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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FALSÁRIO / Frank Mc Fair
O FALSÁRIO / Frank Mc Fair

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

O FALSÁRIO

 

Herdar uma companhia que produzia matéria prima para submarinos americanos era como ganhar na loteria. Mr. Meredith II agora estava no comando da empresa de seu falecido pai. Tendo sua prima como secretária, fiel e discreta, ele conseguiria gerenciar todos os negócios... mas nem sempre se é bem aceito... questionamentos começam a surgir... sobre seu passado e sobre seu conhecimento tão rápido sobre os negócios... Quem é este homem misterioso? Mr. Meredith teria estudado com dedicação para não decepcionar a memória de seu pai ou ele não era quem dizia ser? Seria um Falsário???

 

                

Assim, senhores conselheiros, nada mais nos resta senão desejar ao novo presidente da Meredith Ltda. os nossos melhores votos de uma feliz gestão. Senhores conselheiros, Mr. Meredith Júnior.

Palmas em torno da mesa acolheram as últimas palavras do orador.

Mr. Meredith Jr. levantou-se, inclinando a cabeça ligeiramente.

Era um belo tipo de homem, aí pelos trinta e cinco anos, um metro e oitenta, olhos azuis e cabelos castanho claro, com risca de lado, uma pequena mecha marcando a testa alta e saliente.

Com uma voz bem timbrada, sabendo inflexionar convenientemente:

— Quero expressar, senhores, os meus agradecimentos pela recepção. Os bons votos apresentados serão uma realidade se me suprirem a bisonhice com a experiência de todos os senhores, homens menos jovens do que eu. Valerá, tenham a certeza, a minha boa vontade em aprender. Senhores, meu maior desejo seria que a Meredith Ltda. não venha a ressentir-se com a mudança do presidente, embora saiba que jamais conseguirei fazer por ela o que meu pai realizou. Muito grato pela atenção, confio nos senhores.

Sentou-se.

Enquanto ressoavam novos aplausos, o conselheiro mais velho, Mr. Crepitude, voltou-se para o vizinho do lado:

— Seco e conciso, embora um tanto pretensioso — murmurou. — Que a Meredith não se ressinta com a mudança... Pois, sim!

O engenheiro-chefe, Wentworth, encolheu os ombros discretamente:

— São palavras de praxe. Além disso, Mr. Crepitude, aqui estamos nós para atender a Meredith em qualquer situação.

— Bem, espero que ele seja, pelo menos, maleável.

O engenheiro Wentworth teve a desagradável impressão de que Mr. Meredith Jr., do outro lado da ampla mesa oblonga, estaria ouvindo ambos. Sabia que isso seria impossível, dada a grande distância que os separava do presidente. Mas a verdade é que Artie Meredith fixava os olhos neles, com uma expressão levemente zombeteira.

— É bom calar-se — disse o engenheiro ao velho conselheiro.

— Ora, por quê?

Wentworth não respondeu. Enquanto o secretário lia o balanço do exercício anterior, monotonamente, e alguns dos membros do conselho de administração tomavam notas.

Às quatro da tarde, terminou a reunião. Wentworth, depois de apertar a mão de Meredith Jr., como os demais, dirigiu-se aos secretários da secretaria. Na antessala, havia uma mesa com vários telefones e, atrás, uma jovem de olhos castanhos e cabelos ruivos, muito repuxados e recolhidos num tufo.

— Como vai? — perguntou a jovem.

— Bem.

Wentworth sentou-se à borda da mesa, olhando risonhamente para a moça. Não aparentava seus trinta e sete anos, alto, magro, de mãos grandes e ossudas.

— Que tipo de parentesco há mesmo entre você e Meredith? — perguntou.

— Minha mãe era irmã da dele. Somos primos. Por quê?

— Sabia que eram parentes, mas não imaginava o grau. Simples curiosidade.

— Como é ele? — perguntou a moça?

— Não o viu?

— Não, não passou por aqui. Entrou no salão da diretoria pela porta dos fundos.

— Quer dizer que ainda não teve ocasião de vê-lo?

— A última vez, tinha eu doze anos. — Wentworth acendeu um cigarro, depois de oferecer outro à moça.

— Bem, é... alto, e as mulheres dirão, certamente, que é bem apessoado. Parece muito seguro de si.

A jovem baixou os olhos para um caderno de taquigrafia sobre a mesa.

— Não era essa a impressão do tio Artie sobre ele.

— Não me importa a impressão que tio Artie pudesse ter de seu filho. O que me interessa é que você jante esta noite comigo.

A jovem sorriu. Ao ficar em pé, as linhas firmes do seu corpo se destacaram contra o cinzento pérola brilhante da parede. Parecia que o pintor escolhera a cor pensando nela. Wentworth imaginou que, assim, com aquele fundo, ela teria posado para um quadro de arte, uma obra-prima. Não escondia o seu encantamento.

— De acordo — respondeu ela. — Caviar, champanha, fricassé de frango... E muita dança!

— Noitada completa. As sete, em ponto. — Wentworth tomou-lhe uma das mãos e tentou atraí-la. Ela resistia, risonha. Quando já se encontravam quase unidos, alguém falou muito perto.

— Lamento interromper, mas desejaria falar com miss...

Ambos se voltaram e Amy afastou-se rapidamente do companheiro.

Mr. Meredith Jr. alteava-se diante deles. Entrara pela porta que ligava o gabinete da presidência à secretaria. E aproximara-se muito silenciosamente, por certo.

— ... Mordaunt — respondeu ela, ligeiramente ofegante. — Amelie Mordaunt.

Os olhos de Meredith se arregalaram. — Amelie Mordaunt? Você é... — Wentworth conseguiu uma saída para a sua situação nada cômoda:

— Sua prima Mr. Meredith.

— Mas... é claro!

Meredith caminhou para a jovem e estendeu-lhe as mãos informalmente. Amelie fez o mesmo e ele estreitou com gosto as mãos delicadas da bonita prima e secretária. Seus olhos intensificavam o sorriso de satisfação muito justificável.

— Mas... Amelie... ninguém me havia dito... Garota, mas como está encantadora! Você se tornou uma verdadeira...

Com um gesto rápido, fê-la dar meia volta antes que ela própria pudesse perceber sua intenção. Em breves segundos, ele a viu de perfil, de costas e, por fim, novamente de frente.

E retendo nas suas mãos as mãos da moça, sem que ela conseguisse desvencilhar-se.

— ...mulher. E muito bonita!

Wentworth ficou irritado. Não gostava da expressão dos olhos de Meredith. Em qualquer outra ocasião, ter-se-ia retirado discretamente, mas agora se obrigara a si mesmo a permanecer no gabinete.

— Por que não me avisaram que você trabalhava aqui? Era o menos que podiam ter feito.

— Não sei — respondeu ela rindo um pouco forçadamente.

Por fim, pôde retirar a mão e lançou um olhar oblíquo para Wentworth. Meredith notou.

— Ah! Mr. Wentworth, se não me engano. Gostaria de conversar comigo um pouco... Mas depois.

Seria uma despedida, mas Wentworth preferiu ignorá-la. Além disso, ele tinha completo direito de permanecer naquela dependência.

— Quando quiser, Mr. Meredith.

O jovem presidente pareceu não ouvi-lo. Olhava gulosamente para Amy.

— Está trabalhando há muito tempo aqui?

— Dois anos — respondeu a jovem.

— E era a secretária particular de... minha secretária particular. O mundo está cheio de surpresas, mas eu serei o último a me queixar disso. Você me poderá ser de muita utilidade, Amelie. Muita, realmente.

Ela vacilou um momento. Um sorriso pálido flutuava, contudo em seus lábios.

— Antes... antes você me chamava Amy.

— Naturalmente Amy. Bem, vai começar a me ser útil agora mesmo. Esta noite jantará comigo.

— O caso é que Mr. Wentworth me havia...

— Convidado antes? — Oh! Meredith virou-se para o engenheiro.

— Estou certo de que Mr. Wentworth há de considerar o fato de dois primos que não se veem durante, precisamente...

— Quinze anos — disse ela.

— Quinze longos anos. E não se incomodaria em adiar o convite para outra qualquer oportunidade. Não é mesmo, Wentworth?

O engenheiro fechou a cara. E já ia abrir a boca com sua opinião sincera, quando notou o olhar suplicante da jovem. Manteve-a fechada. Finalmente, já cortês:

— Por certo — aceitou secamente. — Vê-la-ei amanhã, Amy.

Dirigiu-se à saída.

— Até à vista... Meredith — disse. — E fechou a porta atrás, com desnecessária violência.

— Que houve com ele? — perguntou Artie Meredith, franzindo as sobrancelhas.

— Ninguém gosta que lhe estraguem um encontro — respondeu ela sorrindo intranquila.

— Este... Bem, sinto-o, mas de certo modo... Ou será que está comprometida com ele?

— Não, naturalmente que não.

— Por que naturalmente? — A jovem mudou de assunto.

— Pensei em escrever-lhe, muitas vezes, para Paris, mas...

Artie Meredith olhou-a, atentamente.

— Não precisa dizer nada, se não quiser. Compreendo por que não escreveu.

— Eu...

— Não precisa dizer nada, eu lhe asseguro. Meu pai... bem, meu pai não teria gostado, isso é tudo.

— Foi tudo tão rápido... A doença de seu pai, sua morte...

— Ao menos — respondeu o primo secamente, — espero que essas duas desgraças não sejam atribuídas a mim. Meu pai suportou perfeitamente minha ausência, sem ficar doente, nem morrer, durante quinze anos.

Ela estava nervosa. Artie tomou-lhe uma das mãos.

— Suponho que ele não falava nada ou quase nada sobre mim, não é certo?

— Sim... Assim era. Acho que não me falou em você sequer duas vezes, nesse tempo todo.

— Compreendo.

A jovem levantou a cabeça.

— Eu... eu estava morando com ele, quando aconteceu tudo. Estava há cinco anos morando em sua casa. Desde que meus pais morreram.

— Morreram seus pa... ? Não sabia.

— Como, não sabia? Mas se George Orwell me disse que o havia encontrado em Paris e contado tudo...

— Céus, é verdade! George. Amy quanto lamento. Agora me lembro que, de fato, me encontrei com George e ele me contou. Deus, como é possível que se esqueçam estas coisas? Bem, isso é algo que já não tem remédio. De maneira que você estava morando com meu pai...

— Sim, mas, naturalmente, suponho que agora... Bem, já mandei transportar minhas coisas para um apartamento.

— Mas por que fez isso?

— Bem, porque... Bem, você podia ter outros projetos... Que sei eu? Pareceu-me o mais certo, simplesmente.

Artie ficou sério.

— Amy, se você não quer morar comigo, é dona de sua vontade, mas sabe que minha casa é sua. Por mim, você revogaria a decisão. Além de tudo, a casa é suficientemente grande para que nela possamos morar os dois, sem nos incomodarmos. Suponho que nela você trabalhava com meu pai.

— Sim.

— Bem, acho que eu precisarei de você, pelo menos, nos primeiros tempos, e, certamente, depois também. Amy, se não lhe importar, eu lhe pediria que ficasse.

— Bem, eu...

— Não falemos mais. E, agora, vou deixá-la. Tenho de apertar mais mãos e ser apresentado ao resto do pessoal. Mas às sete estarei à sua espera. Mr. Wentworth terá de esperar outra ocasião para jantar com a minha prima.

Sorriu-lhe e se dirigiu para a porta. Amy Mordaunt acompanhou-o com os belos olhos.

 

Espere um pouco — disse Amy. — Acho que você está se comportando como uma criança, Luc. Como uma verdadeira criança. Lucius Wentworth enrugou o cenho. Ocupavam uma mesa afastada da pista, no Ninety Club. Ao lado, num tripé, dentro do balde e rodeada de gelo, esfriava uma Pommery.

— Bem, que seja, mas eu não gosto. Não vejo razão para você morar na casa dele.

— Parece-me — disse ela, pacientemente — que lhe expliquei já umas vinte vezes. O trabalho que fazia com meu tio, faço agora com ele.

— Sim, e é a mesma coisa despachar assuntos do escritório com um homem de sessenta e cinco anos que com um tipo de trinta e poucos?

— Luc, o de trinta e poucos também é meu chefe.

— Um era seu tio e outro é seu primo. A mesma coisa. Exatamente igual... Ou você não me quer entender, Amy, ou estou ficando completamente idiota.

Ela falou, então, calculadamente fria:

— Pode escolher a explicação que mais lhe agrade.

Wentworth reconsiderou:

— Ouça, Amy, não quero, de maneira nenhuma, dizer que as coisas não sejam as mesmas com seu primo que com seu tio...

— Então, não dê a entender o contrário.

— Só quero afirmar que não vejo razão para você não dispor de um apartamento somente seu.

Jimmy True ocupou o tablado, secundado pela sua orquestra, e começou a riscar o ambiente com o trombone de vara. O silêncio envolveu a sala inteirinha. Os espectadores sentiram o sangue escorrer mais denso pelas veias. Amy levou o indicador aos lábios, estancando o comentário do acompanhante. A música do negro Jimmy fluía como num templo.

Findo o show, Wentworth retomou o assunto, como se tivesse fechado um parênteses e prosseguisse.

— Luc, por favor, creio que já discutimos isso bastante.

— Concordo — admitiu o engenheiro.

Amy olhou-o, divertida. Lucius Wentworth era um bom engenheiro-chefe. Isto queria dizer que teria de discutir, diariamente, com homens tão bons quanto ele, empenhados em fazer prevalecer, cada qual, seu ponto de vista. Só a energia do engenheiro-chefe podia ordenar o caos, para conseguir uma peça, um mecanismo, os pedidos de clientes, nas condições exigidas. Mas lhe faltava alguma coisa. Algo que ela não sabia exatamente definir, mas que talvez fosse compreensão para os problemas não exatamente técnicos.

Por exemplo, compreensão para os motivos pelos quais ela não estava disposta a abandonar a casa da Avenida De Soto.

— Por que não falamos de outra coisa, Luc? — O engenheiro sorveu o resto do copo de um só trago, justificando a breve pausa.

— Está bem. Sobre que vamos falar? De quê? De que faz dez dias que esse tipo está aqui e nesse tempo só saímos duas vezes? Sobre isso, por exemplo?

Amy ficou séria.

— Não. Outro assunto, Luc. Não esse.

— Um tipo que você viu depois de quinze anos — prosseguiu o engenheiro, revolvendo o punhal na ferida. — Um tipo que chega de repente, lhe sorri magneticamente e você se põe a comer em sua mão... Mas, claro, ele chegou de Paris. Teve lá uma vida boêmia, tra-la-la-la-la, tomou seus pifões, pintou telas que ninguém comprou, internou-se numa clínica de alcoólatras e, por fim, a herança do papai salvou-o de morrer de fome.

Amy apertou os lábios. Os nós dos dedos ficaram brancos em torno do copo.

— Vamos, continue, Luc, está sendo brilhante. Parece um bonito necrológio de última página.

O engenheiro empolgava-se:

— A herança de um papai a quem havia abandonado por quinze anos, porque o menino queria vida artística, porque odiava o cheiro da graxa e o ruído das máquinas... E chega, com alma nova, bem vestido, com o dinheiro da herança, bem alimentado. E assume a direção de uma coisa pela qual não sente o menor afeto, nem a menor experiência. Uma fábrica como a Meredith Ltda., com encomendas do Governo de mais de trinta milhões anuais.

Amy procurou tranquilizar-se.

— Terminou, Luc?

— Não, com os diabos, não terminei! — Os olhos do engenheiro despediam chispas violentas.

— Trinta milhões de dólares em material de precisão para a...

— Cale a boca, você está bêbado. — Wentworth caiu para trás, como se o tivessem esbofeteado.

— Bêbado, eu? Mas se, com os diabos, não bebi mais que...

— Foi uma maneira de fazê-lo parar. Você estava se tornando inconveniente, falando muito alto, Luc. Se continuar assim, sinto muito, mas ficará discursando para as paredes, ou para essa tipinha que está querendo chamar sua atenção com o espelhinho.

Wentworth meteu os dedos pelo colarinho, num gesto de desalento.

— Sinto... sinto, muito, Amy. Acho que perdi as estribeiras.

— Sim. E não toquemos mais no assunto.

O engenheiro estendeu as mãos através da mesa até as da jovem:

— Amy, já lhe pedi dez vezes e se quiser pedirei outras dez: case-se comigo!

Amy Mordaunt sorriu.

— Assim é melhor. Enquanto for pedindo isso, tenho certeza que é o meu Luc de sempre, o meu sir Lancelot.

— Mas eu estou falando sério!

— E eu respondo seriamente, Luc. Não penso casar-me, ainda.

Apertou a mão dele, consolando.

— E agora, Luc, vamos nos divertir como antes, como sempre. Ouça de novo Jimy True. Veja como ele sabe, o grandíssimo suíno, que vai machucar o coração da gente com a sua música... Parece que se baba todo.

Wentworth não tinha vontade nenhuma de ouvir Jimy True. Preferia continuar falando de Artie Meredith e dele mesmo. Mas conhecia a companheira. Se lhe desse na telha, aquela guria tão ardente seria capaz de transformar-se num frígido iceberg. E não valia a pena. Melhor não aborrecê-la.

Sir Lancelot, resignadamente, baixou as armas e suspendeu o elmo para escutar Jimy True com o seu "Sujeita-te, coração".

Desceram do Porsche do engenheiro à porta do casarão de De Soto.

— Posso entrar, um momento? — Perguntou Luc.

— Já é muito tarde.

As outras vezes haviam entrado e tomado o último copo juntos, no enorme refeitório do velho Meredith, sob o olhar fixo e severo dos retratos de família. Ela nunca dissera que era muito tarde, ainda quando o relógio estivesse beirando as duas.

Wentworth acusou o golpe.

— Até amanhã — disse secamente e arrancou com o carro.

Dobrou a esquina da rua Marsh quase sobre duas rodas e se perdeu na distância.

Com um ligeiro suspiro de enfado Amy subiu os cinco degraus, abriu a porta e acendeu as luzes do hall.

Tirou a capa de pele e pendurou. O velho criado negro, já estava dormindo, embora deixasse para ela alguma coisa preparada, no caso de fome. Mas o jantar com Luc fora suficiente.

Acendeu a luz da escada e apagou a do hall. Então, viu por debaixo da porta do antigo gabinete do tio, um filete de luz.

Caminhando pelo grosso tapete, dirigiu-se até a porta do gabinete e bateu duas vezes.

— Quem é? — perguntou uma voz?

— Sou eu, Amy.

— Ah, entre.

A jovem abriu a porta e entrou. Era uma sala enorme, com grandes estantes que iam até o teto, repletas de livros que ninguém nunca se dera ao trabalho de folhear.

Uma grande secretária sobre o foco de um quebra-luz, do outro lado, valia como um trono para Artie Meredith.

— Olá, Artie — disse Amy. — Vi a luz e pensei...

Sobre a mesa, uma garrafa de uísque, um copo e alguns papéis. As palavras de Luc voltaram fielmente à memória da moça. "Numa clínica de alcoólatras..." Sentiu um misto de revolta e pena.

— Entre, entre — disse Artie. Levantara-se, olhando a moça.

— É muito tarde? — perguntou. — Estava trabalhando e... nem me dei conta das horas.

— Uma e dez — respondeu ela. — Por que não vai pra cama, Art?

— Agora mesmo. Mas antes venha me fazer um pouco de companhia. Sente-se aí, nessa poltrona.

A jovem obedeceu. Ele preparou um uísque e lhe ofereceu.

"Pelo menos — pensou Amy — suporta bem a bebida. Não parece embriagado."

Artie não se cansava de contemplá-la. Colocara-se em contraluz, o que fazia com que ela não o enxergasse claramente.

— Passeando? — perguntou ele.

— Oh! Não. De vez em quando, saio com Luc... com Wentworth.

— Excelente rapaz. E muito competente, segundo me disseram.

— Sim.

Houve uma pausa.

— Bem disse ele, bebendo o seu uísque. — Acho que o melhor mesmo é eu ir para a cama.

— Não quer um cigarro?

— Obrigado.

A jovem dirigiu um olhar à mesa. Os papéis pareciam em branco, pelo menos do ponto em que ela os via.

— Que está fazendo, Art?

— Ora, coisas sem importância. Preparando algumas sugestões para a reunião de diretoria...

Fez um gesto com a mão. Depois apontou para a garrafa.

— Outro?

— Não! Chega por hoje. Você não tem horário para o escritório, mas eu preciso estar lá às oito e meia. Ganho para isso.

— E para alguma coisa mais.

Ele havia dado volta à mesa e se aproximava da poltrona onde ela estava sentada. E ela embaraçou-se, ligeiramente.

— Se isso a preocupa, pode mudar a hora de chegada.

— Não é preciso, obrigada. Seu pai...

— Ah, sim, meu pai. Não é a primeira vez que ouço essas palavras, como uma ladainha. "Seu pai, Mr. Meredith..." "O velho Mr. Meredith..." Meu pai fazia muita coisa de uma maneira que, ao que parece, não é exatamente a minha, não acha?

— Eu não disse... — ela começou a dizer, levantando-se da poltrona.

— Não, não precisa mover-se. O que eu queria explicar é que, no momento, parece que sou eu quem ocupa a cadeira presidencial, não meu pai. Suponho que essas vozes, levemente acusadoras, desaparecerão se lhes dermos um pouco de tempo. Mas, em todo o caso...

Ela esperou que ele terminasse a frase. E ele sublinhou bem as palavras:

— ...em todo o caso, provando a eles quem é que manda realmente na Meredith, será o suficiente.

— Sim, suponho que sim — respondeu ela, debilmente. — Se me inclui entre essas pessoas...

Artie começou a rir.

— Nem fale nisso, prima Amy. Você está bem em sua função de secretária. Ocupa-a com grande eficiência e não menor decoro. Vejamos...

Vire o rosto para a direita.

Ela obedeceu, quase instintivamente.

— Sabe que tem um perfil muito correto? Se um dia eu lhe pedir que pose um pouco para mim, me negaria?

— Bem...

— Não me diga nada agora. Gostaria de pintá-la. Era isso que eu fazia em Paris, você sabe.

— Sim.

A mão dele pousou no braço dela.

— Isso e... beber. Não pense que não sei quem me tem censurado em termos velados.

Os olhos de Amy se fixaram nos pulsos do homem. De repente, a moça ficou rígida.

— Que está acontecendo, Amy? — perguntou Artie. Embora estivesse muito perto, Amy não podia ver seus olhos, por causa da luz.

— Art, é essa sua...? Sim, claro que é. Mas quando você se feriu com a foice, em Meredith Farm, você...

Artie levantou a mão.

Houve um curto, curtíssimo silêncio.

— ...aquela cicatriz...

— Ah, Amy. Sabe que em Paris há os melhores cirurgiões plásticos. Fiz que a tirassem. Creia ou não, aquela cicatriz era um embaraço quando pintava ao ar livre. Foi tudo muito fácil.

Amy pôs-se em pé.

— Bem, vou deitar-me — disse, hesitando.

— Claro, Amy. E não pense que eu irei atrasar minha ida ao escritório. Levá-la-ei no carro e chegará na hora. Até amanhã, Amy.

— Até amanhã, Art.

A jovem saiu do gabinete. Com uma ruga de preocupação.

 

— Quem é? — perguntou Lomax. O agente Steedman tapou o fone. — O general Danielovic, senhor. Quer falar com o senhor, quando puder recebê-lo. O inspetor Lomax atendeu.

— Fala Lomax, general. Desejava ver-me?

— Sim, inspetor. Com muito prazer. Se não incomodá-lo, gostaria de ter uma entrevista com o senhor o quanto antes. Claro que se estiver ocupado...

— Não, não muito, pelo menos. Quer vir a meu gabinete, ou prefere que vá ao seu?

— Eu mesmo irei. Dentro de meia hora, se não incomodo.

Quando desligou, Lomax fez um sinal para o seu subordinado.

— Traga-me o anuário militar. Quero saber quem é o general Danielovic.

Trouxeram o livro, uma edição de apenas dois meses. No FBI estes detalhes eram cuidados com minúcias.

— Aqui está. Danielovic, John T. Não dá seu destino nem outro dado qualquer, além de nos assegurar que tem cinquenta anos. Duas estrelas. Bem, Carmody, esperemos o general.

Danielovic era um homem alto, de nariz adunco e pele repuxada nas faces. Estava à paisana. Depois de apertar a mão de Lomax, mostrou sua identidade militar.

— Queira sentar-se, general — disse o inspetor. — Em que posso servi-lo?

— Verá, inspetor — disse o outro cuidadosamente, como se escolhesse as palavras. — A missão que me traz aqui não é estranha. Pelo menos, já tenho intervindo em outras semelhantes, noutros pontos do país. Um cigarro?

Lomax aceitou. O general contemplou o isqueiro como se fosse a primeira vez que o via. Depois, pareceu decidir-se.

— Meu nome não lhe dirá nada, inspetor.

— Consultei o anuário militar. Gostamos de estar informados — respondeu Lomax, com um gesto de desculpa.

— Terá encontrado muito pouco nele. Eu e outros como eu não ocupamos mais que duas linhas. É... é necessário, inspetor.

— Compreendo — respondeu o homem do FBI.

— Trata-se do seguinte: Eu me ocupo de investigações.

— Pentágono S.S.? — perguntou Lomax, telegraficamente.

— Não, de certo modo, não. Meus trabalhos de investigação são outros. Na realidade, mais que investigação, trata-se de controle de material secreto para as forças de terra. Meu departamento faz os pedidos às fábricas e estas os executam segundo nossas ordens. Naturalmente, já compreendeu que é... secreto.

— Compreendo — repetiu Lomax, que já se impacientava com tantos preâmbulos.

Danielovic olhou-o agudamente.

— Pelo fato de nossos pedidos serem secretos, queremos que as fábricas que se ocupam deles trabalhem também com igual cautela. Quero dizer, não queremos que haja infiltrações das fábricas para o exterior.

— Compreendo. Bem, general, creio que o senhor deseja chegar a algum lugar. Que lhe parece se entrássemos de uma vez no assunto? Têm se registrado filtrações de algum lado?

— Não, não se trata disso. Absolutamente.

— Então...

Lomax estava começando a pensar que o general dispunha de muito tempo. Mas ele não.

— Trata-se, inspetor, de uma das fábricas que recebe importantes pedidos nossos com destino a... Bem, isso não vem ao caso, mas se quiser podemos dar-lhe informes completos. Essa fábrica, repito, mudou de presidente.

— Essa fábrica é daqui?

— Sim, senhor.

— Bem. E esse novo presidente... parece suspeito?

— Não, mas não podemos arriscar-nos com os materiais que temos pedido. São muito importantes... inspetor. Muito!

— Os senhores têm seus próprios serviços de informação, general.

— Sim, temos, mas neste caso desejaríamos contar com a colaboração dos senhores. Podem fazê-lo mais facilmente. Além do mais — acrescentou com um pálido sorriso — a coisa não é mais que um assunto de rotina. Os senhores estão mais aparelhados do que nós para esse tipo de investigação.

— Sim...

Lomax ficou olhando a mesa, resolvendo. Depois, levantou a vista.

— Sim, por certo, general. Podemos atender. Mas os senhores terão de pedir por escrito. São os trâmites legais.

— Eu sei, eu sei. Receberá a petição, devidamente formalizada, dentro de dois dias, talvez menos. Mas se até então puderem adiantar algo na investigação, consideraríamos isso esplêndido. — Lomax apertou uma campainha.

— Mande um estenógrafo — disse.

Um momento, depois um agente com a máquina taquigráfica sentou-se num canto e colocou as mãos nas teclas.

Lomax ditou-lhe o princípio: nome dos entrevistados e respectivos cargos, ressaltando que a entrevista obedecera a desejos do general. Este concordou. Por fim Lomax se voltou para ele.

— Nome da fábrica, senhor?

— A Meredith Ltda. Laminação de aços em vanádio e cromo. E... outras coisas mais.

Lomax sorriu.

— Entendido. Não seremos muito exigentes quando vier a petição formal. Quem era o antigo presidente?

— Arthur L. Meredith — respondeu o militar, instantaneamente.

— E o novo?

— Arthur C. Meredith.

— Seu filho?

— Sim.

Lomax olhou para o estenógrafo.

— Parece... parece normal nessas sociedades, não?

— Sim.

— Nesse caso... Não quero prendê-lo mais, general, mas...

— Verá, inspetor. O caso é que, segundo nossas notícias, Meredith Jr. esteve fora dos Estados Unidos muito tempo. O pai e o filho não se davam muito bem, ao que parece. O rapaz queria ser artista e viajou para a Europa. O pai queria pô-lo no negócio, mas o rapaz se negou, terminantemente. Isso levou-os a romper relações.

— Por completo?

— Segundo minhas notícias, sim.

— Bem.

— E, agora, o velho Meredith morreu há dois meses. Seus testamenteiros abriram o testamento. Deixava todas as ações da sociedade ao filho. Os advogados o procuraram. Chegou há dias para assumir a presidência.

— Entendo. E os senhores querem que investiguemos os antecedentes do jovem Meredith, não é isso?

— Sim. É isso, exatamente, o que desejamos. Supomos que isso que não custará muito trabalho aos senhores.

— Assim é.

O general Danielovic levantou-se e estendeu a mão. Lomax a estreitou.

— Fique tranquilo, general. Envie-nos quanto antes a petição. De nossa parte, começaremos hoje mesmo.

— De acordo e obrigado, inspetor.

Quando o general saiu, Lomax começou a dar as ordens.

— Telegrafem à Polícia de Segurança francesa — disse ao ajudante. — Que investiguem tudo que for possível acerca de Arthur Meredith. Vou lançar uma vista de olhos ao jovem presidente da Meredith. Onde é isso?

O ajudante folheou um livro e escreveu os dados num papel.

— Vamos, lá.

Chegava-se aos escritórios da Meredith, atravessando um bem cuidado jardim com sebes e canteiros de flores. As fábricas ficavam por trás do edifício e ocupavam enorme extensão de terreno. Viam-se as chaminés que soltavam a fumaça a cem jardas para o alto, os grandes prédios com as instalações de laminação e havia um ramal de estrada de ferro que unia a indústria à estação.

Lomax e Steedman atravessaram o jardim de carro e pararam diante da grande entrada de vidro. O porteiro-chefe os enviou a uma secretaria onde trabalhavam um homem e três mulheres e, por fim, chegaram à secretária particular do presidente.

Amy Mordaunt levantou-se ao vê-los entrar. Lomax tinha quarenta e cinco anos e era casado há quinze. Não obstante, conteve a respiração ao observar a beleza da moça, delicadamente destacada contra o fundo cinzento pérola do gabinete.

— Desejo ver Mister Meredith — disse Lomax, apresentando um cartão de visita à jovem.

— Mister Meredith está ocupado neste momento, cavalheiros — disse. — Mas se esperarem um instante, talvez...

— Esperaremos, se não for muito tempo.

Um homem alto, de grandes mãos ossudas, havia entrado no gabinete. Sua camisa era de qualidade e trazia um overall que a ocultava quase por completo. Ficou de pé, observando a cena.

— O chefe não está? — perguntou.

— Está ocupado — respondeu a secretária. — Por quê? Alguma coisa não está bem, Luc?

— Não, não, na Meredith tudo anda bem — respondeu o homem, encolhendo os ombros, com um gesto um tanto impaciente. Olhou para os federais sentados em frente. Aproximou-se da jovem e perguntou algo, em voz baixa. Ela respondeu no mesmo tom. Depois, ligou o intercomunicador:

— Mister Meredith? — perguntou formalmente. — Dois cavalheiros desejam vê-lo... Sim, senhor.

Desligou e informou:

— Podem entrar.

Meredith estava em sua grande mesa de gabinete e examinava uma planta. Levantou a vista. Lomax mostrou-lhe a carteira e a placa e o homem assentiu, com um breve sorriso.

— À sua disposição, cavalheiros.

— Mister Meredith — disse Lomax, aceitando um cigarro. — Não será segredo para o senhor que todas aquelas indústrias que trabalham para o Governo são objeto de uma certa atenção de nossa parte.

— Inteirei-me disso quando assumi o cargo de presidente da Meredith.

— Portanto, desejaríamos fazer-lhe algumas perguntas. Formais, por certo.

— Podem fazê-las, cavalheiros.

Lomax observava o homem que continuava sorrindo cortesmente. Não parecia, de modo algum, constrangido, como ocorre a muitas pessoas quando têm de lidar com a Polícia.

— O senhor viveu na Europa muitos anos, não é assim?

— Sim. Em Paris, sobretudo, mas também em Roma e em Londres. E uma curta estada em Madri, três ou quatro meses.

— Pode facilitar-nos sua residência em Paris?

— Pois, não. Em Poissy, Hotel des Belgas, na margem esquerda.

Lomax tomou uma rápida anotação.

— Negócios? — perguntou.

— Não, inspetor. Pintura. — Houve breve pausa.

— Suponho que investigarão todos esses dados, não é assim?

— Questão de rotina mister Meredith.

— Neste caso devo dizer que minha vida ali não foi nada parecida à de um respeitável homem de negócios. Dediquei-me ao que então me interessava acima de tudo: minha pintura. Não me preocupei com o restante.

— Entendo — respondeu Lomax com tato. — Tem alguma coisa a declarar que possa ser de interesse?

Arthur Meredith semicerrou os olhos.

— Nunca tive ligação alguma com comunistas, embora haja conhecido alguns. Ninguém em Paris terá deixado de conhecer algum comunista, em alguma ocasião.

— Compreendo — respondeu Lomax. — Espero que entenda de que essa é nossa obrigação. Sua indústria executa trabalhos especiais por conta do Pentágono, não é assim?

— Sim. E por muitos milhões de dólares por ano.

Lomax lançou um olhar para os papéis sobre a mesa. Não era engenheiro e nada entendeu. Além disso, estavam em posição difícil.

— Bem, mister Meredith — disse, levantando-se. — Só esteve nesse endereço no tempo em que viveu em Paris?

— Não.

Arthur Meredith deu três outros endereços que Lomax apontou. Depois, estreitou-lhe a mão.

— A sua disposição, cavalheiros.

Saíram. O homem do overall, que a secretária havia chamado Luc, dirigiu-se à porta e abriu sem formalismos.

Os dois agentes saíram para o jardim e subiram no carro.

— Bem, Steedman, já sabe. Que a Polícia francesa solte tudo quanto sabe sobre Meredith. Procure fazer com que seja da maior urgência. E... destaque um homem para fazer algumas perguntas discretas entre o pessoal dos escritórios.

Steedman riu, divertido.

— Acho que eu mesmo me poderia ocupar disso, inspetor.

— Que lhe parece? A secretária?

— Poderia ser. Se eu tivesse uma secretária assim não ficaria separado por uma porta. Procuraria arranjar-lhe uma acomodação mais conveniente ...

— Nos joelhos, por exemplo, não?

Lomax acendeu um cigarro e pôs o carro em marcha.

— E se eu fosse a secretária de um homem como esse, procuraria também fazer desaparecer a porta ou, pelo menos, transpassá-la.

— Inspetor — protestou Steedman, escandalizado.

— Vamos.

 

"Da Segurança Nacional Francesa ao FBI. Referência Sr. Arthur Meredith, pelo qual os senhores se interessam. Um homem assim chamado morou nos lugares indicados pelos senhores. Estudou na Escola de Pintura de M. Lafargue durante dois anos. Segundo nos comunicaram alguns comerciantes, seus quadros se vendiam pouco, mas ele não se ocupou com outra coisa além da pintura. Homem muito conhecido na margem esquerda. Grande bebedor. Em duas ocasiões, teve de ser hospitalizado em uma clínica de alcoólatras: a primeira, em fevereiro de 1951, e a segunda, em 1960. Há um mês saiu da França rumo aos Estados Unidos. Se interessar aos senhores, poderemos enviar ampliação do extrato. Saudações.

Emmanuel Blague, inspetor."

 

Lucros Wentworth, engenheiro-chefe da Meredith Ltd., saiu do gabinete do presidente limpando as mãos no overall que costumava usar durante as horas em que passava vigiando o trabalho na indústria.

— Vá para o diabo! — exclamou.

— Refere-se a mim? — perguntou Amy Mordaunt, levantando a cabeça do caderno de taquigrafia.

— Claro que não, bobinha! Refiro-me a esse cara aí dentro.

— Que é, se não estou enganada, o dono da maior parte disto tudo — respondeu a jovem, franzindo as bem cuidadas sobrancelhas.

— Que me importa!

Apoiou-se à mesa da moça com ambas as mãos.

— Sabe o que ele acaba de me dizer, sabe? — Amy apontou com o queixo o dita fone que comunicava com o gabinete do primo.

— Costumo tê-lo fechado, quando o chefe está com visita. Não posso saber, Luc.

— Sei disso. Você é a secretária perfeita... Mas isso não vem ao caso. O sabichão me garantiu que o trabalho programado poderia ser concluído um mês antes do prazo estipulado. E vem dizer isso a mim!

Pareceu faltar-lhe o fôlego. Parou para respirar.

— Isso — acrescentou veemente — jamais me aconteceu no tempo do velho. E ele era um engenheiro, enquanto que esse maldito fedelho...

A jovem acendeu um cigarro e lhe passou. Ele tragou com ânsia. Amy dirigiu um olhar oblíquo à porta. Seu primo tinha o desconcertante costume de aparecer quando menos se esperava.

— Acalme-se, Luc. Você sabe que todo chefe novo...

— Não se trata disso — respondeu. — Estou farto, Amy. Por qualquer coisa, deixarei o emprego. Não iria morrer de fome. A Morris Steel está precisando de um engenheiro-chefe e me fez propostas veladas.

— Por que não vai, então? — Ele abriu muito os olhos.

— Por que não me...? E é você quem pergunta, Amy? Não vou porque...

Ergueu-se. Parecia ligeiramente mais calmo.

— Não quero perder a paciência com você, Amy. Mas se você deixasse essa mesa e se decidisse a casar comigo, asseguro-lhe que não vacilaria um minuto. Mandaria Meredith para o inferno!

Ela deixou cair o lápis com certa violência sobre a mesa.

— Basta, Luc. Já lhe disse muitas vezes que não desejo casar-me ainda, nem com você nem com nenhum outro. Gosto da vida que levo, da independência que tenho e que não quero sacrificar tão cedo.

— Tudo tolices — resmungou o engenheiro. — O que acontece é que você não me quer.

— E parece-lhe pouca razão para não me casar com você?

— Mas é que... Amy, eu lhe garanto que você acabaria me amando, se se decidisse. Faria todo o possível para torná-la feliz, eu lhe asseguro.

— Por favor, Luc, por favor! Não é este o lugar...

O homem atirou ao chão a ponta do cigarro e amassou com o pé.

— Vontade tenho eu de ir embora — disse, nervosamente. — Veríamos então como Mister Sabe-tudo iria se arranjar para terminar esse trabalho um mês antes do programado.

— Não poderia estar falando a sério — disse a jovem.

— Pois parecia. Outro dia, pôs-se junto à máquina de laminado número 3, a "Grande Betty", e começou a fazer perguntas a George. Já sabe como George é. Saiu há pouco da escola e fica cheio de dedos.

— Que tipo de pergunta?

— Acerca de tudo. Da margem de perda por fricção, da tensão de areação... de tudo.

Amy baixou a vista para o caderno.

— Só isso?

Wentworth olhou-a, intrigado.

— Parece-lhe pouco? Perguntou-lhe os índices de resistência...

Tornou a interromper-se. Depois, sacudiu a cabeça.

— Não pode ter aprendido tão depressa — disse, como se lhe ocorresse pela primeira vez. — Vem ruminando isso durante este mês e meio...

Acendeu outro cigarro.

— Nem assim! Isso não se aprende de uma hora para outra.

— Responda-me uma coisa, Luc. O que andou perguntando a George eram as bobagens de um amador a querer saber tudo, ou não?

— Não, o caso é que eram perguntas de um homem que entende do assunto, no caso de se vir às voltas com um processo de fabricação. Mas isso é absurdo. Ele é um pintor pau-d'água, não um engenheiro.

— Não, claro — respondeu ela. — E, agora, Luc, deixe-me trabalhar. Tenho muito serviço. Por favor.

O engenheiro não se incomodou com o "bilhete azul." Já se afastava, a caminho da porta.

O dita fone zumbiu suavemente, na mesa da moça:

— Venha cá um momento, Amy, por obséquio. — O primo estava de pé, atrás da mesa. A jovem fitou-o. A luz da grande janela incidia-lhe no rosto, completamente. A secretária imaginou inconscientemente que o cabelo do chefe tinha o comprimento exato para não fazê-lo parecer nem um rapazote nem um... boêmio.

Boêmio? Que havia dito Wentworth? Um pintor pau-d'água?

— Queria que mandasse me trazer a pasta das pranchas de cinquenta polegadas. Quero ver alguns detalhes do pedido.

Artie disse isso sorrindo. Seu sorriso era atraente.

"Este homem — pensou Amy —- esteve duas vezes num hospital, à beira do delirium tremens."

Nada naquele rosto fazia imaginar isso. Era liso, bem barbeado de traços firmes. Quando olhava, não era com olhar fugidio do alcoólatra, mas o olhar firme do homem que sabe conter seus impulsos.

Ela estava prestes a fazer uma pergunta mas reprimiu. Voltou ao seu gabinete e ordenou que lhe trouxessem a volumosa pasta que continha o pedido do Pentágono.

— Obrigado — disse ele, abrindo os documentos sobre a mesa.

— Posso ajudá-lo? — perguntou Amy. — Lembro-me perfeitamente quando nos fizeram o pedido. Seu pai e eu estivemos estudando isso tudo, muitas noites, com os engenheiros.

— Não, obrigado. Só quero lançar uma vista nas datas máximas de entrega.

"Para isso não era preciso pedir a pasta — pensou ela ligeiramente despeitada. — Bastava-lhe perguntar a mim ou a Luc."

Caminhou para a saída, esperando que seu primo a chamasse de novo, mas isso não aconteceu.

Era quase hora de encerrar o expediente, quatro e meia, quando a porta se abriu. Ela estava retocando os lábios, usando o espelhinho da bolsa. Através dele, viu como o primo se detinha no umbral e a contemplava. Durante quase um minuto, fingiu não notar. O olhar do primo era estranho. Pálpebras quase baixadas e ligeiras rugas nas comissuras dos olhos... Isso lhe dava um aspecto brandamente... exótico. Como certas expressões de John Wayne. Lembrava-lhe muito o ator.

Virou-se e num momento pensou que tudo aquilo devia ser fruto da imaginação. A expressão de Artie era absolutamente normal.

— Terminou? — perguntou ele.

— Agora mesmo ia passar para recolher a pasta...

— Deixe estar. Amanhã iremos devolvê-la ao arquivo.

— Bem... — ela vacilou. — Normalmente, seu pai não queria que essas coisas ficassem num lugar que não fosse o arquivo, sob a vigilância dos guardas noturnos.

— Meu pai, não é? É curioso notar como somos diferentes, eu e meu pai, algumas vezes.

Ela riu, nervosa.

— Não quis dizer que você...

— Não, já sei que não quis dizer, que eu... etcétera. Amy, tem algum projeto para esta tarde?

— Bem... Luc me disse...

— Esqueça-se desse asno presunçoso, se é somente um encontro com ele.

— Mas... — ela indignou-se. — Luc não é nenhum asno presunçoso! É um bom engenheiro. Um bom engenheiro-chefe, aliás!

— Deveras? Nunca o duvidei. Mas, no que diz respeito a você, é um asno presunçoso e nada mais. Acaso não percebeu que você não é mulher para ele?

— Artie, isso são coisas...

— Suas? De acordo. Bem, o que lhe havia perguntado é se tem algo melhor a fazer esta tarde.

Ela queria responder-lhe que sairia com Luc apesar de tudo, mas de novo viu aquela expressão nos olhos dele. E lhe pareceu que ele lia o seu pensamento.

— Bem, eu...

— De acordo, vamos jantar.

Subitamente, sem que nada fizesse suspeitar, Artie levantou os braços em cruz e se espreguiçou. Foi um gesto voluptuoso, o gesto do homem que esteve muito tempo numa mesma posição e sem inibição alguma se espreguiça.

— Tenho vontade de beber alguma coisa. Alguma coisa... forte. Você não?

— Bem, eu...

— Então termine a maquilagem e me espere no carro.

Nem sequer o havia consultado: era uma ordem. Novamente, Amy pensou em lhe dizer que não queria sair com ele, que tinha a tarde ocupada, que iria com Luc. Mas o eterno demônio feminino soprou-lhe à orelha:

"Se Luc só sabe suplicar, pior para ele" — pensou com certa maldade.

— Irei já — disse.

No "Crillon", tomaram o primeiro martini. No "Gaiety", o segundo. E no "Oliverio's", o terceiro.

— É melhor pararmos — disse ela, enquanto trincava a cebolinha espetada no mesmo palito da azeitona. — Vamos indo depressa demais.

— Qual é seu ponto máximo, prima? — perguntou Artie. A bebida parecia não lhe produzir efeito algum. Seu rosto continuava igualmente pálido e seus olhos vivos.

— Bem... penso que uns quatro ou cinco, antes de comer... Não sei bem.

— Boa ocasião para experimentar. Outro — pediu ao garçom.

— Quer embriagar-me? Espere pelo jantar. Jantaram no "Richmond" e depois tornaram a beber, dessa vez no "Ninety".

Apesar do jantar, Amy compreendeu que continuavam indo depressa demais.

Foi enquanto dançavam que formulou a pergunta. Não a teria feito se não fossem os martinis. A bebidinha desatou-lhe a língua na conta.

— Creio que não deveria beber mais... Agora que...

— Agora, quê? — respondeu ele. Dançavam com o rosto separado. Nem uma vez ele tentou aproximar-se além do limite.

— Agora que parece... Bom, Artie, talvez seja meter-me no que não me diz respeito... Certamente assim é, mas...

— Refere-se ao que aconteceu em Paris? — perguntou ele, olhando-a de um modo que a Amy pareceu um tanto zombeteiro.

— Bem...

— Não há perigo. Curaram-me, não sabia?

— Perdoe-me.

— Não há nada a perdoar, prima. O álcool não me mandará de novo para um hospital.

— Não queria chegar a tanto, Artie. Desculpe-me. Eu... acho que estou falando como uma daquelas senhoras do Exército da Salvação.

Terminaram a dança. Na mesa, Artie tomou-lhe mão.

— Vamos, esqueça-se de coisas passadas. Neste momento, estamos nos divertindo. Ou não?

— Sim, certamente que sim.

Diante dela o pulso do homem, aquele em que uma foice, certa vez, deixara uma feia cicatriz, mas que agora se apresentava aos seus olhos perfeitamente limpo. Ele acompanhou-lhe o olhar.

— Amy — disse. Ela sobressaltou-se.

— Que é?

— Esse Wentworth, pediu que você se casasse com ele?

— Bem, sim. Em várias ocasiões.

— Não é homem para você.

A Amy desagradava o assunto. Não queria que a figura de Luc fosse evocada nesse momento. E os martinis fizeram o resto.

— Artie, você abandonou a pintura por completo?

—- Por completo. Agora me dedico a ganhar dinheiro. Durante muitos anos precisei de prata, anos demais. Quero recuperar o tempo perdido.

— Mas... você tinha vocação. Seu pai me falou. Não com essas palavras, claro.

Sorriu de leve.

— Dizia que a maldita "mania de pinta monos" deitara a perder um bom futuro presidente e... Bem, acrescentava outras coisas mais que eu não quero repetir.

Ele acendeu um cigarro. Contemplou-a numa nuvem azul.

— Tive vocação, sim. Mas aquilo passou.

— Não sente desejo, em alguma hora livre... de pegar outra vez nos pincéis? — Não sei, mas isso deve ser algo assim como...

— Como o álcool?

Tinha o desconcertante e, de certo modo, irritante costume de concluir as suas frases.

— Não quis dizer isso. Imagino os artistas como seres que vivem num mundo à parte, a quem as coisas... práticas, não interessam. Talvez me engane, mas essa é minha maneira de pensar.

Ele calou-se.

— Você vendia muitos quadros?

— Poucos.

— Se o assunto lhe desagrada, não toquemos mais nisso...

— Não desagrada nem agrada. Aquilo passou, simplesmente.

De repente, Amy sentiu que o joelho dele, por baixo da mesa, procurava o seu. Afastou-o, discretamente.

— Amanhã temos de levantar cedo — disse, formalmente.

Ele acendeu um cigarro e contemplou-a através da fumaça...

— Sim, mas ainda não é hora. A não ser que você queira ir já pra casa.

— Bem...

Ele se levantou e fez um sinal ao garçom. Amy não havia desejado que a coisa fosse tão rápida. Depois de tudo, pensou um pouco furiosa, uma mulher tem o direito de repelir um avanço um pouco mais violento, sem que isso signifique, necessariamente, que esteja repelindo uma situação.

— Vamos embora — disse ele, secamente.

Entraram no carro e durante o caminho nenhum deles falou. Quando chegaram, a irritação dela ia num crescendo.

— Artie, acho que você não se zangaria se eu procurasse outro lugar para morar.

Ele acendeu as luzes do hall e tornou a olhá-la.

— Pensei que já havíamos resolvido isso.

— Bem... não de todo. Acho que seria melhor para os dois.

— Vamos tomar o último.

— Não tenho vontade...

Mas acompanhou-o até o gabinete. A temperatura estava um tanto alta. Artie tirou o paletó do smoking. Amy observou as costas vigorosas, largas, quase quadradas, que desciam em trapézio, em linhas de atleta perfeito.

"Parece impossível — pensou vagamente. — Não pode ser. Esse corpo não foi arruinado pelo álcool nem por... outras coisas."

— Bebe? — perguntou ele, servindo um dedo de uísque num copo.

— Não, obrigada.

— Então, suponho que não se importará que eu me sirva...

Com o copo na mão virou-se e ficou em frente.

— Como quiser, Amy. Não quero obrigá-la. Se não está à vontade aqui, é só dizer.

Dirigiu-se à janela e correu a cortina para olhar para fora. A jovem examinou-lhe de novo as formas vigorosas, as costas, a nuca. Aproximou-se um pouco.

Lembrava-se como se estivesse vendo, na tarde em que Artie e ela, quando tinham doze anos, subiram ao Nevado Peak. Artie fora o caminho todo na frente e Amy teve ocasião de notar como lhe crescia o cabelo na parte mais baixa da nuca. Redondo, como se o cabeleireiro o tivesse cortado daquela forma.

Mas nenhum cabeleireiro teria cortado assim. Era, simplesmente, que lhe crescia daquela maneira.

E agora, diante dela, via a nuca firme, quase reta, de Artie. O cabelo em forma de bico. Amy engoliu em seco.

Artie virou-se de repente. Seus olhos de novo com aquela forma triangular.

— E então, prima?

— Hein? Ficarei, se é que não o incomodo.

— Incomodar-me?

Artie começou a rir, deu dois passos na direção dela e, com movimentos suaves e precisos, sem desperdiçar energia, beijou-a nos lábios. Foi tudo tão rápido que ela nem pôde sequer recuar.

— Ande, vá para a cama. Amanhã, preciso de minha secretária, em seu posto, na hora exata.

Disse isso, com tapinha nas costas. Como quem despede uma criança que está começando a aborrecer.

Amy não reagiu até que chegou no quarto. Então, jogou a bolsa sobre a cama, furiosa.

— Esse maldito... — começou em voz alta. Não sabia se devia rir ou chorar. Primeiro, aquele beijo, e depois de beijá-la... a ela!... mandara-a embora.

Fazendo um esforço, riu-se, enquanto começava a tirar o vestido, para meter-se no morno banho noturno. Poucos homens o fariam, mas este havia feito. Nem sequer havia tentado tirar partido da vitória psicológica que obtivera com o beijo para... bem, para passar à linguagem direta e expressiva das mãos.

Não, o que tinha feito era dar-lhe um tapinha e expulsá-la do gabinete.

Então, lembrou-se da forma como crescia o cabelo na nuca de Artie e lhe passou a vontade de rir. A nuca... aquele corpo forte, vigoroso (ela não podia duvidar disso, pois se havia estreitado nele enquanto dançavam), a ausência da cicatriz... Artie estava muito mudado.

Muito mudado, não é verdade, Amy?

 

— É isso, general — disse Lomax, acamando o bojo do cachimbo. — Tais são os nossos informes. Dentro de nosso alcance, são exatos. Os senhores verão o que devem fazer.

— Muito agradecido... estamos muito agradecidos, inspetor — respondeu o general, pondo-se em pé e estendendo a mão. — Como verá, era só questão de rotina.

— Nada mais? — perguntou Lomax, sorrindo.

— Bem... — o general observou-o com aquele seu olhar agudo. — Nada mais, que eu saiba. Por quê?

— Verá, general. Na realidade, nosso trabalho terminou quando lhe proporcionamos umas provas de que necessitava, mas já sabe o que acontece com todas as polícias: uma vez de olho, é difícil abandonar a peça. — Encolheu os ombros.

— Foi, talvez, porque lhe pareceu estranho que um homem como Meredith Jr. ocupasse o cargo de presidente de uma indústria tão importante como essa?

O general vacilou.

— Bem... verá. Não preciso dizer-lhe a importância que têm os trabalhos que o Pentágono encomendou. Não posso entrar em detalhes mas me acreditará se lhe disser que são muito importantes. Naturalmente teríamos preferido ver, à testa da Meredith, um homem mais... velho, como o pai do atual, mas as coisas são assim e não está em nossas mãos mudá-las.

— Sim. Teriam preferido que a presidência da Meredith estivesse em outras mãos que não as de um antigo alcoólatra e um homem que jamais se ocupou da indústria.

— Bem, já que não há nenhum advogado perto que me possa acionar, direi que sim.

— Eu sou advogado. Mas não penso em acioná-lo.

Os dois riram.

— Suponho — disse, depois, o general — que seu trabalho na verdade terminou e isso de que quando a polícia está de olho, etc., seja uma brincadeira.

— Fizemos umas tantas investigações secretas de nossa parte. Nada mais. Praticamente, o caso não é de nossa alçada.

— Bem, inspetor, tive muito prazer em conhecê-lo.

Lomax dirigiu-se ao companheiro:

— Bem, rapaz. Assunto liquidado. Sinto por você. Acho que a secretária de Meredith...

— Ora! Por certo. Mas que é isso tão importante que a indústria está fazendo para o Pentágono?

Lomax olhou uns papéis.

— Sou advogado, não engenheiro, mas parece... Aqui está. Proteção interior horizontal e vertical de certos departamentos em submarinos do tipo "President". A palavra certa aparece sublinhada.

— "President"... Mr. Lomax, esses são submarinos ...

— Sim, rapaz, ao que parece, os que se começaram a construir depois do naufrágio do "Threser": Atômicos. Suponho que certos departamentos signifiquem... Bem, não somos engenheiros nem o assunto nos diz respeito. Então, vamos nos dedicar ao caso Edgware.

 

Wentworth, com seu overall branco e máscara nos olhos, contemplava fixamente a massa incandescente, de um vermelho esbranquiçado, que saía pela abertura do forno. Vários operários ao lado, armados de enormes pinças, esperavam o momento em que a massa deslizasse sobre o caminho-sem-fim para conduzi-la até o gigantesco martelo vertical.

Havia outra pessoa atrás. Vestido com traje de amianto e com máscara azul, Meredith acompanhava a lenta saída da massa.

Wentworth sentiu nele, quase como algo físico, o olhar do presidente. E se irritou. O velho Meredith — afinal de contas, era um engenheiro — que observasse os trabalhos, era normal. Mas esse adventício...

A massa deslizou finalmente. O martelo, no mesmo instante, guiado pelas hábeis mãos de George, desceu com estrondo, esmagando o bloco incandescente. Uma, duas, três vezes.

Wentworth levantou a mão e o martelo-pilão parou, a quase um milímetro.

O engenheiro olhou para um anão, sacudindo a cabeça. Ainda sentia em si o olhar de Arthur Meredith e estava começando a ficar nervoso.

Tirou a máscara e fez um sinal a George que desceu da vigia metálica, aproximando-se.

— Não seria necessário outro? — disse George. Wentworth moveu a cabeça, irritado.

— Já está bom, por hoje — respondeu.

A seu lado, Meredith tirou também a máscara.

— Vamos fumar um cigarro.

O engenheiro dirigiu-se até o gigantesco torno, em que três dos melhores operários alisavam as peças de cinquenta polegadas, preparando os contatos com uma perfeição micrométrica de ajuste. Examinou tudo por momento e depois se dirigiu à saída do galpão. Já na porta, virou-se de repente para Meredith:

— Espero que tenhamos merecido a sua aprovação, Mr. Meredith — disse, acremente.

— Por que não havia de ser assim? — respondeu o presidente.

— O senhor mostrou-se tão interessado que, não fosse a máscara, teria explicado o processo.

— Ficaria muito agradecido — Meredith contestou, sem alterar, olhos fixos nos de Wentworth. — Quer vir um momento ao gabinete?

— Pois não, Mr. Meredith!

O pequeno escritório de Wentworth ocupava um dos ângulos da sala do torno. Meredith ficou em pé junto a uma das paredes onde se estendiam várias plantas e diagramas.

— Que está lhe acontecendo, Wentworth? — perguntou o presidente, serenamente.

— Que está-me... Mas, a que vem essa pergunta?

— Tendo notado que não parece muito satisfeito com a maneira como dirijo a indústria.

— A maneira como dirige a...? Bem, era só isso que me faltava ouvir! O senhor pode manejar todos esses títeres do Conselho de Administração como bem lhe parecer, mas no que concerne a meu trabalho, isso é coisa minha e só minha.

— Minha também.

— Não, com os diabos! Enquanto eu cumprir os prazos e a qualidade que me é exigida.

— Alguém já interferiu nisso? — Wentworth ficou parado.

— Semana passada — disse lentamente, quase mastigando as palavras — o senhor me disse que a próxima entrega de pranchas poderia ser adiantada de vários dias. Se isto não é meter-se em meu trabalho...

Meredith acendeu um cigarro, depois de oferecer outro ao engenheiro, que não aceitou.

— Somente sugeri, Mr. Wentworth. Deve convir que um dos deveres do presidente é procurar, de algum modo, incentivar a produção. E obter o maior rendimento possível, numa palavra.

Lucius Wentworth semicerrou os olhos.

— Devo tomar isso como uma censura à minha maneira de trabalhar? Tenho cumprido escrupulosamente os prazos. Seu pai...

— Deixemos meu pai de lado, Mr. Wentworth, se for possível. Não foi nenhuma censura. Simplesmente o desejo de...

Wentworth fez com os lábios como para assoviar. Os olhos de Meredith adquiriram aquela peculiar expressão triangular.

— Estou falando com o senhor, Wentworth — disse secamente.

O outro virou-se como picado por uma vespa.

— Ah! sim? Bom, fale fale.

— Acabo de lhe dizer que não é uma censura. Mas se quisesse fazê-la, ninguém me impediria.

— Ah, sim? Com que motivo?

— Por que suspendeu a martelada na última prancha?

O engenheiro surpreendeu-se, mas isso foi só um instante.

— Por que não gosto que me observem, enquanto trabalho. Não gosto que alguém que não entende do que estou fazendo, fique me olhando.

— Deviam ter dado mais dois golpes, Wentworth. E o senhor sabe tão bem quanto eu. George, seu engenheiro ajudante, também pensou assim: Além disso, a última tempera deu um índice de fratura acima do normal.

Wentworth olhava como se não pudesse crer em seus ouvidos.

— O senhor... — começou. — Que diabo pode saber um homem que passou a vida pintando... coisas, acerca de temperas, fraturas e...

— Certo ou errado, Wentworth? Podemos perguntar a George.

Era certo e Luc sabia. Essas coisas acontecem as vezes. Volta-se a temperar a areação e fica tudo em ordem. Mas ninguém gosta que o chefe esteja continuamente em cima. E que observe os pequenos enganos.

— Pode ser que sim — gritou. — E se o senhor esteve perguntando por aí para pegar-me em falta, eu lhe direi que...

— Acalme-se. Não é censura. Já sei que isso pode ocorrer a qualquer um.

Meredith caminhou até a porta e virou-se.

— Nada disso quer dizer que estejamos descontentes com o seu trabalho, Wentworth. Quero unicamente preveni-lo contra esses seus arrebatamentos, quando se lhe pede alguma coisa perfeitamente normal.

E saiu.

Luc atirou ao chão um rolo de plantas e pisou em cima, selvagenmente. Depois, saiu do gabinete, dirigindo se até George.

O engenheiro-ajudante voltou-se ao vê-lo che­gar:

— Mr. Went...

— Cale-se! Então imaginou que, indo ao patrão com lorotas e intrigas, será promovido mais depressa, não? Talvez, talvez até ocupar o meu posto? Pois vou dizer-lhe uma coisa, intrigante...

O jovem engenheiro ruborizou-se intensamente.

— Mr. Wentworth, suponho que me poderá esclarecer tais palavras

— Claro que sim. Esclarecerei e até direi por escrito, se preferir. O senhor foi intrigar-me com Meredith acerca de meu trabalho. Informou sobre a temperagem defeituosa de há dois dias...

— Um momento, Mr. Wentworth — respondeu George, levantando uma das mãos.

— Eu não disse a Mr. Meredith nada disso. Nem sequer falei com ele sobre trabalho há mais de dez dias.

— Ah! Não?...

Wentworth julgava conhecer George, trazido por ele próprio para a vaga, vindo da Escola Técnica de Ohio. Não era um embusteiro e isso ele sabia.

— Então... Como, diabo, se inteirou ele destas coisas? Como sabia que a última temperagem precisava de maior pressão vertical?

— Ignoro, Mr. Wentworth. Talvez um dos auxiliares...

— Ouça, George, você vai me desculpar por ter perdido as estribeiras, não, rapaz?

— Certamente, Mr. Wentworth, embora eu lhe garanta que não suporto ser tachado de intrigante.

— Esqueça isso. Acredito em você. Mas gostaria de saber quem esteve falando com o chefe. Não poderia... você...

— Bem... — o outro cocou a cabeça. — Não aprecio muito a incumbência, mas...

Luc pôs a mão no ombro do rapaz!

— Faça por mim, George. Eu lhe asseguro que não se arrependerá.

Naquela tarde, às cinco horas, Wentworth sabia que nenhum dos operários, nem os auxiliares. nem os capatazes, ninguém teria falado com Meredith.

Quando tomou o carro para casa, o assunto continuava a remoer-lhe o juízo, sem encontrar uma solução. Pela primeira vez, em muito tempo, tomou alguns uísques duplos. No terceiro, estalou os dedos e apagou a televisão.

— Eu farei — disse em voz alta. — Ora, se farei!

 

— É o inspetor Quartier, da C.I.A., senhor — disse Steedman, tapando o fone com a mão. — Quer falar com o senhor.

— Há muito que não temos contato com esses cavalheiros. Justamente quando deixaram o país em ridículo, no caso de Cuba — respondeu Lomax. — Dê-me isso.

Tomou o fone e preparou a melhor voz de "homem muito ocupado".

— Sim? Fala o inspetor Lomax.

— Inspetor Lomax? Poderia vê-lo? Queria comunicar-lhe algo...

— Bem, estou com muito serviço, mas... Confidencia 1?

— Estritamente, inspetor. Desejo falar com o senhor, antes de receber ordens de Washington. Acho que ainda nada sabem por lá.

— De minha parte, sei de muitas coisas — respondeu Lomax, com bom humor. — Mas ainda não recebi qualquer comunicação oficial para entender-me com o senhor. Talvez com o seu telefonema ...

"É dessa maneira — pensou — você se alegrará um pouco. A C.I.A. trabalha incansavelmente e se adianta aos acontecimentos, todos esses "slogans"... Que diabo está querendo esse seboso?".

Soube logo. Meia hora mais tarde, o inspetor Quartier, que parecia saído de um filme, com uma bem recortada capa cinzenta, suíças prateadas e remota semelhança com Sir Lawrence Olivier, entrou em seu gabinete. Antes de apertar a mão de Lomax, despojou-se de uma luva de cor clara e seu cumprimento teve toda a efetividade e cordialidade que se esperava de uma presença como a sua.

— Encantado de tornar a vê-lo, Lomax.

— Não quer sentar-se?

Quartier ajeitou cuidadosamente a calça para não perder o vinco.

— O caso é pouco complicado, Lomax, mas muito... delicado.

"Como todos aqueles em que vocês, grã-finos, se metem", pensou Lomax. Mas se limitou a fazer uma expressão de interesse moderado.

— Vamos em frente.

— Comunicaram de Moscou — permita-me que me reserve a fonte da informação — que o Ministério de Defesa russo está construindo algo assim como uma réplica de nossos "Polaris".

"História velha", pensou Lomax, divertido.

— Naturalmente, o que os russos podem fazer nesses casos — continuou Quartier — o senhor já sabe: copiar e copiar.

"Sim, mas depois às vezes saem na frente no I.C.B.M. ou em viagens espaciais", continuou pensando Lomax, menos divertido. A eficiência dos agentes de espionagem americanos faziam desconfiar. Mas continuou sem dizer nada.

— O caso é que nossos informes denunciam que os sovietes encontraram, ao que parece, uma boa proteção... o senhor sabe algo sobre reatores atômicos, Lomax?

— Apenas o que leio.

"Não, pensou o federal. Nem você tampouco. Apostaria nisso até meu último tostão!" Mas o que lhe disse foi:

— Apenas o que leio nos jornais e nas revistas pseudocientíficas. Nada, em suma. Sou advogado.

— Bem, pois o caso é que os submarinos "Polaris", movidos por turbinas termonucleares, precisam de uma proteção especial em suas câmaras de fissão. Essa proteção é um dos segredos mais bem guardados pela Secretaria da Marinha e pelos técnicos incumbidos.

— Sim — respondeu Lomax, animador. — Isso é muito interessante, Quartier. Continue...

— Pois bem, nossos informantes nos garantem que os russos descobriram uma proteção especial para essas câmaras. Não vou estender-me em tecnicismos...

"Porque você nada sabe disso e daria com os burros n'água..."

...Mas o caso é que, até há bem pouco tempo, os russos andavam loucos procurando conseguir o segredo dessa proteção. E agora, ao que parece, seus trabalhos estão bem encaminhados.

Os russos, ao contrário do que pensa o homem comum americano, não são nada bobos. E disse Lomax. — Eu sei muito bem.

— Não, não digo tanto. O que afirmo é que, segundo nossas fontes de informações, os trabalhos dos engenheiros soviéticos e de seus cientistas estavam bem atrasados em relação aos nossos. Que aconteceu para que, de repente, começassem a avançar?

— Suas fontes de informação são seguras?

— Dignas, absolutamente, de todo o crédito. Só que... não podemos divulgá-las, o senhor compreenderá.

Eu compreenderei, se me explicar bem. Então, os russos deram um bom passo à frente na fabricação dessas... coisas.

— Não na fabricação. Ao que parece, é ainda cedo demais para isso. O que fizeram foi encontrar o que têm de fabricar. E em Krasnojarsk, especificamente, começaram a mudar a maquinaria de uma indústria de laminados, com o fim de começar a fabricar essas coisas, como o senhor chama.

— Porque não conheço o termo científico. Mas o nome importa pouco. Que está acontecendo em realidade, Quartier?

— Nossos informantes nos asseguram que quando essa maquinaria tenha mudado — e nisso lhe dou razão, os russos são rapidíssimos quando se decidem a fazer uma coisa — poderão fabricar as proteções atômicas de que lhe estou falando.

— O mundo — reconheceu Lomax — contará pois com outro motivo ponderável para evitar uma guerra nuclear. Temos I.C.B.M., eles também; temos bombas de cinquenta megatons, eles também. Agora, compartilhamos os submarinos atômicos com projéteis dirigidos água-ar ou água-terra. A coisa continua equilibrada e as probabilidades de que nossos filhos se destruam numa guerra, são menores. Rejubilemo-nos.

Quartier mostrou-se ofendido.

— Não, Lomax, o senhor não me entende, ou não quer entender. O que nós, na C.I.A., tememos, é que os russos tenham preferido apropriar-se do que nós construímos do que perder tempo em pesquisas.

Lomax alarmou-se. Aquilo já não era brincadeira.

— Alguma prova, Quartier?

O visitante agitou um não com as mãos.

— Nenhuma. Somente suspeitas.

— Bem, então os senhores falaram com Washington.

— Mais do que isso: fizemos uma comunicação oficial. Gostamos de fazer as coisas o mais diretamente possível, mas também de tal forma que fiquem bem patenteados nossos pontos de vista.

Fez uma pausa.

— Hoover atendeu e vai transmitir pra cá a comunicação, de um momento para outro.

— Mas, por que exatamente aqui? — Quartier consultou o relógio, com um movimento bem marcado.

— Segundo nos comunica a Secretaria da Marinha, em informe absolutamente privado e confidencial, o lugar em que, neste momento se fabricam mais proteções para os submarinos de reator nuclear é aqui. Mais precisamente: a Meredith Ltda.

Lomax engoliu em seco.

— Toda essa gente como acontece em todas as indústrias relacionadas com a defesa americana está purgada até a terceira geração. Mc Carthy se encarregou disso e nós não temos descuidado depois.

— Não duvido, Lomax. Limito-me a fazer constar um fato isso é tudo. Há duas outras firmas que constroem as tais peças e cujo pessoal também foi investigado pelos senhores. Mas receamos que de algumas delas tenha havido infiltrações. Já sei que é uma missão incômoda, mas nós temos cumprido a nossa parte. Agora, é a vez de vocês.

— Sim. Não pense que me queixo da parte que me toca. Limito-me também a fazer constar o fato de que essa gente foi investigada. Mas, bem, Quartier, isso já é outro assunto. Como o senhor disse, é uma missão incômoda. Mas nós nos desincumbiremos dela.

Quartier levantou-se.

— Se não for incômodo, Lomax, quando começarem as investigações, gostaríamos de estar ao corrente delas. Se não for pedir muito, gostaríamos de ser informados. De nossa parte, também manteríamos os senhores a par de tudo quanto de novo ocorresse por lá. Nós também não dormimos.

— Obrigado, Quartier.

O homem da C.I.A. saiu do gabinete abotoando cuidadosamente a capa. Lomax aproximou-se da janela e viu que começava a nevar.

Meia hora depois, chegou a comunicação oficial do Palácio da Justiça. Nela se encarregava o inspetor Lomax, e com todos os homens às suas ordens, de iniciar uma investigação sobre a Meredith Ltda. A comunicação acrescentava que se o pessoal fosse insuficiente, poderiam ser requisitadas novas turmas de detetives da Capital.

Lomax respondeu que acreditava contar com o número de agentes necessário e começou a trabalhar. Num momento, ele e seus ajudantes tinham nas mãos os dados dos dois mil operários da Meredith, iniciando a devida revisão. Ia ser uma tarde longa e pesada, mas absolutamente indispensável, a menos que a C.I.A. tivesse dado outra de suas espetaculares mancadas.

 

Amy Mordaunt terminou de reler pessoalmente as cartas que suas secretárias bateram à máquina e entrou com a pasta na mão, no gabinete do primo. Meredith, com um lápis entre os dedos, parecia meditar.

— A correspondência — disse ela.

Quando se colocou ao lado para ir passando as cartas de uma em uma e secando a assinatura, observou que o chefe parecia ter emagrecido. A nuca continuava forte, mas as feições estavam mais encovadas.

Artie começou a assinar. Numa das ocasiões, sua mão tocou acidentalmente a de Amy. A prima retirou o braço com excessiva presteza. Artie virou-se para olhá-la.

— Foi sem querer — disse.

E ela se sentiu ruborizada. Não pretendera agir daquele modo. Fora instintiva. E não porque o contato lhe desagradasse.

— Sabe? — disse Artie. — Há quase dois meses não sai comigo, à tarde. Você sempre tem encontrado uma desculpa oportuna e eu me pergunto que desculpa pensa encontrar agora, já que desejo convidá-la, pela décima vez.

— Bem...

— Procure, procure. Mas que seja uma desculpa consistente. A de que está cansada, que foi a última que você me deu, se coaduna mal com o fato de ir dançar depois no "Oliverio's".

Dessa vez Amy atrapalhou-se.

— Não sabia...

— Que vi você? Passei por lá casualmente, pode crer. Não estava espionando. Vi você com Wentworth, certamente refazendo-se de um dia estafante de trabalho no escritório.

Assinou a última carta e perguntou:

— Que tal vai passando na nova moradia?

— Bem.

— Imaginava.

A moça fechou a pasta e se dispunha a retirar-se quando Artie alçou uma das mãos.

— Não me respondeu ainda. Esta tarde, também precisa de refazer-se da fadiga das funções de secretária?

A moça fixou nele aqueles seus irresistíveis olhos castanhos:

— Não.

— Então, posso contar que vem jantar comigo?

— Bem...

— Há alguma coisa. Diga o que é.

Ele não alteou a voz mais imprimiu-lhe um estranho tom autoritário.

— Diga. Sou maior de idade e sei encaixar um direto... quando não me golpeiam baixo. Até agora tenho sido mais seu primo que seu chefe. Você parece desejar que eu seja mais o segundo do que o primeiro. Por quê?

Assim, direta, quase comercialmente, Amy se sublevou:

— Minha vida privada...

— É de sua exclusiva competência, ninguém o duvida. Mas peço um motivo.

Amy continuou se irritando porque não podia dizer a razão. Era tão vaga, tão nebulosamente vaga... e tão inconsciente...

— Preferiria deixar as coisas como estão — disse com a voz fraca.

— É muito cheia de si.

— Se isso o incomoda como chefe da Meredith... eu...

— Que vai dizer?

— Que posso pedir minha demissão.

Artie Meredith levantou-se, intempestivo. A mesa os separava.

— Sejamos práticos. Você é uma boa secretária e não quero perdê-la. Além do mais, seu salário é bom. Encontrará outro assim tão facilmente?

— Não, ma...

— Não falemos mais nisso. Se você não quiser sair comigo, isso não afeta as relações chefe--secretária. Você é dona de seu nariz.

Sentou-se. Ela vacilou um momento. Depois, disse prontamente:

— Não tinha compromisso para esta tarde. Já está respondido.

— Pois o tem desde agora. Sairá comigo. — Sorriu rapidamente e a expressão triangular de seus olhos desapareceu. Ela sorriu de uma maneira um tanto incerta e retirou-se. Logo depois, abriu o dita fone.

— Mister Wentworth deseja falar — disse.

— Que entre.

O engenheiro-chefe entrou, sem sequer cumprimentar. Como não se viam o dia todo, aquilo era estranho, mas Artie fez que não notou.

— Já estão preparadas as duas expedições deste mês — disse o engenheiro. — Com dois dias de antecedência sobre o previsto.

— Obrigado, Wentworth.

— Era minha obrigação, Meredith. E agora que lhe provei que posso fazer meu trabalho, vai explicar-me uma ou duas coisas.

— Deveras?

Não lhe passou despercebido que o outro não tivesse anteposto o formal "senhor" ao seu nome, mas tampouco disse nada.

— Sim.

Wentworth deu dois passos para a frente e abriu o dita fone.

— Que ninguém nos aborreça, Amy! — exclamou o engenheiro.

— Se quiser, deixarei esta minha poltrona, você se sentará nela e eu ficarei em pé, esperando as suas ordens — disse Artie, com ligeiro sorriso.

— Não é preciso, Meredith. O que lhe tenho a dizer pode ser como estamos.

— Continue, Wentworth. Depois, deverá ouvir também alguma coisa.

— Perfeitamente. Antes de tudo, onde você aprendeu engenharia?

— Em parte alguma.

— Mente.

Meredith olhava-o com um esgar sardônico nas comissuras da boca.

— Agora me chamou de embusteiro. Que virá depois?

— Isto: você tem conhecimentos de engenharia que, segundo disse, não aprendeu em parte alguma. Aqui também não, já que ocupa o cargo na Meredith apenas há três meses. Andou estudando em outro lugar. Porque conhece o assunto. Portanto, mente.

— Estudei pintura, não engenharia.

— E eu lhe digo que mente. Você... "sabe".

— Isso é algum pecado?

— Claro que não, mas não gosto que um sujeito chegue se fazendo de lerdo e depois a gente verifica que conhece o assunto. Considero isso uma burla.

— Já terminou?

— Não! A conclusão lógica é que você está ocultando alguma coisa: esses conhecimentos. E quero perguntar por quê.

Meredith falou lentamente, pesando cada uma das sílabas que pronunciava:

— Se eu quisesse ocultar de você conhecimentos que não tenho, por outro lado você não conseguiria inteirar-se dos que possuo, ainda que vivesse cem anos a meu lado.

— Isso é o que você diz! Eu me informei. Você não falou com ninguém, a ninguém tem feito senão perguntas e no entanto está a par de coisas que somente um técnico saberia, Não pode enganar-me.

— O fato de que você, Wentworth, precise de muito tempo para assimilar as coisas, não significa que todos sejam obtusos. Desde que meu pai morreu, soube que teria de tomar conta da firma. Interessei-me, então, em estar o mais ao corrente possível das coisas. Fiz isso, sim. Agora, por que isso o incomoda, como se fosse uma ofensa pessoal, é algo que me escapa ao entendimento.

— Qual é o coeficiente de resistência da areação que estamos laminando, por polegada quadrada?

A pergunta foi feita como uma flechada. Meredith continuou sorrindo. Depois, seus olhos se dirigiram ao dita fone e uma expressão de alarma apareceu neles. Baixou o registro com um movimento suave.

— Cinco, vírgula, seis, oito, zero.

— Está vendo? — esbravejou Wentworth. — E ainda se atreve a negar...

— Sim, Wentworth, ainda me atrevo a negar. Porque negar algo a você é para mim um prazer especial. Assim como é um prazer especial tirar-lhe alguma coisa.

— Não pode tirar-me o posto! Quando entrei aqui já trazia a renúncia no bolso!

Sacou um papel e arremessou na mesa. Meredith não tocou.

— Não me referia a seu cargo. Wentworth. Referia-me a algo diferente.

O engenheiro levantou a cabeça:

— Que diabo está você insinuando? — Meredith levantou-se, lentamente:

— Referia-se à moça que está aí fora. Vou tirá-la de você Wentworth, porque, na minha opinião, você não é homem para ela. Falta-lhe muito, muito. Entendeu, agora? E, se quiser saber, esta tarde ela estará comigo, embora eu saiba que você já tinha um encontro combinado com ela.

Wentworth levou a mão ao peito. Parecia afogar-se.

— Rato indecente!

— Seus insultos não me atingem, Wentworth. Também lhe direi outra coisa. Se você não é homem pra ela, muito menos o é para mim. Eu poderia enfrentá-lo com uma mão atada às costas. Tenha isso em mente, Wentworth.

O engenheiro avançou. Meredith levantou a mão.

— Aqui, não, Wentworth. Em qualquer outro lugar, no momento que quiser. Mas aqui, não. A não ser que pretenda fazer miss Mordaunt testemunha de como o transformarei em menos homem do que é. E assim farei, esteja certo.

Abria e fechava as mãos. Wentworth compreendeu que ele estava dizendo a verdade. Meredith era cinco ou seis polegadas mais alto, a envergadura de seus ombros bastante apreciável e a expressão de seus olhos não deixava dúvidas.

— Vamos nos encontrar, Meredith — disse Wentworth, pálido de raiva.

— Assim é melhor. E agora pode sair quando quiser.

— E todo o mundo saberá...

— Saberá o que eu quiser, Wentworth. Porque se você disser uma só palavra, farei com que saibam, em qualquer lugar onde você tente trabalhar, que apresentou demissão desta firma quando ia ser despedido por incompetência.

Wentworth estava à beira da apoplexia. Dirigiu-se à porta, agitou os punhos em direção a Meredith e saiu.

Depois de um momento, Artie o seguiu.

Abriu a porta e viu o engenheiro falando com Amy. A moça, de pé, um pouco desfigurada, o enfrentava.

— De maneira que, por sair com esse sujeito... — estava dizendo Luc. Interrompeu-se ao ver Meredith aparecer.

— Eu posso fazer o que quiser, não é assim? — respondeu ela.

— O que você não pode fazer é jogar com dois baralhos. Sabe o que me disse há pouco?

Meredith acendia um cigarro e contemplava a cena como se estivesse na plateia de um teatro.

— Pois me disse que...

Há certas coisas que não se podem dizer a uma mulher. As palavras se prenderam na garganta do engenheiro.

— Que é, Luc?

— Eu...  eu queria vê-la a sós, esta tarde.

— Não vou poder...

— Irei à sua casa.

Antes que ela pudesse responder, saiu, batendo a porta com violência. Amy voltou-se para o primo. Perguntou:

— Que lhe disse?

— Contarei mais tarde. E agora, se você já terminou...

 

Estavam diante da porta de casa. Amy havia bebido pouco mais, ao contrário do que acontecia comumente, o álcool lhe havia subido ligeiramente à cabeça.

— Espero — disse Artie — que não tenha sentido falta da outra companhia.

— Claro que não. Além do mais, eu lhe disse...

— O que me disse é uma coisa. A verdade é outra — respondeu ele sem soltar-lhe a mão. — A verdade é que você tinha combinado encontro com Wentworth.

— Bem, pode-se mudar de opinião...

— E não serei eu a me queixar — respondeu Artie, atraindo-a levemente para si.

Fora o álcool? Amy deixou-se beijar quase impassível. Não devolveu o beijo, mas tampouco repeliu o homem. Ele soltou-a bruscamente.

— Assim não — disse, com os dentes apertados. — Vou subir com você.

— Não pode fazer isso. Se alguém visse, minha reputação estaria arruinada.

— Você se muda de casa e volta a fabricar outra reputação.

Empurrou-a ligeiramente para dentro e ela permitiu. Os cômodos que a moça havia alugado ficavam no segundo andar. Subiram em silêncio e não falaram até que ela fechou a porta atrás de si.

Artie tirou-lhe o abrigo e a moça ficou no meio da sala, com o colante traje de noite prateado, que lhe deixava as costas à mostra.

— Quer beber alguma coisa, Artie? — perguntou.

Dirigiu-se ao bar e tirou uma garrafa de uísque pela metade. Pôs gelo em dois copos e entregou um ao primo.

Meredith bebeu sem deixar de olhar para ela. Depois, de repente, largou o copo na mesinha e a enlaçou pela cintura.

— Não torne a se fazer de estátua de gelo, porque não vou consentir — disse.

— Deveras, dei-lhe essa impressão?

— E não penso em permitir outra vez, repito. — Ela encabulou vagamente e colocou a mesinha entre ambos. Artie sorriu.

— Quer fazer o jogo do gato e o rato? Pra isso é preciso dois e eu não entro no brinquedo...

— Espere um pouco — disse ela, ofegante. — Quero falar com você.

— Falar? Sobre quê?

O uísque estava fazendo efeito. Amy imaginou que tinha que ser agora ou nunca.

— Você se lembra quando me quis beijar um dia, sob as macieiras da casa de Long Island? Lembra-se do que lhe disse?

Artie sorriu.

— Como quer que eu me lembre, depois de tanto tempo?

— Mas ou menos há de recordar que tentou beijar-me. Tínhamos os dois... doze... talvez treze anos. Bem, pelo menos eu tinha treze anos. Lembra-se?

— Claro que sim.

— Eu estava com um vestido branco e você usava o suéter vermelho que minha mãe Ine havia feito. Gostava muito dele e usava sempre embora estivesse sujo. Você deve lembrar-se desse suéter.

— Lembro-me. Mas você vai recordar agora tudo que fizemos quando éramos dois fedelhos?

Artie sentara-se no divã forrado com uma manta hindu. De copo na mão.

— Você me chamava Amelie, à francesa, porque, então, todas as palavras francesas, que você estava aprendendo, davam realce à conversação.

— Lembro-me.

Artie pôs-se de pé, dirigiu-se a ela, tirou-lhe o copo e depois, olhou-a diretamente nos olhos, enquanto a atraía toda. Sentiu o calor do corpo da jovem contra o seu e a respiração da moça em seu peito.

— Amelie — disse, acentuando a última sílaba, à francesa. — Era assim que eu a chamava.

— Sim — respondeu ela. — E eu lhe deixei beijar-me...

— Como agora...

Beijou-a. De novo, sentiu os lábios da moça gelados, mas desta vez não a repeliu. Pelo contrário, atraiu a estátua ainda mais...

Pouco a pouco, observou que a jovem cedia, que seu corpo se fazia menos rígido e que se amoldava mais ao seu. Quando a viu perdendo o fôlego, deixou-a.

— Por quê? — sussurrou ela, com voz rouca.

— É preciso alguma razão? Você me ama. Tenho-a bela como nunca e desejável. Alguma razão melhor?

Ela não respondeu. Parecia olhar para algum ponto atrás de Artie.

O homem segurou-a nos braços, novamente, olhos nos olhos.

— Em que está pensando?

— Em você... e em mim.

Ela notou, então, que os olhos do homem assumiam aquela expressão peculiar. E teve medo.

Tomou-a de novo nos braços, mas desta vez ela resistiu.

— Não me olhe assim — murmurou com voz trêmula. — Não me parece olhar de gente...

— Ora essa! De que, então?

— Perdoe-me, mas de um animal, como se estivesse me espreitando, por entre uns arbustos. Não torne a fazer assim, por favor.

— Sinto, mas não percebo isso.

Sentou-se no divã e convidou-a a seu lado. Ela atendeu, mas conservando distância.

— Wentworth já a beijou, alguma vez, assim? — Ela ergueu-se, de pronto.

— Por quê...? Pensa que todos os homens que conheci me têm beijado assim ou assado?

— Não sei, por isso perguntei. E agora... — Tomou-a de novo nos braços. Mas dessa vez ela resistiu. Quando a soltou, ela o olhava com uma estranha expressão nos olhos castanhos.

— Você não tentou beijar-me nunca, nem sequer quando tínhamos treze anos — disse lentamente.

— Não? — fez ele, indiferente.

— Não. E minha mãe jamais lhe fez um suéter vermelho nem havia macieiras na casa de Long Island.

— Não havia?

— Não.

— Esqueci. Concordei quando você disse, porque era mais fácil dizer sim do que não. Acho que você não se lembra de todos os detalhes de sua infância.

— De que era o pomar?

Artie levantou-se e se espreguiçou lentamente.

— Não sei. Já acabou o interrogatório?

— Não.

— De minha parte, sim. Vim até aqui, à casa de minha prima, não à de um detetive particular. Mas vou dizer-lhe uma coisa...

Inclinou-se sobre ela, que se dobrou para trás, assustada com o olhar do homem.

— É que o beijo que lhe dei vai deixar-lhe marca. Não vai poder desprender-se disso, tão facilmente. Vai recordar noite após noite.

— Quem é você?

— Seu primo Artie, Amy querida. Seu primo Arthur Meredith, com quem brincou quando era pequena, embora eu não tenha tentado beijá-la nunca nem houvesse pomar de maçãs na casa de Long Island. Esse sou eu. Ou você perdeu a memória, amor?

Segurou-a pelos ombros e ergueu-a.

— Vamos, será que já não se lembra de seu primo Artie?

Ela lutou para soltar-se, mas o primo não deixou. Atraiu-a lenta, quase brutalmente para si, até que seus lábios estavam muito juntos novamente.

— Sou Artie, meu amor. Não se esqueça mais disso. Não torne a perguntar-me quem sou.

Beijou-a furiosamente, machucando-lhe os lábios. E ela se sentiu presa de uma espécie de rede que lhe dificultava os movimentos. Queria soltar-se, mas havia algo que impedia e esse algo não eram, somente, os braços do homem, mas outra coisa que nascia dentro dela mesma. Apertou os olhos, esperando que o pesadelo passasse, mas o pesadelo era bem real. E, por fim, com um queixume, cedeu.

Relaxou o corpo e o homem teve de segurá-la para que não rolasse ao chão. Ele deixou-a e se dirigiu ao bar. Tirou mais gelo, enquanto ela o observava com os olhos muito abertos. Ele preparou outro "highball". Depois, os olhos de ambos se encontraram.

— Quer mais? — perguntou ele. — Venha cá.

A moça não falou. Limitava-se a olhá-lo, fixamente. Artie acabou de beber e apanhou o capote.

— Até amanhã — disse. E, sem voltar-se, saiu.

 

Quando entrou em casa, percebeu luz na fresta inferior da porta do gabinete. Parou e aproximou-se de manso, como um felino. Encaminhou-se para a porta — como sempre, fizera pouco ruído ao abrir a da rua — e deu-lhe um empurrão. Atrás da sua mesa, sob o foco do quebra-luz, Wentworth assumia uma pose um tanto ridícula.

— Assalto e invasão domiciliar — comentou Artie, em voz baixa.

O engenheiro respondeu com uma risadinha:

— Seu criado me abriu. Eu lhe disse que podia ir-se embora, que eu esperaria por você. Não houve assalto de espécie alguma nem invasão de domicílio.

— Não, o que houve foi uma estupidez. — Meredith deu dois passos para dentro e fechou a porta atrás.

Wentworth acompanhou-o com atenção, com uma das mãos debaixo da mesa.

— Tenha cuidado, Meredith, estou armado.

— Pra quê?

Wentworth tirou a mão e mostrou. Empunhava uma pistola.

— Vai explicar-me umas tantas coisas, Meredith. Tudo que não quis explicar esta manhã, na fábrica.

— Pergunte. Creio que poderei fumar.

— Não, não se mova. Fique onde está.

— Você, Wentworth, apesar de toda a jactância, está com medo.

Uma centelha de ódio apareceu nos olhos do engenheiro.

— Sim, tem medo de mim. Sabe que sou mais forte, mesmo você armado.

— Se continuar dizendo essas sandices, Meredith, vai arrepender-se para o resto da vida.

— Solte esse brinquedo e vejamos quem derruba quem.

— Não vou fazer isso.

— Então, retire-se. Tenho sono e quero dormir.

— Não antes de me ter respondido ao que vou perguntar.

— Pois então, imbecil, pergunte de uma vez e suma-se.

— Quero saber onde você aprendeu tudo que sabe de engenharia.

— De você, não, certamente. Não poderia ensinar-me nada.

O tom de Meredith era insultante, com um ar de desprezo estampado no rosto. Wentworth rangeu os dentes.

— Vamos, fale. Onde aprendeu? Na Europa?

— Digamos que foi.

— Você não estudou engenharia na Europa. Seu pai teria sabido.

— Muitas coisas meu pai ignorava a meu respeito.

— Mas não teria ignorado isso. O filho de Meredith não aprendeu nada que se parecesse com engenharia. Dedicou-se apenas a vagabundear por todos os antros de Paris e a sujar telas.

— Deveras?

— Isso nos leva a uma coisa: você não é filho de Meredith. Não pode ser.

— Muito bem, para você não sou. Por sorte, você não mais trabalha para a Meredith. Importa muito pouco o que possa pensar.

— Ah, sim? Pois vou dizer-lhe uma coisa, Meredith, ou que nome tenha. O FBI acolheria com muito gosto a minha denúncia.

— Bem, e por que não o faz? Ficaria gloriosamente coberto de ridículo e nada mais. Mas esse é problema seu.

Espreguiçou-se. Era precisamente sua indiferença o que mais transtornava o engenheiro.

— Fique quieto! Se tornar a fazer um só movimento...

— Que fará? Matar-me talvez, em minha própria casa? Seria uma maneira muito segura de suicídio, Wentworth. Por que não vai embora e me deixa em paz?

— Não adianta, maldito impostor.

A situação havia chegado a um ponto crítico. Wentworth compreendia que teria de fazer alguma coisa, mas a tranquilidade do outro o impedia de ver com clareza o que seria esse algo.

— Vamos, diga-me onde estudou e também quem é você, na realidade.

Meredith permaneceu quieto, com os braços colados ao corpo.

— Chamo-me Arthur Meredith II. Digira essa informação como puder, mas suma-se. Estou caindo de sono. Tive uma noite muito atarefada... Muito.

Wentworth engoliu em seco.

— Que é que está insinuando, bastardo?

— Isto: ouça, Wentworth, vou dizer-lhe uma coisa. O que acontece é que você está enciumado. Isso é tudo. Não crê nem um pouquinho nessas tolices que afirma. Está com ciúmes. E reconheço que não lhe faltam motivos.

— Diga de uma vez o que está insinuando...

— Já ouviu. Não lhe faltam razões para estar enciumado. Sabe de onde vinha quando aqui cheguei?

A mão de Wentworth tremia enquanto sustinha a pistola.

— Não continue, senão...

— Você me faz pergunta após pergunta. Vou respondendo, Wentworth. Estou-lhe dizendo de onde vinha: da casa de miss Mordaunt. Se não acredita, telefone agora mesmo pra lá. Não é preciso dizer que estou com vontade de repousar...

Os olhos de Wentworth pareciam os de um louco.

— Maldito bastar...!

Levantou a arma e apontou para Meredith que deu um ligeiro salto para o lado, apenas um passo, afastando-se da linha de tiro. A bala passou silvando sobre sua cabeça e se perdeu num dos ornatos de carvalho.

Meredith deu novo salto, apoiando-se à mesa com uma das mãos, pulou ligeiro para o outro lado e caiu sobre Wentworth com todo o peso.

Os dois homens rolaram pelo chão, mas Meredith ficou por cima. Pôs os joelhos no peito do contendor e apertou até vê-lo de rosto azulado. Então, afrouxou.

Wentworth tentou levantar o braço armado para apoiar a pistola no peito de Meredith, mas não conseguiu. A mão esquerda do presidente segurou a do engenheiro e o revólver se foi virando lentamente contra o próprio dono.

Wentworth lutava com todas as forças para livrar-se daquela situação. Mas verificou que o inimigo era demasiado forte. Na realidade, era muitíssimo mais forte.

O revólver foi se aproximando, polegada a polegada, da fronte de Wentworth. Olhos esbugalhados, Wentworth apavorava-se. Já não pensava em matar, senão em salvar a vida.

Aqueles poderosos joelhos lhe esgotavam toda a força, não lhe deixavam tomar fôlego. Sentiu como o cano da pistola, firmemente, se encostava em sua fronte.

Meredith não vacilou. Com o dedo polegar, pressionou o indicador de Wentworth no gatilho. E afastou o rosto.

Levantou-se e examinou a vítima. Com movimentos lentos e precisos, apanhou um jornal de cima da mesa e colocou sob a cabeça do engenheiro. O pouco sangue que brotara da fronte não chegou sequer ao chão.

Depois, limpou a mesa e os pontos em que Wentworth podia ter-se apoiado, fez o mesmo com a maçaneta da porta e subiu a uma cadeira para ver onde se havia alojado a primeira bala. O projétil atravessara a madeira lavrada, embutindo-se na parede. Tirou-o com um canivete e guardou.

Voltou ao cadáver, envolveu-lhe a cabeça com o jornal, depois de apertar-lhe bem os dedos no revólver. E carregou-o nos ombros.

Saiu do gabinete. O criado não regressaria até a manhã seguinte, de modo que por esse lado não havia perigo. O mais difícil era levar o cadáver até o carro.

Deixou o corpo no chão do hall e abriu a porta.

A pouca neve que havia caído já se derretera. A rua estava deserta.

Voltou, recolheu o cadáver e levou-o até o carro. Deixou-o no banco da frente e foi fechar a porta. Instalou-se ao volante.

O molhe do rio estava perto mas não era esse o melhor lugar para deixar a vítima e sim mais abaixo, quase à saída da cidade, junto à ponte de Jefferson. Naquele ponto, as águas eram profundas e rumorosas e o corpo levaria mais tempo para ser descoberto.

Quando achou o local escolhido, parou o carro e olhou ao redor. Ninguém. Abriu a porta e puxou o cadáver. Tirou-lhe o jornal da cabeça, cuidando de não manchar-se. Levou o corpo até a margem.

Deixou-o cair. Um baque e um ploc soturno. O cadáver de Wentworth submergiu. Mais adiante, voltou a flutuar.

Meredith voltou ao carro e arrancou. Momentos depois, chegava ao centro.

 

A moça parou o carro junto ao passeio, desceu e com passos rápidos e graciosos subiu os cinco degraus que levavam ao vestíbulo. Dois homens iam saindo. Ela os deteve.

— Queria falar com alguém do FBI — disse.

— Nós somos do FBI — declarou um deles. — Há alguém em especial com quem deseje falar, ou com um agente qualquer?

— Eu... — nesse instante o nome acudiu-lhe à memória. — O inspetor Lomax.

— No segundo andar. O nome está na porta. — Subiu sem que ninguém lhe perguntasse nada e bateu à porta. Entrou.

O inspetor Lomax levantou-se. Reconhecera-a. logo.

— Quer falar comigo, senhorita?

— Sim — disse ela, nervosamente.

Seus olhos estavam dilatados e Lomax teria imaginado ser muito cedo para um pilequinho. Mas não seria o caso.

— Tenho... quero fazer uma declaração. Não sei se será importante, mas os senhores saberão melhor do que eu.

Lomax semicerrou os olhos, com um sinal ao ajudante Steedman.

— Quer que registremos a declaração?

— Não sei.

De repente, a moça deixou-se cair numa cadeira.

— Inspetor — disse com voz fraca. — Tenho suspeitas... suspeitas bem fundamentadas, de que mister Meredith, o presidente da...

— Eu sei. A senhorita trabalha para ele. Creio até que é parente dele.

Ela surpreendeu-se. O estenógrafo apareceu, arrastando o carro da máquina.

— Torne a repetir o que disse — falou o inspetor. — Não quer tomar um pouco d'água?

A moça fez que não.

— Veja, inspetor, eu tenho a susp... eu creio que o atual presidente da Meredith... não é meu primo Arthur!

E com voz baixa, quase sem inflexões, começou a desenvolver a história.

Quando acabou, Lomax trocou um olhar com Steedman. O ajudante deixou o gabinete.

— Muito obrigado, miss Mordaunt — disse o inspetor.

— O senhor... acreditou em mim?

— Naturalmente, Miss Mordaunt. Quando Meredith tomou posse da presidência da firma, seus antecedentes foram investigados. Naturalmente que tornaremos a fazê-lo. E desta vez mais minuciosamente. Suponho que a senhorita não há de querer que seu primo... que Mister Meredith saiba da visita que nos fez.

— Bem, eu... não. Ao menos ainda não.

— Não se preocupe. Guardaremos sigilo. Foi muito valente e lhe ficamos muito reconhecidos por isso, Miss Mordaunt.

A moça saiu, acompanhada de um agente. Lomax precipitou-se de seu gabinete e Steedman o já esperava numa grande sala onde havia um teletipo.

— Está chamando Washington? — perguntou. Steedman afirmou com a cabeça.

— Bem. Telegrafe depois para a Polícia de Paris. Faça com que mandem fotografias de Meredith, se tiverem.

Ficou parado um momento.

— Sim, isto mesmo — disse por fim. — Alguém em Paris terá convivido com Meredith em seus tempos de pintor. Esteve em dois hospitais, curando-se de dois ataques de alcoolismo. As enfermeiras, as irmãs de caridade, os médicos, alguém há de lembrar-se bem dele. Teve o último ataque em...

Olhou para um papel que tinha na mão.

— Em 1960. Ainda se lembrarão dele. Informe que pagaremos a viagem de uma, duas ou três pessoas que possam reconhecê-lo se o virem de novo. Serão umas férias extraordinárias, ou o que quiserem. Mas que enviem essas pessoas.

Steedman assentiu.

— O senhor irá vê-lo?

— Não — disse Lomax pensativo. — Não devo levantar a lebre, se, efetivamente. Meredith for um impostor. Não quero que desconfie de nada, ainda. Mas vou falar com o general Danielovic para que suspendam os pedidos a essa indústria.

Fez um pausa.

— Céus, Steedman, seria diabólico... Diabólico demais! Até agora, só temos apertado as cravelhas de um cientista, ou de um engenheiro, mas de um presidente de companhia... Não, seria diabólico demais.

Steedman concordou, distraído.

— Sim, senhor — disse. — Mas talvez seja isso o bom do plano. Ninguém suspeitaria da cabeça, e se houvesse infiltrações, seriam investigadas na cauda.

— Miss Mordaunt não sabe o favor que nos fez, se é verdade que se trata de um impostor. Insista com Paris para que respondam o quanto antes.

Redigiu ele mesmo a comunicação a Washington e fez com que a transmitissem por teletipo,

pela linha que Steedman conseguira. A resposta chegou duas horas depois.

Enquanto isso, havia dado ordem para que dois dos melhores agentes seguissem Meredith, com a recomendação expressa de que não se deixassem notar, e que estudassem a possibilidade de serem instaladas câmaras fotográficas em alguma das casas em frente.

A resposta de Washington foi extensa, mas podia ser resumida no seguinte: Meredith deveria ser vigiado dia e noite, se possível, mas sem que o percebesse. Aprovavam as medidas tomadas por Lomax, no que dizia respeito a Paris.

Às cinco da tarde, um auxiliar deixou sobre a mesa um exemplar da edição vespertina do "Clarion". Lomax passou-lhe uma vista. Na primeira página, havia uma fotografia com a notícia de que em Sillatoe aparecera o cadáver de um homem identificado como Lucius Wentworth, engenheiro, sem outros detalhes.

Lomax empalideceu. Chamou Steedman.

— Olhe — disse, dando-lhe o jornal. — O engenheiro-chefe da Meredith suicidou-se com um tiro, à margem do rio.

Steedman leu a notícia. Levantou os olhos e encontrou os de seu superior.

— Suicidado — disse.

Lomax tomou o telefone e pediu a Steedman que procurasse o endereço da secretária de Meredith.

— Miss Mordaunt? — falou, quando ela atendeu. — Leu a notícia? Seu engenheiro-chefe...

— Li, inspetor — disse ela com voz nasal e o inspetor imaginou que devia ter chorado. — Mas já não era nosso engenheiro-chefe.

— Não era?

— Não. Havia pedido demissão. Depois... depois de uma discussão com Mr. Meredith.

Lomax conteve o fôlego.

— Por que discutiram? Sabe?

— Bem... assuntos de serviço e, de certa maneira, por minha causa.

— Pode explicar isso, miss Mordaunt?

— Sim, inspetor. Mr. Wentworth havia me pedido que me casasse com ele e... Mas é mesmo necessário tudo isso?

— Trata-se de um caso delicado, em que há uma pessoa morta, Miss Mordaunt. Sinto muito, mas preciso conhecer os detalhes.

— O caso é que Mr. Meredith... meu primo... havia saído várias ocasiões comigo. Discutiram...

— A senhorita considera possível que Wentworth tenha se suicidado por esse motivo? — perguntou Lomax, que era um tanto cético em assuntos amorosos.

— Eu... inspetor, não sei, mas não posso acreditar nisso, por princípio.

— Compreendo. Viu hoje Mr. Meredith?

— Sim. Veio ao escritório, como de costume. Mal falei com ele.

— E no que se relaciona com o trabalho, quais eram as causas dos desentendimentos entre os dois, Miss Mordaunt?

— Não sei muito bem, porque não me disseram. Mas tenho ouvido que a causa era o prazo de entrega de alguns dos pedidos. E...

— Continue, por favor.

— Mr. Wentworth achava que os conhecimentos de Mr. Meredith eram superiores aos que deveriam ser normalmente.

Lomax tinha os músculos todos em tensão.

— Repita isso, por favor.

— Quero dizer que, ao que parece, Mr. Meredith sabe mais de engenharia do que pelo preparo que deveria ter.

Nesse momento, Lomax lamentou não haver gravado a conversa.

— Estaria disposta a assinar uma declaração neste sentido, miss Mordaunt? — perguntou.

— Eu... Inspetor, estou terrivelmente transtornada e pode ser que alguma das coisas que dissesse não refletissem exatamente a verdade. Creio que esse era um ponto de atrito entre ambos, mas não estou segura de que tenha sido o motivo da discussão.

— De qualquer forma, assinaria uma declaração... fazendo essas ressalvas, naturalmente?

— Sim, acho que poderia fazer isso.

— Bem, então, ouça. Dentro de poucos momentos estarei em sua casa com um taquígrafo.

— Escute, inspetor, poderia... poderia eu vê-lo?

— A Wentworth? Bem, isso é com a Polícia, mas creio que não haverá inconveniente algum. Arranjarei isso.

Dez minutos depois, Lomax, Steedman e um taquígrafo chegavam à casa da moça que os recebeu, com os olhos denotando choro recente.

A jovem prestou declarações rapidamente e o taquígrafo as passou à máquina num momento. Lomax leu em seguida.

— Vou fazer-lhe uma pergunta, Miss Mordaunt. Acredita que, na realidade, esse homem seja seu primo? É uma convicção ou é somente uma suspeita de que possa não ser assim?

— Eu... não poderia garantir isso, como já declarei. Ele conhece grande parte da história de nossa família, mas há pequenos detalhes... E ainda há uma cicatriz...

— Esqueci-me, Steedman — disse. O ajudante moveu a cabeça, pessimista. — Há centenas de médicos franceses que poderiam tê-lo operado. Seria dificílimo encontrar o exato. De qualquer maneira, telegrafe a Paris o quanto antes.

— Sim, senhor.

Lomax voltou-se para a moça.

— Seu primo suspeita alguma coisa do que você possa saber a respeito dele?

— Não — mentiu a moça.

— De qualquer forma, eu gostaria de dar-lhe alguma proteção, se desejar, naturalmente.

— Não creio ser necessário. — Lomax acendeu um cigarro.

— Miss Mordaunt, consideraria Wentworth capaz de suicidar-se? Quero dizer, era um homem de quem se pudesse esperar esse ato?

— Eu não acreditaria nisso, inspetor. Por quê? Há alguma suspeita?

— Muito pouca, se é que haja alguma, embora eu não me tenha comunicado com a Polícia. Mas, ao que parece, o cadáver apareceu com um revólver na mão.

Despediram-se da moça e se encaminharam para o setor policial. O inspetor Lenber recebeu-os no mesmo instante.

— É sobre esse homem que apareceu no rio — disse Lomax.

Os dois policiais se conheciam há algum tempo e já trabalharam juntos várias vezes.

— Interessa a vocês?

— Verá. Esteve, durante bastante tempo, numa fábrica que recebia encomendas do Governo. Estamos fazendo uma investigação sobre o pessoal dessa indústria.

Isso não o comprometia nada, mas o tenente deu-se conta de que havia algo sob a superfície.

— Que deseja saber, G-Men?

— Suicidou-se?

— A autópsia é concludente, parece. Tinha um revólver na mão direita e um orifício na cabeça, do mesmo lado. Não é a primeira vez que temos um caso assim. Arma-se com um revólver, coloca-se à margem da água, dispara e o corpo cai. Não é muito comum, mas já tem acontecido.

— Acreditamos ter descoberto o lugar em que disparou o tiro. Ninguém ouviu nada, por certo, mas isso pouco significa. Se não nos enganamos, foi num molhe, aqui. — Mostrou num grande mapa da cidade um ponto junto à margem do rio.

— Explica-se não haver vestígios — acrescentou.

— Não. Deve ter ido a pé ou num táxi. Bem, de táxi é mais improvável, porque até agora não encontramos o motorista. O homem morava num chalé na parte alta, em Clifford Park, e seu carro está na garagem. Vão tomar conta do caso?

— Não há motivo para isso, Lenberg. Pelo menos, até agora. Mas eu lhe agradeceria se me mantivesse informado. Há uma moça...

Lenberg se alarmou.

— Quem?

— Espere. É uma testemunha nossa, mas em outro assunto. Não gostaria que seus homens comentassem e levantassem a lebre. Se há certeza do suicídio, gostaríamos que não levassem o caso adiante.

— Espere, Lomax. Também nós temos de fazer nosso trabalho. Se há a mais leve suspeita a respeito dessa morte, não devemos ficar por fora.

— Eu sei, Lenberg — respondeu Lomax, conciliadoramente. — Desgraçadamente, agora só lhe posso dizer isto: esse homem talvez tenha se suicidado porque a moça não quis casar-se com ele. Talvez o tenha feito, note bem, não digo que o tenha feito.

— Ficaremos a par da situação? — perguntou o tenente de modo suspicaz.

— Garanto-lhe, Lenberg. E digo mais. Nesse caso, o assunto passaria à nossa alçada, automaticamente.

— Com o que me tirariam uma dor de cabeça. Entenda o que quero dizer, Lomax. O que não desejo é que me tirem uma possível testemunha se o caso for nosso.

— Não o faremos. E obrigado por tudo, tenente.

Abandonaram o recinto e Lomax telefonou para Amy Mordaunt.

— Suicidou-se, inspetor?

— Tudo parece indicar isso, mas a declaração que a senhorita nos fez é muito importante para nós. Tão importante, que preferiríamos que não tivesse contato de espécie alguma com a Polícia. Os repórteres poderiam saber e não quero que isso aconteça, entende?

— Sim — disse ela em voz baixa.

— Miss Mordaunt, permita-me que lhe faça uma pergunta: estava apaixonada por Wentworth?

— Não... não estava.

— Obrigado. Compareça ao seu trabalho como todos os dias. E se seu primo... se Meredith quiser vê-la, deixe que o faça. Não provoque suspeitas.

Regressaram à sede do Departamento.

 

Quatro horas da tarde quando Amy viu que se abria a porta do gabinete do primo. Levantou-se.

— Olá — disse Meredith. — Já vai?

— Sim, agora ia entrar...

O homem olhava a moça fixamente.

— Vou acompanhá-la — disse.

— Não é preciso... Prefiro que não o faça. Dói-me a cabeça...

— Vou segui-la de qualquer maneira. Quero dizer-lhe uma coisa.

— Mas...

Ele não lhe deu atenção. Um momento depois estavam no carro. Meredith guiando.

— Aí estão — disse ele.

Ela sentiu que o pulso se lhe acelerava.

— Quem? — perguntou.

— Os que estão me seguindo estes dois dias. Não sei exatamente quem são, mas calculo.

Amy engoliu em seco.

— Quer dizer que... o estão seguindo?

— Você sabe muito bem, querida. Você os colocou no meu encalço.

Dirigia o carro com uma só mão. Uma fina camada de neve começava a cair. Voltou-se para Amy.

— Sentiu muito o que aconteceu com Wentworth? — perguntou.

Ela não respondeu à pergunta, mas o interrogou por sua vez:

— Quem é você?

Ele encolheu os ombros.

— Não acho que isso importe muito, agora. Já notou que não estamos indo para sua casa?

Ela olhou pela janela. Não havia reparado. A mão gelada do medo lhe apertou o coração.

— Para onde?

— Para o lugar mais seguro para mim. — Quando ela virou lentamente o rosto para ele, viu que o homem sorria.

— Sinto-o, Amy, mas é preciso. Esses homens perseguem meu carro. Continuarão perseguindo quando eu descer dele e você prosseguir dirigindo. Isso será em Farrax.

Fez uma pausa.

— Não, não sou Meredith. Não sou seu primo Artie.

Ela não podia falar. De repente, a mão grande, seca e firme dele procurou a dela.

— Você seria a única coisa capaz de me fazer desistir, Amy; porém já é tarde demais. Mas pode me fazer esse último favor. Continue conduzindo o carro depois que eu tiver descido.

— Mas... o que é que queria?

— O que queria já consegui. Agora procuro salvar minha vida. Gostaria que isso fosse de outra forma, Amy, mas não pôde ser. Lamento, repito. Pode fazer-me este favor?

— Quem é você?

— Que importa o nome? Mas tive-a junto de mim e não creio que esquecerá. Poderia levá-la para onde vou. Você me serviria de refém, mas não quero Amy. Só lhe peço isso.

Inclinou-se para ela e beijou-a nos lábios. Ela se afastou.

— Você matou Luc?

— Sim, matei-o. Não sei se poderão prová-lo ou não, mas se o provarem me enforcarão. Estamos chegando, Amy. Fará isso por mim?

Depois, de repente, encolheu os ombros e começou a rir.

— Está bem. Não posso obrigá-la. Faça o que quiser. Adeus, Amy. Teria gostado de conhecê-la em qualquer outra circunstância, não nesta. Sinto-o, deveras.

Parou o carro repentinamente, abriu a porta e saiu. A jovem calçou o acelerador, cega de lágrimas. E partiu como uma flecha.

 

Lomax foi receber no aeroporto uma monja de meia-idade, de óculos, e um homem de testa alta e nariz grande. O homem começou a falar, rapidamente, em francês.

— Pas si vit — disse Lomax, desempoeirando o seu francês. — S'il vous plait, monsieur.

Conduziu-nos ao edifício federal, em meio a uma nevada que ia engrossando de momento a momento. A religiosa envolveu-se no hábito, com frio.

No gabinete de Lomax, aquecido e acolhedor, trouxeram café. O inspetor foi logo ao assunto.

— Espero que se lembre dele, monsieur — disse, cordialmente. — Sabe para que o convidamos, não é verdade?

O médico assentiu. Bebeu seu café e examinou o gabinete com atenção.

— O FBI — disse com certa admiração. — Os senhores são muitos conhecidos na França. Muito conhecidos e admirados. Os filmes, sabe...

— Sim, sim. Se já terminaram o café, madame e monsieur...

Os dois franceses se levantaram e Lomax os guiou até a sala de projeção.

— Os flagrantes são bons — disse. — Com certeza os senhores poderão dizer se pertencem à pessoa que conheceram.

Apagaram-se as luzes e numa pequena tela apareceu um homem que descia de um carro, dirigindo-se a uma porta. Quando chegou, virou-se e seu rosto ficou perfeitamente à vista.

O médico e a monja se olharam e Lomax notou, mas não disse nada ainda.

A projeção seguinte era um meio-corpo do mesmo homem, numa janela, tapando o rosto para proteger-se da luz. Ao baixar as mãos, o rosto ficou muito visível.

— Cortem — disse Lomax. Voltou-se para os franceses.

— E então?

— Em Paris — disse o outro devagar para que Lomax pudesse entendê-lo — disseram que tínhamos de vir para identificar monsieur Arthur Meredith, que tivemos no hospital, tratando-se de um ataque de alcoolismo, há uns anos.

— Sim, bem, mas esse homem que viram... — O médico virou-se para a monja e dirigiu uma série de palavras das quais Lomax somente pôde entender algumas. A religiosa assentiu.

— Então? — perguntou Lomax, mastigando impaciência.

— Não é o mesmo homem, monsieur. Lembramo-nos perfeitamente de monsieur Meredith, porque foi um doente um pouco difícil. Estava completamente alcoolizado e não queria curar-se. Uma lesão psíquica, monsieur, certamente.

— Sim, sim. Mas...

— Não é esse homem.

Lomax suspirou.

— Bem, fico-lhe muito agradecido.

— Um momento, monsieur, não acabamos ainda.

— Hein?

— Conhecemos esse homem. Não é monsieur Meredith, mas o conhecemos.

— Que venha o taquígrafo! — berrou Lomax e Steedman se precipitou para o dita fone.

— Trata-se de monsieur Lars... Lars Larkvist, um suédois... um sueco. Também esteve no hospital, na mesma ocasião que monsieur Meredith. Não é assim, irmã?

A religiosa assentiu.

— Sem nenhuma dúvida — disse cuidadosamente em inglês. — Monsieur Larkvist. É ele.

— Que fazia no hospital?

— Havia fraturado uma perna. Não tinha dinheiro. Foi internado.

— Fez-se amigo de Meredith? — Foi a religiosa quem respondeu:

— Sim, monsieur. Passavam horas juntos. — Lomax deu um suspiro.

— Que houve com ele?

— Perdemo-lo de vista quando saiu do hospital, naturalmente.

— Muito obrigado, Madame, monsieur — disse Lomax, estreitando-lhes as mãos. Não podem imaginar quanto me ajudaram. Irão para um hotel...

— A irmã deve alojar-se num estabelecimento da ordem, onde já estão avisados — disse o médico.

— Bem, sim. Amanhã poderão visitar a cidade. São nossos hóspedes de honra.

Os olhos do médico brilharam.

— Merci, monsieur l'inspecteur. Je suis três... — Lomax afastou-se deixando-os em mãos de um dos auxiliares femininos. Depois se dirigiu a Steedman.

— Vamos ao controle de rádio — ordenou.

No momento em que chegavam à sala, um agente saía com um papel na mão.

— Inspetor, do carro que seguia Meredith. — Lomax leu.

— Que diabo pretende esse maldito? Steedman, telegrafe a Paris e peça todas as informações sobre esse Larkvist.

Olhou para o grande mapa, em que um auxiliar ia cravando bandeirinhas. Lomax fez rápidos cálculos mentais.

— Que carro está em Farfax?

— O cinco.

— Avisem a Polícia e que enviem três patrulheiros para que interceptem esse sujeito em Reserve. Quando o tiverem nas mãos, que o tragam pra cá.

O alto-falante começou a funcionar. Lomax inclinou-se sobre ele.

— Carro quatro chamando E.F. Carro quatro chamando E.F....

— E.F. falando — disse Lomax. — Fale.

— Estamos encurralando o carro. Em Reserve. Não percam o contato. E.F. Já o temos.

— Tragam o homem.

Houve um silêncio. Depois a mesma voz falou:

— Não há homem, E.F. No carro viaja uma mulher sozinha.

— Quê?

— Uma mulher sozinha, E.F. Aguardamos intruções.

— Tragam essa dona imediatamente! Esse era o carro de Meredith!

— Sim, inspetor, mas nele vai uma mulher só. O homem deve ter descido.

— Tragam a mulher!

Lomax apertou os olhos com as mãos.

— Transmitam — ordenou. — Fechem todas as estradas de acesso à cidade. O aeroporto deve ser vigiado. Deem a descrição de Meredith. Vamos, imediatamente. Se esse homem escapar...

O rádio começou a lançar aviso após aviso. Lomax tomou o telefone e ligou para o escritório do xerife.

— Ouça, Carmichael. Preciso que você vigie todas as estradas do condado durante esta noite.

— Homem, Lomax, logo hoje, com esta nevada ...

— Lamento, Carmichael. É preciso. Agora mesmo lhe enviarão a descrição do indivíduo.

— Está bem — respondeu o outro, resignado. — Mas meus homens vão me odiar pro resto da vida.

Imediatamente depois ligou para o chefe de Polícia e lhe disse o mesmo. Precisava de todos os patrulheiros que lhe pudesse proporcionar. Prioridade do Governo.

Lomax acendeu um cigarro e olhou para Steedman.

— Ele é tonto, não é verdade? E quanto a essa moça, vou fazer que lhe esquentem as orelhas. Que diabo aconteceu com ela? Denuncia Larkvist e depois corre a protegê-lo...

Jogou fora o cigarro, depois de olhá-lo, como se tivesse mau gosto.

— Esperemos — disse.

 

A jovem foi conduzida ao gabinete de Lomax e as informações iam chegando com regularidade, procedentes do escritório do xerife e do chefe de Polícia. Nenhum homem com aqueles sinais — já se distribuíam fotografias de Larkvist — havia tentado romper o cerco policial.

Amy Mordaunt, despenteada, lágrimas nos olhos, já recebida por Lomax de pé, com um olhar hostil.

— Por que fez isso? — perguntou o inspetor.

— Isso quê? — foi a resposta, em tom igualmente seco.

— Ajudar esse homem a fugir.

— Não sabia que estava sendo perseguido. Os senhores mesmo me haviam dito que me comportasse como se nada houvesse.

Devolvera-lhe com precisão. Lomax apertou as mãos.

— Que foi que aconteceu? Diga-nos tudo exatamente, sem alterar nada.

— Não pensei em modificar coisa alguma. Tomei o seu carro porque ele me disse que me acompanharia até em casa, conforme fez outras vezes. Durante o trajeto me disse que tinha de fazer alguma coisa que eu continuasse e o esperasse em outro lugar. Nada mais sei, até que seus agentes me encurralaram, inspetor.

Lomax sabia que ela podia estar mentindo, mas não tinha como provar isso.

— Pelo lugar em que vocês iam, não se chega à sua casa.

— Havíamos combinado tomar alguma coisa em OHverio's. Como de outras vezes, inspetor.

— Está bem, está bem! E agora me diga uma coisa: para onde foi esse homem?

— Não sei, porque ele não me disse.

Os dois se encaravam por cima da mesa do gabinete.

— Tem certeza de que não sabe?

— Tenho.

— Pois bem, vou dizer-lhe uma coisa, Miss Mordaunt: a senhorita tinha razão. Esse homem não é o filho de Meredith, não é seu primo. Trata-se de alguém que usurpou o posto com o fim de entregar aos russos alguns segredos da fabricação das encomendas do Governo, feitas à firma de Meredith. Agora, sabendo disso, suponho que terá algum interesse em colaborar conosco.

— Se não me engano, inspetor, fui eu quem os pôs na pista dele.

— Sim, mas não sei por que as coisas mudaram de rumo, porque você está agora tentando encobri-lo.

A moça permaneceu calada.

— Não quer responder? Miss Mordaunt, podemos prendê-la por obstruir a ação da justiça e por cumplicidade com um espião estrangeiro.

— Não estou obstruindo nada e não sou cúmplice de ninguém. Pelo contrário.

— Mas nega-se a dizer onde se encontra Larkvist, neste momento.

— Larkvist? É esse seu nome?

— Sim — disse o inspetor, lamentando que lhe tivesse escapado. — Chama-se assim. E agora...

A jovem cobriu o rosto com ambas as mãos. Por um momento, Lomax teve pena. Tratava-se de uma alma que estava sofrendo e sua profissão não o havia empedernido tanto que não percebesse isso.

Aproximou-se dela e lhe tomou uma das mãos. Amy levantou os olhos rasos de lágrimas.

— Amava-o? — perguntou Lomax. Ela concordou sem falar.

— Sinto muito, mas as coisas estão nesse pé. Você é americana e boa patriota, sem dúvida. Se souber de algo que nos possa ajudar... É seu dever comunicar-nos ainda que tenha de contrariar seus próprios sentimentos.

— Que posso dizer? Ele me disse que ia para o único lugar seguro que conhecia. E me disse também... Oh, Deus! Eu devia estar louca...

— Que lhe disse?

— Disse-me que havia matado Luc... Mister Wentworth, o engenheiro-chefe da Meredith.

— Quê? Como e onde fez isso?

— Não sei, isso ele não disse. Só afirmou que havia matado.

— Steedman, ordene para que revistem polegada por polegada a casa de Meredith e a do morto.

— Sim, senhor.

Lomax voltou-se para Amy.

— Miss Mordaunt, não desejo prendê-la, acusada de cumplicidade com esse homem, mas se nos dissesse isso antes...

— Quando?

— Não devia ter fugido com o carro. Isso possibilitou a ele escapar de nós.

— Lamento. Naquele momento eu não sabia o que estava fazendo.

— Compreendo. Bem, onde o deixou, exatamente?

A jovem assinalou um ponto no mapa. Lomax estudou um momento em silêncio. Depois, chamou Steedman.

— Faça com que cerquem toda a região, desde Fairfax até o rio. Se não dispuser de homens suficientes, peça à Polícia.

Tornou a examinar o mapa. Depois se voltou para Amy.

— Miss Mordaunt — falou seriamente — pode dar-nos sua palavra de honra de que não sabe para onde esse homem pretendia dirigir-se?

A jovem ficou em pé. As pernas pareciam pesar-lhe como chumbo.

Olhou para a planta e depois acompanhou com o dedo uma linha que descrevia ligeira curva.

— Aqui — disse. — Não há outro lugar. Hoje é sábado. As oficinas de laminação não trabalham.

Lomax abriu muito os olhos.

— Mas isso é o mesmo que...

— Entregar-se em suas mãos, inspetor? Pode ser. Apenas lhe direi uma coisa: ele não parecia importar-se muito com o que lhe pudesse acontecer.

— Na mesmíssima fábrica — disse Lomax sem lhe prestar atenção. — Diabos eu estive lá e teria de revistar palmo a palmo... Mas é possível porque sabemos que da cidade não saiu.

Não teve tempo, praticamente. Voltou-se para Steedman:

— Que está esperando? Vamos logo. — Quando se precipitava para fora, a moça tocou-lhe no braço:

— Posso ir com os senhores?

— Naturalmente que não. Esse homem deve estar armado e vai oferecer resistência. Que foi que disse antes? Que parecia não importar-lhe o que lhe pudesse acontecer? Mais uma razão para temê-lo. Não, é impossível.

— Inspetor, talvez eu... talvez eu pudesse ser-lhes útil.

A compreensão humana, que não havia abandonado Lomax no curso de sua profissão, veio uma vez mais em sua ajuda.

— Mas, menina... Quer dizer que ele também está apaixonado por você?

— Não sei — respondeu ela apertando os lábios. — Não sei, mas talvez possa... impedir algo... Não sei. Só sei que desejo ir com os senhores.

— Está bem, venha.

Quando chegaram diante do alto portão que defendia a fábrica viram que dois agentes já estavam falando com um homem em frente.

— Foi aberta de fora — disse o homem que era o porteiro da noite. — Somente os chefes sabem o segredo. Há um sistema de células fotoelétricas colocadas a distâncias convenientes, mas alguém abriu. A princípio, pensei que seria...

— Não viu ninguém?

— Não, senhor. Pensei que fosse uma casualidade, sempre acontecem... isso é, às vezes acontecem e...

Uma fileira de automóveis ia chegando, procedentes de todos os pontos.

— Encarregue-se de distribuí-los Steedman — ordenou Lomax. — Que cerquem toda a fábrica. E faça com que tragam refletores. Espere.

Falou pelo telefone do carro com a Chefatura de Polícia.

— Levarão logo, inspetor — disse o chefe.

— Enquanto isso, dirijam os faróis dos carros para as janelas. Onde é a oficina de laminação?

— Justamente detrás da administração — respondeu a moça. — Inspetor, deixe-me entrar...

— Nem pense nisso. Não quero que a matem. Dentro de pouco tempo isto vai se transformar num inferno, se esse homem estiver lá dentro.

— Mas eu poderia... — insistiu ela, desesperada.

— Cale-se, por favor. Já fiz muito deixando que você viesse.

A porta estava diante deles. Os automóveis da Polícia e do FBI dirigiram seus faróis para o edifício.

— Assim não conseguiremos nada — disse Lomax exasperado. — Se estiver na oficina de laminação...

— Será preciso entrar — respondeu Steedman. Meteu-se num dos carros e atravessou o portão.

Outros quatro ou cinco o seguiram imediatamente.

O carro de Lomax estacionou a uns cinquenta passos da oficina de laminação. Nesse momento um caminhão enorme avançou, abrindo passagem entre os carros. Vários policiais de uniforme retiraram três refletores e um técnico de polícia examinou o terreno. Depois, disse onde deviam ser colocados.

— Procurem o engenheiro que tenha assumido o cargo de chefia da Meredith — ordenou Lomax. — Que venha imediatamente. Precisamos conhecer a planta desse pavimento.

— Eu a conheço bem — insistiu a jovem. Lomax afastou-a com suavidade.

— Não desejo expô-la a um tiro — disse. Uma camioneta colocara-se junto ao caminhão.

Trazia um alto-falante no teto. Lomax dirigiu-se até lá e um policial lhe deu um microfone.

— Pronto? — perguntou.

— Sim — respondeu o técnico.

— Larkvist! — falou Lomax.

O chamado retumbou, ecoando pelos edifícios próximos.

— Larkvist, ouça!

Ninguém respondeu, além do eco.

A polícia procurava conter as centenas de curiosos que, diante do aparato policial e apesar da neve, se juntavam nas imediações.

O engenheiro George, com uma jaqueta de couro, desceu de um carro, depois de identificar-se perante a polícia.

— Que está acontecendo? — perguntou. — Onde está Mister Meredith?

— Aí dentro, se não nos enganamos, e não é Meredith — respondeu Lomax, resumindo. — Consiga-me a planta desse pavimento.

George correspondeu às circunstâncias. Acompanhado por meia dezena de policiais, dirigiu-se aos escritórios e um momento depois estava de volta com a planta. Lomax estudou um momento.

— Quer dizer que há uma galeria alta, que domina toda a sala de laminação?

— Isso mesmo, senhor. É dali que costumamos vigiar os processos de fabricação.

— Vou entrar — disse Lomax. Steedman pôs-se à sua frente.

— Eu sou solteiro, senhor. Não tenho ninguém por mim. Deixe que o faça.

— Não posso. Esse homem deve estar armado.

Aconteceu.

Um estalido seco ressoou e um dos refletores apagou entre o estrondo de vidros partidos.

— Essa é a resposta de Larkvist — disse Lomax, rangendo os dentes. Tomou o microfone.

— Larkvist, não faça asneiras! Se alguém morrer, você será enforcado.

Silêncio espesso em torno da fábrica. Então, ouviram a voz:

— Venham buscar-me! Ainda me resta bastante munição para todos.

— Não seja louco! Saia. Será questão de tempo, mas o apanharemos.

O chefe de Polícia, alto, gordo, com uniforme cinzento, tomou Lomax pelo braço.

— Um dos meus homens acaba de me dizer que está naquela janela — disse. — Tenho um atirador com rifle telescópico preparado, Lomax. Se aparecer de novo, meu rapaz poderá atingi-lo.

— Darei outra oportunidade. Larkvist! Irei só e desarmado até a porta! Renda-se.

— Faça-se de herói e haverá um bastardo a menos. Experimente.

O pavimento de laminação estava totalmente iluminado por todos os lados. Dezenas de faróis de automóveis e os refletores mantinham o local sob luz intensa.

— Não vá, Lomax — disse Steedman. — Não pode ir!

Estourou outro refletor, produzindo um curto-circuito prontamente atalhado. Lomax virou-se até o chefe de Polícia.

Um agente do FBI, armado também com um fuzil, apareceu.

— Eu o vi, inspetor. Vi o fogo. É daquela janela.

— Aponte para ela e se voltar a vê-lo, dispare.

Os agentes e os policiais se haviam distribuído, protegidos entre os carros. Lomax procurou a moça com olhos e não a viu.

— Para onde... — começou a perguntar.

— Ali! Pare!

Uma figura corria pela neve recém caída, dirigindo-se para a porta da fábrica. Lomax lançou uma praga.

— Segurem essa louca!

Dois detetives do FBI se precipitaram atrás dela, de pronto. Reboavam outros dois tiros, mas de janela diferente daquela que os agentes miravam.

A moça alcançou a porta. Empurrou-a mas estava fechada.

— Abra, Artie! — gritou.

De entre os espectadores grande partem aboletada no teto dos automóveis estacionados, partiu um vozerio de terror.

— Disparem contra todas as janelas, contra todas — ordenou Lomax. — Não quero que esse doido mate alguém!

Foi uma verdadeira saraivada de fogo e chumbo, ricocheteando pelas paredes e janelas. Durante quase um minuto, as metralhadoras portáteis, as pistolas e os rifles vomitaram rajadas seguras sobre a fachada do pavimento de laminação.

— Tenham cuidado com a mulher! — ordenou Lomax pelo alto-falante. — Disparem alto.

Enquanto as armas se recarregavam, puderam ouvir os golpes surdos da moça contra a porta e seus gritos. Então, o terceiro refletor deixou de funcionar. Mas os faróis dos carros continuavam iluminando o local. E Larkvist não poderia apagá-los todos.

— Ordene que tragam mais refletores — disse Lomax ao chefe de Polícia.

— Já estão a caminho — respondeu o homem gordo, que mastigava nervosamente um charuto. — Pedi há algum tempo.

Lomax dirigiu-se a Steedman.

— Não vamos ter outro remédio — disse. — Não podemos ficar oferecendo este espetáculo durante toda a noite. Teremos de meter algumas "babies" pelas janelas.

As "babies" eram as bombas lacrimogêneas. George, o engenheiro-chefe interino, moveu a cabeça.

— Há um sistema extraordinário de ventiladores aí dentro. O senhor praticamente, se cansará de lançar gases e o sistema de ventilação levará tudo.

Lomax socou furiosamente o microfone.

— Larkvist! — gritou. — Ou você sai ou o desalojaremos com gases!

A moça havia caído ao solo. Muitas das balas resvaladas pela fachada do prédio caíam perto dela.

— Parem de atirar! Podem matar a moça! — Os disparos cessaram. O prédio permaneceu

mudo. E, então, todos puderam ver como a porta ia se abrindo lentamente.

— É elétrica — disse George, nervosamente. Steedman saiu correndo como um gamo, em direção à porta. A moça conseguira entrar. De uma das janelas baixas brotou um clarão e Steedman caiu ao solo, segurando uma perna com ambas as mãos.

— Protejam Steedman! Fogo em todas as janelas! As "babies"!

Um agente apareceu com um aparelho propulsor semelhante a um fuzil de pequenas dimensões. Apontou cuidadosamente e lançou a primeira bomba. Esta resvalou por uma das janelas e explodiu sem ruído no interior.

— Veja — insistiu George. — Não conseguirão nada. Este pavimento está equipado para expulsar gases em quantidades maciças.

— Alguma coisa é preciso ser feito, com os diabos! Não vou mandar meus homens à morte.

Dois agentes e vários policiais se arrastavam pelo chão, aproximando-se do ponto onde Steedman estava caído.

— Se ele o matou que Deus se apiede de sua alma — disse Lomax. — Vamos, dispare outra.

A segunda bomba penetrou por uma das janelas baixas e explodiu.

Os agentes haviam conseguido chegar junto de Steedman e o puxavam. Formou-se logo uma cadeia de policiais para atraí-lo, enquanto o fogo continuava. Lomax pegou o microfone.

— Parem! — ordenou.

Um denso silêncio, como que solidificado repentinamente, se estendeu pelo ambiente.

— Não disparem — disse Lomax.

A porta começou a abrir-se lentamente de novo.

— Atenção!

As luzes convergiram sobre a porta de aço. Uma figura se destacou no umbral, apoiando-se num dos cantos com uma das mãos. Com a outra fez sinal.

— Que diabo quer? — perguntou Lomax. Desceu da camioneta e começou a andar pela neve. O chefe de Polícia tentou detê-lo, mas êle afastou-o.

— Miss Mordaunt, você está bem?

Ela assentiu com a cabeça. Lomax fez um rápido sinal e cinquenta homens avançaram em direção à porta. Lomax chegou a tempo de amparar Amy com os braços.

— Aí... dentro — disse ela, com grande esforço.

— Você está ferida?

A jovem negou com a cabeça.

— Aí... dentro — repetiu.

Lomax entrou. Estava muito escuro, em contraste com a brilhante iluminação do exterior. Mas um dos agentes acendeu uma lanterna.

Havia um corpo estendido. Com uma pistola na mão. Lomax inclinou-se sobre o cadáver, virando-o para cima.

Dois olhos cinzentos vidrados.

— Acabou-se — disse em voz baixa. — Por Deus, levem daqui essa moça. E Steedman?

— Uma perna fraturada, senhor. Nada mais.

— Graças a Deus.

Voltou-se para o chefe de Polícia:

— Faça essa gente toda dispersar. Já viram bastante.

Um homem, com uma valise, abriu passagem apressadamente, entre os policiais.

— Chega tarde, doutor. É melhor atender a moça. Parece que está à beira do desmaio.

— Já desmaiou — o médico, constatou. — Depressa, levem esta jovem num carro. Para o hospital.

Lomax suspirou.

— Caso concluído — disse. — Fez uma careta. — Sim, concluído.

 

                                                                                            Frank Mc Fair

 

 

                      

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