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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RASTROS DE CADAVERES / M. Saavdrovitch
RASTROS DE CADAVERES / M. Saavdrovitch

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

" Histórias do F.B.I."

 

RASTROS DE CADAVERES

 

Chang e Bill, dois agentes especiais do FBI, Foram chamados, pois havia um homem de seu nome Frank Moore que tinha informações para lhes dar sobre “O Canguru”, era assim que o sindicato do crime era conhecido. Com toda a informação recebida cabia a estes agentes desmantelar esta associação. No mundo de mafiosos, quase perderam a vida, o que teria acontecido não fosse a astucia de Chang.

 

                

Dei algumas fracas batidas na porta. A voz profunda de Girty ressoou no interior: - Entre!

Entrei. O inspetor Girty estava sentado atrás de sua mesa, cheia de papéis. O agente Franklin L. Chang, meu companheiro em tantas aventu­ras, achava-se de pé, perto da janela.

Havia ali um terceiro homem, um indivíduo moreno.

Chang voltou-se e sorriu. Aquilo iria ser interes­sante, Girty não chamaria Chang se não se tratasse de algo verdadeiramente importante. Olhei outra vez para o homem moreno.

- É Frank Moore - explicou o inspetor. - Quer dar-nos informações a respeito do "Cangu-ru".

O "Canguru"! O conselho supremo da "mafia" de Nova York, que dirigia o crime em todos os Estados da União! Lembrei-me, então, de que já conhecia Moore. Figurava em nossos arquivos como pertencente à tenebrosa organização, em­bora nunca tivesse sido apanhado, até o mo­mento presente.

 

Olhei-o com curiosidade. Moore fez um gesto que se poderia tomar por um sorriso.

- Vou-lhes dizer o bastante para que me man­dem, vinte vezes, para a cadeira elétrica, mas, mesmo assim, é com prazer que lhes falo.

Girty inclinou-se para a mesa.

- Adiante, Moore - ordenou. - Mas, antes de prosseguir, quero saber por que vai delatar seus companheiros.

Moore assentiu levemente.

- Já sei que os "tiras" são desconfiados - comentou tranquilo; - e fazem muito bem.

- Ontem liquidaram Dom Giuseppe Carone - começou.

- Dom? - perguntou Girty.

- Os chefes da "mafia" têm esse tratamento. Carone fazia parte do "Canguru". Foi decretada sua morte, porque já estava velho e caduco.

Moore acendeu um cigarro.

- Naquela tenda houve mais vítimas - con­tinuou, com voz dura. - Vejam esta nota. Maria Batista e sua filha Rosetta, morreram. Usando duas metralhadoras Thompson, eles varreram a balas aquilo. Maria era minha irmã, a única parenta que eu tinha no mundo. O chefe me tele­fonou para dizer que sentiam muito o que acon­tecera e que tratariam de lhes dar um grande enterro. Mas nós, os sicilianos, não toleramos se­melhantes enganos. O bando já não se fiará em mim. Estou condenado à morte e me riu disso. Vou contar-lhes o suficiente para que me sentem na cadeira elétrica, acompanhado por um bom lote de gente.

Girty fez um sinal de assentimento. Levantou-se e tirou um gravador do armário. Colocou-o sobre a mesa e olhou para Moore.

- Comece quando quiser - disse-lhe.

- Eu me chamo Frank Moore, nascido em Moore assentiu gravemente. Falou: Acireale, perto de Catânia, Sicília, há quarenta e três anos. Meu verdadeiro nome é Moretti, e entrei ilegalmente nos Estados Unidos quando contava vinte e cinco anos. Meu primo, Maurizio Bellini e um seu amigo, chamado Beppo Leone, tomaram conta de mim. Faziam par­te da "mafia" como encarregados dos "contra­tos" e, desde então, fiquei trabalhando com eles. O primeiro caso nó qual tomei parte foi...

Moore falou durante duas intermináveis horas. Cerca de duzentos "contratos" foram explicados com todos os pormenores. Muitas das coisas que disse já eram conhecidas por nós e pela polícia metropolitana, que é quem, geralmente, se en­carrega dos assuntos criminais que não ultra­passam as fronteiras estaduais e a "mafia" nun­ca deixara provas de haver cometido um delito federal.

Agora estávamos ouvindo o funcionamento da complicada maquinaria. Os membros do "Canguru", alguns poucos homens, dirigiam o "racket" de Nova York. Corrupção política, jogos frau­dulentos, prostituição, delinquência juvenil, trá­fico de armas brancas, chantagens, "gangsterismo" sin­dical, contrabando de drogas, etc.

É frequente encontrar-se pessoas ingênuas que julgam os "gangsters" simples ladrões ou assas­sinos. Na verdade, se seus crimes se referissem a assuntos tão simples, pareceriam anjinhos, comparados ao que são.

Na realidade,  a maioria de seus negócios baseia-se no que há de mais hediondo e degradante: os membros da "mafia" ocupara, por direito próprio, a mais baixa escala da espécie humana. É um câncer que corrói a nação americana e os demais países do globo farão bem em im­pedir que semelhante organização penetre suas fronteiras.

Moore dava-nos, agora, os detalhes desconheci­dos. Por exemplo, o sistema dos "contratos", não o conhecíamos com pormenores. O "gangster" ex­plicou-nos como os executores sempre agiam. Nun­ca faltavam pessoas que os enfrentassem. Comer­ciantes que não pagavam "taxa de proteção", de­latores que pretendiam vender suas informações, "gangsters" que pretendiam rivalizar com eles.

A operação era praticada em três fases. Em primeiro lugar, estavam os membros do "Canguru", que eram os que decidiam como deviam tratar os "negócios" e ditavam as sentenças de morte. Depois, vinham os diretores, pessoas im­portantes dentro da "mafia", os quais recebiam, sempre verbalmente, a ordem de que deviam "des­pachar" alguém. Então, costumavam chamar por telefone algum membro sem grau dentro da organização e, às vezes, "gangsters", que nada tinham que ver com a sinistra confraria.

"Preciso de uns dois rapazes valentes" - dizia - para um "trabalho pesado".

E nada mais. Os executores punham-se a ca­minho, recebiam instruções por telefone e, depois de efetuado o "negócio", um pacote que lhes che­gava pele correio pagava a intervenção.

Era evidente que com as declarações de Moore poder-se-ia chegar longe. Citava lugares e datas. Sítios onde se encontrariam indícios e nomes que se veriam em grande dificuldade quando seus possuidores tivessem que comparecer diante de um júri, acusados por Moore.

Quando o "gangster" terminou sua declaração preliminar, Chang acendeu um cigarro e olhou para Girty.

- É uma lástima que tenhamos de entregá-lo à polícia metropolitana - observou.

Girty concordou. Moore levantou-se da poltrona.

- Foi aos senhores que eu me entreguei - disse friamente. - Não quero nada com a polícia. O "Canguru" paga a muitos membros dela e isso de nada nos adiantaria.

- Escute, Moore - Girty inclinou-se para a frente. - Compreendo, perfeitamente, seu ponto de vista, mas não podemos fazer outra coisa. O FBI não se encarrega senão de casos federais, ou daqueles para os quais a polícia solicita sua aju­da. Vou fazer-lhe uma proposta. Entregaremos à polícia essa sua declaração, assinada por você, quando a tivermos passado para o papel prometendo-lhe que, oficiosamente, não perderemos de vista o caso. Ou ainda, depois de comprovarmos que o que nos contou significa a morte para você, podemos destrui-la, se decidir não se arriscar.

Girty estava jogando uma cartada perigosa. Se o siciliano voltasse atrás, perderíamos uma opor­tunidade única de prepararmos uma armadilha mortal para o "Canguru". Mas Moore não retro­cedeu.

- Vorrei venãetta! - as palavras sibilaram entre seus lábios apertados. - Quero vingança!

- Muito bem, Moore - prosseguiu Girty. - Prometo-lhe duas coisas. Primeira: não haverá pena de morte para você. Segunda: faremos o que pudermos para que obtenha sua vingança.

Baixou a alavanca do megafone e chamou sua secretária.

Quinze minutos depois, estava tudo pronto e assinado. Girty chamou o quartel-general da poli­cia, em Centre Street. Pôs-se em comunicação com Davis e disse-lhe que lhe mandaria algo interes­sante. Não citou nomes e nem se referiu ao as­sunto. Todas as precauções eram poucas.

O inspetor ficou com uma cópia assinada e en­tregou outra ao tenente.

- Quando quiser, Moore, podemos ir - avisou Chang.

O "gangster" levantou-se e jogou fora a ponta de seu cigarro.

- Estou às ordens - disse, com uma voz sem qualquer emoção.

Saímos os três e descemos para a rua.

Quando, meia hora depois, Davis escutou nos­so relato e leu a declaração de Moore, ficou es­tupefato.

- É incrível! - exclamou. - Vou chamar, imediatamente, o promotor público Johnson. Ele vai ficar de boca aberta.

- É de esperar - sorriu Chang. - Recorde-se de uma coisa, Davis. Meu chefe, o inspetor Girty, tem um enorme interesse pelo desenrolar desse caso. Ele não duvida de que vão surgir estranhas ramificações e espera que o FBI obtenha impor­tantes informações. Não o perca de vista em ne­nhum momento do dia ou da noite. Já sabe que  a "mafia" tem dedos muito longos.

O rosto de Davis tornou-se sombrio.

- Não é preciso que me recorde iaso, meu caro - respondeu.

Despedimo-nos de Davis e saímos, deixando Moore em boas mãos. Estava na hora do almoço e eu não pensava voltar para casa antes da noi­te, pois aquele era o dia de compras de minha mulher e ela não estaria em casa para me esperar.

Entramos em um restaurante da rua Quarenta e Um, Oeste, e encomendamos uma lauta refeição.

Chang come bem e eu tão pouco tenho falta de apetite - Entretanto, e sem que parecesse ha­ver algum motivo, meu companheiro parecia preo­cupado.

- Desconfia de Moore? - perguntei-lhe.

- Absolutamente - sorriu. - aquele homem é sincero. Fizeram-lhe uma traição e, segundo a lei de sua terra, devem pagar.

Engoli o que tinha na língua e bebi um gole de vinho. Servi-me de outro filé - Eram excelentes, de quase uma polegada de largura e tenros como manteiga.

- Mas, então, por que, diabos, está com essa cara? - perguntei.

- Só por isso - respondeu friamente: - Mo­ore viverá o bastante para que o vejamos como testemunha diante de um tribunal?

- Diabos, Chang! - respondi, logo que pude falar. - Ele está nas mãos da polícia.

- Sim, tem razão. Sou um tolo em me preo­cupar dessa maneira. Esqueça isso.

Mas não fui capaz de esquecer. Naquela noite, quando estava no banheiro, vestindo o pijama, minha mulher surgiu, parando no umbral da porta.

- O que é que há, Bill? - perguntou. - Está com um ar ausente. Durante o jantar não pronun­ciou nem duas palavras seguidas.

- Estou preocupado - respondi. - Conheci hoje um "gangster", um assassino da pior espé­cie e não posso ficar sossegado, de medo que lhe possa acontecer algo.

Ela sorriu. Dito assim, parecia uma asneira. Mas não era.

 

O dia seguinte foi de descanso para mim. Chang telefonou-me cedo para dizer que não precisava de mim até às nove da noite. En­tão, Katinka decidiu que devíamos ir dançar.

Não tive nada a opor. Às cinco da tarde, saí­mos rumo à Cidade Baixa, o ruidoso Manhattan. Chegamos ao Stork Club por volta de cinco e meia e passamos uma agradável tarde. Jantamos no clube às sete e meia e às oito, quando já estava caindo a noite, voltamos para casa.

Eu nem podia imaginar o que me esperava. Já tínhamos atravessado a outra margem do rio East e deslizávamos pela estrada Vinte e Quatro. Pou­co mais adiante, desembocava na Vinte e Cinco.

Foi ao chegarmos à bifurcação que apareceu o perigo. Havia um carro parado ali, com as luzes apagadas, oculto na curva. Faltou pouco para que batêssemos nele.

Gritamos ao ver a estranha posição em que es­tava, quase atravessado na pista. Apliquei os freios e dei marcha-à-ré, para colocar-me junto ao descuidado motorista, que teria que ouvir algu­mas frases duras por sua imprudência.

Mas, quando saltei do carro e me aproximei, compreendi a causa. Tratava-se de um enorme "Rolls" negro e tinha a parte dianteira toda amassada. Devia ter batido contra uma das ár­vores que margeiam a estrada, sendo projetado pela violência do golpe até ficar na posição que eu tanto estranhara.

Quando assomei na janelinha vi que um vulto escuro estava caído sobre o volante. Katinka já estava a meu lado.

- Não está morto - disse ela.

Eu também o via. Aquele homem, quase invi­sível na escuridão, tinha estranhas contrações nos ombros. Abri a porta e puxei-o para trás. Tive uma enorme surpresa.

O homem, que eu julgava ferido, repeliu-me com um braço e deixou-se cair de bruços sobre o assento. Se não fosse pela observação que me fizera minha mulher, eu não teria compreendido o que sucedia.

- Está chorando!

E estava. Silenciosamente, de um modo impres­sionante, aquele homem chorava como eu nunca vira ninguém fazê-lo. A tremedeira daquele ho­mem me arrepiava.

- Ouça, amigo - disse-lhe. - Não quero abor­recê-lo, mas sou obrigado a isso. Está ferido?

- Não - respondeu, laconicamente.

- Muito bem. Empreste-me a chave do porta-malas.

Ele obedeceu, sem acrescentar uma só palavra. Dei a volta ao carro e abri o compartimento tra­seiro. Como supunha, encontrei duas sinalizações de alarme. Coloquei-as na estrada, uma no prin­cípio da curva e outra diante do carro, a fim de evitar que alguém se fosse arrebentar contra o "Rolls". Voltei para junto do estranho indiví­duo.

- Onde mora? - perguntei, ao entregar-lhe as chaves.

- Em Forest Hills.

- Então somos vizinhos. Como se chama?

- Rosemale. Frank Donald Rosemale.

O nome era-me bastante familiar. A mansão dos Rosemale ficava a meio quilômetro de mi­nha casa e era um verdadeiro palácio. Não era de estranhar, pois a família possuía milhões e milhões de dólares. Aquele devia ser o jovem Rosemale. E quase encontrei explicação para seu lamentável estado. Frank Rosemale, o velho ti­nha morrido atropelado, poucas semanas antes. Lembrei-me de que ainda não havia sido captu­rado o motorista que o matara.

- Está bem, Mister Rosemale - disse-lhe com suavidade. - Vou levá-lo para casa. Venha co­nosco.

Ele saiu do amassado "Rolls" e seguiu-nos como uma sombra. Quando estávamos em meu carro arranquei, Katinka acendeu dois cigarros, dando um ao jovem milionário. Eu estava bastante in­trigado. O aspecto do moço não correspondia à idéia que eu havia formado sobre os multimilionários. Imaginava-os alegres e sorridentes, ro­deados de belas mulheres e desfrutando a vida.

Mas aquele tipo não parecia ser muito divertido. Apanhou o cigarro, que lhe ofereceu minha mu­lher, dando-lhe algumas tragadas. De repente, voltou-se e me perguntou:

- Quem é o senhor?

Meti a mão esquerda no bolso interno do paletó e estendi-lhe minhas credenciais. Rosemale nem sequer abriu a carteirinha de couro. Fixou, ape­nas, a capa.

- FBI - murmurou lentamente. Depois, com precipitação: - Estou detido?

- Não no momento - grunhi, pensando na­quele carro, atravessado no meio da estrada, es­perando que qualquer incauto fosse arrebentar a cabeça contra ele. - Mas, quando se sentir me­lhor, eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas.

Apanhei as credenciais e tornei a guardá-las. Decidi acrescentar algo mais. Aquele moço pre­cisava aprender a viver e a deixar os outros vi­verem.

- O senhor vai ter que ouvir algumas coisas que não vai gostar.

Rapidamente e em silêncio chegamos em frente à casa. O enorme portão de ferro estava aberto. Passei o carro por ele e parei em frente à escada que levava à porta principal.

Puxei o cordão da campainha e não tardou a parecer um empregado, mordomo ou algo pare­cido, vestindo um libre que lhe dava o ar de uma ave pernalta.

- Deus meu, senhor! - disse, ao reconhecer o moço. - O que foi que lhe aconteceu?

- Nada de mais - respondi eu por ele.-— Deve ter empinado demais o cotovelo e apanhou uma boa carraspana. Leve-o para a cama e cha­me seu mecânico para que recolha o "Rolls", antes que alguém arrebente a cabeça contra ele. Está entre as ruas Vinte e Quatro e Vinte Cinco. Não se esqueça.

- Fique descansado, senhor - respondeu o ho­mem. - Muito obrigado por tudo, senhor.

Dei meia volta e entrei no carro. Instalei-me ao volante e acendi um cigarro.

- Pobre moço! - comentou Katinka. Aquilo me exasperou.

- Pobre, com dez ou doze milhões de dólares?! - falei com a maior ironia de que fui capaz. - Uma boa surra, disso é que ele precisa. Eu que­ria que você visse o sujeito que teve de carregá-lo, cheio de galões por todos os lados. "Deus meu, senhor", foi a primeira coisa que disse. E, depois: "O que foi que lhe aconteceu?" O velho partiu para o outro mundo e o filho não sabe o que fazer sem o papai.

- Não seja tão sarcástico, Bill - reprovou-me minha mulher. - Ele é ainda muito moço. Talvez gostasse muito do pai.

Sim, aquilo era possível. Quase o lastimei. Jo­guei fora o cigarro e olhei para cima. As luzes de um amplo balcão acabavam de acender-se. Agora ele devia estar em seu quarto.

De repente, algo estranho aconteceu. Nos vi­dros do balcão refletiram-se duas sombras. Uma delas ergueu os braços e se foi tornando mais ne­gra à medida que o vulto se ia aproximando dos vidros. A porta do balcão foi aberta com tal vio­lência, que alguns vidros saltaram em pedaços.

- Corra, Bill! - o grito de Katinka chegou demasiado tarde.

Um corpo escuro saltou por cima do parapeito de pedra.

E caiu de uma altura de mais de vinte me­tros!

Mas consegui vê-lo durante a queda, era evi­dente que se tratava do corpo do jovem Rose­male.

Foi chocar-se com o pé das escadas, a menos de dez metros do carro. Caiu de cabeça e o últi­mo degrau arrebentou-a horrivelmente. Quando Katinka e eu chegamos junto a -le, já era só um confuso monte de ossos quebrados e de carne destroçada. Era horrível de ver-se.

Quis afastar minha mulher daquela macabra cena.

- Entre na casa - disse-lhe, - e telefone para a Polícia. Pergunte pelo tenente Davis e conte-lhe o que aconteceu. Se Davis não estiver, procure localizar o capitão Scott.

Katinka precipitou-se para a escada, no exato momento em que dois homens saíam da casa. Um era o mordomo, a quem eu já conhecia. O outro não usava a exótica libre, mas vestia um terno azul.

O mordomo estava quase chorando.

- Jogou-se pelo balcão, antes que eu pudesse impedi-lo! - gemeu. - Estava como doido. Ga­ranto-lhe, mister Daniels, que eu...

- Está bem, Ames! - interrompeu-o secamen­te o homem de terno azul. - Ninguém vai acusá-lo de nada. Agora acalme-se e vamos ver o que se pode fazer. Vamos transportar o corpo de mis­ter Rosemale para...

- No corpo ninguém pode tocar, até que che­gue a Polícia - intervi eu. - Nada mais se pode fazer por ele. Está morto.

- Eu acho que...

- Entre na casa e espere - disse-lhe seca­mente. - Será interrogado oportunamente.

Mostrei-lhe minhas credenciais. Passou os olhos por elas e assentiu com um gesto de cabeça. Deu meia volta e entrou no edifício, seguido pelo mor­domo.

Abaixei-me e revistei o cadáver. Reuni uns quantos objetos, que logo examinei à luz dos fa­róis de meu carro.

Uma carteira, repleta de dinheiro; a carta de motorista, um chaveiro com cinco chaves, outra carteira de couro com fotografias e um envelope fechado, com o endereço:

"Federal Bureau of Investigation. New York, N.Y."

Em um dos cantos, estava o selo correspon­dente.

Quanto ao resto, só as fotografias poderiam sig­nificar algo, de momento. Examinei-as rapida­mente e vi que todas pertenciam à mesma pes­soa: uma mulher loura, de aspecto imponente. Havia quatro retratos dela, dois em roupa de banho, um com traje de montaria e a última, com um vestido de verão, onde a loura aparecia de braço dado com Rosemale. A com traje de montaria, trazia a seguinte dedicatória:

"A sempre sua Daisy."

Katinka voltou, depois de telefonar.

- Falei com o tenente Davis - informou-me. - Disse que virá logo.

Apanhei um cigarro e acendi-o.

- Muito bem, querida - sorri-lhe. - Volte para o lado dos outros e vamos esperar. Não creio que demorem muito.

Vi-a subir novamente as escadas e abrir a porta.

 

O inspetor Girty largou o envelope sobre a  mesa e acendeu um cigarro. Escutou a lei­tura de minhas notas com um ar ausente, olhando para a janela, de quando em quando.

- Um tipo estranho esse Rosemale - comen­tou. - Que lhe parece, Chang?

Franklin L. Chang olhou-o fixamente.

- Por que não abre a carta, inspetor?

- Tem razão - sorriu Girty, - mas eu só me queria certificar se vocês perceberam o quan­to o caso se apresenta confuso. Assim como no caso de Moore, parece uma história contada por um doido.

Abriu o envelope e começou a ler. À medida que ia avançando na leitura, seu rosto se ia tor­nando cada vez mais vermelho.

- Que brincadeira é essa? - gritou, indignado.

Abandonei a poltrona num salto e aproximei-me da mesa. Olhei para o papel. Evidentemente era uma carta e estava assinada por Frank Donald Rosemale, embora desta vez só houvesse o primeiro nome: "Frank".

A nota dizia o seguinte:

"Você é um monstro, Daisy. Não compreendo como pude ser tão idiota de me apaixonar por você. Mas isso não a livrará do castigo. Quando receber essa carta, a Lei já a estará buscando. E espero que a levem para a cadeira elétrica, livrando o mundo de sua venenosa presença. Sen­do esta a última vez que terá notícias minhas, quero que saiba o nojo que me inspira, menos, é claro, do que o que sinto por mim mesmo."

Girty me ficou olhando, como se eu tivesse a culpa de tudo. Depois, olhou para Chang e este sorriu.

- Trocou os envelopes - observou Chang, como se nós não tivéssemos percebido.

- Exato - disse Girty endireitando-se na pol­trona e observando que seu cigarro se consumira no cinzeiro. Acendeu outro e prosseguiu: - O idiota não era capaz nem de pôr uma carta no envelope, sem fazer besteira.

Chang sentou se perto de mim e tornou a ler a carta do finado Rosemale.

- Não é difícil reconstituir as idéias do pobre moço, em suas últimas vinte e quatro horas - disse. - Decidiu denunciar essa tal de Daisy e escreveu a declaração. Depois, como último adeus ao passado, avisou Daisy do que iria fazer, tanto para assustá-la e vingar-se de alguma coisa, como para se despedir dela, é difícil, às vezes, romper com o passado. Naturalmente, tudo isso aconteceu depois de sua firme resolução de matar-se. O transtorno emocional de Rosemale devia ser tre­mendo. Suponho que a morte violenta do pai, faz pouco tempo, deixara-o fora de si. A verdade é que não pensou confiar ao correio a missão de levar sua. denúncia ao FBI e deixou o envelope no bolso. Primeiro, tratou de suicidar-se, lançando seu carro contra uma das árvores que margeiam a rua Vinte e Cinco. Mas o instinto de conserva­ção é muito forte nessa idade. Deve ter freado no último instante e o choque não teve a violên­cia necessária para seus propósitos. Foi, então, que encontrou Bill, em plena reação dramática, reprovando-se a falta de decisão. Estou conven­cido, embora não possa provar, de que Rosemale Já não queria deixar este mundo quando Bill o encontrou com o "Rolls" atravessado no meio da estrada.

Aquilo pareceu-me uma suposição gratuita.

- Entendido, Chang - objetei sarcasticamente. - Tão arrependido estava em sua tentativa de suicídio, que meia hora depois lançou-se de cabeça pelo balcão. Falando sério, Chang: Rose­male "queria" suicidar-se. Eu presenciei tudo.

- Um momento, Bill! - Chang ergueu a mão para me acalmar. - Não entendeu bem minhas palavras. Eu disse que quando você o encontrou na estrada, pouco depois de sua frustrada tenta­tiva de suicídio, ele havia abandonado tal idéia. Mas, quando o levou para casa e o deixou nas mãos do mordomo, tornou a mudar de opinião, e desta vez de modo definitivo.

- Pode-se saber por quê? - perguntei.

- Porque você o impeliu a isso, Bill, de modo inconsciente!

- Girty jogou-se para a frente e apoiou os cotovelos na mesa.

- Explique sua idéia, Chang - pediu.

- É simples, elementar. Por que queria suici­dar-se Rosemale? Não o sabemos; mas temos que imaginar que seria por um motivo impor­tante. Bem, o assunto podia ser de vida e morte para ele e nos parecer uma simples estupidez. Entretanto, há outros pormenores. Ele nos envia uma denúncia contra essa desconhecida Daisy, ao mesmo tempo em que comunica a ela que a Polícia irá buscá-la para levá-la à cadeira elétrica! É evidente que não se tratava de uma simples briga de namorados. Pois bem, Bill encontra-o quando estivera a dois passos da morte. Nessa idade, isso não é agradável. A carta destinada ao FBI re­pousa em seu bolso. Basta não mandá-la e tudo ficará resolvido. Mas Bill mostra-se irritado com ele. Considera que aquele carro atravessado na estrada é um atentado contra a vida dos pacíficos cidadãos sem complexos e mostra-se severo com o moço. Quando este lhe pergunta quem é, ele põe-lhe no nariz suas credenciais. Suponho que aquelas três letras, "FBI", assustaram Rosemale. A julgar pelo que diz em sua carta a Daisy, tem coisas a temer da lei. A conclusão lógica é que Bill devia andar atrás dele. Por isso interessa-se em saber se está detido. Pela segunda vez, Bill teve oportunidade de salvar a vida do desequili­brado moço. Mas não a aproveita. Em lugar de dizer-lhe que volte para casa como puder e que tenha mais cuidado em dirigir o "Rolls", daí por diante, responde-lhe que não, que não está detido, mas que vai ter de ouvir algumas coisas de que "não vai gostar". Rosemale temia ser detido, tan­to que sua primeira idéia foi suicidar-se para evitar isso. Agora, tem a certeza de que o FBI está interessado em sua pessoa. Entra em casa e se joga pela janela.

Aquilo soava desesperadamente lógico. E não me agradou.

- Não o tome tão a sério — observou Girty, sempre prático. - Aposto que, se tudo aconteceu como diz Chang, Rosemale merecia muito bem cair do balcão e arrebentar a cabeça.

Chang sorriu.

- Isso é certo - afirmou, tirando-me um peso da alma.

- Tem alguma teoria? - perguntou Girty, recostando-se novamente na poltrona.

- Tenho, inspetor, mas é demasiado horrível para expô-la, antes de estar certo das coisas que penso.

Girty acendeu outro cigarro e, desta vez para variar, ofereceu-nos o maço. Tomei um de seus "Four Aces" (bastante maus, na verdade) e acen­di-o. Chang, porém, recusou-os e tirou seu pestilento cachimbo do bolso disposto a enchê-lo.

Parece - disse, - que encontrar a miste­riosa Daisy é o único caminho para desemaranhar o caso Rosemale. Não me agrada nem um pouco. Não me agrada a maneira como mor­reu o velho. Sabe, Girty, que o pai de Rosemale foi atropelado por um carro, faz duas semanas? Morreu poucas horas depois do acidente e o carro causador não pôde ser encontrado.

Girty sorriu.

- Muitas centenas de pessoas morrem atrope­ladas por automóveis, cada ano, só nos Estados Unidos - observou. - Aprecio seu talento, Chang, mas, desta vez, não vejo nada de raro no caso.

- Pois há muita coisa estranha, inspetor. É verdade que morre muita gente, por ano, atro­pelada; mas, é quase inevitável que os culpados sejam detidos. Nesse caso, nada marchou de for­ma normal. O velho Rosemale morreu quando atravessava a rua para entrar num armazém de sua propriedade, no Canal Street, um estabeleci­mento de artigos navais. Só acompanhei o caso pelos jornais, mas sinto suas falhas. Primeiro, o velho não ia a Canal Street mais de uma vez por mês, isto é, havia trinta probabilidades contra uma de que o acidente ocorresse em outro lugar qualquer. Segundo, Rosemale "sênior" não dirigia seu próprio carro. Um motorista, cheio de galões, chamado Perkins, era quem dirigia o "Rolls". Na­turalmente, onde quer que o velho fosse, deixa­va-o na porta, de gorro na mão. Havia, porém, uma exceção. Quando visitava o armazém de Ca­nal Street, costumava atravessar a rua a pé, para evitar de ter que dar a volta pelo quarteirão, já que o velho economizava tempo como outros eco­nomizam dinheiro; de maneira que, se algum lu­gar se mostrasse propicio para o atropelamento, era exatamente aquele. Terceiro, sempre costu­mava chegar pelas oito da noite, quando os em­pregados já se haviam retirado e ficavam só os chefes. E tornava a sair uma hora depois, atra­vessando a rua de novo, até chegar ao carro. Era um horário estabelecido tacitamente, de modo que, com alguns minutos de diferença, qualquer um que conhecesse os hábitos do velho tinha ali a melhor oportunidade de atropelá-lo. Girty abanou a cabeça.

- Resuma sua idéia - pediu.

- Simplesmente - explicou Chang, - estou de acordo em que se deve encontrar Daisy para esclarecer o caso Rosemale. Mas o caso mesmo não começa com a morte de Frank Donald Rose­male, mas com a de seu pai.

- É uma lástima - observei eu, - que o moço tivesse trocado as cartas de envelopes. A essas horas estaríamos pondo as mãos em algo interes­sante, mas com nexo.

Girty assentiu com um movimento de cabeça.

- É o que mais me aborrece, amigos - ma­nifestou contrariado. - Pensar que aquela sujeita tenha recebido a denúncia destinada a nós e deve estar morrendo de rir a estas horas.

Chang sorriu.

- O senhor acha, inspetor? - disse suavemen­te. - Eu discordo dessa opinião. Recorde-se de que ela recebeu, efetivamente, a nota destinada a nós e sabe que só tem que destruí-la para evi­tar que chegue às nossas mãos. Mas, ao mesmo tempo, compreenderá que a carta que Rosemale destinava a ela estará aqui. Compreende, Girty? Ela sabe o que Rosemale pretendia dizer-nos, mas ignora o que a carta que era para ela contém. Não sabe se haveria algum dado comprometedor; uma pista que leve a polícia a seus calcanhares. Estará rindo? Não, não creio que esteja rindo. Antes, deverá estar tratando de se ocultar, pro­curando evitar sua captura.

O relógio do gabinete deu, lentamente, dez ba­daladas. Eram dez da manhã; uma manhã clara e transparente de primavera em Nova York.

Mal extinguiu-se o eco do carrilhão, soou o tele­fone.

Girty estendeu a mão e apanhou-o.

- Inspetor Girty - disse com voz dura e con­vencional.

 

O inspetor Girty largou o telefone. Lançou um olhar pela janela e tamborilou com os dedos na mesa. Depois, esfregou as narinas com os dedos polegar e índice. Por fim, falou:

- O tenente Davis quer vê-los. Ponham-se em contato com ele imediatamente. Espera-os no Centre Street.

- Aconteceu alguma novidade? - perguntou Chang.

- Sim. Frank Moore foi assassinado. Levavam-no para Sing-Sing, a fim de mantê-lo seguro e apresentá-lo como testemunha contra o "Canguru". Em Riverside Drive, foram metralhados de um carro. Moore e dois policiais foram mortos. Há um terceiro policial e um transeunte, feridos. Es­cutem, amigos: vão ver Davis e vistam as roupas de trabalho. O caso do "Canguru" e o de Rose­male ficam a cargo de vocês. Não poupem esfor­ços e contem com toda a ajuda que o Departa­mento lhes possa emprestar. Mas recordem-se de que devem trabalhar como escravos.

Chang apanhou seu chapéu do cabide e jogou-me o meu. Saímos do gabinete de Girty um tanto nervosos.

Quando chegamos à Centre Street, encontramos Davis bastante preocupado. Ele nos fez sentar e acendeu um cigarro, depois de oferecê-los a nós. Aceitei um, enquanto Chang continuava aterra­do a seu cachimbo. Estava em pleno trabalho ce­rebral e sei que isso o ajudava a pensar.

Davis ficou fumando, pensativamente, um mo­mento. Havia em sua mesa, impressionante amon­toado de papéis e pastas.

- Por onde começamos? - havia um rito em seu rosto quando começou a falar. - Pelo suicí­dio de Rosemale ou pelo assassinato de Moore?

- Há alguma coisa interessante no caso Rose­male? - sugeriu Chang. - Parece-me o mais simples e podemos começar por ele, para logo ficarmos de mãos livres para nos metermos com o "Canguru".

- Simples? - Davis desandou a rir, embora sem vontade. - Ouçam isso, amigos.

Remexeu em alguns dos papéis que havia so­bre sua mesa e tomou um, mantendo-o à altura de nossos olhos. Era um talão de cheques do National Bank of New York. Só restavam dois cheques, presos ao talão.

Deixou-o cair sobre a mesa e Chang apanhou-o para examiná-lo. Eu também o estudei com curio­sidade.

- Pertencia ao jovem Rosemale - observei.

- É claro, amigo - Davis jogou-se para a frente. - Isso salta aos olhos. Mas, observem os canhotos. Neles costuma-se colocar o registro dos cheques sacados. O talão foi expedido em novembro do ano passado e tinha vinte cheques. Como restão dois, faltam dezoito.

Chang retirou o cachimbo da boca e sacudiu a cinza, batendo ruidosamente, no cinzeiro de cobre.

- Que, diabos, está acontecendo aqui? - ex­plodiu, embora em voz baixa. Ele nunca perdia a calma. - Estamos falando como idiotas.

- Acontece o seguinte, Chang: como podem ver pelos canhotos, as retiradas foram de quan­tias pequenas para um milionário, embora na­quele momento só o fosse no nome. Trinta, cin­quenta dólares, dois de duzentos dólares; nada, emfim, que tivesse alguma significação. O dé­cimo oitavo, numa importância de oitenta e sete e cinquenta, foi entregue a uma oficina de con­sertos, onde o tal de Rosemale levou seu "Jaguar" esporte para que lhe colocassem alguns enfeites. Foi ali que perdeu o talão de cheques, deixando-o cair no chão. Alguém deu um pontapé sem o ver e ele foi parar debaixo de uma caixa de embala­gem, onde permaneceu durante um mês. Ontem, estando eu em casa dos finados Rosemale, apre­sentou-se o mecânico para devolvê-lo, procurando desculpar-se pela demora. Contou-me a história e eu resolvi ficar com o talão, por pura curiosi­dade.

- E daí? - perguntou Chang.

- Havia uma coisa curiosa. Todos os cheques que faltavam no talão tinham a correspondente anotação no canhoto, menos o de número......Z-3426-2787, o qual estava em branco e aquilo me espicaçou a curiosidade. Esta manhã consegui um mandado judicial para que o Banco me entre­gasse o cheque em questão, como prova. Mandei um homem buscá-lo e aqui está.

Davis abriu a gaveta e colocou um cheque ver­de diante de Chang. Este não o tocou. Inclinou-se a olhá-lo.

- É incrível! - disse lentamente.

Por cima de seu ombro estudei o curioso im­presso e comecei a vislumbrar a verdade, a ive­rosímil verdade. Como um autômato, Chang expressou em voz alta o que estava pensando:

- Meio milhão de dólares! Bela soma! como a data era de 25 de marco, isto é, de oito dias atrás, ele acabara de herdar e podia permitir-se esses luxos. Meio milhão! O estranho é que não anota­ra no canhoto nem a quantidade e nem o desti­natário.

- Mas, Chang, não está vendo o que acontece! Essa data!... - minha voz estava trêmula de emoção.

- Sim, meu amigo - disse ele, lentamente. - Estou vendo e compreendo. O cheque tem a data de 25 de março; mas o talão foi perdido por Rosemale no dia 1 de março, vinte e quatro dias antes do que indica a data.

- E então?

- Então, Bill, Rosemale preencheu o cheque em favor de alguém e colocou-lhe uma data que não era a do dia.

- Mas, por quê?

Chang olhou-me com serenidade.

- Teremos que esperar para responder a essa pergunta - disse, tranquilamente.

Davis jogou fora o cigarro e acendeu outro.

- Como é natural - disse - precisávamos conhecer mais coisas a respeito desse singular Frank Donald Rosemale. Por isso chamei seu mordomo, o bom Ames. Está esperando ai fora.

Chang assentiu, de cara fechada.

- Teremos muitas perguntas para fazer-lhe - disse eu, tirando do bolso meu caderninho de no­tas, a fim de apoiar-me nelas para interrogar o mordomo.

Chang sorriu.

- Nada disso, Bill - contradisse-me. - Só lhe faremos uma pergunta. Mande-o entrar.

O tenente apertou o botão que tinha sobre a mesa, junto ao megafone e a porta abriu-se. Um agente uniformizado surgiu ali.

- Diga a Mister Ames que pode entrar. O policial desapareceu, mas a porta não se tor­nou a fechar. Entrou Ames, que, no momento, quase não reconheci, devido à mudança de traje. Já não usava a brilhante libre.

- Sente-se - disse-lhe o tenente. O mordomo assim o fez e nos ficou olhando.

Parecia ter uma grande preocupação e os ossos de seu magro rosto davam-lhe um ar cavernoso.

- Estamos investigando a morte de seu patrão disse Davis e Ames fechou os olhos.

- A morte de seus dois patrões, o velho e o moço - corrigiu Chang. - Queríamos saber al­guns fatos, que podem parecer-lhe indiscretos, mas que são necessários.

- Já nada mais pode prejudicá-los - respon­deu, com cansaço, Ames - Pergunte, senhor.

- Muito bem, Ames - Chang acendeu o ca­chimbo e cravou seu frio olhar na testemunha, - Como eram as relações entre pai e filho?

Ames meditou sobre a pergunta. Depois res­pondeu:

- Bem, senhor. Eles sempre haviam demons­trado bastante afeto um pelo outro. Mas, depois, suas relações modificaram-se um pouco.

- Quando se deu isso?

- Faz alguns meses, cinco ou seis, que tinham começado a brigar, com certa regularidade.

- Por questões de dinheiro?

- Exatamente, senhor. Mister Frank tinha uma mesada de cinquenta mil dólares por ano, para seus gastos pessoais. Mas, parece que ulti­mamente não lhe chegavam e pediu um aumento.

- O que é que fez o pai?

- Negou-lhe, senhor. Era um homem de prin­cípios muito rígidos.

- Bem. Passemos a outro assunto.

Chang revolveu nos papéis que Davis tinha so­bre a mesa. Apanhou a carteira com fotografias que mencionei anteriormente e uma carteira de sócio do clube hípico Belmont, que pertencia ao jovem Rosemale.

- Pode dizer-me quem era Daisy?

Ames perdeu seu ar ausente. Franziu a testa.

- Creio que era a... noiva do patrão - disse.

- Viu-a alguma vez?

- Nunca, senhor. As obrigações de um mordo­mo raramente lhe permitem sair de casa, e Mister Frank jamais a levou lá.

Então, ao contrário do que eu esperava, Chang deu por terminado o interrogatório.

- Obrigado, Ames - disse-lhe. - Sua infor­mação nos servirá de muito. Pode ir embora. Tal­vez, num futuro próximo, eu tenha que incomo­dá-lo novamente.

Ames levantou-se. Fez uma reverência.

- Estou às suas ordens, senhores - disse gra­vemente.

- Verdadeiramente, Chang - lamentei - você não perdeu muito tempo com ele.

- Não e tão pouco fazia falta. O próximo pas­so a dar deve ser, necessariamente, encontrar Daisy. Tome uma dessas fotografias, Davis, e mande tirar alguns milhares de cópias. Distri­bua-as entre seus homens e mande uma porção para a sede do FBI. Não importa que os homens que as recebam estejam trabalhando em outros assuntos. O importante é que tenha a máxima difusão. Quanto mais pessoas conhecerem essa fotografia, tanto melhor. Terminarão por encon­trá-la. E, no mesmo instante, devera ser detida, a fim de podermos interrogá-la.

Davis concordou, mas fez uma objeção:

- Sob que acusação?

- Por haver ocultado provas. Ela recebeu uma carta dirigida ao FBI e a reteve, de modo que não há nenhuma dificuldade.

- Está bem, Chang - Davis acendeu outro de seus cigarros baratos. - Agora, eu gostaria de saber o que vamos fazer com o caso Moore. Foram vocês que nos passaram o homem, um bom assunto, reconheço, mas o "Canguru" man­dou-o para o outro mundo. Sua declaração firma­da referia-se ao compromisso de apresentar pro­vas sobre os crimes de seus companheiros. Morto ele, o resto só tem uma importância relativa.

Chang bateu o cachimbo e esvaziou-o no cin­zeiro, guardando-o depois no bolso.

- Escute, Davis - disse, com certa dureza na voz - tanto o caso Rosemale quanto o de Mo­ore intrigam-me. Ia achar-me muito atrevido se eu lhe dissesse que desconfio que deve haver cer­ta relação entre os dois casos?

- Eu acho - respondi com energia - que não há a menor relação entre um e outro, Chang, a não ser na ordem cronológica. Os dois casos co­meçaram ao mesmo tempo e podem terminar jun­tos. Mas, pensar que a "mafia" esteja por trás de tudo isso...

- Um motnento, Bill! - interrompeu-me Chang. - Não foi isso o que eu quis dizer. Estou convencido de que não é a mesma a mão que guia os dois casos, mas acredito que haja uma relação entre um e outro. Há consequências em um e efeitos em outro.

- "Mafia" e "Contramafia"? - sussurrou Da­vis. - Quem ousaria enfrentar essa tenebrosa irmandade do crime?

- É o que temos que investigar - afirmou Chang, suavemente.

 

O clubb belmont ficava era Kearney, junto ao rio Passaic, não longe de Newark, N. J. As instalações do aeroporto eram divisadas dali, conforme pude ver ao pararmos o carro e descermos. Aquela zona, que cinquenta anos an­tes, quando fora fundado o clube, deveria ser um lugar tranquilo, estremecia agora cada cinco mi­nutos, devido ao tráfego aéreo. Uma cadeia inter­minável de grandes aviões de passageiros ia e vinha do aeroporto de Newark.

Entramos nas dependências do clube e um por­teiro fardado veio-nos ao encontro. Cinco minu­tos depois, estávamos comodamente instalados em poltronas de couro.

- Querem fumar, senhores? - o gerente era gordo e de rosto jovial. Ofereceu-nos magníficos charutos.

Chang preferiu seu cachimbo, mas eu aceitei um dos charutos e acendi-o.

- Posso ser-lhes útil em alguma coisa? - prosseguiu o gerente.

Chang tirou do bolso a fotografia, na qual apareciam Rosemale e Daisy.

- Queremos que nos diga tudo quanto souber a respeito dessa moça - disse.

O gerente examinou a fotografia durante al­guns segundos.

- É o senhor Rosemale - observou lentamen­te. - Era muito conhecido aqui. Um magnífico ginete ultimamente costumava trazer a moça que aparece com ele na fotografia.

- Quem era ela? - perguntou Chang. - Onde Vivia?

O gordo indivíduo ergueu a mão no ar, como pedindo misericórdia para seus atormentados nervos.

- Por favor, senhores! - disse, pomposamen­te. - Na verdade, não sei se devo...

- Serviço Federal - esclareceu Chang, um pouco desnecessariamente. - É importante que responda a nossas perguntas.

- Bem, isso modifica tudo. Na realidade, só conhecíamos bem o senhor Rosemale. Como é natural, nunca nos poderia ocorrer a idéia de fa­zermos investigações nesse sentido. A vida pri­vada de nossos sócios é algo que está fora de nossas cogitações. Entretanto, há uma possibili­dade.

Chang expeliu uma baforada de fumaça e, com o dedo polegar, ajeitou o fumo do cachimbo.

- Continue - pediu.

- Costuma vir aqui um artista, um pintor, chamado Lewis Lamotte. Só pinta cavalos e, na verdade, muito bem. Vai ter um grande futuro, esse moço.

- E daí?

- Ele conhece essa moça. E muito bem, mes­mo.

Chang franziu as sobrancelhas.

- Como chegou a semelhante conclusão? - perguntou, incisivo.

- Pois, eu... - o rosto do gerente ficou vi­sivelmente vermelho. - O senhor é muito... di­gamos... direto, com suas perguntas!

- Não podemos perder tempo - esclareceu Chang, com rapidez. - Pode considerar que tudo quanto nos disser será usado com discrição. Além disso, não é prudente ocultar provas ao FBI. Há unia lei contra isso, senhor.

- Bem, bem, não pretendo ocultar nada. Esta moça sempre estava com o senhor Rosemale e ele parecia loucamente apaixonado por ela. Mui­tas das vozes em que vieram aqui para montar, Lamotte estava pelos arredores e nunca se fala­ram. Mas, uma noite em que ele teve que partir antes da hora habitual, ela ficou até bem mais tarde. Estão vendo aquele banco de madeira, en­tre as árvores?

Apontou para a ampla janela.

- Pois ali estavam os dois, ela e Lamotte.

O gerente inclinou-se para a frente e baixou a voz.

- E estavam-se beijando! - terminou triunfante.

- Onde podemos encontrar Lamotte? - per­guntou Chang.

- Nas cavalariças. Ele hoje veio muito cedo. Mandarei que alguém os acompanhe.

Apertou uma campainha e surgiu um "boy", de uns dez ou doze anos.

- Acompanhe esses senhores às cavalariças, Mickey. Procuram o senhor Lamotte - foram as instruções do gerente.

- Obrigado - disse Chang.

- Às suas ordens, cavalheiros.

Saímos do prédio e o garoto levou-nos às ca­valariças.

O pintor estava em um dos ângulos, esboçando na tela uma cena para o quadro que tinha di­ante de si, num cavalete. Um moço estava exa­minando os cascos de um soberbo potro, com um puxavante.

Chegamos ao lado dele.

- Senhor Lamotte? - perguntou Chang. Respondeu com um movimento, mas sem vol­tar a cabeça.

- Queremos falar com o senhor.

- Estou trabalhando - falou, com uma voz profunda e bem timbrada.

- Nós também. Mas podemos esperar. Afastamo-nos um pouco e o artista continuou pintando. Uns dez minutos depois, largou os pin­céis e aproximou-se de nós.

- Disponho de pouco tempo essa manhã - observou de maneira casual, mas firme.

Chang não se perturbou. Apanhou a carteira de fotografias e mostrou uma a Lamotte.

- Procuramos essa moça.

O pintor permaneceu impassível.

- E quem são os senhores? - perguntou com ironia.

- Agentes federais - disse Chang. - Sabemos que nos pode dar informações, pois conhecia a moça.

- É mesmo?

- Ninguém beija uma moça, a menos que a conheça, sem que se arme um escândalo. E quando os viram beijando-se, debaixo daquelas árvores - Chang apontou na direção indicada - ela não lhe opunha a menor resistência. Es­cute, Lamotte, não tem obrigação de responder, se não quiser, mas, em tal caso, iria receber uma intimação, assinada pelo promotor público.

Lamotte assentiu lentamente. Agora havia per­dido seu ar agressivo.

- Trata-se desse desgraçado caso de Rosemale, não é? Pelos jornais fiquei sabendo que ele suicidou-se.

- Exato - assentiu Chang. - Só queremos algumas informações.

- O que querem saber? - perguntou.

- Tudo.

- Eu gostava dela - explicou. - Mas ela pre­feria, ou julgava preferir, o milionário. Em duas palavras: história acabada. Depois, Rosemale sui­cidou-se e ela desapareceu.

- Como? - aquilo nos interessou tanto, que deixei escapar a exclamação sem nem sentir.

- Desapareceu. Eu a via de vez em quando. Algumas vezes em sua casa e outras em meu es­túdio. No dia seguinte ao do suicídio de Rosemale, fui procurá-la em casa e ela não estava. Desde então, não mais voltou e não conheço seu para­deiro.

- Dê-me seu endereço e o de Daisy - orde­nou Chang.

- Meu estúdio é na rua Cinqüenta e Dois, Oeste, número 162 - foi a tranquila resposta. - Ela mora no número 87 da Sexta Avenida.

Anotei as direções em minha caderneta e ma­ravilhei-me de quanto é pequeno o mundo. Daisy vivia muito perto de meu antigo apartamento de solteiro, que agora era ocupado por Chang.

Rapidamente meu companheiro agradeceu a Lamotte por suas informações e saímos do clu­be. Quando partimos, não precisei perguntar qual seria nosso próximo destino.

- Vamos à Sexta Avenida, Bill - disse-me Chang. - Não importa que ande depressa.

Pisei no acelerador e voltamos para Nova Ior­que. Não pude deixar de me perguntar que as­pecto teria a casa da loura Daisy.

Certamente, não esperava que fosse tão luxuo­sa como o era na realidade. O 87, da Sexta Ave­nida, tinha uma aparência discreta. Chang inda­gou na portaria e soubemos que o quinto andar era o que nos interessava.

O elevador conduziu-nos para lá. Quando pa­rámos diante da porta, meu amigo apanhou um estojo de couro vermelho e escolheu, entre ou­tras, uma gazua de aço azulado, bem tempera­do, especialmente fabricada para nosso Depar­tamento. Fariam inveja a qualquer ladrão pro­fissional.

Um momento depois, a porta abriu-se silen­ciosamente e entramos. Enquanto eu tornava a fechá-la, Chang avançou e ouvi que dava um assobio de espanto.

Não era para menos. Aquilo não se via todos os dias. Magníficos móveis de ébano e teca, al­gumas autênticas antiguidades chinesas. Qua­dros com molduras de prata, tapetes de Caxemi­ra e da Pérsia; até um par de peles de tigre, cujas cabeças dissecadas pareciam vivas.

- Nada mal o refúgio da pobre Daisy! - ex­clamei.

- Pois olhe para isso - observou Chang, abrindo a porta do banheiro. - Banheira de már­more, em forma de concha. E as paredes reco­bertas de nacar.

Era evidente que Daisy saíra a toda pressa de casa. Num armário encontravam-se dois abrigos de "vison" legítimo.

- Sentemo-nos um instante para nos acalmar­mos - sugeriu Chang. - Que, diabos, levaria essa moça a desaparecer tão rapidamente? Ne­nhuma mulher abandona coisas, num valor de milhares de dólares, se não for para salvar algo que vale muito mais.

- Talvez - disse eu - fosse a própria vida o que ela queria conservar.

- Uma boa idéia. Que horas são?

- Meio dia e meia - respondi.

- Muito bem. Não está com fome? - Claro que eu estava.

- Então - prosseguiu Chang - o melhor será que compre alguns sanduíches, de preferên­cia que sejam de presunto, e uma dúzia de gar­rafas de cerveja.

- Ficamos aqui?

- Ficamos, amigo. Ela voltará. Ou alguém apa­recerá por aqui, para recolher o que valha a pena ser levado.

Não quis esperar mais. Parti para a rua e en­trei num restaurante que havia pouco mais adi­ante. Comprei os sanduíches e a cerveja. O em­pregado embrulhou tudo e parti para o aparta­mento de Daisy, a bela desconhecida que tanto nos intrigava.

Deixei tudo na geladeira da cozinha.

Aproximei-me do quarto de banho e olhei fas­cinado para a banheira em forma de concha.

- Como se banhará alguém aí dentro? - perguntei a Chang.

- Por que não experimenta? Se gostar, tal­vez eu também tente um mergulho.

- Não sei se falava por troca. Mas aquilo me agradou. Comecei a tirar a roupa e abri a tor­neira de água quente que era de bronze e tinha a forma de um pássaro.

E dez minutos depois, eu estava dentro da enorme concha, esfregando-me as costas com a escova de cabo nacarado que encontrei ali, usan­do o perfumado sabonete francês de Daisy.

 

Acabei o banho e vesti-me. Estava faminto. Penteei-me rapidamente e saí do banheiro, como um ciclone, disposto a terminar com os restos que Chang teria deixado.

E tive uma das impressões mais fortes de mi­nha vida. Chang continuava sentado como antes. E sobre a mesinha estavam os comestíveis. Mas, atrás dele, havia um homem, apontando-lhe um "45"!

À minha direita, com as costas grudadas à parede, outro indivíduo dirigia as negras bocas de uma espingarda de dois canos para minhas costas. Senti que toda a carne daquela parte se me tornava rija.

- Dê volta e apoie as mãos na parede - advertiu-me aquele sujeito, falando pelos can­tos da boca.

Obedeci lentamente. Era o único caminho que me restava. O "gangster", utilizando uma só mão e com os canos da espingarda apoiados em minhas costas, livrou-me do peso da "Luger". Ouvi a seguinte ordem:

- Sente-se ao lado de seu companheiro.

Bem, já estávamos sentados, um junto ao ou­tro, esperando por algo que não iria ser agra­dável.

- Onde está a moça? - perguntou o sujeito da pistola.

- Sinto muito, Beppo - sorriu Chang. - Não sabemos nada sobre ela. Estávamos, preci­samente, esperando-a.

- Você me conhece? - perguntou este, com certa surpresa.

- Sua cara e a de seu amigo - contestou Chang, serenamente - não são das que se esquecem, meu caro. Beppo Leone e Murizio Bellini. Há alguns retratos de vocês nos fichários, com um número embaixo. Parece-me que, mais cedo ou mais tarde, vão ter algumas férias gra­tuitas, a cargo do Tio Sam, se antes não forem assados na "cadeira". Sabe, quem mal anda, mal acaba. Faz pouco, estive conversando com seu parente, Bellíni, aquele pobre Moore, para quem deram o passaporte, juntamente com dois poli­ciais.

- Moore era um imundo traidor - interveio Beppo. - Teve o fim que merecia. Então vocês são "tiras", hem?

- Agentes Federais - corrigiu Chang. Bellini sacudiu os ombros nervosamente. Era como se o paletó não lhe assentasse bem.

Beppo, em troca, não pareceu impressionar-se. Aproximou-se da mesinha e apanhou o telefone. Discou um número e esperou. Depois falou:

- Sou eu, chefe. Estamos na casa da moça e apanhamos dois tipos que estavam aqui. São "tiras". Sim, federais. O.K., chefe.

Desligou e examinou-nos com seus olhos de lagarto.

- Vão ficar bem arranjados - disse. - Va­mos deixá-los aqui. São ordens do chefe. Po­nham as mãos para trás do encosto do sofá.

Nossas mãos ficaram balançando atrás do encosto e Bellini prendeu-as com nossas próprias algemas. Depois, arrancou os cordões das corti­nas e amarraram-nos ao móvel. Empregaram todas aquelas sólidas cordas de seda, muito re­sistentes, para nos converterem numa espécie de múmias egípcias.

Depois, como se tudo estivesse planejado de antemão, procuraram no bar e apanharam duas garrafas. Fixei as etiquetas. Uma continha exce­lente uísque de Kentucky, que muito me alegraria se o tivesse encontrado em outra ocasião. A outra era de rum.

- Busque um saca-rolhas, na cozinha - or­denou Beppo.

Bellini desapareceu por cinco minutos. Quando regressou, trazia o instrumento que o companhei­ro lhe havia pedido. Um saca-rolhas de metal, de regular tamanho. Beppo destapou a garrafa de "Rhum Jamaica" e aproximou-a de meus lábios.

- Beba! - disse.

- Obrigado. Não estou com vontade de beber, tão cedo assim, amigo - respondi.

Ele puxou a faca de mola. Acabou-se. Eu teria de beber o rum por bem, se não quisesse que me arrebentasse os dentes com a lâmina da faca, com o que, tão pouco, evitaria tragar o conteúdo da garrafa.

- Muito bem, moço - sorriu Beppo.

A garrafa, mantida por Beppo, esvaziou-se. Per­cebi, então, que bebera álcool suficiente para estou­rar. Com que objetivo quereriam embebedar-me, tão bestialmente?

Que calor enorme sentia eu no estômago! Voltei a cabeça e vi que Chang estava sendo submetido ao mesmo tratamento, mas para ele havia tocado o uísque. Sempre tinha sorte. Comecei a rir estupidamente e meu cérebro cessou de pensar.

Foi como se meu corpo atingisse proporções gigantescas. Converteu-se num arranha-céu, maior do que o Empire State e eu, meu verdadeiro eu, estava sepultado sob o cimento. Só me restavam as janelinhas para contemplar o mundo exterior. Mas as janelas fachavam-se de quando em quan­do e eu estava tão longe delas que mal podia ver.

Depois, comecei a flutuar. A flutuar no espaço. Durante séculos estive voando lentamente, con­vertido em globo. De repente, o globo deslizou para o solo. Alguma coisa, bem dentro de meu cérebro, indicou-me que o choque seria mortal. Mas eu nada podia fazer para evitá-lo.

E o final chegou. O universo rebentou-se em pedaços. E tudo era negro. A chama da explosão, o céu, a terra e o som - também o som! - tudo se converteu num profundo abismo, Deixei de sentir. Deixei de .existir.

Estava morto.

Morto? Um momento! Quando se está morto, a cabeça não dói!

E a minha estava doendo!

Experimentei abrir um olho. A pálpebra pesa­va-me como um par de toneladas. Não obstante, consegui levantá-la. Infelizmente tornou a cair em seguida. Fiz novo esforço. Abri os dois olhos. Bem perto de mim havia um rosto. Katinka, minha mulher, com os olhos menos brilhantes que de costume. Mas sorria e me olhava.

E! não estava morto!

Até que, por fim, tudo passou. Acordei, afastando-me da região perdida e voltando à vida. Katinka me sorriu outra vez. Pude falar e mover-me. Foi um grande dia.

Naquela tarde, Chang entrou no quarto e sen­tou-se perto de minha cama.

- Pensei que você nunca mais ia descer das nuvens - disse-me, rindo. - Não devia beber tanto.

- Não foi tão tremendo assim - respondi. - O rum deve ter-me sentado mal. E quebrei a ca­beça. É a primeira vez que passo quatro ou cinco dias na cama.

- Quatro ou cinco dias? - sorriu Chang. - Essa bandagem na cabeça significa mais do que isso. Porque, desde que aqueles bandidos nos agarraram na casa de Daisy, já se passaram cin­co semanas.

A notícia espantou-me verdadeiramente. Cinco semanas. Deus meu!

- Mas, o que foi que aconteceu? - perguntei.

- Aqueles sujeitos nos deram uma bebedeira fabulosa - prosseguiu Chang. - Depois, nos leva­ram para dar uma volta. Você se lembra dos despenhadeiros que há algumas milhas adiante de Caldwell? Pois, ali terminaram o trabalho. Eles nos meteram no seu carro e nos deixaram cair num precipício.

- O que houve com Daisy? - perguntei. - Imagino que Lamotte, o pintor de cavalos, deve ter acabado por falar claro.

- As coisas não marcham bem, Bill - foi a surpreendente revelação. - Daisy desapareceu. E Lamotte está na prisão. Devia ter mais amiguinhas. Uma delas, chamada Delia Bates, foi assas­sinada no escritório, em que trabalhava para os lados do cais, com um tiro na nuca. A polícia me­tropolitana encarregou-se do caso e agarrou La­motte. Um trabalho fácil, parece, mas que a mim não me satisfez. Lamotte não é um tipo capaz de fazer semelhante coisa, pelo menos não daquele modo. Mas o promotor conhece seu ofício e tran­cou-o. Muito bem.

- E então?

Tudo marchou com relativa rapidez. Lamotte foi condenado à morte. Dentro de doze dias, e como a apelação foi recusada, terá que sentar-se na cadeira elétrica, se alguém não o impedir. É bas­tante complicado tentar explicar o que penso do caso, porque não disponho das provas necessárias, mas tudo está bastante claro e é demasiado opor­tuno. Lamotte era um ponto de contato com a desaparecida Daisy, um degrau que poderia con­duzir-nos a ela. Isso poderia ser muito perigoso para alguém.

- Para quem?

- Para a pessoa ou pessoas que tivessem algu­ma coisa com a morte do velho Rosemale e com o suicídio de seu filho; os mesmos que cobraram um cheque de quinhentos mil dólares por um tra­balho que ainda não conhecemos.

- E para os tipos que quiseram despachar-nos para o outro mundo. Lembre-se de que Beppo Leone e Maurizio Bellini são executores da "mafia".

- Quer dizer, eram - informou Chang. - Apareceram mortos em Albany. Alguém deu-lhes o passaporte para o outro mundo e meteu-os num trem de carga. Não podemos saber se foi para suprimir testemunhas importunas, ou se descobri­ram que estávamos vivos e trataram de evitar a captura dos dois bandidos.

- Eu perdi muitas coisas, Chang - lamen­tei-me.

- Assim é, meu amigo. E ainda vai perder mais algumas, pois terá que ficar inteiramente recuperado, antes de começar a trabalhar. Segundo o médico, antes de uns seis dias você não estará em condições de fazer nenhum esforço. Enquanto isso, não penso perder de vista o caso Lamotte. Es­pero chegar a conclusões surpreendentes.

Katinka entrou no quarto. Cumprimentou Chang e me disse:

- Vamos embora, querido. Voltemos para casa. O médico autorizou a transferência e a ambulância está esperando.

Sorri para meu companheiro e acendi um cigar­ro, o primeiro depois de tanto tempo.

- Duro com eles, Chang! - animei-o. - Den­tro de alguns dias poderei ajudá-lo.

Chang apanhou o chapéu e aproximou-se da porta. Ali parou um momento para dizer:

- Sem você eu me aborreço muito. Estava acostumado a ouvi-lo dizer asneiras de vez em quando, e sem elas não consigo arranjar-me.

Joguei-lhe o travesseiro e ele foi-se embora. Bem, agora para casa.

 

O guarda abriu a porta de grades e eu me per­guntei se seria a última. Desde que entrára­mos na prisão de Sing-Sing, não menos de dezesseis grades tiveram de ser abertas para que chegássemos a nosso destino.

O guarda convidou-nos a entrar. Ao primeiro olhar compreendi que estávamos já em nossa meta. Aquilo era o que na gíria criminal se cha­ma de "casa da morte", a ala da prisão destinada aos condenados à pena máxima.

De um lado e outro do corredor estendiam-se as celas, quase todas vazias. Ao fundo estava uma pequena porta, pintada de verde. Paramos diante de uma das celas e outro guarda reuniu-se a nós. Abriram-se as grades e um dos guardas disse: - Tem visita, Lamotte.

A advertência era dirigida ao homem sentado numa enxerga. Ergueu a cabeça e olhou-nos com ar de fera encurralada, embora sem falar e nem responder à saudação. A porta tornou a fechar-se e ficamos os dois com o condenado.

- Imagino que deve saber por que estamos aqui, Lamotte.

- Sim - respondeu ele, sem o menor sinal de emoção.

- Tem alguma coisa a dizer?

Lamotte afastou o olhar das grades e cravou-o em Chang. Depois, tão secamente como o estalo de um chicote, soltou outro monossílabo:

- Não.

Chang abanou a cabeça.

- Você foi condenado à morte - observou len­tamente - com base em provas circunstanciais, fortes, mas só circunstanciais. Estudamos o caso, chegando a uma conclusão.

Como se costuma dizer, "aquilo não estava im­presso". Às vezes, o sistema de investigação que Chang utiliza, difere muito do estabelecido. E aquele parecia um desses casos. Estudei a fisiono­mia, pálida e transformada, de Lamotte. Vi-o encolher os ombros.

- Você não é culpado - terminou Chang.

O condenado pês-se em pé e deu alguns passos pela cela. Parou e olhou para Chang.

- É inútil, senhor - disse lentamente. - Não tenho nada a dizer. Dentro de seis dias atravessa­rei a porta verde e sentarei na cadeira elétrica. Isso é o que diz a lei. Só peço que me deixem em paz.

Chang assentiu com a cabeça.

- Compreendo - concedeu. - Vamos deixá-lo em paz, se responder a duas perguntas.

Lamotte sorriu de leve. Antes que pudesse falar, Chang prosseguiu:

- Duas perguntas sem importância.

- De acordo. Responderei às duas., se forem sem importância.

- Diga-me, Lamotte: você morou em algum lu­gar, além de na casa de hóspedes onde a polícia o prendeu?

- Aquele foi meu único domicílio, nos últimos seis meses. Mas aluguei uma velha cabana em Pompton Lakes e ali passei quase todos os fins de semana.

Eu já estava com minha caderneta na mão, to­mando nota de tudo.

- Bem, vejamos a segunda pergunta: Quem sabia da existência da cabana?

Lamotte fumava tranquilamente, como se não tivesse ouvido. Chang insistiu:

- Alguém o sabia?

- Sim.

- Quem?

- Essa é a pergunta número três, senhor. O trato compreendia só duas.

Meu companheiro assentiu. Fez um sinal ao guarda e as grades abriram-se para nos deixar passar. Uma vez fora, Chang sorriu para o prisio­neiro.

- Sabe de uma coisa, Lamotte? - disse suave­mente. - A porta verde, que há no fundo do cor­redor, a entrada para a cadeira elétrica, não se abrirá para você.

Lamotte sorriu também, com ar de dúvida.

- Não? — murmurou.

- Não. Não chegará a atravessar essa porta. Dou-lhe minha palavra.

Saímos andando corredor afora afastando-nos da "casa da morte". Uma lancha transportou-nos para a outra margem do rio Hudson, onde havíamos deixado o carro. Entramos nele e eu me dispus a partir. Lancei um olhar para a sombria ilhota, onde se erguia a prisão de Sing-Sing.

- Você deve ter elaborado um plano fabuloso, Chang - disse-lhe quando saímos dali. - É ver­dade que vai arrancar Lamotte de Sing-Sing?

Chang estava acendendo seu velho e pestileota cachimbo. Sorriu de leve e confirmou com a ca­beça.

- Hei de fazê-lo, Bill - confessou. - Mas não tenho na cabeça nada que se assemelhe a um plano. Será uma questão de pensar. Vamos para Pompton Lake. Precisamos dar uma olhada na cabana de Lamotte.

Pompton Lake fica a vinte e cinco milhas de Nova York, na estrada 202. Descemos para to­mar a ponte de George Washington. Depois, já no território de New Jersey, tomamos o rumo noroeste. Meu carro de corridas não tinha rival em uma boa estrada, mas recordando-me que Chang não gosta de minha maneira de conduzir o do intenso tráfego daquela hora, não passei de trinta quilômetros por hora.

Chegamos a nosso destino uma meia hora de­pois. Em redor do lago estavam disseminadas numerosas construções, sendo algumas delas ver­dadeiras cabanas de troncos. Deixamos o carro no estacionamento da estrada e nos dirigimos a pé para a primeira cabana da fileira.

Um homem, sentado num degrau do portal, lia um jornal. Percebeu que íamos em sua direção e não desviou o olhar de nós. Quando chegamos perto, Chang cumprimentou, fazendo um comen­tário sobre o tempo, que estava realmente bom.

- Desejo fazer-lhe algumas perguntas, se não vir inconveniente nenhum - pediu.

Aquele tipo, um velho de cabelos brancos, ma­gro como um palito, cravou em nós seus olhinhos desconfiados.

- Inconveniente nenhum, amigos - foi a sur­preendente resposta. - A cabana de Lamotte fica no final do estacionamento. Estão vendo aquele pinheiro solitário? Pois é à direita.

- Vejo que está informado do que ocorre - observou Chang.

- Claro! Aqui nós também lemos jornais. Te­nho certos instintos de detetive. Vejam um exemplo: os senhores não são policiais. Talvez sejam advogados.

- Nada lhe escapa! - sorriu Chang. - Obri­gado pela informação.

- Pode ser que tropecem com outros - res­mungou o velho.

Chang deteve-se, imediatamente.

- Que outros?

- Chegaram dois sujeitos pouco antes - ma­nifestou o velho. - Estão grudados na cabana de Lamotte, há uns dez minutos. Eu os vi de minha janela.

Chang perdeu seu ar distraído no mesmo ins­tante.

- Vamos! - disse-me.

E saiu correndo para a cabana.

A casa parecia deserta. Portas e janelas perma­neciam hermeticamente fechadas. Estávamos diante da porta dos fundos, a uns cem metros de distância.

- Devem ter um carro aqui por perto - sugeriu Chang. - Será o melhor lugar para esperá-los.

E no entanto, apesar da certeza de que não poderia estar longe, o veículo não era visto pelos arredores. O estacionamento estava vazio, o mes­mo acontecendo com a estrada.

Mas a terra estava macia e úmida. Logo de­pois encontramos a explicação. Haviam levado o carro para fora da estrada, através do bosquezinho, ocultando-o num fosso. As marcas dos pneus levaram-nos até ele, rapidamente. Era um "sedan" de seis lugares, pintado de negro.

Chang experimentou uma das portas traseiras. Não estava fechada. Deslizamos para a parte traseira, escondendo-nos o mais que pudemos.

Meu companheiro tinha na mão seu revólver "38". E eu preparei minha fiel Luger para o que pudesse acontecer.

Ouviu-se um leve rumor entre as árvores. De­pois, o ruído de passos aproximando-se do carro. Deviam vir a toda a pressa, andando com nervo­sismo.

Já estavam ali! Quase simultaneamente, as portas dianteiras do carro abriram-se e entra­ram os dois misteriosos visitantes da cabana - Ainda não se havia extinguido o eco das batidas das portas que deram ao fechá-las e o carro já estava em marcha, deslizando cuidadosamente através das árvores.

Os pulos que íamos dando, acabaram-se logo. O carro estabilizou-se e aumentou de velocidade. Acabávamos de sair da estrada. Era o momento. Chang fez-me um sinal e eu me preparei para saltar, como um boneco de uma caixa de sur­presas.

- Agora!

Erguemo-nos como impelidos por molas de aço. E cada um de nós apoiou o cano da pistola na nuca dos bandidos.

- Parem o carro! - a ordem de Chang domi­nou o ruído do motor.

Não pararam! O sujeito que estava ao vo­lante, apertou o acelerador até o fim e o carro saltou para a frente, como um animal ferido.

Era necessário agir com toda a pressa. Deixei cair o cano de minha Luger na copa do chapéu que tinha diante de mim. O homem encolheu-se imediatamente, deixando-se cair para um lado. Saltei para o banco da frente. Estávamos andan­do numa velocidade suicida. Era preciso parar.

De muito pouco serviam as pistolas, naquele momento. A última coisa que poderíamos fazer, seria atirar no motorista. Guardei a Luger num dos bolsos do paletó. E estendi a mão direita.

Observei a cara do "gangster". Tinha um per­fil de águia e era muito moreno, como um ita­liano. Passei os dedos em redor de seu braço direito. Agarrei o forte bíceps e apertei o mús­culo pela parte interna. Ninguém seria capaz de aguentar semelhante presa de "jiu-jitsu".

O homem empalideceu e abriu a boca. Gros­sas gotas de suor começaram a brotar de sua estreita testa. Admirei seu domínio dos nervos. Em cada cem homens, pelo menos noventa e cinco teriam começado a gritar.

Ele não gritou. Mas seu pé foi-se afastando do acelerador e o carro dominuiu de velocidade, pouco a pouco. Antes que parasse de todo, Chang saltou para a estrada e abriu a porta da frente. Disparei o punho. E aquele tipo foi projetado, caindo fora.

Em questão de um segundo, passei a mudança para ponto morto, puxei o freio e desliguei o motor. Saí do carro e arrastei o outro bandido para fora. Chang me esperava, tendo o outro sob a mira de seu revólver.

Examinei o tipo que eu acariciara com a co-ronha da Luger. Tinha o chapéu enfiado até às orelhas, certamente pelo efeito do golpe. O feltro devia ter amortecido bastante o golpe, porque já dava sinais de recobrar os sentidos. Revistei-o com toda a rapidez, retirando-lhe o achatado Colt que estava sob seu braço esquerdo. Desar­mei também o outro.

- Procure no carro, Bill - disse-me Chang.

- O que espera encontrar? - perguntei, sor­rindo.

- Um pacote pequena e pesado. Provavelmen­te, enrolado em jornal.

 

Estava ali, no porta-luvas. E envolto em jor­nal, como dissera Chang. Pesava bastante. Pelo formato, compreendi que se tratava de uma pistola automática.

Voltei para o lado de Chang. Os dois bandidos estavam em pé, olhando-nos com suas feições inexpressíveis. Nem talhadas em bronze teriam sido mais impassíveis.

- Muito bem - meu companheiro meteu o pacote no bolso. - Algeme esses dois e vamos buscar o carro.

Num instante prendi-lhes os punhos nas costas e subimos para o carro. Enquanto Chang dirigia, eu, na parte de trás, cuidava para que os bandi­dos não nos pregassem alguma peça desagradá­vel. Chegamos junto ao lago em vinte minutos. Embora meu carro de corridas não seja muito espaçoso, conseguimos entrar os quatro nele.

Desta vez, eu tomei o volante.

- Vamos ver Girty - disse-me Chang. Pisei o acelerador e saímos a toda velocidade, rumo a Nova Iorque.

Uma vez na sede do FBI, deixamos os prisio­neiros bem guardados e subimos para o gabi­nete do inspetor. Estava, como de costume, revol­vendo papéis, que lhe enchiam a mesa. Ergueu a cabeça quando entramos.

- Alô, Chang! Como vão as coisas, Bill? - tinha o hábito de empregar um tom jovial, de quando em quando, embora seu temperamento fosse mais sombrio e fechado. Todos tinham gran­de respeito por Girty.

- Estivemos fazendo algumas investigações, inspetor - informou Chang. - Fomos ver La­motte. Ele enfrenta a situação com muita cal­ma.

Girty ofereceu-nos cigarros e acendeu um.

- Este caso é um dos mais estranhos - co­mentou. - Desde o principio, tudo marcha às avessas. Ele lhes disse alguma coisa interessante?

- Ainda não sabemos. Quero dizer, se é in­teressante. Confessou que tem uma cabana alu­gada, lá por Pompton Lake. Visitamos o lugar.

Girty olhou-nos pensativo. Nada perguntou, es­perando que Chang dissesse tudo quanto sabia.

- Alguém se havia adiantado a nós. Dois tipos, que parecem "gangsters" de cinema. Estão lá embaixo.

O inspetor lançou um grunhido.

- De que vamos acusá-los, Chang? - excla­mou, um tanto irritado.

- De nada. Espero que se possa dar a maior publicidade à prisão dos dois. Que possam utilizar o telefone e chamar seus amigos. Será interessan­te ver que espécie de gente se preocupa por sua sorte.

Girty meditou um instante. Depois, dando uma sacudida no cigarro para livrá-lo da cinza, per­guntou:

- Acha que vamos chegar a alguma coisa, com tudo isso?

- Naturalmente, inspetor - afirmou Chang.

- Mas desde que possamos pôr Lamotte em liberdade.

Girty exibiu os dentes, numa careta que queria parecer um sorriso. Tomou um pacote de folhas datilografadas, colocadas em pastas e abriu-as.

- O assassinato de Delia Bates foi investigado pela polícia metropolitana - explicou, um tanto desnecessariamente, pois já conhecíamos o caso.

- Ela trabalhava como secretária na companhia de navegação ERIC. Às seis da tarde, quando o dia de trabalho estava acabado, o chefe, Mr. Ellis, chamou-a pelo telefone interno. Ninguém respondeu. O homem foi buscá-la e encontrou a porta do gabinete de Delia fechada. Olhou pela fechadura e chamou a polícia. Acabara de ver a moça estendida no chão. Quando os agentes chegaram e forçaram a porta, encontraram Delia com uma perfuração na nuca, produzida por uma bala calibre 32. Investigações posteriores demons­traram que a moça fora vista com um tipo cha­mado Lamotte. Procuraram-no. Não pôde expli­car onde passara a tarde. Tinha em seu poder um isqueiro de Delia. Isso não significava nada, mas um de seus ternos tinha manchas de san­gue que, uma vez analisadas, resultaram ser do mesmo tipo que o da moça. Aparentemente, tra­ta-se de um caso bem simples.

Girty esmagou o cigarro contra o cinzeiro e olhou-nos de cara fechada.

- Mas - prosseguiu - nós temos outro ponto de vista. A porta estava fechada. Por quê? Não foi encontrada a arma. Lamotte fechou-se num mutismo absoluto, sem tratar de defender-se. Isso não tem lógica. Parece até que ele dese­jasse ser condenado, para evitar um perigo maior. Mas, que perigo poderá ser maior do que a morte na cadeira elétrica? A única explicação cabível seria que Lamotte receia trair-se ao falar. É como se nada soubesse do caso e não quisesse que nós descobríssemos seu desconhecimento.

Chang concordou. Contemplou a nuvem de fu­maça azul que se desprendia de seu cigarro. Havia uma curiosa expressão em seus olhos oblíquos. Uma expressão que eu conhecia demasiado.

- É isso mesmo, inspetor - disse com sua­vidade. - Porta-se como se fosse inocente. Sabe que lhe prepararam uma armadilha, mas não pode defender-se, porque isso significaria termos que buscar outro culpado. E ele quer salvar esse culpado.

- Exato, Chang. Dentro de seis dias, Lamotte irá sentar-se na cadeira elétrica e tudo estará terminado.

- A menos - sorriu Chang - que conseguíssemos inocentá-lo. Se o pudéssemos fazer, a força oculta que o empurra para a morte seria obri­gada a agir.

O inspetor Girty projetou o queixo para a frente.

- Tem alguma idéia? - perguntou, apres­sado.

- Tenho, inspetor.

- Então, ponha-a em prática! Dou-lhe carta branca nesse assunto. E isso se estende a Mac Patrick também.

Chang pôs-se em pé e eu o imitei. Lembrei-me de que ele não dissera nada sobre o pacote que os bandidos levavam e que havíamos capturado. Abri a boca para dizer uma das maiores asneiras de minha vida:

- Você esqueceu o pacote...

Chang interrompeu-me com o simples método de me pisar no pé direito com o salto do sapato, fazendo-me ver estrelas.

- O pacote é nosso, Bill. Ouviu bem - sorriu tranquilamente.

- É isso! - resmungou Girty. - O pacote é de vocês, arranjem-se com ele!

Saímos do gabinete do inspetor e não pude evitar um olhar de reprovação para meu amigo.

- Sinto muito, Bill, mas era preciso - aquilo parecia uma explicação, mas não o foi de modo algum. - Você sabe o que se ensina às crianças quando começam a falar. "Coma e cale-se". Te­mos que nos pôr ao trabalho e de bocas fechadas.

Decidi que não valia a pena responder e enceirei-me num mutismo cheio de dignidade. Su­bimos no carro e Chang perguntou-me:

- Tem alguma câmara pneumática que não lhe sirva, Bill?

- Mais de uma. Você sabe que eu as troco cada três mil quilômetros - respondi.

- Colossal! - Chang era um admirável lin­guista e agora atravessava uma fase germânica.

- Não vai pensar em transformá-la em bodoque para caçar passarinhos - respondi-lhe, na maneira mais irônica possível.

Chang desiludiu-me, sorrindo e respondendo:

- É exatamente o que vou fazer. Vamos a sua casa. Assim poderei cumprimentar Katinka e, de passagem, aproveitar para levar a câmara velha.

Isso foi tudo o que falamos durante o tra­jeto. Em parte, porque eu ainda estava ressenti­do com aquela pisada que êle me dera no ga­binete de Girty e de outra, porque Chang estava pensativo, baralhando idéias dentro de seu cére­bro incansável.

Atravessamos as ruas congestionadas da cida­de, para tomar o "Queens boro Tunnel". Do ou­tro lado, em "Long Island" eu havia comprado uma bonita casinha onde morava com minha mulher, desde nosso casamento, há uns três me­ses.

Quando parei o carro junto à beira da calcada, vi Katinka no jardim cuidando de um canteiro de flores. Viu-nos chegar e acenou para nós. Depois, veio ao nosso encontro e nos esperou no portão.

- Já era hora que você trouxesse Chang aqui - disse e voltou-se para beijá-lo.

- Como vai, Katinka? - disse meu amigo. - Estou vendo que o casamento lhe fez muito bem.

Katinka riu alegre e saímos andando pelo ca­minho de mármore que atravessa o jardim, em direção à casa.

- Não sei por que você deve beijá-lo, cada vez que vem aqui - resmunguei. - No fim de con­tas, Chang só é nosso padrinho de casamento.

- O gorila de seu marido não gosta disso - sorriu Chang - mas não precisa se importar com ele. Porque eu gosto. Vamos para a gara­gem, Bill.- Temos que ajustar contas.

Agarrou-me pelo braço e me puxou. Eu já havia esquecido a câmara velha que ele queria. Katinka ficou no meio do caminho, um tanto sur­preendida.

- Vou preparar as bebidas - disse e conti­nuou andando para a casa. Uma idéia deve tê-la assaltado, porque se deteve e gritou:

- Ei, dupla de malucos!

Já estávamos dentro do reduzido espaço da garagem. Pus a cabeça para fora.

- O que é que há?

- Nada de brigas, meninos, senão vão ter que se ver comigo! Fiz-lhe uma careta. - Não, por minha parte. Se você gosta dos beijos dele...

Voltei para junto de Chang e ouvi que ela ria ao entrar em casa.

Remexi as câmaras velhas e escolhi uma em perfeito estado. Chang examinou-a e aprovou:

- Perfeito. Servirá muito bem. Escute, Bill, preciso de seu carro e vou levá-lo.

- Agora?

- Agora mesmo.

- Mas Katinka quer conversar um pouco. Ela sempre tem suco de tomate pronto, para quando você chega, já que não bebe álcool, e vai ficar furiosa se sair à francesa.

- O tempo urge, amigo. Diga-lhe que voltarei com mais calma e não vá ter a idéia de dizer-lhe que foi por isso que vim aqui Não diga a nin­guém. E quanto a você, nunca ficou sabendo que eu levei esta câmara, entendeu?

- O.K.! - respondi.

- Por volta das quatro da tarde - é meio-dia agora - voltarei. Se tudo correr bem, telefo­narei ao tenente Davis para que me espere aqui. Não se espante quando o vir chegar.

- Já nada mais me espanta - sorri, mas eu estava enganado. Chang é sempre surpreendente, como havia de demonstrar pouco depois.

Vi-o sair no carro e fui para junto de Katinka. Ela me viu entrar sozinho no "living".

- Onde está Chang? - perguntou-me, cheia de surpresa.

- Foi embora. Você o conhece e sabe que quando está seguindo uma pista não descansa nunca. Disse que voltará essa tarde e que pensa convidar Davis para não sei o quê. Pro diabo! Primeiro, beija minha mulher, quando lhe dá gana. Depois, utiliza minha casa para convidar amigos.

Katinka desandou a rir. Sabe que sou um humorista... às vezes... e isso a diverte. Apro­ximou-se de mim e me beijou.

- Seus pais erraram quando lhe puseram o nome de Bill - disse. - Devia chamar-se Otelo Mac Patrick. Isso é que lhe servia.

Tomei o copo de uísque com gelo que ela me preparara e bebi um gole.

- O remédio é fácil, querida - sorri. - Pode me pintar a cara de negro.

Mas, apesar das brincadeiras, meus pensamen­tos estavam longe dali. O que estaria planejan­do Chang? Sua atitude era tão desconcertante quanto a do condenado Lamotte.

Não tardaria em saber que o caso completo, do princípio ao fim, era desconcertante. O mais estranho em que eu havia intervindo. Felizmente, ainda não tinha a mais remota idéia de nada.

 

Chang não voltou às quatro. Mas o tenente Davis,  da  polícia  metropolitana,  apresen­tou-se às seis e dez, quando Katinka e eu nos dispunhamos a jantar.

- Chegou na hora, Davis - disse-lhe – venha jantar conosco.

- Vou trazer mais um prato, senhor Davis - ofereceu Katinka.

Davis disse que não queria nos dar trabalho, mas eu o fiz passar para a sala de jantar.

- Chang me telefonou há meia hora - expli­cou o policial - pedindo-me para vir aqui. Já sei que quando vocês andam caçando, a presa sempre vale a pena. Parti de Centre Street a toda pressa.

A campainha da frente tocou e ouvi minha mulher sair da cozinha. Abriu a porta e apare­ceu Chang, com seu ar indiferente de sempre.

- Imagino que a comida deve estar pronta - disse. - Estou com fome. Como vai, Davis?

Apertou a mão do policial.

- Perfeitamente, Chang - respondeu este. - E desejando saber o que é que está tramando.

- Tramando? - sorriu Chang. - Nem eu mesmo sei, mas estive atando alguns cabos. An­tes de jantar, você terá que fazer três chama­das telefônicas.

Davis apanhou o telefone de cima da mesa e olhou para meu companheiro.

- Para quem a primeira?

- Chame Mister John Damon Lefrost. o diretor-gerente da Companhia ERIC. Diga-lhe que lhe pedimos que esteja às oito horas na companhia. No cais de Brooklyn, onde assassinaram Delia Bates. Que deve ir, também, o chefe de Delia, Mr. Ellis.

Davis chamou Mister Lefrost e disse-lhe exa­tamente o que Chang pedira. Apesar de que o homem já devia ter outros planos, respondeu afirmativamente. Todo o mundo ajuda à policia.

- A segunda? - Davis começava a interes­sar-se.

- A Centre Street. Que preparem um par de lanchas da polícia fluvial e que as mandem para o mesmo local. Que esperem no "pier" da companhia. Previna-os para irem providos de equipamento de imersão e com dois homens-rãs do departamento.

Davis discou o número da chefatura de policia e deu o recado. Ali ele não tinha que pedir e assim tudo marcharia bem.

- Vamos para a última - sorriu, ao cortar a comunicação. - Aposto que será mais espan­tosa do que as outras duas.

- Não tem nada de surpreendente. Preciso que o promotor público esteja presente. Deve ser Johnston em pessoa e não seu ajudante.

- Johnston! - exclamou Davis.

- O que é que há com Johnston?

- Nada de especial, só que tem um gênio dos diabos. Não gostará que ninguém o tire de casa esta noite, sem tê-lo prevenido previamente. Vai ver.

Discou o número do promotor público e espe­rou. Responderam imediatamente.

- Senhor Johnston - explicou Davis - va­mos fazer uma investigação na agência da Com­panhia ERIC, às oito da noite. Poderíamos con­tar com o senhor...

Fez uma careta e interrompeu-se. Do outro lado, o promotor público devia ter explodido.

- Diga-lhe que se trata da vida de um homem - recomendou Chang, em voz baixa. - Ele tem que ir.

- Não posso explicar-lhe por telefone, se­nhor Johnston. - Davis adotou o ar de um conspirador. - É imprescindível sua presença. Depois me agradecerá. Trata-se de salvar a vida de um homem. Como? De acordo. Obrigado, senhor Johnston.

Desligou e suspirou, como aliviado de um gran­de peso.

- Disse que a vida de mais de um homem cor­rerá perigo, se se tratar de uma brincadeira. Escute, Chang, tem certeza de que é interessante o que vai mostrar ao promotor?

Chang instalou-se à mesa, apanhou uma azei­tona com o garfo e comeu-a, jogando o caroço no cinzeiro que estava no centro.

- Sinto muito, Davis - respondeu - mas não posso garantir-lhe que o promotor se vá diver­tir. O que procuro, exatamente, é prejudicar um de seus trabalhos. Se o conseguir, durante muitos anos ele não vai poder esquecer essa brincadeira.

Tivemos um jantar bastante sombrio. Davis estava preocupado. Havíamos colaborado em vá­rios casos anteriores, mas isso não provava que, desta vez, Davis não estivesse equivocado.

Katinka, vendo que estávamos outra vez mer­gulhados em um caso, mal pôde controlar os nervos. Nosso trabalho como agentes do FBI é quase sempre perigoso e ela o sabia melhor  do que ninguém. Eu mesmo me encontrava exci­tado, como sempre que começava um de nossos trabalhos, e ainda não conseguia ver nada com Clareza.

 Mas Chang era diferente. Não estava preo­cupado e nem nervoso. Estou certo de que, para ele, aquele jantar era igual ao de qualquer outro dia. Quando acabou de comer, acendeu um cigarro, indício de sua tranquilidade de espírito, já que quando algo o preocupava, não deixava de fumar, furiosamente, seu velho cachimbo.

Terminamos de jantar por volta das sete. Chang olhou-nos alegremente (ou, pelo menos, assim me pareceu), e disse:

- Em meia hora podemos estar perto do rio. Podíamos aproveitar a outra meia hora.  Que tal uma partida de pôquer?

Davis acendeu um cigarro e lançou uma del­gada coluna de fumaça para o teto.

- Por mim, não, obrigado - manifestou. - Não estou com disposição para jogar cartas e vocês iriam me ganhar até o último centavo. Talvez Bill possa...

- De modo algum! - interveio Katinka. - Bill vai me ajudar a lavar os pratos. Quem sabe também gostaria de me ajudar, não é tenente? Há um avental bem do seu tamanho na cozinha.

Antes que tivéssemos reagido, Katinka já nos tinha levado para a cozinha. Entregou um aven­tal para cada um de nós e começamos a esfregar os pratos. Tanto eu como o tenente ficamos pen­sativos. Pensar que, nos Estados Unidos, até os presidentes são obrigados a lavar pratos!

Davis deixou escapar uma travessa, que foi arrebentar-se no chão. Ele me olhou, muito es­pantado.

- Não compreendo como aconteceu isso - disse, sério. - Em casa nunca fiz uma coisa dessas.

Encolhi os ombros. O copo de cristal que eu estava secando, escapou-me das mãos e seguiu o mesmo caminho da travessa. Katinka ameaçou-nos com o dedo em riste:

- Que ajudantes esses! - gritou, sorrindo em­bora.

A cabeça de Chang apareceu na porta da cozinha.

- Parece que o 4 de julho chegou adiantado - disse, irônico. - Posso participar da festa? Sou tão americano como qualquer outro e adoro quebrar bugigangas.

Katinka arrancou um prato da mão de Davis e outro das minhas. Empurrou-nos para o corre­dor.

Saímos da cozinha e nos livramos dos aventais, que foram parar em cima da primeira cadeira que encontramos.

Na sala de jantar, o relógio deu sete e meia. Chang consultou o seu e sorriu.

- Está na hora - e saiu andando para a cozinha.

Despediu-se de Katinka e o mesmo fez Davis. Eu me retardei uni pouco mais. Quando beijei minha mulher, surpreendi um brilho inquieto em seus olhos.

- Não fique preocupada, querida. Daqui a pouco estou de volta.

Ela sorriu, mas seus olhos continuavam cheios de apreensão. Saí e fui reunir-me aos outros.

Davis partiu com o carro-patrulhá da polícia. Chang e eu entramos no meu e rumámos para a agência da Companhia ERIC, no cais de Brooklyn. Não pronunciamos uma só palavra durante todo o trajeto. Chang limitou-se a consultar o relógio de quando em quando, para certificar-se de que chegaríamos na hora exata.

Aquela parte do porto de Nova Iorque, tão movimentada durante o dia, estava deserta àque­la hora. A iluminação profusa só servia para revelar uma paisagem morta. Vários carros es­tavam estacionados diante da porta da com­panhia. Dois deles eram da polícia.

Um agente uniformizado vigiava a entrada. Davis parou diante de nós e nos reunimos a ele.

- Já chegaram? - perguntou, nervoso, o te­nente.

- Sim, tenente - respondeu o policial - se se está referindo ao promotor público. Está espe­rando lá em cima.

Davis fez uma careta e atravessou o portal. Nós o seguimos escadas acima. O prédio tinha só dois andares. No primeiro patamar, junto a uma porta, estava outro policia uniformizado. Entramos ali e encontramos um interessante grupo.

- Alô, Davis! - saudou um homem alto e magro, com cara de falcão.

Davis apertou-lhe a mão. Era o capitão Scott, a quem já conheciamos.

- Não esperava, encontrá-lo - sorriu Davis, desajeitado.

- Eu estava em Centre Street quando você telefonou e decidi vir também. Quero ver o que vai fazer com tanto aparato.

- Bem, Davis - agora era o promotor - vamos ao que nos interessa. Apresento-lhe Mis­ter Lefrost e Mister Ellis. Comece a contar sua história.

Davis tirou o chapéu, para logo tornar a pô-lo.

- O caso é - hesitou - que não vou contar história nenhuma.

- Como? - gritou Johnston.

- Quero dizer que isso é com Franklin Chang, agente especial do FBI, e com seu ajudante, o agente Bill MacPatrick. Estiveram fazendo in­vestigações no caso Lamotte e pediram que eu os fizesse vir aqui para que lhes explicassem algo.

- Algo que o senhor ignora - sorriu o pro­motor.

Davis assentiu fracamente.

- Muito bem. Nesse caso, espero que o senhor Chang tenha a amabilidade de explicar-se. La­motte foi julgado e condenado há um mês e vai ser executado dentro de poucos dias. Não vejo o que possa prejudicá-lo mais. E quanto a beneficiá-lo, as possibilidades são...

- Se me permite, Mister Johnston - interrompeu-o Chang - creio que tudo se esclarecerá no devido tempo. O caso é que examinei o assun­to, por um ângulo diferente do utilizado pela polícia. Eles trabalharam, acreditando na culpa­bilidade de Lamotte. Eu adotei um ponto de vista contrário. Acreditei que, pelo menos, ele não tinha participação direta no crime e exami­nei o cenário como nós costumamos fazer. Se me enganei, nada se terá perdido. Mas, se acer­tei, Lamotte não vai ser assado na cadeira elé­trica.

O sorriso de Johnston era, agora, mais irônica.

- Gostaria de ver como vai arranjar-se para demonstrar isso - disse.

Chang sorriu também. Mas não havia ironia em seu gesto. Só superioridade, embora o pro­motor, apesar de toda sua clarividência, não fosse capaz de entendê-lo.

- Um exame feito nesse prédio - explicou pacientemente - deu-me alguns cabos soltos. Em uma das gavetas da mesa estavam essas tesou­ras. Talvez Mister Ellis possa dizer-nos se eram propriedade particular da finada Delia Bates, ou se pertenciam à Companhia.

Ellis pigarreou, um tanto constrangido.  - É claro que pertencem à Companhia - afirmou categoricamente. - São utilizadas para recortar as listas de importações das colunas dos jornais e que depois são enviadas à seção finan­ceira.

- Muito bem. Obrigado, Mister Ellis. No fundo dessa gaveta havia outras coisas. O mais interessante, do meu ponto de vista, eram esses pedacinhos de material elástico.

Tirou um envelope do bolso e esvaziou-o sobre mesa. Os dois pedaços que mencionara eram ridiculamente pequenos. Johnston tomou um deles e estirou-os com os dedos.  - Parecem procedentes de uma câmara pneumática - sugeriu.

- Isso foi o que eu imaginei - sorriu Chang.

- Era a prova que Delia Eates estivara recortando pedaços de borracha, pouco antes do cri­me que lhe custou a vida. O ponto seguinte surgiu na janela. Vejam isso.

E Foi para junto da janela. Ergueu o vidro e mostrou a parte baixa do marco. Johnston, jun­tamente com Davis e Scott, examinaram atenta­mente o pedaço de madeira que Chang lhes mos­trava. Embora já fosse noite, a iluminação da peça permitia ver-se um sinal inconfundível. Al­guma coisa pesada batera ali, deixando sua marca.

- O corpo da moça estava aqui - advertiu Chang - junto à mesa e em frente da janela aberta. Já averiguei que estava aberta, quando a encontraram. Tinha que haver uma relação em tudo isso. Lembrem-se de que o ferimento da vítima, na parte posterior do pescoço, apre­sentava as queimaduras características que se produzem quando o disparo é feito a curta distân­cia. Assim era, e ainda mais. Parecia como se o cano da pistola, que lhe tirou a vida, estivesse encostado à nuca da moça.

Johnston acendeu um cigarro. Olhou para Chang e exclamou:

- Um raciocínio brilhante, Mister Chang - comentou - mas, tudo isso, no que afeta o caso?

- Ainda resta algo - respondeu Chang. - Muito pouco, mas o bastante para que meu rela­to tenha a necessária coerência. Vou dar-lhe uma idéia, naturalmente teórica, do que fez Delia Bates nesta mesma peça, momentos antes de morrer.

 

Até aquele momento, eu não notara que o bolso direito do paletó de Chang apresen­tava o aspecto de conter um grande volume. Vi-o meter a mão ali e retirar uma espécie de ovo, do tamanho de um punho, composto por tiras de borracha, de quase um centímetro de largura.

Colocou-o sobre a mesa e esfregou o nariz, sinal certo de que se sentia um tanto nervoso.

- Ninguém pode, propriamente, pôr-se no lu­gar de outra pessoa - disse lentamente. Mas cheguei à conclusão de que Delia Bates manobrou de modo parecido à idéia que tenho do caso, graças às marcas da janela, às tesouras e aos pedaços de borracha. Vamos ver se funciona.

- Espero que sim - observou Johnston. - Em caso contrário, Lamotte vai se ver bem mal na semana que vem.

Chang apanhou o volume. Compunha-se de duas tiras, com um nó no final que as sujeitava, deixando duas pontas de quase cinquenta cen­tímetros de largura, tendo ele todo, aproximada­mente, um metro e meio.

- Quer me emprestar sua pistola, Davis? - pediu Chang.

Davis estendeu-lhe sua pesada arma automá­tica. Chang extraiu o pente e deixou-o sobre a mesa. Depois, fez o mecanismo funcionar, para certificar-se de que não restava nenhuma bala na agulha. Então, certo de que estava descarre­gada, atou os dois pedaços mais curtos de borra­cha na coronha.

Nas extremidades mais largas, mediante um nó, fez dois aros.

- Era quase todas as janelas de Nova Iorque - disse calmamente - há, por fora, duas hastes de aço, furadas no centro. Servem para prender o aparelho de segurança que usam os limpa-vidros. Delia Bates tirou partido deles. Assim.

- Agora - explicou - suponhamos que, além da pistola, a chave da peça esteja atada à tira de borracha.

- Por quê? - perguntou, secamente, o pro­motor.

- Porque ela não estava interessada em que alguém pudesse entrar naquele momento e des­cobrir o que estava fazendo. Bem, já temos a pistola presa com as borrachas. Vamos ao que importa.

Voltou-se de costas para a janela e colocou a pistola atrás de sua cabeça, apoiando o cano na parte posterior do pescoço. Utilizou para isso as duas mãos. Um dos polegares introduziu-se no gatilho.

Fez uma pausa. Depois:

- Acha que poderia disparar "eu mesmo" a arma, nessa posição, Davis? - perguntou.

- Certamente - afirmou Davis.

Mantendo-se naquela posição, avançou até o centro da peça, chegando ao sítio onde, mais ou menos, fora encontrado o corpo de Delia Bates. As borrachas estiraram-se prodigiosamente.

- É isso! - Chang parecia ter perdido todo o nervosismo. - Agora, puxo o gatilho.

E assim o fez. Soou o sinistro estalo.

- E solto a pistola! Acabo de morrer de um balaço na nuca. Caio e solto a pistola. O que acontece agora?

O promotor observava a cena de olhos arre­galados. O cigarro, que mantinha entre os de­dos, consumiu-se por completo e queimou-lhe a pele, fazendo-o lançar uma exclamação.

- A pistola sai pela janela - disse Davis. - E cai no rio!

- Justamente - sorriu Chang. - Submerge a pouca distância da janela, entre cinco e dez metros, suponho.

Johnston avançou impulsivamente.

- Por que a moça iria fazer isso? - gritou.

- Não é esse o problema. Mister Johnston - atalhou Chang, com seu peculiar sangue-frio. - O que urge saber é que o fez. Porque, nesse caso, Lamotte ficará em liberdade.

Davis saiu de sua abstração.

- Temos a equipe de homens-rãs, prontos para agir e vão começar agora.

Saiu da peça e, pouco depois, nós o vimos em uma das lanchas da polícia. A outra embar­cação uniu-se a eles quando se puseram em mar­cha, até ficarem debaixo das janelas do edifício. Havia um par de embarcações, amarradas jun­to ao muro, prontas para serem carregadas nos armazéns da Companhia, na manhã seguinte. Parecia um bom lugar para seguir de perto os trabalhos.

Propus que fôssemos para lá e Mister Ellis indicou-nos o caminho. Descemos um andar e entramos nos gigantescos armazéns, repletos de mercadorias. A uma ordem de nosso guia, o vigia daquele setor abriu a cortina metálica e encontramo-nos quase ao mesmo nível da coberta de uma das embarcações. Saltamos para ela.

As lanchas da polícia fluvial haviam acendido seus possantes faróis. A água estava iluminada profusamente e os homens-rãs, com suas roupas escuras de borracha, deslizaram pelas bordas das embarcações. Iam providos de lanternas im­permeáveis e dois grandes faróis submergíveis foram também largados.

Em poucos minutos as escuras águas do rio viram-se sulcadas por estranhos raios de luz, que perfuraram suas entranhas. Em meio à noite, a cena tinha um aspecto fantasmagórico e verdadeiramente singular.

Foi duas horas mais tarde que, de súbito, uma coisa pareceu estalar numa das embarcações. Porque ouvimos a voz do tenente Davis gritar, com um estranho tom de voz:

- Encontramos, Mister Johnston!

O promotor lançou um grunhido. Estávamos no bom tempo, na primeira quinzena de maio, mas fazia frio ali, naquela embarcação, devido à humidade do rio.

- Traga-o já! - ordenou com voz dura.

A lancha aproximou-se e Davis saltou, todo excitado. À luz de uma lâmpada elétrica, exa­minamos o achado. Tiras de borracha, em cujas extremidades estava presa uma pistola automá­tica.

Johnston lançou uma exclamação de assombro. A idéia de Chang ia adquirindo forma a nossos olhos, jogando uma espécie de luz sobre um assunto que antes parecia claro e que agora se emaranhava de uma maneira incrível, em vez de esclarecer-se ainda mais.

- Está bem, Davis - exclamou o promotor. - Vamos investigar o que há por trás disso tudo.

- Sim, senhor - o policial havia recobrado sua calma de sempre, ao ter de novo coisas tan­gíveis nas quais apoiar-se para trabalhar. - E preciso somente comparar as estrias do cano com as da bala que matou Delia Bates.

- Irei com você, Davis - afirmou o promo­tor. - Desejo dizer-lhe uma coisa, senhor Chang. A principio, quando começou a explicar-me toda aquela confusão de idéias, estive a ponto de man­dá-lo para o inferno. Agora, com isso nas mãos, não tenho a menor dúvida de que a bala que matou a moça saiu dessa pistola. Eu lhe devia essa explicação. E farei mais ainda. No caso em que tudo tenha acontecido assim, nessa mes­ma noite irei ver o Secretário de Estado. E, amanhã de manhã, haverá uma ordem de liber­dade para Lamotte. O Secretário, em vista das provas que lhe apresentaremos, terá que assi­nar o indulto. Imagino que o senhor gostará de encarregar-se de levá-lo a Lamotte.

Chang sorriu levemente.

- Era precisamente o que eu estava pensan­do, senhor - respondeu.

E piscou-me um olho.

Agora, na minha qualidade de cronista since­ro, creio que posso permitir-me uma digressão. O caso, tal qual o havia apresentado Chang, era de uma clareza meridiana, exceto num ponto: os motivos que teriam podido impelir Delia Ba­tes a suicidar-se daquele modo tão científico, com o propósito de arrastar um inocente para a ca­deira elétrica.

É costume imaginar-se que para alguém ser admitido na academia do FBI basta ser inteli­gente, jovem, forte e honrado. É verdade que todas essas qualidades são indispensáveis, mas falta mais uma. Deve-se possuir um olfato poli­cial.

Isso, e não inteligência pura, é o que distingue um bom policial de outro medíocre. O vulgo, que tantas coisas sabe, sem saber nenhuma conhece isso muito bem... sem saber que o conhe­ce. Todos já ouvimos alguém dizer a frase: "Isso me cheira mal".

Bem, explicado isso, direi que a inculpação de Lamotte por parte de meu companheiro "me cheirava mal". Mas, muito mal mesmo. As pro­vas que havia apresentado, aquelas borrachas, com a pistola usada no crime (disso eu estava bem certo), atadas às extremidades, e a explica­ção prática de como fora usado o artifício, eram irrefutáveis, mas algo me dizia que aquilo "chei­rava mal".

Com esses pensamentos dando-me voltas na cabeça, conduzi Chang à casa da Sexta Avenida que, antes de casar, ocupávamos juntos e que agora era domínio absoluto de meu companheiro.

Quando parei o carro e Chang saltou para a calçada, um súbito pensamento me fez dizer:

- Eu gostaria de jogar uma partida de xadrez. Chang sorriu.

- Vamos.

Não pronunciamos nem mais uma palavra du­rante o curto trajeto através do vestibulo. Até nos encontrarmos diante da mesa, com as figu­ras dispostas no tabuleiro, o silêncio foi abso­luto.

- Imagino que vai preferir as pretas - su­geriu Chang, com voz carregada de ironia.

- Acertou - disse-lhe eu. - Estou de humor bastante negro e isso me ajudará a refletir sobre a efemeridade das coisas desse mundo.

Começamos a partida. Uma de suas manias consiste em tentar reproduzir partidas clássicas, e que não me agrada. Sempre procuro desbara­tar seus planos, mas, naquela noite, coisas mais importantes povoavam meu cérebro e deixei-o agir.

Pôs em movimento seus cavalos. Ameacei-os eu. E Chang começou a fazer avançar seus peões, escaladamente, como um exército disposto em uma guerrilha. Vi que um de seus cavalos pare­cia desprotegido.

- Tomo o cavalo - e assim o fiz.

Algo estalou dentro de minha cabeça. O julga­mento de Lamotte tinha sido um mês antes. E o assassinato de Delia Bates fora cometido há dois meses. Lembrei-me da pistola que a matara, quan­do a examinamos na coberta da embarcação, à luz de uma lanterna. Como... ?

- Xeque  advertiu, suavemente, Chang. Movi o bispo da rainha e perdi-me de novo em meus pensamentos. Naquela manhã, Chang me pedira uma câmara velha. Ele próprio a escolhera. Recordei a cena: Chang estava dizendo: "E quanto a você, nunca soube que eu levei esta câmara, entendeu?"

Graças a Deus! Quem sabe se...!

- Xeque! - a voz de Chang tirou-me outra vez, de minha abstração. Maquinalmente movi de novo o bispo. Minha imaginação estava, agora, na visita que fizéra­mos à cabana de Lamotte, Mas, só recordei, cla­ramente, o momento em que encontrei o pacote que devia conter uma pistola. Chang dissera-me que eu a encontraria, e assim foi.

Também me passou pela cabeça uma recordaição interessante. Quando a quis mencionar dian­te do inspetor Girty, Chang silenciara-me com uma pisada. Com mil diabos!

- Xeque! - outra vez ameaçava-me meu par­ceiro com um peão.

Tive que tomá-lo. Afastei-me do tabuleiro em pensamentos. Agora a imagem representava Chang falando com o inspetor. Este dizia: "Tem alguma idéia?" "Tenho", fora a resposta.

Finalmente, recordei a despedida que fizera a Lamotte, quando estivemos em Sing-Sing.

"A porta verde, que há no fundo do corredor, à entrada para a cadeira elétrica, não se abrirá para você." Eu estaria ficando doido? O que esta­ria provocando semelhante turbilhão em minha cabeça?

Inegavelmente, "algo me cheirava mal". Mas, o quê?

- Xeque! - Chang falou com suavidade. Movi uma peça.

- Xeque! - tornei a mover outra peça.

- Xeque. Xeque. Xeque!

Apenas com os peões, meu amigo encurralara-me. Agora era o final.

- Xeque-mate!

Acabara-se. Olhei fixamente para ele.

- Você está muito burro esta noite - sorriu-me. - Seguimos, passo a passo a famosa parti­da do barão Tunderstoken. Devia conhecê-la.

- Conheço-a - respondi, friamente. - Escute, há uma coisa que está dando voltas em minha cabeça, mas não consigo deslindá-la. E que me preocupa muito.

- Por que haveria de preocupá-lo? Com um pouco de paciência, conseguirá ordenar tudo.

- Já sei, Chang. Tenho certeza de que poderei ver tudo claro, mas é exatamente isso que me preocupa. Porque quando tiver resolvido esse problema, sei que não vou gostar. Dou-lhe a minha palavra de honra.

O telefone tocou. Chang deu alguns passos para a mesa e apanhou-o.

- Aqui Chang - disse. Uma breve pausa, e depois: - Muito bem, Davis. Eu lhe agradeço. Até a vista, amigo.

E desligou. Voltou-se para mim.

- Davis avisou-me que o Secretário de Estado assinou o indulto, em vista das provas apresen­tadas. De maneira que, amanhã, às oito da ma­nhã, passe por aqui para me acompanhar, que vamos tirar Lamotte da ratoeira. Não se atrase.

Levantei-me e fui embora com um "até ama­nhã".

Ao sair do apartamento, não pude evitar de dar uma tremenda batida com a porta. Aborre­cia-me algo que me rondava a cabeça, misturando-se com outros pensamentos. Muitos anos atrás, quando eu não passava de um garoto, deixara cair uma espingarda dentro de um poço. Eu es­tava, então, na granja de meu avô. Durante uma semana não fora possível recuperar-se a famosa espingarda. E, quando a tiraram, quase nem se podia mais utilizá-la. Apresentava uma camada de ferrugem e a metade das peças do mecanismo tiveram que ser trocadas.

"FERRUGEM."

"F.E.R.R.U.G.E.M."

"FER-RU-GEM."

Precisava pensar.

Mas, antes, eu precisava dormir.

Apertei o acelerador e sai correndo para Long Island. Quanto antes descansasse melhor. De qualquer maneira, aquela estúpida palavra con­tinuava flutuando diante de meus olhos, dessa forma.

Estupidez, não é? Pois assim são as coisas da vida. Assim é a vida. Um pouco de estupidez, misturada a qualquer outra coisa.

 

Chang acendeu um cigarro. Logo ofereceu ou­tro a Lamotte.

- Belo dia - comentou meu companheiro. O ex-condenado à morte encolheu os ombros. Chang sorriu.

- Qualquer um diria - comentou com certa ironia, - que lhe desagrada abandonar os mundos de Sing-Sing, meu amigo.

Lamotte olhou-o contrariado.

- Como conseguiu? - a pergunta cortou o ar como uma chicotada.

- Demonstrei que Delia Bates suicidou-se. Não me custou muito trabalho.

Seguiu-se um longo silêncio. Repentinamente, Lamotte fez outra pergunta:

- Estou livre?

- Como um pássaro. Poderá ir para onde qui­ser, quando me responder algo que quero ouvir.

Lamotte sorriu com expressão dura.

- Diga.

- Você não cometeu o crime. Não se defendeu porque queria proteger alguém. Agora, apesar de a lei nada ter contra você, corre um grande perigo. E, também, a pessoa a quem defende. Di­ga-me quem é e nós a protegeremos. Lamotte sacudiu a cabeça.

- Não sei de quem está falando. Posso ir?

- Pare, Bill.

Parei junto à calçada e Chang saltou para dar passagem a nosso acompanhante. Lamotte des­ceu do carro. Apanhou um cigarro e olhou para Chang.

- Eu... - interrompeu-se, para continuar em seguida: - Obrigado por tudo.

E afastou-se com passos firmes. Chang olhou para mim.

- Acho que lhe faria bem estirar as pernas, Bill - disse-me. - Desça do carro e siga La­motte, como se fosse sua sombra. Apesar do indulto, é ainda um condenado à morte, embora isso ele o saiba tanto quanto eu. Quando o vir meter-se num esconderijo qualquer, chame-me por telefone. Estarei esperando em casa.

Concordei. O grande jogo estava começando. A caça ao homem, algo excitante e apaixonante, quando se tem o instinto do caçador. Ia afas­tar-me, quando Chang recomendou:

- Abra bem os olhos, homem - advertiu-me gravemente. - A vida de Lamotte está penden­te de um fio e a sua tão pouco estará a salvo se der um passo em falso. Vigie com precaução e proteja a vida desse homem. Ele nos levará ao fundo desse assunto.

Concordei novamente e vi-o meter-se no carro e partir. Voltei a cabeça e percebi a delgada fi­gura de Lamotte, atravessando Central Park. Lancei-me atrás dele, procurando não ser visto.

Concentrei-me em meu trabalho. Lamotte pare­cia não temer que o seguissem.

Observei-o enquanto perambulava pelas ruas do Manhattan. Entrou num restaurante para al­moçar. Vigiei-o da calçada, situando-me junto a uma banca de jornais. Saiu vinte minutos de­pois e entrou numa cabina telefônica. Fez uma ligação, que durou quase dez minutos. Depois, voltou a caminhar, embora por pouco tempo.

Deteve-se junto à beira da calçada e chamou o primeiro táxi que passou por ali. Tive que an­dar rápido para encontrar outro carro e não perdê-lo de vista, mas tive sorte.

Os motoristas de Nova Iorque vêem muitas coisas durante um dia. O que me tocou por sor­te, não se surpreendeu quando ordenei que se­guisse o outro táxi. Foi uma longa perseguição.

Não menos de três vezes Lamotte trocou de táxi. Chang tinha razão. Aquele homem não estava muito tranquilo. Ninguém toma tantas precauções, só para se distrair.

Passamos para o outro lado do Hudson, atra­vés do Lincoln Tunnel, e descemos para o sul, além de Jersey City. Depois, em Bayonne La­motte despediu o táxi e seguiu a pé. Ordenei ao motorista que avançasse.

Era quase campo aberto por ali. À direita tí­nhamos Bayonne e à frente as margens do ca­nal Kill van Kull velho cemitério de barcos a vela e vapor uma zona destinada a desapare­lhar navios e que muito poucos nova-iorquinos conhecem.

Introduzi-me num velho navio de madeira uti­lizando uma brecha que se apresentava e subi para a coberta pela estreita escada. Foi-me fácil chegar à ponte e servir-me dela como ponto de observação. As janelinhas não tinham vidros mas de nada poderiam ter-me servido se os ti­vesse.

Vi Lamotte chegar à beira do canal. Parecia andar por um terreno conhecido. E assim devia ser, porque localizou uma estranha embarcação que estava amarrada a uns cem metros do barco que me servia de observatório. Atravessou a pas­sarela e desapareceu de minha vista.

Acomodei-me como pude e esperei durante qua­se duas horas. Positivamente, Lamotte encontra­ra seu refúgio. Era o momento de avisar a Chang. Deslizei para terra e andei o meio quilômetro que me separava das primeiras casas de Bayon­ne. Busquei uma taberna de aspecto marinheiro e chamei-o por telefone, dando-lhe as indicações de meu estranho abrigo.

Depois, comprei alguns sanduíches e quatro garrafas de cerveja. O taberneiro teve a amabilidade de me emprestar uma forte sacola de pa­pel de maneira que pude sair dali bastante car­regado mas satisfeito de poder comer depois de tantas horas de trabalho.

Voltei à coberta do barco encalhado. Instalei-me num estreito banco de madeira e coloquei as provisões diante de mim. Estava muito bem si­tuado já que podia ver perfeitamente o esconde­rijo de Lamotte, do ponto onde eu me encontrava. Ocupado em comer, esqueci-me de tudo o mais.

Assim que, meia hora depois, tive um sobres­salto quando a cabeça de Chang assomou na entrada da ponte. Mas fiz como se nada tivesse acontecido. Apontei para a janelinha, que estava à minha frente.

- Está escondido ai embaixo - disse. Chang acercou-se, discretamente.

- Que classe de embarcação será aquela? - perguntei, intrigado. - Parece um pontão. Aque­le que for capaz de navegar em semelhante tras­te deve estar maluco.

- Não creia nisso, Bill - sorriu Chaag. - Já ouvi falar nele. Pertence a Amos Gabble, o pintor de marinhas. Você deve ter ouvido falar nele. Utiliza esse pontão para percorrer todo o porto em busca de cenas que mereçam ser pas­sadas para a tela. Ele mesmo construiu este es­túdio, se assim o pudermos chamar. Agora está saindo!

Interrompeu-se. Levantei-me e olhei. Havia um homem na coberta. Mas não era Lamotte.

- É Gabble - disse Chang, lacônico.

- Então - observei eu - Lamotte está na embarcação com pleno conhecimento do proprie­tário.

- É o que parece. Que coisa estranha! Refi­ro-me ao fato de Lamotte conhecer Gabble.

Concordei e recolhi os restos de comida para depositá-lo num canto como se isso tivesse gran­de importância. Quando fui guardar o canivete, que usara para abrir as garrafas de cerveja, tive um sobressalto.

Uma hora apenas ele estivera fora de meu bol­so e já a lâmina apresentava sinais de oxidação. Pequenas manchas, quase invisíveis, mas que ali estavam. O ar húmido havia produzido o milagre. Qualquer objeto de ferro ou de aço, em poucas horas de exposição, ficaria coberto de ferrugem.

FERRUGEM!

Aquela palavra voltou a dar-me dor de cabeça. Tanto por sua persistência, como por não saber o jogo que desenvolvia em minha mente, se é que havia algum jogo.

FERRUGEM!

Um raio de luz abriu uma passagem! Olhei para Chang, recusando-me a acreditar no que eu estava pensando.

- Chang! - gritei. Olhou-me com severidade.

- Baixe a voz! - reclamou ele.

- Escute, Chang - prossegui, sem poder do­minar meu nervosismo. - Preciso de uma expli­cação agora. Acabo de pensar em algo que não me agrada.

- Isso me acontece com frequência - sorriu ele. - Que espécie de explicação você quer?

- Sabe a que me refiro.

- É possível - disse, com sua serenidade de costume. - Entretanto, acho que será melhor que exponha suas dúvidas. Depois, terei mais facilidade em esclarecer qualquer ponto, aquele que você não tenha entendido por completo.

Tirei o maço de cigarros e acendi um. Olhei para meu companheiro, ainda cheio de dúvidas.

- OK, filho - assenti. - Ouça.

 

Quando fomos ver Lamotte, você já estava pensando na maneira de tirá-lo de  lá, de seguir a pista por seu intermédio - comecei. - Se permitisse que Lamotte mor­resse como culpado do assassinato de Delia Bates, muito poucas probabilidades de chegar ao fundo do problema nos sobrariam. Sim, Chang, você já tinha a idéia, mas procurava a oportunidade. E a oportunidade apresentou-se quando fomos à cabana de Lamotte, lá em Pompton Lakes. Ago­ra estou certo de que o rapaz era inocente. Tudo fora preparado para que ele arcasse com o crime. E na casa de Pompton Lakes estava uma das pro­vas principais. Ali esconderam a pistola que maou Delia! Por isso, quando chegamos e vimos que alguém se havia adiantado a nós, você logo percebeu o que isso poderia significar. Estando ele já condenado, desconhecendo a polí­cia que Lamotte alugara a cabana, nada indicava que a pistola estivesse ali. E foram buscá-la os mesmo que lá a puseram, tão logo souberam que tinhamos ido visitar o condenado. É certo que o vigiariam de fora. Temeram que, se encontrássemos a arma, pudéssemos descobrir algo que lhes tinha passado despercebido. Você sabe que os criminosos sem­pre são assaltados pela dúvida de terem feito um "trabalho" bastante limpo, capaz de enganar a policia. Você deduziu isso. Adivinhou até que, depois de recuperarem a pistola, sairiam corren­do dali e que a embrulhariam na primeira coisa que encontrassem, certamente para jogá-la ao rio, ao passarem pela ponte. E o que é que há numa casa mais à mão rio que um jornal? Estou aborrecendo-o, Chang?

Meu companheiro abanou a cabeça negativa­mente, sem afastar os olhos da janela.

- De maneira alguma, meu amigo. Continue.

- Você já tinha em seu poder a pistola que matou Delia. Com ela, só poderia provar que ser­vira para assassinar a moça. Isso é o que teria ocorrido a qualquer policial. Mas, você, Chang, não é um polícia qualquer. Foi para o local do crime e estudou o terreno. Depois, com a câmara pneumática velha e com certo engenho, demons­trou ao promotor como "suicidou-se" a moça. Aquela representação diante da janela foi formi­dável, mas esqueceu-se de uma coisa. A pistola que encontramos no fundo do rio devia, teoricamen­te ter permanecido ali desde a morte de Delia, isso é, mais de dois meses. Já viu alguma arma, depois de um banho tão prolongado? A ferrugem apodera-se do aço e transforma-o em uma massa informe. Mas, desta vez não. Porque só havia passado poucas horas dentro de agua. Você jogou ali a pistola, depois de tê-la preparado com aquele artificio de borrachas! Enganou o pro­motor, enganou Davis. E quase conseguiu me enganar. Se não fosse pela falta de ferrugem na pistola, eu teria engolido aquela farsa tão bem arquitetada. Mas, você acha que Davis tardará muito a perceber tudo? Chang olhou-me sério.

- Não, Bill - respondeu sereno. - Davis não tardará muito a perceber.

- Mas, você não vê Chang, que estamos arriscanso uma coisa que, para mim, é o que há se mais importante na vida: As credenciais do FBI?

- E a liberdade, Bill - rematou, sorrindo. - Iremos para o cárcere, se as coisas não saírem de acordo com meus planos.

- Pode-se saber que planos são esses?

- Resolver o caso, antes que Davis caia sobre nós e nos encha de perguntas - respondeu.

Calei-me. Falara mais do que de costume. Além do mais - por que não dizer? - eu estava assus­tado. A audácia de Chang deixara-me perplexo. Não tive tempo de me preocupar mais, porque de nosso observatório vimos regressar o dono do pontão. Tornou a entrar em sua estranha em­barcação. Chang acendeu o cachimbo e olhou para mim.

- Lamotte não quer mostrar-se - disse. - Mandou o amigo para que faça uma chamada telefônica. Alguém deve vir encontrar-se com ele.

- Acho que posso adivinhar quem é - obser­vei. - Aposto que vamos ver Daisy.

- Ganharia a aposta.

Esperamos. Silenciosamente, de nervos tensos, deixamos o tempo correr. O sol aproximou-se do ocaso e as primeiras sombras da noite estende­ram-se pela costa.

- Lá está! - a voz de Chang quase me as­sustou.

Pelo atalho aproximava-se a graciosa figura de uma moça. Sem vacilar, dirigiu-se para a passa­rela do pontão e entrou. Não ficou muito tempo dentro. Reapareceu em seguida. Vinha acompa­nhada pelos dois pintores.

Depois, junto à passarela, Lamotte e ela des­pediram-se do outro e baixaram ao cais.

A luz era muito fraca, mas pude notar algo que me espantou.

- Essa mulher não é Daisy! - foi o pensa­mento que expressei em voz alta.

- Não é mesmo, Bill - Chang estava perple­xo. - Agora tomam um caminho diferente. É possível que seja só uma mensageira que levará Lamotte para o lugar onde ela o estará espe­rando. Isso não me agrada nem um pouco. Va­mos!

Deslizamos pelo casco e baixamos para a cos­ta. Lamotte e a moça já estavam chegando às primeiras edificações de Bayonne. Apressamo-nos para não perdê-los de vista, já que a noite estava caindo.

Foi quando nos encontrávamos a menos de cem metros de meu carro que a força oculta que está­vamos desafiando entrou em ação. Duzentos me­tros mais adiante, Lamotte e a moça haviam para­do junto à beira da calçada, sem dúvida esperando um táxi, que deviam ter chamado por telefone.

Do vão de um porta destacaram-se dois ho­mens, com as mãos enfiadas nos bolsos dos pa­letós. Não falaram. Limitaram-se a encostarem-se em suas vítimas e empurrá-las rua acima, em direção a um enorme sedan negro. Um sequestro diante de nossas barbas!

Minha mão voou para a cintura em busca da Luger, mas Chang deteve-me com um gesto.

- Espere! - sussurrou, colando-se à parede escura. - Vamos para o carro!

Compreendi sua idéia. Voamos para nosso veí­culo e arrancamos no preciso momento em que o fazia o sedan dos sequestradores. Saíram ve­lozmente rumo ao norte e nós atrás, com as lu­zes apagadas para não chamar a atenção.

Percorremos a estrada "I" em boa velocidade, até chegarmos à altura da ponte George Washin­gton. Percorremo-la e prosseguimos para o nor­te, pela estrada "9", durante quase vinte quilô­metros.

- Estamos em White Plains - disse-me Chang, erguendo a voz para fazer-se ouvir. - Que, dia­bos, estarão buscando aqui?

Aquela era, efetivamente, uma zona deserta. Concentrei toda a atenção na estrada. Um car­ro grande ultrapassou-nos iluminando com seus faróis toda o. paisagem. Fui obrigado a piscar cheio de assombro. O carro que perseguíamos já não estava na estrada!

- Retroceda meio quilômetro e pare o motor! - gritou Chang.

Dei a volta rapidamente e voltamos pelo mes­mo caminho durante alguns minutos. Depois, desliguei o motor. Ali estava! De nossa esquerda vinha um ronco ritmado, que denunciava a pas­sagem de um carro a pouca velocidade. Chang abriu a porta, e saltou.

- Vai a passo de tartaruga! - sussurrou, ex­pressivamente. - Vamos a pé.

Internamo-nos no White Plains, correndo atra­vés do campo, como verdadeiros campeões. E como ali não havia nada que se pudesse chamar, propriamente, de estrada, os do carro tinham que andar em marcha muito lenta. Fomos aproximando-nos do ruído do carro, a cada segundo.

Naquele instante, Chang agarrou-me pelo bra­ço. Paramos e meu amigo sussurrou-me:

- Estou compreendendo. Olhe - estendi o braço e segui com o olhar aquela direção. Des­tacando-se no escuro céu, um enorme edifício erguia sua escura silhueta.

- Parece uma prisão - observei em voz baixa.

- E já o foi. Durante a guerra serviu de pri­são a uma centena de oficiais do Eixo. Creio que o governo vendeu-o. Retroceda até o carro e acen­da as luzes. Deixe uma nota debaixo do pára-brisas. O primeiro polícia rodoviário que se apro­ximar irá vê-la.

Corri de novo na escuridão tropeçando em al­guns arbustos e metendo os pés em quantos buracos encontrei. Minutos depois eu estava jun­to ao carro, escrevendo a nota para a polícia. Voltei logo à escuridão e quase tropecei em Ghang.

Aproximamo-nos, lentamente, do casarão. O ruído do motor extinguira-se, mas um rápido olhar bastou para nos mostrar que o edifício es­tava cercado por um aramado. Só dispunha de uma entrada praticável, em frente à porta prin­cipal, e foi a que utilizamos para chegar lá.

O carro estava atrás de umas árvores com o "capot" ainda quente, mas não se via vivalma pelos arredores. Inclusive a porta de acesso para a antiga prisão, estava deserta.

Empunhando as pistolas, deslizamos pela aber­tura e entramos no enorme vestíbulo. Ao fundo havia um corredor e deste escapava-se um fino raio de luz. Quando nos aproximamos o sufici­ente, compreendemos a causa. Uma porta encos­tada, que certamente levaria ao porão, permitia que se filtrasse aquele raio luminoso.

Chang abriu um pouco a porta e meteu a ca­beça pela abertura. Por cima de seu ombro vi uma escada que descia, como supúnhamos, para o porão do edifício. Chang fez-me um sinal e começou a descer os degraus de cimento. Eu o segui, com a Luger preparada. A escada não era muito grande e logo nos encontramos no fundo. Um longo corredor, profusamente iluminado, com portas forradas de metal de ambos os lados, es­tendia-se diante de nossos cautelosos olhares.

O estranho era que o corredor de cimento es­tava coberto por um grosso tapete, de ponta a ponta. Chang aproximou os lábios de meu ouvido.

- Vou avançar - sussurrou. - Siga-me a cinco passos de distância e procure abrir bem os olhos. Se encontrar alguém, seja quem for, atire para matar!

Deixei-o tomar os cinco passos de dianteira e ergui o pé direito para segui-lo, quando o silên­cio foi quebrado repentinamente. Aquele brusco cicio sobressaltou-me. Era como uma locomotiva perdendo o vapor.

GÁS LACRIMOGÊNEO!

De vários pontos do corredor surgiram sibilantes colunas de fumaça e, num segundo, en­contrei-me tossindo e lacrimejando, numa luta para respirar. Completamente dominado pelo gás, vi-me agarrado e desarmado. Depois, empurrado para outra peça, onde alguém me atou forte­mente.

Um empurrão e dei com os ossos em terra. Um potente ventilador devia ter começado a funcionar, porque senti uma forte corrente e percebi que o gás se dispersava. Com um es­forço sobre-humano, abri os olhos. Através da abundante secreção lacrimal, divisei várias pes­soas, mas tive que fechar os olhos de novo.

Ouvi uma voz rouca e baixa que falava.

- Preciso saber o paradeiro dessa moça cha­mada Daisy! - dizia.

Silêncio absoluto.

- Será melhor que nos entendamos amistosa­mente - prosseguiu a voz. - Se me disserem onde posso encontrar Daisy, e consta-me que vo­cês o sabem, só os reterei até que me convença de que falaram a verdade. Mas, se se obstinarem a guardar silêncio, posso arrancar-lhes a pele em tiras, sem que ninguém consiga impedir.

Seguiu-se outro momento de silêncio, tão ten­so que senti um arrepio.

Agora os olhos já me doíam menos. Pude abri-los e mantê-los assim. Chang estava a meu lado, transformado também num fardo. Encontrávamo-nos numa peça que devia ter uns doze ou quatorze metros de comprimento por seis ou oito de largura. Num dos cantos havia uma mesa meio queimada, com duas das pernas e parte do tampo convertidos em carvão.

Encostada à parede da direita estava uma cama de ferro, sem colchão. Sobre ela, sujeitos com cordas, Lamotte e a moça que tinha ido buscá-lo, olhavam estoicamente para o teto.

Junto à cama, destacava-se um tipo curioso. Parecia ter uns sessenta anos, era baixo e gordo, com pele muito morena. Estava bem trajado e sobre seu nariz refulgiam lentes com armação de ouro. Era este quem falava.

Aos pés da cama, um "gangster" típico, gran­de e com o rosto picado de varíola, polia as unhas passando-as incessantemente pelas lapelas do pa­letó. Dois homens mais semelhantes a este, esta­vam sentados num caixote, com os chapéus joga­dos para a nuca. Havia uma fileira de garrafas de cerveja, quase todas vazias, ao longo da pare­de oposta à cama.

Observei que Chang recuperara-se também dos efeitos do gás. Fez-me um sinal com a cabeça e compreendi que queria evitar que eu falasse, ou que fizesse qualquer movimento.

 

O homem das lentes de ouro escolheu um cigarro. Acendeu-o e lançou uma baforada de fumaça para o teto.

- Não querem falar, hem? - disse lentamen­te. - Muito bem. Pode começar. Primeiro ele.

O "gangster" de rosto bexigoso deixou de esfre­gar as unhas e acendeu um cigarro.

Depois, muito lentamente, aproximou-o do ros­to de Lamotte. Vi-o estremecer. Atado como es­tava à cama, mal podia mover-se. Um nauseabun­do cheiro de carne queimada encheu a peça.

Quando o cigarro se apagou, o repugnante verdugo jogou-o no chão e acendeu outro. Repetiu a operação de queimar o prisioneiro. Lamotte lançou um gemido de angústia. Senti que as faces me ardiam de raiva. Este era um país civilizado, Deus meu! Aquele cheiro! Não podia mais suportá-lo! Abri a boca e gritei:

- Fale, Lamotte!

Nenhum som saiu-me da garganta. Aquele foi um grito mudo, se é que posso permitir-me seme­lhante expressão. Teria desejado afastar os olhos da horrível cena e não pude.

O homem das lentes exibiu a dentadura num sorriso de cão de caça.

- Deixe-o por um momento - ordenou. - Não quero perder mais tempo. Continue com a moça. As mulheres têm menos resistência do que os homens. Não vá estragar-lhe o rosto agora; vamos deixá-lo para o final.

Al assentiu logo. Ergueu a parte dianteira do vestido da moça e puxou-o com força, rasgando-o completamente. Com mais alguns puxões, deixou-a nua da cintura para cima. O chefe dos bandidos aproximou-se e se inclinou para ela.

- Não seja teimosa, menina - disse sorrindo. - Só tem que...

Não pôde terminar. A moça cuspiu-lhe na cara. O homem afastou-se rapidamente.

- Maledetta strega! - berrou. - Maldita bru­xa! Adiante, Mo!

O "gangster" acendeu um novo cigarro e susteve-o no ar. A mão começou a descer e a brasa do cigarro aproximou-se da pele da moça.

"Piop!"

Aquilo soou cavo, como quando se abre uma garrafa de champanha. "Plop, Plop, Plop, Plop!"

Como um pesadelo! O "gangster", que agia como verdugo, ficou rígido, têso como um pau. O cigarro escapou-se-lhe das mãos e ele caiu de bruços.

Os outros dois bandidos levaram as mãos às armas, sem chegar a arrancá-las. Um deles des­lizou para a parede e sua cabeça foi bater violen­tamente no muro, com um som cavo.

Seu companheiro não pôde levantar-se do cai­xote que lhe servia de assento. Começou a tremer e a tossir violentamente. Inclinou-se para a fren­te e caiu de bruços sobre o pavimento. Ali ficou de gatinhas, tremendo e tossindo. Como tossia! Uma borbulhante corrente vermelha saía-lhe da boca.

Subitamente deixou de tossir. Abriu a boca enormemente e retorceu-se numa postura inve­rossímil. Ficou quieto, completamente imóvel.

O tipo gordo não fez o menor movimento. Cra­vou seus negros olhinhos na porta e piscou ner­vosamente, interminavelmente. Segui com o olhar aquela direção.

No umbral da cela havia dois homens e um cão, um enorme "husky" canadense, com as pre­sas à mostra.

O homem, que estava atrás do cão, tinha um aspecto imponente. Deveria medir mais de dois metros de altura, e seus ombros e braços apre­sentavam ondulantes montanhas de músculos, vi­vos e palpitantes. O apertado paletó que vestia não bastava para contê-los.

Quando olhei para o rosto do outro, levei um susto. Conhecia aquele rosto muito bem.

"Era Ames, o mordomo dos Rosemale!"

Trazia na mão uma enorme pistola 45, com silencioso preso ao cano. Comprendi, então, por que os tiros tinham soado daquela maneira es­tranha. Avançou ameaçador para o homem de óculos.

Este olhava-o como fascinado. Seu rosto mo­reno ficara côr de cinza.

- Quem é você? - perguntou.

Ames começou a rir. Era, está claro, Ames; mas eu mal podia reconhecê-lo sob aquele as­pecto. Seu ar pareceu-me o mais demoníaco que já contemplara.

- É você, "você mesmo", quem pergunta isso? - respondeu, abafando o riso.

Fez um sinal a seu gigantesco companheiro e este desatou Lamotte e a moça. Entregou seu pa­letó à moça para que se cobrisse, já que o ves­tido estava irremediavelmente destroçado. Este lhe ficava tão grande, que mais parecia um so­bretudo.

O transfigurado Ames olhou-a e pareceu-me que seus olhos perdiam parte da peculiar dureza que mostravam até então. Fez um gesto com a mão.

- Subam e esperem no carro - disse. - Em seguida me reunirei a vocês.

Os dois saíram e ficamos sós, nós os cinco per­sonagens principais do drama. Ames olhou fixa­mente para o tipo de óculos. Falou em italiano:

- Voi mutate de colore, Vito. (Você mudou de côr, Vito.)

Vito piscou nervosamente. Foi uma estranha expressão a que apareceu em seu rosto.

- Chi siete? (Quem é você?)

- Mi chiarão Martino. II tuo fratello Martino Carone. (Meu nome é Martino. Seu irmão, Mar­tino Carone.)

Vito ficou branco como a parede. Deu um passo para trás.

- Num puó essere - balbuciou. - (Não pode ser.)

- Questo é certo, Martino. (É a verdade, Mar­tino.)

Seguiu-se um silêncio tenso, ameaçador. Aque­les dois homens olhavam-se e era ódio o que flutuava no ambiente. Ames, cujo verdadeiro nome acabava de confessar que era Martino Ca­rone, expressou-se agora em inglês.

- Foi uma simples operação que modificou meu rosto, Vito. Operação plástica, como a cha­mam. E minha filha foi submetida ao mesmo tratamento. Você a teve em seu poder e não percebeu. Ela é Daisy! Sim, Vito; eu o segui de perto durante estes últimos vinte anos. Lem­bra-se quando morreu nosso pai, lá na Sicília? Encarregou Giuseppe de cuidar de nós e ele o fez bem, como um pai. Você era o mais moço; era um garoto quando Giuseppe atingiu o grau de "capo", de "capo mafioso". Ele nos trouxe para a América e nos deu dinheiro.

Fez uma pausa. Apontou, ameaçadoramente, o cano da pistola para Vito e prosseguiu:

- E você, porco, porco, mandou matá-lo! Man­dou matá-lo, porque ele estava velho e você que­ria ser o chefe, o "capo". Seu próprio irmão! "Ti tuo fratello! Ouça. É difícil enriquecer. É pre­ciso trabalhar muito, mesmo num país cheio de ouro como este. Durante muito tempo, você e seus amigos da "Mafia" andaram procurando algo que nem sabiam o que era. Passavam mui­tas coisas, mas você só via as sombras. Eu é quem estava por trás de tudo. Eu também traba­lhava! Vou contar-lhe: eu buscava moços ricos, ricos e aos quais seus pais mantinham bem fe­chados os cordões da bolsa. Sem nenhuma pres­sa. Com um ou dois por ano, ganhava o sufici­ente. Daisy me ajudava. E piu bella la ragazza! Ela os fazia perder a cabeça, gastar e pedir em­prestado. E quando precisavam de dinheiro, eu emprestava, pedindo em troca cheques de quan­tias dez vezes mais altas, com data adiantada.

- AI diavolo se capisco... (Diabo, se enten­da. ..)

- É fácil entender. Quando os cheques esta­vam em meu poder, não havia mais do que des­pachar o dono dos milhões, pai ou mãe, tio ou tia. E cobrar o cheque! O último golpe quase saiu mal. Vocês, os "mafiosi", não perdiam a pista e o herdeiro imbecil desconfiou da ver­dade. Escreveu uma carta à polícia e outra a Daisy, mas trocou os envelopes. De qualquer forma, estando a policia informada, tive que mandar que transformassem o rosto da menina. Eu estava como mordomo na casa de minha úl­tima vítima. Nunca poderiam encontrar-me, Vito! Vocês são uma corja de imbecis. Vocês atrás de Daisy e eu atrás de vocês. Você podia ter seguido ganhando dinheiro, deixando Giuseppe tranquilo e eu também. Mas não, tinha que ir ao fundo. Matar Giuseppe para ser o único chefe e a mim, para que ninguém mais fizesse negócios na ci­dade, além de você. E vai morrer por causa dis­so, Vito!

Vito sobressaltou-se. Não havia dúvida do que agora, sim, reconhecia o irmão, apesar da ope­ração a que se submetera. Lutou desesperadamente para evitar o fatal desenlace.

- Eu não sabia que era você, Martino! - gritou, engasgando-se. - Nunca pretendi matá-lo!

- Il povero Vito Coronel - disse, rindo do irmão. - Não sabia que era eu. Mas bem sabia quem era Giuseppe Carone, seu irmão mais ve­lho! E o matou!

Vito Carone, com o suor escorrendo por sua pele gordurosa, deixou de defender-se. Então Martino voltou-se para seu gigantesco acompa­nhante.

- Amarre-o na cama! — ordenou secamente.

O enorme indivíduo, sem fazer caso dos pro­testos de Vito Carone, agarrou-o pelo pescoço e atirou-o na cama. Em poucos minutos amarra­ra-o aos ferros da cama, de modo que não pu­desse fazer o menor movimento.

Então, quando menos o esperávamos, Ames notou nossa presença.

Aproximou-se e acendeu um cigarro, depois de guardar a mortífera pistola no bolso do paletó.

- Pouca sorte, amigos - observou, de ma­neira casual. - Não deviam ter-se deixado pren­der por esse sapo venenoso de Vito. Agora sabem coisas demais: que o fiel mordomo dos Rosemale chama-se Martino Carone, por exemplo, e que Daisy, a noiva do finado Rosemale "júnior", é minha filha. Ninguém pode saber tanto e... con­tinuar vivo.

Chang sorriu-lhe amavelmente.

- No fim de contas - disse lentamente, - um assassinato a mais ou a menos não importa, não é, Martino?

Martino moveu a cabeça devagar.

- Matar dois imundos "tiras" - disse com voz fria, - não é assassinato.

- Diga-me uma coisa, Martino - perguntou Chang: - Por que mataram Delia Bates?

O italiano riu estrondosamente.

- Era uma moça muito esperta - respondeu. - Viu Daisy na rua um dia, depois que o cirur­gião lhe mudara o rosto, e reconheceu-a. Faz alguns anos, quando eu estava planejando os negócios, conheceram-se e cultivaram certa ami­zade. Naturalmente, quando se deu o encontro ao qual me refiro, Delia pareceu convencer-se de que se enganava, mas eu sabia que isso era peri­goso. Daisy tinha outra cara, mas as maneiras, a voz, isso não havia quem mudasse. Decidi su­primir os obstáculos. Compreendi que era uma boa ocasião para matar dois coelhos com uma só cajadada, em vista de que minha filha parecia ir-se abrandando por causa do pintor. Preparei as coisas, de forma que a Polícia tivesse uma pista. Foi uma sorte que Lamotte conhecesse, também, Delia Bates. Isso facilitou tudo. Depois, fiz-lhe uma visita na prisão, dando-lhe a enten­der que fora Daisy quem eliminara a moça. E Lamotte - no fundo um bom menino - teria deixado que o levassem para a cadeira elétrica para salvar Daisy. Ainda não compreendo como você conseguiu livrá-lo com tanta facilidade. Chang sorriu outra vez.

- Não foi difícil, Martino - explicou serena­mente. - Um pouco de inteligência e outro tanto de sorte. Nenhum criminoso pode vencer a Lei.

- Não, hem? Pois a situação em que se en­contra não é muito propícia para fazer tal de­claração.

Chang cravou seus oblíquos olhos em Martino. Agora não sorria.

- A polícia sabe muitas coisas sobre você Martino - disse com voz dura. - O bastante para que eu me atreva a fazer-lhe uma promessa. Escute. Você é um cão raivoso e como tal será exterminado. Prometo-lhe que assistiremos à sua execução na cadeira elétrica!

O rosto de Martino tornou-se intensamente ver­melho. Descarregou um violento pontapé no ros­to de Chang e deu meia volta. Saiu da peça e nós ficamos sós, sob a vigilância do gigante e do cão-lobo.

Fiz um esforço para pensar na maneira de sair de semelhante atoleiro. Fixei-me em Chang, que estava sangrando em consequência da brutal agressão de Martino.

Vi, também, o rosto de Vito Carone. Rios de suor sulcavam-lhe a pele e seus lábios moviam-se, embora eu nada ouvisse.

O silêncio reinava naquele frio recinto. Um silêncio espesso, profundo. O silêncio de uma tumba.

 

Eu não saberia dizer quanto tempo se passou até a volta de Martino Carone. Devia ter sido pouco, mas pareceu-me uma eternidade. Aquele homem, a quem havíamos conhecido sob a personalidade bondosa de Ames, o mordomo, tinha uma expressão que ficaria bem a um de­mônio.

Parou no meio da sala, embaixo da lâmpada do teto, e acendeu um cigarro.

- Meu querido, Vito - disse ironicamente, - tem a casa convertida em uma fortaleza. Talvez lhes interesse saber que foi ele o único da família a receber instrução. Frequentou a Universidade e licenciou-se em Quimica. Estabe­leceu umas defesas à base de gás, o que de­monstra o partido que tirou dos livros. Vocês devem conhecer.

Nós o sabíamos. Tínhamos caido na armadi­lha como dois coelhinhos.

- Mas - continuou Martino, - não utiliza somente gás lacrimogêneo, não. Tem, também, gás asfixiante. Umas baforadas, e acabou-se. É muito interessante. Desci algumas garrafas para o porão. Quando subir, vou jogá-las pela escada e elas acabarão com vocês. Vito começou a gritar como um condenado.

- Não pode fazer isso, Martino! - vociferou. - Sou seu irmão! II tuo fratello!

- II mio fratello! - riu Martino. - Porco traitore! Porco traidor, é o que você é!

Aproximou-se da cama e fixou seu olhar de tigre no desgraçado irmão.

- Pensa que vou deixá-lo para que morra pelo gás? - gritou, fora de si. - No, per tuti diaboli, no! Você matou Giuseppe e me tentou liquidar. Merece um tratamento especial. Há muito tempo que está vivendo na América e já se tornou americano. Não pode compreender. Te­nho outros planos. Olhe, Vito, faça um esforço e pense. Não adivinha o que lhe vai acontecer?

Vito retorceu-se debaixo das ataduras. Marti­no esboçou um sorriso horrível.

- Você tem mau coração, Vito - prosseguiu Martino. - Está podre. Matar a Giuseppe! Sim, seu coração está podre! Só existe um meio de comprovar isso. Vou arrancar-lhe o coração e dá-lo a meu cachorro, Vito. Se não é verdade que ele tenha veneno, o cão o comerá. Então, eu me arrependerei, Vito, prometo-lhe. Mas, se tiver veneno, nem se atreverá a cheirá-lo. Eu me alegrarei por tê-lo matada. Porco!

Senti meu coração paralisado. Aquele diálogo de loucos sanguinários, de pesadelo, carecia de toda lógjca. Mas algo me advertia que uma coisa horrível estava por acontecer e que nada, nem ninguém seria capaz de impedi-la.

Paralisado de espanto, vi Martino afastar-se da cama em que jazia seu irmão e assobiar de modo peculiar. O cão deu um salto e aproximou-se dele, com as presas de fora. Quando Martino sorriu, não pude deixar de notar que havia certa semelhança entre o homem e a besta.

O criminoso, então, voltou a cabeça para seu gigantesco e silencioso acompanhante.

- Está-se aborrecendo, não é, Al? - pergun­tou.

O musculoso gigante sorriu, mas não disse nada.

- É preciso remediar isso, Al. Ocorreu-me uma pergunta: seu punhal está bem afiado? Se qui­ser divertir-se, terá que estar.

O gigante sorriu satisfeito. Compreendi que tudo aquilo não era dito casualmente, mas que as palavras eram dirigidas ao homem deitado. Vi como o enorme indivíduo levava a mão a um bolso do paletó e tirava um punhal. Apertou um botão e a lâmina saltou, produzindo um som metálico.

Senti que os cabelos se me eriçavam. A excitação nervosa fez-me tremer, como se eu tivesse malária. Martino estava falando de novo. O que diria?

- Pronto, Al?

Sim! Mas, que mais? Que Deus se apiade de mim! Porque era isso:

- Arranque-lhe o coração e jogue-o para o cachorro!

Vito gritou. Foi um grito louco, longo, tre­mendo, que não se acabava nunca. O cão come­çou a uivar e eu tive um ataque de loucura. Gri­tei também, gritei tanto e com tanta força que alcancei, que ultrapassei os demais sons! Não precisava tomar alento para continuar gritando. Creio que nem o teria necessitado para continuar vivendo.

Perdi a noção de tudo. Só recordo que estava ali, em meu canto, retorcido e com a cara contra o chão. E a voz de Chang dizia-me coisas que não pude entender a princípio. Depois, tudo foi-se tornando mais claro.

- Vire-se, Bill. Vou desatá-lo.

Sim, desatar-me. Hem? Desatar-me?

Agora a névoa vermelha, que toldava minha visão, havia desaparecido. Compreendi que está­vamos soltos. Os três. Chang e eu. E Vito, ainda amarrado à cama de ferro. Não consegui voltar a cabeça naquela direção. Não que eu não qui­sesse, mas é que não podia.

Isso estava melhor. Chang encontrava-se livre das ataduras e fechava a porta. Depois, veio para mim e desatou-me rapidamente.

- Consegui quebrar uma das garrafas vazias e cortar as cordas - explicava-me. - Foi uma sorte. Esse bandido do Martino atirou as garrafas de gás lá fora, como prometeu. Temos muito pou­co tempo, antes que o ar se contamine. Vamos fabricar máscaras contra gás.

Compreendi o perigo que corríamos. Em se­guida, acalmei-me. Como poderíamos fabricar máscaras, ou o que quer que fosse, em alguns minutos? Uma vez mais, subestimei a rapidez mental de meu valente companheiro.

- Arranque a parte carbonizada dessa mesa - disse-me, rapidamente. - Reduza o carvão a pó, com os saltos.

Precipitei-me para fazer o que ele me ordena­va. Um momento depois, estava esmagando o carvão com os saltos dos sapatos. Preparei tan­to quanto pude. Enquanto isso, Chang não per­dia tempo. Dedicou-se a bater nos fundos das garrafas, uma a uma, até arrancar-lhes as ba­ses. Quase todas transformaram-se em cacos, mas três delas perderam o fundo muito bem.

- Depressa! - apressou-me ele. - Encha as garrafas com pó de carvão e amontoe-o bem. As­sim.

Pôs-se a encher uma, metendo o pó de carvão pela abertura dos fundos, apertando-o com os dedos. Iniciei a operação rapidamente. E fiz-me vários cortes com as bordas das garrafas. Fica­ram preparadas num instante.

- Vejamos se funcionam - sorriu Chang. - Temos que respirar através do carvão, para que o gás filtre.

Meteu na boca o gargalo de uma garrafa e sujeitou-o com os dentes. Aspirou, soltando logo o ar pelo nariz.

- De primeira! - aprovou. - Experimente e verá.

Tratei de respirar através da garrafa quebra­da. O ar passava com certa dificuldade e lenti­dão entre o pó de carvão, mas servia. No fim de contas, só as necessitávamos para atravessar o porão e subir as escadas. Uma vez fora de casa, tudo estaria salvo. Um pensamento assal­tou-me, repentinamente.

- Um momento, Chang! - disse. - Que es­pécie de gás será o que soltou Martino? Sufo­cante ou...?

Não me atrevi a terminar a pergunta. Chang olhou-me fixamente. Tinha as mandibulas cer­radas.

- Ou vesicante? - respondeu. - Não se preo­cupe com semelhante dilema. Saberemos disso, logo que atravessarmos a porta.

Certo. Mas se o gás fosse asfixiante, não nos seria difícil a empresa que tentávamos, enquan­to que, se se tratasse de gás vesicante, que atua sobre toda a superfície da pele que entre em contato com ele, tudo estaria terminado para nós. Seria a morte, numa de suas mais horren­das formas.

Chang aproximou-se da porta, munido de sua garrafa contra gás. Guardou no bolso a que tí­nhamos de reserva e olhou-me. Estava pálido, mas seu rosto refletia a firmeza que lhe dera fama no Federal Bureau of Investigation.

- Sujeite-a com os dentes, tão forte quanto puder - advertiu-me. - Tape o nariz com a mão e siga-me.

Nós dois executamos aquelas manobras. Eu sentia como se meu coração fosse um martelo de vinte quilos, a julgar pelo modo como me ba­tia nas costelas.

Chang abriu a porta!

Uma nuvem de fumaça esbranquiçada invadiu a peça. Precipitamo-nos para o corredor e avan­çamos para a escada.

As máscaras, que havíamos improvisado, não eram tão perfeitas como seria de desejar e par­te do gás filtrava-se para nossos pulmões, quei­mando como fogo. Senti uma vontade louca de tossir, mas lembrei me que isso seria o mesmo que suicidar-me. Apertei os dentes contra o gar­galo da garrafa que levava metida na boca e procurei não me afastar de Chang.

Uma esperança forte pulsava em meu peito. Acabava de reconhecer a gás. Um composto de cloro, mortífero, mas não vesicante. Tínhamos grandes probabilidades. E devíamos aproveitá-las. Procurei respirar o menos possível.

A escada! Cada um dos degraus parecia ter um quilômetro de altura. Subi-los respirando pouco era um tormento. Mas o conseguimos. Uma vez em cima, na entrada, quase não havia vestígios de gás. Corremos para a porta, que estava aberta e saímos.

Tiramos as garrafas da boca e começamos a tossir em coro. O ar fresco da noite era vivificante. Sentimo-nos melhor, imediatamente. Vi que Chang jogara a máscara de sua invenção atrás de uns arbustos. Não o imitei, guardei a minha no bolso para conservá-la como recorda­ção daquela terrível noite.

- Con...se...gui...mos salvar ...a... pele — disse-me Chang, no meio de um acesso de tosse.

- Você... é... um... gran...de amigo - respondi-lhe, também tossindo.

Esbocei o familiar gesto para a cintura, em busca de minha fiel Luger. Recordei que está­vamos desarmados.

- Alto! - gritou alguém. - Mãos ao alto! Não me preocupei em obedecê-lo. Reconheci a voz do tenente Davis. Também ele nos reconhe­ceu e baixou a pistola que trazia na mão.

- Um motorista encontrou a nota que deixa­ram no carro - explicou. - O que foi que houve?

- Não há tempo para conferências, Davis - interrompeu-o Chang. - Avise seus homens para não entrarem na casa. Está cheia de gás vene­noso. Em marcha para os carros!

Chang saiu correndo e eu atrás. Davis deixou um homem de guarda diante da casa e seguiu-nos com outros três policiais uniformizados. Quando chegamos à estrada, Chang já estava dentro de meu carro. Sentei-me ao volante e apertei o botão de arranque. Davis meteu a ca­beça pela janelinha.

- Agora mesmo vão me explicar que, diabos, está acontecendo! - gritou. - Eu também tenho algumas coisas para lhes contar. E vão ficar ge­lados!

Era o que eu supunha. Agora, como era de esperar, Davis já sabia que Chang o enganara, para tirar Lamotte de Sing-Sing.

- Entre e, pelo caminho, eu lhe explicarei tudo - sugeriu Chang. - O carro-patrulha pode seguir-nos.

Davis entrou. Quando arranquei, Chang fez-me um sinal com o polegar.

- Vamos a Long Island - disse. - A casa dos Rosemale. Ames, ou Martino, como preferir, terá ido para lá a toda velocidade em busca de suas coisas, disposto a desaparecer. Você deve provar o que é capaz de fazer com um volante nas mãos.

Apertei os dentes. Deixei Chang explicando a Davis nossa versão sobre o caso, dedicando toda minha atenção em levar o carro para Long Is­land, no mais curto espaço de tempo possível.

Oitenta, noventa quilômetros por hora. Cento e dez, cento e vinte, cento e trinta. O vento sil­vava contra a carroçaria do possante carro de corridas. Cento e quarenta, cento e cinquenta por hora. A estrada estava num magnífico estado, mas o volante escapava-me das mãos.

Cento e sessenta. Cento e oitenta quilômetros por hora! Não devia ultrapassar aquela veloci­dade. Pensei rapidamente. Se atravessássemos a cidade, perderíamos muito tempo. Era preciso encontrar outra solução. Que estradas poderiam servir-nos?

Estávamos na número nove. Teríamos que con­tornar Bronx e passar para a estrada "IA", para atravessar Queens, tomando logo a "25A" e ter­minar na "25". Isso supunha um contorno, mas seria tudo estrada e ganharíamos tempo, mais do que se atravessássemos a movimentada par­te de Manhattan.

Tomei várias curvas só com duas rodas. Pare­ceu-nos ouvir várias exclamações de Davis e também percebi as sereias dos motoristas da Po­lícia. Em cada posto que passávamos, alguma Harley Davidson unia-se a nós, tripulada pela Polícia. Certamente estávamos infringindo todos os limites de velocidade do Estado.

De qualquer forma, não nos viria mal um re­forço da Polícia. Pelo menos, manteriam a es­trada sem tráfego, já que todos os carros, que ouviam o uivo das sereias, apressavam-se em deixar a passagem livre, afastando-se para as bordas.

Inesperadamente senti que havíamos chegado a nossa meta. Reduzi a velocidade e fui aplicando os freios, pouco a pouco. Paramos diante da casa dos Rosemale.

Chang entregou-me a Luger.

- Um dos "gangsters" guardava-a no bolso - explicou-me.

 

Ao parar o motor e descermos do carro, foi que notamos o silêncio que reinava ali. As se­reias dos carros e motociclos da Polícia soavam fracamente ao longe. Mas na grande casa dos Rosemale não se percebia outro som, além do produzido pelo vento ao filtrar-se atra­vés das folhas das árvores.

E, no entanto, havia muitas luzes acesas no prédio. De pistolas nas mãos, precipitamo-nos para o interior. Havia um rasto a seguir. Um rasto de cadáveres.

No amplo "hall" via-se estendido o corpo de um homem. Um empregado da casa, a julgar pelo colete com mangas listradas que vestia. Na escada aparecia o cadáver de alguém que eu conhecia. Recordei-me que o vira na noite em que se suicidara o jovem Rosemale. Devia ser o secretário, ou algo assim, pois vestia o mesmo terno de passeio daquela memorável noite.

- Não perderam tempo em dar explicações - observou Chang, friamente. - Certamente, nosso amigo Martino-Ames tinha suas finanças aqui. Por isso é que vieram e liquidaram com tudo quanto encontraram na passagem. Vamos olhar as dependências dos empregados.

Encontramo-las no segundo andar. Reinava uma desordem indescritível em uma delas, como se tivesse sido saqueada por uma horda de bár­baros. Uma pequena estante cheia de livros, que possuía dobradiças, aparecia um tanto afastada da parede, numa de suas extremidades. Puxei-a e surgiu um pequeno cofre, embutido na parede. Experimentei a porta. Estava aberta e não ofere­ceu resistência. Nada havia dentro.

- Acabou-se! - disse Davis, com desânimo.

- Nunca acaba assim a perseguição aos cri­minosos, Davis. Vamos voltar ao carro!

Compreendi-o imediatamente. Martino não sa­bia que havíamos escapado à morte, mas tão pouco perderia tempo para fugir. Ignorando que tanto Chang como eu estivéssemos vivos, e não sabendo que o pontão do amigo de Lamotte já havia sido localizado por nós, havia grandes pos­sibilidades que se tivesse dirigido para lá.

Quando subimos ao carro e arranquei, Chang dirigiu-me um de seus frios sorrisos.

- Não se apresse demais para chegar ao canal Kill van Kull - preveniu-me. - Martino não sabe que andamos atrás de suas pegadas. E, por outro lado, nós somos as únicas pessoas que sa­bem onde encontrá-los. Se nos acontecer um acidente, nada será capaz de detê-lo.

Reduzi a velocidade. Efetivamente Chang tinha razão. De qualquer forma, quando, os carros da Polícia chegassem à casa dos Rosemale, não te­riam nem idéia de qual a direção que havíamos tomado. Portanto, não iríamos contar senão com nossas próprias forças para deter, ou extermi­nar, Martino Carone.

Sorri ao pensar nisso. Raramente intervém mais de dois agentes federais nos casos entre­gues ao FBI. O normal é que um só homem se ocupe de quatro ou cinco assuntos ao mesmo tempo.

Bem, com um pouco de sorte, antes que sur­gisse o novo dia, tudo estaria acabado. Não foi pronunciada uma só palavra durante o trajeto. Atravessamos as adormecidas ruas de Bayonne e chegamos em frente ao canal.

- Deixe o carro por aqui, Bill - ordenou Chang. - Vou adiantar-me para dar uma espia­da. Acompanhe Davis para que ele entre em co­municação com Centre Street, pela primeira ca­bina telefônica que encontrarem. Não demorem muito.

Perdeu-se na escuridão. Lancei um olhar em busca de um telefone público. Vi que Davis fa­zia sinais com o braço. Segui com os olhos aquela direção. Havia um polícia na esquina.

O homem aproximou-se e Davis mostrou-lhe sua placa. Depois, redigiu uma breve nota e entre­gou-a ao policial, recomendando-lhe que telefo­nasse imediatamente.

- Logo teremos reforços - disse-me. - Va­mos atrás de Chang.

Guiei-o até a margem do canal. A noite era muito escura e não havia lua. Só um pálido bri­lho de estrelas iluminava um pouco aquele negrume. Encontramos Chang no velho barco enca­lhado que nos servira de observatório na tarde anterior. Só poucas horas haviam passado, mas pareciam-me séculos.

Chang estava em frente à janelinha da ponte, contemplando o pontão. Havia uma única luz na coberta. Davis sentou-se sobre o caixote que nos servira de mesa, quando de nossa primeira visita ali. Eu me apoiei ao tabique e apanhei o maço de cigarros. Acendi um e fiquei fumando em silêncio. Para compreender os sucessos que se seguiram, é necessário entender que eu ainda me encontrava sob os efeitos do gás, que quase acabara conosco. A cabeça zumbia-me e não tinha o pulso muito regular. Entretanto, com a excitação da caça ao homem eu nem me dava con­ta disso.

Olhei para a divisão que nos servia de porta e vi dois pequenos pontos luminosos, de fulgor esverdeado. Contemplei-os estupidamente, perguntando-me o que poderiam ser.

Não tardei a saber. De súbito, pareceram au­mentar de tamanho e elevaram-se no ar. À es­cassa luz das estrelas, reconheci o cão de Martino Carone. Pelo que eu sabia sobre os "huskies" es­quimós, aquele animal seria tão perigoso quanto um puma. Puxei minha Luger e atirei.

O tiro não deteve a trajetória do animal. Fi­quei sabendo logo que o ferira. Mas, na hora, isso não parecia ter acontecido. Derrubou Davis e ouvi-os lutar, estreitamente abraçados na incli­nada superfície da ponte.

Chang, de pistola na mão, aproximou-se para ajudá-lo.

Uma figura entrou pela abertura e caiu sobre eles. O gigantesco Al atacava-nos!

Vi-o agarrar Chang pelos ombros e empurrá-lo para a parede. Estava esmagando-o! Imediata­mente me acalmei. Ergui a pistola e disparei so­bre as largas costas do gigante.

Dois tiros. Os vermelhos lampejos perfuraram a escuridão, iluminando a cena. Ele segurava Chang com uma das mãos. Na outra empunhava o punhal de molas. Devia estar fazendo a mira, porque a arma escapou-se-lhe das mãos. Soltou meu companheiro e avançou para mim.

Disparei uma vez, duas, três. Não se deteve. Suas enormes mãos estavam estendidas para agarrarem minha garganta. Em rápida sucessão, fiz fogo duas vezes mais. Na terceira vez que apertei o gatilho, a pistola permaneceu muda. O tambor estava vazio.

O pânico invadiu-me. A tão curta distância não podia ter falhado nenhum dos tiros, mas o mons­truoso indivíduo não dava mostras de estar fe­rido. Caiu sobre mim e seus horríveis dedos cercaram minha garganta. Soltei a inútil pistola e procurei afastar de meu pescoço aquelas tenazes, que me estavam asfixiando.

Compreendi logo que jamais o conseguiria. Aqueles braços não eram de carne e osso, mas de aço bem temperado. Dizem que quando al­guém se encontra em perigo de morte, costuma pensar com rapidez e com clareza, impossíveis em circunstâncias normais. Assim deve ser, por­que num segundo percebi a única possibilidade que eu tinha de salvar-me.

Lembrei-me de que ainda tinha no bolso a gar­rafa quebrada que utilizáramos contra o gás. Uma garrafa sem fundo!

Segura pelo gargalo, é tão eficaz quanto o me­lhor punhal. Febrilmente, cheio de pânico, pu­xei-a do bolso e levantei-a no ar. Já não me res­tavam mais do que alguns segundos antes do desfalecimento, antes da morte. Aproveitei aque­les segundos.

Sem compaixão, freneticamente, cortei, rasguei, destrocei com as afiadas bordas da garrafa que­brada. O rosto, o pescoço, a garganta do gigante.  Posteriormente a autópsia revelou que Al tinha seis balas no corpo, Sendo quatro mortais.

Soltou-me e retrocedeu um passo. Respirei convulsivamente. O ar fresco, entrando em torrentes nos meus doloridos pulmões, fez-me voltar à vida.

Subitamente chegou o final. O gigante caiu de joelhos e levou as mãos ao rosto. Lançou um gemido horroroso, borbulhante, pro­fundo, como o bramido de um demônio. E caiu de lado, morto. Por fim, morto!

Senti uma alegria feroz ao pensar que o mun­do estava livre de semelhante monstro.

Um fósforo foi aceso. Era Chang que buscava sua pistola. Encontrou-a.

- Acenda outro, Chang! - gritei. - Eu também perdi a Luger.

Não demorei multo para encontrá-la e coloquei-lhe nova munição, quando Davis se uniu a nós. Lembrei-me do cão.

Acendi um novo fósforo. Chang tinha o rosto muito maltratado e as roupas em farrados. Da­vis apresentava quase o mesmo aspecto, o sel­vagem animal arranhara-lhe parte do rosto e do peito.

- Vamos para o pontão! - Chang foi o pri­meiro a recobrar a serenidade. Um simples olhar pela janela da ponte, fez-me compreender que o tempo urgia.

À luz que havia sobre a coberta da estranha embarcação três pessoas dispunham-se a aban­doná-la. Reconheci as três, Martino Carone, Daisy e Lamotte.

Saímos pelo casco e corremos para o desembarcadouro. Os fugitivos estavam na metade da pas­sarela, quando notaram nossa presença. Os tiros, que tínhamos dado pouco antes, tinham-nos alar­mado e prepararam-se para qualquer contingên­cia.

Uma pistola ladrou e senti a bala assobiar a curta distância de minha cabeça. Chang atirou e as três mal delineadas figuras voltaram para a coberta do barco, buscando refúgio atrás da amurada.

Um carro da polícia apareceu então, fazendo soar a sereia. Freou junto ao desembarcadouro e suas rodas patinaram. Cinco policiais unifor­mizados, comandados por um sargento, saltaram à terra e correram em nosso auxílio.

- Não atirem - ordenou Chang. - Tem um megafone?

Um dos policiais voltou ao carro e trouxe o apa­relho. Chang tomou-o e falou por ele.

- Soltem as armas e saiam com os braços para o alto! - a voz, amplificada, ressoou na outra margem do canal.

Silêncio. Chang insistiu:

- Ouça, Lamotte! Você não é um criminoso! Entregue-se!

Da coberta do pontão brotou um fogo mortí­fero. O sargento deu um salto e caiu de bruços, com um tiro na cabeça, que atravessava de ore­lha a orelha.

Outro policial gritou ao receber uma carga de candente chumbo no estômago, Deitamo-nos no chão e Chang observou-me:

- Atiram com três armas.

Assim era. Lamotte não era um criminoso, mas amava Daisy e morreria lutando com ela e por ela. Uma causa má, mas ainda as há piores. Chang tomou uma decisão.

- Disparem discretamente - disse com voz dura. - Atirem para matar!

Ergui a pistola e atirei contra o inimigo. Abri­mos um fogo cerrado, verdadeiramente tremen­do. O policial que estava a meu lado, levantou o fuzil. Apontou para baixo e lançou uma descarga.

Atrás da amurada ergueu-se uma figura. Lan­çou um grito de dor e disparou contra nós. Ergui minha Luger, mas não cheguei a fazer fogo. O policial apertou o gatilho pela segunda vez e a figura caiu para trás.

Senti uma náusea violenta. Tudo escureceu em volta de mim e perdi a noção das coisas.

Quando recobrei os sentidos, estava em minha casa, deitado em minha cama. Minha mulher encontrava-se ali, falando com o doutor Tendi, nosso médico.

- Está tudo terminado - a voz de Davis obrigou-me a voltar a cabeça.

- Onde está Chang? - perguntei.

- Nós o trouxemos para cá. Está no quarto ao lado. São os efeitos do gás, mas o doutor diz que não tem gravidade.

- O que aconteceu lá, em Kill van Kull?  - Davis sorriu.

- Daisy e Lamotte morreram. Assim não teremos que dar explicações pela maneira que Chang utilizou para arrancar o pintor do cárcere. E quanto a Martino Carona, embora com ferimentos graves, creio que viverá. Mas são muito tempo. A cadeira elétrica espera-o.

Senti que ia desmaiar outra vez.

 

NOTA FINAL:

Embora o relato do caso devesse terminar com sua definitiva solução, julgo conveniente acres­centar alguns dados mais sobre o assunto, que imagino serem de interesse para os leitores.

Dois meses depois da destruição do estranho sindicato do crime, que Martino Carone havia montado, dirigimo-nos, de madrugada, para a sombria ilhota do Hudson, onde se ergue Sing-Sing, a famosa prisão de Nova Iorque. Martino Carone ia pagar por seus crimes e Chang e eu tínhamos sido designados como testemunhas por nosso Departamento.

Depois de preenchermos as formalidades de ri­gor e de esvaziarmos nossos bolsos para provar­mos que não levávamos nenhuma microcâmara fotográfica oculta, nós dois e várias outras tes­temunhas, jornalistas quase todas, embora hou­vesse também um sacerdote, fomos conduzidos a um estreito recinto com várias filas de cadeiras.

Em frente estava a cadeira elétrica, negra e de aspecto inocente. Pela porta de ferro dos fun­dos devia entrar o condenado, acompanhado pelo diretor da prisão, por dois guardas e um sacer­dote.

Observamos nossos relógios. Só esperamos uns dez minutos, mas pareceram-nos horas.

Quando a porta fatídica se abriu, todos olha­mos para lá, com uma mistura de interesse e compaixão. Creio que, apesar de saber que aqui­lo era a justiça aplicada a um criminoso empe­dernido, não podíamos esquecer que se tratava de um ser humano.

Martino Carone tinha um coração de pedra. Avançou entre dois guardas e deteve-se a uma ordem deste. Parou junto à cadeira. Olhou-nos com desprezo.

O diretor perguntou-lhe se tinha alguma coisa a dizer. A resposta foi digna dele:

- Só isto: se eu tivesse uma arma nesse mo­mento, não estariam estes idiotas aqui em fren­te, sentados, tão tranquilos. Aproveito a ocasião para dizer-lhes: vão para o inferno!

Como um dos guardas o segurasse pelo braço para levá-lo para a cadeira, ele sorriu amarga­mente.

- Está bem - aprovou. - Estou cansado de ficar de pé. Prefiro sentar-me, a não ser que o diretor queira ocupar o lugar.

O diretor encolheu os ombros. Não estava acos­tumado a tanto cinismo. Sentaram-no na cadeira e o prenderam a ela com tiras de couro para isso destinadas. Então Martino pediu um cigarro. Colocaram-no nos lábios e o acenderam. Tinham-lhe raspado uma parte dos cabelos para aplica­ção dos electródios.

Deixou-os agir tranquilamente. Enquanto eu re­zava, mentalmente, uma oração por sua alma, procurei imaginar o que é que pode levar os ho­mens a semelhante destino, sem conseguir en­contrar uma resposta apropriada.

Subitamente, a luz perdeu sua intensidade, di­minuindo de volume. Acabavam de desferir a primeira descarga. Outra vez, ao cabo de pou­cos segundos, repetiu-se a manobra. Depois a luz recuperou sua intensidade normal.

Não havia nenhuma lei que me obrigasse a olhar para o rosto do justiçado; mantive os olhos baixos. Entretanto, há uma cena que recordarei sempre. As duas pernas de Martino Carone, amar­radas à cadeira e, entre elas ,o cigarro queiman­do, que ele estivera fumando quando pagara por seus crimes.

Já fora da prisão, quando atravessávamos a Quinta Avenida, na esquina da rua Trinta e Qua­tro, Chang disse-me:

- Pode deixar-me aqui.

Parei o carro e Chang saltou para a calçada.

- Não esqueça que deve vir almoçar em nos­sa casa. Katinka nunca o perdoaria, se falhasse.

Chang sorriu.

- Fique descansado, meu caro - e dispôs-se a se afastar. Mas havia algo que eu queria saber. Algo que calara até o último momento.

- Espere um pouco, Chang.

Ele parou e olhou-me interrogativamente.

- Diga-me uma coisa - comecei: - Você se lembra da noite em que Martino quase nos li­quidou com as garrafas de gás?

- Não a esquecerei facilmente.

- Martino ordenou a Al que arrancasse o co­ração de seu irmão Vito e que o jogasse ao cão.

Chang acendeu um cigarro.

- Isso mesmo. E assim foi feito - respondeu - Por que me pergunta isso, se deve sabê-lo  tão bem quanto eu?.

- Uma coisa eu não sei. E quero sabê-la. É uma pergunta horrível, mas quero que ela e a resposta encerrem o relato do caso. O que fez o cão? Comeu-o?

Chang jogou o cigarro fora e olhou-me com seriedade.

- Não, Bill. Aproximou-se, cheirou-o e retro­cedeu, com os pêlos do pescoço eriçados. Martino afastou-o com um pontapé, jogando-o para um canto.

Deu meia volta e desapareceu rua abaixo. Eram sete horas da manhã. Um rumor persistente ia adquirindo volume pouco a pouco, envolvendo a grande cidade.

Nova Iorque estava acordando.

O disco vermelho do sol já surgia por Hoboken.

E isso é tudo, amigos. Em breve terão notícias nossas.

  

                                                                                            M. Saavdrovitch

 

 

                      

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