Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Vale dos Fantasmas / Edgar Wallace
O Vale dos Fantasmas / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Vale dos Fantasmas

 

                  

 

O destino e um carro possante trouxeram Andrew Macleod até os arredores de Beverley. A cidade propriamente dita se erguia onde terminava um relutante ramal de estrada de ferro e não apresentava justificativa visível para sua existência ou meios de manutenção. Todavia, por alguma razão extraordinária, a popu­lação de Beverley não morria à míngua e as exóticas lojinhas que lhe formavam a larga e ensombrada rua única tinha um ar de prosperidade. Certamente tal não se deveu ao seu aristocrá­tico subúrbio, pois Beverley Green supria-se em grandes magazines alhures e só recorria à cidade quando se tratava de mercadorias esquecidas em suas listas de encomendas. Andy freou diante do prédio do correio e apeou. Em questão de minutos falava pelo telefone com a chefatura; e o tema da conversação era Allison John Wicker, vulgo Scottie Quatro-Olhos, por usar óculos. Scottie tinha ainda outra peculiaridade: era dos poucos, em sua profissão, a apreciar os passeios a pé.

Na ocasião, estava sendo procurado porque o gerente de Diamantes Regente S. A., ao chegar ao escritório certa manhã, descobrira que alguém munido de um bico de acetileno lhe poupara o aborrecimento de abrir o cofre à prova de fogo e furto. E aquilo era tão claramente obra de Scottie quanto se ele houvesse passado recibo dos sete pacotes de pedras que surripiara. Refor­çou-se imediatamente o policiamento de estações ferroviárias, portos e aeroportos; hotéis foram varejados e alertaram-se todas as delegacias.

Andy Macleod, em gozo de férias, com uma vara de pesca e uma pilha de livros que não tinha tido tempo de ler durante o ano, foi arrancado às suas distrações a fim de organizar a busca.

Tendo iniciado a vida na qualidade de Dr. Madeod, patologista-assistente da chefatura, resvalara para a profissão de apanha-ladrões sem saber ao certo como. Oficialmente, era ainda patologista, homem convocado ao banco das testemunhas para atestar a maneira pela qual se dera a morte; extra-oficialmente, embora o tratassem de "senhor", para os policiais mais novos era o Andy.

—    Passou por Panton Mills, em excursão a pé, faz três dias. Tenho certeza absoluta de que era Scottie —, disse. Estou vasculhando a região até Three Lakes. A polícia local jura que ele jamais se aproximou de Beverley; vale dizer, ele deve estar vivendo às suas barbas. Gente brilhante esta; perguntou-me se ele havia feito algo errado, embora desde há uma semana o pessoal daqui estivesse de posse, não apenas dos detalhes do crime, mas também de uma descrição de Scottie.

Naquele instante, uma moça penetrou no prédio do correio. Olhando de esguelha pela vidraça da cabina telefônica, Andy notou-a com admiração. Atraente, bonita, linda? Para uma mulher, era bastante alta; esguia, sem ser magricela.

—    Sim, creio que sim, respondeu mecânicamente ao chefe, os olhos fitos na moça.

Ela ergueu a mão, exibindo um anel de noivado, todo em ouro, incrustado de pequeninas esmeraldas... talvez fossem safiras... não, eram esmeraldas. Ele lhes viu o reflexo verde-mar.

Andy abriu a porta da cabina pouco depois de haver transmitido a parte secreta da sua informação e, com um ouvido livre, captou o murmúrio da voz da moça.

"Mais do que bonita", decidiu, e admirou-lhe o perfil voltado em sua direção.

Aconteceu então uma coisa curiosa. Ela deveria ter olhado para Andy quando êste tinha os olhos voltados noutra direção. Possivelmente perguntara quem era; mais provavelmente ainda, o velho e gárrulo funcionário do correio oferecera-se para infor­má-la. Andy ouviu a palavra "detetive". Na posição em que estava, tinha uma visão bastante nítida do rosto da moça.

—    Detetive! — ela sussurrou apenas a palavra, mas ele ouviu... e viu. Os dedos da jovem se crisparam na quina do balcão; a cor lhe fugiu do rosto, deixando-o pálido de morte.

Andy, interessado e surpreso, baixou o receptor do ouvido; naquele instante, ela se voltou e ficaram frente a frente. Nos olhos da moça havia medo, pânico, pavor; percebeu neles algo como que aprisionado e torturado. Depois seus olhos se desviaram e ela tateou no balcão à procura do dinheiro o troco deixado ali pelo velho a mão tão trêmula que foi obrigada a despejar as moedas na outra mão em concha e sair correndo do escritório.

Não se dando conta de que na outra extremidade do fio um intrigado funcionário de polícia batia no gancho com aflição, sem haver podido expressar suas opiniões, Andy desligou o aparelho e saiu da cabina.

—    Quem era aquela senhora? perguntou.

—    Aquela? Beni, cavalheiro, aquela era a senhorita Nelson, de Green; Beverley Green, perto das colinas. Lugar maravilhoso... merece ser conhecido. Ali mora uma porção de gente rica. O Sr. Boyd Salter; já ouviu falar dêle? E o Sr. Merrivan, ricaço também, embora um tanto sovina, e, bem, uma porção de gente rica. É uma espécie de... como se chama? Cidade-jardim, é isso. A família do Sr. Nelson já morava lá muito antes de surgir a cidade-jardim. Lembro-me do avô dêle; excelente velhote!

O agente do correio estava pronto para fornecer biografias minuciosas das pessoas abastadas de Beverley Green, mas Andy ansiava por mais uma olhadela na môça e lhe cortou a dissertação.

Viu-a descendo às pressas pelo meio da rua e imaginou-a a caminho da estação.

Sentia-se irritado e perplexo. Como explicar a agitação dela? Por que teria ela mêdo de detetives? Que espécie de loucura, grande ou pequena, seria responsável pelo terror frio que lhe assomara aos olhos?

Era perda de tempo procurar a causa. A gente daqueles lugarejos, pitorescos, alheados do mundo, onde a torrente da vida parece tão idílica e imune às grandes tempestades passionais que açoitam as superfícies dos grandes centros, tem inevitavelmente de enfrentar crises não menos trágicas que as experimentadas pelos habitantes de um mundo maior.

Mas...

A palavra "detetive" sugerindo, como de fato sugere, investigações secretas da lei, não causa mal-estar em pessoas normais e cumpridoras da lei.

Hum! — disse Andy, esfregando o queixo liso. — Com isto não iremos apanhar Scottie!

Tomou o carro e rumou para fora da aldeia, tencionando seguir até a estrada principal e dar uma busca na rede de estradas secundárias localizada ao sul, principiando por um ponto situado a vinte milhas de distância.

Ao reduzir a velocidade para entrar numa curva fechada, cerca de milha e meia adiante de Beverley, viu uma abertura à direita da sebe. Havia um bulevar largo, coberto de cascalho, flan­queado de árvores; as veredas, debruadas da relva muito bem aparada, enroscavam-se em curvas que se perdiam ao longe. Um artístico letreiro anunciava estrada privativa para Beverley Green.

Devido à velocidade, Andy ultrapassara a abertura, e fez então marcha à ré, fitou pensativamente a indicação, e enveredou por aquela estrada. Dificilmente Scottie se meteria num prová­vel beco sem saída. Por outro lado, tinha ele o gênio versátil e oportunista; e Beverley Green era uma comunidade rica. Foi o que Andy se disse à guisa de desculpa, embora soubesse no íntimo que sua curiosidade tinha outra causa. Queria ver a casa em que ela morava.

A estrada ziguezagueou, volteou e fez por fim uma curva mais fechada que as habituais. Beverley Green surgiu em toda a sua beleza estival. Andy reduziu grandemente a velocidade. Diante dele se abria um amplo espaço; quase plano e orlado por uma fieira contínua de arbustos em flor. A menos de doze metros do caminho havia um tze, sinal inequívoco da existência de um clube de golfe, o qual possivelmente, se estenderia por todo o vale. Incrustada na verdura, mal se mostrando por entre as árvores, uma dúzia de casas. O vislumbre de um frontão, o reluzir de uma janela branca, uma ponta de madeiramento, o aprumo de uma retorcida chaminé isabelina caracterizavam o tipo de arquitetura.

Andy olhou em torno, procurando a quem interpelar. A estrada virava abruptamente à esquerda e, no canto, à direita de onde se encontrava, erguia-se uma construção graciosamente reco­berta de ardósia, lembrando um clube. Ele descia do carro para aprofundar suas averiguações quando um homem despontou na esquina da referida construção.

"Próspero comerciante local; aposentado" —, disse Andy mentalmente. "Terno cinza, camisa branca. Pomposo, sem dúvi­da, e perguntando-se por que diabo estarei invadindo estes campos elíseos".

O recém-chegado lançou um olhar decididamente grave sobre o intruso, mas seria exagêro dizer que denotava ressentimento.

Sua idade poderia andar entre cinqüenta e cinco e sessenta anos. O rosto, grande e liso, não tinha rugas, e o andar era lesto, quase rápido. Homem graúdo, carregava tão bem sua robustez que só mais tarde Andy percebeu que propendia para a gordura.

Fez uma saudação que dissipou as possíveis dúvidas do visitante quanto à sua hospitalidade.

—    Bom dia, cavalheiro, — disse. — Parece procurar alguém. O Green é um recanto difícil para forasteiros; nossas casas não têm nomes nem números.

E riu serenamente.

—    Não busco ninguém em especial, — disse Andy, pagando sorriso com sorriso. — Curiosidade, eis o que me trouxe até cá. Belo lugar. Falaram-me dele em Beverley.

O outro inclinou a cabeça.

—    Costumamos receber pouquíssimas visitas... estava a pique de dizer "felizmente", mas isso seria descortês da minha parte. A propriedade me pertence e aos vizinhos, e não temos nenbuma estalagem que tente o visitante a ficar. Apenas uma casa de hóspedes —. Apontou para o prédio coberto de glicínias que Andy tomara por um clube. — Mantemo-lo para os de fora. As vezes não nos é possível alojar todos os nossos amigos e às vezes acolhemos uma pessoa.... ahn, ilustre, que se torna, por assim dizer, hóspede de honra da nossa pequena comunidade. No momento, por exemplo, — prosseguiu — temos conosco um eminente geólogo canadense.

—    Homem feliz —, comentou Andy sorrindo — comunidade feliz. As casas estarão todas ocupadas?

Ao fazer a pergunta sabia muito bem que as casas estavam ocupadas, mas antevia o teor da resposta.

—    Sim, na verdade estão. A última à esquerda pertence ao Sr. Pearson, grande arquiteto; aposentado, está claro. A seguinte, a dos frontões, pertence ao Sr. Wilmot, cavalheiro que... ahn, não sei ao certo o que faz, embora seja meu sobrinho... tem algum interesse na cidade, digamos assim. A outra casa, onde se vêem roseiras trepadeiras, é do Sr. Nelson — Kenneth Leonard Nelson, de quem terá ouvido falar.

—    O pintor? — Andy se mostrava interessado.

—    Precisamente. Grande artista. Possui um estúdio, mas é impossível vê-lo daqui. Ao que me consta, os pintores preferem a luz norte. A casa da última esquina (talvez não a esteja vendo daqui, mas há uma alameda lateral que leva às quadras de tênis) aquele é o meu solar feudal —, rematou com um sorriso bem-humorado.

—    E aquela vasta mansão sobre o flanco da colina? — perguntou Andy.

Então o pai era Nelson, o pintor. Bem; que teria ouvido a respeito de Nelson, o pintor? O nome lhe sugeria algo desagradável.

—    A casa da colina? — replicou o guia. — Infelizmente não faz parte da comunidade. Aliás é o verdadeiro castelo feudal em torno do qual nós, humildes... ahn, camponeses construímos nossas choupanas.

A tirada pareceu agradar-lhe e, antes de prosseguir, ele repetiu — construímos nossas choupanas.

—    É a residência do Sr. Boyd Salter. A família mora nestas paragens há séculos, cavalheiro. Os Salters provêm de... bem, não lhe irei impingir sua história. O Sr. Boyd Salter é riquíssimo, porém semi-inválido.

Andy fez um gesto de assentimento, e o outro continuou.

—    Eis nosso hóspede, o Prof. Bellingham. A propósito, meu nome é Merrivan.

Aquele era, pois, o Sr, Merrivan... Rico, embora um tanto sovina — tal fora a descrição que dele fizera o agente do correio.

Andy estudava a figura do geólogo canadense que se aproximava. Um homem ascético com curvatura lombar de estudioso e trajando tweed.

—    Tem estado nestas colinas a coletar fósseis. Encontraram-se por aqui uma porção deles —, esclareceu o Sr. Merrivan.

—    Creio conhecê-lo muito bem —, disse Andy, mais do que interessado.

Ele avançou ao encontro do professor e, quando estavam a poucos passos um do outro, o geólogo ergueu a vista e estacou.

—    Falta de sorte, Scottie —, disse Andrew Macleod, simulando pesar. — Vai armar encrenca ou prefere vir almoçar comigo em alguma parte?

—    A lógica é o meu fraco —, confessou Scottie, — se me permitir subir ao quarto e emalar umas roupas, irei com você. Vejo que está de carro, mas gostaria de caminhar.

Andy nada disse, porém, quando se reuniram ao Sr. Merrivan:

—    O professor vai me mostrar alguns dos seus espécimes —, comentou divertido —; fico-lhe muito grato, Sr. Merrivan, por sua bondade e cortesia.

—    Talvez o Sr. volte qualquer outro dia e me permita mostrar-lhe tudo —, disse o homenzarrão, a título de convite.

—    Seria um prazer, — respondeu Andy com sinceridade.

Em companhia de Scottie, subiu os degraus de carvalho que conduziam ao encantador aposento ocupado durante dois dias pelo malandro.

—    O ceticismo é a praga do século, — disse Scottie amargamente.

—    Pensa que não voltaria, se me permitisse subir sozinho ao quarto?

Scottie era às vezes demasiado infantil, e Andy Macleod não se deu ao trabalho de retrucar.

Ao entrar no carro, o homem esguio tinha no rosto uma expressão de puro nojo.

—    Hoje em dia há automóveis demais, — queixou-se ele. — A falta de exercício está matando milhares de pessoas diariamente. Por que razão me prende, Mac? Seja lá qual for, tenho um alibi.

—    Onde o conseguiu? junto aos fósseis? — perguntou-lhe seu captor; e Scottie recaiu num silêncio dignificante.

Com Scottie devidamente trancafiado, Andy descobriu a existência de certas formalidades a serem cumpridas antes que o prisioneiro pudesse ser transferido para uma área na qual respon­desse por seus pecados.

—    Onde posso encontrar um? — perguntou Andy, quando lhe disseram que a transferência tinha de ser aprovada e determinada por um juiz de paz local.

—    Bem — refletiu o sargento, — há o Sr. Staining, mas está doente; há também o Sr. James Bolter, mas está de férias; há ainda o Sr. Carrol, mas, agora me lembro, foi à exposição de cavalos. Trata-se de um criador de...

Andy interrompeu o policial.

—    Algo nestes ares torna as pessoas tagarelas, Sargento, — disse ele com paciência, — mas, talvez eu não tenha sido suficientemente claro. Não me interessam os nomes daqueles que não estão aqui. Haverá na vizinhança algum membro do comissa­riado?

—    Há um cavalheiro — e o sargento frisou bem o termo.

—    O Sr. Boyd Salter assinará a ordem. — E acrescentou:

—    Se estiver em casa.

Andy sorriu e saiu à procura do Sr. Boyd Salter.

Verificou que o caminho mais curto para a residência de Salter passava ao largo de Beverley Green. A propriedade situa­va-se mesmo nas proximidades de Beverley, e a ela se chegava atravessando um par de cancelas localizadas na ponta da cidade. Andy já as vira antes e se perguntara quem poderia morar além delas.

Beverley Hall era uma daquelas construções no estilo que Inigo Jones celebrizara.

 

A casa era toda silêncio. O primeiro som que Andy escutou, ao ser conduzido até um espaçoso saguão lajeado, foi o bater dc um relógio. Um criado apanhou-lhe o cartão de visitas ,e se afastou silenciosamente, e Andy notou que o homem calçava sapatos de solas de borracha. O criado se demorou bastante e, ao voltar, fez sinal ao visitante que o acompanhasse.

—    O Sr. Salter é uma vítima dos nervos, cavalheiro, — sussurrou o serviçal. — Se fizer o obséquio de dirigir-lhe a palavra em voz baixa, estou certo de que ele lhe ficará muito grato.

Andy esperava encontrar um inválido e antevia uma figura trêmula apoiada às almofadas de uma poltrona. Ao invés, depa­rou com um cinqüentão de aspecto sadio, o qual ergueu rápido os olhos quando, sem ser anunciado, ele apareceu na sala.

—    Boa tarde, Sr. Macleod. Em que lhe posso ser útil? Vejo que se trata de um assunto de polícia, — disse o homem, examinando o cartão.

Andy explicou a razão da sua visita.

—    Não é preciso baixar a voz, — disse o outro com um sorriso. Suponho que Tilling lhe terá contado? Por vezes, fico demasiado nervoso, mas hoje estou num dos meus dias favoráveis.

O Sr. Salter correu os olhos sobre o documento que Andy lhe apresentava e o assinou.

—    Nosso amigo é o ladrão de jóias, não é? — disse ele. — Onde andará se escondendo?

—    Em sua cidade-jardim, — respondeu Andy e uma expres­são sombria marcou o rosto simpático do Sr. Salter.

—    Beverley Green? Decerto na casa de hóspedes?

Andy assentiu.

—    Chegou a conhecer alguns dos moradores?

—    Um. O Sr. Merrivan.

Nada se disse durante um curto espaço. Depois: — Fauna curiosa, hein? Wilmot é uma ave estranha. Não consigo defini-lo com precisão. Mas de uma vez cheguei a pensar que se trata de um ladrão aristocrático. Ave estranha esse Wilmot! Há também o Nelson. Sujeito esquisito está ali! Bebe como um demônio. Seria capaz de enxugar um oceano.

Foi então que Andy se recordou da estória que ouvira acerca do pintor.

—    Ele tem uma filha — arriscou.

—    Ah, sim, boa moça; muito bonita. Wilmot está noivo dela ou coisa que o valha. Meu filho, quando está em casa, é um grande colecionador de novidades. Presentemente, deve estar a serviço da polícia... na escola.

O Sr. Salter baixou os olhos para a ordem judicial, secou-a com um mata-borrão e entregou-a a Andy.

—    O Sr. Merrivan me parece boa pessoa, — comentou este.

O juiz de paz sacudiu a cabeça.

—    Nada sei dele, — disse — conhecemo-nos apenas de "bom dia" e "boa tarde"; nada mais do que isso. Parece-me inofensivo. Algo cansativo, porém inofensivo. Fala demais. É o que acontece com todo mundo em Beverley.

Como que para realçar aquela fraqueza local, ele prosseguiu, sem se deter, narrando a história de Beverley e sua gente. Entrou a falar a respeito de Beverley Hall.

—    Sim, é um recanto encantador, mas a propriedade é de manutenção muito cara. Não me foi possível fazer o que faria, caso...

O Sr. Salter desviou rapidamente o olhar, como temeroso de que o visitante lhe adivinhasse os pensamentos.

Passou-se algum tempo antes que ele voltasse a falar.

—    Já andou metido com o diabo, Sr. Macleod?

O homem falava sério. O olhar que volveu sobre Andy foi direto e severo.

—    Já andei metido com alguns diabos menores, — disse Andy sorridente, — mas não pretendo conhecer-lhes o pai.

O Sr. Salter sequer pestanejou. Fixou Andy, absorto, é verdade, mas com firmeza, durante uns bons trinta segundos.

—    Há um homem em Londres chamado Abraham Selim, — disse lentamente — que é um diabo. Não lhe conto isso como autoridade policial. Nem eu mesmo sei por que lhe estou contando. Talvez devido a uma associação de idéias natural. Já fui obrigado a assinar numerosos mandados de prisão, mas jamais assinei qualquer coisa sem me lembrar desse rei do crime. Um assassino é o que ele é — um assassino!

Assustado, Andy mexeu-se na cadeira.

—    Matou muitos homens; despedaçou-lhes o coração; meteu-os em baixo da terra. Fez isto com um amigo meu! — O Sr. Salter comprimiu as mãos até que os nós dos dedos branquejaram.

—    Abraham Selim? — Andy não encontrou nada melhor para dizer, e o seu anfitrião concordou com a cabeça.

—    Se, como acredito, ele um dia der um passo em falso e lhe cair nas mãos, avise-me. Não, não; não quero dizer isso. Ele jamais cairá numa armadilha.

—    É semita... ou turco? O nome sugere ambas as raças.

Boyd Salter sacudiu a cabeça.

—    Nunca lhe deitei os olhos. Não conheço ninguém que o tenha feito — disse de maneira surpreendente. — Bem, agora retire-se, Sr. Macleod. A propósito, qual é o seu posto na polícia?

—    Há anos que tento descobrir, — disse Andy. — Passo por médico.

—    Médico?

Andy assentiu.

—    Faço muito trabalho de análise. Sou uma espécie de patologista assistente.

Boyd Salter sorriu.

—    Nesse caso, eu deveria tê-lo tratado de "doutor", — disse. — Formado em Edimburgo, sem dúvida?

Andy concordou.

—    Tenho um fraco pelos médicos. Meus nervos são... um desastre. Haverá cura para eles?

—    A Psicanálise, — respondeu Andy prontamente. — Permite-lhe pôr a nu suas inibições e livrar-se delas. Até logo, senhor.

Não havia maneira mais eficaz de afugentar Andy Macleod do que falar em Medicina com ele.

—    Até logo... ahn... doutor. Parece-me demasiado jovem para a posição... trinta ou trinta e um anos?

—    Que tal trinta e cinco, Sr. Salter? — riu-se Andy; e retirou-se.

 

Stella Nelson saiu do correio, em pânico. Sem voltar a cabeça, sabia, contudo, que aquele homem bem-parecido e de rosto enérgico que vira na cabina telefônica a estava observando. Que pensaria ele, pessoa para quem, com toda certeza, uma simples piscadela encerrava um significado especial?

O choque provocado pela palavra "detetive" quase a fizera desmaiar, e ele a vira vacilar e empalidecer; e decerto se perguntara a causa daquilo.

Ela sentiu vontade de correr e lhe foi necessária toda a sua reserva de energia para não acelerar ainda mais as passadas, já de si tão apressadas. Desceu rapidamente pelo declive rumo à estação ferroviária e verificou ter ainda uma meia-hora de espera. Só então lembrou-se de que ao sair de casa gastara algum tempo fazendo uma lista de mantimentos para sua cozinha. Deveria voltar? Ousaria enfrentar aquele olhar perscrutador que tanto a aterrorizara?

Finalmente, voltou. O aguilhão do auto-desprezo a espicaçava, mas foi com alívio que constatou não estar mais lá o carro azul. Correu de loja em loja com sua lista e em seguida, após um momento de hesitação, dirigiu-se para o correio e comprou alguns selos.

—    Quem era mesmo aquele homem?

Com esforço manteve a voz firme.                                  

—    Um detetive, senhorita, — disse o velho funcionário, com gosto. — Fiquei estupefato quando ele me mostrou seu cartão. Não sei o que procura aqui.

—    Para onde foi? — indagou Stella, temerosa da resposta.

—    Para Beverley Green, senhorita, segundo me disse.

A memória do funcionário do correio não era das melhores, senão ter-se-ia lembrado de que Andy de modo algum expressara tal intenção.

—    Para Beverley Green? — disse ela vagarosamente.

—    Isso mesmo, senhorita — Macleod! — disse o homem de súbito. — Esse é o nome. Não havia meio de me lembrar. Macleod. — Ele pronunciou Mac-le-od.

—    Macleod, — corrigiu ela. — Está hospedado aqui?

—    Não está apenas de passagem. Banks, o açougueiro não queria acreditar que tínhamos um detetive de verdade entre nós... um homem da chefatura. Trata-se do tal que serviu de teste­munha no envenenamento de Marchmont. Lembra-se do caso, moça? Um assassinato e tanto. Um camarada, ansioso por casar com uma outra senhora, envenenou a própria esposa e foi o testemunho desse Macleod que o condenou à forca. Foi isso o que Banks me contou, mas, no momento em que ele começou a falar, lembrei-me de tudo. Tenho uma memória formidável para casos de assassinato.

Stella regressoa à estação em marcha mais moderada e comprou uma passagem. Sentia-se indecisa, atormentada pelas dúvidas e pelo medo. Odiava a idéia de se afastar do lugar, ainda que por umas poucas horas, enquanto aquele homem metia o nariz sabe Deus onde.

Uma vez mais ela se encaminhou para o vilarejo e ouviu então o apito do trem. Não; ela levaria a cabo sua idéia inicial. De qualquer maneira, um perigo se desenhava claramente. Ela odiava Macleod, era um inimigo. Odiava-o, mas temia-o também. Arrepiou-se ante a recordação daquele olhar inquiridor que dizia tão inequivocamente: "você tem algo a temer". Fez força para ler, mas não conseguia prestar atenção ao jornal, e, embora seus olhos seguissem as linhas, nada viu, nada leu.

Ao aproximar-se do seu destino, ela se perguntou como ousara sonhar em voltar. Dispunha de apenas uma semana para resolver o seu desagradável assunto precisamente uma semana e todos os dias contavam. Talvez fosse bem sucedida. Talvez estivesse de volta aquela mesma tarde, o coração cantando de alegria, cruzando aquêles mesmos campos e pontes, a mente em paz.

Mecanicamente, ela se pôs a anotar os objetos da paisagem, à medida que o trem avançava. Precisava lembrar-se de registrar suas emoções, quando eles voltassem àquela casa branca de fazenda, na viagem de regresso. Quando tornasse a ver a casa talvez já não lhe restasse uma só preocupação.

Os sonhos e a viagem terminaram simultaneamente. Ela atravessou apressada a enorme estação, atopetada de gente horrí­vel que se acotovelava e que nem se daria ao trabalho de voltar a cabeça, caso ela morresse naquele instante. Um táxi aproxi­mou-se a um sinal seu.

Edifício Ashlar? refletiu o motorista, e depois acrescentou: Já sei o que deseja, moça.

O Edifício Ashlar era um grande conjunto de escritórios; ela nunca tinha estado ali e não fazia idéia de como encontrar o homem que buscava. No interior do saguão, porém cobrindo ambas as paredes, havia um indicador e os olhos dela percorre­ram as colunas de alto a baixo até que se detiveram.

309, Abraham Selim.

O escritório ficava no quinto andar.

Custou-lhe algum tempo encontrá-lo, pois ele se localizava no fim de uma comprida ala: eram duas portas; numa delas se lia PRIVATIVO, na outra, ABR. SELIM.

Ela bateu à porta e uma voz disse:

—    Entre.

Uma pequena balaustrada separava o escritório da estreita passagem reservada aos visitantes.

—    Sim?

O homem que veio ter com ela era brusco e um tanto hostil.

—    Quero ver o Sr. Selim, disse ela, e o jovem sacudiu a cabeça.

—    Não pode vê-lo, senhorita, sem hora marcada, disse ele e mesmo assim êle não a receberia. O funcionário deteve-se de chofre e fixou nela os olhos. Ora, é a Srta. Nelson!, disse. Nunca esperei vê-la aqui.

Ela corou e se esforçou em vão por lembrar-se de onde o conhecia.

—    Lembra-se de mim, senhorita... Sweeny, disse ele, e o rosto dela se tornou ainda mais vermelho.

—    Sim, claro que sim, Sweeny.

Sentia-se acanhada, humilhada com a descoberta que fizera.

—    Você deixou a casa do Sr. Merrivan um tanto às pressas, não foi?

Foi a vez dele de sentir-se contrafeito.

—    Sim, é verdade. Ele tossiu. Tive um desentendi­mento com o Sr. Merrivan. Trata-se de um cavalheiro muito sovina e terrivelmente desconfiado. Ele tornou a tossir. Ouviu falar alguma coisa, senhorita?

Ela abanou a cabeça. Os Nelson não costumavam reter seus serviçais o bastante para chegar ao ponto de trocar confidências com eles, embora tivessem vontade de fazê-lo.

—    Bem, a verdade é que, disse Sweeny, algo aliviado pela oportunidade de contar primeiro a sua versão, o Sr. Merrivan deu por falta de algumas pratas. Muito imprudentemente, eu as havia emprestado a um irmão para que este as copiasse. O mano, que é joalheiro, se interessa bastante por prata antiga, e, quando o Sr. Merrivan deu pela coisa... — ele tossiu uma vez mais e se tornou levemente incoerente. Havia sido acusado de furto — ele! E fora despedido sem alarde. — Estaria passando fome agora, senhorita, não tivesse o Sr. Selim ouvido falar de mim e me dado este emprego. Não é grande coisa, — acrescentou em tom pejorativo — mas serve. Com freqüência desejo estar de volta ao vale da felicidade. Foi sempre assim que chamei Beverley Green.

Ela atalhou aquela torrente de esclarecimentos e reminiscências.

—    Quando poderei ver o Sr. Selim? — perguntou.

Ele sacudiu a cabeça.

—    Não lhe posso dizer, senhorita. Eu próprio jamais me encontrei com ele.

—    O quê?, — disse ela, fixando-o estupefata.

—    É verdade. Ele é agiota... bem, claro que não lhe preciso dizer isto.

Ele olhou para ela com ares de conhecedor; e a moça sentiu-se a ponto de afundar no chão de vergonha.

—    Todos os seus negócios são feitos por carta. Eu recebo os visitantes e lhes marco hora. Não que o Sr. Selim cumpra os compromissos, mas os clientes preenchem certos claros — entende, senhorita, as quantias que desejam, as garantias que oferecem e assim por diante — deixo tudo aqui naquele cofre, para o Sr. Selim, quando ele vem.

—    Quando é que ele vem?

—    Deus sabe, — disse o outro piedosamente. — Mas deve vir, pois as cartas são recolhidas duas ou três vezes por semana. Ele próprio entra em contato com as pessoas. Jamais fico sabendo quanto tomam emprestado ou quanto pagam de volta.

—    Mas, quando lhe quer dar instruções, ele lhas transmite por escrito? — perguntou a moça cuja curiosidade foi mais forte que a decepção.

—    Ele me telefona. Não sei de onde. É um emprego estranho este. Apenas duas horas por dia, e somente quatro dias por semana.

—    Não haverá possibilidade de vê-lo? — perguntou ela desesperada.          

- Nenhuma, — disse Sweeny, reassumindo seus ares de importância. — Há apenas uma forma de negociar com Abe — ele não se zangaria se soubesse que o trato de Abe — através da correspondência.

Ela baixou os olhos sobre o balcão e refletiu por alguns instantes.

—    O Sr. Nelson vai bem, senhorita? — perguntou Sweeny.

—    Muito bem, obrigada — apressou-se em dizer ela. — Muito obrigada, Sweeny. Eu... — Era odioso fazer confidências a um criado. — Você não irá contar a ninguém que estive aqui?

—    Claro que não, — disse o virtuoso Sweeny. — Por Deus, senhorita, se soubesse as pessoas que sobem até cá, ficaria muito surpreendida. Atores e atrizes, gente que aparece nos jornais, ministros, clérigos...

—    Adeus, Sweeny.

Ela lhe fechou a porta no nariz.

Preferiu descer pelas escadas ao invés de tomar o elevador, e seus joelhos fraquejaram, pois sabia agora quanto aquela entre­vista poderia ter significado para ela. Com desespero no coração, percebeu a férrea inevitabilidade de tudo. Que poderia agora deter a espada pronta para golpear? Nada, nada! Não lhe tinha sido possível chegar ao homem que desejava — o único homem, disse ela com seus botões, o único homem!

Na volta, ao erguer os olhos, viu a casa branca de fazenda e quase chorou.

Mudou de trem no entroncamento e chegou a Beverley às cinco horas; a primeira pessoa que viu ao descer do trem foi aquele homem de olhos cinzentos, calmo e capaz. Ele a vira primeiro e tinha os olhos nela, quando ela apeou. Por um instante o coração da moça parou e depois ela percebeu o homem algemado — o professor canadense! Então era ele quem o detetive procurava — aquele professor canadense, que falava com tanto conhecimento a respeito de fósseis.

Scottie entendia um bocado de fósseis; era o seu assunto predileto. Na prisão, quando se gosta de um assunto, geralmente se descobrem três ou quatro livros a respeito na biblioteca. À direita de Scottie estava um policial uniformizado. Quanto ao criminoso, ele sustentou o olhar horrorizado da moça com um sorriso suave. Ela imaginou que as pessoas depois de algum tempo se tornam calejadas e endurecidas, e que a vergonha do cativeiro deixa de existir. Mas deve ter havido uma época em que até mesmo aquele indivíduo de rosto ascético teria baixado os olhos em tais circunstâncias.

Olhou rapidamente para Andy e seguiu em frente. Que alívio!

O melancólico desespero da volta abrandou um pouco.

Ao subir pelo caminho bordejado de rosas que levava à porta da sua casa, ela se sentia quase alegre.

 

Na casa de Nelson, passava-se da rua para um vasto salão circundado em três lados por uma galeria, cujo acesso era um extenso lance de escadas.

Nelson estava apoiado a um cavalete, examinando um quadro, e ela não lhe pôde ver o rosto. Mas não havia necessidade disso. A atitude dele falava por si. Ele se voltou e a esquadrinhou com aquela espécie de arrogância que um rei decerto reservaria para os intrusos indesejáveis. Era um homem de rosto estreito, ligeiramente calvo. Tinha o nariz fino e aristocrático, o queixo e a boca um tanto fracos. Um bigodezinho castanho, que enca­necia, dava-lhe uma aparência quase militar, como que para justi­ficar um estado de espírito, sem dúvida belicoso, no momento.

—    Bem, você voltou, — disse ele.

Caminhou sobranceiro na direção dela, as mãos às costas, os ombros magros atirados para trás.

—    Está ciente de que não almocei? — perguntou ameaçadoramente.

—    Eu lhe disse que iria à cidade esta manhã. Por que não pediu à Mary?

Ela teve medo da resposta.

—    Mandei Mary embora, — disse ele, e Stella gemeu interiormente.

—    Mas, papai, — disse ela. — Por que faz dessas coisas?

—    Despedi-a porque foi malcriada, — disse o Sr. Nelson com um gesto. — Isso basta. Sou dono de minha casa.

—    Gostaria de que fosse um pouco mais dono de si próprio, — disse ela enfadada, caminhando até o parapeito da lareira, donde retirou uma garrafa e segurou-a contra a luz. — Por que sempre despede os criados quando está bêbedo, papai?

—    Bêbedo? — repetiu ele chocado.

Ela fez sinal que sim.

—    Amanhã você me irá dizer que não se lembra de nada do que aconteceu e se mostrará muito arrependido. E eu terei de me mexer para encontrar uma criada que ainda não tenha sido despedida por nós.

Nelson ergueu as sobrancelhas.

—    Bêbedo? — repetiu, mas ela não lhe deu atenção. Já na cozinha, começou a preparar sua refeição e ouviu quando ele subiu as escadas sempre a repetir "bêbedo" e a soltar de quando em quando uns risinhos sardónicos.

Ela sentou-se à asseada mesa da cozinha e fez uma refeição constante de uma xícara de chocolate, pão e manteiga. Procurou queijo, embora soubesse infrutífera a providência. Era uma outra característica do Sr. Nelson, a sua preferência pelo queijo, em suas "misturas". Se ele tivesse trabalhado um pouco... ela se dirigiu ao estúdio, nos fundos da casa. A tela que colocara para ele pela manhã não fora tocada. Stella Nelson suspirou.

—    Que adianta? — perguntou, interpelando um dos muitos estudos inacabados pendentes das paredes.

Ela examinava as contas domésticas numa pequena secretária colocada num canto do estúdio, quando ouviu a campainha; diri­giu-se então à porta da frente. Estava escuro e o homem que tocara havia recuado alguns passos, de modo que a princípio não lhe foi possível reconhecê-lo.

—    É você, Arthur? Entre, por favor. Papai já foi para a cama.

—    É o que eu pensava.

O Sr. Arthur Wilmot aguardou que ela acendesse as luzes do estúdio para entrar.

—    Esteve na cidade hoje?

—    Você me viu? — perguntou ela imediatamente.

—    Não, alguém me contou; creio que foi Merrivan. Viu o que sucedeu ao nosso geólogo canadense? Parece que se trata de um ladrão muito importante; bastante importante para que um homem como Andrew Macleod saia em sua perseguição.

—    Quem é Andrew Macleod? — indagou ela. Claro que de pronto percebeu ser Andrew Macleod o homem dos olhos cinzentos, mas ainda assim desejou uma confirmação.

—    é um detetive. Bem, não é precisamente um detetive; creio que é médico... patologista. Ele se encarrega apenas dos casos de grande relevância, e o professor é figura de proa no seu ramo. "Scottie" é assim que o chamam; pelo menos foi por esse nome que o Sr. Macleod o tratou.

—    Devo tê-lo visto na estação, — disse ela. — É um homem bastante bem-parecido e dono de olhos extraordinários.

—    Não diria que Scottie é bem-parecido, — disse Wilmot, e ela se sentiu tão confusa que não corrigiu o engano do rapaz.

—    Não lhe posso pedir que fique muito tempo — disse.

—    Estamos sem empregada.

—    Outra vez? — perguntou ele surpreendido. — Que má notícia! Seu pai é mesmo impossível. Isso significa que você terá de fazer todo o serviço até arranjar alguém.

—    Isso de par com um pai arrependido e ansioso por ajudar, -disse ela com ferocidade — e se intrometendo no meu caminho o tempo todo! É uma das tais cruzes em nossas vidas e o papai fica realmente uma coisa quando...

O jovem tinha na ponta da língua a pergunta: quando é que o seu pai se encontra totalmente sóbrio? Mas foi suficientemente prudente para se conter. Todavia, não pôde impedir que seus pensamentos transpirassem.

—    Em que parte da cidade esteve? — indagou.

Naquele instante ela arrumava alguns papéis na secretária.

—    Por quê? — perguntou, olhando para ele.

—    Oh, perguntei apenas por perguntar, — disse ele titubeante. — Pena não ter sabido da sua presença na cidade. Pode­ríamos ter ido almoçar em alguma parte.

—    Quando estou na cidade, sinto-me acima dessas necessidades. Que é que você faz, Arthur? — prosseguiu ela, — já lhe fiz essa pergunta antes, por vias indiretas. Permita-me uma legítima indiscrição. Será muito perguntar-lhe como ganha a vida?

Ele se manteve calado.

— Apenas faço coisas — respondeu vagamente. — Tem escritório?

Ele hesitou e por fim assentiu.                                                                

—    Sim, tenho escritório, — disse.

—    Onde?

Ela percebeu uma rápida contração no cenho do rapaz. Depois:

—    Geralmente, uso o escritório dos outros. Possuo alguns amigos e... — ele tornou a fazer uma pausa — os meus clientes eu os vejo tão perto das suas casas quanto possível.

—    Você não é advogado nem médico. — Ela assinalou nos dedos ambas as profissões. — Não é corretor. Deveras, Arthur, você é quase tão misterioso como... — Houve um momento de silêncio — como o Sr. Scottie, o nosso desventurado professor. Agora — disse ela com rispidez — é melhor que se vá.

—    Suponho, — principiou ele desajeitadamente — que você não voltou a pensar... acerca... não quero apressá-la nem tirar partido da... da situação...

Ela lhe dirigiu um olhar assaz bondoso, abarcando-o do alto da cabeça até os bicos lustrosos dos sapatos. Ele tinha o rosto largo e, por vezes, uma aparência levemente ridícula. Por alguma razão, não se mostrava assim aquela noite e o coração da moça se enterneceu por ele.

—    Pensei no caso. Arthur — disse ela com tranqüilidade — mas é totalmente impossível. Na verdade não quero me casar com ninguém. Agora vá para casa e não pense mais no assunto.

Ele tinha os olhos voltados para o chão, as pontas dos dedos unidas, a seguir fez-se silêncio; ela não se deu ao incô­modo de interferir-se nos pensamentos do moço que, acreditava, não deveriam ser dos mais auspiciosos.

Súbito:

—    Bem, Stella, talvez seja melhor para você deixar de lado essa atitude de "menininho não me aborreça", — disse ele. — Você é mulher e eu sou homem. Estou a lhe oferecer algo. Não sou propriamente um pé-rapado, e quando Merrivan morrer... bem, eu sou o seu único parente. Você está falida e anda fazendo loucuras. Não sei quais, porém, mais cedo ou mais tarde, acabarei descobrindo. Não poderá permanecer em Beverley Green por muito tempo. Seu pai já bebeu duas hipotecas desta casa e acabará bebendo também a mobília. Creio que você imagina que seria estupendo ganhar o próprio sustento, mas não é assim. Estou disposto a internar o pobre beberrão numa instituição para alcoólatras. Ele terá de morrer ou curar-se; e, de qualquer forma, a coisa chegará a esse ponto. Estou falando com franqueza. Tentei agir de outra forma, mas nada consegui. Você é bastante mulher para perceber que o mais bondoso é ser cruel. Quero-a, Stella. Quero-a mais do que jamais desejei qualquer outra coisa. E sei o que estou dizendo!

As últimas palavras foram ditas de maneira significativa. Os lábios da jovem se moveram, mas a sua pergunta não se fez ouvir.

— Sei em que pé estão os seus negócios, e advirto-a de que me aproveitarei do que sei para apanhá-la. Para apanhá-la, serei capaz das atitudes mais abjetas. Entendido?

Para Stella Nelson, Arthur era um desses jovens que jogam tênis, dançam bem, gostam de falar de si mesmos e possuem um carro razoavelmente luxuoso. Dentro do padrão, era o mais encantador que conhecera, e ela já o estudara o suficiente para lhe prever o comportamento diante de determinadas circunstâncias.

A primeira sensação da moça, quando ele começou a falar, foi de consternação. Não se sentiu magoada no momento; só muito depois. Mas se aborreceu com o erro que praticara. Tive­ra a mesma sensação num jogo de bridge quando, por inadver­tência ou distração, jogara uma carta errada, perdendo em conse­qüência a vaza. Ela sentiu um desejo disparatado de pedir des­culpas por se haver enganado quanto ao caráter dele, mas, ainda que não atinasse com o absurdo de tal atitude, não teria sido capaz de falar. Era ela quem estava errada, não ele. Ele tinha razão e estava sendo autêntico, agressivo e "podre de seguro". Esta expressão, empregada pelo professor canadense, caíra no gosto da jovem. Arthur Wilmot mostrava-se "podre de seguro" a respeito de si próprio, acerca da posição vantajosa em que se encontrava e com referência à pessoa dela.

Então Stella reencontrou a voz.

—    É melhor que se vá; Arthur, — disse com brandura.

Cronologicamente, ela era pouco mais do que uma criança;

sentia instintos maternais em relação a ele. Era tão pateticamente tolo que inspirava compaixão.

—    Irei quando tiver vontade, — disse o moço. — Se quer me jogar na rua, chame seu pai. Por que não o faz? Estou apenas sublinhando e ressaltando o fato de que você está sozinha, não apenas nesta casa, mas no mundo.

Ela havia encontrado suas forças e suas armas.

—    E você está bancando o homem forte e tagarela. O espécime caladão tinha, mais cedo ou mais tarde, de transformar-se no tipo oposto, — disse.

A moça se apoiou ao espaldar da cadeira, as mãos às costas. Sua compostura era desconcertante para aquele devastador de cidadelas. Wilmot não notou nela nem uma belicosidade febril nem um conformismo dócil, mas a consciência de alguma restri­ção latente. Percebeu o que estava por vir e sentiu-se pouco à vontade.

—    Não chego a me desesperar com... qual será a melhor descrição... com a sua trágica palhaçada; palhaçada, porque tinha a intenção de ser trágica. Não quero me casar com você, Arthur, porque... bem, você mesmo admitiu não possuir qualquer atrativo pessoal, não foi? Você não me irá "apanhar" por causa da sua melhor situação financeira. Ou por meio de chantagem ou coisa que o valha. Pena que um facho de luz não nos esteja iluminando... a você, homem forte e falador, e a mim, pobre mulher sem fala. Você é o segundo bêbedo que encon­trei hoje; apenas o tóxico que engoliu era mais potente. Está ébrio de vaidade e terá dificuldades em curar tal bebedeira.

A voz da moça jamais deixara de ter autoridade sobre ele. Certa feita, ele tentou interrompê-la, mas foi afinal vencido, e não fez uso dos argumentos tão cuidadosamente engendrados; apavorou-o a idéia de que eles soariam tolos aos seus próprios ouvidos.

Ela caminhou até a porta e abriu-a.

—    Quero apenas dizer... — começou Arthur, mas ela soltou uma risada.

—    Ainda quer dizer alguma coisa? — Perguntou.

Ele saiu sem dizer palavra e Stella lhe fechou a porta às costas.

Demorou um instante com a mão no trinco, a refletir, e ainda imersa em seus pensamentos apagou as luzes e subiu para o quarto. Era cedo demais para ir para a cama, mas não havia razão para permanecer em baixo. Despiu-se lentamente, à luz do luar. Seu dormitório ficava-no andar superior. Era a janela triangular que Andrew Macleod havia visto e ela preferiu ficar ali para poder desfrutar de uma vista não prejudicada pelo arvo­redo.

Vestiu um peignoirsobre o pijama e, escancarando as janelas, apoiou os cotovelos no parapeito e se pôs a olhar para fora. Tudo eram matizes embaçados. A luz, inundando o relvado central, dava à grama um colorido acinzentado. Os raios incidiam sobre a pedreira de Beverley, cuja face escalavrada se destacava como um enorme concha de madrepérola da encosta arborizada da colina. Era uma noite de paz. Nada se ouvia a não ser o débil piar de uma coruja, à distância, e um ruído de passos sobre o cascalho da estrada. Trec, trec, trec... era como o marchar ritmado de um soldado. Quem vinha lá? Ela não reconheceu as lentas passadas. Depois ele surgiu.

Espiando por entre os galhos de duas árvores, ela viu um homem e já sabia de quem se tratava antes mesmo que ele voltasse o rosto curioso na direção da casa.

O detetive dos olhos castanhos... Andrew Macleod!

Stella mordeu os lábios para não deixar escapar um grito involuntário e, recuando, fechou furtivamente a janela.

Seu coração latejava doridamente; podia quase ouvi-lo.

O detetive! Ela se esgueirou até a janela, olhou para fora, e depois abriu. Não ouviu nada, nem mesmo o som distante de passos sobre o cascalho. Imediatamente deu com ele. O policial cruzou o relvado e desapareceu em seguida. Um ruído do motor chegou até os ouvidos da moça e pouco depois esmaeceu.

Stella caminhou até o leito com passos lentos e se sentou.

Naquele momento, Arthur Wilmot torturava-se em conjeturas. Que pensaria ela a seu respeito? O rapaz bem podia ter-se poupado uma noite de insónia. A moça se esquecera da exis­tência de Arthur Wilmot.

Durante o período de espera na plataforma da estação, Scottie tinha-se tornado subitamente comunicativo, até mesmo retórico.

—    Você se julga razoàvelmente familiarizado com as sujeiras da vida, Macleod; porque conhece os lugares suspeitos da cidade, as tavernas e as mais sórdidas espeluncas, julga saber tudo. Re­conheço que você não é tão "podre de seguro" como alguns desses desajustados a que se dá o nome de detetives, e que a sua prática lhe propiciou acesso ao âmago de muitas coisas; mas você não sabe tudo.

—    Não sei mesmo, confessou Andy.

—    É aí que alguns de vocês se enganam... não você, reconheço... mas alguns "tiras". Não são as espeluncas nem os esconderijos da ralé... dos pés de chinelo que se acreditam Rothschilds quando conseguem deitar a mão em algum cobre... não são esses os lugares ruins. Ele olhou em torno. O policial do condado que o comboiaria até Londres não estava ouvindo o que êle dizia. Se quiser encontrar o verdadeiro inferno, vá para Beverley Green!

Andy lançou um olhar intenso sobre o criminoso e sentiu um calafrio inexplicável percorrer-lhe a espinha.

—    Que quer dizer? ouviu alguma coisa?

—    Não, nada; mas farejei algo. Tenho um sexto sentido no que diz respeito a... como se diz?... à atmosfera. Você achará graça, mas isso foi para mim uma felicidade durante os meus dias de impenitência, digamos assim. Permitirei que se ria agora, mas já não fará o mesmo quando vir o tamanho e a qualidade do meu alibi. Naqueles dias, essa espécie de sensa­ção insinuante impediu-me muitas vêzes de desperdiçar inutil­mente o tempo. Eu estava numa prisão, quando trouxeram um homem para ser enforcado. Ninguém sabia que ele se encontrava ali; na véspera da execução, transferiram-no para outro lugar, porque o assoalho da sala de execuções se havia incendiado. E uma verdade! e eu sabia que ele estava na prisão e sabia a hora em que tinha chegado. Sinto o mesmo com relação a Beverley Green. Há algo... maléfico ali. Coisa estranha tal palavra em minha bôca, hein, Macleod? Eles nos acotovelam por toda parte... os fantasmas! ria-se! mas eu lhe afirmo que há uma porção deles. Por isso dei ao lugar o nome de Vale dos Fantasmas! Agora vou lhe contar algo que me deixaria mal, se você o relatasse na queixa. Mas confio em você, Macleod, porque é diferente da maioria. Eu estava armado. Sempre tive o hábito de carregar um revólver em minha maleta, mas nunca o tinha levado antes nos bolsos. Desta vez sim. Estava armado quando você me prendeu. Joguei fora o revólver quando íamos para Beverley. Não lhe direi onde, porque você não percebeu minha manobra.

—    Foi quando fingiu bocejar, no instante em que contornávamos a curva à entrada da cidade, — disse Andy. — Mas não iremos falar nisso e suspenderei a ordem para que revistem as valas. Scottie, você não é homem de se assustar facilmente.

Scottie estalou os lábios. Ele estava muito sério.

—    Não sei. Não sou nervoso; nunca fui. Não temo nada que seja humano. Apenas.. . bem... as estréias cadentes davam-me a mesma sensação. Era medo. Confessei-o ao Sr. Merrivan, camelô oficial da comunidade.

Andy sorriu diante daquele tributo ao Sr. Merrivan como agente de publicidade e também guia oficial de Beverley Green.

— Não é mau sujeito. Esqueceu-se de estudar, mas isso é conseqüência da gordura. Não é mau sujeito. Depois de me ouvir, ele tornou a repetir o que eu havia dito. Concordou comigo. Talvez concorde com todo mundo; é do tipo acomodado. Mas pareceu-me que eu havia colocado em palavras tudo aquilo que ele teria pensado, caso o senhor o houvesse contem­plado com a capacidade de pensar. Passe um dia em Beverley Green, Macleod, e veja por si mesmo... algo ali está fervendo; é o silêncio letal que precede a faísca destruidora... bem, eis o trem que chega. Se for chamado a testemunhar no meu caso, ajude-me.

—    Quando foi que disse algo contra você, Scottie? — perguntou Andy em tom de reprovação. — Boa sorte com o alibi!

Scottie piscou.

Naquele momento o trem parou e Stella Nelson apeou. Andy acompanhou-a com os olhos até que ela desapareceu.

—    Está metida na coisa, — sussurrou Scottie quase no ouvido de Andy. — Até logo, Macleod.

Assim, Scottie partiu para enfrentar um tribunal de justiça; e a experiência resultou menos desastrosa do que ele imaginara a princípio, pois seu alibi era realmente consistente. O testemunho de quatro pessoas, na aparência respeitáveis, que jogavam cartas com ele na ocasião do crime resistiu às ironias da acusa­ção e às perguntas habilidosas de um magistrado cético.

Andy prometera a si mesmo os prazeres de um passeio de carro ao luar até o local de descanso de onde fora arrancado. A prova da prisão seria dada pelo inspetor encarregado do caso, para o qual o recebimento do prisioneiro das mãos do policial do condado representava um ato oficial.

Se a presença de Andy no tribunal se tornasse necessária, isso implicaria em apenas um dia em Londres.

As palavras de Scottie mordiam a superfície do cérebro do detetive assim como os ácidos mordem uma chapa. Ao regressar à hospedaria em que guardara o carro, Andy não tinha qualquer intenção de sair de Beverley, embora tivesse descoberto a contra­gosto que sua identidade já era de domínio público. E a popu­lação esparsa, porém humana, de Beverley voltava os olhos admi­rados para ele à sua passagem.

Se não tinha intenção de partir de Beverley aquela noite, Andy menos ainda pensara em visitar Beverley Green. Subconscientemente talvez houvesse tomado a decisão, mas, no plano consciente, obedecia a um súbito impulso quando, depois do jantar, tirou o carro da garage e rumou para a feliz comunidade. Parou junto à casa de hóspedes, desligou o motor.e apagou a? luzes. Era lua cheia e a magia do luar mexeu fortemente com ele.

Durante longo tempo, absorveu com avidez a beleza frágil do cenário; depois atravessou o relvado e, sem dar por isso, seus pés se colocaram na direção da residência dos Nelson.

Súbito, surgiu um losango de luz amarela; a porta se abrira e ele deteve-se na sombra de uma touceira de rododendros, uma das muitas que bordejavam o relvado.

Viu um homem sair e imediatamente algo no seu jeito de andar lhe atraiu a atenção. No caso de Andy era uma verdade literal que os seus estudos sobre a Humanidade centravam-se no indivíduo.

"Eis aí um sujeito muito mal-humorado", pensou ele e se pôs a observar a maneiras de Arthur Wilmot que, cheio de ira, descia pela estrada de cascalho. O homem abriu a cancela da própria casa e se deteve. Como que acometido por um pensamento, tornou a sair, fechou a cancela e prosseguiu em sua cami­nhada, dirigindo-se para uma casa situada na esquina da alameda.

A residência do Sr. Merrivan, notou Andy, lembrando-se deque os dois eram tio e sobrinho.

Andy seguiu em frente, sempre abrigado pela sombra do arvoredo. Algo uma ponta de apreensão se instalara nêle. Dotado, de certo modo, de uma imaginação prática, não era, porém tão suscetível como Scottie pretendia ser. Passou em revista a narrativa do ladrão e, fazendo concessão a certas extra­vagâncias naturais de linguagem, reconheceu nela uma genuína sinceridade. Andy dera desconto ao medo que o homem des­crevera de forma tão gráfica, atribuindo-o à extravagância, mas, naquele instante, êle próprio sentia um pouco daquele mesmo e vago temor. Era como se sua alma passasse sob uma som­bra ameaçadora. Concebeu tal ameaça na forma de uma figura gigantesca empunhando uma espada e sorriu consigo mesmo ante o romântico do conceito.

Não obstante, conservou-se na sombra e parou diante da casa do Sr. Merrivan. O que o obrigou a tanto, êle jamais saberia dizer. Estava comprometendo um melhor conhecimento com as pessoas de Beverley Green e, de acordo com todos os padrões de conduta, comportava-se de forma detestável. A cancela da casa do Sr. Merrivan estava aberta como deixara Arthur Wilmot; atra­vessando a estrada, Andy seguiu adiante, pisando a orla gramada do caminho.

Era uma casa de numerosas janelas, notou ao sair do emaranhado de árvores; janelas brancas a que o luar dava um brilho de prata polida. Não havia sinal de luz e ele foi contornando a casa até encontrar-se sob um janela do saguão de entrada; então, com surpreendente clareza, chegou-lhe aos ouvidos uma voz.

—    Não fará isso, juro que não fará! Nem que eu o tenha de matar!

Não era a voz de Merrivan. Ele supôs que se tratasse do visitante. Depois ouviu apenas um murmúrio. A janela acima foi aberta alguns centímetros. Por detrás, deveria haver pesadas cortinas e os interlocutores ocupavam aquele cômodo. Andy ouviu então distintamente a voz de Merrivan.

—    É ridículo, é absurdo, meu caro. Não tenho medo das suas ameaças. E agora lhe direi uma coisa... algo que o vai surpreender. Eu sei... ocupação misteriosa na cidade...

Depois as vozes baixaram e embora Andy colasse o ouvido à vidraça não lhe foi possível entender mais nada; ele distinguiu apenas o murmúrio ligeiro e aflito da voz do visitante e, uma vez, o Sr. Merrivan se riu.

Depois, Andy percebeu a movimentação de uma cadeira, e voltou por onde viera. Permaneceu junto do arvoredo até que Arthur Wilmot saiu, caminhando desta feita mais devagar, e desapareceu em sua própria casa.

As brigas em família podem muito bem parecer mais importantes e mais trágicas do que o são na realidade. Mas aquela fora uma briga inusitada. Qual seria a misteriosa ocupação do Sr. Arthur Wilmot, cuja simples menção o transformara de um brutamontes gabola, vomitando fogo e morte, num sussurrante mendigo?

Andy aguardou que a porta da casa de Wilmot fôsse fechada; depois desceu até o cascalho e voltou lentamente. Ao passar diante da residência dos Nelson deteve-se e olhou, o coração pulsando um pouco mais ligeiro. Viu claramente a moça. O luar dava ao lindo rosto da jovem uma delicadeza ultraterrena. Ele a viu recuar e a janela se fechar lentamente; fora visto, portanto. Estaria ela com medo? Tê-lo-ia reconhecido? Era estranho, disse ele de si para si, ao retornar a Beverley, e mais estranho do que tudo foi o súbito alívio espiritual e o esvaeci­mento de uma sensação de complicações iminentes que sentiu, tão logo o carro alcançou a estrada principal. Se de fato havia um diabo em Beverley Green, aquele era um diabo dos mais pode­rosos. Por um momento ele amedrontara Andrew Macleod.

 

Stella Nelson tomava o café da manhã quando o pai desceu: não mais o orgulhoso patrão que punha na rua seus criados, mas um homem envergonhado e humilde. Sua atitude era tôda de contrição.

Houve tempo em que se deixava enganar pelos falsos arrependimentos do pai. Argumentava que um homem consciente de seus erros, realmente arrependido, e não endurecido a pontode tolerá-los, deveria possuir algo e, portanto, uma possibilidade de regeneração. Mas tal ilusão se havia desfeito, assim como . numerosas outras.

—    Bom dia, querida. Nem quero olhá-la nos olhos, — disse ele ao sentar-se e desdobrar o guardanapo com mãos inseguras.                Sou um monstro! um monstro completo!

Ela lhe serviu o chá, sem se impressionar com o que ouvia.

—    Esta é a última vez Stella, a última vez. Resolvi esta manhã, quando me vestia, que meus lábios jamais voltarão a tocar uma gota de álcool. Terei sido demasiado estúpido? Não mandei a Mary embora, mandei?

—    Sim, — disse ela.

Ele grunhiu.

—    Talvez eu pudesse falar com ela, — disse ansiosamente. — Creio que poderia ajeitar as coisas. Ela não é má menina, embora tenha perdido minhas abotoaduras de ouro. Explico-lhe tudo e nós a teremos de volta para o almoço, minha querida. Não posso permitir que você faça o trabalho da casa.

—    Mary esteve aqui esta manhã, — disse a moça em tom casual — e eu lhe fiz a mesma sugestão. Disse-me que não voltaria mesmo que eu lhe pagasse um milhão de libras por ano. Não lhe ofereci tanto.

—    Será... será que eu a xinguei? — perguntou ele cheio de culpa.

Ela fez um aceno com a cabeça e empurrou o vidro de marmelada para ele.

—    Tem algum dinheiro? Quero fazer umas compras, — disse Stella.

O pai virou-se inquieto na cadeira.

—    Receio que não, — disse. — Estive em Beverley ontem pela manhã, depois que você se foi, e fiz uma ou duas comprinhas...

—    Eu sei — interrompeu Stella calmamente. — Você deixou exatamente meia garrafa, que despejei na pia.

—    Não deveria ter feito isso, minha querida. — murmurou ele. — É uma coisa venenosa, mas boa de se ter à mão para um caso de doença súbita.

Kenneth Nelson, em tais ocasiões, previa invariavelmente a irrupção de alguma moléstia cuja única possibilidade de cura seriam generosas quantidades de uísque.

—    Se ficar doente, chamaremos o Dr. Grannitt, — disse a moça com rispidez. — Está certo de não ter nenhum dinheiro, papai?

—    Tenho alguns xelins. — Meteu a mão no bolso e sacou um punhado de moedas. — Precisarei disso, — apressou-se em dizer. — Hoje virá o cheque dos negociantes. Por que não chegou pela manhã, não sei. Esses negociantes não são nada práticos.

—    O cheque veio a semana passada, — disse ela, sem se embaraçar. — Você tomou a carta das mãos de Mary e lhe pediu que não me dissesse nada a respeito. Foi o que ela me contou ontem, entre outras coisas.

Ele tornou a grunhir.

—    Sou um gastador, um perdulário — lamuriou-se. — Matei sua pobre mãe com a minha conduta. Você sabe disso, Stella.

Nesses momentos de auto-abnegação Nelson comprazia-se em expor as próprias fraquezas. Não lhe ocorria que a filha pudesse se magoar com isso. Ele se realizava tão integralmente no seu papel de flagelante que não podia imaginar que a jovem deixasse de partilhar do seu mórbido prazer.

—    Não, — disse ela abruptamente e voltou ao assunto do dinheiro. — Preciso de algum dinheiro, papai. Mary vem receber o ordenado hoje. Ou, para ser mais exata, prometi mandar-lhe pelo correio.

Ele era um homem ferido e lamurioso, encurvado sobre a cadeira.

—    Começarei o Pigmalião hoje, — disse. — Levarei algum tempo para terminá-lo, e só muito mais tarde receberei o dinheiro. Esses infernais negociantes...

Iniciara o Pigmalião três anos antes, mas não mais lhe voltara o estado de espírito ideal para prosseguir. Stella desis­tira de contratar modelos para ele, e a notícia da intenção do reinício da grande tela deixou-a tão indiferente quanto o arrependimento paterno.

Nelson se iluminou como se um pensamento lhe houvesse ocorrido e debruçou-se sobre a mesa, baixando confidencialmente a voz.

Stella, será que você... lembra-se do dinheiro que conseguiu quando aquele maldito fabricante de conservas me processou por causa do dinheiro que havia depositado... como se eu pudesse pintar de encomenda! Jamais fui comerciante, minha querida. Não canto a arte, mas ela é para mim a essência da existência.

Volveu para ela os olhos súplices e esperançosos. Ela meneou a cabeça.

—    Não posso mais arranjar dinheiro daquela maneira, disse. Prefereria morrer. Ela se arrepiou ante a recordação. Não falemos nisso, papai.

Ele então se ergueu e se pôs a caminhar desconsolado pela sala, detendo-se diante de um retrato inacabado dela, que iniciara quando Stella era três anos mais jovem.

—    Eis aí o material de um quadro, disse. Estou com muita vontade de me dedicar a ele.

Mais tarde, porém, ela deu com ele no estúdio a examinar uma outra tela inacabada.

—    Algumas semanas de trabalho, Stella, e, por Deus!, terei uma tela de galeria!

—    Por que não começa, papai? perguntou ela. Eu o ajudarei a compor a paleta. Ponha o avental e mãos à obra.

—    Há tempo de sobra, disse ele aereamente. Vou ver se encontro um profissional. Uma partida de golfe me dará nova alma.

Ela o viu desaparecer depois no vale, com o caddie atrás e o profissional ao lado; ele era a imagem do homem sem cuidados, sem preocupações com o amanhã e sem um arrependimento genuíno da véspera.

Quando voltou para almoçar estava tão radiante e cheio de confiança que ela sabia haver já a boa resolução matutina se transformado numa recordação jocosa.

—    Saber onde parar, Stella, eis o que distingue um homem de um tolo, declarou. Ninguém melhor do que eu sabe a hora de parar. O problema é que sou artista. Minha mente devaneia em paraísos róseos e começo mecanicamente a beber, sem chegar a perceber o que estou fazendo. Ele riu de modo afrontoso e a beliscou no queixo. Acabaremos o Pigmalião numa semana, disse. Julga tratar-se de uma promessa estúpida, não? Posso lhe afirmar, querida, que na juventude, quando pintei o quadro que me deu fama, Homero bebendo a cicuta, comecei a obra numa manhã de domingo e a terminei na terça-feira à noite. Claro que depois lhe dei uns retoques.

Ela já ouvira aquela estória uma porção de vezes.

—    Bebeu alguma coisa no clube, papai?

O clube, um minúsculo bangalô localizado na extremidade da vila, era talvez o clube de golfe com menor quadro associativo no mundo.

—    Apenas um uísque e soda — respondeu ele distraidamente e acrescentou algo acerca de um homem saber quando é hora de parar.

Kenneth Nelson tinha o hábito da repressão, a que estão sujeitos os neuróticos. Era capaz de afastar da mente qualquer aspecto da vida e a recordação de palavras ou ações cuja lembrança desagradável lhe chocasse a alma de artista. Tal facilidade — fraqueza sintomática da sua neurose, ele a considerava um dom. Sua conversação transbordava de ditos sensatos, velhos adágios que se haviam cristalizado em hábitos mortais. Sua citação predileta, e a única de fato poética, que fazia, era a quadra de Omar Khayam acerca da inevitabilidade do dedo diretor.

—    Ah, a propósito, Stella, temos um visitante na casa de hóspedes. Palavra de honra que se trata da justiça poética — acrescentou com um muxoxo. — Aquele malandro Bellingham era um gatuno, um assaltante. Por Deus! Eu não teria dormido direito se soubesse.

A moça se perguntou que coisas haveria na casa, além dos quadros inacabados, capazes de tentar o trêfego Scottie.

Antes que o pai pudesse prosseguir, ela intuiu aquilo que o velho estava para dizer. — O detetive? — perguntou calmamente.

Ele assentiu.

—    Ficará hospedado aqui durante um ou dois dias... é um sujeito bastante interessante, encantador. Num certo sentido, é hóspede de Merrivan. Você conhece a mania de Merrivan de recolher gente esquisita; via de regra, gente impossível. Mas, desta vez, escolheu bem. Esse tal detetive... Andrew, Andrew... como é mesmo? o nome é escocês. Jamais consigo lembrar-me direito de todos os Macs.

—    Macleod.

—    Isso mesmo, Andrew Macleod! Bem, é o sujeito que mandaram para prender o ladrão; e agiu com muita esperteza. É muito competente. Claro que é coisa rara encontrar-se um dete­tive cavalheiresco, longe dos livros. Gostaria de conhecê-lo, querida? É um homem que a interessaria.

—    Não, disse Stella, tão depressa, que o pai olhou para ela. — Na verdade não estou interessada — prosseguiu afobadamente, — ademais eu o vi ontem pela manhã no prédio do correio e não gostei da cara dele.

O Sr. Nelson bocejou e olhou para o relógio.

—    Bem, vou-me indo. Prometi a Pearson fazer uma parceria com ele esta tarde. Tem certeza de que não vai aparecer para o chá?

Ela não lhe fez nenhuma pergunta inconveniente sobre o Pigmalião. Dois anos antes, logo após a volta da escola, ter-se-ia surpreendido com o fato de o pai esquecer tão ràpidamente as suas mais nobres intenções e lhe teria sugerido passar a tarde no estúdio; ele teria respondido que se levantaria cedo na manhã seguinte para ter um bom começo. Se repetisse a pergunta agora, receberia a mesma resposta. Agora estava resignada a tudo. As coisas correriam seu curso normal. Ela fizera um esforço e fra­cassara. Relembrando a viagem a Londres e as esperanças que depositara na entrevista, afinal de contas impossível, percebeu que sua vibrante tentativa de fuga tinha sido fútil desde a concepção. O pior teria de vir. Estava escrito.

Ao descer aquela manhã, ela encontrara uma carta de Arthur Wilmot; depois de assegurar-se de que era mesmo dele, rasgara-a sem se dar ao trabalho de lê-la, e a jogara na cesta do lixo. Arthur era o menos perturbador de todos os elementos.

Quanto ao detetive, era também o destino. Que fizesse o que desejava, aquilo que tinha de fazer por questões de dever. Ela se resignava com o pior e ele se incluía na sua galeria de desgraças. No momento, encabeçava a lista.

Passou a tarde a entrevistar moças, que arregalavam os olhos e gaguejavam e não estavam realmente interessadas em trabalhar naquela casa, pois sabiam dos pileques do Sr. Kenneth Nelson.

Uma secreta e minguante reserva de dinheiro que costumava ter na gaveta da escrivaninha permitiu-lhe pagar o devido à moça que Nelson, à sua maneira senhorial, pusera na rua. Stella mal terminara a contristadora tarefa de ensinar à nova criada a arte delicada de preparar o chá ("eu também gosto de chá quen­te e forte, miss", dissera a moça) quando o Sr. Merrivan apa­receu. Stella o viu através da janela e foi pessoalmente abrir-lhe a porta.

Tratava-se de um visitante não grato, embora ela não desgostasse dele. Apaziguou uma ponta de apreensão que sentia, enquadrando-o na categoria dos inevitáveis e ganhou com isso alguma tranqüilidade de espírito.

—    Uma missão delicada, senhorita... hum, Nelson, — disse ele, sacudindo a cabeça, o que implicava em admitir que não era pessoa indicada para a tarefa. — Uma missão muito delicada e mal sei por onde começar.

Stella aguardou, temerosa de que ele principiasse relembrando-lhe determinada obrigação, assumida certa vez e da qual se descar­tara com prazer. Para seu alívio, o assunto em foco era a bruta­lidade do sobrinho.

—    Não sei o que ele lhe terá dito. Imagino apenas. Posso sentar-me?

—    Oh, perdão.

Ela puxou uma cadeira, o Sr. Merrivan sentou-se devagar e lhe fez rebuscados agradecimentos.

—    Insultou-a de maneira imperdoável, — principiou ele, mas a moça o interrompeu.

—    Espero que o senhor não fale no assunto, Sr. Merrivan. Arthur é muito jovem e pouco sabe a respeito das mulheres.

—    Verdade? — disse significativamente o Sr. Merrivan. — Lamento dizer-lhe que não concordo com a senhorita. Ele conhece as mulheres o suficiente para saber quais são seus deveres.

—    Contou-lhe então? — indagou ela, sem saber se explicar como aquele homenzarrão chegara a saber.

Ocorreu-lhe que Arthur talvez tivesse herdado sua indiscrição do ramo Merrivan da família.

—    Contou-me, não há dúvida, — disse o outro com um aceno — e pediu-me que usasse minha influência junto a você... hum, — ele tossiu. — Eu disse a ele, — acrescentou com voz muito clara e pausada — que decerto não estava disposto a traba­lhar pelos outros.

Houve uma pausa, enquanto ela assimilava o que acabara de ouvir.

—    Pelos outros? — repetiu ela. Quer dizer... oh, não, Sr. Merrivan não é possível que...

—    Quero dizer disse o Sr. Merrivan com muita calma e tão claramente quanto antes quero dizer que falo de mim mesmo. A disparidade de idades, Senhorita Nelson, é aparente­mente um obstáculo intransponível à minha felicidade.

—    A idade nada tem a ver com o caso, Sr. Merrivan — apressou-se em dizer ela apenas eu... eu não me quero casar. O senhor estava mesmo falando sério? Quer casar comigo? Espero que não... eu me sentiria um tanto tola se não o quisesse, mas... prefiro sentir-me tola.

—    É isso o que quero dizer, disse Darius Merrivan com a mais digna de suas maneiras. Durante muito tempo, considerei a adoção de tal medida, Senhorita Nelson, e, cada vez que a vejo, convenço-me um pouco mais de que é a única mulher no mundo com quem a vida poderia ser agradável sob todos os aspectos.

Stella riu.

—    Estou um tanto perturbada, creio — desculpou-se ela. Jamais imaginei que o senhor... claro que me sinto honrada, Sr. Merrivan. Não lhe posso dizer quanto, e o senhor tem sido tão bom para mim.

Ele ergueu a mão em sinal de protesto.

—    Não toquemos nesse assunto, disse ele posso ofe­recer-lhe...

—    Espere atalhou ela ansiosamente. Não quero me casar; é verdade. Sou demasiado jovem e não quero me casar. Não é por se tratar da sua pessoa, Sr. Merrivan, como não seria por causa do Arthur. Apenas não quero me casar!

Sua recusa foi acolhida com tanta calma que ela poderia pensar estivesse o homem à espera de uma tal resposta.

—    Isso pode ficar para depois, disse ele. Não posso querer que uma jovem se resolva de imediato, mas não deixarei de sonhar.

Ela sacudiu a cabeça.

—    Penso que seria mais bondoso dizer-lhe para não esperar nada, disse. — Estimo-o muito e o senhor tem sido muito bom para mim.

Ele levantou as mãos para protestar.

—    Mas não quero me casar com o senhor, assim como não quero me casar com o seu sobrinho. E, por mais que aguarde, não irei mudar de opinião.

Ele não fez qualquer menção de levantar-se; continuou ali a tatear o queixo liso e a olhar para um ponto além dela, até que a moça começou a se perguntar o que poderia haver ali que lhe chamasse a atenção.

—    Tudo bem consigo, Srta. Nelson?

—    Muito bem mesmo respondeu ela resplandecente.

—    Não tem nenhum problema?

Ela sacudiu a cabeça.

—    Outro assunto delicado, disse ele. Sou um homem riquíssimo, tenho poucos parentes e raras solicitações de dinheiro. Se umas duas mil libras lhe puderem ser úteis, para enfrentar estes tempos difíceis, basta me dizer.

—    Não, Sr. Merrivan respondeu ela calmamente —, é muita bondade sua. Certa vez aceitei sua ajuda... foi uma expe­riência nada boa. Sim, o senhor foi muito gentil, mas não posso aceitar mais nada do senhor.

Ele se levantou, espanou uma poeirinha da manga e apanhou o chapéu.

—    Arthur sabe — , disse ele, eu lhe contei.

—    Contou-lhe o quê? perguntou ela espantada.

—    Que vim pedi-la em casamento.

Ela riu suavemente.

—    Ficou muito violento, Srta. Nelson, e ameaçou... creio que me ameaçou de morte. — Voltou-se para a porta. A propósito, Arthur disse que conhecia o seu segredo?

—    Contou-lhe isso também?

Merrivan sacudiu a cabeça.

—    Não, acho que não. O segredo que ele conhecia é o de você me haver tomado dinheiro emprestado, e como chegou a sabê-lo é coisa para mim impossível de compreender. Talvez possa convencê-la a mudar de idéia?

A moça meneou a cabeça.

Ele estava postado na soleira da porta, a mão sobre o trinco, a olhar para o jardim.

—    Quando cai o vinte e quatro do mês? perguntou, sem virar a cabeça.

Considerável espaço de tempo decorreu antes que ela respondesse.

—    Na próxima segunda-feira, — disse num suspiro e se quedou estática quando ele cerrou a porta atrás de si.

Então ele sabia. Realmente sabia. E que outra razão have­ria para a presença do detetive ali, senão para servir ao Sr. Merrivan em sua discrição?

 

Andy passou em Beverley Green dois dias inúteis, porque a pes­soa que pretendia encontrar o evitava cuidadosamente. De uma feita, ele viu uma moça caminhando no outro lado do relvado. Acom­panhavam-na dois cachorros que corriam a esmo em torno dela. Acelerando seus passos, ele descobriu tratar-se da Srta. Sheppard, jovem a quem fora apresentado no campo de golfe.

Na primeira noite, jantou com o Sr. Merrivan e com Sheppard, o arquiteto, homem de personalidade tão esquiva que Andrew não pôde, mais tarde, formar uma imagem mental dele. O Sr. Merrivan declarou que era solteiro. Mas, de modo algum, um solteirão incorrigível. Ele poderia ser convencido e, se lhe fôsse permitido falar de si mesmo, malgrado a certeza de que ninguém estava interessado nele de modo especial, uma vez convencido, cederia.

Verdade? comentaram os hóspedes cuja reação foi vária.

Andy se perguntou que espécie de mulher seu anfitrião despo­saria. O Sr. Sheppard não especulou. Dava a impressão de haver parado de pensar quando juntou dinheiro suficiente para aposentar-se.

A imagem que Andy reteve do arquiteto foi a de um homem de cara redonda, mas não lhe lembrava os demais traços. Sheppard usava uma grande abotoadura de ouro, semelhante a um botão, cujo centro era uma pequena pedra negra, e se constituía no único indício da personalidade do dono, de que Andy conseguia lembrar-se.

—    A verdade, cavalheiros, é que disse Merrivan, abai­xando a voz como na iminência de revelar um grande segredo —, por mais lindo que este lugar seja, por mais encantadora a comu­nidade, estou certo de ter planejado uma existência ainda mais... ahn, serena. Conhece o Lago Como, Dr. Macleod?

Andy o conhecia bem demais.

—    Comprei uma vila a Vila Frescoli pequeno recanto onde espero encontrar uma felicidade ainda maior do que aquela que experimentei em Beverley.

Andy ficou pensativo. A Vila Frescoli, muito longe de ser um pequeno recanto, era um palácio; um vastíssimo palácio de mármore branco. Lembrou-se do fato porque o título de vila parecia deveras inadequado à mansão construída para um grão-duque russo.

O Sr. Merrivan ganhou nôvo interêsse aos olhos de Andy Macleod. Durante tôda a noite este se perguntara se os Nelson apareceriam depois do jantar. Mas a vida corria de modo muito mais convencional do que ele imaginara e na verdade não havia razões para supor que corresse de outra forma. Os vizinhos não se visitavam. Beverley Green se fechava em si mesma.

O Sr. Sheppard saiu cedo e, a convite do anfitrião, Andy tomou o café na peça que o Sr. Merrivan chamava o seu "refúgio".

Viu-se no quarto em que Merrivan e Wilmot haviam estado na noite anterior, quando lhes escutara a conversação. Sob certos aspectos, era um notável apartamento. Comprido e aparentemente mais estreito do que na verdade era. Atravessava a casa de ponta a ponta e era iluminado em ambas as extremidades por duas janelas altas. Bem no centro da comprida parede havia uma enorme lareira entalhada, que ficaria melhor num saguão senhorial, e era talvez em razão desse detalhe que o cômodo parecia fora de proporção e o teto extraordinariamente baixo.

As paredes eram revestidas de carvalho, e a primeira coisa que Andy notou foi a ausência de livros. Evidentemente, o, Sr. Merrivan não era um literato e não fazia qualquer tentativa no sentido de aparentar ao visitante eventual que o fosse. Os quadros nas paredes eram em sua maioria gravuras, e muito valiosas. Andy notou alguns exemplares inestimáveis dos trablahos de Vandyke, e o Sr. Merrivan, com explicável orgulho, chamou-lhe a atenção para uma gravura de Rembrandt.

Desculpou-se pela lareira, que havia sido comprada aos testamenteiros do castelo de Stockley. O brasão de armas dos Stockley aparecia no cornijamento. A mobília era boa e moderna: dois largos canapés encaixados nos recessos das janelas. A escrivani­nha do Sr. Merrivan estava na parte do quarto situada na frente da casa, e, na outra ponta, havia uma longa mesa, um armário maravilhosamente entalhado, de origem oriental, e um punhado de poltronas das mais confortáveis.

—    Sou uma pessoa simples, com gostos simples —, disse Merrivan complacentemente. — Meu sobrinho acha que este apartamento se parece mais com um escritório. Pois bem, sempre me senti muito à vontade em escritórios. O senhor fuma, doutor?

Andy escolheu um charuto na cigarreira de prata.

—    Acha a nossa comunidade repousante?

Andy sorriu.

—    É um delicioso retiro, — disse ele, e o Sr. Merrivan ronronou como um gato.

—    Dou-me muito crédito por sua criação, — disse. — Adquiri estas casas uma por uma. Algumas são muito velhas, embora não pareçam, e fui eu quem planejou Beverley Green tal qual é agora. Vendi todas as casas sem ganhar um centavo, cavalheiro, um centavo sequer, — ele sacudiu a cabeça.

Andy ficou surpreso.

—    Foi pouco prático da sua parte.

—    Em absoluto, em absoluto, — disse Merrivan, abanando a cabeça. — A idéia era trazer para cá as pessoas certas. Temo que elas não sejam todas da qualidade certa. As pessoas não são tudo aquilo que aparentam e o caráter se deteriora. Mas, em contraste com a sua vida ativa, Doutor, Beverley Green deve ser muito repousante.

Passaram em seguida a discutir crimes e criminosos, discussão que, de modo geral assumia a forma de perguntas da parte do Sr. Merrivan e respostas, longas ou breves, segundo o seu próprio interesse naquele tópico das pesquisas do Sr. Merrivan, da parte de Andy.

—    Já conheceu algum dia, em suas viagens —, o Sr. Merrivan hesitou — um homem chamado Abraham Selim?

—    Alguém mais me fez essa mesma pergunta, — disse Andy. — Bem, quem terá sido? Seja como for, não conheço tal pessoa, é um indivíduo bastante maldoso, não é?

—    Éusurário e, tudo me leva a crer, chantagista também, — disse o Sr. Merrivan com sobriedade. — Felizmente não lhe caí nas garras, embora outras pessoas... lembra-se de quem lhe falou a respeito dele? Não terá sido Nelson, por acaso?

—    Não, não foi Nelson —, disse Andy. — Creio que foi o Sr. Boyd Salter quem me perguntou se eu o conhecia.

—    O nosso senhor feudal —, disse Merrivan jocosamente.

—    Ótimo homem, o Sr. Boyd Salter. Conhece-o bem? Não sabia que o senhor já o conhecia quando lhe falei no outro dia.

—    Conheci-o naquela mesma tarde —, disse Andy. — Tive de apanhar-lhe a assinatura a fim de poder transferir meu prisioneiro.

—    Sujeito encantador; nós o vemos muito pouco —, disse Merrivan. — Ao que sei, tem estado muito mal dos nervos.

Andy recordou-se do criado de sapatos macios, do silêncio da casa, e sorriu. Partiu pouco depois. O Sr. Merrivan o teria acompanhado até a casa de hóspedes, mas Andy estava ansioso para ficar só; desejava fazer o trajeto ao seu bel prazer. A residência dos Nelson só era visível de uma parte do relvado.

—    "Parece que passo o tempo todo a escutar em portas alheias", — pensou Andy. Extremamente aturdido, ele se deteve junto da cancela. De dentro vinha a voz de um homem a esbra­vejar violentamente. Subitamente a porta se escancarou e uma mulher saiu voando. Atrás dela, em largas passadas, surgiu Nelson. Estava em mangas de camisa e chinelos. Andy conjeturou que o homem estava bêbedo, mas embora já houvesse visto muitos bêbedos, jamais encontrara um capaz de caminhar com tanta segu­rança ou de falar com tanta clareza.

—    Nunca mais quero vê-la aqui, sua... E prorrompeu numa torrente de palavrões.

—    Papai! — Stella apareceu ao lado dele e travou-lhe o braço. — É melhor você entrar.

—    Não entro. Farei o que quero. Stella, vá para o seu quarto! — Ele apontou dramaticamente o dedo para a criada.

—    Será possível que terei de agüentar desaforos dessa cadela, desse rebotalho da sarjeta, eu, Kenneth Nelson, sócio da Academia Real ? Não vou tolerar isto!

—    Por favor, papai, entre na casa, ou está com vontade de ir embora de Beverley Green...

—    Beverley Green que se dane! Sou superior a Beverley Green! Um punhado de fabricantes de geléia aposentados! Vá para o seu quarto Stella. — Mas ela não se mexeu, e Andy achou que chegara o momento de fazer valer sua influência.

—    Ah, Sr. Macleod. — Nelson era a cordialidade em pessoa.

—    Boa noite, Sr. Nelson. Gostaria de uma palavrinha com o senhor.

Ele apanhou o homem pelo braço, conduziu-o sem resis­tência para o interior da casa, e a moça os seguiu.

Sentia-se grata, porém amedrontada; estava curiosa por saber mais acerca do detetive, vê-lo mais de perto, embora humilhada pelas circunstâncias do encontro. Reconheceu a força de Andy; tratava-se de um homem habituado a lidar com os outros. Ela lhe sentiu um pouco do magnetismo e talvez lhe tenha atribuído mais do que devia pela docilidade do pai.

—    Acabo de despedir um membro impertinente das classes inferiores, Sr. Macleod —, disse Nelson, voltando à antiga sobran­ceria. — As classes inferiores estão cada vez mais insuportáveis. Minha querida — ele volveu um olhar reprovador para a filha —, não posso felicitá-la por sua escolha. Realmente não posso. Agora arranje algo de beber para o Sr. Macleod e eu tomarei apenas um traguinho para lhe fazer companhia.

—    Então o senhor tomará um trago de água quente —, disse Andy sorrindo.

—    Água! — Kenneth Nelson não procurou esconder seu desprezo pela sugestão. — Enquanto eu tiver uma casa e uma adega, meu caro amigo, nenhum hóspede sairá daqui sem um copázio do bom vinho amarelo da Escócia!

Andy contava com o desespêro da moça e chocou-se ao ver que ela conservava o autodomínio; chocou-se porque toda a atitude dela durante a crise era prova de que estava acostumada a tais situações. Aquelas explosões de Nelson deviam ser freqüentes, pensou ele, e ela parecia tão jovem, tão criança.

Ela não fez menção de ir procurar o uísque; sabia que não havia mais uísque na casa.

—    A adega está vazia, papai —, disse asperamente. — Os mineiros de vinho entraram em greve.

O ridículo enfureceu Nelson e ele se voltou raivosamente para ela, mas algo fez seus olhos se cruzarem com os de Andy e os olhos de Andy o dominaram e contiveram.

—    Posso falar um instante com seu pai a sós, Senhorita Nelson? Há algo que lhe quero dizer.

Ela concordou com a cabeça e desapareceu.

—    Meu caro rapaz —, murmurou Nelson num débil protesto.

—    O senhor me chamou de Sr. Macleod ainda há pouco. Esqueceu-se de que sou médico. Consultou algum médico ulti­mamente?

—    Não, não consultei. Tenho uma saúde perfeita. Perfeita — disse o outro em tom de desafio.

—    Longe de ser perfeita —, respondeu Andy — o senhor está à beira de um colapso total, do qual talvez jamais se recupere por completo. Posso lhe afiançar, sem me dar ao trabalho de examinar-lhe o coração, que o senhor tem um aneurisma. Sobres- saltou-se porque sabe que é verdade. Estive a abservá-lo no golfe, Sr. Nelson, e sei que não viverá mais um ano, se não parar de beber.

Nelson piscou.

—    Está tentando amedrontar me —, disse ele. — Sei que sou um tolo, mas não tão tolo quanto pensa. Tenho muitas preocupações na cabeça, Sr... Dr. Macleod.

—    Poderá livrar-se das maiores suprimindo o uísque... ainda que me repugne dizer qualquer coisa em detrimento da produção manufatureira do meu país. Permite-me vir vê-lo amanhã? Quem é o seu médico?

—    Grannitt de Beverley. Nunca o chamei por minha causa. Ele cuidava da minha pobre mulher.

—    Bem, farei o exame e ele poderá tratar do senhor. Pro­cederemos a um segundo exame. Pedirei a Grannitt que venha. Talvez ele próprio o submeta a um teste, mas não doerá muito.

—    Não sei por que —, começou Nelson no seu velho tom de superioridade, mas Andrew lhe refutou as objeções.

—    Não quero alarmar sua filha — disse o médico, baixando a voz —, de maneira que não iremos discutir mais o assunto.

Quando a moça retornou, encontrou o pai tal qual um cordeiro em sua humildade. Kenneth Nelson estava muito amedrontado, pois sofrera um choque do qual dificilmente se poderia recuperar em pouco tempo.

—    Acho que vou me deitar, Stella — , disse ele. — Estou um tanto cansado. Não me tenho sentido bem ultimamente.

Andrew achou graça mas não sorriu. Caminhou com a moça até o portão e esperou no degrau até que ela pusesse uma écharpe... preta, notou de passagem, com um monograma ver­melho no canto. Tudo nela o interessava. Ao descerem pelo caminho, contou-lhe trechos da conversa que tivera com o pai.

—    Não creio nem de longe que ele tenha um aneurisma, mas falarei com Grannitt. Conheço bem o filho dele... estu­damos juntos... poderemos arranjar algo particularmente compli­cado que mantenha seu pai afastado da bebida por longo tempo.

—    Espero que sim —, disse ela, incrédula.

—    Você já perdeu a fé, não?

Ela assentiu.

—    Um pouco. A gente acaba ficando assim.

—    Vou-lhe contar uma coisa —, prosseguiu ele. — Existe uma companhia de táxis em Londres dirigida por um homem chamado Stadmere. Os táxis Stadmere são, de longe, os mais luxuosos da cidade. Acostumei-me, sempre que não tinha muita pressa, a esperar por um Stadmere. Geralmente eles demoram a aparecer. Por vezes, surge algum quase instantaneamente. Mas é um fato notável: quando a gente se resolve a tomar um Stadmere, e nenhum outro, como eles aparecem depressa.

—    Trata-se de uma parábola —, disse ela sorridente. — Mas estou em busca de algo ainda mais valioso do que um Stadmere; espero um milagre.

Não houve resposta, e ela já se arrependia de haver dito tantas coisas a um estranho, quando ele se virou, segurando nas mãos a cancela de vaivém.

—    Já vi milagres acontecerem —, disse. — Vale a pena esperar por eles; mas acho que quando se é muito jovem e muito impaciente, os dias passam com tal rapidez, e os anos são lapsos de tempo tão enormes, que a gente se cansa de esperar.

—    Fala como um velho senhor. — Ela sorriu contra a própria vontade.

—    Um senhor muito idoso, com longas barbas brancas? — disse ele bem-humorado. — Suficientemente velho para se mostrar impaciente às vezes. Ainda assim sou capaz de esperar!

Ele segurou a mão da moça na sua por um instante e depois ela ficou a observá-lo atravessar o relvado até que a figura pouco nítida do policial sumiu na porta da casa de hóspedes.

 

Os dias se sucederam. Andy prolongou sua estada por mais uma semana. Conferenciou com o Dr. Grannitt e o médico fez uma visita a Nelson, e, embora não descobrisse o alarmante aneu­risma, deixou o paciente impressionado com o número e a natureza das moléstias diagnosticadas.

Andy não tornou a ver a moça, senão de longe. Suas férias chegavam ao fim e ele desejava realmente dedicar uma semana à pesca; todavia o seu quarto na casa de hóspedes era bem confortável, o campo de golfe excelente e não havia afinal nenhuma razão para ir à pesca.

No domingo ele esteve na igreja. Foi às pressas, pois estava de pijama quando viu Stella Nelson passar com o livro de orações em punho. Dez minutos depois de ela haver entrado, ele se achava na igreja e instalado num banco que permitia observá-la de perfil. Na saída ela o reconheceu, e voltaram juntos para Beverley Green.

—    O sermão foi muito interessante, não achou, Dr. Macleod?

—    Muito —, concordou Andy e, com tato, desviou o assunto. Sabia que houvera um sermão, pois vira um velho adormecido num canto do seu banco. Mas, quanto ao conteúdo, não tinha a menor idéia.

—    Ouvi dizer que o senhor parte amanhã —, disse ela.

—    Era essa a minha intenção mas, provavelmente, ficarei mais uns dias, a menos que me expulsem da casa de hóspedes.

Ela meneou a cabeça.

—    Ninguém é expulso da casa de hóspedes — disse —, a não ser pela polícia —, acrescentou maliciosamente; e ele fez um muxoxo.

Quando subiam pela estrada, um homem surgiu caminhando ao seu encontro. Inopinadamente, o homem fez meia volta e desapareceu numa lateral.

Parece que Sweeny não quer encontrar-se comigo —, disse a moça com um sorriso.

—    Foi o que pensei. Quem é Sweeny?

—    Foi mordomo do Sr. Merrivan, mas parece que deixou o emprego de forma um tanto nebulosa. Odeia o Sr. Merrivan.

Ela estava intrigada. Não atribuía a Sweeny delicadeza suficiente para evitar encontrar-se com ela, apenas para poupar-lhe a recordação embaraçosa do último encontro. A explicação da visita foi fornecida pelo próprio Sr. Merrivan. O benévolo cava­lheiro veio ter com eles junto à cancela da casa.

—    Bom dia, Srta. Nelson —, disse Merrivan alegremente.

—    Acaso se encontrou com o patife do Sweeny?

—    Pensei que era êle —, disse Stella.

—    O salafrário! O Sr. Merrivan sacudiu o punho imenso.

—    Teve a audácia de mostrar o nariz em Beverley Green de novo. Apanhei-o a rondar minha casa... ou, pelo menos, o jardi­neiro o apanhou. Se eu tivesse estado na igreja, como costumo, talvez jamais viesse a saber. Essa criadagem se entende.

O que havia de especialmente odioso em dar uma espiada na propriedade particular do Sr. Merrivan, este não esclareceu. Sweeny apenas se esgueirara por uma sebe e fora descoberto pelo zeloso jardineiro. Provàvelmente o zeloso jardineiro nada teria dito, mas acontece que o Sr. Merrivan perambulava por perto... ele era dado a perambulações... e ouvira o ruído de vozes.

Nada de importante aconteceu aquêle dia; e a roda do destino, que em sua marcha tornaria Beverley Green famosa em todo o mundo, só começou a girar quando a Lua despontou sobre as colinas.

Stella estava lendo no saguão. Acabara de acomodar o pai para dormir, uma vez que o Sr. Nelson havia levado muito a sério os conselhos médicos e não saíra do quarto desde a advertência de Andy.

Ela virava uma página quando ouviu um furtivo, "toc, toc, toc" junto da janela. Aguardou um instante, julgando haver-se enganado ou tratar-se de alguma torneira vazando na cozinha. De novo o "toc, toc, toc"; pôs de lado o livro e ergueu se da cadeira. Não estava nervosa porque Arthur Wilmot, nos bons dias, costumava chamar-lhe a atenção por aquela forma, quando desejava sair com ela para uma volta no relvado.

A jovem correu a cortina e espiou para o jardim, sem nada ver. Nuvens pesadas vinham-se juntando desde a tarde nos lados do sudoeste e a Lua estava encoberta. Stella caminhou até a porta da frente e tinha a mão sobre o trinco quando deu com uma carta a seus pés. Alguém havia empurrado a missiva sob a porta. Não estava endereçada e depois de um momento de hesitação, ela decidiu-se a abri-la. Era uma longa carta: quatro páginas inteiras em letras miúdas. Julgou, a princípio, que fosse de Arthur. Já recebera dele várias missivas e todas tinham encon­trado o destino da primeira.

Examinou a assinatura, teve um momento de estranheza, e depois começou a ler. Quanto mais lia tanto mais frio e apertado se lhe tornava o coração, até que mal pôde respirar. Foi até a cozinha e encheu um copo com água, amassando a carta nas mãos. Tornou a ler, e cada palavra era como uma facada. Depois, encontrou o que buscava — uma pequena pistola coltpertencente ao pai, que escondera nos dias em que as ameaças de bêbedo do velho tinham para ela maior significação do que atualmente. Encontrou também uma caixinha verde, cheia de balas. Com um pano de pó, limpou a pistola, abriu-a calmamente, inseriu nela três balas e tornou a fechar a culatra. Em seguida subiu ao seu quarto, apanhou um casaco escuro, vestiu-o e meteu a pistola no bolso.

De volta ao saguão, arrependeu-se de haver queimado a carta; queria ter certeza absoluta. Iria descobrir, disse de si para si. Estava fria e impassível. Quando virou o interruptor, deixando o quarto às escuras, sua mão não tremia. Atirou uma écharpe sobre os ombros e assegurou-se de ter a chave no bolso antes de fechar a porta com cuidado.

Na cancela do jardim, fez uma parada para olhar na direção da casa de hóspedes. Que força estava ali! Durante um instante febril sentiu a tentação de depositar sua carga nos ombros largos do detetive — um instante apenas. Depois, o absurdo da coisa se tornou consciente para ela. Chamar um oficial de polícia! De modo que prosseguiu, fatalista, com o coração tão negro como o quarto que acabara de deixar, pois a luz da esperança se apagar.

Andy Macleod havia mudado de idéia pela terceira vez naquele dia. Partiria no dia seguinte, disse consigo mesmo; estava apenas sendo um tolo sentimental e tal confissão não ficava bem num homem de trinta e cinco anos.

Caminhou até a casa. Depois, vendo os quartos às escuras, voltou ao próprio apartamento e tentou ler. Jogou de lado o livro, após uma tentativa mal sucedida; despiu-se e meteu-se na cama. Tinha a consciência leve e a digestão fácil e, embora imaginasse que iria passar uma noite em claro, cinco minutos depois já estava dormindo.

Uma batida à porta o despertou instantaneamente.

—    Quem é?

—    Johnston, o gerente. Posso falar com o senhor? É muito urgente.

Andy Macleod acendeu a luz. O relógio à cabeceira marcava um quarto para as duas. Que teria acontecido? Supôs que tivesse vindo uma mensagem telefônica da chefatura, requisitando-lhe a presença em virtude da prisão de Scottie, e xingou injustamente o criminoso.

O primeiro olhar que lançou sobre o rosto do gerente lhe disse que o problema era bem mais próximo. O rosto de Johns­ton estava cinzento e seus lábios tremiam.

—    Oh, senhor — disse ele ofegante —, aconteceu uma coisa horrível. O Sr. Pearson mandou-me vir buscá-lo antes que vá à polícia.

—    Que aconteceu? — perguntou Andy rapidamente.

—    O Sr. Merrivan, o Sr. Merrivan — balbuciou o homem.

—    Que sucedeu?

—    Morto, senhor, assassinado. Oh, é horrível!

—    Merrivan, assassinado! Espere um pouco. Descerei logo. Faça-me um pouco de chá, se possível.

Andy vestiu-se depressa, engoliu o chá que o gerente lhe apresentou (como a xícara tremia e chocalhava na mão do homem!) Alguém havia avisado as autoridades locais. Um sargento de polícia abriu a porta da casa do Sr. Merrivan, quando Andy bateu.

—    Ainda bem que veio, senhor —, disse o policial. — É um caso feio. Alertei todos os homens da Força e notifiquei todos os policiais da estrada.

—    Ele está morto?

—    Ah, sim, morto sem dúvida. Deve ter morrido há uma hora. Mandei chamar o Dr. Grannitt.

Andy meneou a cabeça.

— Onde está ele?

— Lá —, disse o sargento — no seu "refúgio", como costumava dizer.

Andy abriu a porta e penetrou na comprida sala. Todas as luzes haviam sido acesas e ele se virou automaticamente para a direita, onde deveria estar a escrivaninha de Merrivan, mas este não se encontrava ali. O milionário jazia na outra ponta da sala, os pés voltados para a janela, as mãos erguidas como que para deter um agressor, um ricto de terror no rosto. Fora alvejado à queima-roupa, pois sua camisa mostrava uma mancha escura de pólvora.

Não foi preciso proceder a um exame médico; um olhar sobre a figura imóvel era suficiente.

 

Andy entrou no saguão.

—    Onde estão os criados? — perguntou.

—    O mordomo está tranqüilizando as mulheres, senhor.

—    Mande buscá-lo —, disse Andy brevemente.

O mordomo nada tinha ouvido. O patrão tinha mandado a criadagem recolher-se cedo. Dissera que apagaria as luzes e trancaria as portas. Costumava fazer isso amiúde, de modo que o mordomo não estranhou a ordem.

—    Ele recebeu alguma visita esta noite?

O homem hesitou.

—    Não lhe posso dizer ao certo, senhor. Ouvi algumas vozes.

—    De quem?

—    Bem —, o homem titubeava — segundo me parece, era a voz de uma senhora.

—    Reconheceu de quem era?

—    Não senhor.

—    Que horas eram?                                         

—    Entre dez e meia e onze.                                     

— Ouviu algum tiro ?

—    Não, senhor. Algo me acordou; talvez tenha sido isso. A cozinheira diz ter ouvido um barulho parecido com um rangido de porta. Ela se levantou e veio me chamar. Não me despertou tão logo ouviu o som, mas ficou algum tempo na cama a tremer de medo, pensando em ladrões. Depois se levantou, foi até a porta do Sr. Merrivan e como ele não respondesse, veio até mim. Foi assim que descobri o Sr. Merrivan.

—    Quando entrou na sala, encontrou as janelas abertas ou fechadas?

—    Fechadas, senhor.

—    Haverá alguma outra saída além da porta da frente?

—    Sim, senhor. Há uma saída pela cozinha e uma outra pelo roseiral, que o próprio Sr. Merrivan usa.

As portas de acesso a ambas as saídas estavam trancadas e fechadas à chave, e Andy voltou para a sala em que o assassinato tinha sido cometido. Notou algo estranho no armário enta­lhado chinês. A porta não parecia adaptar-se direito; ele a abriu e a porta se lhe soltou na mão. Foi então que compreendeu a utilidade daquela peça. No interior havia um cofre de aço, também aberto. Um molho de chaves pendia da fechadura. Ele abriu e constatou estar o cofre vazio. Então percebeu um maço de papéis queimados na lareira. Parte do maço ainda fumegava e ele recolheu com cautela os pedaços de papel ainda não carbonizados. Conseguiu salvar um pequeno diário encadernado em couro, apenas parcialmente destruído, e o colocou com grandes cuidados sobre uma tira de papel.

—    Ninguém deve mexer nestas cinzas, entende, sargento?

—    Entendo.

Andy examinou as janelas. As da frente estavam intactas. Experimentou depois as janelas de trás e, como esperava, uma delas estava aberta.

—    Perdão —, disse o sargento — o senhor viu a carta?

—    A carta? — disse Andy. — Não, onde?

—    O mordomo encontrou-a no chão, perto da escrivaninha. Disse-me que a apanhou e colocou sob uma pilha de papéis em cima da mesa. Lembrou-se disso agorinha mesmo. Declarou que julgara ser uma carta que o Sr. Merrivan começara a escrever pouco antes de ser morto.

Andy deu uma busca na escrivaninha e sacou de sob uma pilhas de faturas e cartas não respondidas, uma folha de papel amarelo. A caligrafia era apertada e naquele estilo tombado para a esquerda, via de regra empregado quando se quer disfarçar a escrita.

As primeiras palavras prenderam-lhe a atenção. Sentou-se à cadeira giratória. A carta dizia:

Dei-lhe uma oportunidade. Você me traiu a confiança. Terá de arcar com as conseqüências. Se, nas próximas vinte e quatro horas não concordar em honrar sua promessa, cuide-se! Esta advertência é definitiva. Minha paciência se esgotou.

A assinatura era "A. S.". Andy ergueu os olhos para o teto. A. S.? Abraham Selim! Havia um P. S.

Um amigo de confiança colocará esta carta sob a sua porta.

Andy dobrou a carta e guardou-a no bolso no momento em que o Dr. Grannitt apareceu.

—    Bem?

—    Muito mau —, disse o médico sacudindo a cabeça. — Ah, sim, ele está morto, sem dúvida; morto há uma hora, creio eu. Erga-lhe a cabeça, Dr. Macleod. Sim, lá está a ferida. A aorta torácica foi atingida e a quarta vértebra dorsal quebrada pela mesma bala. Pode-se dizer que foi morto duas vezes. Mau, muito mau.

—    Nota algo estranho nele, Dr. Grannitt?

—    Não —, disse o outro baixando um olhar profissional sobre o defunto.

—    Olhe os pés dele.

O velho obedeceu e ergueu o sobrolho.

—    Deus do Céu, ele está de botinas de trabalhador!

Tratava-se de um artigo grosseiro e sem elegância, do tipo que os trabalhadores da roça usam, e ambos os pés pafectam amarelecidos de lama ressequida.

O médico olhou e abanou a cabeça.

—    Não precisa mais de mim, Macleod?

—    Não. Penso que nem mesmo precisaremos do senhor no inquérito, a menos que exijam um depoimento extra.

—    Graças a Deus por isso —, disse o médico. Ele professava o mesmo horror de todos os clínicos para com os procedimentos judiciais e os seus característicos desperdícios de tempo.

Estou tremendamente ocupado neste momento. Rara é a noite em que não sou chamado por um marido aflito... gente deveras prolífica esta de Beverley.

Andy o acompanhou até a saída e voltou ao quarto da morte para proceder a uma investigação mais completa. Pôs-se a traba­lhar longe do cadáver, começando pela janela através da qual o matador deveria ter entrado. Obteve uma total confirmação da sua teoria. Havia três pegadas empoeiradas no consolo forrado de popelina preta; eram marcas de sapatos: duas do pé esquerdo e uma do direito. Eram bem pequenas, de mulher talvez, e o mordomo tinha ouvido uma voz de mulher.

A janela estava destrancada e se abriu facilmente e sem barulho. Ele nada encontrou até chegar à escrivaninha. Era uma grande secretária de pedestal, toda em carvalho negro. Parecia antiga; um homem como Merrivan não compraria decerto uma imitação.

Havia duas gavetas de cada lado e uma delas a última de baixo e próxima da janela —, estava aberta. Parecia ter sido aberta por Merrivan, quando este se sentara na poltrona giratória. Andy a abriu ainda mais e seus olhos captaram uma reverberação de ouro. Era um anel... um tênue aro de ouro com cinco pequeninas esmeraldas incrustadas.

Ele franziu o cenho. Já havia visto aquele anel. Onde? sabia onde, mas se recusava a admiti-lo. O anel era de Stella Nelson. Ele o havia visto no dedo dela, no prédio do correio, e sentiu uma súbita pontada de decepção; aquela pontada que todos os homens sentem quando percebem que uma mulher bonita não é para eles.

Andy fixou os olhos no pequeno círculo que tinha na palma da mão, revirou-o e guardou-o no bolso. Depois fechou a gaveta.

Em seguida começou a dar uma busca na escrivaninha e embaixo dela.

Uma vez mais foi recompensado. Descobriu uma caixinha recoberta de couro. Era uma caixinha de anel e estava vazia. Ouviram-se passos no corredor e ele meteu o pequeno estojo no bolso do colete.

O recém-chegado era o inspetor local, um homem importante, com justa razão pronto para sacar todo o proveito possível do desfecho do caso.

O policial declarou tratar-se de "um caso muito ruim". Curioso como as pessoas sempre dizem a mesma coisa em tais ocasiões.

—    Encarrego-me do caso, Sr. ... hum, Macleod —, disse ele.

—    Certamente — concordou Andy —, mas é preciso que me dê instruções escritas no sentido de que eu abandone as investigações daqui por diante.

O inspetor hesitou.

—    Quero dizer que trabalharemos juntos, Sr. Macleod. Telefonei ao inspetor chefe e ele me ordenou que notificasse a chefatura.

—    Trabalharemos juntos, se eu me encarregar do caso —, disse Andy. — O senhor receberá todos os louros pelos sucessos, Inspetor. Permita-me que encontre o assassino.

—    Não desejo honraria alguma. Mas tenho certeza de que será justo para comigo, Sr. Macleod. Que quer que eu faça?

Andy deu suas instruções e dentro de meia hora o corpo era removido. Mais tarde, o inspetor se aproximou com uma informação.

—    O Sr. Pearson ouviu o tiro. O estampido o acordou. Ele veio para cá no instante em que o mordomo fazia a sua descoberta. O tiro saiu do pomar aos fundos da residência do Sr. Merrivan.

Andy ouvia incredulamente.

—    Do pomar? Impossível. Ele foi atingido à queima-roupa. A camisa está chamuscada e enegrecida.

—    Mas a criada também ouviu —, a rapariga histérica. Conseguimos acalmá-la e ela jura que ouviu o tiro. A janela do seu quarto dá para o pomar. Ela também estava acordada; as batidas à porta do mordomo a haviam despertado.

—    Mas o mordomo não ouviu nada?

—    Àquela altura ele já estava descendo —, explicou o oficial. Andy coçou o nariz irritado.

—    Merrivan já estava morto e o cofre arrombado. Teriam sido precisos ao menos quatro minutos para achar as chaves, abrir o cofre... não, é impossível. O mordomo deve ter feito alguma espécie de barulho... derrubado uma cadeira provavelmente.

—    Mas o Sr. Pearson não teria ouvido esse ruído. Andrew nada disse.

—    Realmente não teria —, confessou ele.

Começava a amanhecer e Andy se dirigiu para o jardim, passando pela cozinha. Tudo estava muito quieto e solene e o ar fresco da manhã tinha um sabor de indescritível doçura.

O pomar ficava além da horta. Seguia-se por um caminho asfaltado, atravessava-se uma cancela de madeira e se chegava a um aglomerado de árvores frutíferas, cujos troncos caiados bran­quejavam à luz da aurora.

Antes de chegar ao arvoredo o caminho se esfiapava numa trilha de grama ordinária.

Andy espiou à direita e à esquerda, mas nada viu até ultrapassar a primeira fileira de árvores. Mas ainda havia muita sombra, de modo que ele não percebeu de pronto a figura acoco­rada junto a um tronco. O homem estava morto, fulminado com um tiro no coração.

Andy retornou à casa e chamou o inspetor.

—    Há um segundo cadáver no jardim —, disse ele — e, se meus olhos não me enganam, trata-se de um velho conhecido seu.

O oficial de polícia o acompanhou até o local em que jazia o morto.

—    Conheço-o, chama-se Sweeny —, disse ele. — Trabalhou para o Sr. Merrivan e foi despedido por furto. De modo que foi ele o assassino; primeiro atirou no Sr. Merrivan, depois saiu do jardim e se suicidou!

—    Onde está o revólver? — indagou Andy tranqüilamente.

O inspetor deu uma busca nas proximidades, mas não obteve

êxito. A grama estava bastante rasa e fora usada como pasto (Andy descobriu depois que os carneiros tinham estado no pomar aquela semana) e não havia esconderijo possível para a arma.

—    Houve luta aqui —, disse Andy de súbito. — Olhe a relva! São cicatrizes no lugar em que o calcanhar de um sapato tentou tomar apoio... e, por favor, inspetor, vá buscar o mordomo, sim?

Andy esperou que o homem desaparecesse, caminhou rápido até a árvore mais próxima e apanhou algo do chão. Era uma écharpepreta... a écharpe que Stella Nelson usava quando o acompanhou até a saída, duas noites antes.

Não havia a menor dúvida. Num dos cantos via-se um monograma bordado em seda vermelha, S. N. A écharpe estava ligei­ramente rasgada. Ele cheirou-a. Sabia que ela usava um perfume de fragrância indefinível; a mais delicada fragrância de que tinha memória. Sim, fora de qualquer dúvida, era a écharpe de Stella Nelson. Ele a enrolou bem apertada e enfiou-a no bolso da calça, compreendendo pesaroso que estava carregado de pistas e que cada uma delas apontava a jovem como assassina.

Todavia, no fundo, não tinha dúvida. Não era a beleza nem a juventude da moça que o convencia da impossibilidade de Stella ser uma assassina. Era algo dentro dele. Talvez, assim como Scottie, ele fosse clarividente. Sorriu ante a idéia e então lhe ocorreu já não sentir a opressão que o irritara durante todo o tempo que permanecera no vale. Seria a luz do dia? Não, ele pressentira a silhueta esquiva quando o sol brilhava com sua maior intensidade.

O inspetor voltou e, para justificar a ordem que lhe dera, Andy teve de submeter o agitado serviçal à provação de identi­ficar o morto.

—    Sim, senhor, esse é o homem que o Sr. Merrivan surpreendeu por aqui esta manhã... ontem de manhã, quero dizer.

—    Claro! — Andy se esquecera do incidente. Sweeny odiava Merrivan. Talvez tivesse alguma outra razão além da natural antipatia por um patrão que o apanhara furtando.

De novo na casa, Andy deu suas instruções finais.

— Não deixem entrar ninguém. Não dêem qualquer informação aos repórteres além do simples fato de que o Sr. Merrivan foi assassinado entre meia-noite e uma hora da manhã. A posição do corpo poderá ser mostrada através de um diagrama; que ninguém entre no quarto. Motivo... roubo. O homem no pomar,  eles que o expliquem como quiserem.

Estava a meio caminho do jardim quando Arthur Wilmot surgiu correndo. Wilmot se vestira às pressas... o pijama lhe aparecia sob o paletó... e ele estava muito pálido.

—    Sr. Macleod, é verdade... meu pobre tio... Por Deus, não pode ser!

—    Ainda bem que o encontrei —, disse Andy vagarosamente. — Sim, receio que seja verdade. Seu tio foi morto; à bala.

—    Assassinado?

Wilmot disse a palavra a medo. Andy concordou.

—    Mas... ele não tem inimigos...

—    Poucas pessoas são mortas por questões de inimizade —, disse Andy. — O único que ameaçou recentemente a vida do Sr. Merrivan foi você.

Wilmot engoliu em seco.

—    Eu? — gaguejou. — Eu nunca... ele disse...?

—    Ele estava morto ao ser encontrado —, respondeu Andy

—    e nunca me disse nada. Bem, Sr. Wilmot, não tenha pressa em responder e, se quiser, não me responda nada. Teve alguma briga com o Sr. Merrivan?

O jovem perdeu a fala. Conseguiu apenas sacudir a cabeça imponentemente e esgazear os olhos aterrorizados para o inquisitor.

—    Dir-lhe-ei que, estando do lado de fora desta casa, há uma semana, eu o ouvi dizer: "nem que tenha de matá-lo".

Wilmot recobrou a voz.

—    Alguém anda propalando mentiras a meu respeito. — Sua voz começou a altear. — Posso lhe dizer algumas verdades a respeito de uma certa pessoa. Briguei com ele, sim... briguei! Por causa de uma moça que não vale o que come. Agora o senhor sabe. Ele falou em casar com ela... e já é casado. Não sabia que eu estava a par; jamais lhe havia dito algo. A esposa fugiu dele e foi para o estrangeiro, e eles não chegaram a divor­ciar-se. Ele tinha medo de divorciar-se dela... e quando me disse que pretendia casar...

—    Não grite —, disse Andy bruscamente. — Não sou surdo. E não quero saber dos seus problemas de família. Estou certo de que você nada teve a ver com o assassinato. Embora

—    Andy fez uma pausa para dar realce à frase seguinte —, embora seja o herdeiro e beneficiário da morte de Merrivan. A menos, está claro — acrescentou, desviando o olhar do homem, mas observando-lhe o entendimento nos olhos —, a menos que esteja empenhado em provar que a esposa está viva. Nesse caso, a mulher ficará com tudo. Talvez haja um testamento.

Wilmot sacudiu a cabeça.

— Não há testamento —, disse em tom mais brando. — Perdoe-me por haver perdido a calma, Sr. Macleod, mas estou perturbado... quem não estaria?

— Quem não estaria? — concordou Andy. Ele voltou na companhia de Arthur Wilmot e o viu entrar na casa. O homem tinha uma acusação contra alguém... contra a moça que não valia o que comia? Aquilo lhe deu o que pensar. Teria havido uma briga entre aqueles dois de Beverley Green, tidos "pràticamente como noivos"? Que vaidade ferida seria responsável por aquelas palavras, "não vale o que come"? Conhecia os sintomas. A moça tinha ferido o orgulho de Wilmot. O convencimento do jovem se tornara patente para Andy desde o começo, pois ele tinha o hábito de fechar os olhos durante um segundo, mais ou menos, quando falava acerca de si e das suas façanhas — sinal inequívoco de vaidade num homem.

Andy se pôs a caminhar lentamente pelo cascalho.

Deveria ir até lá? Olhou o relógio. Seis horas. Ela não estaria de pé. Ele olhou cheio de dúvida para a casa silenciosa.

As persianas estavam fechadas, mas ela lhe havia dito que se levantava às seis horas, quando ficavam sem empregada em casa. Ainda assim Andy hesitou; os nós dos seus dedos se levantaram para bater na porta. Se Stella estivesse acordada iria escutá-lo. Se estivesse dormindo não faria mal. Bateu, e a porta se abriu instantaneamente.

 

O rosto da moça estava branco; sob seus olhos havia grandes sombras. Mas — o que para ele era pior — ela trajava a mesma blusa branca da véspera, agora toda amarrotada. Ela não se despira aquela noite!

Ela caminhou para o saguão. Havia uma luz acesa, pois as cortinas não tinham sido corridas.

—    Estava à sua espera — disse lânguidamente. — Permite- me ir avisar o papai antes que me leve?

Ele ficou como que petrificado.

—    Antes... que eu... a leve? — repetiu.

—    Sabia que o senhor me viria buscar. Passei toda a noite à sua espera, Sr. Macleod. Creio que não desgrudei daquela cadeira.

Ela percebeu como ele se sentia mal e baixou a cabeça.

—    Sinto muito —, sussurrou. — Estava louca, simplesmente louca.

Ele se refez e, em duas passadas, se colocou diante dela, agarrando-a pelos ombros.

—    Tola, minha pobre tolinha —, disse num suspiro. — Por Deus! veja o que deixou atrás de si! veja!

Retirou a écharpe do bolso e jogou sobre a mesa. Depois atirou o anel em cima.

—    Minha écharpe, meu anel! Lembro-me.

Andy sentia alguma dificuldade em falar; o coração lhe batia num ritmo que fazia o patologista dentro dele cismar.

—    Estou sendo tão tolo quanto você, Stella — disse ele —, mas não posso... não posso deixá-la passar por aquilo. Creio que estou apaixonado por você, o que me parece rematada loucura, mas terei o carro pronto dentro de um quarto de hora e poderei tirá-la do país antes que alguém suspeite... ligue você ao crime. Claro que estou louco, mas não sou capaz de...

Ela olhava para ele com uma careta, intrigada, os olhos esbugalhados e úmidos.

—    O senhor é formidável, doutor. Mas não posso; o Sr. Merrivan sabe e provavelmente ficará na espreita.

Andy deu um passo atrás.

—    Sabe? Na espreita? Ele está morto!

Ela não compreendeu o que ele dizia.

—    Merrivan está morto. Foi assassinado ontem à noite.

—    Assassinado ontem à noite — repetiu Stella, e ele sentiu tirarem-lhe um peso do coração.

Andy enxugou calmamente a testa. — Na verdade, sou maluco mesmo... pensar que você tinha alguma coisa a ver com aquilo. — Depois adiantou-se e amparou quando os joelhos da jovem se dobraram.

O primeiro pensamento que ocorreu a Stella, ao recuperar a consciência, foi que ele a havia julgado uma assassina e tinha querido salvá-la. O Sr. Merrivan estava morto. Era uma péssima notícia. Poderiam suspeitar dela, mas ele não o havia feito, aquele homem de olhos cinzentos que lhe havia perscrutado o rosto, e que ela odiava. O resto não tinha nenhuma impor­tância.

—    Acho que sou meio maluca —, disse ela com voz insegura, fazendo tinir com um rilhar de dentes o copo que ele lhe segu­rava aos lábios.

Enquanto bebia ela o olhou no rosto; ele notou uma confiança infantil... a confiança que talvez o pai lhe merecera um dia.

—    Você é maravilhoso e creio que me tem estado a namo­rar... namoro entre as ruínas! — disse ela aos arrancos. — E horrível que o Sr. Merrivan tenha morrido. Estive em casa dele ontem à noite. Ele mandou chamar-me e fui porque desejava algo.

—    Que era, Stella? — perguntou Andy com doçura.

—    Jamais lhe direi. Mesmo que morra, não lhe poderei dizer, Doutor... Andrew. E eu que o odiava tanto; você é muito bom.

Ele tinha o braço por detrás dos ombros dela, amparando-lhe a cabeça castanha.

—    E então que aconteceu?

—    Ele foi horrível comigo. Não devo falar assim a seu respeito, agora que está morto, não é ? Mas ele foi... horrível... e fui obrigada a deixá-lo correr a mão em mim — Andy percebeu que a moça estremecia — e beijar-me; depois ele me mostrou algumas coisas que eu queria, obrigou-me a tirar o meu anel e me pôs no dedo um vasto brilhante. Depois arrebatei-lhe as coisas que queria; estavam sobre a mesa. Aí ele veio atrás de mim; apontei um revólver para ele.

—    Você tinha um revólver? Meu Deus, Stella, você fez o possível para pôr em perigo o seu lindo pescoço!

—    Fiz mesmo, não fiz? Depois saí correndo da casa.

—    Por onde saiu?

—    Pela porta da frente. Não conheço outra saída.

—    Não passou pelo pomar?

—    Não; por que haveria de fazê-lo?

—    Prossiga... você veio direito para casa. Que horas eram?

—    Onze. A igreja de Beverley bateu as onze quando abri a porta.

—    Por que foi até lá?

—    Por causa de uma carta... uma carta horrorosa... colo­cando as coisas em linguagem clara... e as alternativas em linguagem igualmente clara. Eu... eu destruí as coisas que trouxe de lá; depois fiquei à espera de que você viesse e me prendesse pelo que fizera. Desejei que não fosse você; depois desejei que fôsse. Julguei que você não seria grosseiro e medo­nho como o Inspetor Dane. E quando o vi aproximar-se do portão... de alguma forma eu sabia que você estava no portão... senti vontade de acabar com tudo logo. Já não podia suportar mais. Em que está pensando, dout... Andrew?

—    Alguém a viu entrar na casa?

Ela sacudiu a cabeça.                                                                            

—    Acha que Wilmot poderá tê-la visto?                                       

—    Arthur Wilmot? Não. Por quê?

—    Ele fêz muito mistério acêrca de um assunto. As;coisas que você destruiu, eram documentos?               

Ela assentiu.

—    Onde foi que as queimou.. aqui ou em casa de Merrivan?

—    Aqui. Ela mostrou a lareira com o dedo. Eis o lugar em que deitei fogo à carta.

—    A carta convidando-a para ir lá? indagou ele desanimado. Você pôs fogo nela? Mas... ela provaria tudo!

—    Não me importa... desde que você creia em mim —, disse ela, e com dificuldade se levantou. Vou para a cama. Não, não vou. Não há ninguém para preparar o café do papai. Ele alia um apetite saudável à impertinência característica dos inválidos.

—    Você vai para a cama —, disse Andy autoritariamente. Eu prepararei o café de seu pai. Telefonei ontem ao meu criado, ordenando-lhe que viesse. É um cozinheiro de mão cheia e no trabalho de limpeza não tem rival.

—    Tem certeza? perguntou ela duvidando, malgrado sentisse vontade de se convencer, pois estava caindo de sono.

—    Não serei indelicado a ponto de sugerir que devo carregá-la até em cima —, disse Andy com gravidade. Já carreguei senhoras de grande pêso no desempenho dos meus deveres. Via de regra, alcoolizadas.

—    Obrigada. Irei a pé atalhou Stella afobadamente. Ela parou no meio da escada e se debruçou sobre a balaustrada, deixando pender a mão.

—    Estou muito contente por ter sido você —, disse, quando Andy lhe tomou o mão e alisou com ela o próprio queixo.

—    O quarto de papai fica no primeiro andar... é o da frente —, foram as últimas instruções da moça.

Depois que ela se foi ele correu as persianas e abriu as janelas. Não havia telefonado a ninguém. Dando uma busca na cozinha e na copa, Andy preparou um pouco de chá para si e depois se entregou à tarefa de providenciar o desjejum do Sr. Nelson. Diversas vêzes, enquanto trabalhava, disse a si mesmo que cuidava de esclarecer um duplo assassinato e que era absurdo estar ali a limpar um quarto, parando de quando em quando para ouvir o silvo de uma chaleira.

Kenneth Nelson ficou mais surpreso com Andy do que ficara aquele cavalheiro consigo próprio. Sua primeira impressão foi a de que tivera uma recaída e, depois de um período de inconsciência, permanecia ainda um tanto alheado do mundo.

—    Que dia é hoje? — perguntou arquejante.

—    É ainda segunda-feira —, disse Andy descansando a bandeja. — Ou era, antes de eu subir até cá. Mandei sua filha para a cama.

—    Ela não está doente? — A preocupação de Kenneth era genuína.

—    Está cansada. A noite foi algo exaustiva. Merrivan morreu e acho que o senhor pode-se levantar hoje. Far-lhe-á bem entrar em contato com os seus semelhantes. Mas, Sr. Nelson, no que lhe diz respeito, este lugar é mais seco que um deserto. Não posso arriscar-me.

Nelson estava chocado.

—    Merrivan morto. — Quando foi? Ele me pareceu são como um pêro a última vez que o vi.

Andy só lhe forneceu os detalhes quando o artista se achava vestido e no andar de baixo. Ele surgiu com uma bandeja de ovos frios e chá e os dois fizeram juntos o desjejum.

—    Isso é muito mau. Pobre Merrivan. Não era grande amigo meu, mas...

Andy percebeu que o rosto de Nelson teve uma contração, como se uma velha recordação o tivesse assaltado. Conhecia a fraqueza daquele homem e, com tempo, poderia descobrir-se a causa. A morte de Merrivan rompera o lacre que vedava deter­minada porção de sua mente e outro pensamento estava livre para perturbá-lo. Durante toda a refeição, Andy viu-o pelejar por aprisionar o fugitivo. Mas a coisa crescera demais para a sua pequenina cela, e Nelson fez-se mais grave e calado; muito mais parecido com o homem que Andy imaginava.

—    Por que Stella não dormiu à noite, Doutor? — indagou ele.

—    Talvez tenha ouvido o disparo. A criada da casa teve um ataque de histeria e gritou uma hora sem parar. Duvido de que alguém em Beverley Green tenha podido dormir.

Andy deixou o Sr. Nelson preparando-se para sair e rumou para a casa de hóspedes. Eram então oito horas; vivera seis horas exaustivas e pelo menos três minutos de agonia mental concentrada que haviam sido mais cansativos do que todo o resto das suas sensações.

O Inspetor Dane saía do bangalô quando ele chegou.

—    Recado telefônico da chefatura — comunicou ele. — Todos os postos foram avisados e esta manhã será exarada uma ordem de prisão contra Abraham Selim. A chefatura quer saber se o senhor tem alguma idéia de onde ele mora. O escritório já foi localizado.

Andy não tinha qualquer informação para prestar.

—    Foi só o que acharam? — perguntou.

—    Só. Existem impressões digitais na parte envernizada da escrivaninha e estou providenciando para que sejam fotografadas. O legista gostaria de encontrar-se com o senhor às onze horas.

As formalidades ligadas aos casos de homicídios dolosos não têm fim, o próprio "trabalho de equipe", é cansativo porém necessário. Andy sentia-se esgotado e já se havia metido na cama numa hora em que a maioria das pessoas cuidava ainda de jantar.

Stella Nelson acordou a certa altura da tarde e sua primeira impressão foi a de que acontecera algo agradável. Naquele estado de espírito, tomou banho e se vestiu, embora ciente que um crime fora cometido a poucos passos de distância, e que ela era a última pessoa que se sabia haver estado na companhia da vítima. Ela ainda poderia ser presa, mas aquele fim horrível não lhe afugentou a disposição equânime.

—    Você é fria, calejada e inumana — disse ela —, e pouco feminina.

Talvez naquelas condições ela fosse mais feminina do que em quaisquer outras. O mundo é mais estreito e mais especificamente confinado para uma mulher do que para um homem: pode se reduzir a uma único corpo brilhante que se destaca de um embaçado pano de fundo de silhuetas vagas a sem significado.

O criado de Andrew era, evidentemente, um arrumador de quartos muito desajeitado, pensou Stella ao endireitar os enfeites que ele deixara enviezados e apanhar a pá do lixo e a escova de cima do piano.

Kenneth Nelson chegou carregado de novidades. Almoçara no clube, todo mundo estivera lá, e todos concordavam em que o assassinato era "coisa muito ruim".

—    Vi que você se havia levantado —, disse ela. — Sabe onde está o criado de Andrew Macleod? Quero agradecer-lhe. Ele lhe levou o café da manhã? Creio que ficou surpreendido de vê-lo.

—    O Dr. Macleod me serviu o café. Não vi nenhum criado —, disse Nelson. — Não sabia que ele tinha um criado. Que coisa Stella. .. as notícias acerca de Merrivan e daquele homem.

—    Que homem?

Fez a pergunta sem pensar. Então era Andrew o faxineiro desajeitado? Sentiu vontade de recolocar a escova e a pá de lixo em cima do piano.

—    Qual era o nome dele... Sweeny...

—    Sweeny? Que houve com ele? — perguntou Stella prontamente.

Nelson contou-lhe a estória, feliz por encontrar afinal alguém que ainda não a conhecesse.

—    Macleod não lhe contou? Ele disse que você escutou o disparo e passou toda a noite acordada. Bem, minha teoria é que Merrivan e esse homem se empenharam numa espécie de duelo...

Expôs detalhadamente sua teoria; ela ficou feliz por ouvi-lo falar e não precisar responder.

Stella se perguntava como Andy havia encontrado os ovos. Ela lhe deveria ter dito que o pão estava na panela de louça e a manteiga, na geladeira. Decidiu não terminar a limpeza: seria uma profanação — semelhante a "embelezar" uma bela ruína. As colheres de chá — como as teria ele achado? Claro que se tratava de um detetive.

—    De que se ri? — perguntou-lhe ultrajado o Sr. Nelson. — Não me parece que seja caso para rir, Stella.

—    Perdão, papai — é histeria —, ou algo parecido. Que é isto?

Ela tomou-lhe a carta d,a mão.

—    Um cheque de Mandby, mais polpudo do que eu espe­rava —, disse ele. — Quase me havia esquecido, querida, mas ao vê-la dar risada eu me lembrei.

Nunca antes o pai lhe dera qualquer cheque que recebesse. Geralmente, ele próprio depositava o documento no banco e na manhã seguinte ela saía para arranjar criada. Ele se sentia desmesuradamente orgulhoso da sua regeneração, coisa que como­veu Stella.

—    Querido! — ela deu-lhe um beijo e o Sr. Nelson provou um pouco daquela esquecida satisfação que faz parte da virtude.

—    Macleod está encarregado do caso. Vi-o durante um ou dois minutos; tinha uma aparência medonha. Até ele ficou chocado. Foi o que me disse. "Passei uns maus bocados esta manhã", disse-me ele. Pobre rapaz; contudo estava alegre! Minha querida, estava tão alegre como... você. Suponho que esses sujeitos se habituem a certas coisas. E um homem muito capaz. Alegro-me de que esteja aqui.

—    Eu também —, disse ela, lançando um olhar de viés para as raias de poeira que recobriam a mesa.

O Sr. Nelson tinha também uma novidade agradável. Encontrara em Beverley uma antiga criada da casa e, para surpresa daquela boa senhora, parara na rua par,a falar com ela. Nos seus momentos de sobriedade, ele jamais admitia fora de casa que se embebedava. Isso dificultava sobremodo a reconciliação entre o antigo patrão e os serviçais por ele despedidos.

—    Disse-lhe que tinha deixado de beber. Difícil de engo­lir, hein, Stella? Mas disse. Afinal de contas ela sabia. A irmã está esperando o quarto filho — acrescentou de modo inconseqüente e prosseguiu —, ela virá esta tarde trazendo a irmã —, não a que está esperando; a mais nova. Menina muito simpá­tica, noiva de um soldado em serviço na índia; de modo que ficaremos com ela durante algum tempo.

Stella abençoou Andrew uma vez mais.

Durante toda a tarde ela tentou lembrar-se exatamente de como se sentira quando o conheceu. Não foi fácil. Ninguém pode reconstituir o medo sem se amedrontar. Existem na emo­ção certos elementos que desafiam as sínteses. Ela daria tudo para tornar a viver os três minutos em que ele julgara estar ela confessando a autoria do assassinato. O terror dele — o amor dele. Ela sentia as mãos do moço a segurar-lhe os ombros. Há quanto tempo o conhecia? Tinha-o visto quatro vezes e trocado com ele uma dúzia de frases, quando Andy lhe afirmou estar disposto a sacrificar a carreira e a honra em troca da segurança dela. A violência da linguagem dele — chamara-a de tola, tola rematada...

Felizmente para Stella o pai tinha saído. Ele jamais teria compreendido a risada gorgolejante da moça. Decidida, ela saiu à cata da escôova e da pá de lixo e as recolocou com estrépito em cima do piano.

 

Quem era a mulher no quarto de Darius Merrivan? O mordomo do falecido ouvira distintamente uma voz de mulher. Merrivan não recebera visitas aquela noite. O mordomo não fizera entrar ninguém e contudo, ao descer meia hora depois que o patrão o mandara recolher-se, ouvira ruído de vozes; e uma dessas vozes era de mulher. Quem seria a misteriosa visitante? Com toda certeza ela poderia lançar alguma luz sobre o duplo homicídio, que, em seus aspectos sensacionais, era algo sem paralelo nos últimos anos.

Andy leu calmamente o artigo de fundo do jornal. Havia outros vazados mais ou menos nos mesmos termos. Os repórteres tinham chegado até o mordomo. Era inevitável. Ele não poderia manter o homem sob chave e, aparentemente, a advertência que fizera não surtira efeito.

O primeiro repórter que viu na manhã seguinte deu ao incidente da mulher uma enorme importância.

— Possivelmente — disse Andy —, ela nos poderia dizer algo, mas não saberia decerto elucidar o assassinato. Ela foi vista deixando a casa às onze horas da noite. O crime foi cometido depois de uma hora da manhã.

—    Quem a viu sair da casa?

—    Ha, ha! —, disse Andy sorrindo, — esse é o meu segredinho predileto. Falando sério, não tenho fé na mulher. Talvez se trate de uma vizinha a quem naturalmente a publicidade repugna.

Com o segundo repórter, ele foi mais explícito.

—    Por estranho que pareça, fui eu quem a viu sair. Estava sentado à janela. Era uma noite quente e linda, quase tão límpida como uma noite de luar. Via-a atravessando o relvado — ela passou sob a minha janela, a caminho da estrada.

Andrew Macleod era um problema para Andrew Madeod. Ele trabalhava com dois objetivos: manter a moça afastada do caso a trazer o assassino à justiça. A facilidade com que havia mentido o deixava atônito. Ele era de ordinário bastante escru­puloso; mesmo para obter uma condenação, quando certo da culpabilidade do prisioneiro, jamais transformava suposições em fatos; agora, porém, estava mentindo com facilidade e despudor.

A cada novo repórter que lhe era anunciado, esperava deparar com as feições duras de um homem que sabia ser mais difícil que os demais. Felizmente, um certo Sr. Downer não fez sua aparição. Andy perguntou a um dos outros repórteres:

—    Pensei que fosse um caso para Downer...

O jornalista fez uma careta de desagrado.

—    Downer está sempre de férias. Ainda bem. Detesto trabalhar com ele.

Andy sorriu de si para si. Ele partilhava da sensação de desafogo do outro. Havia respondido ao telegrama que recebera da chefatura encarregando-o do caso e perguntando-lhe se necessitava de ajuda. Boa parte do caso estava em Londres e ele deixou essa parte para os homens da capital, dando-se por satisfeito com o auxílio de que já dispunha. Seu ajudante extra-oficial e insuspeitado tinha chegado por volta de onze horas, depois que Andy recebera o último dos repórteres.

Um homem alto e magro, trajando tweed, surgiu na casa de hóspedes e, ao vê-lo, o gerente ficou de queixo caído.

—    Bom dia, Johnston —, disse o recém-chegado acremente. — Macleod está por aqui?

—    O Sr. Macleod está na sala de visitas —, disse o gerente com voz pausada. — É uma surpresa vê-lo aqui, Professor.

"Scottie Quatro-Olhos" tirou os óculos e os limpou com um lenço de seda vermelha.

—    Foi um erro, um estúpido engano da polícia. Não estou ressentido. Afinal de contas, Johnston, é preciso lembrar que em todos os organismos policiais eficientes, erros desse tipo podem acontecer. Jamais culpe a polícia, quaisquer que sejam os vexames por que passe. Melhor doze cidadãos inocentes na cadeia do que um criminoso na rua.

—    Sim, senhor —, disse o deslumbrado Johnston, assumindo naturalmente a atitude deferente que antes demonstrava para com o antigo hóspede. — Deseja ver o Sr. Macleod? — o mordomo teve um instante de hesitação. — A quem devo anunciar?

—    Bellingham, Professor Bellingham —, disse Scottie e acrescentou, — esse é o meu nome, o meu verdadeiro nome.

Um minuto mais tarde.

—    Professor o quê ? — perguntou Andy.

—    Bellingham, o cavalheiro que se hospedou aqui antes, r'

—    Diabo! —, disse Andy, — mande-o subir.

Scottie adentrou a sala, fez um aceno a Johnston e fechou a porta. — A que milagre devo esta visita, Scottie?

—    Ao milagre da justiça! — disse Scottie, sentando-se sem ser convidado. — Fiat justitia etc. Não guardo rancor, Macleod. Andy fez um muxoxo.

—    Então o seu alibi funcionou, hein?

Scottie concordou com um gesto solene.

—    O magistrado disse que não me podia condenar e que se tratava evidentemente de um caso de falsa identidade. Tais coisas aconteceram antes e tornarão a acontecer, Macleod. Para ser honesto, eu estava jogando cartas com o Sr. Felix Lawson, comerciante dos mais conhecidos...

—    E receptador de mercadorias roubadas —, acrescentou Andy com sarcasmo. — A menos que me engane, ele já foi condenado por esse motivo.

—    Não revivamos velhos escândalos —, disse Scottie, — o que interessa é que estou aqui, às suas ordens.

Andy virou-se para encarar o visitante.

—    Que nome você deu a Johnston?

—    Bellingham, Professor Bellingham. É um nom de guerre. Afinal de contas que é um professor? alguém que professa. Pro­fesso entender de Geologia, desde Leibnitz até Hutton. A pedra paleozóica, com a qual incluo o sistema devoniano, é um velho interesse meu, e...

—    Não iremos discutir sua erudição —, disse Andy bem- humorado. — O importante é saber por que está aqui. Depois de ter escapado às malhas da lei... suspeito que à custa de falsos testemunhos em larga escala...

Scottie aproximou sua cadeira.

—    Eu lhe contei algo acerca deste lugar —, disse ele sombriamente. — Afirmei-lhe que havia encrenca no ar e a encrenca veio.

Andy assentiu. Desde o crime, lembrara-se reiteradamente da advertência de Scottie.

—    Agora, dar-lhe-ei uma outra informação —, disse Scottie. — Sob a rosa, por sobre a pedra e ao longo do pátio — ele mudou simbolicamente a posição dos pés — estamos falando como irmãos.

—    Sabe algo a respeito? — perguntou Andy.

—    Não, nada. Estou apenas adivinhando. Simpatizei com este lugar, em parte por ficar longe da estrada principal e em parte por me ter parecido muito promissor, com toda esta gente rica rodeada de ouro e prata prontinhos para o transporte. Aquela Sra. Sheppard usa pérolas como se fossem ovos. O marido é arquiteto da prefeitura e sem dúvida alguma um "boieiro". Mas isso é secundário. Afirmo-lhe que há coisas interessantes neste lugar para um... um cientista. Claro que fiz um levantamento do local desde o clube até a garagem de Sheppard. A única casa da vila que não vale uma noite de trabalho é a residência dos Nelson, mas você decerto o sabe tão bem quanto eu. Não que não exista ali um tesouro...

—    Prossiga com suas especulações —, disse Andy brevemente e de pronto se arrependeu, porque Scottie atirou-lhe um olhar rápido e inquiridor. Não obstante, ele não fez mais nenhuma referência nem à casa dos Nelson nem ao tesouro ali contido.

—    Examinei detidamente a propriedade de Merrivan e ele é o único que tomou precauções adequadas contra os ladrões. Existe um alarme em cada janela, a não ser na janela dos fundos do seu escritório, e essa tem no canto um ferrolho de segurança impossível de se forçar do exterior. Ele tem um revólver, que guarda num pequenino armário atrás da escrivaninha. A porta parece ser uma das almofadas da parede mas não é.

—    Essa eu não tinha percebido —, disse Andy interessado.

—    Como é que ela abre?

Scottie balançou a cabeça.

—    Nunca estive lá dentro; apenas vi a porta. Digo-lhe mais, Macleod, a janela dos fundos não tem alarme contra ladrões, pois é por ali que o velho Merrivan costumava dar suas escapadas à noite. No lado de fora, sob a janela, existe um largo assento de pedra. Você viu?

—    E onde ia ele?

—    Não sei — vi-o apenas uma vez, mas ele caminhava com tal desembaraço que percebi já estar afeito àquela manobra... através do jardim, rumo sabe Deus de onde. Não me dei ao trabalho de segui-lo; seria indelicado da minha parte. Os gordos têm o mesmo direito às aventuras que os magros.

—    Quando o viu sair pela janela?

—    Na noite anterior à minha prisão, Andy —, disse Scottie.

—    Era cerca de onze e meia. Não o vi voltar, mas vi o homem que o seguiu. Não com muita clareza, de modo que não poderia dizer de quem se trata ou identificá-lo entre vinte outros sujeitos. Por isso não os segui. Supus que Merrivan estava para se meter em embaraços e embora eu próprio, em virtude de certos malogros da justiça, tenha conhecido salas de tribunais, jamais me rebaixei ao ponto de aparecer como testemunha em casos de divórcio. Será que você está interessado?

—    Deveras — disse Scottie. — Suponho que você tem alguma idéia da altura desse homem?

—    É um homem pequeno; mais ou menos do seu tamanho —, disse Scottie do alto da insolência do seu metro e noventa.

—    Cerca de um metro e setenta e cinco?

—    Isso mesmo — confirmou Scottie e depois se corrigiu.

—    Não, creio que nem chegava a isso. Honestamente, era um camarada baixinho. Talvez não lhe dê pelo ombro. Mas é muito difícil avaliar, mesmo havendo luar. Descobri o sujeito antes que Merrivan saísse. Os troncos das árvores do pomar são caiados de branco e eu o vi passar diante de um deles; fiquei um pouco assustado. Encarei as coisas de um ângulo inteiramente egoísta.

Meu primeiro pensamento foi para a minha própria segurança, de modo que não me aventurei a investigar. Depois Merrivan apa­receu e se foi da maneira que lhe descrevi. Ele desapareceu antes que o camarada de atalaia no pomar esboçasse qualquer movimento no sentido de acompanhá-lo. Depois, durante um curto segundo, vi o homem à luz da Lua. Tive a impressão de que não era a primeira vez que ele ficava na espreita e talvez lhe assistissem boas razões.

—    O que me está dizendo dá um novo aspecto ao caso —, disse Andy pensativo. — Para falar a verdade, Scottie, eu estava ansioso por achar esse novo aspecto. Ele nos fornece uma diretriz. Não ouviu falar em nenhum escândalo?

Scottie sacudiu a cabeça.

—    Nunca dei ouvidos a tais coisas —, disse ele em tom virtuoso. — Mas, na manhã seguinte, examinei com interesse todas as mulheres no clube e não cheguei a encontrar uma capaz de inspirar um homem de bom gosto.

Andy refletiu durante algum tempo.

—    Não sei exatamente o que vou fazer com você, Scottie, ou como irei explicar a sua presença. Creio que você me seria de grande utilidade, mas é claro que não pode voltar ao seu antigo papel de bibelô da sociedade.

—    Nunca fui precisamente isso —, disse Scottie sem se envergonhar. — Eu resumia os encantos de que a ciência reveste seus iniciados.

Andy riu.

—    De qualquer forma, alegro-me de vê-lo, Scottie, e quase me alegro, embora seja uma imoralidade confessá-lo, por ter você escapado. Agora, que vou fazer com você? Será que os Nelson o acolheriam? Não estou seguro quanto ao Sr. Nelson.

Ele deu a entender estar plenamente seguro a respeito da moça e Scottie concluiu que no mínimo eles já se conheciam.

—    Espere um pouco aqui, enquanto dou um pulo até lá —, disse Andy. — Não me leia a correspondência, se for possível.

Aquela observação, o visitante se pôs verdadeiramente abespi­nhado, mas Andy disparou a rir.

Stella, esfuziante de felicidade pelo sentimento de conforto que a nova criada lhe proporcionava, cuidava do jardim, quandoAndy atravessou o portão. Ela descalçou as luvas e lhe ofereceu a mão.

—    Stella, quero que me ajude. Chegou um velho amigo meu. Não posso alojá-lo na casa de hóspedes e preciso realmente do seu auxílio.

—    Mas, por que a casa de hóspedes não serve? indagou ela surpresa. Papai poderia responder por ele.

—    Trata-se de Scottie —, explicou Andy. — Lembra-se de Scottie Quatro-Olhos?

—    O professor? indagou ela aturdida. Pensei que estivesse preso.

—    Houve uma falha da justiça —, disse Andy calmamente —, e ele saiu livre. Você poderia acomodá-lo? Sei que este é um pedido extraordinário, pois Scottie é sem a menor dúvida um salafrário. Mas prometo-lhe que êle não irá manchar-lhe o nome nem roubar-lhe a prataria. Ao mesmo tempo, será preciso ofere­cer uma explicação plausível ao seu pai.

Ela franziu o cenho, refletindo.

—    Se papai chegasse a pensar que se trata realmente de uma falha dia justiça... refiro-me à prisão e tudo mais... e que o professor se houvesse melindrado em conseqüência...

—    Isso mesmo —, disse Andy e entrou na casa para conversar com o Sr. Kenneth Nelson.

Encontrou-o no estúdio, sumamente interessado no olho esquerdo de Pigmalião, e o Sr. Nelson ouviu com interesse a estória do reaparecimento de Scottie.

—    Compreendo muito bem —, disse o pintor. O pobre rapaz não quererá encontrar-se de novo com toda esta gente; e, se, como diz, ele deseja terminar seus estudos sobre as estratifica­ções de Beverley... Beverley, a propósito, tem estratificações características... terei muito prazer em hospedá-lo, embora nunca tenha ouvido dizer que se façam averiguações geológicas à noite.

—    O professor é um homem notável disse Andy com gravidade.

 

A instalação de Scottie em casa dos Nelson teve dupla finalidade.   

Propiciou a Andy um lugar-tenente sagaz, embora sem princí­pios, e o deixou mais tranqüilo do que se Stella estivesse entregue tão-somente à proteção do pai. Havia o fato irretorquível de que um assassino estava à solta; de que esse assassino provavelmente testemunhara a entrevista entre a moça e Merrivan e poderia, para salvar a própria pele, implicá-la no caso. Como teria a écharpe de Stella ido parar no pomar? O motivo exato pelo qual a haviam apanhado ele não era capaz de adivinhar, mas uma coisa estava clara o criminoso tinha plena consciência da presen­ça da jovem.

Andy foi até Londres aquela manhã, levando consigo o diário carbonizado que de nada lhe valerá, pois metade das páginas havia sido arrancada ou queimada em separado, antes de ser o livro atirado ao fogo.

Sua primeira visita foi ao Edifício Ashlar. O escritório do Sr. Abraham Selim estava nas mãos da polícia, o antecessor de Sweeny fora encontrado e estava à espera de Andy. A descoberta mais importante da polícia fora uma carta endereçada a Sweeny. Era sem dúvida em resposta a uma anterior deixada por Sweeny ao patrão e versava sobre o prosaico problema da limpeza da sala e das despesas relativas. A importância do bilhete, na opinião de Andy, era ser a caligrafia idêntica à descoberta na escrivaninha de Merrivan.

O segundo fato que veio à tona e a prova partiu de um ascensorista que conhecia Sweeny era o de que o homem fora despedido na véspera do seu assassinato. A razão da dispensa também se soube. Selim o tinha acusado de abrir cartas no vapor d'água e ler-lhes o conteúdo, e a queixa provavelmente tinha fundamento, embora o funcionário sempre a houvesse refu­tado perante o seu amigo do elevador.

Pouco mais havia para se saber. O antecessor de Sweeny jamais vira seu patrão e, na aparência, seguia os mesmos métodos do homem a quem passara seus deveres. As cartas eram deixadas no cofre e habitualmente recolhidas aos sábados e quartas-feiras, dias em que o empregado não tinha ordem para aproximar-se sequer do escritório. Ninguém jamais vira o misterioso Sr. Selim entrar ou sair do escritório e o porteiro de baixo não o conhecia. Havia a possibilidade de que ele ocupasse outro conjunto de salas no edifício, mas investigações identificaram todos os demais inquilinos. Julgando que o pessoal da firma mais próxima talvez pudesse ter visto alguma vez o Sr. Selim, Andy fez ele próprio uma visita ao escritório pegado, ocupado pela firma Wentworth & Wentworth.

Verificou que o quadro de funcionários consistia de uma datilógrafa. Ao que a moça lhe informou, Wentworth & Wentworth conhecera dias melhores, e o negócio apenas era mantido por razões sentimentais e não devido aos lucros que proporcionava.

—    O Sr. Wentworth não está no momento —, disse a moça. — Não se encontra muito bem de saúde e só vem ao escritório duas vezes por semana. De qualquer forma, tenho certeza de que ele pouco lhe poderia dizer acerca do Sr. Selim.

—    Você por acaso viu alguma vez o Sr. Selim ?

Ela meneou a cabeça. — E estou certa de que o Sr. Wentworth também não o viu, pois uma ou duas vezes observou o quanto era estranho que ninguém jamais visse o Sr. Selim. A única pessoa daquele escritório que eu vi foi o guarda-livros. Ficava ali de onze horas até uma. O trabalho era fácil e agradável. Surpreende-me que ele tenha sido tolo a ponto de perder a colo­cação.

Aparentemente ela também tinha ouvido falar nos envelopes abertos a vapor. Andy fez uma visita ao inspetor de rendas local. Soube que as declarações do Sr. Abraham Selim vinham sempre em perfeita ordem e que ele estava quite com o fisco. O fun­cionário nunca vira o homem, bem como nunca tivera oportunidade de lhe fazer uma visita.

Andy deixou um detetive de guarda no escritório e voltou para Beverley Green com poucas informações a mais do que as que já possuía.

Será que Scottie saberia — Scottie com os seus conhecimentos do submundo e da estranha fauna que o povoava? Consultaria Scottie. Ele vinha consultando Scottie com freqüência, pois este se hospedara em casa dos Nelson. Era uma desculpa para aparecer por lá.

Andy foi encontrar o digno cavalheiro em conversa com. Stella. O Sr. Nelson estava no clube, expondo uma nova teoria.

—    Selim? Abraham Selim? Sim, agiota e desonesto também, creio eu.

Andy observou que o rosto da môça ficara sério de repente. Ela, na verdade, experimentava a primeira sensação de desconforto desde que o crime fôra cometido.

—    Nunca encontrei quem o conhecesse, mas sei de uma porção de gente que recorreu a êle. Não é boa bisca.

—    Será do tipo que ameaça aqueles que não lhe podem pagar?

—    Ameaça? —, disse o outro com desprezo. Não há o que Selim não faça. Um amigo me... — ele se emendou: um homem de quem me falaram, Harry Hopson, o lesou em coisa de duzentas libras. Ele arranjou um jeito de Harry pegar dez anos de cadeia. Não que Harry não os merecesse, mas Selim sem dúvida fez uma carga cerrada contra ele, baseando-se num caso antigo que Harry já olvidara. Seja como for, o fato é que o homem pegou dez anos.

Uma coisa era certa; se Merrivan estivesse em tais aperturas financeiras que se visse na contingência de apelar para Selim, a dívida deveria traduzir-se numa soma enorme. Os fornecedores estavam todos pagos até o sábado, o saldo da sua conta bancária era de alguns milhares de libras e não havia qualquer indício de que ele estivesse apertado de dinheiro. Até que o contador fizesse um levantamento de suas apólices, seria difícil saber o montante da sua fortuna. Não se descobriu nenhuma espécie de correspondência reveladora de qualquer débito para com o misterioso homem, nem se encontrou qualquer outra carta do agiota.

Um ponto não ficara esclarecido as estranhas botinas que o Sr. Merrivan calçava no momento da sua morte. Ele tinha o hábito de fazer visitas noturnas — mas por que as pesadas botinas se, como supunha Scottie, o objeto das suas andanças noturnas estava na própria vila? E se fosse o caso de usá-las, por que umas botinas que fariam um barulhão infernal, tão logo ele pisasse em cascalho ou madeira? Calçados de solas de borracha não seriam mais apropriados àquele tipo de aventura? Andy pon­derava nesses aspectos ao se encaminhar para a casa de Merrivan.

Por todo o dia, e durante dois dias o lugar estivera cercado por repórteres. Houvera uma invasão de forasteiros munidos de câmaras e jovens abelhudos armados de cadernos de notas, mas, àquela altura, o último dos jornalistas já se tinha ido eAndy se prometeu uma rigorosa inspeção da casa. Até ali, limi­tara seus exames mais minuciosos à sala comprida e se contentara com uma espiadela ocasional nos outros apartamentos.

A inspeção restante se restringiu a uma busca mais cuidadosa no quarto de dormir do Sr. Merrivan. O aposento ficava no primeiro andar, na frente da casa, e consistia de um amplo e arejado dormitório, com uma porta dando para um quarto de vestir e outra abrindo para um banheiro. Darius Merrivan se dera grande trabalho para assegurar-se uma estupenda dose de conforto. O banheiro, surpreendentemente luxuoso, era todo revestido de mármore. A mobília do quarto de dormir consistia de uma grande cama, uma cômoda e uma escrivaninha. Havia também um guarda-roupa, uma mesa menor, uma poltrona baixa e duas outras cadeiras; nisso se resumia praticamente o conteúdo da peça.

Andy começou dedicando um pouco mais de atenção à cama, coisa que não pudera fazer anteriormente. Era um móvel muito só­lido e os suportes em ambos os lados eram pesados e grossos. Ele bateu com os nós dos dedos num deles e verificou-lhe a solidez. O pé da cama tinha um trabalho de entalhe maravilhoso na parte interna; a externa era mais ou menos simples, a não ser por dois escudos entalhados, encimados por uma rosa heráldica que aparecia sobre os degraus. Andy revirou a cama e examinou os colchões, gastou infrutiferamente uma meia hora experimentando as paredes com os dedos e examinando o resto do mobiliário.

Surpreendeu-se de não encontrar nenhuma outra referência a Abraham Selim. Não se descobrira um só documento que acla­rasse a ameaça contida na carta encontrada na escrivaninha do defunto. Quanto a Abraham Selim, este desaparecera por completo. Todas as cartas chegadas ao seu escritório tinham sido abertas e o surpreendente volume dos seus negócios e a solidez da sua clientela tinham vindo a furo; porém nenhum pedido de crédito ou prazo para a liquidação de dívida forneceu qualquer pista da sua identidade. O homem era um usurário dos piores e o seu desaparecimento devia ter sido um alívio para numerosas pessoas infelizes que lhe haviam caído nas garras.

Mas, por extraordinária coincidência que muito intrigou a polícia, não havia nenhuma prova documental das obrigações dos clientes. Não se descobriram letras de câmbio ou notas promissó­rias no escritório nem no banco de Selim. Geralmente, um usurário costuma guardar tais papéis, de par com outros títulos, em cofres de Bancos. Selim também não fazia grandes depósitos. Embora um volume enorme de negócios passasse por suas contas, seu saldo médio nunca passava de umas poucas mil libras; e o dinheiro com que pagava, era retirado tão logo os cheques eram descontados. Quando tinha necessidade de cobrir um cheque grande, ele enviava a soma ao gerente na forma de notas.

Neste ponto uma vez mais parecia impossível que o escorregadio personagem pudesse escapar à observação. Deveria ter comparecido ao Banco para abrir sua conta, argumentava a polícia; no entanto, descobriu-se que a conta fora transferida de uma filial do interior, cujo gerente já era falecido. Mesmo que este ainda vivesse, era provável que não estivesse em condições de fornecer quaisquer informes acerca da identidade de Abraham Selim.

Dizer que o agiota havia escondido suas pegadas seria uma inverdade. Não havia pegadas a esconder. Ele viera do nada sem ser visto; e, sem ser visto, deaparecera no vácuo de onde viera.

 

Scottie raramente saía durante o dia, não porque quisesse tazer algum segredo, mas em atenção aos desejos de Andy. Quando se fazia visível durante o dia, isso de hábito acontecia entre uma e duas horas da tarde, ocasião em que Beverley Green geralmente se ocupava com o almoço.

Saiu pela entrada lateral da casa de Nelson, objetivando encontrar-se com Andy na casa de hóspedes. Tinha debaixo do braço o jornal da manhã, com um noticiário ligado à sua visita e contendo uma referência que o deixara pouco à vontade. Algum repórter inexperiente, que evidentemente não soubera do desfecho feliz daquilo que Scottie eufemlsticamente denominava de sua "ação legal", havia mencionado uma "sensacional prisão naquele lugar de repouso paradisíaco", consumada antes do assas­sinato, e tirara dali uma conclusão pouco lisonjeira para Scottie

Ele pisou a estrada e se deteve.

Um enorme carro lhe bloqueava o caminho; a máquina estava metade na estrada e metade engastada na vegetação que marginava o relvado e que, conforme Scottie sabia, era o orgulho da população local.

Um chofer rubicundo fazia frenéticos esforços para entrar na estreita estrada, com resultados deploráveis para as belezas florais da comunidade. Mas não foi o chofer nem a resplendente má­quina, nem mesmo o resfolegar do motor em marcha à ré, que absorveu a atenção de Scottie. Foi a ocupante solitária do carro.

Era uma mulher de idade incerta, corpulenta e ainda bem parecida. Seus cabelos refulgiam com um rubor metálico, de cujo matiz as sobrancelhas escuras se divorciavam. A vermelhidão do rosto também desafiava a espessa camada de pó com a qual ten­tava encobrir o vigor natural das suas cores. Seus olhos azuis eram um tanto proeminentes, dando a impressão de que ela estava sempre assustada. De tudo isso Scottie se deu conta em meio a uma abalizada exploração de outras belezas mais substanciais.

No lóbulo de cada orelha havia um diamante do tamanho de um amendoim; em torno do pescoço, três voltas de pérolas de grande tamanho; e, grudado à pessoa da mulher, naquela região, luzia, preso por um pegador de esmeralda um broche de diamantes que ofuscava os olhos deslumbrados do professor.

Olhando para as mãos rebrilhantes da senhora, Scottie concluiu não trazer ela anéis nos polegares.

—    Perdão por todo este barulho, mas por que não fizeram suas estradas mais largas? — Ela mimoseou Scottie com um sorriso amistoso.

Ele se sobressaltou com o som da voz da mulher. Era diferente de tudo quanto esperava e ele percebeu pelo sotaque que ela tinha vivido alguns anos na América. Tratava-se daquela estranha entonação que os ingleses adquirem depois de alguns anos nos Estados Unidos. Era uma voz que fez Scottie estremecer; malgrado toda a riqueza aparente daquela mulher carregada de diamantes, ela nascera e fora criada na sarjeta.

—    Ordinária —, pensou ele, e se perguntou onde ela teria arranjado toda aquela pedraria.

—    Faz tempo que não venho por aqui —, prosseguiu a mulher tomando naturalmente seu interlocutor por uma pessoa da localidade. — Falaram-se deste lugar em Beverley. Houve um crime aqui, não houve?

—    Houve —, disse Scottie e lhe mostrou polidamente o jornal. Encontrará aqui um relato detalhado, se tiver interesse, Madame.

—    Não "truxe os óculo" —, disse ela bruscamente, mas tomou o jornal nas mãos. Um cavalheiro assassinado! que coisa horrível! Não me disseram o nome dele e não ia adiantar nada mesmo. Esses "troços" são de amargar, não? Houve um crime bem perto de nós em Santa Bárbara e o senador, meu finado marido, não quis me dizer nada. Achou que eu ia me aborrecer. O Senador Crafton-Bonsor. Quem sabe já ouviu falar nele? Ele aparecia tôda hora no jornal. E nem dava bola para o que "os jornais falava"...

Scottie decidiu que os jornais haviam sido pouco caridosos. Mas um senador dos Estados Unidos? Era duro de engolir. Ele pouco sabia acerca dos homens públicos americanos, pois sua experiência se cingia a eventuais cumprimentos de cabeça a dife­rentes promotores públicos; mas imaginava os senadores como homens refinados e de bom gosto.

—    Bem, vou embora, amigo. Puxa, deve ser duro morar num lugar onde "se pratica" crimes! Eu não era capaz de dormir de noite, seu...

—    Meu nome é Bellingham, Professor Bellingham.

Ela ficou impressionada.

—    Oba, mas que bom! Deve ser ótimo ser professor. Uma vez teve um que veio à minha casa em Santa Bárbara. Gostaria que visse minha casa; o gramado é do tamanho desta aldeia. Sujeito formidável aquele. Tirava coelhos dum chapéu e me mostrava antes que o chapéu não tinha nada dentro. Hominho esperto. Bom, vou-me indo, seu... Professor, quero dizer. "Tô" hospedada no Grande Hotel Metropolitano. Caramba, aquela gente sabe cobrar. E quando pedi uma lista, eles nem não sabia o que eu queria. Até logo.

O carro sumiu de vista, deixando para trás um Scottie algo pensativo.

—    Viu aquele carro? foi a primeira coisa que ele pergun­tou a Andy.

—    Não, mas ouvi o motor. Pensei que fosse um caminhão de entregas.

—    Era um caminhão, sem dúvida —, concordou Scottie — mas, Macleod, pena que você não tenha visto a mercadoria. Cerca... bem, não tentarei lhe dar uma avaliação. Uma coisa louca! e que mulher!

Andy tinha outros interesses que não os visitantes ocasionais de Beverley Green.

—    Como está a Senhorita Nelson? — indagou ele.

—    Ótima — disse Scottie. — Vai fazer um longo passeio a pé pelo vale esta tarde.

Andy corou.

—    Quem disse isso?

—    Ela — respondeu Scottie friamente —, e fez questão de me lembrar que o avisasse. A Senhorita Nelson tem algo de muito inteligente; por isso é tão diferente da maioria das moças que conheço. Boa parte do decantado recato virginal é pura balela.

—    Decerto não vou discutir o recato da Senhorita Nelson —, disse Andy sobranceiramente. — E não vejo nenhuma razão para que você tire conclusões daquilo que ela disse. Provavelmente terá desejado que você me dissesse estar ela sentindo-se suficientemente bem para sair a passeio.

—    Talvez — concordou Scottie. — Ela me disse que estaria à sua espera na segunda barraca de golfe, às três da tarde.

Andy não encontrou de imediato nenhuma explicação para dar.

—    E, por falar em amor — prosseguiu Scottie — gostaria de que visse o que os jornalistas do Post Herald escreveram a respeito da prisão de um perigoso criminoso — este seu criado,

—    poucos aias antes dos assassinatos.

Andy estava esperando na barraca de golfe fazia dez minutos quando a moça surgiu.

—    Temia que você não conseguisse escapar — disse ela, ao se aproximar. — O professor lhe disse?

—    Sim, disse-me — respondeu Andy em tom seco.

—    Ah, e lhe contou também o que a estranha mulher disse?

—    indagou Stella sofregamente. — Os dois mantiveram longa conversa. O carro dela derrubou duas lindas touceiras de lilazes. É realmente um descuido tentar manobrar um enorme carro numa estrada estreita!

—    Que mulher estranha era essa? — perguntou Andy. Scottie lhe disse alguma coisa a seu respeito? Está aqui de visita?

Stella concordou.

—    Vi-a através da janela. Uma coisa simplesmente faiscante! Não tive oportunidade de falar com o Sr. Scottie. Estava-me vestindo quando ele voltou.

Eles caminhavam lentamente na direção de... Andy não tinha certeza então, como também não teve mais tarde, de que caminho percorriam; sabia apenas que se acercavam das sebes limítrofes de Beverley Hall. Ele sentia-se fora do mundo, trans­portado para um paraíso novo e tangível. Atraente, bonita, linda? Já havia feito a pergunta antes. O perfil era perfeito, o tom de pele, tão delicado à luz pouco romântica do sol quanto o era sob luzes mais suaves e glamorosas, capazes de enganar a vista.

—    Arthur Wilmot fez que não me conheceu esta manhã —, disse ela.

—    Mas, por quê? Pensei... dizem que...

Ele não terminou a sentença inoportuna.

—    Que estou noiva dele? — ela se riu tranqüilamente. — Costumavam comprometer a gente com muita facilidade em Beverley. Jamais fui noiva dele. Usava um anel porque... bem porque se ajustava bem no meu dedo e era um presente de papai.

Ela lançou um rápido olhar de viés sobre ele e depois se voltou na direção oposta.

—    Que faz Arthur Wilmot para viver?

—    Não sei — respondeu ela. — Alguma coisa na cidade. Ele nunca fala de seus negócios e ninguém sabe o que faz. É curioso, pois a maioria dos homens gosta de falar acerca do seu trabalho. Os homens sentem tremendo orgulho de sua esperteza e quase não lhes resta outra coisa para comentar. O senhor nunca fala de si, Dr. Macleod.

—    Penso que fui de uma loquacidade sem igual Srta. Nelson.

—    Não seja bobo. Você me chamou de Stella e de tola, pràticamente quando nos vimos pela primeira vez. Que coisa linda, não?

—    Sem dúvida fui muito atrevido —, confessou ele.

—    Quero dizer que... bem, que nos conhecemos tão bem e que eu gosto de você. Só gosto das pessoas depois de conhecê-las muito tempo. Talvez tenha sido a reação. A princípio, eu o odiava; quando olhava para mim, você fazia com que eu me sentisse culpada. Eu costumava pensar que pessoa horrível você deveria ser; parecido com um caçador de escravos.

—    Então eu lhe parecia um personagem tirado da Cabana do Pai Tomáscomentou ele sorrindo. É uma sensação divertida. Creio que as pessoas têm os policiais nessa conta. Mas, nós nos orgulhamos de que a visão dos botões dourados de um polícia produza uma sensação de reconforto no coração dos bons cidadãos.

—    Não sou boa cidadã disse ela brevemente. Sou muito má cidadã. Você não sabe quanto sou má.

—    Mas imagino disse ele.

A seguir, ficaram longo tempo sem falar.

—    Stella disse ele de súbito quando você viu Merrivan, ele... bem, ele lhe deu alguma idéia quanto ao futuro... quanto ao lugar em que pretendia morar?

—    Itália disse ela, arrepiando-se. — Disse-me que teria muito dinheiro e que havia adquirido um magnífico palácio à beira do Lago Como.

—    Ele não disse que tinha dinheiro?

—    Não; lembro-me perfeitamente de que disse "terei dinheiro". Deu-me a impressão de que estava para receber dinheiro de alguma parte. Por favor, não falemos nisso.

De onde viria aquêle dinheiro? perguntava-se Andy. De Abraham Selim? Ou já teria Merrivan obtido e ocultado o dinheiro e Abraham Selim, descobrindo-lhe o intuito de ir viver no exterior, tentava recuperar o que era seu? Selim jamais proces­sara alguém nos tribunais. Aquela era uma curiosa circunstância. Parece que não emprestava dinheiro senão quando dispunha de alguma espécie de arma contra a sua vítima.

Passando por uma cêrca Andy pegou a mão de Stella e só a largou depois de .ajudá-la a transpor o obstáculo. A moça também não fez qualquer tentativa de libertar-se. Ela sentia-se tranqüila e feliz naquela comunhão. O toque daquela mão forte que segurava a dela com tanta delicadeza como se tratasse de uma frágil porcelana, era uma sensação particularmente calmante. Algo da fôrça e equanimidade dele se havia transferido para ela quando, pela primeira vez, as mãos do detetive agarraram a moça pelos ombros. Ela agora era invencível, sentia-se capaz de encarar a sorte que o destino lhe reservava sem qualquer apreensão.

—    Você está muito sério, não está? — perguntou ela, na volta. — Andrew, eu sabia que o nosso passeio seria precisa­mente isto... encantador. Apenas isto e nada mais. Não quero mais... por enquanto; está tudo perfeito. Amanhã não iremos repeti-lo, porque... bem, seria como tentar reproduzir uma festa que foi feliz por ser espontânea. Não daria certo. Nossos passeios não seriam iguais.

Eles pararam junto da segunda barraca de golfe, onde o passeio havia começado. Não havia ninguém por perto.

—    Quero que me beije — disse ela com simplicidade.

Andy inclinou a cabeça e os lábios da moça tocaram os seus.

 

O Sr. Boyd Salter estava sentado em seu escritório, a uma pequena mesa junto da janela que dominava uma extensa vista do vale e uma ponta de Beverley Green. Dedicava-se a uma complicada paciência, mas não se achava absorvido a ponto de não fazer prolongadas pausas e se interessar pelas banalidades que lhe caíam no campo visual. Certa vez, foi um pequeno rebanho de carneiros a pastar sem pressa rumo das pradarias. De outra feita, foi o rápido mergulho de um gavião acinzentado e o seu reaparecimento de posse de uma flácida vítima. Depois, apareceu um homem vestindo um longo sobretudo escuro e o Sr. Boyd Salter o observou por instantes. O forasteiro se comportava de maneira curiosa, mas estava demasiado distante para o senhor de Beverley Hall perceber claramente o que fazia ao emergir de uma plantação.

O Sr. Salter apertou um botão.

—    Traga-me os binóculos, Tilling. Não há nenhum guarda aqui?

—    Mading está no alojamento dos criados, senhor.

—    Mande-o vir aqui, por favor, mas primeiro traga-me os binóculos.

Viu o estranho através das lentes, mas não o reconheceu. O homem parecia procurar alguma coisa, pois progredia lentamente e em ziguezague.

Boyd Salter virou a cabeça. Um homenzarrão corpulento e vermelho tinha entrado na sala.

—    Madding, quem é aquêle atravessando Spring Covert?

O guarda-caça colocou a mão na testa para proteger os olhos da luz.

—    Parece-me um dos cavalheiros de Beverley Green —, disse ele de nome Wilmot, creio eu.

O patrão tornou a olhar.

—    Sim, creio que é ele. Apresente-lhe os meus cumpri­mentos, Madding, e pergunte-lhe se precisa de alguma coisa. Talvez tenha perdido algo, embora eu não possa compreender como isso poderá ter acontecido naquele recanto da minha propriedade.

Madding saiu e o Sr. Salter retornou à sua paciência. Lançou um olhar sobre o robusto guarda-caça, que se distanciava em largas passadas, e voltou às cartas. Quando tornou a olhar para fora, viu apenas Madding; o visitante não autorizado havia desaparecido.

—    Que maçada —, disse o Sr. Boyd Salter e, juntando de novo as cartas, embaralhou-as e recomeçou tudo outra vez.

Depois de um intervalo...

—    Obrigado, Madding. Vi que você se desencontrou dele.

—    Encontrei isto, senhor, pouco adiante de onde o cavalheiro dava buscas. Creio ser isto o que ele procurava.

O homem mostrou uma cigarreira de ouro da qual removera a lama amarela de Spring Covert, situada em local pantanoso e de denominação devida a um riacho cuja nascente era no coração da floresta.

O juiz de paz apanhou a cigarreira e abriu-a. Dentro havia dois cigarros umedecidos e um pedaço de papel de jornal com um endereço escrito a lápis.

—    Obrigado, Madding, farei com que isto seja devolvido ac Sr. Wilmot. Sim, Sr. Wilmot. Cá estão suas iniciais. Creio que ele irá gratificá-lo. Ouvi dizer que você apanhou um arminho ontem... esta manhã, não foi? ótimo. Esses bichos são umas pestes para os pássaros novos. Muitos pássaros este ano? Ótimo. Obrigado, Madding.

—    Com sua licença, senhor.

O guarda-caça mantinha-se em atitude de expectativa e Salter lhe fez sinal para prosseguir.

—    Acerca dos assassinatos, senhor. Penso que o criminoso fugiu pelo parque.

—    Santo Deus! por que pensa isso?

—    Bem, senhor; eu estava fora aquela noite, de olho nas coisas. A turma de Beverley anda roubando como nunca. O guarda-caça do Sr. Golding ainda hoje me contou que apanhou um camarada com seis pares de faisões na sacola. Pois bem, eu fazia um passeio por aí quando ouvi um tiro, perto de Valley Bottom, de modo que fui para lá o mais depressa possível, embora os gatunos daqui não costumem andar armados. Depois da caminhar um pouco, parei para escutar e juro que ouvi passos sobre a trilha dura — a trilha que leva a Spring Covert, local onde encontrei o cavalheiro. Gritei "alô!" e o som cessou. Vamos, chega de brincadeiras — disse eu, julgando tratar-se de um ladrão, mas não ouvi mais nenhum ruído nem vi pessoa alguma.

—    Você informou a polícia? Devia tê-lo feito, Madding. Talvez seja uma pista muito importante. Felizmente o Sr. Macleod virá até cá esta tarde.

—    Não sabia exatamente o que fazer. Na verdade, não havia ligado o tiro ao crime até discutir o assunto com minha mulher... minha velha tem uma cabeça e tanto... então ela me disse "você tem de contar ao patrão".

O Sr. Boyd Salter sorriu.

—    Sua esposa é uma mulher muito inteligente, Madding. É bom que você esteja por aqui quando o Sr. Macleod surgir. Parece-me ser ele, lá no alto. É melhor que você espere.

Andy, que telefonara para falar de assuntos ligados ao inquérito, ouviu com interesse a estória do guarda-caça e fez perguntas ao homem acerca da hora em que os fatos haviam ocorrido.

—    Madding encontrou também uma cigarreira pertencente ao Sr. Wilmot —, disse Boyd Salter e relatou a estória da busca empreendida por Arthur Wilmot. — Digo-lhe isto, não porque tenha algo a ver com o crime — obrigado, Madding, não é preciso que espere, a menos que o Sr. Macleod tenha mais alguma pergunta a lhe fazer. Não? obrigado, Madding.

Andy examinava o caso.

—    Como é que ele foi parar nas proximidades de Spring Covert? O lugar fica perto da estrada pública?

—    Absolutamente. Ele devia estar invadindo propriedade alheia, embora não me caiba empregar termo tão duro para definir as andanças de um vizinho. Nossos amigos de Beverley Green têm um convite geral para se utilizarem das minhas terras em seus piqueniques. Peço-lhes apenas que anunciem seus passeios ao meu guarda-caça e, está claro, eles nunca se aproximam de Spring Covert, que não é lugar dos mais agradáveis.

Andy abriu a cigarreira e tirou dela um pedaço de papel.

—    Trata-se de um enderêço, creio arriscou o Sr. Boyd Salter.

—    É um endereço... o endereço de Sweeny —, disse Andy e foi dado a Wilmot no dia do crime!

Andy revirou na mão o pedaço de papel.

Este fora arrancado da margem de um jornal dominical e a data dizia               mingo, 23 de junho.

Obviamente, pensou Andy, o jornal do qual este pedaço foi arrancado pertencia a Sweeny. Era igualmente claro que o ende­reço fora anotado pela manhã, pois as pessoas de modo geral não carregam consigo jornais domingueiros na parte da tarde. Aqueles dois homens haviam-se encontrado e conversado, e, por alguma razão, Wilmot decidira que o funcionário de Abraham Selim lhe poderia ser útil, e tomara nota do seu endereço. O encontro dificilmente teria acontecido em Spring Covert, em plena luz do dia, de modo que ou eles se haviam reencontrado à noite ou então, por alguma razão, Wilmot fizera uma visita furtiva àquele lugar depois de o sol se pôr. Andy aceitou a primeira hipótese como mais provável. Wilmot estava, portanto, compro­metido Wilmot, cuja misteriosa ocupação Merrivan havia desco­berto e que, à simples menção daquele achado, se transformara de leão em cordeiro.

—    Que acha o senhor? perguntou Boyd Salter.                                       

—    Não sei. fi curioso. Procurarei Wilmot e lhe devolverei a cigarreira, se me permitir.

Ao voltar para Beverley Green, Andy se deu conta de certas coincidências. Todos os incidentes importantes que tinham mar­cado sua estada haviam sido em duplicata. Ele ouvira a ameaça de Wilmot e a gritaria de Nelson estando postado fora de suas respectivas casas. Tinha havido uma queima de papéis em casade Merrivan e outra queima em casa de Nelson. Agora, algo havia sido encontrado no chão...

—    Encontramos um valioso anel de diamantes... pelo menos o Sr. Nelson o encontrou quando passeava pelo relvado —, foram as primeiras palavras do inspetor. — Não ouvi dizer que esteja faltando algum anel em casa do Sr. Merrivan, mas ninguém mais reclamou.

Decididamente, Stella era o mais displicente dos suspeitos! Espalhava atrás de si as provas mais comprometedoras com uma prodigalidade espantosa.

—    Alguém há de reclamá-lo —, disse Andy desinteressado.

Ele alcançou Wilmot aquela noite quando o jovem abria o portão de sua casa.

—    Creio que isto lhe pertence —, disse, apresentando a cigarreira ao rapaz.

Wilmot empalideceu.

—    Creio que não —, disse ele em voz alta, — não perdi...

—    Pois tem o seu monograma —, insistiu Andy — e duas pessoas já a identificaram como sua.

Não era propriamente verdade.

—    Tem razão. Obrigado, Sr. Macleod. Não tinha dado pela falta.

Andy sorriu.

—    Decerto estava dando uma busca em Spring Covert à procura de outra coisa —, disse; e o último vestígio de cor desapareceu do rosto de Arthur Wilmot.

—    Quando foi que você anotou o endereço de Sweeny?

Os olhos de Wilmot chispearam de ira por seu inquisidor.

Tal manifestação foi tão inesperada que Andy se viu colhido de surpresa. Duas causas poderiam explicar aquela atitude: culpa ' óu ciúme. Ele julgou ser verdadeira a segunda razão. O jovem ou adivinhava ou sabia seus sentimentos com relação a Stella Nelson.

—    Encontrei-me com ele no domingo pela manhã —, disse Wilmot de súbito. — Ele me veio pedir que o recomendasse para certo emprego. Já o conhecia quando meu tio o contratou. Encontrei-me com ele no campo de golfe e anotei seu endereço num pedaço de jornal.

—    Você não contou ao inspetor Dane que se havia encon­trado com ele.

—    Havia-me esquecido. Não. Não me esquecera, mas dese­java manter-me afastado desse caso.

—    Você tornou a encontrar-se com ele à noite. Por que em Spring Covert?

Wilmot não respondeu e a pergunta foi repetida.

—    Ele tinha saído de Beverley Green e queria falar comigo. Achou que eu não desejaria ser visto em sua companhia.

—    Quando é que ele achou isso? Pela manhã, quando vocês devem ter combinado a segunda entrevista?

—    Sim — foi a relutante resposta, e depois: — Quer entrar, Macleod ?

—    Você está só?

—    Sim. De qualquer forma os criados nunca entram no meu quarto sem serem chamados; além disso saíram todos.

A casa de solteiro de Arthur Wilmot era a menor da aldeia e mobiliada com excepcional bom gosto. Se tinha alguma falha, era porque talvez pudesse ser considerada demasiado alambicada para um homem.

Sobre a mesa do quarto para o qual Andy foi conduzido havia um chapéu de mulher. Wilmot acompanhou o olhar do detetive e conteve uma exclamação. Era mesmo um chapéu... uma grinalda de seda colorida.

A chegada deles havia interrompido alguém, pensou Andy, e fingiu não haver notado nada de extraordinário. Wilmot estava atrapalhado demais para deixar a coisa por ali e sentia necessidade de explicar-se.

—    Deve ser da criada —, disse ele, atirando o chapéu a um canto com fúria.

O incidente, que bem poderia ter aumentado sua perturbação, pareceu ter o efeito contrário, e ao falar ele denotava segurança na voz.

—    Encontrei-me com Sweeny em ambas as ocasiões; fui estúpido em não admiti-lo. Sweeny odiava meu tio e veio a mim com uma estória... pelo menos com a insinuação de algo que, segundo ele, me daria uma arma contra Darius Merrivan. Até agora não sei de que grande segredo se tratava. O segundo encontro em Spring Covert tinha a finalidade de discutir as condições em que Sweeny me entregaria os dados. Desejaria não ter ido, mas garanto que não me demorei muito lá. Eu me havia colocado numa posição errada e pouco digna; é o mínimo que posso dizer. Prometi escrever-lhe e nesse ponto terminaram as coisas.

—    Qual era esse segredo de Sweeny?

Wilmot hesitou.

—    Honestamente, não sei. A minha impressão foi a de que meu tio caíra nas garras de Abraham Selim... Selim é o nome do patrão de Sweeny. Claro que seria ridículo admitir ta! hipótese. Meu tio, quando morreu, era um homem rico.

Andy ponderava em silêncio a viabilidade daquela estória. Depois:

—    Sr. Wilmot, tem alguma idéia de quem matou seu tio?

Wilmot ergueu as sobrancelhas.

—    O senhor tem?

Andy descobriu então a direção para a qual correriam as provas daquele homem, caso a menor suspeita de perigo recaísse sobre ele.

—    Tenho muitas teorias —, respondeu friamente — mas seria precipitação agarrar-me a qualquer delas. A propósito Sr. Wilmot, na última vez em que nos falamos, o Sr. mencionou uma moça que não valia o que comia. Isso me interessou. Discutiu por causa dela com o seu tio. Isso é muito importante, sabe? Quem é ela?

Era um desafio de mestre; bem planejado e feito no momento azado.

Wilmot não estava preparado para uma pergunta tão brutalmente direta. Ela sabia estar Macleod ciente de que ele se refe­rira a Stella Nelson. Teria de falar agora ou...

—    Não estou preparado para dizê-lo —, procurou contemporizar o jovem, mas Andy tinha ido longe demais para permitir que o inimigo lhe escapasse.

—    Ou você conhece essa moça ou não a conhece. Ou dis­cutiu com seu tio a respeito dela ou não o fez. Falo na qualidade de policial encarregado do caso e quero a verdade.

A voz de Andy era dura e ameaçadora. Arthur Wilmot não era um lutador.

—    Eu estava um tanto aturdido aquela manhã —, disse ele com relutância. — Não sabia o que dizia. Não houve nenhuma mulher, nenhuma briga.

Lentamente, Andy sacou do bolso uma caderneta e anotou aquelas palavras; o outro o observava, presa de uma fúria fria e crescente.

—    Obrigado —, disse Andy. — Não tornarei a importuná-lo.

Partiu sem mais uma palavra, deixando atrás de si um homem

que no mínimo tinha o assassinato no coração.

—    Sr. Macleod!

Andy, já no fim do caminho, voltou-se. Wilmot estava logo atrás dele.

—    Penso que não há razão para que eu não visite a casa agora. Sou o herdeiro legal de meu tio e tenho de tomar certas providências com relação aos funerais.

—    Pode visitar a casa mas, por enquanto, não quero que entre na sala comprida. Desejo que ela fique intacta até depois do inquérito.

Dirigiu-se até a outra casa e falou com o sargento de serviço.

—    Está tudo em ordem, Sr. Wilmot. Disse ao sargento que o deixasse entrar.

Andy aceitava pacificamente certos fenômenos. Ele não tinha ficado surpreendido nem divertido por encontrar um chapéu de mulher no quarto de Wilmot. O embaraço do homem fora tão eloqüente quanto fora frágil sua explicação. "A criada" não estava de acordo com a declaração de pouco antes, segundo a qual a criadagem jamais lhe entrava no quarto sem ser chamada. Wilmot era homem solteiro — nem melhor nem pior, talvez, que a maioria dos solteiros ricos — embora fosse um tanto surpreendente o fato de que trazia suas indiscrições para dentro de Beverley Green. Aquilo não parecia coisa de Arthur Wilmot.

Andy foi fazer uma visita aos Nelson. Iria lá diariamente e ficaria o dia inteiro se os seus desejos imperassem. O fato é que de hábito conferenciava com Scottie de manhã cedo, quase sempre no próprio centro da aldeia.

Stella o recebeu. O pai estava no estúdio a lutar contra a luz deficiente e a moça se mostrava entusiasmada, pois Kenneth Nelson havia começado um novo quadro e o prestativo Scottie era o seu principal modelo.

—    Será muito útil ter um bom retrato de Scottie à mão —, disse Andy desalentado. — Quando estiver à procura dele no futuro, mandarei meus sabujos à Academia a fim de estudá-lo.

—    Mas ele jamais voltará a pecar —, disse ela, horrorizada com aquele pensamento. — Ele me disse que abandonou a antiga vida.

Andy sorriu.

—    Ficarei contente se isso acontecer —, comentou, e mudou de assunto. — Você conhece Arthur Wilmot muito bem, Stella?

Ela teve ímpetos de responder "muito bem".

—    Pensei que sim. É evidente que me enganei. Por quê?

— Sabe se ele tem namoradas ou parentas?

A moça balançou a cabeça.

—    Os únicos parentes de que tenho notícia são o tio e uma tia velhíssima. Você quer saber se ele costuma hospedar alguém? Ao que sei, apenas a velha tia costumava visitá-lo, mas penso que ela já morreu. Ele nunca dá festinhas de solteiro. Por quê?

—    Será mesmo? — disse Andy e Stella sorriu, mas logo ficou séria.

—    Não sei o que está acontecendo. Você encontrou alguma... alguma pista? A casa esteve apinhada de repórteres; um deles veio até cá e me pediu detalhes da vida cotidiana de Merrivan. Perguntou-me se ele freqüentava a igreja, se era homem sosse­gado, coisas desse tipo. Disse-lhe que pouco sabia a respeito de Merrivan. O homem logo se deu por satisfeito.

Andy respirou fundo.

—    Graças a Deus, Downer não estava entre eles. Quem é Downer? Um repórter, o mais duro de todos, e muito menos cordato do que o seu entrevistador. E ele não teria feito perguntas tão cruas. Teria discutido arte com seu pai, admirado o Pigmalião, discutido os valores de cor, atmosfera e movimento e todo aquele jargão dos estúdios... e, depois que houvesse partido, você sentiria uma estranha sensação de que tinha dito muito mais do que devia, não acerca dos velhos mestres da pintura, mas a respeito da vida privada de Darius Merrivan.

Ela não desviou os olhos dele enquanto Andy falava. Quanto a ele, também não a encarava por muito tempo, temendo agarrá-la em seus braços e não mais permitir que a moça se afastasse.

—    Você deve conhecer um "horror" de gente. Não quero dizer que sejam pessoas horrorosas; sabe o que quero dizer. Esse Downer, por exemplo, e gente como o Professor... Scottie. Chamei-o de Scottie por inadvertência e ele me pareceu extraordinariamente divertido. Alguma novidade?

—    Apenas uma: Dane encontrou seu anel. Você costuma atirar anéis de diamantes pelos campos?

Ela não se perturbou em absoluto.

—    Joguei fora aquele anel. Não me lembro onde. Você já vai? Faz só um minuto que chegou e ainda não viu papai no quadro.

—    Já estou aqui o suficiente para escandalizar a vizinhança —, disse ele. — Percebe que não posso visitá-la a menos que procure quase todo o mundo com alguma desculpa? Torno-me cacete uma dúzia de vezes por dia... apenas para poder vê-la.

Ela o acompanhou até a porta.

—    Gostaria de que você viesse limpar novamente a sala —, disse com doçura.

—    E eu gostaria de que estivéssemos na segunda barraca de golfe — disse ele com ardor.

Ela riu. Ao se afastar da casa, Andy carregava nos ouvidos o som do riso de Stella.

 

Não seria exagero dizer que, desde a morte do tio, Arthur Wilmot vinha vivendo em tal tensão que por vezes temia enlou­quecer. Nem seu caráter nem sua experiência o tornavam apto a enfrentar as provações que lhe eram impostas. Herdara da mãe, mulher muito nervosa, a pequena capacidade de resistência que fazia parecer natural o render-se às emoções do momento. Comedido, e não apenas quando o medo o exigia, ele não cedia às inclinações da maturidade mais do que se houvera dobrado aos arrebatamentos da infância. O fato de Stella, por exemplo, não lhe ter conhecido o verdadeiro caráter devia-se inteiramente à confiança que o rapaz depositava no fato de que a amizade entre ambos evoluiria, no devido tempo, no sentido que conviesse a ele. Ela não sabia que suas relações haviam progredido com muita cautela por parte dele. Se durante uma fase muito longa ele não lhe deu o menor sinal de que estava apaixonado por ela, isso se deveu a que o moço evitava conscientemente comprometer sua vida. Ele julgava estar agindo "bem". Estava convencido disso. Arthur acredita­va honestamente que, no decurso de suas relações, ela lhe havia propiciado determinadas oportunidades de orientar essas relações no sentido de aprofundá-las, e, quando afinal, decidira que ela fora feita para ele e, em palavras cuidadosamente escolhidas, acla­rara suas intenções, a pronta recusa da moça fora para ele como um raio caído de um céu sem nuvens.

Sua vaidade não lhe permitia crer que aquela recusa fosse definitiva; recebeu-a com despreocupação, sabendo (e dizendo) que as mulheres nessas ocasiões são ilógicas e perversas. Depois de uma segunda negativa ele assumiu uma atitude de tranqüila resignação, papel que lhe permitiria voltar ao assunto sem qualquer interrupção violenta da amizade entre eles.

Depois veio o terrível momento em que ele tentara tomar de assalto aquilo que não conseguira conquistar com paciência e brandura. E o açoite da língua da moça, o estudado desprezo, a completa indiferença pelos sentimentos dele, tinham produzido o mesmo efeito que os cumes inacessíveis têm sobre os alpinistas. Se ele a amava ou não, isso não tinha importância; ele se amava a si mesmo com muito carinho e, vendo-se roubado de algo que desejava, passou a dar ao seu objetivo um valor tão alto que a vida sem tal conquista parecia não valer a pena.

A chegada de Andy Macleod, as freqüentes visitas que este fazia aos Nelson, essas coisas empurraram Arthur à beira da demência. A isso se somou o fardo da morte do tio e a consciência de que poderia aparecer como suspeito. A terceira causa de sua agonia mental era a incerteza quanto ao futuro material. Seu tio o havia financiado. Que providências em seu benefício haveria no testamento? Estaria ele incluído nesse testamento? Fora chamado a entrevistar-se tanto com o advogado de Merrivan quanto com o inspetor Dane e não se fizera nenhuma alusão à descoberta de tal documento. Ambos tinham perguntado a Arthur se ele sabia da existência de algum cofre ou esconderijo onde pudesse haver papéis importantes. Ele respondera que não sabia. No entanto, certa vez, seu tio o havia conduzido até o dormi­tório, num momento de franqueza, e lhe tinha mostrado o lugar que a polícia estava agora procurando.

Quando Wilmot perguntou a Dane e Andy se alguma coisa tinha sido achada, êle tinha isso em mente. Era estranho que Darius Merrivan lhe houvesse feito aquela revelação. Os dois não tinham intimidade e Arthur amiúde se perguntava por que razão o tio lhe teria feito tão generosos empréstimos para que êle investisse num negócio de cuja natureza o velho não tinha a menor idéia. Era uma coisa curiosa Darius jamais fizera uma pregunta e, certa vez, quando Arthur Wilmot estava a pique de lhe adiantar algumas informações, o tio impedira-o de pros­seguir.

Merrivan nunca pedira juros ou falara no dinheiro e tal circunstância servia de base à crença de que o tio tencionava deixar uma considerável fortuna para o sobrinho ao morrer.

O tio pedira-lhe certa vez que não revelasse o fato de ser ele casado. Mas dificilmente pagaria tão caro por um silêncio imposto a um parente, especialmente quando o casamento havia terminado de forma escandalosa.

Arthur Wilmot esperou até que Andy desaparecesse juntp às sebes rumo a residência dos Nelson, e depois se dirigiu à casa do tio.

O Sr. Macleod disse que talvez o senhor aparecesse por aqui, Sr Wilmot —, disse o sargento. Penso que ele o preveniu para não entrar na sala comprida?

Wilmot fez sinal que sim e subiu as escadas.

Dirigiu-se diretamente para o quarto de Merrivan. A qualquer momento Andy poderia inteirar-se de que ele estava tirando partido da permissão que lhe fora dada e talvez o detetive voltasse para supervisionar-lhe as buscas. O moço esperou um instante à porta, assegurando-se que o sargento não o havia seguido e depois, atravessando o quarto, ajoelhou-se ao pé do leito. Agarrou a rosa entalhada que marcava a junção dos lados com o sólido pé da cama, e girou-a rapidamente para a esquerda. Ouviu-se um estalido e êle puxou, fazendo surgir uma gaveta escutiforme. Dentro havia alguns papéis, um maço de dinheiro preso por um elástico, e um estojo achatado contendo um documento qualquer. Wilmot guardou tudo no bolso interno, fechou a gaveta e girou a rosa entalhada. Haveria uma outra gaveta atrás do escudo do segundo pé da cama? Ele caminhou até a porta e escutou. Ouviu o sargento espirrar lá em baixo e retornou para junto do leito.

A segunda rosa e o segundo escudo não se moviam, porém; faziam parte da sólida ornamentação da mobília. Wilmot tremia muito; ansiava voltar para casa, mas temia, por outro lado, trair seu nervosismo diante do vigilante oficial de polícia.

Olhando-se num espelho, verificou que tinha o rosto branco como giz e esfregou vigorosamente as faces. Para ter tempo de recompor-se, fez um giro pelos demais quartos e finalmente, batendo os joelhos, desceu as escadas.

—    Encontrou alguma coisa, senhor? — O sargento, refeste­lado numa cômoda poltrona do saguão, ergueu ,as vistas do jornal.

—    Absolutamente nada. Receio estar um tanto abatido pelo...

O tremor na voz de Wilmot não era fingido.

—    Sei muito bem como se sente—, disse o compreensivo policial. — Este é o meu primeiro assassinato em vinte anos. O Sr. Macleod, como médico, está afeito a crimes dessa espécie. Credo! O modo frio com que trata tais assuntos me dá arrepios!

Arthur trancou a porta do seu quarto ao entrar, baixou as persianas e acendeu a luz. Depois esvaziou o conteúdo dos bolsos. Bastava um olhar para ver que entre os seus achados não figurava um testamento, a menos que... Ele retirou o papel dobrado contido no estojo. Era uma certidão de casamento. Do tio? Não, era uma certidão do casamento de Hilda Masters, doméstica, e John Severn, estudante. O documento datava de trinta anos. Arthur ficou intrigado. Por que o tio se daria ao trabalho de preservar a prova do casamento de uma criada? Ele leu o documento com todo o cuidado, na esperança de encontrar uma pista. A cerimônia fora celebrada na igreja de S. Paulo, em Marylebone, Londres, e o seu tio Merrivan não figurava sequer como testemunha. Aquela certidão, no entanto, devia ser de inestimável valor para o velho. Toda a idéia do testamento desa­pareceu da mente de Arthur quando o rapaz examinou a sua descoberta seguinte.

Eram duas letras de câmbio, uma no valor de setecentas libras e outra no de trezentas, a favor de Abraham Selim, e ambas assinadas por Kenneth Nelson. Ele virou o documento para verificar a assinatura do endossante e encontrou, como já esperava, o nome do seu tio.

As duas letras estavam presas por um mesmo grampo e em anexo havia uma tira de papel com a caligrafia de Merrivan: Estes endossos são falsos. Data do vencimento, 24 de junho.

Falsos! Os olhos de Wilmot se estreitaram. Stella estaria a par? Por que motivo teria ela ido à casa de Darius Merrivan na noite de vinte e três? Ela sabia! Essa era a arma que Merrivan tinha contra ela. Por essa razão estava tão seguro de que a môça não se casaria com êle, Arthur. Nalgum momento de embriaguez e loucura Kenneth Nelson, necessitado de dinheiro, tinha dado duas letras com endossos falsos de Merrivan.

Arthur assobiou de leve. Ainda não digerira bem a coisa. Sem pressa, ele contou o dinheiro. Era uma quantia bastante elevada e sua respiração se acelerou quando ele repôs o maço de notas no bolso. Já era alguma coisa. Um legado e não dos menores. Os demais papéis eram longas relações de ações e valo­res, e no final de cada linha aparecia uma letra. Aquilo poderia esperar. Ele guardou tudo num cofre da parede e dedicou a noite a especulações.

As dez e meia saiu. O arrebol estival permanecia no céu: era uma noite muito quieta. A distância, na outra extremidade do relvado, ouviam-se vozes que conversavam.

As luzes em casa de Stella estavam acesas. Arthur tinha de Correr o risco de encontrar-se com Andrew Macleod; mais do que isso, tinha de enfrentar as inquirições que começariam tão logo mostrasse as letras de câmbio.

Stella, porém, estava só. Ao reconhecer o visitante, ela não quis deixá-lo entrar.

—    Posso falar com você, Stella? é coisa rápida.

—    Já está falando, Sr. Wilmot, e espero que seja breve.

—    Não lhe posso falar daqui —, disse êle, contendo a ira a não ser que você queira que todos ouçam o que vou dizer.

Ela porém estava inflexível.

—    Não posso mandá-lo entrar. Já é muita bondade minha estar falando com você.

—    Acha? disse ele furioso. Talvez me considere muito bondoso também, antes que eu termine!

Ela tentou bater a porta, mas ele se adiantou e meteu o pé no caminho; impedindo-a de levar a cabo o seu intento.

Stella irritou-se.

—    Vou chamar meu pai —, disse ela.

—    Chame retorquiu Arthur. Gostaria de que ele identificasse a assinatura de meu tio em duas letras de câmbio a favor de Abraham Selim.

Arthur não pôde ouvir a respiração da moça, mas sentiu que a pressão contra a porta arrefeceu de súbito. Stella havia descaído sobre a parede, as mãos abandonadas, a cabeça pendida.

—    Entre —, disse ela com voz rouca.

Arthur Wilmot fez sua entrada vitoriosa. Aguardou que ela passasse à sala de visitas e depois a acompanhou.

Ela sentou-se à mesa e lançou um olhar para ele.

Entre os dois estava um abajur cuja sombra ocultava os olhos da moça, mas Arthur viu-lhe a boca trêmula e ficou inchado de satisfação.

—    Seu pai forjou o nome do endossante —, disse ele dispensando o preâmbulo que engendrara.

—    Posso ver... as coisas? perguntou Stella.

Êle desdobrou as letras sobre a mesa.

—    Sim, eram assim —, disse ela de maneira apática. Não entendo muito dessas coisas, mas parece-me... suponho que as letras que apanhei eram imitações... Ele as inventou apenas para me enganar. Julguei que fossem verdadeiras.

—    Você esteve com ele no domingo à noite. Vi quando entrou e quando saiu correndo. Foi atrás das letras e ele lhe impingiu duas imitações.

Ela nada disse.

—    Ou então você as roubou, mas o velho tapeou-a! Claro que a tapeou. Acreditava que lhe poderia passar a perna? Que vai fazer agora?

Ela não respondeu.

—    Digo-lhe o que vai fazer. Vai ter juízo e casar comigo. Esse maldito detetive não é ninguém; não passa de um policial... a você ainda lhe resta algum amor próprio, não? Dar-lhe-ei as letras como presente de casamento. Haverá barulho se não casar comigo! Estes documentos são legalmente meus agora. Herdei também as dívidas do meu tio e porei o Sr. Kenneth onde ele merece. Posso fazê-lo. Veja! Meu tio escreveu aqui: "estes endossos são falsos". Não é preciso mais do que isso como prova, Stella!

Ele fez a volta à mesa e se dirigiu para ela com os braços distendidos, mas a moça recuou.

—    Muito bem. Pense no assunto. Voltarei amanhã. Você não poderá dizer nada a Macleod sem lhe contar que seu pai é um ladrão. O "tira" não aceitaria tal coisa. Ele tem feito o máximo para mantê-la afastada de complicações, mas teria de tomar providências contra seu pai. Seja razoável, Stella.

Arthur estava perto da porta, procurando distinguir a moça nas sombras em que ela se refugiara.

Ao cerrar a porta ele ainda sorria. Sempre sorridente, esticou o braço para empurrar a cancela; todavia uma mão enorme tapou-lhe subitamente a boca e um puxão vigoroso fê-lo recuar. Antes que pudesse compreender o que sucedia, Arthur se viu agarrado pelo pescoço por uma mão, ao passo que uma outra lhe vasculhava o bolso.

Depois ele foi novamente colocado de pé e viu dois olhos ferozes brilhando por detrás de um par de lentes.

—    Se abrir a boca, você vai se dar mal... não tenha dúvida! Vá contar a Macleod. Ele dará uma busca em sua casa esta noite. A propósito, como foi que você conseguiu estas letras? Que mais descobriu?

—    Devolva-me esses... papéis —, tartamudeou Wilmot.

Scottie deu um risinho desagradável.

—    Vá queixar-se à polícia — disse ele — quem sabe conseguirá o que pretende.

Arthur Wilmot voltou para casa. Ele não era um lutador.

 

— Uma boa ação —, disse Scottie sentenciosamente — paga-se a si mesma, e estou apenas agindo em consonância com toda a melhor literatura que li referente a criminosos regenerados. Não estou certo de que "consonância" seja a palavra correta, mas talvez seja. Na minha última prisão corriam escritos focalizando exclusi­vamente as boas ações de velhos penitenciários salvos a uma vida de vergonha e miséria pelo sorriso de uma criança. Às vêzes tratava-se da filha do governador, às vezes da irmã do capelão e as idades variavam entre nove e dezenove anos. Mas, via de regra, ela era salva de afogar-se pelo malfeitor, quando este se aprestava para cometer um crime ainda mais hediondo. E a recor­dação de um par de olhos azuis afastava da carreira criminosa o bandido, que passava a viver uma vida de felicidade. Fim!

—    Você está apenas tentando impedir-me de ficar histérica — gaguejou Stella.

Havia outro punhado de cinzas ainda fumegantes sobre a lareira.

—    Não deveria ter posto fogo no grampo —, disse Scottie, pegando nas mãos a peça em brasa e guardando-a no bolso. Papel queimado é apenas papel queimado, mas suponha que Willy vá mesmo à polícia e conte uma estória sobre duas letras de câmbio presas por um grampo e suponha que se encontre o grampo queimado... bem, pareceria que ele estava dizendo a verdade e eu detesto a idéia.

—    Você ouviu tudo? — perguntou ela, esfregando os olhos.

—    Quase tudo —, confessou Scottie. — Estava no jardim quando ele falava com você na escada. A porta da frente estava aberta, de modo que ouvi... quase tudo. Esse homem não é um criminoso, do ponto de vista profissional. É uma pilha de nervos. E tagarela também. Todo mundo por aqui é assim. Está me olhando com uma expressão de dúvida, Srta. Nelson. Talvez me considere um tagarela também. De fato sou, mas minha conversa funda-se no conhecimento. Sou obrigado a admiti-lo. Não se pode correr o mundo como eu, atravessando o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália, a Africa do Sul e as ilhas sem adquirir um certo conhecimento que uma temporada ocasional no "xilindró" sempre ajuda a consolidar.

—    Vou para o meu quarto, Sr................................. Scottie. Ainda não lhe agradeci, pois não? Preciso contar ao Sr. Macleod.

Scottie sacudiu a cabeça com força.

—    Não faça isso, moça. Ele ficaria numa "sinuca". Minha experiência com a polícia ensinou-me duas coisas: o que ela quer e o que não quer saber. Em ambos os casos qualquer erro é fatal.

Scottie tinha razão. Ela não tinha forças para contradizê-lo. Aquele derradeiro choque lhe havia exaurido todas as reservas. Stella queria apenas afastar-se e ficar só. Não tornou a pensar em Arthur Wilmot. Ele estava na lareira junto com as cinzas.

—    Boa noite e muito obrigada.

—    Sonhe com os anjos —, disse Scottie, e só ergueu os olhos do livro que estava lendo quando ela se foi.

Então, ele recolheu cuidadosamente as cinzas do papel, levou-as para a cozinha e misturou-as num copo com água. Entornou o líquido na pia, lavou e enxugou o copo.

—    Quem me dera pudesse o passado ser elidido assim tão fácil —, suspirou Scottie poeticamente.

Na manhã seguinte, bem depois que a vanguarda dos jornalistas chegou às suas tendas, surgiu em Beverley Green um sagaz repórter de meia-idade que não pertencia a nenhum jornal em particular, mas tinha entrada em todos eles. Downer era a rigor um coletor de notícias, pois descobria sua colheita entre os mais tênues e dispersos restolhos de novidades. Por vezes seu trabalho pouco lhe rendia, mas amiúde os frutos tardios tornavam insigni­ficantes os primeiros feixes recolhidos pelo semeador.

Ele tinha uma verdadeira consciência das novidades, vale dizer tudo tinha de dobrar-se diante da verdade, doesse a quem doesse e ficassem prejudicados os interesses de quem quer que fosse. Seus métodos tinham aspectos éticos acerca dos quais os metafísicos e os moralistas jamais chegariam a um acordo. Para obter a verdade, ele era capaz de mentir e enganar e, se necessário, roubar. Trairia a confiança nele depositada com a mesma indi­ferença com que pediria uma refeição. A promessa solene de guardar um segredo fazia parte integrante do seu equipamento. A maioria dos seus colegas — homens mais honestos — desprezava-o e não lhe ocultava seu desagrado. Mas todos reconheciam nele um grande "furador" e confessavam seus desejos de também terem nascido sem qualquer resquício de decência.

Downer era um homem baixo e de feições grosseiras, que usava óculos de aros de osso e fumava charutos desde que se levantava até que ia dormir. De hábito, seu aspecto era mal- humorado e insatisfeito, e, em conseqüência, chamavam-no de "repelente". Ele era capaz de ser quase tudo aquilo que faltava à sua vítima e nessa qualidade residiam sua força e periculosidade.

Consta dos anais, que discutiu Teologia com o Bispo de Grinstead durante três horas, sem dar sequer um escorregão, e que o bispo, a fim de ilustrar determinado ponto de vista, contou-lhe a estória íntima do Rev. Stoner Jelph bem como as razões que tinham levado aquêle prelado a desertar da vida. Claro què o bispo não havia citado nominalmente o Sr. Jelph. Na argumen­tação de cândido religioso este apareceu sob a designação de um hipotético Sr. X. Mas Downer, tendo obtido a estória, publicou-a. Não mencionou nomes, mas em compensação não restaram dúvidas quanto ao objeto do seu artigo.

Andy foi o primeiro a ver Downer chegar. Já esperava por aquele aparecimento desde o dia do crime. O repórter veio ter diretamente com ele.

—    Bom dia, Macleod. Achei melhor falar-lhe antes de começar a investigar por conta própria. Sempre afirmei que não é justo para com o encarregado do caso começar a cheretar sem antes falar com ele. Freqüentemente, o repórter que não age assim torna-se prejudicial. Creio estar de posse dos fatos principais. Surgiu alguma novidade?

Andy ofereceu-lhe um charuto.

—    Alegro-me de que tenha vindo, Downer, mas você chegou tarde. Não, não há qualquer novidade.

—    Nenhuma pista nova? Quem é o tal Abraham Selim que está sendo procurado? Creio conhecer esse nome.

—    Isso é com você, Downer —, disse Andy soltando uma baforada e observando o outro por entre as pálpebras semi-cerradas. Nenhum repórter conseguiu localizá-lo. Nenhum de nós tampouco.

—    Ótimo. Talvez aqui seja o melhor lugar para apanhar-lhe a pista. Pode confiar em mim, Macleod. Não lhe vou invadir a ceva. Eu próprio sou um grande pescador.

Seria inexato dizer que Downer tinha medo de Andy. Ele não se amedrontaria diante de uma montanha de dinamite, mas também não escolheria o seu cume para tirar umas tragadas em sossego. Downer respeitava Andy e, quando possível, evitava-o. Andy era o único homem que êle conhecia capaz de empreender uma vingança inteligente em caso de traição. Downer respeitava a capacidade do antagonista. Não obstante:

—    Scottie Quatro-Olhos está aqui com você, ao que sei. Êle conseguiu safar-se da última acusação?

—    Está aqui —, disse Andy. Hospedado em casa de uns amigos meus.

—    Acha que ele tem algo a ver com este caso? — disse Downer meneando a cabeça. — Talvez. Ele é um sujeito arguto. Deixá-lo-ei
de lado. Não gosto de interferir no trabalho da polícia. Bem, vou-me indo.

Andy ficou a observá-lo caminhar sem pressa para os lados da casa de Merrivan. Ele tinha sido franco acerca de Scottie, sabendo que Downer o encontraria mais cedo ou mais tarde. Fora uma atitude muito sensata, pois, na noite anterior, o repórter estivera em Beverley Green e seguira Scottie até a casa. Ciente de que Scottie não se constituía em fonte de sensação, Downer caminhava lentamente até a casa de Merrivan. Dez minutos mais tarde, discorria junto do fascinado sargento de polícia sobre a lentidão com que se processam as promoções na polícia dos condados.

O júri se realizou aquela tarde e a pequena sala do tribunal ficou apinhada de gente.

Andy viu o Sr. Boyd Salter num lugar privilegiado próximo do legista e o juiz de paz fez-lhe sinal que se aproximasse.

—    Trouxe Madding, o guarda-caça —, disse ele. — Seu testemunho talvez seja valioso para fixar a hora em que o crime ocorreu. Estou tentando conseguir mais informações acerca de Abraham Selim. Ao que parece, ele começou a operar há mais ou menos trinta anos, no oeste. Um velho amigo meu, que, claro está, não deseja aparecer, teve negócios com ele nos tempos de colégio. Jamais viu Selim e não sabe de ninguém que o tenha conhecido. Selim parece ter surgido em Londres há vinte e cinco anos e estabelecido uma proveitosa ligação com os expedidores, exporta­dores e agentes, acerca de cuja posição financeira possuía conhe­cimentos extraordinários. Infelizmente, isso é tudo quanto lhe posso dizer.

Andy agradeceu e voltou para o seu lugar.

—    Expedidores! Onde os havia encontrado? Ele estivera recen­temente num escritório e foi com um susto que se recordou... Wentworth & Wentworth, a firma decadente cujo escritório ficava vizinho ao de Abraham Selim. Talvez fosse apenas coincidência, mas aquilo bem valia uma segunda investigação, decidiu Andy ao instalar-se para presenciar a convocação dos membros do júri.

Seu próprio testemunho seguiu-se ao do Sr. Arthur Wilmot, que havia identificado o tio e estivera com ele na noite do crime.

O mordomo ocupou a seguir o estrado e repetiu a estória que já contara uma dúzia de vezes aos repórteres e a Andy.

A pergunta que atormentava o Sr. Andrew Macleod era se o Sr. Arthur Wilmot voltaria a ser chamado para nomear as amizades femininas do seu tio. Nenhuma pergunta lhe fora feita naquele sentido durante o primeiro depoimento. O legista não deu maior importância à voz de mulher e pareceu muito mais interessado no incidente da carta. O mordomo mostrou num mapa o exato lugar em que a carta tinha sido encontrada e como a havia colocado mecanicamente entre os demais papéis do patrão.

—    A carta estava dobrada ou aberta?

O mordomo não tinha certeza. Acreditava que estivesse meio aberta quando a apanhou do chão.

—    Havia sido descoberto um envelope?

Nesse ponto Andy voltou a ser chamado e declarou que depois de cuidadosa busca não se encontrara nenhum envelope. Na ocasião, tal coisa lhe parecera estranha. A carta não estava datada e poderia ter sido entregue aquele mesmo dia.

—    Descobriu algo que o levou a crer estar o Sr. Merrivan temeroso da própria sorte?

—    Descobri um revólver carregado —, disse Andy. — Num armário atrás da escrivaninha e bem ao alcance da mão. Estava carregado e não fora disparado.

(Ele encontrara a arma depois que Scottie lhe havia descrito a localização do armário).

Seguiram-se os policiais que viram o corpo em primeiro lugar; o Sr. Vetch, advogado do falecido; Madding, o guarda-caça; o cozinheiro de Merrivan; a arrumadeira histérica, que deu uma nova demonstração de sua fraqueza e teve de ser carregada para fora da sala. A convocação do Sr. Dane pôs ponto final às formalidades. O inquérito ia adiantado quando o legista, cava­lheiro idoso e ranheta, dono de péssima memória, ergueu a vista dos papéis que estava examinando e:

—    Doutor Macleod, gostaria de chamá-lo novamente ao estrado. Há aqui um ponto que não me parece esclarecido. Trata-se da mulher cuja voz foi ouvida pelo mordomo.

Andy encaminhou-se calmamente para o seu lugar.

—    Um jornal relatou que o senhor viu uma mulher saindo da casa de Merrivan às onze horas e que essa mulher passou sob sua janela na casa de hóspedes, dirigindo-se aparentemente paraBeverley. Via de regra, — disse o legista, — dou pouca impor­tância ao que dizem os jornais, mas no caso temos uma declaração sua aos repórteres que não foi lembrada em nenhum instante neste júri.  

 

Para Andrew Macleod era uma experiência nova estar num tribunal de justiça a prestar deliberadamente um falso testemunho. Mal podia crer fosse ele mesmo quem com tanta calma o fazia.

—    Sim —, disse — vi a porta da casa de Merrivan abrir-se e, pouco depois, uma mulher sair na direção do relvado.

—    Que horas eram?

—    Onze horas. O fato é que o relógio da igreja de Bever­ley batia as onze no instante em que ela passou.

—    Pôde ver-lhe as feições?

—    Não, meritíssimo; a noite estava escura.

Com isto as provas ficaram terminadas e os jurados se retiraram. Meia hora mais tarde, retornaram com um veredito de homicídio doloso contra Abraham Selim. O legista havia praticamente induzido os jurados a tal decisão.

Downer não aparecera no tribunal. Andy procurara por ele, mas não o encontrara nem na bancada dos repórteres nem no restante do pequeno saguão em que se realizara o júri de inquérito.

Andy deteve-se um instante para conversar com o Sr. Boyd Salter e um representante da Promotoria; depois retornou à aldeia, possuído, com relação ao Sr. Downer, do mesmo estado de espírito que Stella alimentara por ele, quando os dois jovens se conheceram.

Caminhava tão devagar que o advogado de Merrivan o alcançou.

—    Essa estória do Sr. Merrivan estar nas garras de um agiota é tolice —, disse o cavalheiro chamado Vetch. — O Sr. Merrivan era muito rico.

—    Ele deixou testamento? O senhor não fez qualquer referência a isso em suas declarações —, disse Andy.

—    Não se encontrou nenhum testamento —, disse o outro sacudindo a cabeça. — A propriedade irá para o Sr. Wilmot a menos que surja um parente mais próximo.

Andy perguntava-se até que ponto poderia ser verdadeira a estória do casamento de Merrivan. Procedera-se a uma busca dos registros de casamento, sem que se encontrasse o menor sinal de tal enlace.

—    O senhor classificou Merrivan de comerciante. Que significa isso precisamente? A que ramo do comércio se dedicava ele?

O Sr. Velch sacudiu a cabeça.

—    Não tenho a menor idéia. Ele era um homem muito reticente quanto aos próprios negócios e só nos veio procurar depois de aposentado. Acredito que tinha ligações com o comércio do chá.

—    Por que pensa assim? perguntou Andy prontamente.

—    Era algo cansativo em tudo que dizia respeito ao chá. Creio que o chá era a única coisa pela qual se interessava deveras. Muitas vêzes, estando eu em sua casa na hora do chá, ele quis saber minha opinião acerca da bebida, como um conhecedor de vinhos se interessaria pelo julgamento que fazemos acerca de alguma garrafa de um velho Porto.

Os dois homens tinham entrado na estrada de Beverley Green quando avistaram um terceiro, que caminhava na mesma direção.

—    Aquêle não é um repórter chamado Downer? Vi-o pela manhã. Sujeito bastante inteligente —, disse Vetch. Estive­mos discutindo o último julgamento do Supremo acerca das respon­sabilidades dos corretores. Ele me pareceu muito versado em leis.

—    É muito versado em tudo —, disse Andy carrancudo. Suponho que não lhe fêz perguntas sobre os assuntos particulares do Sr. Merrivan?

—    Se mas tivesse feito eu não teria respondido —, disse o advogado. Sou demasiado traquejado para falar sobre os assuntos dos meus clientes. A única coisa que discutimos era algo perfeitamente inócuo... o custo de vida!

—    Sob que aspecto? indagou Andy curioso.

—    Ele me disse que Merrivan decerto gastava um dinheirão na manutenção da casa. Eu não me havia lembrado de examinar- -lhe as contas e só então tomei tal providência. Claro que não mostrei nada ao homem.

Se as contas estavam sôbre a mesa o senhor as mostrou a Downer —, disse Andy. O sujeito sabe ler de ponta cabeça.

Entre elas haveria alguma fora do comum... alguma conta excep­cionalmente alta?

—    Uma de 475 libras —, disse o advogado. Não se tratava exatamente de uma conta, mas de um memorando escrito por Merrivan Stellings Irmãos, 475. Não sei a que se referia. Quem é essa firma Stellings?

Andy nada soube esclarecer.

Stellings era o maior joalheiro da cidade e o memorando que o metódico Sr. Merrivan rabiscara, provàvelmente depois de destruir a fatura, era o preço do anel de brilhantes que ele havia comprado, na antecipação de uma conquista fácil.

Aquela altura êles estavam a uma distância em que Downer os poderia ouvir e Andy trocou discretamente de assunto.

—    Não, não compareci ao júri —, disse Downer. Eu tinha uma ou duas visitas a fazer e os júris me aborrecem. Nada se concluiu, suponho?

—    Nada que nos esclarecesse e que já não tivesse sido publicado —, disse Andy.

O advogado então se afastou deles. Tinha de acertar umas contas com a criadagem de Merrivan.

Surgiu alguma novidade com relação a um anel de brilhantes que Merrivan adquiriu quatro dias antes da sua morte? pergun­tou Downer, vergastando a grama com a bengala e aparentemente interessado apenas na decapitação de uma frágil margarida. Creio tratar-se do anel que o inspetor encontrou no relvado prosseguiu ele —, é curioso o velho Merrivan comprar um anel valioso e logo depois jogá-lo fora. Parece até que o comprou para alguém que o odiava tanto que tão logo deixou sua casa digamos cerca de onze horas da noite sacou do dedo a jóia e atirou-a o mais longe possível.

—    Essa idéia também me ocorreu —, disse Andy. A mulher que passou debaixo da minha janela pode ter feito qualquer coisa entre o instante em que saiu da residencia de Merrivan e o momento em que a vi.

Houve um silêncio e depois:

—    Havia um policial de serviço nesta ponta da rua princi­pal —, disse Downer. Ele estava esperando no lado de fora de uma casa. Uma mulher trouxe-lhe um pouco de café e ele bateu um papo com ela desde onze horas até onze e meia. Ninguém passou por ali senão vinte minutos mais tarde.

O repórter continuava a decapitar flores silvestres e não olhou sequer uma vez para Andy.

—    Ela pode ter saído por outro caminho. A rua tem extremidades —, disse Andy.

Houve mais um silêncio e depois Downer prosseguiu com voz monótona:

—    Um policial montado em bicicleta saiu da encruzilhada de Hilton (essa é a outra extremidade da rua) quando faltavam dez minutos para as onze e rumou para Beverley. Não viu ninguém até encontrar-se com o colega que conversava com a mulher. Sua bicicleta estava equipada com um bom farolete e a rua é bastante estreita. A nossa mulher não poderia sequer ter-se escondido na sombra de alguma sebe, poderia?

—    O caso é mesmo curioso —, concordou Andy. Ela pode ter voltado pela mesma trilha, depois que eu a vi da janela. Fui deitar-me logo após.

—    Quer dizer que ela pode ter voltado para a casa de Merrivan? Downer ergueu os olhos do chão. Voltado depois de jogar fora o anel?

—    Ela poderá tê-lo perdido, eis aí uma explicação —, disse Andy e dando-se conta da perda, pode ter voltado para procurar a jóia.

—    O anel foi encontrado nas proximidades da rua insistiu o infatigável Downer. Ou ela o jogou fora ou não saiu pelo relvado como você afirmou. O centro do gramado dista mais ou menos 85 metros do local em que o anel foi encontrado.

—    Oitenta e seis —, disse Andy gravemente e Downer riu.

—    Concordo com você em que o incidente da mulher carece de importância. Esses velhotes mantêm estranhas amizades. Provavelmente, ela não passava de alguma prostituta da aldeia.

O jornalista fixou o olhar no detetive, mas este não pestanejou. O homem sabia. Como tinha sabido se através de sagazes deduções ou de informações colhidas Andy não se deu ao trabalho de especular.

—    Não acho que devamos denegrir o caráter de Merrivan —, disse ele. O homem levava uma vida muito virtuosa, ao que se sabe.

—    Ela não praticou o crime — disse Downer com convicção,

—    mas é preciso que seja inocentada. Scottie anda ocupado?

—    perguntou ele abruptamente e Andy riu.

—    Muito. Provisoriamente, está regenerado. Creio que está servindo de modelo ao Sr. Nelson, um pintor que mora nestas bandas. Mas não é preciso que lhe diga nada a respeito dele, Downer. Um sabujo como você deve conhecer-lhe de cor a biografia.

—    Ele mesmo entrou para um curso de regeneração, não é verdade? —, disse Downer. — Sim, fiz as indagações de costume. Moça encantadora, a Srta. Nelson.

—    Encantadora — concordou Andy —, verdadeiramente encantadora.

Downer meneou a cabeça.

—    Suponho que esteja muito abalada com o crime. Era amiga do Sr. Merrivan, não? Ele lhe emprestou 300 libras faz mais ou menos nove meses. Claro —, acrescentou o jornalista em tom de desculpa — isso não é da minha conta nem da sua. E não há nada demais em uma jovem tomar dinheiro emprestado a um velho que poderia ser seu pai.

Aquilo era novidade para Andy, mas ele sabia que Downer não falava ao acaso.

—    Como ficou sabendo? — perguntou.

—    Não me lembro quem me contou —, disse Downer com um bocejo. — Até logo. Até qualquer hora.

Um dos homens aparecera para ajudar na preparação de um relatório e Andy o encarregou de uma tarefa urgente.

—    Vá até a cidade e descubra se Downer já estava aqui ontem à noite e com quem se encontrou. Provavelmente terá ficado no Hotel Beverley.

As suposições de Andy não estavam muito erradas. O Sr. Downer chegara no trem da tarde e jantara em casa de um funcionário do Banco da Lavoura.

—    O homem é aparentado com Downer —, comunicou o policial pelo telefone. — Faz pouco tempo que está em Beverley!

—    E logo irá embora —, disse Andy mal humorado. Estava ali obviamente a fonte de informações de Downer.

O fato de que o parente seria despedido por revelar segredos

do Banco não significava mais para o Sr. Downer do que uma desgraça semelhante infligida ao seu pior inimigo.

Dinheiro era o assunto no lar dos Nelson aquela tarde. O Sr. Nelson saíra do estúdio vestindo o avental branco e a moça estava à sua espera. Permanecera muito calado toda a manhã, quase não falara na hora do almoço, deixando-a um tanto apreen­siva, pois tais sinais de perturbação espiritual de hábito produziam sempre a mesma conseqüência.

Ele fechou a porta de acesso ao corredor que levava ao estúdio e depois voltou para assegurar-se de que ela estava real­mente fechada.

—    Stella — disse ele — acordei cedo hoje e pensei um bocado. Lembra-se do dinheiro que tomamos emprestado a Merrivan, ou melhor, que você tomou emprestado?

Ela assentiu com um gesto de cabeça.                                      

—    Será que já pagamos a dívida?

Ela tornou a menear a cabeça.

—    Onde você conseguiu dinheiro para liquidar a dívida? Lembro-me que estava num tremendo buraco quando a mandei arranjar aquela importância.

Ela não respondeu.

—    Eram 300 libras, não?

—    Sim, papai — respondeu a moça com tranqüilidade.

—    Onde conseguiu você 300 libras para devolver ao homem? Tem certeza de que pagamos?

—    Oh, sim, papai —, disse ela. — Tenho comigo o recibo.

Ele sentou-se, franzindo o cenho.

—    Tenho apenas uma vaga idéia a respeito —, disse. — Tudo me parece fragmentos de um sonho. O reembolso terá ocorrido durante — ele hesitou — durante aquela horrível semana?

Ele não exagerava na descrição daqueles sete dias de tortura mental ao longo dos quais não aparecera sequer uma vez em casa inteiramente sóbrio.

—    Na ocasião eu recebi bastante dinheiro, não foi? De onde veio o dinheiro?

—    Não sei —, disse ela.

Ele começou a tamborilar nervosamente os dedos na mesa.

—    É estranho —, disse. — Invariavelmente associo aqueles tempos com alguma coisa desagradável... algo que me faz gelar o sangue... e não sei o que seja. Claro que talvez se trate da percepção da minha bestialidade, mas não consigo admiti-lo. Será que fiz algo especialmente degradante então?

—    Não, papai —, disse ela. A conseqüência daquela atitude degradante tinha sido elidida de par com as respectivas provas carbonizadas.

—    Você nada sabe? —, insistiu o velho, espreitando-a cuidadosamente. — Eu costumava ter meus momentos de arre­pendimento piegas até mesmo em ocasiões como aquela, verdade? Se eu tivesse feito algo errado tê-lo-ia confessado a você. De onde terá saído o dinheiro?

Ela não o ajudou a descobrir. Arcara com toda a carga do pecado do pai. Não estava agora disposta a compartir da recor­dação daquele fardo esmagador.

Ao cair da tarde Stella aguava um canteiro de flores sob a sombra da sebe que separava o jardim da rua. Dois homens passavam por ali e ela captou alguns trechos da sua conversa. A coisa era bastante unilateral pois o que falava não dava azo ao companheiro de abrir a boca.

—    Quando o conheci, Sr. Wilmot, tomei-o por um homem difícil. Os tipos caladões e profundos são sempre os que mais trabalho dão a um repórter...

O Sr. Downer discutia um assunto muito caro ao Sr. Arthur Wilmot, isto é, Arthur Wilmot.

 

Andy Macleod pedira os jornais matutinos e os recebera ainda na cama. Correu os dedos pela pilha e escolheu o Mega­phone, pois o Sr. Downer tinha vindo a serviço daquele diário.

O detetive abriu o jornal com uma estranha apreensão e logo constatou haver razões para tanto. O Megaphone não é um jornal sensacionalista. Costuma apresentar um noticiário policial farto, uma correspondência estrangeira excelente e alguma qualidade literária. O relato dos crimes é, via de regra, relegado às páginas internas, mas desta vez o Megaphone imprimira a estória do crime na página principal.

Andy leu a manchete:

A MULHER DA MEIA-NOITE

Mas foi a segunda linha que o fez erguer-se com uma imprecação:

As RELAÇÕES DE STELLA NELSON COM O FALECIDO

Ele não leu o parágrafo seguinte e atirou o jornal sobre a cama. Seu primeiro sentimento foi de consternação, ao pensar na moça e naquilo que ela sentiria ao ver tal manchete. Depois, pensou no Sr. Downer. Jamais havia estrangulado um repórter, mas achou que em determinadas circunstâncias isso poderia ser tarefa agradável.

A seguir, apanhou o jornal e leu:

O júri de ontem em Beverley, onde dois homens foram encontrados mortos em circunstâncias sensacionais (escreve o nosso correspondente especial), não passou de mera formalidade. Não vieram à tona fatos desconhecidos do público nem se chegou mais perto da solução do mistério.

Por alguma razão . extraordinária a polícia pretende ignorar o nome da mulher que esteve em visita a Darius Merrivan cerca de dez horas e meia da noite e que alega ter saído às onze. O Dr. Andrew Macleod, não apenas patologista eminente mas também brilhante membro do con­selho superior de investigações criminais, é o terror dos malfeitores, e declarou em seu testemunho que tinha visto uma mulher sair da residência de Merrivan àquela hora. Patenteou-se, porém, em face das investigações procedidas, que a noite estava tão escura — a Lua encontrava-se total­mente escondida atrás das nuvens — que seria humana­mente impossível ao Dr. Macleod seguir a mulher através do relvado. Ficou estabelecido que uma mulher saiu de Beverley Green. Eu próprio fiz tal constatação. Essa mulher saiu da casa do Sr. Sheppard a fim de colocar uma carta numa caixa de correio situada no fim da alameda, no ponto em que esta faz junção com a rua principal. Não há dúvida de que essa é a mulher vista pelo Dr. Macleod. Quem terá sido então a dama cuja discussão com Merrivan foi ouvida pelo mordomo do ricaço? É voz corrente em Bever­ley tratar-se da Srta. Stella Nelson, filha do grande pintor, Kenneth Nelson, residente em Beverley Green.


Não é nenhum segredo que o Sr. Merrivan professava pela dama em foco a mais alta — e poderemos dizer sem receio de errar — a mais devotada admiração. Ele a pedira em casamento; pedido esse prazerosamente acolhido pela jovem, pois três dias antes do assassinato, Merrivan lhe havia comprado um anel de noivado na firma Stellings & Irmãos. No dia seguinte ao do crime, o referido anel foi encontrado num gramado a menos de cinqüenta metros do portão da residência da Srta. Nelson. Sabe-se, outros­sim, que tempos atrás a Srta. Nelson se encontrava em apuros financeiros e levantou um empréstimo de 300 libras junto ao Sr. Merrivan, dando-lhe em garantia duas letras de câmbio as quais o falecido negociou por sua vez com o indigitado criminoso, Abraham Selim.

As citadas letras de câmbio, que se encontravam na casa na véspera do crime, tinham desaparecido. De que maneira a moça ficara conhecendo Selim? E conhecendo tão bem que, sem quaisquer garantias, o agiota lhe emprestara uma substancial quantia de dinheiro? O problema de tal amizade ainda carece de esclarecimento, mas, indubitavelmente, o nome de Darius Merrivan surgiu como endossante das letras e o seu recibo passado pelo falecido constituiu surpresa. Concluiu-se que os endossos eram falsos. Não pretendo que a Srta. Nelson soubesse serem falsos os referidos endossos ou que de alguma forma tenha ela participado de uma fraude porventura perpetrada. Uma semana antes da tragé­dia, Darius Merrivan havia mostrado as letras ao seu sobri­nho, Arthur Wilmot. Tais letras, juntamente com a certidão de casamento de um antigo empregado — provavelmente preservada por razões sentimentais — e ainda alguns outros documentos estavam trancados numa escrivaninha, no quarto em que Merrivan se entrevistou com a Srta. Nelson e no qual veio a encontrar a morte.

Os documentos mencionados desapareceram. Quando a polícia chegou, havia um monte de papéis queimados na lareira. Claro está que o criminoso revistou o cofre i procura desses papéis e os queimou antes de evadir-se. Quem teria motivos para queimar o conteúdo do cofre? Obviamente a pessoa que havia falsificado a assinatura de Merrivan.

Quanto: aos movimentos da Srta. Nelson na noite do crime, ficou plenamente estabelecido que, conquanto uma testemunha a tenha visto entrar na casa, ninguém a viu sair. O testemunho do Dr. Macleod poderá ser ignorado como um engano desculpável. Ele viu uma mulher passar sob sua janela e julgou haver visto alguém sair da casa de Merrivan o articulista esteve no quarto de onde o Dr. Macleod presenciou o incidente, e pôde asseverar a impossibilidade de divisar-se dali a porta da frente da residência do Sr. Merrivan. O erro honesto do policial apenas aumentou de certa forma suas próprias dificuldades.

Mas o aspecto mais extraordinário do caso é o traba­lho que o Dr. Macleod se deu a fim de encobrir a impor­tante pista daquela visita feminina. A determinada pessoa ele declarou tratar-se de uma vizinha afirmação dificil­mente cabível na estória de uma mulher passando sob sua janela a outra pessoa o Dr. Macleod contou uma estória diferente. À descoberta do anel ele não atribuiu qualquer importância. Num ponto, porém, ele se comportou de ma­neira coerente. Fez questão de manter o nome de Stella Nelson distante de todas as discussões e se interpôs entre ela e todos aqueles que, como ele próprio, estão empenhados em esclarecer o assassinato de Darius Merrivan.

Andy tornou a ler. Sob certos aspectos, o artigo era uma obra-prima. A verdade se encaixava de tal forma no conjunto maliciosamente falseado que se tornava impossível para quantos não conhecessem os fatos perceber as junturas. O fio de tôda a trama era, sem dúvida, Arthur Wilmot, apresentado pelo Sr. Downer, perito relator de casos.

Andy vestiu-se ràpidamente e foi ter com Stella; mal olhou para o rosto da môça, percebeu que ela já lera o artigo.

—    O Sr. Scottie foi o primeiro a vê-lo —, disse ela, fechando a porta e saiu com papai para um passeio. Na verdade há já vários dias planejava levar o velho para fazer alguns esboços ao ar livre.

—    Seu pai não viu o jornal?

Stella sacudiu a cabeça.

A moça estava surpreendentemente dona de si, pensou Andy. Ele esperava encontrá-la à beira de um colapso nervoso. Pelo contrário, ela se mostrava calma e séria.

—    Creio que Arthur contou tudo ao Sr. Downer —, disse a jovem. — Agora você já sabe a verdade, Andrew.

—    Faz tempo que sei —, disse ele calmamente — menos acerca do empréstimo. Claro que o dinheiro era para o seu pai?

—    Sim —, disse ela sem hesitação. — Não faz sentido fingir agora que papai não se tenha comportado de forma abominável.

A moça olhou para ele com uma luz nos olhos que ele jamais havia visto.

—    E é verdade que você me protegeu, Andy —, disse ela. — Que irá acontecer?

—    Dir-lhe-ei o que Downer espera — que eu peça demissão esta manhã —, disse o detetive com displicência e Stella engoliu em seco.

—    Então isto o arruinou... profissionalmente... quero dizer. Oh, Andy!

—    Reconheço não me enganar quanto à verdade desse can... cavalheiro — prosseguiu Macleod — mas negrigenciei meus deveres apenas no sentido de que me neguei a enveredar por caminhos que sabia de antemão não me levariam a parte alguma. Sei que você não praticou o crime. Se eu me demitir, terei também de processar o Megaphonee você precisará fazer o mesmo. Mas não iremos recorrer à lei, Stella. Sei uma forma melhor. A maldita mulher sob a janela! Claro que não vi ninguém —, disse ele sem constrangimento. — Estava apenas inventando alibis para você. Foi uma enorme falta de sorte alguém ter saído àquela hora e fornecido com isso uma explicação a Downer.

—    Então é verdade? — perguntou ela.

Ele assentiu.

—    Downer nunca comete erros dessa espécie. E Wilmot fornece-lhe todas as demais informações. Você trouxe cá as letras, não é verdade?

Stella quedou-se em silêncio.

Depois:

—    Andy, tenho uma confissão a fazer. Devia ter-lhe dito antes, mas o Sr. Scottie me desaconselhou.

Com toda a franqueza, ela relatou então a visita de Arthur Wilmot e o ato de violência praticado por Scottie. Andy escutou e afinal teve uma inspiração.

—    Agora compreendo. Aquele chantagista! Está-se vingando de você da maneira mais fácil. Ninguém poderá provar que Merrivan não lhe mostrou as letras uma semana antes de morrer; e o desaparecimento desses papéis, somado às cinzas encontradas na sala de estar de Merrivan, parece ainda mais suspeito. Bem, que vai fazer agora, Stella? O detetive parou subitamente e franziu a testa. — Permiti a Wilmot que entrasse na casa. Foi ali que ele encontrou os documentos. Que era mesmo? uma certidão de casamento de um antigo empregado, uns poucos papéis importantes e as letras. Espere!

Num instante Andy se achou fora da casa, a caminho do relvado.

 

Era o último dia que a polícia permaneceria na casa, e Andy teve sorte de encontrar o sargento que lá estivera quando da visita de Arthur Wilmot.

—    Não, senhor, creio que a maior parte do tempo ele permaneceu no dormitório. O homem pouco se demorou —, disse o oficial em resposta a uma pergunta.

Andy subiu os degraus de dois em dois. Já tinha feito três ou quatro visitas ao dormitório e mais uma vez para lá se dirigiu. Instintivamente, sabia que o esconderijo se localizava nas proximi­dades do leito. O escudo e a rosa heráldica lhe haviam despertado a atenção pois, enquanto na parte inferior o lado achatado da pétala era direito e formava um ângulo reto com o pé da cama, no outro lado ela aparecia de viés. Agachou-se, puxou inicialmente a florzinha, e depois torceu-a. Produziu-se um esta­lido e Andy abriu uma gaveta vazia.

Não estava precisamente vazia, descobriu ele, ao retirá-la para fora — uns trinta centímetros penetraram no suporte aparente­mente sólido — havia ali um pedaço de papel contendo três grupos de algarismos. O primeiro era de 6700 libras e fora riscado. O segundo era de 6.500 e também fora riscado, surgindo em seu lugar a cifra de 6.025 libras. A diferença era de 475 libras. O preço do anel! Andrew estava certo de uma coisa: as letras haviam sido escondidas naquela gaveta e com elas se encontravam a "certidão de casamento de um antigo criado" e mais ainda — ele deu um assobio — a quantia de 6.025 libras!

Merrivan era homem metódico. Contabilizava o dinheiro guardado na gaveta e quando sacava algum riscava o total, substi­tuindo-o pela soma restante. Se ao menos pudesse ter certeza! Os olhos de Andy fuzilaram.

Ele voltou para a casa da moça sentindo-se quase alegre e foi encontrá-la no mesmo lugar em que a deixara sentada.

—    Andy, nem pense em pedir demissão —, disse ela, ao vê-lo entrar. — Redigirei uma declaração contando toda a verdade.

—    E como explicará Scottie? — perguntou Andy, deixando-a boquiaberta. — Não, minha cara, somos exemplos vivos do velho adágio acerca dos mentirosos e das teias por eles tecidas, e estamos de tal forma interligados que nenhum de nós pode afundar sem carregar consigo os demais. De qualquer forma, não pedirei demissão. Deixaremos as coisas como estão até que a chefatura se pronuncie.

As chefaturas de polícia são tão afeitas às críticas que se sentem constrangidas quando as críticas não aparecem. Ademais, havia certo mal-estar entre a polícia e o Megaphoneem virtude da publicação de um parágrafo indiscreto que fizera um estelionatário muito procurado deixar o país às pressas.

Andy foi chamado, seguiu para Londres e passou duas horas com seu superior imediato; o resultado foi que saiu dali com sua autoridade fortalecida. Ele encontrou um nota semi-apologética de Downer, o que não era do feitio do repórter.

O Sr. Nelson havia voltado, lido o jornal e percorrido Bever- ley Green de espingarda em punho à procura do Sr. Downer e do ausente Arthur Wilmot; por fim, Scottie o acalmara.

—    É monstruoso, monstruoso, Madeod — esbravejou o pintor, pondo a perder toda a obra de Scottie. — Vou processar essa gente, por Deus do céu! e ainda vou quebrar a cabeça desse demônio.

O senhor pode fazer o que preferir com respeito à ação — disse Andy —, mas me deixará em posição esquerda se intervier neste momento, Sr. Nelson. Tratarei de enfraquecer a posição de Downer. Creio que ele tem pronta uma boa para nós amanhã, mas, a menos que me engane, o artigo não será publicado. A forma de atacar repórteres é a mesma de atacar os júris. É preciso abalar a confiança nas testemunhas. Esta noite, darei um xeque-mate em Arthur Wilmot.

O Sr. Wilmot encontrara em Downer um homem de sensibilidade e discernimento. Ele não era, conforme dissera a Downer, um homem dado a fazer súbitas amizades. Downer concordou com ele; jamais se iludira àquele respeito. Na verdade, na pri­meira vez que vira o Sr. Arthur Wilmot, ele havia dito: — eis aí um homem de grande discernimento e difícil de se conhecer.

O jornalista sorriu benèvolamente para o objeto da sua admiração. Os dois homens jantavam num compartimento privado do Beverley Hotel, o qual, no entender do Sr. Wilmot, tinha a vanta­gem de ficar distante de Beverley Green e, no entender do Sr. Downer, a vantagem de ficar próximo de uma cabina telefônica.

—    Seu artigo desta manhã foi um tanto feroz, hein, Downer? — perguntou Arthur.

—    Nem tanto —, disse Downer com indiferença. — A jovem foi posta numa posição incômoda, mas, afinal de contas, Sr. Wilmot, todos nós temos certas responsabilidades como cidadãos e, embora eu não insinue, como não insinuei em momento algum, que ela saiba algo acerca do crime, Stella se tem conduzido de maneira estranha.

—    Concordo plenamente —, disse Arthur. — O que quero salientar é isto... desejo evitar, tanto quanto possível, toda suspeita de que lhe forneci informações. Quando lhe disse havê-la visto entrar na casa, você me prometeu que meu nome não seria men­cionado.

—    Em conexão com aquele fato —, corrigiu o outro, — pode estar seguro de que não escreverei a seu respeito sequer uma palavra capaz de comprometê-lo. O senhor nada me contou dos seus assuntos particulares, Sr. Wilmot, pois é uma dessas pessoas reticentes que não se abrem, mas, no fundo, suspeito que essa jovem não o tratou como devia.

—    Não tratou mesmo —, disse o outro secamente; — mas, deixemos isso de lado. Não guardo qualquer ressentimento mas, como diz o senhor, todos nós temos certas obrigações como cidadãos.

—    Exatamente, — disse o Sr. Downer.

Os dois voltaram a pé para o relvado, tomando o caminho mais afastado da residência dos Nelson. Downer estava ficando um tanto impaciente; tinha em seu poder bom número de fatos novos mas desejava obter a permissão de Wilmot antes de despa­chá-los. Mais tarde, quando tivesse nas mãos todos os fios da meada, dispensaria tal permissão.

Fazia-se tarde e ele tinha ainda muito que fazer.

Aceitou o convite de Arthur Wilmot "para dar uma chegadinha" e o seu anfitrião levou-o até o apartamento em que Andy vira o chapéu de mulher inacabado.

Era um quarto de esquina de bom tamanho, com duas grandes janelas de vidro fosco encaixadas em duas fundas reentrâncias, protegidas por cortinas de veludo azul. Wilmot tinha dito a verdade quando afirmou que ninguém tinha permissão para entrar naquele quarto; foi preciso destrancar a porta antes de entrar.

—    Cá estamos —, disse ele, acendendo a luz. — Sente-se, Downer. Esta cadeira é bastante confortável. Bebe alguma coisa?

—    Não, obrigado —, disse o Sr. Downer. — Tenho um mundo de coisas para fazer. Bem, que me diz da moça? Preciso dar seqüência à estória desta manhã. Tem alguma razão para acreditar que Macleod esteja apaixonado por ela?

—    Um momento —, disse Wilmot erguendo-se; encami­nhou-se para as cortinas da extremidade do quarto e fechou-as. — Senti uma corrente de ar. Esta maldita janela ficou aberta. Deus sabe quem nos poderia estar ouvindo. Quem teria feito isto? — Arthur cerrou o janela, recompôs a cortina e voltou para onde estava. — Não quero que toque nesse ponto —, disse ele. — Ela é uma moça muito impressionável, está numa idade romântica e o camarada provavelmente a enfeitiçou.

—    Há algo entre eles? — indagou o atilado Downer.

—    Há uma espécie de... — Wilmot hesitou. — Não sei bem como expressar-me; poderia dizer que ele é muito mais velho e usou de artimanhas...

—    Não diria isso —, disse Downer amavelmente. — Existem certas restrições, até mesmo para um repórter policial. Diremos que uma grande amizade floresceu entre eles. O leitor saberá de que se trata. Ficará ciente de que o detetive se envolveu com a moça.

Naquele instante ouviu-se uma batida fraca à porta e uma criada entrou.

—    Pode receber o Sr. Macleod? — perguntou ela.

Os dois homens se entreolharam e Downer meneou a cabeça.

—    Mande-o entrar —, disse Wilmot, umedecendo os lábios.

—    Boa noite, Downer, boa noite, Sr. Wilmot.

Parado junto à porta, Andy olhava para eles.

—    Não quer sentar-se, Macleod? — perguntou Wilmot nervosamente. — Conhece o Sr. Downer?

—    Muitíssimo bem —, disse Andy sem entusiasmo.

—    Não está satisfeito com o meu artigo, Macleod? — indagou Downer com fingida surpresa. — Você já está calejado demais para preocupar-se com o que dizem os jornais.

—    Esta, suponho —, Andy apontou para Wimot —, é a sua fonte de informações?

—    Não diria tanto —, contestou Downer.

—    Claro que não! — disse Andy. — Sou obrigado a dizer-lhe, Downer, que nos seus artigos, você quase sempre se aproxima da verdade, mas é só nessas ocasiões que o faz. Esta manhã você publicou um mundo de coisas destinadas — Downer sorriu — a embargar os passos da Justiça. Não me interrompa. Nunca lhe disse isto antes e dificilmente voltarei a dizê-lo. A Srta. Nelson poderá ou não agir judicialmente contra o seu jornal mas, se o fizer, isso custará à empresa vinte mil libras.

—    As declarações que fiz foram autenticadas.

—    Por quem? por este homem? — Andy apontou para o ameaçador Wilmot. — Vou-lhe mostrar o quanto se pode acreditar em Wilmot. — Caminhou até onde Wilmot estava sentado e baixou o olhar sobre ele. — Vim fazer averiguações acerca do paradeiro de 6.025 libras subtraídas à gaveta secreta de Darius Merrivan.

Wilmot pôs-se de pé, como que atingido por um tiro.

—    Quê... quê? — balbuciou ele.

—    Há também outros documentos roubados por você.

—    Roubados? — repetiu Wilmot com voz aguda. — Que pretende insinuar? Sou o herdeiro do meu tio.

—    Roubados por você, repito e, quanto a ser herdeiro do seu tio, isso caberá aos tribunais decidir. Havia também uma certidão de casamento... — Ele fixava o outro enquanto falava e percebeu que o jovem teve um sobressalto. — Escute bem, Wilmot, você parece ter pela frente sérias encrencas. Que tenciona fazer?

Arthur Wilmot respirava com dificuldade. Naquele momento, sentia-se incapaz de falar e Andrew voltou-se para o repórter.

—    Não lhe ocorreu que êste homem poderá ser suspeito e que você talvez seja acusado de tramar com ele a condenação de uma mulher inocente?

—    Não estou absolutamente nesse caso —, disse Downer em alta voz. O jornalista estava bastante alarmado. Estou sim­plesmente relatando os acontecimentos tais como os vejo.

—    Está se esforçando por inventar tais acontecimentos —, disse Andy e muito longe de ser um espectador desinteressado, Downer, você é partícipe. Infere-se, necessàriamente, que você estava a par desse roubo...

—    Não admito que fale em roubo —, interrompeu Wilmot, recuperando a voz. Reconheço haver apanhado diversas coisas da gaveta do meu tio. Ele assim o desejava.

—    Comunicou o assunto ao advogado do Sr. Merrivan? preguntou Andy secamente.

—    Não era preciso.

—    Na verdade, era preciso —, corrigiu Andy.

—    Apanhei aquelas coisas porque temia viessem elas a cair nas mãos dos criados.

—    Que havia lá? perguntou Andy.

—    Se o senhor me houvesse procurado antes eu lhas teria entregado prosseguiu Wilmot.

—    De que coisas se tratava? indagou Andy.

—    Havia uma certidão de casamento, certa quantia em dinheiro... creio que a soma mencionada pelo senhor, embora não tenha conferido... uma lista de apólices e... — ele fez uma pausa e prosseguiu intencionalmente, duas letras de câmbio falsificadas, de aceite do Sr. Nelson, em favor de Abraham Selim e endossadas por meu tio. Os endossos eram falsos. Essas letras me foram furtadas por um criminoso a seu serviço e, com tôda certeza, destruídas.

—    Quando ocorreu o roubo? perguntou Andy.

Faz dois dias.

O senhor apresentou queixa?

Não; sabe muito bem que não apresentei queixa.

—    E por que não? indagou Andy friamente. A lei existe para protegê-lo tanto quanto a outro qualquer. Não pensa que vou acreditar que foi roubado de muitos valôres e não abriu a boca, estando o lugar fervilhando de policiais!

Wilmot conservou-se em silêncio.

—    De qualquer forma, vamos examinar essas coisas. Estão em seu poder?

—    Estão no cofre da parede —, disse Wilmot amuado.

Ele sacou do bolso um molho de chaves e começou a examiná-las.

—    Onde diabo andará a chave do cofre? — disse.

Andy desconfiou que ele estivesse a demorar deliberadamente por algum motivo, mas a surpresa do homem era genuína. Ele teria sido incapaz de simular o ar de desaponto que lhe surgiu no rosto ao examinar as chaves uma por uma.

—    Estava na minha argola esta tarde quando fui nadar —, disse Wilmot — só então me separei dela.

Ele correu o painel que ocultava o cofre.

—    A porta não está fechada à chave —, disse Andy.

Com uma exclamação Wilmot abriu a porta do cofre e nele introduziu a mão.

—    Santo Deus —, gaguejou, aliviado. — Pensei que alguém havia saqueado o cofre.

Wilmot despejou o dinheiro sobre a mesa.

—    Os demais documentos —, disse Andy.

—    Eis a relação das apólices e aqui... — ele engasgou, e Andy notou que um ar de assombro lhe assomou ao rosto.

—    Juro que estava aqui.

—    O quê?

—    A certidão de casamento desapareceu!

Aconteceu que naquele instante Andy voltou a cabeça na direção da porta. Entre a porta e a reentrância da janela havia três comutadores que comandavam as luzes do quarto. Ao olhar, ele viu uma mão surgir de trás das cortinas e aproximar-se dos comutadores. Momentaneamente, a estranheza do acontecido o deixou paralisado de surpresa. Ouviu-se um estalido e o quarto mergulhou na escuridão. Mais um instante e um facho de luz ofuscou os olhos dos três homens.

—    Não se mexam —, disse uma voz rouca. — Caso contrário atirarei, seja no policial, no repórter ou no ladrão.

—    Quem é você? — perguntou Andy com severidade.

—    Meu nome é Abraham Selim —, disse a voz.

Logo após a porta se abriu e fechou; ouviu-se a chave girar na fechadura e depois o estrondo da porta da frente, batida pelo intruso.

Andy precipitou-se para a janela fronteira da casa e correu as cortinas. Mesmo que fosse dia claro nada seria possível enxergar através das vidraças foscas da moradia de Wilmot. Quando a janela foi aberta e Andy saltou para fora, já não havia traço do visitante.

Wilmot e Downer foram juntar-se a Andy no jardim. A criada, que acudira aos furiosos toques de campainha de Wilmot, fizera-os sair.

—    Mais uma aventura do seu amigo Scottie —, disse Wilmot entre dentes.

Andy voltou a cabeça na direção do seu interlocutor.

—    Meu amigo Scottie, como diz você, jamais haveria deixado 6.000 libras para trás, e duma coisa estou absolutamente certo: ele não se dá ao luxo de manicurar-se!

Um assobio agudo de Andy fez vir correndo um policial.

—    Mande-me o sargento e telefone ao seu posto que mobilize todos os homens para uma busca. Consiga toda a ajuda que puder. Depressa!

 

Aquela hora era possível que Scottie estivesse fora, mas acontecia estar ele ajudando Stella a acondicionar para o transporte a última tela de Kenneth Nelson, e, conforme a moça dissera a Andy, Scottie não saíra de casa toda a noite. Andy regressou à casa de Wilmot; o Sr. Downer já lá não estava.

—    Ficarei com este dinheiro —, disse o policial sacando do bolso o caderno de notas. — Agora, Wilmot, gostaria que me dissesse tudo quanto for capaz de lembrar-se acerca da certidão de casamento.

—    Acredita mesmo que aquele era Abraham Selim ?

—    Estou certo de que era o homem que matou o seu tio —, disse Andy brevemente — e ele nos apontou a mesma arma com que o crime foi perpetrado.

O Sr. Wilmot teve um arrepio.

—    A certidão referia-se ao casamento de um homem chamado John Severn com Hilda Masters, doméstica. O enlace aconteceu há cerca de trinta anos, na Igreja de S. Paulo, em Marylebone.

Andy anotou os detalhes.

—    O nome do seu tio apareceu de alguma forma?

Wilmot sacudiu a cabeça.

—    Conhece alguém chamado John Severn? Ouviu o seu tio mencionar tal nome?

—    Nunca —, disse Wilmot. — Bem, acerca do dinheiro, Macleod. Prefiro evitar qualquer aborrecimento. Apanhei-o, real­mente, para guardá-lo. Como foi que descobriu?

—    Você conhece meus métodos, Wilmot —, disse Andrew sarcasticamente. — A coisa ficará muito feia para você, mas acon­selho-o a manter-se tão afastado do Sr. Downer quanto possível. Ele será impiedoso com você e irá traí-lo com a mesma despreo­cupação com que trairia Abraham Selim, se fosse o caso.

Uma idéia parecida começava a ocorrer ao jovem.

—    Downer está com medo da ação judicial —, disse Wilmot.

—    Creio que o jornal de amanhã será mais camarada. Além do mais, a dramática aparição de Abraham Selim lhe fornecerá material de sobra.

Andrew pensava o mesmo.

Foi dar uma espiada em Stella antes de dirigir-se para a casa de hóspedes. Scottie, homem virtuoso que era, já tinha ido para a cama.

—    Todo mundo em Beverley se tem mostrado compreensivo acêerca do artigo —, disse Stella. — Nunca tantos me visitaram... os Sheppards, os Masons, e aquele casal tranqüilo, os Gibbs. Estão furiosos com Arthur Wilmot. Que dirão os jornais amanhã?

—    perguntou ela.

—    Pouca coisa —, disse Andy. — Downer se estenderá sobre o assalto à casa de Wilmot e sobre a visita do misterioso Abraham. Aproveitará também a oportunidade para pô-la a salvo de qual­quer suspeita. É comum as pessoas ameaçarem de processo um jornal, nessas circunstâncias, mas, via de regra, tudo fica nas ameaças. Mas Downer sabia haver exagerado e eu tive certeza de que isso o havia deixado nervoso quando recebi seu bilhete esta manhã. Não é típico de Downer tomar uma atitude dessas, pois, na verdade, ele não dá a menor importância ao juízo que faço dele e não se assusta facilmente. Deveria ter dúvidas quanto à sinceridade de Wilmot.

A névoa que envolvia o assassinato de Beverley Green tornava-se cada vez mais pesada. A cerração tornara-se tão densa que Andy metaforicamente falando, era incapaz de enxergar um palmo adiante do nariz. A aparição de Abraham Selim não lhe facilitou em absoluto a solução. Por que teria o homem corrido tão grande risco apenas para obter uma certidão de casamento na aparência sem valor? Quem eram John Severn e quem era a doméstica, Hilda Masters?

Andy aguardou na casa de hóspedes, recebendo de quando em quando algum relatório dos escassos policiais que vasculhavam a região à procura de um forasteiro. A polícia das aldeias vizinhas estava ajudando nas buscas; as estradas principais vinham sendo patrulhadas e os cruzamentos vigiados. Trabalhar com aquela pequena força em campo aberto teria sido impossível; tal provi­dência só poderia ser tomada à luz do dia.

À uma hora da manhã o detetive saiu para tomar um pouco de ar. Seu quarto estava quente e abafado e ele sentia dor de cabeça.

Nenhuma luz brilhava em Beverley Green. Todos dormiam. Até mesmo no dormitório de Stella não se via qualquer sinal de claridade.

Dane, que viera de bicicleta trazer o último relatório, juntou-se a Andy.

—    Detivemos todos os carros entre este lugar e Cranford Corner. Julga conveniente vasculhar Beverley Green de casa em casa?

Andrew meneou a cabeça.

—    Não vejo em que isso poderia ser útil —, disse. — Se Selim for morador aqui, ele saberá justificar-se, e não é possível vasculhar integralmente todas as casas. Sem o competente man­dado judicial, seria ilegal. Talvez...

Andy ia prosseguir quando o silêncio da noite foi cortado pelo ruído de um tiro. Seguiram-se mais dois tiros, um intervalo e mais um quarto disparo. Os ruídos vinham do platô situado mais além da aldeia.

—    Não podem ser ladrões —, disse Dane.

—    Ladrões não usam revólveres —, atalhou Andy e juro que eram tiros de pistola!

O telefone da casa de hóspedes começou então a tocar furiosamente. O tilintar chegava até fora através da porta aberta e, pouco depois, o sonolento Johnston veio chamar Andy.

—    É o Sr. Boyd Salter ao telefone. Chama-o com urgência Foi o que disse... urgência!

Andrew correu para dentro de casa, ergueu o receptor e ouviu a voz de Boyd Salter.

—    É você, Macleod? ouviu os tiros?

—    Sim, senhor.

—    Fui eu quem atirou —, disse o outro com voz lúgubre. Houve um assalto à minha propriedade. Alguém tentou entrar à força. O assaltante tentou fugir para os lados de Covert. Pode dar uma chegada até cá?

Andy tirou o carro da garage e, com Dane ao lado, tomou a rua principal; depois de alguma demora, conseguiu despertar o guarda.

O Sr. Boyd Salter, muito branco, aparência doentia, envergando um roupão sobre o pijama, esperava-os na biblioteca.

—    Sinto muito incomodá-lo, Macleod —, disse ele.

—    Viu o homem? indagou Andy de pronto.

—    Apenas pelas costas. Creio que já estava em minha casa há meia hora quando o pressenti. Se o patife não tivesse tido a audácia de entrar no meu quarto, eu não o teria escutado.

Salter mostrou então a janela que tinha sido forçada. Ficava num pequeno quarto de vestir ao lado da biblioteca.

—    Ele esteve na biblioteca também —, explicou o Sr. Boyd Salter. Veja, aquelas escrivaninhas foram forçadas.

As gavetas haviam sido arrombadas, arrancadas do lugar e o seu conteúdo espalhado pelo chão.

—    Provavelmente, ele julgou haver dinheiro aqui —, prosseguiu o juiz de paz. Claro que nunca guardo coisas de valor aqui na biblioteca.

—    Ele esteve em algum outro quarto?

—    Suponho que tenha estado no quarto do meu filho... meu filho está fora... em Cambridge... mas não tenho certeza.

Salter conduziu os dois homens até o andar superior, mas nada fora tocado no quarto do rapaz, embora a porta estivesse aberta.

—    O assaltante pode ter confundido este quarto com o meu. O meu fica bem em frente —, disse o senhor de Beverley Hall.

—    Não sei o que me terá despertado. Talvez o ranger da porta, embora eu deteste a tal ponto portas barulhentas que mande azeitar periodicamente todos os gonzos das minhas.

—    O homem nada levou daqui? — perguntou Andy.

—    Nada —, foi a resposta. — Não teve tempo. No momento em que me sentei na cama, ouvi-lhe os passos e ele foi embora. Vislumbrei-lhe o vulto no fim do corredor quando saí do quarto e desci gritando por Tilling. Tornei a ver o homem de relance quando ele saltou pela janela da biblioteca, àquela altura às escuras. Tenho sempre comigo uma pistola, uma colt automática, e atirei no homem quando ele descia a escadaria do terraço e desaparecia na escuridão.

—    Não lhe ouviu a voz?

O Sr. Boyd Salter fez que não com a cabeça.

Aquilo era coisa de um especialista, Andy percebeu de pronto. Se não tivesse absoluta certeza de que naquele momento Scottie dormia o sono dos justos, e de que dificilmente na atual situação descambaria ele para as antigas inclinações, o detetive juraria que o visitante noturno não era outro senão o velho malandro.

Contra a hipótese havia ainda o fato de que Scottie jamais assaltara um lugar sem ter em seu poder minuciosas informações quanto aos valores ali contidos e quanto à sua localização exata.

O assaltante não viera com nenhum plano traçado. Scottie não teria espalhado papéis e decerto não se teria metido no quarto do Sr. Boyd Salter.

—    Este é o segundo assalto praticado hoje à noite, senhor

—    disse Andy e relatou a visita feita à casa de Wilmot.

—    Abraham Selim —, disse o outro pensativo. — Não, não irei interferir com suas teorias, Sr. Macleod.

—    Está faltando alguma coisa?

O outro sacudiu a cabeça.

—    Não creio. Não havia nenhum valor aqui, a não ser uns poucos contratos, e acredito que esses não valeriam a pena.

—    Que é isto?

Andy encaminhou-se para a lareira. Estava vazia, assim como todas as demais lareiras da região, pois o tempo se mantinha excepcionalmente quente. Na parte inferior da grelha havia cinzas de papel queimado! Característica idêntica marcara o assassinato de Darius Merrivan!

—    Queimou alguma coisa, Sr. Salter?

O cavalheiro sacudiu a cabeça.

—    Não —, disse. Dá para distinguir a caligrafia? Às vezes dá, mesmo depois de queimado o papel.

Andrew ajoelhou-se e alumiou as cinzas com a lanterna.

—    Não. Tudo foi rasgado —, disse ele e apanhou com cuidado um fragmento maior do que os outros, colocando-o sobre a mesa.

—    Parece-me RYL —, disse o detetive. — Curiosa combinação de letras.

—    Orylbridge —, sugeriu Boyd Salter. Tenho ali uma propriedade.

Ele recolheu alguns papéis do chão.

—    Não me seria possível verificá-los esta noite —, disse talvez dê um pulo até cá amanhã, doutor?

Antes de retornar a Beverley Green, Andy aguardou o relato dos dois guardas-caças que, acordados à pressa, haviam dado uma batida na propriedade.

—    Este caso está me dando nos nervos, Dane —, disse ele quando o carro descia pela colina na direção das cancelas. Uma coisa é certa: escondido neste vale há um assassino. Chame-o de Abraham Selim ou do que preferir. Obviamente, é residente aqui. Não há outra explicação possível para a rapidez e a segurança com que se move. Ele conhece o terreno a palmo e está à procura de alguma coisa. Matou Merrivan por isso. Matou Sweeny porque, por alguma coincidência, Sweeny encontra­va-se no pomar. Invadiu Beverley Hall em busca da mesma coisa. Por que, em ambos os casos, terá queimado essa "coisa" na lareira?

—    Onde mais poderia tê-la queimado? perguntou inteligentemente o inspetor Dane. Em ambos os casos a lareira estava bem à mão.

Andy não replicou.

Havia um terceiro caso de queima, lembrava-se ele, e fora Stella quem recorrera àquele método para livrar-se de algo que desejava ver destruído.

Eram duas e meia e o levante começava a iluminar-se de leve quando ele despediu-se do inspetor e entrou na casa dehóspedes. Ao fazê-lo, Andy relanceou os olhos pela casa dos Nelson e gelou. Stella estava acordada; a luz do quarto da moça se filtrava através das cortinas.

Esperou quase uma hora, esperou até que a madrugada deixasse tudo cinzento e então a luz se apagou.

Andrew suspirou e foi para a cama.

 

Scottie entrou-lhe no quarto, antes que Andy despertasse na manhã seguinte. As mãos metidas nos bolsos, seu rosto denotava enorme descontentamento.

—    Alô, Scottie —, disse Andrew, apoiando-se nos cotovelos. — Alguma coisa errada?

—    Nada, a não ser o padrão moral desta comunidade —, disse Scottie, sentando-se. — Vou para Londres, Macleod. Este lugar é demasiado excitante para mim e, seja como for, você está ficando mal visto. Encontrei-me com o tal escriba Downer esta manhã: o homem anda mais cheio de problemas do que qualquer vira-lata de pulgas. Disse-me que se trata do pior caso que já enfrentou e que havia abandonado um caso excelente e sem com­plicações para vir até cá, para grande arrependimento seu.

—    Viu o jornal dele?

Scottie assentiu.

—    Brando, Macleod, eis a palavra, e ruim. Tudo girava em torno do tremendo perigo por que ele passara, e da figura masca­rada que surgira dentre as cortinas, ameaçando-o de morte.

—    Se se tratava de um mascarado ou não, ninguém sabe. Creio que não era assim —, disse Andy. — Que diz ele a respeito da Srta. Nelson?

—    Limpa-lhe o nome. Tudo foi satisfatòriamente explicado —, diz — e o jornal traz um pedido de desculpas.

—    Então ele vai embora? — perguntou Andy com agrado.

Scottie confirmou com a cabeça.

—    Foi o que ele disse. Mas... logo... um, um repórter! Aposto que fica mais uma semana.

Scottie caminhou até a porta.

—    Talvez eu volte, Macleod, até logo.

Desapareceu antes que Andy pudesse perguntar-lhe se seria possível ver Stella Nelson àquela hora.

Com relação àquele caso, o detetive chegava a um impasse e se via diante de um desanimador beco sem saída. Aproximava-se a hora de ir embora de Beverley Green e o assassinato teria de passar para a categoria dos crimes insolúveis.

O verdadeiro mistério era a cadeia de circunstâncias que apro­ximavam Darius Merrivan, Abraham Selim e o assassino.

Andy tencionava fazer uma visita a Stella, mas seu plano foi modificado pela chegada de um longo telegrama da chefatura. Êle leu e assobiou.

Volte imediatamente. Wentworth, comerciante Edifício Ashlar desaparecido. Investigações provaram existência enormes depósitos bancários. Abraham Selim possivelmente ligado desaparecimento.

O Sr. Wentworth ocupava um conjunto de escritórios vizinhos aos de Abraham Selim. Andrew já estava a par disso; já estava também a par da situação financeira da firma, antes de entrevis­tar-se com a infeliz secretária.

—    Ele esteve aqui sexta-feira —, disse a moça. — Deixou-me o salário, algum dinheiro miúdo e disse que voltaria na segunda ou terça-feira. Conversei com ele sobre negócios, pois estamos praticamente parados e eu queria saber por quanto tempo ainda conseguiríamos manter abertas as portas. Mas, ele se mostrou muito alegre e me disse que breve teria boas notícias para mim. Falou de maneira brincalhona. Sempre gostou de brincar.

—    Decerto sabe onde ele mora? perguntou Andy.

—    Não, não sei. Creio que mora em algum hotel. Escre­veu-me uma ou duas vezes e o endereço era sempre o de um hotel, mas eu nunca lhe enviei qualquer carta. Outra observação dêle, na última vez que nos encontramos, foi de que era engraçado nunca vermos o Sr. Selim.

—    Já me disse isso antes —, disse Andy, meneando a cabeça. — Lembra-se de que hotel ele lhe escreveu, e em que época?

—    Tenho isso anotado no diário. Pensei que o senhor dese­jaria vê-lo e deixei-o de lado.

Andy relanceou os olhos sobre a lista que a funcionária tinha preparado. Eram hotéis conhecidos de várias partes do país e o policial guardou o memorando no bôlso para uso futuro.

—    Tem alguma fotografia do Sr. Wentworth?

Ela negou com um gesto de cabeça.

—    Que idade tinha ele? Que aparência tinha?

Neste ponto ela se mostrou realmente vaga. Era moça de dezenove anos e nessa idade qualquer pessoa de mais de trinta e cinco é "velha". O homem tinha uma corcova, lembrava-se a jovem, e usava óculos de aros de osso. Pouco sabia acerca dos negócios dele, para quem trabalhava havia apenas doze meses. Ela nunca mandava contas pelo correio e, aparentemente, seu trabalho se resumia em receber clientes que não apareciam, fazer uma coleta das notícias jornalísticas sobre o movimento cambial (ela exibiu grande quantidade de papéis que havia compilado) e receber seu salário na sexta-feira à tarde.

Não era muita coisa, admitiu.

—    Escrevi-lhe uma ou duas cartas a respeito de preços, mas tudo ficou nisso.

Andrew visitou os dois hotéis londrinos incluídos na lista que a moça lhe havia dado. Verificaram-se os registros e confirmou-se a informação. O Sr. Wentworth se hospedara em ambos, mas nada se sabia sobre aquele freguês; não passava de um nome e de um número.

Andy retornou à chefatura e fez seu relatório.

—    Wentworth e Abraham Selim são a mesma pessoa —, disse. — Wentworth & Wentworth é uma firma fantasma e existia apenas para dar a Abraham Selim uma razão para estar no prédio. É bom lembrar que o funcionário de Selim só ficava no escritório entre onze horas da manhã e uma da tarde. Wentworth nunca chegava ao prédio antes de duas horas da tarde e isto apenas em determinados dias. Esses eram os dias em que o funcionário estava de folga. Era coisa simples para Wentworth penetrar no escritório de Abraham Selim, apanhar as cartas e voltar calma­mente para a sua sala. O banco de Wentworth disse-me que o seu cliente tem uma dúzia de cofres de segurança cheios de papéis e, ao que me parece, através desses papéis será fácil esta­belecer em definitivo a identidade do homem.

—    Wentworth sacou algum dinheiro do banco desde que desapareceu?

—    Foi o que perguntei e me informaram de que não fez qualquer saque. No entanto, isso é fácil de explicar. Selim sabia que iríamos diretamente ao seu escritório. Pensou, com certeza, que descobriríamos de pronto as relações entre Wentworth e ele próprio, e sacar, em tais condições, um cheque em nome de Wentworth seria arriscar-se a ser descoberto.

Andy obteve as ordens necessárias para devassar as propriedades de Wentworth e passou a tarde e boa parte da noite no escritório particular do gerente do banco, examinando o conteúdo de seis caixas metálicas repletas de papéis.

Seu trabalho foi facilitado pela descoberta de que duas caixas encerravam documentos pertinentes à legítima firma Wentworth. Aparentemente, Selim havia adquirido o negócio alguns anos antes e mesmo na ocasião este não ia muito bem. Sob a direção de Selim as coisas andaram de mal a pior, pela simples razão de que o agiota não precisava de nenhum negócio legítimo, tendo encon­trado uma forma mais fácil de enriquecer, forma que encerrava menos riscos e proporcionava lucros enormes.

As demais caixas continham títulos de propriedade, instrumentos de transferência e antigos contratos nos quais estava sempre presente o nome de Abraham Selim.

O homem parecia ser proprietário em todos os cantos do país. Uma fazenda aqui, alguns sítios ali; uma mina de carvão em algum lugar; havia dados acerca de direitos de exploração de minérios que ele adquirira, dados acêrca de uma plantação de açúcar nas Índias Ocidentais, e numerosas outras provas documen­tais de uma enorme fortuna.

Era quase meia-noite e Andy punha de lado a última pilha de papéis quando teve sua atenção despertada por um nome conhecido, ao correr os olhos sobre um velho documento.

John Aldayn Severn.

Severn!

O contrato estava vazado em linguagem legal. Fora cele­brado entre Abraham Selim, de um lado, "daqui por diante referido como cedente" e John Aldayn Severn de outro. A medida que lia, Andy tomou-se de grande pasmo diante das condições impostas. A parte a terminologia legal, o cedente concordava em pôr à disposição do desconhecido Severn a soma de cinco mil libras anuais durante tôda a vida e, "em pagamento de determi­nados serviços prestados", Severn concordava que, caso herdasse alguma propriedade que lhe propiciasse aquela soma, pagaria regularmente a Selim metade das rendas que obtivesse. A propriedade em questão não foi especificada.

Andy olhou pensativamente para o documento. A data era posterior de cinco anos ao casamento de Severn, a dar-se crédito à informação de Arthur Wilmot. Teria Severn herdado alguma propriedade, e, em caso afirmativo, teria honrado sua promessa?

O gerente do banco havia deixado dois funcionários para ajudá-lo e todos os livros concernentes às contas de Selim lá estavam. Andrew correu o dedo por todas as páginas, mas era difícil distinguir a origem das parcelas, exceto...

Ele tornou a examinar o contrato. Os pagamentos deveriam ser efetuados a primeiro de março e primeiro de setembro. Andy voltou aos livros e fez um levantamento das contas dos últimos vinte anos, verificando que nos dias primeiro de março e setembro haviam sido depositadas em nome de Selim quantias variando entre sete mil e nove mil libras. De maneira que Severn herdara sua propriedade e estava pagando.

—    "Eis o meu homem" —, disse Andy com seus botões. — "Se encontrar Severn, encontrarei Abraham Selim."

Não havia referências disponíveis e, na manhã seguinte, ele examinou cuidadosamente quantas relações de proprietários rurais lhe caíram nas mãos. O nome Severn apareceu três vezes mas, em todos os casos, como proprietário de bens muito pequenos e as investigações pouco adiantaram com relação à identidade de John Aldavn Severn mencionado no contrato. O nome era totalmente desconhecido das vizinhanças de Beverley, menos para um homem.

O Sr. Boyd Salter era uma espécie de autoridade em pequena nobreza rural, e Andy fez-lhe uma visita na manhã de seu regresso a Beverley Green.

—    Creio que o Severn que procura foi para a Austrália há alguns anos. Quando nos conhecemos eu disse ao Sr. que um amigo meu sofreu muito nas mãos de Selim. Na ocasião, eu me referia a Severn. Conheci-o muito bem, e sabia que estava nas garras de agiotas.

—    Então a propriedade que herdou ficava na Austrália? — sugeriu Andy.

—    O Sr. me parece desapontado —, disse Boyd Salter com um sorriso.

—    Um pouco —, replicou Andy. — Conhece alguma razão pela qual Merrivan devesse dar tanto valor à certidão de casamento dele?

—    Eu não tinha a menor idéia a respeito e, falando de Merrivan, lembro-me, agora, de que feri o homem que me assaltou.

—    Verdade! —, disse Andy interessado. — Como é que sabe, senhor?

—    Encontramos marcas de sangue na manhã seguinte; não muitas, mas em número suficiente para sabermos que o homem ficara ferido, e na mão. Ele deixou uma impressão da palma da sua mão na folha de uma árvore. Tomei a liberdade de informar o Inspetor Dane, na sua ausência, e creio que ele realizou investi­gações junto aos médicos locais, mas sem sucesso.

Ao invés de dirigir-se para a aldeia de carro, Andy foi a pé, deixando o carro para que o chofer do Sr. Boyd Salter o trouxesse depois. O detetive seguiu a suposta trilha do ladrão e Madding, o guarda-caça, mostrou-lhe o lugar em que se encon­traram as manchas de sangue. Ainda restavam alguns vestígios. Andy examinou a folha; os gravetos em volta eram prova eloqüente do ferimento da ladrão.

Andy seguiu pelo mesmo caminho até a aldeia. Flanqueou o pomar em que Sweeny fora morto e chegou a Beverley Green através da quadra de tênis e da estreita alameda que circundava a residência de Darius Merrivan.

Fazia dois dias que não via Stella. Pareciam antes dois anos; e um século dir-se-ia decorrido desde o instante em que a vira através da vidraça da cabina telefônica, no prédio do correio.

Uma criada veio atender à porta.

—    A Srta. Nelson está de viagem, senhor.

—    De viagem? — repetiu Andy estupefato. — Para onde foi?

—    Quer falar com o Sr. Nelson? Ele está no estúdio.

Andy encontrou o pintor a fingir que trabalhava e Kenneth

Nelson o recebeu com grande cordialidade.

—    Não sabe como me sinto feliz por tê-lo de volta, Macleod. Estou quase morto de preocupação.

—    Onde está Stella?

—    Bem, teoricamente está em casa da tia —, disse Nelson devagar.

—    Teoricamente? E não está lá?

—    Mandei um telegrama perguntando quando ela voltaria e a resposta de minha irmã foi que Stella apenas passara lá a tarde e se dirigira para o norte, a negócios.

—    Com toda a certeza foi o que fez —, disse Andy aliviado.

Ele não seria capaz de dizer qual a sua expectativa, mas as notícias de Nelson não eram das mais alarmantes. Andy suspei­tava que Stella não fazia confidências ao pai, mesmo tratando-se de próprio bem-estar do velho.

—    Isso apenas não me iria preocupar —, disse Nelson, como se estivesse lendo os pensamentos do outro. — Já vou-lhe mostrar o que me preocupa.

Subiu as escadas seguido pelo intrigado policial e, no segundo andar, abriu uma porta que dava para um bonito dormitório.

—    Este é o quarto de Stella — esclareceu sem necessidade, pois Andrew sabia exatamente a localização do cômodo.

—    Subi aqui no dia em que ela se foi —, por sinal o mesmo em que você foi para a cidade — a fim de apanhar alguns trapos. Stella costuma guardar-me uma reserva deles, mas o armá­rio estava fechado. Feliz ou infelizmente, eu tinha uma chave que servia e a primeira coisa que vi ao abrir a porta foi isto.

Meteu a mão numa prateleira e apanhou um chumaço de retalhos de linho. O pano estava tinto de sangue.

—    E olhe ali.

—    O pintor apontou para o chão, onde as manchas revela­doras apareciam com muita clareza.

—    E na beirada da pia. Ela deve ter-se cortado, mas não me disse nada. Deve ter sido na mão, por causa dos intervalos regulares em que as manchas ocorrem. Claro que ela é capaz de cuidar de si. Tem um curso completo de enfermagem.

Andy olhou para as ataduras sem vê-las. A súbita luz que surgira no quarto de Stella, na noite do assalto a Beverley Hall! As manchas descobertas no parque! Incrível, impossível, que Stella fosse o assaltante, mas o seu súbito desaparecimento quase confir­mava uma suspeita meio formada por Andy. Por que teria ela partido de forma tão inesperada?

—    Viu a mão de Stella quando ela partiu? — perguntou ele.

—    Não; ela usava um regalo. Estranho que o fizesse num dia tão quente. Lembrei-me disso depois que encontrei as ataduras.

Ela estava muito nervosa também. Demasiado irrequieta para Stella.

Andrew estirou os braços com um gesto de desespero.

— Dou-me por vencido — disse.

O detetive arrumou a mala aquela tarde e colocou-a na traseira do carro; com um último olhar sobre o vale misterioso, cruzou a aldeia de Beverley rumo a Londres. Mas não fora o mistério dc Beverley que o vencera. Fora a inexplicável Srta. Nelson.

 

O Sr. Downer saiu do Clube da Imprensa, com um guarda- chuva cuidadosamente enrolado sob o braço e cinco centímetros de charuto despontando do canto da boca.

Era um dia quente e irrespirável. Parecia ao jornalista que se ele não usasse o guarda-chuva para livrar-se do clarão abrasador do sol, tudo mais seria inútil. Mas o Sr. Downer não pensaria em sair à rua sem o seu guarda-chuva, assim como um homem comum não admitiria fazê-lo sem colarinho e gravata. Aquilo era parte da sua personalidade, bem como o charuto e o chapéu coco.

Examinou o mundo visível através das grossas lentes dos óculos e nada viu de bom nem de mau. O bom era a breve pausa em seu trabalho pois estava-se num fim de semana e ele possuía um bangalô na praia, diante do qual podia passear pelas areias de guarda-chuva em punho e contemplar as águas do mar através das suas grossas lentes. O mau era a recordação desagra­dável de um fracasso. Ele lembrara-se do insucesso pela manhã, ao receber o cheque do Megaphonepela cobertura do caso de Bever­ley. Se os jornais faziam alguma referência à morte de Darius Merrivan, tal acontecia apenas nas páginas interiores em letra miúda, pois duas semanas se haviam passado, tinha acontecido uma falência bancária interessante e, de contra-peso, um estupendo caso de divórcio, capaz de captar a atenção do público. Em conseqüência, o jornal a que se oferecera, recebera com frieza sua oferta para reiniciar as investigações.

Ele sabia do regresso de Andrew Macleod a Londres. Encontraram-se duas vêzes por causa de outros assuntos. Evidente­mente, Andy abandonara o caso. Na verdade, o policial fizera tal insinuação durante uma entrevista com Downer.

Pedira-se a homologação da propriedade de Merrivan em favor de Arthur Wilmot, o qual expressara a intenção de vender a casa do tio, tão logo surgisse um provável comprador.

O Sr. Downer saiu às ruas cheias de gente com um sentimento de alheamento e superioridade acerca da sua vizinhança. Ele se perguntara se Andy estaria apaixonado pela Srta. Nelson — uma associação de idéias levara sua mente até ela — e se prometera o luxo de fazer o relato do casamentos dos jovens, acrescentando-lhe uma recordação do assassinato e do seu român­tico desfecho.

Mas, aparentemente, Andy não retornara a Beverley Green desde a sua partida. Isso nada provava, pois, de acordo com as informações que tinha, Stella Nelson tampouco regressara a Bever­ley. Downer explicava esta última circunstância com a suposição de que a moça estivesse aguardando que arrefecesse um pouco o escândalo provocado por ele próprio. Faltava, porém, justificar o alheamento do Dr. Macleod.

O repórter dirigiu-se para o escritório de uma revista, levando um manuscrito. O Sr. Downer tinha seus momentos literários. Era autor de Criminosos Famosos que Conheci; Trapaceiros Pro­fissionais e Seus Métodos; Alguns Casos Famosos de Falsificações; e diversas outras obras estampavam na capa o seu nome.

O escritório localizava-se numa zona pouco elegante de Londres e, para chegar ao seu destino, ele teve de passar por uma rede de ruelas suspeitas. Downer fazia uma parada no indefectível armazém de uma esquina, quando uma moça surgiu de dentro da loja e se afastou rapidamente. A jovem carregava um embrulho debaixo do braço e ele julgou havê-la reconhecido. Seus ombros ti­nham um balanço familiar e, ao invés de prosseguir em seu caminho, que ficava na direção oposta, o jornalista começou a segui-la. Ela virou numa esquina e ele pôde vislumbrar-lhe o rosto. Não havia a menor dúvida. Era Stella Nelson. Que estaria fazendo naquela vizinhança, perguntou-se Downer, e pôs-se a acompanhar-lhe caute­losamente os passos.

Viu-a deter-se diante da porta de uma pequena casa, meter a chave na fechadura e desaparecer. Era uma casa realmente diminuta. Sobre a porta, um número desbotado: 73. Ele fez uma anotação mental e seguiu adiante até deparar com uma mulher indolentemente postada na soleira de uma porta. Os braços enrolados no avental, ela traía um patético desejo de en­contrar alguém tão disposto a conversar com ela.

—    Não, não vive aqui —, disse a mulher sacudindo a cabeça, quando Downer lhe fez uma pergunta acerca de um nome fictício.

—    Faz anos que não venho por aqui —, comentou Downer nada mudou.

—    Nada muda aqui —, disse oracularmente a mulher. Daqui a cem anos será tudo como agora.

—    Penso ter reconhecido a jovem que entrou no 73. Há quanto tempo ela mora aqui? Ela já esteve muito bem de vida.

—    Oh —, disse a mulher. Aquela môça não mora aqui. Vem todos os dias e vai embora à noite. Seria difícil acreditá-lo à primeira vista, mas é ela quem faz o trabalho da casa. Já a vi varrendo a calçada.

—    Quem mora lá?

—    Um homem do mar, ao que sei. Talvez seja pai dela.

—    Homem do mar, hein? disse Downer. Marinheiro?

—    Algo no estilo. Costuma ausentar-se por muitos meses, mas eu nunca tinha visto a jovem antes.

O Sr. Downer puxou uma baforada do charuto, farejando um escândalo.

—    Um sujeito bastante bem-parecido; alto...

A mulher sacudiu a cabeça.

—    Não, não é o que se pode chamar de bem-parecido. Está doente no momento e creio que a moça vem cuidar dele. Progrediu no mundo mas não se esqueceu do velho pai. É isso que eu aprecio nessa moça.

A boa senhora, já então à toda corda, estava preparada para fazer um extenso relato de suas opiniões acêrca das moças, mas o Sr. Downer tinha um compromisso.

Puxou a aba do chapéu para cima dos olhos, menos para disfarçar-se do que para alhear-se ainda mais do mundo em que estava e, trocando o guarda-chuva de braço, enveredou pelo mesmo caminho pelo qual viera.

Caracteristicamente seu foi o haver deixado a mulher sem qualquer explicação, bem no meio da sua narrativa. Ela já o servira e não tinha mais nenhuma utilidade para êle. Downer podia gastar tempo e arte em fazer conhecimentos; mas não os gastava na demolição da estrutura das amizades que amiúde criava da forma mais laboriosa.

Depois de fazer a planejada visita, ele seguiu para uma vizinhança mais saudável. Ao passar pela central de polícia a caminho da estação, parou e raciocinou; decidindo-se, penetrou no sombrio edifício.

—    O Dr. Macleod está no laboratório, Sr. Downer. — O sargento de plantão balançou a cabeça com ar de dúvida. Creio que não receberá ninguém. O homem baixou a voz. Ele está trabalhando no caso da mulher envenenada, o caso Sweizer. Sim, Reader é o encarregado, mas o doutor está fazendo alguns exames. Tensey, o grande especialista, está aqui esta tarde. Esta informação é para seu uso.

Downer fez um sinal com a cabeça e registrou os dois fatos na memória. Ele havia cogitado daquele caso. O Dailly Globe- Herald convidara-o para cobri-lo mas o Globe-Herald era conhe­cido por sua sovinice e vetava toda e qualquer despesa de repre­sentação.

—    Veja se ele está por aí e entregue-lhe o meu cartão.

O guarda fez sinal a um homem uniformizado, o qual se ausentou durante algum tempo e reapareceu brandindo o cartão de visitas do jornalista.

—    Quer subir, Sr. Downer?

Andy, de avental branco, lavava as mãos quando Downer entrou.

—    Sente-se, Downer. Nada tenho para você neste caso. A autópsia ainda não está terminada, mas pode dizer que Sweizer foi detido esta manhã a bordo de um navio francês.

Andy não guardava rancor. O homem tinha de ganhar a vida e de forma indiscutivelmente penosa, que já fora e poderia voltar a ser útil à polícia. Ademais, ele nada estava revelando ao outro.

—    Não vim vê-lo acerca do caso Sweizer e a notícia da prisão já está em todos os vespertinos —, disse Downer, atirando um toco de charuto na cesta de lixo. Vim falar-lhe acerca da Srta. Nelson.

Andy terminou de enxugar as mãos e pendurou a toalha.

—    Pensei que a esta altura o seu interesse pela Srta. Nelson já houvesse evaporado —, disse ele. Qual foi a sua última descoberta?

—    Ela está em Londres.                                                                  

—    Aqui?

Andy ficara de fato surpreendido.

—    Quer dizer que ela está vivendo aqui ou que a viu de passagem?

—    Não sei se está vivendo aqui, mas faz quinze dias que vem visitando um marinheiro doente na Rua Castle, 73.

Andy limpava as unhas com um pauzinho de laranjeira; ele olhou para o seu informante.

—    Rua Castle, 73?

O policial deu a Downer a impressão de que tentava coordenar seus pensamentos. Depois:

—    Boa vizinhança, hein?

Downer assentiu.

—    Pensei que o assunto o interessasse. Por alguma razão, eu não acreditava que você estivesse a par.

Andy voltou à limpeza das unhas.

—    Não há nenhuma razão especial que a impeça de cuidar de um marinheiro doente na Rua Castle, 73 —, disse ele, cauteloso.

—    Nenhuma —, confirmou Downer.

—    Suponho que não ignora ser a Srta. Nelson enfermeira diplomada?

—    Não o sabia —, disse Downer escolhendo com cuidado um charuto da sua cigarreira. — Talvez ela esteja fazendo caridade.

—    Provavelmente —, disse Andy.

Downer ergueu-se.

—    Penso em ir a Beverley algum dia na próxima semana, para ver se apanho alguns fios soltos —, sugeriu ele e Andy sorriu.

—    O seu fio predileto não será fácil de apanhar —, disse o detetive significativamente.

—    Wilmot?

Andy concordou.

—    Sujeito estranho —, ruminou Downer, acendendo o charuto. — De que vive ele? Parece-me que tem algum escritório por aqui...

—    Não sei; nunca investiguei.

—    Existe alguma possibilidade de que ele seja Abraham Selim?

— A idéia já me ocorreu, mas deixe-me de lado — disse Andrew. — Por que não experimentar alguma coisa nessa direção? Daria uma ótima estória.     

 

Andy ficou satisfeito quando Downer se afastou. O repórter trouxera novidades assustadoras. Ele nem vira Stella nem soubera do seu paradeiro desde que saíra de Beverley. Uma carta do pai informara-lhe que ela estava passando um mês em casa de parentes; aparentemente, Kenneth Nelson estava satisfeito. Seria coisa simples para Andy descobrir a identidade do marinheiro doente, mas ele envergonhava-se de espionar a moça e desvendar algum segredo que ela porventura guardasse. Sentia-se ainda mais relutante em reviver a dolorosa inquietação de que fora presa ao regressar a Londres. A vida perdera muito do seu sabor e colorido quando ela desapareceu. Estaria ele ressentido? talvez, por não haver a moça recorrido a ele num momento de dificuldade. Andy lamentou não haver perguntado a Downer a respeito da mão dela. Estaria ainda pensada?, perguntava-se ele. Por que ela não lhe teria dito tudo? Soubera certas coisas através de estranhos. Aquilo o magoava.

Quanto ao marinheiro doente... Ele deu de ombros. Nada encontrava de significativo no episódio. Stella tinha uma lei própria. Se lhe aprouvesse devotar-se ao pobre doente, isso era com ela. No entanto — pensava Andy consigo próprio — valeria a pena conhecer a identidade do inválido. Na verdade, o detetive estava consciente do seu desejo de rever a moça.

Sentou-se para escrever-lhe uma carta, e aconteceu-lhe redigir e rasgar três antes de chegar a uma decisão. Ela o conhecia de sobra para saber que Andy seria incapaz de espioná-la bem como de antagonizá-la. Tendo chegado àquele ponto, o resto foi fácil.

Andy pôs o chapéu na cabeça, saiu do laboratório e se dirigiu em lentas passadas para a Rua Castle. Até a sua lentidão tinha um significado: convinha a uma visita inteiramente acidental. Tencionava passar pela rua; se entraria ou não, era decisão a tcmar na hora. Na realidade, Andy já estava resolvido, e não hesitou um segundo em bater à porta do no 73.

Ouviu um sussurro e um rangido nas escadas. Depois de um breve intervalo a porta abriu-se.

O queixo de Stella caiu diante do que ela via.

—    Oh! —, disse a moça. Aquela era a primeira vez que Andy a via embaraçada. Que surpresa, Andrew —, prosseguiu ela.

—    Como descobriu onde eu estava? Não moro aqui. Estou apenas de visita.

—    Tive vontade de vir vê-la —, disse Andy calmamente.

—    Disseram-me que você está cuidando de alguém aqui.

—    Quem lhe disse? Papai não sabe o que se passa —, apressou-se ela em dizer.

A moça demonstrava desaponto tão palpável por ter sido descoberta que, consternado, ele fazia já menção de ir embora, quando ela o deteve.

—    Espere aqui um instante.

Foi até o fundo do corredor e entrou num quarto. Logo depois, tomou a sair.

—    Entre —, disse Stella. Quero apresentar lhe o meu paciente.

Depois de um momento de hesitação. Andy acompanhou-a. Ela entrou no cômodo, segurando a maçaneta da porta, e aguar­dando que ele entrasse. Andy, no corredor onde estava, só con­seguia ver um pé de cama.

—    Entre —, repetiu a môça e Andy entrou.

Ble fitou o inválido sem poder acreditar nos próprios olhos. Era Scottie!

—    Macacos me mordam —, disse Andy com justificável estupefação.

Scottie não parecia muito doente. Embora deitado na cama, ele estava inteiramente vestido.

Que há com você, Scottie?

—    Malária e outras complicações mais —, disse Scottie prontamente.

—    Que há com ele? indagou Andy.

A moça olhou para Scottie e depois para Andy.

—    Creio que serei obrigada a dizer-lhe. Scottie feriu-se — disse ela afobada. Ele não quis procurar um médico, entende? Eu tinha um curso de enfermagem e embora fosse uma ferida profunda consegui tratá-la.

Scottie meneou a cabeça.

—    É verdade. Com todo o respeito à sua pessoa, Macleod, ela é o único médico capaz de fazer milagres, que já tive.

—    Você está ferido, hein? —, disse Andy lentamente. Na mão, por acaso?

Scottie assentiu.

—    Em conseqüência de um tiro disparado ao acaso, no escuro, por um proprietário irado cuja mansão havia sido invadida?

—    Acertou na primeira —, disse Scottie alegremente. Acontece que eu estava no parque e me encontrei na trajetória de um dos projéteis.

—    Compreendo —, disse Andy em voz baixa e sentindo-se aliviado. Então foi você quem feriu a mão, e a Srta. Nelson o levou até o seu quarto e lhe fez um curativo? Eu não percebi nada quando você partiu.

—    Não tirei as mãos dos bolsos —, disse Scottie. Foi um sofrimento a mais, mas valeu a pena.

—    Compreende, Andrew disse a moça, colocando-lhe a mão no braço —, o Sr. Scottie estava muito ferido e, se procurasse um médico, uma série de investigações estúpidas seria inevitável. A polícia andava à procura de um homem ferido na mão.

—    Então você assaltou Beverley Hall? —, disse Andy sentando-se e franzindo o sobrolho para o imprudente Scottie. E por que toda essa balela acerca da sua regeneração?

—    Estou cada vez mais regenerado —, disse Scottie satis­feito. A camuflagem não mais sendo necessária, tirarei a mão de sob as cobertas e me levantarei da cama. Eis a verdade, Macleod —, prosseguiu ele com convincente franqueza: pareceu-me que o cavalheiro que ameaçou você e Wilmot de revólver em punho era empregado do Sr. Boyd Salter, e assim sendo fui investigar por minha conta. Estava ansioso por recuperar a certi­dão de casamento.

—    Qual dos empregados de Salter? perguntou Andy.

—    Não sabia, como ainda não sei, qual dêles. Talvez tivesse sido melhor que eu lhe houvesse comunicado minhas opiniões e você as tivesse transmitido a Salter. Estou certo de que era

alguém de Beverley Hall. Eu vi a pessoa. Depois que você me contou o que aconteceu no apartamento de Wilmot, dei uma fugida e penetrei na propriedade de Salter. Sempre fui de opinião que o assassino de Merrivan tinha escapado por ali. Na verda­de, minha teoria predileta era que se tratava de um dos guardas-caças, e de fato é assim!

—    O quê?

Scottie fêz um movimento com a cabeça. Não havia dúvida de que falava a sério.

—    Não percebe? Os guardas-caças eram os únicos que fica­vam acordados à noite e dispunham de toda a extensão da propriedade para se esconderem. Já lhe disse que vi um homem esgueirando-se por entre as árvores. O que não lhe disse é que esse homem estava trajado como um guarda-caça...

—    Bem, e por que não me disse?

—    Porque desejava fazer um pequeno trabalho de investiga­ção por minha conta —, disse Scottie. Seria um prazer para mim poder chegar até você e dizer: "Macleod, eis o assassino de Merrivan e Sweeny". Orgulho apenas, reconheço. Afinal de contas, também sou humano.

—    Bem; que aconteceu?

—    Penetrei no parque —, disse Scottie e caminhei em ziguezague na direção da casa. A ser válida a minha teoria, eu teria visto o sujeito que o assaltou, a menos que ele houvesse retornado imediatamente. E eu vi o sujeito —, acrescentou ele persuasivamente. Estava deitado sob uma touceira quando ele surgiu. Poderia tê-lo tocado com o braço, mas, por determi­nadas razões, não o fiz. Ele caminhou diretamente para o interior da casa.

—    Por onde entrou? perguntou Andy.

—    Por uma janela —, disse o outro. A janela que abri posteriormente, embora com dificuldade muito maior. Quando ele fechou a janela atrás de si o quarto não estava iluminado. Pensei havê-lo perdido, mas, pouco depois, ele acendeu uma luz... a do abajur sobre a escrivaninha de Salter.

—    Isso foi na biblioteca?

Scottie fêz sinal que sim.

—    Ele tinha as costas voltadas para mim e examinava algo sobre a mesa.

—    E o homem era um dos guarda-caças?

—    Era um guarda-caça —, concordou Scottie, — Qual deles, eu não seria capaz de dizer. Nunca assaltei Beverley Hall e conheço poucos malfeitores de Beverley que o fizeram.

Andrew fitou nele os olhos.

—    Tem certeza?

—    Absoluta —, disse Scottie. — Vi-o durante alguns segun­dos apenas. Ele abriu uma gaveta, depois uma segunda gaveta e, subitamente, apagou a luz. A princípio não percebi porque agira assim, mas logo descobri a razão. Mal tive tempo de agachar-me junto da janela e ele se aproximou, baixando as persianas. Depois a luz tornou a se acender e permaneceu acesa uns quatro ou cinco minutos. Apagou-se em seguida e demorei bastante a mexer-me de onde estava. Eu esperava que ele saísse pela porta da frente e foi nesse ponto que me enganei. Só depois de uma hora descobri que o homem tinha saído pelo saguão dos empregados. Fiz a volta à casa, e me perguntava qual deveria ser minha providência seguinte, quando se abriu uma porta dando para o quintal e um homem apareceu. Percebi pelas suas roupas que se tratava do meu homem e fiquei a observá-lo até que ele se perdeu de vista.

—    Viu-lhe o rosto?

Scottie abanou a cabeça.

—    Estava escuro demais —, disse. — Era um guarda-caça, e o meu guarda-caça, sou capaz de jurar. Depois que ele se foi, voltei à frente da casa e experimentei a janela pela qual ele entrara, mas o homem a havia fechado. Gastei cerca de um quarto de hora para abri-la e me dirigi diretamente para a biblioteca. Reconheço que virei tudo de pernas para o ar, mas, juro-lhe, Macleod que não tinha o propósito de roubar. Não é do meu estilo assaltar uma casa quando não conheço a exata localização dos valores.

—    Também pensei nisso, Scottie, mas não chego a compreender porque você virou tudo de pernas para o ar, como diz.

—    Nem eu mesmo sei —, disse Scottie, — mas parecia-me que o homem tinha entrado na casa para ler documentos particulares de Salter e senti enorme desejo de ver de perto o objeto da sua curiosidade.

—    Você queimou alguma coisa?

—    Queimou? "disse Scottie surpreendido.

—    Queimou alguma coisa? repetiu o detetive.

—    Não, não queimei nada. Scottie sacudiu a cabeça, Que foi que queimaram?

—    Continue o seu relato —, disse Andy.

—    Pouco resta a dizer —, replicou o outro. Como um idiota, comecei a perambular pela casa e acabei invadindo o quarto de Salter. Lamento tê-lo feito —, acrescentou lançando um olhar de arrependimento sobre a mão enfaixada.

Os olhos da môça não se haviam despregado de Andy um instante sequer. Já ouvira aquela estória dezenas de vêzes. Depois, ela acrescentou a sua parte.

—    Quando Scottie voltou e me contou, fiquei muito preocupada. Julguei que êle andara realmente roubando. Mas quando explicou que andava à cata do assassino, fiz o que pude para ajudá-lo. Ele me disse que seria preso porque você com certeza notificaria os médicos da região acêrca de um homem com um ferimento de bala na mão. Quando o Sr. Scottie disse que tinha uma pequenina casa em Londres, prometi vir e cuidar-lhe da mão todos dias.

Andrew suspirou fundo.

—    Minha experiência profissional me levaria a tachar Scottie de mentiroso. Meu instinto leva-me a acreditar nele —, disse o policial. Na verdade, vocês me aborrecem tanto quanto o próprio Abraham Selim. Sua mão ficou inutilizada, Scottie?

—    Não —, respondeu o outro com satisfação. Lamento desapontá-lo, Macleod, mas minha mão está em plena forma. A bala não atingiu o osso e já estou quase bom. Se você não tivesse aparecido hoje, Macleod, não me teria encontrado. Foi uma pena.

—    Tive de vir —, disse Andy lentamente. Downer apanhou sua pista... pelo menos, seguiu a Srta. Nelson até cá. A propósito quem é o cavalheiro do andar de cima?

Por um momento, Scottie denotou um ar de culpa.

—    É um amigo meu —, disse descuidadamente. um antigo colega de estudos.

—    Do Colégio Dartmoor ou da Universidade de Pentonville? perguntou Andy com sarcasmo, e Scottie sorriu com indulgência.

— O palco perdeu muito quando você se definiu pela Medi­cina, Macleod —, disse ele. — Não, é apenas um velho amigo. Você não o conhece e não o chame aqui —, acrescentou apressa­damente. — O homem é demasiado tímido! O discreto Andy acedeu à solicitação.

 

Andy aguardou enquanto a moça fazia ver a Scottie, pela vigé­sima vez, a necessidade de dois curativos diários na mão ferida, ressaltando o valor medicinal de uma coleção de loções, pós e unguentos; depois ele acompanhou Stella de volta à pensão em que esta se hospedava.

O policial sentia-se absurdamente feliz de rever a jovem, ainda que em circunstâncias tão comprometedoras, e a felicidade tornava-o taciturno. Supondo-o magoado, ela sentiu-se desapontada.

—    Andrew —, disse Stella, rompendo pela primeira vez o silêncio desde que eles haviam deixado a casa. — Fiz o que fiz, porque supus que você desejaria que eu agisse assim.

— Fez o quê? — disse ele sobressaltado, caindo na realidade.

—    Ah, cuidar de Scottie? Acho que foi um ato de nobreza da sua parte, Stella. Talvez esteja sendo um simplório acreditando no que diz Scottie, e a estória dele acerca de um guarda-caça assassino tem noventa e nove possibilidades em cem de ser pura balela. Por alguma razão, embora sabendo que ele tranqüilamen­te me pregaria uma mentira, tenho certeza de que não mentiria a você. Vou voltar para Beverley Green —, disse Andy. — O guarda-caça servirá de pretexto.

—    E você precisa de pretexto? — indagou ela, erguendo os olhos, e baixando-os quase imediatamente.

—    Não preciso —, disse ele devagar, depois de uma pausa.

—    Acho que não preciso.

—    Venha esta noite —, disse ela, mas logo se arrependeu daquele gesto impulsivo.

—    Estava pensando em fazer isso — disse Andy —, mas ocorreu-me que seria menos... ahn...

Ela corou.                                                                                           

— Quer dizer que não seria conveniente voltarmos juntos, depois de havermos partido no mesmo dia? — disse Stella com tranqüilidade. — Curioso como essas coisas ocorrem aos homens antes de ocorrerem às mulheres. Creio que não possuo o senso das conveniências, é preciso que você espere aqui, Andrew, enquanto arrumo as malas... depois poderá carregá-las para mim.

O detetive começou a andar de um lado para outro, com uma paz no coração e uma sensação gloriosa de triunfo que os seus mais retumbantes sucessos não lhe tinham proporcionado.

Felicidade semelhante se apossou de Stella Nelson, ao emalar suas roupas com frenética pressa, receosa de fazer Andy esperar demais. Havia uma conta a acertar e Stella ficou toda aflita quando a dona da casa saiu à procura de troco. A mulher demo­rou-se cinco minutos e Stella, sem contar o dinheiro que recebia de volta, apanhou a mala e saiu à rua.

Olhou para cima e para baixo desalentada. Andy tinha desaparecido. A moça aguardou dez minutos e mandou uma garoto apanhar um táxi; quando o carro chegou ela sentiu ímpetos de chorar.

Andy, em seu passeio pela calçada fronteira à casa, ia tão completamente absorto em seus pensamentos que o ambiente pouco ou nada o impressionava. No outro lado da rua havia uma parede alta, atrás da qual aparecia a clarabóia de uma oficina. Tratava-se, sem dúvida, de uma seção de uma loja de High Street, cujos fundos o policial podia ver de onde estava. Na parede havia uma pequena porta, para a qual Andy olhava distraído, quando ela se abriu e surgiu um homem acompanhado de uma mulher de cabelos escuros. A mulher estava bem vestida, e os dois se consultaram brevemente, antes de ela fazer um pequeno aceno com a cabeça e voltar, fechando a porta atrás de si; e o homem partiu célere na direção da artéria principal.

Andrew tinha pouco interesse na cena. Teria dado igual importância a uma luta entre dois pardais. Apenas quando o homem, chegando à esquina, virou a cabeça para fazer sinal a alguma coisa (um táxi, pensou Andy), os seus sentidos se alertaram. O homem era Arthur Wilmot! O policial jamais vira aquele jovem em Londres e, embora houvesse procedido a várias investigações, não chegara a descobrir o misterioso negócio que trazia Arthur à capital com tanta regularidade. Andy olhou em torno, na esperança de ver a môça, mas sabia que ela ainda não poderia ter terminado de arrumar as malas. A oportunidade era boa demais para perder e, amargurado, êle se voltou com relutância e atravessou a rua, no momento em que Wilmot saltava para dentro de um táxi. Stella compreenderia. No dia seguinte êle lhe daria uma explicação. Talvez jamais se repetisse tal oportunidade, pensou o detetive. Apesar dos pesares, Andrew desejou que Arthur Wilmot estivesse no fundo do mar.

Fez parar um táxi.

—    Siga aquele táxi —, ordenou.

A volta de Stella ao lar tinha sido uma experiência contristadora. Ela sentia-se feliz por retornar a Beverley Green; quase tão feliz como Kenneth Nelson por vê-la. O pintor brincou com ela, levou-a até o estúdio para lhe mostrar uma nova tela e apre­sentou o mais encomiástico relatório acerca das qualidades da nova criada; não obstante, Stella sentiu-se deprimida e surpreendente­mente só. Leu a nota que Arthur Wilmot lhe deixara sem se dar conta da identidade do autor, e não ficou nem mais nem menos triste com isso.

—    Bem, conte-me agora o que andou fazendo —, disse Kenneth radiante. Muitas pessoas me têm perguntado a seu respeito, mas eu lhes disse que você foi fazer um outro curso de enfermagem. A propósito, por que voltou a estudar enfer­magem, minha querida? Suponho que andasse aborrecida, o que não me admira. Encontrou-se com o nosso amigo comum, Macleod?

—    Vi-o rapidamente —, disse ela com brevidade.

—    Já pararam de falar no pobre Merrivan prosseguiu o Sr. Nelson, e devo dizer que isso é um alívio. Arthur Wilmot pôs a casa à venda... não houve testamento, por sinal. Sujeito estranho esse Wilmot. Arreganha os dentes para mim cada vez que me vê, como se tivesse alguma razão para ofender-se! Ele tem sorte de não se ter encontrado comigo na noite em que aquele diabólico repórter...

Ela ouvia sem escutar. Beverley Green seria muito diferente sem Andy. Stella era incapaz de imaginar como seria, embora tivesse vivido quase três anos na aldeia antes de conhecê-lo.

Mas, na ocasião, ela não passava de uma criança (agora sentia-se imensamente superior àqueles dias da adolescência), hoje era uma mulher. Andy era necessário.

Teria sido quase desejável, cismava a moça, pedir a Scottie que viesse até Beverley e cometesse um pequeno assalto, sem roubar nada de real valor, mas em virtude do qual se fizesse permanentemente necessária a presença de Andrew Macleod. Ela fez um cálculo mental; se todas as casas de Beverley fossem assaltadas, ele não ficaria ali mais do que três meses, mesmo admitindo um intervalo razoável entre um crime e outro e, com toda certeza, o próprio Scottie se aborreceria. Mas Scottie estava regenerado. O sentir-se parcialmente responsável por aquela rege­neração dava à moça uma cálida sensação de bem-estar.

Houve tempo em que ela odiara Andy. Ela recordou aquele período com satisfação e tornou a fazer um inútil esforço para lembrar-se do que sentia então. Andy não iria voltar. Ele havia ponderado as coisas enquanto a esperava e tinha-se decidido a cortar a amizade entre eles naquele mesmo instante. Fora uma ati­tude pouco delicada da parte dele, ir embora sem dizer palavra... covardia moral, sem dúvida.

—    Vou à casa dos Sheppard jogar bridge. Quer vir comi­go? Eles ficarão encantados de vê-la —, disse Nelson.

Stella meneou a cabeça.

—    Não, papai, obrigada; mas vá, por favor.

Em seu atual estado de espírito, ela precisava ficar só. Claro que Andy não dera crédito à estória de Scottie; durante todo o tempo, embora se tivesse mostrado muito amável com ela, no ínti­mo reprovara o acontecido, e aproveitara-se do primeiro instante para lhe fugir. Stella era incapaz de imaginar Andy fugindo do que quer que fosse; a idéia não se coadunava com o conceito que tinha dele. Mas, por outro lado, ela havia cometido nume­rosos erros acerca dos homens. Arthur Wilmot, por exemplo, fora um erro desastroso. Desejou poder voltar a odiar Andy. Afinal de contas, ela apenas ajudara Scottie por julgar estar pres­tando um serviço ao detetive. Não era possível que o conheci­mento, a amizade, terminassem daquela forma. Mandaria uma carta ao moço.

Mal a jovem colocara o nome "Dr. Macleod" no papel, a criada surgiu à porta. Stella não ouvira a campainha; ergueu os olhos e deu com o rosto sorridente de Andy, e correu para ele, agarrando-o pelos braços.

—    Você veio? você é um bruto, Andy! Por que me deixou?

—    Sou tudo o que você disser e pior ainda, mas tenho uma estória encantadora para lhe contar... algo que vai diverti-la, Stella.

Evidentemente, a coisa agradava a Andy. O riso do policial enchia a sala.

—    Não quero me divertir —, disse ela, obstinada. — Quero ser abrandada. Estava lhe escrevendo uma carta terrível. Não, você não pode vê-la!

Mas ele arrebatou-lhe o papel.

—    "Caro Dr. Macleod — imitou ele. — Eu lhe teria respon­dido com maior dignidade.

—    Conte-me as tais novidades tão divertidas. Estou contente por vê-lo — suspirou ela. — Por que me deixou, Andy?

—    Porque vi Arthur Wilmot comportando-se de forma tão misteriosa como um criminoso de teatro. Eu tinha de descobrir qual era o seu negócio secreto. Conhece Florita?

—    Florita? — ela franziu a testa. — Que Florita?

—    Nunca ouviu falar em Florita? Pensei que esse nome fosse famoso entre as mulheres.

—    Conheço Florita, a chapeleira —, disse a moça.

Andy fez sinal de assentimento.

—    Florita, a chapeleira — disse ele com solenidade —, é Arthur Wilmot!

Stella engoliu em seco.

—    Arthur Wilmot! Oh, isso é ridículo. Arthur nada en­tende de chapéus.

—    Pelo contrário. É uma autoridade no assunto — retor­quiu Andy com um muxoxo. — Não faz muito tempo entrei em sua casa e vi um chapéu de mulher inacabado sobre a mesa; tirei as piores conclusões possíveis. Esse era o segredo de Arthur. É um chapeleiro; é, na realidade, a Madame Florita. Tem duas lojas em Londres e eu o segui de uma até a outra. Aparen­temente, ele aparece sempre à tardinha para controlar as enco­mendas. Claro que não há nenhuma razão no mundo para que não seja chapeleiro.

—    Espere —, disse ela e dirigiu-se à sua escrivaninha.

—    Encontrei isto quando cheguei.

Era um bilhetinho impertinente, no qual o Sr. Arthur Wilmot apresentava os seus cumprimentos à Srta. Nelson e lhe pedia que comunicasse ao seu advogado os detalhes relativos a quaisquer transações comerciais que a moça por ventura houvesse mantido com o finado Sr. Darius Merrivan.

Andy leu a nota até o final.

—    Como diria Scottie, "que dona!" comentou ele com vulgaridade.

Viram Arthur Wilmot na manhã seguinte, no clube de golfe, e este lhes dirigiu uma saudação espevitada.

—    Bom dia, Arthur —, disse Stella meigamente. Recebi seu bilhete.

O jovem ficou muito vermelho.

—    Talvez queira discuti-lo com Vetch disse com grosseria, a encaminhar-se para o primeiro tee.

—    Oh, Florita! —, murmurou a moça em voz baixa, mas não tão baixa que o Sr. Arthur Wilmot não pudesse ouvi-la.

Wilmot não acertou uma só tacada até o fim da tarde.

O Sr. Downer passeava diante da delegacia de polícia de Sea Beach, a caminho do seu bangalô, quando teve a atenção despertada por um aviso colado à fachada do prédio.

O aviso ocupava uma posição central em meio a outros anúncios relativos a cadáveres encontrados, caixas foragidos e descrições de indivíduos procurados pela polícia. O repórter não havia lido duas linhas quando lembrou-se de ter visto o mesmo anúncio em Londres.

Pedem-se informações acêrca de Abraham Selim (ouWentworth)

Procurado pelos assassinatos de Darius Merrivan e John Albert Sweeny, na noite de 24 de junho. Selim é agiota e tem 55 anos presumíveis. Corcova, usa óculos de aro de osso e barba raspada. Talvez tente descontar cheques com a assinatura de Jos Wentworth, mas, provavelmente, carrega consigo grande quantia em dinheiro. Gratifica-se qualquer informação capaz de levar à sua captu­ra, a qual deverá ser encaminhada ao Dr. A. Madeod, na Central de Polícia, ou ao inspetor encarregado desta dele­gacia.

O Sr. Downer leu e se aborreceu. Tudo que lhe recordava o crime de Beverley Green aborrecia-o. Ele acreditara firmemente haver encontrado a solução do mistério quando Arthur Wilmot lhe dissera muito em particular ("Pode confiar em mim, caro senhor") que Stella Nelson tinha feito uma visita ao velho na noite do crime.

Se as coisas houvessem seguido o curso desejado, o Sr. Downer ter-se-ia aproximado tanto quanto lhe era possível de ser feliz. Não desgostava de Stella; pelo contrário admirava-a de uma forma vaga e pouco nítida. Ele sabia o que admirar nas mulheres assim como sabia o que admirar na arquitetura. Tampouco se sentiria especialmente satisfeito se tivesse conseguido arruinar Andrew Macleod, de quem gostava sinceramente. Acontecia apenas que nas horas de trabalho ele não tinha amigos. Se a noiva de Downer (caso tivesse ele tal apêndice) fosse assassinada pelo seu melhor amigo, seu primeiro impulso seria avaliar a ocorrência como notícia. Sentir-se-ia muito infeliz, mas descreveria os fune­rais da vítima e a execução do criminoso com gosto e discerni­mento. Era um repórter ideal, um modelo para todos os novatos na profissão e merecia o respeito que granjeara.

O bangalô do Sr. Downer ficava à beira-mar. Consistia de uma sala de estar, um dormitório, banheiro e cozinha. Havia uma ampla varanda de madeira com ganchos para rede e um "jardim" de dez metros por vinte no qual, durante o outono, os crisântemos cresciam livremente. Isso era o que constava. Ele jamais usara o bangalô depois do verão, de modo que não sabia. O jornalista abriu as janelas, puxou uma cadeira de vime para junto da escada e colocou uma chaleira no fogo. Os quartos eram mobiliados com simplicidade mas com conforto e, duas vezes por semana, (conforme contratado) a viúva de um pesca­dor vinha tirar o pó e fazer a limpeza da casa.

O Sr. Downer sacou da mala um bloco de papel carbono e algumas provas de galé. No momento, completava a maior de suas obras: Algumas Soluções Teóricas para Crimes não Solucionados. Parecia um título de trabalho científico. O editor, tendo uma família numerosa a sustentar e naturalmente desejoso de ganhar dinheiro com a obra, rebatizara-a de Crimes Misteriosos Esclarecidos.

No meio do manuscrito havia uma carta do editor que o Sr. Downer recebera aquela manhã.

"Se fosse possível a inclusão do caso de Beverley Green as vendas subiriam bastante. Queremos algo forte e quente. O público adoraria uma teoria acerca desse crime."

A vulgaridade é coisa rara entre editôres, mas acontece.

— Para o inferno o caso de Beverley! —, vociferou o Sr. Downer.

Era-lhe possível condenar a ocorrência, mas não impedir que ela interferisse em seus pensamentos. Quando se sentava em sua cadeira de balanço e examinava o mar com isenção (coisa que de fato fazia), ou quando marchava com passos decididos sobre a areia dura da praia, a ponta do seu guarda-chuva deixando uma pequena marca a cada dois passos, ou quando, deitado na cama, erguia os olhos para a inscrição colada na porta — legado do proprietário anterior, que ele não se dera ao trabalho de remover — pouco lhe importava o conteúdo dos seus pensamentos, fosse este a necessidade de comprar uma nova roupa para o verão, ou as desesperadas admoestações dos seus parceiros de bridge. O crime de Beverley Green, porém, entrou de cambulhada no fio das meditações do jornalista.

Dois homens tinham sido mortos. O assassino era, presumi­velmente, um tal Abraham Selim, cujos hábitos não se conheciam, cuja própria aparência estava a salvo de ser identificada. Abraham ok X — ele só podia ser considerado como uma criatura impessoal — jamais o encontrariam, pois, para todos os fins práticos, não existia. O Sr. Downer afastara de cogitação qualquer idéia da culpabilidade de Stella. Indivíduo sagaz que era, dera-se conta de que a maior suspeita que recaía sobre a moça era a preocupação de Andy em protegê-la.

"Cá estou a pensar naquele caso infernal", comentou o homem com seus botões, irritado. Virou-se na cama, tentando dormir uma hora mais, embora o sol estivesse de fora e dardejasse sobre a parede raios dourados que se esticavam ou encolhiam

à medida que a brisa marítima fazia mexer a cortina. Mas Downer já não tinha sono. Levantou-se, calçou os chinelos e foi para a cozinha preparar o desjejum. Quando acabou de tomar banho, a tampa da chaleira chocalhava violentamente e o pedaço de toicinho que ele deixara sob a grelha estava já esturricado.

Só então dirigiu-se para a sala de estar e ergueu as persianas.

—    Deus do Céu! — exclamou o Sr. Downer.

Sentado na cadeira de vime da varanda, as costas voltadas para ele, havia um homem. Vestia-se com apuro; Downer viu um pé de sapato muito bem lustrado; a mão mais próxima estava enluvada e repousava no castão de ouro de uma bengala. O Sr. Downer abriu a porta e saiu. Ele era muito severo quanto à santidade da propriedade e condenava com veemência os intrusos.

—    Desculpe-me — disse, num tom que insinuava não lhe competirem as desculpas. — O Sr. se enganou. Ora, é o Sr. Boyd Salter!

O Sr. Salter ergueu-se com um sorriso astuto e jovial, e estendeu-lhe a mão.

—    Perdoe-me a liberdade, Sr. Downer. Imperdoável da minha parte, não há dúvida. Lembro-me, porém, de que, quando da sua visita à minha propriedade — temo havê-lo feito esperar muito tempo, mas estava num dos meus dias ruins — o senhor afirmou possuir um bangalô em Sea Beach e eu lhe disse... ahn... que Sea Beach pertence à minha família... mais de metade da região. — O Sr. Salter acompanhou o anfitrião até o interior da casa.

—    Não sabe quanto me alegro em vê-lo — disse o Sr. Downer, todo cordialidade. — Peço perdão pelos meus trajes, mas acabo de me levantar.

—    Por favor, não falemos nisso. — O Sr. Salter ergueu a mão em sinal de protesto. — Eu é que devo pedir desculpas. A manhã está quente e o seu pijama verde combina maravilhosamente com esta salinha encantadora. Receava ter vindo cedo demais, mas... ahn... são onze horas e Sea Beach fica a uma hora de viagem de Beverley.

Enquanto o Sr. Downer procurava algumas peças do seu vestuário, o hóspede procedia a uma inspeção desinteressada da sala.

— Ainda ontem eu dizia a mim mesmo — disse o Sr. Downer através da porta entreaberta do quarto —, pena que não tenha mais nenhum pretexto para rever o Sr. Boyd Salter. Encontro-me com numerosas pessoas no exercício da minha profis­são e poucas me impressionam. Pareceria que estou tentando bajulá-lo, mas não seria tolo a ponto de querer bajular um homem da sua experiência e, se me permitir, da sua idade. Talvez o senhor mesmo já terá percebido, Sr. Salter?

—    Sim, de fato — respondeu o Sr. Salter compenetrado —, e lhe garanto que não invadiria este seu delicioso recanto...

—    Não passa de uma furna —, disse Downer depreciativamente — mas, sou um homem simples, com gostos simples.

—    Um encantador pied-à-terre disse o outro amavelmente —, mas eu não teria vindo se não lhe reconhecesse certas qualidades interessantes, Sr. Downer.

Poucas vêzes na vida o Sr. Downer fora lisonjeado. Aquilo era uma experiência nova: alguém cujo principal patrimônio era o habilidoso emprêgo da lisonja ver-se lambuzado com um pouco do seu próprio unguento oleaginoso. E ele estava mais do que interessado, pois aquela visita significava negócios. O Sr. Boyd Salter, malgrado todos os preconceitos favoráveis que tinha a seu respeito, não faria aquela visita matutina apenas pelo prazer de contemplar as feições toscas do Sr. Downer ou para ouvir-lhe as frases melosas.

—    Suponho que não sabe a que vim?                                                            

O Sr. Downer não sabia.

—    De certa forma estou surpreendido — disse ele. — Espero que o senhor deseje algum pequeno serviço meu. Se for esse o caso, o senhor é duplamente bem-vindo.

—    Não se trata de um pequeno serviço. — Salter sacudiu delicadamente a cabeça. — Trata-se, pelo contrário, de um grande serviço. Só me preocupa a possibilidade de que o senhor se ofenda.

O Sr. Downer teve um sorriso tão largo que foi obrigado a ajeitar os óculos.

—    Sou um homem difícil de ofender — disse ele com sinceridade.

O Sr. Boyd Salter refletiu.

—    Bem, a coisa é esta —, disse ele por fim. — Tomarei a liberdade de pedir-lhe que. aceite um encargo que na verdade deve­ria ser entregue a uma agência de detetives. Tê-lo-ei ofendido?

—    Não, não me ofendeu —, disse Downer. — Deve lem­brar-se de que o meu trabalho é quase paralelo ao do detetive particular. Este presta contas ao seu empregador; eu, talvez em linguagem um pouquinho melhor e em maior extensão, presto contas ao público.

—    E, com maior exatidão — reconheceu o Sr. Salter. — É por isso que vim procurá-lo ao invés de me dirigir a uma agência de detetives. Tem certeza de que não está ofendido?

O Sr. Downer tinha certeza absoluta.

—    Se o senhor me dissesse que eu lhe estou pedindo para fazer algo pouco digno de um homem na sua profissão literária, eu compreenderia. Talvez por bondade, o Sr. não me tenha repelido.

Salter sorriu e o mesmo fez o Sr. Downer.

—    O que quero que faça é isto. O Sr. já esteve encarregado de investigar o caso de Beverley Green. Por razões puramente profissionais, creio eu, renunciou à tarefa. Suponho que a coisa tenha perdido o interesse. Perdoe-me se lembro o motivo mais chão do seu afastamento. O senhor é um profissional que vive da sua pena, e suponho que seus movimentos e preocupações sejam ditados pela vontade dos seus empregadores, editores ou o que quer que sejam.

O Sr. Downer assentiu. Lembrava-se da sucinta carta que recebera e da exigüidade do cheque.

—    Suponha que eu lhe peça para voltar a Beverley Green e reabrir as investigações? Quero saber mais do que sei atualmente. De modo especial — ele falava com grande deliberação — desejo descobrir o segredo do assalto a Beverley Green. Que havia por detrás daquilo? Estaria o nosso amigo Dr. Macleod a par do... crime? Que sabe o Dr. Macleod que eu ignoro? Terá ele alguma informação acerca de Abraham Selim ainda não conhecida pelos seus superiores? Onde está a Srta. Stella Nelson?

—    Ah! —, disse o Sr. Downer. — Creio que poderei come­çar a informá-lo desde já.

Contou a estória da casa da Rua Castle e das misteriosas visitas de Stella.

—    Quem é o inválido? — perguntou o Sr. Boyd Salter, mas quanto a essa questão o seu novo empregado nada pôde esclarecer.

Creio que descobrirá ser o homem que me invadiu a casa —, disse Salter, e o outro olhou para ele através dos óculos.

—    Claro! Como foi que isso não me ocorreu?

—    Averigue com segurança. Posso estar equivocado, mas, por alguma razão, toda vez que antecipo uma conclusão, acerto, Sr. Downer. Sei que ela e o homem Scottie, creio ser esse o seu nome partiram no mesmo dia. Scottie é provavelmente o assaltante. Se for assim, ele está ferido. Mas lembre-se disto: não quero que o Dr. Macleod saiba das suas investigações. Não sei como irá agir e não cometerei a impertinência de lhe dar sugestões.

—    Pode confiar em mim, Sr. Boyd Salter —, disse Downer.

O recente patrão do repórter tirou do bolso um envelope ecolocou-o sobre a mesa,

—    Haverá certas despesas —, disse ele. Por favor, isto servirá para fazer face a parte desses gastos.

O Sr. Downer caminhou até o fim da varanda, a fim de ver o visitante tomar o carro que o aguardava na estrada. Depois voltou para o seu quarto e abriu o envelope. Dentro havia uma considerável quantia em dinheiro, e o Sr. Downer sorriu.

—    Creio que voltarei para Londres pensou ele, e ligou o ferro elétrico. Ele sempre passava as próprias calças.

 

—    Vade retro, Satana!disse Scottie com seriedade.

—    Não me diga que virou religioso também, Sr. Scottie? perguntou Martin, o Grandão, muito ansioso.

Scottie estava sentado no leito, em sua pequenina casa da Rua Castle e o seu interlocutor era o mesmo indivíduo que sumira escada acima quando Andy batera à porta. Não que o sujeito fosse fujão por natureza, mas, antes de anunciar a chegada de Andrew Macleod ele tinha, conforme dizia no seu linguajar, "manjado" o visitante pela janela. E a "manjada" lhe produzira uma leve palpitação no coração.

Chamavam-no Martin, o Grandão, porque sua altura não excedia de um metro e meio, e por vêzes ninguém melhor do queMartin, o Grandão, era capaz de penetrar numa pequena janela da cozinha.

Ultimamente, porém, a boa vida fizera-o crescer para frente e para os lados e, assim como muitos outros especialistas, ele constatou haverem as qualidades especiais que lhe davam destaque sobre os colegas começado a falhar e ele se tornava com isso de todo inadequado ao exercício das suas habilidades.

Martin servira a Scottie de diversas formas. Era infatigável ledor de jornais, notável coletor de informações e capaz de fazer o reconhecimento de uma casa com maior perspicácia do que qualquer outro conhecido de Scottie ao longo de uma carreira comprida e interessante.

Era Martin, o Grandão, quem mascateava botões nas portas das cozinhas e se inteirava de certos mexericos domésticos de grande utilidade para os seus empregadores.

Scottie estava acima dessa espécie de serviço. Especializara-se em negociantes de jóias e isso requeria um serviço de inteligência que Martin, o Grandão, não poderia fornecer. No entanto, Martin, o Grandão, era útil. Cuidava do estabelecimento da Rua Castle na ausência de Scottie, levava recados, fazia as camas e era capaz de preparar uma refeição num abrir e fechar de olhos.

—    Não, não me tornei religioso admitiu Scottie, respi­rando sôbre os óculos e limpando-os com uma ponta do lençol —, mas tornei-me cuidadoso. Já ouviu falar na estória do cântaro e a fonte?

—    Não —, disse Martin, o Grandão, cheio de suspeita. Qual é a pega?

—    O negócio é que —, disse o outro carrancudo arranjei dinheiro suficiente para viver tranqüilo.

O Sr. Martin franziu o rosto.

—    Se você não quiser, outros farão o serviço —, disse ele. Ela está procurando encrenca, andando por aí com todos aqueles brilhantes.

Era o destino, pensou Scottie.

—    Nada me precisa dizer a respeito dela. Ele cortou a palavra ao Serviço de Inteligência. — Conheço-a socialmente. Sra. Carfton-Bonsor, quase americana. Suite 907, Grande Hotel Metropolitano.

—    Um Banco não teria dinheiro para lhe comprar todas as pérolas —, salientou Martin, o Grandão. — São grandes assim. — Ele fez um "o" com o indicador e o polegar. — Diamantes! Nunca se viu coisa igual, Sr. Scottie.

—    Sei disso, mas ela os guarda no cofre do hotel — arriscou Scottie e o outro fez um ruído de desaprovação.

—    Não! Minha prima trabalha no hotel, foi por isso que fiquei sabendo... ela descasca batatas na cozinha.

—    Quem? A Sra. Bonsor?                                                           

—    Não, minha prima.                                                                    

Scottie ficou pensativo. Seus dedos tamborilavam uma música qualquer sobre os seus joelhos e ele tinha o olhar distante.

—    Não, não creio, Martin. Macleod saberia ser eu o autor e ademais... — Ele hesitou e ensaiou dizer algo; depois mudou de idéia.

Martin, o Grandão, não entenderia seus pontos de vista relativamente a Stella Nelson. Seria inverídico dizer estivesse Scottie regenerado ou que, se estivesse regenerado, alimentasse qualquer arrependimento pelas estripulias passadas. O principal fator da pretensa regeneração era a sua segurança pessoal. Não havia na realidade nenhuma razão para arriscar-se. Estava razoavelmente bem de vida. Obtivera bom preço pelos diamantes surripiados na Rua Regent — um dos compradores era a testemunha que o ajudara a provar seu alibi — e ele tinha conseguido uma outra pedra que, juntamente com suas derradeiras aquisições, lhe proporcionaria relativo conforto até o fim dos seus dias.

—    Vou dar uma outra espiada na Sra. Bonsor —, disse ele e Martin esfregou as mãos, satisfeito. — Não que pense ser ela tão tola como você pretende. De onde vem ela?

—    Sto.Bárbara —, disse o outro.

—    Sta. Bárbara —, corrigiu Scottie. — Ela me contou... talvez ela conheça alguns amigos meus da costa do Pacífico. E, por falar em amigos, Grandão, ontem à noite eu o vi saindo do Finnagin na companhia de um cavalheiro.

Martin, o Grandão, ficou contrafeito.

—    É um repórter —, disse ele.

—    Grande novidade! — disse Scottie sarcasticamente. — Como se eu não soubesse que ele é repórter. Que queria ele?

—    Informações acerca de um trabalho que fiz há cerca de quatro anos, —, disse Martin. Peguei dezoito meses... no caso de Harry Weston.

—    Eu sei, mas se ele não se lembrasse dos detalhes teria podido informar-se; qualquer polícia poderia dar-lhe as informa­ções necessárias e ele não precisaria ter trabalho. Que mais?

—    Ele se mostrou muito amável; perguntou o que acontecera a Harry. Batemos um papo.

Os lábios de Scottie se crisparam.

—    Como se ele não soubesse que Harry está cumprindo uma pena de sete anos em Parkhurst! Pois bem, seu conversador: a respeito do que conversou?

Martin, o Grandão, já estava inteiramente alarmado.

—    Quero morrer neste instante se lhe disse algo a seu respeito. Ele sabia que você estava aqui e me perguntou como estava sua , mão.

Scottie soltou um grunhido.

—    Mas eu nada lhe disse. Ele é um bom amigo seu, Scottie, disse-me que se você estivesse em dificuldades poderia contar com ele! Essas foram as suas palavras.

—    Você pode pegá-las, embrulhá-las e devolvê-las a ele disse Scottie. Você não lhe contou que Macleod estava a par de tudo, contou?

—    Ele não quis que eu contasse nada —, disse o outro com satisfação.

—    Você jamais conseguiu guardar alguma coisa para si —, disse Scottie tristemente e começou a mudar de roupa.

Vestiu-se com cuidado, apanhou do fundo de uma gaveta uma caixinha cheia de cartões e escolheu um, em que era descrito como Prof. Bellingham e o endereço era Pantagalla, Alberta. Não havia no mapa a cidade de Pantagalla, mas êle tinha vivido certa ocasião numa pensão de subúrbio com aquêle nome, o qual lhe parecia suficientemente canadense.

O recepcionista do Grande Hotel Metropolitano descobriu estar a Sra. Crafton-Bonsor no seu apartamento e mandou que um mensageiro lhe levasse o cartão de Scottie, ao tempo em que êste, sentado numa espreguiçadeira, parecia absorto em seus pensamentos, mas, na realidade, observava com atenção todos os homens que entra­vam e saíam. Scottie localizou imediatamente o detetive de serviço. O homem ostentava aquela expressão tensa característica de todos os detetives de hotel e nunca inteiramente ausente do rosto de qualquer detetive.

O mensageiro retornou e conduziu Scottie até o terceiro andar, fazendo-o entrar numa suite caríssima (Scottie sabia exata­mente qual a diária paga por aquela suite).

A dama postada à janela virou-se quando Scottie entrou.

—    Bom dia —, disse ela animadamente. Senhor...

—    Professor Bellingham —, disse Scottie com deferência. — Já nos conhecemos antes, lembra-se?

—    Claro. Não consegui ler seu cartão sem os "óculo" — disse ela. — Sente, Professor. Muita gentileza sua vir me visitar.

Scottie sabia por experiência que as pessoas nunca se mostravam iguais quando as encontrava pela segunda vez e ele não estava preparado para a surpreendente igualdade da Sra. Crafton-Bonsor. Talvez ela estivesse agora mais ricamente adornada do que na ocasião em que a encontrara no custoso automóvel. Suas jóias eram magníficas. Ela ergueu a mão que fulgurou como uma vitrina de joalheiro. Devia haver um anel em cada dedo e, num dos braços, viam-se pelo menos três braceletes de brilhantes que valiam uma fortuna.

Despertaram-se todos os velhos instintos rapaces de Scottie. Era um pecado e uma pena que aquela mulher possuísse tantas coisas maravilhosas, enquanto ele gramava uma existência difícil.

—    Pensei vir fazer-lhe uma visita, Sra. Crafton-Bonsor — engrolou ele. — Sou de Pantagalla e, sabendo que a senhora é de Sta. Bárbara, pareceu-me boa política vir cumprimentá-la. Conheci Santa Bárbara muito bem... conheci-a antes de vocês ricaços a tomarem de assalto e a estragarem. Ha, ha! é uma piada que costumo fazer, Sra. Bonsor!

—    É muita bondade sua, Professor...

—    Bellingham — ajudou ele.

—    Professor Bellingham. é um buraco a criada ter perdido "o meu óculo"; fico cega que nem uma toupera sem ele. Cidade solitária esta. Estive aqui "faiz" alguns anos mas, agora, tudo é novo e estranho "pra" mim; não vejo a hora de ir embora.

—    Faz tempo que está aqui?

—    Duas "semana" —, disse a mulher. — Não encontrei ninguém educado desde que cheguei. Aqui só dá gente posuda.

Acho que ninguém tem um tostão furado. Fui visitar uma mulher que conheci em São Francisco — o Senador foi muito bonzinho com ela — e eles nem me convidaram pra ficar "pro" chá... não que eu faça questão de chá —, acrescentou ela!

Scottie compreendia muito bem que a Sra. Crafton-Bonsor, a despeito da sua riqueza, não fosse tida como uma grande aquisição social.

Os dois conversaram sobre Santa Bárbara, sobre pessoas de São Francisco (cujos nomes, felizmente, Scottie conhecia) e a Sra. Crafton-Bonsor voltou ao seu tema predileto: o caráter pouco hos­pitaleiro das pessoas dos países estrangeiros e a deterioração das domésticas.

—    Diz que este quarto foi limpo esta manhã —, disse ela, dando um piparote numa felpa da cadeira em que se sentava. — Olhe isto; ninguém passou espanador aqui!

Scottie não fez comentários.

A Sra. Crafton-Bonsor não tinha podido ler o seu cartão em virtude da sua visão defeituosa e, no entanto, sem qualquer esforço visível, catava minúsculas felpas da poltrona.

Ele se mostrou a tal ponto agradável que foi convidado para jantar aquela noite.

—    Janto na suite —, disse a mulher. — A gentalha que a gente encontra nos restaurantes de hotel me dá nos "nervo".

Quando Scottie descia os degraus do hotel, levemente jubi­loso pelos resultados daquela visita preliminar, alguém lhe bateu no braço e ele deparou com um rosto familiar.

—    Andy quer falar com você —, disse o detetive. — Pede que dê um pulo à chefatura.

Scottie estalou os lábios com impaciência, mas nada disse.

—    Como está, Scottie? melhor? Sente-se, por favor. Um dos meus homens viu você em visita à Sra. Crafton-Bonsor, a ricaça americana do Grande Hotel Metropolitano. Qual é o plano?

—    É proibido a um homem ter seus divertimentos sociais?

—    perguntou Scottie magoado.

—    Pode tê-los à vontade —, disse Andy animado, — mas estou defendendo os seus interesses ao chamá-lo aqui. Essa mulher é uma mina de diamantes ambulante e não quero que você caia em tentação. A propósito, acabo de retornar de Beverley Green - acrescentou Andy em tom casual. — A Srta. Nelson pergun­tou-me a seu respeito.

Scottie lambeu os beiços.

—    Muita gentileza da parte dela —, disse lentamente e quanto à mulher dos diamantes, Macleod, minhas intenções são cem por cento honestas. Não sabe como faz bem estar perto de tanto dinheiro, caso contrário não me privaria dessas poucas emoções.

—    Não o privo de nada disse Andy tranqüilamente —, mas nós a temos de olho desde que ela chegou à cidade. Já advertimos dois velhos amigos seus, Harry Murton e Dutch John, e não seria justo para com você se o deixássemos na ilusão de que poderia agir longe dos olhares vigilantes dos anjos guardiões.

Scottie nada respondeu.

—    Quer dizer que não posso vê-la novamente?

—    Pode vê-la quantas vezes queira —, disse Andy, mas, se ela nos aparecer queixando-se do misterioso desaparecimento de alguma tiara de diamantes que você estivera a admirar poucos minutos antes, Scottie, eu o meto na cadeia!

Um sorriso lento assomou no rosto de Scottie.

—    Ninguém lhe contou que estou regenerado? perguntou ele inocentemente.

—    Ouvi falar nisso replicou Andy com uma risada. Scottie, estou falando sério; não quero vê-lo em nenhuma com­plicação e acho que, nas atuais circunstâncias, a Sra. Bonsor é uma amizade perigosa. A sua moral é a minha principal preo­cupação —, acrescentou ele piedosamente. Pode, sem dúvida, vê-la quantas vezes queira, mas isso será um tanto perigoso, não acha? Suponha que algum outro ladrão entre em ação e que haja um "vazio" no caso das jóias...

—    Que estória é essa? perguntou Scottie interessado.

Andy explicou.

—    De modo que...

—    Obrigado, Macleod. Scottie apanhou o chapéu e levantou-se. — Mesmo assim, acho que vou visitá-la. É uma mulher fascinante. Sem levar em conta as jóias, quero dizer. Conhece-a?

—    Não, não a conheço. Ela não pertence ao meu departamento —, disse Andy. Steel acha-se em férias e estou ocupando o lugar dele, para sorte sua, pois Steel não lhe teria dado a menor oportunidade.

—    Obrigado —, tornou a dizer Scottie e, a propósito, Macleod, o tal Downer continua vivo e em atividade.

Aquilo não era novidade para Andy.

—    Sei disso —, disse o policial. O homem retornou a Beverley, ou melhor, foi para uma aldeia situada a três ou quatro quilômetros de distância. Andou atrás de você?

Scottie assentiu.

—    Anda pressionando um amigo meu. Sabe que ele tem conhecimento da presença da Srta. Nelson na Rua Castle? Sabe? grande sabujo é você, Macleod. Até logo.

Aquela noite Scottie entrou ousadamente no Grande Hotel Metropolitano, embora ciente de estar sendo vigiado, e a noitada foi deveras agradável. A Sra. Bonsor simpatizara com ele e se dispusera a proporcionar ao seu professor um bom entretenimento. Por acaso, Scottie ficou sabendo que o finado "Senador" não era realmente um senador. Ele concluiu tratar-se de uma designação irônica adotada pelos cidadãos da Califórnia. A informação havia aberto caminho para uma compreensão mais clara. Scottie não sabia coom explicar que um homem instruído se tivesse casado com aquela mulher. Ela falou na sua mansão de Santa Bárbara, nos seus carros, nos seus criados, nas suas festas, e, cada vez que fazia um movimento, cintilava.

—    Scottie fêz três visitas à tal Bonsor —, comunicou um observador. Janta com ela todas as noites e esta tarde foram fazer um passeio.

Andy meneou a cabeça.

—    Coloque um homem na cola de Martin, o Grandão, e veja se existe algo em andamento.

Andy gostava de Scottie como pessoa, mas, oficialmente, Scottie era uma ameaça potencial à segurança humana. Certa tarde um oficial de polícia fez uma visita à Sra. Bonsor e quando Scottie apareceu para jantar aquela noite, resplandecendo em seu terno nôvo, a dama o recebeu friamente e adotou uma atitude de ineludível distanciamento.

—    Quase não deixei você subir, "seo" —, disse ela (era estranho que ela o tratasse de senhor). Mas achei melhor ter uma conversinha com você. Os "tira" estão atrás de você.

—    Atrás de mim? disse Scottie.

Ele estava aborrecido mas não ressentido. Era dever da polícia prevenir a mulher, e ele se havia perguntado quanto tempo levaria Andy para cumprir com o seu dever de policial.

—    Disseram que você é um ladrão chamado Scottie. — Ela sacudiu a cabeça em sinal de reprovação. — Só posso dizer que "tô" muito magoada.

—    Por quê? — perguntou Scottie calmamente. — Não roubei nada seu e jamais tiraria um grampo sequer da sua linda cabeça.

Sim, foi isso o que disse Scottie e, de certa forma, dissera a verdade.

—    Admito que me chamem de Scottie. Não é o meu nome, mas serve para identificar-me em três ou quatro países. Reconheço ser um ladrão, mas Sra. Crafton-Bonsor, a senhora é capaz de compreender o que significa para um homem como eu conhecer uma mulher como a senhora, uma dama do mundo, relativamente jovem, ainda em pleno viço, e que se interessa por um... um aventureiro? Não se trata do seu dinheiro nem das suas jóias. Eles nada valem para mim. Poderia tê-los apanhado no primeiro dia em que nos encontramos, minha senhora —, prosseguiu ele estouvadamente. — Vim ver as suas pedras. Todo mundo falava nelas, e sou geólogo profissional. Reconheço-o. Mas, depois de vê-la e de falar com a senhora... foi como um sonho. Um homem refinado e de bom gosto na minha profissão não conhece uma dama com a senhora... com freqüência.

—    Não sou grande coisa, tenho certeza —, disse a Sra. Crafton-Bonsor, sem vontade de interromper a adocicada torrente de eloqüência de Scottie, mas percebendo que o recato estava a exigir tal interrupção.

—    Percebi que a senhora não era americana, na primeira vez em que nos falamos. Pessoas como a senhora não nascem na costa do Pacífico (o que era verdade) e quando a vi pela primeira vez tive certeza de que seria obrigado a vê-la mais vezes. Tentei combater minha estupidez, mas cada dia que passava a senhora me atraía de volta.

—    Não foi de propósito — murmurou a Sra. Crafton-Bonsor.

—    Sei perfeitamente —, disse Scottie enfastiado, erguendo-se e estendendo a mão à mulher. — Adeus, Sra. Bonsor; foi como que viver num outro mundo.

Ela apertou-lhe a mão, relutando em pôr fim a uma entre­vista não de todo desagradável.

—    Adeus, Sr. Scottie —, disse ela. Gostaria de tornar a ver o senhor, mas...

—    Compreendo —, disse Scottie amargamente. Que diriam as pessoas a seu respeito... que diria toda esta gente aqui do hotel?

A Sra. Crafton-Bonsor empertigou-se.

—    Não "dô" um vintém pela opinião deles —, disse ela com voz aguda você "tá" enganado, venha jantar amanhã à noite.

As palavras da mulher eram imperiosas, seu semblante majestático. Scottie quedou-se em silêncio. Depois curvou-se e saiu rapidamente. Talvez ela mudasse de idéia, se ele não tomasse aquela providência.

Ao descer as escadas, tentou reconstituir, na íntegra, a conversa.

Havia determinados livros edificantes circulando entre os detentos, destinados a fazê-los apreciar a vida virtuosa. Certa vez, ele mencionara a Stella Nelson a existência de tais livros. Nêles, inevitavelmente, figurava um discurso dirigido por um ex-sentenciado a alguma mulher bondosa que, em razão da sua doce influência, provocara a regeneração do meliante.

Na maior parte das vêezes o ladrão de ficção expressava sentimentos bastante análogos aos que o Scottie de carne e osso revelara. Mas este se esquecera de alguma coisa... De repente, lembrou-se do que era, dando um tapinha de impaciência na testa.

—    Não falei em minha mãe! disse.

Pensando mais tarde naquela omissão, concluiu que de modo geral ela havia sido benéfica. Era bom ter algo de reserva para uma entrevista posterior. Não obstante, não poderia correr riscos e, entrando na primeira estação que encontrou, dirigiu-se à banca de livros.

—    Tem um livro chamado Salvo por Uma Criança ou então Apenas um Condenado?

—    Não —, disse o jovem que tomava conta áo lugar. Não vendemos livros para crianças.

—    Criança é precisamente o têrmo, meu filho —, disse Scottie.

Meu caro Macleod (escreveu um attachéà Embaixada Americana) — Não conheço pessoalmente a Sra. Crafton-Bonsor, mas ouvi falar muito dela. Como você supõe, Crafton-Bonsor não foi senador dos Estados Unidos. Existem neste país os chamados "títulos de cortesia"! O nome original de Crafton-Bonsor é difícil de estabelecer. Seus velhos associados o chamavam de "Mike" e "Murphy", mas ele sempre foi "Bonsor" Murphy e "Grafter" Bonsor, e, dessas duas denominações terá provavelmente chegado a Crafton- Bonsor. O homem teve alguma força política e, em seus últimos tempos, tornou-se conhecido como "Senador". Morreu dono de imensa fortuna e a viúva herdou até o último tostão.

Andy leu a carta para Stella Nelson na primeira vez em que estiveram a sós.

Ele cumprira seu dever, e a Sra. Crafton-Bonsor já não podia enganar-se quanto ao caráter do novo amigo. Longe de atrapa­lhar a ligação entre aquelas duas estranhas pessoas, tal certeza pareceu produzir efeito exatamente contrário.

—    Talvez ela esteja tentando recuperá-lo —, sugeriu Stella, piscando os olhos. — Os homens maus exercem um fascínio irresistível sobre as mulheres suscetíveis. Não que Scottie seja mau ou que a Sra. Bonsor seja particularmente suscetível. Lem­bro-me dela agora. Veio a Beverley Green e arrebentou os nossos lindos lilazes. Scottie contou-me depois como ela se chamava.

—    Almoço, chá e jantar! — protestou Andy. — Quem sabe ele já não está tomando o café da manhã lá! Pouco me importam os entretenimentos de Scottie e suponho que, tendo prevenido a dama, minha responsabilidade está salva, mas, ainda assim...

—    Talvez ele a ame —, sugeriu a moça, — e, por favor, Andy, não ria. Sempre me pareceu que Scottie tinha um temperamento romântico.

—    Não o nego —, disse Andy. — Aquele seu alibi...

—    Andrew! —, não seja desagradável. Ademais você irá conhecê-la.

—    Irei conhecê-la? — disse Andy surpreso.

Stella fêz um solene sinal de aprovação.

—    Scottie escreveu-me pedindo licença para trazê-la para jantar, e eu, claro está, concordei. Fiz uma pequena descrição dela a papai e o velho ainda não parou de tremer. Creio que esta noite ele tem de comparecer a um noivado no clube, o que torna ainda mais necessária a sua presença aqui.

—    Está querendo me dizer —, disse Andy incrédulo, que Scottie teve a audácia de convidar-se a si próprio e à sua amiga das jóias para vir jantar com você?

Aparentemente Scottie tinha feito tal coisa e, naquela noite, Andrew Macleod travou conhecimento com uma dama a quem fizera grandes esforços para ser útil.

A Sra. Crafton-Bonsor trajava um vestido justo de veludo cor de ameixa, de vertiginoso decote, e, vendo-a, Andy ficou sem fala.

Ele jamais vira tal exibição de pedras preciosas num ser humano. Desde a tiara de diamantes colocada no alto dos cabelos vermelhos até os diamantes dos sapatos, ela estava irresistível. Perto dela, um rajá em traje de gala e envergando tôdas as jóias oficiais pareceria mesquinho e despido.

Scottie delirava. Seu orgulho era tão genuíno que Andy só fazia arregalar os olhos para ele.

—    Esta é minha amiga, Sra. Crafton-Bonsor —, disse ele.

—    Este é o Dr. Macleod, Mirabel. (Mirabel, repetiu Andy mentalmente e engoliu em seco). O Dr. Macleod e eu já tivemos muitas diferenças... talvez se possa tachá-las de brigas... mas não lhe quero mal. Foi ele o cavalheiro que a preveniu contra mim, e não tinha ele razão?

Scottie tomou nas suas a mão de Andy e sacudiu-a vigorosamente.

A Sra. Bonsor, pelo contrário, teve um olhar pétreo para o detetive.

—    Esta é a Srta. Nelson, Mirabel —, disse Scottie.

Algo lhe brilhou no dedo quando ele fez a apresentação.

—    Muita satisfação —, disse a Sra. Bonsor sem entusiasmo.

—    Todo amigo do Professor Bellingham ela lançou um olhar para Andy é meu amigo.

Aquêle foi um mau começo para uma noite que Stella antecipava muito divertida. Em meio ao jantar, ocorreu à moça que a Sra. Crafton-Bonsor talvez sentisse ciúmes dela! A idéia deixou-a impotente. Mas, àquela altura, a dama deixara de lado suas suspeitas iniciais e seu antagonismo e se entregava a uma amistosa conversação com Andy.

O veneno começava a instilar-se nas veias de Scottie. Aquele homem sóbrio, cujo maior encanto era a falta de ostentação, exibia dois grandes anéis de diamantes. Andy não olhou demais para eles; nem era preciso, decidiu ele, pois Scottie jamais exibiria peças descritas na íntegra em Hue and Cry.

—    Sim, vou embora a semana que vem —, disse a Sra. Crafton-Bonsor, olhando para Scottie de relance. — "Me diverti" mais do que esperava, mas é claro que quero voltar para Santa Bárbara. O gramado é do tamanho desta aldeia — mostrei uma fotografia ao Professor e ele achou formidável. Tendo uma casa linda daquelas é justo querer ficar nela.

Olhou para Scottie, quando o cavalheiro baixou os olhos para a toalha. Naquele momento, Scottie tinha algo de obscenamente recatado, e Andy sentiu vontade de pespegar-lhe um pontapé.

—    Espero que não se sinta muito só durante a viagem, Sra. Crafton-Bonsor —, disse Andy. — A senhora sentirá falta do nosso amigo, o professor.

—    Sim —, disse a Sra. Bonsor, e tossiu.

Scottie ergueu os olhos.

—    Estava pensando em fazer uma visita à Califórnia —, disse ele, e então foi a Sra. Bonsor quem sorriu com afetação.

—    O fato é que Stanhope —, disse ela, — Stanhope e eu...

—    Stanhope? quem é Stanhope? — perguntou Andy aturdido; mas a pergunta era desnecessária. Os olhos súplices de Scottie encontraram-se com os seus.

—    Stanhope e eu somos muito amigos. Acho que o senhor percebeu o anel. — Ela levantou a mão gorda.

Andy contou cerca de vinte. Recuperou-se prontamente.

—    Permita-me expressar minhas congratulações —, disse ele calorosamente. — é uma nova surpreendente, Sra. Crafton-Bonsor.

—    Ninguém ficou mais espantada do que eu — disse a dama acremente, — mas o senhor vai "compreendê-lo"... sempre esqueço o seu nome. As vêzes eu esquecia o nome do Senador. O senhor entende como uma mulher na minha posição pode se sentir só. Além disso, quero que o Stanhope comece vida nova.

Existe uma "uva" de montanha perto de casa, onde ele pode... como é mesmo, Stan?

—    Fazer explorações geológicas.

—    Isso mesmo —, disse a Sra. Bonsor. E se aquela não servir tem uma porção de outras montanhas por perto.

—    Então vai-nos deixar —, disse Andy sorrindo. E supo­nho que no espaço de um mês terá esquecido Beverley Green, Wilmot, o maléfico Abraham Selim e...

Ouviu-se um estrondo.

A Sra. Crafton-Bonsor desabara no chão, desmaiada.

—    Foi o calor da sala resmungou ela, descabelada, desarranjada, as jóias ameaçando cair. Eu eu acho que vou voltar "pro" hotel, Stanhope. Era patético ver até que ponto ia sua dependência dêle. Quer chamar o carro?

O rosto da dama tornara-se subitamente velho e cinzento, e os lábios vermelhos faziam um contraste horrível com suas feições. Andy esperava que a qualquer instante ela voltasse a desmaiar. A princípio julgou tratar-se de um ataque mais sério, pois ela era do tipo suscetível a tais achaques, e foi com alívio que viu os primeiros sinais de recuperação da mulher. Andy e o preo­cupado Scottie ajudaram-na até o carro.

—    O passeio vai me fazer bem —, disse ela com um risinho nervoso. Perdão pelo aborrecimento, Srta. Como-é-o-seu-nome, eu também "tava" interessada naquele crime. Quem é que foi morto? Abraham Selim?

—    Não, um homem chamado Merrivan. Tolice minha mencionar esse horrível assunto —, disse Andy.

—    Oh, eu nem fiquei preocupada, "seo"... Boa noite.

Andy retornou à moça e ao jantar interrompido.

—    Abraham Selim disse ele baixinho.                                           

Stella franziu o cenho.

—    Será que foi esse nome que a fez desmaiar?

Andy fez um sinal de assentimento.

—    Não tenho a menor dúvida a respeito —, disse ele. Mas por que o nome do assassino de Merrivan produziria tal efeito? Durante longo tempo ele estudou os desenhos da toalha de mesa e a môça não lhe interrompeu os pensamentos.

Creio que preciso realmente. Avistar-me com a Sra. Crafton-Bonsor disse ele lentamente, pois, a menos que muito me engane, aquela dama poderá nos contar, mais a respeito do crime e suas razões, do que o próprio criminoso.

 

Andy permaneceu na casa até o retorno do Sr. Nelson e depois cruzou o relvado em demanda da casa de hóspedes, onde deixara reservado o seu velho quarto.

Era êle o único visitante e Johnston o acolheu com sincera satisfação.

—    Graças a Deus está aqui —, disse o gerente. Temia que demorasse ainda mais de uma hora.

Andy lançou um olhar profissional sobre o homem. Este tinha,o rosto contraído e batia os dentes.

—    Que há com você, Johnston? perguntou o detetive. — Parece-me indiposto.

—    Tenho os nervos em frangalhos desde o crime disse Johnston. Ando tão nervoso que mal posso ficar quieto e não consigo dormir antes de três horas da madrugada.

—    Por que não? indagou Andy.

O homem riu histericamente.

—    Se eu lhe disser, o senhor pensará que estou maluco e, às vezes, chego a pensar que estou mesmo doido, Doutor. Não

sou um homem de natural nervoso... nunca fui. Não me pejo de dizer que em tempos passados andei assaltando diversas proprie­dades dêste condado. Mas...

—    Mas o quê? perguntou Andy depois de um intervalo.

—    Sou também um homem religioso, por assim dizer —, prosseguiu Johnston. Nunca perco os serviços vespertinos e não acredito em nada sobrenatural Espiritismo, e todas as demais tolices desse estilo. Sempre digo que os espíritos que vemos são os espíritos que colocamos dentro de nós mesmos.

—    E tem visto espíritos, hein? disse Andy interessado. — Isto significa, Johnston, que você está inteiramente esgotado. Fa­larei com o Sr. Nelson amanhã para que ele recomende ao comitê umas férias para você.

Johnston sacudiu a cabeça.

—    Talvez tenha razão, Doutor, mas... sou um tolo, e tenho visto coisas em Beverley que fariam o seu sangue virar água, e o senhor é médico. Isto é um vale de fantasmas. Sempre disse que era, e é mesmo.

—    Tem visto algum dos fantasmagóricos habitantes?

O homem umedeceu os lábios.

—    Tenho visto o Sr. Merrivan —, disse ele.

Andy, que se virara com uma gargalhada para ir dormir, tornou a encarar o homem.

—    Tem visto Merrivan? Onde?

—    Tenho-o visto, tal como o vi uma dúzia de vezes talvez, postado diante da grade da sua propriedade e de roupão. Antigamente costumava aparecer de manhãzinha, envergando o seu roupão amarelo... antes que as pessoas estivessem acordadas... às cinco ou seis horas da manhã. Vi-o também ali fora nas noites quentes de verão, as mãos nos bolsos, tomando ar.

—    Então é assim? disse Andy em voz baixa. E tornou a vê-lo depois da sua morte?

O homem meneou a cabeça.

—    Vi-o há duas noites —, disse êle. Não contei nada a ninguém, mas tenho dormido mal e geralmente faço um passeio pelo relvado antes de ir para a cama. Já cheguei a fazer vinte giros pelo relvado numa noite explicou ele. A princípio aproximava-me da casa do Sr. Merrivan tanto quanto me permi­tiam os meus nervos e, depois de duas ou três vezes, verifiquei não poder chegar a uma distância de cinqüenta metros da proprie­dade. Há duas noites, eu caminhava para cima e para baixo, perguntando-me quem poderia comprar a casa. O Sr. Wilmot mandou retirar toda a mobília; só ficaram as cortinas nas janelas. Eu perambulava por aí, pensando na desolação do lugar quando vi subitamente uma luz... A voz do homem tremeu. No quarto em que o cadáver fora encontrado.

—    Que espécie de luz?

—    Pareceu-me de vela, senhor. Não era certamente uma luz elétrica; para dizer a verdade, o Sr. Wilmot mandou desligar a eletricidade.

—    E que aconteceu então? perguntou Andy.

—    Então, cavalheiro — Johnston tremia — bem, então vi uma réstia de luz entre as persianas e a parede e julgava estar imaginando coisas, quando a persiana foi erguida...

Andy esperou que o homem se refizesse de suas emoções.

—    Não pude vê-lo distintamente, mas ele estava de roupão e olhava para o jardim. Fiquei paralisado e não me pude mover. Depois a persiana foi baixada e a luz se apagou. Após alguns instantes vi a mesma luz no saguão. Há uma bandeira no alto da porta. Não sei quanto tempo permaneci ali; possivelmente dez minutos, talvez dez segundos... eu não percebia que o tempo estava passando. Depois, quando começava a me recuperar, a porta abriu-se. Havia apenas uma pálida luz no corredor... e ele saiu.

—    Merrivan?

O homem fez sinal que sim.

—    Ou, pelo menos, alguém trajando um roupão, hein? —, disse Andy.

—    Sim, senhor.

—    E tornou a ver a mesma coisa desde então?

—    Ontem à noite. Obriguei-me e me acercar da casa. Lá estava ele diante da grade, as mãos enfiadas nos bolsos.

—    Viu-lhe o rosto?

—    Não, senhor, não vi. Dei o fora.

—    Já contou ao Sr. Wilmot?

—    Não, senhor, não lhe contei, uma vez que ele é amigo do Sr. Merrivan.

Andy ponderou longamente no assunto.

—    Você está provavelmente sofrendo de alucinações, em virtude de um forte ataque de nervos —, disse ele. — Farei um exame em você amanhã, Johnston.

Eram onze horas quando Andy se meteu na cama e apagou a luz. Por alguma razão, não conseguiu dormir. O dia fora cansativo e seria absurdo supor que a narrativa de Johnston lhe houvesse perturbado os nervos. O homem era, sem dúvida alguma, um neurótico. Vira o reflexo das luzes de alguma outra casa e a sua imaginação se encarregara do resto. Todavia, àquela hora da manhã, dificilmente as luzes de outras casas estariam acesas. Revirando o assunto no cérebro, Andy mergulhou num sono difícil.

Um grito o acordou, um grito rouco de medo. Ele saltou da cama, acendeu a luz e um segundo mais tarde chegaram-lhe aos ouvidos ruídos de passos arrastando-se pelo corredor.

O detetive abriu a porta e deu com Johnston. O rosto do gerente estava muito branco e, no seu terror, ele balbuciava incoe­rentemente, apontando para janela. Andy correu até a janela, ergueu-a, mas nada viu.

—    Apague a luz, Johnston —, disse ele abruptamente. Um segundo depois o quarto estava às escuras. Espiando através da escuridão, Andy continuava a não ver nada.

—    Eu vi, eu vi! —, sussurrou Johnston. — Ele estava lá no relvado, sob a minha janela, andando para cima e para baixo em seu roupão! Abri a janela e espiei para fora a fim de certificar-me. E ele falou comigo. Meu Deus!

—    Que disse ele? — perguntou Andy, sacudindo o homem pelos ombros. — Fale, homem! que disse ele?

—    Pediu a chave — choramingou Johnston. — Chamou-me pelo nome. Dê-me a chave —, disse.

Andy vestiu um sobretudo, desceu correndo as escadas e saiu. Não viu ninguém e, para assegurar-se uma visão completa, atirou-se de bruços sobre a grama e perscrutou em todas as direções, sem resultado porém.

Depois voltou a Johnston, a quem encontrou à beira de um colapso. Andy usou então de todos os recursos de que dispunha no momento para reanimar o homem. Conseguiu fazê-lo voltar ao normal, mas o gerente se aferrava teimosamente a sua estória.

—    Por que ele lhe pediu a chave?

— Porque está comigo —, disse Johnston. — Ei-la!

Ele apanhou a chave de dentro de um armário do seu quarto.

—    O Sr. Wilmot ma deu. Creio que para eu mostrar a casa aos possíveis interessados.

—    Passe-a para cá —, disse Andy, e meteu a chave no bolso.

Aquela noite Andy já não poderia dormir mais. Por isso vestiu-se e saiu para fazer uma inspeção. Em seu giro pelo relvado nada viu de humano ou sobrenatural. Uma sensação lúgubre o acometeu quando ele passou pelos portões e, auxiliado pelo clarão da sua lanterna de mão, fez girar a chave na fechadura. Seus passos ecoaram cavamente no saguão nu.

O policial hesitou um instante apenas e escancarou a porta dando para o "refúgio" do Sr. Merrivan. Todas as peças do mobiliário tinham sido retiradas, até mesmo o tapete, e tão somente uns poucos fios de arame mostravam os pontos em que outrora pendiam as gravuras de Merrivan.

Andy fez uma ligeira pausa para examinar a mancha escura sobre o assoalho, no local em que o dono da casa encontrara a morte. Depois focalizou a lanterna sobre a janela. Naquela fração de segundo ele viu algo e uma sensação de frio correu-lhe pela espinha. Era um vulto no jardim, uma silhueta que o seu facho de luz mal chegou a delinear. Um segundo mais e a visão desa­pareceu.

O detetive correu para a janela e tentou erguê-la, mas ela estava travada lateralmente e só depois de algum tempo conseguiu ele sair ao jardim e tomar o atalho asfaltado de acesso ao pomar. Não havia sinal de homem ou fantasma.

—    Ufa! — disse Andy enxugando a testa úmida.

Ao voltar para o seu quarto, aferrolhou a janela e passou a chave na porta de entrada da casa de hóspedes. De repente...

—    Diabo...

Andy ficou como que petrificado, os olhos postos na janela de Stella. Uma vez mais, num momento de crise, a luz do quarto da moça estava acesa.

 

Desta vez Andy decidiu não esperar até o amanhecer para obter uma explicação. Esta decerto seria das mais simples... uma outra luz tinha surgido na sala de estar. Ele bateu de leve à porta, mas Stella respondeu.

—    Quem é?

Havia na voz dela um quê de ansiedade.

—    Sou eu, Andy!                                                                          

—    Andy! — Os dedos da moça tatearam a corrente. — Oh, Andy! — Ela caiu-lhe nos braços, soluçante. — Estou com tanto medo! Sou uma tola!

—    Todos me parecem amedrontados e tolos esta noite —, disse Andy, acariciando os cabelos castanhos da jovem que se espa­lhavam pelo seu ombro. Que viu você?

—    Você viu alguma coisa? perguntou ela, erguendo os olhos.

A voz do Sr. Nelson se fêz ouvir, vinda do alto.

—    É Andy, papai. Desça, sim?

Algum problema? Nelson apertava o cinto do roupão ao descer as escadas.

—    É o que estou tentando descobrir —, disse Andy. Beverley Green está com ataques de nervos esta noite.

O roupão do Sr. Nelson era vermelho, notou o detetive, e o pintor tinha o aspecto de quem acabava de sair da cama.

—    Bateu antes à porta? perguntou êle. Poderia jurar que ouvi alguém.

—    Não, papai, não era Andy. Stella estremeceu.

—    Alguém bateu? indagou Andy.

Ela fez um gesto de aprovação.

—    Tenho sono muito leve disse —, e devo ter ouvido a primeira batida. Pensei que era você a abri a janela para ver. Havia alguém na rua. Podia-se ver claramente o vulto.

—    Que usava ele? erguntou Andy prontamente. Um roupão?

—    Você também viu? indagou ela. Quém era, Andy?

—    Prossiga, querida; que aconteceu?

—    Perguntei em voz alta: "Quem é?" e não obtive resposta a princípio, continuou Stella e depois uma voz profunda disse: "Sabe onde está a sua écharpe? De início não percebi de que se tratava; depois lembrei-me da écharpe encontrada no pomar. "Sim", disse eu. "Quem é você?" Mas nada responderam e percebi que o vulto se afastava. Permaneci longo tempo no escuro, per- guntando-me quem poderia ser. Não era a sua voz. Não era nenhuma voz conhecida, a menos que... mas isso é absurdo.

—    A menos que fosse de Merrivan disse Andy calmamente.

—    Claro que não era a voz dele; mas era profunda e suavecomo a dele, e, quanto mais eu pensava no caso mais medo sentia.

Sim, realmente pensei que fosse Merrivan e procurei repelir a idéia. Depois acendi a luz e desci, tencionando acordar o papai e tomar um copo de leite. Aí você chegou, Andy.

—    Extraordinário —, disse Andy e lhes contou o que vira e ouvira aquela noite. Johnston está um verdadeiro mulambo. Terei de mandá-lo embora, Sr. Nelson.

—    Mas, quem poderia ser? Será que alguém está tentando nos assustar?

—    E tem conseguido —, disse Andy.

—    Minha teoria é que —, disse o Sr. Nelson, a quem nunca faltavam teorias, todos vocês se deixaram perturbar pelas crises daquela mulher histérica. Percebi que Stella estava preocupada no momento em que cheguei.

—    Johnston não estava perturbado —, disse Andy e acredito que os meus nervos estejam em ótimas condições.

Ele tirou a chave do bolso.

—    Vá dar uma espiada na casa do Sr. Merrivan acrescentou sorrindo.

—    Nem por um milhão —, disse o Sr. Nelson enfaticamente. Bem, agora vá para a cama, Stella. Senão de manhã estará imprestável.

—    Já é de manhã disse a moça —, correndo as persianas.

—    Será que Arthur Wilmot está acordado?

O mesmo pensamento ocorrera a Andy e, tendo obtido de Stella a solene promessa de ir para a cama, ele rumou para a residência do Sr. Wilmot.

Só depois de muito tempo o chapeleiro acordou, e Arthur Wilmot acolheu as novidades com calma surpreendente.

—    Curioso —, disse ele. Estive na casa ontem. Na verdade fui correr os ferrolhos da janela dos fundos. Ninguém a havia trancado desde o crime.

—    Não viu nada? perguntou Andy.

—    Absolutamente nada —, disse Wilmot. Se esperar que eu me vista, irei com o senhor até a casa. Já haverá luz suficiente para vermos se há pegadas no jardim.

—    Não se preocupe com pegadas —, disse Andy irritado.

—    Uma trilha e um pátio asfaltados não são o melhor lugar para se colherem tais coisas.

No obstante, ele acompanhou Arthur até a casa e fez uma cuidadosa inspeção dos quartos, começando pelo saguão.

—    Eis algo.

Wilmot apontou para o chão.

—    Espermacete —, disse Andy interessado. Alguém terá entrado aqui com velas?

Arthur Wilmot abanou a cabeça.

Eles encontraram uma outra mancha de espermacete no quarto de Merrivan e depois descobriram uma vela meia consumida, nos fundos da lareira.

—    Não precisava disto para saber que algo mais corpóreo do que um espírito andou por aqui —, comentou Andy. Sem pretender ser autoridade em fantasmas, sempre soube que eles têm iluminação própria.

Ele embrulhou cuidadosamente a vela num papel.

—    Que vai fazer com isso? perguntou Wilmot aturdido, e Andy sorriu.

—    Na verdade, para um homem que me sugere procurar pegadas noasfalto, Wilmot, você é um bocado obtuso. Esta vela está cheia de impressões digitais.

O criminoso, louco ou não, sentia-se atraído pela cena do crime e, provavelmente, visitava-a com freqüência.

Andy nada contou dos seus planos a Wilmot nem aos Nelson. Seu interêsse mais imediato era a Sra. Crafton-Bonsor, mas aquela dama não estava disponível. Mais do que isso, quando Andy fez sentir a imperiosa necessidade de encontrar-se com ela, negou-se peremptoriamente a conceder-lhe uma entrevista. Scottie foi o seu porta-voz.

—    Caprichos de mulher —, murmurou Scottie. Não adianta, Macleod, ela está mais dura do que um fóssil neolítico. Fiz o que pude, mas ela não quer falar com você.

—    Mas, Scottie —, disse Andy, fui justo com você e é preciso que me ajude. Quem foi Abraham Selim para ela?

Scottie encolheu afetadamente os ombros.

—    Nunca investigo o passado de uma mulher, Macleod —, disse ele. O passado está morto; esqueçamo-lo, portanto, como diz a canção; e a felicidade está no futuro.

—    Pouco me importa o futuro; interessa-me o passado da Sra. Crafton-Bonsor —, disse Andy desagradavelmente. Ou falo com ela ou haverá graves aborrecimentos.

Scottie desapareceu e se demorou quase meia hora.

—    Ela está doente, Macleod, não há dúvida quanto a isto. Você, como médico, irá constatá-lo sem muito trabalho. Mas ela falará com você durante dois minutos.

A Sra. Bonsor estava estirada num sofá e Scottie não exage­rara o trágico efeito que a alusão casual da véspera tivera sobre ela. As bochechas gordas da mulher pareciam descarnadas; desaparecera a insolência dos seus olhos azuis.

Não tenho nada para lhe dizer, "seo"... — disse ela com voz aguda assim que Andy entrou no quarto. — Não conheço Abraham Selim e não quero falar a seu respeito. Se ele fosse um amigo nosso — bem — não admiro o seu gosto.

—    Scottie não lhe contou, começou ele.

—    Scottie não me contou nada — disse ela com voz aguda —, e não sei porque o Sr. vem ao meu aposento particular — Deus sabe quanto me cobram por ele — que negócio é esse de me dar vomitório?

—    Conheceu Abraham Selim?

Ela hesitou.

—    Sim, conheci — disse a mulher com relutância. — Faz um tempão. Não quero falar nisso, "seo"... "Meus assunto particular" são coisa minha. Não quero saber se o senhor é polícia ou não. Pode investigar à vontade o meu caráter.

Andy aguardou que ela terminasse e disse:

—    Seu nome é Hilda Masters e a senhora casou-se com John Severn na Igreja de S. Paulo, em Marylebone.

O queixo da mulher caiu e ela arregalou os olhos para ele. Depois começou a chorar, e das lágrimas passou ao riso.

Naquele instante de desespêro para a mulher, Scottie se mostrou maravilhoso: alternadamente terno e autoritário, acomodador e sarcástico. Andy, em sua discrição, deixou-os a sós por meia hora, ao cabo da qual Scottie veio procurá-lo.

—    Macleod —, disse ele com calma, — ela vai contar-lhe toda a verdade e, como sou estenógrafo, gostaria de anotar tudo para você. Mirabel — ele hesitou — não tem propriamente uma linguagem de alta classe, e creio ser preferível eu colocar suas declarações em inglês corrente a chamarmos a estenógrafa do hotel. É uma mulherzinha sardenta, com uma porção de dentes obturados a ouro e antipatizei com ela desde o princípio. Sua surpresa ante a minha versatilidade, Macleod, faz jus à sua inteligência, mas acontece que na juventude eu escrevia 180 palavras por minuto e poucos datilógrafos me superaram à máquina. Gosto dessa moça. Para você ela não é moça, mas, à medida que for envelhecendo, você se tornará mais elástico em seus conceitos. Vai permitir que eu faça o serviço? Você faz as perguntas e eu seleciono as respostas e dou um jeito de agrupá-las.

Andy assentiu, e dessa estranha sociedade nasceu uma estória ainda mais estranha.

     

— Meu nome é Mirabel Hilda Crafton-Bonsor. Não tenho certeza de que tenha sido esse o nome do meu falecido marido. Creio que ele se chamava Michael Murphy. Ele era de origem irlandesa e, quando nos conhecemos, era construtor na cidade de Sacramento, no Estado da Califórnia. — Nasci na cidade Uckfield, Sussex, mas vim para Londres com a idade de sete anos. Meus pais morreram e fui viver com uma tia, a Sra. Pawl, da Rua Bayham, na cidade de Camden. Aos dezesseis, comecei a trabalhar de doméstica, como criada de quarto da Srta. Jane Severn, em Manchester Square, 104. A Srta. Severn era solteirona e muito excêntrica. Tinha opiniões especiais acerca do casamento e, em particular, acerca do casamento nas classes inferiores.

Além da Srta. Janet havia na casa apenas o Sr. John Severn, sobrinho da Srta. Severn, que só aparecia nas férias. Ele estudava na Universidade de Cambridge; por diversas vezes co­loquei cartas endereçadas a ele no correio, e a Srta. Janet, sempre que lhe escrevia, lia em voz alta para mim o endereço do moço. Por essa razão sei que estudava em Cambridge e o colégio tinha o nome de um religioso.

Infelizmente não sei ler nem escrever e, embora tenha aprendido a assinar meus cheques, nunca passei disso. Daí não ter lido nada a respeito do assassinato, nem das pessoas nele envol­vidas. Quando o Sr. John estava em casa, ele e eu nos víamos constantemente. Ele tinha certa inclinação por mim, pois naqueles dias eu era bastante bonita. No entanto nunca me declarou amor.

Enquanto estava em Manchester Square conheci um homem chamado Sr. Selim Abraham Selim. Ele costumava vir à entrada de serviço, uma vez por semana e penso que era um desses sujeitos que vendem a crédito a empregados domésticos. Mais tarde, desco­bri que era agiota, com muitos negócios entre a criadagem de West End. A cozinheira devia-lhe muito e uma arrumadeira de nome Rachel também estava no seu caderno.

Ele não era feio e, quando descobriu que eu não queria dinheiro emprestado mas, pelo contrário, tinha algumas economias no Banco, parece que se encantou por mim e me convidou a passear com ele no primeiro domingo. Concordei, porque nunca tinha tido namorado e, conforme já disse, ele não era feio. No domingo seguinte nos encontramos. Fomos até Hampton Beach de táxi. Sou obrigada a dizer que aquilo foi para mim uma grande experiência. Ele me deu o que havia de melhor e comportou-se como um cavalheiro sob todos os aspectos.

Em resumo, encontramo-nos uma porção de vezes e depois ele sugeriu que nos casássemos. Disse-me que teríamos de guardar segredo e eu teria de permanecer no emprêgo mais um ou dois meses, porque ele estava planejando certas coisas. Não me opus, pois me sentia muito bem em casa da Srta. Janet. Assim foi que, tendo eu uma segunda-feira livre, casamo-nos em Brixton, onde ele morava, e à tardinha voltei para a residência da Srta. Janet.

Um dia ele me apareceu muito excitado e me perguntou se eu tinha ouvido falar num cavalheiro cujo nome não me ocorre. Disse-lhe que tinha ouvido a Srta. Janet falar nele. Era seu cunhado e os dois não se davam, porque ele havia maltratado sua esposa (irmã dela). O homem tinha dinheiro mas, pelo que entendi, nem a Srta. Janet nem o Sr. John esperavam dele um tostão. Contei ao meu marido o que sabia e ele me pareceu muito satisfeito. Perguntou-me se o Sr. John algum dia me havia importunado e eu fiquei muito aborrecida com a pergunta, pois era moça direita e não dava azo a tais coisas. Ele me acalmou e disse que talvez pudesse ganhar uma fortuna se eu o ajudasse. Disse-me também que quando casou comigo não tinha idéia que eu fosse analfabeta, o que seria um estorvo para ele.

Mas eu poderia ajudar bastante se conseguisse descobrir onde ia o Sr. John à noite. Descobri mais tarde que ele desejava tal informação para arranjar um encontro com o Sr. John, a quem não conhecia pessoalmente. Eu sabia que o Sr. John estava endi­vidado. Ele me havia dito que o custo de vida em Cambridge era muito alto e que tinha tomado dinheiro emprestado, implorando-me que eu nada comentasse a respeito a sua tia.

Naturalmente pensei que Abraham estivesse a par da situação e quisesse fazer algum negócio com o Sr. John. Se soubesse o que resultaria do seu encontro teria preferido cortar a língua a dizer a Abraham onde o Sr. John passava suas noites — num clube de jogo em Soho.

Cerca de uma semana mais tarde, Selim informou me de que tinha conhecido o Sr. John e lhe havia dado uma ajuda.

"Aconteça o que acontecer" —, disse-me ele — "não lhe conte que me conhece."

Prometi nada dizer e era pouco provável que não mantivesse minha promessa. A Srta. Janet tinha uma mentalidade tacanha e eu me veria em apuros caso ela descobrisse que eu era casada e passara por moça solteira. Os Severn são uma família muito anti­ga e têm um lema segundo o qual as pessoas de categoria nunca devem praticar o mal. Os dizeres são em Latim. No papel timbrado havia uma cabeça de pássaro segurando no bico uma serpente. Ela explicou-me o significado daquilo, mas me esqueci. Não sei que negócios terá feito com o Sr. John mas, quando se encontrou comigo, Abraham parecia bastante satisfeito. Ele já não vinha até a casa e mandava um empregado.

É estranho que esse empregado jamais houvesse visto Abraham, e descobri posteriormente que, embora Selim houvesse afirmado conhecer o Sr. John, jamais os dois se tinham encontrado frente a frente. Foi nessa altura dos acontecimentos que Abraham começou a mostrar-se muito misterioso. Cheguei a tal conclusão quando o Sr. John me disse ter acabado de fazer ótimos negócios com um homem que lhe havia escrito.

"Ele pensa que vou herdar uma propriedade", disse ele. — Disse-lhe que não havia esperanças, mas o homem teimou em emprestar-me todo o dinheiro de que eu necessitasse.

Contei isto a Abe quando me encontrei com ele, mas ele apenas riu. Lembro-me de que naquela noite contei-lhe tudo. Era um domingo, e nós nos tínhamos encontrado num restaurante perto de King's Cross. Quero esclarecer que, embora estivéssemos casados há mais de um mês, nossos encontros até ali tinham sido públicos, por assim dizer. Ele nunca me beijou na vida.

Tinha chovido muito e, quando saimos do restaurante, ele me pôs num táxi e mandou o chofer me deixasse na esquina de Portman Square. Quando paguei a corrida, seriam mais ou menos dez horas da noite Abraham sempre me deu muito di­nheiro quase morri de susto pois, ao afastar-me do táxi, caí praticamente nos braços da Srta. Janet. Na ocasião, ela nada disse mas, quando cheguei em casa, mandou chamar-me.

Ela me disse que não podia compreender como uma moça de respeito andava de táxi, e nío sabia onde eu poderia ter arranjado o dinheiro. Disse-lhe que tinha algumas economias e que uma amiga havia pago a corrida. Ela não gostou nem um pouco, percebi-o perfeitamente, e tive certeza de que me mandaria embora no dia do próximo pagamento. "Por favor, espere que o Sr. John chegue", disse ela. "Ele foi jantar com alguns amigos, mas até as onze horas estará de volta."

Fiquei contente quando ela subiu para ir dormir. O Sr. John só apareceu depois de meia-noite e eu lhe servi uma ceia na saleta de almoço.

Ele era o que na América chamamos de "engraçadinho", chamou-me de querida e disse que iria me comprar um broche de pérolas.

Depois, antes que eu me desse conta do que estava acontecendo, ele me tomou nos braços e me beijou. Debati-me, mas ele era muito forte e tinha os lábios colados nos meus quando a porta se abriu... e lá estava a Srta. Janet.

Ela me lançou um olhar, apontou para a porta e eu saí. Foi com satisfação que saí. Esperava ser mandada embora de mala e cuia na manhã seguinte, especialmente porque a Srta. Janet mandara avisar-me de que eu não deveria fazer qualquer espécie de serviço. Cerca de dez horas ela mandou chamar-me à sala dc estar.

Jamais me esquecerei da sua postura, da suas lindas mãos entrelaçadas no regaço. Ela tinha mãos maravilhosas; todos os criados as admiravam "Hilda", disse ela, "meu sobrinho lhe fez um grande mal, cuja extensão não averiguei. Compreendo agora porque você tem tanto dinheiro e mostrou cinco soberanos à cozi­nheira na semana passada. Mas, isso não vem ao caso. Você é jovem e está sob minha proteção nesta casa. Tenho uma grande responsabilidade, tanto perante Deus quanto perante os meus semelhantes, e providenciei para que o meu sobrinho aja como deve e se case com você."

Perdi simplesmente a fala. Antes de mais nada, eu tinha começado a chorar no instante em que ela se pusera a falar e, além disso, suas palavras colheram-se como uma avalancha. Quis lhe dizer que já era casada e tinha uma certidão para prová-lo. Não a tinha comigo, mas Abraham a tinha. Creio que a lembrança desse fato me fez calar. "Falei com meu sobrinho e mandei um bilhete ao meu advogado, dando-lhe os informes necessários para que ele obtenha uma licença do bispo. Você se casará na igreja de S. Paulo, em Marylebone, na próxima quinta-feira."

Com isso, ela me fez sinal para que eu deixasse a sala. Quando a Srta. Janet fazia aquele gesto de mão nenhum ser vivo ousava desobedecê-la. Quando voltei a mim, senti vontade de ir contar-lhe a verdade, e pedi licença para falar com ela. Mas a outra criada retornou dizendo que a Srta. Janet não se sentia bem e que eu poderia folgar o resto do dia.

Saí em procura de Abraham. Ele tinha um pequeno escritó­rio sobre a tabacaria de Ashlar. Ashlar enriqueceu depois, creio eu, e tem um edifício com o seu nome. Abe, surpreendentemente, estava lá, mas demorou muito a abrir a porta e fazer-me entrar. Contou-me que jamais se entrevistava pessoalmente com os clientes e estava muito aborrecido comigo pela visita. Mas, quando lhe disse o apuro em que me encontrava, ele mudou de tom. Disse-lhe que teria de contar tudo à Srta. Janet, mas ele não aprovou a idéia.

"Sempre imaginei que algo no estilo pudesse ocorrer", disse ele. "Bem, Hilda, é preciso que você seja boazinha e faça algo por mim. Sempre tratei-a muito bem e agora é a sua vez de me ajudar."

Quando descobri o que ele queria que eu fizesse, mal pude acreditar nos meus ouvidos. Eu teria de casar com o Sr. John!

Mas, como posso casar, se já sou casada? Acabarei na cadeia!

"Ninguém ficará sabendo", disse ele. "Você casou comigo num outro distrito da cidade. Prometo-lhe que se separará dele na igreja e que nunca mais o verá. Faça isto por mim, Hilda, e" lhe darei cem libras."

Ele disse que se eu casasse com o Sr. John nós dois fica­ríamos ricos para o resto da vida, mas não explicou por quê.

Ele sempre teve muita lábia, e me confundiu a tal ponto que fiquei completamente aturdida. Fez de mim gato e sapato, como se diz, e, para encurtar a coisa, acabei concordando com as suas pretensões. Talvez tenha sido uma tola, mas admirava tanto sua sagacidade e sua instrução que era incapaz de raciocinar por mim mesma.

Várias vezes me perguntei se ele tomara tal atitude para livrar-se de mim, o que não me parecia exato, pois não haveria razão para ele casar-se comigo, em primeiro lugar. Penso, agora, que ele desejava apenas ter em casa um moça bonita, e de tal maneira presa a si, que fizesse tudo quanto ele pedisse. Não acredito que julgasse o Sr. John capaz de pedir-me em casamento, mas ele talvez previsse algo pior. No mundo não havia indi­víduo mais cruel e calculista do que Abraham Selim. Um dia antes do casamento fui falar com a Srta. Janet.

"Hilda", disse ela, "amanhã você se casa com o meu sobrinho. Desnecessário dizer que não faço gosto nesse casamento e reco­mendo-lhe que o guarde em segredo. Quanto ao futuro, não é de esperar-se que o Sr. John, cavalheiro que é, deseje apresen­tá-la aos seus amigos. Você é totalmente sem educação e, ainda que os seus modos não sejam desagradáveis, o seu terrível sotaque cockney é intolerável."

É estranho como me recordo de todas as palavras da Srta. Janet, malgrado trinta anos já se tenham passado. Senti-me per­turbada e esmagada pelas palavras dela, mas consegui indagar de seus planos.

"Vou mandá-la para um estabelecimento de categoria, onde se corrigem falhas de educação. Você ficará lá até os vinte e dois anos e então estará em condições de tomar seu lugar ao lado do seu marido, sem humilhá-lo ou a si própria."

De certa forma, aquilo se acomodava ao que Abraham me havia prometido. Na verdade, pensei que ele tinha arranjado tudo, mas, hoje em dia, estou convencida de que aquele plano era da Srta. Janet.

Só vi o Sr. John na quinta-feira, ao entrar na igreja de S. Paulo. Não sei o que terá acontecido entre ele e a tia. Sei que ele estava muito pálido e cheio de si, ainda que alardeando a polidez habitual. Havia apenas umas quatro pessoas na igreja e a cerimônia terminou mais ligeiro do que eu esperava. Eu havia aprendido a escrever o meu nome, de modo que não envergonhei meu noivo. Por que ele casou comigo, não sei. Juro que nada houve entre nós senão o beijo que ele me havia dado, e isso numa ocasião em que ele estava fora de si. Mas ele casou comigo. Talvez o lema latino da família e a cabeça de pássaro tenham tido algo a ver com a coisa. Até agora tudo me parece muito tolo. Antes de eu ir para a igreja, a Srta. Janet deu-me cinqüenta libras e um endereço para o qual me deveria dirigir. Ficava na Rua Victoria, em Eastbourne. Ela também anotou os horários dos trens.

Eu disse até logo ao Sr. John e saí da igreja, separando-me dele e do seu amigo — a Srta. Janet não compareceu — e nunca mais o vi.

Abraham arranjara um encontro comigo para levar-me a jantar (ou almoçar; era jantar para mim naquela época).

Lá estava ele à minha espera, diante do restaurante de King's Cross e, quando entramos, eu lhe contei o que sucedera.

"Dê-me a certidão", disse ele, e eu lhe entreguei o documento. Nós quase não falamos mais no casamento, embora eu estivesse um tanto nervosa. Eu não queria ir para Eastbourne e, o que era pior, não tinha a menor intenção de fazê-lo. Mas eu dependia de Abraham. Sabia que ele teria algum plano para mim. Real­mente tinha. Mas não era aquilo com que eu sonhara — ir para o campo (coisa que ele me havia prometido quando concordei em me casar com o Sr. John) e começar realmente a nossa vida de casados.

Quando estávamos para terminar a refeição ele sacou do bolso um enorme envelope.

"Consegui-lhe uma boa cabina — primeira classe. Se não abrir a boca, ninguém ficará sabendo que você é criada doméstica. Cá estão quinhentas libras em dinheiro; você terá dois dias para comprar roupas."

Fiquei espantada. Não sabia de que estava ele falando.

"Você vai para a América", disse ele. "Arranjei algumas cartas de apresentação com o meu amigo, Sr. Merry"... qualquer coisa. Talvez fosse Merrivan. Creio que era isso. Pelo que entendi o Sr. Merrivan era cliente dele. "Vão conseguir-lhe um emprêgo e, além disso, você tem bastante dinheiro."

"Mas eu não quero ir e não vou", disse eu quase aos gritos. Sei que falava tão alto que as pessoas no restaurante viraram a cabeça para nos olhar.

Ele ficou furioso. Nunca vi homem mais parecido com o diabo do que ele. Senti muito medo.

"Ou você vai ou chamo a polícia e a acuso de bigamia."

Eu não tinha forças para brigar com ele. Parti para Nova Iorque a bordo de um navio chamado Lucarua.De Nova Iorque fui para um lugar denominado Denver, para o qual levava uma carta de recomendação. Durante um ano tive emprego. Eles não usam o termo "criada" mas "empregada". Fui "empregada" durante treze meses e então recebi uma proposta para ser gover­nante do Sr. Bonsor, viúvo e pai de um filho que havia morrido. Quando o Sr. Bonsor pediu-me em casamento, tive de contar-lhe a verdade, e ele me disse que um casamento a mais não fazia nenhuma diferença para ele. Era um homem independente no que dizia respeito à religião.

Nunca mais vi Abraham Selim, mas sei que ele escreveu para o meu empregador em Denver, perguntando como ia eu. Não lhe puderam dar qualquer informação. Isso foi sete anos depois da minha chegada aos Estados Unidos. Nunca mais tive notícias do Sr. John, mas soube que a Srta. Janet morreu de pneumonia um mês após a minha partida. Descobri-o através de uma notícia de jornal lida pelo Sr. Bonsor.

 

Havia uma pessoa a quem convinha mostrar o relato de Hilda Masters, pensou Andy. Já fazia algum tempo que ele suspeitava estar o Sr. Boyd Salter em condições de esclarecer muito mais do que até ali o fizera acerca da vida e das loucuras de seu amigo Severn.

Mandou um telegrama ao senhor de Beverley Hall pedindo- lhe uma entrevista e, ao voltar a Beverley Green, encontrou um bilhetinho de Salter pedindo-lhe que comparecesse na propriedade o quanto antes.

— Vou com você —, disse Stella. — Posso ficar esperando no carro.

Tilling, aquela inquieta criatura, parecia ainda mais nervoso que de hábito.

—    Seja cuidadoso com o cavalheiro, doutor, por obséquio. Ele não tem dormido bem e o médico disse ao Sr. Francis o nosso jovem amo que os nervos do seu pai podem explodir a qualquer instante.

—    Obrigado, Tilling —, disse Andy. Terei muito cuidado.

Andy constatou que Tilling não exagerara quanto às condições do Sr. Salter. Este tinha o rosto cinzento e murcho, mas, ainda assim, saudou o detetive com um sorriso.

—    Veio contar-me que encontrou o meu assaltante —, disse ele bem humorado. — Poupe-se o trabalho. Foi aquele seu ladrão de jóias.

Andy não estava preparado para tal informação.

—    Receio que sim —, disse mas creio sinceramente que ele veio até cá sem intenções desonestas. Na verdade, estava na pista do meu assaltante.

—    E encontrou-o, hein? disse Salter maliciosamente. Um misterioso guarda-caça.

—    Como foi que descobriu isso?

Salter riu e, ao fazê-lo, estremeceu.

Andy percebeu e ficou aborrecido. O homem era cardíaco.

—    Não tentarei enganá-lo —, disse Boyd Salter, desfrutando do momento. Scottie... esse é o nome do patife, não é? desapareceu no dia seguinte. A Srta. Nelson foi embora nesse mesmo dia; dirigiu-se a um lugar chamado Rua Castle, para cuidar de alguém. Quem outro senão o seu desacreditado amigo?

Andy começou então a compreender.

—    Downer, decerto —, disse ele e o outro concordou com um sorriso. Mas, com relação ao guarda-caça, como ficou sabendo?

—    Downer uma vez mais e ainda um outro malandro... Martin, por nome, creio eu.

Andy era demasiado homem para esconder a admiração que lhe merecia o sagaz Sr. Downer.

—    Rendo minhas homenagens a Downer. Ele é sem dúvida o melhor dos jornalistas.

—    Ele veio me visitar —, explicou Salter — e fiz com que todos os guarda-caças desfilassem diante dele e fossem interroga­dos. Um dos homens admitiu ter estado na cozinha... sempre temos chocolate pronto para eles, quando estão de ronda à noite... e crê ter saído na hora em que Scottie viu sair alguém. Só cheguei até aí. Bem, quais são as novidades importantes que nos traz?

—    Encontrei Hilda Masters.

O Sr. Salter ergueu os olhos.

—    Hilda Masters? Que é ela?

—    Lembra-se, Sr. Salter, da existência de uma certidão de casamento numa gaveta secreta de Merrivan?

—    Lembro-me. Saiu nos jornais. Tratava-se da certidão de casamento de uma velha criada. Posteriormente roubou-a ao senhor um fantasma chamado Selim. Era esse o nome da mulher que se casou? E o senhor está me dizendo que a encontrou?

Andy sacou do bolso uma cópia do relato da mulher e colocou-a sobre a mesa, diante do juiz de paz. O Sr. Salter examinou o papel longamente, depois ajeitou um par de óculos de aro de osso ao nariz e começou a ler.

Leu devagar, muito devagar. Parecia a Andy que o homem media o valor de cada palavra. Certa feita ele voltou atrás e releu a página de alto a baixo. Cinco, dez, quinze minutos se passaram num silêncio que apenas o virar das páginas cortava. E Andy impacientou-se, ao lembrar-se da moça que esperava no lado de fora.

—    Ah! — disse o Sr. Salter ao baixar o manuscrito, — o fantasma do vale foi esconjurado... o maior de todos os vultos maldosos que nos rondam, Dr. Macleod.

Andy não compreendeu de pronto e o outro, percebendo que o detetive estava atrapalhado, veio-lhe em socorro.

—    Selim —, disse ele — revelado em sua hedionda nudez — vendilhão de almas, destroçador de corações, jogador de vidas. Eis o que ele é. — O Sr. Salter tamborilou os dedos sobre o ma­nuscrito e Andy notou que ele tinha os olhos extraordinariamente brilhantes. Porém, o mais espantoso de todos os milagres era que o seu rosto se havia enchido e que as rugas muitos fundas da face haviam sumido.        

O homem devia ter tocado alguma campainha secreta, pois Tilling fez sua aparição.

—    Traga-me uma garrafa de Porto, Selo Verde, Tilling. — Quando o serviçal saiu ele prosseguiu. — O senhor conquistou um triunfo... um triunfo ainda maior do que deitar as mãos em Abraham Selim. Precisamos comemorar o seu êxito, Doutor.

—    Temo não poder ficar. Na verdade, a Srta. Nelson está à minha espera no carro.

Salter ergueu-se de um salto, embranqueceu e tornou a sentar-se.

—    Sinto muito —, disse ele sem fôlego. — Foi imperdoável da minha parte deixá-la lá fora, e o senhor deveria ter-me preve­nido. Por favor, faça-a entrar.

—    Você quase o matou —, disse Andy. — Pelo menos a notícia de que estava cá fora quase o liquidou. Não estou gostan­do do aspecto dele, Stella.

O Sr. Salter recuperara-se antes de eles voltarem e observava Tilling entornar o precioso vinho nos cálices.

—    Perdoe-me por não me levantar —, disse Salter sorri­dente. — Quer dizer que você auxiliou o meu assaltante?

—    Andy lhe contou? — perguntou Stella alarmada.

—    Não, Andy não me contou. Toma um cálice de Porto, Srta. Nelson? Não? Este vinho já era velho quando seu pai nasceu.

Ele ergueu o cálice diante dela e bebeu.

—    E a Sra. Masters ou Sra. Bonsor, que lhe irá acontecer? — indagou.

—    Suponho que não ficará em Londres. Ela se confessou culpada de um crime condenável, mas tão antigo que mesmo que quiséssemos denunciá-la não conseguiríamos. Certos indícios me levam a crer que aquela dama tantas vezes casada tentará ainda um quarto mergulho nos procelosos mares matrimoniais.

Salter fez um sinal com a cabeça.

—    Pobre criatura! —, disse ele em voz baixa. — Pobre ingênua.

Andy não esperava que o magistrado se apiedasse da Sra. Crafton-Bonsor.

—    Ela não é propriamente pobre —, disse em tom seco. — Seottie, que é perito no assunto, avalia as suas jóias em cem mil libras e existem diversas propriedades nos Estados Unidos. Mas eu estava especialmente interessado em conversar com o senhor acerca de Severn. Tem alguma idéia de onde está ele? Não posso deixar de pensar que Selim usou o casamento em proveito próprio!

—    Foi o que fez —, disse Salter. — Selim fez crer ao Sr. Severn que a mulher havia morrido, e Severn tornou a casar e, creio eu, teve filhos. Já casado Severn, Selim passou a ameaçá-lo com a bigamia e a ilegitimidade dos filhos, extorquindo-lhe destarte enormes quantias. O contrato que você encontrou era falso. Selim jamais pagou um tostão ao meu amigo. Cancelou apenas uma velha dívida — a mencionada pela mulher em suas declarações — e substituiu-a por uma outra mais vultosa. E, à medida que os anos passavam, sua cupidez começou a ensinar-lhe novos métodos de extorsão. Como vê, Doutor, estou sendo franco. Eu realmente sabia mais acerca dos problemas de Severn do que havia dito.

—    Nunca pus isso em dúvida —, disse Andy sorrindo.

—    E você, mocinha, também está se aproximando do fim da grande caçada. Você não atravessou o último mês sem perder algo.

—    E sem achar algo também, Sr. Salter —, disse ela.

Salter olhou para Andy e depois para a moça.

—    Desejo que seja verdade —, comentou ele tranqüilamente. — O seu pequeno fantasma... já foi esconjurado?

Stella assentiu.

—    E Andy? Suponho que ele tenha adotado todos os seus fantasmas e os carregue agora nos ombros largos? Que você possa logo esconjurar e destruir o último deles!

Em seguida a esse derradeiro voto eles se retiraram.

Andy dormiu toda a tarde e, tão logo escureceu, ele começou uma vigília no seu quarto solitário. A noite escoou sem que a sua tranqüilidade fosse quebrada. Pouco depois do alvorecer ele olhava pela janela, quando Stella saiu de casa carregando algo na mão. Ela veio diretamente para a casa de Merrivan e para surpresa dele, bateu à porta. Andy foi abri-la.

— Trouxe-lhe café e sanduíches, Andrew —, disse ela. — Pobrezinho, você deve estar cansadíssimo.

—    Como sabia que eu estava aqui?

—    Oh, foi pura adivinhação. Como você não apareceu ontem à noite, tive certeza de que faria este plantão.

—    Que moça estranha é você! E eu nada lhe contei, de propósito.

—    E vendo-me entrar na casa de manhãzinha você suspeitou do pior? — Ela beliscou-lhe a orelha. — Você nada ouviu e nada viu?

—    Nada —, disse Andy.

Ela olhou através do sombrio corredor e sacudiu a cabeça.

—    Creio que não gostaria de ser detetive —, disse. — Andy, será que você nunca sente medo?

—    Freqüentemente — disse Andy —, quando, por exemplo, penso na espécie de lar que lhe vou dar...

—    Falemos nisso —, disse Stella, e ambos se sentaram no quarto mal assombrado até o sol surgir à janela e falaram de casas e apartamentos e do custo dos móveis.

Às onze horas Andy, sem mostrar qualquer sinal da sua noite não dormida, apresentou-se no Grande Hotel Metropolitano. Restavam ainda um ou dois pontos a serem esclarecidos.

A Sra. Crafton-Bonsor foi embora —, disse o recepcionista.

—    Foi embora? — repetiu Andy surpreso. — Quando?

—    Ontem à tarde, cavalheiro. Ela e o Prof. Bellingham partiram juntos.

—    E ela levou bagagem?

—    Tudo quanto tinha aqui, cavalheiro.

—    Sabe para onde foi?

—    Não tenho a menor idéia. Ela disse que ía passar alguns dias no mar.

Aquilo foi um transtorno para Andy.

Ele deu um pulo à Rua Castle, 73, na esperança de encontrar Scottie.

Encontrou, ao invés, um Martin muito perturbado.

—    Não, Doutor, Scottie não aparece faz três dias.

—    E ele não lhe deixou instruções quanto ao funcionamento deste covil de ladrões? — perguntou Andy.

—    Não, senhor, — respondeu Martin. — Havia algo no tom da sua voz que revelou a Andy estar ele mentindo.

Inútil interrogar alguém cujo respeito pela verdade era ostensivamente diminuto, e Andy retornou a Beverley Green e foi dormir.

Às nove horas da noite, ele penetrou na residência de Merrivan. Durante o dia, Johnston havia colocado uma poltrona no quarto de dormir. Era uma poltrona confortável e Andy come­çou logo a cabecear de sono.

:— Assim não vai —, disse ele com seus botões e, cami­nhando até a janela da frente, abriu-a para deixar entrar o ar fresco.

A igreja de Beverley bateu uma hora e não havia ainda sinal do visitante. Andy tinha desaferrolhado a janela traseira, certo de que fora por ali que o indivíduo entrara quando Johns­ton o vira à janela.

Deram duas horas e Andy, cabeça baixa, tinha o cérebro povoado de confusos pensamentos acerca de Stella e da Sra. Crafton-Bonsor.

Finalmente, ele ouviu um ruído e de pronto despertou. Olhando na direção da janela dos fundos, viu uma silhueta negra na luz frouxa do ambiente. A pedido seu a eletricidade fora ligada durante o dia, e ele se dirigiu furtivamente para o comu­tador. O homem no lado de fora erguia com cuidado a vidraça inferior. Esta subiu gradativamente e Andy ouviu um leve rumor de passos pelo assoalho. Ainda assim não acendeu a luz; ficou à espera e:

—    Levante-se e olhe para mim, Abraham Selim, cachorro!

A voz ecoou com estrépito no quarto vazio.

—    Levante-se! — tornaram a repetir e Andy acendeu a luz.

De costas voltadas para a janela aberta, trajando um roupão amarelo, estava um homem, cuja mão estendida apontava para um inimigo invisível e empunhava um revólver de cano longo.

Salter! Boyd Salter!

Andy engoliu em seco. Então era Boyd Salter, aquele indivíduo frio e lânguido, que de forma tão segura e habilidosa havia esgrimido com ele!

O homem tinha os olhos arregalados, fixos, vazios.

Ele dormia. Andrew já se dera conta disso quando lhe ouvira a voz pastosa e dura.

— Tome, miserável!

O vulto sussurrou apenas a palavra e ouviu-se um estalido. Depois o vulto de Salter inclinou-se sobre o chão, examinando o lugar em que o cadáver de Merrivan tinha sido encontra­do; depois, lentamente, ele se pôs de joelhos e suas mãos tateantes tocaram o corpo imaginário. Durante todo o tempo o homem falava consigo mesmo, deixando escapar pequeninos suspiros de alívio.

Ele estava reconstruindo o crime — não pela primeira vez. Noite após noite, Salter levantava da cama e reproduzia o incidente do assassinato em todos os seus detalhes. Era estranho vê-lo revistar uma escrivaninha que lá não estava, abrir um cofre que havia sido retirado dali, mas Andrew quedou-se a observá-lo, fascinado. O homem riscou um fósforo e ateou fogo ao que julgava ser um punhado de papéis colocados na lareira. De repente ele se deteve. Era o lugar em que a carta fora achada.

"Merrivan, maldito, você não enviará mais cartas! Nada de cartas colocadas em baixo de portas. Aquela carta era para mim, não era? Ele voltou-se para onde julgava estar o corpo. — Para mim? — Seu olhar mudou subitamente de direção. O homem parecia estar erguendo algo do chão. — Preciso levar a écharpe da moça. Pobre Stella! Este inimigo não irá prejudicá-la. Levo a écharpe comigo. — Ele colocou a mão no bolso, como que guardando algo. Se encontrarem esta peça, pensarão que você estava aqui quando atirei nele.

Andrew engoliu em seco.

Tudo agora estava claro para ele. Abraham Selim e Merrivan eram uma só pessoa e a carta ameaçadora, que ele julgara ter sido recebida por Merrivan, fora na realidade escrita por ele. Sim, era isso! Merrivan ia sair aquela noite para deixar a carta na propriedade de Salter. Ele a havia escrito, dobrado, mas não tivera tempo de sobrescritar o envelope, pois o destino se abatera antes sobre a sua pessoa.

Salter movimentava-se lentamente pelo quarto. Poucos segun­dos depois ele transpôs a janela. A seguir fechou-a atrás de si, mas Andy saiu rapidamente ao jardim, pondo-se na cola do sonâm­bulo que, com passadas furtivas, ganhara o pomar.

"Fora do meu caminho, maldito!"

Era a voz de Salter e uma vez mais se ouviu um estalido de revólver.

Fora, portanto, assim que Sweeny havia morrido. Sweeny encontrava-se ali. Provavelmente, tinha descoberto a identidade de Selim e estava vigiando a casa aquela noite. Tudo parecia simples agora. Merrivan tinha feito chantagem com Salter. Mas quem era Severn Severn, o marido de Hilda Masters?

Andy seguiu o sonâmbulo sob as árvores do pomar e através da sebe. Salter penetrara nos seus próprios domínios e se movi­mentava com a curiosa determinação dos sonâmbulos. Sem perder o homem de vista, Andy prosseguiu em sua caminhada. Salter manteve-se numa trilha que levava a Covert Spring; de repente, tomou a esquerda e atravessou um prado que dava diretamente em Beverley Hall.

Mal fez uma dúzia de passos e da grama ergueu-se um clarão seguido de uma ensurdecedora explosão; Salter cambaleou e caiu. Num segundo Andy estava ao lado dele, mas o homem jazia imóvel.

O detetive acendeu a lanterna de mão e gritou por socorro. Uma voz respondeu-lhe quase que de imediato. Era Madding, o guarda-caça que ele conhecera anteriormente.

—    Algum problema, senhor? — disse Madding ao reconhecer Andy. — O senhor deve ter tropeçado numa espingarda de alarme. Colocamos diversas no parque para apanhar ladrões. Meu Deus! — balbuciou ele.— É o Sr. Salter.

O homem abatido foi colocado de costas; Andy desabotoou o pijama de Salter e ascultou-lhe o coração.

—    Temo que esteja morto —, disse.

—    Morto? — repetiu o outro aterrado. — A espingarda não tinha projéteis.

—    A explosão o acordou e creio que o choque o matou, Madding. Talvez tenha sido melhor assim.

 

— O último fantasma foi esconjurado. Andy entrou na sala de estar dos Nelson e se abateu pesada­mente sobre uma poltrona.

—    Qual é o último, querido? — Stella sentou-se num dos braços da poltrona e lhe colocou a mão na cabeça.

—    Este é o último.

Andy sacou do bolso um recorte de jornal e passou-o às mãos dela.

—    Encontrei isto no cofre de Salter. Oh, sim, o rapaz supor­tou bem o acontecido. Tal desfecho já era esperado. Sabia-se que o velho era sonâmbulo, por causa da lama encontrada em seu pijama, e sempre havia um guarda à sua porta. Acontece, porém, que a velha mansão tem uma dezena de saídas secretas e ele sempre conseguia fugir. Que acha disto?

Ela releu o recorte. Era de The Times:

De acordo com as disposições do testamento do falecido Sr. Philip Boyd Salter, o Sr. John Severn, seu sobrinho e único herdeiro, adotará o nome e título de John Boyd Salter. Para tanto, publica-se na data de hoje, em nossa coluna legal uma proclamação oficial.

Essa é a estória —, disse Andy. — Severn sempre foi Boyd Salter. Se eu tivesse tido o bom sendo de examinar o testamento do seu tio, já estaria a par disso há mais de um mês. Ele morreu feliz. Durante muitos anos tinha vivido à sombra da sua culpa e ciente de que, se Merrivan abrisse a boca, seu filho perderia direito à propriedade, a qual só poderia ser deixada a um herdeiro legal. Quando lhe apresentei as declarações de Hilda Masters — a propósito, ela casou com Scottie um dia antes de viajar — declarações que comprovavam a legalidade do casamento dele com a mãe do seu filho, lembra-se de como ele me pareceu rejuvenescer vinte anos?

Fiquei intrigado quando ele disse que o maior dos fantasmas havia sido esconjurado, mas o homem dizia a verdade. Aquele era o maior terror. Para salvar seu filho da desgraça ele matou Merrivan ou Selim. Para salvá-lo ele penetrou na casa de Wilmot vestido como guarda-caça e roubou e queimou a certidão de casa­mento.

—    Como sabia ele que o documento estava lá?

—    Downer fizera a revelação naquele chocante artigo que escreveu a nosso respeito.

—    Que acontecerá à fortuna de Selim... irá para Arthur Wilmot?

Andy sacudiu a cabeça.

—    Irá engrossar o patrimônio da Sra. Prof. Bellingham - disse ele. — Trágico, não é?

Ela riu e enlaçou-lhe o pescoço com o braço.

—    Andy, não serei eu também um fantasma? Você não irá embora enquanto não houver apaziguado o meu espírito, irá?

—    Você é uma mulher despudorada, — disse Andy. — Sempre foi.

Houve uma pausa de felicidade.

—    Scottie é sagaz —, disse ela subitamente.

—    Sagaz? Sim, creio que sim. Por que diz isso?

—    Veja com que rapidez ele conseguiu... a licença de casamento...

Uma semana mais tarde o Sr. Downer inteirou-se das novidades. Ele não, se lamentou nem rejubilou. Era um homem prático e para ele assassinatos e casamentos tinham um único valor. Ligan­do para o Megaphone,ele mandou chamar ao telefone o diretor de redação.

—    Bem, Macleod casou com a jovem Nelson. Posso dar-lhe uma coluna de informações confidenciais sobre o noivado. Claro que conseguirei um retrato dela. Ela é capaz de tudo por mim. Duas colunas? Ótimo!

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades