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Os Homens de Borracha / Edgar Wallace
Os Homens de Borracha / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Homens de Borracha

 

 Um título excêntrico? Talvez. Mas ele diz respeito a um bando de assassinos que usavam máscaras de borracha, luvas de borracha e sapatos de borracha para assaltar bancos e joalherias e para cometer os piores crimes, bem sob os olhos da polícia.

 

                  

               

Na manhã nevoenta o bote cortava as águas com rapidez. Dois pares de remos batiam na corrente com um só ruído compassado, manejados por marinheiros hábeis. Seguia ele ao longo do Surrey, procurando caminho no meio de uma barafunda perigosa de canoas, de lanchas e de chatas atracadas.

Muito longe, o sol nascia, num céu ainda cheio de nuvens sombrias; pequenas luzes tremiam na margem e no rio. O mercado de Billingsgate apareceu numa grande mancha luminosa, e os arcos de lâmpadas das embarcações brilhavam como estrelas.

O rio despertava: o arfar dos motores a óleo, o ranger das polias, o estalar das madeiras e o ruído débil de correntes arrastadas, tudo chegava ao bote numa sinfonia imprecisa.

Passava ele agora por um grande amontoado de barcos de pesca, e ia tomar a direção norte quando uma forma escura se foi desempastando nas tintas confusas do rio. O remador da frente apurou o olhar e reconheceu as linhas de uma lancha; abandonando os remo. ele grunhiu para o companheiro:

— Wade!

Mas na escuridão veio um cumprimento amável:

— Alô, meus amigos! Temos novidades?

A lancha da polícia, em manobra rápida, aproximou-se mais do bote. Alguém completou abordagem puxando a canoa com um gancho.

— Sou eu, sou eu, Sr. Wade. Íamos num passeiozinho até Dorlin, disse um dos remadores, a voz alta, em falsete, pontuando as frases com involuntárias fungadelas.

— Sim, meu rapaz?

A voz que vinha da lancha da polícia exprimia uma surpresa enorme:

— Sim, bom amigo? Mas que fará por estas bandas o meu amiguinho Fungador a uma hora destas? A manhã está nublada, e é muito cedo ainda para que os jovens pássaros abandonem os ninhos. Mas quero ver o que há por aí...

Um poderoso jato de luz devassou o interior do bote, numa invasão implacável. Os dois homens levaram logo as mãos aos olhos.

— Uma pequena caixa, disse a voz áspera do Inspetor John Wade. Parece uma caixa de uísque... Aposto como não é outra coisa!

— Estava boiando no rio, explicou, meio sem jeito, aquele que fora chamado de Fungador. Eu e o Harry só fizemos pescá-la...

— Então tivemos pescaria hoje! Acredito, rapazes. Mas é melhor que venham saltando para a lancha para um ajuste de contas...

Os dois "ratos" do rio nada disseram; saltaram para a lancha, que rumou para a estação de polícia da outra margem.

— Bem que nos poderia mandar embora, Inspetor Wade, não acha? Londres é uma cidade que está cheia de ladrões e de assassinos, e o senhor se preocupa em levar para a polícia dois pobres pescadores do rio! Veja aquela mulher assassinada nos jardins de Cranston... Veja os Homens de Borracha...

— Cale a boca! disse o companheiro, num grunhido.

— Continue, Fungador, disse Wade, gentil. Ainda não estou muito surdo, graças a Deus. Você falou nos Homens de Borracha? Sim, censurava-me... e também censurava as investigações da Polícia Metropolitana... Está direito, Fungador. Jogue-me sempre esses desaforos...

— Cale a boca, Fungador! tornou o grunhir o segundo prisioneiro, e o Fungador achou bom não continuar a falar no caso.

— Agora, uma coisa, para onde levava você esse uísque? Interessava-me muito essa questão de uísque, de caixas de uísque roubadas... Tenho vocação manifesta para bootlegger. Diga-me a verdade, Fungador, que eu a ocultarei no fundo do meu coração!...

Como resposta ouviu-se uma série de fungadelas indignadas.

— Meu rapaz, diga ao papaizinho...

Eles não podiam ver direito, na escuridão, o homem que falava, mas adivinhavam a face desamável de John Wade.

— Seria para alegrar os corações tristes dos pobres marinheiros de "Meca"? O que seria, aliás, um ato de grande caridade. Esses pobres rapazes que cortam os mares merecem algum conforto. Também podia ser para o pobre Golly, coitado...

Houve uma explosão.

— Bem sabe que não adianta estar com insinuações sobre isso, Inspetor Wade, o senhor bem o sabe...

A lancha encostava a um pesado flutuante; atracou afinal. Alguém, na treva do cais, fez uma pergunta.

— São dois jovens pescadores, sargento, disse Wade.

— Ponha-os no xadrez.

Naquele dia Wade fez uma visita ao Clube Meca e à sua diretora, Sra. Annabel Oaks.

O Sra. Oaks, por uma interferência policial, fora obrigada a registrar o clube como uma vulgar casa de pensão, e entre as desvantagens desse registro estavam as visitas constantes da polícia. A qualquer hora do dia ou da noite um inspetor de polícia podia entrar para examinar os livros e os hóspedes, e isso, em certas ocasiões, talvez se tornasse inconveniente e perigoso.

Ela se queixava horrivelmente dos hóspedes.

— Bela coisa, hein? Um clube para oficiais, e vai pela casa uma desordem dessas!

É verdade que essas queixas da Sra. Oaks podiam abater-lhe uma boa porcentagem na lista de hóspedes. Mas o "Meca" era mais apropriado, de fato, para suboficiais da Marinha Mercante. Ali os homens estavam mais perto das docas, das oficinas e dos escritórios das companhias de navegação e o passadio, se não chegava a ser principesco, convinha aos marinheiros por uma série de motivos especiais.

"Mum" Oaks era pessoa de bom trato, especialmente se os hóspedes fossem gentis. O Clube dos Oficiais de Marinha nem sempre fora um clube. O nome de "Meca", que lhe tinham dado os freqüentadores, dentro de uma inspiração misteriosa, afigurara-se à dona da casa, a princípio, um pouco forçado. A casa nunca recebera hóspedes negros, e "Meca" devia ser um lugar em que só vivessem negros. Mas a proprietária achava sempre jeito de responder aos perguntadores fazendo uma digressão sobre a fé, a esperança e a caridade de "Meca", terra de peregrinações, e não precisava ser insolente para com os hóspedes.

Golly parecia inteiramente incapaz de dar a alguém uma resposta insolente. Era um homenzinho baixo, meigo, amável. Um bigode arruivado caía-lhe até o queixo disforme. Fora uma vez taifeiro; nos momentos de entusiasmo alcoólico excedia-se na narrativa dos tempos em que mandara num grande navio; ante a sua decadência presente, poucos acreditavam nessas gabolices.

Ele cantava baladas sentimentais numa voz de falsete, e encontrava por isso, em sua pessoa, semelhanças com alguns astros populares do cinema; e, diziam, nos momentos em que ninguém o observava, ensaiava pequenos papéis dramáticos, seguindo as instruções do volume Em direção ao cinema, de uma conhecida atriz dos estúdios de Hollywood — que de tão conhecida não se animava a por o nome na capa do volume.

O Sr. Oaks tinha também aspirações à ópera. Os hóspedes do "Meca" muitas vezes se reuniam para comentar a voz de Golly, porque ele cantava pior quando rachava lenha, e parecia estar sempre rachando lenha...

"Mum" era rudemente maternal, como o dizia seu próprio nome. Magra, para não dizer esquelética, fazia ondas no cabelo castanho, o que de modo algum lhe melhorava a figura, porque a face que o cabelo emoldurava era rude, quase repelente. Alguns hóspedes chamavam-na (pelas costas) de Mamãe Cara de Bronze, mas para uma centena de jovens que corriam os mares do mundo ela continuava a ser simplesmente "Mum".

Os "aposentos" do "Meca" eram uns de madeira e outros de tijolo. Os de tijolo haviam pertencido a uma antiga casa de bebidas, e seriam por isso mais confortáveis. A história da reunião dessa casa de bebidas a uma construção de madeira sobre um desembarcadouro abandonado era das mais pitorescas.

O panorama, dali, atraía sempre: o rio largo, cheio de barcos e de lanchas. Por ali ficavam os cargueiros alemães. E as bandeiras dos navios de terras longínquas divertiam os hóspedes e as crianças.

Lila Smith costumava ficar, fascinada, à grande janela da sala de jantar, observando o movimento sereno das embarcações que subiam o rio. Conhecia como a palma da mão os navios de óleo, os cargueiros espanhóis que traziam laranjas do Sul, os rebocadores ingleses, com os seus nomes de rapazes e de casais, Tommy, Johnny, John and Mary. E reconhecia o vulto dos barcos mesmo à noite.

Os hóspedes do clube que voltavam de longas viagens observavam que Lila não era mais uma criança. Até ali, ela nunca despertara atenção; mas agora havia nela um encanto que ninguém antes descobrira, e que seria difícil esquecer. Lila sempre fora assim, bonita, com o rostinho redondo e os olhos grandes. E essa beleza se definira, afinal.

Muitas vezes ficava à janela, a graciosa cabeça emergindo do vestido preto, os pés metidos em sandálias rústicas, a fitar o movimento do rio: o som de uma sirena, o ofegar de uma lancha a óleo, uma corrente arrastada, qualquer desses detalhes logo a trazia para ali.

— O novo hóspede do 7 quer um pouco de chá, Lila. Não fique aí abobalhada como uma girafa. Vá atender ao rapaz.

Era Mum, que chegara à sala, e descobrira a rapariga em sua ocupação favorita.

— Sim, titia.

Lila Smith correu para a cozinha. Aquela voz aterrorizava-a. Algumas vezes chegara a pensar numa outra espécie de vida; e tinha mesmo uma vaga idéia do que pudesse ser essa vida nova. Sonhava com árvores e jardins bonitos no parque de Greenwich, e com gente mais delicada e risonha. E esses sonhos lhe vinham justamente quando ela observava as embarcações que subiam e desciam o Tâmisa.

Sonhava também agora, preparando o chá ou mandando a criada levá-lo ao n.9 7, ao lado das fatias finas de pão com manteiga.

A pequena janela quadrada que ventilava a cozinha estava escancarada. Do lado de fora ela sentia a manhã fria, em que o sol fraco ia espalhando tintas de ouro pálido. De repente fixou o olhar.

Um homem olhava para ela do cais, um homem alto, de rosto firme e atraente. Tirara o chapéu, e mostrava assim os cabelos curtos em relativa desordem.

— Bom dia, princesa!

Ela sorriu, com o seu sorriso assustado — um sorriso que se iluminava e morria logo, deixando as faces rosadas ainda mais sérias.

— Bom dia, Sr. Wade!

Assustara-se mesmo. Wade era o único homem no mundo que produzia nela algum efeito. Mas não se assustava por isso. Mum sempre lhe dissera que os representantes da polícia devem ser mal recebidos pelos fora-da-lei. E o aviso áspero sempre lhe bailava aos olhos.

Wade significava muita coisa para ela, mas a razão dessa importância fora até certo tempo muito obscura. Durante longos anos olhara para ele como para um velho, como para Golly; mas um dia, sentindo-se moça, começou a considerá-lo um contemporâneo.

Ele nunca a interrogava, nem nunca lhe pedia informações sobre o que ocorria pela casa, e os exames de Mum nada descobriam de perigoso nas conversas entre o homem da lei e a rapariga inocente.

— Por que todos o chamam de "trabalhador", Sr. Wade?

Perguntara aquilo num impulso de momento, para vencer o susto inicial.

— Porque trabalho, princesa, disse ele gravemente. Porque trabalho muito.

Fez uma pausa e olhou para ela, firme. Lila nunca sabia ao certo quando ele falava sério ou quando brincava, ao usar aquele estranho tom de voz.

— E o que há de novo sobre a "aristocracia"? sugeriu ele. Lila se agitou por um instante.

— Gostaria de que o senhor se esquecesse daquilo, disse ela, com um olhar apreensivo para a porta. Uma brincadeira... Eu... eu não dizia a verdade, Sr. Wade. Queria somente impressioná-lo um pouco...

— Você não pode mentir, interrompeu Wade, calmamente. Quer mentir agora, sim, e não consegue. Quando você me disse que, às vezes, também conhece a "aristocracia", não estava mentindo. (Levantou a mão, num gesto nobre): Bom, não discutiremos mais isso. Como tem passado os últimos dias?

Ela, também, ouvira os passos pesados de Mum, e recuara um passo. Olhava com inquietude para Wade, certa de sua fidelidade, quando Mum entrou no aposento.

— Como vai, Sr. Wade!... Nada de novo por aqui? Veio somente cumprimentar Lila?

Sua voz era marcada, vibrante, venenosa. De todas as criaturas que odiava, John Wade figurava seguramente nos primeiros nomes.

Com um gesto ela mandou Lila embora, e fechou a porta.

— Não venha para cá interrogar as crianças. Seja um homem... Apareça pela porta da frente.

— Você não tem porta de entrada, respondeu Wade em tom divertido. E por que se está zangando, minha menina? Vim interrogar Golly, num espírito de muita cordialidade até...

— Ele está no cais... e não me chame de "menina"! disse a mulher, selvagem.

Wade, cuja fraqueza eram os epítetos enternecidos como esse, balançou os ombros.

— Vou até lá, disse simplesmente.

Vira Golly e tinha a certeza de que ele o vira. O homenzinho rachava lenha e, quando o detetive se aproximou, depôs o machado e levantou-se com uma expressão desanimada, que se aprofundou quando o detetive lhe fez a primeira pergunta.

— Uísque? Que tenho eu a ver com uísque?... Sim, conheço o Fungador. Um barqueiro sem importância, um desleixado, que nem por nada no mundo eu queria aqui no clube. Um homem baixo, com companheiros péssimos (falava muito rapidamente). O provérbio é que diz a verdade: "Um pássaro conhece-se pelo canto; um homem pelos companheiros..."

— Não acredito, objetou Wade. Tenho ouvido muita coisa, nos últimos dias, a respeito dos Homens de Borracha.

Oaks deixou cair os braços, num gesto de aborrecimento.

— Não sei de nada a respeito desses homens de borracha... Só sei o que dizem os jornais, o povo. Para isso existe a polícia, e para isso nós a mantemos e lhe fornecemos alimento, roupa, automóveis, lanchas...

— E muito bom alimento, muito boas roupas, concordou Wade, piscando os olhos. Nunca vi um policial bem nutrido sem pensar em você, Golly.

Mas Golly não se deixava derrubar assim de supetão.

— Homens de Borracha! Salteadores, ladrões de bancos! Que tenho eu com isso? Sou um banqueiro? Sou um cofre-forte? Por acaso vivo nadando em ouro?

— Não posso responder, murmurou Wade.

E voltou à questão do uísque roubado e, quando o Sr. Golly Oaks, enojado, fechou os olhos e recitou uma lengalenga sobre a probidade dos hóspedes do Clube Meca, Wade contemplou-o em silêncio, fitando o declamador com olhos de águia, se uma águia pudesse possuir aqueles dois olhos azuis e fagulhantes.

— Bonito! disse ele, quando Golly chegou ao fim da apologia dos hóspedes. Você devia estar no Parlamento, cara de anjo!

Levantou a mão, olhou mais uma vez para o amontoado disforme do clube, e voltou para a lancha da polícia, que deixara oculta entre a barulheira dos barcos do cais.

 

Três noites mais tarde...

O maquinista, também timoneiro da lancha da polícia, observava de modo vago que fazia muito frio, para aquele tempo do ano; e John Wade, acostumado àqueles resmungos constantes, respondia sardonicamente.

Ele próprio se considerava um homem velho; tinha, de fato, trinta e cinco anos, o que não é grande idade e, ao contrário, juventude, para um inspetor da polícia do Tâmisa.

— Muitas vezes penso, senhor... começou o maquinista, sentimental, quando a lancha passou a ponte dos Beneditinos e começou a correr ao longo do grande dique.

— Duvido, disse Wade. Duvido muito, sargento. Em todo caso, pode ser que quando esteja fora do serviço...

— Muitas vezes penso, senhor, continuou, imperturbável, o sargento, que a nossa vida é mais ou menos como um rio...

— Está comunicativo, hoje, sargento, mas eu não o estou. Contenha-se um pouco.

— O senhor também ficará comunicativo, um dia... Quando encontrar uma dona para o seu coração. Os solteiros não compreendem esses sentimentos.

Wade não escutava. A lancha corria rente ao dique que continha o rio. Na noite cheia de estrelas, não havia nem sinal do nevoeiro peneirado que cairia sobre Londres na noite seguinte. Durante toda a tarde John Wade inspecionara embarcações de carga. Achara o corpo de um afogado, boiando no rio. Passara a manhã no Tribunal de Polícia do Tâmisa, depondo no processo de um marinheiro doido, que se metera na cabeça afundar a barcaça do patrão que o maltratava, e que não o conseguira por ter Wade chegado a tempo de evitar o desastre.

Agora, pairando sobre essas pesquisas menores, uma instrução do chefe o tirara do caminho do leito aquecido, com ordens para aparecer em Scotland Yard; e tinha quase a certeza de que se tratava dos Homens de Borracha. Como leitor da seção policial dos jornais, interessava-se pelo caso desses Homens de Borracha, no qual não exercia ação direta; como oficial de polícia, conduzira somente algumas investigações ligeiras em torno do caso dos misteriosos salteadores de bancos e, num raciocínio cerrado, compreendia que desde a semana passada os tais salteadores prejudicavam a vida de Londres. Ele chegara a formular uma teoria e agora ia sofrer por se haver intrometido nisso.

Chamavam a esses meliantes os Homens de Borracha, porque não encontravam nome mais apropriado. Havia em seus planos qualquer coisa de elástico e nos seus movimentos uma flexibilidade espantosa; e o nome dado no primeiro momento se foi apoiando em pontos sucessivos das proezas dos ladrões de bancos; eles usavam máscaras e luvas de borracha, e sapatos de sola de borracha. Cada um dos ladrões entrevistos em vários assaltos levava uma pistola automática no cinturão, e três cilindros pendentes, que os peritos afirmavam serem bombas de gás. Talvez mesmo fossem estas últimas o principal armamento do bando.

Tinham sido vistos na noite em que esvaziaram o cofre de Colley & Moore, joalheiros em Bond Street; e naquele fim de semana abriam com a mesma calma a casa-forte do Banco do Norte e do Sul, deixando após si um vigia agonizante, que morreu mesmo antes da chegada da polícia. A razão de sua morte era claríssima: na mão crispada havia uma tira de borracha da máscara contra o gás, que ele arrancara certamente de um dos salteadores; enxergara o rosto de um deles, e por isso fora sacrificado.

— Não me surpreenderia, disse o sargento-maquinista, trazendo a lancha um pouco mais para perto da borda do dique, se o bando Wapping estivesse metido nesse caso da borracha...

Wade, olhando para a frente, vira de maneira indistinta uma forma humana inclinar-se sobre o parapeito do dique. A lancha não caminhara ainda vinte jardas, e ele observou que a forma se inclinava mais e mais, desaparecendo num segundo. È a grande massa branca de água que se levantou veio mostrar que o corpo caíra no rio.

O maquinista também percebera tudo. Uma volta do leme levou a lancha para perto.

— À sua direita, Inspetor. O senhor pode segurá-la com as mãos.

Wade ajoelhara-se à borda direita da lancha, e o timoneiro fazia força do lado oposto, para equilibrar a embarcação.

Por um segundo a forma humana desapareceu no seio do rio. Reapareceu logo depois debaixo da proa da lancha e John Wade, estendendo as mãos, agarrou o corpo e logo o içou para o barco. Era uma mulher.

— A senhora acha de se suicidar exatamente quando vou para uma conferência importante? perguntou ele, furioso. Um pouco de luz aqui, sargento!

O motorista acendeu uma lanterna. Os dois olhos assustados da mulher desprendiam faíscas.

— O senhor não a tirará de mim!... Não o permitirei! rosnou ela.

Apertava alguma coisa de encontro ao peito: um pedaço de papelão meio amarrotado.

— Não lhe quero tirar coisa nenhuma! disse Wade, caricioso.

O sargento sacou do bolso um frasco de brandy e obrigou a mulher a beber algumas gotas. Mas os dentes dela se cerraram, para resistir:

— Não... não me dê isso... Quero ir para junto de minha menina... O coronel disse...

— Não me interessa o que tenha dito o coronel, resmungou o inspetor. Beba isso, que faz bem.

Tirou um lenço do bolso, para aparar as gotas de brandy que se perdiam. E quando fazia isso, reparou no objeto que a mulher apertava com força. Era a fotografia de uma criança. Viu-a rapidamente, à luz fraca da lanterna, mas nunca se esqueceria dela. Até aquele momento pensara que todas as crianças se parecessem; mas vira ali um tipo novo, não comum, naquele retrato de uma criança de olhos redondos. Reconhecera o retrato e resmungou:

— Com todos os diabos! O que será isso?

A questão se esclarecia. Era o retrato de Lila Smith. Um retrato de menina — e essa menina era Lila Smith.

— O que é isso? repetiu ele.

— Não lhe darei o retrato! Nunca, nunca! Maldito!...

A voz se lhe foi tornando um murmúrio inarticulado; os dedos, crispados, afrouxaram-se.

— Cuidado com ela, Toller. Vai desmaiar.

Quando tentou tirar a fotografia daquela mão frouxa, só conseguiu trazer entre os dedos uns frangalhos do papelão.

Além do mais, não lhe interessava identificar a mulher desconhecida. Aqueles casos eram comuns. Às vezes a lancha da polícia fluvial não dispunha de muito tempo, e por isso nem sempre examinavam o fundo do rio com longas cordas embebidas de óleo e de graxa. Achavam-se coisas estranhas, no leito do velho Tâmisa; uma vez tinham pescado o eixo de uma biga romana; de outra vez encontraram o que restava de um homem encadeado da cabeça aos pés, a evidenciar um horrível assassinato. Os que apanhavam vivos eram levados ao tribunal da polícia fluvial e dormiam uma ou duas noites nas lajes frias do xadrez. Os mortos enchiam sepulturas sem cruzes e sem nomes, e só tomavam meia hora do tempo de um comissário muito ocupado.

Lila Smith? bem que Wade tentou recompor a fotografia, dar--lhe a forma antiga. Mas os frangalhos se obstinavam em permanecer separados.

A lancha deteve-se junto ao pilar da ponte; um guarda do Tâmisa tomou da fotografia com ademanes científicos; um outro guarda saiu pelo meio da noite e trouxe um pequeno veículo de duas rodas, destinado a levar a mulher ao hospital de Westminster.

Wade, carrancudo ainda, entrou no gabinete do superintendente da Scotland Yard. Os quatro chefes principais já estavam em conferência.


— Lamento chegar atrasado, senhor, disse Wade. Uma mulher disposta a acabar com a vida jogou-se no rio à frente da minha lancha, e foi isso o que me fez perder tempo.

O chefe-geral recostou-se na poltrona bocejando. Trabalhava desde as seis da manhã. Tirou depois da gaveta da mesa um papel e falou:

— Está aqui o seu relatório. O senhor diz que há uma lancha de corridas que desce e sobe o rio — mais ou menos nos momentos de grandes assaltos. Chegaram a observá-la distintamente?

John Wade balançou a cabeça.

— Ainda não, senhor... Ainda não foi vista com precisão, e somente a observaram à distância. Tenho a idéia de que é uma lancha pintada de preto; não leva lanternas ou faroletes, e não foi possível detê-lo ainda, pela velocidade em que sempre vai. O primeiro detalhe que nos chamou a atenção foi a queixa de um grupo de barqueiros contra o barulho que ela despertava, altas horas da noite. E os passageiros passam sempre encapuçados, e só por isso não foram reconhecidos.

— A lancha não tem faroletes?

— Não, senhor. Até hoje somente dois homens a viram de perto. O primeiro é um ladrão do rio, chamado Donovan, que foi preso há uns dois meses, quando assaltava um cargueiro. Disse ele que, com um colega, estava à noite numa pequena canoa, passeando pelo rio — inocentemente, declarou ele, no que não acreditei — quando a tal lancha surgiu da escuridão e os dois tiveram que fazer uma manobra rápida para evitar o abalroamento. Se o barco não caminhasse com a velocidade regular, a estas horas o Sr. Donovan estaria reduzido a cinzas. A única coisa que ele pôde dizer a respeito da lancha é que ela era muito pequena e não tinha forma alguma de uma lancha a motor. Procurei comparar as datas e verifiquei que as aparições da lancha fantasma coincidiam com os assaltos dos Homens de Borracha.

— Onde foi vista a lancha? indagou o Chefe-geral.

(Esse Chefe-geral era um homem que, quando falava, dava sempre a impressão de estar meio adormecido. E, coisa curiosa, nunca o estava...)

— Ali pelo oeste, junto à ponte de Chelsea, disse Wade. Foi ali vista pelo segundo homem, que é também um ladrão do rio, um pouco complicado. Ele tem uma espécie de pequeno armazém em Hammersmith, armazém que invadimos há algum tempo para buscas — e seu nome é Gridlesohn. Digo que é meio complicado porque nos últimos tempos tem estado muito pródigo em denúncias, como quem sente que esses ladrões de bancos o ameaçam no rio, pondo em perigo os seus próprios "ratos". Nesse sentido, ele conta com a minha simpatia.

Jennings, um dos chefes principais, jogou uma grossa fumaça de cachimbo em direção ao teto e abanou a cabeça.

— Por que os Homens de Borracha escolheriam o rio para fugir? Bem que gostaria de sabê-lo. Há vinte caminhos que permitem sair de Londres, e o rio é o mais longo de todos. Pode-se sair de Scotland Yard para qualquer lado da cidade num táxi, sem que um policial, entre mil outros, consiga notar coisa alguma. A minha opinião é que esses Homens de Borracha estão em véspera de desferir um grande golpe; depois disso, cheios de dinheiro, levantarão o acampamento... por alguns anos, talvez.

Um terceiro membro da conferência, um tipo com cara de estudioso, de seus cinqüenta anos, que controlava os negócios com o exterior, interrompeu-o.

— Tenho a certeza de que se trata de uma quadrilha internacional. A polícia de Nova Iorque teve também os seus homens de borracha; e, na França, o banco de Marselha foi depredado, mataram o caixa e um vigia, nas mesmas circunstâncias em que esvaziaram o banco do Norte e do Sul. Quanto à sua opinião de que eles esperam um grande golpe...

A campainha do telefone tilintou. O Chefe-geral tomou do fone e ouviu.

— Quando? perguntou ele. Houve uma pausa e, então: Vou já.

Desligou e, levantando-se da cadeira, disse:

— O comissário de serviço comunica que estão apagadas as luzes do gabinete do gerente do banco Frisby. Pareceu-lhe também notar um homem dentro do gabinete. Comunicou-se com o inspetor da divisão... Tome nota do nome do comissário, para a promoção, Lane.

Dois dos quatro homens já saltavam para os automóveis que Wade encontrou no pátio. Os detetives também se acomodavam.

O banco Frisby ficava na extremidade da rua St. Giles: era um dos poucos bancos particulares que tinham sucursais em West End. Um edifício pequeno, moderno, ligado por uma ponta que saltava sobre o pátio a uma casa mais velha; ficava numa esquina, e assim não escapava à vigilância de um guarda sempre destacado para a rua — o guarda que dera o aviso.

No momento em que a polícia chegava ao lugar, a rua já estava cheia de guardas, e um cordão de isolamento fora estendido em torno do banco. O gabinete do gerente dava para a outra rua, ao lado da sala de vigilância geral do edifício. Duas lâmpadas estavam sempre acesas ali, dia e noite, e essa sala da vigilância era visível do ponto em que o guarda controlava o tráfego.

A história do guarda foi rapidamente narrada. Achava-se ele no canto da rua, esperando por aquele que o viria substituir; o relógio da torre batera a última pancada da meia-noite; nesse instante ele vira as duas luzes apagarem-se. Saiu correndo pela rua, forçou a porta e apertou o botão da entrada. Voltou então para o gabinete do caixa; nada viu ali de anormal; subira pela escada de incêndio, até o gabinete do gerente; e fora então que, movendo o jato de luz da lanterna de mão, descobrira um homem que deslizava suavemente na sombra da sala de segurança.

A multidão começava a agitar-se contida pelo cordão de segurança que a atraíra àquela hora da noite; o tráfego fora interrompido e as ruas, num círculo de cinqüenta metros partindo do Banco, tinham sido batidas. No momento em que o guarda acabava a sua narrativa, chegou o gerente do banco com as chaves. Disse ele que devia haver um vigilante de guarda, e não compreendia que às repetidas pancadas à porta ninguém respondesse. Os detetives já tinham subido pelas escadas de incêndio, e vigiavam o telhado.

As construções eram uniformes; havia um pátio guardado por dois portões sólidos, ao lado do edifício, e esse pátio separava as construções novas de uma casa antiga, de propriedade do banco, onde se instalara a diretoria. O último andar era ocupado pelo vigilante noturno, um viúvo de cinqüenta anos, que morava com a filha e fiscalizava pela madrugada a limpeza dos escritórios. A única vantagem do pátio com os dois portões, explicou o gerente, consistia em que ali os diretores e os clientes mais ocupados podiam guardar os automóveis.

Todas essas explicações foram dadas em grande balbúrdia, e o gerente tremia ao tentar introduzir a chave na fechadura.

Afinal, abriu-se a porta.

— é melhor que você ordene a busca, Wade... Dêem uma arma ao Inspetor!

Alguém trouxe uma pistola para Wade, e ele penetrou na sala escura; a porta de entrada do gabinete do gerente estava fechada; tinham-na trancado por dentro, mas a patrulha volante trouxera os instrumentos necessários; a porta foi arrombada e o gabinete do gerente apareceu afinal.

Wade adiantou-se, com cuidado, a pistola numa das mãos, a lanterna portátil na outra. O gabinete estava vazio, mas uma segunda porta, lateral, que ele empurrou, na direção do pátio, se achava entreaberta. Wade deu um passo, parou...

Um estampido.

A bala penetrou na parede e cobriu o rosto de Wade de gesso esfarinhado; ele empurrou a porta um pouco mais. O segundo tiro não demorou. Wade adiantou a mão pela porta e mandou para o pátio dez tiros. Não ouviu resposta; só então notou que o segundo tiro lhe dilacerara a manga do casaco.

Num sussurro, pediu uma pistola ao detetive que se esgueirava para junto dele, passando-lhe a outra descarregada. Foi então, nesse silêncio pesado, que ouviu uns passos leves e um rangido de porta. De novo adiantou a mão e disparou dois tiros; não recebeu resposta, e quando acendeu a lanterna para provocar uma reação, nada mais ouviu.

Podia ser uma emboscada, mas ele devia arriscar-se. Num momento entrou no gabinete, examinando tudo com a lanterna. Era um gabinete pequeno, de fácil comunicação com o do gerente; prateleiras de aço com uma profusão de caixas. Num canto havia uma porta de aço; e atrás dessa porta ele pôde ouvir o arranco de um motor de automóvel. Forçou a porta; houve pequena resistência. Wade tinha a sensação definida de que do outro lado esperavam que ele abrisse para disparar. Com um puxão, abriu a porta, num relâmpago. Teve a impressão de ver um carro que desaparecia num dos portões, e, então:

Rá-tá-tá-tá-tá...

Era o estrépito compassado de uma metralhadora. Um grande carro negro voou pela rua, e do seu interior vinha a matraquear constante da arma automática. A polícia, tomada de surpresa, abateu-se por terra; a multidão agitou-se, ficou estatelada, e o carro, o longo carro negro, passou veloz, cuspindo um fogo venenoso da sua janela traseira. As balas iam encaixar-se nas paredes do edifício; as vidraças se despedaçavam; o povo corria para todos os cantos.

Antes que alguém pudesse dar conta do acontecido, o automóvel desaparecia no parque de St. James.

 

Foi somente na manhã seguinte que Wade se lembrou da quase-suicida e da sua fotografia. Vários negócios o tinham levado a Scotland Yard, e ele foi até o hospital, que ficava ali perto, saber notícias da mulher. Com grande espanto soube que ela já se tinha ido. Por um engano — culpa talvez do sargento — nada constava contra ela, e quando, inocente, perguntara se podia deixar o hospital, nenhum obstáculo lhe opuseram.

— Uma criatura de espantosa vitalidade, dissera o médico de serviço. Quando deu entrada na sala de cirurgia, julguei-a morta; pois vinte e quatro horas depois deixava sozinha o hospital. Uma ligeira tentativa de suicídio... Não tínhamos nenhuma observação sobre ela. O policial que a trouxe disse-me que caíra ao rio por um acidente. A propósito, só vivia falando num retrato que perdera. E por isso se mostrou tão nervosa que quase não consenti que se fosse...

— Deu algum nome para o registro?

O jovem médico fez que sim com a cabeça.

— Ana. Não nos disse o sobrenome. Minha opinião é que está atacada de demência... Não é um caso perigoso, certamente, porque se o fosse facilmente o teríamos notado.

John Wade sentia-se ligeiramente confuso. Não lhe interessava o caso e, se não fosse pela fotografia, não lhe teria dado atenção.

As conferências se multiplicaram, em Scotland Yard. Os Homens de Borracha eram o assunto principal na maioria dos jornais. Houve interpelações inevitáveis no Parlamento, e a não menos inevitável sugestão a fim de que se criasse uma comissão especial para o caso, no Departamento de Investigação Criminal.

A perda do banco não fora tão grande como poderia ter sido, visto como os assaltantes haviam sido perturbados no melhor de sua atividade. Mas o roubo que se seguiu ao do banco Frisby deu dor de cabeça a Scotland Yard. Numa pequena agência, propriedade de um grupo de joalheiros, o cofre-forte, embutido em sólida parede de concreto, fora forçado, e as jóias, perfeitas, num valor de oitenta a cem mil libras, haviam desaparecido como por milagre.

A primeira notícia que tivera a polícia fora uma comunicação telefônica, evidentemente de um dos membros da quadrilha, avisando que o vigilante noturno precisava de cuidados urgentes. Um carro da polícia voou para a agência, e o homem foi descoberto, sem sentidos, emborcado no soalho. Não soube dar detalhe algum do que acontecera; de nada se recordava; e a polícia não apreendeu nenhum ponto de referência, a não ser um pequeno escopro que os Homens de Borracha haviam abandonado, na retirada.

John Wade leu a narrativa do novo crime como um curioso, file pertencia à Fluvial, e só por um acaso se envolvera no caso de Frisby. O inquérito costumeiro foi estabelecido, mas a polícia do rio nada conseguiu informar. Não obstante, chamavam-no para as intermináveis conferências dos Chefes, e assim podia satisfazer melhor a própria curiosidade.

Se a figura de Ana desaparecera rapidamente de seus pensamentos, a fotografia misteriosa voltava-lhe sempre à memória. Foi somente uma semana depois do roubo de jóias que ele pôde fazer uma visita ao Clube "Meca".

Mum não lhe apareceu logo, quando ele desembarcou no cais rumoroso, e caminhou para a janela escancarada da cozinha. Do telheiro dos fundos vinham os grunhidos de Golly, entoando uma cantiga melancólica, e o rumor das pancadas da machadinha. John Wade encontrou a sala de refeições vazia, e esperou com paciência, preparado para ver aparecer a figura horrenda de Mum de um momento para outro.

— Viva, Lady Jane!

Lila entrara na sala ao de leve, tão sem ruído e tão inesperadamente que ele tivera a impressão de que ela aparecera ali por encanto.

— A senhora Oaks não está. (Ela achou melhor adiantar a informação.) E não fique por aqui muito tempo, Sr. Wade. Titia não gosta de vê-lo por estas bandas, e o senhor não tem sido muito amigo de Golly. Ele nunca pensou em vender objetos roubados...

John Wade sorriu.

— "Se vier aquele inspetor, o Wade, você trate de ir dizendo que o seu tio é um cidadão muito honesto" — imitou ele, e pelo rosto corado da rapariga percebeu que dissera uma verdade.

Então, aproveitando-se daquele embaraço, perguntou:

— Quem é Ana?

Ela voltou a cabeça, fitando-o nos olhos.

— Ana? perguntou, demorando-se nas sílabas. Não conheço... Mas já lhe disse que não a conhecia há algum tempo atrás?

— Não, não me disse nada.

John Wade tinha excelente memória e tinha absoluta certeza de que o nome de Ana nunca lhe aparecera antes.

A admiração embaraçada que ele descobrira nas faces de Lila acentuava-se agora; ela olhava, por trás dele, um rebocador que subia o rio.

— Ana, Ana... Não, não conheço ninguém com esse nome. No entanto, parece-me familiar. Não é curioso? (Os seus lábios finos floriram num sorriso fraco.) Só se o ouvi em sonhos...

— Como aquela "aristocracia"? perguntou Wade, e viu que a rapariga ficava consternada.

— Não, essa "aristocracia" não foi um sonho, disse Lila, vivamente. Eu é que não devia ter falado nela.

Parecia que ela já falara daquilo uma porção de vezes ao inspetor. Na realidade, só fizera a Wade duas referências à aventura em que era figura de importância. Não sabia também que, à primeira referência, Wade pouco se importara com aquelas palavras, pensando mesmo que a menina exagerava um lance qualquer de um romance agitado. A segunda vez, chocara-o um tom diferente na sua voz, e a interrogara com força. E quanto mais a menina se esquivava a narrar o que acontecera, tanto mais ele ardia pelos detalhes do caso.

Wade tinha grande experiência de interrogatórios; assim, preferiu levar a conversa para outro lado. Lila, falando sobre a vida dos guardas da Fluvial, comentava:

— Não acho que o senhor seja um trabalhador, como dizem por aí. A sua vida parece-me muito indolente. Nada faz a não ser subir e descer o rio — sempre o vejo assim. O que faz a polícia do Tâmisa?

— Sobe e desce o rio, e leva uma vida regalada...

— Verdade? insistiu ela. Todos dizem que há ladrões aí, mas nunca cheguei a conhecer nenhum deles. Aqui mesmo no Meca nunca roubaram coisa alguma... Talvez porque aqui nada haja de valioso...

Wade sorriu para a menina, e esse sorriso pareceu aos dois um estranho cumprimento.

Para Lila, aquelas visitas de Wade se ensombravam com a perspectiva do aparecimento súbito de Mum; e, assim, ela costumava rezar intimamente para que ele se fosse tão depressa quanto viera. E naquela ocasião, não havendo motivo para que o Inspetor se fosse com rapidez, ele partira inesperadamente. Só dez minutos após a partida de Wade, Lila ouvi a voz gosmenta de Mum!

O Sra. Oaks estivera na City e voltara com um visitante — o único homem que Lila decididamente detestava. O Sr. Raggit Lane raramente aparecia pelo clube. Homem alto, parco de banhas, com um rosto fino de asceta, ele chegaria a ser simpático se não tivesse um canto dos lábios bizarramente retorcido, numa careta eterna. Vinha sempre bem vestido e cheio de cosméticos. Não usava nenhuma das jóias espalhafatosas dos outros habitues do clube: anelões de brilhantes duvidosos e pesados relógios de ouro. Lila não gostava de Lane por causa de certo perfume que ele usava.

As mãos do Sr. Lane estavam sempre muito limpas, as unhas polidas, e o cabelo negro reluzia de vaselina. Trazia somente um anel discreto na mão direita, e mais nenhuma outra jóia.

Mum dizia ter idéia muito vaga dos seus meios de vida; mas Lila imaginara que ele fosse um viajante, porque certa vez lhe trouxera de presente um xale bordado, de seda da China.

Logo que Mum apareceu no cais, Lila correu para a sala de visitas. A sala de visitas do clube era um buraco obscuro, no qual só penetrava meia dúzia de seres privilegiados. Um aposento comprido, com duas altas janelas opacas. Paredes pintadas e soalho encerado.

Lila entrou, limpando as mãos no avental, e sentiu-se logo examinada pelos olhos vítreos de Raggit Lane.

— Viva!

Ele olhava para ela com uma admiração não disfarçada. Não vira a rapariga pelo espaço de um ano, e nesse ano notáveis mudanças se tinham dado naquele rostinho redondo.

— Bonitinha, hein, Oaks?

Ele sempre chamava Mum de "Oaks", e ela nunca se sentira ofendida por isso.

— Deixe-me olhá-la direito, menina?

Puxou a rapariga pelos ombros, e voltou-lhe a face na direção da luz. Uma raiva súbita agitou Lila, e ela se desprendeu violentamente do bruto.

— Não me toque! Como se atreve a fazer isso? Sua voz tremia. Mum olhava-a admirada.

— Por que, Lila?... indagou ela.

— A menina tem razão. Desculpe-me, Lila. Esquecia-me de que você já é uma moça.

Mas Lila não parecia ouvi-lo. Voltou-se, e saiu rapidamente da sala. Era aquela a sua primeira manifestação de independência que Mum testemunhava, e "Oaks" não tinha coragem para sair do seu espanto meio irritado.

— Que haverá com essa garota? indagou ela, duramente. Nunca a vi assim, antes. Se começar a me tratar com esses ares, conhecerá toda a verdade!

Raggit Lane pigarreou alto, tirou um cigarro duma cigarreira dourada, riscou o fósforo.

— De fato, ela já não é uma criança, e é tudo — você não precisa armar barulho por causa disso. Não acreditei em você, quando me disse que Lila estava bonitinha. Mas você tinha razão.

— Da última vez que esteve aqui, disse-lhe: — Venha ver a menina! Você não quis acreditar, acentuou Mum, satisfeita por sentir que reconheciam como certa uma profecia sua.

Lane jogou uma nuvem de fumaça para o teto.

— Da última vez que estive em Londres certas razões me impediram de vir até aqui, disse ele, pausadamente.

Houve um silêncio embaraçante.

— Donde chegou, agora? indagou Mum.

— Do Mar Vermelho — de Constantinopla.

Lane parecia pensar em coisa muito diferente, e a resposta foi automática.

— Como vai o velho? perguntou Mum, depois de um longo silêncio.

— Hein? O velho? Oh, sim, vai muito bem.

E depois, fitando Mum com atenção:

— Não quero que ele saiba que estive hoje aqui. Mum sorriu.

— Compreendo, compreendo. Pode confiar em mim, Lane. Nunca palestro com ele, a não ser a respeito de Lila; e não o vejo mais que pelo espaço de uma hora, em cada ano...

Raggit Lane parecia pensar profundamente.

— Ele tem estado muito irascível, muito difícil... Naturalmente eu poderia dizer-lhe que vim até aqui por acaso. Um clube de marinheiros... Mas só quero usar essa desculpa em última instância. Onde está Golly?

Mum apurou o ouvido.

— Rachando lenha, disse ela.

Outro silêncio embaraçante. E então:

— Quem é essa menina Lila?

A Sra. Oaks devia muitos favores àquele visitante bem apessoado, mas ele lhe fizera agora uma pergunta a que ela não podia responder com facilidade.

— O que me preocupa no caso de Lila é esse guarda da Fluvial, o Wade. Ele está sempre rondando o clube. Não sei bem se é por causa da garota, ou se é por outra coisa. Nunca se sabe direito o que quer um policial...

— O Inspetor Wade? (Lane passou a mão pelo queixo, pensativo.) Não é um rapagão alto, desempenado? Bonitão mesmo?

Mum sorriu, com um ar de zombaria.

— Todos eles, com uma farda alinhada, são bonitões... Pelo que tenho ouvido, quase foi liquidado, outro dia, pelos Homens de Borracha. Uma pena que não o deixassem estirado!...

Lane sorriu, satisfeito.

— Esses Homens de Borracha têm trabalhado com vontade, disse ele. Quem são?

Mum balanceou a cabeça.

— Não sei de nada a respeito deles, disse ela, de um fôlego. Só me preocupo com a minha vida e os meus negócios. É bem difícil que uma pessoa se desobrigue direito dos seus negócios, se começa a se preocupar com os alheios. O que há a respeito, é que muitas notícias dos jornais são forjadas, files dão tudo por um detalhe sensacional.

— E sobre o nosso negócio, Oaks?

Mum levantou-se da cadeira cm que se sentara.

— Vou ver o que a rapariga está fazendo, disse, e saiu da sala.

Voltou alguns minutos depois, fechou a porta a chave e caminhou até junto da lareira. Com um gancho deslocou uma secção irregular do soalho de tábuas. Sob a tábua retirada havia um tampão, de couro, que ela levantou, deixando à mostra um alçapão de aço trancado com uma fechadura de segredo. Com uma chave, Mum abriu a fechadura, e com alguma dificuldade levantou a pesada tampa de aço. O receptáculo que apareceu era evidentemente bem maior do que a abertura que para ele dava entrada, porque Mum retirou para cima meia dúzia de pequenos sacos de lona, que passou para Lane, um por um. Ele os foi alinhando numa mesa ao lado da vidraça opaca da janela, e por fim os foi abrindo com grande cuidado.

— Este é um lote barato, disse Mum, ao ver Lane desamarrar um laço de cordas, e retirar uma variedade de objetos, brincos e anéis de carregação, e broches muito coruscantes de joalheria ordinária. O saco que está amarrado com a fita vermelha é que tem boas coisas.

Lane foi desamarrando os sacos, um por um, até que chegou ao fechado com a fita vermelha. Havia ali diversas jóias de preço: uma esmeralda de dez quilates, um anel com um diamante admirável, um alfinete de gravata, um camafeu e cinco pérolas de tamanho regular. Lane olhou curioso para as pérolas.

— Com certeza arrebentaram o colar, com a precipitação... Mum respondeu, inocente:

— Não faço perguntas aos rapazes. Não me interessa saber como arranjam as jóias. Se me oferecem um negócio, aceito-o silenciosa. Penso, aliás com razão, que quem não faz perguntas não escuta mentiras.

Lane examinava uma das pérolas através de uma lente.

— Esta aqui é melhor jogá-la ao fogo, disse ele, passando a pérola para Mum. Está marcada, e seria logo reconhecida.

Obediente, Mum tomou da pérola, que daria com facilidade seiscentas ou setecentas libras, e atirou-a ao fogo. Nunca discutia com Raggit Lane, tendo aprendido com o tempo a inutilidade de qualquer argumento.

Lane fazia uma escolha cuidadosa; afinal pôs os objetos selecionados no bolso e devolveu o resto à mulher.

— O ouro está dando pouco... Há muita desconfiança, disse ele. Eu jogaria toda essa quinquilharia no rio.

Mum suspirou.

— Que pena! disse, lastimando-se. Mas o senhor deve ter razões...

Ouviu-se uma pancada na vidraça opaca da janela. Mum assustou-se.

— Quem é? perguntou depois, asperamente.

— Preciso dizer-lhe duas palavras, Sra. Oaks. Era a voz de John Wade.

Mas nem um músculo se alterou na face de Mum.

— Qual é o seu nome no meio dos homens? indagou ela.

— Inspetor Wade.

— Um momento.

Com rapidez ela juntou todos os pacotes, jogou-os para o alçapão aberto, empurrou a tampa, deu uma volta à fechadura, reajustou a, tábua do soalho e estendeu o tapete por cima. Enquanto isso, Lane abria o enorme guarda-roupa do outro extremo da sala, entrava nele e fechava as portas.

Mum lançou um olhar para a lareira, esmagou com a tenaz a bola chamejante que fora uma pérola valiosa, e abriu a porta.

— Entre, Wade, disse depois, friamente.

John Wade apareceu à porta, e entrou, desconfiado, olhando para os cantos.

— Desculpe-me por vir interromper a sua piedosa oração, disse ele.

— Quer saber de alguma coisa? Eu estava mudando as meias...

— Não me interesso, perante senhoras, por assuntos tão inconvenientes, Lady Godiva.

E teve uma fungadela.

— Tirando uma fumacinha tranqüila, hein? Muito bem, muito bem! Na sua idade, sempre é bom um viciozinho pacato...

Mum quase estremeceu, ao ouvir falar em fumaça.

— O que quer o senhor? indagou ela.

Mas John Wade parecia admirar o aposento com grande curiosidade.

— Que bela sala! disse. O seu boudoir, certamente!... E anda fumando cigarros egípcios, também... Sabe que fazem um mal enorme ao coração?

— Que quer o senhor? repetiu Mum.

Os olhos de Wade se tinham fixado no guarda-roupa.

— Vim fazer-lhe uma pergunta, mas parece que cheguei num momento impróprio. Uma perguntinha sem importância... Nada que se prenda aos meus deveres profissionais... Mas não quero esperar.

Foi até a porta da sala e voltou-se com um daqueles seus sorrisos indecifráveis.

— Tenho medo de que o seu amante escondido no guarda--roupa morra asfixiado, o infeliz!

E, saindo, fechou a porta.

Mum voou atrás dele, e seguiu-o até a fachada do Meca. Aquele insulto salvara-lhe a situação. Sentindo-a atrás de si, Wade acrescentou:

— Sossegue, que não direi nada a Golly!

E antes que ela começasse a desfiar um rosário de imprecações, Wade desaparecia. Mum voltou à sala e trancou a porta.

— Saia, Sr. Lane, disse então, a voz trêmula de raiva. Era aquele diabo da Fluvial.

Raggit Lane pulou do guarda-roupa um pouco desalinhado. Endireitou o cabelo, e viu-se logo que se sentia mais desconcertado que mesmo enraivecido.

— Ele sabia que eu estava aqui. Saberá quem sou eu?

— Deus sabe o que ele sabe! grunhiu a mulher. Uma dessas madrugadas nevoentas aquele intrometido ainda aparece aí no Tâmisa, boiando, com o ventre cheio d'água e os olhos empapuçados. E nesse dia, garanto-lhe, irei à igreja pela primeira vez em minha vida!

— Wade! É o diabo!

Lane acariciava o queixo. Começou então a esvaziar os bolsos.

— Guarde isso de novo. Voltarei um dia destes.

— Não há dúvida, concordou Mum.

Lane sorriu.

— Eu não me arrisco. Mande um rapaz levá-las... Você sabe para onde... Se eu as levasse agora seria perigoso.

Abotoou o colete, tirou o chapéu e a bengala do guarda-roupa. Mum escovou-lhe o casaco, e ele voltou para a rua, onde o esperava um táxi. Desconfiado, olhou em redor, mas não descobriu ninguém a espiá-lo. E mesmo quando o táxi entrava na City, não achou prova alguma para o sentimento estranho de que estava sendo seguido.

Aquela mesma tarde Wade foi pessoalmente a Scotland Yard informar-se.

— Conhecem aqui um cavalheiro de bom aspecto, que cheira como uma loja de flores e se veste como um duque? perguntou Wade ao inspetor Elk, autoridade em cidadãos de outras terras.

— Difícil, disse Elk, pensativo. Entretanto, parece-me que já ouvi alguma referência...

Wade cortou-lhe o fio das lembranças. Puxou do bolso uma folha de papel. Tinha alguma vocação para o desenho, e traçou um esboço da figura interessante de Raggit Lane.

Elk estudou o esboço, cocou a orelha, passou a mão pelos cabelos.

— Talvez seja novo... Não o conheço. Sabe o nome dele?

— Talvez mais tarde o saiba... Por enquanto não tenho dado algum. O pessoal do clube não o conhece — um de meus homens indagou de tudo. Eu mesmo nunca o vira antes. Vi-o hoje por um acaso. Lembrei-me de um inquérito sobre um roubo de uísque, e fui até o Tribunal saber como ia o assunto. Foi então que vi o tal sujeito tomar um táxi com a mulher, a dona d© clube. Desconfiei daquela amizade, e achei bom dar um pulo até o "Meca".

Elk suspirou e fechou os olhos.

— Você não pode duvidar dele, por ser amigo de Mum Oaks, disse. Isso não é uma culpa... Terá por acaso um charuto aí no bolso, Wade? Certamente que não. Vocês oficiais novos gostam de cigarros... Mas, espere, tenho um cunhado, já meio maduro, que anda como esse sujeito...

— Estou certo de que não é ele, disse Wade, e deu o fora.

O resto do dia pertencia-lhe, e ele o empregou de um modo característico. Na realidade, John Wade não tinha muito tempo para diversões. Amando a sua profissão, vivia para ela e não se preocupava com coisa alguma que não dissesse respeito, ainda que de longe, aos negócios da polícia. Sua ocupação principal era vagar pelas ruas tumultuosas, pelas esquinas do West End, observando os transeuntes. O estudo dos seres humanos era-lhe tarefa absorvente: os gestos, as expressões das faces, as preocupações aparentes. Colecionava-os como outros colecionam selos. Sabia, assim, como ninguém, qual o gesto que sublinha uma mentira, qual o olhar de uma mulher vaidosa.

Mas aquela tarde a chuva começou a cair: uma chuvinha miúda, impertinente; e Wade caminhou até um pequeno restaurante de Soho, no qual já pensara pela manhã. Costumava ficar ali sentado, depois do jantar, ruminando o que lhe acontecera durante o dia, e matutando no que lhe iria ainda acontecer durante a noite. Àquela hora o restaurante estava deserto, e ele podia refletir sossegadamente. Às oito horas, por fim, saiu para as ruas nevoentas.

A chuva cessara, mas o nevoeiro era espesso. Ele foi vagando para a avenida Shaftesbury, com intenção de ficar em sua pequena casa de Wapping, ali perto. Atravessou a avenida Shaftesbury e, cruzando a praça Leicester, meteu-se por uma das ruas que vão desembocar no Strand.

Havia ali um restaurante novo, de luxo — um lugar discreto que o epicurista logo descobrira. Em Londres a reputação dos restaurantes cresce e morre de modo inexplicável.

Wade caminhava ao longo das calçadas úmidas quando uma grande limousine veio, silenciosa, do outro extremo da rua, e se deteve diante do restaurante. John Wade cessou de andar. Não sentia a curiosidade dos três sujeitos parados no meio da calçada para ver quem saía do automóvel; seu desejo não era nem sequer olhar para quem saltasse da limousine luxuosa.

O homem que saltou do carro era alto e sòlidamente construído; completamente calvo, tinha o rosto sulcado por mil rugas.

— Venha, querida, disse ele, impaciente.

Tinha uma voz profunda e sonora que interessou ao detetive.

O velho levantou o braço e ajudou a companheira a saltar na calçada. Ela vestia de branco, trazia um abrigo de tecido prateado com uma gola de arminho. Uma figura esguia e radiante de juventude; dos cabelos louros, armados em elegante penteado, até os sapatos brancos, desprendia-se uma única impressão de graça e beleza. Por um momento John Wade não lhe viu o rosto; mas quando a moça, chegando ao abrigo da marquise iluminada, levantou a cabeça, John Wade pôde contemplá-la direito. Quase soltou um grito! Era Lila Smith!

Os dois desapareciam no restaurante antes que John saísse de seu assombro. O pensamento de ir para a casa de Wapping se desvanecera. Ele esperou que o porteiro agaloado voltasse para seu posto, à entrada, e então abordou-o.

— Esse senhor que entrou é o Coronel Martin? perguntou Wade.

O porteiro olhou-o com suspeitas. Não era a primeira vez que um estranho tentava estabelecer a identidade das senhoras e dos cavalheiros que jantavam no restaurante.

— Não, não é, disse logo.

— Sei... Pensei por um momento que fosse ele, disse Wade, e quis entrar. Mas o porteiro deteve-o.

— Não é este o caminho para o restaurante, senhor. Aqui ficam os aposentos reservados e os salões para banquetes. O restaurante fica na outra rua.

John Wade viu por uma porta envidraçada que o homem e Lila desapareciam num lance de escada.

— Bom. Vou dizer-lhe mais claramente o que desejo. (A voz se lhe fizera autoritária.) Meu nome é Wade; sou inspetor de polícia. Sem tem dúvidas o guarda que está naquela esquina poderá identificar-me.

— Não é preciso, Sr. Wade. (O porteiro parecia defender-se.) Agora o reconheço... Vi seu retrato nos jornais... O senhor há de compreender que não posso estar respondendo a qualquer um...

— Compreendo sim, disse Wade, amável. Quem é o homem que acaba de entrar?

O porteiro emendou logo:

— Não tenho a menor idéia de quem possa ser ele, senhor. Só vêm aqui para jantar, ele e a senhora, uma única vez por ano. E nada mais. Da última vez que estiveram aqui, a senhora ainda era uma menina. Acho que deve ser seu pai, o velho. Um dos criados disse que o velho é oficial do Exército da índia, e só costuma vir a Londres uma vez por ano.

— E sempre a tem trazido aqui, não?

— Pode ser que vá a outras casas, mas sempre os vejo aqui, juntos.

— E a senhora vem sempre bem vestida?

— Mas sim, senhor, disse o porteiro, surpreso. É uma senhora de distinção. Está num colégio de aristocracia...

John Wade considerou rapidamente a situação.

— Que aposento tomaram?

— O número 18. (O porteiro lembrou-se de uma coisa): Posso dizer o nome do homem, senhor. Ele deve estar no nosso registro.

E desapareceu pela porta, voltando logo depois.

— Brown... O Sr. Brown. Um homem rico, segundo informa o garçon que o serve. Há alguma coisa contra ele? (A pergunta foi ansiosa.)

— Não sei bem ainda, disse o detetive, ríspido. Seria fácil observá-los nesse aposento reservado? Mas com grande cautela, já se vê.

O porteiro refletiu um momento.

— O número 19 está desocupado. O senhor pode subir até lá, Inspetor Wade. Direi ao chefe que o senhor quer escrever uma carta, em sossego. Mas compreenderá: não o conheço, de modo algum. Poderia perder o emprego...

John Wade garantiu-lhe tudo; apareceu então em cena alguém que John Wade tornaria a encontrar em circunstâncias menos agradáveis. O encontro foi casual.

Wade acautelou-se para não ser visto. Um homem sentenciou:

— Estou dizendo... Uma bonitona! Uma beleza de rapariga!

Wade, a um canto obscuro, observou o cidadão meio bêbedo que afirmava isso: era um rapaz muito sangüíneo e com um bigodinho arruivado. Os olhos de azul-pálido ainda queriam descobrir uma silhueta na escadaria de mármore.

— Quem é, Bennet?

— Não conheço, meu senhor.

A bebedeira atordoava o jovem de mãos grosseiras, de traços empastados. John Wade tornou a olhá-lo, antes de seguir para o restaurante, e poucos minutos depois subia suavemente os degraus atapetados. Um garçon entrava no aposento n.° 18, quando Wade apareceu no corredor, mas não distinguiu o inspetor de polícia. Wade abriu a porta do n.º 19 e entrou, trancando-se por dentro. Procurou o interruptor da luz, e logo o encontrou.

Na parede esquerda do gabinete, revestida de incrustações de madeira rósea, havia uma porta, perto da janela, que devia evidentemente levar ao número 18. Wade caminhou para ela. Não ouviu vozes e, fazendo girar a maçaneta com grande suavidade, empurrou um pouquinho a porta, que não estava trancada. E achou uma segunda porta.

Agora ouvia vozes muito abafadas; as palavras profundas e sonoras do velho, e a voz suave de Lila. Era aquilo a "aristocracia"! Todos os anos, como uma Cinderela moderna, ela abandonava as roupas velhas e deselegantes, e se vestia pelas últimas modas, para jantar cem aquele velho!

Wade colou o ouvido à porta. Nada. Tentou espiar pela fechadura, sem conseguir observar coisa alguma. Experimentou torcer a maçaneta, mas a porta estava trancada.

Foi ao interruptor de luz, deu-lhe uma volta, e voltando atrás, nas pontas dos pés, na escuridão, deitou-se ao soalho, com o ouvido alerta. Havia um pequenino espaço entre a porta e o tapete, e ele pôde apanhar alguns pedaços da conversa:

"...não, Sr. Brown, ela é muito boa para mim"...

Ouviu o homem dizer qualquer coisa sobre a educação em França; e houve depois outras conversas pequenas, muito curiosas. De vez em quando a porta se abria e o garçon entrava com petiscos novos. Uma vez ouviu o homem falar em Constantinopla. Parecia descrever a cidade à moça.

Se alguma coisa foi dita que pudesse esclarecer qualquer coisa das relações entre os dois, John Wade não conseguiu ouvi-la. Sempre a jovem chamava o velho de "Sr. Brown". Nada levava a crer que fossem pai e filha.

Afinal Wade ouviu o homem pedir a conta e, levantando-se e limpando os joelhos, saiu do quarto, e já se aboletara num táxi quando a grande limousine se aproximou da porta do Lydbrake, para conduzir a moça e seu estranho companheiro. O "Sr. Brown" só se deteve para dar uma gorjeta — uma nota do Tesouro — ao porteiro, e depois o carro partiu.

Wade escolhera bem o táxi e o motorista; e o pequeno automóvel seguia perfeitamente a limousine, em grande velocidade, através das ruas da City. Passaram Aldgate, devoraram a estrada de Mile End e estavam próximos do Wapping, quando a limousine entrou numa rua transversal e se deteve. Por felicidade, Wade trazia sempre o táxi um pouco distanciado; o Inspetor saltou logo para a estrada e chegou à esquina da rua transversal no momento em que Lila penetrava numa casa. Quase imediatamente o carro se pôs em movimento, desaparecendo numa segunda esquina, e Wade caminhou para a casa.

Era uma vila muito simples, de janelas escuras. Wade resolveu esperar um pouco; um segundo táxi veio pela estrada, dobrou a esquina e foi parar à porta da vila. O detetive abrigou-se ao portão de uma grande vila da estrada, de onde poderia ver o que se seguisse.

Cinco minutos mais tarde a porta da habitação se abriu e Lila e uma mulher surgiram na obscuridade. Lila trazia um casacão desbotado, e Wade compreendeu que voltara por fim às roupas antigas. Não teve dificuldade em reconhecer Mum na mulher que acompanhava Lila.

Esperando que as duas se fossem, no táxi que trouxera Mum, Wade atravessou outra vez a estrada, e, abrindo o pequeno portão de aço, passou por um caminho ajardinado e foi ter à porta da casa. Com a sua pequena lanterna elétrica, descobriu uma campainha e apertou-lhe o botão. Ouviu o ruído, mas não lhe veio a resposta. Tornou a apertar o botão.

A porta mostrava uma fechadura Yale. Wade foi até à janela ao lado, mas notou que também estava bem fechada.

Ao lado da casa corria um estreito caminho, que levava ao quintalejo. Havia nos fundos uma pequena porta, cuja fechadura foi facilmente forçada com um canivete. Wade achava agora a porta da cozinha, igualmente trancada; mas a janela, que estava somente encostada, abriu-se com um ligeiro empurrão.

Ainda assim, se houvesse alguém na casa, Wade teria sido percebido. Quando o Inspetor saltou a janela e se encontrou na obscuridade da cozinha, não se ouvia o menor ruído.

Ninguém sabia melhor que o próprio John Wade que ele satisfazia uma simples curiosidade, às expensas da lei, que vergonhosamente infringia; mas esse pensamento não lhe causava o menor obstáculo, mesmo naquele instante, em que a polícia gozava de geral impopularidade.

A cozinha não tinha móveis; o fogão, agarrado à parede, estava coberto de poeira. À entrada da porta não havia nem sequer um pedaço de linóleo.

Wade abriu a porta e adiantou o pé. Evidentemente, a casa era habitada, porque o Inspetor encontrou um pequeno tapete sob seus pés, apesar de ter sentido que uma nuvem de poeira dele se elevara, ao ser pisado. Quadros pelas paredes: gravuras baratas, quase invisíveis sob a poeira dos vidros.

Wade abriu a porta de um outro quarto. Havia ali um leito, igualmente coberto de pó, e os demais móveis baratos do quarto se encontravam no mesmo estado de abandono. As persianas da janela tinham sido descidas. Via-se que não habitavam o quarto havia um bom par de anos.

Subindo os degraus atapetados, Wade chegou a um corredor, em que havia três portas fechadas. Uma delas dava para um banheiro; via-se que tinham usado recentemente o quarto de banhos, porque dele chegava um perfume muito suave de sabonete de preço. Os ladrilhos do chão estavam limpos; num cabide ainda havia toalhas úmidas. O grande espelho também fora polido de fresco, e numa mesinha ao lado da banheira havia uma esponja, uma saboneteira. Wade achou ainda um saquinho de papel com sais de banho. Fora ali que Cinderela preparara a sua toilette.

Wade passou para o outro quarto. Estava escrupulosamente limpo; viu, abandonado sobre o leito, o vestido que Lila usara pela noite; também encontrou ali os sapatos prateados; não achou meias: a rapariga devia tê-las levado consigo, calçadas.

Fez uma busca ainda mais minuciosa no aposento. As janelas estavam tapadas com um couro muito fino, de modo que era impossível ver-se luz do lado de fora. Não havia instalação elétrica na casa; a luz devia evidentemente ser substituída por um lampião de mesa que, depois de fechada a porta, foi aceso por Wade, para melhor conduzir as pesquisas. Perto do leito, embutido na parede, havia um grande armário. Tentou abri-lo, mas as portas resistiram; a fechadura era sólida, e as portas de robusta construção. Uma mesa, duas cadeiras — uma delas muito confortável — um longo espelho apoiado à parede, — e nada mais havia no quarto.

Wade apagou a luz e foi examinar o terceiro quarto. Evidentemente não era ele habitado, porque apresentava a mesma aparência dos outros aposentos. Tinha um leito sem lençóis, cheio de poeira.

Desceu os degraus atapetados, vagarosamente, pensativo. Aquela casa o desconcertava. Brown, Mum, ou o diabo que fosse, conservariam aquela vila vazia o ano inteiro, unicamente para que Lila ali se embonecasse? E se fosse mesmo verdade...

Descia ele o último degrau quando ouviu o som de uma chave que girava na fechadura da porta de entrada. Rapidamente se foi abrigar na cozinha, e esperou. Abrira a porta da frente. Um homem murmurou qualquer coisa. Fecharam então novamente a porta. Caminhavam em direção à cozinha. Por alguma razão metafísica um calafrio desceu pela espinha de John Wade. Ele não era um homem nervoso, a aventura o empolgava — e ele precisava resolver o problema daquelas saídas furtivas de Lila Smith.

Um dos homens se deteve à porta do quarto, abriu-a e entrou. Não traziam luz alguma, mas depois de um certo momento Wade notou uma restiazinha amarelada debaixo da porta. Tinha o ouvido apurado e, ainda que o conciliábulo no quarto fosse muito balbuciado, descobriu ao fim de algum tempo que um dos homens que lá estavam era chinês.

Nunca deixando de ouvir o que se dizia no quarto, Wade percebeu que subiam os degraus de pedra da entrada, e só teve o tempo preciso para voltar à cozinha; logo apareceu outro homem, desta vez um europeu, que trazia um casacão negro levantado até as orelhas. O recém-vindo também entrou para o quarto onde já estavam os outros dois. A porta foi empurrada e depois trancada.

Sim, o homem que acabara de chegar era um europeu — a sua própria envergadura o denunciava. Wade adiantou-se e foi ouvir à porta. Duas vozes pareciam falar com grande vivacidade; a terceira não se manifestou uma única vez.

Houve uma terrível ameaça na voz profunda do recém-vindo, uma espécie de reforço às palavras do único chinês que falava. Um dos três chegou até a porta e tentou abri-la, esquecendo-se de que ela estava trancada. John Wade fugiu até a cozinha. Deram uma volta à chave, giraram a maçaneta, a porta abriu-se, e os três homens apareceram. Saíram pela porta da frente, que foi fechada pelo último que passou.

Mal estavam na rua, e Wade já se achava atrás deles. Caminharam pela rua obscura, desembocaram na estrada e tornaram a entrar numa rua estreita, com o detetive a segui-los. Caminhavam já agora por uma das ruas próximas ao rio, num sítio de trapiches, cheio de pequenas vielas que davam para desembarcadouros de degraus de madeira, no rio. Pararam um momento, falando entre si, e um deles então sentou-se no chão, encostado à parede. Na luz incerta dos trapiches era difícil ver qual fora, dos três, o que se sentara; e o mais interessante foi que os dois outros se afastaram, deixando o terceiro ali, sentado e apoiado à parede.

John Wade estava num dilema. Suspeitavam os dois homens da sua perseguição? Aquele homem não teria ficado ali para verificar se ele os seguia? Era um dos chineses, bem o via o Inspetor. A calçada em que ele se sentara fora lavada naquela mesma noite, mas parecia suja, porque três pequeninos fios de sangue corriam para a sarjeta.

O apito vibrante de John Wade encheu de ecos as ruas vazias. Ele voava, ao tomar a direção em que os dois outros homens tinham desaparecido. Um guarda veio até ele, correndo. Não vira ninguém. Em poucos minutos doze guardas batiam os arredores. Mas não encontraram vestígio algum do europeu e do outro chim.

 

Tarde, naquela mesma noite, John Wade relatou tudo ao Chefe.

— Achamos na blusa do morto cerca de seis onças de platina pronta para ser manufaturada; pelo jeito, acho que devem pertencer a alguma das joalherias ultimamente roubadas, disse o Inspetor.

— O que há de curioso acerca desse indivíduo é que ele era mudo. Afinal, é o que diz o médico-legista. Não se pôde identificar o chim. Tomamos-lhe as impressões digitais, e chamei mesmo um perito da colônia chinesa, que nada conseguiu fazer. Ninguém conhece o homem.

Devia ser muito depois da meia-noite quando John Wade chegou ao Meca, e desta vez não vinha sozinho. Golly, em mangas de camisa, tirava vastas baforadas do cachimbo de cerejeira na sala de refeições do clube.

— Mum está dormindo, não está? perguntou Wade.

— Ela saiu, esta noite!

— Bem sei que ela esteve fora, esta noite, disse Wade, ríspido. E é mesmo por isso que quero vê-la agora.

Golly levantou-se da cadeira, teve um olhar sinistro para os dois detetives que o fitavam, e desapareceu. Quando voltou, trazendo consigo a respeitável proprietária do estabelecimento.

— Que negócio é esse? indagou ela, de saída.

— No momento, disse John, o negócio é de um assassinato, e um mau negócio, Lady Godiva.

Wade sentiu que Mum empalidecia.

— Assassinato? perguntou ela então, incrédula.

— Um chim foi assassinado esta noite por um dos dois homens que, antes do crime, tinham estado numa pequena casa da estrada de Langras, onde você também esteve, mais cedo, com Lila.

Mum não disfarçava: a sua surpresa foi formidável. Mas por um momento somente; quase logo achou uma desculpa:

— Sei, sei; estive na estrada de Langras, em casa de uma cunhada minha; há vários anos que estamos tentando alugar essa casa...

— Você levou a Lila para lá?

— Eu por acaso disse que não? perguntou Mum, azeda. Levei-a lá para mudar de roupa. A menina tinha que se encontrar... (aqui houve uma pausa) com o pai. O senhor queria saber quem era o homem, Sr. Trabalhador, mas ficou certamente desapontado.

John Wade sorriu.

— Seja mais delicada, Sra. Oaks, e a nossa visita lhe será mais agradável. Se você quer ficar por sua própria vontade metida nesse assassinato, a culpa não é minha. Não a estou ameaçando, apenas digo-lhe a verdade. Se não puder ter aqui todas as informações, terei que levá-la à presença do comissário, que nunca a viu com bons olhos. Não acha?

Mum parecia querer fuzilar o atrevido.

— Sinto muito, Sr. Wade, mas estou um pouco perturbada. Onde mataram o homem? Dentro da casa?

— Você sabia que a casa era freqüentada por chins? indagou John.

Mum levantou a cabeça, enfática:

— Nunca procurei saber de coisas que não fossem de minha conta, disse. Vou lá de vez em quando, para fins de limpeza — eu e a Lila.

— Quem é o pai de Lila?

Mas a mulher não parecia muito disposta a responder.

— Não posso estar a armar escândalos na sociedade, o senhor compreende o que quero dizer. Aquele cavalheiro tem outra família...

— Lila sabe disso? Mum hesitou.

— Não, não sabe. Pensa que ele é um amigo do pai, que se interessa por ela. Ele paga a pensão de Lila e, quando está na Inglaterra, manda-me dinheiro para vesti-la bem e levá-la a jantar em sua companhia.

— Ele é inglês?

— Americano.

A resposta pareceu vir um pouco intempestiva.

— Mora em Long Island, ou Nova Iorque, por aí assim. Um cavalheiro americano; mas nunca vi chim algum naquela casa, Sr. Wade, posso garantir-lhe. Além disso, tenho muito medo dos chins. O senhor não há de querer que eu acorde a menina para interrogá-la?

— Quantas chaves tem a casa da estrada de Langras? Mum pensou um momento.

— Só sei de uma chave...

— Fica sempre com você?

Ela concordou.

— Conhece alguém que possa ter outra?

Ela afirmou que não, com grande ênfase.

Wade convenceu-se de que a mulher falava a verdade; além do mais, não tentara ocultar o que acontecera pela noitinha. Contra os deveres da profissão, ele sentia agora pena de Lila; a explicação daquela "aristocracia" fora-lhe dolorosa.

Da menina nada se poderia esperar. E a própria Mum Oaks parecia querer explicar tudo sozinha.

— O "Sr. Brown" também possui uma chave da casa?

Mum assustou-se ao ouvir aquele nome, pelo qual também conhecia o velho.

— Nunca o vi com chave da casa, e não vejo razão para que possuísse alguma.

John Wade pensou um momento.

— Dê-me aí a que tem, disse ele.

Mum remexeu numa bolsa colocada sobre a mesa, retirando afinal uma chave amarrada à ponta de um cordel.

John Wade encarou-a de modo firme.

— E ela também abre o armário!

Por um segundo Wade viu um relâmpago de susto nos olhos de Mum.

— Armário! Que armário?

— Há um armário no quarto em que Lila muda de roupa...

Mum balançou a cabeça.

— Não sei de nada. Só tenho esta chave que lhe dei. O detetive sorriu.

— Pesa-me ser obrigado a arrebentar a porta do armário, disse, escarninho.

Mum já voltara à sua segurança nas respostas.

— É pena, disse friamente. Que quer que eu faça?

John voltou a cabeça. Lila aparecera na porta, envolta num velho quimono desbotado. A elegância do seu cabelo penteado e brancura das mãos tratadas pela manicura pareciam inverossímeis naquele antro sórdido. Ela olhava com surpresa para Mum e para John Wade.

— Pensei que me tivesse chamado...

— Pode subir de novo, disse Mum, secamente.

E depois, para Wade:

— O senhor acha que foi ela quem matou o tal chim? Muito boa! Essa menina tem mesmo cara de assassina! Ah! ah! ah!

Wade nada ouviu.

— Quero o nome e o endereço do pai de Lila — ou do homem que jantou com ela esta noite.

— Não posso dar o que me pede, disse a mulher, porque não sei de nada. O sr. já sabe quem ele é... chama-se Brown. Onde mora, não o sei. Sempre recebo um telegrama quando ele chega.

— E ele não conhece a casa de Langras Road? indagou Wade, martelando as palavras. Como então poderia ir apanhar lá a menina?

Por um momento, Mum perdeu a calma.

— Um carro de aluguel vem buscá-la, e eu a levo então até a igreja de São Paulo, e só; é aí que ele a vem encontrar.

— E depois vai levar a menina a Langras Road, insistiu Wade. Você está armando uma complicação perigosa, Mum.

Mas a companheira de Golly firmava o pé num detalhe: o misterioso "Sr. Brown" nunca estivera na vila de Langras Road.

John Wade voltou à casa do mistério, usando a chave que lhe dera Mum e não havendo mais necessidade de pesquisas secretas, deu uma busca completa na vila.

Teve uma surpresa: encontrou o armário aberto e vazio. Alguém estivera ali depois dele. As roupas de Lila jaziam por terra, evidentemente para dar espaço, no leito, ao conteúdo do guarda--roupa.

O quarto em que tinham conferenciado os dois chins e o europeu apresentava outro detalhe curioso. Havia uma certa umidade no aposento; Wade achou marcas de lama no soalho e uma das cadeiras ainda estava molhada. Chovera muito na região de Wapping, uma pesada pancada desabara logo depois da descoberta do crime, e até o cadáver tivera as roupas ensopadas de água. Havia uma razão pela qual o europeu deveria estar abrigado: ele trazia um comprido capote. Mas o segundo chim... Usava somente uma blusa, apesar de não ter deixado vestígio algum de sua presença.

Como teriam vindo até a vila? A pé? Ninguém os vira, nem mesmo o motorista que Wade deixara no extremo da rua e ainda esperava pelo passageiro que o abandonara, deixando correr imprudentemente o taxímetro do automóvel...

Na blusa do morto fora encontrado um papelucho com qualquer coisa escrita em chinês. No momento em que Wade estivera na estação policial o papel não tinha sido ainda decifrado. O que poderia ter sido feito antes, e só não o fora porque o encarregado de casos da colônia chinesa chegara muito tarde para examinar o corpo.

O sargento, sorridente, mostrara a tradução dos garranchos: — Por aqui nada se faz, Inspetor. É o endereço exato da nossa estação de polícia.

John leu e refletiu.

— Ele estaria vindo para cá e os outros o seguraram então...

E Wade foi para o seu gabinete. Sobre a mesa tinham deixado as quinquilharias tiradas da blusa do chim. Muitas delas eram engastes de que tinham sido arrancadas as gemas e, a não ser um único objeto, todas as peças eram de platina. A exceção era um anel dourado de sinete, de homem, muito gasto. Havia, no sinete meio destruído pelo uso, um templo à frente do qual estava uma figura de vestes clássicas. Mas estava tão consumido o sinete que era quase impossível restaurar as linhas do desenho. Na face interior havia as palavras: "Lil ao Larry".

O gabinete que John Wade ocupava na estação era um pequeno aposento que ficava ao lado do xadrez e por detrás do gabinete do sargento. Havia ali uma janela, de sólidas barras de ferro, e uma segunda porta que dava para um pequeno pátio. A sua escrivaninha ficava debaixo das grades da janela. Os dois homens examinavam os engastes e o anel de sinete quando Wade sentiu uma corrente de ar frio passar-lhe pelas pernas. O gabinete era frio de natureza, mas aquela corrente era para Wade desconhecida, e ele percorreu o aposento com calma, para descobrir donde vinha ela. E então ouviu alguma coisa que o fez voltar-se, com um estremecimento...

— Que nenhum dos dois se mexa! disse uma voz meio resmungada, atrás da máscara de borracha. Se esboçarem uma palavra sequer, irão terminá-la no inferno!

Dois homens estavam no gabinete; um deles com um pé no degrau e o outro na soleira da porta, e o segundo entre a porta e a escrivaninha. Traziam ambos grosseiros sobretudos negros; as faces estavam ocultas por trás de máscaras contra gases asfixiantes, e as mãos, envoltas em luvas de borracha vermelha, apontavam para os policiais duas respeitáveis pistolas automáticas.

— Encostem-se àquela parede, disse o homem que se achava na porta, entrando para o gabinete, e John Wade e o sargento obedeceram. Levantem as mãos, por obséquio. Será muito mais fácil de evitar qualquer travessura, bem sabem disso!

O que estava perto da escrivaninha deu dois passos à frente, remexeu nas quinquilharias, escolheu algumas delas e recuou para a porta.

John Wade não era um louco. Estava desarmado; a pistola mais próxima se encontrava na gaveta da escrivaninha, e ele tinha a certeza de que, se tentasse apanhá-la, sacrificaria a própria vida e assinaria a sentença de morte do sargento.

As duas figuras se moviam com uma calma incrível. John, olhando para o chão, percebeu que os pés dos assaltantes estavam metidos em galochas de feltro com solas de borracha.

Os dois saíram do aposento, e a porta foi empurrada e trancada, tudo em menos de três segundos. John deu um salto para a mesa, puxou a gaveta e arma em punho, correu para o aposento do lado, quase derrubando o guarda de sentinela à porta. Notou duas figuras que corriam ao longo da rua, mas só viu um automóvel veloz quando este corria a umas doze jardas da estação. Os dois homens saltaram para ele, o carro tomou aceleração rumorosa e saiu com tremendos estouros pelo cais deserto. Não havia possibilidade de apanhá-los. Wade voltou à estação e encontrou todas as reservas mobilizadas pelo sargento.

— Não os apanharemos, disse ele, incisivo. Telefone para as outras estações, é o melhor.

E voltou para o seu gabinete. Viu num relance que o anel de sinete desaparecera. Podia agora reconstituir a história do chim assassinado. Esse homem queria trair os chefes e trouxera aquele anel como uma prova. Era mudo, e incapaz de se fazer entender por alguém, tendo trazido por isso o anel para provar a identidade de algum dos membros da quadrilha; ou então o roubara num ímpeto de vingança. A última hipótese pareceu mais acertada. Os Homens de Borracha não se teriam abalançado a recuperar o anel com tanto perigo, se o objeto não tivesse de fato grande importância.

O caso agora se aclarava. O crime podia ser, sem dúvida alguma, imputado à quadrilha da Borracha.

Na manhã seguinte a polícia fez uma pesquisa cerrada. Todos os chins suspeitos foram interrogados. As hospedarias da beira do rio, as pensões chinesas, os congregações orientais — tudo foi revirado pela polícia. E a dificuldade crescia pelo fato de haver no porto doze navios em que os chins eram incontáveis, cozinheiros, taifeiros e até mesmo maquinistas; mas por esse lado a polícia nada conseguiu saber.

Mum Oaks fizera duas visitas a Scotland Yard e fora interrogada sem nada acrescentar para a solução do mistério. E o caso piorou quando a Secretaria de Estado baixou uma ordem limitando os poderes dos interrogatórios policiais; o que no caso de Mum Oaks pouco adiantou, porque Wade tinha a certeza de que nem os terrores da inquisição espanhola a teriam feito falar.

Na sua segunda e última visita, Wade acompanhou-a na descida dos degraus de pedra de Scotland Yard.

— Meu anjo, disse ele, você está procedendo muito mal. Por que diabo não nos quer dizer tudo o que sabe?

A fúria de Mum aquecia-lhe o cérebro. Como os dias se passavam sem que se realizassem os seus temores, e como também tivesse sabido a limitação das atividades policiais, a sua atitude seca se acentuara e a insolência crescera assustadoramente.

— É tudo o que quer de mim? perguntou ela.

Golly, que esperava pela esposa do lado de fora, veio tímido ao seu encontro, com uma face patética.

— Pobre de minha esposa perseguida... começou ele.

— Pare com isso! Não tem outra coisa para dizer? perguntou Mum.

— Eu nada mais tenho, menina, disse Wade, seco. A não ser que quando tiver nas mãos os Homens de Borracha....

— Os Homens de Borracha! resmungou ela. Boa coisa há de arranjar com eles! Chegaram até a roubar um anel na estação de polícia...

Ela falara demais. Os lábios se trancaram como a tampa de um alçapão. Mas era tarde.

— Como soube disso, Sra. Oaks? (A voz de Wade tremia.) Quem lhe contou essa história do anel?

Não houve resposta.

— Só quatro pessoas sabem do caso... uma delas sou eu próprio; o sargento Crewe é a outra; as duas restantes são os cavalheiros que assaltaram a estação...

E esperou uma explicação.

— Ora, está na boca da cidade, disse Mum por fim. O senhor não iria supor que os próprios assaltantes fossem espalhar a notícia pelo mundo inteiro!...

Ela esperava que Wade a detivesse para novo interrogatório. Com grande surpresa, entretanto, o Inspetor levantou a mão para o arco de entrada de Scotland Yard:

— Rua! disse Wade, a voz brincalhona. E depois, com ainda maior ironia:

— Recomende-me ao seu amante do guarda-roupa. Quando fez uma inclinação, Mum Oaks de boa vontade o teria assassinado.

Por uma interessante combinação de circunstâncias, o Inspetor Wade encontraria o "amante" de Mum vinte e quatro horas depois.

O que a polícia chamou de incidente de Haymarket ocorreu cerca das dez horas da noite. É essa a hora em que mais se acentua a solidão de West End; os teatros estão cheios, os carros dos espectadores se alinharam à beira das calçadas e o tráfego em Picadilly Circus é tão reduzido que quase não há necessidade de vigilância. Mais tarde ainda, quando os teatros se esvaziam, será o caos completo, mas mesmo às dez horas aquelas ruas são o paraíso do motorista tímido.

Dois homens desciam Haymarket vagarosamente e tomavam a direção da praça de St. James. Vinham conversando despreocupados, e certamente não haviam notado a mulher que os esperava a um canto da praça. Um policial que caminhava na mesma direção viu a mulher subitamente saltar para um dos homens e agarrá-lo pelo casaco. Mal viu o assalto, correu, e ouviu a voz áspera, zangada, da mulher que assaltara o homem e, correndo mais, chegou a tempo de separar os dois.

Nesse momento dois outros policiais vieram correndo para o grupo, e logo uma multidão, surgindo do nada, se reuniu em bêbada.

— Mas eu não conheço esta mulher! dizia o homem mais alto. Ela saltou sobre mim por acaso. Deixem-na ir embora. Deve estar bêbada.

— Não estou bêbada. Você sabe que não, Starey. Diga que não se chama Starey!

E começou a puxar com violência pelo capote dos policiais.

— Creio que tenha de processá-la, senhor, disse o policial, que presenciara o assalto.

O homem que fora atacado gostaria mais de ter fugido; mas agora era impossível.

— Mas não quero processar ninguém. Veja o meu cartão... Veja que não me chamo Starey. Nunca vi essa mulher na minha vida.

Falava com grande interesse, para o guarda. Este, porém, desculpou-se:

— Impossível, senhor.

Foi então que apareceu outra figura no pequenino drama. Um homem robusto, sangüíneo, abriu caminho no meio da multidão. Vinha ligeiramente embriagado, e evidentemente o guarda o conhecia, porque levou a mão ao capacete.

— Boa noite, milord.

— O que há por aqui, hein? Algum aborrecimento para vocês?

— Quase isso, Lorde Siniford, um pequeno caso. Se fosse o senhor não esperaria aqui, no meio da rua...

A mulher, que era contida por dois guardas, subitamente desprendeu-se dos que a seguravam e saltou para a frente, perto do recém-vindo:

— Tommy! gritou ela. Você se lembra de Ana, Tommy?... Eu costumava dar-lhe confeitos, Tommy. Não se lembra de Ana?

O recém-vindo olhou-a.

— Meu Deus! rosnou ele. Por que você, Ana...?

E então, com um ímpeto inesperado, ela segurou o homem pelos ombros e começou a falar-lhe em voz baixa e rápida.

— Hein! Mas o que é isto? (A voz de Lorde Siniford se firmou.) Mas o que é isto?

O guarda segurou de novo a mulher e começou a conduzi-la pelo meio da turba curiosa. Lorde Siniford ficou ali estatelado, vendo-a afastar-se, sem notar os olhares curiosos que o fixavam. Então, soltando uma praga, seguiu os policiais e a mulher. Empalidecera um pouco; a respiração se lhe fizera difícil, e ele estava bem mais sisudo que quando aparecera em cena, movido pela curiosidade que aglomerara a turba em torno de ligeiro conflito.

 

O Inspetor Wade possuía uma pequena vila no Wapping. A casa ficava no extremo de uma rua sossegada e tinha aspectos rurais no jardim, onde o Inspetor cultivava com grande carinho algumas limeiras. Os maldizentes de Wapping, sempre a duvidar da probidade dos oficiais da polícia, costumavam espalhar que o Inspetor morava ali por condescendência de alguns amigos poderosos e interessados em manter boas relações com a polícia. Mas o fato era que a vivenda fora recebida como herança, por morte do pai do Inspetor, que ali passara toda a sua vida — de modo que o código de perversidades dos habitantes de Wapping não poderia, em verdade, achar transações ilícitas que justificassem a posse da vila.

Wade tinha em casa, como criado e zelador, um antigo oficial de polícia, e a escolha fora boa, porque a impopularidade do Inspetor poderia ter produzido resultados desagradáveis. Até então duas tentativas de entrada suspeita na habitação haviam sido realizadas. Uma vez tinham ateado fogo nos fundos da casa, e, de outra feita, quando o Inspetor levava Liddy Coles ao cadafalso, tinham-lhe arrebentado a janela e ele chegara a achar uma bala de revólver encravada na parede da sala de visitas.

Wade já roncava no seu primeiro sono quando a campainha do telefone tilintou, e ele ouviu, do outro lado, a voz melancólica do Inspetor Elk.

— Lembra-se daquela mulher que você pescou no rio... Aquela mulher da fotografia...

— Ana? perguntou John Wade, sonolento. (No momento ele não se interessava por tentativas de suicídio.)

— Isso mesmo. Esta noite ela tentou assaltar o Capitão Aikness. (E esclareceu mais): Do navio o "Troiano".

— E um caso sensacional, Inspetor, disse John, sarcástico. Mas não devia tirar-me dos cobertores por causa disso...

— Sei, sei, disse Elk. Lorde Siniford prestou fiança pela mulher (pronunciou com dificuldade o nome de Siniford). Esse Siniford é um bêbado que apareceu no momento do barulho, na rua de St. James. Isso lhe interessa?

— Mas, Inspetor...

— Um momentinho, continuou a voz queixosa de Elk. Aquele anel dourado de sinete foi achado na mão da mulher, quando a trouxeram. Ela nada pôde explicar, porque teve uma crise nervosa, e fomos até obrigados a chamar o médico do distrito. Quando abriram a mão da mulher, acharam o anel...

John Wade despertara de fato, agora. Refletiu rapidamente.

— Lorde Siniford prestou fiança por ela? Sim, ouvi falar desse camarada... Ele a conhece?

— Pelas aparências, acho que sim. Ela o conhece — chama--lhe Tommy, ou coisa parecida. Se não fosse pelo anel, eu não o teria incomodado.

— Apareço aí daqui a pouco, disse Wade.

Vestiu-se num instante, aprontou a motocicleta e furou o nevoeiro em direção a Scotland Yard. Que Elk estivesse em Scotland Yard às duas da madrugada, não havia nisso nada de notável. Ele raras vezes saía de lá antes disso. O que fazia por lá, poucos sabiam. Os que diziam mal dele afirmavam que o Inspetor não tinha casa. E era verdade.

O anel fora mandado a Scotland Yard e estava sobre um pedaço de papel branco, na mesa de Elk, quando o detetive chegou.

— Por que a deixaram ir, sob fiança?

— Só identificaram o anel depois que ela se foi. Aconteceu que o sargento aparecesse e soubesse do caso. Naturalmente, o inspetor do distrito foi procurar Lorde Siniford, para prender de novo a mulher, mas não encontrou ninguém.

Wade conhecia a reputação de Lorde Siniford. Ele vivia num apartamento luxuoso da rua de St. James, sendo membro de um dos clubes de antecedentes célebres.

Siniford era o representante de um pariato decadente. Não tinha terras, nem dinheiro em banco; o casamento americano que fizera não alcançara sucesso e fora dissolvido em pouco tempo. Tinha o nome nos documentos de várias companhias falidas e comparecia com tamanha constância ao Tribunal do Condado que já chegara a ser um tipo popular. Chegara mesmo a dormir nos barcos do cais. Fora então que, inesperadamente, o dinheiro lhe viera, nunca ninguém soubera como. As dívidas foram pagas, e todos começaram a crer que, ainda mesmo que os seus capitais não fossem muito grandes, a renda era ao menos respeitável.

A última mulher se atribuíra, a princípio, aquela munificência; mas a criança desapareceu no dia em que o ex-sogro processou Siniford pelo dinheiro excessivo que gastara da fortuna da mulher, durante o curto matrimônio.

Era um freqüentador de botequins e também amante de corridas; possuíra um par de cavalos, que retirara do Turf quando nele se procedeu a um inquérito em torno da proveniência dos cavalos inscritos. Na polícia conheciam-no como um tipo de natureza bem humorada, mas essa opinião se foi modificando aos poucos com o tempero de certas aventuras que não devem ser detalhadas numa narrativa que pode cair em mãos de jovens.

Ainda não voltara quando Wade chegou ao apartamento, e o criado nada pôde adiantar de interessante.

— Sua Senhoria aparece por aqui quando quer, disse o criado. O senhor é da Polícia? Já estiveram aqui outros guardas. Sua Senhoria afiançou uma mulher, mas ainda não voltou aqui.

— Ele não tem um automóvel? perguntou Wade.

— Sim; tem um automóvel numa garage... Não me lembro onde.

— Acho melhor que se lembre! ameaçou o detetive.

A memória do criado logo se aclarou, e John foi parar numa garage da rua Dean, para saber que o carro fora retirado pouco antes da meia-noite.

Acabara esses interrogatórios, e saíra para a rua, quando viu um pequeno automóvel dobrar a esquina e se aproximar da garage. Um homem saltou do carro, e Wade reconheceu em Lorde Siniford o homem que vira à entrada do restaurante na noite em que Lila Smith e o seu misterioso companheiro tinham jantado tête-à-tête.

Não perdeu tempo com preâmbulos.

— Sou um oficial da Polícia, Lorde Siniford. Meu nome é Wade.

O homem olhou para ele, de perto.

— Oh! Já o conheço! Foi mesmo o senhor que vi aquela noite. O porteiro disse-me o seu nome. Mas o que deseja?

— Quero ver a mulher por quem o senhor prestou fiança, na polícia.

O homem não parecia bêbado: talvez o choque da pergunta o fizesse ficar ainda mais lúcido.

— Ora, meu amigo, o senhor é que deve procurá-la... O Lorde parecia divertir-se.

— Acho que ela o chamava de Tommy. O senhor a conhece?

— Não me venha com essas perguntas, rapaz...

— O senhor a conhece?

— Nunca a tinha visto...

— Quer então explicar-me por que prestou fiança por ela, e por que disse ao sargento da polícia que a conhecia há muitos anos?

A interrogação teve o seu efeito.

— Bem, conheço-a, sim. É uma antiga criada da minha família... Ana Smith.

— Diga isso a outro, respondeu Wade, ríspido.

Esperava que Lorde se desmentisse, mas isso não se deu. — Para onde a levou?

— Ela me pediu que a deixasse perto de casa, em Camberwell, foi a resposta.

A respiração do Lorde era ofegante.

— Recuso-me a fazer outras declarações. Levei-a simplesmente para casa, em Camberwell...

Wade interrompeu-o:

— Ela disse na estação de polícia morar em Holloway, que me parece ficar bem longe de Camberwell. Lorde Siniford, acho melhor que me conte tudo o que sabe sobre essa mulher. Tenho uma razão profunda para o interrogar. Um anel foi achado em sua mão, e esse mesmo anel foi roubado há dias, violentamente, de uma estação de polícia. Preciso vê-la para interrogá-la nesse sentido.

— Um anel? (Siniford estava evidentemente atrapalhado.) Não sei de nada a respeito de anéis. Ela nada me disse. (E então, aprumando-se): Não sei de mais nada sobre essa mulher. Já lhe disse tudo. Mora em Camberwell, porque foi lá que eu a deixei.

John Wade sorriu, na treva.

— Suponhamos que o senhor a tenha levado para algum sítio em que não possamos vê-la e interrogá-la?

Lorde Siniford agitou-se.

— Mas o senhor sabe ser impertinente! Eu não fiz mais do que um ato bom... hum!... um ato cristão, socorrendo uma velha criada da família... Um cavalheiro qualquer faria o que fiz... E agora o senhor vem me dizer que estou metido num... hum!... num roubo, numa complicação de anéis! É um desaforo, Inspetor. Vou me queixar ao Chefe de Polícia... Amanhã mesmo.

— Fale com ele esta noite, disse Wade. Se quiser, dou-lhe o número do telefone.

Não havia nada a fazer com aquele tipo. A única coisa que ocorria era esperar que a mulher comparecesse ao Tribunal, quando fosse citada pelos jornais. Mas a tal senhora não apareceu; um solicitador, evidentemente contratado por Lorde Siniford, levantou-se e disse que não conseguira avistar-se com a mulher, para que ela comparecesse à sessão.

— Certamente foi levada para qualquer canto da província, disse Wade ao inspetor local. O senhor sabe alguma coisa a respeito de Siniford?

O oficial disse:

— Não, a não ser que é um esbanjador de dinheiro.

— Não terá ele uma casa de campo? O Inspetor sorriu.

— Não, não tem. Mas tenho ainda alguns detalhes, disse, sorrindo. Antigamente Lorde Siniford costumava alugar casas de campo, e abandoná-las sem se lembrar de pagar os aluguéis. Com certeza alugou uma vivenda qualquer na zona do rio. Posso mandar revistar as casas da região do Tâmisa...

Essa investigação foi improdutiva.

John Wade ardia por encontrar um detalhe qualquer que o esclarecesse a respeito da ação demente de Ana. E esse detalhe chegou-lhe um dia, por acaso, mesmo na sua esfera policial. O navio "Troiano" estava ancorado no porto. O próprio Wade já o vira diversas vezes, quando ele subia e descia o rio; era um vapor de cinco mil toneladas, e diferente dos outros, porque só tinha duas chaminés. Ancorara no meio da corrente e recebia uma carga de maquinismos.

Às três da tarde a lancha de Wade se abeirou do "Troiano". O Inspetor foi recebido por um oficial moreno, que, sem dúvida, devia ser um sul-americano.

— O Capitão Aikness está em terra, disse ele. Sou o imediato.

John Wade mostrou-lhe o cartão e foi conduzido a um pequeno salão muito bem mobiliado. As paredes eram revestidas de mogno; havia duas ou três poltronas de couro e, ao fundo do salão, uma pequena lareira.

— E a sala de refeições dos oficiais, explicou o imediato. Temos sorte em que o nosso capitão seja um indivíduo que trata os seus oficiais como seres humanos. Quer sentar-se, Inspetor Wade?

John Wade sentou-se numa das poltronas, que se alinhavam ao longo da mesa de mogno que ficava ao centro do salão.

— O Capitão Aikness teve um ligeiro aborrecimento, acredito, na noite passada. Uma mulher atacou-o, em Londres, e houve um pequeno processo instaurado na polícia, disse o imediato, com os olhos fitos em John. Espero que não prendam a mulher por isso... O pobre capitão estava muito impressionado.

— Não a prenderam porque ainda não a encontraram, disse John. Prestaram fiança por ela.

O oficial pareceu contente.

— Deveras? Muito me alegra saber disso. Direi ao capitão, quando ele voltar.

Esperar ali era inútil. John Wade seguiu o imediato até o convés, despediu-se cortesmente do sul-americano e desceu para a lancha que o esperava.

— Conduza a lancha em derredor do navio, ordenou ele, e Jogo o barco começou a mover-se para o outro lado do "Troiano".

A única intenção de Wade era evitar duas barcaças atracadas à beira do vapor. Olhando sem curiosidade para o casco, ele viu, para o lado da ré, três janelinhas, e começou a pensar se o capitão proprietário teria acomodações luxuosas como a sala de refeições em que estivera. As vigias estavam abertas. De uma delas voava ao vento um par de pequenas cortinas azuis. E foram essas cortinas que chamaram a atenção do Inspetor para a janela.

A lancha passava em frente à janela do meio quando Wade enxergou através da vigia o rosto de um homem, só por um segundo — uma face morena, enrugada, e uma cabeça calva e luzidia. Mal viu a lancha, o homem se afastou da vigia, mas não antes que Wade o pudesse ter reconhecido.

John Wade vira à vigia o misterioso "Sr. Brown", que uma vez por ano levava Lila Smith a jantar num restaurante de luxo.

 

Não havia sombra de dúvida: era aquele homem; e John compreendeu logo que se tratava também do Capitão Aikness. O Inspetor ia ordenar a volta ao motorista da lancha, mas mudou logo de opinião. Se voltasse ao navio, iria ouvir a repetição da mentira de que o Capitão Aikness não se achava a bordo. E, depois, Wade não tinha autoridade para dar busca no navio; e não havia motivo para que a polícia fizesse isso. O homem teria notado que fora reconhecido pelo Inspetor? E por que o teria notado? Porque, ao que sabia, Wade nunca fora visto por ele, a não ser que...

Que espécie de comunicações existia entre o Capitão Aikness e o "Meca"? Aquele comum interesse entre Mum Oaks e o proprietário do "Troiano", no sentido do bem-estar de Lila Smith, parecia-lhe muito complicado. Mum dissera não conhecer o misterioso "Sr. Brown". E Wade sabia que Mum era a mentirosa das mentirosas.

— Desça o rio meia milha e depois volte, disse o Inspetor ao motorista. Quando voltar, passe bem junto ao "Troiano", o mais rente que for possível.

As barcaças continuavam carregando o navio, quando a lancha voltou, descendo a corrente. Um oficial dirigia o serviço do tombadilho. Dois outros homens, com certeza estivadores, conversavam em roda da escotilha. Não havia nem sombra do oficial e do homem, que desaparecera.

A lancha passou vagarosamente pelo navio; a corrente tornava a descida difícil. Quando julgou necessário, Wade ordenou a subida do rio. Tomou de um binóculo e começou a examinar as vigias do "Troiano". Pareceu-lhe um momento ver um rosto surgir e desaparecer, numa vigia larga, mas podia ter sido ilusão sua. Largou o binóculo, desanimado.

— Vamos para Favy Stairs, disse ao motorista. A lancha gorgolejou para o cais.

— Plaft!

Qualquer coisa atingiu a pequena cabine do meio da lancha, abalando os vidros e fazendo em lascas um dos espeques dos caixilhos.

— Diabo! gritou o motorista, exaltado.

— Continue para a frente, como se nada tivesse acontecido, sussurrou John.

— O que foi, Sr. Wade? Está ferido?

Wade tinha saltado para o fundo do barco, de joelhos.

— Deve ter sido alguma gaivota, rapaz. Não me venha agora com essas perguntas. Faça de conta que eu estou morto. Espere o porto para falar.

Que audácia, atirar em plena luz do dia! O tiro viera do navio; sobre isso não havia dúvida. Os guinchos dos barcos e os ruídos das correntes abafariam um disparo de revólver, mesmo se não estivessem os atiradores usando um aparelho silencioso. Mas que audácia! A emoção de Wade, no momento, mudava-se em admiração.

A lancha abordou uma estação flutuante.

— Carreguem-me para cima, disse Wade. Estou ferido... para propaganda.

E Wade considerava o acaso que o livrara da morte. Calculou que a bala passara por ele à distância de menos de uma polegada, e talvez o balanço do navio sobre as águas o tivesse salvo — unicamente isso.

Meia hora depois três chefes da Scotland Yard chegaram de automóvel, para inspecionar a cabine onde John fora alvejado.

— Algum "rato" zangado consigo, Wade. Por aqui há dezenas de lugares de onde se pode atirar. E você sabe que não é muito querido...

— Os "ratos" não andam armados de rifles, porque as armas grandes são difíceis de ocultar, disse Wade.

O chefe concordou.

— Se revistássemos o navio, nada adiantaríamos, e a partida ficaria perdida por uma vez. Aposto até a vida como eles esperam uma busca, e já arranjaram cinqüenta álibis salvadores. Que acha que devemos fazer?

— Mandem um barco da polícia com dois ou três oficiais para um inquérito em toda a zona do rio, para saber se o tiro foi ouvido, disse Wade. Faça com que também passem eles pelo "Troiano" e por todos os barcos ocupados ou vazios. Também acho que não seria má idéia que todos me acreditassem ferido. Isso se arranja com algumas ataduras e uma ambulância.

— O menino tem razão, disse o Inspetor Elk. Vou levá-lo eu mesmo para casa e ficarei lá em sua companhia. Sou ótimo enfermeiro, meu amigo.

Um pouco depois todos aqueles que na zona do Wapping tinham simpatias pelo crime exultaram ao ver uma ambulância parar diante da casa de Wade e sair do carro uma padiola carregada com grande cuidado.

— Havia de lhe acontecer por força, disse um espectador, contente. Ele vivia a procurar coisas...

Trabalhou-se até tarde, no "Troiano". Grandes lâmpadas foram penduradas à borda do navio, e os enormes fardos que enchiam as barcaças foram içados um a um para o porão, com o auxílio de um guindaste de aço. Num desses fardos acocorou-se um dos estivadores, para ir descer no convés, sem que ninguém desse pela sua aparição. Até ao oficial brasileiro que observava o carregamento da ponte da popa passou despercebido o salto do estivador. O homem meteu-se pelas sombras e ouviu uma palestra interessante entre dois homens que guardavam a escotilha.

—... Estiveram hoje aqui dois guardas da Fluvial!... Queriam saber quem andou dando tiros por aqui. Você ouviu algum tiro hoje, Harry?

— Conversas, replicou uma voz desconhecida, de sujeito cínico. A polícia tem sempre essa mania de descobrir coisas pelo rio. Conversas!

— Eles revistaram todos os navios do porto. Eram três grupos a fazer o inquérito... e disseram que o Wade arrebentou!

O ouvinte oculto sorriu para si mesmo, e lançou um olhar para a entrada do corredor: viu ali de serviço um taifeiro de feições horrendas. E a porta de acesso estava trancada e aferrolhada. Seria impossível tentar qualquer investida por outro lado sem cair sob a observação importuna do oficial moreno, no tombadilho.

O taifeiro interessava-se pelas manobras do carregamento. Uma"" ou duas vezes chegara mesmo a se afastar um pouco da porta; por um momento qualquer coisa o divertiu: um dos grandes fardos, içado pelo guindaste tomou direção errada e, quando a corrente o ia deixando tombar no convés, ele, que não chegara ainda no ponto de descer, foi deslizando em direção ao mar. Houve uma grande balbúrdia, os estivadores gritaram, o homem do guindaste segurou o fardo no espaço e o taifeiro de guarda na porta correu para a amurada. Imediatamente a estranha sombra entrou pelo corredor.

Tinha que passar pela cozinha; o cozinheiro estava de costas para a porta e a sombra foi desembocar num corredor transversal, estreito, que terminava numa escadinha também estreita.

De ordinário, nos grandes navios os aposentos dos oficiais ficam no convés; mas, no "Troiano", parecia não haver serviço de passageiros, e assim os oficiais se alojavam em cabines que davam para aquele corredor. Todas as cabines se encontravam fechadas, exceto uma, em que uma lâmpada tremia. Era bem grande e cheia de belos móveis; nas paredes havia diversas águas-fortes emolduradas. Uma cabine superior a muitas das próprias cabines de capitães que ele vira nos transatlânticos de luxo, e pareceu-lhe que naquele deck todos os alojamentos eram assim confortáveis.

Chegou então ao extremo de um corredor mais largo, e encontrou-se num lugar fracamente iluminado, onde reconheceu o salão de refeições dos oficiais. A porta e a pequena janela estavam fechadas, e ele logo viu que não poderia alcançar o salão de onde vira momentaneamente o rosto do "Sr. Brown".

Tentou abrir uma porta: achou-a trancada. Tentou abrir uma outra: fechada igualmente. Quando retirava a mão da maçaneta da segunda porta, farejou um perigo qualquer e mergulhou na escuridão do corredor. Mal se dissimulara assim na sombra quando a porta se abriu e um homem apareceu.

O passadiço estava mergulhado em penumbra. O salão dos oficiais, ao contrário, se achava fortemente iluminado, e o homem era perfeitamente visível. Usava o uniforme dos oficiais de marinha mercante; o detetive logo o reconheceu. Era o Sr. Raggit Lane, o visitante de Mum Oaks, que ele surpreendera em memorável ocasião.

Lane desapareceu no passadiço sombrio.

— Ninguém, disse então para alguém que o ouvia no interior. E, como resposta, veio uma voz profunda, sonora:

— Vi quando a maçaneta girou; não se iluda assim; procure bem. Talvez seja algum taifeiro, à procura de qualquer coisa.

John Wade refletiu um instante. Era aquela a voz do protetor de Lila Smith: quanto a isso não havia engano possível. Ouviu Lane resmungar, e depois a porta fechou-se. Através da parede pouco espessa, tornou a ouvir o som daquela voz tremenda:

— Mas vá ver o que é, com todos os diabos!

Wade saiu da obscuridade em que se dissimulara e já subira a escadinha quando a porta foi de novo aberta. O Inspetor estava agora no deck superior, parcialmente iluminado pelo reflexo das lâmpadas da amurada. De qualquer parte veio o som de uma badalada de sino, e o detetive viu um homem que esperava à entrada do corredor, divertindo-se com as manobras dos estivadores. Wade aproveitou o espaço entre dois tanques de água para observar melhor o que se ia passar. Mal se ocultara, ouviu o homem do passadiço gritar um nome, e o outro homem, aparecendo, responder-lhe. Houve um pequeno colóquio entre os dois, e o segundo marinheiro desceu o corredor, talvez até o salão dos oficiais. Voltou em poucos minutos, acompanhado de Raggit Lane.

Havia alguém que queria subir ao "Troiano". O vigia da escada interrogara o visitante e fora chamar Lane. Lane desceu, e tornou a voltar, sozinho, algum tempo depois. Certamente consultara o Capitão Aikness. Quando voltou, desceu a escada e foi buscar o visitante.

— Suba, senhor, disse ele. O capitão vai recebê-lo.

Havia luz bastante para que o detetive reconhecesse naquele homem afobado com a subida o estranho Lorde Siniford.

— Sinto incomodá-los a estas horas da noite, meu caro, disse Siniford, a voz trêmula, mas o caso é muito importante. Preciso ver o capitão. Deixei alguém de confiança na lancha que me trouxe, e há com esse alguém mais dois homens; disse aos três que, se eu não voltasse, que fossem para terra e avisassem...

— Não é preciso, Lorde Siniford. Nós mesmos nos encarregaríamos de o levar para terra; e, se o senhor prefere voltar na sua lancha, será feita sua vontade, foi a resposta de Lane.

Wade somente apreendera alguns trechos da palestra, mas vira logo que Siniford aparecera por ali com algum temor e se preparara para algum possível perigo.

O homem de guarda ao passadiço de entrada recostara-se a um baluarte da amurada e assobiava baixinho. Se fosse possível, John Wade teria aberto caminho através do deck oposto, porque aquela posição não lhe dava conforto algum: um dos tanques continha água quente. Mas, quando tentou subir, viu que o caminho estava barrado por um tabique de madeira.

Para grande pesar de Wade, um vigia qualquer notou um barco que vogava de encontro ao casco do navio.

— Amarrem aí esse barco, disse o marujo, em tom de autoridade. Amarrem-no a uma barcaça.

A resposta que veio de baixo não se pode escrever aqui, mas o vigia pareceu deleitar-se. Durante o pequeno intervalo que se seguiu, Wade tentou o caminho pelo deck e, deslizando pelo passadiço, foi parar na metade esquerda do navio, a que dava para a cidade. Que espécie de negócio teria trazido Lorde Siniford àquele navio, a não ser o caso urgente de Ana, e o assalto da noite anterior, em Haymarket? Da garage, vigiada a manhã inteira, o carro não fora retirado até ali e os próprios policiais que seguiam Lorde Siniford lhe tinham perdido a pista. Também não havia dúvida sobre o fato de ter ele estado com Ana durante o dia todo, e talvez fosse o resultado de suas conversas com a demente que ele trouxesse agora ao "Troiano".

O largo corredor que desembocava no salão dos oficiais continuava às escuras, Wade enveredou por ele.

O Inspetor caminhou então para a porta, sabendo que ela não devia ser muito espessa. Percebeu um zumbido de vozes... Aikness estava ali. Ouviu uma tirada em voz alta de Siniford, mas não distinguiu bem as palavras.

Agora nada havia a fazer senão deixar o navio. Wade voltou-se e estacou. No meio do corredor destacava-se Raggit Lane, a mão no bolso do casaco, um sorriso divertido a iluminar--lhe as faces.

— Está procurando alguma coisa, rapaz?

— Não, senhor, respondeu Wade. Queria apenas um copo d'água.

— O senhor veio de uma das barcaças, não foi?

John viu logo que fora reconhecido e que Lane se divertia com ele. Notou-lhe um revólver no bolso do casaco. Mas não deu mostra alguma de se considerar em perigo. Tirou do bolso da calça uma tabaqueira pequenina, escolheu um naco redondo e negro e fez tenção de mascá-lo; depois, parecendo mudar de idéia, atirou o pedaço de fumo pela vigia aberta.

— Que tal se conversássemos um pouco... começou Lane.

Parou nesse momento e voltou a cabeça para a vigia. Vinha uma forte luz verde de baixo, do rio, e o seu reflexo dançava no teto branco do corredor.

— Já sabem que estou aqui, disse John, sorrindo. Tenho aí fora três barcos da polícia e, antes de os deixar, disse-lhes: "Se houver qualquer coisa, tratarei de avisá-los". O meu sinal foi dado: o fumo não é fumo, meu amigo, é um composto que se inflama ao tocar a água. Conhece química, Sr. Lane?

O rosto de Raggit Lane se ensombrou:

— O senhor vai armar alguma complicação?

— Não agora que o senhor tirou a mão do bolso, disse Wade. Dentro de alguns minutos hei de pedir-lhe que me mostre essa arma e, se o senhor fizer alguma oposição, sentirei muito que não possa seguir viagem com o "Troiano".

Raggit Lane tentou sorrir.

— Vocês da Polícia Fluvial são uns danados! Tivemos aqui um homem...

— Dispenso a sua narrativa. Sei que o senhor teve aqui um homem, ou mesmo dois homens, mas que má pontaria, Sr. Lane! Errar um alvo a cento e cinqüenta jardas!

As faces de Lane se fizeram brancas.

— Feri o seu amor-próprio?

Voltou a cabeça ao ouvir o som de passos pesados no deck superior.

— Muito bem, sargento. Mande um homem cá para baixo. Agora, preciso ver a sua arma, Sr. Lane.

Relutando ainda, o homem tirou a pistola da algibeira. Nesse momento abriu-se a porta do salão e apareceu o vulto enorme do Capitão Aikness. Mas desta vez não tentou ocultar-se.

— Que barulho é esse? perguntou ele, duramente.

— Capitão Aikness?

O velho encarou quem o interrogava.

— Capitão, estou justamente pedindo ao seu oficial que me explique porque usa uma pistola, sem o consentimento da polícia.

O velho estranhou a idéia.

— Um oficial de marinha pode andar armado, bem sabe disso, Sr. Não-sei-o-seu-nome.

— Chamo-me Wade, capitão. (Os olhos de Wade rebrilharam.) O comandante por certo ainda não me conhece.

— Nunca ouvi falar no senhor, disse o outro, ríspido, e John tornou a sorrir.

— Será porque Mum Oaks se fez muda como aquele infortunado chim que levou o diabo, liquidado por outro chim ou por (Wade olhou para Raggit Lane) um cavalheiro magro que usava um capotão (Wade acentuou bem as palavras) que é muito diferente do seu, Sr. Lane. O senhor tem licença para usar essa pistola?

— Mas a licença não é necessária, objetou o capitão.

— No porto de Londres, sim senhor, é necessária, se o possuidor da arma anda sempre munido dela, disse Wade. Tenho que apreendê-la. (Meteu a pistola no bolso.) O senhor sabe onde reclamá-la.

Fez uma pausa, já com o pé no degrau da escadinha.

— Siniford talvez gostasse de vir para terra comigo...

— Lorde Siniford decidiu passar a noite a bordo, foi a surpreendente resposta. Se não acredita nisso, pergunte ao próprio Siniford... Mas eu bem gostaria de saber por que o senhor se mete nos meus negócios, Inspetor Wade!

E abriu caminho para que Wade passasse. Lorde Siniford estava sentado numa das enormes poltronas do salão, um charuto entre os dentes, aparentemente sossegado. Olhou para o Inspetor, quando este penetrou no salão e, no primeiro momento, não o reconheceu. Mas quando o reconheceu, levantou-se.

— Que quer o senhor? perguntou, rápido. Não lhe posso dar informação alguma.

— O senhor vai para terra esta noite?

— Vou ficar a bordo, meu amigo, disse Siniford. O Capitão Aikness pôs uma cabine à minha disposição.

Evitava os olhares do detetive e, no fundo, não parecia muito sossegado. John pensou que fosse talvez o embaraço de ter sido encontrado no navio.

O detetive voltou para o passadiço.

— Está satisfeito? perguntou Aikness, vitorioso.

— Inteiramente satisfeito.

Olhou pela vigia aberta, e então:

— Encontramos o seu anel de sinete. Poderá ir buscá-lo quando quiser.

O homem estremeceu.

— Um anel de sinete? Não sei o que quer dizer. Não perdi nenhum anel de sinete, disse, de um jato.

Wade concordou.

— Pensei que o anel tivesse sido tirado de sua mão, quando aquela mulher o assaltou. Um anel com a fachada de um templo e a figura de Afrodite. Não sabe de nada sobre ele?

— Não, respondeu o capitão, num ímpeto.

— Mas eu sei, disse John Wade. Aquelas figuras representam o antigo sinete de Tróia. Uma coincidência, capitão. Não conheço qual é o novo sinete de Tróia (os seus olhos se fixavam nos olhos azuis do capitão), mas talvez não ficasse feio o vulto de um Homem de Borracha, com uma metralhadora na mão e uma corda em torno do pescoço.

O rosto do Capitão Aikness continuava uma máscara.

Por um instante ele quis responder, confundir Wade; depois, voltando-se de súbito, caminhou para o salão e desapareceu lá dentro, batendo violentamente com a porta.

 

John Wade voltou aos três homens de Scotland Yard que o esperavam.

— Não sei o que poderemos fazer, disse o chefe, depois de ouvir a narrativa do Inspetor. Um mandado de busca nada resolveria, afinal. Não temos indício algum que nos leve a ligar o navio aos Homens de Borracha. O "Troiano" está registrado no Rio e navega sob o pavilhão brasileiro. Ainda mesmo que varejássemos a embarcação de extremo a extremo, não encontraríamos nada que nos autorizasse a afirmar sua participação no bando dos Homens de Borracha. Em todo caso, vou proceder a uma busca completa no navio. Mas quando fizer isso, já o "Troiano" estará em ordem.

Os dados fornecidos pelo departamento náutico eram os mais completos. O "Troiano" fora a princípio navio de uma linha regular de transatlânticos; depois, comprara-o um brasileiro chamado Dumarez (isso há dez anos), e por esse tempo ainda o navio estava perfeitamente novo. Um inquérito cuidadoso na relação do movimento dos portos mundiais permitiu à polícia acompanhar os movimentos do "Troiano". Do ponto de vista da polícia, esses movimentos não deixavam de ser duvidosos. O "Troiano" estivera certamente em Londres, e uma vez somente em Nova Iorque, quando os Homens de Borracha assaltavam bancos dessas cidades, mas havia muitos crimes atribuídos à quadrilha cometidos no momento em que o navio vogava a centenas de milhas do sítio do assaltos.

Entanto, John Wade, examinando a informação datilografada, fez uma descoberta. Ainda que estivesse do outro lado do Atlântico quando um crime era praticado nos arredores de Marselha, o "Troiano" aparecia nesse porto dois meses depois do roubo.

— Mas essas travessias do navio são dispendiosas, protestou alguém. Ninguém usaria um paquete como o "Troiano" para...

O chefe tirou da gaveta um pedaço de papel.

— O seu argumento não procede, disse. O navio paga um dividendo sobre o seu comércio. E olhe para estes algarismos: eles representam o total, em libras, do dinheiro dos roubos dos Homens de Borracha. Sem considerar os títulos, que não são negociáveis, temos perto de um milhão e meio de libras em dez anos, e só está computada uma parte do todo. Há ainda muita coisa que não conhecemos... (O chefe olhava, triste, para a soma.)

— Vou agora dizer-lhes qualquer coisa (falava Elk); se fizermos uma busca no navio, nada acharemos. À primeira idéia de uma invasão, tudo o que pudesse despertar suspeita seria jogado ao rio ou destruído de qualquer jeito.

No meio da noite a mais alta autoridade foi consultada. A opinião geral era que se deixasse o "Troiano" intacto.

Durante toda aquela noite, guardas do cais e do rio vigiaram o transatlântico, e quando Lorde Siniford baixou à terra, às sete horas da manhã, foi seguido até seu apartamento da rua de St. James, de onde não saiu o resto do dia.

Às três da tarde o "Troiano" recebeu os últimos fardos de carga, e desceu o rio, vagarosamente. Pela tardinha chegou a Gravesend, onde foi interditado por um oficial médico e seus assistentes. Tinham chegado de Londres informações que diziam haver a bordo casos de moléstia contagiosa, e os médicos só descansaram depois de um exame completo de todos os tripulantes. O Capitão Aikness foi levar o médico até a escada, despedindo-se dele com frieza.

— Sinto muito que nada tenha para mandar dizer a Scotland Yard, disse ele ao "oficial médico", que. sorriu enigmàticamente.

O "Troiano" passou Dugeness e desapareceu afinal no Atlântico. Quatro dias depois da partida, John Wade recebeu um radiograma do navio:

 

"Quando voltar a Londres terei gosto em vê-lo, para uma boa palestra."

 

E a assinatura: Aikness.

— Interessante, disse John Wade. Que artista esse Aikness! Mas não explicou a razão do adjetivo.

— Afinal de contas, disse Elk, a quem Wade mostrou o despacho, parece que vamos descansar desse negócio dos Homens de Borracha.

 

 

A profecia de Elk era de certo modo prematura. Aquela mesma noite, às dez horas, um policial notou rolos de fumaça que saíam de uma loja vazia da rua Oxford. Estivera ali até pouco tempo uma casa de peles, que abrira falência. O policial deu o alarme, e em poucos minutos os bombeiros apareciam. As chamas cresciam com grande rapidez; num instante a rua Oxford se encheu de automóveis repletos de bombas e mangueiras, a metade das reservas policiais do distrito foi convocada para manter a multidão.

Os dois detetives civis escalados para policiar o quarteirão em que se encontrava o banco Northland, atraídos pelo tumulto, afastaram-se um pouco para perto do fogo, num sítio em que pudessem melhor apreciar os bombeiros em ação. O banco Northland possuía grandes reservas metálicas e nele ficava sempre um guarda noturno, armado; mas ele também se interessara pelo incêndio, e contemplava a cena através da janela do salão principal quando uma corda lhe deslizou pelo pescoço e ele foi jogado ao solo.

Havia uma lâmpada naquele salão, e essa lâmpada ficava acesa a noite inteira; assim, se os dois detetives particulares tivessem voltado as vistas para o banco, presenciariam o assalto — se aproveitassem o momento psicológico.

Enquanto isso, dominavam o incêndio, que já deixava de ser um espetáculo fascinante, e o guarda que dera o alarme descobriu que uma porta dos fundos fora forçada. Precipitou-se para o interior da casa, encontrou um vigilante meio morto, uma porta de aço aberta pela metade, e a casa-forte vazia.

Somente um homem vira o assalto: um velho vagabundo das ruas, que dormia nas portas avarandadas. Contemplara toda a balbúrdia do incêndio e reconhecera, prudente, que nessas ocasiões a polícia tem muito pouca simpatia pelos vagabundos. Fora despertado do cochilo pelo ruído de um automóvel e vira três homens saltarem dele e desaparecerem — parecia-lhe — pela porta dos fundos do pátio do banco. A própria testemunha não sabia direito se ali ficava o pátio do banco, e dificilmente tornaria a ver os três camaradas, pelo fato de se elevar para o céu a chama rubra do incêndio, e também porque a multidão o impedira de examinar atentamente os assaltantes. Os três homens vinham vestidos de negro e traziam objetos em forma de cilindros pendentes do cinturão; tinham as faces cobertas com máscaras de borracha e malacacheta. Julgara que fossem bombeiros, usando algum uniforme especial, ficando surpreso quando alguém se assustou ao ouvir a história.

Quanto à direção tomada pelo carro, não havia informação alguma. A polícia sabia que os Homens de Borracha seguiam sempre as ruas mais transitadas. Havia assim uma segurança enorme, quanto a uma possível perseguição.

John Wade, tomando a lancha para a ronda da manhã, recebeu uma comunicação curta e confidencial que lhe não disse mais do que o que ele já lera nos jornais da manhã. Um comentário sobre o acontecimento chegou-lhe mais tarde, de um ladrão aposentado que, sentado à borda de um rebocador, deixava pender as pernas para a água. Wade passou pelo rebocador com a lancha e mandou parar. O Fungador começou uma crítica feroz aos métodos policiais.

— Não sei porque todos os oficiais da polícia não se dedicam de coração a esse caso dos Homens de Borracha, Sr. Wade. O senhor perde seu tempo procurando uns pobres-diabos — que o senhor bem sabe que roubam para não morrer de fome. Mas esses Homens de Borracha continuam a fazer das suas...

John Wade sentou-se à borda da lancha, enquanto o sargento subia ao rebocador para uma ligeira inspeção.

— Eu não procuro somente esses "pobres-diabos" dos ladrões do rio, belezinha; estudo agora as formas do perjúrio... Por um destes dias ainda lhe faço presente de dez anos de cadeia, Fungador, e no dia em que você entrar para detrás das grades, entro com um donativo respeitável para a Casa dos Cães Perdidos.

Sniffy fungou alto.

— Isso é uma perfídia sua, Inspetor. Nem por um milhão de libras eu me arriscaria a desagradar-lhe, Sr. Wade.

— Você liquidaria o próprio pai, por uma nota de dez libras, redargüiu John Wade.

Desta vez o Fungador não fungou — bufou.

O sargento voltava, e, quando a lancha se afastava com o seu rumor característico em meio da corrente, o Fungador murmurou, em tom de zombaria:

— Diga aos Homens de Borracha que não o liquidem também, Inspetor!

John Wade sacudiu a mão, num gesto satisfeito.

 

 

Entre os "ratos" do rio e os guardas da Fluvial há uma hostilidade muito mais profunda do que a que reina entre os guardas da terra firme e os ladrões e arrombadores. Mas havia também uma certa compreensão, no rio, entre os guardas da Fluvial e os "fatos", que parecia vir da camaradagem e da promiscuidade do Tâmisa.

John Wade completou a ronda, deixando a mais importante visita para o final. O "Meca" não era lugar muito agradável de se visitar. Para chegar lá, o Inspetor preferia sempre desembarcar no ancoradouro do trapiche Fraser, que tinha degraus menos podres e mais seguros.

O trapiche Fraser, com os seus telheiros cambaios, estivera deserto até dois meses atrás. Não havia segredo em torno dele; e, na verdade, não há segredos em torno de nenhum dos negócios da beira do rio. As histórias das tabernas eram populares; comentavam-se sempre a insolvabilidade de uma serralheria, a razão da falência de certa fundição importante, as dificuldades dos grandes trapiches e das companhias de exportação. Todos sabiam muito bem que os Estaleiros Grigley se encontravam perto do craque, porque os acionistas reclamavam dividendos, infrutiferamente, havia um bom par de anos. Assim, era do conhecimento de todos que o trapiche Fraser fora desapropriado por uma sentença do Supremo Tribunal, e assim o lugar era olhado como um exemplo de degradação, até o momento em que transformaram o trapiche em garage, num abrir e fechar de olhos.

Na verdade, não havia razão para que tivesse acontecido aquilo com o trapiche; naquela zona era ele o único que podia carregar e descarregar as barcaças com a maré baixa; o rio era ali mais fundo, e as barcaças de calado, bem como as chatas, podiam mover-se com maior facilidade.

Infortunadamente para o pobre Fraser, já morto, a fachada do trapiche era muito pequena; assim, somente uma barcaça podia receber ou deixar carga e, como houvesse outro trapiche extenso, a dois passos, o lucro do negócio tornou-se pequeníssimo.

Wade galgou os degraus, subiu ao cais e, saltando a cerca de arame, caminhou para a "fachada" do "Meca". A janela — já lhe era tão familiar! — achava-se aberta. Mas Wade foi encontrar vazia a sala de refeições. Não havia sinal de Golly, nem som perdido da voz estridente de Mum. O Inspetor esperou um pouco e viu aparecer na sala uma criada nova. A moça estacou e quase deixou cair um prato, à vista de John.

— Onde está Lila? indagou Wade.

A criada olhou-o com suspeitas.

— Miss Lila está lá em cima, disse ela, depois de algum tempo.

Miss Lila? Nunca ninguém usara desse tratamento para designar a mocinha...

— Peço-lhe que desça para falar comigo! Onde está a Sra. Oaks?

A rapariga estirou o lábio inferior e abanou a cabeça:

— Não sei. Não devo contar a vida dos patrões aos estranhos. A Sra. Oaks me disse isso... (E então, como se recordando): O senhor não é o Inspetor Wade?

John concordou. A criada hesitou um momento.

— Espere um pouco, e saiu.

John esperou mais de um minuto, antes que Lila aparecesse. Abriu então a boca, espantado ao ver a recém-vinda. Já não estava mais ali, à sua frente, a serva esfarrapada de Mum Oaks. Cinderela vestira-se para o baile do palácio.

— Alô, formosa Lila... começou Wade, e contemplou a face da rapariga.

Ela estivera chorando. Antes que Wade pudesse perguntar qualquer coisa, ela correu inesperadamente para o peitoril da janela e, mais inesperadamente ainda, estendeu ao Inspetor a mão fria.

— Não fique aqui, por favor! disse em voz baixa. A Sra. Oaks saiu. Os tempos vão mudar e tenho de ir à escola estudar francês e alemão.

Segredou tudo rapidamente, num ritmo mecânico. Wade teve a impressão de que ela recitava frases decoradas.

— Onde? perguntou ele.

Lila olhava para o rio.

— Não sei... Acho que na França. Mum fez com que eu prometesse nada lhe dizer, mas não pude deixar de confessar... Disse até à moça que me avisasse de sua chegada. O senhor me viu aquela noite?

Wade fez que sim.

— Era aquilo a "aristocracia". O senhor agora verá o meu exagero em falar daquele luxo — do qual, afinal de contas, não gosto muito. Assusta-me um pouco. Não sei bem por que.

A todos os momentos Lila parecia prestar atenção a algum ruído.

— Lila, o que há ao fundo de tudo isso? Quem é o Capitão Brown?

— Não sei. Ele é sempre muito delicado para mim, mas tenho ainda assim muito medo dele. O senhor não acredita? A princípio eu gostava muito daqueles vestidos maravilhosos... Mas agora, por fim, não sei direito (Lila meneava a cabeça), acho que tenho até medo deles.

— Quem é o Capitão Brown?

Lila respirou longamente.

— Mum diz que é um parente meu, no que eu acredito.

John Wade refletiu um instante.

— É possível que eu a veja, sozinha, em outro lugar? Se eu viesse encontrá-la hoje à noite, no cais...

— Não, não, não! (Recusava com grande veemência.) O senhor não deve vir por aqui hoje à noite.

Ela sabia de qualquer coisa, de qualquer coisa de mais aterrorizante e de mais importante que a própria "aristocracia"; alguma coisa que de fato a assustava.

— O senhor não deve vir... Prometa-me...

— Pode, então, encontrar-se comigo... Não sai sempre sozinha?

Lila pareceu hesitar.

— Mande-me um recado, um bilhete. Encontrá-la-ei onde quiser, continuou John.

Ela olhava-o, interessada.

— Mas para quê?

Aqui ele sentiu o passo falso; não tinha desculpas para aquele encontro clandestino, e preferiu não desenrolar ali a lista de suas suspeitas.

— Gostaria de ajudá-la, Lila. Quero fazer alguma coisa por você; porque acho que precisa de auxílio...

Ela negou.

— Não acho que isso seja possível... E não quero encontrá-lo.

Falava com dificuldade, sem fôlego; tinha as faces vermelhas, mas às últimas palavras já estava pálida e parecia cansada.

— Confio no senhor... Acho-o tão sincero! Wade sorriu.

— Bonitas palavras, menina. Sabe onde estou morando? perguntou de novo.

— Sim, sei. (Lila olhava-o nos olhos, fixamente.) Numa casa pequena que se tem defendido corajosamente... Pode-se entrar lá por uma abertura do forro da cozinha e há um velho poço no fundo do jardim.

Wade ia interrogá-la, quando ela se voltou e desapareceu da sala.

John Wade caminhou vagarosamente ao longo do cais, assobiando baixinho, para si mesmo. Havia um forro de madeira na cozinha da sua casa, e a janela dos fundos era o único ponto vulnerável da sua residência. Ele jamais pensara que alguém conhecesse o poço do jardim; mandara cobri-lo com tábuas e carvão quando seu pai ainda vivia. Também sabia o Inspetor porque Lila lhe dera esses detalhes: ouvira-os de alguém que tivesse excelentes razões para proceder ao reconhecimento do terreno.

John Wade ordenou ao motorista que levasse a lancha meia milha para cima, e que descesse de novo, parando em frente à "fachada" do clube. Havia um pequeno pátio à frente do "Meca", e dois pequenos bancos de madeira, onde, a qualquer hora do dia, seriam encontrados dois ou três marinheiros de navios mercantes, sem emprego, e seus amigos. Esses marinheiros olhavam Wade com um interesse meio preguiçoso, quando o Inspetor passava pelo pátio e ia interrogar o idoso porteiro.

— Sim, Inspetor, ela chegou agora mesmo. Se quiser esperar, vou chamá-la.

John esperou, ao pé da escada mal segura, e momentos depois voltou o homem, que o conduziu ao santuário de Mum. A Sra. Oaks evidentemente regressava de um passeio, porque ainda não tirara as luvas e o chapéu.

Wade esperava um cumprimento seco e insolente, mas encontrou um sorriso e maneiras bem humoradas.

Uma das coisas que notou à primeira vista foi a sujeira do quarto. Ainda que a manhã estivesse avançada, nem a vassoura tinham passado pelo soalho. Talvez a ausência de Mum fosse responsável por isso, porque Wade sabia que ela sempre deixava o quarto trancado ao sair.

— Sente-se, Sr. Wade. Desculpe a desarrumação; o quarto ainda não foi varrido.

Os olhos de Mum pareciam muito cansados; não dormira à noite.

— Não dormiu a noite passada, Sra. Oaks? perguntou John, amável, e o sorriso meio debochado de Mum abandonou-a por um instante.

— O senhor está ficando um bom detetive, Inspetor Wade. Não, não dormi quase nada; tive uma nevralgia.

— E algumas visitas, disse John, alegre. Não me consta que tenha o vício de fumar charutos.

Havia diversas pontas de charutos na lareira e mais alguma coisa que o fizera alegrar-se, à entrada. E essa coisinha o fazia rosnar interiormente, enquanto, por fora, sorria para Mum Oaks.

— Dois ou três dos hospedes vieram até aqui fumar, disse ela. É interessante que o senhor tenha notado isso.

— Como vai Lila?

— Deve ir para uma escola, um internato do Norte... São desejos do pai. Um homem de coração, não acha, Inspetor Wade? é pena que viva sempre a navegar.

— Quando espera ver de volta o Capitão Aikness?

Ela não manifestou surpresa alguma ao ouvir o nome.

— Dentro de três meses, talvez dentro de um ano. E, a propósito, Inspetor Wade, deixamos a casa de Langras Road.

— Onde está Lila? indagou Wade, percebendo o desvio da conversa.

— Aí em cima, com um pouco de dor de cabeça. Disse-lhe que ficasse por lá.

Mum olhava-o desconfiada, e os seus olhos bem diziam: "Teria ele visto a pequena?"

— Vai para um internato do Norte, hein? Mas já está muito crescida para freqüentar internatos. Pelo que vejo, o Sr. Raggit Lane acompanhou o Capitão Aikness?

A mulher concordou.

— Ele também está navegando. Golly igualmente foi. Sabe que já navegou bastante, e o "Troiano" precisava de um despenseiro. Como aqui poucos serviços presta, mandei-o embora de boa vontade. (E depois): Espero que não se tenha ofendido, Inspetor Wade, com aquilo que lhe disse outro dia, em Scotland Yard. Eu estava naturalmente perturbada e, como a polícia me perseguia e eu sabia que o senhor não gostava de mim...

— Diga-me uma coisa, Sra. Oaks: O Capitão Aikness sabe que Lane visita sua casa?

A frase fora relampagueante. Mum abriu a boca para responder, mas as palavras não lhe ocorriam e a articulação se lhe fez difícil. Pelo espaço de alguns segundos ela pareceu embaraçada.

— Eu mesmo não sei, Inspetor, disse, afinal. Não me preocupo com os negócios alheios. O Sr. Lane vem aqui freqüentemente e sempre o recebo como amigo.

— E não há nada no fundo de tudo isso?

Wade, de pé em frente à lareira, refletia intensamente. E com o rabo do olho via que Mum se embaraçava mais e mais.

— A senhora só se foi deitar pela madrugada, Madame Oaks, e isso é muito mau para a saúde!

— Mas quando a conversa é agradável não se nota o tempo que passa. Sua... sua... ele... um dos hóspedes contou-nos histórias interessantíssimas.

— Espero que não continue mentindo tão vergonhosamente, Mum. Por que não acabou de dizer "Sua Senhoria"? Conhecerá também Lorde Siniford?

Não veio a resposta que ele esperava.

— Certamente é também um "amigo da família"...

— Já lhe disse tudo o que sei, respondeu Mum, subitamente.

John Wade viu que a mulherzinha não queria cair em outra indiscrição, e voltou calmamente para a lancha.

Agora não lhe faltava sobre o que refletir. Como homem, considerava em primeiro lugar o aviso enigmático que Lila Smith inocentemente lhe trouxera. Ela não falaria em termos claros, se não quisesse preveni-lo. Mas como teria Lorde Siniford aparecido por aquela espelunca? Quais seriam as suas relações com o "Meca", e por que teria passado ali metade da noite, conversando — e com quem conversaria? Quanto ao outro homem, ele não sabia nada. Raggit Lane usava uma mistura de cosméticos que não escapara a Wade no primeiro encontro com o oficial; e Wade poderia afirmar, por esse cheiro característico, que Lane estivera no clube na noite anterior. Todos pensavam que Lane cortasse o Atlântico naquele momento, mas ele, de qualquer jeito, se achava na cidade quando fora assaltado o banco da rua Oxford.

O detetive deixou o serviço depois do lanche, e a primeira coisa que fez foi voltar para casa e passar uma revista cuidadosa em todos os seus apartamentos. O forro de madeira da cozinha podia ser alcançado facilmente com a ajuda de um caixote de sabão. Não havia barras de ferro na janela, a fechadura era das mais simples e o aposento, em que o estranho poderia entrar facilmente, ficava vazio dia e noite. Era, de fato, o quarto que John Wade usava como escritório.

Facilmente também localizou o poço, cuja existência quase esquecera, porque seu pai dispusera sobre ele um pequeno canteiro de flores. Quando voltava para a cidade, passou pela City e comprou uma pequena campainha elétrica.

Fora convocado, lembrava-se, para uma conferência, mas só encontrou em Scotland Yard o seu chefe.

— Vamos requisitá-lo para um serviço especial, Wade, disse ele. O Inspetor Elk se encarregará dos interrogatórios rotineiros, mas seria melhor que você se encarregasse de seguir qualquer pista que lhe parecesse aproveitável.

John Wade concordou, cheio de satisfação.

— Então vou já procurar Ana, disse, e o chefe olhou-o, sem compreender.

— Ana? Fala da mulher que não compareceu ao Tribunal? Terá ela voltado?

— Não sei. E é o que preciso saber.

— Olhe, já localizamos a casa de campo de Lorde Siniford. Fica entre Bourne End e Maidenhead, ele fez até um bom negócio: arranjou uma casa à beira do rio e pagou dois meses adiantadamente, para evitar atritos com o proprietário, como das vezes anteriores.

— Sabe se ele mantém lá um zelador? perguntou John, mas logo percebeu a gaffe e emendou: O senhor pode dizer-me quem fez o inquérito?

— Não é preciso, disse o chefe, sorrindo. Lembro-me bem de tudo. Não, ele não tem zelador algum. Tinha um casal que vivia por perto, e essa gente olhava pela casa — o homem e até o jardineiro. Mas foram despedidos. Um dos nossos homens viu-os juntos, mas não conseguiu saber nada a respeito de Ana. O inquérito não deu resultado algum, mas, se você quiser continuar com ele, tome a pista onde a deixaram...

Apesar de achar que gastaria muito tempo para um resultado problemático, John Wade foi até Maidenhead. Sua primeira visita foi a Freckly Heath, onde encontrou o casal contratado por Sua Senhoria para cuidar da casa de campo. Um sujeito desmazelado, a quem deviam chamar "jardineiro" por simples cortesia, veio atendê-lo.

— Não, não estamos trabalhando para ele agora, senhor, disse. A casa esteve alugada, ou vai ser alugada agora, não sei direito. Há mais de uma semana que não passo por lá. Pagaram-me o que me deviam e disseram-me que não precisavam mais de mim. Sua Senhoria é uma criatura estranha: nunca se sabe direito o que vai fazer, e o dinheiro nem sempre nos vem para o bolso pontualmente.

Wade visitou uma agência do local, e não achou dificuldade em encontrar as chaves da casa de campo. Reach Cottage era um bangalô elegante, a cinqüenta metros do rio. Cerca cheia de buracos, jardim muito mal tratado. Wade inspecionou a vivenda por fora, mas ficou mais impressionado com certos detalhes do quintal e do caminho fronteiro à habitação que mesmo com o seu aspecto exterior.

Um automóvel pesado andara por cima da relva; tinha ele um chassis muito comprido e as rodas se lhe enterravam forte no caminho. Os traços dos pneumáticos eram muito visíveis ainda, c Wade pôde notar manchas de um grosso óleo lubrificante. Seguindo o curto caminho até a porta, ele fez outra descoberta. Houvera ali, em qualquer tempo, um portão que fora removido; numa das antigas pilastras observava-se um profundo arranhão, na altura mais ou menos do pára-lamas de um automóvel, segundo a verificação de Wade.

A entrada do Cottage se fazia por um caminho estreito que se desviava de uma estrada secundária. Os traços do automóvel eram claros e muito significativos; em certo lugar eles desciam para um valo fundo, sem razão aparente. Havia na casa muito lugar para se guardar um automóvel, e até mesmo um caminhão.

Ele conhecia o carro de Lorde Siniford — uma barata de dois lugares; mas aqueles traços não eram os de um automóvel pequeno. Wade interpretou assim os sinais: um carro se desviara do caminho, à noite e, não tendo faróis, chegara a arranhar a parede da pilastra da varanda. A falta de luz explicava toda a irregularidade do caminho do automóvel.

Quando entrou no bangalô não encontrou Wade nenhum dos quartos em desordem. Os leitos estavam perfeitamente arrumados. Na despensa fez uma descoberta: duas caixas de papelão com o nome de uma firma de costureiras de Maidenhead. Tomou nota do nome e do endereço e, depois de uma longa busca, tornou à cidade e interrogou o fornecedor cujo nome encimava as caixas.

Um vestido de mulher, um chapéu, sapatos e meias tinham sido mandados para o Cottage mais ou menos há uma semana; a ordem viera de Lorde Siniford, acompanhada da quantia correspondente — uma precaução louvável, porque a má reputação de Sua Senhoria ainda não se desvanecera no país.

Por uma sorte imprevista pôde Wade fixar a hora em que o automóvel pesado deixara o Cottage. Fora na noite do assalto da rua Oxford e o fato foi facílimo de estabelecer. A polícia de Bucks e Berkshire recebera um comunicado avisando que detivessem todos os carros suspeitos procedentes de Londres. A vigilância mantida entre Slough e Maidenhead notara que uma pesada limousine, de faroletes foscos, fora vista fazendo a curva na estrada larga, em direção a Burnham. Não fora detida porque a ordem só vigorava em relação aos carros que viessem de Londres, e aquele se dirigia para a capital. O pára-lamas dianteiro do carro estava avariado, e essa avaria correspondia perfeitamente ao arranhão da pilastra da varanda. O resto do caminho do automóvel não era conhecido.

John Wade acertara! Ele voltou para os arredores de Reach Cottage e desdobrou um interrogatório quase de casa em casa.

Essa tarefa monótona veio trazer-lhe outro detalhe; soube-o numa casa à beira da passagem de nível; ali a estrada atravessava a linha férrea, e a vista era ilimitada; o dono da casa, que passeara no jardim até alta noite, com dor de dentes, vira o automóvel que diminuíra a marcha ao se aproximar da passagem, e notara então que dentro da limousine ia um sujeito encapotado, cantando alguma coisa em voz baixa.

— Não sei bem como ele cantava. Era com voz feminina, não sei se o senhor me entende, disse o informante. Há um nome que exprime essa voz... Ora...

— Falsete? sugeriu John.

— Isso mesmo, senhor. Eu não o teria notado. Mas, no momento, alguém pôs a cabeça de fora do outro lado e esse homem encapotado gritou-lhe que fechasse a janela.

— O homem que cantava seria um grandalhão ou um homem baixo? indagou Wade.

O camarada não tinha certeza; mas inclinava-se para a pequena estatura do homem. Lembrava-se agora de que o motorista, ao seu lado, parecia uma "torre".

John voltou à cidade, misturando em seus pensamentos um indivíduo que àquela hora navegava no Atlântico com um outro que possuía voz de falsete.

Por que Lorde Siniford se teria metido naquela trapalhada? Qual seria o negócio que ele discutiria com o capitão do "Troiano"? Por que ainda passar a noite seguinte no clube? E tudo isso num período em que Sua Senhoria evidentemente nadava em ouro...

John Wade sentiu que devia investigar as origens daquele rendimento inesperado. Podia muito bem ser que aquele não tivesse sido o primeiro encontro de Lorde Siniford com o capitão Aikness. Mas os seus pensamentos se voltavam para o "cantor" do automóvel que trouxera Ana de volta a Londres. E aquela concentração de raciocínio pareceu materializar o ser que era o seu objeto, porque naquela noite John Wade viu o homem que não lhe saía da cabeça.

John foi até Scotland Yard, onde redigiu uma minuta a respeito das suas investigações daquele dia, e voltou então para o dissaborido distrito em que morava. Na volta atravessou um desses pequenos e rumorosos mercados que caracterizam certas ruas de Londres. As barracas se dispõem de cada lado da via pública, fracamente iluminadas por lâmpadas de querosene e acetileno, servindo de abrigo a pobres varejistas que vendem de tudo.

Havia um trecho desse mercado dedicado às flores. O londrino perfeito não pode deixar de ter, nas duas ou três polegadas de terra do seu jardim, alguns ramos floridos, e assim esse comércio prosperava na zona de East End. As margaridas, as cravinas, os amores-perfeitos cresciam abundantemente em potes de argila.

Havia um homem, numa dessas barracas, comprando amores-perfeitos, que ia arranjando numa caixa que colocara em cima do balcão de zinco. Ele dispunha as flores com grande cuidado, sem se preocupar com a atenção que lhe prestava um representante da lei.

Era um homenzinho gorducho, metido em roupas folgadas de marinheiro. Uma correia de couro dava-lhe várias voltas à cintura e à cabeça trazia um boné novo em folha. Tinha as faces raspadas, o queixo muito branco e pelanquento, usava óculos de aros de ouro, e John notou que ele só escolhia amores-perfeitos amarelos. Mas logo concluiu a escolha, fechou a caixa com a tampa de papelão, pagou as flores, voltou-se bruscamente, atravessou a rua e desapareceu por uma rua transversal, obscura.

Não parecia ter notado John Wade; mas apertou a caixa, num arrepio, quando o Inspetor lhe pôs a mão no ombro. Se não o reconhecera, reconhecia-o agora, porque os dois olhinhos piscavam muito atrás dos vidros dos óculos.

— Alô! disse. O que há de novo?

Tentou falar grosso, mas a natureza não lhe dera gamas profundas, e ele só pôde soltar um gemido esganiçado.

— Alô, beleza! disse John, amável. O mar é para si uma escola de saúde. Além de levar-lhe os bigodes, tostou-lhe a pele!

— Não compreendo o que o senhor quer dizer, respondeu o homenzinho, asperamente, e acrescentou, simulando indignação: O senhor não pode impedir que um cavalheiro leve flores para casa...

— Você não é um cavalheiro, Golly; poderá, quando muito, ser um marítimo, disse John, gentil. Não passa de um operário vulgar, dotado de uma alma diferente; gosta de ver as flores desabrochadas a saudarem o sol! Seja! Por isso não o repreendo. É a mesma coisa que o sujeito criar galinhas ou colecionar selos...

O silêncio do outro parecia embaraçado. O homenzinho passava a caixa de amores-perfeitos de um para outro braço.

— Acho que o senhor se engana, disse ele. Pode ser que me tenha tomado por outra pessoa. É tão fácil que a polícia se engane, senhor!

— O senhor também agora se enganou um pouco, interrompeu John. Como sabe que sou da polícia? Diga-me alguma coisa a respeito da sua viagem. Por que voltou? O "Troiano" deve estar agora a várias centenas de milhas. E você aqui em Londres? Que ingratidão! Talvez tivesse medo de um naufrágio, heim? Como vão passando o capitão Aikness e todos aqueles homens alegres da tripulação?

Fitava Golly profundamente, e percebeu que a verdade ia explodir.

— Não adianta que eu esteja com mentiras para o senhor, Inspetor Wade, os seus olhos não consentem nisso. Sou eu mesmo, eis a verdade. De fato fugi.

John Wade sacudiu a cabeça, reprovando a fuga.

— Desertor da tripulação! Isso é mau, Golly, muito mau!

— Não, Inspetor, fugi de casa. Nunca estive no navio, continuou o homenzinho, sem respirar. Não podia mais viver com aquela mulher difícil. Talvez ela compreendesse a minha fuga e a pusesse por conta do "Troiano".

Havia uma possível verdade nas palavras de Golly para qualquer criatura menos céptica que John Wade.

— Como sabe que ela atribuiu a fuga ao navio?

— Ouvi dizer, explicou-se Golly, rapidamente. Moro sozinho agora, e arranjei um bom emprego numa... num armazém de chá.

— De chá ou de café? (Wade zombava.) Golly, sempre o conheci como um terrível mentiroso, e assim não lhe dou crédito com muita facilidade. Sempre me enganei sobre a sua pessoa: você tem uma inteligência mais profunda do que eu imaginava. Pode arranjar um álibi para cada ocasião. Onde está morando agora?

Por um segundo Golly hesitou.

— Não moro sozinho... No momento estou numa casa de pensão.

— E as flores, pelo que vejo, são para ornamentar o cubículo? disse John. Não, belezinha, essa história não vai! Também sei que esse negócio de armazém de chá não resiste a uma investigação séria. Sei qual é o seu novo emprego, disse John, e, apontando para a face de Golly: Você agora serve de escudeiro!

O homem explodiu:

— De quê?

— De escudeiro, repetiu John. Você acompanha alguém em viagens de automóvel, e entoa pequenas canções — ou tenta entoar. E acompanha mulheres loucas do vale do Tâmisa até Londres.

Wade ouviu que o coração do interlocutor batia mais depressa. Mas Golly logo atalhou:

— Que me caia um raio em cima se compreendo o que o senhor diz, Inspetor Wade. O meu trabalho é dos mais honestos. Se for perguntar a minha mulher, ela mesmo lhe dirá...

— Mas sua mulher não sabe por onde você anda, disse John. Como saberia ela que você raspou o bigode e se enfarpelou em roupas caras!

Golly era bom artista, e tornou a recuperar o aprumo.

— Não tenho nada na consciência, mas se o senhor quiser, pode levar-me para a polícia, disse, petulante, e até processar-me. Desafio-o a que o faça! Que fiz eu? Nada! Fugir de uma mulher velha é crime? Raspar o bigode é crime? Comprar flores para alegrar um quarto é crime?

John bateu gentilmente nos ombros de Golly.

— Não diga isso, Golly. Diga ao papai o que há de novo e tenha um pouco mais de sossego nesse coraçãozinho assustado. Você foi a Cookham buscar uma mulher, num automóvel... Diga-me: para onde a levou?

Mas Golly sacudiu a cabeça:

— Não entendo nada do que o senhor fala, Inspetor. Tenho álibis e...

A atitude de Wade mudou, subitamente.

— Vamos dar um pequeno passeio, disse John, amável.

Tomou do braço de Golly e foi caminhando ao longo da rua. Não tinha intenção de processar o homem e não havia razão para processá-lo. Golly tinha certeza disso, aparentemente, e quando John o tomou pelo braço, amável, pensou que tivesse ganho a batalha.

— O senhor não me engana, Inspetor Wade. Sei bem até onde pode ir.

— Mas você não me abre o coração? Gostaria tanto de ser seu amigo...

— Não estou procurando amigos, disse Golly, áspero, e se o estivesse não me dirigiria a um curioso.

— Mas você então não me quer contar nada desse seu amor clandestino? Diga-me o que há a respeito dessa mulher que você levou para...

— Eu não fugi com mulher alguma! respondeu Golly.

A sua indignação era justa e John Wade esperava uma explosão. Mas não ouviu nada mais. Nem precisaria, porque aquela resposta desabrida, ameaçadora, viera revelar-lhe a existência, em Golly, de uma personalidade que ele nunca suspeitara.

John Wade sempre considerara Mum a cabeça do "Meca". Via agora que se enganara. Golly era muito mais perigoso que a mulher. E o próprio Golly se assustou em falar tão asperamente, porque voltou à sua voz mansa.

— Inspetor, o senhor bem sabe que não há nada contra mim...

— Sei, sei, concordou John.

Deixou o braço de Golly, e caminhou até um poste adiante, de onde contemplou a figura grotesca que se sumia na sombra.

Golly esperava ser seguido, e portanto seria boa uma pequena demora em correr atrás dele. Momentos depois Wade viu um detetive e deu as instruções que lhe permitissem acompanhar o marinheiro improvisado.

Voltou então para a sua casa de Wapping, com certos problemas para resolver. Por que Golly Oaks se arriscava a comprar flores disfarçado? A coisa não lhe parecia clara: um homem tomava o risco de ser descoberto para comprar alguns amores-perfeitos. Lembrou-se também Wade de que Golly era amador de flores, e que até cuidava de um jardim no quintalejo do clube. Mas evidentemente aquelas flores não eram para ornamentar o "Meca".

O antigo policial, Henry, que lhe zelava pela casa, comentou, depois que John lhe contou a aventura:

— E divertido, esse Golly bancando o jardineiro. Aqui no Wapping todos dizem que ele fugiu da mulher e que se engajou num navio. Talvez a mulher pense mesmo isso.

Agora havia uma desculpa para uma pequena visita ao clube. Porque Wade tinha uma idéia que aquelas novidades não seriam muito "novas" para Mum.

Depois de uma refeição ligeira, Wade voltou para o cais, a fim de visitar o clube. Freqüentemente saía ele à noite, e todo o Wapping pensava que o seguiam dois ou três robustos guarda-costas. Por isso ninguém tentava atacá-lo.

A porta de entrada do "Meca" estava fechada quando ele chegou, e foi Mum Oaks quem veio abri-la. Wade observou então uma coisa que não observara antes: a lâmpada do salão de entrada, colocada para a frente, iluminava as pessoas que entravam, deixando os fundos da sala quase em obscuridade.

Mum Oaks parecia alarmada, John Wade bem o notou. Nada perguntou, entretanto, ao detetive, mas, fechando a porta, caminhou até a sala de visitas.

Lila estava lá, sentada numa cadeira de braços, um livro na mão. Ao ver John entrar, levantou-se como que movida por uma mola. Pareceu ao Inspetor mais pálida que de costume.

— Vá embora, Lila, tenho que falar com o Inspetor.

Por um segundo a menina olhou para Wade e este notou em seus olhos um ardor que ela não podia ocultar. Notou também que queria falar e fazia grande esforço para ficar calada.

— Alô, formosa Lila! Estudando os clássicos? Já está preparada para a escola francesa? perguntou ele.

Mas antes que a moça pudesse responder, Mum empurrou-a para fora, fechou a porta e indagou, desconfiada.

— Que ventos o trazem por aqui, Inspetor?

— Vim conversar um pouco sobre Golly. Recebeu algum recado dele?

Ela não respondeu, mas Wade observou que mordera os lábios, para não dizer nada. Se Mum fosse uma boa atriz, ou então se ignorasse de fato a presença de Golly em Londres, teria mostrado alguma surpresa, mas estava evidentemente na defensiva, e Wade tirou disso a certeza de que ela conhecia muito bem a aventura de Golly.

— Qual é o primeiro porto de parada do "Troiano"?

— Olhe aqui, Inspetor Wade, disse ela, calma, o senhor esteve com Golly esta noite. Ele me deu uma telefonada. Não gostei do negócio, porque todo mundo vai saber que ele me abandonou. Mas ainda assim teve a decência de me telefonar para dizer que o senhor o reconhecera. Nada mais lhe posso contar sobre ele, porque o senhor já sabe de tudo. Acabei de uma vez com o Golly.

— Mas que tristeza! declarou John, sério.

— O senhor não precisa ficar sério para dizer isso, bem o sabe. Cheguei à conclusão de que eu e o Golly não combinávamos direito, por várias razões, e especialmente porque ele tem andado metido com esses "ratos" do rio. E isso dá muito mau nome ao clube e me afaste os hóspedes. Disse-lhe que não podia continuar tolerando essas amizades.

Havia na voz de Mum um grande tom de seriedade — um tom a tal ponto invulgar que John se impressionou.

— Suponho que ele lhe tenha deixado o novo endereço...

— Não. Já lhe disse: não me interesso por ele. O senhor bem deve ter notado isso. Porque certamente pôs um par de detetives no seu encalço.

John Wade examinava o salão. Nada havia de notável na atitude de Mum e parecia que a separação se tinha dado de mútuo acordo.

— Como vai Sua Senhoria?

— Não sei o que quer o senhor dizer... Ah! aquele camarada que esteve aqui outro dia? Nunca mais o vi.

— Agora... E a Ana? Onde está Ana?

— Não conheço nenhuma Ana... A não ser uma rapariga que me ajudava aqui no serviço, por sinal que bonitinha.

— Perdeu uma boa oportunidade, Sra. Oaks. Bem me poderia ter dito que Ana é a rapariga que seu marido raptou...

Levantou-se da cadeira, onde se sentara de livre vontade, sem o convite de Mum, e aventurou:

— Estou cansado. Estive hoje em Maidenhead, procurando pela mulher que Golly conduziu no automóvel X. P. 1 102.

Ele não conhecia o número do automóvel, mas escolheu aquele, na esperança de que Mum igualmente o ignorasse. Por um momento Mum perdeu o aprumo.

— Não sei de nada a respeito de automóveis, respondeu ela.

(Se soubesse dos segredos da telepatia, John teria lido o número do automóvel no pensamento de Mum.)

— Um bom automóvel, continuou ele. Golly seguia ao lado do motorista, e foi reconhecido, naturalmente. Se alguma coisa acontecer a Ana (fixou em Mum os olhos ameaçadores) — suponha, por exemplo, que ela seja retirada do rio, daqui a dois ou três dias... Seu marido ficaria em maus lençóis. Mas você não se incomodará que ele seja enforcado.

Era uma boa linha de ataque, que o momento sugerira. Baseava-se na cartada do número forjado no momento. A despeito de seu extremo domínio, Mum explodiu:

— Ninguém vai matá-la... (Estacou subitamente.) Wade aproximou-se da mulher.

— Mum, você está obstinada num combate inútil. E por isso se envolve mais do que pensa nas malhas dessa complicação. Você sabe que Golly foi a Maidenhead levar essa mulher; sabe que ele a trouxe de novo para cá, ou para o clube, ou para qualquer parte, em Londres; sabe que ela foi levada contra a vontade e sabe também porque foi ela raptada. Repito agora: se o corpo dessa mulher for pescado no Tâmisa, hoje, amanhã, ou qualquer dia, seu marido e você terão muita dificuldade em afastar qualquer cumplicidade no... assassinato. (Ele acentuava bem a última palavra.) E, ainda mais, terão dificuldade maior em se desligar do caso dos Homens de Borracha, que estão inculpados de uma série de pequenos crimes da mesma natureza...

Ela balbuciou qualquer coisa:

— Se o senhor sabe onde está o carro...

— Não sei. Nem mesmo sei qual seja o seu número. Inventei-o, joguei-o ao acaso, porque vi que você o recompunha mentalmente. Quanto ao fato de ter o seu marido sido reconhecido no automóvel, é autêntico. E quanto à sua prisão, no momento já lhe mostrei, é caso decidido, à primeira suspeita.

Por um momento ela se desesperou, mas um pensamento interior pareceu acalmá-la. Indagou então:

— Era tudo o que me queria perguntar... Wade? (A insolência voltara-lhe à voz.)

— Tudo sim, Mum, disse ele, amável. Não precisa vir mostrar-me o caminho: já o conheço bem.

Através da porta da sala de visitas ela o viu desaparecer na saída, e através da janela espionou-o em sua caminhada pelo cais.

Wade estava na metade do caminho para o grande portão de ferro quando ouviu alguma coisa tilintar de encontro à calçada, à sua frente. Ouvira o tinido característico do aço e, abaixando--se, tomou da lanterna do bolso e examinou o caminho. Viu uma pequena chave, modelo barato, dessas chaves inofensivas que servem para pequenos armários e guarda-roupas. Ligado à chave por um cordel estava um pedaço de papel dobrado pelo meio.

Mal enfiara a chave e o papel no bolso quando a porta do clube se escancarou e Mum apareceu à soleira iluminada.

— Inspetor Wade, disse ela.

Parecia muito calma.

— O senhor não vai processar o Golly, acrescentou. O que lhe contei é a pura verdade. Vou ver se o encontro esta noite, e hei de dizer-lhe que o procure amanhã. Bem sei que ele lhe dirá tudo o que souber a respeito do automóvel. Se quiser poderei trazê-lo até aqui.

— Vou pensar, disse Wade.

Teve a tentação de parar perto da primeira lâmpada para ler o bilhete amarrado à chave. Não tinha dúvidas de que ele fora escrito por Lila. Ela lhe dissera uma vez que dormia numa água-furtada na parte dianteira da casa. Mas venceu a tentação, porque sentia que Mum ainda o espionava.

Henry, o criado, tinha um defeito: era um zelador de grande atividade, mas muito dorminhoco; assim, John saía sempre com uma chave da porta de entrada, porque seria difícil acordar e criado depois de uma certa hora da noite.

Aquela noite John descobriu com desgosto que não trouxera a chave e, depois de apertar a campainha diversas vezes, decidiu ir aos fundos da casa despertar Henry, batendo à porta da despensa.

Todas as casas pequenas, em Londres, são construídas do mesmo modo. Havia, por exemplo, na casa de Wade o mesmo portão separando o quintal do jardim, como na casa de Langras Road; mas o portão era baixinho. Este vivia sempre fechado, mas John, com surpresa, foi encontrá-lo apenas encostado aquela noite. O caso, porém, não era tão surpreendente, porque Henry só costumava fechá-lo às onze horas.

Aberto o portão, ele continuou a andar. Dera dois passos quando esbarrou de encontro a alguma coisa que lhe obstruía o caminho. O obstáculo não era muito pesado, porque com o pé Wade o removeu. Abaixou-se então e com a lâmpada examinou o objeto.

— Pelas barbas de Jeová! disse ele, baixinho.

Reconhecera as duas caixas cheias de amores-perfeitos! Encostada na parede, na mesma direção, havia uma comprida enxada de aço. Ao lado da enxada uma alavanca também de aço. Mas não foi essa a melhor descoberta. Adiante, junto à porta da cozinha, havia um grande círculo de madeira, feito com a junção de tábuas aplainadas. As tábuas estavam ainda limpas e o trabalho era recente.

A primeira coisa que lhe ocorreu foi que Henry arranjava melhoramentos para o jardim da casa. Mas o diabo é que ele reconhecera as duas caixas de flores de Golly Oaks!

— Curioso! murmurava John Wade.

Aproximando-se da janela iluminada da cozinha, ele pôde ver o criado estendido numa poltrona, o queixo caído para o peito. Levou dez minutos a acordá-lo, para que o homem fosse à porta da frente abrir a fim de que o patrão entrasse. Afinal, John pôs os pés na sala de visitas.

— É pena, Inspetor, mas dormi pouco a noite passada... Era a eterna desculpa. Wade interrompeu-o:

— Que material é esse aí do lado? indagou.

— Material? (Henry despertava de todo.) Não sei de nada.

Seguiu John ao quintal, e examinou as flores e as ferramentas como um homem que não crê no que vê.

— Não entendo. Devem ter descarregado isso aqui por engano. Mas o mais interessante é que não me tenham chamado...

— De fato, é a única coisa interessante que vejo nisso tudo.

Wade foi até o quarto, tirou a chave do bolso e arrebentou o cordel que prendia o papel dobrado. Havia algumas palavras escritas a lápis, num papel fino que evidentemente pertencia a uma caixa de vestidos.

Tenha cuidado, por favor. Observe a grade de ferro do seu quarto. Foi sobre isso que eles falaram. Estou terrivelmente assustada.

Não havia assinatura. Mas, ainda que ele não reconhecesse a letra, podia imaginar quem lhe mandara o aviso. Grade de ferro? Mas que grade?

Voltou ao quarto, que conhecia como a palma da mão, e olhou em torno, sem compreender. Subitamente lembrou-se de qualquer coisa e puxou a cama para o meio do quarto. Na parede, ao nível do soalho, existia um pequeno ventilador de aço. O velho Wade, que construíra a casa, gostando de ar puro, e tendo boas razões para não querer muitas janelas no seu quarto de dormir, fora quem o instalara. Porque o velho Wade também tivera a sua posição na Polícia.

Abaixando-se, John Wade tentou espreitar para fora. Nunca examinara o ventilador, mas sabia que do lado de fora, para renovar o ar, havia uma pequena grade de ferro, embutida na parede. A abertura era muito pequena e por ela um gato passaria com dificuldade. E ele dormia bem por cima dessa comunicação com o exterior.

Para se certificar, desceu, com a lanterna portátil. Viu então que a grade tinha sido removida e que havia na parede um enorme buraco irregular; o estrago fora recente, via-se bem; e Wade achou a própria grade encostada ao muro do jardim, e nos paralelepípedos notou restos de argamassa seca, desprendidos certamente ao arrancarem a grade.

Voltando para casa, examinou as fechaduras e os ferrolhos de portas e janelas, e então chamou Henry, para consultá-lo.

— O seu sono tem muitas interrupções, não tem, Henry? Especialmente à noite?

— Sim, Inspetor Wade. (Era um homem gordo, sangüíneo, com um bigode cor de terra e, como tivesse sido da polícia, naturalmente desconfiado.)

— Essa noite terei que perturbar-lhe o sono, disse John. Acho que terá mesmo que passar a noite em claro, porque se dormir poderá ir despertar no céu.

Wade tinha telefone em casa; retirou o fone do gancho, com intenção de chamar a estação de polícia local, mas notou que o aparelho se mantinha silencioso.

— Não atende, Inspetor? perguntou Henry, ansioso. Pois se ainda esta noite conversei pelo telefone com um amigo.

— Cortaram os fios, disse Wade, calmo.

— Cortaram? gritou o homem, alarmado. Que queria o senhor? A polícia? Posso ir chamá-la, num pulo...

— Se você saísse agora, Henry, daria o último "pulo" da sua vida...

Wade foi abrir uma gaveta trancada da escrivaninha do gabinete de estudo, retirou uma Browning de calibre respeitável, examinou-lhe a câmara e todos os cartuchos. No gabinete havia ainda outras relíquias de guerra, adquiridas em situações terríveis de recordar.

— Agora, vou dormir. Você pode fechar e trancar todas as portas e apagar as luzes da cozinha, enquanto faço uma entrada artística no meu quarto, disse ele, depois de ter dado a Henry outras instruções urgentes.

Meia hora depois de meia-noite as últimas luzes se apagavam. Passou-se uma hora de completo silêncio. John Wade, sentado no leito, não tentava nem mesmo fumar, enquanto Henry, desperto, como um homem que teme a morte, montava guarda no seu pequeno quarto, que dava para a cozinha.

O relógio da sala bateu as três badaladas de quinze para as duas quando o primeiro rumor chegou aos ouvidos do detetive. Era alguma coisa que roçava a parede, do lado de fora. Um roçagar muito suave, e bastante suave para não perturbar a soneca de ninguém. Em verdade, nem o próprio Wade o teria notado, se não tivesse os ouvidos afeitos à percepção do menor ruído.

Vinha do ventilador e era mesmo mais rumoroso do que Wade imaginava. O inspetor levantou-se com cuidado e abaixou--se para o soalho. O som sibilante devia continuar, ainda que ele não mais o ouvisse.

Então, passaram quinze minutos; abaixando-se pela terceira vez, Wade viu que o ventilador fora obliterado por alguma coisa colocada do lado de fora. Ele podia ver a luz fraca da noite através da chapa de aço perfurada e, caminhando até a porta, abriu-a sem rumor, fechando-a após si, e foi procurar o companheiro alarmado.

Henry não o sentiu entrar e saltou, assustadíssimo, quando Wade o segurou pelo braço. Ficaram juntos e viram algo de indistinto aparecer nas bordas da janela da cozinha. Depois outra sombra, até que três homens se reuniram. Pela silhueta e pela singularidade dos movimentos, John reconheceu que eram chins.

Um adiantou-se, tocou a janela perto do ferrolho e pareceu desenhar ali um grande círculo. Num segundo o círculo da vidraça se desprendeu para fora, e uma ágil mão, penetrando pela abertura, levantou o ferrolho. Um por um os três homens saltaram para a cozinha e desceram a persiana atrás de si. Foi nesse momento que John Wade acendeu a luz.

O primeiro dos três homens encarou-o através da máscara de borracha, e levantou as mãos, dócil. O terceiro deu um passo para a janela, mas Henry segurou-o pelo pescoço e o deitou por terra. O segundo homem pareceu aceitar a sorte filosòficamente.

— Se derem uma palavra, passo-lhes fogo, gritou Wade. (Era necessário gritar porque todos os cinco homens usavam máscaras contra o gás.)

Dois pares de algemas ligaram os três prisioneiros, de costas uns para os outros, e Henry obrigou a massa dos três homens amarrados a se abater silenciosamente sobre o soalho. Wade deixou o criado a vigiá-los e, voltando ao quarto, abriu todas as janelas em silêncio. Quem estivesse do lado de fora devia esperai por isso, ainda que Wade não tivesse visto ninguém.

Voltando à sala, Wade abriu a porta de entrada sem rumor e desceu os degraus para a pequena varanda. Um homem que permanecia junto ao portão veio rapidamente em sua direção.

— Está tudo direito?... começou ele, mas, quando reconheceu Wade, viu que se enganara.

Voltou-se para fugir. Wade saltou sobre ele, agarrou-o pelo pescoço, jogou-o por terra. Ouviu um gemido fraco, deu-lhe um trompaço na mão no momento em que ele apertara o gatilho da pistola: a bala sibilou e foi encravar-se na parede fronteira.

Wade largou um pouco o homem. Ele se desprendeu num ímpeto de fúria e voou pela rua com a rapidez de um atleta. O primeiro impulso do detetive foi segui-lo. Mas o pensamento do perigo dessa perseguição logo lhe ocorreu; voltou-se rapidamente: uma sombra surgira da escuridão; Wade ouviu uma faca que cortava o ar; desviou-se e sentiu o tinido da lâmina na calçada.

Por um segundo pareceu hesitar: tinha pelas armas de fogo a mesma antipatia de todos os da polícia. Mas o perigo do momento era real. Atirou no homem que lhe estava mais próximo e o disparo fez com que ambos os assaltantes desandassem a correr.

Naquela rua havia diversas passagens e becos que desembocavam em trapiches e em armazéns da beira do rio. Os homens desapareceram. Wade ouviu então um apito, depois outro e viu um policial que corria para ele.

Portas e janelas começaram a abrir-se. Parecia mesmo que toda a população de Wapping queria servir de testemunha na espantosa tragédia, porque num minuto a calçada se encheu de uma multidão meio despida.

— Não, não há ninguém ferido, disse John, tirando a máscara contra o gás. Apite mais, traga mais guardas para cá, e não entre por essa porta se tem amor à vida.

Por esse tempo o gás venenoso lançado pelo ventilador começava a escapar pela porta. Wade tornou a por a máscara, antes de entrar, e foi ter com Henry. Os três prisioneiros, comparsas de um espetáculo terrível, jaziam juntos ao pé da porta da sala, e com a chegada dos reforços policiais foram trazidos para a rua. A polícia estendeu um cordão de isolamento e afastou os curiosos, até que o ambiente ficasse mais respirável.

Pelo romper do dia tornou-se possível penetrar na casa sem máscara protetora. Descobriu-se o instrumento com que o gás fora introduzido: um cilindro de aço, com uma torneira e uma capa de borracha; uma pequena escada de bambu apareceu nos fundos do quintal.

Mas a descoberta mais importante fez-se em dia claro. No fundo do jardim havia um poço profundo, destampado; o canteiro que o ocultava fora desfeito e todas as flores que o cobriam jogadas para dentro d'água; ao lado dessa desordem estava a nova cobertura circular, e duas caixas de papelão cheias de amores-perfeitos amarelos.

A perfeição do plano do crime excitava a admiração do Inspetor. Os amores-perfeitos amarelos cuidados por Henry seriam substituídos, após o fechamento do poço, pelos novos amores-perfeitos das duas caixas.

— Você e eu, Henry, disse Wade ao engolir o café quente que o criado preparara, devíamos neste momento estar no fundo de um poço, e ninguém poderia esclarecer a polícia quanto ao nosso verdadeiro esconderijo... Todos os detalhes tinham sido admiravelmente previstos!

Henry não parecia admirado.

— As flores é que me deixam tolo! Segure o homem das flores e...

— Exatamente, disse John Wade, e saiu logo à procura de Golly Oaks.

 

O dia acabava de surgir, e havia pouca gente nas ruas próximas ao "Meca".

John Wade dobrara a esquina da rua que conduzia ao clube quando, de uma escura e estreita entrada que ia dar aos degrau do desembarcadouro, ouviu seu nome proferido com ansiedade e voltou-se.

— Não vá mais adiante, Sr. Wade. Estão esperando pelo senhor.

Já passara a entrada do clube, quando ouviu o aviso e, então, num giro rápido, voltou para trás. Era Lila Smith.

— Mas por que diabo... começou ele.

Alguma coisa o segurou então pelo braço e ele se viu puxado para o canto escuro. Depois o braço de Lila o agarrou pelo casaco, com uma força inesperada.

— Eles sabem que o senhor vem só... Eles disseram que o senhor não traria companheiros, gemeu a rapariga.

O Inspetor mal notara o desalinho de Lila Smith. Ela envergava um casaco masculino sobre a camisa de dormir; tinha os pés descalços. Wade tentou desprender-se dela, mas o medo parecia mais e mais alterar o rostinho redondo de Lila. Ainda por insistência da moça, ele desceu os degraus do desembarcadouro, até onde o rio vinha molhá-lo.

Wade sentia-se perturbado e, quando Lila o puxou para um pequeno barco, quase caiu dentro d'água. Num instante ela o acompanhou, desamarrou a corda que prendia o bote e saiu para o meio do rio com grandes remadas. A entrada pela qual descera já não mais se distinguia na escuridão. As lâmpadas da rua acabavam de ser apagadas.

— Por que o senhor veio? Por que o senhor veio? murmurou ela, enquanto remava.

Wade olhava para trás, e de repente notou duas luzes brancas; só se ouvia por perto o ruído das remadas de Lila. Mas o barulho de um motor se veio aproximando e John Wade reconheceu logo uma lancha da polícia. Levantando a voz, chamou-a. Do lado da margem penumbrada ouviu-se um tiro, e John notou, perto de si, um rastro de espuma que a bala levantara.

Lila também vira a lancha, que acelerara agora a marcha e se aproximava do bote. Em poucos segundos as duas embarcações se encontravam lado a lado.

John Wade sabia que fora ferido, antes que o içassem para a lancha da polícia. Mas seu único pensamento era Lila, porque, ao ser transportada para lá, a rapariga se encontrava num estado de meio desmaio.

A lancha voltou-se e começou a descer o rio em direção da estação mais próxima, em grande velocidade, e na estação um pouco de café quente com brandy reanimou Lila. Tremia ela da cabeça aos pés, apesar dos pesados cobertores que a cobriam, e tinha as faces brancas como cal, quando John, já pensado do seu ferimento na perna, veio vê-la. Mas a moça retomara grande sangue-frio e, quando Wade tentou interrogá-la, esquivou-se às suas perguntas.

— Não sei... Acho que foi um pesadelo... Não lhe posso dizer nada, não lhe devo dizer nada. Fiquei com tanto medo, por sua causa, que corri para a rua, a fim de avisá-lo...

— Alguém sabia que eu caminhava para o "Meca" e que ia sozinho, não é isso que me quis dizer ainda?

Ela não respondeu.

— E armaram uma pequena emboscada, à minha espera. A Sra. Oaks sabe tudo isso?

Lila sacudiu a cabeça.

— Não lhe posso dizer, explicou, e começou a chorar baixinho.

Mesmo depois de voltar inteiramente a si recusou-se a prestar qualquer declaração, explicando tudo aquilo como um mau sonho.

Elk veio da Polícia Central, e interrogou Mum Oaks, que antecipara a ação das autoridades comparecendo à estação para saber notícias da rapariga.

— A não ser que a sua Lila venha a falar, disse o Inspetor Elk a John Wade, quando ambos voltaram da estação, não há a menor prova para ligar o "Meca" a esse caso da borracha. Meia dúzia de hóspedes afirmam que nada ouviram pela noite e pela madrugada, e que a Sra. Oaks nunca deixou o clube à noite, até a data de hoje. Como o soubessem tão bem, não posso explicar. Mas não vejo razão para um escândalo.

— Ela ouviu qualquer coisa, porque bem sabia que eles viriam à minha casa, disse John.

Lila fora conduzida para a morada de um sargento-detetive, onde ficaria sob os cuidados de sua esposa, e foi para a casa do detetive que Mum se dirigiu, depois de uma hora desagradável de interrogatórios com o Inspetor Elk, um sujeito que só achara de lhe fazer perguntas de difícil resposta.

Mum pareceu exasperada ao ver John Wade à cabeceira da rapariga; e um pouco desapontada, também, porque novamente correra pelo Wapping o rumor de que John Wade fora "liquidado" pelos Homens de Borracha. Pareceu até um pouco extravagante que a primeira pergunta de Mum se dirigisse ao Inspetor Wade.

— Sim, um ferimento incômodo, minha querida, disse John Wade, amável. Parece sério, à primeira vista, mas não o é. Sou obrigado a coxear. Mas quero que você previna aos seus amigos que espero retornar às minhas atividades dentro de um ou dois dias.

Foi então que Mum Oaks se recordou dos seus deveres de tia, e sua primeira palavra foi de censura.

— Por que você me saiu de casa no meio da noite? indagou ela, em voz áspera e queixosa a um tempo. Pregou-me um susto e armou um verdadeiro escândalo na vizinhança. Nunca tive tanta atrapalhada na minha vida!

Os seus olhos estavam vermelhos e faiscantes de cólera.

— Foi um ataque de sonambulismo, disse Wade, com a maior amabilidade. De fato, é um incômodo muito grande para você. Golly também não anda durante o sono?

Mum não ouviu a zombaria.

— Lila terá de ir para casa agora mesmo. Eu trouxe um carro...

— E eu um atestado médico, interrompeu Wade, calmamente. Ela não pode sair daqui antes de três dias, seja num carro, numa ambulância, ou então carregada por um dos seus amigos chineses...

Mum espumava de raiva. Entretanto, aquele domínio pessoal, que John já lhe conhecia de outras ocasiões, mais uma vez se fez sentir. Mum começou a sorrir e em poucos segundos à fúria manifesta sucedeu uma fisionomia de bom humor. E a mulher parecia muito interessada no caso pessoal do Inspetor Wade.

— Que negócio é esse que me contaram? Todo o Wapping o está comentando, indagou ela. Foi em sua casa, não foi? Que audácia, a dessa gente: assaltar a casa de um detetive famoso! São também capazes de me assaltarem, ainda que saibam que nada tenho de valioso...

John Wade ouvia, os olhos fitos na mulher que, afinal, vendo a inutilidade de qualquer comédia, resolveu dar o fora. John acompanhou-a até a porta.

— Ela vai ficar aqui três dias, não é? indagou Mum, pensativa. Já que é impossível levá-la hoje... Mas não consigo compreender por que a rapariga saiu de casa à noite... Deve ter sido sonambulismo. Mas para mim ainda é um mistério.

Para John Wade também havia um mistério, porque Lila não explicara a sua presença na rua, na madrugada fria, envolta somente nas suas roupas de dormir e num velho casaco masculino. Mas para esse mistério urgia encontrar uma solução, ainda que as condições da rapariga não permitissem interrogatórios muito demorados.

Quando voltou a vê-la, encontrou à cabeceira a esposa do sargento-detetive, dando-lhe uma xícara de caldo quente. Wade esperou com paciência e depois pediu à mulher que fizesse a gentileza de aguardar do lado de fora.

Notou a sombra de um sorriso nos lábios de Lila, depois que a enfermeira saiu, e se abeirou do leito.

— Você está melhor?

— Mas ainda não posso respondeu às suas perguntas, disse Lila, calma. E o senhor veio interrogar-me, não veio?

— A minha vida se resume nisso: interrogar. É tudo o que sei fazer, disse ele, brincalhão, puxando uma cadeira para junto do leito.

— O senhor vai perguntar-me porque estava eu na rua, porque lhe atirei aquele aviso pela janela, e uma porção de outras coisas, às quais não poderei responder, disse Lila.

O princípio nada permitia de bom; mas Lila pareceu mudar de intento.

— Nada lhe poderei dizer sem por em perigo a sorte de uma porção de pessoas. A Sra. Oaks... não gosto de minha tia, e muito menos ainda de titio Golly. Assustei-me, ao ouvir a conversa, o ouvido colado ao soalho... Com toda a sinceridade, não escutei muita coisa... Somente uma referência a uma grade de ferro em sua casa... e...

Hesitou, e Wade por instinto percebeu que pensara em alguma conversa que ouvira antes de fugir do "Meca", para avisá-lo do perigo. John Wade se encontrava num dilema. Se se tratasse de outra pessoa, ele tentaria uma série de insídias, para obter a confissão. Mas Lila era Lila, e o Inspetor queria que ela falasse de espontânea vontade.

Wade foi sentar-se à beira do leito e tomou da mão delicada da moça. Ela não mostrou resistência, nem tentou tirar a mão da de Wade.

— Minha querida, não sei como tratá-la! Bem vê que estou apaixonado por você!

Lila corou, e contemplou o Inspetor com uma imensa curiosidade, como a desejar a confirmação daquilo que dissera. Wade esperou; viu então que as pálpebras da moça se baixavam, e ouviu-a dizer:

— Apaixonado por mim?... Que engraçado!

— E porque estou apaixonado por você tenho que falar-lhe primeiro de um modo diferente, e não como um Inspetor de polícia. Você escutou qualquer coisa que a fez correr para a rua; você pensou que alguém ia matar-me. Foi a voz de Golly que você ouviu?

Ela olhou para Wade, assustada.

— Golly... O Sr. Oaks? Pensei que estivesse navegando... Não está?...

Ele preferiu não responder.

— Nunca se sabe direito o que Golly anda fazendo, disse rapidamente. Mas, afinal, você não lhe escutou a voz? Ele não entoou nenhuma canção? E também nunca ouviu nada a respeito de Ana?

Wade a fitava de perto, ao fazer a pergunta; mas, aparentemente, Ana nada significava para Lila.

— é uma mulher que estou procurando. Pensei que ela tivesse aparecido lá pelo clube, disse John. Agora, você conhece Lorde Siniford?

Nos últimos dias Siniford era objeto de especial atenção do Inspetor.

Para sua surpresa, Lila respondeu afirmativamente à última pergunta.

— Sim, já o vi. Não acha interessante que a Sra. Oaks tenha relações com um verdadeiro Lorde? Ele me conheceu há muito tempo...

— Quem lhe contou isso? indagou Wade, surpreso.

— Titia Oaks. Depois, achou que falara demais, e me disse que se enganara: não fora ele, fora um outro. Naturalmente, nunca duvidei disso, ainda que não me lembrasse dele de modo algum. Muito delicado, Lorde Siniford... Sim (pareceu hesitar), muito delicado, mas...

— Mas o quê? Ela se esquivou.

— Muito delicado, na verdade. Sempre foi polidíssimo comigo.

— Quando o viu pela última vez?

— Há alguns dias atrás. Não me lembro direito. Ele esteve lá na noite passada...

Deteve-se rapidamente, apertando os lábios, como que medrosa de deixar escapar alguma indiscrição.

— Esteve lá na última noite? estranhou John.

— Não lhe posso dizer. (A mão frágil de Lila procurou nervosamente a mão robusta do Inspetor.) Tenho medo... Muito medo, disse Lila, sem fôlego. Vai acontecer qualquer coisa de terrível... que não sei bem o que seja... Contra o senhor... E isso me dá um medo terrível.

Silenciou por um momento e depois perguntou, num dos seus sorrisos: )

— O senhor gosta que eu tenha medo por sua causa? Ele disse que sim.

— Quer dizer que o senhor tem o mesmo sentimento que me assalta quando vejo que tudo arrisca por mim... Sei que se tem arriscado algumas vezes...

— Uma porção de vezes, disse Wade, e sua voz se carregou. (E por um instante, desenvolvendo a série de perigos por que passara, se esqueceu do interrogatório. Foi Lila quem o trouxe novamente à realidade.)

— Ana?... Sei que esteve lá, uma noite dessas, uma mulher. Ela gritou, eu a ouvi, mas não consegui saber quem fosse. Raramente temos mulheres lá por casa. Da última vez apareceu a senhora de um dos oficiais de marinha; armou uma cena horrível, e o Sr. Oaks disse que o marido dela arranjara outra esposa... O senhor não acha que é lastimável?

— Sim, disse John, mecanicamente.

A esposa do sargento-detetive entrou nesse momento; era uma mulher de aspecto bem-humorado, que já fora enfermeira de um hospital. Indagava do sono da rapariga e não permitiu que o detetive continuasse a interrogá-la.

John Wade voltou para a estação de polícia de táxi. Fazia o possível para não coxear, mas na verdade sentia algum incômodo com aquela ferida na barriga da perna. A bala passara entre dois feixes de músculos, sem afetar nenhum deles, e o doutor prometera que a ferida ficaria cicatrizada dentro de dois ou três dias. Mas Wade, entre todos os homens, não podia perder tempo.

Todos os detetives de folga na cidade foram destacados para várias zonas, e houve uma visita sistemática às casas de hóspedes freqüentadas por marinheiros orientais. Nenhum navio de tripulação chinesa aportara nas últimas vinte e quatro horas, e todos os habitantes amarelos do distrito podiam ser contados pelos dedos e, com poucas exceções, eram homens de boa conduta, conhecidos como cumpridores da lei, como em geral o são os chins em terra estranha. O tong não é reconhecido pela polícia britânica. Mas havia certos chefes conhecidos da colônia amarela que se encontravam em condições de prestar informações, e que podiam ser interrogados. Quando se faziam inquéritos daquela natureza, os chefes bem sabiam que a polícia podia apurar, por acaso, irregularidades em certo comércio, em alguma nova casa de ópio, e, sabendo de sua indulgência, preferiam usar de franqueza com os detetives. Mas daquela vez não puderam dar explicação alguma sobre o aparecimento e a formação de uma quadrilha de amarelos, ou sobre a tentativa contra a vida do Inspetor.

Elk, que pessoalmente dirigia o inquérito, apareceu à porta da estação policial no momento em que ali parava o táxi de Wade.

— Aqueles chins vieram de outro lugar e devem pertencer à mesma turma daquele que foi morto outro dia, disse Elk. Não há no porto navio algum de tripulação amarela e nenhum dos chefes da colônia ouviu coisa alguma a respeito dos fatos da noite passada.

— Se disseram isso, mentiram, declarou John, amável. Elk atalhou logo:

— O velho San Yi é um dos meus! um camarada que esteve em maus negócios com a polícia há alguns anos, mas que também fora bom cidadão longo tempo e, por isso, teve o meu auxílio uma ou duas vezes. Ele me considera um irmão, entre os brancos. Naturalmente esses pobres-diabos mentem algumas vezes, mas eu bem sei quando San Yi tenta ocultar-me qualquer coisa.

John Wade calou-se um momento, pensativo.

— Então, de onde diabo teriam saído os chins? Se o "Troiano" ainda estivesse no porto, seria fácil apurar tudo, mas ele já se foi.

— E está bem longe, concordou Elk, calmamente. Mas a tripulação inteira estará assim também tão longe? O Capitão Aikness andará longe daqui? E aquele Raggit Lane?...

— Esse anda por aqui, tenho a certeza, afirmou Wade. Foi ele quem dirigiu o assalto à minha casa, ontem à noite.

Wade telefonara para a seção de engenharia urbana, e enquanto falava com Elk chegou um largo envelope, que ele levou para o gabinete do Inspetor, a fim de examiná-lo. Era a planta desigual de um edifício, com um ou dois esboços de cortes laterais.

— O que é isso? indagou Elk, curioso.

Wade examinou a planta, assobiando baixinho.

— Não o reconhece? perguntou afinal. É o velho prédio que havia no sítio em que hoje está o clube. Cá está a casa de bebidas — ainda hoje há um resto desse edifício — e aqui (apontou para o papel) estão as adegas.

— Adegas? repetiu Elk, assombrado, e desenrolou a planta com mais cuidado, para vê-la melhor.

— As adegas se estendem sob toda a área do edifício e aí haverá bem alojamento para meio batalhão de piratas chineses. Vi uma dessas adegas. Golly usava-a como depósito de lenha. Cheguei mesmo a descer e a examiná-la... Mas essa ao menos era muito pequena.

Olhou novamente para Elk, enrolando a planta: — A propósito, você não encontrou Golly?

Elk informou, desanimado:

— Pira usar um termo que empregam nos jornais, estamos pondo Londres de cabeça para baixo para ver se o achamos. Três patrulhas examinam este distrito e mandei uma outra para o lado de Surrey.

Só nesse momento, pareceu a John Wade muito estranho que a Sra. Oaks não solicitasse um inquérito sobre o seu marido legal e não mostrasse a menor preocupação em torno das conseqüências que lhe pudessem advir da tentativa da noite passada. Ela devia saber muito bem do papel de Golly no assalto. Wade sobre isso não tinha dúvida alguma.

 

Um detetive às voltas com meia dúzia de mistérios simultâneos, associados todos eles a um só problema central, segue naturalmente a linha de pesquisas que lhe parece mais fácil. E, no momento, o que se apresentava de mais importante era uma investigação cuidadosa no clube "Meca". Dezenas de amarelos podiam alojar-se nas adegas vazias da antiga casa de bebidas; e ali dormiriam e receberiam alimento das mãos de Mum Oaks. No momento, contudo, uma busca no clube seria desavisada. Nada era mais certo do que a ciência absoluta, por parte dos criminosos, dos passos da polícia. E uma caravana que saísse em busca do "Meca" despertaria desconfianças e a presa escaparia antes mesmo que a polícia tomasse posição de ataque.

Plano muito mais inteligente era abandonar o "Meca" até a noite e dirigir as investigações em outra direção. O que preocupava o Inspetor era determinar a fonte da renda de Siniford, e descobrir como aquele homem endividado se encontrara subitamente numa posição confortável, nadando em ouro. Sua Senhoria certamente recebia subsídios dos Homens de Borracha; devia haver uma certa linha de comunicação entre eles, mas Wade não precisara ainda os traços nítidos dessas relações.

Um oficial de polícia pode fazer muitas coisas, e o som mágico do seu nome lhe aplaina todas as dificuldades, contanto que a linha de investigações não se estenda a um banco e aos negócios privados dos seus clientes. As casas bancárias têm regulamentos severos, e John era bastante inteligente para tentar uma aproximação direta nesse sentido. Ele sabia em que banco Lorde Siniford guardava o dinheiro, mas a não ser que requisitasse a autorização de um magistrado, que considerava difícil de obter, John encarava como impossível um exame na conta corrente de Sua Senhoria. Era igualmente impossível inquirir da origem da renda particular de Siniford.

Mas havia outros métodos de circundar o problema, e Wade preferiu empregá-los, em vez de se dirigir aos guichês irritadiços de uma casa bancária. Ele mesmo já tivera casos idênticos, que resolvera com a maior facilidade.

Nos dias primeiro e quinze de cada mês, Lorde Siniford recebia um grande envelope lacrado, e estava sempre em casa quando ele chegava. Naquela manhã o homem encarregado de vigiar Sua Senhoria relatou que Siniford apresentara um cheque no banco, e esse cheque viera evidentemente dentro do envelope lacrado que chegara pela manhã, porque ele retirara o título do sobrescrito para colocá-lo sobre o balcão do guichê.

Naquele mesmo dia Siniford cometera um grande erro, um erro estúpido — certamente já o cometera antes, sem que ninguém o observasse. Depois de ter apresentado o cheque, amarrotara o envelope, jogando-o ao solo. O espião esperou uma oportunidade, apanhou o envelope e veio trazê-lo para a estação, no momento exato em que John Wade de lá ia sair.

Não havia nenhum nome impresso no sobrescrito, mas, no verso, estava ainda intacto o lacre, sobre o qual fora chapado um sinete de aço. Havia nesse sinete quatro letras iniciais: L, K, Z e B.

São raras as firmas em que há quatro sócios, mas fácil é encontrar desses casos entre um consórcio de advogados. Folheando um Almanaque da Justiça, Wade deu uma busca cuidadosa na letra L. Em poucos segundos encontrou o que procurava: o consórcio eminente dos Drs. Latter, Knight, Zeeland e Bruder, de Lincoln's Inn Fields. Wade tomou nota do endereço, e naquela mesma tarde foi procurar um advogado seu amigo, para saber de qualquer coisa a respeito dos quatro nomes eminentes.

— Gente de grandes negócios, informaram. Latter e Knight já morreram, Zeeland aposentou-se, e o velho Bruder cuida dos negócios. É um sujeito trancado como uma ostra, mas, como todos os advogados do foro, cede ao bom senso. Se lhe disser o que deseja, ele certamente informará o que souber.

Por felicidade Wade encontrou o Dr. Bruder no escritório; era um homem alto e magro e tinha na cabeça uns restos de pêlos ruivos. Olhou o detetive por trás dos óculos côncavos e depois examinou o cartão de visita.

— Sente-se, Sr. Wade, disse então, com um ligeiro sorriso. Há muito tempo que não tenho um Inspetor da polícia em meu escritório. Não me inquieto, porque sei que nenhum dos meus respeitáveis clientes se encontra em apuros!

— Lorde Siniford é seu cliente? indagou John e, para sua surpresa, viu que o advogado negava com certo vigor.

— Não, disse ele, de modo enfático. Ele é... é... Bem, não é um cliente.

Olhou para John pensativamente, um rápido instante, e os seus olhos bem diziam que ele estava pronto a ouvir qualquer coisa que tivesse acontecido a Lorde Siniford.

Apontou uma cadeira a John e espalmou as mãos sobre a mesa.

— Agora, Sr. Wade, o que deseja?

John teve uma inspiração. Mesmo enquanto falava, reconhecia como era perigoso o terreno em que se aventurava e que havia uma penalidade disciplinar para cada frase que ele enunciava.

— Vou por minhas cartas sobre a mesa, Dr. Bruder, disse ele. Estou empenhado num inquérito em torno dos Homens de Borracha, a respeito dos quais certamente já ouviu falar.

O advogado inclinou a cabeça:

— Sempre ouvi falar deles, disse.

— Naturalmente devo investigar todos os pontos que me surgem no caminho, continuou John. Descobri que Lorde Siniford está associado a certas pessoas que de perto estão relacionadas com aqueles bandidos. Sei muito bem que há alguns anos ele era um homem pobre, mas recentemente sua fortuna mudou, e recebe dos senhores uma pensão quinzenal. Afirmo tudo isso sob as reservas da lei, mas o senhor bem compreenderá que para nós é muito importante saber de onde vem essa renda de Lorde Siniford.

O advogado fitou John longamente, como que raciocinando.

— A renda de Sua Senhoria é perfeitamente legítima, disse ele. Ê verdade que ele recebe de nós algum numerário. Agora, se recebe dinheiro de outras fontes, não é da minha conta. Entretanto, como já lhe disse antes, não somos seus procuradores, mas somente executamos ordens de outras pessoas.

John devia ter-se mostrado desapontado, porque o advogado sorriu.

— Sinto ter comprometido um pouco a sua teoria, disse.

— Nem tanto, disse Wade, hesitando. Não se tratava bem de uma teoria. Naturalmente Lorde Siniford recebeu alguma herança...

— Não é bem uma herança, interrompeu o advogado, cauteloso; há um certo depósito que o beneficia com uma renda interina, aliás. Porque, no fim de um ano, ele já terá recebido todo o dinheiro.

E tornou a sorrir, para grande perplexidade de John.

— Pareço-lhe misterioso? Explico-lhe tudo, porque não vejo razão para lhe ocultar o que poderia saber com uma investigação cuidadosa dos documentos de Somerset House. Um nosso cliente, aparentado com Lorde Siniford, morreu há cinco anos, deixando fortuna extremamente grande, acrescentou, enfático. O dinheiro foi herdado... hum... por alguém. Acho que nada mais lhe poderei relatar, exceto que o depósito foi estabelecido por uma pessoa que já morreu e não pode ser tocado até o vigésimo primeiro aniversário daquele alguém. — Nada mais lhe devo dizer, Inspetor. (Bruder recostou-se mais na cadeira, juntou as pontas dos dedos e com ares céticos fixou o detetive.) E penso que é não lhe disse senão o que me é permitido dizer-lhe.

— Pode fornecer-me o nome do testador de cujos negócios o senhor trata?

O advogado pensou por algum tempo.

— Bem... Como lhe disse, o senhor poderia obter detalhes da herança Pattison em Somerset House. O mais que lhe posso avançar é que Lorde Siniford recebe suas rendas da herança Pattison; nela estão os negócios da falecida Lady Pattison, tia-avó de Sua Senhoria.

Levantou-se da cadeira, tamborilou um momento sobre a placa de vidro da mesa, e então:

— Não sei por que lhe diria mais alguma coisa; tive há tempos um contato desagradável com Lorde Siniford. Veio ele fazer-me indagações que julguei desnecessárias e tivemos uma troca de palavras rudes. Até lhe escrevi, para que consultasse a propósito um outro advogado porque, francamente, eu preferirei sempre conversar com um colega a discutir com Lorde Siniford. Por aí pode ver que não sou dos seus melhores amigos...

— Seria indiscrição perguntar o motivo da discussão? De novo o advogado refletiu.

— A curiosidade de um policial é sempre perdoável, Sr. Wade. Lorde Siniford veio pedir-me certas caixas de documentos que são parte integrante da herança e que assim continuarão até que todo o caso fique resolvido. Recusei-lhe o que me pedia, e mostrei-lhe o que lhe aconteceria se continuasse com aquele intento. Ele se excedeu... Parecia-me estar bêbado. E já lhe disse tudo, Inspetor,

Estendeu para John a mão comprida e ossuda; seguiu-o até a porta, e ele mesmo a fechou, depois que o Inspetor saiu.

 

 

Que resultado banal, vulgar, para todas aquelas pesquisas misteriosas! pensava John Wade, quando se dirigia para Scotland Yard. Mas se Lorde Siniford recebia dinheiro de um legado intangível, da mais honesta procedência, porque diabo estaria metido com os Homens de Borracha e estivera toda uma noite a bordo do "Troiano" com o Capitão Aikness?

Wade passava através de Bedford Row quando tomou uma súbita decisão e, metendo-se num carro, mandou rodar para a rua de St. James. O porteiro disse-lhe que S. S. estava em casa, e acabara de chegar.

No vestíbulo, sobre uma mesinha, havia uma pilha alta de largas e achatadas caixas de papelão. Um nome chamou a atenção de Wade, e ele foi examiná-lo, no rótulo de uma caixa que anunciava uma costureira de luxo; Wade descobriu em outra caixa um vestido de mulher.

Havia uma notinha escrita a lápis num dos rótulos:

 

Une couturière viendra essayer les robes de la jeune demoiselle Mercredi soir.*

* "uma costureira virá provar os vestidos da senhorita na quarta-feira, pela tarde." (Em francês no original.)

 

Evidentemente, tratava-se de uma instrução para a modista. Quem seria a "jovem senhora" do recado?

— Que nome hei de dizer a Sua Senhoria? perguntou o porteiro, tomando do telefone.

— Wade, disse John, depois de pensar um bocadinho. Podia ser que Siniford não o quisesse receber. Mas a resposta foi inesperada: "Mostre o caminho ao Sr. Wade."

O quarto de Siniford era um aposento vasto, dominando a rua de St. James. Sua Senhoria, de costas para a lareira, muito atencioso, parecia estar na defensiva. John Wade usou de um meio de derrubar todo aquele entrincheiramento: colocou cuidadosamente o chapéu numa cadeira e, sentando-se, pôs-se a fixar as luvas, com muito vagar. Aqueles gestos lentos muitas vezes desarmaram qualquer cidadão que estivesse disposto a recitar uma história demorada e bem ensaiada.

Siniford assoou o nariz, meio apreensivo. — Bem, bem, disse ele, impaciente, o que deseja o senhor, Inspetor Wade? Só disponho de três minutos para atendê-lo.

— Preciso exatamente de três minutos, disse Wade, friamente. O senhor é amigo do Capitão Aikness?

A pergunta foi disparada sem preâmbulos, e o homenzinho estremeceu.

— Aikness? Capitão de navio? Mas certo que o conheço. Foi amigo de meu pai, há muitos anos, e recentemente tive' o prazer de tornar a encontrá-lo. Está agora na América do Sul.

John Wade concordou.  — Um amigo de seu pai? Então pode afirmar a integridade nbado capitão, Lorde Siniford? indagou ele, sem perder de vista os olhos assustados do homem.

Sua Senhoria parecia incomodado.

— Não afirmo coisa alguma, grasnou ele. Meu amigo, seja razoável! Eu conheci... e... meu pai conhecia o senhor... o Capitão Aikness. E não fiz mais que um gesto de polidez, indo visitar esse amigo no seu navio. Um ótimo homem, encantador mesmo!

— E Miss Lila Smith? Também a acha encantadora? perguntou o outro, suave.

Lorde Siniford estremeceu, ao ouvir o nome de Lila.

— Conheço-a, sim, Inspetor. Mas, por Deus, que idéia a sua! Vem ao apartamento de um cavalheiro interrogá-lo... Que é isso?

— O senhor está muito interessado em relação à jovem Lila Smith?

John Wade sabia que era esse o terreno perigoso para Lorde Siniford.

— Conheço a moça... E sei que é bem bonita. Não me interesso por ela, nem por qualquer outra (firmou bem a palavra) moça.

— Mas por que então lhe comprou uma toilette completa? indagou Wade.

Lorde Siniford ficou escarlate, depois branco, depois amarelo.

— Mas que diabo! O senhor vive a espionar-me? Tome cuidado, Inspetor, porque eu lhe posso tirar fora as insígnias de detetive! Não sou o homem que o senhor pensa! Não se esqueça disso. E já que é tão curioso, posso dizer-lhe que aquelas roupas não são para Miss Smith, longe disso...

— Para Ana, então? sugeriu Wade.

— Não sei o que quer dizer, atalhou Lorde Siniford.

— Falo da mulher que esteve em sua casa de Maidenhead, e foi trazida para Londres num carro fechado, na noite em que assaltaram o banco da rua Oxford. O senhor até mandou comprar umas roupas femininas, se me lembro bem, Lorde Siniford: (Caminhou para o interlocutor.) Eu preveni Golly; deixe-me agora preveni-lo. Se essa mulher, essa Ana Smith, for encontrada no Tâmisa com as roupas que lhe comprou, garanto-lhe que o senhor passará maus quartos de hora na delegacia de polícia!

O homem tremia; nem tentou negar que conhecia Golly, ainda que pudesse muito bem ter conhecido o Sr. Oaks por outro título mais nobre. Evidentemente, a ameaça surtira efeito. Sua Senhoria olhava para o detetive, e por algum tempo não pôde dizer nada.

— Bem sei o que o senhor está pensando, continuou John Wade. Está dizendo de si para si que nada poderá acontecer a essa mulher, e ao mesmo tempo sabe que alguma coisa pode suceder-lhe. A sua posição é embaraçosa, de qualquer modo, caso essa mulher apareça viva ou morta.

Lorde Siniford não era bom ator; a ameaça abalara-o.

— Na verdade, ignoro sobre quê o senhor fala. (A voz de Sua Senhoria era surpreendentemente meiga.) Penso que andou sonhando, Inspetor. Não sei nada sobre Ana... Ana de quê mesmo?

Wade tentou outro salto:

— Ana também se beneficia da herança Pattison? perguntou ele.

A seta alcançou o alvo. Os olhos pardos de Siniford se abriram num horror indescritível.

— A herança Pattison? repetiu ele, áspero. O que sabe o senhor?... (Parou de falar, sem fôlego.)

— Falei só para saber, e é tudo.

Wade levantou-se, tomou do chapéu e das luvas.

— O que sabe o senhor da herança Pattison?

— Tudo, disse John Wade, em tom brando.

E saiu do aposento.

 

 

Ocorreu-lhe, no caminho para Scotland Yard, que não fora discreto quando se referira a Lila Smith, e que a resposta de Siniford produzira nele o efeito de um castigo. Aborrecia-o de saber que Siniford poderia ir ao "Meca" unicamente com o fim de ver a moça.

Wade foi achar o Inspetor Elk no seu gabinete penumbrento. Elk tinha a mania de fumar os charutos alheios e de encher o gabinete de fumaça; dizia odiar o trabalho ao ar livre. Ele escrevia quando Wade entrou, e descansou a pena para falar ao colega.

— Está tudo pronto para a visita desta noite, disse ele. Três lanchas da Fluvial patrulharão o rio, e se aproximarão do desembarcadouro, a um sinal nosso. Trinta e cinco homens armados cercarão a casa, para assistir à busca de um criminoso imaginário que fugiu pelo cais; esse criminoso pode ser um... assassino. Um homem procurado pela polícia... O que quer dizer: para achá-lo, a polícia poderá fazer tudo. Entrar até em casas alheias, à noite, com permissão gentil dos proprietários. John concordou.

— Bom plano. Mas não há notícias de Golly?

— Por enquanto nenhuma. Com certeza, como acontece sempre, o chão abriu-se e ele desapareceu.

— E o caso dos chins?

— Nada de novo. Batemos toda a cidade, e nada. O chefe quer encarregá-lo da diligência desta noite. Alguma coisa a acrescentar?

John hesitou.

— Não, acho que não há nada mais. Haveria se lá estivesse a moça, mas felizmente já lá não está...

— Aquela moça Smith? indagou Elk. John Wade sentiu-se irritado.

— Aquela moça Smith, como você lhe chama, não entra na conta dessa complicação, disse ele, medindo as palavras.

Elk suspirou.

— É o diabo quando os detetives bonitos se apaixonam! zombou Elk; e Wade resolveu mudar de assunto.

— Golly tem que ser encontrado, disse. Ele é a chave que abre todas as portas.

As estações de polícia de Londres tinham uma descrição completa de Golly. Todas as casas de hóspedes haviam sido batidas, sem resultado. E aquele desaparecido era um caso insolúvel para a polícia, tanto mais quanto o homem procurado persistia no bom senso de se conservar oculto.

— Ele está no "Meca". Eu seria capaz de apostar isso, disse Elk. Mas uma aposta chama outra e leva logo um homem para o caminho do pano-verde...

John atalhou a tirada de moral:

— Elk, você se lembra do roubo do banco da rua de St. James? Pois naquela noite os Homens de Borracha fugiram numa lancha!

Elk concordou.

— E você não a segurou! disse ele, zombador.

— Perdi-a, disse Wade, porque ela desapareceu para o lado do cais, perto do "Troiano", e com toda certeza foi içada para o navio, enquanto eu me dirigia para Greenwich. Não sei como não me ocorreu revistar a embarcação a fim de encontrar a lancha. Porque ela deve estar agora no vapor, a não ser que a tenham atirado ao mar, já destroçada, para que afundasse logo. Por isso radiografei ao nosso agente sul-americano, pedindo-lhe inspecionar o navio no momento em que tocar em terra.

Elk acendeu o charuto.

— Lila Smith é o mistério, disse ele, e não o "Troiano". Está mais do que claro que o "Troiano" faz contrabando de jóias roubadas. Devem ter até usinas de joalheria lá por dentro. Vou mostrar-lhe agora uma coisa que você não conhece ainda.

Abriu uma gaveta da mesa e remexeu nos papéis desarrumados, rosnando desaforos para o responsável do desarranjo. Depois de alguns momentos separou uma folha de papel, no centro da qual havia um recorte de jornal colado.

— O nosso arquivo tirou isto aqui de um jornal do Lancashire, de há bem uns três anos. Um desses semanários de província...

John Wade tomou do papel.

"George Seeper, o joalheiro sentenciado a dezoito anos de trabalhos forçados, por fraudes, foi visto recentemente em Buenos Aires por um amigo. Ele se regenerou dos costumes antigos e tem hoje um bom lugar numa companhia de navegação. Já fez diversas viagens a Londres. E uma alegria anunciar a volta desse cidadão à vida honesta..."

— E cá está um outro retalho, disse Elk, mostrando ao colega um segundo papelucho, com o timbre do Arquivo Policial. Era um anúncio de emprego:

"Precisa-se de um joalheiro para a América do Sul. Excelente oportunidade para um homem sem emprego ou que necessite reabilitar-se."

 

— Examinei tudo. O "Troiano" estava em Londres quando apareceu o anúncio, e foi em Buenos Aires que um amigo encontrou o Sr. Seeper. Quantas respostas teria um anúncio desses? Milhares! E, entre elas, quantas de falsários saídos das prisões?

Wade afagava o queixo, pensativo.

— Esse anúncio me parece muito perigoso.. Se Aikness é de fato o cabeça dos Homens de Borracha, dificilmente se colocaria assim à mercê de um sentenciado.

Elk sorriu, zombeteiro para o amigo.

— Um sujeito que já teve encontros com a polícia, de modo algum há de encarar com simpatia uma conversa complicada com os homens da lei. Fizemos algumas pesquisas a respeito desse Seeper. Ele deixou alguns parentes em Peebles, parentes que lhe ignoravam o destino, até receberem dele uma carta, comunicando-lhes o arranjo de um bom emprego. Deve ter estado de então para cá uma ou duas vezes na Inglaterra, não acha? Pois bem, nunca foi visto por ninguém, nunca ninguém lhe ouviu uma única palavra, exceto uma pessoa: sua velha mãe, a quem ele manda dinheiro com a maior regularidade. Arranjou um bom lugar e, se sempre o recompensarem com esse salário principesco que deve ganhar, pouco se importará com o que é legal, com o que é honesto. Você pode jurar sem temor de engano que todas as jóias que são levadas para o navio são transformadas em menos de uma hora. Aposto com você o que quiser!

 

John Wade não compreendia como os Homens de Borracha, que planejavam e executavam tão grandes assaltos, pudessem andar conluiados com ladrões de jóias. Mas quando, depois, refrescou a memória com alguns dados do Arquivo, pareceu-lhe óbvia a razão dessa organização dupla. John achou quatorze grandes roubos de jóias, em que haviam desaparecido gemas de alto valor, e todos esses roubos eram atribuídos aos Homens de Borracha.

Choveu forte aquela tarde; o tempo clareou à noitinha, e talvez fosse o tempo que lhe fizesse doer mais a ferida, ainda que ela caminhasse para a cicatrização, na opinião do médico da polícia, que o examinou. Assim Wade expediu várias ordens pelo tele-fone e, quando o rio mergulhou na obscuridade da noite, ele foi até a estação e deu as instruções finais aos oficiais encarregados das três lanchas que balouçavam ao lado do ancoradouro de pedra.

As lanchas levavam tripulação aumentada e todos os homens iam bem armados. Na popa da maior das três havia, um armamento não comum naquelas batidas, uma pequena metralhadora Levis, que John Wade solicitara. Scotland Yard não gosta de ver armas de fogo nas mãos dos policiais, e Wade teve que despender argumentos muito persuasivos para que lhe permitissem o uso da metralhadora automática. Sua experiência dos Homens de Borracha ensinara-lhe, no banco Frisby, a não facilitar em nenhum dos detalhes, e a arma chegara camuflada da Torre de Londres.

Houve um conselho de guerra de meia hora, onde todas as minúcias foram estudadas, e às nove horas John Wade desceu para tomar lugar na mais veloz das lanchas. O destacamento da terra firme devia chegar numa avançada cerrada, ao jeito das que freqüentemente passavam pelo "Meca", no caminho das docas, e não seria um fenômeno insólito àquelas horas da noite. As três lanchas dispunham ainda de uma patrulha que cruzasse as águas do meio do Tâmisa enquanto as embarcações mais céleres e mais bem armadas beirassem os desembarcadouros. Um velho guarda da Fluvial, que conhecia todos os segredos do rio, deu-lhe uma pequena informação antes que começasse a investida das lanchas:

— Vai haver esta noite maré bem alta. Já espalhamos até um aviso por todos os barcos e trapiches.

A noite estava bonita, fora do costume, e os três barcos saíram em linha singular e atravessaram o rio na direção do Surrey. Quando se aproximavam de Wapping, os motores pararam. John olhou o ponteiro luminoso do seu relógio; faltavam cinco minutos para a hora, e com a lanterna elétrica ele fez sinal às outras embarcações que cruzassem um pouco mais para o norte. De onde se sentara, na lancha, podia ver as janelas superiores do "Meca": duas delas se achavam iluminadas; a terceira, que sabia ser a do quarto de Mum, não se distinguia na escuridão.

Estava bem no meio do rio quando ouviu sibilar um aviso do sargento.

— Vem qualquer coisa do lado do desembarcadouro!

O sargento tinha uma visão extraordinária no escuro; via na treva o que homem algum conseguiria ver. E o próprio John Wade por muitos segundos nada pôde descobrir. Mas uma sombra negra se desenhou no rio. Era uma embarcação de tamanho invulgar, e, ainda que se encontrasse a umas cinqüenta jardas da lancha da polícia, John Wade não pôde ouvir os ruídos comuns das lanchas de motores a gasolina ou a óleo, a não ser um zumbido compassado, que era o único ruído que se distinguia. Uma poderosa lancha elétrica — pensou ele — e deu ordem para que o sargento fosse ao seu encontro. Mal a polícia esboçara a manobra, quando Wade notou a extraordinária velocidade em que ia a lancha negra. Mesmo antes que alguém pudesse perceber o que ia acontecer, ele viu o sulco profundo que a voadora deixava no rio, sulco em forma de V que se recompôs violentamente; a lancha negra deu na lancha da polícia um repuxão que teria jogado os homens à água se eles não estivessem bem agarrados às bordas.

Tudo aconteceu num minuto. O barco sinistro passou e Wade pôde notar a face do homem que ia sentado num banco de popa...

— Aikness!

O Capitão Aikness, que naquele momento estava no mar alto! Mas não teve tempo para refletir. A lancha da polícia adernava pela popa.

— Está afundando, disse uma voz, ansiosa.

Nas outras lanchas havia bons observadores e uma das embarcações se aproximou do barco que afundava. Num segundo Wade saltava para o barco salvador, seguido pelos companheiros.

John examinou o rio, mas não pôde distinguir a lancha negra. Ela desaparecera nas trevas, e a tripulação da polícia só se preocupara em salvar os companheiros, deixando de prestar atenção à embarcação fugitiva. Mas nesse mesmo momento chegaram os sinais de terra.

— Encostem ao cais, disse uma voz forte.

Uma lâmpada verde era sacudida para cima e para baixo no desembarcadouro do "Meca". Os investigadores tinham chegado e os dois barcos se moveram em direção do cais. John Wade esqueceu-se de que tinha os pés molhados e de que as calças se lhe colavam às canelas.

A maré subira e roncava fortemente. A água investia contra a superfície do desembarcadouro do "Meca", no instante em que a lancha encostou. Wade saltou para a terra e teve tempo de alcançar uma forma negra que viera correndo pelo cais em busca de lugar mais seguro. O homem debateu-se vivamente, e por um segundo John pensou que ele fosse Golly, até que reconheceu um rosto familiar sob a luz de uma lâmpada.

— Como, Fungador? Você também está metido ria sociedade?

— Não fiz nada, balbuciou o homem. O senhor não pode afirmar que eu tenha feito alguma coisa, Inspetor Wade. Naturalmente tenho que correr quando vejo esses apertos. Nunca ninguém sabe o que pode fazer uma bala perdida...

— Levem-no, disse John ao sargento, e correu para a casa.

A despeito do rumor causado pela prisão do Fungador, havia um ar de quietude em torno do "Meca". Os únicos oficiais da polícia à vista eram Elk e seu assistente, ainda que, na escuridão da rua, Wade notasse numerosos indivíduos que não eram senão policiais metidos em roupas civis.

 

Elk fumava, ao lado da Sra. Oaks na pequena entrada e John notou que as faces de Mum estavam terrivelmente pálidas. Um outro fato interessante era a atitude da mulher. Ela não estranhara nem protestara contra a intrusão nos aposentos do clube. Talvez se pudesse atribuir isso à seriedade da batida. Mum teve um rápido olhar para John, mas voltou logo a atenção para Elk.

— A única coisa que lhe peço, Inspetor Elk, é que nenhum dos meus hóspedes venha a saber de nada a respeito dessa pesquisa. Uma coisa dessas arruinaria o clube e seria também a minha ruína pessoal. Que quer o senhor ver? Terá as chaves de todos os aposentos da casa.

— Nós gostaríamos de examinar as adegas, Sra. Oaks, disse John.

Ele viu o involuntário piscar dos olhos de Mum. Esta o fitou por um segundo e depois tornou a olhar para Elk.

— Gostaria de saber quem é o encarregado dessa busca, indagou ela, e pela primeira vez Wade notou uma ponta de raiva em sua voz. Quero saber quem é o responsável por tudo, porque naturalmente não me haverei de submeter a esse tratamento. Sei que o caso se vai complicar e quero saber de onde parte a complicação.

— Sou eu o responsável, articulou John, calmamente. Quer dar-me a chave da adega?

Mum pareceu não ter ouvido. Depois, inocente, respondeu:

— Aqui não há adegas, disse ela, a não ser aquela em que guardamos lenha e que está sempre aberta. Não tememos os ladrões como certos vizinhos e não negaríamos nunca uma acha de lenha a um pobre.

Wade sorriu.

— Foi exatamente o que nos disse Golly esta noite, declarou ele. A polícia nada encontraria por aqui.

— Deveras? indagou Mum, calmamente. Então Golly falou a verdade pela primeira vez na vida.

A calma de Mum veio dar a Wade a quase certeza de que Golly andava ali por perto.

— Quem esteve aqui esta noite? indagou ele, bruscamente. Não, não quero saber do nome dos seus hóspedes. Quero que me fale dos seus visitantes. Quanto tempo esteve aqui o Capitão Aikness?

Mum pareceu assustada.

— Aikness — o senhor falou do Capitão Aikness?

Ele concordou.

— Do "Troiano"? (Mum levantou a cabeça.) Não, não o vejo há várias semanas.

— Ele esteve aqui esta noite, disse John. Agora, Sra. Oaks, digo-lhe que este ponto é muito importante, e que a senhora não o pode negar. Aikness esteve aqui esta noite. Isso não quer dizer que haja crime na visita do Capitão, nem que haja mal algum em que a senhora o tenha recebido.

— Não sei de nada de crimes e de visitas, disse Mum, sorrindo. Não vi hoje o Capitão Aikness.

Por aquele caminho nada se obtinha. Wade mandou-a buscar as chaves, ainda que suspeitasse que Mum as trouxesse guardadas num pequeno saco que tinha à cintura. Mum voltou e deixou as chaves na mão do Inspetor.

— Não há chave alguma de adega, já lhe disse. Quer que eu o acompanhe?

John não tivera esse pensamento. Ele e Elk caminharam pelo cais, e com a ajuda das lâmpadas de algibeira acharam os pequenos degraus que levavam à adega de carvão e lenha de Golly Oaks. Mo fundo desse buraco havia um espaço vazio, calçado de pedra, onde, fora dos olhares — mas não dos ouvidos — dos hóspedes, Golly rachava lenha. A porta era velha e pesada, muito arranhada e suja, e com um buraco quadrado protegido por uma grade de ferro. Wade esperava ter que empregar toda a força para arrombá-la, mas com grande surpresa notou que ela cedia sem resistência e sem ruído.

Poderia mesmo tê-la empurrado com a ponta dos dedos; examinando os gonzos, verificou que neles havia óleo em abundância para evitar rangidos de molas enferrujadas. Isso era interessante. Ele voltou de novo à outra face da porta e a examinou cuidadosamente. Examinou a velha fechadura, que não era usada havia muito tempo. Mais para baixo, com a lanterna portátil, Wade viu um pequeno buraco triangular e, na esquadria, no sítio do encaixe, um buraco correspondente. Certamente devia existir ali uma fechadura camuflada. Wade levou algum tempo para descobrir o buraco da chave. Este se encontrava muito bem escondido no interior da porta, sob o eixo da maçaneta rústica — um pequeno buraco quase invisível, com o espaço necessário para a introdução de uma chave fina e achatada. Não havia abertura alguma do lado de fora, de modo que a porta só podia ser fechada por alguém que estivesse no depósito de lenha.

— Interessante! murmurou Elk, como um espectador fascinado. Que alguém se dê a tanto trabalho por uma razão que aparentemente não existe!

A adega possuía um globo elétrico que pendia do centro do teto abobadado. Achando o interruptor, Wade acendeu a lâmpada. Nada havia ali aparentemente para examinar. Três grandes pilhas de toras de lenha, vigas apodrecidas de navios, cortadas em tamanhos iguais, bem arrumadinhas umas sobre as outras, e sobre elas montes menores de lenha ordinária. A um canto havia uma grande vasilha de ferro. Levantando-lhe a tampa, Wade descobriu uma areia branca, do tipo da que o seu criado Henry usava para polir as panelas. A vasilha tinha areia até a metade.

Com o auxílio de um agente, Wade derrubou uma das pilhas de lenha para poder examinar a parede. Não achou senão tijolos descoloridos e cobertos de mofo. Batendo com o nó dos dedos na parede só ouviu um ruído surdo, que bem mostrava que o resto das adegas estava aterrado. Wade tentou outra parede, sem melhor resultado, e enquanto o agente tornava a empilhar a lenha ele tentou o exame do soalho.

Este era calçado com grandes e pesadas pedras; não havia sinal algum de alçapão.

— Qual a razão desta areia? indagou Elk, de repente. Puxou a vasilha, que não se moveu.

— Ê um material pesado! Mas não é tão pesado que nós não a possamos afastar daqui, disse Elk. Wade, ajude-me um instante.

Os dois homens puxaram com violência, mas o panelão era irremovível. Tirando o casaco, Wade levantou a camisa até o cotovelo e meteu o braço pela areia. A princípio nada sentiu, mas agora os seus dedos tocavam uma saliência metálica, uma espécie de castiçal, pela forma que ele sentiu, saliência que certamente partiria do fundo do receptáculo. Estava ela situada no meio exato da circunferência da vasilha e ofereceu resistência à sacudidela violenta de Wade. Mexendo-se para a direita e para a esquerda, a mão de Wade tocou subitamente um outro objeto de aço, com a forma de um saca-rolha. Wade forçou o objeto, que cedeu imediatamente. Ele ouviu o ruído surdo do choque de aço contra o aço.

— Que é isso? indagou Elk, curioso. O outro refletiu um momento, e então:

— Ajude-me um pouco, disse John Wade. Acho que não haverá mais resistência.

O caldeirão rodou com facilidade, e mostrou uma grande placa circular de aço, em que havia a extremidade de uma lingüeta cilíndrica. Wade não teve tempo de examiná-la, porque logo que o caldeirão se deslocou, um canto da parede se abriu, mostrando um corredor estreito.

— Diabo! rosnou Elk.

As pilhas de lenha, tão artisticamente arrumadas, também tinham desaparecido. E de fato eram as mais artisticamente arrumadas, as que mais se agarravam à parede.

Jogando para a frente a luz da lanterna, John passou pelo pequeno portal que se abrira.

— Há aqui um interruptor de luz, disse Elk, que o acompanhara. Sim senhor, luz elétrica e todas as comodidades modernas!

Elk apertou o botão e o quarto secreto se iluminou. Era um longo aposento, evidentemente ao nível das profundezas do "Meca". As paredes e o soalho eram de tijolos antigos, com aspecto de muita umidade, ainda que a adega parecesse bastante seca. Em alguns sítios a construção apresentava considerável estado de abandono. Perto da porta por que haviam entrado os dois detetives existia uma alavanca de aço que se encostava às lajes do chão.

Elk deteve-se, para dar algumas instruções ao detetive que deixara na adega superior e, voltando, manejou a alavanca. Imediatamente as duas paredes que formavam o canto da adega superior se fecharam.

— Assim se fecham, disse Elk. Creio que há alguma comunicação entre a alavanca e o caldeirão de areia.

Wade dava uma busca cuidadosa no aposento. Havia nele duas mesas ligadas pelas extremidades e uma dúzia de cadeiras. Nada indicava que as cadeiras tivessem sido ocupadas recentemente, mas debaixo de uma delas Wade encontrou uma bola de papel amarrotado, que verificou ser uma página de jornal escrito em caracteres chineses. Mais ainda, achou perto de uma das paredes um pequeno vidro de tinta e um pincel, dos que os chins usam para escrever.

Desse longo aposento uma porta, somente encostada, conduziu o Inspetor Wade a uma pequena alcova mobiliada com um leito e uma mesa. Pendurado a um prego havia um casaco feminino, um casaco barato, mas de boa qualidade. Bordado na bainha estava o nome de um costureiro de Maidenhead. Aquele, então, fora o esconderijo forçado de Ana! pensou John Wade.

Quando teriam levado a mulher? Não há muito, porque o leito ainda estava desarrumado, e alguém dormira nele muito recentemente. Restava sobre a mesa uma garrafa, com água pela metade, e um frasco sem rótulo, contendo pastilhas brancas. A água era fresca, e uma revista ilustrada descoberta na desordem das roupas de cama era datada daquele mesmo dia.

Wade revistou o travesseiro e encontrou um lenço feminino. Mais importante descoberta foi a de Elk, ao revirar a cama, porque entre o colchão e a armação de arame descobriu uma faca. Parecia de manufatura chinesa, havendo no seu cabo desenhos grotescos de cabeças de dragões. Examinando-a, porém, Elk disse que aquilo era pura indústria de Birmingham.

— Vendem dessas facas, nas feiras, aos marinheiros chineses. O que pensa sobre isso?

— Acho que era o único meio de defesa de Ana, disse Wade, prontamente. Porque ela devia ter inteligência bastante para saber que espécie de perigo a ameaçava, e a faca também nos diz que ela foi tirada daqui inesperadamente, antes que se pudesse defender.

Wade tomou do frasco de pastilhas e sacudiu-o. Depois fungou forte.

— O Sr. Raggit Lane esteve aqui. Acho que ele fez de médico. Mas está aí um homem que devia mudar de cosméticos.

Nada mais se encontrou. O subterrâneo era bem ventilado, e muito bem ventilado, porque John ainda se lembrava dos tempos da casa de bebidas.

— Deve haver um grande ventilador por qualquer parte, disse ele. O nosso Sr. Aikness, o nosso Sr. Raggit Lane, ou qualquer mestre de cerimônias disto aqui, conhece todas as regras de higiene, e parece que se aqui se infiltrou água alguma vez — observe a mancha verde — eles a fizeram sair pelo telhado. Vamos embora!

Voltaram à alavanca, que foi manejada por Elk. Aparentemente a barra de ferro tivera o seu efeito, mas a parede não se movera.

— Quem deixou você lá em cima? indagou Wade ríspido. Elk meditou.

— Martin e Scance, disse ele. Com certeza se meteram a brincar com o...

Nesse momento apagaram-se as luzes do aposento. No mesmo instante Wade tirou do bolso a lanterna elétrica.

— Tente abrir o portal, disse Elk, mas a manobra foi inútil. Elk bateu nas paredes para tentar atrair os policiais que ficavam em cima, mas não houve resposta. Ele mesmo tivera ocasião de observar a espessura da "porta".

Por um momento John silenciou.

— Seria um acidente? interrogou por fim.

Ouviu um cacarejo manso de Elk, e sentiu um arrepio pela espinha, porque Elk só ria quando se encontrava seriamente atrapalhado.

— Espero que não, grunhiu Elk. Apague essa lanterna, amigo, porque pode aparecer algum inimigo chinês que encontre alvo fácil. Vou examinar a instalação elétrica.

— John foi até o extremo da sala, e mandou um feixe de luz pelas paredes, para verificar que o interruptor do aposento era agora inofensivo.

— É isso mesmo, disse Elk, depois de um momento, apertando o botão sem que a luz voltasse. Deve haver um controle do lado de fora. Estou pensando no que terá acontecido aos dois rapazes.

John Wade não disse nada. Olhava para as paredes esverdinhadas e agora começava a compreender.

— Acho que sei agora por que todos fugiram daqui, disse ele, calmamente. Não foi por nossa causa, absolutamente, amigo Elk...

Chegava-lhe ao ouvido um ruído estranho, um chiado constante e confuso; e então, no foco da lâmpada, ele viu correr uma, depois a segunda forma cinzenta. Fascinados pela luz, os animaizinhos pararam de avançar e quando Wade os tornou a contemplar já eram seis.

— Não é um temor feminino, disse Elk, e sua voz parecia meio agitada, mas você não repare se eu subir para cima da mesa. Gosto muito de todos os bichos, mas não posso suportar esses ratos imundos nem em pintura.

Ambos subiram para a mesa. O soalho estava coberto de pequenos roedores, que corriam desordenados para uma e outra banda, guinchando, apertando-se de encontro à parede, como atarantados, aterrorizados por algum perigo desconhecido. Os olhinhos fosforescentes brilhavam à luz da lanterna. Elk notou que meia dúzia dos animais lhe subia pela perna e sacudiu-se violentamente, indagando depois:

— Notou como não há mais ventilação?

Sim, John Wade bem notara isso. O ar do aposento se fazia pesado. Respirava-se com esforço. Mas já agora surgira uma brisa fria e, no mesmo momento, do outro extremo do quarto veio um estranho gorgolejo e os guinchos dos ratos se multiplicaram.

— Água, disse Elk. Lembra-se do que disse aquele guarda da Fluvial? Maré cheia esta noite. Vai ser uma complicação para nós. Veja só como nadam estes diabos!

As cadeiras flutuavam nos três pés de água, e todas elas estavam apinhadas de ratos, que pareciam náufragos agarrados a destroços de navios. A água começava a alcançar a mesa. Elk abaixou-se e apanhou uma cadeira, sacudindo fora a tripulação roedora.

— Aquela barra de ferro, disse ele, apontando para o alto.

Através do teto abobadado, corria uma barra de aço, cilíndrica, colocada ali provavelmente em algum tempo muito distante. Cada secção da abóbada tinha o mesmo suporte. Elk saltou sobre a cadeira e alcançou a barra. John seguiu-o com alguma dificuldade. No mesmo instante a cadeira e a mesa flutuaram. Os dois detetives ficaram pendurados no espaço, com água pela cintura.

John viu que as lanternas ainda mandavam para o teto uma luzinha muito fraca, e sentiu que pequenos animais se agarravam ao seu casaco. Sacudiu os ombros violentamente para se livrar dos ratos.

— O rio deve estar terrivelmente cheio, disse ele. Mas não acredito que venha do rio essa inundação.

Fez um rápido cálculo mental. Mesmo supondo que a água subira ao nível do desembarcadouro, ela não lhes passaria da cintura, enquanto estivessem sobre a mesa.

— A Polícia Metropolitana vai perder dois bons oficiais, disse Elk, calmamente. Quem ficará na sua vaga, John? Certamente aquele novato, o Stanford. Palavra como o acho um quadrúpede... É pena que tenhamos de morrer assim...

— Cala a boca, rosnou John, irritado.

A água subia-lhe pelo pescoço. Já agora lhe tocava o queixo. Pouco se interessava ele por colegas e promoções. A água já lhe ultrapassara o queixo. Wade tinha a face encostada à abóbada de tijolos.

Lila Smith... Ela estava salva, de qualquer modo. Bem que ele gostaria de penetrar no mistério da herança Pattison, e de dar um tombo em Aikness, mas...

Sentiu um choque, apesar de nada ouvir, por ter os ouvidos dentro d'água. Todo o edifício pareceu sacudir-se. E então, com extraordinária rapidez, a água começou a descer, primeiro até os ombros e depois, num grande impulso, até a cintura de ambos.

— O que teria acontecido? imaginou Elk.

O mistério só admitia uma solução; uma porção da parede teria desabado com a pressão da água, que achara assim um escoadouro, baixando por conseguinte de nível.

John tocou a mesa, que boiava debaixo de seus pés.

— Salte para a água, disse a Elk. Temos de achar a brecha. Nadou ao longo da parede até que sentiu as pernas presas

por um obstáculo, e agarrando-se à parede, procurou tomar pé. Achou então um buraco de quatro pés de largo por três de comprido. Mas não podia fazer conjeturas a respeito de onde desembocaria aquela brecha.

Cessara o movimento da água. O nível final se estabelecera e, quando minutos depois veio novo fluxo, os dois homens ficaram com água pelo peito, e puderam assim tocar o chão com os pés.

Dois pontos luminosos boiavam na água: eram as lanternas; apanhando-as, John foi examinar a brecha aberta pela água.

— Deve haver aqui um aposento ainda mais profundo, disse ele. Um de nós tem que ir até onde ele vai.

— Esse um de nós tem que ser você, disse Elk.

Wade traçou uma planta mental da vizinhança. Junto ao "Meca" havia um velho trapiche ocupado agora por um vendedor de víveres. Ele conhecia o trapiche; nele existia uma funda adega que servia de depósito. John lá estivera uma vez, à procura de mercadorias roubadas.

Com a lâmpada meio apagada na mão, ele mergulhou, e foi emergir do outro lado do buraco. Seus pés procuraram o solo e não o encontraram. Mantendo-se sobre a água, ele dirigiu a lâmpada para o teto; estavam evidentemente na parte mais antiga do edifício. O teto era suportado por grandes pilastras, e boiando sobre a água havia uma porção de pequenas caixas de madeira.

Ele sabia onde se encontrava; era preciso somente achar a saída; mergulhando através do buraco, foi dizer a Elk o que descobrira.

— Este aposento aqui é evidentemente a última adega do clube e a água foi arrombar a parede do subterrâneo do trapiche, disse ele. Por ali talvez encontremos saída mais fácil.

Os dois homens mergulharam e foram emergir debaixo da abóbada do subterrâneo do trapiche. Nadaram devagar, abrindo caminho entre as caixas de madeira que boiavam. Depois de dez minutos de procura na vasta adega, John notou afinal, a um canto, uma série de degraus de pedra, que iam desembocar numa pequena porta; os dois subiram os degraus e foram dar à porta de ferro.

Para grande surpresa e alívio de John Wade, a porta não estava trancada; do lado de fora havia um outro pequeno lanço de degraus, que davam, em curva, para um vasto aposento, evidentemente já ao nível da rua. Wade constatara isso quando uma voz autoritária o sacudiu. Era o vigilante noturno, com um cachorrão alsaciano pela mão.

— Da polícia, os senhores? Deixe-me examiná-los um instante, declarou ele, cético.

Levou algum tempo para ficar convencido, e explicou a razão do maior mistério para o cérebro de Elk, que era o fato da porta do subterrâneo não estar fechada.

— Notei a inundação, e mandei mesmo um recado para os bombeiros, disse o vigilante. Deixei a porta aberta para facilitar os trabalhos. Mas o rio vai custar a descer. O "Meca" ficou inundado e dois homens que estavam na adega quase morreram. A água subiu de repente. O que faziam os dois camaradas na adega, não o saberia explicar.

John poderia explicar tudo, mas não o fez. O vigilante deixou-os sair pela porta, e os dois se dirigiram para o clube, a tempo de surpreender o trabalho de uma turma de agentes que ia forçar a entrada do subterrâneo, com a esperança de encontrar os corpos dos dois detetives.

Uma lancha levou-os até um dos barcos da polícia e depois de um banho quente ambos trocaram de roupa. Elk estava muito tagarela.

— Interessante, trouxe um rato morto no meu bolso. Preciso escrever alguma coisa sobre esse acontecimento nos anais da história policial. Palavra, mestre Wade, pensei que os Homens de Borracha me tivessem enfim apanhado!... Agora é que vejo que só me salvei por vontade da Divina Providência!

— Seria mesmo? indagou John Wade de manso. Havia lá alguém para mover o mecanismo da ventilação e para apagar a luz. Por isso vou voltar para uma pequena investigação. Você talvez mesmo ache o controle elétrico da casa. Sei muito bem que o peso da água não fecharia aquelas paredes deslocadas. Elas se fecharam num movimento mecânico, e você sabe muito bem que em mecânica os movimentos são causados por forças. Providência! Está aí um nome que não fica bem quando aplicado aos Homens de Borracha!

 

Na ocasião em que Wade chegou ao clube já o rio baixara ao nível do desembarcadouro. Os agentes do primeiro grupo, molhados, tinham sido substituídos por outras reservas policiais. Três máquinas de bombeiros trabalhavam no meio da rua, tentando esvaziar o subterrâneo do trapiche; o depósito de lenha do clube fora completamente esvaziado e havia lá uma confusão indescritível de lenha solta e de carvão espalhado.

John abriu a porta secreta e examinou, um pouco temeroso, o lugar em que estivera aprisionado. Verificou então a exatidão do seu pensamento de que não era aquela a primeira vez que a sala se inundava. Um dos detetives tinha sabido da Sra. Oaks que quatro anos atrás a água invadira tudo e chegara até a abóbada do subterrâneo.

O chão estava apinhado de ratos mortos. Para reforçar a idéia de que alguém apagara as luzes do aposento, as lâmpadas brilhavam agora de novo, como antes da inundação. Aparentemente a água não tivera efeito algum sobre a parede do móvel. John chamou a atenção de Elk para esse fato.

Uma busca cuidadosa nas paredes mostrou a abertura do ventilador, através do qual ele sentira a brisa fria de antes da inundação, o buraco ficava acima do leito em que Ana dormira quando a tinham levado para lugar mais seguro; talvez mesmo ela fosse passageira da lancha negra que desaparecera no Tâmisa.

Nesse sítio o teto era mais alto que em qualquer outro lugar; havia na disposição dos tijolos uma abertura de quatro polegadas, que comunicava com o exterior por um estreito cul de sac, que corria uns doze pés entre o trapiche e o clube. A ventilação fora interrompida por uma chapa de ferro, que ali estava presa por uma corrente e um parafuso, e a operação certamente fora obra de mãos interessadas. Tornou-se mais difícil descobrir porque a luz se apagara no interior; na sala de espera do "Meca" Wade encontrou três controles; mas não tinha tempo de fazer mais nenhuma investigação.

A Sra. Oaks estava no quarto, disseram-lhe, "terrivelmente abalada" com os estragos da inundação. De fato, a desculpa era boa, porque a água pintara o diabo no clube. O salão de visitas de Mum tinha o soalho coberto de lama. O tapete fronteiro à lareira fora deslocado e John descobriu, num trecho do soalho, os traços de um alçapão. O Sra. Oaks lhe dera todas as chaves que ele trazia no bolso, no momento. Uma por uma, experimentou-as na pequena fechadura que descobriu, e afinal uma chavezinha achatada serviu no buraco. Ele girou a chave e abriu o alçapão.

— Deve ser aqui o "cofre" de Mum, disse John, descendo pelos degraus.

A princípio pensou que o receptáculo estivesse vazio, mas depois de um momento suas mãos tocaram numa pequena caixa cúbica de aço, e ele acendeu a lanterna. A caixa, que trouxe para cima, estava trancada, e ele a examinou em todos os sentidos. Se esperava fazer uma descoberta sensacional, ficou desapontado; abrindo a caixa com um formão, não encontrou lá dentro senão um livro, que abriu.

O livro continha quatro páginas de uma escrita cuidadosa, consistindo em nomes femininos dispostos em duas ordens:

Ada......... Rita

Berta......... Sara

Clara......... Moira

Dora......... Pamela

Ema......... Úrsula

Freda......... Ada

Glória........ Berta

Hilda......... Clara

Ina......... Dora

Jenny......... Ema

Kitty......... Freda

Lena......... Glória

Moira......... Hilda

Nita......... Jenny

Olívia........ Ina

Pamela........ Nita

Rita......... Olívia

Sara......... Kitty

Teresa........ Teresa

Úrsula........ Zena

Vera......... Yolanda

Wanda........ Vera

Yolanda........ Lena

Zena......... Wanda

 

A lápis havia mais estes nomes:

Nita

Úrsula

Olívia

Dora

Berta

Ina

 

Wade estudou o livro por algum tempo, tornou a colocá-lo na caixa e foi procurar a Sra. Oaks.

Mum estava atacada de histeria. Estava lacrimosa quando Wade apareceu no quarto. Ele mostrou-lhe o que encontrara.

— Achei alguma coisa que lhe pertence, Mum Oaks. Você deve mostrar sua gratidão por lhe ter trazido esta caixa.

À vista da caixa Mum Oaks mudou de atitude.

— Não há aí senão documentos particulares, disse ela, e tentou tirar o objeto das mãos do Inspetor.

— Há também um código. Vários nomes femininos que defrontam outros nomes igualmente femininos. Um codigozinho bem arranjado, confesso. Cada nome vale por uma letra do alfabeto. "Nita, Úrsula, Olívia, Dora, Berta, Ina", querem dizer "perigo", não é isso?

Ela não respondeu.

— Para quem você telegrafou — ou radiotelegrafou — nesses últimos três meses?

Mum parecia calma.

— Não sei de nada do que o senhor está falando. É uma lista de nomes de mulheres, que me foi pedida por uma amiga que quer batizar uma filha.

— Para quem você telegrafou? indagou John, teimoso. Vamos ao telégrafo, que lá muito facilmente decifraremos os despachos que você mandou para fora.

Mas a Sra. Oaks sabia muito bem — e o disse ao Inspetor —~ que os seus telegramas não seriam achados, porque ela dissimulava nome e endereço; e assim desafiou Wade a que fosse, que ela o acompanharia. O Inspetor cruzou os braços. Mum rosnou:

— Não sei o que é pior: se a inundação do rio ou se a impertinência dos policiais! É tudo o que senhor quer saber?

John sorriu.

— Sim, Lady Godiva, os policiais são piores, você bem sabe; à lei ninguém escapa. Tenho ainda uma perguntinha: quando levaram Ana do subterrâneo?

— Ana? Não sei de quem o senhor está falando...

Depois, vendo que John Wade ia fazer-lhe uma pergunta, esclareceu:

— O senhor fala daquela mulher que estava procurando outro dia? Nunca mais a vi.

John Wade concordou.

— Sim. Mas essa mulher estava no subterrâneo, no menor dos aposentos. Reconheci lá um dos seus casacos, que já mandei para Maidenhead, a fim de ser identificado. Já a avisei, Mum, que se acontecesse alguma coisa...

— Mas se ela estivesse aqui eu saberia logo.

Falava rapidamente, a mulherzinha. Parecia ter vontade de explicar tudo.

— Cedemos o subterrâneo — ou antes, Golly é que o cedeu — a uns camaradas que precisavam dele para depósito. Nunca desci lá... Nem mesmo sei como se desce para lá. Golly sabe; era ele quem tratava do negócio. Recebíamos uma libra por semana. Golly costumava até dar-me esse dinheiro.

Os seus olhos não saíam da caixa que John trouxera do salão.

— Esta caixa me pertence, disse ela. O senhor ma deve restituir.

— Você bem sabe onde encontrá-la, disse Wade suavemente e não lhe deu outra satisfação.

Foi guardar a caixa e o conteúdo no cofre-forte da estação' policial, antes de seguir para casa. Desta vez ia acompanhado de dois detetives armados e encontrou um policial de guarda à frente do cottage. file bem sentia que os Homens de Borracha iam procurar atingi-lo e que as coisas todas caminhavam para uma espécie de clímax.

A casa ainda cheirava fracamente ao gás asfixiante que nela tinham deixado e também não escapara aos estragos da inundação.

Wade foi chamado, após um sono de três horas, devido às conseqüências daquela estripulia das águas do Tâmisa. Uma barcaça se desprendera das amarras e corria pelo meio do rio até o lado de Surrey; havia outros estragos nas embarcações de pesca e de transporte. Wade ia fazer a sua inspeção costumeira.

A lancha levava o policial cansado, que, entretanto, não dormia na vigilância dos barcos do Porto e passava por barcaças e rebocadores sem perder um só.

Chegou afinal às duas enormes barcaças atracadas em frente ao "Meca", e foi aí que o seu interesse cresceu. Ele vira um vigia a bordo, e esse vigia poderia dar-lhe informações a respeito dos movimentos da lancha negra.

A aurora rompia quando Wade chamou a solitária figura que, encostada à cabine da barcaça, fumava num cachimbo de barro.

— Sim senhor, Inspetor, por aqui nada de novo...

— Vou subir, disse John.

A lancha abordou a barcaça, e com o auxílio do vigia John saltou para o convés da embarcação. Foi a mão esquerda que o outro lhe estendeu; trazia a direita no bolso, circunstância que no momento não impressionou John. Muitos daqueles vigias eram homens estropiados, e a primeira idéia do Inspetor foi que aquele tivesse o braço direito aleijado.

O homem prestou-lhe informações mais valiosas do que ele esperava. Não somente vira a lancha negra voar pelas águas, como também fora testemunha da colisão.

— Não; ela não veio do "Meca" (informava tudo em tom professoral.) Notei-a ao descer o rio vinda de Middlesex, mas só foi muito tempo depois que mudou de direção, para cruzar o rio. Pensei primeiro que fosse um barco da polícia, patrulhando as lanchas da outra margem — as suas, não é? Mas fiquei surpreso quando a vi sair em grande velocidade, como que voando. Tinha até intenção de perguntar aqui aos marinheiros se conheciam a lancha.

John, desconhecendo o vigia, fez-lhe algumas perguntas de caráter pessoal.

— Eu? Venho de Grays! Não costumo trabalhar nesse serviço, mas as barcaças descarregaram um navio de maquinismos da Bélgica — maquinismos aí para uma construção em Oxford.... E então tive que aceitar a empreitada.

— Traz a mão ferida? indagou John.

O homem sorriu de leve e tirou a mão direita do bolso.

— Um pouco, disse ele. A barcaça deu de encontro ao cais e tive que prevenir os estragos. (Trazia o pulso arranhado profundamente.) Continuou a falar da lancha negra. Mas é interessante como isso acontecesse. Cheguei até a encontrar nesta barcaça um sujeito chamado... Fungador, foi o apelido que ele me confessou possuir... Um patife, segundo o que me disseram...

— Quem lhe disse? O senhor falou com alguém?

— Somente à polícia... À Polícia Fluvial. Estiveram aqui uns guardas a revirar tudo, à noite. Nunca vi tantos guardas na minha vida... São os novos Sherlocks Holmes...

John não perdera a mudança da voz do homem e sabia muito bem que os vigias de barcos eram inimigos ferozes dos guardas da Fluvial.

— Que fazia aqui o Fungador? O homem abanou a cabeça.

— Eu lá sei o que os ladrões vêm fazer às barcaças! objetou, irônico.

Quando a lancha desapareceu na meia obscuridade da madrugada, o vigia se inclinou e levantou do chão dois cilindros negros. Eram bem pesados; depositando-os sob uma coberta de lona, ele caminhou cautelosamente até a portinhola que dava acesso à cabine. Não se moveu quando ouviu uma voz chamá-lo das profundezas da barcaça.

— Wade, respondeu ele. Pensei que ele quisesse descer... Se mostrasse esse desejo, atiraria nele e no motorista e afundaria a lancha. Teria sido muito fácil.

Ouviu um grunhido de aprovação e sorriu. O Capitão Aikness só soltava daqueles grunhidos quando estava satisfeito.

 

Pelas oito horas John Wade voltou ao Wapping para dormir. Acordou ao som dos cantos das crianças da rua, o que lhe dizia que já era tarde. Tomou um banho e vestia-se no momento em que , apareceu Elk.

— Não, nada de novo. A polícia de Aylesbury prendeu um homem que pensavam fosse Golly e não era.

Mas por outro lado havia notícias.

— Fui ver aquela moça, a Lila Smith. Está muito bem e o doutor diz que não há nada que a impeça de voltar para casa. Sua Senhoria foi visitá-la pela manhã.

— Siniford? indagou John, surpreso.

— Levou-lhe flores, disse Elk, sardônico, levantando as mãos para mostrar a altitude do buquê.

John careteou. As atividades de Lorde Siniford perturbavam-no. A vida de Sua Senhoria parecia-lhe mistério de difícil solução, mais do que o dos Homens de Borracha. Porque os Homens de Borracha não precisavam de explicação. Suas atividades eram claríssimas. Representavam um drama bem estudado e eram atores especializados em todos os gêneros de assaltos. Mas aquelas atenções de Siniford para Lila... Havia uma associação distinta entre os três fatores: os Homens de Borracha, Siniford e a rapariga.

Aikness estava em Londres; não havia possibilidade que ele se tivesse enganado ao reconhecer o homem da lancha negra que voara pelo meio do rio.

— Vou ver Lila, disse ele, ao fim de um grande silêncio. Elk grunhiu qualquer coisa, talvez uma graçola.

Dez minutos depois John Wade encaminhava-se para o alojamento temporário da rapariga. Havia nas faces de Lila uma cor sadia que John Wade não lhe vira antes. Os olhos eram mais vivos e a voz parecia uma confidencia, de tão mudada. Mudara também de atitude para com o Inspetor.

A primeira impressão alarmada de Wade foi que a rapariga estivesse febril e delirante; mas não; uma série de pensamentos a respeito de sua atual superioridade (já não era uma menina) e do papel que tinha no desenvolvimento de todos aqueles mistérios (papel que ignorava mas lhe parecia muito importante) — essa série de pensamentos determinara-lhe a atitude nova. Wade colocara-se à frente de todas as suas cogitações. O Inspetor pensara ir encontrá-la no leito; Lila o recebeu numa pequena sala sentada em frente à lareira, com um livro entre os joelhos e um par de óculos no nariz.

— Como, Lila? Não sabia que você usava óculos, disse Wade ao apertar-lhe as mãos. (Lila apontou-lhe uma cadeira; Wade estava desconcertado.)

— Uso-os para ler, respondeu ela e, fechando o livro, tirou os óculos, muito estudadamente. Mandei buscá-los a noite passada.

(Já agora Wade parecia sem jeito, na presença da rapariga. Antigamente ele lhe falava com um ar superior. As coisas tinham evoluído.)

— Houve inundações à noite, não houve? A senhora... Esqueço-me do nome, essa senhora que toma conta de mim... Ah! Chamo-a de Alice.. Foi ela quem me contou. Pobre titia! Tivemos uma inundação dessas há alguns anos atrás. A água encheu o subterrâneo, e cobriu o soalho do andar térreo. Foi uma coisa horrível. Por que não me veio ver hoje de manhã?

— Eu... eu dormia... disse ele, desajeitado. Passei a noite em claro, às voltas com inundações e uma porção de outras coisas.

— Eu também pensei nisso, concordou Lila.

Houve um silêncio pesado — quase um alívio para John. Lila gozava do embaraço do Inspetor, alegrando-se com aquela falta de jeito na conversa.

— Você hoje pôs nas faces pó de arroz, observou ele subitamente. (A moça riu.)

— Naturalmente. Todo mundo usa pó de arroz. Que idéia a sua! (Abrindo a bolsinha que tinha nas mãos, Lila mirou o rosto no espelho.)

— Como vai de sua perna? indagou ela, depois. Alice disse-me que não era nada de sério! (Parecia contente.) Que coisa horrível! Passou tão rápido como um pesadelo! (A visão dos perigos que atravessara quase lhe fazia perder o senso de disciplina que a contivera até então.) Por que todos eles o detestam assim?

— Quem? indagou ele. Lila hesitou.

A Sra. Oaks e... e... todo mundo. Por que será?

Havia em sua voz uma nota desesperada. Ela sabia muito bem que só havia uma resposta para aquela pergunta e ainda a ousava fazer com a esperança de receber um esclarecimento que a aliviasse. E vendo que ele não respondia:

— São mesmo perversos... Mas todos eles o serão? A Sra. Oaks também? Diga-me, John... Posso tratá-lo assim?

Não havia constrangimento nas palavras de Lila. John respondeu:

— Chame-me como quiser, querida. Mas é como digo: são todos perversos e muito perversos..-. Ouça, Lila... Você já ouviu falar da herança Pattison?

— Herança? repetiu ela, vivamente. Sim... Como é o nome?... Pattison?... Não, o nome não conheço. Mas eles falavam sempre da herança... O Lorde... Como é o seu nome?

— Siniford? Ela concordou.

— Ele é que falava. Golly... O Sr. Oaks... nesse dia estava lá... E Mum, e outro homem. Penso que Lane. Um que se perfuma horrivelmente. Eu escutava tudo. Procurava ouvir tudo por sua causa...

— Por minha causa? indagou John, curioso...

— Sim, por sua causa... A herança... Havia alguma relação entre ela e um banco — o banco Medway. Ouvi Lane referir-se ao "Banco Medway"... Acho que ele tomou nota do nome. Fica na City, esse banco, numa dessas ruas de nomes complicados... Luffbury...

— Lothbury, corrigiu John, suave.

— Deve ser isso. A herança tem qualquer relação com isso. Escutei Lane dizer alguma coisa a respeito de "gravadores"... Ouviu falar disso?

— Até agora, não.

— Acha que também poderei ser uma detetive? indagou ela, tomando da mão de Wade. (Aquele era o seu gesto de maior amizade, e Wade tomou da mão delicada entre as suas.)

— Só se desposar um detetive, disse ele, a voz sonora. Lila não pareceu assustada.

— Assusto-me a propósito de tudo, disse ela. O "Meca" e os "outros" que lá apareciam me deixavam tonta. Não vejo deslealdade em lhe contar tudo isso. Não posso estar dos dois lados. Por estar nos dois lados é que tudo veio a acontecer. Mas que pretende aquele homem?

Indicava com a mão o grande ramo de flores de um jarrão.

— Siniford? Não sei...

— Ele quer casar-se comigo, disse ela, com a maior calma. Não é um absurdo? Que homem estranho!... E bebe muito, o coitado...

John Wade, uma hora mais tarde, ao deixar a casa, era uma criatura estranhamente mudada. Lila, sonhadora, os olhos cheios de confidencias enternecidas, dissera-lhe que só se casaria com aquele que amasse. Para John, as coisas e as pessoas assumiam daquele momento por diante novos aspectos.

Elk esperava-o do lado de fora, e veio pela rua encontrá-lo.

— Um sujeito chamado Pouder ou Wouder quer vê-lo. É um advogado...

— Bruder? indagou John, vivamente.

— Isso mesmo: Bruder! Um sujeito que possui essa voz de Oxford em que um grunhido inarticulado pode ter inúmeras significações. Disse que é assunto importante e que fica no escritório até que você apareça...

Wade não perdeu tempo. Bem pensara em nova palestra com o procurador da herança Pattison, e o convite fora oportuno. Um táxi levou-o ao escritório do advogado e lá encontrou o Dr. Bruder mergulhado no estudo de uma minuta.

O procurador levantou-se e foi trancar a porta do gabinete.

— Tinha desejos de vê-lo, a propósito da herança Pattison, disse ele, especialmente em relação a Lorde Siniford. Mas estou numa dúvida séria, Inspetor Wade. Se a informação que lhe vou fornecer fosse um incidente no inquérito que o senhor dirige... hum!... minhas dificuldades desapareceriam. Se, ao contrário, fosse ela o ponto de partida de um inquérito especial, seria o diabo!...

John sorriu.

— Em outras palavras, o senhor não quer complicar essa questão?

— Exatamente, disse o outro. Não tenho motivos definidos para chamar a polícia... Mas algumas investigações que estive fazendo...

Levantou-se e começou a caminhar pelo escritório, as mãos juntas nas costas.

— Lady Pattison, como o senhor deve provavelmente saber, era esposa de Lorde John Pattison, o terceiro filho do Duque de Soham. Era mulher rica... muito rica, acrescentou ele, enfático.

John esperou. Sabia longinquamente da existência desse Duque de Soham, mas ignorava qual tivesse sido o papel desse titular nos negócios públicos.

— O atual Duque de Soham é um homem pobre, continuou Bruder, parecendo adivinhar os.pensamentos do Inspetor. Todo o dinheiro da família veio para Lorde John através de sua mãe e através de Lady Pattison. Os dois tiveram um filho que se casou. Dois anos depois, o novo casal pereceu num acidente de automóvel, deixando uma menina.

John quase perdia a respiração: uma menina! Mas logo o advogado destruiu o seu sonho maravilhoso.

— A menina também morreu... Uma outra tragédia. Morreu num incêndio da casa de Lady Pattison na Praça Belgrave. Essa morte despedaçou o coração da velha senhora e acho que até mesmo lhe perturbou a razão, continuou Bruder, rapidamente. Assim, alimentando a ilusão de que Delia Pattison estivesse ainda viva, estabeleceu um testamento provisório até a data em que aquela menina completasse vinte e um anos.

— Lorde Siniford é o herdeiro legal? indagou Wade. Bruder concordou.

— Sim, num sentido, é ele o herdeiro legal. John Wade parecia refletir.

— Há alguma dúvida sobre a morte da menina?

— Nenhuma. Ela estava em casa quando se deu o incêndio, que destruiu todo o prédio... Todas as criadas estavam fora... Sua ama, — pois então tinha três anos — abandonara-a e, parece, para encontrar um namorado na esquina da rua; certamente perdeu a razão, depois da catástrofe...

— Como era o nome da ama? indagou John, vivamente.

Bruder meditou.

— Atkins, disse, depois de um momento.

— Mas o primeiro nome?

— Deixe-me ver... Um nome familiar... Ora!... Estou com ele na boca... Mary? Não! Alice?...

— Ana? sugeriu o detetive, e o advogado estacou.

— Isso mesmo: Ana. Isso mesmo. Então o senhor a conhece?...

John Wade perdera a voz. Então Delia Pattison vivia... Era Lila Smith! Seria tão fácil dizer ao advogado: Delia tornou-se Lila!

Quando pôde falar, interrompeu o causídico, que elogiava os precedentes da ama:

—... jovem muito respeitável...

— Por que me mandou chamar, doutor? O que aconteceu depois que estive aqui?

O advogado voltara à poltrona da escrivaninha. Girava de um lado para outro.

— Visitaram esta noite o meu escritório, disse ele, e abriram o cofre em que eu guardava os documentos relativos à herança Pattison... Remexeram na caixa...

Levou o detetive a um canto da sala em que havia uma estante de ferro cheia de caixas de aço, com rótulos de aço manchados e desbotados. O advogado puxou uma dessas caixas. Sobre ela havia: H. T. P.

— Herança e testamento Pattison, explicou ele. Veja! Wade examinou a fechadura. Não havia dúvida que fora forçada, e agora estava imprestável.

— Entraram pela janela, disse o advogado. Cortaram um pedaço do vidro e levantaram o ferrolho. Só notei o negócio quando fui buscar a caixa para um exame.

— Alguma coisa foi tirada da caixa, indagou John, olhando para o interior, onde havia um maço de papéis presos por uma fita vermelha.

— Nada, foi a resposta. Aí só há documentos que não interessam a pessoa alguma. Os documentos mais sérios eu os deixei guardados no banco.

Wade examinou primeiro a fechadura da caixa e depois a janela. O trabalho fora executado por um artífice perito. Havia na vidraça um círculo exato, e o pedaço retirado jazia no peitoril, do lado de fora.

— Não, não levaram nada, afirmou Bruder de novo. Passei uma revista nos documentos...

— Lorde Siniford esteve aqui ontem?

— Anteontem. Acho que já lhe disse que a conversa foi desagradável. Ele queria ver o conteúdo da caixa de documentos Pattison, ainda mesmo que eu lhe tivesse dito que o que estava aqui não o interessaria em nada.

— O conteúdo do depósito do banco é importante?

— Para ele, possivelmente. Há objetos pessoais de Lady Pattison e da sua neta. Há um retrato da menina...

John Wade ouviu uma exclamação balbuciada atrás de si e voltou-se.

Lorde Siniford estava à entrada, da sala. Tinha as faces pálidas e os olhos esgazeados. Por um segundo, Wade sentiu-se tão transtornado por aquela aparição súbita que não pôde falar.

— Lorde Siniford, quer falar com o Dr. Bruder?

O homem sacudiu a cabeça.

— Não, não! (Tinha a voz áspera.) Não, absolutamente. Desculpem-me haver interrompido... Voltarei em outra ocasião, Bruder.

A porta fechou-se atrás dele. Os dois homens olharam-se, espantados.

— O que o teria feito fugir? indagou John.

— Sei lá, respondeu o advogado, estranhando a pergunta. John olhou para o relógio. Marcara encontro às oito, com Elk.

— Acho que o senhor me vai dar licença para um ligeiro relatório sobre o assalto, doutor, disse ele. Será, de resto, um relatório confidencial. Poderei ver a outra caixa?

— Amanhã, às onze. Irei buscá-la no banco.

Bruder olhava apreensivamente para a porta.

— O senhor acha que há algum perigo pessoal para mim? indagou ele, nervoso. Acha mesmo que os Homens de Borracha estão metidos nesse caso?

— Por que pergunta isso? indagou Wade asperamente. Como resposta o advogado foi abrir uma gaveta da mesa e retirou dela uma luva. Era de borracha fina, e da mão esquerda.

— Cá está ela, disse Bruder pesadamente, como se descarregasse um fardo da consciência.

— Onde a encontrou? Bruder voltara à mesa.

— Foi o meu empregado quem descobriu a luva, esta tarde, sob a minha mesa. O ladrão naturalmente a descalçou para examinar os papéis à vontade...

— Nesse momento ele não a descalçaria, disse John, sorrindo. Não, doutor, ele a retirou para escrever: é a única coisa que não se pode fazer com uma luva de borracha... Usou uma caneta-tinteiro e certamente fez um relatório dos papéis que encontrou na caixa. Provavelmente o segundo assaltante ditava os títulos dos papéis e o outro os escrevia. O senhor por acaso se lembra de ter examinado o mata-borrão?

O advogado estremeceu.

— Sim, notei que havia nele uma folha nova...

No mata-borrão da mesa havia meia dúzia de folhas superpostas; Wade retirou da armação de madeira a última delas.

— Era esta aqui (disse, mostrando a penúltima tira) a folha de mata-borrão de ontem?

Bruder examinou e respondeu:

— Sim... Cá está o meu carimbo com a data. É um costume meu marcar aí a data com o carimbo. Tem a data de ontem, disse ele.

John examinou o mata-borrão. Evidentemente, fora usado por muito tempo no escritório, mas, por felicidade, o doutor Bruder não era desses que enchem os mata-borrões de garranchos, nos momentos de meditação.

— Esta letra aqui é sua? indagou John.

Apontava uma comprida e estreita coluna de palavras, em diagonal através da folha. O advogado abanou a cabeça.

— Não, não é minha.

John procurou um espelho e foi encontrá-lo na sala de espera. Examinou então a letra.

— É como eu lhe dizia, explicou ele. Trata-se de uma lista dos documentos da caixa.

Bruder por sua vez examinou a lista, e concordou.

— Nada podemos fazer hoje à noite, disse John. Entretanto, deve dar-me o seu endereço e o seu telefone, no caso de que eu precise comunicar-me com o senhor. Mas, para qualquer eventualidade, estarei aqui às dez e meia, e muito lhe agradeceria se então pudesse mostrar-me o que o senhor chama a caixa do banco.

Wade parou um instante ainda na porta, pensativo.

— O senhor não tem nenhuma dúvida a respeito da morte de Delia Pattison? indagou ele do advogado.

— Nenhuma, respondeu Bruder.

— Quando seria o vigésimo primeiro aniversário de Delia?

— No dia vinte e um deste mês.

— Depois disso a propriedade será entregue a Lorde Siniford?

— Pouco tempo depois... Há algumas formalidades legais e talvez a herança só seja liquidada lá para o dia vinte e dois.

 

Wade foi logo para o gabinete de Elk, em Scotland Yard, e narrou rapidamente ao colega o que acontecera ao advogado. Acrescentou mesmo à narrativa os seus pontos de vista pessoais.

— Quem era essa mulher... a tal fidalga? indagou Elk. A louca...

— Ela não era louca, disse Wade, meio aborrecido com o cepticismo do colega; chamava-se Lady Pattison.

Elk arregalou os olhos.

— A dama das esmeraldas! Meu Deus! Ainda me lembro do incêndio...

— A dama das esmeraldas? indagou Wade, rapidamente.

— Ela as possuía às centenas, explicou Elk, num pequeno museu, dentro da própria casa. A casa ficou torrada, desde os alicerces até a chaminé, e das esmeraldas só conseguimos uns restinhos carbonizados. Mas a dona da casa só se preocupava com o desaparecimento de uma netinha... Lembro-me bem!

Recostou-se mais na poltrona e continuou:

— A dama das esmeraldas, sim! Naturalmente... Por certo está aí um caso a ser posto na conta corrente dos Homens de Borracha. Não os conhecíamos direito, então, e por isso eles passaram despercebidos. A única coisa que conseguimos apurar foi que Os criados tinham saído para o teatro, com entradas gratuitas, e que a ama da menina tivera um encontro com um namorado por ali perto. Bem me lembro dos detalhes, mas a velha nada queria declarar a respeito das esmeraldas...

— Acharam o corpo da criança? indagou John, ansioso.

— Ora, John! Num montão de cinzas, quem iria lá achar qualquer coisa? Até os tijolos ficaram reduzidos a pó negro! E você ainda me vem descobrir herdeiras raptadas!

Depois levantou-se, espreguiçou-se e disse:

— Bom! Tenho que ir fazer uma visitinha àquela moça Lila, à casa do Tappit. Vou ver o que ela sabe a respeito de tudo isso.

— Eu poderia ir... aventurou John.

— Você não faria nada, disse Elk, calmo. Enamorou-se da moça, e por isso perdeu o juízo e o seu tato de policial.

No caminho os dois encontraram o sargento Tappit, hospedeiro de Lila, no momento em que ele deixava o serviço. O sargento achou de bom alvitre a sugestão de Elk, para que lhe colocassem dois guardas à porta da vivenda. Era bem necessária essa vigilância, num lugar de tanto movimento como aquele em que ficava a sua casa.

O sargento morava numa avenida de habitações de operários, recentemente construída. Ocupava um primeiro andar, e ele mesmo abriu a porta, com a chave.

A entrada estreita estava às escuras.

— Minha mulher economiza luz, disse ele, apertando o botão da lâmpada.

Do hall saía um corredor estreito. O sargento foi até a cozinha, sabendo que ali encontraria pronta a sua ceia. A cozinha também estava às escuras.

— Interessante, disse ele. (E havia uma pontinha de dúvida em sua voz.)

Acendeu as lâmpadas. A mesa fora posta para três pessoas. Havia uma xícara cheia até a metade de chá frio, mas nenhum dos alimentos fora tocado.

John sabia que o quarto de Lila ficava do lado oposto, e foi bater à porta. Não responderam. Bateu de novo e, vendo que a porta cedia, abriu-a.

— Lila! chamou ele, suavemente.

Não houve resposta. Ele procurou o interruptor da luz e apertou o botão.

O quarto estava vazio. O leito fora ocupado recentemente, mas não havia sinal de Lila. O seu casaco de lã, sempre dependurado atrás da porta, desaparecera.

 

— Minha mulher deve ter saído.

No tom de voz de Tappit havia qualquer coisa que deu calafrios a Wade. O pânico do sargento passara para o detetive.

— Vou ver no quarto.

— Faça a gentileza de acender a luz do hall, Inspetor Elk, pediu ele, meio áspero. O botão fica perto do senhor.

O sargento chamava a esposa pelo nome, batendo suavemente à porta. Foi então que John Wade, mais calmo, notou que a chave estava na fechadura. O sargento abriu e entrou no quarto. Viram então os três homens, já acesa a luz, um leito arrumado e, sobre ele, uma mulher, aparentemente adormecida. Num relâmpago John reconheceu a enfermeira de Lila. Estava deitada de costas, e no primeiro momento todos pensaram que estivesse morta. Tappit sacudiu-a pelas espáduas.

— Mary! Meu Deus, ela...

— Não tem nada, disse Wade. Respira...

Revirou a mulher, deitou-a de rosto para cima e levantou-lhe suavemente as pálpebras. A luz pareceu fazer bom efeito sobre a esposa do sargento.

— Abra a janela e traga um pouco de água.

Em cinco minutos a mulher recuperava todas as forças e, sentando-se no leito, olhava espantada para os que a cercavam.

— Que é isso? indagou ela, afinal. Estava dormindo. Lila vai bem?

Reconheceu Wade e sorriu.

— O senhor agora mora aqui, Inspetor Wade, disse e bateu uma pancadinha leve na mão do Inspetor. Por que teria eu adormecido tão cedo?

Os três homens levaram-na à cozinha e prepararam um pouco de chá.

— Não esvazie essa xícara, disse John, asperamente.

O sargento ia jogar fora o chá frio que havia na xícara da mesa.

— Preciso desse chá, disse ele.

O sargento passou a xícara ao superior.

— Pensa que o envenenaram?

John não respondeu. Sabia também que era inútil interrogar a mulher naquele momento. Mas foi a própria Mary Tappit quem perguntou por Lila.

— Ela não está em casa? indagou, incrédula. Mas se eu a deixei há poucos minutos... Que horas são?

Wade mostrou-lhe o relógio: oito e meia. Ela os fitou com espanto.

— Mas não é possível! As cinco horas saí para comprar um par de chinelas... Deixei a Sra. Elford tomando conta de Lila. A Sra. Elford, que mora aí em frente. Voltei, preparei uma xícara de chá...

Silenciou.

— Não se lembra de mais nada depois disso? indagou John.

Não, ela não se lembrava de mais nada.

A Sra. Elford, a vizinha que morava do lado oposto da rua, ofereceu uma solução ao mistério. Fora chamada pela Sra. Tappit, para ficar um pouco com a rapariga, e estivera ali bem uns dez minutos. Logo que a Sra. Tappit saíra apareceu um camarada com um recado para Lila. Um tipo com ares de marujo. Não havia resposta para o bilhete, segundo disse o próprio mensageiro, e ela o deixara em frente à porta aberta e voltara ao quarto de Lila...

— Durante esse tempo o sujeito entrou pelo corredor e se escondeu na cozinha. Não há aí um lugar em que alguém se possa esconder?

Na cozinha havia uma porta que dava para uma pequena despensa. Estava agora somente encostada e a Sra. Tappit lembrava--se de que a deixara com a tranca.

— Foi aí, disse Wade. Lembra-se de como preparou o chá, Sra. Tappit?

— Sim, ainda me lembro.

— Depois de encher a chávena, não se recorda de ter feito alguma coisa?

— Sim, saí por um ou dois segundos. Fui experimentar as chinelas no quarto.

— Voltou depois e bebeu o chá, não foi? E é tudo o de que se lembra? Bebeu o chá com um narcótico poderoso, adormeceu, e então eles a levaram para o quarto e a trancaram lá dentro.

Examinando o quarto de Lila, os três homens acharam os seus sapatos detrás da cadeira de braços.

— Certamente não os encontraram na fúria do rapto, sugeriu Elk. Que chinelas usava Lila, quando a senhora a deixou?

— Umas chinelas vermelhas, de couro, muito boas. Comprei-as caras porque o Inspetor Wade me disse* que lhe comprasse tudo aquilo de que ela carecesse.

Deixando a mulher aos cuidados do sargento, os dois detetives saíram da casa e começaram os interrogatórios. Na vizinhança seria quase certo que alguém tivesse visto o que quer que fosse. Em cinco minutos os dois inspetores acharam duas boas testemunhas. Souberam que um táxi chegara até a porta da casa, e quatro pessoas tinham saído de lá, duas mulheres e dois homens. Haviam tomado o automóvel, que desapareceu na esquina. Ninguém os vira chegar ao edifício; deviam ter entrado nele um por um.

Não colheram mais informação alguma. Aparentemente a jovem partira de livre vontade; certamente não chegara a haver resistência. O testemunho nada valia em relação aos dois homens; mas era precioso em relação à mulher que acompanhava Lila.

— Amanhã iremos visitar alguém que nos pode dar informações sobre Lila, a nossa Mum Oaks. Lila não acompanharia outra pessoa.

— Então, vamos tentar o clube, disse Elk.

O "Meca" apresentava agora um ar de inocência. A casa fora lavada e não havia mais vestígios de lama pelo soalho. Mum Oaks recebeu os dois na sala de visitas e não pareceu surpreender-se com a vinda desses senhores.

— Não saí esta noite, disse ela, asperamente. Qual é o novo crime de que me acusa, Inspetor Wade?

— Quero revistar a casa, disse John. Principalmente o quarto de Lila.

— Tem uma autorização escrita? indagou Mum...

— O antigo mandado ainda tem valor, disse Elk. Não venha com desculpas, Mum.

O Sra. Oaks comprimiu os lábios.

— Os senhores não encontrarão Lila por aqui... começou ela. John estremeceu.

— Por que não? Como sabe você que ela desapareceu do lugar em que a deixei?

A mulher desconcertou-se um momento.

— Não disse nada disso, explicou ela.

— Você foi esta noite à casa do sargento Tappit, acompanhada de dois homens, disse Wade, e trouxe de lá a menina.

Era um desafio; mas a mulher pareceu aceitá-lo serenamente.

— Acha? Acusa-me disso também? O senhor não tem o direito de conservar a menina fora de casa, nem o direito de ver na minha ação um crime! O senhor bem sabe disso, Inspetor Wade!

— Mas você então...?

— Não nego coisa alguma, disse Mum, desafiando Wade; se o senhor quiser Lila, procure-a. Admito que eu e alguns amigos tenhamos feito isso. Ela está em boas mãos.

— Ah! Então confessa? Espere um pouco. (Foi até a janela e chamou o detetive que vigiava o "Meca" dia e noite. E quando este chegou): Prenda esta mulher. Leve-a para a delegacia e instaure um processo.

— Prender-me a mim? Mas... O que fiz eu? O senhor não me pode processar...

— Posso sim. Você e os seus amigos adormeceram a Sra. Tappit com um narcótico. E isso é crime. Você se esqueceu desse detalhe, Lady Godiva.

Wade deixou-a com o detetive, que a ajudava a reunir os objetos de que necessitaria na prisão. Então, com Elk, começou a busca da casa. O quarto de Lila não fora ocupado.

— Não foi para aqui que a trouxeram, disse Elk. O detetive teria visto o automóvel.

— Não viriam de automóvel para cá. Teriam preferido o rio.

— E por que viriam até aqui? Bem podem dispor de meia dúzia de refúgios...

— Muni veio até aqui! explodiu Wade. Vamos examinar o cais.

Com as lanternas elétricas examinaram detidamente o desembarcadouro.

Não havia nenhum barco por perto. As duas barcaças estavam um pouco afastadas da amurada de pedra.

Os dois iam deixar o desembarcadouro deserto quando o feixe de luz da lanterna de Wade passou por alguma coisa estranha. Wade abaixou-se para examiná-la, e chamou depois Elk.

— Não mexa! avisou John.

Era uma chinela vermelha, e estava bem na borda do cais.


 

— Como veio isto parar aqui? indagou Elk, pensativo. Certamente Lila esteve aqui à borda do desembarcadouro.

— Ou então atiraram a chinela de bordo, de propósito, disse John. Não há mancha de lama na sola nem no couro vermelho. O barco veio até aqui para trazer Mum, que depois certamente procurou outro destino. Lila aproveitou-se do desembarque da Sra. Oaks para atirar isto, como uma mensagem.

Tomou da chinela, esperando encontrar algum bilhete oculto.

— Aqui não há nada, disse Elk. Vamos levar essa mulher até a estação, que ela há de falar. Acho que não há ninguém no buraco dos ratos!

Ele apontava para uma pilha de lenha à entrada do depósito subterrâneo.

Foram os dois até lá, a fim de tirar a certeza. Elk encontrou areia nova no panelão de aço. Puxou o cabo da manivela. A porta abriu-se, e o interior apareceu, iluminado. John passou para o vasto aposento em que raspara o maior susto da sua vida. Mas sentiu logo que alguma coisa se mexera no extremo do subterrâneo. Por um segundo viu um braço e um ombro que desapareciam.

— Saia daí, gritou ele, rude.

Ninguém respondeu. Tornou a gritar, e deixando Elk na porta, caminhou suavemente pela sala até a pequena alcova. Ouviu um ruído precipitado, e correu para a frente, chegando à alcova no momento mesmo em que dois pés desapareciam na abertura do ventilador. Voltando-se rapidamente, John correu pela sala deixando Elk espantado, e subiu os degraus com grande velocidade. Ele sabia onde terminava o ventilador e esperava encontrar o fugitivo no momento da saída. Mas, se corria bem, o perseguido corria mais depressa ainda. Uma sombra desaparecia ao longo do cais, e Wade ouviu depois um rumor de água percutida, e notou que o indivíduo nadava a grandes braçadas, até que se tornou invisível.

John voltou para Elk, que o esperava no topo dos degraus.

— Golly, ou estou muito enganado, disse ele. Um camarada cheio de surpresas; nunca pensei que ele soubesse nadar.

— Você não o pôde pegar?

Saíram para o cais; Elk em vão examinava o rio.

— Não há uma lancha por perto, disse John. Temos que deixá-lo. Você poderá telefonar a Scotland Yard pedindo uma esquadra volante. A menina tem que ser achada esta noite. Se Mum Oaks não quiser falar, falará Siniford.

Os pensamentos de John Wade se ensombravam; a moça estava em poder dos Homens de Borracha, como sempre o estivera. A chave do problema era Siniford quem a detinha. Por alguma razão o Capitão Aikness parecia ajudar o Lorde; Lila era, sem dúvida alguma, Delia Pattison; talvez por isso Siniford a quisesse desposar.

— O que você espera encontrar naquela caixa de documentos secretos? indagou Elk. E, a propósito, onde está a caixa?

— No banco de Bruder.

— E onde fica esse banco? John não respondeu.

— Pergunto, esclareceu Elk, porque, se bem me falou que ouvira qualquer coisa a respeito de "gravadores"... Onde mesmo? Ah! aí por Lothbury. Não foi?

Tomaram um táxi. Wade disse ao motorista:

— Leve-nos ao primeiro posto de telefone público. (Depois explicou a Elk): Vou telefonar para Bruder. Eu já devia ter pensado nisso antes.

Veio atender ao telefone o próprio advogado. Logo à primeira pergunta do Inspetor, Bruder respondeu:

— No Grande Banco Central; sim, na filial de Lothbury.

— Lothbury! exclamou John. Diga-me, Dr. Bruder, não há uma oficina de gravadores perto do Banco?

Ouviu o advogado fungar do outro lado.

— Por quê?... começou ele.

— Diga-me, doutor. E muito importante...

— Sim, há lá uma oficina de gravadores. Eles ocupam o último andar do edifício. O chefe da firma, um senhor já idoso, por sinal que um dos meus clientes, é o arrendatário do prédio, e só alugou o primeiro andar ao banco com a condição de continuar estabelecido no segundo. Naturalmente mandou fazer uma entrada à parte.

— é tudo o que preciso saber, muito agradecido, disse John, e desligou o telefone com brutalidade.

Estava num dilema.

O banco de Bruder ficava na City; e no policiamento da City o controle partia do quartel-general da polícia, um corpo independente sobre o qual Scotland Yard não exercia controle algum.

Mas era preciso visitar o banco de Lothbury. Se houvesse algum empecilho, os policiais, que por ali eram mais numerosos que moscas, poderiam ajudá-los.

Lothbury estava deserta. Os dois detetives viram um policial que dobrava a esquina e desaparecia no momento em que eles entravam na rua. O banco ocupava um edifício de frontaria de pedra, muito estreito e comprido. No momento em que se aproximavam viram um homem de guarda à casa. Veio ele para os dois detetives e examinou-lhes bem os documentos.

— Ah! O Inspetor Wade? indagou. Meu nome é Cardlin. Sou sargento-detetive da Polícia Metropolitana.

— Por aqui não há nada?

O homem acariciou a barba negra e respondeu:

— Eu mesmo não sei dizer. Só me sinto seguro quando estou rodeado de policiais, por estas bandas. O sargento Topham prometeu vir encontrar-me aqui, e bem preciso dele, ou de outra pessoa qualquer que telefone ao subgerente, um sujeito chamado Wilson, que mora perto de Holborn.

— Eu telefono, disse Wade. Por que veio o senhor até aqui?

O sujeito barbado considerou a pergunta, antes de responder. Era evidentemente um indivíduo que gostava de pesar as palavras.

— Nada de especial me trouxe aqui. Somente vi luz na loja do gravador e fui até a Central buscar as chaves da casa. Ainda não subi. Porque, até o momento de minha volta, a luz se apagou. Deu-lhes um endereço telefônico, e num momento John falava com o subgerente, vindo também a saber que já o conhecia de um ano atrás, de qualquer negócio sem importância.

— Vou até lá buscar as chaves, disse ele. Há um malfeitor lá dentro?

— É o que preciso descobrir, respondeu John.

Voltou ao encontro de Cardlin e Elk que caminhavam para lá e para cá, do outro lado da rua.

— Daqui a cinco minutos o homem está aqui. Qual é a loja do gravador?

Cardlin apontou o último andar.

— Se os seus guardas subirem até lá, ficarei aqui embaixo. Trouxe uma arma e estarei aqui, para que não saia ninguém de lá.

Atravessando a rua, Wade pôs a chave na fechadura e abriu a porta, entrando, seguido de Elk.

Por trás da porta havia uma estreita passagem que desembocava ao lado do pátio do banco. No meio desse corredor subia a escada para o alto do edifício.

Tirando os sapatos, John Wade galgou os primeiros degraus sem rumor, seguido de perto por Elk. Ambos estavam armados, mas pelo caminho nada notaram, alcançando afinal o andar superior, onde terminava a escada, sem novidade de espécie alguma.

Duas portas havia nesse patamar, ambas com vidraças em que se lia a indicação "Gravadores". John experimentou a chave, rodou suavemente a maçaneta e adiantou-se num escritório vasto que cobria quase toda a área do edifício, com exceção de um escritório menor, cercado por um tabique envidraçado. Nesse vasto escritório existiam vários bancos e diversas mesas de gravação, como verificaram Wade e Elk, depois de acesa a luz elétrica.

— Não há ninguém, disse Elk. Ninguém esteve aqui.

Através do teto cruzavam-se barrotes de madeira, pintados de branco, para harmonia da decoração. Olhando em torno da sala, John viu uma barra de ferro pendente de uma dessas vigas. Estava amarrada ao barrote por um arame e a primeira impressão de John foi que se tratasse de uma disposição | de trabalho para os gravadores.

O extremo dessa barra pendente desaparecia entre duas mesas; o Inspetor foi examinar o sítio. E descobriu então o segredo. Um grande buraco circular fora aberto no solo de concreto armado; havia uma corda amarrada sòlidamente à perna de uma das mesas de gravação, e essa corda desaparecia nas trevas, para o interior. Ao lado havia um motor elétrico de cortar concreto e asfalto. Num momento John lembrou-se dos processos criminais alemães, exatamente aqueles que ele via ali tão bem aplicados.

Tudo lhe veio à cabeça num segundo. Agarrando-se à corda que desaparecia no buraco, ele se deixou deslizar para as trevas do aposento inferior. Tratava-se de um vasto escritório; várias escrivaninhas formavam em fila; John reconheceu estar num dos escritórios do banco. Encontrou uma porta cuja fechadura fora retirada habilmente, e atrás dessa porta achou uma escada estreita, de caracol, que o conduziu a outro pavimento.

Ouviu, embaixo, o som de uma porta que se abria e tirou a pistola do bolso; mas não teve necessidade de defender-se; era o gerente do banco que chegava e introduzia o Inspetor Cardlin. Wade foi encontrá-los embaixo no hall, e interrogou o gerente.

— É extraordinário que tenham feito tudo isso. Não temos aqui grandes reservas em numerário. E a casa central fica tão perto! disse o gerente.

— Os senhores não têm uma casa-forte para depósitos? indagou John, e em poucas palavras revelou os seus temores.

— Sim, há várias caixas de documentos aqui, disse o gerente, mas os assaltantes não poderiam chegar até elas, a não ser forçando a fechadura, que não foi tocada.

Indicou então uma larga porta de aço incrustada na parede do seu próprio gabinete. A porta estava fechada, de fato, mas um exame superficial da fechadura mostrou que houvera ali arromba-mento recente. Havia diversos arranhões na pintura, e Wade encontrou por baixo de uma escrivaninha um pacote de instrumentos delicados e uma poderosa lâmpada elétrica. Tirando do bolso uma carteira de chaves, o gerente abriu a porta da casa-forte.

— Temos vários clientes membros da Bolsa, e por isso o meu próprio gabinete é tão seguro, porque, antes de ser construída a casa-forte, era aqui mesmo que guardávamos documentos, explicou o gerente a Wade, que estranhara a solidez da construção do gabinete. A nova casa-forte foi construída agora e nunca pensei que essa porta pudesse ser forçada.

Evidentemente, ele parecia muito afano daquela porta poderosa; tratava-se de uma porta de aço cromado, explicou ele, e a fechadura tinha a combinação mais eficiente da fábrica Wolverhampton.

— Está certo de que não há outra entrada para a casa-forte? perguntou o barbado Cardlin.

O gerente sorriu.

— A não ser que se atacasse uma parede de dez pés de concreto, não conheço outro caminho.

A porta abriu-se com um ruído muito fraco. O gerente desceu uns seis degraus e foi acender a luz.

— Estão aqui as caixas de documentos, disse ele apontando para uma prateleira cheia de caixas de aço. Para cá (e apontou para o outro lado) fica outra casa-forte na qual guardamos os documentos do banco.

— Qual dessas caixas pertence à Herança Pattison? indagou Cardlin.

O gerente foi mostrar uma, bem menor do que as demais, e Cardlin retirou-a da prateleira, inseriu um instrumento de bordas achatadas entre a tampa e a borda de aço e abriu a caixa. Remexeu nos papéis e passou para o seu bolso dois ou três pequenos amarrados de documentos. Com uma calma inalterável, afastou-se então do pequeno grupo e caminhou para os degraus de saída.

Foi somente então que John Wade voltou a si de um grande espanto.

— Que é isso, Cardlin? interrogou ele.

Deu dois passos para o homem barbado, mas parou logo. Cardlin encarava-o com uma pistola automática de grande calibre na mão direita.

— Não se mexam, meus amigos, disse ele. Não quero atirar porque alguém poderia ouvir-me. E isso poderia prejudicar a minha saída e o bom resultado da pescaria de uma semana inteira.


 

John no primeiro momento pensou que o homem fosse um americano; mas pareceu-lhe depois já ter ouvido aquela voz, com um outro tom, muito diverso.

O homem subiu os degraus, alcançou o patamar, e deslizou para o gabinete do gerente; sempre de pistola em punho, deteve-se um instante e deu um ligeiro empurrão à porta.

— Meu Deus! Ele está fechando a porta! Era a voz do gerente, repassada de terror.

—... pode trancar-nos aqui dentro. Morremos sufocados... Foi nesse momento que John Wade puxou da pistola e atirou.

Ouviu um grito de dor e a pistola automática do sujeito barbado caiu ao solo. A grande porta de aço movia-se lentamente. Em duas passadas John Wade galgava os degraus da escada e punha os ombros entre a porta e a esquadria de aço, para sossego do gerente alarmado. O falso Cardlin, percebendo tudo, saltou rápido para fora do gabinete do gerente, trancando a porta por fora.

— A campainha de alarme! gritou o gerente. Deixe-me tocá-la.

Passou à frente de Elk, precipitou-se para a mesa e procurou o aparelho de alarme. Num segundo a quietude da rua foi sacudida pelo som agudo da campainha. Foi um policial da City que veio libertá-los. Na sua pressa o ladrão deixara abertas as portas de saída do banco. O policial narrou que um carro passara por ele bem na esquina da rua Lithbury. No momento em que John desceu para a rua viu uma multidão de guardas uniformizados. Em poucos minutos aparecia o chefe da divisão.

— Cardlin? Não, não conheço ninguém com esse nome, em nossas forças, disse ele. Qual é o seu tipo?

John descreveu o homem barbado e o chefe tornou a estranhar:

— Não, não há ninguém com esse tipo na divisão e, se ele fosse mesmo sargento, eu o conheceria.

Meia hora mais tarde dois detetives desanimados caminhavam ao longo do grande dique.

— Riem-se de nós, disse Elk, tenebroso. Afinal, tudo teria acontecido da mesma maneira, se não estivéssemos lá. O patife não nos esperava, mas arranjou-se do melhor modo.

John não dizia nada. Para ele a aventura não trouxera nem mesmo ridículo, e sentia que não perdera o tempo com ela. Porque o cidadão barbaçudo lhe oferecera uma nova pista, de que precisava.

A primeira visita dos dois foi ao apartamento do advogado Bruder, que esperava em cima por eles. Ainda que se desolasse ao saber do roubo dos documentos da caixa de aço, não pareceu considerar a perda muito séria.

— O meu consolo é que não havia nada lá de valor do ponto de vista de um advogado, apesar de existirem na caixa documentos de ordem sentimental.

— O que continha a caixa?

— Certificados de nascimento, de casamento, várias cartas escritas por um filho de Lady Pattison, algumas fotografias, principalmente da menina, Delia. (Ele hesitou e depois prosseguiu): Um depoimento feito pela empregada Ana sobre... hum... sobre o incêndio. E mais nada. Lady Pattison achou melhor que se pusessem esses documentos em segurança e eu os levei para o banco.

— Quem sabia da existência dessa caixa no banco? indagou John.

— Ninguém, respondeu o outro, prestamente. Nem mesmo contei a Lorde Siniford.

— Contou, contou sim, disse John, calmamente. O senhor dizia-me tudo quando ele apareceu lá no escritório, ontem à noite. Não se lembra de que ele parecia uma alma penada e que saiu logo depois?

— Mas souberam do caso antes disso, disse Elk. A rapariga não ouvira falar nos "gravadores" da rua Lothbury dias atrás, talvez semanas? Talvez fosse a primeira vez que Siniford soubesse onde estavam os papéis; mas acho que, a rigor, ele tinha mais medo de que os examinassem do que mesmo idéia de saber onde se encontravam.

Do apartamento do advogado, John foi fazer uma visita a Sua Senhoria, mas achou apenas um subalterno:

— Sua Senhoria esteve aqui e tornou a sair, disse o homem.

— Veio sozinho? indagou Wade.

O homem não respondeu e Wade repetiu a pergunta.

— Não, senhor, veio com um cavalheiro... Não sei o nome. Saíram depois juntos.

John visitou o apartamento da rua de St. James, mas o porteiro nada mais pôde esclarecer.

— O tal cavalheiro era branco ou chinês?

— Branco, senhor. Um homem de fisionomia vulgar... Já aparecera por aqui em outra ocasião. Sua Senhoria chamou-me para pedir uísque. O tal cavalheiro parecia ter qualquer coisa de marinheiro; dizia que o Tâmisa aquela noite estava muito frio. Eu trancava à chave todos os quartos e passei pela sala quando ele dizia isso. Acho que o detalhe não lhe interessa, Inspetor Wade?

— Disse isso, hein? perguntou Wade, interessado. O Tâmisa estava frio...

— Bem, as palavras não foram essas. Disse mais ou menos: "Nunca em minha vida senti o Tâmisa tão frio..." E quando eu apareci ele parou de falar.

John concordou. Então aquele visitante era Golly! E já estivera no apartamento em outra ocasião! Mais um anel para a cadeia!

Sempre pensativo, Wade voltou ao Wapping, para formular a acusação contra a Sra. Oaks. Foi achar esta senhora em atitude muito conciliadora.

— Não sei porque me vai processar, Inspetor Wade, começou ela. Sempre o tratei com delicadeza e nunca lhe dei trabalho algum. O processo é ridículo: "administrar drogas entorpecentes". Quanto à menina, não a vi desde ontem. A pobre da garota!... Bem gostaria que a tirassem de vez das minhas mãos...

Olhava de perto para John, enquanto falava.

— Não é uma menina feia e tem um pequeno dote. A minha pobre irmã, ao morrer, deixou-lhe mil libras, mais ou menos. Ainda é muito nova, mas daria uma excelente esposa...

— Para mim, por exemplo? disse John, bruscamente. É esse o preço do seu sossego? Pois bem, não faço caso dele. E quanto à sua irmã, não pense que acredito nessa história. Lila Smith é Lila Pattison.

Mum empalideceu, mas logo as cores lhe voltaram às faces.

— Eu... Não sei bem o que o senhor quer dizer, Inspetor Wade, gaguejou Mum. Tudo isso é um mistério para mim.

John fez um sinal para o sargento e rapidamente esboçou os termos da acusação.

— O senhor não permitirá que eu saia sob fiança, Inspetor Wade? (Quase chorava.) O senhor não desejará que uma mulher da minha idade, respeitável, de encargos sociais, fique toda a noite numa horrível cela de polícia...

— As celas desta estação são limpas e até saudáveis, disse John, sisudo. E além disso, Sra. Oaks, quem viria a afiançá-la? Sim, minha menina... Aceitarei a fiança prestada por seu marido... se ele aparecer aqui em pessoa. O melhor que tem a fazer é mandar avisá-lo.

Mum parecia desarmada.

— Ignoro onde está Golly... o senhor bem o sabe. Não o vejo...

— Sei, sei. Você leva a vida a não ver ninguém, disse John. Devia encontrar-se com ele esta noite, como todas as noites. Achei-o no depósito de lenha e também lhe admirei a agilidade de nadador em direção à ponte de Londres. Espero que ele não sofra de reumatismo...

Wade voltou para casa aquela noite morto de cansaço; o sono dominou-o antes mesmo que tivesse consciência de se haver deitado. Foi acordar depois de cinco horas de letargia, para recompor a figura imprecisa do Inspetor Elk à beira do leito.

— Eu não durmo nunca, disse o outro, imperturbável. Perde-se muito tempo nisso.

— O que há agora? indagou John, espreguiçando-se sob as cobertas. Qual é a novidade em Scotland Yard?

Elk sentou-se no leito, e de propósito acendeu um charuto, antes de responder.

— Vim aqui para cumprir um dever de colega. Achei que você gostaria de saber que os seus "meninos do rio" tiraram da água, pela madrugada, o corpo de um homem, que flutuava perto de Middlesex...

John assustou-se.

— Quem era?... indagou.

Elk jogou uma baforada de fumo para o teto.

— O falecido Lorde Siniford, disse ele. John gaguejou:

— Siniford... morto! Afogado?

Elk sacudiu a cabeça.

— Esfaqueado, disse. Um trabalho bonito. O doutor diz que o gentil-homem nem sentiu o momento em que passou deste mundo para o outro...

 

Sobre uma grande mesa, na estação de polícia, tinham disposto o conteúdo das algibeiras do morto. Uma cigarreira de ouro, um relógio com a corrente, uma pequena caixinha dourada, contendo um pó em estado de solução que ia ser analisado quimicamente, mas que John já sabia ser cocaína; um pequeno punhal de prata, um anel de platina, algumas chaves, e um embrulho de medicamentos universalmente conhecidos contra o enjôo. Nenhum canhenho de algibeira, nenhum documento que pudesse identificar o corpo, ainda que para Elk bastassem, nesse sentido, as chaves e a cigarreira de ouro.

A ferida que matara o homem era ainda visível e John logo a notou ao examinar o cadáver. Siniford fora golpeado na nuca. Habilmente desferido, o golpe o liquidara instantaneamente.

— Lembro-me de dois crimes nessas condições, disse Elk. Engraçados esses chins, não acha? O que pensa a respeito? indagou, apontando para os objetos da mesa.

— Bom, vê-se que Siniford era um mau marinheiro e que ia partir. O assassinato foi cometido entre meia-noite e seis horas, quando acharam o cadáver. E foi cometido na região de Westminster.

Tirou de um cabide o pesado colete que o morto usava.

— Está aqui a prova de que Siniford esperava partir para o mar. É um colete reforçado com fibras de borracha, e muito usado pelos navegantes nervosos; pode servir de salva-vidas. Com certeza não pensaram que o corpo flutuasse. O relógio parou no ponto de 1:17, cinco minutos antes que a maré começasse a declinar. Isso quer dizer que o crime foi cometido a seis horas de Greenwich. A maré subia no momento em que acharam o corpo.

Elk piscou os olhos.

— Você está me saindo um Sherlock Holmes, Johnny. Que é isto? (Tomou do anel de platina e examinou-o curiosamente.) Não acha que é muito pequeno para o dedo do cadáver?

— O anel estava no bolso do colete, disse John, calmo. Não foi feito para o dedo de Siniford: é um anel de noivado.

Elk assobiou.

— Então ia casar-se, heim?

Pôs o anel sobre a mesa e arregalou os olhos para John.

— E as teorias do meu querido policial? indagou ele, batendo no ombro do detetive.

Wade sorriu.

— Abalroam-se por todos os lados, concordou ele. As minhas teorias não resistem aos fatos. Esse caso de Lila... A morte de Siniford afasta uma hipótese, mas as outras continuam firmes. O perigo ainda não passou.

Elk saiu logo depois, e uma hora mais tarde telefonou para Wade, pedindo-lhe viesse a Scotland Yard. Cansado de corpo e espírito, o coração impaciente, Wade obedeceu ao amigo.

Elk estava no gabinete do superintendente, consultando um papel, que passou para John, logo que o viu chegar.

— Cá está o fim do "Troiano", disse ele. De acordo com as instruções do Almirantado, um dos nossos cruzadores abordou o navio, perto da costa brasileira, e mandou-nos este relatório.

A longa mensagem cobria quatro folhas de papel.

 

De acordo com seu ZXF. 43/C/9AI/95142, abordamos "Troiano" latitude X, longitude X, procedemos busca. O navio transporta máquinas de agricultura e automóveis. Documentos em ordem. Capitão Salvini Oficial-chefe Thomas Treat de Sunderland. Nem o Capitão Aikness nem o oficial-chefe Raggit Lane estão a bordo. Nas cabinas 75, 76 e 79 no quarto deck abaixo da linha d'água encontramos três homens, um americano e dois ingleses, que declararam aí navegar há seis anos, empregados para a transformação de pedras e jóias roubadas. Cada um desses homens prestou depoimento individual de que o navio era usado para isso; numa cabine secreta, que descobrimos, havia um cofre-forte, aberto por artífices, no qual achamos 1 250 quilates de diamantes lapidados, 750 quilates de esmeraldas, algumas de tamanho considerável, 17 pequenos lingotes de platina, 55 barras de ouro fino. O navio tem três câmaras frigoríficas, numa das quais encontramos títulos negociáveis no valor de 83 000 libras e, pelos cálculos que fizemos, cerca de 184 000 libras em moeda metálica e em notas de banco. Um dos joalheiros declarou que se achava ali o resultado de seis assaltos a mão armada, inclusive o roubo de um banco. Estamos procedendo...

 

As duas linhas que se seguiam, em código, eram ininteligíveis. Mas a mensagem continuava:

 

Os depoimentos dos três homens tomados por escrito, serão verificados pelos homens da lei e dirigidos para Londres. O "Troiano" permanece nas mãos dos seus próprios oficiais.

 

E aqui terminava a mensagem.

— Más notícias para o Capitão Aikness, para não falar no Sr. Raggit Lane, disse Elk.

John sacudiu a cabeça.

— Nem tão más quanto você as imagina. Minha opinião é que Aikness sabia que o navio seria abordado no mar alto, e saltou fora para evitar essa busca perigosa. A perda não o afetará muito. Em qualquer parte da América do Sul, ele deverá ter em boas mãos uma soma respeitável. Prossiga ou não em suas operações arriscadas, já terá um futuro garantido.

Elk parecia duvidar.

— Aikness? É difícil... E Golly? O que faz este pobre--diabo em tudo isso? Anda enroscado na corda dos outros... Quase chego a gostar de Golly, apesar de que ele compre amores-perfeitos! Vê-se que é um instrumento...

— De dois gumes, disse John.

Tinha o que fazer no tribunal de polícia e foi encontrar um número enorme de amigos da Sra. Oaks e de vizinhos do "Meca"; não havia um "rato" do rio, de Tilbury a Barking Creek, que não conhecesse Mum Oaks e não tivesse gozado da sua hospitalidade.

E essa multidão de salteadores baratos, com os cigarros dependurados dos lábios secos, multidão que tantas vezes necessitara dos bons ofícios de Mum Oaks, viera ali para acompanhar o seu "infame" processo. Quando John Wade passou pelo centro da sala, houve uma sinfonia de pigarros e de resmungos. Wade viu lá o Fungador e então se recordou de um detalhe.

— Venha cá, ó Fungador. Eu outro dia não o agarrei?

— Sim, Inspetor, mas não havia nada contra mim, disse o ladrão do rio.

— O que fazia você em casa de Mum Oaks? O Fungador parecia divertir-se.

— Oh! Uma visitinha pessoal, particular, murmurou ele, untuoso. Um cavalheiro não pode visitar uma dama?

— Quando o cavalheiro é você, há qualquer coisa por trás dessa visita, sussurrou John. Muito breve hás de estar de volta às. minhas mãos, rapaz.

O Fungador mudou de atitude.

— Oh! Inspetor Wade! Por que diz isso? Recebi oferta para um emprego honesto. Um homem como eu, que conhece o rio como ninguém — aposto que nunca um desses barqueiros estúpidos seguiu o Tâmisa até Gloucester — não pode estar metido entre as paredes frias dos buracos da polícia!...

Em verdade, o Fungador era um dos poucos marinheiros de Londres que conheciam todas as bizarrias do Tâmisa. O Fungador gabava-se da sua familiaridade com todas as pontes e todas as tavernas desde Londres até Oxford. Mas a um certo ponto parou de gabar-se, como que inibido. Talvez já estivesse falando demais...

— O que vai o senhor fazer com a Sra. Oaks? Bem sei: está sempre a persegui-la. A mulher mais inocente que já existiu sob esse céu de Deus! Uma dama!

John ia deixar o Fungador quando este o agarrou pela manga do casaco.

— O senhor vai encontrar um mau ambiente hoje, por aqui, disse ele, em voz baixa. Achava melhor que não andasse assim sozinho...

— Tem medo dos amigos de Mum, hein, Fungador? disse John; e saiu.

O aviso não era necessário, ainda que Wade o soubesse justo. Havia na sala estranhas fisionomias, homens que não pertenciam à sua esfera; brutamontes que se olhavam entre si, silenciosos, quando ele passava.

Foi encontrar a Sra. Oaks numa pequena sala de espera que ficava ao lado do corredor. Dormira evidentemente muito pouco, mas se mostrava ainda calma e disposta a um acordo. Perguntou ao Inspetor se estivera no clube aquele dia e, como Wade respondesse que não, ela objetou:

— Espero que o senhor resolva tudo hoje, Inspetor Wade. Não vejo como poderá armar um processo contra mim e muito menos apresentar provas. Arranjei os melhores advogados e que um raio me fulmine se eles não o conseguirem embrulhar logo no primeiro debate! Se o senhor desistisse da acusação, Inspetor Wade, eu poderia poupar-lhe essa complicação toda! Voltaria para casa sem me incomodar com coisa alguma do que me fez.

— O caso foi ao conhecimento do Promotor Público; se você ganhar, apelarei, disse Wade, e viu ao mesmo tempo, que Mum corava.

— Perfeitamente. O senhor vai ver o que hei de fazer. Tenho alguns amigos, bem o sabe, Inspetor! Lorde Siniford...

— Lorde Siniford está morto.

John Wade, de propósito, martelou as palavras, fitando a mulher. Mum ficou escarlate, depois tornou a ficar muito pálida, como no momento da raiva.

— Morto? gaguejou ela. Wade concordou.

— Quando... Quando morreu ele?

— Foi assassinado a noite passada, disse John. Acharam o cadáver boiando no rio.

Os joelhos de Mum vergaram; ela ia tombar para a frente, e Wade, tomando-lhe o braço, sentou-a na cadeira de braços; a voz de Mum parecia vir de outro mundo.

— Mataram-no... O Lorde ia casar-se com ela... Por que ele teria consentido nisso? Ou por que o mataria ele?

A resposta veio aos lábios de John, numa inspiração. Nunca chegara a pensar naquele desfecho.

— Porque ele próprio quer desposá-la, disse, e viu que Mum levantava as mãos como para afugentar um demônio.

— Não, não! murmurou ela. Ele não faria isso, ele não faria isso!

O detetive procurou acalmar a mulherzinha.

— Minha menina, você é tão inocente que não sabe conter-se, disse ele. A sua resistência é teimosa, bem sei; mas por que não me diz tudo? Aikness, para você, quer dizer dinheiro. Sabemos tudo a respeito do "Troiano", sabemos tudo a respeito de Lila Smith.

Mum silenciara.

— Não estou tentando enganá-la, disse ele. Bem que gostaria de a ajudar em qualquer coisa.

Mum levantou os olhos para Wade e este lhe viu a agonia no rosto.

— Não sei, não sei... Não quero pedir fiança. Talvez precise vê-lo amanhã ou depois...

A mulher entrou no tribunal, muda, agoniada. Seu advogado, com o qual solicitara uma pequena entrevista, comunicou ao conselho que sua constituinte não prestaria fiança para ficar em liberdade. Nesse momento no tribunal havia uma pessoa que sabia porque Mum preferira a prisão de Holloway à fiança e à liberdade. Essa pessoa não era o Inspetor John.

— É essa a mulher, comentou um dos estranhos indivíduos aparecidos aquele dia pelas redondezas. Não te dá vontade de rir?

O companheiro mascou a língua e não respondeu.

— Agora... Você não acha que esses tribunais são uma pândega? Não se chamam de juízes... são "magistrados". Afinal de contas, qual é a diferença. E todos respondendo: "Sim, Sua Senhoria... Não, Sua Senhoria!"

O segundo homem continuou mascando a língua, sem dizer nada. Na rua, por um momento, pensou que eram seguidos e verificou se a arma que levava ao cinto estava em condições de agir. Mas enganara-se, aparentemente. Depois de um minuto respondeu:

— Hum, hum... É aquela a mulher. Diga uma coisa, Jakey, você acha que está tudo O. K.? Nunca me meti num serviço desses...

Discutiram a ética de sua tarefa com palavras mais abundantes quando se encontraram a sós em seu alojamento.

 

O segredo do "Troiano" já não era um segredo. Alguém do navio radiografara um protesto do governo do Brasil. O governo inglês prontamente distribuiu pela imprensa um relatório dos radiogramas do cruzador, acompanhado dos detalhes da tragédia de Lorde Siniford e do assalto a um banco, e nos jornais apareceram logo a história daquele romântico navio-tesouro e a lista das depredações dos Homens de Borracha.

Mais tarde foi distribuído um relatório dos trabalhos do tribunal de polícia, e o retrato de Golly Oaks apareceu em todos os jornais; um homem procurado em meio a outros, no processo sensacional; mas o nome de Lila Smith por enquanto não surgira nas manchetes dos diários.

Aquele dia fora reservado para conferência em Scotland Yard, e John teve que comparecer perante os Chefes Gerais, que não se encontravam em absoluto dispostos a perdoar faltas e a esquecer erros. Mas os quatro homens tinham um ponto de vista benigno sobre o assalto ao banco da rua Lothbury.

— Bonito trabalho, disse o superintendente. Certamente já haviam tentado abrir a casa-forte sem resultado. Preferiram que o gerente mesmo fosse abrir, com as suas próprias chaves. Um dos guardas da polícia metropolitana viu esse Cardlin — um nome pitoresco — e nos deu informações sobre ele. Não, Inspetor, não o censuramos por isso. Mas precisamos urgentemente de Golly Oaks e de Aikness!...

— Conheci Oaks há uns vinte anos passados, disse um dos quatro chefes. Era um dos rapazes mais ativos do East End de Londres. Deve ter feito fortuna. Um diabo muito esperto: falava cinco ou seis idiomas.

John estremeceu.

— Golly? indagou ele, incrédulo. Sempre pensei que fosse um iletrado!

— Qual nada! disse o outro. O seu único ponto fraco era uma vaidadezinha: pensava possuir muito boa voz. Gastou rios de dinheiro estudando e não conseguiu nada. Na parte da educação, concordo que seja um ignorante quanto à gramática e à literatura, mas fala muito bem o francês e o alemão, como um cavalheiro educado em bons colégios.

O novo aspecto de Golly impressionou John, que foi aquela tarde ao "Meca". Conhecia o quarto de Golly e certa vez realizara mesmo uma busca ligeira por lá. Parecia-lhe bom fazer uma visita mais demorada ao abrigo daquele que inesperadamente lhe saíra um poliglota.

O quarto de Golly Oaks ficava bem por cima do depósito de carvão, e o ar só podia entrar por uma janelinha estreita. Lá dentro, um pequeno leito de ferro, uma grande estante cheia de volumes encapados, uma velha lâmpada de querosene e um sofá muito gasto. John notou que na estante não se podia ver logo o título de nenhum dos livros. Todos tinham sido cuidadosamente encapados e, se o leitor não conhecesse bem a disposição das obras, perderia muito tempo para achar um volume de que precisasse. A pequena biblioteca, além do mais, estava muito bem arrumada. O primeiro des volumes que John tomou da prateleira era um Novo Testamento em grego, e essa descoberta foi o seu primeiro choque. Havia ainda volumes sobre estratégia militar, e esses volumes evidentemente tinham sido lidos e relidos, porque à margem das páginas se alinhavam dezenas de notas a lápis, quase indecifráveis, ou então relações numéricas, confirmações de conceitos de outras páginas.

Outros livros explicavam a teoria da música; havia muitos volumes sobre canto, e o resto da biblioteca compunha-se de livros de viagem e de filosofia em alemão, espanhol, francês e italiano. Também lá se encontravam os Comentários de César em latim, e um livro de orações húngaras. A pequena escrivaninha do canto do quarto estava toda borrada de tinta, bem como o soalho em torno. Evidentemente Golly escrevia ali com muita freqüência.

Examinando as gavetas da escrivaninha, John fez outra descoberta. O espantoso Golly era também um desenhista, às ocultas. Na gaveta encontrou John cartas astrológicas, horóscopos inacabados, e não se desinteressou quando descobriu seu próprio nome numa dessas folhas. Evidentemente Golly não achara as informações necessárias para terminar aquela carta, quase uma ficha de arquivo policial. John mesmo se lembrava de que um dia Golly perguntara pela data e pela hora de seu nascimento. Um personagem curioso, esse Golly!

Quanto à sua posição financeira, nada de interessante; nem livro de cheques, nem cadernetas, nada que lhe indicasse as posses. Se tivesse sido rico vinte anos passados...

John abanou a cabeça. Golly, sim, era a figura mais complicada de tudo aquilo. Retirou o tapete do soalho, bateu nas paredes, mas não encontrou mais nada. Conseguira, porém, entre os livros, alguma coisa que o poderia levar para um entendimento melhor de tudo. Era um volume pequeno, de bordas estreitas, que trazia no frontispício: "Ofertado a G. H. Oaks por seu patrão — William Deans. Como prêmio a um empregado bom e fiel."

John Wade poderia ter rido, se estivesse disposto a isso. O livro era um volume muito popular no século dezenove, "O Realejo da Velha Cristina", e a natureza do negócio de Deans foi inesperadamente revelada, porque entre duas páginas em branco havia um marcador, que não era mais que uma folha de papel dobrada, com o seguinte timbre: "Deans & Abbit, Instrumentos de Cirurgia"; ao longo da folha, na borda, havia outra indicação: "Luvas de borracha Deans para todos os trabalhos cirúrgicos". Haveria alguma relação entre luvas de borracha e máscaras de borracha?

O resto do dia foi infeliz. A polícia de quatro condados desenvolvera uma busca cuidadosa, mas não -havia notícias de Lila Smith em Scotland Yard. Aquela tarde Wade foi visitar Mum na prisão de Holloway. Achou uma criatura cansada, pouco expansiva, e a entrevista acabou com um acesso de furor por parte da gorda Sra. Oaks.

O próprio Wade se sentia num perigo maior do que o concebera à primeira vista: encontrava constantemente, nos dias que se seguiram, os dois estranhos indivíduos que vira no tribunal, no dia do julgamento da Sra. Oaks. Tinha uma extraordinária memória visual e sabia que não se enganava. Os dois tipos apareciam nas vizinhanças de sua casa; encontrava-os no caminho da estação de polícia; uma vez, quando destacado para uma patrulha especial, no rio, passou por eles e mais um outro num barco; dois remavam e o terceiro dirigia a travessia. Não olharam muito para a lancha da polícia, o que bastava para que se declarassem suspeitos; subiam e desciam o rio, e de propósito, evidentemente, cortavam caminho para passar perto de Wade. Afinal o Inspetor mandou que a lancha abordasse o pequeno barco. Logo que um dos remadores viu a manobra da lancha da Fluvial, agarrou qualquer coisa do fundo da canoa e jogou-a para a água. Um minuto depois a lancha abordava o bote.

— O que foi que você jogou para fora, agora mesmo? indagou Wade.

O remador levantou o remo e olhou insolentemente para Wade.

— Uma rede, disse ele. Estamos pescando. A lei proíbe isso?

— Pescar com bombas é proibido, disse John, e, se não foi uma bomba Mill que você jogou para fora, eu estou cego.

E atirou um cabo ao barco, a fim de levá-lo à próxima estação da Fluvial. Os três homens não pareciam preparados para isso, e se embaraçaram ao ver aparecer uma segunda lancha da Fluvial; quando desembarcaram, um dos três tentou atirar no rio uma pistola Browning, com uma bala pronta na câmara e nove outras no carregador.

— Você tem licença para usar isso? indagou John.

— Certo que tenho, grunhiu o sujeito.

Sua face era cinzenta; parecia da Itália, mas declarou ser cidadão americano. Trazia o passaporte em ordem; há três semanas estava na cidade. Morava em Chicago. Os dois outros homens eram também dos Estados Unidos, e as indicações dos passaportes mostraram que tinham chegado no mesmo dia e pelo mesmo navio. Um desses dois também trazia uma pistola.

— Não há aqui disposições especiais sobre armas? indagou ele, ao entregar a pistola.

— Em tempo lhe explicaremos tudo, disse John.

Quem trouxera aqueles homens à Inglaterra? Já lhes adivinhava os antecedentes criminais. Todos possuíam nomes estrangeirados e Scotland Yard mandou um cabograma para Chicago; duas horas depois chegava a resposta:

 

Três homens bem conhecidos aqui como atiradores. Riccini e Orlvitch duas vezes assassinos. Nos últimos meses um grande número de malfeitores tem conseguido escapar em direção a Londres.

 

— Estamos navegando num oceano de coincidências, disse Elk, depois de ler o cabograma. Várias mensagens dos condados próximos comunicam a prisão de estrangeiros, russos e finlandeses principalmente, todos eles chegados nas últimas semanas. Ainda outro dia agarramos um par deles, e você nem queira saber o que nos disse a polícia de Riga.

— Não há nada de novo a respeito de Golly Oaks? Não apuraram mais coisa alguma na sua "escrita"? indagou John; e o outro disse que sim.

— Em 1915 ele teve um processo; roubou aos patrões determinadas quantidades de borracha. (Os olhos de Elk piscaram com vivacidade.) Borracha! Não é divertido?

— O "empregado" nem sempre foi "bom" e "fiel", disse John, sombrio. Há mais alguma coisa?

— Esteve depois metido nuns roubos complicados, mas não havia provas contra ele. Quando garoto, pertencia a uma quadrilha do Wapping, mas nunca soubemos de nada de positivo sobre isso. Foi depois para Birmingham, e lá organizou um negócio de joalheria. Em Birmingham a joalheria é um bom negócio.

A figura de Golly aparecia diferente aos olhos de Wade. Ele era um homem respeitado pelos malfeitores do rio, e os malfeitores nunca sentem respeito pelos homens de bom caráter.

— Em Birmingham andou metido numa embrulhada de falsificação de moedas, mas conseguiu safar-se como da outra vez, continuou Elk.

— Não havia provas contra ele?

— Nada, disse Elk. (E depois, pensativo) : É divertido que esse Golly tenha sempre passado por um cidadão honesto e vivesse a rachar lenha. Pensei que fosse governado por Mum Oaks, mas acho agora que nunca ninguém o governou.

— Também acho, concordou John. Estou começando a mudar as minhas idéias sobre Golly.

 

Lila Smith modificara igualmente algumas idéias, sozinha na luxuosa alcova para onde fora levada depois de a haverem raptado da casa de Tappit. Em que espécie de navio se encontrava ela não o saberia dizer, porque sofrerá a indignidade de ter os olhos vendados depois que Mum Oaks ficou no desembarcadouro do "Meca". Ela não sentia medo e suas primeiras impressões tinham mesmo sido de curiosidade. Porque nunca na verdade sentira medo depois da noite do incêndio.

Aquele quarto não se parecia com qualquer das cabinas de navio que ela vira antes. Era espaçoso, se bem que de teto baixo, e, ainda que estivesse ricamente mobiliado e as paredes fossem decoradas com um lindo tom cinzento, não existia uma abertura, uma janelinha que mostrasse o mundo. Ali por perto havia sempre o ruído de um pequeno motor que devia certamente servir para iluminar aqueles aposentos. Notavam-se na cabine um belo leito de madeira, uma mesa pequena e quadros pelas paredes, alguns dos quais pareciam assinados pelos velhos mestres. A lareira possuía instalação elétrica para as tardes mais frias.

A única pessoa que Lila conseguia ver era o criado chinês que lhe trazia alimento e lhe preparava o banho; e essa presença era um pouco mais do conforto que Lila gozava ali.

A embarcação parecia andar quase sempre muito vagarosa. Lila podia ouvir passos que iam e vinham no convés, e diversas vezes, com intervalos, notara também um ruído característico de correntes; o navio devia ainda estar no Tâmisa, porque Lila percebia os silvos das sirenas, e também chegaram até ali as dez badaladas de um sino de igreja.

Lila ouvia outras coisas e certa ocasião despertou com as vociferações exaltadas de uma mulher. Fora fantasia sua — pensara — ou então estivera sonhando. Para o resto da noite, a primeira a bordo, a despeito da ansiedade, ela dormiu um sono só, indo acordar com o criado chinês que lhe arranjava uma pequena mesa de trabalho perto do leito. Lila já se acostumara à presença daquele homem enigmático e silencioso. Falava ele pouco de inglês, sorria com muita facilidade e antecipava todos os desejos de Lila.

A moça podia trancar à vontade a porta da cabine. Do lado de fora havia também uma tranca, de modo que Lila não podia satisfazer a sua curiosidade de visitar a embarcação. Pensava que a Sra. Oaks estivesse a bordo, porque fora ela quem a trouxera da casa de Tappit; e tinha a certeza de que John Wade procurava por ela — e depositava no Inspetor uma fé com vagos tons de fanatismo.

A vinda de Golly foi um acontecimento. Ela gostava do homenzinho; suspeitava que ele andasse associado a várias espécies de tratantadas, mas considerava-o mais um instrumento dócil que um chefe perigoso; Lila estava sentada à mesa do almoço quando a porta se abrira e aparecera o homúnculo, com um pequeno sorriso divertido nas faces. Habitualmente usava ele chapéus pequenos que antes pareciam bonés; mas desta vez trazia um chapelão de copa alta, que na cabeçorra parecia uma coroa mal ajustada. Os óculos de aros de ouro, o pequeno bigode irregular, a vulgaridade das suas roupas batidas, tudo o tornava figura estranha em tão luxuoso ambiente.

— O senhor?... disse Lila, levantando-se da cadeira.

— Fique sentada, minha menina. Quer oferecer-me uma chávena de chá?

Foi só então que Lila notou duas chávenas à mesa. Golly tirou o chapéu, colocou-o no soalho, passou um lenço pelos cabelos.

— Que vida esta, heim? Como o nosso conhecido Sócrates já ensinava...

Dizia coisas que impressionavam Lila; ela nunca o imaginaria capaz de citar o grego autêntico. Golly podia falar várias línguas, e ler livros em muitíssimos idiomas, mas as suas citações não deviam passar das lições medíocres das escolas e de frases batidas que vêm nos dicionários baratos. Nesse ponto, a memória de Golly era um arsenal inesgotável.

— Está bem aqui, Lila? Ela hesitou.

— Sim, estou bem, Sr. Oaks, mas o que fazemos nós aqui? Golly olhou para a porta e baixou a voz.

— Deus o sabe, disse ele. Ninguém pode saber o que acontece de um momento para outro. Acho que gostaria mais de estar no "Meca" — dis aliter visum.

Lila teve uma inspiração.

— A Sra. Oaks também está a bordo? Golly sacudiu a cabeça.

— Ela não podia vir, disse depois. Tem uma porção de negócios para cuidar; mas que mulher para o trabalho! (Os olhinhos vivos fixavam a menina.) Que mulher, que força! Que companheira para um homem de trabalho!

De novo ele disse qualquer coisa numa língua que Lila não entendia, ainda que pensasse que ninguém, senão Golly, poderia entendê-la. Lembrava-se agora: ele tinha o hábito de dizer aquelas coisas incompreensíveis.

— Você ficará sempre assim, Lila, disse ele, tomando da mão da moça. Não se preocupe com coisa alguma, tudo que vier agora haverá de conduzi-la à riqueza e à felicidade. Jóias, diamantes, carruagens, Rolls-Royces — tudo o que você desejar.

Lila interrompeu-o:

— Quando, Sr. Oaks?

— Muito breve, minha querida.

fite olhava pela cabine com um certo ar orgulhoso que surpreendeu Lila; tinha uns modos senhoriais ao contemplar as telas e os móveis.

— Aquele é um Tintoreto (apontando para um quadro), no gênero que costumo chamar de segundo estilo. O pintor devia estar com dor de dentes ao esboçar a tela. Muitos desses trabalhos de Tintoreto foram pintados por seus discípulos. Aqueles traços brancos e negros, por detrás da árvore, são de Sansovino; aquele outro quadro é de Bellini. Mas todos eles muito secundários para a categoria do mestre. Pessoalmente, prefiro a escola veneziana. Você pode ficar com os seus florentinos.

Lila ouvia tudo boquiaberta. Aquele homenzinho, que vivia a partir lenha e a levar descomposturas da esposa, fazia crítica de arte com a segurança e o espírito de um estudioso de Chelsea!

— Benvenuto, esse sim, talvez fosse um homem para o meu dinheiro. Leu o livro que ele próprio escreveu sobre a sua vida? Admirável! Mas não o admiro como pintor... As suas estátuas, sim! Já viu a Medusa? Fui uma vez a Florença para contemplar o original... Veja, estão aqui dois saleiros que ele cinzelou para um rei — não me lembro do nome — de França, sim, de França... para uma baixela especial do Louvre.

Olhou de novo para os quadros e comprimiu os lábios.

— Não há nada melhor na Inglaterra, disse.

— Então, Sr. Oaks? Nunca pensei que fosse uma autoridade em arte, disse a moça sorrindo.

— Conheço alguma coisa; mas a música sempre foi o meu forte. Já ouviu a Tetrazzini cantar como um canário? Pois eu ouvi! Não acredito que haja no mundo muita gente nessas condições. E acho mesmo que tenho uma voz como a do Caruso.

Esta última afirmativa ele a fizera sem sorrir, e o instinto disse a Lila que nada comentasse. Golly mergulhara num sonho distante, e Lila indagou, a voz trêmula:

— Eu... nunca o ouvi cantar... Sr. Oaks...

— Tio Golly, corrigiu ele. Por que me chama de "Sr. Oaks"? Sim, você já me ouviu cantar. Ouviu sim.

Lila mentia: muitas vezes o ouvira cantar e fechara a janela para afastar aqueles sons desarmoniosos.

— Quer aquela ária do Fausto?

Lila não ousou responder. Golly caminhou para c pequeno piano, sentou-se e começou a tocar. Estaria ela sonhando? Ele tocava como um mestre. E então começou a cantar.

Tinha a mais extraordinária voz de falsete por ela jamais ouvida. Mas a falta de estudos, o pouco conhecimento dos com- > passos, tudo fazia com que o italiano da ária se confundisse numa série de tons gaguejados, sem articulação. Se ela somente pudesse tapar os ouvidos com as mãos! Depois de uma eternidade, Golly parou de cantar e indagou comovido:

— Gostou?

— Maravilhoso, disse ela. Eu... eu não sabia... que o senhor fosse capaz de cantar assim.

Para grande alívio da ouvinte, Golly fechou o piano e caminhou para ela, as mãos nos bolsos, o queixo levantado, irrequieto como um garoto.

— Pouca gente consegue efeitos destes, garantiu ele, pouca gente.

Estava louco, ou acreditava que aqueles guinchos se relacionassem mesmo de longe com o canto artístico? Mas ele pareceu compreender a dúvida e explicou logo:

— Não canto de acordo com o estilo moderno, admito isso. Algumas pessoas não gostam da minha voz; preferem os tenores adocicados e os barítonos trovejantes; mas, se eu quisesse estudar, em dez anos teria uma voz que dominaria todos os cantores do mundo.

Lila tentou mudar de assunto, perguntando pelo nome do navio.

— É o Ritikiki, respondeu ele prontamente. Uma embarcação indiana. O capitão comprou-a por uma ninharia... É um dos navios mais velozes do mundo.

— Onde estamos agora, Sr. Oaks?

— Tio Golly, emendou ele. Onde estamos? (Golly tirou o relógio do bolso, com grande afetação.) Ao largo de Gravesend, talvez um pouco para cima. Estamos esperando o piloto.

Pela primeira vez Lila sentiu medo.

— Piloto? Vamos então navegar? indagou, alarmada. Para onde iremos, Sr. Oaks... tio Golly?

Golly sacudiu a cabeça.

— Ninguém o pode saber.

— Por que me conservam presa aqui?

— Para o seu próprio bem, minha filha.

O "tio" sentou-se e tomou o chá em grandes goles sorvidos às pressas.

— Para o seu próprio bem. Há muita gente atrás de você. Aquele policial, o Wade... Que patife! Que vilão imundo! Um dos homens mais ordinários do Wapping! É um subornado... Os Homens de Borracha pagam-lhe milhares de libras.

Lila não podia acreditar no que ouvia. Mas o Sr. Oaks falava sério. Quase a convencia.

— É o que lhe digo, continuou, solene. Não ficaria surpreso se descobrisse ser ele um dos Homens de Borracha — a polícia mete-se sempre nessas embrulhadas. Você tem lido os jornais ultimamente?

— Mas o Sr. Wade não faria uma coisa dessas, disse Lila indignada.

— Oh! não faria? indagou o poliglota, com um sorriso sarcástico. Nunca ninguém sabe o que um indivíduo pode fazer. Qual é o seu ordenado? Umas miseráveis cinco libras por semana. Acha que ele pode viver com isso? Não, minha querida, forçosamente recebe dinheiro de alguém que se interessa por sua inatividade, dos donos de casas de jogo e de outras casas cuja existência você nunca imaginou. Ele corre atrás do seu dinheiro!

— Do meu dinheiro?

Não havia dúvida: Golly estava mesmo louco.

— Dinheiro é um modo de dizer. Ele quer alguém que venha a ser sua criada, que lhe prepare a comida, que lave o soalho, — sem recompensa. Um miserável como ele há de querer que lhe façam tudo de graça. Não tem recursos para grandes despesas...

— Mas o senhor não disse que ele ganha milhares de libras, desonestamente?

Golly estremeceu. Caíra em outro erro.

— É um modo de dizer, respondeu ele vagamente, e levantou-se. Aqui há muitos livros... Livros que a divertirão. É pena que não possa ler os de idioma estrangeiro; lá por fora é que existe a melhor literatura.

Apontava para uma prateleira pejada de tomos, na qual a moça ainda não reparara.

— Bom, prepare-se. Vou mandar aqui o capitão para vê-la.

— O capitão? Quer dizer o sr...

— Aikness é o seu nome, interrompeu Golly. Não tem importância o outro nome pelo qual você o conhecia. Um bom velho, o capitão, não acha? Bem idoso o coitado... Cinqüenta e oito anos. Ê a sua idade. Se ele disser que tem cinqüenta e dois, está mentindo.

Com essa ligeira informação, Golly saiu da cabine, acenando amavelmente a mão para a moça.

 

Golly deixou Lila com muito em que pensar; o Sr. Oaks que a jovem conhecera não mais existia, e o novo Golly era uma criatura fantástica, irreal. E tudo o que ela ouvira vinha mais e mais complicar a nova figura. Lila, em verdade, não sentia o medo crescer; agora até o sentia decrescer, porque sabia que Golly estava a bordo; preferia-o à esposa; sempre haviam sido excelentes amigos, e Lila servira mesmo de confidente às mágoas de Golly. O novo Oaks tocava piano como um mestre e cantava como...

Lila estremeceu. O navio andava agora muito lentamente e deixara de trepidar. Assim como se tivesse sido abordado por um rebocador.

Lila foi dormir cedo aquela noite, e acordou às quatro horas para ouvir um som curioso — o mugido de uma vaca. Vários navios transportavam vacas, para o serviço dos passageiros. Mas veio um segundo som, ainda mais profundo — uma segunda vaca. Ouviu então o canto de um galo, e uma pêndula deu quatro badaladas. As vacas, o galo, o relógio de aldeia nada concordava com a explicação de Golly aquele dia. E não poderia ela ir até o convés? Havia ar fresco na cabine, mas Lila queria gozar a brisa do mar e a luz do sol.

O Capitão Aikness veio vê-la antes do lanche. Não usava o seu uniforme de oficial, mas trazia uma roupa de flanela e um chapéu de feltro. Era tão alto que teve de abaixar-se ao entrar na cabine. Pela primeira vez Lila o contemplou com interesse. Ele devia estar mesmo nos cinqüenta e oito, e não nos cinqüenta e dois anos. Tinha as faces enrugadas, curtidas pela permanência nos mares, e as costas das mãos cobertas de pêlos negros. Uma figura inquietante, ainda mais naquela cabine misteriosa.

— Então, minha querida, está cansada?

Batia no ombro de Lila, e esta por alguma razão sentiu-se perturbada.

— Vamos levá-la para terra amanhã ou depois. Mandei buscar um automóvel para conduzi-la ao Oeste da Inglaterra. Porque acho bom que você fique separada de Londres por alguns dias.

Perguntou se Oaks estivera ali pela manhã; ouvindo o "Não" de Lila, pareceu aliviado.

— Lorde Siniford encontra-se a bordo? indagou Lila, fazendo a pergunta que tencionava fazer a Golly.

Aikness como que se surpreendeu com a pergunta.

— Não, não está, disse ele, incisivo. Você pode varrer esse tipo da sua memória, Lila; não é digno de você, nem de mulher alguma.

Agora o alívio foi, para a moça, um alívio real. Desde que viera para bordo esperava ver aparecer a cada instante a face de alcoólatra de Sua Senhoria.

A atitude do Capitão Aikness era estranhamente diversa das que ela recordava ter visto nos encontros ocasionais de ambos. Até então fora, para a jovem, figura de um mito distante e difícil de resolver. Mas agora o homem estava nervoso; várias vezes parecia querer falar e mudava de intenção. Subitamente perguntou:

— Quantos anos pensa que eu tenho, Lila?

— Cinqüenta e oito, disse ela prestamente. (A resposta não agradou ao capitão.)

— Tenho cinqüenta e dois, assegurou ele com rudeza. Oaks já andou por aqui. Ele insiste nesse absurdo dos cinqüenta e oito. Vou fazer cinqüenta e dois no dia 3 de julho; sou relativamente moço, com vinte anos de vida robusta à frente.

Dizia isso em tom pesado, como que em desafio. Lila já imaginava o que poderia vir de tudo aquilo.

— Se você algum dia se casar, minha querida, escolha um homem muito mais velho do que você, um homem de experiência que possa cuidar de sua vida.

Caminhou até a porta, abriu-a e olhou para fora, depois tornou a fechá-la e voltou para Lila.

— Um homem que possa tirá-la de perigos e torná-la feliz, continuou ele.

Parecia interessado na expressão do rosto de Lila.

— Há muita gente que corre atrás de um milhão fácil, minha filha. Não perca a sua cabeça se alguém lhe vier com boas propostas; lembre-se de que estou perto e que poderei muito bem tirá-la de qualquer complicação.

Procurava outros meios de convencer a moça.

— Quando voltei da minha última viagem, para vê-la, você já não era uma criança. Impressionou-me muito. Compreende-me? Já significa alguma coisa para mim, e cada dia que passa esse sentimento vai crescendo. Assim eu tomaria qualquer risco pela sua pessoa, com ou sem o milhão...

— Que quer dizer com esse "milhão", comandante Aikness?

Aikness estacou, visivelmente embaraçado.

— Golly quando esteve aqui não lhe contou nada? Pensei que...

Lila sorria. Aikness estava perturbado e ela se sentia senhora da situação; a nova sensação divertia-a, ainda mesmo que por trás da amabilidade daquele homem pressentisse algum perigo.

— Não vá dizer a Golly o que lhe disse. É um bom tipo, generoso, de coração aberto, mas é meio estranho em certas coisas.

Golly, generoso? O homenzinho tornava-se cada vez mais irreal. Por que seria ele generoso? Era pobre e muitas vezes esperara horas e horas que Mum lhe desse dinheiro para ir à "Rosa da Coroa"...

— Conhece o tio Golly há muito tempo?

O capitão não tirava os olhos de Lila.

— Sim, conheci-o há muito, muito tempo, declarou ele calmamente.

Apanhou o chapéu onde o deixara e caminhou para a porta; deteve-se à soleira alguns instantes; depois, como quem se expande numa poesia decorada:

— Amanhã ou depois tudo ficará resolvido. Mais tarde... Não sei ainda. Dir-me-á para onde quer ir. E nem uma palavra a Golly!

Antes que Lila pudesse responder, a porta estava trancada.

Aikness galgou os degraus da escadinha e alcançou o convés, não de nenhum navio, mas de uma enorme barcaça, de velas vermelhas recolhidas; tinha o nome pouco romântico de "Betsy e Jane", e estava atracada ao lado de um campo que acabava num pequeno bosque. Numa outra barcaça dois homens consertavam um mastro torto. Além desses dois só havia à vista um outro sujeito, vestido de camisa de jersey colorida, com uma calça desbotada, lendo um pedaço de papel. Trazia à cabeça um boné desabado, e até um vizinho esperto teria deixado de reconhecer, naquele homem mal ataviado, o Sr. Golly Oaks, do clube "Meca". Olhou por cima dos óculos, ao ver surgir o capitão.

— Você está bonito, disse Golly, com uma ponta de ironia na voz. Se alguém aparecesse por aqui diria que você vai para um garden-party nas propriedades do rei; esteve lá embaixo com a Lila, não esteve?

— Estive, sim, disse Aikness, que se sentou no topo da escotilha e vagarosamente encheu o cachimbo.

Golly continuou:

— Vocês, os velhos, são interessantes. Deixam crescer barbas negras, e depois as raspam quando se trata de visitar moças bonitas e bem dotadas. Um senhor de cinqüenta e oito anos!...

— Cinqüenta e dois, grunhiu o outro.

— Ponhamos que você tenha apenas dez, continuou Golly. E depois, em voz diferente: Volte aos seus trajes antigos, entendeu? Quero contar-lhe o que aconteceu ao "Troiano"; a notícia saiu nos jornais da manhã.

O capitão empalideceu.

— Abordaram-no? Golly concordou.

— E acharam muitas coisas, continuou ele, amável. Ouro, platina, diamantes e Deus sabe mais o quê! E acabarão achando-o também, Bill Aikness. Desça e mude de roupa.

O homem voltou-se e desapareceu na escotilha.

— Não quer mais nada? grunhiu Aikness.

— Sim, disse Oaks. Traga-me uma tira de crepe negro; vou precisar dela para a manga do casaco.

O Capitão Aikness olhou para ele, horrorizado.

— O senhor não irá?... começou ele a indagar, nervoso.

Golly concordou.

— Sim, vou fazer aquilo que você receia. Todas as coisas neste mundo têm um fim, e esta há muito tempo que já deveria ter terminado.

 

O Sra. Oaks fora trazida, muito cedo, de Holloway, e estava numa cela da polícia; sempre que se ia proceder ao seu julgamento, John Wade pedia ao Promotor que adiasse para mais tarde, e assim até ali Mum não comparecera ao tribunal. O Promotor não via tanto interesse em adiar o processo, porque achava difícil provar que Mum de fato administrara um narcótico à esposa do sargento Tappit.

Nas celas da polícia é permitida a visita aos detentos; aquela manhã, às oito e meia, uma criadinha de um pequeno café próximo apareceu com um substancioso almoço para Mum e fora conversar com a Sra. Oaks na própria cela, sendo conduzida pela guardiã. John Wade chegou poucos minutos depois disso, e estava no corredor do cubículo em que se achava Mum quando a guardiã veio correndo para fora. Wade ouvira-a pedir um médico, e segurou-a pelo braço quando ela voltava.

— Alguma coisa?

— Aquela mulher do número 9 — o seu caso, Inspetor Wade. Acho que ela está desmaiada. Eu não o saberia se ela não tivesse derrubado ao chão a bandeja do chá.

Wade correu atrás da guardiã. A porta da cela estava aberta; John logo levantou a mulher para o catre de madeira; Mum tinha a face cinzenta, os lábios descoloridos. Auscultando-a, John não notou movimento algum de respiração. O coração estava parado. O pulso não se fazia sentir. Nesse momento chegava o cirurgião solicitado, que examinou a mulher rapidamente e deu o veredicto definitivo:

— Está morta.

Fungou e, então, abaixando-se para o cadáver, tornou a cheirá-lo.

— Que me caia um raio em cima se não foi ácido cianídrico... Ela suicidou-se.

Mas uma busca no cubículo não trouxe luz alguma sobre a teoria do suicídio. Por fortuna, antes da bandeja ser derrubada, os bules de chá e leite, os únicos líquidos do pequeno almoço, tinham sido postos sobre o catre.

— Leve isso para a análise, disse John.

Ele estava surpreendido. A Sra. Oaks era mulher de saúde e a última pessoa no mundo a pensar em suicídio; morrera certamente pela mesma razão por que Lorde Siniford deixara o mundo dias atrás.

Não foi difícil encontrar a criadinha. Ela servia num café próximo, e explicou muito bem que tirara o leite e o chá das vasilhas comuns da casa e levara os bules na bandeja, para a prisão, segundo a ordem recebida.

— Com quem se encontrou no caminho? indagou John.

Ela não se recordava de nada a princípio, mas depois de um momento de reflexão lembrou-se de que encontrara dois homens — pareciam "estrangeiros", disse — e um deles lhe perguntara onde ficava High Street. Ela voltara a cabeça e indicara, com um sinal, a direção da rua.

— Muito simples, disse John. Um dos homens prendeu-lhe a atenção, enquanto o outro jogou a droga no chá ou no leite. Julgo que foi no leite.

— Conseguiu uma boa descrição dos homens? indagou Elk na Polícia.

— O mais que ela pôde dizer é que os dois pareciam estrangeiros. Mas não há dúvida de que a senhora Oaks foi envenenada. Com certeza adivinharam que ela ia falar e tomaram as suas precauções.

Wade achava-se meio morto de sono e de ansiedade, mas atirou-se logo à tarefa de descobrir os dois estrangeiros vistos na vizinhança do tribunal de polícia aquela manhã. Estava de sorte: um leiteiro vira os dois e notara que um deles tinha um salto de borracha a se desprender do sapato, e isso obrigava o sujeito a cambalear. O detalhe era preciso; dentro de um quarto de hora doze mil policiais examinavam os saltos dos sapatos dos transeuntes e, às três horas da tarde, dois homens, que andavam ocasionalmente pela ponte Brixton, acharam-se rodeados de policiais civis e uniformizados. Foram levados à delegacia. Ambos eram estrangeiros. Wade foi até Brixton interrogá-los.

Os dois homens deram nomes franceses, mas eram sem dúvida americanos, ainda que pudessem ser de origem francesa. Quando John se dirigiu a eles em francês, com dificuldade conseguiram responder.

— Quando deixaram vocês os Estados Unidos? indagou John.

Responderam vagamente.

Nada sabiam do envenenamento; durante toda a semana haviam sido os homens mais inocentes de Londres; explicaram as pistolas carregadas pela ignorância da lei. Desconheciam a parte norte do rio; ignoravam tudo da Sra. Oaks e nunca tinham ouvido falar dos Homens de Borracha. Estavam em Londres com a intenção de comprar ali móveis franceses mais baratos, para revendê-los nos Estados Unidos, mas não puderam indicar a John uma única casa de móveis.

Dois homens imperturbáveis, de faces rígidas e lábios finos; não mostraram emoção alguma até o momento em que foram algemados juntos e levados num táxi para Scotland Yard. Então, só então, o terror do desconhecido desceu sobre eles, e um deles lançou um protesto, mas não em francês.

Enquanto isso um grupo de detetives ia procurar o endereço que haviam dado, para saber que lá eram desconhecidos. Mas novamente a fortuna favoreceu a polícia. Eles tinham apontado como endereço a casa de hóspedes em que pretendiam ter descido quando chegados a Londres; o porteiro lembrava-se de que, estando cheia a casa, indicara três outras pensões, sendo provável que os dois se dirigissem para uma delas.

Entre o leito e o colchão John achou três pequenos frascos de cristal, um deles vazio, os outros dois cheios, até a metade, de um líquido azul-claro; ainda no quarto John encontrou um curioso rifle de cano curto e de fabricação diferente — um rifle automático, até então sem uso. Os cartuchos ainda estavam envoltos num papel grosso.

— Que acha de tudo isso? indagou Wade de Elk. Os rapazes falarão?

Elk torceu o nariz.

— Não acredito. Mas você pode armar um estratagema. Peça 'aos chefes para levar os dois patifes para a delegacia de Woolwich — pelo rio. Não diga para onde os leva. Segure-os às duas da madrugada, amarre-os de mãos e pés e leve-os para Woolwich. É. um método psicológico que pode dar resultado...

O interrogatório cerrado de Scotland Yard não trouxe nada de novo. Os dois estrangeiros mantinham-se na defensiva; não sabiam de nada sobre o rifle ou sobre os frascos de veneno; sugeriam outras pistas, negavam; eram ambos homens de caráter, mas a afirmativa não foi aprovada pela Sureté de Paris, ao telefone.

John foi ver o chefe principal, e transmitiu-lhe o plano de Elk. Mostrou-se o excelente homem duvidoso a princípio, mas depois consentiu em que os dois fossem levados para a estação de Woolwich numa lancha.

Às duas da madrugada, quando dormiam os prisioneiros, ignorando o que lhes ia acontecer, foram acordados por dois homens, de gola levantada, e de chapéus desabados que não permitiam fossem eles reconhecidos. Os prisioneiros levantaram-se estremunhados; algemaram-nos e os levaram por um pátio úmido e escuro. O cais estava deserto; os dois foram conduzidos pelo meio da rua até um desembarcadouro em que flutuava uma grande lancha da polícia.

Havia dois homens a bordo, também de capotes levantados, fato que veio aumentar o terror dos prisioneiros. Um minuto mais tarde a grande lancha desatracou e começou a descer o rio, na maré que vazava.

Achavam-se perto da ponte de Londres quando Elk amarrou sòlidamente as pernas dos dois homens.

— Diga, que idéia é essa? indagou um deles, batendo os dentes. E algum passeio?

— Cale-se! resmungou Elk.

Passou-se um quarto de hora; a lancha quase voava no seio da escuridão; nem uma palavra se ouvia; nenhuma violência foi feita contra os dois homens, e essa estranha imunidade cada vez mais os apavorava. Em frente ao hospital de Greenwich um deles explodiu numa torrente de informações. Chegaram a Woolwich às primeiras horas da madrugada, e John Wade e seu companheiro recolheram as declarações de um homem trêmulo que disse coisas cuja metade bastaria para a sentença de morte dos dois estrangeiros.

No momento em que os cidadãos madrugadores de Londres tomam o seu primeiro almoço, dois detetives de olhos pisados apareciam diante do Chefe e lhe exibiam os pontos principais da confissão.

— Isso não nos diz quem os empregava, objetou o Chefe. E explicou:

— O homem foi convidado a vir à Inglaterra, com remuneração tentadora, um salário regular por semana, que lhe chegava pelo correio. Como funções tinha que esperar um chamado, marcando um encontro, e então deveria aparecer, armado.

— Praticamente ele admite o assassinato da Sra. Oaks, disse John.

De novo o Chefe se mostrou cético.

— Ele admite que tenha administrado a droga, mas confessa que pensava ajudar assim a fuga de Mum Oaks. Um deles diz que também deu a droga à esposa do sargento-detetive e nada lhe aconteceu. A única coisa que sabe do seu patrão misterioso é que era alto e moreno...

— E bonito, murmurou Elk, mas silenciou a um olhar do Chefe.

— Com certeza planejam eles alguma coisa — de grande importância. Não há notícias daquela moça?

— Nenhuma novidade, Chefe.

— Interessante... Você pensava que ela estivesse encafuada em qualquer dessas barcaças do rio. Mas a polícia revistou todas elas e não encontrou nada. A sua idéia foi muito audaciosa.

John respondeu:

— Todas as idéias têm que ser audaciosas, Chefe. Mas até onde levaram a busca?

— Até Maidenhead. A polícia de Buckinghamshire e de Berkshire trabalhou bastante. Por que você não tenta o exame das duas barcaças atracadas ao lado do "Meca"? Vá dormir, rapaz. Entregue o caso da Sra. Oaks ao inspetor da divisão e vá fazer um passeiozinho de lancha aí pelo rio, para ver se descobre qualquer coisa. Você não acha que a jovem desapareceu de livre vontade, e está em boas mãos?

— Não, Chefe, disse John, calmamente. Depois que morreu a Sra. Oaks acredito que o perigo em que ela se encontra aumentou.

O Chefe olhou para ele com bondade.

— Muito bem, disse.

John já atravessava o corredor quando o superintendente o chamou da porta.

— Estamos afinal na pista do Lane, disse ele; foi visto em Londres e, se há aqui alguma organização de assaltos, ele deve andar metido nela.

— Encontrou-o? indagou John, rápido.

— Quando digo que estamos na pista, quero significar que temos em mão o seu passado, por sinal que um passado sujo, explicou o superintendente. Sete acusações em várias partes do mundo. Passe pelo Arquivo, para ver...

No momento John não se interessava pela figura de Lane; no entanto, devia preocupar-se com este mais do que com os demais membros da confederação criminosa, porque Lane e seus homens seguiam o detetive dia e noite.

 

Pela tarde chegou a Scotland Yard uma nota informando que Golly fora visto no distrito de Notting Hill. Já era a terceira vez que chegava a informação de que Golly fora localizado em determinado sítio. Desta vez, contudo, a informação trazia um suplemento: também tinham sido vistos por ali alguns "estrangeiros".

Acontecia que em Notting Hill vivia um homem que, ainda que de reputação honesta, possuía autoridade sobre a ralé estrangeira. O Sr. Ricordini era um italiano naturalizado, que, usufruindo grandes rendimentos, alugava pianos e sorveteiras aos compatriotas menos afortunados. E a polícia jamais o conseguira ligar ao menor crime ocorrido por aquelas bandas.

John Wade e Elk foram interrogá-lo, e ele recebeu os dois detetives desembaraçadamente, na sala de visita.

— Não sei de nada a respeito de Golly Oaks, começou ele, como esperavam os detetives. Mesmo se soubesse, seria contra a minha conduta narrar qualquer coisa. Mas posso dizer-lhe que aqui por perto está rondando um bando de camaradas de aspecto desagradável, especialmente à noite. Andam aos pares, como se já estivessem familiarizados com a vizinhança.

— Por que diz com a vizinhança? indagou John.

— Deus o sabe, foi a resposta amável. Há, na maioria, americanos, mas também tenho visto alguns poloneses. Um amigo meu já conversou com esses tipos. São malfeitores declarados. Só de contrabandistas americanos há meia dúzia.

— Vivem aqui?

— Não, senhor, e aí é que está o divertido da história. Se vivessem aqui, não seria estranhável que andassem pelos arredores.

Enquanto interrogavam o italiano, detetives do distrito, batendo a vizinhança, descobriram os dois homens que tinham visto Oaks na noite anterior. Esperavam esses dois homens pelos inspetores, do lado de fora da casa, e explicaram o que sabiam em poucas palavras. Ambos os informantes eram antigos criminosos e já tinham, por esperteza, prestado à polícia outros esclarecimentos.

— Não há dúvida de que fosse o Sr. Oaks, Inspetor, disse um deles, já conhecido de Wade. Vi-o caminhando ao longo da calçada, do lado de fora do edifício Arbroath.

— Onde fica o edifício Arbroath?

Elk, que conhecia bem o distrito, explicou que o edifício ficava num bloco de lojas e casas de moradia, num sítio de comércio escasso.

— Reconheci-o e corri para ele. Disse-lhe então: "Alô, Sr. Oaks"!

— E que respondeu ele? indagou John.

— Nada; levantou a gola do casaco e continuou a andar. Pensei que me tivesse enganado, mas não creio que isso acontecesse, porque aqui o Jimmy viu o mesmo homem dez minutos mais tarde.

— Exatamente isso, senhor, confirmou o segundo homem, com voz grossa. Era ele, sem dúvida. Dobrava o canto do quarteirão quando o encontrei com os óculos e tudo o mais. Conheço-o muito bem; costumava trabalhar no Wapping quando Oaks comprava ferro velho de navios para revender às fundições.

— Falou-lhe?

— Não, senhor. Não lhe falei. Mas tenho certeza de que era Oaks. E há algumas noites atrás o velho Sorbey também o viu e contou o fato à polícia. E foi ali pelo edifício Arbroath.

O C. I. D. de Notting Hill nada tinha a acrescentar à informação.

— Talvez o homem esteja no próprio edifício Arbroath, aventurou ele.

— Não acredito, disse o inspetor da divisão, que chegara durante o interrogatório. O prédio está fechado, e acho mesmo que no momento é objeto de pendência judicial, não tenho certeza, se quiser, iremos até lá para conversar com o zelador.

Depois de repetidas pancadas à porta de uma garage que ficava ao lado da estranha massa de concreto armado, o zelador veio abrir.

Era ele um antigo soldado do exército, conhecido pela polícia e pela vizinhança como homem de grande probidade.

— Aqui não veio ninguém, disse ele. Estive hoje com os advogados da pendência e parece que o caso não se resolverá tão cedo.

John Wade fez-lhe uma rápida descrição de Golly Oaks.

— É interessante, disse o zelador, depois que Wade acabou de falar. Vi um camarada assim... A noite passada, quando estava à porta da garage, fumando uma cachimbada, ele passou, um casacão grande demais para o seu corpo e um grande boné. Disse-lhe: "Boa noite" e ele me respondeu "Bon soir", assim pensativo, mas não era cidadão francês, disso tenho certeza.

— Usava óculos?

— Sim, e fumava um cigarro; caminhava cantando baixinho — e que voz horrível!

— Deve ser o Golly mesmo, disse John. Mas que diabo fará ele por estas bandas?

Os dois homens voltaram a Scotland Yard sem saber mais do que sabiam antes de terem saído. Elk pareceu raciocinar durante todo o resto do dia.

— Não gosto dessa intromissão de estrangeiros, disse ele. Os nossos criminosos, podemos fazer tudo com eles... Você já ouviu falar dos "reis do crime", Johnny?

— Nos romances, já.

— Eu também li isso em romances, disse Elk. Pois estou beirando um deles, na vida real.

— Aikness ou Golly?

— Golly? (Havia um espanto na voz de Elk.)

— Golly, repetiu John. Não, não enlouqueci. Começo a respeitar esse homem. Ele anda por toda a parte. Não me esquecerei dos amores-perfeitos que queria plantar sobre o meu túmulo. Tem muito senso de humour. E o criminoso que tem senso de humour é o mais perigoso de todos.

Durante a refeição que fizeram juntos, Elk lia um jornal.

... — Uma novidade, Johnny: o Almirantado vai mandar um destróier a Greenwich para vigiar a saída do rio; será muito bom, porque esses camaradas da Borracha de um momento para outro hão de querer abandonar o país; já perderam o "Troiano", mas agora devem ter comprado outro navio, com facilidade.-..

Naquela noite, à luz de uma lâmpada elétrica, Golly Oaks desenvolvia um raciocínio idêntico; mas havia um pensamento que lhe acudia mais freqüentemente. Porque ele esperava as notícias de Raggit Lane, que saíra da cidade, com uma missão importante.

John Wade caminhava pela calçada no Strand, quando um táxi veio rodando do outro lado e se aproximou do meio-fio. John Wade só ouviu o ruído da vitrina que se fazia em mil pedaços. Não ouviu nem o sibilo da bala nem o rumor da explosão.

— Homem de sorte, disse Raggit Lane, mergulhando de novo nas almofadas do táxi, e mandando rodar a toda para adiante.

Esperara ali pelo detetive cerca de três horas e errara o golpe. Agora era preparar uma desculpa, porque o bilhete de Golly dizia que era preciso liquidar Wade "a todo custo".

Um apito repercutiu longamente e foi repetido. O policial de serviço no extremo da praça Trafalgar levantou o braço e interrompeu o trânsito. Por felicidade havia muitos táxis iguais ao de Lane; ele saltou para a rua, e começou a abrir caminho pelo meio da multidão de carroças e automóveis estacionados. Lane estava triste com o desfecho da aventura. Era a primeira vez que o mandavam para a rua aberta, a fim de atirar num sujeito. Poderia ter sido perigoso, devido ao impedimento do trânsito.

O seu papel nas aventuras dos Homens de Borracha era importante, na verdade, mas ele se sentia um pouco diminuído junto aos outros, os técnicos, os que abriam as casas-fortes dos bancos e das grandes residências. Ainda não abandonara o bando porque esperava receber uma grande quantia que havia para ele, na América do Sul.

Aí, pensava passar o resto da vida: uma casa confortável com uma varanda amena para os dias de calor, um iate para correr os mares azuis, e uma mulher, talvez uma jovem bonita.

Ele gostava de Lila Smith, antes mesmo de saber que era herdeira de milhões. E em torno dessa menina seria necessário lutar.

Começou a andar mais vagaroso e os seus pensamentos se tornaram pesados. O "velho" desejava a pequena — ele o supunha — e era curioso como tivesse recebido a notícia da perda do "Troiano" com tanta displicência; o navio representava centenas de milhares de libras perdidas e, se ele considerava essa perda sem se impressionar, é porque o que devia vir depois valia muito mais. O pensamento daquela fortuna desconhecida obsedava o pobre Lane. E o "velho" era audacioso! Atacara, de uma feita, o banco Westshire à luz do dia! E era tão idoso... Contava mais de cinqüenta anos, talvez mesmo de sessenta. Ele, Raggit Lane, não passara ainda dos trinta e cinco. E esses trinta e cinco poderiam ter sua influência sobre os sentimentos fáceis da juventude!... Questão de alguma tática...

A mão de alguém tomou-lhe do braço direito, quase com amabilidade. Quando Lane se voltou, outra mão tomou-lhe do braço esquerdo. Ele se viu face a face com John Wade.

 

— Preciso de você, Lane. Mas não vamos discutir em público e raso, não acha?

Um táxi veio do extremo da rua. John abriu a porta e meteu o prisioneiro lá dentro, segurando-o pela gola. O segundo detetive seguiu-o.

— Acho que você não trouxe arma, disse John. A propósito, achamos o seu amigo motorista e encontramos a sua artilharia nas almofadas de veludo...

— Não sei o que o senhor está dizendo, começou Lane.

— Isso tem acontecido com muita gente, zombeteou Wade. Nunca prendi um homem que não se dissesse inocente como uma criança. Viram quando você saiu do carro e logo me avisaram. Quanto aos seus soldadinhos, eles não tardarão em vir à procura do coronel engaiolado.

— Tudo isso é grego para mim.

— Pois então foi Golly que me ensinou, disse John, satisfeito.

Pela primeira vez a fortuna estava do seu lado: conseguira engaiolar um dos seus piores inimigos, por acaso.

Na estação policial de Cannon Row revistaram o homem. Nada encontraram nele, a não ser um cartucho deflagrado.

— O senhor vai ter dificuldade em provar esse caso, disse Lane, triunfante.

Como resposta John tomou-lhe do braço e levantou-lhe a manga do paletó.

— Olhe esta mão, sargento: vestígios de pólvora na base do polegar. É o coice dessas armas de fogo. Onde estão as suas luvas de borracha, Lane? Mandou-as para a lavadeira?

Lane sorriu.

— Não sei o que lhe responder. Essa marca do dedo é a de uma caneta-tinteiro; há algum mal nisso?

— Tudo isso esclarece a tentativa de assassinato, comentou o Inspetor. Um dos seus amiguinhos de Montmartre contou toda a verdade sobre você, e somente a verdade.

Lane nem se mexeu.

— Agarrou-os, afinal? Vi que a polícia procurava dois homens...

— Você não viu nada... A notícia não foi publicada nos jornais, porque nunca os jornais suspeitaram que estivéssemos procurando dois homens...

Depois do depoimento regulamentar, Raggit Lane foi levado para o cárcere; dez minutos mais tarde John Wade aparecia por lá e dizia-lhe:

— Venho sugerir-lhe uma coisa para o seu próprio bem, Lane. Você não deve mandar buscar os seus alimentos lá fora.

O homem fitou-o.

— Por acaso terei enlouquecido? indagou ele.

Elk chegara até a cela, nesse ínterim, e parecia disposto a intrometer-se seriamente no caso.

— É preciso guardar bem esse pássaro, com muito cuidado, disse ele depois ao sargento. É um favor que você me faz, sargento.

— Mas por que razão? indagou John, surpreso. O outro acariciou o queixo, longamente.

— Você há de concordar que Lane nunca imaginou que pudesse ser processado por tentativa de assassinato, e certamente não pensou nunca que o jogassem de um momento para outro num cárcere. E há em Londres muitos "artilheiros" que certamente virão rondar a estação, para libertar o "coronel".

John Wade sorriu.

— Você não deve brincar...

— Mas isto aqui não é Chicago, disse John divertindo-se. Elk tornou-se sério.

— Exatamente. Os policiais londrinos não podem usar armas de fogo. De modo que uma quadrilha bem organizada pode surpreender a cidade — você já se esqueceu da rua Sidney? Dois homens, ou três, com um par de pistolas automáticas, apareceram de repente e atacaram os policiais, como nos filmes americanos. Tudo isso precisa ser levado em conta.

John esperou que a acusação legal terminasse pela manhã e, quando tudo ficou documentado na polícia, foi até Oxford. Lila Smith estava em qualquer parte ali pelo rio e ele tinha o pressentimento de que ia achá-la. Tomou uma lancha, na qual o esperavam um detetive e um representante da Fluvial, e logo começou a batida do rio.

O trabalho era rude. A lancha deteve quatro fieiras de barcaças entre Henley e Hurley e cada uma delas teve de ser revistada. Numa dessas barcaças, um marinheiro mais polido prestou-lhe uma pequena informação.

— Há um par de grandes barcos aí para cima, perto de Marlow, disse o homem. Estão lá parados há algum tempo. Já passei por eles duas vezes. Chamam-se Betsy e Jane e Berta Brown.

— Estão atracados a algum desembarcadouro? inquiriu o Inspetor.

— Não. Foram encostados a um terreno particular da outra margem. Acho que se encontram lá ainda porque não os vi mais no porto.

Já era noite, mas John determinou que a lancha subisse mais o rio; quando ultrapassaram Hurley, ele percebeu as duas barcaças, amarradas pela proa. Estavam encostadas à margem e recebiam sombras das árvores do parque. Lá dentro havia algumas luzes, mas John decidiu esperar a manhã para uma inspeção mais minuciosa.

Com a claridade da manhã, debaixo ainda de uma ligeira neblina, ei-lo de volta a Marlow, abordando a barcaça pela ré e atracando, a despeito do aviso que multava quem invadisse a propriedade privada.

Fora difícil aproximar-se das barcaças e, quando John chegou à ré da primeira delas, viu um homem que lavava o rosto numa pequena bacia. O homem servia-se da toalha no momento em que John saltou para a escada e cumprimentou o marinheiro.

— Sou o Capitão James, disse ele, quando John lhe apresentou suas credenciais. Faz parte da Polícia? Pois é o terceiro camarada de lá que me revista a barcaça.

Falava com muita segurança. — Ah! é o patrão? indagou John. (Alguma coisa na atitude do homem já lhe era familiar.)

— Sim, senhor.

— Então foi promovido, hein? Da última vez que o vi ainda era vigilante de barcaças...

Um momento o homem perdeu a calma. Depois reconheceu:

— Por Deus! É o cavalheiro que me encontrou no dia da inundação! O comandante foi à terra arranjar qualquer coisa para o almoço.

Vestira o casaco e John se aproximou dele e enfiou-lhe a mão pelo bolso.

— O que tem você no bolso? indagou John, brincando. Uma arma?

— Não uso armas, senhor! Para que precisaria de uma arma? John notou uma atadura no pulso do sujeito.

— Feriu a mão?

O homem acabou de tirar a mão do bolso. Tinha em torno dela várias ataduras.

— Feri-me na escotilha, outro dia, reconheceu ele. Mas o que deseja o senhor? Revistar o barco?

— Se for possível...

O "vigia" caminhou suavemente para a escotilha aberta e gritou para baixo. Apareceu depois um cidadão de aspecto robusto.

— Ajude-me a retirar estas pranchas. Por felicidade não temos hoje mau tempo.

Levantaram duas pranchas e John olhou, lá dentro, várias caixas com o nome de uma firma de maquinismos da Áustria.

— Podem colocar de novo as pranchas, disse John, e os dois obedeceram.

Enquanto repunham as tábuas, John tirou do bolso uma pistola automática, e a acariciou brandamente, à vista dos marinheiros.

— Não acham que é uma bela arma? indagou ele.

O "vigia" olhou-o fixamente, mas não disse nada.

— Quer vir dar uma volta até Marlow, agora?

— Por quê? indagou o outro.

— Poderemos encontrar o seu patrão, insinuou o Inspetor. O outro homem desaparecera. John fez com que o "vigia" descesse para a lancha, com a esperança de vir mais tarde examinar a tal barcaça silenciosa e meio perdida no nevoeiro. O prisioneiro foi levado até a estação de polícia de Marlow.

— Acuso-o de assalto a um banco, disse John, depois que os policiais esvaziaram os bolsos do vigia. Acho que é muito mais sério do que se eu quisesse simplesmente processá-lo por tomar a personalidade de um sargento da Polícia Metropolitana...

— Boa noite, disse o homem, sarcástico. O senhor me está saindo um Sherlock de mão cheia.

— Já muita gente me disse isso, concordou Wade.

"Cardlin" — sob esse nome foi o homem acusado. E ele protestou inocência, não prestou declaração alguma, não quis defender-se, não apresentou um álibi. Wade preveniu ao chefe da estação que mobilizasse todas as reservas; "Cardlin" tinha muitos amigos interessados em conservá-lo em liberdade.

Depois Wade foi procurar o superintendente, em Scotland Yard.

— Acho que já localizei o barco. Ele está cheio de caixotes de maquinarias, que por certo disfarçam uma cobertura falsa e uma cabine interna. Vou precisar de cinqüenta homens, e gostaria que fossem bem armados. A segunda barcaça estará certamente repleta de chins.

Wade mandou um detetive ao longo do rio, para observar tudo; a tarefa era difícil, por causa do nevoeiro, que clareara um pouco, mas começava de novo a adensar. Uma pequena estrada corria pela plantação, aproximando-se do lugar em que estavam atracadas as barcaças. Com as forças de que dispunha não era possível ao detetive fazer uma vigilância perfeita daquela estrada. Teve que pedir reforço.

O nevoeiro era fenômeno habitual para os policiais do rio, e através dele John Wade via tão bem como em dia claro. Assim, momentos mais tarde, distinguiu os carros da polícia que chegavam a Marlow.

Já por esse momento a polícia de Berkshire fora notificada do essencial, mas nem por isso conseguira reunir os seus elementos com muita rapidez; e foi mesmo a polícia de Londres quem veio vigiar a primeira das duas barcaças.

Os policiais se agachavam no meio das moitas da margem quando chegou até John um cheiro de fumaça. Vinha da segunda embarcação. Um fumo denso saía do castelo de popa e através dos interstícios das pranchas do convés. Aparentemente não havia ninguém a bordo. Tão violentas eram as labaredas que alcançaram em poucos minutos o resto da habitação flutuante.

A primeira barcaça também pegara fogo no momento em que John saltara para o seu convés, mas o incêndio foi logo dominado pelos policiais. Do castelo de popa uma pequena porta conduzia a um corredor em que havia meia dúzia de cabines. mais ou menos confortáveis. A tripulação fugira com tanta precipitação que deixara a maior parte dos seus objetos ali mesmo. John, porém, não tinha tempo de examiná-los. Passou para o segundo quarto, e estacou com o seu luxo. Fora aquela a prisão de Lila: poderia duvidar se não visse uma chinelinha vermelha perto do leito. O quarto estava vazio, e não tinha outra saída.

John voltou ao convés e distinguiu Elk sentado a um banco.

— Eles tinham doze automóveis ocultos num telheiro desta fazenda, disse Elk em voz cortante. Espalharam-se por todas as direções, antes que a polícia de Berkshire chegasse. Mandei uma comunicação para todos os postos de polícia, para que vigiem bem as entradas de Londres.

John sorriu melancòlicamente.

— Não mande vigiar as portas, mas sim Londres, disse ele, e falava como um profeta.

 

Lila despertara aquele dia às sete da manhã, e tentava interessar--se num volume de Shakespeare quando ouviu um som curioso no convés. Ainda que não soubesse a sua origem, pensou que podiam estar levantando as pranchas do porão.

Mas não sabia que era para a inspeção de John Wade. Ela ouviu com cuidado, mas as vozes lhe eram irreconhecíveis. De novo calculou que as pranchas eram colocadas sobre o porão. Nesse momento a porta da cabine abriu-se e Golly apareceu. Vinha com o dedo nos lábios e fechou a porta cautelosamente.

— Que é isto? indagou Lila, em voz baixa.

— Nada, minha querida, segredou ele. Alguém que não gosta de você e quer prejudicá-la a todo transe. Não quero que saiba que você está aqui.

Nesses momentos de diplomacia Golly era tenebroso mas convincente. Ainda que não acreditasse muito no que ele lhe dizia, Lila acreditava fosse Golly o seu único amigo naquela embarcação.

Golly saiu e esteve fora uns dez minutos. Quando voltou trazia um chapéu e um sobretudo. Disse a Lila de modo incisivo:

— Vou levar você para outro lugar, porque estamos em perigo. Venha.

Lila ia tomar do seu casaco de lã, mas Golly a deteve.

— Não, não vista isso.

Foi até uma outra cabine e voltou com um enorme capote negro de homem.

— Vista isso.

Obrigou depois Lila a por na cabeça um boné de golfe.

Antes que a jovem se pudesse olhar num espelho, Golly tomava-a pelo braço e a puxava para fora da cabine. No corredor Lila viu Aikness e dois homens que não reconheceu. A um canto do corredor havia um compartimento quase do tamanho de um armário. Golly interrogou o Capitão Aikness:

— O que vamos fazer com ela? e o seu olhar se fixou no pequeno quarto. Não quero que a moça a veja. Traga-a então no segundo automóvel.

Golly tomou da mão de Lila e a fez subir a escada para o convés. O ar fresco foi uma delícia para a moça. E ela nem mesmo se lembrou de perguntar a Golly porque razão inventara a peta do Ritikiki, das viagens e de tudo o resto.

O nevoeiro era tão denso que só se podia ver um caminho até doze jardas à frente. Um automóvel esperava por eles, na estrada. O homem que a prendera abria a porta, vestiu um uniforme de motorista, e pôs o motor em movimento. Outro homem apareceu, envergando um casaco bizarro, e Lila notou nele a imitação grosseira dos criados de libré.

O automóvel era uma limousine luxuosa; na almofada da porta havia brasão de armas, e só mesmo um policial desajeitado teria coragem de atirar nele.

O carro movia-se pela estrada nevoenta. Passou por um portão de ferro, dobrou à direita e, andando cautelosamente pelo nevoeiro, chegou dez minutos depois ao que devia ser uma estrada larga. Pelo telefone do interior do carro Golly ditou uma direção:

— Windson, Staines, Hapton, Esher e a saída, disse ele, rápido.

Depois, voltando-se para Lila, compungido:

— Soube do caso da pobre Mum?

— A Sra. Oaks?

— Morreu.

— Morreu a Sra. Oaks? Mas é terrível!

— Morreu, sim. Como dizia Shakespeare...

— Foi um acidente?

— Um suicídio, respondeu às pressas o viúvo. Era uma mulher admirável, no seu gênero. Não conhecia nada de belas-artes, mas sabia ter o seu temperamento.

— Não compreendo. A Sra. Oaks suicidar-se... Por quê?

— Perseguição da polícia, esclareceu Golly.

Tirou do bolso um maço de cigarros baratos, escolheu um com cuidado e o acendeu.

— Foi levada ao túmulo pela polícia... Especialmente pelo Inspetor Wade.

Lila não podia dizer coisa alguma. Procurou um pouco de ternura para lamentar a morte de Mum e não a encontrava.

— Envenenou-se, continuou Golly. Sempre foi bom que eu não estivesse perto, porque senão me acusariam do crime...

— Quando foi isso?

— Ontem, disse Golly. Veja!

Remexeu no sobretudo, de modo a deixar entrever à jovem uma faixa negra de crepe em torno do braço.

— Desde pela manhã, disse ele, estou assim. E isso prova...

— Prova o quê? foi a pergunta curiosa de Lila. A pergunta desarmou-o.

— Ora... Prova que estou sentido com a sua morte. Estou até imaginando em levantar-lhe um monumento sobre o túmulo — um anjo apontando para o céu; não é lá muito artístico, mas é a única coisa que se pode fazer neste país.

O automóvel passava agora para uma outra estrada cheia de buracos. Mas o "tio" prosseguiu no seu discurso.

— Naturalmente que não poderei continuar a viver só. Estou ainda na primavera da vida. Ainda gostaria de cultivar em qualquer parte — na América do Sul, por exemplo — algumas flores, olhando os lagos azuis e morando num edifício de mármore, com rosas por todos os aposentos... Você compreende?...

Lila não podia responder nada.

— Tenho quarenta e três anos... quarenta e quatro. Não tenho bem certeza, continuou ele caricioso.

— Mas é terrível, disse Lila afinal, assustada pela realidade. Titia Oaks morreu e o senhor não se impressiona!

— Impressionar-me? indagou Golly, e começou a assobiar baixinho.

Parecia assobiar melhor do que cantava.

— Entre nós dois nunca existiu nenhum romantismo. Nosso casamento foi um negócio, um arranjo, que deu bons lucros. É verdade que ela às vezes se esquecia do nosso contrato... Uma mulher interessante! Não acha?

Lila observou que Oaks sempre fora o mais humilde e obediente dos maridos.

— Não gosto dessa palavra "humilde", disse ele seco. Eu era gentil. Mas isso está na minha natureza. Sempre fui gentil para as mulheres, sempre as tratei como se fossem flores. É o único meio de se viver bem, acrescentou.

Lila queria mudar de assunto.

— Para onde vamos?

— Para Londres, disse ele. Aluguei alguns aposentos no edifício Arbroath... Já ouviu falar nele? Um bom apartamento, com água quente, água fria... Devia ter ido para lá primeiro. Mas quem pensaria que esses diabos viriam às barcaças? E o que me custaram essas barcaças! Doze meses de preparativos... Foram construídas na Holanda e vieram até aqui com suas próprias velas. Duas mil e seiscentas libras cada uma... Muito dinheiro por uma barcaça. Mas que beleza! Sempre gostei das coisas de bom aspecto! Eu sabia que eles agarrariam o "Troiano" mais cedo ou mais tarde.

— Havia homens na outra barcaça? indagou Lila.

— Vinte bons amigos.

— Mas o que há com o "Troiano"? E por que estamos fugindo? O senhor cometeu algum crime?

Golly acendeu outro cigarro.

— Serviço Secreto, minha filha... Fizemos certas coisas para um certo governo. Naturalmente o governo inglês não há de querer complicações com... a Itália.

Lila notou que ele correra o mapa da Europa para achar a Itália.

De novo o carro passou para uma estrada larga, atravessou Windsor e começou a correr ao longo do Tâmisa; deixou Staines para trás e penetrou na Grande Estrada de Oeste O nevoeiro já dissipara e, no momento em que alcançaram Shepherd's Bush, uma chuvinha fina começava a cair.

Golly teve um susto: vira dois carros detidos na estrada de Oeste, com um cordão de isolamento em torno deles. O brasão de armas e o criado de libré livraram-no de um reconhecimento que poderia ser fatal.

O edifício Arbroath fora adquirido por um sindicato desconhecido que parecia fazer questão de perder dinheiro com ele; as lojas estavam todas desalugadas, e nos apartamentos não havia ninguém, pela razão de que ninguém pagava em dia os aluguéis vencidos.

Não era fácil obter lugar para um automóvel na garage do andar térreo; muito motorista de táxi gostaria de ter ali o seu carro mas não se atrevia a ir pedir alojamento.

O automóvel passara pelo portão da garage e Golly levou a rapariga para uma pequena porta iluminada. Golly elogiara muito a bela vista do prédio.

— Comprei o edifício por oito mil libras, declarou ele. Se eu mesmo o tivesse construído talvez não achasse tantas comodidades.

— Mas o senhor nunca possuiu oito mil libras, Sr. Oaks!

— Um amigo meu me emprestou o dinheiro, disse Golly. É um lugar calmo: pode-se entrar e sair sem que ninguém queira saber de nada. Eu poderia ficar aqui dez anos sem que nenhum intruso me viesse perturbar.

Depois esclarecera, a uma pergunta de Lila:

— Aqui você levará a vida que quiser, minha filha. Mas é bom que tenha sempre as cortinas fechadas.

Depois de subirem e de Golly haver mostrado os aposentos de Lila, o viúvo foi até a janela que dava para o pátio e levantou a cortina. Lá embaixo, no pátio, chegavam automóveis atrás de automóveis, e ela notou que todos desapareciam numa rampa que parecia ir dar ao centro da terra, mas certamente desembocava numa garage subterrânea.

A porta estava fechada, e meia hora mais tarde apareceu o chim misterioso, com uma refeição quente numa bandeja. O chim punha a mesa quando Golly voltou. Golly parecia impressionado, e perguntou, depois que o criado saiu:

— Diga-me: ouviu daqui uns soluços?

— Não, respondeu Lila.

As faces de Golly pareciam muito pálidas; e ele se esforçava para dar a Lila uma explicação da sua pergunta.

— Trouxemos uma senhora até aqui, uma criatura que não regula bem da cabeça... Não digo bem uma senhora: uma mulher. Se eu não fosse tão gentil para as damas...

— Ela mora aqui?

Golly fez que não com a cabeça.

— Não, não mora aqui. Estava também na barcaça, apesar de lá não nos ter dado aborrecimentos.

— Quem é ela?

— Uma mulher... Já foi criada, há tempos atrás... Viveu calma até o momento em que viu Aikness.

— O capitão também está aqui?

— Todos estão aqui.

Golly parecia querer medir as palavras e não o pôde fazer.

— Era a primeira vez que ela via Aikness, desde vinte anos... E gostava muito do capitão. Disse a Aikness uma porção de coisas... chamou-o de assassino, de bandido. Eu até aconselhei o capitão que afastasse a mulher. Nunca se sabe direito o que essas loucas são capazes de fazer.

— O Capitão Aikness lembra-se dela?

— Os dois se encontraram, disse Golly, há cerca de vinte anos. Parece que não a tratava muito bem. Ele é assim. Nada o contenta. O nome da mulher é Ana.

Golly fitou a jovem; mas o nome não parecia ter para ela significação alguma.

— Posso fazer alguma coisa por ela?

— Estive pensando nisso... Não sei por que ela não haveria de gostar da companhia. Além do mais, conheceu-a quando você ainda era uma criança. Ana... Não se recorda do nome?

Lila não se recordava; Golly refletiu um tempo e aventurou-se depois em nova tentativa.

— E se eu a trouxer para vê-la esta noite? Você quer? Podia até trazê-la agora. Está muito calma, num período de quietude...

— Não terei medo dela, declarou Lila. E até gosto de saber que há uma mulher aqui perto.

— Naturalmente, murmurou Oaks, com um súbito senso de delicadeza. Mas acabe de fazer a sua refeição. Ela poderia tirar--lhe o apetite.

Depois, sombrio:

— Bom, vou buscar a maluca!

Saiu, e meia hora depois, ao voltar, parecia mais agitado do que estava quando deixara a moça:

— Entre, minha querida.

Deteve-se para deixar entrar a mulher.

— Disse-lhe que podia vê-la e aqui está ela.

A recém-vinda entrou no quarto. Era uma criatura magra, envelhecida, de faces pálidas e olhos negros e fagulhantes. Por um minuto ficou a contemplar Lila, até o ponto de deixar a moça perturbada,

— Esta é a Delia?

Tinha uma voz profunda, muito doce. Golly apontou para a jovem:

— É ela mesma.

A mulher adiantou-se e estendeu as duas mãos magras para as mãos finas de Lila.

— Delia, minha filha (a sua voz era um balbucio); você é a Delia? Conhece-me, agora?

Lila sacudiu a cabeça.

— Meu nome é Lila.

A mulher animou-se. Os seus olhos faiscavam ainda mais.

— Lila... Mas certo que você é Lila, querida. Você sempre se chamou Lila.

Abraçou a menina com violência; Lila assustava-se.

— Lila, você me conhece... Não se lembra da Ana...?

 

Por um instante qualquer coisa zumbiu no cérebro da mocinha. Ela se recordava de algo. Era um sopro repentino da memória, que veio e se foi com a mesma rapidez. Lila delicadamente se desprendeu dos braços trêmulos de Ana.

— Sente-se, não quer?

Mas a mulher ainda a olhava a chorar.

— Não se lembra de sua casa e da noite do incêndio? E de sua tia, da avozinha que morreu?

A menina fez um esforço para se recordar, mas a memória não correspondeu. Ela olhou espantada para Golly e Golly explicou:

— Ela tem razão, minha querida; ela a conhece: foi sua ama de leite.

— É verdade. Deus o abençoe por lhe dizer isso. Fui sua ama, e eles disseram que você morrera — queimada — naquele incêndio horroroso. Mostraram-me farrapos fumegantes... Eu dizia que você estava viva, eu disse à sua avó que você estava viva. Ela acreditou. Eu sabia que ainda viria a vê-la. Sabia... Tinha certeza! E esperava, ansiosa. Às vezes desesperava, e eles então me punham na casa grande e não me queriam deixar sair. E os homens, os chins — que gente terrível!

Continuou a falar num balbucio doloroso.

— Não diga isso, Ana, murmurava o viúvo. Ela fala de mim, Lila. E todos sabem que sou incapaz de fazer mal a uma mulher...

O passado de Lila se aclarava; Ana já era para ela uma figura familiar e já se destacava entre as figuras da meia realidade e do meio sonho.

— Quer deixar-me ao lado da moça? Eu devo ficar junto da moça. Preciso cuidar de tudo — das suas roupas... querida. Acho que não a devo chamar querida, agora, porque já não é uma criança. E irei contar tudo à sua avozinha...

— Ela está morta, murmurou Golly.

— Sim, ela morreu. Naturalmente, haverá de saber...

— Vou deixá-las juntas, disse Golly, e saiu, dando volta à chave. Cumprimentara amavelmente com o chapéu.

Golly atravessou o corredor sem tapete e entrou num outro quarto. Aikness estava sentado num aposento de móveis baratos, junto de uma garrafa de uísque, tendo entre os dentes um charuto meio consumido.

— Ela vai bem, resumiu Oaks.

O Capitão Aikness levantou-se, olhou-se no espelho e passou o lenço por uma arranhadura da face direita. — Ela me pegou de surpresa.

— Você é que a pegou de surpresa, disse Oaks, rudemente. Eu bem lhe disse que essas loucas têm a memória muito aguçada.

— Ela mudou, interveio o capitão. Antigamente era uma jovem bonita...

Oaks grunhiu qualquer coisa e pôs um pouco de uísque no copo, que acabou de encher de sifão.

— Você também já foi um rapaz bonito, não foi, Aikness? Se o não tivesse sido, não conseguiria tornar-se o namorado de amas de leite e de criadinhas elegantes.

— Ela era bonita, repetiu o capitão. Sempre me dei bem com ela. É a única criada inteligente que conheci em toda a minha vida. O que vai você fazer com o Lane?

Golly acendeu um cigarro e, após algum tempo de silêncio:

— Tirá-lo de lá, naturalmente.

— Não receia que ele fale? indagou Aikness. (O outro não respondeu, e o capitão repetiu a pergunta.)

— file não falará, disse Golly indo até a janela; mas conheço outros que bem o fariam, se pudessem.

O Capitão Aikness forçou um sorriso.

— Não eu, Golly. Estou muito enterrado nestes negócios...

— Mum também, objetou Oaks, e estava disposta a falar. Depois de outro silêncio penoso, o capitão explodiu:

— Lila é o pior problema.

— Será mesmo? indagou o poliglota. Pois não vejo nada de enigmático em Lila. A moça se casará, e pronto. Mas garanto que não desposará um marinheiro infiel.

Estendeu os braços, para cima da mesa.

— Tenho sido muito condescendente com você, Capitão João-Ninguém... Sempre tive esse defeito de condescender com muita gente. Permiti-lhe que brincasse de papai com essa menina, que lhe desse roupas bonitas e outras coisas, e você vai continuar como papai. Mum pensou que não desse bom resultado essa história de você estar sempre saindo com a menina, para lá e para cá, quando voltava de suas viagens. Mum era uma tola e por causa disso morreu. Mas eu não sou um tolo. Não sabia que ela ia receber dinheiro em qualquer tempo, se bem que soubesse que ela era uma lady de família opulenta e mais tarde nos poderia ser útil em qualquer sentido. Não devo deixá-la fugir de um momento para o outro. E ela não desposará assim de supetão o papá-marinheiro, porque as libras de Lady Pattison não foram cunhadas para a construção de seus palácios no Rio de Janeiro...

Um segundo os dois homens se entreolharam. Oaks bastante frio, sem emoção, quase inerte, e o capitão com uma chama de ódio mal disfarçada.

— Não sei como tudo isso irá acabar, continuou Golly, mas estou com vontade de dar a esses pássaros da polícia uma lição de que nunca se haverão de esquecer. Eu poderia fugir de Londres com a maior facilidade — mas não é essa a minha concepção da grandeza, Aikness. Porque sou um grande! Sempre fui um grande! Quantas fantasias não alimentei para a realização de tudo! Abri sozinho o Banco de Lyon para comprar o seu navio. "Organizei" Londres como só a "organizaria" um general. Varejei na cidade todas as ruas e todos os becos. Conheço de vista e pelos nomes três mil policiais. E depois disso você ainda me vem falar desse modo do caso de Lila! Trate de abaixar a sua arma, porque senão terei de liquidá-lo!

Aikness estremeceu, e recostou-se mais na cadeira, com a boca contraída; uma palidez sinistra denunciava-lhe o terror. E ninguém sabia disso melhor que Golly Oaks que conhecia todos os homens.

— É tudo, capitão, frisou ele, sorrindo. Estamos combinados. A minha organização é tão poderosa que eu lhe poderia dizer agora... o navio em que eu e Lila deixaremos a Inglaterra, o número do camarote e o nome da pessoa que nos vai casar...

Aikness levantou-se num salto felino.

— Casar-se com você? Com você?

Golly sacudiu a cabeça afirmativamente.

— Sou dez anos mais moço que você e eu e Lila nos entendemos bem. Tenho todos os documentos que provam ser ela Delia Pattison. Siniford deu-me alguns deles e encontrei o resto num banco.

Com um riso forçado o capitão dominou a sua raiva e sentou-se.

— Você é um diabo divertido... O que não compreendo é como consentia que a velha o ameaçasse...

— Fale bem da morta, disse Golly, calmo. Era um privilégio seu. Eu lhe concedia quatro horas diárias para que me descompusesse, mas nas outras vinte horas devia tratar-me como a um semideus. Vou lhe dizer uma coisa, Aikness: ela dormiu com a porta trancada durante doze anos, receosa da pistola carregada que eu conservava debaixo do travesseiro, para o caso de ouvir-lhe alguma coisa que ferisse os meus sentimentos. Certa vez atreveu-se a uns comentários sobre a minha voz — e durante um mês um criado dormiu em seu quarto, a velar-lhe o sono. Mum conhecia--me, disse Golly, sorrindo como se recordasse uma história jocosa. Aqueles que me conhecem não se enganam. Espero que me conheça bem, capitão.

— Certo que o conheço, aquiesceu o outro, e o tom de voz do capitão Aikness de modo nenhum era muito seguro.

Havia bastante trabalho no edifício, para ser feito aquela mesma noite. Todos os pavimentos tinham telefone, porque o proprietário pagava por eles ainda mesmo que se passasse um mês sem um único chamado. Pelas dez horas começaram a aparecer vários indivíduos que foram ocupando quartos diferentes; homens ágeis, de aspecto suspeito, que falavam por monossílabos e estudavam mapas de terras estranhas e listas de navios das companhias que tinham o ponto de partida na Itália e no sul da França.

Surgira ali um tipo chamado Ambrósio que — Aikness bem o sabia — era um famoso gangster, por meio do qual Oaks se comunicava com a sua quadrilha sinistra.

Golly gostou dos elogios de Aikness aos seus homens. Na garage subterrânea por trás das portas de aço do "depósito de gasolina", havia uma completa casa de armas. Golly levou o capitão para baixo, a fim de mostrar-lhe esses tesouros. Muitas armas estavam envoltas em papel impermeável, e um cidadão sentado num tamborete, ao lado de uma mesa de ferro, cuidava da limpeza do arsenal.

— Sempre que quiser fazer qualquer coisa, faça-a grande, disse Golly para Aikness. (Esse princípio o guiará toda a vida.)

Foi visitar a jovem diversas vezes e ficou satisfeito ao ver que crescia o entendimento entre a moça e sua antiga ama de leite. Lila precisava há muito de uma companheira, e ainda mais agora, que ia enfrentar uma viagem longa.

Mas Golly tinha muitas coisas em que pensar: planos, planos e mais planos.

As idéias fixas não se lhe eternizavam na mioleira e ele muitas vezes abandonara as primeiras intenções. Por exemplo, pensara em casar Lila com Siniford — e mudara de idéia. Lorde Siniford morrera. Havia ainda Aikness... Mas esse nem navio tinha agora para servi-lo. Em todo caso, ser-lhe-ia útil de outro modo.

 

O quarto de Golly no edifício Arbroath era vasto e seria admiravelmente arejado se as janelas permanecessem abertas e as pesadas cortinas ficassem levantadas durante os momentos de luz. Havia nele, como mobília, um leito, uma cadeira e uma mesa. A esses três móveis poder-se-ia acrescentar um pedaço de tapete, muito inadequado à sala, no centro do aposento. A mesa era do tipo usado nos escritórios de arquitetos: chata, pesada, sem verniz, e sobre ela, arrumados, planos, mapas, livros e folhas e folhas de papel cobertas com os terríveis garranchos de Golly.

Ele estudava uma das três cadernetas de banco que invariavelmente trazia consigo durante o dia, e levava para o leito, à noite. Era a caderneta de um dos maiores bancos do Brasil, a mostrar, para satisfação de Oaks, um balanço respeitável. Ainda mesmo que a fortuna de Lila não lhe chegasse às mãos, havia ali dinheiro com que levar uma vida de luxo para o resto de seus dias.

As duas outras cadernetas pareciam também confortá-lo. Ele fechou a caderneta azul e enfiou-a no bolso, ao lado das outras.

Raggit Lane estava na prisão de Brixton, esperando um milagre a todo momento, porque tinha uma fé extrema no chefe; e na prisão de Brixton, pensava Golly, ele deveria ficar até que a lei tomasse o curso habitual. Lane felizmente ignorava o interesse fanado do chefe. E ainda que Golly tivesse idéia de libertar o seu soldado com um golpe de força, achava que nenhum dos seus lugares-tenente teria coragem de ir arrancar um pássaro perigoso às mãos da justiça. Havia um plano minucioso, calmo, sem ruído, para a fuga do prisioneiro. Mas Oaks desenhara outro esquema, bem mais espetacular e mais grandioso. Ele nunca se deixava dominar pelos primeiros impulsos.

Nem mesmo a pobre Mum suspeitara nunca que Golly mantinha o relato de todos os seus assaltos bem sucedidos num livro especial. Às vezes levava horas inteiras rememorando as antigas aventuras. Além disso, conhecia na ponta da língua os detalhes de todos os crimes cometidos de cinqüenta anos até então, e sabia ainda mais que só a vaidade arrastava os criminosos ao castigo. Certa ocasião um assassino, vendedor de veneno, escreveu ao Promotor para saber notícias do inquérito sobre sua vítima, e essa carta levou-o ao cadafalso. Golly sempre se lembrava disso.

Guardou os seus estranhos livros no bolso quando ouviu baterem à porta; foi abrir, e mandou que Aikness entrasse. O capitão mostrara aquela tarde sinais de grande nervosismo. Talvez conseqüência da palestra anterior.

— Quero perguntar-lhe uma coisa, Golly.

— Você está atarantado, já sei, disse Golly, procurando cigarros no bolso. Toda a tarde você andou como um desesperado...

— Em terra não valho nada, grunhiu o outro. Sou um marinheiro e fora d'água nem respiro direito. Não me pode mandar à Holanda, para comprar um outro navio? Querem sessenta mil libras por ele, mas deixariam por menos. Ele está no registro oficial, e eu navegaria com ele sob a bandeira dinamarquesa e com tripulação dinamarquesa. Pode fazer nove nós...

— E os destróieres fazem trinta e cinco, disse Golly, calmamente. Não vou pagar sessenta mil libras para que me apanhem o navio.

— Onde escondeu os chins? indagou Aikness, irritado. Não sei mais deles...

— Estão Km escondidos, respondeu Golly. Mandei-os para Blackwall. Porque ninguém mais se lembrará de revistar barcaças...

— Ignorava que tivesse comprado mais uma, disse o outro, surpreso.

— Você nunca sabe de nada, observou Oaks. Nem poderia saber, porque o meu cérebro trabalhar melhor, quando está dormindo, do que o seu, quando acordado. Sou previdente e a previdência é tudo.

Esperou que o capitão respondesse. Evidentemente Aikness desejava escutar mais alguma coisa.

— Que vamos fazer agora? Não podemos ficar aqui até que a polícia nos descubra. Não poderia eu ir para...

— Você está zonzo, disse Golly, e havia uma ironia muito forte em sua voz. Você vai ficar mesmo aqui, Capitão João-Ninguém. As minhas idéias, Aikness, são maiores do que as que medraram do cérebro de Napoleão! Suponha que você tome um navio e que um destróier aborde esse navio. O que lhe aconteceria, então, se a Polícia o reconhecesse? O meu plano é outro. Quero deixar Londres num arranco gigantesco, nunca imaginado!

Excitara-se bruscamente; andava de cá para lá, no quarto, gesticulando à medida que falava. Empalidecera e sua face traía a intensidade de emoções interiores jamais experimentadas.

— E se eles nos apanharem a todos?

Golly não pareceu ouvir a objeção de Aikness.

— Como sairemos da Inglaterra? murmurou ele. Obteremos com dinheiro a nossa saída livre? Não. Eles nos saudarão à partida? Não. Reconhecerão a grandeza dos nossos planos? Nunca! Pois então, abandonarei a Inglaterra e eles ficarão arrependidos.

— Eles quem? indagou Aikness, todo trêmulo.

— O governo, o diabo! Nós já perdemos por causa deles algo de enorme valor e precisamos recuperar o perdido. Há duas grandes joalherias na rua Bond, onde arranjaremos cento e cinqüenta mil libras. Será o nosso último golpe. Isso virá compensar a perda do "Troiano". Depois desse golpe daremos um segundo e depois um terceiro, para estonteá-los.

Aikness pensou que Golly estivesse louco. O homenzinho, pareceu ler-lhe o pensamento, porque subitamente agarrou o capitão pelos ombros e explodiu em gargalhadas estrondosas.

— Pensa que estou maluco, hein? É porque não me conhece, Aikness. Pensava que eu estivesse maluco no dia do roubo do banco da rua de St. James; pensava que eu estivesse maluco quando obriguei o gerente a abrir o cofre do banco da rua Lothbury sem nenhuma tirada sensacional!

Súbito perdeu a exuberância vaidosa. Olhou para o capitão, carrancudo.

— Também gostaria de encontrar o Inspetor Wade... Trazê--lo para uma sala quadrada, para um aposento como este... Eu e ele, sozinhos, lutando; tomaria até a providência de trazer milhares e milhares de tiras de mata-borrão para ocultar o sangue derramado...

Teve uma risada seca e, gelado de horror, Aikness pela primeira vez compreendeu aquele homem estranho, que lia os clássicos em seus textos gregos, latinos e até árabes.

— Qual é o seu plano de atacar o Governo? interrogou ele.

Parecia ansioso em levar a conversa para outros assuntos menos sanguinários; Aikness sabia muito bem o que o destino reservava para John Wade se por um momento o atingisse o plano esboçado no cérebro de Golly.

Aliás, o plano do capitão também estava mais que esboçado; estava completo, com exceção de um detalhe importante: não decidir ele ainda o momento psicológico em que atiraria o chefe aos lobos famintos da Polícia. As mãos de Aikness achavam-se limpas, e ele nunca derramara sangue, se bem que agisse de conivência com o terrível Oaks. Quando deveria ele dar o alarme?

— Está com medo de me olhar? indagou o viúvo. Aikness perguntou, ao invés de responder:

— As duas vão dormir juntas no mesmo aposento? Golly explicou que mandara colocar já um leito para Ana.

— Ela está tão maluca quanto eu, Aikness. Raciocina tão claramente como qualquer de nós...

Sentou-se à mesa, pegou de uma folha de papel e começou a escrever rapidamente. Golly conhecia Londres de um modo extraordinário; fizera quase um curso completo das ruas e becos da cidade e citava lugares desconhecidos de Aikness.

— Este lugar aqui, disse Golly, é muito bom, e dele você poderá ver o rio. Fica praticamente em Greenwich, mas ninguém notará que você apareceu por lá com um automóvel. Você reconhecerá a casa por um sinal particular.

Depois, pensativo:


— A questão é essa: aproveitar o baile.

— O quê? indagou o capitão, espantado.

— Um baile, ou qualquer coisa parecida, que eu sei muito bem que vai haver...

Tomou mais uma nota no papel e examinou depois um livro pequeno.

— Deve ser na sexta-feira... Será um trabalho bonito. Isso mesmo, na sexta-feira. O que fazia você na guerra, capitão?

— Ora, você sabe muito bem o que eu fazia na guerra, grunhiu Aikness. Servi dois anos na Armada. Você mesmo me obrigou a isso...

— O meu amigo precisava daquele estágio, disse Golly. Jennet e Mortimer serviram com você, não serviram?

Aikness concordou.

— Jennet e Mortimer estão agora cuidando dos chins, não estão? Bons marinheiros... Sabem carregar uma arma, não sabem?

— Mas onde quer você chegar? indagou Aikness, impaciente. Que história é essa de bailes, de Jennet e Mortimer, e de armas?

Golly sorriu.

— Preciso ir conversar um pouco com a moça, disse, abrindo a porta do aposento e mandando que Aikness saís.c. Depois saiu também, fechou a porta e caminhou ao longo do corredor. Lila ouviu-o, e fez um sinal à mulher, que falava.

— Estão satisfeitas? indagou Oaks, aparecendo. (Olhou para as cartas espalhadas sobre a mesa): Preciso ensinar-lhes alguns passes, com essas cartas, disse ele. Vai dormir hoje aqui, miss — declarou depois, dirigindo-se a Ana.

— Sim, vou dormir aqui esta noite.

(A voz de Ana era pausada e calma; havia uma serenidade imensa em seu rosto, e ninguém reconheceria nela a mulher exaltada que entrara no Arbroath Building.)

O "tio" caminhou até a porta, abriu-a e examinou as novas trancas de ferro.

— Vocês não me queiram mal por trancar a porta! Há muitos malfeitores pela vizinhança. É horrível como aumentam os crimes em Londres. A polícia nada faz. Bons preguiçosos são eles! Quis custodiat ipsos custodes!

— Quanto tempo vamos ficar aqui, Sr. Oaks? indagou Lila.

— Um par de dias... Depois iremos para o campo. Não há nada como o campo para nos dar saúde!

— Sr. Oaks, que aconteceu a Lorde Siniford?

A pergunta fora de Ana.

Que saberia aquela mulher? Que teria ouvido? Para Oaks era ela um mistério. Conheceria os seus segredos?

— Lorde Siniford... Lamento dizê-lo — e a sua voz tinha um tom lúgubre — morreu.

— Também morreu? Golly inclinou a cabeça.

— Todos morreremos, disse ele, sentencioso. Morreu, despediu-se deste mundo e foi penetrar nos mistérios do outro — se existe. De mortuis nil nisi bonum.

Houve um silêncio.

— É uma desgraça, comentou a mulher.

Permanecia muito séria. Golly pensou que ela estivesse ligando a morte de Siniford ao suicídio de Mum, e alguma coisa o alarmou.

— Ele foi assassinado, disse Ana, a voz profunda. Li-o nos jornais...

Golly aconselhou:

— Não deve acreditar nos jornais, nem na metade do que eles contam; fazem tudo pelo amor ao sensacional. Mas, de qualquer forma ele morreu... honesta mors turpi vita potior.

De novo ele fitou Ana. Ela poderia atrapalhá-lo. Mentalmente suprimiu os belos aposentos reservados para ela no seu palácio sul-americano Ana com aquelas atitudes talvez fosse perigosa. A sua memória era aguda demais. E podia ter ouvido certas coisas...

— Durma bem, minha querida. Virei vê-la pela manhã. Boa noite, miss.

Os seus olhos frios encheram de terror o coração de Ana.

— Seja prudente, disse ele, enigmático, e saiu para o corredor.

Lila ouviu a chave girar na fechadura; a pesada tranca de ferro ajustou-se ao encaixe. E os passos de Golly se perderam no corredor.

 

A porta fora fechada com tanta cautela que seria impossível abri-la pelo lado de dentro. Verificando isso, Lila voltou para a pequena antecâmara em que Ana a esperava.

Longo tempo as duas mulheres se fitaram.

— Não sei o que pensar, disse Lila, afinal. Parece-me quase impossível que ele seja um homem mau. Nunca chegou a me causar medo. Certamente está tão desprotegido como nós o estamos.

Ana pensou um instante e disse:

— Não, ele não é um desprotegido. Tudo o que lhe disse é verdade. Há muitas coisas de que me lembro obscuramente, mas todas as palavras que ouvi desde que me tiraram daquela casa, pelo rio, estão bem gravadas na minha cabeça. Não me sinto delirante, Lila. Há pouco fui olhar-me ao espelho e fiquei triste ao ver como mudara de feições. Foi como se eu tivesse, num relâmpago, passado de menina a velha. Passei muitos anos à sua procura, achando-a para perdê-la depois... Em certos momentos devo ter perdido a cabeça.

— Não fale sobre isso, por favor, disse Lila, abraçando-a. Mas que faremos agora, Ana?

— Você pensa que ainda estou variando, Lila, não pensa? Não acredita em toda a história de Lady Pattison e do incêndio...

— Não acredito que esteja louca. Acredito em tudo o que me diz. É difícil de compreender, mas acredito. O mais doloroso de aceitar é que o Sr. Oaks seja o Homem de Borracha...

— Pois tenho a certeza de que é! disse a mulher, veemente. Tenho visto homens fortes que se curvam diante dele. Esse capitão... Se visse como se humilha à frente de Golly! Uma noite ouvi-os falar de casamento e percebi logo que falavam de você.

— De mim?

— Nunca mencionaram seu nome. Foi uma noite na cabine da barcaça; eles me deixavam sair do quarto para fazer as refeições na sala. Não me davam importância, eu era uma louca. O capitão desconfiava de mim. Mas Oaks nunca suspeitou de minha lucidez. Golly olhava para mim como um açougueiro ambicioso contempla um rebanho de carneiros gordos...

— Oh! Ana, Ana, não diga isso! Você me assusta...

— Talvez precise assustá-la, para que se convença. Mas devemos tentar sair deste buraco,

— Não há esperança, Ana; ele trancou a porta. Caminhando pelo banheiro, Lila notou que, em certo ponto

da parede, num rombo de papel pintado, apareciam palavras impressas, relativas às providências para o caso de incêndio. Mostrou o papel a Ana que viu naquilo uma longínqua probabilidade.

— Esta casa já foi um depósito de munições, disse ela. Talvez esta nota tenha algum valor.

Limpando em torno o papel com grande cuidado, conseguiram ler o aviso todo:

 

"Em caso de incêndio, os encarregados das bombas permanecerão nos seus postos, e os demais empregados, em ordem, passarão para o andar inferior. Em caso de incêndio no andar inferior, procurem escapulir em ordem pela escada de segurança. Conservem-se calmos. Num incêndio o pior perigo ê o pânico."

 

— Há um alçapão por cima do teto, disse Lila, estremecendo.

Ana foi até a sala de refeições e voltou com uma cadeira, trepou na cadeira e começou a apalpar o estuque do teto. Em certo ponto o estuque soou ôco.

— Fica por aqui!

Quase sussurrava as palavras.

Foi então que as duas ouviram um ruído à porta do corredor; notando que o chão do banheiro estava coberto de pedaços de caliça e de papel pintado da parede, Ana disse baixinho:

— Tranque-se no banheiro e não saia de lá!

Só depois de Lila ter fechado a porta ela foi receber Golly.

— Por que está assustada? (Olhava para ela com desconfiança.) Onde está Lila?

— Está tomando banho. Eu ia procurar as toalhas, disse Ana, e a resposta pareceu satisfazer Golly.

— Tomando banho, hein? E melhor. Preciso ter uma conversa com você.

Olhou mais uma vez para o banheiro e indagou:

— Creio, miss, que nunca esteve na América do Sul?

— Não, respondeu Ana.

— Boa terra... Já estive lá uma vez. Flores... Calor no verão... calor no inverno... e uma vida sadia. Muito dinheiro... Livros, automóveis, boa mesa... Que acha de tudo isso?

— Interessante, disse ela, mansamente.

— Tudo isso caminha para você, assegurou ele. Se quiser ser boazinha. Não me perturbe a aventura... influa por mim junto dela. Quer ajudar-me? E se não quiser ser boazinha, sabe o que lhe acontecerá?

Ela não respondeu.

— Você sabe... Aposto que você sabe. Os guardas da Fluvial a pescarão no Tâmisa, e o povo dirá: "Quem é ela? — Ora, uma desconhecida!" E só isso dirão de você. Será a "afogada desconhecida". Triste fim, o seu!

— Será o meu fim, aquiesceu ela, calma.

— Não preciso insinuar mais nada a uma mulher inteligente. Agora estamos entendidos. Fale do meu amor a Lila, procure ajudar-me. Fique certa de que darei um bom marido. Precisará de dinheiro?

— Não, não poderia gastá-lo agora, disse ela, e Golly sorriu.

— O seu cérebro já trabalha melhor, reconheceu ele, e saiu do aposento.

Quando Lila deixou o banheiro, instantes depois, e indagou de Ana a razão de suas feições assustadas, ela respondeu:

— Não foi nada, minha filha, não foi nada...

Abriu a gaveta da mesa, tirou de lá uma faca, e sem hesitar, atacou o estuque do teto. A caliça tombava em poeira, cobrindo Ana de uma camada branca; ripas finas apareciam agora. Por cima dessas ripas outra camada sólida de concreto; continuando no trabalho, sem parar, com a ajuda de instrumentos grosseiros, Ana, às três da madrugada, quase exausta descobriu que não havia mais, naquele alçapão de salto fácil, a escada de corda que permitiria subir para o terraço. Com a ajuda de cadeiras tudo foi observado no terraço aberto; mas a aurora vinha despontando, e muito cedo apareceria ali Golly, para cumprimentar Lila.

Evidentemente, quando surgiu, sem desconfiança alguma, Oaks pareceu a Lila menos mal humorado do que de costume. Por certo aquela manhã nada lhe acontecera que lhe pudesse ter conturbado o espírito.

— Vou levá-las daqui hoje à noite, disse ele. Ali pelas nove horas. Não poderei acompanhá-las, mas alguns amigos meus irão com vocês. Você não dificulte a viagem, Lila, porque eu não me responsabilizaria por mais nada.

— Para onde nos leva? indagou ela. Golly não respondeu.

Depois, manhoso:

— A propósito, sabe que ontem alguns malfeitores liquidaram com Johnny Wade? Uma bala no coração... Um bom tipo, mas muito intrometido, o Wade...

Lila teve que resistir à notícia, evitando um desmaio.

— Nosso amigo Wade... Que perda para a Polícia! Um oficial inteligente, ativo, corajoso.

A jovem tinha a certeza de que ele mentia. Procurou ocultar qualquer manifestação de pesar e, friamente, indagou:

— O senhor poderia arranjar-me um pouco de benzina?

— Para quê?

— Há algumas manchas no meu vestido e quero limpá-las. — Sei, sei. Mas não sei se teremos aqui benzina. Petróleo servirá?

Lila concordou, não ousando falar. Golly saiu e voltou dez minutos depois, com um frasco cheio de petróleo.

— Procurei benzina, minha filha, disse ele, mas não havia. O zelador da casa podia ir comprá-la; conhece a vizinhança; mas está de férias, desde o dia em que chegamos.

Parecia bem humorado.

— Quer que eu leve o frasco ao banheiro?

— Não, preciso dele aqui mesmo, disse Lila, sem precipitação, meditando no que Golly iria descobrir no banheiro.

 

 

Houve grandes atividades em Arbroath Building, aquele dia; encontros e comunicações telefônicas; um dos mais inocentes "amigos" foi até a cidade, mandando telegramas a todas as estações por que passava. Aikness foi chamado para uma consulta. Tremia de medo, e dificilmente podia dominar-se, quando Golly lhe expunha o plano inteiro do assalto.

 

— Prometi aos rapazes um grande lance, como despedida, disse Golly, mas você não precisará tomar parte nele. Você levará as meninas a Greenwich, e irei procurá-los quando estiver de volta. Bom. O carro vai até lá em poucos minutos... Uma lancha estará pronta para receber você e as duas...

— Pensa que tudo se passará assim sem novidades?

— Não me interrompa, grunhiu o chefe. Escute! Às nove e onze assaltaremos o Kinshner (mencionava o maior joalheiro de Bond Street), de um lado, e o Sindicato de Diamantes de West End, do outro. Teremos que arrombar a casa-forte de Kinshner, mas isso será fácil; é um cofre de fabricação antiga. Mandaram construir uma nova casa-forte que só ficará pronta para o ano. Sei que vai haver fuzilaria, mas — tranqüilize-se — você não estará por lá. Poderemos apurar umas cento e cinqüenta mil libras nos dois lugares, e será tudo o de que precisamos. Gostaria de estar em Londres para ler os jornais da manhã seguinte.

— Você disse "sexta-feira"... Por que hoje?

— Pensei que o baile fosse na sexta-feira. Se eu dissesse "segunda-feira" e decidisse resolver tudo hoje, isso faria diferença para você?

Falava agora um novo Golly, dramático, ameaçador. O Capitão Aikness estremecia debaixo do seu olhar fagulhante.

— Não pense que permitirei que faça alguma coisa contra mim, Aikness. Dois homens vão com você: um ao lado do motorista, o outro no interior do carro, com as senhoras. Têm ordem de liquidá-lo à menor suspeita. Falei claro?

— Claríssimo, disse Aikness, levantando a voz com esforço. O seu plano se desfazia em pó.

 

Uma nota a lápis, quase incompreensível, chegou de Ricordini para Elk:

 

"Vai haver alguma coisa esta noite no West End."

 

Um tal aviso de Ricordini não poderia ser esquecido. Elk chamou o superintendente ao telefone.

— Avise o inspetor da divisão, disse o Chefe. Também aparecerei por lá. Mas onde está o Wade?

— Em Brixton, interrogando Lane. Espero-o a cada momento.

Wade, de fato, chegava pouco depois. 

— Lane vai confessando aos poucos, disse ele. Já me contou uma porção de coisas; você se lembra do edifício Arbroath?

Por um momento Elk não se recordou.

— Pois aquele edifício deve ser o quartel-general dos Homens de Borracha. Lane não tem plena certeza... Golly nunca transmite os seus segredos aos outros... Mas está quase seguro de que o grande centro fica em qualquer parte de Notting Dale; ele me disse que a quadrilha planeja um assalto para a noite de sexta-feira: o grande lance final.

— Será esta noite, acentuou Elk.

Em poucos minutos o West End se foi enchendo de investigadores. Parecia que a vigília dos homens da polícia se ia prolongar a noite toda, quando, pouco antes das nove, uma explosão sacudiu Bond Street e foi seguida, em qualquer outra parte, do outro extremo do quarteirão, de novo ribombo. Um apito de polícia silvou, e depois outro. O automóvel de uma patrulha volante nos arredores de Bond Street fora abalroado por um pesado caminhão, cujo motorista conseguiu escapar.

Enquanto isso acontecia e os detetives voavam para a rua Bond, um poderoso automóvel descia pelo outro lado, parava à porta de Kinshner. Em alguns minutos quatro homens desapareciam na loja do joalheiro. Um policial tentou alvejá-los, e esse foi o primeiro tiro da batalha memorável daquela noite.

O policial desceu a rua com um ombro ferido e, quando o automóvel se afastava da joalheria, dois policiais, correndo para ele, armados, pagaram com a vida a sua temeridade. Subitamente começou a ecoar em West End o rá-tá-tá das metralhadoras automáticas. O automóvel voou por Piccadilly, meteu-se entre dois veículos na rua Jermyn, dobrou a rua de St. James, contra a mão, e perdia-se no parque antes que a primeira patrulha da polícia saísse de Pall Mall.

A segunda leva de assaltantes não escapuliu tão facilmente. Saíram pela porta traseira do Sindicato de Diamantes de West End para cair no meio de detetives armados. Houve uma rápida troca de tiros, que feriu um dos malfeitores no joelho. Os outros três homens abriram caminho à bala, espalhando os seus contendores com as cusparadas de um fuzil-metralhadora que funcionou até o momento em que o auto desapareceu.

Mas os policiais estavam em boa pista. Sem se preocupar com a chuva de balas que recomeçara no automóvel dos assaltantes, os guardas se precipitaram sobre um carro de assalto, e saíram em perseguição dos bandidos, até que uma bala bem apontada quebrou o eixo do carro, que foi esbarrar de encontro a um poste.

Imediatamente todas as estações foram notificadas. Todas as reservas se mobilizaram no sentido de impedir a fuga dos bandidos.

John Wade ouviu o primeiro matraquear da metralhadora no momento em que passava com Elk pelo Piccadilly. Viu o carro vir voando no seio da noite e desaparecer na curva...

— E o mais terrível dos assaltos que têm feito, disse um oficial que encontraram na rua Bond. Liquidaram a joalheria e nem sequer se esconderam.

John nem mesmo se deu ao trabalho de ir examinar a joalheria; voltou às pressas para Scotland Yard. Elk veio com ele, comentando abundantemente o assalto.

Wade pediu aos chefes que lhe permitissem verificar a certeza do depoimento de Raggit Lane.

Vinte minutos antes das dez, o primeiro dos carros da polícia apareceu na rua paralela à do edifício Arbroath. Mas Wade notou logo que um estridor de sirenas vinha enchendo a rua. Passou um automóvel de bombeiros. Um policial corria e John o deteve.

— Que é isso?

— O edifício Arbroath está ardendo. É uma parte da antiga construção...

John não quis ouvir mais nada. Viu uma luz muito forte no céu e centelhas que saltavam num clarão esfumaçado.

— Há duas mulheres lá dentro... Uma moça e uma outra, disse o policial. Vi-as pedindo socorro e dei o alarme.

— Como?

John Wade sentiu um calafrio. Alguma coisa lhe segredava que uma daquelas duas mulheres era Lila.

 

Golly aparecera, cerimonioso, para despedir-se das duas mulheres. Disse-lhes que Aikness as conduziria para Greenwich, onde ele as iria encontrar.

Mal saíra do quarto, quando Ana, já no banheiro, levantava Lila para o alto do alçapão. Ouviu o primeiro automóvel que partia da garage, e depois o segundo. Em seguida fecharam o portão. Ana foi buscar algumas cadeiras, uma toalha e um cobertor do seu leito e, acendendo a luz, passou tudo para a moça, por meio de um lençol.

— Agora tome o frasco (era o tal frasco de petróleo), e tenha cuidado, avisou ela.

A jovem abaixou-se mais e segurou o vidro, toda trêmula à idéia de que poderia derramá-lo. Nesse momento Ana disse de baixo:

— Estão batendo à porta. Deve ser Aikness.

As pancadas se repetiram, mais pesadas, mais peremptórias. Ana, com uma força extraordinária, inesperada, ergueu-se até a borda do alçapão, levantou ainda a cadeira que lhe servira de escada, e deixou cair a tampa, que desabou num barulho formidável.

— Aikness e os seus amigos hão de querer levantar o alçapão. Se ele o tentar, nós ficaremos por cima dele, disse Ana.

Ela arrumou o cobertor e os móveis a um canto do parapeito, e olhou para baixo. Havia diversas pessoas caminhando pela rua. Pareceu-lhe também ver um policial perto da esquina. Tirou a rolha do frasco, e molhou o monte de cadeiras e lençóis. Riscou dois fósforos, depois um terceiro, sucessivamente apagados pelo vento. O quarto fósforo ficou aceso e ela o aproximou dos panos embebidos de petróleo. No mesmo instante levantou-se uma língua de fogo, iluminando o teto e as casas em torno. Ela ouviu um apito e viu homens que corriam para o edifício.

Sentia-se bem na luz das chamas e agitou os braços. Lila escutou um ruído embaixo e observou que a tampa do alçapão começava a levantar-se. Num salto colocou-se sobre a tampa. Esta ajustou-se de novo, e embaixo houve uma queda e uma praga. Foi então que Ana ouviu o que esperava há muito: o grito das sirenas dos bombeiros. Debruçando-se mais no parapeito, estendeu as mãos para o povo.

A multidão bem a distinguia, entre as labaredas. Chegou da calçada um rumor de conselhos e avisos. Um terceiro carro saía da garage da casa, para a rua e desaparecia na esquina.

— Foram-se todos, disse ela, exultante. Graças a Deus que todos se foram.

Outros carros de bombeiros apareciam... Dois, três... Súbito, a ponta de uma escada vermelha apareceu junto ao parapeito, e um homem de capacete de latão, seguido por outro, surgiu, ansioso. Foi então que Ana viu um homem à paisana galgar o parapeito; quando ele tocou o terraço, Lila correu para os braços de John Wade.

 

Havia baile no hospital de Greenwich, e todos os oficiais do destróier "Meridian" estavam em terra. Permaneciam a bordo apenas o oficial de dia e mais alguns marinheiros da tripulação, pequena, aliás.

A sentinela da escada notou um barco que se aproximava e, quando alguém dele disse que havia uma carta urgente para o comandante, o marinheiro chamou o oficial de dia. Ambos os homens, o oficial e a sentinela, morreram em seus postos. Imediatamente a tripulação foi dominada por vinte homenzinhos amarelos, que tomaram conta do destróier.

Mais tarde ninguém acreditou que fosse possível aquele assalto tão rápido; o capitão de um paquete ancorado ali perto notara o tiro, mas pensara que a tripulação de um destróier bem podia fazer exercícios à noite.

Um único marinheiro escapuliu, pulando para a água e nadando em busca da terra.

Uma lancha negra aproximou-se do destróier, sem rumo, e Golly e seus atiradores subiram para bordo. Aikness apareceu logo depois, acompanhado dos dois homens que o guardavam, mas as duas mulheres não estavam com ele. Sentia-se tão aterrorizado que dificilmente poderia explicar qualquer coisa. Golly ouviu falar em "incêndio".

— Trataremos disso mais tarde, disse ele, lívido de raiva.

O "Meridian" devia partir imediatamente; já os marinheiros chineses se encontravam junto às fornalhas; um piloto tomou a roda do leme e o destróier começou a descer a corrente, tomando velocidade. Na cabine dos oficiais Golly interrogava o capitão.

— Agora quero ouvi-lo, disse ele feroz. Aikness contou-lhe tudo.

— Escapuliram por um alçapão? (Mordeu os lábios.) Nunca soube que havia ali um alçapão...

— Vi um aviso na parede, um aviso impresso, sobre incêndio. Elas certamente o descobriram; ele fala em "alçapão".

— O incêndio! Era para isso que a garota queria o petróleo. Volto agora mesmo para buscá-la.

— Não é possível. Eles vêm atrás de nós!

— Eles não poderão vir atrás de nós. Há um paquete ancorado no porto. Vou colocar-me ao seu lado e, se os cruzadores vierem perseguir-nos, hei de afundar o navio com passageiros e tudo.

Era aquele o seu plano! Era a parte que o chefe não quisera contar a Aikness, era o grande lance contra o Governo!

— Lá está ele, disse Golly, apontando o navio ao capitão. Tenho um homem nele. Mande-lhe um sinal.

O pequeno farol se acendeu, e uma luz saiu da linha de ló.

— Agora vamos... começou Oaks.

Nesse momento uma grande língua de luz branca irrompeu da margem do rio, parou sobre as águas e descobriu aos poucos o casco do destróier.

As três chaminés do destróier vomitavam fumo; o navio trepidava violentamente do convés às fornalhas. Mas a luz não o abandonava mais. Golly notou, entre a luz branca, um traço vermelho, e sentiu uma explosão súbita. Não viu o projétil arranhando a água; ele foi cair fora do foco luminoso.

De novo um traço vermelho de luz, e desta vez alguma coisa pareceu passar por cima do destróier.

— Vão bombardear-nos, balbuciou Aikness. Meu Deus! Estão apontando para nós!

Olhou, fascinado, para a bateria oculta, e tornou a enxergar uma cintilação de luz vermelha.

— Se pudéssemos somente... começou ele.

Não disse mais nada. Um estremecimento sacudiu todo o navio com violência e houve uma tremenda explosão.

 

As lanchas da Fluvial encontraram um único sobrevivente, um homenzinho de óculos de aros de ouro, metido num vastíssimo salva-vidas.

— Meu nome é Oaks, disse ele quando o içaram para bordo. Sou uma criatura simples, sem importância. Por um sentimento de humanidade salvei um dia uma criança. Alguém quis levá-la de minha casa e eu não poderia consentir nisso. Ela se chama Lila Smith.

Parecia um pouco nervoso, mas acalmou-se logo depois, e não deu trabalho algum à Polícia e aos juízes.

Condenado à morte, começou um dia a cantar, entre os outros prisioneiros, e os guardas foram queixar-se ao diretor da prisão. Todavia, os que vão morrer gozam de certos privilégios. Ele cantou ainda, uma vez, na manhã de sua execução, com sua voz fraca, em falsete, algumas toadas tristes do povo, mas, quando o alçapão do cadafalso desabou numa pancada seca, os guardas não tiveram por ele o menor sentimento de piedade, como não o experimentam, aliás, diante de nenhum dos homens que saem da vida por aquele caminho.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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