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O Terror Verde / Edgar Wallace
O Terror Verde / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Terror Verde

 

                  

 

O PASSAMENTO DE JOHN MILLINBORN

— Não sei se há alguma lei que me impeça de fazer isso, Jim; mas se houver, é preciso que encontre uma saída. Você é advogado e entende do riscado. É meu amigo; o melhor amigo que já tive, Jim.

O moribundo ergueu o olhar para aqueles olhos que o fitaram cheios de compaixão e neles leu aquiescência.

Não se poderia imaginar diferença maior do que a existente entre o homem sobre o leito e a figura esguia e elegante assentada a seu lado. John Millinborn, espadaúdo, de feições grosseiras, autêntico gigante na compleição, ainda em seus últimos dias sugerindo a enorme força que possuíra em pleno viço, sempre apreciara o ar livre. James Kitson, desde a adolescência fora estudante e passara a idade adulta metido em escritórios bolorentos e tribunais abafados, cercado de livros de Direito.

Havia, no entanto, entre aqueles dois homens, o armador milionário e o causídico bem sucedido, uma amizade profunda e verdadeira. Estranho que a morte deva dar cabo do forte e poupar o fraco; assim pensava Kitson, olhando para o amigo.

— Farei o que for possível, John. Você lega à menina uma grande responsabilidade: um milhão e meio em dinheiro.

O doente fez que sim.

— Livro-me de uma maior, Jim. Quando meu pai morreu, deixou uns cem mil para mim e a mana. Transformei minha parte num milhão, mas isso não vem ao caso. Mas à minha mana, moça razoavelmente rica e voluntariosa, Jim, partiram-lhe o coração. Porque tinha dinheiro, atraiu sobre si os piores homens. Casou com um salafrário bem-falante que a arruinou: abandonou-a com um montão de dívidas e uma criancinha de um mês. A pobre Grace morreu e ele tornou a casar. Tentei apossar-me da criança, mas ele a conservou como refém. Não me foi possível localizá-la depois dos dois anos. Somente há um mês fiquei sabendo a razão. O homem era escroque internacional. Foi preso em Paris e respondeu processo sob seu verdadeiro nome; o nome com que casara era falso. Ao deixar a cadeia, tornou a adotar o próprio nome; claro que o nome da criança também mudou.

O advogado assentiu com a cabeça: — Quer que eu...

— Obtenha a homologação do testamento e comece a procurar Oliva Prédeaux. Tal pessoa não existe. O nome da moça você sabe, e já lhe disse onde está morando. Não encontrará ninguém que conheça Oliva Prédeaux (seu pai desapareceu quando esta estava com seis anos); provavelmente está morto; e a madrasta a criou sem saber de seu parentesco comigo; depois morreu e desde os quinze anos a moça trabalha para viver.

— E não devo encontrá-la?

— Até que case. Traga-a de olho, Jim, gaste o que for preciso. Não influa sobre ela, a menos que a veja às voltas com algum tipo indesejável.

A voz de Millinborn, que recobrara um pouco do antigo vigor, súbito fraquejou e sua enorme cabeça rolou no travesseiro.

Kitson ergue-se e caminhou para a porta. Esta se abria para uma espaçosa sala de estar, através de cujas amplas janelas se descortinava a vastidão dos campos de Sussex.

Queixo apoiado na mão, sentado junto à janela, um homem contemplava os campos quadriculados sobre as encostas das colinas. Tinha seus trinta anos, uma barba pontiaguda, e se pôs de pé tão logo o advogado entrou apressado na sala.

— Algum problema? — indagou.

— Acho que ele desmaiou; quer dar uma espiada nele, doutor?

O moço se deslocou rápida e silenciosamente até junto da cama e procedeu a um breve exame. De uma prateleira próxima à cabeceira do leito retirou uma seringa hipodérmica que encheu com o conteúdo de um pequeno frasco. Descobrindo o flanco do paciente, injetou vagarosamente a droga. Por instantes baixou o olhar sobre o homem inconsciente e depois retornou ao salão, onde James Kitson aguardava.

— Então?

O médico sacudiu a cabeça.

— É difícil formar um juízo — disse em voz baixa —, tem o coração em frangalhos. Não há um médico da família?

— Não que eu saiba; ele odiava os médicos e nunca ficou doente na vida. Não entendo como o tolerou.

O Dr. van Heerden sorriu.

— Que remédio ! Adoeceu no trem a caminho daqui e acontece que eu era seu companheiro de viagem. Pediu-me que o trouxesse para cá; ainda não arredei pé deste lugar. É estranho — acrescentou —, que um homem rico como o Sr. Millinborn viaje sem criado e viva praticamente só numa casa de campo.

Malgrado sua ansiedade, James Kitson sorriu.

— É o tipo de homem que detesta ostentação. Duvido que em toda a sua vida tenha gastado consigo mil libras por ano... acha prudente deixá-lo?

O médico espalmou as mãos.

— Nada posso fazer. Não permitiu que chamasse um especialista e acho que estava com a razão. Nada se pode fazer por ele. A emoção foi demasiada. Andou fazendo o testamento, pelo que vejo?

— Sim — disse Kitson brevemente.

— Foi o que deduzi, quando o vi trazer o jardineiro e a cozinheira para testemunharem um documento — disse o Dr. Heerden. — Gostaria de ter um pouco de estricnina.

— Não pode mandar um criado buscar ou, eu mesmo vou — disse Kitson, — será que existe estricnina na vila?

O médico inclinou a cabeça.

— Não quero que vá — objetou. — Mandei o carro a Eastbourne apanhar algumas coisas que não se encontram por aqui. É uma caminhada puxada daqui até à vila e, contudo, duvido que o farmacêutico forneça a um criado a dose de que preciso, mesmo mediante receita... como sabe... — ele sorriu — sou estrangeiro nestas bandas.

— Irei com prazer; a caminhada me fará bem — disse o advogado vivamente — se há algo que possamos fazer para prolongar a vida do meu pobre amigo...

O médico sentou-se à mesa, preencheu uma receita e a entregou ao outro, com uma desculpa.

Hill Lodge, a imensa casa campestre de John Millinborn, estava situada no topo de uma colina e a estrada para a vila era íngreme e comprida, pois Alfronston ficava a cerca de uma milha. A meio caminho da encosta, a trilha cortava por um bosque de freixos novos. Penetrando num dos flancos do bosque, Kitson ouviu um farfalhar, como se alguém caminhasse pela vegetação rasteira. Era um ruído por demais pesado para ser de um coelho em fuga ou de um pássaro assustado; e ele espiou para dentro da compacta folhagem. Era um tanto curto de vista, e a princípio não enxergou a causa do rebuliço.

— Creio que estou invadindo propriedade alheia — disse uma voz áspera, e um homem avançou na sua direção.

O estranho tinha certa elegância de porte e precisava de algo artificial para lhe atenuar o natural pouco simpático. Tanto poderia ser homem de 60 como de 50 anos. Suas roupas puídas, rasgadas e sebentas eram bem talhadas. A camisa imunda se agarrava a uma colarinho puído e a gravata amarfanhada estava ornada com um camafeu.

Foi, porém, o rosto que chamou a atenção de Kitson. Havia como que uma maldade inerente àquele rosto intumescido, àqueles olhos sombrios que piscavam sob as sobrancelhas negras e espessas. Os lábios, cheios e flácidos, fenderam-se num sorriso quando o advogado deu um passo atrás para fugir ao contato com o visitante.

— Acho que estou invadindo... caramba! Eu invadindo... é engraçado, muito engraçado! — Soltou uma gargalhada rouca e asmática e, súbito, prorrompeu na pior torrente de palavrões que o advogado jamais ouvira.

— Desculpe, desculpe, — acrescentou, detendo-se tão inopinadamente como começara. — Homem do mundo, hem? O senhor compreenderá que quando um cavalheiro tem seus aborrecimentos... — Tateou no bolso do colete, encontrou um monóculo de aro negro e entalou-o no olho. Havia naquele farrapo humano algo obsceno que fazia o advogado sentir-se fisicamente mal.

— Invadindo, caramba! — O homem reassumiu seu ar presunçoso e sua voz destilava peçonha. — Caramba! Por mim, cortaria o pescoço de toda a, Humanidade, sim senhor, de toda a Humanidade. Espetaria pregos nos olhos de todo mundo... pregos em brasa. Esfolaria vivo todo mundo...

Até então o advogado não havia aberto a boca, mas a repulsa que sentia falou mais alto que seu temperamento, via de regra cordato.

— Que faz aqui? — indagou rispidamente. — O Senhor está em propriedade alheia. Vá passear sua estupidez noutro lugar.

O homem voltou-se para ele com olhar feroz e riu.

— Invadindo! — disse com escárnio, — invadindo! Muito bem.. às suas ordens, cavalheiro!

Arrancou então o chapéu da cabeça (o advogado constatou que era calvo) e, empertigando-se, retomou o caminho pelo qual viera. Não era o de saída, e Kitson teve ímpetos de segui-lo para assegurar-se de que deixariam realmente a propriedade. Lembrou-se, porém, da urgência de sua missão e reencetou a caminhada para a vila. Na volta, correu os olhos pelo lugar, mas não havia nenhum traço do desagradável intruso. Quem seria? perguntava-se o advogado.

Havia decorrido quase uma hora, quando galgou ofegante o terraço nivelado em que ficava a vivenda.

O médico estava à janela quando Kitson passou.

— Como está ele?

— Mais ou menos na mesma. Teve um acesso. Trouxe a estricnina?

O médico pegou o pequeno embrulho, pousou-o no peitoril da janela e Kitson penetrou na casa.

— Sinceramente, doutor, acha que tem possibilidade? O Dr. van Heerden deu de ombros.

— Sinceramente, não creio que vá recuperar a consciência.

— Céus! — O advogado estava chocado. A trágica rapidez de tudo aquilo o aturdia. Vagamente, chegara a pensar que vários dias, semanas mesmo, poderiam decorrer antes que o fim chegasse.

— Não vai recuperar a consciência? — repetiu num sussurro. Instintivamente se deixou atrair para o quarto em que o amigo jazia, e o médico o acompanhou.

John Millinborn estava deitado de costas, os olhos cerrados, o rosto de um cinzento espantoso. Suas mãos enormes se agarravam ao pescoço; tinha a camisa rasgada na altura do peito. As duas janelas, cada qual numa das extremidades do aposento, eram amplas, e uma brisa mansa agitava as cortinas. O advogado curvou-se, colocando a mão sobre a testa escaldante.

— John, John — murmurou e se voltou, sufocado pelas lágrimas. Enxugou o rosto com um lenço, caminhou até a janela e se pôs a contemplar o plácido encanto do cenário. Por sobre a mata, um avião roncava rumo ao mar. Os verdes prados eram salpicados pelo branco dos rebanhos que pastavam e debaixo das grandes janelas os socalcos, dispostos em ordem, resplandeciam de flores rubras, douradas e brancas.

Veio-lhe então à mente o homem que encontrara no bosque e esteve a pique de comentar o incidente com o médico. Mas não sentia ânimo para as especulações que por certo sobreviriam. Inquieto, dirigiu-se para o quarto de dormir. O doente não se havia mexido e o advogado tornou a voltar. Pensou na moça, a moça cujo nome e parentesco com John Millinborn só ele conhecia. Que destino daria ela aos milhões que, embora não o soubesse, estava prestes a herdar. Que...

— Jim, Jim.

Ele se voltou rapidamente. Era a voz de John Millinborn.

— Depressa... venha...

O médico havia entrado no quarto, de um salto, e se acercara do leito.

Millinborn estava sentado e, seguindo ligeiro nas pegadas do médico, o advogado pôde ver-lhe os olhos arregalados.

— Jim, ele...

Sua cabeça pendeu sobre o peito e o médico o fez baixar lentamente sobre o travesseiro.

— Que é, John? Fale comigo, meu velho.

— Receio que nada se possa fazer — disse o médico puxando as cobertas.

— Está morto? — murmurou a medo o advogado.

— Não, mas.

O médico fez sinal ao outro para que o acompanhasse até o salão e, depois de um olhar sobre a figura imóvel, Kitson foi atrás dele.

— Há algo muito estranho, — quem é aquele?

Apontou através da janela para uma figura canhestra de homem descendo aos tropeções pela ladeira que levava ao bosque.

Kitson de pronto reconheceu o homem. Era o penetra que tinha encontrado no bosque. Mas havia alguma coisa naquele homem imundo, um quê de terror em seus braços distendidos que fez o advogado esquecer o ambiente trágico onde estava.

— Onde estivera ele? — indagou.

— Quem é?

O médico tinha o rosto branco e retesado como se também estivesse a notar algo horrível naquela fuga desesperada.

Kitson retornou ao quarto em que o moribundo jazia, mas deteve-se petrificado, à soleira da porta.

— Doutor... doutor!

O médico seguiu o olhar do outro. Algo pingava da cama sobre o assoalho — algo rubro e horrível.

Kitson cerrou os dentes e, aproximando-se da cama, desceu as cobertas.

Recuou com um grito, pois do flanco de John Millinborn despontava o cabo de uma faca.

 

O SR. BEALE, O ÉBRIO

O consultório do Dr. van Heerden ocupava uma das quatro lojas formando o pavimento térreo do Edifício Krooman. Este fora construído por um rico filantropo, a fim de propiciar pequenos apartamentos padrões para as classes profissionais, carentes de boas acomodações e localização adequada (situava-se nas proximidades da Rua Oxford), por aluguéis módicos. Assim como muitos outros filantropos, o proprietário se havia cansado do divertimento e vendera o prédio a um sindicato, cuja diretoria mais de uma vez tinha sido alvo de investigações policiais.

Posteriormente, foram ter às mãos de uma mulher inteligente, a qual havia despejado os inquilinos indesejáveis, mobiliado os apartamentos com simplicidade mas com conforto, e os havia alugado a pessoas que poderiam ser descritas como solventes e honestas. Gradualmente, o edifício Kroonam se havia reabilitado perante os olhos da vizinhança.

Fazia seis anos que o Dr. van Heerden mantinha consultório naquele local. Durante a guerra, estivera momentaneamente sob suspeita de simpatizar com o inimigo, mas não se conseguira qualquer prova de sua inimizade e, embora nascido na margem errada da fronteira, em Cranenburgo, no caminho entre Roterdão e Colônia, seu nome era indubitavelmente van Heerden, holandês, portanto. Se se mudasse o "van" para "von", diziam as más línguas, ter-se-ia um boche.

O médico sobrevivera às críticas, sobrevivera às suspeitas e granjeara uma rendosa clientela. Ocupava o maior apartamento do edifício, no qual um dos quartos fora improvisado em laboratório, pois alimentava grande paixão pela pesquisa. O misterioso assassinato de John Millinborn lhe havia dado certa publicidade, não totalmente isenta de vantagens. O fato de haver assistido o milionário aumentava-lhe a fama.

Suas teorias acerca de ter sido o crime perpetrado por alguém que entrara pela janela aberta, estando os dois homens fora do aposento, haviam encontrado aceitação geral, pois a polícia descobrira pegadas nos canteiros de flores que o assassino presumivelmente pisara. Não se havia, porém, achado a pista do andrajoso personagem visto pelo Sr. Kitson.

Três meses após o crime, o médico estava na escadaria do amplo saguão de entrada que dava para os apartamentos, a observar as ondas de pedestres nas ruas. Eram seis horas da tarde e as ruas pareciam vivificadas pelas moças do comércio e pelos operários que voltavam do trabalho.

Fumava um cigarro, e seu interesse talvez fosse mais aparente do que real. Havia atendido o último paciente e a porta da "loja", com suas janelas verdes, tinha sido fechada por aquela noite.

Seus olhos passeavam indolentes pelo trecho terminal da Rua Oxford, quando de súbito teve um sobressalto. Uma moça vinha em sua direção. Àquela hora havia pequeno tráfego de veículos, pois a Rua Lattice é quase um beco sem saída e ela caminhava pelo meio da via. Trajava, com aquela elegância que faz confundir a moça rica e a que trabalha, um costume em sarja azul, de corte severo; a gola do casaco era de linho branco e o pequenino chapéu cobria, mas não escondia, a massa de cabelos que, à luz oblíqua do sol às suas costas, dava a ilusão de um nimbo dourado em torno de sua cabeça.

Os olhos eram profundos e cheios daquela sabedoria encontrada indiferentemente nos que sofreram e nos que viram sofrer. O nariz era reto, os lábios escarlates e polpudos. Seria possível catalogar uma por uma as feições de Oliva Cresswell, sem se chegar a uma explicação satisfatória do seu encanto.

Seu charme não residia na palidez marmórea da pele. Nem na silhueta grácil com seus contornos promissores, nem na pose da cabeça ou no porte altaneiro, nem no riso fácil que aflorava àqueles olhos tranqüilos. Nenhuma qualidade em especial se destacava nela. Seu fascínio era antes o fascínio do conjunto perfeito daquelas características que os homens acham sedutoras.

Ela ergueu a mão num gesto espontâneo e saudou o médico com um sorriso cintilante.

— Bem, Srta. Cresswell, fazia tempo que não a via.

— Dois dias, — retorquiu ela com solenidade, — mas penso que os médicos, conhecedores como são de todos os segredos da natureza, devem possuir alguma droga especial que os ajude nas experiências dessa ordem.

— Não seja cruel para com a profissão, — gracejou ele, — e não seja sarcástica comigo, que sou tão jovem. A propósito, não cheguei a lhe perguntar, conseguiu mudar de apartamento?

Ela sacudiu a cabeça e franziu o cenho.

— A Srta. Millit diz que não me pode mudar.

— Abominável — comentou ele aborrecido. — Já lhe falou a respeito do Sr. Beale?

Ela assentiu vigorosamente.

— Perguntei-lhe — fez uma mímica e começou sem dificuldade a empregar o sotaque típico da Inglaterra meridional:

— "Srta. Millit, está ciente de que o cavalheiro meu vizinho, ao que tudo indica, tem estado em permanente embriaguez durante os últimos dois meses... desde que se mudou para o Edifício Krooman?" — "E ele a aborrece?" — indagou ela.

— "Os beberrões sempre me aborrecem", respondi eu. "O Sr. Beale chega em casa todas as noites num estado que só posso chamar de deplorável."

— Que disse ela?

A moça fez um pequeno trejeito e ficou séria.

— Disse-me que se ele não fala nem interfere comigo, nem me assusta, o resto não é da minha conta —. Ela soltou uma risada sem graça. — Na verdade, o apartamento é tão bom e barato que ninguém se pode dar ao luxo de deixá-lo... não sabe o quanto lhe sou grata, Doutor, por ter influência nestas bandas. A Srta. Millit não gosta muito de moças jovens e solteiras.

Ela fungou e riu.

— Por que está rindo? — perguntou ele.

— Estava pensando como foi curioso o nosso conhecimento.

As circunstâncias em que se conheceram haviam sido realmente curiosas. Ela estava empregada como balconista numa das grandes lojas da zona Oeste. Ele havia efetuado uma compra qualquer e pago com uma nota de cinco libras, a qual, conforme se verificou depois, era falsa. Foi um momento de tristeza para a moça, quando se descobriu a falsificação, pois era obrigada a cobrir os prejuízos com dinheiro seu, e não se tratava de uma bagatela.

Depois, o milagre acontecera. O médico aparecera todo desculpas, apresentara seu cartão e dera uma explicação. Conservava aquela nota a título de curiosidade. Fora-lhe passada e era um trabalho tão perfeito, que tencionava pô-la num quadro, porém ela se havia misturado com o outro dinheiro que carregava.

— O senhor começou como o vilão da peça e acabou como a minha boa fada — disse ela. — Não fosse o senhor, jamais teria sabido da vaga aqui. A exigente Srta. Millit não me "teria aceitado, se não tivesse respeito pelo seu nome.

Ela pousou de leve a mão pequenina sobre os ombros dele. Foi um gesto de camaradagem.

Já se aprestava a ir embora, quando uma exclamação de ira a deteve. — Que é aquilo? Ah, bem — é o número 4!

Ela se achegou um pouco ao médico e se pôs a observar por entre as pálpebras semicerradas a figura que se aproximava.

— Mas, por que... por que faz assim? — perguntou impaciente. — Como um homem pode ser tão fraco; tão desgraçadamente fraco? Não há justificativa possível!

"Aquilo" procurava aparentemente caminhar pelo passeio do lado oposto como se fora uma corda bamba. A não ser por um certo desalinho nas roupas, pela gravata fora do lugar e pelo chapéu enlameado, parecia uma figura assaz respeitável. Era jovem e, em condições diferentes, passavelmente bem-parecido. Mas, com os cabelos louros a escorrer pela testa e o chapéu atirado para a nuca, faltava-lhe fascinação. Sua tentativa, auxiliada por uma bengala manejada à guisa de varejão para se manter em equilíbrio sobre um meio fio de seis polegadas, poderia parecer hilariante a qualquer espírito menos sensível do que Oliva.

Desistiu afinal da empresa e, cruzando a rua, fez um floreio com o chapéu, ao reconhecer o médico.

— Tempo magnífico, meu esc... esc... esculápio — disse ele em voz levemente empastada, mas com um sorriso nos olhos; tempo simplesmente magnífico para os trepanossomos e para todos os lindos microbiozinhos.

Sorriu com brandura para o médico, não tomando conhecimento do olhar significativo que o outro lançou sobre a moça, a qual havia recuado o suficiente para não se ver envolvida na conversação.

— Vou deixá-lo, doutor —, prosseguiu, — vou para o último andar, para longe dos odores maléficos da ciência e da sedução fatal da beleza. O último andar é uma subida e tanto, quando se está todo aceso como o Hotel Doodledum per arduis ad ostra, às alturas, pelo trabalho... ótimo lema. O lema da Força Aérea, o meu lema. Boa noite!

Cambaleou pela escadaria de pedra e sumiu numa curva. Depois ouviram sua porta bater.

— Horrível... mas mesmo assim achei engraçado. Quase dei risada. Mas como é horrível. Tão moço, e dono sem dúvida de uma boa educação.

Ela pediu licença ao médico e rumou para cima. Três portas se abriam no patamar. As de número 4, 6 e 8.

Ao passar, olhou com certa apreensão para o número 4, mas do patusco não havia nem sinal, e ela se encaminhou até o número 6 e fechou a porta.

A moradia consistia de dois quartos, um de dormir outro de estar, um banheiro e uma diminuta cozinha. O aluguel era extraordinariamente baixo, menos que um quarto de seus ganhos semanais, e ela conseguia viver com conforto.

Acendeu o fogão a gás, pôs a chaleira a ferver e começou a arrumar a mesa. Havia uma "lata de alguma coisa" na minúscula copa, um pequeno filão de pão e uma jarra de leite, um ou dois tomates e uma garrafa com molho, a lauta refeição que se dispunha a fazer. Seu rosto estava um tanto afogueado e sentia-se bastante feliz — tinha o tempero do contentamento. Pensou no médico e se deu por feliz por ter um amigo tão bom. Ele era bastante sensato, nada tinha de "engraçadinho". Jamais tentara segurar-lhe as mãos, como faziam os estúpidos compradores, nem empreendera tentativas desajeitadas de beijá-la, como acontecera com um dos sócios.

Comeu lentamente, lendo o jornal vespertino e sonhando nos intervalos. O crepúsculo havia caído quando terminou, e ela acendeu a luz. No banheiro, havia um medidor automático de um xelim.

Lembrou-se que já estava perigosamente distante o dia em que subornara o aparelho e procurou na bolsa por um xelim. Verificou que tinha meias coroas, florins e meios xelins. Claro que esse é o estado crônico de todos os usuários dos medidores. Refletiu. Deveria sair e arranjar troco com o vendedor de cigarros da esquina ou correr o risco?

"Se não me mexer, você se apaga", disse dirigindo-se à luz, que piscou agourentamente.

Abriu a porta e entrou no corredor; ao fazê-lo, as luzes se apagaram atrás dela. Havia uma pequena lâmpada no patamar. Passando pelo número 4, notou a porta entreaberta e parou. Não queria arriscar-se a um encontro com o bêbado e voltou.

Lembrou-se, então, do médico, que morava no número 8. De hábito quando ele estava em casa havia uma luz na sala de entrada, visível através da bandeira da porta. Naquele momento no entanto, estava às escuras. Ela viu um cartão pregado à porta e, aproximando-se, leu na semi-obscuridade

VOLTO À MEIA-NOITE. ESPERE

Ele estava fora e esperava, sem dúvida, um visitante. Nada restava, portanto, senão arriscar-se a um encontro com o exuberante Sr. Beale. Desceu voando os degraus e ganhou a rua com uma sensação de alívio.

O prestativo cigarreiro estava muito loquaz e a deteve até que sua reserva de paciência se exauriu; mas, afinal, conseguiu escapar. Quase no meio da rua, divisou um vulto de homem postado no escuro saguão dos apartamentos e seu coração apertou.

"Matilde, és uma tola", disse a si mesma.

Seu nome não era Matilde, mas nos momentos de auto-censura costumava dirigir-se a si própria por aquela forma.

Encaminhou-se ousadamente para a entrada e penetrou no saguão. Viu o homem com o rabo dos olhos, mas não o reconheceu. Parecia tão pouco desejoso de chamar a atenção, como ela. Aparentava ser bastante atarracado e baixo, mas, quanto a isso, não teve certeza. Ela correu escada acima e virou o patamar que levava ao seu quarto. A porta do número 4 continuava entreaberta. Mas, o que era muito mais importante, a do seu próprio quarto também estava. Não havia a menor dúvida, entre a quina e o umbral da porta havia uns bons cinco centímetros e ela se lembrava nitidamente não apenas de havê-la fechado, como também de tê-la empurrado para assegurar-se que estava trancada. Que fazer? Para desaponto seu, experimentou uma sensaçãozinha de frio que vinha de dentro, e as mãos começaram a tremer.

— Se pelo menos as luzes estivessem acesas, correria o risco — pensou; mas as luzes não estavam acesas e era preciso caminhar até o negro interior e a um banheiro mais escuro ainda, antes que pudesse alcançar o medidor.

"Tolices, Matilde", troçou ela, "anda, entra, coelhinho medroso, esqueceste de fechar a porta. Só isso."

Ela abriu a porta e entrou com um arrepio. Um ruído, então, fê-la parar rígida. Era um ruído arrastado e um rangido como que o de um cão a roçar-se pelas cadeiras.

— Quem está aí? — indagou ela. Não houve resposta.

Deu um passo adiante e alguma coisa avançou para ela. Uma enorme mão agarrou-a pela manga da blusa e ela ouviu uma respiração profunda.

Mordeu os lábios para não deixar escapar um grito e safou-se com um repelão, deixando um pedaço da manga nas mãos do desconhecido.

Disparou em retirada, batendo a porta atrás de si. Em duas passadas vertiginosas estava à porta do número 4, martelando-a com ambos os punhos.

"Bêbado ou não, é homem! Bêbado ou não, é homem!" murmurava incoerentemente.

Havia batido apenas duas vezes, quando a porta se abriu de estalo e o Sr. Beale assomou à porta.

— Que aconteceu?

Ela nem se deu conta do seu tom.

— Um homem — um homem no meu apartamento —, balbuciou, mostrando a manga rasgada, — um homem...!

Ele a empurrou para o lado e avançou para a porta.

— A chave? —, disse rapidamente.

Com os dedos trêmulos ela a pescou nos bolsos.

— Um momento.

Ele desapareceu por um instante em seu próprio apartamento e retornou empunhando uma lanterna. Fechou a porta, meteu a chave no bolso e, para surpresa dela, sacou do bolso da calça um revólver de cano curto.

Abriu a porta com um pontapé e desapareceu na escuridão. Sua voz ergueu-se então, incisiva e ameaçadora:

— Mãos ao alto !

Uma voz taramelou qualquer coisa nervosamente e depois o Sr. Beale falou:

— Sua luz está funcionando? Pode entrar; segurei-o na sala de jantar.

Ela entrou no banheiro, enfiou o xelim na abertura, o registro rangeu e as luzes se acenderam.

Num dos cantos da sala estava um homem, um homem de cara pálida e aspecto doentio, cabeça demasiado grande para o corpo. Tinha as mãos sobre a cabeça e os lábios trêmulos de pavor.

O Sr. Beale o revistava com rapidez.

— Desarmado.. muito bem. Vejamos, agora, os bolsos.

O homem disse alguma coisa numa língua que a moça não conseguiu entender e o Sr. Beale respondeu na mesma língua. Ele despejou o conteúdo, primeiro de um bolso, depois do outro sobre a mesa e a moça acompanhou os acontecimentos com olhos esgazeados.

— Hem, que é isto?

Beale apanhou um cartão. Nele estava garatujada uma cifra que tanto poderia ser 6 como 4.

— Ah, entendo — disse Beale, — agora o outro bolso. O amigo entende Inglês, não?

O homem obedeceu mecanicamente. De um dos bolsos internos surgiu uma carteira de couro, que Beale abriu.

Dentro havia um pequeno pacote que lembrava o familiar invólucro do pó de Seidlitz. Beale se pôs a falar rispidamente num idioma que a moça percebeu ser o alemão e o homem sacudiu a cabeça. Diversas vezes, ele repetiu qualquer coisa que soava como no good.

— Vou deixá-la a sós aqui por algum tempo — disse Beale —, o amigo e eu vamos descer juntos, não me demoro.

Saíram juntos do apartamento, o homenzinho de cabeça grande a protestar, e ela lhes ouviu os passos descendo as escadas. Depois Beale reapareceu sozinho e entrou na sala de estar. Então um fato estranho e inesperado tomou conta dela: ele estava completamente sóbrio.

Seus olhos estavam claros, seus lábios firmes e os cabelos louros bem assentados. Olhou para ela com tanta gravidade que se sentiu encabulada.

— Srta. Cresswell —, disse ele com discrição — vou pedir-lhe um grande favor.

— Se estiver ao meu alcance, pode contar com ele. — Ela sorriu e assentiu com a cabeça.

— Não lhe pedirei nada impossível — disse ele. — Quero apenas que não conte a ninguém o que se passou aqui esta noite.


— Ninguém? —. Ela o olhou aturdida. — Mas, e o doutor... ?

— Nem mesmo ao doutor —, disse ele piscando um olho.

— Peço-lhe como um obséquio todo especial... palavra de honra?

Ela refletiu por um instante.

— Prometo —, disse. — Não comentarei com ninguém sobre aquele homem horrível de quem o senhor teve a gentileza de me salvar...

Ele ergueu a cabeça.

— Entenda uma coisa, Srta. Cresswell: não quero que se preocupe com aquele "homem horrível". Ele estava tão apavorado como a senhora e não lhe teria feito mal. Estive toda a noite a esperá-lo.

— Esperava-o?

Ele tornou a menear a cabeça.

— Onde ?

— No apartamento do médico, — respondeu calmamente

— escute, o médico e eu somos rivais de morte. Somos cientistas rivais e eu esperava pelo homenzinho cabeludo para me adiantar a ele.

— Mas, mas... como foi que entrou?

— Tinha esta chave —, disse ele exibindo uma pequena chave, — lembre-se, palavra de honra! O homem que acabo de deixar não tinha certeza se deveria entrar no número 8, onde mora o médico, ou no número 6 — e a mesma chave abre as duas portas.

Ele inseriu na outra a chave que estava na fechadura dela e fê-la girar com facilidade.

— E isto é o que eu estava esperando... foi tudo quanto o pobre-diabo pôde fazer.

Ele ergueu um embrulho de papel e rompeu o lacre. Desdobrando cuidadosamente o invólucro, depositou-o sobre a mesa pondo à mostra o que parecia ser uma serragem verde.

— Que é isso? — indagou ela, temerosa.

— Isso — disse o Senhor Beale escolhendo as palavras com carinho, — isso é uma passável imitação da Alfôrra Verde, ou o que me parece melhor, o Terror Verde.

— Terror Verde? Que é Terror Verde? Para que serve?

— Espero que jamais descubramos, — disse ele, e em seus olhos límpidos havia uma suspeita de terror.

 

A LOJA "PUNSONBY" DESPEDE UMA FUNCIONÁRIA

Oliva Cresswell despertou com o último e desesperado toque do despertador e conseguiu dominar a tentação quase insopitável de fechar os olhos para ver como se sentia. Sua primeira impressão foi a de não haver dormido toda a noite. Lembrava-se de ter ido deitar-se à uma hora e de haver rolado no leito até às três. Lembrava-se de ter resolvido que o melhor seria levantar-se, fazer um pouco de chá e apreciar o nascer do sol; deveria ter adormecido quando ainda empenhada em decidir se tais providências seriam românticas ou simplesmente tolas.

Ainda assim, quatro horas de sono não representam praticamente sono algum para uma moça sadia, e ela virou as pernas para o lado da cama e dedicou cinco bons minutos a uma fátua contemplação de seus pezinhos brancos. Com esforço, arrastou-se até o banheiro. Meia hora mais tarde sentia-se bem, porém sem entusiasmo.

Quando se tornou plenamente consciente, o que se deu a caminho do trabalho, percebeu que estava preocupada. Contra sua vontade, tinha participado de um segredo — e o bêbedo Sr. Beale, aquele jovial libertino, a tinha realmente forçado a ouvir suas confidencias. Só que... e a recordação foi para ela um choque, o Sr. Beale estava surpreendentemente sóbrio e se mostrara demasiado autoritário para um tipo tão pobre de caráter como o era.

Devia contar ao médico, o Dr. van Heerden, que fora tão bom amigo? Parecia-lhe desleal, tremendamente desleal para com ele, ocultar-lhe o fato de que o Sr. Beale estivera em seu apartamento.

Mas seria uma coincidência que a mesma chave abrisse sua porta e a do médico? Se assim fosse, tratava-se de uma coincidência embaraçosa. Precisava trocar a fechadura.

O ônibus deixou-a na esquina do quarteirão da Loja Punsonby. Punsonby é uma das lojas mais seletas e de maior conceito em Londres, e Oliva realmente tivera sorte em conseguir sua atual posição, porque emprego na Punsonby era como emprego público, tanto com referência à estabilidade quanto com relação aos níveis salariais.

Ao subir a calçada, lançou um olhar para o pomposo relógio. "Cheguei a tempo", disse de si para si, e estava prestes a abrir a grande porta de vidro através da qual entravam os funcionários, quando uma mão a tocou de leve no braço.

Virou-se surpresa e deu com o Sr. Beale, extremamente elegante num terno cinzento muito bem talhado, um chapéu de feltro também cinzento à cabeça, e um ramalhete de violetas na lapela.

— Perdão, Srta. Cresswell —, disse ele amavelmente, — poderia trocar umas palavras com a senhora?

Ela olhou para ele, cheia de dúvidas.

— Preferiria que tivesse escolhido outra ocasião e outro lugar, Sr. Beale —, respondeu com franqueza.

Ele concordou com um gesto.

— Compreendo que é deveras embaraçoso, mas, infelizmente, não me é possível esperar. Sou homem de negócios, sabe. Não a importunarei com a história de minha vida.

Notando-lhe o olhar divertido, ela sorriu contrafeita.

— Tenho um negócio na cidade de Londres —, disse ele, — e ainda uma vez conto com sua discrição; sou perito em trigo.

— Perito em trigo? —, repetiu ela, fazendo uma careta embaraçada.

— Estranha profissão, não é mesmo? mas, é o que sou. Tenho uma vaga em meu escritório para uma secretária particular. O escritório é agradável, o salário bom, o horário de trabalho é pouco, e o serviço leve. Gostaria de saber se aceita o cargo.

Ela sacudiu a cabeça, olhando para ele com um novo interesse, do qual a suspeita não estava de todo ausente.

- É muita bondade da sua parte, Sr. Beale e uma dívida

mais no meu passivo; não tenho, porém, qualquer intenção de sair da Punsonby. é trabalho de que gosto, e embora tenha certeza de que o senhor não se interessa pelos meus assuntos particulares (ele lhe poderia haver dito que se interessava muitíssimo por seus assuntos particulares, mas se conteve), não me pejo de dizer que estou ganhando muito bem e não alimento qualquer intenção ou desejo de mudar tal estado de coisas.

Os olhos dele piscaram.

— Ah, bem, a falta de sorte é minha. Há apenas duas coisas que posso dizer. A primeira é que, se trabalhar para mim, jamais será afligida ou importunada por quaisquer hábitos meus que terá notado. Em segundo lugar, quero a sua promessa de que se um dia sair da Punsonby, serei a primeira oferta de trabalho que irá considerar.

Ela riu.

— Acho-o muito engraçado, Sr. Beale, mas tenho certeza de que está sendo sincero, e de que limitaria suas... suas... pequenas excentricidades a horários estritamente não comerciais. Quanto a deixar a Punsonby, prometo-lhe que, se chegar de fato a largar meu emprego, a primeira oferta de meus inestimáveis serviços será sua. Agora, receio que precise ir-me. Fico-lhe imensamente grata pelo que fez por mim ontem à noite.

Ele a encarou nos olhos.

— Não me lembro de nada que tenha acontecido ontem à noite —, disse, — e ficaria muito contente se o mesmo lapso comprometesse também a sua memória.

Apertaram-se as mãos; ele ergueu o chapéu e afastou-se abruptamente. Ela se pôs a acompanhá-lo com o olhar, até que o relógio bateu para lembrá-la de que o chefe da firma Punsonby era partidário ferrenho da pontualidade.

Entrou no amplo vestiário, pendurou o capote e o chapéu. Ao voltar-se para o espelho, a fim de ajeitar os cabelos, viu-se frente a frente com uma moça morena e alta que estivera a observá-la pensativamente.

— Bom dia — disse Oliva, e em sua voz havia mais polidez do que amizade, pois, embora colegas de escritório há mais de dois anos, havia entre as duas moças uma incompatibilidade que o mais prolongado dos conhecimentos seria incapaz de suprimir.

Hilda Glaum era de ascendência suíça e algo misteriosa. Bonita à sua maneira, rabugenta e melancólica, suas virtudes conhecidas se dissipavam quando fazia sua aparição. Hilda não dava nem recebia intimidade e, sob esse aspecto, convinha a Oliva, mas, diferentemente de Oliva, não fazia amizades, não participava de nenhum dos movimentos periódicos entre as moças, não visitava nem recebia.

— Bom dia —, respondeu a outra laconicamente — já esteve lá em cima?

— Não — por quê?

— Por nada.

Oliva subiu até o andar em que ficava o pequeno escritório. Ela e Hilda lidavam com a correspondência registrada, recolhiam e conferiam o dinheiro proveniente dos fregueses que pagavam pelo correio e mandavam as encomendas para os diversos departamentos.

Havia sobre sua mesa três sacolas lacradas, e um rapazinho do Departamento dos Correios aguardava um recibo de entrega. Ela assinou, depois de comparar os números dos lacres com os do livro de recibos do jovem.

Por alguma razão, Hilda não viera atrás dela e portanto estava só; mal havia despejado o conteúdo da primeira sacola sobre a mesa, o diretor-gerente apareceu de improviso à porta envidraçada do escritório.

Era um homem grande, forte e de aparência importante, calvo e barbudo. Tinha ares episcopais e o cacoete de jogar para trás a cabeça quando fazia perguntas, como que para amortecer o impacto das respostas.

Da porta fez sinal chamando-a, e ela saiu sem qualquer pressentimento acerca do que lhe estava reservado.

— A Srta. Cresswell —, disse ele. — Eu... ahn!... lamento não tê-la visto antes de tirar o capote. Venha até meu escritório, sim?

— Pois não, Sr. White — disse a moça, sem saber o que poderia ter acontecido.


Ele foi à frente, com suas passadas majestosas, bamboleando um par de pince-nez pelos cordões, conduzindo-a até seu escritório revestido de pau-rosa.

— Sente-se, sente-se, Srta. Cresswell —, disse e, sentando-se à própria escrivaninha alçou os olhos para o forro, em busca de inspiração.

— Receio, Srta. Cresswell, que me caiba uma tarefa desagradável.

— Uma tarefa desagradável, Sr. White? — indagou ela. Ele meneou a cabeça.

— Sou obrigado a dizer-lhe que a firma Punsonby já não precisa de seus serviços.

Ela se pôs de pé, boquiaberta, e o encarou com surpresa e consternação.

— Já não precisam de meus serviços? — disse lentamente.

— Quer dizer que estou despedida?

Ele tornou a assentir.

— Em lugar do aviso prévio, dar-lhe-ei um cheque no valor de um mês de salário.

— Mas, por que estou sendo despedida? Por quê? Por quê?

O Sr. White, que abrira momentaneamente os olhos para observar os efeitos de sua bomba, tornou a fechá-los.

— Não é praxe na Punsonby dar as razões pelas quais os funcionários são dispensados — comentou em tom oracular, - basta que lhe diga que até aqui a senhorita só nos deu satisfações, mas por razões que não estou apto a discutir, somos forçados a dispensar seus serviços.

Ela tinha a cabeça num turbilhão. Sentia-se incapaz de captar o que havia acontecido. Durante cinco anos trabalhara em condições felicíssimas para aquela grande loja, onde todos haviam sido bondosos com ela e onde suas tarefas sempre haviam sido agradáveis. Ela, bem como todos os funcionários mais categorizados, ali se consideravam como uma peça indispensável.

— Pelo que entendi —, indagou — tenho de sair imediatamente.

O Sr. White fez sinal que sim. Empurrou o cheque através da mesa e ela o apanhou e dobrou mecanicamente.

— E não me vai dizer por quê?

O Sr. White sacudiu a cabeça.

— A firma Punsonby nada faz sem uma boa razão — disse ele com solenidade, certo de que em todas as circunstâncias cabia-lhe fazer a defesa da Punsonby e de que a culpa por aquele incidente infeliz jamais se poderia imputar à augusta firma, que pagava seus catorze por cento com monótona regularidade. — Nós precisaríamos... ahn... precisaríamos de uma certeza absoluta para levar o assunto mais longe do que na realidade o levamos. — Certeza absoluta! (A moça ficou ainda mais confusa diante daquela falta de diplomacia.) — Prometeram-nos uma certeza absoluta, mas... na verdade... nada temos em mãos. É tudo muito desagradável... muito desagradável.

Ela inclinou-se, saiu ligeiro da sala e dirigiu-se para o vestiário onde estava o seu capote; pôs o chapéu na cabeça e deixou Punsonby para sempre.

Ao chegar à rua, foi com um choque que se recordou das palavras de Beale e estacou de chofre, mordendo pensativamente o lábio. Será que ele sabia? Por que teria vindo aquela manhã - a dar crédito aos mexericos correntes no Edifício Krooman - horas antes do seu horário normal de aparecer em público? Então, como que para coroar os espantosos acontecimentos do dia, ela o viu. Estava postado na esquina, apoiando-se à bengala, fumando um cigarro enfiado numa comprida piteira e parecia absorto na contemplação de um operário empoleirado lá no alto, a consertar um fio telegráfico.

Ela ensaiou um passo na sua direção, mas deteve-se. Encontrava-se tão evidentemente, enlevado nas acrobacias aéreas daquele honesto operário, que não poderia tê-la visto, e ela se voltou rápido e tomou a direção contrária.

Ainda não havia chegado ao fim do quarteirão e ele já estava a seu lado.

— Vai cedo para casa, Srta. Cresswell. Ela se voltou.

— Sabe por quê?

— Não, a menos que tenha sido despedida —, disse ele friamente.

As sobrancelhas da moça se juntaram.

— Sabia que me iam despedir? — indagou. Ele assentiu com a cabeça.


— Não sabia que seria despedida esta manhã, mas tinha uma idéia de que mais cedo ou mais tarde isto aconteceria. Foi por isso que fiz minha oferta.

— A qual, está claro, não irei aceitar — retrucou ela.

— A qual, está claro, a senhorita aceitou —, disse ele brandamente. — Creia-me, tudo o que sei é que a Punsonby foi pressionada para despedi-la. Que razões levaram a firma a fazê-lo, não sei.

— Mas, por que pensa assim ? Súbito, ele se tornou grave.

— Apenas uma idéia que me ocorreu. Não farei mistério com a senhora e só lhe posso dizer que tinha razões para crer que tal providência seria tomada.

Ela deu de ombros, enfastiada.

— É suficientemente misterioso — disse. — Quer mesmo que trabalhe para o senhor?

Ele fez um gesto de concordância. — Não me deu seu endereço na cidade.

— Foi por isso que voltei.

— Então sabia que eu iria sair?

— Sabia que sairia uma hora qualquer. Ela olhou para ele.

— Quer me dizer que esperaria o dia todo, só para me dar seu endereço ?

Ele riu.

— Quero dizer apenas isso, — replicou — que a teria esperado o dia todo.

Um riso descoroçoado veio fazer eco ao dele.

— Meu endereço é R. Lothbury, 342 —, prosseguiu ele, — 342. Pode começar esta tarde e... Hesitou. — Acho que seria prudente não contar ao seu amigo van Heerden que está trabalhando para mim.

Ao falar, examinava atentamente as unhas e não olhava para ela.

— Há muitas razões —, acrescentou. — Em primeiro lugar, "sujei a barra" — como dizem — no Edifício Krooman, e isto poderia não ser benéfico à sua reputação.

— Deveria ter pensado nisso antes de me convidar para trabalhar — disse ela.

— Pensei bastante sobre o assunto — replicou ele calmamente.

Havia muito naquela afirmação, conforme a moça reconheceu. Ela se conjurou pela promessa precipitada que fizera, mas, de alguma forma, os sucessos da noite anterior o haviam colocado numa posição diferente.

— Receio que todo esse mistério me tenha desnorteado — disse ela, — e acho que hoje não vou ao escritório. Amanhã de manhã... a que horas?

— Dez horas — disse ele. — Estarei lá para explicar o serviço. Seu salário será de 6 libras dor semana. Ficará encarregada do escritório ao qual, diga-se de passagem, vou raramente; e seu trabalho consistirá em preparar quadros estatísticos sobre todas as colheitas de trigo do mundo nos últimos cinqüenta anos.

— Parece fascinante — disse ela, e o rosto dele se iluminou num breve sorriso.

— É muito mais fascinante do que supõe — respondeu ele, à guisa de despedida.

Oliva chegou ao Edifício Krooman no exato momento em que o médico saía, e este a olhou com ar surpreso.

— Voltou cedo!

Deveria contar-lhe? Não havia razão para não fazê-lo. Ele se mostrara muito bom amigo e era sem dúvida bastante compreensivo. Ocorreu-lhe, naquele momento, que o Sr. Beale tinha sido demasiado indiferente e não expressara sequer uma palavra de pesar.

— Sim. Fui despedida —, exclamou ela.

— Despedida? Impossível. Ela confirmou com a cabeça.

— Minha cara menina, é monstruoso. Que desculpa lhe deram?

— Nenhuma —. A resposta foi dada num tom de indiferença, não refletindo a indignação que lhe ia na alma.

— Não lhe deram uma razão?

— Nenhuma razão. Deram-me o cheque de pagamento e me mandaram embora.

— Mas é monstruoso —, repetiu ele com indignação. — Vou falar com eles. Conheço um dos chefes da firma; pelo menos é meu cliente.

— Não fará nada disso — replicou ela com firmeza. — j«ja verdade, não tem a menor importância.

— E o que vai fazer? Por Deus! —, disse ele de repente.

— Tive uma idéia magnífica. Preciso de uma secretária em minha clínica.

Ela se deixou vencer pela comicidade da coisa e riu no rosto dele.

— Qual é a graça? — perguntou ele.

— Oh, perdoe-me, doutor, não me julgue ingrata, mas estou começando a me sentir como a maior maravilha no mercado do trabalho.

— Obteve alguma outra colocação? —, indagou ele apressado.

— Acabo de me empregar —, disse ela; e o médico não escondeu seu desapontamento.

— E muito ligeira —, disse, e sua voz perdera um pouco do entusiasmo. — Que emprego arranjou?

— Num escritório da cidade.

— Será uma estopada. Claro que se está resolvida, não poderei fazê-la mudar de idéia, mas estaria disposto a lhe dar seis libras por semana e o trabalho seria bem leve.

Ela estendeu a mão, acompanhando o gesto com um piscar de olhos.

— Londres está simplesmente abarrotada de gente disposta a me pagar seis libras por semana, por um trabalho bem leve; fico-lhe realmente muito grata, doutor.

Ao subir as escadas, ela se sentia mais alegre do que pensava ser possível, caso a situação já houvesse sido prevista e se visse na contingência de especular acerca de sua atitude mental ante tal infortúnio.

A Punsonby, malgrado toda a humilhação da dispensa, parecia razoavelmente sem importância.

Abriu a porta e entrou, não sem um olhar divertido abarcando as sóbrias portas da frente do seu novo empregador e do seu pretenso empregador.

"Sara, estás com sorte", comentou consigo, ao bater a porta. Sara era a versão aprobativa de Matilde.

Ocorreu-lhe que seria aconselhável registrar por escrito seu protesto contra a demissão sumária de que fora vítima, e dirigiu-se para a pequenina mesa na estante de livros, onde guardava papel e pena, a fim de redigir a carta, enquanto a tinha na cabeça. Era uma dessa engenhocas de carvalho em que a. escrivaninha é formada por uma aba giratória que serve de tampa, quando não em uso.

Puxou os dois pequenos suportes, meteu a chave na fechadura, mas não conseguiu girá-la, pela simples razão de que estava aberta. Lembrava-se claramente de ter trancado a escrivaninha pela manhã, tão logo guardara ali a conta vinda com a correspondência matutina.

Baixou lentamente a tampa e pasmou diante do que via. Cada um dos compartimentos havia sido varejado e o conteúdo amontoado na maior confusão.

 

AS CARTAS QUE ESTAVAM FALTANDO

Oliva fez um rápido levantamento dos documentos. Eram coisas sem importância, principalmente cartas das amiguinhas que fizera durante sua estada na Punsonby — velhos programas de teatro, receitas tiradas dos jornais e maços de fotografias.

Arrumou por alto as coisas e efetuou uma inspeção no banheiro. Também ali havia sinais de que alguém estivera a vasculhar o apartamento. As gavetas da penteadeira estavam abertas e, embora o conteúdo estivesse pouco mexido, era patente que se havia procedido a uma busca. Fez uma outra descoberta. A janela do dormitório estava com sua metade inferior aberta. De hábito ficava com a parte superior aberta e fixada nessa posição por um trinco. Tal precaução se fazia necessária porque a janela dava para um estreito parapeito de ferro que circundava o edifício e se comunicava com a escada de incêndio. Ela espiou para fora. Era evidente que o intruso entrara a saíra por ali, e era igualmente evidente que o seu retorno havia interrompido a inspeção, pois parecia pouco provável que tencionassem deixar suas coisas naquele estado de confusão.

Fez um breve exame nas gavetas da penteadeira e, pelo que pôde constatar, nada faltava. Retornou à escrivaninha, afastou mecanicamente os papéis, e então sentou-se, queixo na mão, a bonita fronte enrugada, a recordar os acontecimentos daquela manhã.

Quem teria vasculhado a escrivaninha? Que estariam procurando descobrir ? Não se iludia, pensando num ladrão comum. Havia algo por detrás de tudo aquilo. Algo sinistro e aterrador.

Que ligação teriam aquela busca e a sua sumária demissão? Que teria querido dizer o pomposo Sr. White quando falou em conhecimento definido? Ela desistiu de pensar, com um movimento de ombros. Estava menos alarmada do que perturbada.

Ergueu-se e pôs-se a caminhar pelo quarto, planejando o dia. Sairia para almoçar e se proporcionaria o prazer de uma matinê. Talvez ficasse fora até a hora do jantar e só voltasse mais tarde... estremeceu inconscientemente e correu os olhos pelo quarto. Por qualquer razão, não ansiava por uma noitada a sós em seu apartamento.

"Matilde, estás ficando sentimental... e romântica também" disse a si mesma.

Dirigiu-se animadamente para o quarto de dormir, apanhou um vestido no guarda-roupa e colocou-o sobre a cama.

Naquele instante bateram à porta. Ela depôs a escova de roupas que tinha na mão, atravessou o vestíbulo e abriu a porta, depois recuou. Havia três homens do lado de fora. Dois eram desconhecidos, donos daquele aspecto singularmente oficial que o policial em trajes civis jamais consegue disfarçar de todo. O terceiro era o Sr. White, mais pomposo e solene do que nunca.

— Srta. Cresswell? —, perguntou um dos desconhecidos.

— Sim, sou eu.

— Podemos entrar? Quero lhe falar.

Ela os conduziu até a sua pequena sala de estar. O Sr. White entrou por último.

— Seu nome é Oliva Cresswell. Recentemente trabalhou para a firma Punsonby Ltda., como balconista.

— Certo — disse ela, perguntando-se o que viria em seguida.

— Foram apresentadas certas informações contra a senhorita —, disse o interlocutor, — em conseqüência das quais foi demitida da firma esta manhã.

Ela ergueu as sobrancelhas, com surpresa e indignação.

— Informações contra mim ? —, disse com altivez, — que quer dizer, senhor?

— Quero dizer que foi acusada de estar usando em proveito próprio o dinheiro da firma. Foi essa a acusação, creio eu. Ele se voltou para o Sr. White.

O Sr. White meneou vagarosamente a cabeça.

— É mentira. E uma infame mentira! — gritou a moça, voltando-se com os olhos em brasa para o robusto diretor-gerente de Punsonby. — Sabe que é mentira, Sr. White! Milhares de libras passaram por minhas mãos e jamais... oh, isto é cruel.

— Se conseguir manter-se calma por um instante, senhorita —, disse o homem, que não estava desacostumado a explosões daquela espécie, — esclarecerei que no momento da sua demissão não havia provas contra a senhora.

— Não havia certeza absoluta quanto à sua falta — murmurou o Sr. White.

— E agora? —, perguntou a moça.

— Agora, senhorita, sabemos de três cartas registradas contendo um total de 63 libras...

— ... catorze xelins e seis pence — murmurou o sr. White.

— 63 libras em cifras redondas — disse o detetive — as quais foram subtraídas pela senhora e escondidas neste apartamento.

— Na gaveta inferior esquerda da secretária — murmurou o Sr. White. — Esta é a certeza absoluta que veio ao nosso conhecimento... é uma pena.

A moça correu os olhos de um para outro.

— Três envelopes registrados —, disse incredulamente, — neste apartamento?

— Na gaveta inferior de sua secretária — balbuciou o Sr. White, que se manteve através de toda a entrevista, com os olhos cerrados, as mãos entrelaçadas adiante do corpo, simbolizando um homem no desempenho do mais penoso dever.

— Tenho uma ordem judicial — começou o detetive.

— Não precisa de ordem judicial — disse a moça com tranqüilidade, — pode revistar o apartamento ou trazer uma mulher para me revistar. Não há nada nestes quartos de que me envergonharia de mostrar.

O detetive voltou-se para o companheiro.

- Fred, — disse ele — dê uma olhada naquela escrivaninha. Está fechada, senhorita?

Ela havia fechado a escrivaninha e entregou a chave ao homem. O detetive que estivera falando passou ao dormitório e a moça ouviu-o puxar as gavetas. Ela ficou onde estava, frente a frente com o antigo patrão, que se mantinha numa atitude de sonolento alheamento.

— Sr. White —, disse calmamente, — tenho o direito de saber quem me acusou de furtar sua firma.

Não houve resposta.

— Como sabe, até mesmo os criminosos têm esse direito —, continuou a moça, recuperando parte de sua compostura. — Suponho que venha dando por falta de coisas há bastante tempo... as pessoas sempre notam a falta das coisas durante muito tempo, antes que o ladrão seja descoberto... é o que dizem os jornais domingueiros.

— Não leio os jornais que se publicam no Dia do Senhor — disse o Sr. White em tom de reprovação. — Desconheço os hábitos das classes criminosas, mas, como diz... e temo ter de comunicar aos oficiais da lei o ponto fundamental do seu discurso... há muito tempo anda desaparecendo dinheiro do seu departamento. Quanto ao seu acusador, na qualidade de. .. bem... de bom cidadão e no cumprimento dos deveres da boa cidadania, não lhe posso revelar o nome ou nomes.

Ela olhava para ele com curiosidade, um brilho de adormecida hilaridade nos olhos límpidos. Então ouviu passadas apressadas no pequeno corredor e, lembrando-se de que a porta ficara aberta, olhou em torno.

O recém-chegado era o Dr. van Heerden.

— Que é que está dizendo? — indagou ele com ferocidade, dirigindo-se a White. — Ousa acusar a Srta. Creswell de furto?

— Meu caro doutor... — começou White.

— É uma afronta — disse o médico. — E vergonhoso, Sr. White. Respondo pela Srta. Cresswell até com a vida.


A moça o interrompeu com uma risada.

— Por favor não faça dramas, doutor. Na verdade é um erro estúpido. Não sabia que conhecia o Sr. White.

— É um erro vergonhoso — disse o médico violentamente. — Você me surpreende, White.

O Sr. White seria incapaz de cerrar os olhos com mais força do que. o fazia. Transferiu a responsabilidade da situação para uma Providência invisível, através de uma suspirada sacudidela de ombros.

— É muita bondade da sua parte interessar-se tanto, doutor —, disse a moça, estendendo-lhe as mãos.

— Há algo que possa fazer? — perguntou ele com seriedade. — Pode contar comigo até o último tostão, se surgir alguma complicação por causa disto.

— Não vai surgir nenhuma complicação — disse ela. — O Sr. White pensa que roubei dinheiro e que esse dinheiro está escondido no apartamento... a propósito, quem lhe contou que fui acusada?

Por um momento ele foi apanhado de surpresa; depois:

— Vi os policiais entrarem no seu apartamento. Reconheci-os e, como estavam acompanhados por White, e você havia sido despedida, tirei minhas conclusões.

Foi nesse instante que o detetive voltou do quarto de dormir.

— Não há nada lá — disse.

O Sr. White arregalou desmesuradamente os olhos.

— Na gaveta inferior da escrivaninha? — indagou incrédulo. — Nem na de baixo nem na de cima — disse o detetive. — Encontrou alguma coisa, Fred?

— Nada — respondeu o outro.

Eles levantaram as beiradas dos tapetes, vasculharam a pequena estante de livros, olharam debaixo das mesas e assim por diante.

— Bem, senhorita — disse por fim o detetive — espero que a não tenhamos preocupado em demasia. Que pretende fazer, senhor? — perguntou a White.

— Revistou a gaveta inferior da escrivaninha? — tornou a dizer White.

— Revistei a gaveta inferior, a superior e a do meio — respondeu o detetive pacientemente. Procurei atrás da escrivaninha, na gaveta das jóias e nos estojos.

- E não encontrou nada? — disse o Sr. White como que não querendo crer nas próprias palavras.

- Não encontrei nada. Quero saber se vai apresentar queixa contra esta jovem. Se o fizer, arcará por certo com toda a responsabilidade e, se não conseguir condená-la, poderá ser processado por crime de calúnia.

— Sei, sei, sei —, disse o Sr. White, com rispidez notável para uma pessoa plácida como ele. — Não, não vou apresentar queixa. Lamento que tenha sido incomodada. — Ele se voltou para a moça, com toda a majestade possível —, e espero que não fique ressentida comigo.

Ofereceu-lhe a mão, enorme e flácida, mas Oliva recusou-a. — Cuidado para não tropeçar no capacho ao sair —, disse ela, — o corredor é bastante escuro.

O Sr. White deixou o quarto, respirando pesadamente.

— Com sua licença — disse o médico em voz baixa — preciso falar com White.

— Por favor não crie um caso — disse Oliva, — gostaria que o assunto morresse aqui.

Ele assentiu e saiu atrás do diretor-gerente de Punsonby. Formaram um pequeno grupo de quatro pessoas.

— Posso vê-lo um instante em meu apartamento, Sr. White?

— Claro —, respondeu o Sr. White prazerosamente.

— Não precisa mais de nós? — indagou o detetive.

— Não — disse o Sr. White, e depois: — tem absoluta certeza de que revistou a gaveta inferior?

— Absoluta — disse o detetive irritado, — não pense o senhor que depois de vinte anos de profissão, eu iria esquecer do único lugar onde realmente esperava encontrar as cartas.

O Sr. White não teve necessidade de engendrar uma resposta adequada, porque a porta do apartamento do Sr. Beale se abriu e este apareceu no corredor. Trazia o chapéu cinzento derreado sobre a nuca e mantinha-se de pé arrimado na ombreira da porta, inspecionando com um sorriso vazio o magote de homens.

— Ora veja — disse jovialmente — eis o meu caro doutor e, se os meus olhos não me traem, o prezado senhor Arcebispo.

O Sr. White gelou. O fato de ser conhecido como Arcebispo nos círculos de sua intimidade dava-lhe satisfação. Ouvir, porém, tal apelido, que era prerrogativa de uns poucos privilegiados, na boca de um desconhecido — desconhecido e bêbedo — era deprimente para ele.

— E... prosseguiu a vacilante criatura junto à porta: — ...não é o detetive Peterson e o guarda Fairbank? Bem-vindos a este solar da virtude.

O detetive sorriu, mas nada disse. O médico, indeciso, cofiou a barba, mas o Sr. White tentou passar de queixo erguido, não tomando conhecimento do cumprimento; porém o Sr. Beale foi demasiado ligeiro para ele. Lançou-se para a frente e dependurou-se na lapela da impecável sobrecasaca do outro.

— Meu caro White — disse ele.

— Não o conheço, cavalheiro — gritou o Sr. White — quer fazer o favor de me soltar?

— Não me conhece, White ? Que velhinho mais cheio de surpresas!

Enlaçou o outro numa atitude de afetuosa consideração. — Não conhece o velho Beale?

— Nunca nos encontramos antes —, disse o Sr. White, debatendo-se para se libertar.

— Por Cristo, Nosso Senhor! —, disse o Sr. Beale recuando surpreso e magoado, — invoco o seu testemunho, detetive Peterson e o seu, amável guarda Fairbank e o seu, preclaro Dr. van Heerden — ele me renegou; chegou a esse ponto, — disse com amargura e, apoiando-se à porta começou a uivar como um cão.

— Pare com essa tolice, Beale — disse o médico raivosamente, — tem havido coisas sérias por aqui e lhe agradeceria se não atrapalhasse.

O Sr. Beale enxugou uma lágrima imaginária, catou a mão relutante do Sr. White, sacudiu-a com vigor, voltou trôpego para o seu apartamento e bateu a porta atrás de si.

— Conhece esse homem? — perguntou o médico ao detetive.

— Creio que o conheço de vista — disse o detetive. — Vamos, Fred. Bom dia, cavalheiros.

Esperaram até que os policiais estivessem em baixo e fora das suas vistas e então o médico se dirigiu ao outro num tom muito diferente daquele que até ali empregara.

- Venha até o meu quarto um instante, White. — E o Sr. White o seguiu obedientemente.

Cerraram a porta e entraram no escritório, com suas fileiras de volumes pesadamente encadernados, sua comprida mesa atopetada por tubos de ensaio e por todo o equipamento próprio da pesquisa médica.

— Bem... — disse White abatendo-se sobre uma cadeira — o que aconteceu?

— É isso o que quero saber — disse o médico.

Ele apanhou um cigarro de uma caixa sobre a mesa, acendeu-o e os dois homens se entreolharam sem dizer palavra.

— Acha que ela tinha as cartas e as escondeu?

— Impossível! — retrucou o médico.

White rosnou, sacou um charuto de um comprido estojo de couro, aparou ferozmente a ponta com os dentes e procurou um fósforo com as mãos.

— Os mais bem elaborados planos dos ratos e dos homens? — citou ele.

— Cale a boca — vociferou o médico.

Este caminhava ao longo do escritório a largas passadas. Deteve-se numa das extremidades do cômodo a olhar cismarento pela janela, as mãos enfiadas nos bolsos.

— Não sei o que terá acontecido — tornou a repetir. — Bem, isso fica para depois. Conte-me, agora, exatamente, como estão as coisas com relação a você e à firma.

— Tenho todos os dados aqui — disse ó Sr. White, metendo a mão no bolso interno do casaco. — Posso levantar 40.000 libras através de debêntures e — ué... que é isto?

Sacou do bolso um pacotinho branco envolvido por um elástico. Retirou o elástico e engoliu em seco, pois em suas mãos estavam três cartas registradas, endereçadas à firma Punsonby, e cada qual havia sido aberta.

 

O HOMEM DA CABEÇA GRANDE

O número 342 da rua Lothbury é de um bloco de escritórios comerciais um tanto despretensioso no aspecto, mas de surpreendente profundidade e importância quando examinado com cuidado. Durante algum tempo Oliva Cresswell esteve no grande saguão, a inspecionar os nomes dos ocupantes, escritos em tiras de porcelana dentro de duas enormes molduras, em ambos os lados do vestíbulo.

Depois de um demorado exame, encontrou o nome da Agência Beale sob o título "4º andar" e encaminhou-se para o elevador.

O escritório do Sr. Beale ficava no fim de um corredor aparentemente interminável e consistia, conforme constatou, de uma sala externa e de uma interna. A externa era apenas mobiliada por uma mesa, duas cadeiras e uma balaustrada de madeira dividida em duas por um pequeno portão de entrada.

Um rapazinho estava sentado a uma mesa, entregue ao laborioso exercício de bater à máquina com um dedo só.

O moço ergueu-se de um salto quando ela entrou na sala.

— Srta. Cresswell? —, indagou, — o Sr. Beale vai recebê-la já.

Abriu a portinhola e mostrou o caminho até uma porta com o letreiro "Privativo".

Foi Beale que veio abrir.

— Entre, Srta. Cresswell, — disse ele com animação — não a esperava nesta meia hora.

— Achei melhor começar bem — disse ela sorrindo. Tivera muitas apreensões aquela manhã e havia passado uma noite desassossegada a debater consigo o acerto da decisão de empregar-se com um patrão cuja notória fraqueza havia feito de seu próprio nome um apelido. Mas, promessa era promessa.

— Esta é a sua mesa — disse Beale, apontando para uma grande mesa de escritório no centro da sala. — E esta é a minha pequena biblioteca. Notará que é constituída principalmente de estatísticas e relatórios agrícolas, — lê Francês? — ela meneou a cabeça. — Bem, e Espanhol — isso já é querer muito, não?

- Falo e leio Espanhol muito bem — disse ela, — quando

pequena, vivi em Paris, Lyon e Barcelona. Meu primeiro emprego fixo foi no escritório telegráfico Anglo-Espanhol, em Barcelona.

— Que sorte! — comentou ele, aparentemente aliviado. — Embora eu lhe pudesse ensinar as poucas palavras necessárias à compreensão dos relatórios argentinos. O que desejo em especial que descubra... e encontrará guias naquela prateleira lá embaixo, é a localização exata de todos os grandes distritos produtores de trigo, o número de hectares cultivados em tempos normais, o método pelo qual se dividem as áreas tritícolas: cercas, estradas etc., a extensão média das terras contínuas das lavouras de trigo e, se possível, a largura das estradas ou caminhos que as dividem.

— Nossa! —, gritou ela desalentada.

— Parece uma obra monumental, mas creio que a achará simples. O Departamento de Agricultura do Governo dos Estados Unidos, por exemplo, regulamenta todos esses fatores,. Por exemplo, obriga os fazendeiros de certos distritos a conservar um espaço vazio entre as glebas, de modo que, em caso de incêndio, o fogo possa ser isolado. O Canadá, a Argentina e a Austrália empregam outros métodos.

Ela se havia sentado à sua mesa e anotava seus deveres.

— Alguma coisa mais? — perguntou.

— Sim — quero os nomes das cidades no centro das áreas tritícolas, uma relação dos hotéis dessas cidades. Verá que os guias são atualizados e lhe fornecerão informações sobre o assunto. Quero em especial os hotéis nos quais se podem alugar carros, o endereço do banco local e o nome do gerente e, quando a informação for possível, o nome do chefe de polícia, xerife ou delegado de cada distrito.

Ela ergueu os olhos para ele, segurando o lápis no ar.

— Fala sério, está claro. Farei tudo isso, mas por alguma razão me recordo de uma história que li certa vez.

— Sei qual é. — atalhou Beale prontamente. — É o caso do homem ruivo, uma das histórias de Conan Doyle acerca de um homem que para ser mantido afastado de sua loja recebeu a incumbência inútil de copiar a Enciclopédia Britânica — não; estou lhe pedindo um trabalho muito sério, Srta. Cresswell — trabalho sobre o qual não quero que fale.

Ele estava sentado na borda da mesa, olhando-a de cima a baixo e se seus olhos sorriam era porque esse era o seu natural. Nunca ela os havia visto senão a esconder no fundo a sombra de algum gracejo íntimo e bem desfrutado.

Mas o seu instinto lhe dizia que ele estava levando muito a sério o que fazia e que a tarefa a ela atribuída tinha alguma razão oculta.

— Tome em primeiro lugar os distritos, verifique os hotéis e tudo o mais —, sugeriu ele; — verá que é mais interessante do que uma novela. Aqueles livrinhos —, apontou para as prateleiras apinhadas junto da janela, — levá-la-ão a estações, sítios e fazendas de todo o mundo. Será conduzida através de Manitoba, ao longo dos Estados Unidos, desde a Califórnia até a Nova Inglaterra. Conhecerá Sydney e Melbourne e os grandes trigais do fim do mundo. Sentar-se-á em frescos pátios e sorverá refrescos na companhia do Senor Don Perfecto de Cuba, que terá vindo a cavalo do seu rancho para saber a respeito do preço do trigo, ou, talvez, perambule apenas pela índia, no dorso de um elefante, dormindo em bangalôs, ouvindo o rugido dos tigres...

— Agora sei que está caçoando de mim — disse ela sorrindo.

— De forma alguma —, respondeu ele calmamente. — Deseja me perguntar alguma coisa? A propósito, a chave do escritório está na gaveta da direita; saia para almoçar quando quiser e demore quanto quiser. Seu cheque lhe será pago todas as sextas-feiras pela manhã.

— Mas, onde... — ela olhou em torno, — onde trabalha o senhor?

— Não trabalho — disse ele de pronto, — a senhorita faz o trabalho e eu colho os louros. Quando vier, sentar-me-ei na ponta da sua escrivaninha; não é elegante, mas é muito confortável. Há uma coisa que lhe desejava perguntar. Disse-me que trabalhou num escritório telegráfico... será que, entre outras prendas, sabe como operar o código Morse?

Ela meneou a cabeça.

- Vejo grande utilidade na senhora. Se precisar de mim _ ele mostrou com a cabeça um telefone sobre a mesa — disque para Gerrard 8761.

— E onde é isso? — indagou ela.

__ Se a julgasse uma jovem decididamente equilibrada, dir-lhe-ia que se trata do meu bar predileto. Todavia, não lhe darei essa inocente decepção.

Mais uma vez ela lhe viu nos olhos a luz irrequieta da malícia.

— É um homem estranho — disse — e não me tornarei ridícula, tentando aconselhá-lo.

Ouviu o riso macio dele quando a porta se fechou às suas costas e, apanhando uma pilha de guias, sentou-se para fazer o trabalho da manhã, o qual mostrou ser ainda mais fascinante do que todas as imaginosas descrições feita por ele. Ela se perguntava que finalidade prática se poderia dar a toda aquela informação que recolhia. Seria o Sr. Beale realmente um comprador ou estaria interessado na venda de maquinaria agrícola? Por que desejaria saber que Jonas Scobbs era o proprietário do Hotel e Empório Scobbs na cidade de Red Horse Valley, Alberta, e que importância teria o fato de que aquele cavalheiro possuía um automóvel de aluguel e ia todas as quartas-feiras de diligência até Regina?

Esses inesperados, e para ela até então desconhecidos nomes de lugares e pessoas puseram em marcha interessantíssimas seqüências de pensamentos.

Quando olhou para o relógio — impelida por uma indescritível sensação de fome — espantou-se de descobrir que. eram três horas da tarde.

Ergueu-se e foi até o escritório externo à procura do rapaz que, segundo lembrava vagamente, surgira diante dela com um pedido que ela atendera sem ter chegado a ouvir direito de que se tratava. Ele não estava à vista.

Ela se encaminhava de volta para sua sala, não sabendo ainda se esperaria o rapaz voltar ou se fecharia de vez o escritório, quando um arrastar de pés fê-la voltar-se.

O escritório externo era separado da entrada por uma comprida "cerca", cuja extremidade era ocultada por um biombo de madeira e vidro esfumado. O ruído vinha de trás do biombo e ela recordou-se de que havia ali uma cadeira — lugar no qual, evidentemente, os visitantes esperavam.

— Quem está aí? — perguntou.

Ouviu-se um rangido quando o visitante se levantou.

— Perrdon, senhorra — disse uma voz roufenha, — eu falar com o senhorr Peale, non está?

Ele se adiantou até tornar-se visível. Era um homem pequeno, com uma cara cadavérica e uma cabeça de tamanho monstruoso.

Ela sentiu a voz embargada e só fez olhar para ele, pois aquele era o homem que tinha encontrado no seu apartamento, na noite anterior à sua demissão — o homem que carregava consigo a Alfôrra Verde. Evidentemente, ele não a estava reconhecendo.

— O senhorr Peale me falarr eu prrecisava chamarr mit der telefone, mas a númerro fugirr do meu cabeça!

Ele piscou para ela com seus olhos míopes e colocou uma enorme e peluda mão sobre a balaustrada.

— Não... não entre — disse ela quase sem respirar — chamarei o Sr. Beale... sente-se novamente.

— Sch — fez ele obediente e se arrastou de volta até a cadeira, — diz que erra Herr Professor aqui.

A moça apanhou o receptor telefônico com mão trêmula e deu o número. Foi a voz de Beale que atendeu.

— Há um homem aqui —, disse apressadamente — ahn... ahn... o homem que esteve no meu apartamento... o Herr Professor.

Uma exclamação de aborrecimento.

— Sinto muito — e a julgar pela inflexão da sua voz, o pesar era genuíno. — Estarei aí, dentro de dez minutos, é um velhote inofensivo...

— Apresse-se, por favor.

Ela ouviu o "clique" do outro receptor e recolocou o seu no gancho, vagarosamente. Não tentou voltar ao escritório externo, mas ficou à espera, perto da porta fechada. Lembrou-se daquela noite, do terror da presença desconhecida e estremeceu.

Que teriam os dois, o Sr. Beale e o Herr Professor, em comum? A porta de fora bateu e ouviu-se a voz de Beale falando com rapidez. Ela Alemão provavelmente; ela jamais aprendera a língua e era quase incapaz de reconhecê-la, embora o gutural Zu bejel, Herr Pede soasse bem distinto. Os pés do homem se arrastaram, a porta se fechou e Beale entrou, a preocupação estampada no rosto.

— Não lhe posso dizer como lamento o velho ter aparecido - esqueci-me de que poderia vir.

Ela estava apoiada à mesa, ambas as mãos atrás do corpo. — Sr. Beale — perguntou — está disposto a me responder francamente algumas perguntas?

Ele concordou com um gesto.

— O Herr Professor é seu amigo?

— Não. — Conheço-o e, de certa forma, tenho pena dele. é um alemão que se faz passar por russo. Terrivelmente pobre e pouco atraente, mas cientista muito arguto. Na realidade, um analista químico de grande gabarito, que deveria ocupar uma posição de destaque. Ele me contou que sempre obteve as notas mais altas, mas suas deficiências físicas, seu aspecto monstruoso, foram sua ruína.

Os olhos dela se abrandaram de piedade.

— Se for verdade — começou a dizer, ao que ele levantou a cabeça. — Perdão, sei que é verdade. E trágico, mas... já o conhecia, antes de encontrá-lo no meu quarto?

Ele hesitou.

— Conhecia-o de nome e de vista. Conhecia o trabalho a que se dedicava e acredito que também as razões que o moviam. Mas, nunca lhe havia falado.

— Obrigada — agora me diga Sr. Beale, por que tanto mistério? Que é Alfôrra Verde? Por que finge ser um... um... bêbado, quando não o é? Por que está sempre tão providencialmente por perto quando precisam do senhor e... — a esta altura ela sorriu (segundo pareceu a ele) deliciosamente. — Por que não estava lá ontem, quando quase fui presa por furto?

Ele havia voltado a instalar-se no canto da mesa, sem dúvida alguma seu local de repouso predileto, pensava ela, e passou a contar nos dedos as perguntas que lhe eram dirigidas.

— Pergunta número um, sem resposta. Pergunta número dois, por que finjo ser um.. bêbado? — ele a imitou audaciosamente. — Há outras coisas que embriagam o homem além do amor e da cerveja, Srta. Cresswell.

— Que vulgar! — protestou ela. — Quais são?

— O trabalho, a caça, a pesquisa científica e o primeiro perfume primaveril do estrepeiro — disse ele com solenidade. — Quanto à terceira pergunta, por que não estava por perto quando a queriam prender? Bem, eu estava por perto. Estava no seu apartamento; quando chegou, fugi pela escada de incêndio.

— Sr. Beale! — ela engoliu em seco. — Então foi o senhor quem... o senhor é detetive!

— Quem virou sua escrivaninha e sua penteadeira de ponta-cabeça? Sim, fui eu — disse ele com desembaraço, não tomando conhecimento do restante da frase. — Procurava alguma coisa.

— Procurava alguma coisa? — repetiu ela. — Que procurava?

— Três envelopes registrados que haviam sido "plantados" no seu apartamento ontem pela manhã — disse ele — e, o que é mais importante, encontrei -os!

Ela levou a mão à fonte, atônita.

— Então, o senhor...

— Salvei-a de uma gélida, ultra-gélida cela de prisão. Não almoçou ainda? Por Deus, deve estar morta de fome!

E ele a empurrou para fora do escritório.

 

O SR. SCOBBS, de RED HORSE VALLEY

O Sr. Lassimus White era diretor-gerente e gerente geral da Loja Punsonby. Possuía, ou se* supunha possuir, uma terça parte das ações da empresa, ações que havia herdado de John Punsonby, seu tio e fundador da firma. Ganhava um salário principesco e retirava um dividendo substancial; era arrolado como detentor de debêntures e considerado homem rico.

O Sr. White, porém, não era rico. Seus salários e dividendos eram absorvidos por uma agência misteriosa que se denominava Union Jack Investment and Martgage Corporation, a qual pagava prêmios sobre o vultoso seguro de vida do Sr. White e arrecadava todo ou quase todo o seu rendimento. Seu segredo, embora muito bem guardado, não precisava ser segredo para o leitor. O Sr. White, que jamais pegara numa carta de baralho e que se tornava apoplético diante do pecado vergonhoso de apostar nas corridas, era um jogador inveterado. Sua paixão eram os sindicatos dos tesouros submersos, constituídos para recuperar lingotes de ouro a bordo de navios da armada espanhola; eram as companhias que se propunham canalizar o potencial hidrelétrico do oceano para usos comerciais; eram as companhias otimistas que descobriam minas de rádio nos Montes Urais — qualquer coisa que prometesse um sólido rendimento de 300% ao ano sobre o investimento inicial exercia um fascínio irresistível sobre o Sr. White, o qual argumentava que um dia alguma coisa iria corresponder às expectativas e então seus prejuízos seriam ressarcidos.

Entrementes, estava nas mãos de Moss Ibramovitch, funcionando com a Union Jack Investment and Mortgage Corporation, licenciado e registrado como agiota, segundo as prescrições da lei. O estar nas mãos daquele cavalheiro era menos agradável e muito mais dispendioso do que estar nas mãos dos executores falimentares.

Na tarde do dia em que Oliva Cresswell começou a trabalhar para o novo patrão, o Sr. White saiu pomposamente de sua sombria residência e se dirigiu rumo leste, bamboleando nas mãos o guarda-chuva.

Num momento de grande tensão e perplexidade, o Dr. van Heerden surgira-lhe no horizonte, e havia algo nas maneiras do Dr. van Heerden que inspirava confiança a respeito. Tinham-se conhecido por acaso, numa reunião de dissolução da Shining Strand Alluvial Gold Mining Company, empresa que se iniciara da melhor maneira possível na pesquisa de fabulosas riquezas descobertas por um filantropo americano numa ilha do Pacífico Sul.

Van Heerden não era acionista, mas tinha grande interesse nas pessoas que subscreviam quotas das Minas do Eldorado. O Sr. White comparecera incógnito — suas ações estavam em nome do seu advogado.

O Sr. White ficou satisfeito de encontrar uma alma bondosa que acreditava naquele tipo de especulação.

Era para o apartamento do médico que se encaminhava agora. Aquele cavalheiro o recebeu na entrada e o acompanhou até seu quarto. Havia luz na bandeira da porta do apartamento de Oliva, pois ela trouxera algum trabalho para completar em casa; mas o apartamento do Sr. Beale estava às escuras.

O médico notou isso antes de fechar sua porta e acender a luz.

— Bem, White, já se decidiu? — perguntou ele sem maiores preliminares.

— Eu,... já e ainda não — disse o cauteloso aventureiro. — Quarenta mil é um bocado de dinheiro.

— Já os conseguiu?

O Sr. White torceu o nariz, objetando àquele interrogatório direto.

— Meu corretor teve a fineza de resgatar as debêntures. — estou, ahn — estou até certo ponto em débito com ele — sim, tenho o dinheiro no Banco.

Ele olhou benevolamente para o outro, como alguém que está fazendo um favor, apenas por utilizar esse outro como confidente.

— Em primeiro lugar, doutor, perdoe-me se estou sendo um tanto cuidadoso; primeiro, acho que preciso saber um pouco mais acerca do seu extraordinário projeto.

O médico preparou um uísque com soda e passou o copo ao visitante, mas este recusou, sorridente.

— O álcool é um inimigo —, disse ele — nada mais forte do que a cidra jamais entrou em minha boca, por favor, não se ofenda.

— Todavia, ao que me lembra, o senhor possuía ações do Northern Saloon Trust — disse o médico.

— Aquilo — respondeu o Sr. White apressadamente, — era um negócio estritamente... ahn... comercial.

— Quanto ao meu projeto —, disse o médico mudando de assunto, — receio precisar pedir-lhe que faça um investimento no escuro. Posso prometer-lhe que receberá o seu capital de volta, centuplicado. Sei que já ouviu isso antes e que minha sugestão tem todas as aparências de um engodo, exceto que nem mesmo lhe ofereço a garantia de um tijolo de ouro. Talvez não use seu dinheiro. Creio que não irei fazê-lo. Por outro lado, talvez seja obrigado. Para que me seja de alguma utilidade, é necessário que me venha às mãos logo, amanhã mesmo.

Enquanto falava, passeava inquieto pela sala.

—Dir-lhe-ei mais — prosseguiu, — meu projeto, na bitolada interpretação da lei, é ilegal... não me entenda mal; não há perigo para os que investem, sem saber de que se trata. Arcarei com todas as responsabilidades. Pode participar ou ficar de fora, mas, se entrar, terei de pedir-lhe que jamais mencione o nome do empreendimento a quem quer que seja.

— O Sindicato da Alfôrra Verde — sussurrou a medo o Sr. White. — Que... ahn, que é Alfôrra Verde?

— Ofereci o projeto ao meu.. a um governo. Mas estão com medo de mexer com ele. Medo! — Ele ergueu os braços e sua voz vibrava de paixão. — A Alemanha com medo! E houve tempo em que a Europa se encolhia ante o tinir da espada prussiana! Em que a menor palavra de Potsdam punha Ministérios a tremer, em Petrogrado ou em Londres. Disse-me, outro dia, que foi pacifista durante a guerra e que se solidarizou com a Alemanha em sua humilhação. Sou alemão, por que negá-lo? Adoro a religião do poder. — Em minha opinião seria preferível que a velha civilização fosse calcada na lama do esquecimento, a ser banida a cultura alemã... mas estou bancando o tolo.

Com esforço, recobrou a calma.

— A guerra já terminou. Como disse, ofereci meu segredo ao meu Governo. Acharam-no bom, mas ficaram com receio de que a Liga das Nações descobrisse que estavam a apoiá-lo. Ajudar-me-ão de outra maneira... de maneira inocente. Se este projeto for avante, colocarão todos os recursos do Estado à minha disposição.

O Sr. White levantou-se, procurou pelo chapéu e pigarreou.

— Dr.... ahn... van Heerden, pode estar seguro que respeitarei seu segredo. Compreendo inteiramente sua muito justa indignação. Mas esqueçamos... ahn... que me contou o projeto em detalhes, particularmente naquilo que concerne à sua legalidade. — O Sr. White enfiou a mão no peito do casaco. — Esqueçamos tudo menos isto: o senhor me convida a subscrever 40.000 libras num sindicato pró... ahn... digamos conjuntos residenciais para as classes trabalhadores e estou disposto a atendê-lo, e como prova, lhe mandarei pelo correio noturno um cheque daquela quantia. Boa noite, doutor.

Ele apertou a mão do médico, enterrou o chapéu na cabeça, abriu a porta e foi de encontro a um homem que se aprestava para tocar naquele instante o botão da campainha.

Ambos recuaram.

— Perdão — sussurrou o Sr. White e disparou escada abaixo.

O Dr. van Heerden olhou com raiva para o visitante.

— Entre, idiota! — sibilou ele e quase arrastou o homem para dentro do quarto, — por que saiu da Escócia?

— Detesto a Escócia! — disse o visitante com voz rouca. — Desterrar uma pessoa nos ermos, entre montanhas bravias!

— Quando chegou? — perguntou van Heerden.

— Às sete da noite. Viajei de terceira classe! Eu! Não é absurdo para um homem como eu... terceira classe, junto com gente suja e ordinária, gostaria de esfolá-los vivos a todos!

O médico examinou aquele rosto grosseiro e inchado pela bebida, a boca frouxa e débil; esboçou um meio sorriso ante a vaidade do monóculo e apontou para a garrafa.

— Fez mal em vir — disse. — Arranjei-lhe uma passagem para o Canadá na próxima semana.

— Não irei! — disse o homem, sorvendo um gole. — Maldito seja, van Heerden, por que serei obrigado a me esconder e voar como um... um...

— Como um homem procurado pela polícia de três países, por crimes diversos que vão desde o incêndio proposital até o assassínio premeditado — aventou o médico.

O homem estremeceu.

— Tudo tem suas compensações, meu caro — disse ele com mais brandura — não fosse eu um beberrão gabola e estúpido, você jamais teria sabido alguma coisa a respeito deles, maldito seja! Fui um louco! Tinha-o na palma da mão! — ele fechou o punho diante do nariz de van Heerden. — Eu vi tudo. Vi quando maltratou o pobre-diabo, tentando extorquir-lhe um segredo. Vi quando o esfaqueou...

— Quieto! — sibilou van Heerden. — Seu tolo: podem nos ouvir através destas paredes.

- Mas não há janelas através das quais se possa ver — disse o homem lançando um olhar de soslaio — e eu vi!

O rosto de van Heerden estava branco como um lençol.

- Teve sorte por me haver encontrado aquela noite, meu

caro rapaz — prosseguiu o homem. — Estava com vontade de denunciá-lo.

__ Não tem por que lamentar o nosso encontro, Jackson - disse o médico. — Penso que ainda usa esse nome ?

— Sim, Jackson — disse o outro com presteza. — Jackson, filho de Jack. Bom nome, hem? Tanto para mim como para qualquer outro. Sim, você me encontrou e foi bom para mim. Desejaria que não tivesse sido assim.

— Idiota ingrato! — disse van Heerden. — Provavelmente salvei-lhe a vida — escondi-o em Eastbourne, levei-o até Londres, estando a polícia no seu encalço.

— No meu encalço! — rosnou o outro. — Que golpe mais baixo, por Deus do Céu!

— Não seja idiota.... que palavra teriam aceitado, a sua ou a minha? Agora vejamos, na próxima terça-feira, você segue para Quebeque...

Ele detalhou suas instruções e o homem chamado Jackson, enternecido por reiteradas visitas à garrafa, ouvia-as e chegou mesmo a aprová-las.

No outro lado do corredor, atrás da porta cerrada, Oliva Cresswell, a mesa recamada de papéis e livros, trabalhava com afinco.

Estava grandemente ansiosa por dar ao Sr. Beale uma amostra do trabalho que fizera pela manhã e aprontava uma cópia daquilo que, naquela tarde, havia descrito a ela como sua "lista de hotéis".

— São nomes estranhos — dissera — há um chamado Scobbs, de Red Horse Valley — Scobbs!

Ela rira.

— Por estranho que pareça, conheço o Sr. Scobbs, que é um figurão e tanto naquela parte do mundo. Possui uma cadeia de hotéis no Oeste do Canadá.

Mesmo que o nome passasse despercebido uma vez, não lhe teria sido possível fugir dele, pois Jonas Scobbs era proprietário do Hotel Scobbs, em Falling Star City; do Bellevue em Snakefence, do Palace em Portage.

Ela preencheu a última lauda, secou-a com o mata-borrão, juntou todas as laudas e as prendeu com um pegador.

Ao começar a despir-se, perguntava-se se não iria sonhar com Scobbs ou com.. não, não queria sonhar com homens de cabeças enormes e caras pálidas e o pensamento despertou-lhe uma dúvida. Teria aferrolhado a porta do apartamento? Atravessou descalça o corredor, puxou os ferrolhos e se deu conta de vozes no lado de fora. Estas lhe chegavam com clareza através do ventilador sobre a bandeira da porta.

Ouviu o médico dizer algo e depois uma voz que nunca ouvira antes.

— Não se preocupe, tenho uma memória excelente. Por Deus!...

O médico murmurou qualquer coisa que não chegou até ela, mas...

— Sim, sim... Hotel Scobbs, Red Horse Valley... conheço bem o lugar... boa noite, queridinho...

Uma porta bateu, algumas passadas incertas morreram no poço da escada, e ela ficou a sós com o seu espanto.

 

O SR. BEALE FALA FRANCAMENTE

Oliva Cresswell positivamente não se sentia com sono, de modo que apanhou um livro e acomodou-se na poltrona de vime, para a meia hora de leitura que a colocaria no estado de sonolência desejado. Em qualquer outra ocasião, o livro ter-lhe-ia prendido a atenção, mas naquele momento seus pensamentos divagavam. Do outro lado da parede estava o jovem que de forma tão estranha se havia imiscuído em sua vida. Ou não estaria em casa? Que faria à noite um homem como aquele?

Ela ouviu uma batida surda que vinha da parede.

O Sr. Beale estava, portanto, em casa e havia encostado uma cadeira contra a parede ou então batia pregos àquela hora da noite.

— Toc-toc-toc — uma pausa toc-ti-toc-ti-toc.

O som cavo parecia ser produzido com o punho, a batida com as pontas dos dedos.

O ruído se repetiu.

Súbito, a moça se ergueu com uma risada. Ele estava a mandar-lhe sinais e fizera "O. C." — suas iniciais.

Ela bateu três vezes com o dedo, uma vez com a mão espalmada e novamente com o dedo. Em o sinal de "Compreendido".

Ele então começou e ela anotou a mensagem na margem do livro.

"— Urgentíssimo: não use sabão. Traga-o ao escritório." Ela sorriu frouxamente. Como piada, esperava por algo mais brilhante, mesmo do Sr. Beale. Bateu o "Recebido" e foi para a cama.

"Matilde, minha criança inocente" — disse para si própria, ao ajeitar-se sob as cobertas, — "trocar sinais com um inquilino não é correto e nem próprio de uma dama."

O bater insistente do carteiro acordou-a, às oito e trinta, de um sono sem sonhos e, meio desperta, ela enfiou o roupão e foi atender à porta.

— Um pacote, senhorita —, disse o invisível funcionário e lhe pôs na mão estendida para fora da porta uma carta e um pequeno embrulho. Ela veio para a sala de estar e correu as cortinas. A carta estava datilografada no papel de um perfumista muito conhecido. Era dirigida à Srta. Oliva Cresswell e dizia:

"Prezada senhora

Temos o prazer de lhe enviar uma amostra do nosso novo sabonete para a pele, o qual, acreditamos, merecerá sua aprovação."

"Mas que bom", disse ela, sem saber porque havia sido escolhida para a distinção. Abriu o pacote. Numa pequena caixa, cuidadosamente envolvido em finíssimo papel, havia um sabonete ovalado cor de lavanda, que exalava uma fragrância delicada.

"Não use sabão. Traga-o ao escritório."

Lembrou-se da mensagem num instante. Beale sabia que tal pacote lhe seria mandado e seu aviso de "urgentíssimo" não fora uma brincadeira. Ela mal tomou o desjejum e estava no escritório dez minutos antes do horário.

Encontrou seu empregador à espera, no costumeiro lugar, na ponta da sua mesa de trabalho. Ele lhe fez um pequeno aceno e sem qualquer palavra estendeu a mão.

— O sabão? — indagou ela. Ele assentiu com a cabeça. Ela abriu a bolsa.

— Bom —, disse ele. — Vejo que conservou o invólucro e isso, suponho, é a carta que veio junto com o... digamos assim.. presente. Não o toque com a mão nua. Enrole-o no papel.

Sacou as luvas do bolso e calçou-as, depois tomou nas mãos a caixa do sabonete, levou-a até à luz, cheirou-a e recolocou-a no papel.

— Deixe-me ver a carta agora.

Ela a entregou e ele leu.

— Do perfumista Brandan. Não terá nada com o caso, mas convém termos certeza.

Ele foi até o telefone, deu um número e a moça o ouviu falar em voz baixa a alguém na outra ponta da linha. Depois, recolocou o receptor no gancho e voltou, as mãos metidas nos bolsos.

— Nada sabem acerca deste ato de generosidade — disse.

Ela havia tirado o capote e o chapéu e se acomodara junto à escrivaninha. Tinha os cotovelos sobre o mata-borrão, o queixo enterrado nas mãos e os olhos levantados para ele.

— Não acho justo que continue a ocultar de mim as coisas — disse. — Muitas coisas misteriosas aconteceram nestes últimos dias e, uma vez que todas me afetaram de forma direta, acho que tenho direito a alguma satisfação.

— Acho que tem — disse o Sr. Beale, piscando os olhos cinzentos, — mas não estou preparado para dar qualquer explicação, por hora. Dir-lhe-ei, todavia, que se houvesse usado este sabonete pela manhã, à tarde estaria coberta da cabeça aos pés por uma urticária terrível e exasperante.

Ela engoliu em seco.

— Mas quem teve a ousadia de me mandar isto? Ele deu de ombros.

— Quem sabe? Mas, em primeiro lugar deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Srta. Cresswell: suponha que esta noite ao olhar-se no espelho descobrisse ter o rosto coberto de placas vermelhas e, continuando o exame, visse os braços e todo o restante do corpo igualmente desfigurados, que faria nesse caso? Ela pensou por um instante.

— Claro que chamaria um médico.

— Que médico? — indagou ele displicentemente.

— O Dr. van Heerden — oh ! — ela o encarou ressentida.

__ Não estará insinuando que o Dr. van Heerden me enviou

essa coisa, horrorosa?

— Não estou insinuando coisa alguma — disse friamente o Sr. Beale. — Digo apenas que chamaria um médico e que esse médico seria o Dr. van Heerden. Digo mais: ele teria vindo e se mostrado muito solícito e lhe teria mandado guardar o leito três ou quatro dias. Acho também — prosseguiu ele, erguendo os olhos para o teto e falando bem devagar — que lhe teria receitado alguma droga de sabor muito agradável.

— Que está pretendendo dizer? — perguntou ela calmamente.

Ele não respondeu de pronto.

— Se tirasse da cabeça que alimento qualquer antipatia especial contra o Dr. van Heerden, que tenho algum ódio secreto contra ele, e se, no lugar de tal suspeita, acreditasse que sirvo a um interesse muito mais elevado do que poderá parecer, penso que poderíamos discutir — ele sorriu — até mesmo o Dr. van Heerden, sem que a discussão a ofendesse.

Ela riu.

— Na verdade, não estou ofendida. Estou antes decepcionada, do que qualquer outra coisa —, disse franzindo as sobrancelhas. — Sabe, o Dr. van Heerden foi sempre muito bondoso comigo.

Beale concordou com um gesto.

- Arranjou-lhe um apartamento no Edifício Krooman; mostrou-se pronto a dar-lhe emprego, no momento em que foi providencialmente demitida de Punsonby. Não a surpreende, senhorita Cresswell, que todo ato de bondade do Dr. van Heerden tenha tendido a aproximá-los um do outro, cada vez mais? Não lhe parece que o resultado líquido de todas as coisas que lhe poderiam ter sucedido nos últimos dias seria torná-la progressivamente mais dependente do Dr. van Heerden? Por exemplo, se tivesse aceitado o emprego, em concordância com seus planos?

— Planos? — suspirou ela.

— Planos — disse ele com tranqüilidade. — Foi dispensada de Punsonby devido à pressão do Dr. van Heerden.

— Não acredito!

— Coisa que não altera os fatos —, disse o Sr. Beale. — Quase foi presa — mais uma vez devido à pressão do Dr. van Heerden. Ele estava à sua espera quando voltou da Punsonby, pronto para lhe dar um emprego. Quando descobriu que já estava empregada, telefonou para White, instruindo-o a mandar prendê-la, a fim de que ficasse desmoralizada e fosse obrigada a recorrer a ele, seu único amigo leal.

Ela ouvia sem abrir a boca. Tudo o que conseguia era apenas olhar para ele. Pois seu aguçado instinto feminino estava a lhe dizer serem as palavras dele, se não verdadeiras pelo menos viáveis, e de forma tão convincente que nem mesmo seu senso de lealdade era capaz de elidir a dúvida presente em seu espírito.

— Digo ainda mais — prosseguiu Beale — digo que por algum motivo o Dr. van Heerden pretende assegurar-se numa ascendência mental, física e moral sobre a senhora.

Ela olhou para ele assombrada e rompeu numa gargalhada estridente.

— Ora, Sr. Beale, está sendo realmente absurdo.

— Estou mesmo, não? — ele sorriu — parece algo tirado de um melodrama.

— Por que haveria o doutor de pretender alguma ascendência mental sobre mim? O senhor não estará querendo insinuar... — ela corou.

— Já não estou querendo insinuar mais nada — disse Beale, escorregando o corpo para fora da mesa. — Faço apenas uma constatação de fatos. Não acho que tenha quaisquer intenções a seu respeito, no sentido convencional da expressão; na verdade, creio que deseja casar com a senhora. Que pensa disso?

Ela recobrara algo do seu aprumo e o seu senso de humor a ajudava a safar-se de uma situação que, sem tal qualidade, poderia tornar-se embaraçosa.

- Penso que o senhor tem assistido a muito teatro e lido em demasia os romances de mistério, Sr. Beale — disse ela.

- Confesso que jamais encarei o Dr. van Heerden como um possível admirador e que, se pudesse fazê-lo, ficaria imensamente lisonjeada. Mas, permita-me dizer-lhe: é muito possível conquistar uma moça sem recorrer à urticária!

Riram juntos.

- Muito bem — disse ele, jogando o chapéu para cima, - prossiga na sua bela obra e localize os vários domicílios do

Sr. Scobbs.

Ela então se lembrou.

— Sabe de uma coisa...?

Ele já estava na porta e se deteve.

— O nome do Sr. Scobbs me dá arrepios.

— Por quê?

— Responda-me o seguinte: por que eu, que até ontem jamais escutara tal nome, haveria de ouvi-lo na boca de um perfeito desconhecido?

O sorriso se apagou dos lábios dele.

— Quem falou nele? Não, não é simples curiosidade —-disse ante o dedo trocista que a moça lhe apontou. — Falo realmente a sério. Quem mencionou esse nome?

— Um homem que visitou o Dr. van Heerden. Ouvi-os através do exaustor.

— Um homem que visitou o Dr. van Heerden e mencionou o Sr. Scobbs, de Red Horse Valley — comentou ele consigo próprio. — Não chegou a ver esse homem?

— Não.

— Ouviu-o apenas. Nenhum nome foi mencionado?

— Nenhum —, disse ela — é muito importante?

— Bastante — replicou ele, — é preciso entrar em ação — e, com essa observação misteriosa, se foi.

O dia passara tão rapidamente como o anterior. As tabelas que ela preparava começaram a crescer e à noitinha havia toda uma pilha de laudas sobre a mesa da esquerda, vazadas na sua bela caligrafia. Poderia ter produzido mais, não fora o tempo gasto em procurar um relatório que estava faltando. Não o encontrara na prateleira e estava a pique de abandonar a busca e deixar a confirmação para quando se encontrasse com Beale, quando se deu conta de um armário sob as prateleiras. Não estava fechado à chave e ali encontrara, conforme esperava, uma porção de livros, entre os quais a documentação de que precisava. Com vistas a contingências futuras, examinara o conteúdo do armário e se surpreendera diante de um magro volume sem título na capa. Abrira-o e na página de frente lera O Assassinato de Milltonborn. O nome do autor não aparecia e o texto consistia de análise muito cuidadosa das provas fornecidas pelas várias testemunhas durante o inquérito e havia ainda planos e diagramas, com pequenas cruzes vermelhas assinalando onde estivera cada um dos personagens da tragédia.

Lera sem pressa a primeira página. Já chegara à metade da segunda, quando deixou escapar uma exclamação, pois lá estava um nome conhecido, o do Dr. van Heerden.

Fascinada, foi até o fim da estória, esperando de alguma forma que o nome do Sr. Beale aparecesse.

Havia numerosos nomes desconhecidos para ela e o que ocorria com maior freqüência era o de James Kitson. O Sr. Beale não aparentava ter tido qualquer participação. Terminado, fechado e recolocado no armário o livro, perguntara-se porque Beale conservava aquele relatório e se o seu antagonismo para com van Heerden não se basearia naquele caso.

Aborrecera-se consigo mesma por haver permitido tal interrupção em seu trabalho e, como penitência, decidiu ficar até as seis, ao invés das cinco, como pensara. Ademais, supunha que o Sr. Beale retornaria e foi com surpresa que constatou seu desaponto ante a não aparição dele.

Às seis horas dispensou o rapaz, fechou o escritório e saiu à rua apinhada de gente.

Surpreendida, ouviu que a chamavam pelo nome e, voltando-se deu com o Dr. van Heerden.

— Faz quase uma hora que a espero — disse ele numa branda admoestação.

— E seus pacientes estarão provavelmente morrendo como moscas — redargüiu ela.

Tinha em mente dar uma desculpa qualquer e voltar só para casa, mas a curiosidade foi mais forte do que ela e a forçou a esperar até descobrir as razões daquela visita.

- Como soube onde eu estava trabalhando? — indagou ela.

Ele riu.

- Coisa muito simples. Dirigia-me para a casa de um parente, quando a vi sair para almoçar e, como me encontrava nas vizinhanças uma hora atrás, decidi esperar a fim de levá-la para casa. Está cometendo uma tolice — acrescentou ele.

- Quer dizer, ao parar para lhe falar?

- Não, ao se empregar com um sujeito como Beale. Sabe

a reputação que tem!

— Creio que não precisa se aborrecer por mim, doutor — disse ela mansamente. — Na verdade o Sr. Beale é muito agradável., nos seus momentos de lucidez, — ela sorriu consigo mesma.

— Mas um beberrão, irra! — O exótico doutor estremeceu.

- Sempre tentei ser seu amigo, Srta. Cresswell; aconselho-a a pedir a conta ao Sr. Beale.

— Como o senhor é absurdo — riu-se ela. — O Sr. Beale me tem tratado com a máxima consideração.

— Afinal de contas, o que é que faz? — indagou o médico.

— É uma espécie de agente — disse a moça, — mas, preciso ir-me, doutor; com licença.

— Um momento — suplicou ele. — Tenho um carro aqui. Não quer ir a alguma parte tomar chá?

— Onde é alguma parte? — perguntou ela.

— O Grand Alliance — sugeriu ele. Ela meneou lentamente a cabeça.

 

O CRIME DO GRAND ALLIANCE

O Hotel e Café Grand Alliance era o mais novo ponto de encontro de Londres. Seu grande pátio ornamentado de palmeiras ficava apinhado à hora do chá e se, conforme insinuara o misterioso Sr. Beale, o Dr. van Heerden representasse algum perigo, isso não se faria sentir naquele lugar público e aberto.

Era mais tarde do que pensara. Apenas uma poucas mesas estavam ocupadas, mas ele havia evidentemente feito uma reserva, pois tão logo apareceu, o garçom lhe sorriu com afetação, conduzindo-o até uma das recâmaras, e puxou uma cadeira para a moça. Ao descalçar as luvas ela olhou em torno. O lugar não lhe era desconhecido.

O pátio das palmeiras eram um espaçoso saguão de mármore, um vasto círculo de pilares polidos sustentando a abóbada, através de cujos vidros claros a luz se filtrava em suaves matizes sobre o chão de mármore.

— Doutor — disse ela, recordando-se de súbito, — estive lendo a seu respeito esta tarde.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— A meu respeito?

Ela meneou a cabeça, sorrindo maldosamente.

— Estive lendo acerca do assassinato de John Millinborn.

— Acerca do assassinato de John Millinborn? — disse ele com firmeza, olhando-a nos olhos. — Um caso desagradável que eu gostaria de esquecer.

— Achei tremendamente emocionante — disse ela. Ele riu.

— Que assunto mais repelente para a hora do chá — disse ele despreocupado, e acenou para o maitre. — Estamos esperando, Jacques.

— Dentro de poucos instantes, doutor — pediu o maitre e depois, em voz baixa, — tivemos aborrecimento com o seu amigo esta tarde, doutor.

— Amigo?

— O Sr. Jackson.

— Jackson? — disse o médico sobressaltado — pensei que tivesse ido embora.

— Deveria ter partido esta manhã pelo trem das dez, mas teve um desmaio. Fizemo-lo voltar a si com conhaque, mas não estava bem e teve uma recaída à tarde.

— Onde está agora? — indagou van Heerden após uma pausa.

— No quarto, monsieur. Esta noite parte para a Irlanda (assim disse) a fim de apanhar o vapor em Queenstown.

— Que não saiba da minha presença aqui — disse o médico.

Ele se voltou para a moça com um sacudir de ombros.

- Um amigo perdido que estou mandando para as colônias — disse.

— Não vai vê-lo? — indagou ela. — Deve estar muito doente, se tem tido desmaios.

— Acho que não — disse o Dr. van Heerden tranqüilamente, — esses pequenos ataques não têm importância; uma dessas noites teve um no meu quarto. É o resultado dos seus excessos; seis meses no Canadá farão dele um homem.

Ela não respondeu. Com dificuldade conteve uma exclamação. Então era esse o homem que estivera no quarto do médico e que ia para Red Horse Valley! Retomou a conversação no ponto em que ele pretendera cortá-la.

— Conhece o Sr. Kitson?

— Kitson? oh, sim, refere-se ao advogado — replicou ele com relutância. — Conheço-o, mas infelizmente não sei de nada que o possa abonar. Agora lhe vou dizer uma coisa, Srta. Cresswell, baixou a voz — algo que jamais disse a quem quer que seja. A senhorita levantou o questão do assassinato de John Millinborn. Em minha opinião, o advogado Kitson sabia mais a respeito desse assassinato do que qualquer outra pessoa. Se há alguém que sabe mais, esse é Beale.

— O Sr. Beale? — disse ela incredulamente.

— O Sr. Beale — repetiu ele — conhece a história do crime: disse-me que leu a respeito. Millinborn estava morrendo e eu havia saído do quarto com Kitson, quando alguém entrou pela janela e esfaqueou Millinborn. Tenho razões para crer que tal crime foi testemunhado pelo homem que estou enviando para o Canadá.

Uma sombra se abateu sobre o rosto dela.

— Então foi Jackson o homem que o Sr. Kitson viu no bosque?

— Exatamente —, disse o médico.

— Mas, não compreendo —, fez ela perplexa — a polícia não está à procura de Jackson?

— Não creio ser do interesse da justiça encontrá-lo — disse o médico com gravidade. — Deposito toda a confiança nele. Vou mandar o Sr. Jackson para uma fazenda em Ontário dirigida por um médico meu amigo que se dedica ao tratamento dos dipsômanos.

Ele a encarava sem vacilações.

— Dr. van Heerden — disse ela lentamente — o senhor vai enviar o Sr. Jackson a Red Horse Valley.

Ele recuou como que atingido por um raio.

— Que... Que sabe você ? — indagou balbuciante.

Seu rosto se tornara branco, seus olhos trágicos de terror. Ela se alarmou ante o efeito de suas palavras e apressou-se em desfazer a impressão que criara.

— Sei apenas que ouvi o Sr. Jackson pelo ventilador do meu apartamento a despedir-se do senhor outro dia. Mencionou Red Horse Valley.

Ele inspirou profundamente e assenhoreou-se de si mais uma vez.

— Ah, isso — disse — é uma ficção delicada. Jackson está informado acerca do lar para os alcoólatras em Ontário e tive de inventar um destino para ele. Não irá mais longe do que...

— Ora, macacos me mordam se não for o doutor!

Ao som daquela voz rouca, ambos ergueram as vistas. O homem chamado Jackson os saudava do meio do saguão. Estava bem vestido, mas alfaiate algum seria capaz de compensar a repulsividade daquele rosto enrugado e tumefato, daqueles olhos malignos. Envergava um terno xadrez berrante, trazia um chapéu novo nas mãos e a abóbada cônica de sua cabeça rebrilhava calvamente.

— Macacos me mordam, doutor, quanta bondade a sua! Ele não olhou para a moça, mas sorriu com complacência.

— Cá estou — distendeu os braços num gesto esdrúxulo — a deixar o meu país de adoção, quando não de nascimento, sem uma só alma que se vá despedir de mim ou desejar-me boa viagem. Eu, que tenho sido... bem, você sabe o que tenho sido, van Heerden. O mundo me tem tratado muito mal.

— Silêncio ! — disse van Heerden irado. — Não percebe que estou com uma senhora?

— Perdão. — O homem chamado Jackson ergueu-se de um salto da cadeira sobre a qual desabara e fez uma reverência extravagante na direção da moça. — Não lhe posso ver o rosto por causa do chapéu, minha cara senhora, — disse galantemente, mas tenho certeza de que meu amigo van Heerden, cujo gosto...

__ Quer calar a boca? — disse van Heerden. — Vá para o seu quarto e irei ter com você.

- Ir para o meu quarto! — escarneceu o outro — por Deus! Essa é boa! Um mendiguinho qualquer e me dizer que vá para o meu quarto. Depois de tudo o que fui; depois da posição que tive na sociedade, é demais!

— Então, comporte-se — disse o Dr. van Heerden — e pelo menos espere que eu esteja livre antes de tornar a aproximar-se de mim.

Mas o homem não mostrou qualquer disposição de ir embora; aquele último vexame estimulou antes o seu poder de recordação.

— Não me dê atenção, senhorita; não sei o seu nome, mas tenho certeza de que é nobre. Tem diante de si alguém que foi um dia um grande cortejador de damas. Por Deus! Foram milhares e apenas uma valia algo. Sim, — ele sacudiu a cabeça —, apenas uma. Por Deus! o resto era... — estalou os dedos — não era nada!

A moça ouvia contrafeita.

— Jackson ! — e a voz de van Heerden tremia de ódio, — vai embora ou sou obrigado a jogá-lo daqui para fora?

Jackson ergueu-se com uma possante gargalhada.

— Evidentemente, estou de trop — disse com sarcasmo. Estendeu uma mão inchada que van Heerden fingiu não ver.

— Adeus, mademoiselle. — Ele jogou a mão para a frente, de modo que ela não pudesse deixar de apertá-la.

Ela apanhou aquela coisa fria e flácida e sentiu um frêmito de horror por todo o corpo e, pela primeira vez, ergueu o rosto diante dele.

Ele deixou cair a mão. Seus olhos se fixavam nela, estava boquiaberto e suas feições distorcidas de medo.

— Você — sussurrou. — Mary!

— Vá pro diabo! Suma-se! — disse van Heerden, empurrando-o. Embora recuando um passo sob o peso do braço do outro, seus olhos não se despregaram da moça e esta, fascinada, era incapaz de voltar o rosto.

— Mary — murmurou ele, — qual é o seu outro nome? Com esforço a moça se recompôs.

— Meu nome não é Mary —, disse calmamente — meu nome é Oliva Cresswell.

— Oliva Cresswell — repetiu ele — Oliva Cresswell!

Fez um movimento na direção dela, mas van Heerden bloqueou-lhe o caminho. Ela ouviu Jackson dizer qualquer coisa com voz estrangulada e ouviu van Heerden gritar incisivamente —- Quê ! Seguiu-se uma feroz troca de palavras.

A atenção dos poucos fregueses presentes no pátio das palmeiras foi despertada por aquele espetáculo inusitado de dois homens aparentemente entregues a um luta corporal.

— Sente-se, cretino! Sente-se ali! Irei falar com você num minuto. Jura ser verdade o que diz?

Jackson fez sinal que sim. Tremia dos pés à cabeça.

— Meu nome é Prédeaux — disse — esta é minha filha — Casei sob o nome de Cresswell. Minha filha — repetiu. — Que maravilha!

— Que vai fazer? — perguntou van Heerden.

Este havia em parte conduzido, em parte empurrado o outro até perto de um dos pilares da rotunda.

— Vou lhe contar — disse o mulambo. — Que está fazendo com ela? — indagou com ferocidade.

— Não é da sua conta — replicou van Heerden.

— Não é da minha conta, hem! Vou lhe mostrar que é. Vou lhe contar tudo quanto sei a seu respeito. Fui um porco, mais do que um porco. — A velha arrogância havia desaparecido e a voz estridente vibrava de determinação. — Meu caminho sempre esteve juncado de vidas humanas — disse com amargura, — na maioria mulheres. Parti o coração da melhor mulher do mundo e evitarei que você parta o coração à filha.

— Quer ficar quieto? — sussurrou van Heerden. — Vou mandá-la embora e virei ter com você.

Jackson não respondeu. Estava encolhido na cadeira, resmoneando consigo mesmo, e van Heerden retornava ligeiro para onde estava a moça.

— Receio que precise deixá-la voltar sozinha. Está tendo um dos seus ataques. Acho que é delirium tremem.

- Pare! — era a voz de Jackson.

Ele balançava o corpo a meio caminho entre a cadeira onde estivera sentado e a recâmara e apontava o dedo trêmulo para eles,— Pare! tenho algo para lhe dizer. Sei que... ele a está fazendo pagar pela Alfôrra Verde...

Foi até ali, rodopiou e arriou, amontoando-se no chão. O médico saltou por diante, ergueu-o e o carregou até a cadeira perto do pilar. Apanhou o sobretudo que o homem usava e o estendeu sobre ele.

— É um desmaio; nada que possa causar alarme — disse ao pequeno grupo de pessoas que se havia formado em torno da flácida figura. — Jacques — disse, chamando o maitre — arranje um pouco de conhaque.

— Chamo uma ambulância, m'sieur?

— Não é necessário —, disse van Heerden. — Estará bom dentro de poucos minutos. Deixe-o em paz —. E voltou para a recâmara.

— Quem é ele? — indagou a moça, e sua voz tremia apesar dos seus esforços em contrário.

— É um homem que conheci em épocas melhores — disse van Heerden; — acho que precisa ir agora.

— Prefiro esperar para ver se melhora — disse ela. — Eis aí o garçom! Trouxe o conhaque. Não lhe vai dar um pouco?

Foi o médico quem, em presença dos fregueses reunidos, dissolveu uma cápsula branca no conhaque, antes de descerrar à força os dentes e despejar a bebida até a última gota pela goela do homem.

Jackson ou Prédeaux, para lhe dar seu verdadeiro nome, estremeceu ao beber, tornou a estremecer e de repente ficou mole.

— Receio que esteja morto — disse em voz baixa.

— Morto! — a moça olhava para ele — Oh, não! morto não!

Van Heerden balançou a cabeça. , — Colapso cardíaco — esclareceu.

— O mesmo tipo de colapso cardíaco que vitimou John Millinborn — disse uma voz vinda de trás dela. — O preço da Alfôrra Verde está subindo, doutor.

A moça se voltou e o Sr. Beale estava a seu lado, mas tinha os olhos fixos sobre van Heerden.

 

UM CRIME CONTRA O MUNDO

— Que quer dizer? — perguntou o Dr. van Heerden.

— Estou apenas repetindo as palavras do falecido — respondeu Beale — colapso cardíaco!

Ele apanhou da mesa o estojo de couro que o médico sacara do bolso. Havia quatro pequenos frascos, um dos quais destampado.

— Digitalina! — leu. — Isso não o deveria ter matado. Olhou pensativamente para van Heerden e depois tornou

a apanhar o frasco. Viu o rótulo de uma conhecida firma farmacêutica e o lacre, ao que parecia, havia sido rompido pela primeira vez.

— Não chamou a polícia? — perguntou Beale ao agitado gerente.

— Oui, m’sieur — diretamente. Acho que já vem vindo.

Ele se encaminhou para o vestíbulo, a fim de receber três homens em trajes comuns que acabavam de passar pela porta do vaivém. Havia algo na atitude de van Heerden, que parecia estranho a Beale. Permanecia no exato local em que estava quando Jackson teve o colapso. Parecia que algo o pregava ao chão. Não se moveu, nem mesmo quando os homens da ambulância levantavam o corpo e nem quando os policiais anotavam particularidades acerca das circunstâncias da morte. E Beale, ao subir em companhia da traumatizada moça, a fim de encontrar um quarto onde ela pudesse descansar, olhou por sobre o ombro e o viu sempre de pé, a cabeça inclinada, a acariciar a barba com os dedos.

— Foi horrível, horrível — disse a moça arrepiando-se.

Beale assentiu com a cabeça. Seus pensamentos estavam voltados para o médico. Qual seria a razão daquela estranha para Bisia que o mantinha acorrentado ao chão, mesmo depois de o corpo haver sido removido?

A moça falava, mas ele não ouvia. Sabia por instinto que na atitude de van Heerden estava a solução para a morte de Prédeaux.

— Peço-lhe licença por um minuto — disse ele.

Com rápidas passadas saiu do quarto, desceu as largas escadarias e foi até o pátio das palmeiras.

Van Heerden havia se retirado.

A explicação lhe veio num lampejo e ele correu para o lugar onde o médico estivera.

Sobre o assoalho marchetado havia uma pequena área, não maior do que um pires, a qual fora recentemente lavada.

Fez um sinal ao gerente que se aproximasse. — Quem limpou este ladrilho? — indagou. O gerente encolheu os ombros.

— Foi o doutor m'sieur, — tão excêntrico! Pediu um copo d'água, umedeceu a ponta do lenço e depois ergueu o pé e limpou o chão com o lenço!

— Tolo! — explodiu Beale. — Grandíssimo tolo!

— M’sieur! — exclamou o gerente, espantado.

— Não é nada, m'sieur Barri — sorriu Beale pesarosamente, — falava comigo mesmo — oh, como fui tolo!

file se pôs de joelhos e examinou o chão.

— Quero este ladrilho; não permita que ninguém toque nele.

Claro que van Heerden se mantivera sem arredar pé dali, porque sob o pé esmagara a pastilha de digitalina que sacara do frasco e a substituíra por algo mais letífero. Se houvesse se mexido, a pastilha teria ficado à vista. Era simples... horrivelmente simples.

Beale voltou lentamente para onde deixara Oliva.

O que se seguiu pareceu à moça um pesadelo. Estava chocada' pela tragédia que ocorrera diante de seus olhos e fora incapaz de prestar qualquer testemunho útil à polícia nas investigações subseqüentes, cujo resumo apareceu devidamente impresso nas colunas do Post Record.

A tragédia ocorrida no pátio das Palmeiras do Hotel Grand Alliance, na tarde de ontem, deve ser acrescentada à já extensa lista de mistérios londrinos inexplicados. O falecido, um homem chamado Jackson, era hóspede do hotel há uma semana e estava prestes a partir para o Canadá. No último momento, o Dr. van Heerden, que assistia o desventurado, descobriu que Jackson não era senão o homem procurado pelo assassinato de John Millinborn, crime que a maioria dos leitores certamente recordará.

"O Dr. van Heerden declarou ao nosso repórter que o homem alegara ser amigo do finado John Millinborn e estar ansioso por embarcar para o Canadá. Suas credenciais eram excelentes e o Dr. van Heerden, num ato de generosidade, se prontificara a atendê-lo. À última hora, no entanto, impressionara-se com a semelhança entre aquele homem e o tipo descrito pela polícia como assassino de John Millinborn e estava a pique de telegrafar às autoridades em Liverpool, quando constatou haver Jackson perdido o trem.

"A presente tragédia sugere o suicídio. O homem, como se sabe, sofreu um colapso e o Dr. van Heerden prestou os primeiros socorros, ministrando-lhe uma droga totalmente inócua. O exame post-mortem revela a presença no organismo, de considerável quantidade de cianeto de potássio, o qual, de acordo com a teoria da polícia teria sido auto-ministrado antes do colapso. Foram encontradas algumas, pastilhas de cianeto nos bolsos do homem. Para mim é suficiente — disse o Dr. van Heerden — que o homem já acarinhasse a idéia do suicídio e que, tão logo tornei públicas minhas suspeitas, se tivesse decidido a agir."

Oliva Cresswell leu essa notícia,.em seu quarto, duas noites depois da tragédia e foi surpreendida por certas inexatidões muito estranhas, a ser verdade tudo o que lhe contara o médico.

O Sr. Beale leu a notícia, sorriu sombriamente para o barbudo superintendente do Departamento de Investigações Criminais sentado do outro lado da mesa.

— Também li, — disse o outro laconicamente — creio que temos provas bastantes para trancafiar van Heerden. O ladrilho do Grand Alliance contêm vestígios de digitalina.

Beale sacudiu a cabeça.

- Não conseguiríamos — disse — que prova temos ?

Mão lhe confiscamos o estojo médico. Poderia ter derrubado uma pastilha de digitalina por descuido. A única forma de condenar van Heerden seria provar que trazia consigo pastilhas de cianeto e as metera no bolso de Prédeaux.

— Qual é a sua teoria acerca do crime?

— Tenho várias teorias — disse o sr. Beale, erguendo-se e se pondo a caminhar pela sala; — e uma certeza. Para mim, Millinborn foi morto pelo Dr. van Heerden. Foi morto porque, durante o tempo em que Kitson esteve ausente, o médico tentou extorquir à força um segredo que o moribundo guardava zelosamente. Quando Kitson voltou, encontrou o amigo, ao que lhe pareceu, nas últimas, e também van Heerden não pensava que Millinborn voltaria a falar. Surpreendentemente, Millinborn falou e van Heerden, temeroso de ver sua patifaria denunciada, esfaqueou-o, pretextando ajudá-lo a deitar-se.

— Algo diverso ocorreu no Hotel Grand Alliance. Um homem desmaia e de pronto é erguido pelo médico, que lhe ministra uma droga inócua, isto é, inócua em pequenas quantidades. Em cinco segundos o homem está morto. No inquérito se descobre que tinha sido envenenado, encontra-se cianeto em seus bolsos. E quem é esse homem? obviamente, a mesmíssima pessoa que testemunhou o assassinato de John Millinborn e que tentávamos localizar desde a ocorrência do crime.

— Tem alguma idéia acerca do segredo que pretendia arrancar ao velho Millinborn? — indagou o detetive.

Beale meneou a cabeça.

— Sim, sei muito bem de que se trata — disse — e, no devido tempo, você também o saberá.

O detetive relanceava os olhos pelo relato do jornal.

— Pelo que vejo, o júri apresentou o veredicto de "suicídio em estado de privação de sentidos!" — disse. — É um caso estapafúrdio, se me permite a expressão, Sr. Beale; o senhor é uma das figuras mais estranhas nele envolvidas. Não é policial e, no entanto temos ordens do Foreign Office para lhe dar toda a assistência possível. Que negócio é esse?

— O maior negócio do mundo — disse Beale sem pestanejar — um negócio que, se der certo, trará misérias e sofrimentos a milhares de pessoas e porá você, seus filhos e os filhos do seus filhos a trabalhar durante centenas de anos, a fim de saldar uma nova dívida nacional.

— Caramba! — disse o outro — está falando sério?

Beale fez um sinal de assentimento. — Nunca falei mais seriamente na vida. É por isso que não quero a polícia a vasculhar demais esse assassinato de Jackson, cujo verdadeiro nome é Prédeaux. Digo-lhe uma coisa, chefe: você está presenciando o desenvolvimento da mais nefanda trama jamais engendrada pelo cérebro do pior celerado da História. Sente-se de novo. Sabe o que aconteceu o ano passado? —r indagou.

— O ano passado? — disse o superintendente.

— A guerra terminou, a Alemanha foi derrotada e teve de aceitar condições humilhantes para uma nação de brio. O pior golpe foram as condições ruinosas impostas pelas potências aliadas. Quero dizer que fizeram certas exigências pecuniárias e territoriais capazes de aleijar a Prússia por um século.

— Bem! — disse o detetive quando o outro se deteve.

— Bem? — repetiu Beale, com um duro sorriso — A Alemanha vai recuperar esse dinheiro.

— Guerra?

Beale riu. — Não; nenhuma tolice dessa espécie. A Alemanha está farta de guerras. Assim sendo, não haverá guerra. Imagina que entraremos em guerra só porque apareci no Foreign Office com uma estória maluca? Posso dizer-lhe que, oficialmente, o governo alemão desconhece a trama e está disposto a repudiar os que nela se envolvem. Na verdade, o Governo não contribuiu de forma alguma para.a concretização dos ditos planos, mas, tão logo estejam em marcha, fornecerá quanto dinheiro for necessário. No momento, o inventor do delicioso esquemazinho se encontra sem capital suficiente para prosseguir. É sua intenção levantar esse capital. Há muitas formas através das quais isso pode ser feito. Já tomou 40.000 libras emprestadas ao White, da firma Punsonby.

O Superintendente McNorton assobiou.

— Há outras maneiras —, prosseguiu Beale — e ele tem a liberdade de experimentá-las todas menos uma. O dia em que se assegurar de uma determinada fortuna, esse dia meto-lhe uma bala.

- No duro? — disse McNorton assustado.

- No duro — repetiu Beale.

Bateram à porta e McNorton se ergueu.

— Não se vá —, disse Beale — gostaria de apresentá-lo ao cavalheiro.

Abriu a porta, fazendo entrar um homem grisalho, de rosto chupado e ascético.

Beale cerrou a porta atrás dele e o conduziu até à sala de jantar.

— Sr. Kitson, gostaria de apresentar-lhe o Superintendente McNorton.

Os dois homens apertaram-se as mãos.

— Bem —, disse Kitson, — o nosso amigo médico parece haver se saído bem —. Estava sentado à mesa, tamborilando nervosamente os dedos. — O Superintendente está a par de tudo?

— Quase tudo — replicou Beale.

— Quase tudo — repetiu o superintendente com um sorriso, — menos esse negócio de Alfôrra Verde.

— Nem mesmo eu estou a par disso. — disse Kitson. — É uma descoberta que o sr. Beale fez quando empenhado em proteger a Srta. Cresswell.

— A dama que presenciou o assassinato de Jackson?

— A Srta. Oliva Cresswell é sobrinha de John Millinborn. Sua mãe foi casada com um malandro que usava o nome de Cresswell, mas cujo verdadeiro nome era Prédeaux. Primeiro, ele gastou até o último níquel da mulher; depois abandonou-a com a criança.

— Prédeaux! — gritou o detetive. — Pois o senhor me disse que esse era o verdadeiro nome de Jackson.

— Jackson ou Prédeaux foi seu pai — disse Kitson, — acreditava-se que estivesse morto; mas, depois do falecimento de Millinborn, descobri que fora condenado à prisão perpétua em Caiena e libertado pouco antes do fim da guerra, quando o presidente da França decretou uma anistia geral. É evidente que estava à procura de Millinborn no dia em que esse meu amigo foi morto, e o seu desmaio, no pátio do Grand Alliance, foi em conseqüência de haver reconhecido a filha.

— Mas, como poderia tê-la reconhecido?

Em resposta, Kitson sacou do bolso um porta-retratos de couro e o abriu. Continha duas fotografias. Uma de uma linda mulher, na moda de vinte anos atrás; e um instantâneo de uma moça trajada à moderna, a qual McNorton reconheceu facilmente como sendo Oliva Cresswell.

— Sim — disse ele — poderiam ser a mesma pessoa.

— Quando Jackson viu a moça, chamou-a de Mary... esse era o nome da esposa. Millinborn deixou toda a sua fortuna para a Srta. Oliva Cresswell mas me deu a incumbência expressa de não deixá-la usufruir nem saber da herança enquanto não se casasse. Ele tinha horror aos caçadores de dotes. Foi esse o segredo que van Heerden descobriu... temo que com violência, à custa do pobre John, em seu leito de morte. Desde então tem planejado casar-se com a moça. Para lhe fazer justiça, creio que o salafrário calculista não objetiva senão apossar-se do dinheiro. Seu conhecimento com White, que está à beira da falência, permitiu-lhe conhecer a moça. Persuadiu-a a vir para cá e lhe conseguiu um apartamento. Em parte — disse o advogado secamente — porque acontece que este conjunto de apartamentos pertence a ela, e em parte porque a suposta proprietária é minha executora.

— Creio que isso explica o Sr. Beale — disse o inspetor à sorrir.

— Isso explica o sr. Beale, — disse Kitson, — que eu trouxe de Nova Iorque especialmente para seguir van Heerden e proteger a moça. No decurso das investigações o Sr. Beale fez uma outra descoberta cujos pormenores ignoro.

Houve uma pequena pausa.

— Por que não contar à moça? — disse o superintendente. Kitson sacudiu a cabeça.

— Pensei no caso, e contar à moça seria a mesma coisa que quebrar minha promessa a John Millinborn. Não, a primeira providência que precisamos tomar — voltou-se para Beale — é afastá-la deste lugar. Não poderia transferir seus escritórios para, digamos, Nova Iorque?

Beale sacudiu a cabeça.

— Posso e não posso — disse. — Com o seu perdão, o assunto da Alfôrra Verde é de importância infinitamente maior do que a segurança da Srta. Cresswell.

James Kitson franziu o cenho.

— Não gosto do ouvi-lo falar assim, Beale.

— Nem eu —, confessou o outro — mas creio que permanecendo aqui, poderei dar-lhe uma proteção maior e ao mesmo tempo entravar o projeto mais amplo que van Heerden tem em mira.

Kitson mordeu o lábio pensativamente.

— Talvez tenha razão — disse. Agora quero ver a jovem; foi por isso que vim. Penso que não haverá dificuldade?

— Nenhuma, creio — disse Beale. — Dir-lhe-ei que está interessado em seu trabalho. Poderia apresentá-lo como o Sr. Scobbs.

— Quem é Scobbs?

— O proprietário de uma cadeia de hotéis no Oeste do Canadá e, ao que penso, um pequeno capitão de indústria dos mais dignos, mas a Srta. Cresswell está muito interessada nele. — Ele riu. — Encontrou o nome em guias canadenses e se impressionou com o seu exotismo.

— Scobbs... — disse o advogado lentamente. — Parece-me que conheço esse nome.

— Ainda bem que conhece, pois vou apresentá-lo como sendo o próprio — riu-se Beale.

— Não estarei estorvando? — perguntou o superintendente.

— Não, fique, por favor — disse Beale. — Gostaria que visse essa senhorita. Qualquer dia destes é possível que precisemos de sua ajuda, a fim de livrá-la de alguma enrascada.

O Sr. Beale saiu do apartamento e apertou a campainha da porta vizinha. Não houve resposta. Tornou a tocar, depois de um intervalo, e recuou a fim de espiar pela bandeira da porta. Não viu luz e procurou pelo relógio. Eram nove horas. Não havia visto a moça durante o dia, por ter comparecido ao inquérito, mas ouvira sua porta fechar-se duas horas antes. Seu segundo toque não encontrou resposta e ele retornou ao apartamento.

— Ela saiu. — disse. — Não estou entendendo bem. Ontem, pedi-lhe com empenho que não saísse depois do escurecer, durante um ou dois dias.

Entrou no quarto de dormir e abriu a janela. Ainda havia luz do dia no céu, mas levou consigo uma pequena lanterna para orientá-lo ao longo da estreita sacada de ferro que ligava todos os apartamentos com a saída de incêndio. Encontrou a janela dela fechada, porém, com a habilidade de um arrombador, soltou o trinco e penetrou no local.

Acendeu a luz e olhou em torno. Era o dormitório de Oliva, o casaco e o chapéu da moça estavam sobre a cama. Abriu o comprido armário em que ela guardava suas poucas roupas. Conhecia, uma vez que era essa a sua obrigação, todos os vestidos da jovem. Estavam todos ali, bem como os três chapéus que guardava sobre uma prateleira. Todas as gavetas da escrivaninha escavam fechadas e não havia vestígios de desordem. Ele abriu a porta do quarto e dirigiu-se para a sala de estar.

No momento em que a luz inundou o quarto, percebeu que algo estava errado. Não havia desordem, mas a sala produzia uma indescritível sensação de violência. Um objeto no chão chamou-lhe a atenção e ele se deteve para apanhá-lo. Era um sapato cuja presilha fora arrancada. Enfiou-o no bolso e atravessou rápido os outros quartos, ganhando a pequena cozinha e o minúsculo banheiro, acendeu a luz do vestíbulo e procedeu a um cuidadoso exame das paredes e do chão.

O capacho estava enrolado e fora de lugar e no lado esquerdo da parede havia duas compridas arranhaduras. Notava-se um cheiro levemente nauseante.

— Éter —, anotou mentalmente.

Dirigiu-se rápido para a sala de jantar. A pequena secretária estava aberta e uma carta não terminada jazia sobre a pasta. Era dirigida a ele e dizia:

"Prezado Sr. Beale,

Circunstâncias alheias à minha vontade obrigam-me a partir esta noite para Liverpool."

Apenas isso. Obviamente, não havia sido completada. Ele a apanhou, dobrou-a e guardou-a no bolso. Retornou depois ao vestíbulo, abriu a porta e saiu.

Explicou em breves palavras o que sucedera, encaminhou-se para o apartamento do médico e comprimiu o botão da campainha.

 

UMA BUSCA INFRUTÍFERA

Uma luz brilhou no vestíbulo, a porta se abriu e o médico, em chinelos e casaco de veludo, surgiu na entrada. Não denotava ressentimento.

— Quero uma palavra com o senhor — disse Beale.

— Até vinte, se quiser —, retorquiu o médico acremente. Beale seguiu van Heerden até o escritório.

— Está só? — indagou.

— Sozinho. Recebo bem poucas visitas. Na verdade, meu último visitante foi o desventurado Jackson.

— Quando viu a Srta. Cresswell pela última vez?

O médico ergueu as sobrancelhas.

— Com que direito... — começou.

— Deixemos de conversas — disse Beale asperamente. — Quando foi que a viu pela última vez?

— Não a vi hoje — respondeu o médico. — Não saí do apartamento desde que voltei do inquérito.

— Gostaria de revistar seu apartamento — disse Beale.

— Policial, hem? — sorriu o médico. — Claro que pode revistar o apartamento, desde que tenha ordem judicial.

— Não tenho ordem alguma, mas vou revistar. O rosto do médico enrubesceu.

— O senhor não ignora, suponho, que poderei processá-lo por invasão de domicílio?

— Estou bem a par disso — disse Beale — mas se nada tem a esconder, Dr. van Heerden, não vejo porque deva objetar.

— Não objeto — disse o médico sacudindo os ombros — reviste à vontade. Por onde quer começar? Por aqui mesmo?

Apontou para três caixotes colocados em pé na extremidade do quarto mais próximo da porta.

— Não verá coisa muito agradável aqui; são modelos anatômicos recém-chegados de Berlim. Na realidade, tenho negociado com o inimigo. Estão parafusados, mas tenho uma chave de parafuso aqui.

Beale hesitou.

— Há apenas mais um quarto — prosseguiu o médico — meu dormitório, mas ela não se encontra lá.

Beale se voltou com a rapidez de um raio.

— Ela? — perguntou. — Por que ela?

— Imagino que esteja procurando a Srta. Cresswell — disse o médico friamente. — Busca alguma coisa e me perguntou quando a vi pela última vez. Quem mais poderia estar procurando?

— Tem muita razão — disse Beale com tranqüilidade.

— Deixe-me mostrar-lhe o caminho. — O médico seguiu na frente a acendeu a luz do quarto interno.

Era um grande cômodo, mobiliado simplesmente por uma pequena cama de ferro, um guarda-roupa e uma cômoda. Mais adiante ficava o banheiro.

Beale procedia a uma inspeção geral, quando ouviu a porta do dormitório se fechar atrás de si. Virou-se, saltou sobre a porta, girou a maçaneta e puxou, mas não conseguiu abrir. Ao fazer isso pareceu-lhe ter escutado um ruído de vozes.

— Abra esta porta! — gritou, martelando na almofada com os punhos.

Não houve resposta. Depois:

— Sr. Beale!

Seu sangue gelou ante aquele apelo desesperado, pois era a voz de Oliva Cresswell e vinha do quarto que acabara de deixar.

Arremeteu contra a almofada da porta, mas esta era de carvalho muito resistente. Tinha o revólver na mão e colava já o cano de encontro à fechadura, quando a porta se abriu.

— Fechou a porta sem querer? — perguntou o médico sorridente, olhando afavelmente para o rosto pálido do outro.

— Onde está a moça? onde está a Srta. Cresswell? — indagou Beale. — Ouvi-lhe a voz.

— Está maluco, meu amigo.

— Onde está a Srta. Cresswell?

Sua mão se abateu sobre a espádua do outro e apertou-a com tal força que o médico se encolheu. Com uma imprecação conseguiu safar-se.

— Louco maldito! Como posso saber?

— Ouvi-lhe a voz.

— Imaginação sua. — disse o médico. — Ter-lhe-ia aberto a porta antes, mas havia saído ao corredor para tocar a campainha da Srta. Qesswell. Encontrei a porta aberta. Creio que o senhor esteve lá. Fechei tão somente a porta e voltei para cá.

Sem uma palavra, Beale o empurrou para o lado. Mal deu um passo na direção da porta, deteve-se. Na extremidade do quarto tinha visto três caixotes. No momento, eram apenas dois. Um tinha sumido. Não parou, a fim de inquirir o homem. Atravessou a porta de um salto e correu escada abaixo. Não havia qualquer veículo à vista e apenas uns poucos pedestres. Na esquina encontrou um policial que não observara nada fora do comum nem tampouco vira qualquer viatura transportando um caixote.

Ao retornar lentamente ao Edifício Krooman, algo fê-lo olhar para cima. O médico, debruçado à janela, fumava um charuto.

— Encontrou-a? — indagou zombeteiro.

Beale não lhe deu resposta. Subiu as escadas, atravessou a porta aberta do apartamento do médico e se defrontou com aquele homem calmo, apoiado à mesa, um charuto no canto da boca e um sorriso de tranqüilo deleite no rosto barbudo.

— Não a encontrei, mas basta que o senhor o faça. Os olhos de van Heerden sequer vacilaram.

— Estou começando a pensar, Sr. Beale, que o excesso de álcool virou-lhe a cabeça — disse em tom de troça. — O senhor me entra no apartamento, querendo saber onde oculto uma linda jovem, em cujo bem-estar estou pelos menos tão interessado quanto o senhor, já que se trata de minha noiva e futura esposa.

Houve uma paus,a.

— Vai ser sua esposa, não? — disse Beale com doçura. — Dou-lhe parabéns, não os" podendo dar a ela. E quando será anunciado esse interessante noivado?

— Está sendo anunciado neste momento — disse o médico. — A dama encontra-se a caminho de Liverpool, onde ficará hospedada com uma tia minha. Não se dê ao trabalho de perguntar-me o endereço, pois não lhe vou fornecer.

— Dr. van Heerden, quando entrei no seu apartamento havia três caixotes na extremidade daquele quarto. Que sucedeu ao terceiro, enquanto permaneci fechado no dormitório?

O Dr. van Heerden abanou a cabeça com ar de pena.

— Receio, receio muitíssimo, que não esteja bom da bola — disse, apontando para o lugar em que os caixotes se encontravam.

Beale acompanhou-lhe o gesto e engoliu em seco, pois ali estavam três caixotes.

— Admito que o enganei, quando lhe disse conterem espécimes. Na verdade estão vazios. — disse o médico — Se quiser examiná-los, pode!

Beale caminhou até os caixotes e os tocou com os nós dos dedos. As tampas estavam parafusadas, mas os parafusos eram apenas simulacros. Encontrou no lado de cada um deles um diminuto orifício sob a cabeça e, sacando do canivete, fez pressão no estilete de que o apetrecho era munido, e a tampa voou longe. O caixote estava vazio. Os outros dois não ofereceram resultado diferente.

— Satisfeito? — perguntou o médico.

— Longe disso! — disse Beale e, sem mais palavras, saiu e tornou a descer as escadas.

A meio caminho, viu um objeto sobre um dos degraus e o apanhou. Era um sapato, o par daquele que tinha no bolso e aquele não se achava ali quando subira.

Oliva Cresswell havia lido a história do crime no Post Record e dobrado o jornal, quando vieram bater à sua porta. Era o Dr. van Heerden.

— Posso entrar um instante? — perguntou. Ela hesitou.

— Não vou devorá-la —, disse ele sorrindo, — mas estou tão acabrunhado com o sucedido que julgo lhe dever uma explicação.

— Não me preocuparia por isso — sorriu ela — mas, se quiser entrar, tenha a bondade.

Cerrou a porta e deixou acesa a luz do vestíbulo. Não o convidou a sentar-se.

— Viu a notícia do Post Record? — indagou ele.

Oliva fez um sinal afirmativo.

— Creio que estranhou as discrepâncias entre o que lhe disse e o que contei aos repórteres, mas precisa saber que me assistia uma razão toda especial para proteger aquele homem.

— Quanto a isso, não tenho dúvidas — disse ela com frieza.

— Srta. Cresswell, é preciso que seja paciente e bondosa comigo. — disse ele a sério. — Gastei um espaço de tempo considerável e corri riscos enormes a fim de salvá-la.

— Salvar-me? — repetiu ela surpresa.

— A Srta. Cresswell — perguntou ele — conheceu seu pai algum dia?

Ela sacudiu a cabeça, tão impressionada por sua gravidade que não truncou logo o conversação como pretendia.

— Não — disse — era ainda menina quando morreu.

— Tem certeza de que morreu? — indagou van Heerden.

— Certeza? Nunca tive dúvidas. Por que me pergunta? Estará vivo? — Ele meneou a cabeça.

— O que lhe vou contar é bastante doloroso. Seu pai foi um notório trapaceiro —. Fez uma pausa, mas ela não protestou.

Já ouvira anteriormente numerosas insinuações nada abonadoras acerca do pai.

— Há algum tempo, seu pai fugiu de Caiena. Conforme terá a surpresa de constatar, é súdito francês; e a polícia há doze meses está no seu encalço, bem como o seu amigo Beale.

— Não é verdade — esbravejou ela.

— Estou apenas lhe contando os fatos, Srta. Cresswell, e à senhora mesma cabe julgá-los — disse o médico. — Seu pai assaltou um Banco na França e escondeu o dinheiro na Inglaterra. Como se sabia que mais cedo ou mais tarde mandaria buscá-la, a polícia tem estado a vigiá-la dia e noite. Seu pai está em Liverpool. Recebi uma carta dele pela manhã. Está nas últimas e lhe suplica que vá ter com ele.

Ela, atordoada, permanecia sentada à mesa. Havia naquela história uma odiosa plausibilidade. Seu primeiro impulso foi consultar Beale, mas de pronto se deu conta de que, a ser verdade o que dizia o médico, tal providência resultaria fatal.

— Como poderei saber se está falando a verdade? — perguntou.


— Só poderá saber depois de ver seu pai. É coisa muito simples.

Ele tirou do bolso um envelope e o apresentou a ela. Eis o endereço — R. Hope, 64. Aconselho-a a memorizá-lo e rasgar o envelope. Afinal de contas, que interesse poderia ter eu na sua ida a Liverpool?

— Quando é o próximo trem? — indagou ela.

— Há um daqui a uma hora, saindo de Euston.

Ela refletiu por um instante.

— Irei — disse com decisão.

Voltava ao seu quarto, para vestir o casaco, quando ele a chamou de novo.

— Não há razão nenhuma para que não escreva a Beale, dizendo-lhe para onde foi. Pode deixar um bilhete comigo que eu o entrego.

Ela hesitou uma vez mais, sentou-se à escrivaninha e rabiscou as linhas que Beale havia encontrado. Depois, virou-se na cadeira, perplexa.

— Não estou compreendendo nada — disse. — Se o Sr. Beale está na pista de meu pai, claro que concluirá desta carta que fui ao seu encontro.

— Deixe-me ver o que escreveu — disse van Heerden friamente, olhando por sobre os ombros dela. — Sim, isso basta.

— Basta?

— É o suficiente. Veja uma coisa: minha idéia era que escrevesse o bastante para colocá-lo no caminho errado.

— Não o compreendo... há alguém no corredor — disse ela de súbito e encaminhou-se para a porta que dava para o vestíbulo, mas ele lhe interceptou os passos.

— Srta. Cresswell, acho que me compreenderá quando lhe disser que seu pai está morto, que a estória de Beale lhe estar no encalço é absolutamente falsa e se faz necessário, por um motivo que não lhe irei revelar, que a senhora se torne minha esposa.

Ela recuou de um salto, branca como cera.

— Sua esposa? — repetiu. — Deve estar louco.

— Pelo contrário, estou perfeitamente são. Se o seu amigo Beale não houvesse interferido, o amor poderia ter acontecido normalmente. Agora vou lhe falar com franqueza, Srta. Cresswell. já preciso que me case com a senhora, e se concordar, levá-la-ei embora e a colocarei em segurança. Casarei com a senhora no registro civil e me afastarei tão logo a cerimônia esteja concluída. Concordarei em lhe dar mil libras por ano e prometerei não interferir com a senhora nem procurar seu convívio sob qualquer forma.

Sua coragem reaparecera no transcurso daquela preleção sobre o futuro.

— Que espera que eu faça? — indagou ela com desprezo, — caia-lhe aos pés e lhe agradeça as mil libras anuais e as despedidas à porta da igreja? Não, doutor, se o senhor está em seu perfeito juízo, ou é um grande tolo ou um grande patife. Não me casaria com o senhor, fossem quais fossem as circunstâncias. Agora, acho melhor que se vá.

Ele não a deteve quando a moça se encaminhou para a porta e a escancarou. Ela porém recuou com uma exclamação de medo, pois havia dois homens no vestíbulo.

— Que querem...

Foi tudo o que pôde dizer e o braço do médico a enlaçou, tapando-lhe a boca. Um dos homens empunhava algo semelhante a uma garrafa de borracha, com um bocal de formato cênico. Ela se debateu, mas o médico a subjugou num aperto de aço. Foi atirada ao solo, o bocal de borracha da garrafa lhe foi premido contra a boca, seguiu-se uma golfada de ar frio fortemente carregada de um odor nauseante e ela sentiu-se esvair.

— Acho que desmaiou — disse o médico. — Veja se não há ninguém, Gregory, e abra a porta do meu apartamento.

Ele a carregou através do patamar até os seus aposentos e fechou mansamente a porta atrás de si.

 

A CASA PERTO DE STAINES

Oliva Cresswell de nada se lembrava. Não recordava haver sido enfiada toda mole num caixote comprido e estreito, nem ter ouvido a voz de Beale ou o bater de porta que o deixara trancado no dormitório do Dr. van Heerden. Se havia gritado, como de fato gritou, não tinha a menor lembrança do fato.

— Leve-a com caixote e tudo para o seu apartamento. A porta está aberta — sussurrou van Heerden aos dois homens que haviam desaparecido num abrir e fechar de olhos dentro dos caixotes, no instante em que Beale batera à porta.

— Que fazemos?

— Esperem por mim. Depressa!

Eles cruzaram o patamar, atravessaram a porta aberta do apartamento de Oliva, o médico fechou-a atrás deles e voltou a tempo de libertar Beale.

Observou quando este desceu as escadas às carreiras, correu depois para a porta do quarto de Oliva e entrou. Em dez segundos ela havia sido retirada da sua estreita prisão e colocada sobre a cama, o caixote reposto no lugar, no escritório do médico, e os homens se haviam reunido a van Heerden na sala de estar de Oliva.

Van Heerden havia acendido a luz do dormitório da moça e, pela primeira vez, notou que um dos seus sapatos estava faltando. Rápido, retirou-lhe o pé de sapato que ficara.

— Esperem aqui — disse aos homens — até ouvirem Beale voltar. Então fujam. Ao descerem, deixem o sapato nas escadas. Isso fará o nosso amigo perder o rumo.

Meia hora após a descoberta do sapato nas escadas, Beale saiu acompanhado por seus visitantes.

Da janela de sua sala de estar, o médico viu as sombrias figuras desaparecerem na noite e retornou depois ao apartamento da moça. Esta jazia onde fora deixada, atordoada e com náuseas. Seus olhos se apertaram com uma pequena careta de desagrado quando ele acendeu a luz.

— Como se sente agora, minha amiguinha? — indagou van Heerden friamente.

Ela não respondeu.

— Não seja rabugenta — ralhou ele, — precisa habituar-se a ser polida, já que me vai ver um bocado. É melhor que se levante e ponha o casaco.

Ela notou um frasco de remédios em sua mão, cheio até a metade com um líquido leitoso.

— Beba isto — disse ele.

Ela empurrou o frasco para longe.

— Vamos, beba — disse ele — não está pensando que a quero envenenar; não é mesmo? Nem mesmo quero narcotizá-la; caso contrário, teria sido muito simples ministrar-lhe um pouco mais de éter. Beba. Toda essa sensação de tontura lhe sairá da cabeça.

Ela segurou o copo com mão pouco firme e sorveu o conteúdo. Era amargo, quente e lhe queimou a garganta, mas os efeitos foram mágicos. Em três minutos seu cérebro clareou e pôde sentar-se sem se sentir mareada.

— Agora, ponha o casaco e o chapéu, embale umas poucas coisas que deseje para viajar e venha comigo.

— Não farei nada disso — disse ela. — Aconselho-o a ir-se, Dr. van Heerden, antes que eu informe à polícia sua revoltante conduta.

— Ponha o casaco e o chapéu — repetiu ele calmamente — e não diga tolices. Não pense que me arrisquei tanto para deixá-la ir embora a esta altura.

— Dr. van Heerden —, disse ela — se o senhor tiver um resquício de decência ou de hombridade, deixe-me em paz.

Ele riu um pouco.

— Qualquer apelo que faça, Srta. Cresswell, será pura perda de tempo e de saliva. Não hesitarei em recorrer às mais desagradáveis violências, se não fizer exatamente como lhe digo.

Sua voz estava calma, mas ele tinha um ar. de determinação iniludível.

— Para onde me leva? — perguntou ela.

— Levo-a para um lugar seguro. Quando digo seguro, — acrescentou — quero dizer seguro para mim. A senhora nada tem a temer, a menos que se comporte insensatamente. Tire da mente o pensamento, Srta. Cresswell, — disse ele — de que eu esteja apaixonado por si e que exista algum encanto na sua admirável personalidade capaz de me impedir de cortar-lhe o pescoço, caso isso se torne necessário à minha segurança. Não sou um bruto. Tratá-la-ei com decência, se não me trair, mas advirto-a de que, se na rua tentar gritar por socorro ou fugir, jamais saberá o que lhe aconteceu.

Ela permanecia na beira da cama, uma mão agarrada à grade, os dentes alvos mostrando-se por detrás do lábio inferior cor de carmim.

— Não morda os lábios, não é estimulante para o raciocínio; posso lhe afirmar isso na qualidade de médico e posso lhe afirmar também que este não é o momento propício à maquinação de planos para ludibriar-me. Ponha o casaco e o chapéu.

A voz dele era agora peremptória e ela obedeceu. Ele seguiu na frente, segurando-a de leve pelo braço, e saíram juntos à rua. Virou abruptamente à esquerda, mantendo sempre a moça lado a lado. Para o observador ocasional (e poucos teriam podido observá-los na obscuridade das mal alumiadas vielas por que passavam) formavam um casal amoroso, mas o braço que a cingia era o braço de um carcereiro; certa feita, quando aguardavam para atravessar a rua em Oxford Circus, ela divisou um policial e tentou soltar-se, porém sentiu o pulso imobilizado por um aperto férreo.

Na esquina da Praça Portland que dá para a estrada de Marylebone um carro estava à espera e o médico abriu a porta e a empurrou para dentro, saltando ele próprio imediatamente para o veículo.

— Tive de conservar o carro a certa distância do Edifício Krooman a fim de que Beale não o localizasse de pronto. — disse ele em tom fluente e amigável.

— Para onde me leva? — perguntou ela.

— Para uma agradabilíssima residência no vale do Tâmisa. Nos dias em que pensei poder cortejá-la, como se diz habitualmente, achei que poderia ser um local excelente para uma lua-de-mel. — Ele percebeu que ela se encolheu toda.

— Por favor não se aflija. Sinto-me deveras feliz que as coisas tenham tomado o rumo que tomaram. Não gosto muito das mulheres e me teria entediado indizivelmente se fosse obrigado a representar o apaixonado.

— Que pretende fazer? — perguntou ela. — Não pode ter esperança de fugir ao Sr. Beale. Ele me encontrará.

O médico fez um muxoxo.

— Como cão sabujo, o Sr. Beale tem suas qualidades. Sempre suspeitei que fosse detetive e, claro, foi ele quem meteu aqueles envelopes registrados no bolso do velho White... uma hábil manobra — admitiu simpàticamente — mas, não creio que deva confiar em demasia no Sr. Beale, que não parece pertencer à polícia e é, suponho, um desses cavalheiros amadores que costumam figurar nos casos de divórcio.

Ela não respondeu. Por dentro, sentia o sangue ferver e reconheceu, com uma sensação de desalento, que não tanto a indignidade a que era submetida, mas o desprezo pelo gênio de Beale a enraivecia.

Haviam saído da cidade e rodavam pelo campo quando tornou a falar.

— Quer ter a bondade de me dizer o que pretende fazer?

Ele estava entregue a um devaneio e, evidentemente, tratava-se de um devaneio agradável, pois foi com ar relutante que retornou à realidade da vida.

— Hem?... ah, o que vou fazer? Ora, vou casar com você.

— E se me recusar?

— Não se recusará. Estou lhe oferecendo a saída mais fácil. Quando estiver casada comigo seus perigos terão chegado ao fim. Enquanto não casar, sua vida andará sempre por um fio.

— Mas, por que insiste nisso? — indagou atônita. — Se não me ama, que pode representar o casamento para o senhor ? Por que haverá de querer casar com uma moça sem qualquer influência ou posição, uma comerciária paupérrima?

— É um capricho meu — disse ele indiferente.

— E se me recusar na última hora?

— Então — retrucou significativamente, — você se arrependerá. Digo-lhe que nada sofrerá se se portar de maneira sensata. Se não for sensata, imagine o pior e isso ainda será pouco.

Havia uma fria maldade em sua voz, o que a fez estremecer. Por um instante, e um instante apenas, ela se deixou abater pelo completo desespero da situação, mas, depois, sua coragem natural, sua autoconfiança inquebrantável sobrepujaram o temor.

— O senhor deve ser um desses criminosos sagazes acerca de quem a gente costuma ler — disse ela — preparados para todas as emergências.

— É bem provável — sorriu ele. — É uma forma de egoísmo.

Ela controlou a ira nascente que quase a sufocava e se manteve tranqüila. Mais cedo ou mais tarde descobriria o seu tendão de Aquiles.

— Penso que já terá tudo preparado?

— O trabalho da minha equipe é sempre muito bom — murmurou ele, — licença de casamento, padre e até mesmo o lugar onde passará sua solitária lua-de-mel, depois de assinar uns tantos documentos.

Ela se voltou lentamente para ele. Mal lhe pôde ver a cabeça contra a janela da enorme limusine e imaginou que tinha no rosto um sorriso.

— Então é isso! — disse. — Preciso assinar documentos dizendo que casei de livre e espontânea vontade!

— Não, madama — disse ele, — as circunstâncias em que casará comigo não precisam de justificação.

— Que documentos terei de assinar? — perguntou ela.

— Saberá no devido tempo. Aqui está a casa, a não ser que meus olhos me enganem.

O carro afastou-se da estrada, pareceu mergulhar numa sebe alta, embora, como a moça verificou durante o curto instante em que os faróis incidiram sobre os pilares do portão, se tratasse da entrada para uma alameda e, afinal, parou. Van Heerden desceu e a ajudou a descer. A casa estava às escuras, mas se abriu quando alcançaram a porta.

— Entre — disse van Heerden empurrando-a na frente. Ela se viu num saguão antiquado, de paredes revestidas de

carvalho e assoalho feito de lajes de pedras muito unidas. Reconheceu o homem que os recebeu como um dos que vira em seu apartamento naquela mesma noite. Era um homem cadavérico, com maxilares proeminentes, cabelos curtos, crespos e negros, e um pequenino bigode negro.

— Não farei apresentações — disse o médico — mas pode chamá-lo de Gregory. Não é esse o seu nome.

O homem sorriu furtivamente, olhou de relance para ela e os conduziu até uma sala ao fundo do saguão.

— Esta é a sala de jantar. — disse van Heerden. — O maior interesse para você é que aqui será realizada a cerimônia.

Seu quarto fica imediatamente acima. Lamento não ter contratado uma criada para você, mas não me posso dar ao luxo de observar as convenções ou tomar em conta a sua reputação. Não conheço nenhuma mulher a quem pudesse confiar tais deveres e terá de cuidar de si mesma.

Ele abriu caminho até o alto, franqueou uma porta e entrou. Havia uma janela protegida por pesada cortina. Viu-a relancear os olhos pelo local e meneou a cabeça.

— Constatará que as janelas têm barras — disse. — Isto era sem dúvida alguma o quarto das crianças e se presta admiravelmente aos meus desígnios. Ademais, posso dizer-lhe que a casa é muito antiga e é impossível caminhar pelo quarto sem que o assoalho ranja e, como passo a maior parte do tempo na sala de jantar logo abaixo, encontrará enormes dificuldades até mesmo para ensaiar uma fuga sem que me dê conta do fato.

O quarto era confortavelmente mobiliado. Na pequena lareira ardia um fogo e havia sido posta uma mesa, sobre a qual se viam sanduíches, uma garrafa térmica e um pequeno cesto com confeitos.

Havia uma porta junto da cama.

— Pode considerar-se feliz por ter o único quarto na casa com banheiro anexo — disse ele. — Vocês ingleses são muito exigentes nesse particular.

— E vocês alemães não são — retorquiu ela com frieza.

— Alemães? — riu ele. — Então adivinhou?

— Adivinhou? — foi a vez de ela rir zombeteiramente. — Não será um fato evidente em si mesmo? Quem se não um boche...

O rosto dele avermelhou-se.

— Não deve usar essa palavra comigo — disse asperamente, — engula sua arrogância ! Boches! Nós, que demos ao mundo sua cultura, que lideramos em todos os setores da ciência, da arte e da literatura!

Ela olhava para ele, assombrada.

— Está brincando, claro — comentou, esquecendo momentaneamente sua situação de perigo diante daquele fenômeno extraordinário. — Se for alemão, e alemão instruído, não poderá sequer imaginar que deram ao mundo qualquer coisa. Pois os alemães nunca foram senão exploradores dos cérebros alheios.

O rosto dele transformara-se de um lacre num branco de cera, seu lábio tremia de ódio e, ao falar, mal podia controlar a voz.

— Nós, entre todos os povos fomos escolhidos por Deus para salvar o mundo através do espírito germânico.

A essa altura ela explodiu num gargalhar incontrolável. Era tão parecido com as caricaturas do tipo prussiano sobre as quais lera ou vira em desenhos. Ele olhou para ela, o rosto distorcido de raiva e, antes que ela percebesse, ergueu a mão e vibrou-lhe um tapa.

Ela cambaleou, sem fala. Acontecera-lhe a coisa mais incrível do mundo, mais incrível do que o seu seqüestro, mais incrível do que todas as patifarias sabidas ou suspeitadas naquele homem.

Ele a fuzilava com o olhar, sem arrependimento, inclinado, ao que parecia, a repetir a dose. Havia golpeado uma mulher e não se envergonhava disso.

— Sua porca! — disse em Alemão. — Herr Gott, vou castigá-la se caçoar de mim!

Ela o fitava com intensa curiosidade.

Ele se voltou e saiu ligeiro do quarto, fechando a porta atrás de si.

 

APRESENTANDO O PASTOR HOMO

Quando Beale deixou o Edifício Krooman com seus dois companheiros, tinha apenas uma idéia muito vaga acerca de onde deveria principiar sua busca. Talvez o interesse pessoal que tinha pela cliente, interesse revelado pelo pânico momentâneo em que seu desaparecimento havia lançado aquele jovem habitualmente senhor de si, lhe anuviasse o discernimento.

Uma vaga sensação de desconforto o acometeu e ele se deteve irresoluto na esquina. Havia uma possibilidade de que ela continuasse no edifício, mas havia uma possibilidade ainda maior de que, se seguisse um dos três planos que se formavam em seu espírito, poderia salvar a moça de quaisquer perigos que a ameaçassem.

__Tem absoluta certeza de que lhe ouviu a voz?

— Absoluta — replicou Beale com brevidade, — como também estou certo de que senti cheiro de éter.

Ele assobiou. Um homem que se ocultava nas sombras de um prédio, no lado oposto da rua, veio ter com ele.

— Fenson —, disse Beale — vigie estes apartamentos. Se vir um carro parar aqui, ponha-se na frente da porta. Não deixe ninguém entrar nesse carro ou colocar qualquer volume no seu interior, enquanto não tiver certeza de que a Srta. Cresswell não está entre eles. Se necessário, use a arma... sei que isso não se faz nesta ordeira Londres. — Ele sorriu para o Superintendente McNorton, — mas acho que me precisa permitir infringir um pouco a lei.

— Faça o que quiser — disse o superintendente calmamente.

— Por ora é só isso, Fenson. Conhece a Srta. Cresswell?

— Sem dúvida, senhor — disse o homem, e tornou a desaparecer nas sombras.

— Para onde vai agora? — perguntou Kitson.

— Vou me entrevistar com um homem que provavelmente me dará numerosas informações acerca das demais residências de van Heerden.

— Tem muitas? — indagou Kitson surpreso. Beale meneou a cabeça.

— Faz três meses que vem alugando prédios e casas — comentou calmamente, — e foi tão hábil que eu o desafio a localizar qualquer deles. Tudo o que alugou, fê-lo por intermédio de uma porção de advogados e todos os nomes usados eram fictícios.

— Conhece algum deles?

— Nenhum — disse Beale com um riso frustrado, — não lhe disse que é muito hábil?

— Para que quer casas?

— Saberemos um destes dias —, respondeu Beale enigmaticamente. — Posso lhes dizer algo mais, cavalheiros, e se trata mais de uma suspeita que de uma certeza: não existe um cientista equívoco, que se tenha degradado na bebida ou no crime, por todo este país, ou melhor, por toda a América e França também, que não esteja a seu serviço. E agora, cavalheiros, com sua licença.

— Não quer ajuda? — perguntou o superintendente.

— Acho que não — disse Beale com um sorriso.

 

Ao sul do Rio Tâmisa existe uma área congestionada e densamente povoada que se estende entre as vias Waterloo e Blackfriars. Ali, velhas casas, sombriamente pitorescas em razão da sua idade, erguem-se lado a lado com enormes blocos de moradias modernas, as quais compensam com a utilidade o que lhes falta em beleza. Tais residências têm uma dupla vantagem. Seu aluguel é barato e ficam próximas do centro de Londres. Poucas casas são ocupadas por uma só família e apenas em casos excepcionais uma família aluga um andar em sua totalidade.

No porão de um dessas casas estavam dois homens tão diferentes entre si quando se pudesse conceber. O próprio cômodo exibia uma estranha ordem e estava despido de tudo que não fosse o mobiliário estritamente necessário. Havia sob a janela uma cama de acampamento, colocada em posição que permitia a seu ocupante divisar os calcanhares das pessoas que passavam pela calçada da ruela.

Um cortina de cretone desbotado ocultava um quarto mais interno e provavelmente menor, em que dormia o mais velho dos homens. Eles se sentavam um de cada lado da mesa, uma lâmpada de querosene postada exatamente no centro, fornecendo luz para as suas diversas ocupações. O mais velho dos dois estava debruçado sobre um microscópio, ajustando o foco com as mãos enormes. De quando em quando interrompia o trabalho e rabiscava algumas anotações em obscuros caracteres góticos. Sua imensa cabeça, seu corpo atarracado, seus braços compridos e desgraciosos, seu rosto pálido com um pequeno tufo de barba, teriam sido reconhecidos por Oliva Cresswell, pois se tratava do Prof. Heyler — o Herr Professor como o chamava Beale.

O homem sentado em frente era de constituição diferente. Alto, magro, quase ascético. O rosto rapado, o nariz e queixo bem talhados sugeriam um refinamento que o terno sovado e a camisa sem colarinho acentuavam de forma extravagante. Vez por outra erguia os olhos profundos do livro que estava lendo, examinava o absorto professor com um olhar especulador e retornava à leitura.

Estavam em silêncio havia quase uma hora, quando as batidas de Beale à porta fizeram o leitor voltar-se, estreitando os olhos.

— Espera alguma visita, professor? — perguntou em Alemão.

— Nein, nein — resmungou o velho, — quem me viria visitar? Ah, sim, — ele tamborilou o dedo gordo. — Lembro-me, a Fraulein ficou de vir.

Ergueu-se, arrastou-se até a porta, destravou o ferrolho e girou a chave. Seu rosto caiu ao ver Beale, e o homem à mesa levantou-se.

— Espero que não o esteja incomodando — disse o detetive.

— Pensei que o senhor morasse sozinho.

Também ele empregava o idioma que o professor melhor compreendia.

— Esse é um amigo meu — disse o velho Heyler pouco à vontade, — moramos juntos. Não sabia que conhecia meu endereço.

— Apresente-me — disse friamente o homem à mesa. O velho professor olhou hesitante para um e para outro.

— É meu amigo, Herr Homo.

— Herr Homo — repetiu Beale oferecendo-lhe a mão — meu nome é Beale.

Homo lançou-lhe um olhar interessado.

— Um split! ou os meus instintos criminosos estão falhando — disse.

— Split? — repetiu Beale intrigado.

— Americano, noto pelo sotaque — disse o Sr. Homo; — sente-se, por favor. Split é o termo usado pelas classes criminosas para descrever um cavalheiro que nos seu país é conhecido como "tira"!

— Ah, um detetive —, sorriu Beale. — Não no sentido convencional. De qualquer forma, não vim a serviço.

— Foi o que pensei — disse o outro sentando-se, — senão teria trazido consigo um dos "abelhudos". Perdoe-me ainda uma vez a gíria, mas chamamos o detetive de "abelhudo", a fim de distingui-lo do "guarda", que é o policial comum. Para que não se preocupe, Sr. Beale, confesso-lhe ser representante das classes criminosas, fato que nosso erudito amigo — ele mostrou com a cabeça o angustiado professor — jamais cessa de deplorar. — E sorriu brandamente.

Haviam passado para o Inglês e o professor, depois de aguardar incomodamente que o visitante dissesse ao que vinha, tinha retomado seu trabalho com um grunhido.

— Sou o Pastor Homo e este é o meu pied-à-terre. Nós, os criminosos profissionais, precisamos de ter algum lugar onde ficar, quando não estamos na prisão, sabe?

Era a voz de um homem instruído; sua modulação, a confiança e o completo aprumo daquele que falava sugeriam o homem de formação universitária.

— A fim de que não se choque com as revelações, devo-lhe dizer que acabo de sair da prisão. Sou assaltante de profissão.

— Não me choco facilmente — disse Beale. Ele lançou um olhar para o professor.

— Percebo — disse o Pastor Homo erguendo-se — que estou de trop. Infelizmente não posso sair à rua sem me arriscar a ser preso. Há neste país uma lei, denominada de Prevenção ao Crime, a qual autoriza os membros desocupados da força policial, que não sabem o que fazer do seu tempo, a prender os criminosos conhecidos como suspeitos, toda vez que os encontrarem em circunstâncias duvidosas. E, como todas as circunstâncias são duvidosas para o pouco imaginoso "guarda" e para o seu não menos obtuso amigo, o "tira", retirar-me-ei para o meu quarto e meterei nos ouvidos um chumaço de algodão.

— Não é preciso — sorriu Beale — creio que o professor não guarda muitos segredos do senhor.

— Prossiga em suas conjecturas, meu engenhoso amigo. — disse o pastor, sorrindo com os olhos. — Meus próprios segredos estou disposto a revelar, mas — adios!

Ele acenou com a mão e desapareceu atrás da cortina de cretcne, e o velho ergueu os olhos do seu instrumento.

— Estou pesquisando —, disse com solenidade; — houve um caso de doença do sono nas docas e o Herr Professor da Tropical School teve a gentileza de me ceder uma amostra de sangue para testes.

— Professor —, disse Beale sentando-se no lugar que o Pastor Homo havia deixado vago e se debruçando sobre a mesa. - Ainda trabalha para van Heerden?

O velho rolou a imensa cabeça de um lado para outro.

— Do preclaro doutor não quero falar, — disse — para mim foi muito generoso. Veja, Herr Peale, eu estava morrendo de fome neste país que odeia os alemães, e ninguém me deu a mão até que o preclaro professor me descobriu. Sou alemão, sim. Todavia, não tenho nacionalidade, estando absorvido na ampla confraria da ciência. Mas sou leal, Herr Peale, a todos que me ajudam. Ao senhor também, — acrescentou apressadamente, — pois foi bondoso, salvando-me da polícia certa vez em que penetrei tolamente num quarto em que não devia. — Ele sacudiu os ombros maciços. — Estou agradecido, mas não devo também gratidão ao preclaro doutor?

— Diga-me uma coisa, professor — falou Beale — onde poderei encontrar o preclaro doutor esta noite?

— Em seu laboratório, onde mais? — perguntou o professor.

— Onde mais? — repetiu Beale. O vellho se manteve calado.

— É proibido que eu fale — disse ele. O Herr Doctor está empenhado numa grande experiência que lhe trará fortuna. Se trair seus segredos, ele poderá se arruinar. Que ingratidão, Herr Peale.

Houve uma pausa, com o velho professor, obviamente contra-feito, olhando ansioso para o homem mais jovem.

— Se lhe disser que o Herr Doctor está .metido numa perigosa conspiração — disse Beale — e que o senhor mesmo está correndo grande risco por ajudá-lo? .

As mãos enormes se esparramaram em desespero.

— O Herr Doctor tem muitos inimigos — murmurou Heyler. — Nada lhe posso dizer, Herr Peale.

— Diga-me uma coisa — pediu Beale, — conhece algum lugar para o qual o doutor poderá ter levado a moça em cujo quarto o senhor entrou, na noite em que o encontrei?

— Uma moça? — O velho estava visivelmente surpreendido. — Não, não, Herr Peale, não há nenhum lugar para onde uma moça pudesse ir. Ach! Não!

— Bem, — disse Beale após alguns momentos — já não tenho o que fazer com o senhor, professor. — Olhou na direção do recesso de cretone. — Não quero incomodá-lo por mais tempo, Sr. Homo.

As cortinas foram corridas e o homem de aspecto ascético apareceu, um meio sorriso sempre a lhe bailar nos lábios finos.

— Temo que sua visita tenha sido uma decepção — disse ele.

Beale riu. Fez um aceno para o velho, outro para o seu companheiro e se voltava quando se ouviu uma batida à porta. Viu os dois homens trocarem um olhar e notou no rosto do professor um ar de completo desamparo.

— Permitam-me — disse Beale, adiantando-se para a porta.

— Espere, espere, — balbuciou o professor.

Este avançou arrastando-se, mas Beale havia girado a chave e aberto a porta. A entrada estava uma moça que não teve dificuldade em identificar como Hilda Glaum, antiga companheira de escritório de Oliva Cresswell. Como tinha as costas para a luz, ela não o reconheceu.

— Por que não abriram mais depressa? — indagou em Alemão e arremessou a pesada mala que carregava para dentro do quarto, — cada minuto eu pensava que seria interceptada. Eis aqui a mala. Virão buscá-la amanhã.

Foi então que viu Beale pela primeira vez.

— Quem... quem é o senhor? — indagou, e acrescentou rapidamente — é o beberrão Beale.

Ela olhou dele para a mala a seus pés, de novo para ele, e antes que ele pudesse adivinhar sua intenção abaixou-se e agarrou a alça da mala. Instantaneamente, toda a atenção dele se concentrou sobre aquela mala de couro e seu segredo. Sua mão se esticou e agarrou a moça pelo braço, mas ela se livrou com um tranco. Enquanto isso, a mala impulsionada pela força resultante da sua soltura, foi projetar-se pesadamente de encontro à parede.

Ele ouviu um ruído estilhaçado, como se uma centena de pequenos frascos se houvesse quebrado simultaneamente.

Antes de pudesse alcançar a mala, ela a apanhou, saltou pela porta e a bateu atrás de si. Ele tinha a mão no trinco.

— Erga os braços, Sr. Beale, erga os braços — disse uma voz vinda de trás.

— Bem sobre a cabeça, Sr. Beale.

Virou-se devagar, as mãos procurando o alto mecanicamente e ficou face a face com o Pastor Homo, que continuava à mesa, mas se havia livrado do livro em Grego e empunhava um revólver cuja mira estava assestada sobre o detetive.

— Cheiro ruim, não é? — disse Homo afavelmente. Também Beale percebera o cheiro de bolor e sabia que provinha da mala que a moça lhe tomara das mãos. Era o odor nauseante da Alfôrra Verde!

 

EM DEANS FOLLY

Os cotovelos apoiados sobre o largo peitoril da janela, o queixo de encontro às barras de ferro, Oliva Cresswell contemplava as brumas dissiparem-se lentamente na tepidez agradável do sol matutino. Passara a noite dormitando numa cadeira de balanço é, à primeira claridade do dia, banhara-se e trocara de roupas. Não ouvira qualquer ruído durante a noite e imaginou que van Heerden tivesse voltado a Londres.

O quarto em que fora aprisionada ficava no primeiro andar, nos fundos da casa, e a vista que tinha sobre o jardim se restringia a uma nesga entre dois grandes tufos de lilazes plantados quase em nível com o seu aposento.

A casa fora construída na encosta de uma rampa suave, de modo que seria possível caminhar da janela do primeiro andar até o gramado bem fornido que ficava nos fundos, não fossem dois obstáculos importantes, o primeiro representado pelas barras que protegiam a janela e o segundo por uma profunda área concretada que formava um fosso demasiado largo para se saltar.

Ela podia ver, no entanto, que o terreno era amplo. O alto muro que separava o jardim da rua ficava a umas cem jardas de distância. Sabia que devia ser a rua, por causa de um pequeno portão marrom que divisava de tempos em tempos por entre os tufos ondulantes. Afastou-se enfastiada da janela e sentou-se na beirada da cama. Não sentia medo — irritação seria uma palavra mais adequada para descrever sua emoção. Sentia-se mistificada também.

Por que haveria aquele homem, van Heerden, que confessadamente não a amava, querer casar com ela? Se queria casar, por que a teria raptado?

Houve também uma outra questão que debateu naquela noite. Por que a referência feita ao detetive americano a havia embaraçado a tal ponto?

Ela havia atingido o ponto em que até mesmo aqueles formidáveis temas para debate se tinham tornado menos interessantes do que a resposta à pergunta proposta, quando lhe vieram bater à porta e uma voz grosseira anunciou:

— Café!

Ela abriu a porta. O homem chamado Gregory estava na soleira. Ele mostrou com o polegar o quarto em frente.

— Pode usar ambos os quartos — disse — mas não pode descer. Tenho de servir ali sua refeição.

Ela seguiu-lhe o polegar através do patamar e se encontrou numa sala de estar mobiliada de maneira simples. A mesa fora servida com um desjejum respeitável e enquanto não saciou por inteiro seu apetite jovem e sadio, ela não tomou muito conhecimento do ambiente.

O homem voltou ao cabo de meia hora... para retirar a louça.

— Quer ter a gentileza de me dizer onde estou? — perguntou Oliva.

— Não lhe direi nada — respondeu Gregory.

— Suponho não ignorar que detendo-me aqui está praticando um crime muito grave?

— Diga-o ao doutor — disse o homem com um sorriso estranho.

Ela foi atrás dele até o patamar. Queria verificar quer tipo de guarda fora estabelecido e quais eram as possibilidades de fuga.

Não foi longe, no entanto. Ele depôs a bandeja no topo da escada e, estirando os braços, puxou da parede duas portas de correr e as fechou diante do seu nariz. Ela ouviu o ruído de uma porta que se fechava e teve certeza de que qualquer possibilidade de fuga naquela direção era muito remota. As portas haviam deslizado silenciosamente sobre os trilhos lubrificados e formado para ela um pequeno vestíbulo no patamar. Imaginou que as portas corrediças tinham sido fechadas depois da partida de van Heerden. Havia exaurido todas as possibilidades do dormitório e encetou então a inspeção da outra peça.

Como a anterior, tinha as janelas barradas. Havia uma prateleira repleta de velhos volumes, a maioria sobre assuntos eclesiásticos ou teológicos. Olhou para eles pensativamente.

— Bem, se eu fosse esperta como o Sr. Beale —, disse em voz alta — seria capaz de deduzir um bocado de coisas a partir deste quarto.

Um sino de igreja distante começou a dobrar e ela, assustada, se deu conta de que era domingo. Olhou para o relógio e, para seu pasmo, eram quase onze horas.

A janela não lhe propiciava vista melhor que a do dormitório, exceto que podia ver mais claramente o portão e algo que parecia ser a parte terminal de uma pequena construção de tijolos de pouca altura erigida rente ao muro. Ela torceu o pescoço, olhando à direita e à esquerda, mas as touceiras haviam sido cuidadosamente plantadas a fim de assegurar aos anteriores ocupantes daqueles quartos a maior intimidade.

Numa escrivaninha antiquada, encontrou algumas folhas de papel, um caneta e um tinteiro cheio pela metade. Havia também duas fórmulas telegráficas, que lhe deram uma idéia. Retornou à mesa e começou a arrolar o conteúdo do apartamento.

"Estou tentando bancar o Beale", admitiu.

Poderia ter admitido por igual que buscava manter a mente alheia à sua posição possivelmente perigosa.

"Uma estante repleta de livros bons e maçudos. Significa que a pessoa que aqui morou antes, era intelectualizada."

Ela se aproximou dos volumes e atentou nos títulos; retirou alguns e examinou as páginas de rosto. Todos ostentavam o mesmo nome, L. T. B. Stringer. Soltou uma exclamação. Não haveria uma lista com os nomes dos clérigos? — tinha certeza que se tratava de um clérigo; ninguém mais teria uma biblioteca com volumes tão pesados.

Seus dedos correram pelas prateleiras e afinal encontraram o que queria — Relação dos Clérigos, por Crocker, 1879. Abriu o livro e encontrou, Stringer, Laurence Thomas Benjamin, Vigário de Upper Staines, Deans Folly, Upper Ridge Village próximo de Staines.

Instintivamente percebeu haver localizado sua prisão. Começou a vasculhar o quarto com pressa febril. Perto da janela havia um armário. Abriu-o e constatou que era um pequeno elevador de serviço, comunicando-se aparentemente com a cozinha. Num dos cantos do quarto estava uma cadeira de rodas para inválidos.

Ela sentou-se à mesa e reconstituiu o caráter do ocupante. Viu um clérigo inválido a viver permanentemente naquela parte da casa. Apanhou a fórmula telegráfica e, depois de alguns minutos de deliberação, escreveu:

"Sr. Beale — Edifício Krooman."

Apagou o que escrevera, lembrando-se que ele tinha um endereço telegráfico, e fez a substituição: Belocity — Londres. Refletiu por um momento e depois escreveu: "Aprisionada em Deans Folly, Upper Ridge Village próximo de Staines. Oliva. Pareceu-lhe ousado demais e acrescentou, Cresswell.

Tirou um florim da bolsa e embrulhou-o na fórmula telegráfica. Não tinha idéia exata de como mandaria a mensagem para a agência do Telégrafo, era domingo, dia em que todas as agências estariam fechadas. Também não havia qualquer perspectiva imediata de encontrar um mensageiro. Imaginou que entregadores viessem até a casa, e que a porta da cozinha ficasse por perto da sua janela, mas entregadores não trabalham aos domingos. Segurou o pequeno embrulho com mão irresoluta. Tinha de arriscar naquele dia. O seguinte era segunda-feira e com toda certeza alguém apareceria.

Com essa segurança meteu a mensagem dentro da blusa. Não sentia disposição para prosseguir na inspeção do quarto e foi apenas porque, tornando a olhar pela janela soltou-a do gancho, que deparou com um instrumento de aspecto estranho dependurado entre a janela e o elevador de serviço. Apanhou-o. Consistia de um cabo curto de ebonite, do qual saíam dois apoios metálicos achatados, terminando em fones de ebonite. O cabo ligava-se por um fio verde a uma tomada de corrente na parede.

Oliva reconheceu o aparelho. Era um eletrofone. Um desses instrumentos que permitem a uma pessoa que não sai de casa ouvir uma ópera, uma sessão de teatro ou... um sermão. Claro que era uma igreja. Era prática corrente os inválidos se comunicarem com seu púlpito predileto e, sem dúvida alguma, o Rev. Stringer usufruía de grande conforto, em razão daquele invento.

Ela espanou o pó dos receptores e os colocou nos ouvidos. Nada ouviu. Perto do plugue havia uma chave. Mudou-a de posição e imediatamente seus ouvidos se encheram de um som estranho e oco — o som típico de um gramofone ordinário.

Depois percebeu que ouvia o cântico de uma congregação. Este cessou após alguns minutos e ouviu uma tosse, tão surpreendentemente próxima que se assustou. Claro que o transmissor estaria no púlpito, pensou. Então uma voz falou, clara e nítida, todavia com aquele arrastado característico dos ministros da Igreja Anglicana. Sorriu, quando as primeiras palavras lhe chegaram.

"Proclamo os banhos do matrimônio entre Henry Colebrook e Jane Maria Smith, ambos desta paróquia. Esta é a segunda proclamação." Pausa. Depois: "também entre Henry Victor Vanden e Oliva Cresswell Prédeaux, ambos desta paróquia. Esta é a terceira proclamação. Se alguém dentre vós souber de alguma razão pela qual estas pessoas não se devam juntar no santo sacramento do matrimônio que a declare agora."

Ela deixou cair o instrumento com fragor e se quedou a contemplá-lo. Estivera a ouvir a publicação do próprio casamento.

"Vanden" era van Heerden. "Oliva Cresswell Prédeaux", ela própria. O desconhecido dos nomes nada significava. Ela adivinhava mais do que sabia que nomes falsos não seriam obstáculos intransponíveis à validade da cerimônia. Era preciso fugir. Pela primeira vez teve a horrível sensação de estar numa armadilha, e por alguns segundos pareceu ter perdido a cabeça, pois forçou as barras de ferro, saiu correndo como louca e começou santo sacramento do matrimônio que a declare agora."

Retornou sem barulho à sala de estar. Abriu a porta do elevador de serviço e experimentou as cordas. Havia duas, uma que sustentava o elevador e uma outra pela qual este ira içado, e concluiu que formavam com o próprio elevador uma corrente contínua.

Agarrando-se firmemente às duas cordas, subiu até o vão do armário e desceu o corpo pelas cordas, mão após mão. Teve de baixar aproximadamente doze pés até alcançar a entrada do elevador na cozinha. Esgueirou-se através da estreita abertura e encontrou-se numa cozinha pavimentada de pedras. Estava deserta. Caminhou nas pontas dos pés até a porta. Estava aferrolhada em cima e em baixo, e fechada à chave. Felizmente a chave se encontrava na fechadura e, em dois minutos, Oliva se viu do lado de fora, num pequeno pátio.

Uma das extremidades do pátio passava diante de uma outra janela, mas não poderia se arriscar. A sua direita havia um lance de degraus de pedra e aquele era obviamente o caminho mais seguro. Achou-se num pequeno parque que, felizmente para ela, era fartamente marchetado por touceiras de rododendros, e se arrastou de moita em moita, cuidando não ser vista da casa. Tinha na mão o telegrama e o dinheiro e sua primeira intenção era transferi-los para o exterior. Gastou vinte minutos para chegar até o muro. Era demasiado alto para ser escalado e não havia nenhuma escada por perto. A única saída era o pequeno portão marrom que avistara do seu dormitório e, cautelosamente, voltou atrás, voando de arbusto em arbusto, até atingir um lugar do qual se descortinava uma vista melhor do portão e da construção à esquerda.

O baixo abrigo que vira era muito mais comprido do que imaginara, e de construção recente. Sua fachada escura era perfurada a intervalos por janelas quadradas e uma porta mal pintada à esquerda da grade marrom foi a única saída que lobrigou. Procurou por uma chave, sem muita esperança de encontrá-la. Era preciso arriscar, pensou, e uma rápida corrida a trouxe do esconderijo das touceiras até o portãozinho marrom que se interpunha entre ela e a liberdade.

Com as mãos trêmulas correu o ferrolho e virou o trinco. Seu coração pulou quando o portão cedeu um pouco. Era evidente que havia muitos anos não era utilizado e ela descobriu que apenas os pedregulhos acumulados na base o seguravam.

Ansiosamente afastou os pedregulhos com os pés e já tinha a mão sobre o trinco quando ouviu uma voz abafada atrás de si. Voltou-se e com uma contração de pavor caiu de costas. Na soleira da porta do barracão estava uma coisa que não era gente nem bicho. Estava enrolada num envoltório que um dia fora branco, mas agora se achava sarapintado de verde. O rosto e a cabeça recobertos de borracha, dois olhos azuis a espreitavam, e um enorme nariz em forma de focinho erguia-se para o alto, como que embasbacado. Por um instante ela ficou paralisada. A bestialidade da aparição era aterradora.

Compreendendo depois que se tratava apenas de um homem cujo rosto se ocultava por detrás daquela máscara hedionda, saltou de novo na direção da porta, mas foi agarrada e empurrada para trás por um braço. Ouviu um assobio alegre na estrada e, lembrando-se do pacote que tinha nas mãos, atirou-o por sobre o muro, ouviu seu surdo baque e o assobio parou.

Depois, quando a hedionda figura a enlaçou com o braço e premiu uma mão bolorenta contra sua boca, ela desmaiou.

 

O SR. BEALE SUGERE CASAMENTO

— Detido por um pistoleiro? — perguntou James Kitson incrédulo, — mas, que significa isso?

Beale franzia o cenho para a deserta Picadilly, que ficava sob. a suite palaciana ocupada pelo Sr. Kitson no Ritz-Carlton.

Em breves palavras relatou sua experiência da noite "anterior.

— Esse Homo — disse Kitson — fará parte da quadrilha? Beale sacudiu a cabeça. — Creio que não. Poderá ser um

dos embaixadores de van Heerden.

— Embaixadores?

— Explicar-lhe-ei o jogo de van Heerden qualquer destes dias e o senhor entenderá o que quero dizer — esclareceu Beale. — Não, não acho que o Pastor Homo seja algo mais do que um galante cavalheiro socorrendo uma dama aflita, seja porque ama essa dama, seja porque respeita o professor, seja porque nutre um sentimento de antagonismo generalizado contra todos os detetives. Gabe-me apenas especular. De qualquer forma deteve-me até que a dama estivesse longe. Então já não havia necessidade de que fosse atrás dela, de modo que me sentei e meu pus a conversar. Cavalheiro mais culto e amável seria impossível encontrar.

Kitson olhou para o companheiro através das pálpebras semi-fechadas.

— Mas Beale, não o estou reconhecendo — disse. — Pensei que fosse demasiado ativo para desperdiçar seu tempo.

— De fato, sou assim — disse o outro, metendo as mãos nos bolsos. — Sou exatamente assim. — Ele se voltou para o homem mais idoso. — Sr. Kitson, preciso saber algo mais do que já sei a respeito do testamento de John Millinborn.

O advogado ergueu os olhos, ajeitou os óculos e encarou o mais moço com ar perturbado.

— Perdoe-me a intromissão, mas estou confuso. Não entendo muito da lei inglesa, embora saiba que os casamentos não são fáceis de se fazer aqui em Londres como em minha terra natal. Mas aqui, como em qualquer outra parte, é difícil obrigar uma moça a casar contra sua vontade e tal casamento, por certo, não é válido perante a lei.

Ele sentou-se no braço de um sofá, brincando com o chapéu no vão das pernas, e correu os dedos pelos cabelos.

— Eis-me a dizer coisas, ao invés de perguntá-las como pretendia.

— Tome uma chávena de chá, — disse Kitson com um sorriso, — todo mundo na Inglaterra é louco por chá e espero desenvolver-lhe o hábito.

Beale sacudiu a cabeça.

— Tem razão quanto ao casamento, — prosseguiu Kitson — mas lhe direi qual é a lei relativa à matéria. Um casamento só pode ser oficiado se ambas as partes o anunciarem previamente e se ambas forem residentes no distrito em que a cerimônia deva ter lugar — três semanas é o prazo para as proclamações.

— Não haverá outra forma?

— Sim; pagando-se taxas especiais e oferecendo uma razão sólida e suficiente, pode-se conseguir uma autorização do Arcebispo de Canterbury, ou melhor, de seus subalternos, permitindo um casamento sem proclamas prévios. Chama-se licença especial, e o casamento poderá ocorrer a qualquer hora e em qualquer lugar.

- Existe um registro de requerimentos? — indagou Beale.

— Pensei nisso — assentiu o advogado — sim, estou atento a esse setor. É porém difícil porque os estabelecimentos oficiais não têm a boa vontade que deveriam ter. Em minha opinião, van Heerden se casará através dos caminhos normais, vale dizer, fazendo os proclamas. Para conseguir uma licença especial seria obrigado a dar seu verdadeiro nome e fornecer um fiador. Poderá, no entanto, casar pelos canais normais, mesmo que dê um nome falso, coisa que provavelmente irá fazer.

— Seria legal o casamento, se realizado sob um nome falso?

— Decididamente, sim. Perante a lei inglesa poder-se-á praticar uma infração, casando sob nome suposto, mas isso não invalidará o casamento.

Stanford Beale estudava os desenhos do tapete.

— Existe alguma possibilidade de se expedirem duas licenças especiais para casar com a mesma moça? — indagou.

— Nenhuma. — Por que pergunta? Beale não replicou de imediato.

— Algo que Homo me disse ontem à noite, quando lhe declarei francamente que estava à procura da Srta. Cresswell, deu-me uma idéia para assegurar-me de que nenhuma licença especial seja concedida a van Heerden. Pedirei uma em meu próprio nome.

O advogado fitou nele os olhos.

— Para casar com a moça? — balbuciou. — Mas...

Stanford Beale riu-se, um tanto amargamente.

— Não se exalte, Sr. Kitson — estou apenas pensando na Srta. Cresswell. Uma licença especial em meu nome bloquearia uma das vias de acesso de van Heerden ao dinheiro fácil. Diga-me, e isto é o que lhe vim perguntar: segundo o testamento de Millinborn o marido se beneficia diretamente com o casamento ou fica na dependência daquilo que a mulher lhe der?

— Beneficia-se diretamente — disse Kitson depois de uma pausa, — no ato do casamento recebe exatamente metade da fortuna da moça. Essa foi a vontade de Millinborn.

— Entendo... claro que van Heerden está a par disso. Basta-lhe apresentar uma certidão de casamento para dispor de dois e meio milhões de dólares. Ou, por outra, meio milhão em moeda inglesa. Este é o segredo de tudo. Ele precisa de dinheiro imediatamente, e pelas disposições do testamento?

— Receberá tudo — disse Kitson. — Se viesse a mim amanhã com um comprovante do seu casamento, mesmo sabendo que havia coagido a moça a casar, seria obrigado a lhe dar seu quinhão. Céus, daria até o meu último níquel para ver esse celerado na forca, Beale!

Sua voz estava trêmula e, erguendo-se abruptamente, ele se dirigiu para a janela. Depois se voltou.

— Creio que a idéia tem seu valor. Obtenha a licença.

— Obterei — e casarei com ela — disse Beale rapidamente.

— Casará com ela? — não o estou compreendendo! Pela primeira vez havia suspeita em sua voz.

— Sr. Kitson, porei todas as minhas cartas na mesa — disse Beale com tranqüilidade. — Quer sentar-se um instante? Há certos fatos que não podemos ignorar. Fato número um: Oliva Cresswell está nas mãos de um homem totalmente inescrupuloso, mas este não tem em mira outro objetivo senão o casamento. Sua beleza, seu encanto, todas as qualidades que reduzem a maioria dos homens e a totalidade dos brutos não nada lhe falam a ele... para ele, ela não passa de uma proposta de dinheiro. Se não puder casar com ela, perderá todo o interesse pela moça.

— Sei que é assim —, concordou o advogado, — mas...

— Um momento, por favor. Se soubéssemos onde ela se encontra, poderíamos sustar o casamento e indiciar van Heerden... mas, tenho um pressentimento de que não conseguiremos localizá-la antes que seja tarde demais ou quase. Não posso sair à caça com um magote de policiais. Preciso jogar uma cartada solitária. Quando encontrá-la, precisarei estar em posição de casar sem perder um segundo sequer.

— Quer dizer que casará com ela, a fim de frustrar van Heerden e depois desmanchará o casamento? — indagou o advogado, sacudindo a cabeça. — Não gosto da solução, Beale, digo-lhe francamente. Não gosto nem um pouco. Você é um bom homem e deposito toda confiança em si, mas, se consentisse, ainda que acreditando na sua honestidade, como acredito, sentir-me-ia traidor da confiança de Millinborn.

Beale não interrompeu o mais velho.

— Certo; e agora, se já terminou, contar-lhe-ei meu plano

- disse. Pelo que vejo, só há uma possibilidade muito pequena de salvarmos essa moça do casamento. Fiz o que me foi possível e nós, McNorton e eu, levamos todos esses fatos perante um juiz esta manhã. Conseguimos uma audiência especial, tendo em vista obter uma ordem de prisão contra van Heerden. Mas não há provas para condená-lo por nenhuma espécie de delito. Não podemos ligá-lo ao desaparecimento da Srta. Cresswell e, embora eu tenha salientado que van Heerden admita saber onde a moça se encontra, o juiz declarou que não existe lei obrigando um homem a divulgar o endereço de sua noiva a um possível rival. A moça é maior e pode fazer o que quiser e, segundo me parece, o senhor não tem nenhuma prerrogativa legal de preceptor.

— Nenhuma — disse James Kitson, — este é nosso ponto fraco. Sou apenas o depositário do seu dinheiro. Oficialmente, devo ignorar o fato de que Oliva Creswell é Oliva Prédeaux, a herdeira.

— Nossas mãos estão, por isso, atadas, — concluiu Beale calmamente.

— Não vê que o meu plano é o único exeqüível, mas não lhe disse em que consiste. Existe um homem, um criminoso, esse Pastor Homo, que poderá ser útil. Alegro-me que não saiba onde está a moça; mas, ajudará por uma razão. Na verdade voltou a ser trancafiado esta manhã. Vê-lo-ei à tarde.

O Sr. Kitson franziu o cenho.

— O pistoleiro? Como poderá ser útil?

— Eu lhe digo. Esse homem é conhecido da polícia como Pastor Homo. Aparentemente trata-se de um padre suspenso de ordens, alguém que resvalou na vida. Conserva ainda a imagem do cavalheiro; falava lenta e deliberadamente, metido em roupas decentes, pareceria um padre de verdade. Proponho que ele me case com a Srta. Cresswell. O casamento será uma farsa, mas nem ela nem van Heerden saberá disso. Se meu raciocínio estiver correto, tão logo van Heerden descubra que ela está casada não tomará outras providências a não ser, talvez — ele sorriu, — fazê-la viúva. Mais cedo ou mais tarde, pô-lo-emos sem dúvida sob sete chaves e então poderemos contar a verdade à Srta. Cresswell.

— Por outras palavras, pretende infringir a lei e cometer uma infração grave — disse Kitson, sacundindo a cabeça. —Não posso pactuar com isso; ademais, ela talvez não case com você.

— Vejo esse perigo; van Heerden é um sujeito muito astuto. Poderá estar já casado quando os encontrar.

— Disse que Homo nada sabe a respeito da moça; que sabe ele?

— Ouviu falar em van Heerden. Ouviu — provavelmente de Hilda Glaum — que van Heerden se casa: o submundo não sabe das novidades através das colunas sociais; é também possível que saiba van Heerden metido nalguma trapaça alheia ao seu campo de ação.

— Estará disposto a ajudá-lo?

— Claro — disse Beale com tranqüila confiança, — o homem anda quebrado e louco por dinheiro. A polícia o vigia como um gato e, mais cedo ou mais tarde acabaria por apanhá-lo. McNorton me disse isso. Ofereci-lhe uma passagem para a Austrália e mais 500 libras e ele se agarrou à oferta.

— Explicou-lhe o plano?

— Tive de fazê-lo — confessou Beale; — não havia tempo a perder. Para minha surpresa, ele não gostou, mas terminou por concordar. Foi a Whitechapel para conseguir os apetrechos necessários. Vou alojá-lo no meu apartamento. Claro que talvez não seja necessário — prosseguiu — mas penso que será.

Kitson espalmou as mãos em desespero.

— Terei de consentir, disse — a coisa toda foi um erro desde o princípio. Confio em você, Stanford — continuou ele fixando o outro nos olhos, — não tem nenhum outro sentimento além do interesse profissional por essa jovem?

Beale baixou os olhos.

— Se lhe dissesse isso, Sr. Kitson, estaria mentindo — confessou calmamente. — Tenho um interesse muito profundo na Srta. Cresswell, mas isso não fará nenhuma diferença para mim, e ela jamais o saberá.

Ele saiu logo depois e retornou aos seus aposentos. Às quatro horas recebeu um visitante. O Pastor Homo, barbeado de fresco e envergando uma casaca preta bem assentada, e colarinho branco, pareceu-lhe mais real do que o Pastor Homo que conhecera na noite da véspera.

— Está realmente a caráter — disse Beale.

- Creio que sim — disse o outro brevemente. — E agora,

que faço?

Fique aqui. Pus-lhe uma cama no meu escritório — disse Beale.

— Gostaria de saber um pouco mais, antes de continuar — disse Homo.

— Já lhe contei a história — redargüiu Beale pacientemente - e o advirto desde já que não tenciono contar-lhe mais nada. Faça o seu papel e lhe pagarei o que prometi. Ninguém será prejudicado por sua conduta, isso lhe posso prometer.

— Esse aspecto não me preocupa tanto — disse o outro com frieza, — quanto...

Bateram à porta, agitada e apressadamente, e Beale atendeu de pronto. Era McNorton e, pela força do hábito, Parson se encolheu nas sombras.

— Está tudo certo, Parson. Sei que está aqui. Que acha disto? — Ele se voltou para Beale e pôs sobre a mesa um pedaço de papel amarrotado que tentava alisar agora. Era uma fórmula telegráfica, cuja metade inferior havia sido cortada.

— Belocity, Londres — leu Beale em voz alta. — Aprisionada em Deans...

Nesse ponto o restante da mensagem havia sido arrancado.

 

O BOM HERR STARDT

— Onde está o resto? — perguntou Beale.

— É tudo o que temos —, replicou McNorton lugubremente. — É a única informação dessa fonte que irá obter nestas vinte e quatro horas.

— Mas não compreendo; é sem dúvida a caligrafia da senhorita Cresswell.

— E Belocity é sem dúvida o seu endereço telegráfico. Este papel foi arrancado a um bêbado vadio, um vagabundo, como se diz.

— Onde?

— Em Kingston sobre o Tâmisa; — disse McNorton — o homem foi recolhido da rua, completamente embriagado, e levado para um posto policial. O inspetor, ao revistá-lo, encontrou esse pedaço de papel num dos bolsos e o ligou ao desaparecimento da Srta. Cresswell, assunto que ainda lhe estava fresco na memória, pois esta manhã mesmo havia enviado a todos os condados uma nova circular com a descrição da moça. Telefonou-me e mandou um policial trazer-me o papel esta tarde.

— Hum! — fez Beale, mordendo pensativamente os lábios.

— Ao ser interrogado sobre a origem do dinheiro com que se embebedou — disse McNorton — o vagabundo afirmou que o encontrara embrulhado num pedaço de papel. Parece-me ser verdade. Ela deixou-o cair de um carro ou então o atirou de dentro de uma casa.

— O homem está muito mal?

— Muito, — disse o outro — não será possível lhe arrancar nada antes de amanhecer o dia.

— Aprisionada em "Deans" —, repetiu Beale. Quantos "Deans" existem no país?

— Uma dúzia pelo menos — replicou o chefe de polícia:

— Há Deansgate em Manchester, Deanston em Perth, Deansboro, Deans Abby — andei procurando, — existe um montão de "Deans".

— Alguns "Deans" nas proximidades de Kingston?

— Nenhum —, respondeu o outro.

— Então se trata, obviamente, do nome de uma casa. — disse Beale. — Notei que na Inglaterra existe o hábito de se dar nomes ao invés de números às casas, especialmente nos subúrbios.

Ele dirigiu o olhar para o Pastor Homo.

— Poderia nos ajudar?

O homem sacudiu a cabeça.

— Se fosse um ladrão vulgar, poderia auxiliá-lo, — disse

— mas o meu ramo de negócios não se estende até os subúrbios.

— Arranjaremos uma lista telefônica de Kingston e a correremos de ponta a ponta, — disse McNorton, — temos uma nos arquivos da Scotland Yard. Se...

Beale ergueu de súbito a mão para impor silêncio: ouvira passadas familiares no corredor.

— É van Heerden, — esclareceu em voz baixa, — esteve fora toda a manhã.

— Foi seguido? — indagou McNorton.

— Meu homem perdeu-o de vista — disse ele.

Caminhou pé ante pé pelo vestíbulo e se pôs a escutar atrás da porta. Depois ouviu a porta do médico fechar-se e voltou.

— Coloquei o melhor detetive da América na sua cola — disse, — mas o homem conseguiu sempre ludibriá-lo.

— De qualquer forma — disse McNorton, — este telegrama afasta a idéia de que ela tenha ido para Liverpool. Esclarece também a questão de ter ido por livre vontade sua. Se o nome dele aparecesse no telegrama — acrescentou pensativamente, - correria o risco e o mandaria prender.

— Dar-lhe-ei uma razão melhor para prendê-lo — disse Beale — tão logo coloque a Srta. Cresswell em segurança.

— A Alfôrra Verde? — sorriu o chefe de polícia.

— A Alfôrra Verde — repetiu Beale, sem sorrir, porém. — Essa é a grande jogada de van Heerden. O seqüestro da Srta. Cresswell é apenas um meio para chegar a um fim. Ele quer seu dinheiro. Talvez tenha grande necessidade dele. Quanto mais urgente a necessidade tanto mais cedo se fará o casamento.

— Mas não há clérigo na Inglaterra que os case, — era Homo que intervinha. — Se a mulher nega seu consentimento, o casamento não se pode consumar. Pelo que percebi, a moça não se intimida facilmente.

— É isso que receio, — disse Beale, — ela é toda coragem...

Ele se deteve, pois ouvira a porta do médico fechar-se. Em três passadas havia transposto o vestíbulo e ganho o corredor, ficando frente a frente com o suave vizinho. O Dr. van Heerden, cuidadosamente trajado, calçava as luvas e sorriu para o carrancudo rival.

— Alguma novidade sobre a Srta. Cresswell? — indagou amavelmente.

— Se tivesse alguma notícia da Srta. Cresswell, o senhor não estaria aqui — disse Beale.

— Oh, que interessante — engrolou o médico, — e onde estaria eu?

— Trancafiado na cadeia, meu amigo — disse Beale. O médico jogou a cabeça para trás e riu suavemente.

— Que amante! — disse— e como custa a aceitar, a derrota! Talvez se sinta aliviado em saber que a Srta. Cresswell, que brevemente se chamará senhora van Heerden, está perfeitamente feliz e bastante aborrecida com a sua persistência. Mandou-me um telegrama de Liverpool esta manhã, pedindo-me que vá ter com ela o mais breve possível.

— Mentira — disse Beale calmamente, — porém, uma mentira a mais ou menos acho que não fará diferença.

— Um ponto de vista inteiramente imoral — disse o médico — mas vejo que é inútil discutir com o senhor e me resta apenas fazer um pedido.

Beale nada disse, mas ficou à espera.

— É este — disse o médico, escolhendo as palavras com cuidado, — recolha o cavalheiro que me tem seguido os passos no dia de hoje. A princípio foi divertido, mas agora já está se tornando cansativo.

— Acho que será melhor acostumar-se a ser seguido — disse Beale, — não é a primeira vez.

O médico olhou para ele sob as pálpebras meio cerradas e sorriu.

— Desejo-lhe melhor sucesso no futuro — replicou, e seguiu caminho, descendo as escadas.

Beale retornou ao seu apartamento, entrou no dormitório e baixou o olhar sobre a rua. Fez um sinal para um homem colocado na esquina e recebeu uma resposta quase imperceptível. Depois voltou para os dois homens.

— Receio que este sujeito seja demasiado esperto para nós. E Londres, com seus túneis, estações subterrâneas e táxis, é um osso duro de roer.

— Penso que seu homem o perdeu de vista no túnel — disse McNorton — mas o senhor se interrompeu num momento interessante. Que nos ia contar a respeito da Alfôrra Verde?

— Apenas isto — disse Beale, — a Alfôrra Verde é a maior conspiração contra o mundo civilizado jamais tramada.

Lançou um olhar penetrante sobre Homo.

— Não me olhe assim — disse o Pastor. — Nada sei a respeito, a menos que... — Ele se deteve. — A Alfôrra Verde — repetiu — seja o segredo do velho Heyler.

— Ele está envolvido — disse Beale brevemente.

O telefone tocou; ele apanhou o receptor e se pôs a escutar, limitando-se a uma interjeição ocasional de quando em quando. Depois, repôs o aparelho no gancho.

— Foi como pensei — disse; — o médico despistou-o novamente. Havia um carro à sua espera na Rua Oxford e, quando percebeu não haver táxis por perto, penetrou no carro e tomou o rumo Leste.

— Conseguiu o número da chapa? — perguntou McNorton. Beale sorriu. — Não adianta grande coisa. Provavelmente

terá três ou quatro chapas diferentes... — Ele olhou para o relógio.

— Vou dar um pulo até Kingston — disse.

— Não poderei acompanhá-lo — disse McNorton — tenho uma reunião com o comissário às cinco horas.

— Antes de ir embora — observou Beale, — poderia apor sua assinatura a esta declaração de minha bona fide?

Ele colocou sobre o mesa uma folha de papel almaço em branco.

— Que é isto? — indagou McNorton surpreso — um requerimento solicitando permissão especial... vai se casar?

— Assim o espero — disse o outro cautelosamente.

— Não me parece muito feliz com isso. Suponho que precise comprovar a urgência do caso. Provavelmente estarei dando um falso testemunho. — Ele assinou o nome. — Quando vai tirar a licença e por que toda essa pressa?

— Vou tirar a licença amanhã — disse Beale.

— E o nome da moça é...?

— Pensei que já houvesse descoberto — sorriu o outro, enxugando e dobrando destramente a folha.

— Não será a Srta. Cresswell ? - perguntou o chefe de polícia.

— Nem mais nem menos.

— Mas, pensei...

— Há circunstâncias que poderão ser oficialmente trazidas ao seu conhecimento, McNorton — disse o detetive, — por enquanto é necessário guardar segredo sobre o meu plano.

— Tem algo a ver com a Alfôrra Verde? — indagou o outro em tom de brincadeira.

— Tem muito que ver com a Alfôrra Verde.

— Bem, vou indo — disse, McNorton, — telefonarei à polícia de Kingston, pedindo que lhe dê toda assistência possível, mas receio que nada conseguirá do vagabundo antes de amanhã e talvez nem então.

Logo depois saiu.

— Bem, Homo; agora é conosco —, disse Beale. — Terá de permanecer junto de mim a partir de amanhã. Esteja à vontade até que eu volte.

— Um momento — disse Homo, quando Beale se levantou e apanhou luvas e chapéu para sair. — Antes que se vá, quero que compreenda claramente: só aceito este trabalho por me oferecer uma oportunidade que jamais tive desde que caí em desgraça, se me permite o chavão.

— Compreendo — disse Beale.

— Talvez lhe esteja prestando um desserviço.

— Correrei o risco — disse Beale.

— Como queira — disse Homo, o duro rosto vincado por um sorriso fugidio.

O carro de Beale estava à espera, mas sua partida foi inesperadamente retardada. Ao descer para o vestíbulo ele viu um estranho postado próximo da porta, a examinar os nomes afixados na parede. Algo na sua aparência prendeu Beale. Estava bem vestido, mas suas roupas diziam não ser americano nem inglês.

— Posso ajudá-lo? — perguntou Beale.

O visitante volveu uma face rosada para ele.

— Muito gentil — disse com leve sotaque estrangeiro. — Penso que o Dr. van Heerden mora aqui?

— Sim, mora aqui — disse Beale, — mas, no momento, não está em casa.

— Não está! — o rosto do homem se apagou. — Mas que falta de sorte! Poderia dizer-me onde posso encontrá-lo; meu assunto é urgente e venho de muito longe.

Da Alemanha, pensou Beale com seus botões.

— Sou amigo do Dr. van Heerden e talvez possa ajudá-lo. O assunto é muito importante? Terá relação... ele hesitou — com a Alfôrra Verde?

Disse a última parte em Alemão e o homem assustou-se e o encarou cheio de suspeita.

— É um assunto da maior importância — repetiu. Falava em Alemão.

— Acerca da Alfôrra Verde? — perguntou Beale na mesma língua.

— Nada sei a respeito da Alfôrra Verde — disse o homem apressadamente. — Sou apenas o portador de uma comunicação da maior importância.

— Se me der a carta — disse Beale — farei com que chegue até ele; e estendeu a mão com a segurança de alguém habituado a partilhar os mais íntimos segredos do médico. A mão do estranho passeou pelos bolsos internos do paletó, mas saiu vazia.

— Não. É preciso que eu entregue. — Tenho de falar pessoalmente com o doutor — disse ele. — Não sabe que venho e vou aguardá-lo.

Beale refletiu rapidamente.

— Bem; talvez queira subir ao meu apartamento e esperar lá — disse com afabilidade e se pôs à frente para mostrar o caminho. O homem, mostrando-se ainda pouco à vontade, foi levado até o seu apartamento, onde a visão do Pastor Homo incutiu-lhe mais confiança.

Gostaria de tomar chá? Não, não gostaria de tomar chá. Café? Não desejava café. Um copo de vinho talvez? Não, não bebia vinho nem cerveja, nem tampouco aceitava qualquer refresco.

"Meu caro" — pensava Beale desesperado, — "não sei se lhe dou clorofórmio ou se lhe quebro a cabeça com o atiçador, mas quero ver essa carta."

Como que lhe adivinhando os pensamentos, mas formulando-os de maneira inexata, o homem disse:

— Poderia aproveitar-me da sua bondade a fim de. fazer chegar minha carta até o Dr. van Heerden, mas de que serviria isso, já que se trata apenas de uma carta apresentando-me ao médico?

— Ah, é só isso? — disse Beale desapontado e ciente de que o homem falava a verdade.

— Só isso — disse ele, a não ser minha mensagem, que é verbal. Meu nome é Stardt, talvez tenha ouvido o médico falar a meu respeito. Temo-nos correspondido.

— Sim, sim, lembro-me — mentiu Beale.

— Claro que a mensagem é só para ele, como o senhor bem poderá compreender e, se entregá-la ao senhor — sorriu Herr Stardt — não irá entendê-la, pois consta de apenas uma palavra.

— Uma palavra? — disse Beale inexpressivamente. — Um código... com os diabos!

 

A CAUTELA

Oliva Cresswell recuperou a consciência quando estava sendo conduzida escada acima para dentro da casa. Poderia ter-se restabelecido mais cedo, pois retinha uma fraca impressão de haver sido deitada entre um relvado ondulante e de haver ouvido alguém queixar-se de que era mais pesada do que parecia. Lembrava-se também fracamente da presença do Dr. van Heerden ao pé dela, envergando um guarda-pó comprido e cinzento.

Quando seu captor abriu a porta do quarto com um pontapé, ela se desprendeu dos seus braços, indo apoiar-se à grade da cama.

— Estou bem —, disse quase sem fôlego — fui tola em desmaiar, mas... mas, o senhor me assustou.

O homem sorriu e parecia prestes a dizer alguma coisa, porém uma voz aguda vinda do patamar chamou-o e ele saiu, batendo a porta atrás de si. Ela se dirigiu ao banheiro, lavou o rosto em água fria e sentiu-se melhor, embora continuasse um pouco tonta. Depois sentou-se, a fim de fazer um retrospecto da situação, e nesse retrospecto duas figuras repontavam em alternância — van Heerden e Beale.

De alguma forma sabia que van Heerden lhe disse a verdade e que havia por detrás de seu ato um significado mais profundo que era incapaz de apreender. Recordou-se do que ele dissera a respeito de Beale e corou.

"És uma tola, Matilde" — disse consigo mesma, — "eis um jovem com quem estiveste apenas uma meia dúzia de vezes e começas a ter acessos de frio e calor à simples menção de estares apaixonada por ele." Sacudiu a cabeça reprovativamente.

No entanto, todos os seus pensamentos se centralizavam em torno de Beale e, por mais que divagassem, retornavam invariavelmente a ele. A animação que se firmara nela, aquela confiança de súbito convertida em couraça mental capaz de rechaçar todos os pensamentos aterradores, ela a referia à sua fé num homem que semanas antes não lhe parecia senão um incorrigível beberrão. Qual seria a ocupação de Beale Por que a teria empregado para copiar aquela lista de estatísticas americanas e canadenses? Por que desejaria saber todos aqueles hotéis, seus proprietários, delegados e outras coisas semelhantes?

Que faria van Heerden agora? Sua tentativa de fuga iria alterar-lhe os planos? Como poderia ele superar a dificuldade de casar com uma moça que por certo o denunciaria diante de uma testemunha tão independente como um clérigo? Morreria antes de casar com ele, disse de si para si.

Não conseguiu descansar e se pôs a caminhar pelo quarto, examinando as gravuras nas paredes e os livros, e dirigindo-se eventualmente para o espelho que encimava a penteadeira, a fim de ver se ainda restava algum vestígio da marca vermelha que a pancada de van Heerden lhe pusera no rosto. A marca se havia atenuado e tendia a mesclar-se com a cor da pele; sentiu-se desapontada. Assustada, entregou-se à análise daquela curiosa atitude mental e uma vez mais foi encontrar Beale. Queria que Beale visse o lugar. Queria a compreensão de Beale. Queria a fúria de Beale, tinha certeza de que se enfureceria.

Riu consigo mesma e, à falta de melhor diversão, foi até as gavetas da penteadeira e lhes examinou o conteúdo. Estavam vazias e destrancadas, a não ser uma que não atendeu ao seu puxão. Ela recordou que tinha na bolsa um pequeno molho de chaves.

"Vou ser impertinente. Perdoai-me a liberdade" disse, ao sentir a fechadura ceder à sua primeira tentativa.

Abriu a gaveta. Continha uns poucos artigos femininos e uma grossa pasta de couro negro. Puxou-a para fora, colocou-a sobre a mesa e abriu-a. Estava cheia de folhas de papel almaço. Sobre a capa se lia a palavra "Argentina" e a caligrafia lhe pareceu familiar. Era uma letra ousada e evidentemente feminina.

"Onde vi isso antes?" perguntou.

Viu a primeira página e leu:

"Hotel Alsigar. Fournos. Proprietário, Miguel Porcorini. índice 2:"

Sua boca se abriu de pasmo e ela percorreu a lista toda. Apanhou depois um outro folheto. Trazia a inscrição "Canadá" e ela virou rapidamente as folhas. Recomendou o trabalho. Era o mesmo que lhe dera Beale: uma lista de hotéis, seus proprietários e meios de transporte; mas não havia referências à polícia. Então começou a compreender. Uma descrição inusitadamente longa mostrou-lhe certas características de traço que ela reconheceu.

"Hilda Glaum!" — exclamou. "Que quererá dizer isto?"

Tornou a examinar o conteúdo da gaveta e alguns itens a intrigaram. Não a pequena pilha de lenços, nem as golas dobradas e outros objetos semelhantes. Se Hilda Glaum -tinha o hábito de visitar Deans Folly e usava aquele quarto, era natural que tais coisas estivessem ali. Foi a caixa de ferro que a fez cismar. Encontrou-a no fundo da gaveta. Se lhe fosse possível imaginar algo tão fantástico, poderia ter pensado que a caixa havia sido feita expressamente para abrigar o objeto que continha e preservá-lo dos perigos do fogo. A tampa, que se fechava com uma mola acionada por um minúsculo botão, encaixava-se perfeitamente, tornando a caixa hermética.

Abriu-a com dificuldade. As paredes eram revestidas de amianto. A não ser por um pequeno envelope azul ao fundo, a caixa estava vazia! Ergueu-a, a fim de sacudir dela o envelope e foi então que lhe acudiu a idéia de ter a caixa sido feita para o envelope, o qual só se deslocou quando lhe ergueu uma das pontas com um grampo.

Não estava lacrado; ela enfiou um dedo e pescou.. uma cautela!

Sentiu ímpetos de rir, mas se conteve. A cautela anunciava que os Srs. Rosenblaum & Irmãos, de Comercial Road, Londres, haviam adiantado dez xelins sobre um relógio de prata para cavalheiros, e a penhora fora feita em nome de van Heerden!

Estupefata, contemplou o documento. O médico não era homem de precisar de dez xelins. Por que haveria de empenhar um relógio e por que estaria a guardar a cautela com tanto cuidado ?

Oliva hesitou um instante, depois retirou a cautela do seu> invólucro, recolocou o envelope no fundo da caixa e fechou a tampa. Antes de repor a caixa e a pasta na gaveta, arranjou um esconderijo para o pequeno cartão.

Bateram à porta e ela repôs apressadamente a chave na bolsa.

— Entre — disse.


Reconheceu no homem à soleira o indivíduo que a tinha carregado de volta para o seu quarto.

Havia em seu todo algo estranho que a fazia sentir-se mal, uma certa hilaridade reprimida sugerindo a embriaguez.

— Não faça barulho — sussurrou ele com um muxoxo abafado, — se Gregory ouvir vai ser o diabo.

Notou que a chave estava na fechadura pelo lado de fora. Ele não fez menção de retirá-la e fechou suavemente a porta atrás

de si.

— Meu nome é Bridgers, — sussurrou, — van Heerden já lhe falou a meu respeito — Horace Bridgers, — aceita? — Sacou uma pequena caixa de couro de tartaruga do bolso do surrado colete e a abriu com um piparote. O conteúdo era um pó branco que rebrilhou à luz de um raio de sol ocasional. — Experimente uma pitada — implorou com ansiedade, — e todos os seus aborrecimentos terminarão.

— Não, obrigada — ela sacudiu a cabeça, dirigindo-lhe um sorriso perplexo. — Não sei o que é isso.

— É o terror branco — retorquiu ele, — melhor do que o verde... não é tão terrivelmente bolorento, hem?

— Não me sinto com disposição para terrores — disse ela. Oliva se perguntava por que o homem estaria ali e, durante um instante, alimentou a esperança de que ignorasse o caráter de van Heerden.

— Esta bem — ele tornou a meter a caixa no bolso, — azar seu; jamais conhecerá o céu na terra!

Ela teve a impressão de que durante todo o tempo ele se mantivera na expectativa de uma interrupção vinda de baixo. Com alívio, constatou que não fizera qualquer tentativa de avançar mais para dentro do quarto. Deveria estar sob a influência de alguma droga, pensou. Seus olhos fulgiam com brilho anormal; suas mãos jamais se aquietavam.

— Sou Bridgers —, tornou a dizer. — Sou o melhor homem de van Heerden. Na verdade sou o melhor químico analista que jamais se formou... E a fazer biscates para um porco alemão! — Ele se encaminhou para a porta, abriu-a e pôs-se a escutar. Depois, aproximou-se dela nas pontas dos pés.

— Você sabe — murmurou, — você é a pequena de van Heerden... qual é a jogada?

— Qual é...? — gaguejou ela.

— Qual é a jogada? Tentei dar um vomitório em Gre-gory e Milson, mas eles são cheios de mistérios. Malditos sejam todos os mistérios, minha querida. Qual é a jogada? Por que estarão mandando homens para a América, para o Canadá, para a Austrália e a índia? Vamos, seja camarada! me conte! Estive no escritório. Já sei de tudo. Milhares de envelopes lacrados contendo passagens marítimas e dinheiro. Milhares de fórmulas telegráficas já endereçadas. Você não me tapeia! — Suas últimas palavras foram sussurradas. — Por que van Heerden estará empregando os imprestáveis e os marginais da ciência? Perelli, Maxon, Boyde Heyler e eu? Se a jogada é lícita, por que não se serve de profissionais recém-formados?

Ela sacudiu a cabeça, àquela altura menos interessada em tais revelações do que em seu próprio conforto pessoal. A atitude de van Heerden era cada vez mais ameaçadora... então lhe veio a grande idéia. Evidentemente, aquele homem nada sabia das circunstâncias em que fora ter àquela casa. Para ele, era uma assistente do médico, voluntária e consciente, a qual, por algum motivo, tivera de ser confinada.

— Contar-lhe-ei tudo, se me levar de volta para casa — disse, — não lhe posso dar provas aqui.

O olhar dele se encheu de suspeita. Depois riu.

— Isso não pode ser. Você sabe de tudo. Não posso sair daqui. Ademais, você me disse outro dia que não havia nada. Costumava vê-la trabalhar à noite — prosseguiu para assombro da moça. — Observava-a durante horas e horas a escrever sem parar.

Ela compreendeu então. Ela e Hilda Glaum tinham aproximadamente o mesmo corpo, e aquele homem embrutecido a tomava por Hilda, sendo quase certo que jamais estivera frente a frente com a outra jovem.

— Por que tentou fugir? — indagou ele de súbito; mas ela, numa resolução repentina, fê-lo voltar ao assunto inicial.

— Que adiantaria dizer-lhe alguma coisa? — perguntou. — Sabe tanto quanto eu.

— Apenas uma poucas coisas — respondeu ele animadamente, — mas não sei qual é a jogada de van Heerden. Sei que se casa com a outra moça; todo mundo sabe. Quando é o casamento?


— Que outra moça? — perguntou ela.

— Cresswell, Prédeaux, ou seja lá o que for — respondeu Bridgers com indiferença.

— Mas — ela tentava aparentar calma, — por que acha que deseja casar com ela?

Ele riu baixinho. — Não seja tola. Você não me engana. Todo mundo sabe que ela vale um milhão.

— Vale um milhão? — engrolou Oliva.

— Vale um milhão —. Ele tateou o bolso do colete à procura da caixinha. — Por que não experimenta uma pitada? Saberá como se sente a herdeira do velho John Millinborn.

Houve um ruído no saguão abaixo e ele se voltou, exageradamente assustado. (Ela achou o lance teatral por não saber que os nervos destemperados de um homem intoxicado pelos entorpecentes tornam qualquer som de uma intensidade insuportável.)

Ele abriu a porta e afastou-se sem fechá-la.

Imediatamente ela o seguiu e, ao chegar ao patamar, viu-lhe a cabeça que desaparecia nas escadas. Achou-se presa de um pânico atroz. Um milhar de temores amorfos a acometeram e lhe esfacelaram o ânimo forte. Quase gritou de alívio ao ver a porta corrediça entreaberta... o homem não parará para fechá-la. Atravessou-a e desceu o primeiro lance de escadas. Ele sumira antes que ela atingisse o patamar, e o saguão em baixo estava deserto. Era um saguão lajeado e amplo, com uma porta de vidro interpondo-se entre ela e o portal aberto.

Oliva voou escada abaixo, escancarou a porta e foi cair nos braços de van Heerden.

 

O JUDEU DE CRACÓVIA

Se em Londres houvesse sido cometido o crime do século — um crime tão tremendo que os nomes dos principais protagonistas andassem na boca de todos os homens, mulheres é crianças da Europa — poder-se-ia penetrar num certo departamento da Scotland Yard com a segurança de não se deparar dentro das paredes que delimitam aquele escritório, com nenhum oficial de polícia interessado na ocorrência e quiçá mesmo conhecedor do fato. Tal departamento é conhecido como Parley Vôos ou Departamento P. V. e se ocupa exclusivamente das ocorrências suspeitas verificadas fora das águas territoriais da Grã-Bretanha e da Irlanda. Seu corpo fica na barragem do Tâmisa, mas sua alma reside no estrangeiro.

O P. V. se mantém divinamente alheio aos mestres do crime que habitam nas sombras da Scotland Yard, mas seria capaz de apontar, sem se deter para consultas, não apenas os nomes dos pistoleiros conhecidos de Nova Iorque, mas também a composição de quase todas as sociedade secretas da Ásia.

Um polonês entrou em conflito com um judeu, nas ruas de Cracóvia, por causa da única coisa digna de se brigar por ela naquelas bandas. A quantia em pendência era praticamente uma ninharia, 260 coroas, mas quando o judeu foi levado moribundo para o hospital, fez uma declaração tão curiosa que esta foi mandada pelo chefe de polícia local para Viena; Viena passou-a a Berna; Berna comunicou-a a Paris, de onde a nota foi distribuída a Nova Iorque e Londres.

O assistente do Departamento P. V. saiu de sua sala e adentrou com passo incerto o desconfortável escritório do Sr. Mc Norton.

— Chegou de Cracóvia uma curiosa história que poderá interessar ao seu amigo Beale.

— De que se trata? — perguntou McNorton.

— Um homem foi assassinado — disse naturalmente o homem da P. V., como se aquele fosse o detalhe menos relevante da coisa. — Mas, antes de desencarnar, fez um testamento doando sua propriedade ao filho, e no curso desse testamento estabeleceu que o seu estoque — era plantador de milho — não poderia ser vendido por menos de mil coroas o alqueire. Cerca de 30 libras.

— Milho a 30 libras o alqueire? — Disse McNorton — O homem estaria doido?

— Absolutamente — disse o outro. — Era cidadão muito conhecido em Cracóvia, um tal Zibowski que durante a última guerra fora o principal agente comprador do governo alemão.


O chefe de polícia de Cracóvia perguntara-lhe, ao que tudo indica, se não estaria sofrendo de alucinações e o homem declarara ter o governo alemão uma opção para a compra de todo o milho da Galícia, da Hungria e da Ucrânia por baixo preço. Zibowski retraíra-se, aguardando que as condições se tornassem mais favoráveis. Acredita-se que trabalhava de parceria com um membro do governo alemão enriquecido durante a guerra com contratos militares. Na verdade, em seu leito de morte, confessara num delírio a existência de uma maravilhosa invenção que se estava aperfeiçoando em benefício do governo alemão, a Alfôrra Verde.

— MacNorton assobiou. — Só isso? — indagou.

— Só isso —, disse o homem da P. V. — Ao que me lembro, Beale fez uma ou duas referências misteriosas à Alfôrra. Onde está ele agora?

— Ausentou-se da cidade ontem à noite — respondeu Mc Norton.

— Pode comunicar-se com ele? O outro sacudiu a cabeça.

— Penso que o senhor enviará uma cópia deste comunicado ao gabinete. Talvez o assunto seja muito sério. Seja qual for, o plano está sendo elaborado em Londres e van Heerden é o artífice principal.

McNorton apanhou o chapéu e saiu à procura de Kitson, o qual encontrou na portaria do hotel. James Kitson acercou-se dele ansiosamente.

— Alguma notícia de Beale?

— Esta manhã esteve em Kingston — disse McNorton — com Homo, mas depois foi embora. Telefonei ao inspetor de Kingston, mas este pouco sabia e não me pôde dizer se Beale havia feito alguma descoberta. Interrogou o vagabundo bem cedo pela manhã, porém nada de útil conseguiu. Na verdade, vim saber se entrou em contato com o senhor.

Kitson sacudiu a cabeça.

— Quero conversar com ele acerca desse assunto da Alfôrra Verde. Beale está sozinho no caso —, disse o superintendente abanando a cabeça — e essa situação já se prolonga por demais.

— É grave?

— Um assunto internacional, provavelmente —, retorquiu McNorton com gravidade — no momento, o que sabemos é isto: existe uma vasta trama em marcha visando à deturpação do mercado mundial de alimentos e o cabeça dessa trama é van Heerden. Beale sabe mais a respeito do que qualquer um de nós, mas apenas de quando em quando nos faz entrever a real situação. Tenho escarafunchado o prontuário de van Heerden, porém não cheguei a encontrar nada de muito comprometedor. Sua ligação com o assassinato de John Millinborn, o senhor conhece.

— Sim, é verdade —, comentou John Kitson amargamente.

— Beale terá de nos contar tudo o que sabe —, prosseguiu McNorton — e, provavelmente, poderemos informar-lhes de algo que desconhece: van Heerden tem mantido uma correspondência ativa e dispendiosa com o restante do mundo através do telégrafo. Aconteceu em Cracóvia algo que confere significação especial às suspeitas de Beale.

Em breves palavras resumiu a história que lhe tinha chegado aquela manhã.

— Incrível —, disse Kitson quando o superintendente terminou. — Seria humanamente impossível comprar a esse preço. E não há razão para tanto. Acontece que tenho interesses numa empresa moageira e sei que as colheitas mundiais foram boas. Na verdade, suplantaram de muito a média.

McNorton, porém, sorriu com benevolência.

— Oxalá tenha razão. Desejo que tudo não passe de uma fantasia e, pela primeira vez na vida, confio em que as pistas da polícia estejam totalmente erradas. Mas a verdade é que van Heerden tem telegrafado à beca... — E... preciso de Beale!

Beale, porém, não estava à mão. Uma visita ao seu apartamento resultou infrutífera. O "cavalheiro estrangeiro", que na noite anterior tinha procurado van Heerden, voltara a aparecer pela manhã, mas desaparecera também.

McNorton mudou o rumo de suas buscas e penetrou no suntuoso estabelecimento Punsonby. Passou diante da escrivaninha que um dia pertencera a Oliva Cresswell e, com o rabo dos olhos, viu uma desconhecida ocupando o lugar, ladeada pela taciturna Hilda Glaum.


O pomposo Sr. White saudou-o com estranheza. Quando o chefe de polícia entrou em seu escritório particular, o Sr. White fez menção de erguer-se, pálido como cera e mal conseguindo falar. McNorton reconheceu ali os sintomas dos criminosos surpreendidos e se perguntou até que ponto aquele homem estaria envolvido nos acontecimentos em efervescência.

— Ah, ah... Sr. McNorton! — gaguejou White, tremendo como vara verde, — quer fazer o favor de sentar-se ? A que... a que... engoliu duas vezes — a que devo a honra?

— Vim apenas fazer-lhe uma visita — respondeu McNorton com bonomia. — Perdeu alguma outra carta registrada?

O senhor White abateu-se de novo sobre a cadeira.

— Sim, sim... não. Quero dizer... não, ah, muito obrigado. Foi bondade sua ter vindo, inspetor...

— Superintendente — corrigiu o outro, bem humorado.

— Mil perdões, superintendente — apressou-se em corrigir o Sr. White, — não, felizmente não.

Dirigiu um olhar meio amedrontado para o oficial de polícia.

— E como vai o seu amigo, Dr. van Heerden?

O Sr. White se torceu desconfortavelmente na cadeira, presa, mais uma vez, do nervosismo e da apreensão.

— O senhor, ah... van Heerden não é meu amigo —, disse, — apenas uma relação comercial —. Suspirou profundamente.

O White que McNorton conhecia não era aquele. Parecia mais velho; tinha o rosto muito mais vincado e os olhos pesados de exaustão.

— Penso que é um indivíduo muito atilado — observou. — O senhor tem interesse em algumas de suas empresas, não é mesmo?

— Em apenas uma; numa só — respondeu White vivamente, — e praza aos céus...

A essa altura se deteve.

— Prefereria não tê-los, hem?

O velho tornou a contorcer-se em sua cadeira.. .

— O Dr. van Heerden é muito sagaz — disse; — tem grandes planos, num dos quais... ah... estou comercialmente interessado. Apenas isso. Investi dinheiro em seu... ah... sindicato, sem, estar claro, conhecer a natureza do trabalho que está sendo feito.

— É um investidor muito crédulo, Sr. White — disse Mc Norton.

— Em assuntos financeiros sou uma verdadeira criança —admitiu White, mas acrescentou apressadamente — exceto quando se trata das finanças da Punsonby, que é uma das empresas comerciais mais sólidas de Londres, Sr. McNorton.

— É o que dizem — respondeu McNorton secamente. — Eu também estou interessado em sindicatos. A propósito, qual é o plano de van Heerden?

O Senhor White deu de ombros.

— Não tenho a menor idéia — confessou com um sorriso melancólico. — Creio que é uma tolice minha; porém, deposito tal confiança na capacidade do médico que quando ele me disse: meu caro White, desejo que inverta algum dinheiro numa das minhas empresas, respondi-lhe: caro doutor, eis aqui o cheque, não se preocupe em me explicar os detalhes; mande-me apenas os dividendos de tempos em tempos! Ah! Ah!

Seu riso era cavo e não teria enganado uma criança de dez anos.

— De modo que investiu 40 mil libras — principiou Mc Norton.

— Quarenta mil! — murmurou White, — como sabia? Empalideceu um pouco mais.

— Essas coisas se propagam — disse McNorton. — Conforme dizia, o senhor investiu 40 mil libras sem se dar ao trabalho de constatar a que espécie de trabalho se dedicava o sindicato. Não falo na qualidade de chefe de polícia, Sr. White

— prosseguiu, e White não tentou disfarçar seu alívio. — Mas como um velho conhecido seu.

— Pode dizer amigo — interveio pressuroso o Sr. White.

— Sempre o tive por amigo, Sr. McNorton. Deixe-me ver, há quanto tempo nos conhecemos?

— Há bastante tempo — disse McNorton — mas, voltemos ao assunto do seu investimento, que me interessa como amigo. Entregou todo esse dinheiro a van Heerden sem se dar ao trabalho de indagar se o empreendimento era legal. Não estou insinuando que não fosse — disse, quando White ia abrir a boca para protestar, — mas me parece estranho que não tenha tomado a precaução de averiguar.

— Oh, claro que averigüei; naturalmente averigüei, Sr, McNorton — disse White enfaticamente, — tratava-se de algum processo químico e eu nada entendo de Química. Sou obrigado a reconhecer — ele baixou a voz — que me arrependo do negócio. Nós, homens de negócios temos muitos compromissos. Não podemos permitir que nosso dinheiro fique preso por muito tempo e acontece que... ah... nesse instante, daria tudo para liquidar aquela posição.

McNorton meneou a cabeça. Sabia muito mais das aperturas financeiras do velho cavalheiro do que este poderia supor. Sabia, por exemplo, que o imaculado diretor-gerente da Punsonby se encontrava nas mãos de agiotas e que tais agiotas o estavam pressionando. Suspeitava que nem tudo corresse bem na Punsonby.

— Sabe a nacionalidade de van Heerden? — perguntou.

— Holandesa — replicou prontamente o sr. White.

— Tem certeza?

— Apostaria a vida — respondeu White.

— Ao vir para cá, vi uma jovem à escrivaninha — Srta. Glaum. Creio ser esse o seu nome. é holandesa também?

— A Srta. Glaum — ah... bem... a Senhorita Glaum —. White hesitava — Moça muito boa e trabalhadora; amiga do Dr. van Heerden. Na verdade empreguei-a por sugestão do médico. Devia certas obrigações ao doutor, entende? Ele, ah... me havia assistido numa doença.

McNorton sabia que não era verdade. White era um desses basbaques que os agiotas sagazes manobram à vontade. Ele fora socorrido por van Heerden num momento de grande aflição e retribuíra, numa ocasião em que seus horizontes financeiros se apresentavam desanuviados, financiando os projetos do médico.

— Não ignora que, como acionista do sindicato de van Heerden, não se poderá eximir da responsabilidade pelo destino dado ao dinheiro, — disse McNorton ao erguer-se para sair. — Desejo que recupere seu dinheiro.

— Acha que há alguma dúvida? — perguntou White consternado.

— Sempre é duvidoso recuperar o dinheiro investido em sindicatos — replicou McNorton enigmaticamente.

— Por favor, não se vá ainda. — O Senhor White adiantou-se e interceptou os passos do detetive com insuspeitada agilidade, tomando-lhe, por assim dizer, a porta das mãos e tornando a fechá-la. — Estou alarmado, Sr. McNorton —, disse, reconduzindo o outro para a sua cadeira. — Não tentarei disfarçá-lo. Estou seriamente alarmado com o que disse. Não é apenas a idéia de perder o dinheiro, claro que não. A Punsonby não iria à ruína por uma ninharia como 40 mil libras. É, se me for permitido dizê-lo, a implicação sinistra contida em suas palavras, inspetor... superintendente, quero dizer... Será possível —, ele estava plantado diante de McNorton, — mãos nos quadris. — Será possível que em minha ignorância tenha estado a financiar um projeto — ahn... ilegal, imoral, inconveniente e danoso aos interesses da comunidade?

Sacudiu a cabeça como que incapaz de acreditar nas próprias palavras.

— Tudo é possível no mundo das finanças — disse McNorton com um sorriso. — Não estou dizendo que os sindicato do Dr. van Heerden seja imoral. Ainda não vi uma cópia dos seus estatutos. Sem dúvida alguma o senhor me poderá ajudar nesse particular.

— Não tenho tal coisa — negou peremptoriamente o Sr. White. — O sindicato não possui registro. Sou, por assim dizer, um investidor particular.

— Mas, a exploração da Alfôrra Verde? — insinuou o superintendente e o rosto do homem perdeu os derradeiros vestígios de côr que possuía.

— A Alfôrra Verde? — gaguejou. — Já ouvi a expressão. Nada sei...

— Nada sabe, mas suspeita o pior — disse McNorton. - Agora, vou lhe falai- francamente. A razão pela qual nada sabe desse sindicato de van Heerden é porque suspeitava que houvesse sido formado com finalidade ilegais... por favor, não me interrompa. .. nada sabe porque não queria saber. Talvez não tenha conseguido enganar-se a si próprio. Vislumbrou uma oportunidade de ganhar bom dinheiro, Sr. White, e as grandes somas sempre tiveram enorme fascínio para o senhor.

— Juro-lhe — começou White.

— Ainda não é hora de jurar coisa alguma — atalhou McNorton rispidamente. — Existe apenas um lugar onde é preciso jurar: o Tribunal de Justiça. Dir-lhe-ei uma coisa: estamos tão no escuro como o senhor finge estar. Há apenas um homem que conhece ou adivinha o segredo da Alfôrra Verde, Beale.

— Beale!

— Conhece o cavalheiro, creio eu? Espero que não precise de encontrar-se com ele novamente. A Alfôrra Verde poderá significar muito pouco. Poderá significar apenas que irá perder seu dinheiro e, suponho, isso é o mínimo que lhe poderá suceder. Por outro lado, Sr. White, poderá também significar sua morte nas mãos da Justiça.

White fez um ruído gorgolejante e segurou-se à escrivaninha para não cair.

McNorton apanhou o chapéu e encaminhou-se para a porta.

— Não sei se deva dizer ou revoir ou adeus —, comentou mordiscando os lábios.

 

BRIDGERS ESCAPA

O Dr. van Heerden estava sentado ao pé do enorme leito em que a moça. repousava e em seus olhos azuis e frios brilhava uma centelha de regozijo.

— Está com um aspecto muito tolo — disse ele.

Oliva Cresswell virou vivamente a cabeça, como que para afastar o homem do seu campo de visão.

Mais do que isso não poderia fazer, pois tinha pés e mãos atados e, sobre o travesseiro, próxima de sua cabeça, encontrava-se uma toalha de banho embebida em água, que havia sido usada para abafar os gritos com que retornara à consciência.

— Está com aspecto muito tolo — disse o médico mascando a ponta do charuto — e não parece mais tola do que antes. Bridgers a deixou sair, hem? Bom sujeito, esse Sr. Bridgers. Que foi que lhe disse?

Ela tornou a virar a cabeça e o mimoseou com um olhar. Depois baixou os olhos para as marcas vermelhas nos pulsos, produzidas pelo roçar das correias.

— Muito boche! — comentou; mas dessa vez ele sorriu... — Não me fará perder a cabeça novamente, minha futura

mulherzinha — gracejou, pode chamar-me de boche ou Fritz ou qualquer um dos nomes bárbaros que o mundo emprega para desmerecer meus compatriotas, mas nada disso me poderá abater ou irritar. Amanhã, eu e você seremos marido e mulher.

— Não estamos na Alemanha — disse ela com desprezo.

— Não poderá fazer com que uma mulher se case contra a vontade; estamos na...

— Na terra da liberdade — interrompeu ele com brandura.

— Sim, sei. Mas, mesmo aqui, acontecem coisas curiosas. Você se casará comigo. Dirá sim ao nédio clérigo inglês, quando este lhe perguntar se aceita este homem como legítimo esposo, para amá-lo, respeitá-lo e assim por diante. Dirá "Sim".

— Direi "Não!" — asseverou ela com firmeza.

— Dirá "Sim — sorriu ele. — Esperava dispor de tempo suficiente para persuadi-la a agir sensatamente. Poderia usar de argumentos que lhe mostrariam haver coisas piores do que casar comigo.

— Não posso imaginar quais — replicou ela friamente.

— Nesse caso, é singularmente obtusa — disse o médico.

— Já lhe disse as condições em que o casamento será realizado. Poderia não haver casamento, sabe, e esta aventura teria um desfecho diferente — disse significativamente, e ela sentiu um arrepio.

Durante cinco minutos, nada mais disse, limitando-se a mascar o charuto e demorar nela o olhar inexpressivo, como se seus pensamentos andassem muito longe e ela representasse a menor de suas preocupações.

— Sei que é absurdo perguntar-lhe — disse de súbito — mas suponho que jamais dedicou qualquer estudo à questão da punição capital. Vejo que não o fez; há porém um fato interessante acerca das execuções, que o grande público geralmente ignora: em numerosos países — no meu, por exemplo — antes de o condenado ser conduzido para a execução, recebe uma dose de uma droga que chamarei de "Bromocina". Acaso isso lhe interessa?

Ela não deu resposta e riu baixinho.

— Pois deveria interessá-la muitíssimo. O efeito da "Bromocina" prosseguiu ele com tranqüila precisão — é peculiar.

Reduz o paciente a um estado de extrema lassidão, de modo que na verdade nada parece ter importância para ele. Quando em plena consciência o paciente se comporta normalmente e faz sempre o que lhe mandam. Na realidade, a droga lhe destrói a vontade.

— Por que me diz isso? — indagou ela, presa de súbito temor.

Ele fez meia volta na cadeira, esticou o braço e apanhou um pequeno estojo negro da mesa próxima à janela. Colocou-o sobre a cama e o abriu, enquanto ela o observava fascinada. Pegou um pequenino frasco contendo um líquido incolor e, com grande cuidado, depositou-o sobre a colcha. Depois, sacou de uma pequena seringa hipodérmica e um pontudo bocal de aço. Desarrolhou o frasco, inseriu nele a seringa e a encheu; em seguida, parafusou a agulha e pressionou o embolo até que um tênue jato esguichou no ar e então recolocou cuidadosamente a seringa no estojo.

— Diz que não se casaria comigo, e presumo que faria uma cena quando viesse o bom clérigo inglês para celebrar a cerimônia. Desejara — disse ele em tom de desculpa — dar-lhe uma casamento com toda a pompa e aparato que as mulheres apreciam. Sendo isso impossível, decidi-me por um casamento tranqüilo na igrejinha desta localidade. — Ele sacudiu a cabeça na direção da janela. — Agora, porém, receio ter de pedir ao reverendo que celebre a cerimônia nesta casa.

Ergueu-se, reclinou-se sobre ela e lhe afastou a manga com destreza.

— Se gritar, sufocá-la-ei com a toalha — disse. — Não vai doer muito. Como dizia, você se casará aqui mesmo, porque está em estado de saúde precário e dirá "Sim".

Ela fez uma careta quando a agulha lhe perfurou a pele.

— Não doerá muito tempo — disse ele calmamente. — Dirá ."Sim", repito, pois lhe mandarei dizer "sim".

Súbito, a dor aguda no braço cessou. Ela sentiu o braço como que sendo inflado qual pneu de bicicleta, mas a sensação não era desagradável. Ele retirou a agulha e comprimiu com o dedo o local avermelhado em que dera a picada.

— Tornarei a fazer isso hoje à noite. Não sentirá nada. Amanhã de manhã lhe darei nova dose e você não se importará muito com o que se passar. Espero não ser necessário ministrar-lhe uma quarta dose amanhã à tarde.

— Nem sempre estarei sob influência dessa droga — disse ela entre dentes — e chegará um momento em que o senhor terá de prestar contas, Dr. van Heerden.

— Ocasião — replicou ele com calma — em que terei praticado um crime tão maravilhoso e enorme que a simples infração de "administrar uma droga nociva não terá qualquer importância e não merecerá qualquer consideração de parte dos funcionários da Coroa. Agora, acho que posso desamarrá-la. Ele afrouxou e retirou as correias de seus pés e pulsos e as guardou nos bolsos.

— É melhor que se levante e caminhe um pouco — disse — senão ficará entrevada. Na verdade, estou sendo muito bondoso com você; nem pode imaginar quanto. Sou grande demais para ser vingativo. A propósito, tive uma conversa interessante esta tarde com seu amigo Beale; homenzinho persistente que me fez seguir o dia todo. — Ele riu calmamente. — Aquele jovem a ama muitíssimo — ele olhou divertido para a vermelhidão que subiu às faces da moça. — Ama-a muitíssimo —, repetiu. — Que pena! É uma pena mesmo!

— Quando essa droga vai começar a agir? — perguntou ela.

— Está com medo?

— Não, mas receberia de bom grado qualquer coisa que me fizesse esquecer sua presença — disse ela, retomando o antigo tom de voz que ele tão bem conhecia.

— Alegre-se, mocinha — comentou ele com simulada afeição — breve se livrará de mim.

— Por que quer casar comigo?

— Agora, posso lhe dizer. Porque é uma mulher muito rica e quero o seu dinheiro, metade do qual receberei através do casamento.

— Então o homem disse a verdade! — Ela sentou-se inopinadamente, mas o esforço lhe pôs a cabeça à roda.

Ele apanhou-a pelos ombros e a fez recostar-se.

— Que homem — decerto aquele parlapatão idiota, Bridgers? — Ele disse algo, mas recobrou de pronto o autodomínio. — Cale-se — ordenou com severidade profissional. — Sim, você é a herdeira de uma cavalheiro muito interessante chamado John Millinborn.

— John Millinborn — murmurou ela. — O homem que foi assassinado!

— O homem que foi morto — corrigiu ele. — Assassinato é um termo vulgar. Sim, minha cara, você é herdeira dele. Era seu tio e lhe deixou qualquer coisa em torno de seis milhões de dólares. Quero dizer, deixou-nos essa soma colossal.

— Mas, não compreendo. O que significa isso?

— Seu nome é Prédeaux. Seu pai era o rufião...

— Sei, sei — gritou ela — o homem do hotel. O homem que morreu. Meu pai!

— Interessante, não é mesmo? — disse ele calmamente. — Sim, minha cara, aquele era o seu progenitor; um rufião dissoluto que será bom esquecer. Ouvi John Millinborn dizer a seu advogado que sua mãe morreu de desgosto, sem vintém, em virtude da crueldade e da falta de escrúpulos de seu pai.

— Meu pai! — sussurrou ela.

O rosto mais branco que a fronha do travesseiro, ela tornou a deitar-se, cerrando os olhos.

— John Millinborn deixou-lhe uma fortuna — e acho que agora já pode saber a verdade — o dinheiro foi deixado em custódia. Você não deveria saber da herança enquanto não cassasse. Ele receava que algum caça-dotes lhe arruinasse a vida, assim como fizera Prédeaux com sua mãe. Foi uma boa idéia da parte dele. Não pretendo arruinar-lhe a vida. Tenciono dar-lhe a metade da fortuna de seu tio e liberdade para desfrutai de tudo que a vida pode proporcionar a uma jovem.

— Não me casarei, não me casarei — engrolou ela. Ele ergueu-se da cadeira e inclinou-se sobre ela.

— Minha jovem amiga, você irá dormir agora — disse consigo próprio; aguardou um pouco mais e deixou o quarto, fechando a porta atrás de si.

Desceu ao saguão e penetrou na vasta sala de jantar situada sob o quarto da moça. A sala tinha dois ocupantes: um homem corpulento e calvo, destituído de qualquer vestígio de sobrancelhas, pêlos ou barba e um indivíduo mais moço.

— Olá, Bridgers — disse van Heerden, dirigindo-se a este ultimo, — andou dando com a língua nos dentes?

— Bem, quem não o faz? — rosnou o homem.

Ele sacou do bolso a caixinha de couro de tartaruga, abriu a tampa e apanhou um punhado do conteúdo.

— Esse negócio vai matá-lo qualquer destes dias — disse van Heerden.

— Vai torná-lo mais bem-humorado — resmungou o homem calvo. — Não me importo com as pessoas que tomam cocaína, enquanto a estão tomando. É entre uma dose e outra que me dão nos nervos.

— O Dr. Milsom fala como um cristão e um artista — disse Bridgers, subitamente alegre. — Se não me dopasse, van Heerden, não estaria a trabalhar nesta sua infecta fábrica; seria, isto sim, um dos principais químicos analistas dos Estados Unidos. Mas, voltarei aos meus deveres —, disse erguendo-se. — Penso ter direito a uma pequena comissão, por haver recapturado sua vibrante noivinha? Milsom me disse que se trata dela. Pensei que fosse a outra fulana, a holandesa. Creio que fui um tanto tolo.

Van Heerden franziu o cenho.

— Interessa-se demais pelos meus assuntos — disse.

— Ora! está ficando suscetível. Se não me interessasse por alguma coisa, ficaria doido — resmungou Bridgers.

Ele atingira aquele estágio de intoxicação pela cocaína em que o mundo se converte num recanto realmente aprazível.

— Este lugar me está abalando os nervos — prosseguiu — não poderíamos voltar para Londres? Estou me estagnando aqui. E isso; uma parte do material que cultivei outro dia não se mostrou capaz de reagir. Verdade, Milsom? Embruteço-me a tal ponto neste papel que todos os percevejos se parecem comigo.

Van Heerden relanceou os olhos no homem tratado de Dr. Milsom e este assentiu.

— Deixe-o voltar — disse. — Tomarei conta dele. Como vai a moça? — indagou Milsom, depois que ficaram a sós.

O outro fez um gesto e Milsom meneou a cabeça. — É uma boa droga — disse — costumava ministrá-la aos dementes, tempos atrás.

A história de Milsom era do domínio público. Quatro anos antes acabara de cumprir uma "condenação perpétua" de quinze anos, em virtude de um crime que estarrecera o mundo.

— Como vão as coisas de modo geral? — indagou ele. Van Heerden deu de ombros.

— Pela primeira vez, estou ficando nervoso — disse. — Não é apenas o temor de que Beale me atrapalhe, mas também a sórdida questão do dinheiro. As despesas são imensas.

— E o seu... governo... — Milsom se deteve antes de dizer a palavra — não está ainda participando da coisa?

Van Heerden sacudiu a cabeça.

— Estou muito esperançoso — disse. — Tenho lidos os jornais com muito cuidado; especialmente os suplementos agrícolas e, a menos que me engane, existe uma marcante tendência no sentido do apoio. Mas não posso ficar na dependência disso. O casamento tem de se realizar amanhã.

— Também White está ficando nervoso — prosseguiu. — Ele me tem azucrinado por causa do dinheiro que lhe devo, ou melhor, que o sindicato lhe deve. Está à beira da falência.

Milsom fez uma pequena careta.

— Então irá dar com a língua nos dentes, — disse ele — esse tipo de gente sempre o faz. Terá de tapar-lhe a boca. Disse que o casamento se fará amanhã?

— Já comuniquei ao pastor —, disse van Heerden. — Disse-lhe que minha noiva está demasiado doente para comparecer à igreja e que a cerimônia tem de se realizar aqui.

Milsom fez um gesto de concordância. Ele se havia erguido e olhava para o aprazível jardim aos fundos da casa.

— Há coisas piores do que descansar aqui três ou quatro semanas — disse. — Veja esta faixa de verdura.

— Nunca fui amante da natureza — disse van Heerden.

Milsom grunhiu. — Nunca esteve na prisão — comentou. — Não será hora de dar outra dose à sua senhora?

— Só daqui a duas horas — disse van Heerden. — Joguemos uma partida de pique.

As cartas foram embaralhadas e distribuídas; ouviu-se então um troar de passos no saguão, a porta se abriu e um homem entrou correndo. Envergava um macacão branco enxovalhado e tinha o rosto desfigurado pelo medo.

— M'sieur, Msieur — gritou — aquele idiota do Bridgers!

— Que está acontecendo? — van Heerden ergueu-se de um salto.

— Acho que ficou louco. Está dançando e cantando pelos jardins e tem consigo o preparado!

Van Heerden soltou uma praga e correu para a porta, Milsom em seus calcanhares. Tomaram o atalho e subiram às pressas pelos degraus que saíam do poço do pátio e, embrenhando-se pelas touceiras, aproximaram-se do infrator.

Este porém, já não dançava. Boquiaberto, fixava estupidamente o vazio.

— Deixei cair, deixei cair! — murmurava.

Não houve necessidade de van Heerden indagar o que houvera deixado cair, pois o relvado verde que despertara a admiração de Milsom já não se podia ver mais. Em seu lugar surgira uma mancha negra e irregular, aparentemente forjada nas profundezas do inferno e o ar estava prenhe de um bolor pungente de podridão.

 

OLIVA CONCORDA

Parecia que uma cortina gris de névoa toldava os olhos de Oliva. Era uma cortina pintalgada por pequenos globos de luz deslumbrante que nasciam do nada e se desfaziam em nada. Quando ela fixava o olhar em qualquer deles, imediatamente este se fragmentava em dois, em três, numa infinidade de outros globos.

Ela sentia que deveria ver os rostos de gente conhecida, pois metade de seu cérebro havia clareado e diagnosticava calmamente sua situação, fazendo-o, porém, como se fora outra pessoa. Emergia de um sono artificial. E gente drogada vê coisas e pessoas. Estranhas miragens da mente são despertadas e estranhas ilusões são experimentadas. Todavia, nada viu além daquela cinzenta cortina de prata, com seus cambiantes pontos luminosos e nada ouviu a não ser uma voz que dizia: Vamos, vamos, acorde. Então a cortina gris desapareceu e ela se encontrou sobre a cama, a cabeça a latejar, os olhos quentes e ardendo, e dois homens olhavam para ela; um deles, enorme e de cara pelada, a boca grosseira e os olhos empapuçados.

— Era mesmo meu pai? — perguntou ela sonolentamente.

— Tive receio da segunda dose que lhe deu ontem à noite —, disse Milsom.

— Ela se sentirá bem agora —, disse van Heerden, mas seu rosto denotava preocupação. — A dose foi forte, no entanto, parecia suficientemente sadia para suportar uma injeção de três centímetros cúbicos.

Milsom abanou a cabeça.

— Ficará boa agora, mas podia ter morrido — disse ele. — Eu não repetiria a dose.

— Não há necessidade — disse van Heerden.

— Que horas são? — perguntou a moça, sentando-se na cama. Sentia-se muito débil e fatigada.

— E meio-dia; você dormiu desde as sete horas de ontem. Vejamos se pode ficar de pé. Levante-se.

Ela obedeceu docilmente. Não tinha desejo de fazer senão o que lhe ordenavam. Sua condição mental era de completa dependência e, caso fosse deixada a sós, contentar-se-ia com ir novamente para a cama.

No entanto, sentiu momentaneamente um desejo intenso de arquitetar algum plano capaz de dar àquele homem o dinheiro, sem que fosse obrigada a enfrentar a cerimônia religiosa do casamento. Tal desejo durou um minuto e foi sucedido por uma fraqueza adicional, como se aquela tentativa de pensar independentemente houvesse acrescentado um novo fardo às suas forças. Ela sabia (e espantou-se grandemente disso) estar sob influência de uma droga que lhe destruía a vontade e, não obstante, não sentia qualquer necessidade especial de lutar pela liberdade e pela autodeterminação.

— Caminhe até a janela —, disse o médico e ela obedeceu, embora sues joelhos se dobrassem a cada passo. — Agora volte. Ótimo, você está bem.

Ela olhou para ele e não estremeceu quando ele lhe colocou ambas as mãos sobre os ombros.

— Vai se casar esta tarde. Está bem assim?

— Sim — disse ela. — Está bem assim.

— E dirá "Sim", quando lhe disser para dizer "Sim"?

— Sim —, concordou ela — direi o que mandar.

Durante todo o tempo ela sabia ser aquilo tudo monstruosamente absurdo. Durante todo o tempo sabia que não desejava casar com aquele homem. Em seu espírito começaram a formar--se frases excelentes, pomposamente elaboradas como: "Esse ultraje não ficará impune, vírgula, e você sofrerá com isso, vírgula, Dr. van Heerden, ponto final."

Mas os esforços criadores a deixaram exausta, de modo que foi incapaz de enunciar seus pensamentos. Ela sabia serem as palavras bombásticas e artificiais e as células em funcionamento no seu cérebro lhe diziam que recordava e adaptava algo ouvido no teatro. Ela queria fazer o mais fácil e o mais fácil era dizer "sim".

— Ficará aqui até que o ministro chegue — disse van Heerden — e não tentará fugir, não é mesmo?

— Não, não tentarei fugir — disse ela.

— Deite-se.

Ela sentou-se sobre a cama, erguendo os pés do chão e se instalando confortavelmente.

— Ela se sairá a contento — disse van Heerden satisfeito.

— Venha para baixo, Milsom, tenho algo para lhe dizer.

Assim, deixaram-na a sós, deitada com o queixo apoiado nas mãos, entretida com os desenhos do revestimento de papel da parede.

— Bem, qual é o problema? — indagou Milsom.

— Isto — disse van Heerden e lhe atirou uma carta. — Chegou por intermédio de um dos meus estafetas esta manhã — não fui para casa ontem à noite.

Milsom abriu lentamente a carta e leu:

"Um homem esteve à sua procura na tarde de ontem e voltou a aparecer diversas vezes. Falou com Beale, que o interrogou. O homem se chama Stardt, mas aparentemente não é inglês. Está hospedado no Hotel Saraband, Rua Berners."

— Quem será? — perguntou Milsom.

— Não ouso desejar..., replicou o médico, caminhando nervosamente através da sala.

— Admitindo que ousasse; quem desejaria que fosse?

— Disse-lhe outro dia — falou van Heerden, detendo-se diante do companheiro — que havia pedido auxílio ao meu Governo. Até aqui não fui atendido; por isso estou tão ansioso por consumar este casamento. Preciso de dinheiro. O local em Paddington custa uma fortuna e, por sinal, você volta para lá esta noite.

Milsom assentiu.

— E o governo cedeu? — indagou.

— Não sei. Disse-lhe que alguns trechos significativos da imprensa alemã sugeriam que estão dispostos a vir em meu auxílio. Não me mandaram dizer nada, mas, se concordassem, sua anuência seria enviada por meio de um mensageiro.

— E acha que esse pode ser o homem?

— Provavelmente. Mandei Gregory encontrar-se com ele. Se for quem desejo, Gregory o trará para cá, dei-lhe a senha.

— Que diferença fará isso? — perguntou Milsom. — Você se apossa de uma enorme fortuna de qualquer maneira.

— Fortuna? — os olhos do Dr. van Heerden luziram.

— Nenhuma fortuna jamais possuída por um mortal se poderá comparar. Toda a riqueza do mundo estará sob meus pés. Bilhões e bilhões.

— Na verdade, um montão de dinheiro — disse o prático Dr. Milsom. Ah, não vejo bem como irá consegui-lo. Não me tem confiado nada, van Heerden.

— Você sabe de tudo. Milsom fez um muxoxo.

— Sei que no cofre do meu escritório você tem um milhar de envelopes selados, endereçados, suponho, a todos os tratantes do mundo, e faço uma idéia muito boa do que pretende; mas como lucraremos com isso, você e eu?

Vand Heerden havia recuperado o autodomínio.

— Você já lucrou —, disse brevemente — mais do que imaginara.

Seguiu-se uma pausa incômoda; depois, Milsom perguntou:

— Quais serão os efeitos sobre este país?

— A Inglaterra ficará arruinada — disse van Heerden com arrebatamento. Ahn! — fez Milsom, e havia em sua voz uma tonalidade que obrigou van Heerden a voltar-se imediatamente para ele.

— Este país não lhe tem sido muito propício — disse com escárnio.

— E eu não tenho sido muito propício ao país — contestou o outro. — O médico riu. — Está ficando patriota depois de velho.

— Algo no estilo — disse Milsom com desembaraço. — Havia antigamente em Portland um sujeito (provavelmente se terá encontrado com ele) um malfeitor sagaz chamado Homo, que antes de se meter em encrencas foi pastor da igreja.

— Não conheci o cavalheiro e, por falar em pastores — disse ele, olhando para o relógio — o nosso reverendo está atrasado. Mas, eu o interrompi.

— Era um homem cuja língua eu odiava; e ele me detestava — disse Milsom fazendo uma careta — mas costumava dizer que o patriotismo era a única forma de religião que sobrevivia ao cumprimento de uma pena judiciária. Acho que é isso mesmo. Odeio a idéia de fazer mal a este país.

— Vencerá seus escrúpulos — disse o outro sem rebuços. — Seja como for, está construindo uma situação para si. Pense no que lhe está reservado, meu amigo.

— Não penso em mais nada — disse Milsom — mas, ainda assim... Ele abanou a cabeça.

Van Heerden apanhara o jornal que trouxera de cima e o estava lendo; Milsom notou que perscrutava as colunas sobre a produção.

— Quando é que começamos?

— Na próxima semana — respondeu o médico. — Quero terminar a fábrica de Paddington e ir embora.

— Para onde vai?

— Irei para o Continente — replicou van Heerden, dobrando o jornal e colocando-o sobre a mesa. — De lá poderei dirigir mais facilmente as operações. Gregory segue para o Canadá. Mitchell e Samps já organizaram a Austrália e nossos três homens na Índia terão operadores prontos para entrar em ação.

— E os Estados Unidos?

— Têm organização própria — disse van Heerden. — Estão me custando um dinheirão. Todos os homens menos você estão em seus postos, aguardando ordens para entrar em ação. Você levará consigo os reforços canadenses.

— Leva Bridgers?

Van Heerden sacudiu a cabeça.

— Não confio nesse idiota. Poderia ser um assistente ideal para você. Seu trabalho é simples. Antes que parta, dar-lhe-ei um envelope contendo uma lista de todos os nossos agentes canadenses. Encontrará também duas sentenças cifradas, uma das quais significa "começar operações" e outra "cancelar todas as instruções e destruir os aparelhos".

— A última será necessária? — perguntou Milsom.

— Talyez, embora seja bastante improvável. Mas preciso estar preparado para todas as emergências. Fiz a organização tão simples quanto possível. Tenho um agente principal em cada país, e o chefe da organização, recebendo minha mensagem, esta será repetida aos demais agentes, os quais também possuem uma cópia do código.

— Parece fácil demais — disse Milsom. — Quais são as probabilidades de sermos apanhados?

— Nenhuma — disse prontamente o médico. — Nosso único perigo no momento é o tal Beale, mas ele nada sabe e, enquanto o mantivermos no terrenos das especulações, não haverá mal algum, e ele não terá de especular por muito tempo.

— Parece simples demais — disse Milsom abanando a cabeça.

Van Heerden ouvira uma passada no saguão; encaminhou-se rápido para a porta e a abriu.

— Bem, Gregory? — disse.

— Ele está aqui — retrucou o outro e acenou para uma figura postada atrás de si. — O ministro também está a caminho.

— Ótimo, que entre o nosso amigo.

O estrangeiro de rosto rosado, com seu pequenino e empastado bigode, entrou na sala, bateu os calcanhares e fez uma reverência.

— Tenho a honra de me dirigir ao Dr. van Heerden?

— Van Heerden — emendou o médico com um sorriso. — Esse é o meu nome.

Ambos falavam em Alemão.

— Trago uma carta para Vossa Excelência — disse o mensageiro. — Tenho estado à sua procura e pessoas não autorizadas vêm tentando tirar-me isto.

Van Heerden meneou a cabeça, rasgou o envelope a leu um dúzia de linhas.

— A palavra chave é Breslau — disse em voz baixa, e o mensageiro se iluminou.

— Tenho a honra de transmitir-lhe a palavra. — Ele sussurrou algo no ouvido de van Heerden, e Milsom, que não compreendia bem o Alemão e se esforçava por captar uma palavra ou outra, viu o ar de júbilo que inundou o rosto do médico.

Este fez um passo atrás abriu os braços e sua voz possante vibrou com as palavras que o hino germânico tornaram famosas:

— Gott sei Dank durch alie Welt, Gott sei Dank durch alie Welt!

— Por que dá graças a Deus? — perguntou Milsom.

— Chegou! chegou! — gritou van Heerden, os olhos em chamas. — O Governo está comigo; apóia-me. Meu belo país. Oh, Gott sei Dank!

— O pastor — preveniu Milsom. Um jovem olhava através da porta.

— O pastor, sim — disse van Heerden — não há necessidade, mas faremos o casamento. Sim, faremos o casamento. Entre, senhor. — Sua jovialidade era quase infantil.

— Lamento saber que sua noiva está doente — disse o ministro.

— Sim, sim, mas isso não prejudicará a cerimônia. Irei prepará-la eu próprio.

Milsom circundou a mesa, foi até a janela e chamou o médico que deixava a sala.

— Doutor — disse — venha cá.

Van Heerden percebeu ansiedade na voz do outro.

— Que é? — perguntou.

— Está ouvindo vozes?

Puseram-se à janela e apuraram os ouvidos.

— Venha comigo —, disse o médico e subiu silenciosamente as escadas, seguido pelo companheiro mais corpulento.

 

O CASAMENTO

A um quarto de milha de Dean Folly um carro se deteve sobre a encosta de uma colina situada nos altos do vale em que se erguia a casa de van Heerden.

— Aquela é a casa — disse Beale, consultando a mapa.

— Talvez seja — admitiu o Pastor Homo — onde é a entrada?

— Há uma estrada a meio caminho entre este ponto e o rio e uma estrada particular que sai dela; — disse Beale — o portão, ao que suponho está oculto entre aquelas touceiras.

— Sim, lá está — disse o outro.

Desceram e seguiram colina abaixo, atingindo uma esquina do alto muro que circundava Deans Folly.

Beale tomou à frente. — Eis o portão — disse ele. Tentou abri-lo cautelosamente e o portão cedeu um tanto.

— Está emperrado; não conseguirá abri-lo — disse Homo. Beale lançou os olhos sobre a estrada, de um lado e de

outro. Não havia ninguém à vista; de um salto agarrou-se ao topo do muro e içou o corpo. Logo abaixo havia um barracão construído de encontro à parede, cuja porta estava fechada. Fez sinal a Homo que o seguisse e saltou para o chão.

— Houve um incêndio aqui — disse Homo em voz baixa e apontou para uma mancha grande e feia entre a verdura.

Beale fez um cuidadoso levantamento do local e depois serpenteou entre as moitas até chegar perto dos torrões inutilizados. Esticou o braço, apanhou um punhado de detritos, examinou-os com carinho e os guardou no bolso.

Gastaram a hora seguinte reconhecendo o terreno. A porta do barracão abriu-se uma vez, dois homens surgiram e se encaminharam para a casa, e eles tiveram de permanecer deitados e imóveis até que, depois de um intervalo aparentemente interminável, os dois homens retornaram ao barracão e fecharam a porta atrás de si.

— Vem vindo alguém pela alameda principal — sussurrou Homo.

Estavam agora próximos da casa e podiam ver claramente uns cinqüenta metros do caminho.

— É um irmão de opa! — fez Homo baixinho, — um pastor.

Beale focalizou seus óculos. Alguém em trajes sacerdotais, acompanhado por um homem no qual reconheceu o guarda do portão, descia em rápidas passadas pela alameda. Não havia tempo a perder. Agora, porém, pela primeira vez, algumas dúvidas o assaltavam. Seu grande plano parecia mais fantástico e as dificuldades mais reais. Haveria algo mais fácil do que interceptar o clérigo? Bastaria isso, no entanto, para salvar a moça? Que forças ocultaria aquela casa? Tinha de lidar com homens que não se deferiam diante de nada.

Sentia o coração aos pulos não por causa do perigo, mas devido ao pânico que o dominava por estar ele próprio a desempenhar um papel indigno. Quaisquer temores e dúvidas que porventura tivesse, de súbito desapareceram, e ele se pôs de joelhos, pois a menos de vinte metros, à janela, as mãos crispadas em torno das barras de ferro, os olhos apáticos inertemente enfocados em sua direção, estava Oliva Cresswell.

Sem cuidar do perigo, ele deixou seu esconderijo e correu para ela.

— Srta. Cresswell — chamou.

Ela olhou para ele por sobre o fosso concretado, sem surpresa ou interesse.

— É o senhor —, disse com calma extraordinária.

Hesitante, ele se deteve à beira do fosso. Era largo demais para transpor de um salto e recordou ter visto uma prancha de pedreiro atrás da touceira de lilazes. Arrastou-a e a colocou ao comprido da fenda, apoiando uma das extremidades sobre uma saliência de tijolos que ressaltava da casa.

Atravessou rapidamente a prancha, agarrou-se às barras da janela e procurou nos tijolos um apoio para os pés. A moça o observava sem trair qualquer interesse. Ele sabia haver algo errado. Aquela não era a rapariga que conhecia, mas uma Oliva Cresswell esvaziada de toda sua vitalidade.

— Conhece-me? — perguntou ele — sou o Sr. Beale.

— Sei que é o sr. Beale — respondeu ela com voz uniforme.

— Vim para salvá-la — disse ele rapidamente. — Terá confiança em mim? Quero que reúna todos os resquícios de fé na natureza humana que possui e os entregue a mim. Fará isso por mim?

— Farei isso pelo senhor — disse ela como uma criança que repetisse a lição.

— Quero — quero que case comigo. — A dizer essas palavras, percebeu onde residiam seus temores. Constatou que era na recusa dela, mesmo que fosse em se prestar àquela espécie de casamento.

A verdade tomou conta dele e fez com que o sangue lhe inundasse o rosto; por detrás e além da sua devoção profissional ele a amava. A respiração em suspenso, aguardou uma reação dela: indignação, desespero... Porém, ao responder-lhe, ela denotava serenidade e despreocupação.

— Casarei com o senhor.

Ele tentou falar, mas conseguiu apenas murmurar — Muito obrigado.

Voltou a cabeça. Homo estava na extremidade da prancha e ele lhe fez sinal que se aproximasse.

O Pastor Homo caminhou até o centro da frágil ponte, sacou do bolso um livro de orações e o abriu.

— Caros irmãos, reunimo-nos aqui, em presença de Deus, a fim de unir este homem e esta mulher no santo sacramento do matrimônio...

— Exijo, sob pena de punição no dia do Juízo Final, quando todos os segredos serão desvendados que, se algum de vós souber de uma razão que impeça esta união, declare-a agora.

Os lábios de Beale estavam fortemente comprimidos. A moça erguia serenamente os olhos para o alto e acompanhava as evoluções de uma nuvem branca que navegava pelos céus.

Homo lia rápido e com dicção maravilhosamente clara. Articulou a indefectível pergunta e Beale respondeu. Homo hesitou e depois se voltou para a moça.

— Aceita este homem para seu legítimo esposo, para viver com ele segundo os preceitos de Deus, no santo estado do matrimônio? Promete obedecer-lhe e servir-lhe, amá-lo, honrá-lo e ampará-lo na doença e na saúde e, olvidando tudo o mais, conservá-lo exclusivamente para si enquanto ambos viverem?

— Sim — disse ela.

A pergunta seguinte do ritual foi dispensada. Homo juntou-lhes as mãos e, repetindo juntos as mesmas palavras, ele prestaram seu juramento. Homo inclinou o corpo e tornou a juntar-lhes as mãos; uma nota de insuspeitada solenidade vibrou em sua voz quando disse:

— Aqueles que Deus uniu homem algum separe. Beale respirou fundo.

— Realmente lindo! — disse uma voz.

O detetive girou o corpo, a fim de colocar o homem em sua linha de fogo.

— Largue esse revólver, admirável Sr. Beale. — Van Heerden estava no meio do quarto e a figura volumosa de Miisom enchia o espaço da porta.

— Lindo mesmo e deveras pitoresco — disse van Heerden. — Não quis interromper a cerimônia. É melhor que entre agora, Sr. Beale, e eu lhe explicarei umas tantas coisas. Não precisa preocupar-se com sua esposa. Ela não sofrerá qualquer dano.

Beale, — revólver em punho — encaminhou-se para o porta e foi introduzido na casa.

— É melhor vir também, Homo — disse ele.

Van Heerden o aguardava no saguão e não o convidou a ir além.

— Tem toda a liberdade de levar daqui sua esposa — disse van Heerden. — Provavelmente, ela lhe explicará que a tratei com a máxima consideração. Ei-la aqui.

Oliva descia as escadas com passadas intencionalmente lentas.

— Poderia ter-me aborrecido seriamente com o senhor — prosseguiu van Heerden à sua maneira insolente — felizmente, já não julgo necessário casar-me com a Senhorita Cresswell. Estava explicando a este cavalheiro — apontou para o pálido pastor ao fundo — quando suas vozes chegaram até mim. Não obstante, creio ser justo lhe dizer que o seu casamento não é legal, embora o suponha munido de uma licença especial.

— Por que é ilegal? — perguntou Beale.

Ele se indagava se o Pastor Homo fora reconhecido.

— Em primeiro lugar, porque não foi oficiado na presença de testemunhas — disse van Heerden.

Foi Homo quem riu.

— Recearia que isso invalidasse a cerimônia, não fosse o fato de o senhor, segundo sua própria confissão, a haver presenciado, bem como o seu adiposo amigo.

O sr. Milsom franziu o sobrolho.

— Para mim você nunca passou de um cão, Parson — disse ele — mas posso-lhe dar uma razão pela a qual o casamento é ilegal — acrescentou triunfante. — Este homem, Parson Homo, é um criminoso muito conhecido, expulso da Igreja há coisa de quinze anos. Trabalhei lado a lado com ele em Portland.

Homo sorriu maliciosamente.

— Tem razão até certo ponto. Milsom —, disse, — mas erra quanto ao essencial. Por uma curiosa negligência, jamais fui suspenso de ordens e, legalmente, continuo a ser pastor da Igreja Anglicana.

— Céus! — resmoneou Beale — então o casamento é legal.

— Legalíssimo — disse o Pastor Homo.

 

BEALE ENCONTRA-SE COM WHITE

— Sob certo aspecto — disse o advogado Kitson — é uma tragédia. Sob outro, uma comédia. A mais fatal comédia de erros que se poderia imaginar.

Stanford Beale, a cabeça entre as mãos, sentado numa cadeira baixa, era a imagem vivida do acabrunhamento.

— Não me importam suas censuras — disse ele, sem erguer a vista — não me pode dizer nada pior do que aquilo que me estou dizendo. Fui um tolo, um tolo arrogante.

Kitson, as mãos entrelaçadas às costas, olhava para o jovem.

— Não lhe vou dizer que era contra a idéia desde o princípio, pois isso é desnecessário. Deveria ter feito pé firme e impedido o casamento. Ouvi dizer que é muito hábil com um revólver, Stanford. Por que não a salvou, tão logo descobriu onde estava?

— Acho que não teria tido a menor chance — disse o outro, erguendo o olhar. — Não estou à procura de desculpas, mas lhe digo o que sei. Havia quatro ou cinco homens na casa, todos eles bastante fortes. Duvido que tivesse sucesso.

— Acha que ele teria casado com ela?

— Pelo menos foi o que admitiu — disse Stanford Beale — o padre já lá estava quando apareci.

— Que providências tomou a respeito desse van Heerden? Beale riu desalentado.

— Nada posso fazer antes que a Srta. Cresswel desperte.

— Senhora Beale — murmurou Kitson, e o outro corou.

— Melhor chamá-la de Srta. Cresswell, se não se opõe — disse com rispidez. — Olhe aqui, Sr. Kitson, não precisa fazer as coisas piores do que já são. Nada posso fazer até que ela volte a si e nos forneça uma declaração acerca do que aconteceu. McNorton executará o mandado, tão logo tenhamos uma acusação formal. Na verdade, ele está lá embaixo, esperançoso de ver

— fez uma pausa — a Srta. Cresswell. Que diz o médico?

— Ela está adormecida.

— É de enlouquecer, enlouquecer — resmungou Beale — e, não obstante, se não fosse tão horrível, seria caso de rir-se. Ontem, eu esperava que um vagabundo superasse uma crise de delirium tremem. Hoje, espero que a Srta. Cresswell se restabeleça de alguma droga diabólica. Meti os pés pelas mãos, Sr. Kitson.

— Receio que sim — disse o outro secamente. — Mas não lhe ocorre — indagou Kitson lentamente — que essa senhora ignora estar casada e que lhe precisamos dar a notícia? Essa é a parte mais dura para mim.

— E garanto que também não me seduz a mim — atalhou Beale — é uma situação muito desagradável.

— Que vai fazer? — perguntou o outro.

— Que vai fazer? — retrucou o exasperado Beale — afinal de contas, o advogado é o senhor.

— E o marido é você — disse Kitson soturnamente — o que me lembra isto: caminhou até a escrivaninha e apanhou um pedaço de papel. — Saquei isto antes de sua vinda. É um cheque visado na importância de 400.000 libras; aproximadamente dois milhões de dólares, que estou autorizado a passar às mãos do marido de Oliva no dia do seu casamento.

Beale tomou o cheque das mãos do outro, leu-o com cuidado e o picou em mil pedacinhos. A conversação então morreu. Depois de um intervalo Beale indagou:

Que devo fazer para conseguir o divórcio?

— Bem — disse o advogado — de acordo com a lei inglesa, se abandonar sua esposa e se recusar a voltar para ela, esta poderá solicitar a um juiz da Corte Suprema que o obrigue a retornar ao lar dentro de quinze dias.

— Voltaria em quinze segundos, se ela me quisesse — disse Beale com ardor.

— Você não tem jeito. Perguntou-me como poderia conseguir o divórcio e suponho que faça empenho em consegui-lo.

— Claro que quero desfazer este horrível emaranhado, é absurdo e sem dignidade. Não será possível providenciar alguma coisa sem que a Srta. Cresswell saiba?

— Nada se poderá fazer sem o conhecimento de sua esposa

— disse Kitson.

Ele parecia experimentar um prazer demoníaco em lembrar ao jovem a sua desventura.

— Não o estou culpando — disse com mais sobriedade. — Culpo a mim mesmo. Quando assumi este compromisso com John Millinborn não me dei conta de tudo o que envolvia nem da responsabilidade que implicava. Como poderia imaginar que o detetive que empreguei para proteger a moça dos caçadores de dotes acabaria casando com ela? Não estou me queixando — acrescentou apressadamente, vendo que a ira subia ao rosto de Beale. — É muito desagradável e você é tão vítima das circunstâncias quanto eu. Infelizmente, porém, não fomos as vítimas mais.

— Penso — disse Beale erguendo os olhos para o forro — que eu fosse um desses cavalheiros galantes da literatura teria de estourar os miolos.

— Seria uma solução — disse o Sr. Kitson — mas teríamos de explicar à esposa que ela era viúva.

— Que devo fazer então?

— Fume um charuto — disse Kitson.

Ele tirou dois do bolso do colete e entregou um ao companheiro, e seus olhos idosos piscaram astutamente.

— Faz muitos anos que não leio uma história romântica

— disse — e não tenho seguido de perto as tendências da literatura moderna, mas creio que lhe cabe agora fazer com que a moça se apaixone por você.

Beale ergueu-se de um salto.

— Quer dizer que? Qual! É absurdo! É ridículo! Jamais se apaixonaria por mim.

— Não sei porque alguém haveria de fazê-lo, menos ainda sua mulher; mas isso simplificaria as coisas.

— E depois?

— Torne a casar com ela — disse Kitson, soltando uma espiral de fumaça no ar. — Não há lei que o impeça.

— Mas, admitindo... admitindo que ame outra pessoa? — perguntou Beale com honestidade.

— Nesse caso, azar seu — disse Kitson — mas, pior ainda para ela. Trate de fazer com que não goste de mais ninguém.

— Mas como?

Uma sombra de tédio infinito se desenhou no rosto de Kitson.

— Com efeito, na qualidade de detetive — disse ele — você poderá merecer uma medalha, mas como ser humano comum não pode pretender sequer um prêmio de consolação. Meteu-me numa embrulhada e é preciso que me tire dela. John Millinborn preocupava-se apenas com uma coisa — a felicidade de sua sobrinha. Se puder fazer sua esposa feliz — disse o advogado — minha missão estará cumprida. Creio que é um homem limpo, Beale — disse ele modificando o tom de voz, — e que o dinheiro nada significa para você. Aconselho-o a deixá-la a sós um ou dois dias, até que se recupere de todo. Tem muito com que se ocupar. Vá e dê um jeito em van Heerden, mas não pelo que fez à moça. Ela não deve aparecer num caso dessa espécie, porque todos os fatos viriam à tona. Crê ter uma outra acusação contra ele; pois bem, prove-a. Esse homem matou John Millinborn, e acredito que pode metê-lo na cadeia. Como anjo guardião de Oliva Cresswell você evidenciou algumas deficiências lamentáveis — o sorriso em seus olhos era contagiante e Stanford Beale sorriu em retribuição. — Como tal, já não preciso de seus serviços e está despedido; mas, pode considerar-se readmitido, a fim de ajustar contas com van Heerden. Pagarei todas as despesas da caçada, mas apanhe-o.

Ele esticou a mão e Stanford Beale a tomou nas suas.

— O senhor é um grande homem — suspirou o moço. O velho fez um muxoxo.

— E você poderá ainda ser um grande detetive — disse ele. — Dentro de cinco minutos estará aqui o Sr. Lassimuns White. Sugeriu que o mandasse chamar. Quem é ele?

— O diretor-gerente da Punsonby. Amigo de van Heerden e acionista nessa grande aventura.

— E não sabe de nada?

Bateram à porta e um mensageiro entrou na sala de estar com um cartão.

— Mande o cavalheiro subir —, disse Kitson, — é o seu amigo — esclareceu.

— Poderemos ficar sabendo um bocado de coisas — disse Beale

O Sr. White adentrou a sala, bamboleando o pince-nez numa das mãos e segurando na outra o chapéu de seda rebrilhante. Curvou-se cerimoniosamente e fechou a porta atrás de si.

— Sr... ahn... Kitson? — disse ele, estendendo a mão enorme. — Recebi seu bilhete e, como pode ver, sou pontual.

— Conhece o Sr. Beale?

O Sr. White inclinou-se tesamente.

— Eu... ahn.. já nos encontramos.

— Nos meus dias de vício — disse Beale acremente. — O Sr. Kitson pediu-lhe que viesse, Sr. White, mas, na verdade, sou eu quem quer vê-lo. Para lhe ser franco, ouvi dizer que se encontra numa pequena dificuldade.

— Dificuldade? — disse o Sr. White espevitando-se. — Eu, cavalheiro, em dificuldades? O chefe da firma Punsonby, cujo crédito simboliza um padrão de solidez financeira?

Beale foi apanhado de surpresa. Dependia de informações vindas de fontes inatacáveis para assegurar-se a cooperação daquele pomposo parlapatão.

— Sinto muito — disse. — Soube que convocou uma reunião de credores e ofereceu à venda umas tantas ações de um sindicato, as quais eu tencionava tirar-lhe das mãos.

O Sr. White inclinou graciosamente a cabeça.

— É verdade, cavalheiro, — disse ele — que eu... ahn... possuía determinadas ações que deixaram de me interessar, mas tais ações já foram vendidas.

— Vendidas! Van Heerden comprou-as? — indagou Beale com ansiedade. O Sr. White assentiu com um gesto.

— O Dr. van Heerden, homem notável, verdadeiramente notável —. Sacudiu a cabeça como se lhe fosse impossível avaliar a exata extensão da notabilidade do médico. — O Dr. van Heerden recomprou minhas ações e me proporcionou um lucro muito interessante.

— Quando foi isso? — perguntou Beale.

— Na verdade, não me posso sujeitar a este interrogatório, meu jovem, — disse ele com severidade. — A firma Punsonby...

— Esqueça-se dela — disse Beale energicamente. — A Punsonby, faz oito anos que está à beira da falência. Falemos sério, Sr. White. A Punsonby se resume num homem e esse homem é o senhor. Seus balanços são fictícios e suas reservas inexistentes. Mandei os melhores contadores de Londres levantar sua posição e sei que o senhor vive ao deus-dará e que a distância entre a sua firma e a falência é a mesma que o separa da cadeia.

O Sr. White ficou pálido.

— Mas isso não é da minha conta e me atrevo a dizer que o dinheiro pago esta manhã ao senhor por van Heerden servirá para acalmar seus credores. Não dirijo uma campanha pró-moralização dos negócios. Dirijo uma campanha contra o seu amigo alemão van Heerden.

— Alemão? — disse o virtuoso senhor White, espalhafatosamente aturdido. — Não é... cidadão holandês...

— É alemão e o sr. sabe disso. Tem estado a financiá-lo num esquema destinado a arruinar a maior parte da Europa e dos Estados Unidos, para não falar no Canadá, na América do Sul, na Índia e na Austrália.

— Protesto contra tão inumana acusação — disse o Sr. White com solenidade, e se levantou. — Não posso permanecer aqui...

— Se for embora, apresentarei queixa contra o senhor , — disse Beale. — Estou falando muito sério, de modo que pode ir ou ficar. Primeiro de tudo, quero saber por que forma recebeu o dinheiro.

— Em cheque —, replicou o Sr. White apavorado.

— Contra que Banco?

— Contra a filial londrina do Banco Nacional da Suíça.

— Uma ramificação secreta do Banco de Dresdner — disse Beale. — A coisa promete. O Dr. van Heerden já lhe havia pago algum dinheiro antes?

A esta altura o Sr. White era a mais tratável das testemunhas. Toda sua velha segurança se desmoronara e suas respostas eram, por assim dizer, desculpas.

— Sim, Sr. Beale. Pequenas somas.

— Contra que Banco?

— Contra o meu próprio Banco.

— Muito bem. Soube alguma vez que ele mantivesse conta em algum outro lugar? Por exemplo, o senhor adiantou-lhe uma considerável quantia em dinheiro; seu cheque foi compensado através do Banco Nacional da Suíça?

— Não, senhor — através do meu próprio Banco. Beale correu os dedos pelo queixo.

— Dinheiro pela manhã e não chegou a dar importância ao prejuízo — isso só pode significar uma coisa. — Ele meneou a cabeça. — Sr. White, o senhor me forneceu informações as mais valiosas.

— Espero não haver dito nada que possa incriminar alguém de quem só tenho recebido as maiores atenções — apressou-se em dizer o Sr. White.

— Não mais do que ele está incriminado — sorriu Stanford. — Uma pergunta mais. O senhor sabe van Heerden envolvido em algum tipo de negócios... os negócios em que investiu seu dinheiro. Onde se localizam suas fábricas?

Neste ponto, porém, o Sr. White afiançou não poder prestar quaisquer esclarecimentos. Lembrava-lhe, não sem angústia, uma inquirição semelhante no dia anterior, nas mãos de McNorton. Havia fábricas; isso van Heerden deixara entrever — mas com respeito à sua localização — bem, confessou o Sr. White, — não fazia a menor idéia.

— Tolice — disse Beale asperamente — onde se encontrava com ele?

— Acredite-me, jamais me encontrei com ele — quando tinha uma mensagem para lhe enviar, minha caixa... ahn... Srta. Glaum, uma criatura admirável, encarregava-se de levá-la para mim.

— Hilda Glaum!

— Beale deu um tapa na testa. Por que não pensara em Hilda Glaum antes?

— É tudo o que queria perguntar-lhe, Sr. White — disse com brandura; — o senhor é um homem de sorte.

— De sorte?! — O Sr. Lassimus White recuperou sua estatura, tão logo se dissipou a agressividade de Beale. — Não consigo perceber onde está minha sorte. — Não consigo perceber, cavalheiro, onde entra a sorte.

— Recebeu de volta o seu dinheiro — esclareceu Beale significativamente.

 

HILDA GLAUM APONTA O CAMINHO

Beale manteve uma longa conferência com McNorton na Scotland Yard; voltando para o hotel, mandou que lhe servissem o jantar no apartamento de Kitson e comeu em meio a uma pilha de jornais abertos. Eram jornais importantes da semana anterior e ele lhes examinava as colunas com muito cuidado. De quando em quando, recortava um tópico.

Kitson, que jantara com um amigo num restaurante, retornou por volta de nove horas e se pôs a contemplar, divertido, os labores silencioso do detetive.

— Está fazendo uma mixórdia lamentável no meu quarto — disse ele — mas penso que há por detrás disto alguma coisa muito misteriosa. Importa-se que leia seus recortes?

— Leia-os — disse Beale.

Kitson apanhou uma tira e leu em voz alta:

"As reservas do Banco Agrário da Ucrânia foram aumentadas em dez milhões de rublos. Tal aumento aliviou consideravelmente a situação na Ucrânia meridional e na Galícia, onde tem havido considerável desassossego entre os camponeses, em virtude do alto custo dos produtos têxteis."

— Novidades fascinantes — comentou Kitson sardonicamente. — Está organizando um álbum de altas finanças?

— Não — disse o outro brevemente. — O Banco Agrário é um Banco financial. Financia os camponeses proprietários.

Kitson apanhou um outro recorte. Era um despacho telegráfico proveniente de Berlim:

"Como prova da vitalidade industrial que prevalece atualmente na Alemanha e da rapidez com que o Governo se refaz dos efeitos negativos da guerra, pode-se citar o fato de que se encomendaram 60.000 carros à Leipzieger Spoorwagen Gesselshaft. A encomenda foi feita através da L. S. G. por trinta firmas, e a primeira remessa se fará dentro de seis semanas."

— Formidável! — disse Kitson — mas por que recortar isso?

O recorte seguinte também provinha de Berlim e anunciava a ressurreição do Conselho Comprador de Guerra, dos velhos dias belicosos, mas apenas em caráter temporário.

"Não se pretende — dizia o despacho — investir o comitê de todas as suas antigas funções, e a medida foi tomada diante da má safra da batata e com a finalidade de organizar a distribuição."

— Qual é a piada? — indagou Kitson, intrigado a essa altura.

— A piada é que não há falta de batatas — numa houve colheita tão farta — disse Beale —. Mantenho-me a par dessas coisas e estou absolutamente seguro. O Western Mail publicou um artigo do seu correspondente em Berlim, na semana passada, dizendo que havia tal abundância de batatas que o mercado estava abarrotado.

— Hum!

— Leu a respeito dos hangares Zeppelin? — perguntou Beale. — Estão aí, junto com o resto. Todos os velhos hangares Zeppelin, em toda a Alemanha, serão recuperados e transformados em ringues de patinação, para auxiliar o desenvolvimento físico da nova Alemanha. Armar-se-ão ótimos estrados de madeira e as bandas tocarão diariamente, chova ou faça sol.

— Que significa tudo isso? — quis saber o advogado.

— Que o Dia — o verdadeiro Dia — está próximo. — disse Beale com parcimônia.

— Guerra?

— Contra o mundo, mas sem um lampejo de aço ou um troar de canhão. Uma guerra feita por homens sentados em seus pequenos escritórios, puxando os cordéis que sufocarão o senhor e eu. Sr. Kitson, esta noite vou atrás de van Heerden. Poderei pegá-lo e ainda assim deixar de sustar sua obra maligna. Amanhã, prenda-o ou não, contar-lhe-ei toda a história dessa conspiração que descobri por acaso. O Governo britânico pensa que caí na pista de algo muito importante — assim pensa Washington, e estou recebendo toda a ajuda de que necessito.

— Mundo estranho o nosso — disse Kitson.

— Poderá tornar-se ainda mais estranho — respondeu Beale e enchendo-se de coragem — como está minha esposa?

— Sua... — bem, aprecio sua coragem — resmungou Kitson.

— Pensei que preferisse assim — como está a Srta. Cresswell?

— Segundo a enfermeira, cada vez melhor. No momento, encontra-se adormecida. Mas, despertou para se alimentar e está quase normal. Não perguntou por você — acrescentou mordazmente.

Beale corou e riu.

— Minha última tentativa de ser feliz — disse ele. — Suponho que amanhã já estará boa.

— Mas não receberá visitas — Kitson tratou de adverti-lo. — Mantenha seus pensamentos afastados de Oliva e os olhos fixos em van Heerden, se quiser ser prudente. Ninguém pode servir a dois senhores.

Stanford Beale olhou para o relógio.

— É tempo — disse oracularmente, e se levantou.

— Deixarei esta mixórdia para seu homem arrumar — disse Kitson —. Onde vai agora?

— Ver Hilda. Glaum — se o destino me sorrir —, disse Beale. — Vou tentar um blefe, certo de que em seu pânico ela me irá conduzir até à cova do leão, a fim de que van Heerden dê cabo de mim. Preciso correr o risco. Se ela é quem penso, armará uma armadilha para mim. Cairei nela, mas chegarei bem perto de van Heerden esta noite.

Kitson o acompanhou até à porta do hotel.

— Não corra riscos desnecessários — disse ao se despedir, — não se esqueça de que é um homem casado.

Beale fez sinal a um táxi que passava e logo rodava por Piccadilly, rumo oeste. Virou a esquina de Hyde Park, contornou as cercanias do palácio de Buckingham e penetrou no labirinto de Pimlico. Desceu diante de uma casa sombria, numa rua deserta e tristonha e, pedindo ao motorista que esperasse por ele, subiu as escadas e tocou a campainha.

— A Srta. Glaum está? — perguntou.

— Sim, senhor. Entre na sala de visitas. A quem devo anunciar?

— Diga-lhe que é um cavalheiro do Edifício Krooman — respondeu diplomaticamente.

Dirigiu-se para a empetecada sala de visitas e esperou. A porta se abriu e a moça entrou. Ela estacou, boquiaberta ao vê-lo, e sua surpresa logo se transformou em suspeita.

— Pensei... — começou ela — e se deteve.

— Pensou que era o Dr. van Heerden?

— O senhor é o homem que vi em casa de Heyler — disse ela fazendo-lhe uma carranca.

— Sim, meu nome é Beale.

— Ah, já ouvi falar a seu respeito. Nada conseguirá vindo meter o nariz aqui — gritou a moça.

— Conseguirei muito, vindo meter o nariz aqui — disse ele calmamente. — Sente-se, Srta. Hilda Glaum e nos ponhamos de acordo. É amiga do Dr. van Heerden?

— Não responderei a nenhuma pergunta — sibilou ela.

— Talvez responda a esta — disse ele — por que o Dr. van Heerden lhe arranjou um lugar na firma Punsonby e por que roubou três envelopes registrados e os entregou ao médico?

O rosto dela enrubesceu.

— É mentira! — murmurou.

— Poderia dizer isso a um juiz e a um júri, mas não lhe dariam crédito — sorriu ele. — Vamos, Srta. Glaum, sejamos francos um com o outro. Previno-a de que não tenciono relatar seu ato à polícia, e a senhora me pode dar uma pequena informação que me seria útil.

— É mentira — repetiu ela, visivelmente agitada. — Não roubei nada. Se a Srta. Cresswell diz que foi assim...


— A Srta. Cresswell desconhece sua traição — disse o outro tranqüilamente; — mas, já que está resolvida a negar o fato, talvez me queira dizer por que razão costuma visitar o apartamento do Dr. van Heerden pela madrugada.

— Está insinuando...

— Não estou insinuando nada. Menos ainda estou insinuando que seja amante do médico.

Os olhos dela se estreitaram e, por um momento, pareceu que sua vaidade natural iria sobrepujar a discrição.

— Quem disse que costumo ir ao apartamento do Dr. van Heerden?

— Eu. Vi-a várias vezes.

— Não vou discutir meus assuntos nem os dele — disse ela — e pouco me importam suas ameaças.

— Farei algo mais do que ameaças — advertiu ele, — não me irá enganar, Srta. Glaum, e quanto mais cedo entender isso, melhor. Irei até o fim, se me der algum trabalho e não responder às minhas perguntas. Não apenas prenderei o Dr. van Heerden esta noite como também a deterei por cumplicidade.

— Não pode fazer isso, não pode — disse ela quase aos gritos.

Ela se despejou de toda a contenção e foi quase elétrica na violência do seu protesto.

— Prendê-lo, aquele homem maravilhoso! Prender-me a mim? Não ousaria! Não ousaria fazê-lo!

— Ousarei fazer uma porção de coisas, a menos que me diga o que pretendo saber.

— Que pretende saber? — perguntou ela desafiadora.

— Quero saber o endereço mais provável em que poderei encontrar o médico — na verdade, Srta. Glaum, a brincadeira terminou, — sabemos tudo acerca da Alfôrra Verde.

Ela recuou, tapando a boca com a mão.

— A Alfôrra Verde — murmurou. — Que quer dizer?

— Quero dizer que tenho razões para crer o Dr. van Heerden está metido numa conspiração contra este país. Ele desapareceu, mas permanece em Londres. Quero prendê-lo sem alarde.

Os olhos dela estavam fixos nos dele. Ele leu dúvida, raiva, um ponto de medo e, por fim, uma luz firme de inabalável resolução. Quando falou, ela tinha a voz calma.

— Muito bem; levá-lo-ei até o lugar — disse.

Ela deixou a sala e voltou cinco minutos mais tarde, de chapéu e casaco em punho.

— Fica longe daqui — principiou.

— Tenho um táxi à espera.

— Não poderemos ir até lá de táxi. Diga ao motorista que nos leve à Rua Baker — disse ela.

Durante o trajeto não disse palavra e Beale não se sentia inclinado a conversar. Na estação da Rua Baker eles pararam, e o carro foi dispensado. Juntos, caminharam em silêncio, desviando-se da artéria principal, passando pela estação central e mergulhando num dédalo de ruas que para o americano eram território desconhecido.

Dir-se-ia que, num passo, haviam se deslocado de um dos melhores quarteirões da cidade para um dos piores.

— Fica no fim desta rua — disse ela.

— Atingiram o que parecia ser uma cavalariça. Havia um muro branco com uma porta e um par de portões. A moça tirou da bolsa uma chave, abriu a porta pequena e entrou. Beale seguiu-a.

Estavam num pequeno pátio juncado de toneis. De cada lado alongavam-se construções baixas que, aparentemente, haviam sido usadas como estábulos. Ela fechou a porta atrás de si, atravessou o pátio, dirigindo-se para um dos cantos e abriu uma outra porta.

— São catorze degraus para descer — disse — tem alguma lanterna consigo?

Ele sacou do bolso uma lanterna elétrica.

— Dê-me — disse ela — irei na frente, para mostrar o caminho.

— Que é isto? — perguntou ele, depois que ela fechou a porta.

— Antigamente pertencia a um negociante de vinhos — disse ela concisamente — As caves são nossas.

— Nossas? — repetiu ele.

Ela não deu resposta. No fim da escada havia uma pequena passagem e uma outra porta que foi aberta, e aparentemente a mesma chave abria todas elas, ou ainda, conforme Beale suspeitava, ela usava uma chave mestra.


Seguiram caminho e uma vez mais ela fechou a porta atrás de si.

— Outra mais? — perguntou ele, quando o jorro da lanterna incidiu sobre uma porta de aço a doze passos de distância.

— É a última —, disse ela e prosseguiu sua marcha. Súbito, a luz se apagou.

— Sua lâmpada enguiçou — ouviu-a dizer — mas saberei como localizar a fechadura.

Ele ouviu um estalo, mas não viu a porta abrir-se e não percebeu o que sucedera até que o estalo se repetiu. A luz foi enfocada sobre ele, à altura dos olhos.

— Não me pode ver — disse uma voz zombeteira. — Vejo-o através da espia. Não notou a espia, meu astuto Sr. Beale? Estou do outro lado da porta. — Ele a ouviu rir. — Vai prender o doutor esta noite? — troçou ela. — Vai descobrir o segredo da Alfôrra Verde?

— Minha cara amiguinha — disse Beale com doçura, — seja ajuizada e abra a porta. Não pense que vim até aqui sozinho. Fiz-me acompanhar durante todo o trajeto.

— Mente — disse ela friamente, — por que dispensei o táxi e o fiz caminhar? Ora, meu arguto Sr. Beale!

Ele fez um muxoxo, embora não sentisse disposição para tanto.

— Que senso de humor! —, comentou admirado — agora, ouça-me!

Deu um passo na direção da porta, revólver em punho, e ouviu então um trinco que batia. O barril que atirou foi encontrar uma barreira de aço. A seguir veio um rangir de gonzos e ele tornou a guardar o revólver.

"Bem, então o caso é esse" — disse consigo.

Depois retornou à outra porta, riscou um fósforo e se pôs a examiná-la. Era blindada. Bateu com o cabo do revólver nas paredes mas nada encontrou de encorajador. O chão era solidamente lajeado, o teto baixo da passagem era abobadado e revestido de pedra.

Subitamente, suspendeu sua busca e apurou os ouvidos. Sobre a cabeça distinguiu passadas leves e sorriu. Orgulhava-se de jamais esquecer uma voz ou um modo de pisar.

— É a minha amiguinha, correndo como uma lebre a fim de contar ao médico —, disse. — Resta-me pouco menos de uma hora, antes que o tiroteio comece!

 

NO APARTAMENTO DO MÉDICO

O Dr. van Heerden não apressou sua partida da casa de Staines. Passou a manhã subseqüente ao casamento de Oliva, na cidade, efetivando algumas transações importantes e não fazendo qualquer tentativa de ocultar seus vaivens, embora soubesse estar sendo seguido. Sim, ele tinha consciência de que cada hora que se escoava trazia o perigo para mais perto. Julgava (e com razão) que seus perigos não resultavam de haver raptado Oliva Cresswell.

— Talvez me dêem uma semana de graça — disse a Milsom — e, no espaço de uma semana, poderei fazer tudo o que pretendo.

Atravessou a noite supervisionando o desmonte de aparelhos no barracão e passava das dez horas na terça-feira quando o trabalho terminou.

Apenas quando se achou lado a lado com Milsom, no automóvel, atravessando a cidade de Kingston, voltou a referir-se à tarde da véspera.

— Estará Beale satisfeito com o seu prêmio... e com a situação? — perguntou van Heerden.

— Bem, suponho que esteja. O empreguinho lhe rende um milhão. Van Heerden, porém, sacudiu a cabeça.

— Creio que está confundindo as coisas, Milsom — disse ele. — Beale é mais homem do que eu pensava e sabe demasiado acerca das minhas intenções. Ficou perplexo quando Homo se declarou pastor de verdade. Jamais vi um homem tão estupefato. Ele desejava que o casamento fosse uma farsa. Analisou a situação com precisão, pois sabia que eu andava atrás do dinheiro dela e que, como mulher, ela não tinha atrativos para mim. Acreditava que, se não me fosse possível casar com ela, eu não teria interesse em detê-la e contratou Homo para acompanhá-lo, munido de uma licença especial. Para infelicidade minha, cronometrou demasiadamente bem as coisas. Milsom olhou ansiosamente para o companheiro.

— Que está querendo dizer? — perguntou — por um triz, não chegou atrasado. ..

— É isso o que quero dizer. O fato de saber que cada segundo era vital, de adivinhar que eu me empenhava por um casamento rápido e de me retardar, trazendo consigo um pseudo-pastor (conforme acreditava) a fim de não perder um só minuto; são esses os fatores que me incomodam.

— Não compreendo —, disse Milsom, — o sujeito é um malandro americano. Entreviu a oportunidade de dar um grande golpe e se agarrou a ela.

— Você está errado. Gostaria de ser da mesma opinião. Caramba! Não vê que todas suas ações demonstram saber tudo acerca da Alfôrra Verde?

— Hem? — Milson endireitou-se no assento do carro.

— Como? — por que pensa assim?

— Tudo está muito claro. Ele já tem alguma idéia a respeito do plano. Tem pressionado o velho Heyler; conseguiu mesmo uma amostra do material — era uma cultura defeituosa, mas talvez lhe baste. Concluiu que eu não só tinha um emprego especial para o dinheiro do velho John Millinborn como também tinha pressa em deitar-lhe as mãos.

Seguiu-se um silêncio de vários minutos.

— Haverá alguém além de Beale que esteja a par? Se entrasse em acordo com ele...?

— Precisamos dar cabo dele esta noite —, disse van Heerden, — é nisso que estava pensando.

Outro silêncio.

— Bem; e por que não? — perguntou Milsom — para mim dá na mesma. A recompensa bem vale um risco extra.

— Tem de ser feito antes que ele descubra a fábrica de Paddington; esse é o perigo que me está atormentando... — Van Heerden estava pouco à vontade e perdera seu ar de tranqüila segurança. — Existem aí provas bastantes para estragar tudo.

— De fato existem — suspirou Milsom, — foi uma loucura continuar. Você já tem todo o material de que precisa e poderia ter fechado a fábrica uma semana atrás.

— Necessito de uma margem de segurança... ademais, que mais poderia ter feito? Estava quase falido e qualquer prenuncio de fechamento teria provocado uma corrida de operários famintos ao Edifício Krooman.

— É verdade, — concordou o outro, — tive de segurá-los, mas não sabia que estava falido. Parecia-me uma relutância natural em separar-se do dinheiro vivo.

A conversa foi interrompida pela parada do carro. Van Heerden espiou pela janela e vislumbrou o clarão de uma lâmpada vermelha.

— Muito bem — disse ele, devemos estar em Putney Common e eu disse a Gregory que viesse ter comigo caso houvesse alguma novidade.

Um homem surgiu no feixe de luz do farol dianteiro e se chegou até à porta.

— Bem, — perguntou o médico — algum problema?

— Vi a luz verde no capo, — disse Gregory (Milsom entende então como lhe fora possível reconhecer o carro), — não há nada de importante.

— Onde está Beale?

— No hotel do velho. Esteve lá o dia todo.

— Fez mais alguma visita à polícia?

— Esteve na Scotland Yard esta tarde.

— E a moça?

— Um dos garçons do hotel, amigo meu, disse-me que ia muito melhor. Dois médicos a estão atendendo.

Van Heerden debruçou-se para fora da janela e baixou a voz — A Fraulein Glaum; viu-a?

— Sim, disse-lhe que não voltasse ao seu laboratório enquanto não mandasse chamá-la. Perguntou quando o senhor partia.

— Isso ela não deve saber, Gregory... por favor, não se esqueça.

Ele retirou a cabeça e o carro se pôs em movimento.

— Há um problema a mais para você, van Heerden — disse Milsom entre dentes.

— Qual? — indagou o outro rispidamente.

— Hilda Glaum. Apenas vi a moça uma vez ou duas, mas ela o adora. Que vai fazer com ela?

Van Heerden acendeu um cigarro e, ao clarão da chama, Milsom o viu sorrir.

— Virá depois de mim — disse ele — vale dizer que reservo um lugar para ela em meu país, mas não...

— Mas não o lugar que espera — arrematou Milsom cruamente. — Talvez tenha problemas lá.

— Bah! Hilda é boa pequena e na Alemanha as mulheres conhecem o seu lugar. Ficará satisfeita com o que lhe der.

— Há poucas mulheres assim — disse Milsom com. decisão, e o assunto morreu.

O carro parou nas proximidades do Marble Arch para deixar Milsom, e van Heerden seguiu viagem sozinho, chegando ao seu apartamento pouco antes da meia-noite. Quando desceu do carro, um homem cruzou a rua. Era o espia de Beale. Van Heerden olhou em torno, sorridente, compreendendo o significado daquela figura descuidosa; atravessou o saguão e subiu as escadas.

Deixara as luzes acesas por causa dos espias e a lâmpada da entrada brilhava persuasivamente através da bandeira da porta. O apartamento estava às escuras e sobre a porta uma tira de papel registrava o endereço.

O médico entrou nos próprios aposentos, cerrou a porta, desligou a luz e penetrou no escritório.

— Olá — disse raivosamente, — que faz aqui?

A moça sentada à mesa ergueu-se para saudá-lo e estava ofegante. Van Heerden pressentiu encrencas em seu rosto. Poderia igualmente ter notado orgulho por haver servido ao amo que idolatrava.

— Apanhei-o, Julius, apanhei-o!

— Apanhou-o? Apanhou-o quem? — perguntou ele franzindo a testa.

— Beale! — disse ela impetuosamente — o grande Beale! Ela prorrompeu num riso histérico.

— Ele veio procurar-me; pretendia prender-me esta noite.

— Sente-se — disse van Heerden com firmeza — e tente ser coerente, Hilda. Quem foi procurá-la?

— Beale! Veio à minha pensão e queria saber para onde você havia levado Oliva Cresswell. Ia mandar-me prender, Julius, por causa daquelas cartas que lhe dei. Mas não me preocupei comigo, Julius. Pensei apenas em você. A idéia de ver você, meu querido, encerrado numa dessas horríveis prisões inglesas... oh, Julius!

Ela ergueu-se, os olhos marejados de lágrimas, mas ele segurou-a pelas espáduas e fê-la sentar-se de novo.

— Ora, ora. É preciso que me conte tudo. Isto é muito sério. Que aconteceu então?

— Ele queria que o conduzisse até um dos locais.

— Que locais? — perguntou van Heerden apressadamente.

— Não sei. Ele disse saber que você possuía outras casas e que poderia ser encontrado em alguma parte.

— Prossiga — disse o médico.

— Então me pus a pensar — disse a moça — e rezei a Deus que me desse uma idéia capaz de ajudá-lo. Finalmente o plano me ocorreu, Julius. Disse-lhe que o levaria até você.

— Disse-lhe que o traria até mim ? — perguntou ele com firmeza — e para onde o levou?

— Para a fábrica em Paddington —, respondeu ela.

— Para lá! — ele fixou-a com o olhar.

— Espere, espere, espere —, disse a moça, — por favor não me culpe. Levei-o até a passagem. Tomei-lhe a lanterna emprestada e, depois de passarmos pela segunda porta, esgueirei-me pela terceira e fechei-a na cara dele.

— Depois...

— Ele está lá! preso! Oh, Julius, não fiz bem? Por favor não fique zangado comigo. Tive tanto medo por sua causa!

— Há quanto tempo está aqui? — perguntou ele.

— Há menos de dez minutos. Cinco, talvez. Perdi a noção do tempo. Vim imediatamente à sua procura.

Postado junto à mesa, ele roía as unhas, a cabeça fletida em profundas reflexões.

— Logo lá! — sussurrou.

— Oh! — Julius, fiz o que pude — disse ela, chorosa. Ele voltou-se para ela com ar de galhofa.

— Claro que fez. Você é mulher, não tem miolos.

— Pensei que...

— Pensou! — escarneceu ele — quem lhe mandou pensar? sua tola! Não sabe que era um ardil.. que ele não me poderia prender? não percebe? Ele sabia que você costumava vir aqui?

Hilda meneou a cabeça.

— Foi o que pensei —, disse van Heerden com um riso amargo. — Ele sabe que você gosta de mim e se aproveitou dos seus temores. Pobre tolinha. Não chore, senão farei qualquer coisa desagradável. Vamos, vamos. Tome um pouco de vinho; encontrará vinho naquele frasco.

Ele começou a percorrer o quarto de um lado para outro.

— Nada resta fazer senão acertar contas com o Sr. Beale — disse sombriamente. — Acha que ele se fez seguir?

— Oh, não, Julius — ela conteve os soluços. — Tive o máximo de cautela.

Ela lhe fez uma descrição da jornada e das precauções que havia tomado.

— Bem, talvez não seja tão tola assim.

Ele abriu uma gaveta da escrivaninha e sacou uma pistola Browning de cano longo; retirou o pente, examinou-o e recolocou no lugar.

— Sim, creio que preciso ajustar contas com esse cavalheiro; mas não quero usar isto — deixou cair a arma no bolso; — talvez possamos envenená-lo com gás. Seja como for, já não é possível fazer nem o bem nem o mal — acrescentou cinicamente.

Ela estava sem fala; suas mãos, enlaçadas com força diante do peito, ocultavam um lenço amarrotado e úmido e seu rosto banhado de lágrimas estava voltado para ele.

— Vamos, enxugue o rosto, — Ele se inclinou e a beijou de leve no rosto. — Talvez tenha feito o melhor. Quem sabe? De qualquer forma — disse ele, pensando em voz alta, — Beale está informado acerca da Alfôrra Verde e dentro em pouco terei de me ocultar; mas, será por pouco tempo, minha Hilda —. Ele sorriu — por muito pouco tempo e depois — abriu os braços num gesto largo — seremos mais ricos do que jamais sonhou Frankfurt.

— Será bem sucedido. Sei que será bem sucedido, Julius — suspirou ela, — se ao menos pudesse ajudá-lo! Se me dissesse o que está fazendo! Que é Alfôrra Verde? Algum formidável explosivo novo?

— Enxugue o rosto e vá para casa — disse ele laconicamente. — Verá que existe um detetive a vigiar lá fora, mas não creio que vá segui-la.

Ele despediu a moça e a seguiu depois de algum tempo, varando ousadamente as sombras e ganhando o ponto de táxis da Avenida Shaftsbury sem, ao que lhe pareceu, ser seguido. Dispensou o carro nas proximidades da Rua Baker e prosseguiu a pé. Abriu a portinhola que dava para o pátio, mas não tomou a mesma direção em que a moça conduzira Beale. Foi por outra porta que entrou na mesma abóbada que em outras épocas havia sido um repositório inocente de líquidos borbulhantes e vivos e se achava agora convertida numa fábrica, onde alguns homens trabalhavam com afinco a fim de destruir seus semelhantes.

 

A FÁBRICA DE ALFÔRRA VERDE

Stanford Beale passou cinco minutos a ponderar, na escuridão do corredor da cave para a qual Hilda Glaum o havia conduzido, e depois encetou uma minuciosa busca nos próprios bolsos. Trazia consigo um pequeno isqueiro de prata que, felizmente, houvera sido carregado aquela tarde e lhe possibilitou iluminação suficiente para uma apreciação do lugar.

O espaço entre as duas portas fechadas era de dez pés; a largura da passagem, três; a altura, aproximadamente sete. O teto, conforme já notara, era abobadado. Ele constatou então que na faixa central estendia-se um filete. Evidentemente, houvera ali uma instalação elétrica, antes que os novos donos tomassem posse, pois, de espaço a espaço aparecia um soquete para lâmpada elétrica. Os novos ocupantes haviam recoberto tudo de cal; não obstante, o filete e as tomadas elétricas pareciam relativamente novas. Uma parede, a que lhe estava à esquerda quando entrou, nada revelou à inspeção; mas na parede da direita, a meio caminho entre as duas portas, havia vestígios de uma aviso pintado em letras brancas sobre um fundo preto, o qual ainda se entremostrava sob a camada de tempera ali aplicada. Umedeceu um lenço com a língua e raspou um pouco de cal onde as letras eram menos visíveis e leu:

IGO REO

ULANCIA & O SOCORRO

Tratava-se, sem dúvida, de um fragmento de inscrição cortado bem no meio. À esquerda não havia sinais de letras. Durante alguns instantes ele tentou compor aquelas letras e afinal compreendeu.

"Abrigo antiaéreo. Ambulância e Pronto Socorro!" foi o que leu.

Aquilo explicava, portanto, as novas instalações elétricas. Era uma dessas caves subterrâneas escolhidas pela municipalidade ou pelo Governo para abrigar as pessoas das redondezas, durante os ataques aéreos do tempo da guerra. Evidentemente, havia ali abundância de acomodações, pois se tratava também de um ambulatório. Mal distinguível sob as letras, via-se uma mão pintada em branco e apontando para baixo. Que teria sucedido à outra metade da inscrição? Era óbvio que fora pintada na porta dando para a sala de curativos, como também era óbvio que tal porta fora suprimida e sua abertura obturada. A luz dessa descoberta, ele procedeu a uma inspeção mais cuidadosa da parede da esquerda. Num espaço de quatro pés a alvenaria era nova. Experimentou-a com os nós dos dedos. Parecia ser oca. Premindo o corpo contra a parede fronteiriça para fazer alavanca, colocou o pé de encontro à alvenaria recente e fez força.

Sabia que a construção usada naquela obra não era da melhor qualidade; sabia que havia ali apenas uma camada de tijolos e era um fato mecânico que uma pressão aplicada ao centro da nova estrutura fá-la-ia ruir por completo.

Ao primeiro esforço, sentiu que a parede cedeu. Atenuada a pressão, voltou ao lugar. Depois, colocou ambos os pés contra a parede e, retesando as costas, empregou seu último resquício de energia num vigoroso empurrão. No instante seguinte jazia de costas no chão. A maior parte da parede havia desabado.

Uma corrente de ar puro veio saudá-lo, quando se pôs a caminhar cautelosamente por entre os destroços. Um lance de seis degraus de pedra levava a um pequeno compartimento contendo uma pia, duas camas de campanha — que por certo faziam parte do equipamento da ambulância, e os novos donos haviam julgado desnecessário remover dali, e uma cadeira quebrada. O quarto ainda estava repleto de apetrechos de pronto socorro.

O que mais o interessou foi uma porta que não esperava encontrar. Estava aferrolhada do seu lado e, ao correr o ferrolho, ele constatou com alívio não estar fechada à chave. Abriu-a com muito cuidado, apagando primeiro o isqueiro. Adiante da porta tudo estava escuro e ele tornou a acender a chama. O quarto dava para um outro, igualmente vazio. Havia algumas prateleiras, uns tantos caixotes velhos de vinho, um punhado de garrafas vazias e nada mais. Na outra extremidade, mais uma porta, também aferrolhada por dentro. Era evidente que van Heerden não desejava fosse usada aquela parte da galeria.

Beale examinou a fechadura e verificou estar quebrada. Deveria estar próximo da oficina principal daquela nova fábrica e era necessário proceder com cautela. Sacou do revólver, fez girar o tambor e o meteu por debaixo do colete, a coronha bem ao jeito da mão. A retirada dos ferrolhos foi assunto demorado. Não poderia correr o risco de trair sua presença àquela hora e os deslocava um de cada vez, centímetro a centímetro. Afinal, seu trabalho terminou e ele empurrou cuidadosamente a porta.

Instantaneamente surgiu entre a porta e o umbral um fio de luz cintilante e verde. Ele não ousou avançar mais, pois começou a ouvir pés que se arrastavam e, de quando em quando, vozes que falavam abafadas e indistintas. Aquela luz, se a porta se abrisse, pelo menos uma dúzia de olhos veriam o fato. Tanto quanto sabia, todos os homens ali poderiam estar voltados naquela direção. Esperara ouvir ruídos de máquinas, mas nada ouviu além das vozes estranguladas e do embate ocasional de vidro contra vidro e do ruge-ruge de pés em chinelas.

Empurrou a porta um centímetro mais e colou o olho na abertura. Daquele ângulo podia ver apenas uma das paredes da grande galeria e o terminal de uma enorme lâmpada a vapor colocada numa das cornijas que jorrava aquela luz horrível. Então viu alguma coisa que o encheu de esperança. Contra a parede se desenhava uma sombra alta, que nem a lâmpada conseguia neutralizar por completo. Era uma sombra irregular, possivelmente produzida por uma pilha de caixotes e lhe ocorreu que talvez além do seu campo de visão houvesse uma barricada de caixotes ocultando a porta, do restante do quarto.

Gastou quase três quartos de hora orientando-se com base na problemática posição das luzes, na altura e densidade da cortina de caixotes e depois, rápida e ousadamente, abriu a porta, atravessou-a e fechou-a atrás de si. Seus cálculos haviam sido precisos. Encontrou-se numa sala cuja extensão podia apenas imaginar. Todavia, o que mais lhe interessou foi a exatidão de seus cálculos segundo os quais a porta estaria escondida. Uma pilha de caixotes em forma de L se erguia até dois pés do teto e formava um pequeno vestíbulo para quem entrasse na galeria pelo lado por onde viera. Os caixotes haviam sido empilhados com ordem e método e, com exceção de duas embalagens maiores que formavam a "pedra angular", a barreira era constituída de grande número de pequenas caixas de cerca de cinco centímetros de superfície. Havia uma pequenina escada de mão, evidentemente usada pela pessoa encarregada de manter em ordem aquelas caixas. Beale ergueu-a sem fazer ruído, fixou-a no canto e subiu cautelosamente.

Viu uma sala grande e larga cujo teto abobadado era sustentado por seis volumosos pilares de pedra. A luz vinha não apenas de lâmpadas de mercúrio presas ao forro, mas também de outras, suspensas sobre as três filas de carteiras que varavam a sala de ponta a ponta.

As lâmpadas de mercúrio não produzem luz verde, sabia Beale, mas sim violeta, e o efeito verde resultava dos matizes de algo que Beale julgou ser seda amarela, mas posteriormente identificou como mica colorida.

A intervalos regulares sobre as carteiras estavam assentadas figuras vestidas de branco, os rostos ocultos sob máscaras de borracha, as mão enluvadas. Diante de cada homem havia um pequeno microscópio sob uma proteção de vidro, uma balança e um cavalete cheio de cubas rasas de porcelana. Evidentemente, o trabalho a que se entregavam não lhes punha em perigo a vista, pois os oculares das máscaras não ostentavam protetores, circunstância que acentuava ainda mais a aparência animalesca dos homens. Todos se pareciam em seus uniformes, porém Beale reconheceu uma única figura. Não seria possível confundir a silhueta atarracada e a enorme cabeça do Herr Professor, cuja aparição no apartamento de Oliva Cresswell pusera a jovem em pânico.

Já esperava encontrá-lo, pois sabia que o velho alemão, empobrecido e desvalido, havia sido enredado por van Heerden; e Beale, que se compadecia do velho, durante uma quinzena se esforçara por obter do ex-professor de Químida da Universidade de Heidelberg a localização do laboratório secreto de van Heerden. Seus esforços haviam resultado infrutíferos.

O olhar de Beale percorreu as carteiras e anotou os menores detalhes. Alguns dos homens dedicavam-se, sem dúvida, a testes e passavam todo o tempo com os olhos pregados nos microscópios. Outros olhavam para suas cubas de porcelana e remexiam no conteúdo com um bastão de vidro, de quando em quando transferindo alguma coisa para uma lâmina de vidro que era colocada sobre o microscópio e atentamente examinada.

Beale percebeu um débil odor de bolor que se filtrava no ar, um indescritível cheiro de terra com um travo que fazia a membrana delicada das narinas arder e doer. Atou o lenço em torno do nariz e da boca, antes de espiar de novo. Apenas uma parte da sala era visível do seu posto de observação. O que acontecia além da extremidade da cortina ele podia tão somente imaginar. Viu, porém, o bastante para convencer-se de que aquela era a fábrica principal, na qual van Heerden destilava o veneno com que pretendia eliminar a Humanidade.

Alguns dos trabalhadores enchiam pequenos tubos de ensaio com o conteúdo das cubas, e os lacravam. Tais tubos eram de contextura extraordinariamente delicada e Beale viu pelo menos três se despedaçarem nas mãos dos homens.

Cada carteira continha cerca de uma centena desses tubos e um bico de gás para aquecer o lacre. O trabalho prosseguia metodicamente, com pouquíssima conversação entre as figuras mascaradas (ele viu que as máscaras cobriam as cabeças dos químicos de maneira a não deixar à mostra nenhum vestígio dos cabelos); vez por outra uma delas abandonava seu lugar e desaparecia por um porta na extremidade da sala, a qual dava aparentemente para uma cantina.

Evidentemente, os vapores contra os quais se protegiam não eram virulentos, pois alguns dos homens se despojavam de suas máscaras, tão logo se erguiam das carteiras.

Durante meia hora ele observou, e nesse espaço de tempo viu o processo usado para encher as pequenas caixas que forma um anteparo e esconderijo. Notou os cuidados com que os frágeis tubos eram colocados em seus leitos de algodão e teve uma rápida visão do interior de uma das caixas. Estava a pique de apanhar uma das caixas, a fim de examiná-la mais de perto, quando ouviu uma voz trêmula atrás de si.

— Que faz aqui... hem?

— Ao pé da sua escada achava-se um dos operários, que havia deslizado sorrateiramente até à pilha e lá estava, grotesco e ameaçador, os olhos descobertos faiscando sobre o intruso,-o cano negro da pistola Browning assestado para o coração do detetive.

— Não atire, chefe, — disse Beale — eu desço.

 

O HOMEM DA ÚLTIMA CARTEIRA

Afinal de contas, tudo saía pelo melhor e van Heerden via quase o dedo da Providência naquela queda do inimigo em seu poder.

O Dr. van Heerden tanto era capaz de admirar o engenho do inimigo como matá-lo. A princípio vira Stanford Beale como um astuto policial, um desses tipos que Pinkerton diploma às bateladas. Sagazes, seguros de si, infatigáveis, tais homens aparecem em processos de divórcio, em negociatas financeiras e, ocasionalmente, em casos mais sérios.

Van Heerden conhecia por instinto suas limitações e com demasiada precipitação havia enquadrado Beale numa categoria mais baixa do que merecia. Van Heerden dirigiu-se à sua sala de trabalho passando pelo bufê que mandara instalar para uso dos empregados. Ao fechar a porta de aço atrás de si deparou com Milsom recostado ao aparador de madeira que servia de bar e mesa de refeições para os trabalhadores.

— Que agradável surpresa! — disse Milsom, e depois, ao ler na face do outro: — Algum problema?

— Se o fato de o melhor polícia das Américas e da Inglaterra estar presente no recinto puder ser assim descrito, então há problemas de sobra — respondeu van Heerden.

— Aqui no laboratório? — perguntou Milsom, o medo repontando dos olhos. — Que está querendo dizer?

— Já lhe conto — disse o outro e repetiu a história tal qual a ouvira de Hilda Glaum.

— Está no velho corredor, hem? — disse Milsom,— bem, não há razão para que saia de lá vivo.

— E não sairá — disse o outro.

— Será que ele se fez seguir? Viu alguém aí fora?

— Quanto a isso nada há a temer. Está trabalhando sozinho.

Milsom soltou um grunhido.

— Que vai fazer com ele?

— Asfixiá-lo com gás —, disse van Heerden — com toda certeza está armado.

Milsom fez um gesto de assentimento.

— Espero até que os homens se vão. Mando-os embora às três, alguns poucos por vez; em coisa de meia hora não resta ninguém. Ele pode esperar. Onde se encontra, não oferece perigo. Por que Hilda não me terá contado? Não cheguei a vê-la sequer.

Ela usou diretamente a velha passagem, através da porta dos trabalhadores... provavelmente não confia em você.

Milsom sorriu finamente. Embora controlasse aqueles trabalhos e conhecesse metade dos segredos do médico, suspeitava que a confiança de van Heerden nele não fosse maior que a da moça.

— Bem, esperemos — disse mais uma vez — não há pressa e, de qualquer forma, preciso falar-lhe a respeito do velho Heyler.

— Von Heyler? Pensei que se tivesse livrado dele... — disse van Heerden surpreso — é o velho tonto que Beale tem perseguido. Viram-no tentando dar-lhe um vomitório; já teve duas entrevistas com ele. Já lhe disse para mandá-lo para Deans Folly. Bridgers se encarregaria dele.

— Bridgers é incapaz de se encarregar do que quer que seja.

Seus olhos passearam pelas carteiras e se detiveram num trabalhador colocado na outra extremidade da sala.

— Ele está calado hoje, — disse — aquele sujeito é demasiado presunçoso para o meu gosto. Antes da minha chegada, ameaçou Schultz com um revólver.

Van Heerden teve um gesto de impaciência.

— Acerca do velho Heyler — prosseguiu Milsom — sei que o julga perigoso, por isso conservei-o aqui. Há um quarto onde pode dormir e à noite pode se exercitar à vontade. Mas o velho papalvo não tem sossego — vive a me perguntar qual é o objetivo do seu trabalho.

— É um sujeito difícil. Por duas vezes quase me traiu. Como lhe disse, dei-lhe um trabalho experimental para fazer e ele me trouxe o resultado — foi essa a amostra que caiu em poder de Beale.

— Esse Beale é sem dúvida um perigo — disse Milsom.

Van Heerden fez menção de se encaminhar para o laboratório, mas a manzorra de Milsom o deteve.

— Um minuto, van Heerden. — Enquanto está aqui, é melhor que decida: quando começamos o desmonte? Preciso de uma desculpa para dispensar esses camaradas.

Van Heerden refletiu.

— Dentro de dois dias — disse. — Isso lhe dará tempo para sumir. Pode mandar os homens. Bem, mande-os para a Escócia, para algum lugar afastado onde as notícias não cheguem. Diga-lhes que abrimos uma nova fábrica e hospede-os no hotel local.

Milsom inclinou a cabeça.

— Parece fácil — disse. — Posso encarregar-me deles e desaparecer ao mesmo tempo. Poderei tomar um navio em Greenock.

— Sentirei a sua falta, — disse van Heerden com franqueza — você me foi muito necessário, Milsom. É a força propulsora que eu desejava e o único homem da minha classe que poderia esperar encontrar, o único que se meteria em negócios comigo.

Havia chegado à grande galeria, e van Heerden se pôs a contemplar a atividade quase com complacência.

— Há um bilhão em processo de criação — disse.

— Jamais consegui raciocinar em números de mais de seis algarismos — disse Milsom; — somente sob sua influência alentadora me sinto capaz de chegar aos sete. Vou viver na Argentina, van Heerden. Uma casa no topo duma colina...

O outro estremeceu, mas Milsom continuou.

— Uma beleza de casa, fervilhando de empregados. Uma orquestra de cordas, um laboratório muito bem equipado onde posso satisfazer minha paixão pela pesquisa, um carro de alta potência, vinhos os mais raros... ah!

Van Heerden lançou um olhar de curiosidade sobre o companheiro.

— Gosta disso, não? Eu, da manipulação das finanças. Intermináveis esquemas de fortuna; esmagamento constante dos rivais, ferrovias, navios, grandes indústrias manobradas e escamoteadas; eis a vida que planejo.

— Ótimo! — disse o outro laconicamente. Encaminharam-se para uma das carteiras; o operário ergueu os olhos e tirou a máscara.

Era um homem de idade e sorriu para van Heerden um sorriso desdentado. — Boa noite, signor doctor —, disse em Italiano. — A ciência é grande e a vida breve, signor.

Fez um muxoxo, recolocando a máscara, e voltou ao trabalho, ignorando os dois homens como se eles não existissem.

— Um tanto louco, esse velho Casteli — disse Milsom — só sabe dizer isso, — qual terá sido o seu crime?

— Que eu saiba, nenhum — disse o outro com descaso, — arranjei-o barato. É um químico de utilidade.

Caminharam de carteira em carteira, mas o olhar de van Heerden desviava-se continuamente para a porta, atrás da qual imaginavam um Stanford Beale aprisionado, à espera da sua desgraça. Os homens começavam a retirar-se. Um a um, recobriam seus instrumentos e cubas, desafivelavam as máscaras, tiravam os macacões e desapareciam pela porta sobre a qual tanto se demorava o olhar de van Heerden. Sua saída, porém, não os fazia passar perto da prisão de Beale. Poucos passos corredor adentro havia outra passagem desembocando no pátio acima, e fora através daquele caminho que Hilda Glaum disparara para o apartamento do médico.

Já se haviam retirado todos os trabalhadores menos um, que permanecia estático, olhando através das lentes do microscópio.

— É o nosso amigo Bridgers — disse Milsom, — está todo aceso com a alcalóide da Enythroxylon Coca. — Bem, Bridgers, não terminou ainda?

— Hum! — grunhiu o homem sem se voltar. Milsom deu de ombros.

— Que termine o que está fazendo. Costuma olvidar totalmente as demais pessoas, quando entregue a esses acessos de labor. A propósito, o passamento do nosso caro inimigo — ele apontou com a cabeça na direção da porta — não lhe irá modificar os planos?

— De que modo?

— Não está ansioso por casar com a viúva?

— Não —- disse o médico.

— E não é viúva ainda!

Não era a voz de Milsom que falava, mas a do homem à carteira, o homem cujo olho não se despregava do microscópio.

— Guarde seus comentários para si, — disse van Heerden zangado — termine seu trabalho e suma-se.

— Já terminei.

— O operário ergueu-se lentamente e afrouxando as tiras da máscara, arrancou-a.

— Meu nome é Beale — disse com calma. — Creio que já nos conhecemos. Não se mova, Milsom, se não quiser morrer — quando estou aborrecido, atiro com grande rapidez,

Stanford Beale empurrou o microscópio para trás e sentou-se na beirada da carteira.

— Tratou-me por Bridgers; — disse ele — encontrará o Sr. Bridgers num quarto atrás da pilha de caixotes. A verdade é que me surpreendeu a espionar e estava louco para me dar um tiro, mas consegui convencê-lo a vir até o meu escritório particular, por assim dizer, e o resto foi fácil. Trata-se de um viciado, não? Mais fraco do que um rato. Todavia, isso não vem ao caso; Dr. van Heerden, que diria se o prendesse como conspirador?

Van Heerden teve um sorriso de desprezo.

— Poderia dizer uma porção de coisas. Em primeiro lugar, não tem autoridade para prender quem quer que seja. Não é da polícia, apenas um amador americano.

— Americano, sim, amador, não — disse Beale gentilmente. — Quanto à autoridade, acho que posso prendê-lo primeiro e deixar a autoridade para depois.

— Sob que acusação? — perguntou Milsom, — este lugar nada tem de secreto, apenas as ligações do Dr. van Heerden com ele não são conhecidas e... o profissional que se imiscui em empresas comerciais tem seu diploma cassado, E algum crime possuir uma... — Ele olhou para van Heerden.

— Uma fábrica de germicidas — disse o médico prontamente.

— Suponha que eu não desconheça a natureza deste laboratório? — perguntou Beale com tranqüilidade.

— Leve essa história à polícia e veja que providências irão tomar — disse van Heerden com desdém. — Meu caro Sr. Beale, o senhor tem abusado das estórias de detetive.

— Muito provavelmente — disse ele — mas, de qualquer forma a historieta que me arrebata no momento chama-se O Terror Verde e espero que o senhor complete algumas páginas que estão faltando. Creio que irá fazê-lo.

O médico acendia um cigarro e olhou para o outro por sobre a chama viva do fósforo, com uma ponta de malícia nos olhos.

— Suas fantasias românticas me exasperariam, não fosse sua sinceridade. Depois de me roubar a noiva, parece disposto a me roubar a reputação — disse em tom de mofa.

— Isso — disse Beale deslizando para fora da carteira e se plantando diante do médico, mãos nos quadris — vai exigir alguma pesquisa. Afirmo-lhe, van Heerden, que vou pagar seu blefe. Vou colocar esta fábrica nas mãos da polícia e convocar os maiores cientistas da Inglaterra, da França e da América para provarem as acusações que lhe farei com base nisto!

Ele segurava entre o indicador e o polegar um tubo de cristal, cheio até à boca de alguma coisa que lembrava serragem verde.

— O mundo, esse cético mundo saberá o inferno que você lhe prepara. — A voz de Stanford Beale tremia de excitação e seu rosto estava escuro ante a idéia de um crime tão monstruoso que até mesmo as humilhações impostas a uma mulher que representava mais para ele do que o resto do mundo passavam momentaneamente a um segundo plano, e ele enxergava apenas o perigo ameaçando a Humanidade.

— Diz que a polícia e até o Governo deste país rechaçarão minhas acusações por absurdas. Verá com satisfação que está certo. Julgam-me louco, mas eu os convencerei, Neste tubo está a destruição dos seus sonhos mais caros, van Heerden. Para realizar tais sonhos, você assassinou dois homens. Matou John Millinborn e o tal Prédeaux. Mas não irá... Pum...

A explosão ecoou ribombante naquele espaço confinado de galeria. Beale sentiu o vento da bala e voltou-se, revólver em punho.

 

O SEGREDO DA ALFÔRRA VERDE

Uma figura desgrenhada estava junto dos caixotes, revólver na mão; era Brideers, o homem que abandonara amordaçado no ambulatório, e Beale amaldiçoou a loucura de o haver deixado com a arma.

— Darei um jeito em você... seu bruto! — berrou Bridgers.

A mão de Beale se ergueu como um raio, um filete rubro coriscou e uma vez mais a galeria estremeceu sob um ruído ensurdecedor.

Bridgers, porém, havia conseguido proteger-se. O tiro se repetiu, desta vez com resultados inesperados. A bala atingiu a caixa de força na parede oposta e todas as luzes se apagaram.

Beale empunhava ainda o tubo de vidro, conforme Milsom percebera. Este se atirou sobre o detetive, agarrou-lhe o pulso e tentou torcê-lo.

Beale rilhou os dentes e tentou aplicar uma chave de braço no contendor, mas estava mal colocado, pressionado como se encontrava de encontro à quina da carteira. Sentiu os dedos de van Heerden agarrando-lhe a mão e o tubo lhe foi arrebatado.

Depois, alguém roubou-lhe o revólver da outra mão e houve um tropel de pés. As cegas correu pela escuridão, buscando a pilha de caixotes.

Mais uma bala do enlouquecido Bridgers passou assobiando perto dele. Beale ouviu o rangido de uma porta que se abria e se dirigiu aos tropeções naquela direção. Conseguiu encontrá-la.

Havia observado os outros homens saírem e pôde localizar os degraus; dois minutos mais tarde estava na rua.

Não viu sinal de qualquer dos dois homens. Depois de caminhar cerca de oitocentos metros encontrou um policial, mas o inteligente funcionário não podia abandonar sua ronda e o aconselhou a procurar uma delegacia de polícia. A sugestão era excelente, pois embora o sargento de plantão se mostrasse totalmente indiferente, havia um telefone a na extremidade da linha, em seu pequeno apartamento de Haymarket, estava um certo superintendente McNorton, a menção de cujo nome fez o policial mexer-se prontamente.

— Encontrei a fábrica que procurava, Sr. McNorton —, disse Beale. — Explicarei tudo amanhã de manhã. Por ora, gostaria que dessem uma batida no local.

— Não podemos fazer isso sem ordem judicial — disse a voz de McNorton, — o que poderemos fazer é cercar a fábrica até que se consiga tal ordem. Chame o sargento ao telefone... a propósito, como vai a Srta. Cresswell; melhor, suponho?

— Muito melhor — disse o jovem concisamente.

Incrível como a simples menção daquele nome era capaz de lhe encher o coração de dor.

Ele deixou passar o sargento e mais tarde acompanhou quatro homens até o laboratório. Encontraram todas as portas cerradas. Beale escalou o muro mas não conseguiu achar um meio de entrar no prédio. Depois voltou para junto do sargento, no outro lado do muro.

— Qual o nome desta rua? — indagou.

— Rua Playbury... esta é a antiga adega de Henderson. Beale anotou o endereço e, encontrando um táxi, voltou para a delegacia, fatigado e apreensivo.

Chegou a tempo de testemunhar uma cena curiosa. No centro da sala de reclamações, em frente à mesa do sargento, encontrava-se um homem muito mal trajado, mas dono daquele porte indefinível de quem já conheceu dias melhores. Os cabelos grisalhos, cuidadosamente penteados, davam-lhe um aspecto venerável que os olhos descorados e os lábios finos (crispado agora num sorriso sardônico) faziam o possível para desmerecer.

Ao seu lado estava o oficial que o havia capturado, um detetive daquela zona, homem entediado e sem vibração.

— Parece — dizia o prisioneiro quando Stanford Beale adentrou silenciosamente a sala, — parece que sob este detestável sistema policial a gente não tem sequer o direito de sair a passeio e gozar a brisa matutina.

Era a voz de um homem educado; sua cadência denotava grande confiança.

— Bem, escute aqui, Pastor — disse o sargento, naquele tom amistoso que os policiais reservam para os seus criminosos prediletos, — sabe tão bem como eu que de acordo com a Lei de Prevenção ao Crime você, velho malandro, está sujeito a ser preso, desde que seja visto em circunstâncias suspeitas; não tem nada que perambular pelas ruas em plena madrugada, e, se quiser fazê-lo, não poderá abrir a boca quando o detiverem; encontraram alguma coisa nele, Smith?

— Nada, sargento, — estava apenas vagabundando; por isso o segurei.

— Onde está morando agora, Pastor?

O homem vasculhou os bolsos com cuidados extraordinários.

— Inadvertidamente, deixei meus cartões de visita no meu traje de moedeiro — disse com gravidade — mas um telegrama endereçado para Doss House, R. Mine, Paddington, irá com toda certeza me encontrar. — Todavia, por ora não tenho preocupações. Neste momento acho-me sob a proteção da lei. Dentro de quatro dias estarei em alto mar. — Ora viva, Sr. Beale!

O Sr. Beale sorriu.

— Como vai, Pastor? Pensei que tivesse partido hoje.

— As cabinas de primeira classe estão todas tomadas e me recuso a viajar com a plebe.

Ele se voltou para o embasbacado sargento.

— Posso ir-me? — o Sr. Beale poderá afiançar-me?

Ao sair da sala fez um sinal para o detetive e, quando se encontraram na rua, Beale verificou que toda a empáfia de Homo havia desaparecido.

— Lamento havê-lo metido naquela embrulhada — disse ele a sério, — eu deveria ter sido suspenso de ordens, mais fui setenciado pela primeira vez sob um nome suposto. Na ocasião, não estava ligado a nenhuma igreja e jamais descobriram meu verdadeiro nome, Sr. Beale — prosseguiu com um sorriso enigmático — chamei-o apenas... bem... para lhe pedir perdão.

— A culpa foi toda minha, Homo — disse Beale tranqüilamente e lhe estendeu a mão. — Boa sorte; talvez comece vida nova em outras terras.

Não arredou pé até que a figura sumiu de vista e depois se encaminhou pesadamente para o seu próprio apartamento. Entrou no quarto de dormir se atirou-se sobre a cama inteiramente vestido. Um tinir de telefone veio despertá-lo de um sono agitado. Era McNorton.

— Venha até a Scotland Yard e procure o Comissário Adjunto — disse ele, — o homem está ansioso por saber mais acerca dessa fábrica. Disse-me que você já lhe traçou um esboço da trama.

— Sim — dar-lhe-ei os detalhes — estarei aí dentro de meia hora.

Tomou um ducha, trocou de roupa e saiu sem tomar café, pois a empregada não tinha aparecido, julgando sem dúvida que sua ausência seria prolongada. Rumou para o edifício cinzento e triste da barragem do Tâmisa.

O comissário adjunto O'Donnell, veterano policial de cabelos brancos, estava à sua espera e McNorton se encontrava com ele.

— Parece cansado — disse o comissário — sente-se ali; parece faminto também. Já tomou o café da manhã?

Beale sacudiu a cabeça sorridente.

— Arranje-lhe alguma coisa, McNorton, toque essa campainha. Não reclame, meu caro, já passei exatamente pelo que está passando e sei que a comida vale mais do que o sono.

Deu uma ordem a um serviçal e somente vinte minutos mais tarde, depois que Beale havia dado conta de uma refeição surpreendentemente saborosa, permitiu que a história fosse contada.

— Estou às suas ordens — disse.

— Começarei pelo começo — disse Stanford Beale. — Fui membro do serviço secreto americano até depois da guerra, quando por solicitação do Sr. Kitson, que os senhores conhecem, vim para a Europa a fim de dedicar-me inteiramente à Srta. Cresswell e ao Dr. van Heerden. Um dia, vasculhando o apartamento do médico na sua ausência, com o objetivo de encontrar alguma prova relativa ao assassinato de John Millinborn, dei com isto.

Tirou do bolso um recorte de jornal e o colocou sobre a mesa.

— E do El Imparcial, jornal espanhol; traduzirei para os senhores:

"Graças à discrição e ao gênio do Dr. Alphonso Romanos, chefe do serviço médico de Vigo, os fazendeiros locais conseguiram evitar uma catástrofe lamentável (traduzo ipsft literis). Na última segunda-feira, o Sr. Don Marin Fernandey, de La Linea, descobriu que um dos seus trigais havia morrido durante a noite e já se achava em fase de apodrecimento. Alarmado, notificou o chefe do serviço médico de Vigo e o Dr. Alphonso Romanos, com grande zelo e satisfação, apressou-se em atender ao chamado, em companhia de um cientista estrangeiro. Afortunadamente o preclaro doutor é um extraordinário bacteriologista. Um exame do trigo morto, que já desprendia odores desagradáveis, revelou a presença de uma nova moléstia, o orin verde (alfôrra verde). O campo foi queimado por ordem sua. Felizmente a área era restrita e separada de outros campos por amplas zanzas. Com exceção de duas -pequenas amostras do trigo infectado, levadas pelo Dr. Romanos e pelo cavalheiro estrangeiro, a peste foi incinerada."

— O "cavalheiro estrangeiro" — disse Beale — era o Dr. van Heerden. Mandei um dos meus homens a Vigo, a fim de entrevistar-se com o Dr. Romanos, o qual se recordava muito bem das circunstâncias. Ele próprio achara conveniente destruir o germe, depois de anotar cuidadosamente suas características, e expressara desejo de que o seu velho amigo van Heerden fizesse o mesmo. Van Heerden está claro, não fez nada disso. Tem cultivado com assiduidade os germes em seu laboratório. Na medida em que me foi possível sabê-lo pelo Professor Heyler, velho alemão a serviço de van Heerden e pessoa razoavelmente honesta, o médico quase perdeu sua cultura e, apenas enviando pequenas quantidades a cientistas arruinados e fazendo-os experimentar o cultivo do germe em circunstâncias variadas, encontrou o meio em que este florescia melhor. Trata-se, creio eu, da farinha de centeio fermentada.

— Com que finalidade, acredita o senhor, van Heerden usará dessas culturas? — indagou o comissário.

— Chegarei lá. No decurso de minhas investigações descobri que coletava dados os mais acurados acerca dos grandes trigais do mundo. Em virtude das precauções que estava tomando, concluí que tencionava enviar a todo o mundo um exército de agentes, os quais, a ura dado sinal, soltariam os germes sobre as plantações de trigo.

— Mas com certeza uns poucos germes espalhados sobre um enorme trigal, como os que se encontram na América, não produziriam mais do que alguns danos localizados?

Beale abanou a cabeça.

— Sr. O'Donnell —, disse ele sobriamente — se eu rebentasse um tubo daquele material num canto de uma plantação de 10.000 acres de superfície, todo o campo se deterioraria em 24 horas. A coisa se propaga de caule em caule com rapidez impressionante. Um germe multiplica-se numa plantação viva, um bilhão de vezes em 12 horas. Não apenas seria possível como também certo que vinte agentes de van Heerden na América poderiam destruir todas as colheitas dos Estados Unidos no espaço de uma semana.

— Mas por que haveria de fazer isso? — O senhor me diz que ele é alemão... e os alemães não promovem o terrorismo senão quando isso lhes proporciona no final algum dividendo.

— Há um dividendo... um dividendo de milhões no final, — disse Beale com maior gravidade, — até aí tenho certeza. Por enquanto é o que lhe posso adiantar. Posso, porém, afiançar-lhe o seguinte: até ontem van Heerden operava sem apoio do seu governo. Tal coisa já não ocorre. Existe no momento um grande sindicato a financiá-lo e o acionista principal é o governo alemão. O médico já despendeu milhões, em dinheiro emprestado e roubado. Como medida de segurança, e apenas com o fito de se apossar do dinheiro dela, raptou a herdeira de John Millinborn e procurou forçá-la a casar-se com ele.

O comissário mastigava a ponta do charuto.

— Trata-se de uma questão de Estado, sobre a qual tenho de consultar o Ministério do Interior. O senhor me disse que o Ministério do Exterior acredita em sua história, claro que também eu... — acrescentou prontamente —, embora ela pareça bastante improvável. Espere aqui.

Apanhou o chapéu e saiu.

— Vai ser coisa muito difícil condenar van Heerden. — disse o superintendente depois que o seu superior saiu. — Nos tribunais ingleses, é necessário que se prove um motivo a fim de conseguir uma condenação e nesse caso não parece haver outro motivo senão a vingança. Seria dificílimo convencer um júri de que um homem gastou milhares de libras apenas para vingar prejuízos causados ao seu país.

Beale não achou o que responder. Tinha uma idéia longínqua do puro valor financeiro do plano, mas precisava de mais provas do que tinha em mãos. O comissário voltou logo depois.

— Falei pelo telefone com o subsecretário e agiremos contra van Heerden com base nas provas oferecidas pela fábrica. Encarregá-lo-ei do assunto, McNorton; já conseguiu o mandado de busca? Ótimo.

O comissário apertou as mãos de Beale.

— Ganhará reputação em toda a Europa com isto, Sr. Beale. —, disse.

— Desejo que a Europa não tenha com o que se preocupar — disse Beale.

Voltaram então para o escritório de McNorton.

— Logo estarei com vocês — disse o superintendente. Ele apanhava o chapéu do cabide quando notou um envelope fechado sobre sua mesa.

— Da delegacia de polícia regional — disse, — quando chegou isto?

O contínuo sacudiu a cabeça.

— Não lhe sei dizer, senhor — já .a encontrei aqui quando cheguei.

— Bem — com certeza me havia passado despercebida. Talvez sejam novidades a respeito da fábrica.

O superintendente abriu a carta, inteirou-se do conteúdo e soltou uma praga.

— Lá se vão nossas provas, Beale.

— Que aconteceu? — perguntou Beale apressadamente.

— A fábrica se incendiou nas primeiras horas do dia. O fogo começou na velha adega e toda a construção ruiu.

O detetive olhou pela janela.

— Seria possível prender van Heerden mediante o testemunho do Professor Heyler?

Em resposta, McNorton entregou a Beale a carta. Eram estes os dizeres:

"Do inspetor em exercício, Paddington, ao Sup. McNorton. Fábrica da R. Playbury em O P. (Observação Policial) inteiramente destruída pelo fogo que irrompeu nos porões às 5,20 da manhã. Foi encontrado o cadáver de um homem presumivelmente chamado Heyler."

 

UM PLANO PARA DESTRUIR O MUNDO

A manhã de segunda-feira encerra uma ameaça a que poucos escapam.

Os homens dirigem-se para seus trabalhos e, relutantes e ressentidos, anseiam pelo reconforto que o intervalo para o almoço representa. Treze horas em Londres correspondem a mais ou menos dezoito horas em Chicago. Por essa razão, o significado dos montões de telegramas sobre as mesas de certos corretores não foi cabalmente compreendido senão cerca de meio-dia de terça-feira, quando novas bateladas de telegramas vieram acompanhadas de sucintas listas de preços da Câmara de Comércio de Chicago e, acima de tudo, uma enchente de noticiário impresso a respeito da sensacional alta do trigo.

— "Trigo nas nuvens" — dizia um cabeçalho. — "Cenas de frenesi na Bolsa" — proclamava outro. — "Trigo: preço de fome" — trombeteava um terceiro.

A caminho de Whitehall, Beale ouviu os pregões estridentes dos jornaleiros, onde captou a palavra "trigo". Arrebatou um exemplar das mãos de um garoto e leu.

Todo o mercado tritícola do hemisfério norte estava em caos. Os preços subiam a cifras superiores às registradas em qualquer dos apertados dias da guerra.

Entrou numa cabina telefônica, discou um número e a voz de McNorton respondeu.

— Viu os jornais? — indagou.

— Não, mas ouvi falar. Refere-se à alta do trigo?

— Sim.. o joguinho começou.

— Onde está? Espere por mim; irei até aí.

Três minutos mais tarde McNorton surgiu na esquina de Whitehall com a Scotland Yard. Bela fez parar um táxi e juntos eles se dirigiram para o hotel.

— Foram expedidas ordens de prisão contra van Heerden, Milsom e a Srta. Glaum — disse McNorton. — Ao que espero, encontraremos o ninho vazio, mas coloquei homens em todas as estações ferroviárias; acha que estamos atrasados?

— Tudo depende do sistema adotado por van Heerden — replicou Beale, — é o tipo de homem que gosta de fazer tudo com as próprias mãos. Se agiu assim, e se o apanharmos, poderemos impedir uma catástrofe mundial.

Encontraram Kitson a esperá-los no vestíbulo do hotel.

— Bem? — perguntou este. — Suponho que perderam van Heerdem de vista, mas, se o noticiário dos jornais vale alguma coisa, as cartas estão na mesa. Aqui estão todos loucos — disse, ao conduzi-los até o elevador. — Acabo de falar com o sub-secretário da Agricultura. A Europa toda está apavorada. Afinal de que se trata? — perguntou quando chegaram ao seu apartamento.

Kitson ouviu atentamente e sem interromper até que Stanford Beale terminou seu relato.

— É coisa muito séria — disse —. Devo-lhe uma satisfação: por mais interessado que estivesse na Srta. Cresswell, sou obrigado a conceder que sua sorte não era praticamente nada, diante do problema maior.

— Que significa tudo isso? — perguntou McNorton.

— A crise do trigo? Só Deus sabe. Talvez signifique pão a dois guinéus o quilo... é cedo demais para saber.

A porta foi aberta sem cerimônias e um homem entrou. McNorton foi o primeiro a reconhecer o intruso e se pôs de pé.

— Lamento interrompê-los — disse Lorde Sevington, — era o Ministro do Exterior em pessoa. — Bem, Beale, a fantástica história que me contou parece estar em vias de se concretizar.

— Este é o Sr. Kitson — disse Stanford Beale, fazendo as apresentações, e o senhor de cabelos grisalhos se curvou.

— Mandei chamá-lo, mas resolvi não esperar por você. Por isso vim até aqui. McNorton, quais são as possibilidades de apanharmos van Heerden?

— Ninguém jamais conseguiu fugir deste país, depois de identificado pela polícia — disse o superintendente.

— Se houvéssemos seguido os conselhos de Beale, já teríamos o cavalheiro estrangeiro sob sete chaves — disse o Ministro do Exterior, sacudindo a cabeça. — Sabe, creio eu, que o Senhor Beale vem mantendo contato com o Ministério do Exterior há algum tempo? — acrescentou, dirigindo-se a Kitson.

— Não o sabia — admitiu o advogado.

— Pensávamos que se tratasse de uma dessas histórias brilhantes tão a gosto dos repórteres americanos, — disse sorrindo o ministro.

— Não chego a perceber o aspecto comercial da coisa — disse Kitson. — Como é que van Heerden irá lucrar, destruindo as colheitas do mundo?

— Não irá lucrar, porque as colheitas não serão destruídas — disse o ministro. As colheitas da Rússia meridional estão intatas; o mesmo se dá com as alemãs — estão, porém, praticamente hipotecadas ao governo alemão.

— Ao governo?

— Esta manhã o governo alemão fez duas proclamações. A primeira, requisitando todas as colheitas de pé e apropriando-se de todas as opções para a venda do trigo. Estão sendo construídos enormes silos em toda a Alemanha...

— Santo Deus! — gritou Kitson, fixando o olhar em Stanford Beale. — Terá sido essa a razão pela qual se apossaram dos hangares?

— É razão muito válida — disse Beale, — armazenagem é tudo numa crise como esta. Qual foi a segunda proclamação, Excelência?

— A proibição da exportação de cereais — respondeu Lorde Sevington, — a Alemanha viverá sob racionamento durante um ano; o pão será fornecido apenas pelo governo e distribuído gratuitamente à população; dessa forma a Alemanha ficará com excedentes para nos vender.

— E quais serão os preços?

— Os que ela desejar. Se o esquema de van Heerden der certo, se as colheitas de todo o mundo forem destruídas, menos as que estiverem em mãos alemãs, que preço teremos que pagar? Até o último tostão que tomamos à Alemanha; todos os seus gastos com a guerra terão de lhe ser devolvidos até o derradeiro níquel, em troca de trigo.

— Impossível!

— Por que impossível? O preço das raridades não tem limites. O que é mais raro do que o ouro é mais caro do que o ouro. Vocês aqui presentes são as únicas pessoas no mundo que conhecem o segredo da Alfôrra Verde, e lhes posso falar livremente. Digo-lhes que precisamos comprar da Alemanha ou declarar-lhe guerra, e a última alternativa é impossível; ainda que possível não nos daria qualquer certeza de alívio. Teremos de pagar; Inglaterra, França, Estados Unidos, Itália, todos teremos de pagar. Pagaremos em ouro e talvez sejamos obrigados a fazê-lo em belonaves e materiais. Permitimos que nossos estoques de trigo diminuíssem e temos hoje em dia, na Inglaterra, pouco mais do que o suficiente para suprir as necessidades de um mês. Todos os países produtores do mundo cessarão de imediato suas exportações e também eles, com suas safras próximas do fim, estarão chegando ao final dos seus estoques. Diga-me agora, Sr. Beale, em sua opinião será possível salvar as colheitas, adotando-se medidas locais?

Beale sacudiu a cabeça.

— Duvido — disse; — isso implicaria na mobilização de milhões de homens, no isolamento de todos os trigais — e, ainda assim, duvido de que tal proteção fosse eficaz. A contaminação dos campos se poderia fazer através de centenas de métodos diferentes. Resta-nos apenas prender van Heerden e esmagar o plano no nascedouro.

O chefe do Ministério do Exterior percorria o quarto de ponta a ponta, as mãos metidas nos bolsos.

— Teríamos de nos agüentar durante doze meses. Seríamos , capazes disso?

— Teríamos de fazer mais do que isso, Excelência — disse Beale calmamente.

Lorde Sevington estacou e olhou para ele.

— Mais do que isso? Que quer dizer?

— Possivelmente um mundo sem trigo durante toda uma geração — disse Beale. — Consultei as maiores autoridades e todas concordaram em que o solo permanecerá contaminado por dez anos.

Os quatro homens se entreolharam desalentados.

— Ora — disse Lorde Sevington aterrorizado, — toda a estrutura social e industrial do mundo seria reduzida a cinzas. Os Estados Unidos ficariam arruinados por um século, haveria mortes aos milhões. Seria o próprio fim da civilização!

Beale correu os olhos pelo grupo.

Sevington, o rosto velho e endurecido todo vincado, era uma esfinge de pedra cuja única exteriorização emotiva era um tufo de cabelos arrepiados.

Kitson, avelhantado e de feições quase tão duras como o outro, embora fosse o mais humano dos dois, mantinha os lábios cerrados, os olhos fixos no chão, como que a estudar os desenhos geométricos do assoalho, para uso futuro.

McNorton, enorme, rubicundo e sem expressão. Da rua subiam o estrondejar do tráfego londrino, o murmúrio abafado de incontáveis vozes e a grita estridente dos jornaleiros.

Homens e mulheres compravam jornais e não viam nos cabeçalhos senão sensacionalismo.

No dia seguinte, talvez lessem um pouco mais e se sentissem um tanto perturbados, mas, por ora, seu interesse era apenas superficial.

— É inacreditável! — disse Kitson.

Sua voz pareceu arrancar o Ministro do Exterior às suas meditações e este disse:

— Beale, você tem poderes ilimitados para agir. — Sr. McNorton, volte para a Scotland Yard e peça ao Comissário Chefe que compareça aos escritórios do Selo Privado. Beale se manterá em contato permanente comigo.

Saiu, sem qualquer despedida formal, seguido pelo Superintendente McNorton.

— Eis aí um homem bastante abalado — comentou Kitson finòriamente. — O governo poderá cair de um momento para outro. Que vai fazer?

— Prender van Heerden — disse o outro.

— É o grande trabalho de sua vida — disse Kitson calmamente e Beale verificou, em menos de um quarto de hora, que o advogado não exagerava.

Van Heerden havia desaparecido com dramática rapidez. Detetives que lhe varejaram o apartamento descobriram que seus pertences tinham sido evacuados às primeiras horas da manhã. Ele havia saído com duas malas (que foram posteriormente encontradas no vestiário de uma estação ferroviária de Londres) e um companheiro, identificado como Milsom. Se o carro tomara rumo norte, sul, leste ou oeste ninguém sabia.

Nas primeiras edições dos vespertinos, ao lado do relato das cenas de pânico, aparecia a notícia:

"O Ministério da Aeronáutica anuncia a suspensão da Ordem 63 do Regulamento de Vôos Transoceânicos. Nenhum ,avião poderá cruzar a fronteira aérea inglesa, de dia ou de noite, sem pousar primeiramente num campo de controle. As patrulhas aéreas estão autorizadas a obrigar a descer qualquer aparelho que se recuse a obedecer ao sinal de pousar. Tal sinal está sendo agora exibido em todos os campos de aviação da costa."

Todas as estações ferroviárias da Inglaterra, todos os portos de embarque foram postos sob vigilância policial. Milhares de cópias de um excelente instantâneo de van Heerden, tirado por um dos ajudantes de Beale, foram distribuídas aos centros distritais. As duas da tarde Hilda Glaum foi detida e levada para a Rua Bow. Ela não se mostrou surpresa nem ressentida e recusou-se a fornecer qualquer informação acerca do paradeiro de van Heerden.

Por toda a tarde houve a onda habitual de prisões falsas e detenções de pessoas totalmente inocentes; às cinco horas se anunciou que todas as comunicações telegráficas com o Continente e com o Hemisfério Ocidental estavam suspensas até segunda ordem.

Beale retornou de Barking, para onde fora a fim de se entrevistar com um colérico comerciante que tinha alguma semelhança fisionômica com van Heerden e havia sido preso por isso. Descobriu então que uma espécie de Conselho de Guerra havia sido instaurado nos aposentos de Kitson.

McNorton e dois de seus assistentes estavam presentes. Lá estavam um Subsecretário do Ministério do Exterior, um grande cientista cujos préstimos haviam sido solicitados, e um homem que reconheceu como membro de um comitê da Bolsa de Cereais. Respondeu com um sacudir de cabeça ao olhar inquiridor de McNorton e estava prestes a tomar seu lugar à mesa, quando Kitson, que se erguera à sua chegada, fez-lhe sinal que fosse até a janela.

— Poderemos dispensá-lo por alguns instantes, Beale — disse ele, baixando a voz. — Há alguém aí — mostrou com a cabeça a porta dando para o outro quarto da suite — que precisa de uma explicação, e estará tão ocupado nos próximos dias que seria melhor aproveitar esta oportunidade.

— A Srta. Cresswell! — disse Beale desesperado. O velho meneou lentamente a cabeça.

— Que sabe ela?

— Isso compete a você descobrir — disse Kitson amà-velmente, e o empurrou para a porta.

Com o coração aos saltos, ele girou a maçaneta e se dirigiu cheio de culpa ao encontro daquela que perante a lei era sua esposa.

 

A VINDA DO DR. MILSOM

Ela ergueu-se para cumprimentá-lo e ele ficou magnetizado, agarrado ainda à maçaneta da porta. Parecia que ela se revestia agora de novas qualidades, de uma graça nova e etérea. À simples idéia da posse, formal apenas que fosse, daquela jovem sorridente adiantando-se para saudá-lo, seu coração bateu com tamanha força que ele receou ter sido ouvido. Ela estava pálida e tinha sombras negras sob os olhos, mas a mão que lhe estendeu em cumprimento era firme, quente e palpitante de vida.

— Tenho tanto o que lhe agradecer, Sr. Beale — disse. — O Sr. Kitson contou-me que lhe devo o meu salvamento.

— Contou mesmo? — perguntou Beale sem jeito.

— Estou tentando ser sensata e quero que me ajude, pois é o homem mais sensato que conheço.

Ela voltou para a cadeira espreguiçadeira em que estivera e eles apontaram com o dedo um para o outro.

— Foi horrivelmente melodramático, não foi? Mas, acho que a vida de um detetive é cheia de melodrama.

— Não é cheia de outra coisa — disse ele. — Se ficar bem quietinha, far-lhe-ei um resumo dos meus casos mais interessantes — disse, num esforço patético por mostrar-se frívolo, e a moça percebeu-lhe alguma insinceridade.

— Teve um dia exaustivo — disse ela, toda compreensão. — Prendeu o Dr. van Heerden?

Ele abanou a cabeça.

— Antes que ele seja preso — denotava certa hesitação, — desejaria ver esclarecido um assunto. Perguntei ao Sr. Kitson, mas ele procurou fugir à resposta e disse que o senhor me contaria tudo.

— De que se trata? — perguntou Beale com firmeza.

Ela levantou-se e caminhou até sua bolsa, que estava sobre um aparador; abriu-a e retirou dela alguma coisa que empalmou a seguir. Voltou com a mão aberta; Beale se deu conta do objeto rebrilhante que lá estava e ficou sem fala.

— Vê isto? — perguntou ela.

Ele meneou a cabeça, sem ter o que dizer, pois "isto" era simplesmente uma tênue aliança de ouro.

— Um anel de casamento — disse ela. — Descobri-o no meu dedo quando voltei a mim.

— Oh! — fez Beale num tom de voz neutro.

— Será que me casei? — indagou ela.

Ele fez duas ou três tentativas frustradas de falar a acabou assentindo com a cabeça.

— E o que receava — disse ela em voz baixa, — não me recordo de nada. A última coisa de que me lembro e o Dr. van Heerden sentado ao meu lado e me colocando algo no braço. Doeu um pouco e eu lhe falei. Creio que a seu respeito. — O rosto de Oliva corou um pouco — ou, talvez, ele falasse ia seu respeito — acrescentou apressadamente; — sei que o senhor entrou na conversa. E tudo quanto lembro.

— Só isso? — perguntou Beale desanimado.

— Só isso — respondeu Oliva.

— Tente, tente; tente lembrar-se do que aconteceu __ encorajou ele.

Ele percebeu estar sendo deploravelmente covarde e estar procurando transferir para ela a responsabilidade da revelação. Ela sorriu a abanou a cabeça.

— Sinto muito, mas não consigo lembrar-me de mais nada. O senhor irá me contar agora.

Beale percebeu que estava na ponta da cadeira e mais nervoso do que nunca.

— Pois bem, vou lhe contar — disse com ,a voz cava, — claro que lhe vou contar.

Ela olhou para ele com bondade.

— Bem, — começou Beale — eu sabia que van Heerden queria casar com a senhora. Sabia-o desde o princípio. Queria casar em virtude do seu dinheiro. Quero dizer — corrigiu-se prontamente — que o dinheiro era para ele a coisa de maior atração.

— Não me sinto nada lisonjeada — sorriu ela.

— Sei que estou sendo rude, mas irá me perdoar, quando tiver ouvido o que lhe vou dizer. — disse ele asperamente. — Van Heerden queria casar com a senhora...

— E casou — atalhou ela — e vou desfazer esse casamento o mais cedo possível.

— Sim; desejo que seja assim — disse Stanford Beale. — Creio ser um tanto difícil, mas farei o que me fôr possível. Acredite-me, Srta. Cresswell.

— Já não sou a Srta. Cresswell —, disse ela com uma careta. — Mas, por favor, não me chame pelo meu Verdadeiro nome.

— Não o farei — disse ele com fervor.

— O senhor sabia que ele queria casar comigo por causa do meu dinheiro e não em razão da minha beleza ou das minhas qualidades — disse ela, — de modo que foi até Deans Folly no meu encalço.

— Sim, sim; mas é preciso que explique. Sei que lhe parecerá horrível e poderá formar o pior dos juízos a meu respeito, mas é preciso que lhe conte.

Beale percebeu que ela começava a ficar alarmada e principiou sua história.

— Achei que se a senhora já estivesse casada, van Heerden nada mais faria contra si.

— Mas eu não estava casada — disse ela intrigada.

— Espere; espere, por favor — implorou ele. — Tenha em mente que a mim bastava que van Heerden a quisesse por causa do seu dinheiro e que se fosse já casada... ou, pelo menos, van Heerden julgasse que fosse, eu poderia pô-la a salvo de perigos cuja extensão desconheço. Havia um homem chamado Homo, um criminoso. Tinha sido pastor e tinha todas as características da profissão. Assim sendo, tirei uma licença especial em meu próprio nome.

— O senhor — disse ela ofegante. — Um licença de casamento? Para se casar comigo?

Ele fez um gesto de assentimento.

— Em minha busca, levei Homo comigo. Sabia dispor de uma margem de tempo muito pequena e pensei que se Homo realizasse a cerimônia e me fosse possível enfrentar van Heerden com os papéis já assinados...

Ela se pôs de pé com uma gargalhada.

— Ah, compreendo — disse. — Que ótimo! E o senhor levou essa cerimônia fantasma até o fim! Onde estava eu?

— Estava à janela — respondeu ele, infeliz.

— Mas, que coisa maravilhosa! O senhor do lado de fora e o padre de nome engraçado... mas é simplesmente delicioso! Então não cheguei a me casar e este anel é seu. Ela ergueu o anel com uma luz de zombaria nos olhos e o ofereceu a ele. Beale, porém, sacudiu a cabeça.

— A senhora se casou — disse ele com voz quase inaudível.,

— Casei-me? Como?

— Homo não era um impostor! Era clérigo de verdade! E o casamento foi legal!

Eles se entreolharam sem dizer nada. De parte da moça havia apenas espanto; Stanford Beale, porém, via nela horror, desprezo, consternação e ira irreversível e esperava, assim como o criminoso que aguarda ser sentenciado, pelas palavras seguintes de Oliva.

— De modo que estou mesmo casada com você —, disse ela admirada.

— Jamais me perdoará, eu sei —. Ele já não olhava para ela. — Minha única desculpa é que fiz o que fiz porque... queria salvá-la. Poderia ter invadido a casa armado e atirado em todo mundo. Poderia ter esperado o momento azado para penetrar na casa, mas isso implicaria em demora. Não adotei as atitudes normais nem encarei as coisas de modo normal — não me foi possível, tratando-se de você.

Ele não percebeu a ternura momentânea que perpassou pelos olhos dela, pois não a estava encarando, e prosseguiu:

— Eis aí toda a pavorosa história. O Sr. Kitson irá orientá-la quanto às providências no sentido de se libertar de mim. Foi um erro dos mais lamentáveis, e mais trágico ainda por ter sido você a vítima; logo você, dentre todas as pessoas do mundo!

Ela havia largado a aliança, mas tornou a pegá-la e se pós a examiná-la com curiosidade.

— É bastante... estranho, não é mesmo? — perguntou.

— Ah, sim! Muito.

Ele julgou ouvir um soluço e ergueu os olhos. Ela ria, a princípio silenciosamente, depois, quando o cômico da situação se fez sentir em sua plenitude, riu às gargalhadas, a ponto de contagiá-lo também.

— É engraçado —, disse por fim, enxugando os olhos — a coisa tem seu lado cômico. Pobre Sr. Beale!

— Mereço certa compaixão —- comentou ele sem nenhum tato.

— Por quê? — indagou ela depressa. — Terá cometido bigamia?

— Bigamia declarada, não — respondeu ele com um sorriso.

— Bem, que providências vai tomar? O negócio é muito sério, quando se pensa nele... seriamente. Então sou a Sra. Stanford Beale — pobre Sr. Beale e pobre futura Sra. Beale. Desejo realmente — disse ela — e desta vez falava deveras a sério, não ter atrapalhado nenhum de seus planos. — Ela sentou-se de súbito, fixando nele o olhar. — Seria horrível —, prosseguiu com voz abafada, — eu jamais me perdoaria. Existe — perdoe-me a pergunta, — existe alguém com quem pretenda casar-se?

— Não pratiquei a bigamia nem tenho intenções de praticá-la — disse Beale que pouco a pouco retomava pé na situação. — Se me perguntar se estou noivo de alguém —, disse descuidadamente, — a resposta é negativa. Por mim, não haverá corações partidos. Não tenho desejo de pôr à prova o seu coração ferido.

— Não seja leviano — interrompeu ela com severidade. — A situação é de fato terrível, Sr. Beale, e mal tenho coragem de pensar nela.

— Compreendo a gravidade do caso —, disse ele com súbita ousadia — e, como lhe disse, farei tudo para reparar o erro.

— O Sr. Kitson sabe do que se passa? — perguntou ela.

Beale concordou com um gesto.

— Que terá dito ele? Certamente lhe terá dado algum conselho.

— Disse-me... — principiou Stanford Beale e corou. A moça não deu seqüência à conversa.

— Bem, falemos no assunto como seres racionais — disse alegremente. — Já superei minhas primeiras tendências a desmaiar.

— Ainda não lhe posso dizer o que devemos fazer. Não _ quero discutir os detalhes desagradáveis de um divórcio — disse

ele — e talvez me dê alguns dias, antes de nos decidirmos por qualquer linha de conduta. Van Heerden permanece em liberdade e enquanto não for trancafiado e afastado todo esse imenso perigo que paira sobre a Humanidade, serei incapaz de raciocinar com clareza.

— O Sr. Kitson me falou a respeito de van Heerden — disse ela calmamente. — Não será assunto da alçada da polícia britânica? Conforme sei muito bem — ela teve um ligeiro arrepio — van Heerden não sabe o que é medo nem escrúpulos.

— Os escrúpulos não chegam a me roubar o sono — disse ele — e creio que não vou desistir de van Heerden. Encaro-o como um assunto todo meu.

— Não será — ela hesitou, — não será demasiado perigoso?

— Para mim? — ele riu. — Não, não creio. E mesmo que fosse perigosíssimo na acepção da palavra, bem, isso lhe pouparia uma série de aborrecimentos.

— Acho que está sendo macabro — disse ela.

— Perdoe-me — apressou-se em dizer ele, — estava à cata de um pouco de piedade e fui vulgar e teatral. Não, não creio que haja muito perigo. Van Heerden procurará não ser visto e, ademais, está interessado em algo muito mais importante do que a minha jovem pessoa.

— Milsom está com ele?

— Milsom representa o elo fraco na cadeia de van Heerden

— disse Beale. — Por alguma razão, van Heerden não me parece um grande chefe de equipe e o pouco que conheço de Milsom leva-me a crer não seja ele homem para submeter-se cegamente às imposições do médico. Além disso, sempre é mais fácil apanhar dois homens do que um só — rematou com um riso.

Ela lhe estendeu a mão.

— É um negócio emaranhado, não? — disse. — Refiro-me a nós dois. Não permita que isto lhe aumente as preocupações. Esqueça-se de nossas infelizes relações até que possamos dar um jeito nas coisas.

Ele apertou-lhe a mão em silêncio.

— Vou agora ouvir todas as sugestões que vocês fizerem

— disse ela. — Por favor, não se alarme. Passei a tarde toda falando, relatando minhas tristes aventuras, tal como as recordo, a pessoas da mais alta importância. Ministros, comissários de polícia, médicos etc.

— Um momento — disse ele.

Sacou do bolso um livro bastante volumoso.

— Estava cismada com isso — disse ela rindo. — Não me terá comprado alguma coisa para ler?

Ele meneou a cabeça e ergueu o volume, de modo que ela pudesse ver-lhe o título.

— Precisa-se de um amigo, por S. Beale. Não sabia que era escritor! — comentou ela surpresa.

— Sou literato e pior do que isso até — disse ele com ar de troça. — Vejo que tem aqui uma estante de livros. Se me permitir, colocarei este entre os demais.

— Mas, não posso vê-lo? Ele sacudiu a cabeça.

— Quero confessar-lhe apenas que tudo o que disse acerca de van Heerden é verdadeiro. Trata-se de um homem extremamente perigoso. Talvez volte a ser uma ameaça para você. Não quero que toque nesse livro a não ser que se veja em real perigo. Promete-me?

Ela arregalou os olhos.

— Mas, Beale...

— Promete-me? — repetiu ele.

— Claro que lhe prometo, mas não compreendo.

— Compreenderá mais tarde — disse ele.

Beale abriu-lhe a porta e ela se adiantou a ele. Kitson veio-lhes ao encontro.

— Penso que não há novidades? — perguntou Stanford.

— Nenhuma — respondeu o outro — a não ser políticas. Houve uma troca de notas entre a Tríplice Aliança e o Governo Alemão. Todas as comunicações com a Ucrânia estão interrompidas e três navios foram afundados no Bósforo — com tal habilidade que nossos navios celeiros no Mar Negro ficaram isolados.

— Isso é mau —- disse Beale.

Depois dirigiu-se para a mesa. Estava forrada de mapas, cartas e tabelas impressas. McNorton levantou-se e veio fazer companhia a eles.

— Acabo de receber uma mensagem telefônica da Scotland Yard — disse ele. Carter, o meu assistente, afirma estar certo de que van Heerden não saiu de Londres.

— A moça falou?

— Glaum? Não, é muda como um peixe. Duvido que falasse, mesmo sob grande pressão, e não iremos apelar para isso.

— E o que me consta — disse Beale secamente. Bateram à porta.

— Alguém abra —, disse Kitson. — Está fechada à chave.

A pessoa mais próxima era o representante do comitê da Bolsa de Cereais e este abriu a porta deixando entrar um garçom.

— Há um homem aqui —, disse o empregado. Antes porém que pudesse prosseguir foi empurrado de lado e uma figura empoeirada e desgrenhada entrou na sala, relanceando o olhar em torno de si.

— Meu nome é Milsom —, disse o homem. — Vim para dar informações as mais valiosas!

 

O CÓDIGO PERDIDO

— Sou Milsom —, tornou a repetir o homem à soleira da porta.

Suas roupas estavam encardidas e cheias de poeira, o colarinho sem goma e enxovalhado. Havia em sua face enorme tufos vermelho-esbranquiçados de uma barba de dois dias e ele parecia debilitado pela falta de sono. Caminhou vacilante até a mesa e desabou numa cadeira.

— Onde está van Heerden? — perguntou Beale, mas Milsom abanou a cabeça.

— Deixei-o há duas horas, depois de uma conversa longa e sem proveito acerca de patriotismo — disse ele, e riu. — Na ocasião, voltava para sua casa de Southwark.

— Então está em Londres — aqui em Londres! Milsom concordou.

— Não irão encontrá-lo — disse bruscamente. — Já lhes disse que o deixei após uma certa conversa acerca dos meus pruridos patrióticos... olhem!

Ele ergueu a mão direita, que até então estivera escondida; Oliva cerrou os olhos, terrivelmente enojada.

— Indicador direito e algumas falanges arrancadas a tiro — disse Milsom filosoficamente. — Era o meu dedo bom, mas ele atirou primeiro. Quero um drinque.

Trouxeram-lhe uma garrafa de vinho, cujo conteúdo ele sorveu em dois longos goles, sem parar para respirar.

— Fecharam-lhe as saídas — disse Milsom —, bloquearam os cabos telegráficos, puseram patrulhas nas estradas, mas ele conseguirá mandar sua mensagem se...

— Então não telegrafou ainda? — perguntou Beale com ansiedade. — Milsom, para você isso significa a liberdade... liberdade e conforto. Conte-nos a verdade, homem, ajude-nos a deter esse horror que van Heerden pretende lançar sobre o mundo e não haverá recompensa suficiente para você.

Os olhos de Milsom se estreitaram.

— Não foi a esperança de ser recompensado ou perdoado que me levou a romper com van Heerden — disse com voz arrastada. — Ririam, se lhes dissesse. Foi... foi a consciência de que este país seria arrasado; de que a minha gente ficaria sob o tacão da fera... sentimentalismo besta! Não acreditam, hem?

— Eu acredito.

Era Oliva quem falava e, pela primeira vez, Milsom pareceu dar-se conta de sua presença, pois seus olhos se abriram mais.

— Você... oh, você acredita, não é? — e meneou a cabeça.

— Mas, o que espera van Heerden? — indagou McNorton.

O homenzarrão, impotente, rolou a cabeça de um lado para outro e o seu riso esganiçado foi um duro desafio para os nervos tensos daqueles homens.

— Eis aí a loucura fatal! Deve ser uma característica nacional, creio eu. Ficou patenteada na guerra e uma porção de outras vezes: um plano maravilhoso reduzido a nada por um ato de exagerada sabedoria do super-homem.

Uma esperança feroz nasceu no coração de Beale.

— Então a coisa falhou! A Alfôrra não correspondeu? Mas Milsom sacudiu pesadamente a cabeça.

— A Alfôrra é exatamente como ele pensa e também... — acrescentou — Não, não é isso. Foi no trabalho de organização que se verificou a falha. Você conhece um pouco da história. Van Heerden tem agentes espalhados por todo o mundo. Gastou quase uma centena de milhares de libras aperfeiçoando seus planos operacionais e sou obrigado a reconhecer que estes se tornaram quase perfeitos. Erros de pequena monta como o envio de homens para a África do Sul e para a Austrália, onde as colheitas se fazem seis meses mais tarde, bem podem ser relevados, porque os alemães raciocinam longitudinalmente e Norte e Sul são dois pontos cardeais com os quais jamais se preocupam.

Fez uma pausa e um sorriso lhe assomou ao rosto.

— Todo o plano está nas mãos de van Heerden. A uma palavra de ordem sua, milhares de agentes começarão a obra de destruição — mas é preciso que a palavra parta dele. Centralizou de tal forma seu esquema que, se morresse de improviso, sem que a palavra final fosse pronunciada, todo um trabalho de muitos anos ficaria reduzido a nada. Creio que suspeita de todos, inclusive do próprio governo alemão. Há quase um ano vem fazendo arranjos e traçando planos. Assistido por uma moça, sua patrícia, pôs tudo em ordem. Em cada país há um agente principal que possui uma cópia de um código simples. No momento azado, van Heerden mandará por telegrama uma palavra de ordem, significando "mãos à obra" ou "aguarde novas instruções" ou ainda "abandone provisoriamente o plano e recolha as culturas". Conheço de cor as palavras do código porque van Heerden não se cansou de martelá-las em meus ouvidos.

— Quais são as palavras cifradas?

— Chegarei lá — disse Milsom. — Van Heerden é o tipo de cientista que não confia na memória. Encontram-se tipos dessa espécie em todas as escolas — habitualmente passam seu tempo compilando notas, completas e detalhadas, e seus estudos estão sempre recheados de lembretes. No entanto, tem uma memória excelente para as coisas comuns. Por exemplo, sabe de cor o teor de suas três mensagens. É capaz de dizer de pronto os nomes e endereços de todos os seus agentes. Mas, no que se refere a informações científicas, sua mente é um livro em branco enquanto não consulta as fontes autorizadas. Parece que, tendo tomado um apontamento, seu cérebro se torna incapaz de reter a informação confiada ao papel. Esse é, como disse, um fenômeno não muito raro entre os homens da ciência.

— E ele pôs o código por escrito? — perguntou Kitson. —- Vou chegar lá. Depois do incêndio em Paddington, van

Heerden achou que era hora de bater em retirada. Ia para o Continente. Eu deveria seguir para o Canadá. — Antes que se vá — disse-me ele — dar-lhe-ei o código, — mas só poderei fazê-lo depois das dez horas.

McNorton taquigrafava algumas notas e desenhou cuidadosamente um círculo em torno da hora.

— Voltamos para o seu apartamento e tomamos café juntos. Eram cerca de cinco horas. Ele emalou umas poucas coisas e reparei que olhava com grande cuidado para o interior de uma pequena valise que trouxera de Staines na noite anterior. Agia de modo tão furtivo, ao levar a valise até a luz da janela, que imaginei estar consultando seu código e me perguntei por que só me haveria de passar às mãos às dez horas. Seja como for, sou capaz de jurar que tirou alguma coisa da mala e a guardou no bolso. Saímos do apartamento pouco depois e nos dirigimos para uma estação ferroviária, onde a valise foi deixada. Van Heerden me dera mil libras em dinheiro, caso nos separássemos e me dirigi para a casa ao sul de Londres. Desnecessário perguntar-me onde fica, pois van Heerden não está lá agora.

Ele tornou a sorver um trago de vinho.

— As onze horas, van Heerden retornou — recomeçou Milsom — e jamais vi homem mais apavorado; para encurtar a história, o código havia desaparecido!

— Desaparecido! — disse Beale gaguejante.

Havia aqui uma farsa interpolada na tragédia, a farsa mais grotesca, mais inacreditável.

— Desaparecido — disse Milsom. — Ele não chegou a dizê-lo, mas concluí das palavras desconexas que balbuciou, não estar o código irremediavelmente perdido; na realidade, tenho razões para crer que sabe onde está. Foi depois disso que van Heerden se pôs a me ofender, e ao meu país e à minha raça decadente e tudo mais. As coisas tinham estado tensas durante toda a tarde. Ã noite atingiram o clímax. Ele queria que eu o ajudasse num assalto... e os assaltos não são o meu forte.

— Que queria assaltar ele? — perguntou McNorton com interesse profissional.

— Ah! aí é que o carro pega! — foi a pergunta que fiz e ele se recusou a responder. Eu tinha de me entregar em suas mãos e haveria troca de tiros, se o guarda estivesse de serviço no prédio visado. Disse-lhe na cara... estávamos então em Wandsworth Common, que não contasse comigo e foi aí que passamos a nos agredir mutuamente.

Ele olhou para a mão mutilada.

— Pensei-a numa farmácia. Uma bandagem com iodo não é grande coisa, mas é sempre antisséptica. Van Heerden atirou para matar, não resta a menor dúvida quanto a isso. Que perfeito cavalheiro!


— Está em Londres? — perguntou McNorton. — Isso simplifica as coisas.

— Ao meu ver complica, ao invés de simplificar — disse Beale. — Londres é uma vasta cidade. Pode nos dar alguma idéia quanto à hora do assalto?

— Onze — disse Milson sem titubear, — vale dizer dentro de pouco mais de uma hora.

— Tem alguma idéia do lugar?

— Algum local na zona leste. Deveríamos nos encontrar em Aldgate.

— Não estou compreendendo — disse McNorton. — Insinua que o código esteja em mão de alguém que não se quer separar dele? E agora, que já não precisa dele, para você haverá alguma razão que o faça esperar?

— Muitas razões — replicou Milsom, e Stanford Beale concordou com um gesto. — Não era apenas para mim que o queria. Chegou praticamente a me dizer que, se não o recuperasse, ficaria impossibilitado de comunicar-se com seus homens.

— Que fará ele, em sua opinião?

— Vai procurar a ajuda de Bridgers. Bridgers é homem bastante sensível e o médico sabe exatamente onde encontrá-lo.

Ouvindo a conversa, Oliva começou a formar remotamente em seu cérebro a idéia de que poderia ajudar na solução do mistério do código perdido. Sua teoria era grandemente inviável, mas até mesmo uma possibilidade tão tênue não poderia ser deixada de lado. Ela se afastou do grupo e retornou ao seu quarto. Para acomodar sua pupila, James Kitson havia tomado a suite contígua à sua e contratara numa agência uma criada para atendê-la em suas necessidades pessoais. Ela atravessou a sala de estar em demanda do próprio dormitório e encontrou a criada a preparar o quarto para aquela noite.

— Minnie — disse, lançando um olhar rápido pelo apartamento — onde guardou as roupas que despi ao chegar?

— Aqui, senhorita.

A rapariga abriu o guarda-roupa e Oliva procedeu a uma rápida busca.

— Encontrou alguma coisa? Um cartãozinho? A rapariga sorriu.

— Oh, sim, senhorita. Cá está.

Tinha na mão um pequenino cartão quadrado.

— Achei-o em sua meia, senhorita.

— Isso mesmo — disse Oliva friamente, — foi ali que o guardei. Sempre guardo minhas cautelas nas meias.

Minnie fungou, admirada.

— Suponho que jamais terá visto coisa igual — disse Oliva sorrindo, — e que nem saiba de que se trata.

— A criada de quarto fez-se muito vermelha. Infelizmente, já lhe havia passado pelas mãos um punhado daqueles certificados de penúria.

Oliva regressou à sala de estar e debateu consigo a questão. Um senso de timidez a detinha, um receio de tornar-se ridícula. Não fosse assim, teria corrido para a sala, exposto suas disparatadas teorias e deixado os detalhes a cargo daqueles homens argutos. Ela abriu a porta e penetrou na sala, a cautela espremida entre os dedos.

Se haviam dado por sua falta, ninguém a viu voltar. Os homens estavam agrupados em torno da mesa, bombardeando com perguntas o homenzarrão barbado que de forma dramática se havia juntado à conferência e que, charuto na boca, respondia a tudo de maneira pronta e fluente.

No entanto, face aos procedimentos da investigação criminal, a resolução de Oliva, bem como suas teorias, encolheram-se quase a ponto de desaparecer. Ela fechou bem a cautela na mão e procurou um bolso onde escondê-la, mas a costureira se esquecera de proporcionar-lhe aquela agradável facilidade.

Assim sendo, recuou e se encaminhou a passos macios de volta ao quarto, rezando que não tivesse sido notada. Cerrou suavemente a porta atrás de si e deparou então com um homem em traje de noite, postado bem no meio da peça, um sobretudo claro atirado sobre o braço direito, o chapéu de seda inclinado para trás, a própria imagem da tranqüilidade e da confiança.

— Não se mexa — disse van Heerden — e não grite. Por gentileza, entregue-me essa cautela que tem na mão.

Ela obedeceu em silêncio e, ao passar o pequeno cartão até o outro lado da mesa interposta entre eles, seus olhos caíram sobre a estante de livros e, de modo particular, sobre um determinado volume em que estava inscrito o nome de Stanford Beale.

 

O RELÓGIO

— Muito agradecido — disse van Heerden, metendo o cartão no bolso, — agora não tem nenhuma utilidade para mim, pois não posso esperar. Penso que não mencionou o fato de estar de posse desta cautela.

— Não sei por que pensa assim — disse ela.

— Baixe a voz! — sussurrou ele ameaçador. — Penso assim porque Beale sabe não estar a cautela comigo no momento. Se ao menos soubesse, se chegasse a suspeitar sequer da sua existência, receio que o meu plano iria por água abaixo. Como estão as coisas, não há perigo de fracasso. Agora — acrescentou com um sorriso — o tempo urge e você tem de aprontar-se o mais ligeiro possível. Poupar-lhe-ei o trabalho de perguntar, dizendo-lhe que vou levá-la comigo. Não me posso dar ao luxo de deixá-la aqui. Apanhe o casaco.

Com um sacudir de ombros ela se encaminhou para o quarto de dormir e ele a acompanhou.

— Vamos longe? — perguntou.

Não havia qualquer tremor em sua voz e ela se sentia notavelmente senhora de si.

— Isso você irá descobrir — disse ele.

— Não pergunto por mera curiosidade, quero saber se devo levar uma valise.

— Talvez seja melhor — disse ele.

Ela trouxe a pequena valise de volta para a sala de estar.

— Não se opõe a que leve algo para ler? — indagou com desprezo. — Receio que a sua companhia não seja das mais divertidas, Dr. van Heerden.

— Garota excelente —, disse van Heerden em tom alegre. — Leve o que quiser.

Ela apanhou um livro da estante e quase se traiu ao notar--lhe o peso.

— O senhor não é muito original em seus métodos —, disse, — é a segunda vez que me rapta.

— As cadeias inglesas, como lhe poderá contar seu recente amigo Milsom, estão abarrotadas de criminosos que se desviaram dos caminhos rotineiros — disse van Heerden. — Saia do corredor e vire à direita. Estarei logo atrás de você. Encontrará, depois de alguns passos, uma passagem estreita que leva à escada de serviço. Desça por ela. Sem dúvida, acredita em mim quando lhe afirmo que se gritar por socorro ou esboçar qualquer tentativa de fazê-lo, mato-a?

Ela não respondeu. Aquela certeza e aquele temor, inerentes à juventude — pois a morte violenta é uma perspectiva horrível para os jovens e os sãos — fizeram-na obedecer.

Desceram pelas escadas de pedra, atravessaram um vestíbulo de teto baixo que se achava na maior desordem e ganharam a rua, sem incidentes e sem despertar nenhuma atenção.

O carro de van Heerden aguardava na esquina e ela julgou reconhecer Bridgers ao volante.

— Uma vez mais viajamos juntos — disse van Heerden jocosamente — e o desfecho desta aventura para você depende apenas de sua lealdade... por que está abrindo a bolsa? — perguntou, tentando enxergar no escuro.

— Procuro um lenço —, disse Oliva — acho que vou chorar!

Ele se acomodou num canto do assento com um suspiro de resignação, dando-se por satisfeito com o esclarecimento. Fazer sarcasmo com van Heerden era pura perda de tempo.

— Bem, cavalheiros —, disse Milsom, — creio que não lhes posso dizer mais nada. Que vão fazer comigo?

— Assumo a responsabilidade de não cumprir o mandado — disse McNorton. — Irá com um dos meus homens até sua casa esta noite e permanecerá sob vigilância policial.

— Isso para mim não é novidade — disse Milsom, — desejo • apenas dar-lhe um conselho.

— Que conselho? — perguntou Beale.

— Não subestimem van Heerden. Não imaginam o quanto é ousado. Não há nenhum entre nós cujo seguro de vida não encareceria em noventa por cento, caso van Heerden resolvesse liquidá-lo. Não pretendo poder ajudá-los a esclarecer sua estranha conduta de hoje. Posse apenas delinear o sentido psicológico de suas atitudes, mas como e onde escondeu o código e que circunstâncias impedem sua recuperação, isso somente van Heerden sabe.

Ele acenou para o pequeno grupo e deixou a sala acompanhado por McNorton.

— Eis aí um sujeito malvado —, disse Kitson — a menos que eu seja um péssimo juiz de caracteres. É um antigo presidiário, não é?

Beale fez que sim.

— Assassinato — disse laconicamente. Olhou para o relógio e voltou as vistas para Kitson.

— Suponho que a Srta. Cresswell se tenha aborrecido e ido dormir —, disse.

— Verificarei isso já — disse Kitson, — você falou com ela? Beale meneou a cabeça e piscou os olhos.

— Progrediu alguma coisa?

— Dei-lhe a triste notícia, se é isto o que pretende saber.

— Disse-lhe que está casada com você. Credo! Que falou ela?

— Bem; não desmaiou. Por infelicidade tem um grande senso de humor e não chegou sequer a vislumbrar o aspecto trágico da coisa.

— Isso é mau — disse Kitson, abanando a cabeça. — Senso de humor é coisa que não tem lugar num processo de divórcio.

— Não estou tão certo assim — disse Beale com toda a calma. Kitson engoliu algo que estava por dizer. — Espere —, ordenou. — Vou verificar se a Srta. CresswelJ — e frisou bem a palavra — foi dormir.

Atravessou a porta da sala de estar de Oliva e desapareceu durante alguns minutos. Ao voltar, Beale notou-lhe o semblante perturbado e correu ao seu encontro.

— Ela não está aqui — disse Kitson.

— Não está no quarto?

— Nem na sala de estar nem no dormitório. Mandei chamar a criada. Ah, ei-la aqui.

A empertigada Minnie surgiu na soleira da porta.

— Onde está sua patroa?

— Pensei que estivesse com o senhor.

— Que é isto? — disse Beale, agachando-se para apanhar um luva branca de pelica. — Ela com certeza não terá saído.

— Não é luva de mulher, senhor — disse a rapariga — é luva de homem.

Era uma luva nova; virando-a pelo avesso, Beale notou impressas na parte interna as palavras: Glebler, Roterdã.

— Esteve alguém aqui? — indagou.

— Que eu saiba, não. A patroa disse que não precisava mais de mim esta noite. — A rapariga hesitou. Parecia uma verdadeira traição à patroa revelar um assunto tão sórdido como a busca ao documento de penhor.

Beale se deu conta da hesitação.

— Precisa contar-me tudo e depressa — disse ele.

— Bem, senhor —, disse a criada — a patroa veio procurar alguma coisa que trazia consigo ao chegar.

— Lembro-me! — gritou Kitson. — Ela me havia dito que trouxera da casa de van Heerden algo muito curioso e me pediu para adivinhar o que era. Fomos interrompidos em nossa conversa. De que se tratava?

— Bem, senhor — disse a criada resignada, — não lhe irei pregar nenhuma mentira. Era uma cautela.

— Uma cautela! — fizeram Kitson e Beale em uníssono.

— Tem certeza? — perguntou este último.

— Absoluta, senhor.

— Mas ela não poderia ter trazido uma cautela da casa de van Heerden. A que se referia essa cautela?

— Como disse, senhor?

— Que estava escrito no cartão? — perguntou Kitson impaciente. — Qual era o artigo empenhado?

A rapariga hesitou uma vez mais. Trair a patroa era desagradável. Trair-se a si mesma, como indubitavelmente o faria se confessasse haver lido o documento com todo o cuidado, era coisa em que não podia sequer pensar.

— Você sabe o que estava escrito — disse Beale, usando de todo o tato que lhe foi possível. — Não nos faça esperar. Que era?

— Um relógio, senhor.

— Por quanto estava empenhado?

— Dez xelins, senhor.

— Lembra-se do nome?

— Um nome estrangeiro, senhor — van Horden.

— Van Heerden —, corrigiu Beale prontamente — e qual era a casa de penhor?

— Bem senhor —, disse a moça, lutando ainda por preservar sua reputação. — Olhei apenas de relance para o cartão e vi apenas...

— Sim, você leu — interrompeu Beale incisivamente, — leu até a última linha. Qual era a casa?

— Rosenblaum & Irmão, de Commercial Road — tartamudeou a criada.

— Havia algum número? —- Não vi o número.

— Encontrará na lista telefônica — disse Kitson. — Que significa tudo isso?

Beale, porém, já se achava a caminho da sala de estar de Kitson e lá chegou a tempo de encontrar-se com McNorton que ia ser rendido por um de seus auxiliares.

— Achei! — gritou Beale.

—- Achou o quê? — perguntou McNorton.

— O código!

— Onde? Como? — quis saber McNorton.

— A menos que esteja totalmente enganado, o código ou está gravado na caixa de um relógio ou está escrito num pedaço de papel guardado dentro da caixa desse relógio. Não está vendo claro agora? Van Heerden não confiava na própria memória nem nos seus subalternos. Escreveu seu código, conforme teremos ocasião de verificar, num pedaço de papel, meteu esse papel na caixa de um relógio de caçador e o empenhou. Uma casa de penhores é o cofre mais seguro que há. Suponha que a polícia em busca de pistas descobrisse seus preparativos, a cautela poderia passar facilmente despercebida.

Kitson olhava para ele com pasmada indignação. Ali estava um homem que havia perdido a esposa, e o advogado acreditava que o jovem detetive a amasse como poucas mulheres eram amadas. Mas, na paixão da caçada, no surgimento de um novo problema, ele se havia deixado absorver a ponto de olvidar todas as outras coisas.

Todavia, estava sendo injusto com Beale sem o saber, pois a idéia dos novos perigos de Oliva se fazia presente em todas as especulações deste, em todas as suas rápidas deduções, em todos os seus planos fulminantes.

— A Srta. Cresswell encontrou a cautela e provavelmente a conservou a título de curiosidade. Tais coisas se guardam em pequenos envelopes, não é assim, McNorton?

O chefe de polícia assentiu.

— Então foi isso. Ela retirou o cartão e abandonou o envelope, e van Heerden só descobriu a perda quando foi procurar o documento a fim de entregar o código a Milsom. Não se lembra? Primeiramente disse que não lhe poderia entregar o código antes das dez horas, que é provavelmente quando a loja se abre.

McNorton tornou a menear a cabeça.

— Lembra-se então de que Milsom disse não estar o código irremediavelmente perdido e van Heerden saber onde se encontrava. Não tendo conseguido encontrar a cautela, decidiu-se pelo assalto à loja de penhores e tal assalto se fará esta noite.

-— Mas ele poderia ter conseguido uma duplicata da cautela — disse McNorton.

— Como? — indagou Beale prontamente.

— Dirigindo-se a um magistrado e obtendo uma declaração juramentada.

— Em seu próprio nome — disse Beale — não poderia fazer isso. Seria meter a mão em cumbuca. Não. Sua única alternativa é o assalto.

— Mas, e Oliva? — perguntou Kitson impaciente. — Quero lhe dizer, Beale, que não serei magnânimo nem estóico a ponto de deixar de pensar nela em primeiro lugar.

Beale virou-se para ele.

— Não pensa que me esqueci dela... — disse em voz baixa. — Julga que isso poderia acontecer? — Seu rosto estava tenso. — Acredito que Oliva esteja bem. Acredito que Oliva, e não qualquer um de nós aqui, irá conduzir van Heerden à Justiça.

— Ficou maluco? — perguntou Kitson atônito.

— Estou no meu mais perfeito juízo. Venha cá!

Ele agarrou o velho advogado pelo braço e o reconduziu ao quarto de Oliva.

— Olhe —, disse, apontando com o dedo.

— Que quer dizer... a estante? Beale fez um sinal afirmativo.

— Há meia hora dei um livro a Oliva — disse, — esse livro já não se encontra aqui.

— Mas, pelo amor de Deus, como poderá um livro salvá-la? — indagou Kitson exasperado.

Stanford Beale não respondeu.

— Sim, sim; ela está em segurança — disse, — se Oliva fôr a moça que penso, logo veremos o fim de van Heerden.

 

UMA CONTA DE EMPÓRIO

Os sinos da igreja repicavam as onze horas quando um carro estacionou diante de uma sombria loja da esquina ostentando o letreiro do corretor de penhores, e Beale e McNorton desceram.

Era uma vii preferencial e estava quase deserta. Beaie ergueu o olhar para as janelas. Estavam às escuras. Bateu à entrada lateral da loja e então um policial veio juntar-se a eles.

— Ninguém mora aqui — explicou o oficial, quando Mc Norton se identificou. — O velho Rosenblaum toma conta do negócio, mas mora em Highgate.

Ele fez o facho de sua lanterna incidir sobre a porta e

a experimentou, mas esta não cedeu. Um viajante noturno

que se mantivera à sombra na calçada oposta, chegou-se a eles a fim de prestar informações.

Havia visto um outro carro parar ali e apear um cavalheiro. Este abrira a porta e entrara na loja. Aparentemente, nada tinha de suspeito. Era uma figura e tanto "em traje de festa". O guarda julgou ser um dos sócios de Rosenblaum, vestido a rigor. Estivera na casa durante dez minutos e tornara a sair, fechando a porta atrás de si e partira pouco antes de Beale aparecer.

Ao cabo de meia hora um homenzinho agitado trazido de Highgate pela polícia fez entrar os dois homens.

Não houve necessidade de proceder a uma busca demorada. No momento em que as luzes da loja foram acesas, Beale fez sua descoberta. Sobre o largo balcão estava uma folha de papel e um montinho de moedas de prata. Ele empurrou de lado o dinheiro e leu:

"Para o resgate de um relógio de prata, 10 xelins."

A assinatura exibia uma caligrafia muito conhecida de Beale "Van Heerden M. D."

Os dois homens se entreolharam.

— Que pensa disto? — perguntou McNorton.

Beale trouxe o papel até à luz e o examinou, e McNorton prosseguiu:

— é um camarada bastante frio. Suponho que já tinha providenciado o dinheiro e a mensagem em nossa honra.

Beale sacudiu a cabeça.

— Pelo contrário — disse — foi coisa de momento. Uma bravata que lhe ocorreu depois de estar com o relógio nas mãos. Olhe para este papel. Pode-se imaginá-lo a vasculhar o bolso à cata de um pedaço qualquer de papel e pegando o primeiro que lhe caiu na mão. Está escrito a tinta e com a caneta do próprio dono da loja. O tinteiro ainda está aberto. — Ele ergueu a pena. — O bico está ainda úmido.

McNorton tomou-lhe o papel das mãos.

Era uma conta de um empório em Horsham, do tipo daquelas que se usavam durante a guerra, as quais se dobravam sobre si mesmas formando um envelope. Estava endereçada a J. B. Harden, Esq. (Aquele era o nome sob o qual alugara a adega de Paddington — esclareceu McNorton) e havia sido posta no correio uma semana antes. Anexo à conta, cujo montante era de 3 libras e 10 xelins, havia um lembrete dizendo que "a conta provavelmente havia sido esquecida".

O dedo de Beale percorreu a discriminação das mercadorias constantes da fatura, e McNorton soltou uma exclamação de surpresa.

— E curioso, não? — disse Beale ao dobrar o papel e guardá-lo no bolso, — como esses homens espertos cometem erros banais que os acabam levando à Justiça. Já perdi a conta dos grandes planos que vi arruinados por algum ato de loucura como este, alguma bravata sem nenhum proveito para o criminoso.

— Santo Deus! — disse McNorton cismarento — claro que é isso o que vai fazer. Jamais pensei na possibilidade. É nas vizinhanças de Horsham que devemos procurá-lo e creio que, se conseguirmos tirar da cama um dos senhores Billingham dentro de duas horas, teremos realizado um belo trabalho.

Eles saíram e tornaram a interrogar o policial. Este lembrava-se do carro voltando pelo caminho através do qual viera. Entrara provavelmente por um dos inúmeros atalhos que partiam da estrada principal, e por essa razão não se haviam encontrado.

— Primeiro quero ir até os escritórios do Megaphone —, disse Beale. — Tenho alguns bons amigos naquele jornal e estou curioso por conhecer a situação dos mercados. Os telegramas noturnos de Nova Iorque devem estar chegando agora.

Em seu coração havia um pavor mortal que ele não ousava traduzir em palavras. Que reservaria o amanhecer? Se a cupidez e o ódio daquele único homem conseguissem desencadear o terror no mundo, que espécie de mundo restaria? Através das janelas do carro pôde ver o plácido policial rondando as ruas e vislumbrar outros carros feèricamente iluminados, levando de volta a seu lares uma porção de homens e mulheres risonhos, totalmente ignorantes do perigo monstruoso a lhes rondar a segurança e a vida.

O edifício do Megaphone resplendia de luz quando o carro brecou junto à porta. Mensageiros atravessavam apressados as portas de vaivém; os dois grandes elevadores subiam e desciam sem parar. O editor grisalho, de voz roufenha, atirou para longe um monte de papéis de cópia.

— Cá estão os relatórios sobre o mercado —, grunhiu ele -— não são nada animadores.

Beale os leu e assobiou; o editor olhou para ele, interessado.

— Bem, que conclui disso? — perguntou ao detetive. — O trigo já está a dois xelins o quilo. Só Deus sabe o que sucederá amanhã!

— Alguma outra novidade? — indagou Beale.

— Perguntamos à Alemanha porque proibiu a exportação de trigo e lhe pedimos que justifique seus atuais estoques, bem como as providências que adotou nos últimos dois meses no sentido de acumular reservas.

— Um ultimato?

— Não precisamos um ultimato. Não há razão para a guerra.

Beale abanou a cabeça.

— A batalha será travada no campo — disse. — Será travada aqui em Londres, em todas as suas grandes cidades, em Manchester, Coventry, Birmingham, Cardiff. Será travada em Nova Iorque e num milhar de lugares entre o Pacífico e o Atlântico e, se o esquema alemão funcionar, estaremos liquidados antes que o primeiro tiro seja disparado.

— Que significa isto? — perguntou o editor, — por que todo mundo está tão ansioso por comprar trigo? Não há escassez do produto. As safras americanas e canadenses foram boas.

— Não haverá colheitas —, disse Beale solenemente; e os jornalistas pasmaram diante ele.

 

O FIM DE VAN HEERDEN

O Dr. van Heerden esperava por uma porção de coisas e estava preparado para contingências que vão além da imaginação das pessoas normais, mas não estava preparado para encontrar em Oliva Cresswell uma companheira de viagem agradável.

Para surpresa sua, Oliva se mostrava extraordinariamente jubilosa e falante. Ele havia mantido Bridgers de guarda à porta do carro enquanto investigava a loja de penhores de Rosenblaum & Irmãos e, na volta, descobrira triunfante que a moça, até então taciturna, se pusera de excelente humor.

— Costumava pensar — disse ela — que os raptos em automóvel fossem invenções de escritores sensacionalistas, mas o senhor parece fazer deles um hábito, Dr. van Heerden.

Ele sorriu na escuridão do carro, que prosseguia sua marcha.

— Quanto à falta de originalidade me confesso culpado — disse, — mas lhe prometo que esta pequena aventura não terminará como a primeira.

— Dificilmente poderia fazê-lo — disse ela rindo. — Só me posso casar uma vez, enquanto o Sr. Beale for vivo.

— Esqueci-me de que era casada — disse ele subitamente.

— Como terminará esta aventura? — indagou ela. — Vai me abandonar numa ilha deserta ou me levar para a Alemanha?

— Como sabia que pretendo ir para a Alemanha? — perguntou ele incisivo.

— Ora, foi o Sr. Beale quem pensou nisso — replicou ela em tom de indiferença. — Calculou apanhá-lo perto da costa.

— Calculou, não é? — disse o outro com calma. — Negar--lhe-ei tal prazer. Não tenciono levá-la para a Alemanha. Na verdade, não tenho intenção de retê-la mais do que o necessário.

— Coisa que muito lhe agradeço — disse ela sorrindo. — Mas, por que me deter?

— Eis uma pergunta estúpida de se fazer, quando tenho certeza de que não alimenta dúvidas quanto à minha necessidade de conservá-la próxima de mim até que termine o trabalho. Creio lhe haver dito há algum tempo — prosseguiu ele — que tinha em mira um grande plano. Ainda outro dia, chamou-me de boche, designação, creio eu, reservada aos alemães. Sou, na verdade, alemão; um alemão patriota.

A voz dele tremia um pouco e a moça ficou estupeafata de ver um homem inteligente e moderno como aquele sustentando pontos de vista tão arcaicos.

— Seu país arruinou a Alemanha. Vocês nos exauriram. Dizer que odeio a Inglaterra e os Estados Unidos seria um eufemismo.

— Mas qual é o seu plano? — perguntou ela.

— Dir-lhe-ei, Srta. Cresswell, em poucas palavras, a fim de que compreenda estar esta noite acompanhando a história e participando da política mundial. Os Estados Unidos e a Inglaterra irão pagar. Irão comprar trigo ao meu país pelos preços que a Alemanha fixar. Será um preço — gritou ele sem disfarçar a alegria de que estava possuído, — que arruinará os povos anglo-saxões ainda mais do que estes arruinaram a Alemanha.


— Mas como? — indagou ela atônita.

— Comprarão trigo — repetiu ele — aos nossos preços; trigo armazenado na Alemanha.

— Mas, que tolice! — disse ela com desprezo. — Pouco entendo de safras e coisas semelhantes, mas sei que a maior parte do trigo mundial provém da Rússia e dos Estados Unidos.

— O trigo russo estará nos celeiros alemães —. disse ele maciamente. — O trigo americano, bem... não haverá trigo americano.

A calma então o abandonou. A estória da Alfôrra Verde irrompeu numa torrente incontida de linguagem, meio alemã, meio inglesa. O homem estava fora de si, quase enlouquecido, e ela se encolheu diante de suas mãos que gesticulavam freneticamente. Contemplando-lhe a silhueta desenhada contra a janela, ouviu-lhe a voz tonitruante a balbuciar incoerências acerca de um plano maravilhoso e teve de juntar com esforço os fragmentos daquela narrativa desconexa. Lembrou-se então do trabalho que fizera no escritório de Beale, do cuidadoso levantamento das fazendas americanas, dos nomes dos xerifes, dos hotéis que forneciam condução.

Então era isso! Beale havia descoberto a trama e já se movimentava no sentido de bloquear o plano demoníaco. Lembrou-se do homem que fora ter ao seu apartamento, confundindo-o com o de van Heerden, e do frasco de serragem verde que carregava, e do gesto de horror de Beale ao examinar esse frasco. Súbito se pôs a chorar com tal veemência que a torrente • de palavras de van Heerden estancou.

— Graças a Deus! oh, graças a Deus!

— Que — que quer dizer? — perguntou ele cheio de suspeita, — por que está dando graças a Deus?

— Por nada, por nada —. Ela recobrara seu natural animado e vivaz. — Conte-me mais; é uma história maravilhosa. Tudo verdade, não?

— Verdade? — ele soltou uma risada cortante, — verá como é verdade. Verá o mundo aos pés da ciência alemã. Amanhã a palavra de ordem será dada. Olhe! — Ele acendeu uma luz e abriu a mão. Tinha na palma um relógio de. prata.

— Disse-lhe que havia um código (ela sabia obscuramente que ele lhe falara num código, mas se mantivera tão entretida com os próprios pensamentos que não captara tudo quanto ouvira). — Tal código está neste relógio. Olhe!

file comprimiu um botão e a tampa do relógio se ergueu. Colado na face interna da tampa havia um círculo de papel fino contendo uma inscrição feita à mão.

— Quando encontrou a cautela, tinha o código em suas mãos — disse ele com um muxoxo. — Se você ou seus amigos tivessem tido o bom senso de resgatar esse relógio, eu não iria poder enviar amanhã a mensagem de liberação da Alemanha! Vê? É muito simples! — Ele apontou o dedo, segurando o relógio contra a luz, a fim de que as palavras pudessem ser vistas mais facilmente. — Esta palavra significa "entrar em ação". Será transmitida a todos os meus agentes principais. Estes a transmitirão por telegrama a centenas de centros. Quinta-feira pela manhã, grandes extensões de terra nas quais o louro trigo ondulava com tanto garbo não passarão de escombros enegrecidos. Já no sábado, o mundo estará a braços com uma sublime catástrofe.

—- Mas, por que três palavras?

— Nós alemães prevemos tudo — disse ele — não confiamos nada ao acaso. Não somos jogadores. Trabalhamos segundo moldes cientificamente rigorosos. A segunda palavra é para dizer aos meus agentes que suspendam operações até segunda ordem. A terceira significa "abandonar o plano por um ano! É preciso trabalhar com os mercados. Oportunidade mais favorável poderá se apresentar".

Ele fechou a tampa do relógio e o recolocou no bolso, apagou a luz e se recostou com um suspiro de satisfação.

— Como vê, você não tem importância — disse, — é uma linda mulher e para muitos homens seria muito desejável. Para mim, não passa de uma mulher, uma criatura comum, divertida e bonita, dona de uma mente ágil, embora um tanto frívola pelos nossos padrões. Muitos dos meus patrícios, que não pensam como eu, gostariam de conservá-la. é minha intenção deixá-la tão logo isto não ofereça risco, a não ser que... — Um pensamento lhe ocorreu e ele franziu o cenho.

— A não ser...? — repetiu ela com uma pontada no coração, malgrado seu autodomínio.

— Bridgers falou-me a seu respeito. Esse que está guiando.

— Ele apontou para as costas mal delineadas do motorista.

— Tem-me sido muito fiel.

— Não faria isso — sussurrou ela.

— E por que não? — respondeu ele com frieza. — Não a quero. Bridgers a acha muito linda.

— Acho horrível o seu plano — disse ela, depois de uma pausa, — o plano da destruição do trigo, quero dizer, não Bridgers. Mas é bastante grande.

O homem era sensível à bajulação, pois tornou a mostrar-se amistoso.

— É o maior plano jamais concebido pela ciência. é o crime mais colossal, — suponho que será tachado de crime — jamais perpetrado.

— Mas como irá passar adiante seu código? Os telégrafos estão sob controle do governo e creio que se verá em dificuldades, mesmo que possua um sem-fio secreto.

— Sem fio, bah! — disse ele com desdém. — Nunca esperarei usar do telégrafo, com ou sem fios. Tenho um meio muito mais seguro, Frâulein, conforme irá verificar.

— Mas como irá escapar? — perguntou ela.

— Deixarei a Inglaterra amanhã, logo após o amanhecer, — respondeu ele com segurança, — de avião, uma aeronave com grande autonomia de vôo pousará na minha fazenda de Sussex, ostentando as insígnias britânicas. Na verdade, já está na Inglaterra, e eu e o bom Bridgers cruzaremos a fronteira britânica sem maiores problemas.

Ele espiou pela janela.

— Estamos em Horsham, creio — disse, ao passarem por um lugar que pareceu à moça uma praça. — Aquele edificiozinho à esquerda é a estação ferroviária. Minha chácara fica a cinco milhas de distância, na estrada de Shoreham.

Quando atravessaram a vetusta cidade e subiram pela colina que levava a Shoreham ele se mostrou excelentemente disposto e, quando o carro se desviou da via principal e abriu caminho por sobre uma estrada de terra até uma grande mansão campestre, era a gentileza em pessoa.

— Esta é a sua última escapada, Srta. Cresswell, ou Sra. Beale —, disse jovialmente, ao empurrá-la para uma sala onde haviam servido jantar para duas pessoas. — Como vê, não era esperada. Mas terá Bridgers — rematou inconseqüentemente. — Dentro de duas horas será dia.

Ela supusera a fazenda ocupada, mas na aparência eram os únicos que lá estavam. O próprio médico havia aberto a porta com uma chave e nenhum empregado surgira. Ela constatou depois que havia dois funcionários da fazenda, um velho e sua esposa, que viviam numa cabana da propriedade, faziam durante o dia os trabalhos caseiros e haviam preparado um jantar frio ante a chegada do patrão.

Bridgers não fez seu aparecimento. Aparentemente tinha ficado com o carro. Cerca de três horas da manhã, quando as primeiras listras cinzentas apareciam no céu, van Heerden se levantou e saiu em procura do assistente. Até então não cessara de falar em si próprio, no seu plano, no seu grande plano, em suas primeiras lutas, nas suas dificuldades em persuadir seu governo a lhe fornecer os recursos financeiros de que necessitava. Quando se encaminhou para a porta ela o deteve com uma palavra.

— Estou imensamente interessada — disse — mas, ainda não me contou como pretende enviar sua mensagem.

— É muito simples — disse ele fazendo-lhe um sinal com a mão.

Eles saíram à madrugada doce e fria, percorreram quase metade da chácara e chegaram a um pátio cercado em três lados por construções baixas. Ele abriu uma porta que ocultava uma segunda porta gradeada.

— Veja! — disse rindo.

— Pombos! — disse a moça.

O átrio interior do galpão era um só ruflar de asas.

— Pombos! — repetiu van Heerden, fechando a porta. — Cada um deles conhece o caminho da Alemanha. Foi um trabalho de amor colecioná-los. E são todos ingleses —, acrescentou com uma gargalhada.

— Mas, imagine que o seu pombo seja abatido ou caia pelo caminho? — perguntou ela quando voltavam à casa a passo lento.

— Mandarei cinqüenta —, replicou van Heerden. — todos eles transportando a mesma mensagem e pelo menos alguns chegarão ao destino.

Novamente na sala de jantar, ele removeu as sobras da refeição e saiu da sala por alguns minutos, voltando com um pequeno bloco de papel e ela percebeu, pela delicadeza com que manipulava as páginas, tratar-se de material muito fino. Entre cada página ele colocou um carbono e começou a escrever em letras de fôrma. Havia apenas uma palavra em cada uma das pequeninas páginas. Terminando de escrever, destacou as folhas, colocando-as de lado e usando o relógio como peso; depois redigiu mais uma batelada.

Ela quedou-se a observá-lo, fascinada, até que ele deu sinais de haver completado sua obra. Então ergueu a valise que estava ao seu lado, meteu-a entre os joelhos, abriu-a e retirou dela um livro. Deve ter sido o instinto que o fez erguer os olhos.

— Que tem aí? — perguntou secamente.

— Oh, um livro — disse ela, tentando mostrar-se displicente.

— Mas por que o tirou da mala? Não está lendo.

Ele inclinou o corpo, arrebatou-lhe o livro e deu uma espiada no título.

— Precisa-se de um Amigo — leu. — Por Stanford Beale... por Stanford Beale... — repetiu enrugando a testa. — Não sabia que seu marido era escritor!

Ela não deu resposta. Ele virou a capa e leu a página de rosto.

— Mas isto é o Ajuda-te a ti Mesmo de Smiles —, disse.

— Dá na mesma —, retrucou ela.

Ele virou mais uma ou duas páginas e se deteve, pois havia chegado a um lugar onde o cerne do livro havia sido recortado. As páginas haviam sido coladas para disfarçar, e o que na aparência era um livro não era senão uma pequena caixa.

— Que estava aqui? — perguntou ele, pondo-se de pé.

— Isto — disse ela — não se mexa, Dr. van Heerden!

A mão pequenina que empunhava a Browning estava firme e não tremia.

— Acho que não vai despachar seus pombos esta manhã, doutor. Afaste-se da mesa. — Ela se debruçou sobre a mesa e apanhou o pequeno maço de papéis e o relógio. — Vou matá-lo — disse com firmeza — se não fizer o que lhe digo; pois, se não lhe der um tiro, o senhor me matará.

Num espaço de segundos o rosto dele se tornara velho e cinzento: Ele ergueu no ar um par de mãos brancas e trêmulas. Tentou falar, mas emitiu apenas um murmúrio rouco. Depois seu rosto perdeu a expressão. Ele encarou o revólver e depois estendeu os braços lentamente a fim de arrebatá-lo a ela.

— Para trás! — gritou Oliva.

Ele saltou sobre ela e ela puxou o gatilho, mas nada aconteceu e, no momento seguinte, se debatia nos braços dele. O homem estava histérico de medo e alívio e ria e praguejava a um só tempo. Arrancou o revólver das mãos da moça e o atirou sobre a mesa.

— Tola! tola! — gritou. — O pino de segurança! você não o destravou!

Ela teve vontade de chorar de raiva. Beale havia travado a arma, esquecendo-se de que ela não entendia o mecanismo e van Heerden, numa fração de segundo, se dera conta da situação.

— Agora, vai sofrer — disse ele, atirando-a sobre uma cadeira. Vai sofrer; é o que lhe posso dizer! Você servirá de exemplo. Deixarei ao seu marido alguma coisa em que não terá coragem de tocar!

Ele tremia dos pés a cabeça. Correu até à porta e gritou por Bridgers.

Oliva ouviu passadas no hall.

— Venha, meu amigo — gritou van Heerden -— verá seu desejo satisfeito. É...

— Como prefere ir, van Heerden? Por bem ou por mal? Ele girou o corpo. Havia dois homens à soleira da porta

e o primeiro deles era Beale.

— Não adianta gritar por Bridgers porque ele já se encontra a caminho da cadeia — disse McNorton. — Tenho uma ordem de prisão contra você, van Heerden.

O médico se voltou num assomo de raiva, ergueu o revólver da mesa e o destravou.

Beale e McNorton atiraram ao mesmo tempo, de modo que um só disparo pareceu atroar a sala. Van Heerden desabou no chão.

Era sexta-feira de manhã e Beale atravessou com passo esperto o vestíbulo do Ritz-Carlton; prescindindo do elevador, pôs-se a galgar os degraus da escada, dois de cada vez. Entrou tempestuosamente no quarto em que Kitson e a moça estavam à janela.

— Os preços do trigo estão caindo — disse ele, — a mensagem surtiu efeito.

— Graças a Deus! — disse Kitson. — Então a mensagem cifrada de van Heerden, mandando sua quadrilha suspender operações chegou ao destino!

— Aos destinos — corrigiu Beale acremente. — Soltei trinta pombos com a palavra mágica. Os agentes foram presos. Notificamos as autoridades e havia um xerife ou um policial em cada agência postal sempre que a palavra-chave era transmitida. Os agentes de van Heerden tiveram de enfrentar ontem os mais estranhos dos estafetas.

Kitson meneou a cabeça e se afastou.

— Que vai fazer agora — perguntou a moça, com um brilho nos olhos. — Deve sentir-se perdido sem esse seu grande cliente.

— Haverá outros — disse Stanford Beale.

— Quando volta para a América? — perguntou ela.

Ele tentou contornar a pergunta, mas ela o fez recair nela.

— Tenho um bocado de negócios a tratar em Londres antes de ir-me — disse.

— Por exemplo? — perguntou ela.

— Bem —, hesitou ele. — Tenho alguns assuntos legais pendentes.

— Está processando alguém? — perguntou ela, fazendo-se de tola.

Ele esfregou a cabeça, perplexo.

— Para lhe falar a verdade — disse — não sei exatamente

o que deva fazer. Nunca me envolvi antes num processo de divórcio.

— Processo de divórcio? — disse ela intrigada, — vai servir de testemunha? Sei que os detetives fazem dessas coisas. Deve ser horrível. Oh! a propósito, nunca me contou como me encontrou.

- Foi coisa bem simples —, disse ele, aliviado por poder mudar de assunto. — Van Heerden, num desses curiosos lapsos que a maioria dos criminosos pratica, deixou uma mensagem na casa de penhores, escrita nas costas de uma fatura de alimentos para pombos que lhe havia sido enviada por um comerciante de Horsham. Eu sabia que ele não tentaria despachar sua mensagem pelos caminhos habituais e de há muito suspeitava que houvesse estabelecido uma base de pombos-correios. A fatura forneceu-me a informação de que necessitava. Trouxemos conosco um par de guardas e prendemos Bridgers na garage.

Ela estremeceu.

— Foi horrível, não? — perguntou.

Ele fez que sim.

— Foi algo horripilante, mas poderia ter sido muito pior — acrescentou filosoficamente.

— Como deve ser maravilhoso passar do crime desse hediondo personagem para um caso banal de divórcio!

— Este não é banal. — disse ele. — É uma história curiosa.

— Conte-me —. Ela fez lugar para ele junto ao peitoril da janela e ele se sentou a seu lado.

— É a história de um erro e de uma gafe — disse. — O queixoso, jovem muito digno, razoavelmente bem parecido, dedicava-se à minha profissão. Era um detetive encarregado da proteção de uma linda moça.

— Acho que precisa classificá-la de jovem e bonita para que a história tenha graça — disse ela.

— No caso presente, não é necessário mentir —, retorquiu ele — ela é jovem sem dúvida e incontestavelmente bela.

— Prossiga — disse ela com precipitação.

— O detetive — recomeçou ele — daqui por diante chamado peticionário, desejoso de proteger a donzela inocente das maquinações de um cavalheiro mercenário que já não pertence ao rol dos vivos, contratou — pelo menos pensou assim — um casamento fraudulento com essa infeliz mocinha acreditando poder destarte sufocar o vilão que a perseguia.

— Mas por que a mocinha infeliz casou com ele, mesmo fraudulentamente?

— Por que — disse Beale — o vilão da peça a havia drogado e ela não sabia o que fazia. Depois do casamento — prosseguiu — o detetive descobriu que a cerimônia, longe de ser ilegal era válida, e havia aprisionado a desgraçada.

— Por favor, não seja indelicado — disse Oliva.

— Havia aprisionado a desgraçada por toda a vida. Sendo um perfeito cavalheiro, nascido de pais americanos porém pobres, ele procura a primeira oportunidade para libertá-la.

— E a si mesmo — comentou ela.

— Quanto ao pobre rapaz — disse ele com firmeza — não precisa sentir pena dele. Havia-se portado abominavelmente.

— Como? — perguntou ela.

— Bem, ele já se havia apaixonado pela moça, o que torna seu crime ainda maior. Se corar, não lhe poderei contar o resto da história, pois ficarei sem jeito.

— Não corei — negou ela indignada. — O que pretende fazer você... ele?

Beale deu de ombros.

— Vai tratar de conseguir o divórcio.

— Mas por quê? — indagou ela, — que fez a moça? Ele olhou para ela, embasbacado.

— Que quer dizer com isso? — gaguejou.

— Bem — ela encolheu os ombros de leve e sorriu, — parece-me não ser nada que diga respeito a ele. Caberia à desgraçada mover a ação de divórcio e não ao simpático detetive... sente-se mal?

— Não — respondeu ele em voz rouca.

— Não concorda comigo?

— Concordo — disse o incoerente Beale. — Mas suponha que o tutor tome as providências necessárias?

Ela sacudiu a cabeça.

— O tutor nada pode fazer sem permissão da desgraçada — disse ela. — Não lhe ocorreu que até mesmo a mais potente das drogas se abranda com o tempo e que existe a possibilidade de a mocinha não ter estado tão inconsciente como se supõe, durante a cerimônia? Claro — acrescentou às pressas — que ela não se deu conta do que realmente estava acontecendo e até que o Apoio do Escritório Central — é assim que chamam a Scotland Yard em Nova Iorque, não é? — lhe contou que a cerimônia acontecera de fato, viveu sob a impressão de que se tratava de um lindo sonho... quando digo lindo, — apressou-se em corrigir, — quero dizer não desagradável.

— Que devo fazer então? — perguntou Beale descoroçoado.

— Espere até que eu me divorcie de você — respondeu Oliva e virou a cabeça depressa, de modo que Beale lhe pôde apenas beijar a ponta da orelha.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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