afirmativo.

—   Sou Rathburn & Cia. E sou também Burton & Smith. Na verdade, sou os três bookmakers para os quais você tem perdido dinheiro, a uma média de trinta mil libras por ano, nos últimos cinco anos. É bobagem você ficar com essa cara, Gine. Não cometi crime nenhum. Nas raras ocasiões em que você ganhou alguma coisa, foi pago. As suas perdas não teriam sido tão desagradáveis se o ganhador tivesse sido um desconhecido. Eu topei o risco... a minha sorte contra a sua. Quando comecei, arrisquei a minha fortunazinha... três mil libras, ganhas à custa de privações e economias. Se você tivesse tido sorte, eu estaria arruinado.

—   Em vez disso, você teve sorte... e estou arruinado, acudiu Artur Gine, com voz rouca. Fora-se-lhe a costumeira calma. Você tem razão, se bem tudo isso seja meio... desconcertante.

Olhou, curioso, para o rosto inescrutável do seu funcionário principal, forcejando por reajustar a sua estimativa de um homem que sempre tivera na conta de um criado superior, ou pouco mais. Depois, percebendo o lado cômico da situação, pôs-se a rir.

—   Se eu não tomar cuidado, acabarei com pena de mim mesmo, e isso me seria odioso, Gilder! Com que, então, você é um homem rico, hein? Que pretende fazer com o dinheiro?

Os olhos de Gilder não deixaram o rosto do outro.

—   Vou estabelecer-me no campo e casar.

—   Esplêndido! — Havia uma nota irônica na voz de Artur Gine. — E quem é a felizarda?

Passou-se algum tempo antes que Fabrian respondesse. Fitou os olhos bem abertos no rosto do antigo patrão e, em seguida, muito deliberada e muito lentamente, informou:

— É meu desejo e minha intenção desposar a Srta. Leslie Gine.

Nenhum músculo do rosto de Artur Gine se contraiu; a sua cor não mudou. Mas em seus olhos fuzilou uma luz intensa, maligna e diabólica. Por um segundo o imperturbável Gilder teve medo. Teria ido longe demais? Os dois homens estavam aprendendo alguma coisa naquele dia. Gilder teve uma visão momentânea de algo muito feio e ameaçador mas, logo a seguir, as cortinas se cerraram e o eu interior de Artur Gine dissipou-se num sorriso enigmático.

—   Isso é muito interessante e muito. .. petulante da sua parte, Gilder! Infelizmente, tenho outros planos.

Levantou-se, desapressado, da poltrona, rodeou a escrivaninha e foi postar-se diante do outro, com as mãos enfiadas nos bolsos.

—   O que é que você está preparado para pagar pelo privi­légio de ser meu cunhado? — perguntou, em tom arrebento.

Fabrian Gilder aceitou o desafio.

—   A devolução da metade do dinheiro que você perdeu em apostas nos últimos cinco anos.

Artur sacudiu a cabeça.

—   Não é o bastante, — declarou, sorrindo.

—   O cancelamento de quatro promissórias, — continuou Gilder deliberadamente, — redigidas e aceitas por Lorde Chelford, mas cujo aceite, em cada caso, foi falsificado por você.

Artur Gine recuou, vacilante, até a mesa, o rosto branco e contorcido, e Gilder prosseguiu:

—   Você, com certeza, não imagina que foi por acaso que eu lhe sugeri que conseguisse o aval de Chelford numa promissória, imagina? Setenta e cinco mil libras não lhe bastavam, hein? Pois eu lhe ofereço esta alternativa: cinco anos em Dartmoor!

 

 

Leslie passara uma tarde cacete, e não uma vez, senão muitas, se arrependera de haver prometido voltar ao escritório do irmão, que a levaria de carro a Willow House; não fora essa combinação, e poderia voltar a Chelfordbury mais cedo, de trem, pois as com­pras que fizera não lhe haviam tomado mais que uma hora.

Telefonou ao irmão para sugerir-lhe esse plano, certa de que ele concordaria, mas, para sua surpresa:

—   Creio que é melhor você voltar comigo. Venha para cá às quatro e meia, em lugar de vir às cinco. A propósito, Gilder nos convidou para tomarmos chá em seu apartamento. Você não se importa, não é mesmo ?

—   O Sr. Gilder? exclamou ela, surpresa, e ele apressou-se a continuar:

—   Precisamos ser gentis com ele. Vai ser nosso vizinho, e, afinal... não é má pessoa.

Teve vontade de pretextar uma dor de cabeça e poupar-se a uma experiência que, para dizer o menos, não era totalmente do seu agrado. Artur, porém, raro lhe pedia um favor e via-se pelo tom de sua voz que ele estava ansioso por que ela acedesse a esse gesto de civilidade para com o seu principal funcionário; um tanto ou quanto relutante, concordou.

Se ele deu tento da relutância da irmã, furtou-se a comentá-la e pareceu ter pressa de desligar o telefone. Não havia razão para que a projetada visita a deixasse intranqüila e, todavia, por algum motivo obscuro, a experiência iminente pairou, como uma nuvem, sobre ela durante o resto da tarde. Desta feita, ao voltar ao escri­tório, entrou pela porta particular de Artur. Encontrou-o só, sen­tado à mesa numa atitude familiar, com a cabeça entre as mãos, os olhos sombrios parados no berço do mata-borrão. Ocorreu-lhe que o rosto do irmão estava mais pálido que de costume; e havia em seu olhar uma expressão de pessoa cansada e acuada, que a assustou. Ele obrigou-se a sorrir para recebê-la, mas o sorriso não a iludiu.

—   Você não está bem, Artur? perguntou, ansiosa.

—   Estou ótimo, — riu-se ele; aconteceu apenas que tive um dia muito trabalhoso. Devo parecer exausto.

Dir-se-ia, porém, que ele não quisesse discutir o seu caso, pois foi diretamente ao assunto da visita surpreendente que deveriam fazer.

—   Gilder tem um apartamento pertinho de Regenfs Park, disse Artur. Seja tão gentil com ele quanto puder, Leslie. Ele me tem sido utilíssimo. A propósito, ajuntou, muito sem jeito, o nosso amigo é solteiro.

A observação fê-la sorrir; em seus sonhos mais alucinados não teria imaginado que essa declaração pudesse ter algum interesse especial para ela.

—   Nunca imaginei que ele fosse tão... tão próspero, — disse ela. — Não, não quero dizer que celibato seja sinônimo de pobreza, mas a propriedade em Chelfordbury e o apartamento em Regent's Park não são exatamente o que a gente esperaria.

—   Ele não é má pessoa, — repetiu Artur, ao tocar a campainha. — Creio que você gostará dele: ele é... gozado.

"Gozado" não era a palavra que teria usado, na verdade, mas foi a única que encontrou no momento. Como se estivesse à espera do chamado, o Sr. Gilder apareceu em resposta ao toque da campainha. Trazia no braço um casaco leve e, na mão, um chapéu cinzento e imaculado de feltro. E, mais uma vez, Leslie se sentiu desagradavelmente consciente do exame do homem.

—   Conhece o Sr. Gilder, Leslie?

A inquietude e a apreensão dele estavam-se comunicando a ela. Por mais que o tentasse, a jovem não conseguia sacudir de si a sensação de intranqüilidade. A atmosfera estava elétrica; ela teria sido realmente insensível se não respondesse à tensão ambiente.

Durante todo o trajeto, o Sr. Gilder falou quase sem interrup­ção. Tinha uma voz grossa, mas agradável, e sabia conversar.

Falou sobre aviação, rádio, sobre os livros que lera — Dumas era o seu favorito — sobre a guerra, a Rússia, a Renascença ita­liana, os escritores norte-americanos, o tempo, pólo — enfim, sobre quase todos os assuntos que ocupavam a atenção pública. Leslie percebeu que ele estava tentando impressioná-la, e não viu nisso mais que o desejo natural de um homem de parecer bem aos olhos de uma mulher.

O apartamento era maior do que ela esperara, e um dos muitos do mais exclusivo edifício de apartamentos daquela zona. Artur examinou-o, cheio de coisas caras, com o semblante taci­turno. Uma das suas semanas negras em Ascot deveria ter mobiliado três apartamentos daqueles, pensou, e o diabinho do ressentimento e da aversão criou forças em seu coração.

O chá foi servido por duas criadas muito bem uniformizadas, e o Sr. Gilder desempenhou com perfeição o papel de anfitrião. Possuía um biblioteca de livros antigos raros, que ela precisava ver, e levou-os a uma sala cujas paredes estavam cheias de estantes, que recordaram a Leslie, se bem não houvesse semelhança alguma entre os dois interiores, a sala em que o seu noivo passava a maior parte do tempo.

Gilder estava mostrando à jovem uma primeira edição muito rara, quando aconteceu uma coisa surpreendente.

—   Você se incomodaria se eu me ausentasse por cinco minutos, Leslie? Quero ver um sujeito que mora do outro lado do parque.

A voz de Artur Gine estava rouca, a sua simulação de desenvoltura era um completo desastre. A jovem olhou para ele assombrada e, a seguir, examinou o mostrador do seu reloginho de pulso.

—   Se você pretende estar de volta a Willow House a tempo de jantar... — começou ela.

—   Não levarei mais que um quarto de hora, atalhou ele, num desespero. Se você não se incomoda...

E antes que a irmã pudesse pronunciar uma palavra, desapareceu. Tudo tão inesperado, tão estranho, que ela não conseguia compreender direito o que acontecera, e a última coisa que lhe passaria pela cabeça era que Artur a estivesse deixando delibera- mente só com aquele homem grisalho.

Assim que a porta se fechou, após a partida do irmão dela, Fabrian Gilder recolocou cuidadosamente na estante o livro que estivera examinando.

—   Estarei em minha casa nova na primavera, disse ele, e espero vê-la com mais freqüência, Srta. Gine.

Ela deu-lhe uma resposta convencionalmente polida.

—   A minha ambição sempre foi estabelecer-me no campo e praticar os meus dois passatempos favoritos que são pescar e ler. Felizmente, estou em condições de poder retirar-me da minha pro­fissão... seu irmão provavelmente já lhe disse que sou um homem rico.

Qualquer coisa no tom dele chamou-lhe a atenção. Seu coração principiou a bater um pouco mais depressa e, pela primeira vez, ela teve consciência de estar sozinha com ele.

—   Não sou velho... considero os cinqüenta anos como a melhor parte da vida... e creio que não me falta capacidade para fazer a felicidade de qualquer mulher.

Ela enfrentou-lhe o olhar com firmeza.

—   Espero que tenhamos o prazer de conhecer sua esposa, disse Leslie.

Ele não respondeu, e ela principiou a sentir alternadamente calor e frio sob o exame daqueles desapiedados olhos cinzentos. E, num átimo, antes que ela compreendesse o que estava acontecendo, as duas manzorras dele lhe seguravam os braços e ele a mantinha a alguma distância de si, perscrutando-lhe o rosto.

—   Há uma única mulher no mundo para mim, disse ele, e a voz lhe soou roufenha de emoção; um rosto que me enche os olhos dia e noite! Leslie, durante todos esses meses você não esteve íora da minha vista nem da minha mente!

—   Solte-me! — gritou ela, lidando por livrar-se.

—   Eu a quero! Eu trabalhei por você! Eu fiz planos por sua causa! Leslie, eu a amo como você nunca mais será amada! Eu

quero... eu a quero!

Ele a estava puxando cada vez mais para junto de si, os seus olhos a arderem como brasas; fascinando-a a ponto de deixá-la num estado de apatia que era uma quase passividade. Ela não encontrava em si mesma reservas para combatê-lo e não conseguia fazer outra coisa senão olhar, indefesa, para o rosto duro.

Ouviram bater à porta. Ele afastou-a de si, o rosto convulsionado de raiva.

—   Quem é? — perguntou com desabrimento.

E a voz da empregada respondeu:

—   O Sr. Richard Alford quer vê-lo, senhor!

 

 

Esperando na bonita sala de estar e perguntando a si mesmo como faria para iniciar o que prometia ser uma discussão desagra- dabilíssima, Dick Alford viu abrir-se a porta e uma jovem de rosto lívido correr para ele.

—   Oh, Dick, Dick! — soluçou ela.

Um segundo depois, estava em seus braços, o rosto encostado ao seu peito.

—   Pelo amor de Deus, o que foi que aconteceu? Como é que você veio parar aqui? — perguntou ele, assombrado.

Antes que ela pudesse responder, o corpanzil de Fabrian Gilder assomou à porta. O homem não falava, mas a cólera que lhe ardia no olhar era eloqüente.

—   E então, que deseja? — atroou ele.

Dick afastou a moça delicadamente de si.

—   Por que é que você está aqui, Leslie?

—   Artur me trouxe, — explicou ela, ainda ofegante. — Sinto muitíssimo fazer um papelão desses, mas...

Os olhos de Dick se transferiram da jovem para o homem imóvel à porta e ele principiou a compreender.

—   Artur trouxe-a aqui? — Dick falava com vagar, — E deixou-a sozinha... com esse homem?

Ela assentiu com a cabeça.

—   Ele é seu amigo?

Ela abanou a cabeça negativamente.

—   Eu o conheci hoje.

A pouco e pouco, a explicação do desespero dela começou a clarear no espírito do rapaz, e uma raiva fria lhe senhoreou o coração. Um momento desastrado para o regresso de Artur Gine. Dick ouviu o tinir da campainha, passos apressados no vestíbulo e viu o rosto lívido do advogado, que o sorriso forçado tornava medonho.

—   Alô, garota! Que aconteceu? — perguntou.

Ele não olhou para o dono da casa; e Dick, ao notá-lo, sentiu crescer a fúria dentro de si.

—   Acho melhor você levar Leslie para casa, — disse ele. — Tenho um negocinho a tratar com o Sr. Gilder.

—   Posso perguntar-lhe com que direito o senhor dispõe dos meus convidados? — interveio Gilder, mas Dick não lhe deu atenção.

—   Tome conta de sua irmã, Gine, — advertiu, e havia uma ameaça mal velada nas suas palavras. — Terei o prazer de fazer-lhe uma visita esta noite.

Ele pegou na mão da moça; ela continuava pálida e trêmula, mas sorriu-lhe.

—   Fiz um papel ridículo, não fiz? — disse ela, em voz tão baixa que só ele pôde ouvi-la. — Dick... talvez eu esteja ficando meio nervosa e possa ter interpretado mal...

Ele bateu-lhe delicadamente na mão e conduziu-a, passando por Gilder, ao vestíbulo. Artur seguiu-lhes no encalço. Foi Dick quem abriu a porta e esperou, paciente, que os dois irmãos se retirassem. A seguir, voltou-se para enfrentar o enraivecido dono do apartamento.

—   Tenho, de fato, negócios a tratar com você, Gilder, mas isso pode esperar. Em primeiro lugar, eu gostaria de perguntar-lhe o que foi que disse à Srta. Gine?

—   Isso é exclusivamente da minha conta, — respondeu Gilder, com o olhar firme; readquirira o completo domínio de si mesmo, se não da situação.

—   Da minha também, — voltou Dick, muito calmo. — Você não sabe que a Srta. Gine está noiva de meu irmão?

Gilder passou a língua pelos lábios secos.

—   Isso, na realidade, não me interessa, — respondeu. Em seguida, após alguns segundos de reflexão: — Serei franco com você. Alford... não custa nada esclarecer o assunto. Pedi a Srta. Gine em casamento.

—   Deveras? — tornou Dick, suavemente. — E que disse a isso a Srta. Gine?

—   Você não lhe deu oportunidade para responder. Mas, pensando bem, creio que não haverá dificuldade.

Dick não escondeu um sorriso. Juiz sagaz de homens, compreendera perfeitamente a situação ao ver o rosto de Artur quando este voltara ao apartamento.

—   Não sei qual é a ascendência que você tem sobre Gine, ou que terríveis ameaças lhe fez.

Viu o homem estremecer, e riu-se.

—   Essa passou bem perto do alvo, não passou? Mas, seja qual for a influência que você tem, Gilder, não se casará com Leslie Gine.

Os olhos de Gilder estreitaram-se.

—   Isso é uma ameaça?

—  Tome como ameaça, ou como um amável cumprimento, ou como bem entender, — volveu Dick, com o sorriso malicioso. - E agora, se não se incomoda, vamos aos negócios. Você comprou uma propriedade nossa... a Quinta Vermelha. Pagou três mil e quinhentas libras por ela a Leonard. Pois eu vim pedir-lhe que desista da compra e aceite um lucro de quinhentas libras.

—   Em outras palavras, quer comprá-la de volta? Pois nada feito? — ripostou Gilder, desabrido. — Pretendo morar na Quinta Vermelha e não há uma única lei neste país que mo impeça. Você pode não gostar da minha presença, mas isso pouco me faz. Não estou morando em Chelfordbury pelo prazer de vê-lo todos os dias.

Dick meneou a cabeça.

—   Eu me perguntei por que você haveria de querer viver ali, mas creio que agora já sei. A oferta que lhe fiz não invalidará nenhuma ação que eu possa intentar. Infelizmente para você, Leonard não tem o poder de transferir a propriedade sem a anuên­cia de meu irmão... o que quer dizer, sem a minha anuência, pois tenho procuração dele. Leonard pode conservar a propriedade, mas você não pode. Como advogado não precisará que eu lhe explique os embaraços de um contrato de aforamento, e é apenas isso que Leonard possui. Se quiser questionar, eu o levarei aos tribunais, e você sabe que terei ganho de causa. Estou-lhe ofere­cendo uma oportunidade para resolver o caso amigavelmente.

—   Que eu recuso, — tornou o outro, prontamente.

Dick inclinou a cabeça.

—   Muito bem. Mas é provável que você, depois de refletir no assunto numa atmosfera mais calma, venha a mudar de opinião.

Saiu da sala, balançando o chapéu. Chegado à porta, voltou-se.

—   No que respeita à Srta. Leslie Gine, igualmente fará bem pensando melhor no caso.

—   E se eu não quiser?

Mais uma vez o sorriso estranhíssimo.

—   Azar seu, — disse Dick, misterioso.

 

 

Quando os Gines se aproximavam de Chelfordbury, Leslie fez a pergunta que lhe tremera nos lábios durante todo o longo percurso.

—   Artur, você sabe o que o Sr. Gilder queria de mim? E, como ele não respondesse: — Pediu-me em casamento.

O irmão continuou a evitar-lhe os olhos.

—   Minha querida mocinha, disse Artur, tentando mos­trar-se jovial, na realidade pouco importa a pessoa que você venha a desposar, contanto que seja feliz. Gilder é um homem muito sólido; possui uma considerável fortuna particular.

Dessa feita ela voltou-se toda e encarou com ele.

—   Artur, por que é que você insiste nessa questão de for­tuna? Onde está o meu dinheiro?

A pergunta fora feita à queima-roupa e não havia tergiversar. Ele decidiu-se a enfrentar uma situação que surgia agora pela primeira vez.

—   O seu dinheiro? Hom'essa, está investido, naturalmente!

A despeito de todo o seu esforço, não conseguira apresentaro tom convincente que era tão necessário.

—   A sua fortuna está em toda a sorte de ações e títulos. Que estranha pergunta para me fazer, menina!

—   Quanto dinheiro eu tenho? insistiu ela, impiedosa.

—   Aproximadamente um quarto de milhão... pouco mais ou pouco menos. Pelo amor de Deus, não me fale em dinheiro, minha querida.

—   Mas eu quero falar em dinheiro. Artur, ainda me resta algum?

—   Como você é bobinha! É lógico que sim! Oxalá eu tivesse a metade do que você tem! Você é uma garotinha muito rica e deverá ser uma garotinha muito feliz.

Ela abanou a cabeça.

—   Pois acho que não tenho nada, exclamou, e o coração dele se confrangeu.

Com tremendo esforço de vontade ele enfrentou-lhe o olhar inquisitivo.

—   Por que é que você diz isso?

Ela meneou a cabeça.

—   Não sei... de certo modo, espero ser pobre. Sei que herdei algum dinheiro porque você me mostrou o testamento há muito tempo. Mas é você, Artur, quem tem tomado conta dele, e qual­quer coisa me diz que nem tudo tem sido ouro sobre azul para você.

—   Está insinuando que roubei a sua fortuna? atalhou ele, erguendo a voz, e ela sorriu.

—   Eu seria incapaz de acusá-lo disso. Acho possível que você tenha investido a minha fortuna... imprudentemente! E é muito possível que aquele quarto de milhão tenha minguado, minguado, até desaparecer. É isso?

Ele não respondeu.

—   É isso?

—   Eu gostaria que você não me fizesse perguntas idiotas, — respondeu ele, por fim, irritado. — Está claro que não é isso!

Por um momento, sentiu o desejo de contar-lhe a verdade; mas a vaidade, o temor do possível efeito que a notícia teria sobre' a única pessoa no mundo a quem consagrava um pouco de afeto inibiram-lhe a confissão.

E voltou, naturalmente, ao único pensamento presente em seu espírito enquanto ela tagarelava e ele matutava. A sua última esperança residia na descoberta do tesouro de Chelford.

 

 

Para indizível alívio do irmão, Leslie mostrou-se extremamente jovial durante o jantar, e a lembrança de Fabrian parecia ter-se, de fato, dissipado.

—   Leslie, — pediu ele, depois que o café foi servido, — quero que me faça um grande favor. Eu estava imaginando se você não gostaria de convidar Mary Wenner para passar conosco um fim de semana? Terei muito serviço e ela é uma excelente estenógrafa. Mas serei totalmente franco com você e lhe direi que essa não é a única razão por que eu gostaria que você a convidasse. Ela se meteu numa espécie de enrascada e desejo ajudá-la.

Se Leslie Gine fosse curiosa, tê-lo-ia talvez interrogado mais acerca dessa mítica enrascada.

—   Não sei por que ela não deveria vir, — acedeu a jovem. — Se você me der o endereço, escreverei a ela.

—   Para ser perfeitamente sincero, gosto daquela moça. Não é uma dama, naturalmente, mas acontece que, hoje em dia, o termo "dama" é vago e sem sentido. E não houve realmente nada no caso dela com Harry. Quero dizer, não foi coisa séria.

—   Nunca pensei que fosse, — conveio Leslie.

E não se falou mais no assunto de Mary Wenner.

Súbito, ouviram soar a campainha na copa e Leslie correu para a porta. Através do vidro avistou a claridade de uma camisa branca na entrada não iluminada, e acendeu a luz. Era Dick. Com uma praga, Artur Gine deu-se pressa a fugir para o quarto, batendo a porta com força. Ele esperara que Dick houvesse esquecido a ameaça de ir visitá-los naquela noite.

—   Entra Richard de Chelford! — anunciou a jovem, dramaticamente, ao abrir a porta. Travou-lhe do braço e conduziu-o à sala de estar.

—   Artur está invisível esta noite; trabalhando muito. Ele não gosta de você, e você não gosta dele, de modo que não seremos interrompidos. Dick, você foi um amor chegando como chegou esta tarde.

—   Gilder lhe propôs casamento, não foi isso?

—   Ele contou a você? — Ela desferiu um longo suspiro. — Foi, fiquei pasmada. Imagino que tenha sido muito lisonjeiro, mas porque terá ele feito isso tão precipitadamente?

Dick tirou um cigarro da caixa que ela lhe ofereceu e acendeu-o antes de responder.

—   Foi exatamente o que vim descobrir, — disse, afinal. — Sinto-me assim como um grande inquisidor, mas preciso saber. Você tem certeza de que Artur não lhe deu nenhum aviso dessa proposta?

—   Absoluta. Ele ficou tão espantado quanto eu.

—   Vocês discutiram o assunto? — perguntou rapidamente o rapaz.

Ela hesitou.

—   Sim, falei sobre isso no carro quando vínhamos para cá, e Artur se mostrou... espantado.

—   Só espantado... não ficou furioso?

—   Pode ser que tenha ficado furioso também. Artur não costuma demonstrar seus sentimentos.

—   Imagino que não, — volveu Dick, secamente. — E, logo:  — Quer perguntar a ele se posso vê-lo por cinco minutos?

Ela considerou-o com o olhar perturbado.

—   Vocês não vão brigar?

Dick sacudiu a cabeça.

—   Não. Só vou fazer-lhe uma ou duas perguntas. Você compreende que eu tenho o direito de saber.

—   Por que "tem o direito"?

—   Acha que não? — perguntou ele gentilmente.

Os olhos dela procuraram os dele por um segundo, e logo se afastaram, ao ler neles algo que a emocionou e magoou. Sem uma palavra, saiu da sala e foi bater à porta de Artur.

 

 

O advogado nem sequer fez menção de levantar-se da poltrona quando Dick entrou, fechando a porta atrás de si.

—   Sente-se, por favor, Alford. Leslie me disse que você queria falar comigo.

—   Leslie não precisava ter dado esse recado. Eu já lhe havia dito, esta tarde, que viria aqui para ouvir uma explicação.

—   Sobre?

—   Sobre o incidente desagradável no apartamento de Gilder. Esse homem propôs casamento a sua irmã... você sabe disso?

—   Leslie me contou, — disse o outro, depois de uma pausa.

—   E você ficou aborrecido, imagino eu? Vai despedir amanhã o seu funcionário?

O outro recostou-se na poltrona.

—   Não vejo por que deva despedi-lo, — retrucou, friamente. — Afinal de contas, não é crime nenhum um homem propor casa­mento a uma moça bonita. Está visto que ele não é a espécie de pessoa que eu escolheria para cunhado, mas se os irmãos tivessem de escolher os maridos das irmãs, Alford, haveria casamentos muito estranhos por aí!

—   Em que se baseia a ascendência dele? — perguntou Dick tranqüilamente.

—   Eu não...

—   Qual é o motivo da influência dele sobre você?

—   Que diabo está querendo dizer?

—   O que eu disse. Você jamais toleraria que um homem como Gilder requestasse sua irmã, sem falar no insulto que ele dirigiu à futura Condessa de Chelford, a menos que tivesse tamanho domínio sobre você que toda a sua indignação natural fosse esma­gada pelo medo de uma conseqüência que ele brandisse sobre a sua cabeça.

Artur Gine encontrou dificuldade para controlar a voz.

—   Meu caro rapaz, isso é puro melodrama! — zombeteou ele. — Domínio sobre mim! Você, com certeza, andou estudando a última peça de Drury Lane! Está claro que eu preferiria ver Leslie casada com seu irmão, mas não colocarei obstáculos no seu caminho se o coração dela pender para outra pessoa.

—   Para Gilder?

—   Para Gilder, — confirmou Artur, gravemente, como se o assunto tivesse sido objeto de profundas reflexões e ponderações.

Foi quando Dick Alford fez uma pergunta que o pôs em pé, lívido e trêmulo.

—   É por causa das promissórias?

—   Das... das o quê? — gaguejou o advogado.

—   Das quatro promissórias pretensamente aceitas por meu irmão... visto que as assinaturas foram falsificadas. Pensei que você soubesse que eu as vi. Foram-me mostradas no banco e,

felizmente, não as repudiei... felizmente para você, quero dizer. Quando fui vê-las outra vez, haviam sido resgatadas. Suponho que o Sr. Fabrian Gilder as resgatou. Isso deve ter-lhe custado pouco mais de cinco mil libras, e acredito que ele não o tenha feito por mero altruísmo.

A boca de Artur Gine estava seca; ele mal podia falar.

—   Só hoje é que fiquei sabendo, murmurou. Harry estava doente na ocasião. O dinheiro me era devido por... por... custas judiciárias. Fui ao banco para pagá-las e descobri que elas tinham sido pagas.

—   Era essa a razão da ascendência?

Ele não enfrentou o olhar decidido que se fixava nele.

—   Sim, era essa a razão, se é isso o que quer saber. Você não há de imaginar que eu consentiria no casamento de Leslie com um porco como Gilder a não ser... a não ser que ele tivesse alguma coisa contra mim, não é mesmo? Você não compreende a minha posição, Alford? Estou arruinado! Esse sujeito poderia mandar-me para a cadeia... e ainda pode.

Dick abanou a cabeça.

—   Despeça-o amanhã. Se ele apresentar as promissórias, eu me encarregarei de fazer que Harry reconheça as assinaturas.

As cores voltaram ao rosto cadavérico do advogado.

—   Você fará isso? perguntou, veemente. Meu Deus! você não sabe o peso que me tirou da cabeça. Você é um anjo! Eu o despedirei amanhã.

Ele estendeu a mão ansiosa e Dick apertou-a com alguma hesitação. Nas melhores ocasiões, Artur Gine não o impressionava; naquele momento, quase incoerente de alívio, pareceu-lhe um lamentável covarde.

—   Pagarei tudo a Harry, até o último penny. Tenho agora um negócio em vista, que me trará uma fortuna, e assim poderei pagar todas as minhas dívidas e reabilitar-me outra vez.

Havia comicidade na situação; pois o negócio destinado a reabilitar-lhe a fortuna era nada menos que o roubo desavergo­nhado da herança de Harry Chelford! Artur, entretanto, não tinha consciência da ironia da situação. Trataria de Gilder na manhã seguinte. Graças a Deus, não se afundara ainda mais na lama!O conhecimento de que na sua carteira havia outra promissória ainda não colocada em circulação não bastou a enfriar o virtuoso ardor que ele experimentava. Dali por diante seguiria o bom caminho.

—   Há uma coisa que você poderia fazer por mim, Alford... apressar o casamento. Marque-o para o mês que vem, se puder.

Leslie é apenas uma tolinha, está tentando adiar o inevitável, oque é muito natural, não acha? Você não poderia apressar Harry...?

Dick Alford encarou-o com firmeza.

Essa questão deve ficar inteiramente a cargo de Leslie, disse ele. O tom era definido e final.

Saíram juntos da biblioteca; Leslie, que estava esperando meio temerosa, viu o sorriso no rosto do irmão e suspirou, reconhecida.

Artur não poderia mostrar-se mais expansivo.

—   Aqui há uma coisa que interessará a você!

Apontou para a parede. Pendente de um escuro escudo de madeira, via-se uma adaga de ferro — preta e sinistra, o cabo alisado pelo uso, a longa lâmina cheia de dentes. Dick já a vira antes.

—   Isto aqui devia estar em sua casa, Alford. A adaga verdadeira do verdadeiro matador do Abade Negro: Hubert de Redruth! Veja as armas dele no punho.

—   Já vi, — volveu Dick, lacônico. — Ponha o casaco e vamos dar uma volta, Leslie, — sugeriu, e o obsequioso Artur, que teria anuído a qualquer projeto que ele propusesse, secun­dou-lhe a sugestão.

 

 

A noite estava escura e fria. Era noite de lua cheia, que se divisava, a intervalos, por entre as nuvens. Leslie enfiou o braço no braço dele, enquanto cruzavam a alameda que conduzia à estrada.

—   Vocês brigaram?

—   N-não, não brigamos, — respondeu Dick. — Houve um pouco de franqueza, mas creio que muita coisa se esclareceu e, afinal de contas, foi para isso que vim. Ele vai despedir Gilder amanhã.

—   Você seria um irmão maravilhoso, — disse ela.

—   Eu sou, — tornou ele, brusco, e ela sorriu no escuro. — O seu bonito irmão pediu-me que a persuadisse a casar no mês que vem, e eu disse-lhe, à queima-buxa, que não faria nada disso. Sabe, Leslie, que você e Harry nunca se vêem entre um fim de semana e outro?

Fazia muito tempo que ela o sabia, e era um constante motivo de autocensura o sentir-se cada vez menos desejosa da companhia do noivo.

—   Na verdade, ele não se interessa por mim, Dick, — disse a jovem. — Harry está tão absorto na sua caçada ao tesouro e na sua estranha caçada ao elixir da vida...

—   Ele falou a você sobre isso?

—   Falou, naturalmente! Você sabe, Dick, que ele quase me convenceu de que há qualquer coisa nessa idéia? — replicou ela, em tom de gracejo. E ajuntou, depois de uma pausa: — Você não acha?

—   Na Água da Vida... talvez.

—   E no tesouro?

—   Pode ser. Gerações de Chelfords têm andado em cata desse maldito ouro, e creio que nos últimos quatrocentos anos já se gastou quase tanto dinheiro na busca quanto vale o tesouro! A mim ninguém me convence de que a Boa Rainha Bess, de piedosa memória, não empalmou o tesouro inteirinho!

—   Pois eu tenho absoluta certeza de que não, — foi a res­posta surpreendente. — Andei lendo com muito cuidado a história elisabetana, e o ano em que o seu antepassado escondeu o dinheiro foi o ano em que a Rainha andava tão precisada de dinheiro que precisou pedi-lo emprestado aos lombardos.

Ele se deteve.

—   Verdade? — perguntou, incrédulo.                                                      

—   Absoluta. E se você não fosse tão cético e tivesse lido um pouco mais, saberia o que qualquer criança de escola poderá dizer-lhe, isto é, que em 1582 a Rainha estava quebrada. Você faz objeção à palavra vulgar?

—   É uma palavra familiar, — riu-se ele.

Haviam chegado ao corte profundo. Ele dobrou à esquerda, abriu uma porteira e os dois subiram um caminhozinho que levava às ruínas da Abadia de Chelford.

A lua se mostrava entre dois montes de nuvens.

—   Você devia ver a abadia à luz da lua, se nunca a viu. É bonita, — disse o rapaz, dando-lhe a mão para ajudá-la a subir o íngreme atalho.

Ao chegarem ao ponto de onde se avistavam os muros e as torres partidas daquele antigo sítio de paz, alguma coisa da sole­nidade da cena penetrou-lhe o coração, e ela permaneceu imóvel, olhando, fascinada, para os escombros do que fora outrora uma grande abadia. As ruínas ficavam na superfície mais ampla do que localmente se conhecia pelo nome de "O Morro" — o alto aterro que se estendia, praticamente, da abadia à estrada, acompanhando, o curso do pequeno Ribeirão dos Corvos. Aqui, rezava a tradição, erguera-se antanho um local de sacrifício, antes que se erigisse a igreja inglesa de pedra, antes que os monges normandos houvessem cinzelado o granito da sua grande abadia.

—   É maravilhoso! — exclamou a jovem.

Tê-la-iam enganado os seus olhos? Seria capaz de jurar que vira qualquer coisa mover-se na sombra da velha torre. Ele ouviu-lhe o respirar apressado.

—   Que foi? — perguntou.

—   Não sei... minha imaginação, talvez. Pensei ver alguém movendo-se ali.

Ele seguiu-lhe a direção dos olhos.

—   Não poderia haver ninguém aqui, a esta hora da noite, a não ser o Abade Negro, — volveu o rapaz, em tom jocoso. — E nós não temos medo dele, temos?

—   Eu, não, — disse ela com uma firmeza que estava longe de sentir.

Nesse momento, ouviu uma coisa — uma coisa que lhe mudou o sangue em água. Era um gemido baixo de angústia, um solu­çante diminuendo de sons, que principiava numa nota alta e ia descendo a escala até tornar-se inaudível.

—   Que foi isso? — perguntou ela, agarrando-lhe o braço.

Ele não respondeu; estava forçando a vista na direção das sombras, tentando enxergar.

Repetiu-se o som; desta vez, um gemido que rematava num berro. Ele segurou a moça pelo ombro. Avistara uma figura que se esgueirava da abadia na direção do rio. Uma figura alta, negra, claramente visível ao luar. Ela viu-a também.

—   Não me deixe, Dick! — suplicou, ao perceber que o rapaz procurava desvencilhar-se dela.

Depois, de repente, sentiu que a tensão dele se afrouxava.

—   Deixe-o ir, — murmurou Dick, mais para si mesmo.

Ela agarrou-se a ele desesperadamente, freneticamente, quando a figura tropeçou e partiu, cambaleando, para as árvores que num instante a engolfariam. A Coisa hedionda corria, parando de vez em quando para voltar-se e apostrofar, numa linguagem incom­preensível, o homem e a mulher que permaneciam imóveis na borda do corte. Bracejando como um demente, uivando de me­donha alegria, gritando de medo sem sentido, desapareceu na escuridão do mato, uma coisa obscena e suja, que pertencia aos sonhos maus e às hórridas imaginações da loucura. De longe, da distância,, chegou-lhe o uivo e, a seguir, a noite o engoliu.

—   Que coisa horrível! — Ela sentiu que as pernas lhe fal­tavam e não se lembrou de mais nada.

 

 

Leslie abriu os olhos e forcejou por identificar o rosto inclinado sobre ela. Estava deitada à beira da estrada, pois Dick a carregara até o corte, na direção de Willow House.

— Que coisa medonha! — Ela estremeceu e fechou os olhos. — Era o Abade Negro?

Dick Alford não replicou de pronto. Estava tão preocupado com a moça que lhe esqueceram todos os outros interesses.

—   Agora estou bem, disse ela e, com a ajuda dele, ergueu- se, trêmula, em pé. Eu lhe disse que era uma boba. Este é o meu dia de veneta. Que era aquilo, Dick?

—   Estava longe demais para eu poder vê-lo, respondeu o rapaz; provavelmente um dos nossos estúpidos aldeões sob a influência da bebida.

Ela sacudiu a cabeça.

—   Não, não era isso Dick! Era... — Tornou a estremecer. Acho melhor voltar para casa.

—   Creio que você fará bem, tornou ele, gravemente. Eu agora daria tudo para não tê-la trazido aqui.

Ela riu-se, ainda insegura, e achegou-se ainda mais ao companheiro.

—   De certo modo, gostei, confessou; enquanto caminhavam, sem pressa, para a casa dela. Sabe, Dick, tive uma porção de sonhos esquisitos: pouco antes de acordar, tive a impressão de que alguém me beijava. Era tão convincente que ainda sinto os lábios no meu rosto.

—   Eu a beijei, disse ele, sem se envergonhar. Cuidei que o choque a devolvesse à vida!

O riso dela era quase histérico, pois os nervos de Leslie estavam tensos.

—   Você poderia, ao menos, tê-lo negado, acudiu. Você não tem sutileza, Dick!

Enquanto caminhavam passo a passo para a casa, ela o viu olhar uma ou duas vezes para trás.

—   Você não está esperando que... que a coisa venha atrás "de nós, está? perguntou, sem poder impedir que os dentes lhe

batessem.

—   Não, imaginei ter ouvido o barulho de um automóvel (o que era verdade). Eu juraria ter visto um clarão do outro lado da lombada, mas devo ter-me enganado.

Não se enganara, e sabia-o. Um carro os seguira, subindo de manso o morro até o corte; ele vira distintamente os raios refletidos dos faróis e ouvira o macio ronronar do motor. E, o que era mais certo do que qualquer outra coisa, como o carro não poderia tef virado naquela estrada estreita, o motorista desconhecido devia ter apagado as luzes e desligado o motor.

—   Deixe-me vê-la. Fê-la virar-se para a luz do luar e ergueu-lhe o rosto. Não sei se você está horrivelmente pálida ou se isso é um truque da lua, mas o caso é que me parece muito mal! É melhor que vá diretamente para a cama e, se possível, sem ver seu irmão.

—   Por quê? — inquiriu ela, surpresa.

—   Em primeiro lugar, porque não quero que se divulgue essa história de alma do outro mundo. Em segundo lugar... bem, isso não tem importância.

—   Estou contente por haver saído, — disse Leslie, em voz baixa. — E estou contente... — Mas não concluiu a frase.

O silêncio que se seguiu foi um tanto perturbador para ambos. Em seguida, ela se colocou diante dele.

—   Dick, você quer que eu case com seu irmão?

Ele não respondeu.

—   Quer? Quer mesmo?

Ela ouviu-o suspirar no escuro. Não podia ver-lhe o rosto, pois estavam à sombra de um grande cedro, pertinho da casa.

—   Não sei, — disse ele. Havia uma desolação em sua voz que ela já notara uma vez. — Não se trata de eu querer ou não. Não posso oferecer razão nenhuma pela qual não deva realizar-se "o casamento. Você terá de fazer o que quiser, Leslie. A decisão é exclusivamente sua... e se eu fosse um homem habituado a rezar, passaria o resto da noite rezando para que você decidisse bem.

—   Você quer que eu case com ele?

—   Não posso dizer-lhe.

A voz lhe soou dura, e uma onda de cólera e ressentimento desarrazoados contra o alheamento dele a empolgou.

—   Não tornarei a fazer-lhe essa pergunta, — disse, com voz trêmula. — Boa noite, Dick.

Ela entrou correndo no vestíbulo e subiu para o quarto. Muito tempo depois que a jovem se fora ele continuava olhando, ansioso, para a porta que a tragara.

Com algo semelhante ao desespero no coração, Dick Alford seguiu a passos rápidos pela estrada na direção do Corte de Fontwell. Tinha, momentaneamente, algo para distrair-lhe o es­pírito.

Não havia sinal de automóvel e, em lugar de passar pelas porteiras do corte, continuou seguindo o espigão do morro.

Logo depois, viu um novo rastro: o rastro de pneumáticos cuja banda de rodagem tinha por desenho uma seta. Distinguiu o local exato em que o carro parara. Na aparência, o motorista não fizera tentativa alguma para virar, mas andara de marcha-à-ré um bom trecho. Seguiu o rastro até vê-lo fazer um círculo, aparente­mente num campo aberto. A porteira estava fechada mas, na terra argilosa, a marca das rodas era bem visível.

Quinta Vermelha, pensou Dick. Abriu o portão e entrou no campo. A busca foi rápida, pois não tardou a encontrar o carro estacionado junto da sebe que corria paralela à estrada. Os faróis tinham sido apagados, mas o radiador ainda esíava quente. Exa­minou com cuidado o automóvel; trazia chapa de Londres c era novo; um carro dc turismo norte-americano, com todos os aparelhinhos de praxe. Anotou o número da chapa, voltou à porteira, sentou-se sobre ela e ficou esperando.

A vigília não foi prolongada. Do seu posto de observação avistava, acima do morro, a curva superior tio arco da abadia e, cinco minutos depois de haver tornado a sua posição, viu ima figura silhuctada contra o horizonte cruzar a ladeira e descer a encosta na sua direção.

Rodeava o parque dc Fossaway uma cerca de tela de arame de malhas largas, que não oferecia obstáculo algum a quem qui­sesse transpô-la; era evidente, porém, que o estranho não fizera um perfeito reconhecimento do terreno, pois Dick ouviu tinir a tela quando um objeto pesado colidiu com ela, depois un a praga e, logo a seguir, discerniu uma figura que escalava a cerca e saltava para a estrada.

Durante alguns segundos ele a perdeu de vista mas, logo depois, a reviu, contrastando com o alvor da estrada. E veio na sua direção.

—   Boa noite, Sr. Gilder, cumprimentou o rapaz, polida­mente. Está apreciando as vistas de Chelfordbury?

Gilder estremeceu violentamente e quase deixou cair a bengala pesada que trazia.

—   Olá! tartamudeou ele. Quem é?

Um jato de luz saltou-lhe da mão e concentrou-se no inquiridor.

—   Oh, é você! exclamou, respirando fundo. Puxa! você me assustou! Eu estava justamente admirando as suas velhas ruínas ao luar. São bonitas.

—   Em nome das ruínas eu lhe agradeço, — disse Dick, com perfeita cortesia. Quaisquer coisas agradáveis que se possam dizer sobre a Abadia de Chelford são profundamente apreciadas pelo seu atual proprietário.

O homem estava desconcertado e manifestamente constran­gido.

—   Deixei o meu carro no campo; achei que ele talvez pudesse atrapalhar o tráfego... — principiou.

—   O tráfego por aqui, principalmente entre as dez horas da noite e meia-noite, não é muito imenso. Mas se você tem a ilusão de que a Quinta Vermelha lhe pertence, é muito compreensível que o seu automóvel esteja estacionado lá. Entretanto, considero suspeitíssimas as suas perambulações pelas vizinhanças do parque de Fossaway a esta hora da noite, sobretudo depois de certas coisas que aconteceram recentemente.

—   Acha que sou o Abade Negro? — voltou o homem, des­denhoso, e do escuro veio o riso surdo de Dick.

—   Existem muitas possibilidades interessantes a seu respeito, Gilder. O que é que você esperava encontrar na abadia?

—   Eu já lhe disse que estava apenas admirando a paisagem à luz da lua. Se isto constituir um crime, você poderá acusar-me perante a justiça.

Com as mãos enterradas nos bolsos, Dick observou o homem entrar no carro, acender os faróis e acionar o motor.

—   O lugar para admirar as ruínas é no topo do morro e não dentro delas, — exclamou. — Se você fosse um admirador normal, não teria desaparecido da minha vista. Permita-me lembrar tam­bém que não era necessário apagar as luzes nem esconder o carro... Aconselho-o a tomar cuidado, Gilder.

 

 

Dick separou diligentemente as cartas e, escolhendo uma delas, abriu-a. Trazia as armas reais e um simples endereço: "Nova Scotland Yard". Fora escrita por um velho companheiro dc escola.

Meu caro Dick, — Devo agradecer-lhe a sua carta, um tanto quanto extraordinária, mas receio que não possamos atendê-lo ofi­cialmente. Detetives particulares, naturalmente, não servem ao seu intento, e o máximo que posso fazer em seu benefício é o seguinte. Temos um sargento-detetive aqui na chefatura, chamado Huttler — você talvez tenha visto o nome dele ligado ao roubo de Hatton Garden. É um homem eficientíssimo, que já está na lista de pro­moções, mas tem uma aparência esquisita. Na Yard chamamos "Mono Puttler", embora ele seja universalmente estimado, apesar do apelido pouco lisonjeiro. Puttler nunca tira férias e toda a gente supõe que ele passe as horas de folga em investigações criminais e durma num canto qualquer da Yard. Puttler tem direito a uma licença de seis semanas. É claro que, em circunstâncias normais, ele não pensaria em tirar nem seis minutos, mas tivemos, ambos, uma conversinha e, com a plena aprovação do chefe (foi preciso contar-lhe o que você queria) Putler passará as férias na Mansão de Fossaway. Como eu disse, é uma figura de aspecto estranho, abstêmio furioso, membro zeloso da igreja e tem opiniões violentas acerca de música sacra. Você poderá fiar-se inteiramente da sua discrição. Informei-o de que terá dez libras por semana e todas as despesas pagas. Eu quisera poder achá-lo aí permanentemente, mas confio em que, dentro de seis semanas, as suas dificuldades estarão solucionadas.

Dick enfiou a carta, com cuidado, no bolso interno do paletó, cruzou a sala e entrou na biblioteca. Lorde Chelford ouviu fechar a porta e ergueu os olhos.

—   Alô, Dick! — exclamou, amável. — Quais são as novi­dades?

Antes de responder, Dick Alford encaminhou-se para a janela através da qual avistara o irmão, fechou-a e trancou-a.

—   Que aconteceu? — resmungou Chelford.

—   O nosso diabólico amigo tem sido visto e acho aconse­lhável que a sua janela permaneça fechada.

Harry Chelford levou a mão aos lábios.

—   Não se pode fazer nada com esse sujeito? — perguntou, irritado. — Onde está a polícia? Para que a pagamos? É monstruoso que toda a região viva aterrorizada por um... Franca­mente, Dick, você não pode fazer alguma coisa?

—   Mandei vir um homem amanhã para fazer investigações.

Carregou meticulosamente o fornilho do cachimbo e acendeu-o com um palito de fósforo tirado de um recipiente de prata, que se achava sobre a mesa de Harry.

—   Fui à casa de Leslie, — disse ele. — Esqueça esse livro infernal e converse comigo.

Com evidente relutância, Lorde Chelford fechou o grosso volume cuja leitura o absorvia e recostou-se, resignado, na poltrona.

—   Leslie? Tenho-a visto pouco. É uma moça muito inteligente e sabe o quanto sou ocupado. Nem todas as mulheres demonstra­riam a mesma compreensão. Você viu Artur?

Dick fez que sim com a cabeça.

—   Recebi um recado telefônico dizendo que ele viria aqui hoje cedo. Quer que eu assine um documento qualquer, em conexão com os bens de Leslie. Bom sujeito, esse Artur.

—   Muito, — conveio Dick, sem nenhum sarcasmo na voz.

—   Sim, devo muito a Artur. — Harry olhava através dos óculos de aros de chifre e meneava a cabeça à medida que falava.

— Eu não teria conhecido Leslie, e não teria tido a menor idéia de casar, — prosseguiu, candidamente, — mas Artur fazia muita questão de arranjar um marido para ela que não fosse um caça-dotes. E, naturalmente, o dinheiro será útil.

Dick ouviu, paciente, a desconexa justificativa para o próximo casamento. Já a ouvira antes, expressa nos mesmíssimos termos.

—   Mas, afinal, para que queremos o dinheiro? — perguntou. — Não somos pobretões.

Harry Chelford encolheu os ombros magros.

—   Acho que não somos, — replicou, em tom indiferente. — Nunca me preocupei com dinheiro. Você é um camarada tão es­perto, Dick, que não precisei aborrecer-me com isso. Céus, não sei onde eu estaria, se não fosse por você. Você consegue tudo o que quer, Dick?

O outro acenou afirmativamente com a cabeça.

Os seus olhos vasculhavam a escrivaninha e, volvido algum tempo, deram com um livro que raro se encontrava muito longe da mão de Sua Excelência. Levantou-se, estendeu o braço e pegou o livro, enquanto Chelford o observava, com um sorriso triunfante.

—   Você também, hein, meu velho? Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, isso acabaria acontecendo. Você é sensato demais para rejeitar como mito o tesouro de Chelford.

Dick virou as velhas páginas cobertas de uma escrita pálida: o diário daquele Senhor de Chelford que pagara pela sua desleal­dade às mãos do carrasco.

A idéia lhe acudira no meio da noite anterior e, durante o dia, o livro lhe entrara e deixara o espírito nos momentos mais estranhos e incongruentes. Se bem não fosse verdade que ele se tinha convertido à crença do irmão na existência do tesouro, a vaga lembrança de umas linhas do diário lhe espertara a curiosidade. Topando com o trecho, leu:

Esses lingotes ele os colocará no lugar seguro, se o tempo ainda estiver seco e se a seca continuar, embora as chuvas estejam próximas.

—   Estou apenas perguntando a mim mesmo, — disse ele, ao devolver o livro, — qual seria o efeito da seca sobre o esconderijo; e por que a chuva lhe estragaria os planos, como aparentemente havia de estragá-los.

—   Ha, ha! — sobreveio Sua Excelência com alegria quase ruidosa. — O veneno está produzindo efeito, Richard! Você ainda será um caçador de tesouros tão ardente quanto eu. Quer que eu lhe diga onde estava escondido o ouro? — Inclinou-se para a frente, os cotovelos fincados na mesa, os olhos fuzilantes. — Numa caver­na, ou numa câmara subterrânea qualquer. Há três referências neste diário a um picão. — Virou rapidamente as páginas. — Preste atenção, aqui está uma, — disse ele, e leu:

Neste dia Tom Goodman me trouxe o picão de Brightelmstone.

—   Que vem a ser Brighton, presumo eu, — obtemperou Dick.

O irmão assentiu com a cabeça, voltando as páginas.

—   Aqui está outra referência.

O novo picão chegou. Deixei-o perto do lugar, e os pas­palhos que o virem mal saberão do valor que ele tem para mim.

Dick sorriu-se.

—   Deve ter sido qualquer coisa notável em matéria de picões, — disse ele. — Não se faz alusão ao tamanho nem à forma.

—   Em parte alguma; procurei-a pelo diário todo.

Ouviu-se uma batida à porta; era Tomás.

—   Vossa Excelência quer tomar o café aqui?

—   Não, leve para o quarto.

—   Você vai trabalhar esta noite, Dick? — perguntou Chelford.

—   Depois que você tiver ido para a cama, Harry, — tornou Dick a rir-se, — e acho que já está na hora. Num desses dias você ainda terá um colapso nervoso e terei de chamar a sua abo­minação preferida.

—   Credo! — estremeceu Chelford. — Nunca traga um mé­dico para dentro desta casa... eu os odeio!

Ergueu-se, esticou os braços, bocejou, e Dick seguiu-o para fora da sala.

—   Dormirei bem esta noite, — anunciou Sua Excelência, atirando para trás o longo cabelo negro, com um gesto caracte­rístico. — Se eu tivesse conhecido antes aquele negócio!

—   Que negócio? — inquiriu Dick, bem-humorado.

Não se passava um dia sem que um novo remédio patenteado entrasse na casa, alguma panacéia, acompanhado de páginas e páginas de literatura impressa. O hábito dos remédios de Lorde Chelford era um círculo vicioso. A bula de cada panacéia lhe revelava sintomas de que ele jamais tivera consciência até então. E logo que ele se decidia por uma droga qualquer, esta era suplan­tada por outra, ainda mais deslumbrante em suas promessas.

Sobre uma mesinha, à beira da cama, havia um jarro de água quente e um copo. Chelford abriu uma lata escolhida no meio da confusão de frascos e caixas, tirou duas pilulazinhas e deixou-as cair no copo d'água. A seguir, mexeu-as até dissolvê-las, enquanto Dick o observava, entre divertido e penalizado.

—   Ah! — Chelford depôs o copo sobre a mesinha. — Isto é que é! Nada de drogas, Dick... apenas uma mistura de elementos naturais, que trazem repouso ao cérebro cansado e sono aos olhos doridos.

—   Parece-me que você está citando a bula, — disse Dick, pondo-se a rir. — Até a cocaína é um elemento natural. E não há nada mais próximo da natureza do que a morfina. Você é um velho garoto mimado, Harry, e, se me deixasse, eu levaria todas- essas garrafas infernais e as jogaria dentro do lago.

—   E eu, provavelmente, estaria morto dali a um mês, — atalhou Harry com um sorriso, principiando a despir-se, — e você teria de responder a processo por assassínio!

Dick cerrou a porta atrás de si, esperou o ruído do ferrolho e desceu para o seu quarto. O café o esperava e ele meteu ombros à tarefa de três horas: abrir cartas, responder a elas, examinar

folhetos, verificar contas. Havia cheques para assinar, envelopes para sobrescritar, e eram quase três horas quando ele se ergueu, com os músculos duros, abriu uma poria envidraçada, e saiu para o relvado.

 

 

Já havia um prenúncio de aurora no céu. O ar estava suave e puro e ele sorveu largos haustos da champanha da natureza antes de acender o cachimbo e por-se a caminhar, sem ruído, ao longo do gramado, seguindo uma direção paralela à frente da casa.

Nunca se sentira mais insone, e estava debatendo consigo mesmo se devia tomar um banho frio e continuar algum trabalho que deixara inacabado na véspera, quando viu, por um segundo, um pontinho de luz a distância. Um pontinho branco, semelhante a uma estrela, que luziu e sumiu quase instantaneamente.

A casa e as árvores circundantes lhe obstruíam a visão, mas uma caminhada de cinco minutos o levou, através de uma plan­tação rala, aos campos do Priorado. Ou estava muito enganado, ou o ponto luminoso viera da direção das ruínas da abadia. Dei­xou-se ficar, por dez minutos, à sombra de um bosque, mas nenhuma luz apareceu. E, logo, ao erguer o pé para dar um passo à frente, viu-a outra vez um brilho momentâneo; desta feita, não havia dúvida possível: provinha mesmo da abadia. Furtiva­mente, subiu ao topo do Morro, detendo-se para observar.

Novamente a luz, desta vez a menos de cinqüenta jardas, e ele distinguiu o vulío de um homem que se movia de mansinho, entre os muros partidos. Vasculhava o chão com diligência, en­quanto a lanterna lhe balouçava de um lado para outro.

—   Perdeu alguma coisa? perguntou Dick.

O visitante virou-se, com um grito de susto.

—   Olá! Quem é você? perguntou com voz rouca, e Dick reconheceu a voz. Era Artur Gine!

Momento penoso e constrangedor para Artur Gine!

—   Olá! repetiu, muito sem jeito. Eu não conseguia dormir.

—   Estava procurando um soporífico? perguntou Dick, polido. Você devia ter ido à nossa casa; meu irmão tem uma farmacinha, e talvez encontrássemos alguma coisa para a sua insônia.

—   Deixe de gracinhas, resmungou Artur, sem conseguir recompor-se. O que eu queria dizer é que, não podendo dormir, saí para dar uma volta. Este lugar me interessa.

—   Você, por acaso, não viu o Abade Negro? continuou Dick no mesmo tom de conversação urbana. Não? Era de imaginar. Já é um pouco tarde para ele. Os fantasmas da nossa família recolhem-se cedo. São uma turma respeitável, e o Abade, como você provavelmente não ignora, era um homem altamente respei­tável e até religioso, se bem, creio eu, não fosse poupado pela voz ignominiosa do escândalo.

Enquanto falava, caminhava ao lado de Artur na direção do corte da estrada, e a luz não lhe permitia ver o escuro rubor que subira ao rosto bem talhado, mas adivinhou-o.

— Não quero brigar com você, Alford, mas faço veemente objeção aos seus sarcasmos. Não sei por que eu deveria explicar-lhe o que quer que fosse, mas você se mostrou meu amigo esta noite e estou-lhe dizendo a verdade. Francamente, não é bonito da sua parte duvidar da minha palavra.

Dick não respondeu, mas postou-se, em atitude de observação, no alto do barranco, até que o homem abespinhado desapareceu da sua vista. Que significava tudo aquilo? perguntou a si mesmo. Que fascínio exerciam as ruínas da abadia sobre aquelas pessoas tão díspares? Primeiro Mary Wenner, depois Gilder, agora Artur Gine. Que haveria naquelas pedras vetustas, capazes de tirar da cama o exigente advogado àquela hora da madrugada para fazer uma busca? Conhecia-o muito bem, muito melhor até do que ele o supunha. Era um homem que detestava qualquer espécie de desconforto, mas lá estava, às quatro horas da manhã, vestindo um absurdo mas adequado traje de golfe, de talho irreprochável, com uma alavanca numa das mãos e uma lanterna na outra, revol­vendo o entulho da abadia e procurando — o quê? O tesouro!

Só nesse momento a solução ocorreu ao espírito de Dick Alford, e ele precisou sentar-se no bloco mais próximo de arenito para poder rir à vontade até que as lágrimas lhe assomaram aos olhos.

O tesouro! Harry infetara aquela gente prosaica com a sua obsessão. Mas como? Obviamente, Mary Wenner era o elo de ligação. Em dado momento, lembrou-se ele, a rapariga fora uma entusiástica coadjutora dos esforços de Harry, e acreditava tão implicitamente na existência desse ouro mítico quanto o seu patrão. Artur era amigo dela: ouvira-os tratarem-se por "você"; e, através de Artur, Gilder, com certeza, tivera conhecimento do assunto. Assim, tudo se explicava! E o tesouro de Chelford, manifestamente, era o negócio que Artur Gine estava esperando.

Durante todo o trajeto que fez, de volta a casa, Dick sorriu para si mesmo, até que lhe acudiu um pensamento que deixava a história menos engraçada. E se eles estivessem certos e ele estivesse errado? E se existisse, efetivamente, um tesouro? Mas tanto que lhe ocorreu o pensamento, afastou-o com uma gargalhada. Aquela gente apenas refletia o entusiasmo e a crença de Harry.

Fechou a porta do escritório e subiu para o quarto, que olhava para os jardins da Mansão de Fossaway. Defronte da sua porta havia um estreito corredor, que desembocava numa escada igual­mente estreita, pela qual se chegava aos aposentos dos criados. Ao ouvir-lhe os passos na grande escadaria, uma figura penumbrosa, que estivera rondando o corredor, esgueirou-se para a entrada estreita e ali se acachapou. Tomás, o lacaio, viu Dick entrar no quarto e fechar a poria, e respirou, aliviado. Esperou, mas não ouviu mais nada.

Reinava o silêncio na Mansão de Fossaway. Nenhum som chegava do mundo exterior. Cinco minutos depois, Dick dormia profundamente. Cerrara as cortinas, para que a claridade não lhe interrompesse o sono, e o quarto mergulhara numa escuridão quase total.      

De ordinário, ele teria ouvido um som, o som das tábuas do soalho que estalavam do outro lado da porta, e teria despertado incontinenti. Por duas vezes as tábuas rangeram debaixo de um peso respeitável, mas ele não se mexeu. Nisso, a maçaneta da porta girou de mansinho e a própria porta se moveu uma fração de polegada. A coisa do lado de fora pôs-se à escuta, arreganhando os dentes brancos num sorriso. Chegou-lhe o som da respiração regular de Dick Alford e abriu a porta um pouco mais; a seguir, de gatinhas, aproximou-se da cama, tateando, à procura do estrado.

O intruso não emitia som algum e, todavia, todo o seu corpo era sacudido pelo riso. Enfiou a mão no bolso e dele retirou uma faca de mola, abriu-a com cuidado e experimentou-lhe o fio com o polegar. Ato contínuo, lentamente, os seus dedos longos se adian­taram, tentando localizar a posição do corpo. O Anjo da Morte pairou, naquele segundo, sobre o homem adormecido.

Da sala no andar térreo subiu a voz de uma mulher desvairada fora de si de terror.

Dick... Dick, pelo amor de Deus!

Dick virou-se, intranqüilo, na cama e entreabriu os olhos.

 

 

—   Dick!

Era a voz de uma moça, estridente de medo, que vinha da sala. lá embaixo.

—   Dick!

A coisa que empunhava a faca deixou-a cair, recuou na direção da porta,, hesitou por um segundo, e saiu.

—   Dick!

Novamente a voz, e Dick despertou. Estaria sonhando? Escorregando da cama, abriu a porta e chegou ao patamar da escada.

—   Quem está chamando? perguntou, rouco de sono.

—   Sou eu... Leslie! Dick, preciso de você.

Ele voltou para o quarto, arrancou um roupão do cabide e disparou escada abaixo, arrumando-se enquanto descia. Ela estava em pé, no meio da sala escura. Não trazia chapéu; enfiara os pés descalços num par de chinelos e um casaco sobre o que era, evi­dentemente, uma saia vestida à pressa.

—   Que aconteceu, meu bem?

Ele abriu a porta do seu escritório e fê-la entrar. Ela tremia da cabeça aos pés.

—   Não sei. Alguma coisa medonha aconteceu, ofegou a moça. Pensei que o meu carro o acordasse... você não ouviu?

—   Alguma coisa medonha aconteceu? O quê? perguntou ele, depressa.

—   Não sei. Acho que estou vendo tudo fora de proporção... vi Artur lutando com um homem no gramado. Foi horrível. Ima­ginei estar enganada e fui ao quarto dele, mas a cama estava vazia e nem fora desarrumada. Enquanto eu descia a escada e chegava ao gramado, eles desapareceram. Oh, Dick, o que é que pode ter acontecido?

—   Lutando? O tom do rapaz era de incredulidade. Vi Artur... não sei há quanto tempo; talvez há uma ou duas horas. Não sei quanto tempo dormi.

Já era dia; o relógio sobre o consolo da lareira indicava cinco horas e um quarto.

—   Espere um minuto. Estarei com você num instante.

Subiu correndo a escada e, cinco minutos depois, estava junto

dela, vestido, e, ajudando-a a entrar no carro, fez voar o automovelzinho pela alameda.

—   Como foi que você entrou em casa?

—   Pelo escritório. Toquei a campainha da porta, mas nin­guém atendeu. Então, experimentei as suas portas envidraçadas e vi que estavam abertas.

—   Sempre me esqueço do fechá-las. Ainda bem que mi esqueci. E elas nunca mais serão fechadas no futuro. Agora, con­te-me direitinho o que aconteceu.

Ela contou a história coerentemente. O simples contacto com aquele homem lhe restituía a coragem. E à proporção que se tornava mais calma, tornava-se penitente.

—   Você há de pensar que vivo tremendo de medo! disse, em tom lamentoso. Não sei que horas eram... deve fazer meia hora, mais ou menos... eu estava dormindo quando ouvi vozes. Fui à janela e olhei. Estava escuro; há uma porção de árvores defronte da casa; mas vi dois homens, e não teria sabido que um deles era Artur se não o tivesse ouvido falar, com raiva.

- Ouviu alguma coisa do que ele disse?

—   Não, os dois estavam muito longe. Perto dos loureiros, que escondem a casa da estrada. Depois vi Artur bater no homem, e os dois se engalfinharam, e foi tudo o que vi. Quando consegui chegar lá embaixo, eles tinham desaparecido. — Logo, em outro tom: — Mas você disse que o viu? Como foi isso?

Dick apresentou uma versão do seu encontro com Artur imerecidamente lisonjeira para o advogado.

—   Mas não pode ser verdade! — volveu ela, perplexa. — Ele nem sequer se deitou. Que significa tudo isso, Dick?

—   Só Deus sabe! — respondeu Dick, piedosamente. — Eu quisera que o meu amigo Puttler estivesse aqui.

O carro passou pelo corte e tomou a longa reta que conduzia a Willow House; estavam entrando na alameda quando Dick viu um homem caminhando à sua frente.

—   Lá está o seu Artur, — disse ele, e ela expediu um gritinho de alegria.

Era Artur, mas com uma diferença. O nariz sangrara e um dos olhos estava ligeiramente descolorido. Em outras circunstâncias, Dick teria rompido numa gargalhada, mas a jovem se mos­trava tão aflita com as contusões sofridas pelo irmão que teria sido até brutal encontrar motivo de riso na desordem em que se achava o ajanotado causídico.

—   Não foi nada, — disse ele, mal-humorado. — Topei com um caçador furtivo e acabei discutindo com ele.

As calças novas de golfe estavam sujas e rasgadas ao nível dos joelhos; os nós das mãos de Artur, escoriados, sangravam. Dick percebeu que aquele não era o momento de fazer perguntas, e seguiu os irmãos ao interior da casa, como um interessado e cauto observador dos acontecimentos.

Os criados tinham sido acordados e um deles trouxe um pouco de café. Semimorto de sono, Dick aceitou, agradecido, a xícara fumegante.

—   O que é que você acha que aconteceu, Dick? — perguntou ela, depois que Artur subiu para o quarto a fim de tratar dos seus ferimentos, tendo recusado o auxílio que a irmã lhe oferecera.

—   Acho que ele nos contou o que aconteceu. Teve um desentendimento com um caçador furtivo... uma briga comum. É uma dessas coisas desagradáveis que o melhor dos homens nem sempre consegue evitar.

Ela dirigiu-lhe um olhar desconfiado.

—   Você não está sendo sincero, Dick. E não pode ter sido um caçador furtivo. Tenho absoluta certeza de que era o Sr. Gilder.

Dick não estava preparado para refutar esse ponto de vista. Já lhe ocorrera a probabilidade de que o adversário de Artur fora o seu funcionário principal. Mas por que estaria Gilder nas ime­diações de Willow House àquela hora da manhã? Numa ocasião mais propícia, pediria a Artur Gine que lhe contasse a verdade.

Percebeu que ela estava olhando para ele e, encontrando-lhe os olhos, viu uma coisa que o fez perder a respiração.

—   O que é que eu faria sem você? — perguntou ela, com um gesto de impotência. — Corro para você todas as vezes que me magôo, e você aparece, num passe de mágica, todas as vezes que estou em dificuldades! Dick, um dia desses ainda serei uma vergonha para o meu sexo!

—   Espero que não, Leslie, — respondeu ele, sorrindo. — O que é que você tem em mente de tão vergonhoso?

Ela inclinou gravemente a cabeça.

—   Você vai ver. Também sei ser misteriosa!

Ele não aceitou a oferta do carro dela e voltou a pé para casa. A menos que o soporífico tivesse surtido efeito, Harry teria ouvido o ruído do carro, pois o seu quarto deitava para a alameda. Mas nenhum som chegou da Câmara do Rei, como era grandiloqüentemente chamado o seu quarto de dormir, e Dick, recolhendo aos seus aposentos, despiu-se.

Já ia deitar-se quando o seu pé tocou numa coisa dura e brilhante. Abaixou-se e apanhou-a.

—   Misericórdia! — murmurou, e acendeu a luz.

A faca era nova e tinha o fio de uma navalha. Virou-a e revirou-a nas mãos, com sobrecenho. Em seguida, trancou a porta. Não costumava dormir atrás de portas trancadas. Mas compreen­dera que as vinte e quatro horas por que estava passando fervi­lhavam de possibilidades desagradáveis.

 

 

O escritório de Gine & Gine amanheceu em rebuliço no dia seguinte, mercê de uma ocorrência totalmente inesperada. Pela primeira vez nos seus vinte e cinco anos de conexão com a firma, o Sr. Fabrian Gilder não aparecera. Em lugar do Sr. Gilder che­gara uma nota, endereçada ao funcionário mais antigo, em que se pedia que certa gaveta da sua mesa fosse aberta e o conteúdo dela enviado, por mensageiro especial, à casa do Sr. Gilder, em Regenfs Park. Um pós-escrito rematava a nota:

Ê pouco provável que eu volte à firma. Entreguei o meu pedido de demissão ao Sr. Gine e tenciono dedicar o meu tempo ao desen­volvimento dos meus negócios particulares.

Um telegrama de Artur Gine incumbia o funcionário mais antigo de ocupar o posto do renunciante Gilder: arranjo não muito satisfatório para o funcionário mais antigo, pois circulavam rumores desagradáveis a respeito de Gine & Gine, insinuações de terríveis acontecimentos futuros, que faziam tremer em sua base os membros mais antigos do pessoal.

 

Dick Alford tomou banho e barbeou-se pouco antes do almoço, desceu e constatou que o trem do meio-dia lhe trouxera um visi­tante.

Embora nunca o tivesse visto, reconheceu o Sargento Puttler pela descrição que o seu amigo lhe enviara. Era um homem alto e escaveirado de quarenta anos. Os olhos castanhos e cansados, que olhavam com suave melancolia das órbitas fundas, lembraram-lhe um chimpanzé doente e macambúzio que vira, certa vez. A testa era baixa, o lábio superior comprido e os braços quase alcançavam os joelhos. Acrescentados a uma curvatura constitucional do corpo, esses traços concorriam para a aparência pouco atraente. O pobre Sr. Puttler não era alheio ao molde simiesco em que se lhe mode­lara a forma e esta, ao que tudo indicava, o deprimia e alegrava, alternadamente.

—   Então, senhor, que tal lhe pareço? — perguntou, sem sorrir, apesar do brilho de malicioso júbilo nos olhos castanhos. — Tenho conhecido pessoas que desmaiam ao ver-me pela primeira vez, so­bretudo pessoas românticas.

—   Não desmaiarei, — prometeu Dick, com um sorriso, — provavelmente porque não sou romântico.

O lacaio entrou nesse momento; devia possuir uma alma ultra-romântica, pois vacilou e pestanejou visivelmente à vista do estranho de braços compridos.

—   Leve o Sr. Puttler ao quarto dele. Depois, Puttler, venha almoçar, que eu tenho uma coisa para contar-lhe.

O aparvalhado Tomás subiu a escada à frente do estranho e conduziu-o ao quarto pegado ao de Dick. A governanta fora avisada da sua chegada e o quarto estava pronto. Puttler colocou a maleta no chão e circungirou os olhos pelo formoso aposento.

—   Há mais alguma coisa que eu possa fazer, meu senhor? — perguntou Tomás.

O Sargento Puttler piscou para ele.

— Nada, obrigado. — E, quando Tomás fez menção de retirar-se: — A propósito, como é que você se chama agora?

—   Eu, senhor...? O meu nome é Tomás Felizão.

Puttler abanou tristemente a cabeça.

—   Tomás Azarão, — disse ele; — Dito Pé-frio ou Zé Urucubaca. O seu patrão já sabe que o seu nome é Sleisser e que você passou uns tempos em Dartmoor?

—   Não, — retrucou o homem, taciturno.

—   Pois saberá, Tomás... saberá, — afiançou gentilmente o detetive, e o lacaio, com um olhar assassino, esgueirou-se para fora do quarto.

O Sr. Puttler desceu vibrando de satisfação.

—   O senhor tem certeza de que aquele é o meu quarto, Sr. Alford? — indagou. — Não está, porventura, esperando o Prín­cipe de Gales? Sempre alimentei a secreta ambição de dormir numa cama de sobrecéu. Pronto, Sr. Alford.

—   Primeiro que tudo, preciso apresentá-lo a meu irmão. A propósito, ele possui um temperamento meio nervoso, e eu lhe disse que você pertence a uma firma de contadores, e veio aqui ajudar-me a por em ordem os meus livros.

O Sr. Puttler exprimiu a sua anuência a essa branda forma de logro. Foi levado à biblioteca e formalmente apresentado. Harry Chelford estava tão acostumado ao advento dos extraordinários con­vidados de Dick, que não viu nada de insólito no aparecimento do simiesco Puttler. Felizmente era míope e, conquanto fosse para ele uma experiência assustadora ver-se apertando a mão de outra pessoa por cima de uma escrivaninha imensamente larga, que um homem comum não abarcaria, não compreendeu a causa do fenômeno.

Dick recebia contadores, corretores de imóveis, um ou outro intendente ocasional, de modo que não havia novidade alguma no convite. Estranhos de sábia carantonha sentavam-se à sua mesa, de onde em onde, eram-lhe apresentados e desapareciam da sua lem­brança.

—   Ficará seis semanas, — explicara-lhe o irmão, — e você não deverá achar ruim se o vir rondando o lugar, porque eu quero uma avaliação do imóvel, e ele tem os seus métodos especiais.

—   Você poderia mandá-lo avaliar o Abade Negro, — acudiu Harry, entre severo e divertido. — Nós precisamos, Dick, menos de um avaliador que de um bom policial.

Dick Alford achava que o convidado poderia exercer as duas funções, mas guardou para si a observação.

Conduziu o visitante de volta ao seu escritoriozinho, fechou a porta com cuidado e sentou-se à mesa.

—   Agora, fique à vontade. Fuma?

O Sr. Puttler remexeu no bolso e de lá trouxe um cachimbo preto.

—   Não é muito aristocrático, — disse, à guisa de escusa, — mas prefiro isto a charutos e cigarros.

—   Eu lhe farei companhia.

O escritório tinha duas portas: uma, que se abria para a sala e outra, para um corredor de serviço, que ia dar no quarto da gover­nanta. Havia dois minutos que os dois estavam conversando, con­quanto a contribuição do Sr. Puttler ao discurso se resumisse em uma ou outra pergunta ocasional, quando Tomás chegou sem ruído pelo corredor lateral, deu uma espiada na sala e voltou para a porta do escritório. Havia um quê de apreensão no rosto magro e informe, não de todo infundado. Inclinando-se, aplicou um olho à fecha­dura. Só conseguia ver a ponta do sofá e a cabeça e os ombros do estranho visitante. Este segurava qualquer coisa na mão — uma faca de cabo branco — e examinava-a com curiosidade. Tomás inclinou a cabeça e comprimiu o ouvido de encontro ao buraco da fechadura.

Dick tinha as costas voltadas para a porta e falava em tom mais baixo que o usual, o que representava uma desvantagem para o escutador, visto que só lhe chegavam poucas frases claras e inte­ligíveis.

"... pode ter sido alguém admitido na casa por um dos criados", foi a primeira coisa que ouviu. Poucos minutos depois, o Sr. Puttler, cuja voz era nítida, perguntou: "A janela da biblioteca estava aberta?" E ele ouviu Dick responder "Estava", ajuntando qualquer coisa incompreensível.

As solas e os saltos das botas de Tomás eram de borracha. Foi até à sala para fazer outro reconhecimento, e voltou ao posto de escuta, a tempo de ouvir Dick declarar:

—   Meu irmão não tem um único inimigo no mundo. Receio já não poder dizer o mesmo...

De uma feita, o escuta captou a palavra "tesouro" e, de outra, ouviu o nome de "Artur Gine", mas não ficou sabendo a troco de quê. Tomás fez nova visita à sala. Não poderia arriscar-se a ser visto com o ouvido colado à porta. Segundo lhe pareceu, não estava sendo observado. O velho mordomo de Chelford encontrava-se na sala dos* criados. Dick e o irmão não almoçavam antes das duas, horário miserável do ponto de vista dos criados, mas muito conve­niente para Dick e a sua peculiar ocupação.

Voltou a espiar pelo buraco da fechadura. O detetive continuava com a faca na mão e observava-a atentamente. Ouviu-o dizer, "Isto é novo" e, logo em seguida, Dick encetou uma declaração longa e aparentemente explanatória, nenhuma palavra da qual che­gou aos ouvidos do enfadado explorador. Este ansiava, principal­mente, por ouvir alguma referência a si mesmo. Mas, ou esta não foi feita, ou o próprio nome lhe escapou.

Logo após, entretanto, identificou uma expressão familiar. Dick Alford discorria sobre o Abade Negro, e Tomás ouviu uma sumária descrição do abantesma. Depois, a voz fez-se mais baixa e, conco­mitantemente, o aflito lacaio ouviu os passos majestosos do mor­domo, esgueirou-se na direção do quarto da governanta e estava atarefado na louçaria quando o imponente Sr. Glover o encontrou.

 

 

O almoço não foi uma refeição cordial. Harry adquirira o hábito vergonhoso de trazer um livro para a mesa das refeições, e absorveu-se totalmente na leitura do volume, deixando Dick e o visitante encarregados de sustentar a conversação, como se ele não estivesse presente. Só uma vez Dick interrompeu a leitura do irmão.

—   Leslie vem tomar chá, — anunciou. — Ela telefonou pouco antes do almoço.

Harry Alford ergueu os olhos e pareceu consternado.

—   Isso é uma lástima! Eu havia prometido a mim mesmo uma tarde sem interrupções com Fra Heikler. Acabo de receber uma edição fac-similada, que me mandaram de Lípsia. Como você deve estar lembrado, Dick, Heikler era um monge enclaustrado do tempo de Elizabeth, sendo a nossa uma das poucas abadias que não sofreu a interferência de Henrique VIII, nem de Elizabeth; em parte, segundo me parece, porque a nossa ordem de monges era infensa aos jesuítas.

Dick ouviu, paciente, e quando o irmão esgotou a história dos Monges Negros de Chelfordbury:

—   Você terá de ser delicado e aparecer para o chá; depois disso, Leslie, sem dúvida, não fará objeção a que você volte a Fra Heikler, que era alemão, suponho eu?

—   Era alemão, — confirmou Harry gravemente. — E as circunstâncias que o trouxeram a Chelfordbury foram notáveis.

—   O melhor alemão a cujo respeito já li — atalhou o Sr. Puttler — chamava-se Robinson Crusoe.

Dick reputou grosseira a piada do conviva mas, a ser assim, o Sr. Putler não tivera consciência do seu humor. Harry encarou no "conador". Ele levava realmente muito a sério as declarações desse gênero.

—   Não estou muito familiarizado com Robinson Crusoé, — acudiu ele, — mas o senhor, sem dúvida, labora em erro quando afirma que era alemão. Sempre considerei tais personagens tipica­mente inglesas.

—   Ele era alemão, — voltou, com firmeza, o Sr. Puttler, — muito embora pouca gente se dê conta do fato. Se o senhor exa­minar a primeira página da história encontrará estas palavras: "Meu pai era um mercador de Bremen", e Bremen fica na Alemanha, ou eu sou holandês. E se o pai era alemão, ele também era alemão, pois naquele tempo não havia o que hoje se conhece por natura­lização.

Essa prova de erudição literária da parte do visitante produziu notável mudança na atitude de Harry. Até então se diria que Puttler nem sequer existisse. Não havia diferença entre ele, o leiteiro, o vendeiro e o estafeta da aldeia.

Travou-lhe afetuosamente do braço e conduziu-o à biblioteca, onde Dick os deixou, sabendo exatamente a natureza dos .ensina­mentos que o Sr. Puttler receberia; pois o primeiro gesto de Harry foi abrir a escrivaninha e tirar o Diário. Dick sentiu-se aliviado por lhe tirarem Puttler por uma ou duas horas. Naquele dia estava expe­rimentando uma sensação incrível de alívio. Um grande fardo fora removido dos seus ombros e uma das suas mais prementes e secre­tas aflições quase se dissipara.

Percorreu a metade da alameda ao encontro do automóvel de Leslie e saltou sobre o estribo com o carro ainda em movimento.

—   Estou treinando para ser condutor de bonde, — exclamou, jovial. — Já escolhi a minha profissão, para quando você chegar à Mansão de Fossaway, senhora de todos estes domínios.

—   E quando será isso, Dick? — perguntou ela, sem voltar o rosto para ele.

—   Nunca, espero eu.

Com a alegria que lhe transbordava do coração, ele não mantivera o costumeiro policiamento da língua e as palavras lhe saíram da boca antes que pudesse detê-las. Por duas vezes fora apanhado desprevenido, e teria dado tudo para desdizer o que dissera.

Aparentemente, ela não emprestou grande significação às suas palavras, acelerando o carro até chegar ao amplo espaço, forrado de cascalhos, diante do velho pórtico. Dick saltou quando Leslie fez parar o automóvel e ajudou-a a descer.

—   Preciso prepará-la para conhecer um curioso personagem, — disse o rapaz, e descreveu o Sr. Puttler com traços mais reais do que lisonjeiros.

—   Quem é ele, Dick?

—   Um contador, — respondeu, desenvolto. — Mas é tam­bém um sujeito divertido, cheio de conhecimentos misteriosos. Quer ver? Você sabe que Robinson Crusoé era alemão?

—   Pois é claro! O pai dele morava em Bremen, — disse ela, e ele ainda se ria quando chegaram à biblioteca.

Em presença da noiva, Lorde Chelford deu mostras de um nervosismo e de uma gaucherieque só teriam sido compreensíveis se a estivesse encontrando pela primeira vez. Não se afizera de todo a novidade do noivado, e a atitude que assumia diante dela era menos de reverência que de respeitoso temor.

—   Como vai, Leslie?

Nunca a beijara; naquele momento, segurou-lhe a mão por uma fração de segundo e largou-a, como se ela o queimasse.

—   Você conhece o Sr. Tuttler?

—   Puttler, — emendou o outro, e Leslie, olhando para os olhos melancólicos, leu neles alguma coisa que escapara a Dick e que possivelmente, nem os mais íntimos companheiros do Sr. Puttler tinham visto.

Ela não lhe fez o pífio cumprimento de sentir pena dele, conquanto lesse naquelas profundezas rasgadas, às vezes, de súbitos relâmpagos, um anélito de simpatia feminina que a Natureza, pela sua obra cruel, lhe negara de antemão.

—   Prazer em conhecê-la, Srta. Gine. Conheço seu irmão... O Sr. Artur Gine, o advogado, não é? Foi o que pensei.

—   Artur não veio? — perguntou Harry.

—   Não, — respondeu Dick. — Vamos tomar chá na sala. Você virá depois, Harry?

—   Claro, claro, — apressou-se a dizer o outro. — Descul­pe-me, querida. — Era com esforço que empregava até uma expressão tão conhecida de afeto.

Quando chegaram à bela sala de estar, com as janelas abertas para o terraço, e uma profusão de magníficos crisântemos sulfurinos, que surgiam acima da balaustrada de pedra, perceberam que esta­vam sós. O Sr. Puttler derretera no meio do caminho. Ele explicou mais tarde que desejava dar uma volta pelo jardim, mas a jovem conheceu que o misterioso instinto do homem lhe contara que, à de todas as pessoas do mundo, aqueles dois preferiam a companhia uni do outro.

—   Você dormiu? — perguntou ela.

Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

—   Só me levantei para o almoço. E você?

Ela sacudiu a cabeça.

—   Não pude dormir. Pobre Artur!

—   Você experimentou um bife? — perguntou Dick, com rudeza. — Francamente, se há duas coisas que não conheço juntas são um olho preto e Artur Gine!

—   Ele está tremendamente abalado, — voltou a moça em tom sério. — Nunca o vi tão transtornado. Era mesmo o Sr. Gilder.

—   Eu sabia. Ou melhor, tinha um palpite. Você descobriu a causa da briga?

Ela hesitou.

—   Não sei; creio que foi qualquer coisa a meu respeito.

—   O que é que Gilder estava fazendo em sua casa?

—   Artur não me contou, — respondeu Leslie. — Do que ele me disse deduzi que o Sr. Gilder estivera espreitando Artur e o seguira a algum lugar.

—   Às ruínas da abadia... é, é bem possível. E seu irmão, naturalmente, objetou contra isso. Por que estarão eles à espreita um do outro?

—   Artur está espreitando Gilder? — perguntou ela, surpresa.

—   É o que parece. Leslie, quero contar-lhe uma coisa que ninguém mais sabe, nem mesmo Harry. Talvez traga um pouco de tranqüilidade ao seu espírito nas horas escuras da noite. Puttler é um detetive, um homem da Scotland Yard.

Ela encarou com ele.

—   Um detetive? Mas por que...?

—   Têm acontecido coisas ultimamente que não me agradam muito. Tenho ficado quase doente de preocupação por causa delas, e embora eu seja perfeitamente capaz de lidar com a maioria das contingências, o Senhor ordenou que eu descanse sete em cada vinte e quaíro horas, e alguém tem de ficar acordado enquanto eu estou dormindo.

—   O Abade Negro... é isso o que o preocupa?

Ele mordeu o lábio pensativamente.

—   Sim e não. Alguns aspectos da atividade do Abade Negro me perturbam mais do que eu gostaria de confessar. Leslie, você acredita no tesouro?

—   No tesouro de Chelford? — tornou ela, espantada. — E o que é que você quer dizer com isso de acreditar nele? É verdade que o ouro foi trazido para a Mansão de Fossaway em outro tempo, não é?

—   Perfeitamente. E também é verdade, imagino eu, que foi levado daqui. Mas você acredita que ele tenha alguma existência, que possa ser encontrado? Se alguém escavasse cada polegada qua­drada do parque, demolisse esta nossa velha casa, sondasse as entranhas da terra, você acha que o ouro poderia ser encontrado? Porque, se você não acredita, outras pessoas acreditam, além de Harry.

—   Você acredita? — A pergunta era um desafio.

Ele arrancou do peito um suspiro profundo.

—   Sei lá! Estou pronto para acreditar em qualquer coisa! E eu supunha que a minha distinta inteligência jamais chegaria a tais profundezas. Mas, Leslie, meu bem, estou ficando... — ele in­terrompeu-se, à procura de uma palavra.

—   Convencido?

—   Não exatamente convencido, mas abalado em minha obsti­nação. Comecei a duvidar do meu próprio ceticismo, e essa é a pior condição mental a que um homem pode chegar... ou quase.

—   Harry já sabe que você se converteu? — E os olhos dela piscaram, maliciosos.

—   Desconfia, — disse Dick, deprimido. — Se eu imaginasse que o dinheiro estava aqui...

Ela encarou firmemente com ele.

—   Seria muito importante para você, Dick?

—   Para mim pessoalmente, — ele sacudiu a cabeça, — Deus sabe que não. Seria muito importante para a... — Deteve-se, e ajuntou, logo depois: — Para Harry. Eu ia dizer para a proprie­dade. A propriedade, para mim, é algo distinto de qualquer perso­nalidade. Representa a soma dos esforços de homens que já morre­ram, e o resultado cumulativo de todo o seu trabalho.

Ela fitou-o por um largo espaço, com surpresa e admiração. Amava-o assim, compenetrado e grave.

—   Você transformou a Mansão de Fossaway e os domínios de Chelford numa espécie de fetiche, não transformou?

—   Será? — Ele parecia genuinamente surpreendido. — Não sei... — Logo depois, desatou a rir. — Nada mau para um filho segundo exaltar as propriedades que nunca serão suas, acima da personalidade do homem que as herdará! Isso o torna superior ao próprio herdeiro. Traduza fetiche por vaidade, pois disso tenho o meu quinhão.

—   Duvido, — respondeu ela tranqüilamente. — Vamos para o terraço. As suas flores são lindas.

—   Tudo no jardim... — principiou ele, mas ela o conteve com um dedo admonitório.

—   Se você cair na vulgaridade, vou procurar Puttler.

 

 

Dick observou que, enquanto Harry se achava presente, as atitudes da jovem eram um tanto forçadas e irreais, e ela parecia nervosa; estremecia quando lhe dirigiam a palavra e contentava-se de ouvir, sem participar da conversação. Só quando Harry voltou, com uma desculpa esfarrapada, à biblioteca, ela tornou à vida, e a velha Leslie de sempre saiu do seu esconderijo. A certa altura enquanto Dick e o irmão conversavam sobre os subterrâneos de Chelford, ela saíra para o terraço e, com o rabo dos olhos, ele a vira de perfil: uma garota esbelta, de aparência frágil, rosto deli­cado, cabelo maravilhoso; naquele cenário, parecia quase etérea. Dir-se-ia que uma velha obra-prima de Botticelli ganhara vida.

Quando a porta se fechou, após a saída de Harry, ela voltou e sentou-se, fazendo uma careta.

—   Foi muita grosseria de minha parte sair? Dick, não con­sigo interessar-me de maneira alguma pelas coisas que fascinam Harry! Quais serão os seus temas de conversação quando o tesouro for encontrado?

—   O tesouro? Oh, você se refere ao ouro? Ele, provavel­mente, falará sobre você.

Ela fez uma pequenina moue.

—   Sou moça demais para interessar a Harry, trezentos anos moça demais, disse ela. Agora me fale do seu detetive. Gostei do que vi nele. Será o seu anjinho da guarda? E, Dick, se ele tiver de patrulhar a região... é assim que se fala? eu gostaria que in­cluísse Willow House. Sou até capaz de emprestar-lhe o meu carro.

—   Você está realmente assustada?

Ela pensou um pouco antes de responder.

—   Acho que estou. Quando eu era criança, o primeiro raide aéreo me fascinou, o segundo me pareceu interessante mas, depois do terceiro ou do quarto, eles se tornaram... simples raides aéreos. E o Abade Negro é... é muito pitoresco, Dick, mas um pouco aterrador. Não foi você que me disse que Harry tem medo dele?

—   Um pouco.

—   Por quê?

—   Harry tem um temperamento naturalmente nervoso, explicou Dick. As pessoas nascem assim, e é absurdo falar em "covardia" no caso delas. Ora, eu nasci sem saber o que são ner­vos, e atrevo-me a dizer que, se me visse perseguir o Abade Negro, você talvez me julgasse terrivelmente corajoso. Na realidade, isso só acontece porque não tenho imaginação.

—   Isso não é verdade, acudiu ela. Por que é que você tem a mania de amesquinhar-se?

—   Porque sou, por natureza, excessivamente modesto, replicou ele, em tom grave.

Nesse momento, os dois avistaram o Sr. Puttler passeando no meio das longas filas de roseiras, que se erguiam paralelas à ala oriental. Desceram juntos a escada do terraço e interceptaram-no.

—   É um lugar lindo, exclamou o Sr. Puttler meneando a cabeça com admiração. Nunca vi tanta rosa junta na minha vida, a não ser no mercado de Covent Garden. mas aquilo não são rosas, são apenas mercadoria.

—   Eu disse à Srta. Gine que você é detetive, Puttler.

Puttler franziu o cenho.

—   O senhor conhece a Srta. Gine melhor do que eu, replicou em tom bem-humorado. — Pessoalmente, acho a vida muito mais fácil de se viver quando não se abre a boca. Não que eu queira censurar, — apressou-se a acrescentar. Acontece que essa é a minha maneira de raciocinar e a minha maneira de falar. Em nossa divisão havia um funcionário que, de simples policial, passou a superintendente pelo simplíssimo processo de nunca dizer nada a ninguém. Um dia, o superintendente disse a esse homem, cujo nome era Carter: "Carter, não posso compreender..."

Craque! Uma bala passou assobiando perto do rosto do detetive, atingiu o tronco de uma árvore e estilhaçou um trecho da casca. De uma moita de azáleas, a duzentas jardas de distância, subiu uma pálida nuvem azulada.

—   Deitem-se no chão! ordenou Dick, com voz rouca, e puxou Leslie para baixo, a tempo.

Craque! A segunda bala zuniu mais baixo. Uma lasca de ma­deira passou voando pela orelha da moça.

—   Há alguém naquelas moitas que não gosta de mim, comentou o Sr. Puttler.

Sacando do bolso uma Browning de cano longo e agachando-se, partiu na direção da moita, ziguezagueando enquanto corria.

Soou o terceiro tiro, e o homem que corria caiu para a frente, de borco, e ficou imóvel.

 

 

—   Vá para trás daquela árvore e não se mexa, gritou Dick em tom autoritário, mas pela primeira vez Leslie não lhe obedeceu.

Estava pálida, mas não exibia outros sinais de medo quando se ajoelhou ao seu lado e principiou a desabotoar o colarinho do homem ferido.

—   Ele está sem sentidos. Mas não creio que seja alguma coisa pior do que isso, observou Dick. A princípio, pensei que estivesse liquidado... Olhe para o bota dele!

A sola havia sido arrancada.

O detetive gemeu e abriu os olhos.

—   Olá! Que aconteceu? perguntou, circunvolvendo os olhos. Aquele camarada me alvejou?

—   Não creio que ele o tenha ferido muito.

Dick estava olhando para o pé do homem. A bala ricocheteara, produzindo um corte não muito profundo no peito do pé, mas não havia outro ferimento.

—   Você se sente em forma para tomar conta da Srta. Gine? perguntou Dick.

O detetive procurou à sua volta a arma que deixara cair, apanhou-a e pôs-se em pé. Sem outra palavra, Dick transpôs correndo o gramado na direção da moita e a jovem o observou, aterrada, esperando, a cada segundo, ouvir o tiro seguinte e fatal.

Passados cinco minutos, ele se ergueu atrás das moitas, segurando qualquer coisa na mão, que examinava curiosamente ao caminhar para eles.

- Um rifle Lee-Enfield, modelo do exército, — anunciou.

—   Encontrei estas cápsulas.

Colocou-as na mão do detetive. Puttler examinou com o máximo cuidado os cartuchos queimados.

- O senhor, naturalmente, não o viu? — perguntou.

- Não, suponho que ele tenha dado a volta para os fundos

da casa. Estas moitas se estendem, praticamente, da ala ocidental da Mansão de Fossaway até a extremidade do Morro. É possível, evidentemente, que ele ainda esteja escondido entre as folhagens, mas o mais provável é que tenha escapado assim que o viu cair. Acho melhor entrarmos, que vou procurar um par de sapatos para você, a menos que tenha um par de reserva.

—   Não foi acidente: isso eu posso assegurar-lhe, — disse o Sr. Puttler, tratando do seu ferimento. — Os dois primeiros tiros atingiram a árvore, a três polegadas de distância um do outro. Vai dar parte à polícia, Sr. Alford?

Dick refletiu por um momento e decidiu-se pela negativa; para surpresa de Leslie, o detetive aprovou-o.

—   Acho que tem razão, — conveio Puttler. — Onde fica o estande mais próximo de tiro ao alvo?

—   A umas quinze milhas daqui, — replicou Dick, sardóônico.

—   Não enverede por esse lado.

—   Não estou enveredando por lado nenhum, — voltou o detetive. — Estou apenas prevendo possíveis álibis. Passei a vida toda diante de álibis, agitando uma bandeira vermelha.

Por baixo do queimado da tez, o rosto de Dick estava cinzento. Dir-se-ia que ele houvesse envelhecido de repente, e Leslie considerou-o com ansiedade.

—   Dick, contra quem estavam atirando?

—   Não sei se estavam atirando contra alguém, — respondeu ele em tom cansado. — Deram apenas umas salvas para assustar-nos.

A seguir, pôs-se a rir; um riso duro, selvagem, que a fez encolher-se.

—   Perdão, Leslie; acho que estou ficando assustado.

Ouvindo-o, ela sorriu.

—   Despeça-se de Harry por mim, Dick, por favor. Prometi a meu irmão que chegaria cedo a casa. Não, é verdade, você não precisa levar-me. Não tenho medo nenhum de ser assaltada por bandidos armados.

—   Nem eu, — declarou Dick, — mas não me fio muito em você como motorista.

Aborrecida com a falsa acusação, ela se esqueceu de obstar a que ele a acompanhasse.

Quando Dick regressou a casa, Puttler já havia feito um curativo no pé. O ferimento era tão insignificante, que pôde calçar os sapatos, e zombou da idéia de ficar de molho naquela noite.

—   Escapei por um triz, — disse ele, — mas estou contente por haver recebido a bala e por esta não haver atingido o alvo pre­tendido.

—   A quem se destinava a bala? — perguntou Dick com firmeza.

A resposta veio sem hesitação:

—   À Srta. Leslie Gine: pensei que o senhor soubesse.

Dick não encontrou resposta pois, no fundo do seu coração, sabia que Puttler estava dizendo a verdade.

 

 

O Sr. Fabrian Gilder, ex-gerente da firma Gine & Gine, agora um cavalheiro aposentado, era, em certo sentido, um homem duro. Não perdoava as menores injúrias e, no passado, saíra muitas vezes do seu caminho para vingar-se dos que tinham tido a impru­dência de afrontá-lo. E Artur Gine o ofendera de forma imper­doável. Alguns dias antes, Gilder teria considerado simplíssimo vingar-se do seu inimigo; agora, porém, a acusação de falsificação, com que pretendia desmoralizá-lo, só vingaria se quatro promissó­rias, que se achavam em seu poder, fossem repudiadas pelo homem que pretensamente as avalizara.

Naquele momento não lhe era dado fazer outra coisa senão apresentar os interessantes documentos, o que fez por intermédio do seu banco. Dick, todavia, já tomara as providências necessárias para resgatá-las. Não era um ato totalmente filantrópico da sua parte, pois, homem de negócios, tirou do francamente relutante Sr. Gine as melhores dentre algumas ações invendáveis, mas a que ele atribuía algum valor. As promissórias, que se haviam renovado de tempos a tempos, foram pagas, e isso liquidou a possibilidade com que contava o Sr. Gilder de por em prática a sua ameaça.

Era o tipo do homem que medrava na oposição. Se bem se pudesse dizer que se apaixonara por Leslie Gine desde a primeira vez em que a vira, meses antes da cena desagradável em seu apar­tamento, o seu desejo crescia à proporção que diminuíam as suas probabilidades de conquistá-la.

Na noite em que Dick o encontrara examinando as ruínas da abadia, o Sr. Gilder voltara ao corte da estrada ao supor que a costa estivesse livre e descobrira mais uma pessoa à cata do tesouro. Assistira à entrevista entre os dois homens e seguira Artur de volta a Willow House, com a única intenção de oferecer a sua ajuda, devidamente remunerada, no descobrimento da mítica fortuna. Pois o Sr. Gilder ouvira o suficiente, no dia em que surpreendera o seu patrão com Mary Wenner, para saber que, em algum lugar debaixo da abadia, jazia a fortuna, ou a sua chave. Alcançara Artur na alameda, e encontrara-o pessimamente humorado, furioso com o homem pela interrupção da sua busca e sentindo ainda as aguilhoadas do sarcasmo de Dick Alford.

A princípio, surpreendido pelo inesperado aparecimento do seu principal funcionário, Artur o apostrofara e, ali mesmo, o despedira do serviço, desafiando-o a fazer o que quisesse. O primeiro murro partira de Gilder.

Quando Artur estava de muito mau humor dizia coisas que nenhum homem que se preza pode suportar, e o olho preto do advogado era um anúncio da sua indiscrição.

Gilder podia ser bookmaker,mas não era ladrão. "Ladrão", pelo menos, seria um epíteto extravagante para descrever-lhe a dupli­cidade. Retornou a Londres quase louco de raiva, mas um dia passado na cama lhe restaurou o equilíbrio mental e ele se pôs a meditar na melhor maneira de frustrar os planos que o ex-patrão arquitetara para obter a posse do tesouro. A essa altura, Gilder também estava convencido: as suas últimas dúvidas tinham sido afastadas. A princípio, considerara com ceticismo a existência do tesouro, mas sabia que coisas desse gênero tinham acontecido, e animava-o o desejo natural de participar de qualquer projeto que produzisse imediatamente, e sem grande trabalho, uma vasta soma, jamais sonhada.

O talho no lábio curou-se em poucas horas, se bem continuasse inchado e, à tarde do segundo dia após o seu afastamento da firma Gine & Gine, vestiu-se com grande apuro, chamou um táxi e deu ao chofer um endereço que rabiscara no punho branco da camisa.

Mary Wenner ocupava um minúsculo apartamento, cujas divi­sões todas caberiam numa sala ampla, encarapitado no último andar de um edifício perto da Rua Baker, de onde se descortinava a vista inefável da estação de bondes e das manobras que se reali­zavam naquele centro movimentado; além disso, por via de regra, ela não era incomodada por visitas, pois não havia elevadores no edifício, e subir a pé quatro escadas íngremes não deixava de ser uma respeitável empreitada.

O forte do Sr. Gilder não eram os exercícios físicos, e ele amaldiçoou o parcimonioso construtor que se esquecera de dotar oprédio desse fácil método de transporte. Não obstante, escalou os quatro andares e, logo depois, premia o botão da campainha polida do N.° 37.

—   Que prazer inesperado, Sr. Gilder! exclamou a Srta. Wenner em tom convencional. — Garanto-lhe que nunca pensei que o senhor cumprisse a sua promessa. Tenha a bondade de sentar-se.

Ela era realmente bonita, observou ele; no seu vestidinho sim­ples de casa era até mais bonita do que envergando roupas sofis­ticadas. Embora pequeno, o apartamento estava bem mobiliado, sem ter, no entanto, móveis caros. Acudiu-lhe a impressão de que ela comprara tudo aquilo com o seu dinheiro, e uin sentimento de simpatia pela moça aninhou-se-lhe no coração. Pois Fabrian Gilder era uma estranha mescla de puritano e aventureiro. Mais tarde, Mary pôde agradecer ao apartamento a ocorrência de sucessos agra­dáveis.

Havia apenas uma cadeira em que poderia sentar-se, e ele não se fez de rogado.

—   Aceita uma chávena de chá? Eu ia agora mesmo tomar o meu, disse ela. Passei o dia todo fazendo compras.

—   A senhorita está... trabalhando? inquiriu Gilder com delicadeza.

—   Não, não me dedico ao comércio, replicou a Srta. Wenner, mais corretamente. — Só as pessoas comuns "trabalham": as pessoas finas "dedicam-se ao comércio".

Ela saiu, desaparecendo num compartimento misterioso, que apenas tinha espaço suficiente para uma mesinha de cozinha e um fogão a gás, e ele ouviu o tilintar de uma xícara batendo num pires, e o "plomp!" de uma boca de gás ao ser acendida. Pouco depois, ela voltava, o rosto afogueado, pedindo desculpas.

—   As criadas são tão estúpidas, não é mesmo? exclamou. Nunca se pode confiar nessa gente comum, que trabalha por dia. Eu tinha uma empregada excelente, mas ela saiu para casar, a idiotinha!

Contou-lhe que recebia poucas visitas. A "costureira" vinha duas vezes por semana. Possuía uma amiga muito querida, que passava as noites de terça-feira com ela e, às vezes, dormia no apar­tamento. Mas visitante do sexo masculino era o mais raro de todos os fenômenos.

—   A gente precisa ter muito cuidado, sentenciou respeitosamente a Srta. Wenner. A reputação de uma moça é o seu bem mais precioso... o senhor não concorda?

O Sr. Gilder concordava.

—   Foi o que eu sempre disse a respeito do meu trabalho com Harry... desculpe-me, com Lorde Chelford. Éramos tão bons amigos que nunca me passou pela cabeça chamá-lo de outro jeito senão pelo nome de batismo.

—   E a senhorita também chamava Richard Alford pelo nome de batismo? — perguntou o Sr. Gilder, não sem malícia.

Ela arrebitou o narizinho.

—   Aquele! — respondeu, desdenhosa. — Tomo tanto conhecimento dele quanto de qualquer outro criado! Ele é instruído e tudo o mais... esteve em Eton e Harrow (o próprio Sr. Gilder arregalou os olhos ouvindo isso), mas a gente julga um homem pelos modos e não pela instrução. Não há dúvida nenhuma de que Dick Alford tem modos de porco!

Ela falou com sentimento e alguma veemência. O Sr. Gilder, que estava a par das circunstâncias, compreendeu e quase a apro­vou.

—   Eu ia dizendo que, lá em Fossaway, achei muitas vezes que não era direito eu ficar naquele casarão sem a companhia de outra senhora, a não ser a governanta, que, naturalmente, é uma criada e... Oh! você está aqui, Gladys!

 

 

—   A senhorita se dá bem com Gine, não se dá? — perguntou Gilder, enquanto bebericava o chá.

Mary abaixou os olhos com pudico enleio.

—   Somos bons amigos, mas só. Pode ser até que venhamos a ser mais íntimos... quem sabe? Ele sempre se portou como perfeito cavalheiro e tratou-me como a uma dama. Devo dizer isso em abono de Artur. Mas é meio exasperante, o senhor não acha? - perguntou num tom algo exagerado de ingenuidade pueril.

—   Eu o deixei, — anunciou, lacônico, o Sr. Gilder. — Discordamos acerca de certos planos de ação. Na realidade, brigamos feio e chegamos até a vias de fato... estou-lhe dizendo isso porque a senhorita, provavelmente, mais cedo ou mais tarde, saberá da história pela boca dele.

Mary estava chocada; e quando Mary estava chocada cobria a boca generosa com as mãozinhas muito alvas.

—   Não me diga! — acudiu, com voz abafada. — Sopapos? Foi isso?

E inclinou a cabeça na direção dos lábios dele.

—   Foi isso, — confirmou Gilder.

—   Sopapos! — repetiu Mary Wenner. — Que coisa repugnante e vulgar!

—   Eu queria falar com a senhorita a respeito de Artur Gine,

—   tornou Gilder, atalhando-lhe o pasmo horrorizado. — Não

somos amigos, mas isso não quer dizer que eu lhe queira mal. Naturalmente, porém, como estamos separados, não me sinto na obrigação de protegê-lo e colocar-me entre ele e as suas vítimas,

—   ajuntou, dando ênfase à última palavra como tenho feito até agora. A senhorita o conhece tão bem quanto eu, prosse­guiu, quando ela fez menção de falar. Conhece a vaidade dele; sabe perfeitamente o quanto ele é insincero e indigno de con­fiança; sabe também que ele não cumpriria promessa alguma que fizesse, mesmo que pusesse o preto no branco.

Ele a observava atentamente enquanto falava e percebeu que as sobrancelhas dela se arqueavam.

—   Deveras? tornou a moça, friamente. Não entendo de leis, mas não sei como um cavalheiro, ou até um homem comum, poderá fugir... qual é mesmo a expressão?... às suas obrigações legais.

—   Então a senhorita não conhece Artur Gine tão bem quanto eu. Mas isso não interessa. Não vim aqui para desacreditá-lo nem para amesquinhá-lo aos seus olhos. Não que eu pudesse fazê-lo, - ajuntou, antecipando-se um tanto ambiguamente ao protesto dela. Mas sou de opinião que uma moça não deve ser enganada, sobretudo uma moça que trabalha, que talvez não tenha ninguém para zelar pelos seus interesses. E eu lhe afirmo que esse sujeito seria incapaz de seguir uma linha reta, ainda que fosse arremessado por um canhão. Agora, que me diz do tesouro de Chelford?

Ela empertigou-se na cadeira e uma expressão de espanto total lhe contraiu o rosto.

—   O senhor sabe? perguntou, com a respiração suspensa.

—   É claro que eu sei! A senhorita vai ajudá-lo a encontrar o tesouro e, em troca... — Fez uma pausa. Em troca, ele prometeu desposá-la, concluiu.

O Sr. Gilder não estava apenas jogando verde para colher maduro.

—   Foi ele quem lhe disse isso? tornou ela, com surpresa na voz. Espero que não acredite, Sr. Gilder, que eu me atirei aos braços dele. Isso é uma coisa que eu não faria nem pelo melhor homem do mundo. — Considerou-o pensativamente e acrescentou:

—   Nem velho, nem moço. Confio em que Artur, como cavalheiro que é, cumpra a promessa que fez. Farei por ele uma coisa importantíssima...

—   O que eu quero esclarecer é o seguinte: prosseguiu ele.

—   Que garantias ele lhe deu?

—   A sua palavra de honra, respondeu, dramática, a Srta. Wenner.

—   Eu já imaginava. E que outro documento de valor?

—   Eu lhe mostro.

Ela dirigiu-se ao aposento contíguo, que era, evidentemente, o seu quarto de dormir e, voltando com a bolsa, colocou-a sobre o joelho, abriu-a e tirou, entre outras coisas, um pedaço de papel, que entregou ao Sr. Gilder. Este leu-o rapidamente, observou a cuidadosa emenda feita por Artur, e devolveu-o.

—   Não vale nada, — declarou, e o rosto dela expressou toda a sua consternação. — Que há aqui para impedi-lo de procurar Chelford e fazer negócio com ele? E onde entraria a senhorita? Além disso, isto é o que se chama, juridicamente, uma promessa feita sob coação, isto é, forçada. Agindo em nome do cliente ele poderá alegar que precisou fazer a promessa para obter a informação que a senhorita se recusava ilegalmente a fornecer-lhe.

Ela esguardou-o, espantada.

—   É ilegal saber e não contar?

Ele assentiu com a cabeça.

—   Saber da existência de um tesouro escondido e recusar-se a prestar informação é crime em alguns países, e eu lhe asseguro que é crime na Inglaterra. Mas isso não interessa. Qual é a sua participação em tudo isso, Srta. Wenner?

Ela mordeu o lábio cogitativamente.

—   Nunca vi as coisas por esse prisma, — confessou. — O que é que eu posso fazer, Sr. Gilder?

—   Obrigue-o a desposá-la primeiro. Eu poderia redigir-lhe um acordo que seria legalmente compulsório, mas duvido até de que isso pudesse ajudá-la. E por que precisa confiar nele? — per­guntou, sem mais cerimônias.

Ela abaixou os olhos.

—   Em quem, ou no quê, posso confiar? — perguntou, e tirou do vestido uma migalha invisível. — Este mundo é tão medonho, e os homens são tão enganadores, Sr. Gilder!

—   Suponha que eu lhe conte, — acudiu Fabrian Gilder, sombrio, — que Gine está tentando antecipar-lhe a descoberta?

—   Como assim? — Mary Wenner não era muito forte em requintados floreios oratórios.

—   Suponha que ele esteja tentando passar-lhe a perna... tentando encontrar o ouro sem a sua ajuda?

—   Ele não se atreveria!

—   Pois já se atreveu. Desconfiando do seu plano, há duas noites principiei a vigiá-lo. Às três horas da manhã ele se dirigiu às ruínas da Abadia de Chelford, levando consigo uma alavanca.. .

Enquanto ele falava, o acarminado do rosto dela se tornou mais profundo e os olhos aboticados mais brilhantes.

—   Cachorro! — murmurou ela. — Macaco traiçoeiro e sa­fado!

Volvido algum tempo, acalmou-se.

—   Em quem se pode confiar? — perguntou, amarga. — Em... quem... se... pode... confiar?

—   Pode confiar em mim. — A voz de Fabrian Gilder era suave, quase súplice. Ele era um homem bem apessoado, observou ela; os cabelos grisalhos davam-lhe distinção.

—   A senhorita não exigiria de mim um documento legal.

—   Exigiria, sim, — volveu ela, obstinada. — Não confio nos homens.

—   Pois eu lhe darei o documento que quiser. Chegarei até a comprometer-me irremediavelmente.

—   Não creio que eu exigisse tanto, — tornou Mary, tossindo, sem compreender.

—   Quero dizer que eu correria até o risco de ser preso, e nem tomaria as precauções que Artur Gine tomou.

Ela levou o lencinho aos olhos.

—   Naturalmente, Sr. Gilder, não o conheço o bastante, mas não direi que desgosto do senhor. Eu sempre disse a Ágata... a minha amiga terça-feira, como lhe chamo... "O Sr. Gilder é um perfeito cavalheiro". De fato, eu... Sr. Gilder, qual é o seu pri­meiro nome?

—   Fabrian.

Ela se atardou com ternura na pronúncia do nome e sorriu, um sorriso melancólico e oblíquo.

—   Eu o chamarei de Fabe, que tal? É um lindo nome. Como eu estava dizendo, não pretendo atirar-me aos braços do meu homem.

—   Vamos lá hoje à noite.

O rosto dela mudou.

—   À abadia... hoje à noite?

Ele confirmou com a cabeça.

—   O meu carro nos levará até lá em uma hora e meia, e poderemos esperar que escureça; e a não ser que haja muita esca­vação para fazer...

—   Não há escavação nenhuma, — disse ela. — Mas esta noite?

—   E por que não? O meu chalé fica a menos de uma milha da abadia. Se o ouro estiver lá e for atingível, poderíamos voltar ricos.

Ela pensou no assunto e disse, em seguida:

—   Sei que o senhor pensará que isso é horrível da minha parte, Sr. Gilder... Fabe... o nome soa familiar, não soa?... mas eu gostaria de alguma coisa com o preto no branco.

Imediatamente, o Sr. Fabrian Gilder apresentou o rascunho de um documento que seria capaz de levá-lo à forca, observou em tom de gracejo; ao lê-lo, a própria Mary Wenner, com o seu agu­çado instinto das precauções, ficou impressionada. O advogado passou-o a limpo com a caneta-tinteiro que trouxera, em papel que ele mesmo arranjou. Aliás, enfiara a caneta no bolso pensando exa­tamente numa contingência daquelas. Era uma caneta nova, cheia de uma tinta comprada numa loja de novidades na Rua Wardour, e que, segundo o vendedor, desapareceria seis horas depois de ter sido escrita.

A Srta. Wenner leu de fio a pavio o documento, dobrou-o, enfiou-o na bolsa e desapareceu no quarto de dormir. Voltou pouco depois com a bolsa, mas palpitou ao Sr. Gilder que o documento ficara guardado em lugar seguro.

—   E agora, Fabe, a que horas você quer sair?

—   Às nove e meia? — sugeriu ele, e ela concordou.

—   E não se preocupe em levar uma alavanca, — disse ela, um tanto maldosamente, ao lembrar-se da miserável traição de Artur Gine. — Levarei todas as ferramentas necessárias na bolsa.

 

 

Eram quase dez horas quando a jovem apareceu. Vestia uma longa capa de chuva e acomodou-se no assento do carro, ao lado dele, com uma desculpa fluente.

—   Eu quase não vim, — declarou. — Depois que você se foi, lembrei-me daquele horroroso Abade Negro.

Gilder achou graça.

—   Você não acredita nesse tipo de palhaçada, acredita? — perguntou, enquanto o carro descia, célere, a Rua Baker.

—   Não sei. — O tom era de dúvida. — Ele apareceu uma ou duas vezes enquanto eu estava em Fossaway, mas nós costumávamos acreditar que eram histórias dos aldeões. De acordo com os jornais, ele tornou a aparecer ultimamente... brr! — A jovem estremeceu.

Ele bateu no bolso significativamente com a mão.

—   Eu trago aqui uma coisa muito ruim para abades, negros ou brancos! — declarou. — Não se aflija, menininha.

—   Não, Fabe, — tornou ela, obediente.

Com muita delicadeza, ele deu a entender que ela poderia chamá-lo pelo nome de batismo, que os pais lhe haviam dado. Esse nome não tinha diminutivo, explicou, e justificou a correção mostrando a possibilidade de que ela o chamasse e ele não soubesse com quem ela estava falando.

—   Não acredito em noivados longos, você acredita? — indagou a rapariga, saindo pela tangente.

—   Não, não acredito. Os noivados devem ser curtos... e doces.

Riram-se ambos, e chegaram de excelente humor às ruas desertas de Dorking.

Mary tagarelava, a intervalos, e só se calou durante as cinco milhas de chuva de vento, que entrava debaixo da capota do carro e lhe fustigava o rosto.

—   Que noite horrível! — queixou-se ela.

—   Pelo contrário, eu não teria escolhido noite melhor, se pudesse dar ordens ao tempo.

O carro, que se movera até então silenciosa e suavemente, diminuiu a marcha ao subir o morro que conduzia ao Corte de Fontwell. Ele desligou o motor e, acionando os freios, desceu e foi abrir a porteira que dava acesso aos campos da Quinta Vermelha. Em seguida, caminhando ao lado do carro, destravou-o e dirigiu-o para o mesmo lugar em que Dick o encontrara, poucas noites antes.

—   Aqui estamos.

Ele tomou-lhe o braço; ela estava tremendo e, quando falou, ele ouviu-lhe o bater dos dentes.

—   Eu quisera não ter vindo, — lastimou-se Mary, estremecendo e apontando para um sítio no escuro. — O que é aquilo lá? — murmurou, com medo na voz.

—   É um cipreste podado, — disse ele. — Realmente, não há nada que possa assustar... Mary.

—   Não sei, não sei, — volveu ela, com voz trêmula. — Não solte o meu braço, por favor. Você trouxe uma pistola?

Ele assegurou-lhe que trouxera.

Atrás do portãozinho, que ele sabia aberto, no alto da íngreme ladeira escorregadia, à frente deles, em meio à treva, erguiam-se as ruínas solenes.

—   Prefiro não acender luz alguma, — disse Gilder em voz baixa. — Foi assim que descobriram Gine. Você sabe o caminho?

—   Se puder ver a torre.

Inclinando-se para ver melhor, ele deu com o vulto da torre arruinada e guiou-a nessa direção. De uma feita, ela tropeçou num monte de pedras, e teria gritado se a mão dele não lhe cobrisse a boca.

—   Pelo amor de Deus, tenha cuidado! — instou o homem. Agora, como é que a gente chega ao subterrâneo?

—   Espere. — Ela soltou-lhe o braço e encaminhou-se para a parede da torre. Ele tornou a vê-la, enquanto ela procurava orien­tar-se, tateando as pedras. Pouco depois, a rapariga murmurou: — Venha.

Gilder a seguiu. Ela estendeu a mão e agarrou a dele.

—   Há um degrau que desce, — sussurrou.

Estavam entrando na torre, embora ele não se lembrasse de ter visto nenhuma abertura. Ouviu um rangido de metal enferrujado.

—   É muito estreito; a gente tem de passar espremida.

A abertura, calculou ele, teria, quando muito, uns trinta centímetros de largura, e não lhe foi muito fácil transpor o obstáculo.

—   É uma grande pedra angular, disse ela, em voz baixa.

Gira sobre si mesma e abre como uma porta. Era assim queo velho Abade costumava sair quando andava de amores com Lady Chelford... você ouviu a fofoca, não ouviu?

A "fofoca" tinha oitocentos anos de idade, mas era novidade para ele.

—   Se você tiver uma lanterna, pode acendê-la.

Ele tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. Estavam numa câmara minúscula de pedra, no topo de uma escada circular, co­berta de musgos. Acima deles se erguia um teto abobadado, que se diria talhado numa pedra só, e era muito possível que o fosse, pois as medidas interiores da torre não ultrapassariam quatro por cinco. Ele pôde ajuizar da grossura das paredes; haviam sido cons­truídas num tempo em que as paredes não tinham por única função sustentar o teto.

—   Venha. Ela seguiu à frente, pisando com sumo cuidado nos degraus resvaladiços.

Ele contou vinte e cinco degraus, findos os quais chegaram a um espaçoso aposento de pedra, porém tão castigado pelo tempo que semelhava uma caverna natural. As paredes e o teto haviam perdido a simetria e somente o feitio retangular mostrava tratar-se de obra de mãos humanas.

—   Você trouxe a chave?

Ele fez um gesto afirmativo. Muitos anos antes, Gine & Gine haviam defendido um famoso ladrão, obtendo-lhe a absolvição ba­seados num erro processual. Como recompensa pelo seu serviço, o réu dera de presente ao advogado uma chave que, afirmava, seria capaz de abrir qualquer porta, grande ou pequena.

—   Aqui está o lugar. Ela continuava falando em murmúrios. conquanto fosse pouquíssimo provável que dali pudessem ser ouvidos.

Em cada canto do aposento, defrontando-os à medida que eles se afastavam da escada, havia uma portazinha estreita, profunda­mente recuada na parede, lembrando ao Sr. Gilder as portas das celas de Dartmoor; a semelhança, aliás, era ainda maior em outro sentido. Na parte superior da porta à mão esquerda via-se uma grade fina de ferro, que consistia em três barras enferrujadas.

—   Veja! sussurrou ela.

Ele projetou a luz da lanterna no interior da cela, uma caverna profunda e estreita, com um banco de pedra de cada lado. Sobre o banco havia inúmeros cilindros de forma significativa. O advo­gado focalizou o mais próximo; ostentava um curioso selo numa das extremidades.

O coração de Fabrian Gilder pulsou mais forte. A mão da jovem, que lhe segurava o braço, estava tremendo.

—   Estou tão assustada, — choramingou ela.

—   Assustada por quê?

—   Tenho tanto medo daquele horrível Abade Negro!

Ela estava à beira de uma crise histérica. Ele precisava trabalhar depressa.

Na terceira tentativa a chave girou na fechadura com um rangido horrível, e ele, empurrando-a, abriu a porta.

Nisso, a jovem segurou-lhe o braço, num frenesi.

—   Veja! Oh, meu Deus! Veja! — berrou, e ele voltou-se. Em pé, no topo da escada, estava uma figura de preto, com o rosto oculto por longo capuz. Dois olhos brilhantes, febris, se­guiam o casal. Terrível, ameaçador, o Abade Negro os vigiava em silêncio.

 

 

Com uma imprecação, Gilder arrancou a pistola do bolso mas, ao fazê-lo, o feixe de luz da sua lanterna abaixou-se por um se­gundo. Quando tornou a erguê-lo, com a pistola na mão, a figura sumira.

—   Não vá, não vá! — gritou Mary, agarrada ao braço dele.

—   Oh, Sr. Gilder! Oh, Fabrian, não me deixe!

Ele a empurrou para um lado, precipitou-se para a escada circular e pôs-se a subir com cautela. Ouviu o respirar soluçante da rapariga atrás de si.

—   Não me deixe! Não me deixe no escuro! — suplicava ela. Mais alto, mais alto, cauto, vigilante, mas nenhum sinal do

hábito negro. A camarazinha, logo acima, estava como eles a ha­viam deixado; a abertura minúscula que servia de porta continuava aberta.

Esbarrando nele ao passar, a moça tropeçou e vacilou ao chegar ao ar aberto, e caiu de joelhos.

—   Leve-me embora! Leve-me embora! — desvairava-se ela.

—   Oxalá eu nunca tivesse vindo!

Gilder virou-se com uma maldição e fechou a porta de pedra. Depois, ora carregando, ora arrastando a moça, fora de si de tanta raiva, à qual se mesclava não pouco medo, conseguiu levá-la até a estrada e até o carro.

Chovia a cântaros. Ele empurrou para trás a capota do carro, para que toda a força da tempestade se abatesse sobre ela — não se atrevia a assumir o encargo de uma rapariga à beira de um chilique. Levá-la-ia de volta ao apartamento — e teria, depois, muito tempo para voltar e investigar aqueles cilindros.

Quanto ao Abade Negro... Respirou um pouco mais de­pressa ao recordar-se da experiência aterradora. Fosse quem fosse —e não tinha dúvida alguma de que era humano — ainda haveria de arrepender-se da sua interferência.

—   O que é que você vai fazer? — perguntou Mary.

—   Levá-la para casa. Tentaremos outra vez amanhã à noite. A propósito, como foi que você fez girar aquela pedra angular?

—   Isso eu não posso contar-lhe, Fabrian, — disse ela com firmeza e sinceridade. — É o único poder que tenho sobre você.

—   Não seja estúpida. Você usou um estilete ou coisa parecida, não usou? Notei que havia um espaço entre duas pedras, que parecia artificial.

—   Uma tesoura, — confessou ela. — Há um ferrolho de ferro dentro da fenda... Foi por acaso que o encontrei.

Ele agora sabia tudo o que queria saber; poderia dispensá-la pelo resto da noite e, talvez, pelo resto da vida. Recusou-lhe o convite para subir e tomar qualquer coisa e, assim que a viu pelas costas, voou de volta a Sussex.

Eram duas horas no mostrador iluminado do seu relógio quando entrou no campo de marcha à ré e subiu a ladeira que conduzia às ruínas. Dali por diante progrediu sem fazer barulho, passo a passo, detendo-se de quando em quando para ouvir. Mas não havia sinal nem som do homem mascarado.

Encontrou o canto da torre, deslocou o ferrolho com o canivete e, empurrando a pedra tosca, cujas bordas se desmancharam em suas mãos, abriu a porta.

Parando apenas para examinar a câmara superior, desceu de manso a escada, a pistola numa das mãos, a lanterna na outra. Não havia sinal do intruso, mas...

A porta do quarto do tesouro estava fechada. Empurrou-a, e ela se escancarou. Percorrendo com a lanterna a longa cela estreita, viu uma coisa que fez com que o sangue lhe fugisse do rosto. Os "lingotes" haviam desaparecido. Todos. Em nenhum dos bancos, nem no direito, nem no esquerdo, ficara um único cilindro. Bagas de suor lhe desciam pelo rosto quando ele se voltou, jurando matar qualquer assombração humana que se lhe antolhasse, pois trazia o coração amargurado contra quem quer que lhe houvesse obstado à empresa.

Efetuou nova inspeção da câmara subterrânea. À diferença da primeira, a segunda porta do lado oposto era sólida. Nem buraco de fechadura, nem grade, permitiam que se visse o interior do aposento que ela guardava. Palpitou-lhe que, atrás da porta tachonada, havia um quarto semelhante àquele em que os cilindros haviam sido guardados. Experimentando a chave na fechadura, não obteve resultado algum. Meteu o ombro na porta, mas esta não saiu do lugar.

Diante desse quarto, o piso consistia numa comprida laje de pedra, que se estendia, sem solução de continuidade, até o centro do cômodo, e era de largura idêntica à da estreita passagem. Teria isso algum significado especial? Ajoelhando-se, examinou com cuidado a pedra. Era diferente do resto do pavimento. As lajes quebradas que formavam o piso do quarto tinham sido alisadas pela passagem de gerações de homens; aquela lousa oblonga fora rudemente lavrada, mais como a superfície inferior de uma pedra de pavimentação do que como a sua superfície cinzelada. Pisou numa extremidade e sentiu que ela cedia um pouquinho; pisou na outra e sentiu a mesma coisa. No meio se via um grampo de ferro, equilibrando a pedra e, debaixo dele, um espaço oco. Algum dia ou alguma noite voltaria e levaria a cabo uma inspeção mais cuida­dosa.

Chegou à câmara superior para ver-se diante de um problema mais urgente. No momento em que ia apagar a lanterna, preparando-se para passar pela abertura, viu a pedra mover-se. E antes que pudesse correr e impedi-lo, a pedra voltou ao seu lugar. Do lado de fora ouviu uma gargalhada apavorante.

Encurralado! Empurrou a porta, mas ela não se moveu. Polegada por polegada, examinou-lhe a superfície. Deve haver uma abertura em algum lugar, refletiu. Lembrou-se da história do abade amoroso e das suas excursões clandestinas. Era evidente que existia um meio de abrir a porta pelo lado de dentro.

Examinou a parede; nada apareceu. Ocorreu-lhe, então, percorrer com a luz, lentamente, o assoalho, feito de pedras quadra­das. Uma delas, menor do que as outras, atraiu-lhe a atenção, pois estava num nível diferente do resto; ele puxou-lhe a extremidade e, com esforço, conseguiu deslocá-la. Debaixo da pedra, viu um grande anel de ferro, tão adelgaçado pela ferrugem quanto uma lâmina de barbear. Embrulhou-o num lenço e puxou-o para cima. O anel cedeu um pouco e, nesse momento; Gilder viu mover-se a porta. Voltou a puxar com força o círculo de ferro e este, lentamente, obedeceu. Embora a porta se tivesse mexido apenas uma polegada, ele conheceu que ela já estava livre do dispositivo invi­sível que a segurava. Correndo para ela, empurrou-a com toda a força. A pedra se afastou e ele saiu, cambaleante, para a luz fantasmagórica da madrugada.

A tempestade passara; lá em cima, as estrelas brilhavam no céu, que empalidecia. Longe, à sua esquerda, um penacho de fumo subia das retorcidas chaminés da Mansão de Fossaway. Fabrian

Gilder enxugou o suor do rosto esbraseado e lidou por vencer a amargura da derrota. Nisso, a seus pés, vislumbrou qualquer coisa. Inclinou-se, com um grito, e apanhou-a. Era um dos cilindros, pesa­do e carregado, que haviam deixado cair os que tinham esvaziado o subterrâneo. Não pesava o bastante para conter ouro. Percebeu-o incontinenti. A capa era de chumbo. Arrancou o selo, esperando encontrar uma abertura, mas o cilindro fora selado nas duas extre­midades. Carregou-o rapidamente ladeira abaixo e, ao abrigo do corte da estrada, sacou da faca, rasgou a fina ponta de chumbo, e retirou do interior do cilindro uma folha cuidadosamente enro­lada de pergaminho. Abriu-a e esbugalhou os olhos. Era um antigo missal, formosamente pintado e, como obra de arte, inestimável, mas fraco substituto para trinta e cinco libras de ouro sólido!

 

 

E isso era tudo o que os mais cilindros continham, pensou, não sem alguma satisfação. Quem quer que o tivesse observado — e ele suspeitava de Artur Gine, naturalmente — estaria desapon­tado também.

Era naquela sala que os velhos monges tinham guardado a sua música antiga; havia um certo humor negro na lembrança de como passara a noite e da recompensa que tivera.

Atravessou a estrada, abriu a porteira, entrou no campo onde largara o carro, e ali ficou imóvel, petrificado de espanto. O auto­móvel desaparecera!

Os rastros eram perfeitamente visíveis. Passavam pelo corte e seguiam a estrada na direção de Willow House. Não havia nada a fazer senão segui-los, a pé. Uma milha além da residência de Artur Gine ficava o Chalé do Ribeirão dos Corvos, sua proprie­dade, pensou com satisfação, lugarzinho abrigado e confortável, onde ele poderia tomar um banho quente dali a uma hora e uma chávena fumegante de chá dali a quinze minutos. Animadora pers­pectiva para um homem molhado até os ossos, esfalfado, e com os pés em brasa.

Os rastros passavam pela entrada para Willow House e continuavam na direção do chalé. E quando, afinal, ele dobrou a última curva da estrada e deparou com a sua pequena casa de campo, deu com o automóvel parado diante da por:a. Não viu sinais de criatura viva. Fez a volta da casa, vasculhou a pequena plantação à esquerda e desceu às margens do córrego, antes de abrir a porta do chalé e entrar.

Enfiou a chave na fechadura e, para sua surpresa, à simples pressão de sua mão, a porta se abriu. A porta que dava para a sala de jantar moveu-se antes que ele girasse a chave na fechadura. Olhou, imobilizado pelo assombro. Ardia um fogo na grelha, sobre a qual fumegava uma chaleira. Um bule aberto descansava na lareira, e alguém abrira uma lata de biscoitos. Ouviu passos no cômodo contíguo e voltou-se para enfrentar o intruso; ao avistá-lo, abaixou o cano da Browning.

—   Tomás! — exclamou, incapaz de acreditar no que via. — O que é que você está fazendo aqui?

—   Fui despedido esta manhã, — retrucou, lacônico, o ex- lacaio.

—   Esta manhã? Mas se o dia mal clareou!

Tomás assentiu com a cabeça.

—   Alford me encontrou andando pela casa quando eu devia estar na cama, dormindo, e botou-me para fora.

—   Mas por quê?

O homem pareceu meio sem jeito.

—   Como é que eu vou saber por quê? Aquele cachorro nunca foi com a minha cara. Creio que ele desconfiou de que eu escrevia para o senhor.

Gilder sabia que a história era mentirosa, e se destinava a ressaltar a obrigação que ele porventura devesse ao ex-criado. Tomás fora-lhe valioso correspondente: tudo o que acontecia na Mansão de Fossaway lhe tinha sido fielmente participado.

—   Você está em apuros. O que foi que andou fazendo?

O homem comprimiu os lábios.

—   Bem, — hesitou, — creio que posso contar-lhe a verdade. O senhor já ouviu falar em Mono Puttler? Espere um minuto, que farei o chá.

Pegou na chaleira, que fumegava, e encheu o bule, e só depois que o colocou no descanso, junto à lareira, continuou a narrativa.

—   Mono Puttler é um "tira". Todo criminoso em Londres o conhece, e se o conheço tão bem quanto outro qualquer, foi porque ele me pespegou três anos por um servicinho que fiz no Hotel Westinghouse.

—   Roubo? — perguntou o outro, para quem aquilo era novidade.

—   Um serviço interno, — volveu Tomás, objetivo. — O senhor pode chamar de roubo, se isso lhe dá prazer. O certo é que o Mono me pegou e me pôs na geladeira por três longos e cansa­tivos anos. Quando saí, arrumei esse emprego. Havia uns bicos nesse também. Chelford não é homem para contar os seus trocos, e Alford não se atreve a perguntar-lhe o que fez com o dinheiro quando o irmão lhe pede mais.

—   Um ex-sentenciado, é? — Gilder se sentia ligeiramente chocado e considerou o homem por um novo ângulo. — Eu não sabia disso; se soubesse, nunca o teria empregado!

—   Precisei enganar um pouquinho, — confessou Tomás, com um sorriso.

—   A mim, você me enganou direitinho! — replicou Gilder.

—   Não o enganei, exatamente, — disse o outro, achando graça. — Mas no dia em que fui ao seu escritório e o senhor começou a interrogar-me sobre como andavam as coisas na Mansão em relação a Gine, percebi que poderia ganhar alguns dólares honestamente.

—   E então? — Continue a falar sobre o seu amigo Mono... qual é o nome dele?

—   Puttler. Chegou ontem.

—   À casa de Chelford? — inquiriu Gilder, surpreso.

—   Sim, — confirmou Tomás. — Alford está fingindo, dizendo que o homem é contador, mas não é, não, é tira mesmo. Conheci-o assim que o vi e, o que é pior, ele me conheceu. Eu tinha entrado para o serviço de Chelford com falsas recomendações e percebi que estava liquidado logo que vi aquela cara feia. E o certo é que ontem à noite, Alford me deu o bilhete azul, mandando que eu desinfetasse o beco hoje. Mas ainda pego aquele sujeito um desses dias, — concluiu, com uma expressão feia no rosto.

—   Mas por que hoje cedo? — perguntou Gilder.

—   Era o que eu ia contar-lhe, — tornou o outro, impaciente.

—   Chelford tem uma caixa onde guarda dinheiro, na biblioteca, na segunda gaveta à esquerda, e costuma ter ali uma boa bolada. Ele é meio infantil em questões de dinheiro. Eu sabia que, se botasse as mãos naquela grana, poderia tirar o suficiente para ser feliz e deixar o suficiente para que Chelford não pudesse jurar que eu levara algum ou não. Entrei na biblioteca, lá pelas quatro horas da manhã de hoje, e já ia subir quando Alford me surpreendeu e me mandou subir, vestir e sumir. Obedeci. Aquele cara tem qual­quer coisa na cabeça: nunca dorme!

—   Ele pegou você com o dinheiro? — perguntou Gilder, repugnado.

—   Não, senhor... Joguei o que tinha tirado pela janela, assim que o tirei. Depois, fui buscá-lo.

—   O que é que o Sr. Alford estava fazendo, perambulando pela casa, àquela hora?

O homem fez uma careta.

—   Nunca se sabe quando ele está por perto, — respondeu.

—   Ele não é humano; eu já lhe disse que o homem não dorme!

Conquanto Gilder tivesse a certeza de que Tomás falava a verdade, estava igualmente persuadido de que lhe ocultava qualquer coisa. Pareceu-lhe distinguir lacunas na história, que transpunha com facilidade. Prudentemente, decidiu não ser aquela a hora de interrogá-lo. Acerca de um ponto já tomara uma decisão. Tomás e ele precisavam separar-se, e quanto antes, melhor.

—   E por que foi que você veio para cá?

—   Pensei que o senhor estivesse em Londres, — disse o outro, friamente. — Já esive aqui antes, entende, e julguei que o senhor não se incomodasse se eu usasse a sua casa por um ou dois dias... talvez uma ou duas semanas, — ajuntou, sem tirar os olhos do rosto do advogado.

Gilder coçou o queixo com expressão pensativa.

—   Não sei se será muito bom para mim saberem por aí que você é um ex-sentenciado.

—   Ninguém precisa saber; por que saberia?

—   Você trouxe o meu carro para cá?

Tomás fez que sim com a cabeça.

—   Eu pretendia, primeiro, ir à Quinta Vermelha; há ali um cavalariço que é meu amigo. Nisso, vi o seu carro e imaginei que lhe tivesse acontecido alguma coisa. Esperei um pouco e, como o senhor não aparecesse, trouxe-o para cá.

—   Alguém o viu?

—   Ninguém. Ainda estava escuro.

Que estaria ocultando o homem? A impressão de Gilder, habilidoso leitor de pensamentos, era de que Tomás estava quase estourando com uma informação vital. Por uma ou duas vezes a .informação estivera na ponta da sua língua, mas ele conseguira refreá-la.

—   Você poderá ficar aqui, se quiser; eu vou para a cidade. Mas se receber uma carta da polícia local dizendo que você está morando em minha casa, escreverei dizendo que não o autorizei a ficar aqui. Entende que preciso proteger-me?

—   Entendo, sim, senhor.

Mais uma vez os seus lábios se moveram, como se preten­desse falar e, mais uma vez, ele se reportou.

—   O que é que você quer dizer-me?

—   É grande demais para dizer. Vou guardá-lo. Talvez, se o senhor voltar mais tarde, eu lhe conte uma história que vale um milhão de dólares.

Tomás passara, de uma feita, doze meses numa penitenciária do Canadá e, depois disso, gostava de bancar o bandido americano.

—   Um milhão de dólares!

 

 

Gilder serviu-se de chá, comeu alguns biscoitos e, saciada a fome, foi para o quarto e tirou do armário uma muda completa de roupa. Como a água estivesse muito fria para um banho, con­tentou-se em esfregar o corpo com uma toalha áspera e úmida. Sentiu-se outro homem depois de barbeado, limpo e aquecido. Voltou a Tomás, que fumava um cachimbo curto, de raiz de roseira, os olhos postos no lume.

—   Quando você resolver falar, será melhor mandar-me um telegrama... não de Chelfordbury, mas de Horsham.

Escreveu o endereço numa página do seu caderninho de notas, arrancou-a e en'regou-a ao ex-lacaio; em seguida, acionando a manivela do carro, voltou para Londres na manhã cinzenta.

Às dez horas foi despertado de um sono profundo para atender ao telefone. Era Mary Wenner, e ele amaldiçoou-a mentalmente.

—   É você, Fabe? Fiquei tão preocupada durante toda a noite, querido. Você não voltou àquele lugar horrível, voltou?

—   Irei vê-la hoje à tarde, atalhou ele. Não fale pelo telefone: pode ser ouvida.

Ele não tinha a menor intenção de vê-la naquela tarde, nem em qualquer outra, mas, nessa questão, a sua vontade não foi o fator determinante. Logo após o chá, quando já se preparava para sair, ela entrou pela sala de jantar sem ser anunciada. Ele estre­meceu, só ao pensar no que a rapariga teria dito aos criados. Mary aproximou-se, inclinou-se, beijou-o pudicamente na testa, e sen­tou-se ao lado dele.

—   Querido, disse ela, e Fabrian cerrou pacientemente os olhos, você se importará se eu fizer uma coisa que talvez pareça um pouquinho marota?

—   Não me importarei... — principiou ele.

—   Mas, querido, é uma coisa que afeta a sua honra! Os olhos dela, sérios, estavam postos nos olhos dele. Você nunca deverá pensar que não lhe sou fiel, nem nada parecido, mas ele me escreveu uma carta tão suplicante...

—   Quem escreveu? perguntou o Sr. Gilder, subitamente interessado.

—   Artur. Recebi também uma carta da irmã dele, convidan-do-me para passar o fim de semana com eles. Eu, naturalmente, preferiria ficar aqui na cidade com você. Mas sinto que devo ter uma explicação com Artur e comunicar a ele que as minhas afei­ções já não lhe pertencem. Afinal de contas, mesmo que não tenha­mos conseguido a fortuna, sei que estou tratando com um cavalheiro que não me quer apenas pelo meu dinheiro. E você não é exata- mente um pobretão, não é, querido? Fui perguntar a um jovem indivíduo que conheço na Agência Stubbs, e lá me contaram que você é homem de cem mil libras, pelo menos.

Gilder grunhiu.

—   E tenho a sua promessa por escrito.

—   Sim, você tem tudo, minha querida Mary, assentiu ele, em tom cansado.

—   E, Fabe, querido, aconteceu uma coisa tão esquisita com aquele papel! Quando o tirei hoje cedo de baixo do travesseiro, sabe o que aconteceu? As palavras tinham desaparecido! Senti uma tontura que você não imagina!

Ele mexeu-se, constrangido, na cadeira.

—   Que coisa mais extraordinária! conseguiu exclamar.

—   Fiquei tão transtornada com esse negócio que levei o papel a um cavalheiro meu amigo, que está no ramo das prestidigitações. Você, provavelmente, já o viu: ele tira coelhos de cestas de papel, e disse que você deve ter usado tinta invisível; depois, mostrou-me como se faz para trazer a tinta de volta e torná-la permanente.

—   E você fez isso? perguntou Gilder com voz cava.

—   É claro que fiz, querido! Basta a gente espremer um limão, esfregá-lo sobre o papel e segurar o papel diante do fogo.

A cabeça de Gilder principiou a girar. A única coisa que conseguiu dizer foi "Oh!" Aquilo era inconveniente muito incon­veniente; se bem, pensando melhor, não passasse de uma dificul­dade facilmente transponível. Na pior das hipóteses, poderia com­prá-la com mil libras; além disso, a promessa de casamento era aleatória. Mesmo assim, não deixava de ser um documento assaz desagradável para ser apresentado num processo de quebra de pro­messa de casamento; pois, confiado na qualidade invisível da sua tinta, ele fizera um acordo muito prejudicial para si.

—   Você vai passar o fim de semana com os Gines?

—   Creio que sim, querido. A hesitação era afetada, e ele o sabia; ela já se decidira. Francamente, acho que devo ir. Artur é um velho amigo e, embora não represente nada para mim, isto é, não representa mais do que o pó debaixo dos meus sapatos, e eu esteja pensando tanto em atirar-me aos braços dele quanto em voar para a Lua, ainda assim acho que devo ir.

—   Então, pelo amor de Deus, vá disse ele com brusquidão. Ela murmurou os seus agradecimentos e ter-se-ia demorado um pouco mais se ele não a tivesse acompanhado até a porta, abrindo-a com muita ênfase.

Ele inferiu que, embora não o desobrigasse da sua promessa, ela ainda não perdera de todo a esperança de seduzir Artur Gine.

Mary Wenner acabara de sair quando chegou um garoto com um telegrama. Gilder estava esperando notícias de uma das suas firmas de corretagem de apostas, ora em fase de liquidação, visto que o seu único cliente suspendera as atividades. O telegrama fora enviado de uma aldeia que distava cinco milhas de Chelfordbury e rezava:

"Venha o mais depressa que puder. Grandes novidades. T."

Falaria Tomás? E que teria ele para dizer?

 

 

O cavalariço que trouxe o cavalo de Dick Alford até a porta, tinha notícias para comunicar.

—   Aquele sujeito foi visto ontem à noite, senhor.

—   Que sujeito? perguntou Dick, montando.

—   O Abade Negro, senhor. Gill, o couteiro, lá no Chalé do Prado Grande, viu-o hoje de madrugada, às quatro horas, atraves­sando o Prado Grande. Quando Gill foi buscar a sua arma, ele tinha desaparecido.

—   E o que é que o Abade Negro estava fazendo no Prado Grande? perguntou Dick, sardónico. Colhendo boninas?

—   Já não é tempo de boninas, voltou o cavalariço, que não se destacava pela imaginação. Mas Gill afirma que, se ele tivesse a espingarda na hora, teria atirado.

—   E teria havido um inquérito, e a melhor coisa que Gill poderia esperar seria uma condenação por homicídio culposo. Diga a Gill, de minha parte, que o Abade Negro deve ser apanhado... à unha! Um fantasma vivo nos poderá contar muita coisa, mas um fantasma defunto é praticamente inútil como órgão de informações.

Ele galopou através dos prados mais próximos, atrás da casa e, evitando as ruínas da abadia, chegou ao tortuoso Ribeirão dos Corvos. Deixando o cavalo andar a passo, seguiu a margem do córrego, com o espírito tão absorto nos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas que teria passado sem dar pela presença da jovem deitada de bruços na margem oposta.

—   Bom dia, Sir Galaad!

Ele freou o cavalo e olhou à sua volta, atônito. Logo depois a viu.

—   Bom dia, Guinevra! — saudou-a, e virando a cabeça do cavalo na direção do curso d'água, desceu com cuidado o declive e obrigou a montaria relutante a entrar no riacho.

—   Cuidado!

—   Há um vau aqui, disse ele. Na verdade, conti­nuou, ao emergir com a barrigueira do cavalo pingando, este é o Chelford original. Cavaleiros com armaduras e, provavelmente, bretões vestidos de penas e folhas, atravessaram o Ribeirão dos Corvos neste lugar. O que é que você está fazendo aqui?

Apeou, deixando pender as rédeas e permitindo que o animal pastasse à vontade. Ela estava deitada a fio comprido, apoiada nos cotovelos. Imediatamente debaixo dela havia uma laje, em cujo centro fora cavado um buraco de uns cinqüenta centímetros de diâmetro. Ao vê-lo, ele desatou a rir.

—   Leslie, que perguntas tem você para fazer ao Poço dos Desejos?

Porque se chamava Poço dos Desejos, nunca o soubera — nenhuma água subira jamais daquela funda cavidade, que, por algum capricho da natureza, descia a profundezas nunca sondadas. Sem embargo disso, gerações de rústicos amantes tinham vindo prostrar-se naquele lugar e desabafado as suas mágoas gritando-as para dentro do poço. E rezava a tradição que o poço lhes respon­dia clara e inteligentemente.

—   Estou fazendo perguntas sobre mim.

O rosto dela estava escarlate, provavelmente em conseqüência da postura inusitada.

—   E que disse o poço? — zombou ele.

Ela ergueu-se sobre os joelhos e afastou os cabelos que lhe caíam sobre a testa.

—   Não digo... Pergunte qualquer coisa!

Com um resmungo e um gemido, o rapaz estendeu-se sobre a relva quente, colocou as mãos na boca e gritou para dentro da cavidade:

—   Que vai acontecer a Leslie?

Os dois esperaram e, logo, o eco voltou, estranhamente distorcido e, contudo, distinto:

—   Case com ela!

Riram-se ambos. Era o truque de algum espaço oco, lá embaixo, que, através dos séculos, enviava a mesma resposta a todas as perguntas.

Ele pôs-se em pé.

—   Eu gostaria que você não andasse por aí sem a minha companhia, — disse, em tom sério, e ela riu-se.

Nunca a vira mais bonita do que naquela manhã. Uma coisa de ar e de sol, uma irrealidade misteriosa que não pertencia ao mundo sórdido em que ele vivia.

—   Levantei-me cedo e estava entediada, por isso saí andando; de repente, lembrei-me do poço e perguntei a mim mesma se ele já teria aprendido algum truque novo. Artur está com muita ver­gonha do olho machucado e não quer sair enquanto o rosto não voltar ao normal. Pobre Artur! — Ela hesitou, olhando para ele.    Você não descobriu... — Porém não terminou a frase.

—   O cavalheiro que andou dando os tiros? Não, mas nós já temos um bom palpite. A propósito, despedi Tomás. Você se lembra daquele lacaio sem-vergonha, que estava sempre perto da gente quando não devia estar?

—   O que foi que ele fez? — perguntou ela.

—   Nada de especial. É um ex-sentenciado: Puttler reconheceu-o assim que chegou; encontrei-o às três horas da manhã de hoje saindo da biblioteca, e mandei-o revirar os bolsos. Ele não tinha muita coisa em seu poder, mas tudo faz crer que o que tinha era furtado. O coitado do Harry se preocupa tão pouco em contar o dinheiro que tem que será quase impossível obter-se uma con­denação. Tomás, naturalmente, jurou que o dinheiro que encon­trei... e que não era muito... lhe pertencia, e como seria um transtorno acordar Harry, o qual, aliás, certamente não me daria informações seguras, deixei-o ir com o que levava.

—   Onde está ele agora?

—   Espero que tenha tomado o primeiro trem para Londres. Não creio que se aventure a dar um golpe nas vizinhanças mas, pelo sim pelo não, acho melhor você contar a seu irmão.

Depois de um momento de silêncio, ela perguntou:

—   Você encontrou o rifle?

Ele sacudiu negativamente a cabeça.

—   Era um rifle do exército, e não existem dessas coisas em Fossaway, embora existam na aldeia. Na verdade, quase umas doze pessoas que trabalham na propriedade pertencem ao Exército Terri­torial. Diz Puttler que os responsáveis são um bando de caçadores furtivos.

Dick não sabia mentir, mas Leslie não desconfiou de nada e não lhe contestou a teoria. Se o tivesse feito, poderia ter argumentado que os caçadores furtivos usam espingardas e armadilhas, e que um rifle como instrumento para matar caça era quase tão útil quanto um martelo-pilão a vapor para pregar tapetes no chão.

Atravessaram o campo na direção de Willow House. Dick ia puxando o cavalo pela rédea.

—   Quero que me faça uma promessa, Leslie, — disse ele.

—   Qual é? — perguntou ela, sabendo de antemão qual seria.

—   Quero que me prometa desistir desses passeios matinais a pé, usar o seu carro quando sair, e não se afastar das estradas.

As sobrancelhas dela se ergueram.

—   Por quê? Haverá, por acaso, algum perigo? Você não está com medo do Abade Negro, está?

Ele, porém, não respondeu ao sorriso dela.

—   Não, — retrucou, — não tenho medo especificamente do Abade Negro, mas tenho muito medo de alguma coisa que está por trás do Abade Negro.

Ela percebeu que ele não desejava ser interrogado, e mudou de assunto. Contou-lhe que estava esperando uma visita, e só quando lhe disse quem era é que os olhos dele piscaram.

—   Santo Deus! Aquela moça! Imagino que você saiba que estará abrigando uma perigosa rival?

—   Não fale assim, — admoestou-o ela. — Tenho até pena da moça.

—   Não fale assim, — arremedou ele. — Você não precisa ter pena de Mary. Se não falarem a meu respeito, terão um fim de semana muito agradável. Mas no que concerne a Richard Alford, ela é fanática. Não lhe contarei as coisas horrorosas que a Srta. Wenner diz de mim, para você não ficar com raiva dela.

—   Como é que você sabe? Muita gente diz coisas horrorosas de Richard Alford.

—   Mas não a você, — voltou ele, tranqüilamente. Ela enrubesceu e mudou de assunto outra vez.

—   Não sei por que me levantei tão cedo; só me deitei às duas horas.

—   Eram duas e dez quando a sua luz se apagou, — precisou o rapaz, e ela o fitou, espantada.

—   Como é que você sabe?

—   Acertei de passar pela sua casa.

A explicação foi dada com tanta presteza, que ela ficou desconfiada.

—   O Abade Negro andou passeando por aí ontem à noite. Puttler e eu fizemos uma caçadinha.

—   Vocês o viram?

Ele sacudiu a cabeça.

—   Ninguém o viu, exceto um couteiro apavorado.

De repente, ela voltou-se para ele com um gritinho de surpresa.

—   Era você!

—   Era eu o quê?

—   Eu estava certa de ter visto alguém na extremidade infe­rior da alameda. Você estava fumando um charuto: vi o brilhozinho vermelho; a princípio, pensei que fosse Harry e, hoje cedo, encontrei o toco de um charuto perto do portão. Richard Alford, você dorme?

—   Freqüentemente, — disse ele com um sorriso, e envol­veu-lhe o ombro com o braço. — Estou sendo fraternal, não se assuste, — ajuntou, em tom de gracejo. — Leslie, querida, promete?

—   O quê? o J?

—   Não andar pelos campos a qualquer hora. Não quero alarmá-la... sinto-me um bruto assim mesmo... mas pode haver perigo de verdade nos próximos dois dias. Por favor, não me per­gunte o que é, porque não posso dizer-lhe; nem eu mesmo tenho a certeza de saber.

Ela meditou nas palavras dele durante longo tempo.

—   É qualquer coisa que se relaciona com o tesouro de Chelford? — perguntou, e, para surpresa sua, ele fez que sim com a cabeça.

 

 

Leslie estivera vagamente consciente de que um homem se achava, em pé, diante do portão de Willow House. Vira-o quando se encontrava a certa distância e agora, aproximando-se, teve a impressão de que ele a esperava, para falar-lhe. Era um homem alto, que envergava um terno cinza mal-ajeitado e um boné de golfe. O homem tirou as mãos dos bolsos quando ela se acercou e levou a mão ao boné. Nesse momento, Leslie reconheceu o des­ditoso Tomás, o ex-lacaio.

—   Bom dia, senhorita, — disse ele.

—   Bom dia, Tomás.

A jovem considerou com maior interesse a figura alta, magra e mal-ajambrada.

—   Posso dizer-lhe duas palavrinhas, senhorita?

Ela hesitou.

—   Receio não poder fazer nada por você, Tomás. O Sr. Alford me contou que o despediu.

Ele forçou um sorriso.

—   O Sr. Alford não gosta de mim, senhorita. Fui acusado falsamente, e vou procurar meu advogado quando chegar à cidade. Um minuto, — ajuntou, à pressa, vendo-a abrir o portão. — Eu poderia contar uma coisa importantíssima para a senhorita.

Os olhos cinzentos fitaram-se nele com firmeza.

—   Você não pode contar-me nada que tenha a menor importância para mim, Tomás... — principiou ela.

—   Oh, não? — A cabeça dele subia e descia, numa sucessão de inclinações. Lembrava grotescamente um mandarim cabeceador, que lhe adornava a secretária. — A senhorita não sabe o que eu sei. Eu poderia contar-lhe uma coisa, e poderia contar uma coisa ao Sr. Gine, que ninguém sabe. As pessoas falam sobre o tesouro de Chelford...

—   Não quero ouvir mais nada, — atalhou e, voltando-se, subiu a alameda.

Por um momento, ele a resguardou como se pretendesse acompanhá-la mas, pensando melhor, acendeu o cigarro que se apagara e dirigiu-se, pachorrento, para a sua casa emprestada. Nisso, uma idéia lhe ocorreu. Além da cerca baixa de madeira, erguia-se es­pessa moita de loureiros. Para o caso de um dos seus planos ser posto em prática, e ele precisar sair à pressa de Chelfordbury, talvez valesse a pena fazer o reconhecimento daquela casa. Pulou a cerca e entrou a caminhar, cauteloso, por entre os arbustos.

—   Com quem é que você estava falando, Leslie?

Deitado numa cadeira preguiçosa, estendida no gramado,

Artur Gine tinha o olho coberto por uma espécie de parche branco.

—   Tomás, — disse ela.

—   O lacaio de Fossaway? O que foi que ele trouxe... algum recado?

—   Não, foi despedido, — disse a moça ao passar pelo irmão.

—   Dick desconfia que ele tenha roubado qualquer coisa e deu-lhe a conta hoje cedo.

—   Quer dizer que você viu Dick? — indagou Artur surpreso.

—   Sim, encontrei-me com ele; estava a cavalo e ia ver o moleiro. — Ela demorou-se atrás da cadeira do advogado.

—   Você parece estar-se encontrando sempre com esse camarada, — volveu o irmão, em tom cogitativo. — É Dick pra cá e Dick pra lá. Acha que está certo, Leslie, brincar com fogo desse jeito? Você nunca me conta que se encontrou com Harry.

—   Harry não sai da biblioteca, — voltou ela, com um sorriso,

—   e é difícil deixar de encontrar Dick quando a gente sai de casa. Não que eu alguma vez tenha tentado deixar de encontrá-lo.

Ele tirou o cigarro da boca e pôs-se a contemplá-lo, cismarento, apertando os lábios.

—   Dick é um bom sujeito, — repetiu, — mas creio ser desnecessário relembrar-lhe que é um filho segundo, tão pobre quanto um rato de igreja. Sim, Leslie, insisto na pobreza. Afinal de contas, casando com Harry, você não se casa com um pobretão. E eu lhe digo francamente que você precisa casar com um homem rico!

A verdade estava surgindo — ela se enrijou para enfrentá-la.

—   Que aceite a minha fortuna sem pedir explicações, — disse ela, serenamente. — Se eu me casasse com Dick, que é um, homem de negócios, ele talvez quisesse examinar os meus títulos e ações.

Um tenso momento de silêncio. Depois:

— Não existem títulos nem ações!

Ele precisara apertar os dentes para fazer a confissão. Mas não pôde encarar com ela; não se atrevia a olhar à sua volta nem a enfrentar os olhos da irmã.

—   Não existem títulos nem ações? — repetiu ela, pausadamente. — Nesse caso, o que eu disse no carro estava certo? Não tenho nada!

 

 

Proclamara-se a verdade. Em pé, rígida, atrás da cadeira do irmão, Leslie baixara os olhos para ele.

—   Não tenho nada? — perguntou.

Ele precisou molhar os lábios antes de poder falar.

—   Tenho tentado reunir a coragem necessária para con­tá-lo a você há muito tempo, — disse ele. — Sou um covarde... um canalha! Você tem umas poucas mil libras que não pude tocar, mas o fato é que gastei todo o resto da sua fortuna.

Erguendo os olhos para ela, não viu o olhar de condenação que esperava. Não havia desprezo nem consternação em seu rosto. Os lábios vermelhos estavam crispados num meio sorriso, e em seus olhos brilhavam tão-só a bondade e a piedade.

—   Graças a Deus! — murmurou a jovem, e ele não conse­guiu compreendê-la.

—   Isso significa, naturalmente, que Chelford terá de aceitá-la sem fortuna, — voltou Artur.

Ela abanou a cabeça.

—   Já escrevi a Harry, desfazendo o noivado, — respondeu Leslie. Depois, enfiando o braço no braço dele, propôs: — Vamos entrar para tomar café. Este é um dos dias mais felizes da minha vida.

A carta chegou às mãos de Harry Alford, Conde de Chelford, em companhia de duas ou três outras cartas pessoais; a sua prin­cipal correspondência mantinha-a ele com os livreiros de Londres, pois era um inveterado colecionador de tomos antigos. Olhou para a carta, reconheceu a letra, carranqueou, e virou-a do outro lado. Em seguida, com mostras de tédio, abriu o envelope.

Meu caro Harry, — Refleti, durante muito tempo, em que temos tão pouca coisa em comum que o nosso casamento não teria possibilidades de proporcionar felicidade a nenhum de nós. Creio que a atitude mais correta seria eu devolver o meu anel de noivado mas, feliz cu infelizmente, você se esqueceu de pre­sentear-me com esse penhor de afeição! Desejo-lhe toda a sorte de venturas, e espero continuarmos bons amigos.

Harry leu a carta, esfregou a testa, perplexo e, ato contínuo, levantou-se da cadeira e saiu quase correndo da biblioteca. Dick estava no gramado, brincando com o cachorro, quando o irmão irrompeu no escritoriozinho.

—   Veja isto! O que é que você me diz de uma coisa dessas?

Dick leu a carta com o rosto perturbado.

—   Lamento muito, — disse ele.

—   Você lamenta! — estridulou Harry. — É vergonhoso! Leslie tratou-me deveras muito mal... mas essa referência ao anel de noivado é de um mau gosto atroz.

—   Pensei que você lhe tivesse dado um anel de noivado, — volveu o paciente Dick. — Não deu?

—   É uma prática bárbara e estúpida. Nunca sonhei em dar um anel a ela. E por que o daria? Ela já tem um anel, um lindo anel. Você deve ter visto... um brilhante que ela usa sempre. Que sentido tem isso? A referência é de péssimo gosto... chocante!

E não obstante, apesar da agitação e da cólera, Dick cuidou distinguir um tom de alívio na voz do irmão. Mas a sua vaidade fora ferida, e este é um lugar muito dolorido, até para gente de maior estatura do que Lorde Chelford.

—   Sem nenhum aviso. Ela esteve ontem aqui, e não me disse uma só palavra a respeito!

—   Você também não lhe deu oportunidade, — acudiu Dick. — Mal falou com ela e, positivamente, Harry, nem se deu ao tra­balho de entretê-la. Seja razoável.

Harry acariciou o queixo e olhou através das grossas lentes dos óculos de aros de chifres.

—   Acho que não, — aquiesceu, com súbita brandura. — Na verdade, não fui feito para o casamento. Não quero outra coisa senão os meus livros e a minha missão. Mas esse negócio vai-me deixar com cara de bobo, Dick. — A cólera recomeçava a avolu­mar-se. — Toda a gente no condado sabe que éramos noivos e virá aqui, espiar, para descobrir o que aconteceu. Teremos aqueles jornalistas odiosos sentados à nossa porta, e isso é mais do que eu posso suportar!

—   Deixe, então, os jornalistas comigo, — sobreveio Dick. — Eu lhes darei todas as explicações de que eles precisarem, e eles se arrependerão de tê-las pedido. Aos jornalistas, eu os como vivos!

Nem assim o irmão se abrandou totalmente.

—   Por que foi que ela fez isso? — Acha que encontrou alguém de quem gosta mais? — Olhou atentamente para Dick, com o seu jeito de míope. — Seria ainda pior. Estou muito aborrecido com Artur Gine. Ele jogou essa moça em cima de mim.

—   Não falemos sobre isso, — atalhou Dick, ríspido. — Não é uma atitude muito digna para se tomar.

O irmão olhou, indeciso, para a carta.

—   O que é que eu vou fazer?

—   Escreva uma carta bonita, restituindo-lhe a liberdade, — sugeriu Dick. — É a única coisa que você pode fazer.

—   Mas você acha que ela tem outro homem em vista?

—   Provavelmente terá uma dúzia, — voltou o outro, brutalmente. — Faça o que lhe digo, Harry.

E Harry Chelford voltou resmungando à biblioteca.

Com que, então, ela o fizera! Dick nem sabia se devia sen­tir-se jubiloso ou deprimido. Uma semana antes, ter-se-ia julgado o homem mais ditoso da Inglaterra; hoje — encolheu os ombros robustos, tirou o cachimbo do bolso e, com gestos selvagens, enfiou o fumo no fornilho. Isto significaria um rompimento, pelo menos durante algum tempo, entre os Gines e Harry, e dessa possibili­dade nasceu um pensamento alarmante. E se Harry transferisse a administração jurídica dos seus bens para outra firma? Seria a ruína de Artur Gine. Até aquele momento, Dick pudera cobrir os desfalques do irmão de Leslie Gine e, dali a alguns meses, teria apagado todos os vestígios deles, sem prejuízo para a propriedade. Mas naquela fase, se Harry insistisse...

—   Sua Excelência quer vê-lo, senhor.

O segundo lacaio aparecera sem que ele desse por isso.

Dick endureceu-se para a entrevista e entrou na biblioteca. O irmão estava sentado à escrivaninha, a cabeça entre as mãos, o cabelo em desalinho, uma ruga colérica a franzir-lhe a pele branca da testa.

—   Dick, vou romper com esses Gines, — anunciou. — Quero que você peça aos seus advogados que tomem conta dos meus negócios em lugar de Artur, e diga-lhes que sejam muito cuidadosos e verifiquem item por item. Aquele sujeito administra os bens de minha mãe e, por alto, calculo que ele tenha em seu poder quase cinqüenta mil libras em valores. Se estiver faltando um pennyque seja, Dick, processarei esse indivíduo... juro por Deus que o pro­cessarei! Ele me fez de bobo perante todo o condado e, se me for dada meia oportunidade, eu me vingarei.

Dick sentiu apertar-se-lhe o coração.

—   Quais são os advogados que você sugere?

—   Sampson & Howard. São gente de bem e não vão à missa com Artur. Você se encarrega disso por mim, Dick?

Dick assentiu com a cabeça. Assim que pôde escapar da presença do irmão, foi à garagem e, tirando o carro, rumou para Willow House. Artur ainda estava no gramado, passeando de um lado para outro e, da sua atitude de depressão, Dick inferiu que alguma coisa insólita acontecera. Talvez tivesse sabido do rompi­mento do noivado. Nesse ponto, porém, as suas conjeturas eram infundadas.

—   Quero vê-lo, Gine.

Artur Gine estremeceu e voltou-se ao som da voz.

—   Alô! disse ele, sem jeito. Harry já sabe?

Dick fez que sim com a cabeça.

—   E está muito zangado, com certeza?

—   Está furioso. Foi sobre isso que vim vê-lo. Onde está Leslie?

—   Lá dentro. Você quer vê-la?

—   Não, respondeu Dick, calmamente. Quero falar com você. Vamos dar uma volta.

Afastaram-se o suficiente para que da casa ninguém pudesse ouvi-los, e Dick principiou:

—   Harry decidiu tirar a administração jurídica da proprie­dade das suas mãos, Gine. Ele me falou hoje cedo em alguns fundos que você estaria gerindo... cerca de cinqüenta mil libras de valores da falecida Lady Chelford. Esse dinheiro está intacto?

Artur não respondeu.

—   O dinheiro está intacto? insistiu Dick,.

—   Não, retrucou o outro, com voz rouca; nem um penny.

Dick olhou horrorizado para o homem.

—   Você quer dizer que o dinheiro se perdeu?

Artur fez um gesto afirmativo. E explicou:

—   Persuadiram-me a investir num campo de petróleo no Texas. As ações não valem nem dois centavos o milheiro.

Dick gemeu.

—   Louco, louco varrido! murmurou. Você compreende o que isso significa? Não vou poder protegê-lo agora, nem mesmo por Leslie. Você é um doido!

Artur Gine passou a mão pelos olhos, num gesto cansado.

—   Você não tem amigos capazes de ajudá-lo?

Os lábios do advogado crisparam-se.

—   Com cinqüenta mil libras, não, disse, bruscamente. Receio, Alford, que terei de passar por isso. Tenho sido um patife, um presumido, um estúpido cretino... Sou culpado de tudo o que poderá acontecer-me, e não me queixarei.

—   Ainda temos uma semana, ponderou Dick. Posso adiar a transferência por sete dias; mas depois que os documentos estiverem nas mãos dos outros advogados, nada o salvará.

Uma semana! Artur Gine beliscou o lábio inferior, em pos­tura meditativa. Sete dias. No que lhe dizia respeito, ainda que tivesse sete anos para repor as coisas no lugar, não via jeito de fazê-lo.

—   E tire da cabeça a idéia de descobrir o tesouro de Chel­ford, admoestou Dick. O choque fez o homem pular.

—   Ué, mas como é que você sabe...? — gaguejou.

       Sei tudo a respeito. E digo-lhe que desista. Isso não é

solução. É apenas roubar Pedro para pagar Pedro; pois se houver algum ouro... e duvido muito que haja... pertence a Harry e terá de ir para as mãos de Harry. E a fortuna de Leslie? É claro que não existe. Ela já sabe?

- Contei-lhe esta manhã, — disse o homem, e Dick, então, compreendeu a sua depressão. — Ela recebeu a notícia como um anjo; na realidade, pareceu-me quase feliz. E eu lhe asseguro que não compreendo por quê. As mulheres são umas coisas esquisitas.

—   Pois eu conheço uma mulher que é a coisa mais maravilhosa do mundo, — disse Dick, suavemente.

Não esperou por Leslie, mas saiu à pressa, como chegara, e o homem que estivera deitado a fio comprido debaixo das moitas de loureiros, esperou que os dois interlocutores desaparecessem; em seguida, rastejou penosa e cuidadosamente de volta à estrada, galgou o muro, saltou, e endereçou-se à agência telegráfica mais próxima para mandar as suas novidades.

 

 

O Sr. Gilder chegou ao chalé à noite e encontrou o seu "arrendatário" sentado na escada, fumando cachimbo. Afortuna­damente, o chalé se erguia no meio de uma rala plantação de árvores, e o córrego, nos fundos, impossibilitava a aproximação de quem quer que viesse por ali. Não obstante, o Sr. Gilder sen­tiu-se alarmado pela falta de precaução do homem.

—   Se quiser ficar, terá de permanecer dentro de casa. Eu já lhe disse que não quero que se saiba que você está morando aqui. E então, quais são as grandes novidades?

—   Entre, — convidou Tomás, com um sorriso, e Fabrian achou que o convite para entrar em sua própria casa era um tanto supérfluo.

Mau contador de histórias, foi só com freqüentes "Entende o que eu digo?" e muita prolixidade, que Tomás conseguiu deslindar a sua emaranhada narrativa.

—   Andei rondando a casa a manhã inteira. Eu queria dar um dedinho de prosa com a mocinha.

—   A respeito do quê? — perguntou o outro.

—   A respeito de uma certa coisa.

—   Pois então, entenda bem, Tomás: você não tem nada que falar com a Srta. Gine... percebeu? Não deve aproximar-se dela, nem chegar perto da casa.

—   Pois olhe, não foi nada mau que eu estivesse lá hoje cedo, — volveu Tomás, arreganhando os dentes num sorriso. — Porque ouvi uma coisa que o fará pular de alegria!

Tomás levou meia hora para repetir, com razoável exatidão, a conversa que surpreendera no gramado. Quando chegou ao ponto vital, o Sr. Gilder assobiou.

Artur Gine administrara os domínios de Chelford sem a sua assistência, e Gilder ignorava as particularidades da propriedade como se trabalhasse em outro escritório.

—   Cinqüenta mil, é? — meditou. — Pois isso é mais do que Artur Gine será capaz de reunir em pouco tempo.

—   E foi o que ele disse, — volveu Tomás. — Ele disse a Alford: "Amigos? Com cinqüenta mil libras, não". Foram essas as suas palavras.

—   Você ficou sabendo quando se completará a transferên­cia, isto é, quando os valores serão entregues aos outros advogados?

—   Daqui a uma semana, — informou Tomás. — O Sr. Alford disse: "Posso segurar uma semana, mas não posso adiar por mais tempo. E depois que esses papéis estiverem nas mãos dos outros, você estará perdido".

Cinqüenta mil libras! Gilder andava de um lado para outro da sala estreita, com as mãos nas costas.

—   Você disse que o noivado com Sua Excelência foi des­feito?

—   Ele não disse isso, — tornou o homem, — mas foi o que entendi. Ele disse: "Harry está muito zangado?" Harry é Sua Excelência, e Alford disse: "Está, e vai mudar os seus advogados". E ele disse: "E a fortuna de Leslie?"

—   Diga Srta. Gine, ouviu? — interrompeu Gilder, desabrido.

—   Ele não disse Srta. Gine, ele disse "Leslie". Mas para obsequiá-lo, direi Srta. Gine, — anuiu Tomás. — Ele disse: "E a fortuna da Srta. Gine? Não existe?" E Gine disse: "Nem um penny".

Isso não era novidade para Gilder — Artur já lho havia contado.

—   E outra coisa, Sr. Gilder... O Abade Negro apareceu por aí a noite passada. E tenho uma idéia a respeito dele. Sua Excelência tem verdadeiro pavor do Abade Negro. O senhor sabia?

—   Não me fale no Abade Negro! — bradou o homem. Queria arquitetar os seus planos e a tagarelice do hóspede o perturbava. — Fique aqui dentro e não se mostre a ninguém. Acho até que seria melhor você ir para Londres esta noite. Tem di­nheiro?

- Tenho algum. Mas fui um idiota! Há um velho diário nabiblioteca, que Sua Excelência, se o perdesse, pagaria umas duas mil libras, para reavê-lo; e eu estive com ele nas mãos! Era isso o que deveria ter afanado.

- E se o diário fosse encontrado cm seu poder, você estariana cadeia. Entretanto, pegou o dinheiro e safou-se com ele.

O ex-sentenciado não tinha visto as coisas por esse prisma.

- Isso é verdade, — concordou. Que cabeça que osenhor tem, Sr. Gilder! Puxa, se eu tivesse a sua inteligência...

Mas o Sr. Gilder não estava de maré para lisonjas.

- Tenho uma idéia, — prosseguiu Tomás, sem perceber oaborrecimento que estava causando. Deixe-me ir a Londres esta noite e voltar amanhã.

Gilder, porém, não o ouviu. Cinqüenta mil libras! E por esse preço poderia comprar Leslie Gine! As suas pulsações se ace­leraram. Não haveria restrições nem condições. Ela faria alegre­mente o sacrifício pelo irmão. Desta vez os tinha, aos três, na palma da mão: Leslie, Artur Gine, e, por último, mas não menos odiado, Dick Alford.

Via agora o que tinha de fazer; o plano, à prova de erros, era infalível. Nada mais se erguia entre elee a realização do que fora, um dia, uma esperança louca e insensata.

—   Uma semana? Você tem certeza?

Tomás acenou afirmativamente. Os seus olhos astutos não haviam deixado o rosto de Gilder. Sem dar tento do curioso escru­tínio, Fabrian perguntou:

—   Por que você acha que a notícia me interessa?

O homem sorriu e piscou expressivamente o oiho esquerdo.

—   O senhor não me pediu para contar-lhe quantas vezes a senhorita ia à Mansão dc Fossaway? Não me recomendou que lhe escrevesse tudo o que acontecesse entre ela e Sua Excelência?

Gilder permaneceu em silêncio. Não lhe era confortadora a idéia de haver empregado um homem como aquele para vigiar a jovem que ele amava.

—   É melhor você ficar por aqui, ponderou. Não quero que seja visto pelo pessoal da aldeia, nem pela gente da Mansão de Fossaway. Alguém já sabe que você está em minha casa?

—   Não, senhor. Nem mesmo a Srta. Gine: ela não me perguntou...

Gilder interrompeu-o, brusco.

—   Se for à cidade, vá à noite, e volte à noite. Pensando bem, não estou muito ccrto de que não seja uma boa ideia ficar mesmo por aqui.

Regressou a Londres mais tarde e passou a noite procedendo a um meticuloso exame das finanças. Tirara da cabeça todos os pensamentos acerca do tesouro de Chelford. Justificara-se, com efeito, a confiança de Mary Wenner. Ele mesmo se enganara ao olhar através da grade e dar com os cilindros bem arrumadinhos sobre o banco. Quem os tirara dali? O Abade Negro? Devia de haver alguma explicação para esse personagem. Fabrian tinha idéias próprias a seu respeito, mas ainda não soara o momento de pô-las à prova.

Passou a manhã seguinte na zona comercial de Londres e em Somerset House, examinando o testamento da falecida Lady Chel­ford. Os bens do espólio haviam sido minuciosamente especifica­dos, particularizando-se a natureza dos títulos e ações confiados a Artur Gine, e tendo sido John Henry Gine, tio de Artur, nomeado depositário. A busca realizada nos arquivos do tribunal não in­dicou nenhum sucessor do tio por morte deste e, aparentemente, não se nomeara outro depositário, ficando os valores em poder de Artur. Este teria, naturalmente, autoridade suficiente para vender e reinvestir, e não haveria dificuldade alguma se se entregassem ações de valor correspondente aos novos advogados de Harry Chelford.

Artur Gine passara um dia ocupadíssimo na solidão do seu escritório. A tarefa não era agradável: estivera pondo em ordem o caos dos seus negócios e, à proporção que crescia a lista das dívidas, ele parecia envelhecer.

Interrompera o trabalho unicamente para almoçar com a irmã, e Leslie, supondo que a causa da sua aflição fosse o desbarato da fortuna dela, fez o que pôde para animá-lo. A sua pri­meira providência fora calcular os remanescentes do dissipado quarto de milhão da moça, e o que restava era lastimosamente pouco, não chegando sequer a duas mil libras. Ele contou-lhe isso ao almoço.

—   Mas é, realmente, muito mais do que eu esperava, exclamou a irmã, sorrindo. Poderemos viver dois anos com esse dinheiro.

Ele esteve para dizer-lhe que, provavelmente, teria de viver cinco anos com menos ainda, mas preferiu calar a notícia até que fosse inevitável a sua divulgação.

As einco horas da tarde ela estava tomando chá sozinha, quan­do a criada lhe trouxe um cartão. Leslie não ouvira a chegada do carro.. pois a sala de estar ficava nos fundos da casa. Pegou no cartão e leu-o.

—   Não quero ver esse cavalheiro, declarou. Peça ao Sr. Gine...

Nesse momento, porém, lembrou-lhe a luta no gramado e o olho machucado de Artur.

—   Eu o receberei. Diga-lhe que entre.

Ela recebeu Gilder com uma inclinaçãozinha distante.

- Receio que a senhorita não me considere um visitante bem-vindo, — disse ele; — mas tenho um negocinho para discutir consigo, e lhe ficaria muito grato se me desse alguns minutos doseu tempo.

- Tenha a bondade de sentar-se.

Ele a contemplava com aquele olhar estranho, faminto, que ela já lhe vira no rosto em outra ocasião.

- Como a senhorita provavelmente sabe, durante muitos anos, fui a mão direita de seu irmão. Em decorrência disso, tenho um conhecimento muito íntimo dos negócios dele; e não só dos negócios dele, mas também dos negócios dos seus clientes. Sei, por exemplo, que a sua fortuna, Srta. Gine, é um mito.

Se ele esperara impressioná-la, ficou desapontado. Ela limitou-se a fazer um leve gesto de assentimento.

—   Eu também sei, Sr. Gilder, — disse ela. — Espero que o senhor não tenha feito uma viagem tão longa só para me contar isso?

Por um segundo, ele vacilou. Esperava que a informação fosse a primeira de duas tremendas sensações; ela notou-lhe a decepção estampada no rosto e sorriu-se intimamente.

—   Há outra questão, — tornou ele, recobrando-se, — que lhe interessa diretamente. Seu irmão administrava a propriedade da falecida Lady Chelford, isto é, tinha a seu cargo títulos e ações no valor de cinqüenta e uma mil libras. Antigamente, era essa uma atribuição comum dos advogados; hoje, naturalmente, os valores estariam em poder de um banco, que lhes creditaria automatica­mente os dividendos.

O coração dela quase parou de bater. Ele viu a cor desamparar-lhe o rosto e sentiu-se mais senhor de si.

—   Meu irmão tem... esse dinheiro? — perguntou ela.

—   Tinha. — Gilder deu ênfase à palavra. — Ouvi dizer que o atual Lorde Chelford está trocando de advogado e que, daqui a uma semana, os valores serão transferidos a outra firma.

Ela não pôde falar, pois sabia que ele estava dizendo a ver­dade e compreendia muito bem o que implicava a narrativa.

—   Cinqüenta mil libras é muito dinheiro, — continuou Gilder, com voz suave. — Uma soma dificílima de se levantar numa semana. E, dentro de uma semana, é preciso que o dinheiro esteja nas mãos de seu irmão.

Leslie ergueu os olhos e, vendo-lhes o sofrimento, Fabrian quase sentiu pena da moça.

—   O senhor quer dizer... que o dinheiro... que Artur não tem as ações para transferir?

Ele assentiu com a cabeça.

—   Tem certeza?    — Absoluta.

Seguiu-se longo silêncio. E o tique-taque do reloginho fran­cês lhes chegou tão alto aos ouvidos que ambos, instintivamente, olharam ao mesmo tempo para o consolo da lareira.

—   E por que me diz tudo isso?

Ele limpou a garganta.

—   Há poucos dias, eu lhe confessei, talvez desastradamente, que a amava. A senhorita talvez não acredite na... na afetuosa reverência que lhe consagro... mas eu a amo! Não há nada no mundo que eu não seja capaz de fazer pela senhorita, nem há preço algum que eu não pague.

Os olhos dela não vacilaram; dir-se-ia que estivesse lendo os pensamentos do seu interlocutor.

—   Até a ponto de arranjar cinqüenta mil libras numa semana? — inquiriu, em voz baixa.

—   Até esse ponto, — respondeu ele.

Ela pôs-se lentamente em pé.

—   Quer fazer-me o favor de escrever o seu endereço?

Tão calma era a sua voz, que ela parecia estar discutindo um negócio corriqueiro qualquer.

—   Sei onde mora, mas não me lembro do nome do prédio, nem do número.

Ele escreveu com mão pouco firme e deixou o papel onde a moça o colocara.

—   Preciso saber amanhã, — disse Gilder. — Sim ou não.

Ela deixou pender a cabeça.

—   O senhor saberá amanhã, — assegurou-lhe. — Se eu prometer desposá-lo, pode arrumar o dinheiro... que não faltarei à minha palavra.

Sem dizer mais nada, ele encaminhou-se para a porta, vol­tou-se e dirigiu-lhe profunda inclinação. Em seguida, saiu da sala. Leslie ouviu roncar o motor do automóvel, cada vez mais distante. Mesmo assim, não se mexeu.

 

 

Passando pela Rua Wardour naquela tarde, Dick Alford vira um rosto familiar. Um homem saíra de uma loja com um embrulho debaixo do braço e, reconhecendo-o, dera meia volta e afastara-se à pressa. Dick sorrira; fora-lhe impossível não reconhecer Tomás, e perguntara a si mesmo qual seria a natureza da compra.

Olhou para a vitrina da loja e ficou espantado; pois Tomás não parecia pertencer à espécie de homem capaz de apreciar as frivolidades que ali se exibiam.

Dick não estava bem-humorado. Fizera duas visitas e, em ambas, a sua solicitação fora delicadamente repelida. Ia agora em demanda da derradeira esperança. O grande banco da cidade estava fechado quando ele chegou, mas o porteiro admitiu-o à presença do velho que fora o maior amigo de seu pai. A guerra transformara o simples Sr. Jarvis, banqueiro provinciano da década de 1880, em Lorde Clanfield, presidente da maior organização bancária de toda a Europa.

Ele recebeu cordialmente o rapaz, que sempre distinguira.

—   Sente-se, Dick. Que foi que o trouxe aqui?

Simples e brevemente, Dick expôs o seu negócio, e Lorde Clanfield franziu o cenho.

—   Cinqüenta mil libras, meu caro rapaz! Você as quer para si?

—   Não, quero-as para um grande amigo meu. — Foi-lhe preciso fazer um esforço para descrever Artur nesses termos lison­jeiros. Ele se meteu numa enrascada.

Sua Excelência abanou a cabeça.

—   Não pode ser, Dick. Se fosse para você, se fosse para tirá-lo de uma enrascada... embora você não seja do tipo de rapazes que se metem em enrascadas... eu lhas daria do meu próprio bolso.

—   O senhor não pode emprestar-me esse dinheiro mediante uma garantia pessoal minha?

Sorriu-se o banqueiro.

—   Emprestar-lhe, Dick, seria dar-lhe! E que probabilidades teria você de pagar cinqüenta mil libras? Um filho segundo! Harry casa-se ainda este ano, e a propriedade terá um herdeiro no ano que vem! Não, não, meu velho, seria impossível!

Em desespero de causa, Dick Alford contou a história, omitindo apenas os nomes. O velho ouviu-o com o semblante grave.

—   Ele terá de agüentar as conseqüências, Dick, pon­derou. Se você o livrar desse apuro, ele, provavelmente, se meterá em outro pior. A pobre moça... tenho pena dela. Você, naturalmente, se refere a Gine? Não, não, não tenha medo, não direi uma palavra. Mas já tinha as minhas desconfianças, há muito tempo. Deixe-o tomar o seu remédio, Dick, e faça o que puder pela moça. Depois que o camarada estiver atrás das grades, e toda essa miserável encrenca tiver acabado, venha pedir-me o dinheiro que quiser... para ela. Conheci-lhe o pai e o tio, e o tio-avô, que lhe deixou muito dinheiro, o qual, suponho eu, deve ter-se

evaporado como o resto, e estou disposto a fazer o possível para ajudá-la. Mas não empenhe o seu crédito, Dick, por aquele sala­frário.

Dick voltou da cidade cansado e deprimido, tão desalentado que desistiu até de entrevistar o quarto homem que tencionava procurar. A sua única esperança era agora o irmão, e ele lhe conhecia tão bem a obstinação que não se animava a esperar ajuda desse setor, pois não poderia sequer solicitá-la sem trair a identi­dade do mutuário, o homem por quem Harry concebera um ódio desarrazoado.

Mono Puttler foi esperá-lo na estação e trazia novidades.

—   Aquele patife do Tomás ainda está por aqui, anun­ciou. Tem parado no chalé de Gilder.

—   Sim?

Dick não se preocupava realmente com Tomás, nem com Gilder, nem com coisa alguma deste mundo senão com a profunda tristeza que estava à espera de Leslie Gine.

—   Gilder esteve hoje na terra. Um perfeito dandy. Trajado como um doutor, com roupas novas, chapéu coco... e tudo o mais.

—   Onde foi que ele esteve? perguntou Dick, com súbito interesse.

—   Não sei. Tenho a impressão de que foi visitar o Sr. Gine. Vi o carro dele saindo da alameda, e o homem satisfeitíssimo con­sigo mesmo. E encontrei o rifle.

—   Onde o encontrou? inquiriu Dick, rápido.

—   Defronte do riacho. Alguém deve ter querido atirá-lo dentro d'água, mas faltou força. Havia ainda três ou quatro cartuchos no carregador... um Lee-Enfield de caça. Tentaram a faca e ten­taram o rifle; e eu me pergunto, que novidade prepararão agora para nós?

—   Você viu Harry?

—   Vi-o esta tarde, replicou o jovial Puttler. Ele me impingiu aquela piada do picão, mas não lhe revelei os meus pon­tos de vista.

Apesar da ansiedade, Dick sorriu.

—   Você tem pontos de vista sobre picões?

—   Tenho, sim, senhor, voltou o outro, confiante. Ele acha que picão é um instrumento. Mas aconteçe que, no tempo de Elizabeth, como agora, "picão" também significava "pedra", "cascalho".

Dick sobresteve e olhou para o detetive.

—   É isso mesmo? perguntou.

—   É isso mesmo. O novo "picão", a que se faz referência no diário, é um carregamento de cascalho que ele recebeu de Brigh- thelmstone. Isto é, Brighton. Ora, por que haveria o velho de querer cascalho? Evidentemente para misturar a alguma espécie de concreto, ou argamassa.

—   Pelo amor de Deus, não comece a falar no tesouro, que eu enlouqueço! — gemeu Dick. — De qualquer maneira, você não acredita na existência dele, graças a Deus!

—   Acredito, — declarou, enfático, o homem surpreendente. — Estou tão certo de que essas mil barras de ouro existem quanto estou certo de estar caminhando por esta estrada. Seu irmão tem um livro que mostra todas as contas particulares da Rainha Eli­zabeth; lá está o milhão que ela roubou dos navios espanhóis que aproaram para um porto inglês quando iam a caminho da Holanda; lá está o dinheiro que ela obteve de Drake e outros bandidos, que costumavam singrar os mares; mas não há a menor alusão ao ouro de Chelford.

—   Então, onde está ele? — perguntou Dick, exasperado.

—   Pergunte-me antes de eu ir embora, — replicou o outro, misteriosamente.

 

 

Leslie escreveu e queimou, na lareira do seu quarto, uma dúzia de cartas antes de redigir aquela que foi finalmente colocada num envelope e endereçada ao "Sr. Fabrian Gilder, Regency Mansions, 35, Londres".

Prezado Sr. Gilder, — Concordo com as suas condições. O dinheiro, ou as ações equivalentes, deve ser depositado na agência de Horsham do Southern & Midland Bank, em nome de Leslie Gilder, de sorte que eu possa ter o controle da conta assim que me casar. Não espero que o senhor confie na palavra de um membro da minha família, e presumo que queira que o casa­mento se realize nos próximos dias. Quer fazer-me o favor de encarregar-se dos aprestos da cerimônia o mandar-me dizer quando e onde deverei encontrar-me consigo. Espero que seja no car­tório, mediante licença especial. Só lhe posso dizer que, embora esse casamento não tenha sido escolhido por inim, o senhor pode confiar que serei uma esposa fiel.

Sinceramente, Leslie Gine.

A última correspondência era apanhada, por um estafeta de motocicleta, numa caixa postal que ficava a menos de cem metros da casa. Havia uma coleta anterior mas, fosse como fosse, Leslie não se decidiu a por a carta no correio senão no último momento. As dez horas eram um horário inusitadamente tardio para uma coleta de província, mas acontece que, sendo aquela a última caixa no percurso do carteiro, isso representava um arranjo especialmente conveniente, não só para os habitantes da Mansão de Fossaway, mas também para os arrendatários que desejavam dar notícia das suas entregas diárias.

Ela viu Artur ao jantar, depois de haver escrito a carta mas, tirante a troca de umas poucas observações corriqueiras, não se falaram. Ele voltou ao escritório, levando consigo o café, e Leslie ficou sozinha, entregue à contemplação do seu negro futuro. Quisera ter visto Dick antes de escrever, mas agora já era tarde demais. Gilder lhe pedira uma resposta naquela noite, e ela prometera responder.

Que diria Dick? A jovem esfregou os olhos com força, como se quisesse esconder a visão do rapaz, e os lábios lhe tremeram.

"Nada de fraquezas, Danton!" Era uma citação favorita da sua infância, e fora o seu lema em todos os momentos em que sentira a proximidade das lágrimas.

Tirou a carta da bolsa e pôs-se a contemplá-la. Selada, sobrescritada, bastava-lhe colocá-la na caixinha de correio para que, dali por diante, o curso da sua vida se desviasse completamente e lhe oferecesse uma nova perspectiva: a mais árida, a mais som­bria perspectiva com que uma mulher já defrontara.

Uma caminhada de poucos minutos levou-a à caixa, e ali esperou. Um pingo grosso de chuva caiu-lhe na mão; ouviu gemer o vento ao passar pelas árvores; e, logo, muito longe, avistou um pontinho de luz e ouviu o ronco distante da motocicleta do carteiro. Enfiou a carta na caixa e voltou-se para desandar o caminho per­corrido.

Ocorreu-lhe, então, que o estafeta cruzaria com ela e a jovem não desejava vê-lo. Para onde iria? O coração e a vontade indi­cavam a Mansão de Fossaway. Dick — precisava ver Dick. Lutou contra a loucura; a luz da motocicleta tornou-se mais brilhante. Leslie pôs-se a correr, na direção do forte, atravessou o portão e subiu o aclive que conduzia à abadia. Lá se sentou para reco­brar o fôlego e, pouco depois, viu o reflexo de um farol e ouviu o ronco da motocicleta, que passava.

Lá se ia o destino, na estrada escura, barulhento, aos solavancos. A luz vermelha desapareceu, e ela levantou-se, passou lentamente pelas ruínas da abadia, sem pensar sequer em assom­brações ou almas do outro mundo, e tomou o caminho mais baixo e mais curto para Chelford.

Já atravessara a metade do Prado Grande, quando se deteve. O medo lhe apertava o coração; sentia a pele arrepiada no pescoço e, voltando-se, olhou para trás. Alguém a estava seguindo. Cons­cientemente, não ouvira som algum, mas um misterioso sinal lhe apressara as batidas do coração. Não via ninguém. Aquilo devia ser obra da sua fantasia, disse entre si; aqui, entretanto, a razão e o instinto estavam em desacordo, e o instinto venceu. Ela sabia que havia alguém imediatamente atrás de si, a menos de vinte metros de distância.

Aproximava-se cada vez mais da casa, quando, a súbitas, girou sobre si mesma. Alguém estava atrás dela: agora tinha certeza. Ouviu os passos sobre o cascalho da estrada.

—   Quem está aí? — gritou.

Não ouviu resposta, mas os passos cessaram. Ele poderia estar caminhando sobre a borda relvosa do caminho, pensou e, voltando-se, subiu correndo a alameda. Quem quer que a estivesse se­guindo corria também. Ouviu um sussurro sibilante e o sangue gelou-lhe nas veias. Depois, no momento em que saiu de entre as árvores, avistou uma figura que contrastava com o brilho do lago redondo, avistou-lhe a forma — o longo hábito e o pesado capuz. Com um grito, saiu correndo.

Se continuasse naquele caminho e passasse além da janela, chegaria ao escritório de Dick. Viu, com um ofego de alívio, que a porta estava aberta e uma luz brilhava lá dentro. Por cima do ombro tornou a ver a forma estranha, e gritou. Num átimo, Dick saiu do escritório e a apanhou nos braços.

Ele ouviu-lhe a história, que ela contou entre arquejos; a seguir, quase carregando-a, levou-a para a sala, fê-la sentar-se numa cadeira e saiu correndo para o jardim. Minutos depois, voltava.

—   Não vi nada. Você diz que era o Abade Negro?

—   Não sei; era uma coisa com um hábito e um capuz: disso tenho certeza.

Má introdução para a história que precisava contar-lhe; na verdade, em seu terror, quase lhe esquecera o objetivo da visita.

—   Artur veio com você?

Ela sacudiu a cabeça.

—   Dick, eu sei, — foram as primeiras palavras que pronunciou depois de recobrar o fôlego.

—   O que é que você sabe?

—   A respeito do dinheiro de LadyChelford.

Ela viu alterar-se o rosto dele.

—   Ele lhe contou? — perguntou o rapaz, cujo rosto se afogueava.

—   Artur, não. Foi Gilder.

—   O Sr. Gilder contou a você? Eu sabia que ele tinha estado aqui e visitado a sua casa. Foi para isso que veio?

Ela inclinou afirmativamente a cabeça.

—   Para nada mais?

—   Sim; veio oferecer-me o dinheiro.

Os olhos dele se estreitaram.

—   Ah, sim? Mediante um certo preço, naturalmente.

Ela confirmou, com um gesto.

—   E você... o que foi que você disse?

Ela encontrava dificuldade para respirar; falar, naquele instante, lhe seria impossível, a menos que quisesse fazer um papelão.

—   Você concordou?

—   Acabei de por no correio uma carta para ele.

Ela viu-o morder o lábio, onde não demorou a surdir um ponto de sangue. Se ele tivesse gritado, se a tivesse amaldiçoado, ela talvez o suportasse; masRichard Alford apenas olhou para ela. E nada havia em seu olhar que fosse descaridoso.

—   Oh, Dick, Dick! — Leslie soluçava no peito dele e os braços do rapaz a conchegavam de si, confortando-a.

—   Você não pode fazer isso, meu bem. Qualquer coisa é melhor do que isso.

Ela sacudiu a cabeça, incapaz de falar.

—   Estou-lhe dizendo que qualquer coisa é melhor do que isso. — A voz lhe soava dura, inflexível. — É melhor que Artur passe cinco anos na cadeia do que viver você no inferno a vida inteira! Conheço aquele homem... conheço o tipo... não é a idade, é o espírito, é o coração, que é mau. Se ele tivesse vinte anos, eu lhe diria, "Não, você não pode fazer isso, Leslie".

Ela afastou-se brandamente dele e enxugou os olhos.

—   Preciso, Dick; dei a minha palavra. Não posso enganá-lo. A última coisa que eu lhe disse foi: "Se eu disser que casarei com o senhor, pode arranjar o dinheiro... não faltarei à minha palavra". Não posso faltar; seria faltar a mim mesma.

O rosto dele, contraído, era de intenso sofrimento.

—   Não pode ser! — bradou. — Alguma coisa tem de "acontecer. Não sei o quê... — e interrompeu-se.

—   O que foi isso? — perguntou ela, com voz entrecortada.

De algum lugar do jardim veio um grito agudo, que não parecia humano. Logo depois, o grito se repetia: um misto de soluço e de gemido, que lhe gelou o coração.

—   Fique aqui, — ordenou Dick, ao precipitar-se para a janela aberta, mas ela saiu atrás dele.

—   Você não vai! Você não pode ir! — gritou, desvairada. — Dick, alguma coisa medonha está acontecendo. Oh, meu Deus! Dick, ouça, Dick!

Desta feita o grito foi mais fraco e morreu num lamento fino.

Ele afastou-a para um lado e correu para o gramado.

—   De onde é que você acha que veio?

—   De lá. — Ela apontou para a alameda. — Deixe-me ir com você. . . deixe, por favor! — implorou. — Não tenho coragem de ficar sozinha.

Ele hesitou.

—   Então venha, — anuiu, ríspido e agarrou-lhe o braço com uma força que a fez encolher-se.

Juntos corriam na direção da alameda, quando ele se deteve.

—   Volte e vá buscar a minha lanterna. Está em cima da escrivaninha. Esperarei aqui.

Ela voltou voando para a sala, agarrou a lanterna com mãos trêmulas, tão trêmulas que mal podia segurá-la, e foi juntar-se a ele.

—   Foi ali. Ouvi qualquer coisa há um segundo. Se eu não tivesse prometido esperar...

Acendeu a luz, espalhando-a sobre o chão à sua frente, e caminhando adiante dela. Logo depois ela o viu deter-se e um círculo de luz focalizou qualquer coisa pardacenta, amontoada no chão.

—   Fique onde está, — ordenou ele, — e não olhe para cá.

Uma voz chamou-o à distância: era Puttler, que, orientado pela lanterna, não tardou a surgir em cena.

—   Quem é? — perguntou.

—   Não sei, — respondeu Dick em voz baixa.

A seus pés estava a figura encolhida de um homem. Jazia de borco e vestia, da cabeça aos pés, um longo hábito preto, amarrado ao nível da cintura por uma corda.

—   O Abade Negro? — perguntou Puttler, incrédulo. — Está morto?

—   Parece, — replicou Dick, e apontou para o ombro mo­lhado e para o horror da garganta.

Puttler ajoelhou-se, enfiou os braços por baixo do corpo, e deitou-o de costas.

Um capuz cobria o rosto, que ele ergueu delicadamente.

—   Deus misericordioso! — disse Dick com voz abafada.

Estava olhando para o rosto cinzento de Tomás, o lacaio.

 

 

—   Tomás... o Abade Negro!

Dick contemplou, atônito, a coisa lamentável; em seguida, lembrou-se da jovem e, depois de dar algumas instruções em voz baixa a Puttler, foi ter com ela.

—   Ele está... morto?

—   Sim, receio que sim.

—   Quem... quem é?

—   Um dos criados, — replicou o rapaz, evasivamente.

—   Não é Tomás?

Por que pensava que fosse Tomás ela mesma não saberia dizê-lo.

—   É... é Tomás.

Ela não fez outras perguntas, e eles voltaram em silêncio para a sala. Dick tocou a campainha, e ordenou ao lacaio que atendeu:

—   Peça ao Sr. Glover que venha cá.

O velho mordomo chegou apreensivo. Todos os criados tinham ouvido o grito no parque.

— Onde está Sua Excelência?

—   Foi-se deitar há uns cinco minutos, Sr. Alford.

—   Terá ouvido. . . alguma coisa?

—   Não, senhor. Ele fica tão zangado quando a gente fala no Abade Negro...

—   E como sabe você que era o Abade Negro? — pergun­tou Dick, áspero, e o mordomo explicou que alguém vira a figura no jardim.

—   Estava tentando abrir uma janela. Uma das criadas, olhando do seu quarto, viu-o andando no caminho pavimentado, embaixo, e deu o alarma. Ele feriu alguém, Sr. Richard?

—   Não, não feriu ninguém, — respondeu Dick.

Afastou o mordomo na direção da sala e fechou a porta atrás de si.

—   Um homem foi encontrado no jardim com uma roupa de abade negro... e está morto... assassinado!

—   Santo Deus, senhor! — exclamou o criado, assustado. — É alguém que conhecemos?

—   Tomás, — respondeu Dick, lacônico, e o velho, cambaleando, apoiou-se à parede apainelada.

—   O nosso Tomás? Tomás Felizão, o homem que foi despedido?

Dick assentiu com a cabeça.

—   Tomás — murmurou o velho. — É terrível! O senhor acredita...

Dick cortou-lhe prontamente a pergunta.

—   Faça o que eu digo; mande os criados para a cama. A polícia não demora, mas darei um jeito para que o pessoal só seja interrogado amanhã cedo.

E voltou para junto da moça.

—   Quanto a você, minha jovem, — disse, com um sorriso severo, — parece que passo a vida levando-a de volta para casa.

—   Eu não poderia ficar? — perguntou ela, tímida.

Dick abanou a cabeça.

—   Teremos de chamar a polícia, e quero manter o seu nome fora desse negócio. Artur está em casa?

—   Sim, Artur está em casa, — respondeu ela, desacorçoada.

Nesse momento, soou a campainha do telefone, e ele atendeu

—   É da casa de Lorde Chelford? — perguntou uma voz desconhecida.

—   É, — confirmou Dick.

—   Estou falando da subagência do correio. Não é Lorde Chelford quem está no aparelho?

—   Não, é o Sr. Alford.

—   Bem, então ouça, Sr. Alford. O senhor, por acaso, man­dou alguma coisa importante pela caixa local do correio?

—   Por quê? — acudiu Dick, rapidamente.

—   Porque o nosso estafeta comunicou que mexeram na caixa. Ele não pôde introduzir a chave, de modo que as cartas colocadas entre as seis e as dez horas ainda não foram apanhadas.

Dick não conteve uma exclamação.

—   Certo! Então, quando tudo estiver normalizado, peça ao estafeta que traga as cartas à Mansão. Há uma ou duas que desejo retirar.

O homem do outro lado hesitou.

—   Bem, em face das circunstâncias, não há dúvida, — disse ele, e Dick, desligando o aparelho, voltou-se lentamente para a jovem.

—   A correspondência que estava na caixa do correio não foi recolhida.

A pouco e pouco, a significação das palavras lhe penetrou o espírito.

—   O que é que eu devo fazer? — murmurou ela.

—   Dê-me autorização para retirar a sua carta dirigida a Gilder. Ainda há seis dias.

Ela conteve a respiração. Por um segundo, a visão do irmão em trajes de sentenciado lhe surgiu diante dos olhos; depois, olhou para o homem que estava à sua frente, e um pouco da vitalidade, da confiança dele a penetrou.

—   Farei o que você disser, — assentiu ela, com uma vozinha que era pouco mais que um murmúrio. — Mas, Dick, o que é que vai acontecer?

—   Cumprirei a minha obrigação, — prometeu Dick.

E durante toda a noite sem sono, enquanto virava de um lado para outro da cama, ela meditou nessas palavras, mas não acertou com a solução do seu mistério.

 

 

Barbudo, olhos cansados, Puttler arrastou-se até o escritório e serviu-se de uma grande chávena de chá, que o mordomo trou­xera, e bebeu-a de um trago.

—   A Scotland Yard me encarregou deste caso, e o senhor pode agradecê-lo à sua boa estrela! — informou ele. — Considerando-se que tivemos de fazer todo o nosso trabalho entre as onze e as quatro da manhã, desconfio que bati um recorde em matéria de investigação. Os trajos monacais de Tomás foram alugados, como o senhor imaginou, numa casa de roupas de teatro na Rua Wardour...

—   Eu o vi sair de lá com um pacote debaixo do braço e per­guntei a mim mesmo o que faria ele com uma fantasia, — inter­rompeu Dick.

—   Esse é o fato no 1, — contou Puttler. — O fato n.° 2 é que ele se preparava para dar no pé. Chegou até a tentar abrir a caixa postal, provavelmente um pouco antes, naquela mesma noite. O senhor manda dinheiro pelo correio?

—   Meu irmão manda, freqüentemente. Ê um hábito que já tentei curar, mas sem êxito.

—   Esse é o fato n.° 2, — continuou Puttler. — Ele não pôde abrir a caixa, mas encontramos a chave em seu poder. Já limpara tudo o que havia de valor na casa de Gilder. Encontrei-lhe a mala feita e escondida no campo, onde o senhor diz que Gilder esta­ciona o automóvel. E, obviamente, ele vinha aliviar seu irmão de quaisquer haveres que pudesse encontrar na biblioteca. Achei as ferramentas espalhadas num canteiro, debaixo de uma das janelas da biblioteca.

—   E como é que ele foi morto? — perguntou Dick.

Puttler coçou a cabeça.

—   Por um regimento de soldados, a julgar pelo seu aspecto!

Conversaram até que o Sr. Glover, com olhos de sono, entrou

cambaleante no escritório e pediu permissão para recolher-se. Em seguida, saíram para a manhã fria e foram juntar-se aos policiais que estavam esquadrinhando o jardim.

—   Suponho que o melhor que temos a fazer é irmos para a cama também, — sugeriu Dick. E, nesse instante, Puttler abai­xou-se e apanhou qualquer coisa escondida no meio da relva.

Era uma longa adaga, com o punho de aço enegrecido pelo tempo e a lâmina revestida de uma película ainda úmida. Os dois se entreolharam.

—   O senhor conhece isto?

Dick assentiu mudamente.

—   O que é? — perguntou Puttler.

—   É a adaga que pertenceu outrora a Hubert de Redruth... o Abade Negro! — respondeu Dick.

O queixo do homem caiu.

—   E de onde vem?

Dick sacudiu a cabeça.

—   A última vez em que a vi, — disse lentamente, — estava pendurada na sala da casa de Artur Gine.

 

 

—   Cada vez mais curioso, — observou Puttler, que não escondia as suas inclinações literárias.

Dick ouviu o próprio nome gritado por uma voz agitada e, olhando à sua volta, viu o mordomo, que se aproximava correndo, já sem olhos de sono, mas muito alerta e muito pálido.

—   Que aconteceu, Glover?

—   A criada... a idiotinha só agora me contou... assustada! — arquejou o velho e apontou para as janelas abertas do escritório.

Passou-se algum tempo antes que a criada pudesse falar com coerência. Quando o conseguiu, narrou a pasmosa história. Fora deitar-se pouco depois das onze, com enxaqueca. Não ouvira o grito mas, em dado momento, que precisou, pois tinha um des­pertador de mostrador fosforescente junto da cama, a 1 hora e 45 minutos, ouviu "uma terrível comoção" no andar inferior. O seu quarto ficava imediatamente acima do quarto de Lorde Chelford. Ouviu gritos, berros, barulho de vidros quebrados e sons de luta.

—   Depressa, depressa, mulher! — instou Dick, frenético de ansiedade. — Lá embaixo, no quarto de Sua Excelência... você tem certeza?

—   Tenho, sim, senhor, — choramingou a rapariga. — Eu simplesmente não me atrevia a levantar-me, com medo de ser assassinada. Fiquei lá, desmaiei, e voltei a mim outra vez.

Antes que ela terminasse, Dick se precipitava pelo salão e subia a escada de dois em dois degraus. Tentou abrir a porta do quarto de Harry, mas achou-a trancada. Chamou-o pelo nome, bateu com desespero nas almofadas da porta, mas não obteve resposta.

—   É melhor arrombarmos, — sugeriu Puttler. — O senhor tem um machado?

O Sr. Glover desceu à procura do instrumento e voltou com um machado e um abridor de caixotes. Num segundo, a almofada da porta voou pelos ares e Dick espiou.

Todas as cortinas, exceto uma, estavam corridas, e a exceção admitia luz suficiente para permitir-lhe o exame do quarto. Ao seu primeiro olhar, sentiu apertar-se-lhe o coração. O quarto se achava em tremenda confusão; as roupas de cama haviam sido atiradas ao chão, dois espelhos comuns e um espelho de báscula tinham-se espatifado; a janela sem cortina estava aberta. Dick enfiou a mão pelo buraco feito na almofada e abriu a porta. Os dois homens precipitaram-se no interior do aposento.

Havia vestígios de uma luta terrível. Os restos de duas cadeiras jaziam espalhados pelo chão. A mesa em que se achavam os remédios fora derrubada e o chão, cheio de vidros quebrados, ainda estava molhado pelos remédios derrubados.

Puttler acercou-se da cama. A metade do colchão se arrastava no soalho, mas os travesseiros continuavam em seus lugares, e num deles e numa parte do lençol de baixo viam-se grandes manchas de sangue.

Dick examinou a janela aberta: três ou quatro vidraças revestidas de chumbo quebradas, e a barra de aço, que mantinha aber­tas as janelas, torta, como se um grande peso houvesse descansado sobre ela. O chão do jardim ficava a uns quatro metros e meio abaixo da janela e, ali, uma grande moita de azáleas fora destro­çada, como se algo muito pesado houvesse caído em cima dela. Sem hesitar, Dick passou as pernas sobre o peitoril, equilibrou-se e saltou para o chão. Havia sangue nas folhas dos arbustos; mas não viu pegadas. Examinando o solo, deu com uma mancha de sangue num dos botaréus da parede.

A essa altura, Puttler, que escolhera um meio mais calmo de descer, juntara-se a ele, e os dois homens continuaram explorando o caminho pavimentado, e procurando novos indícios.

—   Isso aconteceu quando estávamos no jardim com a polícia local, disse Puttler.

Ele se censurara a noite inteira, mas Dick silenciou-o.

—   Não se pode fazer nada, sobreveio o rapaz. A culpa é tanto minha quanto sua. Eu deveria esperar uma coisa dessas, depois da morte de Tomás. Sabendo o que sei, deveria ter subido ao quarto dele e ficado em sua companhia ou, pelo menos, de atalaia fora do quarto. Pobre Harry! Pobrezinho!

Não pôde continuar falando. Havia lágrimas em seus olhos.

—   Que é isto?

A parte pavimentada do caminho terminava abruptamente e era continuada por um caminho de cascalho, onde se viam marcas de alguma coisa pesada que por ali fora arrastada. E as marcas cessavam tão repentinamente quanto o pavimento.

—   Espere, disse Dick, ao atinar com a solução.

Correu ao longo da parede daquela ala, dobrou a esquina, e se deteve diante da primeira janela da biblioteca. Estava aberta. Erguendo-se com a força dos braços, deixou-se cair no interior da sala escurecida e abriu as cortinas. Até aquele momento, não havia examinado a biblioteca; o seu olhar experimentado, familiarizado com quase todos os livros nas estantes, contou-lhe que alguém estivera ali. Uma seção das prateleiras tinha sido quase toda esva­ziada. Uma gaveta da mesa de Harry fora arrombada e, no soalho deu com uma caixa vazia de metal.

Fez um breve exame, voltou ao ar livre pela janela, e contou ao detetive a descoberta que fizera.

Além do caminho de cascalho e das marcas de arrasto, perdiam-se todos os traços de Harry. À frente deles, a uma distância de quatro ou cinco centenas de jardas, fluía o rio. À esquerda, e invisível dali, erguiam-se as ruínas da abadia.

Uma hora de buscas não os deixou mais próximos da ver­dade, e Dick voltou à sua sala para encontrar o primeiro dos repórteres descabelados descendo de um automóvel alugado.

 

 

O Sr. Gilder levantou-se às seis horas naquela manhã. Passara uma noite agitada e saudou prazeroso a madrugada. A primeira entrega do correio só se fazia às oito horas, e ele foi pessoalmente receber o carteiro à porta. Levou a meia dúzia de cartas para o quarto e examinou-as com sofreguidão. Só uma delas trazia um carimbo familiar do correio, mas fora sobrescritada com uma letra conhecida. Abriu-a e encontrou apenas alguns garranchos:

Se não nos tornarmos a ver, agradeço-lhe a bondade, e peço- lhe que não pense muito mal do seu velho amigo.

Com que, então, Tomás se fora! Com uma praga atirou a carta à lareira e voltou, abordando o estafeta quando este já descia, depois de haver entregue a correspondência nos andares superiores.

— Não, senhor, não há outra carta, — disse o homem, depois de passar novamente em revista o maço de missivas. — Mas há nova entrega às nove e meia. A correspondência que vem do inte­rior nem sempre chega à cidade a tempo de ser incluída na pri­meira.

Gilder bateu a porta com força e voltou, embezerrado, para o quarto. A essa hora, os criados já estavam em atividade. Às nove horas trouxeram o desjejum, mas a vista do conteúdo dos pratos não o tentou.

Os jornais lhe foram colocados, dobrados, nas mãos. Abriu o primeiro e, na página central, um parágrafo lhe chamou a atenção:

"ESTRANHO SUCESSO EM MANSÃO ASSOMBRADA"

Pelo telefone, Chelfordbury, 2 horas da manhã.

"Teve trágica seqüência o aparecimento do Abade Negro nos jardins da Mansão de Fossaway. Às onze horas da noite passada, ouvindo gritos, o Sr. Richard Alford correu para o jardim e de­parou com o cadáver de um homem vestido de monge. Ele havia sido terrivelmente mutilado, exibindo nada menos do que nove ferimentos. O homem foi identificado como sendo Tomás Felizão, ex-lacaio a serviço do Conde de Chelford."

Gilder soltou uma exclamação e depôs o jornal. Tomás! O seu primeiro pensamento foi para si mesmo. Se se divulgasse que aquele homem estivera hospedado em seu chalé, ele seria envolvido no caso; far-se-iam investigações, e ele figuraria num inquérito de instrução, se não viesse a figurar num processo de assassínio. A sangue-frio, maldisse o morto pela sua insensatez.

Gilder não alimentava a menor dúvida sobre o que ocorrera. Tomás voltara à Mansão de Fossaway para buscar o resto do dinheiro que vira na caixa de metal na sala de Lorde Chelford. E então — seria Tomás, afinal de contas, o Abade Negro? Era muito possível que tivesse usado o mesmo disfarce em outras ocasiões, pois estaria em posição favorável para essa palhaçada.

Momentaneamente, os pensamentos em torno da carta esperada se dissiparam. À proporção, porém, que se ia familiarizando com a tragédia, os seus cismares voltavam a Leslie Gine.

Tornou à bibliotecazinha onde trabalhava, abriu a combinação de um cofre de parede e dele tirou uma carta. Lera-a muitas e muitas vezes depois de havê-la escrito e, a cada leitura, sentia o calor do envaidecimento que os homens derivam da contemplação da própria generosidade.

"Minha querida Leslie, — Obrigado pela sua carta. Não duvidei de que você cumprisse a sua palavra. Encontrará a minha resposta inclusa — um cheque em branco. Não faço estipulações, não imponho condições. Preencha o cheque com a importância de que seu irmão precisa para livrar-se da sua terrível situação. Dei ordens ao banco para que pague o cheque sem discussão. — Fabrian."

Era característico do homem, que tinha três contas bancárias, mandar o cheque de uma agência em que o seu saldo perfazia exatamente a soma necessária para liquidar a dívida de Artur. Teria sido a coisa mais simples do mundo preenchê-lo com a soma exata, mas havia certa nobreza, certa munificência, no cheque em branco. Dir-se-ia uma carta branca sacada por conta da sua fortuna. Reco­locou a carta no envelope, devolveu-a ao cofre e já lhe encostara a porta quando soou a campainha do telefone.

Era o homem que tomara o seu lugar no escritório. Queria saber se ele, Gilder, tinha notícias de Gine.

— Não o vemos desde que o senhor saiu do escritório, e as cartas que lhe mandamos para assinar não nos foram devolvidas.

Gilder confortou o aflito cidadão assegurando-lhe que Artur apareceria num dia qualquer da semana. No fundo de sua mente ainda persistia uma grande intranqüilidade acerca da tragédia de Chelfordbury. Mandou uma criada comprar um exemplar das edi­ções esportivas, mas estas ainda não haviam chegado a Regenfs Park, e resolveu tomar um táxi que o levasse a Picadilly Circus e, se necessário, à Rua Fleet, a fim de adquirir os exemplares. O passeio serviria também para encher o tempo enquanto não che­gasse a correspondência do interior.

Foi em Oxford Circus que viu os primeiros resumos da matéria dos jornais. Dizia o primeiro: "Terrível Tragédia numa Aldeia de Sussex"; o segundo fê-lo dar um salto no assento do táxi: "Co­nhecido Conde Raptado e Assassinado".

 

 

Gilder mandou parar o táxi e, descendo, agarrou o primeiro jornal. Uma espalhafatosa manchete prendeu-lhe a atenção:

"LORDE CHELFORD RAPTADO POR ASSASSINO DESCONHECIDO. TEME-SE DUPLA TRAGÉDIA NUMA ALDEIA DE SUSSEX".

Havia outros títulos e subtítulos, mas os seus olhos passaram incontinenti à história.

"Às onze horas da noite passada ouviram-se gritos nos jardins da Mansão de Fossaway, a formosa mansão Tudor que tem sido residência de campo dos Condes de Chelford há centenas de anos. O Honorável Richard Alford, único irmão de Lorde Chelford, saiu para o jardim, acompanhado pelo Sargento-Detetive Puttler, que se hospedava na mansão como convidado do Sr. Alford. Eles ficaram horrorizados ao descobrir, estendido na relva, o corpo morto de um homem que envergava o hábito do famoso Abade Negro. A polícia local foi imediatamente chamada e mal iniciara as suas investi­gações quando, à sua revelia, ocorreu segunda tragédia. Uma criada a serviço do Conde de Chelford, Alice Barter, que dorme numa dependência acima do quarto ocupado por Lorde Chelford, afirma que, à uma hora da manhã, ouviu sons de luta nos aposentos de Sua Excelência. Aterrorizada, não deu parte da ocorrência senão às quatro horas da manhã. Arrombou-se a porta do quarto de Lorde Chelford e uma cena terrível se deparou aos olhos dos policiais. O cômodo estava numa tremenda confusão; espelhos e móveis tinham sido feitos em pedaços; depreendia-se, evidentemente, das indi­cações, que ocorrera uma luta terrível e que, desacordado ou morto, Lorde Chelford fora levado até a janela e dali atirado ao jardim. Uma investigação realizada nas imediações demonstrara, sem possibilidade de contestação, que o seu corpo tinha sido arras­tado por certa distância. No momento em que telefonou, afirmou o nosso correspondente, ainda não se descobrira vestígio algum do corpo mas, em face de certos indícios, era indubitável que o des­venturado fidalgo fora vítima de um ou mais assassinos. Alguns pertences seus desapareceram, ao passo que um cofrezinho, que ele guardava na gaveta da mesa da biblioteca, foi encontrado vazio. O Sargento-Detetive Puttler, da Scotland Yard, está encarregado do caso."

O jornaleiro ainda estava esperando o pagamento. O Sr. Gilder enfiou a mão no bolso mecanicamente e, dando-lhe um xelim, voltou ao carro.

—   Dê uma volta pelo Outer Circle, — ordenou. Precisava de tempo para pensar.

De maneira vaga e inquieta compreendeu que se achava profun­damente envolvido na tragédia. Fabrian Gilder possuía o espírito do advogado. Percebeu a conexão entre ele, Tomás e Chelford. Tomás, ladrão conhecido, acoitado em seu chalé, sai de casa, com ou sem colaboradores, e é assassinado. Chelford, até há pouco noivo da jovem que ele, Gilder, requestava, desaparece em circuns­tâncias que não deixam dúvidas quanto à sua morte.

Chegado ao seu apartamento, anunciaram-lhe:

—   O Sr. Artur Gine está à sua espera na biblioteca.

—   O Sr. Gine? — exclamou, espantado. — Quando foi que ele chegou?

—   Há dez minutos.

—   Oh! — fez o Sr. Gilder, desconcertado.

Teria ela mandado o irmão em lugar da carta? Teria contado a ele? Como quer que fosse, era mister enfrentar a situação.

Encaminhou-se com ar despreocupado para a pequena biblioteca e encontrou Artur sentado numa poltrona, com um livro na mão e um charuto pela metade entre os dentes.

—   Bom dia, Gilder.

A voz soou jovial, quase amável e, por um momento, o coração do Sr. Gilder lhe saltou dentro do peito. Aquele era, sem dúvida, um amistoso embaixador enviado pela moça para proceder aos arranjos necessários.

—   Creio que devemos esquecer o que passou, principiou Artur. Ambos perdemos a cabeça e não há razão para mantermos acesa a velha discórdia. O charuto não o incomoda?

Recolocou no lugar o livro que tirara da estante, limpou os joelhos cuidadosamente, e pôs-se a rir.

—   Pelo visto, você está pensando em casar com Leslie?

Gilder fez um sinal afirmativo com a cabeça, sem desfitar avista do visitante.

—   Está esperando carta dela? Pois acho que não vai rece­bê-la.

—   Por que não? perguntou o outro, sentindo apertar-se- lhe subitamente o coração.

—   Porque o amigo Tomás, que passou a noite roubando por atacado... a propósito, roubou uma adaga antiquíssima da minha sala, um bule de prata e outros etceteras... rematou a sua infâmia tentando roubar a caixa do correio. Não conseguiu abrir a caixa, mas inutilizou a fechadura.

Gilder voltou a respirar.

—   Quer dizer que não houve coleta? — indagou, com voz rouca. Bem, isso é um alívio.

Havia um brilho malicioso nos olhos de Artur Gine; a descoloração do olho esquerdo reduzira-se a um verde pálido.

—   Ouvi dizer que você vai ajudar-me?

—   Vou livrá-lo dos seus apuros.

—   Ocorreu-me — Artur inclinou-se para um lado e, com extremo cuidado, deixou cair as cinzas do charuto num cinzeiro posto sobre a mesa da biblioteca — ocorreu-me que você talvez quisesse dar-me uma prova irrefutável das suas boas intenções.

—   Não compreendo.

Artur hesitou.

—   Eu gostaria que você me escrevesse uma carta, declarando que me empresta essa soma, aliás respeitável. Entenda, Gilder, em­bora você planeje casar com minha irmã, sou suficientemente vai­doso para desejar que isso não seja considerado como presente nem como o preço... o preço do casamento dela... senão como um empréstimo feito a mim. Ele riu-se. — Não me olhe assim, meu caro. Não estou pedindo o seu dinheiro, estou procurando salvar a minha consciência. Não quero que se diga por aí: "Leslie Gine foi vendida por cinqüenta mil libras". Quero poder mostrar que você apenas me emprestou o dinheiro.

Um lento sorriso iluminou o rosto de Gilder.

—   Não faço a menor objeção a isso, disse ele. — Dou-lhe a caria agora, se você quiser. Posso começá-la chainando-lhe "Meu caro... Artur"?

—   Encantado, murmurou Artur.

—   É preciso manter as aparências, — disse Gilder, enquanto escrevia, rapidamente; — e, na verdade, não lhe guardo rancor, Gine. Você me tem sido útil.

—   Utilíssimo, — confirmou Artur, sem animosidade.

O homem passou o mata-borrão sobre a carta, entregou-a a Artur Gine, e este leu-a com cuidado.

—   Obrigado, — disse, dobrando a folha de papel e enfiando-a no bolso. — Você talvez me julgue um fraco... o que realmente sou... e vaidoso: receio que não haja dúvidas quanto a isso! Você terá notícias de Leslie quando se consertar a caixa postal... isto é, se as cartas estiverem intactas. Há suspeitas de que o nosso amigo Tomás, frustrada a tentativa de abrir a caixa e inspirado pelo instinto de destruição que caracteriza o criminoso desequilibrado, atirou dentro dela um par de fósforos acesos. Tive a curiosidade de enfiar o nariz na fenda em que se introduz a correspondência e sou de opinião que a teoria da polícia tem todas as probabilidades de ser correta.

Levantou-se, apanhou o chapéu de seda e reprimiu um bocejo.

—   Tivemos uma noite muito movimentada na minha parte do mundo. Você, provavelmente, já leu tudo nos jornais, não leu?

—   Lorde Chelford já foi encontrado?

Artur meneou negativamente a cabeça.

—   Até a hora em que saí, não. Infelizmente, Leslie foi testemunha, senão do assassínio, pelo menos do achado do primeiro corpo. A pobrezinha estava em frangalhos. Não a incomode nesses dois próximos dias, sim?

Estendeu a mão fria e macia e Gilder apertou-a.

—   Creio que nos entenderemos, Gine.

—   Estou certo disso, — conveio Artur. — Agora, se você não faz questão, mostre-me a saída. O seu apartamento me parece uma caixa de surpresas, e quando abro uma porta nunca sei se vou entrar numa sala ou num armário.

Artur dispensou o seu carro. Um táxi levou-o ao centro e outro a um pequenino apartamento em Gray's Inn, onde parava quando ficava na cidade. Vestiu um terno azul liso, raspou cuida­dosa e relutantemente o bigode e tirou do bolso um par de óculos novos, que acabara de comprar. Mirando-se ao espelho com certa dose de satisfação, sentou-se para escrever uma carta à irmã e, em seguida, dando uma vista d'olhos final ao apartamentozinho em que passara muitas noites agradáveis de solteirão despreocupado, fechou a porta, saiu e colocou a carta na agência do Correio de Holborn.

Outro táxi o levou ao aeródromo de Croydon, onde chegou no princípio da tarde. Exibiu ao funcionário o novíssimo passa­porte.

—   Está em ordem, Sr. Steele, — disse o funcionário. — O seu táxi está esperando.

O "táxi" era um robusto aviãozinho de dois lugares. Cinco minutos após a sua chegada, ele estava galgando o azul e, logo, não era mais que um pontinho no céu brumoso, que voava em direitura à França, dali talvez a Gênova e, muito provavelmente, a bordo de um transatlântico italiano, ao Rio de Janeiro. Tudo dependeria do modo pelo qual o Sr. Fabrian Gilder engolisse a pílula que Artur lhe ministrara.

 

 

—   Queimada, — disse Dick, com enorme satisfação. — O pobre homem sempre fez algum bem na vida... Deus me perdoe por falar mal dele. Onde está o seu Artur?

—   O meu Artur foi cedinho para a cidade, — replicou Leslie.

—   Não há notícias de Harry?

Ele sacudiu a cabeça.

—   Nenhuma.

Dick parecia terrivelmente cansado e abatido, pensou ela.

—   Lamento tanto!

Ele tomou-lhe a mão entre as suas.

—   Eu gostaria que você saísse daqui, Leslie, — disse o rapaz.

—   Que tal fazer uma longa viagem?

—   Acha que estou correndo algum perigo?

—   Tenho certeza disso. Seria uma crueldade não lhe contar a verdade. O tiro desfechado outro dia destinava-se a você. Foi disparado por um homem que deve ser um dos melhores atiradores da Inglaterra, e a altura da marca da bala nos revelou que ele mirou diretamente ao seu coração.

Ela ouvia-o, estupefata, incapaz de acreditar.

—   Mas por quê? — perguntou, atônita. — Não tenho inimigos, Dick; nunca fiz mal a ninguém. Quem poderia fazer uma mal­dade dessas?

—   Se eu lhe contasse, você, provavelmente, continuaria sem entender. Há um homem neste mundo que a odeia e que me odeia e que, do seu ponto de vista, tem fundadas razões para isso. Agora que lhe contei a verdade, promete viajar?

Ela pensou por alguns instantes.

—   Esperarei o regresso de Artur, — disse, por fim, — e pedirei a ele que me leve para Londres.

E com isto, Richard Alford ficou satisfeito.

Ia sair, quando a motocicleta de Puttler surgiu na alameda.

—   Alguma coisa errada? — perguntou Dick, depressa.

—   Não sei. Veja isto.

Tirou do bolso uma grande folha de papel almaço; toscamente escritas a lápis, liam-se as seguintes palavras: "Lorde Chelford está bem. Não procurem por ele pois, do contrário, será morto. O Abade Negro".

Havia alguns erros de ortografia. O papel fora encontrado espetado no galho de uma árvore, e o furo feito na parte superior da folha mostrava onde o homem misterioso a perfurara.

—   Encontramo-la a meio caminho entre as ruínas e a casa, — explicou Puttler. — E o mais curioso é que tínhamos andado vasculhando aquela parte do jardim quinze minutos antes.

Dick devolveu-lhe a folha de papel.

—   Isso será uma piada de mau gosto ou você acredita neste papel? — perguntou Leslie, ansiosa. — E, Dick, será que eu não posso ajudar? Conheço tão bem a Mansão de Fossaway, e estou certa de que há lugares que a polícia ainda não investigou. Sabe que existem umas cavernas pequenas nas margens do Ribeirão dos Corvos?

—   Foram todas exploradas e nenhuma tem tamanho suficiente para abrigar um cachorro grande, — respondeu Dick. — Se você quiser mesmo ajudar, vá à Mansão e ponha a minha correspondência em ordem. Ela tem sido negligenciada estes dias, e há uma porção de contas e coisas que precisam ser registradas.

A bem dizer, pensou ele, não tinha necessidade dela, mas enquanto a jovem estivesse por ali, melhor seria que ficasse sob as suas vistas. Pode ser que ela suspeitasse dos motivos dele mas, mesmo assim, aceitou, agradecida, a oferta.

—   Vá de automóvel, — recomendou ele; — não saia da estrada principal e não ande por atalhos. Não pare para falar com ninguém, por mais que conheça a pessoa, e não dê atenção se alguém gritar o seu nome.

A despeito da sua ansiedade, ela riu-se.

—   Como tudo isso parece alarmante!

Depois que ele se foi, Leslie ocupou-se dos assuntos da casa, deu as ordens para o jantar daquela noite, e estava a pique de sair, quando alguém tocou a campainha da frente. Acabara de por o chapéu, diante do espelho, quando a criada entrou no quarto.

—   A Srta. Wenner? — exclamou a jovem, pasmada, e só então se lembrou de que, a pedido de Artur, escrevera convidando-a para passar com eles o fim de semana.

Ali estava uma complicação que não previra. E, todavia, no espaço entre o quarto e a sala, chegou à conclusão de que, se havia alguma coisa bem-vinda naquele momento era a companhia de uma mulher.

Mary Wenner estava no vestíbulo e saudou-a efusivamente, como se fossem amigas íntimas, conquanto, na realidade, Leslie escassamente a conhecesse.

—   Minha querida, sinto-me tão contente por estar de volta a este lindo e velho lugar! exclamou ela. Não pude deixar de pensar, enquanto passava pela querida Mansão de Fossaway, o quanto tudo isto é perfeitamente sereno.

Leslie sentiu vontade de gritar! Sereno!

—   Talvez não seja tão sereno quanto parece, Srta. Wenner, -replicou, secamente.

—   Chame-me Mary, pediu a moça. Detesto tanto os formalismos e as reservas! Será tão sem graça se Artur me chamar pelo primeiro nome e a senhorita me chamar Srta... quero dizer...

—   Pois eu a chamarei de Mary com prazer, atalhou Leslie.

—   E você sabe o meu nome?

—   Um lindo nome, voltou a extática Srta. Wenner. A única coisa que atrapalha é que a gente não sabe se é nome de homem ou de mulher, não é mesmo? Isso não lhe parece, às vezes, muito embaraçoso?

—   A mim, até agora, não me pareceu, respondeu a jovem, conduzindo a visitante para o seu quarto.

Havia qualquer coisa em Mary que lhe agradava. Inconscientemente, era divertida, mas tinha um valor autêntico, pensou Leslie, que conhecia muito bem as mulheres.

—   Você ainda não sabe o que aconteceu na Mansão de Fossaway? perguntou, surpresa por não ouvir da outra alusão alguma às novidades.

Espantada, Mary ouviu tudo, enquanto os seus lábios formavam um O de assombro e de horror.

—   Tomás? Mas se ainda outro dia conversei com ele! Você acha que Harry foi morto?

Leslie abanou a cabeça.

—   Não sei o que pensar. O Sr. Alford confia muito em que ele ainda esteja vivo, e acabou de receber uma estranha mensagem, que parece justificar essa crença.

A rapariga estava horrorizada e Leslie percebeu que ao horror se misturava a consternação.

—   Harry Alford era o melhor sujeito do mundo, disse Mary, sincera. Meio irritadiço de génio e difícil... não a inco­moda que eu fale sobre ele?

—   Não. Você provavelmente não sabe que o nosso noivado foi desfeito.

Este pareceu o maior dos choques.

—   Desfeito? Garanto que foi obra de Dick Alford.

—   O Sr. Alford nada teve com o caso, — volveu Leslie, e Mary fez uma rápida reavaliação do caráter de Dick; ela era uma criatura eminentemente ajustável.

—   Na realidade, Dick Alford não é mau sujeito, — sobreveio, diplomaticamente. — Há muita coisa nele que eu aprecio. E é tão bonito!

Mary era um gamin ladino e perspicaz, que vencera mercê da habilidade em ajustar os seus pontos de vista às situações num abrir e fechar de olhos. E compreendeu, numa fração de segundo, que só poderia almejar a uma perfeita harmonia com a irmã de Artur Gine se as suas opiniões sobre Richard Alford sofressem radical transformação.

—   Não me dei muito bem com ele; costumava achá-lo um pouco mandão. Mas isso deve ter sido uma verdadeira provação para ele, pobrezinho! — E continuou, depois de uma pausa: — Parece que cheguei numa hora muito imprópria, Srta... Leslie. Quer que eu volte para Londres?

—   Espere, — disse Leslie e, precipitando-se escada abaixo, chamou Dick ao telefone. Ele acabara de chegar quando o chamou.

—   Claro, — disse ele. — Traga-a para cá. A mim me parece boa idéia. E, Leslie, talvez você prefira passar a noite aqui. Artur poderá vir também... deixe uma nota ou telegrafe para ele.

A idéia era tão sedutora que ela não lhe opôs obstáculos e voltou para transmitir o convide de Dick à sua convidada. A Srta. Wenner aceitou com uma alacridade quase indelicada.

—   Eu talvez possa ajudar um pouco, — sugeriu. — Conheço as entradas e saídas do lugar, bem como todos os cantos e escon­derijos. Foi o tesouro que fez tudo isso, Leslie! Ele anda sempre atrás daquela estúpida Água da Vida e não me surpreenderia se se tivesse metido em más companhias.

—   Mas Harry nunca saiu!

—   Saiu, sim, como não! — foi a resposta surpreendente. — Ele escapulia muitas vezes para Londres, quando o Sr. Alford estava fora. E havia nisso qualquer coisa esquisita, porque Harry me fez prometer que eu jamais contaria ao Sr. Richard... era assim que ele se referia ao irmão.

—   E quantas vezes aconteceu isso? — perguntou Leslie.

—   Às vezes, uma escapada por mês, outras, duas ou três. Ele nunca saía pela frente; seguia o caminho do campo, atravessava o corte, e eu costumava mandar um táxi de Horsham buscá-lo. Tomava o trem em Horsham, e voltava pelo mesmo caminho, e mais de uma vez telefonou antes de voltar, para saber se o Sr. Richard já regressara.

Leslie perguntou a si mesma se Dick estaria a par disso.

— Sei que ele chegou a ir três vezes na mesma semana quando o Sr. Richard estava em Yorkshire, tomando conta da proprie­dade de Doncaster, — disse Mary. E ajuntou, virtuosa: — Espero não ter cometido nenhuma indiscrição: afinal, todos os jovens são um pouco impetuosos.

 

 

As duas moças almoçaram sozinhas, pois Dick mandara recado dizendo que não voltaria a tempo.

—   Este lugar me dá arrepios, — observou Mary com um estremecimento, e o nervosismo dela não era afetado. — Tudo isso é medonho! O pobre Tomás assassinado, e Harry levado nin­guém sabe para onde... oh! — Pôs-se em pé de um salto, o rosto muito pálido. — Eu sei onde Harry está, — bradou, trê­mula de excitação. — Eu sei, eu sei!

—   Onde? — indagou a assombrada Leslie.

A moça saiu correndo da sala para o vestíbulo.

—   Onde está o Sr. Alford? — perguntou depressa. — Pre­ciso vê-lo imediatamente.

—   Ele telefonou da Quinta Vermelha, — disse Leslie, que a seguira. — Talvez ainda esteja lá.

Ela girou a manivela do antiquado aparelho e deu o número da Quinta Vermelha.

—   É você, Dick? Que sorte!

—   Imaginei que fosse você. Aconteceu alguma coisa? — perguntou, ansioso, o rapaz.

—   Não; Mary Wenner tem uma coisa para dizer-lhe. — Leslie abaixou a voz e ajuntou: — Ela acha que sabe onde Harry está escondido.

Fez-se silêncio do outro lado da linha.

—   Ela não...

—   Não, não, não. — Em presença de Mary, era-lhe impos­sível assegurar a Dick que a moça não estava tentando causar sensação.

—   Irei imediatamente, — prometeu o rapaz.

Saíram as duas para a alameda a fim de encontram-se com ele, e Mary expôs a sua teoria.

—   Eu devo ter ficado louca para não lhe falar sobre isso antes. Não sei onde estava com a cabeça, — disse ela. — Depois da minha caça ao tesouro e da horrível experiência que tive naquela noite com Gilder, não pensar nisso agora, quando, praticamente, vim aqui para mostrar o lugar ao Sr. Gine... bem, fico surpresa comigo mesma!

Dick ouvia com crescente impaciência esses ^olegômenos.

—   Onde acha que está meu irmão?

—   Onde? exclamou a Srta. Wenner, triunfante. Ora essa, debaixo da abadia... é lá que ele está. Eu lhe mostro.

Cruzaram lado a lado o campo e, enquanto caminhavam, a Srta. Wenner relatou a surpreendente história das suas aventuras em cata do tesouro.

—   Eu sabia, naturalmente, que ele não me pertencia, ainda que o encontrasse, prosseguiu, virtuosamente, mas o Sr. Gilder se mostrou tão insistente que não pude recusar-me, sobre­tudo depois que ele escreveu com tinta invisível, embora eu tenha feito voltar a tinta outra vez, como ele verificará um dia destes.

Leslie ouvia, mal acreditando nos seus ouvidos. Entretanto, a menos que Mary Wenner tivesse uma imaginação de natureza particularmente inventiva, seria pouquíssimo provável que houvesse arquitetado toda aquela história.

Dick examinou a grande pedra angular da torre. Quedou-se ao pé dela, observando-a, curioso, enquanto a jovem, com um par de tesouras que tirou da bolsa, empurrou para trás o trinco e fez a pedra girar ruidosamente sobre os gonzos invisíveis.

A abertura teria, quando muito, uns quarenta centímetros. Um homem gordo jamais poderia entrar por ali, como Dick observou.

—   É melhor vocês ficarem; eu vou descer, disse ele.

—   O senhor vai precisar de luz, avisou Mary.

Havia uma lanterna em seu bolso. Ele passara a manhã esquadrinhando lugares escuros. Num segundo, desceu a escada coberta de musgo, e Leslie esperou, com o coração aos pinotes, que ele voltasse. Pouco depois, ouviram-lhe a voz.

—   Desçam.

—   Eu é que não, bradou Mary. Já estive lá uma vez, muito obrigada!

E Leslie aventurou-se sozinha, guiada pelo foco de luz que ele mostrava, de degrau em degrau.

Agora, ela estava em pé, com ele, na sala abobadada. Dick experimentou uma, depois a outra, das duas portas que se viam na antecâmara, mas nenhuma cedeu aos seus esforços. A escuridão era completa, a não ser pelo raio de luz da lanterna, em forma de leque. Ele dirigiu-o para a parede e para o chão e, logo depois, ela percebeu que o foco se detinha sobre uma laje partida.

—   Que é isso? perguntou.

—   Nada, respondeu ele, depressa, Transferira a luz para a estreita entrada da sala. Vamos subir; não há nada aqui senão camundongos e recordações. Eu sempre soube da existência de subterrâneos debaixo da abadia. Na realidade, creio até que um dos meus recentes antepassados deixou um relatório sobre eles.

Por mais que caminhasse imediatamente atrás dela, a sua voz vinha de muito longe. Ela seguia sem que ele lhe desse assistência da sua lanterna, de modo que precisou subir às apalpa­delas. Ao virar a cabeça, notou que Dick subia a escada de costas, o facho de luz projetado sobre a escada.

—   Depressa, — disse ele, lacônico, e ela, tropeçando nos últimos degraus, emergiu à luz abençoada do dia.

Passou-se algum tempo antes que o rapaz se juntasse a elas e, quando ele apareceu, Leslie notou que até os seus lábios estavam brancos.

—   O que foi que você viu, Dick? — perguntou.

—   Nada, — respondeu ele, e fechou bem fechada a porta de pedra.

Do grupinho, apenas a Srta. Wenner não se impressionara pela atmosfera que Dick trouxera da sala abobadada.

—   ... pelo que disse o Sr. Gilder... e eu não confio intei­ramente nele, como você há de compreender, Leslie... havia apenas peças de música em cilindros de chumbo.. . Foi essa a palavra, "cilindros", embora me parecessem rolos. E esse Abade Negro deve tê-los retirado quando saímos. O Sr. Gilder ficou desapontado. Foi até muito grosseiro comigo ao telefone. Sou de opinião que um cavalheiro deve saber controlar-se em todas as circunstâncias, você não acha, querida?

Leslie concordou mecanicamente.

Que teria visto Dick? Que objeto se lhe deparara, por um segundo, à luz da lanterna?

Perto da casa, ele desculpou-se. Precisava voltar à Quinta Vermelha a fim de concluir a entrevista com o obstinado Sr. Leonard: mas não levou o carro. Explicou que iria pelo atalho e Leslie não julgou azado o momento para interrogá-lo. Ficou a observá-lo, até que Dick desapareceu atrás de uma saliência do terreno. Rumava para a abadia. A outra moça já ia a caminho de casa, a fim de terminar o seu almoço, e Leslie hesitou. A idéia de que ele pretendia revisitar a sala escura encheu-a de um pânico cego. Quis chamá-lo e trazê-lo de volta, mas ele já não poderia ouvi-la, e ela, obedecendo a um impulso, foi-lhe no encalço.

Só tornou a avistá-lo ao galgar o segundo dos mansos aclives. Mas ali se deteve; ele talvez se zangasse ao saber-se espreitado, e ela deitou-se na relva, observando-o. Viu-o chegar à torre quadrada, parar no canto e, aparentemente, evaporar-se.

Estava a ponto de erguer-se e correr na direção das ruínas, segui-lo às entranhas da terra, quando ele tornou a aparecer. Adian­tou-se lentamente, virou-se, fechou a porta de pedra e escorou-se nela, com a cabeça sobre o braço, imagem viva de uma trágica aflição.

 

Dick olhou para o envelope e virou-o. Fora endereçada ao Sr. Fabrian Gilder.

—   O que foi que você disse? perguntou o rapaz.

—   Eu disse que havia pensado no assunto e que chegara à conclusão de que não podia casar com ele... principalmente agora, quando faz tão pouco tempo que Harry desapareceu.

Ele pegou a carta, tirou a carteira do bolso, destacou dela um selo do correio e colou-o no envelope.

—   Essa eu faço questão de mandar, declarou, com determinação. Depois, vendo-lhe o rosto cansado: Pobrezinha, você tem passado uns maus bocados.

A pressão da mão dela, o amor e a compreensão que lhe soavam na voz, quase levaram a melhor sobre ele; foi-lhe preciso apertar os dentes para não a tomar nos braços e, naquele lugar de tragédia e de horror, falar-lhe do amor que o sacudia e que acres­centara nova e pesada carga aos seus nervos já demasiado tensos.

—   deitar-se cedo, disse ele, forcejando por parecer alegre, e acorde com a aurora. Estarei ocupado até muito tarde.

—   O mordomo me contou que você mandou preparar uma cesta de comida para os policiais.

—   É verdade; os dois homens que estão patrulhando o corte precisam de alguma comida leve. Não podem vir para cá e nós não temos homens para substituí-los, explicou calmamente o rapaz.

Leslie teve a sensatez de não insistir no assunto.

Foi só mesmo em atenção às suas instâncias que, ao cair da noite, Mary Wenner concordou em ficar. A moça era um feixe de nervos, estremecia a cada som, empalidecia e corava sempre que se abria uma porta, e o ruído de um prato que caíra na copa, en­quanto as duas estavam jantando, fê-la gritar.

—   Não posso fazer nada, meu bem; sou naturalmente temperamental, confessou. E esta casa está-me dando nos nervos! Se não fosse para não deixar outra jovem sem uma dama de com­panhia, eu teria voltado a Londres antes do escurecer.

E contou a Leslie que estivera na biblioteca naquela tarde, e que a vista da sala familiar, com a cadeira vazia, quase fora a gota a entornar o cálice.

—   Tive de chorar, admitiu, e não me envergonho disso.Harry era um dos melhores... você não se importa que eu o chame de Harry, não é, querida? E como Leslie sacudisse negativa­mente a cabeça, prosseguiu: Não digo que eu gostasse dele como deve gostar uma moça do homem amado, mas ele era um anjo. Tinha os seus repentes, como todos nós, mas em conseqüência apenas da sua energia. Nunca compreendi por que ele odiava o Sr. Alford.

Leslie fitou-a, incrédula.

—   Odiava o Sr. Alford! repetiu. Você deve estar enga­nada. Eles eram muito bons amigos.

Mary fez que não com a cabeça.

—   Não eram, não, contestou. E tudo aconteceu por causa do retrato de Lady Chelford.

- Da falecida Lady Chelford?

- Essa mesma. Foi há três anos. Dick Alford sugeriu que semudasse o retrato para a galeria. Creio que foi tolice dele dizer isso, sabendo que Harry adorava a mãe, e quando ele disse também que o quadro era deprimente... essa, então, foi a maior tolice de todas... Harry subiu a serra! Foram horríveis as coisas que ele gritou para o Sr. Alford... na minha presença! Dick Alford compreendeu o seu erro, como eu mesma o percebi: procurou paci­ficar Harry mas, durante quinze dias, não se falaram.

Leslie permaneceu em silêncio. A pouco e pouco, a vida íntima da Mansão de Fossaway principiava a revelar-se-lhe aos olhos; nada percebera das correntes contrárias, que se chocavam, jamais des­confiara, nem mesmo vagamente, do antagonismo que devera ter sido visível para a secretária de Harry Alford.

—   Eles eram muito amigos, às vezes. Você pensaria que Harry gostava dele, e eu acredito que gostasse; mas as brigas costumavam rebentar de vez em quando, e uma vez rebentaram porque Dick ficava sempre de costas para o quadro e nunca punha os olhos nele. Dick odiava o tal retrato, disso eu tenho certeza. Está claro que ele nunca me fez confidências. Não éramos o que se poderia chamar de bons amigos. Acho até que foi tolice minha comprar a briga de Harry, mas nunca gostei dc Dick... não se importa que eu o chame de Dick?... depois disso.

Olhou nervosamente pela janela. O sol já se escondera, e o crepúsculo começara a invadir o grande parque.

—   Eu me darei por feliz se conseguir dormir alguma coisa esta noite, disse ela. Posso deixar aberta a porta do meu quarto e uma luz acesa?

—   É claro que sim, sorriu Leslie.

—   Existe uma fechadura na porta externa e pedi a Glover que me encontrasse a chave, continuou Mary Wenner. Fran­camente, Leslie, se ele não a tivesse encontrado, eu não teria ficado, nem por todo o dinheiro do mundo.

L.eslie compreendeu que seria imprudente teimar no assunto, pois ela relutava tanto em passar a noite debaixo daquele teto quanto a sua recente amiga.

 

 

—   Vocês não se zangarão se eu deixar um dos homens de Puttler do lado de fora da porta dos seus quartos? — perguntou Dick. — Não se alarmem se o ouvirem andando durante a noite.

—   Aconteceu alguma coisa, Dick? — perguntou Leslie.

—   Não, não aconteceu nada; mas eu soube que a Srta. Wenner estava um pouco nervosa.

—   Estava, não, estou, — acudiu a Srta. Wenner. — É muita bondade sua, Sr. Alford.

—   E é melhor que vocês conservem as janelas trancadas, — prosseguiu Dick. — Há um sistema de ventilação nos quartos, de modo que não correrão o risco de acordar com dor de cabeça. Boa noite.

Depois que ele se foi, Mary Wenner ficou olhando fixamente para a companheira.

—   Você ouviu o que ele disse sobre conservar as janelas trancadas? — perguntou, em tom cavernoso. — Santo Deus!

—   Não seja boba, Mary.

A jovem estava longe de sentir-se segura, mas precisava dar o exemplo.

—   Vamos, que eu a ajudarei a trancá-las.

—   "Conservem as janelas trancadas", — repetiu Mary Wenner. — Aqui há dente de coelho!

Fecharam, uma por uma, as janelas chumbadas e abaixaram os trincos. De repente, Mary agarrou violentamente o braço da amiga.

—   Há um homem debaixo da minha cama! — arquejou, olhando desvairadamente para a colcha caída.

Com o coração a bater descompassado, Leslie ergueu a colcha e puxou de sob a cama um par de botas, cujas solas tinham sido vistas pela rapariga assustada, e ambas abriram a rir, histerica­mente.

—   Eu quisera poder levar a minha cama para o seu quarto. — Mary contemplava desacorçoada a pesada cama de sobrecéu que lhe fora destinada.

—   Venha dormir comigo, — propôs Leslie. — A minha cama é grande. — E o oferecimento foi aceito com gratidão.

—   Olhe primeiro por baixo da sua cama, — recomendou a Srta. Wenner. E só depois de observado esse ritual começou, muito lentamente, a despir-se.

Embaixo, na biblioteca, Dick se mantinha em conferência com Puttler, que acabara de voltar de uma rápida visita a Scotland Yard.

—   Na opinião do Comissário, o senhor devia ter aqui uma dúzia de homens e dar uma batida em regra, — disse Puttler. — Eu trouxe três, e creio que todos devem ficar dentro de casa. Um na ala oriental, outro na ocidental, e um patrulheiro no vestíbulo. O senhor e eu, além dos "meganhas" locais, ficamos no jardim. Embora eu pense que dará no mesmo ficarmos aqui... seria preciso um batalhão para patrulhar direito a propriedade. A propósito, quando eu estava explorando os arredores hoje cedo, encontrei um grande aterro na parte nordeste, perto do rio. Um dos seus c ou­teiros me disse que se chama a Cobiça de Chelford. Que negócio é esse?

Dick não se sentia com veia arqueológica, mas explicou:

—   Um dos meu antepassados.. . não sei qual deles... pla­nejou e pôs em prática um grande furto. Você sabe, provavelmente, que a carta pela qual recebemos estas terras do Rei Henrique esta­belece, como divisa da propriedade, ao norte, o curso do Ribeirão dos Corvos, e o engenhoso Chelford daquele tempo teve a idéia de mudar o leito do Ribeirão dos Corvos, de modo a acrescentar uns mil acres mais à propriedade. O curso natural do Ribeirão dos Corvos é pelo Prado Grande. Foi um desses furtos astutos que fez de nós, proprietários rurais, o que somos! Como eu estava dizendo, não sei qual dos Chelfords arquitetou o roubo, porque não existem registros escritos, mas a lenda nos chegou de boca em boca, por assim dizer.

Ele ergueu os olhos para o grande retrato que encimava a lareira e sacudiu a cabeça.

—   Minha senhora, — murmurou, — Vossa Excelência me tem dado muito trabalho!

Puttler pareceu interessado.

—   Como assim? — perguntou.

—   Eu lhe contarei um dia destes, — prometeu Dick. — Será que as moças estão dormindo?

Subiu silenciosamente a escada. O homem que estava de serviço no corredor acendeu a lanterna à altura do seu rosto quando ele se aproximou.

—   Não se ouve nada, — murmurou, e Dick voltou, em silêncio, para baixo.

Combinaram que ele e Puttler dormiriam algumas horas cada um, enquanto o outro patrulharia o jardim, rodeando o grupo de edifícios. Às duas horas da manhã, Dick foi acordado de um sono profundo pelo outro, que lhe sacudia delicadamente o ombro.

—   Não aconteceu nada, — informou o detetive, dirigindo um olhar amistoso ao sofá em que Dick estivera dormindo. — Esquentei um pouco de café para o senhor.

Uma espiriteira estava acesa sobre a mesa e o bule, em cima dela. fumegava. Dick deitou café preto numa xícara e acabou de acordar escaldando a garganta.

—   Um dos locais supôs ver alguém se mexendo e chamou-o à fala, — relatou Puttler, refestelando-se no sofá com um suspiro de satisfação. — Mas, provavelmente, foi apenas um arbusto. Esses caras são nervosos... vêem um Abade Negro em cada sombra!

Dick sorveu o líquido fervente e quebrou um biscoito com a mão livre.

—   Graças a Deus isto não pode durar muito! — disse ele. — A propósito, você trouxe os papéis de Londres?

—   Entreguei-os ao senhor na biblioteca, estavam no enve­lope azul.

Dick depôs a xícara.

—   Acho melhor guardá-los no cofre. Não quero que os cria­dos os vejam.

Atravessou o vestíbulo, abriu a porta da biblioteca, fez o gesto mecânico de acender a luz, e só então se lembrou de que, momentaneamente, a Mansão de Fossaway estava privada dos ser­viços da sua pequena casa de força. Voltou ao escritório, apanhou a lanterna e, tornando à biblioteca, atravessou-a até chegar à mesa. Encontrando o envelope onde o deixara, enfiou-o no bolso. Ao fazê-lo, percebeu que por ali passava um vento frio. Dirigiu a luz da lanterna para as janelas. A da ponta estava aberta; um das cortinas, que havia sido arrancada do lugar, jazia amontoada no chão.

Foi até à porta, chamou Puttler em voz baixa e o detetive veio ter com ele.

—   Alguém esteve aqui, — disse Dick, e apontou para a cortina e para a barra partida, que a sustentara.

Era fácil reconstituir a entrada do intruso na biblioteca. Duas vidraças próximas da maçaneta que prendia uma das folhas da janela tinham sido quebradas e, evidentemente, o visitante noturno, ao entrar, devera ter perdido o equilíbrio; agarrando-se à cortina para equilibrar-se, trouxera-a para o chão, espedaçando a barra, que pendia, inútil.

—   Passei por aqui há dez minutos, — disse Puttler, — e a janela estava fechada.

—   É possível que ele já estivesse aqui dentro nesse instante, — replicou Dick, pensativo. — Que terá sido levado daqui?

Examinou a mesa. Era evidente que o intruso não abrira nenhuma gaveta, muito embora, se o tivesse feito, os seus esforços teriam sido baldados, visto que Dick, pela manhã, retirara da sala todos os documentos ali existentes. Ao darem a volta da sala, Puttler tropicou em alguma coisa no escuro.

—   De onde veio isto? — perguntou.

Era uma escada pequena, e Dick reconheceu nela uma das duas que faziam parte do mobiliário da biblioteca, e eram utilizadas para alcançar os livros colocados na última prateleira da divisão inferior.

—   Quando a vi pela última vez, estava na extremidade da sala, — disse ele.

Dirigiu a lanterna para as estantes, à procura de uma falha nas longas fieiras de livros. Ao fazê-lo, o foco luminoso passou pelo espaço, entre as prateleiras, ocupado pelo retrato da falecida LadyChelford. Viu a enorme moldura de ouro, divisou, de passa­gem, uma mão branca que pendia graciosamente e, logo, qualquer coisa fez voltar a lanterna. Ouviu o detetive praguejar em voz baixa Ele próprio não conseguia falar. A luz da lanterna focalizava o lugar onde estivera o rosto da mulher e onde, agora, havia apenas um espaço vazio e negro.

O rosto e os ombros do quadro tinham sido cortados da moldura e as tiras soltas de tela indicavam que esta fora cortada por mão inexperta.

 

 

Nenhum dos dois falou até voltar ao pequeno escritório, quando Puttler olhou deprimido para o companheiro.

—   Como é que o senhor explica isso?

—   Sei lá! — redarguiu Dick.

A porta do escritório estava fechada e recoberta por uma cortina escura, colocada naquele dia com essa finalidade.

—   Acho melhor sair, se bem eu não creia que encontre alguma coisa.

—   Espere até que cu tome o que sobrou do seu café. Irei com o senhor, — disse Puttler. — Não, Sr. Alford, nunca senti menos sono na minha vida. O dia estará clareando daqui a duas horas. Espere.

Apagou o lampião de querosene requisitado da cozinha, e a sala ficou às escuras.

—   Agora, pode abrir as cortinas e sair, — disse ele, — se é isso o que pretende.

Dick descerrou ligeiramente as cortinas e olhou para fora. O mundo dormia em paz, envolto em silêncio, à pálida luz da lua e, quando ele abriu a porta, o doce cheiro da terra e a fria ma­drugada o saudaram, fragrantes.

Erguera o pé para transpor o limiar quando a manzorra de Puttler se lhe fechou em torno do braço.

—   Espere, — tornou a murmurar.

Dick imobilizou-se. E, no mesmo tom:

—   Não vejo nada!

Mas Puttler continuou a segurá-lo, a cabeça inclinada, prestando atenção.

—   Está bem, disse ele, soltando a mão e saindo à frente de Dick.

Olhou rapidamente para a esquerda e para a direita.

—   O que era? perguntou Dick, surpreso.

—   Alguém estava respirando, foi a resposta surpreen­dente. O senhor talvez não acredite que eu seja capaz de ouvir alguém respirando a doze jardas de distância, mas sou. É uma das minhas muitas qualidades animais.

Tomou impulso, transpôs o caminho de cascalho num salto e pôs-se a caminhar sobre a relva, sem fazer barulho, dirigindo-se para a esquerda. Logo após, Dick viu-o voltar, pé ante pé. O detetive passou por ele e desapareceu, contornando o edifício. Minutos depois, estava de volta.

—   O ouvido e o olfato são as minhas duas qualidades. O senhor não está sentindo cheiro nenhum?

Dick aspirou o ar da manhã.

—   Não, confessou.

—   Venha comigo.

Desta feita, seguiu sem bulha pelo caminho, explicando que estava com medo de acordar as moças, que dormiam logo acima daquele lugar. Foram até o fim da ala e, ali, o sargento se deteve.

—   Agora está sentindo algum cheiro? perguntou.

Dick tornou a aspirar o ar. Sentiu um cheiro adocicado, o perfume de alguma flor exótica, que lhe era familiar.

—   Alguém fuma cigarros perfumados nesta casa? indagou o detetive, e Dick sentiu-se repentinamente gelado.

—   Harry!

—   Seu irmão? Os olhos encovados de Puttler observa­ram-no à meia luz. Isso não significa necessariamente que ele os esteja fumando. Onde ficavam guardados?

—   Em regra geral na biblioteca.

Puttler principiou a cafungar o chão com a ajuda da lanterna. Não fora muito longe quando viu qualquer coisa e apanhou-a. Era um cigarro fumado pela metade com uma ponta cor-de-rosa.

—   Hum! murmurou Puttler, e prosseguiu na busca; uma busca que não lhe trouxe novos indícios.

Voltando sobre os seus passos, passaram pela porta do escritório e Puttler, que caminhava um pouco à frente, tropeçou em alguma coisa e clareou o chão com a sua luz.

—   Os senhores têm uma penca de escadas por aqui, Sr. Alford, — observou, em voz baixa. — Uma escada de biblioteca no jardim? Que negócio é esse?

A escada jazia no chão, paralela à direção da alameda, e o detetive examinou-a, degrau por degrau.

—   Sou capaz de jurar que esta não estava aqui ontem à noite, — disse ele.

—   Não, — conveio Dick, perplexo; — ela costuma ficar pendurada em dois cabides perto da garagem.

Ergueu-a. Era uma escada comprida, leve, triangular, que se estreitava na ponta,
utilizada pelos criados para a limpeza das janelas pelo lado de fora.

—   É melhor mandar prendê-la com uma corrente, — foi tudo o que disse Puttler, concluída a inspeção. — O homem que a trouxe para cá foi o homem que cortou o seu suprimento de luz e, a pro­pósito...

A distância, no jardim, ouviu-se debilmente a voz de um homem, que os chamava à fala em estilo militar.

—   Alto! Quem vem lá?

—   É Renwick, da polícia local, — disse Puttler imediatamente.

Correram na direção do som da voz e, dali a pouco, viam o lampejar da sua lanterna; e foi um homem terrivelmente assustado que os interpelou minutos depois. Não vira nada, disse ele, mas ouvira vozes.

—   Uma das vozes estava rindo. A princípio, pensei que fosse o senhor, sargento, mas, quando tornei a ouvi-la, pareceu-me tão selvagem que fiquei meio nervoso.

—   Alguém respondeu à sua interpelação?

—   Não, mas as vozes se calaram. Não consegui ouvir a da mulher...

—   A voz da mulher? — atalhou Dick. depressa. — Era uma mulher? — Você não está enganado?

—   Sou capaz de jurar, — tornou o vigia. — Foi a voz da mulher que ouvi primeiro, e era a voz do homem que ria. Creio que devem ter parado assim que ergui a lanterna.

—   Em que direção?

O policial apontou para o Prado Grande, a depressão rasa, a modo de vale, que corria paralela à elevação de terra sobre a qual se erguia a abadia. À esquerda havia alguns chalés, ocupados, em geral, por pessoas que trabalhavam na propriedade, dois couteiros, um carroceiro e um cavalariço. Fora de um desses chalés que o Abade Negro tinha sido visto por um couteiro aterrado.

—   As vozes soavam como se se afastassem de você sobre o aterro na direção do rio... ou das ruínas? — inquiriu Puttler.

—   Bem, — confessou o homem, — é possível que fossem naquela direção: não posso ter certeza.

—   Isto, sem dúvida, é extraordinário, — comentou o sargento, enquanto caminhavam na direção indicada pelo homem.

—   Ele deve ter-se enganado, — observou Dick, enfático. — Eles estavam-se afastando...

—   Eles, — repetiu Puttler significativamente. — Pois não creio que o homem se enganasse.

Chegaram ao aterro e seguiram ao longo do topo, até ficarem numa direção paralela à abadia, mas não encontraram sinal algum de homem nem de mulher, e voltaram. A despeito dos seus protestos de que estava sem sono, o Sargento Puttler não resistiu à sugestão de que devia aproveitar a sua quota do sofá. Dick ficou sozinho, vigiando.

Ao despontar da aurora, era um homem exausto. Por duas vezes durante a noite visitara os dois homens postados nos corredores do andar superior; encontrara-os acordados, mas sem novidades.

—   Graças a Deus que alguém, pelo menos, dormiu nesta casa? — murmurou ao passar debaixo da janela das moças, e ergueu os olhos.

O vento da manhã, que agitava as ramagens e enchia o mundo com a música amena das folhas farfalhantes, movia também as vidraças da janela do quarto que ele destinara a Mary Wenner. A janela ia de um lado para outro, lentamente, e ele, em seu íntimo, verberou a moça por não lhe haver executado as ordens.

Às seis horas, o primeiro dos criados já estava trabalhando; a fumaça subia, preguiçosa, por uma das grandes chaminés espiroladas. Ele se mantinha numa invejosa contemplação do Sargento Puttler, quando a porta do escritório se abriu violentamente e Mary Wenner apareceu. Vestia um penteador e os cabelos, em desalinho, lhe caíam sobre o rosto.

—   Sr. Alford, — perguntou, agitada, — o senhor viu Leslie?

Ele ergueu-se em pé num instante, e o movimento despertou

o detetive.

—   Não; ela está com você, não está?

—   Fomos juntas para a cama, — disse a moça, com voz trêmula, — mas, quando acordei, agora há pouco, ela não estava no quarto. Esperei um pouco, pensando que estivesse tomando banho," e depois saí e perguntei ao homem que o senhor colocou ali. Ele disse que ela não tinha saído do quarto!

Ouvindo-a, Puttler ergueu-se também.

—   A escada! — disse, simplesmente, e Dick cambaleou sob a força do golpe.

O Terror Negro da Mansão de Fossaway tinha em seu poder a mulher por quem ele teria dado a própria alma com alegria.

Correndo para o gramado, Puttler escoldrinhou o chão debaixo da janela. Sim, lá estavam as marcas da escada na terra de um canteiro, e na própria escada encontrou indícios comprobatórios. Erguendo-a contra a parede, marinhou por ela e, chegado ao último degrau, notou que o seu peito ficava ao nível do peitoril da janela. Erguendo-se com a força dos braços, saltou para o quarto e entrou a vasculhá-lo, à procura de alguma pista. A essa altura, Mary Wenner, seguida de Dick, havia entrado pela porta.

—   O penteador dela está aqui, — choramingou Mary, apontando para o cabide onde se via o quimono dependurado. — Mas os sapatos não estão. Ela deve ter-se vestido, e eu não a ouvi.

O homem cansado à porta do quarto não escutara som algum durante a noite. Grosso tapete cobria o soalho. Mary afirmou que, ao despertar, notara que a porta de comunicação entre os dois quar­tos estava fechada.

Não ouvira coisa alguma e assegurou que tinha o sono leve, o que, a bem dizer, não era exato. Quando fora dormir, a vela estava queimando. Examinando-a, Dick percebeu que ela não poderia ter ouvido por mais de uma hora. Havia dois palitos de fósforo quei­mados na salva, o que significava que a vela fora apagada uma vez e reacendida.

—   É de pasmar que ela não me tenha acordado! Tenho o sono tão leve!

Dick deixou a moça prosseguir em suas explicações ao vigia que estivera de guarda do outro lado da porta, durante a noite.

—   Foi a voz dela, naturalmente, que o patrulheiro ouviu no escuro. E eu me censuro por não haver tido logo essa idéia.

—   A culpa foi toda minha! — protestou Dick, amargamente. — Oh, Deus! não consigo suportar essa idéia!

E saiu, empenhado numa busca solitária; ninguém o viu esgueirar-se pelos fundos da casa, e caminhar oculto pela margem do ribeirão. Quando voltou, após uma ausência de duas horas, Puttler contou-lhe que havia um recado do Ministério do Interior à sua espera. Do Ministério lhe haviam telefonado duas vezes. Dick con­seguiu a ligação depois de esperar um pouco, e ficou sabendo que estava falando com um importante subsecretário.

—   O senhor poderia vir a Londres por uma hora?

—   É indispensável? — perguntou Dick, e relatou, sucintamente, os sucessos da noite anterior.

—   Aconselho-o a vir ver-nos o mais depressa possível. Em vista das circunstâncias, quanto antes, melhor.

Dick desligou o aparelho com uma imprecação e, dessa vez, pegou o grande carro de Harry, de dois lugares, um carro que o irmão usara apenas uma dúzia de vezes, mas cujo uso negara, siste­maticamente, a quem quer que fosse.

No momento em que ia sair, lembrou-se de uma resolução tomada naquela noite; subiu correndo ao quarto e, trancando a porta, abriu uma gaveta fechada da cômoda e dela retirou qualquer coisa, que colocou com todo cuidado na mala. Aquilo precisava ser removido de Fossaway Manor o mais depressa possível, pensou. Colocou a mala no porta-malas do carro e fê-lo voar pela alameda abaixo.

No meio do caminho entre Horsham e Dorking, um motorista, que vinha na direção oposta por outra estrada, cruzou com ele em alta velocidade. Dick acionou os freios e o carrão derrapou, estrondejando na guia de concreto do passeio. Entretanto, como tudo não passara de um susto, Dick continuou, não sem haver lan­çado um olhar assassino ao motorista do outro automóvel culpado do quase acidente.

Não ouviu abrir-se a porta do porta-malas, nem viu a mala castanha saltar e rolar sobre o pavimento. Mas o homem do outro carro viu tudo isso através dos seus enormes óculos de aviador e, dando nova partida ao seu carro, conduziu-o até a guia.

E ali, naquele instante, Fabrian Gilder descobriu o segredo do Abade Negro!

 

 

Às nove horas da manhã, o Sr. Fabrian Gilder se levantara com a intenção de fazer uma rápida visita à sua casa de campo.

Folheou os matutinos. Não havia nada de novo em relação a Chelfordbury, exceto a breve entrevista que Dick concedera a um repórter; a notícia, em muitos sentidos, era assaz confortadora para Gilder, pois explicava por que a jovem... Nesse momento, os seus olhos deram com uma linha:

"Informou o Sr. Alford que convidou a Srta. Leslie Gine para hospedar-se na Mansão de Fossaway enquanto o irmão dela esti­vesse no estrangeiro..."

No estrangeiro? Fabrian Gilder franziu a testa. Se Artur Gine embarcara para o estrangeiro deveria ter saído repentinamente. Fazia apenas um ou dois dias que se tinham visto. Mas talvez fosse uma das mentiras de Dick Alford para por a salvo a reputação dá moça. Mesmo assim, era inquietante.

Estava parafusando o assunto, quando a criada lhe trouxe a correspondência da manhã, e a primeira carta que viu exibia uma letra muito conhecida. Era de Leslie. Abriu-a, com mãos trêmulas, tirou do envelope a meia folha de papel e leu as poucas linhas. Não as leu uma, senão muitas vezes. Então era isso? Ela mudara de idéia.

Não lhe ocorreu que a moça não lhe fizera promessa alguma. Mas sentia-se tão seguro de si, estava tão persuadido de que ela aceitaria a sua proposta, que teve a impressão de ter sido enganado.

Tirou do cofre a carta que escrevera a Leslie e já se dispunha a rasgá-la em pedacinhos, quando se lembrou de que, dentro da carta, havia um cheque em branco. Tirou do envelope a folha de papel de carta e procurou o bilhete cor-de-rosa que, em sua magni­ficência, assinara com um floreio complacente. Não estava lá.

Gilder explorou o interior do envelope com sobrecenho. Sumira! Vasculhou o cofre: poderia ter caído, muito embora lhe fosse difícil imaginar como; mas não havia sinal do documento. Abriu a gaveta e tirou o talão de cheques. Lá estava o canhoto e, escrito nele, "Para Leslie..." Tencionara mostrar-lhe num desses dias, quando ela se revelasse mais compreensiva.

Com a cabeça nas mãos, tentou rememorar a ocasião em que vira o cheque pela última vez, e recordou a manhã em que Artur Gine viera visitá-lo. A essa lembrança, empalideceu. Teria real­mente fechado o cofre? Procurou lembrar-se outra vez, minuto por minuto, da manhã fatídica. Estivera relendo a carta, colocara-a no cofre, fechara a porta e, então... o telefone chamara e ele se esque­cera de acionar a fechadura do segredo!

Puxou o telefone para junto de si e pediu, furioso, um número. Eram nove e vinte; a maior parte do pessoal do banco já devia ter chegado. Quando responderam ao chamado:

—   Sou o Sr. Gilder. O gerente está?... Não? Então chame o subgerente. É urgentíssimo.

Esperou que o funcionário fosse investigar. Dali a pouco ouviu a voz de um homem que ele conhecia — o próprio gerente.

—   Acabei de chegar. Aconteceu alguma coisa?

—   Fletcher, você se lembra de que eu lhe disse que mandaria um cheque de cinqüenta mil libras e lhe pedi para pagar?

—   Lembro-me, sim; e já paguei.

Por um segundo, Gilder ficou sem fala.

—   E quem o apresentou?

—   Artur Gine... o cheque estava em nome dele... Aliás, eu lhe escrevi ontem à noite; não recebeu minha carta?

—   Ainda não abri toda a correspondência, — replicou Gilder com voz firme. — Muito obrigado.

Recolocou o fone no gancho, respirando pesadamente. Agora relembrava claramente todos os acontecimentos daquela manhã: a vinda de Artur Gine e a sua proposta, aparentemente absurda, de que ele, Gilder, escrevesse uma nota, manifestando-se disposto a emprestar-lhe o dinheiro. Nisso estava o truque! Artur não so­mente obtivera as cinqüenta mil libras, mas também, com a carta, dispunha de uma resposta cabal a qualquer acusação de fraude.

Sentou-se com as mãos enclavinhadas, todas as veias da testa inchadas, a morte no coração. Trapaceado! Mas ela haveria de saber. Participara da fraude — inconscientemente, talvez, mas não deixara de participar. Ela deveria ter falado ao irmão sobre o dinheiro.

Fosse lá o que fosse, Fabrian Gilder possuía o dom de pensar com clareza. Depois de cinco minutos de uma fúria devastadora, voltava a ser o homem frio de sempre. É evidente que ela não poderia ter secundado a fraude. Fora a circunstância de haver esque­cido o cofre aberto e a conhecia abelhudice de Artur Gine — incapaz de resistir até à leitura das cartas particulares de Gilder, pois lhe faltava de todo o senso da discrição.

Que poderia fazer agora? Repisou cuidadosamente o assunto e traçou o seu plano. Contaria à moça, que assim talvez se consi­derasse comprometida. Se ela tivesse algum senso de honra, cum­priria a promessa, sem embargo do que escrevera na última carta.

Telefonou para que lhe mandassem o carro da garagem e abeirou-se da mesa do desjejum, fazendo uma tentativa para comer.

Experimentaria Leslie primeiro, sem nada lhe dizer sobre a carta que dera a Artur, e ameaçando-o de um mandado de prisão por fraude. Isto talvez lhe reforçasse, em vez de enfraquecer, a posição. Foi-se sentindo melhor, à medida que o pensamento tomava forma.

À sua esquerda, a estrada estava desimpedida; à direita, tinha a visão um tanto ou quanto obstruída. Buzinou e entrou na estrada principal a trinta milhas por hora.

Divisou o carro a tempo, acionou os freios e engatou a mar­cha à ré. O carrão à sua frente derrapou; surpreendeu o brilho rancoroso nos olhos de Dick Alford e, em seguida, viu-lhe a mala; encostando o carro na guia da calçada, apanhou-a. A sua primeira idéia fora deixá-la; não o movia nenhum desejo especial de ajudar o filho segundo; mas existem certas decências inatas que devem ser observadas pelos motoristas, ainda que se detestem; apanhou a mala caída no meio da rua e atirou-a na parte traseira do seu automóvel.

Nisso, a mala se abriu e, quando ele se voltou para fechá-la, viu uma coisa que o fez mudar de idéia. Saindo do carro, ergueu a mala acima da calçada e deixou cair o conteúdo — o hábito e o capuz escuros do Abade Negro!

 

 

Com que, então, Dick Alford era o Abade Negro! Inacreditável! Mas conseguia avaliar a importância do seu achado. Aqui, portanto, estava a maior alavanca de todas. Diante disso, a ameaça de uma acusação contra o irmão de Leslie Gine perdia todo o peso. Fechou a mala, recolocou-a no assento traseiro do carro e, pondo-o novamente em movimento, guiou um pouco mais devagar para Chelfordbury.

Parou na aldeia, onde foi reconhecido, e ouviu, em primeira mão, do estalajadeiro, a história dos estranhos sucessos ocorridos na "casa grande".

—   Dizem que aconteceu alguma coisa à jovem senhora de Willow House.

—   O que! — Gilder quase berrou a palavra. — Você está falando da Srta. Gine?

—   Sim, da Srta. Gine, — confirmou o homem. — Ainda não conheço a história toda, pois até agora só chegaram boatos, mas por Deus, Sr. Gilder, nunca houve tantos boatos nesta aldeia desde que vim morar aqui, há quarenta e oito anos! Alguns dizem que Sua Excelência foi assassinado — baixou a voz e olhou em torno de si — pelo irmão! O Sr. Alford é um homem duro, embora as pessoas que trabalhem para ele não tenham nada para dizer em seu desabono, mas isso, a mim, não me parece possível.

A mente de Gilder girava, num turbilhão. Não queria saber coisa alguma acerca de Dick Alford, nem da sua reputação.

—   Quem lhe contou essa história a respeito da Srta. Gine? — perguntou, e o estalajadeiro, circunvagando a vista pelo grupo for­mado à frente do "Leão Vermelho", apontou para um homem.

—   Ele é carroceiro lá na casa grande.

—   Faça-o vir aqui, — disse Gilder.

E quando o carroceiro se avizinhou:

— Que história é essa a respeito da Srta. Gine?

O homem pareceu encalistrado ao ver-se convertido em centro das atenções gerais.

—   Não sei nada a respeito, não, senhor, — disse ele. — Só o que ouvi aquele cavalheiro com cara de macaco dizer ao Sr. Richard. Ele disse, "Não creio que possa acontecer algum mal a ela". E uma das criadas falou que a moça que costumava ser secre­tária de Sua Excelência...

—   A Srta. Wenner? Ela está aqui? — perguntou Gilder, depressa.

—   Está, sim, senhor, chegou ontem à noite.

—   Que tem ela? — perguntou Gilder.

—   Dizem que chorou a manhã inteira. Isso é tudo o que sei. Disseram que aconteceu uma desgraça à moça hoje cedinho, e que o Sr. Richard tem corrido como um doido de baixo para cima e está com uma cara de assustar a gente.

—   Espero que se faça alguma coisa a respeito desse Abade Negro, interveio o estalajadeiro. A mulherada aqui de casa anda tão amedrontada que quer passar acordada a metade da noite.

Gilder considerou-o com estranha expressão.

—   Você não precisa ter medo do Abade Negro, disse ele. Eu mesmo esconjuro hoje esse fantasma.

—   O senhor, Sr. Gilder? acudiu o homem, surpreso.

Aquela não era ocasião para confidências e Gilder, voltandoao carro, manobrou-o e subiu a estrada até chegar à entrada da propriedade. Ali o policial de serviço lhe teria barrado a passagem se não fosse um homem da polícia local, que o conhecia.

—   O Sr. Alford não está. Quer falar com o Sargento Puttler?

—   É o homem que está hospedado na Mansão? Que é ele, afinal... um policial?

—   Um homem da Scotland Yard, respondeu o policial de Sussex, com certo orgulho. Embora, na minha opinião, eles não sejam muito melhores do que os nossos detetives. Faça o favor de dizer-lhe que o senhor me viu e que lhe recomendei que só fosse à mansão se tivesse negócios para tratar, sim?

Evidentemente, tais haviam sido as instruções recebidas pelo policial; Gilder prometeu transmitir fielmente o recado e continuou a subir a alameda. Não havia ninguém para recebê-lo quando parou diante do velho portal esculpido mas, tanto que desceu do carro, um homem de braços compridos e rosto esquisito apareceu, vindo, aparentemente, de parte alguma.

—   Bom dia, disse o visitante.

—   Bom dia, Sr. Gilder, respondeu Puttler. O Sr. Alford foi à cidade.

—   Quero ver a Srta. Gine, disse Gilder, observando o homem com atenção.

Se ele esperava que o experimentado sargento-detetive se traísse, ficou desapontado. Puttler limitou-se a encará-lo com os olhos melancólicos.

—   O senhor quer ver a Srta. Gine, é? Pois receio que ela também não esteja em casa.

—   Nesse caso, eu talvez possa ver a Srta. Wenner.

O sargento coçou o queixo.

—   Ela não está muito bem, respondeu; na realidade, está deitada, e o médico recomendou que não a perturbassem,

—   Ela está passando mal?

—   Não, não está passando muito mal. Ao mesmo tempo, continuou Puttler, juridicamente, também não está passando muito bem! Acontece que ficou com os nervos abalados depois de dormir uma noite nesta casa, e eu, sinceramente, não posso censu­rá-la por isso.

—   O senhor sabe aonde foi a Srta. Gine?

Puttler meneou negativamente a cabeça.

— Não, — respondeu, sem mentir, — não posso dizer-lhe isso; ela também não me disse aonde ia.

—   O senhor talvez me responda esta pergunta, — voltou o exasperado Sr. Gilder: — aconteceu alguma coisa a ela?

—   Que eu saiba, — retrucou o imperturbável detetive, — não aconteceu coisíssima alguma. O senhor é amigo dela?

—   Sou o seu noivo, — redargüiu Fabrian, obedecendo a um súbito impulso.

Nesse ponto ele teve a satisfação de ver que o sargento ficou espantado.

—   Oh, sim, já sei, o senhor é o cavalheiro com quem ela não vai casar.

Isso foi dito com toda a inocência, sem qualquer traço de impertinência. mas o Sr. Gilder ficou vermelho e branco.

—   Como vê, Sr. Gilder, — prosseguiu o sargento, — ouvi muita coisa acerca de... de negócios por aqui; a bem dizer, sou uma autoridade no tocante às fofocas e escândalos dos últimos vinte anos. E estou muito satisfeito com a sua presença, porque há uma ou duas perguntas que gostaria de fazer-lhe. Por exemplo, eu gos­taria de saber como foi que o senhor colocou o seu chalé à dispo­sição de um ex-sentenciado, vulgo Tomás Felizão...

Gilder, porém, tinha a resposta na ponta da língua:

—   Eu não sabia que o homem era um ex-sentenciado. Ele me disse que havia sido despedido da Mansão e, como eu precisasse de um caseiro, e ele se oferecesse para trabalhar por uma soma irrisória, empreguei-o. Fiquei terrivelmente surpreendido e chocado ao saber da sua morte, porém muito mais chocado ao tomar conhecimento da sua reputação.

Puttler se mostrou polidamente interessado. Mas se supunha ver-se livre de Gilder com tamanha facilidade, não conhecia a per­tinácia do homem.

—   Creio que preciso ver a Srta. Wenner antes de partir, — insistiu o advogado. — De qualquer maneira, eu gostaria que o senhor mandasse avisá-la de que eu...

Puttler sacudiu a cabeça.

—   Não pode ser, Sr. Gilder, — atalhou, quase jovial. — Sou, nesse momento, uma combinação do Conde de Chelford e do médico da família. Em outras palavras, tudo corre por minha conta na ausência do Sr. Alford. Se não fizer questão de esperar até que ele chegue, a sala de estar estará à sua disposição, mas compreenda, Sr. Gilder, que, em hipótese nenhuma, poderá interrogar os criados. Admiro muito os detetives amadores em meus momentos de lazer, mas este é um dos meus dias mais trabalhosos, e não posso permitir qualquer interferência no caso, por bem intencionada que seja.

Gilder teve de aceitar o convite. Decidira não sair da casa enquanto não soubesse a verdade sobre Leslie Gine. O detetive con­duziu-o à sala de estar, cujas longas janelas estavam abertas.

—   Peço-lhe que não se ausente daqui antes da chegada do Sr. Alford. Se precisar de alguma coisa, faça o favor de tocar a cam­painha. — E, vendo a luz nos olhos de Gilder: — Um dos meus homens, que é um criado de primeira ordem, terá prazer em atendê-lo.

Entretanto, não lhe foi preciso esperar muito tempo. Dick, que fora voando para a cidade, infringindo todas as normas de velo­cidade, e tão preocupado com o objetivo da sua visita que até se esquecera de haver posto a mala no porta-malas, teve a sorte de liquidar a entrevista em quinze minutos. Uma entrevista importan­tíssima, da qual dependia, em grande parte, o seu próprio futuro; e ele tinha tantas coisas em que pensar que lhe esqueceram comple­tamente a mala e o seu conteúdo. O carro, branco de poeira, subiu à toda a alameda e foi parar no amplo espaço diante da portada. Identificou o outro carro e reconheceu nele o automóvel que quase provocara um feio acidente naquela manhã.

—   É Gilder, não é? — perguntou, ao descer.

—   É Gilder, sim, senhor, e cheio de pontos de interrogação. O senhor viu o Secretário?

Dick assentiu com um movimento de cabeça.

—   Vi. Ele foi muito bom, mas um tanto vago. Deu-me doze horas para encontrar Harry, vivo ou morto.

—   O senhor não lhe contou a respeito da Srta. Gine?

—   Ele nem sequer se interessou, — respondeu Dick, com uma risada dura. — Harry, a propriedade, o título... tudo, exceto Leslie! Foi esse o tema da sua conversação. Em doze horas preciso encon­trá-lo... e creia-me, Puttler, em doze horas o encontrarei!

Entrou na sala de estar e cumprimentou Gilder secamente.

—   Quer falar comigo?

—   Eu queria saber o que aconteceu a Leslie Gine.

—   Prouvera a Deus que eu soubesse!

O homem encarou com ele.

—   Não lhe aconteceu nada de mal? — perguntou em voz baixa, e Dick perdoou-lhe tudo pela sinceridade da preocupação.

—   Receio que se trate de algo muito desagradável, — disse ele, e contou a história.

Enquanto falava, viu modificar-se o rosto do homem e um sorriso cético contrair-lhe os lábios.

—   Tenho uma coisa para dizer-lhe, e gostaria de dizê-lo diante de uma testemunha, Alford.

—   A mim? — volveu Dick, surpreso e por cima do ombro, chamou Puttler, que passava pela porta naquele momento. — O Sr. Gilder quer dizer uma coisa... e presumo que seja coisa de natureza desagradável. Talvez fosse melhor você ouvir, Puttler.

—   Alford acaba de contar-me que a Srta. Gine desapareceu, e disso se infere, naturalmente, que foi o Abade Negro o autor do desaparecimento. Isso, aliás, me parece extremamente provável, porque o Abade Negro tem o máximo interesse em apoderar-se dessa jovem.

—   Sensação, — murmurou o detetive, mas Gilder não deu tento da interrupção.

—   Por algum tempo, um estranho abentesma vem assombrando esta região, objeto de terror para Lorde Chelford, destinado, possivelmente, a cobrir a série de violências recentemente perpe­tradas. Chelford é um fraco... você sabe disso; Alford... mas os fracos têm filhos e, depois que nascer o filho de Harry Alford, as suas esperanças de sucessão irão por água abaixo.

—   O que é que você está sugerindo? — perguntou Dick, com firmeza.

—   Estou sugerindo que você é o Abade Negro!

Nem sequer uma contração das pálpebras alterou o sem­blante de Dick.

—   E não somente sugiro, como estou preparado para prová-lo. Quando você foi à cidade hoje cedo, quase abalroou o meu carro. Pois bem, ao derrapar, a sua mala saltou do porta-malas. Apanhei-a, atirei-a no meu carro e verifiquei que estava aberta. Nessa mala se achava a túnica do Abade Negro, já gasta, muito usada! Você será capaz de negá-lo?

—   O senhor precisa provar o que diz, — interveio Puttler.

—   Provar! — gritou o outro, triunfante. — Pois vou provar!

Atravessou rapidamente o vestíbulo e dirigiu-se para o local onde estava estacionado o seu carro, seguido pelos dois homens. Deixara a mala debaixo de um tapete, na parte traseira do carro.

—   Aqui está a mala, — disse ele, tirando o tapete do lugar. — E aqui... — continuou, abrindo a mala... Estava vazia!

—   É aqui? — repetiu Puttler, encorajando-o.

—   Estava aqui há poucos minutos. Vi-a antes de entrar no jardim. Alguém a tirou. Você! — concluiu, apontando para Dick.

Este sorriu.

—   O Sargento Puttler é testemunha de que saí diretamente do meu carro para a sua augusta presença, — respondeu, sarcástico.

—   Por que não me acusa? — acudiu Puttler. — Estive o tempo todo aqui fora.

O homem frustrado alternou os olhos entre um e outro. Era impossível acreditar que os dois estivessem conluiados. Conhecia

Puttler de nome e sabia-o um dos melhores funcionários que já tivera a Scotland Yard. Deu de ombros e deixou pender as mãos ao lado do corpo.

—   Você me venceu, Alford, disse, por enquanto. Estou convencido de que a Srta. Gine se acha dentro de um raio de uma milha desta casa, e não descansarei enquanto não for encontrada. Afinal, por que você fez isso?... Ela gosta de você, e não havia necessidade...

—   Não seja idiota, Gilder, atalhou Dick, desabrido. Se quiser ajudar, ajude! Mas pouco ajudará se continuar pensando que ergui minha mão contra Leslie Gine. Não me importa que você seja amigo ou inimigo, mas se puder ajudar a trazê-la de volta sã e salva, eu lhe pedirei de joelhos que o faça!

A voz lhe soava trêmula, vibrante; havia em seus olhos um brilho que nem o próprio Gilder, apesar de toda a sua prevenção, poderia interpretar mal. Estendeu a mão e Dick Alford apertou-a com uma força que o fez encolher-se.

 

 

A despeito de todos os seus sombrios prognósticos acerca da noite que passaria sem dormir, assim que a Srta. Wenner colocou a cabeça no travesseiro, a sua respiração tornou-se regular e até audível. Leslie Gine sorriu para si mesma ao virar-se e apagar a vela silenciosamente. Não fazia dez minutos que se achava deitada quando compreendeu, baseada em experiências anteriores, que muitas horas cansativas se passariam antes que os seus olhos se çerrassem num sono reparador.

Restava-lhe a alternativa de reacender a vela e ler, ou con­tar miríades de carneiros, e o primeiro plano foi um tanto dificultado pelo fato de não haver no quarto nada para ler, e ela não querer incomodar a sentinela, pois isso, provavelmente, despertaria Mary. Quedou-se, portanto, perfeitamente imóvel, dominando um desejo maluco de virar-se a cada instante, procurando transformar a sua mente em algo totalmente vazio.

Com tanta coisa para ocupar-lhe os pensamentos, com as últimas vinte e quatro horas e todos os choques terríveis que elas lhe haviam trazido, os seus esforços por transformar a mente num repolho deram em água de barreia.

Ouviu um relógio distante da aldeia dar as horas e meias-horas, e sentiu-se grata ao soar uma hora da manhã, pois refletiu que havia transposto o ponto culminante da noite e que dali a pouco chegaria o dia abençoado. Ouvia rangidos e estalidos esquisitos na casa velha; estranhos passos furtivos, que pareciam muito reais; dedos que alisavam lambris de madeira, rumores indistintos que lembravam risos. Apesar da sua coragem, Leslie levantou-se, acendeu a vela outra vez e sentiu-se mais feliz.

Ficou deitada de costas, olhando para o teto, forcejando por concentrar-se numa rachadura que corria de um canto a outro; e, enquanto olhava, afigurou-se-lhe que o quarto ficava perceptivel­mente mais escuro, inundado de uma estranha luz extraterrena.

E então viu, atrás da porta, um grande cabide de roupas, de aço, que não se lembrava de ter visto antes; e, presa a ele, havia uma corda e alguma coisa informe dependurada, incrivelmente mole - uma mulher! Arregalou os olhos, quase gritou, mas pôs a mão a tempo diante da boca.

Compreendeu que estivera sonhando, e alcançou o lenço para enxugar o rosto molhado. Não havia cabide nenhum atrás da porta

—   nada. Estremeceu e virou-se de lado, olhando pela vigésima vez para o seu relógio. Uma hora e vinte e cinco minutos.

Tap, tap!

Aquilo, sim, era bastante distinto. Vinha do quarto que Mary Wenner devera ter ocupado.

Um silêncio, e depois o som inequívoco do cascalho atirado à janela. Talvez fosse Dick querendo vê-la. Desceu da cama, vestiu um penteador, abriu a porta do quarto escuro, e entrou. As janelas estavam fechadas mas, ali chegada, assustou-se ao ouvir um terceiro punhado de cascalho, que soou com aterradora nitidez.

Com mãos trêmulas, puxou o trinco e abriu a vidraça. Um homem estava de pé, lá embaixo e, por um segundo, não o reco­nheceu. E, logo, tudo começou a girar à sua volta; foi-lhe preciso agarrar-se ao peitoril da janela para não cair.

Era Harry Alford!

—   É você, meu bem? — Se bem fosse pouco mais que um sussurro, a voz dele soava notavelmente clara.

Ela conseguiu responder:

—   Sim.

Sentia-se tão aparvalhada que não foi capaz sequer de fazer uma das mil perguntas que trazia na ponta da língua. Harry! E vivo!

—   Você está correndo um terrível perigo, — disse ele. — Desça. Vou arranjar uma escada.

Antes que ela pudesse responder, ele desapareceu e, pouco depois, voltava carregando uma escada triangular, que encostou à parede da casa. A ponta da escada ficou a trinta centímetros do parapeito.

—   Não posso ir, Harry; não estou vestida. Além disso, a Srta. Wenner está aqui.

Ele ergueu um dedo aos lábios.

—   Não a acorde, — recomendou.

Harry trazia um rolozinho na mão e ela notou que ele estava sem chapéu.

—   Você não pode vestir-se? Preciso vê-la.

—   Posso chamar Dick?

—   Não, não. — Em sua
energia, quase levantou a voz e olhou para trás, por cima do ombro. — Isso estragaria tudo, e colocaria a vida dele em perigo. Vista-se depressa, meu bem.

Que deveria ela fazer? O seu primeiro instinto mandava-a correr para a porta e dizer ao guarda o que vira; o segundo, obedecer-lhe. A veemência dele e o terror que havia em sua voz fizeram-na ceder à sugestão de Harry. Vestiu-se, à pressa, à luz da vela, esperando e rezando para que Mary Wenner despertasse. De uma feita, bateu na cama, mas a Srta. Wenner dormia serenamente, com um sorriso seráfico no rosto bonito, e o único sinal que deu de haver notado alguma coisa foi murmurar: "Dick!"

O ridículo interlúdio devolveu a coragem a Leslie; pois ela não poderia achar graça e ter medo, ao mesmo tempo.

Dick talvez estivesse esperando lá embaixo, pensou, e, equilibrando-se sobre o parapeito, estendeu o pé, encontrou o primeiro degrau da escada, e desceu. Em pé, no canteiro, Harry parecia curiosamente alerta e vigilante.

—   Que aconteceu, Harry? — perguntou ela em voz baixa, mas ele tornou a levar um dedo aos lábios e conduziu-a, não, como ela esperava, para a frente da casa, mas, por um amplo trajeto, cosido sempre à sombra das árvores, até o roseiral, perto das cocheiras. Um cão latiu quando eles passaram em silêncio.

—   Não posso ir mais longe, Harry.

—   Você precisa, precisa! — A voz dele era instante, compe­lia. — Estou-lhe dizendo que não só a minha, mas também a sua vida está correndo perigo.

—   E a Srta. Wenner? — Ela recuou.

—   Não a tocarão. O espírito de minha mãe velará por aquela pobre moça... ela morreu naquele quarto.

Leslie sentiu dificuldade para respirar.

—   Sua mãe? — perguntou, num sussurro de terror.

—   Venha! — Impaciente, ele agarrou-a pelo braço e levou-a mais para diante, até que ela viu, à sua beira, o brilho do Ribeirão dos Corvos.

—   Mas, Harry, não posso ir mais adiante. — Estacou, reso­luta. — Tenho certeza de que você está enganado. Onde andou todo esse tempo? Toda a gente tem estado à sua procura, e Dick ficou terrivelmente preocupado.

Ele riu-se. (Fora a risada que o policial ouvira.)

—   Dick ficou preocupado? Essa é boa!

Nesse momento, ao chegar-lhe aos ouvidos a interpelação de uma voz distante, ela viu-lhe o rosto à luz da lua. Barbudo, a roupa em desalinho, tinha o rosto e as mãos sujas; estava sem colarinho e compunha uma estranha figura de homem de sobrecasaca, sem colarinho, de aparência selvagem. Lentamente, ela recuou, o pavor e o medo estampados no rosto, e ele a agarrou pelos pulsos.

Se gritar, eu a jogarei dentro do rio e ficarei de joelhos sobre o seu corpo, até você morrer, murmurou ele num tom tão calmo e normal que ela não pôde acreditar que ele estivesse falando sério.

E, contudo, um sentido adicional lhe dizia não só que ele falava sério, mas também que ela estava correndo um perigo mortal. Ele continuou a segurar-lhe o pulso pois, do contrário, ela teria fugido, embora tivesse pouquíssimas probabilidades de escapar a um homem que, em seus dias de escola, fora notável corredor. Naquele momento, lembrou-se de mais uma coisa, e sentiu-se en­gulhada. Harry Alford capitaneara o time de sua escola em Bisley e levantara todos os troféus. Aquele jovem pálido, anêmico, fora o maior atirador do seu tempo. O maior atirador! Rememorou a bala, que lhe fora destinada, e ele sentiu-a resistir um pouco mais, mas sem uma palavra. Ela não poderia perder a coragem naquele momento de crise.

Caminhavam em direção às ruínas. Perto da borda do corte, dissera-lhe Putíler, estavam estacionados dois homens; não tarda­riam a vê-la. Harry, porém, não foi além da torre quebrada; nesse ponto estacou e afastou o bloco de pedra.

Ela compreendeu; desceriam à medonha caverna subterrânea, aonde fora com Dick. Dick Alford sabia que o irmão estava ali! Percebeu-o muito antes de ver a cesta, ainda cheia de comida, que ficara no último degrau da escada coberta de musgo.

 

 

Harry acendeu uma vela e, guiada por ela, Leslie desceu a íngreme escada circular.

—   Ele me trouxe essa comida... o demônio! — Harry apon­tava o dedo trêmulo para a cesta.

—   Foi Dick que a trouxe? perguntou ela, com voz insegura.

Ele fez que sim com a cabeça.

—   Envenenada, exclamou. Mas ele não me pega, não! Está tudo envenenado!

Desdobrou com cuidado um guardanapo branco e mostrou uma delicada pilha de sanduíches; em seguida, pegou um deles e mostrou-o.

—   Veja! Veja os cristais brilhando sobre a carne, — disse, viu a coisa brilhar na carne branca.

A seguir, ele ergueu a garrafa e contemplou-a com um sorriso.

—   Era infantil demais! Ninguém, a não ser um bobo, seria capaz de imaginar que eu pudesse ser enganado.

Tornou a colocar a garrafa e os sanduíches no lugar, com todo o cuidado, e cobriu-os com o guardanapo que estivera sobre a cesta.

—   Venha, — disse ele, e os dois se adentraram na sala.

Ela viu um grande buraco no chão e um pedra ao lado, que havia sido afastada do centro.

—   Tenho um lampião lá embaixo. Preparei este lugar há muito tempo para uma emergência dessa natureza. Luz e comida... e toda a água que você precisar. Quer entrar primeiro?

Muito cortês e polido, tomou-lhe a mão para guiá-la, e suspendeu a luz de modo que ela pudesse ver a escada, descendo ime­diatamente depois e recolocando a pedra no lugar.

—   Quer segurar a vela? — pediu ele.

Ela tremia tão violentamente que os seus dedos se cobriram de cera fervente, mas não sentiu a dor; tinha os olhos fitos no homem, fascinada.

Ele acendeu um novo lampião, que parecia queimar gás de parafina e levou algum tempo para produzir uma luz brilhante, que iluminou a sala. Era duas vezes mais espaçosa do que o aposento superior, e nem as paredes nem o piso mostravam sinais de estragos. Dir-se-ia quase tão nova quanto no tempo em que os construtores normandos a entregaram aos Monges Negros de Chelfordbury.

As primeiras coisas insólitas que ela viu foram dois rifles de caça, num canto da sala. Seguindo-lhe os olhos, ele sorriu.

—   Não venderei minha vida sem luta, — declarou, com firmeza.

A mobília consistia numa mesa velhíssima de refeitório, cujo tampo deveria ter, pelo menos, dez centímetros de espessura, um longo banco de madeira e uma cadeira alta, semelhante ao trono de um bispo. Não havia janelas visíveis, mas o teto não chegava a encostar nas paredes; ao que tudo indicava, existia um espaço à volta da sala, pelo qual entrava o ar.

—   Desculpe-me, — disse ele.

Pegou o rolo que estivera carregando, desenrolou e, para assom­bro dela, beijou-o apaixonadamente antes de levá-lo para uma cama baixa, de cuja existência ela ainda não se dera conta, e pregou-o, com tachas, numa viga que aparecia entre as fieiras de pedras e que era, na verdade, o único pedaço de madeira que ela vira em toda a construção.

Leslie olhou, pasmada, e conheceu instantaneamente o retrato. Era a cabeça da mãe dele.

—   Como é linda! — suspirou Harry. — Como é maravilhosa! Sabe. Leslie, sinto agora que nada mais tem importância!

Sorriu para ela e pareceu, naquele momento, tão feliz que a moça sentiu vontade de chorar.

—   Richard a odiava! — prosseguiu ele. — Nunca perdia uma oportunidade de falar mal dela. Fiquei sabendo que, na minha au­sência, ele costumava levar os criados à biblioteca e, juntos, riam-se e zombavam dessa formosa mártir.

—   Que absurdo, Harry! Você sabe que Dick seria incapaz de fazer uma coisa dessas, — acudiu ela, tomando, sem querer, a defesa do rapaz.

Mas ele não se zangou, nem se mostrou ressentido.

—   Você não o conhece, — tornou, simplesmente. — Dick é o Abade Negro. Só o descobri há uma ou duas semanas, quando entrei no quarto dele e dei com a roupa numa caixa. Ele se esque­cera de guardá-la.

Ela não acreditou na única verdade que ele lhe dissera até aquele momento, mas percebeu que seria uma imprudência de sua parte, para não dizer outra coisa, contrariá-lo.

—   Harry, você sabe que não posso ficar aqui, — disse ela. — Só há uma sala, e gosto de tomar banho todos os dias...

Ele atravessou o aposento, afastou para um lado um saco de aniagem que escondia um dos cantos, e apontou dramático:

—   Você aqui encontrará tudo o que precisar. Esta sala é sua. Dormirei lá em cima, e só descerei ao primeiro sinal de perigo, para você ou para mim. A situação exige calma e paciência, e sei que a minha futura esposa tem que farte tais qualidades.

Ele voltara a ser o velho Harry sorridente e jovial.

—   A propósito, existem muitos livros para ler... eu trouxe alguns da casa. Como fossem meio pesados, precisei arrastá-los um pouco mas, graças a Deus, consegui exatamente o que queria.

Ela os viu, então, pela primeira vez, empilhados numa ponta da mesa Ele tomou de um volume e pôs-se a folheá-lo com carinho.

—   Você não lê alemão? Se não me engano, já lhe ouvi isso. É uma pena, porque aqui está uma narrativa sumamente fascinante, feita por um estranho, dos Chelfords daquele tempo. Você gostará de saber que localizei o tesouro. Não foi difícil. Eu sempre soube que estava atrás da segunda porta da sala lá de cima.

—   Faz muito tempo que você conhece este lugar?

Ele assentiu com a cabeça.

—   Faz seis anos. Encontrei-o no vigésimo primeiro aniversário da morte de minha querida mãe. Creio que eu deveria dizer do "assassínio", pois não há dúvida que meu pai, que possuía todas as piores qualidades de Dick, a matou... enforcou-a.

—   Naquele quarto? perguntou ela com voz tensa, o rosto contraído de horror. Atrás da porta?

Ele meneou afirmativamente a cabeça.

—   A coisa foi abafada. O meu esperto pai era um homem importante demais para ser processado por crime de morte, e cir­culou a história de que ela dera cabo da própria vida.

Todas as suas palavras eram outras tantas mentiras, e ela o sabia, mas ele acreditava na história. Explicou, com clareza, como funcionava a luz; mostrou-lhe um lugarzinho onde ela poderia lavar-se, com um filete de água que escorria da rocha nua, através de uma frincha, para profundezas invisíveis; e chegou até a fazer-lhe um resumo sucinto da história do lugar. Fora construído pelo pró­prio Abade Negro para as suas atividades especiais.

—   Pensei, a princípio, que houvesse outra saída aqui, ou melhor, uma entrada para as amigas dele, mas não consegui des­cobri-la.

Pegou um dos rifles, empurrou o ferrolho para trás com mo­vimentos experientes e, subindo dois degraus, destravou a pesada viga de carvalho que mantinha a pedra no lugar.

A laje girou sobre si mesma, e a jovem pensou poder travá-la quando ela voltasse ao lugar; mas ele, evidentemente, estava pre­parado para isso, pois ela o ouviu arrastando outra pedra pesada, com que calçou a primeira, a fim de que esta não pudesse voltar.

Boa noite, Leslie, disse ele, olhando para ela através dos óculos. Não faz mal que eu deixe a luz acesa? Eu gostaria de ler um capítulo antes de dormir.

Durante um quarto de hora nenhum som quebrou o silêncio. Ela sentou-se na cama, as mãos travadas sobre os joelhos. Nisso, ouviu-o mexer-se, e a sua respiração se acelerou, mas ele queria apenas fazer uma pergunta.

—   Diga-me, Leslie, Tomás deixou algum parente? Eu gos­taria de prover à subsistência dessa gente. Ele me aborrecia e, fran­camente, não me arrependo de o haver matado. Mas não gostaria de saber que os seus parentes estão passando privações em conse­qüência do meu ato de justiça.

Ela abanou a cabeça.

—   Não sei, disse, e não lhe pareceu ouvir a própria voz.

 

 

Ela não poderia dizer por quanto tempo ficou ali, imóvel. Achava-se numa espécie de coma, paralisada por uma sensação de impotência. Já se deveriam ter passado horas quando o ouviu mexer-se e, com o cobertor sobre o braço e o rifle na mão, descer a escada e travar a laje.

—   Que foi? perguntou ela.

—   Não fale... é ele! murmurou, e sentou-se ao lado dela, com a mão no seu ombro.

Leslie ouviu o som de passos acima da cabeça. Dick!

Precisou morder o lábio para abafar um grito. Harry a estava vigiando gritasse e estaria morta. Dick não conseguiria deslocar a laje a tempo, ainda que localizasse o som. Dali a pouco, os passos se afastaram e ela sentiu afrouxar-se a pressão sobre o ombro.

—   Sinto muito havê-la incomodado.

Harry apanhou o cobertor e o rifle e subiu os degraus; ela o viu puxar a pedra para a frente e, pouco depois, tudo voltava ao silêncio.

Ele deixara uma caixa de fósforos e uma vela sobre a mesa. Ela acendeu a vela e levou-a para a minúscula caverna onde corria a água. Não conseguiu ver o teto; supôs que o comodozinho se estendesse por toda a altura da torre e que, em algum lugar, lá em cima, estivesse a borda da escada circular que a trouxera à caverna superior.

Erguendo a luz sobre a cabeça, forçou a vista para o alto e, pouco depois, viu grandes arcos de ferro, em forma de D, fincados na parede a intervalos regulares de trinta centímetros; chegavam até o topo e o mais abençoado sinal de todos divisou uma estrela lá em cima.

Não obstante, estava perplexa. O Abade era havido por mulherengo, e pouquíssimo provavelmente as visitantes que parti­lhavam da sua solidão entrariam ali por um processo tão precário. Estendeu a mão, mas notou que esta ficava quase a um metro do arco mais próximo, e nada havia no aposento em que pudesse trepar. Aproximou-se, sem ruído, da cama e arrancou um lençol; apanhou o rifle que ali ficara e, fazendo um grande esforço, con­seguiu introduzir uma das pontas do lençol pelo primeiro arco. Dez minutos depois de um trabalho insano, a ponta descia e ela se viu dona de uma corda. Amarrou as pontas do lençol e experi­mentou o peso do próprio corpo. O ferro agüentou; deu um salto, e conseguiu subir, valendo-se apenas dos braços, até alcançar o primeiro arco. Tinha a impressão de que os braços lhe estavam sendo arrancados das articulações; embora sem fôlego, prosseguiu e, erguendo-se quanto pôde, atingiu o terceiro arco; em seguida, encolhendo as pernas, apoiou os pés no primeiro. Esperou um pouco, para recobrar o fôlego, e principiou a subir. Subiu, subiu, e o coração lhe caiu aos pés. Acima da sua cabeça, via agora umatela de aço, que fechava toda a abertura da torre. Ser-lhe-ia im­possível enfiar sequer o braço por ela, pois as malhas eram muito estreitas; com uma acerba sensação de desapontamento, tornou a descer e escorregou pelo lençol até o chão.

Não havia escapar desse jeito. Desfez o nó do lençol e recolocou-o na cama, manchado de ferrugem e rasgado nas pontas. Trouxe o rifle de volta consigo. Entusiasta também do tiro ao alvo, conhecia o mecanismo da arma. Tirando o magazine, encon­trou-o inteiramente carregado. Ali, pois, estava alguma coisa; a sua confiança aumentou, embora rezasse para nunca precisar utili­zar aquela arma contra o louco que dormia tão sossegado lá em cima. Valer-se-ia do rifle apenas para assustá-lo numa emergência.

Voltou ao improvisado lavatório e ergueu os olhos. O dia já vinha rompendo, e ela tomou uma súbita resolução. O homem se mostrara quase normal, tal e qual o conhecera, e Leslie imaginou que aquilo fora apenas um intervalo, e haveria momentos em que ela teria de atirar para salvar a vida. Silenciosamente, subiu a escada, com o rifle na mão, ouviu-o mexer-se e, logo depois, a voz estridente perguntando:

—   Onde é que você vai? Volte para trás, sua megera!

Ergueu a coronha do rifle e empurrou com força e pedra que

servia de calço. A laje voltou ao seu lugar e, instantaneamente, ela fez girar a pesada viga que a mantinha travada. Ouviu-o espernear e gritar lá em cima; ouviu, trêmula de horror, as ameaças que, supunha, nenhuma língua humana seria capaz de proferir; desceu, cambaleante, os degraus, e caiu.

 

 

Um alto funcionário da Scotland Yard havia chegado e estava entrevistando Dick na biblioteca.

—   A culpa é toda minha. Eu sempre soube que meu irmão era excêntrico e, há cerca de um ano, me persuadi de que o horrível traço de loucura que a sua pobre mãe lhe transmitiu estava progredindo de maneira que só poderia ter um fim. Supliquei-lhe que consultasse um médico, mas ele odiava os médicos. Eu trouxe os melhores alienistas de Londres sob vários pretextos, às vezes disfarçados em intendentes, outras em possíveis compra­dores da nossa propriedade mas, em presença deles, ele se portava tão sensatamente que me foi impossível conseguir um atestado.

"A minha posição era muito delicada Sou, como o senhor sabe, o herdeiro da propriedade. Qualquer medida que eu tomasse teria por conseqüência dar-me a posse dela e, mais tarde, quando o pobre Harry morresse, pois um médico me afirmou que ele morre­ria dentro de poucos anos, eu seria estigmatizado como o seu ver­dadeiro assassino, e a minha preocupação era salvar o nome da família. O meu maior receio era que ele viesse a casar."

—   O senhor não poderia ter contado tudo isso à moça?

Dick permaneceu em silêncio por algum tempo.

—   Neste caso, não. Havia razões por que...

E o funcionário, compreendendo vagamente, mudou de assunto.

—   Então, era o senhor o Abade Negro?

—   Na maioria das vezes, — confessou Dick. — Meu irmão tinha pavor do Abade e não sairia de casa se soubesse que a Abade Negro andava por perto. Eu ambicionava principalmente retê-lo em casa, onde, sob as minhas vistas, ele não teria oportu­nidade de entregar-se aos extraordinários paroxismos que realmente alarmaram a região. O homem que os aldeões temiam e que cha­mavam de Abade Negro era, efetivamente, Harry. Sempre fui um Abade Negro muito quieto, — ajuntou Dick, com um pálido sorriso, — e não tinha outro propósito senão conservar meu irmão em casa. Embora deva dizer que nem sempre fui feliz.

—   Receio que a verdade terá de divulgar-se agora, — disse o funcionário, sacudindo a cabeça.

—   Eu bem quisera que se tivesse divulgado na semana passada, — replicou Dick, amargamente.

—   Na sua opinião, seu irmão é o responsável pelo desaparecimento da Srta. Gine?

—   Sem dúvida nenhuma. Ele deve tê-la atraído à janela persuadindo-a a descer para o jardim. Harry era muito convin­cente; ninguém o julgaria jamais fora do seu juízo perfeito, senão, eu, que vi — respirou fundo — o que vi. E, no entanto, sob certos aspectos, é um esportista, foi um dos melhores atiradores da Inglaterra quando rapaz, grande corredor, e um sujeito maravi­lhoso nos esportes ao ar livre, até cerca de oito anos atrás, quando* o micróbio do tesouro lhe invadiu a cabeça e ele se afastou de todos e se entregou de corpo e alma a essa caça maluca.

—   O ouro?

Dick sacudiu a cabeça.

—   Não. Se fosse apenas o ouro, teria sido um interesse- inteligente em sua vida.

Descreveu a busca do elixir, a famosa Água da Vida, citada pelo antigo Chelford em seu diário.

—   Não será, provavelmente, mais que um frasco de vinho nativo... araca, ou coisa que o valha, — disse Dick. — Pobre Harry!

A Srta. Wenner se declarara decidida a partir pelo primeiro trem da manhã, mas mudara de idéia. É possível que a chegada de Fabrian Gilder a tivesse influenciado nesse sentido. E ela possuía uma solução para o desaparecimento de Leslie.

—   Vocês revistaram a abadia? — perguntou, não uma, senão uma dúzia de vezes.

Dick estava cansado; a abadia fora o seu primeiro pensamento. Suspeitara de que fosse aquele o esconderijo de Harry, levara-lhe pessoalmente uma cesta de provisões, mas vira depois que a cesta não fora tocada.

Havia uma possibilidade em relação à caverna subterrânea, a saber, a segunda porta, e ele ordenara ao ferreiro e ao seu ajudante que estivessem na torre de pedra às duas horas da tarde, com instrumentos, um dos quais teria de ser trazido de Londres.

De repente, Dick viu folhas caírem de uma moita de lourei­ros e ouviu um estrondo. Um dos policiais que ainda estava patrulhando o jardim gritou para ele, mas, não podendo ouvir o que o homem dizia, correu-lhe ao encontro. Chegando mais perto, viu-o apontando para as ruínas.

—   Veio de lá, — gritou o policial, e Dick mudou de direção.

Ele estava voando ladeira acima quando soou outro tiro e, desta feita, localizou-o com precisão. Alguém atirava da torre.

Felizmente, ele fizera preparativos para a visita do ferreiro, e havia uma série de lampiões perto da entrada. Deteve-se o sufi­ciente para acender um deles, puxando o trinco para trás com o canivete, empurrou para o lado a pedra angular e desceu correndo a escada. Não havia ninguém na sala. Experimentou a porta mis­teriosa; essa também estava fechada. Alguém lhe gritou o nome do patamar, em cima, e ele respondeu:

—   Desça, Gilder. Não há ninguém aqui.

Gilder desceu a escada com cuidado e olhou à sua volta com os olhos penetrantes e astutos. Em seguida, lembrando-se, apontou para a laje.

—   Já experimentou isto? Eu pretendia dizer-lhe antes.

—   O que é?

—   Não sei, mas tudo faz crer que a pedra gira sobre um pivô. Se for esse o caso, haverá vigorosos suportes por baixo, que precisarão ser cortados.

Gilder escarranchou-se no chão, o ouvido colado à fenda.

—   Não há nada audível aqui, — disse ele. — Mas você não está sentindo um cheiro?

Aplicou o nariz à fenda.

—   Há um lampião de querosene queimando lá embaixo, ou que esteve queimando recentemente.

Deitado no chão, Dick aspirou o ar.

—   De fato, concordou. E chamou: Leslie!

Moita. Tornou a chamar, com idêntico resultado.

Gilder subiu a escada e examinou as ferramentas que tinham sido trazidas para a investigação da tarde. Escolheu duas serras e outro lampião. E, depois de acendê-lo, desceu para junto de Dick.

—   Há de ser, de certo, um suporte de carvalho; os antigos construtores raramente usavam ferro, observou.

Tirando o paletó, arregaçou as mangas da camisa. A lâmina fina da serra trabalhava entre as pedras e, volvido algum tempo, ele entrou a serrar com muito cuidado.

—   É madeira, confirmou. Você verá que a sua parte também é.

Ambos trabalhavam na mesma ponta, pois, como ele assinalara, haveria apenas uma viga, estando a outra ponta da pedra cortada de viés para ajustar-se à borda do piso. A madeira parecia rocha, de tão dura, e os dois homens transpiravam antes de haver serrado a metade do suporte. Pouco depois, Dick retirou a sua serra. Cortara o carvalho e ouvira cair a extremidade solta. Poucos segundos depois, a serra de Gilder transpôs o último obstáculo. Cautelosamente, colocou o pé sobre a borda, fez pressão para baixo, e a tampa de pedra se abriu.

Os dois olharam para a caverna escura; o cheiro do lampião era pungentíssimo. Dick abaixou a sua luz e perscrutou a sombra. Não encontrou sinal de vida humana. Viu a extremidade de uma cama, uma mesa e, no chão, um rifle. Desceu a escada e, balan­çando o lampião à sua volta, chamou:

—   Leslie!

Um eco zombeteiro voltou-lhe da cavernazinha, na extremidade mais remota da câmara. O lugar estava vazio; o homem e a mulher que, cinco minutos antes, haviam travado uma luta sem misericórdia, haviam desaparecido.

 

 

Leslie!

Tornou a chamar, a voz rouca de ansiedade. Vira dois sapatinhos ao pé da cama. O chapéu dela caíra ao chão, amassado, informe. Pegando o rifle, tocou-lhe o cano; ainda estava quente e, debaixo da torre, havia quatro cartuchos vazios. Em seguida, er­guendo a lanterna, viu os arcos de ferro espetados na superfície áspera da parede, e concluiu que ela escapara por ali. Um minuto depois, saltava e, agarrando o primeiro arco, subiu os demais até o topo, sem fazer conta de uma ou duas rachas ominosas que o peso do seu corpo produziu na parede, ao nível dos arcos. A grade no topo o deteve. Vira-a, mas cuidara poder removê-la.

—   Eles não podem ter saído por aqui, — disse, sem fôlego, ao voltar para o chão.

Gilder coçou o cabelo grisalho.

—   Mas, então, por onde diabo terão ido? — perguntou, irritado.

Vasculharam cada polegada do comprido aposento, afastaram a cama da parede mas, debaixo dela, só encontraram um sólido pavimento de pedra. A mesa se diria pregada no chão; não conse­guiram movê-la.

—   Você não está notando nada neste piso? — perguntou Gilder de repente. — Não é horizontal.

Prestando atenção, Dick percebeu que o outro tinha razão. O piso se inclinava gradualmente para baixo, a partir da caverna onde havia água, até a parede atrás da escada. Gilder saiu à procura de um martelo, e os dois, agora reforçados por Puttler e pelo homem da Scotland Yard, percorreram cada polegada de parede e de chão, percutindo e ouvindo. Não encontraram nenhum lugar oco. Os quatro homens agarraram o lado da mesa e tentaram erguê-la, mas o mesmo teria sido tentar mover a própria parede. Ela possuía uma grossa base de carvalho, da qual subiam três pilares que sustentavam o tampo, pesadíssimo.

Para Dick, era claro o que acontecera. A jovem tinha sido atacada e, tendo descoberto aquela nesga de céu, apoderara-se de um rifle e atirara, para chamar a atenção. Depois fora subjugada e... quê?

A água descia por uma frincha cavada na rocha sólida, de uns quinze ou vinte centímetros de largura. Era impossível que algum ser humano tivesse descido pela greta estreita mas, para maior garantia, ele mandou quebrar as bordas da rocha cavada pela água. A esse tempo, o ferreiro estava esperando lá em cima. Dick lhe pedira que trouxesse as ferramentas; a segunda porta talvez apresentasse alguma solução.

Durante meia hora trabalharam com macacos e alavancas, até rebentarem a fechadura e abrirem a porta. Surgiu diante deles uma sala semelhante, na forma e no tamanho, àquela que Mary Wenneir descobrira; com uma diferença: lá não havia bancos de pedra e no centro do cômodo via-se uma abertura circular. Dick ajoelhou-se ao pé dela e abaixou o lampião; ouviu o manso rumorejar da água, e viu a luz refletida a uma distância considerável.

—   Um poço, — disse ele. — Todas essas velhas construções têm um poço interno. Há um na Torre de Londres, no centro do calabouço.

A sala fora usada como prisão num período distante. A intervalos, das paredes, pendiam correntes enferrujadas, presas a peias de ferro. Num dos cantos viu um monte de frangalhos, vislumbrou um osso de uma alvura de leite e estremeceu. Qual seria a história desse pobre desgraçado que fora arrancado à luz do sol de Deus para morrer miseravelmente, naquele lugar escuro e medonho?

—   Bem, não há nada aqui, — disse Gilder, lançando os olhos em torno de si.

Dick amarrou o lampião à extremidade de uma corda e fê-lo descer, lentamente. A uns nove metros de profundidade, pelo que lhe foi dado calcular, o lampião tocou na água. Os velhos constru­tores tinham construído esplendidamente. As paredes verdes, cober­tas de mato, pareciam intactas. E, nesse momento, o seu coração quase parou. Via adiantar-se uma mão, saída aparentemente da sólida alvenaria do poço, uma mão branca em que cintilava um brilhante solitário, que ele conhecia muito bem. E, vinda de baixo, ouviu uma voz abafada; na sua agitação, porém, a corda que segu­rava o lampião escorregou-lhe da mão e caiu dentro d'água.

Em sua fúria, ele maldisse em voz alta a própria negligência criminosa.

—   Dêem-me outro lampião! — gritou, e, puxando o que caíra na água, desamarrou-o, jogou-o para um lado e atou em seu lugar o lampião aceso que Puttler lhe entregou. — E arranjem uma corda... depressa.

Mas a corda mais próxima estava na Mansão de Fossaway. Dick fumegou de impaciência e teria tentado descer pelas pró­prias paredes traiçoeiras do poço se Puttler não o tivesse impedido.

Após uma eternidade, um dos detetives voltou correndo com uma corda. Deixando cair uma ponta, prenderam a outra a uma alavanca, que colocaram atravessada entre os batentes da porta aberta. Dick escorregou pela corda, com a alça do lampião presa entre os dentes. As paredes do poço estavam úmidas e escorrega­dias e, pouco depois, ele chegava ao lugar em que vira a mão da moça.

Era um pequeno respiradouro retangular, de uns quinze centímetros por dez. Tentou devassá-lo com a ajuda do lampião, mas não enxergou coisa alguma senão a áspera parede de rocha. Chamou a jovem pelo nome, mas não obteve resposta, e a palavra "Leslie" voltou-lhe, ecoando, do interior.

Viu, então, que os respiradouros ocorriam a intervalos regulares, Os dois primeiros estavam escondidos por plantas aquáticas pendentes, mas eram visíveis por quem estivesse abaixo deles. Do outro lado da construção de pedra havia uma espécie de galeria natural, e ele se lembrou de ter ouvido que, num período remoto, a abadia fora construída sobre uma antiga catacumba inglesa. Muito provavelmente, cada uma das aberturas representava um "patamar", ou o lugar em que alguma escada espiralada natural tocava na parede em seu giros.

Ele fizera com a corda um laço tosco para o pé e os outros lhe passaram uma alavanca na ponta de outra corda. Com isso, Dick atacou o buraco na parede, mas viu-se empenhado numa tarefa impossível. Somente um explosivo alargaria o diâmetro daquelas aberturas. Estava quase morto de fadiga, e os companheiros tiveram de içá-lo para que ele pudesse descansar um pouco. Puttler ansiava por descer, mas Dick insistiu em que voltassem a arriá-lo. Desta feita levou consigo uma vara, à cuja ponta amarrara uma lampadazinha elétrica. O fio corria ao longo da vara, que era um pedaço de bambu, e terminava numa pequena bateria, guardada em seu bolso. Ele ligou a luz e enfiou a lâmpada através da aber­tura. Via agora a parede, que julgara de rocha natural, grosseira­mente lavrada, mas não distinguiu mais do que uns trinta centí­metros de chão de cada lado. Retirando a vara, introduziu a mão, porém não conseguiu tocar outra coisa senão a parede externa do poço.

—   Cuidado! — O grito de aviso era de Gilder e vinha de cima. Ele retirou a mão rapidamente.

—   Afaste-se da parede... empurre com os pés! — berrou Gilder.

Dick viu, num relance, uma mão suja projetar-se por um dos respiradouros, viu o reluzir do aço e sentiu ceder a corda à medida que os fios, um por um, iam sendo cortados. Depois, com um esta­lido, a corda se partiu e ele foi caindo, caindo, até que as águas pungentemente amargas o engoliram.

O rapaz tocou o fundo com os pés e, imprimindo um impulso ao corpo, voltou à tona outra vez. Sentia-se gelado até a medula dos ossos. Viu a lanterna descer na sua direção e ouviu a voz de Gilder:

—   Segure-se na corda o suficiente para manter-se à super­fície.

Silenciosamente, obedeceu. Tinha os olhos no respiradouro, como Puttler, que deitado de bruços no chão, a cabeça e os ombros além da borda, cobria com o seu revólver o lugar de onde surgira a mão.

Atiraram-lhe a ponta cortada da corda. Alcançando-a, ele conseguiu agarrá-la, porém não com força suficiente para subir por ela. A cãibra lhe atacara as pernas. O frio paralisante da água era assombroso e, em dado momento, o medo lhe deu a impressão de que a sua vida acabaria miseravelmente naquele buraco escuro. Não via onde apoiar os pés em nenhum dos lados e, se não o acudissem logo, conheceu que não conservaria os sentidos por mais tempo.

Quase ao seu alcance estava a mais baixa das pequenas aber­turas, mas não lhe pareceu valer a pena procurar alcançá-la. A corda do lampião servia para mantê-lo à tona d'água, e o calor do pavio que ardia era o seu único conforto.

—   Dick! Ouviu o próprio nome sussurrado com selva­gem intensidade. Dick, segure a minha mão!

A mão que lhe era oferecida saiu do respiradouro inferior. Com grande esforço, ele estendeu o braço e alguém lhe agarrou o pulso. Nisso, perdeu os sentidos.

Quando voltou a si estava deitado ao ar livre; o calor dos raios do sol deixavam-no sonolento.

—   Onde está Leslie? perguntou, forcejando por soerguer-se sobre os cotovelos.

Os outros o olharam, perplexos, imaginando que ele estivesse delirando.

—   Como foi que eu saí?

—   Gilder desceu para buscá-lo quando o viu cair.

—   Mas Leslie me pegou pelo pulso, disse ele, exaltado. Ela estava lá... você não viu, Puttler?

Puttler sacudiu a cabeça.

—   Eu o vi segurando-se na parede no momento em que chegava a corda nova, e Gilder desceu para buscá-lo.

Dick estava lívido.

—   Vocês não viram? Vocês não ouviram?

Fazendo um esforço para levantar-se, passou a mão pela testa. Estivera sonhando? Seria aquilo parte do delírio da morte, que quase o levara? Mas tinha certeza, tanta certeza quanto de qual­quer outra experiência humana que já tivera. A mão de Leslie saíra da parede e lhe agarrara o pulso. Vira cintilar o brilhante à luz do lampião e depois não se lembrara de mais nada. Mas fora Leslie. Ainda lhe sentia a pressão dos dedos sobre a pele. Não estivera sonhando. Em algum lugar, nas profundezas da terra, estava a mulher que ele amava e não podia salvar. Cobriu o rosto com as mãos e, por um momento, os seus ombros estremeceram con­vulsivamente, como os ombros de um homem que soluça.

 

 

Em pé no interior da torre, Leslie deu um tiro para o ar. O projétil bateu na grade de ferro e ricocheteou com um silvo colé­rico, que se diria o zumbir de uma abelha. Nenhum som lhe veio do aposento superior. Se conseguisse atrair Dick para as ruínas, poderia indicar-lhe a sua posição. Mas Harry tinha um rifle! O pensamento gelou-lhe o sangue nas veias. Ela talvez tivesse atraído o rapaz para a morte.

Por um momento pensou em afastar a laje que impedia a comunicação com o cômodo superior e forçar a passagem amea­çando-o com o rifle. Mas era tarde demais Logo lhe ouviu a voz, cavernosa e distante.

—   Leslie!

Ela subiu um degrau para poder ouvi-lo melhor.

—   Eles vêm vindo, Leslie. Você lhes dirá que eu não a maltratei. não dirá?

—   Sim, sim, replicou ela, ansiosa.

Ele não disse mais nada depois disso, até que ela ouviu um arrastar e um bater de pés acima da cabeça, e o ouviu dizer:

—   Olá, Dick, meu velho! Espero não ter dado muito trabalho a você.

Ouviu, em seguida, um som prolongado e indistinto, que poderia ter sido uma voz. Em sua ansiedade, empurrou o suporte de carvalho; dali a um segundo, a pedra se afastou e ela subiu os últimos degraus da escada. Não enxergava nada; o lugar estava completamente às escuras.

—   Dick! chamou.

Nesse momento, Harry agarrou-lhe a mão e ela compreendeu, horrorizada, que todo o arrastar de pés e toda a conversação haviam sido apenas uma farsa representada por ele.

Ainda estava segurando o rifle, mas antes que pudesse levantá-lo, ele o agarrara e lho arrancara das mãos. Ela ouviu a arma cair com estrépito no chão do aposento inferior.

Quase inconsciente de medo e terror, já se debatia com menos energia. Ele a segurava nos braços e a sua força era surpreendente.

—   Vamos lá para baixo, minha querida, murmurou ao ouvido dela. Finalmente conheço a verdade! Então, é Dick que você quer, não é? Querido Dick!

Ele ria-se mansamente ao arrastá-la para o topo da escada.

—   Vai descer ou prefere que eu a empurre? perguntou, em tom tão normal que parecia estar dizendo qualquer coisa sobre o assunto mais corriqueiro do mundo.

Com joelhos trêmulos ela desceu os degraus para o aposento iluminado, e ele a seguiu, detendo-se apenas para travar firme­mente a pedra.

—   Sente-se. — Apontou para o banco ao pé da mesa e ela sentou-se incontinenti. Tinha o rosto lívido; as suas últimas reser­vas de coragem estavam praticamente esgotadas. Você me magoou de maneira imperdoável, Leslie, prosseguiu ele, com os olhos solenes fitos nos olhos da jovem. Compreende o que fez? Tratou com desprezo Harry Alford, décimo oitavo Conde de Chelford, Visconde de Carberry, Barão Alford.

Com a solenidade da criança que recita uma lição, repetiu os títulos que possuía, incluindo uma remota baronia da Aquitânia, que os Chelfords haviam possuído num passado longínquo. Senhoreou-a a estranha sensação de achar-se em presença de um juiz, ouvindo os termos de uma acusação por um crime hediondo que cometera.

—   Você tentou por em perigo a minha vida; conspirou com aqueles que me odeiam; manteve, atraiçoadamente, comunicação com os meus inimigos e os confortou.

Havia outras acusações, que teriam soado igualmente ridículas em outras ocasiões, que a teriam deixado furiosa, mas ela preferiu poupar as forças para a luta iminente.

O rifle dele estava encostado aos degraus, mas ele lhe barrava a passagem com o corpo. Circunvolvendo os olhos à procura de uma arma, não viu outra coisa senão o lampião, pesado demais para ser usado.

—   Para você, — rematou ele num tom de profunda gravi­dade, — só pode haver um castigo: a morte!

Antes que a garganta seca da jovem pudesse emitir um som, ele se arremessou a ela, empurrando-a contra a borda da mesa. Ela puxou violentamente a mão dele, mas não conseguiu arredá-la de si. Aquilo era a morte! Um barulho ensurdecedor nos ouvidos, uma luz ofuscante diante dos olhos; Leslie estava perdendo a cons­ciência. Nisso, sentiu a mesa mover-se, a princípio, lentamente, depois tão depressa que ela perdeu o equilíbrio. A grande mesa deslizava no sentido longitudinal, na direção da parede. O aperto da mão dele afrouxou-se e, naquele instante, ele soltou-a; Leslie estendeu a mão, porém não encontrou coisa alguma. Ouviu um baque e um gemido e deu um passo à frente — em pleno espaço. Não viu a caverna hiante diante de si. Fez um esforço desesperado para recobrar o equilíbrio, agarrou-se à borda dura do piso ao cair e entrou a escorregar, a escorregar, por uma escada que estalava e se quebrava debaixo dela, até que os seus pés tocaram algo mole e fofo. Acima da sua cabeça ouviu um som prolongado e pro­fundo, um baque macio, e o silêncio.

 

 

Harry estava inconsciente. Ela sentiu-lhe o rosto, e os seus dedos tocaram uma substância quente e úmida.

Não enxergava coisa alguma; a escuridão era impenetrável. Nenhum som vinha do cômodo de que ela caíra. O piso era grosso, a pesada base de carvalho da mesa, que deslizava — sobre roletes, imaginou ela, tão eficientes quanto o haviam sido centenas de anos antes, quando o Abade Negro encontrara essa oportuna saída — voltara ao seu lugar. Se ela, ao menos, tivesse uma luz! Acudiu-lhe a idéia de revistar o infortunado Harry. Pouco depois encontrava uma caixa de prata cheia de fósforos. Riscou um deles e olhou à volta. Jaziam os dois no pé do que fora antigamente uma escada de madeira. Os degraus estavam quebrados, o corrimão pesadamente entalhado apodrecera, deixando duas brechas abertas. A metade dos degraus sumira, a outra metade acabara de quebrar-se com a sua queda.

Harry estava estendido num recesso aberto na rocha sólida, e à direiía e à esquerda havia uma estreita passagem, por onde corria água. Ela saiu da alcova e acendeu outro fósforo. A passagem era tão tortuosa que só se via um metro, se tanto, em cada direção. Poças de água parada enchiam as cavidades do solo; longas pencas de fungos cinzentos, que lembravam cachos de uvas, pendiam do teto. Sem embargo, o ar era suave. Vinda da passagem à esquerda, uma branda corrente de ar lhe acariciou o rosto. Mas como ainda não pudesse investigá-la, voltou para junto de Harry.

Imaginou, a princípio, que o homem inconsciente carregasse dois lampiões, mas verificou que o segundo pacote era uma lanterna de reserva. Acendeu a luz e examinou o teto acima da escada que­brada. Notou que era a parte inferior de uma grossa prancha de madeira. De onde estava, via os roletes sobre os quais corria a mesa: robustos cilindros de carvalho. Perto da parte superior da escada, dois grandes cabos de madeira, semelhantes à coronha de enormes pistolas Browning, projetavam-se para baixo, e ela conjeturou que serviriam para mover a mesa dali de baixo.

Quando tornou a olhar para Harry, ele tinha os olhos admirados voltados para cima.

—   Que aconteceu? — perguntou.

—   Devemos ter caído por um alçapão, — explicou ela. — Você acha que pode alcançar aqueles cabos? — E mostrou-os.

Ele ergueu-se em pé com movimentos inseguros, recolocou os óculos, que lhe haviam caído no tombo, e olhou para os cabos. Somente dois degraus permaneciam intactos. Experimentou um, mas este se quebrou debaixo dos seus pés.

—   Não consigo alcançá-los. Devem estar a mais de três metros de altura.

Nesse momento, observando-lhe o ferimento, fê-lo sentar-se e pensou-o com um pedaço de seda arrancado da barra da saia.

—   Como diabos chegamos a este lugar infernal? — pergun­tou ele, intrigado. — Onde estamos?

- Debaixo da abadia, — retrucou ela, e o sobrecenho dele terminou numa careta de dor.

—   Onde está Dick?

—   Acho que está lá em cima.

E, afinal, por que estaria ali o rapaz? Ele não saberia encon­trar o caminho da câmara inferior, pensou ela, com o coração opresso.

—   Você pode andar?

Ele espraiou os olhos em derredor, consternado.

—   Andar eu posso, mas para onde?

—   Vamos experimentar primeiro a passagem da esquerda, — sugeriu ela, e ele concordou.

À primeira volta, Leslie se deteve. Distinguira um bruxulear de luz e, fazendo uma inspeção, encontrou um buraco retangular, aparentemente talhado na rocha; a extremidade mais distante estava coberta de uma vegetação pendente, e através dela, Leslie distin­guiu perfeitamente a luz, um leve brilho amarelo. Prosseguiram na escalada e, logo depois, chegaram a outra pequena abertura. Aqui, portanto, estava uma das fontes de suprimento de ar, se bem pouco ar chegasse por ali, pois quando a jovem acendeu um fósforo diante do respiradouro, a chama quase não oscilou.

—   Até onde teremos de ir? — perguntou Harry com voz fraca. — Estou exausto.

—   Precisamos continuar, — disse ela. — Isto, provavelmente, nos levará a algum lugar, ao ar livre.

Ele descansou a mão sobre o ombro dela e, caminhando devagar, deram mais uma volta completa da tortuosa passagem. Dessa vez, encontraram um respiradouro não coberto pelo mato. A luz agora era mais forte e, olhando pela abertura, cuidou ver uma corda balançando. E ouviu também qualquer coisa — vozes. Não era ilusão; alguém estava falando a uma distância imensa, segundo lhe pareceu. Tornou a olhar. A corda parecia muito próxima, porém, quando ela enfiou a mão pela abertura e tentou agarrá-la, conheceu que tinha sido vítima de uma ilusão de ótica. Chamou, mas não obteve resposta. Devia ter imaginado as vozes.

Nesse momento ouviu um grito distante e a luz amarela que brilhara à entrada se apagou.

—   Não posso ir mais longe. — Harry, que se encostara à parede, escorregou por ela abaixo e foi cair sentado, com a cabeça sobre o peito.

—   Não faz mal que eu o deixe no escuro? — perguntou Leslie.

Ele sacudiu a cabeça com ar cansado e, deixando-o, ela continuou a subir, até dar consigo numa passagem reta e estreita.

Compreendeu que estava passando debaixo do Aterro, o alto barranco que acompanhava o curso do Ribeirão dos Corvos. Que pés ligeiros haviam passado por ali? perguntou a si mesma. Que de medos ou esperanças, desejos ou desesperos, haviam corrido ao longo daquele áspero chão de pedra? Inconscientemente, esti­vera reconstruindo uma antiga relação de causa e efeito. O efeito levou-a a estacar. No meio da passagem erguera-se uma parede; sólida barreira de alvenaria, que impedia qualquer progresso.

Embora não soubesse, nem pudesse adivinhar, ali estava o obstáculo que o vingativo Senhor de Chelford construíra depois de mandar o seu assassino matar o homem que o desonrara. Não mais se ouviriam os passos leves de frágeis mulheres ao longo da passagem secreta, e depois que Ivone de Chelford morrera com o coração dilacerado, nenhum pé de mulher voltara a agitar aquele pó.

Leslie voltou, sentindo que a coragem principiava a faltar- lhe. Aproximando-se do sítio em que o deixara, ouviu o riso manso de Harry e a sua pele se arrepiou.

—   Leslie, Leslie! murmurou ele, ansiosamente. Você não faz idéia da sorte que eu tive!

E quando a luz da lanterna dela o envolveu também, ela viu o Harry exaltado de sempre.

—   O que acha você que aconteceu?

Ela, agora, tinha consciência de vozes. Ouviu um grito e ouviu uma resposta fraca mas, por fraca que fosse, reconheceu a voz. Era a voz de Dick.

—   Que aconteceu? perguntou, depressa.

Ele curvou-se, sacudido pelo riso silencioso, e por um momento não pôde falar. Em seguida, mostrou-lhe a faca.

Com isto, disse, envaidecido. Eu o vi descer.. e quando a corda chegou bem perto... eu poderia tocá-la. Então, lembrei-me de que trouxera a minha faca, estendi a mão e, antes que eles pudessem içá-lo, cortei-a.

Ela o fitou, horrorizada.

—   Estava alguém na corda? perguntou, contendo a res­piração.

Ele assentiu gravemente a cabeça.

—   O arqui-inimigo da raça humana, respondeu em tom sóbrio, Richard Alford.

Petrificada de terror, ela aproximou o ouvido do respiradouro e ouviu Dick falando. Logo, sem uma palavra, disparou pela des­cida abaixo. Deu voltas e voltas pela passagem circular até sen­tir-se quase tonta. Pouco depois, chegou ao respiradouro inferior, estendeu a mão e arrancou a vegetação que obstruía a abertura.

—   Dick, Dick! chamou ela.

Via-o agora, pois o respiradouro ficava logo acima do nível da água. O rosto dele estava cinzento e tenso.

Ela estendeu a mão e, pouco depois, fechou-a em torno do pulso gelado do rapaz. Naquele momento, porém, a mão de Harry caiu sobre o seu ombro e ela foi arrastada para trás. Sentiu o pulso escorregar, ouviu o esparrinhar da água no momento em que Dick caiu, e perdeu os sentidos.

 

 

Voltou a si e viu tudo tão escuro que não pôde acreditar que os seus olhos estivessem abertos senão depois de sentir as pálpe­bras. Não ouvia som algum. Estava deitada sobre o chão duro e irregular em que caíra, pensou, mas, quando estendeu a mão à procura do respiradouro, os seus dedos tocaram a rocha áspera. Tateando ao redor, à cata da lanterna, nada encontrou. Logo depois, entretanto, esbarrou numa superfície lisa e fria. Era a faca de Harry, uma faca de mola, de lâmina comprida.

Sentia-se cansadíssima. O piso tosco lhe arrebentara as meias de seda e os seus pés se achavam terrivelmente machucados. Es­perou algum tempo antes de acender o primeiro fósforo, pois a caixa já estava pela metade. Percebeu que se encontrava numa parte do sistema subterrâneo que não conhecia. O teto era mais alto; as paredes bojavam como os lados de uma ampulheta, e o piso havia sido grosseiramente pavimentado. A intervalos parecia haver nichos, alcovas, na parede, e ela se lembrou dos túneis suíços com os seus nichos de segurança. Não havia sinal da lan­terna; evidentemente Harry a levara consigo ao sair. Entretanto, não era do seu feitio deixá-la assim; nem mesmo no seu delírio ele o teria feito, pensou ela.

Quando o palito de fósforo acabou de queimar-se, ouviu passos hesitantes que reecoavam na passagem. Fechou a faca, enfiou-a no bolso e esperou. Ele devia estar muito longe dali quando ela o ouviu pela primeira vez; a passagem atuava como um grande megafone.

—   Você está bem, Leslie? — Ele voltara a ser o Harry de todos os dias. — Sinto muito ter precisado deixá-la, mas este lugar me assusta e precisei andar por aí para ver se encontrava uma saída.

—   Onde estamos?

—   Não sei. Carreguei-a até aqui por aquele miserável troço circular, e você pesava como o diabo, — ajuntou ele, tão ingenuamente, que a moça riu pela primeira vez naquele período de horror. — Sabe, Leslie, — prosseguiu Harry, acocorando-se no chão ao lado dela, — tenho uma idéia. Lembra-se daqueles bura­cos pelos quais espiamos?

—   Sim, lembro-me deles, — disse ela, conjeturando o que viria depois.

—   Sabe que estão colocados ao lado de uma espécie de poço?

Nem uma palavra sobre Dick. Já lhe esquecera o corte da corda e o horror que se lhe seguira.

—   Porventura já lhe ocorreu, — continuou ele, — que o tesouro pode estar no fundo do poço? Essa idéia só me acudiu há poucos minutos. Se pudéssemos sair daqui e conversar com Dick, ele é um diabo tão engenhoso que certamente encontraria a aber­tura do poço, dentro talvez da própria abadia. A maioria desses edifícios medievais tinha um poço no centro e conservava fechado o seu suprimento de água.

—   Você não encontrou saída?

—   Não. Meti-me numa espécie de labirinto e tive a impressão de que não sairia mais dali. Misericórdia! Olhe para os seus pés!

Eles estavam, de fato, em lastimosa situação, inchados e sangrando. Num abrir e fechar de olhos, Harry tirou os sapatos.

—   Ponha-os, — disse, em tom autoritário, e quando ela quis protestar, agarrou-lhe o pé e enfiou-o no sapato. — Fui um grande corredor no meu tempo, — ajuntou, com certo orgulho na voz, — e correr descalço era a minha especialidade, para usar uma horrível expressão teatral.

Os sapatos eram grandes demais para ela, mas quanto conforto ofereciam depois de andar descalça naquele chão tão áspero!

—   Há um lugar que não explorei, a passagenzinha lateral da esquerda. Houve ali uma espécie de desabamento e as rochas parecem podres. Não me animei a tentar a exploração. A propó­sito, por que foi que você desmaiou? — inquiriu ele, abrupta­mente.

—   Não sei... acho que foram os meus nervos.

Seria inútil e até perigoso contar-lhe o que acontecera ao pé da parede do poço.

—   Imaginei que fosse isso. Mas se já se sente melhor agora, poderemos continuar.

Ele ia na frente, ligando e desligando a lanterna, a intervalos. Queria economizar as baterias, explicou, que já tinham dado sinais de cansaço. Durante o tempo todo, falou sem parar. Tinha planos para o futuro da abadia e entusiasmava-se ao expor o seu projeto.

—   Isto aqui não é nem uma toca anglo-saxã; provavelmente remonta aos dias dos habitantes originais da Grã-Bretanha, — disse ele. Estamos palmilhando caminhos originalmente talhados por homens das cavernas. Isso não a emociona, Leslie?

—   Terrivelmente, retrucou ela, com inconsciente ironia.

—   Mandarei iluminar este lugar; será necessário aumentar o suprimento de eletricidade, mas Dick se encarregará disso. Pode­rei apresentá-lo à nação ou aos Comissários Eclesiásticos... Ainda não sei a quem. Não há dúvida de que, de um ponto de vista arqueológico...

Ele assim falava e ela o seguia, às vezes prestando atenção, às vezes com o espírito absorto em seus dolorosos pensamentos. Estaria Dick a salvo? Tinha a certeza de que ele não estava só; havia homens no topo do poço e eles o salvariam. Não era possível que Dick morresse naquele lugar escuro, que a sua vida esplên­dida terminasse tão tragicamente. A caminhada era cansativa, pois não cessavam de subir. Já deviam ter percorrido cerca de quatro­centos metros quando ele se deteve.

—   Aqui está a passagem lateral, anunciou, e advertiu-a:

—   Não entre; as pedras ainda estão caindo.

Projetou a sua luz no interior da cavidade não era mais do que isso e ela viu um monte de rocha caída no meio do caminho. Entre a parte superior do monte e o teto havia apenas espaço suficiente para uma pessoa passar de rastros. Mas o que ela notou instantaneamente foi a forte corrente de ar que lhe soprou no rosto quando parou para olhar pela abertura.

—   Deve ser este o caminho, Harry, disse, incontinenti; -você não está sentindo o ar?

—   Já notei, conveio ele, mas relutava em entrar no atalho pouco promissor.

—   Você precisa ir, Harry, instou a jovem. Estamos descendo cada vez mais, e cada vez mais longe da abadia. Como você mesmo disse, daqui para a frente é apenas um labirinto que nos leva sempre de volta ao lugar de onde saímos.

—   Está certo, acedeu ele, com evidente desprazer. Mas é melhor eu ir na frente.

Arrastou-se, cauteloso, sobre a pilha de pedras e escorregou do outro lado.

Ela ouviu-lhe a voz.

—   Aqui está bom, disse ele. Em seguida, aclarou-lhe o raminuo e ela o seguiu.

A passagem era muito alta; tratava-se de uma fissura natural da rocha. Não obstante, a mão do homem devera ter andado por ali, pois o piso tinha sido nivelado, e havia vestígios de vida animal. Uma longa forma preta esgueirou-se pelo caminho e desapareceu num buraco. A jovem soltou um gritinho e recuou.

—   Não é nada, é apenas uma doninha, — acudiu Harry, calmamente. — E aonde chega uma doninha, chegaremos nós.

A passagem tornara-se mais larga, e agora patenteava o trabalho do homem. Estavam numa câmara quadrada: o teto, de pedra abaulada, parecia bojar para baixo, como se sustentasse um peso superior à sua capacidade, mas isto era escondido pelas longas estalactites, que cintilavam à luz da lanterna. E ela estremeceu. Estava tão frio, que teve a impressão de haver entrado numa câmara frigorífica.

—   Nem porta, nem passagem. Eu gostaria de saber qual foi a idéia deste lugar.

Era a primeira câmara feita pela mão do homem que eles tinham visto. Úmidas e brilhantes, as paredes ressumbravam água; do teto gotejava a água sem cessar, mas apenas uma poçazinha se juntara no chão; o resto se dispersava e, aparentemente, voltava à rocha sólida.

—   Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, — recitou Harry e apontou para o piso e para a sua pequena depressão em forma de pires.

Não havia sinal de porta em nenhuma das entradas, e ele seguiu à frente da moça pela entrada arqueada, andou alguns metros, e parou, olhando para cima.

—   A luz do sol!

A primeira coisa que ela teve consciência foi o calor que, longe da camarazinha, tornava a sentir.

Haviam chegado ao fundo de um poço seco, que era uma fissura natural. De onde estavam, viam os lados ásperos da rocha projetando-se a intervalos. Em alguns pontos, a abertura do poço era tão ampla que permitia a passagem de um homem adulto; em outros, apenas um braço teria podido introduzir-se entre as pro­jeções rochosas. Mas lá estava ela, uma visão clara do céu, e a jovem observou um fenômeno que os mineiros conhecem, a vista de uma alva e trêmula estrela à luz do dia.

—   É daqui que vem o ar, — disse Harry. — Agora vamos ver aonde nos conduz esta passagem.

Descobriu que ela conduzia a uma parede de rocha. Os dois se entreolharam no escuro.

—   Precisamos voltar.

Mal havia ele pronunciado essas palavras quando se ouviu um fracasso distante, o piso debaixo dos seus pés estremeceu, e a passagem pela qual haviam chegado à Sala Fria inundou-se de poeira.

—   Espere, — disse ele, e saiu correndo.

Minutos depois, voltava. Ela só pôde ver-lhe o rosto através do reflexo da luz da lanterna projetada sobre o solo.

— O teto caiu, — disse ele, e a voz lhe tremia. — Ou muito me engano, Leslie, ou estamos liquidados.

 

 

—   Durante muito tempo desconfiei que a rocha sobre a qual fora construída a abadia estava cheia de passagens. Meu pai me disse qualquer coisa a esse respeito, e já vi um velho plano, que mostrava um sistema complicado de corredores, mas a família sempre supôs que isto se devesse, em grande parte, à imaginação do artista, — disse Dick.

—   E você tem o plano agora? — perguntou Gilder.

Dick sacudiu a cabeça.

—   Harry levou consigo todas as coisas dessa natureza, quando saiu de casa.

—   Não estará entre os livros que o senhor encontrou na câmara subterrânea? — acudiu Puttler.

Fez-se uma busca na biblioteca, mas sem êxito.

Estavam a caminho das ruínas quando Puttler avistou o avião. O aparelho descreveu dois círculos sobre o lugar onde estavam, e a seguir principiou a descer.

—   Creio que esse sujeito vem vindo para cá, — disse ele.

E vinha mesmo. O avião ainda rugiu por uns cem metros ou

mais e, em seguida, aterrou. Logo depois, viram descer um homem. Embora trouxesse na cabeça um capacete de aviador, Dick reco­nheceu-o. Era Artur Gine.

Gine enfrentou o sobrecenho de Gilder com uma gargalhada.

—   Tenho algum dinheiro seu, Gilder, — disse ele, e arran­cou, com certa dificuldade, um enorme pacote do bolso do casaco de couro. — Esta é, mais ou menos, a quantia que lhe devo, a não ser que tenha havido alguma depreciação do franco depois que saí de Paris. E agora faça o que quiser!

Gilder recebeu o pacote sem dizer uma palavra, e Artur voltou-se para Dick Alford.

—   Li a respeito de Leslie nos jornais franceses, — disse ele simplesmente, — e por isso voltei. Ela já foi encontrada?

Dick sacudiu a cabeça.

—   Você tem alguma idéia do lugar onde ela está?

Dick contou-lhe tudo o que acontecera naquela tarde, e Artur Gine ouviu-o em silêncio. Quando Dick falou em dinamite, ele objetou:

—   Estudei um pouco de engenharia antes de entrar para a Faculdade de Direito, e posso dizer-lhe, baseado nos meus conhe­cimentos elementares da ciência, que você, provavelmente, fará explodir todo o poço e, se houver alguém do outro lado, que Deus o ajude!

Acompanhou-os à câmara do poço e desceu com a corda para fazer uma inspeção. Quando voltou à superfície, o seu relatório não foi muito animador.

—   Pelo que vejo, disse ele, se bem possamos alargar a abertura de qualquer um desses respiradouros, poderemos tam­bém provocar um desmoronamento de rocha no interior. Estamos lidando com superfícies que foram expostas à ação química do ar.

Desceu e inspecionou o aposento inferior, que era novo para ele e. como os outros tinham feito, tentou puxar a mesa para um lado. Depois, fez o que os outros não tinham tentado; empurrou a mesa por uma das extremidades e sentiu-a mover-se, a princípio devagar, depois mais depressa, como se tivesse colocado em movi­mento um contrapeso. Teve apenas o tempo suficiente para saltar sobre a mesa e agarrar-se à sua borda quando a abertura apareceu debaixo dos seus pés.

Dick viu a escada quebrada e, sentado na borda do buraco, deixou-se cair sobre o chão de pedra no momento em que a pedra, deslizando, voltava ao seu lugar. Os outros tornaram a empurrá-la e calçaram-na, e Artur e Gilder juntaram-se a ele lá embaixo, carregando lampiões. Ele viu qualquer coisa mais escura no chão e apanhou-o. Era um pedaço de seda.

—   Este é o caminho, disse, calmamente. Eu irei pela esquerda: vá você pela direita, Gilder.

Artur fez um rápido cálculo mental.

—   A passagem esquerda o levará até o poço, e ou estou muito enganado, ou você encontrará os respiradouros à sua direita. Irei com você, se não se importa.

Os homens galgaram o aclive traiçoeiro e chegaram ao primeiro respiradouro; em seguida, continuaram subindo, até alcan­çarem a passagem reta, pela qual Leslie fizera a sua infrutífera jornada. Também se viram detidos pela parede, e desandaram o caminho percorrido. Não havia sinal de Leslie nem de Harry mas, quando Dick passou pela alcova onde caíra ao saltar da sala do Abade, encontrou um palito de fósforo queimado.

Tornou a subir, numa longa e firme escalada.

—   Estamos perto da superfície do solo, disse Artur.

A frente deles surgiu o lampião de Gilder. Estava voltando para encontrar-se com eles.

—   A passagem termina numa espécie de labirinto, rela­tou ele. Há uma passagem lateral, mas totalmente bloqueada pela rocha.

Voltaram com ele ao local e Artur Gine examinou os destroços.

—   O teto caiu aqui, — calculou. — E é impossível dizer há quanto tempo. Esta pedra é velha mas, no meu entender, o des­moronamento vem-se processando há anos.

Dick emergiu, à luz do sol que transmontava, com o rosto desfigurado branco de poeira. Artur sentou-se numa pedra, a cabeça entre as mãos, numa personificação do desespero. O próprio Gilder perdera a calma habitual e não fazia outra coisa senão olhar tragicamente para as ruínas, que ocultavam tanta coisa. O arco quebrado das janelas, avermelhado à luz do sol poente, era, mais do que nunca, um ponto de interrogação. Havia naquilo tudo o que quer que fosse demoníaco, qualquer coisa que resumia o espí­rito que os olhava malignamente e zombava deles:

—   Vamos voltar para casa, — disse Dick e, para o inten­dente que se aproximara: — Não, não vou querer a dinamite... por enquanto.

Caminharam, desalentados, pelo Aterro, e Artur Gine, o mais deprimido de todos, fechava a fila. De repente, ouviram-no gritar e voltaram-se. Ele estava apontando para o outro lado do rio.

—   O que foi? — perguntou Dick, correndo ao seu encontro.

—   O poço dos desejos... você não tinha pensado nisso? — replicou Artur, contendo a respiração.

—   O poço dos desejos?

E Dick lembrou-se, então, do ponto de encontro dos namorados da aldeia, a fenda insondável na terra em cujo interior, quando menino, atirara pedras, ouvindo-as bater de rocha em rocha até que o ruído delas se extinguia.

—   Aquilo vai dar em algum lugar, — voltou Artur. — Po­demos tentar, pelo menos.

Dick correu para a margem, atirou-se na água e vadeou o ribeirão. Os dois homens o seguiram, e qualquer coisa murmurou no coração de Dick Alford que aquela era a sua última esperança.

 

 

—   Que horas são? — perguntou Harry.

Fazia duas horas que ele não abria a boca; mantinha-se sentado, segurando os joelhos, a cabeça inclinada para a frente, per­dido nas syas alucinações.

—   Empreste-me a lanterna.

Ela devolveu-lhe a lanterna.

—   Um quarto para as sete, — disse Leslie. — Harry, estou sentindo tanta fome...

—   Você? — perguntou ele, surpreso. — Pois eu não sinto fome, sinto... Não sei.

Dali a pouco, voltou a falar.

—   Como foi que chegamos aqui? Sei que o teto desabou, mas como chegamos a este lugar miserável?

—   Você esteve muito mal, — disse ela, delicadamente. — Veio para cá enquanto estava mal.

—   Ah, foi? — Ele pareceu assombrado com a resposta e não tornou a falar durante cinco minutos. — Parece que me lembro agora de ter estado mal. Tenho o sono tão agitado e sonhos tão horríveis! O pobre Dick vivia a azucrinar-me por causa dos meus remédios patenteados... é um cara gozado, o velho Dick, mas é um grande sujeito.

Ele falava com tanta sinceridade, com tamanho entusiasmo, que o coração dela se confrangeu por alguma razão desconhecida.

—   Teremos de sair daqui, — disse Harry.

Ela não lhe respondeu.

Pela décima vez ele acendeu a lanterna e examinou o teto.

—   É abobadado, — murmurou. — Espero que nada acon­teça neste lugar.

Ela notou que ele tremia.

—   Nada vai acontecer, Harry, — sobreveio, procurando apaziguá-lo. — Vamos sair daqui e vamos dar um vastíssimo jantar para comemorar o nosso salvamento.

Ele riu-se mansamente.

—   Nunca sairemos, — tornou, prazenteiro. — Este ó o fim da Casa de Chelford. — Pensou por alguns instantes, e prosseguiu: — Mas é claro que não! Dick, naturalmente, herdará a proprie­dade Não é estranho, Leslie, que ele jamais consentisse no meu casamento? Essa é a única coisa a respeito de Dick que não consigo entender, porque ele não é ciumento, nem invejoso, mas um sujeito bom, de enorme coração... e, no entanto, não queria que eu me casasse. Não lhe parece estranho?

—   Não creio que você tenha razão, Harry, — contemporizou ela. — Ele só não queria que você se casasse com a mulher errada.

—   Mas ele não queria que eu me casasse com você, — insis­tiu Harry, já indignado. — E se existir no mundo uma moça melhor do que você, eu gostaria muito de conhecê-la! É verdade que sou '' um tremendo comodista, mas...

—   Alô!

A voz retumbante parecia vir de alguém que estivesse na câmara. Ela o sentiu estremecer e, mais uma vez, o seu corpo frágil foi salteado de tremores.

—   O que foi isso? — perguntou, com voz rouca.

—   Alô!

A voz soou novamente. Ela tirou-lhe a lanterna da mão e correu para o lugar onde vira a luz do dia.


—   É você, Dick? — gritou a jovem com toda a força dos pulmões e, logo em seguida, ouviu um rouco "Graças a Deus!"

E, então, da Sala Fria, rompeu uma explosão de gargalhadas demoníacas. Era-lhe preciso ainda contornar o perigo mais grave. Ela estava sozinha com um louco!

 

 

Leslie não viu a luz do dia, e supôs que a noite houvesse caído, até que uma mancha de um vermelho dourado surgiu acima do lugar em que ela se achava.

—   Harry está com você?

—   Está, — replicou a jovem. — Um momento.

Voltou para encontrá-lo encolhido contra a parede, e agarrou-o pelos ombros.

—   Harry, — disse, em tom súplice, — eles nos encontraram!

Ele encarou-a com sobrecenho.

—   Quem nos encontrou?

—   Dick... todos. Agora não precisaremos esperar muito tempo.

Ele molhou os lábios.

—   Dick e todos, — murmurou em tom vago. — Isso é estranho... eles nos encontraram!

Ela voltou correndo ao poçozinho.

—   Você está com fome? — reboou a voz.

—   Muita, — respondeu ela. — Mas não faz mal... Ainda posso agüentar mais doze horas. Estamos numa esoécie de sala subterrânea. O teto da passagem desabou.

—   Qual é o comprimento da passagem? — perguntou Dick depressa.

Ela refletiu por um momento.

—   Uns quarenta metros, acho eu. Não pode ser muito menos.

—   A que distância de vocês está o bloqueio? — E quando a moça respondeu, ouviu um gemido. — Leslie.

—   Sim?

—   Vou mandar-lhe uma coisa na ponta de uma corda. É uma bússola de bolso. Diga-me exatamente o que ela indicar.

A bússola chegou, por fim, amolgada, com o vidro quebrado. Ela colocou-a no chão.

—   Ponha-a onde eu possa vê-la, — pediu ele. — Você tem luz aí?

A jovem projetou o facho da lanterna sobre o aparelhinho.

—   Onde é o norte? Toque apenas o lugar com o dedo. Es­pere, vou mandar buscar um binóculo.

Dez minutos se passaram, e ele tornou a dizer:

—   Agora, mostre-me.

E quando ela indicou o norte, ele perguntou-lhe onde ficava a caverna.

—   Exatamente a oeste, — exclamou a moça, com um trê­mulo triunfo. — Vocês vão demorar muito para alcançar-nos?

Ele não respondeu a isso.

—   Diga-me a quantos passos você está da bússola.

E quando ela contou os passos e comunicou-lhe o resultado, o rapaz tornou a gemer.

A essa altura, o engenheiro a quem ele telefonara à tarde já estava lá.

—   A caverna fica exatamente debaixo do leito do rio, — declarou o engenheiro.

—   Não poderíamos alargar este buraco? — indagou Dick.

O outro sacudiu negativamente a cabeça.

—   Impossível. O senhor levaria um mês, ou quase, para chegar até lá. Há uma longa falha na rocha neste ponto, que explica o curso do rio, — ajuntou ele. — As duas margens são sólidas; posso assegurar-lhe isso porque o meu predecessor fez perfurações à procura de água, a pedido do senhor seu pai.

Dick gemeu. Poderia manter viva a moça durante um mês, mas a tensão resultante daquela situação acabaria por matá-la. Nisso a solução ocorreu, simultaneamente, a duas cabeças.

—   Por que não quebramos a represa do Ribeirão dos Corvos? — disse ele, e Puttler, que tinha a mesma sugestão na ponta da língua, assentiu em silêncio.

—   Exatamente, — disse ele. — Desfaça a obra do seu antepassado. Desvie de novo o curso do rio para o Prado Grande... há ali um leito natural para ele!

Às dez horas, ônibus e caminhões ainda subiam a alameda; carros de báscula, cheios de carrinhos de mão e ferramentas eram rapidamente descarregados ao lado do aterro. Toda a região sul de Sussex trabalhava para cortar a represa do Ribeirão dos Corvos, e o grande aterro ia-se tornando cada vez menor. Dali a pouco, à medida que as águas subiam, passaram a cair no leito que haviam deixado centenas de anos antes e reassumiram o seu curso irregular, derrubaram um celeiro que fora evacuado à pressa, envolveram as paredes de um chalé, cujos habitantes tinham sido removidos a tempo. Pouco a pouco, a água no velho leito artificial baixou, baixou, até converter-se numa massa escura de vegetação aquática e formas prateadas, que saltavam in extremis. Ratões-do-banhado, trutas e lúcios foram atirados à margem, às pazadas, e o leito do rio atacado por homens que trabalhavam num ritmo febril, revezando-se de meia em meia hora.

—   Se houver rocha aí, — disse o engenheiro, — estaremos fritos! Na minha opinião, há apenas areia.

—   É cascalho? — sugeriu Puttler.

—   Não, senhor, não há cascalho. É um fato curioso, mas nunca se achou cascalho no Ribeirão dos Corvos. Encontraram areia agora, — disse ele, olhando para o interior da perfuração que os homens estavam fazendo com troncos de árvores. — E muito me agrada que não haja cascalho... a areia é muito mais fácil de se trabalhar.

Ele mal pronunciara essas palavras quando o capataz gritou:

—   Encontramos cascalho, chefe!

—   Cascalho!

O engenheiro desceu pela escada ao interior da perfuração.

—   É apenas uma camada, — explicou ao voltar, — mas mesmo assim é surpreendente. Abre toda a sorte de possibilidades.

Foi depois que se descobriu o cascalho que a voz de Harry lhe respondeu.

—   É você, Dick? O que é que vocês estão fazendo aí em cima?

Soava-lhe na voz toda a irritação e toda a rabugice antigas. Dick descreveu sucintamente o que estava sendo feito.

—   Você não poderia mandar-me alguma coisa para eu trabalhar aqui embaixo? — perguntou Harry. — Tenho a certeza de que poderia facilitar as coisas para vocês.

Não o querendo contrariar, Dick Alford encontrou uma pequena alavanca e, com suma dificuldade, conseguiu fazê-la chegar às mãos do irmão. Por causa da sua forma e do seu tamanho, a operação foi penosamente lenta, e Harry, impaciente, fumegava lá embaixo.

—   Depressa, pelo amor de Deus, — berrou ele. — Você não há de imaginar que eu queira ficar aqui embaixo, não é? Tenho muitíssimo trabalho para fazer... e você sabe disso per­feitamente, Dick.

Dick não respondeu, mas a sua ansiedade crescia. Conhecia muito bem Harry e os seus sintomas para ignorar o que aconte­ceria se a irritação chegasse a ponto de não poder ser controlada, e foi com um suspiro de alívio que sentiu a alavanca presa entre as mãos sôfregas do irmão.

—   Use-a com muito cuidado, — recomendou. — Os homens estão trabalhando aqui de cima e você poderá provocar um desmo­ronamento se não tomar a máxima cautela.

Mas ele falava para o vento. Harry se fora e foi Leslie quem respondeu.

—   Quanto tempo vai demorar, Dick? — indagou ela.

—   Não sei, meu bem. Algumas horas, quando muito. Você está bem?

Uma pequena hesitação.

—   Estou, estou bem.

—   E Harry?

Uma pausa mais longa.

—   Acho que sim. Não seria possível mandar alguma coisa que ele possa tomar?

No princípio da noite, Dick tentara fazer chegar ao par aprisionado um tubinho de borracha, mas a tentativa baldara.

—   Vou tentar, — prometeu, e saiu à procura de um dos dois médicos que haviam sido chamados.

Obteve do facultativo duas pilulazinhas castanhas, embrulhou-as em papel, lastreou-as e deixou-as cair no fundo do poço dos desejos.

—   Obrigada, — disse ela em voz baixa. — Ainda não pode­rei usá-las; neste momento, aliás, ele está muitíssimo ocupado.

 

 

Não havia dúvidas quanto à atividade de Harry. Trouxera, rolando, um pesado matacão dos destroços que bloqueavam a passagem e, colocando-o no centro do piso, conseguira alcançar, por seu intermédio, o teto de pedra, formado de seis setores em forma de pétalas. Removera a lente da lanterna, de modo que a luz se tornara difusa; e Leslie tinha uma vista melhor do aposento.

Havia pequenos orifícios, a intervalos, que pareciam haver outrora encerrado cabides de chapéus, se bem a jovem tivesse difi­culdade em imaginar por que haveria alguém de descer até ali para dependurar o chapéu. Foi então que lhe ocorreu à mente a verdadeira serventia daquele cômodo. Encontrou encostado à parede um gancho longo e enferrujado, tão fino que seria capaz de que­brá-lo. Aquilo fora o depósito de carnes da abadia, o equivalente medieval da geladeira. A atmosfera era frigidíssima. Parecia muito distante da abadia mas, na realidade, não distaria mais do que uns cento e cinqüenta metros. Tendo encontrado a caverna, os. velhos monges tinham-na arrumado, reforçado, forrado e adaptado ao seu uso. Isso explicava por que o aposento, tão apartado do edifício principal, recebera a atenção do antigo arquiteto.

—   Dick não tem a menor intenção de libertar-nos. Creio que você já devia saber disso, — sobreveio Harry.

—   Pois eu tenho a certeza de que você está enganado, Harry.

Mas a oposição só servia para exacerbá-lo, e ele voltou, desabrido:

—   Você é uma tonta! Todas as mulheres são tontas! Estou-lhe dizendo que isto é uma conspiração. Dick tem tanta intenção de libertar-nos quanto...

Deteve-se, de repente, e passou a mão pelos olhos.

—   Eu quisera ter trazido o retrato, — murmurou, e olhou furioso para ela. — Por sua causa não pude trazê-lo, e agora ficou lá, para aquele porco divertir-se com ele!

Ela ergueu os olhos para o teto.

—   Você está fazendo um ótimo trabalho, Harry.

Havendo-se-lhe distraído a atenção, ele tornou ao teto.

—   Confie em mim, Leslie, — disse ele. — Sou a única pessoa no mundo em quem você pode confiar. Você não tem inimigos. O Abade Negro está morto! Matei-o e muito me orgulho disso. Cada Chelford deveria matar, pelo menos, um Abade Negro, e eu tenho a aprovação do meu ilustre antepassado.

A essa altura, a ponta da alavanca penetrara fundo na brecha que ele abrira, e Harry principiou a fazer pressão sobre o instru­mento. Observando-o, ela viu que a pedra se movia. Esta descaiu, de repente, um oitavo de polegada, e ele gritou, excitado.

—   Veja, veja! — disse, com a voz estridente. — Dick nunca imaginou que eu fosse capaz de fazer isso pois, do contrário, não me deixaria usar a alavanca.

A pedra descaiu ainda mais, até ficar perceptivelmente fora do lugar.

—   Tome cuidado, Harry, — advertiu ela. — Isso pode desa­bar de repente e machucá-lo.

Ele teve o bom senso de perceber que ela tinha razão, mudou a posição da alavanca e pôs-se a trabalhar do lado oposto. E então, sem outro aviso, o que Leslie predissera aconteceu. Ele saltou no momento em que o setor, com estrondo, despencou lá de cima e foi espatifar-se no chão.

—   Veja, veja! — exclamou. — Consegui!

Uma chuva firme de cascalho estava caindo. Harry cutucou o teto com a ponta da alavanca, e o chuveiro aumentou até formar um monte no chão.

Nesse momento, viu o ângulo de uma caixa.

—   Olhe, olhe, olhe!

As mãos trêmulas mal podiam segurar a alavanca. Com a energia da demência, vingou retirar o cascalho que ficara debaixo da caixa e, logo em seguida, agarrando-a por um dos cantos, puxou-a, livrando-a do cascalho que a retinha. Era uma arca de lata, miniatura das que ela vira na Mansão de Fossaway, com uns quinze centímetros de comprimento, dez de largura e outros tantos de altura. Manejando a alavanca, ele forçou a fechadura e arrebentou a chapa de ferro oxidado que a prendia. Dentro encontrou o que parecia ser uma trouxa de pano desbotado. Retirou o pano da caixa.

—   Aqui há uma coisa pesada, disse, com voz rouca. As mãos lhe tremiam tanto que ela, apiedada, se adiantou e ajudou-o a desembrulhar a coisa que estivera guardada na arca. Instantes depois, viu o que era: um longo frasco contendo um líquido incolor. A garrafa tinha a boca coberta de selos.

Ele arrancou-lha das mãos, com um olhar desvairado.

—   O elixir! grasnou. A Água da Vida! Oh, Deus seja louvado!

Leslie procurou arrebatar-lhe o vidro, mas Harry rosnou para ela como um cão raivoso.

—   Demônio! — berrou. Você está conluiada com Dick! Estão querendo tirar-me a vida! Mas não o conseguirão, não o conseguirão!

O frasco fora arrolhado com um pedaço de madeira, que inchara. Ele meteu-lhe os dentes e, dali a pouco, retirava a rolha.

—   Viverei eternamente! Mas você morrerá! Ele a encontrará aqui morta, e compreenderá...

Harry levou o frasco aos lábios e bebeu. Ela cobriu os olhos com as mãos e, quando ele se moveu, empunhou a faca.

Nesse momento, ouviu qualquer coisa precipitar-se fragorosamente no chão e olhou. O cascalho continuava escorrendo, como areia em ampulheta, mas algo grande e pesado despencava com estrondo. Dir-se-ia uma grotesca vela amarela, mas o seu peso era tamanho que, ao tocar o pavimento, a primeira barra quebrou-o. Outra se seguiu. Ela observava, fascinada, à proporção que elas caíam, a princípio devagar, depois muna torrente, de um espaço triangular do teto vintenas, centenas de velas amarelas, a cair com um ribombo ensurdecedor, às duas e às três, no meio do cascalho.

—   O ouro, o ouro! berrou Harry. Mas ele nunca oterá!

Levantou o lampião mas, quando o braço dele se ergueu, ela se abaixou depressa. Chegou-lhe aos ouvidos o estardalhaço do lampião ao espatifar-se na parede e ela recuou, agachada, na direção do poço dos desejos. Ouviu um estampido na câmara; um setor do teto dera de si e, silvando e se atropelando, o cascalho e os lingotes vieram abaixo, enchendo o aposento. As pedras corriam em torno dela como uma torrente. Leslie forcejou por manter-se acima da avalancha e sentiu-se cada vez mais engolfada por ela.

—   Dick, Dick! gritou, mas ele não a ouviu.

O rapaz chegara ao teto quebrado da Sala Fria e escorregava sobre o monte de cascalho, debaixo do qual um homem morrera antes de libertar-se o alude de pedra. Mais tarde, o encontraram, segurando um frasco de cristal na mão. E ninguém soube jamais qual fosse o conteúdo do frasco.

 

 

Quando Leslie Gine despertou, a luz do sol espiava por entre as cortinas cerradas. Ela sentou-se bruscamente e a cabeça entrou a girar-lhe, a girar-lhe. Nesse momento, relembrando, fechou os olhos, como se quisesse afastar uma visão de horror.

—   Oh, você acordou? exclamou Mary Wenner, entrando, com espalhafato. Dick mandou-me saber notícias. Todos estão terrivelmente preocupados por sua causa... até Fabe, embora eu não seja ciumenta, como todo o mundo sabe.

—   Que horas são?

Nisso, com um estremecimento, lembrou-se de que alguém lhe fizera a mesma pergunta. Há quanto tempo? Uma eternidade!

—   Meio-dia e trinta e cinco minutos, respondeu a Srta. Wenner, consultando o seu relógio. Estive lá fora observando os trabalhadores. Francamente, querida, isto mais parece um terreno que está sendo loteado do que os jardins da Mansão de Fossaway. Carrinhos de mão, gente com pás e picaretas, e não sei que mais! Dizem que a brincadeira vai custar a Sua Excelência vinte mil libras.

Leslie considerou-a assombrada.

—   Sua Excelência? perguntou, com voz abafada.

—   Refiro-me a Dick, volveu a calma Srta. Wenner. Rei morto, rei posto! Esse é o meu lema. Depois, em tom mais sisudo, e como que corrida da sua falta de coração, ajuntou: Pobrezinho! Foi melhor para ele. Fabe regressou a Londres.

—   Quem é Fabe? Ah, sim, o Sr. Gilder! tornou a jovem, com um tênue sorriso.

A Srta. Wenner abateu pudicamente a vista para o chão.

—   Estamos noivos. Foi tudo idéia dele porque, como você sabe, Leslie querida, não sou do tipo de moça que se atira aos braços de ninguém. Mas ele me persuadiu. E rematou, suspi­rando fundo: Acho melhor assim. Os anos estão chegando e uma moça não pode continuar bonita para sempre.

Leslie pôs os pés no chão e levantou-se. Ainda não estava muito firme, e a dor que sentia nos pés era atroz, a despeito dos curativos que o médico lhe aplicara.

—   Devo dizer-lhe que Artur se portou muito bem, tornou a Srta. Wenner, ajudando-a a vestir-se. — Foi, naturalmente, um grande golpe para ele.

—   O quê? Leslie ainda estava um pouco ofuscada.

—   O meu noivado, — disse Mary. — Ah, você não sabia! Artur gostava muito de mim, eu o reconheço. Mas, em face das circunstâncias, achei que não ficava bem casar com um cavalheiro que está de mal com o meu noivo; você não acha, Leslie?

—   Eu não tinha a menor idéia de que houvesse alguma coisa entre Artur e você, — respondeu Leslie com sinceridade.

A Srta. Wenner voltou a suspirar.

—   Muito pouca gente sabia disso. Talvez seja essa a melhor solução. É o que Artur pensa. Não é como se eu me tivesse atirado aos braços dele, de modo que não há prejuízo para ninguém.

Leslie estava calçando um par de chinelos masculinos quando desceu a ampla escadaria. A porta do escritório de Dick se achava aberta, e ela o viu sentado numa funda poltrona de vime, no gramado, com um cachimbo entre os dentes e uma pilha de documentos sobre os joelhos, que examinava lentamente, um por um.

Ele circunvolveu os olhos e levantou-se da poltrona ao som da voz dela. A moça viu-lhe o rosto e ficou impressionada.

—   Dick, você parece que tem cem anos de idade!

—   Pois eu me sinto como se tivesse mil, — disse ele, e conduziu-a à poltrona. — Sente-se. Bem, este é o fim, Leslie... e o começo.

Ela assentiu com a cabeça.

—   Creio que conseguimos conservar a parte mais feia da história fora dos jornais. Pobre Harry! — Havia lágrimas em seus olhos, que ele não procurou esconder. — Pobre vítima!

—   Vítima do quê?

—   Da mãe dele, — volveu Dick. — Em momento algum ela foi normal. O meu pobre pai só veio a descobri-lo depois que a criança nasceu, e a morte da mulher aliviou uma das maiores tris­tezas da sua vida. A outra foi... Harry! Bem, agora que você conhece os segredos de todos nós, Leslie, que lhe parece?

—   Quem era o Abade Negro? — perguntou ela. E ouviu, assombrada, a resposta.

—   Eu, — replicou ele, serenamente. E contou-lhe tudo o que havia contado a Gilder. — O estranho é que Harry deve ter visto o ouro antes de morrer. Como fomos tolos! O diário nos dizia, com uma clareza meridiana, que o velho Lorde Chelford escolhera o leito do rio para esconder o seu tesouro. Fora um ano de seca, o rio estava seco e, provavelmente, ele encontrara uma grande aberta nesse leito. Escondera ali o seu ouro e cobrira-o com uma camada de cascalho, que as águas não levariam.

—   Você agora está muito rico, Dick?

Ele assentiu lentamente com a cabeça.

— Creio que sim. Há ainda umas poucas provações e dificuldades à nossa frente, Leslie querida, mas, quando elas se aca­barem e tudo voltar à normalidade, faremos uma viagem e ficaremos um ano no estrangeiro, esquecendo-nos de todas as horas medonhas que passamos.

Ela tomou-lhe a mão entre as suas.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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